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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS TRÊS MÉDICOS / Martins Pena
OS TRÊS MÉDICOS / Martins Pena

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Martins Pena

 

 

 

 

PERSONAGENS: MARCOS (tenente de marinha) ROSINHA (filha de Marcos) MIGUEL (idem) LINO DAS MERCÊS (velho) DR. MILÉSSIMO (médico homeopata) DR. CAUTÉRIO (médico alopata) DR. AQUOSO (médico hidropata) Um criado.
A cena se passa no Rio de Janeiro, no ano de 1845.

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CENA I Sala em casa de Marcos. Porta no fundo e à direita; mesa e cadeira.
 
(Marcos, sentado junto à mesa, e a seu lado Rosinha e Miguel. Marcos mostra no semblante abatimento)
 
MARCOS Meus filhos, pouco tempo poderei viver. As forcas abandonam-me. Tenho o pressentimento que minha morte bem próximo está... 
 
ROSINHA Meu pai, não desanime! Espero em Deus que esta sua moléstia será passageira.
 
MARCOS Passageira? Quando a vida assim se desorganiza é inevitável o seu fim.
 
MIGUEL Esse temor é que pode tornar a moléstia grave, quando talvez seja ela ligeira, e em grande parte devida aos anos.
 
MARCOS Devida aos anos é ela, mas não como pensas... Os anos a têm exacerbado. Deus o sabe como!
 
ROSINHA Mas os médicos... 
 
MARCOS Que pode a medicina em moléstia como a minha? Aos médicos não torno a culpa, que fazem eles o que aprenderam, e o que podem. A ciência é muitas vezes ineficaz.
 
MIGUEL Se meu pai consultasse a outro médico... 
 
MARCOS A outro? Que mais queres que eu faça? São poucos os que aqui têm vindo? O meu médico assistente, o Dr. Cautério, é homem de reputação bem adquirida.
 
MIGUEL Não contesto. Antigo, rotineiro e feliz muitas vezes, mas se meu pai não tem colhido vantagem com seu tratamento, para que não chama, por exemplo, um médico homeopata?
 
ROSINHA Assim é.
 
MARCOS Não creio na homeopatia.
 
MIGUEL
Se a não conhece! Peço-lhe um favor: um de meus verdadeiros amigos é o Dr. Miléssimo. Há pouco que chegou de Paris, aonde estudou com muita aplicação a homeopatia. Permita que venha ele fazer-lhe uma visita.
 
MARCOS Debalde! Nada espero... 
 
MANUEL O que lhe custa? Deixe-o vir; talvez tire-se proveito.
 
ROSINHA Eu estou persuadida que ele será capaz de o por bom.
 
MARCOS Pois bem, que venha. Não quero que se queixem de mim. Ouvi-lo-ei; pouco me custa.
 
ROSINHA Já eu creio vê-lo restabelecido e passeando alegre por esta sala.
 
MARCOS Alegre!... (Levanta-se) Escuta, Rosinha, falemos de ti, que és moça e que ainda podes viver longos anos — que isto por cá está velho e muito desarranjado. Quando eu morrer... 
 
ROSINHA Meu pai!
 
MIGUEL Senhor!
 
MARCOS Quando eu morrer, ficareis desamparados... 
 
MIGUEL Oh, enquanto eu viver, minha irmã... 
 MARCOS És oficial de marinha; hoje estás aqui, amanhã ali... Precária proteção! De um marido precisa tua irmã — e este já escolhi.
 
MIGUEL Quem é?
 
MARCOS O meu amigo Lino das Mercês.
 
ROSINHA Meu Deus!
 
MIGUEL Ele?
 
MARCOS É homem probo e honrado; tem a alma de um anjo. Far-te-á feliz. Isto posso eu dizer porque o conheço há muito tempo. Tenho-lhe estudado o caráter; andamos juntos na escola e desde esse tempo dura a nossa amizade.
 
MIGUEL Marido tão velho! 
 
ROSINHA (à parte)  Andaram juntos na escola!... 
 
MARCOS És um rapazola, Miguel e só por tua idade julgas capazes de tudo. Tu, minha Rosinha, tens mais juízo. Isto é um louco. Meu amigo Lino far-te-á feliz.
 
ROSINHA Mas, meu pai, não desejo casar-me, e se... 
 
MARCOS Crê, filha, que à borda da sepultura ponho todo desvelo em fazer-te ditosa... Casar-te-ás com ele, e em breve, que assim de pede teu pai... 
 
ROSINHA (à parte)  Não é possível, meu Deus! 
 
MIGUEL (à parte)  Veremos como isto será... 
 
 
CENA II
 
LINO (entrando)  Bom dia, amigo Marcos.
 
MARCOS Oh, a propósito vens. 
 
(Lino: cumprimenta a Rosinha e a Miguel)
 
LINO Como se acha? Melhor? Vejo-o mais forte... 
 
MARCOS Aparências, amigo... Isto caminha mal. Rosinha, Miguel, deixem-me com o meu amigo Lino.
 
MIGUEL (à parte, para Marcos)  Meu pai, pense bem no que vai fazer.
 
MARCOS Tenho resolvido.
 
 
CENA III
Marcos e Lino.
 
LINO O que queres de mim?
 
MARCOS Já lá se vão trinta anos que nos conhecemos! Amigos velhos! Não te bastava esse título, queres estreitá-lo mais.
 
LINO Oh, tua filha é um anjinho. Faz-me muito feliz. E consente ela?
 
MARCOS Consentirá, porque ama-me e respeita.
 
LINO Oh, que contentamento! Que linda esposinha!
 
MARCOS E é preciso apressarmos este negócio.
 
LINO Quanto antes! Oh, que dia será para mim!
 
MARCOS Quero deixar-lhe um amparo neste mundo que cedo deixarei... 
 
LINO Ora, deixa-te disso! Ainda viverás, e muito, para veres os teus netinhos correrem por esta sala.
 
MARCOS Conheço o meu estado... 
 
LINO História... 
 
MARCOS Sabes tu, Lino, o que é para o homem um temor contínuo, que por toda a parte o persegue, que à noite o faz despertar banhado em suores frios, que no meio de parentes e amigos o traz sempre assustados e receoso e que o ameaça com a desonra?
 
LINO Pois que vai?
 
MARCOS Escuta-me amigo, devo descobrir-te um segredo e patentear-te assim a causa deste meu mal. Há mais de quarenta anos que nos conhecemos; foste testemunha de minha louca e esperdiçada mocidade... Rico sem parentes que me guiassem, vi-me cercado de amigos. Amigos!... 
 
LINO Tratantes... 
 
MARCOS Que pagavam-me com perniciosos exemplos e conselhos a fortuna que ajudavam desperdiçar. 
 
LINO Quimistas!
 
MARCOS Tu eras a única exceção.
 
LINO E por isso brigavas sempre comigo... 
 
MARCOS Mocidade!... Amei! Uma moça acendeu o meu peito violenta paixão. Não conhecia obstáculos aos meus desejos, e dirigi-me a casa do pai, a fim de pedir-lhe a mão daquela que me fazia louco. Foi-me negada. A minha má reputação era conhecida; assim devia ser.
Voltei para casa desatinado, revolvendo no pensamento milhares de projetos. Para desabafar-me, escrevi uma carta a Maurício, àquele que se dizia meu melhor e sincero amigo.
 
LINO Oh, que grande patife!
 
MARCOS Então não o conhecia eu... Foram estas as palavras da carta! "Meu amigo, ele negou-me a mão de Serafina, e suas desabridas palavras deixaram-me a cruel certeza que eu nunca a gozarei. Daria metade de minha fortuna para que este homem não existisse." Carta fatal! Criminoso pensamento!
 
LINO Com efeito, não é dos mais cristãos... 
 
MARCOS Oito dias depois o pai de Serafina, quando entrava na porta de sua chácara, foi assassinado.
 
LINO Bem me recordo! Mas ainda não se soube por quem.
 
MARCOS Não adivinhas agora?
 
LINO Maurício?
 
MARCOS Sim, esse monstro!
 
LINO Eu bem te dizia que esse tratante tinha nascido para forca!
 
MARCOS
Interpretou as palavras que eu escrevi no delírio da paixão; realizou o pensamento que apenas vislumbrava na minha delirante imaginação... Amigo cruel!
 
LINO Boa laia de amigo!
 
MARCOS Baldadas foram as pesquisas da polícia.
 
LINO Andou tudo em pandareco... Que de conjeturas se fizeram!
 
MARCOS E eu tive a criminosa fraqueza de aproveitar-me deste crime tão atroz. Um ano depois eu estava casado com Serafina.
 
LINO Lá disso não te culpo eu, porque enfim não foste tu que mataste o velho.
 
MARCOS Três anos depois de casado morreu minha mulher, deixando-me dois filhos.
 
LINO Coitadinha, tão boa senhora que era!
 
MARCOS E que a vida tem sido a minha, deste então! Perseguido por esse homem infernal, que de amigo que se dizia tornou perseguidor, não encontro descanso. Senhor da carta que lhe eu escrevi, não cessa de ameaçar-me com a sua publicação, se de pronto eu não satisfazer os seus imoderados desejos. Metade de minha fortuna dizia eu que daria para que o pai de Serafina não existisse; mais da metade tenho dado a Maurício para que me entregue a carta fatal, mas o pérfido
zomba de mim, e novas exigências acompanham novas promessas. O que será de mim, se ele a publicar?
 
LINO Não tenhas medo... Em primeiro lugar, porque ele não quererá também denunciar-te; em segundo, por ainda teres fortuna para lhe pagares a discrição. O tratante achou em ti uma mina de caroço... 
 
MARCOS E quando eu tiver dado o último real, serei levado ao tribunal e arrastado à escada da forca, e meus filhos ficarão no mundo pobres e infamados! Eis o que me mata! Ainda dirás que me posso curar? O mal está aqui... (Aponta para o coração)
 
LINO Isto é apreensão de mais... O homem não é capaz de denunciar-te. 
 
MARCOS Tu não o conheces! Amigo, apressemos esse casamento, porque eu devo morrer quanto antes para salvar meus filhos.
 
LINO Isto é mais nervos que outra coisa! Eu já pedi ao meu médico que viesse hoje ver-te. É hidropata; talvez te cure.
 
MARCOS Que me importam médicos homeopatas ou hidropatas! Não te vás embora, passa o dia conosco. Tenho ainda que falar-te. Rosinha? Vou descansar um pouco, sinto-me muito fraco.
 
LINO Não queres o braço?
 
MARCOS Não, obrigado, aí vem a menina. (Entra Rosinha) Ajuda-me. (Apoiado no ombro de Rosinha sai)
 
 
CENA IV Lino, só.
 
LINO Não deixa de ter razão, mas o caso não é para tanto abatimento. Talvez que o meu doutor o ponha bom. Eu tenho cá para mim que o seu médico assistente, o Dr. Cautério, é um charlatão, aprendeu no tempo antigo. Pobre velho! Estou que não caibo na pele... De hoje a oito estarei casadinho!
 
 
CENA V Cautério e Lino.
 
CAUTÉRIO Licença... 
 
LINO Oh, o Dr. Cautério! Como vai?
 
CAUTÉRIO Como passa o nosso doente?
 
LINO Anda muito apreensivo.
 
CAUTÉRIO Mau é isso como o moral não podemos nós. Com licença. (Assentase) Estou cansadíssimo! Má vida, Sr. Lino, má vida é a do médico!
 
LINO O doutor zomba; dizem que é das melhores... 
 
CAUTÉRIO Experimentem-na. 
 
LINO Nenhum capital e avultados lucros... 
 
CAUTÉRIO Sempre esta questão de dinheiro... Questão eterna! 
 
LINO E vital!
 
CAUTÉRIO Não contam os incômodos, os dissabores e os desgostos por que passamos. E os calotes... Somos como criados do povo. Julgam-se todos com direito ao nosso saber, tão arduamente adquirido e tão pouco reconhecido! Não temos hora, dia nem descanso... Salva-se o doente, agradece-se à natureza; morre o doente, culpa-se o médico. Que recompensa a noites de estudos e de insônia! Em nossos braços morrem a esposa, o amigo, os filhos, sem que lhe possamos valer. A nossos pés se arrasta a deplorada família pedindo a vida para o seu pai, cabeça e arrimo, que todos os esforços da arte não puderam salvar. E essas cenas de angústia se reproduzem diariamente. Que vida! E invejam-na... 
 
LINO Esse é o único lado mau. E o bom?
 
CAUTÉRIO (levantando-se)  O único? E essa súcia de inovadores, magnetizadores, hidropatas e homeopatas com que lutamos todos os dias? (Tira um jornal do comércio da algibeira) Aqui estão nestas colunas as mais nojentas diatribes, os mais asquerosos insultos que esses charlatões cospem contra a nossa face.
 
LINO Nunca gostei destas descomposturas... 
 
CAUTÉRIO
E que homem sisudo pode gostar? Discuta-se, argumenta-se e apresentem-se razões, e sobretudo fatos; seja a contenda científica, que será proveitoso; mas assim como ela apareceu e aparecerá ainda entre nós é pernicioso. Essas personalidades infames indispõem os homens e não esclarecem os médicos.
 
LINO Mas doutor, o senhor e os seus também têm culpa nisso!
 
CAUTÉRIO Fomos os agredidos! Assim devia ser... Quando se não tem razão, responde-se com insultos. E aonde iriam buscar os homeopatas razões convincentes para oporem às nossas? Onde? Há sistema mais absurdo e ridículo do que a homeopatia? Onde as bases em que se firmar — similia similibus curantur? Absurdo contraria contrariis curantur — eis a verdade! Há nada mais natural e simples do que tratar o calor pelo frio, o seco pelo úmido, os humores pelos laxantes, a sua acridade pelo álcalis, etc. etc.? O contrário disto não tem o senso comum. A alopatia é o grande e verdadeiro sistema e... Mas, ai, que eu estou aqui a questionar e o doente está a minha espera! Com licença. (Sai pela direita)
 
 
CENA VI
 
LINO Estes médicos são todos mais ou menos intolerantes. Cada um quer matar lá a seu modo, e brigam por isso como endemoninhados... Safa! De medicina só a hidropata; ao menos leva-se tudo à água fria, que se não faz bem, também não faz mal. (Batem palmas à escada) Quem é?
 
AQUOSO (dentro)  Dá licença?
 
LINO Oh, é o meu Dr. Aquoso! Pode entrar.
 
 
CENA VII Aquoso e Lino. Aparece à porta Aquoso.
 
LINO Sem cerimônia... (Aquoso entra) Já pedi ao amigo Marcos que o consultasse; está disposto a isto.
 
AQUOSO Hei de pô-lo bom!
 
LINO Homem, isso agora é presunção de mais! Pois se ainda não sabe que moléstia ele tem?
 
AQUOSO Tenha o que tiver, a hidropatia faz milagres!
 
LINO (à parte)  Aí temos outro!
 
AQUOSO Meu caro, Deus criou tanta água no mundo debalde.
 
Água fria e mais água fria é a grande panaceia universal. Água para tudo, em tudo, com tudo e por tudo — água por todas as partes... E salve-se a humanidade!
 
LINO (rindo) Ah, ah, ah! Ó doutor, você devia trazer atrás de si uns poucos de ilhéus com carroças de água... 
 
AQUOSO Deixemos de zombaria. Onde está o doente? Quero arrancá-lo das garras da morte, isto é, das mãos de meus ignorantes colegas.
 
LINO Espere, tenho de consultar-lhe sobre um negócio. Tenho um conselho que lhe pedir.
 
AQUOSO Muito me lisonjeia.
 
LINO Mas há de prometer-me falar com sinceridade.
 
AQUOSO Com toda a sinceridade.
 
LINO Dar-me-á o seu parecer nu e cru, sem temor de ofender-me?
 
AQUOSO Eu o prometo.
 
LINO Quero saber se faço bem em casar-me.
 
AQUOSO Quem, vós?
 
LINO Sim, eu mesmo em pessoa. Que pensa?
 
AQUOSO Diga-me primeiro uma coisa... 
 
LINO O quê?
 
AQUOSO Que idade tem?
 
LINO Eu?
 
AQUOSO Sim.
 
LINO Não estou certo.
 
AQUOSO O senhor tem pelo menos sessenta e oito anos.
 
LINO Não há tal... E que os tenha? Os anos não valem nada. Ainda estou forte e bem conservado; não me troco por muitos moços.
 
AQUOSO Meu amigo, falar-lhe-ei com franqueza, que assim exigiu de mim. Não se case. O homem de sua idade não deve fazer essa loucura; os inconvenientes são inumeráveis. Deixe-se disso, não se case... 
 
LINO Hei de me casar! E ninguém será capaz de persuadir-me do contrário. Por que não me hei de casar? Essa é boa! Estou resolvido e muito resolvido.
 
AQUOSO Isto agora é outro caso... Case-se, amigo.
 
LINO Já pedi a moça.
 
AQUOSO Case-se, meu amigo; faz muito bem.
 
LINO Ainda estou bem disposto.
 AQUOSO Pois não, case-se.
 
LINO Tenho uma saúde robustíssima. Que importa a idade? Ainda tenho todos os meus dentes. (Mostra os dentes) O peito está perfeitíssimo... (Tosse) Que lhe parece? As pernas vigorosas; sou capaz de dançar a polca. (Dança) Se é loucura, estou resolvido a praticá-la.
 
AQUOSO E terá muito juízo... 
 
LINO Então acha que eu faço bem?
 
AQUOSO Oh, muito bem! Pois não, case-se, e quanto antes.
 
LINO Um abraço! Muito me alegra que me dê esse conselho e que o meu amigo seja da minha opinião.
 
AQUOSO Que idade tem a noiva?
 
LINO Quinze anos!
 
AQUOSO Ela tem quinze e o senhor tem sessen... Com a fortuna!
 
LINO O que é?
 
AQUOSO Nada, case-se, case-se. 
 (Sai pela direita, rindo-se)
 
 
CENA VIII Lino, só e depois Miguel.
 
LINO Esta minha união há de ser muito feliz. Todos riem-se quando eu falo nela; estou contentíssimo!
 
MIGUEL (entrando)  Meu pai o chama. 
 
(Lino sai)
 
 
CENA IX Miguel, só, e depois Miléssimo.
 
MIGUEL Queres casar com minha irmã, gebo? Eu te mostrarei como isto há de ser... 
 
MILÉSSIMO (entrando) Miguel?
 
MIGUEL Oh, por que não vieste mais cedo? Há uma hora que te espero.
 
MILÉSSIMO Estive ocupado no Instituto Homeopático.
 
MIGUEL Deixa-te de Instituto e dize... 
 
MILÉSSIMO
Que eu deixe do Instituto! Meu amigo, a ciência homeopática marcha com passos de Briareu; Hahneman triunfa e Broussais leva o diabo.
 
MIGUEL Tu principias... 
 
MILÉSSIMO (com entusiasmo)  Os estúpidos e ignorantes alopatas já vão reconhecendo a nossa supremacia. Médicos carrascos, rotineiros, asnos enfim, que experimentam no mísero doente os seus infernais medicamentos, que misturam de um modo horroroso milhares de nojentas drogas em uma só receita; que furam, atassalham, queimam, martirizam e desgraçado paciente. Pobres doentes! Forte canalha! A homeopatia triunfa por toda a parte. Os esclarecidos soberanos a acolhem em seu estado com os braços abertos.
 
MIGUEL Dá-me atenção!
 
MILÉSSIMO Hamburgo, Francfort, Magdeburgo, Varsóvia, Moscou, Petersburgo, Dronstadt, Mannheim, Estrasburgo, Nápoles, Roma, Gênova, Londres e Paris, etc., ufanam-se de seguir os seus ditames. A homeopatia é o único e verdadeiro sistema médico. O próprio Hipócrates disse: "Vomitus curantur." O que é isto, senão homeopatia? O vitalismo é a base das mulheres doutrinas médicas. Bichat, Andral, Boerhaave, Paracelso, Cooper Astley, Chaussier, Thomassine, Dupuytren, o próprio Broussais foram homeopatas sem o saberem! (Tira o lenço e enxuga o rosto)
 
MIGUEL Acabaste?
 
MILÉSSIMO (continua com mais calor)  Só foi dado a um homem, ao sublime Hahnemann, esclarecer o mundo!
 MIGUEL Ouve-me, com todos os diabos!
 
MILÉSSIMO (continuando)  Broussaisistas e broussaisistas levantam-se contra nós. Que importa?
 
MIGUEL Ah, espera que te curo! 
 
(Falam ambos ao mesmo tempo)
 
MILÉSSIMO Não admiram-me esses ataques. Quando a nova doutrina aparece no mundo médico, os mais virulentos críticos a perseguem; mas a verdade segue avante.
 
MIGUEL É realmente uma desgraça! Estes velhos são teimosos... E que remédio, senão fazer-lhes a vontade? Mas custa! Casar-se a minha pobre irmã, a minha querida Rosinha!
 
MILÉSSIMO (deixando repentinamente de falar e dirigindo-se para Miguel)  Rosinha? O que há de novo?
 
MIGUEL (continua, sem dar atenção a Miléssimo)  Que casamento tão desproporcionado! Com um velho!
 
MILÉSSIMO Falas de tua irmã?
 
MIGUEL (no mesmo)  Mas enfim, quando um pai exige, que remédio!
 
MILÉSSIMO Responde-me, com os diabos!
 MIGUEL (no mesmo)  Os filhos devem obediência ao pai. Quando manda, cumpre-se. De hoje a oito dias está casada.
 
MILÉSSIMO (sacudindo-o pelo braço)  O que é isso de oito dias? Não me responderá?
 
MIGUEL Oh, falava comigo? Não sabia.
 
MILÉSSIMO Que casamento é esse? Com quem? Quando? Como se resolveu? Depressa!
 
MIGUEL Oh, já me dás atenção?
 
MILÉSSIMO Olha que te esgano! (Quer-lhe agarrar no pescoço)
 
MIGUEL Chega-te para lá! Desde que entraste, esforço-me para te participar esta repentina resolução de meu pai, e tu a quebrares-me a cabeça com a maldita homeopatia.
 
MILÉSSIMO Maldita?
 
MIGUEL Ai, pior! Se continuas a atrapalhar-me, largo tudo de mão e deixo-te entregue a ti mesmo! E a mana Rosinha casar-se-á com o velho Lino.
 
MILÉSSIMO Com o Lino?
 
MIGUEL
Meu pai assim o quer; mas eu digo-te que ela se há de casar contigo. Sou teu amigo, e os amigos conhecem-se nas ocasiões. O meu plano está traçado; Rosinha já está dele informada. A ti nada digo, porque botarias tudo a perder com a tua homeopatia. Basta que estejas informado do ocorrido. Já falei a meu pai para te ouvir sobre a sua moléstia. Ganha a sua confiança. Receita, dá-lhe glóbulos e tinturas mas não o mates.
 
MILÉSSIMO A homeopatia não mata, a homeopatia... 
 
MIGUEL És incorrigível! Adeus, que vou ao quartel. Podes entrar quando quiseres. Até já. Atenção! (Sai)
 
 
CENA X Milésimo e depois Rosinha.
 
MILÉSSIMO (só)  Isto está mau! Se o velho teimar, por mais que o Miguel faça, nada conseguirá. Maldito Lino! Agora é que eu desejava ser médico alopata, para te mandar desta para melhor vida! Entremos. (Vai a entrar e aparece Rosinha) Rosinha, estou desesperado!
 
ROSINHA Já sabe?
 
MILÉSSIMO Teu mano tudo contou-me.
 
ROSINHA Não desanime ainda!
 
MILÉSSIMO Eu temo... 
 
ROSINHA O mano Miguel já combinou comigo.
 
MILÉSSIMO E que pretendem vocês fazerem? (Aqui aparece à porta Lino)
 
LINO (à parte)  Olá! (Para, a fim de observar. Rosinha, que o vê, continua a falar com Miléssimo como se estivessem sós) 
 
ROSINHA (à parte)  Beije a minha mão. 
 
MILÉSSIMO Eu?
 
ROSINHA (à parte)  Beije minha mão, depressa! 
 
(Miléssimo beija a mão de Rosinha. Lino dá um pulo de surpresa)
 
LINO (à parte)  Hum! (Arrepelando-se)
 
ROSINHA (à parte, para Miléssimo)  Ajoelhe-se... (Miléssimo ajoelha-se) Beije... Mais... (Miléssimo beija-lhe a mão)
 
LINO (à parte)  Hum!
 
ROSINHA (alto, para que Lino a ouça)  Bem sabes quanto te amei e ainda te amo, mas devo obedecer a meu pai. Sou filha obediente, casar-me-ei com o senhor Lino.
 
MILÉSSIMO Pois isso é deveras?
 ROSINHA Mas que importa que eu dê a minha mão a esse homem?
 
MILÉSSIMO (sempre de joelhos)  O que importa?
 
ROSINHA Que o acompanhe ao altar? Serei sua mulher, preencherei os deveres de esposa fiel, mas o meu coração será sempre teu.
 
LINO (à parte)  Hum!
 
MILÉSSIMO Mas isto não me basta!
 
ROSINHA (continuando)  E demais, conto com a sua avançada idade. Ele é velho, pouco pode viver. Ao depois nos uniremos.
 
MILÉSSIMO Não é isto o que me prometeste?
 
LINO Hum! (Batendo com os pés)
 
ROSINHA (fingindo que vê Lino pela primeira vez) Ah, está aí meu futuro... 
 
(Miléssimo levanta-se)
 
LINO (à parte)  Futuro espantalho... 
 
ROSINHA Chegue-se para cá.
 MILÉSSIMO (à parte, para Rosinha) Zomba!
 
ROSINHA Tenho a satisfação de apresentar-lhe o Sr. Lino das Mercês, meu futuro esposo.
 
MILÉSSIMO Oh, Senhor, tenho muito prazer em o conhecer... (Cumprimentam-se a parte, para Rosinha) Mas... 
 
ROSINHA É pessoa muito de bem e condescendente; conhece a pureza do nosso amor e não estranhará que continuemos a amarmo-nos.
 
MILÉSSIMO Oh, senhor, tanta bondade! (Cumprimentam-se. Lino já não pode dar palavra, surpreendido pelo que ouve, e só se lhe nota no semblante extrema surpresa. Miléssimo, tomando Rosinha à parte) Acabemos com isto, senão despropósito!
 
ROSINHA Se despropositas, tudo se perde.
 
MILÉSSIMO Então casa-te com ele?
 
ROSINHA Não.
 
MILÉSSIMO Mas que... 
 
ROSINHA É o plano combinado com o mano Miguel.
 
MILÉSSIMO Ah, por que não me preveniste? (Rindo-se) Ah, ah, ah! Meu amigo, (Encaminha-se para Lino, que recua) aperte-me esta mão. (Segue a Lino até junto ao bastidor, toma-lhe a mão e sacode com força) Sejamos amigos! (Trazendo para o meio da cena) Sua futura é uma pérola... Dê-me um abraço! (Abraça-o com força) Que ventura, ter tão amável mulher e tão verdadeiro amigo! Outro abraço! (Abraço-o) Somos ambos felizes, muito felizes! (Chega-se para Rosinha, ajoelha-se) Permita que eu toque com os meus lábios e esta nevada mão. (Beija-lhe a mão e levanta-se) Adeus, meu caro e íntimo amigo, vou ver o doente. (Sai pela direita. Lino vê tudo, estupefato)
 
 
CENA XI Rosinha e Lino.
 
ROSINHA A severidade de meu pai tem-me trazido em abominável sujeição. Há muito tempo que me desesperava a pouca liberdade que tenho, e mil vezes tenho desejado casar-me para fazer a minha vontade. Graças a Deus, felizmente apareceste, e eu vou recobrar o tempo perdido! Seremos ditosos! Em bailes, partidas, teatros, jantares esplendidos, passeios campestres passaremos a vida. Ainda não gozei do mundo — sempre em casa, fechada com meu pai! Venha agora a desforra! A teu lado serei a mais feliz das mulheres. Daremos uma partida todas as semanas, convidaremos os nossos amigos, teremos carruagem, carrinhos e caleças para passearmos, chácaras para passarmos os domingos, camarotes para ambas as companhias — Italiana e dramatúrgica, criados, damas de companhia, esplêndidos aparelhos, casa suntuosa — enfim, passaremos vida de bem-aventurados! Estarás sempre a meu lado, e quando os teus achaques — perdoe-me, se já te falo com esta familiaridade —, quando os teus achaques da velhice te prenderem em casa, aí está o teu novo amigo para acompanhar-me ao passeio e ao teatro; para fazer as tuas vezes nos jantares que dermos... Tu o receberás com candura... Em nossa mesa haverá sempre um talher posto para ele. Que ventura a minha! Como tarda o dia da nossa
feliz união! Adeus, esposo, até logo. (Sai pela direita. Lino fica por alguns instantes sem dar palavra, olhando para a porta por onde saiu Rosinha)
 
LINO E então? (Momento de silêncio) Já não me quero casar. Estou muito velho, não posso com isso. Vou desmanchá-lo. Mas como? E o meu amigo? E minha palavra? Em boa estou metido! Oh, que menina, oh, que pérola! Nada, nada, estas coisas não são para mim... Não posso, estou muito velho... Vou-me aconselhar com o Dr. Aquoso, ele ai vem!
 
 
CENA XII Entra o Dr. Aquoso, desesperado sem ver Lino.
 
AQUOSO  São uns ignorantes, ignorantíssimos, corja de coveiros! 
 
LINO (à parte)  Que diabo tem ele?
 
AQUOSO (no mesmo)  Sustentarei até o último alento que não há no mundo bestas mais bestas do que vós meus caríssimos colegas!
 
LINO (à parte)  Ai, que brigaram!
 
AQUOSO (no mesmo)  Querem curar assim? Babau! Assassinos de profissão, de borla e capelo... Desgraçados dos que se entregam em suas mãos! Receitem, matem, que darão contas a Deus.
 
LINO O homem está bravo! Doutor?
 
AQUOSO (no mesmo)  Que absurdos, que burrices!
 
LINO Doutor, ouça-me... (Tomando-o pelo braço)
 
AQUOSO Oh, o que quer?
 
LINO Queria que me desse um parecer... 
 
AQUOSO (voltando-se para a porta por onde saiu)  Estais em vosso juízo? Sabeis bem o que fazeis?
 
LINO Eu vos... 
 
AQUOSO E que responsabilidade pesa sobre vós?
 
LINO Faça-me o obséquio... 
 
AQUOSO Assim se mata um homem, de sangue frio... 
 
LINO Não me deixará falar, homem?
 
AQUOSO E abusa-se da ciência?
 
LINO (tomando-o pelo braço)  O que é isto doutor, ofenderam-no?
 
AQUOSO
Oh, de uma maneira horrorosa! Ousarem argumentar comigo e sustentarem que a água fria não é remédio eficaz para curar todas as moléstias!
 
LINO Isto é uma blasfêmia!
 
AQUOSO Blasfêmia horrível! Quero ver o que fazem os cáusticos, as bichas, as ventosas e todo esse aparelho infernal... 
 
LINO (à parte)  É preciso ir com ele... (Alto) É verdade, quero ver o que fazem.
 
AQUOSO Ou essas tinturas e ninharias homeopáticas!
 
LINO (voltando-se para a porta)  Ignorantes!
 
AQUOSO (votando-se para a porta)  Burros!
 
LINO (no mesmo, enquanto Aquoso passeia pela sala)  Sois muito atrevidos em quererem argumentar com um homem como o doutor, de tão abalizados conhecimentos! É imprudência e desaforo. Deveríeis ouvir contritos as suas opiniões e segui-las à risca, mas o orgulho vos perde e a ignorância vos sustenta. (Aqui Aquoso sai sem que Lino dê fé) Longa experiência tem-lhe demonstrado que água fria é o remédio universal — o mais é absurdo e ridículo. Só a estupidez pode seguir outro trilho, loucos, malvados, assassinos! Doutor, estais vingado! (Voltando-se para a cena) Agora, ouça-me. Que é dele? Foi-se! e esta! E eu a esgoelarme... Isto hoje vai bem! E a menina e a sua arenga, que não me saem da cabeça... Ao amigo Marcos não ouso dizer nada. Boa lembrança, vou empenhar-me com o Dr. Cautério a ver se ele desmancha honradamente este casamento que já se me atravessou na garganta.
Vamos, falemos ao doutor. (Vai a sair pela direita e é abordado pelo Dr. Cautério, que entra com impetuosidade) Doutor? (Cautério, sem dizer palavra, endireita-se para a porta do fundo) Doutor? Doutor? (Cautério sai) Lá vai outro com o diabo nas tripas. Desta salva-se, ou morre o doente... E eu sem decidir coisa nenhuma. O remédio é entender-me com o meu novo e sincero amigo... Safa com tal sinceridade! Que pérola!... (Vai para sair)
 
 
CENA XIII Miléssimo entra arrebatadamente.
 
MILÉSSIMO Seria esquecer-me de todos os preceitos de humanidade, se o deixasse entregue a esses algozes.
 
LINO Doutor, faz o obséquio... 
 
MILÉSSIMO Ver assim assassinar a um homem! Que assassinado morrerá ele, se isto continua.
 
LINO Parece que se ajustaram!
 
MILÉSSIMO Onde está o senso comum desta gente? Que fazem da inteligência? Inteligência? Essa não a têm eles, que se a tivessem abandonariam a horrível prática que seguem. 
 
(Aqui entra pelo fundo um pajem com uma carta na mão e sai pela direita)
 
LINO (à parte)  Este também está doido... Não arranjo nada. (Vai a sair pela direita; Miléssimo trava-lhe o braço)
 
MILÉSSIMO Diga-me, meu caro, o senhor é amigo verdadeiro do dono desta casa?
 
LINO Prezo-me de o ser.
 
MILÉSSIMO Pois previno-o que ele vai ser vítima do mais horríssono atentado.
 
LINO Um atentado? Explique-se... 
 
MILÉSSIMO Matam-no hoje mesmo.
 
LINO Matam-no? E quem?
 
MILÉSSIMO O Dr. Cautério, esse infernal alopata, esse... 
 
LINO (rindo-se)  Ah, ah, ah!
 
MILÉSSIMO O senhor ri, se o caso é de morte!
 
LINO Doutor, nós os conhecemos e muito bem avaliamos a amizade que há entre os senhores médicos.
 
MILÉSSIMO Engana-se! Não fala em mim o espírito de sistema. À cabeceira do doente, só trato de salvá-lo. Abandono controvérsia e animosidade. Por isso digo-lhe com íntima convicção que o Sr. Marcos pode-se contar como defunto, se continuar a tratar-se, como acaba de
assegurar-me, com o Dr. Cautério, com esse estúpido e ignorantíssimo alveitar. Meu amigo, peço-lhe um favor. Eu vou a casa buscar a minha botica homeopática, quero preparar aqui mesmo uma tintura para o nosso amigo e doente. No entretanto, resolva-o a abandonar o seu assassino.
 
LINO Mas... 
 
MILÉSSIMO Resolva-o, meu amigo, resolva-o, que eu já volto. Asnos, estúpidos! (Sai)
 
 
CENA XIV Lino, só, e depois Marcos.
 
LINO E que tal? Não sei se os doutores homeopáticos são alguma coisa em medicina, mas em descompostura posso afiançar que são insignes. Que gente! E atrapalharam... E o diabo da menina não me sai da cabeça! Nada, o melhor é decidir a falar ao amigo Marcos... Coragem!
 
(Vai a entrar e entra Marcos como alucinado. Traz uma carta na mão)
 
MARCOS (entrando)  Estou perdido, perdido!
 
LINO (à parte)  Também ele... 
 
MARCOS Desgraçado de mim!
 
LINO (seguindo)  O que é? O que aconteceu?
 MARCOS Que farei?
 
LINO Mas o que foi?
 
MARCOS Lê esta carta; desse maldito homem que será a causa de minha perdição. (Dá-lhe a carta)
 
LINO (lendo) "Caríssimo amigo, não sei como isto acontece. O dinheiro em minha mão voa, e cada vez tenho mais necessidade dele... Manda-me dinheiro — bastam-me dois contos. Senão... Entendes-me?"
 
MARCOS Desgraçadamente... Continua... 
 
LINO (continuando a ler)  "Esquecia-me dizer-te uma coisa. Antes de ontem vi tua filha à janela. Gostei dela e quero que seja minha mulher. Arranja isto de modo que dentro de oito dias esteja tudo concluído; ando incomodado e não quero morrer sem mulher. Trata do dote, mas vê lá o que fazes — quero que seja avultado. Só assim te entregarei aquela cartinha que me escreveste há dezesseis anos... Bem sabes, se tiveres a petulância de negares o que eu peço, vai tudo com os diabos, e terei a satisfação de te ver dançar na força a meu lado. Adeus. Medita e responde. Teu do coração, Maurício."
 
MARCOS Quem me salva, quem me salva?
 
LINO Prudência, e pensemos.
 
MARCOS
Meu Deus!
 
LINO Lamentações para o lado, e vejamos o meio de remediar isto.
 
MARCOS Não há meios que valham!
 
LINO Manda-lhe o dinheiro... 
 
MARCOS E mais exigirá, e mais, e sempre mais, e por fim minha filha!
 
LINO Vou falar-lhe... 
 
MARCOS Nada conseguirás.
 
LINO O caso é de atrapalhar... 
 
MARCOS Desgraçado! Meus queridos filhos! Que eu viva assim!... 
 
LINO Ocorre-me uma ideia. Já viste representar-se Catarina Howard?
 
MARCOS A ocasião é boa para zombares! 
 
LINO Quem zomba? Já viste também Julieta e Romeu? 
 
MARCOS Lino!
 LINO Escuta. Catarina vê-se atrapalhada pelo rei, finge-se morta; Julieta, embaraçada com o pai que a quer obrigar a casar contra sua vontade, também finge-se morta... Faze tu outro tanto.
 
MARCOS Mas quem... 
 
LINO Vai para dentro, comunica a tua filha este nosso plano veste o teu hábito de irmão terceiro e deita-te na cama, e morre.
 
MARCOS Morre!... 
 
LINO Faze de conta. Logo que fores defunto, principiará em casa a choradeira e lamentações. Chamam-se os armadores para armar a porta da rua; a notícia espalha-se pela cidade e entretanto eu corro a casa do tal patife, que já informado de tua morte — as más notícias voam — se acomodará mediante alguma pequena vantagem. Que te parece a lembrança?
 
MARCOS E julgas que assim ele se acomodará?
 
LINO E que remédio terá ele? De que valor lhe ficará sendo a tua cartinha, logo que estejas morto? E sobre o temor que tens da morte que ele especula.
 
MARCOS E o que é preciso fazer?
 
LINO
O que eu já te disse. (Empurrando para dentro) Vai para dentro, vai, veste o hábito e deita-te... E morre... Anda, vai morrer. (Marcos sai) Se eu não fosse seu verdadeiro amigo, deixava-o entregue a si mesmo e descartava-me assim da filha, mas isto seria infame. Veremos o efeito que faz a sua morte. No que dará tudo isto? O dia hoje vai bem. Excelente, pois não?
 
 
CENA XV
 
AQUOSO (faz semblante de sair. Diz para os pretos)  Acompanhem-me.
 
LINO (retendo-o)  Espera! Não sabe o que lhe aconteceu?
 
AQUOSO  Acontecesse  o que acontecesse, hei de salvá-lo! 
 
(Aqui entra o Dr. Miléssimo, trazendo debaixo de braço uma botica homeopática)
 
MILÉSSIMO Eu que hei de salvá-lo!
 
AQUOSO Quem? O senhor?
 
MILÉSSIMO Eu sim? Eu mesmo, com uns glóbulos que vou administrar-lhe.
 
AQUOSO Desta me rio eu! Ah, ah, ah!
 
MILÉSSIMO De que se ri?
 
LINO Senhores, muito me penaliza participar-lhes que o meu amigo Marcos... 
 
MILÉSSIMO Espera, isto ao depois! Quero primeiro que o senhor doutor Aquário diga-me por que se ri dos meus glóbulos!
 
AQUOSO (rindo-se)  Tratar um doente com glóbulos... Ah, ah!
 
MILÉSSIMO Doutor!
 
LINO Senhores, eu... 
 
MILÉSSIMO (vendo os negros de barris, desata a rir)  Ah, ah! Aquilo é água fria?
 
AQUOSO É!
 
MILÉSSIMO Tratar um doente com água fria! Ah, ah!
 
LINO Um só momento de atenção, quero participar-lhes... 
 
MILÉSSIMO (rindo-se)  Logo dois barris! O doente pegou fogo? Ah, ha! 
 
(Os dois riem-se, dizendo, um "glóbulo" e outro água fria)
 
LINO (enquanto dos dois riem-se)  E então? Quando os médicos se ajuntam, ou brigam ou escarnecemse. 
 (Aqui entra o Dr. Cautério, seguido de um moço que traz um grande vidro com bichas)
 
CAUTÉRIO (entrando)  Já aqui estão?
 
LINO Doutor? 
 
(Vai para junto dele, ficando Lino e Cautério ao fundo, e Miléssimo e Aquoso à frente, rindo-se sempre)
 
CAUTÉRIO (para Lino)  De que se riem?
 
LINO Asneira.
 
CAUTÉRIO Deixá-los! Vou aplicar estas bichas.
 
MILÉSSIMO Bichas? (Voltando-se e vendo o Dr. Cautério) Oh, por cá? O que é isto de bichas? Quem falou em bichas?
 
CAUTÉRIO Eu!
 
MILÉSSIMO Bichas!
 
LINO (à parte)  Temos bulha!
 
CAUTÉRIO
Senhores! Curem os médicos, qualquer que seja o sistema que julgarem convenientes.
 
MILÉSSIMO E quem são os que matam?
 
OS TRÊS (ao mesmo tempo, apontando cada um para os outros dois) Os senhores!
 
LINO Olá!
 
OS TRÊS (no mesmo)  Os senhores insultam-me!
 
LINO Basta! Toda esta contenda se acabará quando souberem que o doente... 
 
MILÉSSIMO Há de ser curado por mim! (Pega na botica que deixou sobre a mesa)
 
AQUOSO Há de ser por mim! (Para os negros) Tragam a água. (Encaminha-se para a porta da direita)
 
CAUTÉRIO Há de ser por mim! (Para o moço) Traz as bichas. 
 
(Os três médicos chegam ao mesmo tempo à porta da direita. Nesse momento entra Rosinha, chorando)
 
 
CENA XVI
 
ROSINHA (entrando)  Que desgraça, que desgraça!
 CAUTÉRIO O que aconteceu?
 
MILÉSSIMO O que foi?
 
ROSINHA Que infortúnio é o meu! (Assenta-se junto à mesa)
 
AQUOSO Seu pai?
 
ROSINHA Expirou neste momento.
 
TODOS Morreu!
 
LINO (com exclamação)  Meu amigo! (Sai pela direita)
 
AQUOSO ASSIM devia ser... 
 
MILÉSSIMO Se foi tratado pelo Sr. Dr. Cautério!... 
 
(Cautério está como penalizado pela notícia)
 
AQUOSO Sangue e mais sangue tirado!
 
MILÉSSIMO Cáusticos e mais cáusticos!... 
 
AQUOSO
À extrema fraqueza segue-se a morte... 
 
MILÉSSIMO Após o martírio vem a morte... 
 
AQUOSO (para Cautério)  Colega, mataste o doente!
 
MILÉSSIMO Colega, assassinaste ao homem!
 
CAUTÉRIO Deixem-me!
 
AQUOSO Não lhe dizia que o tratamento seguido daria com ele na tumba?
 
Aí está!
 
MILÉSSIMO E que a infernais drogas o enviariam ad patres?... 
 
AQUOSO Não quis ouvir-me... 
 
MILÉSSIMO Ateimou em suas aplicações... 
 
CAUTÉRIO Ai, que se vão-me as orelhas esquentando!
 
ROSINHA Meu infeliz pai!
 
 
CENA XVII
 
LINO (entrando)  Já está frio!
 
CAUTÉRIO Vou vê-lo.
 
LINO (retendo-o)  Aonde vais? Já não o pode valer.
 
MILÉSSIMO Não lhe valeu em vida; agora depois de morto, é que quer curá-lo. Para que o matou?
 
ROSINHA Meu pai! 
 
(Lino chega-se para ela, como consolando-a)
 
CAUTÉRIO (chega-se para Miléssimo e Aquoso, arrebatado)  Os senhores terão a bondade de não me darem nem mais uma palavra!
 
MILÉSSIMO E se eu der?
 
AQUOSO E se eu me não calar?
 
CAUTÉRIO Previno-os que a paciência tem limites... 
 
MILÉSSIMO O assassinato também tem limites, e no entanto todo dia assassinam-se homens com a maldita alopatia.
 
CAUTÉRIO Senhor!
 AQUOSO Se só usassem de água fria... 
 
MILÉSSIMO Vá-se você também ao diabo com a sua água fria!
 
AQUOSO Vá ele, não seja tolo! 
 
(Aqui entre Miguel. Lino, vendo-o entrar, dirige-se para ele; falam em segredo. Lino, surpreso pelo que lhe diz Miguel, chega-se para Rosinha, fala com ela e saem todos os três apressados pela direita. Os três médicos ficam em cena questionando, sem verem os que saem)
 
MILÉSSIMO Tolo?
 
CAUTÉRIO Mais do que tolo é ele: é atrevido!
 
MILÉSSIMO Atrevido?
 
AQUOSO E ignorante... Com os seus glóbulos!... 
 
CAUTÉRIO E Charlatão!
 
MILÉSSIMO E tu, com os teus cáusticos bichas, e tu, com a água fria? Burros!
 
AQUOSO Burro é ele, que mata os doentes a coices.
 
CAUTÉRIO
Se o doente estivesse nas tuas mãos, já há muito que tinha espichado a canela.
 
MILÉSSIMO Havia salvá-lo! Tu é que o mataste, carrasco e esfola-burros!
 
CAUTÉRIO Patife!
 
MILÉSSIMO (segurando Cautério pela casaca)  Quem é patife? Tratante!
 
CAUTÉRIO Tire as mãos, sô alveitar!
 
AQUOSO Largue o outro e fale comigo, sô beladona!
 
MILÉSSIMO Hei de te ensinar a ti e a este toleirão! 
 
AQUOSO (segurando Miléssimo pela casaca) Quem é toleirão?
 
MILÉSSIMO Tu! 
 
(Miléssimo dá uma bofetada em Aquoso; Cautério dá outra em Miléssimo. Principiava entre os três uma luta de pancadas e descomposturas as libitum)
 
 
CENA XVIII Marcos, vestido de hábito de terceiro Santo Antônio, aparece a porta, seguido de Lino, Miguel e Rosinha.
 
MARCOS (entrando) 
Estou salvo! 
 
(Os três médicos espantam-se vendo Marcos)
 
OS TRÊS  O defunto! 
 
(Recuam espavoridos para a extremidade esquerda do teatro, os dois negros e o moço das bichas deitam a correr pela porta afora)
 
MARCOS Estou salvo!
 
OS TRÊS  Ressuscitou!
 
MARCOS (para os médicos)  Meus amigos, alegrem-se comigo.
 
OS TRÊS  Não fui eu que matei, foi aqui o meu colega. 
 
(Empurram um para diante do outro)
 
MARCOS (chegando-se para eles)  Que temor é esse?
 
OS TRÊS  Ai!
 
LINO Doutores, olhem que o homem está vivo.
 
OS TRÊS  Vivo?
 
MARCOS
E bom de todo.
 
AQUOSO Pois não morreu?
 
MARCOS Não me vê?
 
CAUTÉRIO (para Lino)  Que gracejo foi este, senhor?
 
MARCOS Doutor, não se altere. Uma causa moral trazia-me acabrunhado e em breve me levaria a sepultura. Um homem existia cuja vida era o meu tormento; mas graças a Deus essa causa moral desvaneceu-se e esse homem deixou de existir. O senhor Maurício morreu, e eu estou salvo!
 
MILÉSSIMO O senhor Maurício morreu?
 
MIGUEL Há uma hora.
 
MILÉSSIMO Morreu? Não é possível!
 
CAUTÉRIO (rindo) Ah, ah, ah!
 
MARCOS De que se ri?
 
CAUTÉRIO O médico do senhor Mauricio, aquele que o tratava nessa pequena indisposição de que morreu, é ali o Sr. Dr. Miléssimo... 
 
MARCOS (corre para Miléssimo e o abraça)  Meu amigo, quanto lhe devo!
 
CAUTÉRIO Tratou-o homeopaticamente... Ah, ah, ah!
 
MARCOS O senhor foi quem o matou?
 
CAUTÉRIO Foi ele, sim. Ah, ah!
 
AQUOSO Foram os seus glóbulos... Ah, ah!
 
MARCOS Meu salvador, exigi de mim o que quiserdes. Tudo vos darei.
 
MILÉSSIMO Senhor... 
 
MARCOS Como vos hei de eu recompensar este tão insigne serviço, como agradecer-vos?
 
LINO Só de um modo... 
 
MARCOS E qual é ele?
 
LINO O senhor doutor Miléssimo, matando o senhor Maurício, salvou-te a vida; e este serviço não há ouro que pague. Assim, dá-lhe a mão de tua filha.
 
MILÉSSIMO
Oh!
 
MARCOS A mão de minha filha?
 
LINO Só assim te desobrigarás. (À parte)... E eu me verei livre dela.
 
MILÉSSIMO Assim também penso eu... 
 
MARCOS (para Lino) Mas tu desistes?
 
LINO Sacrifico-me à amizade e à gratidão.
 
MARCOS E tu, filha?
 
ROSINHA O que posso eu hoje negar a meu pai?
 
MARCOS Vem cá. (Para Miléssimo) — Aqui está minha filha. É a maior recompensa que lhe posso dar. Sou grato; só uma coisa lhe peço, e é que não há de curar em minha casa. O Doutor (Volta-se para Cautério) Continuará a ser o meu médico; com ele me entendo eu. Está por isso?
 
MILÉSSIMO O que não farei eu para agradá-lo?
 
MARCOS Excelentemente. Amigo, Miguel, um abraço. 
 
(Abraçam-se formando um grupo)
 CAUTÉRIO (para Miléssimo)  Colega, de hoje em diante acreditarei no vosso sistema, porque já vi um homeopata ressuscitar a um morto fazendo uma morte... Ah, ah, ah!
 
AQUOSO Ah, ah, ah!
 
MILÉSSIMO Colegas, toda a cura é boa, quando a paga é igual a esta. (Mostra Rosinha)
 
LINO (para Aquoso)  Doutor, preciso de meia dúzia de clisteres de água fria para não me meter em outra... 
 
MILÉSSIMO Feliz de mim! E viva a homeopatia! 
 
TODOS (rindo-se)  Viva a homeopatia!

 

 

                                                                  Martins Pena

 

 

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