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"Às vezes pressinto quando algo importante vai ocorrer - quando vou arrebentar uma corda da guitarra, ou vou ser flagrado entrando em casa furtivamente, ou quando meus pais estão prestes a começar uma briga daquelas.
Por isso, momentos antes de a TV cair, levantei os olhos.
A mulher tinha vinte e poucos anos, cabelos ruivos como fogo e olhos manchados, com maquiagem escura escorrendo pelo rosto. Ela jogou uma televisão pela janela do terceiro andar: um modelo antigo, quadradão, acompanhado pelo fio comprido se agitando durante o mergulho até a calçada.
A primeira coisa que fiz em seguida foi olhar para cima. Sabe, para o caso de todo mundo estar arremessando TVs da janela naquela noite, e eu precisar me esconder embaixo de um carro estacionado. Mas era só aquela mulher.
E agora ela soltava longos gritos sem sentido e jogava mais coisas... um apartamento inteiro descartado através de uma única janela. A vida de uma pessoa à mostra na rua."
"Uma ágil, fascinante e moderna história de vampiros." - KIRKUS REVIEW
"Os vampiros de Westerfeld vão, manter você acordado até tarde, roendo as unhas e torcendo para que eles sobrevivam." - TEEN READS
COISAS ESTRANHAS ESTÃO acontecendo em Nova York: uma água negra jorra dos hidrantes e o lixo está se acumulando. Ratos são vistos em bandos e gatos encaram todos com um olhar suspeito. É o apocalipse, mas para Pearl, Moz e Zahler tudo que importa é A Banda.
Pearl e Mox nunca havia se visto até o dia em que alguém joga uma Fender Stratocaster pela janela de um prédio. O acaso faz sua parte: Pearl é uma tecladista talentosa e Moz toca guitarra. Por que pensar no fim do mundo se você pode criar a maior banda de rock de todos os tempos? Moz recruta um baixista amigo, Zahler; uma baterista esquizofrênica que vaga pelas ruas de Manhattan, Alana; e Minerva, uma sedutora vocalista que de uma hora para outra renegou tudo que mais amava...
Chegamos aonde interessa. Você se lembra dos peeps, não? Um parasita que causa efeitos terríveis em seu hospedeiro, transformando-o em... bem, um vampiro. Mas nada de mordidas, aqui o vírus é transmitido sexualmente - e ele se espalhou por toda a cidade de Nova York numa velocidade assustadora.
Todos no submundo sabem da epidemia e a vigilância sanitária não pode fazer nada para controlá-la. Mas a Patrulha Noturna pode. Guardas "preparados" para conter os peeps também são pessoas infectadas pelo vírus, mas imunes aos efeitos devastadores da doença. E conhecendo os pontos fracos dos infectados, usam isso como arma para combater os vampiros...
E agora, a música vai sobreviver ao fim do mundo? O caos é real e os cinco adolescentes podem estar, na verdade, criando a trilha sonora do apocalipse.
PARTE I
Influências
Já ouviu esses versinhos encantadores de uma canção de ninar?
Roda em róseas cores.
No bolso, muitas flores.
Cinzas, cinzas, todos caímos.
Algumas pessoas dizem que essa cantiga é sobre a Peste Negra, a praga que matou 100 milhões de pessoas no século XIV. A teoria é a seguinte: "roda em róseas cores"
era um sintoma inicial da praga; uma erupção circular na pele avermelhada. Nos tempos medievais, as pessoas andavam com flores para se proteger da doença. Quanto
às "cinzas", a expressão "do pó ao pó" é usada nas missas de corpo presente. Além disso, às vezes, as casas das vítimas da peste eram queimadas.
E quanto a "todos caímos"?
Bem, acho que você pode chegar às suas próprias conclusões.
Infelizmente, porém, a maioria dos especialistas acredita que tudo isso não passa de besteira. Segundo eles, uma erupção avermelhada não é sintoma da praga, e, originalmente,
usava-se outra palavra no lugar de "cinzas". E o mais importante: os versos são muito recentes. Só apareceram impressos em 1881.
Mesmo assim, acredite em mim: o tema é a peste. Sim, as palavras mudaram um pouco em relação às originais, mas não é nada diferente do que acontece a muitas outras
palavras nas bocas de crianças por setecentos anos. Trata-se de um pequeno lembrete de que a Peste Negra vai voltar.
Como posso ter tanta certeza sobre essa cantiga, se todos os especialistas discordam?
Eu comi o garoto que a criou.
ARQUIVOS DO PREFEITO DA NOITE:
102-130
1. The Fall
-MOZ-
Acho que Nova York estava vazando.
Passava da meia-noite e continuava fazendo 37 graus. Uma espécie de suor da cidade escorria pelas falhas da calçada, emitindo arco-íris formados por peças de óleo
sob a luz dos postes. Algo escorria do lixo amontoado na frente dos restaurantes do bairro indiano - sobras de curry transformando-se em chorume. No dia seguinte,
os brilhantes sacos plásticos exalariam um cheiro incrivelmente repugnante, mas, ao passar por lá naquela noite, eu ainda podia sentir os aromas de açafrão e de
arroz recém-descartado.
As pessoas também suavam: rostos reluzentes e cabelos desarrumados, como se estivessem acabado de sair do chuveiro. Olhos perdidos, e celulares balançando sem rumo,
presos aos pulsos dos donos, refletindo de leve as luzes e tocando esporadicamente um trecho de alguma música grudenta.
Eu estava voltando para casa, depois do ensaio com Zahler. Como estava muito quente para compor qualquer coisa nova, só tínhamos praticado uns riffs, repetindo os
mesmos quatro acordes milhares de vezes. Depois de uma hora, o riff havia sumido da minha cabeça, exatamente como acontece quando se repete uma palavra sem parar,
até que ela perca o sentido. Depois de um tempo, tudo que eu ouvia era o barulho dos dedos úmidos de Zahler nas cordas e o amplificador chiando como um tubo de vapor,
uma outra música se misturando à nossa.
Imaginávamos ser uma banda, se aquecendo no palco, animando a platéia gradualmente, antes de o vocalista entrar em cena: a Maior Introdução do Mundo. Acontece que
não tínhamos um vocalista. Assim, o riff simplesmente foi sumindo em meio aos rios de suor.
Às vezes pressinto quando algo importante vai ocorrer - quando vou arrebentar uma corda da guitarra, ou vou ser flagrado entrando em casa furtivamente, ou quando
meus pais estão prestes a começar uma briga daquelas.
Por isso, momentos antes de a TV cair, levantei os olhos.
A mulher tinha vinte e poucos anos, cabelos ruivos como fogo e olhos manchados, com maquiagem escura escorrendo pelo rosto. Ela jogou uma televisão pela janela do
terceiro andar: um modelo antigo, quadradão, acompanhado pelo fio comprido se agitando durante o mergulho até a calçada. A TV resvalou numa escada de incêndio, provocando
um barulho agudo, engolido segundos depois pelo impacto no chão, a uns 5 metros de mim.
Uma chuva de estilhaços de vidro, brilhantes e afiados, caiu perto dos meus pés. Tilintavam como lustres se chocando enquanto os outros pedaços perdiam velocidade
até parar. Fragmentos dos postes e do céu pareciam refletidos nos cacos de vidro, como se a televisão tivesse se dividido em mil telinhas, todas ainda funcionando.
De uma lasca no formado de Manhattan, um dos meus próprios olhos me encarou. Arregalado e assustado, piscou.
A primeira coisa que fiz em seguida foi olhar para cima. Sabe, para o caso de todo mundo estar arremessando TVs da janela naquela noite, e eu precisar me esconder
embaixo de um carro estacionado. Mas era só aquela mulher. E agora ela soltava longos gritos sem sentido e jogava mais coisas:
Almofadas com borlas. Bonecas e luminárias. Livros esvoaçando como pássaros em queda. Um pote cheio de canetas e lápis. Duas cadeiras vagabundas de madeira, despedaçadas
na armação da janela primeiro, para passarem com mais facilidade. Um teclado de computador que lançou aos ares um monte de teclas e molas minúsculas. Talheres que
reluziram durante a queda e tilintaram no chão como um triângulo para avisar que o jantar estava na mesa... um apartamento inteiro descartado através de uma única
janela. A vida de uma pessoa à mostra na rua.
E, durante todo o tempo, ela gritava como um animal furioso lá em cima.
Olhei ao meu redor, para a multidão que se formava, a maioria voltando tarde do bairro indiano, entorpecida pelo curry. As expressões de enlevo nos rostos virados
para cima me causavam inveja. Durante todo o tempo que eu tinha passado tocando com Zahler, eu havia imaginado uma platéia como aquela: pasma e agitada, arrancada
da mesmice do dia-a-dia pelas orelhas e pelos olhos. De repente, a mulher maluca, com cabelo e maquiagem de roqueira, os mantinham hipnotizados. Por que se preocupar
com riffs e solos e letras, quando tudo que a multidão deseja é uma avalanche de berros e mobília barata destruída?
Mas, quando o estado de choque se dissipou, o arrebatamento das pessoas se transformou numa coisa pior. Em pouco tempo, as pessoas passaram a rir e a apontar para
a mulher. Um grupo de garotos gritava "pula, pula, pula!" num coro perfeito. O flash de uma câmera disparou, captando uma centelha diabólica nos olhos da mulher.
Alguns rostos refletiam a luz azulada dos celulares: estariam chamando a polícia ou amigos que moravam perto, para se juntarem ao grupo? - eu me perguntei.
Uma das espectadoras entrou na zona de impacto. Correndo meio agachada, agarrou um vestido preto, em meio à chuva de cabos de computador e extensões. Ela recuou
segurando o vestido perto do corpo, como se tivesse acabado de escolhê-lo numa loja. Outra mulher se abaixou para pegar uma pilha de revistas.
- Ei! - gritei.
Eu ia lembrá-las de que não estávamos ali para revirar o lixo da mulher: ela podia querer as coisas de volta depois que aquela explosão psicótica parasse. Mas, nessa
hora, os CDs começaram a voar. Eram projéteis brilhantes que caíam no asfalto como uma chuva de granizo em versão de plástico, cada um impulsionado da janela por
um grito.
Os saqueadores recuaram: a mulher agora estava mirando, e os CDs eram armas perigosas. Os discos podem não machucar muito, mas aquelas ainda estavam dentro das caixas,
o que lhes dava mais peso e cantos afiados.
Foi quando eu vi: o braço de uma guitarra surgindo da janela, e depois o resto do instrumento. Era uma Fender Stratocaster de meados da década de 1970, com captadores
e alavanca dourados, corpo amarelo-creme e escudo branco.
Dei um passo à frente e estiquei o braço para cima.
- Espera!
A mulher me olhou com a maquiagem escorrendo pelo rosto como sangue negro, segurando a Stratocaster junto ao peito. Suas mãos encostaram nas cordas, como se pretendesse
tocar, mas então a mulher soltou um último e pavoroso urro.
- Não! - gritei.
Ela deixou a guitarra cair.
O instrumento de melodias delicadas girou no ar, reluzindo sob a luz dos postes. Eu já estava correndo, tropeçando em pedaços de plástico e montes de roupas, calculando
quantos dos quatrocentos ossos em minhas mãos seriam quebrados por aquela madeira nobre envernizada, depois de uma queda de 10 metros.
Mas eu não podia deixá-la de despedaçar...
Nesse momento, aconteceu um milagre: a guitarra parou em pleno ar. Alça havia se prendido numa ponta da escada de incêndio. Agora a guitarra estava pendurada, girando
perigosamente.
Parei imediatamente, olhando para cima.
- Aqui! - berrou alguém.
Baixei os olhos por um segundo, uma garota da minha idade, de cabelo preto e curto e óculos de aros vermelhos, puxava alguma coisas grande de baixo do monte de objetos,
espalhando talheres por todos os lados.
- Cuidado - alertei, apontando na direção da Strat, que estava se soltando. - Vai cair a qualquer momento.
- Eu sei! Pega o outro lado!
Olhei novamente para ela, sem entender. A garota segurava duas pontas de um cobertor que havia encontrado na pilha. Ela esticou o tecido xadrez com um movimento
rápido, como se estivéssemos arrumando a cama. Finalmente entendi e peguei as outras pontas.
Fomos nos afastando, esticando o cobertor e voltando a olhar para o alto. Lá em cima, a guitarra girava cada vez mais rapidamente, como uma criança num balanço.
- Vai com cuidado - pedi. - É um modelo 1974... Ahn, quer dizer, é muito valiosa.
- Com captores dourados? - ela bufou. - Deve ser 1975.
Olhei para ela, curioso.
- Lá vem! - ela gritou.
A guitarra se soltou, ainda girando, reluzindo e com a alça se agitando. Caiu com força entre nós, como um corpo sem vida, quase arrancando o cobertor das minhas
mãos. O peso nos puxou para perto um do outro, os pés deslizando, e logo, estávamos cara a cara.
Mas não houve nenhum estrondo terrível; a Stratocaster não tinha se arrebentado no chão.
- Conseguimos salvá-la!
Seus olhos castanhos brilhavam. Avaliei a guitarra, em segurança, envolvida pelo tecido.
- Uau. Conseguimos mesmo.
Então ouvimos outro ruído vindo da escada de incêndio. Nós dois nos protegemos enquanto olhávamos para o alto. Mas não eram outros objetos caindo; eram duas pessoas,
seis andares acima, descendo na direção da janela da mulher maluca. Porém, em vez de usarem a escada, eles praticamente voaram, passando de apoio em apoio com a
leveza de sombras deslizando pelo teto.
Fiquei observando, impressionado, até que a garota ao meu lado gritou duas palavras assustadoras:
- Forno elétrico!
O aparelho despencava bem na direção das nossas cabeças, com a portilha aberta, espalhando migalhas...
Enrolamos a Stratocaster no cobertor e saímos correndo.
2. Taj Mahal
-PEARL-
- Sabe uma coisa estranha?
O garoto bonitinho franziu a testa, ainda de olhos arregalados e ofegante.
- Uma coisa estranha? Não consigo pensar em nada que não tenha sido estranho.
Sorri e estendi as mãos com as palmas para cima, como se pesando o nível de esquisitice. Nessa época, tudo era relativo. Tinha de se aproveitar quando se encontrava
algo normal. As pessoas ficavam loucas a qualquer hora; o que mudava era como elas enlouqueciam.
Tínhamos agarrado a Strat e virado na esquina seguinte. Na verdade, viramos várias esquinas. No fim, eu havia levado o cara à minha rua, sem avisar. Meu prédio estava
na outra calçada, mas não tinha certeza se queria que ele soubesse onde eu morava - mesmo que fosse o tipo de garoto capaz de pensar em segurar uma Fender Stratocaster
em queda livre com as próprias mãos. E com certeza eu não queria que, ao chegar em casa mais tarde, minha mãe me encontrasse na entrada com um garoto bonitinho qualquer
e um cobertor xadrez usado. Ela podia entender mal. Pensando bem, ela faria questão de entender mal.
Sentamos numa escada à entrada de um prédio; escondida por andaimes, protegida da luz dos postes, invisível. A Strat repousava entre nós, ainda envolvida no cobertor,
em parte como proteção, em parte porque o carinha parecia se sentir culpado, como se achasse que alguém viria atrás de nós e nos obrigaria a devolver a guitarra.
Quem faria isso? Aquela maluca, não: ela já tinha partido a essa altura. Eu havia visto anjos vindo buscá-la. É o que acontece quando alguém perde a cabeça hoje
em dia: anjos de verdade, exatamente como Luz tinha me contado, embora eu nunca tivesse acreditado até aquele dia.
Como eu não queria parecer estranha, apenas disse:
- Vou contar o que achei esquisito. Ela estava jogando coisas de mulher. As roupas que caíram pela janela: vestido, saias... As coisas dela.
- E por que não seriam? - perguntou ele, franzindo a testa de novo.
- Porque as histórias não são assim. - Parei por um instante e ajeitei meus óculos no nariz, o que costuma fazer as pessoas prestarem atenção nos meus olhos, que
são estanhos escuros e, sinceramente, incríveis. - Eu entenderia se ela estivesse jogando as porcarias do namorado pela janela, por que ele a traiu ou alguma coisa
assim. É mais ou menos normal: as pessoas fazem isso na TV. Mas você não jogaria suas próprias coisas daquele jeito, jogaria?
- Talvez. Talvez não. - Ele pensou por alguns segundos e olhou contrariado para uma garota que passava, rindo, com as mãos cheias de CDs em embalagens estilhaçadas.
Achei que ele fosse dizer que devíamos devolver a guitarra. - Sabe, garotas também têm namoradas. E colegas de apartamento que não pagam o aluguel.
- Hum.
Eu meio que tinha pensado que o cara era meio lento, porque ele havia demorado séculos para entender meu brilhante plano de salvamento da guitarra (o mesmo que os
bombeiros usam para salvar suicidas). Mas aquela resposta demonstrava um pensamento lateral.
Bonitinho e lateral. E sabia reconhecer uma Strat.
- Pode ser uma namorada - acabei admitindo. - Mas jogando fora as coisas da sua colega de apartamento? - Eu nunca tinha dividido a casa com alguém, exceto minha
mãe, que não contava. - Não seria mais esperto vender as coisas no eBay?
Ele riu, e seus olhos brilharam no escuro. De repente, ficou todo sério de novo.
- Provavelmente. Mas você está certa: acho que eram coisas dela. Estava jogando a vida inteira fora.
- Mas por quê? - perguntei baixinho.
- Não sei. Mas, um pouco antes de jogar a Strat, ela estava segurando a guitarra do jeito certo. Do jeito que se segura uma guitarra - ele contou, erguendo as mãos
numa posição de air guitar, a esquerda executando delicadas escalas num braço imaginário.
- Sei. Não como uma modelo num clipe - murmurei. - Isso me tira do sério.
- Isso. - ele parou um instante, depois encolheu os ombros. - Então, a guitarra era dela. E ela parecia triste lá em cima, não com raiva. Como alguém que perdeu
tudo que tinha.
Caramba. Aquele cara estava viajando, como se soubesse de algo que não estava contando.
- Espera aí. Isso é uma suposição, não é?
- Claro. - Ele estendeu as mãos e ficou observando as próprias palmas.
- Bem, então... - Botei a mão no embrulho quadriculado entre nós. - Se ela queria jogar isso fora, não é como se tivéssemos roubado.
Ele me deu um olhar austero.
- O que foi? - perguntei. - Quer levar de volta e deixar na montanha de entulho?
Ele balançou negativamente a cabeça.
- Não. Outra pessoa acabaria levando. E sairia carregando a guitarra sem cuidado, fingindo estar tocando - disse, preocupado.
- Exatamente! - concordei, sorrindo. - Qual é seu nome, aliás?
- Moz.
Devo ter feito uma cara de quem não havia entendido.
- É abreviação de Mosquito - explicou ele.
- Ah, claro. - Ele era mesmo meio pequeno, como eu. Já notou que as pessoa menores são mais fofas? Como bonecas. - Meu nome é Pearl. Não é abreviação de nada, apesar
de ser curtinho.
Moz voltou a fazer a cara séria.
- Então, Pearl, não acha que ela pode querer a guitarra de volta depois que... - ele disse, com a voz sumindo.
- Depois que sair do lugar para onde eles a levarem?
Ele assentiu. Fiquei pensando se Moz havia entendido que eu não estava me referindo às pessoas que costumavam prender os loucos, mas os dois anjos que tínhamos visto
na escada de incêndio. Será que ele sabia o que estava acontecendo com o mundo? A maioria das pessoas parecia saber até menos do que eu. Tudo que viam era o lixo
se multiplicando e cada vez mais ratos - nem notavam os ruídos vindos de debaixo da terra. Mas aquele cara falava como se fosse capaz de sentir as coisas, pelo menos.
- Poderíamos descobrir quem é - ele sugeriu. - Talvez perguntar a alguém do prédio.
- E guardar a guitarra para ela?
- Isso. Quer dizer, se fosse uma guitarra fuleira, tudo bem, mas essa aqui... - disse Moz, com os olhos brilhando novamente, como se a idéia de uma Strat sem-teto
fosse fazê-lo chorar.
Bem naquele momento, uma luz veio a minha cabeça: a compreensão que vinha tentando chamar minha atenção desde que eu vira Moz correndo para segurar a Stratocaster
com as próprias mãos. Talvez aquele fosse o cara de que eu precisava, um cara de coração puro, disposto a se jogar embaixo de uma Fender em queda livre, só por ela
ser clássica e insubstituível.
Talvez Moz fosse o cara por quem eu estava esperando desde a explosão do Sistema Nervoso.
- Certo. Vamos guardá-la para ela. Mas na minha casa - eu disse, envolvendo o embrulho com o braço.
- Sua casa?
- Claro. Afinal, por que eu confiaria em você? Pode acabar penhorando a guitarra. Uns 3 ou 4 mil dólares para você, quando a idéia de usar o cobertor foi minha.
- Mas sou eu que quero devolvê-la à dona - ele retrucou, de um jeito bonitinho. - Até um segundo atrás, você estava dizendo que isso "não é roubar".
- Talvez você queira que eu acredite nisso - eu disse, ajeitando os óculos no nariz. - Talvez seja apenas um disfarce para seus planos malignos.
Foi difícil para mim ver a expressão ofendida dele, porque eu estava sendo completamente injusta. Mesmo que Moz fosse esperto, dava para perceber que ele podia ser
tudo, menos maligno.
- Mas... você estava quase... - disse ele, numa voz sufocada.
Eu apertei a Strat mais perto de mim.
- É claro que você pode aparecer para tocar um pouco quando quiser. Podemos até tocar juntos. Você tem uma banda?
- Tenho. - Ele não tirava os olhos cautelosos do cobertor. - Quer dizer, meia banda.
- Meia banda? - perguntei, sorrindo, certa de que tinha acertado na mosca. - Uma banda precisando de completude? Talvez seja o destino.
Moz balançou a cabeça.
- Já temos dois guitarristas.
- E o que mais?
- Hã... só dois guitarristas.
Dei uma risada.
- Escuta, um baterista e uma baixista são metade de uma banda. Dois guitarristas são apenas um... - Vendo ele fechar a cara, desisti de completar a frase. - De qualquer
maneira, eu toco teclado.
- Sério? - disse ele, balançando a cabeça mais uma vez. - Então como sabe tanto sobre guitarras? Você deduziu o ano da Strat quando ela ainda estava no ar!
- Dei sorte no chute.
Obviamente, eu toco guitarra. E teclado também, e flauta e xilofone e sou muito boa com a gaita. Não existe quase nada que eu não toque. Porém, percebi há algum
tempo que não devo sair espalhando isso; todo mundo acha que nós, não-especialistas, não passamos de amadores. (Diga isso ao não-especialista conhecido como Prince.)
Também não costumo exibir meu ouvido absoluto ou mencionar o nome da minha escola.
Moz estreitou os lindos olhos escuros.
- Tem certeza de que não sabe tocar guitarra?
- Não disse isso - respondi, com uma risada. - Mas pode acreditar, garanto que toco teclado. O que acha de amanhã?
- Mas, hum, como você sabe que... - Ele parou para pensar. - Bem, tipo, quais são as suas...?
- Ei! - interrompi. - Essa palavra não!
Se ele perguntasse minhas influências, tudo estaria perdido.
- Você sabe o que eu quero dizer.
Dei um suspiro com os dentes cerrado. Como eu explicaria que tinha muita coisa para fazer para me importar com aquilo? Que havia coisas mais importantes com que
me preocupar? Que o mundo não tinha mais tempo para rótulos?
- Bem, vamos supor que você odeie túmulos.
- Odeie túmulos?
- Sim, que você deteste tumbas. Sinta aversão a sepulcros. Abomine qualquer lugar em que alguém tenha sido enterrado. Entendeu?
- Por que eu odiaria isso?
Soltei um grunhido. De repente, o querido Moz estava sendo bem pouco lateral.
- Você odeia túmulos hipoteticamente.
- Ahn, certo. Eu odeio túmulos - aceitou ele, assumindo uma expressão de que odeia túmulos.
- Ótimo. Perfeito. Mesmo assim, você iria ao Taj Mahal, não? - perguntei, abrindo os braços num gesto explicativo triunfal.
- Ahn... Iria aonde?
- Ao Taj Mahal! A construção mais bonita do mundo! Sabe, todos esses restaurantes indianos perto daqui, as imagens pintadas nas paredes?
Ele acenou lentamente com a cabeça.
- Ah, já sei do que você está falando. Um lugar com vários arcos, uma piscina na frente e uma espécie de cebola em cima?
- Isso mesmo. É lindo.
- Sei. E tem alguém enterrado lá?
- Sim, Moz, uma antiga rainha. Mas você não passou a achar o lugar feio, do nada, só por causa da categoria em que se encaixa, certo?
A expressão dele passou de quem odeia túmulos para quem raciocina lateralmente.
- Então, em outras palavras... - Breve pausa. - Você não se importa se está numa banda que toca cypherfunk death metal alternativo, desde que seja o Taj Mahal do
cypherfunk death metal alternativo. É isso?
- Exatamente! - gritei. - Vocês podem ficar se preocupando com a categoria. Podem ser total death metal. Desde que sejam bons na coisa. - Peguei a Stratocaster e
segurei-a firmemente. - O que acha de amanhã, às duas?
Ele deu de ombros.
- Acho que pode ser. Vamos tentar. Talvez precisemos de um teclado.
Ou talvez precisem de mim, pensei. Em voz alta, só disse o número do me apartamento, apontando para o outro lado da rua.
- Ah, mais duas perguntas, Moz.
- Pode falar.
- Primeira: vocês realmente tocam cypherfunk death metal alternativo?
Ele sorriu.
- Não se preocupe. O cypherfunk death metal alternativo era hipotético.
- Ufa - eu disse, tentando não reparar que aquele sorrisinho o deixava ainda mais bonito. Agora que tocaríamos juntos, não valia a pena reparar em coisas daquele
tipo. - Segunda pergunta: sua meia banda tem nome?
- Não.
- Tudo bem. Essa vai ser a parte mais fácil.
3. Poisonblack
-MOZ-
No dia seguinte, eu e Zahler vimos nossa primeira água negra.
Tínhamos acabado de nos encontrar na frente do me prédio para ir ao apartamento de Pearl. No outro lado da rua, havia uma turma de crianças aglomeradas em torno
de um hidrante, abrindo-o com uma chave inglesa, na esperança de conseguir uma fonte de alívio para o calor de início da tarde. Zahler parou para assistir, como
costumava fazer sempre que garotos se metiam em algo mais ou menos legal.
- Olha isso! - ele disse, rindo e apontando para um carro conversível que descia a rua. Se o hidrante abrisse nos dez segundos seguintes, o motorista distraído acabaria
encharcado.
- Cuidado com a sua guitarra - avisei.
Apesar de estarmos a uns 6 metros de distância, nunca se sabe a pressão escondida por um hidrante num dia quente de verão.
- Está bem protegida, Moz - disse ele, pondo o estojo da guitarra de pé, atrás das costas.
Senti as mãos vazias. Estava a caminho de uma jam session levando nada além de algumas palhetas no bolso. Meus dedos coçavam, ansiosos por tocar as primeiras notas
na Strat.
Estávamos meio atrasados, mas o carro era uma BMW, com um motorista de terno e gravata falando no celular. Quando eu e Zahler éramos moleques, molhar um cara como
aquele valeria uns 10 mil pontos de hidrante. Podíamos perder mais 10 segundos sem problemas.
Mas os garotos ainda tentavam abrir a válvula do hidrante quando o conversível passou.
- Idiotas incompetentes - suspirou Zahler. - Acha que devemos ajudar?
- Já passou das duas - eu disse, dando as costas e voltando a caminhar.
No entanto, enquanto andava, ouvi o barulho atrás de nós passando de gritos de agitação a berros de medo.
Demos meia-volta. O hidrante jorrava água negra para todos os lados, cobrindo as crianças com uma substância grudenta e reluzente. Uma névoa escura e densa espalhou-se
pelo ar, cortando a luz do Sol num espectro cintilante, como um arco-íris numa mancha de óleo. Os garotos gritavam e recuavam aos tropeções, com a pele coberta pelo
líquido. Dois meninos menores permaneciam diante da torrente, chorando.
- Que porcaria é essa? - murmurou Zahler.
Dei um passo para a frente, mas o cheiro - intenso, fétido e podre - me obrigou a parar. A nuvem negra continuava subindo por entre os prédios, movendo-se como fumaça,
e o vento agora soprava em nossa direção. Pequenos pontos pretos começaram a aparecer no chão, cada vez mais perto, como o início de uma chuva repentina de verão.
Eu e Zahler nos afastamos sem tirar os olhos do asfalto. As gotas brilhavam tanto quanto minúsculas pérolas negras.
O hidrante pareceu engasgar, interrompendo o fluxo de líquido escuro, e então a água ficou limpa. No alto, a nuvem já tinha se dissipado, transformando-se em nada
mais que uma neblina cinza no céu.
Ajoelhei na calçada para observar uma das gotas escuras. Ela reluziu irregularmente por um momento, refletindo a luz do Sol, enquanto a sombra da nuvem desaparecia.
Depois, evaporou diante dos meus olhos.
- Que porcaria era aquela, Moz?
- Não sei. Talvez alguém tenha deixado cair óleo de aquecedor no encanamento - respondi, balançando a cabeça.
As crianças olhavam fixamente para o hidrante, desconfiadas, com certo medo de que a água ficasse escura de novo, mas também ansiosas para se limpar. Algumas se
adiantaram, e a substância oleosa pareceu se soltar de suas peles; as manchas escuras sumiram dos shorts e camisetas encharcados.
Um minuto depois, estavam todos brincando no jato d'água, como se nada de estranho tivesse acontecido.
- Não parecia nenhum tipo de óleo que eu já tenha visto - comentou Zahler.
- É. Provavelmente era só água velha dentro do hidrante - arrisquei, sem querer pensar no assunto. Tinha sumido tão rápido que eu podia até imaginar que nada havia
ocorrido. - Ou alguma coisa parecida. Vamos, estamos atrasados.
O quarto de Pearl parecia o cruzamento de um estúdio de som com um ferro-velho. Depois de uma explosão.
As paredes eram cobertas de caixas de ovos, aquelas grandes, de uma dúzia, que ficam empilhadas do lado de fora dos restaurantes. Montes sinuosos se erguiam entre
os vales em forma de ovo, dobrando-se como as ondas sonoras que engoliam.
- Caramba, você tem um monte de equipamento! - exclamou Zahler.
A voz dele não produzia eco, voltando das paredes com menos impulso do que um gato morto.
E sempre havia dito a Zahler que podíamos isolar o quarto dele daquele jeito, para que os pais parassem de pedir, aos berros, que baixássemos o volume. Mas nunca
tivemos motivação suficiente. Nem tantas embalagens de ovos.
O chão estava coberto de cabos soltos, caixas de efeitos, todas as potenciais fontes de incêndio de sempre. Pisamos com cuidado entre o emaranhado de extensões,
com dezenas de fios plugados, todos etiquetados para indicar o que se conectava onde. Duas prateleiras cheias de equipamentos se destacavam numa extremidade do quarto
- os cabos eram presos com arames. Os módulos seguiam agrupamentos bem claros: unidades digitais pretas, sem botões; arpegiadores analógicos e agulhas. Uma parafernália
igual à dos antigos filmes de ficção científica pronta para entrar em ação.
Zahler olhava ao redor, nervoso, provavelmente pensando se sua pequena e modesta guitarra seria soterrada por aquele equipamento. Eu imaginava por que Pearl, dona
daquele aparato todo para teclado, havia se arriscado a levar um forno elétrico na cabeça para salvar uma guitarra clássica.
- Onde você dorme? - perguntou Zahler.
A cama estava coberta de CDs espalhados, mais cabos e algumas gaitas e tambores.
- Quase sempre no quarto de visitar - respondeu Pearl, com orgulho. - Eu sofro em nome da minha arte.
Zahler deu uma risada, mas olhou discretamente para mim. Aquilo não era exatamente um sofrimento. Embora ela ainda não tivesse mostrado todo o apartamento da mãe,
o que havíamos visto até então já era maior que o meu e dos pais de Zahler juntos. Nas paredes, havia um monte de pinturas e estojos envidraçados protegendo objetos
vindos do mundo inteiro. Escadas levavam a outros andares, e tínhamos passado por uma dupla de seguranças armados na entrada do prédio. Pearl provavelmente havia
conhecido o Taj Mahal pessoalmente.
Por que, então, ela tinha pensado em ficar com a Strat, se evidentemente poderia comprar uma por conta própria?
Talvez estivesse acostumava a coisa caindo do céu. Ela pareceu bastante incomodada com nosso atraso, como se aquilo fosse uma entrevista de emprego ou algo do tipo.
Remexi os CDs espalhados na cama na tentativa de reconhecer suas influências musicais. Pelo que Pearl se interessava além de antigas tumbas indianas, pontualidade
e isolamento acústico? Os discos me deixaram confuso. Havia inscrições feitas a mão com nomes de bandas das quais nunca tinha ouvido falar: Zombie Phoenix, Morgan's
Army, Sistema Nervoso...
- Sistema Nervoso? - perguntei.
Pearl suspirou.
- Esse é a banda em que eu tocava. Um bando de nerds de Juilliard e, bem, eu.
Olhei para Zahler: que demais, Pearl não só tinha um monte de equipamento de verdade, mas também conhecia músicos de verdade, o que significava que não ficaria muito
impressionada conosco. O virtuosismo não era nosso forte; não freqüentávamos aulas de música desde a sexta-série. Aquele encontro acabaria virando um grande erro.
- Vocês faziam shows? - perguntou Zahler.
- Fazíamos - respondeu Pearl, sem dar muita importância. - Quase sempre na escola deles. Mas o Sistema não coração. Ou melhor, acho que tinha, só que explodiu. E
aí, querem começar?
A Stratocaster acalmou meus nervos.
A guitarra pendia do meu ombro como uma pluma; a parte de trás, envernizada, encostava suavemente na minha coxa. As cordas eram como seis fios de teia de aranha.
Os movimentos eram os mais leves que meus dedos já tinham sentido. Dedilhei um acorde em mi maior, antes de conectar a guitarra no amplificador, e fiquei impressionado
ao perceber que nem a queda de três andares havia desafinado a Strat.
Pearl ligou um amplificador Marshall, um enorme e antigo monstro, com válvulas. (Por que uma tecladista mantinha um amplificador para guitarra no quarto? Também
teria caído do céu?) As válvulas foram esquentando, e o chiado foi sumindo, como uma onde se quebrando.
- Vocês vão ter que dividir o amplificador - desculpou-se Pearl. - Sei que não é o ideal.
Zahler não ligou.
- Está sacana.
Pearl achou estranho. Zahler tem esse costume de dizer sacana em vez de bacana, o que confunde as pessoas. Pelo menos ele não contou que eu nunca tive um amplificador
e, por isso, nós também dividíamos o equipamento na casa dele.
Ela jogou alguns fios na nossa direção, e eu liguei os instrumentos. Um estalo, e logo ouvimos o zumbido de seis cordas abertas. Abafei cinco delas e arranquei um
mi grave. Zahler acompanhou, avançando por suas cordas uma a uma, despertando um pequeno coro vindo das caixinhas de CD que tremiam em cima da cama, chocando-se
umas nas outras.
O Marshall foi ajustado para o 7, um volume que nunca havíamos tido coragem de tentar no quarto de Zahler. Torci para que as embalagens de ovo de Pearl funcionassem.
Senão, os vizinhos sentiriam nosso som em seus ossos. Mas eu estava disposto a correr o risco de alguém chamar a polícia. Enquanto passava os dedos em seu braço,
a Strat chiava, impaciente, como se dissesse que também estava pronta.
Finalmente, Zahler fez um sinal com a cabeça, e Pearl, sentada na pequena mesa entre as duas prateleiras de eletrônicos, esfregou as mãos. Um computador aguardava,
conectado a um teclado musical - um com elegantes teclas pretas e brancas no lugar do amontoado de letras, números e símbolos inúteis.
Ela pôs uma das mãos no teclado e outra no mouse. Bastou um clique duplo para dezenas de luzes se acenderem nas prateleiras.
- Toquem alguma coisa.
- Meus dedos ficaram nervosos de repente. Era importante acertas as notas, passar uma boa impressão inicial naquela guitarra que havia caído por acidente em minhas
mãos. Pearl achava que o "destino" tinha nos unido, mas aquela não era a palavra correta. O destino não havia provocado a insanidade naquela mulher. Desde o começo
daquele verão esquisito, as pessoas andavam irritadas, incluindo uma onde de crime, um bando de ratos e o calor de enlouquecer. Era muito maior do que eu, Pearl
e Zahler.
A guitarra não tinha a ver com o destino. Era apenas mais um sintoma da doença bizarra que atingia Nova York, algo estranho e inesperado, como o jorro de água negra
que havíamos visto no caminho.
Por um instante, me senti estranho segurando a Strat.
Mas logo ouvi a voz de Zahler:
- Vamos tentar o Grande Riff?
Sorri. O Grande Riff era tão antigo quanto nossa parceria. Era simples e vigoroso. Nem nos importávamos mais em praticá-lo. A Strat, porém, daria uma nova vida ao
Grande Riff. Seria como jogar beisebol com um taco gigante.
Zahler começou. A parte dele no Grande Riff é baixa e meio rosnada; as cordas são abafadas pela mão direita, criando um efeito semelhante ao do vapor saindo de uma
chaleira.
Tomei fôlego, devagar e profundo... e entre com tudo. Minha parte é mais rápida, meus dedos passeiam pelas notas altas no meio do braço da guitarra. Minha parte
desliza, enquanto a dele revira tudo, tirando fagulhas das cinzas. Minha parte dispara e muda sem parar, enquanto a de Zahler permanece constante, equilibrada e
densa, preenchendo todos os vazios.
A Strat adorou o Grande Riff, entrou com tudo. As cordas de teia de aranha provocavam meus dedos a tocarem mais rápido e mais alto. Eu parecia flutuar no firmamento
criado por Zahler. Se o Grande Riff fosse um exército, ele seria a infantaria, os homens que vão por terra, e eu, transformado pela Strat, seria os ninjas orbitais
caindo do céu, usando roupas pretas por baixo das roupas espaciais.
Pearl ficou sentada, ouvindo, dobrando os dedos e clicando no mouse, de olhos fechados. Parecia pronta para entrar, impaciente, à espera de uma deixa.
Continuamos tocando por 10 minutos, talvez 20 - é difícil contar o tempo enquanto estamos tocando o Grande Riff -, e mesmo assim ela não entrou...
Zahler finalmente fez um gesto confuso e deixou o riff ir se perdendo. Segui seu exemplo. Dei um último salto na órbita e esperei a Strat deslizar até um silêncio
relutante.
- O que houve? - perguntou ele. - Não gostou?
Pearl permaneceu em silêncio por mais alguns segundos, pensativa.
- Não, é muito bom. Exatamente o que eu queria. - Seus dedos tocaram nas teclas distraidamente. - É só que, ahn, é meio... longo.
- É isso aí - disse Zahler. - Chamamos de Grande Riff. Sacana, hein?
- Com certeza. Mas, ahn, deixa eu perguntar uma coisa: há quanto tempo vocês tocam juntos?
Zahler virou-se para mim.
- Seis anos - respondi.
Desde os 11 anos, quando usávamos guitarras emprestadas da escola, com cordas de náilon. Dávamos uma turbinada com os microfones do videoquê da irmã mais velha de
Zahler.
Pearl franziu a testa.
- E foram sempre só vocês dois?
- Hum, acho que sim - admiti.
Zahler me olhava meio envergonhado, talvez pensando: não conte a ela do videoquê.
Ela moveu a cabeça como se tivesse entendido tudo.
- Não me surpreende.
- O que é que não surpreende? - perguntei.
- Não há mais espaço.
- Não há o quê?
Ajeitando os óculos no nariz, ela explicou:
- Está cheio. Como uma pizza com queijo, cebola, pepperoni, pimenta, lingüiça, M&M's e pedaços de bacon. O que vocês esperam que eu acrescente? Purê de batata?
Zahler fez uma cara...
- Está dizendo que é um lixo.
- Não, é grande e natural - ela disse, soltando um assobio por entre os dentes e confirmando com a cabeça. - Vocês arrancaram uma banda inteira de duas guitarras,
o que é bem singular. Mas, se quiserem ter uma banda de verdade, uma com mais de duas pessoas, vão ter que segurar um pouco o som. Temos que abrir uns buracos no
Grande Riff.
Mais uma vez, Zahler olhou para mim, estreitando os olhos, e eu percebi que, se eu decidisse encerrar tudo ali mesmo, ele viria comigo. E quase foi o que fiz, porque
o Grande Riff era sagrado, parte da nossa amizade desde o início, e Pearl estava propondo fazer uns rasgos nele só para abrir espaço para suas montanhas de equipamentos
eletrônicos.
Reparei nas luzes piscantes, imaginando como ela pretendia enfiar aquilo no som de outra pessoa sem destruir tudo.
- Além do mais, isso não é bem uma música - ela acrescentou. - Está mais para um solo de guitarra que não chega a lugar algum.
- Ei... está mais para o quê?
- Um solo de guitarra que não chega a lugar algum - repetiu Zahler, confirmando com a cabeça. Fiquei olhando para ele.
- O que estou dizendo é o seguinte: vocês querem fazer músicas, não é isso? - prosseguiu Pearl. - Com versos, refrões e todo o resto, certo? Não acham que o Grande
Riff poderia ter uma parte B?
- Idéia sacana - disse Zahler, para logo depois coçar a cabeça, confuso. - O que é uma parte B mesmo?
4. New Order
-ZAHLER-
A garota tinha energia. E era gata.
Ela conseguia detonar uma melodia sem se esforçar. Não era como Moz, que sempre se enrolava. Ela podia simplesmente assobiar o que estava pensando, desenhar as seqüências
com os dedos, como se estivesse vendo as notas no ar. Eu observava atento, sonhando que meus dedos também fossem capazes de fazer aquilo.
Ela era o tipo de garota que fica melhor de óculos, com aquele ar de inteligência e tudo o mais.
A mudada que Pearl deu no Grande Riff foi totalmente espetacular. Como eu já imaginava, ela não mexeu na minha parte. Minha parte é a base, a estrutura do riff.
Já a parte do Moz podia perder o rumo, mais ou menos como ela tinha dito na história da pizza. Sabe quando você monta seu próprio sorvete? Eu costumo botar coberturas
até o sorvete desaparecer. No fim, o negócio fica meio nojento. Se derem liberdade, o estilo do Moz pode ter um resultado parecido.
Não me entenda mal. O Mosquito é um gênio, toca muito melhor do que eu, e as idas e vindas do Grande Riff tinham coisas bem sacanas. Mas coube a Pearl selecionar
os melhores fios e costurar tudo de novo de uma maneira que fizesse sentido.
Ela explicou que uma parte B era uma parte completamente diferente de uma música, como quando o refrão tem um riff diferente, ou tudo fica mais lento, ou há uma
mudança de tom. Não costumávamos fazer aquilo porque eu me satisfaço repetindo os mesmos quatro acordes o dia inteiro, e Moz se satisfaz zumbindo em cima deles.
Mas, se você pensar bem, a maioria das músicas tem uma parte B - e nós havíamos percebido que as nossas quase sempre fugiam da regra. Então a moral da história é
a seguinte: você não deve ficar numa banda de duas pessoas por seis anos. Acaba minando a sua perspectiva.
No começo, Moz pareceu todo ressabiado, como se o Grande Riff fosse um bichinho de estimação, e Pearl o estivesse dissecando. Ele me encarava e fazia caretas, mas
consegui, com meus olhares-resposta, convencê-lo a aceitar. Depois de perceber que, para mim, Pearl era uma pessoa legal, ele se sentiu meio obrigado a ouvi-la.
Afinal de contas, não tinha sido idéia minha ir até lá.
Mas o Moz não era idiota. E só um idiota acharia ruim dar ouvidos a uma garota esperta e interessante dizendo algo para o próprio bem dele. E também para o bem da
banda, que, àquela altura, era no que estávamos nos transformando.
Era muito sacana acompanhar aquilo. Em todos os anos que havíamos tocado juntos, eu e Moz só tínhamos pensado em aumentar o riffs. Então foi uma sensação incrível
ver as partes sendo eliminadas, para descartar todas as porcarias e voltar à essência.
E, como já disse, é da essência, da base, que eu mais gosto.
Depois de dar uma geral no Grande Riff, Pearl começou a tocar. Achei que, por ter tocado numa banda em Juilliard, ela fosse nos deixar de queixo caído com algum
tipo de jazz-funk-alternativo com mil notas por minuto. Mas tudo que ela tocou soou suave e simples. Pearl passou a maior parte do tempo mexendo com o mouse, diluindo
os sonos que saíam dos sintetizadores, até que estivessem suficientemente fluidos para passarem pelos vincos do Grande Riff.
No fim, percebi que Pearl estava tocando alguns fraseados que havia apagado da parte de Moz. Embora tivesse simplificado o material, o conjunto parecia maior, como
uma banda de verdade em vez de dois guitarristas tentando se passar por uma banda.
E então veio o momento em que tudo passou a fazer sentido, um lance paranormal, tudo se encaixando, como numa cena de explosão sendo assistida de trás para a frente.
- A gente devia gravar isso! - gritei.
Moz concordou, mas Pearl só deu uma risada.
- Meninos, estou gravando desde o início - disse, apontando para a tela do computador.
- Sério? - Moz parou a música. - Você não falou nada sobre isso.
Tentei acalmá-lo com um olhar. O Mosquito tem um medo constante de que alguém roube nossos riffs. Pearl não deu a mínima.
- Às vezes as pessoas ficam inibidas quando se aperta o botão vermelho. Então deixo tudo no disco rígido. Vamos lá, escutem.
Ela mexeu no mouse, revirando as duas horas anteriores, pedacinhos do nosso trabalho, como se aquilo já tivesse sido transformado em toque para celular. Em poucos
segundos, havia separado o trecho de um minuto em que o Novo Grande Riff de alguma maneira tinha se transformado completamente - e se tornado perfeito.
Ficamos os três sentados, apreciando o som. Eu e Moz estávamos de queixo caído.
Finalmente tínhamos conseguido. Depois de seis anos...
- Ainda precisa de uma segunda parte - disse Pearl. - E de bateria. Temos que arranjar um baterista.
- E um baixista - acrescentei.
- Talvez - respondeu ela, olhando para mim.
- Talvez? - reagiu Moz. - Que tipo de banda não tem um baixista?
- Que tipo de banda só tem dois guitarristas? Uma coisa de cada vez. Vocês conhecem algum baterista? - Moz deu de ombros. - É, é difícil achar bateristas. O Sistema
tinha dois percussionistas, mas não um baterista de verdade. Isso explica em parte por que nós éramos um lixo. Conheço alguns da escola.
- Conheço uma baterista - comentei. - Ela é ótima.
Moz me encarou, todo agitado de novo.
- Conhece? Você nunca me falou de nenhuma baterista.
- Você nunca disse que estávamos procurando uma - respondi, sem dar muita importância. - Além disso, não conheço a garota de verdade, só a vi tocar. Ela é bem sacana.
- Então não deve estar disponível - disse Pearl, balançando a cabeça. - Nunca tem bateristas suficientes por aí.
- Ahn, acho que ela pode estar disponível.
As únicas coisas que esqueci de mencionar foram que ela não tinha uma bateria de verdade e que eu nunca a havia visto tocando numa banda - só pedindo dinheiro na
Times Square. E que possivelmente, pela aparência, morava na rua. A não ser que ela gostasse muito de tocar na Times Square e de usar o mesmo casaco e o mesmo jeans
todos os dias.
Mas ela era uma baterista totalmente sacana.
- Fale com ela - sugeriu Pearl, fazendo uma cara feia em direção à porta revestida com caixas de ovos. - Parece que minha mãe chegou. Acho melhor a gente parar por
aqui. Na próxima vez, vamos compor uma parte B para o Grande Riff. E, quem sabe, umas letras. Algum de vocês canta?
Olhamos um para o outro. Embora cantasse, Moz nunca admitiria aquilo publicamente. E ele é um guitarrista bom demais para perder tempo diante de um microfone.
- É o seguinte: conheço um vocalista bem lateral que está mais ou menos livre atualmente - disse Pearl. - Enquanto o procuro, você pode falar com a sua baterista.
Sorrindo, concordei. Eu gostava da agitação daquela garota, do jeito que ela estava incentivando. E ela ficava bem interessante toda concentrada e no comando. Depois
de seis anos tocando com Moz, parecia que estava nascendo uma banda de verdade. Eu já pensava em capas de discos enquanto reparava nos pôsteres nas paredes do quarto
de Pearl.
- Bateria? Aqui? - perguntou Moz.
Avaliei a confusão de amplificadores, cabos e sintetizadores no quarto. O espaço era suficiente para nós, toda a parafernália e talvez uma pessoa tocando bongô.
Não havia a menor chance de caber uma bateria. Além disso, com as embalagens de ovos na janela, já estava fedendo a suor. Não era difícil de imaginar o que uma baterista
empolgada acrescentaria à situação.
Aquela era outra razão de eu nunca ter falado no assunto com Moz. Bateristas são sempre muito grandes e barulhentos para tocar dentro de um quarto.
- Conheço um lugar que podemos usar para ensaiar - disse Pearl. - É bem barato.
Eu e Moz nos entreolhamos. Nunca tínhamos pagado para ensaiar antes. Mas Pearl não chegou a perceber. Imaginei que ela já houvesse gastado dinheiro para ensaiar
em vários lugares - e esperava que fosse pagar a conta de novo. Eu tinha algum dinheiro que ganhei passeando com cachorros, mas Moz era o cara mais pão-duro do mundo.
- Outra coisa: antes de começarmos a chamar mais gente, precisamos pensar num nome para a banda - lembrou Pearl. - E tem de ser o nome perfeito. Senão, toda vez
que alguém novo aparecer para tocar, vamos trocar de nome. E nunca vamos saber quem somos.
- Podíamos nos chamar Partes B - sugeri. - Seria saneiro.
Pearl me encarou, meio que fazendo uma careta.
- Saneiro? Você está dizendo saneiro mesmo?
- Isso aí - respondi, dando uma risada para Moz, que revirou os olhos.
Ela parou para pensar um pouco e depois abriu um sorriso:
- Sótimo.
Dei uma gargalhada. Aquela garota era totalmente sacana.
5. Garbage
-PEARL-
- Um daqueles garotos era bem bonitinho.
- Eu reparei, mãe. Mas obrigado por comentar para o caso de eu não ter notado.
- Só era meio desleixado. E aquela marcha fúnebre que vocês estavam tocando fez a porcelana chacoalhar a tarde inteira.
- Não foi a tarde inteira - corrigi, olhando pela janela da limusine. - Foram umas duas horas, no máximo.
Pegar carona com minha mãe era um porre. Mas ir às profundezas de Brooklyn de metrô era muito complicado, e eu precisava encontrar Minerva com urgência. A esoterista
dela dizia que ouvir boas notícias ajudava no processo de cura. E minhas notícias eram muito mais do que boas.
- Aliás, mãe, "aquela marcha fúnebre" é sexcelente.
- É o quê? Xexelento? - Ela fez um som baixinho de deboche. - Você não sabe que xexelento quer dizer ruim?
Dei uma risadinha e registrei aquilo para contar a Zahler. Talvez pudéssemos nos apresentar como os Xexelentos. O problema era que o nome soava meio britânico -
e nós não.
Nós soávamos como o tipo de banda que faz os vidros tremerem. Os Chocoalhadores? Muito caipira. Os Tremedores de vidro. Muito lateral, até para mim. Porcelana do
Oriente? Não. As pessoas achariam que somos de Taiwan.
- Eles vão aparecer lá em casa de novo? - perguntou minha mãe, num tom baixo.
- Vão, vão sim - respondi, enquanto mexia nos botões do vidro, deixando os raios de sol esquentarem um pouco o banco de trás da limusine.
- Achei que essa história de ensaio de banta tivesse ficado para trás - disse ela, com um suspiro.
Soltei um gemido.
- Ensaio de banda é coisa de banda marcial, mãe. Mas não se preocupe. Vamos levar nossos equipamentos para a Sixteenth Street em uma semana, mais ou menos. Sua porcelana
logo vai estar em segurança.
- Ah, aquele lugar.
Olhei feio para ela e ajeitei os óculos no nariz.
- Isso, cheio de músicos. Que desagradável, não é?
- Eles parecem mais com viciados - disse ela, dando um tremelique, o que fez seus pingentes tilintarem.
Mamãe estava toda arrumada para um evento beneficente no Museu do Brooklyn. Usava um preto típico de ocasiões formais e maquiagem em excesso. Sempre fico meio arrepiada
quando ela se veste desse jeito - acho que estamos a caminho de um enterro.
Obviamente, eu tinha razão para ficar arrepiada. Estávamos no bairro de Minerva. Grandes e sombrias casas de arenito passavam do lado de fora, todas com aparência
de mal-assombradas, cheias de torres, grades e janelinhas lá no alto. Senti um frio na barriga e, de repente, eu preferia também estar a caminho de uma festa chique,
onde todos ficariam alheios, bebendo champanhe, consternados com a situação orçamentária da ala egípcia no próximo ano. Ou, pelo menos, conversariam sobre os problemas
sanitários, em vez de observá-los pela janela.
Mamãe percebeu minha preocupação - uma especialidade dela - e segurou minha mão.
- Como está a Minerva, coitadinha?
Eu estava feliz por ter aproveitado a carona. As pequenas perturbações por parte da minha mãe haviam me distraído pelo caminho. Se eu tivesse esperado o metrô, olhando
os ratos passearem pelos trilhos, não conseguiria esquecer aonde estava indo.
- Melhor. É o que ela diz - respondi.
- E qual é a opinião dos médicos?
Nem me dei ao trabalho de responder. Eu não tinha autorização para contar à mamãe que não havia mais médicos por perto, apenas uma esoterista. Permanecemos em silêncio
até a limusine parar diante da casa de Minerva. A noite já caía, e as luzes da vizinhança começavam a se acender. As janelas da casa, escuras, faziam o quarteirão
parecer uma boca com um dente faltando.
A aparência da rua estava diferente, como se aqueles dois últimos meses tivessem tirado algo do lugar. O lixo se amontoava em grandes pilhas. A crise sanitária era
muito mais evidente aqui no Brooklyn, mas não havia ratos correndo pela rua. Já a quantidade de gatos vira-latas era enorme.
- Isto aqui costumava ser uma vizinhança bastante agradável - observou mamãe. - Quer que Elvis venha buscar você?
- Não, não precisa.
- Bem, é só ligar para ele, se mudar de idéia. - A porta se abriu. - E não vá pegar o metrô muito tarde.
Enquanto eu passava por Elvis, senti o incômodo voltando a se intensificar dentro de mim. Mamãe sabia que eu odiava pegar o metrô tarde, e que a companhia de Minerva
não era exatamente algo que fazia querer demorar a voltar para casa.
Elvis e eu fizemos nosso breve e cômico cumprimento, um hábito desde os meus nove anos, e sorrimos. Mas, quando ele parou para observar a casa, pude notar sua testa
se franzindo. Alguma coisa se moveu por entre os sacos de lixo ao nosso redor. Com gatos de rua por perto ou não, havia ratos naquele lugar.
- Tem certeza de que não quer uma carona para casa, Pearl? - perguntou Elvis, gentilmente, com sua voz grossa.
- Tenho sim. Obrigada.
Como não gosta de ser excluída das conversas, mamãe se esticou no banco de trás da limusine, para ficar mais perto.
- Aliás, que horas você chegou em casa ontem?
- Pouco depois das onze.
Ela mordeu os lábios do jeito mais discreto possível, para mostrar que sabia que era mentira, e eu respondi revirando os olhos quase imperceptivelmente, para mostrar
que não me importava.
- Então nos vemos às onze hoje.
Bufei discretamente para Elvis. Mamãe só chegaria antes da meia-noite se acabasse o champanhe no museu ou se as múmias começassem a andar.
Pensei nas múmias dos filmes antigos, com aquelas faixas esfarrapadas. Uma imagem bacana e nada assustadora.
- E mande minhas lembranças para Minerva - disse ela, num tom mais suave.
- Pode deixar - respondi, dando as costas e acenando. Senti um arrepio quando a porta bateu atrás de mim. - Vou tentar.
Luz de la Sueño abriu a porta e fez um gesto apressado para que eu entrasse, como se temesse que um monte de moscas estivesse me acompanhando. Ou talvez não quisesse
que os vizinhos vissem a nova decoração do lugar, considerando que ainda faltavam mais de dois meses para o Halloween.
Torci o nariz ao sentir o cheiro de chá de alho fervendo - para não falar dos outros aromas, intensos e não-indentificáveis, que vinham da cozinha. Naquela época,
Nova York parecia sumir do mapa depois que eu passava pela porta da casa de Minerva, como se aquela construção de arenito estivesse erguida numa outra cidade, antiga
e decadente.
- Ela está bem melhor - contou Luz, indicando o caminho até a escada. - E muito animada com sua visita.
- Que bom - eu disse, mas hesitei um pouco em passar da entrada.
A opinião de Luz sobre a doença de Minerva sempre tinha me parecido meio mística demais, mas depois do que eu havia testemunhado na noite anterior, passei a achar
a esoterista um pouco menos maluca.
- Luz, posso te fazer uma pergunta? Sobre uma coisa que eu vi?
- Você viu alguma coisa? Lá fora? - perguntou ela, de olhos arregalados, virando-se para as janelas escuras.
- Não, em Manhattan.
- Sí?
A intensidade daquele olhar dela estava me deixando nervosa, como sempre.
Geralmente, eu percebo os tipos das pessoas, estabelecendo uma organização mental, mais ou menos como arrumar a preciosa porcelana da mamãe no lugar. Porém, em relação
a Luz, eu não tinha qualquer pista: de onde vinha, quantos anos tinha, se era de origem rica ou pobre. Seu inglês não era fluente, mas o sotaque era discreto e os
erros gramaticais, inexistentes. Seu rosto sem marcas passava uma impressão de juventude, mas ela usava uns vestidos de gente velha, às vezes até chapéus com véus.
As mãos, calejadas e cheias de veias saltadas, pareciam fortes, três grandes anéis de caveira sorriam para mim de seus dedos de juntas grossas.
Luz adorava caveiras, mas aparentemente não via naquilo o mesmo significado que eu e meus amigos víamos. Ela estava mais para gospel do que para gótica.
- Uma mulher que mora perto da minha rua. Ela ficou louca e começou a jogar um monte de coisas pela janela.
- Sí - assentiu Luz. - É a doença. Está se espalhando. Você continua tomando cuidado, não é?
- Sim. Nada de garotos - respondi, levantando os braços. Luz achava que tudo era conseqüência do excesso de sexo. Coisas da religião. - Mas pareciam ser objetos
dela. Não foi como da vez em que a Minerva acabou com o Mark e passou a odiar tudo que tinha dado a ele.
- É a mesma coisa. A doença faz com que os infectados não queiram ser mais o que eram. Eles precisam jogar tudo fora para fazer a mudança.
Luz fez o sinal-da-cruz: ela estava justamente tentando evitar a mudança em Minerva.
- Só que a Min não se livrou de todas as coisas dela, não é mesmo?
- Não chegou a tanto - respondeu Luz, apontando para o crucifixo no pescoço. - Ela é muito espiritual. Não se liga muito a coisas, mas sim a pessoas e a la música.
- Ahn.
Isso fazia sentido. Quando Minerva entrou em colapso, começou se livrando de Mark e do Sistema Nervoso. E depois das aulas e de todos os nossos amigos, um por um.
Fiquei ao lado de Min por algum tempo, até que todos passaram a me odiar por continuar sendo amiga dela. Então, finalmente, ela me dispensou também.
Aquilo significava que Moz tinha razão: a mulher maluca estava se livrando de suas próprias coisas, jogando a vida inteira pela janela. Fiquei pensando como ele
soubera.
Pensei nos espelhos do segundo andar, todos cobertos com veludo. Min não queria ver o próprio rosto, ouvir o próprio nome... de repente, tudo fazia sentido.
Luz pôs a mão no meu ombro.
- Por isso é bom que esteja aqui. Acho que talvez agora você possa fazer mais do que eu, Pearl.
Lembrei do MP3 player no meu bolso, carregado com o Grande Riff. Eu não podia fazer nada sozinha - não era uma esoterista que agita caveiras no ar -, mas talvez
aquela música saneira...
Luz começou a subir a escada, fazendo gestos para que eu a seguisse.
- Ah, mais uma coisa: acho que vi os anjos - contei.
Ela parou e se virou para trás, voltando a fazer o sinal-da-cruz.
- Angeles de la lucha? Eram rápidos? Estavam nos telhados?
Confirmei com a cabeça.
- Do jeito que você falou para eu prestar atenção por aqui.
- E eles levaram a mulher?
- Não sei. Saí de lá na hora.
- Muito bem. - Ela esticou o braço e, com os dedos calejados, cheirando a ervas, acariciou meu rosto. - A batalha que está chegando não é para você.
- Para onde os anjos levam as pessoas? - perguntei, sussurrando.
Luz fechou os olhos.
- Para um lugar distante.
- Que lugar? Tipo o céu?
- Não. Em um avião. Para um lugar onde tornam a mudança permanente. Para que você possa lutar ao lado deles na batalha. - Ela pegou minha mão. - Mas isso não é para
você, nem para Minerva. Venha.
Havia muitas peças de decoração novas no resto da subida. As paredes ao lado da escada estavam cobertas de crucifixos de madeira, com milhares de figurinhas de metal
presas a cada um. Não eram figuras esquisitas - sapatos, vestidos, árvores, cachorros, instrumentos musicais -, mas aquela mistura confusa me fez imaginar que alguém
havia colocado a normalidade num liquidificador e ligado na potência máxima.
Obviamente, havia também as caveiras. Os olhos pintados de preto nos observavam da escuridão, cada andar mais sombrio que o anterior. As janelas já em cima estavam
tapadas, e os espelhos cobertos com veludo vermelho. Os ruídos vindos da rua iam sumindo, o ar se tornava parado, como um navio submerso.
Diante da porta de Minerva, Luz se agachou para pegar uma toalha do chão, suspirando como se pedisse desculpas.
- Estou sozinha esta noite. A família anda cada vez mais cansada.
- Posso ajudar em algo? - perguntei, baixinho.
Luz sorriu.
- Você está aqui. Já é uma ajuda.
Ela tirou algumas folhas do bolso e as amassou com as mãos - o cheiro era de grama recém-cortada ou hortelã. Em seguida, Luz se ajoelhou e esfregou as palmas nos
meus tênis e nas pernas da minha calça.
Nunca havia levado aqueles feitiços a sério, mas, naquela noite, senti que precisava de proteção.
- Talvez você cante para ela - disse Luz.
Engoli em seco, imaginando se ela tinha adivinhado o que eu pretendia fazer.
- Cantar? Mas você sempre disse que...
- Sí. - Seus olhos brilharam no escuro. - Mas ela está melhor agora. De qualquer maneira, para garantir sua segurança...
Ela pôs uma pequena boneca, que me pareceu familiar, em minhas mãos e começou a ajeitar seu cabelo de lã vermelha. A boneca lançou um olhar e um sorriso maníacos
na minha direção. Um botão que representava um dos olhos estava pendurado por dois fios pretos, o que me deu outro frio na barriga.
A boneca era o ritual de proteção mais assustador de Luz. Mas, de repente, passou a fazer sentido. Sempre tinha sido a favorita de Min, desde nossa infância, o único
objeto com o qual mantinha uma ligação verdadeira, além do anel que havia jogado na cara de Mark, na frente do Sistema Nervoso todo. Eu me sentia feliz por estar
com a boneca na mão, mesmo sabendo que Minerva não tinha agido com violência desde a decisão da família de desistir dos remédios e dos médicos, trocando tudo por
Luz.
Não conseguia deixar de imaginar como eles tinham achado a Luz. Havia esoteristas listadas nas páginas amarelas? Esotérica seria um bom nome para uma banda? Ou muito
lateral? O Grande Riff que eu levava no bolso seria mesmo uma espécie de mágica...
- Não tenha medo - murmurou Luz. Então ela abriu a porta com uma mão e com a outra me lançou na escuridão. - Entre e cante.
6. Madness
-MINERVA-
Pearl estava brilhando. Seu rosto parecia trêmulo, observei enquanto a porta se fechava e fazia a chama da vela oscilar.
- Você está brilhando - sussurrei, com uma piscadela de olhos.
Ela engoliu em seco e passou a língua no lábio superior. Eu podia sentir seu suor nervoso.
- Está calor lá fora.
- Estamos no verão, não é?
- É, no meio de agosto - respondeu Pearl, franzindo a testa, embora eu estivesse certa.
Fechei os olhos e me lembrei de abril, maio... até a formatura. Pearl tinha inveja porque precisaria voltar a Juilliard no ano seguinte, embora todos no Sist...
A coisa dentro de mim se encolheu.
Zumbi soltou um grunhido de irritação e se revirou em cima da minha barriga. Seus grandes olhos verdes abriram-se lentamente para examinar Pearl.
- Tenho boas notícias - disse ela com uma voz macia.
Quando fiquei doente, passei a odiar a voz de Pearl, mas já havia passado. Eu estava melhorando - não odiava Pearl ou qualquer outro ser humano. Agora eu só odiava
a Coisa Detestável que ela trazia em todas as visitas. Ficava presa à sua mão, com um olho pendurado, me observando de soslaio.
Tentei sorrir, mas as lentes dos óculos de Pearl, refletiram a luz da vela, brilhante como o flash de uma câmera, e fui obrigada a desviar o olhar.
Ela falou um pouco mais alto:
- Tudo bem?
- Tudo. Só está um pouco claro demais hoje.
Às vezes eu apagava a vela, mas isso fazia Luz repetir o sinal-da-cruz. Ela dizia que eu teria de me acostumar àquilo, se quisesse sair do quarto um dia.
Na verdade, meu quarto era legal. Tinha o cheiro do Zumbi, o meu e o cheiro da coisa dentro de nós.
- Então. Conheci uns caras - contou Pearl, falando rápido, sem se lembrar de sussurrar. - Eles tocam juntos há algum tempo. São bem legais, não têm nada a ver com
o Sistema...
Eu devo ter me encolhido de novo, porque, repentinamente, Pearl calou a boca. Zumbi miou e pulou pesadamente no chão. Ele foi na direção dela, se arrastando por
entre meus antigos brinquedos, roupas e partituras, todos os objetos que tentavam chegar mais perto de mim enquanto eu dormia.
- Nós não éramos tão ruins - consegui dizer.
- Claro, mas esses caras são saneiros. - Ela parou por um instante, sorrindo. Pearl sempre gostou de palavrinhas bobas inventadas. - Eles são tipo um Novo Som, como
o Morgan's Army, só que mais crus. Do mesmo jeito que éramos quando começamos, antes de você-sabe-quem mexer com a sua cabeça. A diferença é que não são seis compositores
tentando escrever uma música. Esses dois caras são muito mais...
- Controláveis? - sugeri.
Pearl pareceu contrariada, e a Coisa Detestável em suas mãos me fuzilou com os olhos.
- Eu ia dizer descontraídos...
Na ponta dos pés, Zumbi passou por trás de Pearl, como se planejasse se enroscar em suas pernas. Logo, porém, começou a se arrastar pelo chão, farejando seus pés,
desconfiado. Não gostava do cheiro de ninguém que não fosse eu.
- Mas eu estava pensando, e talvez seja idiotice. - Pearl se apoiava num pé de cada vez, balançando. - Se esses caras praticarem, e você continuar melhorando...
- Já estou melhor.
- Foi isso que Luz me disse. Nós três ainda não estamos prontos, mas talvez quando estivermos... - Sua voz vacilou, soando insegura. - Seria ótimo se você pudesse
assumir os vocais.
As palavras de Pearl me fizeram fechar os olhos. Algo muito forte percorreu meu corpo, uma mistura de dor e agitação. Levei um tempo para entender por que eu não
sentia aquilo havia um tempo.
Rodopiar e me contorcer, me espalhar e cercar as pessoas, envolvê-las - minha voz vibrando, fervendo, preenchendo o ambiente.
Eu queria voltar a cantar...
Com um lento suspiro, senti meu corpo se esvaziar. E se aquilo ainda me machucasse, como todas as coisas, fora Zumbi e a escuridão? Tinha de passar por um teste
primeiro.
- Pearl, poderia fazer uma coisa para mim?
- O que quiser.
- Diga meu nome.
- Caramba, de jeito nenhum. Luz acabaria comigo.
Senti o medo de Pearl no ar e ouvi os passos leves de Zumbi se afastando dela. Ele pulou na cama, uma presença quente e nervosa ao meu lado. Abri os olhos e tentei
não piscar diante da claridade emitida pela vela.
Pearl estava suando de novo, andando para lá e para cá, exatamente como Zumbi, porque Luz nunca o deixa sair.
- Ela disse que cantar podia ser uma boa idéia. Mas seu nome? Tem certeza?
- Não, não tenho certeza, Pearl. É por isso que você precisa fazer isso.
Ela engoliu em seco.
- Tudo bem... Min.
Soltei um som contrariado.
- Pearl brilhante e fedorenta... Não consegue nem dizer o nome inteiro? - perguntei.
Ela me observou por um longo tempo e, depois, disse baixinho:
- Minerva?
Por hábito, dei uma tremida, mas a doença não veio. Pearl repetiu o nome; não senti nada percorrer meu corpo. Nada além de alívio. Nem Luz havia conseguido algo
assim.
Parecia algo extraordinário e grandioso. Uma transgressão como fumar um cigarro depois da aula e canto. Fechei os olhos e sorri.
- Você está bem? - sussurrou ela.
- Muito. E quero cantar na sua banda, Pearl. Você trouxe a música, não trouxe?
Ela confirmou, devolvendo o sorriso.
- Trouxe. Quer dizer, não sabia se você... Mas temos um riff bem maneiro. - Pearl enfiou a mão no bolso, tirou um pedaço de plástico banco e começou a desenrolar
o fio de fones de ouvido. - Isso aqui é o produto de um único dia de ensaio... bem, seis anos e um dia. Mas não temos refrão nem nada parecido. Pode escrever sua
própria letra.
- Consigo fazer isso.
As palavras tinham sido as primeiras coisas que eu tinha recuperado. Havia um monte de cadernos cheios de rabiscos embaixo da cama, contendo todos meus novos segredos.
Músicas sobre o abismo.
Com um plugue na mão, Pearl procurava meu aparelho de som.
- Eu quebrei - contei, meio triste.
- Quebrou seu Bang & Olufsen? Que droga. Ei, você não o jogou pela janela, jogou?
Dei uma risadinha.
- Claro que não, bobinha. Joguei pela escada. - Estiquei o braço. - Vem cal podemos dividir.
Pearl hesitou, olhando para a porta.
- Não se preocupe. Luz já desceu. - Ela estava na cozinha, preparando minhas ervas da noite. Eu podia ouvir o ruído da água nos encanamentos e sentir o cheiro do
chá de alho de mandrágora. - Luz confia bastante em você para não ficar bisbilhotando.
- Ahn. Acho que isso é bom.
Pearl guardou o adaptador e se aproximou. Presa à sua mão, a Coisa Detestável me encarava.
- Mas você tem de largar isso aí - pedi, agitando a mão.
Ela hesitou de novo. Eu podia sentir seu suor voltando.
- Não confia em mim, Pearl brilhante? - Dei uma piscadela. - Sabe que eu nunca comeria você.
- Ah, claro. - Ela engoliu em seco. - Isso me deixa bem mais tranqüila, Minerva.
Sorri ao ouvir o som do meu próprio nome. Pearl devolveu o sorriso, finalmente acreditando que eu estava bem melhor. Ela se ajoelhou e botou a Coisa Detestável no
chão, com cuidado, como se fosse explodir.
Depois de respirar fundo, começou a atravessar o quarto, com passos tímidos. Zumbi foi se afastando à medida que Pearl chegava mais perto. Senti o aroma de erva-de-gato
nos sapatos dela. Por isso Zumbi estava tão arredio. Pearl tinha o mesmo cheiro dos antigos brinquedos dele - que havia passado a odiar.
Zumbi foi cheirar a Coisa Detestável, que, de repente, tinha se transformado numa simples boneca velha. Parecia sem vida e derrotada, jogada no chão, longe de ser
tão detestável quanto antes.
Um alívio ainda maior atravessou meu corpo. A simples idéia de cantar estava me deixando mais forte. Nem a chama da vela parecia mais terrível.
Pearl sentou-se na cama, ao meu lado. O aparelhinho em sua mão emitia uma luz. Vi a figura da maçã e estremeci um pouco, lembrando que eu havia jogado uma coisa
pela janela - 80 Gb de música que aquele garoto fedido tinha me dado.
Ela esticou o braço e, com os dedos tremendo, ajeitou meu cabelo atrás da orelha. Reparei como estavam oleosos, embora Luz me obrigasse a tomar banho todo sábado.
- Acha que estou horrível? - perguntei em voz baixa.
Se estivéssemos mesmo em agosto, fazia uns dois meses que não me via no espelho.
- Não, você continua bonita. - Ela abriu um grande sorriso enquanto colocava um dos fones na orelha. - Talvez um pouco magra. Luz não dá comida a você?
Sorri de novo, lembrando do monte de carne crua que havia comido no almoço. Bacon frio e salgado, as tiras ainda grudadas, recém-tiradas da embalagem. E a galinha
cujo pescoço eu tinha ouvido Luz quebrar no quintal, a pele ainda arrepiada depois de ser depenada. O sangue quente descendo pela minha garganta. E, mesmo assim,
eu continuava com fome.
Quando Pearl se inclinou, iluminada pelo aparelho da Apple, reparei na pulsação em seu pescoço, e a fera dentro de mim rugiu.
Não posso comer Pearl, repeti para mim mesma.
Ela me deu o outro fone. Poucos centímetros separavam nossos olhos agora que estávamos conectadas pelo fio branco. Era uma situação estranha e intensa. Ninguém além
de Luz tinha se atrevido a chegar tão perto de mim desde a mordida que eu dera naquele médico idiota.
Na respiração de Pearl, notei o arama de café, o cheiro de suor típico do verão e um perfume distinto de medo. Suas pupilas estavam enormes. Lembrei que, para seus
olhos, o quarto estava escuro. Agora, eu passava a vida nas sombras.
Havia uma gotinha de suor entre seu lábio superior e o nariz, naquela pequena cavidade do tamanho da ponta de um dedo. Cheguei mais perto, com vontade de lamber
aquilo, para ver se estava salgado como o bacon...
Então Pearl apertou um botão, e a música me invadiu.
O começo soou abrupto - era uma gravação tosca, mas o riff era muito empolgante para que aquilo atrapalhasse. Uma guitarra soava por baixo, simples como o baixo,
tocada por três dedos de alguém que não havia estudado música. Outra guitarra tocava alto, cheia de energia indócil e desordenada, sedutoramente neurótica.
Dava para perceber que Pearl não estava no comando de nenhuma das duas.
Finalmente, ela surgiu nos teclados, discreta e suave, mas se encaixando com perfeição. Estava até deixando espaço para mim, contida como nunca tinha acontecido
na época do Sistema.
Aquilo me deixou meio enciumada: a pequena Pearl estava amadurecendo enquanto eu ficava deitada nas sombras. Subitamente, queria me levantar, trocar de roupa, botar
óculos escuros e sair pelo mundo.
Logo, logo, pensei, ainda ouvindo a música. Eu assobiava, me arriscando nos espaços deixados por Pearl, buscando contornos que pudessem ser mudados e adaptados.
Ela estava certa. Era um Novo Som. Como o som de todas aquelas bandas independentes que tínhamos adorado na primavera, só que menos frenético. Suave como água. Meu
corpo inteiro queria mergulhar naquela música.
No entanto, quando meus lábios se separaram, saíram apenas pragas, versos dos primeiros e mais ilegíveis rabiscos nos cadernos que estava embaixo da cama. As palavras
foram perdendo a força, como a espuma de uma garrafa de cerveja agitada, e então assumi o controle. Comecei a murmurar uma música entrecortada e sem palavras.
Por alguns instantes, tudo pareceu belo, uma versão selvagem da minha antiga pessoa, embora com novos encantos. O som do meu próprio canto deixou a fera dentro de
mim agitada. Mas Pearl tinha sido esperta: eu só podia escutar de um lado. O outro estava tomado pelo riff, uma proteção densa e esplêndida.
Em pouco tempo, porém, a doença fez minha garganta se fechar, e o canto parou, sufocado. Prestei atenção em Pearl, para saber se havia imaginado tudo aquilo. Seus
olhos, a poucos centímetros dos meus, brilhavam como a tela do aparelhinho.
Recuperando o fôlego, tentei de me concentrar no riff novamente. Ela estava certa: aqueles dois guitarristas esquisitos eram totalmente diferentes do Sistema. Tinham
conseguido arrancar algo de mim, apesar da presença da fera.
- Onde achou esses caras?
- Na Sixth Street. Completamente por acaso.
- Humm. Esse que sabe tocar de verdade, ele parece... - eu disse, engolindo em seco.
- Eu sei - respondeu Pearl. - É lateral e cru, do jeito que eu queria que o Sistema Nervoso fosse. Sem aula, ou pelo menos sem muitas aulas, e nada de teoria musical.
Ele preenche qualquer espaço que você deixar. Quase fora de controle, mas, como você disse, controlável. Ele é o Taj Mahal dos guitarristas sem método.
Sorri. Era tudo verdade, mas não estava pensando em nada daquilo.
Para mim, ele parecia... gostoso.
PARTE II
Audições
A Peste de Justiniano foi a primeira vez que a Peste Negra apareceu.
Mil e quinhentos anos atrás, i imperador Justiniano havia acabado de iniciar sua maior obra: a reconstrução do Império Romano. Ele queria reunir as duas metades
e pôr o mundo conhecido mais uma vez sob domínio de Roma.
No entanto, começada sua grande guerra, veio a Peste Negra, que se espalhou pelo Mediterrâneo Oriental e deixou um rastro de milhões de mortos. Diariamente, milhares
de pessoas morriam na capital bizantina de Constantinopla, e Justiniano foi obrigado a assistir aos seus sonhos se despedaçarem.
Curiosamente, os historiadores não têm certeza do que foi a Peste Negra. Peste bubônica? Tifo? Outra coisa? Alguns historiadores sugerem que foi uma variedade aleatória
de doenças provocadas por um fator prevalecente: uma explosão da população de ratos, alimentados pelo vasto estoque de grãos do exército romano.
Isso chega perto da verdade, mas não totalmente.
Qualquer que tenha sido a causa, os efeitos da Peste Negra foram claros. O Império Romano acabou virando história. Grande parte da matemática, da literatura e da
ciência dos antigos se perdeu. Uma era negra caiu sobre a Europa.
Ou, como dizíamos à época, "a humanidade perdeu esse round".
ARQUIVOS DO PREFEITO DA NOITE:
142-146
7. Stray Cats
-ZAHLER-
Meus cachorros estavam agindo de um jeito inexplicável naquele dia, todos irritados e impacientes.
A primeira leva parecia normal no início. No saguão com ar-condicionado do prédio chique no bairro conhecido como Cozinha do Inferno, os cães estavam cheios de energia,
ansiosos pelo passeio. Ernesto, o porteiro, entregou as quatro guias e um envelope cheio de dinheiro - meu pagamento da semana. Depois, como em todas as segundas,
quartas e sextas, subi um quarteirão para pegar mais três.
Tirei a idéia de ser passeador de cachorros de um antigo esquema meu. Sempre que eu estava totalmente chapado, ia até o parque da Tompkins Square, um espaço aberto
restrito a cães e a seus donos, e ficava olhando os animais pulando uns nos outros, cheirando traseiros e correndo atrás de bolas. Havia cachorros enormes e outros
minúsculos, retrievers graciosos e poodles serelepes, amontoados, em êxtase por saírem dos seus apertados e solitários apartamentos de Nova York para perseguir,
rosnar ou correr loucamente sem destino específico. Não importava: por mais deprimido que eu estivesse, a imagem de filhotes absurdos encarando pastores alemães
sempre me deixava melhor. Então pensei: por que não ser pago para ficar mais animado?
O pagamento por cachorro e por hora não é muito bom. Mas, se você conseguir seguir seis ou sete de cada vez, a coisa melhora. Na maioria dos casos, é dinheiro fácil.
Às vezes, não é.
Assim que passamos pela porta, o calor e o fedor pareceram incomodar os cachorros. Os dois dobermans irmãos, que normalmente eram calmos, se mordiam,, enquanto o
schnauzer e o Bull terrier agiam de modo esquizofrênico, correndo em ziguezague que não paravam sequer para cheirar os montes de lixo. Durante a luta para descer
a rua, as guias ficavam se enroscando, como cabelos compridos num dia de vendo forte.
As coisas só pioraram quando fui buscar o segundo grupo. O porteiro percebeu que a dona da mastife incrivelmente grande tinha esquecido de deixar dinheiro para mim
e interfonou para perguntar. Enquanto eu esperava, os dois grupos começaram a se misturar, mordendo e pulando uns sobre os outros. Os latidos ecoavam no piso e nas
paredes de mármore.
Tentei desatar o nó e restabelecer a ordem entre os cachorros, sempre mantendo um olho ansioso no elevador. Seria totalmente não-sacana se meus clientes vissem seus
cães brigando quando deveriam estar se exercitando. Por isso, ao notar que ninguém tinha respondido ao interfone, não fiquei para reclamar; arrastei todo mundo de
voltar para o calor da rua.
Àquela altura, eu já preferia não estar com pressa para mostrar nossa possível baterista a Moz. Um passeio na confusão da Times Square era exatamente do que minha
matilha de cães desobedientes não precisava.
Eis o que andei aprendendo sobre cachorros:
Eles são bem parecidos com garotas bonitas. Ter a companhia de um ou dois torna tudo mais divertido. Mas, quando se tem um monte deles juntos, a coisa se transformar
numa disputa por poder. Sempre que se aumenta ou se reduz a matilha, há um rearranjo. O cachorro chefe pode cair para a segunda posição ou até ir para o fim da fila.
Enquanto assistia aos dois dobermans irmãos tentando dominar a mastim com olhares, comecei a pensar se fazer parte de uma banda não seria quase a mesma coisa - algo
mais para Animal Planet do que para MTV.
Para ser sincero, todos aqueles conflitos não passavam de uma grande perda de tempo, pois Pearl era nitidamente a garota certa para cuidar das coisas.
Não me entenda mal. O Mosquito era meu melhor e mais antigo amigo. Eu nunca teria pegado numa guitarra se não fosse por ele. E ele era o músico mais saneiro que
eu conhecia. Mas Moz não tinha sido preparado para a liderança. De nada. Nunca havia conseguido se manter num emprego, por mais porcaria que fosse, porque qualquer
atividade organizada - aguardar numa fila, preencher formulários, aparecer na hora marcada - o deixava todo agitado. Por isso, ele nunca seria capaz de manter cinco
ou seis integrantes indóceis sob controle e fazê-los caminhar na mesma direção.
Quanto a mim, eu concordava com a atitude dos cães menores. O schnauzer não se importava se o mastim ou os dobermans assumiriam o comando: só queria cheirar alguns
traseiros e continuar o passeio.
Só queria que o problema acabasse logo.
Naquele dia, porém, ninguém estava no controle. Eu, com certeza, não estava. As sete guias na minha mão não significavam absolutamente nada. A cada cruzamento, eu
tentava nos arrastas na direção da Times Square, mas a matilha insistia em ficar doida com qualquer cheiro, correndo em direções aleatórias. Eu deixava que os cães
vagassem por um tempo, até o impulso se desfazer, e depois puxava todos de volta para o caminho previsto. Não seria a travessia mais rápida da cidade, mas pelo menos
havia tempo de sobra até o horário do encontro com Moz, que, como acabei de mencionar, provavelmente chegaria atrasado.
O mais estranho era como os cachorros ficavam assustados com os espaços vazios. Até a mastim, que normalmente tentaria se desvencilhar para dar uma corrida, desviava
das áreas abertas.
Naquele estado, a agitação da Times Square transformaria meu grupo num tumulto ambulante. Parecia que eu e Moz teríamos de nos encontrar com a baterista noutro dia.
Então, passamos pela saída de um beco escuro, e as coisas começaram a ficar realmente bizarras.
O Bull terrier - que sempre mija em tudo - aproveitou a anarquia para arrastar todos para o beco. Correu até uma parede manchada de xixi, levantou a pata até a metade
e, de repente, congelou, de olhos fixos na escuridão. Os latidos dos outros cachorros pararam, como se alguém tivesse amarrado sete focinheiras ao mesmo tempo.
Havia um monte de olhos na escuridão do beco.
Centenas de pequeninhos rostos nos observavam das sombras. Atrás de nós, caminhões passavam a toda; eu sentia o calor do sol nas minhas costas e o movimento reconfortante
do mundo real. No beco, entretanto, estava tudo parado, o tempo, interrompido. Os corpos bulbosos dos ratos, misturados aos sacos de lixo, não se moviam. Com os
dentes arreganhados, as cabeças saíam de buracos e fendas. Nada se mexia, a não ser os bigodes daquelas mil narinas verificando os cheiros no ar.
No canto mais distante, havia um gato solitário parado sobre uma pilha gotejante de lixo. Olhava fixamente para mim, sem se assustar com meu pequeno exército de
cachorros, ofendido pela minha presença no beco. Eu me senti minúsculo diante daquele olhar arrogante - como um menino de rua que entra num restaurante cinco estrelas
atrás de um lugar para fazer xixi.
O gato piscou os olhos vermelhos e depois bocejou, enrolando a língua rosada.
Isto aqui não é nada sacana, pensei. Se os dobermans notassem o gato, sairiam correndo atrás dele, arrastando a mim e ao resto do grupo para as profundezas do beco.
Já podia me vez devolvendo os porteiros sete cães mordidos por ratos e meio raivosos, e nunca mais arrumar um centavo para passear com os cachorros.
- Vamos embora, garotos - murmurei, puxando de leve as guias em minha mão. - Não há nada para se ver por aqui.
Mas os cães estavam paralisados, imóveis diante daquela galáxia de olhos.
O gato voltou a abrir a boca, desta vez para soltar um longo e irritado miado.
E os dobermans saíram correndo como gatinhos assustados.
Os dois deram um pulo, giraram no ar e passarem em disparada, na direção da luz do sol. Os outros foram atrás, numa confusão, enrolando minhas pernas com as guias
e me arrastando aos tropeções até a rua.
Com a mastim a mil, num galope desenfreado, não pude fazer nada além de tentar ficar de pé. A cadela puxou o resto do grupo até a rua, onde o borrão amarelado de
um táxi passou bem à nossa frente. Um pequeno furgão de entregas deu uma freada brusca e depois buzinou, fazendo a mastim virar numa curva fechada à esquerda.
Agora seguíamos para o meio da rua. Diante de nós, havia um caminhão de lixo barulhento, seguido pelo furgão de entregas. Estávamos no meio do fluxo, como se eu
tivesse resolvido levar uma carroça puxada por cachorros para um passeio.
Infelizmente, eu meio que havia me esquecido da carroça, então continuava tropeçando e cambaleando, ainda com sete guias enroladas nas minhas pernas. Eu sabia que,
se caísse, a mastim seguiria em frente, galopando até meu rosto ficar todo no asfalto. Mesmo que o atrito da minha cara no chão fizesse a matilha parar, o furgão
amassaria nós todos.
A buzina do furgão não parava, como se aquilo estivesse ajudando muito. Os dois homens na parte de trás do caminhão de lixo riam e apontavam para mim com seus dedos
enfiados em luvas gigantes. Uma dupla de entregadores em bicicletas, vestindo roupas colantes com bolinhas, passou a toda. Eu e meus cachorros éramos apenas mais
um grupo de palhaços naquele circo.
A procissão desviou de uma obra pouco diante e, de repente, senti meus pés derrapando sobre uma área coberta de areia. Notei uma caixa de pizza jogada no chão e
enfiei os pés nela. Logo eu estava deslizando, com o braço livre levantado, surfando a caixa como se fosse uma prancha no mar.
Quando a coisa começava a ficar divertida, o caminhão de lixo reduziu a velocidade, até parar diante de um grande prédio residencial com pilhas de sacos de lixo
numa forma semelhante à de um monte de cocô. O caminhão ocupou a rua inteira, deixando nenhum espaço para a matilha passar.
Perdemos intensidade, e a energia acumulada no grupo transformou-se numa confusão de mordidas e latidos. Naquela situação, os cães menores mal conseguiam ficar de
pé, reduzidos a uma macarronada de correias e pernas. Até a mastim estava cansada, com a língua comprida desenrolada no ar.
Um dos lixeiros se balançou para baixo para mover uma grande alavanca na lateral do caminhão. A bocarra se abriu na nossa frente com um estrondo metálico. O outro
lixeiro pulou no chão e, em meio à barulheira, gritou para mim:
- Ei, amigo! Você não entrou naquele beco lá atrás com esses cachorros, entrou?
Ele apontava por sobre meu ombro, mas nem precisei olhar para saber quem estava falando.
- Ahn, acho que sim.
Ele lamentou mexendo a cabeça.
- Péssima idéia. Nem nós entramos mais lá. Não vele a pena.
- O que quer dizer? - perguntei, piscando, ainda tentando recuperar o fôlego.
- Não ouviu falar da crise? Do jeito que as coisas andam, a gente tem que demonstrar respeito. Deixar que os ratos peguem de volta o controle em algumas partes da
cidade, sabe? - Ele deu uma risada e um tapinha na carroceria barulhenta. - Principalmente quando você não tem um caminhão para protegê-lo. Um bando de cachorros
não basta hoje em dia.
O lixeiro virou-se para o monte de sacos de deu um chute raivoso num deles. Depois de esperar um instante, para se assegurar de que nenhuma criaturinha sairia correndo
da pilha, apoiou o saco no ombro e passou a derramar seu conteúdo na boca metálica do caminhão.
Suspirei lentamente, me abaixei e comecei a desatar as guias dos cachorros, imaginando o que aqueles dois e a Vigilância Sanitária saberiam que eu não sabia. Moz
havia mencionado umas coisas estranhas sobre a mulher que tinha arremessado a guitarra: que ela fazia parte de algo maior. E eu havia lido sobre uma onda de crimes,
além do calor e do lixo.
Mas não era sempre daquele jeito no auge de um verão intenso? Os cérebros entrando em curto-circuito com as altas temperaturas?
Claro que não dava para esquecer que, no dia anterior, eu e Moz tínhamos visto aquela água negra saindo de um hidrante, como se algo antigo e sujo tivesse sido liberado
de sob a cidade. Apesar do calor que emanava do asfalto, senti um calafrio ao lembrar do que havia presenciado no beco. Num único olhar, eu percebera que aquele
gato estava no comando de todos os ratos. Como meus cachorros, os olhos reluzentes dos ratos formavam uma grande matilha, mas o felino detinha total controle, sem
brigas ou cheiradas no traseiro, como se fossem uma grande família. E não havia nada de natural naquilo.
O sujeito no furgão de entregas apertou a buzina de novo, como se eu estivesse impedindo a passagem, e não o caminhão de lixo. Fui obrigado a lhe mostrar o dedo
do meio. Do outro lado do pára-brisa, seu rosto foi tomado por um sorriso, como se ele estivesse querendo justamente um pouco de desrespeito.
Antes que o caminhão de lixo acabasse o serviço, consegui desatar as guias de todos os cães e voltar para a calçada. Continuamos nossa travessia da cidade, até o
finzinho da Times Square, onde devíamos encontrar Moz.
No fim, talvez pudéssemos achar minha baterista. Aquela corrida de 100 metros havia finalmente deixado meus cachorros cansados. A mastim ia na frente, de rabo em
pé, tendo mocracia canina. Talvez fosse o fato de havia nos arrastado pela rua até um lugar seguro. Ou porque os dobermans tinham saído correndo primeiro do beco
infestado por ratos.
Não importava. Estava tudo bem resolvido. E alguém, que não era eu, estava no comando.
8. Cash Money Crew
-MOZ-
A Times Square estava fervendo.
Mesmo em plena luz do dia, a quantidade de luzes e anúncios me deixava aturdido, confundia meu cérebro. Havia telões imensos de vídeo contornando os prédios curvados
que se erguiam acima da minha cabeça, emitindo uma luz trêmula como a água da chuva, imagens rápidas com anúncios de computadores e cosméticos. Notícias curtas passavam
em faixas luminosas, pontuadas por símbolos e índices incompreensíveis de ações da bolsa.
Eu era um inseto num vale de TVs gigantes, perplexo e insignificante.
E sem um tostão.
Nunca havia me sentido pobre. Nunca. Sempre achava uma idiotice cobiçar anúncios de carros e vitrines de lojas, mas, agora que precisava, via dinheiro em toda parte:
em iniciais de bolsas de milhares de dólares; costurado como fios de outro em ternos e lenços de seda; e nas imagens piscando acima de mim. No metrô, vindo para
cá, cobicei o dinheiro armazenando de modo invisível nas faixas magnéticas dos bilhetes. Até os trocados que os mendigos chacoalhavam em copos de papel.
Dinheiro e mais dinheiro, por toda parte.
Eu não podia voltar para minha porcaria de guitarra depois de tocar a Stratocaster. Precisava ser dono daquele instrumento de ação suave, profundidade murmurante
e notas altas cristalinas. Talvez não necessariamente de uma 1975 com captadores dourados. Nas lojas de instrumentos musicais da Forty-eighth Street, havia algumas
guitarras mais baratas que me serviriam, mas ainda assim eu teria de juntar uns 2 mil dólares antes que a mulher maluca voltasse.
O problema era: eu não fazia a menor idéia de como conseguir a grana.
Não sou preguiçoso, mas o dinheiro e eu não combinamos. Sempre que arranjo um trabalho, algo acontece. O chefe me manda sorrir, fingir que eu quero estar ali em
vez de em qualquer outro lugar. Ou me obriga a ligar toda semana para saber meu horário, o que gera o trabalho extra de ter que descobrir quando devo aparecer no
trabalho. E, sempre que explico essas coisas, alguém faz a terrível pergunta: Se você odeia tanto isso, por que não se demite?
Eu respondo que é uma boa pergunta. E vou embora.
Naquele reluzente vale dos anúncios, 2 mil dólares nunca pareceram tão distantes.
Zahler me esperava na esquina em que havia marcado o encontro. Segurando sete cachorros.
Ele arfava e suava, mas o resto da comitiva, observando as placas e cheirando os turistas que passavam, parecia feliz. Para eles, eram só luzes piscando.
Nada de trabalho, nada de dinheiro. Cães sortudos.
- Quanto ganha para fazer isso, Zahler?
- Não o bastante - respondeu ele, resfolegando. - Quase morri no caminho até aqui!
- Ah, claro. - Um dos cachorros menores estava me mordendo. Eu me abaixei e fiz carinho nele. - Esse cara aqui parece ser muito perigoso.
- Não, Moz, é sério. Estávamos num beco... e havia um gato.
- Um gato de beco? E você, coitado, só tinha sete cachorros.
Um dos cachorros era gigantesco e parecia um cavalo correndo com a crina esvoaçante. Mexi na cabeça da mastim, rindo de Zahler.
Ainda sem fôlego, ele apontou, com a mão livre, um dos pequenos.
- É culpa dele, por ter parado para mijar.
- Ahn?
- O que aconteceu foi... ah, esquece. - Ele pareceu aborrecido. - Ei, está ouvindo a bateria? É ela. Vamos lá.
Tomei as guias do cachorro-monstro e de outros dois da mão de Zahler e os afastei de um carrinho de roscas que emanava ondas de calor com cheiro de sal tostado e
pão fresco.
- Então, acha que Pearl vai aprovar essa bateria?
- Claro. Pearl só se importa com talento, e essa garota é sexcelente.
- Mas ela toca na rua, Zahler. Pode ser uma sem-teto ou algo parecido.
Ele não deu importância.
- Se nos compararmos a Pearl, eu e você somos praticamente sem-teto também. Viu aquele apartamento?
- É, eu vi o apartamento.
Eu ainda sentia o cheiro de dinheiro impregnado em todo canto.
- E havia escadas. Mais andares que nem chegamos a ver.
- Tudo bem, Pearl é incrivelmente rica. É assim que pretende me convencer de que ela pode aceitar uma baterista sem-teto?
- Não sabemos se essa garota é uma sem-teto, Moz. Mas o que eu quero dizer é que, se Pearl consegue lidar comigo e com você, ela não é uma esnobe - disse Zahler.
Dei de ombros. Esnobe não era a palavra que eu teria usada. - Ainda está chateado por causa do que ela fez com o Riff? - perguntou ele.
- Não. Depois que me acostumei com a idéia de jogar todos os anos de ensaio no lixo, esqueci o assunto.
- Caramba! Você continua chateado.
- Não, não mesmo.
- Olha, eu sei que é difícil. Mas ela vai nos transformar em algo muito grande!
- Já entendi, Zahler.
Suspirei e desviei os cães sob minha guarda de uma carrocinha de cachorro-quente. Sem dúvida, o ensaio do dia anterior havia machucado. Mas não era diferente de
fazer uma tatuagem, assistir a um pôr-do-sol perfeito ou tocar até os dedos sangrarem. Às vezes, a única opção era permanecer sentado e suportar a dor.
Apesar de ter acabado comigo, Pearl sabia ouvir. Ela conseguia ouvir o coração do Grande Riff. E não havia feito nada que eu não faria se estivesse ouvindo. Ela
tinha reconhecido em seis minutos algo que eu não havia percebido em seis anos. Era aquilo que me deixava arrasado.
Aquilo e o feitiço que ela tinha lançado sobre Zahler. Ele não parava de falar sobre como Pearl era genial, como ela nos transformaria num sucesso, como as coisas
finalmente virariam realidade. Como se todos os anos de dupla houvessem sido uma perda de tempo.
Zahler estava totalmente a fim de Pearl - estava na cara. Mas, se eu dissesse aquilo em voz alta, ele me pulverizaria com seu olhar mortal. E por falar em perda
de tempo: as chances de uma garota como Pearl dar trela a caras como nós eram equivalentes às chances de os cachorros de Zahler o arrastarem até a Lua.
- Peraí, pensei que você tivesse falado que ela era baterista.
- O quê? - gritou Zahler em meio ao barulho. - Você não chama isso de tocar bateria?
- Bem, ela tem baquetas. Só achei que bateristas também deviam ter baterias - comentei, balançando a cabeça enquanto tentava evitar que meus três cães curiosos se
misturassem à multidão de turistas, freqüentadores da Times Square e guardas à toa que cercavam a mulher.
- É, então imagina se ela tivesse uma bateria. Escuta o som que ela está tirando daquelas latas de tinta.
- Zahler, na verdade são baldes de tinta.
- Qual a diferença?
Suspirei de novo. Pintar tinha sido uma das minhas atividades mais breves, porque eles simplesmente diziam as cores que você devia usar em vez de permitir que o
profissional tomasse a decisão.
- Latas são os recipientes de metal em que a tinta é vendida. Baldes são os recipientes em que se mistura a tinta. Nenhum dos dois corresponde a uma bateria.
- Escuta, Moz. O som dela é demais!
Meu cérebro já estava escutando. Era minha boca que estava enchendo o saco de Zahler por hábito e para deixá-lo irritado. E a mulher realmente fazia um som espetacular.
Em volta dela, havia um arranjo com baldes de todos os tamanhos existentes no mercado, uns empilhados, outros de cabeça para baixo e alguns de lado, formando uma
espécie de xilofone gigante de plástico.
Precisei de algum tempo para entender como um monte de baldes podia ter toda aquela potência. Ela havia se instalado sobre uma grade do metrô, ficando acima de uma
vasta câmara de eco feita de concreto. Seu ritmo casava com o tempo dos ecos que ressoavam lá de baixo, como se um baterista fantasma a acompanhasse, exatamente
uma batida atrás. Inclinando a cabeça, ouvi outros fantasmas: ecos mais rápidos vindos das paredes à nossa volta e da cobertura de concreto acima de nós.
Era como um conjunto invisível de baterias, liderado sem esforço do seu centro. A mulher avançava graciosamente sobre o plástico branco castigado, com seus dreadlocks
esvoaçantes e os olhos bem fechados.
- Ela é bem sacana, Zahler - admiti.
- Sério?
- Sim. Principalmente se pudermos reconstruir esse pedaço da Times Square em todos os lugares em que tocarmos.
Ele bufou, meio irritado.
- Está falando dos ecos? Nunca ouviu falar de efeitos digitais?
- Não seria a mesma coisa. Não seria tão forte.
- Moz, não precisa ser tão forte. Não a queremos para tocar um solo de bateria monstruoso como esse. Queremos uma coisa menor, que se encaixe à nossa banda. Você
não aprendeu nada ontem?
Fuzilei Zahler com os olhos. A raiva escapou do lugar em que eu achava que estava presa, voltando a percorrer meu corpo.
- Aprendi. Que você é um baba-ovo de qualquer mulher que aparece com um instrumento. Mesmo que seja um monte de baldes de tinta!
Zahler ficou de boca aberta.
- Cara! Isso não é nada sacana! Você acabou de dizer que ela era boa. E sabe muito bem que Pearl também é sexcelente. Agora vem com essa conversa do Clube do Bolinha
para cima de mim?
Dei as costas, com pensamentos ecoando na cabeça, como se meu crânio tivesse ficado subitamente oco e estivesse revestido de concreto. A Stratocaster que não era
minha, as outras guitarras que eu não podia comprar, a destruição do Grande Riff por Pearl e agora a imagem dos baldes de tinta... eram muitos ajustes para fazer
em apenas 48 horas.
Quase desejei que voltássemos a ser apenas eu e Zahler. Funcionávamos como uma equipe que estava cem pontos atrás dos concorrentes: como nunca venceríamos, podíamos
apenas tocar e nos divertir. Mas Pearl havia mudado aquilo. Ela havia jogado tudo para o alto e, de repente, passou a ter importância o modo como as coisas ficariam.
Uma parte de mim a odiava por aquilo, e odiava Zahler por se deixar levar com tanta facilidade.
- Beleza - acabei dizendo. - Vamos falar com ela. O que temos a perder?
Esperamos até a hora em que ela começou a arrumar as coisas, empilhando os baldes numa torre gigante. O suor deixava seus músculos brilhantes. Alguns pedaços de
uma baqueta que ela havia quebrado rolaram sobre a grade com o vento causado por uma composição que passava lá embaixo.
A mulher olhou para nós e para os sete cachorros.
- Você toca muito bem - elogiei. Ela apontou o queixo para um balde com moedas e notas de um dólar até a metade. E continuou a empilhar seu material. - Na verdade,
estávamos pensando se teria interesse em tocar conosco um dia desses.
Ela balançou a cabeça. Um de seus olhos piscava freneticamente.
- Este canto é meu. Estou aqui há um ano.
- Ei, não é isso, não estamos querendo dividir o espaço - esclareceu Zahler, agitando a mão livre. - Estamos falando de você tocar na nossa banda. Ensaiar, gravar,
esse tipo de coisa. Ficar famosa.
Tentei me esconder. "Ficas famoso" devia ser a razão mais idiota para se fazer qualquer coisa. A mulher encolheu levemente os ombros e perguntou:
- Quanto?
- Quanto... o quê? - perguntou Zahler.
Mas para mim, estava óbvio. Tão óbvio quanto tinha estado o dia inteiro.
- Dinheiro - respondi. - Ela quer grana para tocar com a gente.
Os olhos dele se arregalaram.
- Você quer dinheiro?
Ela se aproximou, tirou uma identificação do bolso e esfregou na cara de Zahler.
- Está vendo isso aqui? É da autoridade de trânsito de Nova York. Diz que eu posso tocar no metrô. Tudo legal e registrado. Tive que aparecer diante uma comissão
de avaliação para conseguir isso. - Enquanto guardava a identificação, seu corpo tremeu. - Só que eu não vou mais lá embaixo. - A mulher chutou o balde com o dinheiro;
as moedas soltas tilintaram. - Tem uns setenta, oitenta dólares aqui. Por que eu tocaria de graça?
- Opa, desculpa, então - disse Zahler, começando a puxar os cachorros e me olhando como se ela tivesse pedido nosso sangue.
Mas eu não me mexi, fiquei observando o balde e as notas caídas por cima. Havia notas de cinco. Ali devia ter, fácil, uns cem dólares. Ela tinha todo o direito de
pedir dinheiro. O mundo era movido pelo dinheiro. Só um bando de garotos idiotas não saberia aquilo.
- Certo. Setenta e cinco por ensaio - propus.
Zahler congelou. Seus olhos saltaram de novo.
- Quanto por um show? - perguntou ela.
- Não sei. Cento e cinqüenta?
- Duzentos.
Suspirei. As palavras "não sei" tinha acabado de me custar cinqüenta dólares. Era como as coisas funcionavam em relação ao dinheiro: era preciso saber, ou pelo menos
fingir que sabia.
- Beleza. Duzentos.
Estendi o braço para um aperto de mão, mas ela só me entregou um cartão.
- Ficou maluco, Moz? Pearl vai ficar irada quando souber que tem de pagar por uma baterista.
- Ela não vai pagar a ninguém, Zahler. Eu que vou.
- Ah, claro. E onde vai conseguir 75 dólares?
Olhei para os cachorros. Eles olhavam para todas as direções naquele redemoinho da Times Square, bestificados como um bando de turistas de Nova Jersey. Tentei me
imaginar correndo atrás de clientes, indo de porta em porta como Zahler, espalhando cartazes, organizando uma agenda. Não dava.
Meu plano era muito melhor.
- Não se preocupe. Tenho uma idéia.
- Claro que tem. Mas e quanto à Strat? Não vai economizar para comprar uma guitarra se gastar 75 dólares duas ou três vezes por semana.
- Vou deixar para pensar nisso quando a dona aparecer. Se aparecer.
Zahler suspirou fundo, sem saber o que pensar.
Dei uma conferida no cartão: Alana Ray, baterista. Não havia endereço: só um número de celular. De qualquer maneira, se ela conseguia faturar cem dólares por dia,
em dinheiro vivo, duvidava que fosse uma sem-teto.
Tinha sido muito simples contratar a mulher. Mil vezes mais simples do que eu havia imaginado. Nada de discussões sobre influências, fama ou quem ficaria no comando.
Só alguns números de lado a lado.
O dinheiro tinha tornado tudo fácil.
- Moz, estou ficando assustado. Você deve ser o cara mais liso que eu conheço. Nunca teve um amplificador. Acho que só vi você trocando suas cordas duas vezes nos
últimos seis anos. - Era verdade. Eu sempre esperava até que as cordas começassem a enferrujar sob meus dedos. - E agora vai pagar centenas de dólares para ela?
- prosseguiu Zahler. - Por que não procuramos outra baterista? Um que tenha uma bateria de verdade e que toque de graça.
- Tão bom quanto ela?
- Talvez não. Mas Pearl disse que conhecia alguns.
- Não precisamos sair correndo atrás de Pearl. Dissemos que cuidaríamos disso. Então eu pago. - Encarei Zahler. - E não conte nada sobre o dinheiro à Pearl, combinado?
Zahler soltou um gemido.
- Putz, agora entendi. Você quer pagar para que ela fique devendo a você, não é? Quer que seja sua baterista e não de Pearl. - Ele fez um gesto de reprovação com
a cabeça. - Moz, esse é um raciocínio bem estúpido. Devíamos agir como uma banda.
- Pearl já está pegando pelo espaço para os ensaios - argumentei.
- O que não é nada de mais para ela. Você está entrando numa competição com uma garota que vive num apartamento que tem escadas. E muitos andares!
Olhei para meus tênis esfarrapados.
- Não é uma competição, Zahler. São apenas negócios.
- Negócios? - Ele deu uma risada. - Você não entende picas de negócios.
Encarei-o novamente, certo de que veria seu olhar mortal, mas ele estava apenas confuso. Eu também não entendia direito, não completamente, pelo menos, mas mesmo
assim sabia que precisava manter alguma parte da banda sob controle. Se deixasse Pearl decidir e pagar por tudo, eu e Zahler acabaríamos como coadjuvantes naquela
história.
- Não conte nada a ela a respeito do dinheiro, tudo bem?
Ele hesitou. Os cachorros farejavam o chão uma confusão em volta dos seus pés. Zahler estava pensando se eu havia ficado louco, se eu acabaria estragando tudo. Percebi
que estava no limite de perdê-lo.
Na verdade, se ele achasse que eu realmente não tinha salvação, não haveria problema. Seria melhor pular fora naquele momento do que depois.
Finalmente, ele cedeu.
- Certo. Tanto faz. Não vou contar nada a Pearl. E acho que posso contribuir com uma parte do meu pagamento pelos cachorros.
- Pode deixar que eu cuido disso.
- Mas talvez devêssemos avisar Pearl... antes de aparecermos para o ensaio.
- Avisá-la de quê?
- Ahn... que nossa baterista toca baldes de tinta.
9. Fear
-PEARL-
Fui até o Brooklyn de metrô para que mamãe não ficasse sabendo pelo Elvis.
Sons de movimento subiam dos trilhos enquanto eu esperava pelo trem - pequenas patas andando por entre corpos de papel e folhas de jornal. Fora eu, não havia ninguém
na plataforma. Os ecos vindos dos túneis pareciam murmúrios. O metrô andava com um som estranho, como se estivesse vivo, como se houvesse algo grande lá dentro.
Alguma coisa respirando.
Eu odiava encarar o metrô nas manhãs de domingo, sem as multidões da hora do rush para me proteger. Mas não tínhamos muita opção de horário para os ensaios. Segundo
Minerva, a igreja era a única coisa que mantinha Luz longe até depois do meio-dia.
Tudo seria mais fácil quando não precisássemos mais tirar Minerva escondida do quarto. A questão era que precisávamos dela na banda imediatamente. Ficar deitada
na cama o dia inteiro nunca a curaria. Ela tinha de sair daquele quarto escuro, conhecer novas pessoas e, acima de tudo, cantar o quanto pudesse.
Moz, Zahler e eu já havíamos ensaiado quatro vezes àquela altura. Tínhamos uma parte B para o Grande Riff e duas músicas novas pela metade. Estávamos ficando melhores
a cada encontro, mas precisávamos de uma estrutura: letras e refrões e uma baterista também. Não tínhamos tempo para esperar a recuperação completa da Min. O mundo
ao nosso redor estava com muita presa.
À exceção, obviamente, do trem da linha F. Dez minutos depois, a composição ainda não havia chegado. O metrô enfrentava algum problema esquisito naquele verão. De
acordo com a TV, pequenos tremores; o leito rochoso de Manhattan se acomodando.
Aquela também era a explicação oficial para a água escura que infectava os encanamentos. Diziam que não havia perigo, evaporava rápido demais para que alguém pudesse
descobrir. Logicamente, a maioria das pessoas estava bebendo água mineral. Mamãe tomava banho com Evian. Eu não sabia se acreditava naquilo, mas, de qualquer modo,
não tinha tempo para terremotos naqueles dias. O espaço para o ensaio estava reservado em me nome, com o meu cartão de crédito, e os outros não poderiam entrar sem
mim. Se eu chegasse atrasada à Sixteenth Street, estragaria tudo.
Peguei o celular e procurei um sinal até que um 7:58 tremido apareceu no visor. Uma hora para ir ao Brooklyn e voltar.
Ainda piscando na tela estava o último número chamado - o de Moz, para lembrá-lo do compromisso daquela manhã.
Sozinha e nervosa na plataforma vazia, apertei o botão de chamar.
- Alô? - atendeu ele, com uma voz rouca.
- Moz?
- Ahan - disse num grunhido incomodado. - Pearl? Que merda! Estou atrasado?
- Não, ainda são oito horas.
- Ah. - Ele coçou a cabeça com tanta força que consegui ouvir o som em meio aos chiados do celular. - Então o que foi?
- Estou indo ao Brooklyn buscar Minerva. Pensei... se você gostaria de ir comigo.
- Ao Brooklyn?
Ele falou exatamente nesse tom: Brooklyn? Como se eu quisesse arrastá-lo até Bombaim.
Eu já devia ter desistido. Fazia duas semanas que eu tentava me aproximar de Moz, e ele sempre mantinha uma distância. Se eu não tivesse me empolgado naquele primeiro
ensaio acabando com o Grande Riff... Eu devia ter agido com calma, respeitando o encanto criado quando a Strat havia caído do céu. Em vez disso, resolvi impressioná-lo
com meu brilhantismo. Muito esperta, Pearl.
Oito da manhã provavelmente não era o melhor horário para tentar mudar aquela história. Mesmo assim, durante oito segundos achei que talvez naquela manhã - a manhã
em que nos tornaríamos uma banda de verdade - as coisas pudessem ser diferentes.
Continuei falando, tentando fazer aquilo soar como algo divertido.
- Isso. Ainda não contei para você. Tirar ela de lá vai ser como uma missão ninja.
- Como o quê?
- Meio complicado. Os pais dela têm esse problema com... - Loucura? Abdução? - Ah, digamos apenas que sua ajuda seria bem-vinda.
Eu não havia contado muita coisa sobre Min a ninguém a não ser que ela era uma cantora lateral. Não seria ruim se Moz se familiarizasse com sua esquisitice antes
de ela conhecer o resto do grupo. E também seria bom ter uma companhia no caminho, mesmo que ele ficasse do lado de fora enquanto entrasse para tirá-la do lugar.
- Ahn, escuta, Pearl... - disse Moz. - Acabei de acordar.
- Percebi. Mas estou na estação da linha F perto da sua casa. Você consegue chegar aqui em cinco minutos. - Por baixo dos chiados, só havia silêncio. Um sopro de
vento revirou as folhas de jornal jogadas nos trilhos. Suspirei. - Ola, esquece isso. E me desculpa por acordá-lo.
- Não tem problema. Meu despertador já vai tocar mesmo. Nos vemos às nove.
- Certo. Você vai adorar Minerva. E teremos uma baterista! Vai ser sacana, hein?
- Claro. Muito.
Achei que devia dizer mais alguma coisa, algo que o deixasse animado para nosso primeiro ensaio de verdade.
- Não esqueça de levar sua Strat.
- Não é minha, mas não vou esquecer. Nos vemos daqui a pouco.
Clique.
Botei o celular de volta no bolso e soltei outro suspiro por entre os dentes. Eu tinha deixado que ele levasse a Stratocaster para casa depois do segundo ensaio,
mas isso não havia mudado nada entre nós. Eu continuava sendo a Chefona Pearl.
Os jornais se reviraram nos trilhos de novo - um deles rolava sem parar. Quando a plataforma tremeu embaixo dos meus pés, senti um aperto no estômago. À medida que
o som ficava mais forte, todos meus pensamentos sumiram. Parecia que algo imenso sairia do túnel e destruiria meus planos.
Mas era apenas o trem da linha F chegando à estação.
Naquelas duas semanas, o quarteirão de Minerva havia piorado. O lixo tinha sido reunido em montanhas imensas, com chorume escorrendo. É como se cuida da neve: amontoa-se
tudo e espera-se que o sol faça aquilo sumir.
O problema é que o lixo não derrete e a neve não cheira mal.
A coisa ali estava mais do que esquisita. Mamãe sempre reclamava de algumas regiões se deteriorando, mas eu imaginava que o processo havia levado décadas - mais
tempo que eu tinha de vida. Até aquele verão, a imagem de Nova York havia permanecido mais ou menos a mesma na minha cabeça. No entanto, aquela parte do Brooklyn
parecia mudar toda vez que eu a visitava, como uma pessoa com uma doença incurável, morrendo diante de mim.
Luz sempre falava da "doença" como se não fosse só com Minerva e sim com toda a cidade - talvez todo o mundo. Seria tudo o prenúncio da grande batalha. Ela só não
dizia o que era a tal batalha. O bem contra o mal? Anjos contra demônios? Loucos contra sãos?
Loucos Contra Sãos. Esse sim era um nome de banda que se encaixaria perfeitamente a nós.
As sombras do início da manhã se estendiam pelo quarteirão. A luz do sol salpicava o asfalto passando por entre as folhas das árvores, que se agitavam com o vento.
Passei pelas montanhas de lixo, tentando não ouvir as coisas que estavam lá dentro e torcendo para não ser dona de uma audição? Taj Mahal. Não havia pessoas nas
ruas, nem mesmo cachorros. Apenas o vermelho esporádico dos olhos de gatos que me observavam de jardins com grama por aparar.
A chave da porta da frente estava exatamente onde Min tinha dito que sua mãe a escondia - embaixo de um capacho de ferro. Estava suja de fuligem, e, quando tentei
limpar, meus dedos ficaram com uma cor avermelhada. Mas encaixou-se perfeitamente à fechadura. A tranca abriu com um leve clique.
Ao se abrir, a porta revelou uma platéia silenciosa de caveiras.
Avancei na escuridão com passos lentos e cuidadosos, atenta a qualquer barulho vindo das tábuas de madeira do piso. Segundo Minerva, seus pais tinham sono pesado.
Eu devia me preocupar apenas com seu irmão mais novo, Max. Só torcia para que Min estivesse acordada e pronta, em vez de mergulhada num pesadelo que a faria berrar
no momento em que a porta de seu quarto se abrisse.
Subi as escadas devagar, pressionando as solas macias dos meus tênis de esgrima nas extremidades dos degraus, não na parte do meio, que range. Quando eu era criança,
acordei um dia à meia-noite e apertei todas as teclas do nosso piano de cauda, de um lado ao outro, com tanta delicadeza que os martelos não chegavam a bater nas
cordas. Não houve sequer um sussurro. Quando se consegue algo desse tipo, pode-se fazer praticamente qualquer coisa sem acordar os adultos.
A casa rangia e se assentava ao meu redor, como um imenso instrumento antigo precisando de afinação. Passei pela seqüência de crucifixos e pelo quarto dos pais dela.
Meus passos trêmulos e lentos me carregavam silenciosamente até a porta de Min. Subitamente, observando a tranca pesada que a mantinha presa, desejei que não precisasse
tocar os símbolos gravados: olhos de gatos e centopéias; vermes com olhos e pernas delgadas; e, obviamente, mais caveiras.
Engoli em seco quando toquei o metal frio com as pontas dos dedos, depois puxei a tranca. Abri a porta e entrei.
Minerva ainda estava debaixo das cobertas, dormindo.
- Min! - chamei baixinho.
Uma mão gelada me tocou na nuca.
10. The Music
-MINERVA-
Pearl transpirava, reluzia e cheirava a medo. Havia faíscas em seus olhos. Como acontece com Zumbi quando alguém alisa seus pelos vigorosamente na direção errada.
Ela emitia sons sem sentido, por isso levei um dedo aos lábios.
- Shhh, Pearl. Não podemos acordar Maxwell.
- Pelo amor de Deus, Min! - ela sussurrou. - Você quase me matou do coração!
Dei uma risadinha. Estava rindo havia meia hora, esperando no canto do quarto para fazê-la pular de susto. Aquela tinha sido a primeira lição que a doença me ensinara:
era divertido assustar as pessoas.
- Olha! - eu disse, apontando para o monte em forma de Min sobre a cama. - Funciona perfeitamente.
- É, quase inacreditável.
Enquanto sua respiração voltava ao normal, Pearl me examinou de cima a baixo, ainda com os olhos brilhantes. Eu usava um vestido preto e óculos escuros, algo mais
para uma noite de sábado do que para uma manhã de domingo. Mas era uma sensação incrível estar com roupas de verdade após meses de pijama. O vestido me apertava,
delineando meu corpo, me envolvendo. Meus quatro colares mais grossos se enroscavam sobre meus seios, e minhas unhas estavam pintadas de preto também.
Sacudi a cabeça, fazendo meus brincos tilintarem.
- Que fofa - sussurrou Pearl. - Está parecendo uma princesa egípcia, misturada com uma menina gótica de 12 anos.
Mostrei a língua para ela e estalei os dedos chamando Zumbi. Ele veio correndo e pulou nos meus braços.
- Vamos. Quero fazer música.
Pearl, ainda irritada, olhou duramente para ele.
- Você não pode levar um gato para o ensaio, Min!
- Eu sei, bobinha - respondi, rindo, enquanto acariciava a cabeça de Zumbi. - Ele só vai sair para brincar.
- Mas a Luz disse que ele não pode sair - reagiu Pearl, franzindo a testa.
- Não podemos deixar o pobre Zumbi aqui. Ele se sentiria solitário. - Olhei para ele e fiz beicinho. - E se começar a arranhar a porta e a miar? Pode acabar acordando
o papai.
Pearl ajeitou os óculos no nariz, um hábito dela quando se sente no comando das coisas.
- A Luz vai ficar doida se vir o gato lá fora.
- A Luz é má com o Zumbi - eu disse, puxando-o para perto e beijando sua pequena cabeça triangular de gato.
- Ela vai ficar ainda mais má comigo se descobrir que levarei você até Manhattan.
- Não vai, não. Vai dar tudo certo, Pearl. A gente bota o Zumbi para dentro de volta. Ele vai vir quando a mamãe dele chamar - garanti, dando um sorriso.
Sua respiração hesitou. Meus dentes haviam se tornado pontiagudos ultimamente. Algumas coisas continuavam acontecendo, não importava o que Luz fizesse para detê-las.
- Não consigo entender como Zumbi escapou dessa história toda de jogar as coisas fora - murmurou Pearl. - Você se livrou do namorado, da banda, do sexcelente aparelho
de som produzido na Alemanha e de mim. De tudo menos do seu gato idiota.
- Ele não é idiota.
Virei Zumbi para mim e olhei bem nos seus olhos. Ele sabia algumas coisas. Coisas muito importantes.
Agora Pearl externava sua irritação olhando para o celular:
- Merda. Já passou de oito e meia. Acho que não vou achar um táxi por aqui num domingo de manhã.
- Não vai achar nunca. Papai diz que os táxis não aceitam mais trazê-lo para casa depois do trabalho.
Pearl xingou em voz baixa e fechou os olhos.
- Vou ter de ligar para Elvis. Senão vamos chegar atrasadas. - Ela me olhou, toda séria. - Você pode tentar agir normalmente na frente dele?
- Claro, Pearl. Não precisa ficar nervosa.
- Tem certeza de que está pronta para isso?
Dei meu sorriso de dentes afiados e me virei para a mesa.
- Olha isso...
Eu me curvei para apagar a vela. Logo subiu uma fumaça: o perfume de sândalo dando lugar instantaneamente ao cheiro de cinzas. Esticando meu braço livre, segurei
num dos cantos do pano que cobria o espelho e puxei. O veludo escorregou para cima da mesa como se fosse água.
- Minerva! - sussurrou Pearl.
Lá estava meu rosto, preso dentro da moldura do espelho, mas aquilo não me fez gritar. Não desmaiei nem tive um súbito desejo de jogar Zumbi pela janela.
Luz havia colocado a fera dentro de mim para dormir, e agora tudo estava mais fácil.
Minha pele, pálida e lisa, brilhava levemente sob a luz de uma vela. Depois de dois meses sem ver uma tesoura, meu cabelo caía bagunçado sobre meu rosto. Bochechas,
queixo, testa - tudo parecia mais definido e refinado, como se minha pele tivesse sido esticada. Quando tirei os óculos escuros, vi meus olhos radiantes e abertos,
numa expressão de confusão e espanto.
Zumbi ronronou em meus braços.
- Ainda bonita - sussurrei. E agora havia algo mais do que beleza.
Eu não tinha contado a Luz que já conseguia olhar para o meu próprio reflexo. Aquilo a deixaria satisfeita demais, como se fosse uma vitória sua. Luz queria arrancar
meus novos sentidos, serrar meus dentes pontudos, me transformar de novo na velha e chata Minerva.
Mas Pearl me ajudaria a evitar aquilo. Pearl e sua música. Botei os óculos de volta e, com o braço livre do peso de Zumbi, peguei os cadernos da mesa. Dentro deles,
havia segredos, palavras ancestrais que eu tinha ouvido nas fases mais agudas das minhas febres. Cantar os velhos mistérios me manteria no estado atual: longe de
estar louca, porém muito menos do que chata.
Quase curada era melhor.
Ao celular, Pearl persuadiu Elvis até ele prometer não contar sobre o pequeno passeio à mãe dela. Quando a ligação acabou, fiz beiço mais uma vez.
- Mas eu queria ir de metrô.
Luz tinha me dito para nunca mais voltar ao interior da terra. No entanto, eu sentia aquilo me chamando, movendo-se sob meus pés. Aquilo me queria.
- Não temos tempo para metrô - sussurrou Pearl, abrindo a porta. - Vamos. E tente fazer silêncio na escada.
Escada, pensei, satisfeita. Finalmente eu desceria daquela prisão no sótão e iria em direção à terra. Queria entrar em porões, túneis, abismos e escavações. Queria
ir cantando até as coisas que me esperavam lá embaixo.
- Ah, la musica - sussurrei. - Aqui vou eu.
11. Sound Dimension
-ALANA RAY-
Cheguei cedo, só para dar uma olhada.
Eu já havia estado vários vezes no Armazém. É um antigo prédio industrial no Chelsea, esvaziado e transformado numa série de espaços para ensaios, com espuma nas
paredes para abafar os ecos e 48 toneladas em cada sala. No andar inferior, há um estúdio de gravação - 60 dólares por hora, 1 dólar por minuto -, mas é cheio de
porcaria, apenas para crianças.
Observei o lugar se enchendo, com trechos aleatórios de guitarras e batidas de percussão chegando aos meus ouvidos e espalhando-se pelo quarteirão. A Sixteenth Street
não é estreita; são mais de 15 metros de um lado ao outro. Por isso, o som leva um décimo de segundo para atravessá-la e voltar. A 150 compassos por minuto, isso
dá um retardo de uma semicolcheia.
Bati palmas e fiquei ouvindo o eco. Depois, batuquei levemente sobre meus jeans, no ritmo, enquanto observava.
Da sacada do escritório vazio da FedEx, no mesmo quarteirão, eu catalogava os rostos de todos que entravam concentrando-me para me lembrar das novas pessoas que
encontraria lá em cima. Sempre tento ver as pessoas antes que elas me vejam, da mesma forma que os animais preferem ficar contra o vento, e não a favor.
Na minha antiga escola, onde todos tinham necessidades especiais, algumas crianças não conseguiam reconhecer rostos muito bem. Aprenderam a identificar as pessoas
pela postura ou pelo modo de andar, o que me parecia uma boa idéia. Analiso rostos sem problemas, mas não confio em ninguém até ver sua maneira de se mover.
Uma limusine cinza comprida parou diante do Armazém. Um jamaicano grandão de uniforme também cinza saiu de dentro e deu uma conferida no quarteirão para ver se era
seguro. Mas ele não me viu.
O volume de um coldre de ombro marcava seu paletó. A Times Square estava cada vez mais daquele jeito: seguranças armados apareciam a toda hora na frente das grandes
lojas. Também havia mais policiais.
Satisfeito, o motorista abriu a porta da limusine para duas garotas.
As duas pareciam ter a mesma idade dos meninos que haviam me contratado duas semanas antes - 17 ou 18 anos -, mas imaginei que não devessem conhecê-los. Aqueles
moleques que passeavam com cachorros não tinham dinheiro para andar de limusine. Aliás, nem para andar de táxi.
Além disso, os meninos não eram drogados, enquanto uma das garotas evidentemente tinha problemas. De pele clara como uma ostra, ela saiu da limusine e ficou de pé,
segurando-se à porta, abalada com a viagem. Embora seus braços longos fossem magros, os músculos eram quase tão definidos quanto os meus.
Que tipo de viciado malha?, pensei, enquanto ela dava a volta no carro para entrar no Armazém. Seus movimentos eram lentos e desajeitados, articulados nos pontos
errados. Não conseguia tirar os olhos dela: era como assistir a um bicho-pau caminhando num galho.
Um minuto depois, os dois garotos dos cachorros apareceram, e acabou que eles se conheciam. Ou, pelo menos, os garotos conheciam a outra garota, a baixinha de óculos.
Ela apresentou os dois à viciada. Em seguida, todos entraram, exceto o cara que havia me contratado. Ele me esperou do lado de fora, como tinha dito que faria.
O nome dele era Moz: M-o-z. Só me lembrei porque tinha anotado.
Fiquei observando enquanto o garoto esperava, numa dança nervosa, sem largar o estojo da guitarra. Os dedos praticavam exercícios imaginários numa das pernas. Acompanhei
o ritmo por alguns instantes no meu joelho.
Imaginei como haviam se reunido: uma viciada, uma riquinha e dois garotos esfarrapados, todos mais jovens que eu, provavelmente jovens demais para levar a música
a sério. Talvez fossem todos ricos, e os garotos tivessem se vestido mal apenas para me contratar por um preço baixo.
Seria um truque sujo, e não toco com gente que me engana. Mas eu ainda não tinha certeza.
Quando meu relógio indicou que faltavam 16 segundos, peguei minhas bolsas e atravessei a rua.
- Oi, Alana - disse ele. - Você veio.
- Alana Ray - corrigi. - Nove da manhã de domingo.
- Isso aí. Bem cedo, hein?
Ele fez um gesto e revirou os olhos, como se o horário tivesse sido idéia de outra pessoa. Uma pessoa irritante.
- Trouxe meus 80 dólares? - perguntei, ainda batucando dois dedos na alça de uma das bolsas.
- Claro... é, oitenta? - disse ele, com olhos levemente desconfiados.
Eu sorri.
- Setenta e cinco. Só estava brincando.
Ele riu de um jeito que deixou claro que 5 dólares importavam para ele. O dinheiro saiu de seu bolso em notas amassadas de um e de cinco. Dez dólares me foram entregues
em moedas de 25 centavos.
Relaxei um pouco. O garoto era um duro. Nenhum riquinho iria tão longe para me enganar.
- Trouxe toda sua bateria... ahn, seus baldes? - perguntou ele, apontando para as bolsas.
- Não ocupam muito espaço, não é? - comentei.
Na verdade, eu não tinha levado tudo. Era a primeira vez. Não havia sentido em carregar 20 quilos de equipamento se tudo que aquela criançada quisesse fosse uma
baterista de eletrônica com dreadlocks.
- Deve ser mais fácil de carregar que uma bateria de verdade - comentou ele.
Eu assenti. Nunca tinha carregado uma bateria de verdade, mas eu tinha a impressão de que era bem difícil.
Ele foi contando o dinheiro até 75, o que pareceu deixar seus bolsos totalmente vazios. Tive um pouco de remorso pela brincadeira dos 80 dólares, e meus pés começaram
a sapatear.
- Ahn, tem uma coisa - disse ele, ajeitando a alça da guitarra no ombro e fazendo uma careta, todo nervoso e agitado.
Até que Moz ficava bonito, todo envergonhado daquele jeito. Fiquei meio preocupada com ele, como se ele fosse uma criança caminhando na rua com um sapato desamarrado.
- O que é? - perguntei.
- Seria melhor se você não falasse do dinheiro com Pearl.
- Quem é Pearl?
- Ela é... - Ele pareceu contrariado. - Só não fale do assunto com ninguém, tudo bem?
- Por mim, tudo bem. Dinheiro é dinheiro, na importa quem paga.
- É, acho que sim.
Seu rosto estava sério, como se eu tivesse dito algo profundo, e não apenas lógico. Afinal, era a lógica do dinheiro: novo e limpo ou amassado ou dividido em moedas
de 25 centavos, um dólar sempre correspondia a cem centavos.
Entramos.
Lá em cima a aparência era a de uma sala de ensaio comum: me distraía. Quatro paredes e um teto cobertos de espuma ondulada, num padrão que ondulava em minha visão
periférica. A mistura desconcertante de cabos no chão. O silêncio ao nosso redor; a atmosfera sem qualquer tipo de eco.
A baixinha de óculos assumiu o comando e me apresentou aos outros.
- Esse é o Zahler. Ele toca guitarra.
O garoto corpulento passeador de cachorros deu um grande sorriso. Lembrei que era ele quem não queria me pagar.
- E essa é a Minerva. Também é o primeiro ensaio dela. Vai ser a nossa vocalista.
A viciada tirou os óculos escuros por um instante, piscando por causa das luzes fluorescentes, e sorriu para mim. Usava um vestido longo de veludo preto, reluzente
como ruas depois de uma chuva, e uma mistura de colares e brincos compridos. Suas longas unhas pretas também brilhavam e me confundiam tanto quanto o teto ondulado.
- Ela é cantora? - perguntei. - Humm... eu tinha pensado que fosse uma roadie.
Todos riram da minha brincadeira, exceto Minerva, que fechou um pouco o sorriso. Seus dentes me provocaram certo arrepio. Toquei minha testa três vezes, pisquei
um olho, depois o outro, para aliviar o ambiente.
- E eu sou a Pearl. Teclados. Você é Alana, certo?
- Alana Ray. Um nome só - corrigi, com a voz ainda trêmula por causa do olhar da Minerva.
- Legal. Hifenizado? - perguntou Pearl.
Dei um risinho. Sabia que a riquinha faria aquela pergunta. Ter dois primeiros nomes unidos de modo invisível incomoda algumas pessoas.
- Não. Fossilizado. Juntos desde sempre.
Ninguém riu, mas isso sempre acontece. Aquela piada era só para mim.
A preparação foi rápida. Os garotos tiveram apenas que conectar e afinar as guitarras, e Pearl tinha apenas um teclado pequeno. Ela o colocou sobre a mesa de mixagem,
de onde poderia controlar o som de todo mundo. A viciada levantou o microfone e depois ficou mexendo nos interruptores de luz. Seus movimentos ainda eram repentinos
e parecidos com os de um inseto. Embora continuasse usando os óculos escuros, ela reduziu a iluminação até que eu mal conseguia enxergar.
Preferi não reclamar. O olhar dela já havia me dado arrepios uma vez.
Arrumei minhas coisas num canto, com duas camadas de espuma atrás de mim e 21 baldes amontoados à minha frente, em pilhas que cresciam da direita para a esquerda,
de um a seis (6!=21).
Peguei seis microfones de contato, meu próprio console de mixagem e efeitos e me preparei para o trabalho. Não gosto de salas de ensaio tanto quanto de espaços abertos,
mas pelo menos eu podia levar meus ecos comigo.
Pearl me observou prendendo os microfones às pilhas de baldes, plugando os cabos no console e passando-os pela caixa de efeitos.
- Latas de tinta, hein? - comentou ela.
- Baldes de tinta - corrigi, e vi Moz sorrir pela primeira vez.
- Ah, claro. De quantos canais precisa? - perguntou ela, passando os dedos sobre os botões da mesa de mixagem. - Seis? Doze?
- Só dois. Esquerdo e direito - respondi, entregando-lhe os cabos.
Pearl franziu a testa enquanto eu me virava. Daquele jeito, ela não poderia controlar meu som a partir da mesa. Era como se quisesse que eu lhe passasse os ovos,
o queijo e a cebolinha em pratos separados. Mas, em vez disso, eu estava lhe entregando a omelete inteira, preparada ao meu gosto.
Entretanto, ela não reclamou, e eu percebi que Moz continuava sorrindo.
- Todos prontos? - perguntou Pearl.
Todos estavam prontos.
Minerva engoliu em seco e se aproximou do microfone, estendendo a mão pálida. A outra segurava um caderno, e eu podia ver que estava aberto numa página caótica,
com um garrancho semelhante ao das crianças mais desafortunadas da minha escola especial.
Moz apenas mexia a cabeça, sem olhar para Pearl. Com os dedos do pé, ele revirava os fios espalhados pelo chão.
O garoto mais encorpado (cujo nome, que eu devia ter anotado, já me fugia à memória) era o único que sorria. Ele abaixou a cabeça para ver as cordas de perto, ajeitando
cuidadosamente a posição dos dedos. Depois, totalmente concentrado, começou a tocar. Era um riff simples, denso e sujo.
Pearl fez algo na mesa de mixagem, e o som ficou mais suave.
Ouvi por um momento e, em seguida, ajustei meus ecos para 92 batidas por segundo. Moz começou a tocar, alto e rápido. Achei aquele um jeito estranho de se começar,
muito complicado, com um solo de guitarra saindo do nada. Mas então Pearl entrou em cena, tocando uma melodia leve como gaze, que deu forma ao que ele produzia.
Continuei ouvindo por um tempo, incerta do que deveria fazer. Tinha muitas opções algo simples e descomprometido, para dar mais base à música? Ou devia tentar uma
batida com balanço, algo diferente, para soltar as coisas? Ou seguir a agitação veloz de Moz, como chuva batendo no telhado?
Eu adorava aquele momento, logo antes de começar a tocar. Era o único momento em que meus dedos não tremiam ou batucavam nas pernas, em que eu conseguia manter minhas
mãos firmes. Sem razão para pressa.
Além disso, eu não queria cometer um erro. Havia algo de frágil naquela música, como se ela fosse se despedaçar se alguém a levasse na direção errada. Pearl, Moz
e o outro garoto achavam que já se conheciam, mas não era verdade.
Comecei com cuidado, um ritmo leve de início, construindo um padrão de batida a batida - de simples a complicado, de menos a mais. Então, quando a coisa estava perto
de ficar agitada, me desviei para o lado, tirando uma batida para cada uma que acrescentava, mudando gradualmente a música que nos envolvia, mas ainda a mantendo
tênue e sem direção.
Por um instante, achei que havia cometido um erro. Eram apenas crianças. Talvez elas precisassem ser empurradas numa direção qualquer. Ou talvez quisessem mesmo
uma bateria eletrônica.
Foi então que entrou a garota drogada.
Não havia palavras, apesar do caderno que ela mantinha aberto diante de si. Com o microfone pressionado contra os lábios, ela apenas murmurava, mas a melodia emergia
dos amplificadores cortante e sentimental, abrindo caminho por entre a massa complexa que havíamos construído.
De repente, a música tinha um foco, um coração pulsando. Ela nos envolveu ao seu redor e rasgou minhas sombras graduais com um único raio de luz.
Sorri ao sentir um raro momento de conforto em minha própria pele, com todas as compulsões satisfeitas e o mecanismo do mundo inteiro funcionando corretamente em
torno das minhas batidas. Ainda que fossem jovens e imperfeitos, aqueles quatro tinham algo de especial. Talvez fosse um feliz acaso acontecendo ali, como na primeira
vez em que eu havia notado os ecos da rua se casando com o barulho dos meus passos...
Então a estranheza teve início - algo que eu não via desde que era pequena. O ar passou a brilhar intensamente, deixando minhas pálpebras agitadas. Eram mais do
que ondas de calor subindo do asfalto ou as luzes trêmulas que eu costumava ver quando alguém estava com raiva de mim.
Figuras se formavam no chão coberto de cabos e rostos se materializavam no material isolante. Vislumbrei expressões de dor e medo e raiva na periferia do meu campo
de visão, como se minha medicação não estivesse funcionando.
Pensei em largar as baquetas, enfiar a mão no bolso e tirar os comprimidos para contá-los. Mas eu tinha certeza de que havia tomado um de manhã. E os rótulos sempre
ressaltavam que demoravam a entrar na circulação: semanas para ter efeito, semanas para desaparecer. Não se devia parar, mesmo que você não os achasse mais necessários.
Minerva cintilava, sua pele branca reluzindo nas sombras. Seus movimentos, mais suaves, não se pareciam mais com os de um inseto. Agora ela cantava, com os dentes
colados no microfone. A música incompreensível precipitou-se por um instante quando ela virou uma página do caderno.
A sala fervia. Fantasmas preenchiam os espaços entre os objetos. Demônios de rabos compridos montavam nas ondas sonoras que circulavam pelo ar.
Eu estava com medo, mas não conseguia parar. Era tão incapaz de interromper as batidas quanto de evitar os movimentos do meu pé ou as contrações do meu rosto. Havia
caído numa armadilha, presa na música que eu mesma havia ajudado a modelar.
Então a realidade mudou de aspecto novamente, como os cilindros de um filme se ajeitando, permitindo que eu visse algo que quase havia esquecido... como era a música.
As notas da guitarra de Moz espalhavam-se pelo teto como luzes de Natal, acendendo-se e apagando-se, conectadas e eletrificadas pela melodia tortuosa de Pearl. Por
baixo de tudo, o riff do garoto dos cachorros, firme e consistente, minha bateria era o andaime que mantinha a música nas alturas, pulsando em 92 batidas por minuto,
viva e nos ligando uns aos outros.
Eu observava a aparição atentamente, morrendo de medo. Havia aprendido a ver a música daquele jeito, antes de os médicos me ensinarem a separar meus sentidos, a
captar objetos e rostos e colocá-los no lugar. Antes de me curarem das visões com terapia e comprimidos.
Como aquela realidade alternativa tinha voltado? Os sentidos ligados num todo completo e indivisível...
Mas então meus olhos se voltaram para o chão e vi a música cantada por Minerva.
A música se enroscava em nossos pés, serpenteando por entre os fios e cabos, mergulhando e saltando do chão, como um monstro do lago Ness emergindo da água. Era
um verme, cego e de antenas, empurrado por segmentos ondulados, mostrando uma boca marcada por um círculo de dentes afiados.
Naquele segundo, percebi que a maldição de Minerva era algo mil anos mais antigo do que heroína ou crack.
Engoli o ar seco. Ela virou a cabeça na minha direção e me viu vendo aquilo. Largou o caderno e tirou os óculos escuros num movimento brusco, enquanto a canção se
dissipava num longo e furioso silvo. A estrutura da música se despedaçou. Minhas baquetas escaparam das minhas mãos.
Os outros pararam surpresos. Pearl, assustada, olhava para a amiga. Moz também observava Minerva, e, por um momento, sua expressão era inconfundível: o garoto estava
tomado pelo desejo.
- Por que você parou, cara? - perguntou o passeador de cachorros. - Esse lance estava paranormal!
Piscando, reparando nas minhas mãos vazias. Não havia tremor. Não sentia necessidade de bater com os pés ou tocar minha testa. Não havia nada no ar além do chiado
dos amplificadores, uma onda quase invisível, no canto dos olhos.
Porém, ainda sentia aquilo sob meus pés, a fera que havíamos tocado. Algo retumbava dentro da terra, pelo menos seis andares embaixo de nós. Respondendo à música
de Minerva.
- Você também sente o cheiro, não sente? - sussurrou ela para mim.
- Não... o cheiro não. Mas às vezes vejo coisa que não deveria ver. - Engoli em seco, apertando o frasco de comprimidos no bolso do meu jeans e repetindo por hábito
o discurso que tinham nos obrigado a decorar na escola, para o caso de a polícia achar que estávamos drogados: - Tenho uma condição neurológica que pode causar comportamento
compulsivo, perda da coordenação motora ou alucinações.
Minerva levantou uma sobrancelha e, em seguida, apertou os lábios, numa expressão de deboche que revelou uma quantidade enorme de dentes afiados.
- Spasticus... autisticus.
Confirmei com um gesto. Eu era mais ou menos aquilo.
Mas e ela, o que diabos seria?
12. The Temptations
-MOZ-
Descoberto, seu rosto era radiante, repleto de um brilho que me deixava liquefeito.
Ela havia usado os óculos escuros até aquele momento - uma poser, com certeza. Depois, percebi que precisava usá-los, não para sua própria proteção, mas para a nossa,
para nos proteger de seus olhos.
Aquilo não era beleza, era algo mil vezes mais assustador, algo que me carcomia pelas beiradas. Já tinha ouvido aquilo na música, no modo como ela tinha nos arrastado
atrás de si, a banda inteira sugada e destruída por seu magnetismo ou o nome que fosse. Algo que a palavra carisma não chegava perto de definir.
Algo superior a tudo, incompreensível.
De repente, aquela era a banda dela, não minha ou de Pearl. E, também de repente, eu não me importava.
Minerva botou os óculos escuros de volta.
*
Peguei o caderno dela do chão. O que havia nas páginas abertas não era escrita, parecia mais as linhas de um detector de mentiras ou daquelas máquinas que apontam
a intensidade de um terremoto. Linhas pretas imperfeitas arrastando-se até colunas impenetráveis, manchadas e pontilhadas com gotas d'água. Alguns borrões tinham
um tom marrom enferrujado, como sangue envelhecido.
Entreguei o caderno a Minerva, mas ela ainda olhava Alana Ray, ou melhor, fuzilava Alan Ray, com uma expressão ameaçadora até por trás dos óculos escuros. Achei
que devia dizer algo para acalmá-la, já que eu havia levado Alana, e Minerva estava furiosa com ela por causa de... alguma coisa.
Seria por Alana ter deixado as baquetas caírem? Minerva, no entanto, havia surtado antes de o Grande Riff perder o rumo. Abri a boca, mas, ao me lembrar dos olhos
descobertos de Minerva, não consegui dizer nada.
- Min? - chamo Pearl. Calei a boca e deixei que ela cuidasse daquilo. - Está tudo bem, Min?
- Claro. - Minerva se curvou, pegou o caderno da minha mão e o apertou contra o peito. - Sinto muito. Eu não queria dar um ataque. Só estava meio... mergulhada na
música.
- Também quero me desculpar - disse Alana Ray, baixinho. - Minha doença às vezes atrapalha as apresentações.
Tentei me lembrar do que Alana Ray tinha confessado a respeito de si mesma... seria algo de errado com seu cérebro? Do nada, ela havia passado a falar de um jeito
engraçado, fazendo pausas quase imperceptíveis entre as palavras. Pequenas contrações percorriam seu corpo enquanto ela observava Minerva, como se seu sistema nervoso
estivesse saindo do controle por dentro. Mais uma vez, abri a boca para dizer algo...
- Ei, sem problema - disse Zahler, antes de mim - Você foi sacana. Nós todos fomos totalmente paranormais! - Ele se virou para Pearl. - Não fomos?
- É isso aí - respondeu Pearl, sem empolgação. - Fomos sim - completou, lançando um olhar inquisitivo para mim.
Não desviei diante de seu olhar - algo que não acontecia havia duas semanas.
Tudo tinha funcionado bem. Nossa música, a banda. A estranha e elétrica amiga de Pearl havia nos unido e nos transformado em algo tão brilhante quanto ela mesma.
- Foi muito bom - comentei, olhando para Pearl. - Bom à beça.
O rosto de Pearl reluziu no escuro da sala de ensaio.
- Então, ótimo. - Ela se voltou para Alana Ray. - Precisa de um tempo?
Alana piscou um olho, depois o outro e sacudiu a cabeça, como alguém que tem água no ouvido.
- Não, prefiro continuar tocando. Acho que minha... complicação já passou. Mas talvez pudéssemos tentar outra música. Às vezes, o mesmo estímulo provoca a mesma
reação.
- Ahn, claro - respondeu Pearl, dando de ombros. - Que tal a Número Dois?
Eu e Zahler apenas assentimos, mas Minerva abriu um sorriso e puxou o microfone mais para perto da boca. Uma risada baixinha, misturada à reverberação, se espalhou
pela sala.
- Tudo bem, Alana Ray - sussurrou ela, abrindo o caderno. - Tenho milhões de estímulos aqui.
Ninguém mais teve ataques durante o resto do ensaio.
Tocamos a Número Dois, uma longa brincadeira desenvolvida a partir da repetição de um sample tirado de uma antiga gravação em vinil de Pearl, e depois uma terceira
música, que sequer tinha nome ainda. Alana Ray não voltou a tropeçar; simplesmente nos acompanhou com uma sintonia sobrenatural. A cada nova parte, ela nos seguida
por um tempo e, lentamente, começava a construir, acrescentando estrutura e forma à música, olhando para uma partitura invisível no ar, de alguma forma enxergando
aquilo que precisávamos que ela fizesse.
Eu não entendia uma única palavra do que Minerva cantava, mas, sempre que ela abria a boca, era uma injeção de brilhantismo em nossa música. Sua voz possuía uma
magnitude fantástica, como se aqueles cadernos estivessem repletos de feitiços para fazer o chão embaixo de nós tremer. Eu não conseguia tirar os olhos dela, a não
ser quando os fechava e ouvia com atenção.
Entre uma música e outra, eu me penitenciava por não ter ido ao Brooklyn naquela manhã. Finalmente me dei conta de como a disputa entre mim e Pearl era estúpida.
Nenhum de nós era uma estrela do rock; éramos apenas reservas, coadjuvantes, aliados. Bons músicos, talvez, mas só Minerva era luminosa.
A raiva que havia me perseguido por duas semanas sumiu e não deixou nada além de satisfação. Eu tinha uma banda incrível, um lugar para ensaiar sem pessoas gritando
"Abaixa o volume!" e, nas mãos, uma Strat 1975 com captadores dourados. Havia até resolvido o negócio do dinheiro e já conseguia economizar alguns dólares por dia.
Não entendia por que ser sofrido tinha parecido tão importante.
Minerva havia mudado tudo.
Depois de uma hora e meia, tínhamos tocado todas as músicas que conhecíamos, o maior número de vezes possível. Finalmente, com certa relutância, paramos.
- Ei - disse Zahler. - Precisamos de algumas músicas novas, hein?
- É isso aí - concordei, olhando para Pearl. - Temos que nos encontrar de novo logo. Para trabalhar em alguma coisa para o próximo domingo.
De repente, eu tinha fragmentos de milhões de músicas na cabeça. Pearl sorriu, satisfeita.
- Mais musicas? No problemo.
Minerva mostrou-se contrariada.
- Problema. Pero masculino - corrigiu.
- Ahn? - perguntei, olhando para Pearl.
- Ah, é que a Min anda meio que estudando espanhol - Pearl pegou o celular e fez uma cara feia. - Por falar nisso, acho que temos de voltar ao Brooklyn para sua,
ahn, aula.
- Você está estudando espanhol? - perguntou Zahler, sorrindo. - Mas cervezas!
- Prefiero sangre - disse Minerva, com os dentes reluzindo no escuro.
- Acho que é isso. - Pearl virou-se para Alana Ray. - Escuta, foi ótimo conhecer você. Você foi brilhante. Especialmente se tratando de latas de tinta.
- Baldes de tinta - disse Alana Ray. - Também foi bom conhecer você.
- Então... vai querer voltar a tocar conosco?
Alana Ray olhou para mim. Fiz um gesto positivo com a cabeça: por 75 dólares, era uma pechincha. Ela sorriu.
- Claro. Achei a experiência muito... envolvente.
- É isso aí, nós somos assim, envolventes. - Pearl respirou fundo. - Desculpa, mas Min e eu temos que sair correndo. A sala está à disposição até as 11. Vocês podem
desmontar tudo enquanto cuido da reserva para a próxima semana?
- E sua mesa de mixagem? - perguntou Zahler.
- Eles deixam trancada lá embaixo. Pega minha chave. - Ela jogou um chaveiro reluzente pela sala para Zahler e, em seguida, agarrou a mão de Minerva. - Vamos, Min.
Temos que correr.
Zahler gritou um tchau, mas Pearl já estava passando pela porta com Minerva, arrastando-a como se faz com uma criança de cinco anos que não quer ir embora do zoológico.
Segui as duas até o saguão e me adiantei para apertar o botão do elevador.
- Obrigada - disse Pearl. - Sinto muito ter que deixar a arrumação para vocês. É só que... - Sua voz sumiu num suspiro.
- As malditas aulas de espanhol - disse Minerva.
De todos os lados, vazavam sons de outras bandas, as batidas de percussão, os sons abafados de retorno.
- Não esquenta - respondi. E queria saber qual era a verdadeira razão daquela pressa misteriosa. Obviamente, não era uma aula de espanhol. Tentei lembrar do que
Pearl havia falado de manhã. Algo envolvendo ninjas? - Pearl, você cuidou de tudo até agora. Não vai ser nada de mais arrumar umas coisas.
- Não cuidei de tudo. Vocês acharam a Alana Ray. Ela é incrível.
- É, acho que sim. - Dei um sorriso. - Escuta, foi mal estar tão sonolento quando você ligou de manhã. Da próxima vez, vou estar pronto para ajudar... - Olhei para
Minerva. - Com o que for necessário.
- Ah, legal - disse Pearl, baixinho, com um sorriso mais intenso. Ela olhava para o chão. - Isso é ótimo.
O elevador chegou. Quando elas entraram, fui atrás, tentando passar mais alguns segundos ao lado de Minerva.
- Vou descer com vocês, se não se importarem. Depois eu volto.
- Não nos importamos - disse Minerva.
O interior do grande elevador de carga, revestido com cobertores para proteger as paredes dos carrinhos, amplificadores e baterias, era silencioso. Limpei a garganta
antes de falar:
- Ei, Pearl, eu tenho sido meio idiota.
- Em relação ao quê? - perguntou ela.
Notei que Min ouvia com atenção por trás dos óculos escuros.
- Em relação a tudo. Em relação a você. Mas agora a banda está finalmente tomando forma, e me sinto meio estúpido quanto ao modo como tenho agido. Então... está
tudo bem agora.
- Ah, Moz, a culpa também é minha. - Pearl me encarou, com o rosto meio rosado, quase vermelho de vergonha. - Sei que às vezes sou meio mandona.
- Nisso ela tem razão - disse Minerva.
Dei uma risada.
- Nada disso. Você apenas sabe o que está fazendo. Então, acha que eu e Zahler devemos aparecer amanhã? Para trabalhar em algumas músicas novas para o próximo domingo?
Pearl concordou, ainda sorrindo.
- Perfeito.
- Você também vai? - perguntei a Minerva. - Quer dizer, você é a vocalista e tal - expliquei, apontando para os cadernos que ela mantinha bem apertados contra o
peito.
- Humm, provavelmente não - respondeu Pearl. - Ela está meio...
- É um curso intensivo de espanhol - disse Minerva.
- Ah, entendi.
A porta do elevador se abriu, e chegamos ao saguão principal. Pearl ainda puxava Minerva. Dois caras empurravam um carrinho cheio de pickups para dentro do prédio,
tomando extremo cuidado com a saliência entre a rampa de acesso e o piso de mármore.
Pearl foi à recepção, onde mostrou um cartão de crédito e conversou com o funcionário sobre a semana seguinte. Enquanto isso, Minerva virou-se para mim e disse em
voz baixa:
- Nos vemos na semana que vem.
Concordei com a cabeça, engolindo em seco, feliz por ela estar usando os óculos escuros. Pensei que teria dito bem menos besteiras na vida se todas as garotas bonitas
usassem óculos escuros.
- Com certeza eu vou aparecer.
Bem, talvez não tantas a menos.
Minerva limitou-se a dar uma risada e a me estender a mão que Pearl deixava livre. Quente como um fósforo recém-queimado, seu dedo percorreu meu braço, do pulso
ao cotovelo. Entre seus lábios entreabertos, pude ver as fileiras de dentes deslizando da esquerda para a direita. E então ela pronunciou uma palavra silenciosa.
Delícia.
Ela deu as costas para meu estado de arrepio, a tempo de encontrar o olhar de Pearl, que tinha acabado de acertar as coisas e agora abria o celular.
- Elvis? Estamos prontas. - Pearl fechou o telefone e olhou para mim. - Vejo vocês amanhã. Você me liga?
- Claro. Vou avisar ao Zahler. - Eu estava ofegante. A linha feita no meu braço por Minerva ainda queimava. - Até mais.
Eu as vi acenando e depois saindo pela porta e caminhando até uma limusine cinza - uma limusine? - que chegava naquele momento. A palavra balbuciada por Minerva
ainda ecoava na minha cabeça. Havia sido totalmente inesperada, mais como um sonho do que como algo que realmente tinha acontecido. Meu cérebro não compreendia aquilo.
Parecia um acorde de guitarra que eu podia ouvir, mas não era capaz de executar com os dedos.
Ela virou-se mais uma vez, pouco antes de entrar no carro, e mostrou a língua. Depois, veio um sorriso malicioso e intenso.
A limusine partiu.
Engoli em seco, dei a volta e corri para pegar o elevador, que já fechava a porta. Os caras levando as pickups estavam apertados lá dentro, deixando o espaço exato
para mim. Durante a subida, eu me balançava, apoiado nos calcanhares, cantarolando um dos estranhos fragmentos deixados na minha mente por Minerva, encostando no
fundo coberto do elevador atrás de mim.
Olhei para os dois caras e notei que eles assistiam à minha dança.
- Músicas novas? - perguntou um deles, rindo.
- É isso aí - respondi, lambendo os lábios e sentindo um gostinho salgado. - As coisas vão muito bem.
PARTE III
Ensaios
A peste Negra teve um primo distante.
Na mesma época em que a Peste de Justiniano devastava o mundo sob domínio romano, um grande império na América do Sul, o de Nazca, também desaparecia. Os templos
de Nazca foram subitamente abandonados; as cidades perderam a vida. Os historiadores não têm idéia do por que nossa vasta e sofisticada cultura, a milhares de quilômetros
da Roma castigada pela paste, sumiu exatamente no mesmo momento histórico.
O fato é que a maioria das pessoas nunca ouviu falar de Nazca, o que mostra o quão completo foi seu desaparecimento.
Somente nos anos 1920 o mundo exterior descobriu o maior legado de Nazca. Aviões que sobrevoavam as planícies do Peru avistaram imensos desenhos gravados na superfície.
Cobrindo mil quilômetros quadrados, havia figuras de criaturas com muitas pernas, aranhas gigantes e estranhas formas humanas. Arqueólogos não sabem o significado
dos desenhos. Seriam representações dos deuses? Ou de demônios? Contariam algum tipo de história?
Na verdade, são avisos.
É comum se destacar que os desenhos foram feitos para durar. Estão gravados em planícies de chuvas raras e erosão quase existente. Incrivelmente, permanecem claramente
visíveis depois de 1.500 anos. Qualquer que seja, a mensagem foi idealizada para atravessar os séculos.
Talvez o momento de decifrá-las seja agora.
ARQUIVOS DO PREFEITO DA NOITE:
282-287
13. Missing Persons
-PEARL-
Os corredores da Juilliard pareciam estranhos naquele primeiro dia de volta às aulas.
Por ser meu quarto ano lá, já estava bem familiarizada com o lugar. Apesar disso, porém, as coisas sempre pareciam diferentes quando eu voltava das férias de verão,
como se as cores tivesse mudado um pouquinho durante a minha ausência. Ou talvez eu tivesse crescido alguma fração de centímetro nos três meses anteriores, mudando
de modo imperceptível a escala de tudo ao meu redor.
Naquele dia, eu não conseguia me acostumar à sensação de vazio dos corredores. Mas, obviamente, fazia sentido. Todos meus amigos do Sistema Nervoso (ou, na verdade,
ex-amigos, devido à situação de Minerva) haviam se formado no ano anterior, deixando para mim uma escola cheia de meros conhecidos e estranhos. Era meu prêmio por
andar com tantas pessoas do ano acima ao meu.
Peguei meu horário na secretaria e conferi os avisos indicando quais aulas e grupos tinham sido cancelados por falta de interesse. Não haveria turmas de instrumentos
barrocos esse ano. Nem grupos de improvisação em jazz. Nada de coros de câmara?
Aquilo era meio lateral.
As aulas programas para mim, no entanto, estavam mantidas. No fim, eles obrigavam os alunos a enfrentar quatro anos de composição e teoria musical, e minha manhã
estava cheia de requisitos acadêmicos: inglês, trigonometria e a inevitável biologia avançada.
Assim, só depois do almoço comecei a me dar conta de quanto as coisas haviam mudado realmente.
A lanchonete era o maior recinto da escola. Também funcionava como sala de apresentações, porque nem escolas particulares chiques como a Juilliard tinham recursos
para ocupar espaços infinitos no meio de Manhattan. Minha aula de biologia avançada do terceiro tempo acontecia na sala ao lado, localização privilegiada para pegar
um lugar na frente na fila da comida. Dez segundos depois de tocar o sinal do almoço, entrei na lanchonete e fiquei satisfeita ao ver um monte de mesas vazias. O
aroma familiar de macarrão com queijo à la Juilliard, um dos pratos não-xexelentos servidos por lá, me fez sorrir.
Mesmo sem o Sistema, era bom estar de volta.
Enchi minha bandeja e dei uma geral em busca de alguém com quem pudesse me sentar, de preferência alguém dotado de talento musical. Eu e Moz poderíamos querer incluir
músicos substitutos um dia.
Precisei de poucos segundos para avistar Ellen Bromowitz sozinha num canto. Ela era do meu ano, e era uma violoncelista incrível - primeiro violoncelo da orquestra.
Tínhamos sido melhores amigas temporárias, nos tempos de calouras, quando nenhuma de nós conhecia outras pessoas.
Sentei de frente para ela. Violoncelos eram maneiros, ainda que não se pudesse dizer exatamente o mesmo de Ellen. Além do mais, não havia quase mais ninguém no lugar.
Ela tirou os olhos do macarrão e assumiu uma expressão de estranhamento.
- Pearl?
- Oi, Ellen.
- Não esperava encontrar você por aqui.
- É que... - Eu não tinha entendido direito a mensagem. - Não nos vemos há um tempo, não é? Pensei em sentar aqui para dar um oi. - Ela não respondeu; só ficava
me encarando. - Como estão as coisas?
- Pergunta interessante. - Um sorrisinho torto surgiu em seu rosto. - Então, também não tem amigos com quem sentar?
Engoli em seco, com uma sensação de ter sido meio que desmascarada.
- É, acho que não. O resto do Sistema Nervoso estava no último ano. Seus amigos também se formaram?
- Se formaram? - Ela balançou a cabeça. - Não. Mas ninguém voltou ainda.
- Não voltou de onde?
- Do verão - respondeu ela, percorrendo a lanchonete com os olhos.
O lugar ainda não tinha enchido. Estava muito quieto; não lembrava em nada o caos do almoço guardado em minha memória. Imaginei se não havia sido sempre tão espaçoso
e tranqüilo e se aquela impressão não passava de mais uma percepção errada provocada pelas feries de verão.
Mas aquilo não fazia sentido. Eu podia entender as coisas parecendo menores a cada ano. Agora, mais vazias?
- Bem, foi um verão bastante nojento - comentei. - Com a crise da saúde pública e tudo o mais. Talvez nem todos tem tenham voltado da Suíça ou de onde quer que tenham
se refugiado.
Ellen acabou de engolir uma garfada de macarrão com queijo.
- Meus amigos não vão à Suíça no verão.
- Ah, sim - disse, tentando não dar importância e me lembrando que os alunos bolsistas costumavam andar juntos. - Então, de Vermont, ou algum outro lugar. - Ela
suspirou, discretamente. - Mesmo assim, é bom estar de volta, não é?
- Você está de ótimo humor - observou ela, estreitando os olhos. - O que houve? Arrumou um namorado ou algo assim?
Dei uma risada.
- Nada de namorado. Mas, sim, estou muito feliz. O tempo está mais fresco, o metrô está funcionando e estou formando outra banda. Acho que as coisas vão bem. E...
- E o quê?
- Bem, talvez eu tenha um garoto em vista. Mas não sei se é uma boa idéia.
Senti um embaraço e nada sutil sorriso tomando conta do meu rosto.
Era verdade que eu ainda não sabia se era uma boa idéia, mas, pelo menos, a hostilidade declarada entre mim e Moz havia acabado.
Ter uma banda havia arrancado todo o ressentimento de Moz. Ele não reclamava mais de nossos ensaios nas manhãs de domingo; apenas aparecia, pronto para tocar. Moz
era incrível quando agia daquela forma. Encantador, como dizia minha mãe. Focado enquanto tocava, e intenso enquanto ouvia o resto de nós.
Algumas vezes eu me imaginava reduzindo a concentração a apenas nós dois, pondo seu foco recém-descoberto para trabalhar em outros sentidos. E talvez, ocasionalmente,
enquanto escrevia letras no meu quarto, tenha precisado me lembrar de que não era legal sair com um companheiro de banda.
Mark e Minerva já haviam mostrado o tipo de problema que aquilo podia causar. Fiquei sabendo que ele tinha passado o verão completamente arrasado. Deve ser difícil
perder a namorada e a banda no mesmo dia.
Por isso, eu me segurava quando Moz começava a parecer muito intenso e quente, tentando me lembrando de que era pelo bem da banda, já que isso, para mim, tornou-se
mais importante do que qualquer cara.
Mas isso não significava que eu nunca pensava no assunto.
A banda também havia mudado Minerva. Agora ela conseguia agir de maneira totalmente normal. Claro, ainda usava óculos escuros, mas não ficava mais terrificada diante
da necessidade de se expor ao sol. Também não fugia mais do próprio reflexo - os espelhos tinham se tornado seus novos grandes amigos. E o melhor de tudo: adorava
se arrumar e sair escondida para os ensaios. Suas músicas evoluíam a cada encontro. A fúria disforme lentamente ganhava organização, transformada em versos e refrões
pela estrutura da música.
Em pouco tempo me dei conta de que as palavras talvez começassem a fazer sentido.
O mais engraçado era que Alana Ray parecia ser quem mais ajudava Min. Sua batida agitada envolvia a fúria de Minerva e lhe dava forma e lógica. Eu suspeitava que
Alana Ray estava nos guiando de alguma forma, uma guru espancadora de baldes de tinta entre nós.
Entrei na internet algumas vezes para entender exatamente sua doença. Ela se contraía e batucava como se tivesse síndrome de Tourette, mas nunca xingava descontroladamente.
Uma doença chamada síndrome de Asperger parecia se encaixar ao seu quadro, exceto pelas alucinações. Talvez Minerva tivesse acertado, no nosso primeiro ensaio, e
Alana Ray fosse meio autista, uma palavra que podia trazer inúmeros significados. Mas, qualquer que fosse sua condição, parecia ser algo que lhe dava uma capacidade
especial de enxergar o interior das coisas.
Com uma baterista-sábia e uma vocalista Taj Mahal enlouquecida, a banda só enfrentava dois problemas: (1) não tinha baixista, o que eu sabia exatamente como resolver,
e (2) ainda não tinha nome...
- O que acha de Loucos Contra Sãos? - perguntei a Ellen.
- Hein?
- Para uma banda.
- Humm... acho que faz sentido. Vocês vão seguir uma linha Novo Som, não vão?
- Por aí, só que melhor.
- Acho que é meio forçado - disse ela, dando a impressão de não se importar muito. - É como em Ardil 22. Qualquer pessoa que diga ser louca, na verdade não é, está
só fingindo. Porque, se fosse, não saberia que é.
- Ah - respondi.
Nessa hora, lembrei que às vezes era um saco andar com Ellen. Ela tinha uma tendência ao não-entusiasmo.
Mas então ela sorriu.
- Não se preocupe, Pearl. Você vai achar alguma coisa. Está tocando guitarra na banda?
- Não, teclado. Já temos guitarristas demais.
- Que pena. - Ela pegou um estojo de violão no chão e o colocou na cadeira ao lado. - Até que eu gostaria de entrar numa banda.
- O que está fazendo com isso? - perguntei, olhando para o violão.
- Desisti do violoncelo.
- O quê? Mas você era o primeiro violoncelo no ano passado!
- É, mas o violoncelo... - Ela deixou escapar um longo suspiro. - Exige muita infra-estrutura.
- Exige o quê?
Ellen suspirou de novo e passou a ajeitar os pratos em sua bandeja enquanto falava:
- Exige infra-estrutura. A maioria das grandes obras para violoncelo foi escrita para orquestra. Para começar, são quase cem músicos, além dos artesãos para fabricar
e concertar os instrumentos e gente para construir uma sala de concertos. E, para pagar por tudo isso, são necessários milhares de pessoas comprando ingressos todos
os anos, doadores ricos e verbas governamentais... É por isso que só cidades muito grandes têm orquestras.
- Mas, Ellen, você vive numa cidade muito grande. Não está pensando em se mudar para o Alasca ou coisa parecida, está?
- Não. Mas e se as grandes cidades não funcionarem mais? E se não pudermos mais juntar tanta gente sem que tudo se desintegre? E se...
A voz de Ellen foi sumindo enquanto ela observava a lanchonete novamente. Segui seu olhar. O lugar ainda estava com dois terços da lotação. Havia mesas inteiras
vazias e nada de fila para pegar comida. Era como se ninguém tivesse o primeiro horário de almoço livre.
Aquilo começava a me deixar assustada. Onde estava todo mundo?
- E se a era das orquestras tiver acabado, Pearl? - perguntou Ellen.
Reagi com incredulidade.
- As orquestras existem há séculos. São parte da... sei lá, civilização.
- Claro, a civilização. É exatamente esse o problema... - Ela tocou de leve no braço do estojo do violão. - Eu estava tão cansava de carregar aquele violoncelo imenso
para todo lado, como um cadáver num caixão. Só queria algo mais simples. Algo que eu pudesse tocar ao redor de uma fogueira, com ou sem civilização por perto.
Senti um arrepio na espinha.
- Ellen, o que houve com você nesse verão?
Ela olhou para mim e, depois de uma pausa prolongada, respondeu:
- Meu pai foi embora.
- Ah. Que droga. - Lembrei de quando meus pais se divorciaram. - Sinto muito. Quer dizer que... ele deixou sua mãe?
- Não imediatamente. Sabe, alguém o mordeu no metrô, e então ele... ficou diferente.
- Mordeu?
Lembrei de boatos que eu tinha ouvido, algo sobre um tipo de raiva transmitido por ratos. Relatos de que havia pessoas como Min nas ruas, famintas e usando óculos
escuros.
Ela confirmou, ainda passando a mão no braço do estojo do violão.
- Pelo menos ainda tenho uma bolsa integral. Assim posso passar para o violão antes...
- Mas você é uma grande violoncelista. Não pode desistir da civilização ainda. Nova York continua aqui.
- Em parte. Ainda há concertos e aulas e partidas de beisebol acontecendo. Mas a coisa está parecida com o Titanic: só há botes salva-vidas para os passageiros da
primeira classe. - Ela deu outra geral na lanchonete. - Por isso, quando percebo que as pessoas não estão vindo, fico pensando se esses passageiros já não estariam
indo embora. E logo o chão vai começar a se inclinar, as cadeiras do convés vão começar a passar deslizando.
- Ahn... do que você está falando? - perguntei.
Ellen me encarou com um olhar aguçado.
- O negócio é o seguinte, Pearl. Aposto que seus amigos já estão na Suíça ou em algum lugar parecido.
- A maioria acabou de se formar - argumentei.
- Aposto que, mesmo assim, estão na Suíça. A maioria das pessoas com dinheiro suficiente já se foi. Já os meus amigos... - Ela sacudiu a cabeça. - Eles não têm motoristas
ou guarda-costas. E precisam pegar o metrô para vir à escola. Por isso, estão meio que escondidos.
- Você está aqui.
- Só porque moramos logo no outro quarteirão. Não tenho de pegar o metrô. Além disso... - Ela sorriu, tocando mais uma vez no estojo ao seu lado. - Quero muito aprender
a tocar violão.
Conversamos por mais um tempo - sobre o pai dela e sobre todas as coisas que tínhamos visto no verão. Meus pensamentos, porém, insistiam em ir na direção da banda.
Ouvindo Ellen falar, me dei conta de que bandas como a nossa também precisavam de muita infra-estrutura, tanta quanto uma orquestra sinfônica. Para fazer nosso trabalho,
precisávamos de instrumentos eletrônicos e microfones, mesas de mixagem e de efeitos, pilhas de amplificadores. Também precisávamos de casas de show, estúdios, gravadoras,
canais de TV a cabo com programação de videoclipes e fãs donos de aparelhos de som e energia elétrica em casa.
Merda, precisávamos de civilização.
Eu não conseguia imaginar Moz e Min tocando ao redor de uma fogueira.
E se os contos de fada de Luz fossem verdadeiros e uma grande batalha estivesse a caminho? E se Ellen Bromowitz estivesse certa e a era das orquestras tivesse chegado
ao fim? E se a doença que havia acabado com o Sistema Nervoso fosse destruir a infra-estrutura que tinha tornado possível uma banda como a nossa?
Endireitei-me na cadeira. Era hora de seguir em frente. Eu tinha de parar de me parabenizar só porque Moz estava feliz, Minerva continuava relativamente não-louca
e os ensaios iam bem.
Tínhamos de nos tornar mundialmente famosos logo, enquanto ainda existisse um tipo de mundo para nos conhecer.
14. The Replacements
-ZAHLER-
Produzimos um som saneiro atrás do outro - eu, Moz e Pearl nos encontrando suas ou três vezes por semana na casa dela. Depois de gastarmos todos os antigos riffs,
começamos a usar as repetições de sample de Pearl. O Mosquito nem se importou. Quando a banda se tornou real - com uma baterista, uma vocalista e até amplificadores
separados para mim e Moz -, ele percebeu que não se tratava de uma competição.
Ele só não percebeu que Pearl era atraente e que ela estava muito a fim dele.
Tudo que eu podia faze era lamentar esse segundo fato. O erro de Pearl fora ter dado algo de verdade a Moz. Ela tinha aberto a concha, mostrando a ele uma maneira
de conseguir o que ele realmente queria. Tinha ajudado o cara a encontrar um foco que ele havia sido muito idiota para descobrir sozinho.
Moz nunca a perdoaria por tudo aquilo.
E eu continuava achando Pearl interessante. Mas, por enquanto, não havia nada que eu pudesse fazer. E, na verdade, eu estava feliz com as coisas daquele jeito. Meu
melhor amigo e a garota mais sacana do mundo finalmente tinham parado de brigar. A música era sexcelente. E Pearl adorava a banda, o que significava que não iria
a lugar algum sem me levar junto.
Tudo ia tão bem que eu devia ter imaginado que alguma coisa explodiria na nossa cara.
Estávamos trabalhando na parte B de uma das novas músicas, chamada "Um milhão de estímulos para viagem". Era incrivelmente complicada. Por mais que eu tentasse,
não conseguia tocar a música. Moz me mostrava várias vezes na Strat, mas, por alguma razão, meus dedos não davam conta do recado.
Bem, não davam até Pearl entrar na parada. Ela empurrou caixas de CDs e uma gaita para abrir espaço na cama e se sentou ao meu lado. Soltou a alça da minha guitarra
e a puxou para seu colo.
- Deixa eu tentar, Zahler.
Então, como se não fosse nada de mais, começou a tocar o trecho da música.
Em circunstâncias normais, estar sentado tão perto dela teria sido bem sacana, mas naquele instante eu estava muito abobalhado para aproveitar.
- Viu? - disse ela, com os dedos praticamente soltando fumaça enquanto passeava pelas cordas. - É só usar o mindinho no último trecho.
Moz riu.
- Ele odeia usar o mindinho. Diz que é o dedo retardado dele.
Eu não disse nada na hora. Apenas assisti enquanto Pearl tocava, balançando a cabeça como um idiota. Ela estava certíssima sobre como fazer aquilo, e agora que eu
via por trás das cordas nem parecia tão difícil. Quando Pearl devolveu a guitarra, consegui tocar direito de primeira.
Ela se levantou e voltou ao teclado, acertando detalhes em seus equipamentos enquanto eu tocava a parte mais umas dez vezes, gravando o riff no fundo do meu cérebro.
Não voltei ao assunto até mais tarde, quando eu e Mosquito ficamos a sós.
- Moz, você viu o que aconteceu lá?
Estávamos andando por Chinatown, tarde da noite, cercados pelo ruído das cozinhas dos restaurantes. O cheiro pesado de fritura circulava pelas ruas estreitas, e
as portas de metal das peixarias batiam, deixando o fedor salgado das tripas suspenso no ar.
As coisas andavam bem tranqüilas à noite desde a imposição do toque de recolher para pedestres. Como eu e Moz sempre ignorávamos a regra, era como se fôssemos donos
da cidade.
- Vi o quê? - perguntou Moz, torcendo o tronco para dar uma olhada no beco que havíamos acabado de passar.
- Não, não estou falando dali. - Desde aquele passeio com os cachorros, eu sequer olhava para becos. - Na casa da Pearl. Quando ela me mostrou como tocar o riff.
Pus as mãos em posição de tocar guitarra e mexi os dedos. Agora os movimentos estavam internalizados. Tarde demais para me poupar da humilhação.
- Ah, a parte que você não estava conseguindo tocar? O que é que tem?
- Você notou como Pearl simplesmente foi e tocou?
Ele fez uma cara de estranhamento, enquanto seus dedos executavam a seqüência.
- É assim que se toca - ele disse.
Soltei um gemido.
- Não, Moz, não estou falando de como ela tocou. Mas de ela ter tocado, apesar de eu estar quase louco sem conseguir!
- Ahn... - começou a dizer ele, aguardando a passagem de um caminhão de lixo que chiava e gemia. Por alguma razão, havia seis homens pendurados na parte de trás,
em vez dos dois ou três de hábito. Eles nos olharam com caras sérias enquanto o caminhão se afastava. - É, ela é muito boa. Ainda não tinha percebido?
- Não mesmo. Quando ficou assim?
- Muito antes de a conhecermos. - Ele deu uma risada. - Nunca percebeu como a mão dela se mexe quando ela pede um acorde? - A mão esquerda de Moz se contorceu no
ar. - E eu já contei a você que ela identificou a Strat exatamente como eu.
- Mas...
- Sem falar em tudo aquilo no quarto dela: a flauta, a gaita, os bongôs. Ela toca tudo, Zahler.
Franzi a testa. Era verdade: havia um monte de instrumentos no quarto de Pearl. E, de vez em quando, ela pegava um e tocava qualquer coisa, só por distração.
- Mas nunca vi uma guitarra - lembrei.
- As guitarras ela guarda embaixo da cama. Pensei que você soubesse.
Olhei para baixo e dei um chute no hidrante que cuspia uma gosma no meio-fio. Acertei uma das saídas gotejantes. Houve um barulho. Dei um pulo para trás e me lembrei
de que não brincava mais com hidrantes.
- Isso não deixa você incomodado? - perguntei a Moz.
- Incomodado? Por mim, ela pode guardá0las até no porão, desde que eu possa tocar a Strat.
- Não estou falando disso. Quero saber se não fica incomodado com o fato de eu ser o suposto guitarrista da banda e, apesar disso, não tocar nem no mesmo nível da
nossa tecladista.
- E daí? Ela é um gênio musical.
Soltei um grunhido. Às vezes, o Mosquito consegue ser incrivelmente retardado.
- Bem, isso não sugere que o "gênio musical" deveria ser nossa segunda guitarrista, e não eu?
Moz parou e se virou.
- Zahler, isso não funcionaria. Você não sabe tocar teclado.
- Ahhh! Não é isso que estou dizendo!
Ele suspirou e botou as mãos para cima.
- Escuta, Zahler, sei que ela toca guitarra melhor do que você. E ela entende o Grande Riff melhor do que eu, assim como acontece com a maioria das músicas. Provavelmente
toca bateria melhor do que a maioria dos bateristas, mas talvez não melhor do que a Alana Ray. Enfim, como eu disse, ela é um gênio musical. Não se preocupe. Conversei
com ela sobre você. Pearl, já tem um plano.
- Conversaram sobre mim? Um plano?
- Claro. Pearl sempre tem um plano... por isso ela é a líder. - Moz sorriu. - Eu já aceitei isso, por que você não aceita também?
- Por que eu não aceito? - Fiquei parado, com a respiração acelerada e as mãos agitadas, doido para pegar alguma coisa pelo pescoço e apertar com força. - Você não
tinha aceitado porcaria nenhuma até algumas semanas atrás! E isso só aconteceu porque está a fim daquela amiga esquisita e drogada da Pearl!
Moz me encarou, de olhos bem abertos, e eu fiz o mesmo. Foi mais um negócio que eu só percebi depois de botar para fora. Mas, de repente, me dei conta de que era
totalmente verdadeiro. A única razão daquela tranqüilidade toda era que Minerva tinha apertado o botão para reiniciar o cérebro dele.
Eu já havia contado a Moz o que pensava de Minerva. Ela era uma viciada, ou ex-viciada, ou uma futura viciada. Uma furada. Mesmo antes de ter surtado com Alana Ray
no primeiro ensaio, a história toda dos óculos escuros e da viagem enquanto cantava parecia totalmente paranormal.
Não que ela não cantasse bem. É que eu prefiro músicas com letras. E prefiro manter garotas branquelas e magricelas de veias saltadas o mais longe possível de mim.
- A Min não é drogada - disse ele.
- Ah, é? Como você sabe?
Ele abriu os braços.
- E como você sabe que ela é?
- Olha, eu nem sei o que ela é. - Quase fechei os olhos. - Só sei que é alguma coisa que eles só deixam sair durante duas horas por semana! É por isso que ensaiamos
domingo bem cedo, não é? E por que as duas saem correndo de volta para o Brooklyn? Por que o horário de visitação acabou?
- É, também não entendo essa história. - Moz me deu as costas e voltou a caminhar, como se eu não tivesse acabado de gritar com ele. - Acho que Pearl gosta de manter
Minerva para si. Elas são amigas desde criancinhas, e Min é meio... frágil.
Reagi com desdém. Talvez seja fácil derrubar viciados, mas eles nunca são frágeis. Têm almas semelhantes a velhos sapatos de couro reforçados com aço e são quase
tão bons quanto amigos.
Da peixaria do outro lado da rua, um grande sujeito asiático nos observava, segurando um taco de beisebol. Quando acenei e sorri, ele deu um sinal e voltou a jogar
baldes de gelo usado sobre o asfalto, para que derretessem. Os pedaços de gelo brilhavam e cheguei perto para triturar alguns com meus pés.
Pearl idiota. Moz idiota. Guitarra idiota.
Espalhado na rua, o gelo parecia preto. As pessoas diziam que se você pusesse água negra no freezer bem rápido, o líquido congelaria antes de evaporar, e você teria
gelo negro. Obviamente, elas nunca explicavam por que alguém desejaria algo desse tipo no refrigerador. Quando eu ia à casa de Moz, ainda atravessava a rua, para
não chegar muito perto daquele hidrante, apesar da tampa especial que agora mantinha as crianças longe.
- Eu tenho que te contar uma coisa - disse Moz. Suas botas moíam o gelo atrás de mim. - Mas você não pode contar a ninguém.
- Ótimo - reagi, triturando mais gelo. - É exatamente disso que essa banda precisa: mais segredos.
Moz ainda não havia contado a Pearl que ele estava pagando a Alana Ray, ou me contado de onde vinha o dinheiro. E, aparentemente, ele e Pearl tinham planos secretos
para mim...
- Min me deu o telefone dela.
Girei para encará-lo; ele estava sorrindo.
- Cara! Você acha ela gata mesmo!
Ele riu e, com o pé, lançou uma chuva de granizo na minha direção.
- Zahler, vou explicar uma coisa a você. A Minerva não é gata. Ela é muito mais do que gata. Ela é um rifle de plasma de 50 mil volts. É uma turbina a jato.
Fechei os olhos e soltei um gemido. Quando Moz começava a falar daquele jeito de uma garota, estava tudo perdido. Suas obsessões eram como um solo de guitarra épico
tocando em sua cabeça, riffs intermináveis sem qualquer lógica específica.
- Ela é iluminada - continuou ele. - Uma estrela do rock. Por isso, é natural que seja um pouco estranha. Mas, bem, você está certo. Talvez seja um pouco estranho
o negócio com a Pearl...
Quando ele pronunciou aquelas últimas palavras, eu provavelmente deveria ter tentado convencê-lo a esquecer o assunto. Mas, naquele momento, e estava muito cismado
com o lance da guitarra - morrendo de raiva do Moz e Pearl. Eles podiam pelo menos ter me dito que eu era um idiota sem valor algum em vez de pensar isso às escondidas
e fazer planos.
Abri os olhos.
- Então você está falando sério quando diz isso de rifle de plasma e turbina a jato?
- É, cara. Ela é demais.
Não me importei. Não era culpa minha se Moz havia decido estragar tudo.
- Quando foi que ela te deu o telefone?
- No domingo retrasado, acho?
- Há dez dias? - Revirei os olhos na esperança de fazê-lo sentir-se um idiota. - Não acha que talvez deva fazer algo a respeito?
Ele se balançou de um lado ao outro por um tempo.
- É que foi meio estranho. Ela me deu o número sem que Pearl visse e pediu que eu ligasse à uma da manhã. Pontualmente. Até me fez acertar meu relógio com o dela.
- Então ela é estranha. Já sabíamos disso, não?
- Acho que sim. É, eu devia ligar.
Ela voltou a andar, meio se contraindo, ao estilo de Alana Ray antes dos ensaios.
Suspirei, me sentindo pior ainda. Eu tinha acabado de incentivar Moz a ir atrás de uma garota viciada e esquisita - e nem estava melhor por ter feito isso. Parei
perto de uma fileira de pequenas caçambas de lixo do lado de fora de um restaurante. Pulei em cima de uma delas e sentei na ponta, batendo com os calcanhares no
metal.
- De qualquer maneira - disse Moz -, o que isso tem a ver com Pearl tocar guitarra?
- Não me lembro. Só sei que essa história toda é um saco. Qual é a graça de ser o terceiro melhor guitarrista de uma banda? Será que a Minerva também toca guitarra?
Ele deu uma risada e sentou ao meu lado.
- Escuta, Zahler. Você é importante para a banda. Você é nossa fonte de energia.
- Como assim? Tipo um mascote?
- Não se lembra do primeiro dia? Se você não estivesse lá, eu e Pearl não teríamos durado nem dez minutos.
- E daí? Vocês já superaram isso. Não precisam mais de mim. - Olhei para ele, contrariado. - Afinal, qual é esse plano da Pearl?
- Bem, ela acha que ter mais de uma guitarra não é exatamente Nova Som.
- Ah.
Minha garganta travou, e meus pés pararam de balançar no ar.
Eu tinha dançado. Já era.
- Pearl ia contar, mas acho que vou ter que fazer isso agora. Ahn, é que... queremos que você toque baixo.
- Como é que é?
- Precisamos de um baixista. E, nessa banda, toda vez que botamos alguém novo, vira uma confusão. - Ele balançou a cabeça. - Estou tentando dizer que não quero ter
de explicar a Alana Ray para alguém novo. - Sua voz quase sumiu. - Nem Min, para dizer a verdade.
Um dos meus calcanhares bateu no metal. Um bum baixinho.
- Mas, Moz, eu passei os últimos seis anos tocando guitarra.
- Zahler, você passou os últimos seis anos tocando guitarra como se fosse um baixo. - Nunca notou que todas as partes que compus para você usam as quatro cordas
de baixo, quase sem acordes? Você poderia fazer a troca em cinco minutos. Eu teria dito para você trocar anos atrás, mas nós não tínhamos um baixo.
- Moz - comecei a dizer, vendo meu mundo desmoronar -, continuamos não tendo um baixo.
- Temos sim. Pearl tem um embaixo da cama.
Soltei um grito e bati com os dois calcanhares na caçamba.
- E isso não quer dizer que ela toca baixo? Provavelmente melhor do que eu, considerando que nunca toquei em nenhum, à exceção de uma vez numa loja de instrumentos.
- Não se preocupe com ela. - Ele sorriu e espalmou a mão para mim. - Vamos lá.
Fiquei olhando para a mão de Moz.
- Vamos lá o quê?
- Bota sua mão em cima de minha.
Estranhei aquilo, mas acabei obedecendo. Meus dedos eram uns 2 centímetros maiores do que os de Moz. Dedos grandes, gordos e desajeitados.
- Caramba - disse ele. - Muito saneiro. Devia tentar isso com a Pearl qualquer dia. As mãos dela são minúsculas.
- São mesmo?
Lembrei de ter tocado baixo na loja, batendo nas cordas grossas como se fossem minhocas de metal. Os trastes ficavam a quilômetros uns dos outros.
- São. Ela mal consegue segurar o braço do baixo com a mão esquerda.
Depois de olhar para meus dedos grandes, gordos e sacanas, dei uma risada.
- Mal consegue segurar um baixo, hein? Grande gênio musical.
15. The Need
-MOZ-
Foi estranho esperar até uma da manhã em ponto.
Eu sempre odiei relógios e compromissos, aquilo era diferente. Algo parecido com a sensação que experimentei pouco antes de a TV se espatifar na rua diante de mim.
Meus poderes mágicos avisavam desesperadamente que alguma coisa estava para acontecer.
Como se eu já não soubesse.
Fiquei sentado na cozinha, com as luzes desligada e a janela bem aberta, tentando encontrar uma brisa naquele fim de setembro. O apartamento dos meus pais fica no
sexto andar. Toda noite, resquícios de calor sobem do resto do prédio, como se morássemos no alto de uma panela de pressão. A geladeira velha zumbia e se chacoalhava
num esforço para manter a cerveja gelada e evitar que o leite azedasse. Às vezes, um barulho de sirene chegava da rua, acompanhado dos chiados de estática dos rádios
da polícia.
A noite zunia ao meu redor. Minha pele formigava e meus dedos passeavam sobre as cordas desplugadas da Stratocaster, arrancando pequenos ruídos. Imaginei as notas
num volume alto e a voz dela cantando por sobre a melodia que eu tocava.
A história toda de uma da manhã não fazia sentido. Minerva havia dito algo sobre não acordar os pais. Porém, se aquele fosse o problema, por que ligar no meio da
noite?
Imaginei se os pais dela seriam fanáticos religiosos que não a deixavam falar com garotos pelo telefone. Seria aquela a explicação de ela só sair aos domingos de
manhã? Será que eles achavam que Pearl estava levando Minerva à igreja?
Não seria perfeito? Se os ensaios fossem nossa igreja, Minerva seria a grande sacerdotisa.
Passei a unha na corda mais grave, produzindo o som de um pequeno avião a jato caindo no chão. Eu sempre ficava nervoso na hora de ligar para uma garota pela primeira
vez, mesmo quando era uma garota normal, com pais normais. Ou uma garota que não berrava palavras sagradas enquanto eu tocava guitarra.
Minerva tinha me passado seu número de telefone quando não havia ninguém olhando, tinha sussurrado as instruções. Ela sabia que não era uma boa idéia, e eu também:
era o tipo de coisa que acabava com uma banda. O erro daquilo tudo me atormentava no escuro, pairando um centímetro acima da minha pele, como uma nuvem de mosquitos
preparando-se para picar.
E uma da manhã, que, 15 minutos antes, parecia estar a uma eternidade, agora não tardaria a chegar...
Botei a Strat na mesa da cozinha, tirei o telefone do gancho e peguei o número que ela tinha me passado. A letra dela era horrível, quase tão ruim quanto a de Zahler.
O papel estava todo amassado depois de dez dias no meu bolso, misturado a chaves, moedas e palhetas de guitarra.
Teclei devagar, mantendo em mente que não aconteceria nada até eu apertar o último número. Afinal, eu já havia chegado àquele ponto em outras noites, apenas para
desistir no fim.
No entanto, naquela vez, cinco segundos antes de uma da manhã, quebrei o encanto.
Ela atendeu antes mesmo de o telefone tocar.
- Opa, sem sinal - disse ela, baixinho, o que no início não fez sentido nenhum para mim.
- Minerva?
- Finalmente você ligou, Mozzy - sussurrou ela.
Passei a língua sobre os lábios, que pareciam secos e ásperos como torradas queimadas.
- É, liguei.
- Estou sentada aqui, esperando, há dez noites seguidas.
- Ah, me desculpa por ter demorado tanto.
Notei que eu também sussurrava, embora o quarto dos meus pais ficasse na outra ponta do apartamento.
- Tenho sido pontual toda noite, pegando o telefone exatamente à uma hora. - Ela suspirou. - E toda vez... tuuuuuu.
- Ah, o sinal de linha.
Limpei a garganta, sem saber o que mais dizer.
- Um sinal de linha em vez de você - continuou ela, deixando o sussurro para trás.
Minerva falava do mesmo modo que cantava. Uma voz baixa e rouca que se misturava ao ruído da geladeira e ao zumbido dos carros passando na rua.
Alcancei a Strat e toquei uma corda aberta.
- Seu telefone não toca? - perguntei.
- Toca, sim. - Ouvi um barulho metálico distante, como se ela tivesse chutado algo. - Mas toca também no quarto dos meus pais e lá embaixo. Só Pearl e Luz deviam
ter esse número.
- Que saco - comentei, imaginando se Luz seria outra amiga.
- E o pior é que Luz levou todos meus números.
- Seus números? Ela roubou sua agenda de telefone?
- Não, Moz, seu bobinho - disse ela, rindo. - Os botões com os números. Não tenho como ligar para fora.
- Que merda. É sério isso?
Qual era a parada com os pais dela? Ou com Luz, quem quer que fosse?
- Telefone maldito. - Outro barulho baixinho. - Enfim, tenho esperado aqui, sentada, toda noite, torcendo para você ligar. Desejando isso, mas nervosa com a possibilidade
de um toque escapar. Pegava o telefone sempre à uma em ponto, e tudo que eu encontrava era tuuuuuu... como um inseto irritante.
- Me desculpa por isso. - Fiquei balançando na cadeira da cozinha, lembrando dos momentos que passei olhando para meu telefone, à uma da manhã, desejando ter coragem
para ligar. - Bem, agora estou conversando com você.
- Humm, uma delícia. Finalmente podemos conversar sem ninguém por perto.
- É, legal - respondi. Minha garganta estava seca, e aquela sensação ruim agora se agarrava à minha pele, como uma coceira em todo meu corpo. Aquilo lembrava minha
infância, quando eu me escondia no armário, empolgado e ao mesmo tempo com medo de que alguém abrisse a porta. - Então, posso fazer uma pergunta, Min?
- Claro. Pode me perguntar qualquer coisa agora que não tem ninguém ouvindo.
- Ah, sim. - O motor da geladeira parou. Fiquei mergulhado no silêncio. O volume da minha voz foi se abaixando à medida que eu falava. - Quando você e Pearl têm
de sair correndo, não é para aulas de espanhol, certo?
Ela deu uma risadinha.
- Não. Temos de voltar antes que Luz saiba que eu saí.
- Ah, a Luz de novo. - Notei minha mão direita toda enrolada no fio do telefone. Meus dedos estrangulados estavam brancos devido à falta de sangue. Comecei a desenrolar
o fio. - Esse nome é espanhol, não é?
- Sim. Como em "Haja Luz".
- Então ela é sua professora de espanhol?
Ou sei lá o quê.
- Sí. Y um problema grande.
Até eu era capaz de entender aquela frase em espanhol. Luz era um grande problema. Mas o que exatamente era ela? Uma babá? Algum tipo de tutora religiosa responsável
pela educação de Min? Uma psicoterapeuta?
- No que está pensando? - perguntou ela.
Eu me remexi na cadeira, sentindo a coceira novamente.
- Estou pensando sobre você.
- Humm. Pensando se sou louca? Se sou má?
Engoli em seco.
- Não. Mas não conheço você de verdade, fora dos ensaios.
- Mozzy, acho que você me conhece, sim. Por isso queria que você me ligasse. Porque você entende as coisas.
- Ahn, entendo?
- Claro. Fecha os olhos.
Atendi o pedido, e ela começou a cantarolar bem baixinho. O som mal vencia a distância pelos cabos telefônicos. Visualizei Min cantando na sala de ensaio, me capturando
em seu empuxo enquanto tocávamos. Pedaços de suas músicas ecoavam na minha cabeça. A sensação era de estar sendo arrastado para algum lugar.
Ela parou de cantar, mas eu ainda ouvia sua respiração.
- De onde você tira as letras, Min? Para nossas músicas?
- Lá debaixo - respondeu ela, dando um sorrisinho.
- Como assim? De baixo da sua consciência ou algo assim?
- Não, bobinho - sussurrou ela. - De baixo da minha casa.
- Ahn... Sério? - De olhos fechados, eu a sentia muito próxima, como se estivesse sussurrando no meu ouvido. - Você escreve no porão?
- Eu fazia isso no início, quando me deixavam ir lá embaixo. Eu tinha febres e sentia que havia algo sob a casa. Algo tremendo.
- Sei do que está falando. Sinto algo meio que... embaixo de nós quando você canta.
- Alguma coisa no chão - disse ela, com a respiração mais rápida. - Você entende mesmo as coisas.
- Às vezes sinto minha música simplesmente zumbindo no ar. Mas aí a puxo para perto e a amarro a algo que seja real.
- Humm. Isso é mais real do que você pensa. - A respiração de Min se acalmou por um instante. Fiquei apenas ouvindo até ela perguntar. - Moz, você quer mais?
Engoli em seco.
- Como assim?
- Você... quer... mais? Posso lhe dar o resto. Você está experimentando apenas uma fração mínima.
Abri os olhos. De repente, a escuridão da cozinha parecia mais intensa.
- Uma fração do quê? - perguntei.
- Do que eu tenho. Venha aqui que eu mostro a você.
A mesa parecia tremer: era meu coração batendo forte na ponta dos meus dedos.
- Ir aí... agora?
- Sim, Mozzy. Venha salvar a mim e ao Zumbi.
- Ahn... Zumbi?
- Ele é meu escravo morto-vivo.
Engoli em seco.
- Ah, é?
Ela deu uma risadinha pouco mais alta que um sussurro.
- E o hálito dele cheia a comida de gato.
- Ah. - Respirei aliviado. - O Zumbi também tem bigodes, não tem?
- Isso. E ele sabe das coisas. Mas... Moz?
- Sim?
- Estou com fome.
Eu ri. Minerva era tão magra que nunca a imaginei com fome. Ela comia uns pedacinhos de carne industrializada durante os ensaios, mas eu pensava que era para a voz
ou algo assim.
- Você quer ir pegar alguma coisa para comer? Eu espero.
Na verdade, eu queria ficar parado, em silêncio, por um ou dois minutos, para me recuperar. Para me coçar todo.
- Não posso - respondeu ela.
- E por que não?
- O negócio é o seguinte: a porta do meu quarto tem uma tranca maldita. Do lado de fora.
- Sério? Tipo... seus pais mantêm você trancada de noite?
- De dia também. Porque eu estava doente. - Voltei a fechar os olhos. Uma nova nuvem de sensações ruins caiu sobre mim, espalhando um zumbido pelo ambiente. - É
por isso que você precisa vir me salvar. Venha me tirar daqui e eu mostrarei tudo.
Mordi os lábios.
- Mas você mora no... Brooklyn, não é?
Ela grunhiu.
- Não seja bobo. É só pegar a linha F do metrô. Meia hora.
Só meia hora. Mais o tempo que o trem levaria para chegar. Talvez uma hora no total. Não seria uma eternidade. Eu ainda não tinha medo do metrô.
Se eu não fosse vê-la, quanto tempo levaria para cair no sono, sozinho no meu quarto? Mil horas, no mínimo.
Toda vez que a via cantar, suas músicas se movendo com minhas mãos enquanto eu tocava, eu acabava indo dormir com seus gritos ainda ecoando na minha cabeça. Toda
vez eu pensava em mil maneiras de segui-la até o Brooklyn. E agora ela estava me convidando.
Se eu dissesse não, aquela coceira nunca deixaria minha pele em paz.
- Estão todos dormindo aqui - dizia ela. - Eu posso mostrar de onde vem minha música.
- Tudo bem, Min. Eu vou. - Levantei, como se fosse sair imediatamente pela porta, mas então minha cabeça começou a funcionar. Sentei de novo. - Como você vai sair?
- Você vai me tirar daqui. É fácil. Pearl faz isso sempre.
- Ahn, eu tenho que escalar até a janela ou algo assim?
- Não bobinho. É só subir a escada. - Ela riu. - Mas, antes, você vai ter que achar a chave mágica...
16. Love Bites
-MINERVA-
Mozzy estava levando uma eternidade para chegar.
Eu tinha me arrumado tanto para ficar sentada na escrivaninha, me olhando no espelho, estava me matando. Zumbi andava para lá e para cá, sabendo, pelo tilintar dos
meus brincos, que eu pretendia sair.
- Não falta muito - eu disse baixinho.
Meu estômago roncou. A perspectiva da visita de Moz havia alterado o equilíbrio dentro de mim - a coisa esfomeada tinha acordado, tirada do sono forçado a que tinha
sido submetida por Luz. Eu já havia devorado todos meus pedacinhos de carne de emergência e tentava não pensar mais naquele cheiro incrivelmente delicioso e intenso.
Resolvi comer um pouco de pele de porco, deixando a textura gordurosa cobrir o interior da minha boca. Zumbi ficou me rodeando, miando, até que resolvi dar meus
dedos para ele lamber.
- Logo vai poder brincar com seus amiguinhos.
Dei uma olhada no relógio: passavam das duas. Moz maldito. E se ele tivesse desistido? Eu queria me aproximar da terra. A sensação de cantar era maravilhosa, mas
eu queria sentir a poeira debaixo das minhas unhas, queria cheirar e saborear as coisas lá embaixo.
Eu precisava aprender mais, dar substâncias às palavras do meu caderno.
Meu estômago roncou novamente. Senti uma coisa estranha que eu não sentia havia algum tempo. Como antes de Luz... meio... inumana. Aquilo não era bom.
Não posso comer Mozzy, pensei, enquanto descascava um dente de alho. Estava fresco, do jeito que Luz dizia ser melhor, com a casca semelhante a papel ainda manchada
de roxo. O dente de alho se partiu entre meus dentes, forte e quente como sangue fresco de galinha. Minha inspiração seguinte levou o sabor aos meus pulmões, e então
meus nervosos se acalmaram.
- Agüenta isso - sussurrei para a coisa esfomeada.
Tomei um gole da garrafinha de tequila que Pearl tinha levado escondida para mim e fiz um bochecho. Não queria deixar um gosto estranho para Moz.
Com as coisas claras, graças à onda proporcionada pelo alho, tirei os óculos escuros e me olhei no espelho, imaginando em que direção caminharia naquela noite.
Algumas coisas, como os chás e tintura de Luz, melhoravam meu estado e me deixavam mais chata e sensata. Outras, como cantar na banda de Pearl, libertavam a magnífica
fera dentro de mim e invocavam as coisas enormes do subterrâneo. Era a arte de encontrar o ponto de equilíbrio - até onde ir com os garotos, com a bebida, com lugares
perigosos -, mas ampliada até causar tremores na terra inteira.
Eu não sabia em que direção Moz me levaria. Sabia apenas que minhas duas metades queriam muito que eu o levasse para embaixo da terra. Porém, estava bastante certa
de que tinham intenções diferentes ao que fazer com ele uma vez lá.
Esmaguei outro dente de alho e dei outro gole na tequila só para garantir.
A escada rangeu... Moz.
Fiquei de pé, caminhei até a porta e encostei a orelha nela. Ele estava no pé da escada, subindo lentamente. Minha audição sedenta percorreu a casa inteira: o coração
de Max batendo no quarto ao lado, o ronco de papai baixinho e constante, nada da minha mãe virando páginas de algum livro que ela lia tarde da noite na cama. Apenas
silêncio, com exceção dos pés lentos e cuidadosos de Moz se arrastando escada acima e do ranger ocasional da casa esfriando.
Zumbi andava em oito por entre minhas pernas.
- Sem miados - sussurrei. - Mamãe está ouvindo.
Deslizei a bochecha pela porta a botei o nariz bem perto da fresta. Dei uma fungada.
Moz ainda estava muito longe para eu sentir seu cheiro. Contei as batidas do meu próprio coração até mil e encostei minhas duas mãos abertas na porta, deixando o
peso ansioso do meu corpo cair sobre ela. Soltei um grunhido. Nem Pearl subia a escada tão devagar.
Finalmente, ele chegou ao andar de cima e pude captar seu cheiro, que transmitia nervosismo e insegurança.
E fome. Sorri.
Quando girou a tranca, as tênues vibrações viajaram pela madeira e alcançaram minha pele sedenta. A trava de metal escorregou.
Dei um passo para trás, atordoada. Ser resgatada era muito melhor quando envolvia Moz.
A porta se abriu quase imperceptivelmente.
- Min? - veio a pergunta, num sopro de ar que cheirava ao delicioso hálito de Moz.
Não respondi. Fiquei parada atrás da porta, sentindo o calor de Zumbi no meu tornozelo. Tudo em mim formigava.
A porta se abriu mais um hesitante centímetro.
- Minerva?
- Moz - murmurei, imitando besouro.
- Meu Deus.
Seu rosto apareceu, brilhando sob a luz da vela, tomado por várias expressões.
Botei a mão para fora e toquei seu rosto. Puxei o braço de volta e lambi os dedos. Tinha gosto de nervosismo, mas ainda era Mozzy.
Ele passou se apertando e depois se virou devagar para encostar a porta. Em seguida, fechou os olhos.
- Meu Deus, Min. Essa escada é barulhenta.
Dei uma risadinha e enfiei o braço pela parte aberta de seu casaco. Apertei a palma da mão contra seu peito. Seu coração batia forte de um modo delicioso. Se não
tivesse a respiração tão ofegante, eu conseguiria ouvir seu sangue quente correndo pelas veias.
Não tenha pensamentos pervertidos, me repreendi.
- Mas você conseguiu.
Seus olhos se abriram e um sorriso de alívio fez seu rosto reluzir.
- É, consegui.
Tirei minha mão da estufa embaixo de seu casaco e encostei os dedos na porta.
- Ninguém ouviu você. Pode relaxar.
Moz fez que sim, mas não relaxou nem um pouco. Sua expressão era muito clara. A tensão se transformava em excitação, e seu apetite começava a se manifestar. Seu
olhar percorreu meu vestido justo e minhas botas, ficando mais intenso, prestes a explodir.
- Você está toda arrumada - comentou.
Sorri.
- Bem, é que vamos a um lugar especial, sabe?
- Ah. - Ele olhou para si mesmo: uma camiseta sob o casaco de couro e jeans. - Eu não sabia que... é que são duas da manhã.
- Shhhh. Você está uma delícia. - Eu me abaixei e empurrei Zumbi. - Vamos. É hora de voltar à escada barulhenta.
- Beleza... - Ele pareceu ressabiado. - O gato também vai?
Suspirei. Por que todo mundo fazia cara feia por causa de Zumbi? Ele nunca se metia nos assuntos deles. Zumbi tinha coisas para resolver, lugares aonde ir. Zumbi
também precisava ser resgatado. E ele entendia as coisas.
Se pudesse falar, Zumbi teria nos contado o que estava por vir.
Preferi dizer apenas o seguinte:
- Ele tem um encontro com uma árvore.
- Ah, claro.
Moz sorriu e abriu a porta com cuidado.
Sem o sol maldito estragando tudo, o mundo lá fora era muito melhor.
Na linda claridade das estrelas, eu podia ver as folhas mortas espalhadas pelo chão e as teias de aranha no meio da grama, com insetos capturados em suas danças.
O ar resguardado do sol estava úmido, cheio de aromas e sons.
Botei Zumbi no chão e o vi se enfiar por entre as pilhas reluzentes de sacos plásticos. Aquelas montanhas de lixo estavam vivas no escuro, com a brisa carregando
mensagens vindas de seu interior.
Passei a mão num dos sacos e senti sua superfície lisa e fria. Tinha um cheiro como o do meu quarto, das minhas roupas de cama, de algo que eu e Zumbi compartilhávamos.
Pequenos tremores nas profundezas da pilha de lixo respondiam a minha presença.
- Família - murmurei, sentindo rumores de compreensão percorrerem meu corpo.
- É mesmo. Sua família - sussurrou Moz, olhando preocupado para minha casa, como se a luz da varanda fosse se acender a qualquer momento e papai fosse sair lá de
dentro com uma espingarda. - Aonde estamos indo mesmo?
Seu cheiro de ansiedade fez a fome borbulhar dentro de mim novamente. Eu devia ter levado mais alho. Virei, peguei sua mão e o conduzi pela rua.
- Por aqui. Vou levar você a um lugar onde vou poder mostrar as coisas.
- Ah, tudo bem.
Ele me seguiu num transe silencioso, obediente. Quando nos aproximamos do primeiro cruzamento, reduzi o passo. Estava tudo bagunçado.
Eu tinha crescido naquela rua, mas de alguma maneira as coisas tinham mudado. Um novo mundo havia surgido na minha antiga vizinhança - um espaço de cheiros, sons
escorregadios e limites territoriais. Os antigos mapas na minha cabeça tinham se desintegrado naqueles dois meses, transformando as placas da rua em sinais incompreensíveis.
- Moz, em que direção fica a estação da linha F?
- Vamos a algum lugar de metrô? Min, são umas duas e meia!
- Não vamos pegar o metrô. Só preciso me lembrar. - Apertei sua mão e observei seus olhos salientes e sedentos. - Fiquei presa por um tempo, lembra?
- Ah. - Seu pescoço se ondulou quando ele engoliu. - Claro. Fica para esse lado.
Enquanto seguia Moz, eu via lugares familiares se revelando na nova realidade. O terreno baldio m quarteirão acima, agora vivo com formas vibrantes; minha antiga
pré-escola, com seus balanços rangendo na brisa; o melhor restaurante do Brooklyn, com seu lixo cheirando a mel rançoso e grão-de-bico, cheio de movimento.
Luz tem me privado de tudo isso, pensei. Ela queria me curar de meus novos sentidos, queria me manter afastada daquele mundo luxuoso à meia-luz. A cada passo que
eu dava, descobria mais coisas... Ainda havia loucura suficiente dentro de mim para compreender.
Moz me levou até a estação da linha F no quarteirão seguinte. Eu o puxei para a escadaria e respirei o ar subterrâneo por um atordoante e saboroso momento, como
quando la musica viajava pelo meu corpo. A fera roncou, revirando-se alegremente no meu estômago.
- Mas eu achei que nós não...
- Não vamos pegar o metrô - repeti. - É apenas um atalho.
- Um atalho? - perguntou ele, sem acreditar no que ouvia.
- Mozzy, você só vai conseguir o que quer embaixo da terra. Mas acredite em mim: vai adorar o sabor.
Ele piscou e concordou. Eu sorri. Cobri os olhos com as mãos enquanto o arrastava na direção das luzes fluorescentes, sentindo seu pulso agitado sob meus dedos.
A cada passo que dávamos, a força de atração se tornava mais forte.
Moz também a sentia, como se aquela influência percorresse minha pele e entrasse na dele, uma corrente elétrica de desejo. Ou talvez ele pudesse sentir o cheiro
em mim. Ali, embaixo da terra, eu me sentia ardendo. A fera dentro de mim dava saltos para trás e gritava que estava quase livre. O que quer que existisse lá embaixo
a havia libertado das amarras de Luz. Minha língua passava inquieta pelos meus dentes.
Não... posso... comer... Mozzy.
Mas eu não conseguia parar de avançar.
Atrás de mim, Moz arfava, com os olhos brilhando como vidro molhado. Quando pulei da plataforma para os trilhos vazios, ele não disse uma palavra, apenas hesitou
por um instante antes de me seguir. Seus lábios estavam repletos de sangue, e eu sentia seu coração batendo rapidamente na garganta. Era tudo que eu podia fazer
para não levá-lo até lá. Mas eu sabia que só ficaria melhor à medida que fôssemos mais fundo. Puxei-o para a escuridão do túnel.
As pedrinhas eram esmagadas por nossos pés. Havia pequenos ruídos e o cheiro das criaturas ao nosso redor. Meus amigos, minha família.
Foi então que eu senti um arrepio na ponta dos pés... perigo.
Moz me segurou. Ele também havia sentido.
- Merda! É um trem vindo? - perguntou ele. Fiquei de joelhos e botei a mão no trilho. - Cuidado! Isso aí...
- Não se assuste, Moz. - Apontei com a outra mão. - Aquele é o de eletricidade. Esse aqui é só para ouvir.
O metal liso e frio sob minha mão tremia, mas não por causa da aproximação de um trem. Tudo ao nosso redor tremia: o cascalho, as vigas de metal, a iluminação pendurada
pelos fios. A terra se agitava de medo.
Estava me chamando para a batalha - la lucha. Também chamava a Moz.
De repente, tomei consciência de algo que as curas de Luz haviam ocultado de mim, algo que eu havia apenas vislumbrado em minhas músicas. As coisas subterrâneas,
a coisa que fazia a terra roncar, era nosso inimigo.
A fera dentro de mim tinha sido criada para combater aquela coisa.
- Temos que tomar cuidado. Está perto - avisei.
Ele respirava com força.
- Min, eu já ouvi isso no ensaio. Está nas suas músicas.
- Muito esperto, Mozzy.
- Mas como isso pode ter um... cheiro?
- Porque tem um corpo. É algo real e perigoso. E não acho que seria legal encontrá-lo agora. Por isso, fique quietinho.
Arrastei-o mais para dentro do túnel, na direção da trilha deixada pelo antigo inimigo, um lugar perfeito para estimular a fera dentro de mim.
À medida que nos aproximamos, eu sentia o cheiro das amarras de Luz se soltando, as iscas, as armadilhas e os esporos da fera se espalhando pelo meu corpo. Finalmente
entendi como funcionava. Lá embaixo, a fera não queria devorar Mozzy, mas sim se espalhar.
De alguma forma, o antigo inimigo a deixava... excitada.
Lá estava o buraco, com a terra revirada e reprisada, como uma ferida numa das laterais do túnel feito por seres humanos. Estava manchado pela substância negra que
o inimigo usava para fundir a terra. Agora eu percebia que o inimigo ancestral era enorme, grande o bastante para cavar seus próprios túneis, embora gostasse da
viagem gratuita de metrô.
Puxei Moz para dentro da pedra aberta e empurrei-o para a beirada irregular, segurando-o pelos ombros de um jeito que ele não conseguia se soltar.
Suas pupilas estavam do tamanho do céu.
- Min...
- Shhh. - Encostei o ouvido na parede do túnel e prestei atenção... O inimigo estava se afastando. Minha fome aumentava com a redução de sua influência. Meus dentes
queriam rasgar Moz em pedaços, saciar meu apetite como nenhum sangue de galinha conseguiria...
- Precisa dar isso a você agora.
- Mas o que...
- Mozzy... - Tapei sua boca. - É o seguinte: se ficarmos aqui conservando, acho que vou comer você.
De olhos arregalados, ele assentiu.
Tirando a mão da frente, me curvei e deixei minha boca cobrir a dele. A fera explodiu. Ela lutou para atravessar minha pele, tentando passar por cada poro, se misturando
ao suor, à saliva, ao sangue, saturando cada gota de mim.
Infectando Moz, penetrando em seu corpo.
O beijo levou longos segundos, e, quando acabou, eu pingava.
Dei um passo para trás e observei os olhos brilhantes de Moz. Ele arfava, belo e infectado. Um alívio tomou conta do meu corpo. Dessa vez, beijei-o mais suavemente,
finalmente certa de que ele estava seguro. Pelo menos uma vez, a sanidade havia vencido a loucura.
Depois do primeiro beijo, a fera dentro de mim não queria mais se desfazer daquele novo guerreiro da luta. Ela estava satisfeita.
Mas quanto a mim... eu estava apenas conversando.
17. Foreign Objects
-PEARL-
Eu tinha comprado um vestido novo só para aquilo. E todos os tipos de maquiagem que existiam. Meu cabelo havia sido todo mudado à tarde - cortado, revirado e modelado
com gel. Cheia de jóias emprestadas, eu me olhava no espelho do banheiro, segurando uma lenta de contato na ponta do dedo.
Minha mãe estava em êxtase.
- Você consegue, Pearl - disse ela, pairando atrás de mim, igualmente arrumada.
- O problema não é esse. - Olhei para a lente de contato, que cintilava como um círculo de luz. Um brilho terrível, doloroso. - A questão é se eu quero.
- Não seja boba, querida. Você mesma disse que queria ficar o mais bonita possível hoje à noite.
- Humm.
Palavras idiotas que haviam levado mamãe a um rompante de compras.
Um milhão de anos antes, quando tinha 17 anos, mamãe havia ganhado uma festa de apresentação à sociedade, como uma debutante tradicional. Ela ainda guardava as fotos.
Tínhamos permanecido em Nova York, apesar das pilhas crescentes de lixo e do perigo das ruas, porque as festas aconteciam por lá. Então, ela estava provavelmente
torcendo que aquele fosse o início de uma nova era para a Linda Pearl. Sem jeans ou óculos ou bandas.
- Eu podia ir sem enxergar nada - sugeri.
- Que besteira. Para se realmente irresistível, é preciso estabelecer contato visual. E não quero que você fique tropeçando sobre as obras de arte.
- Ela é fotógrafa, mãe. Fotos geralmente são penduradas na parede, não há como tropeçar nelas.
Normal. Minha mãe sempre era convidada para essas coisas, mas nunca se dava ao trabalho de procurar algo sobre o artista no Google Naquele caso, acho que foi sorte
minha. Uma pesquisa poderia revelar quem mais estava na lista de convidados e descobrir a verdadeira razão do meu interesse em ir.
- Pára de enrolar, Pearl. Sei que você consegue.
- E como sabe disso, mãe?
- Porque eu uso lentes de contato e seu também usava. Você tem os genes para usar lentes!
- Ótimo. Obrigado por me passar genes de enfiar-o-dedo-no-olho. E pelos genes de olhos defeituosos também.
Olhei para a pequena lente que secava gradualmente na ponta do meu dedo. Eu imaginava todos meus ancestrais das cavernas, completamente singulares, enfiando pedras
e pedaços de pau nos olhos, sem saber que a recompensa viria milhares de gerações depois quando eu tivesse que ficar bonita para a abertura de uma exposição numa
galeria de arte.
- É isso aí, rapazes, essa é por vocês - declarei, respirando fundo e abrindo bem meu olhos esquerdo.
À medida que meu dedo se aproximava, o pequeno disco transparente crescia, até que tudo virou um borrão. O resultado foi um acesso de piscadas.
- Encaixou? - perguntou mamãe.
- Como é que eu vou saber? - reagi, abrindo um olho, depois o outro e piscando diante do espelho. Pearl borrada, Pearl nítida. Pearl borrada, Pearl nítida. - Ei,
acho que encaixou.
- Viu? Foi fácil.
- Facílimo. Vamos indo.
Joguei mais maquiagem dentro da minha bolsa novinha. Eu via um brilho leve da corrente prateada no meu olho embaçado. Minha mãe estranhou.
- E a outra?
Alternei os olhos novamente - mãe borrada, mãe nítida - e dei de ombros.
- Desculpa, mãe. Acho que não tenho os genes certos para isso.
Enquanto eu fosse capaz de reconhecer rostos, o semimundo era o bastante para mim.
Fora do prédio, Elvis armou uma cena por causa do me novo visual, fingindo que não me reconhecia e tentando me deixar envergonhada. Quando mais velha eu ficava,
mais ele pensava que seu trabalho era me fazer sentir como se eu tivesse dez anos. E, nos últimos tempos, ele andava extremamente bom naquilo.
O estranho mesmo, no entanto, foi que, na chegada à galeria, eu me sentia como alguém de 25 anos. Não havia flashes quando Elvis abriu a porta da limusine, mas havia
um cara de prancheta e fone; outros amantes da arte enfeitadíssimos passando pela entrada e deixando os guarda-costas amontoados na rua; e barulhos de copos e de
falatório vindos de dentro... Era quase como subir ao palco.
Mesmo com tudo aquilo acontecendo, Nova York ainda tinha inaugurações de exposições. A civilização ainda era o máximo, e lá estava eu, toda enfeitada. Pronta para
arrasar.
Uma vez dentro da galeria, a primeira providência era me livrar da mamãe. Ela insistia em me apresentar a amigos. E todos seguiam o roteiro, fingindo não me reconhecer
e findo de queixo caído, seguindo o exemplo de Elvis. Logo mamãe já estava conversando com estranhos, soltando comentários sobre "minha filha" e obviamente esperando
resposta do tipo "não é sua irmã?".
E ela ainda pergunta por que não me arrumo mais para sair.
Depois de um tempo, porém, consegui escapar com a desculpa esfarrapada de querer dar uma olhada na, ahn, arte. Seus dedos ainda passaram pelo meu ombro, enquanto
eu fugia, lembrando a todos, mais uma vez, que eu era sua filha.
Abri caminho diretamente até uma mesa cheia de taças de champanhe - fileiras e colunas de bebida espumando furiosamente. Sorri. O open bar: onde mais estaria um
representante de gravadora numa abertura de exposição?
Peguei uma taça e comecei a andar em torno da mesa, mantendo um olho atento (só um) ao rosto que eu havia pesquisado na internet de manhã. Minha armadilha estava
montada, e eu, pronta. Com todas as falhas na memória, vestida de modo encantador e posicionada no ponto perfeito. Não podia fazer mais nada além de esperar.
Então, esperei...
Vinte minutos depois, minha animação havia sumido.
Nenhum caçador de talentos de gravadora tinha aparecido, a taça estava vazia e meus pés reclamavam dos sapatos novos. A festa fervia ao meu redor, ignorando meu
vestidinho preto e minhas jóias emprestadas, como se eu fosse algum tipo de não-entidade. As bolhas estouravam de modo desagradável na minha cabeça.
Por toda minha existência, eu havia me perguntado como o único propósito da vida da minha mãe podia ser ir a festas, enquanto o mundo se desintegrava ao seu redor.
Finalmente Google me mostrou a resposta: a razão da existência dela era me levar àquela festa. Astor Michaels, o caçador de talentos mais sacana da gravadora Red
Rat, também era o maior colecionador de trabalhos daquela fotógrafa. Ele tinha descoberto o Novo Som e assinado contratos com o Zombie Phoenix e Morgan's Army, bandas
que não eram estouros comerciais, mas sim corajosas como nós.
Era a ocasião perfeita, como da vez em que conheci Moz. Sem dúvida, era o destino brincando com a agenda social de mamãe.
No entanto, enquanto eu pegava minha segunda taça e andava no meio da multidão, reparando nos duzentos rostos meio borrados sem reconhecer nenhum deles, comecei
a considerar uma possibilidade terrível: o destino poderia estar me sacaneando?
E se Astor Michaels estivesse viajando? Ou ocupado atrás de bandas numa casa desconhecida em vez de naquele lugar? E se o Google tivesse mentido para mim? Todo o
meu esforço seria desperdiçado. Na verdade, a vida inteira da minha mãe seria desperdiçada...
Parada ali, meio tonta, olhando para a taça meio vazia, cheguei a uma conclusão igualmente desanimadora: o gene do champanhe era outra que não me havia sido passado
por mamãe. Talvez fosse a metade da minha visão borrada ou o burburinho da multidão ao meu redor alheia a mim, mas me parecia que a realidade estava dentro de um
liquidificador.
Eu precisava assumir o controle.
Respirei fundo e saí do meio das pessoas, caminhando até um canto para ver as fotos. Eram imagens gigantes da crise sanitária: montanhas reluzentes de sacos plásticos,
lixeiros de greve, muitos ratos. Todos tinham um ar dramático e estranhamento belo. Eram quase de tamanho real, dando a impressão de que se poderia entrar nelas.
O que levantava a seguinte questão: por que alguém se interessaria em pendurar aquilo na parede quando tudo acontecia logo ali no lado de fora?
Os convidados pareciam concordar. As pessoas se aglomerar no meio do salão, fugindo das imagens da decomposição. Só alguns andavam pelos cantos da festa, calados
e deslocados, como alunos do segundo ano na formatura dos veteranos.
Pobres amantes da arte, pensei. Em seguida, num acesso genial inspirado pelo champanhe, deduzi onde Astor Michaels estava se escondendo.
Ele não estava ali pela festa, mas pela arte. Era uma dos alunos do segundo ano.
Comecei a circundar o salão, desta vez ignorando a multidão no meio, aquelas pessoas que aparentavam ser bem relacionadas, felizes e bacanas. Procurei os caras solitários,
os fracassados.
Na metade do percurso, localizei-o num canto do meu campo de visão - por sorte, do olho bom. Ele estava apreciando uma foto imensa de um santuário montado por funcionários
de limpeza no Bronx: mãos em oração, crucifixos e caveiras (de novo!) amontoados para garantir proteção no caminho.
Tomei um gole caprichado de champanhe para ficar mais firme. As falas que eu havia decorado começavam a correr pela minha cabeça.
O que estou escutando? Ah, é só uma banda nova bem lateral.
Meus dedos se enrolaram com o fecho da minha bolsa nova e depois reviraram o interior todo até achar o MP3 player lá no fundo. Os fones de ouvido, para complicar,
estavam misturados à maquiagem, ao gel para cabelos e a milhões de outras coisas que eu nunca costumava carregar. Após longos segundos desatando nós, consegui libertar
o aparelho e botar os fones de ouvido. Mas onde estava o cordão? Fiquei olhando para aquele saco sem fundo em pânico, e cheguei à conclusão de que o havia esquecido.
Lembrei das horas passadas na loja da Apple à procura do cordão perfeito: couro preto com um conector USB de aço reluzente. Eu podia vê-lo, ainda na embalagem, em
cima da minha cama ao lado de todas as outras porcarias.
Obviamente, aquele vestido de festa idiota, como qualquer vestido de festa idiota, não tinha bolsos. Eu ia parecer óbvia demais com um MP3 player na mão. E um par
de fones de ouvido saindo da bolsa não me faria parecer a garota antenada e criadora de moda que eu pretendia parecer. O tipo de garota que diz coisas como...
Não, eles não têm gravadora. Todo mundo simplesmente conhece eles.
Fechei bem os olhos, tentando pensar.
Eu só podia botar o aparelho num lugar.
Tomei um gole de champanhe, liguei o aparelho e joguei bem no meu decote. Encaixou certinho. Senti até um certo calor ali. E estava quente mesmo: olhei para baixo
e vi que, ao remexer o interior da bolsa, eu tinha acionada a iluminação da tela.
Moldados pelo veludo preto do vestido, meus peitos brilhavam num tom suave de azul.
Na onda do champanhe, até achei que o visual era bacana. Carregar suas músicas daquele jeito talvez não fosse o Taj Mahal da classe, mas certamente atrairia a atenção
do cara.
Cheguei mais perto.
Em que língua ela está cantando? Na verdade, acho que não é língua alguma.
O aparelho estava configurado para tocar nossas quatro melhores músicas em ordem aleatória. Longas e intensas declamações de Minerva, pontuadas pelas melodias simples
e limpas de Moz, destruídas em milhares de pedaços cintilantes por Alana Ray, com Zahler finalmente tocando o baixo apropriado ao fundo. À medida que me aproximava,
a sangüínea, e meus passos acompanhavam o ritmo. Eu era uma garota de 17 anos com estilo, antenada e coberta de jóias: o perfil mais desejado pelas gravadoras, em
carne e osso.
O mundo começou a se alterar ao meu redor, exatamente como nos ensaios, quando meus dedos se contorciam sobre o teclado. Fotografias enormes passavam por trás de
mim, uma galáxia de olhos de ratos e gatos tremeluzindo do lado embaçado da minha visão.
Qual é o nome deles? Acho que ainda não têm nome...
No momento em que parei ao lado de Astor Michaels, virando as últimas gotas de champanhe do fundo da taça, eu estava numa boa, agressiva e confiante, a personificação
da nossa música.
Ele se virou e olhou para mim. Seus olhos seguiram os fios que saíam das minhas orelhas e iam até o decote do vestido. Seu rosto brilhou levemente, refletindo a
luz azul.
Então, Astor Michaels sorriu para mim. Seus dentes eram afiados, cem vezes mais do que os de Minerva...
Todas as falas sumiram da minha cabeça. Tirei os fones de ouvido e os entreguei a ele com as mãos trêmulas.
- Cara, você tem que ouvir isso. Essa parada é paranormal.
PARTE IV
O Acordo
Há cerca de sete séculos, a doença que liquidou o Império Romano voltou.
A humanidade já vivia um mau momento. A China havia acabado de enfrentar uma guerra civil brutal; a Europa havia passado por um período devastador de fome; e a Pequena
Era do Gelo chegava. No mundo inteiro, as temperaturas caíam, as colheitas eram fracas e países inteiros mergulhavam na pobreza. Guerras eram travadas na disputa
pelo pouco de riqueza restante.
Então, uma praga implacável e mortal apareceu na Ásia. Em algumas regiões da China, 19 em cada vinte pessoas morreram. A doença foi levada à Europa e ao Oriente
Médio, onde matou um terço da população. O período mais intenso da epidemia durou apenas cinco anos, mas deixou 100 milhões de mortos pelo mundo.
Certa época, historiadores supuseram que a Peste Negra era a peste bubônica, causada por uma bactéria disseminada por ratos. Mas aquilo nunca fez muito sentido:
pessoas demais morreram rápido demais. De acordo com algumas pessoas, podia ter sido uma nova forma de carbúnculo transmitida dos animais aos seres humanos. Outros
acreditavam que um vírus semelhante ao Ebola tinha evoluído repentinamente e se tornado transmissível pelo ar, espalhando-se mundo afora por meio de apertos de mão
e tosses. E logo depois, desapareceu.
Mas o que realmente foi a Peste Negra? E por que surgiu e desapareceu tão rapidamente?
Mantenha os ouvidos abertos e você descobrirá.
ARQUIVOS DO PREFEITO DA NOITE:
313-314
18. Anonymous 4
-ZAHLER-
O escritório da Red Rat Records era sacana.
Podia não ser a maior gravadora do mundo - na verdade, era apenas uma independente -, mas ocupava todo um casarão da região leste de Manhattan. Astor Michaels nos
convidou a entrar e disse que a família mais rica de Nova York já tinha morado ali. O piso inferior permanecia decorado como uma sala de contagem de dinheiro: barras
de ferro de estilos antigo protegendo a mesa da recepcionista e portas de carvalho grossas como dicionários.
Havia um grupo de garotos numa fila, esperando para entregar CDs e kits de divulgação pessoalmente, a maioria com o figurino completo de palco: lápis preto nos olhos,
unhas pretas, roupas rasgadas e cabelo moicano. Todos tentavam parecer saneiros e ficaram surpresos ao ver nós cinco entrando, passando pelas barras de metal. Senti
um abalo estranho por dentro de pensei: Somos estrelas do rock e eles não.
Desde o início, eu sabia que Pearl nos levaria a algum lugar, mas nunca tinha imaginado que seria tão rápido. Não me sentia pronto para aquilo, principalmente porque
estava tocando meu novo instrumento há apenas uma semana.
No entanto, era impossível deter Pearl. Ela conseguiu até chegar a uma espécie de acordo com os pais de Minerva para levá-la a Manhattan num dia de semana. As duas,
supostamente, sairiam para comprar roupas novas para Minerva, que estava para fazer aniversário.
Descemos ao subsolo, onde ficavam o escritório de Astor Michaels, no interior de um antigo cofre de aço. A única luz vinha da tremeluzente tela de um computador.
O ambiente tinha o tamanho de uma garagem para um único carro, e as paredes eram ocupadas por caixas individuais de depósito. A porta de metal, de 30 centímetros
de espessura, parecia bastante pesada. Eu torcia para que fosse mesmo: se alguém a fechasse, eu começaria a gritar.
Fotografias enormes estavam expostas nas paredes: imagens artísticas de becos repletos de lixo, água negra escorrendo pelo chão e ratos.
Isso mesmo: ratos. E aquilo nem era a coisa mais estranha em Astor Michaels.
Nosso novo representante não parava de lamber os lábios e, quando sorria, seus dentes não apareciam. Ele manteve os óculos escuros no rosto até chegarmos a escuridão
lá de baixo, e, quando finalmente os tirou, desejei que os pusesse de volta. Seus olhos eram enormes e passavam muito tempo concentrados nas três garotas, principalmente
em Minerva.
Era estranho, mas acho que, quando você se torna representante de gravadora, passa a ter direito de assediar quantas garotas quiser. De qualquer forma, não importava
se eu gostava ou não do cara. Nós tínhamos um contrato.
Ou quase. Pearl disse que o advogado dela ainda estava analisando a papelada. Ela falou desse jeito mesmo: "meu advogado", do mesmo modo que "meu jardineiro" ou
"meu motorista" ou "minha casa em Connecticut". Como se um advogado fosse algo que se guardasse numa gaveta de pilhas AA e as chaves reservas do apartamento.
- Daqui a alguns minutos, vamos todos subir - disse Astor Michaels. - O marketing está doido para falar com vocês. É claro que eles adoraram a música, mas querem
saber se vocês têm o resto.
E o que seria o resto?, tive vontade de perguntar. Porém, concluí que, se eu tivesse aquilo, não precisaria perguntar, o que indicaria que eu não tinha. Então preferia
ficar quieto.
- Era para virmos arrumados? - perguntou Pearl.
Não havia nenhum sentido naquela dúvida. Pearl estava sexcelente usando um vestido preto justo e um colar fino de diamantes. O único ponto negativo era a ausência
dos óculos, o que a deixava com um ar menos inteligente e de menos chefona.
Mesmo assim, ela estava incrível.
Astor Michaels agitou a mão.
- Sejam apenas vocês mesmos - disse.
E se eu mesmo significar, hoje, um grande emaranhado de nervos à flor da pele?, tive vontade de perguntar. Mas também não me pareceu algo muito condizente com o
resto.
Finalmente subimos. Havia um monte de pessoas com cortes de cabelos de 600 dólares em torno de uma mesa de reuniões no formato de uma piscina longa e curva. Logicamente,
foi Pearl quem assumiu o controle. Ela falou sobre nossas "influências", citando um monte de bandas que eu nunca tinha ouvido, apenas vistos os CDs na cama dela.
Minerva estava sentada à cabeceira, reluzente, adorando todos os elogios que dirigiam a ela. Ela com certeza tinha o resto. Até eu podia ver aquilo, refletido no
olhar do pessoal do marketing. Desde que Minerva e Moz haviam começado a sair secretamente, o ar de drogada estava se transformando lentamente em outra coisa: não
sei mais ou se menos esquisita.
Mas os caras dos cabelos milionários entraram na onde.
Moz também pareceu causar boa impressão, como se também tivesse o resto. Como se Minerva tivesse lhe passado o resto. Ele estava muito mais animado, com os olhos
irradiando confiança e uma nova espécie de desejo que eu não entendia.
Aquilo é que era esquisito: quanto menos drogada Minerva parecia, mais Moz parecia ser empurrado no sentido oposto, de forma que o saldo estava sendo o mesmo.
Eu e Alana Ray permanecemos quietos, como uma boa seção rítmica. Afinal, eu era um baixista,e nós, baixistas, não costumamos falar muito.
Depois de um tempo, voltamos ao cofre, deixando os cabelos milionários lá em cima para falarem de nós. Astor Michaels disse que havíamos feito um bom trabalho e,
em seguida, nos deu notícias sexcelentes.
- Queremos que vocês participem de um show. Quatro bandas da Red Rat num pequeno clube que alugamos. - Ele lambeu os lábios. - Em duas semanas... Espero que não
esteja muito em cima.
- Quanto mais cedo, melhor - disse Pearl.
Aquela devia ser a resposta certa, mas uma onde de pânico começou a se espalhar dentro de mim. Apenas mais dois ensaios de domingo com meu novo instrumento não pareciam
ser suficientes. Obviamente, eu praticava horas por dia, só que não era como tocar com a banca completa. Ainda tinha uma sensação estranha com aquelas cordas grandes
do baixo: era como se eu tivesse tocando de luvas.
- Mas tem um problema - ressalvou Michaels. - Vamos imprimir os pôsteres amanhã. E também vamos publicar anúncios.
- Ah, que droga - disse Pearl, limpando a garganta. - Nós ainda não temos um nome.
- Estamos pensando nisso - deixei escapar. - Mas não tivemos muito tempo.
- Nunca chegamos a um consenso - disse Moz.
Incomodada, Pearl se remexeu ao meu lado no grande sofá de couro de Astor Michaels.
- Não podemos ser os "Convidados Especiais" ou qualquer coisa parecida?
Ele balançou a cabeça e abriu um pouco a boca, deixando aparecer um pedacinho dos dentes.
- Pearl, pôsteres e anúncios custam dinheiro. É um desperdício de grana se estiver faltando o nome de vocês.
- É, acho que sim - admitiu Pearl, olhando para nós.
- Eis o que vamos fazer - anunciou Astor Michaels. - Vou deixar vocês sozinhos para discutir o assunto enquanto saio para almoçar. Quando eu voltar, daqui a uma
hora, vocês me dizem um nome com o qual concordem. Não quero uma lista, nem sugestões ou idéias. Só um nome. Vai ser o nome perfeito ou não.
Pearl ficou preocupada.
- E se não for?
- Então nada de contrato.
- Como assim? - reagiu Pearl, surpresa. - Nada de show?
- Nada de nada. - Astor Michaels se levantou e começou a se dirigir à porta. - Se não forem capazes de concordar num nome, como vão querer sair juntos em turnê?
Omo vão querer gravar discos? Como a Red Rat vai entrar num compromisso de cinco anos se vocês não conseguem concordar em relação a um simples nome? - Ele parou
à porta e pôs os óculos diante dos seus gigantescos olhos risonhos. - Então, a não ser que concordem em algo perfeito, o negócio está todo cancelado.
- Mas... falando sério... - disse Pearl. - Sério?
- Sério. Vocês têm uma hora. - Astor Michaels conferiu o relógio. - Que tal o incentivo?
Ficamos sentados, em silêncio, por alguns momentos, sendo observados pelas enormes fotos de ratos. A sala estava tomada por um ar de culpa, como se todos tivéssemos
cometido um crime terrível juntos.
- Isso foi irônico? - perguntou Alana Ray.
- Ahn... acho que não - respondeu Pearl.
- Merda - disse Moz. - O que vamos fazer?
Pearl se virou para mim e para Moz, tomada de uma raiva súbita.
- Eu sabia que devíamos ter resolvido isso quando éramos só nós três, no primeiro ensaio. Agora ficou tudo complicado!
- Ei - reagi, levantando os braços. - Nesse dia eu disse que devíamos nos chamar Partes B. Por que não escolhemos esse? - Moz e Pearl ficaram me olhando. - O que
foi? Não se lembram? Partes B?
Pearl olhou para Moz e depois se virou para mim.
- É, eu lembro. Só não queria ter de explicar que nomes de bandas baseadas em referências musicais, tipos Os Fás Sustenidos, Os Harmônicos, Os Efeitos de Áudio,
são a coisa mais horrível. Da história.
- Pensei que estivesse brincando, Zahler - explicou Moz. - Pensa bem: para começar, é meio idiota ser plural.
- Ser o quê?
- Plural. Com um s no fim. Parece que somos uma banda dos anos cinqüenta, como as Rockettes ou algo do gênero.
Minerva deu uma risadinha.
- Moz, as Rockettes eram dançarinas. Elas tinham pernas longas e deliciosas.
Bem, talvez ela ainda não estivesse completamente normal.
- Tanto faz - disse Moz. - Não quero ser uma banda no plural. Porque, se fomos os Partes B, o que cada um de nós vai ser? Uma parte B? "Oi, sou uma parte B. Juntos,
eu e meus amigos somos várias partes B".
Minerva sorriu de novo. Eu então disse:
- Sabe, Moz, qualquer coisa soa imbecil se você repetir várias vezes seguidas. Mas qual é a sua grande idéia?
- Não sei. Um artigo na frente é bacana, desde que a palavra seguinte não esteja no plural. - Ele chutou a mesa de Astor Michaels. - Tipo, A Mesa.
- A Mesa? Ah, isso sim é um nome genial para uma banda. Muito melhor do que Os Partes B. Vamos subir logo e avisar que queremos ser A Mesa.
- É só um exemplo, Zahler - disse Moz, revirando os olhos.
Deixei meu corpo afundar no imenso sofá de couro. Já conhecia aquela história. Era um clássico: o manjado Veto do Moz. Como quando escolhemos um filme para assistir.
Moz nunca sugere nada, e eu tenho que ficar dando idéias para que ele diga: "Não", "Não me interessa", "Isso é um lixo", "Já vi", "Filmes dublados são uma merda"...
Pearl se meteu na conversa.
- Meninos, não precisamos entrar em pânico.
- Pânico! - repeti. - Poderíamos ser O Pânico!
- Prefiro ser A Mesa - comentou Moz, baixinho.
- Calma! - disse Pearl. - Uma idéia de cada vez. Pensei em algo, umas semanas atrás.
Moz lançou seu olhar de veto na direção dela.
- Em quê?
- O que acham de Loucos Contra Sãos?
- Pearl, minha querida, não acha isso meio... referencial? - perguntou Minerva, olhando para Alana Ray, sem perceber que todos os outros olhavam para ela.
- Não é uma referência a nós - explicou Pearl. - É sobre todas essas coisas estranhas que estão acontecendo. A água negra, a crise sanitária, a onda de crimes. Aquela
mulher maluca jogando a Stratocaster pela janela em cima de mim e do Moz... Foi assim que a banda começou.
- Não sei não - disse Moz. - Locos Contra Sãos. Parece meio forçado demais para mim.
Mais um Veto do Moz.
Tentei pensar. Palavras e expressões aleatórias passavam pela minha cabeça, mas Pearl estava certa: quanto mais tempo levava, mais difícil era escolher um nome para
uma banda. Quanto mais a música penetrava na minha cabeça, mais impossível se tornava descrevê-la em duas ou três palavras.
O silêncio foi quebrado pelos berros da fita demo de alguma banda de metal vindo da sala de outro caçador de talentos. As paredes de aço do cofre pareciam estar
mais próximas, e o ar, mais pesado. Imaginei Astor Michaels trancando a porta e nos obrigando a uma escolha: pensar num nome ou morrer sem oxigênio.
Lembrei do prédio dos ensaios na Sixteenth Street, barulhento e ressonante, imaginando se todas as bandas tinham nomes. Quantas bandas existiriam no mundo? Milhares?
Milhões?
Reparando nas fileiras de cofres particulares que nos cercavam, pensei se não deveríamos escolher apenas números.
- Por que não ficamos com algo simples? - eu disse. - Como... Onze?
- Onze? - repetiu Moz. - Ótimo, Zahler. Mas não chega perto de "A Mesa".
Minerva suspirou.
- É por isso que Loucos Contra Sãos não serve. É propaganda enganosa. Falta a parte sã.
- O que não é são é nos obrigar a escolher um nome dessa forma - disse Pearl, com o olhar fixo nas fotos de ratos.
- Esse tipo de ultimato é normal em gravadoras? - perguntou Alana Ray.
- Não. É totalmente paranormal - comentei.
Notei uma luz nos olhos de Pearl.
- Ei, Zahler, talvez seja isso. Devíamos nos chamar Os Paranormais!
- Plural - observou Pearl. - Vocês não conseguem entender o lance do plural?
- Não interessa - respondeu Pearl. - E Paranormal? Podemos ser Paranormal, se o lance do plural o incomoda tanto.
- Paranormal pode ter dois significados - disse Alana Ray.
Todos nos viramos para ela. Nas raras vezes em que Alana Ray dizia algo, nós prestávamos atenção.
- Para pode significar junto - continuou ela. - Como um paramédico, que trabalha junto com o médico. Mas também pode significar contra. Como um pára-raios, contra
raios, ou um paradoxo, contra a maneira normal de se pensar.
Fiquei chocado. Aquele devia ser o maior número de palavras seguidas que Alana Ray dizia desde o primeiro ensaio. E, como tudo que ela dizia, era muito estranho
e meio que inteligente.
Talvez Paranormal fosse o nome certo.
- Então para que serve um pára-quedas? - perguntou Pearl.
- Contra quedas, oras - respondeu Alana Ray, surpresa.
- Então, se escolhemos Paranormal, precisamos decidir se estamos juntos ou contra os normais - explicou Alana Ray. - Os nomes são importantes. É por isso que eu
peço para ser chamada pelo meu primeiro nome completo.
- Ei, pensei que Ray fosse sobrenome - disse Moz, surpreso. - Afinal, qual é seu sobrenome?
- Não tenho um sobrenome de verdade - disse, mexendo as mãos nervosamente.
- Como assim? - perguntou Pearl.
- Na escola, eles nos deram sobrenomes novos, fáceis de entender. Assim, quando disséssemos nossos sobrenomes as pessoas, ninguém nos pediria para soletrar. Era
para evitar constrangimentos para nós.
- Você tem dificuldade em soletrar? - perguntou Pearl. - Tipo, dislexia?
- Dislexia. D-i-s-l-e-x-i-a. Dislexia - respondeu Alana Ray.
- Caramba, eu não saberia soletrar isso - comentei.
Alana Ray sorriu.
- Só alguns de nós não conseguiam soletrar. Mas eles deram novos sobrenomes a todos.
- Talvez não faça diferença - disse Minerva, atraindo a atenção de todo mundo. - Se a música for boa, as pessoas vão achar o nome genial também. Mesmo que seja só
uma palavra qualquer.
- É, os Beatles tinham um nome bem idiota, se pararmos para pensar. E não atrapalhou em nada - concordou Moz.
- Que isso! - Eu estava revoltado. - O nome deles não era nada idiota! É um clássico!
- É um lixo - disse Minerva. - Beatles é um trocadilho em inglês: beetles, de inseto, só que escrito como beat, de batida musical.
- Na verdade, tinha a ver com Buddy Holly e os Crickets - corrigiu Pearl.
- Tanto faz - insistiu Minerva. - É um trocadilho patético. E plural - disse ela, sorrindo para Moz.
- Peraí... é sério isso?
Eles tinham razão. A palavra certa era beetle, sem a. A grafia estava errada. Moz e Minerva riam de mim.
- Nunca tinha percebido isso? - perguntou Moz.
- Achei que se escrevesse assim na Inglaterra. Uma vez li um livro inglês, e tudo estava escrito errado.
Agora todos riam de mim. Mas eu só conseguia pensar que talvez Minerva estivesse certa. Talvez não importasse o nome. Os Paranormais, os Fás Sustenidos ou mesmo
A Mesa. Talvez a música crescesse com qualquer nome, não importava qual fosse.
No entanto, com não podia deixar de ser, continuamos discutindo.
Quando Astor Michaels apareceu, cobrando uma resposta, Pearl foi logo conferindo o horário no celular.
- Só passaram quarenta minutos! Você disse uma hora.
- Tenho trabalho a fazer. Então, como se chama a banda?
Todos congelamos. Tínhamos pensado em 10 mil coisas, mas não havíamos chegado a um acordo m relação a nenhum. E, de repente, eu não me lembrava de nenhum dos nomes.
- Vamos lá! - disse Astor Michaels, estalando os dedos. - É hora do tudo ou nada. Fechamos negócio ou não?
Obviamente, todos olhamos para Pearl.
- Ahn... - começou ela, seguida por um longo silêncio. - Os, ahn, os Pânicos?
- O Pânico - corrigiu Moz. - Singular.
Asotr Michaels fingiu pensar por um instante e depois soltou uma gargalhada.
- Vocês não acreditariam no número de pessoas que vêm com essa idéia.
- Com que idéia?
- Pânico. Sempre que dou o Ultimato do Nome às bandas, elas resolvem se chamar o Pânico, o Desespero ou até Como Vou Saber?
Ele voltou a rir; seus dentes brilhavam na semiescuridão.
- Quer dizer que... não gostou? - perguntou Pearl com cuidado.
- É um lixo. Soa como um bando de fascinados pelos anos oitenta.
Como ninguém mais abriu a boca, resolvi perguntar:
- Isso significa que a gente já era?
- Não seja bobo. Eu só quis motivar vocês e me divertir um pouco. Pode relaxar, pessoal.
Minerva estava rindo, mas o resto de nós queria matar Astor Michaels.
Ele se sentou atrás da mesa. Seu sorriso finalmente revelava todos os dentes, uma fileira de lâminas brancas na escuridão.
- Vamos de Convidados Especiais mesmo!
19. The Impressions
-ALANA RAY-
Quando o cara da entrada ouviu nossos nomes, nem se deu ao trabalha de conferir na lista ou usar o comunicador. Na verdade, sequer olhou para nós; apenas fez um
gesto para entrarmos.
Eu e Pearl simplesmente passamos direto pela fila de gente esperando para ter suas identidades checadas, passar pela revista e pelo detector de metais e pagar 40
dólares (mil dólares as cada 25 pessoas). Tudo aconteceu como o prometido por Astor Michaels. Embora estivéssemos sem roupas apropriadas, sem ingresso e, no caso
de Pearl, sem a idade exigida, conseguimos um lugar no show do Morgan's Army.
- Nossos nomes funcionaram - comentei.
- E por que não funcionariam? - Pearl sorria enquanto passávamos pelo longo corredor, na penumbra, a caminho das luzes e do barulho da pista de dança. - Somos talentos
da Red Rat.
- Quase talentos da Red Rat - corrigi.
A parte do "quase" me incomodava. O advogado de Pearl ainda discutia detalhes do contrato. Ela dizia que agradeceríamos pelos cuidados alguns anos depois, quando
fôssemos famosos. Eu sabia que os detalhes eram importantes em documentos, mas naquele momento o atraso fazia o mundo tremer, como quando saio de casa sem o frasco
de comprimidos no bolso.
- Dá na mesma - disse Pearl. - Nossa banda agora é totalmente real, Alana Ray. E músicos de verdade não pagam para assistir a outros músicos.
- Nós já éramos reais - eu disse, enquanto atravessávamos a pista de dança. A música tocada pelo DJ deixava mês dedos com vontade de batucar. - Mas você está certa.
As coisas parecem mesmo diferentes agora.
Observei minha mão, que se agitava diante de mim, manchada pelas luzes da pista de dança. Luzes piscando costumavam me fazer sentir separada do meu próprio corpo,
mas, naquela noite, tudo parecia bastante sólido, bastante real.
Seria por que eu havia (quase) assinado um contrato de gravação? Na escola, os professores sempre diziam que dinheiro, reconhecimento, sucesso - todas as coisas
que as pessoas normais tinham e nós não - não eram tão importantes, que ninguém nunca podia usá-la para nos fazer sentir menos reais. Mas aquilo não era exatamente
verdade. Morar no meu próprio apartamento havia me ajudado a me sentir mais real - e ganhar dinheiro também ajudava. No dia em que recebi meus primeiros cartões
de visitas, tirei-os da caixa um por um, lendo meu nome repetidas vezes, embora todos fossem exatamente iguais...
E agora meu nome havia me ajudado a passar à frente de uma longa fila de pessoas com roupas mais caras e cortes de cabelo mais modernos, pessoas que não tinham freqüentado
escolas para crianças especiais. Pessoas com sobrenomes de verdade.
Eu não conseguiria evitar a sensação de que aquilo era importante.
Pearl sorria sob as luzes da pista de dança, como se também se sentisse mais real. A presença dela ali infringia a lei. Apesar da garantia de Astor Michaels de que
não haveria problema, eu tinha achado que o sujeito na entrada perceberia que ela não passava dos 17.
Pensar nisso me deixou nervosa por um instante. Na escola, aprendemos a obedecer à lei. Nossas vidas já seriam bastante complicadas sem passagens pela polícia, era
o que costumávamos nos lembras. Obviamente, dizer que pessoas como nós não podiam se dar ao luxo de desrespeitar as leis sugeria que outras pessoas podiam. Talvez
eu e Pearl agora fôssemos mais como essas outras pessoas.
Meus dedos começaram a se agitar e a pulsar, mas não por causa das luzes piscantes: eu estava ansiosa para assinar o contrato. Queria agarrar toda aquela realidade
e botá-la no papel.
Enquanto esperávamos a primeira banda, procurei por Astor Michaels. Às vezes ele me dava arrepios, embora parecesse gostar de mim, sempre pedindo minhas opiniões
sobre música. Também perguntava sobre minhas visões, o que não o irritava como acontecia com Minerva. Obviamente, nunca vi Astor Michaels irritado com nada. Ele
não se importava com o fato de seu sorriso deixar as pessoas nervosas, e apenas riu quando eu lhe disse que ele se mexia como um inseto.
Eu achava mais fácil conversar com ele do que com a maioria das pessoas. Já olhar era outra história.
- Pena que Moz não pôde vir - disse Pearl. - O que ele disse que ia fazer?
- Não disse nada - respondi, embora eu tivesse alguns palpites.
Moz estava diferente. No último mês, ele tinha começado a pegar hábitos do resto de nós - o sorriso de Astor Michaels, meus tremeliques, os óculos escuros de Minerva
-, como se quisesse se reinventar.
Ele e Minerva cochichavam quando Pearl não prestava atenção e trocavam recados enquanto tocávamos. Quando minhas visões estavam fortes, eu conseguia enxergar a conexão
entre os dois: filamentos luminosos indo das palavras cantadas por Minerva às notas de Moz no ar e, em seguida, levando-as até as formas que se agitavam embaixo
do chão.
Eu me esforçava para não reparar. Moz ainda me pagava e dizia que continuaria pagando até a Red Rat começar a nos dar dinheiro de verdade. Como ele nunca havia quebrado
uma promessa, eu preferi não faar dos meus palpites a Pearl.
Além disso, eu não queria deixar Pearl triste naquela noite, afinal ela tinha sido legal ao me convidar para assistir à sua banda preferida.
O grupo que abriu o show havia acabado de assinar com Astor Michaels. Exatamente como nós, exceto pelo "quase". E eles já tinham um nome. Os amplificadores traziam
a inscrição Toxoplasma.
- O que significa essa palavra? - perguntei a Pearl.
- Não sei - disse ela, dando de ombros. - Não entendi direito.
Eu também não. Mas também entendia por que Zahler nunca usava o primeiro nome, ou por que Moz tinha começado a dizer "Min" em vez de "Minerva", ou por que ninguém
chamava Astor Michaels de outra maneira que não "Astor Michaels". Nomes eram uma coisa curiosa.
Depois de sua brincadeirinha, Astor Michaels havia dito que não importava o nome, que nosso público verdadeiro nos encontraria pelo cheiro. Mas tudo aquilo soava
pouco provável para mim. Eu esperava que achássemos um nome em pouco tempo. Não queria simplesmente ganhar um nome, como o "Jones" que tinham me dado.
- Como o Morgan's Army ganhou esse nome? - perguntei a Pearl. - Foi o Astor Michaels?
- Não. O nome é uma homenagem a uma pessoa que se chama Morgan.
- A vocalista?
Pearl balançou a cabeça.
- Não. O nome dela é Abril Johnson. Há vários boatos sobre quem seria Morgan, mas ninguém sabe ao certo.
Suspirei. Talvez Zahler tivesse razão e as bandas devessem ser chamadas por números.
O Toxoplasma consistia em quatro irmãos cobertos de tatuagens. Gostei da voz do vocalista: aveludada e relaxada, amaciando as palavras como uma mão deslizando sobre
o lençol. Os outros três, porém, eram eficiência pura, como as pessoas que cozinhavam na TV, picando alimentos em alta velocidade. Usavam óculos escuros e partiam
a música em pequenos pedaços. Eu queria entender como um irmão podia ser tão diferente dos outros.
Quando a banda acabou a primeira música, senti um arrepio: Astor Michaels passava por trás de nós, na platéia. Pearl, ao notar que eu estava olhando para ele, se
virou e sorriu. Ele lhe ofereceu uma taça de champanhe.
Embora aquilo fosse ilegal, não me importei. Sob as luzes pulsantes, a lei parecia menos real.
- E aí, o que está achando do Toxoplasma?
- Muito barulhento para mim - respondeu Pearl.
- Acho que três insetos é demais para uma única banda - eu disse.
Astor Michaels riu e pôs a mão no meu ombro.
- Ou talvez seja pouco - comentou.
A segunda música começou e aproveitei para me afastar. Não goste que as pessoas me toquem. Isso torna ir a shows meio difícil, mas é importante ver as músicas novas
que as pessoas estão criando.
- Já imaginaram? Daqui a uma semana vocês vão estar tocando diante de um público tão grande quanto este. Até maior.
O sorriso de Pearl cresceu. Notei que ela se sentia mais real a cada minuto. Virei para dar uma olhada na platéia. Não era como na Times Square, onde as pessoas
chegavam e iam jogando dinheiro e outras simplesmente passando. Ali, todo mundo estava concentrado na banda, julgando a apresentação, esperando ficarem impressionados,
exigindo empolgação. Não era um bando de turistas já admirados pelo simples fato de estar em Nova York.
O Toxoplasma causava uma boa impressão. Ondas de pessoas se moviam para a frente, tentando se aproximar do palco, dançando com a mesma intensidade dos três irmãos
insetos. Mas, de repente, passaram a se mexer como skinheads, com uma carga de energia percorrendo a superfície de seus corpos.
Eles também eram insetos. Meu coração se acelerou e meus dedos não paravam de batucar. Nunca havia visto tantos juntos antes.
Eu já sabia que existiam diferentes tipos de insetos. Astor Michaels, por exemplo, era bem diferente de Minerva. E eu tinha conhecido outros tipos quando tocava
no metrô. Porém, aqueles que estavam grudados no palco me enervavam de um modo distinto.
Pareciam perigosos, prestes a explodir.
Minha visão começou a ficar confusa, o que quase nunca acontece com música de que eu não gostava. O ar subia em torno do Toxoplasma, como o calor que sai das grades
do metrô no inverno. Na platéia, o pessoal da frente havia começado a fazer o mosh, razão pela qual eu sempre me mantinha longe do palco. Ondas de energia pareciam
viajar dos seus corpos em choque até o resto do público; os movimentos se espalhavam como uma febre por todo o recinto.
- Humm... Sintam o cheiro disso - disse Astor Michaels, jogando a cabeça para trás, de olhos fechados. - E devia ter chamado esses caras de Pânico - comentou, ainda
rindo da peça que ele havia pregado na gente.
Senti um arrepio e pisquei três vezes.
- Não gosto dessa banda. Eles são o contrário de normal, não além.
- Não vai durar muito mesmo. Talvez algumas semanas. Mas cumprem seu papel.
- E qual seria esse papel? - perguntou Pearl.
Ele abriu um sorriso grande o bastante para revelar dentes tão afiados quanto os de Minerva.
- Eles mexem com as pessoas.
Entendi a mensagem. Os tremores espalhados pela platéia insetóide mudavam o ambiente na casa, deixavam todo mundo agitado. A sensação era igual à de quando a notícia
de um novo ataque estranho se espalhou enquanto eu tocavam na Times Square. A platéia virou praticamente junta para ler as palavras que passavam no letreiro gigante.
A maioria das pessoas ao nosso lado não gostava da música do Toxoplasma mais do que eu ou Pearl, mas aquele som deixava seus sistemas nervosos numa sintonia mais
alta. Dava para perceber em seus olhos e nos movimentos rápidos e ansiosos de suas cabeças.
Também me dei conta de que Astor Michaels era bom em manipular multidões. Talvez fosse aquilo que o tornava mais real.
- A platéia está esperando algo grande agora - observei.
- Morgan's Army - disse Astor Michaels, deixando os dentes aparecerem mais uma vez.
Funcionou: o Morgan's Army deixou o público ainda mais agitado.
Abril Johnson segurava o microfone de estilo antigo com as duas mãos, como se fosse uma cantora de Lounge de muito tempo atrás. Seu vestido prateado refletia os
três fachos de luz que a acompanhavam, cobrindo as paredes e o teto do clube de sombras frenéticas. Com a banda já iniciando a primeira música, ela se mantinha em
silêncio. Esperou por um minuto, quase imóvel, como um louva-a-deus se aproximando lentamente antes de atacar.
O baixo, ressoando a partir das pilhas de amplificadores Marshall, fez o chão tremer. Copos pendurados no bar começaram a tilintar. Minha visão estava embaçada,
e o som parecia neve caindo no ar.
Então, Abril Johnson começou a cantar, com uma voz baixa e arrastada. Mal dava para distinguir as palavras. Ela esticava e mutilava os versos, como se estivesse
tentando transformá-los em algo impenetrável. Fechei os olhos e ouvi com atenção, tentando compreender as palavras meio familiares, meio estranhas que compunha a
música.
Depois de um instante lembrei onde as havia escutado antes. Aquelas palavras eram compostas das mesmas sílabas sem sentido que Minerva costumava cantar. Porém, Abril
Johnson as tinha escondido em sua voz arrastada, misturando-as a palavras simples e comuns.
Balancei a cabeça. Eu sempre havia pensado que as letras de Minerva eram aleatórias, inventadas, meros delírios remanescentes de seus dias de loucura. No entanto,
se outra pessoa usava as mesmas palavras... seria uma outra língua?
Abri os olhos e me obriguei a observar o chão. A fera de Minerva se movia embaixo de nós. Seus rodopios de monstro do lago Ness agitavam a terra sob os pés da platéia
desavisada, mas muito, muito mais intensos do que aqueles da nossa pequena sala de ensaio - tão grandiosos quanto os cabos gigantes da ponte do Brooklyn. Aquilo
havia se tornado imenso graças aos amplificadores e à concentração do público hipnotizado. Agora eu podia ver detalhes da criatura. Tinha divisões como uma minhoca
sinuosa farejando o ar.
- Isso que eu chamo de intensidade - sussurrou Pearl, segurando a taça vazia de champanhe com as duas mãos, a exemplo do que a vocalista fazia com o microfone.
- Com certeza - concordou Astor Michaels, erguendo a cabeça. - Mas vocês serão ainda mais intensos. Muito mais autênticos.
Eu sabia o que ele queria dizer, por isso senti um leve tremor. As músicas de Minerva eram mais puras, não adulteradas por palavras já existentes. Nosso encanto
seria mais forte.
A fera começou a se arrastar mais rapidamente, fazendo o chão do clube tremer sob meus pés, como se uma nota do baixo tivesse encontrado uma freqüência ressoante
no ambiente. Lembrei que era possível estilhaçar taças de vinho com a altura certa e imaginei se um prédio inteiro poderia se desintegrar com uma nota bem grave,
escolhida a dedo.
De repente, Pearl olhou para cima, seus olhos arregalados:
- São eles!
Segui seu olhar e vi uma dupla de figuras obscuras nas plataformas lá em cima, caminhando graciosamente pro entre as fileiras de luzes e exaustores.
- Aquela gente. A nova moda: exibir peripécias, subindo nos telhados e saídas de ar e descendo pelos túneis do metrô. Não conseguimos mantê-los longe dos clubes.
Eles gostam particularmente do Novo Som - explicou Astor Michaels.
- Anjos - disse Pearl.
- Idiotas - corrigiu Astor Michaels. - Tiram a atenção da música.
Ouvindo a parte B da música, voltei a prestar atenção ao chão e ainda vi o último movimento da minhoca antes que sumisse. As alucinações perderam intensidade à medida
que a música ficou mais rápida, o ar se acalmou e as letras retornaram às palavras comuns.
- Ela se perdeu - comentei,
- É - disse Pearl, decepcionada. - Perdeu o momento.
- Por alguma razão, o Army nunca consegue fazer essa passagem direito - disse Astor Michaels. - Sempre parece que eles vão dar o passo adiante. - Ele estalou a língua
nos dentes. - Mas nunca acontece.
- Tem certeza que é isso que você quer? - perguntei. - E se for...
Perigoso?, pensei. Monstruoso?
- Pouco comercial? - perguntou Astor Michaels, rindo. - Não se preocupe. Tenho um pressentimento de que, seja o que for, vai ser o próximo grande lance. Foi por
isso que contratei vocês.
- Porque nosso som parece com o do Morgan's Army? - perguntou Pearl, parecendo contrariada.
Ele fez que não, enquanto tomava a taça de champanhe de sua mão.
- Não, o som de vocês parece com vocês. Mas alguém tem de levar o Novo Som para o próximo estágio. E estou certo de que serão vocês.
Astor Michaels virou-se em direção ao bar para pegar mais champanhe. A banda voltou à primeira parte, como se tentasse invocar minhas visões novamente. Mas eles
tinham perdido o controle da fera, e as letras de Abril Johnson agora não passavam de palavras comuns. Pude ver que ela não era um inseto; estava apenas imitando
um, reproduzindo a loucura que tinha visto no metrô e nas ruas.
Foi então que percebi que Minerva era mais real do que ela.
E me perguntei: e se um dia a fera do interior da terra se tornar real?
20. Grievous Angels
-MOZ-
O som não sossegava dentro do meu corpo. Passei a noite inteira acordado, com meus tecidos se espremendo uns contra os outros e o sangue fervendo. Sentia a fera
combatendo tudo que eu tinha sido até então, tentando me recriar como algo novo, tentando me substituir. Até meu suor lutava, passando raivosamente pelos poros,
como uma briga de bar que acaba na rua.
Quando olhei no espelho, não vi meu rosto. Não era só o fato de estar mais magro, com os ossos do rosto em novos ângulos e os olhos mais abertos. Era uma coisa mais
profunda, que vinha de debaixo da pele, distante e desdenhosa de mim.
Como se os ossos de outra pessoa estivessem tentando vir à tona.
O estranho era que parte de mim estava doida para saber no que eu estava me transformando. Às vezes, eu simplesmente queria acabar com aquilo, ir em frente. Quase
tinha respondido sim ao convite de Pearl para o show do Morgan's Army, imaginando o que centenas de corpos espremidos perto de mim fariam à minha fome, já a caminho
de se tornar incontrolável. Pensei em seus cheiros preenchendo o ar, no barulho da platéia misturando-se ao rugido dentro de mim...
Mas ainda não era hora. Não sem Min. Nos braços dela, eu ainda me sentia eu mesmo. Além do quê, eu ainda tinha muito a aprender lá embaixo, tocando nos subterrâneos
em troca de moedas.
Uma mulher me assistia, ouvindo com atenção e com as duas mãos agarradas à bolsa. Ela não tinha certeza se devia abri-la e pegar alguma coisa, arriscando-se a estabelecer
uma comunicação mais forte com o garoto esquisito que tocava guitarra no metrô. Mas também não conseguia se afastar.
A estação Union Square estava quase vazia àquela hora. Minha música ecoava ao nosso redor. No veludo vermelho do estojo da guitarra havia muitos pontos prateados.
No chão também. Durante toda a noite, as pessoas tinham jogado moedas à distância e seguido seu caminho. Mesmo com meus óculos escuros, elas conseguiam ver a intensidade
que saía dos meus olhos. Sentiam meu apetite.
Aquela mulher, no entanto, não saía do lugar, envolvida num encanto.
Eu sempre me perguntava se o carisma estaria nos genes, com olhos castanhos ou pés grandes. Ou se era adquirido com o som de aplausos e de máquinas fotográficas.
Ou se as pessoas famosas pareciam brilhar apenas porque eu tinha visto muitas fotos delas, porque sua beleza tinha sido enfiada na minha cabeça, como jingles dotados
de rostos.
No fim das contas, o carisma era uma doença, uma infecção adquirida por ter beijado a pessoa certa, uma fera que vivia no sangue. Estabelecendo uma conexão com aquela
mulher, atraindo-a para mais perto, eu sentia o quanto estava magnetizado.
Ela deu um passo adiante, com os dedos tensos na alça da bolsa. Um estalo, e a bolsa se abriu.
Não me atrevi a olhar novamente para os olhos fascinados dela.
Naquele horário, tão tarde da noite, não havia mais policias por perto. Ninguém que pudesse me deter se eu perdesse o controle.
Seus dedos remexeram o interior da bolsa, mas seus olhos não se desviaram de mim. Ela deu mais um passo, e uma nota de cinco flutuou no ar, até cair entre as moedas.
Olhei por um breve segundo para sua expressão de súplica, e percebi que ela estava pagando para poder escapar.
Parei de tocar e meti a mão na bolsa em busca do saco plástico de alho. Com o encanto desfeito, a mulher se virou e se dirigiu às escadas. Os últimos acordes da
Strat dissiparam-se em silêncio. Ela não olhou para trás. Seus passos pareciam mais rápidos à medida que ela se distanciava.
Algo se contorceu dentro de mim, irritado porque eu tinha deixado a mulher ir embora. Eu podia sentir a coisa enroscada na minha coluna, mais forte a cada dia. Seus
apêndices se espalhavam pela minha boca, mudando o sabor dos alimentos, deixando meus dentes inquietos. A vontade de seguir a mulher era tão forte...
Levei o saco plástico ao nariz e inspirei o aroma de alho fresco. Aquilo queimou os sons na minha cabeça e acalmou a circulação do meu sangue.
Min havia me dado o saco para emergências, mas eu andava usando aquilo o tempo todo. Tentei até preparar o horrível chá de mandrágoras de Luz, mas minha mãe o acusou
de empestear o apartamento. Porém, nada aplacava a fera como a carne, e nada - nem mesmo Min - tinha um gosto tão bom. Nada superava um bife cru, mas aquela opção
estava em falta, com o preço subindo sem parar. Um simples hambúrguer, tirado ainda congelado do plástico, era quase tão gostoso.
Fiquei ali, parado, inalando o alho e escutando.
Min tinha razão: era possível aprender coisas lá embaixo. Havia segredos escondidos nos ritmos de Nova York, nas suas mudanças de humor, na circulação sangüínea
de seus encanamentos. Os chiados das tubulações de vapor e os barulhinhos dos ratos e dos felinos selvagens agitavam-se com a infecção, como uma versão maior da
doença dentro do meu corpo.
Agora minha audição ia além das curvas, mais aguçadas, a cada dia, e enchia minha cabeça de ecos. Eu ouvi nossa música muito melhor. Quase podia ver a fera que Minerva
invocava quando cantava.
E eu sabia que estava ali embaixo, em algum lugar... pronta para me ensinar coisas.
Pouco depois das onze e meia, seu cheiro veio e me encontrou.
Vinha de baixo, carregado pela brisa suave provocada pelos trens que passavam. Eu me lembro daquela primeira noite em que tinha ido ao Brooklyn, quando Minerva me
levou até os trilhos e me empurrou para uma abertura dentro do túnel. O cheiro havia me deixado nervoso, excitado e faminto, tudo de uma vez.
Então ouvi alguma coisa, um som baixo e hesitante, mais sutil do que qualquer trem que passasse por dentro da terra. Do mesmo jeito que Minerva fazia o chão tremer
sob nós quando tocávamos.
Catei as moedas reluzentes e enfiei tudo no bolso. Depois guardei a Stratocaster no estojo e peguei o pequeno amplificador movido a pilha. Àquela altura o cheiro
havia se dissipado, levado por correntes aleatórias de ar. Fiquei parado, indeciso, por um momento. A Union Square se espalhava ao meu redor uma vastidão de catracas,
cabines e escada que levavam a metade das linhas de metrô da cidade.
De olhos semifechados, caminhei lentamente pela estação, captando traços de perfume e mijo, o penetrante cheiro metálico de desinfetante, o aroma sangüíneo de ferrugem
por toda parte. Finalmente, outro sopro atordoante subiu das escadas que davam na linha F.
Lá embaixo, a plataforma estava vazia, em silêncio exceto pelo barulho dos ratos passeando nos trilhos. O vento causado pelos trens a distância remexia pedaços de
papel e mentinha o cheiro em movimento ao meu redor, exatamente como o mundo gira quando alguém bebe cerveja demais.
Tirei os óculos escuros e observei as profundezas do túnel.
Nada além de escuridão.
Da direção norte, porém, veio um ruído bem fraco.
Ao andar naquela direção, captei uma variedade de novos cheiros: desodorantes antiperspirantes e maços recém-abertos de cigarros, talco para os pés e fragrância
química de roupa lava a seco...
Havia alguém escondido atrás da última coluna de aço da plataforma, com a respiração acelerada, nervoso por causa da minha presença. Apenas mais um passageiro assustado
por estar ali naquele horário.
Mas, do túnel, o outro cheiro me chamava.
Dei mais um passo, deixando que o homem me visse. Usava o uniforme de funcionário do metrô, ele estava de olhos arregalados e segurava uma lanterna com firmeza.
Será que ele também tinha ouvido a fera?
- Me desculpe. Só estou... - expliquei, cansado, ajeitando a guitarra e o amplificador - tentando voltar para casa.
Seus olhos, cheios de terror petrificado, permaneceram fixos nos meus.
- Você é um deles.
Lembrei de que eu tinha tirado os óculos escuros; agora, ele podia ver a fera dentro de mim.
- Ahn, eu não queria...
Ele levantou a mão para fazer o sinal-da-cruz; notei um crucifixo prateado em seu pescoço. Parecia que queria sair correndo, mas não se moveu, como se a minha infecção
o segurasse ali... o jeito que eu me mexia, o brilho nos meus olhos.
Senti uma coceira passeando pela minha pele, como a sensação que eu tivera no momento em que tinha subido a escada que levava ao quarto de Minerva. Eu estava salivando.
O medo no suor do homem era como cheiro de bacon frito infiltrando-se por baixo da porta do quarto pela manhã: irresistível.
- Fiquei longe de mim - pediu ele, calmamente.
- Estou tentando.
Botei a guitarra e o amplificador no chão e procurei o saco de alho no meu casaco. Peguei um dente e, afoitamente, tentei descascá-lo, enfiando as unhas na casca
fina. A polpa, branca como uma pérola, finalmente apareceu, macia e oleosa em meus dedos. Enfiei o alho na boca, ainda com parte da casca, e mordi com vontade.
O dente se partiu - intenso e forte -, descendo pela minha garganta como molho puro de pimenta. Enquanto eu inalava o cheiro do alho, notei que a coisa dentro de
mim perdeu um pouco a força.
Soltei um suspiro de alívio, cheirando o alho.
Os olhos do homem voltaram ao normal. Agora não mais aterrorizado, ele fez um gesto de reprovação para a minha camiseta rasgada e me jeans imundo. Eu tinha voltado
a ser um mero garoto de 17 anos, esfarrapado e cheio de tralhas musicais. Nem um pouco perigoso.
- Não devia jogar sujeira no chão - reclamou ele, olhando para a pele do alho que eu tinha deixado cair. - Sabe que alguém tem que limpar isso?
Logo depois, ele se virou bruscamente e se afastou, com o cheiro do medo em seu rastro.
Inspirando com força, enchi os pulmões com a fragrância do alho.
Não posso comer pessoas boas, gritou a voz de Minerva dentro da minha cabeça.
Decidi tentar o chá de mandrágora de novo. Embora tivesse gosto de grama, provavelmente era melhor do que...
No interior do túnel, a escuridão se remexia inquieta, algo se revirava em seu sono, e acabei esquecendo a fome.
Lá estava a coisa que se movia enquanto tocávamos.
Peguei a Strat, deixando o amplificador para trás, e pulei nos trilhos. O cheio me atraía para a escuridão. O barulho do cascalho esmagado ecoava nas paredes do
túnel como se fossem batuques de Alana Ray produzidos pelos meus pés. Cada vez mais intenso, o aroma já torturava minha mente tanto quando encostar o nariz no pescoço
de Minerva. Eu só queria chegar mais perto.
O chão começou a se revolver; a escuridão abruptamente se tornava líquida sob meus pés. Enquanto meus olhos se ajustavam, notei que havia uma hora de ratos passando
como uma corrente de água, milhares deles tomando conta dos trilhos.
Mas aquela imagem não me fez recuar: os ratos tinham um cheiro familiar e seguro, como Zumbi dormindo, quentinho, sobre meu peito.
O cheiro me levou até uma fresta na parede do túnel, grande o bastante para alguém entrar, igual ao buraco em que eu e Minerva tínhamos nos beijado pela primeira
vez. Em seu interior, a escuridão era mais intensa, e as paredes reluziam. Os ratos se agitavam em torno de mim.
Eu sentia um cheiro de perigo, mas não tive vontade de sair correndo. Meu coração batia rápido, meu corpo todo estava se preparando para a luta. Ouvi por um segundo
e, instintivamente, soube que não havia nada no buraco. Mas alguma coisa tinha passado por ali.
Estiquei o braço e toquei o granito; uma gosma escura, da consistência de mel, grudou nos meus dedos. A exemplo da água negra, reluziu por um instante e depois desapareceu
no ar.
Mas seu cheiro deixou uma palavra na minha cabeça... inimigo. Como Min sempre dizia: Eu chamo o inimigo quando eu canto.
Então o chão tremeu sob meus pés, e os ratos começaram a guinchar.
Corri pelo túnel do metrô, pisando forte no cascalho, seguindo por ratos, com a raiva evaporando da minha pele. Eu passava a língua nos dentes para sentir suas pontas
afiadas. Meu corpo todo pedia para enfrentar aquela coisa.
E então de repente, eu ouvi, farejei, vi a coisa vindo na minha direção...
Um vulto se moveu na escuridão, sem forma definida, exceto pelos tentáculos que se agitavam para agarrar as colunas de sustentação do túnel. A coisa se arrastou
para perto de mim. Sem pernas e com braços demais.
Vacilei até parar. Um arroto de alho clareou minha mente por alguns segundos. Percebi que aquilo era muito grande - como um vagão inteiro fora de controle - e que
eu estava totalmente desarmado...
Logo em seguida, porém, a criatura dentro de mim apertou minha coluna e me impregnou de raiva. Tirei a Stratocaster do estojo e a segurei pelo braço com as duas
mãos para levantá-la como se fosse um machado. As cordas de aço e os captadores dourados cintilaram na escuridão, e, subitamente, aquele lindo instrumento não passava
de uma arma, um pedaço de madeira feito para arrebentar coisas.
Os ratos corriam em torno de mim, subindo pelas paredes e colunas.
A coisa se recusava a assumir uma forma definida no escuro, mas eu podia ver que avançava mais rapidamente na minha direção, seu corpo espalhando cascalho para os
lados. Na ofensiva, acertou as lâmpadas penduradas, despedaçando-se uma por uma, rolando como uma nuvem de fumaça que trazia a escuridão.
Do meio da coisa, algo emitiu um brilho úmido: uma boca aberta coroada de dentes longos como facas. E eu armado apenas com uma guitarra elétrica. Uma pequena e racional
parte de mim sabia que eu estava muito, muito ferrado...
A coisa estava a apenas 20 metros. Agitei a Stratocaster diante de mim; seu peso me fez bambear.
Dez metros...
De repente, figuras humanas passaram correndo por mim, saídas da escuridão, e foram direto na direção da criatura. Vi reflexos de armas de metal, e em seguida ouvi
os gritos do monstro ecoando pelo túnel. Alguém me empurrou para o lado e me prensou na parede até que a fera tivesse acabado de passar. Apêndices carnudos que acabavam
em bocas com dentes úmidos e afiados saltavam do corpo e agarravam as colunas de aço. Gritos humanos e guinchos de ratos, além do cascalho voando, preenchiam o ar
à nossa volta.
E, num instante, a coisa tinha sumido, sugando o ar atrás de si como uma composição do metrô em movimento.
A mulher que havia me empurrado contra a parede me soltou, e eu quase caí sobre os trilhos. A monstruosa massa branca recuava na escuridão, deixando um trilho de
água negra reluzente. As figuras sombrias e uma fileira de ratos foram atrás dela. As armas cintilavam como faíscas de trilhos energizados.
Fiquei parado ali, recuperando o fôlego e segurando a Strat como se fosse golpear alguém. Mas a criatura sumiu de vista, engolida pelo buraco que eu tinha encontrado,
como uma longa língua branca retornando à boca.
Os caçadores saíram no encalço da coisa, e logo o túnel estava vazio, exceto por mim, uma centena de ratos esmagados e a mulher.
Eu estava surpreso. Ela era um pouco mais velha do que eu. Tinha cabelos bem escuros caindo sobre olhos castanhos e usava uma jaqueta de couro bem gasta e calça
cargo cheia de bolsos estufados.
Ela reparou na guitarra em minhas mãos.
- Consegue falar?
- Falar?
Continuei parado, perplexo e trêmulo.
- É isso aí, cara, conversar. Ou já ficou maluco?
- Ahn... - Baixei a Stratocaster. - Acho que não.
- Aham, sei - disse ela, com deboche. - Mas então, cara, está tentando se matar?
Ela me levou a uma estação escura e abandonada, na continuação dos trilhos - uma estação fantasma. As escadas estavam bloqueadas com tapumes e o guichê, entulhado,
mas na plataforma, toda coberta de grafite, os caçadores se reuniam depois da perseguição. Eles subiam dos trilhos com movimentos graciosos idênticos aos as figuras
sombrias que haviam escalado a saída de emergência na noite em que eu conheci Pearl.
Anjos. Era como Luz chamava as pessoas que participavam da batalha. Eu só nunca tinha imaginado anjos carregando mochilas e walkie-talkies.
- Cuidado com isso aí - disse a mulher que havia me salvado. - Somos todos amigos.
- O que...? Ah, entendi, desculpa.
Até então, eu ainda segurava a Stratocaster como uma arma. Aproveitei que a alça estava pendurada na ponta e deixei a guitarra escorregar para as minhas costas.
O estágio da confusão estava finalmente chegando para mim. Eu realmente tinha visto um monstro gigante? E desejado enfrentá-lo?
Encarei a garota.
- Ahn... quem é você, hein?
- Meu nome é Lace. Vem de Lacey. E o seu?
- Moz.
- Consegue dizer o próprio nome? Nada mal.
- Consigo o quê?
Em vez de responder, ela tirou uma pequena lanterna do bolso e a apontou para os meus olhos. A luz me cegou.
- Ai! O que está fazendo?
Ela se aproximou e sentiu meu hálito.
- Alho? Espertinho.
Uma voz de homem veio de trás.
- Positivo? Ou só um maluco?
- Com certeza é um peep, Cal. Mas parece que está se automedicando.
- Mais um? - O sotaque de Cal parecia do sul. - É o terceiro esta semana.
Os traços do facho da lanterna ainda manchavam minha visão, mas consegui ver o gesto desinteressado de Lace.
- Bem, o alho está em todas as histórias, não está? Moz, quem mandou você comer esse negócio?
- Ahn... uma mulher chamada Luz.
- Médica? Curandeira?
- Ela é... ahn... - Tentei lembrar a palavra que Min usava. - Uma esoterista.
- Que negócio é esse? - perguntou Cal.
Com a visão quase restabelecida, notei que ele usava uma camiseta da Britney Spears por baixo da jaqueta de couro, o que me pareceu bizarramente fora do contexto.
- Alguma coisa esotérica - respondeu Lace.
Balancei a cabeça. Eu não conhecia Luz pessoalmente.
- Ela cura as pessoas. Acho que é um tipo de católica. Usa chá e outras coisas.
- Coisa de amadores - disse Lace, numa voz melodiosa. - Então, Moz, desde quando vem sentindo vontade de comer carne crua?
Lembrei do beijo em Min.
- Três semanas e quatro dias.
- Que precisão - comentou Cal, levantando as sobrancelhas.
- É que foi quando eu... - Minha voz sumiu. Não era uma boa idéia contar a eles sobre Min. - Quem são vocês, afinal de contas?
- Somos os caras que salvaram sua pele. Você quase foi esmagado por aquele verme, lembra? - disse Lace.
Engoli em seco. Dois anjos estavam carregando um terceiro para a plataforma. Ele tinha uma ferida grande numa das pernas, da qual escorria água negra. Não gritava,
mas seu rosto se contorcia de dor, os dentes trincados.
E eu tinha pensado em enfrentar aquela coisa sozinho?
- Ahn, obrigado.
- Ahn, de nada. Você tem namorada? Colegas de quarto? Gatos?
- Gatos? - Na hora, lembrei do estranho olhar de zumbi. - Escuta, não sei do que você está falando. Nem o que era aquela coisa! O que está acontecendo?
- Lace, ele não sabe de nada - disse Cal. - Agarra logo ele e vamos embora. A fera só está ferida, pode voltar.
A mulher me observou por um momento e mexeu a cabeça, concordando.
- Certo. O negócio é o seguinte, Moz. Esses antigos remédios tradicionais não vão manter sua cabeça no lugar por muito tempo. Logo, logo, você vai fazer coisas desagradáveis
a seus amigos e vizinhos. Por isso, vamos levá-lo para um passeio em Nova Jersey.
- Nova Jersey?
- É. Montana está lotado. - Lace sorriu e pegou um pequeno objeto de um dos bolsos da calça. Uma agulha brilhou na sua ponta. - Não vai doer nada. E, graças à sua
amiga esoterista, você não vai passar mais que uma ou duas semanas por lá. Tenho de admitir que ela manteve você num bom estado.
- Ei, espera aí - reagi, dando um passo para trás e levantando os braços. - Não vou a lugar nenhum. Tenho um show na semana que vem.
- Um show? - Lace olhou a guitarra nas minhas costas. - Legal. Mas acho que você não vai poder ir. Temos que treiná-lo.
- Me treinar para quê?
- Para salvar o mundo - respondeu Cal.
- Quer dizer que a Luz está certa? Existe mesmo uma batalha?
- Ela contou sobre...? - A voz de Lace sumiu. Ela fechou os olhos e farejou o ar. - Ei, Cal... sentiu isso?
Eu tinha sentido. Meus poderes mágicos estavam a toda. Dei um passo para trás.
- Nada disso, Moz! - disse Lace, agarrando meu braço e aproximando a agulha.
No mesmo instante em que consegui soltar o braço, o chão se abriu embaixo de nós...
Tentáculos surgiram por entre o concreto da plataforma, exibindo dentes em círculos que brilhavam na escuridão. Um deles passou de raspão por mim, deixando a manga
do meu casaco em tiras. Saí em disparada, desviando dos apêndices em fúria e tropeçando nos pedaços de concreto quebrado.
Os anjos contra-atacaram. Eu ouvi as espadas cortando o ar, em movimentos tão mortais quanto os dos dentes furiosos.
Pulei da plataforma e olhei para trás. Lace girava e golpeava com a espada, cortando os tentáculos assim que estes saíram do chão. Água negra espirrava dos cotocos.
Minhas mãos se aproximaram do braço da Strat, na ânsia de tirá-la das costas. Eu estava doido para correr de volta e entra na luta, mas, em vez disso, peguei o alho
e dei uma mordida num dente com casca e tudo.
O gesto intenso e ardente clareou minha mente: eu não queria participar de batalha nenhuma. Não queria ir para uma espécie de refúgio em Nova Jersey. Só queria continuar
onde estar, continuar na minha banda, fazer shows e ficar famoso!
Deixei a luta para trás e saí correndo pelos trilhos, na direção da estação Union Square. Quando passei pela fenda no túnel, encarei uma torrente de ratos, voltando
para o combate. Enquanto eles passavam pulei como uma criança descalça no asfalto quente para não pisar nos bichos.
Finalmente as luzes da estação brilharam à minha frente. Subi para a plataforma e continuei correndo, pegando escadas e túneis sinuosos até alcançar um ponto a céu
aberto.
Senti o peso nos meus bolsos. Tinha o suficiente para pegar o táxi até o Brooklyn. Eu precisava contar a Min o que tinha visto. O inimigo era exatamente como ela
dizia: algo monstruoso. E realmente existiam anjos, que recrutavam pessoas infectadas e as levavam para... Nova Jersey?
Não importava. A batalha era real.
Parei um táxi e disse o endereço de Minerva ao motorista. Quando ele respondeu que não ia mais até aquela parte do Brooklyn, cheguei bem perto e mostrei os dentes,
pedindo que pensasse melhor. Ele se virou, deu de cara com meu olhar de astro do rock louco e mudou de idéia.
Assim que o táxi entrou na ponte Williamsburg, afastando-se do nível do chão, meus nervos começaram a se acalmar. Eu estava a caminho da casa de Minerva; da segurança.
Tinha escapado dos anjos, e, desde que ficasse longe do metrô, eles nunca mais me encontrariam novamente...
Foi quando lembrei que tinha largado o estojo da guitarra e o amplificador para trás. Deixei o corpo afundar no banco plastificado e apertei os olhos.
O amplificador não importava; não tinha mias utilidade. Já o estojo... Se os anjos viessem atrás de mim, encontrariam o estojo nos trilhos. Dentro dele, havia um
recado educado: "Se alguém encontrar esta guitarra, por favor ligue para Moz nesse número. Ofereço boa recompensa!"
E, como não podia deixar de ser, o recado também incluía meu endereço.
21. The Runaways
-MINERVA-
Peguei o presente de aniversário de Astor Michaels pouco antes da meia-noite, como ele havia mandado.
Estava embrulhado em papel laminado. Sob a luz das velas, meu próprio rosto me observava, borrado e distorcido. Zumbi pulou na cama e cheiro o embrulho. Depois,
olhou para mim, com uma carinha de preocupado.
Astor Michaels não era da família para mim e Zumbi - e nem para, agora, Moz. Era mais uma espécie de parente distante, de uma parte do clã que escrevia o sobrenome
de maneira diferente. Seu cheiro era esquisito.
- Não se preocupe, Zumbi. Astor vai transformar mamãe numa estrela do rock.
Como, ao puxar a fita vermelha, só consegui apertar o nó ainda mais, resolvi levar a caixa à boca. A fita esticou um pouco no momento em que meus dentes se encontraram
e logo se partiu, como uma galinha quando Luz quebrava seu pescoço.
Ultimamente os dentes tinham mil utilidades. Mozzy conseguia usá-los para abrir garrafas.
Tirei a caixa do embrulho e dei uma olhada no relógio faltavam dez segundos.
Iniciei a contagem regressiva, torcendo para que o presente não fosse algo em forma de coração. Eca. Astor Michaels sabia que eu e Mozzy estávamos juntos. Ele havia
notado mais rápido que os outros, exceto pela maldita da Alana Ray - e por Zahler, caro, a quem Moz contou antes mesmo de me ligar. (Ok, na verdade só Pearl não
sabia. Coitadinha da Pearl.)
Assim que minhas unhas abriram a caixa, sorri.
Era um celular, minúsculo e reluzente. Ao tirá-lo da caixa, segurando-o na palma da mão, senti seu peso insignificante. Que idéia de presente maravilhosa...
Zumbi, que até então andava entretido com a fita vermelha, aproximou-se para cheirar o aparelho. Nesse instante, o celular vibrou na palma da minha mão, como uma
mosca pega no ar. Zumbi olhou para mim e miou.
- Deve ser para mim.
Deixei Astor Michaels esperando enquanto o celular vibrava três vezes, até que apertei o botão verde.
- Você é esperto - atendi.
- Meu trabalho é manter os talentos felizes.
- Aham.
Eu estava imaginando quando Mozzy chegaria de sua brincadeira no metrô. Ele devia me ligar exatamente à uma. Eu podia ligar um pouquinho antes e fazer uma surpresa...
soltei um risinho.
- Parece que deu certo - disse Astor Michaels.
- Muito. - Franzi as sobrancelhas, me perguntando: - Por que Pearl nunca me deu um desses?
- Talvez ela achasse que você fosse se meter em confusão.
- Ah, claro. - Pearl provavelmente gostava de ser a única pessoa com meu número. Mas ela não sabia de nada. - Já estava na hora. Luz roubou meus botões, você sabe.
- Você contou. Você precisava de um telefone de verdade, Min. Aliás, está na hora de ter uma vida de verdade.
Zumbi olhou para mim, como se estivesse acompanhando a conversa.
- O que está querendo dizer, Astor Michaels?
- Por que não se mudar daí, Min?
- Mudar... daqui?
Meus olhos percorreram a escuridão à minha volta, salpicada de velas.
- A Red Rat mantém alguns apartamentos para nossos artistas especiais; para quando eles vêm gravar na cidade. Mobiliados, e localizados em Manhattan. Você poderia
se mudar quando quisesse.
Fiquei apreensiva e estiquei o braço para acariciar Zumbi. Senti que seus pêlos estavam arrepiados.
- Mas e meus...
- Seus pais? - Ele fez um barulhinho demonstrando decepção. - Você vai completar 18 anos em duas semanas. Pode ficar sumida por esse tempo, não acha? Você acha que
a polícia vai se preocupar muito com uma jovem fugida prestes a se tornar maior de idade?
Não respondi. Eu não me preocupava com a polícia, muito menos com meus pais. Na verdade, não sabia mesmo era quanto tempo agüentaria sem Luz. Ela podia ser um saco,
mas havia me curado, pelo menos em termos.
E Mozzy precisava mais ainda dela. Eu andava dividindo os remédios com ele para ter certeza de que suportaria os primeiros estágios da doença. Até agora, Mozzy estava
se saindo bem, mas eu não queria que começasse a ter vontade de morder todo mundo.
- Min? - perguntou Astor Michaels.
Cobri o telefone com a mão.
- O que você acha, Zumbi?
Seus olhos estavam bem abertos, brilhantes, nervosos... e empolgados.
Mozzy precisava ficar bem, mas nós também tínhamos necessidades. Respirar o ar livre à noite e aproveitar os cheiros e o luar. Descer até o metrô, como Mozzy fazia
toda noite.
Eu queria aprender mais... para deixar minhas músicas mais intensas.
Depois de algumas semanas, poderia ligar para Luz e pedir para ela me visitar em minha nova casa. Ela poderia preparar um chá de mandrágora para nós dois como presente
de aniversário. Quando eu tivesse 18 anos, não importaria se ela contasse sobre meu paradeiro a meus pais.
Eu e Moz agüentaríamos aquele tempo. Poderíamos comer um monte de alho. Aquele monte de outras ervas fedorentas deviam ser só para criar o clima.
Ainda me observando com os olhos cintilantes, Zumbi miou. Se tivéssemos nossa própria casa, ele poderia sair para brincar com os amiguinhos sempre que quisesse.
- Com você fora desse quarto - recomeçou Astor Michaels - a banda pode ensaiar todos os dias. Pense como isso seria proveitoso, principalmente com o show chegando.
Mordi os lábios. Pearl andava reclamando de só termos mais um domingo de ensaio. Zumbi olhou para mim, balançando o rabo, ansioso.
- Tudo bem. Vou me mudar.
- Achei que essa seria a resposta - disse Astor Michaels. Consegui até ouvir seu sorriso, que atravessou as ondas telefônicas como uma abelha. - Vá arrumar as malas.
- Como assim? Agora? Mas é meia-noite.
- É o melhor horário para fugir, não acha? Já estou na rua, indo buscar você.
- Mas é que Moz disse que ligaria mais tarde.
Ele soltou um suspiro que preencheu meu ouvido.
- Você pode ligar para ele, Min. Lembra do presente? Esse aí pelo qual estamos falando?
- Ah, claro. - Dei uma risadinha. - Astor Michaels espertinho.
- Vejo você em 20 minutos. Não leve muita coisa.
Não levar muita coisa? Humpf.
Eu precisava de muitos vestidos: todos os pretos para usar no palco. E todos meus colares e anéis, mesmo que minha caixinha de jóias fosse velha e rosa e estivesse
acabada. Poucos sapatos porque eu realmente precisava trocas todos por pares novos; nenhum dos meus tinha muita cara de estrela do rock. Também arrumei todas as
roupas íntimas que eu e Pearl compramos juntas no dia em que fomos à Red Rat, mas nada de pijamas: eu estava cansada de ficar deitada o dia inteiro. Cansada de dormir.
Nunca mais, pensei, enquanto enchia duas malas. Podia deixar todo o sono restante para depois de minha morte.
Obviamente, levei meus cadernos. Àquela altura, eu já tinha memorizado a maioria das músicas contida neles, mas gostava do cheiro deles e de observar minha antiga
caligrafia. Era um prazer saber que só eu era capaz de ler as músicas, todas escritas na minha língua exclusiva.
Do alto do armário, Zumbi miou, para me lembrar de levar comida de gato e um lugar onde pudesse fazer suas necessidades. Peguei o saco de ração e prometi arrumar
uma caixinha de areia. E montes de ossos: eu e Moz precisaríamos de muita carne, ainda mais sem a ajuda das tinturas e dos chás de Luz.
Fiquei me perguntando se ele ficaria comigo...
Aquele pensamento me deu um arrepio. Olhei para o quarto outra vez: o lugar em que eu havia passado quase 19 anos. Era hora de crescer.
A doença tinha tornado aquele quarto vazio de significados. Luz havia se livrado de todas as minhas coisas na época em que elas me davam vontade de gritar. Agora
ela estava devolvendo objetos familiares um por um, mas nenhum tinha mais significado. Tudo que remontava à época anterior à doença cheirava como brinquedos antigos
da infância, doces de lembrar mas um pouco constrangedores.
Era melhor deixar tudo para os meus pais.
Mamãe e papai ficariam irritados, mas depois eu poderia ligar do meu novo telefone e dizer como estava me sentindo feliz.
Fechei as malas e fui até a porta, de olhos fechados, para ouvir. Maxwell dormia pesadamente no fim do corredor. Ele ultimamente tinha passado a roncar; era a puberdade
o deixando com espinhas e agitado. Ficaria muito mais feliz sem uma irmã mais velha e louca para atrair todas as atenções.
Fiz um grande esforço para ouvir acima dos roncos de Max. Um ruído quase imperceptível lá embaixo... seria Astor Michaels subindo a escada? Mas ele não sabia da
chave secreta.
O celular voltou a vibrar, como se fosse um animalzinho nervoso na minha mão.
- Estou pronta - sussurrei.
- Ótimo. Estamos encostando o carro. Caramba, essa vizinhança já viveu dias melhores.
- Não é culpa nossa. Aqueles malvados dos lixeiros não vêm mais aqui.
- Bem, estou feliz por tirar você daqui.
Fiquei um pouco contrariada. De repente, preferia que não fosse Astor Michaels quem estava me ajudando a escapar. Talvez fugir com ele não fosse uma idéia tão boa.
Podia ser Mozzy a me ajudar, no lugar dele...
Por outro lado, eu não conseguiria me imaginar desfazendo as malas, botando tudo de volta nas gavetas, nos armários e permanecer ali.
- Certo. Primeiro você precisa pegar a chave. Depois, subir as escadas sem fazer barulho...
Ele deu uma risada.
- Espera um pouco, Min, minha querida. Eu não entro escondido nos lugares.
- Mas... Tem uma tranca na minha porta.
- Ok. E você pode quebrar.
- A tranca?
- A porta. Você está nessa condição há cinco meses, Minerva. Consegue sentir sua força, não consegue? Eu já quebrei portas sem querer. Simplesmente bata com a mão
espalmada nela. Com força.
Toquei suavemente na porta, lembrando de todas as noites que eu havia passado tentando abrir pequenos buracos nela. Mas derrubá-la?
- Vai fazer barulho - sussurrei. - Vai acordar todo mundo.
- Você já vai ter descido e saído pela porta da frente enquanto eles estiverem se perguntando o que está acontecendo. Não seja tímida. Dê uma pancada na porta, Min.
Lembrei que eu tinha levantado a mesa de mixagem de Pearl com uma única mão no domingo, deixando-a de olhos arregalados.
Mas derrubar minha própria porta?
- Quer continuar no seu quarto para sempre? - perguntou ele.
Soltei um rosnado pelo telefone. Astor Michaels e seus testezinhos. Éramos maduros o bastante para nos mantermos unidos? Corajosos o bastante para encarar uma audiência
indócil? Fortes o bastante para... derrubar coisas?
Muito bem.
Desliguei o telefone, peguei Zumbi no colo e encostei a palma da mão na madeira. Recuei o braço...
E deixei a porta em pedacinhos.
Do outro lado estava Moz, de queixo caído.
- Mozzy? - gritei.
Seu cheiro logo invadiu o quarto. Zumbi se debateu para descer e dizer oi. Olhei para minha mão dolorida.
- Eu teria ouvido você subindo, se não fosse o maldito Astor Michaels me distraindo.
- Ahn, eu...
- Pobre Mozzy. Você parece exausto.
- Aconteceu uma coisa comigo. Uma coisa estranha. - Ele olhou para os pedaços de madeira em volta de seus pés. - Por que você fez isso?
Peguei as malas do chão.
- Eu conto no caminho.
- Que caminho? Caminho de onde?
- Da minha nova casa - respondi. - Pára de me condenar! Não você, Mozzy. Pode carregar isso aqui?
Ele piscou algumas vezes antes de reparar na outra mala e pegá-la.
Parei por um instante para ouvir. Com certeza, Maxwell estava acordado, roncando em pequenos fragmentos, exatamente como a porta. Eu podia escutá-lo se revirando
na cama, respirando agitado.
Lá embaixo, no quarto dos meus pais, passos faziam o piso ranger.
- Vamos - murmurei.
Nós não nos importávamos em entrar ou sair escondidos dos lugares. A escada gemeu, mas a sensação de não precisar me preocupar com cada ruído daqueles degraus podres
era muito bom. Já tínhamos passado pelo quarto dos meus pais, quase na entrada da casa, quando papai acendeu a luz em cima de nós.
- Minerva? - chamou ele, baixinho. - Max?
Abri a porta. Os odores do lado de fora entraram na mesma hora: as montanhas de lixo, as folhas caídas do outono, os amiguinhos de Zumbi correndo no escuro.
- Tchau, papai - eu disse, tentando soar um pouco triste por estar partindo. - Por favor, não se preocupe. Vou ligar em breve.
- O que você está fazendo? Quem está aí com você?
Moz parecia completamente constrangido, sendo observado pelo meu pai. Mas quem parecia ridículo era papai naqueles pijamas.
- Diga tchau ao Max e à mamãe e também que vamos nos ver no meu aniversário, está bem?
- Minerva, você não pode simplesmente ir embora... Você não está bem! Para onde está...?
- Já disse que depois eu ligo!
Papai nunca ouve. Saí correndo pela porta.
- Como vamos sair daqui? - perguntou Moz, correndo para me acompanhar. - Eles não vão chamar a polícia? Eu deixei o táxi ir embora, e não podemos pegar o metrô!
Tem aquela coisa lá embaixo...
- Está tudo sobre controle, Moz. Olha, lá está ele!
Astor Michaels estava parado a meio quarteirão, ao lado de sua limusine, parecendo surpreso por ver Mozzy. Seu motorista perambulava por perto, examinando as pilhas
de lixo com nervosismo, mantendo a mão no bolso, como se estivesse se preparando para atirar em alguns dos amiguinhos de Zumbis.
Corremos. Assim que chegamos ao carro, entreguei minha mala a Astor Michaels.
- Segura isso aí. Zumbi está com as unhas cravadas no me vestido.
- Você trouxe o gato - disse ele, com a voz arrastada, olhando para Moz.
- E o Mozzy também!
- É, estou vendo. - Astor Michaels suspiro com ar de cansado. - E aí, Moz?
- O que está acontecendo aqui? - perguntou Moz, todo machão e ciumento, o que me fez dar um risinho.
Mas então, ouvimos papai gritando e entramos correndo na limusine, levando as malas conosco em vez de colocá-las no porta-malas. O motorista ligou o carro e fomos
embora.
Acenei para me pai pela janela de trás.
- Vamos para nossa nova casa, Moz - expliquei. - Você devia ir e ficar lá comigo.
- Ahn... - tentou interromper Astor Michaels.
- Não posso ir para casa - disse Moz, assistindo ao Brooklyn da madrugada passar pela janela. - Eu vi uma coisa lá embaixo, no metrô, e os anjos me pegaram. Quase
me levaram embora, como Luz costuma avisar.
- Anjos? - perguntei.
Somente naquela hora percebi como Moz estava tremendo. Ele tinha o rosto pálido, em estado de choque, e estava agitado e suado como se tivesse visto algo muito pior
do que minha porta explodindo em pedaços.
- É real, Min - disse ele, baixinho. - A batalha é real.
Passei os braços por cima de seus ombros e o abracei.
- Não se preocupe, Mozzy. Vamos levá-lo para um lugar seguro.
- Temos que usar todos os meios - completou Astor Michaels. - Para manter os talentos felizes.
22. Crowded House
-PEARL-
Na manhã seguinte ao show do Morgan's Army, meu telefone tocou. Era Astor Michaels.
- Graças a você, estou de ressaca - disse logo de cara, ainda atordoada por todas as taças de champanhe que ele tinha me dado.
Mamãe me lançou um olhar preocupado do outro lado da mesa, mas a ignorei. Malditos genes do champanhe.
Astor Michaels riu de mim do outro lado da linha.
- Bom, pelo menos temos algo a comemorar. Finalmente estão prontos.
Fechei os olhos, ofuscada pela claridade que entrava pela sala de jantar.
- Os contratos? - perguntei.
- Estão na minha mão.
- Seu advogado trabalha sábado de manhã?
- Já estavam prontos ontem.
Mamãe fingia que não ouvia, mas, mesmo assim, tentei não xingar muito alto. Todo mundo estava me enchendo o saco para completar a negociação, como se o atraso fosse
minha culpa.
- E por que não me contou isso ontem?
- Porque minha noite prometia ser muito complicada.
- Ah, sua missão misteriosa.
Ele havia abandonado a mim e a Alana Ray no clube antes do fim do show, sorrindo como alguém que esconde um segredo comprometedor.
- E, depois disso, as coisas ficaram ainda mais complicadas. - Astor Michaels suspirou de cansaço. - Se puder me encontrar no centro, em duas horas, explico tudo.
- As explicações ficam a seu critério. Só não esqueça os contratos.
- Contratos? - perguntou minha mãe, assim que desliguei o telefone. - Isso significa que realmente vai seguir em frente com esse negócio?
Prestei atenção nas minhas mãos, que tremiam um pouco, em parte por causa da ressaca, em parte por causa do nervosismo.
- É, vou sim.
Ela olhou para janela.
- Não sei por que gastamos todo aquele dinheiro com a escola, se era para você acabar fazendo algo desse tipo.
- Mãe, Juilliard não foi um desperdício. Não mesmo. Mas... acabou.
Ela me encarou, tentando assumir uma expressão de incredulidade, mas, no fundo, sabia que eu estava certa. A cada dia, menos alunos apareciam para as aulas, e aqueles
que continuavam por lá estavam todos planejando algum tipo de fuga para deixar a cidade. Ellen Bromowitz tinha total razão: uma semana antes, a orquestra principal
havia sido suspensa pelo resto do ano. A infra-estrutura já começava a desmoronar:
- Além disso, esse é o sonho da minha vida.
- Da sua vida? Meu amor, você só tem 17 anos.
Olhei para ela, pronta para responder com uma ironia, mas então notei que seus olhos refletiam a claridade. De repente, vi algo que eu nunca tinha imaginado antes:
minha indestrutível mãe parecendo frágil, como alguém que estava realmente preocupada com o futuro.
Imaginei se os amigos dela estavam fazendo a mesma coisa que os meus: indo para a Suíça e deixando para trás a cidade. E se ninguém mais se importasse em levantar
recursos para museus, companhias de dança e orquestras? E se todas as festas que eram sua vida não tivessem mais razão de ser e simplesmente deixassem de acontecer,
tornando inúteis todos seus diamantes e vestidos de gala pretos?
Mamãe também dependia de uma infra-estrutura - percebi naquele momento - que agora desabava na sua frente.
Por isso, tudo que eu disse foi:
- Dezessete anos é muito tempo, mãe. Só espero que não seja tarde demais.
Liguei para a casa de Moz, na mesma hora para convocá-lo. Afinal, nós dois tínhamos iniciado a banda. Era nosso momento de consagração.
A mãe dele não o havia visto de manhã. Não sabia se ele tinha dormido em casa e não parecia nada satisfeita com isso. Mesmo que aquilo já houvesse acontecido antes,
em outras noites de sexta-feira, disse ela, nas circunstâncias atuais, Moz devia tomar mais cuidado...
Desliguei meio preocupada, torcendo para que Moz não ficasse irritado comigo. Exceto nos casos de Alana Ray e da quase maior de idade Min, nossos pais também tinham
de assinar os contratos da Red Rat. Faltando apenas seis dias para nosso primeiro show, não era hora de começar um atrito.
Em seguida, liguei para a casa de Zahler, mas ninguém atendeu. Comecei a viajar imaginando todas as possíveis razões do sumiço dos dois. A polícia andava investigando
vários casos de desaparecimento ultimamente, principalmente nos túneis. Havia rumores de que todo o transporte subterrâneo seria fechado. Moz e Zahler, porém, não
seriam tão idiotas de irem ao metrô. Ou seriam?
Não agora que estávamos tão perto...
Astor Michaels tinha me passado o endereço de um grande condomínio na Thirteenth Street. Cheguei na hora exata e o encontrei no saguão com uma maleta de couro de
crocodilo embaixo do braço.
- Vamos subir? - perguntou ele.
- Você mora aqui?
O carpete do saguão estava meio puído em alguns pontos. Havia dois seguranças sentados em cadeiras reclináveis, atrás do porteiro, nos observando atentamente, segurando
escopetas.
- Meu Deus, claro que não. A Red Rat tem alguns apartamentos aqui. Achei que gostaria de conhecer um.
Eu não fazia idéia do que ele pretendia com aquilo, mas olhei para a maleta dele.
- Por mim, tanto faz.
Os elevadores eram antigos, verdadeiras jaulas de zoológico suspensas por cabos. Um cara de mil anos, usando uniforme, fechou a porta depois que entramos e puxou
uma alavanca imensa para um dos lados. A coisa começou a subir. Podíamos ver os andares passando pelas barras de ferro. Minha ressaca começou a reclamar das três
xícaras de café que eu havia tomado.
Astor Michaels virou na minha direção, apertando a maleta ainda mais firme.
- Pearl, eu atuo nessa área desde que o Novo Som era realmente novo.
- Foi por isso que fui atrás de você.
- E, nesse tempo, já contratei 15 bandas. Mas a sua tem algo de especial. Sabe disso, não sabe?
Enquanto os andares passavam, deixei um sorriso aparecer no meu rosto, lembrando da empolgação que eu havia sentido ao encontrar Moz e Zahler.
- Acho que temos coração.
- Esse coração é Minerva. É ela que torna vocês especiais.
A parada foi de revirar o estômago. Respirei fundo, sentindo o coração bater mais rápido e imaginando onde Astor Michaels pretendia chegar com aquela conversa. Será
que ele tinha desistido de contratar o resto da banda? Ou estava tentando me deixar com ciúmes de Minerva?
O ascensorista empurrou a lavanca para um lado e para o outro, fazendo o elevador balançar para alinhá-lo ao piso coberto por um carpete vermelho do lado de fora.
Tentei me lembrar de quantas taças de champanhe Astor Michaels havia me pagado na noite anterior.
- Sei que Minerva é especial - comentei, cautelosa. - Cresci com ela.
- É verdade.
Finalmente, o elevador se sacudiu e parou, permitindo que saíssemos num longo corredor. A jaula se fechou novamente e foi embora. Astor Michaels permaneceu parado.
- Das minhas 15 bandas, 11 já se autodestruíram.
Eu sabia daquilo. As bandas contratadas pela Red Rat eram famosas por terem a tendência a implodir.
- Imagino que todas faziam parte do Novo Som.
- E por que acha que isso acontece?
- Ahn... não sei. Drogas?
Ele balançou negativamente a cabeça.
- É o que costumamos dizer à imprensa. Mas raramente é verdade.
- Está dizendo que vocês escondem a verdade dizendo que foram as drogas? Não deveria ser o contrário?
- Geralmente, sim. Mas algumas coisas são piores que drogas. - Ele deu uma tremida. - Ontem bem tarde, o Toxoplasma teve uma espécie de surto. Logo depois do primeiro
show deles. Sabe, aqueles garotos nunca se deram muito bem.
Notei uma gota de suor escorrendo pela sua testa. Era a primeira vez que eu via Astor Michaels perder a pose.
- O que aconteceu? - perguntei.
- Ninguém sabe ao certo. Foi tudo muito estressante. E caro para arrumar. - Ele olhou para a mão que permanecia livre, cutucando as unhas com o dedão. - Uma confusão.
- Eles se separaram?
- Não exatamente. - Ele não sorria. - Como você costuma dizer, esse sempre foi o problema do Novo Som. O Toxoplasma tinha coração, mas só durou um mísero show. Um
show! - Astor Michaels deu um longo suspiro. - Pode ser que o Morgan's Army dure para sempre, mas é claro que eles não são de verdade.
- Ei, eles podem não ter sido perfeitos ontem à noite, mas achei que eles fizeram uma apresentação ótima. O que quer dizer com "de verdade"?
Astor Michaels deu uma geral no corredor vazio.
- Eu te explico lá dentro.
Ele se virou e saiu andando. Enquanto eu o seguia, meu estômago voltou a incomodar. Senti as pernas bambas, como se alguém estivesse acertando a altura do piso sob
meus pés. Afinal, o que estávamos fazendo ali?
Depois de parar diante de uma porta, ele bateu duas vezes e aguardou.
- Não quero incomodar os moradores, mas acho que eles saíram.
- Quem mora aqui?
Ele pegou uma chave no bolso e abriu a porta.
Zumbi nos esperava lá dentro.
- Sempre fui capaz de enxergá-los - começou Astor Michaels. - Antes mesmo de acontecer comigo.
Eu não conseguia tirar os olhos do sofá, onde metade das roupas de Min estava espalhada: vestidos pretos, xales e meias, jogados pela sala. Havia duas malas abertas
no chão.
Meu estômago se contorceu de novo. Minerva estava morando ali agora. Astor Michaels a havia instalado ali, sua garota especial.
- Eles apareciam nas boates, transpirando sensualidade pelos olhos, no começo apenas alguns. Mas depois que subiram ao palco... - Ele mexeu a cabeça. - Eles são
estrelas naturais, totalmente carismáticos. Exceto por um pequeno problema.
- São totalmente malucos? - perguntei de supetão, enquanto reparava no armário; a caixinha rosa de jóias que eu tinha dado a Minerva aos 12 anos estava aberta, cheia
de coisinhas cintilantes.
- Malucos? Pearl, eu trabalho para uma gravadora. Sou plenamente capaz de lidar com malucos - disse ele, chegando mais perto de mim. - Eles são canibais.
Encarei-o bem nos olhos. Ele tinha dito canibais?
No instante seguinte, contudo, lembrei de que Min havia mandando um de sues médicos para o hospital, antes da chegada de Luz. Lembrei de toda aquela carne crua que
ela comia e de como seus dentes ficavam mais afiados a cada dia.
Quase tão afiados quanto os de Astor Michaels.
Ali, na semiescuridão do apartamento, senti algo gelado subindo pela minha coluna.
- Por que me trouxe aqui? - perguntei.
Por um instante, ele pareceu confuso. Depois bufou, meio impaciente.
- Ah, por favor. Eu nunca nem cheguei a tentar. Nem uma única vez. Sou diferente dos outros. - Seus olhos se reviraram; ele ainda parecia nervoso. - Completamente
são. E eu não faria mal a você por nada, querida Pearl. Você me fez um imenso favor.
- Favor?
- Passei os últimos dois anos à procura de alguém como eu... alguém que, apesar de infectado, estivesse imune ao apetite voraz. Uma vocalista capaz de subir ao palco
e levar o Novo Som ao resto do mundo sem... - Ele olhou para as próprias unhas novamente. - Sem todo esse canibalismo.
Voltei a pensar no que teria acontecido com o Toxoplasma na noite anterior. Provavelmente, nada que pudesse ser consertado numa clínica de reabilitação.
- Por isso fiquei tão empolgado quando você me trouxe Minerva - continuou Astor Michaels. - Ela é verdadeira, entende? Não uma imitação, como Abril Johnson. Mas
também não como aqueles garotos descontrolados do Toxoplasma. - Zumbi pulou em seu colo, e ele o acariciou na cabeça. - Ela é imune ao apetite.
- Eu não diria isso - discordei, reparando nas roupas espalhadas pelo recinto. - Ela teve isso bem forte durante um tempo.
- Então, de alguma forma, você conseguiu controlá-la, Pearl.
- Não fui eu. Os pais dela contrataram uma... esoterista. Alguém que sabia o que fazer para salvá-la.
Dei uma geral no apartamento e pensei como Min conseguiria as coisas de que precisava naquele lugar. Quanto tempo agüentaria sem os remédios de Luz?
- Bem, se alguém descobriu uma cura para essa coisa, realmente precisamos agir depressa. Não vai demorar até alguém vendê-la em garrafas para qualquer um se torne
uma estrela do rock. - Ele tremeu. - Que desastre.
Olhei para suas mãos, com unhas longas e afiadas, porém bem-cuidadas.
- E essa coisa nunca fez você...
- Ficar maluco? Um canibal? - completou ele, indicando que não. - Só com muita vontade de comer carne crua às vezes. E excitado. Sempre.
- Excitado?
Senti então um desconforto ainda maior na pele.
- É claro - disse ele, rindo. - É assim que ela se espalha. Pearl, isso não passa de uma doença. Uma nova praga que contaminou a água. E, ate onde sei, é transmitida
sexualmente. Deixa as pessoas com vontade de espalhar a doença.
Fechei os olhos. Então Luz tinha razão em relação aos garotos. Sobre o que mais ela teria razão? Fiquei pensando onde estariam seus anjos num momento em que eu precisava
deles...
Nessa hora lembrei que Mark também tinha surtado. Teria sido ele o responsável pela transmissão a Minerva? Ou o contrário? Um deles devia estar traindo o outro...
Zumbi pulou no meu colo e me fez abrir os olhos. Astor Michaels continuava falando.
- Estou correndo atrás de aspirantes e cantores há dois anos, tentando achar alguém capaz de manter o controle depois de o carisma se assentar, mas todos, exatamente
todos, perderam a cabeça. Quinze bandas, Pearl. E, finalmente, você me traz uma estrela do rock já pronta! - Ele se recostou após passar a mão nos vestidos de Min
e soltar um suspiro. - Depois de todo meu esforço.
Ainda sentada, acariciando Zumbi, tentei não gritar quando entendi o que ele havia acabado de dizer. Astor Michaels tinha espalhado a doença intencionalmente. Era
responsável por criar mais casos como o de Minerva: pessoas piradas mantidas no sótão pelas famílias ou jogadas nas ruas, nas plataformas do metrô...
Estávamos fazendo negócio com um monstro. O Novo Som era a música dos monstros.
Respirei fundo e me lembrei dos contratos. Aquilo não necessariamente mudava as coisas. Os artistas já eram loucos antes; a questão era o que se fazia com a loucura.
Continuávamos sendo uma boa banda, até uma grande banda, ainda que nosso estilo musical se baseasse numa... doença.
Enquanto fôssemos o Taj Mahal das bandas canibais, talvez a situação não fosse tão ruim.
- Tudo bem - eu disse.
Na verdade, não estava nada bem, mas às vezes dizer esse tipo de coisas ajuda.
Astor Michaels sorriu.
- Então estamos juntos nessa, certo, Pearl? Precisamos manter Min saudável, para que nossos esforços, o meu e o seu, finalmente sejam recompensados. Mesmo que ela
faça algo que a deixe muito, muito irritada. Combinado?
Olhei para ele com desconfiança.
- Por exemplo?
- Sabe, alguma coisa que ela não seja necessariamente... capaz de controlar. A doença deixa as pessoas malucas, violentas e, principalmente, excitadas. Às vezes
nem eu consigo me controlar.
- Não me parece que você tem se esforçado tanto assim.
Ele sorriu, revelando os dentes afiados até as gengivas.
- Um preço baixo a pagar pela arte.
Zumbi levantou as orelhas, pulou do meu colo e correu para a porta. Um segundo depois ouvi um barulho de chaves vindo de fora.
- Ah, ele chegaram - disse Astor Michaels, revirando os olhos. - Lembre-se: todos queremos que essa banda seja um sucesso. Então não perca a cabeça com a pobre Min.
Eu já vi a mudança acontecer com os meus próprios olhos, e ela tem passado por mais coisas do que você imagina. Então seja legal, ok?
Assenti. Mas minha cabeça estava novamente girando a toda.
Eles chegaram, tinha dito ele.
Eles.
A porta se abriu e Minerva entrou. Atrás dela, vinha Moz, carregando uma bolsa bem velha.
- Mozzy! Olha quem está aqui! - gritou Min, com toda sua incrível beleza brilhando diante de mim, seu carisma de estrela canibal.
Moz apenas ficou parado, parecendo um pouco surpreso e muito culpado.
Sentindo meu estômago revirando de novo, lembrei da voz nervosa da mãe de Moz ao telefone, naquela manhã.
Ele inspirou lentamente e foi deixando a bolsa escorregar do ombro. Bem cheia, ela caiu no chão fazendo barulho, como se fosse um cadáver.
Moz estava se mudando para lá.
- Oi, Pearl. E aí?
Tentei responder, mas meu estômago estava se revirando, empurrando o gosto de champanhe digerido de volta à minha garganta. Minerva chegou mais perto de Moz, cinco
dedos pálidos em volta dele como se ela fosse sua protetora.
Ele pertencia a ela. Completamente.
Vendo os três juntos, finalmente notei as mudanças em Moz, as pistas para as quais eu tinha ficado cega: o brilho de sua pele, os traços bonitos e inumanos de seu
rosto. Exatamente como Min na primavera, quando a fome começou a se manifestar; algo havia deixado o rosto dele, já bonito, ainda mais encantador.
Mesmo quase fechados, sob a luz fraca das velas, seus olhos cintilavam, cheios de piedade de mim. Devia saber o que eu queria.
Mas ela havia conseguido primeiro.
De repente, a sensação de desolamento no meu estômago foi varrida pela raiva. Minerva tinha feito aquilo de novo, se envolvido com alguém da banda. Da minha banda.
Mesmo depois do que havia acontecido com Mark e o Sistema, depois dos conselhos de Luz, Min tinha feito aquilo comigo de novo. Fechei as mãos com força. Não era
surpresa que ela estivesse jogando tudo na minha cara naquele momento, quando estávamos tão perto, com os contratos ao alcance das mãos, prontos para serem assinados.
Senti o olhar de Astor Michaels me pedindo para manter o controle. Pelo bem da banda. Pelo bem do Novo Som... a música dos monstros.
Ele abriu as trancas da maleta e pegou uma caneta.
Engoli todos os gritos. Desceram pela minha garganta, cortantes e fios, como cubos de gelo.
- E aí, pessoal - falei. - Lugar bacana.
PARTE V
O Show
Se você estudar a Peste Negra, vai constatar um fato: sempre que as coisas começam a dar errado, os seres humanos encontram ma forma de piorar tudo.
No ano em que a Peste chegou à Europa, uma cidade chamada Caffa, nos limites da Ásia, estava sitiada. Quando os agressores se viram derrubados por uma estranha doença
nova, sabiamente decidiram fugir. Antes, porém, usaram as catapultas para lançar cadáveres contaminados pela praga por cima das muralhas da cidade. Assim, ambos
lados teriam a doença. Jogada brilhante.
Quando a Peste Negra atingiu seu pior momento, a igreja decidiu botar a culpa em alguém e começou a perseguir hereges, muçulmanos e judeus. Com as pessoas fugindo
de tais ataques, a doença as acompanhou. Bom trabalho.
A Inglaterra e a França tinham ido à guerra um ano antes do início da Peste Negra, mas, em vez de celebrar a paz enquanto a epidemia se espalhava, continuaram lutando.
Na verdade, lutaram por 116 anos, mantendo seus povos num estado de pobreza, desnutrição e exposição à doença. Isso que é compromisso.
A Peste Negra foi impulsionada pela guerra, pelo pânico e até pelo clima, mas não encontrou um aliado melhor do que a estupidez humana. Às vezes, é de se perguntar
como nossa espécie chegou a esse ponto.
Não foi sem ajuda, isso eu garanto.
ARQUIVOS DO PREFEITO DA NOITE:
411-421
23. Moral Hazord
-ALANA RAY-
Eu ainda não tinha tomado uma decisão, mas minhas mãos estavam firmes.
Depois de mais de três horas na boate, ainda não havia sentido necessidade de batucar com os dedos ou de tocar minha testa, nem sequer uma vez. Como se estivesse
congelada naquele momento antes do show, o universo ao meu redor não precisava de ajustes.
O lugar ficava numa das pontas de uma ruela na região dos frigoríficos. Estava livre da sujeira e tinha paredes ostentando murais gigantes e grafite. Eu havia entrado
por uma das áreas de carga, onde começava uma fila de caminhões cheios de equipamentos barulhentos, à escada da vez de descarregar.
Lá dentro, o espaço tinha mais de 100 metros, do palco à parede dos fundos, o que fazia os ecos voltarem preguiçosamente, num atraso de quase um segundo inteiro
- duas batidas num ritmo de 120 batidas por minuto. Não servia para tocar, mas por mim tudo bem. Naquela banda, eu preferia meus ecos falsos, para manter o controle
sobre alguma coisa. Minhas visões, minhas emoções, até os estilos em que eu tocava, tudo parecia saltar espontaneamente do ar. Pelo menos, minhas caixas de efeito
me obedeciam.
Astor Michaels tinha me pedido que chegasse cedo para passar o som, assim os engenheiros podiam se acostumar aos baldes de tinta. Eu havia levado 36, para arrumar
em oito pilhas (8!=36), além de meus baldes especiais: de tamanhos e espessuras diferentes, inclusive alguns rachados, que liberavam uma vibração de plástico quebrado.
Ao contrário de Pearl, os engenheiros me agradeceram por ligar apenas dois canais à mesa de mixagem. Como tinham de cuidar de quatro bandas naquela noite, cada uma
com sua variedade de ajustes de agudos, graves, efeitos e volume, preferiam as coisas da forma mais simples possível. Eles me deixaram ficar por toda a passagem
de som e assistir enquanto enchiam a imensa mesa de mixagem com lembretes escritos em fita adesiva. Da parte de trás saía uma confusão de cabos: especificidades
de quatro bandas traduzidas num espaguete multicolorido.
Eu ainda acompanhava o trabalho quando senti a presença de Astor Michaels atrás de mim.
- Senhorita Jones - disse ele, carregando um monte de papéis.
- Prefiro Alana Ray.
Ele sorri.
- Perdoe-me pela formalidade. É que temos negócios a fazer. - Os papéis se agitaram, criando uma corrente de ar. - Você é a única que ainda não assinou. Não está
com vergonha da sua letra, está?
- Primeiro lugar da turma em caligrafia - respondi. - A concorrência era abaixo da média.
- Ah, não foi isso que eu quis dizer. - Ele tirou uma grande caneta tinteiro do bolso. - Tenho certeza de que sua assinatura é mais legível que a do Zahler. Ou melhor,
que a da mãe dele.
O baterista no palco começou uma seqüência, passando por todas as partes, apresentando os sons, enquanto os engenheiros cuidavam dos ajustes. Por alguns instantes,
não houve como conversar.
Quando as pancadas pararam, Astor Michaels espalhou os contratos em cima da mesa de mixagem.
- Podemos?
Olhei para os papéis e para todas aquelas palavras escolhidas cuidadosamente, coisa para confundir o cérebro. Ao ler os contratos, eu tinha ficado com um nó na cabeça,
por causa dos parágrafos enumerados que faziam referência uns aos outros, como o tema de uma fuga.
- Qual é o problema? - perguntou Astor Michaels.
- Estou preocupada com... a ética de assinar isso.
- Ética? - repetiu ele, dando uma risada. - Meu Deus, Alana Ray. Essa banda inclui quatro menores, dois deles totalmente loucos. Minerva teve de botar a data da
próxima semana para poder assinar. Também temos um bobão e uma maníaca controladora. E estávamos falando de ética de você assinar? Deve ser a única pessoa totalmente
capaz desse grupo!
Não gostei do jeito que ele falou dos outros. Mas primeiro eu tinha de explicar:
- Não estou preocupada com minha capacidade. Estou preocupada com hoje à noite.
- Medo do palco? - perguntou ele num tom mais calmo. - É difícil para você?
- Não tem nada a ver comigo. É o seguinte: e se assinar esse contrato deixar os outros em risco? A lei chama isso de risco moral.
- Não estou entendendo.
Desviei o olhar do emaranhado de palavras espalhadas sobre a mesa de mixagem e finalmente encarei Astor Michaels.
- Acho que algo perigoso pode acontecer aqui, hoje à noite, por nossa causa. Pelo que Minerva é.
- Ah - reagiu ele, hesitando. - Então você... viu alguma coisa?
- Só o que sempre vejo quando ela canta.
- Sua pequena alucinação do lago Ness? - Ele sorriu.
- Eu vi também no show do Morgan's Army, só que mais forte. - O baterista golpeou o bumbo, produzindo um eco que se espalhou pelo vasto espaço. Haveria mil pessoas
ali naquela noite. Montanhas de amplificadores estavam de prontidão em ambos os cantos do palco, zumbindo em meio ao silêncio, lançando interferências no ar. - Quanto
mais pessoas, maior fica a fera. Quanto mias alto o som, também.
- Espero que sim, Alana Ray, mas isso não quer dizer que seja real. Você entende isso, não entende?
- Se entendo?
Depois de me olhar por um instante, sinceramente intrigado, ele começou a balançar a cabeça.
- Nós dois vimos coisas estranhas em nossas vidas. Nós dois temos de ligar com certas... condições. Por outro lado, nós dois conseguimos coisas graças a isso. Essa
é a razão de estarmos aqui, eu e você, diante de um contrato.
Observei seus dentes e me lembrei do que Pearl tinha me contado pelo telefone na noite anterior. Que Astor Michaels havia construído sua carreira produzindo mais
insetos.
Ele bateu nos papéis com uma de suas longas unhas.
- Isso que está aqui é real. Já suas visões não são. Você sabe disso.
- Como tem tanta certeza? - perguntei, subitamente irritada. - É a minha cabeça, não a sua. Nenhuma outra pessoa vê as coisas que eu vejo.
- Mas você é a pessoa mais racional que eu já conheci, Alana Ray - disse ele, com uma expressão tranqüila. - E você não teria vindo aqui para uma passagem de som
se não fosse tocar hoje à noite. E não tocaria hoje à noite se não fosse assinar o contrato. Então, você não acredita mesmo em monstros, acredita?
Engoli em seco e olhei para minhas mãos: completamente imóveis, prontas para tocar. Eu tinha sonhado a noite inteira com a bateria, com a sensação de estar sob os
holofotes.
- Mas você disse que Minerva vai mudar as coisas. E se ela tornar a fera real?
- Tenho acompanhado essa epidemia se espalhando por Nova York há dois anos e nunca vi nada parecido com a descrição que você fez - disse ele. Eu queria acreditar.
Astor Michaels, afinal, tinha descoberto o Novo Som. Talvez ele soubesse do que estava falando. - Não confia em mim? - perguntou, girando a caneta entre os dedos.
- Não acredita que vou fazer tudo direito?
- Acho que você fez a coisa certa em relação a Minerva.
- Finalmente alguém me agradece por isso.
- Sim. Obrigada.
A liberdade de Minerva tinha deixado Pearl apavorada, mas eu já havia visto muitos colegas se formarem em instituições para doentes mentais, abrigos e prisões. Sabia
que manter pessoas trancafiadas era paranormal - contra o que era normal. Cadeados, em vez de curar, estrangulavam.
- Então. - Com os olhos brilhando, ele me entregou a caneta. - Não acho que esteja com medo de mim ou de monstros. Acho que está com medo apenas do seu próprio sucesso.
Fiz que não. Astor Michaels estava totalmente errado em relação àquilo. Naquela manhã, eu havia jogado fora meu balde de moedas. Com ou sem risco moral, queria ser
mais real do que alguém que pede dinheiro nas ruas.
Assim, acabei assinando, como ele já previa desde o início.
24. 10.000 Maniacs
-ZAHLER-
A multidão estava tomando todo o espaço. Segundo Astor Michaels, mil pessoas. Mas pareciam milhões. No camarim, atrás do palco, o barulho não passava de um zumbido,
como um enxame de abelhas esperando alguém cutucar com uma vareta.
Quanto mais eu escutava, mais parecia que eles estavam prontos para expulsar alguém do palco com vaias. Principalmente um baixista horrível que só tocava havia quatro
semanas...
Respirei fundo. Nunca alguém tinha ficado tão nervoso no mundo.
Aquilo era real. Aquilo era verdadeiro. Aquilo estava acontecendo naquele exato momento.
Sob as luzes fluorescentes do camarim era o pior lugar para se praticar, mas fiquei ali mesmo, sentado, batendo nas cordas. Talvez eu melhorasse um pouquinho, talvez
apenas o suficiente para me salvar da humilhação.
Às vezes, quando eu tocava meu novo instrumento, meus dedos se mexiam com mais jeito do que jamais tinha acontecido com uma guitarra. Ultimamente, eu andava sonhando
com o mundo todo crescendo, da escala de uma guitarra para a de um baixo, tudo subitamente proporcional às minhas mãos grandes, gordas e desajeitadas. Mas, naquele
momento, as cordas do baixo de Pearl pareciam ter uns 3 centímetros de espessura e arrastar meus dedos como areia movediça num pesadelo.
Moz não parecia muito mais satisfeito do que eu. Estava de pé, num canto do camarim, de óculo escuros, tremendo. Uma camada de suor cobria seu rosto e seus braços
nus.
- Parece até que você está gripado, Moz - comentei.
- Só preciso da minha xícara de chá - respondeu ele.
- Está quase pronto, Mozzy - disse Minerva.
Havia uma chaleira elétrica ligada na tomada, perto de onde ela se maquiava, com algumas ervas estranhas esperando para serem fervidas.
- Sua xícara de chá? - perguntei, com tom de reprovação.
Morar com uma garota tinha deixado Moz totalmente besta. E a culpa era toda minha, porque eu o havia incentivado a ligar para Minerva, porque eu havia ficado tão
irritado com ele por querer que eu mudasse de instrumento...
Era tudo culpa do maldito baixo!
Alana Ray estava bem no meio do camarim, observando suas mãos abertas. Aquela firmeza absoluta a deixava incompleta, como se Moz tivesse roubado os tremeliques dela.
Ela tinha trocado o tradicional casaco camuflado por um quimono saneiro por cima de um jeans. Ninguém havia me avisado que era para nos arrumarmos. Olhei para minha
mesma camiseta sem graça de sempre. Será que a platéia ia me vaiar por vestir aquilo? As pessoas sempre pareciam muito impacientes àquela altura. A programação começaria
com ma hora de atraso, o que Astor Michaels garantia que tornaria tudo mais intenso...
Mas e se só servisse para deixar o público irritado?
No canto oposto de Moz, Pearl usava o mesmo vestido da visita à Red Rat. Eu notei que ela estava espetacular, mesmo com meu cérebro derretendo. Ela só não parecia
feliz. Não parava de xingar em voz baixa:
- Convidados Especiais? Estamos mais para Retardados Especiais. Não acredito que vamos entrar como "Convidados Especiais". Por que não nos batizamos logo de Educação
Especial?
- A primeira banda se chama Plasmódio - disse Moz. - Isso sim, é uma porcaria de nome.
Pearl olhou para ele, depois desviou para Minerva por dois segundos, antes de dizer:
- É bem parecido com Toxoplasma.
- Devíamos escolher um nome de verdade logo - disse Minerva, de olhos fixos no seu reflexo no espelho, enquanto passava a maquiagem com mãos firmes. Ela estava com
um vestido longo, muitas jóias e não demonstrava nem um pouco de nervosismo. E não reparava nos olhares de Pearl. - Se deixarmos Astor Michaels escolher um, vai
ser alguma coisa com plasma.
- Aliás, o que quer dizer plasma? - perguntou Moz.
- Pode ser duas coisas - disse Alana Ray. - Gás eletrificado ou sangue.
- Nossa. Em qual vocês acham que ele estava pensando? - murmurou Pearl.
De repente, a chaleira começou a soltar um chiado, que se transformou num leve gemido quando Minerva a tirou da tomada. Assim que ela derramou a água fervente na
xícara com as ervas, o cheiro de material em decomposição tomou conta do camarim.
- Aqui está, Mozzy.
Nesse instante, uma explosão sonora entrou pelas paredes, acompanhada de um estrondo que chegava pelo chão.
- Que merda! É a primeira banda. Somos a segunda. Quer dizer que somos a próxima! - eu disse.
- Correto - disse Alana Ray.
Meu estômago começou a se revirar exatamente como uma ver, quando eu era criança e engoli uma peça do meu jogo de pequeno químico. Estávamos prestes a encarar uma
platéia possivelmente homicida em...
- Meia hora.
- Mais o tempo da troca de equipamentos - completou Alana Ray.
Fechei os olhos e escutei. A platéia ainda não estava vaiando. Talvez não fosse um bando de agressivos, afinal. Por outro lado, o Plasmódio parecia bem seguro, e
não alguém que tinha sido forçado a trocar de instrumento no último mês...
- Escutem isso. O baixista deles é muito mais rápido do que eu. Todo mundo vai achar que eu sou um lixo.
- Você não é um lixo, Zahler - disse Moz. - E, para mim, ele é rápido demais.
- Amanhã vai estar morto, se continuar nessa velocidade - acrescentou Pearl, olhando para suas unhas.
- Morto? O que quer dizer?
Será que alguém já tinha alguma vez morrido no palco? De ataque cardíaco, talvez? Ou a platéia matou alguém que eles acharam um lixo?
- Relaxa, Zahler - disse Moz, tomando o chá. Ele continuava trêmulo, e Minerva limpava o suor do seu rosto com uma toalha. - Você tem meia hora para se recompor.
Ótimo. Uma recomendação de calma dada por uma cara que parecia estar morrendo de Ebola. Talvez Moz estivesse prestes a entrar em colapso. Então poderíamos deixar
a história toda de Convidados Especiais para depois da recuperação. Eu poderia praticar mais.
Alana Ray continuava observando as próprias mãos. Durante todo aquele tempo, ela, como um mestre zen do kung fu contemplando o destino, mal tinha se mexido. Fiquei
pensando que talvez eu devesse ter botado uma roupa japonesa - pelo menos eu pareceria sacana.
- Zahler, o tempo é uma coisa estranha - disse Alana Ray. - Se você se concentrar, 30 minutos podem parecer cinco horas.
Mas não parecia. Os 30 minutos pareciam cinco segundos.
Finalmente, Astor Michaels apareceu e anunciou que era hora do show.
Havia mil deles lá fora, todos olhando para nós.
Gritos aleatórios chegavam da platéia. Não eram exatamente de hostilidade; apenas uma demonstração de que estavam entediados e prontos para outra banda. Ainda não
tínhamos fãs. Os poucos amigos que eu e Moz convidamos não podiam entrar por causa da idade. A visão daquele público pouco amistoso me fez lembrar que faltava algo
importante dos meus sonhos de astro do rock:
Em todas as minhas fantasias de me tornar famoso, eu já era famoso e nunca precisa me tornar famoso. Nunca precisava aparecer diante de uma multidão pela primeira
vez, desconhecido e indefeso. Nos sonhos, aquela noite terrível já tinha acontecido.
Olhei para Moz, mas ele mantinha a cabeça baixa, ainda tremendo, como se estivesse tendo um treco. Atrás de seus baldes de tinta, Alana Ray estava de olhos fechados.
Pearl prestava atenção ao teclado e apertava botões a toda velocidade, como se fosse decolar numa nave espacial. Ninguém respondeu ao meu olhar. Pareciam todos subitamente
envergonhados de fazer parte da mesma banda que eu.
Não é minha culpa!, eu quis gritar. Nunca pedi para tocar baixo!
Apenas Minerva parecia feliz no palco. Ela já se projetava sobre o microfone, conversando e seduzindo alguns caras tatuados na primeira fila, tocando suas mãos inquietas
com as botas pretas de salto agulha. Por trás dos óculos escuros, seus olhos incrivelmente arregalados e reluzentes alimentavam-se da energia da platéia, antes mesma
de emitir a primeira nota.
Pearl começou com um mi grave; respirei fundo e acompanhei. O som saiu do meu baixo como um buzina, tomando conta da casa. A platéia respondeu com algumas vaias,
como se eu tivesse interrompido a conversa.
Os caras que batiam papo com Minerva eram musculosos e tinham tatuagens nas cabeças raspadas. Eu havia lido na noite anterior sobre uma confusão na Europa, uma multidão
enlouquecida que havia partido para a pancadaria num jogo de futebol. Centenas de mortes e ninguém sabia a razão.
E se aquilo acontecesse ali, justamente no momento do nosso show? E se a platéia inteira se transformasse num bando de maníacos? Eu sabia muito bem quem escolheriam
para matar primeiro.
O baixista lesado com a camiseta idiota. Ele mesmo.
Quando estávamos todos prontos, as luzes do palco foram reduzidas. Uma escuridão total, como se eu tivesse sido cegado pelo medo. Mais gritos impacientes vieram
da platéia. Alguém gritou:
- Vocês são um lixo!
As outras pessoas acharam engraçado porque nem tínhamos começado ainda.
Estávamos perdidos.
Engoli em seco, esperando o início.
- Zahler! - sussurrou Pearl.
Ah, claro. A abertura era com o Grande Riff. Eu devia começar.
Tateei à procura das cordas. Ouvi os amplificadores chiarem com o suor dos meus dedos. Tentei me lembrar do que tinha de tocar.
Mas não consegui.
Não, isso não está acontecendo...
Eu tocava aquilo havia seis anos, mas, de alguma forma, o riff tinha sumido da minha cabeça, dos meus dedos, do meu corpo todo.
Fiquei ali em silêncio, esperando a morte.
25. Massive Attack
-MOZ-
Zahler havia congelado.
Perfeito.
Minha cabeça pegava fogo, o suor escorria nos meus olhos, e meu coração batia como um animal enjaulado. Mas não era medo do palco; era a fera saindo de controle
dentro de mim. Eu tinha passado o dia ansioso, nervoso demais para conseguir comer, e agora o apetite estava me dominando.
O alho e o chá de mandrágora não estavam conseguindo controlá-lo. Eu precisava de carne e sangue.
- Toca, Zahler! - ouvi Pearl dizer, tentando fazê-lo começar.
A platéia estava ficando impaciente, um burburinho de insatisfação crescia diante de nós. Pelo menos, aquela demora me dava mais alguns segundos de escuridão. Minha
visão tinha se comportado de maneira estranha o dia inteiro: não conseguia olhar para Min, como se seu rosto tivesse cantos afiados que rasgavam meus olhos. Até
o cheiro das suas roupas e do seu perfume me deixava louco. Parecia que morar junto havia provocado uma overdose dela em mim.
No entanto, ali na escuridão, eu me sentia sozinho e quase sob controle.
O problema era que Zahler ainda não tinha iniciado o Grande Riff, o que me deixava como única saída. Eu podia até tocar a antiga parte de guitarra e esperar que
ele entrasse. Mas, depois que a música começasse, as luzes se acenderiam de novo, muito intensas, muito penetrantes...
E o apetite assumiria novamente o controle.
Também podia sair correndo do palco, fugir da boate e entrar numa loja de conveniência qualquer para devorar um pedaço de carne crua. Provavelmente era uma idéia
melhor do que arrancar um pedaço de alguém ali, na frente de mil testemunhas.
Mas, mesmo com a fera furiosa dentro de mim, eu tinha de ficar. Não podia deixar Zahler encarar o resto da vida com a vergonha de haver estragado aquela noite.
Respirei fundo e assim que meus dedos se mexeram... Zahler finalmente começou a tocar.
Os seis anos de ensaios falaram mais alto: o Grande Riff me invadiu, subiu pela minha espinha e chegou aos meus dedos. A resposta do meu sistema nervoso foi tão
automática quanto respirar. Pearl entrou na seqüência e logo depois Alana Ray, os ecos dos baldes de tinta deixando a impressão de que o espaço ao nosso redor era
imenso.
As luzes se acenderam, e, de repente, a multidão estava empolgada.
Grande jogada, Zahler, pensei. Fazer a platéia esperar.
Minerva também manteve a expectativa. Deixou o Grande Riff arrasando tudo por pelo menos um minuto antes de botar o microfone sequer perto dos lábios. Mas dava para
perceber que ela não estava paralisada: seu corpo se movia no ritmo, atraindo todos os olhares da platéia, sugando sua energia.
Ela os provocou, puxando o microfone para perto de depois o afastando, sorrindo por trás dos óculos escuros. Eu sabia muito bem que o Grande Riff era capaz de hipnotizar.
Com Zahler, já havia tocado aquilo por horas seguidas. Ao deixar o riff percorrer seu corpo, Minerva hipnotizava como uma serpente.
Finalmente, ela tirou os óculos e enfrentou os holofotes para encarar o público, para deixá-lo hipnotizado. Notei os rostos se iluminando com a luz que vinha de
Minerva, como se houvesse um contato visual direto com qualquer um na platéia.
Foi quando ela começou a cantar e eu comecei a me sentir muito estranho.
As palavras rabiscadas por Minerva no porão passaram a sair de dentro dela de uma forma tão alucinada quanto na primeira vez que havíamos tocado juntos: incompreensíveis,
ancestrais e selvagens. Invocavam imagens estranhas na minha cabeça: as caveiras e centopéias gravadas na tranca do quarto de Min.
O chão começou a tremer.
Talvez fosse apenas meu estômago, o apetite lacerante se transformando em algo ainda mais forte. Parecia que todos os hambúrgueres crus que eu tinha comido nas últimas
semanas finalmente estavam cobrando seu preço e que meu estômago de ferro seria derrubado por uma intoxicação alimentar.
A visão de Minerva sem os óculos me deixava loucos. As luzes refletiam como se seu rosto fosse de cristal. Senti o alho saindo do meu corpo sob forma de um suor
quente, como se mãos gigantes me espremessem e arrancassem todas as proteções que eu tinha contra a fera dentro de mim.
O nojo me invadia, despertando uma aversão a tudo que havia me levado àquele palco: Minerva, a banda, a Stratocaster nas minhas mãos. Toda aquela idéia maluca de
fama e adoração e até a própria música...
Eu queria jogar tudo fora, fugir daquelas complicações sem sentido e deixar a fera assumir o controle. Arrumar um esconderijo num lugar distante e sombrio e devorar
apenas carne e ossos. Ficar plenamente saciado como um animal.
Mas meus dedos continuavam tocando. A música me mantinha ali, equilibrado entre o amor e o ódio.
Eu não tirava os olhos do chão, evitando a imagem de Minerva, mas não conseguia deixar de ouvir a música que saía dos amplificadores, ecoava por todo o clube e crescia
numa espécie de retorno explodindo na minha cabeça.
Aos meus pés, os cabos se mexiam, sacudindo-se como cobras alucinadas pelo piso. Desviei o olhar mais uma vez e me concentrei na escuridão do lugar.
Vi o começo da coisa ali.
Uma forma surgiu na platéia, que estava com as mãos para o alto, numa ola que se propagava, saindo lá do fundo e chegando a nós. Quando a onda quebrou no palco,
houve gritos selvagens de surpresa.
O chão estremeceu sobre meus pés.
A onda reapareceu, desta vez se movendo da direita para a esquerda, levando os gritos junto. Então percebi que não se tratava de algo inocente, como os braços levantados
num estádio... A realidade estava se desfazendo diante dos meus olhos.
O piso parecia subir, num calombo que lembrava um rato correndo por baixo de um tapete. Desta vez, a onde foi mais violenta, jogando para o alto as pessoas que estavam
no caminho. Elas caíam nos braços do resto do público, como artistas que se jogam do palco sobre a multidão.
Meus ouvidos aguçados captaram um grito contido atrás de mim. Ao me virar, vi Alana Ray dizendo:
- Não, não, não...
Não dava para ouvir nada em meio ao som do Grande Riff. E ela não parou de tocar: a música também a havia capturado e atado suas mãos àqueles movimentos alucinados.
A agitação mudou de rumo outra vez, desta vez mais forte. Enquanto eu assistia, o chão se abriu como um zíper gigante, cuspindo água negra e pedaços de concreto.
Um cheiro nauseante invadiu minhas narinas.
A coisa ia na direção do palco, mas nenhum de nós parou de tocar.
Embora algumas pessoas tentassem sair do caminho, correndo pelo meio da multidão, a maioria ainda nos assistia com atenção, mesmerizada demais por Minerva para se
mexer.
Estava claro que era o inimigo, a mesma fera que eu havia visto no metrô. Ela finalmente o havia evocado.
A Stratocaster queimava minhas mãos. Meu corpo todo rejeitava nossa música, mas nem assim eu conseguia parar.
Agora os gritos tomavam conta do ambiente. Mais pessoas lutavam para encontrar um refúgio seguro e evitar as mandíbulas da fera, que estava cada vez mais perto de
nós.
Então os anjos começaram a cair.
Desciam do teto em finos cabos que reluziam sob os holofotes e paravam sobre a criatura e sobre o palco. Um anjo balançou-se até o alto de cada uma das pilhas de
amplificadores, exibindo espadas nas mãos. Eles desceram de rapel pelos equipamentos, golpeando os alto-falantes bem no meio, com cada corte disparando um barulho
agudo, um contraponto estridente ao Grande Riff.
Dezenas deles pularam sobre a fera e no meio da multidão. Afastaram as pessoas e fizeram a criatura parar atacando-a com longas espadas e lanças. Seus gritos de
dor misturaram-se aos zumbidos dos amplificadores. E, finalmente, a música começou a falhar...
Quando a voz de Minerva vacilou, o encantamento tinha acabado.
Imediatamente me livrei daquilo. Tirei a alça da Stratocaster do ombro se segurei a guitarra pelo braço dela, com um desprezo que vinha de cada canto do meu ser.
Levantei-a acima da cabeça e fiz o movimento para baixo, repetidas vezes, até que as cobras se voltaram e o braço partido passou a lembrar o pescoço de uma galinha
sendo quebrado. A guitarra chiou e soltou algumas últimas notas, seus gritos finais saindo dos amplificadores sobreviventes.
Ao meu redor, os outros também haviam parado. Em lágrimas, Alana Ray se livrou das baquetas e chutou os baldes com raiva. Zahler permanecia imóvel, de queixo caído,
assistindo à batalha na pista da boate. Eu não conseguia mais olhar para Minerva.
Recuei um passo, para longe da guitarra quebrada, e, com as mãos curvadas como se fossem garras, comecei a pisar no instrumento com minhas botas, arrancando chiados
e guinchos dela.
Nessa hora, um anjo desceu sobre o palco, diante de mim, vestido de preto e preso por um cabo ligado à sua cintura. Tinha um pequeno objeto nas mãos.
Eu a reconheci: Lace.
Virei para sair correndo, para fugir dela e de todo o resto: aquela banda, aquela música, aquela coisa monstruosa que tínhamos evocado. Mas, depois de poucos passos,
antes mesmo de deixar o palco, ela me alcançou, agarrou meu braço e me fez girar, uma agulha cintilando sob as luzes.
Senti uma espetada no pescoço, em seguida, seus braços me amparando.
- Diga boa-noite, Moz - disse Lace.
O som do meu nome quase me fez vomitar. A náusea e a dor logo se dissolveram na escuridão.
PARTE VI
A Turnê
Nunca existiu um momento mais apropriado para uma pandemia.
Os aviões levam as pessoas de um lado ao outro do globo num único dia. Meio bilhão de pessoas viaja assim todos os anos. As cidades estão muito maiores e mais populosas
do que em qualquer outra época da história.
A última grande doença foi a gripe espanhola, que apareceu no fim da Primeira Guerra Mundial. (As pandemias adoram guerras.) Espalhou-se pelo planeta com uma velocidade
maior que a de qualquer outra doença. Em apenas um ano, 1 bilhão de pessoas havia sido infectadas, um terço da população mundial. A disseminação aconteceu num ritmo
tão assustadoramente intenso que uma cidade americana decidiu proibir apertos de mão.
E tudo isso acorreu antes de os aviões se tornarem capazes de atravessar oceanos e antes de a maioria das pessoas possuir automóvel. Hoje, uma pandemia se espalharia
muito, muito mais rapidamente. Temos tudo que é necessário: cidades superpovoadas, transporte instantâneo e guerras à vontade. Para os vermes, isso corresponde a
motivação, meios e oportunidade.
Quando os últimos dias chegarem, chegarão num piscar de olhos.
ARQUIVOS DO PREFEITO DA NOITE:
ACABAM AQUI
26. Hunters and Collectors
-MINERVA-
Aqueles anjos malditos levaram-nos todos embora.
Tentei explicar que eu estava bem - havia semanas - e que Zahler, Pearl e Alana Ray nem tinham sido infectados. Contudo, bastou uma olhada para o Mozzy destruidor
de guitarras, suando e espumando pela boca, para convencê-los de que éramos todos loucos.
Aquele era o grande defeito dos anjos: eles achavam que sabia de tudo.
Eu poderia ter fugido. Estava tão rápida e forte quanto eles. Afinal, conseguia até destruir portas com um só golpe. Como os anjos estavam ocupados protegendo mil
pessoas, correndo atrás de Astor Michaels e matando o verme gigante que eu havia evocado (ops, desculpa) desaparecer seria moleza.
Mas aquilo significaria deixar Moz e os outros para trás. E, agora, éramos uma banda de verdade; eu não podia permitir que fossem seqüestrados sem mim. Por isso,
deixei que os anjos me espetassem com suas agulhas idiotas...
Acordei do outro lado do rio, em Nova Jersey. Eles haviam me colocado num quarto e trancado, uma mistura de hotel barato e hospital psiquiátrico. Nada para fazer
além de assistir ao mundo se despedaçando na televisão.
Anjos malditos.
- Temos muito interesse por você, Minerva.
- É mesmo, Cal? - respondi, piscando os olhos para fazer charme. Ele até que era bonito, de um jeito entediante e respeitoso. Também tinha um sotaque charmoso do
sul. Não era tão delicioso quanto Moz, claro, mas eu gostava de ver como Cal ficava vermelho quando flertavam com ele. - Então por que não me deixa sair daqui? Eu
não sou perigosa.
Cal me olhou desconfiado. Ele nunca usava óculos escuros, ao contrário dos outros anjos. Obviamente, estavam todos infectados e se mantinham sãos graças apenas aos
remédios que tomavam. Os anjos tinham uma grande fábrica de comprimidos ali. E nada de caveiras ou crucifixos nas paredes - eles eram muito científicos.
Mas Cal era diferente. Ele não precisava de comprimidos e tinha um cheiro parecido com o de Astor Michaels. Duas aberrações da natureza.
- Não podemos deixar você ir embora porque não sabemos o que você é - disse a namorada de Cal.
Fuzilei-a com os olhos. Ela se chamava Lace-que-vem-de-Lacey e havia enfiado uma injeção em Mozzy.
- Eu estou curada. Vocês estão vendo.
Eles tinham tentado me dar seus remédios malditos de anjo, mas eu não queria aceitar. Alho fresco era o suficiente para mim. Cal coçou a cabeça.
- É, você já falou da sua esoterista. Estamos verificando.
- Sejam legais com a Luz - avisei. - Ela sabe das coisas.
- Nós também sabemos das coisas - respondeu ele.
Nesse instante, Lace se encheu de autoridade, botando as mãos na cintura e erguendo a voz.
- Estamos na área há séculos. Curamos mais peeps que Luz pode sonhar em fazer. Sua amiga talvez conheça alguns remédios populares, mas a Patrulha resolveu esse negócio
com ciência.
- Ah, ciência, é? - Passei o dedo no pescoço, o que deixou Cal todo incomodado. - Então o que eu sou, afinal?
Lace mostrou-se contrariada.
- Você é esquisita.
- Temos acompanhado Astor Michaels há um tempo - disse Cal. - Sabíamos que ele estava espalhando o parasita, mas essa história toda de cantar... meio que nos pegou
de surpresa.
Eu não contei que o verme também havia me pegado de surpresa. Embora sempre sentisse o tremor quando tocávamos, nunca pensei que ele fosse aparecer para uma visita.
Agora até cantarolar me deixava nervosa. Malditos monstros subterrâneos.
- Então por que não vão tirar essas dúvidas com Astor Michaels?
- Ele não sabe nada além do que nós já sabemos - respondeu Lace. - É apenas um produtor musical, tentando achar o próximo grande lance. É imune aos efeitos mais
nocivos do parasita, mas isso é mais comum do que se pensa.
- Eu mesmo sou um portador - contou Cal, sorrindo, todo orgulhoso.
Ele já tinha ido ao meu quarto explicar que era naturalmente imune e que havia começado a caçar vampiros antes da crise. Agora trabalhava para um negócio chamado
Patrulha Noturna, que era comandada por um sujeito chamado Prefeito da Noite. Putz! Que sinistro.
Pisquei os olhos novamente.
- Você aprontava as suas, como Astor Michaels, Cal? Se comportava mal?
- Não - disse ele, vacilante. Lace o repreendeu com um olhar. - Bem, nada do mesmo nível. E nunca de propósito...
- Você infectou ela? - perguntei, apontando para Lace-que-vem-de-Lacey.
Eu tinha visto os dois trocando beijinhos pelas grades da minha janela.
- Não - respondeu ele numa voz quase sumindo. - Foi meu gato.
- Seu gato? Os gatos podem fazer isso?
- Os felinos são os principais vetores. Por séculos, o parasita se escondeu em populações de ratos que viviam nas profundezas, até que os vermes o levaram à superfície...
Enquanto Cal continuava sua palestra sobre o parasita, o que ele adorava fazer, lembrei das coisas antes de eu ficar doente. Quando a crise sanitária chegou à nossa
rua, Zumbi começou a passar muito tempo fora de casa. E toda noite, depois de voltar, vinha dormir na minha barriga, soltando seu hálito de gato na minha cara.
Eu tinha sido contaminada daquele jeito? Pelo Zumbi?
Isso significava que Mark não era um cachorro babaca. Ele não tinha me infectado; eu é que tinha passado a doença para ele...
- Ops - eu disse, bem baixinho.
Fiquei imaginando por onde andaria Zumbi. Eu sempre deixava a janela do apartamento aberta para que ele pudesse visitar seus amiguinhos, mas, pela TV, Manhattan
parecia numa situação bem ruim. A ilha inteira havia sido isolada pelo Departamento de Segurança Interna. Como se aquilo fosse impedir a disseminação do parasita.
Cal tinha me explicado como o parasita era inteligente: ele deixava as pessoas infectadas excitadas, com fome e vontade de morder. Qualquer coisa para espalhar os
esporos. E também fazia os portadores detestarem tudo que amavam até então. Era por isso que eu havia largado Mark, minhas bonecas e minha música. E Moz havia feito
a Stratocaster em pedacinhos. O anátema, como Cal chamava a coisa, levava as pessoas a fugir de casa e mudar para outra cidade, depois outra...
Não demoraria muito para o mundo inteiro estar contaminado.
Àquela altura, grandes distúrbios aconteciam na maioria das cidades grandes, com maníacos sedentos por sangue correndo por aí e fazendo coisas terríveis. E dava
para notar que nem todos estavam infectados. Com as escolas fechadas e as estradas tomadas por refugiados, o presidente não parava de fazer discursos recomendando
que o povo rezasse.
Fala sério.
As notícias, porém, nunca falavam de ração para gato. Não que eu tivesse notado. O que Zumbi andaria comendo? Ele não tinha nada contra pássaros e ratinhos, mas
sempre acabava vomitando essas coisas.
- Enfim - disse Lace, notando que eu não escutava. - Não importa para a gente como você foi contaminada ou como sua amiga do vodu curou você. A questão aqui são
suas músicas.
Eu sorri.
- Elas fazem a terra tremer. Quer que eu cante uma para vocês?
- Ahn, na verdade, não - respondeu Cal. - De qualquer maneira, a aparição daquele verme provavelmente foi só uma coincidência. Mas algumas pessoas por aqui estão
interessadas. Elas têm ouvido gravações daquela noite e querem saber de onde você tirou as letras.
- Vocês precisam de ajuda? Mas eu achei que a ciência bastasse para resolver.
- Talvez o que aconteceu naquela noite não tenha sido ciência - disse Lace, impaciente.
- O que está querendo dizer? - perguntou Cal virando-se para ela.
- Cara! Você viu o que aconteceu! Aquela merda foi...
A voz de Lace foi sumindo...
- Paranormal? - Olhei para minhas unhas e notei que precisavam de uma manicure. Continuavam crescendo rápido demais, embora eu estivesse curada. - Certo. Vou contar
tudo que sei a vocês... se me deixarem falar com Mozzy e os outros. Quero que fiquemos juntos. Nós somos uma banda, entendem?
- Mas os outros três tiveram resultado negativo no teste do parasita - ponderou Cal.
- Eu disse que eles não tinham nada.
- É, acho que disse. Acontece que, se a deixarmos vê-los, não poderá fazer nada que venha a comprometer a saúde deles.
- Eca! Eu não quero beijar nenhum deles.
- O beijo não é a única forma de transmissão.
Tentei não demonstrar muita irritação. Qualquer coisa para sair daquele quarto maldito.
- Cal - interveio Lace -, se ela quisesse mesmo infectar os outros três, já poderia ter feito isso. - Ela se virou para mim. - Mas o Moz ainda é perigoso.
- Posso cuidar dele. Ele só precisa do chá.
- Ele está recebendo coisas melhores que chá. Mas continua com um quadro ruim. Não é nada legal de se ver.
- Já fiquei amarrada numa cama, num hospício, gritando e tentando arrancar os dedos dos médicos a dentadas. Depois fui trancada no meu quarto por três meses, odiando
a mim mesma e comendo galinhas cruas. Não me venha com esse negócio de legal de se ver para cima de mim, dona Lace-que-vem-de-Lacey.
Lace e Cal se entreolharam com seriedade e depois discutiram mais um pouco, mas eu vi que acabariam me atendendo. Eles queriam muito saber a respeito das minhas
músicas.
E, como dizia Astor Michaels, era preciso manter os talentos felizes.
27. Faithless
-PEARL-
A Patrulha Noturna enfiou a mim, Zahler e Alana Ray num dos "quartos de hóspedes", um conjunto de cabanas num canto arborizado do complexo. Tínhamos liberdade para
ir aonde quiséssemos na área, menos ao hospital onde Moz estava. No entanto, diante da nossa porta, uma cerca alta se estendia em ambas as direções. Arame farpado
cobria toda sua extensão, lembrando que éramos prisioneiros; não porque não quisessem nos deixar sair, mas porque lá fora estava perigoso demais no momento. Éramos
os Convidados Especiais novamente.
Não havia muita coisa a fazer além de assistir ao mundo acabar pela televisão.
Graças a aviões a jato, escolas superlotadas e 6 bilhões de nós amontoados no planeta, a doença estava saindo do controle. Em Nova York, o pronto crítico tinha sido
alcançado na nossa primeira semana em Jersey, com a proliferação num ritmo que ninguém conseguia conter, esconder ou compreender.
Na televisão, os debatedores apresentavam as mais diversas versões, claro, botando a culpa em terroristas ou na gripe do frango ou no governo ou em Deus. Tudo besteira,
embora, pelo menos, houvessem parado de fingir que não passava de uma questão sanitária. Mesmo assim, ninguém parecia entender que o mundo estava acabando.
Às vezes, entrevistavam moradores de cidades pequenas, onde as coisas permaneciam estranhamente normais, com a doença invisível até o momento. As pessoas de lá riam
de Nova York, como se nós merecêssemos aquilo. Mas aquela roça não seria divertida pro muito tempo. Cartões de crédito, telefones e a internet já começavam a apresentar
problemas. Quase ninguém mais produzia lentes de contato, filmes, medicamentos ou gasolina. Até as cidades pequenas sentiriam falta da infra-estrutura quando ela
desaparecesse por completo.
Ellen Bromowitz estava certa: não haveria mais orquestras sinfônicas por um tempo. Nada de entrevistas com celebridades em revistas, sessões de fotos para capaz
de discos ou videoclipes. O maior hit nas rádios locais era "Onde fica o acampamento da Guarda Nacional mais próximo?".
Não havia como ficar famoso.
Obviamente, agora que eu conhecia a proporção do que estava acontecendo, virar uma estrela do rock já não parecia tão importante. Na verdade, parecia uma estupidez
completa, incrivelmente egoísta e totalmente delirante.
Desde o início eu sabia que algo aconteceria. Mesmo quando tudo se limitava à maluquice de Min e às histórias esquisitas de Luz, eu sentia de alguma forma que o
mundo estava à beira do colapso. E o que fiz? Tentei fugir da realidade me tornando famosa. Como se, assim, o mundo não pudesse encostar em mim, como se coisas ruins
não acontecessem a pessoas contratadas por gravadoras. Como se eu pudesse simplesmente deixar todos os não-famosos para trás.
Que piada. Uma piada triste e enlouquecida.
Portanto, aquele era meu estado no momento: deprimida e desanimada em Nova Jersey, chocada com o fato de nosso primeiro show ter se transformado num banho de sangue,
de o mundo estar desmoronando e de o sonho da minha vida ter se revelado o Taj Mahal da superficialidade.
Eu não queria nunca mais voltar a subir num palco, nunca mais voltar a tocar um instrumento... e justamente quando eu tinha pensado num nome sexcelente para a banda.
Quer algo pior?
Toda manhã a Patrulha Noturna trazia montes de peeps - parasitas positivos - capturados na noite anterior. Davam tratamento a todos que cabiam no hospital, uma antiga
escola primária de que haviam tomado posse. Centenas deles, renascidos como anjos, treinavam diariamente numa área aberta. Suas espadas reluziam como lâmpadas se
acendendo ao mesmo tempo.
Um exército estava nascendo ali.
Segundo Cal, aquela era a infecção de disseminação mais rápida da história humana - culpa dos aviões. E o que ninguém, além da Patrulha Noturna, percebia era que
a pior parte ainda viria. A criatura evocada por Min, o verme, era apenas uma das milhares que estavam subindo para atacar a humanidade. Exatamente como Luz tinha
avisado, a doença não passava de um sinal do começo de uma grande batalha.
Quando Cal aparecia para suas aulas chatas, apresentava a versão científica. Era tudo uma reação em cadeia: os vermes perturbavam ratos que moravam nas profundezas,
que carregam o parasita até a superfície, estes infectavam felinos, que passavam a doença os seres humanos, que, por sua vez, se transformavam em peeps e contaminavam
outros seres humanos. A doença deixava as pessoas mais fortes e mais velozes, cruéis e destemidas - soldados perfeitos para combater os vermes.
Ao longo da história, os vampiros eram raros; mas, em intervalos de alguns séculos, a humanidade precisava de um monte deles. Aquela epidemia era nosso sistema imunológico
se preparando, peeps funcionando como glóbulos brancos se multiplicando em nosso sangue, preparando-se para repelir o invasor. Logicamente, como Cal gostava de destacar,
o sistema imunológico é perigoso: o lúpus, a artrite e até a asma eram causados pelas nossas próprias defesas. As febres também tinham de ser controladas.
Era aí que entrava a Patrulha: organizar os peeps e evitar que fizessem estragos demais. Como uma mãe que leva aspirina, compressas e canja de galinha para o filho
- só que vestido um uniforme ninja.
Numa manhã, bem cedo, uma semana depois da nossa chegada, eles deixaram que nos encontrássemos com Min e Moz.
Moz estava numa cama de hospital e parecia pior do que eu previa: de membros amarrados e com intravenosas enfiadas nos dois braços injetando um líquido amarelo em
sua corrente sangüínea. Havia monitores ligados a pontos espalhados por todo seu peito. Um tubo plástico saía de seu pescoço para que eles pudessem injetar outras
coisas sem precisar espetar uma veia.
Seus olhos pareciam feridos, e a pele do rosto estava esticada. O quarto era escuro e cheirava levemente a alho e desinfetante.
Minerva estava sentada em silêncio ao seu lado. A imagem dela me fez tremer de raiva: ela havia causado aquilo ao infectá-lo com um beijo.
Cal tinha explicado que ela havia estado parcialmente sob controle do parasita. Este, sempre tentando se espalhar, deixava os hospedeiros excitados, ávidos e irracionais.
Mesmo assim eu continuava irada. Parasita positivo ou não, nunca, nunca se deve ficar com alguém da sua banda.
Não duas vezes seguidas.
- Ei - eu disse.
Tínhamos sido orientados a não pronunciar o nome dele, por causa do anátema. Moz estava em condições apenas de nos ver.
- E aí, cara? - disse Zahler. - E aí, Minerva?
Min apontou para a própria boca e depois dez como se estivesse fechando um zíper. Não posso falar nada.
Claro... Moz tinha se apaixonado por Minerva. Sua voz linda e provocante queimaria os ouvidos dele. Notei que Moz olhava para Zahler, Alana Ray e para mim, mas mantinha
o olhar afastado dela.
Não que eu mesmo conseguisse olhar para Min.
- E aí? - disse Moz, com uma voz rouca.
- Você está com uma cara péssima, está um lixo! - disse Zahler.
- Estou me sentindo um lixo também.
- Pelo menos não está destruindo coisas - comentou Alana Ray.
Ela tentou sorrir, mas em vez disso deixou a cabeça cair para um lado. Desde o show, andava com mais tiques do que nunca.
Moz estremeceu. Parecia estar lembrando do estado em que tinha deixado a Strat. Ele devia amar a guitarra mais do que a Min, concluí, sem conseguir evitar um sorriso.
Afinal, Moz não tinha feito a Minerva em pedacinhos.
Pequenas preferências.
- O show foi bem intenso, hein? - disse ele.
- É. Foi sacana - eu disse. Durante a maior parte de uma música, pelo menos.
- A galera nos achou totalmente saneiros - lembrou Zahler, depois soltando um suspiro. - Uma pena a história do... ahn, verme gigante.
- É, essa parte foi uma merda.
Ficamos em silêncio por uma instante. A Patrulha não havia nos contado nada sobre aquela noite, e os jornais tinham casos muito mais interessantes a relatar. Mas
todos tínhamos plena certeza de que pessoas haviam morrido. E, evidentemente, a fera que tínhamos evocado também - um monstro subterrâneo a menos no mundo.
Era por isso que a Nova Patrulha estava interessada em nós.
Eles conheciam a história secreta de que vermes e peeps sempre apareciam juntos e também dominavam a ciência moderna. Cal contou que souberam antes de qualquer outra
pessoa que aquele apocalipse estava a caminho. Dispunham de curas e tratamentos capazes de transformar maníacos em soldados que combateriam o inimigo. E tinham espadas
maneiríssimas para matar vermes.
Nós, porém, podíamos fazer uma coisa que eles não podiam.
Podíamos atrair os vermes à superfície com nossa música. Podíamos tirá-los de sues esconderijos, o que tornava tudo mais fácil destruí-los.
Quando já estávamos conversando por um tempo, Min me entregou um bilhete. A letra dela continuava uma confusão, mas dava para entender. Mais ou menos.
- Então, Moz, vamos sair uma pouco daqui - contei. - Por um dia ou dois. Estaremos de voltas antes que você levante da cama.
- Aonde vocês vão? - grunhiu ele.
Meus dedos dobraram o bilhete até ficar bem pequenininho.
- Manhattan.
- Como é que é? - disse Zahler. - É perigoso voltar para lá! E prometi para minha mãe que não sairia daqui!
Era verdade. Como a maioria dos telefones locais continuavam funcionando, sabíamos que minha mãe estava segura na região dos Hamptons, com Elvis ao seu lado, e que
os pais de Zahler estavam num acampamento da Guarda Nacional em Connecticut. A família de Minerva tinha sido recolhida pela Nova Patrulha, que queria checar se também
carregavam a estranha linhagem da doença que atraía os monstros. No entanto, os pais de Moz, como a maioria dos moradores de Nova York, permaneciam no mesmo prédio.
E eles haviam contado que a situação era sinistra nas ruas.
- Desculpa, Zahler, mas a Nova Patrulha quer que nos encontremos com uma pessoa.
- E essa pessoa não pode vir até Nova Jersey?
- Amassei o bilhete e encolhi os ombros.
- Aparentemente, não.
- Ah, que se dane! - disse Zahler. - Nova York virou uma grande Cidade dos Maníacos! Eles não podem nos forçar a ir, podem?
- Pearl, diz aí nesse bilhete sobre o que eles querem conversar? - perguntou Alana Ray.
- Diz só que talvez possamos ajudar. O que aconteceu naquela noite... talvez possamos usar aquilo para salvar pessoas. - Encare cada um deles enquanto falava, ajeitando
os óculos no nariz, como se fosse um ensaio e eu quisesse que parassem de afinar os instrumentos e tocar riffs para me ouvir. - Esses caras da Nova Patrulha são
as únicas pessoas no mundo que têm alguma idéia do que está acontecendo. Quando aquela coisa apareceu no show, foram eles que a impediram de matar todo mundo, lembram?
Não vai fazer mal dar ouvido a eles.
- Não estou preocupado com dar ouvidos...
- Desculpa interromper, Zahler - disse Alana Ray, dando dois tapinhas na testa e tendo um tremelique. - Mas concordo com Pearl. Nós evocamos aquela criatura; nós
somos responsáveis.
- Não sabíamos que aquilo aconteceria! - gritou Zahler.
- Mesmo que isso seja verdade... - disse Alana Ray, olhando para o chão, como se estivesse vendo algo ali. - Não seria ético ficar de braços cruzados quando podemos
ajudar.
Olhei para os outros. Minerva assentiu em silêncio, tentando estabelecer contato visual comigo. Moz fez um gesto positivo com o dedão. E Zahler soltou um suspiro
derrotado.
28. Doctor
-ZAHLER-
Havia uma barreira na entrada do túnel Holland, em Nova Jersey, cheia de policiais, homens da Guarda Nacional e caras vestidos de cáqui carregando metralhadoras.
Não pareciam dispostos a deixar alguém passar por ali.
Achei que fosse o fim da linha. Que pena, pelo menos tínhamos tentado, e por mim isso já bastava. Mas então Lace baixou o vidro, mostrou um distintivo e disse:
- Segurança Interna.
O guarda, de barba por fazer e olhos vermelhos, examinou o distintivo. Sua aparência era de alguém que não dormia havia dias, que tinha visto coisas assustadoras
e que achavam que éramos malucos.
Mas ele nos deixou passar.
- Segurança Interna? - perguntei. - Vocês são mesmo da Segurança Interna? Tipo uma divisão especializada em coisas paranormais?
- Fala sério - disse ela, rindo. - Aqueles caras não conseguem cuidar nem de desastres naturais.
Nosso comboio entrou no túnel. Seguíamos em dois veículos estilo militar, com um monte de anjos em motos do lado de fora. Fiquei pensando o que os policiais haviam
achado deles. De qualquer maneira, todo mundo devia ter visto coisas muito mais estranhas ultimamente do que ninjas em roupas pretas carregando espadas.
Dentro do túnel, estava uma escuridão total. Lace ligou os faróis e dirigi bem pelo meio, ignorando as faixas. Virado para trás, vi a entrada desaparecer e a escuridão
engolir tudo, exceto a mancha vermelha das lanternas traseiras. A sensação era de estar mergulhando rumo ao centro da Terra.
- Não tem vermes por aqui? - perguntei.
- Nunca nos atacariam aqui - respondeu Lace. - O rio Hudson inteiro está sobre as nossas cabeças. Se eles arrebentarem este túnel, 1 milhão de toneladas de água
vai jorrar em cima de nós e deles.
- Ah. Sexcelente - eu disse, decidindo ficar calado para sempre a partir daquele momento.
- São tão inteligentes assim? - perguntou Alana Ray.
- É tudo instinto. Eles se desenvolveram de embaixo da terra.
Engoli em seco, pensando na quantidade de terra que havia sob nós. Tinha espaço para todo tipo de coisa estranha se formar ali, e eu nunca tinha pensado naquilo.
- Certo, vamos deixar algumas coisas claras sobre a dra. Prolixa - disse Cal. - Tem uma faixa vermelha pintada no chão da sala dela. Não importa o que aconteça,
nunca cruzem essa faixa.
- Uma faixa no chão? Ela não gosta de músicos? - perguntou Pearl.
- Ela é uma portadora, como eu - explicou Cal. - Uma portadora bem antiga. Por isso, carrega algumas doenças que não existem mais. Tifo e outras coisas. Peste bubônica.
Se chegarem muito perto dela, teremos que... queimar suas roupas.
Olhei para os outros e me perguntei se todos tinham ouvido aquilo. Aqueles anjos ou Nova Patrulha ou como quer que se chamassem sempre diziam coisas totalmente bizarras.
Conversar com Cal era como assistir a uma versão psicótica do History Channel que só mostrava as partes ruins: epidemias, massacres, inquisições. Sem parar.
- Queimar nossas roupas? - reagiu Minerva. - Mas esse aqui é meu último vestido decente! Vocês não deviam botar ela numa redoma de vidro ou algo parecido?
Cal fez que não.
- A casa inteira foi configurada para garantir uma profilaxia por pressão negativa, de forma que os germes em torna da dra. Prolixa não chegam perto de onde vocês
vão estar. Só não cruzem a faixa.
- Peste bubônica? - repetiu Alana Ray. Depois de sentir um tremor passando pelo corpo, ela apertou as mãos. - Quantos anos tem essa mulher?
- Ela é bem velha - respondeu Cal.
Em Manhattan, ainda havia vida nas ruas.
Ratos corriam pelas pilhas úmidas de lixo, gatos de rua entravam embaixo de carros amassados estacionados. Era possível ver ondas no asfalto por onde os vermes tinham
passado, deixando manchas de água negra que reluziam sob o sol forte. Alguns buracos revelavam os pontos pelos quais haviam chegado à superfície. Eu me perguntei
se alguém estava parado bem naqueles lugares quando os vermes subiram...
Segundo Cal, era tudo natural: eles eram caçadores e nós éramos suas presas.
A natureza às vezes me deixava chocado.
- Não há corpos - comentou Alana Ray.
- Os peeps são canibais - disse Lace. - E os vermes comem seres humanos.
- É bem mais limpo que as epidemias normais - disse Cal.
Uma sensação de descrença me invadiu; aquela não podia ser a Manhattan em que eu tinha crescido. Por um instante, tudo não passava de um grande cenário de filme,
uma versão gigante e terrível da Disney World. Não havia nenhum monstro de verdade sob nossos pés, nem pessoas enlouquecidas escondidas em prédios escuros. Nossos
pais estavam na Manhattan real, perguntando por nós.
Mas então passamos pelo pátio vazio de uma escola, com o concreto ondulado e quebrado, de uma ponta à outra. Um caminhão de sorvete esperava do lado de fora, partido
ao meio, por algo que tinha vindo de baixo. Uma gosma branca escorria do veículo, e a brisa levava o cheiro de leite azedo e açúcar queimado às janelas abertas da
vizinhança.
Havia uma cesta de basquete abandonada no meio de uma quadra. Vendo-a balançar ao vendo, senti a realidade daquilo tudo cair sobre mim novamente.
Nosso comboio percorria o centro da cidade lentamente, evitando as piores ruas e desviando de qualquer pessoa que avistássemos. Pequenos grupos corriam de um ponto
a outro carregando água, comida e outras mercadorias provavelmente saqueadas das lojas. Viam-se janelas quebradas o simplesmente sem vidro por todos os lados.
- Todas essas pessoas estão contaminadas? - perguntou Pearl.
- Se estiverem, ainda não apresentam os sintomas - respondeu Cal. - Os peeps não suportam a luz direta do sol.
Virei para trás e torci o pescoço para olhar para cima. Era quase meio-dia, e o sol alcançava o chão por entre as brechas estreitas do centro da cidade. À exceção
de Cal, os anjos estavam todos de óculos escuros.
O problema era que, com a proximidade do inverno, o sol caía cedo em Nova York. Dentro de uma hora, as sombras dos arranha-céus começariam a crescer.
Eu estava torcendo para que a conversa não demorasse muito.
Seguimos em frente até a Bolsa de Valores. Era a pior parte da cidade, toda destruída e completamente vazia. Papéis e lixo revoavam como pequenos ciclones em volta
de nós. Lace teve de buzinas para dispensar um grande grupo de ratos. Concluí que a bolsa não reabriria tão cedo.
Lace desligou o moto e deixou o carro percorrer os últimos metros no embalo até parar silenciosamente. Do lado de fora, os anjos desceram com cuidado, empunhando
as espadas e formando um círculo ao nosso redor. O asfalto alternava partes levantadas e crateras, como se vermes aparecessem o tempo todo naquele pedaço.
- Vamos todos descer - avisou Lace. - Tenham cuidado, pisem de leve. Os vermes conseguem ouvir nossos passos.
Abri a porta e olhei para a rua. Estava manchada de água negra e marcada por chicletes antigos e por uma substância viscosa vermelha.
Que merda, pensei. Eu tinha passado a vida inteira no topo da cadeia alimentar e nem tinha aproveitado. Os peeps eram incômodo suficiente, piores que drogados. Mas
os vermes... alguma coisa naquela história de abrir buracos no chão e engolir pessoas não parecia certa.
Botei um pé suavemente no chão, depois o outro, sentindo um arrepio viajando pelos nervos do me corpo. O asfalto parecia tão frágil quanto o gelo no Central Park
Reservoir quando se resolve dar um passeio por lá no início da primavera. Ao tentar dar o primeiro passo, meu pé resistiu, e quase soltei um grito ao imaginar uma
boca faminta saindo do nada para engolir minha perna.
Mas era só um chiclete que havia ficado grudento por causa do sol e se agarrava à sola do me pé a cada passo, produzindo um ruído de sucção.
Os anjos nos levaram por uma longa e sinuosa viela. Os paralelepípedos antigos estavam quebrados e levantados, deixando buracos que eram tomados por ratos. Estremeci
ao ver todos aqueles bichos peludos. Cal e Lace falavam de ratos como se eles fossem nossos aliados; tinha alguma coisa a ver com o fato de que eles carregavam o
parasita e apareciam na superfície para espalhá-lo quando os vermes começavam a subir. Mas eu não fazia idéia de como aquilo podia ser bom...
Avançamos lentamente pela viela, contornando as crateras dos vermes. No fim do caminho, havia uma casa colonial, com a varanda repleta de gatos atentos e silenciosos.
Seus olhos vermelhos nos observavam enquanto entrávamos.
Realmente havia uma faixa vermelha no chão.
Um vento me empurrava na direção dela, como uma mão me impelindo de leve para a frente. Cal tinha explicado que todo o ar da casa se movia na direção da dra. Prolixa,
afastando seus germes ancestrais de nós e os lançando numa grande fornalha. Por ser infectada, como os outros anjos, ela era imune às suas próprias doenças, mas
nós estaríamos ferrados se chegássemos muito perto. Até Cal e Lace se mantinham longe da faixa. Acho que não queriam ver seus uniformes de ninja queimados.
Fiquei encostado na parede mais distante, para se manter longe não apenas da Dona Peste, mas também das estranhas bonecas antigas que ocupavam as prateleiras do
escritório. Cabelos que pareciam reais saíam de suas cabeças castigadas. E todas tinham um sorriso pintado no rosto.
As crianças de antigamente deviam adorar pesadelos ou algo assim.
- É você que canta - disse a dra. Prolixa, dispensando o resto de nós com o olhar e se concentrando em Minerva.
A voz dela era seca e rouca, como folhas de papel sendo esfregadas. Seu rosto sem rugas não parecia assim tão velho, exceto pela pele fina e o sorriso marcado. Ela
lembrava uma de suas bonecas, só que dotada de olhos com um brilho humano.
- É, sou eu - disse Minerva, baixinho.
- Onde aprendeu essas músicas, minha jovem?
- Quando fiquei doente, senti algo me chamando do porão, me deixando meio...
Ela deu um risinho.
- Sexualmente excitada? - perguntou a dra. Prolixa.
- É, acho que sim. Quando fui até lá, durante a febre, ouvi um sussurro vindo das frestas do chão. Então comecei a anotar o que era dito.
Eu nunca tinha pensado sobre a origem das letras de Minerva, mas também, ela nunca havia mencionado que vinham do submundo. Parecia o tipo de coisa que as pessoas
deviam mencionar.
- Eu poderia ouvir algumas palavras? - perguntou a dra. Prolixa.
- Ahn, será que é uma boa idéia? - Pearl perguntou com cuidado.
- Não cante, querida - disse a velha senhora. - Apenas recite a letra.
Minerva pensou por um momento e, em seguida, limpou a garganta.
No início, foram só algumas sílabas, saindo intercaladas e enroladas, como alguém tentando imitar o som de um ralo. Depois, porém, ela passou a falar com ritmo,
e os sons esquisitos se transformaram em palavras.
Logo Minerva passou aos versos e refrões que Pearl tinha construído com base nas sílabas sem sentido, e sua voz começou a meio que cantarolar. Reconheci alguns trechos
da Número Dois. Meus dedos se mexiam semiinconscientemente, tocando a parte do baixo no ar, e nem percebi quando ela começou a cantar.
Talvez o chão tenha tremido um pouco.
- Pare com isso! - gritou a dra. Prolixa.
Minerva obedece, sacudindo a cabeça como se acordasse de um sonho.
- Desculpa.
- Sempre quis saber como isso funcionava - disse a dra. Prolixa, calma, de trás da sua mesa.
- Como funcionava? - perguntou Cal. - Como funcionava o quê?
- A última vez em que o inimigo atacou foi sete séculos atrás, antes de eu nascer. Mas o Prefeito da Noite nasceu no fim desse período.
Eu não podia acreditar. Aquela mulher estava falando de séculos. Dizendo que vivia havia séculos. Senti meu cérebro tentando se desligar, do mesmo modo que se tenta
não ouvir quando aparece uma pessoa maluca falando alto no metrô, muito embora ninguém consiga.
A dra. Prolixa pôs as duas mãos abertas sobre a mesa.
- Cal, já pensou em como se agia nas invasões anteriores? Sem dispor de sismógrafos? Sem walkie-talkies e celulares?
- Humm... Acho que não era muito fácil. Por outro lado, eles não tinham a Segurança Interna no caminho, o que dificultava o transporte de medicamentos à regiões
de surtos. E também não existiam os túneis do metrô para o inimigo deslizar de um lado para o outro. Mas deve ter sido difícil. Quais foram as perdas da última vez?
Duzentos milhões de pessoas?
- E, mesmo assim, a humanidade sobreviveu. - Ela fechou as mãos. - As lentas contam que não precisaram esperar os vermes subirem. Alguns peeps, chamados de "cantores",
eram capazes de trazê-los à superfície. Assim, a Patrulha preparou armadilhas e emboscadas e matou o inimigo sem problemas.
Cal soltou um breve suspiro.
- E nós acreditamos nisso?
- O Prefeito da Noite testemunhou isso quando era criança. Viu uma mulher chamar um verme. - Seus olhos brilhantes miraram cada um de nós. - Ao lado de 15 pessoas
tocando tambores e sinos e um homem com uma concha, além de uma multidão que esperava para assistir à matança.
Concha? Ah, que ótimo. Eu teria que trocar de instrumento de novo.
- Cara - disse Lace, batendo no ombro de Cal. - Como é que você nunca me falou disso?
- É a primeira vez que ouço essa história - murmurou ele.
- Algumas das antigas estratégias se perderam - disse a dra. Prolixa, olhando para as próprias mãos. - Muitos de nós forma queimados na Inquisição.
- Sempre esses caras - comentou Cal.
- Mas parece que o conhecimento não se perdeu definitivamente - disse a doutora, referindo-se a Minerva. - Onde você mora, minha jovem?
- Ahn, em Boerum Hill.
- Algumas das antigas famílias estão enterradas lá.
- Enterradas? - repetiu Minerva. - Eca.
Meu queixo caiu.
- Está dizendo que, sei lá, a gente estava tocando músicas escritas por pessoas mortas? - perguntei.
- Bem colocado, Zahler - disse Cal. - Sinceramente, dra. Prolixa, acho que essa história não passa de imaginação. Mesmo que a Patrulha tenha conhecido, um dia, uma
maneia de atrair os vermes, a informação já se perdeu, queimada na fogueira. Por que estaria jogada à toa por aí, à espera de uma garota num porão, e ainda por cima
aqui no Novo Mundo?
- Não sei, Cal.
- Só vimos isso acontecer uma vez, e não se pode dizer exatamente que tenha sido um experimento controlado. Provavelmente uma coincidência. O inimigo adora se alimentar
de grandes multidões, como aquele distúrbio outro dia em Praga.
A dra. Prolixa ficou em silencio e finalmente me arrisquei a relaxar um pouco. Talvez eles fossem esquecer a história toda com Minerva e nos levar de volta a Nova
Jersey. Só tínhamos passado meia hora naquele lugar; o sol ainda estaria brilhando do lado de fora...
- Não - disse Alana Ray. - Não é uma coincidência.
Todos se viraram em sua direção, o que provocou um tremelique nela. Então ela tocou o peito três vezes e apontou um dedo trêmulo para a dra. Prolixa.
- Eu vejo coisas. Tenho uma condição neurológica que pode causar comportamento compulsivo, perda de coordenação motora e alucinações. Acontece que, às vezes, acho
que não são aluminações, e sim a realidade que vem dos padrões das coisas. Enxergo como a música funciona. Eu costumava ver algo acontecendo quando ensinávamos ou
quando o Morgan's Army tocava...
- Morgan's Army? - perguntou Lace. - O guitarrista deles não está infectado?
- Pela própria Morgan - respondeu Cal, baixinho.
- Mas a vocalista não está - disse Alana Ray, apontando para Minerva com a cabeça. - Foi por isso que nós fizemos acontecer e não eles.
Ótimo, pensei. Dez mil bandas em Nova York e eu tinha de fazer parte da que evocava monstros.
- Alana Ray está certa - disse Pearl, chegando bem perto da faixa vermelha. - Não é só Minerva. Todo mundo que integra o Novo Som tropeçou em partes desse negócio.
- Ela encarou Cal. - Você sempre fala sobre como a natureza armazena as coisas: nos nossos genes, nas doenças que carregamos, até nos nossos animais de estimação.
Tudo que precisamos para combater os vermes está ao nosso redor. Talvez a música seja parte disso.
- A música? Música não é biologia - discordou Cal.
- É, Pearl. Não estamos falando de uma força da natureza, estamos falando de nós - tentei argumentar.
Ela balançou a cabeça, contrariada.
- Eu estou falando de todas as situações em que mil pessoas se reúnem num lugar e se mexem em sincronia, concentradas no mesmo ritmo, repetindo as mesmas palavras
e executando os mesmos movimentos e danças. Estou falando do Taj Mahal dos rituais humanos: uma multidão no limite à espera de uma única nota. É singular, mágico
e irresistível, mesmo que você não passe de um verme gigante.
- Em outras palavras, música é biologia - disse Minerva, sorrindo. - Pergunte ao Astor Michaels, Cal.
Ele revirou os olhos.
- Então pessoas mortas escreveram suas letras?
- Não se de onde vêm as letras de Min, está bem? - respondeu Pearl. - Talvez sejam transmitidas pela doença, de alguma forma, e Min só tinha imaginado que vieram
de trás das paredes. Ou talvez não passem de besteira, e as melodias sim, sejam o aspecto principal. A questão é que funcionam, não funcionam?
- Elas fazem o ar tremer - disse Alana Ray, confirmando com a cabeça.
- Elas são algo que acreditei estar perdido - contou a dra. Prolixa. - Não podemos enfrentar algo que não sabemos onde está. Mas, se pudermos atrair os vermes até
um lugar de nossa escolha, esta guerra poderá ser bem mais curta do que imaginamos.
- Cal, talvez velha a pena realizar um teste controlado - sugeriu Lace. - Um pouco de ciência, um pouco de arte.
Cal olhou para os outros, um por um, e soltou um suspiro frustrado.
- Você é quem manda, doutora. Assim que o guitarrista melhorar, vou preparar as coisas.
- Esperem aí! - gritei. - Vocês não estão dizendo que vamos mesmo tocar aquelas músicas de novo, estão?
Minerva deu uma risadinha.
- Vamos dar um show!
29. The Kills
-ALANA RAY-
Nos instalamos num antigo anfiteatro no parque do East River.
Cercados por pedaços de concreto pichado e grama que crescia entre as rachaduras, a sensação era de que o mundo já tinha acabado havia muito tempo. Embora estivesse
abandonado desde o início da crise sanitária, o lugar mostrava exatamente como Manhattan inteira ficaria em alguns anos: nada além de uma ruína no meio do mato.
Num dos limites do parque, a rodovia estava vazia, com a cidade estranhamente silenciosa por trás. Eu notava apenas movimentos esparsos nas janelas viradas para
nós. Sinais tênues de vida.
Os anjos da Nova Patrulha botaram a mão na massa, trazendo tudo que havíamos pedido; saqueando equipamentos e instrumentos das lojas de música da cidade. Eles me
arrumaram uma bateria Ludwig e pratos Zildjan novinhos, mas Cal queria um teste controlado, com o menor número de diferenças possível em relação à nossa primeira
apresentação. Por isso, eu e Lace e mais três anjos fomos até ma loja de material de construção no East Village, correndo para chegar antes de o sol começar a baixar.
As vitrines estavam todas quebradas, e os anjos não pensaram duas vezes antes de entrar. Meus tênis escorregavam sobre os cacos de vidro. Não se enxergava nada na
escuridão dentro da loja. Quando meus olhos se ajustaram, percebi que as prateleiras estavam praticamente vazias. Todas as ferramentas e latas de tinta spray tinham
sido levadas.
Tentei ouvir alguém, ou alguma coisa, escondido nos escombros.
Enquanto os anjos faziam uma busca, permaneci imóvel bem no lugar da vitrine quebrada, com pavor da abandonar a luz do sol, mas sem querer ficar sozinha na rua.
Batuquei os dedos nas coxas, observando como os cacos de vidro refletiam a luz do sol no teto.
Finalmente, Lace gritou que havia encontrado aquilo de que precisávamos. Por sorte, ninguém tinha se dado ao trabalho de levar os baldes de tinta.
Quando saímos da loja, dois garotos de uma janela lá em cima. Precisavam de comida e mais lanternas para afastar os peeps de suas portas e janelas à noite. Os pais
tinham saído e ainda não tinham voltado.
Os anjos escalaram a fachada e lhes entregaram as poucas pilhas encontradas na loja. Outras pessoas começaram a gritar por ajuda de suas janelas. Abri as mãos, como
se estivesse oferecendo algo, mas nós não tínhamos mais nada para dar.
Tive uma sensação de impotência, via o mundo refletindo minha culpa. Eu havia assinado o contrato de Astor Michaels, colocado meu nome naquele emaranhado de palavras
e compromissos. E o monstro das minhas visões tinha realmente aparecido; pessoas tinham morrido aos montes naquela noite. Talvez centenas delas.
E eu era responsável.
O risco moral continuava me seguindo, deslizando por baixo da terra como a fera de Minerva, aparecendo no canto do meu campo de visão. Remexia a grama em Nova Jersey
e fazia barulho no ralo quando eu tomava banho. Mas, ali na cidade, ele crescia, sorvendo a energia dos vidros quebrados e das ruas vazias. Nunca me deixava em paz.
Eu sabia que era apenas uma alucinação, uma peça pregada pela minha mente, à medida que eu começava a racionar os comprimidos do meu último frasco. No entanto, parada
ali, na vastidão da Primeira Avenida, deserta em ambas as direções, meu risco moral parecia mais real do que eu.
Moz ainda não havia se recuperado completamente, mas conseguia ouvir o próprio nome sem se retrair e também olhar para Minerva, até tocá-la. Os dois aguardavam sob
a sombra da concha acústica. Moz corria os dedos sobre sua nova guitarra.
- É tão boa quanto a Strat? - perguntei, já sabendo a resposta.
Ele sentiu um arrepio ao lembrar e me respondeu que não com a cabeça.
Enquanto a escuridão avançava, fizemos uma curta passagem de som, tirando eletricidade de um dos veículos militares da Nova Patrulha. O carro tinha um motor potente,
capaz de alimentar os instrumentos, a mesa de som e as pilhas de amplificadores sedentos.
Os anjos haviam montado torres para a iluminação do palco em ambos os lados do anfiteatro. Assim que a noite caísse em Manhattan, nossas luzes se tornariam visíveis
num raio de quilômetros, um farol de segurança. Esperávamos atrair um grande público entre os milhões de sobreviventes que permaneciam na cidade.
Com certeza, a audiência era indispensável: dava foco à música de Minerva, tornando-a mais humana, e era isso que atraía o inimigo.
Assim que os anjos terminaram de aprontar tudo, nos reunimos no palco e esperamos o sol se pôr. Os vermes nunca apareciam com o dia claro, ao menos não por tempo
suficiente para que pudéssemos matá-los.
Aos poucos, o parque começou a ganhar vida. Gatos andavam por entre os pedaços de concreto, e a passagem de criaturas menores fazia o mato se agitar. Lace disse
para eu, Pearl e Zahler nos sentarmos na parte de cima de um veículo da Nova Patrulha, o que evitaria uma mordida de um rato infectado. Pareceu um bom conselho.
Bandas cheias de insetos, como o Toxoplasma, só sabiam tocar músicas rápidas e agitadas.
Além disso, eu também não queria me tornar uma peep. Não queria odiar minha bateria e meus amigos, nem meu próprio reflexo. Lace contou que os peeps que tinham sido
cristãos devotos evitaram até olhar para uma cruz. Será que eu passaria a ter medo dos meus comprimidos? Ou de baldes de tinta? Ou de música?
O céu passou de um tom rosado ao negro. Notei figuras humanas se movendo numa distância curta: parasita-positivos caçando, à procura de não-infectados. Até aquele
momento, evitavam as luzes da concha acústica, mas me perguntei se alguns holofotes e uma dezena de anjos realmente bastavam para nos proteger de uma cidade inteira
de canibais.
Voltei a batucar nas coxas e tentei me lembrar de que os verdadeiros inimigos eram os vermes - incompreensíveis e inumanos. Vinham de um lugar sem lugar que nunca
havíamos pensado que existisse.
Os peeps, por outro lado, ainda eram seres humanos.
Moz e Minerva eram meus amigos e humanos o bastante para estarem apaixonados. De início, a infecção havia deixado Moz com o suor descontrolado, doente e violento,
mas eu já tinha visto amores normais fazerem o mesmo. Ele já estava tocando guitarra de novo, e em pouco tempo talvez se tornasse como os anjos: poderoso e seguro.
Lembrei de Astor Michaels falando orgulhoso de todas as bandas que tinha contratado. Ele achava que os peeps eram mais do que humanos; eram deuses, estrelas do rock.
Havia até tentado lhes dar um novo tipo de música.
Obviamente, se Pearl estivesse certa, o Novo Som não tinha nada de novo. Apesar dos teclados, amplificadores e caixas de efeitos, as músicas que não saíam da minha
cabeça podiam ser exatamente como a própria batalha: antigas, muito antigas.
Eu nunca tinha visto Manhattan numa escuridão absoluta. Geralmente, o brilho rosado das lâmpadas de vapor de mercúrio nas ruas se espalhava pelo céu, os rios refletiam
as luzes que vinham da outra margem, e as janelas dos prédios mantinham-se acesas noite adentro. Mas agora a rede de energia estava falhando, e, fora da área coberta
pela iluminação da concha acústica, a única claridade vinha da estranha profusão de estrelas.
Lace juntou-se a nós em cima do veículo.
- Estou vendo um problema nessa idéia toda - disse.
- Só um? - perguntou Zahler.
- Bem, estou falando de um grande. - Lace apontou para a cidade às escuras, atrás da rodovia. - Essas pessoas viram seu mundo inteiro ruir e só sobreviveram por
enquanto tomando muito cuidado. Então, por que deixariam seus apartamentos protegidos para algo tão sem propósito como um show grátis?
Olhei para as seqüências de janelas às escuras.
- Antes de escolhermos um nome, Astor Michaels disse que nossa verdadeira platéia nos encontraria pelo cheiro - lembrei.
- Cheiro? - Ela farejou o ar. - É, o parasita aguça os sentidos, mas não estamos falando de gente que não foi contaminada?
Franzi a testa. Astor Michaels tinha desvios éticos, na verdade uma confusão de riscos morais, mas sabia muito bem como as multidões se comportavam. Mesmo que as
pessoas escondidas na cidade estivessem apavoradas, precisavam se agarrar a algum tipo de esperança.
- Não se preocupe - garanti, batendo na testa. - Eles vêm.
Às dez da noite, o vento estava mais forte, carregando até nós sopros do ar salgado e gelado do East River.
Os anjos tinham sumido. Estavam escondidos nas copas das árvores ou em cima das torres de iluminação, posicionados nas partes arqueadas do anfiteatro, observando
como na boate. Prontos para descer.
E, com sorte, para nos proteger, se aquilo tudo desse muito errado.
Pearl ligou a mesa de mixagem e as colunas de amplificadores soltaram um zumbido. Ela deu um mi grave para Zahler afinar o baixo. O palco tremia sob meus pés. Moz
e Minerva saíram das sombras, tremendo de frio, para assumirem seus lugares.
Esperamos por um momento, trocando olhares. Pearl finalmente tinha achado o nome perfeito para nós, mas não havia ninguém para anunciá-lo.
Então, simplesmente começamos a tocar.
Zahler não ficou paralisado. Ele iniciou o Grande Riff, fazendo as notas do baixo ecoarem por todo o parque, rebatendo preguiçosamente nos conjuntos residenciais
daquele extremo de Manhattan. O restante das luzes se acendeu, num branco intenso em vez dos fachos coloridos a que estávamos acostumados. Parecia um estúdio de
cinema. Sem enxergar nada na escuridão, nos sentimos terrivelmente expostos. Só nos restava confiar nos anjos.
Foi a vez de Moz não responder. Seu corpo tremia enquanto ele encarava o anátema da própria música. Mas então, finalmente, seus dedos entraram em movimento e tocaram
as cordas; anos de prática derrotando o parasita dentro de seu corpo.
Também comecei a tocar, sentindo os músculo entrarem num ritmo familiar, mas o movimento das minhas mãos não me acalmou. Não era por causa da escuridão absoluta
diante de mim, nem dos milhares de maníacos infectados e mortais ao nosso redor. Não era nem mesmo por causa das enormes criaturas devoradoras de humanos que tentávamos
evocar.
O que me assustava era se novamente atraída para dentro dos mecanismos da nossa música. Lembrei de estar tocando, sem conseguir parar, enquanto o verme abria caminho
por entre a platéia, derrubando as pessoas que nos assistiam hipnotizadas. Meu risco moral espreitava nos cantos da minha visão, observando e aguardando.
Se o mundo não fosse curado logo, aquela visão se tornaria concreta. Eu estava ficando sem comprimidos; o último frasco já ia pela metade dentro do meu bolso, esvaziando-se
gradualmente. Arriscar minha vida no frio de um dos extremos de Manhattan não era um ato de heroísmo. Era racional.
Eu era uma das pessoas que simplesmente precisavam que a civilização sobrevivesse.
Minerva começou a cantar. Sua voz varria a escuridão e se espalhava pelo parque tomado pelo mato. Um chamado.
A atmosfera começou a brilhar e logo enxerguei a música. As notas de Moz insinuavam-se naquele cenário e se prolongava até a escuridão. Eu e Zahler tocávamos com
garra, como dedos entrelaçados, como sentinelas com medo de virar a cabeça.
Tocamos uma música inteira na esperança de que alguém ouvisse.
Quando acabamos, não houve gritos ou aplausos, nem um único incentivo. Ninguém tinha aparecido.
As luzes perderam intensidade, e então observei a área onde deveria estar o público e vi os reflexos de uma imensidão de olhos. Olhos que enxergavam no escuro.
Peeps.
Eles nos encaravam de um modo terrível e sem vida. Não era como os anjos ou Minerva ou o trêmulo Moz. Não tinham traço de sanidade, razão ou humanidade. Haviam sido
completamente dominados pela doença. Usavam roupas sujas e rasgadas, sem as marcas, destruídas pelo anátema. Muitos mal estavam cobertos; tremiam em farrapos de
pijamas e calças de moletom. O tipo de roupa que se usaria para ficar de cama, ao se sentir febril e meio atordoado, derrubado pela gripe. Suas unhas eram compridas
e negras, como se tivessem colado cascas de besouros mortos nas pontas dos dedos. Havia uma centena deles ali. Absolutamente imóveis.
Os sobreviventes não tinham aparecido para nos ouvir. Os vampiros sim.
Astor Michaels tinha razão desde o início. Nossa verdadeira audiência havia nos achado pelo cheiro.
- Merda - disse Zahler, ao meu lado.
Houve um grito entre eles, com formas se alternando em silêncio, diante do encanto da música que se quebrava. Seus olhos apresentavam sinais de fome.
- Temos que continuar tocando - sugeri.
- Temos que sair correndo - murmurou Zahler, começando a recuar.
A multidão se agitou novamente. Um dos vampiros cambaleava na direção do palco, piscando os olhos para evitar a luz.
- Pára, Zahler - disse Moz. - É igual aos cachorros. Não mostra que está com medo!
- Meus cachorros não comem gente!
Ouvi mais barulhos vindo de trás de nós. Evidentemente, os peeps não estavam apenas na audiência na nossa frente. Estavam por toda parte ao nosso redor...
- Alana Ray tem razão. Temos de continuar tocando - disse Minerva. - Não podemos decepcionar os fãs.
Ela levou o microfone à boca e começou a cantarolar. A melodia sinistra surgiu dos amplificadores, uma cantiga sem nome e sem forma que tínhamos transformado na
nossa música mais lenta: "Um milhão de estímulos para viagem".
Os peeps começaram a se acalmar.
Pearl juntou-se a Minerva, abrindo as mãos sobre o teclado para segurar acordes longos e deliciosos. Depois Moz veio por cima, lançando notas velozes que flertavam
com a melodia murmurada por Minerva, empurrando-a na direção das palavras.
Comecei a tocar, passando as baquetas suavemente sobre os baldes e transformando tudo numa batida lenta. Finalmente, com relutância, Zahler nos acompanhou, fazendo
o baixo ressoar na escuridão.
Os peeps mantiveram-se parados, nos observando, sem piscar os olhos.
Tocamos a música toda, tentando não pensar naquela platéia medonha, mas aceleramos ao nos aproximar do fim, deixando o medo transparecer. Encerramos castigando o
mesmo acorde, repetidas vezes, até chegarmos ao silêncio.
Olhei para a escuridão.
Agora havia pelo menos cinco vezes mais peeps do que antes.
- Olha só o problema - disse Zahler.
Uma onde passou pelo exército esfarrapado diante de nós. Um deles soltou um gemido baixinho de fome. Uma gota de suor escorreu pelas minhas costas, gelada como o
ar daquela noite.
- Não podemos parar de tocar! - gritei.
- O quê? - reagiu Zahler. - Você quer que mais dessas coisas apareçam?
Com as mãos tremendo, Moz deu um passo para trás.
- E se nenhum verme der as caras?
- Meninos - interrompeu Minerva, falando ao microfone, o que fez suas palavras ecoarem pelo parque. - Acho que não temos escolha.
Alguns dos peeps avançavam, com os dentes refletindo a luz do luar, as mãos curvadas como garras.
- Min está certa - murmurou Pearl.
- A Número Dois? - perguntou Zahler, começando a música sem esperar ninguém responder.
Todo mundo acompanhou com tudo.
Embora estivesse aterrorizada, imaginei o que os peeps estariam achando do nosso som, se realmente gostavam da música ou se alguns tipos de ondas sonoras os deixavam
mais calmos, como no caso das plantas com Mozart. Eles não estavam dançando, pulando ou acompanhando. Então por que continuavam ouvindo em vez de nos devorarem?
Acelerei a música, levando os outros a me acompanharem, numa velocidade quase igual à do Toxoplasma. Música para insetos.
Minerva entrou berrando sílabas sem sentido, o que afetou minha visão, deixando uma impressão de fagulhas de fogos de artifício se desfazendo no ar.
Alguma coisa, uma onde repentina de movimento, percorreu a platéia, e por um terrível instante pensei que nosso encanto poderia estar se perdendo. Mas o exército
de esfarrapados não correu para nos atacar. Em vez disso, a massa se virou ao mesmo tempo, como uma revoada de pássaros mudando de rumo numa única manobra.
Por um segundo, pensei que os peeps estivessem dançando... mas era algo muito melhor. Ou pior, dependendo do resultado. O chão tinha finalmente começado a tremer.
Eles estavam se preparando. Sentiam algo no ar: o verme odiado subindo à superfície. A despeito do nível de sanidade, o parasita reconhecia o cheiro de seu inimigo
natural.
Os tremores tornavam-se mais intensos, e eu acelerava ainda mais a música.
O verme apareceu exatamente quando chegamos ao primeiro refrão. Espalhou terra e água negra e lançou um punhado de corpos pelos ares. Contudo, aqueles eram peeps
e não adolescentes desorientados numa boate. A multidão não entrou em pânico, nem saiu correndo. Pelo contrário, os peeps atacaram a fera por todos os lados, usando
suas garras, rasgando as laterais pulsantes com seus dentes afiados.
Os anjos também não ficaram parados. De espada em mãos, desceram das árvores e do teto do anfiteatro. Misturando-se à massa, lutaram ao lado dos peeps, fazendo o
grande verme gritar e se contorcer dentro da vala.
Nós continuamos tocando. Quando a música acabou, recomeçamos sem parar por um instante sequer. O ar se expandia ao meu redor. A voz de Minerva tinha uma nova forma:
era uma linha de energia que unia os peeps e os anjos numa só força. As notas graves de Zahler eram tentáculos que mergulhavam na terra e fechavam a passagem, mantendo
o inimigo preso na superfície. Eu sentia a batalha nos meus músculos. Minhas baquetas reluziam como as espadas lá embaixo.
Muito tempo depois, com nós cinco exaustos, a música finalmente parou. O tanque havia secado.
Olhei para o parque.
Os peeps haviam deixado o verme em pedaços. Fragmentos da imensa carcaça estavam espalhados por sobre o concreto partido, ainda se contorcendo, como se tentasse
se entocar na terra novamente.
Alguns dos peeps disputavam os restos. Para comer...
- E agora? - perguntou Zahler, com os últimos ecos da música de dissipando.
O exército de peeps era mais numeroso que a platéia do nosso primeiro show - mais de mil deles, atraídos pela nossa música e pelos gritos mortais do verme.
A maioria ainda parecia faminta.
Os poucos anjos estavam no meio da platéia, coberto de sangue e água negra. Nervosos, olharam para os peeps ao redor, sentindo a sede de sangue se esvair.
- Galera! - gritou Lace. - Continuem tocando!
E foi o que fizemos.
No fim, matamos cinco vermes naquela noite, tocando até o sol surgir no horizonte.
A claridade veio, com as nuvens passando de um tom rosado para laranja, e, enfim, nosso público tenebroso começou a se dispersar. Eles sumiam por entre as árvores,
retornando aos becos escuros da cidade, saciados pelo confronto.
Em cima do placo, fomos desmoronando um por um. Os dedos de Zahler sangravam. Minerva tinha passado a última música praticamente grasnando. Até os anjos pareciam
sem firmeza. Cobertos de água negra, sangue e pedaços de carne gelatinosa, limpavam as espadas com mãos trêmulas.
Sentei no palco de concreto, tremendo com o frio da manhã. Minhas mãos doíam, meu corpo reverberava, e as alucinações coloriam tudo que eu via.
Mas eu estava sorrindo. Lá pela metade do show, meu risco moral tinha desaparecido na escuridão.
E aquilo parecia muito real.
Epílogo: The Cure
-MOZ-
Sair em turnê não era aquilo tudo que diziam.
Havia muitas viagens longas de ônibus, estávamos numa cidade diferente a cada dia, e eu odiava depender de malas e trailers por meses seguidos. A maioria dos hotéis
tinha poucos funcionários - grande parte não tinha nem roupa de cama. Serviço de quarto era coisa de um passado distante.
Mas fizemos tudo aquilo pelos fãs.
Em cada nova cidade, eles nos recebiam como heróis, depois de caminharem quilômetros ou gastarem seus últimos litros de gasolina. Levavam armas e bebidas caseiras,
prontos para enfrentar os inimigo e festejar, cantar e curtir o momento. Anjos locais e pessoas normais, até alguns peeps selvagens, misturavam-se à multidão. Todos
queriam ver nosso show.
No fim, havíamos nos tornado famosos, embora os antigos meios de se fabricar a fama - televisão, revistas, trilhas sonoras - praticamente não existissem mais. Por
outro lado, o rádio seguia forte, com 10 mil estações de fundo de quintal movidas a energia solar. Assim, todos conheciam nossas músicas.
Também conheciam nosso nome, graças a Pearl, que havia finalmente achado as três palavras perfeitas para nos descrever, mesmo sendo plural. Na verdade, não faria
muito sentido no singular.
O Último Dia? Fala sério. Seria tão ruim quanto A Mesa.
Você provavelmente conhece o resto da história:
Fizemos turnês intermináveis, tocando em todas as grandes cidades do mundo, um show atrás do outro, até a população local de inimigos ser destruída. Depois foi a
vez da Turnê do Interior. Tocamos em cada cidade pequena que havia visto um mero sinal de verme e em algumas que nem isso.
Éramos igualmente populares fora do país. Um aspecto positivo de cantar numa língua morta sete séculos antes: ninguém se sente excluído.
Muito menos os vermes.
Em todo lugar a que nós e nossos vinte guarda-costas sobre-humanos íamos, o inimigo aparecia, empurrado das entranhas da terra por seu apetite ancestral, incapaz
de resistir às centenas de deliciosos seres humanos se agitando ao som da voz de Minerva, algo tão tentador quanto um pedaço de bacon fritando de manhã.
Nossos fãs e os anjos não paravam de matá-los, até que os poucos que restavam mostraram-se inteligentes o bastante para deslizar de volta às profundezas. Lentamente,
a crise começou a perder a força, com os ratos retornando às suas tocas escuras, levando consigo os esporos do parasita. Valeu, pessoal, até a próxima.
Logicamente, as coisas levaram um tempo para voltar ao normal.
Havia cidades e sociedades a serem reconstruídas, e a Nova Patrulha ainda precisava limpar os poucos peeps que ainda não tinham sido tratados. Eles vasculharam lugares
selvagens em busca daqueles que o anátema havia empurrado para uma existência solitária. Curaram os vampiros um por um até eles voltarem a ser apenas personagens
de lendas. E, então, a própria Patrulha desapareceu nas sombras.
A terra estava curada - pelo menos era o que nós humanos achamos.
Ninguém sabia o que pensavam os vermes, ou mesmo se pensavam. Havíamos matado praticamente todos... exceto os mais inteligentes, como lembrou Cal. Aqueles que, de
alguma maneira, perceberam que nossa música era mortal. Portanto, na próxima vez que os vermes saírem da terra, todos serão descendentes dos que foram inteligentes
o bastante para escapar. É provável que fiquem mais espertos a cada invasão. A evolução dos vermes em ação.
Sexcelente.
Mas, a próxima crise não acontecerá em menos de algumas centenas de anos, e aí estarei velho demais para sair em turnê.
Afinal, os anjos não vivem para sempre.
No meio dessa história, eu e Min terminamos e voltamos umas 15 vezes, isso sem contar as separações que duraram menos de duas horas. Zahler tornou-se um baixista
muito sacana, e Alana Ray não mudou em nada: continuou sendo ética, racional e controlada. Pearl, como você sabe, está concorrendo novamente à prefeitura de Nova
York. Mas essa é outra história.
Todos nós já fomos entrevistados 1 milhão de vezes sobre a turnê. Um dos livros de Cal Thompson é o melhor resumo da jornada. Ele estava o tempo todo cuidando de
nós. Pelo que me lembro, a maior parte do que diz é verdade.
A única coisa nova que posso acrescentar às histórias contadas por ele é a seguinte:
Aconteceu numa pequena cidade perto de Tulsa, quase na metade da Turnê do Interior. O show daquela noite tinha sido sacana: botamos para quebrar com uma versão de
20 minutos da Número Dois enquanto a multidão matava o inimigo local, um verme gigante cujos espasmos derradeiros destruíram o estacionamento da Sears como uma cachorro
raivoso destrói um jornal.
Na festa que se seguiu, um dos anjos locais veio falar comigo. Era uma mulher de cabelos curtos, maquiagem pesada e olhos intensos. Levava uma espada larga presa
às costas como se fosse uma guitarra.
Ela ficou parada por um instante, com os olhos refletindo a chama da fogueira. O cheiro reconfortante de carne de verme queimada impregnava o ar.
- EI, belo trabalho esta noite - elogiei, levantando a mão. - Vocês da Patrulha de Oklahoma são muito bons!
Eu meio que esperava que ela dissesse: "Não, vocês é que são muito bons!" Mas ela não respondeu. Apenas me encarou. Depois de um tempo eu insisti:
- Esse verme velho era durão, hein?
- Você me deve uma Strat - respondeu ela.
Finalmente a reconheci.
Era aquela maluca que tinha jogado a vida inteira pela janela da Sixth Street na noite em que eu e Pearl nos conhecemos. Nós havíamos visto os anjos a levando, para
Nova Jersey ou, pela época, talvez até para Montana. Claro que ela tinha sido curada e se tornado um deles...
Tentei imaginar como havia parado ali. Talvez amasse demais Nova York para ser capaz de voltar para casa. Às vezes o anátema persiste de modo muito intenso. Já vi
anjos se esconderem ao avistarem antigos amigos o vacilarem ao ouvir o refrão de suas músicas favoritas. Eu mesmo ainda não costumo me olhar muito no espelho.
- Caramba - comentei, abrindo um sorriso. - É você.
Seus olhos pretos faiscaram.
- Você a destruiu. Um dos seus guarda-costas me contou. Bateu com ela no palco, como se fosse Jimi Hendrix ou alguém parecido.
- Não foi bem assim. Eu estava sofrendo com o anátema.
- Era uma Strat 1975 com captadores e alavanca dourados - disse ela, pausadamente. - Sabe como é difícil encontrar uma igual? Ainda mais hoje em dia?
Eu sabia muito bem. Andava procurando por outra desde o início da turnê. As últimas que existiam eram tão valiosas que nem eu tinha dinheiro para comprar uma. Lá
estava eu ajudando a salvar o mundo e não podia nem pagar por uma guitarra decente. Que coisa sem sentido.
Mas a atitude dela já tinha enchido o saco.
- Espera aí. Minha última lembrança é de você jogando a Strat pela janela!
- É, claro, mas eu estava louca na época!
- Eu também estava quando a destruí!
- Ahn, Moz? - interrompeu Pearl, que estava chegando com duas preciosas garrafas de cerveja pré-crise. - Algum problema por aqui?
A mulher me fuzilou com os olhos, relaxou as mãos e balançou a cabeça.
- Problema nenhum.
O cheiro azedo de anjos prestes a entrar numa briga se dissipou. Respirei aliviado.
- Ela está dizendo que lhe devo uma Stratocaster - expliquei.
Pearl ficou surpresa.
- Ei... então é você. - Um sorriso tomou conta de seu rosto. - Sendo assim, acho que você tem direito à cerveja do Moz.
A mulher reclamou e depois pegou a garrafa. Bebidas caseiras haviam se tornado coisa comum, mas ninguém dispensava o material industrializado.
Fiquei ali assistindo a Pearl comentar como a Patrulha local tinha sido sacana naquela noite. Ela perguntou à mulher se queria que nós avisássemos ao centro de operações
que eles precisavam de algo. Era já o talento para a política de Pearl, totalmente carismática, que mais uma vez me salvara.
Agora, pensando nisso, percebo que eu sempre quis achar aquela mulher, pelo menos para lhe contar como a Strat tinha sido importante para mim e talvez narrar seus
últimos momentos. Mas eu nunca havia chegado a começar a procurar.
Era como Zahler dizia: Pearl estava sempre consertando as coisas que eu destruía, deixava cair no chão o deixava estragar. Ela tinha até ajudado a mim e a Minerva
a acertarmos os pontos mais de uma vez. Qualquer coisa pelo bem da banda.
A conversa entre as das parou quando alguém jogou outro pedaço de verme na fogueira, provocando um chiado semelhando ao de um aquecedor no inverno de Nova York.
Uma nova chuva de fagulhas se espalhou pelos ares, provocando outra salva de palmas vinda dos bêbados.
- Obrigado - eu disse à mulher.
- Pelo quê?
- Por deixar aquela guitarra cair no momento certo. - Dei um sorriso para Pearl. - Por nos reunir.
Pearl devolveu o sorriso.
- Bem, você com certeza encontrou um jeito esquisito de me recompensar - disse a mulher.
- Se meu testemunho vale alguma coisa, eu estava lá na hora, e ele estava completamente doido.
- As pessoas sempre destroem as coisas que amam - argumentei.
A mulher ainda estava contrariada.
- Você não entende, Moz? Com anátema ou não, ela nunca foi sua, para querer se apaixonar.
Fiquei sem saber o que dizer. Pearl veio me salvar novamente.
- Nem sempre escolhemos o que amar.
A mulher apenas me olhou feio, soltando um suspiro profundo, enquanto nos virávamos na direção do fogo. Estava cada vez mais intenso, com o centro ficando azul à
medida que a gordura e os músculos da fera derretiam, pingando no coração incandescente da fogueira. Senti os dedos de Pearl apertando meu braço gentilmente e me
puxando para perto.
A fera continuou queimando.
Scott Westerfeld
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