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Tinha havido, em tempos, um poeta que morrera de miséria sem ter escrito um único verso e sem ter tido, por essa razão, tempo de enodoar a sua alma pura com o desprezo, escondido ou declarado, dos homens, nem com o culto da sua própria pessoa, nem com a avidez da glória, nem com nada daquilo que envenena, na alma dos poetas, aquele algo de divino que lhe dá direito à atenção dos homens. ,
Semelhante poeta existiu, acreditem-me, existiu verdadeiramente- e quero-lhes contar o que o impediu de viver e de o seu nome chegar até nós. Habitava um sótão numa rua tortuosa e suja, à saída duma grande cidade, e podia ver da sua janela a cidade inteira, sem graça, rugosa, semelhante, nos dr, claros e solheiros, a uma tartaruga barulhenta e suja, feliz por ver cair do céu tanto sol nas suas costas.
Não estimava a cidade embora a lamentasse. Tinha a sua região própria onde tinha construído outras cidades que povoara com outros homens, diferentes dos que viviam naquela e em todas as outras da Terra. Era o país sem limite da imaginação, onde é agradável perder-se e onde é ainda mais fácil perder as forças do coração e do espírito.
Tal como a maior parte dos poetas, o nosso pensava, na sua juventude, que esta cidade, que se lhe estendia aos pés, não vivia a vida que devia para ser digna da felicidade; desde então considerava-se como predestinado para lhe indicar o verdadeiro caminho da felicidade, iluminando as trevas da vida com os raios da sua inspiração e lavando o coração dos homens da fuligem dos baixos desejos com o suco dos seus nervos.
Nas noites amenas, ficava sentado à janela e ouvia atentamente o ruído abafado da luta pela vida que subia da cidade e se espalhava no céu alegre, cuja cortina de veludo, bordada a ramagens de ouro das estrelas, estava pensativamente lançada sobre a terra, esgotada pela nervosidade demente do dia que passara; apurava o ouvido e sacudia a cabeça melancolicamente, porque esse ruído era seco e não se ouvia nenhuma dessas notas suaves que acariciam o coração com a esperança dum futuro melhor.
Então pegava na pena e escrevia, soltando no papel o seu amor e a sua indignação, as suas censuras e os seus louvores, tudo o que lhe enchia o peito... Mas, de cada vez que relia o que tinha escrito, uma vez terminada a inspiração, uma profunda amargura apoderava-se-lhe da alma ainda pouco antes cheia do desejo apaixonado de criar a vida. O que estava ali escrito, no papel, não se parecia nada com o que lhe fervilhava no peito; em vez dos pensamentos vigorosos apareciam palavras frias e vulgares, ouvidas muitas vezes pelos homens, e em lugar de ideias novas apenas velhas frases enevoadas e alusões.
Então chorava e indignava-se, resmungava e recomeçava a escrever, rindo interiormente daquele que, pela primeira vez, chamou "doces tormentos" às dores da criação.
Assim viveu o meu poeta até ao dia em que se deu o acontecimento que vos vou contar.
Numa noite de lua, enquanto, sentado à janela, ávido de palavras novas, contemplava a cidade adormecida a seus pés e o céu que resplandecia, acima da cabeça, com os vivos raios das estrelas de trémulas cintilações, a um tempo alegres e pensativas, alguma coisa lhe passou como um relâmpago perante os olhos fatigados pela contemplação; transparente como uma sombra, inacessível como um sonho, passou de repente, e uma voz que só o coração dele acolhia, disse baixinho mas distintamente: "Ouve!"
Não se perturbou porque já lhe tinha acontecido ouvir vozes misteriosas; não se perturbou e pôs-se a ouvir com todo o seu ser:
- Somos as Musas, três de nós estão aqui e connosco vieram milhões dessas palavras de que tens necessidade... Eu sou a primeira das Musas. As minhas palavras são frias e belas como blocos de mármore; é com elas que se constróem as obras imortais que só os espíritos e corações eleitos podem apreciar. Sabe-lo bem, só corações puros e escolhidos têm acesso à plena inteligência do sublime, desse sublime que é sempre tão maravilhosamente triste. E é triste porque é solitário e consciente da sua impotência para tornar a vida mais amena e a tingir com as cores vivas e delicadas que fazem nascer a alegria.
"As minhas palavras são frias como os raios do Sol no Inverno; raramente os homens as utilizaram, mas, quando o fizeram, elas serviam para criar grandes obras. Os autores dessas obras já estão mortos e os monumentos que lhes foram erguidos desmoronar-se-ão em breve sob o insulto do tempo; mas tu vês a vida, conheces os homens e sabes que tudo se mantém igual ao tempo em que cantava o grande Wolfgang, e mesmo ao tempo anterior a ele. Devo lembrar-te isso dado que sou verídica e que para mim não há dor ou alegria, bem ou mal; sirvo a beleza e ela é a verdade suprema, a que não será destruída quer por séculos quer por milénios. Queres apossar-te das minhas palavras sublimes e aceitar-me por tua companhia?
- Para quê? - perguntou o meu poeta com tristeza.
- Para quê, quando tu e elas possuem tão pouca influência sobre a vida. Amo os homens e, nos meus sonhos, quero a felicidade de todos, quero que a vida seja tão bela, tão viva, como o rebentar fragoroso das vagas num dia claro, cheio de sol, e que seja igualmente leve e melodiosa. Quero ensinar os homens a desejar uma única felicidade: a de se respeitarem a si mesmos pela pureza e grandeza dos seus pensamentos e dos seus actos. Podes ajudar-me?
- A vida é igual a um rio, mas as suas nascentes são turvas porque jorram do seio da terra e é à superfície que lhe correm as águas. Queres purificar as fontes da vida? Transporta-as para os céus. Mas eu sirvo a beleza e sei que o mal é frequentemente mais belo do que o bem. E penso que se o bem fosse tão forte e tão espalhado como o mal, seria o mal o objecto dos teus desejos. Tudo o que abunda é vulgar e aborrecido. E o que o vence corrompe-se sempre e perece por orgulho, esgotado pela luta, empanzinado pela vitória. Olha para o Sol: é eternamente jovem e brilha com uma luz forte onde quer que os seus raios penetrem; para ele bem e mal não existem... É o que se chama ser objectivo, e nisso consiste a equidade mais elevada que nos é dado atingir sobre a Terra.
Mas a isto o meu poeta exclamou, indignado:
- Em tudo isso não há alma. Já se pensou bastante, o que nos falta é reaprender a sentir! Na vida não há sentimentos de uma só peça, como de resto nada há, geralmente, que seja de um só bloco. Tudo é quebrado e abanado pelos golpes possantes da inteligência, e o espírito humano, penetrante como uma agulha, profundo como uma serpente, já verteu demasiado veneno na taça da vida. Repara, não faltam na vida grandes espíritos, mas onde há - mostra-mas- grandes almas? E a sede de viver desaparece. Como recifes de coral no oceano tais ou tais homens emergem da vida, mas ela, fervilhando à volta deles, quebra
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contra a sua dureza os nadadores que aspiram a agarrar-se a qualquer coisa, Todos os homens desejam apenas uma coisa, a felicidade, mas procuram-na em sítios diferentes... É necessário abrir-lhes os olhos e mostrar-lhes a via da verdadeira felicidade.
- Bem, vou-me embora - disse a primeira Musa, soltando um riso glacial e sonoro como o ouro.
- Eis-me aqui, a segunda, ao teu serviço; acolher-me-ás? As minhas palavras são simples, leves, acariciadoras e tão belas como as dela. Eu tenho piedade. Reconforto. Por vezes as minhas palavras são agudas como agulhas de ouro, e quando mergulham no coração provocam nele o sofrimento da angústia. Suscitam as lágrimas e o riso feliz, e fazem pensar no que há de melhor na vida. Soam como a quente música das vagas marinhas na calma da noite! do Sul, cheia de sombras suaves que acariciam os olhos, cheia de sonhos que perturbam a alma deliciosamente. A luz apaziguadora e pensativa do luar, o murmúrio da folhagem, o canto dos pássaros, tudo isso é necessário à vida. Metamorfosearás em palavras o teu desgosto, a tua dor, todos os teus desejos.
- Mas os homens esqueceram a vocação de grandeza; levá-los-ás a recordar, despertarás neles a sede dos feitos elevados? - perguntou o meu poeta. - O teu lirismo lavará do coração dos homens a fuligem da desconfiança mútua? Retirará das suas almas endurecidas na luta pela vida a ferrugem do egoísmo?
- Sabes - disse a Musa-, eu enterneço e faço com que se sonhe em algo de melhor do que aquilo que há.
- Sonhar não é viver. Necessitamos altos feitos, proezas! Precisamos de palavras que soem como um sino a rebate, palavras que impulsionem tudo, e que, sob o choque, empurrem tudo para a frente. Que se tenha clara consciência dos erros e vergonha do passado. Que a aversão pelo presente seja uma dor inquieta, aguda, e a sede de futuro um tormento devorador.
- Não sabes o que queres. Desperta o amor, é o bastante - disse a Musa.
- Ah! Amar não quer dizer necessariamente ajudar! É pouca coisa amar e aliviar, o que é necessário é odiar e ser duro. Tudo consiste em pensar nos outros sem se esquecer a si mesmo, elevar sem se rebaixar.
- Sou eu quem te ajudará, eu! - disse a terceira Musa.
- As minhas palavras são como chicotadas, como espinhos. Para fazer avançar os homens não há como a violência. Crê em mim, eles compreendem melhor os ultrajes que as carícias; é assim que se treinam: ultrajando-se entre si e injuriando-se mutuamente... Mas eles têm a arte de se
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acostumarem a tudo e quem os ama não deve esquecer isso. Se se pretende impulsionar os homens é preciso ultrapassá-los em tudo. E é necessário ser frio como a neve e impassível como as pedras para lhes escapar e evitar que os seus gemidos nos emocionem. Do mesmo modo, é preciso não os deixar notar o amor que se lhes nutre uma vez que o considerariam como uma fraqueza e, fortalecidos com essa convicção, deixariam de nos temer.
- É terrível! - comentou o meu poeta. Era um homem de coração sensível.
- As coisas são assim. Como sabes, o mundo já ouviu uma vez, quando ainda estava na infância, pregar a bondade; continua a ouvir e, no entanto, mantém-se tal como estava na infância. Hesita, limita-se a hesitar, e não será até pior do que era ontem? Tentemos pois uma vez mais fazê-lo passar através das censuras ardentes e das picadelas irritantes da consciência. Tentemos, embora seja difícil, sermos mais fortes do que Jonathan Swift.
A Musa calou-se e o meu poeta ficou pensativo. Quase tinha compreendido o que era necessário ser para se decidir a instruir os homens, e a responsabilidade perante si próprio, que um tal papel implica, assustou-o. Lembrou-se de que não há culpados nem justos, mas apenas homens que aspiram a viver. Mergulhava cada vez mais profundamente no abismo da dúvida, pensando em tudo o que é preciso ter para ser vivo e justo, e a tudo o que é preciso dar à vida para ter o direito de dizer ao morrer: fui justo e no entanto agi. E enquanto meditava ouviu subitamente um murmúrio. E eis o que as palavras lhe segredavam:
- Suplicamos-te, a ti que és honesto e puro, não exerças pressões sobre nós. Não componhas connosco hinos aos ídolosle não enevoes connosco o ideal! Não nos tornes ambíguas como fazem tantos homefis por timidez, outros por cinismo e outros por baixeza de alma. É necessário conhecer o íntimo de cada um de nós e só então seremos como estrelas, como tochas nas trevas... E não faças de nós mau uso... Sobretudo isso, não nos utilizes mal.
O meu poeta ouvia e parecia-lhe que o coração lhe ia explodir de angústia.
Quando tudo se calou, ficou ainda muito tempo a escutar o silêncio. E tornou-se-lhe claro que, fizesse o que fizesse, nunca seria justo; que a responsabilidade que se assume perante si próprio dos erros cometidos para com os homens era demasiado pesada para ele; que nenhuma acção na vida se perdia sem deixar rastro; que os homens, pelo seu lado, não suportavam esses erros e que um ensinamento erróneo ou um mau conselho provocavam a infelicidade. E as infelicidades são tantas, na vida, que a vida inteira começou
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a parecer-se, sem equívoco, a uma infelicidade sem fim nem tréguas.
Então quebrou as penas e queimou o papel. Repito que quebrou as penas e queimou o papel. Depois morreu de angústia e de desespero, com a consciência da sua fraqueza, cheio de dor e de amor pelos homens. Mas na realidade morreu por não ser honesto à maneira dos homens.
Agora que contei tudo isto, devo confessar que nunca se passou nada de semelhante.
E se tal coisa ou algo de análogo se tivesse produzido, haveria então na vida menos teorias sem consistência,, censuras imerecidas, críticas confusas, e tudo o que hoje tanto abunda pelo facto de cada pessoa acreditar que, dada a sua capacidade de falar, pode ensinar e aconselhar, prescrever e censurar, e, baseando-se nessa convicção, sujar a vida. E a vida já não é assim tão limpa. Quanto aos que desejam limpá-la das suas velharias inúteis que comecem por limpar da alma toda a espécie de ambição pesosal, toda a dependência em relação ao tempo que l vacila e desaparece; os ideais são inabaláveis e eternos; tome cada pessoa consciência de si mesma e do caminho a seguir, e então, mas só então, poderá atrever-se a dizer a sua opinião. E esta deve ser curta, simples e ardente como o fogo.
Há na vida muitos professores, mas quantas são as pessoas que aprendem os ensinamentos, quanta a verdade?
Quem sabe onde está a verdade e em que consiste?
É preferível, vencendo o desejo apressado e nem sempre puro de ensinar os homens, morrer em silêncio do que acrescentar a mentira da vida e multiplicar os erros dos homens.
E eis tudo.
Publicado em 1893, no número 163 do jornal Voteski Vestnik.
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A VELHA IZERGUIL
Ouvi estes relatos perto de Akkerman, na Bessarábia, à beira-mar.
Uma noite, terminada a vindima quotidiana, o grupo de moldavos com quem eu trabalhava foi até à praia. A velha Izerguil e eu ficámos, deitados no chão, na sombra espessa das cepas, vendo em silêncio os vultos dos que iam para o lado do mar diluírem-se na névoa profunda da noite.
Caminhavam, cantavam, riam; os homens, morenos, com fartos bigodes pretos e caracóis espessos que lhes caíam para os ombros, com camisas russas e amplas bombachas cossacas; as mulheres e as raparigas alegres e vivas, bronzeadas como eles e de olhos azuis-escuros. Tinham os cabelos negros e sedosos desfeitos e o vento, morno e suave, brincava fazendo tilintar as moedas neles entrançadas. A brisa soprava numa onda larga e regular, mas às vezes parecia saltar por cima de um obstáculo invisível, lançava uma rajada mais forte e fazia ondular os cabelos das mulheres como crinas fantásticas por cima das cabeças. Isso dava-lhes um ar estranho e fabuloso. E à medida que se iam afastando, a noite e a imaginação tornavam-nas cada vez mais belas.
Alguém tocava violino; uma das raparigas cantava com uma voz suave de contralto e chegava até nós o som dos risos.
O ar estava impregnado com o cheiro áspero da maresia e das emanações gordurosas da terra abundantemente olhada pela chuva que caíra ao princípio da noite. Pelo
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céu erravam ainda farrapos de nuvens, sumptuosos, de contornos e de cores estranhas, aqui delicados como espirais de fumo cinzento e azul-escuro, além nítidos como blocos rochosos, negros, castanho-escuros ou foscos. Entre eles brilhavam, com uma luz suave, parcelas de céu azul, semeadas de pequenas manchas douradas: as estrelas, tudo aquilo, sons, perfumes, nuvens e homens, era estranhamente belo e triste e parecia o início de um conto maravilhoso. Dir-se-ia que tudo tinha detido o Seu crescimento e se deixava morrer; o ruído das vozes extinguia-se ao longe e transformava-se em suspiros tristes.
- Por que não foste com eles? - perguntou a velha Izerguil, apontando com o queixo para o lado da praia.
A idade tinha-a dobrado, os olhos, outrora negros, eram agora embaciados e lacrimejantes. A voz, seca, tinha sons estranhos, quebrados, como se falasse com os ossos.
- Não me apetece! - respondi.
- Huml... Vocês, os Russos, já nascem velhos. Todos! tristes como demónios... As nossas raparigas têm medo de ti... E no entanto és jovem e forte!
A Lua tinha-se levantado no céu. O seu enorme disco, cor de sangue, parecia ter saído das profundidades daquela estepe que tinha, ao longo dos séculos, devorado tanta carne humana e bebido tanto sangue que era decerto isso o que a tornara tão forte e generosa. As sombras rendilhadas da folhagem caíam em cima de nós, cobriam-nos como uma rede. Através da estepe, à nossa esquerda, passaram as sombras das nuvens impregnadas de esplendor azulado da Lua; tinham-se tornado mais transparentes e mais claras.
- Olha, ali vai Larra!
Olhei para o lado que a velha apontava com a mão trémula de dedos torcidos: lá ao fundo passavam sombras numerosas; uma delas, mais escura e mais densa que as outras, corria mais depressa e mais baixo que as irmãs, projectada por um farrapo de nuvem que vogava mais perto da terra e mais rapidamente.
- Não vejo ninguém! - disse eu.
- ÉS mais cego que uma velha como eu. Olha lá para baixo, lá vai ele, escuro, correndo através da estepe.
Olhei mais uma vez e novamente nada mais vi além daquela sombra.
- É uma sombra. Por que lhe dás o nome de Larra?
- Porque é ele. Sim, agora é como uma sombra, já há muito tempo. Vive há milhares de anos, o sol mirrou-lhe o corpo, o sangue e os ossos, transformou-os em pó que o vento dispersou. Eis o que Deus pode fazer dum homem para lhe castigar o orgulho.
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- Conta-me como as coisas se passaram - pedi eu, pressentindo um desses belos contos criados nas estepes!
Foi assim que ela me relatou o que segue:
- Desde essa época passaram milhares e milhares de anos. Para além do mar, muito longe, na direcção do sol nascente, alonga-se a região dum grande rio onde cada folha de árvore e cada folha de erva fornecem ao homem a sombra necessária para se proteger dum sol atroz. Nessa região a terra é extremamente generosa. Vivia ali uma tribo poderosa cujos homens apascentavam rebanhos, utilizavam na caça às feras a força e a coragem de que dispunham, banqueteavam-se depois da caça, cantavam canções e brincavam com as raparigas.
"Um dia, durante um banquete, uma delas, uma rapariga de cabelos pretos, suave como a noite, foi arrebatada por uma águia que descera do céu. As flechas que os homens dispararam recaíram no solo, lastimosamente. Então partiram em busca da jovem, mas não a encontraram. E depois esqueceram-na, como se esquece tanta coisa da terra.
A velha suspirou e calou-se. A voz estridente parecia o protesto dos séculos esquecidos que as sombras da recordação lhe encarnavam no peito. O mar acompanhava docemente o prólogo duma das antigas lendas que foram talvez criadas nas suas margens.
- Mas vinte anos depois ela regressou por si própria, ressequida, esgotada, e com ela vinha um jovem, belo e forte como ela tinha sido vinte anos antes. Quando lhe perguntaram onde tinha estado contou que a águia a tinha transportado para as montanhas e que, lá no alto, a tinha tornado sua mulher. Aquele era o seu filho, o pai já não existia; quando as forças lhe tinham começado a declinar tinha-se erguido uma última vez até ao alto do céu, recolhera as asas e deixara-se tombar sobre as cristas aguçadas da montanha entregando-se à morte.
"Todos olhavam o filho da águia com admiração e notavam que ele não era melhor do que eles; só os olhos eram frios e altivos como o do rei dos pássaros. Quando lhe falavam, respondia se lhe apetecia ou calava-se; e quando os velhos da tribo se aproximaram falou com eles de igual para igual. Eles ficaram chocados, crismaram-no "flecha desplumada de ponta romba", disseram-lhe que milhares de seus semelhantes e duas vezes mais idosos do que ele os respeitavam e se lhes submetiam. Mas ele olhava-os audaciosamente e respondeu que não havia homens como ele; que o mundo inteiro podia honrá-los mas que ele o não faria. E então eles zangaram-se realmente e disseram:
"- Não há lugar para ele no nosso meio. Que vá para onde lhe apetecer!"
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"Ele soltou uma gargalhada e foi para onde lhe apeteceu, para junto de uma bela rapariga que o olhava fixamente; foi ter com ela e tomou-a nos braços. Mas era a filha de um dos Velhos que o tinham repudiado. Embora ele fosse belo, ela afastou-o porque temia o pai. Afastou-o e quis ir embora; mas ele bateu-lhe e, quando ela estava no chão, pôs-lhe o pé no peito com uma tal violência que o sangue lhe jorrou para o céu através dos lábios; a rapariga soltou um suspiro, torceu-se como uma serpente e morreu. "Todos os que ali estavam ficaram petrificados de espanto: era a primeira vez que viam matar assim uma mulher. Mantiveram-se mudos durante muito tempo, olhando a rapariga que jazia no solo com os olhos abertos e a boca sangrenta, e, ao lado dela, o homem que se erguia sozinho contra todos, orgulhoso, sem baixar a cabeça e como que desafiando o castigo. Quando vieram a si apoderaram-se dele, amarraram-no e deixaram-no assim, considerando que era demasiado simples matá-lo imediatamente e que isso não os poderia satisfazer."
A noite crescia, tornava-se espessa e enchia-se de ruídos estranhos. As marmotas assobiavam tristemente na estepe; a estridulação cristalina dos grilos estremecia nas folhas das videiras a folhagem suspirava e murmurava, o disco da lua cheia, há pouco vermelho de sangue, empalidecia à medida que se afastava da Terra e a estepe inundava-se cada vez mais amplamente com o seu brilho azulado.
- Então os homens reuniram-se para imaginar um castigo digno do crime. Pensaram esquartejá-lo por meio dos cavalos, mas isso pareceu-lhes pouco; quiseram atravessar-lhe o corpo com uma flecha de cada um, mas puseram também essa solução de parte; propuseram-se queimá-lo mas o fumo da pira não os deixaria ver os tormentos que sofresse; passaram em revista várias penas mas não encontraram nenhuma que agradasse a todos. E a mãe mantinha-se de joelhos, diante deles, sem encontrar lágrimas ou palavras com que implorasse o perdão. Discutiram longamente e foi então que um velho sábio disse, após longa meditação:
"- Perguntemos-lhe a razão que o levou a fazer isto.
"Fizeram-lhe a pergunta. E ele disse:
"- Desamarrem-me! Não falarei enquanto estiver ligado!
"Depois de o terem feito, perguntou:
"- Que querem?
"Fê-lo no mesmo tom com que falaria a escravos.
"-Ouviste muito bem... - disse o sábio.
"- Por que razão vos explicaria os meus actos?
"- Para que os possamos compreender. Ouve, orgulhoso: de qualquer modo vais morrer, não é verdade? Deixa-
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-nos compreender o que fizeste. Nós vamos continuar a viver e é-nos útil aumentar os nossos conhecimentos.
"- Muito bem, falarei, embora eu próprio não esteja certo de compreender o que se passou. Matei-a, segundo me parece, porque me repeliu... E eu tinha necessidade dela.
"- Mas ela não era tua! - responderam-lhe eles.
"- E acaso vos servis apenas do que é vosso? Vejo que cada homem tem apenas de seu a sua palavra, os seus braços, as suas pernas... e reina sobre os animais, sobre as mulheres, sobre a terra... sei lá sobre que mais ainda.
"Responderam-lhe que de tudo o que toma o homem paga com alguma coisa de si mesmo: com a sua inteligência, a sua força, por vezes com a sua vida. E ele retorquiu que se queria manter inteiro.
"Falaram durante muito tempo e, finalmente, os Velhos
perceberam que o jovem se considerava o primeiro sobre
a Terra, e que não via nada nem ninguém fora de si mesmo.
Sentiram-se apavorados quando compreenderam a que
solidão ele se tinha condenado. Não possuía tribo, nem
mãe, nem rebanho, nem mulher, e não pretendia nada disso.
"Ao apreenderem essa verdade puseram-se a discutir o castigo. Mas desta vez não falaram durante muito tempo; o sábio deixou-os dar a sua opinião, depois tomou a palavra:
"- Parem! Há um castigo; um castigo terrível; não encontrareis outro semelhante num milhar de anos! O castigo está nele próprio. Soltem-no e deixem-no ir, livre. Esse é o seu castigo.
"Então passou-se algo de grandioso. O trovão reboou pelos céus, apesar de não haver nuvens. As forças celestes confirmavam assim a opinião do sábio. Todos se inclinaram e se separaram. E o jovem - que agora recebera o nome de Larra, que quer dizer banido, condenado - riu alto ao ver partir os homens que o tinham expulso, riu por ficar só, livre como o pai... Mas ele era um homem. Então pôs-se a viver sem lei como o pássaro. Vinha à tribo e roubava gado, raparigas, tudo aquilo de que tinha necessidade. Disparavam contra ele mas as flechas não podiam atravessar-lhe o corpo coberto pela protecção invisível do castigo supremo. Era astucioso, ávido, vigoroso, cruel e nunca defrontava os homens frente a frente. Só o viam de longe. Durante muito tempo manteve-se assim, solitário, rodando em torno dos homens, muito tempo, dezenas de anos. Mas um dia aproximou-se deles e quando se lançaram contra ele não fez um gesto para se defender.
"Então um dos homens adivinhou o que se passava e gritou:
"- Não lhe toquem! Ele quer morrer!
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"Todos se detiveram porque não queriam aligeirar a sorte daquele que lhes tinha feito mal, não desejavam matá-lo. Pararam e escarneceram-no. Ele tremia ao ouvir-lhes o riso e, com as mãos crispadas, procurava incessantemente alguma coisa no peito. Repentinamente pegou numa pedra e arremessou-a contra eles; evitaram essa e as que se lhe seguiram, mas não retribuíram, e quando, com um grito angustiado, ele tombou no solo, esgotado, afastaram-se um pouco e ficaram a observá-lo. Ele ergueu-se, apanhou um punhal que tinha caído na luta e tentou espetá-lo no peito. A arma quebrou-se como se tivesse chocado contra uma pedra. De novo se deixou tombar e bateu com a cabeça contra o solo durante muito tempo. Mas o solo amolecia debaixo dele e afundava-se com as pancadas.
"- Ele não pode morrer! - disseram os homens alegremente.
"Partiram, deixando-o só. Ficou deitado, com o rosto voltado para o céu, vendo planar nas alturas, como pequenos pontos negros, as águias poderosas. Havia nos olhos dele uma angústia tão grande que daria para envenenar todo o género humano. Desde aquele dia mantém-se solitário, à espera de morrer; anda ao acaso, de um lado para outro. Está agora como uma sombra e freará assim para a eternidade. Não compreende a linguagem dos homens, nem os actos deles, nada... Procura constantemente, vai e vem... Deixou de amar a vida e a morte não lhe sorri. Não tem lugar entre os homens... Vê como um homem foi castigado pelo seu orgulho!"
A velha suspirou, calou-se e deixou pender para o peito a cabeça que abanava de um modo estranho.
Olhei-a e pareceu-me que o sono se apoderava dela. Senti que me inspirava uma intensa piedade. Tinha conduzido o final do seu relato sob um tom exaltado, ameaçador, mas onde, no entanto, havia uma nota assustada e servil.
Na margem elevou-se uma canção, um canto estranho. Primeiro foi um contralto que entoou duas ou três notas, depois uma segunda voz retomou a canção desde o início, a primeira continuando a preceder a segunda... uma terceira, uma quarta, uma quinta voz entraram na canção pela mesma ordem. E subitamente a mesma letra foi retomada, sempre desde o princípio, por um coro de homens.
Cada voz de mulher soava perfeitamente distinta, dir-se-iam outros tantos regatos multicores correndo pelos penhascos, saltitando, murmurantes, vindo desaguar na vaga densa das vozes masculinas que se elevavam para elas com um movimento igual, para se nelas afogarem e se libertarem, abafá-las e erguerem-se de novo, uma após outra, puras e fortes, cada vez mais alto.
O ruído das vagas perdia-se para além das vozes...
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II
- Ouviste dizer que ainda se canta assim, em qualquer parte? - perguntou a velha Izerguil, erguendo a cabeça e sorrindo com a sua boca desdentada.
- Não, nunca!
- Nunca o dirão. Nós gostamos de cantar. Só podem cantar assim belos homens, homens que amem a vida. Nós amamos a vida. Repara, pensas acaso que não se fatigaram durante o dia os que cantam além? Trabalharam do nascer ao pôr do Sol, a Lua ergueu-se e agora eles cantam. Os que não sabem viver teriam ido dormir. Os que amam a vida, vês, cantam.
- Mas a saúde... - comecei eu.
- Há sempre saúde bastante para a vida. A saúde! Se tivesses dinheiro não o gastarias? A saúde vale como o ouro. Sabes o que eu fazia quando era nova? Tecia tapetes do nascer ao pôr do Sol sem praticamente me levantar. Era viva como um raio de sol e era forçada a manter-me sentada, imóvel como uma pedra. Ficava sentada durante tanto tempo que às vezes todos os meus ossos estalavam. E, quando vinha a noite, corria para casa daquele que eu amava para o abraçar. Isso durou três meses, tanto tempo quanto o amor; durante três meses passei em casa dele todas as minhas noites. E vê até que idade vivi, o sangue foi suficiente. Quantos homens amei! Quantos beijos dei, quantos me foram dados!
Olhei o rosto dela. Os olhos negros mantinham-se embaciados, a recordação não se avivara. O luar iluminava-lhe os lábios secos, gretados, o queixo pontiagudo com pêlos grisalhos e o nariz enrugado, recurvo como um bico de coruja. Em lugar das faces cavavam-se fossas negras; numa
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delas repousava uma mecha de cabelos acinzentados que lhe escapara do lenço vermelho que lhe envolvia a cabeça. A pele do rosto, do pescoço e das mãos estava toda sulcada de rugas, e a cada um dos seus movimentos parecia-me que aquela pele seca se ia rasgar, dilacerar, e diante de mim se ergueria um esqueleto nu com olhos apagados e negros. com a sua voz quebrada, recomeçou a contar:
- Vivia com a minha mãe perto de Falmi, mesmo nas margens do Byrlat; tinha quinze anos quando ele apareceu no nosso povoado. Era alto, flexível, alegre, com uns bigodes negros. Estava num barco e gritou-nos pelas janelas com uma voz bem sonora: - Eh, vocês têm vinho... e alguma coisa para comer? - Olhei pela janela, através dos ramos dos freixos: vi o rio azulado sob o clarão do luar, e ele, em pé, com uma camisa branca e um cinturão largo de pontas pendentes, um pé no barco o outro na margem. Viu-me e disse: - Caramba! Que beleza mora aqui!... E eu sem saber nada! - Como se já tivesse conhecido todas as belezas da região antes de mim. Dei-lhe vinho e carne de porco cozida... E quatro dias depois dava-me eu própria, toda inteira... Ele vinha, assobiava suavemente como uma marmota, e eu saltava da janela para o rio como um peixe... A caminho!... Era um pescador do Ptut, e, mais tarde, quando a minha mãe descobriu tudo e me bateu, ele tentou persuadir-me, com insistência, a partir com ele para Dobruja, e ainda para mais longe, para a foz do Danúbio, Mas já então não me agradava, ele limitava-se a cantar e a beijar-me, nada mais. Tinha-se tornado aborrecido. Nessa época passavam por ali, em grupo, os bandoleiros, e havia alguns muito agradáveis... Levavam uma rica vida! Uma rapariga esperava longamente o seu rapaz dos Cárpatos, já o imaginava na prisão ou morto algures numa rixa, quando ele de repente aparecia, sozinho ou com dois ou três camaradas, como se tivesse caído do céu. Trazia-lhe presentes valiosos: para eles era tudo barato. Oferecia banquetes em casa dela, mostrava sentir orgulho nela diante dos camaradas, e a rapariga apreciava isso. Pedi a uma companheira que tinha um desses bandoleiros que me deixasse vê-los. Como se chamava ela? Já me esqueci... Agora começo a esquecer tudo. Já passou muito tempo depois disso, tudo esquece. Ela apresentou-me a um deles. Simpático. Ruivo, completamente ruivo, tanto os bigodes como o cabelo ondulado. E era melancólico, às vezes galanteador, outras vezes rugia e batia-se como uma fera. Uma vez bateu-me na cara e eu saltei como um gato, agarrei-o pelo peito e mordi-o na face. Ficou com uma cova no sítio onde o mordi e gostava que o beijasse ali quando nos amávamos.
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- E o pescador - onde foi parar? - perguntei eu.
- O pescador? Bem, continuava lá... tinha acamaradado com os bandoleiros. A princípio repreendia-me e ameaçava-me, dizia que me atiraria à água, mas depois passou-lhe; ligou-se com eles e arranjou outra... Foram enforcados os dois juntos, o pescador e o bandoleiro. Fui assistir. Foi na Dobruja. No caminho do suplício o pescador estava pálido e chorava, mas o outro fumava o seu cachimbo. Caminhava à vontade e fumava, com as mãos nos bolsos, um bigode caído em cima do ombro, o outro pendente para o peito. Reparou em mim, tirou o cachimbo e gritou-me: "Adeus!"...Chorei-o durante um ano inteiro... Aquilo aconteceu-lhes quando pretendiam voltar para casa, para os Cárpatos. No dia da partida tinham sido convidados por um romeno, foi em casa dele que os apanharam. Só prenderam dois, mas mataram vários, os outros conseguiram fugir... De resto, o romeno também teve a sua conta, logo a seguir. Queimaram-lhe a quinta, o moinho e o trigo todo. Caiu na miséria.
- Foste tu quem fez isso? - perguntei eu, ao acaso.
- Eles tinham muitos amigos, eu não era a única... Os que eram os seus melhores amigos encarregavam-se do castigo.
Na praia a canção tinha cessado e, agora, só o rumor das vagas acompanhava a voz da velha. Esse ruído melancólico e tumultuoso era um magnnífico acompanhamento para o relato daquela vida agitada. A irradiação azul do luar dissolvia-se cada vez mais na noite cuja suavidade aumentava; os ruídos indecisos da vida atarefada dos seus habitantes invisíveis tornavam-se mais abafados, sob o domínio cada vez mais forte das vagas, porque o vento estava a levantar-se.
Depois disso ainda amei um turco. Estive no harém dele, em Escutári. Vivi lá uma semana e não estava mal... Mas aborrecia-me... Só mulheres, sempre mulheres... Havia oito... Todo o dia a comer, a dormir, a dizer disparates. Ou então zangavam-se umas com as outras, cacarejavam como galinhas. O turco já não era muito novo. Tinha os cabelos quase brancos, era muito digno, rico. Falava como um bispo... Tinha olhos negros, olhos firmes que nos olhavam a direito, na alma. Gostava de rezar. Eu tinha-o visto me Bucareste... Andava pelo mercado, de um lado para o outro, como um rei, e olhava com um ar importante, muito importante. Sorri-lhe. Nessa mesma noite fui raptada na rua e legada a casa dele. Ele vendia sândalo e óleo de palma e tinha vindo a Bucareste fazer compras. Perguntou-me se queria ir com ele para a Turquia e eu respondi que sim. Só disse "bom!" e eis-me a caminho. O turco era rico
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e tinha um filho, um rapaz moreno, flexível, com dezasseis anos. Foi com ele que fugi de casa do pai... Fui para a Bulgária, para Lom-Palanka. Lá, houve uma búlgara que me deu uma facada no peito por causa do noivo, ou do marido, já não me lembro bem.
Fiquei muito tempo doente, num convento. Um convento de mulheres. Fui tratada por uma rapariga polaca... o irmão dela, que também era monge, vinha visitá-la, o convento era perto de Artser-Palanka. Ele rastejava diante de mim como um verme... Quando me levantei parti com ele... para a Polónia.
- Espera aí!... E que aconteceu ao jovem turco?
- O garoto? Tinha morrido. De saudades ou de paixão, não percebi... Tinha mirrado como um arbusto ainda tenro sob o excesso de sol... Secou completamente... Lembro-me dele, deitado, já transparente e azulado como um pedaço de gelo: o amor continuava a arder-lhe no peito. Pedia-me que me inclinasse para ele e o beijasse... Eu amava-o e lembro-me que o beijava ardentemente. Depois ficou pior, praticamente não se mexia. Mantinha-se inerte e pedia-me que me deitasse a seu lado, para o aquecer, com a voz gemida de um mendigo que pede esmola. Eu deitava-me logo que o fazia ele inflamava-se todo. Um dia acordei, mas ele já estava frio... morto. Chorei-o. Quem sabe? Fui talvez eu quem o matou. Eu tinha nesse momento o dobro da idade dele. E era tão forte, tão ardente... Ele o que era? Um rapazinho!
Suspirou e - era a primeira vez que lhe via fazer aquele gesto - benzeu-se três vezes, murmurando algo com os lábios ressequidos.
- E então... tinhas partido para a Polónia...-lembrei-lhe.
- Sim... com aquele polaco. Era ridículo e sórdido. Quando precisava de mulher, apertava-se contra mim como um gato e a boca soltava-se num mel ardente, mas quando não me queria as palavras dele eram como chicotadas. Um dia seguíamos ao longo do rio e disse-me uma palavra que me feriu. Não pude mais, zanguei-me, comecei a ferver como piche. Agarrei-o - ele era muito pequeno -, ergui-o no ar, apertei-lhe as costelas com os braços até que ficou violáceo. Tomei balanço e atirei-o ao rio. Lá ficou a gritar; gritava duma maneira tão ridícula! Olhei-o cá de cima a debater-se na água e fui-me embora. Nunca mais o encontrei. Tive sorte: nunca encontrei segunda vez os homens que amei. São maus encontros, é exactamente como se encontrássemos os mortos.
A velha calou-se, recobrando fôlego. Imaginei os homens que ela ressuscitava. Ali estava o bandoleiro de longos
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bigodes e cabelo flamejante que seguia para a morte fumando calmamente o seu cachimbo. Tinha decerto olhos azuis e frios que pousavam em todas as coisas o mesmo olhar concentrado e firme. Ao lado dele o pescador do Prut, de bigodes negros, que chorava e não queria morrer; no rosto violáceo, a angústia que precede a morte velava-lhe os olhos alegres e os bigodes molhados de lágrimas pendiam tristemente nos cantos duma boca torcida. O velho turco de olhar imponente, sem dúvida fatalista e despótico, e, a seu lado, o filho, frágil flor pálida do Levante, envenenada com beijos. E ali estava o polaco vaidoso, galante e cruel, tagarela falso e frio. Não passavam de pálidas sombras e aquela que o beijara estava sentada a meu lado, viva mas mirrada pelo tempo, um corpo vazio de sangue, com um coração sem desejos, com olhos sem chamas, também ela quase uma sombra.
Recomeçou a contar:
- Na Polónia tive dificuldades. Lá vivem homens frios e mentirosos. Eu não lhes conhecia a língua de serpentes. Silvam permanentemente. Que silvam eles? Foi Deus que lhes deu aquela língua de serpentes porque são mentirosos. Eu ia sem saber para onde e via-os, então, reunirem-se para se revoltarem contra vocês, contra os Russos. Cheguei até Bokhnia, e nessa cidade vendi-me a um judeu. Não me tinha comprado para ele, mas para negociar comigo. Eu estava de acordo. Para viver é preciso saber fazer qualquer coisa. Eu não sabia fazer nada e teria de pagar com o meu corpo. Mas pensava que, se arranjasse um pouco de dinheiro, poderia voltar para a minha terra, no Byrlat, e quebraria os grilhões por mais fortes que fossem. Fiquei lá. Recebia a visita de ricos senhores que se banqueteavam em minha casa. Aquilo custava-lhes muito caro. Batiam-se por minha causa, arruinavam-se. Havia um que tentava possuir-me havia muito e um dia fez o seguinte: veio ter comigo e um criado seguia-o com um saco. O ricaço abriu o saco e voltou-o em cima da minha cabeça. As moedas de ouro caíam-me nos cabelos e eu sentia-me alegre a ouvi-las tilintar ao caírem no chão. Mas mesmo assim corri com ele. Tinha um aspecto grosseiro, malfeito, e uma barriga que parecia um almofadão. Era um porco pronto para a matança. Sim, pu-lo fora, apesar de ele me ter dito que tinha vendido todas as suas terras, casas e cavalos para me cobrir de ouro. Eu estava nessa altura apaixonada por um fidalgo muito digno, de rosto retalhado. Havia sido acutilado pelos sabres dos Turcos contra quem tinha combatido pouco antes, ao lado dos Gregos. Aquilo era um homem! Que lhe importavam os Gregos, visto que era polaco? Vou-te dizer: gostava das proezas. E quando um homem gosta das proezas,
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sabe sempre como as realizar e encontrará sempre lugar para isso. Na vida há sempre lugar para dar largas à intrepidez. E aqueles que não sabem realizá-las, são simplesmente pantomineiros e cobardes, ou então não compreendem a vida, pois se os homens compreendessem a vida todos quereriam deixar nela a sua sombra. E então a vida não devoraria os homens sem deixar rasto... Aquele era um valente! Estava pronto a ir ao fim do mundo para enfrentar fosse o que fosse. Certamente os vossos mataram-no no momento da revolta. E por que foram vocês bater nos Húngaros? Bem, deixemos isso...
Mandando-me calar, a velha Izerguil silenciou subitamente e mergulhou nos seus pensamentos.
- Também conheci um húngaro. Um dia saiu da minha casa, no Inverno, e só na Primavera, quando começou o degelo, o encontraram num campo com a cabeça atravessada por uma bala. Foi assim. Como vês, a peste não perde mais homens que o amor; se se fizessem as contas verias que é verdade. Onde é que eu ia? Ah, na Polónia! Joguei lá a minha última partida. Encontrei um nobre... Esse é que era belo! Como o Diabo! Eu já estava velha; teria os meus quarenta anos?... Talvez. Era orgulhoso e mimado pelas mulheres. Custou-me caro... sim. Queria-me tomar à primeira, mas não cedi. Nunca tinha sido escrava de ninguém. Já me tinha libertado do judeu, tinha-lhe dado muito dinheiro. Agora habitava em Cracóvia e tinha tudo, ouro, cavalos, criados... Ele vinha ver-me, endemoninhado de orgulho, e queria que eu me atirasse para os braços dele. Zangámo-nos... fiquei mais feia, recordo-me muito bem. As coisas arrastaram-se durante muito tempo, mas por fim atingi o que queria: ele suplicou-me de joelhos. Mas logo que fui dele, abandonou-me. Foi então que compreendi que estava velha. Aquilo não era nada agradável, absolutamente nada. Eu amava aquele demónio... e ele, quando me encontrava, ria. Era vil. Zombava de mim com os outros... eu sabia-o. Tenho de confessar que era bastante amargo, mas ele estava ali, perto e, pelo menos, eu podia ter o prazer de o ver. Quando partiu para se bater contra vocês, senti-me tão mal! Lutava contra mim mesma, mas não me conseguia dominar. Decidi partir, segui-lo. Ele estava perto de Varsóvia, na floresta.
"Quando cheguei soube que tinham sido derrotados, e que estava numa aldeia perto, prisioneiro.
"Quer dizer - pensei eu - nunca mais o verei. Mas queria vê-lo e esforcei-me para o conseguir... Disfarcei-me de mendiga, manca, e pus-me a caminho, com o rosto vendado, para a aldeia onde ele estava. Por toda a parte só havia soldados e cossacos... Custou-me caro chegar lá.
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Soube onde estavam os polacos e vi que era muito difícil chegar até eles. No entanto, era necessário. À noite deslizei até ao lugar; rastejei num jardim, entre os arbustos, e que vejo: a sentinela, em pé, no meu caminho... Já os ouvia, os polacos a cantar e a falar alto. Entoavam um cântico à Mãe de Deus. E ele cantava no meio deles... o meu Arkadek. Lembrei-me amargamente que dantes rastejavam para mim e agora chegara a minha vez de rastejar como uma cobra à procura dum homem, e talvez também a caminho da morte. Ali estava a sentinela que apurava o ouvido e se inclinava para a frente. Afinal que arriscava eu? Levantei-me e caminhei para ela. Não tinha faca, tinha apenas as mãos e a língua. Lamentei não ter trazido uma faca. Disse-lhe que esperasse, mas já ele tinha apoiado a baioneta na minha garganta; só tive tempo de murmurar: - Não espetes, espera, ouve-me se tens uma alma. Não te posso dar nada, mas suplico-te... - Ele baixou a espingarda e disse-me em voz baixa: - Vai-te embora, mulher; vai-te embora! Que queres daqui? - Eu disse-lhe que o meu filho estava ali preso.
- Tenta compreender, soldado, tu também és filho de alguém, não é verdade? Deixa-me vê-lo, talvez ele morra em breve... e talvez tu morras amanhã e a tua mãe chorará por ti? E será duro morreres sem ter revisto a tua mãe. Também para o meu filho será um mau bocado. Tem pena de ti e dele, e de mim que sou a mãe...
"Falei-lhe durante muito tempo. A chuva caía e molhava-nos. O vento uivava, rugia, açoitava-me ora o peito ora as costas. Eu estava ali e oscilava diante daquele soldado de pedra que me respondia sempre: "Não." De cada vez que eu lhe ouvia aquela fria palavra mais me inflamava o desejo de rever o meu querido Arkadek. Falava e media o soldado com o olhar. Era pequeno, seco e tossia permanentemente. Deixei-me cair de joelhos, abracei-lhe as pernas, continuando a pedir ardentemente, e atirei-o ao chão. Caiu na lama, voltei-lhe rapidamente o rosto para a terra e mergulhei-lhe a cabeça numa poça para o impedir de gritar. Não gritava, debatia-se apenas, tentando fazer-me sair de cima dele. Eu segurava-lhe a cabeça com as duas mãos mergulhando-o na lama cada vez mais profundamente, até que ele abafou... Então precipitei-me para o barracão onde os polacos cantavam e chamei: - Arkadek! - Murmurava o nome dele nas fendas das paredes. Quando me ouviram deixaram de cantar: os polacos adivinham essas coisas. Via-lhes os olhos em frente dos meus. - Podes sair daí?
- Posso, pelo soalho - disse ele. - Então, anda lá. E assim saíram dali quatro: três e o meu Arkadek que me perguntou onde estava a sentinela. - Está ali, no chão!
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- Saímos devagar, curvados, sob a chuva, enquanto o vento uivava. Apanhámo-nos fora da aldeia e caminhámos durante muito tempo, em silêncio, pela floresta, íamos depressa;! Arkadek levava-me pela mão, a mão dele estava quente e trémula. Oh, sentia-me tão bem com ele que nem falava. Foram os últimos minutos, os melhores minutos da minha vida ardente. Entretanto, tínhamos desembocado num prado e parámos. Todos me agradeceram. Oh, nunca mais acabavam de me contar não sei o quê. Ouvia-os e olhava o meu fidalgo. Que ia ele fazer de mim? E então tomou-me nos braços e disse-me com um ar grave... Já não me lembro o que disse, mas tudo se resumia no seguinte: daqui em diante, reconhecido por lhe ter conseguido a evasão, amar-me-ia. Ajoelhou diante de mim, sorridente, e chamou-me "Minha rainha!" Estás a ver o mentiroso que ele era. Dei-lhe um pontapé e tê-lo-ia esbofeteado se ele não tivesse dado um salto para trás. Ficou diante de mim, ameaçador e pálido. Os outros três mantinham-se ali, pouco acolhedores, calados. Olhei-os... E de repente senti invadir-me uma enorme lassidão, uma preguiça incomparável; disse-lhes: "Vão-se embora!" E eles, os patifes, perguntaram-me: "Voltas lá, para lhes mostrar o nosso caminho?" Estás a ver a baixeza deles? Mas foram embora, mesmo assim e eu. parti também. No dia seguinte fui apanhada pelos vossos, mas libertada a seguir. Comecei a pensar que era tempo de arranjar um ninho, que já tinha vivido tempo de mais como um cuco. Começava a engordar, as asas tinham perdido força e as penas perdido o brilho... Era tempo, não havia dúvida. Parti para a Galícia, e de lá para a Dobruja. Faz agora perto de trinta anos que moro aqui. Tive um marido, um moldavo, morreu há um ano. Vivo sozinha; sozinha não, com eles.
Fez um gesto em direcção ao mar. Para lá tudo estava calmo. Por vezes nascia um ruído rápido e enganador que morria logo a seguir.
- Gostam de mim. Conto-lhes uma porção de histórias. São todos ainda muito novos... Sinto-me bem com eles. Fazem-me lembrar como eu era, dantes. Mas no meu tempo havia no homem muito mais força e paixão, a vida também era mais alegre e melhor. Não há dúvida.
Calou-se. Eu estava triste ao lado dela. Ela sonhava, abanava a cabeça e murmurava baixinho... talvez rezasse.
Do mar subia uma nuvem, negra, pesada, de contornos severos, semelhante a uma crista de montanha. Avançava rastejando pela estepe. Do cume destacavam-se farrapos que a precediam e apagavam as estrelas uma após outra. O mar bramia. Perto de nós, nos vinhedos, ouvia-se o ruído de beijos e suspiros. Na profundidade da estepe uivava um
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cão... O ar irritava os nervos e as narinas, carregado de um perfume estranho. As nuvens atiravam para a terra sombras densas que rastejavam, rastejavam, desapareciam, reapareciam. No lugar da Lua apenas se mantinha uma mancha baça, cor de opala; de vez em quando um pedaço de nuvem azulada escondia-se completamente. E no horizonte da estepe, agora negra e assustadora como se se dissimulasse ou escondesse um segredo, acendiam-se minúsculas luzes azuis. Ora aqui, ora ali, apareciam durante uma fracção de segundo e extinguiam-se, como se alguns homens esparsos pela imensidão da estepe procurassem qualquer coisa, acendessem fósforos imediatamente apagados pelo vento. Eram estranhas línguas de fogo, azuis, que faziam pensar em qualquer coisa de fabuloso.
- Estás a ver as fagulhas? - perguntou a velha Izerguil.
- As azuladas? - disse eu, apontando para a estepe.
- Azuladas? Sim, é isso... Quer dizer que continuam a voar. Eu já não as vejo. Já não posso ver muita coisa.
- De onde vêm elas? - perguntei.
Eu já conhecia relatos sobre a origem daqueles fogos-fátuos, mas queria ouvir o conto que a velha Izerguil faria sobre aquilo.
- Aquelas fagulhas vêm do coração ardente de Danko. Houve uma vez um coração que um dia pegou fogo. É dele que saltam fagulhas. Vou-te contar essa história. É uma velha lenda. Mais uma velha coisa; quantos tesouros havia nos tempos antigos, estás a ver?... E agora, nada, nem acções, nem homens, nem contos, como nesse tempo. Porquê? Responde, se és capaz. Não há resposta. Sabes lá? Que sabem vocês todos, rapazes novos? Eh, eh! Se olharem bem para o passado verão que se encontra lá resposta para todos os enigmas... Mas vocês não olham e é por isso que não sabem viver. Achas que não vejo a vida? Vejo tudo, embora os meus olhos sejam maus! E vejo que os homens não vivem, passam o seu tempo a prepararem-se para agir, sem realmente agirem nunca; e gastam nisso toda a sua vida. Quando se roubaram a si próprios, esbanjando o tempo, põem-se a choramingar sobre o destino. Mas o que é o destino? Cada um é o seu próprio destino! Vejo toda a espécie de pessoas, mas não vejo pessoas fortes. Onde estão? E os belos homens são cada vez mais raros.
A velha pôs-se a reflectir sobre aquele tema, para onde iam os homens fortes e belos e, cismando, examinava a estepe sombria como que para obter uma resposta.
Eu esperava a história que ela contaria e calava-me com receio de que uma pergunta minha lhe desviasse novamente a atenção.
E então ela começou.
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Dantes viviam na terra homens cujos acampamentos eram cercados, por três lados, por florestas impenetráveis, abrindo o quarto lado para a estepe. Eram homens alegres, fortes e audaciosos. Mas um dia chegaram momentos difíceis: apareceram tribos, vindas não se sabe de onde, que expulsaram os anteriores para o fundo das florestas. Ali reinavam os pântanos e as trevas, a floresta era tão velha e os ramos tão entrelaçados que não deixavam ver o céu; os raios do sol quase não conseguiam atravessar a folhagem espessa. Mas quando caíam na água dos pântanos, estes exalavam um tal fedor que os homens morriam uns atrás dos outros. As mulheres e as crianças começaram a chorar e os pais começaram a cismar e deixaram-se invadir pela tristeza. Era preciso sair da floresta e não havia, para tal, senão dois caminhos: voltar para trás, e lá encontravam-se inimigos fortes e de maus instintos" ou seguir em frente, o caminho onde se erguiam árvores gigantescas cujos ramos poderosos se entrelaçavam e cujas raízes penetravam profundamente na vasa pegajosa dos pântanos. As árvores de pedra erguiam-se, de dia, silenciosas e imóveis na penumbra cinzenta, e à noite cercavam os homens ainda mais de perto quando se acendiam as fogueiras do acampamento. E constantemente, quer de noite quer de dia, havia em redor dos homens um anel de trevas sólidas que parecia estar prestes a esmagá-los. Estavam habituados à imensidão das estepes. E ainda era mais terrível quando o vento chicoteava as frondes e toda a floresta uivava surdamente como se os ameaçasse e lhes entoasse um canto fúnebre. Eram homens fortes e poder-se-iam bater até à morte com os que anteriormente os tinham vencido, mas não deviam morrer nos
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combates porque tinham tradições e, se desaparecessem todos, elas desapareceriam com eles. Por isso se mantinham e cismavam, nas longas noites, sob o ruído abafado da floresta, no meio do fedor envenenado do pântano. Mantinham-se ali e as sombras das fogueiras dançavam à volta deles uma ronda muda; tinha-se a impressão de que não eram as sombras que dançavam, mas sim os espíritos malignos da floresta e do pântano que triunfavam. Os homens continuavam a pensar, mas nada esgota tanto o corpo e a alma dos homens como os pensamentos na ansiedade; nada, nem o trabalho nem as mulheres. À força de pensar os homens enfraqueceram. O terror apoderou-se deles, minou-lhes os braços sólidos, as mulheres deram largas ao medo chorando sobre os corpos dos que tinham morrido das emanações fétidas e sobre a sorte dos vivos agrilhoados pelo terror; começaram a ouvir-se na floresta palavras de covardia, de início tímidas e abafadas, depois num tom cada vez mais alto. Já se sentiam prontos a ir ter com o inimigo levando-lhe em oferenda a sua liberdade, assustados pela morte já ninguém temia a vida de escravo... Foi então que apareceu Danko e, sozinho, os salvou a todos.
Era fácil de perceber que a velha contava frequentemente a história do coração ardente de Danko. A fala era cantante e a voz, rangente e abafada, evocava o ruído da floresta onde, com o ar fétido e envenenado do pântano, morriam homens infelizes e assustados. - Danko era um deles, um belo jovem. Os homens belos são sempre audaciosos. Ele disse aos camaradas:
- com o pensamento não se afastam as pedras do caminho. Quem nada arrisca, nada obtém. Para que serve gastarmos as nossas forças a gemer e a cismar? Entraremos na floresta de pé e atravessá-la-emos, porque ela tem um fim, tudo no mundo tem um fim. Caminhemos! Para a frente!
"Olharam-no e viram que era o melhor de todos, nos olhos dele brilhava a força e a chama inextinguível.
"- Conduz-nos, então! - disseram eles.
"Foi desse modo que tomou o comando.
A velha calou-se durante um momento e olhou para a estepe onde as trevas se tornavam cada vez mais espessas. As pequenas fagulhas do coração de Danko cintilavam ao longe e pareciam aéreas flores azuis abertas por um instante.
"Danko traçou o caminho. Seguiram-no de comum acordo; acreditavam nele. O percurso era muito difícil. Estava escuro, a cada passo o pântano abria a goela ávida e pútrida que engolia os homens, e as árvores barravam-lhes o caminho com a sua poderosa muralha, Os ramos do arvoredo entrelaçavam-se como serpentes, as raízes tinham avassalado tudo e cada passo custava imenso suor e sangue.
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Caminharam durante muito tempo. A floresta era cada vez mais espessa, a energia deles cada vez mais escassa. Então começaram a resmungar contra Danko que tinha cometido o erro, tão jovem e inexperiente como era, de os conduzir sabia-se lá por onde. Ele, porém, caminhava na frente, sereno e audaz.
"Ora um dia a tempestade abateu-se sobre a floresta. O arvoredo soltou um murmúrio abafado e assustador. A escuridão foi tal que se supôs que as noites se tinham reunido subitamente, as noites todas desde que a floresta nascera. Os homens, minúsculos, caminhavam entre as grandes árvores no meio do ribombar ameaçador dos trovões; caminhavam e os troncos gigantescos balouçavam-se, rangiam e uivavam canções irritadas, e os relâmpagos que passavam rapidamente por cima deles iluminavam por um momento a floresta com uma gélida chama azul, desaparecendo tão depressa como tinham surgido, deixando-os apavorados. As árvores, iluminadas pela chama fria dos relâmpagos, pareciam vivas, pareciam estender em torno dos homens que se evadiam das trevas os seus longos braços retorcidos, entrançando assim uma rede cerrada para tentar deter os viajantes. Através das sombras das ramagens apercebiam algo de assustador, de sombrio e gélido. O caminho difícil levava os homens a perder a coragem. Mas tinham vergonha de confessar a sua impotência e então, no seu furor e na sua cólera, atiraram-se a Danko, voltaram-se contra o homem que marchava na frente deles. Acusaram-no de não os saber dirigir. Isso, muito simplesmente.
"Pararam e, sob o rumor triunfante da floresta, entre as trevas trémulas, fatigados e cheios de ódio, puseram-se a julgar Danko.
"-ÉS um falhado e um homem nocivo! - disseram-lhe.
- Arrastaste-nos atrás de ti, esgotaste as nossas forças e por isso terás de morrer.
"- Vocês disseram-me que os conduzisse, e eu fi-lo!
- gritou Danko, enfrentando-os. Possuo a coragem de conduzir e essa é a razão por que aceitei a missão. E vocês? Que fizeram antes para se ajudarem a si mesmos? Limitaram-se a caminhar e não souberam guardar forças para um caminho mais longo. Limitaram-se a seguir ao acaso como um rebanho de carneiros.
"Mas estas palavras exasperaram-nos ainda mais.
"- Morrerás! Morrerás! - rugiam eles.
"A floresta estrondeava, acompanhando-lhes os gritos, e os relâmpagos rasgavam as trevas em farrapos. Danko olhava para aqueles por quem tinha sofrido e via que eram como feras. Eram numerosos à sua volta, mas não havia nos rostos deles nenhuma nobreza e não podia esperar
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compaixão. Sentiu ferver dentro de si a indignação, mas a sua própria piedade apaziguou-o. Amava os homens e pensava que, sem ele, talvez perecessem. O coração inflamou-se-lhe com o desejo de os salvar, de os conduzir a um caminho fácil, e nos olhos cintilaram-lhe os raios dessa poderosa chama. Pensaram que ele estava furioso, que era a raiva que lhe dava ao olhar um tal brilho, e ficavam à espreita, como lobos, esperando vê-lo lutar; cercaram-no mais de perto para que fosse mais fácil apanhá-lo e matá-lo. Mas ele já lhes tinha apreendido o pensamento e o coração ardeu como uma chama ainda mais clara porque um tal pensamento enchia-o de tristeza.
"A floresta continuava a cantar a sua lúgubre canção; trovejava e chovia em bátegas.
"-Que posso fazer pelos homens? - gritou Danko, com uma voz mais alta que a da tempestade.
"Subitamente, arrancou o coração do peito, com as mãos, erguendo-o muito alto, acima da cabeça.
"O coração ardia com uma chama mais clara que a do Sol, e toda a floresta se calou, iluminada por aquela tocha de amor; as trevas dispersaram-se diante da luz e foram cair no fundo da floresta, na goela pútrida do pântano. Os homens, espantados, ficaram como se fossem de pedra.
"- Para a frente! - gritou Danko, dando o exemplo, começando a caminhar com o coração ardente, bem alto, a iluminar a vereda dos homens.
"Lançaram-se atrás dele, fascinados. Então a floresta recomeçou a sussurrar, balouçando as ramarias altas, admirada, mas com a voz abafada pelo pisar firme dos homens em marcha. Corriam, rápidos e audazes, atraídos pelo espectáculo maravilhoso do coração ardente. Alguns ainda morriam, mas faziam-no sem lamentos, sem lágrimas. Danko seguia sempre na vanguarda, o coração continuava a arder, a arder!
"E de súbito a floresta afastou-se diante dele; afastou-se e deixou-se ficar para trás, opaca e muda; Danko e os seus homens mergulhavam repentinamente num mar de sol e de ar puro lavado pela chuva. A tempestade ficava para trás, por cima da floresta, mas aqui o sol resplandecia, a estepe respirava, a erva brilhava sob as pérolas da chuva, o rio reflectia como ouro... Era ao crepúsculo e, sob os raios do poente, o rio parecia vermelho como o sangue que tinha jorrado como um regato ardente do peito dilacerado de Danko.
"Este, orgulhoso e altivo, olhou para diante de si, para a imensidade da estepe, lançou um olhar alegre para a terra livre e soltou uma gargalhada satisfeita. Depois tombou... morto.
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"Mas os homens, alegres e cheios de esperança, não notaram a morte dele e não viram que ao lado do cadáver o coração ainda ardia. Só um deles, mais prudente, se apercebeu disso e, temendo uma infelicidade, pousou o pé naquele coração altivo que soltou um feixe de fagulhas, extinguindo-se.
"É daí que vêm as fagulhas azuis que aparecem na estepe e antecedem a tempestade."
Agora que a velha tinha acabado o seu belo conto, um silêncio de assombro dominava a estepe. Dir-se-ia que esta se admirava da força do corajoso Danko, que tinha incendiado o coração a favor dos homens e morrido sem pedir recompensa. A velha cochilava. Olhei-a e pensei: quantos contos e recordações não retém a memória dela? E pensei no grande coração ardente de Danko e na imaginação dos homens que criaram tantas lendas belas e fortes.
Uma rajada de vento levantou os andrajos mostrando o peito seco da velha Izerguil que adormecia cada vez mais profundamente. Cobri-lhe o velho corpo e deitei-me no chão, ao lado dela. A estepe estava calma e escura. No céu as nuvens deslizavam, lentas e monótonas... O mar trovejava tristemente, com um som abafado.
Publicado em 1895, nos números 80, 86 e 89 da Samarsjema Gazeta. Escrito no Outono de 1894, conforme atesta uma carta de V. Korolenko a M. Sablin.
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TCHELKACH
O céu azul da região do Meio-Dia, escurecido pela poeira, está baço; o Sol ardente contempla o mar glauco como que através dum fino véu cinzento. Mal consegue reflectir-se na água fendida pelos remos, pelas hélices dos vapores, pelas quilhas agudas dos faluchos turcos e de outros barcos que percorrem o estreito porto em todos os sentidos. As vagas vindas do largo, encerradas no granito, esmagadas pelas cargas enormes que lhes deslizam em cima das cristas, quebram-se contra os costados dos navios, contra a margem, rasgam-se e mugem, cobertas de espuma e sujas com restos e destroços de toda a espécie.
O ruído das correntes das âncoras, o rugido das ligações dos vagões transportando as cargas, o uivo metálico das placas de zinco que se vêm esmagar no solo, o ruído abafado da madeira, o tilintar das telegas de aluguer, os apitos dos vapores, ora agudos e estridentes, ora graves e abafados, os gritos dos estivadores, dos marinheiros e dos funcionários da Alfândega, todos esses ruídos se fundem numa ensurdecedora música do trabalho quotidiano que, balanceada tumultuosamente, flutua, baixo, no céu por cima do porto, enquanto sobem constantemente, para se lhe juntarem, vindas da terra, novas vagas de sons, agudos e trovejantes, que rasgam o ar poeirento e tórrido.
O granito, o ferro, a madeira, o pavimento empedrado do porto, os barcos e os homens, tudo respira os ruídos poderosos dum hino apaixonado a Mercúrio. Mas as vozes dos homens, que mal se distinguem, são frágeis e ridículas. E os próprios homens que originam todos aqueles ruídos são ridículos e lamentáveis: as silhuetas poeirentas, esfarrapadas,
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ágeis, curvadas sob o peso das mercadorias que lhes repousam nos ombros, mexem-se dum lado para outro no meio de nuvens de poeira, num oceano de calor e de barulho; nada são comparados aos colossos de ferro, aos amontoados de mercadorias, aos vagões trovejantes que os cercam e a tudo o que eles criaram. A sua própria criação escravizou-os e despersonalizou-os.
Os pesados e gigantescos navios a vapor, sob pressão, apitam, cospem, suspiram profundamente, e, em cada som que emitem, parece perceber-se uma nota irónica de desprezo em relação às silhuetas poeirentas, cor de cinza, que rastejam pelas pontes e enchem os porões profundos com o produto do seu labor de escravos. São risíveis até às lágrimas essas longas filas de estivadores que transportam aos ombros milhares de quintais de trigo para os ventres de ferro dos navios a fim de ganhar alguns quilos desse mesmo trigo para o seu próprio ventre. De um lado, homens andrajosos, cheios de suor, embrutecidos de fadiga, de ruído e de calor, e do outro as máquinas potentes que eles criaram brilhando ao sol, as máquinas que, ao fim e ao cabo, foram postas em movimento não pelo vapor mas pelos músculos e sangue dos seus criadores; não vêem neste contraste todo um poema de ironia cruel?
O barulho oprimia, a poeira, irritando as narinas, cegava os olhos, o calor cozia o corpo e esgotava-o; tudo ep redor parecia tenso, impaciente, pronto a rebentar numa catástrofe grandiosa, numa explosão após a qual se respiraria livre e facilmente numa atmosfera refrescada: a calma reinaria na terra, o barulho empoeirado, que conduzia a um estado de furor sombrio, desapareceria, e então na cidade, no mar, no céu, tudo seria calmo, claro e feliz.
Doze pancadas ritmadas e sonoras soaram na sineta. Quando a última vibração do cobre se extinguiu, a música selvagem do trabalho já soava com mais amenidade. Um minuto depois transformou-se num murmúrio abafado e descontente. As vozes dos homens e o barulho do mar eram agora mais distintos. Estava-se na hora do almoço.
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Quando os estivadores abandonaram o trabalho e se espalharam em grupos ruidosos ao longo do porto para comprarem comida aos mercadores, quando se sentaram nos seus lugares, no solo empedrado, nos cantos onde o sol não chegava, apareceu por ali Gricha Tchelkach, velho vadio bem conhecido dos frequentadores do porto, ébrio inveterado e latirão hábil e audacioso. Pé descalço, calças velhas de bombazina coçada, sem boné, camisa de chita, suja, com o colarinho rasgado deixando-lhe a descoberto os ossos secos e angulosos que lhe esticavam a pele morena. O cabelo flocado, com madeixas negras e grisalhas, e o rosto enrugado, pontiagudo e ávido, mostrava que acabava de acordar. Num dos bigodes amarelados havia ainda uma palha, outra agarrava-se-lhe à face esquerda barbeada e, atrás da orelha, tinha posto um pequeno ramo de tília recém-cortado. comprido, magro, levemente curvado, caminhava lentamente lançando à sua volta olhares atentos, movendo o nariz curvo de ave de rapina; com os olhos frios, cor de cinza, a brilharem, procurava alguém no meio dos estivadores. Os bigodes felinos, espessos e compridos, tremiam como os de um gato e as mãos, atrás das costas, esfregavam-se uma na outra, enlaçando nervosamente os dedos torcidos e longos. Mesmo ali, entre centenas de vagabundos, tão típicos como ele, atraía imediatamente a atenção pela sua semelhança com o açor da estepe, a sua magreza de rapinante e esse passo seguro, ritmado e aparentemente tranquilo mas interiormente vigilante e atento como o voo da ave de rapina que fazia lembrar.
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Quando chegou ao lado dum grupo de vagabundos instalados à sombra dum amontoado de cestos de carvão, um deles levantou-se e foi ter com Tchelkach; era um rapaz entroncado, com a cara estúpida coberta de manchas vermelhas e com o pescoço esfolado, que acabava decerto de apanhar uma tareia. Caminhou ao lado de Tchelkach, falando em voz baixa:
- Os tipos da Frota perderam duas peças de tecido... Estão a fazer um inquérito.
- E então? - perguntou calmamente Tchelkach, medindo-o com os olhos.
- Então como? Andam a investigar, parece-me. Mais nada!
- E perguntaram por mim, la, para ajudar ao inquérito? E Tchelkach, com um sorriso, olhou para o lado dos
armazéns da Frota Voluntária.
- Vai para o Diabo!
O camarada voltou para trás.
- Eh! Espera! Quem te pôs assim? Caramba, como te puseram o focinho!... Tens visto por aí o Michka?
- Há muito tempo que o não vejo! - respondeu ele, regressando para junto dos camaradas.
Tchelkach prosseguiu o seu caminho, acolhido por todos como um velho conhecido. Mas ele, normalmente alegre e mordaz, sentia-se hoje manifestamente mal disposto e respondia às interrogações com um tom breve e cortante.
Por detrás de um monte de mercadoria surgiu um vigilante da Alfândega, fardado de verde-escuro, poeirento, militarmente rígido. Barrou o caminho a Tchelkach, plantando-se diante dele numa pose provocante, apertando com a mão esquerda o cabo do punhal e tentando agarrar o homem com a direita.
- Alto aí! Onde vais?
Tchelkach recuou um passo, levantou os olhos para o outro e soltou um riso seco.
O rosto avermelhado, ao mesmo tempo simpático e manhoso, tentava aparentar um aspecto terrível, inchava, arredondava, tornava-se púrpura, erguia as sobrancelhas, rolava os olhos e era, no conjunto, muito ridículo.
- Já te disseram para não voltares ao porto, senão que te quebrariam as costelas. É esse o caso que tu fazes? Já aqui andas outra vez? - gritou o guarda com voz ameaçadora.
- bom dia, Sèmionitch! Há muito tempo que não nos víamos! - respondeu Tchelkach tranquilamente, estendendo-lhe a mão.
- O meu prazer seria não te ver há um século! Desaparece!
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Mas, no entanto, apertou a mão que se lhe estendia.
- Diz-me uma coisa - prosseguiu Tchelkach sem largar a mão do outro, apertada nos seus dedos torcidos, e sacudindo-a familiarmente-, não viste o Michka?
- Quem diabo é esse Michka? Não conheço nenhum Michka. Vai-te embora, meu velho, e depressa, antes que o chefe do armazém te veja...
- Aquele ruivo com quem eu trabalhava na última vez, no "Kostroma"! - insistiu Tchelkach.
- Era melhor dizeres: aquele com quem roubava. Levaram-no para o hospital. Esse teu Michka ficou com o pé esmagado debaixo de um pedaço de ferro. Vai-te embora, meu velho, enquanto te pedem por favor. Vai-te embora, senão terei de te prender.
- Ah! Ah! Estás a ver como afinal conhecias o Michka! E dizias que não! Que mania é essa de te fazeres de mau, Sèmionitch?
- Basta! Não me chateies e desinfeta a zona.
O guarda começava a zangar-se e, lançando olhares para ambos os lados, tentava arrancar a mão ao forte aperto de Tchelkach. Este olhava-o calmamente, por baixo das sobrancelhas espessas, e, sem lhe largar a mão, continuava a falar:
- Não me apresses. Quero falar contigo à minha vontade e depois irei. Diz-me como vão as coisas lá em tua casa: a tua mulher e os teus garotos passam bem? - com os olhos brilhantes acrescentou, mostrando os dentes num sorriso irónico: - Tenho vontade de passar por lá mas nunca tenho tempo, sou obrigado a ir beber...
- Está bem, está bem, acaba com isso. Deixa-te de brincadeiras. Na realidade, meu velho... Bem, vais começar a roubar as casas, ou a roubar pelas ruas?
- Para quê? Aqui há mercadorias bastantes para toda a nossa vida, a tua e a minha. E quantas! Mas tem cuidado, Sèmionitch! Podes acabar por ser apanhado...
Perturbado, Sèmionitch pôs-se a tremer, cuspindo saliva e tentando dizer qualquer coisa. Tchelkach largou-lhe a mão e dirigiu-se calmamente para o portão das docas, com largas pernadas. O guarda, praguejando furiosamente, seguiu-o.
Tchelkach sentia-se agora mais bem disposto: assobiava baixinho, entre dentes e, com as mãos metidas nos bolsos das calças, distribuía piadas mordazes para todos os lados; os outros pagavam-lhe na mesma moeda. Na multidão dos estivadores que já tinham almoçado e descansavam deitados no chão, alguém gritou:
- Eh, Grichka! És protegido pelas autoridades?
- Não tenho sapatos. O Sèmionitch vem atrás de mim com receio que eu espete alguma coisa nos pés! - respondeu Tchelkach.
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Aproximavam-se dos portões onde dois guardas o apalparam e o empurraram suavemente para a rua. Tchelkach atravessou e sentou-se num marco, em frente à porta duma taberna. Pelos portões saía uma fila de telegas carregadas. No sentido inverso, chegavam telegas vazias cujos condutores dançavam nos respectivos assentos. O portão vomitava uma tempestade de ruídos e uma poeirada corrosiva...
Naquele tumulto furibundo Tchelkach sentia-se à sua vontade. Tinha a perspectiva agradável de um ganho apreciável que pedia pouco esforço e muita habilidade. Estava certo de possuir habilidade suficiente e pensava, com os seus olhos semicerrados, na festa que faria amanhã de manhã quando as notas lhe caíssem no bolso... Pensava no camarada Michka que lhe teria sido bem útil nessa noite se não tivesse esmagado o pé. Tchelkach praguejou quase insensivelmente, ao pensar que sozinho, sem Michka, poderia não ser capaz. Como seria a noite?... Olhou para o céu, depois para o enfiamento da rua.
A cinco ou seis passos dele, no pavimento da rua, junto do passeio e com as costas apoiadas a um arco, estava sentado um jovem de camisa azul pintalgada, com umas calças da mesma cor, umas alpergatas de corda e um boné avermelhado e roto na cabeça. A seu lado estava pousado um bornal e uma foice sem cabo, envolta num feixe de palha torcida, cuidadosamente ligada com um fio. O rapaz tinha ombros largos, era entroncado, musculoso, o rosto era bronzeado e tinha grandes olhos azuis que olhavam para Tchelkach confiadamente e sem malícia.
Tchelkach mostrou os dentes, pôs a língua de fora, exibiu uma careta horrorosa e fixou-o com os olhos fora das órbitas.
O rapaz, inicialmente perplexo, piscou os olhos, depois soltou repentinamente uma gargalhada, gritando: "És um cómico, ha!" e, quase sem se levantar do chão, rolou desajeitadamente do seu marco até ao de Tchelkach, arrastando pelo chão o bornal enquanto as costas da foice batiam nas pedras.
- Parece que estás alegre, meu velho! - atirou ele a Tchelkach, puxando-lhe pela perna das calças.
- É isso mesmo, meu pateta! - confessou Tchelkach, sorrindo. - Vens das ceifas, ha?
Tinha simpatizado imediatamente com aquele rapagão ingénuo de olhos claros infantis.
- Venho, e é um trabalho dos diabos! Ceifa-se uma versta para não ganhar quase nada. As coisas vão mal: braços a oferecerem-se, quantos se quiserem. É a fome que se agarra, as jornas desceram, é pegar ou largar. No Kuban
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davam sessenta copeques!... Vivia-se. E lá mais para a frente, pelo que diziam, três rublos de prata, quatro, cinco...
- Mais para a frente!... Lá para essas terras davam três rublos só para ver um russo. Eu próprio já ganhei dinheiro por esse processo, há uns dez anos. Vai-se até uma cidade cossaca e diz-se: eu sou russo! Põem-se logo a olhar-te, a apalpar-te, a admirar-te e ganhaste três rublos. Podes comer e beber à vontade e ficar o tempo que quiseres.
O rapaz tinha começado por abrir a boca de espanto, exprimindo na fisionomia redonda um êxtase perplexo, mas quando compreendeu que o outro se divertia à sua custa desatou a rir à gargalhada, estalando os lábios. Tchelkach mantinha-se sério e escondia o sorriso nos bigodes.
- Aldrabão, tens o ar de quem fala verdade e estou para aqui a ouvir-te e a acreditar... Não, caramba, mas realmente dantes, lá...
- Pois, é isso mesmo que estou a dizer. Dantes, lá...
- Ora, ora! - atalhou o rapaz com um gesto da mão, prosseguindo: - Tu és sapateiro, ha? Ou então alfaiate?... Diz lá.
- Eu? - perguntou Tchelkach, reflectindo e acrescentando: - Sou pescador.
- Pescador! Bem, bem! Então apanhas peixe?
- Peixe, porquê? Os pescadores daqui não apanham só peixe. Apanham sobretudo afogados, âncoras velhas, navios naufragados, tudo o que vem à rede. Há anzóis especiais para essas coisas.
- Mentiroso! Mentiroso!... Tu deves ser desses pescadores que cantam falando de si:
Lançamos as redes Nas margens secas. Nos armazéns E nos silos do trigo.
- E já viste desses pescadores? - perguntou Tchelkach, olhando-o com um sorriso irónico.
- Claro que não; onde poderia vê-los? Contaram-me...
- E agradam-te?
- Decerto. São tipos simpáticos, independentes, livres...
- É coisa que conte para ti, a liberdade?... É verdade que a amas, a liberdade?
- Claro! Cada um é dono de si mesmo, vai-se para onde se quer, faz-se o que se quer... Não há dúvida! Se se tiver cuidado não se tem pedras ao pescoço, é o principal, desde que não se esqueça Deus.
Tchelkach cuspiu com desprezo e afastou-se do rapaz.
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- Olha para mim, agora, por exemplo! - proseguiu este. - O meu pai morreu, a terra é pequena e está esgotada, a mãe é velha, que hei-de fazer? É preciso viver. Como? Não sei. Arranjo um lugar de genro numa boa casa. Diria que sim se eles dessem à rapariga a parte dela!... Mas não, o diabo do sogro não a dotará. Então trabalharei para ele longos anos! Vês como as coisas se passam? Mas se eu chegasse a juntar cento e cinquenta rublos então pôr-me-ia a caminho e iria dizer ao Antipas: "Queres dotar a rapariga ou não? Não? Não preciso. Graças a Deus, raparigas não faltam na aldeia." E assim seria o meu próprio dono, perfeitamente livre.
O rapaz soltou um suspiro.
- Mas agora não tenho outro remédio senão ir como genro. Tinha pensado: vou até ao Kuban, arranjo duzentos rublos e pronto. Sou um senhor. Mas a coisa falhou. Bem, serei jornaleiro. com a minha terrinha não me consigo aguentar em caso nenhum. Eh, eh, eh!
O rapaz não tinha mesmo vontade nenhuma de se fazer "genro". O rosto encheu-se de tristeza. Agitou-se pesadamente no chão.
Tchelkach perguntou-lhe:
- Para onde vais, agora?
- Para onde hei-de ir? Para minha casa!
- Sabia lá! Talvez estivesses de passagem para a Turquia.
- A Turquia? Qual é o ortodoxo que vai para lá? Tens cada uma!
- Parece impossível como és tão estúpido! - suspirou Tchelkach, afastando-se outra vez do seu interlocutor.
O rapaz despertava-lhe qualquer coisa. Um sentimento confuso, contraditório, que amadurecia lentamente, mexia-se algures no fundo dele mesmo e impedia-o de se concentrar e de reflectir naquilo que tinha de fazer nessa noite.
O rapaz, sob o insulto, resmungou algumas palavras em voz baixa, lançando ao vagabundo, de vez em quando, olhares de esguelha. Inchava còmicamente as faces, fazia uma carantonha e piscava os olhos com demasiada frequência. Era evidente que não esperava que a conversa com aquele esfarrapado de bigodes acabasse tão depressa e duma maneira tão vexatória.
O outro não lhe prestava atenção. Assobiava pensativamente, sentado no seu marco, marcando o ritmo com o calcanhar nu e sujo. O rapaz tinha vontade de lhe pagar na mesma moeda, gritando:
"Eh, pescador, diz-me cá: costumas beber muitas vezes como uma esponja?"
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Pelo menos tinha a intenção de dizer aquilo, mas nesse momento o pescador voltou-se bruscamente para ele e perguntou:
- Ouve, pacóvio! Queres trabalhar comigo esta noite? Responde depressa.
- Trabalhar em quê? - perguntou o rapaz, com desconfiança.
- Em quê? Bem... naquilo que te disser... Iremos à pesca. Remarás.
- Ah, sim, se é isso não há nada a dizer! Pode-se trabalhar. Simplesmente não gostaria de me meter contigo em qualquer trapalhada. Tens um aspecto que não inspira confiança.
Tchelkach sentiu no peito algo como uma queimadura e, com uma maldade fria, disse em voz baixa:
- E tu, quando não compreenderes, cala a caixa! Se te chego com isto ficarás a ver claro como se fosse meio-dia.
Saltou do lugar, alisou o bigode com a mão esquerda e, com os olhos a brilharem, cerrou o punho direito, duro e nodoso. O rapaz teve medo. Lançou rapidamente um olhar à sua volta, piscou timidamente os olhos, e pôs-se também em pé.
Os dois homens mediram-se em silêncio.
- Então? - perguntou Tchelkach com um tom severo. Fervia e estremecia sob a afronta que lhe tinha infligido
aquele ingénuo que ainda há pouco desprezara, quando lhe falava, mas que tinha começado subitamente a odiar porque tinha olhos azuis tão puros, um rosto moreno cheio de saúde, mãos curtas e sólidas, porque tinha algures uma aldeia e uma casa nessa aldeia, porque um mujique abastado o queria para genro; odiava-o pela sua vida passada e futura e, sobretudo, odiava-o porque tinha a audácia, ele que não era mais do que uma criança em comparação com Tchelkach, de amar a liberdade de que desconhecia o preço e da qual não tinha necessidade. É sempre desagradável ver um homem que colocámos abaixo de nós amar ou odiar aquilo que igualmente amamos ou odiamos e tornar-se desse modo um nosso igual.
- Mas eu... nada tenho contra...-começou o rapaz.
- Estou à procura de trabalho. É-me indiferente onde seja, contigo ou com outro. Quis dizer apenas que não me parecias alguém que trabalha, és bastante... hum!... andrajoso. Mas sei muito bem que isso pode acontecer a qualquer pessoa. Como se eu não tivesse visto bêbados, meu Deus! E mais do que uma vez. E até não há muitos bêbados como tu.
- bom, bom, deixemos isso. Então está combinado?
- perguntou Tchelkach com voz mais calma.
- Está! E com prazer! Qual é o teu preço?
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- O preço, comigo, é feito depois do trabalho. Depende do que houver. Quer dizer, depende do que se apanhar... Podes ganhar mesmo cinco rublos. Estás a perceber?
Mas agora estavam a falar de dinheiro e aqui o camponês queria ser exacto e exigia a mesma exactidão do seu empregador. Sentiu uma nova onda de desconfiança e de suspeita.
- Assim não serve, meu amigo!
- Não te precipites, espera! Vamos à taberna! Seguiram ao longo da rua, ao lado um do outro. Tchelkach torcia o bigode com o aspecto importante do patrão, o rapaz com a expressão dum homem pronto a submeter-se, e no entanto cheio de desconfiança e de receio.
- Como te chamas? - perguntou Tchelkach.
- Gabriel! - respondeu o rapaz.
Quando chegaram à taberna suja e cheia de fumo, Tchelkach aproximou-se do balcão, pediu com o tom familiar do cliente habitual uma garrafa de aguardente, sopa de couves, carne assada, chá e, recapitulando a encomenda, disse rapidamente ao empregado: "Tudo na minha conta!" ao que o outro respondeu com um simples aceno de cabeça, sem dizer nada. Gabriel ficou imediatamente cheio de respeito por um patrão que, apesar do seu ar de malandro, gozava de um tal renome e de uma tal confiança.
- bom, agora vamos comer e falar calmamente. Entretanto, espera aí, tenho um assunto a tratar.
Saiu. Gabriel olhou à sua volta. A taberna estava situada numa cave; era húmida, fria, e estava cheia de um odor sufocante de aguardente queimada, fumo de tabaco, alcatrão e ainda um outro cheiro áspero. Em frente de Gabriel, noutra mesa, estava sentado um ébrio, vestido de marinheiro, com barba ruiva, todo coberto de poeira de carvão e de alcatrão. Berrava, com soluços pelo meio, uma canção de palavras estropiadas e entrecortadas, ora horrivelmente agudas, ora guturais. Era evidente que não era russo.
Atrás dele tinham-se sentado dois moldavos esfarrapados, morenos, de cabelos pretos, que gritavam também uma canção com voz avinhada.
A seguir destacavam-se ainda, da sombra, silhuetas diversas, todas bizarramente hirsutas, todas semiébrias, esganiçadas, agitadas.
Gabriel teve medo. Desejou que o patrão viesse depressa. O barulho da taberna fundia-se numa nota única que fazia lembrar o rugido de um animal enorme que dispunha de centenas de vozes variadas e saltava, furioso e cego, para fora daquela fossa de pedra sem encontrar saída para a liberdade... Gabriel sentia algo de enebriante e doloroso penetrar-lhe o corpo, provocando-lhe vertigens e embaciando-lhe
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os olhos que corriam pela taberna com curiosidade e receio.
Tchelkach voltou e começaram a falar enquanto comiam e bebiam. Ao terceiro copo Gabriel estava embriagado. Sentia-se alegre e tinha vontade de dizer qualquer coisa agradável ao patrão que, bom homem, o regalava daquele modo. Mas as palavras que vinham em vagas até à garganta ficavam-lhe na ponta da língua, subitamente pesada.
Tchelkach olhava-o e dizia com um sorriso trocista:
- Estás bêbado! Eh, bruto, como vais poder trabalhar?... Só com cinco copos!
- Amigo! - dizia Gabriel. - Não te preocupes. Eu estimo-te!... Deixa-me abraçar-te!... Ha!
- Bem, bem, deixa lá isso!... Bebe mais um copo! Gabriel bebeu até ao momento em que, diante de si,
tudo se balançava com o movimento regular das vagas. Era desagradável, sentia náuseas. A cara adquiriu uma expressão extasiada e estúpida. Tentava dizer qualquer coisa, dava estalidos com os lábios de uma maneira ridícula e mugia. Tchelkach olhava-o fixamente como se recordasse qualquer coisa, retorcia os bigodes e mantinha o seu sorriso sombrio. A taberna rugia com um rumor de embriaguez. O marinheiro ruivo dormia, com os cotovelos apoiados na mesa.
- Então, vamos lá? - disse Tchelkach levantando-se.
Gabriel tentou erguer-se mas não o conseguiu e, praguejando como um carroceiro, soltou um riso estúpido de bêbado.
- Estás com uma bebedeira de respeito! - disse Tchelkach, voltando a sentar-se na cadeira, em frente do rapaz.
Gabriel ria às gargalhadas, olhando para o patrão com olhos estúpidos. E este olhava-o fixamente, atento e pensativo. Via diante de si um homem cuja vida tinha caído nas suas patas de lobo. Ele, Tchelkach, sentia-se com forças para a revolver à sua vontade. Podia rasgá-la como uma carta de jogar, podia também ajudá-lo a entrar nos quadros sólidos do campesinato. Sentia-se dono de outro homem, pensava que esse rapaz não beberia uma taça de amargura semelhante à que a sorte lhe tinha feito beber a ele, Tchelkach. E invejava-o, lamentava aquela vida jovem, embora ridicularizando-a, e sentia-se mesmo aflito ao pensar que ela podia cair outra vez em mãos como as dele... Todos os sentimentos de Tchelkach acabaram por se fundir num único que era, ao mesmo tempo, de um pai e de um patrão. Tinha pena do rapaz e necessitava dele. Então levantou-o à força de braços e empurrando-o lentamente com o joelho, por trás, levou-o para o pátio onde o instalou no chão, à sombra duma pilha de madeira; sentou-se ao lado dele e acendeu o cachimbo. Gabriel mexeu-se um pouco e adormeceu.
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II
- Então, estás pronto? - perguntou, em voz baixa, Tchelkach a Gabriel que se atrapalhava com os remos.
- Quase. Há um tolete que abana. Pode-se batê-lo com o remo?
- Nada disso. Não se pode fazer barulho. Carrega com as mãos, com força, que ele irá ao sítio.
Ambos se agitavam silenciosamente num barco amarrado à popa de um veleiro, no meio duma flotilha completa carregada de aduelas de carvalho e de grandes faluchos turcos cheios de madeiras, palmeira, sândalo e grossos toros de cipreste.
A noite estava escura, no céu deslizavam grandes massas de nuvens desgrenhadas, o mar estava calmo, negro e espesso como óleo: exalava um aroma húmido e salgado, marulhava suavemente contra o costado das embarcações e na margem e embalava o barco de Tchelkach. A grande distância da costa erguiam-se no mar as carcaças escuras dos navios que levantavam para o céu mastros agudos com lanternas multicores. O mar reflectia as luzes dos fanais e estava semeado com uma multidão de manchas amareladas cujas cintilações eram belas nesse fundo negro de veludo, macio e fosco. O mar dormia com um sono robusto e profundo de trabalhador que se agitou bastante durante o dia.
- Vamos lá! - disse Gabriel, deixando cair os remos na água.
- Vamos lá! - repetiu Tchelkach, libertando o barco com um possante movimento do leme e introduzindo-o num canal livre entre os outros; deslizou rapidamente sobre a água macia onde os remos provocavam uma fosforescência
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azulada, cuja longa fita luminosa desenrolava à popa os seus agradáveis reflexos.
- E essa cabeça como vai? Dói? - perguntou amavelmente Tchelkach.
- É uma coisa doida!... Tilinta como ferro... vou molhá-la com água.
- Para quê? Pega, molha antes o interior, talvez recomponhas mais depressa! - disse Tchelkach, estendendo-lhe a garrafa.
- É verdade? Louvado seja Deus! Ouviu-se um gorgolejar ameno.
- Estás contente?... Agora basta!
Tchelkach deteve-o. O barco lançou-se novamente, evolucionado, leve, sem ruído, entre os outros. De súbito saiu do aglomerado e o mar infinito, poderoso, abriu-se diante deles, afastando-se para o horizonte longínquo e azulado; das águas elevavam-se para o céu montanhas de nuvens, de um violeta escuro, bordadas de penugem amarelada ou esverdeada, cor de água do mar e dessas fastidiosas nuvens cor de chumbo que projectam sombras tão tristes, tão pesadas; rastejavam lentamente, ora se confundindo, ora se ultrapassando, misturavam as cores e as formas, absorviam-se e renasciam sob novos contornos, majestosos e tristes... Havia uma espécie de fatalidade nesse movimento lento de massas sem alma. Parecia haver no fundo, no limite do mar, uma infinidade de onde deslizariam para o céu, indiferentes, empurradas pela vontade malévola de não deixarem reflectir na água adormecida esses milhões de olhos dourados: - as estrelas multicores, vivas, de clarões sonhadores, que despertam desejos sublimes no coração dos homens a quem é querido o seu brilho puro.
- É bonito o mar? - perguntou Tchelkach.
- Não é feio. Simplesmente, em cima dele tem-se medo!
- respondeu Gabriel que fendia a água com remadas regulares e vigorosas.
O ruído dos longos remos ao mergulharem era quase imperceptível e a água brilhava incessantemente com a luz quente e azul do fósforo.
- Medo! Que pacóvio me saíste! - resmungou Tchelkach, irónico.
Ele, o ladrão, amava o mar. A sua natureza ardente e nervosa, ávida de impressões, nunca se saciava de comtemplar aquela imensidão ilimitada, obscura, livre e poderosa. Que se pudesse falar assim da beleza que ele amava, feria-o. Sentado à popa fendia a água com o leme e olhava para a frente, calmamente, cheio do desejo de navegar durante muito tempo, para muito longe, sobre aquela extensão de veludo.
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No mar, sentia sempre apoderar-se dele um sentimento afável e quente que lhe dominava a alma e a purificava um pouco da sujidade quotidiana. Conhecia o preço e gostava de se ver melhor aqui, no meio da água e do ar, onde os pensamentos sobre a vida perdiam a sua aspereza e a própria vida perdia o seu preço. À noite ouve-se passar por cima do mar o ruído abafado e regular do seu hálito adormecido, essa música inapreensível leva a paz ao coração do homem e, pela sua doçura, pondo um freio aos impulsos malévolos, faz nascer nele sonhos poderosos...
- E onde estão os apetrechos para a pesca? - perguntou subitamente Gabriel percorrendo o barco com um olhar inquieto.
Tchelkach estremeceu.
- Os apetrechos? Estão aqui à popa, junto de mim. Mas sentia-se vexado por ter de mentir àquele rapazola
e aborrecia-o ter perdido os pensamentos e sentimentos que a pergunta destruíra. Zangou-se. Uma queimadura áspera que conhecia bem contraiu-lhe o peito e a garganta; disse a Gabriel com voz imperativa e dura:
- Ouve o que te digo: estás sentado, fica sentado! E não te metas onde não és chamado! Foste contratado para remar, limita-te a remar. E se abres a boca mais do que a conta, as coisas vão correr mal, percebes?
A embarcação estremeceu por um momento e deteve-se. Os remos ficaram na água, formando espuma, e Gabriel, inquieto, mexeu-se no banco.
- Rema!
Um palavrão violento abanou o ar. Gabriel ergueu os remos. O barco pareceu assustado e arrancou com sacudidelas rápidas e nervosas, fendendo a água barulhentamente.
- Rema como deve ser!
Tchelkach, à popa, levantou-se sem largar o remo com que dirigia o barco e pousou os olhos frios no rosto de Gabriel. Curvado, inclinado para a frente, parecia um gato pronto a saltar. Percebia-se-lhe o ranger maldoso dos dentes e o estalar tímido de pequenos ossos.
Sobre o mar apareceu uma voz que interrogava severamente:
- Quem anda aí?
- Rema, por amor de Deus, rema!... Devagar!... Mato-te como um cão! Rema, vamos, um, dois... Se dizes uma única palavra racho-te a cabeça - dizia Tchelkach entre dentes.
- Santa Virgem! - murmurou Gabriel, trémulo e esgotado de medo e de fadiga.
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O barco deu meia volta suavemente e voltou para o porto onde os fanais agrupados formavam um conjunto multicor, e onde se apercebiam os mastros como uma floresta.
- Eh! Quem é que está para aí a ladrar? - repetiu a voz. Mas agora já vinha de mais longe do que da primeira
vez. Tchelkach sossegou.
- Tu é que ladras! - disse ele, voltando-se para o lugar de onde vinha a voz; depois voltou-se para Gabriel que continuava a murmurar a sua prece:
- Estás com sorte, meu velho! Se esses filhos da mãe nos perseguiam, estavas tramado: mandava-te num momento para os peixinhos. Percebes?
Agora que Tchelkach falava calmamente, quase com amabilidade, Gabriel, continuando a tremer de medo, começou a suplicar:
- Ouve, deixa-me ir embora! Por amor de Deus, peço-te, deixa-me partir. Desembarca-me onde quiseres. -o-oh! Sou um homem perdido!.,. Não te esqueças de Deus Todo-Poderoso, deixa-me ir. Para que te sirvo? Não sei fazer nada disso! Não conheço nada desse ofício! É a primeira vez! Meu Deus, já vejo que estou lixado. Soubeste-me levar. Ha! Ficas com mais um pecado na consciência!... Perdes uma alma! Claro, tens os teus negócios...
- Que negócios? - perguntou Tchelkach, com voz rude.
- Diz lá, que negócios?
O medo do rapaz divertia-o; deleitava-se por assistir ao terror de Gabriel e por ver que homem terrível era ele, Tchelkach.
- Negócios escuros, meu velho... Deixa-me ir, pelo amor de Deus! Para que te sirvo eu? Meu caro...
- Cala a boca. Se não precisasse de ti não te tinha falado. Percebes? Portanto cala-te.
- Meu Deus! - suspirou Gabriel.
Tchelkach interrompeu-o, mas Gabriel agora já se não podia conter e soluçava lentamente, chorava, fungava, mexia-se no banco, mas remava com força, desesperadamente. O barco vogava como uma flecha. Novamente, os cascos escuros das embarcações apareceram no caminho e o barco perdeu-se no meio delas, rodando a toda a velocidade nos canais estreitos.
- Atenção, meu velho: se te interrogarem não sabes nada. A não ser que não queiras salvar a pele. Percebeste?
- Oh, meu Deus! - suspirou desesperadamente Gabriel em resposta ao aviso de Tchelkach, acrescentando amargamente: - Estou perdido!
- Pára de gemer! - soprou Tchelkach num tom significativo.
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Gabriel perdeu de repente todas as faculdades imaginativas e empalideceu, invadido pelo pressentimento frio da infelicidade. Mergulhava os remos na água maquinalmente, inclinava-se para trás, retirava-os e lançava-os outra vez, mantendo os olhos fixos obstinadamente nos sapatos.
As vagas adormecidas sussurravam, sem força mas assustadoras. Ali estava o porto... Atrás do muro de granito ouviam-se vozes, o marulho da água, uma canção e assobios ténues.
- Alto! - disse Tchelkach, num som quase inaudível.
- Larga os remos. Apoia as mãos na parede. Devagarinho, caramba!
Gabriel, com as mãos apoiadas à pedra viscosa, conduziu o barco ao longo da parede. Avançava silenciosamente com a borda a escorregar no limo que cobria a muralha.
- Alto! Dá-me os remos! Aqui! E os teus papéis! Onde estão? No bornal? Passa-me o bornal. Anda, mexe-te. Isto é para que não possas fugir. Sem os remos podias encontrar uma solução, mas sem papéis não terás coragem. Espera aqui. Mas tem cuidado, não soltas uma palavra, irei procurar-te ao fim do mundo.
E subitamente Tchelkach agarrou-se não se sabia a quê, elevou-se no ar e desapareceu para lá do muro.
Gabriel estremeceu. Aquilo tinha sido tão depressa! Sentia cair, escorregar-lhe dos ombros, aquele peso maldito e aquele terror que experimentava na presença do ladrão de bigodes... Era o momento de desaparecer. com um suspiro de alívio olhou à sua volta. À esquerda erguia-se um corpo negro sem mastro, um caixão imenso, desolado e vazio... Cada pancada da mareta nos flancos provocava um eco abafado, sonoro, semelhante a um pesado suspiro. À direita, por cima da água, a massa cinzenta do molhe de pedra alongava-se como uma serpente fria e pesada. Atrás apercebiam-se mais carcaças negras, e, à frente, numa abertura entre o molhe e o caixão, via-se o mar silencioso, deserto, com nuvens que se moviam lentamente, imensas e penosas, destilando o medo e prontas a esmagar o homem sob o seu peso. Tudo era frio, negro e sinistro. Gabriel apavorou-se. Aquele medo era pior do que o que Tchelkach lhe inspirava; apertava-lhe o peito num círculo de ferro e reduzia-o a uma bola medrosa, fixa no banco.
Em redor pesava o silêncio sobre as coisas. Nem um ruído, excepto o barulho do mar. As nuvens deslizavam pelo céu, tão lentas e tão indiferentes como antes, mas subiam do fundo do mar em número cada vez mais elevado e era possível pensar, ao olhar o céu, que era também um mar, mas um mar agitado e invertido sobre o outro, adormecido, tranquilo e uniforme. As nuvens pareciam-se com vagas
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que se precipitassem para a terra com cristas brancas e frisadas, para os abismos de onde o vento as arrancara, e com ondas em nascimento que a espuma esverdeada da cólera e do furor ainda não cobria.
Gabriel sentiu-se esmagado por essa calma fúnebre, por essa beleza, e sentia que desejava rever o patrão o mais depressa possível. E se ele não reaparecesse, se ficasse lá!, pensava ele. O tempo caminhava lentamente, mais lentamente que as nuvens que rastejavam pelo céu. Mas atrás do muro do molhe ouviu-se um ruído muito leve e algo que se parecia com um murmúrio. Gabriel pensou que ia morrer.
- Eh, estás a dormir? Aguenta!... Atenção! - soou a voz de Tchelkach.
Pela parede descia um objecto cúbico e pesado. Gabriel recebeu-o na embarcação. Depois desceu outro. A seguir, a comprida figura de Tchelkach apareceu. Gabriel viu reaparecerem os remos, o seu bornal cair-lhe aos pés e o seu empregador sentar-se à popa, ofegante.
Gabriel olhou-o com um sorriso alegre e tímido.
- Cansado? - perguntou. -
- Não é caso para menos, pateta! - Vamos lá, rema forte. A toda a mecha. Ganhaste o teu dia, meu velho. Metade está feito. Agora só falta escapar àqueles filhos da mãe, e, ao chegar lá, recebes o teu dinheiro e escapas-te para a tua aldeia. Tens uma aldeia? Eh, menino!
- não! - Gabriel remava com todas as suas forças, fazia trabalhar o peito como o fole de uma forja e os braços como molas de aço. Debaixo do barco a água roncava e a fita azul atrás da popa era agora mais larga. Estava sufocado de suor mas continuava a remar com toda a sua energia. Depois de ter sentido por duas vezes, naquela noite, um pavor desmesurado, temia agora ser novamente dominado por ele uma terceira vez e tinha um único desejo: acabar o mais depressa possível aquele amaldiçoado trabalho, saltar em terra e fugir para o mais longe possível daquele homem antes que ele o matasse ou o fizesse ir parar à prisão. Decidiu não lhe falar de mais nada, não o contradizer, executar tudo o que lhe ordenasse e, se conseguisse livrar-se dele, sem problemas, mandar dizer uma missa, logo no dia seguinte, ao taumaturgo São Nicolau. Uma prece ardente encheu-lhe o coração. Mas retinha-se, soprava como uma locomotiva e calava-se, lançando a Tchelkach olhares furtivos.
O outro, comprido, seco, curvado para a frente e semelhante a um pássaro prestes a erguer voo, esquadrinhava a sombra à sua frente com os seus olhos de açor, movendo o nariz curvo e ávido; com uma das mãos mantinha solidamente o cabo do leme e, com a outra, torcia os bigodes que
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estremeciam com os sorrisos- que lhe deformavam os lábios finos. Tchelkach estava satisfeito com o seu sucesso, com ele próprio e com aquele rapaz a quem tinha causado um medo terrível e de quem tinha feito seu escravo. Via Gabriel forçar os remos e sentiu pena dele: teve vontade de o animar.
- Eh! - começou ele, rindo, baixinho. - Apanhaste um medo que não te cabia um feijão, ha!
- Não faz mal.
Gabriel respirou fundo e pigarreou.
- Agora não remes com tanta força. Agora já acabou. Só há uma passagem difícil... Descansa.
Gabriel, obediente, parou, limpou o suor do rosto com a manga da camisa e mergulhou novamente os remos na água.
- Vá, rema mais devagar. Para que a água não fale. Agora só há as portas para passar. Devagarinho, devagarinho... porque por aqui, meu velho, há pessoas que não brincam. Um tiro dispara-se depressa. Faziam-te um buraco na cachola e não tinhas tempo de soltar um ai.
O barco deslizava agora quase sem ruído. Apenas gotas azuis caíam dos remos e, quando atingiam o mar, via-se, no ponto de encontro, acender-se um instante uma pequena chama igualmente azul. A noite era cada vez mais escura e silenciosa. Agora o céu já não se parecia com um mar agitado: as nuvens tinham-se espalhado e coberto todo o espaço com um véu pesado, uniforme, baixo sob a água imóvel. O mar ficara ainda mais calmo, mais negro, o seu odor quente e salgado era mais intenso, e não parecia tão largo como antes.
- Seria bom se chovesse! - murmurou Tchelkach. Então passaríamos como se estivéssemos atrás duma cortina.
À direita e à esquerda do barco surgiram na água negra edifícios, barcaças imóveis, sinistras e igualmente negras. Uma luz deslocava-se numa delas, alguém ia e vinha com uma lanterna. O mar, que lhes acariciava os flancos, exprimia uma interrogação abafada, mas as barcaças respondiam-lhe com um eco sonoro e frio, como se discutissem sem querer ceder.
- Os cordões! - soprou Tchelkach com voz quase indistinta.
A partir do momento em que Tchelkach lhe tinha dito para remar com mais suavidade, todos os nervos de Gabriel tinham ficado brutalmente tensos, em expectativa. Todo dobrado para a frente, na sombra, parecia-lhe crescer; os ossos e as veias eram dominados por uma dor surda, a cabeça doía-lhe, com um único pensamento, a pele das
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costas tremia, e pequenas agulhas, geladas, espetavam-se-lhe nos pés. Os olhos estavam doloridos de tanto prescrutarem as trevas de onde esperava ver surgir uma sombra que berraria: - Alto aí, ladrões!
E agora, quando Tchelkach sussurrou a palavra "cordões", Gabriel estremeceu: atravessou-o um pensamento agudo, ardente, que lhe tinha tocado os nervos hipertensos: gostaria de gritar, de pedir socorro... Já tinha aberto a boca e soerguido o corpo; com o peito para a frente aspirou uma provisão de ar, abriu a boca, mas, subitamente, fulminado pelo terror que o tinha atravessado como uma chicotada, fechou os olhos e deixou-se cair no banco.
...À proa do barco, longe, no horizonte, um imenso gládio de chama azul surgiu da água negra do mar. Subiu e fendeu as trevas da noite, passeou a sua lâmina pelas nuvens, pelo céu, e abateu-se sobre o peito do mar numa larga mancha azul. E então, nessa fita de luz, viram-se sair da sombra navios até aí invisíveis, negros, mudos, tensos de uma sumptuosa bruma nocturna. Dir-se-ia que tinham veraneado durante muito tempo no fundo do mar, para onde os arrastara a força da tempestade, e que acabavam agora mesmo de regressar à superfície por ordem do gládio de fogo, nascido das águas: tinham subido para contemplarem o céu e tudo o que se encontrava acima da superfície líquida... Os cordames envolviam os mastros e pareciam vareques subidos das profundidades ao mesmo tempo que aqueles gigantes negros apressados nas suas redes. E o terrível gládio azul voltou a subir do fundo do mar, cintilante, fendeu novamente a noite e abateu-se desta vez em outra direcção. No lugar onde se abateu surgiram de novo corpos de navios até aí invisíveis.
O barco de Tchelkach parou e ficou a balouçar em cima da água, como se hesitasse. Gabriel estava estendido no fundo, com a cara nas mãos, e Tchelkach empurrava-o com o pé e dizia raivosamente, mas em voz baixa:
- Mexe-te, idiota. É um guarda-costas da Alfândega. É um farolim eléctrico!... Levanta-te. Não vês que nos vão cair com o foco em cima? Vais-nos perder, aos dois! Mexe-te!
Por fim, quando uma das pancadas com o tacão da bota lhe atingiu com mais força do que as outras a espinha, Gabriel saltou, mantendo os olhos fechados com medo, sentou-se no banco e, pegando nos remos às apalpadelas, pôs a embarcação em movimento.
- Devagar, senão mato-te, já te disse... Que estúpido, meu Meus! De que tens medo? Cabeça de alho chocho! É um farolim, não é mais nada! Os remos com calma! Meu Deus!... Perseguem os contrabandistas. Não nos apanharão, já se afastaram. Não tenhas medo, não nos agarram. Agora nós...
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- Tchelkach lançou à sua volta um olhar triunfante. - Acabou, desapareceram! Uf! Podes dizer que tens sorte, grande pateta!
Gabriel calava-se, remava e, sem fôlego, olhava de esguelha para o lado de onde se continuava a erguer e a descer o gládio de fogo. Não podia acreditar em Tchelkach para quem aquilo não passava dum farolim. A luz azul e fria que fendia as trevas e provocava no mar um brilho prateado, tinha qualquer coisa de inexplicável. Gabriel caiu novamente na hipnose do pavor angustiado. Remava como uma máquina e contraía-se incessantemente como se esperasse uma pancada vinda de cima. Não havia nele mais nada, nenhum desejo: estava vazio e sem alma. As emoções daquela noite tinham acabado por lhe comer tudo o que havia nele de humano.
Tchelkach triunfava. Os seus nervos, habituados aos esticões, já estavam calmos. Os bigodes estremeciam voluptuosamente e entre os olhos acendia-se-lhe uma chama. Sentia-se bem, assobiava entre dentes, aspirava profundamente o ar húmido do mar, olhava à sua volta e sorria com satisfação quando os olhos se detinham em Gabriel.
O vento ergueu-se e despertou as águas onde apareceram subitamente rugas puras. As nuvens pareciam mais finas, mais transparentes, mas agora cobriam todo o céu. Embora o vento passasse livremente por cima do mar, era ainda leve e as nuvens mantinham-se imóveis e pareciam mergulhadas em algum melancólico e aborrecido pensamento.
- Vamos, meu velho, coragem, é o momento! Ora vejam isto, parece que te esvaziaram, a tua pele parece um saco de ossos. Aguenta, o pior já passou! Eh!
Gabriel, apesar de tudo, tinha prazer em ouvir uma voz humana, mesmo que fosse a voz de Tchelkach.
- Estou a ouvir! - respondeu baixinho.
- bom, bom! Pareces uma múmia. Senta-te ao leme, eu pego nos remos. Estás cansado, ha?
Gabriel passou para a popa maquinalmente. Quando trocaram os lugares, Tchelkach olhou de frente e reparou que as pernas lhe tremiam e o corpo oscilava. Ficou com mais pena dele e deu-lhe uma pancada amigável nos ombros.
- Vá, não te deixes ir abaixo! Ganhaste o teu dia, não esqueças. Pagar-te-ei bem, meu velho. Queres uma nota de vinte e cinco rublos, ha?
- Não tenho necessidade de nada. Só quero desembarcar. ..
Tchelkach fez um gesto com a mão, cuspiu e pôs-se a remar; os braços compridos iam procurar a água longe, atrás de si.
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O mar estava acordado. Brincava com as pequenas vagas que fazia nascer e decorava com franjas de espuma, lançando-as umas contra as outras e quebrando-as em gotas muito finas. A espuma dissolvia-se, crepitava, suspirava e tudo à volta se enchia de um marulho musical. As trevas pareciam mais vivas.
- Diz-me cá - começou Tchelkach -, vais voltar à aldeia, casar-te, recomeçar a cavar a terra, a semear trigo, a tua mulher terá filhos e não haverá comida bastante para todos; ficarás toda a tua vida dobrado em quatro... E então? É isso que te tenta?
- Não é muito agradável - concordou Gabriel.
Aqui e além o vento dilacerava as nuvens e, nos rasgões, apareciam farrapos azuis de céu onde cintilavam algumas estrelinhas. No espelho do mar elas saltavam sobre as vagas, desapareciam, depois cintilavam novamente.
- Aperta à direita! - disse Tchelkach. - Não tardaremos a chegar. Está acabado. Isto é que é um belo trabalhinho! Estás a ver como as coisas se passam? Numa noite faço os meus quinhentos rublos.
- Quinhentos rublos! - balbuciou Gabriel, com voz arrastada e incrédula. Mas o medo retomou-o e perguntou rapidamente dando com o pé nos pacotes que repousavam no fundo do barco: - Mas que diabo é isto?
- Coisas que valem muito, meu velho. Tudo isso, se eu o vendesse ao preço justo, dava mais de mil rublos. Mas não quero forçar o preço... Belo trabalho, ha?
- Realmente? - perguntou Gabriel com voz arrastada.
- Ah, se eu tivesse essa sorte! - suspirou depois, com o pensamento voltado de repente para a sua aldeia, a sua pobre terra, a mãe e todo aquele mundo longínquo e familiar por causa do qual procurava trabalho, por causa do qual tanto tinha sofrido naquela noite; invadiu-o uma vaga de recordações, reviu a modesta aldeia pendurada na vertente abrupta da montanha, por cima do rio, escondida na floresta de bétulas, ulmeiros, sorveiras e cerejeiras bravias...
- Ah, seria muito bom! Suspirou com tristeza.
- Ah, sim!... Imagino que regressarias a casa a todo o vapor... Poderias estar certo de que as raparigas se apaixonariam por ti..., e como! Escolherias a que te apetecesse. Arranjarias uma casa... Bem, para uma casa, claro, o dinheiro seria um bocado à justa.
- Isso é verdade... Para uma casa não seria bastante. A madeira é cara, na nossa região.
- Que fazer? Arranjarias a velha. E o cavalo? Tens um?
- Um cavalo? Tenho um, realmente, mas é muito velho, já não vai longe.
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- Bem, então um cavalo. Um bom cavalo. Uma vaca, ovelhas... Aves de capoeira... Ha!
- Não me fales nisso. Oh, meu Deus, seria uma bela vida.
- Não há dúvida meu velho, terias uma vida de nababo... Também percebo um bocado disso. Já tive em tempos o meu próprio ninho... O meu pai era um dos ricaços da aldeia.
Tchelkach remava vagarosamente. O barco balouçava em cima das vagas de marulho vivo, quase não se movia sobre o mar sombrio cuja ondulação era cada vez mais pronunciada. Os dois homens sonhavam, embalados pela água e olhando pensativamente à sua volta. Tchelkach tinha começado por levar Gabriel a pensar na sua aldeia, desejoso de o encorajar e tranquilizar um pouco. No início falava, ria sob os bigodes, mas bem depressa, dando réplica ao interlocutor e lembrando-lhe as alegrias da vida do campo de que ele próprio estava há muito desenganado, que esquecera e só agora recordava, deixou-se pouco a pouco arrastar, e, em vez de interrogar o rapaz acerca do campo e dos seus problemas, tinha escorregado, insensivelmente, para as confidências.
- O principal na vida da aldeia, meu velho, é a liberdade! És o teu próprio chefe. Tens a tua casa, não vale grande coisa mas é tua. Tens a terra, é só um punhado de terra mas é tua. És como um rei! Tens uma cara! Podes exigir que cada pessoa te respeite... Não é assim? - terminou Tchelkach num tom de entusiasmo.
Gabriel olhava-o num tom de curiosidade e entusiasmava-se também. No decorrer da conversa tinha conseguido esquecer com quem lidava e via diante de si um camponês como ele, colado à terra até ao fim dos séculos pelo suor de numerosas gerações, ligado a ela pelas recordações da infância; um homem que se tinha separado dela e das suas preocupações por vontade própria, e que suportava em troca o castigo merecido.
- É assim mesmo, meu velho, é a pura verdade! Vê o que és agora, sem terra! A terra, meu caro, é como se fosse uma mãe, não se consegue esquecer com facilidade.
Tchelkach reconsiderou... Sentiu no peito a mordedura irritante que sentia sempre quando o seu amor-próprio era ofendido - o seu amor-próprio de aventureiro - sobretudo por alguém que ele desprezava.
- És um tagarela e um pateta! - disse ele com furor.
- Pensaste que disse aquilo a sério... Põe-te a pau, senão ainda levas uma carga de porrada.
- Grande aldrabão! disse Gabriel, novamente intimidado.
- Não estava a falar de ti. Como tu há muitos... oh, tantos que andam por aí sobre esta nobre terra!
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- Pega nos remos, cabeça de foca! - comandou Tchelkach, contendo a torrente de injúrias violentas que lhe subiam à garganta.
Tornaram a mudar de lugar e Tchelkach, ao dirigir-se para a popa, por cima das mercadorias, sentiu uma grande vontade de obrigar Gabriel a dar um mergulho com um pontapé bem mandado.
O curto diálogo tinha-se interrompido, mas agora o próprio silêncio de Gabriel tinha para Tchelkach um perfume de campo. Repensava o passado, esquecia-se de dirigir o barco que, naquela perturbação, tinha perdido a rota e vogava sem destino, no mar. As vagas pareciam compreender que ela seguia à sorte, erguiam-no cada vez mais alto e brincavam levemente com ele, acendendo-lhe nos remos graciosas chamas azuis. Diante de Tchelkach desfilavam as imagens do passado, de um passado longínquo separado do presente por toda uma muralha de onze anos de vagabundagem. Teve tempo de se ver criança, de ver a sua aldeia, a mãe, uma mulher redonda de faces vermelhas com olhos bondosos e cinzentos, o pai, gigante ruivo e barbudo com aspecto severo; via-se noivo e via a sua mulher, Anfissa, de olhos negros, com a longa trança, carnuda, amável e alegre, e outra vez ele próprio, jovem e belo soldado da Guarda; depois o pai, uma vez mais, grisalho e curvado sob o trabalho e a mãe cheia de rugas e abatida; tornou a ver o acolhimento que lhe deu a aldeia quando regressou do serviço militar; via o pai, diante de toda a aldeia, orgulhoso, do seu Gregório, belo soldado, de fartos bigodes, robusto e escorreito... A recordação, esse flagelo dos infelizes, ressuscita até as pedras do passado e no próprio veneno outrora absorvido verte gotas de mel.
Tchelkach sentia-se banhado por uma onda caridosa e apaziguadora de atmosfera natal que lhe trazia até aos ouvidos as suaves palavras da mãe e a voz séria de velho aldeão que era o pai, e, com elas, muitos sons esquecidos e o agradável perfume da terra materna quando termina o degelo, quando acaba de ser lavrada e quando já a cobre a seda esmeralda do trigo de Outono... Sentia-se sozinho, desenraizado e expulso para sempre daquela vida ordenada onde se tinha formado o sangue que lhe corria nas veias.
- Eh, onde vamos? - perguntou subitamente Gabriel. Tchelkach estremeceu e passeou à sua volta um olhar
de ave de rapina alerta.
- Caramba, derivamos!... Rema com mais força.
- Estavas na Lua? - perguntou Gabriel, sorrindo.
- Estou cansado...
- Quer dizer, não entregaremos a mercadoria no destino?- disse Gabriel dando um pontapé nos fardos.
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- Ora! Fica quieto! Dentro de momentos entrego isso e recebo o dinheiro... Sem falta!
- Quinhentos?
- Pelo menos.
- É muita massa! Se eu não fosse um azarento e tivesse uma soma dessas... Ah, outro galo me cantaria!
- Ias-te enterrar na aldeia para cantar essa cantiga!
- Nada disso! O que eu faria...
E Gabriel partiu nas asas do sonho. Mas Tchelkach calava-se. Os bigodes pendiam, o flanco direito, chicoteado pelas vagas, estava húmido, os olhos eram vagos e tinham perdido o brilho. Tudo o que havia nele de ave de rapina tinha-se suavizado e diluído no sonho que aparecia até nas pregas da camisa suja.
Virou bruscamente a direcção e aproou a algo de negro que saía da água. O céu cobriu-se de novo completamente e começou a cair uma chuvinha morna que crepitava alegremente na crista das vagas.
- Alto! Devagar! - comandou Tchelkach.
O barco tocou com a proa contra o casco dum navio.
- Estão a dormir, esses malandros? É inacreditável!
- rosnou Tchelkach segurando os cabos que pendiam do convés. - Passa a escada!... Ainda por cima havia de se pôr a chover... Eh, bando de preguiçosos!... Eh!
- És tu, Tchelkach? - perguntou lá em cima um murmúrio acariciador.
- Sou, desce a escada.
- Kalimera, Selkach!
- Atira a escada, estupor! - gritou Tchelkach.
- Oh, estás hoje mal disposto!... Cumprimentos!
- Trepa Gabriel! - ordenou Tchelkach dirigindo-se ao camarada.
Chegaram acima num momento; na ponte três silhuetas escuras e barbudas discutiam vivamente numa língua estranha e zezeante, olhando por cima da borda para o barco de Tchelkach. O quarto, envolto numa longa capa, aproximou-se dele e apertou-lhe a mão sem dizer nada, depois encarou Gabriel com suspeita no olhar.
- Arranja o dinheiro para amanhã de manhã. Agora vou dormir! - disse rapidamente Tchelkach. - Vamos embora, Gabriel. Tens fome?
- O que tenho é sono! - respondeu este.
Cinco minutos depois já ressonava enquanto Tchelkach, sentado a seu lado, experimentava uma bebida e, cuspindo pensativamente para o lado, assobiava tristemente entre dentes. Depois estendeu-se ao lado de Gabriel, pousou as mãos debaixo da cabeça e remexeu os bigodes.
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O barco balouçava suavemente em cima da água que brincava, algures a madeira rangia com um som triste; a chuva caía no convés com um ruído abafado e as vagas marulhavam contra o casco... Era tudo triste como a canção de embalar de uma mãe que desespera da felicidade do filho.
Tchelkach mostrou os dentes, ergueu a cabeça, olhou à sua volta, e, depois de ter murmurado algumas palavras indistintas, estendeu-se outra vez... com as pernas afastadas parecia agora uma enorme tesoura.
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Foi o primeiro a acordar, olhou em torno ansiosamente, tranquilizou-se e lançou um olhar para Gabriel que, ainda mergulhado no sono, ressonava deliciado e sorria em sonhos com uma expressão calma no rosto infantil e moreno.
Tchelkach suspirou e trepou para o convés pela estreita escada de corda. Pela abertura do tecto via-se um pedaço de céu cor de chumbo. O tempo estava claro mas opaco, acinzentado como no Outono.
Regressou cerca de duas horas depois. Tinha o rosto vermelho, os bigodes muito frisados de pontas reviradas para cima. Trazia umas sólidas botas altas, uma blusa russa de colarinho fechado, umas calças de pele e parecia um caçador. A roupa não era nova, mas estava em bom estado e era agradável: abafava-lhe a silhueta, disfarçava o que ela tinha de ossudo e conferia-lhe um ar marcial.
- Eh, rapazote, levanta-te!
Empurrou Gabriel com o pé e este ergueu-se com um salto; não o reconheceu, com os olhos ainda cheios de sono e fixou-o com ar perturbado. Tchelkach começou a rir. Por fim Gabriel abriu-se num sorriso.
- Não me digas! Estás um verdadeiro fidalgo.
- Entre nós é assim, não se perde tempo. Eh, cagarola! Quantas vezes pensaste morrer ontem à noite?
- Sim, mas não te esqueças que foi a primeira vez que me vi metido em semelhante sarilho. Podia perder a minha alma para o resto dos meus dias.
- Mas não te importarias de recomeçar, ha?
- Recomeçar? Claro que sim, mas, como te hei-de dizer: depende do lucro... Esse é que é o problema.
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- bom, digamos dois arco-íris!
- Duzentos rublos, é o que queres dizer? Não tenho nada contra isso. Posso embarcar.
- Alto lá! E se perdes a alma?
- Claro, mas também pode ser... que a não perca. Gabriel sorria.
- Não a perderás, mas ficarás a ser homem de uma vez para sempre.
Tchelkach ria também, alegremente.
- Bem, já chega de brincadeira. Vamos para terra. Estavam novamente no barco. Tchelkach ao leme, GabrielI
com os remos. Por cima deles o céu cinzento, uniformemente coberto de nuvens; o mar, verde opaco, brincando com o barco projectando-o ruidosamente sobre as vagas ainda pequenas que salpicavam alegremente os flancos de borrifos claros e salgados. À proa apercebia-se ao longe a fita amarelada da margem arenosa, e à popa o mar que seguia até ao infinito, cavado de vagas semelhantes, na sua rica decoração de espuma como voos brancos de gaivotas. Ao longe distinguiam-se numerosos barcos; à esquerda havia toda uma floresta de mastros e os aglomerados brancos das casas. Da cidade avançava para o mar um bramido abafado que se espalhava e formava com o barulho dos escolhos uma bela e poderosa música... Cobria todo o conjunto um véu fino de névoa cendrada que aumentava a distância entre os objectos.
- Eh, isto vai ficar feio, hoje! - disse Tchelkach, levantando a cabeça para o lado do mar.
- A tempestade? - perguntou Gabriel, cavando fortemente as ondas com os remos.
Já estava molhado dos pés à cabeça pelos salpicos trazidos pelo vento.
- Hum! hum! - confirmou Tchelkach. Gabriel olhou-o com uma expressão interrogativa.
- Então quanto te deram? - acabou por dizer, vendo que o outro não se decidia a começar a conversa.
- Olha! - respondeu Tchelkach, mostrando-lhe algo que tirara do bolso.
Gabriel pôde ver um maço de notas coloridas que tomaram aos seus olhos o aspecto luminoso do arco-íris.
- Ah... e eu que pensava que me tinhas mentido!... Quanto dá isso, ao todo?
- Quinhentos e quarenta.
- É bonito! - murmurou Gabriel, acompanhando com olhos ávidos os quinhentos e quarenta rublos que tinham desaparecido novamente no bolso. - Ah, se eu tivesse esse dinheiro!
Suspirou com ar abatido.
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- Vamos festejar isto juntos, meu rapaz! - exclamou Tchelkach, com entusiasmo. - Não te preocupes. Terás a tua parte. Quarenta rublos, está bem? Estás contente? Ha? Queres recebê-los já?
- Se isso não te aborrece, claro, não me parece mal. Todo ele estremecia, a impaciência roía-lhe o coração.
- Boa piada! Não te parece mal, então? Pega lá, meu velho, peço-te por favor, fica com eles. Anda, faz-me esse jeito! Não sei onde hei-de meter tantas notas. Livra-me delas, pega, já te disse.
Estendeu a Gabriel algumas notas. Este agarrou-as com mão trémula, largou os remos e pôs-se a escondê-las no meio da roupa, com ávidas piscadelas de olho, aspirando o ar ruidosamente como se estivesse a beber um líquido demasiado quente. Tchelkach observava-o com um sorriso irónico. Mas Gabriel tinha retomado os remos e fazia vogar o barco nervosamente, precipitadamente, de olhos baixos, como se temesse qualquer coisa. Os ombros e as orelhas tremiam.
- Como tu és agarrado!... Não me parece bem... De resto, não é de admirar... um camponês... - exclamou Tchelkach, pensativo.
- Podem-se fazer tantas coisas com dinheiro! - respondeu Gabriel, numa súbita explosão de entusiasmo arrebatado. com um ritmo entrecortado, precipitado, como se perseguisse os pensamentos e agarrasse as palavras à passagem, pôs-se a falar da vida no campo com e sem dinheiro. O respeito, a abundância, os divertimentos!...
Tchelkach ouvia-o atentamente, com o rosto sério e os olhos enrugados por algum pensamento. Por vezes sorria com um sorriso satisfeito. De repente cortou o discurso de Gabriel:
- Chegámos!
A vaga ergueu o barco e depositou-o amavelmente em cima da areia.
- Vamos embora, meu velho. Agora acabou. É preciso arrastar o barco para mais longe para que o mar não o leve. Depois virão buscá-lo. Quanto a nós, adeus! Daqui até à cidade devem ser oito verstas. Voltas para a cidade, não?
O rosto de Tchelkach irradiava um sorriso ao mesmo tempo amável e manhoso; tinha todo o aspecto de um homem que teria pensado em qualquer coisa de muito agradável para si e de inesperado para o outro. com a mão no bolso fazia estalar as notas.
- Não. não vou... eu...
Gabriel arquejava, como se abafasse. Tchelkach olhou-o.
- Que tens tu para estar a fazer essas caretas?-perguntou ele.
- Não sei!...
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O rosto de Gabriel ora se ruborizava, ora escurecia; dançava sem sair do lugar, não se percebia bem se tinha vontade de se atirar a Tchelkach, dominado por um desejo que lhe era penoso pôr em execução.
O espectáculo daquela excitação impacientava Tchelkach. Esperava o que estava para acontecer.
Gabriel começou por rir de modo estranho, um riso que se parecia com um soluço. Mantinha a cabeça baixa. Tchelkach não lhe via a expressão do rosto, só lhe apercebia confusamente as orelhas que passavam do vermelho ao cinzento e vice-versa.
- Diabos te levem! - exclamou Tchelkach com um gesto de cansaço. - Palavra de honra, parece que te apaixonaste por mim. Tens arrepios como uma rapariga!...! Dói-te o coração por me deixares? Pateta! Fala, estás à espera de quê? Senão, vou-me embora!
- Vais-te embora! - exclamou Gabriel, quase num grito.
A margem arenosa e deserta vibrou com aquele som e as ondas de areia amarelada, lavadas pelas vagas, pareceram emocionadas. Tchelkach também estremeceu. De súbito Gabriel deu um salto, lançando-se-lhe aos pés, abraçou-lhe as pernas e atraiu-o a si. Tchelkach oscilou, caiu na areia e, rangendo os dentes, fendeu o ar com o punho cerrado na ponta do seu comprido braço. Mas não teve tempo de bater, detido pelo sussurrar tímido e suplicante de Gabriel.
- Amigo!... Dá-me esse dinheiro! Dá-mo, por amor de Deus! O que é isso para ti? Ganha-lo numa noite, numa só noite... Para mim seriam precisos anos. Dá-mo e eu rezarei por ti! Eternamente, em três igrejas, pela salvação da tua alma. Esse dinheiro, vais lançá-lo ao vento... ao passo que eu irei pô-lo na terra. Ah, dá-mo! Que queres fazer dele? Se ficares sem ele, numa única noite tornas a ser rico! Faz uma boa acção. És um vagabundo, não tens para onde ir... Ao passo que eu... Oh, dá-mo.
Tchelkach assustado, admirado e irritado, mantinha-se sentado na areia. Inclinado para trás, apoiado nas mãos, deixava-se estar assim, calado, e rolava os olhos ferozes contemplando o rapaz que, com a cabeça entre os joelhos dele, murmurava ofegante os seus pedidos. Por fim repeliu-o, pôs-se em pé, enfiou a mão no bolso e atirou-lhe com as notas.
- Toma! Come-as! - gritou, trémulo de excitação, de piedade e de ódio para com aquele escravo ambicioso. Depois de atirar com o dinheiro, sentiu-se um herói.
"Já te quis dar mais, de livre vontade. Ontem tive pena de ti, voltei a pensar na aldeia. Disse com os meus botões:
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Se eu lhe desse o dinheiro, isso poderia ajudá-lo. Estava à espera, a ver o que tu farias: pedirá, não pedirá? Mas tu... molengão, mendigo!... Como é possível que uma pessoa se torture assim, por dinheiro? Imbecis, malditos avarentos... vocês não se respeitam... vendem-se por trinta dinheiros!
- Amigo! Que Deus te abençoe!... Vês o que acontece? Estou rico! - guinchou Gabriel em êxtase, estremecendo e escondendo o dinheiro na roupa. - Ah, como tu és bom!... Nunca, nunca te esquecerei!... E pedirei à minha mulher e aos meus filhos que rezem por ti.
Tchelkach ouvia aqueles urros de alegria, olhava o rosto radiante, desfigurado pelo êxtase da cupidez, e sentia que ele, o ladrão, o vadio, o desenraizado, nunca seria assim ambicioso, tão vil e tão esquecido da sua própria dignidade. E esse pensamento e essa sensação, enchendo-o da consciência da sua liberdade, retinham-no junto de Gabriel, na praia deserta.
- Fizeste a minha felicidade! - gritava Gabriel. Pegando na mão de Tchelkach batia com ela no rosto.
Prosseguiu:
- Mas onde tinha eu a cabeça? Dizia comigo: quando chegarmos... apanho-o, dou-lhe com o remo... pan!... o dinheiro para mim e ele ao mar... estás a ver, ha, o que eu pensava de ti? Quem é que se vai preocupar com ele? Se o encontrarem ninguém irá procurar como alguém. Não é tipo que valha a pena, para fazerem barulho. É um inútil em cima da terra! Quem poderá pensar em perder tempo a investigar?
- Dá-me o dinheiro! - gritou Tchelkach, agarrando Gabriel pelo pescoço.
Gabriel tomou impulso uma, duas vezes; o outro braço de Tchelkach enrolou-se-lhe como uma serpente à volta do corpo... Ouviu-se a camisa a rasgar e Gabriel achou-se na areia, com os olhos enlouquecidos, agarrando-se ao ar com os dedos e agitando as pernas. Tchelkach, direito, seco, mostrava os dentes com um riso maldoso e mordente e os bigodes estremeciam nervosamente no rosto anguloso e agudo. Em toda a sua vida nunca tinha sido tão mal tratado e nunca se tinha zangado tanto.
- Então, és feliz? - perguntou a Gabriel através do riso. Voltou-lhe as costas e afastou-se em direcção à cidade.
Gabriel, mal ele tinha dado cinco passos, curvou-se como um gato, levantou-se e, com um gesto largo, arremessou-lhe um pesado seixo, gritando com raiva:
- Pan!
Tchelkach soltou um grito rouco, agarrou a cabeça com as duas mãos, oscilou para a frente, voltou-se para Gabriel e tombou com o rosto na areia. Gabriel ficou parado no
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lugar, com os olhos fixos nele. Viu-o mexer uma perna, tentar levantar a cabeça e esticar-se estremecendo como uma corda de viola. Então Gabriel fugiu para longe, para a estepe enevoada e secura, dominada por uma felpuda nuvem negra. As vagas marulhavam quebrando-se na areia, fundiam-se com ela e quebravam novamente. A espuma fervilhava nos borrifos da água.
Começou a chover. Uma chuva miúda no início depressa se transformou num aguaceiro denso, compacto, que descia do céu em jorros. Formavam uma fina cortina de água que escondeu atrás de si, repentinamente, a estepe e o mar. Gabriel desapareceu. Durante algum tempo não se viu nada, salvo a chuva e um comprido corpo de homem estendido na areia. Mas no meio da bátega Gabriel reapareceu, correndo. Voava como um pássaro; aproximou-se de Tchelkach, ajoelhou-se diante dele e pôs-se a voltá-lo no solo. A mão mergulhou numa mucosidade morna e vermelha... Estremeceu e recuou com o rosto transtornado e violáceo.
- Amigo, levanta-te! - murmurava ele ao ouvido de Tchelkach, sob o rumor da chuva.
Tchelkach veio a si e repeliu Gabriel, dizendo com voz rouca:
- Vai-te embora!
- Perdoa-me!... Foi o Diabo que... - cochichava Gabriel, trémulo, beijando a mão de Tchelkach.
- Vai... Desaparece! - rosnava este, com voz de estertor.
- Tira o pecado da minha alma... irmão! Perdoa-me!
- Maldito... Desaparece! Vai para o Diabo! - exclamou de repente Tchelkach sentando-se na areia.
Tinha o rosto violáceo, mau, os olhos perturbados fechavam-se como se tivesse vontade de dornir. - Que queres mais? - prosseguiu ele. - Já fizeste o teu trabalho... Desaparece! - Quis empurrar Gabriel, que remoía o seu desgosto, com o pé, mas não o conseguiu e teria caído novamente se aquele o não amparasse cercando-lhe os ombros com os braços. Os dois homens tinham agora os rostos ao mesmo nível. Ambos estavam pálidos e transtornados.
- Toma! - gritou Tchelkach, cuspindo nos olhos abertos do outro.
Gabriel limpou-se humildemente com a manga e murmurou:
- Faz o que quiseres... não direi nada... Mas perdoa-me por amor de Deus!
- Palerma!... Nem sequer és capaz de ser mau! - disse Tchelkach, com desprezo.
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Arrancou do fundo da camisa uma tira com que começou a enfaixar a cabeça, silenciosamente, rangendo os dentes de vez em quando. Depois perguntou entre dentes:
- Pegaste no dinheiro?
- Não peguei, irmão, não o quero. O dinheiro traz a desgraça. Não tenho necessidade dele.
Tchelkach enfiou a mão no bolso, tirou o maço, voltou a meter no bolso uma nota "arco-íris", e atirou com as outras a Gabriel.
- Pega nisso e vai-te embora.
- Não quero, irmão... Não posso pegar nelas... perdoa-me!
- Toma, faz o que te digo! - rugiu Tchelkach, rolando os olhos terríveis.
- Pegarei no dinheiro, se me perdoares! - disse timidamente Gabriel, deixando-se cair aos pés do outro, na areia húmida, generosamente regada pela chuva.
- Mentes, levarás o dinheiro, miserável! - disse Tchelkach, com segurança.
Levantou com esforço, pelos cabelos, a cabeça de Gabriel e pôs-lhe o dinheiro debaixo do nariz.
- Toma-o! Toma-o! Não trabalhaste para nada! Pega nele, não tenhas medo! Não te envergonhes de ter estado a ponto de matar um homem! Ninguém faz inquéritos para tipos como eu. Pelo contrário, ainda te agradeceriam quando soubessem. Toma, pega no dinheiro.
Gabriel viu que Tchelkach se ria e ficou com o coração mais aliviado. Apertou o dinheiro na mão, com força.
- Então perdoas-me, irmão? Não me ficas com rancor?
- perguntou com voz cheia de lágrimas.
- Meu velho! - respondeu Tchelkach no mesmo tom, pondo-se em pé cambaleante. - Porque te hei-de querer mal? Hoje apanhaste-me tu, amanhã te apanharei eu...
- Ah, meu velho, meu velho! - suspirou Gabriel com ar aflito, abanando a cabeça.
Tchelkach estava em pé, diante dele, e sorria com um sorriso estranho; o farrapo que lhe envolvia a cabeça tingia-se levemente de vermelho e assemelhava-se a um fez turco.
Chovia a cântaros. O mar trovejava pesadamente, as vagas esmagavam-se na margem com furor.
Os dois homens calaram-se.
- Então, adeus! - disse Tchelkach com uma inflexão irónica, começando a caminhar.
Cambaleava, as pernas tremiam-lhe e segurava a cabeça de tal maneira que dir-se-ia ter medo de a perder.
- Desculpa, irmão! - repetiu uma vez mais Gabriel.
- De nada! - respondeu friamente Tchelkach continuando o seu caminho.
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Partiu, cambaleante, com a cabeça segura pela mão esquerda e cofiando com a direita o bigode fulvo.
Gabriel seguiu-o com o olhar até ele desaparecer na chuva, cada vez mais densa, que as nuvens despejavam incessantemente em ténues fios, velando a estepe sob uma névoa impenetrável cor de aço.
Em seguida Gabriel tirou o boné molhado, benzeu-se, olhou para o dinheiro apertado na palma da mão, respirou profunda e longamente, escondeu-o na roupa e partiu com passo cadenciado e seguro ao longo da margem, para o lado oposto àquele em que tinha desaparecido Tchelkach.
O mar uivava, lançando pesados vagalhões contra a areia da margem, onde os quebrava, formando jactos de água e de espuma. A chuva chicoteava o mar e a terra com ardor... o vento mugia... Tudo em redor se enchia de uivos, rugidos, sons abafados... Atrás da chuva não se via o mar nem o céu.
Em breve a chuva e os borrifos do mar lavaram a mancha vermelha no lugar onde Tchelkach tinha caído, desfizeram os passos de um e de outro dos dois homens... Na praia deserta nada subsistiu do pequeno drama que acabava de se representar entre aqueles dois seres.
Publicado no número 6 da revista Russkae bogatstvo, em 1895. É a primeira obra de Gorki a aparecer numa revista.
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DOIS VAGABUNDOS
(ESTUDO)
Encontrei-os pela primeira vez, em Sebastópolis. Num grupo de uma vintena de homens, "esfomeados da Rússia", que tinham vindo implorar trabalho a um empreiteiro, as duas altas silhuetas magras destacavam-se nitidamente. O trabalho cobiçado era cavar um aterro. Notava-se à primeira vista que os dois rapazes eram vagabundos. A maneira de vestir, o seu aspecto e o ar de independência calma que conservavam entre aqueles esfomeados exaustos e empilhados no pátio do empreiteiro não enganavam. Este estava na escadaria exterior da sua bela casa decorada com estátuas e refrescada por uma cortina circular de choupos.
com o boné na mão, em pé, os esfomeados tinham uma expressão abatida, falavam em voz baixa, num tom suplicante. De cada dobra dos fatos andrajosos emanava a confissão melancólica da impotência que sentiam, desse acabrunhamento da alma que, esmagando o ser, o torna numa espécie de fantoche pronto a submeter-se instantaneamente à vontade alheia.
Um pobre diabo, baixinho, de barba negra e olhos vivos, embora velados por uma sombra de tristeza, falava ao empreiteiro.
Os cantos da boca estavam caídos e duas rugas profundas, que partiam da base do nariz, encontravam-se com eles, duas rugas dessas que dão aos rostos dos santos, nos ícones da escola russa, a sua expressão tão característica de sofrimento e fadiga. As palavras que proferia eram lentas, sem relevo.
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- Sê nosso benfeitor, contrata-nos. Aceitamos qualquer preço, teremos de nos contentar com um pedaço de pão, porque estamos sem força, com o estômago vazio.
Atrás dele ouviam-se suspiros profundos. O empreiteiro, um homem gordo e balofo, de meia-idade, com feições doentias e olhos cinzentos que piscavam, tamborilava meditativo no próprio ventre e examinava a equipa.
- Contrata-nos, por amor de Deus! Estamos aos teus pés!
- O mujique começou a prostrar-se, mas o empreiteiro interrompeu-o com um gesto aborrecido:
- Vá! Não é preciso nada disso! Está combinado, contrato-vos a todos. Meio rublo por dia, comida por vossa conta.
O mujique coçou a cabeça e, após um suspiro, olhou para os companheiros. No rosto triste de alguns dos seus camaradas passava uma espécie de sombra inapreensível. Suspiraram também. O mujique de barba negra tossiu e mudou o peso do corpo de um pé para o outro.
- Tens homens que ganham sessenta copeques e a quem dás de comer! - declarou timidamente.
- E então? - perguntou severamente o empreiteiro.
- Nada!... Não faríamos pior...
- Pior? Sei muito bem o que faço. Os de Smolensk são cabouqueiros de nascença.
- Quase todos os nossos são, mais ou menos...
- São o quê?
- São de Samara... de Penza, de Simb...
- Ouve: se queres trabalhar põe-te a caminho para o trabalho; se não queres desaparece daqui... O quê? bom! Quantos homens?
- Nós? Bem, somos dezoito... Mas aqueles três não são dos nossos.
O mujique apontou com a cabeça para o lado onde eu me encontrava com os dois vagabundos. O empreiteiro levantou-se, olhou para nós, e apareceu-lhe no rosto espesso uma expressão de raiva.
- Vocês ainda aí estão, canalhas? Malditos! Estão à espera de partir para as galés? Onde estão as pás? As picaretas? Ladrões, miseráveis. Se eu tivesse tido tempo, arranjava-vos um lugar à sombra e...
Um dos vagabundos, o mais baixo, de cara rapada, com a cabeça coberta por um chapéu ruço que já tinha perdido as abas, encolheu os ombros e declarou sem se perturbar:
- Está bem, Sérgio, não guinches... senão teremos de ser nós a levar-te ao tribunal por insultos. Estás a perceber? As tuas pás? As tuas picaretas?... Olha lá, barriga de unto, viste se fomos nós que levámos a porcaria das tuas pás?
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O empreiteiro pôs-se a saltar e a gritar ainda mais alto:
- Fora, patifes! Desapareçam. Ponham-nos daqui para fora, rapazes! Aos três... Ponham-nos daqui para fora!
Os outros olharam para nós, hesitantes, e afastaram-se para nos dar passagem. O outro vagabundo, um homem de olhos negros e sinistros, com a cabeça coberta por um quépi militar do antigo modelo, com uma barba grisalha, larga e ondulada, proferiu com voz cheia e sonora:
- Então não há trabalho?
- Desapareçam! Vão para o diabo que vos carregue!
- Não ladres, Sérgio, és capaz de rebentar! - aconselhou o da cara rapada. - Anda daí, Maslov.
O camarada de barba grisalha deu uma brusca meia volta e, mexendo os ombros com importância, saiu.
Os esfomeados abriram caminho diante daquela figura maciça e robusta. Os olhos olhavam para longe, algures, para além e por cima das estaturas avantajadas daqueles ribeirinhos do Volga.
- Bem, então adeus, Sérgio. Pode ser que rebentes daqui até lá, mas isso não me impedirá de te dar um dia uma boa tareia.
Dirigiu-se também para a saída. Segui-o, caminhando atrás dele.
Maslov vestia uma blusa de cretone azul e umas calças de fustão; o companheiro dele levava uma bata curta de cozinheiro, outrora branca, mas hoje cinzenta de sujo, enfiada directamente no torso nu, e calças cinzentas de quadrados.
- Cá estamos outra vez sem nada, Micha. Já é ter pouca sorte, hãl... Temos de sair daqui... e em velocidade!
- disse aquele que não tinha barba.
- Vamos embora... Mas, para onde? - perguntou o outro.
- Para onde, como? Para onde quisermos. Todos os caminhos estão abertos. Vamos para onde nos der na gana. Para Astracã, por exemplo. E passaremos pelo Kuban... Não falta muito tempo para a debulha naquela zona.
- Passaremos por Arkangelsk... Agora aproxima-se o Inverno por ali. Também poderíamos...
- Rebentar de frio? Às vezes acontece. Mas não precisas de te preocupar muito. com uma barba dessas o frio não entra contigo.
- Não temos mais nada?
- Referes-te à comida? Nada de nada. Estamos limpos!
- Então?
- Então, não sei. É preciso procurar. Mesmo a mais bela rapariga do mundo não pode dar mais do que aquilo que tem. O melhor que temos a fazer é...
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Calaram-se; o rapado assobiava enquanto caminhava, com a mão nas costas. O companheiro dele alisava a barba com uma das mãos e ajustava o cinto das calças com a outra.
- Aquele Sérgio, como se enfureceu!... Por uma pá... é um abuso! Olha, se tivéssemos agora a pá, bem poderíamos fazer cinco notas.
- A gritar que nos puséssemos fora!... E mais aquele que foi expulso por nossa causa... Aquele magricela que lá estava; viste-o?
- Vem aí atrás de nós - disse Maslov sem voltar a cabeça.
Sem dúvida também o camarada sabia que eu estava dois passos atrás deles: era impossível que não ouvisse o ruído dos meus passos e o bater do meu cajado no passeio, mas, evidentemente, não tinha motivos - por razões pessoais de o demonstrar.
- Ha! - exclamou ele, voltando-se e encarando-me com um olhar parado, cheio de suspeita, inquiridor, com os olhos castanhos de pupilas irónicas. - Então, meu velho, puseram-te fora por nossa causa? De onde caíste?
Disse-lhe de onde tinha caído.
O de cara rapada veio-se pôr a meu lado e imediatamente, sem cerimónia, apalpou o meu bornal.
- Ah, mas afinal tu tens pão! - descobriu ele com espanto.
Maslov parou também e, com a mesma incredulidade, encarou-me com os seus olhos sinistros.
- Tenho... E também tenho dinheiro!
- Dinheiro!-maravilhou-se o rapado.-Muito dinheiro?
- Oitenta e quatro copeques! - declarei eu orgulhosamente.
- Dá-me vinte! - disse Maslov sem hesitar. Pousou-me no ombro a pesada mão peluda, sem tirar
de mim os olhos iluminados por um clarão ávido.
- Combinado. Façamos o caminho juntos! - propus eu.
- Está certo! - gritou ele. - Que tipo! Bem jogado! És um ás! Só te peço uma coisa: tens dinheiro, tens pão...
- E duas libras de toucinho!
Subi uns degraus na estima das minhas novas relações. Maslov riu durante um bom momento e afirmou com segurança absoluta:
- Vamos comer tudo até ao coiro.
- Duas libras de toucinho!... - extasiava-se o outro.- E com tudo isso vieste pedir trabalho ao Sérgio!
- Por que não? - perguntei, sem perceber onde ele queria chegar.
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- Para quê? Desde que tens de comer e tens dinheiro! Acaso andas a juntar para comprar um prédio?... Se nós tivéssemos outro tanto, direitos ao tasco: chá, uma garrafa, pãezinhos! E ala!
Uma hora mais tarde nada restava dos meus capitais a não ser uma agradável sensação de calor vivificante no estômago e uma leve névoa na cabeça. Estávamos sentados numa taberna cheia de fumo. À nossa volta flutuava um rumor pesado e enebriante e nuvens de fumo de tabaco; pela janela aberta víamos o mar azul e cintilante sob a luz solar.
Maslov olhava-o e o da cara rapada, que se chamava Stepok, com os cotovelos apoiados na mesa, conversava comigo. Depois de ter abordado um bom número de problemas materiais já estávamos a falar da alma, e Stepok desenvolvia, para minha informação, as suas ideias acerca do assunto.
- Pois eu, meu velho, penso que a alma depende da maneira como a vida lhe sopra em cima, essa é que é a verdade. Se a vida sopra como uma carícia, não há nada a dizer, a alma é clara e alegre, mas se sopra como o vento de Setembro, a alma fica molengona, triste. O homem não pode fazer nada, não é aí chamado para nada. Cresce para um lado e a alma para o outro. Vamos supor, por exemplo, que ele cresceu, digamos, até aos vinte anos... Nesse momento, é necessário muito pulso para se ser o seu próprio chefe. Nessa época, a alma é delicada... como uma corda de violino. É preciso ser paciente, quer dizer... não lhe permitir que se ponha a vibrar por um sim ou por um não... É preciso saber segurá-la. Se não se é capaz... assunto arrumado! De repente é ela quem domina, ou faz de ti uma bola bem apertada, ou te puxa em todas as direcções... rasga-te em pedaços... estás a compreender? Porque a vida é como uma máquina... é preciso lidar com ela com prudência... aqui há umas rodas dentadas, acolá dentes pontiagudos, além toda a espécie de coisas, pesadas, mais de vinte quilos, que voam... Atenção, se não te pões a pau ainda acabas desfeito, nem os ossos se te aproveitam. Não, uma alma sem a caixa não anda bem... é como um comissário de polícia sem gabinete.
Tendo concluído com aquela comparação pitoresca, Stepok puxou pela blusa do camarada e dirigiu-se-lhe:
- Micha! Então, vamos lá partir para o Kuban? Que achas? Aqui não arranjamos vida, toda a gente está farta de nós.
- Vamos lá. Eu até gosto de caminhar! - disse Maslov, sem se voltar.
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- Eu sei. Então vamos. E tu, companheiro? Vens connosco? - perguntou-me Stepok.
- vou também até lá.
- Magnífico! Assim seremos três. Bem jogado. Encheremos o saco de dinheiro. Além disso, eu conheço lá uma adepta do sábado, com uns olhos negros...
- Pertence à seita? - perguntei.
- Claro; é uma adepta da velha fé... Casou-se, mas continua a gostar de mim como nos velhos tempos.
- Julguei que era realmente uma adepta do sábado...
- disse eu.
- Já te disse que sim - garantiu Stepok. - É sempre ao sábado que ela me leva a passar a noite a casa dela.
Riu-se. Maslov continuava a olhar o mar ao longe, com os cotovelos apoiados no peitoril da janela. Os cabelos eram compridos, chegavam até aos ombros, e isso, assim como a blusa, faziam-no parecer um pintor.
Uma hora mais tarde já estávamos na estrada de Yalta; a nossa decisão era ir até Kertch, seguindo pela costa.
Ao pôr do Sol parámos para passar a noite. Tínhamos escolhido um maravilhoso nicho na montanha, tapado na frente com uma cortina de verdura natural. Parecia especialmente destinado, pela natureza amável da Crimeia, a servir de abrigo nocturno aos vagabundos. A avaliar pela camada de folhas que o juncava e pelos vestígios de fogo, não éramos os primeiros hóspedes.
Durante o trajecto Stepok tinha enchido os bolsos com maçãs e pêras, e até, depois de se ter afastado de nós durante uma meia hora, tinha regressado com um grande pedaço de pão branco obtido por qualquer meio misterioso. Agora estirava-se sob os arbustos e aniquilava alegremente as maçãs, fazendo caretas como um macaco, o que convinha muito bem à sua fisionomia tosca, irregular, invadida por pêlos duros e apertados. Maslov, em silêncio, juntava ramos. Eu lavava-me na água gelada de um regato que descobrira ali perto.
A sombra caída das árvores formava arabrocos à nossa volta.
- Diz-me cá, vais acender uma fogueira? - perguntou Stepok ao companheiro.
- vou.
- Mas está calor!
- À noite vai estar frio.
- Bem, está bem...
1 Alusão a uma seita religiosa que celebra o sábado em vez do domingo.
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Maslov desaparecia e reaparecia com enormes braçadas de ramos secos. A fogueira apareceu de repente e o fumo cinzento que enchia o nosso alojamento estremeceu e começou a rastejar nas pedras, em sombras espessas; ora subia, ora descia.
Maslov estava calado e sorria, olhando para o fogo.
- Agora somos assim como uma espécie de bandidos!
- proferiu ele, subitamente.
Olhei-o e fiquei espantado: parecia-se mais com uma criança sonhadora que com um bandido. Os olhos negros já não eram sinistros, e, apesar da sua profundidade, só luzia neles uma meiga simplicidade e algo de muito triste. As rugas do sorriso arredondavam-lhe o oval do rosto e suavizavam aquele desagradável aspecto amuado que, um pouco antes, estragava esse rosto ainda bastante fresco e belo apesar da papeira sob os olhos e a rede vermelha das veias que sobressaíam na pele curtida e espessa das faces.
- Criança! Sempre a brincar! - gracejou Stepok. Estás a ver, Máximo, como pode viver a alma dum homem? Metade branca como a neve e a outra metade negra como a fuligem. Porquê? É o que te volto a repetir: porque a vida sopra de maneiras diferentes: dum lado sopra bem quente e do outro completamente frio. O resultado é um homem ser como uma criança quando está sozinho e sossegado, e em público ser um verdadeiro diabo.
- Já falaste de mais! - observou Maslov, aborrecido, afastando-se do fogo.
Através dos arbustos que fechavam a nossa entrada podia-se ver a fita da estrada pedregosa que eles bordejavam. Para lá da estrada, a montanha caía, abrupta; por detrás da escarpa apareciam os cimos das árvores já iluminados pela Lua, e ao longe, atrás delas, no horizonte, jazia o mar imóvel, espelhando como um cristal.
As palavras de Stepok tinham despertado um eco ruidoso. Não havia qualquer outro rumor.
- Disse alguma coisa que te irritasse? Absolutamente nada... O Máximo é que dizia..., o homem, na opinião dele, deve ter muito cuidado com a sua alma... quer dizer, deve-se instruir... ou, como dizias? E eu creio que o homem não tem nada a ver com essa história. É como uma pena. Se o vento sopra dali, bem, ele irá para ali também. Conclusão: a conclusão é esta: estar-se nas tintas para tudo. Sem se irritar, flutua-se mais alegremente, sem rebentar a cabeça com problemas. Para que serve torturarmo-nos? Quer se viva de uma maneira ou de outra, é o mesmo: acabaremos por morrer. E, ainda por cima, não fazemos ideia do dia em que isso possa acontecer: pode ser já, pode ser amanhã. As
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autoridades não podem dizer nada sobre isso. Olha, eu, uma vez, quando ainda trabalhava em Moscovo...
- Já contaste isso! E mais do que uma vez! Agora farias melhor se te calasses! Ouve, repara neste sossego. Não se ouve tremer nem uma folha...
Maslov tinha começado num tom exasperado e terminou com voz sonhadora e melancólica.
- As folhas que façam o que quiserem. Eu quero falar de mim! - disse Stepok, sem se deixar deter, cada vez mais excitado não se sabia por quê, enquanto o seu companheiro se torna cada vez mais pensativo e sombrio. - Quero dizer que estou aqui. Não é isso? Estou vivo e tudo o que se lhe segue... Micha! Vamos cantar uma canção, uma do Volga, ha! Não te quero ver assim. Nós, os de Moscovo, temos boa disposição e gostamos de a ver nos outros. E é justo. De resto, já há muito tempo que não cantamos. Vamos lá. Vai-te fazer bem.
Stepok tinha abandonado subitamente o seu tom alegre e animado trocando-o por um tom de lamento implorativo.
- Podemos cantar... Isso não faz mal! - concordou Maslov, prosseguindo após um momento em que se aproximou do companheiro: - Vamos lá. Começa!
- A que nós preferimos? - perguntou Stepok imediatamente.
Maslov acenou afirmativamente com a cabeça. Estavam sentados na minha frente, do outro lado do fogo, e os rostos ora desapareciam por detrás do fumo ora reapareciam iluminados pelas chamas. Stepok ergueu-se nos joelhos, tocou a garganta com a mão, atirou um pouco a cabeça para trás e aplicou um dedo na maçã-de-adão.
Ah, Dispersa...
começou ele, com voz de tenor, depois de um olhar alegre na minha direcção. Apoiando frequentemente o dedo na maçã-de-adão produzia longas notas vibrantes, em trilo.
Dispersa, tu que és o vento, As nuvens que ameaçam!
pediu Maslov em recitativo e, estranhamente, teve um movimento de cabeça como se não esperasse que o vento acedesse ao seu pedido.
Sopra e dispersa...
prolongou Stepok com um batimento da mão que fez em seguida planar no espaço. Erguia a voz e ordenava: Dispersa o meu profundo desgosto...
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Maslov arrastava a melodia. E, por etapas, as palavras da canção criavam essa melancólica melodia russa interrompida por gritos breves que força sempre a imaginação do ouvinte a ver um agonizante, os seus lamentos desesperados, os seus extingue. Maslov cantava com voz de barítono formada e maleável; havia nela, por vezes, algo de rachado e de rouco, mas isso não estragava o canto, antes pelo contrário, acrescentava-lhe ainda mais sinceridade e um pouco dessa beleza simples que é a mais verdadeira.
Para que brilhe o luminoso Sol...
prosseguia Stepok subindo cada vez mais, com os olhos semicerrados e ruborizando-se sob o esforço.
Para que eu possa ter a minha vida...
rogava e lamentava-se Maslov, também ele com voz mais alta.
Seja descuidada, livre... alegre...
A voz artificialmente vibrante de Stepok quebrou-se enquanto a de barítono de Maslov modulava com força e beleza:
Ah! Alegre, livre e alegre...
Stepok levantou-se e, com um gesto fatigado do braço, lançou com toda a força da garganta, com os olhos completamente fechados:
Fatigadas, no céu correm as nuvens... As nuvens que ameaçam...
e estas últimas palavras eram nostàlgicamente encadeadas por Maslov:
O desgosto devorou-me o coração.
- A-ah! - suspirou ruidosamente Stepok, sem abrir os olhos.
Maslov tinha os olhos abertos e estava lívido; sentado, com as pernas estendidas e o tronco atirado para trás, apoiava as mãos no solo. O peito arqueado erguia-se para o alto e voltava a cair; da boca aberta corria a onda de palavras da canção, nostálgicas, soluçantes... e cada vez mais sonoras.
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Os meus olhos não se apartavam dele um só momento e eu sentia aquela sensação estranha e poderosa que tão justamente define a expressão: "prende-nos o coração".
A voz dos dois companheiros ora se fundia numa única corrente, ora se desdobrava erguendo-se cada uma separadamente, matizada e sublinhando a expressão dada pelo outro.
Maslov não fazia um único movimento. Stepok, em pé, balançava-se de um lado para outro. O seu rosto áspero respirava beatitude, enquanto o belo rosto de Maslov tinha tiques nervosos e parecia empalidecer cada vez mais como se o sangue se lhe escapasse do peito ao mesmo tempo que a voz. Os melancólicos olhos negros fixavam-se em mim, mas eu sentia que ele não via nada, nem a mim, nem à montanha em que se apoiava... Era evidente que o peito daquele homem estava cheio a transbordar com uma dor pesada, corrosiva, e que o canto era o único remédio para a apaziguar um pouco. Ao mesmo tempo que exprimia a sua tristeza por meio do canto, entoava quase o ofício dos mortos sobre os seus próprios despojos... Uma crispação percorria-lhe o rosto por momentos e eu preparava-me para o ver chorar de um momento para o outro..., sentindo então vontade de fugir para longe daquele homem tão forte, tão belo e atormentado até às lágrimas.
Por vezes a canção soluçava mais suavemente, depois com mais vigor... e a cada nova nota assemelhava-se mais à salmodia do ofício dos agonizantes. Maslov inclinava-se para trás, acentuando a curva do torso como se, com essa atitude, desejasse facilitar a saída dos sons que o enchiam. Stepok executava floreados e espantosas repetições de versos, manobrando a maçã-de-adão; sem abrir os olhos, abanava a cabeça da direita para a esquerda, rolava os ombros, agitava os braços no espaço com um gesto amplo... vivia todo inteiro dentro do canto.
- Como isto é belo, meu Deus! Que poesia! Feu au montagne et Ia chanson . Parecem gnomos! Quero vê-los!
- ouviu-se pronunciar uma voz sonora de mulher.
- Eh! Quem está a cantar? Venham cá! - gritou uma voz baixa e autoritária de aristocrata.
A canção interrompeu-se. Maslov abriu completamente a boca e olhou para a estrada com ar estúpido... Stepok sobressaltou-se, mostrou os dentes e enrugou os olhos com ar maldoso.
1 Em francês no original.
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Através dos ramos viam-se dois cavalos: num deles estava sentada uma senhora, magra, com um véu branco, e do outro saltava para o chão um homem de fato claro. Atirou as rédeas para a sela e voltou-se para a senhora.
- Espera aí um bocado! - cochichou Stepok; subitamente atirou-se para a estrada, a toda a velocidade, com grande ruído dos ramos dos arbustos e soltando um uivo selvagem.
- Aí vamos, Excelência!
- Ai! - gritou a senhora.
- Pára aí, demónio... Pára!
Mas os dois cavalos, espavoridos, deram um salto e fugiram a galope. De longe chegavam até nós, juntamente com o ruído dos cascos, os gritinhos da senhora.
- Agarra-o, Ana! - começou a gritar o homem, erguendo a chibata para Stepok.
- Pode ser que não caiam pelo monte abaixo! - disse Stepok, esquivando o golpe.
Inclinou a cabeça no sentido dos sons dos cavalos. O senhor voltou-se e lançou-se para lá, em passo de corrida, levantando os joelhos bem alto. Stepotc começou a rir à gargalhada e sentou-se no meio da estrada.
- Reparem como ele foge! Oh! Oh! Grande animal! Maslov, sombrio e impassível, mantinha-se calado.
O barulho dos cascos dos cavalos e da corrida do senhor desvaneceu-se ao longe.
- Preguei-lhe um susto, ha, Micha! Olha o que eu ganhei... estás a ver?
Mostrou ao companheiro uma chibata de boa qualidade e um lenço de rendas, bordado. O outro olhou-o em silêncio.
- A bela senhora voava, e o tipo, ha... como ele galopava!... Parecia um touro!... com estas bugigangas sempre faremos meio rublo.
- Deixa isso... Não interessa! - disse Maslov com um gesto de aborrecimento.
- Deixar isto!... Porquê? Eles ouviram a canção, por isso estamos pagos. Talvez tivéssemos feito melhor em não os assustar e lhes pedir qualquer coisa! Ha? Mas não me lembrei, paciência!
- Metes-me nojo, Stepok! Devias ter vergonha! - gritou Maslov irritado.
- Vergonha de quê? De lhes pedir qualquer coisa? Eles ouviram a canção.
-Calas-te ou não? Se não te calas vai ser uma chatice!
Dizendo isto, Maslov insultou vigorosamente o companheiro, mostrou-lhe o punho fechado e olhou-o com olhos ferozes, subitamente injectados de sangue.
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- Aí está ele desarvorado! - soprou Stepok com expressão céptica. - E tudo isso por causa daquela nobreza! Bolas! Ainda não há muito tempo que isso te aconteceu? Por que não trataste tu disso?... Lembras-te da outra vez, em Odessa, em casa do francês... e o resto... que patuscada!
- Stepok, chega! Vou-te dar uma carga de porrada!
- disse o outro suavemente, num tom que não deixava dúvidas.
Stepok deitou-se no chão e disse como que a desculpar-se:
- Não vais bater no teu camarada!
A canção tinha desaparecido e com ela o ambiente que fizera nascer. A fogueira quase não brilhava. Maslov quebrou ramos e, com ar sonhador, pôs-se a lançá-los para cima dos tições. Stepok não tardou a ressonar. Eu olhava para o mar através dos arbustos e o rosto de Maslov através do fumo. O mar estava calmo e deserto... e Maslov pensativo. Sombras que nasciam do fogo percorriam-lhe a barba, as faces e a testa.
- Que tens tu para me olhar com esses olhos? - disse-me ele secamente.
Era bastante claro que pretendia ficar só consigo mesmo. Voltei-me e deitei-me. Durante a noite ouvi no meu sono uma canção suave e, abrindo os olhos, vi-o: mantinha-se sentado na mesma posição, balouçava a cabeça e, olhando o fogo, cantava em voz baixa.
De manhã, quando acordei, já não tinha amigos. Tinham partido enquanto eu dormia e levado consigo duas das camisas que tinha no bornal, deixando porém, nobremente, a terceira. Imaginei que deviam ter mudado de parecer, renunciando a ir ao Kuban, e lamentei-o.
Contratado numa aldeia cossaca do Kuban para o tempo de duração da debulha, parti num carro para a estepe, em companhia de um grupo de raparigas cossacas, desenvoltas, e do companheiro de caminho, georgiano. As raparigas cantavam e gracejavam. A aldeia desapareceu ao longe, desenrolando-se à nossa volta a vastidão da estepe.
- No tambor está um tipo que deve ser russo... Um verdadeiro diabo! Tem uns olhos negros, pequenos, é barbudo e colérico, não pode ser pior! Se os que fornecem se arrastam um bocado solta logo urros. Trabalha que parece que tem diabo... Grita como uma trombeta! E temos de empurrar, de empurrar sempre! O mecânico guincha que a máquina se estraga, mas o Totienko salta logo: "Eh, querias receber o aluguer sem usar a máquina! -" diz ele. E o russo berra: "- Vamos, toca a andar?" - São insultos
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e palavrões que nunca mais acabam...-contava uma das raparigas que já tinha trabalhado na estepe.
- Oh, sim, em matéria de insultos, os russos são especialistas! - confirmou uma alta e forte, de cabeleira afogada numa trança enorme, de faces gordurosas e vermelhas, que, depois de termos passado a porta da quinta, devorava maçãs empilhadas em respeitável quantidade numa dobra da saia.
- Além disso, não são nada bonitos! Todos magrizelas, pele e osso! - declarou com um ar de desprezo uma pequena serpente mexida, magra, de cabelos negros.
- Nem todos! - contrariou num tom breve uma terceira, de cabelos castanhos, rosto oval e expressão decidida.
As companheiras começaram a rir, olhando-a.
- Vocês vêem como defende o que é dela? Apareceu ao longe um pouco de fumo.
- Olha, lá está a debulhadora, como ela sopra! - disse a rapariga dos olhos castanhos.
- Estás contente por chegarmos? - perguntaram-lhe.
- Claro que estou contente. Qualquer pessoa fica contente.
- É o que se vai ver! - disse uma das companheiras, com expressão de cepticismo.
- Ao fim e ao cabo, os da aldeia são melhores que estes.
- Cada um tem os seus gostos. O que "abunda não vale nada! - teimou a dos olhos castanhos.
Para a frente cresciam os montes dourados dos feixes e, depois deles, a chaminé negra da debulhadora. Minúsculos seres fervilhavam em torno deles, erguia-se um rumor no ar, risos, e o toc-toc característico da máquina... Uma nuvem de poeira e de gluma, misturada com o fumo que saía da chaminé, mantinha-se imóvel no ar, cobrindo com um barrete negro um oásis de animação no deserto amarelado que se estendia em todas as direcções.
As raparigas saltaram para fora do carro, ainda antes de ele chegar, e começaram a correr para os redutos de palha dispostos nas proximidades e que cegavam, de tal modo luziam sob o sol.
- Vamos à sopa! - gritou alguém, em qualquer parte. O ruído da máquina interrompeu-se. Os homens, cobertos
de poeira e de talos de palha, alguns com grandes óculos seguros com fios, dirigiram-se todos para o mesmo lado. Alguém, aproximando-se por detrás de mim, deu-me uma palmada no ombro.
- Maslov!
- Então também vieste?... Bem jogado! Nós, no outro dia..., bem... tínhamos mudado de opinião... mas, estás
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a ver, acabámos por vir cá parar na mesma... Onde havíamos! de ir?
- O Stepok também veio?
- Veio. Está em Kanskaia; fica a quinze verstas daqui. Vida de boémia, tem lá uma companheira. Já forneceste uma debulhadora? Sabes disso? Bem, então serás tu quem me vai fornecer... Todos estes tipos daqui não tem categoria. Trabalham a morrer, estes palermas; o trabalho não os entusiasma. Mas eu não posso; não é o meu género. De resto, é a própria máquina que está sempre a triturar e a pedir mais. Quero meter-lhe material nas goelas até que se estrangule... Para que ela também saiba o que é a vida dura, essa maldita. Devora e eu forneço-a e volto a fornecê-la! "Anda, come, rebenta, peida-te!"; mas aquela porcaria é sólida... Dá cabo de... digamos, doze mil por dia. Já alimentei duas e rebentaram... Quebraram! Ploc! Acabou! O mecânico ladra, o dono guincha, e eu divirto-me... divirto-me à parva! Ah, os gajos inventaram aquela porcaria de máquina! Alemã, próvavelmente, com aquela goela... Mas se ela se aguentar, amanhã vou regalá-la! Meto uma haste de ferro no meio dos feixes... Crac! Quebro-lhe todos aqueles dentes de porca!
- Mas por que diabo não gostas das máquinas? - perguntei eu, apontando para a debulhadora com o queixo.
- Não sei explicar. É assim... São feitas de madeira, sem sombra de uma ideia, e parece que vivem. Mete-se-lhe um feixe na goela e devoram-no; a mão, e rasgam-na; uma criança, trituram-na. Se dependesse de mim proibiria as máquinas, menos, talvez, as dos barcos a vapor e dos comboios... essas ainda vá, seguem o seu caminho a bufar e transportam-nos... Mas as outras, é tudo uma canalha! Vivi numa fábrica de tecidos, em Tomachevo... Havia lá um sortido completo de toda essa porcaria. Rolam, batem... fazem tudo sozinhas e o homem, ao lado daquilo, é o rei dos palermas... é vexatório! E em pouco tempo... dzim, vlan, assunto arrumado! Um homem estava ali e pouco depois só restavam uns pedaços... Vi muita coisa assim!... E o mais grave é que se fica estúpido por causa delas. Fica-se ali ao lado, interminavelmente, e chega-se a um ponto em que de repente se sente vontade de fazer mal... Sem qualquer motivo, assim, de um momento para o outro, apetece revolver tudo, destruir... qualquer coisa, sabe-se lá o quê! A raiva é tal que se poderia desfazer uma criança só com os dentes... é como te digo, e é por isso, precisamente, que entre os operários de fábrica há toda a espécie de patifes e de exaltados... e isso dá assassínios.
Estávamos ambos sentados ao pé de um monte de feixes, já semidesfeitos; ratos do campo, assustados, agitavam-se no meio da palha; todo o monte era sonoro de ruídos e do
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remexer dos roedores. Maslov estava excitado e os olhos negros brilhavam com uma forte cintilação. Bocados de palha eriçavam-lhe a barba, os bigodes e as sobrancelhas; daquela silhueta sólida, magnífica, emanava algo de poderoso e de saudável.
- Uf! - suspirou. - Gosto bastante de trabalhar aqui, na estepe. Há espaço!... Há ar... Mas o pior é que as pessoas não prestam... são uma lixeira. São ávidas: cada um tenta chupar-te o sangue, e mesmo os que estão fartos não deixam de te dar uma dentada, quanto mais não seja para te lembrar que existem. E pediu trabalho a quem?, ao patrão ou à patroa? O Stepok arranjou a ser contratado pelos dois, primeiro pelo patrão por dez rublos por semana, e recebeu um rublo por conta... A seguir arranjou maneira de ser contratado por ela e recebeu também um adiantamento: dois rublos; à noite deixou a aldeia e seguiu viagem! Qualquer dia encontrará pela frente um vivaço e acabará por levar uma tareia que lhe servirá de emenda. O resultado foi que os patrões se atiraram a mim: "Estás a ver, esse teu camarada, que patife!" Disse-lhes que não tinha nada com isso, não tinha sido eu que o educara. Não há dúvida: Stepok portou-se como um cevado... mas eles próprios são uns patifes, também. Ficaram muito contentes por este ano haver muitos esfomeados e em lugar de dois rublos por dia pagam oitenta ou mesmo sessenta copeques. E a colheita é formidável, e o trigo não dá menos, certamente, do que no ano passado. Portanto, que mal lhes poderia fazer pagar o trabalho este ano ao mesmo dos anteriores? Avarentos! Se tivessem de trabalhar com as mãos deles, veriam...
Era evidente que Maslov não encontrava há muito tempo com quem falar e agora desabafava, sem sequer se dar ao trabalho de verificar se eu o estava a ouvir e sem olhar para mim.
- Por que não vais comer? Não te apetece?... A sopa aqui, meu velho, é sempre a mesma porcaria. Bolas de farinha e mais bolas de farinha como se fosse para porcos. Mas no ajuste só faltava prometer galinha, e ela, a gorda, era igual: "Quanto à comida, dizia ela, aqui fazem-se bem as coisas." Saco de vento! Viste os olhos dela, meu velho? Ha? Belos olhos... é assim que eles te levam a aceitar tudo. Ele é um cossaco bem lançado. São gente sólida, por aqui. Não há abortos nem defeituosos, como nós temos na Rússia... Queres vodka? Tenho uma garrafa de litro e meio. Trouxe um quarto. Aqui é cara. Vamos lá, sou eu que ofereço. Não serei eu que esqueça a maneira como nos deste de comer em Sabastópolis, e tudo o que tu tinhas. Era bonito. Nós somos assim, nós, os da estrada: se há, a gente serve-se, se não há, vai-se procurar. Como os pássaros. Não, não e
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a mesma coisa... porque o pássaro é dono de si próprio, tem a sua casa, a sua família... ao passo que nós não temos nada... Conclusão: devemos juntar as mãos ainda mais solidamente. Há muitos tipos como nós, e todos os anos aumentam de número. Este ano, então, é um aumento formidável... uma data de gente abandonou a terra... Tenho vontade de dormir; se passássemos pelas brasas, ha? Depois levantamo-nos e vamos encher o bandulho do Anticristo. Estendemo-nos em cima dum feixe de palha, a conversa" prolongou-se ainda um pouco e adormecemos profundamente.
- Levantar! Levantar! Para o tambor! A máquina já trabalhava. Um carro de feixes aguardava junto dela, outro vinha a caminho. Maslov saltou rapidamente para o tambor e gritou-me:
- Vamos a isto! Fornece! Mais duas raparigas aqui para desatar os feixes! Ponham-se em cima do carro. Rápido! Lancem para aqui!
Por sorte, eu tinha forquilhas estupendas e, recordando-me do desejo de Maslov, comecei a lançar os feixes às raparigas com força e rapidez. O meu companheiro de equipa, um tipo loiro de Viatka, um morto-de-fome mas rapaz ágil e pouco desejoso de se deixar bater em velocidade, ofegava e esforçava-se por atingir com um feixe uma das raparigas que o apanhava no ar com uma forquilha.
- A toda a guita, meus filhos! - gritava de vez em quando Maslov, exaltado.
Quando olhava para ele via-o a arrancar, quase, das mãos das raparigas as espigas desatadas, que enfiava no tambor inclinando-se muito e arriscando-se a meter lá, também, a barba.
- Vamos, vamos, vamos! Mexam-se, depressa! Vamos dar de comer a esta maldita! - resmungava ele, todo vermelho.
- Abranda! Esta porcaria embola! - gritou alguém.
- Vai ser tudo comido!... Saltem, raparigas!... Máximo, pega nas forquilhas! Mexam-se, preguiçosos! Dêem-me material!
As quatro raparigas, submersas, debatiam-se febrilmente, apresentando a Maslov, timidamente, os feixes desatados. Ele alargava as espigas e precipitava-as no tambor, numa larga camada igual; os olhos negros brilhavam-lhe, estava carrancudo, fervia de raiva, daquela raiva premeditada, vingadora, que atinge sempre os seus fins.
- E hop! - lançava o homem de Viatka ao atirar os feixes.
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Tinham desatrelado e levado o cavalo do nosso carro, passavam-nos feixes de outro carro alinhado pelo nosso. O suor inundava-me, mas, excitado pelos gritos de Maslov, manejava a minha forquilha com grandes gestos, com todas as minhas forças, entregando-me de todo o coração àquela operação bizarramente poética e selvagem que consistia em empanturrar um monstro de madeira que gemia de avidez glutona. Maslov, vermelho, mostrando os dentes, gritava continuamente com voz rouca:
- Mexam-se, raparigas!... Mexam-se, suas lesmas!... Enterrem-nas debaixo dos feixes, rapazes!
Mesmo sem isso, as raparigas já não tinham tempo de desfazer os laços.
- A palha já não passa... Isso está entupido!... Raio de maluco! Abranda! - gritava-se algures, do outro lado da máquina.
- Vocês são ases! - gritava o patrão cossaco. - Vai haver de beber... um balde de vodka! Para ti o primeiro copo, homem do tambor. Obrigado! Assim é que está bem!
- Mais devagar, malditos!... Terei de parar a máquina!
- gritava o mecânico.
- Não façam caso. Ela é capaz de comer tudo... Dá uma ajuda, meu velho Máximo... Mexe o rabo, loirinho!... Eh, raparigas!... Ainda vos dou cabo do canastro, lesmas! gritava Maslov, encolerizado.
O carro oscilava sob os meus pés, parecia que tudo em redor tremia e pretendia elevar-se do chão. A máquina, com uma pressa febril, batia os maxilares e crepitava. O barulho ensurdecia e enebriava. A maldita máquina, efectivamente, sem compaixão de nós, devorava os feixes a uma velocidade assustadora. Se eu estivesse no lugar de Maslov também sentiria vontade de lhe quebrar os queixos de glutona. As raparigas, com as saias arregaçadas até muito alto, agitavam-se no cimo como loucas, postas fora de si pela excitação de Maslov; ele, mangas arregaçadas até aos ombros, curvado sobre o tambor, com os cabelos revoltos e rubro, tornava-se pavoroso na sua exaltação selvática... E subitamente baixou-se de mais e todo o corpo lhe estremeceu como se estivesse a ser puxado violentamente para baixo. Uma coisa quente salpicou-lhe as mãos e o rosto; o meu companheiro soltou um grito abafado, saltou abaixo do carro e pôs-se a correr não se sabia para onde. A máquina roncava febrilmente...
- Meu Deus! - gemeu uma das raparigas com voz exasperadamente sonora e perfurante.
Maslov mexeu-se ainda um momento e imobilizou-se.
- Ai! Parem a máquina! - gritou uma outra.
- Alto!... Mecânico. Alto! - gritaram outras vozes.
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Eu quis saltar para a plataforma da debulhadora, mas, tendo calculado mal o impulso, tombei no chão. A máquina roncou triunfalmente e parou... Fez-se um silêncio angustiante... As pessoas agitavam-se sem falar ou falando em voz baixa.
- Está morto?
- Caramba! Não se morre disso.
- Calem-se! - gritou o patrão. - Não se metam onde não são chamados. Levem-no imediatamente para a aldeia.
- com este calor!... Era preciso ligá-lo... E há toda essa poeira...
- Lá se farão os curativos!
- Desceram Maslov. Estava pálido e tinha perdido os sentidos. Seguraram-no pela cabeça, pelos pés e pelo ombro direito. No lugar do braço esquerdo balouçava-se uma espécie de coto vermelho de onde saíam, esguichando e pingando, fios de sangue. Entre os fragmentos de carne, informes, apareciam pedaços de ossos brancos e pontiagudos; podiam-se ver as veias.
- Hum! - disse o mecânico, pequeno e de bigodes.
- Como a máquina o esmagou! Até os ossos, em bocadinhos, de uma só vez. Esta máquina é forte.
Manifestamente satisfeito com o trabalho do seu monstruoso brinquedo, teve um sorriso sonhador e, levantando a cabeça, afastou-se de Maslov. Este, de uma palidez apavorante, não fazia um gesto.
- Pousem-no!
Maslov foi estendido no chão.
- Bem, vou ligá-lo - disse uma mulher em voz baixa. Imediatamente, diante das pessoas, começou a despir-se.
Tirou o vestido e a seguir a camisa; depois, sem pressa especial, voltou a enfiar o vestido e começou a rasgar a camisa em tiras.
- Uma camisa limpa. Só a vesti esta manhã, é a pura verdade.
Debruçou-se sobre o ferido e ergueu-lhe o braço despedaçado.
- Misericórdia, santo Deus!
Maslov abriu os olhos, voltou a cabeça para o lado direito como que para dizer que não queria ver o braço dilacerado e perguntou:
- Perdido, a sério!
- Em migalhas, meu caro! Tens de te habituar à ideia, já não tens braço - disse a mulher com ternura.
- Tem cuidado com isso... Não estás a amarrar nenhum sapato velho! - disse Maslov, quando ela começou a ligá-lo.
Baixei-me para a ajudar.
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- Sabes o que vais fazer. Máximo? - disse-me ele.
Vais até Kanskaia ter com o Stepok. Em frente à igreja está a casa do cossaco Macário. Vai lá e dize-lhe que... que ela me arrancou um bocado, a maldita... Tive pouca sorte... Mas então, diz-me cá, ela safou-se, aquela filha da mãe, não quebrou os dentes nos meus ossos?... Vai depressa... Sê um irmão. Sem ele vou rebentar aqui... Não tenho família... Vai lá, ha? Não é longe.
- bom, então adeus, meu velho. vou lá.
- Não voltas aqui?
- Não, não tenciono voltar.
- Adeus! Se escapar...-fez um gesto de dúvida e teve um sorriso - voltaremos a ver-nos. Bem sabes os caminhos que seguimos... Adeus.
Sorriu-me novamente, com os olhos negros onde já se extinguira há muito a exaltação, e onde só brilhavam agora a angústia e a dor. Pus-me a caminho.
Cheguei a Kanskaia às sete horas da tarde, encontrei imediatamente a casa do tal Macário e entrei. Na borda do poço estava sentada uma jovem cossaca, a entrançar os cabelos.
- Que queres? - perguntou ela. Expliquei o que queria.
- Vai ver no pomar... Mas deixa ficar aí o cajado, se não os cães fazem-te em bocados.
Atirei o pau e entrei no pomar. Apareceram dois cães que me cheiraram as pernas, mas concluíram, certamente, que eu não era merecedor do seu interesse e afastaram-se com indiferença para os arbustos. A voz de Stepok soou, muito próxima.
- Dizes que não se pode? Não se pode, um raio. Palerma chapado! Pode-se. Nós, podemos tudo... tu és meu compadre? Então também podes. Pensas ser meu camarada e dizes que não é assim? "Quem está aí?" "Sou eu! Deixa-me passar aqui a noite." E tu dizes logo que sim, dizes-me: "Entra, bom homem! A minha mulher está nas dores do parto, mas entra." Foi assim, ha! Entro, a tua mulher estava nas dores do parto e tu disseste que eu seria o padrinho, porque confiança é isso... É... E depois! Um amigo!... Tu, aqui!... Caramba!... É um fantasma! Estou a sonhar? - disse-me ele ao ver-me.
Estava sentado à sombra, sob os ramos duma cerejeira, em frente de um cossaco ruivo em mangas de camisa, ébrio, que abria estupidamente para mim olhos redondos e espantados de coruja. Diante deles, em cima de uma espécie de trapo colorido, estava um barril de vinho, um monte de maçãs, um cozido e legumes.
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- Macário! Estás a ver este homem? - gritava Stepoíc, empurrando-me contra o cossaco.
- Vejo! - suspirou o outro, piscando os olhos com ar incompreensivelmente aflito e doloroso, abanando a cabeça como se estivesse prestes a chorar.
- Espera aí, Stepok...-disse eu.
- Estás a vê-lo? - prosseguiu Stepok, sem me prestar atenção, enquanto me empurrava por detrás, solidamente, com os punhos e os joelhos. - Beija-o... porque vocês são os últimos irmãos de sangue... Sabes quem é aquele homem? Anda lá, cara de palha!
Finalmente Stepok atirou-me com um empurrão contra o cossaco, este abriu os braços e emitiu um saboroso estalido com os lábios. Stepok forçou-me, fez com que eu me curvasse, bati com o nariz nos bigodes molhados do cossaco que se agarrou a mim, instantaneamente... Mas libertei-me das mãos dele.
- Muito bem. Agora já está! - felicitou-se Stepok.- Agora é assunto arrumado. Já sois amigos. Meu caro Macário, aprecia este homem... sabes quem é? O filho de um comerciante de Moscovo! Estás a ver? Bebeu quatro casas de dois andares e sete lojas guarnecidas dos melhores produtos. Milhões! Percebeste?
- Percebi. Ele bebeu tudo... até ao cu das calças! disse o cossaco com uma expressão de tristeza.
- Ah, ah! Ele é que bebe até ao cu das calças! Quer dizer, até ao momento em que a comadre lhe tira as calças... e o resto! Sem calças um cossaco não pode ir à taberna! Mas em casa há que chegue para lhe torcer as tripas até aqui. Percebeste? - explicou-me Stepok.
- Maslov morreu! - disse eu, finalmente, aproveitando um momento de pausa.
Stepok calou-se e olhou-me com um sorriso desolado e incrédulo.
- Foi estropiado por uma debulhadora! - acrescentei.
- Ah! Eu tinha razão! - uivou Stepok, tornando-se pálido e agitando estupidamente os braços. - Bem lhe dizia que não subisse lá para cima. Mas ele tinha a sua ideia. Dizia que não gostava das máquinas. Então deram cabo dele?... Os cossacos, ha?... Foram eles, esses bêbados? Stepok batia com o dedo na fronte do compadre e, na mesma ocasião, deu-lhe um pontapé nas costelas. - com seiscentos diabos! Que fazer agora?... Que posso eu fazer?... Onde está o Maslov? - Furioso de repente, virou-se contra mim. - Que estás a fazer, palerma, aí calado? Fala! Como é que aconteceu? Ele quebrou a máquina, ha? E os gajos bateram-lhe. Bateram-lhe, ha? E agora está morto! Por que te calas, animal? - Fazia uma careta terrível e erguia-se
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diante de mim com os punhos fechados. - Fala, grande estúpido!... O quê?... Basta, não chateies! Eu estou bêbado, estou ou não?
Mexia-se agitadamente, esfregava as mãos, batia-as uma contra a outra, enxugava o rosto, puxava pelos bigodes, empalidecia, ruborizava-se. A embriaguez abandonava-o. Eu não tinha pressa de lhe dizer a verdade, curioso de saber em que medida o efeito produzido em Stepok pela notícia da morte do companheiro dependia da embriaguez, e de saber o que restaria depois da embriaguez se dissipar. Os olhares de Macário dirigiam-se alternativamente para um de nós e, subitamente, desatou a gemer com guinchos selvagens.
Stepok pousou distraidamente os olhos nele, em mim, depois no seu cavalo e, sem uma palavra, deixou-se cair no chão. Eu mantinha-me calado, perguntando a mim próprio o que iria sair daquilo tudo, e à espera que o cérebro de Stepok estivesse totalmente liberto dos fumos do vinho.
- Por que choras? - perguntou ele ao cossaco, com admiração.
Este uivava e esfregava a cara com as mãos.
- Por que choramingas, ruivo do diabo? - repetiu Stepok, severamente.
- O homem está morto! - disse o cossaco, através das lágrimas.
- Que importância tem isso para ti? Cala a boca! O homem não era teu! Brutamontes! Cala-te, já disse!
- Apetece-me chorar... Meu Deus, tem pena dos homens que estão mortos!
- Ainda acabo por te dar uma tareia! O cossaco chorava e abanava a cabeça.
- Vamos sair daqui. Máximo. Vamos partir para qualquer parte.
Stepok articulou esta frase num tom resoluto, levantando-se. As pernas estavam firmes e a excitação desaparecia pouco a pouco. Continuou, no entanto, ainda durante um momento a encher os pulmões de ar que expulsava ruidosamente a seguir, gesticulando com energia.
- Já curei a bebedeira? Ha! Oh, raio de cabeça a minha; parece que rebenta... Há três dias a beber!... Já não compreendo nada!... Essa história é verdadeira? Está realmente morto? Fala. meu velho!
Stepok parou e encarou-me com atenção.
- Ouve, meu caro, não brinques com isso... - proferiu ele num tom significativo, com um gesto dos ombros que prometia muito e com os punhos cerrados -. Não brinques, senão dou-te cabo do canastro. Percebes? E agora, começa pelo princípio.
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Então contei-lhe tudo, de ponta a ponta, e, à medida que eu fazia o relato, ele recobrava a calma. Terminei e ficou carrancudo, pensativo, em silêncio. Atrás dos arbustos, a dois passos, o cossaco bêbado agitava-se e gritava:
- Compadre! Eh, compadre! Os cães vieram... e estão a comer tudo. Stepane! Talvez não queiras esta carne, os cães estão a comê-la... Cht! Isso é do compadre! Cht!
- Em resumo... a máquina triturou-lhe a mão! Não tem graça nenhuma... raio de história... Ir ter com ele? Talvez já esteja morto, a esta hora... definitivamente... Ah, caramba!... vou lá. Levaram-no para o hospital?... Hum, num!... vou. E tu... para onde vais? Segues o teu caminho. Bem, continua... vai com Deus! Diz-me cá, tens pena do que aconteceu ao meu amigo? Claro! E então eu? Há cinco anos que vivíamos como se fôssemos um só... Adeus, meu velho... Vais para Beslane? Então voltaremos a ver-nos. Lá, pergunta por Kostia, o jogador. É um tipo bestial... Um amigo nosso, cantor... Simplesmente, muito ladrão. Fala-lhe de Maslov. Queres que dê os teus votos a Maslov? Claro... bom, vou-me já embora... mas ainda tenho de falar com o compadre um bocadinho... o compadre... E tu, então segues caminho! Passa aqui a noite e vai depois. Então o braço ficou realmente perdido? Tss!... A partir do ombro!... Aquele engenho diabólico devia ser queimado. Ha? É uma coisa simples, mete-se-lhe um fósforo no bandulho e acabou... O trigo ardia todo, ao mesmo tempo... Ha? Que espectáculo, arderia tudo à volta! Bem, põe as botas a caminho... Adeus, meu velho... Também seguirei esta noite.
A chama tinha-o abandonado, falava com a cabeça baixa, muito baixa. As frases curtas caíam como pedras e de vez em quando, após algumas palavras, olhava-me. Havia nos olhos dele muito daquilo que me convencera do seu afeto pelo camarada. Separámo-nos depois de um vigoroso aperto de mão.
III
Em Beslane, estação onde, nessa época, a construção do caminho-de-ferro de Vladikavkaz, estava apenas a começar, não encontrei Stepok.
Informei-me acerca de Kostia, o jogador, e soube que esse personagem tinha feito desaparecer do seu lugar algumas porcas e cavilhas, tendo sido em consequência disso metido na prisão, mas que "eram ninharias e que a coisa não seria grave para Kostia". Depois de me ter comunicado essa agradável notícia, o homem, esfarrapado e de espírito mordaz, que me relatara o essencial das manobras ilegais de Kostia, explicou:
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- Não será grave para ele! Porquê?... Porque o citado Kostia morreu na prisão, com o tifo... Percebes?
Eu tinha percebido e, tendo-me regozijado com a sorte de Kostia, deixei Beslane dois dias mais tarde seguindo para a Transcaucásia.
Passou cerca de um ano. Vindo de Bacu, eu atingira Astracã. Enquanto esperava um barco para subir o Volga fui dar uma volta pela cidade e encontrei-me em Kuntum. Vestia um sobretudo de quadrados com presilha, completamente novo, cobria-me a cabeça um chapéu igualmente novo, e, nos pés, calçava sapatos de borracha, novos como o restante... Um aspecto muito civilizado... No nariz óculos escuros.
Uma mulher vendia ao ar livre uma carne suspeita, de cor acinzentada, que exalava vapores ácidos. Stepok estava em pé, junto dela, sem nada na cabeça, magro mas tão alegre como sempre, correias de moço de fretes nas costas e um arpéu na mão; levava à boca "grandes pedaços daquela mercadoria perfumada e pagava-a, à falta de melhor, com trocadilhos. Inicialmente, envergonhado do meu aspecto civilizado, hesitei em o abordar... mas dominei-me e aproximei-me; por precaução tinha tirado os óculos, metendo-os no bolso.
- Stepok!
- Essa agora!... Estás formidável!... Caramba. Que boa piada! É de andar a tombos! Porque te aperaltas assim? Excelência! Dai ao vosso camarada uns copeques para comprar pão e um copo de vinho!
com olhos enrugados numa expressão vingativa e provocante, esboçava com uma das mãos a continência militar e estendia-me a outra, com a palma aberta voltada para mim.
Após semelhante acolhimento, o meu sobretudo civilizado não podia deixar de corar; os meus sapatos entristeceram, o meu chapéu enrugou-se; tudo isso aconteceu de repente e eu senti-me cansado, abafado e envergonhado... Stepok tirou a mão e piscou-me o olho.
- Quanto juntaste? Mil? Diz-me onde, para eu lá ir. Ivanovna! - disse ele, interpelando a vendedora que abria para mim, com uma curiosidade selvagem, olhos de lagostim, negros, redondos e bulbosos. - É um camarada! Juro-te! Deus é minha testemunha, viu-nos juntos, um ao lado do outro, quando vadiávamos pelo mundo e tudo o mais... Que a peste me arranque as tripas se minto. Pergunta-lhe e ele próprio te dirá. Como ele está elegante, estás a ver?
Stepok, varado por uma estupefacção cómica, acocorou-se diante de mim.
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- Meu Deus! Como poderia eu circular convosco na mesma terra? vou passar a caminhar em cima das mãos para se notar a diferença.
Dirigi a Stepok algumas palavras calorosas e de reprovação e convidei-o a acompanhar-me ao restaurante, mas isso não o impressionou muito.
- Ivanovna! Repara nisto. vou ao restaurante... beber champanhe e comer... rouxinóis assados! Ivanovna!
Stepok berrava de modo a ensurdecer todo o bairro, fazia macaquices no chão e (ó infame!) esfregava as suas., grossas alpergatas nas abas do meu sobretudo civilizado...! Eu sentia-me perfeitamente inepto. À nossa volta juntava-se multidão.
- Vamos lá, Stepok, e é se queres! - disse eu, severamente.
- Entendido, Vosselência!
Saltou para o meu lado e pôs-se a caminho, lançando olhares orgulhosos para todos os lados.
Oh, ele sabia-se vingar com finura, e, durante a dezena de metros que tivemos de percorrer para chegar ao restaurante, fez-me a vida tão desagradável como se fossem dez quilómetros. Mas as portas da estalagem fecharam-se finalmente atrás de nós. Sentei-me a uma mesa e perguntei:
- Queres chá? O rosto fechou-se imediatamente e olhou para mim com
ar desconfiado.
- Ou vodka.
- Porque é que tu... -começou ele, interrompendo-se.
- Então? - perguntei.
- Dá-me um rublo e eu vou-me embora! - disse ele, num tom abafado.
Persuadi-o, porém, a ficar e interroguei-o a respeito de Maslov. Olhou-me e apareceu-lhe no rosto um sorriso,um sorriso que me era familiar e que me levava a ter esperança de que nos íamos entender e ele ia cessar de zombar de mim.
- Lembras-te de Maslov, ha?... Olha, morreu... Roeu-o a gangrena... Está morto!... Quando o enterraram era uma mancha negra, parecia um limpa-chaminés. Morreu! É o fim de nós todos. Aquilo era um camarada... para mim... Era como um irmão.
Calou-se novamente e pareceu ficar espantado e mais pequeno... Serviram o chá e o vodka. Stepok olhava para aquilo e sorria, mas o seu ar céptico já tinha voltado.
- Bem, conta-me como foi que enriqueceste. É interessante?
Contei-lhe o que ele queria. Ouvia-me atentamente, sem dizer nada. Quando acabei, disse-me:
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- Em resumo... Que é que isso quer dizer? Afinal, não eras vagabundo por temperamento... mas só por curiosidade.
- Sim...
- Ora vejam lá!... Também se pode fazer isso por curiosidade. E agora regressas... Não te agradou? Assunto arrumado!
- Oh, ainda quero vagabundear.
- Bem... não sei... Quer dizer, vagabundeias, muito simplesmente, e mais nada.
- Que queres dizer com isso?
- Nada!... Eu... - mordiscou o bigode - Passeias por aí, sem nenhum fim e voltas para casa? Voltas para o canto da lareira!
- Não, eu tinha um fim em vista. Queria saber que espécie de pessoas...
- Para quê?
- Para saber.
- Claro! E mais nada! Só saber e mais nada!
- Talvez venha a descrever isso... num jornal.
- Num jornal? E isso servirá para quem... esse conhecimento? A não ser que seja para te fazer valer: "reparem no que sou capaz!". É isso?
Tinha calculado certo. Devia fazer-lhe justiça: ele conhecia a alma humana e - digo-o em consciência - a pergunta perturbava-me bastante.
- De um modo geral, não... Para que as pessoas saibam. -Saibam o quê? Que nos conhecem?
Stepok teve um sorriso aberto e ergueu as sobrancelhas com ar maldoso .
- Sim, vocês...
- É isso. Então é isso!
Levantou-se e olhou-me com olhos enrugados e uma expressão zangada.
- Sabes o que te digo. Máximo?
- O quê?
- É uma canalhice, uma grande canalhice! - proferiu com convicção.
Ameaçou-me com o punho e saiu sem me dizer adeus.
Fiquei ali, a olhar as chávenas do chá e a garrafa do vodka... Perguntava a mim mesmo por que razão Stepok se tinha atirado a mim. Tinha razão ou não?
- Dá-me um rublo! - disse ele passando a mão pela janela.
Dei-lhe o dinheiro.
- Oh, oh! estás rico, não há dúvida! três duma vez!... Caramba! Diz-me uma coisa: por acaso não costumas remexer na fossa da merda, por curiosidade?
- Não.
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- É pena!... Poderia dar-te uma ajuda! Mergulhar-te-ia lá até ao fundo. E desapareceu.
Publicado em 1894, nos números 212, 217, 219 e 222 da Sam.arskaia Gazeta.
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O MEU COMPANHEIRO
Encontrei-o no porto de Odessa. Aquela estatura entroncada, compacta, e aquele rosto de tipo oriental enquadrado num belo colar de barba atraíam a minha atenção já há três dias. Passava diante dos meus olhos a todo o momento: via-o estacionar durante horas no molhe de granito, metendo na boca o punho da bengala de junco, contemplando tristemente, com olhos longos em forma de amêndoa, as águas sujas do porto. Passava por mim dez vezes por dia, caminhando com passos de homem sem preocupações. Quem era? Comecei a observá-lo. Quanto a ele, como que decidido a zombar de mim, aparecia-me diante dos olhos cada vez com maior frequência e, finalmente, habituei-me a distinguir ao longe o fato claro, de quadrados, segundo a última moda, o chapéu preto, o andar indolente e o ofhar obtuso e apagado. Aqui, no porto, entre os silvos dos vapores e das locomotivas, o ruído das correntes, os gritos dos operários, a azáfama confusa e raivosa que dominava tudo, ele era positivamente inexplicável. Todos corriam, cheios de poeira, suados, soltando gritos e palavrões; todos cansados, esgotados. No meio daquela barafunda laboriosa, lentamente, a estranha silhueta ia e vinha com um rosto mortalmente aborrecido, indiferente a tudo, estranha a todos.
Por fim, no quarto dia, à hora de jantar, encontrei-me face a face com ele e decidi descobrir a todo o custo quem era. Instalado perto dele, com uma melancia e pão, pus-me a comer e a examiná-lo, procurando o meio mais delicado de iniciar a conversa.
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Ele estava em pé, encostado a um monte de fardos de chá, lançando à sua volta olhares sem objectivo definido e tamborilando no junco como se fosse uma flauta.
Era-me difícil, a mim, vestido como um vagabundo, com as correias de estivador às costas e sujo de pó de carvão, dirigir a palavra àquele janota. Mas, com admiração minha, percebi que os olhos dele não me abandonavam e cintilavam com uma luz desagradável, ávida, animal. Decretei que o objecto das minhas observações estava esfomeado e, depois de um rápido olhar à minha volta, perguntei-lhe amavelmente:
- Quer comer?
Sobressaltou-se, mostrou num esgar ávido dos lábios uma infinidade de dentes apertados e sólidos, e lançou também à sua volta um olhar inquiridor.
Ninguém nos prestava atenção. Meti-lhe nas mãos meia melancia e um pedaço de pão branco. Pegou em tudo e desapareceu: instalou-se atrás do monte de mercadorias. De vez em quando emergia de lá a cabeça coberta com o chapéu que atirara para a nuca, mostrando uma testa morena e suada. Um sorriso franco iluminava-lhe o rosto e dirigia-me misteriosos piscar de olhos, sem parar de mastigar. Fiz sinal de que me esperasse, fui comprar carne, trouxe-a, ofereci-lha e mantive-me junto dos fardos de chá de modo a esconder o janota aos olhares estranhos. Até ali tinha comido com avidez, continuando a olhar para todos os lados como se temesse que lhe viessem tirar um pedaço; agora começava a comer mais calmamente, mas mesmo assim a uma tal velocidade, com tanta sofreguidão, que eu me sentia mal ao ver aquele homem vencido pela fome e voltava-lhe as costas.
- Obrigado! Muito obrigado!
Sacudiu-me o ombro, depois agarrou-me a mão, apertou-a e começou a sacudi-la com igual violência.
Cinco minutos mais tarde já me estava a contar quem era.
Era o príncipe Chakro Ptadzé, georgiano, filho único dum rico proprietário de Kutaís; tinha sido empregado numa repartição das estações de caminho-de-ferro da Transcaucásia e tinha partilhado o alojamento com um camarada. Esse camarada tinha desaparecido subitamente, levando consigo o dinheiro e os objectos preciosos do príncipe Chakro que imediatamente se pôs a persegui-lo. Soube, absolutamente por acaso, que o camarada tinha tirado um bilhete para Batum; foi para lá. Mas em Batum verificou que o outro tinha partido para Odessa. Pediu o passaporte emprestado a um certo Vano Svanidzé, barbeiro (um camarada com a mesma idade mas com sinais diferentes), e pôs-se a caminho para Odessa. Apresentou uma queixa na polícia
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por roubo, prometeram-lhe encontrar o culpado, esperou quinze dias, gastou todo o dinheiro que tinha para comer e havia já dois dias que não tinha nada que pudesse trincar.
Ouvi aquele relato semeado de palavrões, olhei-o, acreditei na história e tive pena do rapaz: ia nos vinte anos mas, sob o ponto de vista da ingenuidade, podia-se-lhe dar muito menos. Várias vezes, e com profunda indignação, referira-se à sólida amizade que o ligava ao seu camarada ladrão, que lhe tinha levado objectos tão preciosos que, por causa deles, o severo pai de Chakro ia certamente estripar o filho com o seu longo punhal se eles não aparecessem. Pensei que se não ajudasse aquele jovem a cidade o engoliria gulosamente. Sabia que acasos fúteis contribuíam, por vezes, para alimentar a classe dos vagabundos com novos recrutas; naquele caso, o príncipe Chakro tinha as máximas probabilidades de cair nessa estimável mas pouco estimada corporação. Tive vontade de o ajudar. Propus a Chakro que fosse à polícia pedir um bilhete de, comboio. Desamparado, declarou-me que não iria. Porquê? Acontecia que não tinha pago o aluguer do quarto onde se alojara e que, quando o montante lhe tinha sido reclamado, ele batera em alguém; após o incidente largara as velas e supunha, não sem razão, que a polícia não lhe ia agradecer pelo não pagamento do aluguer bem como pelas vias de facto. De resto, já não se recordava muito bem se tinha dado um, dois ou mais socos.
A situação tornava-se complexa. Resolvi trabalhar até ter economizado dinheiro bastante para lhe pagar a viagem até Batum, mas, infelizmente, os dias seguintes demonstraram que isso não se realizaria tão cedo porque Chakro, dotado dum apetite feroz, devorava tanto como quatro pessoas pelo menos.
Nessa época os salários no porto eram muito baixos, por motivo do afluxo de "esfomeados", e, num salário de oitenta copeques, nós os dois comíamos sessenta. Além disso, eu já resolvera, ainda antes do meu encontro com o príncipe, ir até à Crimeia, e não desejava ficar muito tempo em Odessa. Propus então ao príncipe Chakro parir comigo, a pé, nas seguintes condições: se eu não lhe encontrasse um companheiro para o conduzir a Tiflis, levá-lo-ia eu mesmo; se lhe encontrasse um, iria cada um para o seu lado.
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II
Quando chegámos a Kherson já o conhecia bem: era um rapaz duma ingenuidade orgulhosa, extremamente pouco evoluído, alegre quando estava saciado, melancólico quando tinha fome, um animal vigoroso e sem maldade.
Pelo caminho falava-se do Cáucaso, da vida dos proprietários georgianos, dos seus divertimentos, das suas relações com os camponeses. Os relatos eram interessantes, belos à sua maneira, mas o narrador ia-se desenhando neles, a meus olhos, sob um aspecto pouco agradável. Contou-me, por exemplo, a seguinte história:
Alguns vizinhos tinham-se reunido em casa dum príncipe bastante rico para festejarem qualquer coisa; bebeu-se vinho, comeram-se bolos turcos, espetadas de fígado de carneiro, pilau, etc., e depois o príncipe conduziu os seus hóspedes à cavalariça. Selaram os cavalos. O príncipe escolheu o melhor e lançou-se através dos campos. Era um cavalo fogoso. Os outros gabavam-lhe a rapidez e a qualidade, e o príncipe voltou a partir a galope. Mas subitamente surgiu um camponês montado num cavalo branco e bateu o príncipe em velocidade, ultrapassou-o e pôs-se a rir orgulhosamente. Era uma vergonha para o príncipe diante dos hóspedes!... Ergueu os sobrolhos severamente, chamou o camponês e, quando ele se aproximou, fendeu-lhe o crânio com o sabre matando o cavalo com um tiro de revólver no
Pilau: papas de arroz cozido, quase sempre com carneiro. (N. do T.) "
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ouvido; depois foi declarar às autoridades o que tinha feito e enviado para as galés.
Chakro relatava-me tudo aquilo num tom de compaixão pelo príncipe. Esforcei-me por lhe provar que nada havia ali que merecesse piedade, mas respondeu-me doutoralmente:
- Não há muitos príncipes e há muitos camponeses. Não se deve julgar um príncipe apenas por um camponês. O que é um camponês? Isto! - apontava-me um monte de terra - Mas um príncipe é como uma estrela!
Discutimos e ele zangou-se. Quando se zangava mostrava os dentes como um lobo e os traços do rosto endureciam.
- Cala-te, Máximo! Não conheces a vida do Cáucaso!
- gritou ele.
Os meus argumentos eram impotentes perante a sua ingenuidade. O que era claro aos meus olhos era ridículo aos dele. Quando o encurralava, demonstrando a superioridade da minha opinião, em vez de reflectir, limitava-se a dizer-lhe:
- Vai ao Cáucaso, vive lá. Verás que digo a verdade. Todos procedem assim, portanto é preciso proceder assim. Por que razão te havia de acreditar se és o único a dizer: "não é assim que se deve fazer", ao passo que há mil outros a afirmar que é assim mesmo?
Eu mantinha-me então em silêncio, sentindo que não era com palavras mas sim com factos que se poderia replicar a um homem que está persuadido de que a vida, tal como decorre, é perfeitamente justa e equilibrada. Silenciei. Ele, com estalidos dos lábios satisfeitos, falava da vida caucasiana, cheia de uma beleza selvagem, cheia de fogo e de originalidade. Aqueles relatos interessavam-me e encantavam-me, ao mesmo tempo que me revoltavam e exasperavam pela sua crueldade, a sua veneração da riqueza e da força bruta. Perguntei-lhe um dia se conhecia a doutrina de Cristo.
- Evidentemente! - respondeu, com um encolher de ombros.
Mas a seguir descobri que ele sabia apenas isto: tinha havido o Cristo que se revoltara contra as leis judaicas e os Judeus tinham-no crucificado por causa disso. Mas era um Deus e por isso não morreu na cruz, subiu ao Céu e deu então aos homens uma nova regra de vida...
- Qual? - perguntei.
Olhou-me e interrogou-me com um espanto zombeteiro.
- És cristão? bom! Eu também! Na terra quase todos são cristãos. Então para que servem as perguntas? Vês como vive todo o mundo? É essa a lei de Cristo.
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Fora de mim, pus-me a contar-lhe a vida de Cristo. A princípio ouvia-me com atenção, depois, pouco a pouco, deixou correr e, finalmente, bocejou para finalizar.
Percebendo que o coração dele não me ouvia, dirigi-me ao seu espírito e falei-lhe dos benefícios da solidariedade, da ciência, da justiça, etc. Todos os benefícios que me foi possível lembrar. Mas os meus argumentos pulverizaram-se contra o muro de pedra da sua concepção do mundo.
- O que é forte faz ele próprio a sua lei. Não tem necessidade de aprender nada, mesmo cego encontrará o seu caminho! - retorquiu-me calmamente o príncipe Chakro.
Sabia ser consequente consigo mesmo. Isso chamava a minha estima, mas era selvagem, cruel, e eu sentia subir em mim, algumas vezes, um sentimento de ódio contra ele. No entanto, não perdia a esperança de encontrar um ponto de contacto entre nós, um terreno no qual nos poderíamos juntar e compreender.
Tínhamos ultrapassado Perekóp e estávamos a aproximar-nos de laíla. Eu sonhava com a costa da Crimeia. O príncipe trauteava estranhas canções entre dentes e sentia-se melancólico. Todo o nosso dinheiro tinha desaparecido e por agora não se via maneira de ganhar outro. Caminhávamos em direcção a Feodosia, começavam nessa época os trabalhos de construção do porto.
O príncipe dizia-me que também ia trabalhar e que, depois de termos o dinheiro no bolso, iríamos por mar a Batum. Ali, ele conhecia muita gente e arranjar-me-ia imediatamente um lugar de porteiro ou de guarda-nocturno. Batia-me amigavelmente no ombro e garantia-me, com um tom protector, sublinhando as frases com saborosos estalidos com a língua:
- Organizar-te-ei uma destas existências! Tss, tss! Poderás beber o vinho que quiseres, comer o carneiro que te apetecer! Casarás com uma georgiana, uma georgiana gorda, tss, tss, que te arranjará belos pratos e te dará filhos, tss, tss, muitos filhos. 4,
Aquele "tss, tss," inicialmente admirou-me, depois começou a exasperar-me, e, por fim, provocava-me raivas frias. Na Rússia, é com aquele ruído que se chamam os porcos; no Cáucaso, serve para exprimir o deslumbramento, a compaixão, a satisfação, o desgosto.
Chakro já tinha seriamente estragado o seu fato à moda, e os sapatos já estavam rebentados em vários sítios. Tínhamos vendido a bengala e o chapéu em Kherson. Para substituir o chapéu tinha comprado um velho boné de empregado do caminho-de-ferro.
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Quando o pôs na cabeça pela primeira vez, colocou-o bastante à banda e perguntou-me:
- Fica-me bem? Ha?
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Já estávamos na Crimeia. Tínhamos passado Simferopol e caminhávamos para lalta.
Eu seguia mudo e fascinado pela beleza daquele canto da terra afagado pelo mar. O príncipe suspirava, afligia-se, lançava à sua volta olhares desgostosos e esforçava-se por encher o estômago com estranhas bagas. A tomada de contacto com as suas qualidades nutritivas não se fazia sem sobressaltos e, com frequência, dizia-me com raiva:
- Se me voltarem do avesso como uma luva, que diabo tenho eu dentro? Ha? Diz-me lá!
A ocasião para ganhar algum dinheiro não aparecia e, dado que não tínhamos uma única moeda para comprar pão, nutríamo-nos de frutos e de esperanças. Chakro começava a endereçar-me censuras a respeito da minha preguiça e da minha "sonhomania", para utilizar a expressão que usava. Em geral tornava-se penoso, mas, sobretudo, aborrecia-me com relatos acerca do seu fabuloso apetite. Ficou,,, estabelecido que, depois de ter almoçado, ao meio-dia, um "pequeno carneiro" acompanhado por três garrafas de vinho, ele podia, sem se forçar demasiado, limpar às duas horas, para merendar três travessas dum misterioso "tchakhakhbili" ou de "tchikhirtma", uma panela de pilau, uma preparação de fígado de carneiro "tanto quanto quiser" e muitos outros pratos caucasianos. Por cima disso bebia vinho "tanto quanto quisesse". Ao longo do dia fazia a descrição das suas preferências e dos seus conhecimentos gastronómicos. Durante essas evocações emitia estalidos com a língua; os olhos
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cintilavam, mostrava os dentes, fazia-os ranger aspirando ruidosamente e engolindo uma saliva de esfomeado que jorrava abundantemente dos seus lábios eloquentes.
Um dia, nos arredores de (alta, consegui trabalho para limpar um pomar cheio de ramos quebrados, caídos pelo chão. Obtive o adiantamento de um dia de salário e comprei meio rublo de pão e de carne. No momento em que trazia o alimento, o jardineiro chamou-me e eu afastei-me, depois de ter entregue as compras a Chakro que tinha recusado o trabalho a pretexto de lhe doer a cabeça. Quando regressei, uma hora depois, tive de me convencer de que Chakro, ao gabar o seu apetite, não tinha ultrapassado os limites da verdade: das minhas compras não restava uma única migalha. Era uma conduta indigna dum camarada, mas eu não disse nada, com grande prejuízo meu, como o futuro o veio a provar.
Chakro tinha notado o meu silêncio e aproveitou-o à sua maneira. A partir desse momento começou algo de espantosamente absurdo. Eu trabalhava, enquanto ele, recusando o trabalho sob toda a espécie de pretextos, comia, dormia e aborrecia-me. Era para mim um triste e ridículo espectáculo ver aquele sólido rapaz quando, fatigado, ao terminar o trabalho, ia ter com ele em qualquer canto sombrio onde me esperava; apalpava-me com os olhos, com uma tal avidez! Mas o que era ainda mais triste e vexatório era ver que ele zombava de mim por eu trabalhar. Ria porque tinha aprendido a mendigar. Quando começou a pedir esmola ficou perturbado, no primeiro momento, mas depois, quando nos aproximávamos duma aldeia tártara, começava a preparar-se diante de mim. Para isso, apoiava-se num cajado e começava a arrastar uma perna como se lhe doesse, sabendo que os avarentos dos Tártaros não dão esmola a um rapaz saudável. Zanguei-me com ele, procurando demonstrar-lhe o que uma tal actividade tinha de infamante.
- Não sei trabalhar! - replicou ele num tom breve. Davam-lhe uma miséria. Nessa época eu começava a não
ser já muito sólido. A estrada era cada vez mais fatigante e as minhas relações com Chakro cada vez mais penosas. Era então, precisamente, que ele exigia com insistência que eu o alimentasse.
- És tu que me conduzes? Então conduz-me! Pensas que posso ir tão longe a pé? Não estou habituado! Posso morrer. Porque me atormentas, porque me assassinas? Se eu morro, que farão as pessoas? A mãe vai chorar, o pai vai chorar, os meus amigos vão chorar. Quantas lágrimas se vão verter!
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Ouvia-lhe aqueles discursos sem me irritar. Naquele momento começava a insinuar-se em mim um pensamento bizarro que me incitava a suportar tudo. Por vezes, enquanto ele dormia, ficava sentado a seu lado, e, examinando-lhe o rosto calmo e imóvel, repetia a mim mesmo, como que para encontrar a chave do enigma:
- O meu companheiro de caminho... é o meu companheiro de caminho.
E na minha consciência, erguia-se, de tempos a tempos, a ideia de que Chakro se limitava a aproveitar dos seus direitos ao exigir com tanta segurança e audácia que eu o ajudasse e tomasse conta dele. Nessa exigência havia carácter, havia força. Subjugava-me, entregava-me a ele e estudava-o, observava cada frémito da sua fisionomia, esforçando-me por imaginar onde e a que propósito ele se deteria nesse processo de tomada de posse da personalidade alheia... Sentia-se em excelente forma, cantava, dormia e zombava de mim quando lhe apetecia. Acontecia separarmo-nos por dois ou três dias; dava-lhe pão e dinheiro, se o havia, e dizia-lhe onde me devia esperar. Quando nos separávamos seguia-me com um olhar cheio de suspeitas e de raiva dolorosa, mas acolhia-me depois com uma alegria desbordante e, triunfante, dizendo-me a rir, de cada vez:
- Pensava que te tinhas pirado, que me tinhas deixado sozinho. Ah! Ah! Ah!
Dava-lhe de comer e descrevia-lhe os belos lugares que tinha visto. Uma vez, a propósito de Bakhtchi-Saraí, falei-lhe de Puchkine e recitei-lhe versos. Esse facto não produziu nele a menor impressão.
- Isso, versos? Isso são canções, não são versos! Conheci um homem, um georgiano, esse é que cantava canções! Eram canções!... Quando começava a cantar... ai, ai, ai!... Alto!... Cantava muito alto! Como se tivesse um punhal na garganta e estivessem a remexê-lo!... Abriu a garganta ao dono de um café... agora está na Sibéria.
A cada um dos meus regressos eu caía mais baixo na sua estima; não sabia dissimulá-lo.
Os nossos negócios não caminhavam bem. Eu encontrava com muita dificuldade maneira de ganhar rublo e meio por semana e, é evidente, isso era insuficiente para os dois. Os peditórios de Chakro não constituíam economias no capítulo da alimentação. O estômago dele era um abismo que engolia tudo sem distinção: uvas, melão, peixe salgado, pão, frutos secos; e, com o tempo, o abismo parecia aumentar continuamente de volume e exigir cada vez mais vítimas.
Chakro pôs-se a fazer pressão para que saíssemos da Crimeia; declarava-me, não sem razão, que já era Outono e que o nosso objectivo ainda estava longe. Aprovei-o.
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Já tinha tido tempo, de resto, de ver aquela parte da Crimeia, e partimos para Feodosia, na esperança de arranjar aí o dinheiro que continuava a escassear-nos.
A vinte verstas para lá de Aluchta, parámos para passar a noite. Convenci Chakro a prosseguir pelo litoral, embora esse itinerário fosse mais longo, porque eu tinha vontade de me encher de ar marítimo. Tínhamos uma fogueira acesa e estávamos deitados junto dela. Era uma noite maravilhosa. O mar, de um verde-escuro, batia contra os rochedos, aos nossos pés; no alto, o céu azul calava-se solenemente, enquanto à nossa volta os arbustos e as árvores rumorejavam suavemente. A Lua erguia-se. Da ramagem rendilhada de um plátano caíam sombras e um pássaro lançava a sua canção sonora e fervorosa. Os trinados cristalinos dissolviam-se no ar cheio do rumor calmo e acariciador das vagas e, quando se desvaneciam, percebia-se o zumbido de um insecto. A fogueira ardia alegremente e as chamas pareciam um grande ramo ardente de flores vermelhas e amarelas. Também elas forneciam sombras, e essas sombras saltitavam à nossa volta como para provar a sua vitalidade perante as da Lua, mais preguiçosas. O largo horizonte do mar estava deserto, o céu sem nuvens acima de nós, e eu sentia-me na orla da terra, contemplando o espaço, esse enigma que enfeitiça a alma... A sensação tímida de estar próximo de algo de grande enchia o meu ser e, palpitante, o meu coração apertava-se.
Subitamente, Chakro desatou a rir alto.
- Ah! Ah! Ah! Que cara de idiota tu tens! Tal e qual como um carneiro! Ah! Ah! Ah!
Fiquei apavorado como se tivesse caído sobre mim, repentinamente, o fragor da tempestade. Mas era pior. Era ridículo, é certo, mas muito humilhante... Chakro encrava de rir; eu sentia-me pronto a chorar por outra razão. Tinha uma pedra na garganta, não podia falar e olhava-o com um olhar bravio, o que tornava ainda mais forte o seu riso. Rolava-se pelo chão, segurando o ventre; eu ainda não conseguia dominar o desagrado pela ofensa que me tinha atingido... Tinha sido profundamente ultrajado e os poucos que, espero, me compreenderão - talvez por terem eles mesmos experimentado algo de análogo - sentirão por sua vez esse fardo no coração.
- Basta! - gritei eu, com furor.
Ele assustou-se, sobressaltou-se, mas sem conseguir reter-se; percorriam-no ainda espasmos de riso, bufava, rolava os olhos e, repentinamente, o riso estalava novamente. Então levantei-me e deixei-o. Caminhei durante muito tempo, sem pensamentos, quase inconsciente, cheio do veneno ardente da humilhação. Eu tinha abarcado a natureza
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inteira e, em silêncio, com toda a minha alma, tinha-lhe confessado o meu amor, o amor exaltado de um homem um pouco poeta... E a minha paixão tinha levado Chakro a torcer-se de riso! Eu teria caminhado para bem longe, ocupado em elaborar uma acta de acusação contra a natureza, contra Chakro e contra todas as regras admitidas da existência, se não tivessem ressoado atrás de mim passos rápidos.
- Não te zangues dessa maneira! - proferiu Chakro, penalizado, tocando-me suavemente no ombro. - Estavas a rezar? Não sabia!
As palavras tinham as inflexões tímidas da criança culpada de travessuras, e eu, apesar da minha exaltação, não podia deixar de ver a sua expressão lamentável, còmicamente crispada pela confusão e pelo receio.
- Não voltarei a fazer! Palavra! Nunca mais! Abanava a cabeça para reforçar a promessa.
- Vejo que tu és calmo, que trabalhas. Não me forças e eu penso: "Porquê? É porque ele é estúpido como um carneiro."
Aí está como ele me consolava! Eis como me apresentava as suas desculpas! Naturalmente, após tais consolações e tais desculpas, não me restava mais do que perdoar-lhe não só o passado, mas também o futuro.
Meia hora mais tarde ele dormia profundamente; eu estava sentado ao lado dele e olhava-o. Quando dorme, mesmo o homem vigoroso parece indefeso e sem recurso. Chakro inspirava piedade. Os lábios espessos e as sobrancelhas colocadas muito alto davam-lhe o rosto de uma criança tímida e espantada. A respiração dele era calma, mas em certos momentos agitava-se e pronunciava num tom de lamento palavras precipitadas em georgiano. À nossa volta reinava aquela intensidade do silêncio da qual se espera sempre qualquer coisa e que, se pode durar bastante tempo, penetra o espírito do homem com a sua calma perfeita e a sua ausência de ruído, daquela sombra luminosa do movimento. O silencioso roçar das ondas não chegava até nós; estávamos numa ravina cheia de matos vivazes, semelhantes à goela peluda dum animal petrificado. Eu olhava para Chakro e pensava:
- É o meu companheiro de caminho... Posso abandoná-lo mas não posso afastar-me dele, porque o seu nome é legião... É o companheiro de toda a minha vida... acompanhar-me-á até ao túmulo...
Feodosia gorou a nossa expectativa. À nossa chegada havia pelo menos cerca de quatrocentos homens à espera de trabalho, tal como nós, e obrigados, como nós, a contentarem-se com o papel de espectadores das abras do molhe.
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Os que trabalhavam eram turcos, gregos, georgianos, rapazes de Smolensk ou de Poltava. Erravam por toda a parte, na cidade e nos arredores, as silhuetas cinzentas, abatidas, dos "esfomeados" e os vagabundos vindos de Azove e de Tabriz trotavam como lobos.
Partimos para Kertch.
O meu companheiro manteve a sua palavra e deixou de zombar de mim; mas o ventre gritava-lhe terrivelmente com a fome e batia os maxilares tal e qual como fazem os lobos, desde que via qualquer coisa de comer; apavorava-me com a descrição das quantidades de vitualhas de toda a espécie que estava pronto a engolir. A partir dum certo momento, começou a aludir às mulheres. No início fê-lo de passagem, depois, com mais frequência, com os sorrisos libidinosos do "homem oriental". Acabou por não poder deixar passar perto dele nenhuma pessoa do sexo feminino, qualquer que fosse o seu aspecto ou idade, sem me comunicar uma apreciação licenciosa de carácter filosófico-prático acerca de tal ou tal particularidade da pessoa em questão. Dissertava sobre as mulheres tão à vontade, com um tal domínio do assunto, considerando-as de um ponto de vista tão estranhamente directo, que só me restava cuspir de nojo... Um dia tentei demonstrar-lhe que a mulher era um ser que não lhe era inferior em nada; no entanto, vendo que as minhas opiniões não só o ultrajavam como, ainda por cima, estava prestes a enfurecer-se por causa da humilhação que, segundo ele, eu lhe infligia, abandonei a minha tentativa esperando retomá-la quando ele estivesse saciado.
Seguíamos para Kertch pela estepe, tendo abandonado a costa com o objectivo de encurtar o trajecto; o nosso bornal não continha mais do que um pão de centeio de três libras, comprado a um tártaro com os nossos últimos copeques. As tentativas de Chakro para pedir pão não resultavam, chocavam-se por toda a parte contra um seco: "Vocês são de mais!..." Era uma grande verdade: era pavorosa, efectivamente, a quantidade de pessoas que andavam à procura de um pedaço de pão naquele terrível ano.
O meu companheiro de caminho não podia suportar os "esfomeados", seus concorrentes na caça às esmolas. A sua reserva de forças vitais, apesar das fadigas da marcha e da má alimentação, não lhe permitia adquirir uma aparência tão famélica, tão inspiradora de compaixão como aquela de que eles se podiam justamente orgulhar como duma espécie de perfeição. Quando os apercebia, mesmo ao longe, dizia:
- Lá andam aqueles! Pff! Pff! Que diabo os leva a andar sempre de um lado para o outro? Para onde diabo vão eles?
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Não há lugar bastante na Rússia? Não os compreendo! São um povo muito estúpido, os Russos!
E, quando lhe explicava as razões que levavam o estúpido povo russo a ir procurar pão na Crimeia, replicava com incrédulos acenos de cabeça:
- Não compreendo! Como é possível? Entre nós, na Geórgia, não há parvoíces destas.
Chegamos a Kertch de noite, já tarde, e fomos obrigados a passar a noite sob a passarela dum cais de embarque de vapores. Não nos fazia mal nenhum ficar escondidos: sabíamos que, pouco antes da nossa chegada, todos os inúteis
- os vagabundos - tinham sido expulsos de Kertch. Tínhamos um certo receio de cair nas mãos da polícia. E como Chakro viajava com um passaporte que não era o seu, isso podia complicar seriamente o nosso destino.
As vagas do estreito salpicaram-nos liberalmente durante toda a noite; de madrugada deslizámos para fora das passarelas, encharcados e transidos. Andámos todo o dia pela beira do mar e tudo o que nos foi possível ganhar foi uma moeda de dez copeques que recebi da mulher de um pope a quem transportei, no seu regresso do mercado, a saca cheia de melões.
Era preciso atravessar o estreito para atingir Taman. Nenhum barqueiro aceitou levar-nos como remadores, quaisquer que fossem os meus pedidos. Toda a gente estava contra os vagabundos, que tinham cometido, pouco antes da nossa chegada, um bom número de actos heróicos; não sem razão, éramos considerados na categoria deles.
No fim do dia sentia-me furioso com os meus insucessos e furioso contra todo o Universo; decidi-me raivosamente a tentar um golpe um pouco arriscado, e, ao cair da noite, pu-lo em execução.
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IV
Durante a noite, Chakro e eu aproximámo-nos do posto alfandegário junto do qual se encontravam três chalupas amarradas com correntes a argolas chumbadas na pedra do cais. Estava escuro, o vento soprava, as chalupas roçavam umas contra as outras, as correntes tilintavam... Era cómodo para sacudir uma argola, abaná-la e arrancá-la da pedra.
Por cima de nós, a uma altura de cerca de três toesas, ia e vinha o guarda do posto, assobiando entre dentes. De cada vez que se detinha perto de nós eu parava o trabalho, mas era uma prudência supérflua; ele não podia supor que em baixo estava um homem mergulhado na água até ao pescoço. Além disso, as correntes ressoavam ininterruptamente, mesmo sem a minha ajuda. Chakro já se tinha estendido no fundo da chalupa e cochichava-me qualquer coisa que eu não podia perceber por causa do rumor das vagas. A argola ficou-me nas mãos... A onda apanhou a embarcação e afastou-a rapidamente do cais. Agarrei-me à corrente e nadei ao lado do barco, depois trepei para dentro. Pegámos em duas tábuas, fixámo-las nos toletes à maneira de remos e partimos...
As vagas eram fortes e Chakro, sentado à popa, ora desaparecia dos meus olhos, ora se erguia bem alto acima de mim e, gritando, quase me tombava em cima. Aconselhei-o a não gritar se não queria ser ouvido pela sentinela e então calou-se. No lugar do rosto dele eu só distinguia uma mancha branca. Segurou constantemente o leme. Não tínhamos tempo de inverter os papéis e tínhamos medo de atravessar o barco para mudar de lugar. Gritei-lhe para explicar
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o modo de governar e ele compreendeu-me agindo tão depressa que parecia ter nascido marinheiro. As tábuas que substituíam os remos eram de fraco auxílio. O vento soprava-nos à popa e eu preocupava-me pouco em saber onde ele nos levava, esforçando-me apenas por manter a proa perpendicularmente ao estreito. A orientação era fácil, porque as luzes de Kertch ainda eram visíveis. As vagas passavam por cima da borda e rosnavam com cólera; à medida que avançávamos no estreito, tornavam-se mais altas. Ao longes já se faziam sentir com um rugido selvagem e ameaçador... A embarcação continuava a avançar cada vez mais depressa e era muito difícil manter a direcção. Mergulhávamos a todo o momento em profundos abismos para imediatamente esvoaçar pelo cimo de colinas de água; a noite tornava-se mais profunda e as nuvens baixavam. As luzes atrás da popa desapareceram nas trevas, e, então, aquilo tornou-se pavoroso. Parecia que a extensão das águas irritadas tinha perdido os limites. Não se via nada além das vagas que surgiam da escuridão e que me arrancaram das mãos um dos improvisados remos. Eu próprio lancei o outro para o fundo do barco e agarrei-me solidamente à borda com ambas as mãos. Chakro uivava com uma voz selvagem de cada vez que a embarcação saltava para o alto. Senti-me lamentável e impotente no meio das trevas, acossado pelos elementos desencadeados e ensurdecido pelo seu estrondo. com o coração sem esperança, entregue a um desencorajamento furioso, só via à minha volta aquelas vagas de cristas esbranquiçadas que se dispersavam em borrifos salgados; e também as nuvens, acima de mim, espessas e esfarrapadas, se assemelhavam a vagas... Só compreendia uma coisa: toda a vida que nos cercava era capaz de ser imensamente forte e assustadora e eu achava vexatório que ela pudesse moderar-se e o não quisesse. A morte é inevitável: mas essa lei sem paixão, que nivela tudo e que é obrigatório embelezar de um modo ou de outro, meu Deus, como é penosa e grosseira! Se me dessem a escolher entre ser consumido pelo fogo ou ser afogado num atoleiro pantanoso, tentaria deter-me na primeira oferta! Ela tem, apesar de tudo, algo de mais decente.
- Vamos içar a vela!
- Onde está?
- O meu capote!
- Atira-mo e não largues o leme. Chakro agitou-se à popa.
- Agarra!
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Atirou-me o capote. Rastejando de qualquer maneira no fundo do barco, arranjei mais uma tábua, enfiei nela uma manga da sólida vestimenta, apoiei o conjunto contra um dos bancos da embarcação, segurei-me nas pernas e, logo que agarrei com a outra mão a outra manga e uma aba, produziu-se algo de inesperado... O barco-deu um salto bastante alto, depois atirou-se para baixo e achei-me na água, segurando a veste com uma das mãos e agarrando-me com a outra à corda presa na borda exterior. As vagas assobiavam ao passar por cima da minha cabeça e engoli água salgada e amarga que me enchia as orelhas, a boca, o nariz... Agarrado solidamente à corda, ergui-me e voltei a cair na água batendo com acabeça contra a amurada, e, depois de ter atirado o capote para o fundo do barco, tentei saltar eu. Uma das minhas dez tentativas foi coroada de êxito, cavalguei a borda e, ao mesmo tempo, apercebi Chakro que se remexia na água, agarrado à mesma corda que eu acabava de largar. Ela dava, pois, toda a volta ao casco, enfiada em anéis de ferro.
- Estou vivo! - gritei eu a Chakro.
Ele deu um salto vertical acima da água e mergulhou igualmente de cabeça no fundo do barco. Agarrei-o à passagem e voltámos a encarar-nos. Eu estava sentado no barco, exactamente como num cavalo, com os pés enfiados no cordame como nas esporas, mas aquilo não resultava: a primeira vaga que viesse podia-me desmontar. Chakro agarrou-se aos meus joelhos e deu-me uma cabeçada no peito. Todo o meu corpo tremia e eu sentia-lhe os queixos a bater. Era preciso fazer qualquer coisa!... O fundo do barco estava pegajoso como se estivesse untado com banha. Disse a Chakro que se atirasse de novo à água, segurando-se à corda de um lado do casco, e pela minha parte eu me desenrascaria com a outra corda. Como resposta pôs-se a dar-me cabeçadas no peito. As vagas, na sua dança desordenada, passavam a cada momento por cima das nossas cabeças e pouco faltou para que largássemos tudo; uma das minhas pernas tinha sido terrivelmente lacerada por uma corda. Por toda a parte que a nossa vista abarcava nasciam e desapareciam altas colinas de água.
Repeti o que tinha dito, desta vez num tom de comando. Chakro redobrou de energia contra o meu peito; não podia contemporizar. Arranquei-lhe as mãos de mim, uma após outra, e tentei empurrá-lo para a água fazendo esforços para que ele se segurasse à corda. Foi então que se passou uma
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coisa que me arrepiou mais do que tudo o resto que nessa noite se passara. Chakro murmurou, olhando-me nos olhos:
- Vais-me afogar?
Foi verdadeiramente horroroso! A pergunta era pavorosa, mas mais ainda o era a sua entonação onde vibrava a submissão tímida, a imploração da piedade e o último alento de um homem que tinha perdido a esperança de escapar a um fim fatal. E ainda mais pavoroso eram os olhos que me fixavam no meio daquele rosto molhado e mortalmente pálido.
Gritei-lhe:
- Segura-te bem!
Lancei-me também à água, segurando-me à corda. Choquei com os pés contra qualquer coisa e, naquele momento, não consegui compreender a que se devia aquela dor: mas pouco depois compreendi. Algo de ardente se tinha inflamado em mim, enebriei-me e senti-me mais forte do que nunca.
- Terra! - gritei.
Pode ser que os grandes navegadores ao descobrirem novas terras gritem essa palavra com mais sentimento do que o que eu tive, mas duvido que a possam gritar com voz mais forte. Chakro pôs-se a gritar e lançou-se à água. Mas o nosso entusiasmo arrefeceu depressa: a água ainda nos chegava até ao peito e não havia qualquer outro indício positivo de que estivéssemos em terra firme. As vagas eram mais fracas, já não saltavam, rolavam preguiçosamente por cima de nós. Felizmente eu não tinha largado a chalupa das mãos. Então agarrámo-nos ao casco, segurámos as cordas salvadoras, e avançámos com precaução, puxando o barco atrás de nós.
Chakro murmurava qualquer coisa e ria. Eu lancei à minha volta olhares preocupados. Estava escuro. Atrás de nós e à nossa direita o ruído das vagas era mais forte, para a frente e para a esquerda mais fraco; dirigimo-nos para a esquerda. O solo era firme, arenoso, mas semeado de buracos; por vezes não tocávamos o fundo e remávamos com as pernas e com um braço, segurando a embarcação com o outro; outras vezes a água não nos passava acima dos joelhos. Nos sítios mais profundos Chakro gritava, eu tremia de medo. E de repente a salvação: diante de nós tremulava uma luz.
Chakro berrava com todas as forças. Mas eu lembrei-me que o barco pertencia ao Estado, e forcei-o instantaneamente a recordar-se também. Calou-se, mas, alguns segundos mais tarde, rebentou em soluços. Eu não conseguia acalmá-lo; não sabia o que fazer para isso.
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A água continuava a baixar... até aos joelhos... até aos tornozelos... Continuávamos a arrastar a nossa barca estatal, mas em breve foi-nos impossível e abandonámo-la. Ao avançar encontrámos no caminho uma espécie de tronco que o barrava e franqueámo-lo com um salto. Caímos ambos, do outro lado, com os pés descalços, numa espécie de erva com espinhos. Foi doloroso e era, da parte da terra, pouco hospitaleiro, mas não prestámos muita atenção e corremos para a fogueira. Estava a uma versta e as chamas alegres pareciam acolher-nos sorridentes.
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...Três cães enormes e desgrenhados, surgidos de algum canto das trevas, lançaram-se ao nosso encontro. Chakro, sem cessar os soluços espasmódicos, desatou a gritar e caiu para o chão. Atirei com o casaco aos cães e procurei no chão, às apalpadelas, uma pedra ou um pau. Só havia erva que me picava as mãos. Os cães precipitaram-se para nós num impulso único. Meti dois dedos na boca e pus-me a assobiar com todas as minhas forças. Deram um salto para trás e logo chegou até nós o ruído de passos e as vozes dos homens que corriam.
Alguns momentos mais tarde estávamos sentados junto de uma fogueira, num círculo de quatro pastores vestidos com peles de carneiro com a lã virada para fora.
Dois deles estavam sentados no chão e fumavam, um outro, que tinha uma barba negra e espessa e um boné cossaco na cabeça, estava atrás de nós, apoiado num cajado cujo punho era uma enorme bossa de raiz; o quarto, um jovem de cabelos castanhos-claros, ajudava Chakro, que continuava a chorar, a despir-se. A uma meia dúzia de toesas a terra estava coberta, numa larga superfície, com uma espessa camada de uma matéria densa, cinzenta e ondulada, semelhante à neve da Primavera que já tivesse começado a fundir. Só após um longo e atento exame era possível distinguir as silhuetas individuais dos carneiros encostados uns aos outros. Havia ali alguns milhares, esmagados pelo sono e pela obscuridade da noite, numa massa apertada, quente e espessa que cobria a estepe. Da. momento a momento soltavam balidos lamentosos e assustados.
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Pus o casaco a secar por cima do fogo e relatei aos pastores tudo o que se tinha passado, com toda a verdade; contei mesmo o modo como tínhamos arranjado o barco.
- Onde está esse barco? - perguntou-me um severo velho de cabelos brancos sem me desfitar.
Respondi-lhe.
- Vai lá ver, Mikhaíl.
Mikhaíl, o homem da barba negra, pôs o cajado ao ombro e dirigiu-se para a margem.
Chakro, a tremer de frio, pediu-me que lhe desse o casaco aquecido embora ainda estivesse molhado, mas o velho interveio.
- Primeiro corre para aquecer o sangue; corre à volta da fogueira, anda!
A princípio Chakro não compreendeu, depois arrancou-se subitamente do lugar e começou a dançar uma dança selvagem, saltando como uma bola de um lado para o outro do fogo, rodando sobre si próprio, tropeçando, gritando a plenos pulmões e gesticulando. Era um quadro desopilante. Dois dos pastores rolavam pelo chão rindo a bandeiras despregadas, enquanto o velho, com o rosto grave e imperturbável, se esforçava por marcar o ritmo da dança dando palmas; como o não conseguia, observou o frenesi de Chakro, abanando a cabeça, movendo os bigodes e gritando com uma intensa voz de baixo:
- Hop! Hop! Força! Força! Hop! Hop! Kss! Kss! Iluminado pela fogueira, Chakro ipreia-se como uma
serpente, saltitava num único pé, tarnoc-rilava com os dois; o corpo reluzente sob os reflexos do fogo cobria-se de grossas gotas de suor que pareciam vermelhas como sangue.
Agora os três pastores davam palmas; eu, trémulo de frio, secava-me ao calor do fogo e cismava, pensando que aquela aventura vivida faria a felicidade de qualquer admirador de Fenimore Cooper ou de Júlio Verne: o naufrágio, os nativos hospitaleiros e a dança do selvagem em torno da fogueira.
Eis finalmente Chakro sentado no chão, embrulhado na roupa; come qualquer coisa; nos olhares que os seus olhos negros me lançam cintila um não-sei-quê que desperta em mim uma sensação desagradável. A roupa dele está a secar, pendurada num pau espetado no chão, junto do fogo. Deram-me também de comer: pão e toucinho salgado. Mikhaíl regressa e senta-se ao lado do velho.
- Então? - pergunta este.
- Está lá um barco! - respondeu Mikhaíl.
- Não irá arrastado?
- Não.
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Calaram-se todos, encarando-me.
- Então? - perguntou Mikhaíl sem se dirigir a ninguém em especial. - Levamo-los à aldeia, ao ataman? Ou talvez directamente à alfândega?
Ninguém respondeu. Chakro comia calmamente.
- Podem ser levados ao ataman... e àalfândega também... assim apanharão uma lição tanto um como o outro!
- disse o velho após um curto silêncio.
- Espera um bocado, tiozinho! - comecei eu. Mas ele não me prestou a menor atenção.
- Então, Mikhaíl, o barco está lá?
- Está.
- E... a água não o leva?
- Não... não o levará.
- Bem, então deixá-lo lá estar. Amanhã os barqueiros irão a Kertch e levam-no. Porque não levariam um barco vazio? Ha? Portanto... E vocês, vagabundos, não tiveram medo, ambos? Não? Caramba! Se tivessem feito mais meia versta iriam para o mar largo. Que vos teria acontecido se tivessem sido arrastados para o mar? Ha! Teriam ido para o fundo, ambos, como pregos. Para o fundo e... adeus.
O velho calou-se e, com um sorriso irónico nos bigodes, olhou-me.
- Então, não dizes nada, meu rapaz!
Aqueles raciocínios aborreciam-me: não os compreendia e tomava-os por censuras que nos eram dirigidas.
- bom, sou todo ouvidos! - disse eu num tom bastante irritado.
- E então? - perguntou o velho, bastante interessado.
- Então nada!
- Explica por que me falas assim! Achas que está na ordem das coisas falar dessa maneira a quem é mais velho do que tu?
Obstinei-me no meu silêncio.
- E comer, não queres mais?
- Não, não quero.
- bom, não comas. Se não queres, não comas. Mas talvez queiras levar pão para o caminho.
Tive um sobressalto de alegria, mas não me traí.
- Para o caminho, aceito...-disse eu, calmamente.
- Eh! Eh!... Dêem-lhe então pão para o caminho, e um bocado daquele toucinho que está acolá... E mais alguma comida? Dêem-lhe, vá lá!
- E eles vão-se embora? - perguntou Mikhaíl. Os outros dois levantaram os olhos para o velho.
- Que haviam de ficar a fazer aqui connosco?
- Mas podíamo-los entregar ao ataman... ou a alfândega! - declarou Mikhaíl, desiludido.
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Chakro agitou-se junto do fogo, tirou a cabeça para fora do capote, com curiosidade. Estava calmo.
- Que iriam fazer a casa do ataman? Não têm lá nada que fazer... acho eu. Irão vê-lo depois... se isso lhes apetecer.
- E então o barco? - teimava Mikhaíl.
- o barco? - repetiu o velho. - Que importância tem o barco? Fica lá.
- Fica lá...-disse Mikhaíl como um eco.
- Pois fica! De manhã, o Ivã levá-lo-á para o cais. E dali irá para Kertch. Não há mais nada a fazer com o barco.
Olhei fixamente o velho pastor sem poder perceber o menor movimento no rosto dele, fleumático, bronzeado pelo vento e pelo sol, onde saltitavam as sombras do fogo.
- E isso não nos causará aborrecimentos, depois? disse Mikhaíl, que começava a ceder.
- Se segurares a língua, não haverá certamente aborrecimentos. Mas se os levarem ao ataman, então sim, na minha opinião, não nos deixarão em sossego, nem a nós nem a eles. Tratemos da nossa vida e eles que se vão embora. Eh! Vão para longe, vocês? - perguntou o velho, embora eu já lhe tivesse dito para onde íamos.
- Para Tiflis.
- É bastante longe. Estás a ver: o ataman vai retê-los, e se os retém quando é que eles chegarão? O melhor é que partam, que tratem de se pôr a andar. Qual é a vossa opinião?
- Sim... realmente... parece o mellr! - concordaram os companheiros do velho quando, acabado o seu lento discurso, ele enrugou os lábios e lhes lançou um olhar interrogativo, encaracolando nos dedos a barba grisalha.
- bom, então vão com Deus, rapazes! - concluiu o velho com um gesto fatalista. - Quanto ao barco cá trataremos de o mandar pôr no lugar dele. Está certo?
- Obrigado, tiozinho! - respondi eu, tirando o meu chapéu.
- Obrigado de quê?
- Obrigado, obrigado! - repeti, emocionado.
- Obrigado de quê? Essa agora! Digo-lhes que se podem ir embora e ele diz-me obrigado! Estavas com medo que te mandasse para o diabo?
- Confesso que sim, que tive medo! - disse eu.
- Oh!...-e o velho encolheu os ombros. - Por que motivo mandaria eu um homem por mau caminho? De preferência mandá-lo-ia pelo caminho que ele próprio escolhesse. Talvez nos voltemos ainda a encontrar e então já seremos conhecidos. Poderá chegar a hora de nos ajudarmos... Até à vista.
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Tirou o peludo boné de pele de carneiro e saudou. Os outros também nos saudaram. Perguntámos o caminho para Anapa e partimos. Chakro ria por uma razão qualquer que me era desconhecida.
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VI
- Que tens tu, para rir assim? - perguntei-lhe.
O velho pastor e a sua moral em acção tinham-me encantado, e estava encantado também com o vento fresco anunciador da aurora que nos soprava contra o peito e encantado por o céu se ter limpo de nuvens; em breve o Sol se levantaria num céu claro: um dia luminoso, um dia maravilhoso ia nascer.
Chakro piscou-me os olhos com malícia e desatou a rir ainda mais forte. Sorri, por minha vez, ao ouvir aquele riso alegre, saudável. As duas ou três horas passadas junto do fogo e o pão saboroso acompanhado com o toucinho não tinham deixado da viagem esgotante senão uma ligeira curvatura; mas esta sensação não empanava a nossa alegria.
- De que te ris? Estás contente por estar vivo, ha? Vivo e com a barriga cheia, ainda por cima!
Chakro abanou negativamente a cabeça, deu-me uma cotovelada, fez-me uma careta e, imediatamente, recomeçou a rir; por fim declarou-me na sua linguagem mesclada de georgiano:
- Não percebes onde está a piada? Não? Vais perceber já. Sabes o que eu teria feito se nos tivessem levado ao ataman? Não sabes? Teria dito que me querias afogar. E depois punha-me a chorar, e eles teriam pena de mim e não me teriam metido na prisão. Estás a compreender?
A princípio quis tomar aquilo como uma brincadeira, mas, infelizmente, ele soube-me persuadir da seriedade das suas intenções. Fê-lo com tanta precisão e clareza que, em lugar de me enraivecer contra ele por causa daquele cinismo
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ingénuo, senti-me dominado por um sentimento de profunda compaixão a seu respeito. Que outra coisa se pode sentir por um homem que, com o mais límpido sorriso e o tom mais sincero, nos relata a sua intenção de nos assassinar? Como agir sobre ele, uma vez que ele considera essa atitude como uma brincadeira interessante e sem muita importância?
Comecei a demonstrar a Chakro, calorosamente, toda a imoralidade das suas intenções. Retorquiu-me muito simplesmente que eu não compreendia as vantagens, que me esquecia de que ele vivia com papéis falsos e que isso não merecia as felicitações das autoridades.
Uma ideia cruel atravessou-me subitamente o espírito.
- Um momento! - perguntei eu -, pensas realmente que eu te queria afogar?
- Não! Quando me empurraste para a água, pensei-o, mas depois vi que tu também saltavas.
- Louvado seja Deus! - exclamei. - Bem, agyadeço-te!
- Não, não me agradeças. Eu é que tenho de te agradecer. Lá atrás, junto da fogueira, ambos tínhamos frio... o capote era teu, não ficaste com ele para ti. Puseste-o a secar e depois deste-rno. Não ficaste com nada para ti. Por isso digo-te obrigado. Tu és bom homem, estou certo disso. Quando chegarmos a Tiflis, serás pago por tudo. Irás comigo a casa do meu pai e eu lhe direi que homem tu és, e dir-lhe-ei que te dê de comer e de beber, que me ponha a mim no estábulo, na palha. Aí está o que lhe vou dizer. Ficarás a viver em nossa casa, serás jardineiro, poderás beber todo o vinho que te apetecer!... Ah! Ah! Ah! Vais ver como irás viver bem! É muito simples. Comes e bebes à mesa comigo...
Longamente, com luxo de pormenores, descreveu-me os encantos da existência que ia organizar em casa dele, em Tiflis, para mim. Enquanto falava, eu pensava no grande infortúnio dos homens que, armados com uma moral nova, com desejos novos, partem solitariamente para a frente e encontram nos seus caminhos companheiros que lhes são estranhos, incapazes de os compreenderem... Vida penosa a desses isolados! Vivem no ar, acima da terra! Mas trazem em si as sementes da boa colheita embora elas raramente germinem em solo fértil.
O dia começou a aparecer. Já brilhava ao longe o mar cor-de-rosa dourado.
- Estou com sono! - disse Chakro.
Parámos. Deitou-se no côncavo de uma duna cavado pelo vento na areia seca, perto da margem e, com a cabeça embrulhada no capote, não tardou a adormecer. Sentei-me ao lado dele e fiquei a olhar para o mar.
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Este vivia a sua vida plena, cheia de um movimento poderoso. Sucessões de vagas rebentavam ruidosamente na praia, quebrando-se na areia, e esta crepitava suavemente ao absorver a água. Agitando as crinas brancas, as primeiras vagas, sonoras, chocavam-se de peito contra a orla e recuavam, repelidas, ao encontro de outras que já vinham a caminho para as reforçar. Num violento abraço de espuma e de borrifos, rebentavam novamente na praia e batiam-na, aspirando a alargar os limites da sua vida.. Do horizonte à praia, em toda a extensão marítima, viam-se nascer aquelas vagas fortes e flexíveis que avançavam, avançavam sempre, numa massa densa, estreitamente ligadas umas às outras com vista ao mesmo objectivo... O Sol iluminava, com um brilho cada vez mais vivo, as altas cristas; as das vagas mais longínquas, no horizonte, pareciam vermelho-sangue. Nem uma gota desaparecia sem deixar rastro nesse gigantesco torvelinho de águas que parecia inspirado pela consciente perseguição de uma finalidade que ia ser atingida de um momento para o outro graças aos largos golpes ritmados. A bravura das vagas de assalto, violentando teimosamente a margem muda, era entusiasmante, assim como era magnífico ver marchar atrás delas todo o mar, calmamente, num só impulso, já embelezado pelo sol com todas as cores do arco-íris e plenamente consciente da sua beleza e força.
Um vapor enorme surgiu por detrás de um promontório; dançava solenemente em cima do seio tumultuoso do mar, atirava-se para as cristas das vagas que lhe chicoteavam raivosamente o casco. Belo e robusto, luzindo ao sol com todos os seus metais, teria podido, noutros tempos, evocar a orgulhosa obra dos homens subjugando os elementos... No entanto, ao meu lado, jazia um homem-elemento.
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VII
Caminhávamos pela província do Terek. Chakro estava esfarrapado e andrajoso, de péssima disposição, embora já não tivesse fome porque se estava a ganhar bastante dinheiro. Tinha-se revelado inapto para qualquer trabalho, fosse qual fosse. Uma vez tinha tentado colocar-se ao lado de uma debulhadora para roçar a palha; no fim de meio dia foi-se embora, com as palmas das mãos cheias de bolhas sangrentas; de outra vez tentou participar de uma limpeza de um terreno cheio de raízes de árvores abatidas: arrancou a pele do pescoço com o alvião.
Avançávamos muito lentamente: dois dias de trabalho, dois dias de marcha. Chakro comia sem a menor contenção e, por causa da sua gastronomia, era-me impossível economizar fosse o que fosse de modo a poder comprar-lhe qualquer peça de vestuário. Todas as que possuía ornamentavam-se com uma boa série de buracos de todos os tamanhos, tapados de qualquer modo com remendos de todas as cores.
Um dia, numa aldeia cossaca, subtraiu do meu bornal cinco rublos economizados com prodígios de habilidade às escondidas dele, e apareceu à noite na casa onde eu trabalhava no pomar, ébrio e acompanhado por uma mulher que me saudou assim:
- Ora viva, maldito herege!
E quando, espantado com aquele epíteto, lhe perguntei por que razão era eu um herege, respondeu-me com à vontade:
- Porque és um diabo que proíbes este rapaz de amar o sexo feminino! Pensas que lho podes proibir, uma vez que isso é permitido por lei? Que o Diabo te carregue!
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Chakro mantinha-se junto dela e aprovava com a cabeça. Estava muito bêbado e, a cada movimento, oscilava, todo desarticulado. O lábio inferior pendia. Os olhos apagados encaravam-me com uma fixidez estúpida.
- Que estás para aí a piscar os faróis! Dá cá o dinheiro dele! - exclamou a mulher.
- Qual dinheiro? - retorqui eu, espantado.
- Dá cá, dá cá! De outra maneira, denuncio-te à polícia! Dá-lhe os cento e cinquenta rublos que lhe tiraste em Odessa.
Que podia fazer? Aquela furona de olhos ébrios podia realmente ir ao posto da guarda, e então, as autoridades da aldeia, sempre severas com os ambulantes, não estariam com meias-medidas. Deus sabe o que poderiam ser os resultados duma prisão para Chakro e para mim. Tentei desviar diplomaticamente a atenção da mulher, o que, naturalmente não exigiu grandes esforços. Calmamente, pelo desvio de três garrafas de vinho, apaziguei-a. Rolou no chão, no meio das melancias, e adormeceu. Deitei Chakro e na manhã seguinte saímos dali, deixando a rapariga com as melancias.
Seguíamos por um caminho estreito e atrás de nós, e à frente, rastejavam pequenas serpentes vermelhas que se remexiam debaixo dos nossos pés. O silêncio que reinava em redor dispunha para um agradável devaneio. Um bando de nuvens seguiam-nos, movendo-se lentamente. Fundindo-se umas nas outras acabaram por cobrir todo o céu que nos ficava atrás, enquanto à frente ainda estava luminoso; mas já havia flocos que caíam e voavam com petulância para o desconhecido, ultrapassando-nos. Algures, ao longe, a trovoada ribombava, o estrondo aproximava-se cada vez mais. Começaram a cair gotas de água. Um frufru metálico percorreu a erva.
Não havia por ali nenhum abrigo. De repente escureceu e o frufru da erva tornou-se mais sonoro, espavorido. Ouviu-se o trovão, as nuvens estremeceram percorridas por uma chama azul. Uma chuvada densa começou a cair em torrentes e, um após outro, os trovões começaram a rolar sem interrupção na estepe deserta. A erva curvada pelas borrascas e pela chuva deitou-se contra a terra. Tudo tremia e se agitava. Relâmpagos encandeantes rasgavam as nuvens. No seu brilho azulado erguia-se a estepe montanhosa, prateada e fria, onde brincavam reflexos flamejantes de um azul mais escuro; quando os relâmpagos se extinguiam, ela desaparecia como se tivesse sido engolida por um abismo tenebroso. Tudo estrondeava, tremia, repercutia os sons e engendrava-os. Era como se o céu, embaciado
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e enfurecido, se purificasse no fogo, da poeira e de todas as porcarias que se tinham elevado da terra até ele. Parecia que a terra tremia de pavor perante a sua cólera.
Chakro rosnava como um cão assustado. Eu, pelo contrário, sentia-me alegre, erguido acima do vulgar, observando aquela imagem sombria da tempestade sobre a estepe. Aquele maravilhoso caos apertava-me o coração com a sua terrível harmonia, exaltava-me e mergulhava-me numa disposição épica.
Veio-me a vontade de tomar parte naquela sinfonia, de exprimir de algum modo o desbordamento de exaltação que experimentava perante aquela força. Uma chama azul invadiu o céu, pareceu-me que ela ardia igualmente no meu peito; como deveria manifestar a minha perturbação sublime e o meu entusiasmo? Pus-me a cantar muito alto, com toda a minha força. A tempestade rugia, os clarões sucediam-se, a erva murmurava, e eu cantava, sentia-me parente próximo de todos aqueles ruídos... A minha ideia poderia não ser razoável mas era perdoável, tanto mais que não fazia mal a ninguém senão a mim. A tempestade no mar e a trovoada na estepe: não conheço fenómenos mais espantosos na Natureza.
Portanto, gritava, firmemente persuadido de não aborrecer ninguém com semelhante conduta e de não colocar ninguém na necessidade de submeter a minha maneira de agir a uma severa crítica. Mas fui puxado subitamente por uma perna, com violência, e sentei-me numa poça de água, contra a minha vontade.
Chakro olhava-me fixamente com olhos graves e irritados.
- Estás maluco? Enlouqueceste, não? Cala a caixa! Não grites! Vais rebentar a garganta! Estás a compreender?
Estupefacto, perguntei-lhe em que o aborrecia.
- Metes medo! Percebes? A tempestade troveja. Deus fala e tu gritas!... Que pensas?
Declarei-lhe que tinha o direito de cantar, se me apetecesse, tal como ele.
- Mas eu não quero! - retorquiu categoricamente.
- Então não cantes! - concedi-lhe.
- E tu também não, não cantes! - intimou-me ele, severamente.
- Mas eu prefiro cantar...
- Ouve lá: que julgas? - proferiu ele, com cólera.- Quem pensas que és? Tens uma casa? Tens uma mãe? Um pai? Tens família? Terras? Quem és tu na Terra? Pensas que és um homem? Um homem sou eu! Tenho de tudo! - dava pequenas palmadas no peito. -Sou príncipe! E tu... tu não és nada! Absolutamente nada! E a mim, Kutaís, toda a
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Tiflis me conhece!... Percebes? Então não te vires contra mim! Se me serves ficarás contente. Pagar-te-ei dez vezes! Procede assim comigo; não poderás proceder de outro modo. Tu próprio disseste que Deus tinha ordenado a todos servir sem mira na recompensa! Mas eu recompensar-te-ei! Porque me atormentas? Pretendes dar-me lições, meter-me medo? Queres que eu seja como tu? Isso não é bom! Eh, eh, eh... Pff, pff!
Falava, salivava ruidosamente, fungava, suspirava... Olhei-o, de boca aberta, cheio de espanto. Manifestamente ele esvaziava o saco, cheio de indignações, de humilhações, de descontentamentos acumulados ao longo da nossa viagem. Para levar a sua arenga ao cúmulo da persuasão, batia-me com o indicador no peito, sacudia-me pelo orlibro, e, nas passagens mais vigorosas do discurso, atirava para cima de mim todo o peso da sua carcaça. A chuva caía, a tempestade uivava sem interrupção por cima de nós, e Chakro, para se fazer ouvir, gritava a plenos pulmões.
O tragicómico da minha posição surgiu aos meus olhos com toda a nitidez e fez-me rir à gargalhada.
Chakro cuspiu e voltou-me as costas.
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VIII
Quanto mais nos aproximávamos de Tiflis, mais Chakro se fechava e se tornava melancólico. Algo de novo tinha aparecido no seu rosto emaciado, que no entanto se mantinha imóvel. Perto de Vladikavkas passámos por uma aldeia tcherkessiana e fomos contratados para a colheita do milho.
Após dois dias de trabalho entre aquela gente que quase não falava o russo, nos ralhava incessantemente e nos insultava na sua língua, decidimos ir embora, assustados com a atitude cada vez mais hostil dos camponeses. A dez verstas da aldeia, Chakro tirou de dentro da blusa um rolo de veludo e exibiu-o triunfalmente, exclamando:
- Não precisamos de trabalhar mais. Vendemo-lo e compraremos tudo o que for preciso. Dará para ir até Tiflis. Estás a perceber?
A indignação enraiveceu-me, arranquei-lhe o veludo e atirei-o fora; depois voltei-me para olhar para trás de nós. Os Tcherkessianos não brincavam. Pouco antes tínhamos ouvido uns cossacos contarem-nos a seguinte história: um vagabundo, ao partir da aldeia onde trabalhara, levava consigo uma colher de ferro. Os camponeses apanharam-no, revistaram-no, encontraram a colher e, abrindo-lhe o ventre à punhalada, mergulharam lá dentro a colher, profundamente, tendo-se ido embora depois, calmamente, abandonando o vagabundo na estepe onde os cossacos o encontraram moribundo. O homem contou-lhes o que se tinha passado e morreu a meio caminho da aldeia. Os cossacos tinham-nos mais do que uma vez aconselhado a que desconfiássemos
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daquela gente, relatando-nos instrutivas histórias do mesmo género; eu não tinha qualquer razão válida para não acreditar no que eles diziam.
Comecei a refrescar-lhe a memória naquele capítulo. Chakro estava em pé, diante de mim, a ouvir-me, e, subitamente, sem uma palavra, mostrando os dentes e piscando os olhos, atirou-se a mim como um gato. Batemo-nos durante cinco minutos com convicção e, finalmente, Chakro gritou-me com cólera:
- Basta!...
Irritados, sentados face a face, mantivemo-nos em silêncio durante muito tempo... Chakro lançava olhares cheios de pena para o sítio onde eu lançara o veludo roubado e proferiu:
- Batemo-nos por causa daquilo! Que coisa estúpida! Acaso foi a ti que o roubei? Tiveste pena por mim, porque eu roubei!... Tu trabalhas, eu não sei trabalhar... Que havia de fazer? Queria-te ajudar...
Tentei expor-lhe o que significa o roubo.
- Oh, por favor, cala-te! Tens uma cabeça de alho chocho...-disse ele num tom de desprezo, explicando: Morrerias se roubasses? Então? Acaso isto é que é vida? Cala-te!
Calei-me, com receio de o exasperar novamente. Já era a segunda vez que roubava. Antes, quando ainda estávamos nas margens do mar Negro, tinha surripiado uma balança de bolso a uns pescadores gregos. E também dessa vez quase nos tínhamos batido.
- Então, pomo-nos a caminho? - disse ele quando ficámos mais calmos, reconciliados e repousados.
Retomámos a estrada. Cada dia se tornava mais sombrio e lançava-me estranhos olhares de esguelha. Precisamente quando já tínhamos atravessado a garganta do Darial e descíamos de Gudaur, disse-me:
- Dentro de um ou dois dias chegaremos a Tiflis. Tss, tss! - Fez com a língua um estalido rápido e iluminou-se plenamente. - Chegarei a casa. Onde estavas? Como viajaste? Irei tomar banho... Ah! Comerei muito; ah, comerei imenso! Direi ao pai: perdoa-me! Vi muita miséria, vi a vida, todas as espécies! Os vagabundos são muito boas pessoas! Quando encontrar um dar-lhe-ei um rublo, levá-lo-ei ao restaurante, dir-lhe-ei: também eu já fui vagabundo, bebe vinho! Falarei de ti ao pai... aqui está um homem, tratou-me como um irmão... Dava-me bons conselhos, bateu-me... caramba!, deu-me de comer! Agora dá--me tu de comer, em paga. Dá-lhe de comer durante um ano, não achas? Um ano e não é de mais. Estás a ouvir. Máximo!
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Gostava de o ouvir quando ele falava assim. Naqueles momentos havia nele qualquer coisa de simples e de infantil. Além disso, aquelas afirmações eram para mim interessantes, dado que não dispunha em Tiflis de quaisquer relações e o Inverno aproximava-se: em Gudaur já tínhamos sido acolhidos por uma tempestade de neve. Contava um pouco com Chakro.
Caminhávamos depressa. Eis Mtskhete, a antiga capital da Sibéria. Amanhã estaremos em Tiflis.
Já de longe, a cerca de cinco verstas, apercebia-se a capital do Cáucaso, entalada entre duas montanhas. O fim do caminho! Sentia-me feliz e Chakro indiferente. Olhava em frente com um ar embotado e cuspia uma saliva de esfomeado. A cada momento segurava o ventre com um esgar doloroso. Tinha imprudentemente comido cenouras silvestres, arrancadas à borda do caminho.
- Pensas que eu, georgiano nobre, entraria na minha cidade, de dia, assim, todo roto e sujo? Não! Esperaremos pela noite. Vamos parar.
Sentámo-nos, encostados a uma parede de um edifício abandonado e, depois de cada um de nós ter enrolado um último cigarro, fumámo-lo trémulos de frio. Da estrada militar da Geórgia soprava um vento cortante e violento. Chakro estava sentado, cantarolava entre dentes uma canção melancólica. Pensei num quarto aquecido e noutras superioridades da vida sedentária sobre a vida nómada.
- A caminho! - disse Chakro, erguendo-se com uma expressão decidida.
Caía a noite. A cidade começava a acender as suas luzes. Era belo: as luzes surgiam por etapas, uma após outras, saltitando de algum canto das trevas que cobriam o vale onde a cidade se escondia.
- Ouve! Dá-me esse capote para me esconder melhor... de outra maneira os amigos podem reconhecer-me.
Dei-lho. Seguíamos pela rua Olminskaia. Chakro cochichou com ar decidido:
- Máximo! Estás a ver a estação dos autocarros, na ponte Veriski? Senta-te ali e espera. Espera ali, peço-te. vou parar numa casa, pedir a um camarada meu notícias da família, do pai, da mãe...
- Não vais demorar?
- Não. Venho já. É um minuto.
Enfiou-se rapidamente por uma rua escura e estreita e desapareceu para sempre.
Nunca mais encontrei aquele homem, o meu companheiro de caminho durante quase quatro meses de existência, mas evoco frequentemente a sua recordação com
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boa disposição e um riso alegre. Ensinou-me muitas coisas que não se encontram nos grossos volumes escritos pelos sábios, porque a sabedoria da vida é sempre mais profunda e mais vasta que a sabedoria dos homens.
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UM ERRO
Cirilo laroslavtsev, mestre-escola rural desligado do ensino, com os cotovelos apoiados na mesa e a testa fortemente apertada entre as palmas das mãos,olhava com um olhar vago as fichas de estatística que tinha à sua frente e tentava extrair das meninges fatigadas uma noção do que lhe incumbia fazer com aquelas folhas de papel rectangulares.
A tentativa não foi coroada de sucesso. Um zumbido abafado enchia-lhe a cabeça, cheia de um líquido espesso e pesado que, do interior, fazia força sobretudo nos olhos, tentando sair por ali para o exterior. Os números ora se escapavam subitamente das fichas, ora reapareciam nelas para se tornarem novamente testemunhas frias e secas de qualquer coisa; por momentos tornavam-se tão minúsculos que chegavam a parecer ínfimas e confusas patas de mosca; subitamente, cresciam e eram agora enormes silhuetas patudas, estranhas e esgalgadas, laroslavtsev observava-lhes o jogo e sentia crescer e tomar forma, algures, bem no fundo de si, uma ideia dolorosa e inquieta. Ainda não conseguia distingui-la com clareza, mas ela ia aparecer inevitavelmente, e, então, o seu estado seria ainda pior e mais doloroso do que naquele momento.
Nos últimos tempos as ideias que lhe oprimiam a alma tinham-no perseguido com frequência crescente. Tingindo tudo com uma cor sombria, cinzentas e frias como as nuvens do Outono, deixavam atrás de si uma corrosão de angústia e de indiferença parada, total. Havia qualquer coisa
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de fatal na lentidão com que se formulavam na consciência, e não tinha conseguido nunca, de modo algum, moderar-lhes o crescimento e a evolução. Fazia tentativas deste género: abandonar a mesa, caminhar a passos largos pela sala, cantar, ir a casa de um qualquer dos seus amigos; mas as ideias abafavam-lhe a canção e, por toda a parte, rastejavam atrás dele, não o largando mesmo fora de casa.
A princípio tinha lutado tenazmente, mas, em seguida, tinha percebido que esse combate não conduzia a outro resultado que um esgotamento da alma. Conseguia até aumentar-lhes a pressão: elas saíam daquela resistência mais adornadas e mais cintilantes. Então cedia-lhes e, desde que lhes pressentia a chegada iminente, afundava-se na poltrona e, com as mãos na nuca, entregava-se ao seu poder.
Ficava assim durante duas, três horas, por vezes mesmo durante noites inteiras. Sentia-se como que fendido em duas partes. com o tempo, uma delas continuava a diminuir; impotente e lamentosa seguia a outra a quem as pesadas reflexões dominavam. Tal como mós, o seu roçar desgastava tudo o que há de bom e de claro na vida; tudo o que o sonho fornecia à existência, tombava em poeira incolor, corrosiva
Estava deitado, fixando teimosamente o tecto, ouvindo o pulsar do coração e o ruído do pêndulo no apartamento do proprietário. "Taque-taque! Taque-taque!" fazia o pêndulo regularmente, como se confirmasse com a sua voz firme e segura a justeza do seguinte facto: as ideias verrumavam a consciência de Cirilo. Acabou por se acostumar a elas, e por não sentir mais do que um vago medo quando elas o advertiam do seu avanço. Em seguida, abafado pelo lavor que desenvolviam, o medo desvanecia-se por um momento, e, subitamente, um pouco mais tarde, reaparecia.
Mas vinha então sob uma forma nova - sob a forma dum receio angustioso, expectante, uma obsessão que ia aumentando e que esperava, numa crispação cada vez maior, algum acontecimento pavoroso. Cirilo tinha a impressão de que, de um momento para o outro, algo de severo e de triunfante ia fazer a sua entrada, erguer-se perto da poltrona e pronunciar com um tom ameaçador e sarcástico:
- Oh! Estou a ver muito bem no que está a pensar! Vejo! Vejo tudo! O mais ínfimo recesso do vosso cérebro é para mim perfeitamente acessível e claro. Como ousais sonhar naquilo que não é da vossa conta, da conta do homem estranho à vida e desligado dela, ha? Como ousais isso, meu caro Senhor? Sabeis muito bem que por causa disso poder-se-ia...
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E indicaria então o que se poderia fazer do homem para o punir "daquilo".
Quando imaginava aquela cena, laroslavtsev tremia e olhava para a porta com um olho receoso.
A porta era bastante fina e muito frágil, o aloquete era um simples arame. Não seria uma garantia contra a visita daquele ser omnisciente, se é que alguma coisa poderia ser garantia contra tal visita. Parecia-lhe que ela seria até capaz de atravessar muros de pedra. E, na sua expectativa, sofria, sobressaltando-se a cada rumor. Sentia que aquele temor angustiante se tornava mais forte a cada uma das suas ressurreições, e que ia continuar a crescer, a crescer e a devorá-lo..., e a sua imaginação detinha-se então perante qualquer coisa de tenebroso, entumecida por um terror que gelava a alma.
"Como escapar a tudo isto?", cismava ele nos momentos de maior lucidez. E respondia a si mesmo: "Pela submissão. Que isso me invada completamente e então cessarei de o sentir..."
E desta vez pretendeu também estender-se na poltrona, mas ouviu de repente o ranger precipitado da porta nas suas costas, passos rápidos e uma voz extenuada:
- Ah, está em casa! Até que enfim encontrei um!... Uf! Cirilo, sentado na cadeira, voltou a cabeça e apercebeu
um dos seus amigos estatísticos, que tinha sido alcunhado "Si Menor", na repartição. O visitante pegou numa cadeira e, segurando na mão o boné branco, limpou com a outra as grossas gotas de suor que lhe perlavam a fronte. O rosto estava lívido e parecia um trapo amarrotado, os olhos estavam inflamados, e toda a sua pessoa dava a impressão de um homem que atingira o limite das suas forças.
laroslavtsev apertou-lhe a mão vigorosamente, em silêncio e com prazer. Aquele homem tinha afastado, com a sua aparição, o assalto das ideias.
- Corri como um louco, no meio do calor..., ninguém! disse Si Menor.
com os lábios crispados de aborrecimento, passava nervosamente um dedo nos olhos enrugados como se pretendesse tirar alguma coisa das pestanas. Cirilo quis perguntar quem è que ele procurava, mas não teve tempo.
- Muito bem, fiz o que pude..., agora..., peço-lhe muito simplesmente que não se negue... porque eu, eu não posso mais! Aguentei duas noites sem arredar pé, agora basta! É nojento da parte das pessoas!... Ah, mas é verdade, ainda não lhe disse do que se trata!... Aquele... como é que se chama?- o Kravtsov! Ficou doido... doido, sim! Há dois dias! ria sem parar! Nem o Diabo seria capaz de o compreender! De resto, às vezes, diz coisas muito sensatas e
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muito inteligentes. Mas fiquei dois dias junto dele e não posso mais... Sinto-me completamente exausto. Se o contradizemos fica violento e procura luta. Diz disparates, é um espectáculo assustador. Começava a encerar as paredes... despiu-se completamente e começou a limpar o peito com a escova da cera! Imagina ser o génio do bem e pretende bater-se. É cómico e lamentável. Já se fizeram tentativas para o hospitalizar, mas a burocracia é lenta. E sobretudo é revoltante como somos todos tão formalistas e duros! Chegam, olham para ele através da porta entreaberta, com um pouco de compaixão, e desaparecem. Ninguém tem tempo, cada um tem as suas ocupações. Não aguento mais, garanto-lhe. Estou certo de que irá, meu caro amigo, não é verdade? Agora ficou lá o Lyjine... Sei que o não conhecia muito, mas, dadas as circunstâncias, que importância tem isso? Não é verdade? Diga-me que vai.
- Naturalmente que sim. Posso ir imediatamente, se quiser! - propôs Cirilo lentamente, afastando as palavras.
- É isso mesmo; imediatamente! - exclamou Si Menor com um entusiasmo impaciente.
Depois explicou: .
- Tanto mais que esse Lyjine só ficou com a condição de ser substituído daí a duas horas... Calhou perfeitamente... Vamos lá! O senhor é forte, para si não será tão penoso. Como foi que não me lembrei disso mais cedo? Bastava tê-lo chamado logo!... Eu não teria tido que aguentar tanto!... Então? Vamos?
- Vamos!
Si Menor ergueu-se da cadeira, atirou para a cabeça o boné com um gesto rápido, compô-lo, e, abrindo a porta, voltou-se para olhar laroslavtsev.
Este, com ar pensativo, vestia lentamente o sobretudo, mordiscando o lábio inferior e olhando fixamente os pés de Si Menor.
- Sabe decerto onde fica a casa dele, meu caro! disse este, vivamente. - Então pode ir sozinho. Irei directamente para minha casa, ha! Combinado? bom, então obrigado! Acredite que me sinto exausto a tal ponto que...
Si Menor levou consigo para as profundidades da antecâmara as palavras que se destinavam a terminar aquela frase, e o ranger da porta abafou-as, laroslavtsev sobressaltou-se ao ouvir aquele som, fez uma careta dolorosa e deixou-se cair novamente na cadeira. Era o fardo opressivo da informação dada por Si Menor que o prostrava.
Desde que Si Menor pronunciara o nome de Kravtsov, Cirilo evocara a silhueta dum homem de estatura mediana, seco, anguloso, nervoso, com bigodes negros sempre saltitantes, de olhar ardente, desvairado, de olhos em forma
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de amêndoa, igualmente negros. Na parte inferior da fronte branca e enrugada moviam-se, a um ritmo assustador, sobrancelhas espessas, que ora subiam para os cabelos desalinhados, ora caíam bruscamente escondendo de todo as órbitas. No decurso de uma conversa retinha uma das sobrancelhas, a esquerda, apoiando nela o dedo médio da mão esquerda, mas isso não impedia a outra de trepar para os cabelos e, então, todo o rosto do conversador se alterava e tomava uma expressão pungente, aguda, onde se lia o desejo tenso de penetrar profundamente uma região inacessível aos outros, e atingir algo de incompreensível a quem quer que fosse. Nesses momentos os olhos lançavam faíscas e encerravam neles todo um mar onde se sucediam a tristeza e uma exaltação perturbadora.
Havia já muito tempo que todos o consideravam como um ser anormal e ele reforçava diariamente essa opinião, declarando, um dia, o seu desejo de estudar matemáticas a fim de atingir as alegrias da astronomia, no dia seguinte a sua intenção de se retirar para o campo a fim de encontrar o equilíbrio da alma, de partir para a América e de errar pelas estepes guardando rebanhos; de entrar para uma fábrica para propagandear, junto dos operários, as teorias do socialismo; de aprender música, uma profissão manual, o desenho. De cada vez demonstrava claramente e com convicção que tudo aquilo lhe era indispensável e, se o contradiziam, argumentava com uma exaltação louca. Garantia que a principal fonte dos seus desejos era o instinto de conservação.
"Não fazer nada pelo homem é perecer da maneira mais inepta. Todos os animais fazem qualquer coisa, o homem também deve criar!" Aquelas duas frases que ele pronunciara voltavam ao espírito de Cirilo. Era hábito chamar-lhe o "metafísico" por causa daqueles discursos e de outros do mesmo género. Nunca tinha podido fornecer argumentos duma lógica rigorosa para defender as suas opiniões, os seus actos, os seus desejos; resolvia sempre os problemas graças a curtos aforismos enunciados num tom dogmático. Foi essa paixão dos aforismos que o levou a ser considerado como um homem que vivia sobretudo de grandes palavras. Tinham-se habituado a ele e não lhe prestavam já grande atenção, laroslavtsev, quando o encontrara, não tentara fazer uma ideia pessoal acerca do personagem com quem lidava. Confiava plenamente na figura e na justeza da opinião dos que tinham dado a Kravtsov a classificação de anormal e de psicopata.
Mas agora aquele Kravtsov tornava-se terrivelmente interessante. Cinco dias antes, Cirilo tinha passeado de barco em companhia dele e nada notara de anormal. Estavam
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sentados no barco, lado a lado, e ele, no seu estilo chocante, mas com autoridade e com absoluta clareza, demonstrava que demonismo, simbolismo e outras formas doentias do pensamento eram uma reacção furiosa mas indispensável contra a difusão do materialismo e que o crédito do materialismo seria em breve reduzido infalivelmente a migalhas aos olhos de todos os homens pensantes. Cirilo recordou novamente as frases que tinham a ressonância do metal:
"A causa do enfraquecimento do pensamento contemporâneo está no empobrecimento do idealismo. Os que expulsaram da vida todo o romantismo despojaram-nos até à nudez. Eis a razão por que nos tornámos secos uns para os outros, baixos uns para os outros. Não somos ainda psicologicamente bastante fortes para ouvir até ao fim sem perigo para nós mesmos. Quem sabe, pode acontecer que a verdade superior não só não nos seja proveitosa, como até nos seja absolutamente nociva."
"Muito bem, que diz esse homem, agora que está louco? E o que é isso de estar louco?"
laroslavtsev lembrou-se de que alguém tinha definido a loucura como sendo a predominância da actividade de uma qualquer das faculdades psíquicas sobre todas as outras; um outro definira-a como uma afecção da memória produzida por um certo facto ou pensamento.
Imaginava o interior de um mecanismo de molas: massas de molas em espiral apertando, distendendo, comunicando reciprocamente a força e o movimento. Subitamente uma dessas molas, não se sabe por quê, começa a exercer maior pressão do que as restantes, criando um completo desequilíbrio no conjunto, perturbando todas as outras até que elas adoptem um novo ritmo ou possam retomar o antigo. Ou então algo de pesado, de contundente, vindo do exterior, introduz-se no sistema e cai exactamente sobre a mola que inscreve o passado e então essa mola, atingida pela pancada, não pode continuar a registar seja o que for de novo e inscreve eternamente a mesma única ideia, reproduz uma única e sempre a mesma impressão.
"Tudo isso é muito simples e muito lamentável. Porque deveria esse homem ficar louco? Não era já bastante a sua parte de doenças e de infelicidades?" pensava laroslavtsev, lembrando-se que devia ir para junto do doente. Mas não se levantou nem se pôs a caminho; continuou, pelo contrário, a cismar, sentado na cadeira, com o sobretudo vestido e o boné na cabeça.
"E se de repente ele se tornasse um génio?... Porque está demonstrado que o génio é uma loucura. Ninguém descreveu como se formam os génios. Talvez seja enlouquecendo, tornando-se escravos de uma ideia..."
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Cirilo sentiu o desejo de repetir cada palavra várias vezes, mas um receio secreto impedia-o de o fazer. As palavras pareciam-lhe manchas de cores variadas, análogas a leves nuvens dispersas num espaço ilimitado. Voava em sua perseguição, apanhava-as, fazia com que batessem umas contra as outras, o que produzia um arco-íris que era também o pensamento. Se se pudesse engolir este ao mesmo tempo que o ar e expirá-lo em seguida, ele produziria então um som e o resultado seria um discurso.
- Como tudo isso é simples, apesar de tudo! - pronunciou ele, pondo-se a rir. - Os decadentes são pessoas subtis, subtis e agudas como agulhas, mergulham profundamente no desconhecido! - prosseguiu com satisfação, depois de ter feito estalar os nós dos dedos.
A porta abriu-se e a cabeça da proprietária enfiou-se na abertura.
- Sentado, vestido como se fosse sair, a rir e a falar sozinho!... É uma ocupação como qualquer outra! Quer que lhe traga o samovar ou vai realmente sair?
A proprietária falava a resmungar mas olhava-o com ternura. Tinha olhos pequenos mas vivos; uma pequena rede de finas rugas alargava-se ao canto dos olhos para atingir as têmporas e isso dava-lhe ao olhar um aspecto sorridente.
Ao ouvir aquelas palavras, laroslavtsev teve a sensação de regressar naquele exacto momento de alguma longínqua região, e de regressar extremamente cansado.
- O samovar? Não... não vale a pena. - Fez um gesto com a mão. - vou sair... talvez não volte até amanhã. Sabe, um dos meus amigos ficou louco. Que lhe parece? Que quer dizer isso?
- Louvado seja Deus! Ainda não há muito tempo, um matou-se com um tiro, agora outro enlouquece... Sempre lhe digo que tem uns amigos!... Que coisa! Pergunta-me o que isso quer dizer? É muito simples: é a vontade de Deus.
- A vontade de Deus! - repetiu Cirilo, pensativo, atirando o boné sem saber a razão. - É bizarro, sabe... muito bizarro!
- Qual deles é que ficou louco? - perguntou a mulher.
- O de cabelo castanho, mal penteado, que tinha umas calças cinzentas, ou o outro, aquele engraçado com as lunetas douradas?
A face redonda e enrugada da proprietária e o tom da pergunta exprimiam muita piedade, o que entristeceu Cirilo.
- Não, nem um nem o outro. Conhece-o bem: um homem de cabelos negros com uma capa, uma bengala e umas sobrancelhas saltitantes - respondeu ele, grave e suavemente,
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sentindo cócegas na garganta e os olhos a encherem-se de lágrimas.
- Nunca reparei nele. Certamente vinha cá poucas vezes, não me lembro de o ter encontrado. Vá, então! Mas não deve ficar lá muito tempo... Ora vejam isto, até o senhor já está pálido como um cadáver! - disse a mulher, resmungando.
laroslavtsev colocou novamente o boné na cabeça, levantou-se e deixou o aposento sem dizer nada, invadido pela tristeza e pelo acabrunhamento.
- É melhor fechar a porta! - gritou-lhe a proprietária.
- Não vale a pena! - respondeu ele, acenando com a cabeça num gesto triste.
Já eram seis horas da tarde mas o calor tórrido de Julho ainda não abrandara; subia em baforadas dos passeios, escapava-se dos muros e do céu sem nuvens. As folhas poeirentas das árvores que pendiam sobre os tapumes não se mexiam; tudo estava imóvel e parecia esperar um choque.
A onda de notas desafinadas e saltitantes dum piano saía pelas janelas abertas duma casa branca; apareciam no ar, estupidamente, laroslavtsev estremeceu e lançou os olhos à volta, desejoso de ver como a rua reagia àquele ruído. Mas tudo se mantinha imóvel, as notas já tinham desaparecido do mesmo modo absurdo como tinham chegado.
"A breve existência dos sons!" Esta ideia, inesperada ao seu estado de alma, atravessou o espírito de Cirilo e, como que para lhe servir de eco, sentiu em si a vontade de lançar algumas notas com uma voz de cabeça, muito alta: "A-o-é-o-a!" como fazem os cantores. Mas afastou esse desejo e prosseguiu o seu caminho, com a cabeça inclinada sob o peso de um enxame de pensamentos novos e esforçando-se por os formular em palavras que se acordassem com o ritmo dos passos. Esta tentativa teve como resultado fazer ecoar cada palavra algures dentro dele como uma violenta pancada vibrada num grande tambor. Aqueles pensamentos, cadenciados com a marcha, despertavam em seguida uma agradável sensação de leveza e de vazio no peito, no ventre e por todo o corpo. Parecia que os músculos tinham fundido sob o calor e que só restavam os nervos, tensos e elásticos, de humor melancólico mas expectante, como tudo à sua volta.
"De que falará ele agora e que pensará?" ruminava laroslavtsev a propósito de Kravtsov. E que vou eu fazer com ele? Compreendê-lo é absolutamente impossível... Portanto, para que serve ficar junto dele?... Por motivos morais? Por curiosidade? A loucura é quase a morte. Se ainda não está completamente louco assistirei à sua agonia.
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Aqui está uma coisa que deve ser anotada: por que razão o homem atrai tanto a atenção quando expira, e tão pouca quando está de boa saúde e em segurança? Acontece que ignoramos completamente um homem durante a sua vida, não nos interessamos nada por ele, e, de repente, sabendo que está à morte ou já morto, lamentamo-lo, falamos dele... Exactamente como se a morte ou a sua vinda nos aproximasse. Há decerto nisto um pensamento profundo... Se não é afinal uma grande mentira a que já nos habituámos tão completamente que não a podemos discernir. Talvez que assim, ao observar a morte de outrem, nos lembramos que também morreremos inevitavelmente e lamentámo-nos a nós mesmos na pessoa do outro. Há nisso astúcia e talvez ignomínia... De resto, nesta vida, nada se faz sem astúcia e ignomínia. Apercebemo-nos de que a compaixão é cruel... Piedade e crueldade!... Claro, são duas palavras perfeitamente similares!... É surpreendente que ninguém o tenha feito notar até agora! É preciso escrever um artigo sobre isso... Será um erro a menos." -
Ao mesmo tempo que fazia esta descoberta, Cirilo reconstituía na memória um incidente da sua vida no campo: uma vitela tinha caído numa ravina e quebrado as duas patas dianteiras. Quase toda a aldeia acorreu para a ver... O bicho fazia pena! Deitado no fundo da ravina e soltando mugidos de dor, olhava para as pessoas com os grandes olhos húmidos e procurava levantar-se, recaindo a cada tentativa. A multidão comprimia-se à volta dele e, com mais curiosidade do que compaixão, observava-lhe os movimentos e ouvia-lhe os gemidos. E ele também a olhava embora o fizesse sem interesse e com muita tristeza. De repente surgiu o ferreiro Matias, grande, carrancudo, com o rosto salpicado de poeira de carvão. Tinha as mangas arregaçadas e uma pesada tranca de ferro nas mãos. Passeou pela assembleia um olhar severo, com os olhos negros cheios de censura, franziu os sobrolhos e, depois de um aceno de cabeça, pronunciou com voz forte:
- Palermas! Que lindo espectáculo, ha!
Brandiu a barra de ferro e acertou com ela na cabeça do animal. A pancada produziu um som abafado e suave, mas apesar disso o crânio estourou e foi uma coisa pavorosa. A vitela cessou os seus mugidos e os grandes olhos húmidos deixaram de se lamentar... Mateus foi embora tranquilamente.
"Era o modo daquele Mateus ter compaixão! Talvez tivesse agido do mesmo modo com um homem incuravelmente doente. É moral ou não é moral?"
- laroslavtsev! Pare! Onde vai?
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Chamavam-no com grandes gritos que o sobressaltaram. Era Lyjine, com as mãos nos bolsos, no patamar de uma bonita casinha, laroslavtsev lembrou-se de que era precisamente ali que Kravtsov habitava.
- A sua casa... quer dizer, a casa dele!
- Ah, bom, fico-lhe muito agradecido por ter vindo depressa, porque, sabe, tenho montes de trabalho atrasado para nunca mais acabar. Foi o Si Menor que me arrastou até aqui, ele estava farto de ouvir a alta inteligência de Kravtsov. Sabe, ele fala sem parar um segundo! Acabou agora mesmo de adormecer. Segundo o diagnóstico do médico, por agora não é perigoso, trata-se apenas de um forte abalo de nervos; também é a minha opinião. Fala, é verdade, mas o que diz não é mais estúpido do que o habitual, a diferença é que fala muito mais; e é tudo! bom, então se me dá licença vou desaparecer. Há-de vir o Líakhov, diga-lhe que o doutor veio e ordenou brometo, mais brometo... Até depois!
Estendeu a mão a laroslavtsev. Este apertou-a sem dizer uma palavra, reteve-a um momento, e murmurou:
- Mas... na sua opinião, a que se deve tudo isto?
- A que se deve?.,. Hum... Como dizê-lo? Sabe, é quase certo que o Kravtsov teve sempre um parafuso avariado... Se ele tiver sede dê-lhe a garrafa que está em cima da janela, é também um calmante no género do brometo. bom, vou à vida. Adeus!
Pôs o sobretudo no braço e partiu.
laroslavtsev seguiu-o com o olhar e pôs-se a meditar no que ia fazer: ir para o quarto onde o outro estava deitado ou guardar que ele acordasse e se pusesse a falar? Imaginava que, ao despertar, Kravtsov lançaria imediatamente um grito agudo numa nota alta e se poria logo a falar depressa e com força como falam as regateiras nos mercados, e que tudo isso pareceria um rolar de tambor.
Enquanto pensava, caminhava de cabeça baixa sem reparar na direcção que tomava. Todos os pensamentos pareciam ter-se consumido subitamente e a sua cinza, espalhada na alma, parecia tê-la recoberto de uma morna camada de tristeza calma.
Um horroroso cheiro a farmácia obrigou-o a retomar consciência. Encontrava-se no limiar de um quarto pequeno, onde reinava o caos: as cadeiras tinham sido puxadas para o centro do aposento e formavam um semicírculo irregular diante da cama; pedaços de papel rasgado, livros, um prato partido e um xale vermelho, de malha, juncavam o chão. Ao lado da cama havia uma mesa redonda com um copo de chá. A mesa impedia que se visse a cabeça do homem, calmamente estendido de costas em cima da cama. Uma
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das duas janelas do quarto tinha uma cortina feita de um pano azul e a outra estava guarnecida com vasos de flores; para lá dos vasos viam-se num jardim algumas roseiras! acácias e lilases.
Depois de ter examinado tudo aquilo, laroslavtsev ergueu-se nas pontas dos pés, levantando para o alto o indicador da mão direita como que para se pôr em guarda contra qualquer perigo, e aproximou-se da cama, balouçando à vontade o braço esquerdo numa cadência ritmada pelos movimentos do corpo. Ao chegar junto da mesa, inclinou-se por cima dela e, retendo a respiração, contemplou o rosto do doente.
Aquele rosto tinha emagrecido muito depois que o vira pela última vez, mas não havia outra alteração. A expressão geral era calma, como a de todas as pessoas adormecidas, laroslavtsev soltou um suspiro de alívio. Tinha imaginado que a doença marcara o rosto de Kravtsov com um sinal monstruoso, que o torcera e desarticulara. Afastou-se, sorrindo, extremamente satisfeito por se ter enganado.
Mas subitamente, voltando-se de lado, apercebeu-se de que, na parede, um rosto olhava-o com um estranho sorriso, um esgar, pálido, de olhos enrugados e todo ele vibrante numa excitação contida. Ao nível daquela face, tinha-se erguido uma mão, com o indicador estendido; parecia ameaçar e, tal como o rosto, estava cheio de um triunfo sarcástico.
Uma angústia fria espalhou-se-lhe nas veias, apertando-lhe o coração com um pressentimento de algo de inevitável, de fatal; acabrunhado, deixou-se cair vagarosamente numa cadeira. Depois sentiu que no flanco esquerdo, sob a pele, uma espécie de bolhas inchavam e rebentavam logo a seguir, o que o afligiu desagradàvelmente. Levantou-se imediatamente, esforçando-se por não olhar para a parede de onde o tinham ameaçado, e procurou, esmagado pelo terror, lembrar-se onde tinha visto anteriormente aquela face desfigurada de que alguns traços lhe eram familiares.
"Poderia ser ele, esse ser a quem tudo é conhecido?"
Perante laroslavtsev abriu-se subitamente um abismo escuro, sem fundo nem margens, cheio de trevas informes e asfixiantes. Recuou, fechando fortemente os olhos. Sentia-se arrastado para baixo e sentia que, se os não abrisse, ia despenhar-se nesse abismo, despenhar-se interminavelmente, agonizante, sob um terror sentido mais intensamente a cada segundo.
Estremeceu, lançou um rápido olhar à sua volta e soltou um suspiro livre e inconsistente: estava aqui, no quarto de Kravtsov, o solo era firme debaixo de si, coisa de que Cirilo se assegurou premindo-o fortemente com o pé. E então
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foi dominado novamente por uma vontade apaixonada de lançar uma vez mais os olhos àquela parede... com muitas precauções ergueu-se na cadeira e, ao mesmo tempo, voltou a cabeça para trás: viu o rosto; mas agora não passava duma coisa lamentável, crispada num esgar onde se exprimia uma expectativa tensa e dolorosa. Reconheceu-se.
"Mas aquilo é um espelho... É mesmo!" - adivinhou ele, notando que a moldura do espelho estava coberta em cima, à direita e à esquerda, com uma toalha branca que ali tinham pendurado, e em baixo estava escondida com as caixas das fichas; o papel da parede também era branco, e por isso o espelho tinha passado despercebido e tinha-o assustado daquela maneira. No entanto, esta descoberta não eliminou o seu pressentimento de angústia; pelo contrário, trouxe consigo um não sei quê que o acentuava. Cirilo, olhando a sua imagem reflectida, abismou-se nos seus pensamentos.
"Mas sou eu mesmo que estou a ficar doido!" Atravessou-o subitamente este pensamento lancinante, provocando-lhe em todo o ser uma dor surda e aguda; era como se todos os membros se lhe tivessem impregnado da amarga e húmida crueza do túmulo. Tinha vontade de gritar, de chamar por socorro; sentia-se já arrancado à terra e caía, atravessando na queda camadas de ar tórrido e incandescente. O peito doía-lhe intoleràvelmente; começou a friccioná-lo vigorosamente com as mãos. Um pensamento aniquilador pulsava-lhe na cabeça e, sem o expulsar, farrapos de pensamentos e de recordações rodavam nela: era tudo um turbilhão. Tudo no cérebro dele estava como que rasgado, arruinado, desnaturado, e fugia tomado de pânico à ideia da demência. Abriu a boca, respirou profundamente, e, depois de aspirar uma quantidade terrível do ar empestado do quarto, dilatou o peito para gritar:
- Imbecil! Focinho repugnante! - soou uma voz irónica, num tom de desprezo. - Que diabo te leva a estar para aí sozinho a fazer caretas, embora não sejas, afinal, mais do que uma infame careta da Natureza? Espião! Pah!
Cirilo voltou-se rapidamente, com o peito dilatado. Na cama, Kravtsov, com os cotovelos apoiados na almofada e o queixo repousando nas palmas das mãos, olhava-o com olhos repassados de ironia venenosa onde a febre cintilava. Os bigodes estremeciam maldosamente, as sobrancelhas erguiam-se até aos cabelos cortados à escovinha, arrepiados como os pelos de uma cabeça de lobo. Os lábios torciam-se num sorriso sardónico; remexia as narinas; todo o rosto se sobressaltava incessantemente, desenhando aqui e além arabescos de rugas irregulares; era monstruoso e apavorante.
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"Quem está louco é ele, não eu!" Este novo pensamento jorrou como um clarão e aniquilou, em laroslavtsev, aquele que o tinha acabrunhado.
Expirou toda a coluna de ar que tinha engolido e sentiu desaparecer o frio e o medo que lhe tinham paralisado o cérebro. Era agora um prazer indizível contemplar a cara deformada de Kravtsov, e, quanto mais a olhava, mais depressa e plenamente retomava a consciência.
"Eis o que é um louco!" - exclamou interiormente. "com quem se parece? com o Diabo que um santo tivesse apanhado na sua caixa e marcado com o sinal da cruz!"
Esta comparação fez crescer Cirilo ainda mais aos seus próprios olhos e, logo após tê-la feito, pensou em si mesmo com delícia e com uma profunda confiança:
"Não é bem achado?! Acaso um homem cujo pensamento estivesse obscurecido pela demência seria capaz de dar um passo grande no passado para procurar nele uma imagem necessária à sua reflexão?"
Entretanto, Kravtsov continuava a pronunciar palavras cruéis, sem desviar dele os olhos flamejantes.
- Ouve lá, espião? Quem és tu?
laroslavtsev aproximou a cadeira da cama, estendeu-lhe a mão e disse, sorrindo amavelmente:
- Marc, então que é isso? Sou eu!
- Sim, sim, já sei que és tu! Sei que és um espião e que vieste para observar como eu penso. Não me descobrirás, não conhecerás um único dos meus pensamentos. Salvá-los-ei a todos, sei muito bem o que é preciso... Compreendi!
- Marc Danilovitch! Como é possível que me tenha esquecido? - exclamou laroslavtsev num tom compenetrado, amigável e alegre.
- Esquecer-te? A ti?... Não, não é possível esquecer-vos, vocês são numerosos, estão em toda a parte... Vocês são as moscas, os percevejos, as pulgas, a poeira, as pedras das paredes! Dão-vos uma ordem e vocês tomam todas as formas, encarnam-se em todas as coisas, vigiam tudo; façam-no! Observem como, porquê e para quê os homens pensam. Mas apesar disso vocês são fracos! Eu, pelo contrário, sou poderoso! Arde em mim o fogo eterno que anima os grandes feitos. E eis que, tal como Moisés ao abandonar o Egipto, eu vos conduzirei fora da vida, para fora desta fossa de detritos onde vocês se sentem tão à vontade. Conduzir-vos-ei e atingiremos a terra prometida onde o ar é demasiado puro para vós e onde, como resultado dessa pureza, não podereis viver. Matarei a sede dos meus irmãos na fonte de Castália da liberdade e chamarei as suas almas à vida da criação... à vida das--grandes
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acções... à vida em que tudo é promessa e restituição do homem! E vocês, tal como os Egípcios, tentareis perseguir-nos mas desaparecereis, morrereis afogados, mergulhados no mar da vossa própria infâmia. Encontrareis a morte, porque trazeis a morte em vós.
"Onde quer ele chegar?" pensava laroslavtsev, perdendo a alegria sob o efeito desses discursos solenes e sonoros. Os olhos de Kravtsov lançavam clarões agudos, claros, que aguilhoavam o rosto e o peito com finas e ardentes picadelas.
"Ah!... Vê-se que leu os filósofos da Igreja... Agostinho... e Crisóstomo... Por que razão os leu? Não teria mais nada para ler? Portanto, já há muito tempo... É um homem bem estranho!... De que fala? Ah!", laroslavtsev iluminou-se. "Trata-se de espião, isso quer dizer que tem a mania da perseguição! Diz de si próprio: Sou como Moisés!, portanto tem a mania das grandezas! Meu Deus, como afinal tudo é simples! A ciência! A ciência está ali! Continua a brilhar como um facho! Pobre homem!"
Supunha estar prestes a chorar, emocionado pela compaixão que sentia por Kravtsov, e penetrado novamente pela calorosa e alegre certeza da veracidade do seu raciocínio.
Mas a esse pobre raciocínio acontecia qualquer coisa de bizarro: ora mergulhava num buraco profundo e tenebroso, perdendo os horizontes; ora se elevava subitamente, alto e livre, abarcando espaços enormes; ora corria, lento e preguiçoso, como que exausto; ora se lançava com rapidez, agarrando pelo caminho mil objectos heterogéneos; e de novo recaía, desaparecia. Então Cirilo sentia apenas o pulsar inquieto do coração e nada mais.
Kravtsov, de súbito, torceu-se como uma serpente e sentou-se na cama, exaltado e sombriamente triunfante, vestido apenas com a camisa desabotoada no peito.
- Ouve o que vou dizer! vou sair e irei convocá-los a todos para um campo. Lá nos juntaremos todos, nós, os pobres de espírito, e deixaremos tristemente a vida. Pobres de espírito, sim, mas não te regozijes! E que todos os teus não se regozijem da nossa derrota, embora a confessemos; partiremos levando nas mãos os quebrados escudos das esperanças e, desprovidos da couraça da fé, teremos perdido os combates. Voltaremos, porém, enriquecidos pela força criadora, e armados com uma fé vigorosa no íntimo de nós mesmos, pois não há arma mais sólida! Compreendeste? Deixas-me partir para realizar esse feito? Em recompensa, quando regressar à vida, chamar-te-ei em primeiro lugar. Vá! Deixa-me partir!
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"A quem quer ele dar a salvação e o renascimento?, era o pensamento que ocupava a cabeça de Cirilo.
Já não sentia pena de Kravtsov, estava até um pouco irritado contra ele, porque pronunciava, sem se deter, palavras solenes que, ressoando-lhe no cérebro, o impediam de apreender uma ideia importante. É que tudo na cabeça de laroslavtsev se tinha bruscamente colorido com diversas tintas; percebia e via claramente manchas redondas, amarelas, azuis, vermelhas flutuarem e moverem-se-lhe diante dos olhos; havia muitas, todas se mexiam rapidamente; havia no meio delas uma mancha verde-claro, muito prometedora, que procurava libertar-se sem o conseguir. Era, sem sombra de dúvida, alguma coisa que falaria da fé. Mas a voz de Kravtsov fazia estremecer o ar e tudo começava a vibrar, a fundir-se, a perder nitidez.
"Como ele fala alto!", pensava, involuntariamente, laroslavtsev com aborrecimento. "Que quer ele? É um monstro! Que quer isso dizer: fora da vida?"
Recordou-se duma imagem: um homem com uma flauta na boca estava na margem dum rio e tocava. Acorria de todos os lados, ao encontro dele, uma multidão de ratos. Aquele homem tinha algo de comum com Marc Kravtsov. Era engraçado! E subitamente laroslavtsev pôs-se a rir, balançando-se para um lado e outro da cadeira.
O doente reclinou-se para trás, apoiando-se na parede, e calou-se, com a cabeça inclinada para o peito.
- É o triunfo de Judas! - pronunciou ele num sopro, mas num tom suficientemente alto.
Examinaram-se um ao outro, em silêncio: Cirilo, com ar tímido, como se esperasse qualquer coisa, Kravtsov com ar inquisidor e severo, laroslavtsev sentiu que os olhos luminosos do doente o atraíam e, inclinando-se na cadeira, pousou os cotovelos aos pés de Kravtsov, contra a cama.
Fez-se silêncio. Na rua, começava a cair a escuridão; vindas dos arbustos do jardinzinho, as sombras da noite avançavam sobre os vidros e os apoios das janelas. Finalmente, Kravtsov teve um sorriso inesperado e disse suavemente:
- Conheço-o muito bem!
- Evidentemente que sim! - concordou laroslavtsev com um aceno de cabeça, acrescentando quase num murmúrio:- O senhor devia falar. Se não é assustador... Já é noite.
- Falar? Consigo? Conheço-o bem! O senhor é laroslavtsev, o tipo das estatísticas! Tem vergonha, agora?
- Eu? Não, de modo nenhum. Mas tenho medo!
- Ah, sim, é isso! Medo! Tem medo do futuro.
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Ambos cochichavam, agora, e ambos se esforçavam por pronunciar cada nova frase ainda mais baixo que a anterior. Apesar das trevas do quartoCirilo ainda via o rosto do doente e o seu sorriso. Sentia-se cada vez mais atraído por aquele homem de olhos irradiantes.
- O senhor supõe que tudo se organiza segundo as suas estatísticas, não é assim? - perguntou Kravtsov gravemente. - Não, meu caro, labora num erro! Há também a estatística da consciência, e quem a dirige sou eu! Não tenho compaixão e sei o preço dum facto. O senhor já figura nas minhas contas.
- Não se deve assustar um homem! - implorou Cirilo.
- Um homem, concordo, mas deve-se fazê-lo a um espião. Porque observa o modo como penso? Meu Deus, no entanto limito-me a pensar. Só a mim isso faz mal, a ninguém mais. Pensar parte de uma boa intenção, porque o homem sucumbe sob os seus próprios pensamentos e vocês não perdem tempo em o abater.
O murmúrio de Kravtsov quebrou-se e uma palavra tilintou com um som metálico:
- Dinheiro! Ah, sim, quer dinheiro para me conceder a liberdade de pensar? Deixa-se subornar? Quanto?
- Ouve! - disse solenemente laroslavtsev, mas mantendo o tom confidencial. - Não grites, eles acabarão por te ouvir. Eles mantêm-se sempre nas proximidades.
- Acabarão por ouvir?... Ah, também tens medo? Porquê? E, no entanto, tu és um canalha, podes falar em voz alta. Ouve, deixa-me partir! Irei fazer uma coisa simples e útil. É legal, garanto-te! Quero fazer sair da vida todas as pessoas que, a despeito das suas manchas, são apesar de tudo as mais limpas... perecem pelo aborrecimento de se sentirem sós e de serem perseguidas por vocês. Abafam na atmosfera fétida da vida que tu respiras facilmente. Estás no teu elemento, mas eles... Permite-me que os salve!
- gritou ele a plenos pulmões.
Uma vaga de raiva áspera submergiu laroslavtsev. Ergueu-se diante do colchão e, suavemente, com uma nitidez insultuosa, soprou no rosto de Kravtsov:
- Não grites! Eu vou-te dizer a verdade: tu és louco! É isso que tu és! Estás a compreender? Ficaste louco! Sim... salvá-los! A quem? Eu sou o laroslavtsev, Cirilo laroslavtsev, e tu és um louco! Deita-te! Percebes? Ora aí tens!
Voltou a sentar-se na cadeira, respirando pesadamente e piscando os olhos. Kravtsov colocou a cabeça entre as mãos e pôs-se a balouçá-la de um lado para o outro, assustadoramente.
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O silêncio tornou-se novamente grave e apavorado. A Lua ergueu-se; nas trevas assustadoras do quarto infiltrou-se pela janela uma luz azul, desenhando uma fita no soalho.
O acesso de raiva tinha enfraquecido Cirilo laroslavtsev e o seu terror perante o instante seguinte crescia cada vez mais. Na calma e na profunda penumbra do quarto, alguma coisa de misterioso e de harmonioso se desenrolava, um trabalho destruidor estava a caminho de se realizar.
Na fita azulada do luar caíam manchas de sombra provenientes das flores da janela, e, ao mesmo tempo, aquilo assemelhava-se a um mapa coberto de hierógrifos, falando dos profundos segredos da vida e da impotência do espírito. Cirilo contemplou aqueles jogos de luz e desviou o olhar com vivacidade. Tinha a sensação de receber pancadas no peito.
- Tudo se acaba! - murmurou ele, em voz baixa. Ficou profundamente triste. Kravtsov levantou a cabeça
e olhou-o sem dizer nada, movendo as sobrancelhas. Cirilo começou subitamente a chorar, abraçou as pernas do doente, apertou-as com força, mergulhando a cabeça nelas e soluçando como uma criança.
- Tenho medo...
- Do futuro?... - perguntou Kravisov num grito abafado e triunfante, inclinado para ele, percorrido por um leve arrepio.
- Fale... Fale! - cochichou laroslavtsev.
- Ah, ah! Mais um que eu venci! - cochichou por sua vez Kravtsov, repelindo com as pernas a cabeça de laroslavtsev.- Muito bem! Vitória... desde o primeiro movimento!... Estás arrependido, não é verdade?... Senta-te... Anda aqui, vou-te contar tudo...
Tentava erguer a cabeça e libertar as pernas das mãos de Cirilo que as apertava, mas o outro não cedia, encolhia-se cada vez mais estreitamente contra ele e balbuciava através dos soluços.
Por fim Kravtsov deixou-o em repouso; inclinou-se para ele, apoiando as mãos no colchão, e começou com voz suave, mas solene e grave:
- Conheces pessoas que são prisioneiras desta vida? São os que queriam ser heróis, mas que se tornaram técnicos de estatística e professores. Outrora lutaram contra a vida mas foram vencidos por ela e ficaram prisioneiros da sua mesquinhez... É desses que falo, é a eles que pretendo salvar... Compreendeste? Perecem porque são perseguidos, porque todos os olham como inimigos, e são eles os seus próprios inimigos. Dispersos por toda a parte perecem
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minados pela dúvida e pelo aborrecimento... pela impossibilidade de ir, de falar, de pensarlivremente... Então eu os juntarei num único grupo e os conduzirei para fora da vida, para o deserto, e lá construir-lhes-ei o abrigo da salvação universal. Verás: será um asilo, não uma comuna nem um falanstério, um asilo; é legal, não é verdade? E eu serei o único acima de todos eles e ensinar-lhes-ei tudo o que sei. Sei muitas coisas, mais do que existe oferecido ao conhecimento, porque sei tudo, mais o meu conhecimento!... Distilaremos gota a gota o nosso suco na areia do deserto e animá-la-emos construindo nela edifícios para a felicidade! No meio de nós, elevar-se-á acima de todos o asilo da felicidade universal, e, no cume, sob uma campânula de vidro, eu próprio girarei eternamente e velarei pela ordem entre os que me tiverem confiado o seu destino. Serei severo, mas não segundo a justiça dos homens. Conheço uma justiça superior. Imporei uma obrigação a cada um: "Cria, porque és um homem!" - ordenarei a todos. Vai ser grandioso. Quando tivermos edificado o nosso império onde tudo será harmonia, chamaremos todos os espiões, todos os poderosos da Terra, e todos os povos estúpidos, chamá-los-emos e diremos: "Vejam, vocês foram expulsos, e nós construímos um modelo eterno de vida! Ei-lo, imitem-no! E nós, que renascemos das cinzas, iremos criar, criar éternamente... Eis a nossa tarefa." Nós, os que fomos miseráveis, partiremos depois de enriquecer com a força que faz viver os que foram Cresos. Vitória... Então direi ao mundo inteiro: "Homens, vistam-se de luz, porque a noite se desvaneceu e não voltará." É essa a ideia que fiz nascer das infelicidades e dos tormentos da minha existência, eu, o perseguido, o acossado, eu, o atormentado. Queres existir? Cria o que é novo! Dá alguma coisa aos homens, dá-lho, porque eles são dignos de dó e pobres. Ao passo que tu comigo, bem entendido - ter-te-ás unido à verdade. Serás o meu primeiro discípulo: não chores! Eh, criança, como és tão fraco, ainda! Também te ultrajaram? Não importa! Em breve renascerás para a nova vida, para uma vida na qual, finalmente, tomaremos parte e onde falaremos alto, bem alto, sem receio, acerca de tudo o que quisermos. Não me acreditas? Podes crer!... Embora pareça irrealizável, acredita apesar de tudo! Eu sou o teu bom génio, sou a águia do futuro. Afirmo que todas as palavras do teu coração e do teu espírito receberão a vida; serão ouvidas, servirão de reflexão, serão compreendidas e receberás o que te é devido: a glória dum homem que viveu para a vida e para os homens. Crê no que te digo, estancaremos a nossa sede na taça desbordante da existência, e todos os nossos sentimentos
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serão satisfeitos. Sabes o que disse Gregório de Juliano, que é a fórmula abstracta da retirada perante a verdade e da opressão da fé? Talvez penses, também, como todos os outros, que Juliano é César? Caro amigo! Não creias nessa verdade vulgar, ela é velha; toma-a em ideia, mas esquece-a. A vida está no futuro, é nossa. No passado há apenas ideias não há pessoas. Ora tu e eu somos pessoas e, por esse motivo, tomaremos as ideias que nos sejam úteis para subir as escadas da felicidade, por meio da qual penetraremos na felicidade eterna, tal como os anjos do sonho de Jacob, como criadores da vida, renovadores do espírito.
Este murmúrio solene transformou-se finalmente numa torre de palavras, cada vez mais raramente animadas por uma ideia para finalmente atingir, simplesmente, uma teoria de vocábulos desprovidos de senso ligados entre si, segundo parecia, apenas pelo som.
- A salvação... Lutero... antes...
Cirilo tinha já levantado a cabeça há muito tempo e mantinha-se de joelhos diante da cama, continuando a apertar as pernas de Kravtsov. Agora inclinava a cabeça ligeiramente para trás e olhava maravilhado o rosto do doente, sem desviar os olhos nem por um segundo.
No soalho ainda jazia aquele mapa azul, feito de luz e sombra, mas os hierógrifos que ali se encontravam inscritos tinham-se modificado, tinham-se tornado de formas mais simples e de um colorido mais escuro. Todo o quarto estava cheio da onda sonora do murmúrio solene. A noite calma e escura olhava pela janela.
As duas silhuetas humanas, frente a frente, não prestavam qualquer atenção à porta, onde passavam alternativamente a cabeça duma mulher de lenço negro, depois um homem de boné, dono de uma barba negra. Do outro lado da porta também se cochichava. Entretanto, Kravtsov, sempre com as mãos a apoiarem o corpo no colchão, inclinava-se para o rosto de Cirilo e falava, falava continuamente. Aquela cena prolongou-se quase até à madrugada. E quando a bruma já aclarava "na janela, o doente, exausto, deixou-se cair na almofada e perdeu a consciência instantaneamente.
Cirilo ergueu-se rapidamente, lançou à sua volta um olhar assustado e aproximou-se dele, com um salto. Tirou o sobretudo, tapou com ele a janela, olhando para a cama, e cochichou:
- Não é nada, continue!
Mas Kravtsov estava visivelmente impossibilitado de falar; limitou-se a abanar a cabeça e voltou-se para a parede. Então Cirilo sentou-se perto dele, aos pés, e segurando os joelhos nos braços pôs-se a olhar, com os olhos do amor
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e do entusiasmo, aquele construtor do asilo da felicidade universal.
Na mancha branca e rectangular da almofada, a cabeça negra, no princípio, destacava-se nitidamente; em seguida começou a fundir e diluiu-se. No lugar dela apareceu então um deserto amarelo, sem limites e árido. Estava juncado de cadáveres de homens que jaziam em posições variadas e que, esgotados, tinham expirado no percurso. Ao longe, na orla do deserto, luzia uma bola de um vermelho de sangue que declinava no horizonte enquanto sombras elásticas e escuras caíam do céu e envolviam os homens estafados. Depois a noite avançou, o sono apareceu, e ouviu-se no silêncio do deserto o delírio dos adormecidos. Só um de entre eles não dormia, um homem de pé no meio dos adormecidos, olhando com um olhar penetrante o céu onde as estrelas eram numerosas; por baixo delas estavam imóveis no ar três pontos negros. Eram as águias do deserto e o homem olhava-as com olhos desconfiados e vigilantes.
Depois Cirilo viu uma estrada por onde se apressavam homens libertos do cativeiro desta vida. Havia muitos, e, entre eles, havia também crianças que choravam nos braços do pai ou da mãe. Os pais e as mães avançavam cobertos de poeira, com as roupas em farrapos; através dos olhos deles, Cirilo via-lhes as almas angustiadas, desfeitas, almas usadas até à trama, de seres que tinham sofrido muito. À cabeça de todo o grupo caminhava um homem de grande estatura. Todos lhe obedeciam e todos o olhavam com esperança. Cirilo viu-se a si mesmo a seu lado. As trevas aproximaram-se e cobriram tudo.
Cirilo laroslavtsev viu o trabalho de construção do asilo da salvação universal... depois, novamente as trevas... Depois viu o regresso triunfal da vida... depois as trevas, outra vez... Por fim nada mais do que a escuridão sem fundo nem margens, soprando um frio lúgubre no rosto e na alma. Oscilou sobre o sopro das trevas, sentiu que ia arrancar-se da terra nesse instante, voar sem saber para onde, e experimentava uma sensação aguda que o impedia de fazer o menor movimento. Era presa duma dolorosa angústia, do frio, do medo...
Enovelando-se cada vez mais sobre si mesmo, enrugou os olhos, procurou aperceber ao longe, no negrume, o que devia acontecer, porque sentia que muito em breve, dentro de um instante, no segundo seguinte, algo viria libertá-lo do poder do apavorante.
Os raios de sol bateram-lhe no rosto. Estremeceu, fechou os olhos e sorriu com um sorriso pálido de criança doente.
A seguir, tão imóvel como antes mas agora com os olhos fechados, deixou-se ficar assim, longamente.
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De manhã, por volta das seis horas, chegaram Liakhov Si Menor e um homem de óculos de ouro, de rosto muito seguro de si. Franquearam calmamente a porta, um a um deixando atrás deles, na antecâmara, estranhas silhuetas masculinas.
- Então, não houve escândalo? - perguntou Liakhov, um homem de faces tristes e pálidas, dirigindo-se a Cirilo!
Este, desde que os vira, tinha deixado cair as pernas para fora da cama, e olhava-os com um claro sorriso. Apertou a mão que Liakhov lhe estendia e encarou-o com um suave entusiasmo.
- Vocês já vêm? Chegou então o momento?
- Sim...-exclamou Liakhov, fixando longamente o rosto de Kravtsov adormecido.
- Vamos esperar que ele acorde? - perguntou Si Menor ao homem dos óculos.
- Penso levá-lo assim mesmo e metê-lo directamente na ambulância. Venham cá.
Fez um gesto de apelo e dois rapagões sólidos, de bata branca, entraram no quarto.
- Peguem no doente com precaução.
Então Cirilo aproximou-se da cama, colocou-se à cabeceira de modo a esconder o rosto de Kravtsov, olhou para todos com espanto e perguntou suavemente, mas com força:
- Levá-lo para onde? Levá-lo a ele? Levá-lo para onde?
- Para o manicómio, evidentemente! - disse Si Menor.
- Para o hospital! - disse ao mesmo tempo o médico, encarando fixamente laroslavtsev por cima dos óculos.
Cirilo esfreguou energicamente a testa, como que para fazer o esforço de se lembrar de alguma coisa.
- Si-im!... Para o hospital!... Mas, afinal, por que razão? E quem é o senhor? - perguntou, aflorando levemente a manga do médico.
- Sou o médico, o chefe do departamento de psiquiatria! - disse o senhor de óculos, sem deixar de o encarar.
"Um homem culto, portanto!" - pensou Cirilo, estendendo-lhe a mão.
- Sinto-me satisfeito por o ver... e feliz por saber que também o segue! - disse ele, apontando para Kravtsov, com a cabeça.
- Viemos com a ambulância... - interrompeu Si Menor, olhando Cirilo com um olhar onde também brilhava a desconfiança.
- Oh, é inútil - disse laroslavtsev com um gesto desdenhoso -, iremos todos a pé, sobretudo ele.
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- Mas ele vai seguramente provocar escândalo! exclamou Si Menor em surdina.
- Que quer dizer com isso? - admirou-se Cirilo.
- Mas que tem você, meu caro?... Seja razoável! Ou teria também enlouquecido?...
- Desculpe! - interveio o médico, interrompendo Si Menor.
Cirilo ruborizou-se e, com algum pavor nos olhos, olhou-os um a um, com um sorriso incrédulo. Estavam ali três homens e examinavam-no, receosos e perplexos. Cirilo ruborizava-se, depois empalidecia sob o efeito de um trabalho interior. O sorriso desvaneceu-se-lhe dos olhos e enrugou-os de um modo estranho, subitamente incendiados por um pensamento fascinador.
- Meus Senhores! - murmurou ele, num tom suplicante, torcendo as mãos e fazendo estalar os nós dos dedos.
- Meus Senhores! Que vão fazer? É um erro! Pensam que ele é insensato? É um erro ultrajante, meus Senhores, um erro insultuoso! Ouçam-me: deixem-no como está! Deixem-no cumprir a missão que meditou. É uma grande causa, uma causa indispensável! Conhecem as ideias que ele defende? Não! Como podem então adoptar uma tal atitude, em relação a ele?... É... espantoso! Ouçam: eu compreendi-o, adoptei a sua concepção... Sou um homem razoável, estou certo de que o sabem perfeitamente. Babkine é testemunha
e Liaknov também. São ou não? Como puderam vocês... É revoltante! Não é digno dos senhores! Penetrem até à essência dos seus ensinamentos: agimos de um modo covarde, morremos moralmente, morremos de uma morte insensata, morremos banalmente de uma morte física. Tudo isso por causa da nostalgia dos desejos, a dor da solidão, as insuficiências da vida na qual não nos oferecem o nosso lugar. Acham realmente que o que eu digo é insensato? Meus Senhores... estamos proibidos de viver. E porquê essa proibição? Somos então criminosos? E, confessem, não é ele que tem razão ao propor-nos que o acompanhemos, para além das fronteiras da vida, aos desertos arenosos e desabitados? Ele nos fará regressar aqui... quando tivermos ressuscitado pelo espírito. Meus Senhores, que querem fazer?... Acaso seriam loucos, aos vossos olhos, todos os que desejam a felicidade alheia, todos os que estendem uma mão caritativa... que sentem uma piedade ardente, que amam os pobres, os que a vida persegue, os homens acossados uns pelos outros?
Perdeu finalmente o fôlego e calou-se, passeando sobre os ouvintes olhos espavoridos onde corriam grossas lágrimas. Os lábios tremiam. Dir-se-ia que ia rebentar em soluços.
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Por sua vez, Si Menor tinha também os lábios trémulos.
- Está a ver como é contagioso! E eu que passei aqui dois dias! - cochichou ele ao ouvido do médico.
Este, com os óculos levantados para a testa, coçava a base do nariz e, também ele, visivelmente chocado, gaguejou:
- Si-im, sabe... o caso é bastante estranho!
Liakhov estava parado, olhava para cada um dos outros sorrindo estranhamente e mordendo constantemente o lábio inferior. Todos se mantinham em silêncio. Cirilo, com o rosto desfeito, enxugou as lágrimas nas faces. Brilhava-lhe nos olhos um oceano de melancolia. Estava em pé e percorria o quarto com o olhar. Por detrás das três pessoas que lhe faziam frente, desenhavam-se mais dois homens de bata branca e, para lá da porta, na antecâmara, eram visíveis outras cabeças... E todos, obstinados e mudos, esperavam qualquer coisa; e essa qualquer coisa era precisamente dele que a esperavam, porque todos olhavam para ele. Cirilo sorriu com tristeza e disse timidamente:
- Desculpem, meus Senhores! Os senhores têm razão, uma vez que se encontram em maioria! Não contesto o vosso direito... vou-me embora... se é que o posso fazer.
- Espere um momento! - disse o doutor, detendo-o com um gesto amável.
- Estou às suas ordens! - respondeu Cirilo, sentando-se submissamente na cadeira que o médico lhe indicava.
Kravtsov despertou. Ergueu-se rapidamente, sentou-se na cama, e, passeando um olhar severo pelo publico que enchia o quarto, interrogou com voz forte:
- Quem são vocês?
- Ouve, Marc, não gostarias de ir remar um pouco? perguntou Liakhov.
- Não tentes enganar-me, jesuíta! Tu queres qualquer coisa... Eu conheço-te muito bem! Conheço-vos a todos! Mas não me renderei sem combate! Ah, isso não!... Vocês serão dispersos como poeira! Levar-me? Não!...
Lançaram sobre ele uma espécie de grande saco. Debateu-se até que o ligaram como um boneco. Feito isso ergueram-no e levaram-no enquanto ele gritava soluçando e torcendo todo o corpo:
- Não!... Não!... Não!...
Liakhov ficou no quarto. Aproximou-se da parede, tirou uma fotografia que estava dependurada, e, voltando-se para Cirilo que se mantinha recolhido em si mesmo, fixando um canto com os olhos fixos e assustadores, disse-lhe:
- Bem, vamo-nos embora!
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Cirile ergueu-se docilmente e saiu sem dizer nada. Ao fechar a porta do quarto de Kravtsov, Liakhov disse a uma mulher:
- Voltarei dentro de uma hora!
laroslavtsev repetiu, depois dele, como um eco, após a ter olhado com olhos mortos:
- Voltarei dentro de uma hora!
Agora são dois na clínica: Cirilo Ivanovitch laroslavtsev e Marc Danilovitch Kravtsov. No que se refere à cura de Kravtsov há esperança; no que se refere à do seu discípulo, não a há.
Os dois encontram-se no decurso dos passeios no jardim do hospital. Quando Cirilo apercebe ao longe o rosto de bigodes negros e permanentemente exaltado de Marc, acorre com passinhos rápidos e, tirando o boné, murmura delicadamente:
- Fala, mestre!
Cirilo fala muito pouco e nunca passa de um tímido cochichar. Se Kravtsov caminha, Cirilo, inclinando-se e dando saltinhos, corre atrás dele; se ele se senta, laroslavtsev senta-se aos seus pés, olha-o tristemente e, de tempos a tempos, implora num sopro:
- Fala, mestre! E o mestre fala ao seu aluno, com indignação e severidade, das perseguições ao espírito e dos sofrimentos desse mesmo espírito; fala-lhe com solenidade e gravemente do asilo da salvação universal e, com orgulho, dele próprio,
o grande mestre, o profeta dos homens quebrados pela vida.
Publicado em 1895, no número 9 da revista Russkaia mys.
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CERTA VEZ, NO OUTONO
Um dia, no Outono, as circunstâncias colocaram-me numa situação extremamente desagradável e incómoda: encontrei-me sem guarida e sem um cópeque no bolso, numa cidade onde acabava de chegar e onde não tinha quaisquer relações.
Depois de ter vendido, a partir dos primeiros dias, todas as peças de vestuário que me era possível dispensar, abandonei a cidade e dirigi-me para um lugarejo chamado Ustié onde havia cais de acostagem para vapores. Na época da navegação fervilhava ali uma vida laboriosa e trepidante, mas, presentemente, encontrava-se apenas a calma e o deserto: a minha história desenrola-se nos últimos dias de Outubro.
Arrastando os pés pela areia húmida e examinando-a cuidadosamente com vontade de encontrar quaisquer restos de alimentos, vagueei, solitário, entre os edifícios desertos e os armazéns de mercadorias, pensando na felicidade de estar saciado.
Numa determinada fase da cultura, a fome espiritual pode ser satisfeita mais rapidamente que a fome do corpo. Passeia-se pelas ruas e estamos cercados de edifícios, exteriormente nada feios, e, pode-se imaginar com pequena margem de erro, nada feios igualmente por dentro: isso pode despertar em nós pensamentos agradáveis sobre a arquitectura, a higiene ou outros temas igualmente filosóficos e elevados; pessoas confortàvelmente vestidas e agasalhadas cruzam-se connosco; são educadas, desviam-se amavelmente e essa delicadeza impede-os de notar
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o triste facto da nossa existência. Garanto que a alma de um faminto se nutre melhor e de um modo mais saudável que a daquele que tem o estômago cheio. Esta afirmação permite tirar uma curiosa conclusão para uso das pessoas saciadas.
Era ao cair da noite e chovia; o vento soprava em rajadas vindas do norte. Assobiava entre os armazéns vazios e as lojas desertas, chocava contra as janelas revestidas com tábuas, fustigava as vagas do rio que, sob a sua chicotada, espumavam e marulhavam ruidosamente contra a areia da margem, lançando bem alto as cristas brancas, galopando umas atrás das outras para um confuso horizonte, saltando impetuosamente... Dir-se-ia que o rio sentia a aproximação do Inverno e, apavorado, fugia para escapar às cadeias do gelo que o vento norte podia lançar sobre ele nessa mesma noite. O céu estava pesado e fúnebre, soltando sem descanso gotas de chuva, minúsculas, quase invisíveis; dois salgueiros quebrados e monstruosos e uma barcaça, voltada de quilha para o ar contra as raízes, sublinhavam, à minha volta, a tristeza daquela elegia na Natureza.
Um barco virado, com o fundo arrombado, e árvores despojadas pelo frio agreste, velhas e dignas de dó... Tudo em redor eram ruínas, esterilidade e morte, o céu vertia lágrimas instancáveis. As cercanias estavam desertas e lúgubres; parecia que tudo iria morrer em breve; eu seria o único ser vivo e a fria morte também me esperava.
Eu tinha então a bela idade de dezassete anos!
Caminhei longamente pela areia fria e húmida, batendo castanholas com os dentes em homenagem à fome e ao frio e, subitamente, no meio da minha pesquisa infrutífera de qualquer coisa comestível, ao passar atrás de um dos armazéns, apercebi um vulto dobrado, inclinado para o chão. Vestia um vestido de mulher, molhado pela chuva, que lhe modelava as costas inclinadas. Parei. Inclinado para ela, observei atentamente o que fazia. Verifiquei que cavava um buraco com as mãos, tentando praticar uma galeria sob um dos armazéns.
- Para que estás a fazer isso? - perguntei, acocorando-me a seu lado.
Soltou um grito abafado e ergueu-se com um salto. Agora que estava em pé e me olhava com olhos cinzentos, escancarados e cheios de terror, via que era uma rapariga da minha idade, com um rosto bonito, infelizmente ornado com três nódoas negras. Aquilo desfeava-a, embora as nódoas estivessem dispostas com admirável sentido das proporções: uma debaixo de cada olho, ambas do mesmo tamanho e outra maior, na testa, precisamente na raiz do nariz.
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Podia-se constatar naquela simetria o trabalho de um artista muito experiente na sua especialidade: a deteriorização dos rostos humanos.
A jovem olhava-me e, gradualmente, o terror desaparecia-lhes dos olhos. Sacudiu as mãos para expulsar a areia, arranjou o lenço de chita que lhe envolvia o cabelo, curvou-se e disse:
- Aposto que também tens fome! Cava aqui, já me doem as mãos. Lá dentro - fez um gesto com a cabeça apontando o armazém-, deve haver pão. Este ainda está a funcionar.
Comecei a cavar. Depois de ter aguardado um momento, olhando para mim, sentou-se a meu lado e começou a ajudar-me.
Trabalhávamos em silêncio. Agora não posso dizer se, naquele momento, eu tinha presente no espírito o código penal, a moral, a propriedade e outros princípios de que é conveniente, segundo a opinião das pessoas competentes, recordarmo-nos em todas as circunstâncias da vida. Desejoso de me manter tanto quanto possível fiel à verdade, devo confessar que estava, na medida em que me lembro, tão absorvido por aquele trabalho de sapa debaixo do armazém, que esqueci tudo, salvo aquilo que poderia encontrar lá dentro.
Era de noite. A escuridão, húmida, penetrante e gelada, tornava-se mais espessa em torno de nós. O marulhar das vagas parecia ensurdecer mais, a chuva tamborilava com estrépito nas tábuas do barracão, a uma cadência crescente. Já chegava até nós o ruído da matraca dum guarda-nocturno. A minha auxiliar perguntou:
- A barraca será assoalhada? , Não compreendi o que ela queria dizer e mantive-me
silencioso.
- É preciso saber se tem soalho. Se tem, estamos a trabalhar para nada. Depois de cavar a galeria encontramos umas tábuas grossas. Não as poderemos arrancar!... É melhor rebentar o cadeado da porta... não me parece muito forte.
As boas ideias visitam raramente á cabeça das mulheres; mas, como vêem, podem acontecer... Apreciei sempre as boas ideias e tentei sempre, na medida das minhas possibilidades, pô-las em prática.
Encontrei o cadeado, sacudi-o e arranquei-o juntamente com os parafusos... A minha cúmplice curvou-se num abrir e fechar de olhos e, como uma serpente, insinuou-se na abertura rectangular que conseguíramos daquele modo. Do interior soou um grito de aprovação:
- Tu és um ás!
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Um louvor vindo de uma mulher, mesmo bastante escasso, é-me mais precioso do que todo um discurso ditirâmbico pronunciado por um homem, mesmo que esse homem seja tão eloquente como todos os autores antigos reunidos. Mas, naquele momento, era menos galante que agora e, sem prestar atenção ao cumprimento da rapariga, perguntei num tom breve e assustado:
- Há aí alguma coisa?
com voz monocórdica ela aplicou-se a enumerar as descobertas que ia fazendo.
- Um cesto com garrafas... Sacos vazios... Um toldo... Um balde de zinco...
Nada daquilo era comestível. Senti as minhas esperanças a extinguirem-se... Mas de repente ela exclamou com animação:
- Ah! Aqui está!... --O quê?
- Um pedaço de pão!... Mas está húmido!... Apanha! O pão rolou a meus pés e atrás dele veio a minha
heróica cúmplice. Já tinha arrancado um bocado, tinha-o metido na boca e mastigava-o.
- Então, dá-me mais... Mas temos de sair daqui quanto antes. Para onde poderemos ir?
Perscrutava as trevas em todas as direcções. Estava tudo escuro, molhado e rumoroso. Depois disse:
- Ah! Lá em baixo, aquele barco voltado... Vamos lá!...
- Vamos lá! - respondi eu.
Pusemo-nos a caminho, arrancando ao nosso espólio bocados com que enchíamos a boca.
A chuva aumentava de violência, o rio bramia, um assobio arrastado e zombeteiro chegava até nós vindo de longe como se alguém muito grande e destemido pateasse os usos e costumes da terra, aquela horrorosa noite e a nós, os seus dois heróis... O coração comprimia-se dolorosamente sob aquele assobio; nem por isso eu deixava de comer com avidez, e a jovem que me acompanhava, à minha esquerda, não me cedia em nada.
- Como te chamas? - perguntei-lhe, sem saber porquê?
- Natacha! - respondeu ela, mastigando ruidosamente. Olhei-a; o coração apertou-se-me dolorosamente. Olhei
para a frente, para o fundo das trevas, e pareceu-me que a carantonha irónica do meu destino me sorria com um sorriso enigmático e frio.
A chuva batia incessantemente no costado do barco, o suave ruído convidava a ideias tristes, e o vento assobiava, enfiando-se por uma fenda da quilha onde estalava um bocado de madeira solto que batia de um modo
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sobressaltado e deprimente. As vagas do rio chocavam-se contra a margem e marulhavam com tanta monotonia e desesperança que parecia estarem a contar alguma coisa insuportavelmente aborrecida e penosa, alguma coisa fastidiosa até à repugnância, de que lhes era impossível deixar de falar embora desejassem fugir. O ruído da chuva fundia-se com o espadanar das ondas e, por cima do barco voltado de fundo para o ar, flutuava o longo e pesado suspiro da terra, ultrajada e exausta com aquelas eternas mudanças do Verão luminoso e cálido para o Outono frio, enevoado e húmido. As rajadas de vento precipitavam-se na margem deserta, e no rio espumante, cantando as suas tristes canções.
O sítio, debaixo do barco, era desprovido de conforto; acanhado, cheio de humidade concentrada, com o buraco do fundo por onde entravam gotas de chuva glacial e golfadas de vento... Estávamos sentados em silêncio e trémulos de frio. Recordo que tinha vontade de dormir. Natacha apoiou as costas ao flanco do barco e enrolou-se como uma pequena bola. Os joelhos nos braços, o queixo nos joelhos, olhando obstinadamente o rio com os olhos escancarados; estes pareciam enormes, na mancha branca do rosto, em virtude das nódoas negras que os sublinhavam. Não se mexia; e aquela imobilidade, juntamente com o silêncio, fazia nascer em mim, progressivamente - sentia-o bem-, o receio; eu temia a minha vizinha. Tinha vontade de lhe dirigir a palavra, mas não sabia por onde começar.
- Porca de vida!... - proferiu ela, distintamente, com nitidez, num tom de profunda convicção.
No entanto, não era um lamento. Havia demasiada indiferença naquelas palavras, para que o fossem. Uma pessoa tinha simplesmente reflectido conforme podia; tinha reflectido e chegado àquela conclusão já conhecida, que enunciara em voz alta e que eu não podia refutar sem me contradizer. Por tal motivo fiquei mudo. Ela, como se o não notasse, mantinha-se imóvel.
- Mais valia rebentar, ha! - declarou, a seguir, Natacha, mas desta vez de um modo calmo e cismador. Tal como antes, nenhuma nota de queixume vibrava na frase. Era evidente que esta criatura, depois de ter meditado um pouco sobre a vida, se tinha examinado a si mesma e tinha chegado serenamente à convicção de que, para se preservar das facécias da existência, não lhe restava outra alternativa senão a de "rebentar".
Uma tal lucidez era para mim inacreditavelmente penosa, e senti que se me continuasse a calar acabaria provavelmente por chorar... Perante uma mulher era uma perspectiva
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vergonhosa, tanto mais que, precisamente, ela não chorava. Decidi-me a iniciar a conversa.
- Quem te bateu? - perguntei, não tendo conseguido encontrar nada mais inteligente.
- Oh... foi o Paulo, como de costume! - respondeu ela em voz alta e sem vibração.
- Quem é ele?
- O meu amante... É um que é padeiro...
- Bate-te muitas vezes?
- Quando está bêbado...
Repentinamente, aproximando-se de mim, começou a falar-me de si, do Paulo e das relações que os uniam. Ela era "uma dessas raparigas da rua que...", e ele um padeiro de bigodes ruivos que tocava muito bem acordeão. Tinha sido freguês dela na "casa" e tinha-lhe agradado muito porque era alegre e porque se vestia bem. Tinha uma blusa de quinze rublos e botas macias. Tinha-se apaixonado por ele e tinha-o considerado "seu homem". A partir daí ele começou a tirar-lhe o dinheiro que os outros fregueses lhe davam de gorgeta; embebedava-se com aquele dinheiro e tinha começado a bater-lhe; isso era o menos, o pior é que tinha começado a arrastar a asa às outras raparigas mesmo diante dela.
- Pensas que isso não ofende? Valho tanto como as outras!... Isso quer dizer que anda a fazer pouco de mim, aquele patife. Há dois dias pedi à patroa licença para sair e fui a casa dele; encontrei lá aquela porca da Dúnia, instalada, a cair de bêbada. E ele também, com um grão na asa. Chamei-lhe nomes: "Patife! Canalha! Sem vergonha!" E então ele deu-me uma tareia... pontapés, socos, arrancou-me os cabelos. Mas isso ainda não foi nada: o pior foi que me rasgou toda e agora nem sei o que pareço... Como é que hei-de aparecer diante da patroa? Rasgou-me o vestido, a blusa... que era nova... e arrancou-me o lenço da cabeça... Meu Deus! Que vou fazer agora? - começou ela de repente a soluçar, com uma voz triste, entrecortada de angústia.
O vento também soluçava, tornava-se mais violento e frio. Os meus dentes puseram-se a tocar castanholas outra vez. Também ela se encolhia sob o frio e tinha-se aproximado de mim de tal maneira que eu via-lhe na escuridão o brilho dos olhos.
- Como é possível que vocês, os homens, sejam tão nojentos? Gostava de vos pisar a todos aos pés, dar-vos cabo do focinho!... Que um qualquer rebente e eu irei cuspir-lhe na cara, com todo o prazer. Sujos!... Vocês
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gemem, pedincham, mexem o rabo como os cãezinhos, mas quando uma de nós se deixa levar está bem arranjada... Pisam-na, sem dó nem piedade, são uns tinhosos!
O seu vocabulário injurioso era bastante variado mas as invectivas não eram vigorosas. Não percebi nelas nem maldade nem ódio por aqueles "tinhosos". O tom calmo dos insultos não correspondia, de um modo geral, com o seu significado e a voz era muito pobre em tonalidades.
Mas tudo aquilo teve em mim uma influência mais forte do que as palavras mais eloquentes e mais convincentes de todos os livros ou discursos pessimistas que tinha lido ou ouvido até ali, que leria ou ouviria mais tarde, que leio ou ouço ainda hoje. E isso porque, reparem bem, a agonia dum moribundo é sempre mais natural e mais chocante que as descrições mais exactas e mais artísticas da morte.
Eu estava num estado horroroso, decerto mais por motivo do frio que por causa dos discursos da minha companheira. Comecei a gemer em surdina e a ranger os dentes.
Quase no mesmo instante senti pousarem em mim duas minúsculas mãos geladas: uma delas tocava-me o pescoço, a outra tinha-se pousado no meu rosto e, ao mesmo tempo, ouvi pronunciar, inquieta, meiga, terna, esta pergunta:
- Que tens tu?
- Estava pronto a pensar que era alguém diverso que me interrogava e não aquela Natacha que acabava de declarar que todos os homens eram canalhas, e tinha desejado a perda de todos. Mas já ela se tinha posto a falar com precipitação volúvel.
- Que tens? Ha? É frio ou quê? Estás gelado! Estás aí parado, não dizes nada... pareces uma coruja. Devias ter dito há mais tempo que tinhas frio!... Olha... deita-te aqui... Estende-te, vou-me deitar a teu lado... Assim! Agora aperta-me nos teus braços... mais... Assim, já deves começar a aquecer... Depois deitamo-nos de costas um para o outro... De qualquer modo temos de passar a noite... Que te aconteceu? Foi a bebida ou perdeste o emprego? Deixa lá, isso não é nada!
Consolava-me... Levantava-me as forças...
Que o diabo me leve! Quanta ironia naquela situação! Pensem bem! Naquela época eu andava seriamente preocupado com a sorte da Humanidade, sonhava com a reorganização da estrutura social e com profundas alterações políticas; lia toda a espécie de livros duma sabedoria diabólica, cuja profundidade era sem dúvida inacessível até aos seus autores; naquela época esforçava-me de todas as maneiras em transformar-me a mim mesmo "numa grande força activa". E era a mim que uma mulher venal aquecia com o seu corpo, uma criatura infeliz, batida, expulsa, que
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não tinha lugar na vida, que não tinha valor, a mulher a quem eu não tinha pensado em socorrer antes dela própria me ter ajudado; e de resto, se o tivesse pensado, seria eu capaz de a auxiliar, fosse no que fosse?
Ah, sentia-me inclinado a pensar que tudo aquilo me acontecia em sonho, num sonho estúpido, num sonho doloroso...
Infelizmente era-me impossível manter um tal pensamento porque as gotas frias da chuva caíam em cima de mim, um peito de mulher comprimia-se contra o meu peito, o seu hálito quente soprava no meu rosto... e era um sopro vivificante... embora levemente perfumado de vodka... O vento uivava e gemia, a bátega torturava o barco, as vagas marulhavam, e nós, bem apertados um contra o outro, continuávamos a tremer de frio. Tudo aquilo era completamente concreto e eu estava certo de que ninguém tinha visto em sonho algo tão penoso, tão atroz como esta realidade.
Entretanto, Natacha continuava a falar, com aquela ternura, aquela piedade que só as mulheres podem pôr nas suas palavras. Sob a influência do que ela dizia de um modo ingénuo e cheio de meiguice, um leve fogo animou-se em mim suavemente e, graças a ele, algo começava a fundir no meu coração.
Então os meus olhos começaram a verter lágrimas que me lavavam o coração de muita raiva, muita tristeza, estupidez e podridão que nele fervilhavam antes daquela noite... Natacha consolava-me:
- Vá, não chores! Basta! Se Deus quiser tudo se arranjará, terás um novo emprego... tudo correrá bem!
Beijava-me. Generosamente, sem contar, com ardor...
Foram os primeiros beijos de mulher que a existência me ofereceu e foram os melhores, porque todos os que se seguiram me custaram muito caro e não me deram quase nada.
- Vamos, não chores mais, meu tolinho! Se não tens para onde ir, amanhã arranjo-te uma casa...
Eu ouvia aquele murmúrio abafado e persuasivo como que através dum sonho... Ficámos assim até ao raiar da aurora, deitados, apertados um ao outro.
E quando a aurora chegou, deslizámos para fora do abrigo que o barco nos oferecera e dirigimo-nos para a cidade. Depois separámo-nos amigavelmente e nunca mais nos voltámos a encontrar, embora eu durante meio ano tenha revolvido todos os antros à procura daquela gentil Natacha, com quem passara a noite que descrevi, num dia de Outono.
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Se já morreu - e que boa coisa isso seria para ela! que repouse em paz! Se está viva, desejo-lhe igualmente a paz! Que não desperte nela a consciência da sua queda... porque seria um sofrimento inútil e estéril...
Este conto foi publicado em 1895, nos números 154 e 156 da Samarskaia Gazeta.
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A CANÇÃO DO FALCÃO
O mar imenso suspira preguiçosamente junto da costa; adormeceu, imóvel, no horizonte banhado pelo esplendor azulado do luar. Macio e prateado, fundira-se ao longe com o céu azul do Meio-Dia. Repousa num sono profundo e reflecte uma cobertura diáfana de nuvens leves, imóveis, que deixam ver o rendilhado dourado das estrelas. Parece que o céu se inclina cada vez mais para o mar, desejoso de entender o significado do marulhar das vagas, incansáveis, quando trepam vagarosamente pela costa.
As montanhas, cobertas de árvores monstruosamente curvadas pelo vendaval, erguem com gestos bruscos os cimos para o azul profundo e deserto que as domina. Os contornos austeros arredondam-se sob o manto quente e acariciador da noite meridional.
As montanhas estão pensativas e graves. Lançam sombras negras sobre as sumptuosas cristas esverdeadas das vagas e vestem-nas como se quisessem deter o único movimento, abafar o contínuo bater da água e os suspiros da espuma, todos os ruídos que destroem o misterioso silêncio, espalhado em torno com o azul prateado da Lua ainda escondida por detrás dos picos das montanhas.
- A-ala-ah! Akbar! - suspira em voz baixa Nadir Rahim Ogly, um velho pastor da Crimeia, um grande velho de cabelos brancos, queimado pelo sol meridional, um velho seco e perspicaz.
Estávamos ambos deitados na areia junto de um enorme rochedo arrancado à sua montanha natal, vestido de sombra, coberto de musgo, ambos deitados junto de um rochedo triste e aborrecido. Do lado do mar as vagas tinham
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depositado ali algas e sargaço. O rochedo estava cercado de plantas marinhas, parecia ligado a uma estreita fita de areia que separava o mar da montanha. A chama da nossa fogueira iluminava o rochedo do lado da montanha. A chama tremia e as sombras corriam pela velha pedra que uma apertada rede de nervuras cinzelava.
Rahim e eu estamos a fazer uma sopa de peixe pescado há pouco. Ambos nos sentimos naquela disposição em que tudo parece transparente, visitado pelo espírito, propício ao recolhimento, em que o coração é tão puro e leve que se tem apenas o desejo de pensar.
O mar acaricia a costa e as vagas marulham tão meigamente que parecem pedir licença para se virem aquecer ao pé do lume. Às vezes, na harmonia geral da ressaca, faz-se ouvir uma nota mais alta e folgazona: é uma vaga mais audaciosa que deslizou até perto de nós.
Rahim está estendido com o peito na areia, a cabeça voltada para o mar. Apoiado nos cotovelos, com a cabeça nas palmas das mãos, sonhador, contempla o horizonte longínquo de contornos mal definidos. Tem o boné de pele de carneiro caído para a nuca; uma aragem fresca, vinda do mar, bate-lhe na larga fronte marcada de rugas ténues. Começa insensivelmente a filosofar, sem reparar se o estou a ouvir, como se estivesse a dirigir-se ao mar.
- Um homem fiel a Deus irá para o Paraíso. Mas aquele que não serve Deus nem o Profeta? Talvez seja ele, lá ao fundo, naquela espuma... E aquelas manchas de prata na água, talvez seja ele também, quem sabe?
O mar escuro e possante ilumina-se; em certas zonas aparecem retalhos de luar lançados negligentemente. O astro nocturno já apareceu por detrás dos cimos arborizados da montanha e, sonhador, despeja agora a sua luz sobre as águas que suspiram suavemente batendo a costa e o rochedo junto do qual estamos estendidos.
- Rahim, conta-me uma história.
- Porquê? - perguntou Rahim, sem voltar a cabeça.
- Por nada! Gosto das tuas histórias!
- Já te contei tudo o que sabia... Não tenho mais nada para contar.
Ele gosta de se fazer rogado. Insisto.
- Se quiseres posso contar-te uma canção! - concorda Rahim.
Declaro que sim, que desejo ouvir a velha canção, e, num recitativo melancólico, esforçando-se por respeitar a melodia original, ele relata:
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- A Víbora escalou a montanha, até muito alto, e deitou-se lá, numa garganta húmida, enrolada sobre si mesma, olhando o mar.
"No céu, muito longe, o Sol irradiava, e as montanhas tórridas lançavam para o alto o seu calor enquanto as vagas, lá no fundo, fustigavam os rochedos.
"Ao longo da garganta, entre as trevas e os destroços, a torrente lançava-se a caminho do mar, acompanhada por um fragoroso rolar de pedras...
"Sob a sua cabeleira branca, espumejante, robusta, ela fendia os montes e caía no mar com um uivo enfurecido.
"Subitamente, nessa garganta onde a Víbora se tinha enrolado, saiu do céu, de peito aberto e penas sangrentas, o Falcão.
"Caiu no solo com um grito breve e, na sua raiva impotente, rasgou o peito contra a dura pedra.
"A Víbora ficou apavorada, esquivou-se lestamente, mas, muito depressa, compreendeu que o pássaro não tinha mais do que alguns instantes de vida.
"Rastejando, aproximou-se do pássaro esmagado e assobiou-lhe, direito aos olhos:
"- E então? Morres?
"- Claro que morro! - respondeu o Falcão num profundo suspiro. - Vivi magnificamente!... Conheci a felicidade... Bati-me briosamente... E vi o céu!... Nunca poderás vê-lo de tão perto. Pobre de ti!
"- Ora, ora! O céu? Não passa dum lugar vazio... Como poderia eu rastejar até lá? Ao passo que aqui é um lugar
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estupendo!.,. Está quente e húmido, tal e qual como é preciso.
"Assim respondeu a Víbora ao pássaro livre do céu. Bem se importava ela com o pássaro e as suas quimeras!
"Ela pensava o seguinte: Quer se voe ou rasteje, o fim é conhecido e igual para todos: ficaremos deitados na terra e seremos reduzidos a poeira...
"Entretanto o valente Falcão sacudiu repentinamente as asas, ergueu-se um momento e passeou o olhar ao longo da ravina.
"Por cima a água ressumava da pedra escura e o ar em toda a escura garganta era abafado e exalava cheiro a bafio.
"Trespassado pela tristeza, tanto quanto pela dor, o Falcão chamou a si todas as forças e exclamou:
"-Oh, elevar-me no céu pelo menos uma vez mais!... Contra os meus flancos feridos... vencer o inimigo... que bebeu o meu sangue... Oh, felicidade do combate!
"E a Víbora pensou: - Deve ser realmente bom viver no céu, para que ele gema daquela maneira.
"Então propôs ao livre pássaro do céu: - Podes arrastar-te até à borda da ravina e lançar-te no espaço. Talvez as tuas asas te consigam transportar e possas reviver um pouco no teu elemento.
"O Falcão estremeceu e, com um grito altivo, arrastou-se para o abismo rasgando a rocha viscosa com as suas presas trémulas.
"Estava perto; abriu as asas, suspirou profundamente, os olhos brilharam... e precipitou-se.
"Caiu como uma pedra, deslizando pelos rochedos, rápido como ela. As asas quebraram-se, as penas foram arrancadas...
"As ondas da torrente apoderaram-se dele, lavaram-lhe o sangue, vestiram-no de espuma, levaram-no para o mar.
"E as ondas do mar, num triste marulho, banhavam os rochedos... Depois o cadáver do pássaro desapareceu no espaço marinho.
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"Deitada na ravina, a Víbora pensou durante muito tempo na morte do Falcão, na sua saudade do céu.
"Os olhos contemplaram o horizonte longínquo, aquele horizonte que o sonho da felicidade acaricia eternamente com os olhos.
"- Que veria o Falcão morto naquele deserto sem limites e sem fundo? Por que razão os seus semelhantes perturbam a alma, ao morrer, com o seu amor dos impulsos para o céu? Que vêem eles tão claramente? Eu poderia também conhecer tudo isso, bastar-me-ia lançar para o céu, ainda que por pouco tempo.
"Dito e feito. Enrolou-se, saltou no ar, e um apertado anel cintilou ao sol.
"Se se nasce para rastejar, não se pode voar. Por o ter esquecido, ela caiu em cima da pedra. Não morreu, porém, e isso fê-la rir.
"- É então este o encanto de voar pelos ares! O encanto seria o de cair?... Pássaros ridículos! Ignoram a terra, aborrecem-se nela e lançam-se para o céu para procurarem ali advida num deserto tórrido. Lá no alto só existe o vazio. É luminoso, mas não há alimento, nenhum ser vivo pode encontrar nele apoio. Por que motivo então esse orgulho? E por que motivo os lamentos? Decerto para dissimular as suas loucas ambições e a sua incapacidade para as coisas da vida! Pássaros ridículos! Nunca mais me deixarei enganar pelos discursos deles! Vi o céu... Sei tanto como eles! Voei, medi o espaço, experimentei a queda mas não morri e fiquei mais confiante nas minhas forças: que os que não podem
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amar a terra continuem a viver de ilusões. Eu sei o que é verdade. E não creio nos seus apelos. Criatura da terra, vivo da terra...
"E então, toda orgulhosa consigo mesma, enrolou-se numa bola, em cima da pedra.
"O mar cintilava, banhado de luz, e as vagas terríveis assaltavam a margem.
"No seu rugido de leão ouvia-se a canção do altivo Falcão. Os rochedos tremiam sob os golpes, o céu estremecia com a força da canção terrível:
"Glória à loucura dos bravos!
"A loucura dos bravos, eis a sabedoria da vida! O audaz Falcão! Verteste o sangue combatendo os teus inimigos... Mas chegará um momento em que as gotas do teu sangue ardente brilharão como estrelas nas trevas da vida, e despertarão em novos corações temerários uma sede insensata de liberdade, de luz!
"Morreste, é certo!... Mas na canção dos bravos e dos fortes, viverás em espírito como um exemplo vivo, um orgulhoso apelo à luz e à liberdade!
"Glória à loucura dos bravos!..."
O silêncio paira sobre o longe opalino, as melodiosas vagas desfazem-se na areia, e eu mantenho-me silencioso com os olhos fixos no horizonte marítimo. Os círculos prateados dos raios do luar são cada vez mais numerosos... A nossa marmita ferve suavemente.
Uma vaga alegre trepa e torce-se no declive da praia, marulha e avança para a cabeça de Rahim.
- Onde vais?... Deita-te! - diz Rahim com um gesto da mão. A onda desce, submissa, para o mar.
O dito espirituoso de Rahim, emprestando uma alma às vagas, não me pareceu divertido nem impressionante. Tudo à nossa volta é estranheza, vivacidade, doçura e meiguice. O mar está tão gravemente sereno que se percebe, no sopro de frescura que atira para os montes, ainda mal libertos da canícula do dia, um grande vigor escondido, poderoso e contido. No azul-escuro do céu o ouro entrelaçado das estrelas inscreve algo de solene, de encantador, que perturba o espírito na expectativa suave de alguma revelação.
Tudo dormita, mas com um sono leve e tenso. Pode-se imaginar que no segundo seguinte tudo despertará para entoar uma melodia hamoniosa composta de notas extraordinariamente suaves. Elas irão dizer os mistérios do mundo, torná-los claros ao espírito, depois apagar este como se
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extingue uma ilusória lanterna, e arrastar a alma para o alto, para o abismo azul onde as rendas palpitantes das estrelas a virão acolher, retomando a música admirável da revelação...
Publicado na Samarskaia Gazeta em 1895, no número 50, com o título de NO MAR NEGRO. Na edição de "Contos e Relatos" de
1898 apareceu com o título actual. Numa edição posterior, em 1899, Gorki refundiu o texto. A presente tradução tem origem no texto que o autor redigiu para as edições Knlga.
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HISTÓRIA DO RAPAZINHO E DA RAPARIGUINHA QUE NÃO MORRERAM GELADOS
(Conto de Natal)
Desde há muito tempo que se admite, nos contos de Natal, deixar morrer de frio, anualmente, um certo número de crianças pobres, rapazes e raparigas. O rapazinho ou a rapariguinha que figura num honesto conto de Natal aparece, segundo o hábito assente, diante da janela de alguma grande casa, admira através dos vidros a árvore de Natal iluminada nos luxuosos salões, após o que morre de frio, não sem ter antes sentido muitos aborrecimentos e amargura.
Compreendo as boas intenções dos autores de contos de Natal, apesar da crueldade com que tratam os seus personagens; sei que esses autores fazem gelar crianças pobres para lembrar às ricas a existência das primeiras, mas, pessoalmente, nunca me conseguiria decidir a matar com frio um rapazinho ou uma rapariguinha, mesmo fazendo-o com desígnios tão perfeitamente louváveis.
A verdade é que eu nunca morri de frio, nunca assisti à agonia dum pobre rapazinho ou duma pobre rapariguinha prestes a gelar, e temo inventar coisas ridículas ao descrever as sensações da congelação... Além disso, não me sentiria muito bem nesse papel de matar um ser vivo para lembrar a outro ser vivo a existência daquele.
E essa a razão por que prefiro contar a história dum rapazinho e duma rapariguinha que não morrem gelados.
Eram seis horas da noite - da noite de Natal. O vento soprava, empurrando adiante de si, aqui e além, nuvens de neve, transparentes. Aquelas pequenas nuvens frias, de
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contornos indefinidos, belas e leves como farrapos de musselina amarrotada, voavam por toda a parte, caíam na cara dos transeuntes, provocavam picadelas glaciais na pele das faces, salpicavam o focinho dos cavalos; estes sacudiam a cabeça e, com um relincho sonoro, expulsavam pelas narinas lufadas de vapor morno... Pendia gelo dos fios telegráficos como se fosse cordões de peluche branco... O céu estava claro, muitas estrelas cintilavam na sua imensidão, e o brilho delas era tão luminoso que pareciam ter sido limpas, para essa noite, com uma escova empoada de giz, o que, evidentemente, era impossível.
A rua estava ruidosa e animada. Os carros passavam puxados por cavalos a trote, os peões caminhavam, alguns com pressa, outros deambulando vagarosamente. Esta diferença era manifestamente proveniente do facto de os primeiros terem certos assuntos e certas preocupações ou não terem sobretudos quantes, enquanto os segundos não tinham preocupações, assuntos graves, e possuíam não só sobretudos quentes mas até confortáveis pelicas.
Em direcção a uma dessas pessoas sem problemas e de posse de uma pelica de gola sumptuosa, contra as pernas de uma dessas pessoas de andar grave e lento, surgiram duas pequenas bolas de farrapos que, rodando em torno dela, gemeram a duas pequenas vozes num tom de fazer chorar as pedras:
- Meu bom Senhor...-pronunciou a voz aguda da rapariguinha.
- Vossa Excelência...-apoiou-a a voz rouca do rapazinho.
- Dê esmola a umas crianças infelizes...
- Um cópeque para um pedaço de pão! Para a festa! - terminaram os dois juntos.
Eram os meus dois heróis, crianças pobres, o rapazinho- Michu Maluco, e a rapariguinha - Catu Bexigosa1.
O cavalheiro prosseguia o seu caminho, mas eles, metendo-se-lhe nas pernas lestamente e barrando-lhe a passagem a todo o momento, faziam o que lhes era possível para o impedir; Catu, com os suspiros da expectativa, repetia em surdina a palavra "caridade".
Finalmente, o cavalheiro, quando eles o aborreceram convenientemente, desabotoou a pelica, tirou um porta-moedas
1 Desejoso de não chocar os meus leitores bem-educados, proponho que substituam os nomes dos meus dois heróis pelos de Mike e Kate.
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e, levando-o ao nariz, pôs-se a cheirá-lo. Feito isto tirou uma moeda e colocou-a numa das mãos muito sujas que se lhe estendiam.
As duas bolas de andrajos desapareceram do caminho do cavalheiro quase instantaneamente, e encontraram-se junto de um portão, onde, apertados uma contra a outra, observaram durante um certo tempo o outro lado da rua, sem dizerem uma palavra.
- Ele não viu! - murmurou finalmente, num tom triunfante e maldoso, o rapazinho pobre.
- Ele estava do lado dos fiacres e virou a esquina! respondeu a companheira. - Quanto deu o senhor?
- Dez cópeques! - respondeu Michu com indiferença.
- Quanto faz ao todo?
- Sete vezes dez cópeques e duas redondas.
- Oh, oh! Já tanto?... Então vamos embora cedo? Está frio...
- Estás cheia de pressa! - disse Michu, céptico.- Põe-te a pau, não percas a pinha, senão o polícia acaba por te descobrir e vais vê-las lindas!... Repara naquele navio que aí vem! Vamos atacar!
- O navio em questão era uma senhora envolta num quente casaco de peles; daqui se depreende facilmente que Michu era um rapaz mal-educado, sem respeito com as pessoas de mais idade.
- Minha Senhora!... minha boa Senhora! - cantou ele.
- Uma esmola por caridade... Por amor de Deus! apoiou Catu.
- Só largou três cópeques! Bolas! Gaja duma figa! explodiu Michu.
com um salto abrigou-se no portão. Entretanto, as finas nuvens de neve continuavam a turbilhonar na rua e o vento frio tornava-se mais agreste. Os postes telegráficos ressoavam num som abafado, a neve soltava gemidos agudos sob os patins dos trenós e, algures ao longe, na rua, ouvia-se o riso fresco e sonoro duma mulher.
- E a tia Anfissa, se calhar, hoje também se embebeda!
- perguntou Catu, apertando-se contra o companheiro.
- Claro!... Tem alguma razão para não beber? - respondeu Michu, imperturbável.
O vento expulsava a neve dos telhados e, suavemente, pôs-se a soprar uma cantilena de Natal; ouviam-se ranger as dobradiças duma porta; depois o ruído tilintante duma porta de vidro, e uma voz forte que gritava:
- Cocheiro!
- Vamos para casa! - propôs Catu.
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- Lá começas tu a choramingar! - resmungou Michu ameaçador e sem se alterar. - Que encontras tu a mais, em casa?
- Calor! - explicou Catu, lacónica.
- Calor! - macaqueou Michu. - Mas quando estiverem todos juntos e te obrigarem a dançar, vais achar graça? Obrigam-te a beber vodka até te embebedares e andar aos tombos... Isso também é a casa!
Esfregou as mãos com o ar de um homem que sabe o que vale e está persuadido da justeza do seu modo de ver as coisas. Catu teve um bocejo espasmódico e acocorou-se no canto do portão.
- De resto, o melhor é calares-te e, se tens frio, suporta-o... Não faz mal nenhum!... Vamo-nos aquecer daqui a bocado, e sem nos chatearmos!... Sei muito bem o que faço! O que quero fazer.
Deteve-se, com a intenção de forçar a companheira a demonstrar interesse pelo que queria fazer. Mas ela, cada vez mais enrolada sobre si mesma, não se mostrava interessada. Então Michu, um pouco preocupado, advertiu-a:
- Tem cuidado!... Não adormeças... Vais gelar! Eh, Catu!
- Não... Estou bem! - respondeu ela, batendo os dentes.
Se o rapazinho não estivesse ali, talvez ela tivesse morrido gelada; mas o garotinho, cheio de experiência, tinha decidido firmemente opor-se a que ela cometesse aquela acção tão frequente em noites de Natal.
- Levanta-te. Assim é pior! Em pé és maior e o frio tem mais dificuldade em te atravessar. Ele não pode vencer os que são grandes... basta veres os cavalos... Esses não gelam. O homem é mais pequeno que os cavalos, é por isso que gela. Levanta-te, já disse. Vamos chegar até um rublo e depois vamos embora.
Catu levantou-se, toda atravessada por arrepios.
- Está um frio terrível! - murmurou ela, baixinho. Efectivamente, o frio aumentava cada vez mais. E as
finas nuvens de neve transformavam-se pouco a pouco em espessas nuvens que voavam em turbilhão. Ocupavam a rua, aqui sob a forma de colunas brancas, acolá sob o aspecto de luxuosos estofos cravejados de brilhantes... Era um prazer vê-las torcerem-se sob os lampiões ou voar ao longo das montras bem iluminadas dos estabelecimentos. Soltavam então uma multidão de frias fagulhas coloridas que picavam os olhos com o seu brilho agudo.
Mas embora tudo isso fosse belo, não despertava o mínimo interesse no meu par de heróis.
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- Repara... aí vem mais! - disse Michu, pondo o nariz fora do abrigo. - Uma porção deles. Catu, não é ocasião de bocejar.
- Meus bons Senhores! - gemeu a rapariguinha com voz trémula e entrecortada, saltando para a rua.
- Por amor de... Catu, foge! - gritou Michu.
- Esperem aí, que vos vou dar a pedinchice! - uivou, zangado, um polícia espadaúdo que tinha aparecido subitamente no passeio.
Mas eles já ali não estavam. Tinham rolado como duas bolas de trapos, rapidamente, e tinham desaparecido.
- Fugiram, aqueles patifes! - disse o polícia com os seus bigodes, lançando um olhar ao longo da rua, com um sorriso bonancheirão.
Os patifes corriam e riam à gargalhada. Catu, tropeçando nos trapos que lhe desciam até aos pés, caía a cada passo e exclamava:
- Oh, meu Deus! íamos sendo...
Caía, levantava-se, lançava um olhar assustado para trás e ria, perguntando:
- Ele apanha-nos?
Michu ria à gargalhada, segurando as costelas e chocando a cada momento contra os transeuntes de quem recebia palmadas.
- Já chega!... Ah, ah, ah!... Os saltos que ela dá!... Que maluca! Pumba... e pumba! Caramba, é de morrer a rir!
As quedas de Catu tinham-lhe dado uma óptima disposição.
- Agora já não nos apanha. Vai mais devagar. Aquilo não era nada, ele é bom. Mas o do outro lado, esse não, esse uma vez assobiou... eu fugi e fui dar com as ventas num sargento... Bati com a cabeça no cassetete dele.
- Lembro-te muito bem... Ficaste com um galo... Catu soltou uma gargalhada, mas Michu disse severamente:
- bom, já chega de brincadeira! Ouve o meu plano... Caminhavam lado a lado com o andar pausado das
pessoas sérias e sobrecarregadas de preocupações.
- Eu disse-te uma porção de aldrabices... Aquele senhor de há um bocado deu-me vinte cópeques... e antes também te menti... para que não dissesses logo: são horas de ir para casa... Hoje é um dia em que tivemos sorte! Sabes quanto juntámos? Um rublo e cinco cópeques! É muito.
- É bom! - murmurou Catu. - com esse dinheiro pode-se comprar, estou convencida, um par de sapatos... pelo menos na feira da ladra...
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- Sapatos! Espera um pouco, que eu roubo-te uns sapatos!... Há muito tempo que ando com uns debaixo de olho... Não te preocupes, eu dou-tos... mas agora... vamos à taberna, estás a perceber?
- A tia vai sabê-lo... e nem sei o que nos fará... como da última vez! - observou Catu, pensativa.
Mas, apesar de tudo, vibrava na voz dela uma nota que insinuava já estar a saborear de antemão a proximidade do calor.
- Não nos fará nada. Vamos escolher uma taberna onde ninguém nos conheça, ninguém, ninguém...
- Está certo! - concordou Catu, cheia de esperança.
- Vamos lá! Primeiro de tudo, compra-se um quarto de quilo de salsichão: oito cópeques; meio quilo de pão branco... Faz treze... depois três cópeques de folhado para cada um... dois folhados: seis cópeques; soma dezanove. E o chá... para dois: seis; um quarto de rublo já voou! Ainda fica...
Michu calou-se e parou. Catu olhou para ele com um olhar grave e interrogativo.
- É muito dinheiro... tanta coisa... - recomeçou ela, timidamente.
- Cala-te... Espera aí... Não é muito, coisa nenhuma!... É até muito pouco. Se comermos mais oito cópeques... faz trinta e três! Vamos nisso! Agora, bolos de Natal... Restam... Digamos vinte e cinco... Portanto, oito vezes dez cópeques... mas como trinta e três... portanto, há setenta cópeques de sobra! Estás a perceber? Que é que a velha precisa mais? Vamos lá! Mexe-te.
Agarrando-se pela mão, puseram-se a correr, dançando no passeio. A neve voava em frente deles e cegava-lhe os olhos. Por vezes uma nuvem de neve cobria-os com um capuz e envolvia as duas pequenas silhuetas com um véu transparente que estas rasgavam rapidamente na sua corrida para o calor e para o alimento.
- Sabes - disse Catu, arquejante da velocidade a que seguia - faz o que quiseres, mas se ela souber eu direi que a ideia foi tua... Contigo é diferente... tu foges e não acontece mais nada... ao passo que para mim é pior... ela apanha-me sempre... e se for eu, ela dá-me uma tareia pior do que para ti... Ela não gosta de mim... Já ficas prevenido que lhe direi.
- Está bem, diz! Umas bofetadas não são a morte! concordou Michu - Tudo passa! Podes dizer!
Estava cheio de uma audácia insolente e caminhava com a cabeça atirada para trás, assobiando. Tinha um rosto magro de olhos ladinos, mas secos como é pouco habitual nas crianças, e um nariz aquilino, levemente curvado.
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- Olha, ali está uma taberna!... Duas!... Em qual entramos?
- Na mais pequena... Vamos primeiro à loja...
Depois de comprar tudo o que tinham enumerado, entraram na taberna. Estava cheia de uma atmosfera de vapor, de fumo e de um odor persistente e acre. Numa névoa espessa, cocheiros, vagabundos e soldados estavam sentados às mesas; os empregados iam e vinham entre elas, e toda a gente gritava, cantava e praguejava.
Michu reparou numa mesa livre, a um canto, manobrou com habilidade para a atingir, despiu-se rapidamente e meteu a proa ao balcão. Catu começou igualmente a despir alguns dos andrajos, olhando para um e outro lado com olhares tímidos.
- Tiozinho! Dois chás, por favor! - disse Michu ao homem do balcão, batendo com a mão no zinco.
- É chá que tu queres? Claro! Serve-te e vai buscar égua quente... Tem cuidado, não quebres nada, senão vais ver...
Mas Michu já se tinha precipitado para o samovar. Dois minutos depois instalava-se gravemente numa mesa com a companheira; encostado ao espaldar da cadeira, com o ar importante de um carroceiro que ganhou bem o seu dia, enrolou com atenção um cigarro de mau tabaco. Catu olhava-o respeitosamente, porque ele sabia como se portar em sociedade. Ela, pelo contrário, nunca conseguia acostumar-se à harmonia poderosa e ensurdecedora da taberna, e temia secretamente que os mandassem passear, a ambos, agarrando-os pela pele do pescoço, ou ainda coisa pior. Mas não tinha vontade de deixar Michu aperceber-lhe as inquietações secretas e, alisando com as pequenas mãos sujas os cabelos emaranhados, esforçava-se por olhar à sua volta com ar desembaraçado e natural. Essas tentativas faziam-na ruborizar a cada instante, e os olhos azuis piscavam numa agitação constrangida. Entretanto, Michu falava-lhe doutoralmente, tentando imitar no tom das suas frases o porteiro Sygée, um homem sério embora bêbado, que tinha estado recentemente três meses na cadeia por roubo.
- bom, tu, por exemplo, lanças-te aos pés de alguém para mendigar... Como te agarras?... Para falar com franqueza, se dizes apenas: "Caridade! Caridade!" não chegas a parte nenhuma. Tens de te lançar às pernas de quem passa!... E fazer todo o possível para que a pessoa tenha medo de cair por cima de ti.
- É assim que farei! - disse Catu docilmente.
- Pois claro! - disse o companheiro, meneando a cabeça com gravidade. - É isso que é preciso! E mais uma coisa:
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repara, por exemplo, na tia Anfissa!... Quem é a tia Anfissa? Uma bêbada, claro, e se fosse só isso!
Michu expôs em seguida o que era a tia Anfissa. Catu concordava com a cabeça; estava plenamente de acordo com a definição de Michu.
- Ora tu não a ouves... Não é assim que deves proceder... Deves dizer: minha tiazinha, é assim que eu quero fazer... eu vou ser obediente... Passa-lhe a pomada toda e depois fazes o que te der na gana... É assim que deves fazer.
Michu calou-se e coçou a barriga com ar sério, como fazia sempre Sygée no final dos seus discursos. Não lhe vinha outro tema ao espírito. Então abanou a cabeça e disse:
- Toca a comer.
- Força! - aprovou Catu que, já desde há algum tempo, media com um olhar de cobiça o pão e o salpicão.
Começaram a comer o alimento numa névoa húmida e mal cheirosa, pouco iluminada pelas lâmpadas da taberna cheias de crostas, no meio da algazarra dos palavrões e das canções obscenas. Comiam ambos com sentimento, como finos especialistas, com pausas, como autênticos gastrónomos. E se Catu, perdendo a cadência, arrancava com uma dentada ávida um grande pedaço que lhe inchava as faces e lhe escancarava còmicamente os olhos, o sério Michu resmungava ironicamente:
- Eh lá, como ela come!
Aquilo perturbava-a e, quase abafando, tentava mastigar e engolir o mais depressa possível o saboroso petisco.
E é tudo. Posso deixá-los terminar tranquilamente a sua ceia de Natal. Acreditem em mim, eles não morrerão gelados! Estão no lugar que lhes pertence. Porque os havia eu de matar?
Na minha opinião é extremamente estúpido levar a morrer de frio crianças que estão perfeitamente ao alcance de perecerem de um modo mais simples e mais natural.
Publicado em 1894, no número 349 de Nigegorodsky Ustok.
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"O ACOMPANHAMENTO"
Numa rua da aldeia, entre casas baixas, caiadas de branco, avança com um ulular selvagem um estranho cortejo.
Uma multidão caminha; as pessoas seguem apertadas umas contra as outras; deslocam-se como uma grande vaga, compacta, lenta, ensurdecedora. Na frente dela segue uma alimária magra e fraca, a passo, com a cabeça a pender para o chão. Levantando, uma após outra, as patas dianteiras, abana a cabeça de um modo tão curioso que parece querer mergulhar o focinho enrugado na poeira do caminho; quando levanta uma das patas traseiras toda a garupa se inclina para terra. Parece que vai cair de um momento para o outro.
Ligada à traseira da carroça com uma corda que lhe aperta os punhos, segue uma mulher de pouca estatura, completamente nua, quase uma menina. O andar tem qualquer coisa de bizarro; caminha de lado, com as pernas trémulas que se dobram, ergue para o céu a cabeça de cabelos castanhos despenteados, um pouco inclinada para trás e os olhos abertos contemplam algo longínquo com um olhar embotado. Todo o corpo está coberto de nódoas negras e vermelhas, redondas e alongadas. O seio esquerdo do peito elástico de adolescente está cortado e o sangue jorra da ferida, desenhando uma fita vermelha no ventre que desce para a coxa esquerda até ao joelho e se perde na perna escondida por uma crosta de poeira escura. Dir-se-ia que ao corpo daquela mulher foi arrancada uma longa e estreita tira de pele. Todo o ventre está terrivelmente inchado, violáceo, tendo sido certamente batido longamente com uma acha, ou talvez martelado a pontapés.
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As pernas da mulher, esbeltas e infantis, mal pisam a poeira escura; todo o corpo está dobrado e é impossível compreender como é que ainda se segura nas pernas, que são apenas, como todo o corpo, uma grande nódoa negra; porque não cai no chão, porque, pendurada pelos braços, não se deixa tombar no solo morno atrás da carroça que a arrasta.
Na carroça segue um aldeão alto, de pé, vestido com uma camisa russa, branca, com um boné de astracã negro de onde se escapa uma mecha de cabelo ruivo ardente que lhe barra a fronte; segura as rédeas com uma das mãos e com a outra, munida de um chicote, chicoteia uma vez a garupa do cavalicoque, outra vez as costas da mulher, metodicamente; e no entanto aquele corpo já foi tão espancado que perdeu todo o aspecto humano. Os olhos do aldeão ruivo estão injectados de sangue e cintilam num triunfo maldoso. A cor dos cabelos faz sobressair o brilho verde das pupilas. As mangas arregaçadas até aos ombros mostram braços vigorosos cobertos com um espesso velo negro; o homem solta de vez em quando gritos roucos com a boca aberta, guarnecida de dentes brancos e agudos:
- Toma, bruxa! Toma! Aí vai mais uma!
Atrás da carroça e da mulher que lhe está ligada, a onda da multidão grita igualmente, uiva, assobia, estimula. Os garotos correm e por vezes um deles destaca-se com um salto e lança ao rosto da mulher palavrões obscenos. Explosões de riso cobrem os outros ruídos e o silvo agudo do chicote. As mulheres caminham com as faces excitadas e os olhos brilhantes de prazer. Os homens caminham e gritam algo repugnante ao da carroça, que se volta para eles e ri à gargalhada, com a boca escancarada. Nova chicotada no corpo da mulher. A correia comprida e fina enrola-se em torno do ombro e estrangula-o. Então o aldeão que chicoteia puxa o chicote violentamente para si; a mulher solta um grito agudo e, dobrada para trás, cai com as costas na poeira. Na multidão as pessoas precipitam-se e escondem o corpo, inclinadas para ele.
O cavalo pára, mas volta a partir quase imediatamente, e a mulher, espancada, volta a caminhar atrás da carroça como ainda há pouco. E o enfezado cavalo, movendo-se lentamente, continua a balançar a cabeça ossuda como se quisesse dizer:
- Como é triste ser um animal! Os homens associam-nos a toda a espécie de ignomínias...
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Entretanto o céu meridional está perfeitamente puro; nem uma nuvem empana a sua serenidade e o Sol dardeja em profusão os seus raios ardentes.
O que descrevi não é um arranjo imaginário da verdade; infelizmente não é uma invenção. É o que se chama "um acompanhamento". É assim que os maridos castigam as mulheres adúlteras; é um quadro de costumes, um hábito, e eu vi isso em 1891, no dia 15 de Julho, na aldeia de Kandibovka, província de Kherson, distrito de Nikolaiev.
Eu sabia que entre nós, além-Volga, para punir as mulheres da sua infidelidade as despem, untam com alcatrão, enchem-nas de penas de galinha e passeiam-nas assim pelas ruas. Sabia que às vezes, maridos ou sogros engenhosos, untam no Verão as "pérfidas" com melaço e as amarram a uma árvore para que os insectos as devorem. Tinha ouvido dizer que em certas ocasiões obrigam as "traidoras" a sentar-se em cima de formigueiros. E então vi que tudo isso era possível num meio de iletrados, de inconscientes, transformados em selvagens por uma vida de lobos onde tudo é inveja e cupidez.
Segundo parece, Gorki tentou pôr fim ao suplício da mulher, sendo espancado pelos camponeses que o deixaram depois abandonado entre uns arbustos, fora da povoação. Foi encontrado por um tocador de realejo que o levou para o hospital de Nicolaiev.
Este relato foi publicado em 1895, no número 44 da Samarskaia Gazeta e revisto pelo autor em 1935. Nessa redacção final foi publicado na Kriestináuskaia Gazeta (Jornal Camponês). O último parágrafo não fazia parte da primitiva redacção.
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ALGUNS INSTANTÂNEOS ESTRAGADOS
O jardim dormitava na modorra sensível duma noite de Primavera e, por cima de todas as coisas, das folhas das árvores, dos canteiros e dos caminhos, jaziam arabescos de sombras e manchas irreais de luar. A brisa fresca da Primavera estava impregnada de um perfume agradável de lilás, de reseda e de macia folhagem.
A verdura, envolta em sombras, era docemente aveludada; algures, no fundo escuro, cintilavam, apertadas e iluminadas pelo luar, as folhas prateadas dos choupos e, na mata mais copada, escondia-se um pequeno pavilhão construído com troncos de bétula aos quais não tinham tirado a casca. Brilhava como cetim branco através das folhas. O silêncio era tão perfeito que parecia esperar-se qualquer coisa de inevitável mas que não seria assustador. Havia melancolia naquela plenitude do silêncio.
Para lá dos ramos o céu era visível. O esplendor da Lua embelezava o brilho das estrelas, ao lado dela sempre pálidas e modestas.
- Que se vai passar, agora? - soou no pavilhão a voz receosa e interrogativa de uma mulher.
Àquela exclamação respondeu o ruído de um beijo e, logo a seguir, a mulher recomeçou a falar num tom nervoso e assustado:
- Não, deixa-me... deixa-me! É terrível! Bem te dizia eu que isto seria a minha morte! Enquanto me limitei a amar-te, sentia-me honesta perante o meu marido... mas
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agora... sou tua amante! Deus está a ver-me, eu temia isso! É doloroso... sinto vergonha de mim mesma e é difícil, tão difícil... oh!
Começou a chorar. As notas breves dos soluços quase não perturbavam o silêncio, afogavam-se nele.
Houve uma leve brisa de vento morno. Todo o jardim estremeceu ligeiramente e as sombras oscilaram de um modo estranho, como prestes a desaparecerem.
O perfume das flores, balouçado pelo vento, tornou-se mais penetrante.
No pavilhão soou a voz forte de barítono de um homem.
- Nina! Se me amas, pára com isso! É... desagradável ver-te assim... Pára por favor, Nina!
- É desagradável? Ah, por amor de ti, já começas a exigir! - suspirou a mulher através das lágrimas.
- Peço-te, Nina! E pedirei até que pares de chorar. Vá... Soou novamente o ruído de um beijo. A mulher gritou,
enervada:
- Acaba com isso. Ah, vou-me embora!
- Para onde? Não sejas louca, minha querida Nina! Onde nos leva tudo isto? A quem adianta este drama no meio de um idílio tão maravilhoso? Garanto-te que não me adianta nada, e espero que a ti também não. Porque choras tu, ao certo? Porquê?
- Ah, não compreendes? Não? - proferiu ela, revoltada. - Acreditas que é tão fácil como isso, para uma mulher casada, tornar-se amante de outro homem? Julgas-me com capacidade para encarar agora francamente o meu marido? E as crianças?" Os meus queridos filhos! A vossa mãe está... suja... Oh! Oh!
Oh! Oh!, repetiu algures, ao longe, o eco no jardim escuro.
- Nina! Falemos com um pouco de calma! Vá, mostra-te inteligente... Na realidade, tu desafias o bom senso. E as tuas lágrimas são apenas o resultado da emoção que acabas de sentir... Apenas isso. Acredita em mim e não tentes explicá-las de outro modo. Não me conseguirás demonstrar que foram provocadas por uma consciência perturbada, ou... pelo sentimento de culpabilidade... de temor ao castigo... Tudo isso não deve nem pode encontrar aqui lugar...
Tinha começado a falar com voz meiga e apaziguadora, mas, no final da tirada, tinha caído no tom definitivo e mesmo um pouco seco e irónico de um homem que está senhor da situação.
- Que estas a dizer? Não me acreditas? Já não me acreditas? O meu sofrimento é-te incompreensível e estranho? Foi muito rápido! Oh!... E eras tu que me dizias tantas
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coisas, eras no entanto tu que dizias ser preciso procurar no ser amado os seus enigmas e segredos... que era possível resolver a dois o que era impenetrável a um só!... Parece que já estou punida. Meu Deus!
- Nina, Nina, como é possível que não te envergonhes? Censuras já! Acaso eu disse fosse o que fosse que contradiga o que afirmei antes?
- E que dizes tu? - perguntou a mulher com uma simplicidade injuriosa. - Como encaras o futuro?
- Ah, ah!, estás a ver? É por aí que devias ter começado... O que digo? Digo que as tuas lágrimas não são provocadas pela perturbação da tua consciência, mas sim pelas emoções desta noite. Digo que é necessário não criar medos fantásticos, forjar toda a espécie de crimes inexistentes e, por consequência, castigos impossíveis. Tudo é muito simples. Tenta ver claro: não amas o teu marido, mas pretendes amar e ser amada. Amaste-me. Se não tivesse estado aqui terias amado um outro em meu lugar. Certo?
- Não! - disse a mulher com firmeza.
- É certo, podes crer. O amor é tão fatal como a morte; não se pode fugir-lhe. O amor é o gosto de viver. Quem se poderá gabar de ter os meios e a vontade de lutar contra o gosto de viver? Ninguém. Cessemos agora de proferir inépcias acerca de coisas tão graves. O seu significado está exactamente compreendido. Não, Nina; não devemos extinguir os desejos em nós, pelo contrário, é necessário animá-los, acalentá-los: na nossa época tornam-se "tão raros! Querias amar! Pois bem, amas! É assim, é simples!
A voz tinha-se tornado mais abafada até ao simples murmúrio, doce, insinuante, mas um murmúrio de triunfo. A mulher ficou silenciosa durante muito tempo; finalmente respondeu com um suspiro frágil:
- Si-im...
Então, sucedendo às palavras, numerosos beijos nasceram no silêncio. Soavam apressadamente, uns atrás dos outros e eram como bolas de sabão que rebentavam, tão suavemente como elas.
O jardim mantinha-se mudo e imóvel, mas em cada uma das suas folhas, em cada uma das suas ervas, adivinhava-se uma grande energia escondida.
Tudo em redor crescia e desenvolvia-se, envolto nos quentes estofos de sombra.
A criação silenciosa da natureza não tem um segundo de descanso, e ninguém pode dizer onde as suas forças secretas atingirão o repouso.
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II
- Mas como poderei eu contar tudo isto ao meu marido?
- murmurou a mulher em voz baixa.
- Tu crês-te verdadeiramente incapaz de lho esconder?
- perguntou o homem, alarmado.
- Esconder-lho? Ouve... Como posso,.. Eu já...
Interrompeu as frases; a inquietação voltava a apoderar-se-lhe do espírito. Alguns segundos escoaram-se em silêncio antes que ele respondesse com voz firme e segura de si:
- Vamos então considerar onde tudo isso poderá conduzir. Vejamos em primeiro lugar em que situação nos encontramos agora. Eu sou bem acolhido em vossa casa; Teodoro, meu velho amigo, não duvida da minha honestidade e mantém-se alheio a qualquer desconfiança. Tudo o que nos une é tão bom, tão caloroso, tão íntimo...
- E tu pensas que...? - murmurou a mulher, apavorada.
- Espera um momento! Estudemos o que pode acontecer quando lhe contares tudo. Em primeiro lugar será um rude golpe. Merecido ou não, será um choque violento. É preciso ter pena dele... A seguir deixa-lo para vir viver comigo, não é isso? bom! Que resulta daí? Sentirás a falta dos teus filhos, ele não te deixará levá-los: que lhe ficaria se o fizesse? Terás saudades deles e eu sofrerei por ti... As crianças representam sempre um papel doloroso neste tipo de acontecimentos... Não devemos permitir isso...
- Que estás a dizer? Mas isso é vergonhoso! Uma ignomínia! Uma vilania, um engano sujo. E tu... - pronunciou a mulher, num tom implorante.
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- É isso que afirmam as tuas teorias? Minha querida! A vida deixou-as atrás de si há muito tempo... Devemo-nos aplicar a diminuir tanto quanto possível a soma total dos sofrimentos da existência e não a introduzir nela uma nobreza de que, pelo que tenho visto, ninguém, a não seres tu, tem necessidade. Ela custa caro... e é demasiado fraca para poder sobreviver. Se fosse vigorosa e nos fosse útil, podes crer que há muito teria vencido. Isso não aconteceu e é necessário tomar da vida o que ela nos pode dar. Sabes muito bem que ela não nos dá frequentemente a honra de nos oferecer algo de agradável e saboroso. Para se conseguir viver é impossível evitar que alguém fique prejudicado. Não somos nós quem decidiu um tal estado de coisas e não somos nós, manifestamente, que temos possibilidade de o substituir por outro melhor... Se tivéssemos essa força, fá-lo-íamos...
- Como tu és cínico, afinal! Não fazia ideia...
- Achas que é cinismo? Eu estou convencido que é bom senso, a notéio do que é possível na vida.
Ambos se calaram.
O vento ergueu-se novamente e o jardim soltou um profundo suspiro sob aquela aragem. Quando os ramos do choupo estremeciam, assemelhavam-se a um enxame de borboletas brancas juntando-se para voarem para longe.
- Evidentemente, tens a liberdade de agir como entenderes... Mas pensa um pouco em mim: em que situação me deixas perante o Teodoro... Pensa...
Ela ficou calada. Manifestamente, estava a pensar. Ele prosseguiu:
- Só me restará uma solução: partir... Ir-me embora, amanhã...
- Queres partir?... Amanhã!... E eu?
- Que posso fazer? Não quero zangar-me com um velho camarada e não quero estar ligado a choques dramáticos. Já os conheci... Para quê complicar artificialmente uma existência que já é assustadoramente complexa sem isso?
Então a mulher pôs-se a rir, com um riso amargo e sarcástico que sacudiu nervosamente o triste silêncio do jardim. E as folhas das árvores estremeceram, abanadas por aquele riso ou então porque o vento fazia ondear no jardim uma brisa leve e acariciadora.
- Que infelicidade é amar! - disse a mulher através do riso.
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Calou-se e um momento de silêncio escoou-se lentamente.
- E então? - perguntou a mulher, hesitante.
- Então, quê? - exclamou o seu interlocutor com voz firme.
- Como queres arranjar tudo isto? - insistiu ela.
Ele começou a ditar as suas condições num tom que não admitia réplica, o tom do vencedor.
- As nossas relações não se modificarão, é muito simples. Continuarei a visitar-vos e o Teodoro não saberá nada. Mas... a seguir... naturalmente... com o tempo, ele adivinhará... E então a força do golpe estará atenuada com a sua chegada progressiva... Essa lentidão, compreendes... Ser-lhe-á mais fácil tomar uma decisão sobre o facto, se esse facto não lhe for atirado à cabeça como uma pedra...
O silêncio que seguiu estas palavras foi duma lentidão acabrunhante.
Parecia que as árvores cresciam e, rasgando o tecido de sombra de que estavam revestidas, se tornavam mais verdes e mais frescas. Esta impressão resultava do facto de o brilho do luar já estar a empalidecer e o ar se impregnar da frescura penetrante da manhã de Primavera. O perfume das flores intensificava-se e o orvalho matinal, caindo do céu em gotas imperceptíveis aos olhos, aspergia a verdura aveludada do jardim com uma densa poeira prateada.
- Então... conheço-te... parece-me. Portanto... Ele terá confiança em nós e assim gozaremos um amor secreto... E... muito bem! Há nisso muito romantismo.. Mas eu não tinha pensado, ao inclinar-me para ti, que isso me levaria até aí... - proferiu a mulher com ironia.
Ele continuava calado.
- Mas voltar atrás... agora?... Isso teria algum sentido? - acrescentou ela, pensativa. - Talvez não... De resto, não me seria possível... Continuo a amar-te, mesmo agora que te tornaste subitamente um monstro; amo-te mais do que ontem, quando ainda te estimava... Como os homens são vis! E hábeis... Desculpa-me! Apesar de tudo cedo-te, sigo a tua vontade. Sabes... é tudo tão confuso que tenho dificuldade em compreender o que é bem e o que é mal... Onde leste tu todas essas... teorias? De qualquer modo, agora... tornou-se tudo tão fácil!
Ele mantinha-se silencioso.
- Estás irritado... Esquece! Tudo isso é já... passado! Ah! Como eu acho isto engraçado! Sabes, eu acreditava na possibilidade dum amor puro, compreendes, perfeitamente puro, um amor honesto! Mas isso, ao que parece, é pedir demasiado a um ser humano. E apesar de tudo...
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é necessário amar. Viver sem amor... é aborrecido e difícil. Vamos lá, meu filósofo, beija-me... já tive a minha desforra... Estás zangado... ha?
- Estás a ver, minha tolinha! - disse ele com ar protector e imperturbável. - Porque nos estragaste, a ti e a mim, alguns instantes agradáveis? Para aparecer aos meus olhos ainda mais fina... mais honesta e mais pura? Não era necessário!
No mesmo instante ecoaram os beijos... Muitos beijos.
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II
Meia hora mais tarde, um homem vestido com um fato claro saía do pavilhão. Era alto, forte, com uns grandes bigodes castanho-claros que barravam um rosto pálido e frio.
Mergulhando na profundidade do jardim, no verde-escuro dos arbustos que bordejavam uma alameda, com aspecto cansado e a cabeça pendente para o peito, assobiava entre dentes, descontente.
A seguir, dos maciços de lilases e de jasmins que cercavam o pavilhão, saiu uma mulher num comprido vestido branco, enfiando por uma álea do jardim.
A direcção dela era oposta à que tomara o seu interlocutor. Ela avançava com o ar lento e indeciso duma pessoa que se encontra muito cansada, ou mergulhada em profundas reflexões. O orvalho que tombava das folhas que ela tocava na passagem, salpicava-lhe a cabeleira, uma espessa massa de cabelos negros, e os ombros de onde escorregava a mantilha de renda que os cobria, cuja ponta arrastava pelo chão.
As manchas de sombra que aderiam ao solo em torno dela tornavam-se, parecia, mais escuras e, penetrando-lhe o ser, mergulhavam-na numa sonolência doce e triste.
O dia começava a erguer-se; nas franças do arvoredo tombavam as placas cor-de-rosa dos primeiros raios de sol e as gotas do orvalho cintilavam lá no alto, semelhantes a pedras preciosas. As sombras, as sombras ténues e diáfanas da noite primaveril, dissolviam-se suavemente e apagavam-se do chão e das árvores do jardim.
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A mulher de vestido branco desapareceu lentamente atrás da folhagem espessa; o jardim, entretanto, refrescado pela humidade nocturna e pelo orvalho da manhã, esperava imóvel o renascer do dia.
Publicado em 1895, no número 56 da Samarskaia Gazeta.
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A PARTIDA
A igreja lançava sobre a praça uma grande sombra espessa. Uma abundante chuva de Verão tinha deixado de cair havia pouco tempo e, nas covas do pavimento, tinham-se acumulado pequenas poças de água. Nos sítios onde a sombra da igreja as cobria eram opacas, mas fora dos limites da sombra apresentavam um brilho prateado de espelho: reflexo dos raios da lua cheia, deslumbrante, imóvel no azul macio do céu. As Vésperas tinham terminado. Vultos escuros atravessavam a praça e dispersavam-se em todas as direcções. Contornavam as poças de água com precaução e internavam-se nas cinco ruelas estreitas que desembocavam na praça.
Ficou o vazio, a calma e a tristeza.
Perto do pórtico da igreja ressoou então, na sombra, um leve tilintar de metal ao tombar na pedra. Um pequeno vulto destacou-se; correu pelo pavimento, saltitando bizarramente e de súbito mingou: ou se tinha inclinado ou tinha caído no chão.
Ao mesmo tempo, surgindo de uma das ruas, apareceu um vulto de homem, comprido e levemente encolhido, que se dirigiu com passo lento para o outro. Avançava sem escolher o caminho, as poças de água soluçavam-lhe sob os pés, abrindo-se em feixes de salpicos. Ei-los ambos misturados em uma única massa: o segundo vulto escondeu o primeiro inclinando-se para ele.
- Que estás aí a procurar? - perguntou uma voz de baixo, rouca e rachada.
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- Uma redonda de cinco! - respondeu a voz aguda de uma criança preocupada e inquieta.-Tinha começado a contar quanto tinha ao todo, mas aquela maldita moeda fugiu-me das mãos e começou a rolar. Já a procuro há um bocado. E tu?
- Tens a certeza de que é uma moeda de cinco? - perguntou melancolicamente a voz de baixo.
- Toda a certeza! É sempre uma de cinco que ela dá. E era precisamente a moeda dela.
- Dela, quem?
- Uma senhora!
- E dá sempre uma de cinco! - suspirou o grand.
- Sempre...-confirmou o pequeno, melancólico e preocupado.
Os dois vultos calaram-se e continuaram a pesquisar minuciosamente o chão, sempre ligados, produzindo uma única e espessa mancha de sombra.
- Não se pode! A água, a lama... E era uma moeda grande. Que pena! - proferiu o vulto com voz de baixo. Suspirou e ergueu-se.
- O melhor é não pensar mais nisso! - decretou subitamente o mais pequeno, pondo-se em pé.
Era corcunda, e o seu companheiro era alto, magro e de um porte estranho. Dir-se-ia que lhe tinham dado, por cima, uma forte pancada na cabeça e que esta tinha entrado nos ombros.
- Não pensar mais nisso? - exclamou ele, pensativo.
- Bem, meu velho! Então arranjaste bastante?
- Mesmo sem a de cinco, fiz vinte e dois cópeques! respondeu o corcunda, satisfeito.
- Não é nada mau, realmente! A mim não me calha, percebes? Todos me dizem: "Desaparece, vai trabalhar, vai para o albergue dos desempregados..." É assim uma coisa no género duma prisão. Achas que posso fazer isso... juntar-me com toda a espécie de inúteis? Tu és muito pequeno, ainda não compreendes nada.
Tinha iniciado o seu discurso num tom vexado e tinha-o terminado com exasperação. Ambos estavam de pé, imóveis, frente a frente.
- Também já me meteram nesse asilo! - começou o corcunda com animação. - Foi um polícia que me levou, havia lá um diabo de um velhinho com óculos. O polícia disse: "Aí está esse, Excelência, apanhei-o e cá o entrego." O velho pôs-me logo a despelar casca de tília. Estava calor. Que porcaria! E a poeira que se mete no nariz e nos ouvidos! O que eu tossia! Nunca tossi tanto, caramba!
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Começou a rir, com a recordação daquela tosse.
- E então? - perguntou o outro, interessado.
- Então, nada! Pirei-me no dia seguinte.
- Piraste-te!
- Claro...
- Ah! Ah! Estás a ver! - declarou o outro, num tom de triunfo, mas sem explicar o que havia exactamente para ver naquilo.
Os sons entrecortados da matraca do guarda-nocturno surgiram de uma das ruas. Logo a seguir soou a badalada de um sino. O ruído triste do bronze propagou-se em vagas sucessivas pelo ar e extinguiu-se lentamente como um gemido.
- Temos de ir embora! - disse o rapaz, pondo-se a caminho.
- Para onde vais? Tens casa ou vives como calha? perguntou o outro, avançando ao lado dele com passos largos.
- Vivo como calha. Minha mãe morreu com a cólera. Aqui, estou com uma tia.
- Verdadeira?
- A tia? Não! Como poderia ser? É uma bêbada maldosa...- respondeu o rapazinho que, manifestamente, tinha uma elevada ideia da família.
- Bate-te?
- E como! É um moinho! Bate com qualquer coisa que apanhe à mão.
- É sempre assim! - consolou-o o companheiro. Enfiaram por uma das ruelas e segyiram-na, cosidos com
a sombra dos prédios. Em redor tudo era escuro e deserto. Algures, as vibrações ruidosas dum carro tilintante mergulhavam isoladamente no morno silêncio da noite.
- E o teu pai?
- O meu pai? Não tenho! - respondeu o rapaz, com indiferença.
- Ah! Isso também acontece. Acontece muito. Em nossa casa havia uma criada, ela também teve um filho que não tinha pai. Como tinha acontecido? Onde estava? Uft! Tinha sumido! - contou com um humor sem alegria o mais velho dos dois.
O rapaz pôs-se a rir suavemente, cismou durante um momento de silêncio e acabou por dizer:
- Na nossa rua há muitos rapazes que nasceram sem pai. Tudo isso porque as mães andaram à vontade, por aí concluiu num tom adulto, impregnado de cinismo.
- Claro! De que rua és?
- Eu? Da Rua dos Campos! E tu?
207
- Eu sou da rua em que me sentir melhor. Não tenho onde morar, meu velho. Tinha um quarto... mas ontem puseram-me fora.
- Mas tu, quem és? - perguntou o garoto em voz baixa, levantando a cabeça para encarar o companheiro.
- Eu, meu rapaz, era criado de quarto. Um bom criado! Ganhava bem... Mas... comecei a beber. Por causa da boa vida, tornei-me um bêbado. Devia ter resistido, fosse por que
preço
fosse, mas em vez disso lancei-me a toda a velocidade. Porque a vida é uma coisa aborrecida... Foi por isso! E então bebi, apanhei bebedeiras bestiais. Agora estou lixado! Que isto te sirva de lição.
O rapaz calava-se, perguntando certamente a si mesmo que lição se poderia tirar daquele relato. E o outro também se mantinha calado.
- Rapaz! - começou de repente o antigo criado com voz abafada e pedinchona, mas interrompendo-o misteriosamente.
- Ha?
O rapaz, que caminhava ao lado dele sem pressa e pensativo, levantou a cabeça.
- bom, aí vai!... Devias-me dar algumas dessas esmolas. Ha?
- Essa agora! - disse o corcunda, com riso seco. Depois afastou-se do companheiro de caminho e, todo
encolhido, colocou-se contra um marco, apoiou-se nos cotovelos, e olhou o interlocutor, sorrindo com ar de desconfiança e de expectativa. O outro também se deteve e ajustou o boné rasgado, sem parar de falar:
- Pensa bem, meu pequeno... Vais dar esse dinheiro a essa velha avarenta, essa falsa tia. E ela, que lhe fará? Vai bebê-lo, é claro. E quanto a dar-te uma tareia, ela a dará na mesma, por isso farias melhor em a lixar primeiro. Eu compraria alguma coisa de comer... Também beberia, claro, aí uns três cópeques, por exemplo... Há muito tempo que não bebo. Nem uma gota, meu caro! - terminou ele, com um tremor na voz.
O rapaz afastou-se dele bruscamente e atravessou para o outro lado da rua. Quando entrou na zona de luz que caía do candeeiro público, oscilando nas pernas arqueadas pelo raquitismo e salientando a corcunda pontiaguda, uma monstruosa sombra negra deitou-se no solo, deitou-se e apagou-se como se o chão húmido a tivesse dissolvido e absorvido.
Mantinha-se no passeio e voltou-se para olhar o criado que o seguia com os olhos e com o pescoço tenso.
- Não me dás nada?
Aquilo ressoou na rua como um grito de desespero, uma censura tímida. Soou e extinguiu-se no meio dos
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edifícios pesados que se olhavam friamente pelas manchas luminosas das janelas cujo brilho baço as fazia assemelharem-se a olhos de cegos.
O criado atravessou por sua vez a rua com um passo indeciso.
- Ela bater-me-á ainda mais se eu lhe levar pouco... articulou o pequeno corcunda com voz cismadora, vendo-o aproximar-se.
- Mas não me darás muito! - disse o criado, quase num murmúrio. - Dá-me cinco cópeques e ficarás livre de mim. Beberei três e comerei dois... ha?
O corcunda ergueu as mãos à altura do rosto e pôs-se a contemplar as palmas fixamente. Também ele cochichou qualquer coisa. Ouviu-se um ruído de moeda de bronze.
- Cinco... três... oito... duas... Metade para cada um! A gaja que vá para o Diabo! Que rebente de raiva! Se me bater já veremos!... Vá lá! Onze ao todo! - terminou ele, satisfeito, estendendo a mão.
- Ah, caramba! Para mim... vai ser uma festa! Obrigado, meu velho! Então tu... Bem! Agora já posso beber pelo menos cinco cópeques! E tu, meu rapaz! - gaguejava o criado, deslumbrado e confuso.
De repente dobrou-se e lançou-se para a frente tão depressa que parecia ter recebido um valente pontapé no estômago... O corcunda recuou para o deixar passar, mas ele já tinha desaparecido dali com o seu andar saltitante. O rapaz seguiu-o com os olhos, e, em silêncio, partiu na direcção oposta à que o outro tinha tomado.
Em breve desapareceu igualmente na obscuridade da rua. O local ficou tenebroso e deserto. com igual indiferença, com a mesma frieza as casas continuavam a olharem-se com cegos olhos de vidro...
Tudo em redor era silencioso e triste...
Publicado em 1895, no número 62 da Samarskaia Qazeta.
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AO RÉS DA ÁGUA
(Conto de Páscoa)
Pesadas nuvens rastejam lentamente por cima do rio adormecido; dir-se-á que se deixam cair cada vez mais baixo; dir-se-á que ao longe os seus farrapos cinzentos tocam a superfície das vagas primaveris, rápidas e turvas, e ali, no ponto em que tocam a água se ergue até aos céus uma muralha impenetrável de nuvens que barra com a sua massa o curso do rio e fecha o caminho às jangadas.
As vagas minam em vão aquela muralha, chocam-se contra ela com um fragor suave de queixume, refluem sob o choque, dispersam-se para a direita e para a esquerda, onde se alarga a obscuridade húmida da fresca noite primaveril.
Mas as jangadas flutuam, avançam e o muro longínquo recua diante delas no espaço que enche a massa pesada das nuvens.
As margens estão invisíveis; a noite escondeu-as e as longas vagas da enchente afastaram-nas para muito longe.
O rio assemelha-se ao mar. O céu, por cima dele, envolto em nuvens, é pesado, húmido e deprimente.
As jangadas deslizam pela água rapidamente e sem ruído; um vapor sai da sombra ao encontro delas, lançando pela chaminé um alegre feixe de fagulhas e batendo surdamente a superfície líquida com as palas das rodas motrizes.
Os dois farolins vermelhos da proa tornam-se cada vez maiores e luminosos, a lanterna do mastro oscila com lentidão e pestaneja misteriosamente nas trevas.
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O espaço enche-se com o barulho da água rasgada e o do pesado arquejar do motor.
- A-atenção!
É um apelo gutural que ribomba vigorosamente por cima das jangadas.
Aos remos de governo, na popa da jangada, estão dois: Dimitri, o filho do dono, um rapaz de vinte anos, de cabelo castanho, magricela e sonhador, e Sérgio, um operário, rapagão sólido, rabujento, que usa uma barba ruiva; na moldura da barba destacam-se dentes fortes, bem apertados, que o lábio superior, ironicamente virado para cima, não consegue cobrir.
Um grito sonoro vindo da proa abre novamente as trevas:
- Salta para a esquerda!
- Já se sabe! Não é preciso gritar! - resmunga Sérgio, descontente, pesando no remo com toda a força do peito e soltando um suspiro.
- oh! Roda firme, Dimitri!
Dimitri, firmando as pernas nas pranchas húmidas, puxa para si com as mãos franzinas o pesado remo - o leme -, e uma tosse rouca sacode-o.
- Força... Apartem para a esquerda!... Estúpidos duma figa! - grita da proa uma voz alarmada e furiosa.
- Está bem, grita! É o molengão do teu filho; ele não é capaz de quebrar uma palha no joelho e tu põe-lo ao leme, depois gritas como um danado. Custava alguma coisa a este velho ganancioso, que se deita com a nora, contratar mais um homem? Agora grita até estourar a garganta!
Sérgio resmunga agora em voz alta; manifestamente, não teme ser ouvido, e parece mesmo que deseja sê-lo.
O vapor desliza ao lado das jangadas e as rodas, ao entrarem na água, lançam grinaldas de vagas espumantes. Os toros de madeira oscilam, e as ligações, feitas com ramos entrançados, rangem com um gemido molhado.
As vigias do vapor, iluminadas, olham para o rio e para as jangadas, como uma fila de olhos incandescentes que reflectem na água agitada trémulas manchas de luz logo desvanecidas.
As vagas marulham violentamente contra a jangada, os toros saltam e Dimitri, sentindo-se escorregar, firma-se o melhor que pode ao leme, com medo de cair.
- Eh, lá, eh! - gorgoleja ironicamente Sérgio - começas a dançar? Vais ver, o teu pai vai começar outra vez a berrar contigo... A menos que resolva vir cá e mandar-te uma tapona que te ponha de pernas para o ar... assim já não danças! Para a direita! Oh Oh, oh!...
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com os braços tensos como molas de aço, Sérgio faz rodar vigorosamente o remo que mergulha profundamente na água.
Grande, enérgico, algo maldoso e trocista, Sérgio está ali, em pé, como se estivesse colado aos toros de madeira pelos pés descalços e, especado numa atitude tensa, pronto a cada segundo a obrigar a jangada a virar, olha atentamente para a frente.
- Estás a ver o teu pai, como ele beija a tua Maria! Que filho da mãe, caramba, apesar de tudo Não tem vergonha nem consciência! Mas por que diabo não te vais embora, Dimitri, para qualquer parte, para longe deles, desses nojentos?... Ha?... Estás a ouvir, ou quê?
- Estou a ouvir!-responde Dimitri em voz baixa, sem olhar para o lugar onde Sérgio, na obscuridade, vê o pai dele.
- Estou-a-ou-vir! Eh, sangue de barata! - diz Sérgio, macaqueando-o e começando a rir. - Que grande negócio!
- prosseguiu, procurando aguilhoar a apatia de Dimitri. Não se pode negar, o velho é um porcalhão! Casa o filho, rouba-lhe a mulher e... ainda por cima tem razão! Velho femeeiro!
Dimitri mantém-se silencioso e olha para trás, para o rio, no ponto em que se formou uma outra parede de nuvens densas.
Agora há nuvens por toda a parte, e parece que as jangadas não flutuam, ficam imóveis em cima desta água negra e espessa, esmagada pela massa pesada, cinzenta-escura, das nuvens que lhe barram a passagem, caídas do céu.
O rio parece um charco sem fundo, cercado por todos os lados de montanhas que sobem até ao céu vestidas com uma espessa mortalha de névoa.
Em torno, a calma é opressiva e a água parece esperar não se sabe o quê, marulhando entretanto contra as jangadas, suavemente. Muita tristeza e uma espécie de pergunta tímida são perceptíveis naquele pobre ruído, isolado no meio da noite, que sublinha ainda mais o seu silêncio.
- A esta hora, o vento devia soprar... - diz Sérgio.- Não, não deve haver vento, o vento puxa chuva! - responde depois a si próprio, carregando o cachimbo.
O fósforo inflama-se, ouve-se um ronco no cachimbo entupido, uma pequena luz vermelha aviva-se e extingue-se alternadamente e ilumina a cara cheia que mergulha na noite.
- Dimitri! - recomeça a voz de Sérgio, agora menos resmungona mas com a nota irónica mais evidente.
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- Que é? - responde Dimitri, em voz baixa, sem tirar os olhos dos longes onde eles examinam fixamente alguma coisa.
- Como foi que tudo isto aconteceu, meu velho?
- O quê? - pergunta Dimitri, descontente.
- Casaste-te, não foi? Pela massa? Como foi isso? E então vocês foram-se deitar, ha, com a tua mulher! Conta lá!
- Eh, vocês aí! Atenção! - fez uma voz ameaçadora flutuando pelo rio.
- Ouve-lo berrar, o filho da mãe de pai cobridor? observa Sérgio, contente, voltando logo a seguir ao seu tema. - Falas ou quê? Dimitri! Conta lá! ha!
- Pára com isso, Sérgio! Já to devem ter dito! - implora Dimitri, cochichando. Mas sabe certamente que ninguém se desembaraça tão facilmente de Sérgio e começa precipitadamente: - bom, estávamos para nos deitar e eu disse: "Maria, não posso ser homem contigo, tu és uma rapariga saudável e eu sou um doente, um enfezado. Não me queria casar, foi o pai que me obrigou: "Casa-te", dizia ele! Não gosto das mulheres, mas amo-te mais do que todas as outras. Tu és bastante desenvolta... é verdade! Mas eu não posso fazer isso... compreendes?... É uma porcaria e um pecado... E há também as crianças... Somos responsáveis perante Deus!
- Uma porcaria! - guincha Sérgio, com um riso estridente.- E então ela que disse, a Maria? Ha?
- Bem!... "Então que hei-de fazer?" foi o que ela disse... Ficou ali a chorar. "Não sou ao teu gosto?", ou então: "Sou algum monstro?" foi o que disse. Ela é desavergonhada, sabes, Sérgio? "E então eu, porque tenho saúde, tenho de ir ter com o meu sogro, ou quê?" E eu disse-lhe: "Vai para onde quiseres! Eu não posso agir contra o que sinto!... O padre João disse que é um pecado mortal... Disse "Acaso somos animais, nós?" Foi isso que ele disse. Ela continuava a chorar e depois disse: "Vocês destruíram a minha beleza de rapariga!" A mim, ela metia-me pena, e respondi-lhe: "Isso não tem importância, tu te arranjarás. Ou então entra para um convento". Ela pôs-se a insultar-me, a gritar que eu era um estúpido, um tipo sujo, um canalha..."
- Ah, meu velho! - murmura Sérgio, encantado.- Então atiraste-lhe com essa: "Entra para um convento"!
- Foi o que eu lhe disse! - responde simplesmente Dimitri.
- E ela chamou-te estúpido? - prossegue Sérgio, levantando a voz.
- Cobriu-me de insultos.
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- E fez ela muito bem, meu pateta! Se fez! E devia-te ter dado uma tareia ainda por cima! - continuou Sérgio, num tom bruscamente alterado.
Agora fala com severidade e com uma expressão compenetrada:
- Não se pode ir contra a lei. Foi o que fizeste, foste contra a lei. É a regra, não? Então, isso basta! Não há que discutir. Escorregaste numa pedra e mereceste-o. "Entra no convento!" Parvo duma figa! Então pensas que é isso que uma rapariga precisa? O convento? Olha para eles, agora! Basta-te olhar para o resultado! Não percebes nada de nada... Causaste a perda de uma rapariga... fizeste-la amante dum velhote... dum tipo que a arrastou para o pecado do incesto, ainda por cima seu sogro! Ah, fizeste uns belos estragos na lei! Cabeça de martelo!
- A lei, Sérgio, sente-se no coração. Há uma lei igual para todos: Não faças o que é contrário à tua alma e não faças mal a ninguém sobre a terra! - pronunciou Dimitri em voz abafada e conciliadora, sacudindo a cabeça.
- Mas repara onde isso te levou! - replicou Sérgio com energia. - Sente-se no coração! E que mais? Há coisas que se sentem no coração: que todos façam as suas próprias proibições não é possível! O coração, a alma... Eh, meu rapaz, primeiro é preciso compreender, só depois se pode ver...
- Não, não acertas meu velho! - prosseguiu Dimitri, com ardor, como se se tivesse incendiado bruscamente. - A alma, meu caro, é sempre pura como uma gota de orvalho. Ela está numa concha, é o que é. Bem profunda. Mas se lhe aplicas o ouvido e ouves, então não te podes enganar. O que se faz conforme a nossa alma será sempre da vontade de Deus. Deus está na alma, é evidente, e isso quer dizer que a sua lei também está. Foi Deus que criou a alma, foi Deus que a colocou no homem. Basta sabê-lo e olhar. Basta, portanto, sem nos pouparmos...
- Eh! Dorminhocos, prestem atenção!...
Foi uma espécie de trovão que rebentava e planava sobre o rio.
Pela violência do grito sentia-se que o tinha lançado um homem, robusto, enérgico, contente consigo próprio, um homem que tinha uma perfeita e clara consciência de ter sido feito para a vida. Tinha sentido vontade de gritar, não porque os condutores o tivessem provocado mas porque o seu ser transbordava de alegria e de vitalidade; alegria e vitalidade de que tinham desejado libertar-se e se tinham lançado, repentinamente, num clamor trovejante e enérgico.
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- Ouve-lo a ladrar, aquele velho demónio? - notou Sérgio com satisfação, olhando para a frente com os seus olhos penetrantes. - Como eles se fazem festas, os pombinhos! Não tens inveja, ha, Dimitri?
Dimitri olhava com indiferença para o lugar onde, no remo da proa, dois vultos humanos se cruzavam da direita para a esquerda, nas jangadas, e, parando junto um do outro, se fundiam por vezes numa única massa compacta e escura.
- Não tens inveja? - repetiu Sérgio.
- A mim que me importa? O pecado é deles, a responsabilidade é deles! - respondeu Dimitri vagarosamente.
- Caramba! - disse Sérgio, ironicamente, começando a encher o cachimbo de tabaco. Novamente uma pequena luz vermelha se pôs a brilhar nas trevas.
Entretanto, a noite tornava-se mais espessa, e as nuvens cinzentas e escuras desciam cada vez mais sobre o rio calmo e largo.
- Mas onde diabo foste tu pescar toda essa filosofia? Ou por acaso a terás de nascença? Não és nada parecido com o teu pai, meu velho! Tens um herói de pai. Ele tem perto de meio século e repara no borrachinho que ele amima! Como mulher não se faz melhor! E ela ama-o... não se pode duvidar! Ama-o, meu rapaz! E como não amar um ás como ele? Não é possível! É o rei dos ases, um famoso coelho que tens por pai. Trabalha duro, dá gosto vê-lo, é desembaraçado, tem a estima de toda a gente e a cabeça no seu lugar. Tudo a favor dele! Não te pareces com o teu pai, nem com a tua mãe, Dimitri! E que teria feito o teu pai se a defunta Anfissa ainda fosse viva? Devia ser engraçado! Gostava de ver o que ela teria feito... A tua mãe também era uma mulher de respeito... Uma boa parelha do Silane...
Dimitri calava-se, encostado ao remo, e contemplava a água. Sérgio também se calou. Um riso estridente de mulher chegou até eles, vindo da proa da jangada. Fez-lhe eco um riso grave, um riso de homem. Envoltos nas trevas os vultos deles eram dificilmente perceptíveis a Sérgio que os olhava com curiosidade. Podia-se notar que o homem era alto e se mantinha de pé junto do remo, com as pernas bastante afastadas, voltado de três quartos para uma mulher de pouca estatura, roliça, que se apoiava com o peito ao outro remo distante do primeiro toesa e meia. Ameaçava com o dedo o homem, rindo um riso em cascata. Sérgio voltou-se com um suspiro aflito e, depois de um momento de silêncio recolhido, recomeçou a falar:
- Caramba, como eles se entendem bem! É bonito! Era assim que eu gostava, pobre diabo que sou! Seria preciso correr e saltar para que eu largasse uma mulher daquelas!
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Era o que faltava! Depois de a ter nas mãos pelo menos uma vez, nunca mais a deixava. Verias como sei amar. Mas infelizmente tenho pouca sorte com as mulheres... É evidente que as mulheres não gostam dos ruivos! Nada a fazer!... As mulheres são caprichosas... Ah, malandra! Ela tem sede de viver, Dimitri! Eh, estás a dormir?
- Não! - respondeu suavemente Dimitri.
- Diz-me cá, como vais passar a tua vida, meu velho? Se queres que seja franco, a verdade é que estás só. É duro! Para onde vais tu, agora? Não encontrarás no mundo uma verdadeira vida. És realmente ridículo! Um homem que não se sabe defender é mesmo um homem? Tens de te defender, meu caro, com unhas e dentes. Todos te farão frente e se rirão de ti! Serás capaz de te defender? E com quê? Eh, eh, eh! Raio de tipo! Que vai ser de ti?
- De mim? - disse Dimitri, reencontrando a sua animação. - Irei embora. Neste Outono, meu velho, parto para o Cáucaso e... assunto arrumado! Meu Deus, quero-me longe de vocês, o mais depressa possível. Vocês são gente sem alma, gente sem Deus, fugir para longe é o único meio de salvação. Por que vivem vocês? Onde está o vosso Deus? Não o têm, è apenas um nome... Por acaso vivem em Cristo? Vocês são os lobos! Lá, as pesosas são diferentes, as almas vivem em Cristo, os corações das pessoas contêm amor, sofrem pela salvação do mundo. Mas vocês? Vocês! Animais selvagens, disputando a carniça! Há homens diferentes! Vi-os! Chamaram-me. Irei ter com eles. Trouxeram-me o livro das Sagradas Escrituras! Disseram-me: "Lê, homem de Deus, nosso irmão bem-amado, lê a palavra da verdade..." E eu li, e a minha alma foi renovada pela palavra de Deus! vou partir, vou-vos abandonar, lobos insensatos que se nutrem da carne do vizinho. Anátema sobre vós.
Dimitri dizia aquilo num murmúrio veemente e sufocava de raiva e de desprezo contra os lobos insensatos, sufocava de sede, sede daqueles homens cujas almas meditam a salvação do mundo.
Sérgio estava estupefacto. Calou-se por um momento, com a boca aberta e o cachimbo na mão; reflectiu um pouco, olhou à sua volta e disse com grossa voz de resmungão:
--Eh, lá, como tu tomas o freio nos dentes!... És mau, ainda por cima! Cometeste um erro ao ler semelhante livro. Só o Diabo sabe que livro pode ser esse! Faz como entenderes, vai lá, ainda acabarás estragado de todo! Parte antes que fiques completamente maluco. E quem são esses tipos, lá, no Cáucaso? Monges? Devem ser velhos-crentes! Ou bebedores de leite? Ha!
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Mas Dimitri já se tinha apagado, tão depressa como a chama crescera. Impelia o remo, arquejando sob o esforço, e cochichava palavras rápidas e nervosas.
Sérgio esperou a resposta dele durante muito tempo e cansou-se de esperar. A noite, escura e mortalmente calma, oprimia-lhe a robusta natureza sem complicações; apetecia-lhe tornar-se ele próprio arauto da vida, despertar aquele silêncio com ruídos, emocioná-lo por qualquer meio, assustar o silêncio contemplativo e quieto daquela pesada massa de água que se escoava para o mar com lentidão e daquele amontoado de nuvens que se mantinha tristemente no ar. No outro extremo da jangada vivia-se e isso incitava-o a viver.
De lá chegava até ele ora o esvoaçar dum riso meigo e satisfeito, ora exclamações entrecortadas que abanavam o silêncio e as trevas daquela noite, cheia de perfumes primaveris que despertavam o ardente desejo de viver.
- Pára, Dimitri, vais rodar até onde? O velho vai-se zangar, tem cuidado! - observou ele por fim, por não poder suportar mais o silêncio e por ter visto que Dimitri torcia inutilmente a água com o remo. Dimitri parou, limpou a testa cheia de suor e deixou-se cair, arquejante, com o peito apoiado ao remo.
- Hoje não há muitos barcos... Ao tempo que andamos e ainda só passou um.
Reparando que Dimitri não estava disposto a responder, Sérgio explicou a coisa a si mesmo, judiciosamente:
- Isso acontece porque a navegação ainda não está aberta. Ainda só está a começar. Em todo o caso avança-se bem para Kazan, o Volga leva-nos na mecha. Tem as costas sólidas como um velho gigante: não se cansa de carregar. Que diabo tens tu, para estar aí especado? É a bílis que te rói? Eh!
- Eh, o quê? - respondeu Dimitri de mau humor.
- Nada... Raio de tipo... Por que te calas? Estás sempre a pensar, sempre a pensar! Deixa lá isso! É mau para a saúde. Eh, filósofo, tu filosofas, filosofas, mas onde é que isso te leva? E se não tens razão? Não percebes nada! Ah! Ah!
Sérgio pôs-se a rir, consciente da sua superioridade. Tossiu para limpar a garganta, assobiou uma ou duas notas, mas interrompeu-se para aprofundar um pouco mais o enunciado da sua opinião.
- Pensar! Pensar não é negócio para um simplório! Basta-te reparar no teu pai. Ele não se põe a filosofar, vive. Acaricia a tua mulher, zomba de ti, com ela, como de um pobre, idiota de filósofo. É assim. Repara neles, não estão com meias medidas. E tu, pobre diabo! Entretanto, ela já
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está grávida, a Maria. Não tenhas receio, o criatura não se vai parecer contigo. Será um rapagão como o Silane Petrov, penso eu. É provável que seja levado à tua conta. Que piada. Ele a chamar-te "papá" e tu a seres irmão dele. E o verdadeiro pai será seu avô. Estás a ver como é cómico! Que grandes patifórios! Eles têm lata! É assim ou não, Dimitri?
- Sérgio! - disse ele num murmúrio veemente, alterado, quase soluçante. - Peço-te por amor de Deus que não me dilaceres, não me incendeies a alma, pára.
Cala-te! Peço-te pelo Deus vivo, não me fales, não me transtornes a alma, tu chupas-me o sangue! Atiro-te à água e ficarás com esse pecado na consciência. Será a perda da minha alma, não me toques. Peço-te pelo Deus todo-poderoso!
Este doloroso gemido tinha rasgado o silêncio da noite e Dimitri deixou-se cair em cima dos toros como se tivesse levado uma pancada com algo pesado, alguma coisa que tivesse caído em cima dele do alto das nuvens vagarosas que pendiam por cima do rio.
- Bem! Bem! Bem! - resmungou Sérgio espantado, vendo o companheiro a debater-se em cima dos troncos como que queimado pelas chamas. - Raio de tipo!... Não teria falado... se soubesse que eras assim, meu velho... assim um pouco...
- Atormentas-me todo o caminho... porquê? Sou teu inimigo, por acaso? Ha? Teu inimigo? - murmurava Dimitri com ardor.
-Não há dúvida, meu velho, és um tipo esquisito! gaguejava Sérgio, com pena e vexado. - Como é que eu podia adivinhar? Não te conhecia, juro!
- Quero esquecer tudo isso, compreendes? Esquecer para sempre! É uma vergonha para mim... um suplício infernal... Vocês são animais ferozes. Irei embora... Para sempre, para longe daqui... Não posso mais.
- bom, está bem, vai-te embora! - gritou Sérgio, com toda a força.
Sublinhou o grito com uma obscenidade vigorosa e, imediatamente, deteve-se, dobrou-se e sentou-se, manifestamente acabrunhado, também ele, pelo drama espiritual que se desenrolara sob os seus olhos e que não se sentia agora em estado de poder compreender.
Eh, vocês aí! - soou a voz de Silane Petrov pelo rio.
- Que se passa? Que estão para aí a ladrar? Ha!
Era nitidamente agradável a Silane Petrov fazer barulho no rio, quebrar o silêncio pesado com a sua voz de baixo profundo. Os sons espalhavam-se uns atrás dos outros, abanavam o ar morno e húmido, esmagando sob a sua força
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viva o vulto enfezado de Dimitri que já estava novamente em pé, ao remo de leme. Sérgio, correspondendo à voz do patrão, insultava-o ao mesmo tempo, em surdina, bebendo as injúrias no áspero vocabulário russo das invectivas. Duas vozes rasgavam o silêncio nocturno, despertavam-no e sacudiam-no; ora se fundiam numa nota única, baixa e fornecida, densa como o som duma grande trombeta de cobre, ora flutuavam no ar, erguendo-se em falsete, para depois se irem extinguindo até desaparecer. A seguir o silêncio reinou novamente.
Por uma fissura das nuvens as manchas amarelas do luar caíam na água sombria e, depois de terem brilhado um momento, desapareciam, apagadas pela obscuridade húmida.
A jangada prosseguia a sua rota nas trevas e no silêncio.
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Num dos remos da frente estava Silane Petrov. Vestia uma camisa vermelha cujo peitilho aberto lhe deixava ver o pescoço poderoso e o peito peludo, maciço como uma bigorna. Uma massa de cabelos grisalhos pendia-lhe para a testa, e sob ela riam grandes olhos castanhos e ardentes. As mangas da camisa, arregaçadas até ao cotovelo, deixavam à mostra braços musculosos que seguravam solidamente o remo. com o tronco inclinado para a frente, Silane olhava com fixidez qualquer coisa ao longe, na escuridão espessa.
Maria estava em pé, a três passos dele, voltada de perfil. Olhava, sorridente, o vulto de torso forte do seu amante. Ambos se calavam, ocupados com o que viam: ele, o horizonte longínquo, ela, o jogo fisionómico daquele rosto barbudo e cheio de vida.
- Provavelmente é uma fogueira de pescadores! - disse ele, voltando a cabeça para ela. - Não é nada! Continuemos a direito. Oh-oh! - suspirou ele, expulsando toda uma coluna de ar quente, e fazendo força regularmente no remo que guiava na água sem enfraquecer. Não te forces dessa maneira, Maria! - acrescentou, vendo que também ela fazia mover habilmente o seu remo.
Roliça, carnuda, com olhos negros licenciosos, faces rubicundas, pés descalços, estava vestida simplesmente com um vestido amplo, vermelho e molhado, que lhe aderia ao corpo. Voltou-se para Silane e disse-lhe com um sorriso meigo:
- Tens muito cuidado comigo. Não mereço tanto!
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- Beijo-te, não é a mesma coisa! - ripostou Silane, movendo os ombros.
- E fazes bem! - murmurou ela
num tom provocante. Calaram-se, encarando-se com um olhar onde o desejo
brilhava.
A água rumorejava sonhadora sob a jangada. À direita, ao longe, os galos começavam a cantar.
Oscilando muito levemente sob os pés deles, a jangada avançava para regiões onde a escuridão já empalidecia e desmaiava. As nuvens adquiriam contornos mais nítidos e tons mais claros.
- Silane! Sabes o que estavam a choramingar lá em baixo? Eu sei, palavra! Era o Dimitri a fazer queixa de nós ao Sérgio; começou a choramingar, com a tristeza, e o outro insultava-nos.
Maria examinava fixamente o rosto de Silane que aquelas palavras tinham tornado sombrio, frio e obstinado.
- E então? - perguntou ele num tom breve.
- Então, nada!
- Se não é nada, não vale a pena falar nisso.
- Oh, não te zangues.
- Zangar-me contigo? Algumas vezes bem me apetecia, mas não tenho coragem.
- Amas a tua Mariazinha? - perguntou ela, agarotada, inclinando-se para ele.
- Tens dúvidas! - murmurou Silane num tom significativo; estendendo para ela os braços vigorosos, disse entre dentes: - Vá, não me provoques!
Ela curvou as costas de forma a ficarem redondas como um gato e apertou-se contra ele, ternamente.
- Ainda vamos ambos deixar chocar a jangada! - cochichou ele, beijando-lhe o rosto que ardia sob os seus lábios.
- Basta! Já há luz... Do outro lado vêem-nos... Tentava libertar-se, mas ele apertava-a cada vez mais.
- Vêem-nos? Que vejam! Que nos vejam todos! Bem me importa a mim! Cometo um pecado, é verdade! Sei-o muito bem! E então? Responderei diante do Senhor. E de resto tu não chegaste a ser mulher dele. Por consequência és livre, pertences a ti própria... É duro para ele? Eu sei. E para mim? Pensas que me agrada ser o sogro que se deita com a nora? Embora, repara bem, não tenhas chegado a ser mulher dele... Mas apesar de tudo... com a minha reputação... Que se vai passar agora? E não é um pecado perante Deus? Claro que é um pecado, sei muito bem! Mas isso não me impediu de o praticar. Porque..., porque valia a pena. Só se vive uma vez neste mundo, e em cada dia se pode morrer. Ah, Maria, eu devia ter esperado mais um mês para o casar. Não teria acontecido nada disto. Ter-te-ia pedido
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em casamento depois da morte da Anfissa e era negócio fechado. Segundo a lei. Sem pecado, sem vergonha. A culpa foi minha, enganei-me. Esse erro vai-me roer durante cinco ou dez anos. Vai-me matar antes do tempo.
- Está bem, mas não te preocupes com isso, não te zangues. Já dissemos isso tudo e mais do que uma vez! murmurou Maria.
Libertou-se do abraço do homem e dirigiu-se para o remo. Ele pôs-se a trabalhar com sacudidelas e com toda a força, como se quisesse libertar-se assim da preocupação que lhe oprimia o peito e lhe entristecia o rosto.
Nascia a aurora. As nuvens mais claras alongavam-se languidamente pelo céu, com pressa, ao que parecia, de dar lugar ao Sol que se levantava. A água do rio tinha tomado o brilho frio do aço.
- No outro dia ele recomeçou a discussão. "Pai, dizia ele, isto não é uma vergonha para ti e para mim? Deixa-a
- referia-se a ti - deixa-a, sê razoável". Respondi-lhe que desaparecesse da minha vista se queria conservar a vida. "Vou-te desfazer em pedaços como se fosses um trapo velho! - disse-lhe eu -, Não vai ficar nada da tua virtude. Foi para meu tormento que eu te engendrei, aborto!" Ele pôs-se a tremer e perguntou-me se a culpa era dele. "Claro que a culpa é tua, mosquito chorão, porque tu és uma pedra no meu caminho. Por tua culpa, porque não és capaz de te manter sozinho em cima dos pés. És um cadáver, uma carne podre. Se ao menos fosses saudável, eu teria o recurso de te matar, mas assim não é possível. Metes-me pena, espantalho da desgraça!" Ele pôs-se a chorar. Ah, Maria, como as pessoas se tornam fracas! Outro qualquer no meu lugar... Havias de ver, depressa se cortava aquele nó. Em vez disso, não nos libertamos. E arriscamo-nos a perder-nos ambos...
- Por que dizes isso? - perguntou Maria, timidamente, olhando-o com olhos assustados. Ele estava severo, poderoso e frio.
- Porque sim! Ele estaria morto... e pronto! Se ele morresse, seria cómodo. Tudo se arranjaria. Devolvia-se a terra à tua família, fechava-se-lhes a boca e iríamos ambos para a Sibéria... ou para o Kuban! Quem é? É a minha mulher! Percebeste? Arranjaríamos qualquer coisa... um papel. Abríamos uma loja em qualquer parte, numa aldeia. Viveríamos e rezaríamos a Deus, Nosso Senhor, pelo nosso pecado. Teríamos de rezar muito? Ajudaríamos os outros a viver e eles nos ajudariam a sossegar a nossa consciência... Era uma coisa boa, ha, Mariete?
- Oh, sim! - suspirou ela, pondo-se a sonhar, com os olhos apertadamente fechados.
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Calaram-se. A água marulhava.
- Ele é tísico... Talvez não dure muito! - acrescentou Silane Petrov, num tom abafado.
- Meu Deus, fazei com que isso aconteça depressa! disse Maria, rezando. Depois benzeu-se.
Os raios do sol primaveril surgiram e começaram a brincar sobre a água que douravam e irisavam. O vento soprou, e tudo foi atravessado por um frémito de animação e riso. Também o céu azul, entre as nuvens, dirigia um sorriso à água vestida de sol. As nuvens deixaram-se distanciar pela jangada. Ao fundo, agrupadas numa pesada massa sombria, mantinham-se imóveis e pensativas por cima do largo rio, pareciam deliberar sobre o caminho que as conduziria mais rapidamente para longe do sol vivo da Primavera, deslumbrante, opulento e alegre. As nuvens e o sol são inimigos, elas engendraram as borrascas invernais que retardaram a sua retirada perante a Primavera.
Diante da jangada o céu brilhava puro e luminoso, e o sol, ainda frio como convém a um sol matinal, mas resplandescente como um sol primaveril, continuava, com um movimento solene e harmonioso, a sair das ondas púrpura e ouro do rio e a subir cada vez mais alto para a infinidade azul do céu.
Na direita da jangada podia-se ver a margem montanhosa e acastanhada com a franja verde das matas; na esquerda o tapete esmeralda pálido dos prados onde brilhavam diamantes de orvalho.
Na atmosfera flutuava o perfume denso da terra, da erva recém-nascida e o aroma resinoso das coníferas.
Silane Petrov olhou os remos da popa.
Sérgio e Dimitri pareciam estar ali colados. Mas era ainda difícil, de longe, distinguir-lhes a expressão das feições.
Desviou o olhar para o pousar sobre Maria. Ela tinha frio. Em pé, junto do remo, tinha-se dobrado e parecia completamente redonda. Toda inundada pelo sol olhava a direito, diante de si, com olhos cismadores, e nos lábios errava aquele sorriso enigmático e sedutor que torna uma mulher, mesmo sem beleza, uma criatura arrebatadora e desejável.
- Atenção, rapazes! -oh! - trovejou Silane Petrov a plenos pulmões.
Sentia no peito largo um possante afluxo de vigor jovem. Tudo pareceu oscilar sob o choque daquele grito, e o seu eco propagou-se durante muito tempo ao longo da margem escarpada.
Publicado em 1895, no número 71 da Samarskaia Gazeta e revisto posteriormente para as edições Kniga.
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DESCOBERTA
(Excerto das memórias dum contemporâneo)
...Hoje, depois do jantar, minha mulher - enquanto ainda estávamos ambos no meu escritório - disse-me, com ternura e inquietação:
- Paulo, na tua atitude para comigo apareceu qualquer coisa de estranho. Olhas-me por vezes com um ar tão interrogativo! Pareces esperar algo de mim e perguntar: "Quando?... Levará muito tempo?" E a seguir prestas-me uma atenção especial... não aquela que se presta a uma mulher... essa eu não a teria notado, certamente... é de tal modo normal e habitual... não, é uma atenção estranha, interrogativa, que espera qualquer coisa, tal como os teus olhares súbitos e silenciosos. Que tens tu, Paulo? Metes-me medo!
E ao dizer isso as lágrimas subiram-lhe aos olhos, lágrimas de receio e de perplexidade.
Como ela é fina!
Foi a minha vez de me assustar com a pergunta dela e comecei a consolá-la, conforme pude. Não foi necessário muito tempo (as mulheres consolam-se sempre depressa!). Quando o consegui, perguntei-lhe com uma espécie de arrepio se ela não tinha tentado explicar de uma maneira ou de outra a minha disposição.
- Sim - disse ela, perturbando-se. - Penso que estás descontente por vivermos os dois... já há cinco meses... como marido e mulher... e eu... ainda não estar...
Ruborizada de vergonha e de emoção terminou a frase num murmúrio e, escondendo o rosto nas mãos, encostou-se
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a mim, no sofá, numa pequena bola avermelhada e mole: era uma posição sensual, a atitude de um ser que, por jogo, se põe em guarda, e não é possível a nenhum animal a não ser ao gato e à mulher.
Eu via-lhe entre os dedos o cintilar dos olhos negros; o vestido verde-mar envolvia-a toda nas suas ondas suaves e opulentas.
Dei-lhe como explicação da minha disposição um certo mal-estar, tranquilizei-a e tranquilizei-me a mim mesmo constatando, pelo que dizia, que ela estava convicta do meu amor e por consequência, apesar de toda a sua finura, incapaz de compreender o que lhe pergunto quando a olho. Tive pena dela. Mais tarde saí para passear, dizendo-lhe para não me esperar porque iria passar pelo clube. Lamentou-se e deixou-me partir depois de me ter beijado: quando voltei já ela dormia.
...Acabo há momentos de deixar a cama na qual passei duas horas a olhá-la, essa pequena mulher, a minha esposa.
Está deitada, meia coberta com uma roupa fina que lhe sublinha todas as curvas do corpo; está deitada e sorri, a dormir, e as mechas dos cabelos espalham-se em volta da cabeça como uma coroa. Uma delas está pousada no ombro e no pescoço, uma outra na face, alguns cabelos soltos trepam até à pálpebra de longas pestanas e um caracol espesso abre-se na orelha esquerda. Toda ela tão bela, duma frescura tentadora! A pele exala aquele perfume penetrante de mulher que emociona os nervos. O luar entra pela janela onde estão pousadas flores, e as suas sombras reproduzem-se no tapete ao lado da cama... e na parede atrás dela. A noite é tão calma e quente... A folhagem deste primeiro mês de Verão murmura coisas acariciadoras e enche o quarto duma morna e intensa atmosfera narcótica que envolve a alma numa moleza preguiçosa.
Sou um homem perfeitamente saudável, talvez um pouco mais impressionável que a norma, mas com boa saúde. De resto - para o diabo as precauções oratórias -, pode pôr-se o problema de norma em matéria de impressões recebidas? E eu, homem saudável, é a oitava noite que passo assim, de uma tão estranha e ridícula maneira, ao lado da cama da minha mulher, temendo tocar-lhe e sentindo que se lhe perturbo o sono com as minhas carícias legítimas isso seria uma ofensa para ela e para mim, embora ela não possa compreender essa ofensa e que, pelo contrário - como sempre -, ela a faça feliz. Desde o momento em que, cheio de paixão, troquei pela última vez carícias com ela, passaram-se treze dias.
Que aconteceu então?
Nada de especial...
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Tudo rolava como deve rolar nos primeiros tempos do casamento: bem, com ternura, ardentemente. Admirávamo-nos um do outro, gozávamos um do outro, e ela dizia-me frequentemente, com êxtase, que não tinha esperado de modo nenhum encontrar no amor tanta novidade e felicidade.
Eu aprovara sempre aquelas palavras sem reservas e de coração aberto e sincero.
E eis que de repente uma sombra se abateu sobre mim, uma sombra estranha e fria que esgota o coração e aguça a inteligência. Foi há treze dias, ou melhor há treze noites que senti a sua presença pela primeira vez.
As coisas passaram-se assim.
Regressei do clube, agitado e entristecido pela conversa que tinha tido com um amigo. Tínhamos falado da vida e da maldade com que ela zomba do homem. Este tema acaba sempre por comunicar a sensação duma completa impotência, de solidão e de abandono.
Ao entrar no quarto de dormir, onde tudo era então duma beleza tão provocante como hoje, parei junto da cama da minha mulher para a admirar primeiro no seu sono e depois a acordar. Tinha uma grande vontade de lhe falar dessa vida que não se ri de nenhum animal tão brutalmente, tão impiedosamente, tão ironicamente, que não persegue nenhum com tanta crueldade como o faz ao homem, e de preferência ao melhor.
Inclinei-me para ela, para lhe depor um beijo na testa (habitualmente ela desperta após esse beijo), e detive-me a admirá-la, esquecido. Sorria em sonhos, e, sob os raios do luar, o rosto pareceu-me transparente. Em todo o seu vulto de pequenas proporções havia qualquer coisa que a fazia assemelhar-se a um brinquedo, qualquer coisa de pueril, o sorriso tinha aquele ar de manha ingénua que pertence à infância. Pareceu-me inicialmente que ela não dormia, que me observava através das pestanas entreabertas; ia já rir-me da sua pequena perfídia, mas ela respirava com total regularidade e eu sabia-a incapaz de fingir tanto tempo. Subitamente comecei a achar que seria pena acordá-la.
"No fundo, por que a despertaria? Para a informar de que é penoso viver?" - perguntei a mim mesmo.
Verifiquei que era estúpido e ridículo acordar uma pessoa para se lhe lamentar da existência, da essência da qual nem ela nem eu tínhamos uma ideia muito clara.
"Ela compreenderá o que lhe disser?"
E após um momento de meditação tive de responder a mim próprio:
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"Não, não compreenderá. É demasiado jovem, demasiado pura, demasiado inexperiente para ser capaz de mergulhar nesse abismo de pensamentos que dão frio à alma e nela deixam dolorosas marcas de ferrugem, manchas duma perplexidade angustiada perante os fenómenos da vida. Ela tem necessidade de compreender tudo isso?
Não! E porquê? Que dá a compreensão dessas coisas? Muito raramente a faculdade de se orientar na vida e de escolher nela um ponto de apoio sólido, e sempre um enfraquecimento da alma.
E, em definitivo, porquê eu, precisamente eu, que amo a minha mulher e que tenho a infelicidade de conhecer a vida melhor e de mais perto, por que razão a deveria iniciar na austera e repulsiva realidade do que se passa junto dela, para quê falar-lhe das pedras e das silvas que juncam o caminho do homem, o caminho terrivelmente duro, sangrento, que conduz ao desconhecido?
Para mim, vale mais
conservá-la o mais tempo possível nessa frescura de sentimentos e de ideias, conservar-lhe a agradável semi-sonolência da alma, habitada por sentimentos ardentes repassados de confiança. Ela ainda mal saiu da infância! Quanto menos ela compreender, mais tempo isso me dará a possibilidade de gozar a sua existência como uma flor.
E, se eu quiser, posso conceder a mim mesmo o subtil prazer de verter pouco a pouco, na sua límpida sensibilidade, as amargas gotas dum sombrio cepticismo, as amargas gotas da lucidez. Ela se fanará progressivamente e eu observarei isso e saborearei a minha modesta vingança sobre a vida que me tem envenenado.
Estou envenenado e eis que eu próprio enveneno; enveneno uma criatura preciosa, fresca, que ainda não viveu... Inflijo uma derrota à vida, privando-a duma energia que, se eu quisesse, serviria os seus fins."
Nesse momento estendi novamente a mão para acordar minha mulher.
Mas..., não sei porquê, recostei-me na minha cadeira e, fixando o rosto da minha mulher, pus-me a remoer aqueles estranhos pensamentos tão difíceis de distinguir das sensações. Na minha cabeça rolava uma espécie de espessa avalancha que acumulava sombras na minha alma. Senti-me pouco à vontade. Fiquei muito tempo sem conseguir aclarar as ideias e ordená-las.
Quando o consegui, fiquei gelado e apavorado. Tudo o que eu tinha pensado exprimia-se firme e nitidamente sob a forma de pergunta: "Amo a minha mulher?" Então levantei-me, aproximei-me da janela, apoiei a testa na caixilharia e pus-me a olhar o jardim, àquela hora afogado na
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luminosidade e nas sombras lunares. Estava mergulhado no silêncio, naquele silêncio recolhido do ser que contempla mistérios e já encontrou a chave de muitos deles.
"Minha mulher!...", repeti eu para mim mesmo - e senti que aquela pequena palavra, tão simples e, aparentemente, tão clara, soltava um som frio que não me dizia nada ao espírito nem ao coração.
Há muitos sons desta espécie, nascem e morrem sem deixar nada atrás de si. "Minha mulher?" Há mesmo nele algo de baixeza servil.
É hábito pensar que compreendemos as palavras que pronunciamos e esse hábito engana-nos; a alma das palavras, o seu significado mantém-se-nos obscuro e estranho.
"Então... amarei a minha mulher?" - pensava. "Amo os olhos dela, os seus beijos e o seu sorriso, a voz e os gestos, amo muitos outros pormenores dessa espécie e queira Deus que ela esteja toda nesses aspectos. Mas, à parte isso, como ser humano e como alma viva, como consciência e como enigma, como instrumento eternamente vibrante ao choque das impressões, fino, sensível, harmonioso? Amo-o também?"
Não podia dizer que tinha procurado nela tudo isso, que o tinha procurado ou que tinha desejado encontrá-lo. Nós tínhamos travado conhecimento... Ela era uma jovem cheia de vida e de alegria, tinha-me agradado mais do que as outras; naquela época a vida era-me penosa e aborrecida e eu tinha pensado que não perderia nada, talvez, em casar com ela. Fazia com que ela se interessasse por mim e sentia o desejo de ser ardentemente amimado.
Levei-a a lamentar-me. É tão simples fazer com que uma mulher nos lamente! Sobretudo no momento que passa em que a virilidade é tão rara no homem como a feminilidade na mulher. Embora tendo perdido muito da sua feminilidade, a mulher não desaprendeu no entanto a compaixão, e, nos nossos dias, o amor duma mulher é quase todo compaixão pelo homem... demasiado indigente de espírito e fraco de corpo para ser um homem.
Mas afinal continuo a afastar-me da minha intenção principal... Depois de ter encontrado a resposta para a primeira pergunta, enunciei outra...
"Que ama ela em mim?" Era-me difícil responder, porque, a falar verdade, se eu estivesse no lugar dela, se eu fosse mulher, qualquer que fosse, não creio que pudesse descobrir algo de positivo, ou de forte, ou fosse o que fosse que merecesse a atenção num homem como eu... salvo, é certo, a capacidade de obrigar o meu espírito a descrever intermináveis espirais que arrastam o pensamento para longe, para um abismo sem fundo, sem relação com o mundo.
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Mas as mulheres são duma lógica tão lamentável!
Tendo desse modo resolvido o amor dela por mim, interroguei-me uma vez mais:
"Por que motivo e em que somos necessários um ao outro, desde o momento que somos um para o outro estranhos, desconhecidos?"
E nesse momento compreendi que não amava a minha mulher, porque se a amasse, mesmo muito pouco, não poderia pôr em mim próprio semelhante questão. Fiquei frio...
Que iria acontecer, mais tarde, quando ela me compreendesse? Que lhe aconteceria? Como aquilo iria ser desagradável e acabrunhante para mim! Haveria certamente lágrimas! Quantas cenas inúteis, exasperantes, que rasgam os nervos e dilaceram a existência! Inicialmente imaginará que é enganada, depois que é uma mártir do dever, em seguida começará a procurar consolações e... encontrará um amante...
Voltei para junto dela. Continuava a dormir num sono profundo, descuidado, e tinha o mesmo sorriso gentil como o de uma criança. Mas agora já não despertava em mim aqueles sentimentos agradáveis que eram de regra tão pouco tempo antes... ainda ontem.
Olhei-a e pensei:
"Que me adianta o facto de este bonito brinquedo me pertencer? Procurarei estabelecer entre nós uma comunidade, agora que sei que ela não existe? É-nos possível a ambos... e é possível dum modo geral entre dois seres, essa famosa, "fusão das almas", essa compreensão mútua?... Unidade de interesses?... Ora! Não é nesse terreno que nos podemos encontrar. Gostaria que nada houvesse no meu coração; a tranquilidade é todo o meu interesse.
Quero continuar a pensar... Mas viver... não interessa! Já vivi dezenas de anos e sei o que isso vale: a vida, após os vinte e cinco anos, é uma degradação progressiva das forças, dos desejos, da imaginação... de tudo o que há de melhor e em que, precisamente, consiste a vida. É-se criado para qualquer coisa e deve-se fazer qualquer coisa.
E faças o que fizeres deves primeiro que tudo submeter-te ao quadro moral actualmente em vigor.
ele é sempre suficientemente pesado e acanhado para esmagar o homem. Em segundo lugar todas as actividades a que te entregas são muito mesquinhas, aborrecidas e banais.
Porque tu não és um génio.
Segue-se portanto que esta criança, minha mulher, me perguntará um belo
dia se eu a amo e esse belo dia será o começo duma vida abominável entre nós.
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Como dar um nome a tudo isso? Erro? Equívoco?... Na realidade, não sei... De resto, segundo parece, as coisas passam-se sempre assim com toda a gente: casa-se com uma mulher porque se está apaixonado, aprendem a conhecer-se e o desencanto nasce. Depois disso começa-se a "arrastar a existência" que se chama a vida de família... Arrastam essa existência aqueles que têm na alma o prego que se chama dever; e também aqueles que, com um pouco mais de sacrifício, se salvam cada um para seu lado, fornecidos de boas recordações sob a forma de saudades do passado ou de cólera de um contra o outro. Ambas as soluções são terrivelmente horrorosas.
Mas "tudo isso, meu velho, é filosofia", como diz um dos meus amigos. Quanto à realidade, ei-la: temo a minha mulher, como um ser que me trará, no futuro, muitos aborrecimentos e desgostos.
E agora olho-a e penso:
"Eis aqui alguém que não tardará a recorrer aos seus direitos de gozar da minha atenção e de todo o meu universo interior... Começará a escavar em mim, a estudar-me, a observar-me, a pensar em mim, tudo isso para procurar saber quem sou. Enquanto eu próprio não possuo senão uma muito vaga representação do que é o meu "eu".
Parece-me que quando os olhos pueris da minha mulher olham os meus, tentam penetrar numa fossa sem fundo, cheia duma névoa corrosiva.
Inspira-me alguma piedade a minha mulher. Ela vai estragar a ideia luminosa que tem do homem e da vida, à força de perscrutar o marido. Conheço a opinião que tem de mim: considera-me um homem muito original, muito fino e muito inteligente.
Que tolinha!
Sou um pouco cínico, não é verdade? Que posso fazer? Não tem qualquer importância. De resto, nada é importante além da confiança em si próprio. No fundo... tudo isso é muito mais ridículo que melancólico. É evidente. E apesar de tudo, contemplo minha mulher e espero... o seu juizo? Não, naturalmente! Como poderia ela julgar-me? Mas espero o dia em que a mulher se sentirá um ser humano (isso acontecerá, meu Deus!) e fará valer os seus direitos sobre o meu universo interior.
E ela começará a estragar a minha vida, duma maneira crónica.
No final de tudo também ela, sem dúvida, se sujará nos pântanos do aborrecimento, dos desejos revoltos, das ideias vagas..., em excursões cépticas nas regiões da alma, da sua alma, da alma do marido... Ah! Ah... Ela verá também o que a espera!
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Parece-me que começarei em breve a odiar a minha querida esposa... essa mulher que, por agora, dorme com um sono tão suave.
Se ela pudesse, pelo menos, nunca mais acordar!"
Publicado em 1895, no número 74 da Samarskaia Gazeta.
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ALGUNS DIAS NO PAPEL DE CHEFE DE REDACÇÃO DE UM JORNAL DE PROVÍNCIA
(Tema excelente para pessoas de espírito)
O destino é geralmente bastante malévolo a meu respeito, mas, apesar de tudo, não esperava que ele me pregasse uma partida tão irritante.
Entrei na vida (na vida activa) na qualidade de aprendiz de pinttor, depois ajudei a cozer pães, desenhei ícones, guardei cavalos, cavei a terra em circunstâncias variadas entre outras, ao serviço dos mortos -, fui estivador, guarda-nocturno, arranquei árvores, fui jardineiro, fiz a experiência dum bom número de profissões liberais e senti mais ou menos por toda a parte que não estava no meu lugar. Cheguei a um tal grau de resistência que comecei a considerar o desemprego como mais esgotante que o trabalho, ganhei "nervos", uma doença de peito, uma certa experiência da vida, e outras coisas pouco agradáveis; para terminar, um belo dia dominou-me a inspiração, escrevi qualquer coisa de audacioso, depu-!o timidamente numa sala de redacção, tiveram a benevolência de me imprimir, aquilo agradou-me, decidi conservar aquele tipo de trabalho que convinha mais, pela sua natureza, às minhas disposições que o de arrancar árvores (ocupação pela qual tinha tido sempre um fraco); tomei a minha decisão e tornei-me literato de província.
Assim armado, cessei qualquer outra tentativa, persuadido de que o lugar de literato é uma garantia contra o risco de morrer de fome, tal e qual como qualquer outra ocupação.
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Ser homem de letras agrada-me muito: escreve-se e é-se lido, e, embora se ignorem os resultados que daí advenham, tem-se o direito de supor - mediante uma certa ingenuidade
- que eles são respeitáveis e duradouros; e, se a Natureza omitiu atribuir-nos a nossa parte de modéstia, pode-se mesmo sonhar, por exemplo, que as pessoas nos escutam, e, em conformidade com os nossos conselhos e as nossas demonstrações, aplicam nas suas relações mais nobreza e mais amabilidade.
Eu já estou privado dessas satisfações: a vida é triste, choquei-me bastante contra ela e aí se quebraram as asas dos meus sonhos.
É muito triste porque é prematura. No entanto, foi com intenções louváveis que me atrelei aos varais de literato, com a apaziguadora convicção de que apesar de tudo podia ser pior... Imaginava inocentemente que o trabalho não seria pior do que tinha sido até aí. E um dia levantei-me duma cama que era a de um chefe de redacção dum jornal.
A princípio não senti nada, salvo uma sensação agradável e, plenamente consciente da tarefa que me incumbia e do meu importante significado social como director de um órgão que tinha por finalidade exercer uma influência na opinião pública, dirigi-me para a sala da redacção.
Mas já no caminho comecei a meditar no modo como devia agir para dirigir a opinião pública, a pensar para que lado ela devia ser guiada, onde se situava ela naquele momento e se eu sabia como ela se exprimia.
"Devo prestar atenção à voz pública", concluí; e comecei a fazê-lo enquanto caminhava.
Mas nenhuma voz se fez ouvir: havia uma espécie de rumor discordante, uma espécie de mugido enevoado que lembrava muito a palavra humana, mas não tinha quaisquer relações com expressões cívicas.
Dois senhores, perfeitamente educados, a julgar pelo seu aspecto, raciocinavam assim:
Um deles interrogava com veemência:
- Ele roubou ou não o dinheiro do Estado?
- Dilapidou, é como se deve dizer! - corrigiu o outro, sem se perturbar.
- Não importa; portanto, é culpado.
- Não!...
- Essa agora!
- É como lhe digo!
- Mas que diabo, é um crime!
- Não, uma leviandade... uma deplorável leviandade...
- Mas o dinheiro dos camponeses desapareceu, perdeu-se sem apelo.
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- Isso é verdade.
- E então?
- Meu caro, tu és um formalista rigoroso! É preciso ser mais maleável, mais reflectido, mais humano...
- E a ti falta-te o sentido social. Aí está! O interesse público é superior a...
Pareceu-me que o homem que afirmava que a dilapidação era um crime... lamentava não ter tido ocasião de dilapidar ele próprio, e daí provinha o seu furor e a sua severidade. Quanto ao outro, ele já tinha dilapidado e temia ser descoberto, daí a sua extrema maleabilidade eivada de humanidade.
Finalmente, para não ter de me convencer, parei de ouvir e prossegui o meu caminho.
Mas não estava com sorte. Por toda a parte onde via dois homens, ouvia duas opiniões... às vezes mesmo três ou mais. Era contrário à lógica, mas, manifestamente, muito pouco contrário à maneira de ser do Russo.
Aquilo pôs-me de mau humor, e lamentei do fundo do coração ter negligenciado a possibilidade de me informar junto do anterior chefe de redacção de qual a cor, a forma e as tendências da opinião pública que ele dirigira até à sua reforma. Uma vez que não tinha, dada a minha inexperiência, nenhuma ideia do que ela podia ser entre nós, estava pronto a admitir que também ela tinha abandonado a vida russa, para se reformar. Mas nesse momento saltou-me aos olhos o pacífico vulto de um agente da polícia e uma ideia extremamente original começou a galopar-me na cabeça. Aproximei-me dele.
- Diga-me cá, o senhor faz ideia do que seja a opinião pública da hora?
- O senhor quer saber as horas? - respondeu ele.
- Não, o que pretendo é conhecer a opinião... Sabe o que quero dizer: as conversas... O que se diz e como se diz...
- O que se diz? Falam do circo...
- Ah, sim! E que dizem ao certo?
- Dizem que é muito interessante! Em primeiro lugar há um grande movimento... Depois, pode-se ganhar uma vaca... ou um samovar...
- Não, não é isso...
- É isso mesmo... Tal como lhe digo... Nós sabemos isso muito bem, somos obrigados a vigiar as patifarias e as desordens... as distracções públicas, conhecemo-las bem.
Manifestamente, ele não me compreendia.
com o espírito perturbado dirigi-me para a sala da redacção, pensando que talvez, através dos velhos números do jornal, poderia ter uma ideia precisa do que é a opinião
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pública actual, saber qual é o seu aspecto e, igualmente, em que direcção deveria guiá-la.
Esperava-me alguém na redacção, alguém que, sem qualquer dúvida, se esquecera nesse dia de lavar as mãos, de se barbear e de escovar o fato. Na mão direita tinha um pau, na esquerda um manuscrito, e de um dos bigodes pendia uma pluma de pássaro.
- Tenho o prazer de ver o novo chefe da redacção? informou-se ele em voz baixa, bastante educada.
Confirmei.
- Trrouxe... um... manuscrrito... Perrmita que me aprresente: Tersito, comandante de bombeirros, rreformado... o rresto não interressa. Morro aqui, na rua Suja... isso não interressa. Fiz os meus estudos até ao liceu... até ao terceirro ano... trrabalhei... conheci a injustiça... e trrago-lhe aqui o gemido dum corração ultrrajado... Bebo, e em estado de embrriaguez bato-me...
Não tive a audácia de duvidar do que ele dizia, peguei com precaução no manuscrito cujo peso não excedia um quilograma e disse-lhe que certamente o leria.
- Clarro... Serria uma ofensa não o lerr. O anterrior não perrcebia nada de literratura. Vim cá trrês vezes prroporr-Ihe o meu trrabalho. Ele dizia que isto não passarria na censurra. Disse-lhe que poderria fazer corrtes e ele respondia que de qualquerr maneirra erra impossível. Uma vez chegou a dizerr-me que me punha lá forra. Eu quis-lhe baterr mas ele erra prrudente.
- O senhor costuma bater nos redactores que lhe recusam as obras? - perguntei-lhe, pressentindo que a questão era, para mim, extremamente interessante.
- Semprre! - respondeu ele, num tom lacónico e sugestivo mantendo a sua pronúncia: - Bato-lhes e cubro-os publicamente de insultos. É o que eles merecem. Escrevi isto há doze anos e ninguém o quer imprimir. Enviei-o a cerca de uma dúzia de jornais... e nem um publicou! "A confraria dos escritores" etc. É preciso encorajar o talento, mas vocês, os chefes de redacção... Brr!
- vou lê-lo... vou levá-lo agora e lê-lo! - disse eu, com voz conciliadora.
- Fico à espera.
Instalou-se numa cadeira, após um ameaçador movimento das sobrancelhas.
- Não, o melhor seria o senhor ir...
- Para onde?
- Para sua casa... ou para onde quiser.
- Como devo entender isso? Ha? bom, não tenhas receio, vou-me embora mas tu vais-me dar vinte copeques de adiantamento sobre os meus direitos.
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Dei-lhe trinta e ele saiu. Limpei o suor da testa e olhei para o manuscrito. Estava bastante amarrotado e intitulava-se: "Rápido olhar sobre o mundo do alto duma torre de vigia". Olhar abertamente filosófico sobre as coisas, os objectos, os factos e os acontecimentos, com, além disso, apontamentos sobre os usos e costumes da localidade, e a vida comunal em pormenor, expostos sob a forma de cenas diversas e repartidas por três secções. Primeira parte (ou secção)... De cima para baixo. Ponto de vista dum homem colocado numa situação elevada sobre as necessidades inferiores dos homens e necessidade dessas necessidades.
Pus de lado o "Ponto de Vista", adivinhando imediatamente, logo no primeiro dia, que a leitura de obras tão elaboradas estaria acima das minhas forças.
O encarregado da "cidade" entrou e declarou num tom sinistro que não haveria crónica local.
- Como pode ser isso?
- Não se passa nada...
- Que diabo, deve-se ter passado qualquer coisa nestas vinte e quatro horas!
- Não aconteceu nada. Ninguém se enforcou, nem afogou, nem se suicidou de qualquer outra maneira. Toda a gente se habitua à existência... Vive-se, vive-se e acaba-se por ganhar o hábito... Não só já não se morre pela própria iniciativa, mas ainda por cima ninguém os obriga a morrer à força.
- No entanto, no espaço de vinte e quatro horas, a vida social deve-se ter exprimido de algum modo! - exclamei eu, aborrecido.
- Absolutamente nada... Nem uma rixa, nem um roubo, nem a menor bandalheira; nada!
- Talvez tenha alguém ficado esmagado, pelo menos?
- Não... Já disse: eu teria sabido.
- Mas então como vamos fazer os casos do dia? Ha?
- bom, eu escreverei o que me vier à cabeça.
- Por exemplo?...
- Inventarei um acontecimento qualquer.
"Aqui está como as coisas são: para animar o espelho da vida, acontece às vezes, por consequência, que o jornal chega a inventar os acontecimentos." Eu tinha compreendido e, no fundo do coração, sentia-me transportado de alegria perante a engenhosidade humana.
Entrou uma rapariguinha... uma rapariguinha muito nova que trazia na mão um rolo de papel. Entrou e, toda ruborizada, deteve-se no limiar.
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- Eu... Veja, escrevi uns versos...
Ficou tão encarnada que eu próprio me senti envergonhado. Comecei a animá-la, a sossegá-la, garantindo-lhe que ela não necessitava de se perturbar por isso, que nos nossos dias aquilo era como que uma epidemia, que toda a gente se podia acusar do mesmo e que, no fundo, se se pretendia ser objectivo, não era afinal uma acção tão vergonhosa como isso, além de que, mesmo que o fosse, ela merecia o perdão dada a sua grande juventude. Ela podia confiar em mim, eu não seria severo.
Eu próprio na minha infância tinha escrito versos "para ela".
Cheguei quase a roçar a tragédia...
- Ah! - exclamou ela, então, entregando-me os papéis.
com as suas asas, a noite, lança aos meus olhos sombrias expressões de moira escura. E quando rolo no sono acaricia o meu corpo com sonhos de amores violentos...
Enquanto lia, olhei-a. Devia andar pelos treze anos. Que desgraça! Que aflição: suportar já, numa idade tão tenra, desilusões e reveses! E, no entanto, ela suportava-os.
Sou responsável... Penso no entanto não ter provocado nunca, na alma duma criança, um desespero mortal...
A seguir trouxeram-me mais poesia. Também uma rapariga, mas esta tinha mais trinta anos do que a outra.
Usava um vestido cor-de-rosa e os versos começavam assim:
A minha alma é receptiva à tempestade da paixão. Rolam em mim fumos de esperança para a felicidade.
Tinha os dentes negros: era sem dúvida um acidente causado por aquele fumo das esperanças que, depois de lhe encher a cabeça, lhe tinha saído pela boca.
Depois vieram ainda mais versos, longos, em calças de quadrados e botas amarelas. Muito bizarros. Depois uma elegia num manto cinzento rendado. O correio trouxe-me também quatro embrulhos de poesia. Quando finalmente terminei as leituras e ataquei o resto da correspondência, havia cartas de todos os géneros. A maior parte eram longas, com erros de ortografia e misteriosas: não era possível perceber do que tratavam. Algumas eram breves, claras, correctamente redigidas, mas impróprias para impressão precisamente por causa dessas qualidades. Havia
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também mensagens enevoadas, dum género agridoce e de conteúdo inofensivo. As cartas curtas, claras e correctamente redigidas pareceram-me ser as que melhor convinham ao jornal. Eu não tinha, é claro, qualquer experiência. Resolvi entregá-las à secção de composição. O cronista da cidade apresentou diversos factos. Tinha abandonado três crianças, fez uma diatribe contra os pavimentos citadinos, lançou alguns jactos de espírito contra a poeira da cidade e regou o conjunto com vastas considerações acerca duma mulher que se tinha suicidado. O resultado era bastante bom.
Depois disso percorri quinze quilos de crítica literária. Apesar da ligeireza do conteúdo, aquilo tornou-me o espírito consideràvelmente mais pesado: já não me sentia de modo nenhum bem disposto, tinha a impressão de me ter enchido de água lamacenta.
Um honesto cidadão veio-me pedir para pôr no pelourinho um vizinho seu, um espantoso canalha que lhe tinha morto uma galinha à pedrada. Recusei-me a ser eco das suas acusações dada a falta de provas. Foi-se então embora, prometendo apresentar uma prova testemunhal, o cadáver da galinha que me traria no dia seguinte.
- Considero - disse-me ele, ao despedir-se -, que o papel da imprensa consiste precisamente em levar ao conhecimento do público factos tão revoltantes como esse; e em tomar a defesa do habitante, vítima de atentados criminosos perpetrados contra a vida dos seus animais domésticos. Meu caro Senhor, eu sou um chefe de família.
O seu modo de entender as tarefas da imprensa pareceu-me um pouco unilateral e deixou-me meditativo. Mas ao mesmo tempo sentia-me orgulhoso por ver que o cidadão se dirigia à imprensa a fim de que ela tomasse a sua defesa. Isso queria dizer que ela lhe merecia a confiança e que a tinha por uma espécie de força. O que estava muito bem.
Apareceu um homem de rosto amarelado que vinha refutar as minhas conclusões.
- É o chefe da redacção? - perguntou ele num tom agreste. - É o senhor, ha?... bom, bom!... Agora compreendo por que se imprimem no seu jornal toda a espécie de disparates que não apaziguam ninguém. O senhor é novo de mais para assumir a responsabilidade da função de chefe... O problema é esse, meu caro Senhor. Num dos números do seu jornal publicou-se uma informaçção escandalosa segundo a qual eu teria batido na minha criada. Quem foi o idiota que lhe contou semelhante balela? Inverteram as coisas! Foi ela que me bateu com o chinelo, com o meu próprio chinelo, ainda por cima, veja o cinismo do caso, ha! Mas fosse como fosse, quer fosse eu a bater-lhe ou ela a bater-me a mim, isso tem pouca importância... o que tem
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importância é isto: onde foi buscar a ideia de que as minhas relações com as minhas criadas têm de ser submetidas ao controlo da imprensa? Ha? Naturalmente, deve compreender o que isso lhe pode custar? Eu tenho umas tais relações, meu caro, que me basta abrir a boca para que em vinte e quatro horas...
- Dê-me licença, a informação que reproduzimos fundamenta-se, salvo erro, num relatório policial! - observei eu.
- E que tem o senhor com isso?
Tentei fazê-lo admitir que sim, que tinha com isso dado ser um aspecto dos costumes.
- A tarefa da imprensa, meu caro Senhor, não consiste em estudar os costumes, mas em espalhar no mundo a ideia do bem, da justiça e da nobreza. Isso mesmo! O senhor ignora isso, e no entanto pretende brincar aos "chefes de redacção".
Repliquei que não considerava um combate travado à chinelada contra uma criada como um nobre combate e que...
- O senhor naturalmente desejava que eu me batesse contra ela à ponta de espada! - perguntou-me ele, num tom irritado e venenoso.
Declarei-lhe que, segundo o meu ponto de vista, era preciso simplesmente não nos batermos e que...
- O senhor não percebe nada da vida! O seu dever é restaurar a verdade conferindo-lhe o seu aspecto primitivo...
Pedi-lhe para me dizer o que era essa verdade no aspecto primitivo, mas resultou dessa análise que, em tal aspecto, era impossível publicá-la sem infringir o código da decência, coisa que fui obrigado a declarar-lhe.
Perante isso insultou-me e foi-se embora batendo violentamente com a porta.
A cabeça já me começava a andar um pouco à roda, quando entrou um outro homem anunciando que era nem mais nem menos o assassino da galinha.
Compus uma expressão severa.
Segundo parecia, a galinha tinha expiado uma patifaria cometida pelo proprietário da dita ave: no caso, uma orelha arrancada ao filho do assassino. Depois disso parecia que afinal o dever da imprensa era o de defender as crianças a quem se arrancaram as orelhas.
Tomei nota.
Tudo aquilo me agradava: via que o homem da rua tomava a imprensa a sério e tinha ideias acerca do dever dela. A cabeça andava-me à roda...
Foi a vez dum senhor muito correcto e extremamente amável. Cumprimentou, sentou-se, assoou-se e começou:
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- Meu caro Senhor, vim pedir-lhe um favor e dir-lhe-ei desde já do que se trata: devem trazer-lhe aqui uma difamação contra mim, fruto da imaginação dum escrevinhador barato... Nessa exposição ele afirma que estou em déficit e que teria utilizado os dinheiros públicos para organizar piqueniques. É favor não acreditar em nada disso e não o imprimir. É mentira, resultado da inveja... É um facto que gosto de piqueniques, vou organizar um, precisamente, e venho pedir-lhe humildemente a honra de participar nele. Haverá champanhe, senhoras muito amáveis e alegres... garanto-lhe que será muito divertido... Aceita ser dos nossos?
Ah, que encantadora, que cordial atitude para com a imprensa! Como laboram em erro os que afirmam que a imprensa e o leitor são inimigos inconciliáveis.
- A minha opinião é a seguinte: o dever da imprensa é de se manter o mais perto possível da vida e dos seus interesses... A vida somos nós, cada um de nós. Como diz Heine: "O homem é um universo, sob cada laje mortuária jaz toda a história do mundo". Eu sou um universo, o senhor é um universo, o outro é um universo; de modo que os interesses da imprensa são os interesses de cada um de nós e vice-versa. Não é verdade? Por consequência o senhor deve defender os meus interesses. Não é justo?
Que lógica escorreita tinha aquele homem! Depois de ter conversado agradavelmente durante meia hora, separámo-nos encantados um com o outro. Para ser franco, eu não estava totalmente de acordo com ele, mas prometi a mim mesmo explicar-lhe, mais tarde e pormenorizadamente, o meu modo de ver.
Finalmente regressei a casa. O primeiro dia passado no meu posto tinha brilhado pela variedade. Sentia-me um pouco esgotado (falta de hábito) e deitei-me logo que cheguei. Nos meus sonhos vi coisas estranhas.
À minha volta turbilhona uma espécie de enxame de bebés, de senhoras, de virgens, de rapazes e raparigas que de repente se põem todos a ler-me versos diferentes. As rimas chovem como bátegas nos meus ouvidos, as ligações sem ritmo ferem-me como a lâmina duma serra, duma serra de dentes rombudos... Depois aparecem homens e mulheres de idade madura ou de idade juvenil, vestidos com trajos fantásticos; lêem com voz de além-túmulo poemas, romances, contos, relatos, estudos, ensaios, esboços, panfletos, crónicas, artigos, folhetins, cenas...
O sonho prolonga-se: caminho por uma floresta centenária que cresce num pântano e vejo através das trevas e dos ramos um crocodilo que me segue abrindo e fechando os maxilares com apetite. Segue-me sem se afastar um
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centímetro e, por uma razão qualquer que desconheço, verte lágrimas. Tem uma fisionomia que me parece familiar.
Sonho também que me é dada ordem para cantar suaves cantatas, mas não tenho voz para as executar. Abro a boca e fico mudo...
Então mergulham-me uma agulha nas costas e eu produzo o som que convém à circunstância, mas amordaçam-me imediatamente, abafo e... acordo.
O meu segundo dia de chefe de redacção foi muito fértil em acontecimentos.
Para principiar agradou ao destino trazer ao meu conhecimento um literato daquela região. Era um senhor de idade indeterminada, mas duma fisionomia muito característica e fortemente atingida pelo tempo. Se eu fosse romancista diria: "os crimes e as paixões tinham-lhe marcado a carne com o selo da fatalidade", mas não o sou e por isso direi simplesmente que ele tinha um rosto ávido, lamentável e gasto; em virtude da convergência desses índices, ele não inspirava a menor confiança.
- Tenho a honra de falar ao novo chefe de redacção? perguntou, fixando-me com olhos cinzentos e inquisidores.
- Eu próprio! - suspirei.
- Apresento-me: Esopo Falange! Ex-colaborador do órgão de que o senhor é, por agora, chefe de redacção. Depois de ter abandonado o vosso quotidiano, tornei-me no correspondente de diversos jornais da capital e de importantes publicações da província. Saí daqui porque o chefe de redacção que o antecedeu era... Como poderei defini-lo com o máximo de urbanidade? Hum! Bem, digamos que nos separámos por uma questão de princípios. Sabe, ele tratava com demasiada negligência esse princípio fundamental que... No fundo, sabe, ele era tão...
- Em que lhe posso ser útil? - perguntei eu, porque não tenho grande interesse pelas biografias... é um género literário bastante aborrecido.
- Vim propor os meus serviços como colaborador. Seja em que secção for. Estou capacitado para todos os domínios. Poderíamos entender-nos, não sou muito rigorista... e gosto da paz. As minhas condições seriam... as condições vulgares.
Não era completamente exacto. Na minha opinião as condições dele estavam muito longe de serem vulgares... Por exemplo, um artigo escrito simplesmente valia dois cópeques a linha, com fogosidade três cópeques; com fogosidade e indignação três cópeques e meio e assim por aí fora até ao artigo de cinco cópeques a linha escrita com nobre furor e ao artigo inspirado por um sentido viril dos
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deveres cívicos cujo custo andava à volta de dez cópeques a linha.
Argumentei que uma tal escala de tarifas, tão variada e complexa, colocaria certamente o nosso contabilista perante enormes dificuldades.
- Isso não tem importância. Eu próprio o auxiliarei, naturalmente! - exclamou. - Quando trabalhava no "Fenol"...
- O senhor trabalhou no "Fenol"? Mas como é possível? A orientação deles é absolutamente contrária à nossa.
- Isso não tem importância! - repetiu ele. - Posso alterar os princípios orientadores, se assim o pretender... Um trabalhador intelectual tão experiente como eu não tem nisso qualquer dificuldade. Sabe o que me aconteceu há três anos?
Iniciou o relato do que ele chamava uma aventura.
Na realidade, era uma aventura diabòlicamente interessante. Tinha colaborado simultaneamente em cinco jornais de tendências opostas... À segunda-feira era radical conforme as necessidades; terça, liberal; na quarta, conservador; na quinta era apenas espírita e cristão; na sexta era-lhe necessário ser um esteta puro e um panteísta pagão... coisa que igualmente conseguia ser.
Finalmente, no sábado e no domingo embebedava-se, atitude que não se lhe pode censurar se se tem em devida conta o trabalho de galeriano a que se consagrava cinco dias por semana.
Eu estava em presença dum homem extremamente interessante... e lamentava não lhe poder propor ser seu empresário. Poderia então veiculá-lo de feira em feira e tê-lo-ia mostrado ao público como um espécime da multiplicidade de aptidões no ser humano.
Parecia-me ver-lhe no corpo "botões" - sabem o que é, desses sítios sensíveis prontos a regularizar o escoamento da palavra - ... bastaria apoiar num deles para ele se pôr a falar duma maneira, num outro para debitar um discurso diferente, num terceiro para lhe voltar a alterar o ritmo e o tom.
Não sei em que medida uma tal proeza convém a um jornal, mas, pessoalmente, uma pessoa que assimilou tão completamente a sua época não me agrada.
Na minha opinião, um indivíduo cuja substância interior se conforma de um modo tão perfeito às pressões exteriores não é apto para a literatura.
Comuniquei-lhe a minha opinião e ele espantou-se.
- Na realidade, não compreendo o que o indispõe. Uma vez que sou perfeitamente capaz de trabalhar dentro do seu espírito!
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No entanto, não conseguimos entender-nos.
Foi-se embora desiludido e - pareceu-me - furioso.
Mergulhei então numa meditação acerca da vida que, com tanta variedade, prepara o homem para a morte. Começa por lhe abafar parcialmente a alma, depois ataca-Ihe o espírito, depois disso transforma-lhe progressivamente o corpo em cinzas. Processo muito interessante...
No meio destes pensamentos, apresentou-se-me o homem de letras principalmente sob todas as formas. O primeiro atirador que vi era um velhinho decrépito. Tinha oitenta anos bem medidos e começou a metralhar-me com versos que celebravam as cabrinhas e as rosas. Romancistas, dramaturgos e poetas afluíam em filas inumeráveis.
Havia um acendedor de lampeões que tinha escrito versos a propósito de túmulos e um coveiro que tinha composto um poema sobre as estrelas. Outro trouxe-me um tratado sobre as hemorróides consideradas como a origem das teorias pessimistas. Outro pediu-me logo de entrada um adiantamento.
- O senhor já escreveu alguma coisa?
- Não... Mas possivelmente serei capaz. Que precisa mais: verso ou prosa?
A ideia de que efectivamente ele podia escrever qualquer coisa apavorou-me e dei-lhe um adiantamento que se elevava à enorme soma de quinze cópeques.
Recebeu-a como uma coisa que lhe era devida e saiu. Que nobre coração! Como pedia pouco por não ter feito nada! Assinalo a sua atitude humana como um modelo a imitar por qualquer literato principiante. Estou persuadido de que todos os chefes de redacção fazem coro comigo.
No final, esta superabundância de literatos em início de carreira precipitou-me num desencorajamento melancólico. Perguntei a mim mesmo qual a razão por que, apesar do que pretendem os amadores de harmonias que a dotam dum impulso racional para um fim misterioso, a Natureza que, sem falar de literatos principiantes, já comporta uma tão assustadora quantidade de elementos totalmente supérfluas e sem utilização, acumula ainda por cima essa impressionante colecção de escritores balbuciantes!
Surgiu um agente da polícia. Os cabelos eram ruivos como fogo e o rosto extremamente sombrio.
Era enviado por Sua Excelência o Senhor Comissário Adjunto, segundo declarou numa voz sepulcral.
- Que envia ele? - perguntei.
- Envia-me a mim. Diz que o senhor imprimiu uma falsidade acerca duma mulher... Não há na nossa região semelhantes incidentes. Somos gente pacífica. É certo que houve uma rixa, mas não suicídio. A rixa existiu, mas não foram
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mulheres que se bateram mas sim sapateiros, e um deles arrancou a orelha do outro com os dentes. Sua Excelência diz que é preciso rectificar isso. Mandou um papel, está aqui...
Pôs-me o papel debaixo do nariz. O suicídio era rapidamente desmentido. Aquilo entristeceu-me, embora eu não tivesse esquecido que aquele "caso do dia" era o resultado da livre imaginação do nosso cronista da cidade.
- Senhor jornalista! Ao mesmo tempo, não será possível rectificar também... o que imprimiu acerca da desordem?
- Mas a desordem de que demos notícia não existiu? -perguntei eu, acabrunhado.
- Não, não... Existir, existiu... Quebraram-se umas cabeças!
- Ah, está a ver?-observei eu, cheio de orgulho.
- Sim, é verdade! - suspirou ele. - Mas não se poderia rectificar também? É que... como as pessoas são minhas conhecidas...
- E então?
- São amigos meus!... Um é meu compadre, outro é meu parente, o terceiro tem o mesmo nome que eu... A notícia envergonha-os... Viviam calmamente... São todos pais de família... e ei-los no jornal!
Tinha ideias preconcebidas acerca da imprensa. Dizia "no jornal" com uma intonação de tal ordem e uma tal carantonha que me sentia humilhado.
- Soldado! - disse eu, severamente, erguendo o dedo para o céu com um gesto inspirado -, fala do jornal sem fazer caretas e num tom respeitoso. Porque, soldado, tu não podes compreender-lhe a importância... Repara, eu estou neste jornal e no entanto...
- Claro, que quer o senhor, todos nós temos as nossas misérias! - suspirou ele.-Tudo pode acontecer... se não se tem cuidado.
- De que estás a falar?
- Estou a falar de si... O senhor disse: "eu próprio estou neste jornal". Não foi isso que disse, mais ou menos?
Não me compreendia. Foi-se embora aborrecido comigo. Mas eu sentia-me feliz por ele me ter falado assim. Tinha temido que fosse severo.
O cronista entrou. Sorria. A satisfação iluminava-lhe cada pêlo dos bigodes e estes estremeciam.
- Então, já lhe fazem elogios? - perguntou ele com expressão alegre, apertando-me a mão.
- Elogios? Quem? O editor?
- O editor não. O "Fenol". Tirei-lhe o jornal das mãos e li:
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"Felicitamos sinceramente os assinantes d"A Salamandra", esse asilo para estropeados do intelecto e do sentido moral, pela aquisição que acabam de fazer na pessoa do novo inspector encarregado de vigiar os indigentes que ali colaboram. Referimo-nos ao novo chefe de redacção d"A Salamandra", do senhor que, à falta dum nome de família de reputação decente, assina as suas locubrações enevoadas com o sensaborão pseudónimo de Pascarello - que significa palhaço de pouca roupa. Esta nova aquisição d"A Salamandra" é-nos de certo modo familiar e achamos necessário comunicar ao público certos dados biográficos a seu respeito: Tendo sido coveiro, outrora, foi suspeito de roubar os cadáveres e, por esse motivo, privado dum ofício que correspondia perfeitamente às suas disposições naturais..."
Seguiam-se mais alguns factos da minha vida e informações a meu respeito. O conjunto era para mim completamente novo. O artigo terminava com uma exclamação patética:
"Eis a pessoa que dirige no momento actual a opinião pública! ó céus! Que tempos!"
Julguei ver a terra abrir-se a meus pés e formar um vulcão que me borrifava imediatamente com um jacto viscoso e uma lama fedorenta. Mas caí rapidamente em mim para ver que o géiser islandês da polémica jornalística tinha entrado em acção... nada mais.
- Então que diz?... Agrada-lhe? - perguntei eu ao folhetinista.
- É nojento, evidentemente. Mas é bom! Venenoso e vivo! Vai acusar a recepção?
- Que quer dizer com isso? - disse eu, espantado.
- Se vai responder?
- Não creio! Ainda estou... insuficientemente adaptado a semelhantes métodos... Não sou experiente em matéria de polémica.
- Deve-se apressar.
- Acha que sim?
- Evidentemente!... Senão, acabarão por o estrangular.
- É esse o costume... na imprensa?
- Nem mais nem menos! Em toda a empresa comercial a concorrência é inevitável.
- Mas, segundo me parece, a imprensa tem objectivos não inteiramente comerciais.
- Por agora, isso é do domínio do ideal... Na realidade, bastará examinar um pouco as relações que mantêm entre
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os órgãos da informação para verificar que essas relações são regidas pela concorrência: ser popular entre o público é o fim ostensivo, aumentar o número de assinantes é o fim oculto e primordial...
- Há muito tempo que trabalha neste... - Não me decidi a dar ao lugar de trabalho o nome que me apetecia dar-lhe naquele momento.
- Já me nasceram nele os dentes do siso. Compreendi o que queria dizer no seu calão. E tive pena
dele. Coitado!... Nunca se tinha revoltado contra nada, nunca tinha expresso outros sentimentos. Eu começava a perceber que processo psíquico o levara àquele estado de insensibilidade.
A seguir veio um homem que declarou querer trocar impressões comigo acerca do modo de transformar o tom do jornal. Pedi-lhe que se explicasse.
- Raciocine... As constantes denúncias que faz dos vícios das pessoas serão acaso susceptíveis de corrigir alguém? O que as pessoas precisam é de ternura, uma ternura quente e maternal. Desse ponto de vista, o seu jornal não preenche o seu papel. Para quê tratar sempre e exclusivamente temas sombrios e amargos? Há na vida coisas claras e doces...
Aquele cavalheiro tinha um queixo complicado, faces magnificamente iluminadas e reluzentes de gordura. Os rostos secos e pálidos de todos os representantes da imprensa que eu conhecia vieram-me à memória. Aquele senhor dispunha duma respeitável erudição e duma enorme reserva de factos radiosos com que a nutria. Os factos chamavam a atenção pelo seu aspecto de frescura; dir-se-ia que acabavam de se formar na sua imaginação, naquele momento. Era evidente que o posto de observação de onde aquele homem olhava a existência era notavelmente conveniente para a salvaguarda da sua alma.
Falou durante muito tempo e disse muitas coisas. A tarefa da imprensa, na opinião dele, consistia em sustentar contra ventos e marés o moral do público e a sua confiança no futuro. Daí concluía que era necessário abordar com precaução os acontecimentos tristes e não os levar frequentemente ao conhecimento dos leitores, porque isso conduz ao pessimismo. Não nos pudemos entender. Na minha opinião, a confiança que permite sonhar com o futuro impede uma inteligência exacta do presente e favorece até o indiferentismo. O senhor zangou-se e foi-se embora, anunciando que deixava de ser assinante.
Apresentou-se também um outro personagem, portador dum novo desmentido: no fogo da cólera tinha quebrado o queixo da criada, atirando-lhe à cabeça com um objecto
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contundente, utilizado para tirar as botas. O nosso jornal tinha achado indispensável, a esse propósito, observar que os tira-botas não podiam ser utilizados para inculcar a uma criada o senso da probidade. O cavalheiro não estava de acordo com semelhante asserção... e propôs-se demonstrar a falsidade da posição que assumíramos, esgrimindo com o seguinte argumento: já tinha mandado prender um chefe de redacção.
- O papel da imprensa não é o de divulgar os escândalos, mas o de pregar a cultura, a cultura, meu caro Senhor!
Ameaçou-me com uma boa tareia à paulada se voltasse a aparecer-lhe no caminho, e retirou-se furioso.
Entretanto, mantive-me no meu posto. Estava encantado por constatar que cada leitor tinha o seu ponto de vista pessoal sobre a imprensa, mas um pouco aflito por ver que não existia opinião unânime a esse respeito. Mais tarde descobri que essa variedade encobria uma opinião unânime muito solidamente concebida... e isso entristeceu-me ainda mais.
Recebi a seguir, pelo correio, uma carta remetida da cidade. Em termos claros e lacónicos, dizia o seguinte:
"M. G.
O senhor foi convidado para um piquenique pelo famoso escroque e chantagista K. U.!!! E aceitou!!! É uma canalhice! Isso demonstra que o senhor é um..."
Não repetirei aquilo que, segundo aquela carta, estava demonstrado que eu era.
Senti subitamente que todo o corpo me doía como se tivesse levado uma tareia.
Do lado de lá das janelas do meu gabinete passavam e voltavam a passar vultos sinistros. Trouxeram-me as provas do número do dia seguinte visadas pela censura. Segundo parecia, eu tinha feito uma escolha pouco segura das cartas para publicar, tinha também enviado uma crónica demasiado longa... Parecia que eu não tinha, em geral, uma noção exacta do que fosse a censura... Essa triste circunstância tinha tido o seguinte resultado: todos os artigos que para lá enviara tinham sido guilhotinados cuidadosamente.
A censura tinha-lhes cortado o início, tinha-os esquartejado, tinha procedido neles à ablação dos tendões do pensamento. Raiados de cicatrizes escarlates, as provas jaziam sob os meus olhos e pareciam ter sido chicoteadas até jorrar o sangue.
Depois de ter de alguma maneira colado de ponta a ponta aqueles restos mutilados do que tinham sido antes os meus artigos saudáveis, regressei a casa, esforçando-me por me tornar o menos notado possível dos transeuntes.
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Tendo chegado a casa sem problemas, sentei-me numa poltrona e tentei fazer o balanço daquele dia. Mas fui imediatamente assaltado por um pesadelo. Começou por me parecer que toda a espécie de seres monstruosos, em todos os cantos do aposento, me olhavam com olhos severos.
Era sumamente assustador ser objecto daquela atenção.
Depois vi-me, em sonhos, com o editor: ambos de braço dado, calmos e silenciosos, avançávamos no deserto, mergulhávamos nas suas profundidades, ali, onde havia apenas trevas e fome.
Depois um corvo pousou-me no alto da cabeça e iniciou metodicamente o trabalho de cavar um buraco no meu crânio. De vez em quando olhava-me nos olhos e eu esperava que ele mós arrancasse com aquele bico molhado no meu sangue.
A seguir, ao som duma marcha solene, fui pendurado pelos pés a uma grande árvore; as pessoas que eu tinha visto durante o dia dançavam por baixo de mim uma dança fantástica de vencedores triunfantes.
Eu pendia sem movimento, e o único desejo que me impedia de mergulhar no Nirvana era a vontade de me assoar.
Mas a posição de pendurado era tão desconfortável que mesmo isso me era proibido.
No entanto, se eu soubesse o que me esperava, se eu soubesse que eu, chefe de redacção d"A Salamandra" me ia lançar numa polémica com o "Fenol"! Se eu tivesse sabido isso, ter-me-ia suicidado mais cedo para proibir a mim próprio ter de o suportar.
Porque, apesar de tudo, foi mesmo suicidando-me com um tiro de revólver que pus ponto final a essa polémica.
Essa "polémica", eu vivi-a.
A coisa começou assim: uma manhã, ao servir-me o chá, a minha cozinheira deu-me informações.
- Veio um tipo que parecia...
- O quê?
- Um criado. Devia ser...
- Porquê?
- Não sei. Parecia. Falava para não dizer nada.
- Explica-te melhor.
- Bem, vou-lhe dizer: perguntou coisas a seu respeito... "O teu patrão bebe vodka? - Claro, disse eu.- Mujto? - às vezes muito, outras vezes menos. - E a respeito de mulheres, como é ele? - Sobre isso não sei nada
- Ele nunca te fez propostas?" - Aí encolerizei-me. - "Que estás para aí a dizer, pagão? Tens coragem?... Que diabo quer dizer isso?" Então ele pôs-se a recuar e a passar-me a mão pelo pêlo. "Vamos lá, tiazínha, não te zangues e
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conta-me tudo tim tim por tim tim. Olha, pega para ti..." e deu-me três moedas de vinte copeques. "Quanta roupa tem ele e que espécie de roupa?" Fez-me assim perguntas acerca de tudo o que se refere à sua vida de casa e eu disse-lhe: "Mas por que é que quer saber isso tudo, meu caro Senhor?" e ele respondeu-me: "Por agora é um segredo. Mas se souberes ler, saberás para que é, na terça-feira!" Não consegui perceber a razão por que disse aquilo. Foi-se embora como veio, sem dar explicações.
Fiquei a cismar. A curiosidade daquele cavalheiro era duma espécie muito estranha: creio que toda a gente estará de acordo com isso. Mas, esmagado pelo peso dos problemas inerentes ao meu cargo, esqueci rapidamente toda aquela história após um momento de meditação.
Recebi pessoas que traziam desmentidos, percorri quilos de produtos literários devidos à pena de principiantes, ouvi opiniões contraditórias que os leitores davam acerca da imprensa... Parecia-me viver num pântano estreito cuja vaza absorvente me atraía cada vez mais para as profundidades do seu fedor repugnante; abriam-se nele toda uma variedade de flores de nobres proporções cujas raízes absorviam a humidade na fundura lamacenta; vivia ali uma multidão de criaturas sem pés nem cabeça, inacreditavelmente monstruosas: eram as ideias dos leitores. O pântano albergava também uma enorme quantidade de imundícies de toda a espécie que fervilhavam e se decompunham e enchiam o ar com cheiros nauseabundos extraordinariamente fortes.
Os cabelos brancos que tinham aparecido nas minhas têmporas eram o melhor testemunho sobre a suavidade da minha existência.
Sinistras aparições perturbavam o meu sono.
Atingi desse modo a anunciada terça-feira.
Ao chegar nesse dia à minha secretária, tinha em cima dela um número do "Fenol". Estava aberto e o folhetim tinha sido cuidadosamente emoldurado com lápis vermelho. Peguei no jornal e comecei a ler. O artigo intitulava-se: "Passeio num jardim público à nobre luz da imparcialidade".
"Leitor! - proclamava ele. - Permite-me que te apresente esse formigueiro de monstros e de curiosidades que se exibe sempre num jardim público e provoca a tua estupefacção pela sua conduta desavergonhada e essa extravagância premeditada do modo de vestir que atinge sempre os seus fins, atraindo imediatamente a atenção das pessoas efectivamente bem-intencionadas e animadas dum amor incorruptível pela pátria. Decerto te interessas, desde há muito, pela intimidade dessas pessoas que, por meio de
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toda a espécie de astúcias, procuram impor-se-te e querem ser populares a qualquer preço...
Na nossa sincera vontade de te ajudar a apreciar com justiça esses senhores que pretendem ter direito ao nobre apelido de cidadãos russos, franqueámos os limites da decência, desvendámos aos teus olhos as suas almas cheias de ranço e depravadas, arrancámos-lhes das faces camaleonescas a máscara de nobreza e de originalidade... Vês esse rapagão com chapéu de bandido turco ou de vaqueiro do Far West? Tem nas mãos um pau enorme que talvez tenha ainda marcas de sangue coagulado e lança olhares turvos sobre as nobres mães de família que passeiam...
"Leitor, não o temas! Esse pobre diabo não é tão mau como o pintam. Temos acerca dele informações pormenorizadas."
Expunha-se por ali abaixo que o senhor tinha um fraco pelas mulheres, que teve sempre tendência para o adultério, que tinha batido na mulher e de tal modo que tinham acabado por ter de a meter na terra e que, de momento, ele se entregava ao pecado de adultério com a cozinheira, uma inocente rapariga de cinquenta e oito anos e sete meses; que nunca comprava lenços mas que nem por isso deixava de ter alguns na sua posse, que por três vezes durante a sua vida não tinha pago ao cocheiro que lhe tinha viaturado a incómoda carcaça..., que, por fim, o seu pessimismo depravador se tinha desenvolvido por motivo dum desarranjo estomacal crónico e que, para confirmar a veracidade deste último esclarecimento, o autor tinha em seu poder documentos formais, testemunhando a exactidão do que afirmava acerca da doença "daquele senhor."
Esta leitura encheu-me de espanto. "Meu Deus, que pessoas se encontram na terra!", pensei, entristecido. No entanto, o artigo verídico ressoava nos meus ouvidos como uma trombeta de bronze: a nobreza e a causticidade do seu tom eram surpreendentes.
"Eis o homem!" - proclamava ele.
E eu exclamei para mim mesmo:
"Eis o homem!"
Eu sentia uma avassaladora indignação contra esse homem. Um sentimento de estima em favor do autor do artigo fulminante nascia-me no peito e dilatava-o literalmente. Quis gritar: "Bravo! Bis!", mas evitei esse grito por ver que, infelizmente, ele não me poderia ouvir.
Ah, aprecio as pessoas que sabem despertar nobres sentimentos.
É-me completamente indiferente saber o que pode provocar neles a erupção duma tirada brilhante estigmatizando o vício. Eu, leitor e ouvinte, não tenho necessidade de saber
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se as palavras estão em harmonia com as acções deles. Exigir isso das pessoas é inútil, é permitir-se o luxo duma exigência exagerada. Se o verbo de fogo do advogado da virtude me penetra a alma e nela acende a fagulha da vergonha que as minhas fraquezas merecem, estimo o homem que soube utilizar uma tal linguagem. Sim, estimo-o e estou sempre pronto a tirar do meu magro salário um cópeque por linha impressa que acrescentarei aos dois cópeques entregues pelo editor para retribuir a nobreza das opiniões expostas no jornal dele.
O homem, nos momentos de ócio que as obrigações imediatas lhe concedem, ama a nobreza...
Eu estava entusiasmado por aquele excelente artigo escrito num estilo extremamente vivo, bem imaginado, objectivo, justo, claro, simples e que atingia plenamente os seus objectivos. Encontravam-se também, colhidos ao vivo, alguns traços característicos dum espécime vivo da nossa sociedade trazidos para a ribalta pela inteligência do autor, pelo seu conhecimento da alma humana; ele provava igualmente o seu desprezo total pelas convenções, tão indispensáveis às relações dos homens entre si, mas sacrificadas aqui, com um sentido viril do dever cívico, no altar da verdade e da honra pelo signatário do folhetim, um escritor que tinha realmente ganho os seus dois cópeques com o suor do seu rosto.
A pequena moeda, fonte de nobreza, aguilhão essencial das nossas actividades, alavanca fatal que nos precipita frequentemente dum solo já instável para o abismo de podridão dum culto desavergonhado, o de Mámon, no domínio da covardia onde perdemos toda a noção das verdadeiras exigências do espírito, onde abandonamos todo o cuidado de preservar a nossa vida da corrupção da alma.
O artigo daquele nobre escritor tinha despertado em mim um sem-número de pensamentos líricos.
E de súbito!... ó maldição!
E de súbito, entrou o nosso folhetinista, o meu mau génio.
Ao ver-lhe o rosto radiante, de bigodes saltitantes, concluí imediatamente que ele estava "no sétimo céu da beatitude", para utilizar uma das expressões favoritas dum dos meus amigos.
- Já leu? - perguntou ele.
Fiz um sinal afirmativo com a cabeça.
- Foi pintado de uma bela maneira! - acrescentou ele, encantado.
- Eu? Onde?
- Essa agora! Onde? No Fenol"... nesse artigo "O passeio".
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- Como? É de mim que se trata? Acha realmente possível?
- Essa é bem boa! O próprio autor do folhetim me disse que era de si que falava! - disse o meu colaborador, com seriedade.
O próprio autor do folhetim. Só me restava admitir que aquele "bandido turco" tão cruelmente descrito era realmente eu, uma vez que o próprio autor do escrito o tinha afirmado.
- Deve-se tratar dum erro! Ha? - arrisquei eu com uma réstia de esperança.
- Não compreendo como se poderia dar um erro, neste caso! - replicou ele, encolhendo os ombros. - Desde o momento que escrevo algo sobre si é porque aquilo que escrevo lhe diz respeito... Mas por que razão não acredita ser a si que ele se refere?
- Vejamos!... Parece-me que eu não sou tal como ele me...
- Ah, é isso? Examine-se então um pouco mais atentamente...
Senti que me tinham "esfolado", para empregar o vocabulário literário da última moda, ou "radiografado" como se diz no mesmo estilo; tinham-me "sacudido as penas", passado um sabonete" e a polémica tinha-me "revirado as tripas".
Fui tomado por uma vertigem e fui para casa.
Uma vez ali peguei num espelho, pousei-o à minha frente e, com um arrepio de pavor, comecei a examinar o reflexo da minha fisionomia, sinistro receptáculo dos vícios mais infames... Eu era então assim? Até àquele dia não me conhecia... Olhei-me com atenção durante muito tempo, tentando descobrir nas minhas faces os estigmas dos crimes que tinha cometido. Mas via pouca coisa.
A minha cara de aspecto lunar não reflectia nada de especial a não ser uma angústia demolidora. Despertou então em mim o desejo ardente de contemplar o rosto do autor do artigo no qual (no autor, evidentemente e não no artigo) devia irradiar a luz de uma virtude cheia de cambiantes. O que não daria eu para uma simples visão daquela honrada face? Mas, depois de ter pensado que o meu olhar envenenado poderia obscurecer o esplendor daquela carinha juvenil, exalei um pesado suspiro desencantado e mergulhei nas trevas da aflição... Recordei-me de tudo o que tinha executado...
Considerei os calos das minhas mãos e não descobri manchas criminosas na minha alma. Isso não me serviu de consolação. Eu sei que o homem é quase cego quando se
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trata de se ver a si mesmo, sei que ele não vê as sombras do seu próprio coração e que só os lugares luminosos se lhe tornam visíveis.
De repente perguntei: "Mas onde, como, pôde o autor do artigo recolher dados tão exactos acerca da minha roupa branca, da minha paixão pelas senhoras e do resto, que me censura tanto e que embaciou de tal modo a minha reputação?"
Recordei-me então do cavalheiro que se informara junto de Akulina, a minha estimável cozinheira. Admirei-me e enterneci-me: eis o drama de quem se faz o apologista da verdade. Nada o pode desviar da pesquisa do triunfo, mesmo as tarefas mais desagradáveis.
Chamei a cozinheira e disse-lhe:
- Akulina! Na próxima vez que venha cá aquele digno homem que te interrogou a meu respeito e acerca do meu modo de viver, sê bem-educada com ele! Fá-lo entrar para a cozinha e oferece-lhe o chá: ele merece-o...
- Ele já cá voltou ontem... Disse-me que era para um folhetim de domingo que queria saber coisas. Disse-lhe: "Entra, meu rapaz, tomaremos uma chávena de café", mas disse-me que ficaria para outra vez. com certeza não tinha tempo.
Dadas aquelas instruções veio-me a ideia - que os diabos me insinuaram! - de redigir uma rectificação ao artigo.
Tinha vontade de explicar que a acusação de andar atrás de mulheres não era fundamentada senão pelos meus sentimentos platónicos por uma única mulher e que, do meu ponto de vista, isso não era uma base especialmente sólida. No que dizia respeito aos lenços, para desmentido a todas as suspeitas, propunha que viessem a minha casa e que verificassem a factura que eu próprio tinha pago. Estava ali bem expresso que tinha comprado lenços e os tinha integralmente pago.
Que desgraça! Um desmentido ao meu desmentido apareceu no dia seguinte, sob o título: "A honra e a noção que dela tem o chefe de redacção d"A Salamandra".
"Esse miserável pasquim - dizia-se no artigo - entende tudo à sua maneira. Imaginem que quando se lhe fala de "honra" ele responde "factura".
Seguia-se uma dissertação pormenorizada acerca da distinção que importa fazer entre "fictício" e "factura", entre "honra" e "honorários".
Um homem probo deve ter o culto da honra; quanto aos que têm o culto dos honorários, esses não passam de assassinos e salteadores. Escrevi uma resposta clara e lacónica
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onde afirmava o meu desprezo pelos trocadilhos e quejandos truques.
Responderam-me que, por falta de argumentos, eu não podia evidentemente justificar a minha baixeza moral e a minha depravação intelectual. A esse respeito mencionava-se que a minha avó tinha pedido esmola à porta das igrejas e que o meu avô era um bêbado inveterado que enlouquecera pouco tempo antes de morrer.
Encolerizei-me um pouco e respondi que a minha avó e mesmo o meu avô não tinham tido qualquer relação com a imprensa, e que toda a vida deles se tinha escoado sem que lhe suspeitassem sequer a existência.
Foi-me então dito que um homem que confessava assim a sua ignorância do papel da imprensa e ocupava, ao mesmo tempo, o lugar de director dum dos seus órgãos, merecia ser enforcado.
Eufureci-me e respondi de uma maneira curta:
"Enforquem-se vocês!"
Aquilo foi considerado como uma ofensa. Opuseram-me um novo artigo em tom solene e pesado. Depois de enumerarem todos os méritos que o "Fenol" tinha conquistado, imprimia-se a minha biografia em pormenor. Quando a li, desenhou-se imediatamente na minha cabeça uma calvície imponente. Apertei os dentes, fi-los ranger e magoei a mão ao bater com ela na mesa. Em conclusão, o artigo dava-me a escolher entre este dilema: ou levar uma tareia à paulada, ou arrepender-me publicamente dos meus crimes passados e entregar-me voluntariamente à justiça.
Tinha a sensação de viver num fogão aquecido ao rubro e de me nutrir de carvões ardentes. Tinha consciência de não prestar para este tipo de polémica, embora na minha mocidade tivesse tido uma gloriosa reputação de audacioso e hábil "boxeur".
Por todas as razões acima expostas caí na mais desesperada das tristezas. Era um estado doloroso para o qual não vi outra saída senão o suicídio. Em momentos destes tive sempre inclinação para o suicídio: não conheço melhor remédio para o spleen. Existe o hábito de ter sobre o suicídio uma opinião errada: consideram-no frequentemente como um crime e quase sempre como uma cobardia. É uma opinião absolutamente falsa. O suicídio é uma acção generosa. Se todos aqueles que não servem para nada, mal armados para a vida, fossem um pouco reflectidos e se comportassem com ela com mais seriedade, o mundo escaparia a esses amontoados maciços de elementos absolutamente inúteis, do ponto de vista do seu rendimento. O suicídio é a mais
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eficiente das válvulas de segurança; expulsa do universo o excedente de vapores nocivos. E mais nada.
Eis o motivo por que resolvi pôr fim aos meus dias. Costumo levar um certo tempo a decidir, mas não tenho o hábito de tergiversar uma vez a decisão tomada.
Fui, pois, buscar o meu revólver, carreguei-o com minúcia, apalpei o coração, e já estava pronto a interromper-lhe as pulsações, quando me veio ao espírito que o "Fenol" poderia publicar mais depressa que o nosso jornal a notícia do meu fim trágico.
Então, movido pelo sentimento de afecto pelo meu jornal, pousei o revólver, peguei na pena e resolvi escrever sobre mim mesmo algumas linhas calorosas. Porque, em boa consciência, além de mim não conheço outro homem que tenha tantos direitos a uma dúzia de linhas calorosas. Não há dúvida: no decurso da minha vida prestei a mim mesmo um grande número de serviços totalmente desinteressados e posso dizer a mim próprio com total sinceridade: "Obrigado, irmão! Podias-te portar muito pior para comigo e não o fizeste; obrigado!..."
Instalei-me na secretária e redigi uma crónica:
"Morte trágica de M. G. Pascarello.
Ontem, às onze horas e cinquenta e cinco minutos, um homem de letras actualmente pouco conhecido, o nosso estimado colaborador acima referido, aniquilou o seu futuro com um tiro de revólver no lado esquerdo. A bala, depois de ter quebrado uma costela, penetrou no coração; este órgão era meigo e encerrava muitas recordações penosas, pelo que, desejoso de não aumentar com a sua massa o peso total dos fardos no coração do defunto, a bala, depois de o ter atravessado, foi-se instalar no espaldar duma poltrona.
O defunto era de grande estatura e usava roupas amplas, o que o expôs a venenosas acusações na imprensa.
Esperamos, no entanto, que agora, dada a sua morte, não será censurado pela sua tendência para uma certa excentricidade de vestuário; é preciso não esquecer que, qualquer que seja a nossa maneira de vestir, está-nos reservado um único fato igual para todos: a mortalha. Não falaremos dos serviços que o defunto prestou à sociedade, passaremos em silêncio as suas qualidades pessoais. No entanto, o simples facto de ele ter decidido morrer numa idade tão jovem testemunha claramente a luta incansável que travou, até ao seu último sopro, contra tudo o que é inútil neste mundo, luta que, logicamente, o levou a destruir-se. Esse facto põe em evidência a rara distinção do espírito do defunto. Que mais se pode dizer dele?
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Diremos o essencial: morreu. Todos morreremos; o tempo nos ajudará a isso sem apelo. Todos os homens, os que têm uma alma em repouso e os que a não têm, gozarão um dia o descanso absoluto, porque todos, mais tarde ou mais cedo, teremos de nos deitar no túmulo. Tendo em conta essa circunstância e dada a total ignorância em que nos encontramos acerca do que nos espera além-túmulo, aconselhamos ao público, quer aos nossos leitores quer aos nossos colegas - tanto quanto isso lhes seja possível serem mais honestos.
É tudo o que temos a dizer a respeito do nosso colaborador. Paz à sua alma!"
Terminado o artigo, desabotoei a camisa e disparei um tiro no peito.
Tudo aconteceu tal como o descrevi: a bala atravessou-me de lado a lado, e, atrás dela, a alma escapou-se-me.
Em consequência desse facto, morri.
Publicado em 1895, nos números 116, 117, 122 e 129 da Samarskaia G-azeta. Por razões de censura o texto foi assinado por "Pascarello", com a menção de ter sido "traduzido do americano".
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UM PROBLEMA DE FECHOS
...Éramos três amigos: Simão Corvaque, eu e o Miguel, um colosso barbudo de olhos grandes que sorriam a tudo com um sorriso eternamente dócil e eternamente embriagado. Morávamos no meio dos campos, no arrabalde, num edifício meio arruinado que se chamava - vá lá saber-se porquê - a "fábrica de vidro", talvez porque nas janelas não havia um único inteiro. Aceitávamos toda a espécie de obras: limpeza de pátios, abertura de canais, de caves, de fossas sépticas, reconstrução de velhos edifícios e tapumes, chegando uma vez a tentar a construção de um galinheiro. Mas foi um insucesso. Simão, que afectava sempre sentimentos duma honestidade melindrosa a respeito das responsabilidades que assumia, pôs em dúvida os nossos conhecimentos arquitectónicos em matéria de galinheiros, e um dia, pelo meio-dia, enquanto repousávamos, pegou nas suas coisas e levou para a taberna os pregos que nos tinham sido fornecidos, duas pranchas novas e o machado do patrão. Em consequência disso fomos expulsos: mas como nada tínhamos para dar em pagamento não nos aborreceram muito. Estávamos frequentemente no regime de desemprego e sentíamos então um descontentamento da nossa sorte, perfeitamente natural e legítimo em semelhante situação.
Esse nosso estado tomava por vezes uma forma aguda, provocava em nós um sentimento de hostilidade em relação a tudo o que nos cercava, e isso levava-nos a proezas bastante escandalosas e previstas no Código Penal, incluídas no capítulo dos pequenos delitos. No entanto, o nosso estado mais habitual era uma indiferença melancólica, dominada pela preocupação de arranjar um ganha-pão, e não
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reagíamos senão com extrema debilidade a todas as impressões de que não podíamos tirar o que quer que fosse que nos ajudasse a vegetar.
Tínhamo-nos encontrado, os três, num albergue nocturno, cerca de quinze dias antes de se ter produzido o incidente que, considerando-o digno de interesse, acabo de relatar.
Ao fim de dois ou três dias já éramos amigos, íamos para toda a parte juntos, fazíamos confidências mútuas dos nossos projectos e dos nossos desejos, partilhávamos igualmente tudo o que caía no bolso de qualquer um dos três e, para dizer tudo, tínhamos concluído tacitamente um pacto de aliança defensiva e ofensiva contra a vida que se mostrava, em relação a nós, demasiado hostil.
Durante o dia procurávamos zelosamente qualquer ocasião de arrumar, serrar, cavar, transportar e, se uma tal ocasião surgia, lançávamo-nos imediatamente ao trabalho com bastante ardor.
Mas como, certamente, cada um de nós se considerava, em consciência, predestinado a preencher funções mais elevadas do que, por exemplo, a abertura de fossas sépticas ou a sua limpeza (o que é ainda pior, digo-o de passagem para informação dos profanos), ao fim de uma ou duas horas aquela tarefa cessava de nos agradar. A seguir Simão começava a duvidar da sua utilidade.
- Cava-se uma fossa... Para quê? Para os detritos. Então, não se poderiam deitar fora? Dizem que é impossível, que as coisas começavam a cheirar mal. Ora, ora! Os detritos cheirarem mal! Dizem isso para terem de que falar. Se se deita fora, por exemplo, um pepino salgado, pequeno como é, pode lá cheirar mal! Fica ali um dia e desaparece, apodrece num instante. Claro, se for um homem morto o que se deite fora, ao sol, então sim, começará a cheirar de tal modo que ninguém poderá parar, porque é um alimento muito grande.
Semelhantes sentenças arrefeciam consideràvelmente o nosso ardor laborioso... o que era bastante vantajoso para nós quando éramos contratados ao dia. Mas quando estávamos apalavrados à tarefa as coisas passavam-se sempre assim: o salário era recebido e comido antes de o trabalho ter sido terminado. Então íamos pedir ao patrão "um suplemento"; na maior parte dos casos ele recusava e ameaçava-nos com a polícia para nos obrigar a terminar o trabalho já pago. Replicávamos que nos era impossível trabalhar com fome e insistíamos com mais ou menos veemência na necessidade do suplemento, que, na maior parte dos casos, acabávamos por obter.
Evidentemente, era desonesto, mas devo confessar que era vantajoso, e nós não tínhamos culpa de que o mundo
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esteja tão mal organizado, de mods que a honestidade está sempre do lado contrário da vantagem.
Era sempre Simão quem se encarregava da discussão com os empregadores, e manda a justiça dizer que ele a conduzia com mão de mestre, defendendo os seus direitos no tom dum homem fatigado pelo trabalho, esgotado sob o seu fardo.
Miguel calava-se, olhava e batia as pálpebras, sorrindo permanentemente com um bom sorriso conciliador: tinha o ar de querer dizer qualquer coisa mas não encontrar em si a força para se decidir. Em geral falava muito pouco e só no estado de embriaguez era às vezes capaz de pronunciar qualquer coisa no género dum discurso.
- Amigos! - exclamava então, sorrindo; os lábios estremeciam com aquelas palavras de um modo estranho; tinha um gato na garganta e, pouco depois daquele exórdio, tossia e comprimia a garganta com a mão.
- E então? - estimulava-o Simão, impaciente.
- Amigos! Vivemos como cães... E até pior... E porquê? Não sabemos. Mas é de supor que seja da vontade de Deus. Tudo se faz pela vontade dele... então, amigos! Bem... é porque merecemos uma vida de cão, porque somos homens maus. Somos maus, ha? Bem... O que vos digo agora é isto: temos o que merecemos, nós, por sermos cães. Digo a verdade? Por consequência é bem feito para nós. Portanto, devemos suportar a nossa sorte, ha? É verdade?
- Palerma! - respondia Simão, sem se perturbar, às perguntas inquietantes e prementes do camarada.
Então o outro encolhia-se com ar culpado, sorria timidamente e calava-se, com as pálpebras a oscilarem sob o efeito da embriaguez.
Um dia tivemos sorte.
Esperando que alguém nos requeresse o trabalho, passeávamos pela praça do mercado e encontrámos uma velha, pequena, seca, de rosto severo e cheio de rugas. Estremecia violentamente e os grandes óculos com aros de prata saltitavam-lhe no nariz de coruja; estava constantemente a pô-los no lugar enquanto os pequenos olhos cintilavam com um brilho seco.
- Vocês estão livres? Procuram trabalho? - perguntou-nos, enquanto a olhávamos com olhares de sofreguidão.
- bom! - disse ela, depois de ter recebido de Simão uma resposta respeitosa e afirmativa. - Tenho uma velha barraca de banhos para demolir e um poço para linpar... Quanto querem para fazer esse trabalho?
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- Minha Senhora, temos necessidade de ver as dimensões da barraca que indica! - respondeu Simão, polido e sentencioso. - E a mesma coisa quanto ao poço. Poços há-os de todos os géneros. E por vezes são muito fundos.
Fomos convidados a ir verificar e, daí a uma hora, armados de alavancas e alviões, rebentávamos a barraca de banho com ardor, porque tínhamos iniciado a demolição, bem como a limpeza do poço, mediante um contrato de cinco rublos. A barraca ficava num canto dum velho jardim invadido pelas silvas. Perto dali, num cerejal, erguia-se um caramanchão, e, do alto da barraca, víamos a velha sentada num banco, debaixo do caramanchão, lendo atentamente um grosso livro que tinha pousado nos joelhos. De vez em quando olhava-nos com um olhar vigilante e agudo, o livro estremecia-lhe nos joelhos e viam-se-lhe luzir ao sol os fechos maciços que, manifestamente, eram em prata.
Não há trabalho mais proveitoso que o trabalho de demolição.
Trabalhávamos ardorosamente no meio das nuvens de poeira seca e picante, tossindo, cuspindo, assoando-nos e esfregando os olhos a cada momento; a barraca estalava e caía em pedaços, tão velha como a proprietária.
- Vamos lá, rapazes, todos juntos... força! - comandava Simão, e as vigas caíam a terra, gemendo, uma atrás das outras.
- Que diabo de livro pode ser aquele? Deve ser bastante pesado! - perguntou Miguel, pensativo, apoiado a uma estaca e limpando o suor com a palma da mão. Subitamente, negro de poeira, cuspiu nas mãos, brandiu a estaca tentando introduzi-la entre as vigas, conseguiu-o e acrescentou, sempre pensativo: - Se aquilo é o Evangelho é grosso que eu sei lá!
- Em que é que isso te interessa? - inquiriu Simão, com curiosidade.
- A mim? Nada... Gosto de ouvir ler... quando é um livro santo... Na nossa aldeia havia um soldado, o Africano... quando ele começava a ler o Saltério... era como se tocasse tambor... Lia bem!
- E que tem isso? - perguntou novamente Simão, enrolando um cigarro.
- Nada! Era bonito... Apesar de não se compreender coisa nenhuma... Mas uma maneira assim de falar não é na rua que se ouve... Não se compreende mas sente-se bem que é um falar que vai direito ao coração.
- Não se compreende nada... mas percebe-se que é mais estúpido que os teus pés! - macaqueou-o Simão.
- Evidentemente... estás sempre a dizer palavrões! suspirou o outro.
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- Como queres tu que se fale com os idiotas? Achas que eles podem perceber seja o que for? Entretanto, ataca mas é essa velha porcaria de viga... Oh! Oh!
A barraca esmigalhava-se, cercada de destroços e envolta em poeiras que já tinham acinzentado as folhas das árvores mais próximas. O sol de Junho assava-nos sem descanso os ombros e as costas suadas e fumegantes.
- Além disso, é em prata... o livro! - recomeçou Miguel. Simão levantou a cabeça e olhou o interlocutor com um
olhar de esguelha.
- Parece! - disse ele, lacònicamente.
- Portanto... é o Evangelho!
- E mesmo que seja o Evangelho... que tem isso?
- Nada!
- Eu cá estou farto dessas parvoíces. Mas se gostas do Evangelho, o que tens a fazer é ir ter com a velha e dizer-lhe: "Lê-me umas páginas, tiazinha". Nós não fomos feitos para isso. Não vamos à igreja porque não temos roupa decente... não somos apresentáveis... mas apesar de tudo também temos uma alma... tal como os outros e bem colocada no seu lugar... Portanto... vai lá ver!
- Olha que vou!
- Vai.
- Miguel atirou com a alavanca, arranjou a desordem da blusa, limpou a cara com as mangas e saltou abaixo da barraca.
- Ela vai-te mandar à fava, pateta! - resmungou Simão com um sorriso céptico. Mas acompanhou com um olhar cheio de viva curiosidade o vulto do camarada que abria caminho entre o matagal e se dirigia para o caramanchão. Alto, curvado, com os braços nus e sujos, com um andar patudo e oscilante, agarrando-se aos arbustos, avançava pesadamente e sorria com aspecto perturbado e tímido. A velha senhora levantou a cabeça quando ele se aproximou e encarou-o afàvelmente.
Raios de sol brincavam nos vidros dos óculos e nos aros de prata.
Não o mandou à fava, apesar da previsão de Simão. O rumorejar das folhas impedia-nos de ouvir o que Miguel dizia a patroa, mas eis o que vimos: tinha-se deixado cair aos pés da velha, tão perto dela que o nariz quase tocava no livro aberto. O rosto era grave e calmo; vimo-lo soprar na barba, esforçando-se por expulsar a poeira, estremecer e, finalmente, instalar-se numa posição incómoda, com o pescoço estendido para a frente, examinando, como que para passar o tempo, as mãos secas da velha que voltavam as páginas metodicamente.
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- Ora repara-me naquilo... naquele urso mal lavado!... Achou maneira de descansar... Vamos lá também? Vai ficar ali a tomar o fresco e nós que nos arranjemos a suar no lugar dele? Vamos?
Três minutos mais tarde, Simão e eu estávamos sentados no chão, igualmente, ao lado do camarada. A velha senhora não teve uma palavra para nos acolher, contentou-se em nos olhar fixamente e recomeçou a folhear o livro onde procurava qualquer coisa... Estávamos no centro dum anel de luxuriante verdura que exalava um perfume fresco, e por cima das nossas cabeças havia um céu amável e macio, sem nuvens. De vez em quando passava uma leve brisa, as folhas punham-se a produzir aquele rumor misterioso que comunica tanta doçura à alma, faz nascer nela um enternecimento agradável e força a sonhar algo confuso mas que está próximo do homem, o purifica da sua lama interna ou pelo menos o leva a esquecer e a respirar com um sopro mais livre e renovador...
- Paulo, servidor de Jesus Cristo... - pronunciou a voz da velha. A idade tinha tornado aquela voz aguda e entrecortada, mas estava cheia de compaixão e duma austera gravidade. Ao ouvir as primeiras palavras Miguel benzeu-se com fervor, Simão agitou-se procurando uma posição mais confortável. A velha senhora envolveu-o num olhar sem interromper a leitura.
- "Tenho um vivo desejo de vos ver para vos oferecer algum dom do espírito, a fim de que ganheis firmeza, quer dizer, a fim de que nos possamos consolar juntos por meio duma fé comum a ambos."
Simão, como um verdadeiro pagão, bocejou ruidosamente; o camarada olhou-o com olhos azuis cheios de censura, depois inclinou muito muito baixo a cabeça desgrenhada e cheia de poeira.
A velha senhora, sem parar de ler, lançou também a Simão um olhar severo, e este sentiu-se intimidado; mexeu o nariz, fungou e, certamente desejoso de apagar a impressão causada pelo bocejo, suspirou profunda e devotamente.
Decorreram alguns instantes em serenidade. A leitura, feita com voz clara e monótona, tinha um efeito pacificador.
"Porque a cólera de Deus se manifesta do Céu contra toda a impiedade e..."
- Que queres? - gritou subitamente a velha a Simão.
- Eu?... Nada!... Continue a ler, por favor... Estou a ouvir! - respondeu o outro calmamente.
- Tens alguma coisa que mexer no fecho com as patas sujas? - disse a mulher, com cólera.
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- Mexi-lhe por curiosidade... Porque é um trabalho muito fino. Aprecio-o: conheço o trabalho de cinzelador. Por isso lhe mexi.
- Ouve! - ordenou secamente a velha senhora. - Conta-me o que li.
- Quer que... Compreendo muito bem...
- Então, fala!
- É um sermão... Por consequência, uma lição a propósito da fé e também da impiedade... é muito simples e... completamente justo! É uma coisa que aquece o coração!
A velha sacudiu tristemente a cabeça e olhou-nos a todos, à roda, com uma expressão de censura.
- Homens perdidos!... Vocês são como pedras! Vão trabalhar.
- É caso para pensar que ela se zangou... é caso para pensar... - proferiu Miguel com um sorriso culpado.
Simão, no entanto, coçou a cabeça, bocejou e, seguindo com os olhos a patroa que se afastava por um estreito atalho, declarou pensativo:
- Os fechos do livro são de prata...
E a carantonha abriu-se num sorriso em que havia uma espécie de antecipação de qualquer coisa.
Depois de uma noite passada no jardim, perto das ruínas da barraca já completamente abatida por nós durante o dia, no dia seguinte, ao meio-dia, o poço tinha sido limpo e nós estávamos molhados até aos ossos, sujos de lama; esperando que nos pagassem, estávamos no pátio perto do alpendre, conversando e imaginando o almoço abundante e o jantar que nos esperavam num futuro próximo; nenhum de nós tinha vontade de olhar para mais longe.
- Então, essa velha feiticeira do diabo, ainda não vem?
- resmungava Simão, impacientemente, mas em voz baixa. - Ela rebentou ou quê?
- Aí começa ele a praguejar! - observou Miguel com um aceno de cabeça reprovador. - E é grosseiro porquê, não me queres dizer? A velha é uma verdadeira senhora temente a Deus! E ele insulta-a! Há pessoas que têm um raio de um feitio...
- E tu tens cada raciocínio de crédulo!... És um verdadeiro espantalho... de milheiral...
A amável conversa dos dois amigos foi interrompida pela aparição da patroa. Avançou para nós estendendo a mão que tinha o dinheiro e dizendo desdenhosamente:
- Tomem lá... e desapareçam. Eu queria mandar serrar a madeira da barraca para o fogão, mas vocês não são dignos.
Julgados indignos de serrar a madeira da barraca, trabalho de que, de resto, não tínhamos necessidade de
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momento, pegámos no dinheiro sem dizer nada e fomo-nos embora.
- Que vá para o Diabo aquela feiticeira! - começou Simão logo que atravessámos a porta. - Ouve-se cada uma! Não somos dignos! Sapo rebentado! Também agora hás-de ir ver o livro...
Mergulhou a mão no bolso, tirou dois pedaços de metal que nos mostrou triunfalmente.
Miguel parou, estendeu e levantou o pescoço para a frente em direcção à mão erguida de Simão.
- Arrancaste os fechos? - perguntou ele, estupefacto.
- Precisamente! Os fechos! E são de prata!... Quem os quiser terá de dar um rublo.
- Tu és levado... Quando fizeste isso? Esconde-os, é um pecado!
- vou escondê-los, está descansado. Continuámos a caminhar em silêncio, pelas ruas.
- Bem jogado! - disse Miguel, pensativo. - Arranca-os sem perder tempo... E aí está... Era um bonito livro.... A velha vai-nos ficar a querer mal, com certeza.
- Isso é o que tu pensas. Ela vai-nos chamar e dar-nos uma gratificação! - zombou Simão.
- E quanto queres por isso?
- Noventa cópeques, último preço! Nem um soldo a menos... Custaram-me mais do que isso!... Estás a ver, quebrei uma unha!
- Vende-mos - pediu timidamente Miguel.
- A ti? Queres usá-los como colchetes? Compra-os, devem ficar-te bem, dizem com o teu focinho.
- Estou a falar sério... Vende-mos!
A voz de Miguel tornava-se mais suave, tomava a inflexão da prece.
- Compra-os! Já te disse que sim... Quanto dás?
- Quanto me toca da minha parte do dinheiro?
- Um rublo e vinte.
- E quanto queres?
- Um rublo.
- Faz um desconto... para um amigo.
- Que raio de maluco! Para que te pode servir isto, cretino?
- Uma vez que de todas as maneiras os vais vender! Finalmente concluíram o negócio, e os fechos mudaram
de mão mediante noventa cópeques, ficando na posse de Miguel.
Ele parou e pôs-se a voltá-los nas mãos, inclinando a cabeça desgrenhada, franzindo as sobrancelhas, e examinando com atenção os dois pedaços de prata.
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- Basta-te pendurá-los na ponta do nariz! - aconselhou-o Simão.
- Para quê? - replicou Miguel com gravidade. - Não. vou levá-los à velha. Basta dizer-lhe que se lhe tiraram por engano, e depois tu... tu os porás no lugar... no mesmo livro... Simplesmente, arrancaste-los com parte do couro... como vai ser possível agora?
- Diz-me cá, estás a falar sério? Vais levá-los? - perguntou Simão de boca aberta.
- Claro... Olha, tu vês, um livro como aquele... deve-se manter em bom estado... Arrancar-lhe os fechos não serve para nada... Além disso, a velha vai ficar zangada... Até pode morrer... Esperem-me aqui dois minutos, rapazes, eu volto já.
Antes que tivéssemos podido agarrá-lo, já se tinha lançado em passo de corrida e desaparecido numa esquina.
- Isto é que é um estúpido! Que palermice! - revoltou-se Simão, compreendendo o que se acabava de passar e as consequências que dali poderiam resultar.
Tentou convencer-me, praguejando como um danado, metendo um insulto em cada três palavras.
- Vamos desaparecer daqui a toda a velocidade. Ele vai-nos denunciar. A esta hora já está lá com as mãos amarradas... E a velha gralha mandou buscar a polícia! É o que dá andar com semelhante estúpido. Vai-se parar à cadeia por uma ridicularia! Que canalhice! Que bandido, proceder assim com um camarada! Ah, meu Deus! Como são as pessoas! Gaitas, que tens tu para estar aí parado? Estás à espera de quê? À espera que o Diabo vos leve a todos, idiotas? Então, parasita, não vens? Bem, então...
Depois de me ter prometido algo de inacreditavelmente horrível, Simão deu-me com raiva um soco nas costas e afastou-se.
Eu tinha vontade de saber o que fazia Miguel com a velha senhora, e dirigi-me devagar para casa dela. Não me veio ao espírito que me expunha a qualquer coisa de desagradável ou perigoso.
E não me enganava.
Ao chegar perto da casa, apliquei um olho às fendas do tapume e vi e ouvi apenas isto: a velha senhora estava sentada nos degraus da escada, tinha nas mãos os fechos "arrancados com o couro" e olhava por cima dos óculos, com expressão interrogativa, para Miguel que me voltava as costas.
Apesar do brilho severo e seco dos olhos, uma suave ruga da pele desenhava-se nos cantos da boca; evidentemente, a velha queria esconder um bom sorriso, um sorriso de perdão.
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Atrás da velha apareciam três caras: duas de mulheres, uma ruiva com o cabelo preso num travessão colorido, a outra de cabelos soltos com uma pala no olho esquerdo; a terceira, atrás desta, mostrava umas fuças masculinas com a barba em bico, de suíças brancas, e piscava constantemente os olhos como que para dizer a Miguel:
- Desaparece, meu rapaz... e a trote! Miguel, gaguejando, tentava explicar-se:
- Um livro tão raro. Um livro que diz que somos todos animais, cães... E eu penso: Meu Deus, é verdade! Se queremos ser justos, é isso que devemos dizer... Canalhas, inúteis, patifes! E então pensei: a senhora é velha, talvez a sua única alegria seja aquele livro, justamente... E os fechos... darão alguma coisa que valha a pena? Mas se estiverem com o livro, ah, então... isso sim. Pus-me a pensar e pus-me a caminho. vou dar uma alegria à velha senhora, pensei eu, vou-lhe entregar esta coisa... Apesar de tudo ganhámos alguma coisa para comer, graças a Deus. Agora vou-me embora. Adeus.
- Espera aí! - pediu a velha. - Compreendeste o que eu li ontem?
- Eu? Como é que poderia compreender? Eu ouço, e mais nada... e nem se pode dizer que ouça bem. Acha que os nossos ouvidos são feitos para a palavra de Deus? Nós não a podemos compreender. Adeus.
- Ah-ah! - fez a velha. - Espera.
Miguel soltou um suspiro de angústia que ecoou por todo o quintal, e pôs-se a oscilar no lugar como um urso. Manifestamente, aquela explicação já o tinha esgotado.
- Queres que te leia um pouco mais?
- Hum... Os meus camaradas estão à espera.
- Não te preocupes com eles. Tu és bom rapaz... Abandona-os.
- Bem! - concordou suavemente Miguel.
- Vais abandoná-los? Está certo?
- Está...
- Bem... Então tu és uma pessoa razoável!... Uma verdadeira criança!... E olha-me para essa barba... chega-te quase à cintura... És casado?
- Viúvo... Minha mulher morreu.
- Porque bebes?... Tu deves ser um bêbado.
- Sim, é verdade... Sou um bêbado.
- Porquê?
- Porque bebo? Por estupidez. Sou estúpido e por isso bebo. Evidentemente, se eu tivesse inteligência, iria fazer mal a mim próprio? - disse Miguel, abatido.
- bom raciocínio... Portanto, como vês, deves fazer provisão de inteligência, acumulá-la e corrigir-te... Vai à
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igreja... ouve a palavra de Deus... Toda a inteligência reside nela.
- Sim... Naturalmente... Claro... - disse Miguel, quase a gemer.
- Vou-te ler um pouco mais... queres?
- Se fizer o favor!
A velha senhora tirou não se sabe de onde uma bíblia, folheou-a e o ar encheu-se com os sons da sua voz estridente:
- "Homem, qualquer que sejas, tu que julgas o teu próximo, és pois indesculpável, porque, a partir do momento em que julgas o teu próximo condenas-te a ti próprio, dado que, ao julgar o teu próximo, fazes as mesmas coisas."
Miguel sacudiu a cabeça e coçou o ombro esquerdo. "...Pensarás, homem, que podes escapar ao julgamento divino?"
- Minha Senhora! - choramingou Miguel - deixe-me ir embora, por amor de Deus... Voltarei outro dia para a ouvir... Agora estou cheio de fome. Tenho o estômago com dores... Desde ontem que não comemos nada...
A velha fechou o livro com violência.
- Vai-te embora! Vai!
O grito, numa voz cortante e estrangulada, espalhou-se na atmosfera.
- Agradeço-lhe humildemente.
Saiu num passo que se retinha de correr.
- Almas impenitentes... Corações de feras! - sibilava aquela voz, perseguindo-o.
Meia hora mais tarde encontrávamo-nos todos na estalagem e tomávamos chá e comíamos pãezinhos.
- Era como se ela me mergulhasse uma verruma no corpo - disse Miguel, sorrindo-me suavemente com os seus olhos bons. - Eu estava ali e pensava: - Oh, meu Deus... Por que vim eu aqui? Para meu suplício! Que lhe custava a ela pegar nos fechos e mandar-me embora? Mas nem pensar! Meteu-se-lhe na cabeça meter conversa. Que pessoas tão complicadas! A gente quer-se portar com elas duma maneira natural, segundo a nossa consciência e elas põem-se a fazer discursos cheios de coisas difíceis... Eu, porque tenho um coração bondoso, disse-lhe: "Pronto, minha Senhora, aqui tem os seus fechos, não quero que fique zangada comigo..." e ela respondeu: "Não, espera aí, conta-me por que motivo os devolveste." E aí vai ela lançada! A mim, aquela conversa pôs-me a suar... Assim mesmo como te digo, caramba!
Continuava a sorrir com o seu interminável e simpático sorriso.
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Simão, aborrecido, amuado, rabujento, disse-lhe gravemente:
- Morre duma vez, velha carcaça! É o melhor que tens a fazer, senão amanhã as moscas e as baratas comem-te viva, a ti e aos teus malditos fechos.
- bom! Já disseste o que querias! Agora vamos beber um copo para encerrar o assunto.
Esvaziámos cada um seu copo para terminar realmente aquele curioso caso.
Publicado em 1895, nos números 139 e 143 da Samarskcúa Gazeta. Revisto mais tarde para as edições Kniga.
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PEQUENININHA
"- E ela era tão pequenininha, meu rapaz!"
Cada vez que esta frase me vem à memória, sorriem-me do fundo do passado dois pares de olhos quase cegos, olhos de velhos que me olham com um sorriso calmo, terno, um sorriso de amor, de piedade, e ouço vibrar nos meus ouvidos duas vozes rachadas que sublinham com uma inflexão idêntica o facto de que "ela" era muito "peque-nininha".
Essa recordação faz-me bem, provoca-me uma sensação de alívio; é a melhor das que colhi ao longo dos dez meses que durou a minha vagabundagem a pé, pelos caminhos tortuosos da nossa pátria, tão grande e tão triste.
Na estrada que conduz de Zadonsk a Voronej, apanhei dois peregrinos: um velho e uma velha. Os dois deviam ter pelo menos cento e cinquenta anos; avançavam com um passo lento e pouco seguro, deslocando pesadamente os pés na poeira ardente do caminho; ambos tinham no seu modo de andar e de vestir um não sei quê quase imperceptível; esse "não sei quê" fazia notar à primeira vista que aqueles velhos vinham de longe.
- Vimos do sector de Tobolsk... com a ajuda de Deus
- disse o velho, como que a confirmar as minhas suposições.
A velha envolveu-me num olhar amável, com os seus olhos bons, outrora azuis, e acrescentou num tom bondoso:
- Da fábrica de N... Somos da aldeia de Lyssa, o pai e eu.
- Devem estar muito cansados, certamente?
- Não! Não estamos cansados! Continuamos a avançar... Lá vamos indo, graças a Deus.
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- Deve ser para cumprir uma promessa... ou então, porque vos apetece, um desejo dos vossos velhos dias?
- É uma promessa, meu rapaz... Uma promessa que fizemos aos santos de Kiev e de Solovietsk... É verdade! confirmou desta vez o velho. - Mãe! Vamo-nos sentar um bocadinho para descansar? - disse depois à companheira.
- Porque não? - concordou ela.
Sentámo-nos à sombra dum velho salgueiro que ficava na berma da estrada. O dia estava quente, o céu sem nuvens, diante e atrás de nós a estrada seguia e desaparecia nos longes tensos duma bruma tórrida. Em redor, o deserto e o silêncio. A cada lado do caminho centeios raquíticos mantinham-se imóveis.
- Chuparam tudo o que havia nesta terra! - disse-me o velho, arrancando algumas espigas.
Pusemo-nos a falar da terra e da sorte dos camponeses que dependem dela tão cruelmente. A velha ouvia-nos e suspirava; intervinha de tempos a tempos com uma palavra avisada e conhecedora.
- Se ela fosse viva, como o coração lhe teria sofrido num sítio como este! - disse ela, subitamente, lançando os olhos para as espigas do campo de centeio, queimado e pelado em certos sítios.
- Sim... Não há dúvida que teria sofrido - disse o velho, abanando a cabeça.
Ambos se calaram bruscamente.
- De quem estão a falar? - perguntei. O velho teve um sorriso bondoso.
- Bem... estávamos a recordar-nos duma...
- Era a nossa inquilina... uma menina - suspirou a velha.
E de repente, olhando-me, como se tivessem ambos passado palavra um ao outro, lentamente, com voz arrastada e melancólica, disseram ao mesmo tempo:
- Ela era tão peque-nininha!
Era estranho e fez-me sobressaltar de uma maneira dolorosa. Algo que parecia um "fíequ/escat" vibrava nas velhas vozes... Subitamente, com precipitação, interrompendo-se um ao outro, começaram um relato tão rápido que não me restava outra solução, colocado como estava entre os dois, senão voltar constantemente a cabeça para um e outro lado.
- Foi um polícia que no-la levou e que no-la entregou, ou, antes, entregou-a ao Administrador que lhe disse: Arranja-lhe um alojamento.
- Que ela fosse para casa de alguém, quer dizer...- explicou a velha.
- E puseram-na na nossa casa...
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- Olhámos para ela: estava tão vermelha... Tremia de frio...
- E tão peque-nininha!
- Era de nos pormos a chorar...
- Meu Deus, pensávamos nós, porquê exilá-la para tão longe?
- Por que motivo? Para a castigar de quê?
- E ela, imagine que ela vinha lá de baixo...
- Da Rússia, quer dizer...
- Em primeiro lugar pusemo-la junto do fogão...
- O nosso fogão é muito grande... muito quente...- suspirou a velha com ar aflito.
- A seguir, claro... era preciso dar-lhe de comer!
- Ela ria!
- Olhinhos muito negros... como um ratinho...
- Tinha todo o aspecto dum ratinho... lisa e redonda...
- Depois de ter descansado, começou a chorar... Dizia: Obrigado, meus amigos!
- E começou a dar-nos preocupações!
- Já tinha começado! - exclamou o velho, encantado, rindo com os olhos cheios de rugas.
- Rolava pela casa como uma bola, e mexia-se, nunca parava quieta!... E mais isto e mais aquilo... Isto que ela punha ali, aquilo que ela punha acolá. Dizia: "É preciso pôr lá fora a gamela da lavagem para os porcos." Agarrava-se à gamela com as mãozinhas e escorregava, nas águas com os restos, as gorduras, mergulhava lá os braços até ao pescoço! Ah, ah!
Puseram-se ambos a rir, sufocando e tossindo até às lágrimas.
- E então os porquinhos...
- Beijava-os no focinho...
- "Não podem estar aqui, o lugar dos leitões é lá fora."
- Só te digo que nos dava que fazer toda a semana, desde o princípio ao fim.
- Às vezes suávamos, com ela...
- Ria-se, gritava, batia com os pés...
- E depois, de repente, entristeceu, ficou tímida...
- Como se estivesse a desvanecer-se...
- E chorava!... Chorava, chorava, como se estivesse sufocada. Andávamos à volta dela, a cuidá-la, já não sabíamos onde tínhamos a cabeça. Que tinha ela? Não conseguíamos compreender... Só podíamos chorar com ela... Às vezes chorava-se sem se saber por quê... Beijávamo-la e chorávamos juntos.
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- Compreende o que é... Era na realidade uma criança...
- Vivíamos sozinhos... Um filho tinha partido para a vida militar, o outro tinha ido para as minas de ouro...
- Ela .tinha mais ou menos dezoito anos...
- No máximo! A olhar para ela não se lhe dava mais de doze...
- Oh, tu exageras!... Doze anos!... Não...
- Dirias mais, tu?... Quantos?
- Ora, que interessa isso?... Era uma bela rapariga... Era muito pequena, sim... E depois? Não vais agora censurá-la por isso?
- Censurá-la, eu? Essa agora!
- bom, bom...-concordou a velha, calmamente. Depois daquela questão, os dois velhos calaram-se repentinamente.
- E então... depois?
- Depois?... Nada, meu rapaz! - suspirou o velho.
- Morreu!... Foi consumida por uma febre. Duas lágrimas rolaram nos olhos enrugados.
- Si-im, meu rapaz, morreu... Deve ter estado dois anos connosco... Dois anos bem curtos... Toda a aldeia a conhecia. Toda a aldeia?... Montes de gente... Era instruída, ia às assembleias... Ia de boa vontade, era um gosto vê-la intervir, gritar... Não havia que dizer, tinha uma boa cabeça!
- E sobretudo um bom coração!... Ah, quanto a coração, era um coração de anjo! Tudo o que sabia vinha-lhe do coração!... Era uma menina, já lhe disse, uma menina da cidade, com um corpete de veludo... fitas... botinas... lia livros e tudo; mas compreendia o camponês, ah, com que simplicidade! Sabia tudo! "Como sabes isso, minha querida?"- perguntava-se-lhe. "Está escrito no livro!" Ora veja lá isto! Para que precisava ela daquilo tudo, ha? Deveria casar-se, teria sido uma senhora, mas afinal mandaram-na para nossa casa e ali morreu.
- Ensinava-nos a todos... Era uma maravilha!... Tão pequenininha como era! E a todos, com seriedade! Isto não é assim, e aquilo é daquela maneira.
- Tinha instrução. Só lhe digo isso!... Estava sempre pronta a fazer um favor, e a toda a gente. Se houvesse um doente em qualquer parte corria para lá...
- Morreu sem conhecimento... delirava e dizia simplesmente: "Mamã, mamã!" Metia pena... Fomos buscar o pope, pensávamos que talvez lhe fizesse bem, que viria a si... Mas ela, coitada, não esperou... Foi-se.
Pelo rosto da velha corriam as lágrimas, e aquele pranto fazia-me tão bem como se fosse por mim que as lágrimas eram vertidas.
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Toda a aldeia se reuniu em nossa casa... As pessoas acotovelavam-se na rua e no nosso pátio... "Como foi possível, como?..." Todos perguntavam, todos a adoravam...
- Tinha um coração de ouro aquela menina! - suspirou o velho.
Todos vieram ao entrerro... E então depois, quando veio a Quaresma, depois do Carnaval, tivemos a ideia: Se rezássemos um pouco por ela? Os vizinhos disseram connosco: "Claro, porque não?" Encorajaram-nos a vir. "Vocês são livres, não são operários... E a ela... Deus lhe levará certamente isso em conta". Foi assim que nos pusemos a caminho.
- Então, é por ela que vocês fazem isto? - perguntei.
- Por ela, por aquela menina, a nossa querida! Talvez que Deus Todo-Poderoso acolha a nossa prece de pecadores e lhe conceda o perdão. Foi assim: partimos no primeiro dia da Quaresma, na terça-feira precisamente.
- Por ela! - repeti.
- Por ela, meu amigo! - confirmou o velho.
Eu quis ainda ouvir repetidas vezes que era por ela, precisamente, que eles queriam rezar, que por ela tinham percorrido milhares de quilómetros. Aos meus olhos aquilo era tão belo que parecia impossível, inacreditável. Sugeri outros motivos para aquela viagem, a fim de melhor me convencer que era apenas "por ela" que se tinham metido a caminho, por ela, a menina dos olhos negros... com satistação, fiquei finalmente convencido.
- Vocês fazem todo o caminho a pé?
- Não, não poderíamos... De vez em quando acontece-nos arranjar lugar num carro. Transportam-nos durante um dia, depois recomeça-se... sofre-se um pouco. Já somos muito velhos para fazer isto tudo a pé... Deus bem vê como somos velhos... Se tivéssemos ao menos as pernas que ela tinha! Mas isso é outra coisa!
E ambos, interrompendo-se um ao outro a cada instante, recomeçaram a falar dela, da rapariguinha lançada pela sorte longe da casa, da mãe, e que tinha sido arrebatada pela febre.
Duas horas mais tarde levantámo-nos a retomámos o caminho. Eu pensava na jovem, mas não conseguia ter uma ideia dela... Essa impotência da imaginação humilhava-me dolorosamente.
Os Russos são incapazes de representar bem o que é bom, o que é luminoso.
Pouco depois um camponês ucraniano alcançou-nos com a sua carroça. Lançou-nos um olhar melancólico e, erguendo
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o boné em resposta à nossa saudação, gritou aos velhos:
- Subam, posso levá-los até à aldeia.
Eles subiram e desapareceram na nuvem de poeira.
Durante muito tempo caminhei naquela nuvem e vi desaparecer ao longe aquela carroça que transportava os velhos; eles tinham percorrido milhares de quilómetros para rezar em intenção duma rapariguinha que tinha conseguido que a amassem...
Publicado em 1895, no número 174 da Samarskaia Gaeto. Só recentemente veio a ser incluído nas OBRAS completas.
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"COLAS"
(Esboço)
No recanto mais pobre do cemitério, entre cômoros desfeitos, alagados pela chuva, com a poeira levada pelo vento, sob a sombra rendada de duas bétulas, uma mulher idosa estava sentada num dos túmulos, vestida com um velho vestido de chita e coberta com um lenço preto.
Uma mecha de cabelos grisalhos caía-lhe para a face esquerda, seca e enrugada; os lábios finos estavam apertados, os cantos eram caídos e desenhavam de cada lado da boca os vincos da miséria; também as pálpebras eram caídas como acontece normalmente àqueles que muito choraram e não dormiram o suficiente durante numerosas noites de dor.
Esteve sempre imóvel durante todo o tempo em que a observei de longe, e também não se mexeu quando me aproximei; ergueu apenas para mim olhos amáveis, depois baixou-os com indiferença; nada tinha exprimido com eles: pergunta, mal-estar, nada que me permitisse adivinhar como reagia à minha presença.
Cumprimentei-a e perguntei que pessoa de família tinha ela ali.
Respondeu com ar humilde e indiferente:
- Ó meu filho.
- Que idade tinha?
- Andava pelos treze...
- Morreu há muito tempo?
- Vai fazer cinco anos.
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Suspirou e enfiou sob o lenço os cabelos esparsos na face. Estava calor. O sol queimava sem piedade a cidade dos mortos; a erva magra dos cômoros tinha ficado acastanhada sob o sol e a poeira. As miseráveis árvores que se erguiam aqui e acolá, entre os túmulos, igualmente cobertas por uma camada de poeira, mantinham-se imóveis como se estivessem também mortas.
- De que morreu? - perguntei eu à mulher, apontando com um aceno de cabeça para a campa do filho.
- Esmagado por uns cavalos - disse ela, lacònicamente, acariciando com a mão enrugada a terra da campa.
- Como foi isso?
Senti que era indiscreto, mas a indiferença daquela mãe intrigava-me e exasperava-me. Impelido por não sei que misterioso capricho, tinha vontade de ver lágrimas naqueles olhos. Aquela indiferença tinha algo de artificial, e, no entanto, eu via ao mesmo tempo que ela não se forçava, de modo algum.
A minha pergunta fê-la levantar os olhos. Sem uma palavra, examinou-me cuidadosamente da cabeça aos pés, soltou um suspiro silencioso e começou a contar com uma voz pensativa e monótoma:
- Olhe, aconteceu assim: o pai tinha estado na prisão durante ano e meio por ter desviado dinheiro do Estado e nós, durante esse tempo, tínhamos comido tudo o que tínhamos. Os nossos haveres não eram, de resto, muito grandes. Na época em que o pai saiu da prisão eu já estava a acender o fogão com rábanos. Uma horteloa tinha-me dado um carregamento de rábanos invendáveis; tinha-os secado e, misturado com algum adubo seco, metade de cada, aquilo ardia. Fazia dores de cabeça, e ao cozer as coisas cheirava mal. Naquele momento Colas ia para a escola. Era vivo... e ocupava-se com a casa. Ao sair da escola, às vezes, via gravetos, uma acha, punha-a imediatamente debaixo do braço e vinha para casa. Era assim... Estávamos na Primavera, o gelo começava a desfazer, mas o calçado dele ainda era as botas de feltro, às vezes todas alagadas... Tirava-as, tinha os pèzinhos vermelhos. Foi então que lhe libertaram o pai e o trouxeram para casa num fiacre. Na prisão tinha ficado paralítico. Estava ali, deitado, sorria com um ar amargo e eu pensava: "com que vou eu sustentá-lo, a ele também, que fez a minha infelicidade? Era melhor deitá-lo à rua, deixá-lo numa valeta." O meu filho também olhava e chorava. Tinha empalidecido, olhou para o pai e as lágrimas começaram-lhe a correr pelas faces. Eram umas lágrimas grossas. Dizia: "Mamã, que tem ele?" Eu disse-lhe: "Está descansado, não está morto"... Foi a partir daquele dia que tudo começou. Eu trabalhava o mais que podia, mas não
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conseguia ganhar mais de vinte cópeques e mesmo assim era preciso estar em dia de sorte... Era um morto que... só me restava acabar pelas minhas próprias mãos. E o Colas olhava... e tornava-se triste... Um belo dia aquilo foi mais forte que eu, e exclamei: "Que vida de condenados! Mais valia rebentar... Era melhor que vocês morressem, vocês que... "Era a eles que eu queria mal, ao pai e a Colas... O pai acenou com a cabeça e parecia dizer: "Não resmungues, tem paciência que eu não levarei muito tempo". Colas, esse... olhou para mim e saiu de casa. Depois caí em mim mas já era tarde. Eu tinha demorado tempo de mais. Porque não se tinha passado uma hora depois daquela cena, quando me bateram à porta. Vinha num fiacre um agente da polícia e perguntou se eu era a Senhora Chichérine. O coração pressentiu-me uma desgraça e o homem disse: "Venha ao hospital, o seu filho ficou debaixo dos cavalos do comerciante Anokhine..." Fui ao hospital; no fiacre sentia-me como se estivesse em cima de brasas. "Mulher maldita, o que tu és, uma mulher maldita", pensava eu. Quando cheguei. Colas estava deitado, todo cheio de ligaduras. Sorriu... as lágrimas corriam-lhe dos olhos... Disse-me com muita ternura: "Mamã, perdoa-me! O comissário tem o dinheiro." "Que dinheiro. Colas, que estás a dizer?" "Mas... o dinheiro que as pessoas me atiraram e o Anokhine me deu." "Deu para quê?" "Deu... para isto", disse ele, pondo-se a gemer baixinho. Tinha uns olhos enormes. "Mas, meu querido, como foi possível não veres o carro?" E então, meu caro Senhor, ouça o que ele me disse bem claramente: "Eu vi muito bem o carro, mas não me queria salvar. Pensava que se me esmagassem me dariam dinheiro... E deram." Eu compreendi o que ele tinha pensado, o anjinho, mas era tarde de mais. Morreu na manhã do dia seguinte. Manteve o conhecimento até ao fim. Dizia sempre: "Mamã, compra isto para o pai, e mais isto, e para ti também..." Segundo ele, havia muito dinheiro. Na realidade havia cerca de quarenta e sete rublos. Fui ver Anokhine e ele deu-me uma nota de cinco rublos... e atacou-me: "Toda a gente viu que o rapaz se atirou para debaixo dos cavalos... e tu vens mendigar?" Nunca mais lá voltei. Foi assim que as coisas aconteceram, meu caro Senhor.
Calou-se, tão indiferente e seca como antes do relato.
O cemitério estava silencioso e deserto; as cruzes, as árvores definhadas entre as campas, os pequenos cômoros de terra e a mulher sentada num deles numa posição dolorosa, tudo fazia pensar no sofrimento dos homens e na morte.
O céu sem nuvens era claro e espalhava uma secura tórrida.
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Tirei do meu bolso algum dinheiro e ofereci-o àquela mulher, morta-viva sob os golpes do infortúnio.
- Não se preocupe. Senhor, tenho o que preciso para hoje... Não tenho necessidade de grande coisa, estou sozinha agora... Sozinha sobre a terra.
com um profundo suspiro, apertou de novo os lábios finos, torcidos pelo desgosto.
Publicado em 1895, no número 186 da Samarskaia Oaseia. Só recentemente foi incluído nas OBRAS.
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UMA HISTÓRIA TRISTE
É uma história muito triste.
Quando a minha musa, uma mulherzinha pálida e doente de nervos, com cabelos loiros, olhos profundos e azuis onde arde permanentemente o fogo de desejos irrealizáveis, um fogo que, lentamente mas de um modo seguro, lhe consome a alma na dúvida e no aborrecimento, quando a minha musa me contou esta história, soluçava amargamente, e o meu coração chorava também, como um eco, o que, de resto, não tem qualquer relação com a história em si.
O meu herói era poeta. Era na época em que havia autênticos poetas sobre a Terra... Não abordaremos esse aflitivo tema nesta história, dado que, mesmo sem isso, ela já contém suficiente tristeza.
O meu herói era poeta. Como a maior parte dos poetas, escrevia versos, o que aliás não depõe a seu favor nem contra. Nesses versos celebrava a Natureza, o amor, as mulheres, os seus desejos, sonhos e desgostos dum homem que, tendo a felicidade de ser poeta, suporta a infelicidade de viver num mundo onde os próprios canalhas têm uma existência difícil. Dizia nos seus versos que o coração se lhe dilacerava na dúvida e que os vermes do desespero lhe roíam o peito constantemente. Embora fosse difícil perceber de que duvidava (era do triunfo do bem ou da glória que, com o tempo, lhe coroaria o crânio e o distinguiria desse modo dos seus milhares de camaradas da pena?), nem por isso era menos lido.
Liam-no... Entre todas as maneiras que os homens têm de matar o tempo, essa não é a mais perniciosa.
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As suas descrições dos tormentos da alma e das chagas do coração, graças a um abundante vocabulário e a uma construção hábil, eram bastante verosímeis e tinham mesmo aparência de sinceridade... Além disso, os cantos melancólicos estavam na moda e, por essa razão, fundavam-se esperanças no meu herói, supunha-se que ele era capaz de falar uma linguagem nova, os jornais pagavam-no a quarenta cópeques a linha, os críticos classificavam-no de "simpático talento", as raparigas casadoiras liam-lhe os versos e suspiravam por ele com os olhos fechados langorosamente, e as senhoras, sem ter necessidade de fechar os olhos, sonhavam simplesmente.
Ainda por cima, era jovem: era o seu principal mérito. Era jovem e, por consequência, as inflexões vivas e enérgicas da esperança e do desejo, as da ameaça e da censura, soavam por vezes nos seus versos.
vou tentar narrar o triste acontecimento de que o meu herói foi vítima e em consequência do qual aquelas inflexões vigorosas e vibrantes da alegria de viver desapareceram do seu canto, o triste acontecimento que matou definitivamente e sem recurso a sua alma jovem, os seus sonhos, as suas esperanças, a sua confiança na vida e nos homens, a força do seu amor e a acuidade do seu ódio. Relato o que na realidade se passou.
Iniciarei a minha história naquela época em que, frequentando a sua musa, ele sorvia a inspiração beijando-lhe as faces cor-de-rosa, os lábios escarlates, os olhos azuis, as longas mãos brancas (vejam como a descrição da musa do meu herói é colorida!...), a época em que ele estava cheio de entusiasmo e entregava pequenos e graciosos poemas onde a vida da natureza e a da sua alma apareciam saudáveis e frescas como as flores da Primavera, em que ele recebia com condescendência e orgulho a homenagem da admiração de todos os que se davam ao prazer de se apresentarem diante dele. No entanto, nos momentos em que se encontrava livre de tudo isso, pensava que talvez tivesse chegado o momento de levar a cabo alguma coisa que o fizesse passar da categoria dos "simpáticos talentos" para a dos "eminentes e notáveis talentos" e talvez mesmo para a dos "génios". Não via nisso qualquer inconveniente. vou, pois, começar:
Numa maravilhosa noite de Verão, regressava de casa da sua musa, uma pequena sensual, de cabelos castanhos, que habitava num quarto íntimo e claro onde todas as coisas se conjugavam harmoniosamente e onde, entre uma massa de bugigangas amavelmente elegantes, ela reinava sem contestação e legitimamente como a mais elegante de todas...
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Esta musa não pertencia ao coro clássico das nove inspiradoras, não servia Apoio nem manejava a lira de cordas de ouro, pertencia a um grupo de três irmãs - modistas de origem estritamente vulgar-, servia alegremente Vénus e manejava habilmente a agulha, bordando com as suas mãozinhas papudas e com um fio de seda finíssimo as iniciais do meu herói nos lenços que lhe pertenciam.
Ele caminhava, e, enquanto lhe acariciavam ainda o rosto as borboletas de fogo (os beijos dela), a chama poderosa da inspiração ardia, luminosa, no seu coração; as palavras dum hino claro e vigoroso ordenavam-se por si próprias para a glória do amor e para consolo dos leitores.
O veludo azul-escuro do céu, semeado de estrelas de diamante e de esmeralda, de cintilações vibrantes, dirigia-lhe um sorriso silencioso e amável e um vento leve, carregado de eflúvios de flores, refrescava-lhe o rosto ainda ardente de felizes excessos, desfazendo-lhe os anéis de cabelo como se fossem as mãos quentes e como que aéreas da sua musa.
Vestia-o um amplo e elegante fato de Verão; a sua infelicidade estava escondida naquele fato, coisa de que se
poderão convencer em breve. Caminhava e, na penumbra
azulada da noite, perante os seus olhos que irradiavam a luz da inspiração, volteavam, numa valsa fantástica, imagens maravilhosas; o pensamento dele ligava-as imperiosamente num todo, criava esplêndidas estrofes cheias de fogo,
estrofes a que só faltavam as palavras, palavras sonoras e belas, para lhe voarem do peito numa graciosa harmonia.
Tomando impulso, planariam sobre a terra e fariam nascer
no coração dos homens a vergonha do passado, e, com
ela, fogosos esforços, tentativas para levar a cabo actos
de carácter positivo.
Os poemas já construídos no seu coração enchiam-no duma sede suave e dolorosa da forma, despertavam nele a
?; sensação maravilhosa de ser consciente da sua força e das
, suas possibilidades, transportavam-no para o alto, para
o céu, pátria do seu espírito onde as sombras dos génios
poéticos já falecidos, movendo-se invisívelmente no halo azul
da meiga Lua, lhe murmuravam-ele ouvia-as as palavras musicais e encorajadoras.
Ele avançava, consciente de ser um criador, um igual
a Deus; ligando na sua alma as imagens maravilhosas,
revestia com elas os seus pensamentos e o céu parecia-lhe
um grandioso poema azul onde todas as altas ideias do universo encontravam lugar, um poema ritmado pelo vivo cintilar das estrelas e penetrado pela consciência triunfante da sua própria perfeição.
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- Ó vida! - exclamou o meu poeta, transportado pela contemplação do céu e da vida da sua alma. - Ó vida! repetiu. Mas o desejo de pronunciar o panegírico da vida sufocou-o e acabou por não dizer mais nada.
Sem palavras, exprimiu-se todo num sorriso de beatitude e de deslumbramento sobrenaturais; do alto do céu as estrelas encorajavam-no com um sorriso. Abismou-se nas suas reflexões e sentiu que o sopro de uma leve melancolia se expandia na sua alma, dessa melancolia suprema que não escurece o cérebro, antes o nobilita.
Nesse momento o meu herói foi mordido pela primeira vez por uma pulga Mordeu-o no braço esquerdo, na dobra do cotovelo... Ele sentiu a mordedura, mas, sem lhe prestar muita atenção, coçou maquinalmente o sítio picado, depois mergulhou imediatamente numa solene contemplação.
O meu herói caminhava e o silêncio, em redor, parecia apurar um ouvido vigilante aos movimentos do seu coração e do seu pensamento... Avançava e sentia-se o centro do universo... Sonhava, sonhava, sonhava... com a glória e com o amor, e começava a distinguir no nevoeiro do futuro o seu próprio vulto moldado no bronze e erguido num pedestal de mármore.
- Merecê-lo-ei! - murmurou ele, arrebatado pelo entusiasmo. - Destruirei a hidra da mentira e aniquilarei os dragões da maldade. Indicarei à Humanidade o caminho da felicidade e da glória, fá-la-ei sair da obscura floresta de dúvidas e insuflar-lhe-ei a força de viver no radiante vale da fé na sua eminente vocação. Provarei que ela tem direito à maioridade e que é uma cobardia vender esse direito por um prato de lentilhas de ilusórios instantes!... O vigor da vontade de viver é a garantia do sucesso em tudo o que se deseja... Que o teu espírito seja firme, homem! - direi eu, obrigando-o a acreditar-me. E então...
Sentiu qualquer coisa mergulhar-lhe no sovaco e teve um arrepio de surpresa e de dor... Mas esse incidente não lhe interrompeu os sonhos.
1 Não creias, leitor, que se trate duma alegoria e não duma pulga. Afirmo-te, juro-te, que era uma pulga e não uma alegoria, um símbolo como está agora convencionado dizer-se.
Era simplesmente uma pulga, essa mesma pulga descrita por Brehm e que vive na roupa. Castanho-escura de aspecto e dando saltos desvairados, esta pulga morde... Sabes como ela morde... É diabòlicamente má e criada pela Natureza para fornecer um argumento irrefutável em apoio desta asserção: "A vida é um sofrimento!" Talvez ignores, leitor, o motivo para que foi criada. Pois bem, sabe-o agora e inclina-te perante a objectividade da Natureza que, na sua preocupação pelos homens, nem sequer esquece os filósofos! Sabe-o e perdoa-me essa inconveniência saltitante que lancei em cena, peço-te! Isso ser-te-á tanto mais fácil quanto já perdoas a outros autores inconveniências bem maiores...
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- Fundarei uma nova filosofia de combate na qual darei lugar a todo o ciclo das altas ideias elaboradas pela Humanidade; essas ideias serão unidas entre si pela grandeza da alma humana, grandeza de que farei uma demonstração que a ninguém foi dado fazer antes de mim. Despertarei o orgulho dos homens chamando a atenção de maneira evidente para a grandeza do que já levaram a cabo e levando-os a admitir que, se o desejarem, podem executar também tudo o que resta para realizar a fim de atingirem a felicidade e a glória...
Mordedura no peito... Coçou-se, impaciente.
...Despertar o orgulho dos homens, eis a minha missão! E despertá-lo-ei. Escreverei um poema, "O Combate dos Titãs", onde descreverei tudo o que a Humanidade viveu até hoje. Será o bastante para levar os homens a estimar as suas mais altas capacidades. E o meu poema será, por toda a eternidade, o melhor sistema ético que nada poderá destruir, porque terá como base o orgulho dos deuses criadores de vida...
Mordeduras encarniçadas, dolorosas e repetidas... Mordeduras no peito, nas costas, pernas e braços... A dor duma mordedura ainda não tinha tido o tempo de se extinguir e já noutro sítio do corpo mergulhava uma agulha acerada e ardente. A cada instante o meu herói sobressaltava-se e irritava-se...
- Sim, os homens apreciam mal as forças de que dispõem; essa é a causa da sua fraqueza!... Maldita seja!...
Nesta frase rangeu os dentes com violência, porque tinha a sensação de que lhe espetavam no peito uma sovela fina e aguda, que a fixavam e a rodavam na ferida... Mas arrastado pelos pensamentos suportava por agora a dor sem investigar a causa.
- Portanto, para a frente, pela glória, pela vida, pelos homens!... Invoco-te, Musa! Vai e dá-me a glória , rutilante como o fogo, estou cheio do desejo de cantar, cheio de ideias e de paixão... Ó Musas, espero-vos! Vinde em meu auxílio!
Mas as Musas não vinham... Temos obrigação de as desculpar; mais do que isso, devemos até lamentá-las. Pobre Érato, pobre Euterpe, pobre Calíope!... Só a parteira da capital do cantão, sem mãos a medir com a abundância da clientela, vos pode compreender, infortunadas filhas de Apoio! Pobres Musas! Poderíeis acaso ter suposto que, sobre a terra chegaria um dia em que as tentativas e as experiências estéticas seriam generalizadas e que vós, maravilhosas e majestosas sacerdotisas da arte pura, deveríeis assumir a profissão de parteiras produzindo esforços sobrenaturais a fim de auxiliar centenas de milhares de mortais
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psicopatas a libertarém-se do fardo dos seus excessos verbais em poemas caquécticos e sonetos raquíticos? Pobres Musas! Pobres Musas!
Compreendo a razão por que não responderam ao apelo do meu poeta. Como poderiam achar tempo para satisfazer todos aqueles que, no momento actual, lhes imploram auxílio?... Pobres Musas violadas e martirizadas! Não se apresentaram à invocação do meu poeta e serei eu que as censure, embora o meu herói, devorado pelo cruel insecto, me seja querido. Na realidade, tendo-as esperado em vão, exclamou finalmente:
- Oh-oh! Quem me devora assim?
Estava no direito de prestar atenção ao corpo, o corpo atormentado e oferecido em sacrifício ao espírito, porque este já tão planado durante longo tempo nas esferas superstelares do sonho.
O meu herói sentiu, portanto, a dor e, consequentemente, foi precipitado do alto daquelas esferas para a triste zona da realidade.
- Quem me devora? - perguntou ele, sentindo como que um milhar de vespas a mergulharem-lhe no corpo os seus dardos inflamados deixando-os ali.
Profundamente perplexo começou furiosamente a... coçar-se.
Peço ao leitor requintado, de sensibilidade delicada, que me desculpe, mas o facto existe. Ele começou-se a coçar. Os poetas, devemos convir, também são homens. Heine, esse alegre folgazão, que passou a vida no sofrimento da nostalgia, disse: "Se pensarmos bem, todos nós, confessemo-lo, estamos nus dentro da nossa roupa..." Também o meu poeta correspondia a essa nudez interior e, por essa razão, coçava-se furiosamente.
- Mas, com os diabos, não podem ser outra coisa senão pulgas! - exclamou. Esta descoberta pareceu serená-lo um pouco.
Depois disso deliberou oferecer à sua musa, já na próxima visita, uma caixa de um bom pó insecticida. A seguir voltou às suas reflexões.
- Aqueles para quem a vida não apresenta mais do que uma desconcertante variedade de formas e uma ausência total de substância, verão nas minhas obras...
Foi então que a pulga o picou no centro do estômago e ele tomou novas medidas destinadas a atenuar o sofrimento, o que lhe fez perder o fio da inspiração... Mas o animal nem por isso mordia menos... Esforçando-se por não prestar atenção à dor, o poeta fez uma nova tentativa para se elevar para aquelas regiões de onde acabava de tombar.
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- A vida parece incoerente em função da própria diversidade de formas que reveste... O homem cujo espírito poderoso tiver sabido ver detrás de todas essas formas diferentes a substância unida, idêntica a si própria, e verídica, que a torna num todo, é aquele que dotará toda a existência duma forma definida, aquele que a tornará acessível à inteligência de todos. Sou eu quem realizará isso nos meus cantos... Quando o tiver feito não haverá um único que não veja claramente onde é o seu lugar, qual a sua tarefa, qual a estrada que conduz à felicidade... Ah, porcaria duma figa que te atravessas no meu caminho!... Espera aí! - e ao dizer isto, beliscou cruelmente a pele no sítio onde acabava de ser mordido.
- Os meus poemas, tais como o Sol, levarão os seus raios e o seu calor à fria treva das dúvidas que pesam sobre a alma dos homens... Oh, calamidade negra, praga saltitante... veneno vivo!... Hei-de apanhar-te, verás!
com a paciência esgotada, trémulo de raiva, começou a procurar o animal. Mas quando acreditava tê-la apanhado no peito, ela mordia-lhe as costas, e quando a julgava acossada no ombro, ela atacava-lhe o joelho.
A noite empalidecia e, fugindo diante da madrugada, vogava uma nuvem azulada e rápida no céu. Semelhantes a lágrimas começaram a cair algumas gotas grossas... É muito verosímil que as nuvens também possam chorar, porque devem conhecer muito bem as coisas da Terra em torno da qual navegam.
O poeta não podia apanhar a pulga que saltava, incansável, e o torturava com volúpia, mergulhando a todo o momento as mandíbulas na pele fina do meu herói esgotado pela luta. Era demasiado pequena para ser vencida rapidamente, e picava sem trégua, ora aqui ora ali, como que rindo da impotência do adversário. Oh, esses pequenos nadas, esses pequenos grãos de poeira envenenados da realidade que o olho mal apercebe e que conseguem demolir os grandes e solenes monumentos do sonho e envenenam as flores do devaneio!... É preciso estar bem perto da grandeza para saber lutar contra as pequenezas. Que teria acontecido se tivessem proposto a Hércules batalhar contra doze pulgas em vez de levar a cabo as doze proezas famosas? Suponho que a sua bravura irreflectida o teria levado a aceitar a batalha, mas... a seguir?
O meu herói tinha uma alta opinião de si mesmo; procurou o insecto durante pelo menos uma hora sem o encontrar, embora ele estivesse ali e o mordesse. Mordia calmamente e como que por zombaria. Finalmente, fatigado e acabrunhado pela consciência da sua impotência, o poeta deixou-se cair no solo, depois de ter suspirado tristemente,
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e sentiu o corpo perlar-se com o suor frio do desespero e do espanto.
- Ó vida! Monstro pérfido que não conheces a compaixão, irónico, frio e mau!... Compreendi o teu jogo imperturbável! Viste em mim o inimigo irreconciliável dos teus excessos e venceste-me no momento em que me preparava para iniciar o combate contra ti! Da tua parte é um acto sem nobreza mas previdente. Não há dúvida, és forte e eu sinto-o. Confesso-me vencido, causa-me um profundo desgosto esta decisão mas não me envergonho, lutei tanto quanto pude! Não aguento mais! Não sou culpado da minha fraqueza. Se uma miserável e minúscula mancha negra basta para tapar o imenso horizonte do meu pensamento... se de cada vez que ergo os olhos para o céu, a minha cabeça o não atinge, o solo me foge debaixo dos pés e me agito impotente no espaço... quem é então o culpado?
Nesse momento o animal enterrou-se-lhe impetuosamente sob a omoplata direita, exactamente como se tivesse tentado rasgá-lo de lado a lado com a sua mordedura. Ele empalideceu de dor e de angústia.
- Ó vida, não me suplicies, rendo-me sem combate! clamou ele numa voz patética, procurando ao mesmo tempo apanhar o insecto; mas este já se esquivara e fazia-lhe cócegas nos rins, dispondo-se evidentemente a mordê-lo em seguida.
- Há meia hora eu era uma águia, e agora sou um verme; compreendi quão pouco tempo e minguados esforços bastam à vida para quebrar a altivez do espírito humano. Que posso opor à força omnidestruidora da vida real? Onde iria eu buscar o orgulho de alma necessário para lutar? E a mim que pertence, por meio do meu cérebro ridiculamente ínfimo, penetrar o sentido secreto das intenções da vida? Ó vida, monstro misterioso sem piedade nem amor pelos teus filhos!
Entretanto, a pulga continuava a picar... Infelizmente, naquele caso em que se impunha a necessidade de um insecticida poderoso as flores de retórica não prestavam qualquer socorro! É indispensável usar para cada mal o remédio que convém! Foi essa falta a perda do meu herói roído pela pulga.
De cabeça baixa, muito baixa, regressou a casa, sentindo o corpo como que consumido por um incêndio, sem se aperceber de que o céu, por cima dele, já se tinha enfeitado com as cores vivas anunciadoras do dia e que a terra mantinha um silêncio delicado, pasmado na expectativa dos primeiros raios de sol. De repente, eles surgiram, rasgando a ligeira névoa que os impedia de se libertarem pelo macio deserto azul do céu... Surgiram e a terra acolheu-os com
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um suspiro de deslumbramento. Os pássaros começaram a cantar, as árvores a rumorejar, o céu a resplandecer com uma irradiação infinitamente amável e grave por cima da terra que despertava para a vida.
Mas o meu herói nada via daquele espectáculo: a alma estava curvada sob a aflição e o corpo macerado pela dor. Caminhava cabisbaixo; ao chegar a casa despiu-se, examinou conscienciosamente a roupa e sacudiu-a em todos os sentidos; não encontrou nada e deitou-se, moído e doente. Dormiu pouco, num sono agitado, e teve sonhos assustadores que se repetiam... Via uma pulga enorme que lhe abria o peito e lhe roía o coração... Teve ainda muitas outras visões igualmente apavorantes. De manhã, ao acordar, deixou-se ficar muito tempo na cama e olhou para o tecto com um olhar cheio de tristeza. Quando, finalmente, se levantou, lavou-se, bebeu o chá, sentou-se à secretária, preso dum sombrio entusiasmo, escreveu com o coração frio e o fogo do desespero na cabeça:
Ludibriou-me a vida infame!
Tais sofrimentos suportei
Que o enxame dos meus pensamentos morre
No sepulcro da minha alma.
Quantos, acumulados no meu cérebro.
Perdidos na mortalha das rimas!
com eles cantei os meus hinos,
Melancólicos soluços em cadeia!
Cantei! Que nada agora
Lhes perturbe o repouso mortal.
Meu Deus! Oferece-me a paz!
Sofro dum mal eterno!
Não saboreei felicidade.
Não posso continuar a dilatar.
Nas cinzas do meu coração
Não pode a esperança jorrar!
Adeus, belos sonhos, ilusões.
Sede queridos e suaves ao mundo...
Prefiro agora esta taça:
Sim, bebi sempre veneno
E consumirei a minha vida
Quando a beber até às fezes.
Virá então a paz?
Sofro dum mal eterno!
A vida, não a compreendo: Pátria dum mundo vulgar Imprimiram-se na minha alma
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As marcas dum desgosto fundo.
Prossigo o meu triste caminho
A todos inútil, na terra.
Onde o coração me pulsa, desesperado,
E o espirito se choca contra sombras,
A morte não me apavora.
Que me importam as suas negras mãos!
Meu Deus! Entrega-me a paz:
Sofro dum mal sem esperança!
Uma vez escrito o poema, não demorou a dá-lo para impressão. Os que outrora o liam, entre o público, disseram ao ler aqueles versos:
- Que infeliz! Ainda há pouco tempo parecia feito para a felicidade! Malditas condições da nossa vida! Elas esmagam bem cedo aquele que é um pouco mais dotado e vivo! Que drama se teria desenrolado na alma daquele, simpático talento?
Disseram-se também outras coisas... Toda a gente sabe que o público fala muito, é a sua especialidade, e não serei eu que o censure por isso, porque tenho presente no meu espírito que cada um faz o que pode. Absolutamente, nada mais do que pode.
Foi este o lamentável fim do meu herói!... Eis como se perdem as melhores forças, os melhores pensamentos dos nossos poetas! Eis o motivo por que os lamentos ocupam tanto lugar e fazem tanto barulho!
O meu poeta sucumbiu!... Relatei um único episódio da sua existência, mas esse episódio ilustra claramente que labor grandioso e acima das suas forças a vida exige do homem que liga ao conceito de "viver" a obrigação de ser qualquer coisa na vida!
E, se este episódio não diz nada disso, pouco importa! Imaginem que o disse! Eu tinha necessidade, reparem, de que esta história comportasse uma moral. Esse pequeno esforço de imaginação nada vos custará... É-vos fácil imaginar, leitor, que em função das vossas qualidades, vós merecíeis melhor sorte...
O meu herói sucumbiu! E se pensam que apontei de um modo inexacto as causas da sua perda, enganam-se. Não tinha qualquer necessidade de fazer o meu herói melhor ou pior do que é. Sou apenas um humilde servidor da verdade; ele, é um poeta. Somos estranhos um ao outro;
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ele quer ser famoso, eu detesto a vulgaridade... Além disso, ambos somos homens... Que os deuses nos ajudem a ser mais inteligentes do que somos, e talvez nem ele escreverá os seus versos nem eu a minha prosa. Amen!
Publicado em 1895, nos números 193 e 194 da Samarskaio, Gazeta, com o pseudónimo de Icgudiil Glamida. Só recentemente foi incluído nas OBRAS.
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A MULHER DE OLHOS AZUIS
O comissário de polícia adjunto, Zósimo Cirillovitch Podchiblo, pesado e melancólico ucraniano, estava sentado no seu gabinete, torcia os bigodes e arregalava os olhos irritados, olhando o pátio do comissariado através da janela. O gabinete era escuro, abafado e silencioso; só a pêndula de um grande relógio de parede contava os segundos com pancadas monótonas que rangiam. No pátio, pelo contrário, tudo era claro e atraente... Três bétulas lançavam sobre ele a sombra espessa e, em cima dum monte de feno recentemente ali posto para os cavalos dos bombeiros, dormia, estendido à vontade, o sargento Kukarine que acabava de terminar a sua guarda. Zósimo olhava-o e isso tornava-o furioso. O subordinado a dormir e ele, o seu infeliz chefe, obrigado a vegetar naquele buraco e a respirar as emanações húmidas das paredes de pedra! Podchiblo imaginava o prazer que teria em se repousar também assim, à sombra, deitado ao comprido no feno cheiroso, se tivesse tempo e se a sua posição administrativa lho permitisse; depois espreguiçou-se, bocejou e ficou ainda mais exasperado. Sentiu o desejo incoercível de despertar Kukarine.
- Eh, tu aí!... Eh... Palerma! Kukarine! - gritou ele a plenos pulmões.
A porta abriu-se e alguém entrou no gabinete. Podchiblo olhava pela janela e não se voltou, não teve a menor vontade de ver quem tinha entrado e se mantinha atrás dele, no limiar da porta, fazendo ranger o soalho sob o seu peso.
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Kukarine não se moveu ao apelo do seu superior. com as mãos cruzadas debaixo da cabeça, a barba em ponta voltada para o céu, dormia, e Zósimo julgou ouvir o sólido ressonar do seu subordinado, um ressonar irónico, saboroso, feito para lhe excitar ainda o desejo de repouso e a raiva de não se poder abandonar. Teve vontade de descer para dar um bom pontapé no ventre redondo do homem para lhe agarrar pela barba e o arrastar em pleno sol.
- Eh, tu, ainda a dormir? Ouves-me ou quê?
- Senhor Comissário, quem está de serviço sou eu!
- proferiu alguém atrás dele, com uma voz obsequiosa e açucarada.
Podchiblo voltou-se, olhou com um olhar mau o sargento de serviço que arregalava grandes olhos espantados e estava pronto a lançar-se instantaneamente para onde se lhe ordenasse.
- Chamei por ti?
- Não, Senhor Comissário!
- Perguntei-te alguma coisa? - disse Podchiblo, elevando o tom e voltando ligeiramente a cadeira.
- Não, Senhor Comissário!
- Então vai para o Diabo antes que te atire seja com o que for ao focinho.
Já começava a procurar febrilmente com a mão esquerda algo que servisse de projéctil, enquanto com a direita se segurava à cadeira; mas o lépido sargento tinha deslizado para lá da porta e tinha-se desvanecido. Aquela desaparição pareceu insuficientemente respeitosa ao adjunto de comissário; apossou-se dele a vontade de descarregar a todo o custo a cólera que sentia subir dentro de si contra o calor abafado do aposento, contra o serviço, contra Kukarine adormecido, contra a próxima época da feira e contra muitos outros penosos aborrecimentos que, não se sabe porquê, se lhe apresentavam hoje espontaneamente ao espírito, contra a sua vontade.
- Eh, lá, anda aqui! - gritou ele para lá da porta. O sargento voltou a entrar e perfilou-se no limiar; o rosto
exprimia pavor e expectativa.
- Cara de bruto! - interpelou-o Podchibe com ar sombrio. - Vai lá abaixo, acorda Kukarine e diz a esse camelo que não se atreva a ressonar no pátio. É um escândalo!... Ordinário, marche!
- Às suas ordens! Senhor Comissário, há uma senhora que pretende vê-lo.
- Quem?
- Uma senhora!
- Como?
- Uma grande...
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- Imbecil! O que é que ela quer?
- Quer vê-lo...
- Pergunta-lhe a respeito de quê! Salta!
- Já perguntei. Mas ela não responde... Quero ver o Senhor Comissário, em pessoa, disse ela.
- Cambada de... Bem, manda-a entrar... É nova?
- É sim, Senhor Comissário!
- Manda-a entrar!... Mexe-te! - ordenou Podchiblo com voz mais amena; compôs a sua aparência e arrumou os papéis sobre a secretária, dando à fisionomia aborrecida o aspecto formal que convém à autoridade administrativa.
Atrás dele ouviu-se o frufru dum vestido.
- Que deseja? - perguntou Podchiblo, colocado a três quartos, depois de ter apreciado a visitante com um olhar crítico.
Ela inclinou-se e aproximou-se lentamente da secretária, lançando ao polícia um olhar fugidio e investigador com os seus olhos azuis e graves. Estava vestida de uma maneira simples e pobre como as mulheres da pequena burguesia: com a cabeça coberta por um lenço, usava uma romeira de que torturava as pontas entre os longos e morenos dedos das mãos que eram pequenas e belas. Era alta, forte, de peito desenvolvido, testa alta e trigueira; havia nela algo de especialmente severo e reflectido que não era feminino. Podia-se-lhe dar cerca de vinte e sete anos. Avançava com ar pensativo, com lentidão, como se pensasse, hesitante:
- Não faria melhor em voltar para trás?
- "Caramba, que granadeiro!", pensou Podchiblo, prosseguindo imediatamente: "Vem fazer uma queixa".
- Poderia informar-me...-começou ela com uma voz profunda de contralto; interrompeu-se, hesitante, detendo os olhos azuis no rosto do oficial de polícia, atravessado pelos bigodes.
- Tenha a bondade de se sentar... Que deseja saber? perguntou Podchiblo num tom oficial, pensando entretanto: "Belo pedaço de mulher! Eh! Eh!"
- É por causa das cadernetas...
- De alojamento?
- Não, não são essas...
- Então, quais?
- Aquelas que... com que... as mulheres vão... Ruborizou-se e ficou atrapalhada subitamente.
- Que quer dizer?... De que mulheres se trata? - perguntou Zósimo, erguendo os sobrolhos com um sorriso atrevido.
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- Toda a espécie de mulheres que... saem à noite...
- Ttt, ttt, ttt! As prostitutas? - disse Zósimo, estendendo-se amavelmente.
- Sim, é isso.
Suspirando profundamente, a senhora sorriu por sua vez, como que mais à vontade depois de ter ouvido aquela palavra.
- Ah! Ah! Compreendo! E
então? - começou Zósimo a interrogar, pressentindo algo de muito interessante e saboroso.
- Então, é a propósito dessas cadernetas que vim cá...
- pronunciou a mulher, recostando-se na cadeira, suspirando e abanando estranhamente a cabeça como se tivesse recebido uma pancada.
- Então... Vai abrir um estabelecimento? É isso...
- Não, não! É para mim.
Ao dizer isto a mulher baixou a cabeça.
- Ah! E então a caderneta antiga? Onde está? - perguntou Podchiblo.
Empurrou a cadeira para mais perto da visitante e estendeu a mão para a cintura dela, lançando um olhar para a porta.
- Qual? Não tinha... - respondeu ela.
Olhou-o mas não fez qualquer tentativa para lhe evitar a mão.
- Quer dizer, exercia clandestinamente?... Não estava registada? São coisas que acontecem. E agora pretende pôr-se em regra. Muito bem! Correm-se menos riscos! encorajou-a Zósimo, tornando-se mais audacioso nos seus manejos.
- Mas não... É a primeira vez que... - precisou ela baixando os olhos com acanhamento.
- A primeira vez, como? Não compreendo! - exclamou Podchiblo encolhendo os ombros.
- Quero apenas... É a primeira vez. Vim para a feira! explicou a senhora, com voz abafada, sem levantar os olhos.
- Ah, é isso!
Zósimo tirou a mão da cintura dela, afastou a cadeira e, um pouco embaraçado, recostou-se no espaldar. Ficaram um momento em silêncio.
- É então isso!... Sim... quer... Mas, que profissão, vejamos! É uma coisa penosa... Quer dizer, naturalmente... Mas apesar de tudo... É estranho... Não consigo perceber, confesso... como pode tomar semelhante decisão. Se realmente isso é verdade...
Como polícia experiente, ele via bem que era efectivamente verdade: ela era demasiado fresca e demasiado correcta para pertencer às mulheres daquela profissão...
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Não possuía qualquer dos sintomas de venalidade que marcam infalivelmente o físico e os gestos duma mulher, mesmo depois de uma curta prática.
- Juro-lhe que é verdade! (inclinou-se para ele, repentinamente, com confiança). Iria praticar essa suja profissão e pôr-me-ia a mentir? Para quê? É preciso fazer as coisas com simplicidade. Sou viúva. Perdi o meu marido: era piloto, morreu afogado em Abril durante a ruptura dos gelos. Tenho dois filhos, um rapaz de nove anos, uma rapariga de sete. Não tenho bens. Também não tenho família. Tinha casado comigo, eu era órfã. A família dele está muito longe e, de resto, não gostam de mim... Como vivem razoavelmente, eu, para eles, sou uma espécie de mendiga. Não tenho porta onde bater. Poderia trabalhar, evidentemente. Mas tenho necessidade de muito dinheiro e não ganharia tanto como-isso. O meu filho está no liceu. Poderia também fazer tentativas para obter uma bolsa, mas onde me levaria isso, a mim, uma pobre mulher? E o meu filho é um rapazinho, sabe... uma cabeça inteligente! Seria pena cortar-lhe a instrução. E é igual para a rapariga... Também se lhe tem de dar qualquer coisa. E um trabalho que permita isso, um trabalho honesto, não há. Quanto ganharia? E que trabalho poderia fazer? Cozinheira, talvez... Sim, talvez... cinco rublos mensais... Não é suficiente. De modo nenhum suficiente. Ao passo que desta maneira... com um pouco de sorte... pode-se ganhar de repente o passadio para um ano. Durante a feira do ano passado, uma mulher que eu conheço ganhou mais de quatrocentos rublos. Agora, com esse dinheiro, está casada com um guarda-florestal; é uma senhora, não tem de que se queixar. Vive... Pode-me dizer: e a vergonha?... Claro, não é honroso... Mas simplesmente... se raciocinar sobre as coisas... É o destino... É sempre o destino. Isto veio-me assim, de repente, ao espírito; o melhor é fazê-lo: é um sinal do destino... Se atinjo os meus fins, bom... Se os não atinjo... e que só me fique o tormento e a vergonha... também será o destino... Sim...
Podchiblo ouvia-a e compreendia metade, porque todo o rosto dela falava. A princípio havia naquele rosto uma expressão de susto, mas, em seguida, tinha-se tornado seco e resoluto.
Sentiu-se pouco à vontade, com um princípio de inquietação. Pensava:
"Um idiota que caia nas mãos desta vaca... ficará sem pele em três tempos. Ela só lhe deixará os ossos."
Quando a mulher acabou de falar, disse secamente:
- Não posso fazer nada por si. Isso é um assunto da competência da direcção da polícia e da inspecção médica.
297
Terá que se dirigir ao chefe da polícia. Eu não posso fazer nada...
Tinha vontade de a ver partir o mais depressa possível. Ela levantou-se imediatamente, inclinou-se e dirigiu-se lentamente para a porta. Podchiblo, com os dentes cerrados e os olhos semicerrados, retinha-se para não lhe cuspir nas costas.
- Então devo ir ver o chefe da polícia, não é isso? - perguntou ela, voltando-se ao chegar à porta... Os olhos azuis mostravam a sua decisão inabalável. Mas uma ruga profunda, dura, barrava-lhe a fronte.
- Isso mesmo! - respondeu ele, precipitadamente.
- Adeus e muito obrigado! - disse ela ao sair. Podchiblo pousou os cotovelos na secretária e ficou assim
uns bons dez minutos, assobiando entre dentes.
- Que pega, ha! - pronunciou em voz alta, sem levantar a cabeça. - Ainda por cima com filhos! Que têm os filhos a ver com isso? Hum! Que miserável!
Seguiu-se um grande silêncio.
- Mas também há a vida... se tudo aquilo é verdade! Ela torce um homem como uma corda, se assim se pode dizer... Ah, sim, ela não está com meias medidas!
Após um novo silêncio para recapitular todo o trabalho do seu pensamento, soltou um profundo suspiro, cuspiu com ar definitivo e exclamou energicamente:
- Estupor de vida!
- Às suas ordens! - disse o sargento de serviço que reaparecera na porta.
- Ha?
- O Senhor Comissário deseja alguma coisa?
- Desaparece-me da vista!
- Às suas ordens!
- Grande burro! - resmungou Podchiblo.
Lançou um olhar pela janela. Kukarine continuava a dormir em cima do feno. Manifestamente o sargento de serviço tinha-se esquecido de o acordar.
Mas Podchiblo tinha esquecido a cólera e o espectáculo do soldado que se abandonava sem costrangimento já não o perturbava. Sentia-se obscuramente assustado. Via no espaço os olhos azuis, tranquilos, que o olhavam resolutamente, em pleno rosto. Sob aquele olhar obstinado, sentia um peso no coração, uma espécie de mal-estar...
Lançou uma olhadela ao relógio, ajustou o cinturão e saiu do gabinete dizendo baixinho:
- Voltaremos a ver-nos... É mesmo certo.
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II
Reviram-se, efectivamente.
Uma tarde em que se encontrava de serviço na Prefeitura, Podchiblo apercebeu-a a cinco passos. Dirigia-se para a praça com o andar lento e balanceado, os olhos azuis obstinadamente fixos ao longe, diante de si. Em todo aquele vulto alto e harmonioso, nos movimentos do busto e das ancas, no olhar grave e submisso, havia qualquer coisa que afastava; a ruga de extrema submissão, de fatalidade que lhe barrava a fronte, estava muito mais vincada do que da primeira vez que a tinha visto; estragava aquele largo e grande rosto russo, endurecendo-o.
Podchiblo frisou os bigodes, acariciou uma ideia ousada que acabava de lhe nascer no espírito e decidiu não perder aquela mulher de vista.
"Espécie de crocodilo! Espera aí..." Assim foi a prometedora exclamação que lhe endereçou mentalmente.
Cinco minutos mais tarde já estava sentado ao lado dela, num banco da praça.
- Não me reconhece? - perguntou ele, sorrindo. Ela ergueu os olhos para ele e encarou-o.
- Recordo-me, sim... Boa tarde - disse ela com voz baixa, abafada, mas sem lhe estender a mão.
- E então, como vai isso? Conseguiu a caderneta?
- Tenho-a aqui!
Pôs-se imediatamente a rebuscar no bolso do vestido, sem abandonar o ar submisso. O polícia sentiu-se um pouco atrapalhado.
- Não vale a pena, não precisa mostrá-la, acredito-a. De resto, nem sequer tenho o direito... quer dizer... Diga-me:
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as coisas correm bem? - perguntou, pensando no mesmo momento: "Tenho necessidade de o saber! E quê? Vou-me pôr com amabilidades? Vamos lá, Podchiblo, entra a matar!" No entanto, embora se tivesse encorajado daquele modo, não se atrevia a entrar a matar. Havia nela qualquer coisa que não permitia abordá-la imediatamente de muito perto.
- Se correm bem? Vão indo, com a graça de... Interrompeu-se bruscamente, abandonou a frase e corou
violentamente.
- Ainda bem... Os meus parabéns. É uma profissão dura quando não se tem o hábito? Ha?
Ela teve repentinamente um movimento de todo o busto, o rosto empalideceu, as feições endureceram-se, a boca arredondou-se como se fosse soltar um grito; com a mesma brusquidão endireitou-se para se afastar dele e retomou a atitude precedente.
- Eu cá me habituarei! - disse ela num tom igual e nítido. Depois, tendo pegado no lenço, assoou-se ruidosamente.
Podchiblo sentiu o peito oprimido. Era tudo aquilo, o gesto, a proximidade, os olhos azuis, tranquilos, imóveis. Encolerizou-se contra si próprio, ergueu-se e estendeu-lhe a mão sem dizer nada, com ar zangado.
- Adeus! - disse ela, suavemente.
Ele respondeu com um aceno de cabeça e afastou-se rapidamente, chamando-se a si mesmo idiota e de criançola.
"Espera minha linda! Terás a tua conta! Eu te farei ver quem sou. Esse ar de "não-me-toques" há-de passar-te. Eu me encarrego disso!" - ameaçou-a ele, sem bem saber porquê. Mas via bem que nada tinha a censurar-lhe.
o que aumentava ainda mais a raiva que sentia.
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III
Alguns dias mais tarde, Podchiblo caminhava em direcção ao cais da Sibéria quando foi detido por uma onda de gritos, de insultos e outros ecos dum alarido escandaloso que atingia a rua através da janela dum botequim.
- Polícia! Socorro! - berrava uma voz arquejante. Ouviam-se pancadas terríveis, com um ruído de ferragens, de móveis arrastados, e uma voz satisfeita, de baixo, que mugia de modo a cobrir toda a algazarra:
- Força! Dá-lhe mais!... Em cheio no focinho! Pumba! Podchiblo trepou a escada a correr, abriu, com o auxílio
de empurrões violentos, caminho entre a multidão que se tinha acumulado à porta da sala e teve ao alcance da vista o seguinte quadro: com o busto inclinado para a frente, por cima duma mesa, a sua velha conhecida, a mulher dos olhos azuis, tinha agarrado pelos cabelos uma outra mulher, puxava-a para si, e socava-lhe repetidamente o rosto apavorado e já inchado das pancadas.
Os olhos azuis estavam agora franzidos pela crueldade, os lábios estavam fechados e rugas profundas partiam dos cantos da boca para o queixo: aquele rosto que lhe era familiar, outrora tão sereno, tinha agora a expressão do animal feroz possesso de um furor implacável. Era o rosto dum indivíduo pronto a torturar indefinidamente o seu semelhante e a torturá-lo com delícia.
A vítima já se limitava só a gemer, a agitar-se espasmòdicamente e a bater o ar com os braços, estupidamente.
Podchiblo sentiu uma onda de furor a invadi-lo: o desejo violento de se vingar de qualquer coisa sobre alguém..
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Atirou-se para a frente e, segurando pela cintura a mulher que batia, arrancou-a de repente à outra.
A mesa caiu ao chão com um grande estrondo de louça partida; o público uivava selvàticamente, louco de riso.
Podchiblo via, como nos fumos duma embriaguez, passarem e repassarem diante de si todo um cortejo de fuças vermelhas, bestiais; mantinha cinturada a autora da rixa e gritava-lhe raivosamente ao ouvido:
- Ah! Fazes escândalo! Provocas brigas! Vais ver!
A que tinha sido batida caiu para o soalho, no meio dos cacos da louça partida; sacudiam-na soluços cortados por gemidos histéricos.
Um homem saltitante, vestido com um caftã, explicou a Podchiblo:
- Aquela, ali, Excelência, disse à outra: "Desinfeta daí, prostituta, debochada!" Então a outra mandou-lhe um borracho e aquela atirou-lhe com o chá às trombas! Aí começou a coisa, e agarro-te pelos cabelos, e arreio-te, e toma lá mais! Posso-lhe garantir que é raro ver uma coisa destas: uma tareia capaz de fazer estourar de inveja um carroceiro! Que carnaval!
- Foi então isso? - trovejou Podchiblo, apertando a mulher contra si com mais força e sentindo ele próprio a vontade de lhe bater.
- Cocheiro! Eh, cocheiro! - chamou alguém para a rua, num rugido, debruçado à janela, com o pescoço rubro, mostrando umas costas largas bizarramente curvadas.
- Vamos lá para a esquadra! Em frente, marche!... Ambas! Vá, põe-te em pé!... E tu onde estavas? E o teu serviço? Leva-as para a esquadra, animal! A trote! Ambas!... Salta!
O agente da polícia, espadaúdo, que aparecera entretanto, empurrando ora uma ora outra com a mão nas costas, fê-las sair da sala.
- Dá-me... um brande com água mineral, depressa ordenou Podchiblo ao empregado.
Depois deixou-se cair numa cadeira junto da janela, fatigado e furioso contra todos e contra todas.
No dia seguinte de manhã ela estava diante dele, tão resoluta e calma como na primeira entrevista; olhava-o de frente com o seu olhar azul e esperava o momento em que ele lhe dirigiria a palavra.
Podchiblo, que não tinha dormido o necessário e se sentia exasperado, remexia nos papéis colocados em cima
302
da secretária e, apesar daquela má disposição, não sabia como começar o diálogo. Os insultos que habitualmente eram de rigor nestes casos não lhe podiam franquear os lábios; queria encontrar alguma coisa de pior, de mais violento, para lhe atirar à cara.
- Como foi que essa história começou?... Fala!
- Ela insultou-me...-disse a mulher com ar digno.
- Olha a grande coisa... Seria insulto? - ironizou Podchiblo.
- Ela não tinha o direito de o fazer... Não sou da espécie dela.
- Oh, meu Deus!... Então que és tu?
- A mim é a miséria que obriga... Ao passo que ela...
- Essa é bem boa! Ela fá-lo por gosto, não?
- Ela?...
- Sim, ela. Achas que o faz por gosto?
- Porque o faria? Ela não tem filhos...
- Ah, é isso que tu querias dizer?... Cala-te ordinária! Não me venhas cá com os teus filhos para me tapar a boca... Vai-te embora, mas tem cuidado, se volta a haver qualquer coisa contigo, ponho-te daqui para fora em vinte e quatro horas! Proibida de voltar a pôr os pés no campo da feira. Percebes?... bom, bem vos conheço! Não sou para graças eu! Um escândalo! Eu te darei os escândalos... ordinária...
As palavras começaram a saltar da boca do polícia, mais insultuosas umas que as outras, para atingirem o rosto da mulher. Ela empalideceu e os olhos apertaram-se como na cena da véspera.
- Desaparece! - trovejou Podchiblo, dando um murro violento na secretária.
- Deus vos julgará... - articulou ela secamente num tom de ameaça, abandonando rapidamente o gabinete.
- Eu te direi quem são os juizes! - berrou Podchiblo. Tinha tido prazer em a humilhar. Aquele rosto calmo
e o olhar franco dos olhos azuis tinham-no posto fora de si. Que diabo tinha ela para manter a comédia da presunção? Os filhos? Palermices! Era preciso ter lata! Que vinham ali fazer os filhos? Uma ordinária que se tinha vindo vender à feira e que se fazia de ingénua... Uma mártir por força... dos filhos! Quem é que ela quer levar com essas balelas? Não tem a coragem de praticar o mal com franqueza, então põe-se a gritar que é a miséria... Ora bolas!... Quem poderá dizer...
303
IV
E no entanto eles existiam: o rapaz, pálido e tímido, no seu velho e coçado uniforme de aluno do liceu, e a rapariguinha, num impermeável de quadrados grande de mais para o seu corpo. Estavam ali, ambos, nas pranchas do cais de Kachine e tremiam de frio sob o vento de Outono, absortos na sua pacífica conversa infantil. A mãe estava em pé, atrás deles, encostada a uma love de mercadorias; olhava-os com o olhar acariciador dos seus olhos azuis.
O rapaz era parecido com a mãe; também tinha olhos azuis, voltava frequentemente para ela a cabeça coberta com um boné cuja pala estava quebrada e falava-lhe sorrindo. A menina tinha o rosto muito marcado pela varíola, o nariz era pontiagudo, os grandes olhos cinzentos tinham um brilho vivo e inteligente. À volta deles, no chão, alinhavam-se troixas e embrulhos.
Estava-se no fim de Setembro; a chuva caía desde manhã, o cais estava coberto por uma lama viscosa e o vento soprava, húmido e frio.
Vagas perturbadas percorriam o Volga e chocavam-se ruidosamente contra as margens. Por toda a parte um rumor abafado, pesado e violento... Toda a espécie de pessoas se agitavam, preocupadas, precipitavam-se não se sabia para onde... E na tela de fundo do cais, animado por uma vida fremente, o grupo formado por aquela mãe e os seus filhos, esperando calmamente, saltava imediatamente aos olhos.
Zósimo Podchiblo tinha há muito tempo notado aquele grupo e, mantendo-se afastado, observava-o, com uma atenção profunda. Via cada um dos movimentos que faziam e sentia-se envergonhado.
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Vindo do cais da Sibéria, aproximava-se o vapor de Kachine; dentro de meia hora teria partido para subir o Volga. O público precipitou-se para o ponto de embarque, atropelando-se todos uns aos outros.
A mulher de olhos azuis inclinou-se para os filhos, ergueu-se carregada de embrulhos e de troixas e desceu a escada; as duas crianças caminhavam à frente dela, igualmente carregadas e dando-se a mão.
Podchiblo devia ir também ao cais de embarque. Não tinha vontade, mas era necessário, e pouco depois estava lá, perto da bilheteira.
A mulher tirou um bilhete. Tinha na mão uma grossa carteira amarela de onde saía um maço de notas de banco.
- Para mim - dizia ela - é preciso... Para as crianças, segunda classe, vamos para Kostroma, e para mim uma terceira. É possível um único bilhete para os dois meninos?... Não? Mas pode-me fazer uma redução? Muito obrigado! Deus lhe...
Afastou-se com ar satisfeito. As crianças andavam à volta dela e perguntavam-lhe qualquer coisa, puxando-lhe pela saia.
- Oh, meu Deus, sim, claro, vou comprar, já tinha prometido!... Acham que eu recusaria? Dois para cada um? bom... fiquem aí!
Dirigiu-se para a passarela onde se vendia toda a espécie de artigos e de frutas. Algum tempo depois estava novamente junto dos filhos e dizia-lhes:
- Pega para ti, Babette, um sabonete... Cheira bem! Pega, cheira. E para ti, Pedrinho, um canivete. Como vês, lembro-me, não há perigo de que eu me esqueça. E estão aqui laranjas... uma dúzia. Não as comam todas já.
O barco acostou. Um choque. Toda a gente oscilou. A mulher pousou as mãos nos ombros dos meninos e apertou-os contra si, lançando à sua volta um olhar inquieto. Estavam ambos sossegados. Tranquilizada, pôs-se a rir, e os filhos riram com ela. Colocaram a passarela no lugar e o público lançou-se para o barco.
- Alto! Nada de confusões! Tu, palerma! - ordenou Podchiblo, diante de quem os passageiros desfilavam, dirigindo-se a um carpinteiro carregado de serras, machados e instrumentos diversos. Deixa passar esta senhora com os filhos... Que brutinho és, meu rapaz! - acrescentou mais suavemente, quando a senhora, aquela que ele conhecia e que tinha olhos azuis, lhe sorriu e o cumprimentou ao passar diante dele para subir para o barco.
Terceiro silvo.
- Largada! - ordenou o capitão do alto da ponte de comando.
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O barco estremeceu e começou a afastar-se lentamente.
Podchiblo, passeando o olhar pelo público comprimido na amurada, encontrou a mulher de olhos azuis, tirou respeitosamente o boné e inclinou-se para a saudar.
Ela correspondeu com uma profunda reverência, à russa, e benzeu-se com fervor.
Tinha partido para Kostroma com os filhos.
Podchiblo seguiu-a com o olhar durante alguns instantes, soltou um profundo suspiro e abandonou o cais de embarque para regressar ao seu posto. Sentia-se triste e abatido.
Publicado em 1895, nos números 197 e 199 da Samarskaia Gazeta. Só recentemente foi incluído nas OBRAS.
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O "PASSANTE"
(Quadro da Região do Volga)
Encostado ao talude da margem, um comboio de barcaças espera que as venham carregar.
Está luar; caídas dos mastros, longas fitas de sombra estendem-se pela água fria como estreitos caminhos que levam às trevas onde se afoga a margem oposta e onde brilha ao longe uma luz órfã.
O rio corre lentamente na escuridão, as vagas acariciam o costado das barcaças vazias, e, no interior delas, soam suspiros arrastados e surdos.
Na margem estão parados grupos de salgueiros e a Lua lança para o solo e para a água as suas rendas de sombras paralisadas.
Algures entre os arbustos cintila um fogo; uma leve luz vermelha ilumina as raízes, lavadas da terra pelas águas, e os ramos que as cobrem. O fogo olha através deles como se fosse o grande olho vermelho de algum monstro.
À proa da primeira barcaça, a montante, move-se lentamente o vulto pesado do marinheiro de guarda; às vezes pára junto da borda, olha longamente a água calma e retoma a sua marcha de uma borda a outra. Os passos dele ouvem-se nitidamente na margem e o som atinge uma grande distância em redor do comboio. Sob os seus pés, o rio continua a suspirar acariciando a madeira alcatroada.
O céu estrelado mergulha o olhar na água tranquila e as estrelas que nele se reflectem cintilam como outros tantos peixinhos dourados.
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A noite está fria, calma... e límpida.
De tempos a tempos um peixe chicoteia a superfície das águas e em qualquer parte, ao longe, um acordeão canta e chora; não se distinguem as palavras mas as notas tristes alongam-se uma após outra no ar húmido e frio do Outono; alongam-se e desaparecem sem eco nas trevas e no silêncio.
Na primeira barcaça o homem de guarda está parado junto da trincheira da borda; olha para a água e, de repente, levanta a cabeça para o enfiamento das restantes barcaças do comboio e lança um longo grito desolado:
- Pas-sante!
A seguir curva-se, apanha um arpéu comprido na cobertura e, depois de ter benzido com fervor, mergulha-o por cima da borda.
Ouve-se o ruído da água fendida contra a corrente por aquele obstáculo.
Na embarcação seguinte, ainda antes de o primeiro apelo ter tido tempo de se extinguir, soa por sua vez a mesma palavra lançada com uma voz cantante, numa única nota:
- Pas-sante!
O vulto do marinheiro de guarda aparece igualmente contra a borda, armado com um longo arpéu; tal como o primeiro, benze-se e mergulha-o na água.
- Pas-sante! - Chora uma voz aguda, de falsete, algures ao longe.
O eco da margem repete com nitidez a palavra plangente cantada tristemente pelos homens de quarto.
- Pas-sante-sante!
O marinheiro da embarcação de proa põe-se de repente a rodar energicamente o seu arpéu e em breve o seu grito melancólico soa no ar pela segunda vez:
- Engatado!
Mantendo o arpéu mergulhado na água, caminha para a popa e, ao chegar junto do leme, dá uma grande pancada em qualquer coisa na água e lança a meia voz para a embarcação seguinte:
- Largado!...
Depois disso retira o arpéu.
Então, no intervalo compreendido entre a popa da primeira barcaça e a proa da segunda, na banda de água iluminada pelo luar, aparece algo de branco e redondo como um balão que se destaca na massa escura, algo que se assemelha a um vulto humano.
A coisa aparece e desaparece novamente na sombra projectada pelo casco da barcaça.
- Agarrado!... - o grito do homem de guarda chora no ar.
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E o da segunda embarcação, tal como tinha feito o primeiro, marcha para a popa, com o arpéu mergulhado na água.
Pouco depois, soa uma segunda vez o breve sinal:
- Largado...
Na última barcaça estavam dois a aguardar o "passante": um, com o arpéu na mão, em pé, de olhos vigilantes; o outro, a seu lado, debruçando-se por cima da borda, com as mãos postas nos joelhos e olhando para montante com curiosidade.
- E se ele fica entalado por baixo de nós? - perguntou ele em voz baixa ao camarada.
- Não te preocupes, isso não vai acontecer.
- Mas se acontecesse?
- Isso, meu velho, era uma boa chatice! Vinha a polícia: "E como foi? E donde veio?" e por aí fora!... Davam-nos cabo da paciência! Deus nos livre.
Ei-lo que chega.
Deslizando vagarosamente na água o "passante" aproximava-se do arpéu apontado para ele pelo homem de guarda.
Flutuava de barriga para cima e o rosto, muito branco no fundo escuro da água, rolava olhando o céu estrelado. Balouçava-se tão estranhamente que parecia não estar satisfeito com o acolhimento dos homens de guarda e a ponto de lhes dizer: - Então, rapazes, isso são maneiras? Não me parece bem!
- Já o filei! - disse o último marinheiro.
Tal como todos os outros antes dele, caminhou para a popa, com o arpéu mergulhado na água. O companheiro seguia-o, com a cabeça inclinada para o lado, para a água.
- Tem botas - disse ele quando atingiram o meio da proa.
- É capaz de ser um dos nossos, um marinheiro! - respondeu o camarada, afastando com o arpéu o afogado do casco da embarcação.
- Deve ser, deve...
- Lar-ga-do! - gritou o homem de quarto para as outras barcaças, depois de ter retirado o arpéu.
- A corrente não o irá lançar contra a margem, aí, muito perto de nós? Nesse caso seria o mesmo: teríamos problemas.
- Não te aflijas! Agora vai seguir até à ponta, lá ao fundo, e ali será atraído para o canal. Agora não abordará antes de umas vinte verstas daqui. Olha, repara, afasta-se para a outra margem.
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- Isso é que seria uma maçada!
Durante um momento seguiram com os olhos, sem dizer nada, o "passante" que se afastava à tona da água.
Depois o homem de quarto atirou o arpéu para a coberta, tirou o boné rasgado, benzeu-se e pronunciou em voz baixa:
- Meu Deus, concede o repouso eterno a este teu servo e faz com que escapemos a uma morte acidental!
O camarada dele benzeu-se com devoção, tocando com força nos ombros e na fronte com as pontas dos dedos.
Quanto ao "passante", servo anónimo de Deus, vogava mais longe, no rio, vogava rolado pelas vagas e o rosto branco continuava a olhar para o céu estrelado, como se quisesse perguntar-lhe:
"Terei de flutuar ainda muito tempo, eu que morri afogado?"
Publicado em 1895, no número 203 da Samarskaia Gazeta. Foi refundido em parte pelo autor no terceiro capítulo do romance "Tomás Gordeiev". Não figurou nas primeiras edições das OBRAS.
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SOLITÁRIO
- O senhor não sai?
O senhor está sentado numa profunda poltrona de couro, diante duma enorme secretária quase inteiramente coberta de bugigangas variadas, que são outras tantas relíquias do passado. A cada uma delas está ligada uma recordação. Por cima da secretária está pendurada uma aguarela, o retrato duma mulher madura mas ainda bela, de rosto severo iluminado por um pensamento profundo: é essa a mais querida das recordações.
À volta do senhor, naquele pequeno aposento delicado, não há nada que não sirva para evocar as sombras do passado. O senhor tem um pouco mais de setenta anos, a cabeça abana-lhe e há muito tempo que os membros só muito dificilmente obedecem às ordens dum cérebro fatigado.
A sua cozinheira - governante também e o único ser no mundo que lhe toca de perto - está no enquadramento da porta e, tentando abafar um bocejo, interroga com uma indiferença sonolenta:
- O senhor não sai?
Aos setenta anos não há parte nenhuma onde ir, salvo ao sítio onde cada um de nós acabará por ir obrigatoriamente.
Mas o senhor informa-se, apesar de tudo.
- Que horas são?
- Dez menos um quarto.
Ele sabe que a cozinheira alterou meia hora mas não faz caso. Talvez lhe seja mesmo agradável saber aquela meia hora subtraída à soma total das horas que lhe restam
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para passar na solidão e na triste expectativa do fim definitivo. Diz suavemente:
- Não saio...
A porta fecha-se em silêncio e ei-lo novamente sozinho consigo próprio. Diante dele está uma bíblia em cima da qual estão pousados uns óculos; mas ele não lê, fuma cachimbo turco, longo; fuma e examina em cima da mesa os objectos que lhe são familiares, as fotografias amarelecidas pelo tempo.
O fumo do tabaco espalha-se no ar em ondas azuladas, desenha fantásticos arabescos pálidos, imobiliza-se um instante num tecido tão leve que os olhos mal apercebem, e desaparece. As pálpebras pesadas baixam sobre os velhos olhos embaciados, mas não é fadiga nem vontade de dormir. Ele já não tem sono, como não tem força nem calor no sangue, nem limpidez no cérebro.
Lentamente, lentamente, as imagens do passado outrora vivido que o tempo já mistura, tomam forma, a memória enfraquecida entra em tensão, esforça-se por ligar entre elas um lago cronológico interno.
Por vezes, como uma fagulha no monte de cinzas dum fogo que se extingue, um pensamento cintila na velha cabeça que pensou muito, e desaparece em breve sem ter tido tempo de provocar o acender duma outra.
As imagens reaparecem enquanto as nuvens de fumo se tornam mais espessas e planam num doce nevoeiro baço por cima da cabeça senil e oscilante, de rosto raiado por uma rede de rugas profundas e ornada com um colar penugento de pêlos brancos.
O tempo passa lentamente; a pêndula dum grande relógio de parede marca os segundos com uma exactidão severa.
Muito tempo decorre entre um batimento e o que se lhe segue. Do alto do retrato na parede, os olhos escuros da mulher olham, concentrados e graves, a face do velho e parecem esperar algo daquele gasto homem solitário.
Ora dele nada há a esperar senão a morte, e ele próprio nada mais espera.
Do outro lado da janela a chuva tomba ruidosamente, e o vento de Outono geme tristemente nas árvores.
Aquela cena repete-se todos os dias.
A porta abre-se e a velha serviçal pergunta com indiferença:
- O senhor não sai?
O tom em que pronuncia a frase soa mais como uma advertência do que como uma pergunta.
"Agora já não irá a parte nenhuma!", profetiza a velha, como se pretendesse lembrar ao patrão a lei do tempo que
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não tem qualquer compaixão com a vida, mesmo quando ela é boa e útil.
E a cabeça oscilante do velho parece confirmar esta lei com os seus acenos rítmicos:
"Sim, não irei a parte nenhuma!"
Acontece às vezes surgir-lhe um pensamento tristonho:
"Setenta anos de existência! Ter sido capaz de pensar muito, de muito compreender, de muito sentir e agir e, após isso tudo, já não ser capaz de deixar nenhuma sombra atrás, nenhuma mancha de claridade que possa servir de lição ou ser digna de se manter na memória de outrem... Nascer, percorrer o seu caminho, carregar a sua cruz e tornar-se decrépito e completamente só no mundo, ficar na terra num minúsculo quarto e esperar a mudança para um pequeno túmulo cavado na terra..."
E o velho, abanando a memória, recorda-se do curso da sua vida.
Vivia como a maior parte dessas pessoas apagadas e aborrecidas que é hábito chamar condescendentemente "as pessoas honestas".
Tinha uma noção das leis da moral e nunca as feria se não fosse obrigado contra a sua vontade; desejava conservar esse equilíbrio interior que se chama uma consciência tranquila e não a perturbava sem que a isso tivesse sido forçado.
Tinha introduzido no seu trabalho, inicialmente cheio de força e de originalidade, o conformismo dos hábitos. E então? O próprio fogo do Vesúvio arrefece com o tempo.
A caminho de atingir o acabamento definitivo dessa figura íntima que se chama concepção do mundo, tinha começado a desviar-se da ideia de compreender o espírito da época, tinha cessado totalmente de o compreender, tinha adoptado em relação a ele a atitude dum conservador, tinha-se imobilizado em quadros de conceitos já muito retardatários.
Trabalhava e às vezes punha no seu trabalho uma parcela do seu eu individual (se lho permitiam).
Depois casou-se, amou a mulher tanto quanto lhe foi possível; a seguir respeitou-a como uma companheira, mas se, de uma maneira ou de outra, ela lhe contrariava os desejos ou os actos, se, duma maneira ou de outra, ela lhe contrariava o "eu", fazia-lho sentir e, nas discussões, nunca lhe poupava o orgulho.
Tiveram filhos, alguns já tinham morrido, outros estavam tão longe e separados do pai há tanto tempo que ele duvidava que correspondessem ao apelo que fizesse para preencher a sua solidão; duvidava mesmo que eles fossem capazes de o lamentarem sinceramente no momento da sua morte.
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E como poderia chamá-los? Ele estava vivo e até com saúde; se chegassem agora junto dele, poderiam pensar:
"Que velho tão aborrecido! Não está moribundo, não tinha razão para incomodar assim as pessoas, para as forçar a fazer uma viagem tão longa unicamente para o verem..."
Talvez eles não sejam capazes de tais pensamentos; eram "pessoas honestas" que tinham dado muitas preocupações ao pai, mas também eram homens... E o tempo é o tempo! É preciso nunca o esquecer. Ele cura todas as enfermidades porque mata tudo, mesmo o que se chama simpatias, amor...
Amigos... Na maioria dos casos são juizes, professores ou tutores: a velhice não precisa deles. Às vezes encontram-se amigos: são raras excepções. São o reflexo demasiado exacto do que se é, tal como os espelhos; muito interessantes e preciosos inicialmente, depressa se tornam aborrecidos e desaparecem transformados em relações. Os melhores amigos são pessoas que não gostam de falar e sabem calar-se com compreensão. Mas esses são raros.
As pálpebras tornam-se cada vez mais pesadas, é-lhe cada vez mais difícil levantá-las.
De momento a momento mergulha mais profundamente nos seus pensamentos e sente um mal-estar como se uma humidade fria o tivesse submerso, enfraquecendo cada vez mais o corpo decrépito.
O coração pulsa vagarosamente; sente nos ossos uma dor abafada. Isso resulta do facto de não ter mudado de posição há muito tempo. Muda e pensa novamente em tudo o que lhe poderia embelezar os últimos dias. Onde poderia ir para cobrar alento e, ainda que por cinco minutos, esquecer, abafar aquela obsessiva sensação de fim próximo?
As relações? Que poderia levar às pessoas, que lhe desse direito a obter a atenção delas?
Que interesse poderia ele suscitar?
Relatar o passado? Já tinha contado tudo.
Expor a sua opinião sobre o presente? Não consegue compreender metade e não quer compreender a outra metade. Não quer porque, apesar de tudo, acreditava naquilo que hoje é motivo de riso. Falar do futuro? Não é coisa de que os velhos falem: os velhos não têm futuro.
Desprende-se dele um odor de morte e ele sabe-o.
E tem o seu orgulho: o orgulho dum homem que vê algo de fatal que o aguarda, que já está próximo; não serve de nada lamentar-se aos outros das leis que os regem mas que não foram elaboradas por eles.
De resto, não acredita que os homens sejam capazes sinceramente de se compadecerem uns dos outros; viveu
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demasiado para o acreditar, para ter conservado uma tal fé até esse dia, dia dum comprimento interminável, cheio de dores nos ossos, digestão difícil e dores de cabeça, dia passado a observar o processo segundo o qual se destrói um organismo.
Duas embaciadas lágrimas de velho escapam-se-lhe das pálpebras fechadas e correm lentamente ao longo das faces flácidas e enrugadas.
As nuvens de fumo azulado elevaram-se até ao tecto e desvaneceram-se porque o cachimbo se apagou e jaz no solo, tendo-se escapado das mãos do velho.
Apoiada na cabeceira da poltrona, a cabeça branca de rosto cheio de rugas, emoldurada de pêlos prateados, continua a oscilar e os braços estão pendentes ao longo do tronco; as mãos imóveis, amareladas e secas, de dedos nodosos, repousam nos joelhos.
O aposento está silencioso; só o relógio, com uma lentidão onde se pode suspeitar ironia, conta os segundos que caem gota a gota, sem deixar rastro, na eternidade.
Em cima da mesa, as fotografias descoloridas, as estatuetas e as bugigangas de todas as espécies contemplam o velho na sua poltrona; na parede olha-o o retrato da mulher.
O velho está sem movimento... Mas ainda não está morto.
As lágrimas rolam, saindo umas atrás das outras por debaixo das pálpebras fechadas; são lágrimas pequenas, mas que molham o rosto flácido. Seguem os dois sulcos de rugas que descem dos cantos da boca que estremece espasmòdicamente; misturam-se com a barba e escorrem para o peito.
Do outro lado da janela a chuva cai ruidosamente e o vento de Outono uiva com tristeza.
Publicado em 1895, no número 235 da Samarskaia Gazeta. Não figurou nas primeiras edições das OBRAS.
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INCIDENTE DESAGRADÁVEL
Milaiev, poeta bem cotado que tinha chegado a merecer já a seguinte apreciação: "Pequeno mas simpático talento", roçando pelos trinta anos, dotado duma cabeleira opulenta e de olhos castanho-escuros, tinha ido visitar uns amigos mas não tinha encontrado em casa deles senão a irmã da dona da casa, uma aluna do liceu, a pequena Vera.
Ele não sabia onde ir e decidiu ficar algum tempo com a jovem, tanto mais que ela lhe tinha declarado:
- A minha irmã não deve demorar.
Tinha notado nos melancólicos olhos cinzentos da rapariga o desejo de o reter; tirou o sobretudo e saiu com ela para o terraço, admirando-lhe a expressão emocionada e contente.
Sentaram-se frente a frente, de cada lado duma mesa, e ele esperou que a jovem representasse de dona da casa; calava-se propositadamente para prolongar uma confusão que lhe agradava.
Gozava junto das mulheres da reputação de ser um homem "irresistível", sabia-o e nunca deixava passar ocasião de se convencer disso mais uma vez. Evidentemente, a pequena Vera não tinha mais do que dezassete anos, mas por que não brincar um pouco com ela ao gato e o rato? De vez em quando é divertido.
Eram cerca de nove horas de uma tarde de Agosto. A noite caía: o jardim vestia-se de sombras, as árvores mantinham-se imóveis; tudo em redor parecia sonhar, no pressentimento do Outono próximo. Um perfume de flores, subtil, flutuava no ar, um grupo diáfano de nuvens macias alongava-se pelo céu como uma bela renda; no terraço
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reinava um silêncio que ameaçava tornar-se maçador se tivesse de durar mais dois minutos.
Milaiev olhava a palidez do rosto da pequena Vera que torcia nervosamente as franjas do xale lançado pelos ombros. Olhava-a e pensava:
"Falar-lhe de quê? É o inconveniente das relações com estas meninas; ainda não sabem conversar, não se interessam por nada, não compreendem nada."
O nosso Lovelace, cheio de experiência, começava ele próprio a sentir-se pouco à vontade diante daquela criança que, sentada em frente dele, o observava de esguelha com olhos cheios de uma interrogação séria ou talvez somente do desejo de quebrar aquele silêncio embaraçoso.
com olhar de perito, ele já tinha feito um exame completo, até aos mínimos pormenores, e achava que, no conjunto, aquela adolescente não era nada malfeita. Era estranho que o não tivesse notado antes.
- Senhor Milaiev! - começou ela subitamente, com timidez, embrulhando-se no xale.
Ele esperou que ela prosseguisse, com um sorriso interrogativo nos lábios, enquanto estudava o rosto inflamado pelo rubor da emoção.
- Tem muitos poemas?... Em casa... Poemas inéditos?
- Sim, tenho... Porquê?
- É que... Gostaria de os ler, todos, todos.
- Sinto-me encantado por ver o seu interesse. Já leu o meu livrinho?
- Quantas vezes! Sei páginas de cor. Alguns dos poemas agradam-me espantosamente! Espantosamente! Sinto-me tremer de emoção ao lê-los.
- Não exageremos! E quais, por exemplo?
- Há muitos! Aqueles que me agradam são sobretudo os que falam de si, aqueles em que fala do seu... desgosto... São muito belos, tristes como a noite... quero dizer, como os últimos raios do sol antes de se extinguirem... Não sei como explicar.
- Mas isso é uma observação de poetisa! Se calhar também escreve! Ha? Confesse! Ou, então, diga-me quais os versos que lhe agradam mais. Quer fazer-me esse favor?
- Mas... não sei... Há tantos de que gosto!
O rubor da emoção subiu-lhe novamente às faces.
- Diga o primeiro que lhe vier ao espírito. Terei tanto prazer em a escutar! Será como o chilrear dum passarinho! Peço-lhe, minha amiga!
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Ela reclinou-se no espaldar da cadeira de jardim, fechou os olhos, balançou a cabeça com um movimento regular, manifestamente ao ritmo dos versos que repetia mentalmente, e, um instante depois, após um sorriso embaraçado, começou com voz pouco segura:
Sono do jardim...
O sono do céu...
Bebendo o perfume
Das rosas adormecidas
Dormem também
No alto do céu
As pequenas estrelas...
Repara nas sombras flutuantes
Longe, silenciosas, lentas.
Repara: É um convite
Ao meu coração doente
Para que as siga.
Sob a minha janela.
Ouço como em sonho,
O murmúrio dos ramos do ácer.
As campainhas brancas
Torcem-se num sonho alegre.
E quando, no jardim,
O vento pensativo
Súbito respira.
Atinge a minha face
O seu fino perfume.
O jardim descansa... O céu descansa,
E no alto do céu dormem também
As estrelas minúsculas
Bebendo o odor das rosas adormecidas...
As sombras partem para algures
Suavemente, lentamente errantes,
E o meu coração doente
É chamado por elas, para o longe.
Sob a minha janela, através do meu sonho.
Ouço o murmúrio dos ramos do ácer
E no solo as campainhas brancas
Que se perdem num sonho suave.
E de repente, quando no jardim
O vento pensativo suspira,
O seu perfume delicado acaricia
O meu rosto. Porquê? Porquê? A carícia
Não me consola, não me anima.
Que importam as flores ou as estrelas
Se o meu coração perdeu o alento?
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Espera mais um pouco!
Acaricia-me, tortura-me
Até ao momento em que o sol
Venha iluminar a clarabóia!
Então ficará claro
Que estiveste aqui, tu e a noite...
O sol virá como uma carícia...
Para quê? Essa ternura
Não me consola, não me anima.
Que me importam as estrelas, as flores,
Se a vida se esvaiu no meu coração.
- Isto agrada-me porque é simples. Simples e muito triste. Além disso, vê-se bem, por estas rimas cruzadas tão espontâneas, que os versos lhe caíram do coração ao papel como os estilhaços dum objecto quebrado.
- Os meus parabéns. Disse o poema muito bem, compreendeu-o com muita sensibilidade! - disse Milaiev, intimamente adulado e com muito interesse na jovem. - Vai dizer-me mais alguns, peço-lhe; recita duma maneira tão bela e tão inteligente!
- Esses versos também me agradam muito! - disse ela, encorajada pelo elogio, perdendo a timidez, com os olhos iluminados por um ardor brilhante. - Estes não os compreendo completamente, mas também são tristes. O senhor implora alguém:
Mais um momento! Uma carícia mais! Que o meu tormento dure Até à hora em que surja Um raio de sol! Brilhará à janela E então haverá luz Aqui onde se misturavam Tu e a noite...
Ele interrompeu-a vivamente com medo de ter de se explicar. O poema era indiscreto e, manifestamente, ela não lhe compreendia o sentido.
- Ah, isso! Tt, tt! Mas diga-me...
- O que me agrada nestes versos? - perguntou ela, interrompendo-o.
- Não... quero dizer, sim, isso mesmo.
- Repare! Mais adiante afirma que o raio solar destrói os seus sonhos de felicidade celeste, que o remete uma vez mais para a realidade e que uma vez mais vão ecoar no seu coração tristes cânticos. Não ama a realidade e de
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dia tudo lhe parece grosseiro e vulgar... No entanto, diz ao mesmo tempo que o primeiro raio de sol lhe dá sempre prazer porque o faz reencontrar o real matando com a sua luz as visões e os sentimentos nocturnos... Não compreendo por quê. Por que razão lhe é agradável ver "destruídos pelo brilho do sol os delírios da noite"?
Ouvindo-a, Milaiev pensava:
"Vejamos o que ela descobriu nisso! Posso tirar partido do comentário dela, e aproveitar esse tema para um novo poema."
Enquanto reflectia, tinha dado ao rosto uma expressão de tristeza: quando falava de si mesmo tomava sempre o aspecto dum homem triste e abatido, ultrajado e desencantado pela existência. Não é muito original, mas causa sempre impressão sobre as mulheres.
- Pergunta-me por quê? Ora vejamos... vou tentar ser o mais claro possível. Não sei se me compreende: para os homens do meu género as coisas são e serão sempre assim:
...Ter prazer no combate
E na borda do abismo sombrio...
Sou incapaz de acreditar e, verdadeiramente, nada tenho a esperar da vida. Sou sozinho; ninguém me compreende. Ao mesmo tempo que desejo ardentemente tantas coisas, sei que nada obterei, nada! Mas levado por esse impulso para o melhor que é próprio do ser humano, deixo-me arrastar, imagino, vivo miragens da imaginação durante alguns instantes, e eu próprio as destruo, antes que a vida se encarregue disso. Antecipando-me a ela, sinto uma amarga satisfação. E é isso que vivo.
Fez uma pausa e pensou:
"É um bocado forte de mais, mas pouco importa! A pequena não compreende nada e, claro, não me vai apanhar em flagrante delito de contradição comigo mesmo, nem começar a pregar moral."
A jovem escutava-o, de cabeça baixa, em silêncio. Aquela pausa sobressaltou-a e exclamou vivamente, com voz triste e dolorosa:
- Sim, é isso mesmo que eu o imaginava! Mas é horroroso! O senhor é tão...
- Sou tão...? - perguntou ele suavemente, inclinando-se para ela.
- Infeliz! - terminou ela, baixinho, inclinando novamente a cabeça; pouco depois acrescentou ainda mais abaixo: - Mas distinto...
Ele sorriu enquanto lhe examinava em pormenor a silhueta esbelta e notava os lóbulos rosados das orelhas
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onde brincavam tão agradavelmente os fios de seda dos cabelos castanho-claros.
- Sim... a vida não é fácil... Para falar francamente, vive-se por curiosidade.
- Que quer dizer com isso? - perguntou ela, timidamente, com espanto, semicerrando os olhos.
- Vive-se apenas do desejo frio de saber qual o mesquinho pormenor que distinguirá o amanhã do dia de hoje. Quanto ao verdadeiro, ao ardente desejo de viver... e mesmo ao desejo de desejar qualquer coisa, isso não existe. A alma é devastada pela vida. Frio e aborrecimento. Mas quem tem, Vera? Desculpe-me, entristeci-a!
Sim, ela chorava. Tinha tomado todas as palavras dele por moeda corrente e chorava. Ele tinha esquecido que se tratava duma criança e tinha forçado um pouco a dose. Já era desagradável. Mas o aborrecimento aumentava ainda mais pelo facto de que o rosto lavado em lágrimas tinha cessado de ser belo, estava amarrotado como o rosto de um bebé rezingão e tinha perdido todo o atractivo. Os ombros já começavam a tremer e era de esperar que em pouco tempo rebentasse em soluços. Ele não sabia que conduta adoptar. Se se tratasse duma mulher ter-se-ia aproximado, ter-lhe-ia agradecido com emoção aquelas lágrimas santas e desinteressadas, a simpatia que lhe demonstrava, a ele, poeta-mártir e solitário, ter-lhe-ia beijado a mão respeitosamente, com uma profunda veneração, o pescoço com devoção, e teria terminado por um beijo apaixonado nos lábios; era sempre assim que as coisas principiavam e assim que acabavam.
Mas era uma criança! Que devia fazer?
"Que situação estúpida!", pensava ele, censurando-se mentalmente, pronto a puxar as orelhas da culpada para a punir por aquela cena. "Que diabo me levou a falar-lhe? Aqui está o que é o hábito! Vais então, meu coração, tirar partido de uma vitória destas! Pff!"
- Se... eu... pudesse... - balbuciava ela, baixinho, através das lágrimas.
- Acalme-se, Vera! - suplicava ele, agitando-se em torno da cadeira dela, e esperando ouvir de um momento para o outro tocar a campainha e ver entrar a irmã daquela choramingona. Que belo quadro, então!
- Eu me daria... a si... toda... para toda a vida... "Aí está o começo da histeria!", pensou ele, numa exclamação trágicaç.
- Vera, tenho de me ir embora. Acalme-se, peço-lhe. Mas ela tinha dificuldade em se acalmar. Estava tão
perturbada, sentia uma tal compaixão por aquele poeta
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incompreendido de todos, cujos versos eram tão musicalmente tristes, tão próximos de si, tão familiares!
- Adeus! Até depois!
Ela não respondeu. Ele ia sair. Ia partir para onde? Ela imaginava-o a caminhar sozinho, com o passo lento dum homem que carrega uma imensa dor no coração e não tem ninguém com quem a partilhar, solitário, pela rua sombria, a sua sombra movendo-se pelo solo, a seu lado, ele a caminhar tão triste, tão dolorido, com tanto medo da sua própria sombra, a única coisa que lhe era próxima!
A pequena Vera enxugou rapidamente o rosto e pronunciou com voz suplicante:
- Não parta! Não chorarei mais! Fique comigo.
Ela tinha uma tal vontade de se lhe lançar ao peito, de o abraçar longamente, de lhe dar muitos beijos, de o apertar com força!
Mas quando levantou a cabeça, ele já não estava no terraço. Ela ouvia-lhe os passos apressados soarem ao longe, no soalho.
- Senhor Milaiev! - implorou ela num grito.
A seguir, depois de ter aguardado em vão uma resposta, atirou-se de novo para a cadeira e recomeçou a chorar.
Ele, entretanto, caminhava a passos rápidos pela rua e sentia-se de muito mau humor.
"Porque lhe falei disso? Provoquei as lágrimas, que posso tirar dali? É um roubo, uma vigarice por amor da arte. Portei-me como um idiota. Mas, apesar de tudo, ela é bem engraçada, a miudinha! A irmã é mais inteligente, mas... Ora, ora, deixemo-nos de disparates! De resto, que lucrava eu com isso? Aborrecimentos! com as mulheres adultas é tudo mais simples. Porque vou eu a correr tanto?
Abrandou a marcha.
"Em todo o caso, ela emocionou-me. É agradável! Tenho de lhe dedicar um pequeno poema, com o respeito pela sua pureza virginal. Não, é melhor não o fazer. Senão, fica apaixonada a sério, e até ao pescoço. Como isto tudo é aborrecido! Onde hei-de ir agora?
A Lua tinha-se levantado.
A noite estava clara, quente, resplandecente de estrelas.
Mas ainda não era tarde; no ar, por cima da cidade, agitava-se o rumor abafado da vida, da vida em que há tanto de supérfluo e tão pouco do necessário.
Publicado em 1895 no número 246 da Samarskaia gazeta. Não figurou nas primeiras edições das OBRAS.
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COMO SÉMAGA FOI APANHADO
Sémaga estava na taberna, sentado à mesa, sozinho, diante de meia garrafa de vodka e quinze cópeques de frituras.
Era uma cave cheia de fumo e, sob aquela abóboda de pedra iluminada por duas lâmpadas suspensas e pela do balcão, a atmosfera estava incrivelmente saturada de tabaco; na névoa do fumo vogavam vultos escuros, andrajosos, indefiníveis; trocavam insultos, conversavam, cantavam e faziam tudo isso febrilmente, ruidosamente, com a plena consciência da segurança.
Na rua turbilhonava uma furiosa tempestade de neve como costumava haver no fim do Outono, soprando grossos flocos gelados que se agarravam às pessoas enquanto na taberna reinava o calor, o odor familiar e o alarido.
Sémaga estava sentado e, através da cortina de fumo, observava a porta com um olhar que se tornava especialmente agudo quando ela se abria e alguém entrava na taberna. Nesses momentos, o seu busto sólido e ágil chegava a esboçar um movimento para a frente, por vezes colocava a palma da mão em viseira ao nível das sobrancelhas e examinava longa e atentamente o rosto do recém-chegado; tinha sérias razões para agir assim.
Uma vez terminado o exame do novo cliente e convencido, a seu respeito, daquilo de que tinha necessidade de se convencer, Sémaga enchia o seu copo de vodka, bebia-o e, enchendo o garfo com meia dúzia de batatas fritas e pedaços de carne, fazia o conjunto tomar o caminho anteriormente tomado pelo vodka; mastigava lentamente, durante muito tempo, com ruídos húmidos, lambendo de vez em
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quando, com um movimento circular da língua, os bigodes cortados em escova à maneira dos soldados.
Caía-lhe da grande cabeça cabeluda uma sombra estranhamente hirsuta que se projectava na parede escura e húmida; quando mastigava, a sombra sobressaltava-se; o movimento parecia uma saudação aplicada que teria ficado sem resposta.
Sémaga tinha o rosto largo, glabro, as maçãs do rosto salientes, grandes olhos cinzentos apertados e encimados por sobrancelhas escuras e espessas. Uma mecha de cabelos frisados duma cor azulada, indefinível caía para a sobrancelha esquerda e quase a tocava.
No conjunto o rosto de Sémaga não inspirava confiança, e até a sua expressão resoluta provocava um certo mal-estar: era uma expressão tensa, inesperada mesmo na companhia e no cenário em que se encontrava.
Usava um casacão de fazenda, rasgado, que apertava na cinta com um cordel. A seu lado estavam pousados um chapéu e um par de luvas; tinha apoiado ao espaldar da cadeira a sua moca, de dimensões bastante impressionantes, de que uma das pontas era um nó de raiz.
Estava, pois, sentado, a mandriar, e, tendo acabado a bebida, preparava-se para pedir mais, quando subitamente a porta rangeu, abrindo-se de par em par com estrondo e algo de redondo, de andrajoso, que se parecia com um fardo de estopa desfeito, rolou pela taberna e pôs-se a gritar com voz estridente de criança que uma extrema excitação tornava arquejante.
- Vinte e dois! E mexam depressa o cu, camaradas! Os camaradas, todos, imobilizaram-se bruscamente no
lugar, calaram-se, depois agitaram-se com ar inquieto. Uma voz espessa e um pouco alterada perguntou:
- Não é brincadeira?
- Palavra, saltam dos dois lados! A pé e a cavalo... Comissários, inspectores, um montão de gajos!
- Que diabo querem eles? Não fazes ideia, não ouviste nada?
- Provavelmente o Sémaga. Perguntaram por ele a Nikfóritch! - tilintou a voz infantil, enquanto o pequeno vulto esférico do seu proprietário se mexia entre as pernas dos seus mais velhos, rolando na direcção do balcão, de que se aproximava cada vez mais.
- E Nikifóritch foi apanhado? - perguntou Sémaga, mergulhando o chapéu na cabeça e erguendo-se a toda a pressa da cadeira.
- Caramba... Apanharam-no logo...
- Onde?
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- Nas muralhas, em casa da tia Maria.
- Vens de lá ou quê?
- Claro! Atravessei pelos jardins e aqui estou; agora vou dar um salto à Fragata, a ver se também está lá alguém.
- Pincha!
- O garoto saltou para fora da taberna, seguido pela exclamação reprovadora do taberneiro, um velhinho de cabelos brancos, ainda esbelto, lon Petróvitch, homenzinho seco e temente a Deus, com óculos grossos de aros negros.
- Grande animal, semente de judeu! Maldito rebotalho! Em que instante ele limpou uma travessa.
- Uma travessa de quê?
- De iscas de fígado!... Limpou tudo. Não consigo compreender como aquela víbora do diabo teve tempo para semelhante proeza... Raios o partam!
- Aposto que ficaste arruinado! - disse gravemente Sémaga, atravessando a porta.
A borrasca, húmida e penosa, rumorejava surdamente tornejando por cima e ao longo da rua; flocos de neve molhada voavam numa massa tão espessa que se diria um cozido espumoso a ferver ao lume.
Sémaga parou um momento e apurou o ouvido, mas não se ouvia nada, excepto os pesados suspiros do vento e o chiar da neve contra as paredes e nos telhados.
Então Sémaga pôs-se a caminho; a dez passos dali escalou um tapume e deixou-se escorregar para um pátio.
Um cão ladrou perto dele e, como que para fazer eco a esse ladrar, algures relinchou um cavalo, escarvando o solo. Sem hesitar, Sémaga passou para o outro lado do tapume, voltou a encontrar-se na rua e seguiu-a, dirigindo-se para o centro da cidade com passo já mais rápido.
Alguns instantes mais tarde, distinguindo um rumor abafado que vinha ao seu encontro, desapareceu imediatamente atrás dum muro, atravessou o pátio sem problemas, atingiu uma porta aberta que dava para um jardim e, depois de ter atravessado sem infelicidades alguns outros tapumes e jardins, retomou a marcha numa rua paralela àquela em que se encontrava a taberna de lon Petróvitch.
Enquanto avançava, Sémega perguntava a si mesmo que direcção devia tomar, mas não encontrava resposta.
Todos os sítios seguros, nessa noite em que o Diabo tinha levado a polícia a fazer uma rusga, pareciam agora duvidosos; quanto a passar a noite na rua, no meio duma tal tempestade de neve, com o risco de cair nas mãos da ronda ou dum guarda-nocturno, não era hipótese que lhe sorrisse.
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Caminhava lentamente e, com os olhos semicerrados, olhava diante de si a massa branca daquela noite tempestuosa, de onde vinham ao seu encontro casas silenciosas, marcos, postes de iluminação, árvores, e tudo isso cercado por uma mole camada de neve.
Um ruído estranho atravessou o rumor da tempestade; dir-se-ia que uma criança chorava devagarinho, algures, em frente. Sémaga parou e, com o pescoço esticado, tornou-se semelhante a um animal selvagem alertado pela sensação do perigo.
O ruído extinguiu-se.
Sémaga levantou a cabeça e recomeçou a marcha, mergulhando mais profundamente o chapéu e metendo o pescoço nos ombros para impedir que a neve caísse entre o colarinho e a pele.
Precisamente a seus pés alguma coisa começou a soltar gritinhos. Sobressaltou-se, parou, inclinou-se, remexeu no chão e voltou a levantar-se, sacudindo uma espécie de trouxa para fazer cair a neve.
- Que raio de coisa! Um bebé! Oram vejam lá isto! murmurou ele, surpreendido, elevando o seu achado até à altura do nariz.
O achado estava quente, mexia-se, todo molhado pela neve que lhe tinha fundido em cima. Tinha um rostozinho nitidamente mais pequeno que o punho de Sémaga, um focinhinho enrugado; os olhos estavam fechados e a boquita abria-se constantemente com um ruído de lábios. A água que caía dos trapos molhados escorria-lhe para o rosto e para a boca sem dentes.
Sémaga estava totalmente espantado, mas, para evitar ao garoto a triste necessidade de engolir a neve fundida, adivinhou que era necessário arranjar-lhe os trapos, e, para isso, virou-o de cabeça para baixo.
Aquilo deve ter parecido desconfortável ao bebé que se pôs a vagir como um lamento.
- Cala a boca! - disse Sémaga severamente. - Cala-te! Senão, vais ver o que te faço. Que diabo de destino te vou dar, agora? Ha? Não tinha necessidade de que me aparecesses! Ainda por cima choramingas! Ora, deixa-te disso, meu estúpido!
Mas o discurso de Sémaga não causou a mínima impressão ao seu achado: a criança continuava a gemer com uma voz tão dolorida e tão suave que Sémaga se sentia mal.
- Bem, meu rapaz, como queiras! Compreendo: estás molhado, com frio, e não passava dum bebèzinho! Mas isso não quer dizer que eu saiba onde te hei-de meter.
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A criança continuava a chorar.
- Nem quer dizer que eu tenha um sítio onde te abrigar!
- disse Sémaga num tom definitivo; embrulhou o melhor possível o achado e, inclinando-se, depositou-o na neve.
- Não te posso fazer nada. Que poderia fazer? Meu velho, eu próprio sou qualquer coisa no género duma criança perdida. Adeus... Não faças barulho!
com um gesto de impotência, Sémaga afastou-se da criança, resmungando sozinho.
- Sem a ronda, eu poderia arranjar um sítio qualquer, aqui ou acolá. Mas há a ronda! Não posso fazer nada! Peço desculpa! Tu és uma alma inocente e a tua mãe uma puta. Se a conhecesse dava-lhe um bom apertão de costelas e punha-lhe as tripas ao ar. Apanha que é para pensares melhor; para a outra vez não sejas parva! Há limites para tudo. Alma danada. Deus queira que não tenhas fogo nem lugar e que a terra se recuse a acolher uma rapariga amaldiçoada como tu, que rebentes de desgosto! Essa agora! Faz os filhos e deita-os à valeta! Queres que te arranque a cabeleira? Vais ver... cadela! Devias compreender que com um tempo maldito como este não se deitam crianças à rua, está tudo molhado, elas são frágeis, a neve acumula-se-lhes na boca e abafam. Bruta... escolhe uma noite seca para abandonares o pimpolho. com o tempo seco poderá viver mais tempo e as pessoas poderão encontrá-lo. Que raio, pensas que andam pessoas pelas ruas com uma noite destas? Cabra...
Em que momento exacto, em que passagem do discurso, Sémaga arrepiou caminho e voltou para a criança abandonada, pegando-lhe novamente? Não deu por isso no calor das censuras dirigidas à mãe do abandonado. Instalou-o contra o peito, debaixo do casacão, mimoseando a mãe com todos os insultos, e retomou o caminho, invadido pela tristeza, emocionado pela compaixão que sentia por aquela criança e por si próprio, tão lamentável como uma outra criança.
O achado mexia muito pouco e vagia surdamente, comprimido pelo pesado tecido do sobretudo e pelo braço forte de Sémaga. Em cima da pele Sémaga tinha apenas uma camisa rasgada e por isso o peito não tardou em sentir o calor morno e vivo do pequeno corpo.
- Estás vivo! - resmungou Sémaga, prosseguindo o caminho pela neve, a direito. - Que raio de sarilho me arranjaste! Que vou fazer de ti? Boa chatice! A tua mãe... em todo o caso... Não te mexas, dorme. Acabas por cair ao chão.
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Mas o achado agitava-se e Sémaga sentia o rosto quente da criança roçar-se-lhe no peito através dum buraco da camisa.
Bruscamente, Sémaga parou como que petrificado e gaguejou em voz alta:
- Caramba, é o seio que ele está a procurar, o seio da mãe... Meu Deus, o seio da mãe?
Sémaga estremeceu. Não era vergonha nem medo, era algo de estranho e de violento, de doloroso, que lhe enchia o coração duma vaga tristeza.
- Em mim... como se eu fosse a tua mãe! Ah, meu pequeno, que estás para aí a procurar?... Eu, meu rapaz, sou um soldado e, se queres saber toda a verdade, sou um ladrão.
O rumor do vento tornava-se cavernoso e plangente.
- E se tu dormisses?... Dorme, dorme! Vá, faz ó-ó, dorme. Não tens nada para chupar, o melhor é dormir. Vou-te cantar uma cantiga. A tua mãe é que te devia cantar... Lá, lá, lá, D-o, o, o, dorme, menino. Eu não sou nenhuma mulher. Dorme.
Começou de súbito a cantar suavemente, com a ternura que lhe era possível e com voz arrastada, com a cabeça inclinada para a criança.
Mãe desnaturada, estúpida, avarenta. Nunca conseguirás passar da cepa torta.
Cantava aquelas palavras num tom de canção de embalar.
A massa branca continuava a ferver na rua. Sémaga caminhava pelo passeio, mantendo a criança contra si, e, como a criança gritava sem cessar, o ladrão cantarolava suavemente por cima dela.
Quando te puder visitar Verás a tareia que te dou...
Algo que lhe descia dos olhos corria pelo rosto... decerto neve derretida. O ladrão estremecia constantemente, alguma coisa lhe fazia cócegas na garganta e lhe oprimia o peito, sentia-se triste até às lágrimas por ir assim na rua deserta, no meio da tempestade, com aquela criança que chorava contra ele.
Atrás dele soou um ruído abafado de cascos, vultos de polícias a cavalo apareceram na escuridão confusa; chegavam ao seu nível:
- Quem está aí?
- Quem vem lá?
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As duas vozes soaram juntas. Sémaga teve um sobressalto e deteve-se.
- Que levas aí? Responde! - pediu um dos cavaleiros aproximando-se do passeio.
- O que levo aqui? Um bebé!
- Quem és tu?
- Eu? Sémaga... evadido de Akhtyrha.
- És um amigo. Andávamos precisamente à tua procura! Vamos lá, caminha à nossa frente, à cabeça dos cavalos.
- Oh, para caminhar é preciso ir de lado. À beira das casas sopra menos. No meio da rua não é bom. É assim que vamos fazer.
Os polícias mal o compreenderam mas autorizaram-no a seguir pelo passeio e avançaram ao lado dele sem o perder de vista.
Caminhou assim até à esquadra.
- Ah, ah! Foste apanhado, meu rapaz! Assim é que está bem! - disse o comissário ao acolhê-lo no seu gabinete.
Sémaga acenou com a cabeça e perguntou:
- E agora que vai acontecer ao miúdo? Onde é que o ponho?
- O quê? Qual miúdo?
- Uma criança abandonada! Encontrei-a. Está aqui. Sémaga tirou o seu achado do peito. Estava dobrado
em dois, mole, na sua mão.
- Mas ele está morto! - disse o comissário.
- Morto? - repetiu Sémaga.
Olhou para a criança e pousou-a em cima da mesa.
- Raios partam isto! - disse ele, acrescentando com um suspiro: - Eu devia ter pegado nele logo no princípio. Talvez que assim ele não... Mas não peguei logo nele. Deixei-o ficar e depois voltei.
- Que estás para aí a rezar baixinho? - disse o comissário com curiosidade.
Sémaga lançou à sua volta um olhar sombrio.
com a morte da criança tinha morrido nele muita coisa que lhe fizera companhia enquanto caminhava pela rua.
Estava cercado de amanuenses, esperavam-no a prisão e o tribunal. Sémaga sentiu-se ultrapassado. Lançou ao pequeno corpo um olhar reprovador e disse com um suspiro:
- Boa partida me pregaste! Não me serviu de nada ter gostado de ti! Estava a pensar... e afinal, pumba... morres... Que raio de história.
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Disse aquilo e pôs-se a coçar o pescoço furiosamente.
- Levem-no! - ordenou o comissário aos polícias, apontando Sémaga com um movimento de cabeça. Levaram Sémaga para a prisão. E não há mais nada a dizer.
Publicado em 1895 no número 250 da Samarakaia Gazeta. Não figurou nas primeiras edições das OBRAS.
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A TIA AKULINA
(Esboço)
Num dia de Outono, com o gelo vitrificado, a Tia Akulina, mendiga que regressava a casa após o peditório, escorregou, caiu e magoou-se bastante. Enquanto se debatia no passeio e tentava levantar-se, um polícia que a conhecia bem aproximou-se dela e, pensando que ela estava "bebida" conforme seu hábito, começou a invectivá-la.
Então, velha bêbada! - dizia ele -, deste com as ventas no chão. Ainda te falta muito para rebentar, não? Quantas maçadas me tens dado, ha? Nem as poderia contar.
Olhava-a com um olhar severo, o tom da voz era mau e cortante, mas teria sido preciso muito mais para atrapalhar a Tia Akulina. Ela sabia que ele era um bom homem, que não lhe faria mal sem necessidade nem a levaria à esquadra: não era a primeira vez que acontecia levantá-la
na rua.
Nunca a tinha conduzido ao "bloco" mas sempre a casa e se lhe berrava, que diabo, isso não tinha importância: apesar de tudo, não se pode impedir que alguém a quem causamos aborrecimentos nos grite um pouco.
Para tentar reparar a sua culpa, ela reuniu todas as suas forças com a firme intenção de se levantar, mas soltou um gemido, fez uma careta e estendeu-se novamente no passeio, suspirando e gemendo.
- Ó trapo velho! - disse o polícia, tentando levantá-la.
- Nikifóritch, meu pequeno, não me toques. Tenho a certeza de que parti qualquer coisa.
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- Então levanta-te. Não acredito que tenhas partido nada!
- Meu caro amigo, tenho uma dor no pé... no pé direito... Não me toques. Espera aí, que eu morro.
- Mas que diabo queres tu, ó velha? Como posso levantar-te sem te tocar? Estás aí, à vista de toda a gente, a uivar; se é verdade que tens qualquer coisa, pelo menos arrasta-te para um canto.
- Nikifóritch, chegou a minha hora! Devias fazer com que me levassem a casa.
- Parece que não tenho mais nada para fazer. Cocheiro! Alguns minutos mais tarde rolavam ambos num fiacre.
A Tia Akulina estava sentada no chão da viatura, enquanto Nikifóritch, sombrio e carrancudo, lhe sustentava a cabeça e tentava acalmá-la.
- Então, velha resmungona!... Já chega... não gemas mais.
- Isto dói, meu pequeno!
- De quem é a culpa?
- Ai-i! E o dinheiro que eu semeei! Perdi tudo, velha como sou...
- Que dinheiro?
- As esmolas que me tinham dado... Sete cópeques!
- Olha a grande coisa! - resmungou Nikifóritch entre os bigodes ruivos.
- Meu caro, e as pessoas que eu tenho às costas... Grão a grão enche a galinha o papo. Ai-i! Diz a esse cocheiro que não dê solavancos.
- Eh, camelo! - gritou Nikifóritch, bruscamente, furioso, aparentemente sem o menor motivo. - Cabeça de martelo! Não vês que levas uma doente? Vai devagar.
Encarou as costas do cocheiro com um olhar severo e prosseguiu a conversa com a velha num tom mais suave do que o anterior.
- As pessoas que tens às costas! Tu és bem estúpida, minha velha. Não há dúvida, és bem maluca, com esse teu mundo às tuas costas! Toda a espécie de vagabundos, de patifórios e de gajas, é o teu mundo! És uma idiota, minha velha, isso é que tu és, e ainda por cima nociva, porque estragas as pessoas. Toma bem nota, sem ti eles trabalhariam todos, mas têm-te a ti para lhes encher a pança... [ Estão contentes: Tia Akulina para aqui. Tia Akulina para ali, e entretanto vão-te comendo o que tens. Boa canalha! Se fosse eu dava-lhes com um chicote. E a ti também, para ver se aprendias. Não se deve mimar as pessoas. Essa é a minha opinião!... Eh, velha duma figa, adormeceste ou quê?
A Tia Akulina, com a cabeça apoiada nos joelhos do polícia, mantinha-se imóvel e não respondia. O rosto estava
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azulado, a boca desdentada estava entreaberta, os olhos revirados; mechas de cabelos grisalhos, ainda bem fartos e ondulados, tinham-se escapado do xaile rasgado que escorregara da cabeça.
- Ela deve realmente ter partido qualquer coisa! - concluiu Nikifóritch depois de a ter encarado atentamente. E talvez até já esteja morta! - disse em voz alta dirigindo-se ao cocheiro.
Este lançou um olhar à mendiga, por cima do ombro, e respondeu lacònicamente:
- Vá lá saber-se! Mas na minha ideia ainda não está.
- com certeza, uma vez que ainda está quente. Mas apesar de tudo talvez seja preciso levá-la ao hospital.
- Hum!... A casa dela fica mais perto! - disse o cocheiro. - Estamos a chegar.
Nikifóritch não disse nada. O cocheiro incitou o cavalo.
- Anda daí, pileca!
Entregaram a Tia Akulina em casa dela.
Na pequena sala do subsolo, escura e húmida, além da velha deitada num catre feito com tábuas postas em cima de cavaletes, havia oito pessoas. O Advogado, um miserável de cabelos grisalhos, roupas rasgadas, olhos salientes de alcoólico, estava sentado a uma mesa. A seu lado tinha-se instalado a Maria Manhosa, que vivia com ele: era uma mulher de forte estatura, meio cretina, cujos olhos cinzentos denunciavam o embrutecimento; todos aqueles a quem isso apetecia prodigalizavam-lhe, à maneira de gracejo, fortes pancadas, e isso com tanto mais liberdade quanto ela nunca se zangava; de cada vez ficava espantada e encarava com olhos redondos o brincalhão que acabava de lhe assertar um murro na nuca ou uma palmada nas costas... Mais quatro pessoas estavam sentadas no chão: larlik, com a idade de dezassete anos e três condenações por roubo; o seu professor, A Madrasta, um mendigo comprido e descarnado com olhos redondos e verdes de coruja, envolto num roupão andrajoso; Pedro Buch, que na semana anterior ainda se encontrava a cumprir três meses de prisão que merecera por ter desviado dinheiro do patrão: era um homem jovem de boa aparência, com barba e bigodes, rosto pálido e nervoso; e por fim havia Nastenka.
Jogavam as cartas, para entreter, "a feijões". Nastenka era o banqueiro; voltando ora para um ora para outro dos jogadores um rosto bastante agradável mas muito mal tratado, todo coberto de arranhões e de pisaduras, anunciava com voz rouca:
- Façam jogo! Quanto? Mil rublos! Pronto! Cem? Cartas na mesa! Ganhei a todos, meus anjinhos!
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O resto do público estava escondido na sombra, encostado às paredes. Nas tábuas, aos pés da Tia Akulina, estava o padre Diacre, uma espécie de irmão converso, fleumático, enorme, de grandes olhos negros e de cabeleira hirsuta cujos cabelos lhe caíam para a cabeça maciça em mechas negras e duras, ornadas de pedaços de palha, cascas, penas e outros lixos do mesmo género.
Uma voz que vinha da parede disse:
- Se lhe pusessem na perna batata desfeita misturada com farinha?
- Barro com vinagre metido dentro duma meia também não lhe faria mal - disse de baixo A Madrasta, assoando-se ruidosamente.
Mas o Irmão Diacre clamou:
- O primeiro remédio para todos os achaques da natureza humana é o vodka.
- Meus filhos! - gemeu a Tia Akulina, tão suavemente e num tal lamento que no subsolo se fez imediatamente o silêncio. - Meus amigos... meus pequenos... façam alguma coisa por mim, por amor de Deus! Esganem-me! Matem-me!... Não resisto mais! Parece que estou a arder!... oh!
Houve um momento de confusão no grupo de jogadores; puseram-se todos em movimento e Nastenka atirou duas cartas em vez de uma ao seu vizinho da esquerda.
O Irmão começou a coçar com ar sombrio a cabeça hirsuta; o Advogado foi assaltado por um ataque de tosse e, sem razão aparente, deu uma cotovelada na vizinha, a que esta, por força de hábito, não prestou atenção.
Mas todos recobraram rapidamente a calma.
- Presta atenção ao que estás a fazer. Torna a dar cartas, do princípio.
Nastenka apanhou as cartas com um suspiro e pôs-se a baralhar. O Advogado ergueu os olhos para o céu e começou a asobiar algo de lúgubre.
- Não te preocupes, tiazinha, tem paciência! - disse o Irmão Diacre, limpando a garganta com uma tosse espessa como se se preparasse para cantar.
- Estou a perder as forças... meus queridos filhos... gemia a velha.
- Isso passa... não te irrites... toda a gente sabe como tu és forte! - comentou A Madrasta para a confortar.
- Tenho dores em todo o corpo.
- Não se pode fazer nada... Grita mais alto para te aliviar. Gritar adormece a dor! - aconselhou Diacre.
- Meu Deus! Meu Deus! Ai! Ai! Ai! que é que eu tenho? vou morrer...
- Jogo na mesa - proclamou Nastenka, alegremente.
- Vejam lá o que eu teria ganho se fosse a dinheiro!
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A Tia Akulina parou subitamente de gemer e ficou em silêncio durante cerca de meia hora, estendida, completamente imóvel no catre improvisado.
- A velha adormeceu! - disse Diacre. Aproximou-se dos jogadores, acocorou-se ao lado deles e pôs-se a cantarolar entre dentes.
O Advogado franziu os sobrolhos, abandonou o jogo e tomou o lugar de Diacre à cabeceira da velha. Fixou atentamente o olhar no rosto da Tia Akulina e confirmou com voz rouca:
- Está certo! Ela dorme. Mas estava enganado.
A velha abriu a boca desdentada, mexeu os lábios com um estalido abafado e começou a lamentar-se no meio de gemidos:
- Nikifóritch, meu amigo, apanha as esmolas por amor de Deus... sabes muito bem que eles estão à espera... Há sete cópeques perdidos, estão aí, atrás do tapamento, procura... Há duas moedas de dois cópeques... uma velha e outra um bocadinho mais nova... Meu bom senhor... dê uma esmolinha a uma pobre velha que tem família! Meus filhos, aí está o cesto, comam, hoje há muito pão... Mas não há nada para beber... O dinheiro não aparece sozinho, mesmo depois das ave-marias.
Hilarião, bom companheiro. Depois iremos passear; Eu sou ainda muito nova Mas esperarei por ti à sombra.
A voz da velha quebrou-se e ela começou a gemer, agitando-se, rolando de um lado para o outro, mexendo a perna intacta e dizendo, ao ritmo dos movimentos:
- Ta! Ta! Ta!
- Está a delirar! - disse o Advogado coçando o nariz.
Todos os que jogavam as cartas se levantaram e agruparam em torno da doente, encarando-a com olhos cheios de curiosidade.
- Olha como ela dança! - comentou larlik, rebentando a rir.
- Vai dançar para nós! - disse o Advogado, com voz aborrecida e arrastada. - Vai ser preciso fazer qualquer coisa, rapazes. Não há dúvida, ela está mesmo doente.
- Era preciso dar-lhe vodka. Um bom copo, bem cheio!
- declarou Diacre com um suspiro lambendo os lábios.
- Era preciso mandá-la para o hospital - disse secamente A Madrasta, afastando-se do catre.
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- Pensas que a recebem? Experimenta e vais ver! ironizou um céptico.
- É verdade, ela não tem papéis!... E, de resto, como é que iria para lá? É preciso um fiacre... e tudo o mais... onde é que se ia arranjar o dinheiro? - prosseguiu o Advogado.
-E se fizéssemos como foi da Felícia, da outra vez? Levá-la ao hospital e deixá-la lá sem dizer nada?... Nunca se sabe, talvez a admitissem! - propôs Nastenka.
- Leva-a tu... Tens uma boa garupa de cavalo. É pena que não haja carro para te atrelar! - zombou larlik.
- Vá, meus filhos, comam! Há uma torta de couves, está inteira, é o meu pecado... Tirei-a na taberna; o tipo estava a olhar para o outro lado e durante esse tempo, hop... Nikifóritch! Não me batas, eu não passo duma velha bêbada.
- Acalma-te, velha! - suspirou o Advogado.
- E como é que vamos comer? Há alguma coisa para meter no dente? - disse uma voz vinda dum canto.
- Não há dúvida, deixemo-nos de brincadeiras! Era preciso comer! - recomeçou A Madrasta.
- Onde está a sacola da velha? - perguntou larlik a Nastenka.
Começaram a procurar a sacola mas não a encontraram. Essa circunstância produziu na assistência uma impressão desagradável.
- Louvado seja Deus! - exclamou alguém. Olharam-se mutuamente e fez-se um silêncio geral; era
manifesto que todos tinham o mesmo pensamento.
- E agora como é que nos vamos alimentar se a velha morre? - perguntou a voz do Diacre num lamento.
Tinha-se quebrado o silêncio.
- É verdade!
- Não é caso para brincadeiras.
- Sim, se é preciso dizer a verdade, o certo é que se vivia das esmolas da velha! - disse o Advogado num tom grave.
- Comam, meus filhos; enquanto eu for viva, eu...- delirava a Tia Akulina.
A sua honrosa posteridade sentia-se completamente desamparada; descobria o verdadeiro significado do acontecimento, em toda a sua amplitude.
A Tia Akulina era a benemérita do aterro da Rua das Lamas. Recolhia esmolas e, acessoriamente, quando as circunstâncias eram favoráveis, roubava um pouco. Estava sempre cercada duma ninhada de "desamparados", cinco a dez pessoas que tinham vindo procurar refúgio junto dela, e desenrascava-se sempre para os alimentar. Esta
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descendência compunha-se de ébrios inveterados, ladrões e prostitutas, todos momentaneamente impedidos por qualquer motivo de exercer o seu ofício.
A Tia Akulina não sabia dividir a Humanidade em duas categorias: os que eram dignos da sua atenção e os que não eram dignos; prestava a mesma atenção, calor e ternura a todos os que o destino levava a passar pelo seu terreiro.
Toda a rua a conhecia e o seu nome ultrapassava largamente os limites da zona. Mas, de qualquer forma, na boca dos vadios e dos perseguidos, "tornar-se um boneco da Tia Akulina" significava encontrar-se na mais triste das situações; porque a Tia Akulina parecia ser o sinal do mais inconfortável nível de vida, de tal modo que, apesar da sua grande celebridade, devida à sua acção filantrópica, não gozava do afecto dos seus pupilos.
Residir com ela apresentava ainda outro inconveniente mais grave: ela era demasiado conhecida da polícia e, quando esta procurava um indivíduo que lhe merecia interesse, o ponto de partida das investigações era quase sempre o tugúrio da Tia Akulina. Os vadios que ainda tinham uma possibilidade de se aguentarem pelos seus próprios meios, evitavam a velha; só o mais terrível conjunto de circunstâncias e a perspectiva de morrer de fome levavam as pessoas a refugiarem-se em casa dela.
Acrescente-se a isso que a Tia Akulina era dotada de um físico particularmente repugnante. Curta de pernas, quase sempre em estado de semiembriaguez, envolta em trapos inacreditavelmente rasgados e sujos, o rosto com dois olhos vermelhos e lacrimejantes, dominado pela protuberância de um nariz inchado e púrpura, sulcado de rugas e cicatrizes, marcas de toda a espécie de sevícias algumas das quais lhe tinham sido infligidas pelos seus "filhos", merecia com toda a justiça a alcunha de "bruxa de Kiev" que se tinha enraizado desde há muito na gíria da rua. Quando caminhava, dobrada pelos anos, batendo o solo com o cajado, um eterno sorriso na boca negra e desdentada, falando sozinha com voz sibilina, tinha o aspecto repugnante duma bola viva feita de imundícies malcheirosas. Não poderia haver a menor esperança, em vê-la despertar simpatia. Por outro lado, a velha não podia, infelizmente, viver privada dos que a cercavam infelicidade à qual ela era sem dúvida incapaz de ser sensível. Se, por acaso, o destino se esquecia de atirar para junto dela alguns protegidos, a Tia Akulina tentava remediar por todos os meios uma tal carência convidando para casa tantas pessoas quantas lhe era possível juntar.
O mundo dos "banidos da sociedade" - esse mundo triste e desolado - também tem os seus reprovados e a Tia Akulina pertencia a esse número.
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- Isto é que é um raio de uma partida inesperada! exclamou larlik, pondo fim ao silêncio tenso que reinava naquela companhia.
- Estamos afogados! - disse o Diacre. E o Advogado confirmou com ar sombrio:
- Privados do nosso último refúgio!
- Oh, quanto a refúgio ele continua a existir! - disse a Madrasta com voz tranquilizadora. - O problema a resolver é o que se vai comer hoje e como arranjá-lo.
- Sim, hoje é a comida que nos arrancaram da boca! proferiu o Diacre tristemente.
- Deita-te com a barriga vazia e não uives tanto, monge duma figa! - gracejou larlik.
- Meus filhos... queria água! - balbuciou a doente abrindo os olhos.
Nastenka deu-lhe água. A velha bebeu, benzeu-se com a mão trémula e passeou o olhar por eles todos. Depois soltou um profundo suspiro e começou a mover a cabeça estranhamente em cima do monte de farrapos em que repousava.
- Meu Deus, tanta gente! - começou ela com voz rouca, entrecortada pela fadiga, mais desagradável por isso do que o habitual. - Aquele ali não o conheço!... Como te chamas?
- Eu chamo-me Buch.
- Buch! Serve... Que Deus te proteja... és um homem como qualquer outro. Aqui todos somos iguais. Mas eu estou a morrer, rapazes... A velha vai embora! Deus vos salve! Vivi, pequei, embebedei-me, roubei... Agora vou morrer e deixarei de fazer essas coisas...
- Quanto a isso deves ter razão: há boas possibilidades de que um morto perca a vontade de beber um copo! aprovou o Diacre num tom de gracejo.
Ao mesmo tempo que a velha voltara a si, voltara igualmente a esperança ao coração daquele homem: talvez ainda houvesse alguma coisa para comer hoje.
- Não tenho vontade de nada! Perdoem-me... E que Deus vos perdoe a todos! Vocês não gostavam de mim, da vossa velha, não faz mal, o problema é vosso. Eu gostava de vocês, gostava muito! Adeus... que a rainha do Céu vos consiga a salvação.
Benzeu-se outra vez.
- Vá lá, tiazinha, não penses mais nisso!, gaguejou o Advogado. - Hás-de curar-te... Ficas um tempo na cama, depois levantas-te...
- Não, nunca mais me levantarei. Estou toda desfeita, de alto a baixo. Devo ter rebentado as tripas... Vejam como estou a arder... Adeus!
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- Eh, tiazinha! - interrompeu A Madrasta. - Não penses mais nisso, já te disse. Era melhor que nos dissesses se arranjaste alguma coisa hoje.
- Eu? Falta-me a memória, não me lembro. Mas parece-me... Bem, alguma vez saí sem arranjar qualquer coisa?
- Então, onde está? - tratou o Diacre de se informar.
- Não sei. Quem me trouxe? Nikifóritch? Foi ele, com certeza...
- Corre, Nastenka! Vai-te informar!
- Era o que faltava, ir para a rua com esta cara toda pisada!
- E eu dou-te uma carga de porrada, que até voas! Vais ou não vais?
- Sacana!
- Não discutam, meus filhos... Não devem... Dêem-me outras palavras a ouvir... Estou a dizer que morro... garanto... vou morrer. Ouçam-me, meus filhos: debaixo da minha cabeça há uma nota de três rublos, numa caixa... Era para o meu caixão, tinha-os posto de lado... quando eu morrer tirem a caixa... e...
Sufocou e a testa ficou perlada de suor. Os assistentes calavam-se e encaravam-na com uma atenção concentrada. O silêncio durou um ou dois minutos.
- Ha?
- Ouve, não te zangues com o que te vou dizer. Sabes, quando se está morto tanto faz... perde-se a vontade de tudo... mas connosco é diferente... nós estamos vivos. Que te importa o caixão? com caixão ou sem ele... para ti é igual; hás-de ter um, de qualquer maneira, dado pela polícia. Se não te importas dá-nos essa nota: poderíamos comer qualquer coisa.
- Não se devia... Que estás a dizer? - cochichou o Advogado.
O outro olhou para os assistentes.
- E então, havemos de morrer também nós? - replicou ele, cochichando também; depois inclinou-se para a velha e perguntou: - Então? Podemos pegar na nota?
A Tia Akulina abriu a boca, estalou os lábios e proferiu com voz quase imperceptível:
- Peguem, peguem! Sou uma velha tola... Realmente é verdade... Ia-me esquecer de vocês precisamente no momento de morrer... Levem... está aí... claro... que estúpida... o caixão é a polícia que o dá.
Calou-se.
- larlik! Corre! - cochichou o Diacre triunfante, retirando de baixo da cabeceira a caixinha branca de produtos farmacêuticos que continha os três rublos.
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larlik fez uma careta e desapareceu.
- Afastemo-nos, é preciso deixar a criatura em paz! propôs ao público o astucioso Diacre.
O público refluiu. A Tia Akulina ficou sozinha no seu monte de trapos. O rosto violáceo destacava-se mais nitidamente em cima daquele amontoado de farrapos. Jazia imóvel e quase nem gemia, apenas de longe em longe um suspiro fraco.
Ninguém notou o momento exacto em que morreu.
Enterraram-na no dia seguinte. O caixão estava num carro, o cocheiro, de cabeça descoberta, caminhava ao lado e comunicava o seu protesto a Nikifóritch que se mantinha do outro lado do carro com um registo na mão.
- Esta é que é a verdade: não há direito. Agarra-se num trabalhador e... anda, arranja-te, encarrega-te do transporte! Quem me vai pagar o rublo que perco? Ha? Se estivesse no mercado do trigo, teria ganho rublo e meio; aqui, é meio rublo que me dão. E ainda por cima não é já. Quanto tempo me vão fazer esperar? E meio rublo não chega para dar de comer ao cavalo, essa é que é a verdade, meu velho.
Mas Nikifóritch não prestava atenção ao resmungar do carroceiro. Ao lado dele, velho soldado que tinha passado uma verde e uma madura durante toda a vida, caminhava o Advogado, dobrado em dois, cabeça descoberta, as orelhas tapadas com um trapo sujo, as mãos profundamente mergulhadas nas mangas dum casaco de mulher com gola de pele, todo rasgado. Nikifóritch dizia-lhe com ar compenetrado:
- Para vocês, bando de crápulas, a velha era como mãe. Bebia forte, mas isso não tinha importância; roubava, mas era para vocês. Estás a perceber? E afinal quem a acompanha sou eu, contigo. Se não me tivessem enviado, teria pedido licença e teria vindo de minha vontade para a acompanhar. Percebes? Eu, meu velho, vejo as pessoas até ao fundo. Tu, por exemplo, vais morrer, e a coisa não deve demorar muito. Não me engano, não há dúvida, vê-se bem pela tua cara, a tua hora está próxima. Mas a ti não te virei acompanhar, a não ser que me enviem. Não contes com isso. Porque tu, que és? Uma porcaria, um detrito ambulante!
O Advogado levantou os olhos descoloridos para Nikifóritch e esboçou um sorriso que parecia uma careta.
- Não tenho necessidade de ti, não precisas de vir...
- Não há perigo de que eu venha. Irás sozinho para o cemitério.
- E depois? vou sozinho. Que tem isso?
- Irás sozinho. Porque tu não és nada. A velha era a vossa mãe... Tinha um coração. Percebes?
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Era o degelo, a neve caía.
Caía em grossos flocos pesados e húmidos, caía no caixão da Tia Akulina e aquele caixão de pinho, despido, sem ornamentos, estava todo molhado pela neve que derretia em cima dele.
Foi assim que foi enterrada a Tia Akulina, ladra, mendiga e benemérita do aterro da Rua das Lamas.
Publicado em 1895, nos números 261 e 266 da Samarskaia Gaseta. Não figurou nas primeiras edições das OBRAS.
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O COCHEIRO
(Conto de Natal)
Movimento desusado que anuncia a festa, dias de limpeza geral, de lavagem e despesas, dum sem-número de gastos miúdos com vista ao Natal que esvaziam quase totalmente o bolso dum homem que vive do seu salário: esses dois-três dias tinham abalado fortemente os nervos de Paulo Nikolaievitch, que já não eram antes especialmente sólidos. Ao acordar, na manhã da véspera de Natal, sentia-se completamente doente e cheio de uma amarga exasperação contra todas essas convenções da vida que transformam uma festa, um dia de repouso, numa agitação insensata, contra a mulher que dava a essa agitação o valor dum acontecimento extraordinariamente importante, contra os filhos que, sem vigilância, faziam uma algazarra dos diabos, contra a criada, esgotada, carregada de preocupações, que não fazia nada como devia fazer.
Gostaria de se manter fora daqueles "solavancos estúpidos", mas uma tal classificação, aplicada àquele dia especial, tinha desencadeado uma briga com a mulher, e, para a serenar e para se encontrar a si mesmo, foi obrigado, bem contra a sua vontade, a tomar parte nos preparativos: tinham-no mandado aos estabelecimentos comerciais, depois ao mercado para comprar a árvore de Natal para as crianças, depois arranjar flores para decorar a mesa, e por fim, por volta das cinco horas da tarde, exausto, tinha conseguido repousar. Tinha-se enfiado no quarto, fechando cuidadosamente a porta, e tinha-se deitado em cima da cama da
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mulher; com as mãos debaixo da cabeça, pôs-se a contemplar o tecto fixamente, sem pensar em nada.
Uma penumbra suave, no meio da qual brilhavam as lâmpadas acesas diante dos ícones, reinava no quarto limpo e confortável; sombras macias caíam no soalho e na parede e balouçavam. O ranger dos trenós em cima da neve subia até ao quarto, misturado com gritos e ruídos diversos, mas tudo isso adquiria uma sonoridade macia que embalava.
- Pára, Nicolau, por amor de Deus!
"É a minha mulher que ralha ao pequeno. Ele provavelmente não fez nada de mal, mas ela está fatigada e é ele quem paga. Ah, a educação dos filhos! É estúpido falar da educação dos filhos quando, afinal, a nossa própria educação está por fazer", pensava Paulo IMikolaievitch.
"Antes foi a ela que eu ralhei... que maçada! De resto, ela compreende que é um enervamento doentio e nada mais. E tira partido do meu nervosismo. É natural que os nervos se ressintam quando se está numa situação tão pouco invejável. Viver a trabalhar perpetuamente para ganhar uma centena de rublos por mês que deixam mais de uma centena de necessidades por satisfazer; e ser, ainda por cima, obrigado a ter boa saúde com uma vida assim: é demasiado para as forças dum homem da nossa época. A paciência é uma coisa boa quando se pode ter esperança num futuro melhor. Ah, como tudo isto é estúpido, mesquinho e vulgar. E, no entanto, a vida é feita disso. Trabalha-se para comer e come-se para recomeçar a trabalhar no dia seguinte. A família. Alguém propôs que se proibisse por decreto o casamento dos pobres. Quem o fez era sem dúvida um homem compassivo. Que posso eu dar à minha família com o que ganho? À minha mulher é impossível oferecer-lhe uma vida suportável do ponto de vista do conforto; quanto às crianças, é impossível assegurar-lhe uma educação suficiente. Tudo é estúpido, irremediavelmente estúpido, porque o conjunto das necessidades de um homem é superior à soma das suas forças. Não se poderia encontrar uma solução através duma redistribuição das riquezas, a não ser que nós, os neurastériicos, fôssemos expulsos deste mundo. Para que me serve filosofar assim? É mais um encantador hábito de civilizado, a!go no género da embriaguez, a julgar pelos seus efeitos sobre o organismo!"
Colocou-se de lado, arranjou a almofada debaixo da cabeça e fechou os olhos, com os braços cruzados em cima do peito, a mão esquerda no ombro direito, a direita no ombro esquerdo.
Uma conversa que tinha tido havia pouco com o cocheiro que o trazia do mercado voltou-lhe ao espírito. O dito
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cocheiro era um homenzinho magrote, andrajoso, um infeliz, abatido, quebrado pela vida.
"- Quem poderia ter pensado há um ano que eu estaria tão em baixo? Fora de brincadeira! Há motivo para isso! Nesse tempo eu era porteiro em casa duma comerciante chamada Zametov. Conhece? Era em casa dela que eu estava. Era uma boa vida, uma vida mesmo muito agradável. Eu estava lá como pau para todo o serviço, mas por sinal o trabalho não era muito. Então, como não tinha muito que fazer, pus-me a pensar... Em quê? Ao acaso, no que calhava... em tudo... E uma vez que uma pessoa se põe a olhar para o mundo com um olho mais atento, é impossível deixar de reflectir, não lhe parece? Em primeiro lugar: o Diabo! Mal se começou, ei-lo que nos sopra directamente na cara. Perde-se então a tramontana, deixa-se o caminho e começa-se a andar pelos campos. Parece que se anda à procura de qualquer coisa; mas à procura de quê? Para principiar é preciso encontrarmo-nos a nós mesmos, saber para que se é feito na vida. Se se consegue encontrar resposta... perfeito, está certo. Não é assim?
"- Aquela comerciante, deve-se dizer, era uma ladra. Mas é difícil imaginar o dinheiro que ela tinha. Formidável! O que ela já acumulara, a gaja! Chama-se Capitolina Petrovna. E acumulava daquela maneira para fazer o quê? Vá-lhe lá perguntar; ela não dará resposta. Nem ela sabe, não faz a menor ideia. No entanto, um dia morrerá como qualquer outra pessoa; disso pode ter a certeza, não consegue fugir. Mas, diga-me cá, é para a morte que é preciso aquele dinheiro todo? Acho que para a morte de um homem basta perfeitamente muito pouco dinheiro. Não lhe parece, Senhor? "- De quê? É isso mesmo... Ela não tem filhos. É sozinha como o nariz no meio da cara. Está na casa em que vive como uma coruja no seu buraco. Tem três servidores ao todo. O cocheiro, depois eu - quero dizer, o porteiro - e uma espécie de Marion, uma malcheirosa que é cozinheira. Mais nada. Recebe toda a espécie de monges, peregrinos e outros tipos do mesmo género. Só Deus é que sabe como é que eles ainda a não estrangularam. E era o que se devia fazer, estrangulá-la, uma vez que é uma criatura completamente inútil a Deus. Mas o que Ele quer fazer só Ele o sabe. Nós não somos juizes. O que não quer dizer que não seja de admirar como ela consegue escapar. É sozinha, por isso está a ver... Basta dar-lhe um bom enxerto no ponto sensível e o capital muda de mãos. Alguém acabará por descobrir o jeito, e, se souber fazer as coisas bem feitas, vai ter sorte. Eh, Oh, velha pileca!
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O cocheiro conversava, dava estalos com a língua para estimular o cavalo, agitava-se no seu lugar e voltava a cada momento para Paulo Nikolaievitch o rosto congestionado pela embriaguez. Tinha olhos cinzentos, vivos, pálpebras vermelhas e inflamadas, um nariz como uma cebola e as duas faces marcadas pelo frio com manchas violáceas.
- Já bebi um bom copo de vodka!-exclamou ele, sorrindo abertamente, consciente de ter cumprido uma acção brilhante.
Paulo Nikolaievitch teve a impressão de que aquele filósofo sofredor, aquele homenzinho magricela estava de algum modo próximo dele. Sentiu-se mal perante a ideia desse parentesco. Aquele cocheiro tinha qualquer coisa de perturbador. No entanto, essa inquietação nublada e imprecisa teve apenas como efeito levá-lo a mergulhar a cabeça mais profundamente nas almofadas e a dobrar-se sobre si mesmo.
- A mulherzinha já é velha, não precisa de grande coisa. Uma pancada bem dada e o negócio fica arrumado! dizia o cocheiro.
- bom, isso é fácil, vais lá e tratas disso. Deixa-me em paz! - disse Paulo Nikolaievitch, exasperado.
- Eu não posso. Tu sim, tu é que o devias fazer. És uma pessoa inteligente, a coisa está dentro das tuas possibilidades.
- Anda lá para a frente. Deixa-te de disparates. Porque me chateias? Paguei-te ou não? - gritou Paulo Nikolaievitch.
- É justo! - concordou o cocheiro, tranquilamente. Vamos partir, não te zangues. Eu queria fazer alguma coisa por ti. É uma coisa muito simples e completamente segura. Pensa nisso. Para que serve ela? É isso que te pergunto. És um homem cheio de vida e não tens meios. Ao passo que com ela, hop, com uma pancada...
- bom, vai-te embora, deixa-me dormir - disse Paulo com voz monótona e serena.
- É isso, é isso, dorme, repousa... É uma boa coisa... Adeus
E o cocheiro desapareceu.
- Ele não é nada tolo - disse Paulo Nikolaievitch sentando-se na cama. Ele tem razão. Eu não sou Raskolnikov, não sou um idealista. É uma coisa segura. Há riscos mas o lucro é compensador. Oh, se isso me rendesse ao menos dez mil... Eu saberia viver com isso. Independência é o que o dinheiro significa. A liberdade! Não é a liberdade que eu desejo? E os prazeres? Sonhar com o que se chama a felicidade e que ninguém conhece. E para ter tudo isso basta uma única pancada. O risco: uma vida baça, má, aborrecida;
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o lucro: uma vida independente, rica, cheia de tudo aquilo que me apetecer para a encher. Os tormentos da consciência? Parvoíces, imaginação. A consciência é difícil apanhá-la, praticamente não existe. Além disso, para quê pensar uma vez que decidi agir?
Não notara o momento em que tinha tomado a decisão; isso tinha acontecido no meio dos pensamentos, mas sentia com todo o seu ser que o assunto estava resolvido, e de um modo irrevogável.
- Como devo operar? - interrogou-se.
Mas afastou imediatamente essa interrogação.
- Não, não devo pensar nisso, não vale a pena pensar em nada. Que se consiga de uma só vez ou não! É melhor que seja duma vez e sem pensar. E mãos à obra, sem demora.
Apercebeu em todo o seu ser um enorme afluxo de energia, duma energia tranquila, certa do sucesso da empresa, determinada a combater tudo poderia atravessar-se-lhe no caminho. Pronto a agir, levantou-se da cama, espreguiçou-se, retesou os músculos e lançou à sua volta um olhar preocupado.
- Mas com que diabo a vou matar? com o pequeno machete que serve para quebrar o açúcar? É leve de mais. com o ferro de passar? O ferro de passar envolto numa toalha? É muito prático, li isso em qualquer parte. Excelente instrumento. Tenho de sair de modo a não ser notado por ninguém. Levarei o ferro que está na antecâmara. Também preciso de um saco de mão, ou de outro saco qualquer, para trazer o dinheiro. A minha mulher tem isso. Certamente tentaria dissuadir-me se soubesse o que resolvi fazer. Hum! É mais do que certo! Mas as opiniões geralmente admitidas não me podem deter, a mim, um homem com tal energia e que empreende com tal lucidez um acto criminoso
- para usar as expressões habituais. O homem é a medida de tudo; é a primeira vez que me torno consciente disso e faço-o de um modo luminoso. Entre todos os filósofos só os sofistas se intitulavam sábios e eram os únicos a ter esse direito. Sim, o homem é a medida de todas as coisas. As leis estão em mim e não fora de mim. Não hesito, portanto tenho razão. vou. É curioso, para não dizer nada do resto. Mas qual é a razão deste renascimento que sinto em mim? Na realidade nenhum de nós sabe o que lhe acontecerá, em que se tornará, no instante seguinte àquele que ele vive presentemente.
Na porta da Senhora Zametov, Paulo Nikolaievitch parou e olhou a fachada atentamente. A casa, um velho imóvel de um andar com uma frontaria de rebocos estalados, olhava, impassível, a rua e o homem parado a seus pés. Entretanto, o homem estava ali e pensava:
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"Como se vai fazer tudo isto? A coisa tem um interesse apaixonante. Posso vir a ser preso e então tudo seria estúpido e lamentável. No fundo, estou no limiar duma vida nova. Que vou fazer de quem me abrirá a porta? Ah! Ah! Evidentemente! Será a prova, a primeira lição.
Puxou vigorosamente o cordão da campainha e, na expectativa dos momentos que iam decorrer, o coração pareceu deter-se. E os momentos foram bastantes, até que ouviu passos soarem do outro lado da porta e uma voz perguntou:
- Quem é?
"É Marion, a cozinheira", pensou Paulo Nikolaievitch, apalpando o utensílio que trazia escondido numa aba do sobretudo.
- A Senhora Zametov está?
- Está. Quem é o senhor?
- Diga-lhe que... venho da parte da casa Birukov disse Paulo Nikolaievitch, a quem o nome do mais importante armazenista de mercearia da cidade ocorrera naquele momento.
A chave rodou com um leve ruído, seco, a porta abriu-se e Paulo Nikolaievitch viu diante de si uma criada jovem, com olhos negros muito vivos. Esse facto tirou-lhe a coragem.
- A senhora não está em casa? - perguntou ele, sem entrar.
- Está nos banhos. Entre! - disse a rapariga, abrindo ainda mais a porta e encarando o visitante com confiança.
- Ah! - disse Paulo Nikolaievitch, mordiscando a barba
- é pena, sabe! Você é tão nova... voltarei cá depois, certamente.
- Mas no fim de contas isso não vai dar ao mesmo? exclamou a criada, escancarando os olhos.
- Diz que vai dar ao mesmo? Hum! Talvez tenha razão. Bem, vou entrar. Feche a porta.
- Claro, vou fechar a porta imediatamente, não a vou deixar aberta - disse ela, a rir-se; ouviu-se uma vez mais o ruído da chave, seco, e o trovão duma tranca de ferro.
A rapariga inclinou-se para os pés de Paulo Nikolaievitch, decerto com a intenção de o ajudar a retirar as galochas; nesse momento ele brandiu bem alto o ferro de passar e deixou-o cair com força sobre a nuca dela. A rapariga soltou um profundo suspiro, o rosto chocou-se contra o solo, e ela ficou estendida ao comprido. Paulo Nikolaievitch ouviu uma espécie de tilintar e a seguir algo de metálico que rolava pelo chão.
"Devia ter sido um botão do corpete que se soltou", pensou ele, olhando o corpo harmonioso que jazia a seus pés envolto nas pregas da chita cor-de-rosa. Em todo o caso,
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matei alguém. Não é difícil nem assustador. E diz-se, escreve-se que matar... Ah! Ah! Ah! Quantas bagatelas, quantas mentiras neste mundo! E para quê essas mentiras, onde se fala da nobreza do homem? Para o transformar num ser nobre por meio dessa falsidade!
- Ana, quem tocou? - soou uma voz de mulher, seca e imperativa, vinda do alto.
- Fui eu! - respondeu vivamente Paulo Nikoiaievitch, subindo os degraus quatro a quatro.
- Que deseja, meu amigo?
No alto da escada estava uma mulher alta, magra, com um vestido escuro; o rosto era comprido e ossudo, o pescoço também. Inclinou-se um pouco para examinar com um olhar inquisidor o homem que avançava para ela.
"Deixei o ferro lá em baixo". Paulo Nikoiaievitch imobilizando-se por um momento, coisa que não escapou ao olhar da Senhora Zametov.
- Que deseja? - perguntou ela com voz mais forte que da primeira vez, recuando dois passos. Atrás dela havia um espelho e ele apercebeu o pescoço dela visto por detrás.
- Venho da parte da casa Birukov! - disse ele com um sorriso mau, caminhando para a velha.
- Pare, pare! - disse ela, estendendo os dois braços à sua frente.
Paulo Nikoiaievitch afastou-os de tal modo que eles lhe apertaram os flancos e, rapidamente, agarrou a velha pela garganta.
- Da parte da casa Birukov! - repetiu, mergulhando os dedos no pescoço da mulher e procurando as vértebras sob a pele. A velha estertorava e agarrava-se à roupa do agressor, ora no peito, ora nos lados. O rosto tornava-se violação, uma língua còmicamente balouçante pendia-lhe para fora da boca. Ele apertou-lhe as espáduas com os cotovelos e ela não podia portanto atingir com os dedos ossudos a cabeça ou o rosto do adversário, mas tentava apesar disso fazê-lo. Conseguiu por fim agarrar-lhe o colarinho, o botão saltou do alvéolo e tombou pela escada abaixo.
"Objecto comprometedor, é preciso encontrá-lo", registou ele, num relâmpago.
A velha já vacilava mas ainda oferecia luta, batia-lhe nos joelhos e rasgava-lhe as roupas.
- Pare! - gritou ele muito alto, num tom de comando; sentia as unhas da velha na pele do peito e, ao mesmo tempo que gritou, apertou-lhe violentamente a garganta. Ela cambaleou no soalho, arrastando-o consigo na queda. Rolou por cima dela e sentiu o velho corpo agitado por um último sobressalto. Depois, quando lhe pareceu que já estava morta, tirou as mãos, soltou o pescoço e, limpando o suor
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da fronte, sentou-se no chão ao lado da vítima. Sentia-se fatigado e exasperado, não furioso nem feroz, mas muito precisamente exasperado, nada mais. A velha não se mexia, estendida numa posição torcida. Paulo Nikolaievitch olhou-a e não sentiu nada: nem compaixão, nem terror, nem repugnância pelo cadáver. Estava completamente indiferente. Mantinha-se ali e pensava:
"Apesar de tudo, como as pessoas morrem facilmente e como é necessário tão pouca coisa para chegar aí! Uma pancada com um pedaço de ferro e lá se foi a vida. Inteligência, movimento, palavra, tudo desaparece sob a acção duma causa que, grosso modo, parece clara e tudo se mantém intrinsecamente obscuro. Morrer é terrível! Mas vale a pena viver para afinal atingir a morte, vale a pena fazer seja o que for para atingir este fim: matar, por exemplo? É estúpido e vulgar! Então, porque fiz eu isto? Vou-me embora: que o Diabo as leve a elas e ao dinheiro! Tudo isto por culpa daquele maldito cocheiro.
- Olha, estás aí?
Ele estava efectivamente ali; sentado na balaustrada, com as pernas pendentes, olhava Paulo Nikolaievitch com curiosidade. Tinha o chicote numa das mãos e com a outra segurava-se à balaustrada.
- Há muito tempo que aqui estou-disse ele, sem se perturbar. - Então, acabaste por levar essa história até ao fim?
- Palerma, animal! Que queres saber?... sim, matei pessoas! Queres que te mate também? Bem o merecias, selvagem! - indignou-se Paulo Nikolaievitch.
- É verdade que mataste pessoas, mas isso não é razão para te irritares. Não as lamentas, não é verdade?
- Não, não as lamento, mas apesar de tudo...
- Se não as lamentas não vale a pena falar nisso. E, de resto, para quê lamentar os mortos? Um vivo é uma coisa: um vivo merece que o lamentem. Assim é que se deve falar.
- Está bem, não te ponhas a filosofar - disse Paulo Nikolaievitch severamente. - Vai-te embora, eu vou fazer o mesmo. Tudo isto é estúpido.
- E o dinheiro? Pega no dinheiro! Tenta pegar nele. Talvez com esse dinheiro encontres a felicidade. Deves pegar no dinheiro, foi para isso que vieste aqui.
- Si-im, não há dúvida! vou buscá-lo.
Paulo Nikolaievitch, sentado no chão, agarrou xa cabeça com as duas mãos e balouçou o tronco. Uma ideia surgiu-lhe no cérebro.
- Como é possível que eu me sinta tão indiferente? Sou um assassino. Acabo de matar pessoas, tirei-lhes a vida!
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Como foi possível? Onde estão os meus sentimentos? A minha consciência? Não há nenhuma lei em mim? Nenhuma lei interior? Que quer dizer isto? Que fizeste de mim, cocheiro? Acaso sou completamente indiferente, ha? Tenta compreender-me, sou indiferente?
O cocheiro cuspiu fleumàticamente e bateu com o chicote no joelho. Depois assobiou, olhando Paulo Nikolaievitch com fixidez. Também ele estava completamente indiferente. E o cadáver da velha estrangulada ainda jazia no solo. A presença da morta junto dele não tinha provocado em Paulo Nikolaievitch nenhum receio, a indiferença mortal do cocheiro também não, e o facto de ter morto em si toda a espécie de sentimentos também não; um aborrecimento parado, um aborrecimento de gelo tinha-se-lhe apossado da alma; apenas aborrecimento. Teve vontade de fechar os olhos e de se estender no chão, tal como a morta. Embora a tivesse estrangulado, ele tinha a sensação de que ela era a mais forte. E sentia-se radicalmente incapaz de encarar o cocheiro que não parava de assobiar algo de profundamente triste e, ao mesmo tempo, irónico. Agora parava de assobiar e começava a falar.
- Perdes o teu tempo a dizer palavras compassivas. Não acredito... Sim, meu rapaz, que tu és indiferente já eu sei. Que razão terias para te preocupar com sentimentos? Mataste, é verdade. Mas mataste de uma vez só. É uma boa coisa nos dias que vão correndo. Ela deu o suspiro sem passar por toda a espécie de tormentos; não se fala mais nisso. Matar lentamente, sem pressas, é realmente uma baixeza, sejamos francos. Mas de uma só vez não tem importância. Se a pessoa te pudesse falar depois da morte, agradecer-te-ia. Porque se pode dizer que lhe levaste um alívio, acalmaste-a de um momento para o outro. Quantas pessoas morrem por tua causa, por causa de cada um de nós, em suplícios lentos? As nossas mulheres... Não as torturamos? Os amigos... Não os martirizamos? Toda a espécie de pessoas que se chocam à nossa volta... Não suportam elas as torturas que lhes infligimos? E vês tudo isso e nada fazes para o impedir. Aí está, essa existência endureceu-te, tornaste-te indiferente. Compreendo isso perfeitamente.
- Que estás para aí a dizer? - perguntou calmamente Paulo Nikolaievitch interrompendo o estranho discurso do cocheiro.
- Digo o que é verdade. Contempla a vida com um olhar puro. Que ordem encontras nela? O homem não tem nenhum respeito pelo homem. Pena uns dos outros, também não. Ninguém ajuda a viver quem quer que seja. Briga-se por um pedaço de pão e todos se batem contra todos. Não há partilha justa, não há amor. És um homem e pensas que não
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tens que te preocupar com os outros. E então? À tua volta e à minha há centenas, milhares que perecem. E todos nós vemos isso e todos achamos que está na ordem natural das coisas. E então? Se se pode fazer isso, também se pode matar desde que se tenha o braço bem forte. Evidentemente, é perigoso matar porque há tribunais para isso, mas se não existissem tribunais, então estaríamos absolutamente à vontade para nos assassinarmos uns aos outros, e poríamos mãos à obra. Como é de bom-tom usar fatos bem cortados, todos nós fingimos ser boas pessoas, mas o nosso coração é de pedra. Não há em nós a menor lei. As leis não estão muito longe de nós, mas a verdade é que não as trazemos no coração. O que te tornou tão sofredor? Não respeitaste a lei; poderias tê-lo feito, quer dizer que te sentes seguro de ti. És inteligente, escaparás ao tribunal, saberás desenrascar-te para que não te encontrem. De resto, já não é de hoje que tu não sentes compaixão dos homens. Se tivesses tido piedade, teriam eles uma vida tão penosa? Ora, ora! Digo-te que terias suavizado a vida deles com a tua piedade. Uma vez que a não suavizaste, só te resta liquidá-la. Em ti próprio não há interdição, não vale a pena discutir. As palavras são vento. Nada de exterior te pode ligar, desde o momento que estás liberto interiormente. És incapaz de ter vergonha em ti mesmo; estás-te nas tintas para as pessoas. É assim ou não? Então, age como te der na gana.
- Condenas-me? - perguntou Paulo Nikolaievitch.
- Em que é que isso me pode interessar? Não é nada comigo! Também sou um homem, tal como tu. Porque te iria julgar se eu próprio não tenho lei em mim?
- Que devo fazer agora? - perguntou Paulo Nikolaievitch, pensativo.
- Termina o que começaste, não tem qualquer importância.
- E o cocheiro desapareceu, bruscamente.
Paulo Nikolaievitch soltou um profundo suspiro e olhou à sua volta. O cadáver da velha jazia a seu lado, e ao fundo da escada estava o cadáver da rapariga.
Uma carpete vermelha, debruada a negro, cobria a escada. Algures, ao longe, no interior da casa, cantava um canário. Paulo Nikolaievitch levantou-se e perguntou em voz alta:
- Isto é um sonho?
O trovão da sua voz rolou através das salas, mas ninguém lhe respondeu. Avançou pelo corredor e, por uma porta aberta, apercebeu uma cama, num quarto.
- Deve ser o quarto de dormir da velha. O dinheiro está aqui. vou levá-lo. Agora não tem qualquer importância!- disse ele em voz alta.
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Debaixo da cama havia uma velha arca, baixa. Paulo Nikolaievitch, ao entrar no quarto, notou imediatamente um canto da arca que aparecia sob o pano do lençol. Baixou-se e puxou por ela; estava fechada à chave mas a chave estava na fechadura. Paulo Nikolaievitch deu a volta à chave e a fechadura abriu-se ruidosamente.
A arca estava cheia de dinheiro até aos bordos. Paulo Nikolaievitch começou a empilhá-lo cuidadosamente na sacola que tinha trazido. Depois encheu os bolsos. Eram tão pesadas aquelas notas de banco! Mexeu longamente naquele monte de notas, deixou muitas na arca, mas desceu a tampa sem qualquer remorso.
Depois saiu do quarto, desceu a escada, passou com indiferença ao lado dos dois cadáveres e atravessou a porta da rua.
A rua estava deserta, a neve caía e soprava um vento violento, mas Paulo Nikolaievitch não sentia o frio, caminhava lentamente e continuava a pensar como era possível que, tendo vivido tantos acontecimentos, não sentisse nada.
...Tinham passado oito anos desde o dia em que Paulo Nikolaievtch cometera o seu crime.
O filho mais velho, Nicolau, já ia nos vinte anos; uma das filhas estava noiva, a outra prometia seguir-lhe as pisadas no próximo ano. A mulher de Paulo Nikolaievitch, outrora uma mulher nervosa, eternamente esmagada sob as preocupações do lar e dos filhos, tinha-se metamorfoseado numa matrona cheia de gravidade; quanto ao próprio Paulo Nikolaievitch, gozava da estima geral e era o favorito nas próximas eleições para presidente da Câmara.
O dinheiro da velha tinha rendido: tinha-o aplicado com inteligência. Isento de qualquer receio, levava uma vida tranquila, honrada, trabalhando muito. Mas todos os seus amigos reparavam que o seu carácter simples e sociável começava a alterar-se. Paulo Nikolaievitch tinha sido um homem nervoso, sincero; tinha-se tornado insociável, sonhador, constantemente entregue a não se sabia que ideia fixa.
Não eram os remorsos na consciência que lhe atormentavam a alma; nunca se tinha perturbado com o que fizera, mas desde o dia em que assassinara a velha dominava-o uma interrogação:
"Há ou não, em mim, uma lei interior?"
Quanto mais a sua existência se organizava de uma maneira feliz, mais aquela interrogação o oprimia. Havia oito anos, no dia de Natal, toda a cidade tinha falado do misterioso assassínio da velha e da sua criada. Paulo Nikolaievitch, entabulando com todos conversas animadas a esse respeito, tinha-se observado minuciosamente, esperando
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sentir em si, a todo o momento, o temor ou o arrependimento. Mas nenhum sentimento desse género se ergueu nele e então interrogou-se:
"Mas é realmente possível que não haja em mim uma lei que me force a sentir-me criminoso?"
Era evidente que não existia na alma dele semelhante lei. No entanto, não podia esquecer que é próprio do homem experimentar sentimentos tais como a contrição, o remorso, o sentido de culpa, e obstinava-se a procurá-los em si mesmo; procurava-os, sem os encontrar, e ficava gelado de espanto perante si próprio.
"Para onde desapareceu então tudo o que havia em mim?"
A vida parecia-lhe estranha; ora era um delírio, ora era a existência fantástica dum homem cujo coração estava morto.
Um dia, quando se interrogava acerca do que acontecera aos sentimentos humanos que se tinham escapado dele, o cocheiro apareceu-lhe subitamente.
Ó seu aspecto era o mesmo, tão pouco atraente como no passado, o mesmo filósofo indiferente de sempre; o tempo não lhe tinha alterado a silhueta andrajosa, não tinha esfiapado mais o rasgado capote, não tinha também aumentado os buracos da roupa. Apareceu no escritório de Paulo Nikolaievitch, sentou-se no braço da poltrona, afastou com a ponta do chicote o chapéu que ficou desequilibrado na cabeça, lançou um olhar ao seu cliente de outrora e suspirou.
- Por onde tens andado? - perguntou Paulo Nikolaievitch rindo. Aquela aparição inesperada e misteriosa só lhe parecia divertida. Não se sentia nada perturbado ou receoso.
- Eu? Por todo o lado! - respondeu o cocheiro com ar indiferente. - Ainda estás vivo?
- É como estás a ver! Mas tu, diz-me lá quem és: o Diabo ou o Judeu errante? - perguntou Paulo Nikolaievitch recomeçando a rir.
- Porquê? Sou sempre o mesmo, simplesmente... uma criatura. E então, já encontraste essa lei? Continuas a procurar?
- Sim, procuro - respondeu Paulo Nikolaievitch que já suspirava. - Procuro, meu amigo, mas não encontro... É estranho, ha?
- Pelo contrário, é muito simples - disse o cocheiro.
- Não procures mais, não encontrarás. Tu suprimiste essa lei.
- Mas como? - exclamou Paulo Nikolaievitch.
- Não a aplicaste. Não a puseste em prática. Estavas sempre a pensar qual seria a lei melhor, e por aí fora, mas não há uma única que possa criar raízes no teu coração.
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Além disso, a vida sacudiu-te bem, tirou-te tudo o que tinhas lá dentro. Chegaste então a um ponto... não só olhavas a morte à tua volta com indiferença, mas até mataste tu próprio, tranquilamente, e fazes discursos e raciocinas acerca das razões do assassínio. À tua volta mantém-se sempre a mesma trituração, a mesma fealdade, as mesmas trevas, mas em ti mesmo Deus não acendeu nenhuma luz. Quer dizer, sim, Deus acendeu-a, mas tu extinguiste-a, armaste em esperto. Então o coração secou-te e, com ele, todos os teus sentimentos.
- Estás a mentir. Eu trabalho, afadigo-me.
- Que tem isso que ver? Também poderias largar tudo e deixar-te ficar plantado num sítio, como um poste, e era a mesma coisa. Para ti é tudo igual. Acaso o teu trabalho é um verdadeiro trabalho? Ora, ora! O que tu fazes não é um trabalho que vem do coração, vem dum ponto de vista, nada mais.
- Dum ponto de vista, como?
- Como? Não finjas que não compreendes. Não são os pontos de vista que vos faltam, há um para tal situação, outro para tal outra. Se fores eleito para chefiar a Câmara, por exemplo, há um ponto de vista especial para essa situação, e se te tornares chefe da Polícia haverá outro. Para ti o que conta é ser considerado, corresponder ao ponto de vista com que os teus amigos se habituaram a olhar-te. Mas não há indícios de um fogo que pudesse ser devorador: tratas os teus assuntos segundo a sebenta, por dever. Não é verdade?
- Admitamos. Mas... porque sou eu assim?
- Reflecte um pouco...
- Para falar com franqueza... sou como um morto.
- E como queres tu que seja de outro modo? É a pura verdade: estás morto.
- Que me vai acontecer?
- Acabarás por morrer, sem dúvida.
- Isso é o que farão os outros todos.
- Era o que faltava, que o não fizessem. Claro que o farão.
- Mas nesta vida, aqui, que me vai acontecer?
- Não faço ideia - disse o cocheiro abanando a cabeça.
- É horrível, ha, viver quando se não tem sentimentos. Não digas nada, eu sei que a tua vida é horrorosa. Lamentas isso, meu rapaz. Mas eu também sou indiferente à vida.
- Mas então, que se deve fazer?
- Sei lá! Podes gritar bem alto que não há lei em ti, nunca se sabe, talvez te ouçam...
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- E depois?
- E depois, nada. Ouvir-te-ão, olharão para si próprios, talvez se apercebam de que também neles não há lei, e então tornar-se-ão todos tão vazios e indiferentes à vida como o és tu mesmo. Isso servir-lhes-á.
- E a mim?
- Serás sacrificado. Ser sacrificado é uma boa coisa; anula os pecados, sabes?
- Desapareceu tal como tinha aparecido. Instantaneamente. Mas Paulo Nikolaievitch não se espantou mais do que se tinha espantado com a aparição. Estava intensamente mergulhado nos seus pensamentos: perguntava a si mesmo por que razão aquela entrevista não lhe preenchia de modo algum o vazio interior, não lhe tinha feito nascer na alma um único pensamento novo. Ouvira as palavras, respondera e os sons não tinham despertado nele qualquer sentimento. À sua volta, na vida, ouvia numerosas conversas sobre a existência, a morte, o destino de tudo o que vive, o futuro e o presente; tomava parte naqueles debates mas a sua alma calava-se, o coração estava ausente. De resto, esse vazio interior nem sequer o assustava; no entanto, ser consciente disso provocava uma estranha sensação.
Pensava, sorrindo:
"Pobres tipos! Como se conhecem mal uns aos outros, como lhes falta acuidade! Sou um assassino, mas ninguém o suspeita. Ainda por cima, gozo da estima de toda a gente."
Quando olhava para os seus, os que o amavam, pensava:
"Pobres deles... se soubessem!"
Mas ninguém sabia nada e o homem despojado de sentimentos continuava a viver e a comportar-se como se eles lhe existissem no peito.
Assim se desenrolava a vida, dia após dia. No seu íntimo tornava-se cada vez mais indiferente mas persistia em agir por imitação, por hábito, por dever. Morto espiritualmente, criava coisas mortas e sabia-as desprovidas de vida. Não tinha alma e era incapaz de dar uma alma à vida. No entanto, o vazio ia-se alargando cada vez mais e, apossando-se dele, tinha-se tornado um doloroso mal-estar.
Na aparência não havia qualquer razão para o lamentar. Era estimado, respeitado, considerado como um homem honesto e activo. Mas isso não o satisfazia. Nele, todas as sensações se perdiam como pequenos seixos lançados para um abismo sem fundo; provocam um ruído abafado e desaparecem sem deixar rastro.
- É possível que não haja qualquer lei em mim? pensava ele com frequência cada vez maior.
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Aproximava-se o dia das eleições. Não se regozijava, embora soubesse que seria eleito. O dinheiro afluía, os ecos da sua reputação de homem honesto chegavam até ele. Mas tudo isso não lhe dava nada. Nada podia despertar nele um sentimento de alegria ou de lágrimas. As pessoas a quem o coração secou sabem o que vale uma tal existência.
Não sentir nenhum desejo não é viver. E Paulo Nikolaievitch dizia algumas vezes a si mesmo:
- É bom desejar qualquer coisa.
Mas nenhum desejo podia encontrar nele o seu lugar; era um homem cujo coração tinha secado porque se tinha deixado seduzir pela possibilidade de se manter indiferente à vida e o tinha conseguido. No início não se apercebera disso, só mais tarde o soube, quando matou o coração à força de ser indiferente a tudo, salvo a si mesmo.
Finalmente chegou o dia do balanço. Nunca se,escapa, nenhuma fuga nos pode poupar. A coisa aconteceu no dia das eleições, quando o sucesso de Paulo Nikolaievitch era já um facto assente e que a multidão dos cidadãos amigos se tinha reunido em torno dele para o felicitar e festejar em sua honra. Sentaram-se à mesa, comeram e pronunciaram discursos elogiosos. O ambiente era alegre e ruidoso, como é normal em semelhantes circunstâncias.
Paulo Nikolaievitch aceitava as felicitações e os brindes que lhe eram dirigidos. Pensava com desprezo naquelas pessoas que se agrupavam à sua volta.
Eram todos cegos, dignos de dó; viviam todos fora da verdadeira vida: a vida do coração. Não havia neles nenhum indício de intuição, dessa intuição que sabe distinguir de longe o que é bom e o que é mau. Mas o bem e o mal existem?
Que barulheira fazem todos eles! E porquê?
De repente uma ideia espirituosa surgiu-lhe na cabeça, enchendo-lhe todo o ser de uma vontade louca de apavorar aquela gente, de a assombrar. Pegou numa taça, levantou-se, e, quando todos silenciaram esperando o que ele ia dizer, falou:
- Meus Senhores! Sinto-me intimamente desvanecido, a vossa homenagem emociona-me profundamente - é assim que começam normalmente os discursos daqueles que se encontram na minha situação. É-me impossível começar assim o meu, impossível. Os sentimentos de que estou repleto são outros. Meus Senhores, tudo o que dizem aqui admira-me e perturba-me. Tudo isso é estúpido e deslocado. Os senhores não me conhecem... Evidentemente, eu também nada sei dos senhores, a não ser isto: os senhores são todos cegos do espírito, são todos dignos de compaixão; por isso
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tenho pena dos sensores. Ouçam: sabem quem eu sou? Eu, que todos vocês estimam, segundo afirmam, sou um assassino. Fui eu que matei, há oito anos, a velha Zametov e a criada... E... E agora, que dizem? Ah! Ah! Ah! Fui eu, eu. E vocês abraçaram-me, e inclinaram-se diante de mim, primeiro porque eu era um ricaço e depois porque era um político... E foi com o dinheiro da velha que enriqueci... Não estão a pensar que estou doido, não é verdade?
Todos se sentiam atrozmente ultrajados por aquele discurso e por isso ninguém teve a ideia de o considerar louco, o que normalmente se teria dado se ele se tivesse arrependido diante deles, tranquilamente e sem estrondo. Mas ele ultrajava, era mordaz, e os olhos brilhavam com uma energia interior que não era a loucura. Os fortes excitam sempre o ódio dos fracos.
Foi uma agitação geral, todos se acotovelavam.
- A polícia! - gritou alguém; e a polícia fez a sua aparição; embriagado pela proeza cometida, Paulo Nikolaievitch continuava a falar com voz trovejante:
- Não há lei em mim e o meu coração está morto! Preservai os vossos corações da ruína, enraizai a lei. Não sejais indiferentes, porque a indiferença é mortal para a alma humana.
Mas era um criminoso... Como era possível ver nele um profeta? Olhavam-no com furor e com ódio e ele respondia a todos com o desprezo e o sarcasmo dos fortes.
- Ora aí está! - disse o cocheiro aparecendo bruscamente diante dele, com um sorriso de júbilo no pequeno rosto enrugado.
- Bem jogado! É o que deveria ter sido feito desde há muito tempo. Agora vais sofrer? Sofre então, é uma boa coisa. Agora tens a tua cruz. É necessário ter sempre uma cruz às costas. É a primeira coisa na vida! Sofre ao carregá-la e ensinarás a pureza à tua alma... Sem cruz nada a fazer. com ela, pelo contrário, encontra-se sempre um ponto de apoio na existência, um ponto de apoio sólido. Agora vais retomar a vida através do sofrimento. E tens um caminho a seguir... vais chegar a Deus... Mataste? Não tem importância! Lembras-te do ladrão? Foi perdoado e no entanto a prece dele não foi longa: uma dezena de palavras, pouco mais. Agora, meu amigo, já sabes. Não te inquietes, sofre. Não esqueças os homens. Eles não valem mais do que tu...
Em torno de Paulo Nikolaievitch tudo parecia ter-se começado a distender: tudo se tinha apagado e aparecera uma luz, vermelha, trémula, uma luz que fazia mal aos olhos.
A terra tremeu.
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Quando Paulo Nikolaievitch abriu os olhos, a mulher estava diante dele, em roupão, tinha o rosto fatigado e o lábio superior tremia nervosamente; com uma das mãos segurava um candeeiro com quebra-luz cor-de-rosa e com a outra abanava o marido pelos ombros.
- Paulo! Dá-me o lugar... Vai para a tua cama... e despe-te! Como é possível dormir tanto tempo vestido?
- Espera um bocado...
- Mexe-te, por favor! Não há nada para... Não vês que estou exausta?
- Júlia! O que eu acabo de viver é...
- Tu acabas de dormir, essa é que é a realidade!
- Ha! Sim... é verdade. Era um sonho... e é melhor assim. Mas sabes que...
- Estás a ouvir o que te peço, ou não?
- Não, ouve! É uma coisa fantástica! Aquele cocheiro, estás a perceber, aquele cocheiro! E porquê precisamente um cocheiro?
- Porque não acabaste de dormir e ainda andas a calcorrear os caminhos. Vá, vai-te embora.
- Ah, minha Júlia, vou-te contar tudo...
- Amanhã.
- Claro. Mas apesar de tudo, gostava de saber onde se vão buscar os sonhos que às vezes nos acontecem. Sabes: há uma ideia em tudo isso. Efectivamente nós somos demasiado indiferentes e deixamo-nos vencer pela vida com demasiada facilidade.
- Deixa-me dormir, mais tarde filosofarás. Não achas que tenho razão? Lembra-te que me levantei às oito horas da manhã e que são agora as três da madrugada.
- Minha querida! Coitada de ti! Não direi mais nada... Calo-me.
Foi para a cama dele. Mal a cabeça lhe tinha tocado a almofada, já se sentia invadido pela suavidade anunciadora do sono.
- Um sonho espantosamente interessante... E com uma moralidade! Ouve, Júlia... Senão acabarei por esquecer tudo.
A mulher não respondia. A luz do candeeiro teve um ligeiro sobressalto, as sombras estremeceram nas paredes e o quarto encheu-se de trevas.
- Ter a noção exacta. Sim, fiquei com a noção, reentrei em mim mesmo...-cochichava Paulo Nikolaievitch, adormecendo.
A lenta melodia dos sinos festivos, vinda da rua, chegava abafada até ao quarto, e de tempos a tempos, também, os passos de um guarda-nocturno.
Máximo Gorki
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