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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS SONHOS MORREM PRIMEIRO / Harold Robbins
OS SONHOS MORREM PRIMEIRO / Harold Robbins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O livro traz como protagonista Gareth, um ex-soldado da guerra do Vietnã que, embora de família rica, vive às custas de salário desemprego, quase como um vagabundo. Seu tio Lonergan, um homem misterioso que tem negócios suspeitos tem um relacionamento nada cordial com o sobrinho. É que Gareth, na verdade, sabe que seu pai se matou e que seu tio contribuiu para isso. Mas, mesmo assim, Lonergan lhe oferece ajuda, comprando um jornal de bairro para que ele administre. A partir daí, diversos personagens aparecem na história, com o autor colocando em discussão temas como a homossexualidade e o preconceito. De um jornal medíocre e falido, Gareth cria uma revista masculina, a "Macho", vira editor, tornando-se uma pessoa muito rica e figura importante no mundo financeiro e publicitário.

 

 

 

 

Livro primeiro - O lado de baixo

Capítulo um

Só fui acordar às cinco horas da tarde. O quarto estava impregnado do cheiro de pontas de cigarros e de vinho tinto barato. Rolei para fora da cama e quase caí em cima de um rapaz que dormia no chão ao lado da minha cama. Arregalei os olhos cheios de surpresa. Não fazia a menor idéia de como e a que horas ele fora parar em meu apartamento. O pior de tudo era que eu nem o conhecia.

O cara não se moveu quando atravessei o quarto, levantei a cortina e abri a janela. Diz uma canção que nunca chove no sul da Califórnia. Mentira. Do jeito que o vento açoitava a água em cima de mim era como se eu estivesse tomando um banho -frio de chuveiro. Fechei a janela com um palavrão.

Alguns pingos de chuva bateram no rapaz mas nem por isso ele acordou. Limitou-se a rolar para o lado e encolher-se como uma bola, com os joelhos dobrados por cima do peito. Tive que rodeá-lo para poder alcançar o banheiro. Ainda me restava meia hora para ir até o auxílio-desemprego e receber meu cheque. Se corresse, ia dar tempo.

Dez minutos depois, eu saía do edifício. O Cobrador, cujo novo Jaguar 68 vermelho atrapalhava o tráfego que vinha de Highland naquela hora de movimento, estava sentado à minha espera. Acenou e eu atravessei a calçada batida pela chuva e entrei no carro.

— Ainda não recebi o dinheiro — eu disse, antes que ele pudesse abrir a boca. — Ia agora mesmo ao auxílio-desemprego.

O rosto escuro do Cobrador se franziu num sorriso mole.

— Não tem importância, Gareth. Estava mesmo calculando isso. Vou levar você até lá.

Saiu com o carro, dando pouca importância às buzinadas que provocou.

— Os negócios devem andar bem mal para que Lonergan mande você cobrar uma grana tão mixuruca.

Ele riu.

— Lonergan sempre foi de opinião que, se a gente cuidar bem dos centavos, os dólares se arrumam sozinhos.

Que é que eu ia dizer? Dependia há tanto de Lonergan que quase não me lembrava mais de como tudo começara. Três ou talvez quatro meses antes, quando ficara com pouco dinheiro depois do meu primeiro cheque de desemprego, havia recorrido a ele e nunca mais me livrara. Era como se eu recebesse com um desconto na fonte de dez dólares. Todas as semanas, eu lhe entregava o meu cheque de desemprego de sessenta dólares e ele me dava cinqüenta dólares na ficha. Se eu pudesse passar uma semana sem os cinqüenta dólares, ficaríamos quites. Mas não dava pé. Sem o dinheiro, começaria a me destruir.

O Cobrador entrou no estacionamento e parou o carro diante da entrada.

— Vá receber que eu espero.

Saltei do carro e corri para a porta. Cheguei bem na hora em que os guardas iam fechar tudo. Verita, a mexicaninha, estava no guichê em que eu costumava receber.

— Pelo amor de Deus, Gary! Por que chegou tão tarde?

— Não adivinha? Estava procurando emprego.

— Foi mesmo, engraçadinho? — disse ela, tirando os papéis da gaveta para eu assinar. — Estava chovendo e você ficou na cama com alguma mulher esperando que a chuva passasse.

— Só quando você está na cama comigo, querida, é que eu me esqueço da hora. Nenhuma outra mulher consegue me prender.

— Aposto que diz isso a todas — disse ela, sorrindo e me entregando o cheque.

— Não é verdade. Se quiser ter certeza, pergunte às outras.

— Vou fazer esta noite um bom jantar mexicano. Enchiladas, tacos com carne de verdade e um bom vinho tinto. Estou esperando-o.

— Não posso, Verita. Palavra que eu tenho um encontro esta noite com um homem que ficou de me arranjar um emprego.

— Nunca vi um homem dizer "palavra" que não estivesse mentindo.

— Fica para a semana que vem, sim? — disse eu, tomando o caminho da porta.

— Nada feito na semana que vem — disse Verita.

Mas eu já estava na porta e só quando cheguei ao carro foi que compreendí o que ela queria dizer.

O Cobrador estava com a caneta pronta à minha espera. Endossei o cheque e entreguei-o a ele. O homem verificou a minha assinatura e guardou o cheque no bolso.

— Muito bem. Agora, vá saindo.

— Que é isso? Cadê meus cinqüenta dólares?

— Isso está cancelado. O seu crédito estourou.

— Que conversa é essa? O nosso trato não foi esse.

— O trato só vigorou enquanto você recebia os cheques. Você não está a par das coisas como Lonergan. Ele sabe que este é seu último cheque e que você só pode requerer novo auxílio por desemprego daqui a três meses.

— E que é que eu vou fazer? Estou duro!

— Pode voltar a trabalhar em vez de andar se arriscando a pegar uma gonorréia de algum rapazinho.

Não me restava dizer mais nada. Lonergan parecia mesmo saber de tudo.

O Cobrador estendeu a mão por trás de mim e abriu a porta. Tratei de sair mas ele encostou a mão em meu braço.

— Lonergan disse que, se você quiser mesmo trabalhar, pode ir procurá-lo hoje, depois da meia-noite, na sua sala dos fundos do Dome.

Fechou então a porta e saiu com o carro, deixando-me sozinho no passeio, com a chuva a escorrer-me pelo rosto. Meti a mão no bolso e encontrei um maço de cigarros todo amarrotado. Ainda havia uns três. Voltei para junto do edifício, procurei um ponto abrigado do vento e acendi um deles.

Quando levantei a cabeça, vi Verita que ia saindo do estacionamento no seu velho Valiant. Dei-lhe adeus. Ela parou e eu corri para tomar o carro.

— O encontro que tenho marcado é para depois da meia-noite, Verita. De modo que se o seu convite ainda está de pé...

Verita tinha um pequeno apartamento em Olivera Street. Olhando da janela, podia ver a rua toda iluminada e sempre movimentada. Os chicanos não pareciam se incomodar com a chuva. Depois do jantar, era a hora do passeio. Eles, então, saíam acompanhados da filharada toda e ficavam andando de um canto para outro até que tudo se fechava às duas horas da madrugada. Os mais pobres levavam os filhos para casa e os que tinham dinheiro iam para os lugares que ficavam abertos até mais tarde. Os mexicanos não gostavam de dormir à noite.

— Você faz isso tão bem, Gary! Nunca encontrei ninguém como você!

Rolei o corpo e saí da cama.

— Vai sair? Ainda está chovendo. Pode passar a noite aqui comigo.

— Eu não estava mentindo. Tenho um encontro marcado com um homem que pode me arranjar um emprego.

— Quem marca encontros para falar de empregos depois da meia-noite, Gary?

— Lonergan — eu disse, estendendo a mão para as minhas calças.

— Oh! Vou ao banheiro me lavar e já volto. Vou levar você até lá — disse Verita.

Ficamos em silêncio no carro até que ela parou perto do escritório de Lonergan nos fundos do Cinerama Dome.

— Quer que eu fique esperando?

— Não, Verita. Não sei quanto tempo vou demorar. Ela hesitou um momento.

— Esse homem não presta, Gary. Tenha cuidado. Olhei para ela, surpreso.

— Ele fica à procura de quem não tem dinheiro para explorar impiedosamente. Sei de muita gente assim. Às vezes, manda o Cobrador esperar as pessoas quando vão receber o último cheque. Como esperou você hoje.

Fiquei espantado. Não pensei que ela tivesse visto o Cobrador.

— Não se incomode, que eu sei me defender.

— Tem dinheiro? — perguntou ela.

— Darei um jeito.

Ela tirou da bolsa uma nota de dez dólares que passou às minhas mãos.

— Tome. Ninguém deve ir conversar com Lonergan de bolsos vazios.

Quis recusar mas ela disse prontamente:

— É um empréstimo, está bem? Você me paga logo que tiver emprego.

Guardei a nota no bolso, agradecí e beijei-a.

A chuva tinha parado. Esperei que ela engrenasse o carro e partisse. Dirigi-me ao bar do Silver Stud.

O bar estava quase vazio. Apenas algumas pessoas acariciavam os seus drinques. Olharam logo para mim e com a mesma rapidez me excluíram das suas cogitações. Ainda era muito cedo para os homossexuais ricaços descerem das alturas onde moravam. Passei pelo bar. O escritório de Lonergan ficava nos fundos, depois de uma pequena escada.

O Cobrador estava sentado no escuro perto da escada e estendeu a mão para me barrar.

— Lonergan está atrasado. Ainda não chegou.

— Está bem.

— Sente-se e beba alguma coisa.

Olhei-o com espanto e o homem sorriu. Os seus dentes brilharam na escuridão.

— Vou pagar. Que deseja?

— Scotch com gelo.

O garçom colocou o copo à minha frente e eu tomei um bom gole.

— Parece cansado, homem — disse o Cobrador. — Talvez tenha exagerado na comida mexicana esta noite.

— Como é que você sabe tanto a respeito do que faço? Devo ser muito importante.

— Não, não é. Quem é importante é Lonergan. E ele gosta de estar bem informado sobre as pessoas com quem pretende lidar.


Capítulo dois

Lonergan chegou por volta de uma hora da madrugada. Passou pela mesa em que estávamos sentados sem ao menos olhar em nossa direção e subiu a escada, acompanhado pelo seu guarda-costas. Fiz menção de levantar-me mas o Cobrador me fez parar.

— Quando ele quiser falar com você, mandará chamar.

— Passou por aqui tão depressa que nem me viu.

— Viu, sim. Ele vê tudo.

Fez sinal ao garçom, pedindo outro uísque. Tomei um gole e olhei para o bar. Os travestis de Beverly Hills e Bel Air estavam começando a chegar depois dos seus jantares de sociedade. Tinham o jeito de quem, depois de cumprir uma obrigação, procura divertir-se um pouco. Um deles me viu e interpretou mal o meu olhar, pois deu alguns passos na minha direção. Quando viu o Cobrador mudou de idéia.

O Cobrador sorriu.

— Você é capaz de causar sensação com esses cabelos tão louros.

— Essa sua observação tem alguma coisa a ver com o serviço que Lonergan quer me dar? Neste caso, nada feito.

— Sei lá o que ele quer com você. Não sou tão ligado a ele como você pensa.

Meia hora depois, o guarda-costas fez sinal para mim do alto da escada. Deixei meu drinque na mesa e subi. O homem abriu a porta do escritório e, depois que eu passei, fechou-a e ficou no corredor.

O revestimento à prova de som e o leve sussurro do aparelho de ar condicionado não deixavam ouvir o barulho do bar. O mobiliário era severo e dominado por uma grande mesa. Sobre ela caía a luz de um abajur fluorescente, que iluminava os papéis.

Lonergan estava sentado à mesa com o rosto escondido nas sombras. Levantou a cabeça e disse com uma voz tão impessoal quanto a sua camisa branca e o seu smoking bem-talhado:

— Alô, Gareth.

— Alô, tio John — disse eu, sem me aproximar da cadeira diante da mesa.

— Sente-se.

Sem dizer uma palavra, acomodei-me na cadeira de espaldar reto.

— Sua mãe não tem notícias suas há mais de dois meses. Continuei calado e ele disse sem qualquer tom de censura:

— Ela está preocupada.

— Pensei que a mantivesse informada.

— Não digo nada a ela. Você conhece muito bem os meus princípios. Não me meto em casos de família. Ela é minha irmã, você é filho dela. Se os dois têm problemas de comunicação, têm de resolvê-los sem a minha interferência.

— Por que então falou nisso?

— Apenas porque ela me pediu.

Levantei-me da cadeira mas ele ergueu a mão.

— Ainda não acabei. Tenho uma proposta para lhe fazer.

— O Cobrador falou num emprego.

— Como esse pessoal é burro! — disse ele, sacudindo a cabeça. — Nunca dão um recado certo.

— Pode falar.

Os olhos dele faiscaram por trás dos óculos antiquados, de aros de ouro.

— Você já está ficando um pouco velho para o papel que está querendo desempenhar. Um hippie de trinta anos é coisa que não se usa mais.

Não fiz qualquer comentário.

— Kerouac, Ginsberg, Leary, toda essa gente pertence ao passado. Nem os garotos escutam mais o que eles dizem.

Tirei do bolso meu último cigarro sem saber aonde ele queria chegar.

— Onde estão todos os seus heróis?

— Nunca tive heróis. A não ser você, talvez. E esse morreu quando meu pai se jogou da janela.

— Seu pai era um fraco — disse ele numa voz sem emoção.

— Meu pai achou intolerável a idéia de ir para a cadeia em seu lugar. Escolheu a solução mais rápida.

— Ele poderia no máximo ser condenado a quatro ou seis anos de prisão. Quando saísse, estaria em excelentes condições.

— Se era tão fácil assim por que você não assumiu a culpa?

Houve um sorriso contido nos lábios dele.

— Eu tinha um negócio para dirigir. Seu pai sabia disso quando fez o trato comigo.

Dei uma tragada no cigarro em silêncio. Lonergan apanhou uma folha de papel na mesa.

— Sabe que até o FBI já desistiu de você? Acha que não vale mais a pena vigiá-lo.

— Isso não é lá muito lisonjeiro — disse eu, sorrindo.

— Quer saber por quê? Os homens do FBI chegaram à conclusão de que você era intelectual demais e nunca chegaria a ser um revolucionário perigoso. Você nunca deixa de ver os dois lados de um problema e de encontrar uma justificativa para ambos.

— Foi por isso que fofocaram daquele jeito, a ponto de eu ser despedido do emprego?

— Isso aconteceu antes de completarem a sua ficha. Agora, pouco se incomodam com o que você fizer.

— Isso não me ajuda em nada. Todas as firmas prováveis têm informações negativas a meu respeito.

— Foi por isso que mandei chamá-lo. Acho que já está em tempo de você trabalhar por conta própria.

— Fazendo o quê? Vai me comprar um táxi, tio John?

— Já pensou em ser dono de um semanário?

— Nunca. Vai me comprar um?

— Não.

— Qual é o golpe?

— Só há um golpe. A publicidade é minha. Você pode fazer o que quiser com o resto do jornal. Diga o que quiser dizer. Não me interessa.

— Publicidade é que dá dinheiro. Como é que vou conseguir o meu?

— Circulação. Você ficará com a receita líquida e eu lhe darei dez por cento da renda da publicidade para ajudar as despesas.

— Quem será o dono do jornal?

— Você.

— E o dinheiro para botar o jornal na rua?

— O jornal já está na rua. Pode ser até que você já tenha visto alguns exemplares dele. É o Hollywood Express.

Apaguei o cigarro. Deixara-me entusiasmar por um momento. Mas isso havia passado. O Hollywood Express era um jornal de propaganda. De vez em quando, encontrava um exemplar na minha caixa de correspondência, distribuído gratuitamente.

Lonergan sabia o que eu estava pensando e perguntou:

— Estava esperando o quê? O Los Angeles Times?

— O Express não é bem um jornal.

— Questão de opinião, Gareth. Para mim, oito páginas de papel impresso sãò*um jornal.

Procurei cigarros no meu bolso e não encontrei. Estendi a mão para uma caixa que estava em cima da mesa.

— O prazo para você receber cheques de desemprego terminou. Não há um jornal ou uma revista que lhe dê qualquer emprego e você sabe muito bem disso. Você não tem capacidade para obter um ordenado como free-lancer. O seu romance foi rejeitado por todas as editoras, que nem se corresse tudo por sua conta concordariam em editá-lo.

— Mas por que foi pensar em mim, tio John? Deve ter gente melhor do que eu na sua lista.

— Vamos dizer que seja por vaidade — disse ele, esboçando um leve sorriso. — Há alguma coisa dentro de você. Talvez seja o conceito que você faz de si mesmo. Ou da sociedade. Você é cético com relação a tudo. Apesar disso, acredita nas pessoas. Não faz sentido. Para mim, pelo menos,.não faz. Escute aqui, há quanto tempo você saiu do Exército?

— Cinco anos. Deixaram-me nas fileiras ainda um ano depois de eu ter voltado do Vietnam. Acho que não agradava a ninguém a idéia de um boina-verde desengajado a pregar contra a guerra.

— Você poderia levantar um empréstimo para tocar o jornal, alegando a sua condição de ex-pracinha.

— Está mesmo levando a sério essa história do jornal, tio John?

— Sempre falo sério quando se trata de negócios.

— E quanto vai ganhar com isso?

Ele tirou os óculos, limpou-os com o lenço e tornou a colocá-los. Olhou-me com os olhos fixos e brilhantes.

— Ganho quatro páginas de anúncios classificados a mil dólares a página. São quatro mil dólares por semana.

— Impossível. Aquele jornaleco não pode vender nem dez linhas de publicidade num mês.

— O problema é meu. Você ganhará dez por cento dos anúncios. Terá apenas de paginá-los.

— É verdade? Só isso?

Ele balançou afirmativamente a cabeça.

— Quem paga os anúncios?

— É tudo pago a dinheiro. Um dólar por linha, de quatro a dez dólares por anúncio. Nós processamos tudo por intermédio da agência de publicidade e você recebe os seus dez por cento.

As coisas estavam começando a ficar claras. Meu tio fazia muito movimento em dinheiro. Aquilo era um bom processo de justificar a entrada do dinheiro aos olhos da lei. Havia outros processos que custavam quarenta e até cinqüenta por cento. Meu tio calculava reduzir as despesas em dez por cento.

— Vou pensar — disse eu.

— Então pense. Amanhã de manhã Bill irá pegá-lo em sua casa e levá-lo ao jornal para você ver as instalações.

— Quem é Bill?

— O Cobrador.

— Ah, sim. . .

Eu nem sabia que ele tinha nome. Levantei-me.

— Volte aqui amanhã a esta, mesma hora e me dê uma resposta.

— Está bem — disse eu, caminhando para a porta.

— Um momento. . . Se houver alguma coisa entre você e aquele rapaz que está em sua casa, tome uma boa dose de penicilina porque ele está doente. Se está sem dinheiro, aqui estão vinte dólares para as injeções de penicilina, para você e para a mexicana com quem foi jantar.

— Tenho dinheiro — eu disse, e saí, atravessando o bar para chegar à rua.

Arrependi-me de não ter deixado Verita à minha espera. Levaria pelo menos uma hora para ir a pé até a casa dela. Mas Verita merecia o sacrifício. Não queria que ela ficasse doente por minha causa.

O pior de tudo era que eu não me lembrava absolutamente se tinha havido alguma coisa com o rapaz.

Assim que voltei do Vietnam, isso costumava me acontecer. Havia ocasiões em que a memória se apagava por inteiro e eu não sabia nada do que me havia acontecido durante um dia ou uma noite. Será que agora estava sofrendo disso de novo?


Capítulo três

Um cheiro sufocante se elevava das ruas, de cujo asfalto o calor fazia evaporar o que restara da chuva. As ruas eram mais estreitas ali, na zona leste de Los Angeles. As velhas casas se inclinavam umas para as outras, como se quisessem encontrar um ponto de apoio. As luzes se apagaram, deixando as ruas quase totalmente escuras. Ainda assim, eu percebia vida e movimento nos recantos sombrios. Era alguma coisa que eu sentia sem ver. Comecei a andar pelo meio da rua, procurando devassar a escuridão com os olhos. Era quase como se eu estivesse de novo no Vietnam.

"Não é possível", disse a mim mesmo. "Estou em Los Angeles e não no Vietnam. Estou andando pelas ruas de uma cidade e não por dentro de uma selva."

Não vi o homem, nem o ouvi, mas pressenti sua presença e dei um pulo para o lado. A meia carregada com alguma coisa pesada passou assobiando por perto da minha cabeça.

Quando aprumei o corpo, o homem ainda estava ali com um sorriso imbecil no rosto amarelo. A meia lhe pendia de uma das mãos. Na outra mão trazia uma garrafa meio vazia.

— Vou bater em você, seu branco azedo — disse ele.

Os seus olhos estavam esgazeados e ele se balançava ao compasso de uma música que só ele podia ouvir.

— Vou bater em você, branco azedo — repetia, com o mesmo sorriso cretino.

Olhei-o, tentando romper aquela treva de entorpecimento.

— Se bater, vou matá-lo — disse-lhe.

A música parou de tocar no fundo de sua cabeça e ele deixou de balançar o corpo. Ao mesmo tempo, procurou firmar a vista. Murmurou então espantado:

— Matar por quê? Não lhe fiz nada.

Nesse momento, um carro dobrou a esquina e à luz dos faróis vi-o com nitidez. Era apenas um garoto. Devia ter dezessete ou dezoito anos. Um bigode e uma barba ralos tentavam esconder as espinhas que ainda lhe enchiam o rosto. Separamo-nos lentamente, andando em direções contrárias da rua enquanto o carro passava entre nós.

Logo que o carro passou, ele desapareceu nas sombras de onde tinha saído. Cor ri os olhos e não vi mais nada. Mas só me movi depois que o radar dentro de mim mostrou que ele se tinha realmente ido. Voltei então para o meio da rua e continuei a andar.

"Você está ficando velho e tolo, Gareth", disse a mim mesmo. "Não tem o direito de ter pena de um garoto bêbado. Aquela meia pesada poderia ter-lhe fraturado o crânio. Com a sua experiência de vida, especialmente no Vietnam. sabe que a bebida e os entorpecentes não resolvem nada e só servem para agravar a situação. Ter pena de quê? Da burrice alheia? "

Eram três e meia quando afinal cheguei ao edifício de Verita e toquei a campainha.

— Quem é?

— Gareth.

— Você está bem?

— Muito bem. Preciso falar com você.

Momentos depois, eu entrava no apartamento e ela trancava a porta.

— Desculpe ter tirado você da cama.

— Nem pense nisso. Não estava mesmo dormindo.

Ouvi o som da televisão vindo do quarto. Tirei a nota de dez dólares do bolso e lhe entreguei.

— Não precisei.

— Que tolice você voltar por causa disso, Gary.

— Fique com o dinheiro. Assim me sentirei mais descansado.

— Quer um café?

— Quero, sim. Será ótimo.

Acompanhei-a e sentei-me à mesa enquanto ela fazia uma xícara de café para nós dois. Sentou-se diante de mim com os olhos cheios de perguntas.

Tomei um gole do café quente e forte e olhei para ela.

— Posso ter apanhado alguma doença e ter transmitido a você.

Ela me olhou por um instante, mas perguntou sem qualquer tom de censura na voz:

— Por que não me disse antes?

— Eu não sabia.

— Como foi que descobriu?

— Lonergan. Disse que eu devia tomar penicilina. E você também.

Verita tomou um gole de café.

— Quer me dar um cigarro? — pedi.

Ela tirou um maço da gaveta e passou-o para mim.

— Desculpe, Verita. Vou embora agora, se você quiser.

— Não pense que eu estou zangada. Em geral os homens não dizem nada. Vou ao médico amanhã.

— Eu lhe darei o dinheiro para as injeções logo que puder.

— Não vou gastar nada. Estou inscrita numa clínica. — Depois de uma pausa, perguntou: — Era só para isso que Lonergan queria falar com você? E o emprego?

— Não falou de emprego. Quer é que eu compre um jornal.

— Comprar um jornal? Ele deve estar maluco.

— Sempre foi, mas não se trata disso.

— Com que dinheiro ele espera que você compre o tal jornal?

— Tenho direito a um empréstimo como ex-pracinha. Diz ele que me ajudará a consegui-lo.

— E que vantagem ele tira disso tudo?

— Poderá descarregar o dinheiro ganho ilegalmente na publicidade supostamente recebida por intermédio do jornal.

— Não sei que espécie de jornal você poderá comprar nessas condições.

— O Hollywood Express.

— Não caia nessa!

— Por quê? O que é que você sabe sobre o jornal?

— A empresa não se agüenta em pé. Você vai comprar apenas uma dor de cabeça permanente.

— Como assim?

— Deve mais de trinta mil dólares de impostos atrasados. Se você fizer a compra terá de assumir esse passivo.

— Será que Lonergan sabe disso?

— Ele sabe de tudo! Por que iria desconhecer justamente isso?

Concordei. Os fatos estavam ali e eu não sabia mais o que Lonergan queria. Eu é que não devia me meter numa ratoeira dessas.

— Assumiu algum compromisso com ele?

— Disse apenas que ia pensar. Amanhã de manhã, vou até o jornal para ver tudo.

— Gostaria de ir com você.

— Por quê? O que você poderia fazer?

— Nada, talvez. Mas tenho um curso completo de contabilidade. Ao menos poderia olhar os livros.

— Você é contabilista? E tem licença para exercer a profissão no Estado?

— Claro que tenho.

— Por que então trabalha num guichê do auxílio-desemprego?

Assim que fiz a pergunta me arrependí, porque compreendí tudo. Não havia muitas empresas que dessem emprego a uma contabilista mexicana, por mais competente que fosse.

— Ficaria muito grato se você fosse comigo, Verita.

Ela sorriu.

— Está bem. A que horas?

— O Cobrador ficou de me pegar na parte da manhã. Vou para casa agora. Assim você poderá dormir um pouco.

— Escute. Já passa das quatro horas. Fique aqui. Levo você amanhã de carro.

— E seu emprego?

— Amanhã é sábado e a repartição está fechada — disse ela, levando as xícaras para a pia.

O Jaguar vermelho do Cobrador já estava parado à minha porta quando lá chegamos às dez horas da manhã. Aproximei-me e perguntei:

— Escute aqui, será que você não dorme nunca?

— Nas horas em que trabalho para Lonergan, nunca — disse ele, sorrindo. Olhou pelo espelho para o carro de Verita e perguntou: — Como foi que a gatinha recebeu a triste notícia?

— Bem, zangada não está.

— Foi o que calculei quando vi vocês dois irem à clínica, em Cedars. Tomou suas injeções?

— Tomei. Mas não entendo uma coisa. Lonergan deve ter coisas mais importantes para você fazer do que me seguir por toda a parte.

— Não entro nesses particulares. Cumpro apenas as ordens que recebo. Podemos ir?

— Quero subir um instante e mudar a roupa. Depois, nós dois iremos com você.

— Nós dois?

— Sim. Verita irá comigo.

— Para quê? Lonergan não disse nada sobre ela.

— Ela é minha contadora. Ninguém pode fazer qualquer negócio sem ter alguém que entenda da coisa e seja de confiança para dar uma espiada nos livros.

— Isso eu não sei. . . — disse o Cobrador, inseguro pela primeira vez desde que eu o conhecera.

— Telefone para ele e pergunte. Vou subir. Se, depois do telefonema, tudo estiver acertado, toque a buzina e eu descerei correndo. Do contrário, me esqueça.

Verita e eu subimos enquanto ele pegava o telefone. Subimos a escada e eu abri a porta. Não pude conter uma exclamação de espanto. Nunca vira o apartamento naquelas condições.

Estava tudo tão limpo que até as vidraças e os móveis brilhavam. Quando entrei no quarto, encontrei meu terno passado e todas as minhas camisas lavadas e engomadas.

— Não sabia que você cuidava tão bem de sua casa! — exclamou Verita.

Nesse momento, o rapaz que eu deixara dormindo saiu do banheiro com uma garrafa de detergente e uma escova. Olhou-nos surpreso e perguntou:

— Quem são vocês?

— Sou Gareth e moro aqui.

O rosto dele se abriu num sorriso.

— Oh, Gareth, eu gosto de você! Vou cozinhar, lavar, passar e arrumar para você, está bem? Quero ser seu escravo.

Nesse momento, ouvi a buzina do carro do Cobrador. Fiquei atarantado. Aquilo tudo era uma coisa sem pé nem cabeça. O que mais me perturbou, porém, foi a gargalhada de Verita.


Capítulo quatro

Os escritórios do Hollywood Express ficavam num prédio de má aparência no Santa Monica Boulevard, perto dos estúdios da Goldwyn. O Cobrador parou o carro, em frente, num local onde era proibido estacionar. Para agravar o seu desrespeito às leis do trânsito, freou diante de uma parada de ônibus.

As vitrinas estavam fechadas por cortinas e não se podia ver nada do que havia lá dentro, mas algumas letras pretas e manchadas formavam o nome do jornal.

O Cobrador abriu a porta e nós entramos. Encostadas à parede havia várias mesas vazias. No fundo da sala havia um grande quadro de avisos de madeira com papéis presos por tachinhas de várias cores.

— Alô! Há alguém aqui? — gritou o Cobrador.

Vimos uma porta abrir-se nos fundos e um homem de meia-idade e jeitão cansado aparecer, enxugando as mãos numa toalha de papel, que jogou no chão enquanto se encaminhava até nós.

— Estão atrasados, sabem?

— Não estou atrasado.— disse o Cobrador. — Você é que chegou antes da hora.

— Lonergan disse...

O Cobrador olhou para ele arregalando os olhos e o homem nem completou a frase.

— Gareth Brendan. Joe Persky — disse o Cobrador, fazendo as apresentações.

O homem me apertou a mão sem nenhum entusiasmo. Até seus dedos pareciam cansados.

— Esta aqui é Verita Velásquez, minha contadora.

Ele apertou-lhe a mão e voltou-se para mim.

— Lonergan diz que você está interessado em comprar o jornal.

— É bom que ele lhe tenha dito isso. Só soube de meu interesse esta noite.

Persky olhou para o Cobrador e pela primeira vez percebí emoção na voz dele.

— Qual é o golpe de Lonergan? Ele me disse que tinha um bom pretendente!

O Cobrador olhou para mim e o homenzinho tornou a falar comigo.

— Como é? Está interessado ou não está?

— Bom, depende. Eu gostaria de examinar tudo antes de decidir.

— Não há nada para examinar. Está tudo aqui.

— O que parece é que você não quer vender. Neste caso, não está mais aqui quem falou.

— Ele não tem outro jeito — disse o Cobrador. — Lonergan diz que ele quer vender.

Houve um momento de silêncio, durante o qual a cólera pareceu abandonar o homem.

— Que é que você quer saber?

— Tudo o que é natural nestes casos. Tiragem, circulação, renda dos anúncios, despesas, dívidas. Se mostrar os seus livros à minha contadora, poderemos saber tudo o que é preciso.

— A verdade é que não temos, a bem dizer, uma escrita.

— Não pode deixar de ter alguma espécie de registro. Não poderia funcionar sem isso.

— Sempre funcionei na base de dinheiro em caixa. Recebia o dinheiro, pagava o que não podia deixar de pagar e guardava o resto.

— Lonergan sabe disso? — perguntei ao Cobrador.

O Cobrador encolheu os ombros. Claro que Lonergan sabia. Perguntei a Persky:

— Nunca fez declarações para o imposto de renda?

— Fiz, mas nunca me dei ao trabalho de guardar as cópias.

— Alguém deve ter feito isso. Seu contador.

— Nunca tive contador. Sempre fiz tudo aqui dentro. Até os jornais nas caixas de correspondência era eu que os colocava.

Para mim aquilo era o suficiente. Se Lonergan pensava que eu ia entrar assim de corpo aberto naquele ninho de ratos era ainda mais maluco do que eu. Voltei-me para o Cobrador e disse:

— Vamos embora. x

O Cobrador se moveu com tanta rapidez que quase não o vi passar por mim. De repente, Persky estava com a metade do corpo em cima de uma mesa, enquanto o Cobrador lhe apertava a garganta.

— Dê ao homem as informações que ele está pedindo!

A voz de Persky passou com dificuldade pela garganta.

— Como é que eu podia saber que esses dois não eram agentes do fisco? Você acha que posso reconhecer minhas culpas sem mais nem menos?

— Idiota! O fisco não vem aqui apoiado no dinheiro de Lonergan!

O Cobrador soltou Persky e ele pouco a pouco voltou ao normal.

— Os livros estão em meu apartamento.

— Vamos então até lá olhá-los — eu disse. — Onde é seu apartamento?

— Aqui mesmo. No andar de cima.

Verita abriu os livros e os papéis em cima da mesa da cozinha.

— Vai levar um pouco de tempo para examinar tudo isso — disse ela.

— Quanto tempo? — perguntei.

— Talvez o resto do dia. Tudo isso está numa tremenda confusão. Você tem um bloco de papel com folhas em quatro colunas, Persky?

— Tudo que eu tenho está aí.

— Então vou descer e comprar um bloco numa papelaria.

— Quer tomar uma cerveja? — perguntou-me o homem, depois que Verita saiu.

— Quero, sim.

Tirou duas latas de cerveja da geladeira.

— Já teve algum dia um jornal?

— Não — disse eu, tomando um gole da cerveja que estava fresca mas não gelada.

Ele notou a minha expressão e comentou:

— Essa geladeira não está funcionando bem. Às vezes, gela demais, às vezes, de menos. Mas se você nunca teve um jornal, por que está tão interessado neste?

— Não-sei se estou. A idéia é de Lonergan.

— Por que é que ele pensa que você é capaz de tomar conta de um jornal?

— Não sei. Talvez porque durante algum tempo trabalhei em várias revistas.

— Não é a mesma coisa. — Piscou o olho para mim e disse: — Está também atrapalhado com Lonergan, não é?

— Não. Com ele não tenho qualquer espécie de atrapalhação.

Era a pura verdade. No momento, eu nada devia a Lonergan. O homem ficou alguns minutos em silêncio e me disse:

— Tenha cuidado. Lonergan tem metade da humanidade nas mãos. Agora, quer pegar a metade que falta.

Eu não disse nada.

— Escute — disse ele, pela primeira vez com uma expressão de interesse —, você disse que trabalhou em revistas. Escrevia, não era? O que era que escrevia?

— Artigos, comentários, poesia, ficção, crítica. Tentei tudo.

— Escrevia bem?

— Mais ou menos. Dava para o gasto.

— Gostaria de escrever bem. Houve um tempo em que eu pensei que era capaz de arrumar bem as palavras para formar uma bela frase. Pensei que era capaz de escrever. Foi assim que este jornal me fisgou.

— Que é que você fazia antes?

— Fui gerente de circulação de vários jornais no Estado. Todos estavam em condições satisfatórias e tudo me pareceu fácil. Foi então que peguei isto aqui para aproveitar a oportunidade. E não tem sido fácil...

— Como foi que se envolveu com Lonergan?

— Como é que uma pessoa se envolve com Lonergan? Um dia precisei de dinheiro. Quando abri os olhos, estava precisando de muito dinheiro.

— Você tinha uma empresa. Não conseguiu nada com os bancos?

— Nada. Fecharam-me as portas logo às primeiras investidas.

— Quanto é que você deve a Lonergan?

— Palavra que eu não sei. As contas dele são tão malucas e tão difíceis de verificar que eu não me espantaria se a coisa já andasse pela casa de um milhão de dólares.

Quando Verita concluiu a sua verificação, às seis horas da tarde, ficou apurado que ele devia a Lonergan dezenove mil dólares. As dívidas com a gráfica e o papel andavam em oito mil dólares e, com impostos e contribuições atrasados, trinta e sete mil dólares. Isso quanto ao passivo. O ativo constava de um título de jornal clandestino e de algumas mesas velhas.

— É quanto você deve exatamente: sessenta e quatro mil dólares!

Ele olhou para o papel em que estavam escritos os belos algarismos de Verita e murmurou:

— Eu sabia que era muito, mas quando a gente vê a coisa assim por escrito fica apavorado.

— Uma vez que não tem qualquer espécie de ativo — disse Verita, colocando gentileza na voz —, o mais aconselhável é requerer falência.

— Com a falência, ficarei livre também dos impostos atrasados?

— Não, os impostos não são perdoados em conseqüência da falência.

— De Lonergan também não vou me livrar, se quiser continuar vivo. Que é que vamos fazer agora?

Senti pena do pobre-diabo. Depois, tive pena de mim mesmo. Tinha passado a vida a ter pena dos outros. Tivera pena até dos camaradas que ficavam diante da mira do meu fuzil no Vietnam. Na verdade, nunca tinha vontade de apertar o gatilho até que sentia as balas choverem perto de mim e compreendia que teria de atirar senão morrería. Não adiantava ter pena naquele tempo e não adiantava ter pena agora.

— Vamos — eu disse a Verita. — Não vai haver compra do Hollywood Express.

Persky agarrou-me pelo braço.

— Mas Lonergan disse. . .

— Pouco me importa o que Lonergan disse. Se Lonergan quer seu jornal, pode comprá-lo, mas com o dinheiro dele, não com o meu.

— O Cobrador ficou de passar aqui às sete horas para apanhá-lo. Que é que eu vou dizer a ele?

— Pode dizer a ele o mesmo que eu lhe disse. Ele poderá levar o recado para Lonergan. Eu, por mim, vou para casa.


Capítulo cinco

Verita havia deixado o carro diante do meu edifício e nós voltamos a pé. Levamos quase uma hora.

— Vou para casa — disse ela logo que chegou ao carro.

— Nada disso. Vamos subir. Tenho uma garrafa de vinho lá em cima. Quero agradecer-lhe o favor que me fez.

— Não foi favor algum. Quem tem de agradecer sou eu. Estudei quase seis anos para fazer esse trabalho e é a primeira vez que tenho uma oportunidade.

Senti mais respeito por ela.

— Vamos subir. Prometo que a deixarei em paz.

Ela me olhou maliciosamente e perguntou:

— E o rapaz?

— Já deve ter dado o fora.

Mas eu estava enganado.

Logo que abrimos a porta, sentimos um delicioso cheiro de rosbife. A mesa estava posta para dois — louça fina, cristais, guardanapos de linho, bandejas e castiçais de prata.

— Como você se trata! — admirou-se Verita.

— Nada disso é meu. É a primeira vez que vejo essas coisas.

Fui até a cozinha. O rapaz estava em frente ao fogão. Vestia um casaco leve de padrão escocês, calças brancas de linho e um lenço elegantemente passado pela gola da camisa de seda.

— O jantar estará pronto dentro de vinte minutos — disse ele, sorrindo. — Vá para a sala e descanse que já vou preparar os drinques.

Voltei para a sala e disse a Verita:

— Ele diz que já vem preparar um drinque.

Ela riu.

— Dá a impressão de que você tirou a sorte grande.

O rapaz chegou daí a pouco e abriu um pequeno armário. As bebidas estavam todas arrumadas na prateleira — vodca, gim, vermute e scotch. Sem dizer uma palavra, ele tirou gelo de um balde dourado e serviu o scotch.

— Se não me engano, é o que prefere, não é?

Voltou-se então para Verita.

— Quer beber o quê?

— Vodca com tônica. Pode ser?

Ele fez um sinal afirmativo e voltou com uma garrafa de água tônica que tirou de outra prateleira. Preparou o drinque rapidamente e entregou-o a Verita. Já ia voltar para a cozinha quando eu o chamei.

— Quer me dizer de onde é que vem tudo isso?

— Pedi pelo telefone.

— Pediu pelo telefone? Assim, sem mais nem menos?

— Foram todos muito gentis. Pedi pressa pois precisava de tudo para o jantar, e me atenderam.

— Não lhe pediram dinheiro, por acaso?

— Por que iriam pedir? Mandei botar tudo na conta.

— Pensou um só instante em como é que vou pagar tudo isso? Não tenho dinheiro.

— Não tem importância. Como já lhe disse, eu sou rico.

— Quando foi que me disse isso?

— Ontem à noite. Não se lembra?

— Não. Não me lembro de nada do que aconteceu ontem à noite.

— Você estava lendo poesia junto da janela aberta. Aí começou a chover e você disse que Deus queria lavar seus pecados. Depois, começou a çhorar e disse que o que atrapalhava tudo no mundo era o dinheiro. Se todos nascessem ricos, não haveria mais problemas no mundo. Eu então disse que não era tanto assim, pois eu era rico e tinha muitos problemas. Você então teve pena de mim e eu fiquei comovido. Era a primeira vez que alguém tinha pena de mim.

— Eu devia estar com a cabeça fora do lugar.

— Ao contrário. Estava pensando muito sensatamente e me fez ver a vida com muita clareza.

— Foi mesmo?

— Tanto foi que eu telefonei para meu pai e disse que o perdoava.

Eu não sabia absolutamente de que era que ele estava falando. Ele viu a expressão do meu rosto e perguntou:

— Não se lembra de nada, não é?

Sacudi a cabeça.

— Você estava no Hollywood Boulevard tentando pegar uma carona e eu lhe dei. . .

Tive um súbito lampejo de memória.

— O Rolls conversível azul e prata?

— Isso mesmo. Parei, você embarcou e começamos a conversar. Eu disse que o levaria até sua casa, mas você disse que era um perigo um carro assim neste bairro. Podia ser assaltado e roubado. Deixamos então o carro numa garagem.

Já estava começando a me lembrar. Passamos por uma casa de bebidas e compramos algumas garrafas de vinho. Depois, tínhamos vindo para meu apartamento e começamos a conversar. Ele quase que só falara no pai e na dificuldade que o pai tinha de aceitar o fato de que o filho fosse homossexual. Fazia grandes esforços para esconder da sua congregação a existência do filho. Afinal de contas, o Reverendo Sam Gannon era um famoso pregador. Podia ser visto quase todas as semanas na televisão, pregando que Deus cura tudo. Mas não podia curar o filho dele. Conversamos assim até tarde, mas, além dessa conversa, nada mais tinha havido. Não trepamos.

— Bem, Bobby — disse eu, lembrando-me afinal do nome dele. — Agora, já me lembro de tudo.

— Ótimo — disse ele. — Agora, descanse, que eu vou servir o jantar.

Voltei-me então para Verita, que estava olhando para nós, e disse sorrindo:

— Tomamos as injeções de penicilina à toa. Não trepei com ele.

— Isso prova apenas uma coisa. Lonergan não sabe tanto quanto ele pensa que sabe.

Acendi um cigarro e ela acrescentou:

— Outra coisa. Ele não vai gostar de sua atitude no caso do jornal.

— E eu com isso?

— Não sei, não. Lonergan não é fácil. Em geral, consegue o que deseja.

— Desta vez não vai conseguir.

— Não sei. . . Você vai ter notícias dele.

Tinha razão a mexicaninha. Bateram na porta quando estávamos acabando de jantar. Fiz menção de levantar-me.

— Acabe o seu café — disse Bobby. — Vou ver quem é. Abriu a porta e eu vi por trás dele a figura do Cobrador.

Empurrou Bobby para o lado e correu os olhos pela sala até dar comigo.

— Está gozando a vida, hem?

— Faz-se o que se pode.

— Lonergan quer falar com você.

— Está bem. Pode dizer a ele que depois passarei por lá.

— Ele quer ver você agora.

— Não há pressa. Não temos mais nada que conversar. Além do mais, ainda não acabei de jantar.

Senti mais do que vi o movimento dele. Eu estava bem mais lento do que no tempo em que fazia parte dos boinas-verdes, mas, ainda assim, era muito mais ligeiro do que ele poderia ter esperado. Levantei o joelho e o cotovelo. O joelho atingiu-o nos testículos e o cotovelo bateu-lhe em cheio no gogó. O homem deu um rugido e caiu de joelhos. Depois, lentamente rolou o corpo e se estendeu no chão. Os olhos estavam esbugalhados e o rosto tomara uma estranha coloração cinzenta. Arfava e tinha as mãos entre as pernas.

Um momento depois, vi que a cor escura natural estava voltando ao seu rosto. Sem me levantar, peguei a faca de cortar bife e encostei a ponta em sua garganta, ao mesmo tempo que lhe abria o paletó e tirava o revólver da cinta. Esperei até que ele respirasse melhor e disse:

— Não gosto que me apressem. Eu disse que passaria por lá depois.

Ele ficou vesgo olhando para a faca perto do pescoço. Nesse momento, ouvi a voz de Lonergan da porta entreaberta.

— Sente-se melhor depois dessa demonstração, Gareth?

Estava um pouco pálido e com os olhos apertados por trás dos óculos de aros de ouro. Entrou na sala, com o guarda-costas nos seus calcanhares.

— Já provou o que queria. Pode deixá-lo em paz.

Levantei o corpo e deixei a faca em cima da mesa. Olhei então para ele e falei:

— Recebeu o meu recado?

Ele fez um sinal afirmativo.

— Não estou interessado naquele jornal. É um caminho certo para a falência.

— Tem toda a razão. Se você tivesse concordado com a transação, eu teria desistido de tudo. Seria burrice de sua parte.

— Que é que você quer então?

— Você aceitaria o jornal livre e desembaraçado de quaisquer compromissos?

Olhei para Verita, que me fez um sinal afirmativo quase imperceptível.

— Aceitaria, sim.

— Você teria de contrair um empréstimo para cobrir as despesas.

Verita falou antes de mim.

— A única maneira que ele tem de pagar esse empréstimo é receber vinte e cinco por cento da receita dos anúncios classificados.

— A sua contadora é muito viva. Vinte por cento.

Olhei para Verita.

— Com vinte por cento, seria possível equilibrar as coisas — disse ela. — Mas seria muito apertado.

— Vou pensar no caso, Lonergan. Amanhã de manhã, falarei com você.

A voz de Lonergan ficou mais ríspida:

— Quero saber agora.

Fiquei pensando. . . Que entendia eu de jornal ainda que se tratasse de uma folha de propaganda de distribuição gratuita?

— Está com medo, Gareth? Todas aquelas conversas a respeito de escrever e editar são diferentes agora quando o seu dinheiro está em jogo?

Eu continuava a pensar.

— Seu pai ao menos tentou, ainda que não tenha tido ânimo de ir até o fim. Você não tem coragem nem de começar.

Eu me lembrava daquela voz assim gelada desde a minha infância e sabia que ela escondia um desprezo contido pelo resto do mundo. Zanguei-me de repente. Não ia deixar que ele ou o som de sua voz me forçassem a fazer o que não estava pronto para fazer.

— Vou precisar de ajuda — disse eu. — Quero gente com experiência. Persky estará disponível?

— Se você o quiser.

— Precisarei de um diretor artístico, de repórteres, fotógrafos. . .

— Há agências que fornecem tudo isso. Você nem precisa incluir essa gente em sua folha de pagamento.

— Você calculou quantos exemplares eu teria de vender a vinte e cinco cents para cobrir as despesas? — perguntei a Verita.

— Cerca de quinze mil — disse ela. — Mas ninguém nunca comprou o Express.

— Eu sei disso. Mas o jornal que eu quero dirigir é outro. Quero ter uma chance de ganhar dinheiro.

Lonergan sorriu de repente e por um. momento quase desconfiei que ele tivesse senso de humor.

— Gareth, estou começando a pensar que você já é adulto. É a primeira vez que o ouço manifestar algum interesse por dinheiro.

— Que é que há de errado nisso, tio John? O dinheiro não parece perturbar-lhe a vida.

— Mas pode perturbar a sua.

— Estou disposto a me arriscar.

— Negócio fechado, então?

Fiz um sinal afirmativo. Inclinei-me para a frente e ajudei o Cobrador a levantar-se. Entreguei-lhe o revólver.

— Desculpe — disse eu. — Fico nervoso quando alguém faz um movimento brusco na minha direção.

Ele rosnou alguma coisa ininteligível.

— Você pode ficar alguns dias com a garganta dolorida. Não se preocupe. Basta fazer uns gargarejos de água quente com sal e ficará bom.

— Vamos, Bill — disse Lonergan, encaminhando-se para a porta. — Vamos deixar essa boa gente acabar de jantar.

Parou na porta e voltou-se para mim.

— Amanhã, às onze da manhã, em meu escritório de Beverly Hills.

— Pode me esperar.

— Boa noite, Gareth.

— Boa noite, tio John.

Ele saiu fechando a porta e eu me voltei para Verita.

— Se não me engano, estamos metidos na indústria editorial.

Ela não disse nada.

— É claro que você vai trabalhar comigo.

— E meu emprego?

— Estou lhe oferecendo um emprego melhor. Uma oportunidade de exercer a profissão para a qual você estudou. Por outro lado, preciso de você. Bem sabe que eu não sou um homem de negócios.

— Bem, posso pedir uma licença e trabalhar com você durante algum tempo para ver se dá certo.

— Da minha parte, concordo inteiramente com isso. Dessa maneira, se eu der com os burros na água, você não será prejudicada.

— Tenho um estranho pressentimento — murmurou ela.

— Que pressentimento?

— As estrelas se cruzaram. E o rumo de sua vida vai mudar.

— Para melhor ou para pior?

Ela hesitou.

— Para melhor, eu creio.

Bateram na porta e eu quis abrir, mas Bobby chegou lá antes de mim. Era o guarda-costas.

— O Sr. Lonergan manda saber se quer que o carro venha buscá-lo amanhã.

— Faça o favor de dizer a ele que agradeço muito, mas já tenho condução.

A porta se fechou e Bobby se voltou para mim com os olhos acesos.

— Vai mesmo comprar um jornal?

— Vou, sim. Não é um grande jornal, mas já representa alguma coisa.

— Fui diretor de arte do jornal da universidade. . .

— Está bem — disse eu, rindo. — Pode considerar-se o diretor de arte do Hollywood Express.

De repente, todos nós começamos a rir e ninguém sabia por quê. Talvez Verita tivesse razão. Nossas estrelas tinham-se cruzado e o mundo tinha mudado.


Capítulo seis

Bobby e Verita tinham acabado de lavar os pratos. Bobby se aproximou de mim.

— Você está falando sério?

— Que foi que eu disse?

— Que eu ia ser diretor de arte do seu jornal.

— Claro. Apenas não lhe posso pagar um grande ordenado.

— Não tem importância. É a oportunidade que eu quero. Ninguém, até hoje, me ofereceu um emprego de verdade.

— Pois agora você tem um emprego.

— Que espécie de jornal é esse?

— Por enquanto é uma folha de propaganda. Mas quando eu começar a trabalhar, vai ser uma coisa muito diferente.

— Diferente em quê?

— Uma mistura de publicações clandestinas e Playboy. Vamos dar ao povo o que ele mais gosta: sexo pra valer.

— Como assim?

— Playboy maneira as coisas, tanto os artigos quanto as fotos das garotas. As publicações clandestinas jogam as sujeiras com tal crueza em cima dos leitores que os dedos ficam fedendo só de pegar naquelas páginas imundas. Existe um meio-termo, uma maneira de dizer aquilo que o público quer sem usar retoques, mas também sem apelar para a grossura.

— Mas não é isso o que Lonergan quer — disse Verita. — Para ele, o jornal é bom assim como está.

— O que o Lonergan quer é uma lavanderia para limpar o seu dinheiro. Quatro páginas de anúncios classificados para justificar o dinheiro recebido de outras fontes menos limpas. Nada mais lhe interessa. Você pode até imprimir o resto do jornal em papel higiênico que ele pouco vai se incomodar.

— Não sei, não — duvidou Verita.

— Pois eu sei. Manjo aquele cara há muito tempo. A única paixão de Lonergan é o dinheiro.

— Você o chamou de tio John. . .

— Ele é meu tio, irmão de minha mãe.

Ela respirou fundo. Começava a compreender.

— E você não gosta dele, não é?

— Não gosto nem desgosto.

Mas não era verdade. Dizer que ele me era indiferente era exatamente o oposto da realidade. Ele representava muitíssimo para mim porque marcara a sua presença em todas as fases de minha vida/Antes mesmo de eu ter nascido. Primeiro com minha mãe. Depois com meu pai.

— Estou cansado — disse eu de repente. — Vou me deitar.

— Neste caso, vou-me embora — interrompeu Verita imediatamente.

— Não é preciso você sair — falou Bobby. — Vou dormir no sofá da sala.

— Ora, Verita, fique aqui — eu disse. — É muito tarde para você ir para casa.

— Está falando sério?

— Claro que estou — eu disse. — Vamos pra cama. Quero te comer esta noite.

Quando me encaminhava para o quarto, notei que Bobby chorava.

— Que é que há, Bobby? — perguntei.

— Eu te amo, Gareth — ele disse com lágrimas nos olhos. — Quero ser seu escravo. Quero ser amado por você.

Pus um braço sobre os ombros dele e beijei-o no rosto.

— Também gosto de você, Bobby, mas não dessa maneira. Sinto como se fosse um irmão mais velho seu.

— Nunca tive irmãos ele disse, enxugando os olhos.

— Nem eu. Bem, agora vou pra cama — eu disse.

Uns dez minutos depois Verita veio para o quarto. Eu mal podia esperar que ela tirasse a roupa. Naquele momento, o meu membro estava duro como pedra. Fui para cima dela e tentei até ao ponto de exaustão completa. Mas não consegui gozar. Ela dormiu quase que no momento em que saí de cima e rolei para o lado.

Parecia que eu estava dormindo havia horas quando senti que mexiam nos meus testículos. Ainda semidormindo, segurei a cabeça e guiei-a para o meu pênis. Sua boca era quente e hábil. Às vezes eu tinha a impressão de que ela iria me engolir inteiro. "Como é bom!" E explodi num orgasmo que parecia que me deixava inteiramente vazio por dentro e completamente exausto. Segundos depois, eu estava outra vez mergulhado num sono profundo.

Acordei com o sol nos olhos. Comecei a levantar-me. Ao notar que ela estava abrindo os olhos, inclinei-me e beijei-lhe a testa.

— Eu não sabia que você era boa assim! Senti como se você estivesse me chupando até a alma.

— De que você está falando?

— Desta noite.

Ela arregalou os olhos, espantada.

Ao botar os pés fora da cama, pisei nas costas dele, estendido no chão. Aí compreendí tudo. A princípio fiquei furioso, mas depois não pude conter o riso.

— Que houve? — perguntou Verita, cada vez entendendo menos.

Apontei, e olhando para fora da cama ela viu o rapaz nu. — Meu Deus! — ela exclamou, e começou a rir.

— Esse filho da mãe me enganou — eu disse.

— Enganou a nós dois. Você não chegou a gozar comigo.

— Filho da mãe — repeti eu.

— Por que está reclamando? — ela perguntou. — No fim, tudo deu certo pra você, e como!

Bobby nos levou para Beverly Hills no seu Rolls conversível. Senti-me como um daqueles caipiras novos-ricos passando pelas filas de "gentinha" às portas de casas comerciais e igrejas.

Quando chegamos ao escritório do meu tio no fim da rua, o edifício estava fechado. Toquei a campainha e um guarda uniformizado apareceu por trás da porta de vidro.

— Lonergan — gritei do lado de fora.

— É o Sr. Brendan? — ele perguntou, já abrindo a porta.

— Sou.

— O Sr. Lonergan está à sua espera. Na cobertura.

— Estou faminto — disse Bobby. — Vou até a lanchonete.

Disse a ele que fosse e, na companhia de Verita, segui o guarda até o elevador, e ao sairmos dele fomos recebidos pelo guarda-costas do meu tio. Silenciosamente, ele nos guiou pelo corredor até o escritório de Lonergan e abriu-nos a porta.

Meu tio estava sentado à mesa e Persky estava com ele. Era tão diferente do escritório de Lonergan em Hollywood. Tudo ali cheirava a muito dinheiro, os reposteiros de seda, o tapete grosso e macio, a mesa Luís XV.

— Bom dia — cumprimentei.

Meu tio nos indicou cadeiras em frente à sua mesa. Apertou um botão e logo apareceu um homem com uma pasta cheia de papéis.

— Meu advogado, Mark Coler — informou meu tio.

— Ele tem todos os papéis prontos: contratos de compra e venda, pedidos de empréstimo, tudo.

Olhando para meu tio não pude deixar de pensar que era, realmente, uma pessoa fantástica. Sabia que ele não poderia ter ido para a cama antes das cinco da manhã, entretanto estava ali tão bem disposto como se tivesse tido doze horas de sono. E compreendia, também, que ele devia ter absoluta certeza de que a transação se realizaria, de outro modo não poderia ter todos os papéis preparados da hora em que falara comigo, na noite passada, até aquela manhã.

Coler abriu os documentos em cima da mesa, -à minha frente.

— Quer examiná-los?

Empurrei os papéis para Verita.

— A Srta. Velásquez fará o exame por mim.

Coler lançou-lhe um olhar e depois, virando-se para mim, perguntou:

— Ela é advogada?

— Sou, mas não exerço a carreira — atalhou Verita.

— Sou formada em direito pela Universidade da Califórnia em Los Angeles, mas não registrei meu título. Sou, porém, contadora diplomada e licenciada.

Ele pareceu impressionado e manteve-se em silêncio enquanto ela examinava os papéis.

Olhei para Persky.

— O Sr. Lonergan lhe disse que eu gostaria de que continuasse no jornal?

— Disse, sim. Mas não é possível. Teriho de cuidar de minha vida. Estou seis meses atrasado na pensão alimentícia que devo à minha mulher para o sustento de meus filhos.

— Nunca cogitei de empregar alguém sem pagar nada.

— Quanto vai me pagar?

Eu não sabia quais eram os ordenados correntes, de modo que joguei no escuro.

— Cento e cinqüenta por semana, além de uma percentagem nos lucros a combinar.

— Não chega. Tenho uma proposta de duzentos e cinqüenta do Valley Times.

Não era preciso que ninguém me dissesse que duzentos e cinqüenta estavam acima do meu gabarito.

— Cento e cinqüenta é o máximo para mim.

— Ele vai aceitar — disse meu tio antes que Persky pudesse dar uma resposta.

— Não posso saldar meus compromissos com esse dinheiro, Sr. Lonergan. Por favor, compreenda — disse Persky, numa voz quase chorosa.

— Numa cama de hospital, você terá ainda menos dinheiro para saldar seus compromissos — disse Lonergan, com a sua voz fria. — Você só está se saindo com tanta facilidade disso tudo porque eu faço questão de que essa transação seja fechada. Ouviu, Persky?

Persky olhou para mim, consciente da derrota.

— Sou seu empregado, Sr. Brendan.

— Muito bem — disse-lhe eu, estendendo a mão. — Tenho a sua palavra.

— Tudo parece em ordem — disse então Verita. — Só uma coisa ainda acho necessária. É uma declaração assinada pelo Sr. Lonergan assumindo toda a responsabilidade pelas dívidas e pelos impostos da companhia até a assinatura do contrato.

Coler pareceu aborrecido.

— O Sr. Lonergan não é parte nessa transação. Não se justifica absolutamente a assinatura dele. Além disso, há a assinatura do Sr. Persky que cobre todos os riscos.

Verita olhou para mim e eu disse:

— Sr. Coler, não posso pagar ao Sr. Persky uma quantia suficiente para que sua assinatura nesse papel cubra todos os riscos. O Sr. Lonergan me disse que eu teria o jornal livre e desembaraçado de quaisquer ônus. A não ser assim, não concordo.

— O Sr. Lonergan nunca. .. — disse Coler.

Meu tio interrompeu-o.

— Prepare a declaração, Coler, vou assiná-la.

So posso tratar disso amanhã. Não há ninguém hoje em meu escritório.

— Você terá a declaração amanhã, Gareth. Contenta-se até lá com a minha palavra?

— Sem dúvida alguma, tio John.

— Ótimo. Assine então os outros papéis. Combinei ir ao escritório de Coler na manhã seguinte e saí dali como dono de um jornal.


Capítulo sete

Pouco mais de quinze dias depois, Lonergan entrou pelo jornal com o primeiro número do novo Hollywood Express debaixo do braço. Passou como um furacão pelos garotos que estavam arrumando e pintando a sala e se plantou diante de minha mesa, nos fundos.

Jogou o jornal em cima da mesa.

— Que diabo você está armando?

— Você queria logo o jornal na rua e eu lhe fiz a vontade.

— Tem coragem de chamar isso de jornal? Além dos meus anúncios, não há mais nada. Quem você acha que vai passar os olhos nessa porcaria?

— As mesmas pessoas que passavam os olhos antes nessa porcaria.

— E este aviso em negrito na primeira página? "Esta edição só vai para a rua para não frustrar os leitores que esperam de nós uma qualidade um pouco melhor de papel higiênico." Não acho graça nenhuma nisso.

— Mas eu acho.

— É uma coisa vulgar e de mau gosto.

— Não deixa de ter razão.

— Não pode querer que eu pague três mil e duzentos dólares por semana por um lixo desses. Pode esperar sentado.

— Vai-me pagar, sim, tio John. Temos um contrato válido com a sua assinatura. Esse contrato reza apenas que eu tenho de publicar quatro páginas de anúncios classificados em cada número. Não há nada no contrato que diga que eu devo publicar mais alguma coisa.

— Não vou pagar.

— Nesse caso, irei para a justiça. O contrato é perfeitamente válido.

Ele sorriu de repente.

— Está bem, eu pago. Agora, vai me explicar o que quer dizer tudo isso?

— Vou precisar de oito a dez semanas para botar na rua a espécie de jornal que eu tenho em vista. Até lá, tenho de me manter com o dinheiro que seus anúncios me dão.

— Por que não me disse isso? Eu lhe teria dado o prazo.

— Mas não me daria o dinheiro. Dez semanas representam trinta e dois mil dólares. É um bocado de dinheiro.

— Ainda assim, não podemos publicar um jornal desses. A Diretoria da Receita Interna virá em cima de nós como um touro em cima de um pano vermelho.

— O problema não é meu.

— Se eu lhe adiantar o dinheiro, você sustará a publicação do jornal até que ele esteja em condições de ir para a rua?

— Claro que não. Um adiantamento tem de ser pago ou representar um serviço já prestado.

Ele ficou em silêncio durante alguns momentos, pensando.

— Se eu lhe der um cheque de vinte e cinco mil dólares, concordará em esperar?

— Sem dívidas, nem compromissos de minha parte?

— Sem dívidas, nem compromissos.

— Negócio fechado!

Ele tirou um talão de cheques do bolso, preencheu o cheque e me entregou.

— Obrigado, tio John.

— Só me resta um consolo, Gareth. Estou levando um golpe, mas tudo vai ficar em família.

Eu ri.

— Só estou seguindo os seus exemplos, tio John.

Ele correu os olhos pela sala.

— Que é que esses garotos estão fazendo aqui?

— Estão arrumando tudo. O jornal que eu quero não pode ser publicado numa pocilga.

— Onde foi que os arranjou?

— Na Oficina da Juventude do Reverendo Gannon. Trabalham nas horas vagas por meio dólar a hora e entregam tudo como contribuição à igreja.

— Uma coisa eu posso lhe dizer, o pai de seu amiguinho tem mais tino comercial do que qualquer um de nós.

— Ninguém pode competir com a religião.

— Escute, Gareth. Você tem ainda muitos exemplares desse número do jornal?

— Não.

— É uma pena. Se eu tivesse sabido a tempo, teria impedido que você fizesse a distribuição.

— Fique descansado, tio John. Ninguém mais verá o jornal.

— Como é que pode ter tanta certeza assim?

— A tiragem foi de vinte e cinco exemplares apenas. E todos foram mandados para você.

— Sr. Brendan — murmurou uma voz suave. — Desculpe incomodá-lo.

Levantei os olhos e vi uma das. moças da Oficina da Juventude do Reverendo Sam Gannon. Estava diante de mim, tímida e cheia de desculpas, com os jeans muito apertados na frente e atrás e com uma camisa folgada que lhe acentuava a curva dos seios jovens. Tinha os braços e o rosto manchados de tinta.

— Desculpe, Sr. Brendan, mas já podemos trabalhar aqui perto de sua mesa?

— Vou tirar meus papéis daqui e deixar o caminho livre para vocês.

— Quer que ajude, Sr. Brendan?

— Bem, se quiser levar estas pastas, eu me encarrego do resto.

Ela tomou as pastas de minhas mãos. Peguei a máquina de escrever e subimos para o apartamento. Deixamos tudo numa das mesas que tínhamos levado para onde fora a sala de jantar.

— Mais alguma coisa que eu possa fazer, Sr. Brendan?

— Acho que não.

Ela não fez menção de descer.

— Mais alguma coisa, minha filha?

— Bobby disse que o senhor estava querendo uma secretária, mas não podia pagar muito.

— É verdade.

— Eu sou secretária. Fiz o curso no Colégio de Administração Sawyer.

— Sabe taquigrafia?

— Muito bem, não. Mas sou boa datilografa. Oitenta palavras por minuto. E entendo também de arquivo.

— Como é seu nome?

— Denise Brace.

— Onde é que você mora, Denise?

— Na oficina.

— Quantos anos você tem?

— Dezessete. Vou fazer dezoito mês que vem.

— Por que é que não está vivendo com sua família? Ela olhou-me com seus olhos pretos.

— Fiquei grávida. Meu pai me botou para fora de casa. O Reverendo Sam me acolheu e tomou conta de mim.

— E o filho?

— O Reverendo Sam conseguiu que ele fosse adotado. Eu tinha apenas dezesseis anos quando isso aconteceu.

— E desde então tem vivido na oficina?

— Tenho, sim. O Reverendo Sam tem sido muito bom para mim, aliás para todos nós. Só quer que sejamos felizes e sirvamos ao Senhor.

— E quando você trabalha, entrega todo o seu salário a ele?

— A ele, não. À oficina.

— Não guarda nada para você?

— Para quê? Não preciso de nada. A oficina nos dá tudo o que é necessário.

— Há muitas pessoas como você na oficina?

— Cerca de setenta. Mais moças do que rapazes.

— E todo mundo faz como você, entrega o dinheiro à oficina?

— Certo,

— E que é que vocês fazem quando não estão trabalhando?

— Propagamos a palavra de Deus, vendendo revistas e folhetos. Nunca deixamos de trabalhar.

— E todo esse dinheiro vai para o Reverendo Sam?

— Para ele, não. O Reverendo Sam não se interessa por dinheiro. O dinheiro vai para a igreja e para a oficina a fim de ajudar as boas obras.

Lonergan tinha razão. O Reverendo Sam tinha um negócio melhor do que qualquer de nós. Olhei para o rosto límpido e inocente de Denise.

— Você é uma menina muito bonita, sabe disso?

— Muito obrigada — disse ela sorrindo. Havia um pouco de sedução em seu sorriso.

— Não sei se você poderá trabalhar para mim, Denise. Seria uma tentação muito grande para mim. Eu poderia sentir amor por você.

— Seria bom — disse ela.

— Estou falando em amor de verdade e não apenas em beijos e carinhos.

— Sei perfeitamente o que quer dizer.

— E o Reverendo Sam? Ele não consideraria isso um pecado?

— Não. O Reverendo Sam sempre diz que nossos corpos têm necessidades próprias como as nossas almas e que o amor pode ser manifestado de ambas as maneiras.

Pensei por um momento.

— Há então muito sexo na oficina?

— Muito, não. Apenas entre as pessoas que se gostam.

— E você? Não tem medo de ficar grávida outra vez?

— Não há perigo — disse ela, rindo. — A enfermeira-chefe nos faz tomar as pílulas todos os dias de manhã. Quem não pode tomá-las usa um dispositivo anticoncepcional.

— E o Reverendo Sam, tem algum caso com alguma moça?

— Oh, não! O Reverendo Sam está acima dessas coisas. Vive num plano superior.

— Quer dizer que ele não tem vida sexual?

— Não foi isso que eu disse. Todos nós vivemos em planos diferentes. Eu ainda estou no quinto plano. Só posso relacionar-me com pessoas até o terceiro plano; pessoas que estejam no primeiro ou no segundo plano, esses, sim, podem relacionar-se fisicamente com o reverendo.

— Compreendo. E que é preciso para a pessoa transferir-se para um plano superior?

— Boas obras. Dedicação à igreja. Completa honestidade no relacionamento com os outros.

— Só isso?

— Só isso.

— Mas vocês têm obrigação de entregar o dinheiro que ganham à oficina?

— Obrigação, não. Damos o dinheiro voluntariamente.

— Continuaria a proceder assim se viesse trabalhar comigo?

—•. É claro. Escute, posso fazer-lhe uma pergunta?

— Evidente que pode.

— Sei que Bobby está apaixonado por você e creio que aquela moça, Verita, também gosta de você. Você gosta dela?

— Gosto de ambos, mas não tenho amor por nenhum dos dois.

— Mas faz amor com os dois?

— Faço.

— Eu gostaria de fazer amor com você. Acha que isso será possível algum dia?

Não respondí.

— Não seria preciso que me desse o emprego.

— Não é isso.

— Que é então?

— Acontece que você está um pouco longe de mim. Em primeiro lugar, você está num plano mais alto. Além disso, você ainda não tem dezoito anos.

Seu sorriso foi imediato.

— Falou com honestidade — disse ela. — E a honestidade o coloca automaticamente no quinto plano. — Foi até a porta e voltou-se. — Espere por mim, voltarei no mês que vem, no meu aniversário.


Capítulo oito

— Os distribuidores querem ver um espelho antes de qualquer conversa comigo — disse Persky. — E dizem que, se não houver boas fotos, não adianta nem ir falar com eles.

— Boas fotos como? — perguntei.

— Fotos de mulheres mais ou menos sem roupas.

— Falou de nossa política editorial?

— Não estão interessados nisso. Os fregueses só vêem as palavras depois que compram a publicação. E só compram depois que vêem as fotos.

— Está bem. Publicaremos as fotos.

— Não vai ser fácil. As agências e os fotógrafos monopolizam tudo e nós não podemos entrar em concorrência por essa espécie de material.

— Poderemos fazer as nossas fotos, Persky.

— Você conhece algum fotógrafo que preste?

— Daremos um jeito. Enquanto isso, entre em contato com os estúdios de cinema para nos mandarem fotografias de estrelas famosas.

— Não são essas as fotografias de que os distribuidores estão falando.

— Eu sei, mas já são uma base. Podemos usar algumas dessas fotos.

— Eu tenho uma idéia — disse ele. — Espere aí.

Foi à sua mesa e voltou com uma pasta cheia de revistas que espalhou em cima de minha mesa.

Os tífulos eram bastante expressivos: Amor Demente, Sexo Oral, Sodoma e Gomorra, Iransviados do Amor, etc. Folheei algumas delas e vi que as ilustrações correspondiam exatamente aos títulos.

— Onde encontrou isso, Persky?

— Com Ronzi, um distribuidor. São vendidas clandestinamente. Ele tem uma proposta. Se lhe dermos a distribuição exclusiva da nossa publicação, poderemos aproveitar algumas dessas fotos, com os retoques necessários para que ninguém desconfie da sua procedência.

— Seríamos apreendidos nas bancas um minuto depois de publicarmos essas fotografias.

— Podemos retocá-las para só aparecerem as garotas.

— Qual é a organização em que Ronzi se apóia?

— Não sei ao certo. Parece que é gente de Nova York.

— Máfia?

— Já lhe disse que não sei.

Que é que Ronzi quer além de exclusividade da distribuição?

— Não entramos nesse assunto.

— Combine um encontro. Eu gostaria de falar com ele.

— Vou tratar disso. . .

O seu olhar se voltou para a porta e eu também olhei.

Um Mercedes preto havia parado em frente e um chofer fardado saía do seu lugar para abrir a porta.

Reconhecí imediatamente o homem que desceu do carro pois já o vira várias vezes na televisão. O que eu ainda não sabia era como ele era grande pessoalmente. Tinha quase dois metros de altura e os ombros eram tão largos que teve de ficar de banda para passar pela porta.

Os garotos pararam imediatamente de trabalhar e murmuraram com profundo respeito:

— Paz e amor, Reverendo Sam.

Ele abriu os braços num gesto cheio de benevolência e exclamou com uma voz simpática:

— Deus é amor, meus filhos.

<— Deus é amor — responderam todos a uma só voz.

O homem se encaminhou para a minha mesa. Levantei-me à sua aproximação. Todos na sala pareciam diminuídos pelo seu físico de gigante.

— Sr. Brendan?

— Sim, Reverendo Sam.

Ele me estendeu a mão.

— Deus é amor. É um prazer conhecê-lo.

Apertei-lhe a mão e senti não só a sua tremenda força mas um fluxo de energia que parecia carregada de eletricidade.

— O prazer é meu. Em que posso servi-lo?

Olhou para Persky e perguntou.

— Há algum lugar onde possamos falar em particular?

— Sem dúvida. Venha comigo.

Levei-o para o apartamento do andar de cima e fechei a porta.

— Está bem aqui?

Ele acenou afirmativamente e eu lhe indiquei uma cadeira diante da mesa da cozinha.

— Quer uma xícara de café ou alguma coisa?

— Não, muito obrigado. Estou aqui para agradecer-lhe.

— Agradecer-me o quê?

— O que fez por meu filho Bobby. Jamais consegui o que o senhor conseguiu. Corrigiu-o.

Fiz uma cara de espanto e ele riu.

— Em algumas coisas, é claro.

— Não sei se tenho tanto mérito assim.

— Pela primeira vez na vida, alguém o faz trabalhar.

— Talvez tenha sido a primeira vez que alguém lhe oferece um emprego.

— Ofereci muitas vezes mas ele não se interessou.

— O senhor é o pai dele. De acordo com os princípios de Bobby, isso não conta.

— Talvez fosse isso. De qualquer maneira, ele hoje é uma pessoa diferente. Não está mais à toa na vida.

Fiquei calado. Não tinha mais nada a dizer sobre Bobby. Mas sabia que ele não tinha acabado.

— Sabe que Bobby é homossexual?

— Sei.

— O senhor também é?

— Acho que não — disse eu, sorrindo.

— Não tem certeza?

— Houve um tempo em que eu tinha certeza de tudo. Hoje em dia, a experiência me ensina a duvidar.

Correu os olhos pelo apartamento e perguntou:

— Mora aqui?

— Vou morar depois que Bobby der um jeito nisto aqui. Agora mesmo, ele está procurando móveis de segunda mão.

— Ele me disse que o senhor precisa de publicidade para manter o jornal.

— É verdade.

— Tem alguma publicidade atualmente?

— Tenho quatro páginas garantidas em cada número.

— Precisa de mais publicidade?

— É claro que sim.

— Minha igreja mantém uma publicidade regular na imprensa, no rádio e na televisão. Posso ocupar algum espaço em seu jornal e pedir a alguns homens de negócios de minha congregação que façam o mesmo.

— Isso seria muito bom. Mas não quer esperar para ver primeiro a espécie de jornal que vamos publicar?

— Tem alguma objeção a inserir publicidade religiosa?

— Não. Mas poderia não gostar do que pretendemos fazer.

— Bobby já me disse. Vão publicar fotografias de mulheres e escrever sobre sexo. Não faço objeção a isso. Essas coisas fazem parte da vida. Quero ajudar as pessoas a se encontrarem e serem felizes. Pouco importa a maneira pela qual consigam a felicidade. Não é isso o que o senhor procura também?

— Não. Agora todos os ideais desapareceram. Só penso é em ganhar dinheiro.

— Não tenho também objeção a isso. Procurei sempre combinar os meus ideais com os meios de ganhar dinheiro.

Não era preciso que ele me dissesse. Eu sabia com que facilidade o dinheiro entrava para ele.

— Eu gostaria de comprar uma parte do seu jornal.

— Desculpe, mas adotei um princípio quando me meti nisso. Não quero sócios.

— Mas eu soube que Lonergan é seu sócio.

— Foi mal informado. Ele tem comigo apenas um contrato que me assegura quatro páginas de anúncios em cada número. Os anúncios são processados pela agência de publicidade dele. Ele não tem qualquer participação na propriedade ou na direção do jornal.

— Lonergan é muito vivo — disse ele, e o tom de sua voz mostrava que ele compreendia o jogo de Lonergan.

— Devemos publicar o nosso primeiro número daqui a três semanas. Por que não espera até lá para decidir o que quer fazer?

— Já sei o que quero fazer. Quanto custa uma página inteira?

— Não sei. Ainda não fiz o cálculo.

— Quanto Lonergan está lhe pagando por uma página?

— Oitocentos dólares.

— Acha o preço justo?

Fiz um sinal afirmativo.

— Vou ficar com uma página por semana durante um ano.

Meteu a mão no bolso, tirou uma porção de dinheiro e começou a contar notas de mil dólares. Quando chegou a quarenta, empurrou as notas para mim.

— Creio que a compra de um ano adiantado me dá direito a duas semanas de bonificação.

— Tem direito a mais que isso.

— Para mim é bastante.

— Não é preciso pagar adiantado. Pode ser que o jornal não dure um ano.

Ele sorriu.

— Esse adiantamento aumenta as suas chances de manter o jornal. E poderá usar o dinheiro para fazer uma publicação melhor.

— Ainda assim, não há garantias.

Ele se levantou.

— Neste caso, vou fazer como fazia o Diabo. Jogo na sua alma. Se fechar o jornal antes de um ano, apareça num dos serviços de minha igreja e sua dívida estará paga.


Capítulo nove

A Distribuidora Ronzi ficava num depósito de um só andar em Anaheim. Subi com Persky a escadaria da frente e entrei no edifício longo e estreito. Havia estantes e mais estantes de livros e revistas por toda a parte, aparentemente sem qualquer ordem. Passamos pela seção de embalagem, onde havia alguns homens que trabalhavam nas mesas, e chegamos ao fundo do depósito, onde havia uma espécie de escritório por trás de uma parede de vidro.

Havia algumas mesas esparsas e uma grande mesa isolada num canto. Duas mulheres e um homem ocupavam as mesas menores. As mulheres estavam recebendo encomendas pelo telefone e o homem parecia estar conferindo faturas. Levantou a cabeça e disse, pegando um telefone:

— Ronzi está à sua espera. Vou chamá-lo.

Alguns minutos depois, um italiano corpulento, com espessos cabelos pretos e sobrancelhas cerradas, entrou na sala.

— Sou Giuseppe Ronzi — disse ele. — Aproximem-se e sentem-se.

Jogou no chão alguns livros e revistas que estavam em cima das cadeiras para que pudéssemos sentar. Uma das moças saiu de sua mesa e veio apanhar em silêncio esse material.

— Trouxe o espelho? — perguntou-me ele.

— Não, mas. . .

Ele me interrompeu e olhou para Persky com o semblante fechado.

— Eu lhe disse que não me aparecesse aqui sem o espelho. Não posso perder tempo com amadores. Com os diabos! Como se não bastasse todo o trabalho que tenho neste maldito negócio...

Levantou-se, mas eu lhe perguntei com a voz mais calma deste mundo:

— Sr. Ronzi, gostaria de ter a distribuição exclusiva de Playboy na área de Los Angeles?

— Que foi que disse?

— Está me ouvindo agora? — perguntei, alteando a voz.

— Ouvi falar em Playboy...

— Ouviu, sim. Está interessado?

— Seria um idiota se não estivesse.

— Foi isso o que disse ao homem de Playboy quando ele veio procurá-lo pela primeira vez?

— Sabe muito bem que eu nunca tive essa chance. Ele nunca me procurou.

— Não cometa então o mesmo erro pela segunda vez.

— Como isso é possível, se não cometi nem a primeira? — Voltou-se para Persky e perguntou: — Quem é esse camarada? É maluco, ou o quê?

— É maluco — disse Joe, sorrindo.

Levantei-me.

— Está certo, Joe. Vamo-nos embora.

Joe levantou-se. Ronzi também.

— Para onde é que vão? Pensei que tivesse vindo conversar comigo. . .

— De fato, mas você disse que queria um espelho. Como não trouxemos espelho nenhum, não queremos mais tomar seu tempo. ..

— Sentem-se, sentem-se. Já que estão aqui, não custa nada conversarmos. . .

Tornei a sentar-me.

— Está bem.

— Quem está por trás de você? Lonergan?

— Quem é que está por trás de você? A Máfia?

— Não se meta a engraçadinho. Quer que eu distribua a sua revista ou não quer?

— Não sei. Você ainda não me fez uma proposta.

— Como é que eu vou fazer uma proposta se não sei ainda o que você tem para vender?

— Está aí uma boa pergunta.

— Se é a mesma folha de propaganda que davam de graça e ninguém nem olhava, não a quero por preço nenhum.

— Nem eu!

— Tenho oito mil bancas espalhadas por aí.

— Boa notícia.

— Se me der uma boa publicação eu a colocarei em duas mil bancas, dez exemplares em cada uma, o que vem a ser vinte mil exemplares. A dez cents para-você são dois mil dólares limpos e secos. Não é mau.

— Pode não ser mau para você. Mas com o que vou botar de boa matéria no jornal, tenho de receber no mínimo cinco mil dólares para contrabalançar as despesas.

— Você está é louco! Não há nenhuma dessas publicações aqui em condições de vender cinqüenta mil exemplares por semana.

— Não foi isso o que você disse ao homem de Playboy?

— Quantas vezes quer que lhe diga que não falei com o homem?

Eu ri.

— Bem, isto é só força de expressão. Você poderia ter dito a ele o que está me dizendo agora.

— Mas você não é o homem de Playboy.

— Não, não sou. Mas você sabe quem eu serei amanhã?

— Joe, como é que você traz um maluco desses para falar comigo?

— Ora, se ele não fosse maluco, não iria se meter num negócio desses.

Ronzi voltou-se para mim.

— Está bem. Dou uma garantia de trinta mil exemplares e pago adiantado em conta firme. O encalhe é meu para assegurar a exclusividade.

— Não chega. Quero quarenta mil exemplares e doze cents e meio na mesma base e você terá a exclusividade, mas só por um ano.

— Meus sócios não vão topar isso. Não tenho proteção de espécie alguma. Que vai acontecer se a coisa não tiver êxito? Você pega o seu dinheirinho e eu vou ficar curtindo o prejuízo.

— O prejuízo que você vai ter é me pagar mais dinheiro.

— Escute, eu me sentiría bem melhor se você me desse uma idéia daquilo que eu vou comprar.

Ele estava no papo, eu não tinha a menor dúvida disso. Já o havia convencido de que ele estava tendo uma chance excepcional, como a da exclusividade da distribuição de Playboy. Mas ainda faltava o golpe decisivo.

— Quem compra essas revistas? — perguntei para ganhar tempo.

— Os fregueses. Quem mais havia de ser?

— E por que as compram?

— Para ver as pequenas. Interéssam-se pelas fotos. Estão sempre à procura de alguma coisa nova.

Ele não sabia disso, mas acabava de me dar uma boa idéia.

— Ótimo. Você está esquentando.

— Estou mesmo.

Olhei para Joe. Gostaria de pensar que a expressão dele era de respeito, mas era apenas de perplexidade em face do caminho que eu estava tomando. A idéia estava se formando, mas eu precisava de mais alguns segundos para completá-la. Passei a bola para Persky.

— Está bem, Joe. Quer dizer a ele ou prefere que eu diga?

— Quem deve dizer é você que é o chefe.

Baixei a voz.

— O que eu vou lhe dizer é absolutamente confidencial. Não quero que me roubem a idéia.

— Pode contar com o meu silêncio — disse ele solenemente.

— A idéia é apresentar as pequenas de maneira diferente.

— Como assim?

— Na capa, um título de ponta a ponta: "GAROTA NOVA NA CIDADE!" Embaixo, uma bela pequena de minissaia ou shorts. Com uma maleta na mão, fotografada num terminal rodoviário, numa estação de estrada de ferro ou num aeroporto. Outra manchete embaixo: "VEJA ESTA PEQUENA NUA NA PÁGINA CENTRAL!" Em cada número uma cara nova, cinqüenta e duas semanas por ano.

— Mas isso é genial! — exclamou Ronzi. — Por que não me disse antes, Joe?

— Joe se comprometeu comigo a guardar segredo.

— Magnífico! Sabe o que é que mais me agrada na idéia? É que o melhor está dentro da revista e não fora. Quem quiser ver o melhor, terá de comprá-la.

— Exatamente.

— Muito bem. Fico com os quarenta mil exemplares, mas terá que me dar dez mil exemplares em consignação e uma página gratuita de publicidade em cada número.

— Concordo com a consignação a quinze cents o exemplar. Mas publicidade gratuita, nada feito. Terá de pagar oitocentos dólares por página, como todos pagam.

— Explique os fatos da vida a esse camarada, Joe. O que estou querendo é absolutamente normal.

— É verdade, Gareth.

— Está bem. Vou demonstrar-lhe alguma consideração. Vou lhe dar cinqüenta por cento de desconto na publicidade. Só pagará quatrocentos dólares por página.

— E os exemplares em consignação? Cobrando quinze cents você estará apenas me impondo uma multa por trabalhar bem e vender mais. Vou aproveitar os exemplares da consignação para despertar o interesse dos homens das bancas, dando-lhes uma percentagem maior. O meu lucro será mínimo.

— Não me faça chorar, sim?

— Você é inteiramente maluco.

— Obrigado. Vou mandar meu advogado redigir o contrato.

— Quem é que precisa de advogado? Minha palavra chega e sobra.

— Mas a minha, não. Você vai precisar de um advogado — disse eu.

Persky só abriu a boca quando já estávamos na estrada de volta a Los Angeles.

— Não compreendo você.

— Não há nada para compreender — retruquei, acendendo um cigarro.

— Não se facilita com um camarada como Ronzi. Ele é capaz de matá-lo se você não fizer o que prometeu.

— Mas vou fazer.

— Quando? Você está andando de um lado para outro há quatro semanas e eu ainda não vi nem o cheiro da revista.

— Daqui a duas semanas estará tudo pronto.

— Agora eu sei que você é doido mesmo. Vendeu um esquema de fotos em que nèm estava pensando quando foi falar com Ronzi e ainda não preparou nada, nem fotos, nem matéria. De onde é que pensa que vai cair tudo isso? Do céu?

— Talvez. Enquanto isso, tenho outro cargo para você, Joe Persky.

— Posso saber qual é?

— Diretor de publicidade.

— Essa não. Não conte comigo para isso. Nenhum anunciante legítimo gastará um centavo que seja na sua revista.

— Certo. Mas já pensou nos anunciantes ilegítimos? Há milhares de bares topless, discotecas e estabelecimentos de massagens que não podem anunciar nas revistas e nos jornais sérios. Faremos uma seção especial de anúncios dessa ordem e daremos bons descontos. Pretendo publicar quatro páginas dessas.

— Não vai conseguir nada. Essa gente de que está falando quer segredo e não publicidade. Têm sempre medo da ação da polícia.

— Aí é que você se engana. A vaidade de ter o nome impresso é quase sempre maior que o medo. Vão anunciar.

Ele sacudiu a cabeça.

— Não sei. . .

— Esse "não sei" lhe valeu um aumento de ordenado de cinqüenta dólares. Se disser "vou ver", o aumento será de cem dólares.

— Vou ver — disse ele, tomado de súbito entusiasmo. Mas, um momento depois, olhou para mim e perguntou: — Mas quando é que vai começar a fazer a revista?

— Cuide de sua tarefa, Joe. Eu cuidarei da minha.


Capítulo dez

— Está gastando muito dinheiro — disse Verita.

Interrompí a leitura de uma prova e perguntei:

— Está faltando dinheiro?

— Isso não. Mas você já gastou onze mil dólares com esse primeiro número. Isso representa todo o dinheiro que vai entrar, nem mais, nem menos. Dessa maneira, não vai haver lucro.

— O primeiro número sempre custa mais do que os outros. Precisamos de uma porção de coisas. Dê-me uma chance.

Ela pegou uma folha de papel.

— Impressão e papel para o primeiro número: sete mil dólares. Podemos economizar mil dólares no papel das capas.

— Nada disso! O papel das capas estabelecerá a nossa superioridade e distinção logo de saída.

— Fotos, gravuras, layouts, dois mil e quinhentos dólares. Nosso amigo Bobby gasta sem medida. É evidente que não sabe o valor do dinheiro.

— Eu mesmo o aconselhei a proceder assim. Temos aí, portanto, nove mil e quinhentos dólares. E o resto?

— Salários e pequenas despesas.

— Quanto a isso, não se pode fazer muito. Quem trabalha tem de receber dinheiro. Que é que você acha que devemos fazer?

— Reduzir drasticamente as despesas no segundo número. Usar um papel inferior nas capas e cortar pela metade o orçamento de Bobby.

— Falou como uma verdadeira contabilista. Mas eu tenho uma idéia melhor. Qual é neste momento o nosso saldo no banco?

— Oitenta mil dólares.

— Por que não pegamos esse dinheiro e vamos para o México? Pode-se viver muito bem lá com oitenta mil dólares.

Ela me olhou para ver se eu estava brincando. Fiz a cara mais séria deste mundo.

— Decerto não é preciso lhe dizer que isso seria desonesto.

—j E daí? Como nos divertiriamos!

Ela continuou a falar sério.

— Se eu quisesse voltar para o México, já teria voltado há muitos anos. Mas gosto de viver aqui.

— Eu também — disse eu, rindo.

Ela deu um suspiro de alívio.

— Ah! Cheguei a pensar que estava falando sério.

— Escute, Verita. As coisas não vão tão mal assim. Bobby já tirou tantas fotografias que temos o suficiente para seis números. Daqui por diante, ele não poderá gastar mais de mil dólares por semana.

— Melhorou muito. E o papel das capas?

— Vai continuar. Vamos vender a revista a trinta e cinco cents o exemplar. Vai custar dez cents mais que as outras revistas e a capa é a primeira coisa que um freguês vê. É preciso que ele se convença de que está recebendo em troca do seu dinheiro um valor maior.

— Está bem — disse Verita. — Aqui está uma conta que acaba de chegar.

Era da Empresa de Material Fotográfico Acme. Três mil dólares por máquinas e equipamento. Olhei a fatura e disse:

— Pode pagar.

— Bobby comprou máquinas muito caras. Uma Rollei e uma Nikon com lentes e tripés.

— Ele poderia ter gasto muito mais. Tudo isso é equipamento usado. Se fosse novo, custaria dez mil dólares. Mas isso não é o mais importante. Ele vai fazer as fotos pessoalmente. Isso nos faz economizar cem dólares por hora, que é quanto cobra qualquer fotógrafo.

— Quer saber de uma coisa? Desisto.

— Você está muito nervosa. Há quanto tempo não acalma esses nervos fazendo o que seu corpo pede?

— Você deve saber — disse ela, sorrindo. — O que não sei é se não tem se aproveitado de algumas dessas garotas da missão.

— Missão não, oficina.

Era uma acusação infundada. Naqueles últimos dez dias, eu não tinha tido um minuto de descanso. Havia trabalhado na redação até as duas horas da madrugada todas as noites. È o que acontece quando se faz questão de escrever tudo. Havia algumas notícias das companhias de cinema que só serviam para tapar buracos. O resto tinha de ser escrito por mim. Cheguei à conclusão de que, se o primeiro número tivesse o êxito esperado, eu teria de contratar pelo menos dois redatores bem-pagos. Eu não fora feito para aquele trabalho quase braçal. Era quase meia-noite e só eu e Verita estávamos ainda na revista.

— Quer ir comer alguma coisa por aí e depois ir para a cama comigo?

— Tenho uma proposta melhor, Gary.

— Pode falar.

— Você tem carne na geladeira em casa. Podemos ir para lá e eu prepararei uns bons bifes. O resto pode ser conforme a sua proposta.

— A sua idéia é melhor, Verita. Qu.e é que estamos esperando?

Eu estava dormindo de verdade, com aquele sono profundo que vem depois de se dar plena satisfação ao corpo. Por isso, não ouvi o telefone. Foi Verita que atendeu.

Ela me acordou e colocou o fone no travesseiro perto de meu ouvido.

— É sua mãe, Gary.

— Alô, mamãe!

— Quem é essa moça?

— Que moça? — perguntei, ainda tonto de sono.

— A que atendeu o telefone.

— Não é ninguém não. É a pessoa que trata de minha escrita.

— Engraçado. . . Pelo sotaque me pareceu mexicana. Abri os olhos. Minha mãe sempre sabia a melhoF maneira de me acordar.

— É bem morena também. Quase preta.

— Por que está fugindo de mim?

— Quem foi que disse que eu estou fugindo de você? Acontece que eu deixei de jogar tênis.

— Não achei graça nenhuma. Sabe que dia é hoje?

— Como é que eu vou saber? A esta hora da manhã, eu não sei nem qual é o ano.

— São dez horas da manhã. Você não mudou nada. Bem que não acreditei no que seu tio John disse.

— Que foi que ele disse?

— Ele me garantiu que você estava mudado e trabalhando muito. Com toda a certeza, você já perdeu todo o dinheiro que ele lhe deu.

— Deixe para lá, mamãe. Para que foi que telefonou?

— Faz quatro anos hoje que seu pai morreu. Achei que seria bom jantarmos juntos, você, John e eu.

— Isso não dará vida a papai, sabe?

— Sei, mas seria bom fazermos alguma coisa para mostrar que não o esquecemos. Oito horas hoje, está bem?

— Está bem.

— Venha de gravata, se ainda tem alguma. Tenho um mordomo novo em casa e não gostaria que ele pensasse que meu filho é um vagabundo.

Depois disso, desligou, e eu me voltei para Verita ao mesmo tempo que pegava um cigarro.

— Era minha mãe.

— Eu sei. Só acordei você porque era ela. Você estava dormindo tão bem que parecia um garotinho.

— Que é isso? — perguntei, ouvindo barulho na cozinha.

— Não sei. Você esperava que Bobby voltasse esta noite?

Sacudi a cabeça e levantei-me. No momento em que abri a porta do quarto, senti o cheiro do bacon no fogo. Fui até a cozinha.

Bobby estava junto ao fogão e disse, sem olhar para mim:

— Pode voltar para a cama que já vou lhe levar o café.

— Ele está cozinhando — eu disse a Verita quando voltei para o quarto.

— Melhor. Antes ele do que eu. Preciso botar alguma coisa em cima do corpo.

A porta se abriu quando ela ia saindo da cama. Verita puxou prontamente o lençol até o pescoço. Bobby estava vestido como um mordomo — calças listradas, colarinho de pontas viradas, gravata borboleta e um amplo sorriso no rosto. Trazia na mão uma bandeja com as coisas do café da manhã.

— O café está servido, sir — disse ele, ao passar pela porta.

Ouvi um riso atrás dele e Denise entrou também no quarto, vestida com um uniforme de criada francesa. Estava com uma minissaia preta, longas meias pretas bem esticadas, um pequeno avental e uma graciosa touca. Levava também uma bandeja e disse rindo:

— O café está servido, madame.

Depositaram solenemente as bandejas em nosso colo e eu perguntei:

— Que quer dizer isso, Bobby?

— Beba o seu suco de laranja com champanhe — disse ele, rindo. — O dia de hoje é muito importante.

Tirou então uma revista que levava escondida debaixo do paletó.

— Bom dia. Aqui está o primeiro exemplar a sair da gráfica.

Olhei para a capa. Ali estava o título: "Hollywood Express". Embaixo, via-se uma fotografia em cores de Denise, saltando de um ônibus. A legenda dizia: "GAROTA NOVA NA CIDADE!"

— Você foi buscá-la! — exclamei.

— Estamos do lado da impressora desde as seis da manhã.

Comecei a folhear a revista. Bem, a verdade é que era diferente das outras. Ainda que eu tivesse visto tudo em provas, era uma emoção indescritível ter nas mãos a revista pronta.

— Gostou? — perguntou Bobby.

— Telefone imediatamente para Persky, Bobby! Diga-lhe que trate lògo da distribuição.

— Ele já está cuidando disso. Os primeiros cinco mil exemplares já foram remetidos a Ronzi.

Serviu copos de suco de laranja com champanhe, inclusive a Denise, e fez o brinde:

— Ao Hollywood Express. Faço votos para que esse expresso nunca descarrile!

Era curioso, más eu ainda não podia acreditar que a revista fosse real. Abri-a no pôster do centro e lá estava Denise, nua e linda. A fotografia tinha uma sensualidade simples e vigorosa que parecia saltar das páginas. Era uma espécie de consciência sexual ao mesmo tempo intensa e ingênua.

Percebi que Verita também estava entusiasmada com a revista.

— Que é que você acha?

— Posso começar a pagar as contas hoje de manhã — disse ela.

— As fotos estão sensacionais, Bobby. E eu não posso nem acreditar que você seja tão bonita, Denise!

Ela sorriu sem nenhum artifício.

— Muito obrigada. Eu estava bem nervosa na ocasião e pensei que as fotografias não iam sair boas.

— Ela estava preocupada de estar mostrando o corpo. Eu disse que daria um jeito.

— Retoques?

Ele sacudiu a cabeça.

— Retoques antes da fotografia e não depois. Com maquilagem e certos ângulos podem fazer-se milagres hoje em dia, não acha?

— Eu acho é que sou capaz de perder meu diretor artístico quando se souber da sua perícia.

Estava com muita fome e comecei a comer.

— Como é? Vocês dois não vão comer também?

— Pensei que nunca nos iria convidar — disse Bobby, saindo do quarto para apanhar outra bandeja.

Daí a instantes, estavam os dois sentados na cama com as pernas cruzadas, comendo.

— Escute, Bobby, e o anúncio de seu pai? — perguntei de repente.

— Foi paginado ontem à noite. Está na contracapa.

Olhei a contracapa da revista e vi a habitual fotografia do Reverendo Sam que eu já tinha visto várias vezes em outras revistas. Mas a matéria era diferente. Depois do título: "IGREJA DOS SETE PLANOS", havia duas linhas simples que diziam: "O que você faz com seu corpo é com você. O que você faz com sua alma é conosco. Deixe-nos ajudá-lo a encontrar Deus dentro das suas condições e circunstâncias".

— É essa realmente a idéia dele, Bobby?

— É, sim — disse Denise, respondendo por ele. — Disse-lhe que ia fazer as fotografias e ele não fez qualquer objeção. Disse também o que sentia a seu respeito.

— A que vem isso agora, Denise?

— Esqueceu-se da nossa conversa? Completo dezoito anos hoje — disse ela bcijando-me.


Capítulo onze

A distância entre Hollywood e Bel Air era de um milhão de dólares. Quando passei pela patrulha de Bel Air no portão principal, quase não me deram atenção. Eu estava dirigindo o Rolls-Royce conversível de Bobby e isso implicava aprovação automática. Teria sido talvez barrado se estivesse em algum carro inferior a um Cadillac ou a um Lincoln Continental. Entrei por Stone Canyon Drive, que levava à casa de minha mãe.

As ruas estavam escuras e desertas. Havia luzes nas casas de um lado e do outro, mas não havia qualquer ruído. O carro de Lonergan já estava diante da casa de minha mãe. Era um Cadillac preto e o motorista de meu tio estava de pé, encostado ao carro. Parei o conversível atrás dele. Olhou-me curiosamente quando saí do carro. Creio que o carro e a roupa séria que eu estava usando o tranqüilizaram, pois não me deu maior atenção.

Toquei a campainha e ouvi lá dentro sons de carrilhão. Um mordomo que eu não conhecia abriu a porta.

— Sou Gareth — disse, entrando.

— O Sr. Lonergan está na biblioteca — disse o mordomo sem qualquer expressão no rosto. — A Sra. Brendan já vai descer.

Estava tudo de acordo com as regras. Quando minha mãe dizia oito horas em ponto só ficava pronta às oito e meia.

Lonergan olhava à janela da biblioteca, tinha um copo na mão e observava a piscina e a quadra de tênis iluminadas.

— Quer beber alguma coisa? — perguntou-me o mordomo, quando Lonergan se voltou para mim.

— Que é que você está bebendo? — perguntei a Lonergan.

— Um martíni seco.

— O mesmo para mim.

— A casa ai/ida está tão bela como no dia em que vocês se mudaram para cá. Lembra-se, Gareth?

— Não posso me lembrar. Afinal de contas, tinha apenas um ano nessa época.

O mordomo desapareceu depois de me entregar o drinque. Tomei um gole e senti a explosão no estômago. Só então lembrei-me de que não me dava bem com martínis. Deixei cuidadosamente o copo num canto.

— Tinha-me esquecido — disse Lonergan. — O tempo às vezes corre muito depressa.

Não respondí.

—. Você parece diferente, Gareth.

— É a roupa. Mamãe insistiu em que eu viesse de gravata.

— Devia usá-la mais vezes. Fica-lhe muito bem.

— Muito obrigado. — Fui até o bar e preparei um uísque com água. — É engraçado, mas não me dou bem com os martínis.

— A mim um martíni antes da comida sempre abre o apetite. Isto aqui é bem agradável. Não sente falta desta casa para morar?

— Não.

— Por quê?

— Isto aqui é um gueto.

— Gueto?

— Sim, os muros separam a gente do resto do mundo. Pode haver^ riqueza mas não deixa de ser um gueto. A única diferença é que quem está aqui dentro não quer sair.

— Nunca vi as coisas dessa maneira. Ah, antes que me esqueça. . . Não gostei de sua revista e vou cancelar os meus anúncios.

— É melhor não tentar esse golpe, tio John. Temos um contrato do qual não pode se afastar.

— É uma revista imoral. Fotos de mulheres nuas e textos que falam desavergonhadamente de sexo. Não há um só juiz que me negue o direito a cancelar o contrato.

— Pense bem antes de fazer uma coisa dessas. Você tem muitos negócios que não comportariam um exame, ao menos na base da moralidade.

— Chegaria ao ponto de alegar isso?

— Não tenha a menor dúvida! Foi você que me forçou a pegar o abacaxi do Hollyivood Express. Que era que esperava que eu fizesse? Que seguisse o exemplo de Persky, vivesse na miséria e acabasse na falência? Entrei no negócio para ganhar dinheiro e não para limpar as suas receitas junto ao Imposto de Renda.

— Qual foi a tiragem desse número?

— Cinqüenta mil exemplares. Trinta e cinco mil mais do que Joe Persky costumava imprimir. Com uma circulação assim, você mostraria que tem juízo comprando mais duas páginas de anúncios. Poderia justificar mais dinheiro ainda.

— Como é que você pode ter certeza de manter essa tiragem e a circulação correspondente?

— Tenho certeza. Ronzi conhece o negócio e está apostando tudo na revista.

— Ronzi é a Máfia.

— E daí?

— Era melhor você não se envolver com essa gente.

— Engraçado! Ele me aconselhou justamente que não me envolvesse com gente como você.

Ouvimos os passos de mamãe que descia a escada.

— Apareça no meu escritório na segunda-feira. Temos de conversar sobre tudo isso — disse Lonergan antes que ela chegasse.

— Não temos nada a conversar. Além disso, estarei muito ocupado trabalhando no segundo número.

Levantamo-nos logo que mamãe entrou na biblioteca. Tinha de reconhecer que ela ainda estava com uma aparência muito boa. Aos cinqüenta e cinco anos, dava a impressão de não ter mais de trinta e cinco. O rosto estava queimado de sol e sem rugas, os cabelos eram tão louros quanto no meu tempo de criança e o corpo mostrava a esbelteza de quem joga tênis todos os dias. Aproximou-se de mim e virou o rosto para que eu o beijasse.

— Você está magro — disse.

Ela não podia deixar de dizer isso e eu de repente me senti como se só tivesse quinze anos: todo braços, pernas e obediência.

Voltou-se para o irmão.

— Não acha que ele está magro, John?

— Talvez — disse ele com um leve sorriso. — Mas, se eu fosse você, não me preocuparia com isso. Ele parece bastante capaz de se cuidar na vida.

— Ele não deve saber nada a respeito de alimentação. Aposto que faz meses que não come uma salada.

— Não sabia que as saladas engordavam.

— Deixe de fazer ironias com sua mãe, Gareth. Você sabe muito bem o que eu quero dizer.

— Mamãe!

— Que é? — perguntou ela com um leve tremor nervoso na voz.

Dominei minha irritação, sabendo que era tão difícil para ela comunicar-se comigo quanto era para mim comunicar-me com ela. Não havia mais qualquer interesse comum entre nós. Senti dentro de mim a profunda tristeza de tudo isso.

— Está muito bonita, mamãe!

— Acha mesmo? — perguntou ela, sorrindo.

— Você sabe que sim.

O terreno era seguro, ao menos para ela.

— É que eu procuro me cuidar, Gareth. A juventude hoje em dia é quase um culto para muita gente.

"Menos para os moços", pensei eu.

— Quer que lhe prepare um drinque? — perguntei.

— Vou tomar vinho branco, que tem bem poucas calorias.

Fui até o bar e estava tirando o vinho da geladeira quando o carrilhão da porta tocou. Abri a garrafa e olhei com ar de espanto para minha mãe. Havia pensado que o jantar era só para nós três.

Minha mãe compreendeu o meu olhar e disse:

— Pensei que seria interessante convidar mais uma pessoa. Uma moça para compor a mesa. Deve lembrar-se dela. É Eileen Sheridan. Ela gostava muito de seu pai.

Não tive tempo de dizer mais nada. Ainda me lembrava de que Eileen usava aparelho nos dentes quando meu pai morreu. Mamãe recebeu-a à porta da biblioteca. Eileen tinha mudado muito desde que eu a vira pela última vez.

Estendeu a mão para mim por cima do balcão do bar e sorriu. Não havia mais nem sombra do aparelho. Os dentes eram brancos e regulares.

— Alô, Gareth. Como é bom tornar a vê-lo!

— Eileen. . . — murmurei.

O aperto de mão dela tinha o toque de Bel Air, a meio caminho entre a cordialidade efusiva das pequenas de Beverly

Hills e a fria polidez das moças de Holmsby Hills. Era um calor sincero, mas comedido.

— Que é que você quer beber, Eileen?

— Que é que vocês estão bebendo?

Procedimento correto. Saber primeiro o rumo que as coisas tomavam na sala e não fazer ondas, nem inovações. Lembrei-me então de que pouco antes procedera da mesma forma.

— Estou tomando scotch, tio John vai de martínis e mamãe prefere vinho branco.

— Prefiro também as baixas calorias.

Houve uma pausa.

— Que belo Rolls o seu lá fora! — disse-me ela.

— Rolls? Que Rolls? Você não me disse que tinha um Rolls, Gareth — disse minha mãe.

— Não é meu. Você me recomendou que viesse de gravata, mamãe. Não poderia vir até aqui pedindo carona pela estrada.

— Se o carro não é seu, de quem é? — perguntou mamãe.

Ela não fazia a menor objeção a que eu tivesse amigos ricos.

— De uma pessoa amiga.

— Não me diga que o carro é daquela mexicana que atendeu seu telefone hoje de manhã.

— Não, mamãe. Ela tem um velho Valiant tão batido que os guardas decerto não o deixariam passar pelo portão principal.

— Não quer é me dizer de quem é o carro.

— Está bem, mamãe. Se quer mesmo saber, é de um rapaz que mora no meu apartamento e quer ser meu criado.

— Criado? Como assim?

— Quer lavar, passar, cozinhar, fazer tudo para mim.

— É seu criado e tem um Rolls-Royce! Como fói que o conseguiu?

— Acontece que o pai dele é rico.

Ela de repente compreendeu.

— Quer dizer que. . . ele?

— Sim, mamãe, ele é homossexual.

Ela arregalou os olhos e não chegou a levar aos lábios o copo de vinho que tinha levantado.

— O jantar está servido — disse nesse momento o mordomo, chegando à porta.

Fomos em silêncio para a sala de jantar. Mamãe tinha preparado o que havia de melhor, talheres de ouro, louça de Coalport e cristais de Bacará. As velas brilhavam nos candelabros, cujas bases estavam cobertas de flores.

— A mesa está uma beleza, Sra. Brendan — disse Eileen.

— Muito obrigada — respondeu minha mãe distraidamente.

Não trocamos uma só palavra até depois que o mordomo colocou um prato de salada diante de cada um de nós e saiu da sala. Minha mãe quebrou então o silêncio.

— Não compreendo você, Gareth. Como pode fazer uma coisa dessas?

— Não estou fazendo nada, mamãe. Disse apenas que ele mora no meu apartamento.

Ela levantou-se de repente.

— Não estou me sentindo bem.

— Sente-se, Margaret! — disse meu tio autoritariamente.

Ela o olhou por um momento e deixou-se cair de novo na cadeira.

— Você convidou seu filho para um jantar de família tranqüilo. Mas o está provocando desde que ele chegou.

— Mas, John. . .

— Agora, vamos ter um jantar tranqüilo, como você prometeu. E se precisa de algum testemunho para provar a virilidade de seu filho, posso dizer a você que ele é mais homem do que o pai dele jamais foi.

— Que ele esteja em paz onde está — disse eu. — Eileen, tive de fato muito prazer em tornar a vê-la. Obrigado pelo voto de confiança, tio John. Mas não adianta. Não tenho nada que fazer aqui. Há muito tempo que não tenho. Sinto muito, mamãe.

Depois de dizer isso, levantei-me e saí da sala. Tio John foi alcançar-me quando eu já estava perto da porta da rua.

— Não seja criança, Gareth!

— Não sou criança. Uma criança agüentaria tudo calada.

— Ouça, ela está nervosa. Você sabe como esse jantar é importante para ela. Faça-me o favor de voltar para a mesa.

Olhei-o espantado. Nunca o ouvira pedir por favor coisa alguma, nem a mim, nem a ninguém.

— Deixe passar, Gareth. Ficar zangado não resolverá coisa alguma nem para você, nem para ela.

Achei que ele tinha razão. Eu estava procedendo como uma criança, exatamente como sempre havia procedido em relação a mamãe. Ficava sempre amuado quándo ela passava da conta. Voltei para a mesa.

Pedi as devidas desculpas e tornei a sentar-me.

Não houve outros conflitos até o final do jantar.


Capítulo doze

Fomos tomar café na biblioteca. O café foi servido em pequenas xícaras, acompanhado do conhaque em grandes cálices bojudos.

— Seu pai gostava de tomar café aqui. Sentava-se neste sofá e ficava olhando as luzes na fonte e na piscina — disse mamãe e começou a chorar.

Eileen passou o braço pelos ombros dela.

— Não chore, Sra. Brendan. Tudo isso é passado.

— Para mim não é! — mamãe exclamou asperamente.

— Até hoje não sei por que ele fez isso comigo. . .

— Não fez nada com você, mamãe. O que ele fez foi a si próprio.

— Não, não compreendo. Só queriam que ele respondesse a algumas perguntas. As investigações posteriores provaram que ele nada tinha feito de errado.

Essa era a opinião dela. Mas o governo havia reconhecido que não podia mandar um cadáver para a cadeia. Em vista disso, arquivaram o caso. Olhei para meu tio. O seu rosto estava impassível.

— Talvez possa explicar tudo a ela, tio John.

— Já expliquei. Disse a sua mãe que ele não refletiu bem. Nada podiam fazer contra ele.

Nem eu acreditava nisso, nem ele. Tinha uma versão do caso para mim e outra para minha mãe.

— De que é que ele tinha receio então? — perguntei.

— Não podia ser responsabilizado pelo desabamento daquela escola.

Meu tio continuou a falar com voz calma.

— Talvez tivesse receio de que os políticos o acusassem de negligência em não fazer maiores exigências de qualidade no cumprimento dos contratos dos empreiteiros.

— Não é possível que alguém tenha agido junto aos políticos para que eles fechassem os olhos a certas irregularidades? — perguntei.

— Disso eu não sei — ele respondeu, sem pestanejar.

— Tio John tem razão — disse eu. — Meu pai agiu de acordo com os contratos, e se estes não eram bons, a culpa não era dele. Infelizmente, não pôde convencer-se disso. Sabia que as especificações não eram boas. Por isso, fez o que fez e a única coisa que você pode fazer, mamãe, é aceitar os fatos, deixar tudo isso de lado e procurar levar uma vida normal.

— Não pode haver vida normal para mim — retrucou ela.

— Não me venha com essa! Por acaso, deixou de jogar tênis?

Ela sabia o que eu estava querendo dizer e baixou os olhos. Tinha predileção pelos tenistas profissionais e eu sabia que muitos deles lhe tinham prestado serviços que não tinham nada a ver com as bolas de tênis.

— Já pensou em. se casar de novo, mamãe?

— Quem vai querer casar-se com uma velha como eu?

Eu ri.

— Em primeiro lugar, está exagerando essa conversa de velhice. É uma mulher bonita, e tem alguns milhões no banco. Trata-se de uma combinação bem fortuita. Precisa apenas soltar-se um pouco e não mostrar tanto gelo quando aparece algum cara.

As minhas palavras a lisonjeavam, mas ela julgava que tinha de manter uma atitude correta.

— Não se esqueça de que está falando com sua mãe, Gareth.

— Não estou esquecendo, não. Mas, desde que não sou produto de uma concepção imaculada, quero dizer-lhe que a coisa pode ser ainda muito agradável.

— Não se pode falar com você. Há alguma coisa que você ainda respeite, Gareth?

— Não, mamãe. Não há mais. Houve um tempo em que eu ainda acreditava numa porção de coisas. . . honestidade, decência, bondade. Mas depois de algumas desilusões, fica-se curado. E eu tive desilusões demais.

— E agora? Que é que você quer?

— Quero ser rico. Não apenas um pouco rico, tal como foi meu pai, ou rico de verdade, como tio John. Quero ser super-rico. Quando se é super-rico, tem-se o mundo aos nossos pés. O dinheiro compra tudo: sociedade, políticos, propriedades, poder. Basta ter dinheiro para comprar tudo isso. E o mais engraçado de tudo é que, quando se tem o dinheiro, não é preciso comprar mais nada. As pessoas vêm correndo e se entregam de graça.

— E você espera ficar tão rico assim com essa revista? — perguntou meu tio.

— Não, mas já é um bom começo. Já passa das dez, mamãe, e eu ainda tenho de trabalhar.

— Que espécie de trabalho?

— A revista está nas bancas de Hollywood desde a manhã de hoje. Quero saber como vai indo a vendagem.

— Ainda não vi a sua revista, Gareth. Quer me mandar uma?

— Mando, sim.

— Não creio que essa espécie de revista lhe interesse, Margaret — disse então tio John.

— Por quê?

— Bem, é o que se poderia chamar uma revista pornográfica.

— É verdade, Gareth?

— Essa é a opinião dele, mas não é a minha. Vai vê-la e formar por si mesma a sua opinião.

— Está bem. É só me mandar uma.

— Também vou sair — disse Eileen, levantando-se. — Tenho algumas aulas amanhã bem cedo.

Seguiram-se as despedidas. Beijei minha mãe no rosto e deixei-a em companhia de tio John. Eileen e eu saímos juntos. Os únicos carros em frente à casa eram o Rolls e o Cadillac.

— Onde está seu carro, Eileen?

— Vim a pé. Se ainda se lembra, moro duas casas abaixo. Lembrava-me, sim.

— Entre que vou deixá-la em casa.

Quando chegamos ao portão, ela me tocou no braço para que eu não entrasse.

— Posso ir até a cidade com você?

— Claro. Por que apareceu lá na casa da mamãe hoje?

— Estava cheia de curiosidade a seu respeito. Já ouvi tantas histórias. Você não é bicha, é?

— Às vezes.

— Quase todas as bichas que admitem ser bissexuais estão contando apenas a metade da verdade.

— Quer uma prova? — perguntei, ao mesmo tempo que pegava a mão dela e a colocava entre as minhas pernas para que sentisse o volume.

— Não é preciso. Acredito — disse ela, afastando rapidamente a mão.

— Quer ir para casa agora?

— Não. Quero pegar um exemplar de sua revista para ver por mim mesma como ela é.

Parei o carro perto de uma banca de jornais. Ficamos sentados olhando o movimento. Era o comum de todas as noites.

Saltamos do carro e atravessamos a rua. Corri os olhos pela banca à procura da revista. Fui encontrá-la ao lado da máquina registradora.

Eileen ficou um pouco para trás e eu, fazendo-me passar por um freguês comum, peguei um exemplar da revista. Quis abri-la, mas vi que estava fechada por uma tira de fita adesiva.

O homem da banca quase não mc encarou enquanto falava. Corria os olhos nervosamente de um lado para outro.

— Vai gastar cinqüenta cents para ver a pequena.

— Como eu posso saber se vale a pena?

Ele me indicou os fundos da banca onde estava colado um pôster de Denise.

— Cinqüenta cents.

— É a primeira vez que vejo esta revista — observei, entregando-lhe o dinheiro.

— Saiu hoje.

— Tem vendido muito?

— Comecei hoje à tarde com um reparte de cinqüenta. Só restam cinco. Espere aí, você é da polícia?

— Não. Sou o dono da revista.

O rosto enrugado do homem se abriu num sorriso.

— Pois, meu amigo, pode ter certeza de que lançou uma boa coisa. Vai ganhar um bocado de dinheiro se a polícia não apreender.

— Obrigado.

— Quem sabe se você não pode me dar uma mãozinha? Telefonei para Ronzi e pedi mais cem revistas, pois espero muita procura no fim de semana.

— E ele?

— Nada feito. Diz que não tem mais. Agora estou arrependido de não ter querido as cem que ele ia me mandar.

— Vou ver o que posso fazer.

A todo lugar que íamos era a mesma coisa. De volta à casa de Eileen, paramos numa galeria comercial do Beverly Wilshire Hotel. A revista não estava na pequena banca que havia lá, mas numa máquina de vender. Enquanto ficamos ali, vimos um homem colocar duas moedas de vinte e cinco cents na máquina e pegar a última revista. Fomos para o balcão e pedi um café para Eileen e uma soda para mim. Ela folheou a revista e olhou-me.

— Não está má.

— Obrigado. — Acendi um cigarro.

— Posso fazer algumas sugestões. . . Se isso não fere a sua vaidade.

— Pode falar.

— A revista é cheia de vida e dinamismo — ela disse, tirando o cigarro da minha mão. — Mas há uma porção de coisas que você não sabe.

Acendi outro cigarro e fiz-lhe um sinal para que continuasse.

— Em primeiro lugar, toda a matéria escrita tem o mesmo estilo. Parece que uma só pessoa escreveu tudo.

— Exatamente. E essa pessoa sou eu.

— Não está de todo mau. Mas você devia usar pelo menos outra pessoa para quebrar a monotonia. Outra coisa: a matéria principal está na página 7. Devia ir para a página 3. Seria assim a primeira coisa que o leitor encontraria no momento em que abrisse a revista.

Eu não disse nada.

— Quer que eu continue?

Fiz um gesto afirmativo com a cabeça.

— A composição e os títulos devem ser melhorados. Quem marcou os originais não tinha a menor idéia do texto. Tira um pouco da força da revista. Quem faz a composição?

— A impressora.

— Deve cobrar um dinheirão por isso. Você precisa de uma oficina própria para fazer a composição. Vai gastar alguns milhares de dólares mas vai melhorar a revista e tudo será compensado em alguns meses.

— Você fala como se entendesse tecnicamente da coisa.

— Quatro anos de jornalismo na universidade. Nestes últimos dois anos, fui chefe de redação do Trojan.

— É uma expert no assunto. Aprecio muito os seus comentários. Acho-os justos.

— Se quiser, posso ir até a sua redação e ver em que poderia ajudá-lo.

— Seria ótimo, mas por que todo esse interesse?

— Creio que é porque você, sem querer, encontrou, talvez, uma fórmula nova. Ainda não compreendo tudo muito bem, mas tenho a impressão de que descobriu um novo tipo de comunicação com os leitores. É uma coisa interpessoal. A revista parece estar falando com as pessoas, dizendo coisas em que talvez todos tivessem pensado, sem poder, porém, exprimi-las em palavras.

— Considero isso um elogio.

— E tem a intenção de ser um elogio mesmo.

Pedi a conta.

— Vou levar você para casa. Quer me telefonar quando estiver disposta a ir até a revista?

— Amanhã à tarde está bem?


Capítulo treze

As luzes estavam acesas na revista quando freei o carro. A porta estava aberta. Encontrei Persky sentado à sua mesa.

— Estava à sua espera — disse ele.

— Que é que há?

— Ronzi não me dá descanso desde as sete horas da noite. Quer mais cinco mil revistas amanhã de manhã. Está recebendo pedidos das bancas na cidade inteira.

— Muito bem. Diga-lhe que não é possível.

— Ele disse que pagaria à vista. .

— O que ele pode fazer é aumentar o pedido para o número da semana que vem. É bom que fiquem com um pouco de fome. Assim terão mais apetite. Combinamos um preço de venda nas bancas de trinta e cinco cents e ele está cobrando cinqüenta. São quinze cents que ele ganha à nossa custa. Quero que ele vá para o inferno.

— Creio que posso convencê-lo a aumentar dez mil no pedido. Serão mais mil e quinhentos dólares, Gareth.

— Se ele não conseguir mais revistas agora, vai pedir mais vinte mil na semana que vem. Diga que, com esse número, não quero fazer mais negócio com ele.

— Há muito tempo que eu trabalho nisso, Gareth. A gente tem de pegar tudo o que aparece.

— Vamos trabalhar nisso durante muito tempo. Só vamos correr depois que aprendermos a andar. Antes que eu me esqueça, quanto custaria uma boa máquina de composição?

— Usada, uns três mil dólares; nova, oito mil.

— Comece a procurar amanhã uma boa máquina usada — eu disse, confiando em que Eileen sabi^ o que estava dizendo. — Bobby ainda está por aí? Eu já trouxe o carro dele.

— Saiu de táxi há mais de uma hora. Disse que ia a uma festa. Um baile a fantasia, parece.

— Baile a fantasia?

— Nunca o vi vestido como estava. Camisa e calças de couro tão apertadas que pareciam coladas no corpo.

— Não disse aonde ia?

— Não. Saiu daqui que até parecia um morcego.

Eu sabia que devia levar o Rolls-Royce para a garagem, mas esta ficava um pouco longe e não me deu vontade. Dei boa-noite a Persky e desci a escada.

Entrei no apartamento e Denise me apareceu ainda no uniforme de criada que usara pela manhã.

— Que é que está fazendo aqui, menina?

— Bobby me deixou de plantão.

— De plantão?

— Sim, ele teve de ir a uma festa.

— Onde está Verita?

— Foi para casa. Disse que tinha de botar em dia a lavagem de roupa. Quer que lhe prepare um drinque?

— Quero. Estou mesmo precisando de um.

Quando ela se encaminhou para o bar, notei que tinha de fato um belo corpo. Entregou-me o drinque.

— Ao que parece, vocês três tiraram a sorte para ver quem passa a noite aqui comigo, não é? — perguntei.

— Nada disso, Sr. Brendan.

— Pare dé me chamar assim. Você sabe meu nome.

— Mas eu estou de plantão, Sr.. Brendan. Bobby me pediu que ficasse aqui logo que telefonaram para ele. Disse que o senhor não ia gostar de ficar sozinho.

— A que horas foi que telefonaram?

— Mais ou menos às dez horas. Ficou muito agitado e levou um bocado de tempo para se vestir.

— Não lhe disse mais nada sobre a tal festa?

— Não, mas eu o ouvi falar com uma pessoa chamada Kitty pelo telefone.

Ela notou a mudança na minha fisionomia ao ouvir o nome e perguntou:

— Há alguma coisa errada?

— Não sei, Denise. . .

Se era a mesma pessoa de quem me haviam falado como sendo Kitty, Bobby estava em maus lençóis. Esse Kitty era James Hutchinson, um dos mais notórios pervertidos da cidade. Era de uma velha família de Pasadena com muito dinheiro e grande prestígio político. Dizia-se que ele dirigia uma espécie de clube onde se realizavam festas nas quais aconteciam coisas incríveis. Se não fossem as pessoas que o apoiavam, já estaria há muito tempo na cadeia.

— Bobby disse onde ia ser a festa?

— Não, Sr. Brendan.

Peguei a lista telefônica, mas não encontrei o nome de James Hutchinson. Liguei para Informações, também sem resultado.

— Você por acaso se lembra para que empresa de táxis ele telefonou, Denise?

— Yellow Cab.

Telefonei para lá, mas também não obtive qualquer informação. Disseram-me que só podiam dar informações à polícia.

Tornei a discar. Uma voz rouca atendeu.

— Silver Stud.

— Quero falar com o Sr. Lonergan. Quem fala aqui é Gareth Brendan.

Um instante depois, ouvi a voz de meu tio pelo telefone.

— Que é que há, Gareth?

— Preciso muito de sua ajuda, tio John. Creio que meu jovem amigo está em dificuldades.

— Que espécie de dificuldades?

— Foi a uma festa na casa de James Hutchinson.

— Que é que você quer que eu faça?

— Ele tomou um táxi da Yellow Cab para ir até lá. Quero saber onde é o clube.

— Espere um pouco.

Menos de um minuto depois, estava de novo na linha. Não havia muitas pessoas na cidade capazes de recusar alguma coisa a Lonergan. O endereço era bem no centro da elegante faixa residencial de Mulholland Drive.

— Espere aí. Que é que você vai fazer?

— Vou até lá buscá-lo.

— Sozinho?

— Não há mais ninguém para me acompanhar.

— É perigoso. Pode ser que o matem.

— Disseram-me a mesma coisa no Vietnam e eu ainda estou aqui.

— Não ganhará medalha por isso. Onde está agora?

— No meu apartamento.

— Fique esperando aí. Dentro de dez minutos mando alguém ajudá-lo.

— Não faça isso, tio John. Isso é problema meu.

— Você é meu sobrinho, não é?

— Sou.

— Então espere aí. Você é meu problema.

Depois disso, desligou o telefone.

— Tudo bem? — perguntou ansiosamente Denise.

— Ainda não, mas vai ficar.

Daí a dez minutos, ouvi uma buzina diante da minha janela. O Jaguar do Cobrador havia parado atrás do Rolls. Corri para a porta.

— Onde vai? Tenha cuidado — disse Denise.

— Procure descansar. Não vou demorar.

Desci e me aproximei do Jaguar.

— Feche o seu carro. Iremos no Rolls-Royce.

— Lonergan me disse que você me explicaria tudo.

— Meu amigo Bobby conseguiu ser convidado para uma das festas de James Hutchinson. Parece que foi escolhido como Herói do Mês.

— E você vai buscá-lo?

— Exatamente.

— Não sei por que está tão preocupado. Essa espécie de gente gosta dessas festas malucas.

— Tudo pode acontecer numa festa de Hutchinson e eu não gostaria de que acontecesse alguma coisa com Bobby.

— Não se preocupe.

— Mas estou preocupado porque conheço Bobby. E é por isso que estamos indo para lá.

Já estávamos à altura de Coldwater, subindo a ladeira. O Cobrador tirou do bolso um par de luvas de couro e começou a calçá-las.

— Tenho outro par para você. Não gosto de machucar as mãos.

Senti que as luvas eram pesadas e um pouco rígidas.

— Têm um forro de fios de aço — explicou ele. — Elas são necessárias. Conheço a turma que anda por lá.

A casa ficava afastada da rua. Era cercada por um muro alto e tinha portões de aço. Vi as luzes e a câmara de circuito fechado de televisão quando paramos junto ao portão.

— Escorregue o corpo no banco — disse eu, estendendo a mão para pegar o telefone num canto do portão.

A luz dos refletores se acendeu logo que eu peguei o telefone e a câmara voltou para mim o seu olho de vidro.

Houve um estalo no receptor e eu ouvi música em segundo plano. Uma voz esganiçada perguntou:

— Quem é?

— Gareth Brendan. Bobby Gannon me pediu que me encontrasse com ele aqui.

Houve outro estalo. Vi a câmara de televisão mudar de foco para examinar o carro. Fiquei satisfeito de ter ido no Rolls-Royce. A voz esganiçada me ressoou aos ouvidos.

— Um momento.

Cinco minutos depois, a voz voltou:

— Não há ninguém aqui com esse nome.

Falei então com voz fina e zangada.

— Diga a Kitty que eu sei que meu boy está aí e que eu vou entrar de qualquer maneira.

— Um momento.

Houve uma pausa.

— Está bem. Deixe o carro no estacionamento logo depois do portão e caminhe até a casa.

Os portões começaram a abrir-se vagarosamente. A entrada de carros foi iluminada pelos refletores. Isso significava mais câmaras de televisão.

— Fique no carro — disse ao Cobrador. — Depois que eu entrar e as luzes se apagarem aqui na frente, leve o carro para a porta da frente e me espere.

— E se você precisar de mim?

— Começarei a gritar.

— Está bem.

Quando me dirigia para a casa, podia sentir as câmaras de televisão voltadas para mim. A porta se abriu sem que eu precisasse tocar a campainha.

Um travesti corpulento apareceu à minha frente. Apontou para a sala às suas costas e disse:

— A festa é lá dentro.

A música vinha de uma rede de alto-falantes e a sala estava cheia de barulho. As luzes estavam bem baixas e eu levei alguns momentos para ajustar os olhos àquela penumbra. Havia alguns caras vestidos com roupas de couro bem justas mas não consegui ver Bobby.

Um deles aproximou-se de mim. Era robusto, usava uma peruca loura, estava muito maquilado e me lembrou Mae West. A voz era a de um barítono rouco que tenta ser soprano.

— Sou Kitty — disse ele. — Venha beber alguma coisa.


Capítulo catorze

Segui-o até o bar.

— Scotch com gelo — disse ao filipino que servia.

Antes que ele acabasse, tomei-lhe o copo das mãos. Não queria que pusessem alguma coisa naquele uísque.

— Tintim — disse eu, olhando para Kitty. — Onde está Bobby?

— Como você é teimoso! Já não viu com seus próprios olhos que ele não está aqui?

— Não compreendo. Ele ficou de encontrar-se aqui comigo.

— Quando ele lhe disse isso?

— Encontrei o recado quando voltei para casa. Eu tinha ido jantar com minha mãe.

— Se há uma coisa que eu admiro é esse sentimento de família.

— Muito bem. Vou beber a esse sentimento.

Kitty olhou para minhas mãos.

— Por que não tira as luvas?

— Não posso. Estou com uma doença de pele. Uma espécie de vaginite nas mãos.

— Essa é a história mais louca que já ouvi — disse Kitty rindo. — Venha se juntar à festa. — Caminhou em direção à sala e disse: — Garotas, esse é Gareth. Ele está procurando seu boy.

Todos riram, e um dos rapazes se aproximou.

— Você é interessante. Eu gostaria de ser seu boy.

— Você é muito grande. Eu prefiro o tipo delicado.

— Eu posso ser delicado — disse ele, pondo a mão no meu braço, seus dedos apertando como garras de aço. — Não vou machucá-lo muito.

Com um sorriso eu o peguei pela garganta, apertando-a entre o polegar e o indicador.

— Eu também não vou machucá-lo muito — eu disse, observando-o ficar roxo, tentando respirar.

— Ele está sufocando — disse Kitty com naturalidade.

— É — disse eu no mesmo tom, mas sem afrouxar.

— Cuidado. Ele tem um coração fraco.

Soltei-o e ele caiu no chão, ofegante. Virei-me para Kitty e disse:

— Bela casa a sua, sabe?

— Muito obrigado.

Aproximei-me de uma mesa ao lado do sofá.

— Esta mesa, por exemplo, é uma bela peça.

— Chippendale genuína — disse ele, sem disfarçar o orgulho que sentia. — Uma verdadeira preciosidade. E tenho duas, uma de cada lado do sofá.

Desci a mão sobre a mesa num golpe de caratê. O móvel se quebrou e eu me encaminhei para a outra mesa.

— O que é que está fazendo? — perguntou a voz alarmada de Kitty.

— Bobby não lhe disse? Minha mania é quebrar móveis.

— Segurem este homem! — gritou Kitty. — Cada uma dessas mesas vale trinta mil dólares!

O sujeito que me abrira a porta entrou correndo na sala. Parou por um instante a fim de ver o que estava acontecendo e então avançou para mim. Acertei-lhe um soco no rosto sem me afastar da mesa. Ele rolou pelo chão com o sangue escorrendo-lhe do nariz e da boca.

— Meu tapete branco! — gritou Kitty. — Vou desmaiar!

— Não faça isso — eu disse. — Senão, quando voltar a si, não verá mais nenhum móvel inteiro dentro desta casa!

— Tudo isso por causa daquele garoto?

— Não tenha a menor dúvida.

— Está bem. Venha que eu vou levá-lo até ele.

— Abra primeiro a porta da rua!

Kitty concordou e mandou outro sujeito abrir a porta.

— Bill! — gritei.

O Cobrador apareceu com o seu corpanzil na porta antes mesmo que eu tivesse acabado de gritar. Seu rosto escuro mostrou um grande sorriso ao ver estendido no chão o camarada que eu derrubara.

— Estava se divertindo sozinho, hem? — murmurou.

— Vigie os outros. Eu vou com Kitty buscar o rapaz.

Uma Magnum 357 apareceu de repente na mão do Cobrador.

— Muito bem! Todos vocês, bichas ou mulheres ou seja lá o que forem, de cara para a parede e as mãos na cabeça. Ligeiro, vamos!

Todos obedeceram e ele murmurou:

— Ótimo!

Segui Kitty por um corredor, ao fundo do qual havia uma escada para o porão. Chegamos ao porão e lá encontrei Bobby estendido no chão num estado lamentável. A cabeça pendia sobre o peito e os olhos estavam fechados. Era evidente que ele havia sofrido toda espécie de violência sexual.

— Bobby — disse eu, aproximando-me.

Ele levantou a cabeça e tentou abrir os olhos.

— Gareth! — balbuciou. — Veio também à festa?

Voltei-me para Kitty com tanta raiva que havia intenso medo na voz dele quando me perguntou:

— Que é que você vai fazer?

Tomei Bobby nos braços e disse rispidamente a Kitty:

— Vamos subir.

O Cobrador sorriu ao ver-nos.

— Vamos — disse eu. — Abra os portões, Kitty.

Kitty pegou o telefone perto da porta e apertou dois botões. Um aparelho de televisão acendeu acima do telefone e eü vi os portões se abrirem lentamente. Peguei a pistola do Cobrador e disse-lhe:

— Leve Bobby para o carro.

O Cobrador tomou Bobby nos braços como se fosse algum objeto frágil de vidro e eu me voltei para Kitty:

— Você já teve uma pequena amostra. Não tente nada até eu sair pelo portão.

— Não tento nada agora, mas você me paga, cachorro miserável!

Nem me dei ao trabalho de me virar. Dei um pontapé para trás, atingindo-o com o salto do sapato. Da porta, voltei-me para olhá-lo e vi o sangue escorrendo-lhe da boca e do nariz.

O Cobrador estava ao volante do carro e eu me sentei ao lado dele.

— Já viu como estão as costas do rapaz? — disse ele.

Dos ombros para baixo, as costas de Bobby estavam em carne viva.

— Vamos levá-lo para o pronto-socorro da universidade, BilE

— Lá, a polícia tomará conhecimento do caso imediatamente. E vai começar a fazer perguntas.

— Como é que vamos fazer? Bobby precisa de um médico.

— Conheço um lugar onde não fazem perguntas.

Era uma pequena casa de saúde particular no lado oeste de Los Angeles. Lá sabiam o que estavam fazendo. Fiquei esperando até o médico aparecer depois do exame e dos primeiros curativos.

— Que tal, doutor?

— Vai se recuperar. Mas terá de passar no mínimo três semanas internado aqui.

— Vou ter de comunicar tudo ao pai dele — disse eu.

— Pode assegurar ao Reverendo Sam que teremos todo o cuidado com seu filho e seremos absolutamente discretos.

— Já conhecia o rapaz? — perguntei, surpreso.

— Não, mas o Sr. Lonergan nos telefonou e disse que era bem provável que o senhor passasse por aqui.

Lonergan tinha pensado em tudo. Só não pensara como eu poderia dizer que havia falhado a um pai que confiara a mim o cuidado do filho.


Capítulo quinze

O Cobrador estava falando ao telefone quando voltei à sala de espera.

— Lonergan quer falar com você.

— Como está o rapaz? — perguntou meu tio.

— Muito machucado. Mas vai ficar bom. Agora tenho de falar com o pai dele.

— Já me encarreguei disso. Ele está a caminho daí nesse momento. Vou mandar um carro pegar você.

— Estou com o Rolls-Royce aqui.

— A polícia está à procura dele. Deixe as chaves com o Reverendo Sam e saia daí o quanto antes.

— Não pensei que fossem tão imbecis a ponto de chamarem a polícia.

— Você mandou dois homens para o hospital e a polícia nunca deixa de investigar. Mas pode ficar descansado por enquanto. Nenhum deles deu seu nome.

Meu tio nunca deixava de me surpreender. Parecia saber de tudo.

— Quando chegar em casa, fique lá até eu lhe dizer alguma coisa. Espero ainda hoje de manhã ter notícias mais agradáveis para você.

— Tenho de falar com o Reverendo Sam e explicar-lhe o que aconteceu.

— Isso pode ficar para amanhã. No momento, o que é preciso é você sair daí.

Meu tio desligou e o Cobrador estendeu a mão.

— As chaves do carro.

Entreguei-lhe as chaves e fui com ele até a mesa de recepção, onde ele as entregou à enfermeira de plantão. Saímos em seguida da casa de saúde.

— Há um café aí em frente que fica aberto a noite toda. É lá que o carro vai pegar a gente.

Atravessamos ã rua em silêncio, ouvindo apenas o rumor de nossos passos e um ou outro automóvel. O relógio do café marcava quatro e quinze.

O garçom colocou duas xícaras de café fumegante à nossa frente e perguntou:

— Que é que mandam?

— Um misto quente — disse o Cobrador e olhou para mim.

— Nada — disse eu, abanando a cabeça.

O Cobrador deu uma grande dentada no sanduíche.

— Você aprendeu tudo isso no Exército?

— Tudo isso o quê?

— Aquele judô que você aplicou lá na casa das bichas.

— Não foi judô e não foi no Exército que aprendi.

— Que é então?

— Savate, uma luta francesa. Quem me ensinou foi um velho sargento da Legião Estrangeira, que ficou em Saigon depois que os franceses saíram.

Ele deu outra dentada no sanduíche e riu.

— Palavra que eu gostaria de saber isso. É bonito como um espetáculo de balé. Lonergan me disse que o homem ficou com o queixo todo destroçado. Vai levar uns três meses para sarar e só vai poder tomar líquidos, e mesmo assim com um canudinho.

— Aquele patife ainda teve muita sorte. Eu devia ter acabado com ele.

O Cobrador me encarou bem nos olhos.

— Você é um homem estranho, Gareth. Durante todo o tempo, não dei a menor importância a você e nunca pude compreender por que Lonergan mostrava tanto interesse pela sua pessoa.

— Agora já sabe. Eu sou sobrinho dele.

— Não é só isso. Lonergan é muito esperto para se deixar levar por essa história de família. Há mais alguma coisa.

Levantou-se, pagou a despesa e olhou para fora.

— O carro já está aí. Vamos.

Quando cheguei ao meu apartamento, levei a mão ao bolso para pegar a chave, mas vi que a porta estava destrancada. As luzes dentro do apartamento estavam acesas.

Denise, ainda usando o uniforme de criada, estava dormindo no sofá, com o braço por cima dos olhos, a fim de protegê-los da luz.

Fui até o quarto, peguei uma colcha na cama e cobri-a. Ela nem se moveu. Era uma inocente, coitada. Pensava que sabia muita coisa e não sabia nada.

Bobby era outro inocente. Tinha dezenove anos e Denise dezoito. Para os dois, a vida ainda era um sonho, um ideal cheio de beleza e bondade.

Voltei para o meu quarto, tirei os sapatos e me estendi na cama. Eu também tinha sido um inocente, tinha sido. . . Fechei os olhos.

Vozes do passado flutuaram em minha consciência. Era meu tio que falava e eu estava imóvel atrás da porta da biblioteca.

— Você terá de dizer a ele!

A voz de minha mãe, repassada de angústia, escoava através da porta.

— Não posso, John. Não posso.

— Ele vai descobrir mais cedo ou mais tarde. É melhor você dizer a ele.

— Não, John, Não.

Ouvi então os passos de meu pai que se aproximavam e comecei a fazer barulho para que eles parassem de falar.

Não queria que meu pai soubesse. Eu pensava que sabia tudo e era inocente. Tinha dezesseis anos e estava completamente errado. As vozes esmaeceram e eu adormecí.

Senti a mão de alguém no meu ombro.

— Acorde, Gareth! Acorde!

Aquela voz não fazia parte do sonho. Abri os olhos. Era Denise.

— Que é? — perguntei.

— Você estava gritando no sono!

Sacudi a cabeça ainda zonzo.

— Deve ter tido um pesadelo.

— Desculpe tê-la assustado.

Sentei-me na cama e estendi as mãos ainda trêmulas à procura de um cigarro.

— Está bem agora?

— Estou.

— Encontrou Bobby?

— Encontrei, sim. Estava muito machucado e tive de levá-lo para uma casa de saúde. Mas vai ficar bom.

Eu sentia as lágrimas nos olhos. Tentava contê-las e não podia. Comecei a chorar.

— Vou buscar um copo de leite quente para você — disse Denise.

— Já tenho idade bastante para tomar uísque e não leite.

— Está bem. Um pouco de uísque no leite. Enquanto isso, vá tirando essas roupas para poder dormir direito.

Ela trouxe a garrafa de uísque na bandeja ao lado do copo de leite quente. Olhou com ar de censura para as minhas roupas jogadas no chão.

— Você não é nada ordeiro, hem?

— Nunca disse quê era.

Ela pegou minhas roupas e levou-as para o armário. Tomei um gole do leite misturado com uísque. Estava horrível. Larguei o copo e tomei um gole de uísque diretamente da garrafa.

— Está fazendo trapaça — disse Denise. — Tome o leite.

— Está bem. Mas tire esse uniforme absurdo e venha deitar-se aqui ao meu lado.

Denise hesitou um momento e então sentou-se na cadeira aos pés da cama. Com os olhos fixos em mim, tirou os sapatos e depois as meias de seda pretas, que dobrou cuidadosamente e colocou no espaldar da cadeira.

— Apague a luz. Quero que você durma — disse ela. Apaguei a luz. Ouvi o farfalhar do vestido que caía e depois senti o peso dela na cama. Estendi as mãos para ela.

Ela me pegou as mãos e disse firmemente:

— Não, você está muito nervoso. Quero você, mas não quero suas tensões.

— Conhece melhor maneira de relaxar tensões?

— Conheço. Os exercícios do quinto plano.

— Que é isso? Alguma artimanha que você aprendeu na oficina?

— Faça o que eu estou mandando. Deite-se de costas e feche os olhos. Deixe o corpo desprender-se e liberar o espírito. Vou tocar você em lugares diferentes com as duas mãos ao mesmo tempo. Minha mão direita será o contato yz»; minha mão esquerda, o contato yang. As correntes de seu corpo passarão para mim e restabelecerão o equilíbrio natural. Sempre que eu lhe tocar, perguntarei se está me sentindo. Quando sentir as duas mãos, diga. Entendeu?

— Sim.

Ela colocou a mão aberta em meu peito e gentilmente me empurrou para trás. Quando eu estava bem estendido na cama, tirou o travesseiro de sob a minha cabeça, puxou a coberta e colocou-a debaixo dos meus pés.

— Sente-se à vontade?

— Sim.

— Feche os olhos e vamos começar.

Os dedos eram macios e leves como um toque de pluma em minhas têmporas.

— Está sentindo?

— Estou.

Nas faces. Nos tornozelos. Nos joelhos. Nos ombros. Nos braços.

— Está sentindo?

— Estou.

Nas costelas. Nos quadris. Nas pernas. Nas coxas.

Tornei a sentir as mãos nas têmporas, e, depois, o calor dos seios quando ela se inclinou sobre mim.

— Denise, se suas mãos são ying e yang, seus seios não são também?

Ela pensou por um momento e disse:

— Ê possível.

— E então?

— Você é um caso realmente difícil — disse ela, estendendo-se na cama ao meu lado. Passou o braço pelo meu pescoço e me aconchegou aos seus seios.

— Sente-se melhor assim?

— Muito melhor.

Os seios eram quentes e suaves.

— Procure dormir — disse ela.

Fechei os olhos e tive uma impressão de total segurança. Estava tão cansado que até falar era um esforço.

— Sabe que seus seios são muito bonitos?

— Muito obrigada.

Disse mais alguma coisa, mas eu não ouvi, pois já estava mergulhando no sono.


Capítulo dezesseis

Bateram na porta do quarto. Lutei contra o torpor do sono e disse:

— Entre.

A luz do sol entrava pela porta aberta. Denise entrou com uma bandeja de suco de laranja e café. Colocou-a em silêncio na cama. Logo depois, entrou Verita.

— Desculpe acordá-lo, Gareth — disse ela com o seu sotaque um pouco mais acentuado pelo nervosismo que sentia. — Mas Persky disse que era muito importante.

— Que horas são?

— Onze em ponto.

Levantei-me da cama e fui para o banheiro descalço.

— Que é que ele quer?

— Ronzi está lá embaixo. E faz questão de falar com você.

— Diga a ele que descerei dentro de dez minutos.

Entrei no chuveiro com a torneira aberta no máximo. Quando voltei ao quarto, Verita já havia saído, mas Denise me esperava.

Entregou-me o copo de suco de laranja.

— Beba.

Provei o suco. Estava gostoso e bem gelado.

— Escute aqui, vai continuar usando essa fantasia tola de criadinha?

— Não gosta?

— Não é que eu não goste. É que faz lembrar uma empregada que havia lá em casa e que de vez em quando me batia porque eu procurava espiar por debaixo da saia dela. Guarde isso para servir de base para um de nossos layouts.

Depois que eu.tomei o suco de laranja, ela me deu café e disse:

— Houve alguns telefonemas para você. . . Eileen Sheridan quer saber se pode vir hoje às duas horas da tarde. O Sr. Lonergan telefonará mais tarde. E sua mãe pede que você ligue para ela hoje à noite.

— Nada do Reverendo Sam?

— Nada.

— Procure falar com ele, sim?

Comecei a vestir-me enquanto ela discava. Já estava com os sapatos calçados e com os jeans quando ela me disse.

— Não está em casa, nem na igreja, nem na oficina.

— Veja se está na casa de saúde.

Eu havia acabado de vestir a camisa quando Denise me disse:

— Ele já vai atender.

Toda a energia parecia ter fugido da voz dele.

— Gareth?

— Sim, reverendo. Como vai Bobby?

— Acaba de ir para a sala de operação.

— Eu pensei. . .

— A hemorragia não está cedendo. E os médicos nada podem fazer sem uma cirurgia exploratória.

— Vou já para aí.

— Não é preciso. Não há nada que você possa fazer. A operação será demorada, mas eu estarei aqui. Telefonarei para você logo que tiver alguma notícia positiva.

— Sinto muito, reverendo. Não sabia o que ele ia fazer. Se soubesse, não teria deixado.

— Não se culpe de nada. Você fez tudo o que era possível. No fim, cada pessoa tem de aceitar a responsabilidade pelo que faz.

Não podia livrar-me de todo do meu sentimento de culpa, mas o Reverendo Sam tinha razão. Bobby era muito submisso e ao mesmo tempo muito ingênuo. Nunca pensara que a sua escolha como Herói do Mês fosse mais que um pretexto para uma boa brincadeira.

— Como está ele? — perguntou Denise.

— Foi agora mesmo para a sala de operação. Os médicos têm de descobrir a causa da hemorragia.

Ela me apertou a mão e disse:

— Vou rezar por ele.

— Reze, sim — disse eu, encaminhando-me para a porta.

— Você não acredita, não é?

Pensei em toda a crueldade, morte e destruição que tinha visto e respondí.

— Não, Denise.

— Tenho muita pena de você.

Vi lágrimas nos olhos dela. Só os inocentes podem crer.

— Não tenha pena de mim, Denise. Não sou eu que estou ferido.

Ela me lançou um olhar que foi até o fundo da alma.

— Não minta, Gareth. Você vive ferido. Mais do qüe qualquer pessoa que eu conheço.

— Dê-me mais dez mil exemplares e eu disporei. de tudo até segunda-feira — disse Ronzi.

— Nada feito.

— Não seja tolo. Você fez um bom número. Como pode ter certeza de que o número seguinte será da mesma qualidade?

— Será ainda melhor. Se tiver um pingo de juízo, o seu pedido para o próximo número será de setenta e cinco mil exemplares.

— Está louco? Ainda não houve uma revista que passasse dos cinqüenta mil.

— Se eu imprimisse mais dez mil, este número passaria dos cinqüenta mil.

Ele não fez comentário algum e eu continuei.

— Eu poderia ter tirado sessenta mil neste número. Com o que pretendo fazer no número que vem, setenta e cinco mil vão ser um alvo fácil, fácil.

— Que é que você pretende fazer?

— Capa e pôster central em quatro cores.

— Vai se arrebentar. Não agüentará as despesas vendendo a revista a trinta e cinco cents.

— Deixe de conversa. Você aumentou o preço por si mesmo para cinqüenta cents. E esse vai ser meu preço para o próximo número, cinqüenta cents.

Ronzi voltou-se para Persky.

— Ele não está bom da cabeça.

Persky ficou calado. Chamei Verita.

— Traga-me as provas da pequena do próximo número.

Um instante depois, ela colocava as fotografias em cima da mesa. Era um layout de aeroporto. Uma bela eurasiana aparecia com os cabelos espalhados pelo corpo. Mostrei a Ronzi a seqüência de fotografias desde o momento em que ela desembarcava no aeroporto até ficar nua em seu quarto, com os joelhos levantados até o peito.

— Você não pode publicar isso! — exclamou Ronzi. — Vê-se tudo!

— Já está nas máquinas.

— Vai se dar mal.

— O problema é meu.

— É meu também, que sou o distribuidor. E já tenho problemas de sobra. Posso bem dispensar mais esse.

— Quer desistir?

— Não foi isso que eu disse.

— Não estou fazendo pressão sobre você. Pode pensar no caso à vontade. Tenho certeza de que poderei achar outro distribuidor se você quiser desistir.

Ele me olhou com raiva.

— Ora, vá para o inferno! Topo tudo.

— Setenta e cinco mil?

— Setenta e cinco mil. Escute, há algum lugar onde nós dois possamos falar em particular?

— Pode dizer o que quiser aqui mesmo.

— Não se trata de negócios. É um assunto pessoal.

Subi com ele para o apartamento. Denise nos abriu a porta. Não estava mais fantasiada de criadinha. Vestia uma camisa e jeans. Estava muito melhor. Levei Ronzi para o quarto e fechei a porta. Sentei-me na cama e indiquei-lhe a cadeira.

— Pode falar. Qual é o assunto pessoal?

— Falei pelo telefone com os meus contatos no leste. Todos nós pensamos que seu futuro nesse negócio é muito grande.

— Muito obrigado pela opinião. Isso significa exatamente o quê?

— Significa que queremos fazer parte do negócio. Lonergan é café pequeno. Podemos dar à sua revista projeção nacional. Isso representará muito dinheiro para você. Dólares em penca.

— Nada de sócios. Gosto de agir sozinho.

— Não me venha com essa, Gareth. Sabemos que Lonergan está com você.

— A única ligação que tenho com ele é um contrato de publicidade. Nada mais. Acho que não lhe expliquei isso com muita clareza.

— OK, isso torna as coisas mais fáceis. Nós lhe daremos cem mil dólares pela participação no seu negócio. Você terá inteira liberdade na direção da revista e nós a distribuiremos por todo o país.

— Não.

— Não seja louco. Nós o tornaremos milionário.

— Dê-me um milhão agora por metade da revista e conseguirá convencer-me.

— Você está louco! Quem lhe meteu na cabeça que sua revista vale um milhão?

— Você mesmo.

— Isso só poderá acontecer se a revista for vendida em todo o país.

— Será vendida em todo o país.

— Sem nossa ajuda não vai conseguir isso. Somos seus distribuidores exclusivos e, se não o levarmos para fora daqui, ninguém mais poderá levar.

— Nosso contrato é por um ano apenas.

— Ao fim desse tempo, a sua revista estará bloqueada no resto do país. Só poderá ser vendida aqui.

Tinha razão. Não poderia expandir-me sem ele. Estava com as asas cortadas.

— Tenho de pensar no caso.

— Qual o prazo que quer para pensar?

— Um mês.

— Terá quinze dias. É o máximo que poderei esperar.

Levantou-se e dirigiu-se para a porta. Já com a mão na maçaneta, voltou-se para mim.

— Você é um homem muito estranho, Gareth. Não faz muitas semanas, estava recebendo cheques de desemprego. Agora, estou lhe oferecendo cem mil dólares de mão beijada e você ainda quer pensar. Que é que há com você? Não quer ficar rico?

— Você está esquecendo uma coisa muito importante, Ronzi.

— O quê?

— Dinheiro não tem para mim essa importância. Eu já nasci rico.


Capítulo dezessete

— Surgiu um problema — disse-me Persky. — O impressor acaba de me dizer que faltam quatro páginas de texto.

— Como é que isso foi acontecer? Quanto tempo temos para mandar os originais?

— Um dia. Terá de ter tudo composto e pronto na manhã de segunda-feira, senão não poderá rodar setenta e cinco mil exemplares.

Olhei para minha mesa. Os originais que estàvam lá para os números seguintes não eram nem metade das necessidades daquele número.

— Que é que eu digo ao homem? Ele quer uma resposta agora para poder tomar as outras providências.

— Diga-lhe que na segunda-feira pela manhã os originais estarão com ele.

Persky voltou para sua mesa e eu olhei para Eileen, que havia chegado poucos minutos antes e estava sentada à minha frente, com um leve sorriso nos lábios.

— Você também tem problemas assim no seu jornal?

— Não. Somos forçados a ter tudo em dia em função dos horários escolares. Mas já vou. Você está abarrotado de trabalho. Teremos de conversar numa hora mais folgada.

— Não, Eileen. A pressa não é tanta assim. Ainda tenho trinta e seis horas.

— Você precisa de alguns redatores, Gareth. Não pode fazer tudo sozinho.

— Vou tratar disso na semana que vem. Mas tenho de resolver o problema imediato. . . Escute, quem sabe se você não pode me ajudar? Tenho um bom assunto, mas creio que ele deve ser escrito por uma mulher.

— Não tenho tempo. Vivo muito ocupada na escola.

— Está bem. Foi apenas uma idéia. Você decerto não se interessaria pelo assunto.

— De qualquer maneira, pode me dizer de que se trata.

— Até agora, todas as revistas só têm explorado os homens e as suas fantasias sexuais. Creio que um artigo sobre as fantasias sexuais das mulheres poderia despertar muito interesse.

Ela pensou um momento e disse:

— Com certeza.

— Acha que é capaz de escrever esse artigo?

— Calma. Que é que eu sei do assunto? Não sou especialista.

— Eu também não sou. Não entendo nada de jornalismo e estou editando uma revista.

— Não é a mesma coisa.

— Escute, você tem fantasias sexuais?

— É uma pergunta tola. Claro que tenho. Todo mundo tem.

— Neste caso, você é uma especialista. Ainda mais se escrever sobre as suas próprias fantasias.

— Mas são coisas muito pessoais.

— Ninguém vai saber que se trata de você. Podemos trocar os nomes e usar um pseudônimo como Maria Silva ou Vera A.

— Você assim facilita muito as coisas — disse ela, rindo.

— Pode ser divertido para você.

— Nem tanto, pois assim você descobrirá que tenho coisas muito sujas na cabeça.

— Será muito melhor então dar vazão a tudo isso. Que tal?

— Posso tentar. Mas não lhe estou prometendo nada.

— ótimo. Ali há uma mesa vazia com papel e uma máquina de escrever.

— Quer que eu escreva agora?

— Temos apenas trinta e seis horas.

Olhei para os layouts dos números seguintes e pensei que aquilo era apenas o começo de uma batalha constante com prazo e horas fixas. Voltei-me então para ela.

— Tem toda a razão. Preciso de mais redatores. Quer se encarregar dessa parte para mim, como redatora-chefe?

— Não está indo muito depressa? Você nem sabe ainda se eu sei escrever.

— Se sua cabeça está tão cheia de coisas sujas como você pensa, para mim será ótimo.

Ela riu e eu percebi que não estava descontente.

— Bem, vou escrever. Depois de ler, você decidirá.

— Combinado — disse eu, estendendo a mão.

— Ainda não sei como deixei você me convencer. . .

— As últimas palavras de uma virgem — disse eu, deixando-a diante de uma máquina com uma folha de papel metida no rolo.

Subi para o apartamento. Um chuveiro frio poderia ajudar-me. Eu não tinha dormido muito na noite anterior e estava começando a pifar.

Verita estava à minha espera quando saí do banho.

— Tenho mais alguns cheques para você assinar.

— OK.

Ela foi comigo até a cozinha e colocou a pasta em cima da mesa.

— Como vão as coisas? — perguntei, enquanto assinava os cheques.

. — Muito bem. Os setenta e cinco mil exemplares da semana que vem nos darão um saldo líquido de onze mil e duzentos e cinqüenta dólares só na circulação. Com a publicidade, chegaremos a quinze mil dólares.

— Líquido?

— Líquido — disse ela, sorrindo.

Pensei que Ronzi não era nenhum idiota. Cem mil dólares em troca de três quartos de milhão num ano não era um mau negócio para ele, que já tinha visto as coisas muito adiante de mim.

— Talvez agora você possa deixar o seu emprego na repartição, Verita.

— Ontem mesmo comuniquei que ia sair de lá.

— Ótimo? A partir da próxima semana, você terá um aumento de ordenado de cem dólares.

— Você não tem nenhuma obrigação de fazer isso.

— Sem você, nada disso teria acontecido. O que me acontecer de bom vai acontecer a você também.

— Não é pelo dinheiro, Gary. Você sabe muito bem disso.

— Eu sei — disse eu, beijando-lhe o rosto. — Hoje à noite, faremos uma comemoração. Iremos a La Cantina e teremos o melhor jantar mexicano que fizerem lá. Depois disso, dormiremos juntos.

— Vou gostar muito desse programa.

— Eu também.

Mas não ia ser assim. Meia hora depois, telefonaram-me da casa de saúde. Bobby queria falar comigo. Peguei as chaves do carro de Verita e corri para lá.

O Rolls-Royce ainda estava no estacionamento, no lugar onde eu o havia deixado. Deixei o Valiant na vaga mais próxima. O Reverendo Sam estava me esperando dentro da casa de saúde, com o rosto pálido e cansado.

— Como vai ele?

— Conseguiram estancar a hemorragia.

— Ótimo.

— Houve um momento de grande perigo. Ele estava perdendo mais sangue do que lhe poderíam dar com as transfusões. Agora, diz que não vai dormir enquanto não o vir.

— Estou aqui.

O Reverendo Sam abriu a porta do quarto de Bobby e eu entrei. Bobby estava deitado com uma ampola de soro na veia e um tubo no nariz.

Uma enfermeira levantou-se da cadeira, olhou-me sem sorrir e disse:

— Não pode demorar muito.

Chegamos junto à cama e o Reverendo Sam disse:

— Bobby.

Ele não se moveu.

— Bobby, Gareth está aqui.

Bobby abriu vagarosamente os olhos. Viu-me e um breve sorriso lhe apareceu nos lábios. Disse entãcrnum fio de voz:

— Não está zangado comigo, está, Gareth?

— Zangado por quê?

— Pensei que estivesse. . . Gosto de você, Gareth.

Apertei-lhe a mão.

— Também gosto de você, Bobby.

— Não esperava nada daquilo. Queria apenas... me divertir...

— Tudo acabou. Não pense mais nisso.

— E meu emprego? Não quero perder meu emprego.

— Não vai perder nada. Fique bom e eie estará lá a sua espera.

— Só não quero é que se zangue comigo.

— Não estou zangado. Procure ficar bom. Precisamos de você lá na revista. As suas fotos esgotaram o primeiro número.

— Foi mesmo? — disse ele, fazendo reaparecer o sorriso.

— Foi. Ronzi quer que a tiragem do próximo número seja de setenta e cinco mil exemplares.

— Que bom! Desculpe-me, papai.

— Tudo está bem, meu filho. Faça o que Gareth está dizendo e procure ficar bom. Não quero senão isso.

— Como gosto de você, papai. Sempre gostei e você sabe disso.

— E eu lhe quero muito bem. Sabe disso, não sabe, meu filho?

— Sei, papai. Mas nunca fui o que você queria.

O Reverendo Sam se voltou para mim e pude ver angústia e lágrimas nos olhos dele. Ele curvou-se sobre a cama e beijou o rosto de Bobby.

— Só sei que você é meu filho e que nós nos queremos bem. O resto pouco importa.

A enfermeira entrou no quarto e disse severamente:

— Chega de visitas. Ele precisa descansar agora.

No corredor, eu disse ao reverendo:

— O senhor tem de descansar, senão daqui a pouco estará também internado aqui.

Um sorriso lhe apareceu nos lábios.

— Não sei como lhe posso agradecer.

— Não tem nada que agradecer. Amigos são para essas coisas. Além disso, considero seu filho uma pessoa excepcional.

— É essa mesmo a sua opinião sincera?

— Claro que é. Bobby só precisa de tempo. Acabará por encontrar-se.

Ele abanou a cabeça tristemente.

— Ainda não posso compreender bem o caso. Como pode haver gente capaz de fazer uma coisa dessas?

— É gente doente, quase louca.

— Eu nem sabia que essa espécie de gente existia. Deviam tomar alguma providência. Com certeza, não foi Bobby a única vítima deles.

— Provavelmente não.

— Lonergan me pediu que não dissesse nada à polícia. Acha que isso só serviria para criar problemas a você.

— Botei dois deles no hospital e deram queixa contra mim. A polícia está agora mesmo à minha procura e se o senhor comunicasse alguma coisa seria fácil encontrar a minha pista.

— Nenhum juiz no mundo poderia condená-lo depois de saber de todos os fatos.

— Talvez não. Mas Bobby foi para lá por sua livre e espontânea vontade e eu sou culpado de invasão de domicílio e lesões corporais graves.

Ele ficou algum tempo em silêncio e então perguntou:

— Acha realmente que não é a primeira vez que isso acontece?

— Acontece milhares de vezes por ano só nesta cidade.

— Meu Deus!

— Escute, reverendo, vá para casa e durma. Talvez amanhã possamos conversar mais um pouco.

Caminhamos até a entrada e já estávamos quase chegando à porta quando a recepcionista me chamou.

— Sr. Brendan!

— Que é?

— Tenho um telefonema para o senhor.

— Vá para casa, Reverendo Sam. Até amanhã.

Vi o Mercedes do reverendo partir enquanto pegava o fone.

— Alô.

— O Sr. Lonergan quer lhe falar — disse uma voz de mulher.

Houve um estalo e, em seguida, a voz dele.

• — Onde é que você está, Gareth?

— Na casa de saúde onde sua secretária me encontrou.

— Muito bem. Não volte para a revista.

— Mas tenho o que fazer lá. O número da semana que vem ainda não está pronto.

— Você não poderá trabalhar dentro de um cemitério. Acabo de saber que mandaram matá-lo.

— Deve estar brincando.

— Não brinco com essas coisas. Desapareça da cidade até que eu possa dar um jeito em tudo isso.

— Quem é que pode fazer uma coisa dessas?

— Seus amigos bichas têm muita força. Posso anular a ação deles, mas isso não vai ser fácil, nem rápido. E não quero que enquanto isso dêem cabo de você.

— Diabo!

— Não quero que ninguém saiba para onde você foi. Até as pessoas mais bem-intencionadas falam sem querer. Basta uma palavra descuidada e você vai para o buraco.

— Sabe de uma coisa? Não gosto nada de viver assim ameaçado. Vou até Mulholland Drive e matar aquele cachorro!

— Isso facilitaria as coisas para eles. Você seria empacotado antes de chegar à porta. Faça o que eu estou lhe dizendo.

Fiquei calado.

— Está me ouvindo?

— Estou.

— Vai fazer o que eu estou dizendo?

— Tenho outro jeito?

— Não, não tem.

— Então é o que eu vou fazer.

Ouvi pelo telefone o suspiro de meu tio, mas não sabia se era de alívio ou não.

— Agora saia daí o mais depressa possível e me telefone amanhã às seis horas da tarde.

— OK.

— Tenha muito cuidado! Contrataram profissionais. É gente que não brinca em serviço. Vai direto ao assunto.

Depois de dizer isso, desligou o telefone.

— Tudo bem? — perguntou-me a recepcionista.

— Tudo bem, obrigado — disse e tomei o caminho da porta.


Capítulo dezoito

Compreendí que tinha feito uma besteira no momento em que cheguei ao estacionamento e vi dois homens ao lado do Rolls-Royce. De outra vez, daria mais atenção às coisas quando Lonergan me recomendasse cuidado. Pensei em mudar de rumo e correr, mas eles já me tinham visto. Se corresse, levaria uma bala pelas costas. Continuei a caminhar para o Valiant como se nada fora do comum estivesse acontecendo. Os homens ficaram me olhando enquanto eu entrava no carro, colocava a chave na ignição e dava partida no motor.

O mais alto dos dois homens deu a volta pelo Rolls-Royce e se aproximou, pondo a mão na janela cujo vidro estava abaixado.

— Sabe de quem é aquele Rolls-Royce ali?

— Não.

— Estamos procurando um camarada alto, mais ou menos do seu tamanho, que estava dirigindo aquele carro. Viu alguém assim na casa de saúde?

— Vocês são da polícia?

— Não. Particulares. Viemos cobrar. O sujeito se atrasou nos pagamentos.

Olhei para o Rolls-Royce e disse:

— Por vinte mangos posso fazer uma ligação direta naquele carro para vocês.

O homem fechou a cara.

— Não se faça de engraçadinho! Viu o homem ou não viu?

— Não. Não vi ninguém nem parecido.

— Está bem, então. Dê o fora daqui.

Dei marcha à ré no Valiant e comecei a manobrar para sair dali.

— Um minuto! — gritou o homem que estava do outro lado do Rolls-Royce.

Por um breve instante, passou-me pela cabeça a idéia de pisar no acelerador e me mandar. A visão do cano de uma Magnum 357 com silenciador me fez mudar de idéia. Não havia jeito de correr mais do que uma bala daquela pistola. Desliguei o motor.

Foi só então que notei outro carro parado ao lado do Rolls-Royce. Havia uma pessoa estendida no chão do carro na parte de trás.

— Você aí! — gritou o homem. — Saia. .

A pessoa saiu do carro. Quando vi quem era, fiquei impassível ao olhar para o rosto de Denise e rezei.

— Conhece esse homem? — perguntou o grandalhão.

Denise tinha uma contusão no rosto e os olhos inchados. Segurei a direção com toda a força para que as mãos não me tremessem. Ela me olhou e disse:

— Não.

O homem se voltou para mim. Prendi a respiração.

— Vá saindo daqui! Vamos!

Engrenei o carro de novo e saí em marcha à ré enquanto ele tornava a levar Denise para o carro e batia a porta. Depois, os dois homens voltaram para a frente do Rolls-Royce.

Pelo espelho, vi que os homens me olhavam. Saí do estacionamento e tomei a estrada. Deram-me então as cqstas. Creio que devia ter continuado e ir-me embora dali, mas nesse momento vi o rosto de Denise na janelinha de trás do carro.

Isso foi bastante. Senti a raiva subir por dentro de mim. Era uma inocente. Por que sempre havia inocentes no mundo? Sentia-me exatamente como no dia em que entramos numa aldeia no Vietnam e vi os corpos dilacerados de mulheres e crianças entre os escombros das casas bombardeadas.

Estava quase chegando à estrada. Agi por puro reflexo. Sem pensar no que estava fazendo, virei a direção do carro e pisei no acelerador. O Valiant quase deu um pulo do chão.

O homem com a pistola começou a levantar a mão e vi a cara de espanto dele pelo pára-brisa quando o derrubei, imprensando-o contra o Rolls-Royce, juntamente com o outro homem.

Senti o impacto dos corpos esmagados e ouvi os gritos de dor. O Valiant ricocheteou depois de bater no Rolls-Royce como se fosse uma bola de futebol. Dei um golpe de direção virando o carro. Depois, freei e saltei.

Os dois homens estavam estendidos no chão, com as pernas quebradas e torcidas em ângulos estranhos. O homem da pistola estava desacordado, com a cabeça caída sob o pára-lama do Rolls-Royce. O outro estava meio sentado, encostado ao pára-lama. Estava muito pálido e o suor lhe escorria do rosto. A arma estava no chão perto dele.

Apanhei-a no momento em que Denise saía do outro carro. Estava chorando e eu não lhe dei tempo de falar.

— Entre no meu carro!

Ela parecia paralisada. Sacudi-a pelo braço.

—-Tudo está bem. Entre no carro!

Nem assim ela se moveu. Curvei-me sobre o homem sentado.

— Para quem é que vocês estão trabalhando?

— Vá para o inferno, filho da puta!

Dei um tiro no chão com a pistola entre as pernas dele.

— O tiro seguinte vai ser no saco!

Ele apertou os lábios.

Coloquei o cano da pistola entre as pernas dele. Ele quase gritou:

— Não sei!

— Está mentindo! Vou apertar o gatilho!

— Não! O contrato veio do leste. Mil dólares para matar você.

Olhei para ele. Não havia um só homem no mundo que pudesse mentir com uma pistola entre as pernas prestes a disparar.

— Johnny queria atirar no momento em que você chegou ao estacionamento. Mas não tínhamos certeza e eu disse a ele que esperasse.

— É verdade, Gareth — disse Denise de repente. — Eu ouvi quando ele disse isso ao outro.

— Salvei a sua vida! — gritou o homem. — E a vida dela também.

— Depois eu lhe escreverei uma carta de agradecimento. Peguei Denise pelo braço e a fiz entrar no Valiant. Embarquei depois dela. Estávamos fora do estacionamento antes que o primeiro homem saísse da casa de saúde para saber o que estava acontecendo.

Estávamos bem longe quando eu perguntei:

— Como foi que a agarraram?

— Estavam com o carro parado em frente à revista quando eu saí. O grandão saiu do carro e perguntou se você estava em casa. Disse que você tinha ido à casa de saúde. Perguntaram-me então se você ainda estava com o Rolls-Royce. Não sei por quê, disse que sim. Quiseram saber então qual era a casa de saúde e eu disse que não sabia. Foi então que me levaram para dentro do carro e me bateram. Não queria falar, mas eles não paravam de me bater.

Passei o braço pelo pescoço dela.

— Agora, está tudo bem. Tenha calma.

Alguns minutos depois, ela parou de chorar.

— Quem são esses homens, Gareth? Por que estão à sua procura?

— Os ex-amigos de Bobby não gostaram do que fiz naquela noite.

— Não vão gostar também do que você fez hoje.

Olhei para ver se ela estava brincando. Mas não, estava falando sério. Sorri.

— Acho que tem razão.

— Que é que vai fazer agora?

— Tenho de sair da cidade por algum tempo. Lonergan diz que precisa de tempo para ajeitar as coisas. Não sei ainda ao certo para onde é que vou.

— Conheço um lugar onde nunca poderão achá-lo. Nem a você, nem a mim.

— Você também?

— Sim. Sozinho, você não poderá entrar lá. Qualquer pessoa estranha tem de ser levada por alguém que faça parte do grupo.

— Que lugar é esse?

— A fazenda do Reverendo Sam em Fullerton.

— Alguns dos rapazes que trabalham na revista moram lá?

— Moram.

— Então não posso ir. Tenho de ir para um lugar onde ninguém me conheça.

— Escute, se você pintar os cabelos de preto, nem mesmo sua mãe seria capaz de reconhecê-lo.

Por volta das sete horas da noite, eu estava num quarto de motel à beira da estrada, com um líquido de bronzear, que bronzeia instantaneamente, espalhado pelo rosto e uma touca de plástico sobre os cabelos pintados. Liguei o telefone para a revista e Verita atendeu.

— Onde está você? — perguntou ela. — Liguei para a casa de saúde e de lá me disseram que você tinha saído havia mais de duas horas.

— Surgiu um problema e Lonergan acha que devo deixar a cidade durante alguns dias. Não lhe posso dizer tudo pelo telefone, mas as coisas vão se ajeitar.

— Tem certeza?

— Tenho. Mas vocês vão ter de providenciar para que a revista saia nos dias certos. Persky e Eileen estão aí?

— Estão.

— Peguem as extensões e ouçam. — Ouvi os estalos no telefone. — Eileen, vou precisar de um favor especial de você. Vai ter de escrever os textos do próximo número.

— Mas, Gareth, não sei o que é que vou escrever.

— Pouco importa o que seja. Escreva o que quiser. Cartas dos leitores, notas de publicidade, tudo o que for preciso para encher as páginas até a minha volta. O importante é não deixarmos de colocar a revista na rua, compreendeu?

— Compreendí.

— Muito obrigado. Como vai o seu artigo?

— Está saindo melhor do que eu esperava.

— Ótimo. Estenda-o ao máximo. Talvez possamos transformá-lo numa seção permanente. Persky?

— Pronto, Gareth.

— Faça pressão sobre a impressora. É preciso que Ronzi receba os setenta e cinco mil exemplares.

— Acabo de falar com ele. Quer que você telefone com urgência. Acho que está preocupado com a encomenda.

— Telefonarei para ele logo que acabar aqui. O importante é continuar. Se deixarmos de lançar um número, estaremos perdidos.

— Posso chamar alguns redatores de minha escola? — perguntou Eileen.

— Faça o que achar que deve fazer. Fique no meu lugar enquanto eu estiver ausente. Deixo tudo em suas mãos.

— E as contas? — perguntou Verita.

— Pague-as. O banco tem a sua assinatura. — Levantei a cabeça pois Denise estava me fazendo sinais. Estava na hora de efetuar a lavagem dos cabelos. — Antes que eu me esqueça. Comece a procurar outro carro. O seu está todo escangalhado.

— E você se machucou?

— Não. Fique descansada. Se o novo número for para a rua, poderemos comprar um carro novo para você.

Denise dançava diante de mim, apontando para os meus cabelos. /

— Vou desligar agora. Telefonarei para você daqui a alguns dias.

Desliguei o telefone.

— Só mais um telefonema — disse eu a Denise e disquei o telefone para Ronzi.

— Aqui é Gareth. Que é que há?

— Recebi notícias do leste. Há muita gente importante furiosa com você.

— E daí?

— Contrataram pistoleiros para matá-lo.

— Sei disso, mas Lonergan está ajeitando as coisas. Há em tudo isso um grande equívoco.

— Equívoco ou não, você pode morrer.

— Aonde é que você quer chegar?

— Meus sócios me disseram que, se você fizer sociedade conosco, nada lhe acontecerá. Ninguém facilita com a família.

— Quanto tempo vai esperar até que eu lhe dê uma resposta?

— Vinte e quatro horas.

— Falarei depois com você. Enquanto isso, temos uma combinação de setenta e cinco mil exemplares, certo?

— Certo. Não volto atrás nos meus compromissos.

— Era isso que eu queria saber — disse eu e desliguei.

— E agora? — perguntei, voltando-me para Denise.

— Agora, vamos tirar com um xampu o excesso de tintura — disse ela, calçando luvas de plástico.

Fui para o banheiro e baixei a cabeça na pia. Ela ensaboou minha cabeça duas vezes e, quando afinal me vi no espelho, tive de dar-lhe razão.

Obviamente minha mãe não seria capaz de reconhecer-me. Eu mesmo não me reconhecia.


Capítulo dezenove

Já passava da meia-noite quando afinal paramos na estrada de terra diante da casa da fazenda. As janelas estavam às escuras e o silêncio da noite era completo. Desliguei o motor e apaguei os faróis.

— Parece que todo o mundo está dormindo, Denise.

— Não tem importância. Os quartos das visitas ficam sempre abertos.

Segui-a, subindo alguns degraus até a varanda. O único barulho era o das tábuas do soalho que rangiam sob nossos passos. Esbarrei numa cadeira.

— Segure em minha mão — disse Denise.

Era como um jogo de cabra-cega. Eu não sabia para onde éla me estava levando, mas Denise estava exatamente certa do terreno que pisava. Não esbarrei mais de encontro às paredes nem tropecei mais nos móveis.

Ela parou em frente a uma porta e bateu delicadamente.

— Pode ser que já haja alguém aí — disse ela em voz baixa.

Não houve resposta. Ela abriu a porta e fez-me entrar. Em seguida, fechou a porta.

— Você tem fósforos?

Eu tinha uma caixa no bolso. Ela acendeu o fósforo e eu olhei rapidamente o pequeno quarto. Na parede em frente, havia uma cama estreita e uma pequena cômoda, sobre a qual havia uma bacia e um jarro de louça. Um espelho sobre a cômoda e na outra parede um armário e uma janela. O fósforo chegou ao fim.

Ouvi Denise atravessar o quarto no escuro e abrir uma gaveta. Um instante depois, riscou outro fósforo. Tirou uma vela da gaveta e acendeu-a. A chama amarelada tremeu dentro do quarto quando ela a colocou num castiçal ao lado da bacia.

Olhei para o alto e vi uma lâmpada elétrica.

— Por que não acende a luz?

— A energia aqui tem um comutador geral, que é desligado às nove horas da noite para economizar eletricidade. Além disso, acorda-se cedo aqui. Às cinco horas, estamos de pé, prontos para trabalhar. É muito raro alguém ficar acordado depois das nove horas.

— Há muita gente aqui?

— Trinta, às vezes quarenta pessoas. Depende.

— Depende de quê?

— De quererem estar aqui. Na maioria, trata-se de gente moça que quer se libertar de algum hábito prejudicial.

— Drogas.

— E álcool.

— Que é que fazem?

— Trabalham no campo. Fazem orações. Recebem conselhos.

— O que é que plantam aqui?

— O Reverendo Sam diz que é principalmente gente.

Fiquei calado por um momento. Talvez ele tivesse razão no que estava fazendo. Ao menos era um esforço. Tirei um cigarro do bolso e acendi-o na chama da vela. Quando olhei para ela, vi que tinha tirado.os sapatos e estava estendida na cama.

— Cansada?

— Muito. E você?

— Eu também — disse eu, tirando o paletó. — Acha que nós dois cabemos nessa cama, sem que nenhum de nós caia no chão?

Ela me olhou com os olhos muito abertos, sem dizer coisa alguma. De repente, começou a tremer, enquanto as lágrimas lhe vinham aos olhos.

— Que é que há? — perguntei.

Compreendí então que ela havia visto a pistola que eu enfiara no cinto. Tirei-a e deixei-a em cima da cômoda.

— Tenho medo — murmurou ela, batendo os dentes.

Sentei-me na cama e puxei-lhe a cabeça para o meu peito.

— Tudo já passou, Denise. Não há mais motivo para ter medo.

— Iam matar você.

— Mas não mataram.

— Podem tentar de novo.

— Lonergan resolverá tudo dentro de alguns dias. Depois disso, voltaremos ao normal.

— Você teria matado aquele homem se eu não tivesse impedido?

— Não sei, Denise. Quando voltei do Vietnam, odiava a simples idéia de violência. Estava saturado. Mas hoje, quando vi seu rosto machucado, não pensei em mais nada. Fiquei com raiva.

Passei a mão pelo rosto dela e disse:

— Você vai ficar com uma das mais lindas equimoses de todos os tempos.

Ela se levantou da cama e foi até o espelho.

— Epa! Está horrível!

— Ora, minha filha, já vi piores.

— Não é possível fazer alguma coisa?

— Antigamente, colocava-se um bife cru em cima.

— Não há bifes.

— Compressas frias. Gelo.

— Também não há nem uma coisa, nem outra.

— Deixe então como está.

— Fico horrenda, não fico?

— Horrenda é coisa que você não pode ficar.

Ela soprou de repente a vela e apagou-a.

— Agora, você não tem de olhar para mim.

— Não me incomodo.

— Mas eu me incomodo. Não gosto de ser feia.

Continuei a fumar. A ponta do cigarro brilhava no escuro e vi que ela começava a desabotoar a camisa. Passou por mim em direção à cama. Quis tocá-la, mas ela já estava debaixo dos lençóis.

Apaguei o cigarro e comecei a tirar a camisa.

— Gareth.

— Sim?

— Deixe-me despi-lo.

Sem esperar por uma resposta, ela se levantou, e começou a me despir.

A cama era estreita e firme, própria para fazer amor, pois a única maneira de duas pessoas dormirem juntas nela era ficarem abraçadas uma à outra. Com as costas perto da parede, passei o braço sob a cabeça de Denise enquanto se aconchegava ao meu corpo.

— Está bem assim, Denise?

— Não podia estar melhor.

Fechei os olhos.

— Ficou satisfeito? — perguntou ela.

A diferença de idade passara a não existir. Era uma pergunta que qualquer mulher poderia fazer a qualquer homem.

— Fiquei. Foi maravilhoso.

— Quero ser para você tudo o que as outras já foram.

— O que quero agora é dormir.

— Está bem, quero tudo o que você quiser. Amo você, Gareth. Você é maravilhoso. Dá mais atenção a uma mulher do que qualquer homem que já conheci.

Um instante depois, estava completamente adormecida, mas eu não conseguia dormir. Levantei-me da cama com muito cuidado, vesti-me, tornei a meter a pistola no cinto e saí cautelosamente pelo escuro até encontrar a porta da varanda.

Abri a porta e saí. Uma leve claridade a leste já anunciava o amanhecer. Encostei-me à balaustrada e acendi um cigarro. Fazia frio e eu levantei a gola do paletó. Uma tábua do chão rangeu atrás de mim. Voltei-me, já de pistola em punho.

Era um homem grande e barbudo. Usava uma camisa xadrez metida numa calça velha. Falou com voz calma:

— Pode guardar a sua pistola. É como amigo que o recebemos. Sou o Irmão Jonathan.

O calor do seu sorriso tirou qualquer má vontade que pudesse haver em suas palavras.

— De outra vez, quando pintar os cabelos, tenha o cuidado de pintar também as sobrancelhas.


Capítulo vinte

Meti a pistola no cinto e ele veio para junto de mim.

— Aquele carro é seu?

— É.

— Parece que levou uma batida de um caminhão.

Fiquei calado.

— É melhor guardar o carro ali naquele barracão. A patrulha rodoviária passa por aqui todos os dias às oito horas. Escute, está fugindo da polícia?

— Não — disse eu.

— Mas está fugindo de alguém?

— Estou.

Joguei o cigarro no chão à frente da casa e vi as brasas se espalharem e morrerem. Tomei uma decisão. Aquilo ali não era lugar seguro. O dia estava clareando e eu via que tudo era muito bem aberto.

— Quer dar um recado meu a Denise?

— Um recado?

— Diga a ela que é melhor eu sair daqui. Peça-lhe que se comunique com o escritório. Voltarei logo que tudo estiver resolvido.

— Não precisa sair, Gareth. Está em segurança aqui.

— Como é que sabe meu nome?

Ele riu.

— Não se preocupe. Não sou adivinho. Denise telefonou de um motel quando vinha para cá. Disse que vinha trazê-lo mas que ninguém devia saber quem você era.

— Ela não devia ter feito isso.

— Não se aborreça com ela. De qualquer maneira, ela teria de me dizer a verdade. Não acreditamos em mentiras aqui dentro.

— Quanto mais gente souber quem eu sou, maior será o perigo. Para o bem de todos, é melhor eu sair daqui.

— O único nome que você terá de dar a qualquer pessoa aqui é o de Irmão. Nós guardaremos o seu segredo. Além disso, para onde poderia ir? Parece exausto. Dormiu alguma coisa esta noite?

— Naquela cama estreita?

— Numa cama estreita? — perguntou ele com um sorriso. — Apenas com uma cômoda e um armário?

— Exatamente. Que há nisso de estranho?

— Espertezas de Denise, sabe? Eu disse a ela que o levasse para um dos quartos maiores com duas camas.

Comecei a rir. Parece que em qualquer idade a mulher é sempre a mesma.

— Venha — disse o homem. — Vou dar-lhe um pouco de café e levá-lo para a cama. Compreendo agora por que parece tão cansado.

Levei o carro para o barracão e depois fui com ele até a cozinha. Uma chaleira já estava no fogo. O homem fez duas xícaras de café solúvel e nós nos sentamos à mesa da cozinha.

— Você terá de entrar em nosso horário. Do contrário, ficará claro que não é um dos nossos.

— Não é essa a minha intenção. Qual é o horário?

— Despertar às cinco horas, serviços às cinco e meia. Começamos a trabalhar no campo às seis horas. Almoço às onze horas. Ao meio-dia, volta-se ao trabalho até as três e meia da tarde. O tempo é livre até o jantar às seis horas. De novo tempo livre até as nove horas, quando as luzes se apagam e todos vão dormir.

— Parece uma vida sadia.

— É uma vida sadia. Quanto tempo pretende ficar aqui?

— Não sei ainda. Duas semanas no máximo, mas talvez apenas um dia ou dois.

— Tenho de pedir-lhe que me entregue a pistola. Será devolvida quando sair daqui.

Entreguei-lhe a pistola e ele verificou se a trava de segurança estava fechada.

— Armazinha perigosa esta.

— Conhece armas?

— Eu era da polícia e não tinha objetivo na vida até que conheci o Reverendo Sam e me convertí à religião. Você é religioso, Gareth?

— Para dizer a verdade, não. .

— É uma pena. Está perdendo uma coisa muito importante na vida.

Olhou para o relógio.

— Quase cinco horas. Vou levá-lo para o seu quarto antes do amanhecer, pois do contrário não poderá dormir. Quando acordar, pode me procurar que eu estarei por perto.

Já passava das três horas da tarde quando acordei. Não vi mais minhas roupas. No lugar delas, havia, no espaldar de uma cadeira, uma camisa de lã e calças semelhantes às usadas pelo Irmão Jonathan. Encaminhei-me descalço para o banheiro e a água fria do chuveiro acabou de me acordar. Saí batendo os dentes e me enxuguei vigorosamente com uma toalha grossa. Acabava de vestir as calças quando Denise entrou toda sorridente.

— Já está acordado. Ótimo. Estive aqui há uma hora, mais ou menos, e você ainda estava ferrado no sono. O Irmão Jonathan lhe mandou este aparelho de barba e este lápis para pintar as sobrancelhas.

Eu não disse nada.

— Está zangado comigo, Gareth?

— Não.

— Por que não fala então?

— Porque não tenho nada para dizer.

Peguei o aparelho de barba e o lápis e fui para o banheiro. Ela ficou à porta enquanto eu me barbeava. Olhei-a pelo espelho e disse:

— Sabe que seu olho roxo não está tão feio quanto eu pensei que fosse ficar?

— Está horrível. Eu é que fiz uma maquilagem. Quer que dê um jeito em suas sobrancelhas?

Aceitei e fui para o quarto. Sentei-me na cama e ela começou a passar o lápis. Senti o calor dela e coloquei as mãos em sua cintura.

— Por que não veio comigo para este quarto, Denise?

— Ora, eu estava com receio de que você não me quisesse por eu ser muito jovem ainda e resolvi forçar um pouco a mão.

— Você é sempre assim quando deseja um homem?

— Nunca desejei homem algum como deseio você.

— Por que eu. Denise?

— Como é que eu vou saner? Fico toda excitada iogo oue chego iunto de você.

— E está agora?

— Estou.

— Você me acha bonito, forte ou o quê?

— Já lhe disse que não compreendo. É assim e está acabado.

— Neste caso, creio que você na verdade nunca chegou a gostar de ninguém.

Ela largou o lápis e disse:

— Está pronto.

Olhei para o espelho.

— De fato está. Você fez um bom trabalho.

— O Irmão Jonathan gostaria que você assistisse à reunião do quinto plano daqui a pouco.

— A que horas?

— Às quatro.

— Vai demorar muito? Tenho de telefonar para Lonergan às seis.

— A reunião dura mais ou menos uma hora.

— Está bem.

— Ótimo — disse ela, sorrindo. — Vou ver alguma coisa para você comer e então iremos para a reunião juntos.

A sala sem janelas não era muito grande e o teto muito alto era cheio de traves. Seis pessoas — três homens e três mulheres — já estavam na sala quando chegamos. Estavam sentadas aos pares e voltadas para a parede dos fundos, na qual se via um grande baixo-relcvo em madeira de Cristo na cruz. A única luz vinha de velas acesas diante da escultura.

Seguindo o exemplo de Denise, tirei os sapatos antes de transpor a porta e me sentei com ela no chão. Ninguém voltou os olhos para nós. Ouvi então um barulho na porta e olhei por cima do ombro. Era o Irmão Jonathan que entrava com um manto pardo comprido que lhe chegava até os tornozelos. Fechou a porta e foi até o centro da sala, onde baixou o corpo até o chão. Houve um momento de silêncio e ele começou a falar:

— Há dois mil anos, Ele caminhou entre nós. Era um homem como os outros. Mas era também o Filho de Deus e veio a esta terra para limpar-nos dos nossos pecados e livrar-nos dos nossos receios. E foi pelos nossos pecados e em vista dos nossos receios que Ele nos deu a vida. Foi sepultado numa pequena pirâmide construída pelos judeus na sua fuga do Egito muitos milhares de anos antes. E foi no vértice dessa pirâmide que Deus restituiu a vida a Seu filho e Jesus pôde levantar-se do sepulcro, trazendo-nos a seguinte mensagem: "Morri para que todos vós pudésseis ter o dom da vida eterna comigo. Deixai os vossos pecados e dai-me a vossa fé e vivereis comigo para sempre no reino dos céus".

Houve um prolongado e suave coro de améns. Em seguida, o Irmão Jonathan continuou a falar.

— Desde aquele tempo, o homem tem tentado subir os degraus da pirâmide até o céu, mas cai no meio do caminho em conseqüência de suas fraquezas. Só depois que o Reverendo Sam descobriu o Princípio dos Sete Planos, a verdade se tornou evidente. O homem não pode chegar a Deus enquanto não se livrar dos sete pecados capitais: o orgulho, a cobiça, a luxúria, a cólera, a gula, a inveja e a preguiça. Quanto mais pecados tem uma criatura humana, mais baixo é o nível de sua existência e maior é a sua distância de Deus. Quanto menores forem os pecados, mais alto será o nível de sua existência e mais perto estará ela de Deus. E é só do mais alto nível que se pode subir ao vértice da pirâmide e ser banhado pela pura luz de Deus. O Reverendo Sam mostrou que essa meta está ao alcance de todos nós. Ele nos dá a mão para elevar-nos à pura luz de Deus. Possa ele continuar a desfrutar das bênçãos de Deus. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.

Houve um leve rumor de movimento, outro coro de améns e depois silêncio.

A voz do Irmão Jonathan era suave.

— Todos aqui estamos no quinto plano de nossa subida para o céu. Há ainda cinco planos para galgar até chegarmos à luz pura do vértice. Começaremos confessando a nós mesmos e uns aos outros o pecado que mais nos aflige. Quem será a primeira pessoa a fazer a confissão?

A voz de Denise quebrou o momentâneo silêncio.

— Eu, irmão.

— Que pecado confessa, irmã?

Corri os olhos pela sala. Ninguém se voltara para olhá-la. Todos continuavam sentados em silêncio, com as mãos juntas e no colo, os olhos fixos na cruz em frente. Denise estava também olhando para a cruz.

— Confesso o pecado da luxúria, irmão.

Fechou então os olhos e falou em voz baixa.

— Há algumas semanas, conhecí um homem. A partir desse momento, tenho tido o corpo em fogo e o espírito cheio de imagens e desejos libidinosos. Quando penso nele, sinto-me inteiramente fraca e sem resistência. Tenho estado com outros homens, usando-os para satisfazer o desejo que tenho por ele. Já dormi com ele, mas ainda estou insatisfeita. Minha vontade continua dominante e eu só penso em sexo, em todas as suas formas e possibilidades/ Sou uma escrava da luxúria, incapaz de pensar em outra coisa.

Baixou a cabeça e eu pude ver que estava chorando. Um momento depois, acrescentou:

— Confesso o meu pecado e peço a Deus que me guie.

— Vamos nos unir num momento de prece com nossa irmã — disse o Irmão Jonathan.

Houve durante alguns instantes um rumor de preces e o Irmão Jonathan voltou a falar:

— Aos olhos de Deus só há amor, irmã, e o amor toma muitas formas, tanto do corpo quanto do espírito. Há ocasiões em que não se pode exprimir amor senão com o corpo. Examine o seu coração, irmã. É possível que ame realmente esse homem?

— Não sei, irmão. Até agora, tudo o que tenho sentido por ele é puramente físico. Sei que ele não me deseja tanto quanto eu o desejo, mas isso não diminui o meu ardor. Até nesse momento em que estou falando dele, o desejo me abrasa.

— Está pronta para transmitir esses desejos ao condutor cinético?

— Estou, irmão.

— Venha então até aqui.

Denise levantou-se, com os olhos fechados como se estivesse dormindo. Desabotoou a camisa enquanto se aproximava do Irmão Jonathan. Quando chegou diante dele, tirou a camisa e, um momento depois, deixou cair os jeans. Ficou então nua diante dele.

— Irmã Mary e Irmã Jean, tenham a bondade de segurar as mãos e os pés da Irmã Denise. Os outros devem voltar-se para nós e ajudar-nos com as suas preces.

Duas das moças se encaminharam para Denise, que se estendera no chão. Cada uma delas beiiou-a na boca. Uma deias sentou-se de pernas cruzadas peno da cabeça de Denise e segurou-lhe as mãos. A outra sentou-se aos pés e asarrou-ihe os tornozelos. Olhei atentamente para elas e para as outras pessoas. Estavam todas sérias, mas não curiosas. Evidentemente, não era a primeira vez que aquilo acontecia.

O Irmão Jonathan moveu-se e eu vi perto dele o que parecia um pequeno transformador. Levava na mão o que parecia uma vareta de vidro de uns vinte centímetros de comprimento. Um fio negro ia da vareta ao transformador, que ele no momento estava ajustando. Houve um estalo e depois uma faísca de luz azul na vareta. Um momento depois, houve um leve cheiro de ozônio no ar. A luz da vareta se tornou constante, passando a lançar uma estranha cor pálida sobre os rostos. Os estalos eram mais altos.

O Irmão Jonathan levantou a vareta acima da cabeça e disse:

— Senhor, em nome de vosso filho Jesus Cristo, vos peço que escuteis a comunicação desta irmã que vos fàla do seu pecado por intermédio da energia com que lhe destes vida.

— Amém.

O coro de vozes era mais forte.

O Irmão Jonathan baixou lentamente a vareta. Denise continuava imóvel e de olhos fechados.

— Está pronta, irmã? — perguntou ele.

— Sim.

Ele tocou o braço direito dela com a vareta. Os estalos aumentaram e o braço teve uma rápida contração. A vareta foi vagarosamente aproximada dos ombros e depois dos seios. Ela começou então a debater-se e a gemer. Eu sabia o que ela estava sentindo. Ouvira aqueles mesmos gemidos aquela noite no quarto. Compreendí então a necessidade das duas moças que a seguravam. Se não fossem elas, nada a poderia conter.

O Irmão Jonathan estava impassível ao fazer passar a vareta a pequena distância do corpo dela.

Em dado momento, Denise deu um grito, que era um misto de dor, de agonia e de prazer.

— Estou explodindo! — gritou ela. — Tudo dentro de mim está explodindo!

De repente, seu corpo descambou, o rosto empalideceu e os olhos se fecharam de novo.

O Irmão Jonathan fez passar a vareta acima das pernas de Denise até chegar aos pés. Depois disso, desligou o transformador. A luz da vareta esmaeceu e morreu. Ele a largou.

Denise estava deitada em silêncio. Só se ouvia na sala o rumor de nossa respiração.

O Irmão Jonathan íez um sinal para as duas moças e elas voltaram para os seus lugares.

Denise abriu os olhos.

—. Acabou?

— Sim, irmã. Precisa de ajuda para ir para o seu quarto?

— Não, acho que estou bem.

Vestiu a camisa e as calças.

— Obrigada, Irmão Jonathan. Obrigada, irmãos. Amo-os todos.

— Nós a amamos — disseram todos em coro.

O Irmão Jonathan colocou as mãos nos ombros de Denise e beijou-lhe a boca.

— Não esqueça, irmã, de que o corpo não é senão carne. É a alma que lhe dá vida e é o amor que une corpo e alma.

Ela fez um gesto de assentimento e prontamente, sem olhar para mim, saiu da sala.

O Irmão Jonathan me olhou amistosamente e disse:

— Muito obrigado a todos, irmãos e irmãs. A reunião está encerrada. Paz e amor.

— Paz e amor — disseram todos e começaram a sair.

Levantei-me e esperei que todos tivessem saído. O Irmão Jonathan cobriu o transformador com uma capa.

— Isso funciona realmente? — perguntei-lhe.

— O Senhor falou a Moisés por intermédio de uma sarça ardente.

— Não é a mesma coisa.

— Qualquer coisa que permita ao homem comunicar-se com Deus funciona.

— Obrigado, Irmão Jonathan.

— Paz e amor.

Olhei para o meu relógio. Eram quase seis horas. Não podia perder a hora de falar com Lonergan.


Capítulo vinte e um

A voz de Lonergan não era mais que um sussurro aos meus ouvidos.

— Já pensou em passar uma temporada no México?

— Não me dou bem com a água de lá.

— Não complique as coisas, Gareth. Eles não gostam de ter a sua gente maltratada.

— Estamos pau a pau. Também não gosto da idéia de que me queiram matar. Falando sério, tio John: pode ou não pode tirar essa gente de cima de mim?

Ouvi um breve suspiro e compreendi que ele não era mais o tio John da minha infância. Estava beirando os setenta e para ele o relógio trabalhava vinte e quatro horas por dia.

— Não sei, Gareth. Antigamente, era só um contrato pela sua morte. Agora, a coisa se tornou pessoal. Um daqueles homens não poderá mais andar.

— É uma pena.

— Preciso de alguma coisa para argumentar com eles. Deixando você de fora, é claro. .

— Ronzi disse que desistiríam de tudo se eu os aceitasse como sócios.

— Isso foi ontem, antes que soubessem do que aconteceu no estacionamento da casa de saúde. Ronzi me telefonou hoje de manhã dizendo que essa proposta não está mais de pé.

— Fiquei de telefonar para ele hoje à noite.

— Não faça isso. Ele deve ter algum dispositivo eletrônico na linha. Estariam aí antes que você saísse do telefone.

— Que é que eu faço então?

— Nada. Desapareça de circulação. Talvez dentro de uma semana ou duas eles já estejam mais calmos e então poderemos voltar a falar.

— E a revista? Este número já está pronto. E os outros? Vai levar a breca.

— Deixe que leve a breca. Não vai querer que o embrulhem nas páginas da revista antes de enterrá-lo.

Fiquei calado.

— Gareth?

— Pronto.

— Não tome nenhuma atitude precipitada. Dê-me um pouco de tempo.

— Tem todo o tempo que quiser, tio John. Eu não tenho. Se a revista levar duas semanas sem sair, estarei de novo na rua da amargura.

— Pelo menos estará vivo. Encontrará outras coisas em que se meter.

— Está bem.

Desliguei e, quando me afastei do telefone, vi Denise perto de mim.

— Vim buscar você pra jantar — disse ela.

Fiz um gesto de aquiescência e comecei a caminhar a seu lado.

— Desculpe, Gareth.

— Desculpar o quê?

— Compliquei as coisas para você. Não deveria ter dito onde era que você estava.

— Você não teve culpa, Denise.

Ela pôs a mão em meu braço e me fez parar.

— Sou mesmo uma tola, não sou?

Olhei-a em silêncio.

— Desta vez, o condutor cinético não adiantou nada. Foi essa a primeira vez que não deu resultado em mim. O Irmão Jonathan disse que talvez haja necessidade de mais algumas sessões para que eu me livre desse pecado.

— Acha mesmo que é um pecado?

— Não compreendo.

— O Reverendo Sam não ensina que o amor não é um pecado? Que o amor entre duas pessoas é uma coisa boa? O amor pode ser também material.

Foi o que o Irmão Jonathan disse. Mas eu não sei. Nunca senti nada de parecido. Quero você a todo instante. É só em que eu posso pensar.

Paramos à porta da sala de jantar e ela disse:

— Até agora, só falamos do que sinto. E você? Que é que você sente por mim?

— Acho você muito bonita.

— Não foi isso o que eu lhe perguntei. Sente por mim o desejo que eu sinto por você?

— Menina, vou lhe dizer uma coisa com toda a sinceridade. Isso só acontece quando se é muito moço assim como você. Mas fique certa de que você passará dessa fase.

— É isso o que você pensa mesmo? — perguntou ela com uma voz cheia de tristeza. — Quero que me diga a verdade.

E era a verdade que eu ia dizer a Denise.

— Neste momento, na minha idade, tenho uma porção de coisas para me encher a cabeça. E ir para a cama, mesmo com uma pequena bonita e nova como você, não é a mais importante delas.

Ela saiu correndo de repente, deixando-me sozinho à porta. O Irmão Jonathan me viu e me indicou uma cadeira ao lado dele.

Havia mais seis jovens sentados à mesa. Cumprimentaram inclinando a cabeça mas não disseram uma só palavra. Estavam muito ocupados em comer.

— Aqui nós mesmos nos servimos — disse o Irmão Jonathan apontando uma terrina no centro da mesa.

O ensopado de carne com batatas e cenoura era simples e gostoso. Comi, molhei o pão no molho do ensopado, pois não havia manteiga, e bebi um copo de leite. Ninguém falou enquanto não acabou de comer. Depois, todos se levantaram, um por um, dizendo: "Paz e amor".

Olhei para a sala. Quando eu entrara, havia ali cerca de quarenta pessoas. Naquele momento, restavam algumas que tratavam de tirar os pratos da mesa.

— Tenho café em meu escritório — disse o Irmão Jonathan. — Quer uma xícara?

— É uma boa idéia.

O escritório era uma salinha ao lado do hall de entrada. Ele fechou a porta e alguns minutos depois colocou uma xícara de café solúvel à minha frente.

— Tenho também um pouco de scotch.

— Pensei que isso era contra as regras.

— Exclusivamente para fins medicinais — disse ele, sorrindo.

— Na verdade, não estou me sentindo muito bem — disse eu, sorrindo também.

Ele serviu duas doses e disse:

— Paz e amor.

— Paz e amor — respondí.

Ele tomou o uísque com a segurança de um habituado e tornou a encher o copo quando eu ainda estava pela metade do meu. Depois, olhou firmemente para mim e disse:

— Não pode ficar aqui. Sabe disso, não sabe?

— Por quê? Por causa de Denise?

— Não. Isso é fácil de resolver. Por sua causa. Você está com a cabeça a prêmio. Mais dia, menos dia, chegarão aqui à sua procura.

— Foi Denise que lhe disse isso?

— Não.

— Como foi então que você descobriu?

— Como já lhe disse, fiz parte da polícia e ainda tenho meus contatos. É voz corrente lá fora que você fugiu com Denise. Não tarda muito que descubram onde ela pode estar.

Fiquei calado.

— Sinto muito, mas não posso arriscar-me a tanto. Há muita gente aqui sob minha responsabilidade.

— Mas ainda que eu não esteja aqui, encontrarão Denise.

— Não a encontrarão. Vou mandá-la para outro lugar. Amanhã à noite, ela estará a uns mil quilômetros daqui.

Acabei de tomar o uísque.

— Quando quer que eu saia daqui?

— Hoje à noite, quando todos estiverem dormindo. Irei acordá-lo. Use o pequeno quarto para onde Denise o levou na noite passada. As suas roupas já estão lá.

Levantei-me.

— Muito obrigado por tudo, Irmão Jonathan.

— Como está em matéria de dinheiro?

— Não preciso de nada.

— Paz e amor.

— Paz e amor — disse eu e saí do escritório.

Minhas roupas, bem-passadas, estavam num cabide atrás da porta. Despi-me rapidamente e fui para o banheiro. As luzes se apagaram quando eu estava no meio do banho. Disse um palavrão mas me lembrei de que todas as luzes da fazenda se apagavam às nove horas. Enrolei uma toalha no corpo e saí à procura de uma vela. Só depois que a accndi é que vi Denise dentro do quarto.

Estava encolhida, calada e esquecida num canto da cama estreita. Um pouco da maquilagem tinha saído e seu olho arroxeado estava bem visível.

— Você vai embora daqui, Gareth.

Enxuguei o corpo com a toalha sem responder.

— Soube disso no momento em que vi que o Irmão Jonathan havia devolvido suas roupas.

Acabei de me enxugar e peguei a camisa.

— Quero ir com você.

— Não é possível.

— Por quê?

— Porque você pode ser morta, só isto. O Irmão Jonathan não quer que isso aconteça nem a mim, nem a você.

— Pouco me importa. Quero é estar com você.

Vesti as calças e sentei-me numa cadeira para calçar as meias e os sapatos.

Ela saiu da cama e veio para perto de mim.

— Por que não me leva? Não sabe que eu amo você?

— Sinto muito, mas não posso.

Denise levou as mãos ao rosto e começou a chorar. Quando falou, a sua voz era como um gemido.

— Não sei o que há comigo que nunca faço as coisas certo. Pensei que seria bom ficarmos aqui e que você estaria em segurança.

Alisei-lhe os cabelos. Ela segurou minha mão e levou-a aos lábios.

— Se eu ficar aqui, Denise, não haverá segurança para ninguém. Nem para você, nem para o Irmão Jonathan, nem para qualquer dos outros irmãos. E eles não têm nada com isso.

— Não estou pedindo o seu amor para sempre, Gareth — disse ela. — Sei que sou insuficiente para isso. Só quero é ficar mais um pouco com você. Quando me mandar embora, eu irei.

Peguei-lhe o queixo e levantei-lhe o rosto.

— Não é isso, meu bem. Não é nada disso. Muita gente já se machucou por minha causa e eu não quero trazer toda essa confusão aqui para dentro.

Ela ficou alguns momentos em silêncio e depois disse, olhando para a palma de minha mão:

— Sabe que você tem duas linhas de vida?

Demorei um pouco para apreender a idéia e disse:

— Não.

Ela acompanhou com o dedo uma linha na palma de minha mão até perto do indicador.

— Nada vai lhe acontecer. E você vai viver muito.

— É uma tranqüilidade saber disso.

— Mas neste momento as suas linhas de vida são paralelas. E a primeira acaba bem aqui no centro da mão.

— Isso é bom ou ruim?

— Palavra que não sei. Mas quer dizer que uma de suas vidas vai parar dentro em pouco.

— Tomara que não seja a que se relaciona com a minha respiração.

— Não estou fazendo graça, Gareth.

Fiquei calado.

— Sou muito boa em leitura de mãos.

— Acredito.

— Não acredita nada. . .

Sorri.

— Escute, você se sentirá melhor tendo uma briga comigo?

— Não quero brigar com você. Muito menos em nossa última noite juntos.

— Fique calma então.

— A que horas você vai partir, Gareth?

— A hora exata não sei. O Irmão Jonathan ficou de vir me buscar.

— Vai ser então perto da meia-noite, quando ele faz a ronda final. Temos tempo de ir para a cama fazer a despedida.

— Você deve estar brincando.. .

— Você vai ver. . .

Como sempre, nesse particular, ela tinha toda a razão. Mas quando o Irmão Jonathan bateu na porta, já estávamos ambos vestidos de novo.

Ele entrou e viu tudo, inclusive a cama em desalinho.

Voltei-me para Denise.

— Está na hora.

— Irei com você até o carro — disse ela.

Caminhamos todos em silêncio até o barracão. O Irmão Jonathan abriu as portas, que rangeram alto no silêncio da noite. Abri a porta do carro e sentei-me à direção. O velho Valiant, o Valente, justificou o seu nome. O motor pegou com a maior facilidade.

O Irmão Jonathan estendeu-me a mão.

— Felicidades, Gareth. Paz e amor.

Saiu então do barracão, deixando Denise. Ela se aproximou da janela e me beijou.

— Você me telefona logo que voltar?

— Claro que telefono!

— Estarei aqui à sua espera.

Denise não sabia que o Irmão Jonathan ia mandá-la para longe. Mas eu não podia dizer-lhe isso.

Ela tornou a me beijar.

— Eu te amo, Gareth.

Manobrei o carro e saí do barracão. Ao seguir pela estrada, vi pelo espelho o Irmão Jonathan com o braço passado pelo ombro de Denise, levando-a para casa. Entrei por uma curva e não havia nada atrás de mim a não ser a noite.


Capítulo vinte e dois

Foi só quando parei num posto de gasolina que notei o envelope no banco do carro ao meu lado. O empregado do posto se aproximou da janela.

— Encha o tanque — disse eu.

Abri então o envelope. Havia dentro mil dólares em notas de cem e um bilhete que dizia: "Dei fim à pistola por você. Procure a Missão Paz e Amor do Reverendo Sam em North Beach, San Francisco, e diga que quer falar com o Irmão Harry. Ele lhe dará uma passagem de avião para Honolulu amanhã e informações sobre o que deverá fazer ali. Paz e amor".

Não havia assinatura, nem era necessária. Guardei o dinheiro no bolso, tornei a ler o bilhete. Depois, rasguei-o, e, saindo do carro, joguei os pedaços na lata de lixo do posto.

— Quer que veja o óleo, a báteria e a água? — perguntou o empregado.

— Veja tudo — disse eu e fui ao banheiro.

Quando saí, ele me apresentou a conta.

— Gasolina, óleo. Chequei a bateria e o radiador. Seis dólares e quinze cents.

Dei-lhe sete dólares e voltei para o carro. Eram cinco e meia da manhã e o dia estava nascendo quando entrei na missão no fim de North Beach. Era um velho prédio cinzento que mais parecia um trapiche do que uma hospedaria. Ao lado, num terreno baldio, havia um cartaz: ESTACIONAMENTO PRIVATIVO DOS VISITANTES DA MISSÃO. Parei bem perto do prédio. Saí do carro e encaminhei-me para a porta.

Não foi preciso bater. Um homem de estatura mediana num terno pardo abriu a porta e me perguntou numa voz fina:

— É o Irmão Gareth?

— Sou.

— Eu sou o Irmão Harry — disse ele, estendendo-me a mão. — Paz e amor.

— Paz e amor.

— Entre. Estou à sua espera desde as quatro horas e estava começando a ficar preocupado.

Sorri.

— Bem, o meu Valiant não é propriamente o carro mais veloz do mundo.

— De qualquer maneira, está aqui e isso é que importa — disse ele levando-me por um corredor. — Preparei-lhe um quarto; pode ficar lá até seu avião sair.

— A que horas ele sai?

— Às três e quarenta e cinco da tarde. Mas não se preocupe que eu o farei chegar a tempo. — Abriu a porta do quarto e eu entrei. — Pode dar-me as chaves do carro?

Olhei-o sem compreender.

— Soube que pode ser identificado pelo carro. Ele ficará muito visível em nosso estacionamento.

— Que vai fazer com ele? — perguntei, entregando as chaves.

— Recebi instruções para mandar esmagá-lo num ferro-velho.

Eu não tinha nada para dizer. Não pode haver maneira melhor de dar fim a um carro. Assim, não restam nem vestígios dele. Apesar de tudo, não pude deixar de ter uma certa pena. O carrinho e eu tínhamos passado por muitas coisas juntos.

Corri os olhos pelo quarto mobiliado com simplicidade. Havia uma cama estreita, uma poltrona estreita, um armário estreito e uma janela também estreita. Era um quarto perfeito para um homem magro. De repente, senti-me totalmente exausto e não quis pensar em mais nada. A minha única vontade era dormir.

— Voltarei dentro de algumas horas com o seu café da manhã. Será uma boa idéia não sair do quarto. Não convém que seja visto por ninguém.

Concordei com a cabeça. Falar era um esforço acima de minha capacidade. Ele saiu fechando a porta e eu me estendi na cama sem tirar a roupa do corpo. Mal pude jogar os sapatos longe antes de dormir.

Dormi sem ligar para o café da manhã, mas o Irmão Harry me acordou para almoçar.

— Tem de estar no aeroporto uma hora antes da partida do avião — disse-me ele, colocando a bandeja com a comida numa cadeira ao lado da cama.

— Está bem — disse eu. Olhei para a bandeja e vi que havia, como era de esperar, ensopado de carne. — Não estou com fome no momento. Talvez coma alguma coisa depois no aeroporto.

— O banheiro fica naquela porta. Convém fazer a barba. Uma barba loura não combina bem com cabelos pretos. Encontrará no armarinho tudo o que é necessário.

A barba e o banho de chuveiro me fizeram bem. Comecei a sentir-me vivo de novo. Saí do banheiro. Ele estava esperando e o ensopado também. Meu apetite era ainda menor.

— Escute, Irmão Harry. Há algum mal em que eu chegue ao aeroporto mais cedo?

— Não sei por quê. Quer ir para lá agora?

— Quero.

Estava de repente farto de quartos pequenos e camas estreitas.

O Irmão Harry parou o seu velho Ford diante do terminal da United Airlines, meteu a mão no bolso e me entregou um envelope.

— A sua passagem está aí dentro. O Irmão Robert estará à sua espera em Honolulu e o levará para a missão.

— Como é que vou reconhecê-lo?

— Ele o encontrará.

— Muito obrigado por tudo.

— Não há de quê. Paz e amor.

— Paz e. . . Escute, posso fazer-lhe uma pergunta?

— Claro que pode.

— Por que está tendo esse trabalho todo comigo? E eu nem faço parte de sua igreja. Entretanto, bastou uma palavra do Irmão Jonathan. ..

— Qh, não! Não foi o Irmão Jonathan. A autoridade dele não chega a tanto.

— Quem foi então?

Mas eu sabia a resposta antes mesmo que acabasse de formular a pergunta.

— O Reverendo Sanr — disse ele numa voz respeitosa.

— Nada acontece na igreja sem o conhecimento dele. Ele cuida de todos nós, Deus que o proteja. Paz e amor.

— Paz e amor.

Saltei do carro e fiquei olhando enquanto ele entrava no trânsito de volta à cidade. Dentro do aeroporto, verifiquei a hora da partida. Seria às três e meia mesmo, e como ainda eram duas e meia, eu teria uma hora para esperar. Entrei no bar mais próximo.

O bar estava cheio e eu me sentei a uma das mesinhas. Uma garçonete trouxe o que eu pedira — uma dose dupla de uísque com gelo.

Na minha opinião, o Irmão Jonathan devia ter telefonado para o Reverendo Sam logo depois de minha chegada à missão. Jonathan não teria tomado todas aquelas providências por si mesmo. Havia organização em tudo aquilo.

Mas por que o Reverendo Sam chegara à conclusão de que eu precisava de proteção?

— Outro uísque?

Vi com surpresa que havia esvaziado o copo. Deviam estar botando água no uísque, pois eu não sentira absolutamente nada. Disse que sim e quando ela me trouxe o novo uísque, olhei para o relógio. Duas e quarenta e cinco.

— Há um telefone aqui perto? — perguntei à garçonete.

— Ao lado da porta.

Paguei a conta e disse:

— Já volto.

Fui até a caixa, muni-me das moedas necessárias e fiz uma ligação para o Reverendo Sam.

Peguei-o em casa.

— Como vai Bobby? — perguntei-lhe.

— Muito melhor. Os médicos esperam que ele possa voltar a alimentar-se normalmente até o fim desta semana. Onde é que você está?

— No Aeroporto Internacional de San Francisco.

Pude sentir a satisfação na voz dele.

— Vai então para Honolulu?

— O avião vai partir daqui a menos de uma hora.

— Otimo. Quando Lonergan me disse como as coisas estavam ruins, compreendí que tinha de fazer alguma coisa.

— A idéia de minha saída do país é de Lonergan?

— Não. Mas quando eu disse a ele o que pretendia fazer, achou que era uma boa solução. Devo-lhe muito e não posso deixar de ajudá-lo.

Fiquei calado.

— Tomei todas as providências. Cuidarão bem de você.

— Muito obrigado.

— Não tem nada que agradecer. Afinal de contas, você não estaria metido nessas dificuldades se não fosse Bobby. — Hesitou um momento e acrescentou: — Se precisar de alguma coisa, é só me telefonar.

— Estou bem.

— Então não se preocupe. Tenho certeza de que Lonergan vai resolver tudo dentro de muito pouco tempo e você poderá voltar.

— Claro.

— Boa viagem. Vá com Deus.

—Paz e amor — disse eu, desligando o telefone.

Dei depois uma série de telefonemas para Lonergan mas não pude encontrá-lo em lugar algum. Nem em casa, nem no escritório, nem no Silver Stud sabiam onde ele estava. Não pude nem conseguir ligação para o telefone móvel no carro dele.

Tudo aquilo me afligia. Estava tudo armado contra mim. Lonergan sabia que eu não queria ir embora. Entretanto, cada vez eu me afastava mais dos lugares onde queria estar. Não sabia nem se os originais daquele número da revista tinham chegado a tempo às oficinas. Coloquei mais uma moeda no telefone e liguei para a revista.

— Hollywood Express.

Era a voz de Verita.

Eu sabia que ela identificaria minha voz, por isso não disse meu nome.

— Você está bem?

— Estou. E você?

— OK. Pode falar? Há alguém aí?

— Ninguém. Estou sozinha.

— Os originais foram para a oficina?

— Tudo em ordem. Sua amiga é formidável. Trabalhou a noite inteira.

— Ótimo.

— Vai voltar?

— Está aí uma pergunta esquisita. Claro que vou voltar. Por que pergunta?

— Lonergan diz o contrário. Esteve aqui com Ronzi. Os dois subiram para ter uma conferência com Persky. Quando desceram, Lonergan disse que você ia vender a revista a Ronzi e que Persky ia ficar no seu lugar. Depois que Lonergan e Ronzi saíram, Persky me disse que eu não era mais necessária aqui a partir da próxima semana.

Senti-me tomado de cólera. Meu tio estava outra vez no seu papel habitual, querendo determinar o destino das pessoas como se fosse Deus.

— De jeito nenhum! Isso não vai acontecer!

— Que é que você pode fazer? Se você voltar, eles o descobrirão e tratarão de matá-lo. Esses homens são perversos e cruéis.

— Escute, vá para casa e não saia de lá até ter notícias minhas.

Saí do telefone e fui até o balcão de informações. Havia um vôo para Los Angeles às três e meia.

Embarquei nele.


Capítulo vinte e três

John, o vendedor de carros usados, apertou os olhos para resguardá-los do sol do fim da tarde.

— Este é o nosso carro especial desta semana. Ia hoje mesmo anunciá-lo na televisão.

Olhei para o conversível Corvair. A capota e os bancos de vinil tinham sido recentemente polidos e a carroçaria amarela brilhava.

— Quanto é que está pedindo por isso?

— Oitocentos dólares, tudo incluído. É de graça por esse preço. Custou, novo, em 65, dois mil e trezentos. Praticamente zero quilômetro, não levando em conta. . .

— Qual é a quilometragem?

— Pode ver no velocímetro.

Abri a porta e olhei. Vinte e cinco mil quilômetros. Voltei-me para ele.

— Sim — disse John. — Vinte e cinco. Não é nada. Isso é carro para dar cem mil quilômetros sem precisar de oficina.

— Não é o que dizem os técnicos da Proteção aos Consumidores.

— Que é que eles entendem disso? Querem ganhar a vida assustando as pessoas. Já dirigi esse carro. Macio como um carrinho de bebê e tão seguro quanto se estivesse nos braços de sua própria mãe.

Abri o capô. O motor me parecia em bom estado. Pelo menos, fora limpo a jatos de vapor. Os pneus estavam em bom estado. Não pareciam ter rodado vinte e cinco mil quilômetros. Fui para a frente do carro e abri o porta-malas. No Corvair, o motor fica atrás e o porta-malas na parte da frente. O estepe tinha algum uso. Havia mesmo alguns pontos em que estava careca. Olhei para John. Ele tinha, como de hábito, uma explicação.

— É o que acontece quando as pessoas querem fazer economia no que não devem. O dono anterior não quis comprar um pneu novo para servir de estepe.

— Claro. Posso dar uma volta no quarteirão para testar?

— Não é preciso. Terá a nossa garantia de devolução do dinheiro. Se dentro de noventa dias não estiver satisfeito com o carro, nós lhe daremos um crédito do preço pago para qualquer carro que escolher.

— Ainda assim, gostaria de experimentá-lo. Só para ver se me sinto bem dentro dele.

— Baixe a capota e vai-se sentir bem como nunca imaginou. Estará flutuando em puro prazer.

— Ótimo! Por enquanto, só quero saber se o carro pode andar.

Ele me olhou por um instante e então disse, chamando um dos homens que trabalhavam com ele:

— Chico, dê uma volta com o freguês.

O mexicano largou o pano com que estava polindo um carro e entrou no conversível comigo. Liguei o motor e este pegou com a maior facilidade. Soltei as presilhas e apertei o botão. A capota desceu mansamente. Liguei os limpadores do pára-brisa e apertei o botão da água. Um jato de água se espalhou pelo vidro e os limpadores logo o enxugaram. Liguei o rádio e ouvi rock. Depois, acendi os faróis e saí do carro. Estava tudo aceso. Fui para a frente do carro.

— Acenda os faróis altos.

O mexicano obedeceu e as luzes funcionaram.

— Agora, o pisca-pisca.

O da direita, o da esquerda. Tudo em ordem. John, o vendedor, me olhava com uma expressão estranha.

— Desculpe, mas eu gosto de verificar tudo.

— Qual é o problema? Vá em frente.

Tornei a entrar no carro e dirigi na rua até passar duas ou três esquinas. Os freios estavam ajustados, as mudanças, inclusive a marcha à ré, funcionavam perfeitamente e a direção era boa, levando em conta que o carro não pesava quase nada. O vendedor me esperava quando voltei ao local.

O mexicano saltou mas eu continuei sentado. John se aproximou.

— Que tal?

— Bonzinho. Seiscentos dólares.

Ele riu. Tirei o dinheiro do bolso para que ele visse.

— Em dinheiro. Agora.

— Setecentos e cinqüenta.

Passei o polegar pelo maço de notas.

— Seiscentos e vinte e cinco.

— Setecentos.

— Seiscentos e setenta e cinco e não se fala mais nisso.

— Comprou de graça um carro e tanto. Venha até o escritório para eu lhe entregar os papéis.

— Está bem — disse eu, desligando o motor. Quando olhei para o homem, ele tinha de novo uma expressão estranha.

— Você é músico de rock? — perguntou ele.

— Por que pergunta?

— Porque esses músicos usam as coisas mais estranhas. Mas nunca vi ninguém com os cabelos cor de laranja.

Olhei no espelho do carro. Os meus cabelos estavam de fato com um tom laranja muito especial. Diabo! Que tinta Denise havia me passado na cabeça?

— Sua mãe tinha cabelos assim?

— Não.

— E seu pai?

— Não sei — disse eu sorrindo. — Nunca vi meu pai sem chapéu.

— Seja como for, é muito esquisito, sabe?

— Sei, sim.

Fiz o registro do carro no nome de Lonergan, dando como endereço o escritório dele. Depois de todas as formalidades cumpridas, fui à papelaria mais próxima e comprei quatro latas de cola de borracha. Em seguida, procurei um telefone e liguei para Verita.

— Alô.

Ela parecia nervosa e, quando ouviu minha voz, deu um suspiro de alívio.

— Estava tão preocupada, Gary! Onde é que você está?

— Na cidade.

— Dois homens num Buick preto me seguiram da revista até aqui. Agora, estão parados diante do meu edifício, do outro lado da rua.

Era de se esperar. Mais cedo ou mais tarde, procurariam vigiar todas as pessoas com quem eu pudesse entrar em contato. Restava saber quem eram eles.

— Acha que são da polícia?

— Não sei. O carro tem placa de Nevada.

Isso ajudava muito. Não era a polícia. Fosse quem fosse, ainda era melhor do que ter toda a polícia de Los Angeles à minha procura.

— Não se preocupe, Verita. Não farão nada com você. É a mim que eles querem.

— Sei disso, mas quero ver você.

— Está bem. Pode falar com seu primo Julio Vásquez por mim? Ele pode ajudar-me. Lutamos juntos no Vietnam.

— Ele é um homem perigoso, Gary.

— Eu sei. Mas os homens com os quais estou lidando são também muito perigosos.

Julio Vásquez era o rei do barrio. Nada acontecia ali que ele não soubesse.

— Vou telefonar para ele.

— Marque um encontro com ele para mim. São seis e meia. Digamos, para as nove horas.

— Vou tentar.

— Muito bem. Eu lhe telefonarei daqui a uma hora.

Quase acrescentei "Paz e amor". Já estava ficando habituado. Deixei o telefone, entrei na primeira lanchonete e jantei um bife com fritas.

— Ele disse que só pode encontrar-se com você às dez horas — disse Verita quando telefonei para ela.

— Está bem. Onde?

— Disse que eu devia levar você para a garagem.

— Diga onde fica essa garagem para que eu possa ir até lá.

— Não posso. Ele me fez jurar que não diria a ninguém, nem mesmo a você.

— Falou a ele nos dois homens que estão parados diante de sua casa?

— Não.

— Telefone de novo para ele e diga. Daqui a quinze minutos, telefono de novo para você.

Desliguei, tomei uma xícara de café bem descansadamente e tornei a ligar para ela.

— Que foi que ele disse?

— Disse para você não se incomodar. Ele vai tomar providências.

— Está bem.

— Disse que você deve trazer o seu carro até minha casa e parar na esquina. Às nove e meia, sairei de casa para encontrar-me com você. Quer saber em que carro você está.

— Um conversível Corvair amarelo de capota preta.

— Alugou o carro?

— Não. Comprei.

— Andam fazendo uma campanha contra esse carro, dizendo que não tem segurança nenhuma. . .

— Ora, minha filha, já estou habituado a viver perigosamente . . .

Um mexicano alto num blusão de couro estava encostado ao poste de iluminação quando eu parei o carro na esquina perto da casa de Verita. Eram exatamente nove e vinte e cinco. O mexicano se aproximou.

— Sr. Brendan?

— Sim.

— Passe para o banco de trás. Eu vou dirigir.

Passei para trás e ele se sentou ao volante, dizendo sem olhar para trás:

— Deite-se no chão do carro.

Não era muito fácil acomodar-me ali. Passei as latas de cola para cima do banco.

Um minuto depois, ouvi a voz de Verita.

— Qué pasa?

O homem disse alguma coisa rapidamente em espanhol. Ela respondeu também em espanhol. A única palavra que eu pude pegar foi "Buick".

Ò homem ligou o motor e se afastou do meio-fio. Alguns instantes depois, ouvi um estrondo forte às minhas costas. Não pude deixar de levantar a cabeça e de olhar pela janelinha traseira.

Um Buick tinha batido num poste, depois de levar uma fechada de um caminhão de duas toneladas.

— Abaixe-se! — gritou o mexicano.

Voltei-me e vi Verita olhando muito espantada para mim.

— Que foi que houve com os seus cabelos, Gary? Estão cor de laranja!


Capítulo vinte e quatro

Não havia jeito de eu saber onde estávamos. Do chão do carro, via apenas as luzes da rua que iam passando. Cerca de dez minutos depois, o mexicano subiu com o carro por uma rampa. As luzes fluorescentes indicavam tratar-se de alguma garagem. O carro subiu, subiu, até que afinal parou.

O mexicano saltou e disse:

— Pode sair agora.

Sentei-me um pouco no banco para restabelecer a circulação nos braços e nas pernas. Saí em seguida. Verita se jogou nos meus braços.

— Estava tão aflita!

Beijei-lhe o rosto.

— Estou bem melhor depois que vi você.

— Venham comigo — disse o mexicano.

Levou-nos para um elevador. Uma placa junto à porta dizia: "Plataforma de Estacionamento 5". Embarcamos no elevador e ele apertou o último botão. Descemos até o que devia ser o porão. Fomos com ele por um corredor mal-iluminado, no fim do qual ele abriu a porta de uma sala cheia de luzes. Vários mexicanos, que trajavam blusões de couro como o nosso motorista, assistiam com muita atenção a um programa de televisão. Olharam-nos sem qualquer interesse e voltaram ao programa.

O motorista foi até uma outra porta. Abriu-a, disse alguma coisa em espanhol e voltou-se para nós.

— Julio diz que podem entrar.

Entramos e o motorista fechou a porta, ficando do lado de fora. Julio estava sentado a uma mesa, na qual havia muitos papéis e uma automática de 9 mm.

Levantou-se e me estendeu a mão. Era pequeno mas o seu aperto de mão era forte.

— Alô, tenente! —exclamou ele.

— Alô, sargento! — disse eu no mesmo tom cordial.

— Você parece diferente — murmurou ele, olhando-me. — Já sei! Está com os cabelos alaranjados.

— É um azar — disse eu.

Voltou-se para Verita e abraçou-a. Trocaram algumas palavras em espanhol e ele voltou a sentar-se atrás da mesa, indicando-nos cadeiras a sua frente.

— Verita e eu somos primos, mas eu não procuro muito a família. Minha família é muito grande. Às vezes, penso que todos no México somos primos.

Assenti sem falar.

— Temos muito orgulho dela. Diplomou-se em várias escolas e universidades.

— Julio! — exclamou ela e disse algumas palavras em espanhol.

— Ainda por cima, é modesta e não gosta de ser elogiada. .

Em seguida, olhou para mim e disse:

— Está metido em graves problemas, não é, tenente?

— É essa a história de minha vida. Quando não é uma coisa, é outra.

.— Esta de agora é um bocado séria.

Olhei-o espantado. Não havia segredos naquela cidade, todo o mundo sabia de tudo.

O telefone tocou e ele atendeu. Escutou durante alguns instantes e desligou.

— Os dois homens do Buick estão num hospital da polícia. Encontraram no carro deles duas pistolas, duas metralhadoras e um fuzil automático. Os dois fazem parte de um sindicato do crime de Las Vegas. Devem querer mesmo que você empacote para mandar essa gente com toda essa artilharia.

Sorri.

— Não vão gostar muito quando souberem que foi seu caminhão que deu a fechada no carro.

— Não tinham o direito de agir na minha cidade sem me pedirem licença!

— Teria dado licença, se lhe tivessem pedido?

— Para atacar você, daria. Com Verita no meio, não.

Fiquei calado. Sabia o que ele estava pensando. Ambos tínhamos visto no Vietnam o que as armas modernas podiam fazer. Se Verita estivesse perto de mim, seria cortada pela metade juntamente comigo.

— Que é que você quer falar comigo?

— Creio que sabe.

Ficou um momento em silêncio e murmurou:

— Essa guerra não é minha.

— A guerra do Vietnam não era nossa também. Mas nós dois estivemos lá. -

Ele sabia o que eu estava dizendo. Um dia, os vietcongues o haviam encurralado num mortífero fogo cruzado. A única proteção que ele tinha eram os cadáveres dos outros homens do pelotão. Era simplesmente uma questão de tempo até que as balas o alcançassem. Eu o livrara dessa situação.

— Devo-lhe a vida, tenente — ele me dissera quando o levei até o primeiro posto médico com uma bala na coxa. Foi removido para Saigon, onde conseguiu um lugar no almoxarifado do hospital. Quando o vi alguns meses depois era um homem de negócios. Tirou-me do quartel para hospedar-me no melhor hotel da cidade. Queria que eu trabalhasse com ele e se prontificou a providenciar os papéis para que eu ficasse em Saigon. Fui um idiota e não aceitei.

Lembro-me de lhe ter dito quando ele foi levar-me ao aeroporto:

— Você está levando aqui uma vida como nunca sonhou. Acha que vai habituar-se de novo à vida nos Estados Unidos?

— Tenente, eu já sou um homem rico. Aprendi muito aqui. Quando voltar, vou tomar conta de Los Angeles. Afinal de contas, aquilo já foi dos mexicanos.

Na verdade, voltara rico e tomara conta da cidade ou, pelo menos, do barrio mexicano. Havia muitas versões para explicar o seu sucesso, mas este era inegável. Tudo ali estava sob o seu controle e dizia-se até que a freqüência às escolas havia aumentado.

Olhei para Verita e disse:

— Vou falar com seu primo sobre certos assuntos muito especiais e não quero que você se envolva.

— Já estou envolvida. Fui eu que o trouxe aqui.

— Você é advogada, Verita, e sabe que não pode ser considerada responsável por aquilo que desconhece.

Ela continuou sentada com uma expressão de teimosia.

Julio falou rapidamente com ela em espanhol. Havia toques de rispidez em sua voz. Sem dizer uma palavra, Verita se levantou da cadeira e saiu da sala.

— Pronto — disse Julio.

— Quero que estenda uma cortina de proteção em torno dela.

— Estou fazendo isso desde o momento em que ela me telefonou e falou dos dois homens que a espreitavam.

— Muito bem. Preciso de seis dos seus homens nas próximas doze horas.

— Pistoleiros?

— Não. Não vai haver tiros. Quero apenas que sejam inteligentes, resistentes e capazes.

Ele pensou um momento.

— Por que veio falar comigo? Por que não procura Lonergan? Ele não é seu sócio?

— Lonergan não é meu sócio.,É meu tio e eu não tenho confiança nele. Queria que eu fosse para o Havaí enquanto ele ficava aqui vendendo tudo o que é meu. Quando já tivesse me arruinado e eu pudesse voltar, não me restaria mais um centavo no bolso.

— Mas, pelo menos, você estaria vivo.

— Para mim chega dessa porcaria toda. Já é tempo de eu gozar a vida. Devia ter aprendido com você no Vietnam, mas não tive inteligência suficiente para ver as coisas.

— Que é que você espera? Não pode vencer e sabe muito bem disso. Vão tomar conta de tudo.

— Não, Julio. Tudo é exatinho como era no Vietnam, só que desta vez a guerra é minha e não dos outros. Quando eu chegar ao fim, vão pensar que os seus seis homens são um exército. Quero apenas negociar uma paz em boas condições. Se quiserem ficar com a revista, fiquem, que pouco me interessa. Quero é sair de tudo isso com bastante dinheiro para iniciar outra coisa.

— O quê, por exemplo?

— Uma revista mensal. Atualmente, Playboy domina o mercado. Posso fazer uma revista melhor e ganhar tanto dinheiro que ninguém vai acreditar.

— Dinheiro não vai ser problema. Lonergan poderá entrar com algum e eu também. Há cem lugares onde você poderá conseguir dinheiro.

— Isso não. Não quero sócios. Vai ser tudo meu.

— Todo o mundo tem sócios.

— Você tem?

Ele não respondeu. Èicou alguns momentos em silêncio e disse:

— Não quero que aconteça nada de mau aos meus homens.

— Não vai acontecer.

— E se alguém atirar neles?

Fiquei calado.

Ele pegou a pistola em cima da mesa e disse:

— Venha comigo.

Segui-o por outra porta e um corredor. Acendeu uma luz forte no fim do corredor onde havia um stand de tiro ao alvo à prova de som.

— Você, no Vietnam, atirava muito bem — disse ele, entregando-me a pistola.

Peguei a pistola, baixei a trava e esvaziei o pente no alvo. Ele foi até o alvo e trouxe a folha dos tiros. O alvo estava completamente obliterado e no seu lugar havia apenas um buraco aberto.

— Acertou todos os tiros — disse ele. — Você ainda atira muito bem.

Eu não disse nada.

— Está bem, você será o pistoleiro e ficará responsável pelos meus homens.

— Está certo.

Voltamos à sala, onde Julio me deu mais munição. Depois de carregar a arma, fiz correr a trava de segurança e guardei-a no bolso.

— Vamos agora tratar de negócios — disse Julio. — Qual é a vantagem que eu levo nisso?

— Vou levá-lo de novo para Saigon e então estaremos quites.

Ele me encarou por um instante e depois caiu na gargalhada.

— Tem toda a razão. Foi um tempo inteiramente maluco aquele.


Capítulo vinte e cinco

Os homens colocaram o último saco de areia no porta-malas, na frente do Corvair. Três sacos estavam deitados de banda contra a grade da frente do carro e estavam calçados por mais dois sacos cada um. Olhei por baixo do carro para ver se,«apesar do peso, ainda havia folga para as rodas. Tudo parecia bem. Os amortecedores reforçados que tínhamos colocado na parte da frente do carro sustentariam a carga. Sentei-me ao volante e liguei o motor. Dirigi o carro, contornando a garagem. As curvas eram fáceis e não havia problemas com a direção. Desliguei o motor e saí do carro.

O mexicano que me levara de carro até a garagem apareceu.

— Já temos o capacete e as almofadas de proteção para os ombros.

— Vou experimentar.

Botei o capacete na cabeça, abotoei a correia do queixo e baixei a viseira. Estava perfeito. Tirei o capacete e coloquei-o no banco da frente do carro. Tirei depois a camisa e ajustei as almofadas dos ombros. Vesti a camisa por cima delas. Rasgou-se com o meu primeiro movimento.

— Há uma camisa maior no vestiário dos mecânicos — disse o mexicano.

— Obrigado. Agora, vou até o escritório.

— Os pintores já acabaram. Quer ver o trabalho deles antes de descer?

Fui com ele até o lugar onde os pintores estavam trabalhando em faixas de lona bem esticadas sobre tábuas. O mexicano disse aos pintores:

— Ponham as faixas nos lados do carro de entrega para que ele possa ver.

Os pintores obedeceram. As faixas estavam pintadas com letras pretas que diziam "GRANJA DAS FLORES". E em letras menores: "Beverly Hills". Tudo parecia tão falso que poderia ser mesmo de Beverly Hills.

— Muito bem — disse eu. — Guardem as faixas no carro de entrega. Direi quando devem colocá-las.

Desci. Julio estava conversando com Verita e me perguntou:

— Tudo bem, tenente?

— Não poderia estar melhor.

— Você rasgou a camisa — disse Verita.

— Vou já pegar outra.

— Quando é que vai dar um jeito nesse cabelo?

— Devo estar de volta às dez e meia. Vou tratar disso depois.

— Vou preparar tudo em meu apartamento. Vá para lá.

— Nada disso. Você vai ficar aqui. Estamos lidando com gente muito perigosa. Não quero que se voltem contra você depois que souberem do que aconteceu aos seus homens.

— Vou levá-la para minha casa — disse Julio. — Minha mãe ficará muito contente de vê-la.

O mexicano apareceu com uma camisa azul de mecânico desbotada, que eu vesti imediatamente depois de tirar a minha. Era grande demais. Deixei-a cair por fora dos jeans.

Olhei para o meu relógio. Eram duas e quarenta e cinco da madrugada.

— Está na hora de ir — disse eu.

— Tome cuidado — disse Verita, levantando-se.

Beijei-lhe o rosto.

— Fique descansada. Obrigado, Julio.

— Está tudo OK. Sei escolher quem atira bem.

— Mais uma vez, obrigado por tudo.

— Quero apenas que tenha cuidado com os meus homens.

— Não tenha receio.

Fui para a garagem e me encaminhei para o carro.

— Providenciou os colchões? — perguntei ao mexicano.

— Estão no banco de trás do carro, conforme pediu.

Olhei e vi os colchões que enchiam quase toda a parte de trás do carro.

— Muito bem. Um dos homens irá comigo. Os outros podem ir no carro de entrega.

— Irei com o senhor — disse o mexicano.

Não havia movimento nem na cidade, nem na estrada. Fui parar em frente ao depósito de Ronzi, em Encino, às três e vinte. O carro de entrega parou atrás de mim.

O prédio mais próximo era outro depósito no fim da rua. Tudo parecia deserto. Saí do carro, acompanhado pelo mexicano e por um dos homens que iam no carro de entrega.

— Esperem aqui — disse eu. — Vou ver onde é que está o vigia. Se ouvirem qualquer barulho, não fiquem parados aí. Corram para os carros e dêem o fora, ouviram?

Atravessei a rua, subi para a plataforma de carga dos caminhões e olhei pela janela. Havia uma luz acesa no escritório nos fundos do depósito, mas eu não podia ver se havia alguém por lá. Saltei da plataforma, fui para os fundos do depósito e olhei pela janela para o escritório. Estava vazio.

Esperava isso mesmo. Ronzi não podia deixar de sentir-se em segurança. Com as ligações que tinha, era pouco provável que tentasse alguma coisa contra ele.

Fui para o estacionamento ao lado do prédio e contei os caminhões de entrega. Eram catorze. Voltei para a rua.

— Não há ninguém — disse eu, pegando as latas de cola de borracha que levara no carro. Reuni os homens em torno de mim. — Quero que derramem uma boa porção desta cola no tanque de gasolina de cada um dos caminhões.

— Que é que vai acontecer? — perguntou um dos homens. — Os caminhões vão explodir?

— Não. Isso fará apenas com que os motores pifem.

— Quer dizer que não vão dar partida?

— Vão dar partida, sim. Mas cinco ou dez quilômetros depois vão enguiçar.

— Legal! — exclamaram eles, rindo.

— Andem — disse eu, abrindo uma lata. — Quero sair daqui dentro de dez minutos. — Voltei-me para o mexicano. — Quero um de seus homens na direção de cada um dos carros para que a gente possa sair daqui logo que voltar.

Falou em espanhol e um dos homens se sentou com cara de poucos amigos ao volante do carro de entrega. Outro, não mais animado, tomou posição no banco da frente do meu carro. Corremos da rua para o local de estacionamento.

— Vamos fazer trabalho de equipe — eu disse. — Um homem abrirá o tanque e outro derramará a cola.

Os homens agiram como se não tivessem feito outra coisa durante toda a vida. Tudo ficou pronto e saímos dali depois de quinze minutos.

Às quatro horas, estávamos de volta a Los Angeles e em frente ao Silver Stud. Entrei com o carro na rua ao lado, acompanhado pelo carro de entrega. Parei pouco depois.

— OK — disse ao mexicano.

Ele sabia o que tinha de fazer. Saltou do carro enquanto eu colocava o capacete. Entrou no carro de entrega e este seguiu pela rua, dando a volta e indo parar na outra rua, de frente para mim. .

Puxei os colchões da parte traseira e protegi-me com eles. Levei a mão atrás e puxei o cinto de segurança, que prendi em volta do corpo. Depois, curvei-me sobre o volante e fiz sinal com os faróis.

O carro de entrega respondeu, acendendo uma vez os faróis. Estavam prontos. Pus o pé esquerdo na embreagem e engrenei o carro em primeira. Depois, virando um pouco de lado para poder segurar o volante, esperei.

Pareceu-me ter-se passado uma hora, mas não poderíam ter sido mais de quinze minutos. Por fim, o sinal chegou. Os faróis do carro de entrega se acenderam duas vezes em rápida sucessão. A rua estava livre para mim. Acelerei e tirei o pé da embreagem.

Atravessei a rua e subi o passeio a quase cinqüenta quilômetros por hora. Tive tempo apenas de puxar mais os colchões para cima do corpo quando o carro bateu nas portas da frente e passou com um barulho que parecia uma explosão. A frente do carro amolgou e o rumor dos vidros quebrados se uniu ao silvo de um alarma automático. O carrinho passou pelo salão, atravessou o bar e foi parar de encontro à parede de espelhos.

Fiquei atordoado apenas um momento e estendi a mão para a chave a fim de desligar o motor. O salão estava em pandarecos. Havia móveis quebrados espalhados por toda a parte. Livrei-me mais que depressa do cinto de segurança e do resto do equipamento, abri a porta empenada com os pés e saí não sem antes olhar para o carro.

A campanha contra o carro estava errada. O pára-brisa nem se havia quebrado. Corri para *3 rua. O carro de entrega já estava em marcha quando embarquei nele.

— Machucou-se?

— Que coragem!

— Formidável!

— Silêncio! — disse o mexicano que estava ao volante. — E agora? Para onde é que vamos?

Olhei para o meu relógio. Eram quatro e meia da manhã. Tínhamos de esperar quatro horas pela outra fase do meu plano.

— Por enquanto, vamos procurar um lugar onde se possa comer bem.

Faltavam dez minutos para as nove horas quando parei o carro de entrega diante da casa de Mulholland Drive. Curvei-me para fora e toquei o botão.

Ouvi o zumbido da câmara de circuito fechado e então uma voz perguntou:

— Quem é?

— Casa de flores. Uma entrega.

Vi a câmara mover-se e focalizar o carro. Não podiam deixar de ver as faixas dos lados.

— OK.

Os portões foram abertos e eu levei o carro até a frente da casa. Saltei, abri as portas traseiras e apanhei uma grande corbeille; dirigi-me depois para a porta.

Um homem robusto abriu a porta antes que eu tivesse tempo de tocar a campainha. Estendeu as mãos automaticamente para receber as flores. Escancarou a boca num gesto de surpresa quando viu minha pistola.

— Nem uma palavra! — disse eu em voz baixa, aproximando do rosto dele o cano da pistola. Um momento depois, os mexicanos estavam todos ao meu lado, empunhando bastões de beisebol e com capacetes. O mexicano que me acompanhara em tudo me entregou um capacete que eu me apressei em colocar.

O rosto do homem que abrira a porta estava branco de medo. De fato, o espetáculo daqueles homens todos de capacete não era muito tranqüilizador.

— Se largar essas flores e ficar quietinho, nada vai lhe acontecer — eu disse.

Ele jogou as flores no chão.

— Onde é o quarto do dono da casa? — perguntei.

— Lá em cima.

— Está bem. Deite-se de bruços no chão.

Ele obedeceu e em poucos instantes teve braços e pernas amarrados, além de ser amordaçado.

Voltei-me para o mexicano.

— Um de vocês espere aqui. Os outros venham comigo.

Subi os degraus de dois em dois. Só havia duas portas no andar de cima. Abri a primeira porta. Era uma combinação de escritório e sala de estar. Não havia ninguém.

Fui encontrá-lo no quarto ao lado. Estava sentado na cama e tomava suco de laranja por um canudinho através de uma brecha que os curativos deixavam livre no rosto.

— Que quer dizer isso? — perguntou, estendendo a mão para um botão ao lado da cama.

Apontei a pistola para ele.

— Se apertar esse botão abrirá para si as portas do inferno!

Afastou a mão do botão como se esse fosse uma cobra.

— Que é que você quer? — perguntou com voz trêmula.

Sem responder, fiz um sinal para o mexicano. Os homens sabiam o que tinham de fazer. Um deles entrou no banheiro. Os outros, exceto o mexicano meu companheiro, se espalharam pela casa. Em pouco tempo, começamos a ouvir o barulho da destruição que faziam.

Aproximei-me dele na cama.

— Não tenho aqui dinheiro nem jóias — balbuciou ele.

— Não é isso o que queremos.

— Que é então?

Vi a tesoura de cirurgia que estava na mesa-de-cabeceira. Entreguei a pistola ao mexicano e peguei a tesoura. Aproximei-me ainda mais e comecei a cortar os curativos que lhe cobriam o rosto.

— Que é que está fazendo? — perguntou ele com voz rouca.

— Só quero ver o serviço que os médicos fizeram em sua cara, Kitty.

Pela primeira vez, ele pareceu compreender o que estava acontecendo.

— Você?

— Eu mesmo — disse, levantando a viseira do capacete. — Está surpreso?

Ele me olhava, sem dizer uma palavra. Eu tinha tirado todos os curativos.

— Que iria acontecer, Kitty, se alguém resolvesse arrancar esses fios?

Um sobressalto lhe sacudiu o corpo. Nesse momento, os homens voltavam e o mexicano me disse:

— Já acabaram o serviço.

Tomei-lhe a pistola.

— Deixe-me sozinho com ele. Espere-me lá embaixo — eu disse.

— Vai mandar brasa nele? — perguntou um dos homens. Não respondi.

Esperei que todos saíssem e então falei:

— Só fiz isso para convencê-lo de que tenho amigos. Dou-lhe o prazo até as seis horas da noite de hoje para que me comunique que cancelou o contrato. Depois desse prazo, pode considerar-se um homem morto. Se me acontecer alguma coisa antes disso, será cadáver também. Por isso, é melhor começar a rezar para que nada me aconteça.

Levantei o braço e desferi uma bala na cabeceira da cama.

— Compreendeu?

Não adiantava esperar a resposta dele. Havia desmaiado quando eu puxara o gatilho.

Saí do quarto e olhei para a casa. Não havia um só móvel que estivesse intacto.

Os homens foram comigo para o carro de entrega. Fizemos em silêncio a viagem para a cidade. Por fim, um dos homens não pôde mais se conter e perguntou:

— Matou o homem?

— Não, mas dei-lhe um susto tão grande que ainda deve estar desacordado.


Capítulo vinte e seis

Estendi-me no sofá no escritório de Julio e só fui abrir os olhos de novo às duas e meia da tarde. Da sua mesa, Julio me observava. Sentei-me no sofá.

Julio levantou-se, abriu um pequeno armário, tirou de lá uma cafeteira que esquentava num fogão elétrico e me trouxe uma xícara de café bem quente. Tomei um gole e senti-me reviver.

— Muito obrigado, Julio.

— De nada. Lonergan está virando a cidade pelo avesso à sua procura.

— Que é que ele quer?

— Quién sabe? Lonergan não fala.

— Acho que já está na hora de eu telefonar para ele. Posso usar o seu telefone?

— À vontade.

A moça que atendeu disse que ele não estava. Mas quando ouviu meu nome mudou de atitude. Alguns segundos depois, Lonergan estava ao telefone.

— Onde é que você está?

— Não estou no Havaí, é claro. Soube que você está me procurando.

A voz dele não mudou de tom.

— Será que você enlouqueceu? Que é que está querendo provar?

— Uma coisa que aprendí no Vietnam. No campo de batalha, quando se foge, o mais provável é levar-se uma bala pelas costas.

— Foi por isso que me incluiu na sua lista esta noite?

— Você fez uma transação com a revista no momento em que pensou que eu estivesse saindo do país.

— Fiz uma transação para salvar-lhe a vida.

— Não agiu bem, então. Os homens que esperavam com metralhadoras e fuzis automáticos diante do apartamento de minha pequena não tinham tomado conhecimento de sua transação.

Ele ficou em silêncio durante alguns instantes e murmurou:

— Eu não sabia disso.

— Já não é o mesmo, tio John. Sempre pensei que se empenhava em saber de tudo.

— A bicha cancelou o seu contrato contra você. Mas os homens do leste ainda estão furiosos e Ronzi diz que o fará em pedaços no momento em que o encontrar.

— Pode dizer a Ronzi que ainda fui camarada com ele esta noite. Se quisesse, poderia ter mandado o depósito dele pelos ares. Têm um negócio de um milhão de dólares para proteger e se ele e os seus companheiros ainda quiserem brincar comigo, é esse o prejuízo que irão ter. Se fizerem as contas, verão que não vale a pena brigar comigo.

— Você está muito arrogante.

— Eles estão em campo aberto e é fácil achá-los. Eu sou o vietcongue. Posso atacar e fugir antes mesmo que eles saibam da minha presença.

— Por que tem tanta certeza de que pode levar a melhor?

— Aprendi uma coisa durante o tempo que passei na missão d,o Reverendo Sam. As espadas dos justos são poderosas. E eu estou do lado de Deus.

— Você é apoiado pela missão?

— Ora, tio John, isso é coisa que se pergunte? O lema deles é Paz e Amor. O meu, não.

— Quais seriam as suas bases para um acordo?

— Diga a Ronzi que estou disposto a aceitar a última proposta que ele me fez. Cem mil dólares e ele poderá ficar com a revista, com o título, as armas e as bagagens. Vou me afastando aos poucos.

— Telefone-me daqui a uma hora.

Desliguei o telefone e olhei para Julio.

— Você tem cojones, tenente. No momento em que puser os pés fora daqui, será um homem morto.

— Quanto tempo ainda tenho?

— A que horas vai telefonar para ele?

— Daqui a uma hora.

— Então ainda tem uma hora.

A porta se abriu e um rapaz entrou com uma bandeja coberta que depositou na mesa. Julio destampou a bandeja e eu vi que ela estava cheia de tortillas, enchiladas, hamburguitas e terrinas com o cheiro adocicado do chili.

— Está com fome? — perguntou Julio.

Fiz um sinal afirmativo. Puxei uma cadeira e sentei-me à mesa, pensando que aquela bem poderia ser a última refeição de um condenado à morte.

— Ronzi diz que não fará qualquer negócio com você sem um encontro pessoal — disse Lonergan.

Pensei por um momento. Ele poderia estar me preparando uma cilada. Mas eu tinha chegado ao fim da corda e, de qualquer maneira, ainda tinha a pistola de Julio.

— Está muito bem. Na revista, hoje, às dez horas da noite.

— Até iá então — disse ele, desligando.

— Vou sair agora — disse a Julio. — Obrigado.por tudo.

— Nem fale nisso.

— Só lhe peço mais um favor. Continue a proteger Verita. Espere até ter notícias minhas de um jeito ou de outro.

— Ia fazer isso mesmo.

Dirigia-me para a porta quando ele me chamou.

— Tenente! Veja se dá um jeito nesse cabelo o quanto antes. Seria horrível para mim vê-lo estendido num caixão com esse cabelo laranja. Poderão pensar que você foi um homossexual escrachado.

— Vou dar um jeito — disse eu, rindo.

Julio se levantou da mesa e me estendeu a mão.

— Felicidades, tenente!

— Obrigado. Vou precisar muito.

— Se mudar de idéia quando tudo isso chegar ao fim, terei à sua disposição o dinheiro que for necessário.

— Não me esquecerei disso, Julio.

— Vay a con Dios, tenente.

A rua estava cheia de mulheres que faziam compras, carregando sacos e acompanhadas de crianças. Todas olhavam para os meus cabelos, como se eu fosse o monstro da cidade.

Olhei-me na vitrina de uma loja. Julio tinha razão. Meus cabelos não estavam mais alaranjados. Tinham tomado um tom de tangerina madura e eu estava positivamente ridículo.

Mais um dia com os cabelos assim e eu seria considerado o mais famoso travesti de Los Angeles.

Entrei num salão de beleza unissex do outro lado da rua. O salão era dividido pelo meio, mulheres de um lado e homens do outro.

Um homem, evidentemente homossexual, se aproximou:

— Que deseja, cavalheiro?

— Pode tingir de novo os meus cabelos com a sua cor natural?

— E qual é a cor natural dos seus cabelos?

Desabotoei a camisa e mostrei-lhe o peito. Ele deu um gritinho.

— Mas o senhor é um louro natural. Como foi fazer uma coisa dessas com os seus cabelos?

— Posso lhe garantir que não foi nada fácil.

— Vai levar algum tempo, sabe? Preciso lavar bem os cabelos, condicioná-los. . .

— Não se incomode. Tenho bastante tempo.

Levou-me para uma cadeira e passou a mão pelos meus cabelos.

— Veio bem na horà. Os seus cabelos estão queimados. Partem-se nas minhas mãos. Mais alguns dias e começariam a cair. Tenho de cortá-los bem curtos para poder massagear o couro cabeludo para que seus cabelos possam de novo crescer normalmente.

— Faça o que achar que deve ser feito.

— Não vai ser barato.

— Quanto?

— Trinta dólares.

— Certo.

— Em dinheiro. Não aceitamos cheques.

Ri e retirei o dinheiro do bolso.

— Quer que eu pague adiantado?

— Não é necessário. Percebi com quem estava tratando desde o momento em que o senhor entrou. Não é como certos fregueses que aparecem por aqui. Vai fazer as unhas também?

— Serviço completo.

O "serviço completo" levou três horas.

Eram sete horas quando saí da cadeira, e a essa altura o cabeleireiro me havia contado toda a história de sua vida. O seu último predileto o abandonara, seduzido por uma bichona rica de Santa Barbara, e ele ficara totalmente arrasado.

— Quase tive um colapso nervoso. Ingrato, miserável, depois de tudo o que fiz por ele! Quando aquele cafona me conheceu, não sabia nem usar o talher à mesa. Agora tem tudo, relógio Cartier, anéis de brilhante, Cadillac conversível. Mas eu não me deixo abater. Você nem imagina como tenho ânimo forte. Reagi e disse pra mim mesmo: "Deixa pra lá, Charles. Ele não é único na terra. Você encontrará outro". Aquele cretino nunca foi de fazer força. Eu, ao contrário, vivo do trabalho. Eu saía pra rua pra ganhar dinheiro e ele ficava em casa vendo televisão e coçando o saco. Mas o desgraçado sabia que eu adorava o pau dele, de vê-lo todo esticado, um quilômetro pra fora da calça. A primeira coisa que ele fazia quando eu chegava do trabalho, morto de cansado, era tirá-lo pra fora e começar a balançá-lo bem na minha cara. Eu não conseguia resistir àquela coisa linda de morrer. . .

Passou o pente na minha cabeça e com a mão, muito carinhosamente, ajeitou o cabelo na minha fronte.

— Agora está bem. Gosta?

Olhei no espelho. Meu cabelo nunca estivera tão curto desde os meus tempos de escola primária. Mas parecia que tinha voltado à cor natural.

— Está ótimo.

— Faz você parecer mais moço, não acha?

Assenti com um movimento de cabeça.

— Deveria voltar para fazer o tratamento pelo menos duas vezes por semana, até que o cabelo cresça, e ele crescerá forte e saudável.

— Está bem.

Ele começou a desenrolar a toalha do meu pescoço e continuou a falar no seu caso.

— Mas estou contente de ter me livrado daquele sujeitinho. Foi bom que acontecesse. Agora estou até economizando dinheiro. Só passei a perceber o quanto ele estava me custando quando ele se mandou. O desgraçado comia por seis pessoas.

— Quanto é? — perguntei levantando-me da cadeira.

— Trinta do cabelo, dois da barba e dois da manicura. Trinta e quatro dólares ao todo.

Entreguei-lhe duas notas de vinte dólares.

— Cinco dólares são seus. Dê um dólar à manicura.

— Obrigado — disse ele e levou-me até a porta. —

Quando quiser voltar, telefone antes. Procure Charles. Eu marcarei uma hora para você.

— Está bem. Obrigado, Charles.

A rua estava deserta. Coloquei a chave na fechadura e comecei a abrir a porta. De repente, divisei, à luz da rua, a sombra diagonal de um fio através do vidro da porta. O instinto me arrepiou os cabelos da nuca e eu, sem pensar, me atirei de bruços no passeio, bem longe da porta. Nesse momento, toda a fachada do prédio voou pelos ares com um estrondo ensurdecedor.

Estava estendido ainda no passeio com as mãos sobre a cabeça para protegê-la quando, pelo canto dos olhos, vi o carro de Lonergan encostar ao meio-fio. A porta do carro se abriu no momento em que eu me levantava.

Meu tio botou a cabeça para fora sem sair do carro.

— Está bem, Gareth?

Olhei para a fachada do prédio destroçada e disse:

— Muito bem.

— Entre. É melhor você não estar aqui quando a polícia chegar.

Entrei no carro e fechei a porta. Lonergan afastou-se do passeio e dobrou a esquina. Olhei para ele e vi que tinha um leve sorriso nos lábios.

— Está achando graça em quê, tio John?

— Crianças não devem meter-se em jogos de gente grande.

— Mas eu podería estar morto a esta hora! — repliquei, irritado.

— Neste cgso, você não seria tão esperto quanto eu pensei que fosse. De qualquer maneira, ainda tem muito que aprender.

Olhei-o com mau humor e ele me falou fria e calmamente:

— Quanto tempo você acha que teria durado se eu não o tivesse protegido? Primeiro, com o Reverendo Sam e, depois, com Julio Vásquez. Dois minutos depois que sua pequena telefonou para ele, Julio ligou para mim. Se eu não lhe tivesse dado o OK, você seria atirado aos lobos.

— Está bem, tio John, desculpe. Que é que vamos fazer agora?

— Melhorou muito, Gareth — disse ele, sorrindo. —

Vou lhe dizer o que é que vamos fazer. Em primeiro lugar, vamos procurar Ronzi e nos livrar da revista. Na verdade, nunca tive muito interesse por ela, mas serviu para tirá-lo da rua.

— E, depois disso, que é que eu vou fazer, tio John?

— Isso vai depender exclusivamente de você. Daí em diante, ficará inteiramente por sua conta.

Não fiz comentários.

— É claro que eu gostaria muito que você trabalhasse comigo.

— Não é meu golpe, tio John. Você mesmo já disse isso.

— Tem ao menos uma idéia do que gostaria de fazer?

— Sim. Creio que tenho.


Livro segundo - O lado de cima


Capítulo vinte e sete

O piloto baixou o avião para novecentos metros e descreveu uma grande curva que nos permitiu ver toda a costa de Mazatlán. As águas verde-azuladas do Pacífico se derramavam sobre as praias de areia cintilantemente branca. Murtagh se curvou sobre a mesa e tocou a janela com o dedo.

— Estamos chegando, Sr. Brendan.

Segui a direção do dedo e a princípio não vi senão o verde da selva. De repente, vi a pista de pouso, uma estreita faixa por entre as árvores, e, depois dela, o hotel.

À primeira vista, aquela estrutura de onze andares de concreto e metal parecia uma incongruência naquele lugar selvagem. Mas, depois, vi os tetos de colmo dos bangalôs com as suas piscinas próprias, as quadras de tênis, os campos de golfe, a piscina olímpica e as cabanas perto da praia, os barcos de pesca ancorados como gaivotas a dançar sobre as ondas e compreendí que o hotel integrava um mundo à parte.

— Onde ficará o cassino? — perguntei.

— Logo depois da entrada, como em Las Vegas — disse Murtagh.

Deixamos o hotel para trás. Podíamos ver ao longe as casas de Puerto Vallarta e, atrás de nós, a névoa arenosa de La Paz. Terminada a curva, o piloto começou a descida para a pista. Senti o avião estremecer quando o trem de aterrissagem foi descido e firmado em posição. Um momento depois, pousávamos. O piloto freou. Levamos uma sacudidela contra os cintos de segurança e então o avião rolou para o pequeno prédio do campo.

Lonergan estava sentado ao meu lado, impassível. Do outro lado, Verita e Bobby estavam desamarrando os cintos. Atrás deles, os quatro modelos de Bobby falavam sem parar e os seus dois assistentes tratavam de juntar o seu equipamento.

Bobby se levantou e disse:

— Se andarmos depressa, ainda poderemos bater uma série de fotografias antes de a noite chegar. Com o pôr-do-sol na praia, poderemos bater algumas fotos ótimas.

— Estamos prontos — disse um dos assistentes.

— Quais são seus planos? — perguntou-me Bobby.

— Tenho algumas reuniões. Vá em frente. Nós nos encontramos na hora do jantar.

Saltaram do avião e tomaram o caminho da praia antes mesmo que Murtagh tivesse acabado de nos apresentar aos homens que tinham ido receber-nos.

Os homens eram seis, inclusive o prefeito da cidade. Todos tinham baixa estatura, exceto um, que era bem alto, louro e de olhos azuis. Chamava-se Dieter von Halsbach. Era natural do México do mesmo modo que os outros, mas seus pais eram alemães que tinham emigrado para lá depois da guerra. Era o jefe. E no momento em que lhe apertei a mão, soube de uma coisa sobre ele que os relatórios preparatórios não me tinham dito. O homem era gay.

Lonergan e eu fomos com Dieter num Cadillac branco. Verita, Murtagh e os outros foram em outro carro.

— Reservei-lhe três bangalôs, Sr. Brendan — disse Dieter.

— Muito obrigado.

Ele não precisava ter-se dado esse trabalho. Ao que eu sabia, éramos os únicos hóspedes. Olhei para os jardins bem-tratados nas proximidades do hotel.

— Fizeram um bom trabalho aqui, hem? — eu disse.

— Bem, não poupamos despesas. Meu pai e eu achamos que é preciso fazer as coisas direito.

Olhei para Lonergan. Se ele estava impressionado, não dava o menor sinal disso. O carro passou pela entrada do hotel, tomou uma estrada que ia para a praia e parou em frente a um bangalô.

Seguimos Dieter por um portão de ferro trabalhado e passamos por um pátio com piscina em frente ao bangalô. Árvores frutíferas espalhavam o perfume de suas flores no ar quente e levemente salgado. Um mordomo e uma criada de uniforme nos abriram a porta.

Havia um bar bem sortido na sala de estar.

— Fiquem à vontade, meus caros senhores — disse

Dieter. — Sabemos que devem estar exaustos da viagem e querem descansar. Por isso, meu pai e eu os esperamos para jantar às dez horas.

Vimos Dieter partir no seu Cadillac branco. Os empregados estavam levando nossa bagagem para os quartos. Voltei-me para Lonergan.

— Que tal?

— Dezoito milhões é demais.

— Eles enterraram trinta milhões aqui.

— Azar o deles. Repare que ele não nos levou para o hotel. Talvez não queiram que os vejamos treinando tiro ao alvo na portaria.

— Tio John, estou começando a achar que você é um homem muito desconfiado.

— Tiveram seis milhões de prejuízo no primeiro ano de funcionamento; quatro milhões, no segundo. Já são dez milhões e eles abriram esse negócio há apenas dois anos.

— Cometeram um erro. Tentaram fazer disto aqui um paraíso para o jet set. Mas o jet set não se interessou.

— E você acha que pode ter mais êxito do que eles?

— Se não achasse não estaria aqui.

— De qualquer maneira, dezoito milhões é muita grana.

— Não estou entrando na questão do dinheiro.

— E estamos também falando antes do tempo. Ainda nem olhamos bem o lugar.

— Quer beber alguma coisa? — disse eu, dirigindo-me para o bar.

— Não, muito obrigado. Acho que vou seguir o conselho do rapaz e deitar-me para descansar um pouco.

Lonergan foi para o quarto e eu preparei um scotch com gelo. Fui até a janela e olhei para a praia. A areia era branca e a água azul e convidativa. Fui até a praia e fiquei ali tomando meu drinque. A água parecia ótima. Olhei para um lado e para outro. Não vi ninguém. Larguei o copo, tirei a roupa e entrei na água.

A água estava tão suave e quente quanto parecia. Nadei uma boa distância e voltei-me a fim de olhar a praia. Podia vê-la toda até quando, depois do hotel, fazia uma curva para dentro.

A cerca de quinhentos metros para o lado, vi Bobby e sua turma que se preparavam para as fotografias. Os.grandes refletores prateados já estavam colocados e os difusores estavam sendo abertos. Aquela gente não perdia tempo e Bobby queria mesmo fazer uma série de fotos ao pôr-do-sol.

Afundei a cabeça e comecei a nadar para a praia num crawl bem descansado. Sentia o sol queimar-me as costas e uma onda de contentamento em todo o ser. Não restava a menor dúvida que havia alguma coisa de substancial no fundo de tudo aquilo. A boa vida. A única coisa que muitos não compreendiam era que a boa vida devia estar ao alcance de todos e não apenas de alguns privilegiados.

Quando saí da água, havia uma pequena em pé perto de minhas roupas, com uma grande toalha de praia aberta nas mãos. Aproximei-me em silêncio e ela me embrulhou na toalha.

— Meu nome é Marissa — disse ela. — O Conde Dieter me escolheu para ser a sua intérprete.

Os longos cabelos pretos, os olhos também negros e as maçãs do rosto salientes não condiziam com o nome. O mesmo acontecia com a blusa camponesa e a saia rodada mexicana.

— Seu nome não é mexicano — disse eu.

Ela sorriu, mostrando os dentes brancos e certos.

— Meu pai é austríaco. Mamãe é mexicana. Deram-me o nome de minha avó paterna.

— É parenta de Dieter?

— Somos primos — disse ela, apanhando minhas roupas na areia. — Vamos voltar para o bangalô? Os empregados não falam inglês. Se quiser alguma coisa deles, terei o maior prazer em lhe servir de intérprete.

Saímos da praia. À porta do bangalô, tomei as roupas das mãos dela e disse:

— Não preciso de intérprete. Tenho uma assistente que fala espanhol.

Ela hesitou um momento e então disse com uma ponta de decepção na voz:

— Está bem. Mas se quiser mais alguma coisa, estarei às suas ordens. Sou a encarregada das relações públicas com os hóspedes do hotel.

— Muito obrigado.

— Posso ir agora?

— Vou vê-la no jantar?

— Se quiser.

— Creio que seria muito interessante.

— Até lá então.

Depois que ela saiu, fui para o banheiro e enchi a banheira de água quente.

Depois do banho, dormi.


Capítulo vinte e oito

Acordei com o telefone. Era Bobby.

— Posso vê-lo por um minuto? Tive uma grande idéia.

— Pode vir, Bobby.

Saí da cama e vesti um roupão de banho. Na sala de estar não havia ninguém e a porta do quarto de Lonergan estava aberta. Procurei-o por todo o bangalô e não o encontrei. Ainda era dia claro, embora já passasse das oito horas.

O mordomo apareceu todo sorridente.

— Si, senor?

— Uísque com gelo — pedi.

Ele, evidentemente, me entendeu, porque encaminhou-se para o bar, onde começou a preparar o drinque. Peguei o copo e fui para o pátio. Ainda estava um pouco quente, embora a tarde já estivesse caindo.

Sentia-me bem. Calmo e descontraído, era como me sentia ali. Muito diferente de Los Angeles, onde havia sempre alguma coisa para me tirar o sossego. Estava realmente do outro lado do mundo.

Bobby apareceu no portão.

— Aqui sabem de fato fazer as coisas. Todos temos bangalôs separados. Eu e meus assistentes estamos num, as meninas no bangalô vizinho.

— Tirou boas fotos?

— Mais ou menos. As meninas não estavam preparadas.

— Que foi que não deu certo?

— A culpa foi minha. Esqueci-me de dar as instruções necessárias. Elas sabiam que vinham tirar algumas fotos. Deviam, portanto, ter se depilado um pouco. Com exceção da loura, as outras estão com verdadeiras matas virgens. . .

— E agora?

— O "coiffeur de xoxota" vai fazer seu trabalho e amanhã todas elas estarão em condições de posar.

— Espero que ele consiga terminar o trabalho até amanhã.

O tal coiffeur era um dos assistentes de Bobby. Seu trabalho era aparar os pêlos púbicos e maquilar também as nádegas para as fotografias.

— Ele que não termine e vai ver só o que lhe acontecerá.

— Bem, agora qual é a sua idéia genial?

— Trazer o negro King Dong para fazer uma série de fotos na selva com as meninas. Estou imaginando as pequenas vestidas de caçadoras e encontrando o homem como um selvagem, nu, no meio da floresta. Vendo o tamanho do seu pênis, as caçadoras tentam civilizá-lo. Finalmente ele passa elas todas para trás e se torna o maior cafetão da cidade.

— A idéia é boa, mas não será fácil executá-la. Fomos muito atacados na última vez que usamos o King Dong num layout.

— Foram os bestalhões com inveja do membro do negrão. Mas vendemos cem mil exemplares mais do que qualquer outra revista e ainda é a que mais vende de números atrasados.

— O Departamento de Circulação diz que a bicharada toda está comprando.

— Claro que as bichas estão comprando, mas as mulheres, também. Tenho visto algumas delas vidrarem os olhos e gozarem na hora só de ver quando ele tira aquele monstro pra fora. Até as manequins mais experientes ficam excitadas, apesar da prática que têm de tirar fotos de sexo.

— Eu não sei. Fomos chamados de racistas a torto e a direito. Outros falaram em desmoralização das mulheres.

— Deixe-me fazer as fotos. Depois, você pode tomar uma decisão.

— Combinado, então. Mas quando for fotografar me chame. Eu quero assistir a essa sessão.

— Você vai ficar complexado. Ele é a coisa mais próxima de jumento que se possa imaginar. Com aquele negócio de quase trinta centímetros de comprimento, ele teve seis orgasmos em quatro horas a última vez em que posou para fotografias.

— Não se preocupe, usarei uma roupa impermeável.

— A que horas é o jantar? — perguntou Bobby.

— Às dez.

— Vou então tomar um banho e trocar de roupa.

— Não há pressa.

— Vou telefonar para o escritório e pedir que mandem King Dong, de avião, de manhã.

Lonergan e Verita chegaram pouco depois de Bobby sair.

— Querem beber alguma coisa? — perguntei quando o mordomo apareceu.

— Martíni seco — disse Lonergan.

— Tequila — pediu Verita.

— Sempre pensei que sua bebida favorita fosse scotch, Verita — eu disse.

— Estamos no México e aqui eu bebo tequila. Patriotismo.

O mordomo trouxe os drinques e desapareceu. Lonergan sentou-se à minha frente e Verita estendeu-se numa poltrona ao lado dele.

— Acabamos de dar um passeio por aí — disse Lonergan.

— E que é que acham?

— Gastaram o dinheiro, sim. Não há a menor dúvida quanto a isso. Mas Verita soube de uma coisa muito interessante que eu creio que você deve ouvir.

— Que foi, Verita? — perguntei.

— Passei quase toda a tarde falando com o pessoal que trabalha aqui. Os empregados sabem de coisas que os próprios donos desconhecem.

— E daí?

— Eles dizem que sabem por que o hotel não fez sucesso.

— Pode dizer.

— Acham que foi por causa dos homossexuais.

— Não compreendo.

— Dieter trouxe para cá a sua turma internacional. Os gays gostaram do hotel e tomaram conta dele. Gostaram tanto e fizeram tantas coisas que, quando ele pediu que se comportassem, eles se zangaram e deram um gelo no hotel. Você sabe como é essa gente. Pode-se dizer que os gays dominam o jet set. Quando eles aprovam, a sociedade vem correndo, como acontece em Capri, em Acapulco, no sul da França. Se eles fecham a cara, o lugar está perdido, como aconteceu com o hotel de Patino, mais abaixo, na costa, e com Porto Cervo, a estância de Aga Khan, na Sardenha.

— Não parece lógico — observei. — Por que Dieter iria fazer isso? Afinal de contas, tratava-se de pessoas amigas.

— Uma das histórias que ouvi diz respeito a intrigas provocadas por ciúmes entre os homossexuais. Mas me disseram também que foi o pai de Dieter quem os botou para fora daqui, pois quer que Dieter se case e continue o nome da família. Já escolheu até a noiva, que é, ao que parece, prima do rapaz.

— Chama-se, por acaso, Marissa?

— Sim, foi esse o nome que disseram. Ela trabalha no escritório. Você já a conhece?

— Já. Fui nadar um pouco, e quando voltei ela estava à minha espera na praia.

— Eles não vão mais poder atrair para cá os milionários

— disse Lonergan.

— Isso de certo modo é bom porque mostra que Von Halsbach está a perigo. Somos tudo o que ainda lhe resta e se não fizer negócio conosco estará perdido — disse, e tornei a encher o copo. — Com isso a minha proposta cai em cinqüenta por cento.

— Como assim? Vai oferecer-lhes nove milhões?

— Não. Isso é metade do que estão pedindo. Ia oferecer doze, mas a oferta é de seis.

— Há mais uma coisa que eu acho que você deve saber

— disse Lonergan.

— O que é?

— O meu escritório me informou que Julio possui grande parte das ações do hotel.

— Há alguma prova disso?

— Nenhuma. Mas a pista de pouso fica perto de Culiacán.

Eu sabia quais eram as ligações. Culiacán, apesar de toda a pressão das autoridades, era o maior centro de exportação de tóxicos do México para os Estados Unidos e era bem possível que essa fosse uma das principais atividades clandestinas de Julio Vásquez.

— Será que os nossos amigos alemães têm alguma participação nisso? — perguntei.

— Como é que vou saber?

— Vai examinar os livros amanhã, Verita?

— Murtagh disse que teria tudo à minha disposição.

— Não deixe passar nada. Se houver alguma coisa suspeita, por mais insignificante que pareça, comunique-me imediatamente.

Dieter e o pai estavam à nossa espera no bar quando chegamos ao edifício do hotel. Von Halsbach era esbelto e pouco mais baixo do que o filho. Devia ter pouco mais de sessenta anos e usava os cabelos grisalhos cortados bem rentes. Tinha olhos azuis e duros e uma cicatriz na face esquerda. Se tivesse um monóculo, poderia figurar num filme da década de 1940 da Warner Brothers.

— Estava ansioso por conhecê-lo, Sr. Brendan — disse-me ele num inglês meloso. — Tenho ouvido falar muito no seu nome.

— Espero que tenha ouvido falar bem.

— É claro. Aqui nós só queremos ouvir o que se diz de bom sobre as pessoas.

. — É a melhor maneira de viver — disse eu, mas notei que minha observação não fora bem recebida. — Quero agradecer-lhe as nossas acomodações. São excelentes.

— Isso só nos dá prazer. Esperamos que possam ficar aqui o tempo suficiente para realmente desfrutarem de tudo.

— Assim espero.

Os olhos dele brilharam quando Marissa apareceu. Os traços índios que eu notara à tarde haviam desaparecido. O que eu estava vendo era uma figura de mulher alta e aristocrática, num vestido branco que lhe realçava o tom moreno da pele e os cabelos pretos soltos sobre os ombros. Von Halsbach beijou-lhe o rosto. X

— Minha sobrinha, a Baronesa Marissa — disse com evidente orgulho.

— Já nos conhecemos — disse ela, estendendo-me a mão. — Sr. Brendan.

— Baronesa.

Ela largou a minha mão e voltou-se para os outros. Um momento depois, seguimos o conde até o pátio, onde a mesa estava posta debaixo de uma grande árvore. Marissa sentou-se entre mim e o conde. De minha parte, não saberia dizer se o perfume que eu sentia vinha dela ou do jardim que nos cercava.

O jantar foi europeu, muito formal e muito chato. Falou-se muito de coisas corretas, mas nada se disse. Em contraste com nossa mesa, Bobby, os modelos e os seus assistentes se divertiam a valer. Podíamos ouvir-lhes os gritos e os risos.

Lonergan e o velho conde pareciam estar se dando muito bem. Talvez fosse a idade, mas meu tio parecia sinceramente satisfeito com o jantar oferecido e com as histórias que o conde contava. Eu estava tão farto de tudo que em dado momento não pude mais agüentar e, sob o pretexto de uma dor de cabeça repentina, retirei-me para o bangalô.

Sentei-me no pátio e olhei para o céu. Tive a impressão de que nunca vira tantas estrelas. Fiquei pensando se num daqueles mundos infinitos alguém estaria sentado num pátio com os mesmos pensamentos que eu.

Ouvi o portão do bangalô ranger. O vestido branco de Marissa flutuou na escuridão como uma nuvem suave.

— Vim saber.se estava melhor — disse ela.

— Não sabia que era baronesa.

— A bem dizer, não sou. Mas meu tio gosta de me apresentar assim. Ele é muito antiquado.

— Por que foi que ele se meteu nessa aventura do hotel? Parece tão em desacordo com a personalidade dele.

— Foi quase forçado a isso. Era proprietário das terras e o governo vivia a ameaçá-lo de distribuir suas terras aos camponeses se ele não as aproveitasse de alguma maneira.

— Nem assim se justifica que ele tivesse gasto trinta milhões de dólares.

— Ele entrou com a terra e cerca de seis milhões. O governo contribuiu com dez milhões e o resto veio de investidores privados.

— Quem são esses investidores?

— Não sei.

— São mexicanos ou estrangeiros?

— Já lhe disse que não sei.

— Teria sido melhor se ele tivesse trazido para cá alguns homens de Las Vegas.

Ela não disse nada.

— Sente-se aqui ao meu lado — chamei.

Ela não se moveu.

— Veio até aqui porque quis ou porque Dieter mandou?

Ela hesitou um pouco e disse:

— Dieter.

— Será que ele disse também que ir para a cama comigo faz parte do seu serviço?

Ela ficou de novo calada.

— Que é que vai acontecer se não fizerem negócio comigo?

— O governo vai entrar em ação e tomar o hotel. Eles perderão tudo.

— Trinta milhões é muito dinheiro para servir de armadilha para você. Não acho justo.

Ela levantou os braços até os cabelos negros. Quando os baixou o vestido lhe escorregou do corpo. Deu alguns passos para livrar-se da roupa que estava a seus pés e ficou nua diante de mim. Fiquei sabendo qual era a fonte do perfume que eu sentira no jardim. Olhei-a e disse com toda a sinceridade:

— Você é muito bonita!

— Que é que você quer que eu faça?

Levantei-me, apanhei o vestido e lhe entreguei.

— No momento,, quero apenas que você me consiga uma aspirina. Estou mesmo com dor de cabeça.

Ela segurou o vestido de encontro aos seios e disse, perplexa:

— Você não quer mesmo que eu. ..

— Querer, quero. Mas seria desonesto da minha parte. Se eu não fizer negócio com seu tio, você terá ido comigo para a cama à toa. . .

Pela primeira vez, ela riu. Largou o vestido e disse:

— Que importância tem isso entre amigos?


Capítulo vinte e nove

O telefone, tocou às oito horas da manhã. Estendi a mão para ele. Pela parede de vidro do chuveiro, eu via a sombra de Marissa e ouvia o barulho da água.

— Alô — disse eu ao telefone.

— Parece que teve uma grande noite, hem? — disse a voz de Eileen.

— Hum-hum. Que é que há?

— Enquanto você está aí se divertindo, quero que saiba que outras pessoas da organização estão trabalhando.

— Você terá de corrigir isso. Prejudica a nossa imagem. O mundo inteiro pensa que nossa vida é uma farra contínua.

— Vou para aí no primeiro avião. Mas, enquanto isso, pensei que gostaria de receber boas notícias.

— Pode dizer.

— Acabamos de apurar os totais de circulação em janeiro e fevereiro. Ultrapassamos a marca dos três milhões e meio.

— O que acha disso?

— Não é só. O Lifestyle Digest passou de um milhão. Não é nada mau, não é?

— Que foi que fizemos de errado?

— Não sei, mas precisamos continuar errando assim.

Eu ri.

— Como vão as coisas por aí, Gary?

— Não sei ainda. Verita vai examinar os livros hoje e eu estou apreciando a paisagem.

— Não compreendo por que você está querendo comprar esse hotel. As duas revistas estão dando um bocado de dinheiro.

— Disseram isso também quando me meti no negócio de clubes. Mas só o clube de Londres está rendendo seis milhões por ano.

— É por causa do jogo. Os de Nova York, Chicago e Los Angeles mal dão para cobrir as despesas.

— Precisamos deles para nossa imagem. Teremos jogo em Atlantic City e este lugar aqui já tem licença.

— Se é isso o que você quer, por que não vai para Las Vegas?

— Estou esperando uma oportunidade. Enquanto isso, as agências de turismo e as excursões programadas estão obtendo bons resultados. Posso lotar isto aqui de gente só com a nossa agência de turismo.

— Como vai levar gente para aí com apenas dois vôos comerciais por dia?

— Posso fretar aviões em Los Angeles e conseguir da Princess Lines que faça uma escala de vôo aqui.

— Tudo isso ainda é titica em comparação com as revistas. Elas lhe estão dando quase três milhões por mês.

— Que linguagem, Eileen!

— Estou falando sério. Por que você prefere o resto às revistas?

Pensei por um momento e disse:

— É o gosto da ação.

— Não creio que seja. Talvez algum dia, quando você tiver tempo, possamos discutir o assunto. — Fez uma pausa e acrescentou com voz terna: — Estou com saudades.

O telefone foi desligado antes que eu pudesse dizer alguma coisa. Eileen sabia exatamente onde estava. Não se afobava. Deixava que as coisas seguissem o seu curso natural. O tempo estava do seu lado. Ambos sabíamos disso. Mais cedo ou mais tarde, o que tinha de acontecer, aconteceria.

Marissa saiu do banheiro vestida num sarongue atoalhado.

— Bom dia!

— Bom dia.

— Dormiu bem?

— Creio que sim. . .

Foi até a penteadeira e abriu a pequena bolsa. Um momento depois, estava com um minúsculo biquíni. Viu que eu a olhava pelo espelho e disse:

— Seria muito estranho que eu fosse a estas horas para o hotel de longo, não acha?

— É claro.

— Quer alguma coisa?

— Um pouco de café não seria mau.

— É para já — disse ela, apertando um botão. — Mais alguma coisa?

Saí da cama e dirigi-me para o banheiro. Chegando à porta, voltei-me e disse:

— Não há necessidade de tanta cerimônia, baronesa. Pensei que tínhamos começado a ser amigos. Seria horrível para mim pensar que você estava apenas cumprindo uma obrigação.

Quando saí do banheiro, vi que uma mesa fora levada para o terraço além das portas de vidro corrediças. A toalha e os guardanapos eram de linho amarelo e no centro da mesa havia uma rosa amarela num vaso de prata. O café da manhã era europeu: suco de laranja, café, pão quente e croissants.

Marissa ouviu os meus passos e voltou-se da balaustrada de onde estava olhando para o mar.

— Tenho de lhe pedir desculpas — disse-me.

— Nem pense nisso!

— Não. Nunca tive a intenção de ser tão formal. O que acontece é que é a primeira vez que isso me acontece. Não sei o que dizer...

— Não é preciso dizer mais nada. Basta sermos amigos.

— Somos amigos. Café?

— Simples, sim?

Recebi a xícara das mãos dela. O café estava forte e quente.

— Qual é o programa de hoje? — perguntei.

— Dieter estará à sua espera no hotel às dez horas para mostrar-lhe tudo.

— Você estará lá?

— Creio que não. Tenho muito o que fazer. Mas haverá um coquetel para você às sete horas da noite. Todas as autoridades locais estarão presentes para conhecê-lo. Eu também vou estar lá.

— E no jantar?

— Posso ir, se você quiser.

— Claro que eu quero. E não se esqueça de botar na bolsa alguma coisa mais para usar quando voltar para o hotel de manhã. É tão estranho chegar ao escritório de biquíni quanto de longo.

A visita ao hotel e às suas dependências estendeu-se até o meio-dia. O sol estava tão forte que até o vento do mar batendo no jipe de capota de lona não refrescava nada. Dieter dirigia e eu estava sentado ao seu lado. Lonergan ia atrás. De vez em quando, eu olhava para ele. Se não estava se sentindo bem, não dava disso o menor sinal, a despeito do fato de ser o único que estava usando terno e gravata. Apesar disso, era óbvio que ele sentia prazer em voltar ao edifício refrigerado do hotel.

Fomos para o bar. Lonergan pediu, como de hábito, um martíni seco. Pedi gim com tônica e Dieter preferiu tequila. Tínhamos corrido dois campos de golfe, um de dezoito holes, o outro de nove; doze quadras de tênis; estrebarias com quarenta cavalos e dezessete bangalôs.

— Há cento e oitenta apartamentos neste edifício — disse Dieter. — Cada qual com um quarto, uma sala de estar, bar, cozinha e dois banheiros. Tudo decorado com o maior luxo. A uma média de duzentos dólares por dia por apartamento, calculamos não ter prejuízo mesmo com quarenta por cento dos apartamentos ocupados.

— De acordo com os seus registros, a média de ocupação foi de quinze por cento — disse Lonergan.

— Na verdade, a média foi ainda menor.

— Qual é a capacidade do hotel?

— A duas pessoas por apartamento e quatro por bangalô, a capacidade é de quatrocentos e vinte e oito hóspedes.

— Isso quer dizer que, a uma diária média de cem dólares por pessoa, estariam com as despesas cobertas com dezesseis mil dólares por dia.

— Sim, incluindo todas as refeições.

— E sem as refeições?

— Dez mil dólares, mas, de acordo com o contrato com o governo, teríamos de dar, obrigatoriamente, o café da manhã.

— Os apartamentos podem ser transformados em quartos duplos individuais?

— Podem, sim. Chegamos a pensar nisso, mas as despesas com a conversão importariam em mais um milhão de dólares.

— Compreendo — disse eu, pedindo outro drinque ao homem do bar. — Na sua opinião, por que o hotel não obteve sucesso?

— Por dois motivos — disse prontamente Dieter. — O primeiro foi que as companhias de aviação não cumpriram a sua promessa de aumentar o número de seus vôos para cá. O segundo é que o governo não nos deixou abrir o cassino até depois das eleições, embora já nos tenha concedido a licença de jogo desde o ano passado.

— Por que acha que o governo vai dar permissão agora?

— O governo não quer que fechemos as portas. Tem muito dinheiro investido aqui.

— Há algum compromisso por escrito?

— Claro que não. Nada aqui se faz por escrito. E ainda que houvesse esse compromisso, não valeria nada.

— Por quê? Poderiam cancelá-lo?

— Tudo é possível, mas não creio que chegassem a esse ponto. Vocês poderão ter uma idéia da coisa por si mesmos: o governador do Estado e o jefe do Departamento do Tesouro da Cidade do México estarão hoje aqui no coquetel. São eles que vão decidir tudo.

O telefone do bar tocou. O encarregado atendeu e passou o fone a Dieter: — Para usted, excelencia.

Ele escutou, disse algumas palavras e depois desligou.

— O avião oficial vindo da Cidade do México está chegando ao campo de pouso. Tenho de ir receber os visitantes. Dão-me licença?

— Claro!

— Reservei uma mesa no jardim para o almoço.

— Muito obrigado.

— A baronesa logo estará aqui para acompanhá-los.

— Mais uma vez, muito obrigado.

Assim que ele saiu, Lonergan me disse:

— Não estou gostando. Para mim, tudo isso está muito errado.

— Por quê?

— Não vai haver jogo. Se fosse o caso, já haveria por aqui muita gente oferecendo mais dinheiro do que você pode dar.

— Talvez tenha razão. Mas vamos deixar o barco correr. Saberemos mais amanhã do que sabemos hoje. Agora, está na hora do almoço — disse eu, vendo Marissa entrar no bar.


Capítulo trinta

O almoço foi excelente, servido como o jantar o fora na noite anterior. Havia peixe fresco, pescado no mar em frente, regado com um ótimo Montrachet, que se desperdiçou inteiramente comigo mas que meu tio saboreou, seguido de sorvete e café. As árvores frondosas não permitiram que o sol nos castigasse as costas.

Quando acabamos, Marissa se levantou e disse:

— Tenho algumas coisas para fazer no escritório agora. Vão precisar de mim ainda esta tarde?

Olhei para meu tio e ele abanou a cabeça.

— Não, muito obrigado. Creio que agora vamos voltar para o bangalô e descansar até a hora do coquetel.

— Está bem. Mas, se quiserem alguma coisa, sabem onde poderão encontrar-me.

Levantamo-nos quando ela saiu. Quando já havia se afastado um pouco, meu tio olhou-a e comentou:

— Grande mulher. Muita classe.

Olhei-o ceticamente. Talvez o sol o estivesse atingindo, mas creio que vi seu rosto enrubescer. Ele apressou-sc cm mudar de assunto.

— Quer dar um passeio pela praia?

— Sim.

Quando chegamos à beira da água, meu tio parou de repente, tirou os sapatos e as meias e arregaçou as calças. Com os sapatos nas mãos, meteu os pés na água e me perguntou:

— Você se incomoda?

— De modo algum.

Meu tio parecia uma criança. Entrava na água e recuava rápido quando uma onda se aproximava. Havia um leve sorriso em seus lábios.

— Sempre quis fazer isso desde os meus tempos de garoto. . .

— E nunca fez?

— Não. Tinha onze anos de idade quando comecei a trabalhar. Sua mãe era muito pequena, seu avô tinha morrido e sua avó lavava roupa para fora a fim de sustentar a família.

— Em que trabalhava?

— Fui ser encarregado da limpeza das latrinas e escarradeiras no salão de Clancy perto da estação da estrada de ferro, em Los Angeles.

Era uma coisa que eu não sabia. Ninguém na família me dissera como ele havia começado.

— Seu avô e Clancy tinham trabalhado juntos na estrada de ferro. Foi por isso que ele me deu o lugar. Ainda me lembro do tempo em que os trens de carga da Union Pacific passavam pelo centro do Santa Monica Boulevard e eu corria pela calçada dando adeus a meu pai e a Clancy, que iam na locomotiva.

— Estamos, bem longe do Santa Monica Boulevard neste momento.

— Nós dois. Foi lá também que você começou.

Sim, era difícil de acreditar que só se haviam passado cinco anos desde o dia em que eu ficara no prédio do Santa Monica Boulevard e vira Persky dando instruções aos homens que tiravam os últimos móveis da redação do Hollwyood Express.

Persky se esforçava para olhar para todos os lados, menos para mim. A redação estava vazia. Restavam apenas papel e lixo no chão.

— Acho que já tirei tudo — murmurou ele.

Saiu para a rua, em companhia dos homens da mudança. Na rua, o carpinteiro acabava de consertar a fachada destroçada pela explosão. Experimentou a porta para ver se funcionava e voltou-se para mim.

— São cem dólares.

Fiz um gesto na direção de Verita, que estava junto de mim.

— Dê-lhe um cheque.

— Nada de cheques. Quero dinheiro.

Quis me zangar. Logo percebi, porém, como seria ridículo. Se eu estivesse no lugar do homem, vendo a retirada de todos os móveis, decerto raciocinaria da mesma maneira. Meti a mão no bolso e tirei um maço de notas. Entreguei-lhe uma nota de cem que estava em cima.

— Obrigado — disse ele, visivelmente impressionado.

— Se ainda precisar de mim, é só me chamar.

Fechei a porta depois que ele saiu e disse a Verita:

— Eu devia saber que era tão bom que não podia durar muito.

— Podia ter sido muito pior. Você podia estar morto e não está. Podia estar na miséria e não está. Com os vinte e cinco mil dólares que recebeu depois do acordo com Ronzi, tem no momento oitenta e um mil dólares no banco.

— Vamos ver quanto me restará depois que eir pagar as minhas dívidas.

Subimos e nos sentamos à mesa da cozinha, onde ela havia arrumado os livros de contabilidade.

— Vamos ver as dívidas maiores primeiro — eu disse.

— Quanto devo ainda do adiantamento feito pelo Reverendo Sam?

Ela folheou as páginas dos seus livros e disse:

— Ele lhe deu quarenta mil dólares. Você publicou seis páginas de anúncios. Isso deixa um saldo de trinta e quatro mil dólares a favor dele.

— Faça o cheque.

Esperei até que ela terminasse. Assinei, e disse:

— Vamos ver agora quanto devo a Lonergan.

— A ele você não deve nada. Ele me telefonou hoje de manhã para dizer que tinha contabilizado todo o dinheiro como investimento.

— Ele que vá para o inferno! Não preciso de esmolas de ninguém.

Verita ficou calada.

— Nós pagamos a parte dos anúncios dele no último número? — perguntei.

— Não.

— Em quanto importou?

— Em três mil e cem dólares — disse ela, consultando de novo a sua escrita.

— Some isso com os vinte e cinco mil que ele me adiantou e faça o cheque.

Ela fez o cheque em silêncio e passou-o às minhas mãos. As contas das oficinas e outras pequenas despesas chegavam a dez mil dólares. Salários: mil e setecentos dólares.

— Descontando tudo isso, quanto é que fica?

— Cinco mil e trezentos dólares.

— Tem razão. Não estou na miséria.

As lágrimas começaram a rolar pelo rosto de Verita.

— Espere aí! Você mesma não me disse que podia ter sido pior? Há poucos meses, eu não tinha absolutamente nada. Agora, tenho cinco mil dólares.

— Isso me entristece muito, Gary.

Acariciei a mão dela em cima da mesa.

— Não fique triste. Diverti-me um bocado e, pelo menos, livrei-me de entrar naquela fila do desemprego.

Verita afastou a mão e disse de olhos baixos:

— Fui ontem falar com o diretor. Ele disse que eu posso voltar a trabalhar na segunda-feira.

— Eu tenho direito a receber auxílio de desemprego?

— Não,

— Então você não vai voltar a trabalhar. Se eu não posso aparecer em seu guichê, de que adianta você ir para lá?

— Mas eu preciso trabalhar, Gareth.

— Você está trabalhando. Eu não disse que não estava, disse?

— Não, não disse. . . Mas eu pensei que tudo estava acabado.

— Acabado? — exclamei, levantando-me e tirando uma lata de cerveja da geladeira. — Agora é que tudo está começando, menina! Antes que isso começasse, eu andava por aí como um cachorro sem dono, levando pontapés de todo o mundo. Isso chegou ao fim, está encerrado para sempre. Vão ter de me engolir. Eu é que vou começar a dar pontapés em todo mundo!

Sem pensar, Verita falou em espanhol:

— Usted está muy macho.

— É isso mesmo! — exclamei, jogando na cesta a lata de cerveja que acabara de tomar. Levantei-a da cadeira e abracei-a. — Era isso mesmo que eu estava procurando!

— No com prendo.

Ri.

— Macho. O nome da nossa nova revista!


Capítulo trinta e um

Levamos seis meses para colocar o primeiro número nas bancas e foi um desastre. Penthouse tinha aparecido pouco antes e começara a dominar o mercado. Comparar Macho com Playboy e com Penthouse era como comparar o Hollywood Express com o New York Times. As fotografias que Penthouse estava publicando faziam todos os homens sentirem-se adultos. Playboy seguia a sua linha. Costumavamos pegar as edições deles e sorrir. Mas era um sorriso amarelo que doía bem no fundo. As duas revistas tinham muita gente de talento trabalhando para elas. E o talento se encaminhava para onde havia dinheiro. Nós tínhamos apenas promessas.

Publicamos o segundo número com um mês de atraso a fim de dar às bancas uma chance de vender o encalhe do primeiro número. O terceiro número saiu também com um mês de atraso. Em pouco tempo, foi tudo por água abaixo. O distribuidor nacional nos comunicou que, se queríamos ver a revista nas bancas, tínhamos de tratar diretamente da distribuição. Diretamente era a maneira de dizer. Devíamos quase cinqüenta mil dólares e não havia jeito de pagar isso colocando na rua outro número.

Sentamo-nos à mesa da cozinha, olhando com tristeza para o montão de contas à nossa frente.

— Está tudo aí? — perguntei.

— Está — disse Verita. — O total é de quarenta e nove mil, trezentos e cinqüenta e sete dólares e dezesseis cents, sem incluir a folha de pagamento.

— Quanto é a folha de pagamento?

Ela olhou para Bobby e Eileen e disse:

— Os funcionários resolveram abrir mão dos salários esta semana.

Era a décima semana que eles tomavam essa resolução.

— Muito obrigado — disse eu. — Quanto é que temos no banco?

— Cerca de setecentos dólares.

— Merda! Vou levar o resto de minha vida para pagar isso.

— Não é preciso — disse Verita. — Pode requerer falência pessoal e da companhia. Depois disso, fica livre e pode recomeçar, se quiser.

— Que vai acontecer ao nome?

— Macho?

— Sim.

— Pertence à companhia e você o perderá bem como a qualquer ativo porventura apurado.

— Que ativo? Algumas fotografias que não foram aproveitadas e matéria que ninguém quer ler?

— Meu pai disse que lhe emprestará o dinheiro se você quiser continuar — disse Bobby.

— Agradeça a ele por mim. Mas isso seria jogar dinheiro fora.

— Talvez mais um número possa virar a maré — disse Bobby.

— Não há jeito. Sabe por quê? Estamos tentando fazer o que os outros fazem bem melhor do que nós. A não ser que encontrássemos um ângulo novo, nunca passaríamos de uma imitação de terceira classe.

— Que novo ângulo seria esse? — perguntou Bobby.

— Não há muitas maneiras de fotografar mulheres e apresentá-las.

Olhei-o. Não era tanto o que ele dizia, mas a maneira de dizê-lo. Uma engrenagem fora acionada em algum canto de minha cabeça.

— E entre a matéria de Penthouse e a de Playboy, já cobrimos quase tudo o que se pode escrever nesse particular

— disse Eileen. — Não nos resta nenhum outro ângulo a explorar.

Outra engrenagem começou a girar.

— Talvez porque tudo o que fizemos foi agir dentro das regras deles. Talvez estivéssemos na trilha certa com Express. Não conhecíamos as regras e fazíamos o que nos vinha à cabeça.

— Uma revista mensal de projeção nacional é muito diferente de Express, que era uma publicação local — disse Eileen.

— Tem certeza? Acha que o resto da população é diferente dos habitantes de Los Angeles?

— Los Angeles é mais liberal no seu estilo de vida do que uma cidadezinha do interior. O povo é mais arejado.

— Acha que numa cidadezinha do interior as pessoas são diferentes ou são de carne e osso como as daqui?

— Talvez sejam, mas não têm tanta coragem como as pessoas que moram aqui.

— Pouco me interessa a coragem delas. O que eu quero é que comprem as revistas.

— Isso já estão fazendo. Compram Penthouse e Playboy ainda que não compreendam tudo o que vem escrito nelas.

— Eles querem ver as fotos, também — disse Bobby. — Penthouse vendeu quase três milhões de exemplares ao fim do seu primeiro ano. Só com fotos. Hefner sentiu a queda na circulação e vai sair com uma nova revista para fazer concorrência. Fez um contrato com a revista francesa Lui para publicarem em comum fotos e material. Vai chamá-la Oui. Tudo ao natural, cliz um amigo meu que viu um exemplar antes da publicação.

— Ao natural como?

— Sem retoques.

Todos nós rimos.

— Mas ainda estão seguindo a mesma orientação. Possuem um pelotão de técnicos sobre todos os assuntos: vinhos franceses, modas masculinas, férias, esportes, filmes, teatro, livros, comida. Tudo relacionado. O Sr. Bacana pode agora encomendar o champanha da safra certa ou mandar as suas medidas para o alfaiate da moda. Pode até entrar no seu Aston Martin e levar o seu amor ao drive-in mais próximo.

As moças riram, mas eu não. Não achava graça nenhuma em dever cinqüenta mil dólares. Levantei-me.

— Não vamos resolver coisa alguma esta noite. Vou pensar durante o fim de semana. Tenho a impressão de que fracassamos porque deixamos de ver o óbvio.

— Se é tão óbvio, de que é que se trata? — perguntou Bobby.

— Pode parecer estranho, mas a verdade é que eu não sei.

O telefone tocou logo que todos saíram. Ouvia a voz fria de Lonergan.

— Gareth?

— Sim, tio John.

— Quero falar com você.

Fazia quatro meses que não nos víamos nem nos falavamos. Nada de "Como vai?" ou "Como vão as coisas?" Apenas aquele seco "Quero falar com você".

Eu já havia engolido muitos sapos e estava com a minha capacidade esgotada.

— Sabe muito bem onde pode me encontrar — respondi com arrogância.

— Pode ir encontrar-se comigo no Silver Stud à meia-noite?

— Para quê?

— Tenho uma proposta interessante para lhe fazer — disse ele, sem nenhum sinal de perturbação.

— Da última vez em que ouvi uma das suas propostas interessantes, quase me mataram.

— A culpa foi sua. Insistiu em fazer tudo pela sua cabeça em vez de deixar que eu manobrasse as coisas. À meia-noite. Não deixe de ir.

Hesitei um instante e afinal disse:

— OK.

— Gareth?

— Que é, tio John?

— Desta vez, faça-me um favor e deixe o seu carro na rua, sim?

Desligou sem que eu lhe pudesse dar uma boa resposta. Não era preciso que ele se preocupasse. Depois daquilo, não me dera mais ao trabalho de comprar um carro. E fora melhor assim. Nas condições em que eu estava, a financeira já o teria tomado.

Quando cheguei lá, quase não reconhecí o lugar. Quase todas as janelas estavam cobertas de tinta prateada, exceto duas pequenas e ovais pelas quais se podia ver o letreiro a neon. Da rua, ninguém podia ver o que se passava lá. As alterações no interior chamavam mais a atenção ainda.

O velho bar e as mesas de mogno eram agora de cromo e plástico preto. Quatro projetores de filmes silenciosos pendiam do centro da sala e projetavam imagens em telas colocadas em cantos diferentes. Eram imagens de filmes gay.

Atrás do bar, uma negra, de aspecto bem selvagem, tocava piano e cantava com voz rouca. Não pude saber o que ela estava cantando, com o barulho que havia na sala.

Abri caminho, a custo, por entre a multidão e consegui chegar aos fundos da sala. Como de costume, o Cobrador estava sentado à mesa diante da escada.

— Alguma festa hoje? — perguntei.

— Tem sido assim desde a remodelação. Todas as noites parece festa de ano-novo.

Indicou-me uma cadeira ao lado dele. Havia na mesa uma garrafa de scotch e um balde de gelo.

— Pode se servir — disse ele.

— Quando foi que fizeram a remodelação?

— Logo depois que você arrebentou tudo com o seu carro. Quer saber de uma coisa? Acho até que você fez um favor ao velho Lonergan. O seguro pagou tudo.

— Quem sabe se eu não posso pedir uma comissão a ele? O Cobrador sorriu.

— Peça que talvez ele pague. Como vão as coisas?

— Mais ou menos.

— Lonergan vai demorar um pouco. Viu a pequena do piano?

— Vi.

— É um pedaço, não acha?

— Não deixa de ser. . .

— Aqui entre nós. Não quer nada comigo. . .

— Já conversou com ela?

— Já, mas ela diz que não está interessada.

— Talvez seja lésbica. . .

— Não é nada disso. Quer ser estrela. E só está interessada em fazer carreira.

— Cantando aqui é que ela não vai fazer carreira.

— Nunca se sabe. De vez em quando, aparece algum magnata do show business por aqui. E depois alguns desses travestis têm muito prestígio. Vou apresentá-la a você.

— Para quê?

— Ora, se eu não arranjar um pretexto, ela não virá aqui falar comigo. . .

— Está bem. Pode ttazê-Ia que eu vou fazer propaganda de você.

Numa coisa o Cobrador tinha razão. Ela estava empenhada mesmo em fazer carreira. Logo que se sentou, começou a falar.

— Bill me disse que você é jornalista. Tenho algumas canções escritas. Quem sabe se não poderia publicar as letras?

— Bem, sou um jornalista diferente.

— Diferente como?

— Faço revistas como Penthouse, Playboy. . .

— Ah! Eu não faço poses de nu.

— Fique descansada que não vou lhe pedir isso. Você é magra demais.

Ela se voltou para o Cobrador.

— Por que está me fazendo perder tempo com um cretino como esse?

Levantou-se, olhou-me por um instante e saiu de supetão.

Olhei para o Cobrador. Era a própria imagem da decepção.

— Acho que não lhe fiz muito bem, não foi?

— Sem dúvida.

Ri e bebi à saúde daquele seu grande amor.

Quando Lonergan chegou, por volta de uma e meia, eu tinha bebido tanto que quase não consegui subir a escada.


Capítulo trinta e dois

— Você está bêbado — disse ele em tom de censura.

— E desde quando isso é alguma novidade? — perguntei com voz pastosa.

— Você não pode falar de negócios nesse estado.

— Muito bem. ;. Quer mesmo que eu fique no meu juízo perfeito, tio John?

— É da maior importância.

— Então mande buscar um café bem forte. Estarei bom dentro de um minuto. Volto daqui a pouco.

Fui até o banheiro privativo dele e meti dois dedos na garganta. Depois, molhei a cabeça com água fria até deixar de sentir o latejar das têmporas. Enxuguei-me e voltei ao escritório.

Lonergan trouxe-me uma caneca de café bem quente.

— Você parece um rato molhado.

— Pode ser, mas sou um rato no meu juízo perfeito. Que era que queria dizer?

— Como vai a revista?

— Você sabe muito bem. Por que pergunta?

— Quero que me diga.

— Vou fechar a revista. Acabei. Estourei. Quer saber de mais alguma coisa?

— Quero. Por quê?

Acabei de tomar o café e preparei-me para responder. Tinha pensado muito naquilo.

— Quer uma simples desculpa ou a verdade?

— A verdade.

— Porque fui burro. Tentei fazer uma revista igual a Playboy e a Penthouse. Mas meu setor não é esse.

— Qual é o seu setor?

— Sou um editor popular sem nada de sofisticado. Foi por isso que o Hollywood Express deu certo. Posso chegar ao homem da rua com as coisas que faço. Não posso atingir o tipo da classe média alta, como as duas revistas o fazem tão bem. A minha pontaria é um pouco abaixo da cabeça.

Lonergan pensou por um momento e disse:

— Você ainda se julga capaz de fazer uma revista de sucesso?

— Claro.

— O que é preciso para isso?

— Dinheiro, para princípio de conversa. Depois, distribuição. Isso não seria fácil depois do que já aconteceu comigo. Teria de encontrar alguém que estivesse disposto a se arriscar.

— Se tivesse o dinheiro e a revista, voltaria para Ronzi?

— Não gosto daquele sujeito. Além disso, ele é um distribuidor local e eu preciso de um distribuidor nacional para a revista.

— E se ele funcionasse como distribuidor nacional?

Eu estava pensando lucidamente e sabia que Lonergan nunca dizia as coisas sem ter uma boa razão para isso.

— Abra logo o jogo, tio John. Que é que há com Ronzi?

— Persky entrou com o Express pelo cano e Ronzi teve um bruto prejuízo. Ele agora quer aparecer com alguma coisa boa para reabilitar-se perante os seus sócios do leste.

— Ele lhe disse que entrasse em entendimento comigo?

— De uma maneira clara, não. Mas me deu a entender que não faria objeções a um acordo com você.

— Não vou voltar a editar o Express.

— Não foi isso que eu lhe pedi. Estou falando de sua revista Macho. Trata-se de alguma coisa que os italianos compreendem.

— Não vou com eles. Não quero participações, nem sociedades.

— A revista é sua. Eles seriam apenas os distribuidores. Pensei um pouco.

— Eu ainda precisaria de bastante dinheiro para tirar a revista do buraco. Devo cinqüenta mil dólares e meus credores não vão me dar folga.

— Poderia conseguir que lhe adiantassem cem mil dólares pela distribuição exclusiva durante dois anos.

— Por um ano apenas; E sem responsabilidade pessoal da minha parte, caso a revista deixe de circular. Eles perderão o dinheiro. Ponto final.

— Você está tomando uma posição muito radical para quem está encostado na parede.

— Por que não, tio John? Que mais tenho a perder?

— Eu devia ter deixado você ficar bêbado. Talvez fosse mais fácil tratarmos o assunto.

— Por quê? Tem alguma participação pessoal nessa transação de Ronzi?

— Não. Mas ele ainda pensa que eu sou seu sócio.

De repente compreendí tudo. Lonergan só tirara de mim o que era dele. Nunca tomara nada que fosse meu. Fizera uso de mim, mas eu também fizera uso dele. E, no fim, se ele não tivesse me estendido o braço, eu estaria morto.

— Tio John, mudei de idéia.

— A respeito de quê?

— Quero ter um sócio. Você.

Vi o pomo-de-adão de meu tio mover-se como se estivesse deglutindo uma grande quantidade de ar. Piscou os olhos e tirou os óculos para limpar as lentes. Tornou a colocá-los no rosto.

— Sinto-me lisonjeado — murmurou com voz rouca. — Quanto é que isso me vai custar?

— Devo cinquenta mil dólares. Mesmo depois de pagos, vou precisar de mais cem mil para fazer uma revista como eu quero. O adiantamento de Ronzi irá todo nisso. Por cinqüenta mil dólares, dou-lhe dez por cento da revista.

— Dez por cento não é nada. Um agenciador de dinheiro ganha uma percentagem dessas sem fazer qualquer investimento.

— É essa a minha proposta.

— Escute, vou fazer-lhe uma proposta melhor. Dou-lhe cem mil dólares em troca .de vinte por cento. Não vou interferir em nada e você vai poder dispor de uma boa base.

— E se a revista não der certo?

— Só vou poder chorar o prejuízo, mas você não fica me devendo.

Olhei para ele estupefato. Ali estava uma coisa que eu pensara que nunca iria fazer, depois do que tinha acontecido a meu pai. Os dois tinham sido sócios e meu pai havia estourado os miolos porque tio John deixara de ajudá-lo.

Ele reagiu como se estivesse lendo os meus pensamentos.

— Seu pai era um homem fraco, Gareth. Fez uma coisa que nunca deveria ter feito. Quando foi apanhado, agravou a situação envolvendo outras pessoas, que eram inocentes. Quando veio me procurar, nada havia que eu ou qualquer outra pessoa pudesse fazer. Aconselhei-o a dizer a verdade e aguentar as conseqüéncias. Disse-lhe que, depois disso, eu o ajudaria a firmar-se de novo. Mas ele não foi capaz de enfrentar a verdade. Pensou mais na própria imagem do que em sua mãe ou em você. Escreveu então a carta em que me culpava de tudo. Os jornais fizeram barulho com a carta e as pessoas que não gostavam de mim acreditaram piamente nela. Mas você já parou para pensar que, se as acusações que ele me fazia fossem verdadeiras, eu seria processado?

Deixei-o falar.

— Todas as acusações foram rigorosamente investigadas pelas autoridades, tanto municipais quanto federais. E não se apurou a verdade de nenhuma delas. Do contrário, teriam tido grande prazer em me enforcar no primeiro galho de árvore que vissem pela frente. Peço-lhe desculpas, sinceramente. Não sei por que motivo isso veio à tona agora, e sei perfeitamente que nunca devia falar assim a você sobre seu pai. Mas essa franqueza sempre houve entre nós. Você era ainda garoto quando tudo isso aconteceu, mas o fato cresceu com você e lhe envenenou a vida. Prejudicou até as suas relações com sua mãe porque você nunca aceitou que ela continuasse a se dar comigo como se nada houvesse acontecido.

Continuei a olhá-lo sem dizer uma palavra. Nada tinha a dizer. Tudo aquilo era passado e, fosse o que fosse que tivesse acontecido, nada poderia modificá-lo. Novamente pareceu-me que ele lia meus pensamentos.

— Tudo isso está acabado, Gareth. E não pode de maneira alguma influir naquilo em que estávamos conversando.

Fiz um sinal de assentimento.

— Estamos combinados então? — disse ele, estendendo a mão com alguma hesitação, como se esperasse ainda alguma objeção da minha parte.

— Sim, meu sócio — disse eu, apertando-lhe a mão.

Ele me tomou a mão entre as suas, enquanto os olhos cintilavam por trás dos óculos.

— Vamos ter êxito. Tenho certeza disso, Gareth.

— E eu também. Farei o máximo para não lhe falhar.

— Muito bem! Agora que somos sócios, a primeira coisa que eu vou fazer é obrigar aquele italiano cachorro a lhe -dar pelo menos duzentos mil dólares se quiser a exclusividade da distribuição para todo o país.

— Mas você me garantiu que não iria interferir!

— Isso não é interferência. Você terá muito o que fazer preparando a revista. Eu, melhor do que ninguém, é que. sei lidar com aquele sujeito. Ronzi sabe muito bem que eu sou capaz de deixá-lo sem um só caminhão para rodar pelas ruas de Los Angeles.

Não podia discutir com ele. Tio John era exímio na única linguagem que Ronzi e os seus homens compreendiam.

— Está bem. Começou com Ronzi e pode acabar com ele — concordei.

Levantei-me.

— Aonde vai?

— Estou com fome. Já passa de duas da madrugada e desde a hora do almoço que não como nada.

— Porque não tinha dinheiro? Tome aqui.

Ri.

— Não. Dinheiro eu tinha. O que não tive foi tempo.

— Onde é que vai comer?

— No Bagel, em Fairfax. Fica aberto até bem tarde.

— Diga a Bill que o leve de carro até lá e fique esperando. Depois que você comer, ele terá de levá-lo até sua casa. Não quero você andando sozinho por essas ruas à noite.

— Mas eu sempre andei, tio John, e você nunca se incomodou com isso.

— Você não era meu sócio. Agora, meu interesse por você não é apenas de tio por sobrinho.


Capítulo trinta e três

MACHO

Grandes letras pretas em fundo azul-real. Em letras brancas menores, à esquerda: "Para a Mística Masculina", e à direita: "Volume 2, Número 1".

Na capa, uma pequena nua, com um grande chapéu de cowboy na cabeça, apontando agressivamente duas pistolas para o leitor. No envoltório de celofane fora impresso um biquíni de rendas que lhe cobria o corpo. Do lado esquerdo: "Você é homem de verdade?" E do lado direito: "Será que tem coragem de rasgar o meu biquíni? "

Nada mais. Exceto o preço no canto superior direito, um dólar e vinte e cinco cents.

Na contracapa em letras garrafais: "Nosso novo símbolo — o GALO DE BRIGA". Abaixo do desenho pop de um galo em atitude combativa a legenda: "Para a Mística Masculina. O homem que luta por aquilo que quer é o homem que consegue o que quer".

Primeira página. Nota do Diretor:

NÃO COMPRE ESTA REVISTA SE. . .

Você gosta de coelhinhas — compre um coelho.

Você quer um animal de estimação — compre um poodle.

COMPRE ESTA REVISTA SE. . .

QUISER PEQUENAS — Há pelo menos seis neste número. Trinta páginas de belezas estonteantes. De todas as formas, tamanhos e cores. Para agradar-lhe a vista e mostrar-lhe as belezas da vida.

SE QUISER SEXO — Encontrará contos, artigos, anedotas, charges, fantasias sobre o assunto de que mais se fala, mais até do que sobre dinheiro, em sessenta páginas compactas. Não lhe diremos qual o carro, o som, a máquina ou as roupas que você deve comprar. Tudo isso está tão caro que poucos podem comprar. Mas PRAZER você poderá comprar. E nós lhe daremos por um dólar e vinte e cinco cents mais prazer do que você jamais imaginou.

ISSO EU LHE PROMETO.

(a) Gareth Brendan, diretor

P.s.: NOTA ESPECIAL DO DIRETOR

Neste número, como em todos os números seguintes, você encontrará um pôster de 55 por 85 centímetros representando a pequena que escolhemos como

A MELHOR CAMA DO MÊSÍ

Se o pôster não lhe agradar, você terá duas opções:

1) PROCURAR O MÉDICO.

2) Devolver o pôster com seu nome e endereço para que nós lhe mandemos de volta pelo correio o preço que pagou pela revista. Poderá ficar com o resto da revista e com os nossos cumprimentos.

(a) G.B. diretor

Só três meses depois de eu ter feito sociedade com Lonergan foi que pudemos ver o primeiro espelho da revista. Todas as páginas foram pregadas na parede e ficamos olhando enquanto o calculador de produção das oficinas olhava tudo, fazendo anotações. Afinal, ele acabou e se acercou de nós.

— Então? Pode fazer a impressão? — perguntei.

— Podemos imprimir tudo, mas precisamos acertar a questão do preço.

— Quanto?

— Quantos exemplares pretende tirar?

— Não resolvi ainda. Qual o preço básico?

— Há dois serviços à parte: o envoltório de celofane e o pôster do centro. Há necessidade de máquinas especiais para isso. São trinta mil dólares para pôr a composição nas máquinas, quer tire cem exemplares ou um milhão. Com a impressão em cores e o papel para duzentos mil exemplares, tudo sairá por cerca de oitenta mil dólares.

— O custo de produção seria de quarenta cents por exemplar — disse Verita. — Ronzi ganha doze cents e meio por exemplar como comissão da distribuição e retém quinze cents por exemplar para os encalhes. Dos sessenta e dois cents e meio do preço a ser pago ao vendedor nas bancas, nos restarão trinta e cinco cents, o que representa um déficit de cinco cents para pagamento da impressão.

Olhei para Lonergan. Ele não disse nada.

— Isso não leva em conta as nossas despesas gerais que andam até agora em vinte mil dólares. Aumentará o nosso prejuízo para quinze cents por exemplar. .

Voltei-me para o homem das oficinas.

— E se tirarmos um milhão de exemplares? O homem fez alguns cálculos a lápis no seu bloco.

— Poderiamos fazer a impressão por cento e quarenta mil dólares, com poucos dólares de diferença a mais ou a menos.

Verita não teve de fazer contas num bloco.

— Nessas condições, mesmo com um encalhe de quarenta por cento, teremos noventa mil dólares de lucro.

— E se a venda for de cem por cento?

— Ficaremos tomando banho em água de rosas, pois o nosso lucro será de trezentos e quarenta mil dólares.

Virei-me para Ronzi, que até então não dissera uma palavra.

— Que é que acha? Poderemos vender um milhão de exemplares?

— Não sei.

— Vou fazer-lhe então outra pergunta. Poderá pôr nas bancas um milhão de exemplares para nós?

— Poder eu posso, mas sem garantia de venda.

— Quer entrar com cinqüenta mil dólares contra cento e cinqüenta mil meus para fazer uma campanha de publicidade para o lançamento da revista?

— Qual seria o meu lucro nisso?

— Em primeiro lugar, ganharia a comissão extra por vender oitocentos mil exemplares. Além disso, eu lhe daria uma comissão de cinco por cento e você poderia arrecadar mais trinta mil.

— Não faria isso por uma comissão de menos de dez por cento.

— Feito.

— Calma. Ainda não assumi qualquer compromisso. Nunca se fez uma campanha de publicidade para uma revista assim.

— Isso não quer dizer que não se possa fazer.

— Onde vai anunciar?

— Nos veículos habituais. Jornais, rádio, televisão.

— Ninguém aceitará seus anúncios.

— E se eu lhe disser que já tenho a campanha planejada e todos os contatos feitos?

— Só acredito vendo.

Levei-o para o apartamento no andar de cima. Havia numa prancheta um anúncio de jornal. A ilustração era simples e mostrava uma senhora de négligé, ao lado do marido que estava com os olhos grudados na televisão. A legenda era simples: "MACHO, uma nova revista para a Mística Masculina. Pode estar certa de que seu marido se interessará também por ela. Nas bancas".

— Os anúncios de televisão serão de dez segundos com as mesmas palavras. Os anúncios do rádio são exatamente os mesmos. Começarão na semana em que a revista chegar às bancas. Tudo está resolvido. Só falta assinar os contratos.

— Na minha opinião, você está maluco!

— Você pode ganhar duzentos mil dólares agora. Quer entrar com mais cinqüenta mil? Assim aumentaria o seu prestígio com os homens do leste.

— E, se não der certo, serei candidato a um bom pijama de cimento.

— O cimento é cinza, uma cor que assenta em você.

Ele olhou de novo o anúncio e murmurou quase como se falasse consigo mesmo:

— Um milhão de exemplares... E se não conseguirmos vender isso? Você me dará comissão adicional quando alcançarmos a marca de um milhão nas vendas, seja lá quando for?

— Nada mais justo.

— Está muito bem. Quando acha que poderemos pôr a revista nas bancas?

— De quanto tempo precisa? — perguntei ao homem das oficinas.

— Seis semanas se os testes das cores derem certo.

— Você ouviu o homem. Dois meses.

Estávamos ambos errados. Só mais de quatro meses depois a revista foi para as máquinas e não apareceu nas bancas senão em abril do ano seguinte. Tivemos toda a espécie de problemas na impressão — o vermelho não reproduzia bem e as bocas, nas fotos, pareciam ameixas murchas. Como sempre acontece com as mulheres, elas precisam ser bem maquiladas e penteadas da cabeça aos pés, por isso tivemos de criar métodos especiais de embelezamento para os nus frontais.


Capítulo trinta e quatro

De onde estávamos, ouvíamos os gritos de Bobby brigando com os modelos. Lonergan deu um salto da água para a areia e tornou a dar um pulo.

— Nossa! Como a areia está quente!

— Espere, tio John. Você precisa de uma toalha para enxugar os pés e calçar de novo os sapatos. — Botei as mãos em concha na boca e pedi à turma das fotos que mandasse uma toalha.

Logo depois, uma das manequins, completamente nua, correu para onde estávamos com uma toalha nas mãos.

Meu tio desviou o olhar e voltou-se para o oceano.

Sorri e perguntei:

— Como é seu nome, menina?

— Samantha Jones.

— Samantha, quer fazer o favor de enxugar os pés do Sr. Lonergan e ajudá-lo a calçar os sapatos?

— Não é preciso. Eu mesmo posso fazer isso — aparteou meu tio prontamente.

— Não seja tolo, tio. Samantha não se importa.

Ela se ajoelhou aos pés de meu tio. Ele fixou os olhos no horizonte enquanto ela pegava um dos pés e tratava de enxugá-lo. Lonergan quase perdeu o equilíbrio.

— Vai ser mais fácil se apoiar a mão no meu ombro — disse Samantha.

— Não, não é preciso — disse ele, mas quase perdeu o equilíbrio de novo.

Ela pegou o braço dele e guiou-o até o seu ombro.

— Não é melhor assim?

Lonergan não respondeu, mas continuou apoiado numa só perna, com o rosto voltado para o mar.

— Deixo-o em boas mãos — disse eu. — Vou ver o que é que está acontecendo ali.

Encontrei Bobby ainda brigando com os modelos. •

— Cinco minutos de intervalo! Venha comigo, Bobby.

— Cinco minutos! — disse para as garotas, e me perguntou: — Que é?

Olhei para ele. Seu rosto estava transpirando e o suor lhe escorria da testa.

— Há quanto tempo está aí debaixo desse sol?

— Talvez umas duas horas.

— Como se sente?

— Nunca senti mais calor em toda a minha vida.

— &bdquo;E acha que as meninas não estão sentindo a mesma coisa?

Ele me olhou por um momento e disse:

— Mas nós precisamos do sol para tirar as fotos.

— Se você ficar mais tempo com elas debaixo desse sol, vão todos acabar no hospital.

— Se eu pensar assim, nunca acabarei a série.

— Você pode fazer uma grande parte no estúdio. Quando King Dong vai chegar?

— No avião desta tarde.

— Pode fazer o indispensável amanhã de manhã. O resto você faz no estúdio. Tomou providências sobre os costumes?

— Ele vai trazer tudo.

— Está tudo resolvido, então?

— Está. Amanhã, às sete horas da manhã, partiremos para o Retiro.

— Onde é isso?

— É a missão de meu pai. Fica a vinte e poucos quilômetros daqui, à beira da selva.

— É um lugar estranho para uma missão. Estão querendo converter os índios?

— A missão do Retiro não é bem essa. É mais uma escola. O lugar onde os candidatos ao segundo plano se qualificam como instrutores. O Retiro não mantém comunicação alguma com o mundo exterior. Não há rádio, nem telefone. Só os caminhões de abastecimento trafegam para lá.

A expressão de Bobby mudou e um ar de preocupação se estampou em seu rosto.

— Acha que fui muito rude, Gareth?

— Você ficou por demais exposto ao sol.

— Desculpe. Acho que perdi a cabeça.

— Não tem importância. Mas não se esqueça de que as pessoas não são câmaras e os modelos não são peças de equipamento.

Ele assentiu e se encaminhou para a turma.

— O trabalho está encerrado por hoje. Arrumem tudo. Às sete horas da manhã, amanhã.-

Lonergan me alcançou quando eu voltava para o bangalô.

— Isso não era coisa que você fizesse — disse ele.

— De que é que está falando, tio John?

— Você sabe muito bem. Aquela moça nua enxugando os meus pés. E se alguém tivesse tirado uma fotografia?

— Eu bem sabia que tinha esquecido alguma coisa!

— Não sei por que ainda me preocupo com você.

— Mas eu sei. Acha que alguém mais iria permitir-lhe cumprir um desejo que vinha dos tempos da infância e fazê-lo andar descalço na praia?

Verita estava à nossa espera.

— Como demoraram no almoço!

— Lonergan quis meter os pés dentro da água. Mas você acabou cedo o seu trabalb^).

— Foi tudo muito simples. Murtagh tinha razão. Tudo me foi apresentado sem truques de espécie alguma. Tudo aberto. Os livros confirmam tudo o que eles alegam em matéria de despesas e de prejuízos.

— Mas você parece ter uma ponta de dúvida.

— Sabe o que é? Tudo correto e em ordem assim não faz sentido, pois é pouco mexicano. Depois que acabei o exame dos livros, fui até o campo de pouso e falei com um dos mecânicos.

O mordomo apareceu e eu pedi um scotch com gelo. Lonergan pediu seu mar tini seco habitual. Logo que o mordomo saiu, Verita continuou.

— Sabe que cerca de trinta aviões particulares usam o campo de pouso todas as semanas?

— Não.

— Cerca de metade pertence a proprietários de terras aqui das redondezas.

— E a outra metade?

— Em trânsito. Pousam, reabastecem-se e levantam vôo. É raro um deles ficar no campo mais de uma hora.

— Soube de onde é que eles vêm?

— Os mecânicos disseram que é da Baja Península. Mas não parece lógico. La Paz fica mais perto para eles. Isto aqui fica a mais de trezentos quilômetros para o interior. Outra coisa: todos esses aviões só voam num sentido. Para o norte. Nenhum deles pousa aqui a caminho do sul.

— Há registros em ordem no campo de pouso?

— Não. Os mecânicos têm uma caixa para tomar nota do dinheiro recebido por serviços de pouso, combustível, etc.

— Há alguém da alfândega por lá?

— Não. Só um homem da polícia local. E dormiu durante todo o tempo em que lá estive.

— O que é que você acha, Lonergan?

— Está com toda a cara de tráfico de tóxicos, mas isso não quer dizer que os Von Halsbach estejam metidos nisso. Do contrário, não estariam tão ansiosos por vender o hotel.

— Como é que vamos apurar isso?

— Eles fizeram investimentos privados. Os livros dão alguma informação sobre os investidores? — perguntou Lonergan a Verita.

— Não. Eles entraram com parte do dinheiro. O resto veio de um sindicato.

— Seria possível ter alguma informação sobre esse sindicato? — perguntei.

— Tudo deve ter sido feito por intermédio de bancos suíços — disse Lonergan.

— Acha que Julio poderá saber, Verita?

Ela acabou de tomar o seu drinque.

— Você pode perguntar a ele quando voltarmos para Los Angeles.

Mas não foi preciso esperar tanto. Julio Vásquez esteve presente à recepção daquela tarde. E Eileen também.

O coquetel estava quase no fim quando chegamos. Agradeci ao governador o seu interesse e o fato de ter achado tempo, entre os seus múltiplos afazeres, para ir ver-me.

— Não, Sr. Brendan, nós é que estamos em dívida para com o senhor pelo seu interesse. Cremos que esta é uma das mais belas estâncias de veraneio do mundo e que pode, com os esforços de gente como o senhor, ser um verdadeiro paraíso. Asseguro-lhe da nossa parte toda a cooperação.

— Muito obrigado, Excelência. No momento, a minha única preocupação é que seja autorizada a abertura do cassino.

Sem isso, seria impossível ter êxito na operação que tenho em vista.

— Todas as autorizações locais já foram dadas. Só falta agora a aprovação do governo federal.

— Quanto tempo acha que isso ainda vai demorar?

— Não sei, mas estamos fazendo tudo o que é possível.

Eu não podia deixá-lo fugir do laço.

— Sem uma data precisa, Excelência, não me será possível fazer um investimento de tamanho vulto.

— Vou esforçar-me ao máximo para dar-lhe uma resposta em breve. Infelizmente, tenho de sair agora. Devo comparecer a um jantar muito importante em La Paz.

— Mais uma vez, muito obrigado, Excelência.

Ele estendeu a mão.

— Hasta la vista, Sr. Brendan.

Foi um aperto de mão de político, tocado de uma certa cordialidade falsa. Atravessou depois a sala, despedindo-se das pessoas. Foi acompanhado por dois guarda-costas silenciosos, cujos ternos não dissimulavam o volume das pistolas.

Aproximei-me de Lonergan e disse em resposta à sua muda interrogação:

— Nenhum compromisso definido, mas uma porção de promessas.

Nesse momento, Lonergan olhou para a porta. Segui a direção do seu olhar e vi Julio e Eileen,-que estavam entrando.

O governador parou, tomado de visível surpresa. Em seguida, os dois homens se abraçaram e deram um aperto de mãos. Trocaram algumas palavras e então Julio entrou na sala, enquanto o governador saía para o corredor.

Julio parecia conhecer todo o mundo. Parava de instante em instante para cumprimentar pessoas à medida que atravessava a sala. E havia alguma coisa estranha na maneira pela qual reagiam à sua presença. Era como se ele fosse um rei. Todos o tratavam com deferência e faziam questão de ser vistós por ele. Merecia mais atenções que o próprio governador.

Eileen se aproximou de mim e inclinou o rosto para que eu pudesse beijá-la.

— Que surpresa, hem? — exclamou ela.

Ri.

Ela se voltou para Lonergan.

1— Alô, tio John!

Ele sorriu e beijou-lhe o rosto.

— Minha querida!

Os olhos dela se voltaram para Marissa, que estava conversando com Dieter e mais dois mexicanos.

— È aquela? — perguntou.

— Você conhece as nossas regras, Eileen. Eu não lhe pergunto nada e você não me pergunta nada.

— È muito bonita!

Apontei para Julio, que estava no meio da sala.

— Quando foi que soube que ele vinha também?

— Só depois que estava no avião. Eu tinha planejado ficar brincando com o "negócio" do King Dong durante a viagem, mas não deu jeito. Julio estava sentado ao lado.

— Que foi que ele disse?

— Quase nada. Você sabe que ele é daqui e toda a família dele mora por estas bandas, não sabe?

— Não sabia.

— É estranho. Pensei que Verita já lhe tivesse dito isso.

— O assunto nunca veio à baila.

Ela me pegou pelo braço.

— Sua garota está olhando para nós. Você não acha que está na hora de sermos apresentadas?


Capítulo trinta e cinco

Eu estava deitado na banheira com água bem quente e me deixava embalar por pensamentos agradáveis quando Eileen entrou no banheiro.

— Que é que há? Não vai me dizer que já está na hora do jantar! Foi ainda há pouco que saímos do coquetel.

— Temos visitas. Julio e os Halsbach, pai e filho.

— Ah! O banho está tão bom. . . Diga que falarei com eles na hora do jantar.

Ela saiu, mas voltou um minuto depois.

— Julio diz que se trata de assunto da maior importância.

— Está bem. Irei daqui a pouco. Veja se pode chamar o tio John.

Saí da banheira, enxuguei-me, vesti um roupão de banho e fui para a sala.

Tio John já estava na sala, completamente vestido e com o seu martíni na mão. Os outros estavam bebendo tequila. Fui até o bar e me servi de um copo de água gelada. Eileen tinha desaparecido. Debrucei-me no balcão do bar e disse:

— Que é que há de tão importante, Julio?

— Verita me disse que já concluiu o exame da escrita e que encontrou tudo na mais perfeita ordem.

— Exato.

— Que é que você acha?

— Que é que eu acho de quê?

— Da proposta.

— Estou pensando ainda.

— Já tem todas as informações. Em que é que precisa pensar?

Olhei para Lonergan. Estava impassível.

— A bem dizer, em nada. Mas estou curioso a respeito de certas coisas. Por exemplo, qual a sua relação com tudo isso?

— Eu sou o banco suíço.

Sacudi a cabeça.

— Você não parece estar surpreso — disse Julio.

— Não. Já calculava isso. Eu não sabia era que você tinha tanto dinheiro.

— Bem, eu trabalho um bocado.

— Por que é então que perde tempo com isto aqui? — perguntei, olhando-o bem nos olhos.

— Ora, minha família é daqui. São todos pobres camponeses. Foi uma oportunidade que eu encontrei de fazer algum bem à região em que eles moram.

— Teria sido mais barato mandar todos os meses um cheque de cem dólares para cada um de seus parentes.

— Nós somos muito orgulhosos e não aceitaríamos esmolas.

— Tolice! Mandar dinheiro aos parentes não é dar esmolas. E eu estou começando a achar que isto aqui é um pouco pesado demais para mim.

— Será uma mina de ouro quando abrirem o jogo.

— Julio, há muito tempo que nos conhecemos. Algum dia já tentei embrulhar você?

— Não, tenente, nunca.

— Então não tente me embrulhar. Você sabe muito bem que não vai haver jogo aqui ou, se houver, será quando o jogo for legalizado em todo o México. Acha que os homens de Acapulco iam deixar que houvesse jogo aqui antes de haver lá?

— Mas nós temos promessas das mais influentes autoridades.

— Não passam de promessas. Só acredito vendo. O próprio governador me disse que estava esperando a aprovação do governo federal. Sem jogo, isto aqui não vale nem o trabalho de tocar fogo em tudo.

Julio ficou calado.

O velho conde tomou então a palavra.

— Tudo poderia dar resultado com os planos turísticos de que me falou.

—: Sim, poderiam dar resultado, mas não com as despesas no nível em que estão. Poderia dar-me por muito feliz se conseguisse cobrir as despesas.

— Por acaso você está querendo dizer com isso que não está mais interessado?

— Estou querendo dizer com isso que vou pensar. No entanto, se tiver outra pessoa interessada, tem inteira liberdade de entrar em negociações com ela.

O conde levantou-se.

— Agradeço-lhe ter falado de maneira tão franca, Sr. Brendan. Poderemos nos encontrar de novo quando tiver chegado a uma decisão.

— Muito bem.

Dieter também se levantou e saiu com o pai. Julio não se moveu da cadeira em que estava. Depois que os dois saíram, olhou para mim.

— Agora podemos falar, tenente.

— Não vou comprar esta droga, Julio. Você deve ter tido um motivo muito forte para enterrar quatro milhões aqui dentro.

— Que motivo poderia ser esse?

— Ora essa! Quinze aviões particulares por semana e todos em viagem para o norte. Quer que eu seja mais claro?

Julio tomou mais um gole de tequila. Falou com um sorriso nos lábios, mas com os olhos frios.

— Como foi que soube disso?

— Você sabe muito bem que não é possível impedir as pessoas de falar.

— Quem fala demais pode acabar morrendo.

— Quem fala demais poderia fazer-me fechar as portas se eu comprasse isto aqui.

— O hotel nada tem a ver com o campo de pouso.

— A quem pertence então?

— Ao governo local.

— Quer dizer que os Von Halsbach nem entram nos lucros do tráfico. Vocês os abandonou realmente no meio do caminho.

— Foram eles que construíram o hotel e não eu.

— Quem os levou a acreditar que poderíam abrir o jogo aqui? Você tem muitos amigos aqui, como pude ver ainda há pouco no coquetel.

— Não estariam nessa situação se Dieter não tivesse desmoralizado o hotel, trazendo todos aqueles caras. Do contrário, tudo teria dado certo.

— E nada há que se possa fazer agora.

Julio voltou-se para meu tio e lhe perguntou muito respeitosamente:

— Que acha de tudo isso, Sr. Lonergan?

— Sou apenas um observador. Não me interessam os seus negócios. Deve saber que nunca fiz qualquer espécie de tráfico.

Julio se voltou para mim.

— Se você comprar o hotel, como é que eu fico?

— Não vai ficar. O dinheiro do banco suíço pode continuar, mas os aviões particulares não poderão nem aproximar-se daqui.

— Isso representa muito dinheiro para mim.

— É uma decisão que você terá de tomar antes que eu tome a minha.

Julio levantou-se.

— Nós dois temos muito o que pensar.

— Está bem.

Logo que ele saiu, voltei-me para meu tio.

— Então?

— Não sei. Ele deve estar fazendo pelo menos um milhão de dólares por semana. Não vai desistir com facilidade.

— Julio está muito deprimido — disse-me Verita à mesa do jantar. — Acha que você não gosta dele.

— Não gosto como? O que não quero é que ele continue com os seus negócios perto daqui se eu comprar o hotel.

— Você não o convidou para jantar.Compreendí de repente. Era um caso pessoal. Afinal de contas, éramos velhos amigos e tínhamos estado no Exército juntos.

— Onde é que ele está, Verita?

— No quarto dele.

— Ligue para lá e diga que estou chamando. Presumi que viria naturalmente sentar-se à nossa mesa e por isso não lhe disse nada.

Verita assentiu e saiu da mesa. Eileen olhou para mim e perguntou:

— Que é que está havendo?

— Nada.

— Por que não convence seu sobrinho a ficar só com as revistas, tio John? Ele na verdade não precisa disto aqui.

— Ele nunca me ouviu quando ainda era garoto. Acha que vai começar agora?

Verita voltou.

— Ele já vai descer. Ficou muito satisfeito.

Julio apareceu cinco minutos depois, todo sorridente num terno de linho branco.

— Desculpe o atraso.

Poucos minutos depois, Dieter e Marissa sentaram-se também à nossa mesa e tivemos outro soberbo jantar.

— Há um espetáculo de mariachi1(1 Música mexicana típica. (N. do T.) e de danças populares na praia esta noite — disse Dieter depois que nos levantamos.

— Não sou tão moço como vocês — disse Lonergan. — Prefiro ir para a cama.

Olhei-o espantado. Em Los Angeles, ele nunca ia para a cama antes das cinco da manhã e ainda não era meia-noite.

— Está sentindo alguma coisa, tio John?

— Não, nada disso. Acho que me cansei um pouco de tanto sol e tanto ar.

Fomos para a praia. Havia uma fogueira acesa e muitas mantas estavam estendidas na areia. Uma orquestra de cinco pessoas estava tocando La cucar acha. As danças começaram. Eram amadores, todos gente do hotel, mas dançavam com prazer. Todos nós marcávamos instintivamente o compasso. De repente, Marissa se levantou e começou a dançar. Verita seguiu-a e, depois de um momento de hesitação, Eileen. Julio olhava tudo sorrindo. Verita o fez levantar-se e levou-o para dançar.

Verita e Julio dançavam tão bem que, ao fim de algum tempo, todos pararam a fim de apreciá-los.

Estendi o corpo numa manta e Dieter, que estava ao meu lado, disse:

— Deve pensar que somos muito imbecis para não saber o que é que está acontecendo aqui, não é, Sr. Brendan?

Preferi não dizer coisa alguma.

— Mas acontece que nada podemos fazer. Não se esqueça de que somos novos neste lugar e uma palavra contrária deles poderia despojar-nos de tudo o que ainda temos.

— Se isso pode acontecer com vocês, que são cidadãos mexicanos, imagine o que poderia acontecer comigo.

— Não é a mesma coisa. O senhor é um gringo. E ainda que não gostem dos gringos, respeitam o dinheiro e os negócios que trazem. Não teriam coragem de fazer nada contra o senhor. Além do mais, há seu tio.

— Que é que tem meu tio?

— É um homem muito importante em Los Angeles, não é? Creio que ele é o único homem que Julio respeita. Julio é muito importante aqui, mas seu tio é ainda mais. Soube que sem a permissão de seu tio, Julio nem poderia existir em Los Angeles.

Julio estava sorridente e todo feliz dançando com Verita. Todos os homens que olhavam em volta se pareciam com Julio. Ele estava verdadeiramente em casa.

Mas Lonergan tinha ido para a cama. Percebi de repente que ele se transformara desde o momento em que Julio aparecera. Metera-se dentro de si mesmo como um patrão que não quer intimidades com subalternos. E lembrei-me de que ele me dissera tempos antes que Julio só me havia ajudado porque fora autorizado por ele.

Olhei então para Dieter e perguntei:

— O que você realmente sabe a esse respeito?

— Sei o bastante para ter certeza de que Julio nunca deixaria de usar o campo de pouso para o seu tráfico por sua causa. O único homem que pode obrigá-lo a fazer isso é seu tio.


Capítulo trinta e seis

Fiquei estendido sobre a coberta, deixando a música encher-me os ouvidos e olhando para as estrelas. O céu estava azul-escuro e as estrelas brilhavam como as luzes de uma árvore de Natal.

Ouvi a voz suave de Marissa que me sussurrava:

— Estou tão triste.

— Por quê? A vida aqui é bela.

— As coisas nunca são o que parecem, não acha?

— A realidade é aquilo que se vê. Ainda que ninguém mais no mundo veja o que a gente vê, nem por isso a nossa visão é menos real.

Ela sorriu.

— Você tem uma explicação para tudo.

— Bem que eu gostaria de ter. A vida seria mais simples — disse eu, sentando-me.

Ouvimos um coro de risadas. Os modelos, Bobby, a turma da fotografia e King Dong tinham chegado à praia e estavam começando a pular em volta da fogueira.

Bobby sentou-se ao meu lado. .

— Quando ouviram a música, não houve jeito de segurá-los.

— Está bem, está bem. Deixe que eles se divirtam um pouco.

— Temos trabalho amanhã às sete horas e não vou conseguir fazer com que eles se levantem tão cedo.

— Não se incomode com isso.

— Como é? Já resolveu, Gareth?

— Ainda não.

— Se é questão de dinheiro, meu pai já disse que está interessado.

— Não é o dinheiro.

Bobby olhou para Marissa.

— Gostaria de fazer uma série com você.

— Uma série?

— Sim. De fotografias — expliquei.

— Ah! Creio que não gostaria.

— Por quê? — perguntou Bobby. — Você tem um corpo lindo e fotografaria muito bem.

— Não é o meu gênero. Seria embaraçoso para mim.

— Diga a ela que nós, fotógrafos, somos indiferentes a essas coisas, Gareth.

— Estou certo de que ela sabe disso.

— Você, como dono da revista, devia ajudar-nos um pouco. Ela daria um maravilhoso pôster central na revista — disse Bobby, encolhendo os ombros e levantando-se. — Essa música é fantástica!

A orquestra estava tocando num ritmo mais rápido e todos começaram a dançar como alucinados. O que eles haviam tomado já estava fazendo efeito. Samantha, o modelo, deu o exemplo. Tirou o sutiã e a saia e correu para o mar. Os outros modelos não tardaram a fazer exatamente o mesmo. No meio daquela confusão de gente ululante a se despir e correr para o mar, a orquestra subitamente parou.

Olhei para eles. Todos, homens e mulheres, tinham os olhos pregados em King Dong. Lentamente, ele tirou as calças. Ouviu-se um "oh" de admiração ante a sua esplêndida nudez.

Os olhos de Dieter ficaram vidrados e Julio estava boquiaberto. As garotas também não conseguiam desviar os olhos, inteiramente fascinadas com o que estavam vendo. Qualquer pessoa que diga que uma mulher não se impressiona quando vê um membro avantajado de homem não sabe o que está falando.

A voz de Julio quebrou o silêncio: "El toro".

Todos riram.

— É inacreditável! — disse Dieter com voz emocionada.

Começou a dirigir-se para King Dong, mas este já estava correndo para a água e mergulhou, furando a onda com grande perícia. As garotas o rodearam, alvoroçadas, quando ele voltou à superfície.

Eileen deixou-se cair na manta ao meu lado.

— Meus joelhos estão dobrando — ela disse.

— Ele impressionou você? — perguntei rindo.

— Estou toda molhada. Quase gozei só de espiar. Imagino como será quando está duro — ela disse.

— Isso ninguém jamais verá!

— Por quê?

— Porque antes de atingir a ereção completa o sangue que o pênis terá sugado do corpo será tanto que ele pode até desmaiar — disse eu fazendo uma cara muito séria.

Vi nesse ponto que Marissa nos olhava com uma estranha expressão no rosto. Estendi a mão, peguei-a e puxei-a para o meu outro lado. Ela aparentava estar muito séria, por isso beijei-a na boca, macia e úmida.

Ela logo se afastou e disse:

— É melhor eu ir para o meu quarto.

— Mas nós dois não estamos juntos? — perguntei.

Ela olhou para Eileen e respondeu:

— Não neste momento, em que você está com sua amiguinha.

— Nada mudou aqui — contestei. — Afinal de contas, não somos todos amigos?

— É verdade — concordou Eileen, mansamente. — Amigos — repetiu ela tocando com os dedos, delicadamente, no rosto de Marissa.

Marissa levantou-se, arregalou os> olhos e disse:

— Creio que vou para o meu quarto. . .

Deu dois passos, cambaleou e começou a cair. Segurei-a antes que batesse na areia e deitei-a na manta. Estava pálida e suava muito.

Eileen parecia apavorada.

— Perdeu os sentidos — disse eu.

— Posso fazer alguma coisa?

— Uma compressa molhada na testa não lhe poderia fazer mal.

Eileen correu para o mar e molhou na água o le-nço que trazia ao pescoço. Isso realmente não adiantava muito, mas pelo menos lhe daria a ilusão de ter prestado socorro. A única coisa que podia curar Marissa era repouso.

Eileen e eu levamo-la para o bangalô. Estendi-a no sofá. Havia um bilhete em cima da mesinha. Era de Lonergan e dizia:

"Gareth:

Acho que dormirei melhor no hotel. Vou para lá. Até amanhã".

— Podemos levá-la para o outro quarto — disse eu a Eileen. — Tio John foi dormir no hotel.

Deixei Eileen no quarto com Marissa e preparei um drinque no bar. Depois, levei o drinque para o jardim e atirei-me numa cadeira. Ouvi os risos dos modelos que voltavam da praia e a voz de Bobby que dava instruções para o trabalho do dia seguinte. Depois, houve silêncio, A festa havia acabado.

Eileen aproximou-se da cadeira e disse:

— Ela está dormindo.

Fiquei calado.

— Vou voltar no avião da manhã, Gareth.

— Por quê?

— Eu não devia ter vindo. Não tinha nada que fazer aqui. Trabalho nas revistas.

— Não há motivo algum para essa sua reação.

— Estou enciumada, sabe? Posso agüentar as pequenas com quem você está em Los Angeles mas, quando você está fora, fico como uma alucinada, imaginando que você pode encontrar alguma mulher por quem realmente se apaixone.

— Se eu encontrar alguém assim, você será a primeira a saber.

Mas ela não estava com disposição para brincadeiras.

— Vá para o inferno! Não quero ser a primeira a saber. Diga a sua mãe! Ela é que não me dá descanso, sempre querendo saber quando é que você vai se casar. Ela diz que, com trinta e cinco anos, você já está até passando da idade.

— Ela conversa mesmo sobre essas coisas com você?

— Conversa.

— Por que é que ela não fala comigo?

— Como é que eu vou saber? Sua mãe tem medo de você. Ela diz que nunca poderia falar francamente com você. Eu é que não posso dizer a ela que a mim pouco me interessa com que mulheres você ande ou deixe de andar!

Tomei-lhe a mão e disse:

— Calma. . .

A tensão diminuiu e eu a fiz sentar-se na cadeira ao meu lado. Acariciei-lhe ternamente o rosto e senti as lágrimas que lhe desciam dos olhos.

— Não fique assim, querida.

— Tenho de ficar. Quebrei todos os nossos acordos. Descontrolei-me por completo.

— Calma, menina. Nunca houve acordos que pudessem regular as relações de duas pessoas que se amam.

Ela descansou a cabeça no meu peito.

— Por que foi que as coisas ficaram tão complicadas, Gareth? Lembra-se do tempo em que começamos a revista? Não havia horas do dia que chegassem para nós e eu fui viver com você naquele pequeno apartamento em cima da redação. Naquele tempo, éramos só você e eu.

— Lembro-me — murmurei, acariciando-a.

Mas, pensei, a memória é uma coisa curiosa e muito particular. A gente só se recorda daquilo que quer. Deixamos de lado as coisas que consideramos sem importância.

No que lhe dizia respeito, ela estava certa. Éramos só nós dois. Mas ela esquecia que tinha havido também Denise.


Capítulo trinta e sete

Eileen tinha a voz cansada quando colocou uma pasta diante de mim na mesa da cozinha.

— Aí estão as "Viagens Mentais" para o número de maio. Cerca de cem linhas para a viagem do homem e quase cento e cinqüenta para a da mulher.

— Por que tanta diferença, Eileen? Dizem que as mulheres falam mais que os homens, mas ainda assim. . .

— Escrever sobre as fantasias sexuais das mulheres é mais fácil para mim do que escrever sobre as dos homens. De qualquer maneira, não posso mais fazer isso. Temos de procurar alguém que nos ajude na redação.

Abri a pasta. Com ilustrações, a matéria podia ser esticada para umas seis páginas.

— Agüente um pouco, Eileen. Estaremos nas bancas na semana que vem. Se as. coisas correrem como espero, você poderá contratar metade da cidade para trabalhar na redação. Já são duas horas da madrugada. Vá para casa e durma um pouco. Recomeçaremos amanhã.

— Amanhã é domingo.

— Neste caso, passe o dia de amanhã na cama e ponha o sono em dia.

— Ainda tenho algumas coisas para escrever, inclusive o terceiro capítulo da Fanny Hill Moderna.

— Isso pode esperar até segunda-feira.

— E você, que é que vai fazer?

— Bobby me deixou seis layouts. Tenho de escolher as fotografias, decidir qual vai ser a "Cama do Mês" e escrever os textos e as legendas. O meu problema é semelhante ao seu. Estou meio sem idéias para dar destaque a ninfomaníaca$.

— E todas elas têm de ser isso?

— Quando todas as fotografias as mostram ostentando o corpo, que é que você quer que elas sejam?

— Não sei. Às vezes penso.. .

Levantou-se e ficou calada.

— Que é que você pensa?

— Não tem importância. Acho que estou cansada. . .

— De qualquer maneira diga aquilo em que está pensando.

— Tudo isso me parece muito vulgar. É como se nada mais existisse no mundo além do sexo. Não tirei o meu diploma de jornalismo para fazer isso.

— Mas você tem opções. Não é obrigada a fazer o que não lhe agrada.

— E você tem opções, Gareth?

— Não tenho mais. Pensei que tivesse, mas agora já não tenho ilusões. Tinha muitos sonhos quando voltei do Vietnam. Queria dizer a todos o que tínhamos passado por lá. Mas ninguém me deu atenção, à exceção de alguns políticos que queriam fazer média. O povo nem me ouviu e os sonhos morreram. Estou agora dando ao público o que ele de fato deseja. Nossas revistas servem às ilusões deles, como os seus carros, a sua cerveja e a sua televisão.

— Acredita realmente nisso?

— Não. Procuro apenas me justificar. Mas acho que agora já sou homem feito. Se não posso moldar a sociedade à minha imagem, ao menos procurarei me aproveitar da sociedade real da melhor maneira. E o nome do jogo é dinheiro. Se der certo, vou ficar rico.

— E será feliz com isso?

— Não sei. Mas eu também não era feliz quando estava na pior. Ter dinheiro ajuda muito a suportar a infelicidade.

— Talvez você tenha razão. Em todo caso, vou seguir o seu conselho e passar o dia de amanhã na cama.

— Vou levá-la até o carro.

As ruas estavam quase desertas. Só de vez em quando passava um carro, enquanto nos encaminhávamos para a esquina onde ela havia estacionado. Eileen abriu a porta do carro, entrou e desceu o vidro do meu lado.

— Estou começando a achar que não tem sentido sair daqui todas as noites para voltar de novo na manhã seguinte.

Eu não disse nada.

— Por que você nunca me convidou para ficar, Gareth?

— Naquele apartamento? Você sabe como é aquilo. Um verdadeiro buraco, com papéis espalhados por todos os lados.

— Já esteve com mulheres lá. Por que não comigo?

— Você é diferente.

— Diferente em quê? Eu também gosto de sexo.

— Não é isso — disse eu sacudindo a cabeça.

— Você ainda me considera uma criança, mas acontece que eu não sou mais. Sei exatamente o que você pensa. Compreendo-o e me interesso por você.

— Sei disso. Mas com você é outra coisa. Você é um compromisso.

— E você não quer compromissos?

— Enquanto não souber onde estou e o que sou, não.

Ela girou a chave na ignição e ligou o motor. Estendeu o rosto pela janela e eu a beijei.

— Sei quem você é, Gareth — disse ela com voz suave. — Por que você não sabe?

Vi o carro tomar rapidamente o caminho de Beverly Hills e voltei a passos lentos pelo passeio.

A porta se abriu assim que a toquei. Lembrei-me então que não a havia trancado. Entrei, tranquei a porta e subi para o apartamento.

Fiz uma xícara de café solúvel. Quando acabei de tomá-la tive a impressão de que a porta do quarto, às minhas costas, dera um estalo. Não era possível. Eu estava sozinho no apartamento. Estava tão cansado que começava a ter alucinações. Ouvi então a porta estalar de novo e me levantei da cadeira.

Denise estava à porta do quarto, vestida com o uniforme de criadinha que usara durante quase um ano.

— Oh, que merda! — murmurei.

— Gareth — disse ela com alguma hesitação na voz —, pósso voltar ao meu velho emprego?

Por um momento, eu nada disse. Compreendí então que não se tratava de uma alucinação e abri os braços para ela. Denise se aproximou e encostou o rosto em meu peito.

— Por onde foi que você andou, menina?

Senti o corpo de Denise tremer de encontro ao meu.

— Gareth, por que não me mandou buscar como prometeu?

Depois de passarmos muito tempo na cama, ela me disse:

— Suas partículas de energia estão difusas.

Vi a claridade da manhã que irrompia pelas janelas e disse:

— Não é de admirar. Há horas que estamos aqui.

— Não é isso. Consegui o orgasmo uma porção de vezes, mas você não gozou uma vez sequer.

— É que estou muito cansado e nervoso. . .

— Não é nada disso. Estou agora no terceiro plano e sei das coisas.

— Que é então?

— Você a ama. É isso.

— A quem está se referindo?

— A Eileen.

— Você está louca!

— Não, não estou. Já lhe disse que estou no terceiro plano e vejo as coisas com mais clareza. Eu estava do outro lado da rua quando você saiu de casa com ela. Vi como as auras de vocês dois se fundiram enquanto iam para o carro. Fundiram-se com amor e, quando vocês se beijaram, a luz era tanta que podia transformar a noite em dia. Só não compreendo é por que ela não está aqui com você.

Olhei-a, espantado.

— Eu não me importaria, Gareth. Amo você, você a ama e é claro que eu a amo também.

A tarde já ia em meio quando acordei e o sol começava a descambar para o poente. Sentei-me na cama e peguei um cigarro. A porta do quarto estava fechada mas eu ouvia lá fora o rádio ligado. Acendi o cigarro e fui para o banheiro. Quando voltei ao quarto, Denise estava à minha espera com uma bandeja nas mãos.

— Volte para a cama, Gareth.

— Mas eu tenho de trabalhar.

— Volte para a cama e coma o que eu lhe trouxe. Não vai trabalhar hoje. Vai deixar que as partículas de energia se reagrupem.

O cheiro do café, dos ovos e do bife me despertou o apetite. Eu não sabia que estava com tanta fome. Voltei para a cama e ela ajeitou a bandeja no meu colo.

Provei o copo de suco de laranja enquanto ela servia o café.

— Não sabia que havia tanta coisa na geladeira.

— A geladeira estava vazia — disse Denise. — Fui fazer compras enquanto você dormia.

Ela me olhou por um momento e se dirigiu para a porta.

— Quando acabar, me chame para pegar a bandeja. Vai dormir de novo.

— E que é que você vai fazer?

— Ajeitar as coisas aqui dentro. Nunca vi tamanha desarrumação. Parece que ninguém limpa isto aqui há meses.

Fechou a porta e eu cortei um pedaço do bife. Estava perfeito, malpassado e rosado. Os ovos estavam também inteiramente a meu gosto, com as gemas quentes e moles. Limpei o prato como se não comesse há meses.

Ela parecia ter um sexto sentido pois entrou no quarto no momento em que eu acabei e pegou a bandeja.

— Deixe o bule de café aqui, Denise.

— Nada feito. Você tem de dormir agora mesmo.

— Não estou com sono.

Mas estava enganado. Recostei-me nos travesseiros, fechei os olhos apenas por um instante e quando dei por mim eram nove horas da noite. O sexto sentido deve ter funcionado de novo pois ela entrou no quarto logo que eu acordei.

— Que foi que você pôs na comida? — perguntei-lhe. — Eu apaguei completamente.

— Não coloquei nada. Você estava apenas compensando uma deficiência de sono. Agora, vá tomar um bom banho quente enquanto eu mudo a roupa de cama. Depois, vista um robe bem confortável e venha para a mesa. Tenho uma bela galinha assada no forno.

Não podia discutir. Havia muito tempo que eu não me sentia tão bem. Levantei-me da cama e beijei-lhe a ponta do nariz.

— Por que você é tão boa para mim, Denise?

— Porque gosto de você, não sabia? Agora, vá tomar seu banho, ande.

Quando saí do banheiro (meia hora depois), estava achando o mundo resplandecente. Escovei os cabelos e procurei o robe, mas não o encontrei. Fui achá-lo no quarto, lavado e passado, em cima da cama. Vesti-o e fui para a sala de jantar. Parei à porta, atônito.

Os móveis tinham sido tirados do lugar e estavam arrumados de um jeito que tornava a sala muito mais espaçosa. A área de trabalho tinha sido deslocada para junto da porta numa arrumação compacta, ao invés de ficar dispersa como até então. O sofá estava encostado à parede nos fundos da sala. Havia uma mesa de coquetel em frente ao sofá e uma poltrona em ângulo reto, criando um canto confortável para conversas. A pequena mesa de jantar redonda tinha sido levada da cozinha para perto de uma janela. Estava muito bem posta com uma toalha de linho cor-de-rosa, louça de jantar, copos de vinho e travessas de prata. No centro havia um castiçal de cristal combinando com um vaso de flores com uma rosa vermelha e uma vela acesa. Perto, havia uma garrafa de Château Mouton Rotschild já aberta.

Mas foi a visão de Eileen, que se encaminhava para mim com um uísque on the rocks na mão e um sorriso trêmulo nos lábios, o que mais me surpreendeu.

— Está gostando? — perguntou ela. — Trabalhamos a tarde inteira.

Olhei-a sem saber o que dizer. Denise chegou, carregando uma mala.

— Sente-se, rapaz, e tome o seu drinque enquanto eu abro a mala de Eileen.

Só então pude falar e perguntei a Eileen:

— Por que foi que veio?

— .Telefonei para ela e falei das auras de vocês — disse Denise.

— Mas isso é uma loucura.

— Loucura nada! É só olhar para vocês dois agora. A incandescência dos dois está iluminando a sala toda.

Denise entrou no quarto e eu perguntei a Eileen:

— Você acredita nessa tolice?

— Acho que sim. Estou aqui, não estou?

Larguei o copo de uísque e ela caiu em meus braços. Os lábios dela eram macios e quentes e a pressão do seu corpo no meu era uma coisa que evidentemente me estava faltando.

A mesa estava posta para duas pessoas e quando chamei Denise para sentar-se conosco, ela disse:

— Não. As auras de vocês ainda não estão prontas para mim.

Não sei sobre o que eu e Eileen conversamos. O jantar estava delicioso, mas não me lembro de ter comido. De repente, deu meia-noite e não vimos mais Denise. Nenhum de nós a vira sair.

— Para onde ela foi?

— Não sei.

Provei o vinho.

— Acha que ela pode ser como Cinderela, que tinha de desaparecer à meia-noite?

Eileen riu.

— Não. Cinderela sou eu. E você é o Príncipe Encantado.

Peguei a garrafa de vinho.

— Vamos para o quarto.

Abri a porta e vi que Denise tinha exercido ali também as suas artes mágicas. A cama estava feita, uma vela estava acesa na mesa-de-cabeceira e havia um bilhete em cima do travesseiro.

Eileen se aproximou e apanhou o bilhete.

— Que é que diz? — perguntei.

— "Paz e amor."

Deixei a garrafa de vinho na mesa-de-cabeceira.

— Ainda não me disse, Eileen, como foi que ela fez com que você viesse para cá.

— Disse que só comigo você podia recuperar a paz de espírito. Só eu poderia fazer as suas partículas de energia se reagruparem para reintegrá-lo.

— E você acredita nisso?

— Claro que acredito. Ela me disse que você passou horas com ela e não teve um só orgasmo. Mas não vai ser assim esta noite — disse ela, acariciando-me.

Eu não sabia até que ponto ela estava certa, mas logo descobri. Estar com ela era encontrar as fontes de minha vida.

Deitei-me depois, com a cabeça dela pousada em meu ombro. Ela se virou e me disse:

— Como eu te amo!

Eu ia dizer alguma coisa, mas ela pôs o dedo em meus lábios.

— Não diga nada. Ainda não está na hora.

Fiquei calado. Havia ainda muito para aprender a respeito de mim mesmo.

— Dê-me um beijo de boa-noite e vamos dormir, meu amor.

Acordei à primeira claridade do dia. Olhei para Eileen. Estava mergulhada num sono profundo, com o rosto suave c vulnerável. Não a toquei. Levantei-me, fechei as cortinas e saí do quarto. Fui para a cozinha, acendí a luz e comecei a fazer café.

— Pode deixar isso comigo — disse a voz de Denise às minhas costas.

Voltei-me e vi-a nua junto à porta.

— De onde você saiu? — perguntei.

— Dali — disse ela, mostrando a cama feita no sofá.

— Pensei que tivesse saído.

— Sair para onde? Eu trabalho aqui, não trabalho? Achei que seria bom vocês dois ficarem sós durante algum tempo.

— Muita atenção da sua parte. Quando foi que voltou?

— Logo depois que vocês apagaram a luz da sala.

— Passou então a noite inteira aqui?

— Claro — disse ela sorrindo. — E foi uma coisa muito bonita. Ela conseguiu reagrupar as suas partículas de energia. Você conseguiu. Quatro vezes.

— Não tomei nota. Mas como é que você sabe disso? Estava espiando pelo buraco da fechadura?

— Não é preciso. Estou ligada à sua aura e sei de tudo.

— Ah! Agora não posso mais ter minha vida particular. Isso não pode dar certo.

— Não seja tão negativo. Tudo vai dar certo. Você vaj ver.


Capítulo trinta e oito

Macho foi parar nas bancas na terceira semana de abril. Na segunda-feira seguinte a campanha de publicidade foi lançada a toda velocidade. Nossos anúncios apareceram em cinqüenta e cinco estações independentes de televisão, em quatrocentas e nove estações de rádio e em cento e sessenta jornais nas principais cidades dos Estados Unidos. Era uma campanha de saturação, planejada para durar uma semana, mas não foi assim que aconteceu.

Na quarta-feira, estávamos fora da televisão por completo. Apenas vinte e um jornais continuavam a aceitar os nossos anúncios e só cerca de cento e quarenta estações de rádio transmitiam ainda os nossos comerciais. Na sexta-feira, em várias cidades, a polícia apreendeu a revista em noventa e três bancas e prendeu quarenta e dois jornaleiros. Os jornais do grupo Hearst em todo o país publicaram um artigo censurando o fato de que uma revista assim tivesse merecido publicidade, sem mencionar o fato de que eles mesmos haviam publicado o anúncio na segunda e na terça-feira. No domingo, dois detetives da polícia de Los Angeles me entregaram uma intimação para que eu comparecesse na sexta-feira seguinte ao tribunal sob a acusação de perturbação da ordem pública e de contravenção. O fato foi transmitido como notícia pelas agências telegráficas e divulgado em todos os veículos nacionais — televisão, rádio e jornais. Na quarta-feira, dois dias antes daquele em que eu devia comparecer ao tribunal, Ronzi estava me atazanando para levar a revista de novo para as máquinas, pois a edição estava esgotada. Um milhão de exemplares. Tudo vendido.

Na quinta-feira à noite, a atriz que fazia na televisão o programa conhecido como The Tonight Show apareceu para a fala inicial com um gigantesco chapéu branco de cowboy e tendo sobre o vestido um saco de plástico no qual estava pintado um biquíni de bolinhas. Levava um revólver enorme em cada mão. Fotografada em primeiro plano pelas câmaras, enfrentou o público, dizendo com voz estridente: "Quem é homem bastante para vir rasgar o meu biquíni?" Um piano tocava ao fundo a velha música Pistol packin’ mama.1(1 Mamãe pistoleira. (N. do T.) O sucesso foi completo.

Todos nos reunimos para assistir ao programa, avisados pelos nossos distribuidores no leste, que o tinham visto três horas antes.

— Depois disso, você tem de fazer uma reimpressão — disse Ronzi. — Podemos vender mais quinhentos mil exemplares.

— Nada disso. Já ordenei que começassem a rodar o segundo número.

— Quer dizer que não teremos nada nas bancas durante mais quinze dias.

— Exato.

— Não pode fazê-lo mudar de idéia? — disse Ronzi, voltando-se para Lonergan.

— Nada disso. O diretor da revista é ele — disse Lonergan sorrindo.

— Como pode? — exclamou Ronzi. — São mais trezentos mil dólares que deixamos fugir de nossas mãos.

— Acho que não. Isso só servirá para aumentar a procura do segundo número. Todo o mundo vai querer ver o que perdeu com o primeiro.

— Assim eu não tenho lucro — murmurou Ronzi.

— Você já teve. Além dos lucros normais, ainda vai levar uma comissão de cinco por cento sobre o primeiro número.

— Faça o mesmo trato comigo e eu lhe garanto de novo um milhão de exemplares — disse Ronzi.

— Nada disso. Aquilo foi apenas uma experiência para você ver as possibilidades. Nada de comissão. Mas vou lhe dar uma chance. Já ordenei para o próximo número uma tiragem de um milhão e um quarto.

— Agora, tenho certeza de que você é maluco mesmo. Quem lhe deu a idéia de que podemos vender tanto assim?

— Você. Não estaria pedindo a comissão de novo se não soubesse que a coisa é garantida.

— Qual vai ser a capa?

— A idéia vai ser basicamente a mesma. Só que dessa vez a pequena aparecerá de costas. Está curvada com as mãos nos joelhos, tem um gorro com pompom na cabeça e olha para trás, por cima do ombro. Usa uma minissaia vermelha colada com um material que permite tirá-la com facilidade. A legenda é quase a mesma: "Será que você é homem bastante para rasgar minha saia?"

— Gosto disso — murmurou Ronzi.

— Muito obrigado. Quais são as últimas notícias sobre os jornaleiros presos?

— Todos soltos, exceto dois. O juiz não aceitou as acusações ou aplicou apenas uma pequena multa. Gastamos onze mil dólares até agora, inclusive com os honorários dos advogados.

— E os dois que sobraram?

— As audiências estão marcadas para a semana que vem. Mas não espero maiores problemas.

— Ótimo. Mande a cada um dos jornaleiros que foram presos um cheque de cem dólares, em sinal de agradecimento da minha parte.

— Isso é um erro. Quando souber disso, tudo quanto é jornaleiro do país vai procurar ser preso para receber os cem dólares.

— Não faz mal. Mande os cheques assim mesmo.

— Está bem. O dinheiro é seu.

Depois que ele saiu, eu disse a Lonergan:

— Espero sair-me tão bem do caso amanhã quanto os jornaleiros.

— Não tenha receio — disse calmamente tio John. — O caso será arquivado.

E foi o que aconteceu.

Fui para a sala de audiências com um advogado, mas poderia ter ido sozinho. O promotor público disse alguma coisa sobre a publicação e responsabilidade da distribuição de material pornográfico. O juiz proferiu então a sua decisão, de que eu só pude pegar algumas palavras.

— Não se aplicam no caso... os dispositivos sobre perturbação da ordem pública e muito menos. . .

Fez um gesto e bateu o seu martelo, dizendo:

— Arquivem-se as acusações ao réu sob o fundamento de terem sido impropriamente articuladas.

Os repórteres e o pessoal de televisão estavam esperando no corredor quando eu saí. Reuniram-se em torno de mim.

— Está satisfeito com a decisão do juiz?

— É claro que estou.

— Está de acordo com os fundamentos da decisão do juiz?

Olhei para o meu advogado. O homem tinha afinal uma oportunidade de falar e disse:

— O juiz mandou arquivar o processo contra o Sr. Brendan porque se convenceu de que nenhuma lei, nenhum dispositivo, nada enfim, foi violado com a publicação da revista Macho.

— Isso quer dizer que a revista continuará à venda nas bancas?

— A revista nunca foi retirada das bancas.

— Procurei comprar um número em várias bancas e não a encontrei — disse um dos repórteres.

— É natural. A edição está esgotada.

— Se quisermos um número, onde poderemos encontrá-lo?

— Perguntem a algum vizinho. Se ele não quiser vender, peçam emprestado.

— Pretende continuar a publicar a revista?

— Claro que sim. O segundo número já está nas oficinas e deverá estar nas bancas daqui a quinze dias.

— A capa do segundo número será tão provocante quanto a do primeiro?

— Julguem por si mesmos — disse eu, tirando da pasta uma cópia da nova capa. Flashes espocaram e eu vi as câmaras de televisão entrarem em ação.

Foi assim que a capa do segundo número foi divulgada pela televisão. O número se esgotou logo na primeira semana e, depois disso, acrescentamos todos os meses de cinqüenta a cem mil exemplares à nossa circulação. Seis meses depois, Macho estava vendendo, em média, um milhão e meio de exemplares por mês e estávamos tendo mais de meio milhão de dólares de lucro em cada número.

Em agosto, compreendí que tinha uma grande indústria nas mãos. A loja embaixo do apartamento se tornou muito pequena para nós. Tivemos de alugar outro imóvel na mesma rua e, depois, mais outro, algumas ruas adiante. No local primitivo ficaram a contabilidade e a redação. Verita tinha sete empregados e duas secretárias no seu departamento. Eileen tinha sob suas ordens doze revisores e redatores, bem como quatro secretárias. Arrumamos um dos imóveis alugados como estúdio fotográfico para Bobby, que tinha sob sua direção quatro fotógrafos, três assistentes, um encarregado do material, um desenhista, um costureiro, um editor fotográfico e duas secretárias. A produção e a mecanografia com doze empregados ficavam num prédio separado. O espaço, adquirido por último alojava os departamentos de correspondência e de ilustrações. Incluindo as duas telefonistas, que trabalhavam numa mesa debaixo da escada no prédio central, tínhamos um total de sessenta e quatro empregados.

Denise se esforçava por manter o apartamento em ordem, mas sem grande êxito. Havia reuniões o dia inteiro. Muitas vezes se prolongavam pela noite. Tudo vivia desarrumado, apesar de uma turma de limpeza que trabalhava todas as noites.

Naquela noite de agosto, o calor ainda era grande apesar dos aparelhos de ar condicionado nas janelas. A reunião editorial estava terminando. Passava da meia-noite e a reunião tinha começado às nove horas.

O jovem preto que dirigia o departamento de correspondência disse com alguma hesitação:

— Posso falar, Sr. Brendan?

Era a primeira vez que ele abria a boca nos três meses em que vinha comparecendo às reuniões.

— Pode, sim, Jack.

— Não sei se o senhor vai aprovar ou não, mas vou lhe dizer a minha idéia. Lembra-se de uma série de artigos que publicamos há dois meses sobre certos afrodisíacos e objetos próprios para aumentar o prazer?

— Lembro-me sim.

— Desde que os artigos começaram, temos recebido cerca de seiscentas cartas, perguntando onde podem ser encontrados esses produtos.

— Envie uma circular dizendo que eles devem dirigir-se à sex shop mais próxima.

— Quase todas as cartas vêm de cidades do interior e de pessoas que não encontram o que querem em suas cidades e que ficariam mesmo embaraçadas de entrar em uma dessas lojas.

Compreendi mais ou menos onde ele queria chegar.

— Continue.

— Resolvi então fazer algumas investigações. Falei sobre o assunto com o proprietário de uma sex shop perto do Teatro Pussy Cat e ele se entusiasmou a ponto de querer colocar todos os meses na revista duas páginas de anúncios. Disse-lhe que não publicávamos anúncios e ele então propôs instalar um serviço de reembolso postal e pagar-nos vinte por cento de comissão sobre o total das vendas.

— Muito interessante, Jack.

— Foi o que pensei. Por isso, procurei saber onde a maior parte dos artigos eram comprados e fiquei sabendo então que os preços variam muito por atacado e a varejo, de modo que os vinte por cento que o homem nos queria dar na realidade não significam nada.

— Tem alguma idéia?

— Tenho, sim. Há um grande porão vago nesta rua. Podemos alugá-lo, enchê-lo com os artigos de maior saída mencionados em nossa revista e atender às encomendas feitas nas cartas. Calculo que teremos um movimento de trinta ou quarenta mil dólares por mês, com um lucro líquido de cinqüenta por cento desse total.

Sorri. Não sabia se iríamos entrar ou não no serviço de reembolso postal, mas sabia que Jack não ficaria muito tempo onde estava. Tinha cabeça e sabia pensar.

— Boa idéia, Jack. Converse com Verita e discuta com ela os aspectos financeiros do assunto. Quando tudo estiver bem assentado, procure-me para eu tomar uma decisão.

— Está bem — disse ele. — Muito obrigado.

— Mais alguma coisa? — perguntei.

Não havia mais nada e a reunião foi encerrada. Na sala só ficamos eu, Bobby, Verita, Eileen e Denise. As duas últimas começaram a levar os copos para a cozinha e a esvaziar os cinzeiros.

— Que é que você acha da idéia de Jack? — perguntei a Verita.

— Muito interessante. Ele me falou nisso há duas semanas e eu lhe disse que fosse em frente.

— Por que não me disse nada?

— Porque a idéia era dele — respondeu ela, sorrindo. Eileen e Denise voltaram e se jogaram em duas cadeiras.

— Vocês parecem arrasadas — disse Bobby.

— Não é para menos — disse Eileen. — O trabalho nunca pára.

— Qual é o seu programa para amanhã? — perguntei a Bobby.

— Creio que para amanhã tenho uma coisa muito boa.

— O que é?

— Conhece as duas gêmeas que trabalham como secretárias no escritório de advocacia de Paul Gitlin? São lindas e têm dezenove ou vinte anos. Convenci-as a fazerem uma série de fotos para mim.

— Paul sabe disso?

— Não sabe, nem pode saber. Concordei em disfarçá-las de todas as maneiras, com óculos escuros, cabelos de cor diferente, etc. As Gêmeas Dinamite.

Ri.

— Seria divertido se Paul descobrisse.

— Se ele descobrir, então não é tão correto como eu pensei que fosse. De qualquer maneira, prometi um bom emprego às duas se Paul as despedir.

— E são boas secretárias?

— Paul diz que são as melhores que ele já teve.

— Então, não há problema. Estamos sempre precisando de gente assim aqui.

Bobby levantou-se.

— Bem, já vou. Acho que vou dar um pulo no Silver Stud.

— Eu também já vou — disse Verita. — Vou para casa e diretamente para a cama. Os contadores da Diretoria de Rendas estarão aqui bem cedo amanhã para completar o exame da escrita do nosso primeiro semestre de funcionamento.

— Que tal, Verita?

— Tenho até medo de lhe dizer. É bom demais. Chego a não acreditar.

— Fale por alto.

— Sabe que a sua dívida para com o Imposto de Renda é de um milhão e meio atualmente? E não há meio de contornar isso. Temos de entregar ao governo.

— Talvez não seja preciso. ..

— Então, você sabe de alguma coisa que eu ainda não sei. Pode dizer o que é.

— Estou com a idéia de lançar outra revista.

— Não é possível! — exclamou Eileen. — Vou arrumar as malas e sair daqui agora mesmo!

— Que foi que deu em você, Eileen?

— Você é um pão-duro miserável, Gareth! Estamos vivendo neste chiqueiro como se fôssemos porcos sem um momento de folga para nada. Ainda não se convenceu de que está rico e pode viver como bem quiser. Mas você não tem nem um carro. Vive pedindo carona e filando cigarros de todo o mundo!

Levantou-se, entrou no quarto e bateu a porta com toda a força. Um instante depois, Denise foi atrás. Voltei-me então para Verita. Ainda não havia pensado nisso.

— É verdade o que ela disse? Estou rico?

— Está, sim.

— Quer me explicar?

— Você tem, livre de impostos e de quaisquer outras obrigações ou compromissos, dois milhões de dólares e, do jeito que as coisas vão indo, quando chegar o fim do ano, terá o dobro disso.

— Não me diga!

Acendi um cigarro e fiquei pensando muito tempo depois que Verita saiu. Depois, preparei um scotch com gelo e fui para o quarto.

A porta do armário estava aberta e havia roupas de Eileen espalhadas por todo canto. As duas estavam sentadas na cama e choravam.

— Que quer dizer isso? Desculpem-me.

— Vá-se embora! — exclamou Eileen. — Nós o odiamos!

No dia seguinte, mudamo-nos para um bangalô no Beverly Hills Hotel.


Capítulo trinta e nove

O Lifestyle Digest saiu no dia em que Denise nos deixou. O primeiro número teve uma tiragem de duzentos e cinqüenta mil exemplares. Fisicamente a revista se parecia mais com Coronet do que com o Reader’s Digest, mas essa era a única semelhança.

Havia dez páginas em cores no centro, divididas eqüitativamente entre homens e mulheres. O texto era um condensado de matérias de revistas do mundo inteiro. Só então pude fazer idéia de como se havia espalhado pelo mundo a indústria das revistas para homens. Todos os países e todas as línguas tinham ao menos uma revista assim. E nós descobrimos que os artigos destinados a influir sobre os mercados nacionais tinham uma fascinação especial depois de traduzidos. Incluímos artigos sobre assuntos nos quais não tocavamos em Macho. Celebravamos os sonhos impossíveis — automóveis caros, estéreos fantásticos, férias em lugares fabulosos. Lisonjeávamos o esnobismo em todas as suas facetas. As revistas especializadas nos permitiam a publicação do seu material quase de graça. Tínhamos ainda uma coluna de classificados com anúncios e casos pessoais, eróticos ou não. Eram cento e cinqüenta páginas, tudo por sessenta e cinco cents.

O logotipo era simples: LIFESTYLE DIGEST — UMA REVISTA PARA QUEM AMA A VIDA. A primeira capa foi a simples silhueta num círculo branco das cabeças de um homem e de uma mulher cujos lábios se tocavam.

No dia em que saiu o primeiro número, Eileen foi» para casa cedo, mas eu tive de ficar até tarde. Ainda tinha alguns cheques para assinar e papéis para ler. Meu escritório era no apartamento onde havíamos morado. Tinha sido completamente redecorado. O quarto passara a ser meu gabinete particular, todo forrado de lambris de madeira e couro branco. A antiga sala era dividida por uma parede de vidro que ia do chão até o teto. A sala das secretárias era logo depois dâ porta de entrada. Atrás da parede de vidro, ficava a sala de conferências, com uma mesa redonda e pesadas cortinas que podiam ser fechadas quando houvesse alguma reunião. A cozinha ficava escondida por trás de portas corrediças e todo o apartamento era servido por uma rede central de refrigeração.

Eu já estava com a mão cansada de tanto assinar cheques quando uma das gêmeas de Bobby entrou com o último maço de cheques.

— São os últimos, Sr. Brendan — disse ela.

— Muito obrigado, Dana.

Ela sorriu.

— Eu sou Shana.

As gêmeas estavam trabalhando havia seis meses para mim. Paul Gitlin as despedira no momento em que havia descoberto que as duas tinham posado para o pôster.

— Se você publicar uma palavra sequer insinuando que essas moças trabalharam no meu escritório, terá de me prestar contas na justiça.

— Você disse "trabalharam", Paul?

— Foi exatamente o que disse.

Desliguei o telefone e liguei para Bobby. No dia seguinte, as duas gêmeas apareceram no meu escritório. Mas eu ainda não podia distinguir uma da outra.

— Vocês têm de tomar alguma providência. De hoje em diante, cada uma tem de usar um broche no vestido com a sua inicial.

— Está bem, Sr. Brendan.

Eu sabia que elas não iam fazer isso. Não era a primeira vez que eu fazia essa sugestão. Mas parecia que elas tinham alguma satisfação em me confundir. Eu poderia despedi-las, mas não tinha coragem de fazer isso pois eram muito eficientes. E muito bonitas. Louras e de olhos azuis, imagens perfeitas uma da outra, davam uma espécie de prestígio ao escritório com a sua presença.

Acabei de assinar o último cheque e toquei a campainha. Ela apareceu e eu lhe indiquei os cheques.

— Pode levá-los para a contabilidade, Shana.

Ela pegou os cheques e sorriu.

— Eu sou Dana.

Não adiantava. Elas haviam me deixado outra vez confuso.

— Escute aqui, como você sabe quem é você quando acorda de manhã?

— É muito fácil, Sr. Brendan. Eu sempre durmo do lado esquerdo da cama.

— E que é que acontece se você por acaso dormir do lado direito?

— Então nesse dia eu sou Shana.

Era a primeira coisa sensata que eu ouvia sobre elas. Trocavam-se entre si. Mudei de assunto.

— Há mais alguma coisa?

— Não, Sr. Brendan.

— Prepare-me então um scotch com gelo e veja se Bobby pode levar-me de carro até o hotel.

Ela preparou o drinque e saiu do escritório. Pouco depois, o telefone tocou e eu atendi.

— Sr. Ronzi na linha 1 — disse ela.

Apertei o botão.

— Pronto.

— Só telefonei para dizer que as primeiras notícias são boas. As bancas colocaram o Lifestyle à venda ao lado do Reader’s Digest.

— Nada mau.

— Daqui até o fim da semana, as coisas devem melhorar. Eu o manterei informado.

— Muito bem.

Apertei outro botão e disquei o número de Verita.

— Quanto foi que gastamos nesse número do Digest?

— Cinqüenta e cinco mil dólares. Teremos de vender cento e setenta mil exemplares para cobrir as despesas.

— Chegaremos lá. Tem tempo para tomar um drinque comigo?

— Muito obrigada, mas não é possível. Tenho um encontro marcado e tenho de correr.

— O juiz ainda?

— Sim.

— Simpatizo com ele. Dê-lhe lembranças minhas.

Desliguei e voltei ao meu uísque. As coisas não eram mais as mesmas depois que eu tinha um gabinete particular. Sentia-me longe dos outros. Ninguém entrava mais a qualquer hora para falar comigo. Era preciso marcar hora.

O telefone tocou de novo. Bobby viria me pegar dentro de dez minutos. Deixei o drinque ainda pelo meio e desci.

Quase todo o mundo havia saído, mas Jack ainda estava lá falando com um guarda-livros.

— Boa noite, Sr. Brendan — disse ele, quando me aproximei.

— Como vão as coisas, Jack?

— Muito bem, Sr. Brendan. Tivemos um movimento de setenta mil dólares no mês passado. Quase cinqüenta mil de lucro.

— Fantástico. Bom trabalho o seu, Jack.

— Muito obrigado, Sr. Brendan. Acha que pode conseguir depois um pouco de tempo para dar uma olhada em nosso serviço?

— Sem dúvida. Espere apenas alguns dias depois que nossa nova revista esteja bem encaminhada. — Ouvi uma buzina tocar do lado de fora. — Minha condução. Tenho de correr.

— É claro. Felicidades para o Digest.

Saí correndo pela porta mas, em dado momento, parei e voltei para falar com Jack. Fora ele naquele dia a primeira pessoa que me desejara felicidades com a nova revista. Ninguém mais havia pensado nisso.

— Obrigado, Jack. Vou procurar passar pelo seu serviço amanhã.

Entrei no Rolls-Royce e Bobby seguiu com o carro.

— Tem cigarros, Bobby?

— Um maço quase cheio aí no porta-luvas.

Acendi-o e ele disse:

— Não se esqueça do camarada de que lhe falei. Sei que vai gostar dele. É de fato uma boa pessoa.

— Está bem.

Ele olhou para mim.

— Algum problema?

— Não, nada. Por quê? *

— Parece na fossa.

— Deve ser apenas cansaço.

— Não é de admirar. Está trabalhando demais.

— Está achando alguma diferença em mim?

— Não — disse prontamente. Então, fez uma pausa.

— A verdade é que estou.

— Estou diferente em quê?

— Não sei ao certo. Parece distante, inatingível, separado.

— Não me sinto diferente e acho que não mudei em nada.

— Mudou, sim, Gareth. Mas não foi por sua vontade. Isso não podia deixar de acontecer. É uma coisa que foi se processando paulatinamente e eu acho que percebi tudo naquela noite em que Eileen se zangou com você. Você de repente lembrou meu pai. Tinha todo o poder nas mãos e as coisas não eram mais como no tempo em que começamos e trabalhávamos juntos. Agora, estamos todos trabalhando para você. Essa é que é a diferença.

— Ainda sou seu amigo como era, Bobby.

— E eu sou seu amigo. Mas meu pai me explicou tudo. Cada pessoa tem de seguir o seu próprio caminho. E com isso se torna diferente.

Parou então o carro e disse:

— Chegamos.

Olhei com surpresa e vi que estávamos à porta do hotel. Smitty me abriu a porta e eu saltei. Aproximei-me de Bobby na janela.

— Quer subir para tomar um drinque?

— Não, muito obrigado. Tenho de trocar de roupa. Vou a uma festa.

— Divirta-se então. E obrigado pela carona.

Bobby deu adeus e saiu com o carro. Fiquei olhando ainda algum tempo o Rolls-Royce e então entrei no hotel. Passei pelo bar com a idéia de tomar um drinque antes de subir, mas foi só depois da terceira dose que consegui coordenar um pouco os pensamentos.

Não fora eu que tinha mudado. Eu ainda era o mesmo. Os outros é que haviam modificado o juízo que faziam de mim. E, neste caso, não havia nada que eu pudesse fazer.

Nem por isso me senti melhor, mas ao menos sabia de que se tratava. Assinei a conta do bar e fui para o apartamento. Depois de bater na porta, abri-a com minha chave.

Fui encontrar Eileen no sofá banhada em lágrimas.

— Que foi que houve, Eileen?

— Denise foi-se embora.

— Como assim?

— Abandonou-nos. Deixou este bilhete para você. Disse que você compreendería.

Tomei o bilhete e li:

"Querido Gareth:

Há um tempo na vida de qualquer pessoa em que é preciso desligar-se de tudo. Acabo de ser convocada para receber instrução do segundo plano. Quando este se completar, serei mestra e depois, quando entrar para o primeiro plano, estarei qualificada para a dignidade de irmã. Mas para chegar a esse ponto, não posso ter laços de espécie alguma senão com Deus e a minha missão na vida. Devo, portanto, desligar você do meu eu profundo a fim de libertar meu corpo da necessidade material que ele tem de você. Nunca me esquecerei de vocês dois e nunca deixarei de amar a ambos. . .

Paz e amor!

Denise"

— Diabo! — exclamei. — Você não podia fazer alguma coisa para impedi-la, Eileen?

— Você até parece que não a conhece. Tentei tudo o que estava ao meu alcance, mas foi inútil. Eu também gostava muito dela e você não sabe quanto vou sentir sua falta.

Sentei-me ao lado dela e Eileen descansou a cabeça em meu ombro.

— Ela disse que de tudo só levava uma mágoa.

— Qual era?

Eileen começou a rir e disse:

— Desculpe, mas não posso lhe dizer.

— Se é tão engraçado assim, você bem que pode me dizer.

— Ela disse que sempre teve muita vontade de que você fizesse amor de uma certa maneira com ela. Você nunca fez. Era essa a sua única mágoa.


Capítulo quarenta

O sol do México me acordou cedo. Vesti os jeans e fui até o hotel para tomar café com Lonergan. Eileen ainda estava dormindo e Marissa não se movera da cama. Telefonei para Lonergan da portaria.

Ninguém atendeu. Olhei para o relógio. Oito horas. Com certeza, Lonergan já havia descido e estava na sala do café. Não o encontrei ali também. Verita estava sentada a uma das mesas, sozinha. Aproximei-me dela.

— Bom dia. Que é que está fazendo aqui tão cedo?

— Já acabei tudo o que tinha de fazer por aqui e vou tomar o avião da manhã. Os contadores do governo já devem ter completado o seu relatório sobre os clubes e eu quero examiná-lo.

— Mas por que essa pressa toda? — disse eu, sentando-me ao seu lado, enquanto um garçom me trazia uma xícara de café. — Isto aqui é agradável. Descanse um pouco mais. O relatório pode esperar.

— É fácil falar assim. Você não tem de conferir aquelas parcelas todas.

Provei o café. Estava muito quente, muito forte e muito amargo. Fiz uma careta.

— Só este café basta para afugentar os hóspedes.

— É assim que os mexicanos gostam.

— Mas não são os mexicanos que se hospedam no hotel. Que acha disto aqui, Verita?

— O lugar é muito bonito, mas nós não precisamos dele. Ainda que venhamos a ganhar dinheiro, só nos poderia dar muitas dores de cabeça.

— Acha que podemos ganhar dinheiro?

— Talvez, se as suas idéias derem resultado.

— Pensa que perderiamos dinheiro?

— Se você puder manter o seu investimento em menos de quatro milhões de dólares, não. Qualquer coisa acima disso representa uma grande interrogação. As reformas que você pretende fazer andariam em um milhão de dólares. Por conseguinte, não deve oferecer mais de três milhões.

— Isso eles não aceitariam.

— Então eu, se fosse você, não compraria nada.

— Você está ficando muito precavida, sabe?

— Você não me paga para assumir riscos. Quem pode jogar com o seu dinheiro é você e não eu. A mim só me cabe responder às suas perguntas com toda a sinceridade.

— Sei disso, Verita. Não é preciso se aborrecer.

Ela ficou em silêncio.

— Viu Lonergan por aí?

— Saiu poucos minutos antes de você chegar.

— Sabe para onde ele foi?

— Não. Mas vi-o entrar num carro com Julio.

Fiz cara feia para meu café. Verita chamou o garçom.

— Café americano para el senor.

— Sabe de uma coisa? Creio que Lonergan está começando a gostar de mim — disse ela.

— Por que diz isso?

— Scntou-se ao meu lado e tomou café comigo. Perguntou o que era que eu achava do hotel e eu lhe respondí.

— Fez algum comentário?

— Nada. Você o conhece. Não disse coisa alguma, mas eu tive a impressão de que concordava comigo. Quando saiu, sorriu para mim c me desejou boa viagem.

O garçom voltou com uma tigela de água quente e um vidro de café solúvel. Preparei uma xícara e provei-a. Estava bem melhor.

— Que é que você vai fazer? — perguntou ela.

— Ainda não sei — disse eu, procurando cigarros nos bolsos. Verita me ofereceu o seu maço. — Por acaso Lonergan disse para onde ia?

— Não — disse ela, riscando um fósforo para acender-me o cigarro.

Lembrei-me de que Dieter havia dito que só meu tio era capaz de fazer Julio deixar de usar o campo de pouso. Estariam conversando sobre isso naquele momento?

— Você teve oportunidade de conversar com Julio, Verita?

— Não. Mas sei que ele está muito interessado em que você compre o hotel, pois acha que você é capaz de ter muito sucesso.

— É natural. A família dele por aqui é muito grande mesmo?

— É sim. Acho que de uma maneira ou de outra todos os que moram por aqui são parentes dele. E todos se beneficiam com a existência do hotel, na qualidade de empregados ou de fornecedores de víveres. O hotel compra tudo o que eles plantam e criam.

— Você é parente deles também?

— Não. Meu parentesco com Julio é por afinidade. Meu pai era professor universitário na Cidade do México. Só vim a conhecer Julio quando ele se mudou para Los Angeles.

Murtagh chegou à sala do café, viu-nos e veio para a nossa mesa.

— Como vão as coisas? — perguntou ele, na sua maneira mais cordial de corretor imobiliário.

— Muito bem.

— Está tendo todas as informações que deseja?

— Estou.

— Muito bem. Se precisar de mais alguma coisa, é só me dizer e eu a conseguirei.

— Creio que está tudo pronto.

— Quando acha que poderá ter uma reunião com os Von Halsbach?

— Poderei dizer-lhe esta noite.

Antes de mais nada, eu tinha de saber qual era a conversa de Lonergan com Julio.

— Ótimo — disse o homem. — Dieter vai passar o dia fora, mas me encarregou de dizer-lhe que estará de volta hoje à noite e à sua inteira disposição.

— Sabe aonde é que ele foi?

— Se não estou enganado, disse que ia até o Retiro. Ele gosta de tirar fotografias e está curioso para saber a maneira de trabalhar dos profissionais como Bobby.

Murtagh saiu da sala do café e eu olhei para Verita, que estava sorrindo. Ela sabia em que era que eu estava pensando. Bobby tirara fotografias nas vizinhanças do hotel durante dois dias e Dieter nem o olhara da janela. Por que aquele súbito interesse? Seria a presença de King Dong?

Verita levantou-se.

— Tenho de subir e acabar de arrumar as malas, senão vou perder o avião.

— Vou esperar e levá-la até o aeroporto.

— E se Marissa e Eileen acordarem?

Compreendí imediatamente.

— O juiz a está esperando no aeroporto, não é?

Ela ficou vermelha.

— É tão sério assim?

— Não passamos de bons amigos. Eu o respeito por tudo o que ele já fez. Não são muitos os mexicanos que subiram como ele.

Sorri e beijei-lhe o rosto.

Entramos por uma estrada de terra a cerca de vinte e cinco quilômetros do hotel.

— O Retiro fica a três quilômetros daqui, do outro lado daquela pequena floresta — disse Marissa.

— É um lugar bem isolado — disse eu.

Não tínhamos visto sinal de vida pelo cominho.

— É assim que eles querem. Na estação das chuvas, nem de carro se pode passar por aqui.

Não era difícil de acreditar. O carro dava solavancos a cada instante nos buracos da estrada. Olhei para Eileen que ia no banco de trás e ela fez uma careta.

— Isso não é maneira de se tratar uma ressaca.

— Tenha paciência — disse eu, rindo.

A estrada atravessou a floresta e fomos sair do outro lado numa clareira toda iluminada pelo sol. O Retiro se descobriu à nossa frente. Era uma construção em estilo de rancho americano e parecia quase uma cópia da fazenda do Reverendo Sam, em Fullerton. O mesmo edifício central e, em volta, os barracões de madeira que serviam de dormitórios. Havia uma cerca de madeira com um portão no meio que levava ao prédio central do conjunto.

Paramos o carro sem ver qualquer sinal de vida. Saltei e olhei para o meu relógio. Passava pouco das onze horas.

— Onde andará todo o mundo? — murmurei.

— Todos vão trabalhar no campo — disse Marissa. — Devem levar almoço.

Eileen também saltou do carro. Limpou o suor do rosto com um lenço de papel e disse:

— Ufa! Como está quente!

Subi os degraus da varanda e experimentei a porta. Estava aberta. Dentro da casa, estava mais fresco e a disposição era muito semelhante à da fazenda de Fullerton. Tomei o caminho do escritório. A porta também não estava trancada e, quando eu a abri, o homem que estava sentado à mesa levantou a cabeça.

— Paz e amor, Irmão Jonathan — disse eu.

— Paz e amor — respondeu ele automaticamente.

Reconheceu-me então e, levantando-se, veio ao meu encontro com um sorriso.

— Gareth!

Estendi a mão e ele a apertou com firmeza e cordialidade.

— Aparece nos lugares mais estranhos — disse ele.

— O mesmo lhe acontece, Irmão Jonathan. Apresentei-lhe as moças. Ele já conhecia Marissa.

— O que é que os traz por aqui? — perguntou ele.

Expliquei-lhe que estava no hotel e andava à procura de Bobby que devia estar por ali tirando fotografias.

— Ah, sim. Eu os vi esta manhã. Estão trabalhando perto da velha aldeia dos índios.

— Eu sei onde é — disse Marissa.

— Aceitam um refrigerante ou um café? — perguntou o Irmão Jonathan.

— Não queremos dar-lhe trabalho. Já vamos para a aldeia.

— Não é trabalho nenhum. Venham comigo.

Levou-nos para a sala de jantar e ali ouvimos rumores de gente que trabalhava na cozinha. Logo que nos sentamos, apareceu um jovem barbado, a quem pedimos café.

— Soube que tem prosperado muito — disse-me o Irmão Jonathan. — Fico muito satisfeito com isso.

— Muito obrigado.

O jovem barbado chegou com o café.

— Há quanto tempo está aqui, Irmão Jonathan?

— Faz dois anos agora. Ajudei a construir esta casa. Utilizamos principalmente material que sobrou da construção do hotel.

Provei o café. Um gole para mim foi bastante.

— Não sente saudades dos Estados Unidos?

— Não. Minha terra é sempre o lugar onde posso exercer a minha missão. Se o Reverendo Sam acha que posso servir melhor aqui, isso me basta.

— Isto aqui é uma escola?

— Não é bem uma escola. É mais propriamente um seminário. Levamos os nossos filiados ao segundo plano para que possam sair daqui para ensinar.

— Quanto tempo demora a aprendizagem?

— Isso depende. Alguns têm mais problemas de desligamento do que os outros. Dois anos, três anos, quem sabe? Quando estão prontos, saem daqui. Não temos um limite preestabelecido de tempo.

— Denise está aqui?

Ele hesitou um momento e respondeu:

— Ela está aqui, sim.

— Podemos vê-la?

— Poder, podem, mas eu prefiro que não a vejam. Como sabe, Gareth, os sentimentos dela a seu respeito são muito fortes. Tem sido extremamente difícil desligá-la é eu tenho receio de que, se ela o vir, possa recuar consideravelmente do terreno já conquistado.

— Diz isso como se eu fosse uma doença contagiosa.

— Desculpe, mas não tive essa intenção. O que acontece é que ela já alcançou uma grande vantagem na sua luta e eu não gostaria de que a perdesse. Está começando a ficar tranqüila.

— Compreendo perfeitamente. Quando achar oportuno, quer dizer-lhe que perguntamos por ela?

Julguei ver no rosto dele uma expressão de alívio.

— Fiquem descansados, que eu direi a ela.

— Vamos agora procurar os fotógrafos. Muito obrigado pelo café.

— Foi um prazer.

— Se precisar de alguma coisa de mim nos Estados Unidos, basta telefonar e eu terei toda a satisfação em atendê-lo.

— Muito obrigado. Mas o Reverendo Sam nos atende em tudo o que é necessário.

Ele nos levou até o carro. Dei-lhe adeus de dentro do carro e disse:

— Paz e amor.

— Paz e amor — disse ele, erguendo a mão num gesto que parecia uma bênção.

Ainda estava lá de pé quando saímos pelo portão e tomamos o caminho da aldeia índia.


Capítulo quarenta e um

A estrada serpenteava através dos campos que pertenciam ao Retiro. Em cada um dos campos, vimos quatro ou cinco homens e mulheres que trabalhavam. Não pareciam trabalhar sob grande pressão e os seus movimentos eram mais ou menos descansados. Vestiam camisas e calças cáqui e usavam grandes chapéus de palha que lhes protegiam os rostos do sol. Nem moveram a cabeça quando passamos, embora não pudessem deixar de ter ouvido o barulho do carro. Passamos pelo último campo a cerca de dois quilômetros do Retiro e entramos num pequeno caminho da floresta.

— Estamos agora nas terras do Senor Carillo — disse Marissa. — Você o conheceu no coquetel. É o maior proprietário de terras da região. É primo do governador e irmão do prefeito.

— Que é que ele faz?

— Nada. É rico.

— Tem lavouras? Cria gado?

— Faz um pouco das duas coisas. Mas na verdade são os colonos que trabalham para ele, que se limita a receber as rendas. A aldeia índia fica também em terras de sua propriedade. A família de Carillo é a mais velha do Estado. Ninguém o ameaça de desapropriação como a meu primo, embora ele possua quatro vezes mais terras do que ele.

A aldeia, logo depois do caminho da floresta, era um amontoado de velhas cabanas de adobe e madeira. Parecia completamente deserta.

— Onde está todo mundo?

— Há vinte anos, ninguém vive aqui — disse Marissa. — Acredita-se que os últimos índios tenham ido para as montanhas. Mas ninguém sabe com certeza.

— Parece impossível. Uma população não desaparece assim sem deixar vestígios.

— Pois não deixou. Há quem diga que Carillo os massacrou. Mas como se tratava apenas de índios, ninguém deu atenção a isso.

Atravessamos a rua poeirenta da aldeia, entramos em outra pequena parte da floresta e fomos sair num campo aberto, onde os fotógrafos estavam em ação.

A primeira coisa que notei foram os guardas fardados e armados com fuzis automáticos. Olharam de relance para o nosso carro. Havia uns trinta ou quarenta.

— Polícia? — perguntei a Marissa.

— Não. São guardas particulares de Carillo.

— Que é que estão fazendo aqui?

— Protegendo os visitantes. Há muitos bandidos por estes lados. É perigoso viajar sozinho por aqui.

Marissa parou o carro e nós nos dirigimos para onde estava o grupo. Bobby nos viu, olhou para o relógio e levantou a mão.

— OK. Descanso para almoço.

— Tudo bem? — perguntei.

— Tudo ótimo, já fiz quatro séries hoje de manhã. Se pudermos fazer cinco séries hoje à tarde, nosso trabalho por aqui estará terminado. Trouxemos almoço do hotel. Querem nos fazer companhia?

O convite foi aceito. Nesse momento virei-me e apanhei Eileen e Marissa de olhos grudados em King Dong, que tentava vestir as calças. Não era um trabalho fácil. Precisava jeito para arrumar "aquilo tudo" dentro da calça. Não pude conter o riso.

— Vocês, garotas, vêm comer conosco? — perguntei.

Sentamos à sombra de algumas árvores e comemos o que havia: vinho e cerveja gelada, galinha, carne assada, galantina de peixe, tortillas e pão francês.

— Fizemos três séries na vila — disse Bobby. — Background espetacular! Faremos mais uma aqui e iremos a seguir para a casa de Carillo. Ele nos deu licença especial para fotografar nos jardins. Dizem que o homem tem alqueires e mais alqueires cobertos de flores.

— Ótimo — disse eu, enquanto abria outra garrafa de Carta Blanca. — Dieter apareceu por aqui?

— Que eu visse, não — respondeu Bobby.

— Disseram-me que ele estava vindo para cá.

— É, mas aqui não apareceu.

— E Lonergan e Julio?

— Também não apareceram.

Um dos assistentes de Bobby se aproximou nesse momento e disse que estava tudo pronto.

— Bem, está na hora de voltar ao trabalha — disse Bobby, levantando-se.

— E vocês? Vão ficar para apreciar? — perguntei a Marissa e Eileen.

Pergunta cretina! Claro que queriam ficar e seguiram Bobby para o local das fotografias. Olhei durante algum tempo os modelos se preparando para a próxima tomada de fotos. King Dong estava novamente nu, deitado no chão de pernas e braços abertos e amarrados em estacas. A cena deveria representar a sua captura e as garotas, presumivelmente, o provocavam e torturavam enquanto decidiam o que fazer com ele. Pelo jeito como estavam representando, aquilo ia virar uma cena real a qualquer momento. Elas não conseguiam tirar as mãos de cima dele, e ele não poderia aguentar muito tempo. O negro estava em ereção quase total quando Bobby começou a berrar com ele.

— Abaixe isso, seu estúpido! Seja profissional. Você sabe muito bem que não se pode colocar na revista fotos mostrando ereção total!

— Não consigo agüentar, Seu Bobby — disse King Dong em tom de queixa. — Faça as pequenas pararem de mexer com o meu negócio. . . Não sou de ferro.

— Está bem, meninas, vamos parar com essa sacanagem. Estamos trabalhando.

— Quer que jogue água fria em cima? — perguntou o assistente de Bobby.

— Fizemos isso a última vez e não adiantou nada — disse Bobby, desolado.

— Não sei por que você está tão preocupado — falou Samantha calmamente. — Eu dou um jeito. . .

— Porcaria! Não podemos esperar tanto tempo.

— Não é isso que você está pensando. Não vou trepar com ele. Já fui enfermeira e aprendi um truque muito usado no hospital. Não falha nunca.

— OK — concordou Bobby.

Samantha ajoelhou-se no chão ao lado de King Dong e, delicadamente, pegou-lhe o falo com três dedos e q manteve em pé.

— Como se sente? — perguntou ela, sorrindo para King Dong.

— Está bom!

Ela então usou rápido a outra mão e ouviu-se o som seco de um tapa. O falo foi bater na virilha.

— Ai! — urrou King Dong.

Samantha levantou-se e olhou para baixo. Fora-se a ereção.

— Não falha nunca — repetiu ela sorrindo.

— Sua puta — gritou o negro.

— Bem, está na hora de trabalhar — disse Bobby.

Ainda fiquei ali olhando por alguns minutos e voltei então para a aldeia índia. Eu não me incomodava de ver as fotos prontas; o que não me interessava era ficar vendo-as serem tiradas. Notei que dois dos guardas começaram a me acompanhar a cerca de vinte passos de distância.

As janelas das cabanas não existiam mais e as portas estavam escancaradas c pendendo nas dobradiças. Olhei para dentro de uma das cabanas. Não havia nada lá dentro, salvo alguns móveis quebrados, muito pó e muita terra. Quando olhei para trás, os guardas estavam mais perto.

— Gareth!

A voz vinha de uma das cabanas numa esquina.

Olhei e não vi ninguém.

— Aqui em cima!

Denise estava sentada no peitoril da janela de um segundo andar, com as pernas para fora.

— Apare-me! —gritou ela ao mesmo tempo que saltava.

Estendi automaticamente os braços e sustentei-lhe o corpo.

— Está louca? — perguntei.

Ela me segurou a mão e disse:

— Depressa! Venha comigo!

.Seguimos correndo pela rua, dobramos outra esquina e depois atravessamos o campo em direção à floresta. Levamos quase cinco minutos para chegar às árvores do outro lado de uma cerca de arame farpado. Sentamo-nos debaixo de uma árvore enorme, onde ficamos escondidos.

— Que quer dizer tudo isso? — perguntei, logo que recuperei o fôlego.

— Não podemos andar pelas terras de Carillo!

— Não me diga!

— Estou falando sério. É por isso que ele tem os guardas!

— Os guardas podem apenas impedir a entrada das pessoas.

— Podem atirar também. Podem fazer o que quiserem. Isto aqui é propriedade dele.

— Mas é um absurdo.

— Pode ser, mas é assim. Sabe que eu não queria deixar você?

— Ninguém a obrigou.

— Diretamente não. Mas eu não sabia que seria assim.

— É tão ruim assim?

— Sinto muita falta de você. Isso é que é pior.

— Então volte.

— Não posso. Se eu fizer isso, nunca mais chegarei ao segundo plano.

— Que importância tem isso? O importante é você sentir-se feliz.

— O Irmão Jonathan diz que eu só serei feliz se puder desligar-me. Acha que é mais difícil para algumas pessoas do que para outras.

— Ele não quis que eu visse você.

— Estava me protegendo.

— Protegendo de quem? Ele deve saber que eu seria incapaz de fazer-lhe algum mal.

— Queria proteger-me de mim mesma. Mas eu sabia que você estava aqui. Não foi preciso que ninguém me dissesse.

— Como foi que soube?

— Senti sua aura.

— Se você continuar a falar nisso, vou acabar acreditando nessa tolice.

— É verdade. Mas eu não tinha certeza. Há três dias ele me determinou uma viagem à consciência.

— Que é isso?

— Tive de tomar mescalina. Para ampliar a consciência. — Ela estendeu a mão e tocou-me de leve o rosto. Vi que as pupilas estavam dilatadas. — Ainda agora, não tenho certeza de que você esteja mesmo junto de mim ou se ainda estou sob o efeito da viagem.

— Sou eu mesmo.

— Não sei. Não posso ter certeza de coisa alguma.

Puxei a cabeça dela para meu peito.

— Já lhe disse que sou eu mesmo.

— Bobby e Eileen estão também aqui com você?

— Estão.

— Eu sabia. Senti-os também. Mas foi você que me atraiu. Segui a sua aura do Retiro.

Fiquei em silêncio e ela se levantou.

— Tenho de voltar antes que o pessoal que trabalha nos campos comunique a minha presença por aqui.

— Que diferença faz isso? Ninguém viu você. Os trabalhadores nos campos nem levantaram a cabeça quando eu passei.

— Mas viram você, fique certo disso. Entretanto, não prestaram atenção. Estavam dopados.

— Dopados? E como podem trabalhar assim?

— Não trabalham. Vão para o campo meditar preparando-se para o segundo plano. Carillo lhes manda comida.

— Volte comigo, Denise.

— Não posso. Estou começando a dominar os desejos da carne. Sei que posso ir até o fim.

— Até o fim?

— No caminho da liberdade, Gareth. Até um ponto em que eu possa pairar acima da terra sem meu corpo e comunicar-me pelo espírito com o que eu quiser. Viverei em muitos planetas e em vários níveis de consciência. Estarei em união com o universo.

Fiquei em silêncio.

— Não contará a ninguém que nós nos vimos?

— Não.

Ela esboçou um leve sorriso.

— Adeus, Gareth. Paz e amor.

— Paz e amor.

Denise desapareceu. Levantei-me lentamente. Senti tudo rodar em torno de mim e apoiei-me na árvore para não cair. Tudo parecia irreal. Comecei a pensar que talvez nada daquilo tivesse acontecido e tudo fosse uma alucinação produzida pelo calor e pelo sol. Mas essa sensação aflitiva passou e eu pude voltar à aldeia. Os guardas estavam à minha espera. Deixaram-me passar em silêncio e depois seguiram-me a alguma distância até que eu entrasse no carro.


Capítulo quarenta e dois

O ônibus tinha ido para o campo e estava sendo carregado com o equipamento para o novo local. King Dong e os modelos já estavam no ônibus quando cheguei. Bobby me perguntou:

— Vem conosco?

— Não. Vou voltar para o hotel. Se Eileen e Marissa quiserem ficar com você, irei sozinho e creio que não errarei o caminho.

— Vamos voltar com você — disse Eileen.

Bobby embarcou no ônibus e disse:

— Até a noite.

Voltamos para o carro e Marissa se sentou ao volante. Ainda havia gente trabalhando nos campos quando passamos. Pensei no que Denise me havia dito e observei a todos com mais atenção. De fato, fingiam que estavam trabalhando, mas na realidade não faziam nada.

Quando passamos pelos portões do Retiro, pedi, num impulso, a Marissa que parasse.

O Irmão Jonathan não estava no escritório. Fui até a sala de jantar. Estava deserta, mas na cozinha algumas pessoas trabalhavam.

— Paz e amor — disse eu. — Onde está o Irmão Jonathan?

— Paz e amor — responderam em coro.

O homem que estava mais perto de mim perguntou:

— Ele não está no escritório?

— Não.

Entreolharam-se e então o homem que me falara deu um passo à frente e disse:

— Vou procurá-lo para o senhor.

— Não quero perturbar o seu trabalho. Basta que me diga onde ele pode estar.

— Não perturba. Ele deve estar no laboratório.

— No laboratório?

Ele sorriu.

— É assim que chamamos a capela — disse ele, levando-me até a sala de jantar. — Se quiser esperar aqui, voltarei num momento.

Acendi um cigarro e fiquei esperando. Ele voltou alguns minutos depois.

— O Irmão Jonathan pede desculpas por não poder atendê-lo. Está cuidando de uma pessoa em transição e não pode afastar-se.

— Vai demorar muito?

— Não é possível saber. Uma pessoa em transição pode levar de dez minutos a três dias para desligar-se.

— Escute, quer me responder a uma pergunta?

— É claro. Estamos aqui para ajudar e servir.

— Que é que acontece se um candidato ao segundo plano não pode atingi-lo?

— Nada. Mas isso foi coisa que ainda não aconteceu. Todos nós estamos muito empenhados em alcançar os nossos objetivos.

— E se um candidato mudar de idéia e quiser sair daqui?

— Não somos prisioneiros. Estamos aqui por nossa livre e espontânea vontade. Podemos partir da mesma maneira.

Meteu a mão no bolso da camisa e tirou uma passagem de avião. Era válida pelo prazo de um ano, estava paga e só faltava ser marcada.

— Logo que chegamos, cada um de nós recebe uma passagem de volta como essa. Mas até hoje não houve ninguém que a usasse.

Tive uma idéia.

— Quer me ceder um desses cigarros especiais que preparam aqui?

— Pois não.

Meteu a mão no bolso e tirou três cigarros.

— Pode ficar com estes.

— Mas assim você vai ficar sem nada.

— Não se preocupe. Todos os dias recebemos uma provisão de quatro desses cigarros. Paz e amor.

— Muito obrigado. Paz e amor.

Voltei para o carro.

— Para onde vamos agora? — perguntou Marissa.

— Para o hotel.

Logo que eu chegasse a Los Angeles, levaria aqueles cigarros para serem analisados num laboratório. Para mim, aquilo era maconha e mais alguma coisa. Depois que tivesse o. laudo do laboratório, iria procurar o Reverendo Sam. Ele tinha o direito de saber o que estava acontecendo no Retiro.

Quando chegamos ao hotel, já eram quatro horas da tarde e Lonergan não havia voltado ainda. Na portaria do hotel, perguntei a Marissa:

— Quer ir tomar um drinque conosco lá no bangalô?

— Não posso. Passei o dia fora e o trabalho deve estar acumulado em minha mesa.

— Janta conosco esta noite?

— É claro.

— Podemos jantar no bangalô? Já estou cansado de comer no meio de tanta gente.

— Claro. Jantar para quantas pessoas?

— Só nós três.

— Está bem.

— Outra coisa. Pode providenciar para que o avião me leve amanhã às duas horas da tarde para Los Angeles?

— Não haverá problema. Quer que os leve de carro até o bangalô, antes de subir?

— Não, muito obrigado. Estamos precisando fazer um pouco de exercício.

O sol estava muito quente e quando chegamos o suor nos colava a roupa ao corpo. A piscina do pátio estava convidativa.

— Vamos? — disse eu.

Tiramos a roupa ali mesmo e caímos na piscina. Depois de um mergulho, cheguei à borda e gritei pelo mordomo.

— Si, senor? — disse ele, sem que a sua expressão se alterasse ao ver-nos nus.

— Dois planter’s punches. Dos.

— Si, senor. Dos planter’s punch.

Nadei para onde estava Eileen.

— Digam o que quiserem, mas essa vida nada tem de desagradável.

— Eu sei, Gareth. Mas você está preocupado com alguma coisa. Posso saber o que é?

— Por que está dizendo isso?

— Porque o conheço. O que é?

— Eu bem que gostaria de saber. Não é nada de concreto. É um instinto do perigo, como eu sentia no Vietnam. Não atino com o que seja mas alguma coisa me parece fora dos eixos.

Ela me beijou e disse:

— Tenha calma que vai acabar descobrindo o que é.

O mordomo chegou com as bebidas numa bandeja de prata que deixou na borda da piscina, retirando-se em seguida. Pegamos os copos.

— À boa vida — disse eu.

— À boa vida.

Tomamos os nossos drinques. Eram fortes. Ele deve ter usado umas quatro diferentes qualidades de rum para conseguir uma combinação tão explosiva.

— Caramba — ela disse com voz rouca. — Parece fogo líquido!

Ri, mas ela tinha razão. Era um drinque que subia imediatamente à cabeça. Deixando o copo na borda, perguntei a ela:

— Você já foi lambida embaixo d agua alguma vez?

— Se disser que fui estarei mentindo — ela disse com um risinho e já um pouco alta.

Tirei o copo da mão dela e o coloquei ao lado do meu.

— Prepare-se para uma sensação nova — eu disse e mergulhei.

Bobby chegou por volta das oito horas. Estendeu-se exausto numa poltrona da sala.

— Para mim, chega! De outra vez que eu tiver uma idéia brilhante, faça o favor de ser contra ela. Que trabalho me tem dado esse King Dong! Até Dieter me apareceu por lá no fim dos nossos trabalhos.

— Que é que ele estava fazendo lá?

— Isso é que eu não sei. Estávamos trabalhando num canteiro de flores no fundo da casa quando ele saiu de lá. Depois que acabamos, tornou a entrar na casa.

Acendi um cigarro e levantei-me.

— Pedi que o avião me levasse de volta amanhã à tarde. Quer voltar comigo ou ficar aqui?

— Estou farto disto aqui. Vou voltar com você.


Capítulo quarenta e três

Deitei-me na banheira, inebriado com a fragrância da espuma e olhando Eileen, que se encaminhava da mesa de maquilagem para a porta do armário embutido.

— Puxa, você está linda! — eu disse, e estava falando a verdade, porque ela naquele momento, completamente nua, parecia uma visão na mais erótica das poluções noturnas.

— Não sei o que usar — disse ela.

— Que diferença vai fazer? Somos apenas nós três.

Ela me deu um olhar que me deu a entender a bobagem que eu dissera, e apanhando um vestido preto longo segurou-o contra o corpo.

— Que acha deste?

— Lindo de morrer.

Ela apanhou outro vestido, de chiffon rosa, bem fiou.

— E este aqui?

— Tão lindo quanto o outro.

— Você não me ajuda a escolher — ela disse com voz queixosa e voltou-se para o armário. — Eu devia ter trazido aquele modelo branco Loris Azzaro.

Nesse momento o telefone tocou e eu lhe pedi que atendesse. Ela o fez, escutou por um momento e trouxe o telefone para junto da banheira.

— É tio John — disse ela, passando-me o aparelho.

— Que é que você está fazendo? — perguntou ele.

— No momento, estou tomando o melhor dos banhos e vendo uma das mulheres mais bonitas do mundo.

— Estou falando sério.

— Não perguntou o que eu estava fazendo?

— Precisamos conversar.

— Muito bem. Amanhã, na hora do café?

— Esta noite. Creio que tenho uma solução para o nosso problema. Quanto tempo levará para vir até aqui?

— Meia hora. Está bem?

— Espero-o no meu quarto.

Saí da banheira e aisse a Eiieen:

— O jantar poderá demorar um pouco. Tenho de ir ao hotel para falar com Lonergan.

— Entre e tome um drinque — disse ele ao abrir-me a porta. — Acabei de preparar um martíni.

Segui-o até o bar, onde preparei um uísque com gelo. Sentei-me num banco e provei o uísque.

— Tintim.

— Tintim — disse ele e entrou logo no assunto. — fu lio concordou em encerrar as suas atividades aqui.

— Qual foi o motivo que o levou a concordar com isso?

— Oitenta e três parentes que trabalham no hotel ou vivem dele.

— O motivo é tão bom quanto outro qualquer, tio John. Mas como pode ter certeza de que ele cumprirá o que prometeu?

— Ele me deu a sua palavra — disse ele friamente.

Aquilo era decisivo. Ponto final. Assunto encerrado. O rosto de Lonergan estava impassível. Ainda que eu fosse Julio, refletiría muito antes de contrariá-lo.

— Ainda não sei, tio John. Não vamos ter jogo aqui, ao menos num futuro imprevisível. E sem jogo não é possível manter o hotel. As despesas são muito pesadas.

— Já tratei disso também — disse Lonergan.

— Trabalhou muito, hem?

Ele não sorriu.

— Estão dispostos a fazer um contrato de arrendamento com opção de compra.

— Muito interessante. Por quanto?

— O preço do arrendamento será de duzentos e cinqüenta mil dólares por ano e mais vinte por cento do lucro líquido do hotel e cinqüenta por cento dos lucros do jogo, quando houver jogo. O prazo do arrendamento é de cinco anos e você poderá comprar o hotel a qualquer tempo dentro desse prazo, se der dez milhões de dólares em dinheiro. Tem de garantir apenas uma despesa de um milhão de dólares em reformas e melhoramentos, que teria de fazer de qualquer maneira.

Fiz alguns cálculos simples. Arrendamento, pessoal, despesas gerais, amortização dos melhoramentos, tudo me ia sair por um preço básico de oitocentos mil dólares por ano.

Lonergan tinha feito também os cálculos.

— Com trinta e cinco ou quarenta por cento da capacidade do hotel lotada, você cobrirá as despesas.

— Ainda assim, é um abacaxi.

— Talvez.

— Tenho de pensar no caso. Por que será que concordaram com uma transação assim?

— Caíram na realidade. Viram que não, tinham outro recurso.

Dei então a minha estocada.

— E Carillo?

Ele me lançou um olhar vivo e perguntou:

— Que é que você sabe dele?

— Só o que li nos jornais.

— Falamos com ele hoje à tarde. Garantiu que o governo aprovará a transação.

— Tem tanto poder assim?

— É dono de quase tudo no Estado.

— Onde é que estão os índios, tio John?

Ele se mostrou surpreso.

— Não sei de que é que você está falando.

— Não tem importância. .. Quando é que espera uma resposta minha?

— O mais depressa possível.

— Vamos deixar esta noite passar. Terei uma resposta para eles antes de tomar o avião amanhã.

— OK — disse ele, tomando outro gole do martíni.

— Uma coisa você não me disse, tio John.

— O quê?

— Qual é sua opinião? Acha que se trata de um bom negócio?

— Acho que é tão bom negócio quanto qualquer outro. Mas você é que tem de decidir se quer fazê-lo ou não. O dinheiro é seu.

— É seu também, porque você é meu sócio.

— Não me tenho dado mal com a sociedade até agora. O que você decidir, estará certo para mim. De qualquer maneira, vou sair ganhando. . .

— Como assim?

Um sorriso lhe apareceu nos lábios.

— Pude andar descalço pela praia. . .

Eileen havia escolhido o vestido preto, que lhe caía muito bem. Deixou-me entrar e imediatamente começou a falar com um ar muito sério.

— Acho que você não deve fazer esse negócio. Tenho minhas dúvidas a respeito.

— Quem sabe. . . Mas se der certo, vai me dar um bocado de dinheiro.

— Você precisa do dinheiro, Gareth?

— Do dinheiro, não. Mas me divirto com esse negócio.

— Não vai ser nada divertido, se você perder o dinheiro.

— Estou em condições de perder.

Os olhos dela tornaram-se mais negros.

— Talvez, se for só o dinheiro que você vai perder. Mas não é disso que eu estou falando.

— Então, de que é que você está falando?

— Não sei exatamente. . .

O garçom entrou trazendo, como hors d’ceuvres, pequenas enchiladas, tortillas enroladas em chili e carne, crackers e abacate ao vinagrete. Preparou um scotch com gelo para mim e um margarita para Eileen. Fez um gesto em direção à mesa, como que pedindo a nossa aprovação.

A mesa estava lindamente posta para três, com velas, toalha de linho, copos de cristal e uma garrafa de Dom Pérignon no balde de gelo. Ousei meu limitadíssimo espanhol:

— Muy hermosa.

Ele sorriu, fez uma reverência, com um lampejo de satisfação no rosto:

— Muchas gracias, sehor.

Bateram na porta e ele foi abri-la. Marissa entrou e estava com o vestido branco que usara na primeira noite.

— Você está absolutamente linda — Eileen disse.

— Você também — disse Marissa mostrando-se agradecida.

Sem que pedisse, o garçom trouxe-lhe um margarita.

Ergui meu copo:

— À felicidade — eu disse, saudando as duas, e bebemos.

— Está faltando uma coisa — Eileen disse. — Se você vai dirigir isto aqui, insisto em que haja música em todos os quartos.

— Há música — informou Marissa. — Esqueci de mostrar.

Ela caminhou para o bar e na parede atrás dele apertou um botão. Música mexicana começou imediatamente a ser ouvida.

— Também temos música americana — ela acrescentou, enquanto apertava o botão novamente e ouvia-se a voz de Frank Sinatra cantando Night and day.

— Estou gostando — eu disse. — Dançamos?

— Com qual de nós duas? — Marissa perguntou.

— Para perguntas tolas respostas tolas — eu disse, abrindo os braços. — Com ambas, é claro.

Elas chegaram-se a mim e eu pus um braço em torno de cada uma. Eileen repousou a cabeça em meu ombro esquerdo, enquanto Marissa colava seu rosto no lado direito do meu rosto. Os perfumes de ambas se misturavam. Movíamo-nos lentamente, nossos corpos cada vez mais apertados entre si. Sentíamo-nos no sétimo céu.

O jantar também foi uma beleza. Estávamos todos apaixonados.

A luz dourada da lareira iluminava os seus corpos nus enquanto elas dormiam juntas sobre o tapete de couro de zebra. Sentei-me no chão e comecei a saborear, lentamente, o meu conhaque na taça aquecida.

Pareciam duas Ma]as desnudas de Goya. O clarão da lareira dourava o corpo pálido de Eileen e acentuava o bronzeado da pele de Marissa. Os bicos dos seios desta pareciam duas uvas roxas, comparados com os de Eileen, que se assemelhavam a duas cerejas. Elas dormiam uma com um braço sobre o ombro da outra, a mão de uma cobrindo o sexo da outra.

A princípio Marissa se mostrara tímida, mas quando sentiu a calidez do amor e a sexualidade estimulada pela combinação de música, bebida e dança, desabrochou como uma flor. E no fim ela era a mais sensual de nós todos, exigindo, recebendo, provando e amando intensamente, até que estivéssemos absolutamente exaustos.

Agora estavam elas ali dormindo e eu completamente acordado. Contemplei-as um momento e então me pus de pé. Vesti as calças e saí para o jardim para respirar o ar noturno impregnado de jasmim.

Havia ainda algazarra e risos vindo do bangalô de Bobby. Eles tinham estado ativos a noite inteira, embora depois de algum tempo não pudéssemos ouvir ruído algum vindo de lá.

Com o drinque na mão, caminhei até o outro bangalô e ao entrar deparei com uma discussão.

Samantha encarava Bobby e Dieter e seu busto nu arfava de raiva.

— Não é justo — ela gritava. — Vocês, veados, sempre fazem a sua turminha. . .

— Que mal há nisso? — intervim eu.

— Claro que há. Eu quero trepar e não há homem aqui. . .

Apontei para King Dong, esparramado no chão com a cabeça no colo de uma das pequenas.

— Que tal esse aí?

— Não dá mais nada — ela disse desanimada. — Na última trepada que ele deu, levamos mais de uma hora para fazer aquele troço imenso dele levantar.

— Não fique olhando para mim assim — disse eu ao mesmo tempo que me dirigia para a porta.

Voltei ao meu bangalô e encontrei a$ minhas duas Majas desnudas dormindo tal como eu as deixara. Fui ao quarto, apanhei um cobertor e trouxe-o para cobri-las. Elas continuaram imóveis. Já ia me deitar quando bateram na porta. Fui abri-la, irritado com o fato de alguém vir me perturbar àquela hora.

Era Denise. Tinha o rosto arranhado e inflamado, e vestia calças e camisa cáqui em frangalhos. Deu um passo trôpego em minha direção, com os olhos esbugalhados de terror. Amparei-a nos braços antes que ela caísse.

— Leve-me daqui, Gareth! Leve-me daqui, pelo amor de Deus! Vem gente atrás de mim! Não deixe que me levem! Quero voltar para casa!


Capítulo quarenta e quatro

Levei-a para o quarto e deitei-a na cama. Denise tinha os olhos fechados e tremia de medo. Cobri-a e me ajoelhei ao lado da cama. Os lábios dela se moviam num sussurro rouco.

— Não, não. . . Não quero entrar em transe. . . Nunca mais. . . Eu vi Gareth, sim. . . Não foi alucinação. . . Juro. . . Não. ..

Eileen chegou à porta e perguntou:

— Quem é?

— Denise. Está passando mal. . . Veja se descobre um médico.

— Vou telefonar — disse Marissa, aparecendo também. Eileen se aproximou de Denise.

— Meu Deus! Que foi que houve com ela?

— Não sei. Vá buscar uma toalha e um pouco de água quente. Veja se pode limpar o rosto dela.

— Gareth — disse Denise, estendendo a mão para mim. Sentei-me na cama e segurei-lhe a mão.

— Disseram-me que você não estava aqui, que era uma alucinação minha...

— Estou aqui, Denise. Quem eram eles?

— O Irmão Jonathan e os outros. Ele se zangou porque eu desobedeci à regra que proíbe as ligações. Fizeram-me entrar em transe. Eu não queria mas eles me obrigaram. Os outros ajudaram. Levaram-me para o laboratório.

— Tudo está bem agora, Denise. Você está segura. Está aqui comigo.

— Não estou com alucinações, não é, Gareth?

— Claro que não. Você me recomendou que não dissesse nada a ele. Como foi que ele descobriu?

— Eu disse a ele. É preciso sempre dizer a verdade. É essa a primeira regra. Então ele ficou zangado e disse que eu estava mentindo. Disse que você estava muito longe daqui e que eu estava tendo uma alucinação. Você não vai deixar que me levem, vai?

— Não. Você vai ficar aqui e voltar para os Estados Unidos comigo.

— Promete?

— Prometo.

Eileen chegou com uma toalha e uma bacia de água quente e começou a banhar o rosto de Denise.

— Eileen?

— Que é, querida?

— É mesmo você?

— Sou sim, Denise.

— Eu estava apavorada — disse ela num sussurro. — Corri pela floresta a noite inteira. Havia animais, sabe?

— Você agora está em segurança. Não pense mais nisso.

Denise retesou o corpo de repente e exclamou:

— Não deixe que me levem. Por favor!

Eileen a abraçou.

— Não a levarão. Fique descansada, querida.

Marissa chegou à porta e disse:

— O médico estará aqui dentro de alguns minutos.

— Quem é que está aí? — perguntou Denise com a voz assustada.

— É Marissa, uma amiga nossa — disse eu.

— Quero tocar nela — disse Denise, estendendo a mão.

Marissa tomou-lhe a mão e Denise segurou-a por muito tempo, dizendo depois com um suspiro:

— E uma boa pessoa. Tem uma aura cheia de amor.

— Ajude-me a despi-la — disse Eileen a Marissa.

As duas se curvaram sobre Denise, tiraram-lhe cuidadosamente a camisa e as calças dilaceradas e começaram a lavar-lhe o corpo contundido e ferido.

— Os guardas! — exclamou Denise de repente. — Foram eles que contaram ao Irmão Jonathan. Viram-nos sair correndo da aldeia.

— Por que iriam fazer isso? Eles nada têm com o Retiro.

— Têm, sim! — replicou Denise. — Chegam todos os dias num caminhão e levam umas vinte pessoas para trabalhar nas terras de Carillo.

— Isso não faz sentido — murmurei.

Mas ela continuava.

— Foi por isso que, quando eu cheguei, a primeira coisa que me disseram foi que eu não tinha visto você e que tudo fora uma alucinação, antes mesmo que eu dissesse a verdade. Não deixe que me levem, digam o que disserem!

— Não vão levar.

— Eles vão me deixar em transe durante dias. Vou ficar . louca se fizerem isso. Não vou suportar!

A campainha da porta tocou e ela deu um pulo da cama. Tive de segurá-la senão sairia pela janela. Ela se debateu nervosamente nos meus braços.

— Não vou voltar!

Vi de relance o médico, um homem ainda moço com o bigode bem aparado e uma mala preta na mão.

— Não é ninguém que tenha vindo buscá-la. É o médico — disse eu, procurando acalmá-la.

Ela deixou de se debater, levei-a para a cama e cobri-a com um lençol. Ficou sentada. O médico se aproximou, colocou a mão sob o queixo de Denise e viu-lhe os olhos. Disse alguma coisa em espanhol a Marissa.

— O médico quer que você se deite — disse ela.

Denise olhou para mim e eu fiz um sinal afirmativo. Ela se deitou e descansou a cabeça nos travesseiros.

O médico suspendeu o lençol e examinou-a. Tornou a falar e Marissa foi traduzindo:

— Ele diz que ela vai ter de tomar uma injeção para evitar infecções e passar um ungüento nas feridas. Precisa principalmente de repouso pois está à beira de um colapso nervoso.

— Não quero injeção! — gritou Denise. — Vão me levar daqui enquanto eu estiver dormindo.

— Ninguém vai levar você, Denise — disse eu. — Não sairei um só instante do seu lado.

Ela olhou para Eileen.

— Você também?

— Eu também.

— Não quero voltar para o transe!

— O único lugar para onde você vai voltar agora é para os Estados Unidos.

— Está bem -— disse Denise ao médico.

— Deite-se de bruços — disse Marissa, traduzindo as instruções do médico.

Deu uma injeção em cada nádega. Depois, tirou um tubo da mala e começou a aplicar o ungüento. Antes que acabasse, Denise já estava mergulhada em sono profundo.

— O médico diz que ela dormirá de seis a oito horas. Diz que ela precisa desse repouso e que não devémos acordá-la

— disse Marissa. — Ele também acha que ela teve uma reação adversa à mescalina e pode estar sofrendo de uma psicose tóxica. Talvez haja necessidade de um tratamento especializado posterior pois certas formas dessa droga persistem no organismo e têm efeitos a longo prazo ainda que não haja reincidência no uso.

— Diga ao médico que eu tomarei todas as providências para que ela tenha um tratamento completo — disse eu.

— O médico diz que virá vê-la de novo amanhã ao meio-dia.

— Obrigado. Muchas gracias — disse eu ao médico.

O médico cumprimentou-nos e saiu. Marissa levou-o até a porta. Depois, voltou para o quarto.

Eileen ajeitou as cobertas em torno de Denise, apagou as luzes dos abajures e todos nós fomos para a sala.

— O médico disse que há vários casos assim no Retiro

— disse Marissa. — Duas pessoas tiveram de ser levadas para o hospital.

— Na opinião dele, qual é a causa disso?

— Diz ele que todo o mundo lá faz uso de tóxicos e alguns não sabem como usá-los. Há evidente abuso das drogas.

Pensei que talvez muitos ali recebessem os tóxicos sem consciência plena do que estava acontecendo. Um dos rapazes me dissera que recebiam uma ração diária.

— Há algum jeito de se tomar café a esta hora? — perguntei.

— Há café solúvel na cozinha — disse Marissa. — Vou ferver a água.

Depois que ela saiu, Eileen me perguntou:

— Faz alguma idéia do que está acontecendo por lá?

— Não sei, Eileen. Mas pode ter certeza de que o Reverendo Sam vai saber de tudo logo que eu voltar.

Tínhamos acabado de tomar café quando ouvimos o barulho de carros que paravam do lado de fora. Um momento depois, a campainha tocou.

O Irmão Jonathan estava à porta acompanhado de dois homens com a farda cáqui do Retiro. Mais atrás, pude ver alguns guardas de Carillo que seguravam Dobermans presos por correias.

— Irmão Jonathan — disse eu. — Paz e amor.

Ele quis entrar pela casa adentro, mas eu lhe barrei o caminho. Parou e disse:

— Paz e amor, Gareth. Estamos procurando Denise. Você a viu?

— Vi.

— Graças a Deus! Estávamos muito preocupados! Ela desapareceu desde as oito horas da noite. Está aqui com você?

— Está.

— Ótimo! Vamos levá-la então.

— Não!

— Mas ela está muito doente e precisa de assistência. Fez uma viagem desastrosa. Tenho um médico no Retiro à espera dela para tratá-la.

— Ela já foi atendida aqui por um médico, que recomendou que ela não fosse removida em nenhuma circunstância.

Ele ficou em silêncio durante algum tempo e em seguida perguntou:

— Posso vê-la?

— Ela está dormindo.

— Vou deixar meus dois homens aqui para ajudarem a tomar conta dela.

— Não há necessidade. Tenho quem me ajude.

— Está bem. Parece ter tomado todas as providências. Voltarei mais tarde a fim de levá-la para o Retiro.

— Não se dê a esse trabalho. Ela não vai mais para o Retiro. Vai voltar para os Estados Unidos comigo.

— Ela não pode fazer isso!

— Por que não, Irmão Jonathan? Segundo as informações que tenho, qualquer pessoa pode deixar o Retiro em qualquer época. Um dos homens que vieram em sua companhia me mostrou até a passagem de volta que cada um traz consigo.

A voz do Irmão Jonathan se tornou áspera.

— Está tornando as coisas muito difíceis para mim. Sou responsável perante o Reverendo Sam por todas as pessoas que estão no Retiro. E não posso permitir que ela saia antes que isso seja aprovado pelos nossos médicos.

Vi Bobby e Dieter que se encaminhavam para o bangalô. Os dois chegaram à porta a tempo de me ouvir dizer:

— Neste caso, vou telefonar imediatamente para o Reverendo Sam e pedir-lhe a autorização.

— Que é que está acontecendo? — perguntou Bobby.

— O Irmão Jonathan diz que eu preciso de uma autorização de seu pai para levar Denise para os Estados Unidos.

Bobby olhou para o Irmão Jonathan e disse:

— Ela tem todo o direito de viajar sem precisar da autorização de ninguém, nem mesmo de meu pai. Sabe muito bem disso.

— Mas ela está doente e não sabe o que está fazendo.

— Conhece muito bem a regra da organização que diz que a liberdade de escolha e aceitação é um dos princípios fundamentais a serem respeitados. Meu pai não gostaria de que essa regra não fosse observada.

— Está bem — disse o Irmão Jonathan. — Voltaremos depois. Quero falar com ela.

— E se ela não quiser falar com você?

— Ela vai falar comigo, ora se vai!

— Irmão Jonathan, está dando a impressão agora de que nunca deixou de ser da polícia.

Ele me deu as costas sem responder. Falou em espanhol aos seus guardas e eles se dirigiram para os carros.

— Não está esquecendo uma coisa, Irmão Jonathan? — disse eu.

Ele se voltou para mim.

— Paz e amor, Irmão Jonathan!


Capítulo quarenta e cinco

Não pude mais dormir. Fui para o pátio e fiquei vendo o sol nascer. O mordomo chegou às sete horas.

— Desayuno? — perguntou com um sorriso.

Percebi de repente que estava com fome.

— Si.

Estava no meio de um prato de presunto com ovos quando Lonergan apareceu.

— Teve uma noite movimentada, não foi?

— Como foi que soube?,

— Falei com Dieter hoje de manhã.

— Que é que acha?

— Você não mudou nada. Ainda é o cavaleiro das causas perdidas.

— Das causas perdidas? Por que diz isso?

— A moça é uma viciada. Dieter me disse que não é a primeira vez que ela fica nesse estado.

— Ela não era viciada quando veio para cá. O que quer que tenha acontecido foi depois que ela chegou aqui.

Tio John sentou-se a minha frente e o mordomo lhe trouxe uma xícara de café.

— Não teve muito tempo para pensar na proposta, não foi, Gareth?

— Não tive mesmo.

— Posso lhe dar uma opinião?

— Claro que pode e desde já lhe agradeço.

— Não vejo como você pode ter prejuízo. Ainda que só dê para cobrir as despesas, você ganhará dinheiro.

— Como assim?

— O seu investimento virá dos Estados Unidos e poderá ser deduzido do imposto de renda, de modo que a despesa líquida para você será de cinqüenta por cento. Se cobrir as despesas e deixar o dinheiro aqui, terá já cinqüenta por cento de lucro. E se a operação deixar saldo, aí você passará bem à frente.

— Está fazendo tudo parecer fácil demais, tio John. E se não der para cobrir as despesas?

— Você perderá o que faltar para cobrir as despesas. O que são cinqüenta por cento de cinqüenta por cento?

Acabei de tomar o café e disse:

— Há outro problema. Não há ninguém em minha organização que entenda de hotelaria.

— Dieter me disse que vai ficar por aqui. E eu soube que o gerente-geral do Princess nas Bahamas está querendo sair de lá.

— Bom elemento?

— Muito bom. E se autorizarem o jogo, ele tem experiência em cassinos. Já trabalhou no Mayfair, de Londres. Virá trabalhar por sessenta mil dólares por ano e um quarto de um por cento dos,lucros do hotel.

— Como é que você sabe?

— Telefonei para ele hoje de manhã.

— Não perde tempo, hem?

— Não posso. Na minha idade, é muito perigoso perder tempo.

Levantei-me e fui até o fim do pátio. Olhei para o mar, depois para o hotel e, por fim, para as montanhas ao fundo. O cenário era realmente belo. Voltei para a mesa e perguntei a meu tio:

— Acha bom mesmo o negócio?

— Acho. Não estava errado quando quis que você adquirisse os clubes, estava?

— Não.

— Você está adquirindo uma experiência preciosa, Gareth. Os clubes, este hotel, Atlantic City, quando for aberto — talvez até Las Vegas. Ninguém pode saber quando uma coisa muito boa vai aparecer por lá. E aí você ganhará dinheiro de verdade.

— Tio John, você é um homem ambicioso. Parece que não deseja senão que eu o enriqueça.

— Que mal há nisso? — perguntou ele, sorrindo. Decidi-me.

— Está bem. Vamos tentar.

— Aceita então?

— Você me convenceu. Pode dizer a eles que o negócio está fechado.

Ele estendeu a mão.

— Felicidades.

— Para nós dois.

Eileen saiu do bangalô. Parou ao ver Lonergan e fechou o robe em torno do corpo.

— Gareth. . .

— Dê-nos os parabéns. Estamos metidos no negócio de hotéis.

Ela não reagiu. O rosto mostrava preocupação.

— Passei pelo quarto para ver Denise. Ela está queimando de febre.

Fomos até o quarto. O rosto de Denise estava pálido e grossas gotas de suor lhe corriam pela testa. As faces estavam afogueadas e o corpo tremia sob as cobertas. Sentei-me na cama ao lado dela.

— Vá buscar um pano e álcool para fazer uma fricção, Eileen.

— Não temos álcool aqui.

— Alguma loção, então. E enquanto eu estiver fazendo a fricção, telefone para o médico.

Entrei logo em ação. Vira no Vietnam muitos soldados atacados de febres assim. Às vezes, era malária, outras, paratifo. Ouvi Eileen falar com Marissa no outro quarto, em seguida ouvi a voz de Marissa ao telefone.

Eileen voltou ao quarto.

— Alguma coisa que eu possa fazer?

— Sim. Peça lençóis limpos à camareira.

Levantei Denise, cobrindo-a com um lençol, enquanto mudavam a roupa de cama. A pobre menina não pesava quase nada. Eu ainda não havia percebido quanto ela emagrecera. Quando acabaram, tornei a deitá-la na cama.

Voltei-me para Lonergan e surpreendi-o a olhar-me com uma expressão indecifrável.

— Vou até o hotel para comunicar a sua decisão.

— Está bem — disse eu, acompanhando-o até a sala.

— O médico já vem aí — disse Marissa.

— A que horas você gostaria de conversar com eles, Gareth?

Joguei-me numa poltrona e sacudi a cabeça. A falta de sono afinal me colhia. Tudo me parecia um esforço sobrehumano.

— Resolva tudo por mim, tio John. Farei o possível para falar com eles antes de partir.

Ele fez um sinal de assentimento e saiu. Fechei os olhos e dormi. Não por muito tempo, pois senti que alguém me tocava delicadamente o ombro. Era Eileen.

— Acorde, Gareth. O médico quer falar com você.

Lutei para dissipar as névoas do sono.

— Veja se me arranja uma xícara de café, Eileen.

O mordomo trouxe o café e isso me ajudou um pouco. Entrei no quarto.

Denise ainda estava dormindo. O médico, com uma cara muito séria, disse algumas palavras rápidas que Marissa foi traduzindo para mim.

— A moça está muito doente. Além de desnutrição, sofre de uma disenteria produzida por um vírus, o que a fez perder muito líquido. A febre provém de uma infecção traumática ou de uma virose, talvez de ambas. O médico é a favor de uma hospitalização imediata.

— Qual é o hospital mais próximo?

— O de La Paz — respondeu Marissa. — Ele pode telefonar pedindo uma ambulância aérea.

La Paz ficava a trezentos quilômetros de distância.

— Quanto tempo isso demoraria?

— O avião poderia estar aqui hoje à tarde.

— Telefone para o aeroporto e procure saber se meu avião já está pronto para levantar vôo.

Sentei-me na cama enquanto Marissa telefonava.

— Há alguma coisa que o senhor possa fazer agora? — perguntei ao médico.

Ele não entendeu uma só palavra do que eu estava dizendo.

Marissa voltou e disse:

— O avião poderá partir dentro de uma hora.

— Diga então que se aprontem.

Ela voltou para o telefone e depois me disse:

— Tudo em ordem.

— Muito bem. Pergunte então ao médico se ele pode fazer alguma coisa por ela neste momento.

— A única coisa que ele sugere é aplicar-lhe um pouco de soro. Não quer prescrever qualquer medicação antes de fazer os exames indispensáveis.

— Está bem.

— O médico está perguntando se há lugar para ele no avião. Gostaria de ter certeza de que o estado dela não se alterará.

— Diga que sim e que eu lhe ficarei muito grato.

— Posso ir também? — perguntou Marissa.

— Sem dúvida.

O médico falou com Marissa e em seguida saiu.

— Ele vai buscar o soro e alguns medicamentos de emergência. Estará aqui a tempo de ir conosco para o aeroporto.

— Consiga a limusine para nós. Quero que Denise vá deitada no banco de trás.

— OK. Acha que tenho tempo de ir até o hotel e trocar de roupa? Ainda estou usando os jeans de Eileen.

— Pode ir, mas não demore.

Depois que ela saiu, voltei-me para Eileen.

— É claro que você vem conosco.

— Você acha que Denise está tão mal assim, Gareth?

— Não sei ainda. Mas vamos descobrir e fazer o possível para ajudá-la.

— O médico disse que ela está com quase quarenta graus de febre. Não estou gostando. É uma febre muito alta.

— Vi gente com febre mais alta no Vietnam — disse eu. — E de febre ninguém morreu por lá.

— Sabe, Gareth? Não confio muito nos hospitais mexicanos.

Eu também não confiava. Esperei até que o piloto levantasse vôo e que o médico tivesse ajeitado a ampola de soro. Levantei-me, fui até a cabina e disse ao piloto que mudasse a rota para Los Angeles e que pedisse pelo rádio que uma ambulância nos esperasse no aeroporto.

Quando voltei para o meu lugar, o médico estava visivelmente nervoso. Olhou pela janela e falou com Marissa.

— O médico diz que La Paz fica a leste e que nós estamos voando para o norte.

— É verdade. Mudei de idéia. Estamos voando para Los Angeles.

— Por quê?

— Ora, eu prometi a Denise que a levaria para os Estados Unidos.

Estávamos na sala de espera da ala particular do Centro Médico da Universidade da Califórnia em Los Angeies e o Dr. Aldor estava custando muito a aparecer. O relógio na parede marcava uma hora. Marissa e o médico já deviam estar de volta a Mazatlán. Eu havia pedido ao piloto que os levasse logo depois que reabastecesse o avião.

Ed me chamou da porta e disse:

— Vamos procurar um lugar mais sossegado para conversar.

Eileen e eu o seguimos pelos corredores cheios de gente até uma sala com o letreiro: PRIVATIVO DOS MÉDICOS.

Sentamo-nos em volta de uma mesa e ele disse, com os olhos cheios de tristeza:

— A moça está bem doente.

— Que é que ela tem?

— Ainda não temos certeza. Desconfio que se trate de hepatite infecciosa complicada com desnutrição e abuso de tóxicos. Há indícios de perturbações dos rins. Está sob tratamento intensivo e cuidadosa vigilância.

— Parece estar sob o efeito de um sedativo muito forte — continuou. — Tentei falar com ela, mas não me respondeu. Houve um momento em que recobrou a consciência e perguntou onde estava. Quando eu disse, ela voltou a dormir.

— Ela queria vir para cá — disse eu.

— Preciso de algumas informações sobre ela. Sabe qual foi o sedativo que o médico deu a ela no avião?

— Não. Preparou um tipo de soro, mas, que eu saiba, o único sedativo aplicado foi uma injeção ontem à noite. Disse que ela dormiría de seis a oito horas, de modo que o efeito já deve ter passado.

Ed pensou por um instante e disse:

— É muito estranho. Tem certeza de que nada havia na ampola além do soro?

— Ele mudou de ampola uma vez durante a viagem — disse Eileen.

— Quando foi isso? — perguntei.

— Quando você foi à cabina do piloto para telefonar para o Dr. Aldor. Disse que a ampola não estava funcionando direito.

— A que horas foi isso? — perguntou Ed.

— Mais ou menos na metade do caminho. Estávamos a cerca de uma hora e quinze minutos de Los Angeles.

— Uma hora e quinze minutos de um sedativo póderia explicar a maneira pela qual ela está reagindo. Sabe qual era o entorpecente que estavam dando a ela?

— Ela me falou em mescalina. Mas podia haver outras drogas. Colhi este cigarro por lá.

— Vou mandar analisá-lo. Há mais alguma coisa que me possa dizer?

— Creio que já sabe tanto quanto eu.

— Mais uma pergunta. Há quanto tempo ela faz uso dessas coisas?

— Faz dois anos que a vi pela última vez. Talvez todo esse tempo.

Ele se levantou.

— Vocês dois parecem bem cansados. Vão para casa e procurem descansar. Não se preocupem, que nós cuidaremos bem dela.

— Muito obrigado, Ed — disse eu, tomando-lhe as mãos. — Procure curá-la que ela é uma boa menina.

— Pode levar algum tempo, mas creio que vamos conseguir. Além disso, ela é muito jovem e muito forte e isso já é meio caminho andado.

No corredor, eu parei e lhe disse:

— Escute, Ed. Não faço questão de despesas. Quero que nada falte a ela, inclusive enfermeiras permanentes à sua cabeceira. Diga que mandem todas as contas para o meu escritório.

— Vou visitá-la esta noite e depois telefonarei para dizer como ela está passando.

— Podemos vê-la?

— Só a partir de amanhã, quando ela já deverá estar melhor.

O carro de Lonergan estava esperando à porta quando saímos do hospital. O motorista estava ao volante e o Cobrador a seu lado. Abriu-nos a porta de trás logo que nos viu.

— Prazer em vê-los — disse.

— Como soube onde me podia encontrar?

— No seu escritório. Lonergan telefonou e pediu que eu o viesse buscar. Quer que eu o leve até o escritório dele para uma reunião.

— Hoje não, Bill. Vamos para casa dormir. Os negócios podem esperar até amanhã.


Capítulo quarenta e seis

Os elevadores do novo edifício de escritórios Century City tinham a fama de ser os mais velozes da Califórnia. Ainda assim, não se comparavam com os de Nova York ou Chicago. Os californianos não eram orientados em direção vertical.

As luzes dos andares se acendiam enquanto subíamos.

17. PUBLICAÇÕES GARETH BRENDAN LTDA.

Produção

18. PUBLICAÇÕES GARETH BRENDAN LTDA.

Vendas e Contabilidade

19. PUBLICAÇÕES GARETH BRENDAN LTDA.

Escritórios Executivos

A porta se abriu e eu saltei na área de recepção do décimo nono andar. Um grande painel relacionava as divisões da empresa em letras douradas:

PUBLICAÇÕES GARETH BRENDAN LTDA. REVISTAS

Macho

Lifestyle Digest Mulheres do Mundo Gente da Noite

Clube do Livro Macho Publicações Associadas Clube do Disco Lifestyle Produtos Lifestyle

CLUBES E HOTÉIS LIFESTYLE

Clube Lifestyle de Nova York Lifestyle Hotel de Mazatlán

Clube Lifestyle de Chicago Turismo e Viagens Lifestyle

Clube Lifestyle de Los Angeles Linhas Aéreas Lifestyle Clube Lifestyle de Londres Produções de Mídia Lifestyle

Ao caminhar para a mesa de recepção em forma de meia-lua, vi a neve brilhar no alto do monte Baldy, sessenta quilômetros a leste. Era um desses dias excepcionais e que são mais freqüentes em Los Angeles do que a propaganda dos Estados do leste quer reconhecer. Havia lugar para três secretárias na mesa de cinco metros, mas só um lugar estava ocupado no momento.

Olhei para o relógio na parede. Nove e vinte. O escritório abria oficialmente às nove e meia. A partir dessa hora, haveria três moças na mesa. Nenhum visitante podia entrar sozinho numa sala. Era sempre escoltado por uma das recepcionistas, que eram sensacionais, todas elas garotas que já haviam posado para as nossas capas ou para os nossos posters. Podiam ser também algumas das garotas recrutadas em nossos clubes. Era tudo uma questão de imagem. Bastava um visitante ver uma de nossas recepcionistas para saber qual era o nosso negócio.

Havia já cerca de oito pessoas que esperavam para falar com alguém. Estavam sentadas, conversando em pequenos grupos ou folheando as revistas que enchiam as mesinhas ao lado das poltronas. As paredes estavam cobertas de ampliações de nossas capas ou dos nossos posters cuidadosamente retocadas, por motivos óbvios.

A moça sentada à mesa de recepção era nova ali. Via-se pelo seu tom de voz que não me havia reconhecido, embora houvesse muitas fotografias minhas espalhadas pelas paredes.

— Bom dia. Que deseja, cavalheiro?

— Denise já chegou?

— Se quiser sentar-se e esperar, ela deve chegar daqui a poucos minutos.

— Não, muito obrigado — disse eu, tirando de baixo do braço a caixa com o presente. — Quer fazer o favor de entregar isso a ela?

— Pois não — disse a moça, pegando a caixa e colocando-a no chão ao lado da mesa.

— Muito obrigado.

Peguei no bolso a minha chave especial e atravessei a sala de recepção dirigindo-me para o elevador particular, que me levaria para o meu escritório, na cobertura.

— Perdão, cavalheiro — disse a recepcionista. — Os elevadores de descida ficam do outro lado.

Olhei para ela. Tinha já o dedo no botão de alarma. Se o tocasse, dois guardas especiais acorreríam em menos de um minuto.

— Sei disso.

— Esse elevador é só para os diretores da companhia. Sorri e levantei a chave para que ela a visse. Meti a chave na fechadura.

— Moça, eu sou a companhia.

Entrei, no elevador e, antes que as portas se fechassem, pude vê-la, boquiaberta. Toquei o botão e fui levado para a cobertura.

Os guardas especiais estavam esperando quando eu saí do elevador e cheguei à sala de minhas secretárias. Tranqüilizaram-se ao ver-me.

— A moça é nova aqui e não o reconheceu.

— Calculei isso. Ao menos, mostrou que está atenta ao serviço.

As gêmeas de Bobby estavam sentadas às suas mesas ao lado da porta de minha sala.

— Bom dia, Sr. Brendan — disseram a uma só voz quando eu passei.

— Bom dia — disse eu, entrando e fechando a porta. Atravessei a sala e me sentei à mesa. Olhei para os móveis Chippendale que decoravam a sala e sacudi a cabeça com raiva. Um decorador gay tinha tomado duzentos mil dólares a Eileen para fazer aquilo que eu detestava, mas que, na opinião dela, tinha muita dignidade.

Virei a cadeira e olhei pela janela para os lados do oeste. Como já disse, o dia em Los Angeles estava excepcional. O sol subia pelo céu azul como um globo de fogo amarelo. Dentro em pouco, faria na cidade um calor tremendo. Além do aeroporto, a água do Pacífico cintilava e um grande jato descia para um pouso.

Virei-me para a mesa e apertei o botão de nossa linha aérea. A tela se iluminou dando-me todas as horas de chegada e partida dos nossos aviões nas próximas doze horas. Nosso avião de turismo procedente do Havaí só chegaria a Los Angeles às onze. Olhei para o aeroporto por um telescópio montado num tripé ao lado da janela. O avião era um 747 da PANAM e eu o acompanhei até vê-lo desaparecer pouco antes do pouso. Não importava que não fosse nosso. Dera-me assim mesmo uma grande emoção.

Voltei à minha cadeira no momento em que uma das gêmeas entrava com um serviço de café de prata. Serviu uma xícara, colocou o açúcar, mexeu o café e colocou a xícara à minha frente.

— Muito obrigado, Dana.

— Não há de quê, Sr. Brendan, mas eu. . .

— Já sei, já sei. Você é Shana.

— Isso mesmo, Sr. Brendan.

Já fazia quatro anos que elas trabalhavam comigo e eu ainda não podia distingui-las. A esta altura, já estava também convencido de que elas se divertiam à minha custa.

— Dana virá trazer-lhe a correspondência e os recados — disse ela. — A reunião com os corretores é às dez horaá em sua sala de conferências.

Tirou um jornal que estava dobrado debaixo de seu braço e abriu-o na mesa, à minha frente.

— Pensei que gostaria de ver o Wall Street Journal de hoje, Sr. Brendan.

Uma notícia dizia em letras garrafais: "VITÓRIA DO SEXO NO MUNDO DOS NEGÓCIOS". Um subtítulo explicava: "Inteiramente subscrita a primeira oferta de títulos das publicações Brendan".

O interfone tocou. Apertei o botão.

— Denise na linha interna.

Peguei o telefone e disse:

— Parabéns para você, Denise.

— Você se lembrou? — perguntou ela, toda feliz.

— Acha que podia me esquecer? Você é minha predileta.

— Nem posso acreditar que já se passaram dois anos. Parece que foi ainda ontem que eu voltei.

— Talvez os próximos dois anos passem com a mesma rapidez e com a mesma felicidade.

— Obrigada, Gareth. Iria até aí em cima dar-lhe um beijo se não soubesse como você vive ocupado.

— Como está ela? — perguntou Shana depois que eu desliguei.

— Está indo muito bem. Mas essas coisas demoram. Vai ao psicanalista três vezes por semana. Meteram jnuito lixo na cabeça dela e não é fácil varrer tudo de uma hora para outra.

— É mesmo. . . Quer que Dana venha agora?

— Não. Deixe tudo para depois da reunião com os corretores.

Ela saiu da sala e fechou a porta. Fiquei pensando no que Denise me dissera. Só não subia para me dar um beijo porque eu estava muito ocupado. Merda! Nunca as coisas me tinham corrido melhor. Por que então, quando eu estava no pico do mundo, me sentia isolado e separado de tudo?

O interfone tornou a tocar.

— Verita na linha interna.

— Buenos dias — disse eu.

— Bom dia. Se você não estiver muito ocupado, eu gostaria de vê-lo por um momento antes da reunião.

— Pode subir.

Ela chegou sobraçando a pasta cheia de papéis, que parecia fazer parte de sua pessoa. Vi-a encaminhar-se para a minha mesa. Aquela mulher tranqüila e equilibrada era muito diferente da moça que eu um dia conhecera atrás de um guichê no auxílio-desemprego. Usava um vestido preto que lhe acentuava a feminilidade e, ao mesmo tempo, proclamava que ela era uma pessoa inteiramente dedicada aos negócios.

— Você está muito bem — disse eu.

— Muito obrigada — disse Verita e foi diretamente ao assunto. — Pensei que gostaria de ver, antes da reunião, os resultados do primeiro trimestre. Há um sumário na primeira página, se não quiser ler todo o relatório.

O sumário era simples. Lucros líquidos antes dos impostos. Li as colunas:

Grupo Editorial

Grupo Lifestyle

Outros setores

US$ 7 900 000

2 600 000

1 500 000

Total

12 000 000

— Estamos vendendo bem — murmurei.

Ela sorriu.

— A circulação de Macho nos três meses chegou a uma média de quatro milhões e cento e cinqüenta mil exemplares. Mulheres do Mundo deu também uma considerável contribuição para os lucros. Mesmo ao novo preço de seis dólares, vendemos quase sete milhões de exemplares.

— Não podemos nos queixar — disse eu, sorrindo.

— O nosso líquido, depois dos impostos, será de cerca de sete milhões de dólares.

— Deixe isto comigo. Talvez os corretores estejam interessados em saber dessas coisas.

— Já mandei fazer cópias para todos eles.

Ela estava sempre adiante de mim. Não havia nada que eu tivesse de fazer. Ela já tomara providências sobre tudo.

— Muito bem — disse eu.

— Mais duas coisas, se você tiver tempo. . .

De nQvo aquela frase: "Se você tiver tempo. . ." Ninguém, havia mais de um ano, se aproximava de mim sem dizer isso. Consegui conter a minha irritação.

— Tenho tempo, sim. . .

— Os contadores apuraram que o pessoal nas divisões de material dos clubes aumentou entre dezessete e vinte homens por clube nos últimos dois anos.

— E daí?

— É um absurdo. No máximo, são necessários dois homens.

— Que diferença faz isso em comparação com os lucros que estamos obtendo?

— Não é assim que se administra um negócio. Se a mesma coisa acontecesse em outros setores da companhia, não teríamos lucros de espécie alguma.

— Está bem, Verita. Veja isso e tome providências.

— Já tomei.

Ela estava de novo adiante de mim. Não pude deixar de dizer com uma ponta de aborrecimento:

— Por que é então que me vem dizer, se já tomou as providências necessárias?

— Porque acho que deve ser informado.

— Você disse que havia duas coisas. Qual é a outra?

— A outra é pessoal. Vou me casar no mês que vem.

— Com o juiz?

— Com o juiz — disse ela, sorrindo.

Levantei-me da mesa e fui beijá-la.

— Parabéns, Verita. Ele é um grande sujeito. Sei que vocês dois vão ser muito felizes.

— Ele pretende candidatar-se ao Congresso no ano que vem. Acho que está na hora certa para ele.

— É sempre a hora certa para ele, se você o ama.

— Amo, sim — disse ela, enternecida. — É um ótimo homem.

Beijei-a de novo e vi-lhe o rosto radiante.

— Como isso é lindo! — exclamei.


Capítulo quarenta e sete

Os corretores estavam cheios de júbilo. O doce aroma do sucesso pairava pesadamente no ar. Olhei em torno da mesa. Estavam todos ali, os representantes das grandes casas, dos grandes bancos, Merrill Lynch, Kuhn Loeb, Citybank, Banco da América.

Martin Courtland, presidente do grupo dos corretores, sorriu para mim e disse:

— Essa é a melhor oferta que já chegou ao mercado depois das ações da Ford Motor Company. Poderiamos ter dobrado o preço por ação e, ainda assim, tudo teria sido subscrito.

— Não tenho motivos de queixa — disse eu. — Cem milhões de dólares são ainda muito dinheiro.

— Estou ciente de que no dia em que as ações chegarem à Bolsa terão uma cotação cinqüenta por cento superior ao seu valor nominal.

O preço das ações era de cinqüenta dólares. Isso queria dizer que apareceríam na Bolsa desde o primeiro dia a quarenta e cinco.

— Vocês podem ficar ricos só negociando com as ações da minha companhia — eu disse.

— Talvez queira colocar conosco algumas de suas ações particulares — disse Courtland.

— Isso não. Não sou tão ambicioso assim.

Todos riram. Dois milhões de ações seriam oferecidos ao público. Um milhão ficaria depositado no Tesouro. Eu ficaria com três milhões para mim.

— Tenho alguns dados interessantes — disse eu, referindo-me ao relatório trimestral.

Já o tinham visto.

— Esses dados indicam que os acionistas estão fazendo o maior negócio de sua vida, se tudo continuar como está — disse Courtland.

Olhando para os outros homens, ele continuou:

— Espero que compreendam que é a primeira vez que se faz um grande financiamento para construir um hotel e um cassino em Las Vegas sem uma operação de hipoteca nas fontes habituais.

Eu sabia do que ele estava falando. Tudo começara quando Lonergan me procurara com a terra em Las Vegas, juntamente com o compromisso de setenta milhões de dólares de financiamento da parte de vários sindicatos e companhias de seguros. Gostei da idéia, mas não gostei de ter sócios. As condições que eles impunham me lembravam muito as atitudes dos sócios de Ronzi no leste. Foi então que resolvi vender ações ao público. Playboy fizera o mesmo com menos ainda. Acrescentei os dez milhões de dólares de que precisava para fazer valer minha opção no hotel de Mazatlán e procurei os homens da Wall Street. Houve a princípio um pouco de ceticismo, mas isso desapareceu quando viram os dados sobre os meus lucros. O resultado era a subscrição das ações.

— Não devemos nos entusiasmar antes do tempo — disse eu. — Ainda temos duas semanas até que as ações sejam emitidas.

— Simples formalidades — disse Courtland. — Não há nada que possa impedir um êxito completo.

— Seria bom. Já assinei os contratos e estou à espera do dinheiro. Se este não vier, minhas dificuldades serão enormes.

— Isso não pode acontecer, não — disse Courtland. — Desde já, pode depositar o dinheiro no banco. No dia em que o mercado abrir, o seu capital valerá duzentos e vinte e cinco milhões de dólares.

Essa declaração foi recebida com palmas. A princípio, pensei que as palmas fossem pura formalidade. Mas olhei para os homens e vi que não eram. Estavam todos muito sérios e eu devia saber que o dinheiro era uma coisa que tinha existência real e absoluta para eles. Era uma pena que eu não pudesse levantar-me e agradecer. Fiquei calado.

— Uma vez que esta será nossa última reunião até o lançamento das ações, tenho o prazer de convidá-lo, em nome dos diretores da Bolsa, para um almoço no dia do lançamento.

— Será uma honra.

— Muito bem. Será na segunda-feira, no dia do lançamento. Gostaria também de que confirmasse a sua presença no Clube dos Analistas de Títulos na sexta-feira da semana anterior.

— Isso já está programado. Pretendo ir passar o fim de semana em questão em Nova York.

— Magnífico — disse Courtland. — Mais alguma pergunta antes de encerrarmos a reunião?

— Só uma — disse um dos banqueiros. — Quando é que vamos ser convidados para uma das fabulosas festas na Mansão Brendan de que tanto se fala?

Sorri.

— Infelizmente, deve estar fazendo confusão com outra pessoa. Não dou festas e não possuo uma mansão. Moro num bangalô no Beverly Hills Hotel.

O homem ficou vermelho e eu me apressei em acrescentar:

— Mas a sua sugestão é muito boa e talvez agora eu possa dar essas festas, para as quais estão desde já convidados.

Todos riram e a reunião terminou com uma nota de respeito mútuo e até de amizade.

Voltei para meu escritório, pensando na relação existente entre o dinheiro e o amor. Evidentemente, quanto mais dinheiro se tinha, menos amor se recebia.

Passava um pouco do meio-dia quando cheguei ao meu escritório. Os recados telefônicos estavam empilhados em cima de minha mesa. Não havia nada de realmente importante e eu não precisava telefonar para ninguém. Olhei pela janela. O dia estava de fato lindo.

Peguei o telefone e disquei para Eileen.

— Que tal foi a reunião? — perguntou ela.

— Não poderia ter sido melhor.

— Que bom!

— Tenho uma idéia. Tire uma folga na parte da tarde e vamos para a praia juntos.

— Não posso. Tenho duas reuniões com os redatores e quatro pessoas com hora marcada para receber.

— Cancele tudo e vamos.

— Não posso. Se eu fizer isso, daqui a dois ou três meses as revistas vão sair com várias páginas sem texto.

— Estou quase dizendo um palavrão.

— Não diga. Afinal de contas, vamos jantar juntos em casa de sua mãe esta noite.

Tentei Bobby em seguida, mas ele estava muito ocupado. A produção estava reclamando alguns layouts, ele só podia contar com três fotógrafos naquela tarde e havia nove modelos na sala ao lado à espera de sua aprovação.

Marissa, que estava dirigindo a Divisão de Turismo, estava também cheia de serviço. Dieter estava a caminho dó escritório dela, onde tinham uma reunião marcada com representantes da Associação Odontológica de Los Angeles a fim de discutirem uma planejada convenção de seiscentos dentistas no hotel de Mazatlán.

Por último, telefonei para Denise.

— Hoje é dia de seu aniversário. Chame alguém para ficar em seu lugar e vamos passar a tarde na praia.

— Infelizmente, não posso, Gareth!

— Não pode por quê?

— As meninas organizaram um coquetel para mim em La Cantina depois que o escritório fechar.

Era o fim. Todo o mundo ali tinha o que fazer, menos eu. Agora, eu sabia o que significava vencer: era apenas não ter o que fazer.

Liguei o interfone.

— Prepare um carro para mim.

— Muito bem, Sr. Brendan. Quem o senhor quer que dirija? Tony?

— Não quero que ninguém dirija. Eu mesmo vou dirigir!

— O senhor mesmo?

— Não ouviu o que eu disse?

Desliguei, irritado.

Dcram-me um Cadillac EI Dorado conversível e eu baixei a capota. Vinte segundos depois corria pelo Sunset Boulevard em direção à praia. No caminho, peguei um cesto com galinha assada e algumas latas de cerveja num restaurante de estrada e continuei pela estrada marginal do Pacífico até uma praia depois de Paradise Cove, bastante deserta, segundo me lembro.

Cheguei lá com sol alto, à uma e meia da tarde. Estacionei perto da praia, procurei uma sombra, onde deixei a cesta, é tirando a camisa estendi-a na areia.

Exceto um surfista, mais adiante dentro da água, tentando pegar as onaas altas, não se via mais ninguém na praia. Despi meus siacks e me sentei na areia so de sunga Jockey. Abri uma lata de cerveja e refresquei com prazer a garganta. Fiquei olhando distraidamente o surfista.

Ele estava descendo uma onda, que não teve força bastante para trazê-lo até a areia, e mergulhou na água. Reapareceu um momento depois, perto de sua prancha, montou nela e avançou de novo mar adentro, em busca de uma nova onda.

De vez em quando uma gaivota passava voando baixo, à procura de peixe, e eu continuava olhando o surfista, que agora havia pegado uma onda realmente boa que o trouxe até a beira da praia. Fiquei imaginando se eu não seria ainda capaz de pegar onda. . . quando garoto, eu era fascinado por surf.

— Só mais uma ondinha, tio John — eu pedi. — Por favor, deixe.

Ele hesitou um pouco, mas por fim consentiu:

— Está bem, uma onda só e depois vamos embora pra casa. A praia está vazia e sua mãe vai logo começar a ficar preocupada com você.

Corri para a água, levando embaixo do braço minha pequena prancha. Nadei até quando me pareceu que não estava me arriscando muito e esperei o que, para mim, era uma onda imensa. Quando ela, veio, ajoelhei-me na prancha e desci a onda, o coração batendo de emoção. Era uma onda alta para minha pequena estatura, e eu, já de pé na prancha, gritava de alegria com toda a força dos pulmões de um garoto de sete anos de idade.

Tio John me esperava à beira d’água com uma grande toalha de banho aberta para me embrulhar.

— Agora tire fora o calção para que eu possa enxugá-lo — disse ele.

Ajoelhando-se bem em frente a mim, começou a esfregar-me todo com a toalha. Nesse momento, ouvi a voz de papai atrás de mim:

— Nem mesmo o seu sobrinho lhe escapa, seu filho da puta pervertido.

Notei o olhar glacial de meu tio por trás dos óculos sem aro. Levantou-se lentamente, mas então agiu com tanta rapidez que nem pude ver o que aconteceu. Quando me virei, papai jazia deitado na areia com o sangue a escorrer-lhe da boca e do nariz, e meu tio, em pé ao seu lado, tinha os punhos cerrados.

Corri para papai e me abaixei para ajudá-lo. Ele mexeu com a cabeça, tonto e tentando falar. Pude ver que tinha um dente quebrado e um ar de terror estampado no rosto.

Gritei para meu tio, fora de mim de tanto ódio:

— Não se atreva a bater no meu pai, sua peste!

Meu tio permaneceu de pé, mirando-nos com um olhar triste.

— Levante-se, papai — eu disse, amparando sua cabeça. Com muito esforço, meu pai conseguiu sentar-se. Quando olhei para cima, tio John estava caminhando na praia em direção ao seu carro.

Durante muito tempo tio John deixou de ir à nossa casa, e quando finalmente apareceu, toda a nossa intimidade havia desaparecido.

Talvez tenha sido a imagem daquele surfista solitário que me trouxe à memória aquele incidente/ com tanta clareza, e que me prendeu durante horas na praia, impedindo-me de comparecer ao jantar em casa de minha mãe.

Eram quatro da manhã quando cheguei ao bangalô no hotel. No quarto, Eileen dormia com a luz do abajur acesa. Fechei a porta com cuidado e fui para o banheiro.

Vi a sombra dela através da parede de vidro do boxe do banheiro.

— Você está bem, Gareth? — ela perguntou.

— Estou ótimo.

— Sua mãe ficou preocupada.

Permanecí calado.

— Também fiquei preocupada — continuou ela.

— Desculpe — eu disse, saindo do banheiro e recebendo dela uma toalha.

— Sua mãe me fez prometer que eu faria você telefonar para ela hoje de manhã.

— Eu vou telefonar, sim.

Eileen foi para o nosso quarto e quando me deitei na cama, alguns minutos depois, ela se chegou para junto de mim. Puxei a sua cabeça para o meu ombro e senti lágrimas nos seus olhos.

— Por que está chorando?

— Amo muito você, Gareth. Sei que tem tudo o que sempre quis, mas sei também que você não se sente feliz.

Beijei-lhe os cabelos e enxuguei-lhe as lágrimas. Não havia nada que eu pudesse dizer. Sabia tanto quanto ela por que eu era infeliz.

— Pobre Gareth — murmurou ela com uma ternura entremeada de sono. — Tem enfrentado tantas batalhas. . .


Capítulo quarenta e oito

Há uma diferença entre dinheiro velho e dinheiro novo. O dinheiro novo compra antiguidades e as restaura a tal ponto que se pode quase imaginar Luís XV sentado naquele sofá. O dinheiro velho compra antiguidades e deixa-as no estado em que se acham, com a madeira despolida, o estofo desbotado e o assento tão áspero e desagradável quanto um saco de pedras.

Martin Courtland era dinheiro velho. Mas no seu escritório num dos últimos andares do número 70 da Wall Street, a gente não tinha de se preocupar com sacos de pedras, embora a cadeira em que ele se sentava fosse a única coisa nova que havia no escritório. Ele sorriu quando me sentei na ponta de minha cadeira e assinei os últimos papéis. Depois que tocou um botão chamando um contínuo para levá-los, recostou-se na sua cadeira e sorriu para nós.

— Pronto. De agora em diante, tudo é automático.

Olhei para Eileen. Ela não parecia mais à vontade do que eu.

— A sua assinatura nesses papéis é uma ordem irrevogável para que os subscritores transfiram para a sua companhia o dinheiro auferido com a venda das ações. Foi por isso que lhe pedi que viesse a Nova York mais cedo a fim de que pudéssemos cumprir essa formalidade. Assim, quando aparecer depois de amanhã no almoço dos analistas, já estará com o dinheiro no bolso. Não há ninguém que possa fazer nada a esse respeito. Salvo o senhor.

— Eu?

— Sim. É a única pessoa que ainda tem poder para revogar essa ordem. Agora, há alguma coisa que eu possa fazer para tornar-lhes mais agradável a permanência em Nova York?

Evidentemente, Martin Courtland estava nos dando o fora. Era como no negócio de revistas. Nós já éramos o número do mês passado.

— Tudo bem — disse eu.

— Sinto muito que não possa convidá-lo para o almoço. Mas temos tempo para um drinque rápido. — Sem esperar nossa resposta, falou pelo telefone: — Mande trazer uma garrafa de Glenmorangie. — Desligou e explicou-me: — É o meu scotch das ocasiões especiais.

Depois, levou-nos até a porta do escritório e nós descemos para a rua onde o carro nos esperava. Entramos e o motorista arrancou com o carro antes mesmo que disséssemos para onde íamos.

As calçadas estavam repletas de gente. Muito diferente da Califórnia. Em Nova York, todo mundo se movia. Era um dia de muito sol mas, com os altos edifícios de um lado e de outro, íamos por dentro de uma zona de sombra.

— Para onde é que vamos, Eileen?

— Não podemos ir para o hotel e dormir um pouco? Estou cansada.

Tínhamos chegado ao aeroporto às seis e quarenta e cinco da manhã. Depois de uma passagem rápida pelo hotel, estávamos na Wall Street às nove horas. Um pouco de sono não nos faria mal algum.

Baixei a vidraça e disse ao motorista:

— Para o hotel, sim?

A resposta foi tipicamente nova-iorquina.

— Já estava indo para lá. Tinha calculado isso mesmo.

Tive a impressão de que mal havia fechado os olhos quando o telefone me acordou.

— Gareth?

— Sim.

— É Martin Courtland quem fala. Viu o noticiário do meio-dia pela televisão?

— Estava dormindo.

— Há um teletipo com notícias na portaria. Vá ver e depois me telefone.

Desligou abruptamente e eu coloquei o fone no gancho. Eileen não se tinha movido. Vesti-me em silêncio e desci. Saí do elevador e dirigi-me para o teletipo perto da entrada da Park Avenue.

A máquina trabalhava, sem que a maioria das pessoas que passavam lhe desse atenção. No momento, transmitia dados sobre o Banco da Reserva Federal. Apanhei a longa tira de papel que pendia atrás e comecei a ler. Foi como se levasse um soco entre os olhos.

"Da UPI — Nova York — 12:00

As autoridades do Departamento do Tesouro divulgaram hoje ao meio-dia a apreensão de uma carga de entorpecentes que pode ser a maior na história daquela repartição. Numa extensa operação que de certo modo se assemelhou às grandes operações militares da Segunda Guerra Mundial, fizeram-se amplas batidas em três grandes cidades norte-americanas e em dois países estrangeiros. O FBI e a Divisão de Entorpecentes do Departamento do Tesouro, em cooperação com a Scotland Yard e com o recém-criado grupo Condor da Polícia Nacional Mexicana, coordenaram as suas batidas para as onze horas da manhã, hora do leste dos Estados Unidos. Os locais onde se efetuaram as batidas foram os clubes Lifestyle de Nova York, Chicago, Los Angeles e Londres, o Lifestyle Hotel em Mazatlán, no México, o Retiro, uma missão religiosa em Mazatlán, e a residência de Estebán Carillo, primo do governador de Mazatlán. Os clubes Lifestyle e o hotel são de propriedade das publicações Gareth Brendan, que editam a revista Macho e várias outras. Foram efetuadas numerosas prisões e esperam-se muitas outras. Foram apreendidas grandes quantidades de heroína, cocaína, maconha, anfetaminas, com um valor calculado entre duzentos e trezentos milhões de dólares. Por ordem da polícia, os clubes Lifestyle em cada uma das três grandes cidades ficarão fechados até que terminem as investigações.

Suíte — Cidade do México

A polícia mexicana comunica que houve três mortos e dois feridos num renhido tiroteio durante a batida a um centro de entorpecentes. Os mortos são dois guardas particulares a serviço de Estebán Carillo e o Irmão Jonathan, um missionário do Retiro. Dois policiais mexicanos foram feridos. O Irmão Jonathan foi identificado como John Singer, ex-sargento da polícia de Los Angeles, afastado por suspeitas de cumplicidade com traficantes de drogas. O caso foi posteriormente arquivado.

Suíte — Nova York e Washington

As autoridades do Departamento da Justiça prometeram que serão rapidamente processados os gerentes dos clubes Lifestyle e as outras pessoas detidas esta manhã em conseqüência das batidas de que resultou a apreensão de quase trezentos milhões de dólares de entorpecentes. Uma alta autoridade afirma que com essa operação se quebrou decisivamente a ligação mexicana que substituiu a ligação francesa, quebrada há mais de três anos, como a principal fonte de exportação e venda de tóxicos nos Estados Unidos.

Suíte — Nova York

As Publicações Gareth Brendan Ltda., proprietárias dos clubes e do hotel fechados hoje depois de uma colossal batida contra o tráfico de tóxicos, venderam hoje na mais bem-sucedida oferta de títulos da história recente dois milhões de ações ao público por cem milhões de dólares. O Sr. Brendan, que ainda tem três milhões de ações em sua posse, é o presidente e o principal diretor da companhia. As ações serão oferecidas pela primeira vez na Bolsa na próxima segunda-feira."

Rasguei a folha do teletipo e subi. Eileen estava acordada quando eu entrei.

— Que foi que houve? — perguntou ela. — Os telefones não param. De repente, todo o mundo quer falar com você.

Entreguei-lhe a folha do teletipo.

— Leia isto.

— Verita quer que você ligue imediatamçnte para ela. Diz que é urgente.

Fui para o telefone e liguei para a linha direta de Verita.

— Sabe o que foi que aconteceu, Gareth?

— Acabo de saber.

— É melhor você vir para cá o mais depressa que puder. Tudo aqui está em polvorosa.

— Irei para aí no primeiro avião.

Pensei por um momento. O noivo dela tinha sido um dos melhores promotores públicos da Califórnia antes de ser escolhido como juiz.

— Quer falar com seu noivo, o juiz, e pedir que ele me espere com você no aeroporto?

— Vou falar com ele. x

— Ótimo. Logo que eu tiver feito as reservas, lhe direi qual será o vôo. — Não pude deixar de acrescentar: — Seu amigo Julio nos preparou uma boa, hem?

— Ainda não soube, então?

— O quê?

— Julio foi morto a tiros de metralhadora há coisa de uma hora quando saía de sua garagem por dois homens que estavam num carro. A polícia ia prendê-lo e todos dizem que ele foi morto para que não falasse.

Isso mostrava que Julio não agia sozinho como fazia os chicanos acreditarem. Talvez tivesse relações, com a Máfia. Fora assassinado no puro estilo dos gângsteres.

— Que merda, Verita. Telefonarei daqui a alguns minutos, logo que tiver a confirmação do vôo.

Larguei o telefone. Começou a tocar no mesmo instante. Tirei o fone do gancho. Em seguida, liguei para a portaria e pedi que não fossem feitas mais ligações para o meu quarto. Não queria falar com ninguém.

Logo que a telefonista desligou, disquei para Courtland. Enquanto esperava que ele atendesse, pedi a Eileen que reservasse passagem no primeiro vôo para Los Angeles e avisasse Verita.

— Como uma coisa dessas pôde acontecer? — perguntou Courtland.

— Não sei. Mas vou agora mesmo para a Califórnia para ver se apuro os fatos.

— Se isso não for esclarecido a contento, a Bolsa não terá outro remédio senão excluir as ações do pregão.

— Isso significa que teremos de dar o dinheiro de volta?

— Claro que não! Não procedemos dessa maneira na Wall Street. Sabemos honrar os nossos compromissos.

Pensei nos dezesseis milhões de dólares da comissão deles, mas fiquei calado.

— Mas tudo isso é muito desagradável — murmurou ele.

— Vou lhe comunicar o que houver de novidade — disse e desliguei.

Eileen entrou no quarto:

— Há um avião às três horas e outro às cinco. Não dá tempo de pegar o das três pois ainda temos de arrumar as malas.

— Danem-se as malas. Pegaremos o das três horas.

Chegamos a Los Angeles às cinco e cinqüenta e dois minutos da tarde, com as diferenças de fuso horário. Fui recebido nos portões por uma verdadeira multidão de gente de jornal, rádio e televisão, além de dois oficiais de justiça. As intimações eram para comparecer perante o tribunal do Grande Júri Federal em Los Angeles e para comparecer à comissão de inquérito sobre crime organizado no Congresso em Washington. Eram ambas para o mesmo dia e quase à mesma hora.

O Juiz Alfonso Moreno estava logo atrás dos oficiais de justiça. O noivo de Verita era um mexicano alto e magro, de cabelos castanhos, que parecia mais um cowboy do Texas, o que ele não deixava de ser. Nascera em EI Paso e jogara futebol americano pela Universidade do Texas.

Não perdeu tempo e me disse logo:

— Na minha opinião, deve responder a todas as perguntas com um "nada a declarar" até que tenhamos tempo de conversar.

— Gostaria de fazer uma breve declaração que redigi no avião, caso esteja de acordo.

— Deixe ver.

Leu, devolveu-me a nota e disse:

— Está bem. Mas não diga uma só palavra além disso.

— Obrigado.

— Dê-me as intimações.

Depois de guardá-las no bolso do paletó, levantou as mãos para os repórteres. Fez-se um momentâneo silêncio e ele disse:

— O Sr. Brendan gostaria de fazer uma declaração.

Li então o que escrevera:

— "Voltei para Los Angeles a fim de ajudar as autoridades na investigação desse caso. Estou firmemente convencido de que, ao término das investigações, não se encontrará qualquer envolvimento de um só diretor da companhia ou da própria companhia com o acontecido".

Houve imediatamente dezenas de perguntas. A voz de um repórter se destacou sobre as outras:

— Já soube que a Comissão de Jogo do Estado de Nevada suspendeu a licença que lhe fora concedida para a construção de um hotel e de um cassino até que se completem as investigações?

Respondi sem sequer olhar para o juiz:

— Nada tenho a declarar.

Outro repórter.

— É verdade que passou vários dias no hotel de Mazatlán em companhia de Julio Vásquez, que foi assassinado hoje de manhã?

— Nada tenho a declarar.

O juiz me segurou pelo braço. Eu tomei o braço de Eileen e fomos abrindo caminho por entre os repórteres. Às perguntas que me faziam, eu me limitava a responder:

— Nada tenho a declarar.

Por fim, chegamos ao carro, à porta do terminal. Tony arrancou logo que as portas se fecharam.

— Para onde, chefe?

— Verita disse que devíamos ir para o apartamento dela — disse o juiz. — Lá é mais calmo e poderemos conversar à vontade.

Dei a Tony o endereço de Verita e me voltei para o juiz:

— É verdade o que disseram sobre a Comissão de Jogo do Estado de Nevada?

— Verita me disse que recebeu o telegrama de Nevada às três e meia da tarde.

— Verita estava ansiosa para que eu voltasse. Sabe se ela tinha alguma coisa de especial para me dizer?

— Se tinha, não me disse nada. É claro que quer falar primeiro com você.

Mas isso nunca aconteceu. Quando paramos diante do edifício de apartamentos para onde Verita havia se mudado para ficar mais perto do escritório, no Wilshire Boulevard, já encontramos lá uma ambulância e quatro carros da polícia. Um corpo, coberto por um lençol, estava estendido no passeio.

O juiz e eu saltamos do carro antes mesmo que ele parasse. Abrimos caminho por entre o pequeno grupo de curiosos e chegamos até a polícia. Um garoto com um cachorrinho ao colo prestava declarações a um guarda, que tomava notas.

— Eu estava saindo com Schnapsi para seu passeio noturno quando ouvi o grito. Olhei para cima e vi a mulher caindo lá de cima, do décimo quinto andar na minha direção.

— Viu mais alguém lá em cima? — perguntou o guarda.

— Não tive tempo — disse o garoto. — Tratei logo de correr e sair da frente.

— Meu Deus!

A voz do juiz era um soluço estrangulado na garganta e eu segui o seu olhar para a pequena mão que escapara do lençol. Um brilhante luzia no anular.

— Dei-lhe aquele anel na semana passada!

O rosto do juiz ficou lívido e ele correu para o meio-fio. Agarrei-o pelos ombros para impedi-lo de cair e sustentei-o enquanto ele chorava no meio da rua.


Capítulo quarenta e nove

O dia seguinte foi outra fatia do inferno. O Los Angeles Times saiu com a seguinte manchete: "A POLÍCIA CONSIDERA SUICÍDIO A MORTE DA MULHER DAS PUBLICAÇÕES BRENDAN".

O subtítulo não era muito melhor: "Verita Velásquez era prima do Rei do Crime Mexicano assassinado ontem". Seguia-se uma reportagem que juntava de tal modo os fatos que dava a impressão totalmente falsa no espírito dos leitores de que Verita e Julio trabalhavam juntos em muitas atividades criminosas.

Levamos mais de duas horas para nos livrarmos dos repórteres e para elaborarmos um sistema que os afastasse dos escritórios. Fizemos isso interditando os seis elevadores e controlando todas as pessoas que chegavam ao edifício.

Por fim, houve sossego nos escritórios, mas estes mais pareciam um mausoléu do que um local de trabalho. Todo o mundo falava em voz baixa e andava na ponta dos pés.

Até Dana e Shana se haviam intimidado e deixado de fazer a sua brincadeira habitual. Nesse dia, eu estava acertando sem um erro os nomes delas.

— O Sr. Saunders, da circulação, está na linha.

— Obrigado, Shana — disse eu e peguei o telefone. — Alô, Charlie.

— Estamos com alguns problemas muito sérios, Sr. Brendan.

Não era preciso que ele me dissesse.

— Pode falar, Charlie.

— Muitos distribuidores e vendedores não estão querendo receber as remessas do novo número de Macho e outros estão devolvendo a revista sem abrir os pacotes.

Era um problema muito grave. Era essa gente que punha as nossas revistas nas bancas e em outros lugares onde o público podia comprá-las.

— De quanto foi a tiragem, Charlie?

— Quatro milhões e quinhentos mil.

— Quantos exemplares você acha que poderemos vender?

— De acordo com os nossos computadores, de quinhentos a setecentos mil.

Eram dois milhões de dólares perdidos, ainda sem levar em conta os possíveis lucros. Não demorava muito tempo para que uma notícia dessas tivesse repercussão. Respirei fundo. Nada me seria possível fazer, ao menos no momento. Lembrei-me de um velho ditado segundo o qual uma mentira pode correr meio mundo antes que a verdade se lembre de calçar os sapatos para persegui-la. Talvez, se eu estivesse no lugar dos outros, pensasse da mesma maneira que eles. Não havia de querer qualquer espécie de relacionamento com quem parecia o maior traficante de tóxicos do mundo.

— Agüente-se firme, Charlie — disse eu. — Tudo voltará ao normal quando essas coisas todas se esclarecerem.

O interfone tocou de novo.

— Bobby está aqui e quer vê-lo.

— Mande-o entrar.

Bobby se aproximou de mim com os olhos vermelhos.

— Oh, Gareth! Não posso acreditar que ela esteja morta!

Levantei-me para abraçá-lo. Ele encostou a cabeça em meu ombro e chorou como uma priança.

— Por que ela se matou? Não posso compreender! .Ia casar-se no mês que vem!

— Verita não se matou, Bobby.

— Mas a polícia diz que foi suicídio. Não havia qualquer vestígio de que alguém tivesse estado no apartamento dela.

— O que a polícia diz pouco me interessa.

— Mas se ela não se matou, quem foi então que a matou?

— Creio que foram as mesmas pessoas que mataram Julio. Talvez pensassem que ela e Julio eram mais ligados do que realmente eram.

— A Máfia? — perguntou ele, arregalando os olhos.

— Não sei, mas vou descobrir — disse eu, acendendo um cigarro. — Escute, Bobby, seu pai está na cidade?

— Sei que ele está em casa.

Apertei o botão do interfone.

— Ligue para a casa do Reverendo Sam.

Voltei-me para Bobby:

— Pensei que ele já havia se livrado há dois anos do Irmão Jonathan.

— Você sabe como é meu pai. Procura ver apenas o lado bom das pessoas. O Irmão Jonathan conseguiu convencê-lo de que Denise já era viciada em drogas antes de ir para o Retiro e que ele tentara curá-la sem conseguir.

O interfone tocou.

— O Reverendo Sam está na linha.

A voz do Reverendo Sam estava sinceramente pesarosa.

— Que coisa terrível, meu caro Gareth! Uma moça tão boa!

— Sim, Reverendo Sam. Mas eu lhe telefonei para falar do Irmão Jonathan.

— Horrível! Nunca pensei que ele fosse capaz de tamanha duplicidade.

.— Há quanto tempo o conhecia?

— Deixe ver. . . sete. . . talvez oito anos. Ele entrou para a missão logo depois que saiu da polícia.

— Como foi que o conheceu?

— Foi seu tio John que o encaminhou para mim. Tinha havido algumas ameaças à minha vida e ele veio dar-me proteção pessoal. Mas a palavra de Deus lhe caiu no coração e ele passou a dedicar-se à missão. Quando chegamos à conclusão de que as ameaças não eram mais um problema, ele já havia atingido o segundo plano.

— Compreendo. Muito obrigado, Reverendo Sam.

— Não há de quê, Gareth. Se houver alguma coisa que eu possa fazer para aliviar a sua aflição, não deixe de me procurar.

— Mais uma vez, obrigado. Adeus, Reverendo Sam.

— Adeus, Gareth.

— Tem razão a respeito de seu pai, Bobby. Ele só vê o lado bom das pessoas.

Ele conseguiu sorrir e disse:

— O último dos inocentes.

— O último não, Bobby. O primeiro.

Depois que ele saiu, fiquei pensando no Irmão Jonathan. Num impulso, mandei chamar Denise.

Ela estava também com os olhos vermelhos de tanto chorar.

— Pobre Verita. . . Como eu gostava dela! Tinha uma aura tão pura...

— Era de fato uma ótima pessoa. Mas escute, Denise, estou precisando de ajuda. Se o que eu vou lhe pedir for muito difícil para você, diga-me. Não quero absolutamente perturbá-la.

— Pode falar, Gareth. Você bem sabe que por você eu farei tudo.

— Escute, quando o Irmão Jonathan colocava você em transe lá no Retiro era mesmo eu que ele estava querendo tirar de sua cabeça?

— Era o que parecia. Quando começávamos o transe, ele sempre dizia que eu precisava tirar você de meu espírito e de meu corpo.

— Nunca falou sobre outra coisa?

— Falou, sim, mas não me lembro muito bem. Depois que ele falava em você, tudo sempre me parecia muito confuso.

— Era porque ele lhe dava uma injeção de Pentothal. Havia ainda traços de Pentothal em seu sangue quando eu a levei para o hospital. E foi depois de uma dessas injeções com uma agulha não-esterilizada que você contraiu hepatite.

— Pentothal é o soro da verdade, não é?

— Exatamente. Mas a substância pode ser usada também como hipnótico. Talvez houvesse alguma coisa de que ele quisesse desligá-la, de que ele quisesse fazer você se esquecer por completo sem ter consciência disso.

— Não sei o que poderia ser. Afinal de contas, trabalhei como secretária dele durante o primeiro ano que passei lá e era minha obrigação tomar conhecimento de tudo. Eu até batia a máquina os relatórios dele.

— Relatórios? Para quem?

— Para muitas pessoas. Os religiosos para o Reverendo Sam, é claro. Os outros. . . Os outros. . . É curioso, mas não me lembro para quem eram os outros.

— De que tratavam os outros relatórios?

Ela pensou durante algum tempo e depois sacudiu a cabeça.

— Disso também não me lembro.

Olhei-a em silêncio.

— Desculpe, Gareth.

— Não tem importância.

— Vou voltar para o trabalho.

Deixei que ela chegasse perto da porta e então atirei no escuro.

— Lonergan! — exclamei.

Ela nem se voltou.

— Sim, o primeiro relatório era sempre para ele — disse ela automaticamente e continuou em direção à porta, como se não tivesse falado.

— Adeus, Gareth.

— Adeus, Denise.

Esperei que a porta se fechasse antes de ligar para a seção de pessoal. Um homem atendeu.

— É Erikson quem fala.

— Tem fichas dos empregados dos clubes e do hotel, Sr. Erikson?

— Claro que tenho.

— Posso vê-las?

— Vou já para aí, Sr. Brendan.

Dez minutos depois, eu tinha todas as informações que desejava.

Para ser admitido, cada empregado tinha de apresentar três pessoas como referências. Uma dessas pessoas apresentadas por todos os gerentes e empregados do almoxarifado dos clubes era sempre John Lonergan.

Tudo começou a se ajustar. Quando eu tinha entrado no carro de Lonergan depois da explosão no velho prédio da revista, ele dissera que, se não me tivesse protegido, Julio me teria atirado aos lobos.

E Dieter me havia dito no México que, sem a permissão de meu tio, Julio não poderia nem existir em Los Angeles e que Lonergan era o único homem que podia impedir Julio de usar o aeroporto.

Era evidente que Julio nunca deixara de usar o aeroporto, por um dia que fosse. E quando eu fechara negócio com o hotel, Lonergan ficara com tudo nas mãos. Tinha o cartel mais rendoso da história. Trezentos milhões de dólares de lucros por ano em todas as fases do tráfico de entorpecentes, da fabricação à venda.

E tudo isso não lhe custara um centavo. Fora feito com o meu dinheiro.


Capítulo cinqüenta

Eram seis horas e em lugar algum se podia encontrar Lonergan. Não estava em casa, nem no seu escritório de Beverly Hills, nem no Silver Stud.

Minha mãe tinha ido passar o dia em Newport Beach com algumas amigas e não me pôde ajudar nesse momento. Deixei recado com o mordomo para que ela me telefonasse logo que voltasse.

O telefone tocou.

— O Sr. Courtland quer falar de Nova York.

— Você está trabalhando até tarde — disse eu. — Aqui já são nove horas da noite.

— Os escritórios dos corretores não fecham ao mesmo tempo que a Bolsa, embora haja quem diga isso. Alguma novidade?

— Algumas.

— Alguma coisa que eu possa comunicar à junta de diretores da Bolsa?

— Creio que não.

— E a moça que se matou? A lógica diz que ela era o cavalo de Tróia em sua organização.

— Não é verdade.

— Soube que os distribuidores estão devolvendo a sua revista aos milhares.

— Aos milhões.

Ele ficou em silêncio durante alguns segundos e perguntou:

— Quer que eu cancele o seu comparecimento ao almoço dos analistas amanhã?

— Está cancelando o convite, Courtland?

— Não.

— Neste caso, eu irei.

— Estou apenas tentando resguardá-lo de uma situação desagradável, Brendan. Muitos dos que estarão presentes ele varam suas ações às alturas e podem achar que você os traiu. Não estão muito satisfeitos e podem ser grosseiros.

— Eu também não estou satisfeito. Até amanhã.

Desliguei e apertei o botão do interfone.

— Pronto, Sr. Brendan.

— Frete um avião para me levar a Nova York esta noite. Pretendo partir entre meia-noite e três horas da manhã.

— Está bem, Sr. Brendan. Sua mãe está na linha.

— Alô, mãe.

— Estou tão aflita por sua causa, Gareth.

— Eu estou bem, mãe.

— Como os mexicanos puderam fazer isso com você? E depois de você ter sido tão bom com aquela moça. Você a tirou de um emprego modesto para dar-lhe dinheiro e posição. Desde o primeiro momento em que ouvi a voz dela pelo telefone, fiquei sabendo que não se podia confiar nela. Era isso que eu estava dizendo esta tarde no iate dos Fischer. Você nem calcula que belo iate! Imagine.. .

— Mãe, quem eram as pessoas com quem você estava falando?

— Com as minhas amigas. Mas seu tio John explicou o que aconteceu e todos nós compreendemos que você foi uma vítima.

— Tio John estava com você?

— Estava.

— Ele está aí agora?

— Não. Tinha um compromisso para jantar.

— Com quem?

— Creio que ele falou no nome daquele simpático Dieter von Halsbach.

— Muito obrigado, mãe.

Desliguei e apertei o botão do interfone.

— Veja se Marissa ainda está na sala dela.

Não estava e eu pedi que tentassem encontrá-la em casa. Marissa só atendeu meia hora depois.

— Sabe onde Dieter vai jantar esta noite, Marissa?

— Não. Saiu do escritório às cinco e meia, dizendo que estava com pressa, pois tinha um compromisso muito importante.

— Onde ele pode estar?

— Não sei, mas se souber de alguma coisa lhe telefono.

— Obrigado.

— Gareth, senti muito o que aconteceu a Verita. Espero que não acredite no que os jornais estão dizendo.

— Não acredito.

— Fico satisfeita, pois eu também não acredito.

Telefonei então para a casa de Bobby. O mundo gay não tinha segredos para ele e eu esperava que pudesse me ajudar.

— Bobby, será que você pode descobrir onde Dieter está agora?

— Vou tentar. Pode demorar um pouco. Onde é que você está?

— No escritório.

Ele telefonou às dez e quinze. Dieter fizera uma reserva no Coro Grego.

— No Coro Grego? — exclamei.

— Sim. Contratou uma suíte por toda a noite com jantar e tudo.

Desliguei. De certo modo, aquilo não fazia sentido. O Coro Grego era o mais caro bordel gay da cidade. Ficava na antiga mansão de uma estrela do cinema em Hollywood Hills. Tony parou o carro à porta e eu disse que esperasse por mim.

Um homem corpulento vestido de smoking me abriu a porta. Outro também de smoking surgiu atrás dele.

— Tem alguma reserva? — perguntou o primeiro.

— Não. Mas tenho algumas horas para passar aqui na cidade e ouvi falar muito bem desta casa.

— Sinto muito. Só atendemos a reservas — disse ele e fez menção de fechar a porta.

Botei o pé na porta e mostrei-lhe uma nota de cem dólares.

O homem olhou impassivelmente para a nota.

Acrescentei outra. Depois outra e mais outra. Parei nos quinhentos dólares. Se passasse disso, estragaria tudo.

— Como se chama?

— Gareth.

— Um momento, cavalheiro. Pode ser que o seu nome me tenha passado no livro de registro.

Deu alguns passos e conversou com o outro homem. Voltou um momento depois.

— Desculpe tê-lo feito esperar — disse ele, pegando as cinco notas. — Um borrão de tinta cobriu seu nome.

Segui-o pela porta.

— Apenas uma precaução, cavalheiro — disse ele, fazendo-me parar. — Tenha a bondade de levantar os braços.

Fiz o que me pedia e ele me apalpou com eficiência profissional. Aprumou então o corpo.

— Desculpe, mas não permitimos aqui armas de fogo nem facas. É para a proteção de toda a nossa clientela.

Atravessamos o grande hall de entrada. A elegante mansão dos anos 20 fora remodelada como um paraíso gay.

— Tem algum tipo particular em vista? — perguntou o homem.

— Gostaria de ver tudo.

— Sim, senhor — disse ele, abrindo uma porta.

Ao ouvir o súbito murmúrio das conversas, compreendí que o lugar era à prova de som.

— Este é o salão, cavalheiro. O preço depende da pessoa escolhida, a partir de um mínimo de quinhentos dólares. Bebidas e comidas por conta da casa.

— Obrigado.

Procurei por um momento ajustar os olhos à luz suave do salão e me dirigi para o bar semicircular nos fundos da sala.

Grupos de homens, muitos deles nus, estavam espalhados pelo salão em sofás e poltronas. Presumi que os homens vestidos fossem clientes como eu. Alguns dos homens me olharam quando eu passei, mas não houve qualquer iniciativa.

Um homem de smoking-me. atendeu no bar.

— Que deseja, cavalheiro?

— Uísque com gelo — disse eu, colocando uma nota de cinco dólares em cima do balcão.

— Desculpe, meu caro senhor. Aqui não se permitem gorjetas. O senhor é hóspede da casa.

— Obrigado — disse çu, tomando um bom gole do drinque.

Vi então alguém que eu conhecia e sorri para mim mesmo.

Atravessei a sala com o copo na mão e parei diante de um preto que estava estendido numa poltrona com os olhos fechados.

— Jack — disse eu em voz baixa.

King Dong abriu os olhos, espantado.

— Dormindo em serviço? — disse eu, sorrindo.

— Que é que está fazendo aqui, Sr. Gareth? Nunca pensei encontrá-lo num lugar como este.

— E você? Que é que está fazendo aqui?

— Trabalho aqui uma vez por semana. Chego às vezes a fazer mil dólares. Dá para pagar o aluguel. Trabalhar como modelo não é mais negócio.

— Está interessado em ganhar mil dólares sem fazer força? i

— E não havia de estar?

— Lembra-se do mexicano louro? Será que ele está aqui esta noite?

— Está sim.

— Sabe em que quarto está ele?

— Sei, sim.

— Pode me levar até ele?

— Para fazer isso, terá de subir. E só poderá subir com um dos rapazes.

— Subirei com você.

— Não sei. . . Se desconfiarem de alguma coisa, posso me dar mal. Esses homens são violentos.

— Ninguém vai desconfiar. Não haverá problema.

— Terá de pagar quinhentos dólares à casa.

— Está certo.

A sua voz rotlca ressoou pela sala.

— Que pressa a sua, homem!

Deu uma risada e eu aceitei o seu jogo.

— Tenho de pegar um avião.

Segui-o até o bar.

— Tenho aqui um apressadinho — disse ele ao homem * do bar.

O homem não sorriu.

— Quinhentos dólares, faça o favor.

Coloquei cinco notas de cem dólares em cima do balcão.

— Obrigado — disse o homem do bar.

Apanhou embaixo do balcão uma chave dourada.

— Quarto 16.

— O 6 ou o 7 estão desocupados? — perguntou King Dong. — Não gosto de quartos pequenos.

O homem do bar verificou e trocou a chave.

— Seis.

— Obrigado — disse King Dong.

Num canto da sala, abriu uma cortina, atrás da qual havia um lance de escadas.

— Estamos com sorte — sussurrou ele. — O homem está no quarto vizinho, no número 5.

— Vou precisar de uma chave para entrar?

— Não. Os quartos ocupados nunca são trancados. Às vezes, há algum problema e o pessoal da casa tem de entrar às pressas.

Chegamos ao primeiro patamar. King Dong parou diante da porta marcada com o número 6. Olhou para um lado e para outro do corredor. Não se via ninguém.

— Pode entrar agora. Mas tenha cuidado quando sair.

Abri a porta e entrei ao mesmo tempo que King Dong desaparecia no número 6.

Todas as luzes estavam acesas. Dieter estava deitado de bruços na cama. Tudo indicava que o Conde von Halsbach dormia o sono dopado de um toxicômano.

Aproximei-me dele e sacudi-lhe os ombros. Ele se moveu mas não abriu os olhos.

Sacudi-o com mais força. Afinal, abriu os olhos e, por um momento, deu sinais de reconhecer-me.

— Onde está Lonergan? — perguntei-lhe.

Ele sacudiu a cabeça e então murmurou como se gemesse:

— Foi-se embora.

— Há quanto tempo?

— Não sei. Uma hora, meia hora. Eu estava dormindo.

— Continue a dormir — disse eu.

Tornou a fechar os olhos. Fui até a porta, abri-a um pouco e espiei. Não havia ninguém no corredor. Corri para a outra porta e chamei King Dong.

— Pode ir receber o dinheiro no meu escritório amanhã — disse eu, descendo as escadas com ele.

O homem à porta cumprimentou-me.

— Espero que tudo tenha sido a seu gosto, cavalheiro.

— Tudo bem.

— Muito obrigado. Apareça.

Tony ligou o motor logo que eu entrei no carro. Passavam dez minutos da meia-noite. Eu sabia exatamente onde ia encontrar Lonergan àquela hora.


Capítulo cinquenta e um

O Silver Stud estava tão cheio de gente e de algazarra como sempre. Tudo parecia o mesmo. Só a garota que martelava o piano era diferente.

Mas alguma coisa mais havia mudado. Atravessei toda a extensão do bar e não houve um só gay que me olhasse ou me dissesse alguma coisa. Era evidente que eu estava ficando velho.

Parei diante do Cobrador. Como sempre, havia uma garrafa de scotch na mesa à frente dele.

Olhou para mim com um sorriso.

— Há quanto tempo não aparece! Sente-se e tome um drinque. Estávamos à sua espera.

Tomei um gole de uísque e perguntei:

— Lonergan está?

— Está acabando uma reunião. Falará com você dentro de poucos minutos. Que é que acha da pequena que está tocando piano?

— Parece que não é a primeira vez que você me faz essa pergunta. . .

— Que culpa tenho eu de gostar das pequenas que tocam piano?

Ouvi uma campainha tocar e ele disse:

— Pode entrar.

Lonergan estava sentado à sua mesa e me olhou com frieza.

— Soube que está me procurando.

— Procurei o dia inteiro.

— Algum motivo especial?

— Você deve saber.

— Quero que me diga.

— Você me enrolou. Matou Julio, matou Verita e só Deus sabe quantas pessoas mais.

— Não pode provar nada disso — disse ele com voz calma.

— É verdade. Não posso provar. Mas queria que você soubesse.

— Eu lhe salvei a pele. Dei-lhe uma estrutura perfeita para eximir-se de tudo. Agora, pode ir para o seu almoço na Wall Street e lavar o peito. Dentro de poucos dias, tudo estará em ordem de novo e você será um homem livre.

— Acha que isto basta?

— Que é que você quer mais?

— Quero Verita de volta. Viva e feliz como estava na última vez em que a vi.

— Só Deus pode fazer isso. Peça-me alguma coisa que eu possa fazer.

— Você e eu nunca nos entenderemos.

— Acho que o compreendo. Você é como seu pai. Pensa com energia, mas é fraco na hora de fazer as coisas. Nenhum de vocês tinha força para ser um hpmem de verdade.

— E você é?

— Ninguém toma nada de mim.

— Quer dizer é que não dá nada a ninguém.

— Pura questão de semântica.

— Amor.. . — murmurei.

— Que é isso?

— Se tem de perguntar, nunca vai saber.

— Tem mais alguma coisa a dizer?

Sacudi a cabeça.

— Então vá saindo. A distância daqui para Nova York é grande, e se você não chegar a tempo para o almoço, está liquidado.

Encaminhei-me para a porta, com um nó na garganta. Quase não podia conter as lágrimas.

O Cobrador tinha chamado a pianista para a sua mesa. Deu-me adeus e eu abri caminho pelo bar repleto. Havia um grupo de rapazes de blusão de couro perto da porta. As lágrimas me toldavam a visão e eu esbarrei num deles.

— Desculpe — murmurei.

— De nada — respondeu ele, virando rapidamente o rosto para o lado. Mas eu o reconheci. Era o mesmo sujeito que eu tinha visto perto do apartamento de Verita mil anos antes. Tive por um momento vontade de voltar e avisar Lonergan. Mas aquela guerra era dele e não minha. Eu estava cansado de lutar nas guerras dos outros.

Saí e entrei no carro.

— Para o aeroporto, Tony.

Telefonei para Eileen de um telefone público.

— Vou a Nova York. Não me espere. Voltarei amanhã à noite.

— Felicidades, meu amor — disse ela. — Eu o amo.

— Eu a amo — eu disse e pus o fone no gancho.

A vantagem de um avião fretado é ter uma cama boa e confortável. Dormi a viagem toda até Nova York e quando saltei do avião a primeira coisa que eu vi foi a manchete do New York Daily News. Lonergan estava morto. Não comprei o jornal. Não queria saber dos detalhes.

Cheguei ao almoço quando já estavam servindo a sobremesa. Ouvi um murmúrio quando entrei na sala. Não olhei para ninguém e me dirigi para a mesa principal. Havia uma cadeira vazia e diante dela um cartão com o meu nome.

Um instante depois, o homem ao meu lado se levantou e disse:

— Meus senhores, com a palavra o Sr. Gareth Brendan.

Não houve aplausos. Todos os rostos se voltaram para mim e eu me aproximei do microfone.

— Senhor presidente, meus senhores, minhas senhoras, serei breve. Como sabem, a primeira venda de ações ao público das Publicações Gareth Brendan foi um espetacular sucesso. Quero externar meu reconhecimento a todos os que se esforçaram para que ele fosse alcançado. Muito obrigado.

O silêncio pesava sobre a sala.

— Infeíizmente, alguns fatos se verificaram e atenuaram o valor dessa oferta. Sou em certas ocasiões um homem ingênuo. Por isso, apraz-me pensar que para muitos aqui presentes o bem-estar dos seus clientes vale mais do que as comissões que porventura tenham de receber.

"Disse-me o Sr. Courtland que a oferta é irrevogável e só põde ser cancelada por um homem. Esse homem sou eu. Neste momento, as ações ainda são minhas e a companhia ainda é minha. Assim sendo, aproveito a oportunidade para informar que as ações de minha companhia estão oficialmente retiradas do mercado."

Um murmúrio se elevou em toda a sala e eu tive de falar mais alto para ser ouvido.

— Assim, para que ninguém sofra qualquer prejuízo decorrente dessa oferta, estou pronto a reembolsar todas as despesas legítimas feitas pelos corretores. Muito obrigado.

Deixei o microfone e dirigi-me para a porta. As conversas eram cada vez mais fortes na sala. Vi Courtland de relance. Estava atônito e muito pálido. Era uma palidez de dezessete milhões de dólares.

Os repórteres me cercaram. Mas eu cheguei até a porta sem fazer qualquer declaração.

O telefone estava tocando quando cheguei ao hotel. Era Eileen.

— Ouvi parte do seu discurso no jornal da televisão — disse ela. — Tive orgulho de você.

— Não sei. Talvez tenha feito uma tolice.

— Tolice nada. Foi uma coisa linda. — Sua voz mudou. — Soube do seu tio?

— Soube.

— Foi terrível.

— Não, não foi. Lonergan estragou a vida de muita gente, inclusive a minha. Isso agora acabou.

Ela ficou em silêncio.

— Vou partir dentro de uma hora. Quer ir me esperar em Las Vegas para nos divertirmos um pouco?

— Não acha que já perdeu muito dinheiro hoje?

— Não é dessa espécie de divertimento que estou falando. É de nos casarmos.

— Está falando sério, Gareth?

— Claro que estou. Eu a amo, Eileen.

 

 

                                                                  Harold Robbins

 

 

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