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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS ZEBAK / Emily Rodda
OS ZEBAK / Emily Rodda

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS ZEBAK

 

O AVISO

O grach voou para ocidente, seguindo o cheiro. Estava voando há muito tempo e sentia-se cansado e tinha fome, mas não pensou sequer em comer ou parar para descansar. Não havia qualquer pensamento por trás dos seus olhos amarelos planos. Apenas uma idéia fixa. Seguir o rastro, chegar ao lugar aonde lhe tinham dito que chegasse e levar de volta para os seus amos o que lhe tinham dito que levasse.

O grach chamava-se Bara e tinha cento e vinte anos. Tinha sido bem treinado. Não com doçura, talvez, mas com inteligência e durante muitos, muitos anos. A idéia de que agora, longe dos chicotes e dos gritos dos seus amos, era livre de escolher o que fazer, nunca lhe viera à cabeça.

Há muito que o mar tinha ficado para trás, e o grach tinha vagamente a noção de que por baixo dele havia agora colinas verdes e um riacho sinuoso a brilhar à luz do sol. Percebeu de que uma montanha, com o pico escondido no meio das nuvens, se elevava na dis­tância azul à sua frente.

Mas, naquele momento, os seus olhos não eram importantes. Nem os ouvidos, fechados para se prote­gerem do vento, nem o bater das suas próprias asas tinham qualquer importância. A única coisa que era impor­tante era a língua bifurcada que entrava e saía rapida­mente da boca, provando o ar, provando o cheiro.

Ele sabia que estava perto do seu objetivo. O cheiro era mais forte — o cheiro de animal quente que fez os seus maxilares descair de fome. Bukshah. Ele até sabia o nome deles.

«Bukshah», tinham dito muitas vezes os seus amos, agitando a pele cinzenta coberta de lã em frente do seu focinho, dando-lhe pedaços de carne ensangüen­tada, de modo a que o sabor delicioso se misturasse com o cheiro da pele. Quando o enviaram à sua pro­cura, eles tinham repetido: «Bukshah. Busca.» E depois tinham-lhe soltado a corrente.

O cheiro de bukshah era forte, mas havia outros cheiros além desse. Alguns, o grach já tinha provado antes, mas havia um que ele não conhecia. O que ele nunca pro­vara continha muitos perigos. Era fogo, neve e gelo. Era hálito quente, presas gotejantes e um poder antigo, cioso.

O grach sentiu um formigamento de aviso na espinha coriácea. Os seus olhos amarelos de lagarto não pestanejaram, e o bater das asas escamosas pintalgadas não vacilou, e ele continuou a voar em direção a Rin.

 

O olhar de Rowan percorreu o céu muito azul por cima da sua aldeia. Ainda estava límpido, com exceção da nuvem que envolvia sempre o cume da Montanha proibida. E, no entanto, certamente que uma tempestade de Verão se aproximava. De que outro modo conse­guiria ele explicar a estranha e persistente sensação de que algo inesperado e assustador estava prestes a acon­tecer? A sensação de medo tinha começado no meio da manhã e, desde essa altura, fora-se tornando cada vez mais forte.

Não é nada, disse ele a si próprio com firmeza. Lu­tou para afastar o medo, e não falou nele a Jiller, a sua mãe. Para quê preocupá-la desnecessariamente, ainda por cima naquele dia?

Hoje, Jiller devia estar tão despreocupada como a sua irmãzinha Annad, que já estava a dançar no jardim do chalé, julgando-se muito bonita num vestido novo cor-de-rosa. Ela devia estar tão alegre como o Jonn Forte que, esplêndido no seu traje de casamento, passava agora o portão a balançar Annad nos braços e a dirigir-se para a casa.

Rowan obrigou a si próprio a acenar a Jonn e a gritar uma saudação. E, quando a misteriosa sensação de medo o assaltou de novo, ele fê-la desaparecer.

 

Não era freqüente os diligentes habitantes de Rin porem de parte as suas tarefas do dia a dia para celebra­rem festas e feriados. Mas mesmo em Rin um casamento era motivo para celebração, e este casamento — o casa­mento de Jonn Forte do Pomar com Jiller do Campo — era uma ocasião muito importante.

Jonn e Jiller eram pessoas muito estimadas, e o filho de Jiller, Rowan dos Bukshah, era o maior herói de Rin, embora fosse um herói extremamente imprová­vel. Tímido, sonhador e acanhado, ele tinha conquistado a Montanha proibida e enfrentado o dragão que reinava no seu cume. Ele tinha se aliado a Viajantes errantes para salvar Rin de um destino terrível. E dizia-se que ele estava ligado aos Maris, homens parecidos com peixes que viviam na costa, através de um estranho vínculo com o seu misterioso líder, o Guardião do Cristal.

Outrora a criança mais decepcionante da aldeia, Ro­wan era agora respeitado. Hoje em dia ninguém troçava dele nem o criticava. Ninguém lhe dizia que ele era dema­siado velho para ser o guardião dos meigos bukshah.

Ele era até temido por alguns que pensavam que ele tinha poderes sobrenaturais. Essas pessoas calavam-se quando Rowan entrava no armazém ou passava por um local de reunião, e avisavam os seus filhos para que não o importunassem. Quando, na Primavera, nasceu um buks­hah preto — em vez do habitual cinzento claro —, essas pessoas murmuraram que era um augúrio, um sinal do poder de Rowan.

Se alguém lhes dissesse que a única coisa que Rowan queria era ser aceito como um deles, que isso era o que ele sempre quisera, elas ter-se-iam rido.

Era em grande parte por causa de Rowan que este casamento era mais do que uma simples celebração da aldeia. No dia anterior, tinham surgido no céu por cima do vale os três grandes papagaios dos Viajantes, com os seus passageiros a balançar, suspensos neles. Desde então, a tribo que sempre os seguia tinha acampado nas colinas, pronta para se juntar à festa e fazer música. Perlain de Pandellis tinha vindo de Maris para representar o seu povo e trazer ofertas. Ele tinha, de bom grado, deixado o mar e o borrifo das ondas, embora a pele dos Maris secasse e estalasse rapidamente longe da água, e a viagem não tivesse sido muito confortável para ele.

Este dia era suficientemente importante para con­vencer os imperturbáveis moleiros, Val e Ellis, a sair do seu moinho. Tinha até levado a rabugenta e solitária Bronden, a marceneira, a fechar a oficina por um dia. Ninguém queria perder a celebração, nem deixar de prestar a sua homenagem.

Assim, ao meio-dia, quando Jiller e Jonn se dirigiram, juntamente com Rowan e Annad, para a grande árvore acima do campo dos bukshah, havia uma multidão à espera deles. Apenas Sheba, a feiticeira da aldeia, se mantivera ausente, tendo ficado sozinha, agachada na sua cabana atrás do pomar. Isso não surpreendeu nin­guém e, intimamente, ficaram todos satisfeitos. Pois em­bora procurassem Sheba em momentos de doença ou perigo, ela teria sido uma convidada embaraçosa.

Quando chegou à agradável sombra da árvore, Ro­wan mal percebeu de que Annad dançava excitada­mente ao seu lado, de que Jonn e Jiller caminhavam à sua frente e de que a multidão os olhava atentamente. A sensação de medo aumentava, perturbando-lhe a mente, ensombrando-lhe os pensamentos, tornando-o silencioso e vigilante.

Cerrou os dentes, tentando assegurar-se de que nin­guém reparava na sua tristeza. Toda a gente em Rin está feliz, pronta para celebrar, disse ele a si próprio. Porque é que eu hei de ser diferente?

Você foi sempre diferente, disse uma voz no fundo da sua mente. E agora mais do que nunca.

Afastou a voz, zangado. Virou a cabeça e viu Ogden, o contador de histórias, líder dos Viajantes, ao lado de Zeel, a sua irmã adotiva, e o resto da tribo a um lado da multidão.

Ao lado dos habitantes de Rin, sóbrios mesmo quando vestidos com as suas melhores roupas, os Viajantes estavam resplandecentes como aves com as suas sedas coloridas e o cabelo comprido encaracolado salpicado de fitas, contas e penas. Mas Rowan reparou, com uma sensação de temor, que os seus rostos estavam vigilantes. Estavam de pé, imóveis, como se todos os músculos dos seus corpos castanhos e magros estivessem preparados para fugir. E os olhos encovados de Ogden tinham um ar grave.

Jonn e Jiller não repararam em nada. Eles sorriram e fizeram uma vênia aos Viajantes, e Ogden retribuiu com uma vênia ainda maior. Mas o seu olhar sombrio estendeu-se para além deles, para Rowan, e nos seus olhos havia uma pergunta. Rowan sabia qual era.

Passa-se algo de errado nesta terra. Nós o sentimos. Você também o sente. Eu vejo que sente. O que é?

Rowan abanou levemente a cabeça. Não sei.

Os olhos de Ogden deslocaram-se para a frente da mul­tidão onde Perlain, o homem de Maris, estava ao pé de Allun, o padeiro, e Marlie, o tecelão, os grandes amigos de Jonn e Jiller.

Marlie e Allun sorriam enquanto entregavam flores a Jiller. Mas Perlain, baixo e cintilante na roupa azul justa, estava muito rígido, com as mãos palmípedes apertadas contra os lados. O capuz que ajudava a protegê-lo do sol tinha sido empurrado para trás em sinal de respeito, pelo que Rowan conseguia ver que os seus olhos vidra­dos, inexpressivos, olhavam fixamente.

Perlain estava com medo. Mas o que haveria a recear ali sob aquela sombra verde, naquele vale protegido?

Há perigo, Rowan. Há perigo na terra.

A mensagem soou repentinamente, com toda a cla­reza, na mente de Rowan. Era o Guardião do Cristal de Maris a avisá-lo, tal como avisara Perlain.

Mas Jonn e Jiller já estavam em frente da velha Lann, e a cerimônia tinha começado.

Não posso dizer nada agora, pensou Rowan com desespero. Mesmo se tentasse, ninguém me irá prestar atenção, por muito que digam que sou um herói. Eles iriam pensar que estou a tentar impedir o casamento. A Mãe e o Jonn pensarão o mesmo. Não posso fazê-lo.

Tinha havido uma altura em que ele detestara a idéia de que Jonn pudesse ocupar o lugar de Sefton, o seu pai. Mas agora ele sabia que nunca ninguém ocuparia o lugar de Sefton — quer no coração de Jiller, quer no seu. O que acontecia era que os corações eram suficiente­mente grandes para aceitar mais de um amor. E Jonn Forte do Pomar, o amigo do seu pai, era também seu amigo.

Ele nunca dissera isso a Jiller nem a Jonn. Em Rin, conversar abertamente sobre sentimentos era consi­derado um sinal de fraqueza. Só tendo um ar feliz naquele casamento é que Rowan podia mostrar que estava sa­tisfeito por ele estar a ter lugar.

Havia ainda mais alguém a ter em conta. Rowan olhou para a sua irmãzinha, de olhos muito abertos ao seu lado. Annad não chegara a conhecer o pai deles, pois este tinha morrido quando ela era bebê. Ela adorava Jonn. Ela tinha ansiado por aquele dia. Ela adorara a idéia de vestir roupa de cerimônia e de se exibir em frente dos habitantes da aldeia.

Não posso fazê-lo, pensou ele outra vez. Não posso estragar este momento. Perlain e Ogden não se impor­tam de esperar. Assim, vou esperar também. Que mal fará esperar apenas um pouco?

Nos dias que se seguiram, Rowan desejou muito amar­gamente, ter tomado outra decisão.

 

O ATAQUE

Fez-se silêncio debaixo da enorme árvore quando Jonn e Jiller fizeram os seus votos finais. Depois, quando Lann os declarou marido e mulher, houve uma ruidosa explosão de palmas, aplausos e parabéns.

Os adultos de Rin formaram um grupo e levaram Jonn e Jiller para o banquete que tinha sido preparado perto, certificando-se cortesmente de que Perlain e os Viajantes eram arrastados pela corrente. Annad deu um salto para ir ter com os seus amigos, como se uma mola se ti­vesse solto dentro dela. Rowan deixou-se ficar onde estava, a observar.

Jonn e Jiller sentaram-se à cabeceira da mesa principal do banquete, a rir e a conversar. Todas as mesas estavam cobertas com o que de melhor a aldeia proporcionava. As travessas estavam empilhadas de fruta e vegetais para salada, do melhor queijo de bukshah, dos pãezinhos mais macios que Allun e a mãe, Sara, conseguiam produzir, e de caramelos, gelatinas e bolos de todos os tipos feitos por Solla, a doceira. Aqui e ali havia enormes jarros frescos de sumo de frutos silvestres e vinho de flores.

A música dos Viajantes começou. Ogden deve ter decidido que era melhor prosseguir com os festejos como se nada de errado se passasse. Rowan encostou-se ao tronco liso da enorme árvore, tentando ordenar os pensamentos.

A luz do sol brilhava por entre as folhas, salpicando o chão com pontos dourados.

Debaixo daquele enorme dossel, os habitantes de Rin tinham-se casado, dado o nome aos filhos e despe­dido dos seus mortos desde que tinham chegado ao vale, trezentos anos antes. Nessa altura, a árvore tinha sido grande. Agora era gigantesca.

— Rowan! Olha! — A voz penetrante de Annad elevou-se acima da música, das conversas dos adultos e dos risos dos amigos dela.

Rowan olhou em volta. Annad estava junto da cerca, a olhar para o campo dos bukshah, e chamava-o num tom excitado.

—Venha ver! — gritou ela.

Ele foi ter com ela. Os amigos da irmã calaram-se e recuaram timidamente quando ele se aproximou, mas Annad correu para ele, agarrou-lhe no braço e empurrou-o na direção da cerca.

— Estão a dançar — disse ela com uma gargalhada, apontando.

Rowan, surpreendido, susteve a respiração. Os animais cinzentos tinham-se colocado lado a lado, ombro com ombro, num círculo apertado. As cabeças pesadas es­tavam todas viradas para fora. Os seus corpos estavam tão juntos que as crinas pareciam estar todas ligadas. Muitos estavam a escavar o chão com as patas. A primeira vista, parecia que estavam, de fato, a fazer algum tipo de dança.

Annad estava aos saltos.

— Rowan, anda! — gritou ela, puxando-lhe a mão. — Anda vê-los comigo!

— Não, Annad — respondeu Rowan, com um sorriso. Por muito que ele gostasse de deixar a festa e ir até ao campo dos bukshah, ele sabia que pareceria estranho e indelicado se o fizesse.

Annad soltou uma exclamação de impaciência e retirou a mão da dele. Seguidamente, descalçou os sa­patos macios e, sem se preocupar com a sua roupa de cerimônia, subiu a cerca e começou a correr através do campo.

— Annad! — chamou Rowan. Mas a menina não lhe prestou atenção. Ele sorriu e abanou a cabeça ao vê-la saltar o riacho e correr na direção dos bukshah, a cha­mar a Estrela, a líder. O cabelo dela esvoaçava como fios de ouro à volta da cabeça. O vestido cor-de-rosa ondeava na brisa suave. Ela parecia uma enorme borboleta a flutuar através da erva.

Rowan estava à espera que os bukshah desfizessem a sua estranha formação quando Annad se aproximou mas, para sua surpresa, a manada não fez qualquer movimento. Estavam imóveis como rochas, com o nariz levantado, a farejar o ar.

Rowan ficou a olhar, intrigado. E depois percebeu outra coisa. Onde estavam os bukshah jovens — os bezerros que tinham nascido na Primavera? Não os via em lado nenhum. Nem mesmo o preto, o mais pequeno, lá estava.

Annad estava agora a dançar em direção a Estrela, conversando com ela, de mão estendida. Rowan deu um salto, chocado, quando Estrela rugiu e sacudiu a cabeça, afastando Annad.

Estrela era sempre muito meiga. A criança mais pequena de Rin conseguia levá-la pela trela. Ela amava Annad tanto quanto amava Rowan. No entanto, ela parecia estar a tentar manter Annad afastada da ma­nada.

Rowan franziu o cenho, agarrando a cerca. Ou... estaria Estrela a tentar fazer com que Annad voltasse rapidamente para o local de onde viera? Para um local protegido. Para um local seguro...

— Annad! — chamou ele num tom de urgência. Mas a sua voz foi abafada pela música e pelo riso à volta das mesas do banquete, e Annad não ouviu.

Ele viu-a hesitar por um momento, depois dar um passo em frente e estender outra vez a mão. Desta vez, a sacudidela da cabeça de Estrela foi suficientemente forte para fazê-la cair na erva. Os enormes animais à esquerda e à direita de Estrela escavavam o chão, mas não saíam dos seus lugares.

Eles não querem quebrar o círculo, pensou Rowan. E subitamente compreendeu porquê. Os bezerros estavam no interior, cercados e escondidos por uma parede de corpos adultos fortes.

Um medo terrível apoderou-se dele. Escalou desajeita­damente a cerca e começou a correr na direção do riacho.

— Annad! — gritou ele. — Annad! Cuidado!

Mas já era demasiado tarde. O que aconteceu a seguir demorou apenas alguns momentos, mas depois, até ao fim da sua vida, Rowan recordar-se-ia como se tivesse demorado longos, longos minutos.

Ele estava correndo, correndo, ofegante, com o peito a doer de medo, mas não conseguia correr suficientemente depressa. Viu Annad virar-se para ele enquanto se punha de pé, alisando o vestido. Viu o seu rosto rosado, aborrecido, o cabelo dourado, subitamente escurecido por uma sombra que bloqueou o sol.

Ouviu um terrível rugido oriundo do cume da Mon­tanha, bem como a resposta vinda do céu, um silvo áspero de desafio. Ouviu o bater de asas e o grito dos bukshah quando uma forma enorme desceu em direção a eles — um animal horrendo com manchas verdes, amarelas e cinzentas, com espigões e três caudas cortantes. Ouviu o seu próprio grito de aviso e o grito estridente de Annad quando ela percebeu o perigo e começou a correr, com o vestido a enrolar-se e a emaranhar-se no vento provocado pelas enormes asas.

Rowan saltou o riacho, gritando aterrorizado, gri­tando para que Annad se atirasse para o chão, para que se escondesse na erva alta. Mas, mesmo enquanto gritava, ele sabia que Annad não ouvia nem compreendia nada a não ser a sua própria necessidade de fugir.

Horrorizado, ele viu os olhos planos amarelos do ani­mal deslizarem para um lado e fixarem-se na figura pequena que corria, esvoaçante, cor-de-rosa e dourada contra o campo verde. Por um instante, o animal pairou no ar, e Rowan viu de relance algo à volta do seu pescoço que o espantou e intrigou.

Depois a sua mente foi varrida pelo pânico. O animal estava a rodar no ar, afastando-se dos bukshah e mergu­lhando em direção a Annad, com as enormes garras vermelhas estendidas para ela.

— Não! — Rowan atirou-se para a frente, acenando os braços, gritando para o animal, tentando desviar-lhe a atenção e levá-lo a rodar outra vez. Mas, num instante, ele tinha atacado e depois, com as enormes asas a bater com um barulho que parecia um trovão, silvou, triunfante, afastando-se rapidamente.

O seu fardo era leve e não o fez abrandar a veloci­dade. Em poucos segundos, era uma mancha escura por cima das colinas distantes. Ao fim de poucos mi­nutos, tinha desaparecido de vista.

E Annad tinha desaparecido com ele.


 

A DECISÃO

Temos que ir atrás do animal. Atacá-lo onde ele aterrar.

— Não podemos deixar a aldeia indefesa. Ele pode voltar.

— Mas a Annad...

— A criança morreu. Morreu. Não há nada a fazer.

Sentado no chão, tolhido pela infelicidade, Rowan ouvia as vozes à sua volta. Vozes familiares. Sara. A Velha Lann. Marlie. Bronden.

Pôs-se de pé e olhou em redor, confuso. As pessoas tinham vindo correndo das mesas do banquete. Agora estavam todas juntas, chocadas e perplexas, com as rou­pas de cerimônia amarrotadas e os sapatos bons a enter­rar-se na erva comprida do campo. Não havia sinal dos Viajantes nem de Perlain.

Jiller, extremamente pálida, estava de pé, muito reta. Jonn estava ao seu lado, mas ela não se apoiava nele. Não era essa a sua maneira de ser.

A Velha Lann virou-se para ela.

— O que quer de nós, Jiller do Campo? — pergun­tou ela num tom formal.

— Nada. — Jiller falou através de lábios que mal se moveram. — Não há nada a fazer. A Annad morreu.

— Não! — A palavra irrompeu de Rowan antes de ele a conseguir travar.

A mãe virou-se para ele. Os seus olhos estavam negros de dor.

— Ela morreu, Rowan — repetiu ela. — Você viu o animal levá-la. Nesta altura ela já está morta.

Rowan abanou a cabeça.

— Nós... nós não sabemos — gaguejou ele. — O ani­mal... não era selvagem, era domesticado.

Houve um momento de silêncio chocado, depois Lann aproximou-se dele a coxear.

— O que quer dizer com isso? — perguntou ela.

— Ele... tinha uma coleira. Eu vi. Uma coleira de metal, com uma argola para uma corrente — respondeu Rowan.

Lann fitou-o atentamente. O seu rosto estava franzido em mil rugas que mostravam a sua dor. Ela também tinha amado a pequena Annad.

Rowan respirou fundo.

— Eu acho... que ele atravessou o mar — disse. Ele sentia os olhos de todos os aldeões pousados em si, sobretudo os da sua mãe. O rosto ardia-lhe, mas ele obri­gou-se a si próprio a prosseguir. — Na costa, o Guardião do Cristal sentiu o perigo a aproximar-se. Os Viajantes também sentiram algo estranho em terra.

Um murmúrio perpassou a multidão.

— E você, Rowan? — A voz de Jiller era inexpressiva. Rowan engoliu em seco. Esta era a pergunta que ele receava. Baixou a cabeça e obrigou-se a si próprio a falar.

— Eu senti... qualquer coisa. Um aviso. Mas pensei... que havia tempo. — O tom de infelicidade da sua voz ficou a pairar no ar. Ele ergueu os olhos.

O rosto da mãe tornara-se uma máscara.

— Não me disse nada — disse ela.

— Eu... senti que não podia. Não queria estragar este dia — balbuciou Rowan.

Jiller acenou lentamente a cabeça. Depois deu meia volta e afastou-se.

Marlie foi atrás dela, mas Jonn ficou mais um pouco e colocou a mão no ombro de Rowan. Tinha o rosto franzido de dor, mas a sua voz era firme.

— Você não podia ter sabido, Rowan — disse ele. — Não culpe a si próprio. Venha conosco para casa agora.

Rowan abanou a cabeça. Não podia ir para casa. Ele sabia que a mãe não se sentiria reconfortada com a sua presença. No seu íntimo, ela devia detestá-lo pelo que ele fizera. Pelo que ele não fizera.

Jonn hesitou. Depois apertou o ombro de Rowan e deixou-o.

A multidão moveu-se impacientemente. Rowan viu Allun de pé a um lado, e o seu rosto, habitualmente bem-humorado, estava tenso e pálido.

— Se um animal atravessou o mar para chegar aqui, quem sabe o que poderá acontecer a seguir? — pergun­tou alguém. — Temos que nos armar e preparar.

Timon, o professor, ocupou o lugar de Jonn ao lado de Rowan.

— Há mais alguma coisa que nos possa dizer, Rowan? — perguntou ele num tom de urgência.

— Não precisamos de saber mais nada — disse brus­camente Val, a moleira, no meio da multidão. — Quem iria domesticar um animal daqueles de modo a que ele lhe obedecesse? Quem lhe poria uma coleira de metal em vez de tecido ou cabedal? Quem o mandaria atravessar o mar para nos atacar? São os Zebak.

O nome odiado caiu sobre a multidão como uma pedra num lago parado. Começaram a ouvir-se murmú­rios, que se foram espalhando.

— Os Zebak foram derrotados em Maris não há muito tempo — protestou Bree do Jardim. — Eles sofreram baixas pesadas. Será que iriam tentar novamente tão cedo?

— Pode ser que os seus líderes tenham finalmente decidido que uma invasão por mar é demasiado perigosa — disse Timon. — Assim, eles estão a testar uma nova forma de nos atacarem... a partir do ar.

Os murmúrios transformaram-se em gritos irados, e muitos cerraram os punhos. Só os mais velhos dos atuais habitantes de Rin tinham lutado corpo a corpo com os Zebak. Mas todos eles tinham visto imagens dos rostos cruéis dos Zebak, com as testas marcadas com uma linha preta que ia do cabelo até ao nariz. Todos sabiam que os seus antepassados tinham vindo para aquela terra como escravos de guerra dos Zebak. Todos eles estavam dispostos a lutar para manter a sua liber­dade.

À medida que o barulho à sua volta aumentava, Rowan olhou para o local onde vira Allun. Mas ele já não estava lá.

A velha Lann bateu com a bengala numa pedra, e fez-se silêncio.

— Havemos de falar mais sobre isto — disse ela com firmeza. — Mas primeiro temos que levantar as mesas do banquete e levar a comida que sobrou para a casa fria. Não se deve desperdiçar nada. Podem vir aí tempos difíceis.

Rowan ficou em silêncio enquanto a multidão se dis­persava para cumprir as ordens de Lann.


— Sem dúvida que fez o que achou ser melhor, Rowan dos Bukshah — comentou Bronden num tom ríspido, ao passar por ele. — Você e os seus amigos Maris e Viajantes... que, já reparei, fugiram ao primeiro sinal de perigo. Mas talvez para a próxima vez você pense melhor antes de guardar os conhecimentos especiais só para si.

Antes de ele conseguir responder, ela desapareceu.

— A sua gente não compreende o que se passa com você — disse uma voz baixa ao seu ouvido.

Rowan deu meia volta e viu Perlain ao seu lado. O homem de Maris estava todo molhado, a pingar.

— Eu não quis interferir na sua reunião — expli­cou ele. — E estava seco. Por isso fiquei de molho no ria­cho, ouvindo. Acho que o homem dos olhos inteligentes... falou sabiamente.

— O Timon. Sim — murmurou Rowan.

— Este episódio pode ter sido apenas um teste — disse Perlain calmamente. — Mas, se assim foi, o teste foi bem sucedido. Em breve os Zebak terão a prova de que o animal deles veio a Rin e voltou.

Rowan sentia a boca seca como pó. Passou a língua pelos lábios.

— Acha que ele vai entregar Annad aos Zebak... viva? — perguntou ele ao fim de algum tempo. O seu coração começara a bater como o som de um tambor dos Viajantes.

— Acho — respondeu Perlain. — Os Zebak sempre preferiram capturar vivos os seus prisioneiros.

Embora o sol estivesse quente, Rowan estremeceu como se se sentisse gelado até aos ossos. A sua mente era um redemoinho de choque e dor, mas no centro do redemoinho havia um pensamento claro. Annad estava prisioneira por causa dele. Porque ele não tinha dado o aviso assim que percebera o perigo. Porque ele a deixara ir ao campo dos bukshah sozinha. Porque ele fora demasiado lento a chegar ao pé dela antes de ela ser levada.

Perlain estava a olhá-lo com um ar pensativo.

— Está a sofrer muito — disse ele. — O que posso eu dar-lhe para o ajudar?

E, subitamente, Rowan soube.

— Pode dar-me um barco, Perlain — respondeu ele. — Vou voltar para Maris com você. Depois vou à terra dos Zebak procurar a minha irmã e trazê-la para casa.

Perlain abanou a cabeça.

— Não conseguirá fazê-lo, meu amigo. Uma viagem dessas estaria cheia de perigos. E, no fim, acabaria por ter o mesmo destino que a sua irmã, sem esperança de poder escapar.

Ele ouviu um som atrás de si e deu um salto ao ver Estrela ali.

— A sua bukshah exige a sua atenção — disse ele com nervosismo, deslocando-se para o lado.

Rowan esfregou o nariz macio de Estrela, encon­trando algum consolo na sua enorme força lanosa. Ela pressionou o focinho contra ele e a sua garganta emitiu um ruído surdo e prolongado.

— Não chore — murmurou-lhe ele. — Fez o possível para avisar Annad para que ela saísse do campo. E protegeu corajosamente as crias. Elas estavam em segurança no interior do seu círculo.

— O animal compreende as suas palavras? — pergun­tou, curioso, Perlain.

— Ela compreende o que eu quero dizer — respondeu Rowan. Ele viu o nariz de Estrela estremecer e virou-se para olhar para o céu. Mas não viu qualquer forma escura... apenas uma mancha amarela a cintilar no azul. A mancha desceu cada vez mais até a figura da garota que balançava no enorme papagaio se tornar clara. Zeel.

Estrela bufou suavemente ao ouvido de Rowan. Ele virou-se e viu Ogden, o contador de histórias, a atra­vessar o campo em direção a eles.

— Antes de conseguirmos chegar ao nosso acampa­mento e lançar o papagaio, o animal já estava muito longe — disse Ogden. — Infelizmente, Zeel perdeu-o de vista. O sinal que ela enviou foi de desapontamento.

Rowan não ouvira qualquer sinal. Mas ele não estaria à espera de o ouvir. As flautas de cana dos Viajantes pro­duziam sons demasiado agudos para os ouvidos dos outros homens.

Os pés de Zeel tocaram com leveza no chão. O papagaio ergueu-se numa onda atrás dela, depois caiu em dobras suaves, garridas. Ela apanhou-o e dirigiu-se para eles. O vento puxara-lhe o cabelo para trás. As sobran­celhas retas estavam unidas, e os seus olhos claros estavam zangados.

Rowan sentiu Perlain ficar tenso ao seu lado.

— Rowan! Ela não é uma Viajante! — silvou o homem de Maris ao seu ouvido. — Ela não tem a linha preta tatuada na testa... mas, mesmo assim, é uma Zebak! Eu percebo isso. — A mão dele moveu-se, procurando a faca que tinha no cinto.

— Paz, Perlain — murmurou apressadamente Ro­wan. — Zeel é Zebak de nascença, mas foi trazida pelo mar quando era pequena, e Ogden acolheu-a. Ela é de confiança. É tanto uma Viajante como qualquer membro do seu povo. Acredite em mim.

Perlain baixou a mão, mas permaneceu vigilante enquanto Zeel se juntava a eles.

— Lamento muito, Rowan dos Bukshah — disse ela. — O animal foi muito mais rápido que eu. — Ela virou-se para Ogden. — Foi como você supôs. Ele virou e seguiu o caminho mais direto para a costa. Nesta altura, já estará do outro lado das falésias.

Rowan umedeceu os lábios secos.

— Vai atrás dele? — perguntou-lhe Zeel num tom quase casual, atirando o papagaio de seda por cima do ombro.

Ele anuiu.

— Isso é uma loucura — disse Perlain friamente. — Por mais corajoso que um peixe possa ser, se ele se atre­ver a entrar no covil de uma serpente, está condenado à morte.

— Não será apenas um peixe — disse Zeel brusca­mente. — Rowan vai ter muitos companheiros. O povo de Rin está...

— Não — interrompeu Rowan apressadamente, sentindo o rosto a começar a arder. — Eu irei sozinho.

Zeel pareceu espantada e incrédula.

— Perlain vai me arranjar um barco — prosseguiu Rowan apressadamente, para o caso de Zeel também começar a argumentar com ele. — E se os Viajantes pudessem dispensar dois papagaios e dois condutores que nos levassem rapidamente até Maris, pouparíamos muito tempo.

Ele viu Perlain abrir a boca, alarmado, para protestar, mas Ogden já estava a acenar a cabeça em sinal de concordância. — Tor poderá ir a Maris — disse ele. — Tor e...

— E eu — interrompeu Zeel.

Ogden sorriu ligeiramente.

— Então... está resolvido.

— É uma loucura! — bufou Perlain. — Os mares daqui até à terra dos Zebak são traiçoeiros. E mesmo que, por milagre, Rowan consiga sobreviver e chegar a terra, o que irá ele fazer a seguir? Para onde irá? Ninguém sabe.

Rowan pensou nisso, e o seu estômago pareceu dar uma volta.

— Há alguém que talvez saiba — disse ele com re­lutância.

Que tolice, pensou ele, olhando para os olhos diverti­dos de Ogden, ter medo disso, quando a viagem que se avizinha é tão perigosa.

— Não é uma tolice assim tão grande — sorriu Ogden, e Rowan percebeu, chocado, de que o contador de histórias tinha lido os seus pensamentos. — Mas é sensato da sua parte enfrentar o seu medo. O tempo que a reunião durará pode ser bem empregue. — Ele pensou por um momento, acariciando o queixo, depois ergueu os olhos. — Tenho que te deixar — disse ele. — A Zeel irá acompanhar-te ao nosso acampamento, quando estiver pronto.

Ele fez uma vênia e deixou-os. Estrela encostou o nariz ao pescoço de Rowan, e ele acariciou-a suavemente.

— Eu vou para muito longe, Estrela — disse ele em voz baixa. — Se eu não regressar, será nomeado outro guardião dos bukshah. Alguém bondoso... não tenha medo. E, entretanto, a minha mãe tomará conta de você... por mim, e pela Annad.

Os olhos pequenos e sábios de Estrela fitaram-no com gravidade, como se ela compreendesse e se sentisse infeliz.

Rowan fez-lhe uma última carícia, depois deu rapida­mente meia-volta e, acompanhado de Zeel e do silencioso Perlain, dirigiu-se para o pomar. Serpentearam por entre as árvores murmurantes na direção da pequena cabana. Rowan não sabia o que o esperava lá. Só sabia que, se queria encontrar a Annad, ele precisava de ajuda. E a única esperança de ajuda era Sheba.

A estranha erva pálida que crescia junto da cabana não tinha qualquer marca exceto um único conjunto de pegadas que iam ter à porta.

— A sua feiticeira já tem uma visita — disse Zeel. — Um homem, julgo eu, com um passo rápido e leve, como os Viajantes, mas com sapatos mais pesados, como os de Rin.

Rowan pensou que a visita de Sheba talvez fosse a única pessoa em Rin, tirando a própria Sheba, que o deixaria seguir o seu caminho sem levantar obstáculos. Deixando Zeel e Perlain, atravessou a erva nas pontas dos pés, aproximou-se da porta da cabana e pressionou o ouvido contra ela. Uma enorme gargalhada soou no interior, e ele deu um salto para trás, estremecendo de medo, sentindo que tinha outra vez seis anos.

— Entre, coelho magricela — rosnou Sheba. — Tenho estado à sua espera.


 

A PRENDA

Rowan entrou na cabana, esforçando os olhos para conseguir ver no escuro, e engasgando-se um pouco no cheiro espesso a fumo, cinzas, pó e ervas amargas que enchiam a sala.

Sheba estava sentada de costas para a porta. Tinha as mãos estendidas por cima do fogo, esfregando-as como se estivesse a lavá-las na incandescência vermelha. De pé, no outro lado da lareira, estava a sua visita. Tal como Rowan tivera esperança que acontecesse, era Allun. O seu rosto estava pálido de ira.

— O entretenimento aqui tem sido pobre — disse Sheba na voz áspera, sem se virar. — Este palhaço meio-Viajante não me divertiu com a sua história lamurienta. Uma fedelha que desapareceu devido à sua pró­pria tolice e à fraqueza do irmão... bah! E agora ele ficou calado, amuado como uma criança. Você irá proporcio­nar uma diversão melhor, coelho magricela.

Ela riu para si própria e abriu os dedos ossudos, admi­rando as unhas amarelas compridas que se curvavam nas pontas como garras.

Embora as palavras dela o tivessem magoado e irritado, Rowan esforçou-se por se manter calmo. Ele sabia que descobrir os pontos mais fracos dos seus visitantes e espicaçá-los fazia parte do jogo de Sheba. Ela gostava de vê-los estremecer e depois ceder ao medo ou à fúria.

— Parece que os seus truques não funcionam com toda a gente — troçou Allun. — O rapaz é demasiado forte para você.

Oh, Allun, fica calado, pensou Rowan com desespero. Você não sabe como ela é rancorosa. Mas não disse nada.

— Vá-se embora, Allun padeiro — silvou Sheba. — Estou farta da sua cara idiota.

— Eu também já vi o suficiente da sua — respondeu Allun com um sorriso sombrio. — Mas prefiro não deixar o meu amigo Rowan a sós contigo.

Sheba lançou-lhe um olhar de desdém e virou-se na cadeira para olhar para Rowan.

— Então, vamos ter uma reunião — disse ela com um sorriso horrível que colocava à mostra os seus dentes castanhos compridos. — Nesse caso, os seus compa­nheiros... os que estão lá fora à espreita... têm que se juntar a nós. Apreciaria vê-los cara a cara.

Rowan hesitou.

O sorriso de Sheba desvaneceu-se.

— Vá buscá-los! — trovejou ela.

Rowan foi lá fora e chamou Zeel e Perlain.

— Ela quer que vocês entrem, e tenho a certeza de que não falará comigo se vocês não vierem — murmu­rou-lhes. — Mas, quando estiverem lá dentro, não digam nada. Não cedam à tentação de...

— Um conselho sensato — resmungou Sheba no interior da cabana. — Não tentem sequer medir as suas faculdades mentais com as minhas. Mostrem-se!

Zeel, com as sobrancelhas juntas e a testa franzida, e Perlain, com o ar impassível que só um Maris conse­guia ter, seguiram Rowan até à divisão escura.


— Ah! Agora a reunião está completa — disse Sheba, olhando as novas visitas de cima a baixo. — Eu tinha um palhaço mestiço e um fracote de Rin transfor­mado em herói. Agora, juntaram-se a eles um homem-peixe saído da água e uma Zebak que finge ser uma Viajante. Que bela coleção de seres estranhos. — Ela riu-se, dando palmadas nos joelhos que fizeram com que o ar espesso à volta da sua cadeira se enchesse de pó e cinzas.

Rowan viu Zeel inspirar rapidamente, irada, e viu Perlain olhar para ela e depois velar os olhos. Mas mantiveram-se ambos em silêncio. Allun, infelizmente, não conseguiu fazer o mesmo.

— Está esquecendo-se de incluir a si própria, boa mulher — disse ele em voz alta. — O ser mais estranha de todos.

Sheba parou abruptamente de rir.

— Eu não me esqueço de nada, palhaço — rosnou ela num tom de aviso. — E seria sensato da sua parte lembrar-se disso.

Houve um breve, desagradável silêncio. Depois Sheba virou-se novamente para Rowan.

— Agora, que prenda trouxe para a velha Sheba, Rowan dos Bukshah? — resmungou ela. — O que tem para trocar pelo conhecimento que procura? O conhe­cimento que só eu te posso dar? Aproxime-se mais. — Ela sorriu o seu sorriso horrível.

— Tenha cuidado, Rowan — murmurou Allun. — Ela cospe como um gato, mas de uma forma mais desagradá­vel.

Rowan, desanimado, moveu-se mais para o interior da divisão. Esquecera-se completamente de que Sheba estaria à espera de um presente. Allun tinha-lhe trazido bolos de mel, arrufadas e uma taça de fruta do banquete abandonado. Rowan via-os num cesto junto da cadeira. Meteu desesperadamente as mãos nos bolsos, na es­perança de encontrar alguma coisa, qualquer coisa, que pudesse oferecer-lhe.

Ela observou-o em silêncio, à espera.

— Desculpe — disse ele ao fim de algum tempo. — Neste momento, não tenho nada para trocar. Mas o que eu te peço é... muito importante. Suplico-lhe que me ajude. Se o fizer, certificar-me-ei de que será recompensada.

— Com que então — sorriu Sheba, com os dentes a brilhar, vermelhos, à luz da lareira. — Certificar-te-ás, não é verdade? E como, meu pequeno herói, é que vai fazer isso, quando estiver acorrentado na terra dos Zebak?

Rowan ouviu o suspiro abafado de Allun ao seu lado, mas não se virou para ele, nem olhou para Perlain nem para Zeel, que estavam ao pé da porta. Ele concentrou toda a sua força de vontade em Sheba.

— Vou escrever um bilhete, pedindo à minha mãe que cumpra a minha promessa — disse ele. — Ela fá-lo-á.

— E dar-me-á o que eu te pedir? — perguntou Sheba. Rowan pensou rapidamente. Ele sabia que ela estava a tentar apanhá-lo numa armadilha.

— Dar-te-ei o que me pedir se isso estiver dentro das minhas possibilidades — disse ele ao fim de algum tempo. — E se o fato de eu o dar não ferir mais ninguém.

Ele observou Sheba atentamente, mas a velha não manifestou qualquer sinal de desilusão nem de triunfo. Ela simplesmente acenou a cabeça em sinal de assentimento.

— Escreva, então — disse ela. — A caneta está aí ao seu lado.

Rowan olhou e viu uma caneta, tinta e uma folha de papel em cima de uma pequena mesa junto do cotovelo de Sheba. Percebendo de que ela tinha planejado tudo desde o início, ele ajoelhou-se ao lado da mesa e pegou na caneta com uma sensação de temor.

— Rowan, não confie nela — avisou Perlain.

Sheba lançou-lhe um olhar sombrio.

— Silêncio, homem-peixe! — ordenou ela. Mas Rowan tinha pousado a caneta.

— Antes de escrever, dê-me a ajuda que prometeu-me, Sheba — disse ele tentando manter a voz firme. Ela sorriu-lhe.

— Você se tornou astuto e ousado, coelho magricela. Astuto como o seu amigo meio-peixe. Ousado como a garota Zebak de olhos claros. Mas o que o impedirá de fugir quando eu lhe der o que tenho para dar e te disser o que tenho para dizer?

Rowan permaneceu calado e olhou para o papel. Sentia os olhos ardentes de Sheba fixos na sua cabeça, mas não ergueu a vista. Ele sabia que, se o fizesse, não conseguiria manter-se firme.

Passou-se um longo minuto. Depois, Rowan ouviu um suspiro e um ruído como se a velha estivesse a mo­ver-se na cadeira.

— Muito bem — disse Sheba.

Rowan ergueu o olhar e viu que ela estava a esten­der-lhe qualquer coisa. Era um embrulho pequeno, fino, envolto em tecido encerado e atado com um cordão de seda entrançada e desbotada. Pegou nele, excitado, com o coração a bater com força. O tecido que o embru­lhava era grosso e cheirava muito a fogo, cinzas e ervas amargas. Ele não conseguiu adivinhar o que poderia estar lá dentro. Começou a puxar o cordão, mas os nós não se soltaram.

— Só quando chegar à terra que procura é que ele se abrirá — murmurou Sheba. — O seu conteúdo é para ser usado quando realmente precisar. Quando já não tiver esperança. Até essa altura, guarde-o bem, porque é precioso.

Rowan enfiou o embrulho dentro da camisa, com os dedos a tremer.

— Eu te dei o que tenho para dar — disse Sheba num tom taciturno. — O que tenho para lhe dizer será dito depois de ter cumprido a sua parte. Agora, escreva.

Rowan mergulhou a caneta na tinta e escreveu. Mãe, tenho uma dívida para com a feiticeira Sheba. Deverá ser-lhe entregue...

Ele parou e ergueu a vista, com a caneta suspensa por cima do papel. Os olhos de Sheba brilhavam. Ela esfregava as mãos, fazendo um ruído seco como algo a ser raspado.

— O que quer? — murmurou Rowan.

— O meu preço é baixo — disse Sheba. — É o novilho preto que nasceu na manada dos bukshah na Prima­vera.

Rowan sentiu-se gelar. Os bukshah eram afetuosos e gostavam da companhia uns dos outros. A idéia de o novilho preto ser obrigado a passar a vida ali sozinho, longe do campo aberto, longe da sua mãe e dos seus amigos destroçava-lhe o coração.

— O novilho é demasiado... demasiado pequeno para deixar a mãe — balbuciou ele.

Um sorriso lento espalhou-se novamente pelo rosto de Sheba.

— Eu posso esperar. De fato, eu vou estar muito ocupada durante algum tempo, e não terei tempo para ele.

— Porque é que o quer? — conseguiu Rowan per­guntar.

— Porque ele me agrada — Sheba rodou para olhar de frente para ele, e o seu sorriso alargou-se. — Porque é incomum. Diferente da manada. Como eu. — Ela inclinou-se para a frente, com o cabelo oleoso a balançar à volta do rosto. — Como os seus amigos que aqui estão. E como você, Rowan dos Bukshah.

As palavras atingiram o ponto mais sensível da mente de Rowan e permaneceram lá, queimando como chispas de fogo. Ele baixou os olhos para a caneta.

— Talvez você se preocupe mais com a liberdade do animal do que com a sua irmã — troçou Sheba. — Se assim é, devolva-me a minha prenda e pare de desper­diçar o meu tempo.

Rowan soube que tinha que fazer o que ela pedia. Escreveu com um aperto no coração, depois pôs-se de pé e estendeu-lhe o bilhete. Sheba pegou nele, estu­dou-o cuidadosamente estreitando os olhos e depois, satisfeita, acenou a cabeça em sinal de assentimento.

— Excelente — disse ela dobrando o papel e enfiando-o debaixo da almofada da sua cadeira. — Então... chegou a altura. — Ela virou-se para Perlain, Allun e Zeel. — Deixem-nos sozinhos — disse ela abrupta­mente.

— Eu sinto-me bem aqui — replicou Allun com um sorriso.

Os olhos de Sheba brilharam, vermelhos.

— Por favor vá-se embora — suplicou Rowan.


Zeel e Perlain olharam um para o outro. Zeel anuiu, pegou no braço de Allun e puxou-o. Perlain abriu a porta e juntamente com Zeel, conseguiu persuadir Allun a sair. A porta fechou-se atrás deles e o ferrolho caiu com um estalido.

A pequena divisão pareceu vazia sem eles. Rowan permaneceu de pé ao lado da cadeira de Sheba, sen­tindo-se muito só.


 

OS VERSOS

Sem prestar atenção a Rowan, Sheba inclinou-se, tirou uma mão cheia de pauzinhos da caixa que estava ao lado da sua cadeira e atirou-os para o fogo. Eles arderam instantaneamente, com chamas vermelhas e verdes a dançarem na madeira enegrecida. Sombras disformes saltavam pela sala como espíritos malignos. Rowan sentiu medo e começou a ter uma sensação de formigamento na pele.

— Estenda a mão! — ordenou Sheba subitamente. Rowan estendeu hesitantemente a mão direita e a velha pegou-lhe no pulso. Agarrou-o com força e as suas unhas afiadas penetraram-lhe na pele. Ele respirou fundo e ergueu a vista. Os seus olhos cruzaram-se com os dela. Estes eram estranhamente trocistas e muito, muito pro­fundos. Ele não conseguiu desviar o olhar.

— Agora vamos ver qual de nós dois é o mais forte — entoou Sheba, numa voz alterada. Os seus olhos tornaram-se ainda mais profundos, atraindo-o. Era como se ele estivesse a cair dentro deles, mergulhando, mergulhando...

Depois, vagamente, como se ela estivesse muito longe, ouviu Sheba cacarejar. Fez um esforço, pestanejou e o feitiço quebrou-se. Ela estava rindo na sua cara, ainda a agarrar-lhe no pulso.

— Vamos lá — sorriu ela. Com uma força espantosa, ela arrastou-lhe a mão na direção do fogo. As chamas tremeluziram mais alto, lambendo os dedos de Rowan como línguas ansiosas, chamuscando e queimando.

Com um grito, ele esforçou-se para se afastar, mas Sheba agarrava-o com uma dureza de pedra e já não o ouvia. Tinha a cabeça atirada para trás, os olhos fecha­dos, e estava a balbuciar para si própria, oscilando ligeira­mente de um lado para o outro. O fogo queimava cada vez mais alto... ela começou a falar. As palavras chegaram até Rowan através de uma névoa de dor:

Cinco dedos estranhos formam a mão do destino,

Cada um deles desempenha o seu papel às ordens do

[destino,

O fogo a resposta contém,

E até chegar a sua altura todos os segredos mantém.

Quando a dor é verdade e a verdade ê dor,

As sombras pintadas vivem de novo.

Cinco partem, mas cinco não regressam.

A esperança e o orgulho vãos em terror queimam.

Os olhos de Sheba abriram-se, e Rowan sentiu-a segu­rá-lo com menos força.

Ele conseguiu soltar-se e afastou-se, cambaleante, do fogo, segurando a mão ferida contra o peito, solu­çando de dor e choque. Ouviu bater à porta com força, e Allun e Zeel gritar. Mas a porta estava trancada e eles não conseguiam entrar.

Sheba estava reclinada na cadeira, como se estivesse exausta, mas ainda arranjou forças para se rir.

— Oh, meu pequeno herói — troçou ela —, não gostou da lição de Sheba? Aqui está outra.

A dor aumentou, insuportável, numa enorme onda. Depois, subitamente, desapareceu como se nunca tivesse existido.

Perplexo e trêmulo, Rowan olhou para baixo. Contava que a mão estivesse queimada e com bolhas, mas ela estava lisa e sem quaisquer marcas. Olhou para Sheba, espantado.

— Nem tudo é o que parece — resmungou Sheba. — Agora... vá embora, antes que os tolos dos seus amigos se machuquem batendo na minha porta.

Rowan sentiu a ira aumentar dentro de si, queimando-lhe o peito, quente como o fogo que lhe queimara a mão. Ele combateu-a com todas as suas forças.

— Allun, Zeel — gritou ele na direção da porta. — Esperem!

Eles pararam de bater à porta, e ele voltou-se novamente para Sheba.

— Não me disse o que preciso de saber — disse ele, perguntando a si próprio como é que a sua voz podia estar tão calma.

Ela encolheu os ombros.

— Disse-lhe o que podia, que é tudo o que prometi. Você tem as palavras. Recorde-se delas.

— Elas não chegam! — exclamou Rowan. — Não me disse onde tenho que ir na terra dos Zebak, nem o que tenho que fazer para salvar Annad.

— Como poderia eu dizer-lhe isso, Rowan dos Buks­hah? — Sheba bocejou. — Como poderia eu saber? A terra dos Zebak fica longe. Demasiado longe... até mesmo para mim. — Os olhos dela fecharam-se.

— Mas... não me disse isso antes! — Lágrimas de raiva faziam arder os olhos de Rowan. Ele limpou-as furiosamente.

Os lábios finos de Sheba curvaram-se num sorriso.

— Você... não perguntou — murmurou ela.

— Enganou-me! — Rowan começou a dirigir-se a ela, com as mãos estendidas para sacudi-la, para fazer com que ela lhe dissesse mais alguma coisa. Mas, quando deu o primeiro passo, as labaredas aumentaram, crepitando furiosamente, e a sua mão direita começou a doer e a arder.

Deu um salto para trás, segurando na mão, ao mesmo tempo que a dor aumentava até atingir um pico agoni­zante, e depois desaparecia gradualmente. Não se atreveu a aproximar-se outra vez de Sheba. Ficou no centro da divisão a olhá-la com ódio. Ela estava deitada na cadeira sem se mexer, respirando profundamente. Estava a dormir, e ele sabia que ela não iria acordar.

 

Ao sair da cabana, a primeira sensação que Rowan teve foi de espanto, e depois de horror, ao ver que era quase noite. Olhou desesperadamente em volta, mal conseguindo acreditar nos seus olhos. Quando atravessara a clareira para escutar à porta de Sheba, o sol estava alto no céu. Como poderia ter decorrido tanto tempo?

Depois recordou-se do fogo a tremeluzir em chamas vermelhas e verdes, e dos dedos de Sheba a aperta­rem-lhe o pulso. E dos olhos dela... profundos, trocistas...

A clareira estava deserta. Ele deu um salto quando duas sombras se moveram debaixo das árvores do pomar, depois descontraiu-se ao ver que eram apenas Allun e Zeel que vinham ao seu encontro.

— O que é que a feiticeira te fez? — quis Zeel saber, furiosa.

O rosto de Allun estava pálido.

— Esteve tanto tempo na cabana! Depois o ouvimos dar um grito de dor... uma dor enorme.

— Não foi nada— respondeu Rowan. Mas não con­seguiu impedir-se de sentir um arrepio ao lembrar-se do que tinha acontecido.

— Ela virou-se contra você porque eu a irritei — mur­murou Allun. — Porque eu não consegui manter a minha língua idiota em segurança atrás dos dentes.

Rowan abanou a cabeça.

— A culpa não foi sua. Ela provocou-lhe, fez-lhe zangar, para o obrigar a falar. Eu não devia ter ficado. Ela enganou-me. Enfeitiçou-me, para me fazer ficar mais tempo do que eu tencionava. E depois disse-me muito pouco.

E o que ela me disse, eu preferia não saber, pensou ele.

— Diga-nos o que foi — pediu Allun.

Rowan repetiu os versos com relutância. A cada pa­lavra, a sua mão pulsava com a dor de que ele se recordava.

Allun e Zeel escutaram atentamente mas, quando Rowan se calou, entreolharam-se, perplexos.

— Toda esta conversa de fogo e de arder não é nada agradável — disse Allun. — E essas «sombras pintadas» que vão voltar a viver... o que são?

— Não sei — suspirou Rowan. — Não compreendo nada.

Esfregou os olhos, tentando desanuviar a mente, de­pois percebeu subitamente de que faltava alguém.

— Onde está Perlain? — perguntou ele num tom de urgência. — Temos que partir.

— Perlain partiu para Maris, com Tor, há muito tempo — respondeu Allun, sorrindo com um ar cansado e levantando a mão quando os olhos de Rowan se en­cheram de pânico. — Não, não tenhas medo. Ele não o abandonou.

— Ogden estava aqui, à nossa espera, quando saímos da cabana — explicou Zeel. — Ele disse que achava que estaria com Sheba durante algum tempo, e que Perlain não devia esperar.

Rowan abanou desesperadamente a cabeça. Zeel tocou-lhe no ombro com os dedos frescos, acalmando-o.

— O plano de Ogden irá poupar muito tempo — disse-lhe ela. — Eu vou levá-lo daqui diretamente para a costa, seguindo o caminho que o animal voou. Entre­tanto, Perlain irá trazer o barco de Maris.

— Mas... os penhascos... as rochas — exclamou Ro­wan, confuso. — Maris é o único local de aterragem se­guro na costa. É por isso que os Zebak nunca vieram...

— Tudo isso já foi pensado, Rowan — disse Allun suavemente. — Lembre-se de que Ogden tem poder sobre o vento. O barco de Perlain estará à espera no mar, na água mais calma. Zeel e Mithren, que têm o papagaio branco, vão levar-nos a voar da terra até lá.

Rowan acenou a cabeça em sinal de assentimento, apreendendo tudo. Ao que parecia, muita coisa tinha acontecido enquanto ele estivera com Sheba. Os seus amigos tinham estado a pensar e a planejar por ele.

Subitamente, pestanejou, concentrando-se em algo que Allun dissera.

— Nós? — exclamou ele. — Allun, você disse «vão levar-nos.»

— Exatamente — disse Allun despreocupadamente. — Estou curioso por ver o que está no interior do pequeno embrulho de Sheba. Infelizmente, ele só poderá ser aberto quando chegar à terra dos Zebak. Por isso decidi que tenho simplesmente que ir com você.

 

NO MEIO DA ESCURIDÃO

Durante o caminho até o acampamento dos Via­jantes, Rowan tentou persuadir Allun a mudar de idéia. Mas Allun recusava-se a dar-lhe ouvidos. Con­tinuou a caminhar, a rir e a dizer piadas, como se se sentisse verdadeiramente feliz por correr um perigo tão grande só para descobrir o que estava dentro do embru­lho de Sheba.

— Eu herdei do meu pai a curiosidade dos Viajantes, Rowan — disse ele. — Os Viajantes acham que têm que saber tudo. E, ao que parece, os meio-Viajantes não são diferentes. Ainda por cima, não consigo resistir à oportunidade de voltar a voar num papagaio levado pelo vento.

Ele riu-se timidamente.

— Perlain é de opinião diferente — disse ele. — ‘Não consigo compreender,’ disse-lhe eu. ‘Voar é a coisa que eu mais gosto de fazer.’ Mas ele, só de pensar nisso, ficou verde e a tremer.

Zeel caminhava, em silêncio, ao lado deles. Quando chegaram ao acampamento e se dirigiram para o local onde Ogden estava à espera deles, ela falou finalmente.

— Não quer companhia nesta viagem, Rowan dos Bukshah? — perguntou ela sem cerimônia. — A bruxa disse-lhe que, para ser bem sucedido, tem que ir sozinho à terra dos Zebak?

Rowan engoliu em seco, olhando para os pés.

— Não — disse ele com relutância. — Mas... foi por culpa minha que a minha irmã desapareceu. Tentar encontrá-la foi idéia minha... uma idéia que toda a gente em Rin vai pensar que é uma loucura. Eu... não quero que mais ninguém corra perigo por minha causa.

Zeel anuiu e virou-se para Allun.

— Vamos lá — disse ela. — Pare com os seus dispara­tes. Deixe de esconder a sua brandura como um caracol a esconder-se na sua concha. Explique o verdadeiro motivo pelo qual quer ir nesta viagem.

O sorriso fácil de Allun vacilou, depois desapareceu, e o seu rosto magro ficou triste e sério.

— Não é por sua causa que irei correr perigo, Rowan — disse ele em voz baixa. — Eu sempre tencionei ir atrás do animal. Porque é que pensa que fui à cabana da Sheba? Pela mesma razão que você... para tentar obter conselhos e orientações para a viagem.

Ele viu Rowan lançar-lhe um olhar de espanto e encolheu os ombros.

— Eu só estava meio a brincar quando falei na ne­cessidade de conhecimento dos Viajantes. Em mim essa necessidade é muito forte. Mas ela junta-se ao amor que os habitantes de Rin têm à sua terra e a uma vida segura, estável. Eu não consigo simplesmente ficar aqui à espera, a preparar-me para defender o vale. Eu preciso de saber o que os Zebak estão a planejar. Como é que podemos criar filhos se estivermos sempre com medo que eles nos sejam roubados? Ande... Ogden está à nossa espera.

Ele recomeçou a andar, dirigindo-se muito rapida­mente para o local onde Ogden se encontrava. Rowan reparou que Mithren também lá estava, com o papagaio branco por cima do ombro. Ele estava pronto.


Rowan apressou-se a ir atrás de Allun, com Zeel ao seu lado.

— Ele está a pensar nos seus próprios filhos — mur­murou Zeel. — Os filhos que irá ter um dia, se se casar com Marlie, a tecelã.

Rowan acenou lentamente a cabeça em sinal de con­cordância. Os sentimentos de choque, culpa, tristeza e preocupação com Annad não lhe tinham deixado mar­gem para pensar no futuro. Mas agora viu que Allun tinha razão. Depois daquele dia, o vale de Rin já não poderia ser considerado um lugar seguro, protegido. O próprio céu era uma porta aberta através da qual o terror poderia chegar.

 

Voaram para a escuridão, levados pelo vento que Ogden tinha invocado, e pareceu a Rowan, à medida que as luzes de Rin tremulavam e desapareciam abaixo dele, que a escuridão estava a engoli-los.

Ele partira sem levar nada a não ser o pequeno em­brulho de Sheba, a recordação ardente das suas palavras misteriosas, e o amargo conhecimento do preço que pa­gara por eles. Só se despedira da Estrela. As únicas pala­vras que deixara para a mãe tinham sido um bilhete rabiscado, que Ogden prometera entregar.

Foi como se ele tivesse cortado com tudo o que conhe­cia e amava, e estivesse agora perdido num impetuoso mar negro que não tinha fim.

De vez em quando, pelo canto do olho, ele via de relance algo branco a brilhar. Ele sabia que era o papagaio do Viajante Mithren, e que Allun estava a voar com ele, preso a Mithren por cordões de seda, tal como Rowan estava preso a Zeel. Mas Mithren e Allun estavam escon­didos pela escuridão. Só a vela do papagaio a rodar, que ora surgia, ora desaparecia do seu campo de visão, era prova de que Rowan e Zeel não estavam sozinhos.

Voaram durante horas, e Rowan não podia fazer nada a não ser confiar que Zeel sabia onde eles estavam e que eles seguiam na direção correta. Ele sabia que ela estava a se orientar pelas estrelas. Mas, para ele, as estrelas eram apenas pontos brancos e frios no céu, e eram todas iguais.

Deu por si a adormecer, depois a acordar com um sobressalto. Todas as vezes que acordava, pensava por um instante que tudo aquilo era um pesadelo, e que estava em segurança em casa, na sua cama. Depois abria os olhos para o céu negro, sentia o vento frio a bater-lhe no rosto e apercebia-se de que não era um sonho.

Por fim, confuso e cheio de medo, recordou-se das palavras de Sheba. Ele tentara não pensar nelas, mas não conseguia esquecê-las. Elas pareciam elevar-se como chamas vermelhas na sua mente, avivadas pela memória da dor da queimadura.

Cinco dedos estranhos formam a mão do destino,

Cada um deles desempenha o seu papel às ordens do

destino,

O fogo a resposta contém,

E até chegar a sua altura todos os segredos mantém.

Quando a dor é verdade e a verdade é dor,

As sombras pintadas vivem de novo.

Cinco partem, mas cinco não regressam.

A esperança e o orgulho vãos em terror queimam.

 

O que significariam os versos? Ele sabia, por expe­riência própria, que as profecias de Sheba, por mais mis­teriosas que parecessem ser, deviam ser levadas a sério.

Cinco dedos estranhos...

— Rowan, estamos passando pela costa — ouviu Zeel gritar acima do vento. — Olhe para baixo.

Rowan olhou e viu. Viu o negrume imóvel da terra desaparecer e o negrume oscilante do mar tomar o seu lugar. Viu a espuma branca elevar-se quando a água escura batia contra os penhascos mais escuros. Ali, naquele lugar que ele nunca tinha visto, a terra terminava, e o desconhecido começava.

Estavam agora a deixar os penhascos para trás e a sobrevoar o mar. Ao princípio, a água abaixo deles fervia e espumava à volta das rochas escondidas, lançando-se furiosamente em muitas direções diferentes. Mas à medida que continuavam a voar e se afastavam de terra, ela foi-se tornando gradualmente mais funda e calma.

Só nessa altura é que Rowan sentiu medo. Certa­mente que em breve o poder de Ogden sobre o vento fraquejaria. Se o vento diminuísse, se o papagaio caísse, ele e Zeel mergulhariam juntos naquela água escura, misteriosa, onde havia serpentes de atalaia, à caça de presas. Atados um ao outro, com a seda do papagaio a rodopiar e a torcer-se à volta deles, como conseguiriam manter-se flutuando? De qualquer modo, ele era um fraco nadador, e — sentiu um nó no estômago, só de pensar nisso — os Viajantes não sabiam mesmo nadar. Era por isso que Allun...

Allun! Rowan percebeu que não via o brilho branco do papagaio de Mithren desde que tinham passado a linha da costa. Em pânico, virou-se para a esquerda e para a direita, perscrutando desesperadamente a escuridão. O papagaio abrandou e balançou.

— Rowan! Eles estão bem, vêm atrás de nós. Está quieto! — gritou Zeel, a sua voz soou fina e entrecortada pelo vento. — Olhe para a frente!

Ela deslocou o peso, estabilizou o papagaio e conti­nuou a dirigi-lo em direção à luz que os seus olhos tinham visto há muito tempo, e que agora até o próprio Rowan via. Era a luz do barco de Perlain a navegar no mar escuro, à espera deles.

 

Sozinha, Zeel teria descido para o convés oscilante do barco com a mesma facilidade e leveza com que teria aterrado na relva de um campo verde. Mas Rowan, rígido e desajeitado depois do longo vôo, tropeçou quando os seus pés tocaram nas tábuas lisas. Ele caiu pesada­mente, arrastando Zeel consigo.

— Des... culpa — gaguejou ele. Tentou pôr-se de pé, viu que não se sustinha nas pernas e caiu para trás. O barco inclinou-se e balançou.

Perlain, aproximou-se deles com um passo seguro. Agachou-se para segurar Rowan enquanto Zeel desapertava os cintos que os atavam um ao outro.

Zeel deu uma gargalhada quando finalmente se pôs de pé, apanhando o papagaio atrás de si e atirando-o por cima do ombro. Quando ergueu o olhar para o céu escuro, os seus olhos brilhavam de excitação.

— Recuem um pouco — ordenou ela. — O Mithren vem aí com o Allun. Dêem-lhe espaço.

Com a ajuda de Perlain, Rowan arrastou-se desajei­tadamente para longe do local de aterragem, conseguindo, ao fim de algum tempo, chegar ao mastro do barco. Agar­rou-se a ele, aliviado, e conseguiu finalmente pôr-se de pé. Ouviu Zeel gritar e virou-se rapidamente para olhar.

Ela estava de pé no meio do convés, a olhar para cima. A vela branca do papagaio pairava no alto por cima dela, mal se movendo. Rowan susteve a respiração. O que se passava?

— Porque é que o Mithren não aterra? — perguntou ele ansiosamente a Perlain. — Porquê?

Nesse momento, ouviu-se um grito vindo do papagaio. Zeel levantou os braços e, com uma sensação de cho­que, Rowan viu um corpo cair de debaixo da vela branca. Ou melhor... não exatamente a cair, mas a descer lentamente através da escuridão. Ele ficou a ver, de boca aberta, a figura aproximar-se e, por fim, a deslocar-se para a luz que o barco lançava para o ar.

Era Allun, pálido mas decidido. Estava suspenso por um cordão fino, e balançava nele como uma aranha num fio de seda. Zeel esperava-o, de braços ainda er­guidos. Assim que ele se encontrou ao seu alcance, ela apanhou-o pela cintura e segurou-o bem.

— Está tudo bem! — gritou ela, erguendo a vista para o papagaio que pairava no ar. O cordão esticado distendeu-se imediatamente quando, lá no alto, Mithren o cortou. Ele caiu suavemente no convés, e Zeel camba­leou ao receber o impacto de todo o peso de Allun. Soltou-o e ele, assim que os seus pés tocaram nas tábuas, caiu, tropeçando e rolando tal como acontecera com Rowan.

Perlain correu para o ajudar, mas Zeel não lhe prestou atenção. Ela ainda estava a olhar para cima.

— Até à vista, Mithren! — gritou ela, acenando.

— Até à vista, Zeel — ouviu-se a resposta distante. A vela branca ondulou, inclinou-se no ar e começou a afastar-se, descrevendo um enorme círculo e, seguida­mente, deslocando-se a grande velocidade em direção à escuridão.

Ainda agarrado ao mastro, Rowan fitou Zeel, com os olhos cheios de interrogações. Ela retribuiu-lhe o olhar sem falar.

— O Mithren não quer descansar aqui antes de voltar? — perguntou ele.

Ela abanou a cabeça.

— Ele tem que voltar para o interior do círculo de poder de Ogden o mais depressa que puder — respon­deu ela. — O vento aqui é variável e perigoso.

— Mas você... e você? — perguntou Rowan, virando-se seguidamente para Perlain, que permanecia de pé em silêncio atrás dele. — E Perlain?

— Nós estamos onde queremos estar — replicou Perlain em voz baixa.

— Nós decidimos que esta busca não é só sua nem do Allun — acrescentou Zeel. — Também é nossa. Nós vamos com você.

O coração de Rowan deu um enorme salto. Allun sorriu alegremente, embora o seu rosto ainda estivesse rígido e branco como a cal.

— Podemos ser um conjunto de seres estranhos — disse ele. — Mas parece que o destino decidiu que devemos fazer o seu trabalho.

Cinco dedos estranhos formam a mão do destino...

Rowan soltou um pequeno som e agarrou na mão direita. Quando as palavras ecoaram na sua mente, ela latejara e queimara.

Zeel olhou para ele e ergueu o queixo.

— O destino não decidiu nada. Nós decidimos por nós próprios. E somos quatro, não cinco. Não tenha medo, Rowan. Os versos não podem estar a referir-se a nós.

— A não ser que... — Rowan molhou os lábios secos — haja mais alguém.

O barco balançou perigosamente e ele agarrou-se ao mastro para não cair.

— A maré está a virar — ouviu a voz inexpressiva de Perlain dizer. — E o vento está a aumentar. Temos que içar as velas e sair daqui. Neste momento, corremos o risco de ser arrastados para a costa e atirados contra as rochas. Não há tempo a perder.

 

A TEMPESTADE

Perlain tinha trazido três coletes de cortiça. Um para Allun, outro para Zeel e outro para Rowan.

— Eles flutuam no mar. A nossa gente usa-os quando está ferida — explicou ele. — Quando não podem fazer uso dos braços ou das pernas, e não conseguem nadar em segurança na água agitada.

— Eu posso perfeitamente usar os meus braços e as minhas pernas. E eu sei nadar! — comentou brusca­mente Zeel, olhando para o colete castanho, desajeitado, com um ar de repugnância. — Os Zebak aprendem a nadar antes de aprenderem a andar. De outro modo, como é que acha que eu sobrevivi o tempo suficiente para chegar com vida à costa, onde Ogden me encon­trou?

Perlain sorriu ligeiramente.

— Talvez saiba nadar— disse ele. — Mas não como um Maris. E, pelo aspecto das ondas e o cheiro do vento, receio que tenha necessidade de nadar como um Maris antes de a nossa viagem chegar ao fim.

Allun e Rowan já estavam a atar os coletes, reconhe­cidos. Após um momento de hesitação, Zeel fez o mesmo. Perlain anuiu com satisfação, depois concentrou a sua atenção nas velas.

 

O vento aumentou e as velas encheram-se. Durante muitas horas, o barco pareceu voar sobre as cristas das ondas, avançando tão rápida e facilmente como um papagaio dos Viajantes através do ar. Descansaram por turnos, embora apenas Perlain parecesse realmente dor­mir. Os outros mantiveram-se acordados, virando-se desconfortavelmente nos coletes de cortiça rijos, perturba­dos, e não embalados, pelo interminável movimento do barco.

A alvorada chegou, finalmente, mas nuvens velavam o céu e o mar estava cinzento, com ondas enormes. Perlain, Rowan e Zeel comeram peixe seco e beberam água. Allun só bebeu água. O seu rosto tinha uma cor branca esverdeada. Era óbvio que ele se sentia muito doente e, à medida que a manhã avançava, foi piorando cada vez mais. Por fim, a única coisa que lhe restou fazer foi deitar-se, a gemer, no fundo do barco, tapado com um cobertor.

Rowan inclinou-se sobre ele, com o rosto franzido de preocupação.

— Eu estou a morrer, Rowan — gemeu Allun.

— Não, meu amigo, não está — disse Perlain calma­mente, olhando-o do seu lugar ao leme. — Conforme já te disse muitas vezes, os seres terrestres sofrem muitas vezes desta doença quando estão no mar. Dizem que é por causa do movimento do barco.

Ele permitiu-se um pequeno sorriso enquanto se virou para verificar uma das cordas.

— Eu não compreendo — Rowan ouviu-o murmurar. — Andar de barco é aquilo de que eu mais gosto.

À medida que a manhã se transformava em tarde, Allun começou lentamente a sentir-se melhor. A noite, ele conseguiu pôr-se de pé e até mesmo comer um pouco.

— Nunca mais troçarei de você por ter medo de voar — prometeu ele a Perlain. — Se jurar nunca mais me trazer para o mar.

Mas nesta altura Perlain já não estava com disposição para sorrir. O mau tempo que ele sentira aproximar-se estava quase a abater-se sobre eles. As nuvens, cinzentas escuras e com um ar irado, revolviam-se e corriam, baixas, por cima das cabeças deles. O vento soprava cada vez com mais força. A água escura agitada estava a ser chicoteada, transformando-se em pontas aguçadas encima­das por espuma branca.

E, por fim, a tempestade abateu-se sobre eles. A chuva caía, o barco subia, descia e balançava nas enormes ondas, e as velas foram rasgadas pelo vento implacável que parecia não ter fim.

Enquanto mergulhavam na noite negra, com vento a uivar à sua volta e as ondas a bater contra os frágeis lados do barco, Rowan percebeu que o seu plano de fazer aquela viagem sozinho tinha sido mais do que tolice. Tinha sido uma loucura.

Naquele mar furioso, ele nunca teria conseguido manter o barco à tona de água. E Allun não teria conse­guido ajudá-lo — nem Zeel, por maior que fossem a sua determinação e coragem. A única pessoa capaz de o fazer era Perlain.

Perlain nascera no mar, conhecia-o como nenhum dos seus companheiros poderia alguma vez conhecer. Sem a pequena mão palmada de Perlain na cana do leme, e sem a voz urgente de Perlain a dizer-lhes que corda puxar, de que lado colocar o peso, que vela içar ou arriar, morreriam todos dentro de poucas horas.

Mas era Perlain, o único entre eles que compreendia o poder do mar, que mais medo tinha. E foi ele que, depois de passarem horas a lutar contra a tempestade, os avisou de que corriam um perigo terrível.

— O mastro... não se vai agüentar — gritou ele acima do rugido do vento. — Não vai suportar a pressão. Esta­mos a meter água. E o vento... está cada vez mais forte. Temos que nos preparar...

— Para nadar? — O rosto magro de Allun ficou tenso. Ele estava completamente encharcado. Os mús­culos dos seus braços roçavam as cordas que ele segu­rava enquanto, juntamente com Zeel, se inclinava sobre o lado do barco, utilizando o peso dos dois para o man­terem direito.

— Sim — gritou Perlain. — Mas não desesperem. O mar é menos fundo aqui do que antes... eu sinto-o. O vento tem-nos empurrado muito. Acho que não estamos longe da costa... embora não seja o local onde eu tencionava desembarcar.

— Onde estamos, então? — perguntou Zeel, ofegante. Antes de Perlain conseguir responder, houve uma enorme rajada de vento e o mastro cedeu com um ran­gido terrível. Com um grito, ele deu um salto para o lado no momento em que a vara de madeira se inclinou e caiu, esmagando a cana do leme e destruindo o lado do barco. Depois, uma onda enorme varreu o convés e, no local onde Perlain estivera, não havia nada a não ser água a silvar, rodopiante.

— Perlain! — gritou Rowan. Mas, quando gritava, sentiu o barco oscilar e inclinar-se, e o convés a deslizar de debaixo dos seus pés. E antes de conseguir sequer pensar ou voltar a gritar, ele estava a tentar respirar e a debater-se no meio do mar negro e frio.

As ondas quebravam-se com estrépito à sua volta. Cego e surdo pelo bater das ondas, ele rolava sem poder oferecer resistência, num minuto levado pela corrente, no minuto seguinte obrigado pelo colete de cortiça a vir novamente à superfície, engasgado e a esforçar-se por respirar.

— Allun — chamou. — Zeel! Perlain! — Mas não conseguia ouvir nada. Nada a não ser o rugido do vento, o estrépito das ondas e o barulho do barco a partir-se.

Algo se elevou da escuridão ao seu lado. Uma ser­pente! Aterrorizado e confuso, Rowan esbracejou, a gri­tar, engasgando-se com a água que lhe entrava pela boca e pelo nariz. Lutou às cegas, vendo mentalmente o terrí­vel quadro de um corpo viscoso a contorcer-se, com maxilares gotejantes e dentes aguçados como agulhas.

Depois a sua mão bateu em algo duro e ele per­cebeu que o objeto ao seu lado não era uma ser­pente. Era um pedaço de madeira grande que tinha flutuado para longe do barco desfeito. Agarrou-se a ele, utilizando as suas últimas forças para se içar parcial­mente para cima dele de modo a que a cabeça e o peito ficassem apoiados na superfície dura.

Não conseguia fazer mais nada. Agarrando-se à madeira, ofegante e a tremer, atirado de um lado para o outro como se ele próprio fosse um pedaço dos des­troços, fechou os olhos. Annad, desculpa, pensou ele. De­pois deixou que as ondas o levassem para onde qui­sessem.

 

— Rowan! Rowan!

A voz chamava-o de muito longe. Rowan não tinha vontade de responder. Só desejava ficar onde estava, embalado pelo marulhar suave das ondas, passando pelas brasas naquela agradável sonolência em que nada era real e em que não havia nada a temer. Mas agora uma mão estava a sacudir-lhe o ombro e a voz era mais alta, mais alta...

Franziu o cenho, resmungou e abriu os olhos. Estes ardiam-lhe e estavam rasos de água e, a princípio, ele não conseguia ver nada.

— Animem-se! Ele está entre nós! — chamou a voz.

Ouviram-se, sumidos, gritos roucos de aplauso oriun­dos de algum lugar perto.

Gradualmente, Rowan foi recuperando a visão e, através da obscuridade chuvosa, viu um rosto que conhe­cia debruçado sobre ele.

Perlain.

Rowan tentou falar mas sentia a garganta seca, arra­nhada e dilacerada. Premiu a mão contra o pescoço e tentou de novo.

— Perlain! — exclamou com voz rouca. — Pensei que tinha se afogado.

Perlain sorriu e abanou a cabeça.

— Não é assim tão fácil verem-se livres de mim, meu amigo — disse ele. — Mas durante a última hora eu pensei que vocêtivesse afogado. E agora, como um milagre, a maré trouxe-te até aqui, caído sobre algumas tábuas do meu pobre barco como uma erva daninha molhada.

— Allun? — perguntou Rowan com voz rouca. — Zeel?

— Estão os dois aqui — respondeu Perlain. — Estão a descansar, cheios de desgosto de si próprios. Tal como você, eles engoliram muita água salgada e não se sentem muito bem. — Ele olhou em volta, um pouco embara­çado. — Sente-se suficientemente forte para se mexer?— perguntou delicadamente. — As serpentes gostam muitas vezes de caçar perto da costa. Especialmente depois de uma tempestade, quando poderá haver presas feridas caídas nos baixios.

Só nesse momento é que Rowan percebeu que estava deitado em água pouco funda e que Perlain tinha a cabeça bem erguida, longe das ondas que borbulhavam e silvavam à volta dele. Bastante dolorido, conseguiu pôr-se de pé. Seguidamente, apoiando-se no ombro do homem de Maris, dirigiu-se com ele para a praia.

Allun e Zeel estavam esparramados contra uma pe­quena colina de areia, não muito longe. Estavam os dois pálidos, molhados e a tremer mas, quando viram Rowan, sorriram ambos de satisfação.

— Que belo grupo de heróis que nós somos — gracejou Allun, através dos dentes a bater. — Meio afogados, meio congelados, meios-mortos de cansaço e agoniados por termos bebido metade do oceano. Já para não falar do fato de as nossas provisões estarem a servir de comida para os peixes.

— Pelo menos estamos vivos — disse Zeel, ao mesmo tempo que Rowan se deixava cair ao lado dela. — A tempestade terminou. Ainda tenho a minha peder­neira para começar uma fogueira. Também tenho corda e o meu papagaio. Perlain tem a sua faca, e guardou um saco de água. E — ela olhou com um ar de esperança para o homem de Maris — seguramente que estamos em algum lugar perto do local onde tencionávamos estar?

Perlain retribuiu-lhe o olhar, hesitante. Os cantos da sua boca estavam rígidos e, quando falou, a sua voz soou tensa e estranha.

— Não muito perto. Mas certamente que estamos no território dos Zebak. Penso que... este é o lugar que, no passado, eu vi ao longe, do mar. Se for, por enquanto estamos seguros, mas... — Ele calou-se.

— Mas o quê, Perlain?

Perlain abanou a cabeça, deu meia volta e começou a apanhar da areia pedaços de madeira trazidos pelo mar.

— Não é nada. E, em qualquer caso, só ao nascer do dia é que poderei dizer se tenho razão.

Durante alguns momentos ele ficou calado, depois pigarreou e virou-se novamente para eles, a sorrir.

— Para já, a tarefa mais urgente é fazer uma fogueira. Vocês estão todos molhados e com frio e, se ficarem assim, vão adoecer. Eu sei como vocês, criaturas de sangue quente, são fracos e frágeis.

Ao ouvirem isto, Zeel e Allun deram uma gargalhada e, cambaleantes, puseram-se de pé para ajudá-lo. Disse­ram a Rowan que se deixasse ficar onde estava e, na verdade, ele não tinha grande possibilidade de escolha. Ainda se sentia tonto e agoniado, e o peito doía-lhe cada vez que respirava.

Zeel fez uma pequena fogueira com erva seca e uma faísca da pederneira que trazia consigo, depois alimen­tou-a com pequenos ramos até atear as chamas. As chamas tornaram-se mais brilhantes e mais fortes à medida que lhes eram acrescentados pedaços de madeira.

A luz bruxuleante, o calor e o agradável som do fogo a crepitar eram reconfortantes, e Rowan começou a sentir-se melhor. Mas, à medida que a sua mente se desa­nuviava, começou a ser atormentado por pensamentos sombrios.

O barco estava feito em destroços. Nenhum dos seus companheiros tinha falado sobre o que isso significava, mas todos eles deviam estar a pensar nisso. Fosse qual fosse o resultado da sua busca, agora não seria fácil regres­sarem a casa.

E Annad? Enquanto eles permaneciam naquela praia desconhecida, ela encontrava-se à mercê dos Zebak. Sozinha, feita prisioneira, talvez ferida e em sofrimento.

Afastou os pensamentos e sentou-se. Percebeu que ainda tinha o colete de cortiça vestido. Este ti­nha-lhe salvo ávida, mas agora era desconfortável. Pro­curou os atilhos, conseguiu desatá-los e começou a despir o colete.

Quando o fez, sentiu o embrulho de Sheba por baixo da camisa. O seu coração deu um baque. Tinha-se es­quecido completamente dele. A tempestade, o naufrágio, o medo do que pudesse acontecer aos seus companhei­ros e a sua própria luta para sobreviver tinham-no varrido da sua mente.

Com dedos trêmulos, tirou-o do seu esconderijo.

 

A MÃO DO DESTINO

O embrulho estava encharcado — o tecido encerado não tinha conseguido resistir a estar tanto tempo no mar.

— Rowan! O presente de Sheba... como é que eu pude me esquecer? — exclamou Allun sentando-se ao seu lado. — Depressa, abre-a! Pode ser a única coisa que nos pode ajudar agora.

— Está completamente molhado — disse Zeel fran­zindo a testa. — O que quer que esteja lá dentro pode ter-se estragado.

Rowan puxou o cordão entrançado que atava o em­brulho. Desta vez os nós soltaram-se facilmente. Ele reti­rou o cordão e começou a desembrulhar lentamente o tecido encerado. Tinha medo do que pudesse encon­trar no interior. Não conseguiria suportar a idéia de que o conteúdo se tivesse estragado. Ele tinha prometido o bukshah preto a Sheba em troca daquele embrulho e depositara todas as suas esperanças nele.

O tecido estava dobrado muitas, muitas vezes. A maior parte da espessura do embrulho era devida a isso. Havia muito menos no interior do que Rowan julgara.

— O que quer que ela nos tenha dado, protegeu-o bem — comentou Allun em tom de dúvida.

— Dir-se-ia que quase demasiado bem para fazer sentido — acrescentou Perlain, com o rosto impassível.

Com o coração a bater com força, Rowan retirou o último pedaço do tecido de embrulho, revelando final­mente o que estava lá dentro.

Um pedaço de metal sujo. Um pequeno feixe da erva clara que crescia à porta da cabana de Sheba. E alguns pauzinhos.

Ele ficou a olhar, incrédulo. A decepção era tão amarga que lhe fez vir lágrimas aos olhos.

— O que é? — perguntou Zeel em voz baixa. O rosto de Perlain estava sério.

— Aquilo que eu temia. A bruxa pregou-nos uma partida... para se vingar de mim por ter avisado Rowan para que não confiasse nela, para se vingar dele por me ter dado ouvidos. Ele disse-lhe que não poria a sua promessa por escrito antes de ela lhe entregar a sua parte do acordo.

— Ela deu-lhe uns pauzinhos do seu cesto da lareira, Rowan. E acrescentou um pouco de erva e um pedaço de ferro velho para fazer peso— murmurou Allun, com desprezo.

Zeel cerrou os dentes.

— Sem dúvida que ela acredita que não vai regressar e, por conseguinte, está segura.

— Desculpem — disse Rowan em voz baixa.

— Não tem nada que pedir desculpa — disse Allun. — Sheba deve ter planeado enganar-te. Lembra-se que o embrulho estava pronto, à espera que ela o entregasse. A culpa não é sua, nem do Perlain... nem minha, para variar.

Ele baixou os olhos para as mãos. Era óbvio que, apesar de ter falado num tom ligeiro, sentia-se desanimado com o que acontecera. Zeel e Perlain também estavam calados, a olhar para a fogueira. Rowan sabia que os mesmos pensamentos estavam em todas as mentes. Uma pederneira. Um saco de água. Um pedaço de corda. Uma faca. Não tinham forma de regressara casa. E dentro em pouco iria nascer o dia. Para onde havemos ir? O que vamos fazer?

— Ainda há os versos — murmurou ele.

— Mas o que é que significam eles? — perguntou Zeel com azedume. — É impossível compreendê-los.

— Não é nada impossível. A Sheba simplesmente não nos contou bem — gracejou Allun. — Eu tenho estado a pensar nisso, e tenho a certeza de que, embora sejamos só quatro, nós somos os dedos da mão do des­tino. Zeel é o dedo médio alto, direito. Perlain é o irre­quieto dedo mindinho no fim. Eu sou o anelar, que só serve para decoração. E Rowan é o pequeno polegar forte que nos obriga a que nos comportemos como deve ser.

Até mesmo Perlain sorriu com as palavras de Allun, mas o sorriso depressa se desvaneceu.

— Talvez tenha razão — disse ele em voz baixa. — E talvez esta seja, afinal, mais uma das brincadeiras da Sheba, pois o dedo em falta é o apontador. O que mostra o caminho. E com certeza que é exatamente dele que precisamos.

Zeel mexeu-se, impaciente, depois tirou um pedaço de madeira a arder do fogo e pôs-se de pé. Passado pouco tempo, ela estava a subir as dunas de areia situadas atrás deles, utilizando a madeira como archote. Um mo­mento depois, Allun foi ter com ela. Foram os dois rapidamente engolidos pela escuridão, mas Rowan viu a luz trêmula subir ao cume das dunas e depois mover-se de um lado para o outro enquanto Zeel se deslocava em todas as direções para perscrutar a terra ao longe.

— Não saias da nossa vista — gritou Perlain. — Não saia da praia.

— Perlain — disse Rowan em voz baixa —, que lugar é este? Porque é que está com medo dele? Diga-me.

Perlain mexeu-se no seu lugar, pouco à vontade.

— Eu penso... que estamos na orla daquilo a que tenho ouvido chamar As Terras Perdidas — disse ele ao fim de algum tempo. — Não sei nada sobre elas a não ser que se diz que são ermas e estéreis. É território Zebak, mas nenhum Zebak se aventura a entrar nas Terras Perdidas. É um lugar proibido.

— Porquê? — perguntou Rowan.

Perlain virou a cara para o outro lado.

— Não sei — balbuciou ele.

Ele ergueu a vista e viu Zeel e Allun a regressar. O archote era agora apenas uma pequena chama.

— Não lhes diga nada ainda, Rowan — murmurou. — Talvez eu esteja enganado a respeito de onde estamos. Espero estar.

Zeel e Allun sentaram-se novamente em frente da fogueira.

— Há uma luz, muito sumida e muito distante, naquilo que poderá ser o horizonte — relatou Zeel atirando o archote a arder novamente para o lume. — Nós conse­guíamos ouvir gritos e ruídos de algo a raspar. Mas nada mais. A escuridão é quase total. Nem se consegue distin­guir as árvores do céu. Eu estava com esperança de poder lançar o papagaio e assinalar o nosso percurso, mas temos que aguardar até ao nascer do dia.

— Como você disse — murmurou Perlain. — O nascer do sol será o teste.

Fez-se um silêncio desconfortável, quebrado apenas pelo som das ondas a quebrarem-se na areia e do fogo a crepitar.

Rowan atirou um dos paus do embrulho para as chamas, mas ele ainda estava demasiado molhado para arder e apenas fumegou. Ele olhou para ele, abanando a cabeça. O embrulho de Sheba, com que ele tão tola­mente contara, não era útil sequer para arder. Como pôde ele deixar-se enganar por um dos truques dela? Como podia ele ter confiado nela?

Porque ela sempre mostrara ser merecedora de confiança.

O pensamento veio-lhe à mente e ficou lá.

Ele olhou para o pedaço de metal, que, juntamente com os restantes quatro paus, ainda estava em cima do tecido encerado que ele tinha no colo. Pegou nele e segurou-o contra a luz. Não era apenas ferro velho, nem parte de uma grade de lareira velha, como ele pensara no início. Estava sujo e baço, e era pesado, mas era... um medalhão.

Sentiu um lampejo de esperança no coração. Esfre­gou o medalhão na camisa. À medida que a sujeira e a fuligem saíam da superfície baça, Rowan viu que ele estava decorado e que havia um pequeno aro de metal num dos extremos. Era para ser usado num fio — ao pescoço, sem dúvida.

— Pode ser mais útil do que parece — disse ele num tom hesitante, segurando-o de modo a que os olhos conseguissem vê-lo.

Allun estendeu a mão e Rowan deu-lhe o medalhão. Mas fê-lo com relutância. Subitamente, tomara consciên­cia de que não queria largá-lo. Olhou ansiosamente enquanto ele andava de mão em mão.

— Talvez seja um amuleto — disse Zeel, observando-o com curiosidade. — Talvez nos traga sorte. — Ela passou-o a Perlain e voltou a olhar para a fogueira, pensativa, com a testa franzida.

— Até agora não nos trouxe muita sorte — comentou Perlain devolvendo o medalhão a Rowan. — Mas vamos ver.

Rowan manteve o pedaço de metal liso apertado na mão, avaliando-lhe o peso. Seria alguma coisa? Ou não era nada? Não sabia. Mas Sheba tinha dito que o em­brulho era precioso. E o medalhão era a única coisa nele que poderia ser valiosa.

Com um impulso súbito, pegou no cordão de seda entrançada que amarrara o embrulho e enfiou-o através da pequena argola de metal. Trabalhando rapida­mente, atou as pontas do cordão e colocou-o à volta do pescoço, de modo a que o medalhão lhe caísse sobre o peito, dentro da camisa.

Depois de ter feito isso, sentiu-se estranhamente aliviado. Agora que o medalhão estava seguro, protegido e escondido, era como se um enorme peso lhe tivesse sido retirado da mente.

Mas porquê? perguntou ele a si próprio. Mesmo que fosse um amuleto mágico, por que motivo deveria man­tê-lo secreto? E se fosse apenas um ornamento, sem qualquer significado... Abanando a cabeça, sorriu inte­riormente da sua própria tolice.

— Rowan!

A princípio, ele não reconheceu a voz de Zeel que lhe chegava muito baixa, muito abafada. Ergueu a vista, sobressaltado. Zeel estava a afastar-se da fogueira, apon­tando para as chamas. Tinha os olhos muito abertos, assustados.

Rowan olhou para o fogo. O pau molhado que ele atirara para lá tinha secado e começado a arder. Chamas verdes dançavam ao longo de todo o seu comprimento. O fogo verde disparava em várias direções, com laivos vermelhos e cor de laranja.

Ele ficou a olhar, fascinado. Ouviu as exclamações de Allun e Perlain quando eles repararam no que estava a acontecer, mas não conseguiu desviar o olhar. Havia uma forma a crescer no meio das chamas. Um rosto. Um rosto com olhos vermelhos, a fitá-lo.

E havia uma voz. Ela silvou dentro do seu cérebro como o próprio fogo, e a sua mão começou a latejar de dor, à medida que ouvia as palavras:

A luz que brilha na sua porta das traseiras

Guiar-te-á para fora da solitária costa de areias,

Mas os perigos à espreita estarão,

Um do alto, outro do chão,

De noite se esconde um, de dia se esconde o outro,

E o teu caminho é duro e pedregoso.

A voz deixou de se ouvir. O rosto desapareceu. A luz verde começou a extinguir-se. Rowan pestanejou e respirou fundo, com um arrepio. Quando olhou nova­mente, o fogo era vermelho e cor de laranja. O pau era apenas um rolo fino de cinza que se desfez enquanto ele o fitava.

Quando ergueu a vista, os seus olhos cruzaram-se com os olhos espantados de Perlain, Zeel e Allun.

— Que magia é esta? — murmurou Zeel.

— Parece — disse Rowan, tentando manter a voz firme — que encontramos o quinto membro do nosso grupo. O indicador, o que vai nos mostrar o caminho... é a própria Sheba.

 

AS TERRAS PERDIDAS

Depois de Rowan ter repetido as palavras que lhe tinham chegado do fogo, os quatro companheiros ficaram em silêncio durante algum tempo.

— Estes versos são mais claros do que os outros — disse Allun ao fim de algum tempo. — Mas não posso dizer que seja mais agradável.

Zeel franziu o sobrolho.

— A luz que devemos seguir deve ser a que vimos no horizonte. Uma luz da cidade Zebak, sem dúvida, pois os versos referem a “porta das traseiras”. Mas durante o dia a luz não estará visível para nos orientar.

— Então devíamos pôr-nos a caminho, sem perder­mos mais tempo — sugeriu ansiosamente Allun. Ele pôs-se de pé num salto, mas Perlain e Zeel abanaram a cabeça.

— Não podemos nos arriscar a sofrer mais desastres mergulhando-nos no desconhecido sem provisões e sem sabermos o que temos à nossa frente — disse Zeel com firmeza. — Pode haver penhascos, buracos fundos, até mesmo água em que possamos cair. Só faltam algu­mas horas para o dia nascer. Acho que devemos esperar até lá.

— Não servirá de nada se morrermos todos por não estarmos devidamente preparados — concordou Perlain.

— Os versos dizem claramente que, a partir daqui, o caminho vai ser duro. Também dizem que vamos en­frentar perigos tanto de dia como de noite, e que eles virão de todo o lado, incluindo do céu.

— O animal que levou Annad atacou de dia — disse Allun. — E ele veio do céu. Desceu sobre ela como um raio. Se houver mais... se eles patrulharem este lugar...

As vozes pareciam distantes, soando como um eco aos ouvidos de Rowan. Sentia-se atordoado pelo que vira na fogueira, e as palavras de Sheba tinham-no enchido de maus presságios. Mas um enorme cansaço invadia-o como um denso nevoeiro que pesava sobre ele, provocando-lhe sono.

Lutando contra a sonolência, embrulhou os quatro paus que restavam no tecido encerado e colocou o embrulho dentro da camisa. Enquanto o fazia, bocejou, e os seus olhos teimaram em fechar-se.

Perlain pôs-se de pé.

— O céu vai clarear em breve — disse ele. — Não posso ficar de molho por causa das serpentes, mas vou deitar-me na areia molhada durante algum tempo.

E ele afastou-se em direção ao mar.

Allun ficou a olhar para ele, de cenho franzido.

— O Perlain está preocupado com qualquer coisa — murmurou ele.

— Seria estranho se assim não fosse! — exclamou Zeel. — Nós temos muito em que pensar.

— Bem, se vamos ficar aqui até ao nascer do dia, eu, para já, vou manter os olhos fechados, como o Rowan — disse Allun.

— Durma — respondeu Zeel. — Eu fico de guarda. E Rowan não ouviu mais nada.

 

Era dia claro e já estava bastante calor quando Rowan acordou. Abriu os olhos com um sobressalto de culpa e endireitou-se tão rapidamente que sentiu a cabeça a andar rodar.

Estava sozinho ao pé das cinzas frias da fogueira. Ou­viu o som das ondas a quebrarem-se suavemente na praia. O céu era uma abóbada azul perfeita por cima da sua cabeça.

Ouviu vozes e olhou em volta. Perlain, Allun e Zeel estavam a aproximar-se vindos do mar. Todos eles esta­vam molhados e todos eles traziam na mão objetos a pingar.

— Algumas das nossas provisões vieram à costa durante a noite — disse Allun em voz alta quando eles estavam mais perto. — Apanhamos o que pudemos.

Perlain foi o primeiro a chegar ao pé de Rowan.

— Sente-se mais fresco? — perguntou ele, baixan­do-se para colocar um saco de pele de peixe e um cobertor encharcado na areia.

Rowan acenou afirmativamente a cabeça, profunda­mente envergonhado por ter dormido tanto tempo — por ter dormido uma hora sequer quando Annad corria tamanho perigo. Sentia-se também envergonhado por ter dormido enquanto os outros trabalhavam. E envergo­nhado por eles, por amabilidade, o terem deixado dormir.

Estou farto de ser sempre um fardo, pensou ele su­bitamente. Em Rin, os rapazes da minha idade são fortes e podem fazer face a qualquer tarefa. Porque é que eu sou tão fraco?

Ele virou-se de costas para Perlain, lutando contra a dor que sentia. Sheba tinha razão. Ele era um ser diferente — um estranho na sua manada, como o novilho bukshah preto. Ele era estimado pelo seu povo pelo que fizera. Mas nunca seria estimado pelo que era. As suas quali­dades não eram as que eram apreciadas em Rin.

Ele sabia que, durante os últimos trezentos anos, tinham nascido outras crianças tímidas e meigas na aldeia. Ele ouvira contar histórias a respeito delas, o que só demonstrava como elas eram raras. Muitas tinham sido guardiãs dos bukshah antes dele porque era muito fácil lidar com os enormes animais. A maior parte nunca tinha se casado nem tido filhos. Tinham levado uma vida solitária, apenas com os animais por companhia. Seres estranhos. Nunca realmente compreendidos nem aceitos.

— Não está se sentindo bem, meu amigo? Rowan ergueu o olhar e viu que Perlain estava a fitá-lo com um ar de preocupação. Abanou a cabeça e conseguiu sorrir no preciso momento em que Allun e Zeel chegavam ao pé deles.

— Duas embalagens de peixe seco — anunciou Allun, ao mesmo tempo que ele e Zeel atiravam os seus fardos molhados para junto dos de Perlain. — Outro saco de água. Uma espécie de biscoito que parece tão rijo que nem sequer o mar o derreteu... ou será um pedaço de cortiça?

— É bolo de algas — respondeu calmamente Perlain. — O meu povo usa-o em viagens longas. É nutritivo e fácil de transportar. Ainda bem que o encontrou. Vai ser útil... nas Terras Perdidas.

Desanimado, Rowan percebeu que Perlain, Allun e Zeel já tinham investigado a terra para além da praia. Era por isso que eles gracejavam tanto e pareciam tão cheios de energia. Estavam a manter-se animados, a tentar esquecer o que estava para vir.

— Você tinha razão, então — disse ele para Perlain em voz baixa.

Perlain acenou anuiu, evitando os seus olhos.

Rowan viu Zeel e Allun olharem um para o outro. Havia algo que eles não lhe estavam a dizer.

Pôs-se de pé, com passo inseguro e, sem olhar para trás, subiu as colinas de areia onde Zeel e Allun tinham estado na noite anterior. Depois, a terra para além das dunas espraiou-se finalmente à sua frente, e o seu coração en­cheu-se de terror.

O sol brilhava sobre a vasta planície que se estendia por todos os lados até onde a vista conseguia alcançar. Rowan lembrou-se de Zeel, durante a noite, se ter queixado de que estava tão escuro que não conseguia sequer ver as nuvens recortadas contra o céu. Não admirava. Não havia árvores. Nem arbustos. Nem qualquer sombra ou abrigo. Apenas tapetes de plantas minúsculas que se agarravam, aqui e ali, à terra seca, formando uma manta de retalhos em tons rosa, dourado e verde-seco.

No meio dos tapetes de plantas havia argila lisa, seca, salpicada de pedras rugosas, pintalgadas. A planície cintilava com ondas de calor que se elevavam da super­fície seca como um sopro quente. E algo brilhava no horizonte, um clarão ofuscante, como se lá houvesse outro sol.

Rowan olhou para cima, semicerrando os olhos. Nem a mais pequena mancha desfigurava o céu azul lím­pido e quente. Não havia quaisquer seres assustadores a voar em círculos, à procura de presas. Apenas uma bola de calor quente a fustigar a terra, aquecendo-a tal como as chamas aquecem o forno.

Mas os perigos à espreita estarão, Um do alto...

Sentiu uma mão no ombro. Allun estava ao seu lado, a fitá-lo com um ar grave. Rowan engoliu em seco.

— O perigo a que os versos se referem... o perigo que ameaça de dia e se esconde à noite. É o sol — disse ele.

Allun acenou levemente a cabeça.

— É o que parece. Foi por isso que nós não te acor­damos. Assim que vimos esta maldita planície, com­preendemos que não podíamos atravessá-la durante o dia. É uma pena termos que esperar, mas a nossa única probabilidade de sobrevivermos é viajar de noite. Se partirmos ao pôr-do-sol e não nos pouparmos a es­forços, poderemos chegar à cidade antes de ele voltar a nascer.

— O perigo da noite... — começou Rowan a dizer.

— Seja qual for o perigo que a escuridão nos reserve — interrompeu Allun —, não pode ser pior do que ser assado vivo. — Ele premiu os lábios. — Como estaria a acontecer neste momento, no meio da planície, se eu tivesse levado a minha avante. Perlain teria secado e morrido, e nós estaríamos prestes a juntarmo-nos a ele. Quando é que eu vou aprender?

Deu meia-volta e desceu novamente as dunas de areia. Rowan foi atrás dele, perturbado com o azedume das suas palavras. Allun fingia tão bem ser um brinca­lhão insensível que por vezes era difícil uma pessoa lembrar-se de que ele não era tão seguro de si próprio como parecia.

Enquanto eles tinham estado ausentes, Perlain e Zeel tinham feito uma tenda utilizando paus compridos, o cobertor molhado e o papagaio de Zeel. Estavam sen­tados debaixo dela, abrigados do sol, e conversavam em voz baixa.

Allun e Rowan meteram-se debaixo da tenda com eles. Perlain tirou a faca do cinto e cortou cuidadosa­mente quatro fatias pequenas do bolo de algas castanho e duro. Deu uma fatia a cada um deles e ficou com a última para si próprio.

Rowan mastigou a comida dura, agradecido. Parecia que não comia há muito tempo e, embora o bolo hou­vesse muita alga, não o achou desagradável. Zeel cheirou a sua fatia com um ar desconfiado, depois começou a mordiscá-la sem apetite. Allun olhou para a sua com um desdém fingido.

— Como padeiro de algum renome, devo protestar por chamar “bolo” a isto, Perlain — disse ele. — Se vivermos disto, em menos de uma semana transformar-nos-emos em peixes muito magros.

— É preferível ser um peixe magro vivo do que morrer de fome — comentou Perlain, num tom despreo­cupado. — Mas seja como queira. — Ele acabou a sua própria fatia com satisfação, lambeu as últimas migalhas dos dedos, depois bebeu um gole do saco de água.

— Um pouco de água para terminar — disse ele. — Mas apenas um pouco. As provisões são escassas.

Allun acenou afirmativamente a cabeça com um ar soturno e começou a comer, torcendo o nariz enquanto o fazia. Perlain sorriu ligeiramente e engatinhou para o exterior do abrigo.

— Enquanto ficam aqui a descansar, vou pôr-me de molho — anunciou ele, enfiando a cabeça por baixo da tenda para olhar para eles. — Assim, quando o sol começar a se pôr, estarei pronto. Durmam bem.

Rowan esperou até Zeel e Allun terem se acomo­dado para descansar, depois saiu da tenda. Encontrou o homem de Maris de pé, à beira da água, a olhar para o mar cintilante.

— Perlain, você não pode vir conosco até às Terras Perdidas — disse ele abruptamente. — E se ainda esti­vermos em viagem quando amanhecer? Não existem sombras. Haverá pouca água para beber ou molhar a sua pele. Entenda, Perlain.

— Quer vá, quer fique, eu corro perigo de vida — respondeu Perlain. — Não há água fresca na praia e, se eu tentar escapar a nado, a noite, as serpentes apare­cerão antes de eu chegar em terra. Já refleti bem sobre isto e decidi que, se vou morrer, prefiro fazê-lo ao pé dos meus amigos a fazê-lo sozinho. Comecei por ser um homem-peixe fora d’água, e é assim que terminarei.

Rowan tentou falar, mas sentiu um nó na garganta e não conseguiu.

Os lábios de Perlain curvaram-se num sorriso.

— Não me arrependo de ter vindo com você, Rowan — murmurou ele. — Sem mim, você teria certamente morrido no mar muito antes de estar à vista de terra. Assim, eu desempenhei o meu papel. Como sem dúvida Allun, Zeel e você próprio irão desempenhar os seus, antes do fim da viagem.

Ele dirigiu-se para a água e deitou-se na água pouco funda.

— Mas eu não vou morrer antes do meu tempo — disse ele, fechando os olhos. — Agora vá descansar, Rowan. Tem que reunir todas as suas forças. Pois quem sabe o que a noite nos irá trazer?

 

O PERIGO DA NOITE

Partiram pouco antes do pôr-do-sol, quando o sol era uma bola de fogo escarlate a arder baixo no horizonte à frente deles. O céu estava manchado de vermelho. Até o ar parecia vermelho quando eles dei­xaram a areia das dunas e começaram a atravessar a imensidão de pedras lisas, ainda quentes debaixo dos seus pés.

Caminhavam rapidamente, de cabeça baixa para que o sol não lhes queimasse os olhos, a olhar para os pés para não tropeçarem.

— Os versos diziam que o nosso caminho seria duro e pedregoso — queixou-se Allun. — Mas não nos avisou sobre os pés assados. Estas pedras são como tabuleiros acabados de sair do forno.

— Em breve elas estarão frias — disse Zeel. — Penso que mais tarde ficará frio. Acontece sempre isso em espaços grandes e vazios como este.

— Gosto de saber isso — comentou Perlain por cima do ombro. Ele ia muito à frente, quase a correr por cima das pedras, ansioso por chegar ao chão mais macio, mais fresco, que ficava ao longe. Ele levava um cobertor molhado em volta da cabeça e dos ombros para se pro­teger do calor que o secava.

— Talvez o sol no alto seja o perigo durante o dia, e o frio o perigo vindo de baixo que nos ameaçará durante a noite — sugeriu Allun.

— Nós conseguimos suportar o frio — disse Zeel num tom decidido. — Juntamo-nos bem e embrulhamo-nos na seda do papagaio para aquecermos. Eu, o Tor e o Mithren fizemos isso muitas vezes... no passado.

Quando ela disse as últimas palavras, a sua voz alte­rou-se. O seu rosto, habitualmente forte, ávido, estava triste. Parecia mais suave e perdido.

Ela sente a falta do seu povo, pensou Rowan. Está a pensar se voltará a sobrevoar os campos verdes com Tor e Mithren, ou a passear descalça na erva com Ogden. Está a perguntar a si própria se voltará a ver a sua terra natal.

Ele viu Zeel levantar os olhos, franzindo a testa, para o horizonte incandescente onde os lampejos de prata que assinalavam a cidade Zebak se misturavam com o escarlate do céu.

Ela já viveu naquela cidade. O pensamento veio-lhe subitamente à idéia com um pequeno choque. Como era fácil esquecer que Zeel não nascera uma Viajante, mas sim uma Zebak. Lembrar-se-ia ela de alguma coisa da sua vida passada? Estariam algumas recordações, boas ou más, a perturbá-la naquele momento?

— Até que enfim! Estamos chegando ao fim destas malditas pedras! — A exclamação de Allun interrom­peu os pensamentos de Rowan, e ele dirigiu o olhar para o caminho à sua frente.

De fato, as rochas muito juntas estavam a dar lugar a argila lisa, rachada, e aos tapetes de plantas que eles tinham visto das dunas de areia. E certo que havia também, espalhadas, pedras granulosas, sarapintadas, mas estas poderiam ser facilmente evitadas.

Perlain já tinha chegado à orla das rochas. Olhou para trás, sorrindo aos seus companheiros e pôs os pés na argila.

Depois, com um grito de choque, ergueu as mãos ao ar e desapareceu.

— Perlain! — gritou Rowan. Mas ele mal conseguia ouvir a sua própria voz... ou as vozes de Allun e Zeel. Pois, quando eles gritavam, era como se a planície in­teira gritasse com eles e começasse a mexer-se.

As massas informes sarapintadas estavam vivas. Es­tavam a levantar-se, abrindo as asas escamosas, saindo das pedras planas em cima das quais se tinham agachado e erguendo-se no ar. Como um enorme bando de aves horríveis, inchadas, sem asas, os animais disputavam o espaço, silvando e soltando gritos de medo estridentes. E de debaixo da terra veio outro som... um som terrível de algo a arranhar e a fazer estalidos que fazia gelar o sangue.

Zeel tinha chegado à orla das pedras e já estava a descer para o buraco na terra onde Perlain tinha desa­parecido.

— Perlain, aqui! — chamou ela, estendendo a mão. E ouviu-se novamente o som de algo a arranhar, desta vez mais alto, e o tom da voz dela subiu, transforman­do-se num grito estridente. — Oh, por favor! Allun! Ajuda-me!

Os animais voadores enchiam o ar aos milhares, ocul­tando as pedras da vista de Rowan. Ele avançou desesperadamente, com os braços levantados para proteger os olhos. Os seres escamosos chocavam contra as suas costas, cabeça e ombros, agarrando-se à roupa e ao cabelo com as suas pequenas garras, batendo freneticamente as asas. Ele agarrava-as, arrepiado, e tentava arrancá-las de cima de si.

— Rowan! — ouviu ele Allun chamar. — Aqui! Aqui! E Zeel estava a gritar.

— Oh, eu não consigo segurá-lo. Ele agarrou-o! Oh, ajudem-me!

Rowan deu meia volta e correu cegamente na direção do som.

Ao fim de algum tempo, conseguiu chegar à borda das pedras, onde Allun estava estendido de barriga para baixo, com os braços em volta da cintura de Zeel, a puxar com toda a força. Zeel estava deitada, com o corpo me­tade dentro e metade fora de um buraco pouco fundo, com os braços estendidos na direção de um buraco negro situado a um dos lados. Rowan compreendeu imediata­mente o que se passava. Perlain tinha caído num túnel que passava por baixo da planície. A camada fina de argila que formava o teto do túnel tinha caído com o seu peso.

A princípio, Rowan não conseguia ver Perlain. De­pois percebeu que as mãos castanhas e magras de Zeel estavam a agarrar nos tornozelos de Perlain. O resto do seu corpo estava escondido na escuridão do túnel. Zeel estava a tentar puxar Perlain, mas havia algo que lhe oferecia uma enorme resistência.

— Não consigo segurá-lo! — exclamou ela de novo.

— Rowan, ajude-me! — gritou Allun.

Rowan estava petrificado. Uma dúzia de pensamen­tos invadiu-lhe a mente aterrorizada. Ele podia segurar Allun e ajudá-lo a puxar. Podia saltar para o buraco para junto de Zeel e tentar ajudá-la a libertar Perlain do que quer que o tinha atacado.

Mas ele sabia que não era suficientemente forte para que os seus esforços fizessem mais do que uma pequena diferença. O medo talvez lhe desse forças para um último esforço, mas essa força não duraria muito. Não o tempo suficiente.

Com um solavanco súbito, Zeel foi puxada para a frente, levando Allun consigo.

— Rowan! — gritou Allun, esforçando-se por não largar Zeel e tentando desesperadamente arrastá-la para as pedras.

A terra em volta do buraco mexeu-se quando o que quer que estivesse debaixo dela, o que quer que tivesse visto Perlain como sua presa, se sacudiu furiosamente. A argila abriu uma fenda e desintegrou-se numa linha comprida e torta, mostrando claramente a trajetória do túnel que passava por baixo da sua superfície e a forma longa e torcida do animal no seu interior.

Ouviu-se um rosnado baixo, horrível. A fenda na ar­gila tornou-se maior. Os seres sarapintados gritaram e puseram-se em fuga, aterrorizados; as suas asas bateram no rosto de Rowan, obrigando-o a baixar a cabeça, e ele olhou para as pedras debaixo dos pés.

As pedras...

— Rowan!

Um enorme esforço...

Mal pensando no que estava a fazer, Rowan incli­nou-se e arrancou uma pedra grande do chão. Retesando os músculos, ergueu a pedra por cima da cabeça e ati­rou-a com toda a força para a linha de argila rachada.

— Agora! — gritou ele, ao mesmo tempo que atirava a pedra. — Allun! Zeel! Puxem agora!

A pedra atravessou a argila e atingiu o que quer que estava por baixo dela.

Ouviu-se um grito áspero, a terra ondulou e subita­mente Allun estava a cambalear para trás, puxando Zeel para as pedras; o corpo mole de Perlain vinha com ela, como uma rolha de cortiça a ser tirada de uma garrafa.

— Tragam-no para trás! — gritou Rowan, correndo a ajudá-los a levar o homem de Maris para cima das pedras. — Para trás!

Mas eles tinham conseguido dar apenas alguns passos quando a pedra que Rowan atirara surgiu de novo à superfície no meio de uma chuva de argila, e o animal a rugir que estava debaixo da terra arremeteu em per­seguição deles.

Ele irrompeu através do buraco no seu túnel em ruínas, empinando-se, precipitando-se sobre eles com as suas enormes tenazes curvas a abrir-se e a fechar-se, rasgando o ar, com os segmentos castanho-avermelhados do seu enorme corpo a ondular quando ele se movia, e as suas mil pernas minúsculas a retorcer-se como vermes com chifres.

Zeel gritou... um grito estridente, de terror, que era ainda mais horrível do que o rugido do animal.

Com os três a segurar Perlain, deram meia volta e correram o mais depressa que conseguiram, trope­çando nas pedras, à espera, a cada momento, de ouvir o som do animal atrás deles.

Mas não houve qualquer som. E quando, ao fim de algum tempo, olharam para trás, a única coisa que viram foi o céu vermelho, a planície e os animais pe­quenos, granulosos, a voar hesitantemente em círculos por cima dela.

Com um soluço, Zeel deixou-se cair em cima das pedras com a cabeça apoiada nas mãos. Allun e Rowan baixaram suavemente Perlain até ele ficar deitado ao lado dela. O homem de Maris estava coberto de argila da cabeça aos pés. Os seus olhos pareciam estar selados.

Allun ajoelhou-se e pressionou o ouvido contra o peito de Perlain. Rowan ficou a olhar para ele, de respiração suspensa, e soltou um longo suspiro de alívio quando Allun ergueu a cabeça e acenou a cabeça em sinal afirmativo.

Ele pegou no saco da água e umedeceu os lábios de Perlain.

— Está em segurança, Perlain — murmurou ele. — O cobertor deve ter-lhe protegido. E o animal desapa­receu. Acorde, Perlain.

Ao fim de algum tempo, Perlain abriu os olhos. Estes estavam vidrados de medo.

— Serpente! — silvou ele.

— Não — estremeceu Zeel ao seu lado. — Ishkin. Allun e Rowan olharam para ela, espantados. Por baixo da camada de argila, o seu rosto estava pálido, e a boca tremia-lhe. Rowan nunca pensara ver Zeel, nor­malmente tão forte, com aquele ar.

— Zeel, você se lembrou — disse ele em voz baixa, percebendo subitamente do que acontecera.

Ela umedeceu os lábios e acenou afirmativamente a cabeça.

— Eu... lembro-me de uma gravura — disse ela com voz rouca. — Uma gravura... horrível, assustadora. Costumavam mostrar-me quando eu me portava mal. Quando eu... desobedecia. Tinha-me esquecido. Até agora, quando vi... — Ela calou-se, depois obrigou-se a si própria a continuar. — Também havia palavras. Apontavam todos para mim e entoavam uns versos. Lem­bro-me deles. Lembro-me de ter muito medo. Eram assim:

Criança marota, criança má, para o balde deitada

Para o lixo atirada, atirada

Aí vem o ishkin, por ele és puxada

Ele faz-te chorar, por ele és sugada

E a tua pele descartada.

Zeel calou-se. Estava toda a tremer.

Rowan sentiu-se ficar com arrepios. Que es­pécie de gente seria capaz de aterrorizar uma criança daquela maneira? Zeel não teria mais de dois anos, no máximo, quando foi encontrada pelos Viajantes.

Zeel pressionou as mãos uma contra a outra para fazer com que elas parassem de tremer e tentou rir-se.

— São apenas uns versos infantis — murmurou. — É tolice da minha parte ter medo deles agora. — Mas ela continuou a tremer como se não conseguisse parar.

Rowan e Allun olharam um para o outro.

— Não é uma tolice assim tão grande, minha amiga — disse Allun num tom ligeiro. — Agora que eu pró­prio vi esse ishkin, a idéia de me voltar a encontrar com ele não me agrada absolutamente nada.

— Não há apenas um — disse Zeel, fechando os olhos. — Há muitos. Muitos, muitos. O chão está cheio deles.

 

Deixando Perlain e Zeel a descansar, Allun e Rowan foram novamente até à orla das pedras. O sol já mer­gulhara abaixo do horizonte, e a lua tinha-se erguido no céu. A planície estava imóvel. Os animais voadores sarapintados estavam outra vez agrupados em cima das pedras lisas.


— Ao que parece, os ishkin não atacam normal­mente à superfície — disse Allun. — Eles esperam que as presas caiam através da argila. Em cima das pedras, os lagartos voadores estão em segurança.

— Não consigo perceber porque é que há tantos lagartos voadores — comentou Rowan observando a estranha cena à sua frente. — Não vi insetos nem pe­quenos animais que possam ser as suas presas. E eles não se alimentam de plantas. O que comerão eles?

Enquanto conversavam, houve uma briga entre um grupo de animais, e dois foram empurrados para o lado. Um bateu desajeitadamente as asas e conseguiu man­ter-se no ar. O outro, menos afortunado, caiu na argila.

Instantaneamente, o chão abateu por baixo do seu corpo, ouviu-se um sussurro, como algo a raspar, e o animal foi arrastado, aos guinchos, para a escuridão. Os seus companheiros comunicaram durante alguns momentos, depois voltaram para o seu descanso.

Rowan virou a cabeça, agoniado.

— De qualquer modo, nós já sabemos de que é que os ishkin se alimentam — disse Allun num tom som­brio. — Não há dúvida de que a planície inteira está minada por túneis. Olhe para ali.

Ele apontou para o local onde, meia hora antes, eles tinham lutado tão desesperadamente para salvar Perlain. O túnel já estava reparado. A terra que formava o seu teto estava tão lisa como sempre fora.

— Os versos de Sheba diziam “o teu caminho é duro e pedregoso” — Rowan olhou novamente para a pla­nície... para a traiçoeira argila lisa, para os tapetes de pequenas plantas espinhosas e, por fim, para as pedras planas onde os animais voadores estavam agrupados. — Talvez as pedras...

Allun acenou a cabeça em sinal de concordância.

— Sim — disse ele. — Se as pedras forem os únicos lugares onde os lagartos grumosos estão em segurança, parece que nós próprios teremos que ser seres grumosos. Animais grumosos sem asas. Teremos que saltar de pedra em pedra para atravessarmos este maldito deserto. — Ele respirou fundo. — Muito bem, Rowan. O que tem que ser, tem que ser. Vamos acordar Perlain e Zeel e partir imediatamente. Se quisermos chegar à cidade antes do nascer do sol, não temos tempo a perder.

 

CONTRA A PAREDE

Rowan ficou calado. A idéia da viagem perigosa que tinham à sua frente enchia-o de medo. Se não conseguissem saltar, eles cairiam na argila traiçoeira. Depois, num abrir e fechar de olhos, seriam apanhados e arrastados por um dos animais que estava à espera lá em baixo.

As palavras dos versos infantis que Zeel tinha repe­tido giravam-lhe continuamente na cabeça. Palavras tolas, horríveis.

Ai vem o ishkin, por ele és puxada

Ele faz-te chorar, por ele és sugada

E a tua pele descartada.

O seu estômago deu uma volta quando se recordou do grito do animal voador ao ser arrastado para debaixo da terra, quando se lembrou do ishkin a empinar-se, com as enormes garras curvas a abrir-se e a fechar-se, e as pernas minúsculas em forma de gancho a arranhar.

Mas ele sabia que Allun tinha razão. Tinham que atravessar a planície e não havia outra forma de o faze­rem.

— Perlain está fraco, do choque — conseguiu dizer ao fim de algum tempo. — E a Zeel... tem medo.

Allun virou-se para ele.

— E suponho que eu e você não temos medo? — per­guntou ele num tom feroz.

Rowan fitou-o, sem conseguir encontrar resposta. Allun retribuiu-lhe o olhar.

— O medo faz-nos vacilar, Rowan — disse ele mais suavemente. — Por isso temos que fingir que nos sentimos seguros, mesmo que não seja verdade. Temos que fingir tão bem que nós próprios começamos a acreditar.

O familiar sorriso de palhaço irrompeu no rosto magro de Allun, e ele deu uma palmada no ombro de Rowan.

— Eu, por mim, estou habituado a fingir. Toda a vida o tenho feito. Fazer-me de tolo para esconder os meus verdadeiros sentimentos é o meu grande talento. Agora é a minha oportunidade de utilizá-lo.

 

Durante muitas horas, eles saltaram, uns atrás dos outros, de uma pedra para outra, ziguezagueando através da planície, com a lua a brilhar, fria, por cima deles. Allun ia à frente, deslocando-se rapidamente, seguindo o caminho mais fácil mas que ia dar, o mais diretamente possível, à pequena luz no horizonte.

A planície parecia fervilhar de movimento enquanto, à volta deles, os ishkin apanhavam as suas presas. Os animais voadores sarapintados, a que Allun chamava “grumosos”, eram em grande número e lutavam fre­qüentemente entre si, pelo que a horrível cena que ele e Rowan tinham visto se repetia vezes sem conta.

Mas Allun nunca olhava para baixo nem para o lado. Só olhava para a frente. Tinha os bolsos cheios de seixos e atirava-os para assustar os animais agrupados na pedra à sua frente.

— Saiam daí, grumosos — gritava ele. — Dêem-nos espaço!

Os animais batiam as asas e voavam, guinchando e silvando, zangados. Allun saltava imediatamente, enquanto a pedra estava vaga. Depois escolhia outra, atirava outro seixo e saltava de novo.

Ele chamava constantemente por Perlain, Zeel e Ro­wan, que iam atrás dele. A sua voz abafava os sons sussurrantes dos ataques dos ishkin e os gritos de desespero das vítimas. Ele nunca estava calado, nunca estava parado. Encorajava, gracejava, assobiava... até cantava.

— Eu sempre me imaginei um dançarino — dizia ele muito alto. — Que maneira excelente de praticar a minha arte. — E quando saltava novamente abria muito os braços, tentando parecer o mais ridículo possível. Depois inventava versos sobre uma rã ou um inseto saltitante e dava outro salto, coaxando ou gorjeando para fazê-los sorrir.

Ele dizia adivinhas, ria-se de ditados, inventava histó­rias insultuosas sobre toda a gente que eles conheciam. Ficou rouco de tanto gritar.

Quando parava alguns minutos para descansar, can­tava muito alto canções compridas e insistia para que o acompanhassem. Se eles não respondiam, importunava-os. Escarnecia de Perlain por causa dos seus pés chatos, chamava “coelho magricela” a Rowan e perguntava a si próprio em voz alta que utilidade tinha o belo papa­gaio amarelo de Zeel quando não havia vento para impulsioná-lo.

Era uma tolice. Era irritante. Mas Rowan sabia que isso lhes estava a salvar a vida. Estava a desviar os seus pensamentos do medo, obrigando-os a olhar em frente, e a abafar os sons aterrorizantes da planície. Estava a ajudá-los a saltar com firmeza, evitando a inépcia que sentiriam se se lembrassem do destino que os aguardava se caíssem.

Por conseguinte, ele fazia o possível por retribuir os insultos de Allun, por rir das suas piadas e por acompa­nhá-lo nas suas cantigas, embora tivesse as pernas a tremer de cansaço e, a cada salto, sentisse que não con­seguiria saltar mais. Zeel e Perlain, dominando o seu próprio sofrimento, faziam o mesmo.

E assim, dolorosamente, hora após hora, à medida que a lua baixava no céu e o clarão no horizonte aumen­tava e se tornava mais luminoso, eles prosseguiam o seu caminho.

 

Na escuridão imediatamente antes do amanhecer, Rowan percebeu que o caminho se tornava mais fácil. As pedras planas eram mais numerosas, salpicando toda a argila e até mesmo tocando-se em alguns locais. Já não precisavam saltar. Ele conseguia passar, com segurança, de uma pedra para outra.

Os animais grumosos também tinham se tornado mais numerosos. Estavam a juntar-se em tão grande número que tinham se tornado um estorvo. Enchiam o ar, ocupavam todas as pedras e discutiam ruidosa­mente enquanto lutavam por espaço. A cada momento chegavam mais.

Estarão eles a seguir-nos?, pensou Rowan, intrigado. Certamente que pareciam estar a fazê-lo. Mas eles não nos seguiram antes. Poderá ser porque nos estamos a aproximar da cidade?

Olhou para o clarão e percebeu finalmente de que era uma chama que irrompia de uma torre ou chaminé alta que se elevava acima da cidade. Também eram agora visíveis outras luzes mais pequenas. Eram poucas, mas estendiam-se de ambos os lados da torre até onde a vista conseguia alcançar, brilhando acima de uma camada escura que ele supôs ser uma muralha. A cidade era enorme e parecia ser totalmente murada.

Ele tinha-se concentrado tanto em chegar à cidade que não refletira sobre o que iram fazer quando lá chegassem. Mas agora que o objetivo estava tão pró­ximo e que ele conseguia ver a sua enorme dimensão, inúmeras perguntas começaram a ocorrer-lhe à mente.

Como iriam encontrar Annad num local tão grande, quanto mais libertá-la? Como iriam permanecer escon­didos enquanto procuravam?

— Acho que devemos parar por um momento para conversarmos — disse Allun em voz baixa. Há algum tempo que a sua voz era mais baixa. Estavam muito perto da cidade. Podia haver patrulhas de vigia, embora fosse difícil acreditar que os Zebak esperassem ser invadidos a partir da planície desértica. Aquela era, de fato, a “porta das traseiras” da cidade.

Cansados mas aliviados, agacharam-se em círculo, cada um deles em segurança em cima de uma rocha. Passaram a comida e os sacos de água uns aos outros, e todos eles beberam bastante. Agora que tinham con­seguido atravessar as Terras Perdidas, acharam que podiam fazê-lo.

Os animais grumosos brigavam e batiam as asas à sua volta.

— Porque é que eles estão se juntando aqui? — mur­murou Zeel, afastando-os impacientemente. — Eles vêm da planície inteira, como se viessem propositada­mente para nos irritar.

— Na realidade, eles nos são úteis — disse Allun. — Nesta multidão ninguém consegue nos ver, mesmo que olhem por cima da muralha. Nem ouvir.

Perlain fitava o céu, molhando o rosto e as mãos com água. Rowan olhou para ele, preocupado. O homem de Maris parecia muito doente. Precisava ficar de molho. Precisava descansar. E o nascer do sol não estava muito longe. Em breve a bola ofuscante se er­gueria acima do horizonte atrás deles, aquecendo a terra e o ar... aquecendo... aquecendo.

— Qual é o nosso plano? Vamos escalar a muralha? Ou vamos andar ao longo dela, para tentarmos encon­trar um portão? — perguntou ele.

— Poderemos demorar horas a encontrar um por­tão, e não sabemos que direção seguir. Além disso, um portão significa guardas. Será mais seguro e mais rápido escalar — disse Zeel com firmeza.

Allun abanou a cabeça.

— Não será mais seguro nem mais rápido para Per­lain... nem para Rowan.

— Nem para você, Allun padeiro, não tenho qualquer dúvida — sorriu Zeel, vingando-se do modo como Allun a tinha aborrecido durante a noite. — Mas você fez a sua parte. Com as suas palhaçadas, ajudou-nos a atravessar as Terras Perdidas. Agora é a minha vez de... como é que disse?... “praticar a minha arte.” Eu vou subir à muralha, encontrar a rocha sólida sobre a qual a cidade foi construída e puxá-los para cima um a um. Mas isso tem que ser feito no escuro.

Eles avançaram apressadamente, quase a correr, mas depressa tiveram que abrandar de novo. Tinham dei­xado a argila completamente para trás e chegado à rocha sólida sobre a qual a cidade tinha sido construída. Ali, eles deram por si a atravessar uma camada espessa de paus e pedras que ameaçavam fazê-los tropeçar a cada passo. Além disso, os animais “grumosos” eram tão numerosos que era quase impossível andar no meio deles ou ver o caminho à sua frente.

Há milhares deles, pensou Rowan, parando por um momento. Se eles quisessem, poderiam dominar-nos.

Estremeceu, nervoso. Mas certamente que não existia qualquer motivo para temerem os animais. Ape­sar do seu aspecto feio, dos espinhos nas suas costas e dos pequenos dentes e garras afiados, eles não tinham parecido perigosos — exceto, ocasionalmente, uns para os outros.

Subitamente, ele percebeu que deixara de ver Allun, Zeel e Perlain.

— Allun! — murmurou ele num tom de urgência. — Não consigo te ver. Onde está?

— Aqui. Mesmo à sua frente. Chegamos à muralha, Rowan. — Mas em vez de soar triunfante, a voz de Allun era tensa e estranha. Rowan avançou às cegas na direção do som e quase chocou com Perlain que perma­necia imóvel enquanto um grande número de animais grumosos o rodeava.

— O que é? — sibilou Rowan. Perlain apontou.

Allun e Zeel estavam juntos à frente deles, virados para a muralha. Allun olhava para ela com um ar de desespero. Zeel percorria a superfície com as mãos como se tivesse que lhe tocar para acreditar na evidência dos seus próprios olhos.

Porque a muralha não era feita de tijolos, de pedra ou de madeira, cheia de junções e apoios para os pés que pudessem ser utilizados por quem quisesse escalar por ela acima. Era feita de metal — metal polido que se erguia liso e escorregadio e terminava numa aresta cortante muito acima das suas cabeças.

Rowan fitou-a, estupefato, percebendo várias coisas ao mesmo tempo.

Percebeu que ali estava a origem do clarão distante que vira quando chegara à planície. Tinha sido o brilho daquele metal a refletir a luz do sol acabado de nascer.

Percebeu que, embora naquele momento o metal estivesse frio, no meio da manhã estaria demasiado quente para lhe poderem tocar. Ele irradiaria calor pela planície e por tudo o que nela existia. Estar ao pé dele como agora estavam seria como estar no meio de um in­cêndio.

Percebeu que ninguém conseguiria subir aquela muralha sem ajuda e de que a aresta afiada cortaria a corda de Zeel em menos de um instante.

Conseguiríamos nós fazer um túnel por baixo da muralha? pensou ele. Agachou-se e escavou o chão. Seguidamente, soltou um grito ao compreender a coisa mais horrível de todas.

Ele e os seus amigos não eram os primeiros a pisar, desesperados naquele local.

Porque os paus claros e as pedras sobre os quais eles tinham caminhado tão desajeitadamente durante os últimos minutos não eram paus nem pedras.

Eram ossos brancos descoloridos pelo sol.

 

O ESPELHO PARTE-SE

Quantos desgraçados foram atirados para as Terras Perdidas para morrer? — murmurou Allun. — Quantos milhares, ao longo dos séculos, para criar este... este horror.

Ele olhou com ódio para os animais grumosos, cujo motivo para se reunirem em tão grande número e na­quele local parecia agora horrorosamente claro.

— Olhe para eles... à espera que nós morramos, para nos comerem a carne — resmungou ele. — Perguntou como é eles se alimentavam, Rowan. Agora já sabe a resposta.

— Pode não ser — disse Rowan em voz baixa. Mas os animais aproximavam-se deles, empurrando-os contra a muralha, silvando ansiosamente. Estavam tão perto que eles conseguiam ver as suas línguas bifurcadas a entrar e sair da boca, e os seus pequenos olhos ávidos.

Agora ele conseguia ver como eles se pareciam com o animal que levara Annad. Eram os seus familiares mais pequenos e compensavam em número o que lhes faltava em tamanho e força.

— Vão embora! — Zeel avançou ameaçadoramente e os animais afastaram-se. Mas apenas por um momento. Ao fim de pouco tempo regressaram, em­purrando-os mais uma vez.

Os quatro companheiros ficaram a olhar para a mu­ralha.

Atrás de si, o sol estava a clarear e a tornar-se cor-de-rosa. A muralha tinha começado a refletir a cor. Ela também começou a refletir os seus rostos pálidos, cansados e os animais a cercarem-nos, como seres de um pesadelo.

De ambos os lados, a muralha estendia-se na distân­cia — intermináveis placas de metal luzidio fundidas umas nas outras. Não havia qualquer buraco nem fenda. Nem puxador nem batente. Nem sinal de um portão. Eles não tinham qualquer possibilidade de escapar ao calor que aí vinha. E os ossos cintilavam no chão até onde a vista conseguia alcançar.

— Será que viemos tão longe e sofremos tanto só para morrermos à vista desta maldita cidade? — excla­mou Allun.

Subitamente, as palavras de Sheba vieram à mente de Rowan.

Quando precisares realmente deles...

Ele tirou o embrulho da camisa e retirou um dos quatro paus que restavam.

— Zeel... temos que fazer uma fogueira — disse ele num tom de urgência. — Temos que ver se Sheba pode nos ajudar.

Zeel cerrou os lábios.

— A bruxa atraiu-nos para este lugar de morte com as suas instruções para que seguíssemos a luz. Ela traiu-nos.

— É verdade. — A voz de Allun era sombria. — Por razões que só ela conhece ou por pura maldade, Sheba não quer que regressemos a Rin.

Rowan não conseguia acreditar nisso. Recusava-se a acreditar. Olhou para Perlain. O homem de Maris estava encostado à muralha. Tinha os olhos fechados.

— Zeel, por favor! A pederneira! — suplicou ele. — Dê-me. Tenho que tentar. O sol está quase a nascer. Em breve vai ficar calor. E Perlain... — Ele calou-se, sem conseguir dizer mais nada.

Caiu de joelhos e remexeu os ossos, à procura de folhas mortas e galhos das plantas do deserto trazidos pelo vento. Quando já tinha o suficiente para fazer uma pequena fogueira, empilhou-os à sua frente, com o pau equilibrado no topo. Depois estendeu a mão.

Zeel, relutante, deu-lhe a pederneira. Rowan fez uma faísca, e as folhas secas e os galhos no meio dos ossos pegaram imediatamente fogo, fazendo fumaça no início e irrompendo seguidamente em chamas.

O pau tremeluziu e ficou verde, depois começou a arder com força. O rosto de Sheba apareceu, trêmulo, no fogo. Rowan ficou a olhar, fascinado pela imagem... pela sua força crescente, pelos olhos vermelhos profun­dos. A sua mão direita começou a queimar tanto que quase gritou de dor. E depois ele ouviu a voz:

Ao amanhecer o inimigo ataca,

Enquanto a fome guincha, o espelho racha

Então, empurrado contra essa parede cintilante,

Como um verme por entre os ossos rastejarás...

Agora é inútil resistir ou suplicar...

Contorce-te suavemente, enquanto os animais

[estiverem a devorar.

Horrorizado, Rowan pôs-se de pé num salto e deu um pontapé no fogo, apagando-o, fazendo as cinzas em pó. A dor latejante da mão desapareceu lentamente, mas as palavras terríveis de Sheba continuaram a queimar-lhe o cérebro.

— O que ela disse? — perguntou Perlain com uma voz sumida. Ele ainda estava encostado à parede. O seu rosto, muito branco, parecia ter encolhido.

O terrível cansaço que se apoderara de Rowan quando queimara o primeiro pau de Sheba estava novamente a invadi-lo. Não tinha coragem para repetir os versos, mas sabia que tinha que dizer a verdade.

— Ela troçou de nós — balbuciou ele. — Zeel tinha razão. Sheba trouxe-nos até cá para morrermos.

Perlain fechou os olhos.

— Então que assim seja — disse ele calmamente.

— Não diga isso, Perlain! — Os olhos de Zeel bri­lharam de fúria. — Vamos ficar simplesmente à espera de morrer assados sem fazermos nada?

— O sol está a nascer — avisou Allun. Ao amanhecer o inimigo ataca...

A parede brilhou, ofuscante, captando os primeiros raios do sol. Os animais grumosos avançaram aos guinchos, esfomeados.

Enquanto a fome guincha...

Seguidamente, ouviu-se outro som. Veio da muralha. Rowan deu meia volta e virou-se para ela. Com os olhos rasos de água por causa do clarão, ele viu o seu próprio reflexo. Viu o reflexo dos seus amigos e dos animais a juntarem-se em bandos, brigando pelo espaço. E depois viu outra coisa... algo em que, a princípio, não con­seguia acreditar.

Uma fenda estava a surgir na muralha, mesmo ao lado de Perlain. A fenda acompanhava uma das junções, desde o topo até ao fundo. Era como se a junção se estivesse a abrir.

...o espelho racha...

Rowan deu um grito, apontando. A sua voz foi abafada pelos guinchos dos animais, mas Zeel e Allun já tinham visto o que estava a acontecer. Estavam de boca aberta.

A fenda foi se alargando, alargando. Uma parte inteira da muralha estava a rodar para fora, como uma porta. Uma coisa enorme que fazia um som pesado, seme­lhante ao ribombar de um trovão.

Então, empurrado contra essa parede, cintilante,

Como um verme por entre os ossos rastejarás...

— Depressa! Encostem-se bem à muralha! Escon­dam-se! — gritou Rowan, tentando chegar junto de Perlain. Ele arrastou o homem de Maris, que estava quase inconsciente, para o chão.

Zeel e Allun avançaram, atirando-se para o chão ao lado da muralha, junto de Rowan e Perlain, enterran­do-se o mais fundo possível nos ossos brancos queimados do sol.

Fizeram-no mesmo a tempo, pois, no momento seguinte a muralha abriu-se totalmente, e uma enorme carroça coberta estava a atravessá-la. Quatro Zebak empurravam a carroça, gemendo com o esforço.

— Que espécie de trabalho é este para guardas trei­nados? — resmungou o homem mais próximo de Ro­wan. — Um urk e um grach podiam perfeitamente fazê-lo.

As suas botas pesadas esmagavam os ossos ao lado da cabeça de Rowan. Quando ele passou, Rowan er­gueu cautelosamente os olhos para ele. Era muito alto, com ombros largos e um uniforme cinzento-aço. O risco preto da testa, que ia do cabelo até ao nariz, dava-lhe um ar severo e cruel.

— Os grach têm tarefas mais importantes — disse o guarda ao lado dele num tom ríspido. — Você tem as suas ordens, Zanel. Não as questiones, senão ainda será posto nas Terras Perdidas, como aconteceu a muitos antes de você!

— A escolha é entre os ishkin e a muralha — acres­centou outro guarda, num tom de desdém.

Zanel deu um pontapé irado nos animais que se juntavam em volta dos seus pés, mas não disse mais nada.

Rowan estava imóvel ao lado de Perlain, com o cora­ção a bater aceleradamente. Os guardas tinham passado. A porta da cidade estava aberta. Mas ele não se atrevia a mexer-se. Os guardas ainda não tinham reparado neles, mas um deles poderia virar-se a qualquer mo­mento e vê-los. E nessa altura não seria possível qualquer fuga, nem haveria misericórdia.

Agora é inútil resistir ou suplicar...

Os guardas começaram a manobrar duas alavancas, uma de cada lado da carroça. Com um rangido, a parte de trás da carroça começou a inclinar-se, ao mesmo tempo que a cobertura deslizava para trás.

Uma enorme quantidade de restos de hortaliças e carne malcheirosos começou a jorrar para o chão. Os animais grumosos guincharam e lançaram-se aos milhares sobre a comida, brigando e esvoaçando em volta da carroça e dos guardas numa horrorosa confusão de asas escamosas, corpos sarapintados e garras. Raspando o resto do lixo da carroça, os guardas, zangados, gritavam e batiam-lhes. O barulho dos animais era ensurdecedor.

Contorce-te suavemente, enquanto os animais estiverem a devorar.

Tinha chegado o momento. Rowan avançou caute­losamente, mantendo a cabeça baixa e arrastando Perlain consigo. Sentiu Allun e Zeel atrás de si, a ajudá-lo, en­quanto, pé ante pé, atravessava a muralha e entrava na cidade.

 

Ficaram deitados à sombra da muralha, ofegantes de medo, olhando rapidamente à sua volta. Estavam numa enorme praça pavimentada com tijolos vermelhos. A praça estava cheia de restos de comida que tinham caído da carroça, e estava deserta. Ao que parecia, era muito cedo para as pessoas estarem acordadas, com exceção dos guardas que se encontravam de serviço.

Uma estrada estreita ia dar a um edifício alto en­cimado pela chaminé chamejante que eles tinham visto da planície. Em ambos os lados da praça havia outros edifícios mais baixos, mais compridos, com as portas firmemente fechadas. Todo aquele lugar exalava um cheiro acre a fumaça e lixo.

Para onde deveriam ir? Onde poderiam se escon­der? Em breve os guardas estariam a regressar à praça, empurrando a carroça. Não havia tempo a perder.

Os sinos começaram a tocar em algum lugar no centro da cidade. Tocaram durante muito tempo. A acordar os que dormiam. A fazer despertar a cidade.

— Água... — gemeu Perlain. Ele acenou com a mão para o lado esquerdo.

Zeel puxou o braço de Rowan. Ele viu que ela tam­bém estava a olhar para a esquerda. Para um lugar ao lado de um dos edifícios, onde um lance de escadas de metal conduzia para debaixo do chão.

Rowan hesitou, mas não por muito tempo. A carroça estava de volta. Ele já via as rodas da frente a girar atra­vés da fenda na muralha.

Acenou afirmativamente a cabeça e ele, Zeel e Allun, pegaram em Perlain e correram para a escada. O som das rodas da carroça sobre os tijolos, misturado com os guinchos dos animais grumosos a comer, pairou atrás deles enquanto se apressavam a descer para o escuro.

Ao fundo dos degraus havia uma porta. Allun rodou cuidadosamente a maçaneta. A porta abriu-se e eles entraram.

Encontraram-se num corredor muito iluminado. Estava forrado com um metal igual ao metal da mu­ralha. Ouvia-se um ruído surdo distante, um rugido.

— Há um animal aqui — disse Zeel num tom sibilante, levando a mão à faca que trazia no cinto.

Rowan abanou a cabeça, intrigado.

— Não parece o som de um animal. É... regular. Como uma mó a triturar.

— Uma máquina, então — murmurou Allun. — Não se preocupe. Temos que encontrar água para Perlain, e depressa. Se ele não se molhar dentro de pouco tempo, morrerá — acrescentou ele olhando para os olhos fecha­dos e para o rosto pálido de Perlain com a testa franzida numa expressão preocupada.

Seguiram ao longo do corredor. Era estranho ver os seus reflexos a moverem-se com eles em ambos os lados.

— É como andar no meio de uma multidão — gra­cejou Allun. — Uma multidão de seres estranhos num corredor por baixo de uma cidade inimiga, sem saberem para onde vão.

Chegaram a um ponto em que o corredor se ramifi­cava em dois e pararam, perguntando a si próprios se deviam ir para a esquerda ou para a direita.

— Por ali — murmurou uma voz. Foi Perlain quem falou, apontando debilmente para a direita.

Seguiram o corredor da direita, caminhando o mais depressa que se atreviam. O som das máquinas aumentava cada vez mais.

O corredor ramificou-se mais uma vez, depois outra. Muitos outros corredores mais pequenos saíam do corre­dor principal. Estavam todos desertos. Estavam todos bem iluminados e forrados com o mesmo metal cinti­lante. Que eles vissem, nenhum tinha portas. Mas sempre que era necessário decidir, Perlain apontava e eles obe­deciam.

 

O LABIRINTO

A princípio, Rowan tentou fixar o caminho, mas depressa desistiu. Havia demasiadas voltas e todos os corredores pareciam iguais. Além disso, agora que o perigo imediato de serem descobertos pelos guardas tinha passado, o terrível cansaço que sentira ao pé da parede estava novamente a invadi-lo. Pôr um pé à frente do outro era um enorme esforço. A única coisa que lhe apetecia fazer era deitar-se a dormir.

— Isto é uma loucura — murmurou Allun, quando viraram pela décima ou décima segunda vez. — Nunca haveremos de conseguir sair deste labirinto.

Rowan mal conseguia ouvi-lo. As pancadas secas, os rugidos, eram agora muito altos e ele estava quase a dormir em pé.

— Se isto é um labirinto, acho que talvez tenhamos chegado ao centro — ele ouviu Zeel dizer.

Ergueu a vista, cansado, e compreendeu o que Zeel queria dizer. Ao fim do corredor em que tinham acabado de entrar havia uma porta de metal brilhante. Colada a ela estava um desenho a preto e branco, mas ele não conseguia ver o que era.

A cada passo que davam, o rugido aumentava. Mesmo assim, Rowan conseguia ouvir Perlain a respirar dolo­rosamente, enquanto seguia com dificuldade no meio de Allun e Zeel, tentando apressar-se.

Chegaram, finalmente, suficientemente perto para conseguirem ver o desenho na porta com nitidez. Era um crânio branco sorridente no meio de um quadrado preto.

Pararam abruptamente.

— Isto não tem um ar muito promissor — comentou Allun, de cenho franzido.

— Não significa que exista perigo para todos no interior da porta. Significa que é proibido lá entrar e que o castigo por entrar é a morte — disse Zeel lentamente. Ela viu-os olhar para ela com um ar de surpresa e en­colheu os ombros. — Eu recordo-me — disse ela. — Deve ser uma das primeiras coisas que nós aprendemos.

Nós, pensou Rowan através da sua névoa de cansaço. É a primeira vez que ouço Zeel dizer nós ao falar dos Zebak. Ele olhou para o rosto perturbado de Zeel e uma sensação de desconforto invadiu-lhe o peito.

Perlain agitou-se debilmente, tentando fazer com que Allun e Zeel continuassem a andar. Eles ajudaram-no a chegar, cambaleante, à porta. Esta estava fechada com um cadeado. Ele tentou inutilmente abri-lo com as suas mãos palmadas e gemeu.

— Perlain, como é que pode haver água lá dentro? — perguntou suavemente Allun.

— Há... água — disse Perlain com voz rouca, arra­nhando a porta. — Eu... tenho que...

Zeel, com um ar severo e decidido no rosto, tirou a faca do cinto. Rowan sentiu medo. Mas, em seguida, ela ajoelhou-se, pegou no cadeado com as mãos quei­madas pelo sol e começou a trabalhar nele com a ponta afiada.

— Isto eu aprendi com os Viajantes — murmurou ela. — Os Viajantes não gostam de cadeados. Nem de castigos.

Ao fim de alguns angustiantes minutos, o cadeado deu um estalido e soltou-se. Zeel pôs-se de pé e recuou um pouco. Rowan percebeu imediatamente que ela, embora tivesse partido o cadeado, não tinha coragem para empurrar a porta.

Ele avançou para o fazer por ela, mas Perlain ante­cipou-se. Aporta abriu-se para um espaço escuro ressonante do qual vinha um rugido quase ensurdecedor. Perlain não lhe prestou atenção. Antes de alguém conseguir impedi-lo, já ele tinha passado a porta.

Rowan e Allun foram atrás dele. Zeel seguiu-os com relutância. Era óbvio que ela tinha medo. Rowan interro­gou-se novamente sobre a força da sua educação em pequena. Tal como o seu medo dos ishkin, o medo do aviso era algo que ela não conseguia controlar.

A luz do corredor jorrou na sala atrás da porta, bri­lhando num chão de metal. Mas assim que eles entraram, Zeel fechou a porta com um empurrão e encostou-se a ela.

A escuridão era total. O espaço pulsava de som — um som semelhante a um rugido, o som de água a precipi­tar-se. Rowan não conseguia ver nada. Estendeu os braços às cegas.

— Allun! Perlain! — gritou ele, em pânico. Ouviu-se um ruído de algo a bater em algum lugar à direita de Rowan, e Allun soltou um grito de dor.

Rowan começou a andar na direção do som, com o coração a bater com força.

— Está tudo bem. Desajeitado como sou, bati com a cabeça em qualquer coisa! — gritou Allun. — O que foi? Esperem! Eu penso... sim! — Ouviu-se um ruído de algo a arranhar, e apareceu uma pequena luz. Esta cintilou, depois tornou-se mais viva. Rowan conseguiu finalmente ver o rosto de Allun, manchado com um risco de óleo escuro e a sua mão a segurar uma lampa­rina a óleo suja. Allun sorriu.

— Se era necessário bater em qualquer coisa, ainda bem que foi isto — disse ele. — Estava pendurada aqui, mesmo ao pé de mim, com fósforos numa prateleira ao seu lado, tudo completo. Agora vamos poder ver onde estamos.

Ele ergueu a lamparina bem alto e moveu-a lenta­mente em volta. Rowan susteve a respiração.

Estavam em cima de uma plataforma de metal suspensa sobre a orla de um enorme lago subterrâneo — um lago do tamanho do campo dos bukshah em Rin. Ao lado deles, ocupando a maior parte da plataforma, havia uma máquina monstruosa a trabalhar, vibrando incessante­mente. A lamparina tinha estado pendurada de uma prateleira ao seu lado. Na prateleira estavam luvas, algumas ferramentas e uma lata de óleo.

Allun apontou para os canos prateados que saíam, serpenteantes, da água, subiam as paredes e desapare­ciam dentro de buracos no teto.

— Eles bombeiam água para a cidade a partir daqui — exclamou ele, espantado. — O lago é como uma enorme fonte. Esta máquina deve ser uma bomba gigante que trabalha sozinha. Quem iria acreditar numa coisa destas?

Rowan olhou para a porta. Zeel permanecia de pé, completamente imóvel e em silêncio. Tinha o rosto pálido e tenso.

Ele voltou-se para Allun e juntos aproximaram-se cau­telosamente da orla da plataforma, ajoelharam-se e esprei­taram por cima da orla. Na água negra abaixo deles flu­tuava Perlain. Tinha os olhos fechados, mas eles viram que não lhe tinha acontecido nada de mal. Ele estava a recuperar lentamente as forças. Já não estava tão pálido e respirava regularmente.

Ao olhar para baixo, Allun estremeceu. Rowan soube o que ele estava a pensar. Se eles, no escuro, tivessem tropeçado na beira da plataforma e caído naquela água funda, certamente que teriam se afogado. Perlain estaria demasiado fraco para salvá-los.

Como se sentisse o olhar deles, Perlain abriu os olhos, ergueu-os para eles e sorriu tranqüilamente.

— Você tinha razão, Perlain — gritou-lhe Allun.

— Claro. Um homem de Maris consegue cheirar água onde quer que ela exista — respondeu Perlain num tom sonolento.

— Descanse e absorva bem a água, Perlain — disse Rowan. — Nós estaremos de volta daqui a pouco.

— Uma hora — retorquiu Perlain fechando nova­mente os olhos. As pálpebras do próprio Rowan fecha­ram-se. Ele estava cansado. Muito cansado...

Sacudiu-se. Não havia tempo para dormir. Virou as costas para lago e seguiu Allun e a sua luz até à porta onde Zeel ainda estava à espera.

— Este lugar é provavelmente tão seguro como qual­quer outro para descansarmos — disse Allun, acima do rugido da bomba. — Um pouco barulhento talvez, mas não se pode ter tudo.

Sem dizer uma palavra, Zeel estendeu a mão para a lamparina. Allun pareceu surpreendido, mas deu-lhe. Ela olhou-a cuidadosamente, rodou-a várias vezes, sem se importar com o óleo preto que lhe deixou nos dedos.

Ela lembra-se de lamparinas iguais a esta, pensou Rowan, observando-a, fascinado. Provavelmente tinha sido avisada para que não as tocasse. No entanto, ela sentia-se atraída pela chama, como acontece com as crian­ças. E ela recorda-se.

Zeel pousou a lamparina no chão e ergueu os olhos para Rowan.

— Antes de descansarmos tem que queimar mais um pauzinho da feiticeira — disse ela abruptamente. — Temos que saber o que nos vai acontecer.

Rowan hesitou. A sua mão latejava como seja sentisse a dor que viria quando queimasse outro pau. E já tinha só três paus. Seria realmente necessário utilizar um agora? Virou-se para Allun, sem saber bem o que fazer.

Allun acenou afirmativamente a cabeça.

— Se Sheba tem conselhos para te dar, devemos saber quais são. Assim, se os donos desta lamparina nos fize­rem uma visita dentro da próxima hora, estaremos pre­parados.

Com alguma relutância, Rowan tirou o embrulho da camisa, desembrulhou o tecido encerado e tirou de lá um pau. Em seguida, voltou a embrulhar cuidadosa­mente os últimos dois paus e guardou-os. Ao fazê-lo, a sua mão sentiu o medalhão quente. Que papel desem­penha ele em tudo isto?, perguntou ele a si próprio. Será o medalhão que me ajuda a ouvir as palavras de Sheba?

— Queime o pau, Rowan! — gritou Zeel num tom impaciente. — De que é que está à espera? Atire-o para a chama da lamparina.

Antes de poder pensar mais no assunto, Rowan fez o que ela lhe pedia. Uma chama verde percorreu o pau em toda a sua extensão, aumentando progressivamente até as sombras se refletirem nos rostos de todos e na porta atrás deles.

Desta vez, a dor na mão de Rowan foi tão grande e tão súbita que lhe vieram lágrimas aos olhos. Pestanejando através de uma névoa aguada, ele viu o rosto de Sheba surgir nas chamas. Parecia sorrir-lhe, com olhos incandescentes. E depois ele ouviu as palavras:

O que primeiro os sinos dos Zebak escutar

Deve usar a verdade que o espelho relatar.

Para chegar ao fim a mão deve sangrar.

Um dedo de pé, os outros a dobrar.

Com correntes e sofrimento tens que pagar

Para outras mãos o caminho te assinalar.

A chama verde tremeu e extinguiu-se. As cinzas do pau caíram ao chão. A lamparina de óleo vacilou e apa­gou-se, como se as suas forças tivessem sido totalmente consumidas. Estavam outra vez envoltos pela escuridão.

Tentando manter a voz firme, Rowan repetiu os versos. Não conseguia ver os outros, mas não tinha qualquer dú­vida de que os seus rostos refletiam a sua decepção.

Os versos não ajudavam. Não lhes diziam o que fazer se fossem apanhados naquele local. Não lhes diziam como sair do labirinto, nem onde poderiam encontrar Annad. Avisava sobre sangue, correntes e sofrimento, sem espe­rança de fuga.

A exaustão misturada com desespero invadiu Rowan como uma onda. Ele baixou a cabeça.

Quando estava prestes a adormecer, ouviu a voz cansada e zangada de Allun.

— Nós ouvimos sinos quando passamos a porta, vindos das Terras Perdidas. Mas qual de nós os ouviu pri­meiro? As paredes de metal deste labirinto podem ser o espelho. Mas que verdade nos diz ele?

— Certamente que a seu tempo iremos descobrir tudo isso. — A voz de Zeel soava muito fria, como se toda a vida quente lhe tivesse sido sugada. — Já aconteceu o mesmo com as outras profecias e irá acontecer com esta.

Allun resmungou, num tom cansado:

— Estou farto de pensar nisso. Vai dormir agora, Zeel. — Eu o acordo daqui a...

— Não — interrompeu Zeel. — Eu fico de vigia primeiro.

Allun bocejou.

— Como quiser — Rowan ouviu-o dizer.

E não se ouviu mais som nenhum a não ser o rugido da bomba e o sussurro da água nos canos. E Rowan ador­meceu finalmente.

 

Acordou, sobressaltado, com a voz de Perlain ao ouvido e a mão fria de Perlain no seu ombro. Sentou-se com um movimento súbito, abanando a cabeça, tentado desanuviar a mente.

Quando a confusão passou, percebeu que uma luz lhe incidia no rosto. A porta que dava para o corredor estava aberta! Pôs-se de pé e viu Allun, com um ar muito perturbado, a entrar pela porta e a fechá-la atrás de si.

— Não há sinal? — perguntou Perlain.

Allun abanou a cabeça.

— O que se passa? — perguntou Rowan, intrigado e com medo. — Quanto tempo dormi? Porque é que não me acordaram antes?

— Eu próprio acabei de acordar — respondeu Allun. — Perlain encontrou-nos os dois aqui, a dormir profundamente. Mas a Zeel não estava conosco, Rowan. Também não está lá fora no corredor. Ela desapareceu.

 

A MÃO DEVE SANGRAR

Talvez ela tenha ouvido qualquer coisa e tenha ido ver o que era — sugeriu Rowan num tom pouco seguro.

Uma sensação de medo estava a aumentar dentro de si. Desde que tinham entrado na cidade Zebak que Zeel estava muito calada e estranha. Memórias há muito enterradas estavam a vir-lhe à mente. Mas era difícil acreditar que Zeel — tão forte, educada à maneira dos Viajantes durante tanto tempo — não conseguisse enfrentar o passado e derrotá-lo.

Incapazes de ficar mais tempo no escuro, abriram novamente a porta e saíram cautelosamente para a luz. O corredor estendia-se à sua frente, cintilante e vazio. Allun abanou a cabeça.

— Que vamos fazer agora? — exclamou ele. — Se ela se aventurou sozinha neste labirinto, nesta altura já deve estar irremediavelmente perdida.

Ele viu o seu reflexo na parede de metal. Ainda tinha uma risca preta no rosto, do óleo da lamparina. Esfre­gou-a, irritado, para a espalhar. Depois soltou outra excla­mação e aproximou-se mais da parede.

— Há uma mancha de óleo preto na parede, aqui. E olhem... há outra mais adiante. E outra! — Ele foi andando ao longo do corredor e, enquanto caminhava, ia apontando para pequenas marcas na superfície bri­lhante.

Perlain e Rowan apressaram-se a segui-lo.

— A Zeel tinha fuligem do óleo da lamparina nas mãos — disse Allun num tom excitado. — Ela usou-a para deixar um rasto atrás de si para poder encontrar o cami­nho de volta.

— Ou para que a pudéssemos seguir — sugeriu Per­lain em voz baixa.

Quando chegaram a um local em que o corredor se cruzava com outro, as pequenas manchas pretas conti­nuavam para a esquerda. Dobraram a esquina e conti­nuaram a andar.

— Era isto o que Sheba queria dizer — tagarelava Allun por cima do ombro enquanto indicava o cami­nho. — Embora todos nós tivéssemos ouvido os sinos, eu devo tê-los ouvido primeiro. Por isso fui eu que vi as marcas na parede e percebi de que são indicações para nós. É maravilhoso.

— Houve outra profecia? — perguntou Perlain. — Contem-me.

Rowan repetiu os versos enquanto seguiam Allun. Dobraram outra esquina e encontraram-se num corre­dor muito mais largo e mais comprido que se entendia ininterruptamente de ambos os lados.

O homem de Maris escutou atentamente.

— Não gosto dessa conversa de correntes e sofri­mento — disse ele, quando Rowan terminou. — E a mão que deve sangrar... também não gosto. Porque, de acordo com os versos que Sheba te deu na sua cabana, todos nós somos os dedos da mão do destino.

Allun tinha parado. Quando o alcançaram, viram que todo o entusiasmo tinha desaparecido do seu rosto.

— Sou um idiota por me ter regozijado — murmu­rou ele. — Porque se os dois primeiros versos forem verdadeiros, os restantes também serão. A Zeel poderá estar a correr um enorme perigo neste momento. Que outro motivo poderá haver para ela ainda não ter vol­tado?

Nesse preciso momento, vindo de algum lugar mais adiante, ouviram o som de muitos pés a marchar. Ainda estavam longe, mas aproximavam-se rapidamente. Passados alguns segundos, o som ecoava no corredor onde eles estavam.

— Eles vêm para cá! — avisou Perlain.

Eles deram meia volta e voltaram correndo pelo mesmo caminho por onde tinham vindo — dobraram a esquina onde Rowan tinha repetido os versos a Per­lain, e a esquina antes dessa. Ali, eles pararam e puse­ram-se à escuta.

O som dos pés a marchar tornara-se perturbadores.

— De que é que estamos à espera? — sibilou Allun. — E se eles dobrarem a esquina?

— Isso está nas mãos do destino. Mas, a julgar pelo som, eles são muito numerosos, — respondeu Perlain num murmúrio. — Assim, com sorte, eles prosseguirão ao longo do corredor largo, e nós estaremos em segu­rança. Vamos ver. Haverá ainda tempo para correr se eles vierem para cá.

Espreitaram cuidadosamente à esquina até conse­guirem ver o local em que o corredor largo atravessava o corredor mais estreito.

Esquerda, direita, esquerda, direita. O barulho apro­ximava-se cada vez mais. A parede de metal ao lado do rosto de Rowan começou a tremer.

Depois, subitamente, os guardas Zebak a marchar surgiram no seu campo de visão. Vinham quatro a quatro, com os braços revestidos de cinzento e as botas pretas brilhantes a moverem-se a um ritmo perfeito, e a olha­rem fixamente em frente.

Rowan susteve a respiração, preparado para desatar a correr, à espera que eles virassem. Mas eles não vira­ram. Tal como Perlain previra, marcharam em frente. Linha após linha de quatro, passaram por eles, en­quanto Rowan contava. Seis linhas... oito... dez... doze. Depois já não havia mais guardas e, ao fim de algum tempo, o som desvaneceu-se ao longe.

— É óbvio que aquele corredor largo é perigoso — disse Allun. — Mas se quisermos encontrar Zeel temos que o usar. Vamos fazê-lo o mais depressa que puder­mos.

Voltaram para o corredor largo e seguiram nova­mente o rastro de Zeel, quase a correr, tentando ouvir o som de pés a marchar. O corredor estendia-se à sua frente, largo e em linha reta, sem qualquer sinal de interrupção até virar abruptamente. Se outro grupo de guardas aparecesse, não teriam onde se esconder. Seriam vistos e capturados, como talvez tivesse aconte­cido com Zeel.

Mas as marcas na parede continuavam, ainda que menos freqüentes, e o corredor permanecia deserto e silencioso. Viraram a última esquina e foram dar em um espaço ainda mais largo que terminava em duas enormes portas com maçanetas de metal curvas.

Aproximaram-se lentamente das portas e escutaram atentamente, mas não conseguiram ouvir qualquer som.

— Vamos arriscar? — murmurou Allun.

Perlain encolheu os ombros.

— Não temos outra opção — respondeu ele calma­mente, estendendo a mão para uma das maçanetas. Depois hesitou, apontando. Rowan viu que a maçaneta tinha uma pequena mancha preta, o que era sinal de que Zeel tinha lhe tocado.

Perlain puxou a maçaneta, a porta abriu-se silenciosa­mente, e eles entraram na sala que estava do outro lado.

Era muito grande e estava forrada de armários de metal e cabides em que se encontravam pendurados uniformes e boinas dos Zebak. Uma mesa enorme, com bancos de ambos os lados, ocupava o meio da sala. Pendurada na parede, havia uma bandeira castanha de grandes dimensões, cujo centro era um emblema de asas pretas semelhantes as do animal que levara Annad.

— Se não estou enganado, é aqui que os guardas descansam — disse Allun com nervosismo. — Não é muito seguro estarmos aqui.

No outro lado da sala havia outra porta. Estava parcial­mente aberta e, através da brecha, eles conseguiam ver uma parede de pedra e as barras de uma gaiola de ferro.

— Zeel — disse Rowan em voz baixa. — Talvez...? Atravessaram cautelosamente a sala e pararam junto da porta aberta. Não se ouvia nada. Mas Rowan pensou que sentia qualquer coisa. Algo a agitar-se no ar. Uma brisa leve e quente que significava que o mundo exterior estava próximo.

Passaram para o espaço com parede de pedra que ficava do outro lado da porta. O chão era pavimentado com tijolos. Outras duas portas ocupavam a maior parte de uma parede, e era de debaixo dessas portas que vinha o ar fresco.

No centro do espaço estavam duas gaiolas com rodas. Uma delas, viram, estava vazia. A outra estava parcial­mente coberta com tecido. Aproximaram-se dela na ponta dos pés. Allun estendeu a mão para tirar a coberta. Rowan inclinou-se cautelosamente para olhar...

Nesse momento, houve um ruído surdo atrás dele, um peso grande a bater-lhe nas costas, uma voz dura a soar-lhe aos ouvidos. Ele gritou e resistiu. Uma mão poderosa agarrou-o pela nuca e enfiou-lhe a cabeça através das barras de ferro da gaiola. O mundo pareceu explodir num clarão ofuscante de luz e dor.

— Basta — trovejou uma voz. — Nós os queremos vivos.

— Certo, Sir — rosnou o captor de Rowan. Rowan foi arrastado de modo a ficar de frente para a voz. Ele mal conseguia ver. Tinha a cabeça a andar dar voltas, latejando de dor. Sentia o sangue a escorrer-lhe pelo rosto. Se não o tivessem segurado, teria caído no chão.

Para chegar ao fim a mão deve sangrar...

Percebeu que Perlain e Allun estavam ao seu lado, segurados por outras mãos brutais. Ouvia Allun gemer. Ou estaria a ouvir a sua própria voz?

Agoniado e tonto, pestanejou e olhou para a figura alta de uniforme cinzento que se dirigia para eles, com as botas pretas a ecoar nos tijolos. Pelas suas costas muito direitas e pelo passo impaciente, ele sabia que era um oficial Zebak de alta patente, sem medo nem piedade. A linha preta que ia da testa ao nariz dava-lhe um ar severo, cruel. A boca era dura. Os olhos claros eram frios sob a pala brilhante do boné cinzento rígido com o seu emblema de asas pretas.

— Silenciem-nos, acorrentem-nos e metam-nos na gaiola — disse ela secamente.

Só nesse momento, com um choque de horror e incredulidade, é que Rowan a reconheceu. Era Zeel.

 

CORRENTES E SOFRIMENTO

Mais tarde, Rowan percebeu que devia ter desmaiado quando o guarda o amordaçou vio­lentamente. Quando acordou, com o coração a bater aceleradamente e a garganta seca, não fazia a mínima idéia de quanto tempo tinha decorrido. A única coisa que sabia era que estava deitado no chão duro da gaiola de ferro, acorrentado de pés e mãos. Ouvia Perlain gemer ao seu lado. Allun estava provavelmente no outro lado de Perlain.

Eles tinham sido feitos prisioneiros. Prisioneiros dos Zebak. Zeel passara-se para o lado do inimigo. Ou teria ela, no seu coração, estado sempre desse lado? O pensa­mento o fez sentir-se agonizado.

Lentamente, percebeu que a gaiola estava a dar solavancos e a balançar, e ouviu o som das rodas de metal a rolar sobre tijolos. A gaiola estava a ser puxada ao longo de uma estrada.

O tecido que tinha sido colocado por cima da gaiola não a cobria totalmente. Virando ligeiramente a cabeça, Rowan via de relance a rua por onde passavam.

Viu casas. Viu a carroça de um padeiro. Viu bancas cheias de fruta, hortaliça e sacos de cereais. Viu crianças a brincar. Viu adultos a trabalhar ou simplesmente a caminhar levando consigo cestos, ferramentas, malas de cabedal, bebês. Todos eles olhavam para a gaiola com um ar de curiosidade ou de medo, depois viravam a cara.

Ele ficou surpreendido ao ver que usavam roupas vulgares, não uniformes. Com exceção da lista preta do cabelo até ao nariz, que todos eles tinham, menos as crianças pequenas, não pareciam muito diferentes das pessoas no seu país.

— A cobertura da gaiola caiu. Coloque-a no lugar — gritou uma voz. O estômago de Rowan deu uma volta. A voz era de Zeel, mas muito mudada, muito fria.

Ele virou um pouco mais a cabeça, estremecendo com a dor, e viu umas costas cinzentas direitas, um braço a balançar, e depois o lado de um rosto severo, a olhar fixamente em frente. Zeel caminhava, com passos largos, ao lado da gaiola. Zeel, a traidora. Zeel, que tinha usado a confiança que eles depositavam nela para lhes prepa­rar uma armadilha.

Um dedo de pé, os outros a dobrar.

— Que diferença faz que os urks vejam os prisionei­ros? — resmungou outra voz que Rowan pareceu re­conhecer. — Se souberem que os guardas capturaram espiões no interior das muralhas da cidade, eles irão compreender até que ponto os nossos inimigos são perigosos. Deixarão de estar descontentes. Irão com­preender que a guerra é necessária para sua proteção.

— Como se atreve a questionar as minhas ordens? — perguntou Zeel num tom ríspido. — Eu já lhe disse. Este assunto é secreto! Faça o que eu te digo!

— Sim, sir — disse a outra voz apressadamente. Rowan percebeu subitamente de que a segunda pessoa que falara era o guarda que se queixara de ter que empurrar a carroça do lixo. Tentou recordar-se do nome dele. Zanel. Era isso.

A coberta foi ajeitada em volta da gaiola, e Rowan deixou de poder ver para o exterior. Mas conseguia ouvir. Enquanto escutava, a dúvida começou a assal­tar-lhe a mente. Seria possível que houvesse algo que ele não compreendia? Seria possível...?

— Se você e os palhaços dos seus colegas não tivessem tropeçado nisto, não saberiam nada a este respeito! — estava a voz de Zeel a dizer com severidade. — Mas cheguei à conclusão de que me podiam ser úteis e decidi não fazer queixa de vocês. Mas tenham cuidado. Posso mudar de idéias a qualquer altura, e isso será pior para vocês.

— Nós só estávamos a fazer um intervalo, sir — lamuriou Zanel, cheio de medo. — E só o fizemos cedo porque acabamos o nosso trabalho antes do tempo. Não sabíamos que os espiões estavam sob a sua guarda. Pareciam estar sozinhos e não estavam acorrentados. Que outra coisa havíamos de pensar senão...?

— Silêncio! — gritou Zeel. — Não têm nada que pensar. Vão lá na frente e digam ao animal que ande mais depressa. Estamos a ir demasiado devagar.

— Desculpe, sir, mas este grach não consegue andar mais depressa — lamentou-se Zanel. — Tive que ir buscá-lo no depósito, onde ele puxa o arado dos escravos. Sendo do Controle Central, sir, talvez esteja habituado aos grach guerreiros, os que estão a ser treinados para a invasão. Esses são jovens e fortes... e, segundo se diz, alimentam-se da carne dos lagartos das Terras Perdidas. Mas este grach só come erva e restos. E o portão do recinto cercado fica já ali.

— Estes prisioneiros devem ser levados para junto do outro, sem demora. — A voz de Zeel era alta e gélida. — As ordens são essas. Está a querer desobedecer-me?

Era óbvio que Zanel não queria. Um momento de­pois, Rowan ouviu a voz dele à frente da gaiola.

— Up! Up! — gritava ele. A gaiola deu um solavanco quando o animal que a puxava fez um esforço maior.

— Assim está melhor — disse Zeel em voz alta... tão alta que Rowan teve a certeza de que ela queria que os prisioneiros no interior da gaiola ouvissem. — Assim, muito em breve os nossos prisioneiros vão encontrar-se com a sua pequena compatriota. Como eles devem estar gratos por darem este agradável passeio, conosco como seus guias. Talvez pensem que as correntes e o sofrimento não sejam um preço demasiado alto a pagar. O que acha, Zanel?

Com correntes e sofrimento tens que pagar

Para outras mãos o caminho te assinalar.

O guarda que ia à frente riu-se do que julgou ser uma piada cruel. Mas Rowan sabia que as palavras de Zeel tinham sido uma mensagem. Ela queria que eles soubessem que os ia levar ao local onde Annad estava. E, para fazê-los saber isso, ela tinha utilizado o maior número de palavras dos versos de Sheba que se atrevia a usar.

Rowan ouviu um som abafado ao seu lado. Virou a cabeça com dificuldade. Os olhos de Perlain estava muito abertos e excitados. Não conseguia falar por causa da mordaça. Mas Rowan sabia que ele também ouvira a mensagem de Zeel e compreendera.

— Abram o portão! — gritou Zeel. — Abram o por­tão!

Rowan sentiu a gaiola dar uma curva na estrada de tijolos e entrar noutra que parecia ser feita de terra.

Um portão fechou-se com estrondo atrás deles. A gaiola deu um salto e o seu corpo rolou, dorido, para o chão de ferro, mas ele mal prestou atenção à dor. A sua mente fervilhava enquanto tentava imaginar o que devia ter acontecido.

Enquanto dormiam junto do lago subterrâneo, Zeel tinha ido explorar. De algum modo, talvez seguindo os guardas que eles tinham visto regressar, ela tinha encontrado o local onde eram guardados os uniformes e tirado um. Vestira-o e usara o óleo que tinha nos dedos para fazer a marca na testa.

Era provável que Zanel e os seus colegas guardas tivessem entrado logo a seguir. Ela escondeu-se deles, só se mostrando quando Rowan, Allun e Perlain foram atacados. Ela salvou os amigos de serem mortos ou captu­rados da única forma que podia fazê-lo — fingindo que eles já eram seus prisioneiros.

Agora ela continuava a desempenhar o seu papel. Estava a desempenhá-lo bem. E, graças a ela, o problema de como iriam encontrar Annad tinha sido resolvido.

Ouviu-se um grito vindo da frente da gaiola e esta parou com um solavanco.

— Muito bem! — Rowan ouviu Zeel gritar. — Tra­gam-nos para fora.

A coberta foi retirada da gaiola. A forte luz súbita fez Rowan semicerrar os olhos à medida que o mundo no exterior da gaiola assumia muito lentamente contor­nos distintos.

Ele ficou a olhar, estupefato. Estava à espera de ver uma prisão, com paredes de pedra ou metal, barras de ferro, filas de prisioneiros acorrentados. Mas o que ele viu foi árvores, campos verdes, um riacho, pequenos chalés, pessoas a colher trigo. Era tudo tão familiar...

Uma onda de saudade invadiu-o e ele perguntou a si próprio se estaria a sonhar. Se uma montanha alta dominasse a cidade, se os animais que pastavam nos campos fossem bukshah em vez dos enormes animais dos Zebak chamados grach, ele teria pensado que estava em Rin.

Uma coisa era clara: Annad não podia estar ali. Tinha havido algum erro. Zeel tinha feito o possível, e pelo menos eles tinham saído do labirinto. Mas Zanel trouxera-os para o local errado. Talvez por acidente, talvez não.

O lado da gaiola abriu-se com clangor. Zanel enfiou o braço e puxou Rowan para fora como se ele fosse um saco de trigo, depois atirou-o ao chão.

— Tenha mais cuidado — gritou Zeel. — Eles não devem ficar feridos. São essas as ordens.

Zanel resmungou com um ar zangado, mas tirou Perlain e Allun da gaiola com mais cuidado. Eles fi­caram deitados no chão ao lado de Rowan, sem se mexerem. Rowan olhou para o grach que tinha puxado a gaiola. Ele tinha baixado a cabeça e estava a arrancar a erva. Estava contente por a viagem ter terminado, e estava em casa.

— Pode ir embora agora— disse Zeel a Zanel num tom severo. — E não se esqueça que está proibido de falar neste assunto. Se souber que o fez, vai acabar no lado de lá da muralha com os ishkin.

— Muito bem, sir — balbuciou Zanel. Ele deu meia-volta para se ir embora.

— Espere! — ordenou Zeel. — Dê-me a chave das correntes dos prisioneiros. Posso precisar dela.

Uma expressão estranha perpassou o rosto de Zanel. Surpresa, rapidamente seguida de suspeita.

— Mas os guardas do Controle Central, como o meu oficial, têm chaves para abrir qualquer fechadura — disse ele.

Rowan susteve a respiração. Zeel tinha cometido um erro.

Zeel endireitou-se.

— Eu quero a sua chave, Zanel — disse ela num tom ríspido. — Dê-me!

Zanel fitou-a, depois tirou uma chave do bolso e começou a aproximar-se de Zeel. Ela esperou, imóvel.

Ela não queria parecer demasiado ansiosa, pensou Rowan. Ela sabe que ele está desconfiado. Pressionou os pulsos contra a corrente, mas estava bem preso. Não podia fazer nada.

Zanel estava agora muito perto de Zeel. Fitou-a, semi-cerrando os olhos. Ela estendeu a mão para receber a chave.

Ele deu outro passo e depois fingiu tropeçar. Levan­tou a mão rapidamente, roçou a testa de Zeel e tirou-lhe o boné. A linha preta que ia do nariz ao cabelo transfor­mou-se numa mancha preta. O cabelo comprido caiu-lhe sobre os ombros.

Durante um instante, Zanel olhou, espantado, para ela, para a sua própria mão, que estava suja de óleo preto. Depois ele soltou um rugido, desembainhou o punhal e deu um salto.

Zeel tentou dar um salto para se afastar dele, mas as botas pesadas e o uniforme rígido atrapalharam-na, e ela tropeçou e caiu. Olhando-a sem poder fazer nada, nem sequer gritar, Rowan gemeu, horrorizado, enquanto Zanel se lançava novamente sobre ela, sorrindo de raiva triunfante.

E nesse momento, como que por magia, a figura alta de um desconhecido vinda de detrás da gaiola vazia lançou-se subitamente na direção de Zanel. Ele pare­cia ter surgido do nada. Devia ter-se aproximado deles sem que o vissem e permanecido escondido até àquele momento.

Tinha cabelo louro ligeiramente arruivado, e era jovem... mal saíra da adolescência. Vestia roupa de trabalho e trazia consigo uma pá de jardim. Mas o seu rosto tinha a determinação de um herói e os seus om­bros eram largos e os braços fortes. Com um grito, ele ergueu a pá e baixou-a com força. No momento se­guinte, Zanel estava caído no chão, inconsciente.

O seu atacante ficou de pé, ofegante, junto dele, deu-lhe um pontapé suave para ver se ele se mexia, depois pareceu satisfeito. Pegou no punhal e olhou para Rowan, Perlain e Allun que estavam deitados, inde­fesos, na erva. E para Zeel, que se esforçava por se pôr de pé.

— Eu sou Norris — disse ele num tom sóbrio. Encostou-se à pá enquanto os seus olhos os observavam um a um, demorando-se, com curiosidade, em Perlain. Depois, olhou novamente para Rowan e sorriu.

— Seja bem-vindo, Rowan— disse ele.— Temos estado à sua espera.

 

SURPRESAS

Rowan olhou, espantado, para o salvador de Zeel. O seu primeiro pensamento foi que Norris era muito parecido com Jonn Forte, embora fosse muito mais novo... a julgar pelo seu rosto largo, macio, ainda não tinha vinte anos.

Mantendo os olhos fixos em Norris, ainda sem con­fiar totalmente nele, Zeel baixou-se para tirar o cadeado da corrente de Rowan. Enquanto ela se aproximava de Allun e Perlain, Rowan sentou-se e, aliviado, arrancou a mordaça da boca.

— Como é que sabe o meu nome? — perguntou ele com voz rouca.

Nesse momento, o grach, que tinha recomeçado tranqüilamente a comer erva, ergueu a cabeça e deu um grunhido de prazer. Rowan olhou para trás e viu que um velho de barba e cabelo branco comprido vinha a coxear em direção a eles, oriundo de um dos chalés. Era pequeno e magro e tinha um ar muito preocupado.

— Oh, Norris — suspirou ele ao chegar ao pé deles. — Mais uma vez agiu sem pensar e usou a força em vez da inteligência. Meu pobre rapaz, o que hei de fazer com você? — Enquanto falava, ele fazia carícias no grach, que se arrastava pesadamente até ele, arrastando a gaiola atrás de si.

Norris corou e baixou a cabeça. Era óbvio que se sentia desajeitado e envergonhado. Rowan teve pena dele. Ele compreendia bem o que significava ser uma desilusão para os outros. Quantas vezes ele próprio sen­tira isso? Mas pela razão totalmente oposta.

Zeel deu um passo em frente.

— Norris salvou-me a vida, velho — disse ela com firmeza. — Não tinha outra opção a não ser atacar. Que outra coisa poderia ele fazer?

O velho abanou a cabeça. Era óbvio que não conse­guia pensar em nada, mas olhou para o corpo incons­ciente de Zanel com ar de desânimo.

— Eles hão de vir à procura do desgraçado — disse ele ao fim de algum tempo com a sua voz suave, hesi­tante. — Temos que o esconder... e também à gaiola. Talvez debaixo do monte de feno atrás do chalé. Depois pensaremos no que iremos fazer.

Ele soltou outro suspiro quando Norris atirou brus­camente o guarda para dentro da gaiola e fechou a porta. Depois pareceu lembrar-se dos desconhecidos que o observavam. Voltou-se para Rowan e fez uma vênia.

— Saudações, Rowan — disse ele. — Desculpe os nosso transtorno. O pobre Norris tem bom coração, mas os seus modos apressados levam-me ao desespero. Eu sou Thiery da Seda. A minha casa é a sua casa.

Antes de Rowan poder responder, Thiery tinha se virado para Allun, Zeel e Perlain.

— Sinto-me muito satisfeito e interessado em os conhecer — disse ele. — Estávamos à espera de Rowan, mas não pensamos que visse mais ninguém com ele.

Dando meia-volta, começou a dirigir-se lentamente para o seu chalé. Com Norris ao seu lado, o grach seguiu-o puxando a gaiola atrás de si.

— Porque é que estavam à minha espera? — pergun­tou Rowan, indo atrás deles.

— A sua irmã nos disse que viria — respondeu simplesmente Thiery.

— Annad! — O coração de Rowan deu um salto. — Ela está realmente aqui!

Thiery pareceu ligeiramente surpreendido.

— Claro que está. Em que outro lugar eles iriampôr um escravo novo?

— Nós pensamos que ela estaria encarcerada numa prisão — disse Perlain. Pelo tom educado da sua voz e pelos olhos velados, Rowan percebeu que ele pensava que o velho ou era estúpido ou não era digno de confiança.

Thiery parou.

— Isto é uma prisão, meu amigo — replicou ele. — Neste recinto, nós somos tão prisioneiros dos Zebak como se estivéssemos dentro de gaiolas de ferro. — Ele ergueu a sua bengala e rodou-a de modo a que a sua ponta lhes apontasse a alta cerca de arame que se en­tendia à volta dos campos verdes.

Zeel virou-se para olhar para os trabalhadores distan­tes e franziu o sobrancelha.

— Mas aqueles são Zebak — comentou ela seca­mente. — Eu consigo ver as suas marcas castanhas.

— É verdade — concordou Thiery. — São Zebak vulgares... aqueles a que os guardas chamam “urks”... vêm todos os dias ao recinto trabalhar conosco nos campos. Há muitos anos que não há escravos suficientes para fazerem o trabalho sozinhos. — Ele olhou para Zeel. — Você também é Zebak — disse ele. — Onde está a sua marca na testa?

Zeel ergueu orgulhosamente o queixo.

— Tornei-me filha de outra terra quando era muito pequena — respondeu ela. — Vesti esta roupa só para enganar os guardas.

Rowan sentiu cheirarem-lhe o ombro e, sem pensar, levantou a mão. Quando os dedos sentiram pele escamosa em vez de lã quente, retirou rapidamente a mão. Mas o grach gemeu, desiludido, e ele voltou a pôr a mão em cima dele. Se um animal queria um pouco de ter­nura, ele não podia negar-lhe, por mais medonho que fosse o seu aspecto.

— A profecia que nos foi feita disse que o primeiro que ouvisse os sinos dos Zebak deveria utilizar a verdade que o espelho relatasse — estava Zeel a explicar. — Eu ouvi os sinos há muitos anos, quando era muito pe­quena. E o meu reflexo nas paredes tinham-me feito enfrentar a verdade de que era uma Zebak, por mais que fingisse não o ser. Subitamente, eu vi como eu, e só eu, conseguiria fazer-nos avançar. Era a minha vez de desempenhar o meu papel. Tal como Perlain desem­penhou o dele no mar e Allun nas Terras Perdidas.

— As Terras Perdidas! — exclamou Norris, espan­tado, olhando-os com um novo respeito.

— E qual será o papel de Rowan? — perguntou Thiery.

A sua voz era muito baixa. Rowan deixou de olhar para o grach e fitou-o nos olhos. Pensou ver neles uma enorme tristeza e perguntou a si próprio porquê. Mas o velho virou-se rapidamente para Zeel.

— Deve ter sido doloroso para você vir à cidade — disse ele num tom suave.

— Foi sim — admitiu Zeel em voz baixa. — Senti que os meus amigos deviam detestar-me por causa da minha origem. Detestei-me a mim própria.

Então foi por isso que Zeel parecera tão fria e distante no labirinto, pensou Rowan, colocando a mão no braço dela.

— Detestá-la, Zeel? — estava Allun a exclamar nesse mesmo instante.

— Não é culpa sua que esta terra esteja em guerra com a nossa e que o seu povo seja cruel — acrescentou Perlain em voz baixa.

Enquanto o rosto perturbado de Zeel se animava, Norris arrastou os pés.

— Devíamos ir andando — avisou ele. Era óbvio que aquela demonstração de sentimentos o embara­çava. Mais uma vez, Rowan achou-o parecido com Jonn. E com Jiller também, até mesmo com a pequena Annad. Todos eles compreenderiam a natureza de Norris de uma forma que Thiery não conseguia entender.

Norris é um estranho para o seu próprio povo, tal como eu sou para o meu, pensou Rowan, quando re­começaram a andar, fazendo com que os seus passos acompanhassem os passos lentos do velho.

Os chalés já não estavam muito longe e Rowan repa­rou, pela primeira vez, que todos eles, com exceção daquele de onde Thiery saíra, estavam em ruínas. Tinham os telhados cheios de buracos, as portas abertas descaídas e as janelas partidas.

Teve vontade de perguntar a Thiery sobre isso, mas o velho tinha estado a pensar nas últimas palavras de Perlain e estava novamente a falar.

— O povo Zebak não é cruel por natureza — disse ele, abanando a cabeça. — A maior parte das pessoas é um pouco severa, mas isso é tudo. Os guardas é que são cruéis. Usam os chicotes e as botas livremente para mostrar o seu poder. Muitas pessoas vulgares fugiriam do país se pudessem. Mas há muitos anos que o mar, o seu caminho para a liberdade, lhes é proibido. Ele voltou-se para Zeel.

— Os seus pais devem ter estado entre os últimos que tentaram fugir de barco — disse ele suavemente.

— Se pagaram com as suas próprias vidas, o seu gesto deu-lhe, pelo menos, a oportunidade de uma vida nova.

Zeel baixou a cabeça.

— Do mesmo modo que nós somos prisioneiros no recinto cercado, as pessoas são prisioneiras na sua cidade — prosseguiu Thiery. — As muralhas da cidade são altas e as asas dos grach que trabalham são aparadas todos os anos para que eles não possam voar. — Ele cerrou os lábios. — É muito doloroso para os animais — acres­centou, como se isso o magoasse quase mais do que tudo o resto.

— Os guardas fazem o que querem — rosnou Norris, olhando com ódio para a figura imóvel no interior da gaiola. — As pessoas não podem fazer nada contra eles.

— Mas isso está a mudar — disse Thiery. — Eu sin­to-o. As coisas estão a mudar.

Ele abriu a porta do chalé, ignorando a fungadela descrente de Norris. Rowan caminhou do sol quente para a frescura agradável do interior e logo parou.

Apesar da sua ânsia para ver Annad, por um mo­mento, tudo o que conseguiu fazer foi olhar em redor, pensando porque razão se sentiu de imediato em casa. Em tamanho e forma, era verdade, a divisão era como as salas de Rin. Mas em vez de ser simples e apenas com coisas que fossem úteis, esta divisão estava repleta de luz e de cores vivas.

Longas cortinas azuis estavam nos lados das grandes janelas. Havia um bonito tapete no chão e quadros nas paredes. O sofá estava repleto de almofadas fofas. Na prateleira em cima da lareira, estava uma jarra amarela cheia de flores.

— O trabalho da minha neta e de mim — murmu­rou a voz gentil de Thiery. — Fico satisfeito por a achar acolhedora. Mas vai querer ver a sua irmã...?

Com um olhar culpado, Rowan virou-se e seguiu-o através das escadas estreitas que levavam ao sótão. Perlain, Allun e Zeel acotovelavam-se logo atrás.

 

— Está tudo bem, Shaaran — disse Thiery ao entrar num pequeno quarto.

Aí, numa estreita cama e debaixo de uma colcha bordada com flores e folhas, estava Annad, profunda­mente adormecida.

Em pé, ao lado da cama e com uma mão apoiada nas costas de uma cadeira, estava uma menina magra e de cabelos escuros. Os seus olhos doces estavam esbugalhados. Ainda estava agarrada a um livro aberto, como se se tivesse assustado com o barulho dos passos deles.

— Chegou o irmão da criança — disse-lhe Thiery, empurrando Rowan para dentro do quarto. — Rowan, esta é a minha neta, Shaaran.

A menina era da mesma idade de Rowan, mas não era mais alta que ele. Cumprimentou-o com um sorriso tímido e, para seu espanto, Rowan viu-se invadido pela sensação de que já a tinha conhecido antes. Isso é im­possível, disse para si próprio. Mas a sensação era forte e persistia.

— Estou muito satisfeita por estar aqui — estava Shaaran a dizer. — Annad tem dormido quase todo o tempo desde que está conosco mas, sempre que se mexeu, ela disse o seu nome.

Enquanto os seus amigos ficaram na porta à espera, Rowan aproximou-se da cama na ponta dos pés. Annad estava pálida e tinha alguns arranhões na cara, mas respirava tranqüilamente. Uma sensação de alívio invadiu-o.

Enquanto a observava, ela pestanejou, depois abriu os olhos. Fitou-o sem se mostrar minimamente surpreendida e sorriu.

— Eu sabia que havia de me vir buscar, Rowan — suspirou ela. — Não tive medo.

Rowan retribuiu-lhe o sorriso.

— Você nunca tem medo — disse ele. Inclinou-se sobre ela e o medalhão que tinha no pescoço saiu da camisa. Ouviu uma exclamação de espanto atrás de si, mas não conseguiu virar-se para olhar porque os dedos de Annad agarraram no medalhão e seguraram-no com força.

— Bonito — disse ela, bocejando.

— Durma mais um pouco, Annad — disse Rowan. — Eu estarei aqui quando acordar.

Annad acenou a cabeça com um ar sonolento.

— E vai me levar para casa — disse ela. As suas pálpebras já estavam a ficar novamente pesadas. Pesta­nejou, olhando para Shaaran. — O meu irmão é um grande herói, sabe — murmurou ela. Depois fechou os olhos, os dedos que agarravam no medalhão abriram-se e ela voltou a adormecer.

Rowan endireitou-se e afastou-se da cama. Sentia o coração muito cheio. Casa? Será que algum deles vol­taria alguma vez para casa? Deu meia volta, ansioso por saber o que tinha causado a exclamação de espanto que ouvira.

Shaaran tinha colocado o braço em volta dos ombros do avô. Para sua surpresa, Rowan viu que os olhos mortiços do velho estavam rasos de lágrimas.

— Eu sabia que viria um dia — disse ele com voz trêmula. — Eu acreditava, tal como o meu pai antes de mim. Como a nossa família sempre acreditou. E, assim, continuamos a pintar as sedas para você, enquanto desapare­cíamos lentamente...

Rowan olhou-o fixamente, confuso e um pouco receoso. Thiery seria louco? Voltou-se para Shaaran e viu que ela estava a tremer.

— Avô, o Rowan não compreende. — Ela olhou novamente para Rowan. — Quando Annad chegou, interrogamo-nos se a hora teria finalmente chegado — sussurrou ela. — O rosto dela... a sua força...

Ela calou-se, engolindo desesperadamente para conter as lágrimas.

— Tínhamos esperança... mas não tínhamos a cer­teza — prosseguiu ela. — E depois... há um instante... quando vimos o medalhão, ficamos a saber... É uma grande felicidade para o meu avô e para mim. Mas também um grande choque.

Rowan abanou a cabeça. Sentiu-se aturdido.

— Que... que lugar é este? — gaguejou ele. — Quem são vocês?

— Nós somos o seu povo, Rowan — respondeu Shaa­ran em voz baixa. — Tudo o que resta. E este é o seu lugar. Isto é Rin.

 

SOMBRAS PINTADAS

Vocês não são o meu povo! Eu nunca os vi antes do dia de hoje. E isto não é Rin! Rin fica muito longe, do outro lado do mar! — As palavras irrom­peram de Rowan num tom quase irado. Shaaran re­cuou, olhando para o avô a pedir ajuda, consciente da presença de Allun, Perlain e Zeel à entrada do quarto com uma expressão de espanto no rosto.

— Eles deram ao seu novo país o nome do antigo, Shaaran — murmurou o velho. — As suas memórias foram-lhes apagadas, mas o nome veio-lhes à mente e eles usaram-no, sem saber porquê.

— Quem? — perguntou Rowan. — De quem está falando? — Ele percebeu que estava a tremer.

— Os seus antepassados — respondeu Thiery. — Os homens fortes que nos deixaram há mais de trezentos anos e nunca regressaram.

Rowan ficou a olhar para ele, de boca aberta. Thiery sorriu, com um ar cansado, e deixou-se cair na cadeira ao lado da cama de Annad.

— Estou muito cansado — suspirou ele. — Tem que lhe mostrar, Shaaran. Eu velarei pela criança.

Era óbvio que Shaaran estava preocupada com ele, mas, obedientemente, fez sinal a Rowan e os dois des­ceram as escadas estreitas atrás de Zeel, Allun e Perlain.

Shaaran tirou um lençol dobrado de um armário. De­pois conduziu-os pela porta traseira do chalé para o exterior.

Para além da horta, havia um enorme monte de feno. Norris estava a colocar feno em cima da gaiola de ferro, que já estava quase completamente coberta.

Perto dali, o grach pastava tranqüilamente. Levan­tou a cabeça quando eles saíram de casa, mas, ao ver que Thiery não estava com eles, perdeu o interesse e concentrou-se novamente na comida.

Os amigos seguiram Shaaran quando esta desceu alguns degraus de pedra que iam dar a um porão por baixo do chalé. No interior, estava escuro e frio como numa sepultura, mas a menina acendeu uma vela. Eles viram molhos de tubérculos e uma pilha de lenha. A luz brilhou, fantasmagórica, nas paredes e no chão. As sombras eram monstros negros pretos a rastejar sobre as pedras.

Shaaran tirou uma barra de ferro pontiaguda do seu lugar encostado à parede, levou-a para o canto mais escuro do porão e enfiou-a numa fenda entre a pedra angular e a parede. Ao ver o que ela estava a tentar fazer, Zeel e Allun foram ajudá-la, adicionando peso à barra de modo a conseguirem levantar a pedra.

Por baixo havia um buraco escuro.

Shaaran enfiou o braço no buraco e tirou de lá uma corrente presa a um gancho colocado em algum lugar perto do topo. Ela puxou e, ao fim de pouco tempo, apareceu uma caixa grande a balançar da extremidade da corrente como um peixe numa linha de pesca.

Ela colocou a caixa no chão e abriu-a. No interior havia dúzias de rolos de seda finos. Cada um dos rolos tinha a largura do braço de Rowan, e todos eles estavam atados com um cordão entrelaçado semelhante ao que ele trazia ao pescoço. Alguns dos rolos pareciam mais novos que outros. Alguns eram, de fato, muito antigos.

— O que são? — perguntou Allun, esticando o pes­coço para ver.

— A nossa história — respondeu Shaaran. — Eu vou mostrar-lhes.

Ela estendeu o lençol no chão cheio de pó. Depois desenrolou os longos pedaços de seda, um a um, em cima dele, começando pelo mais antigo.

A luz trêmula da vela, figuras e cenas pintadas pa­reciam saltar do fundo de seda em direção a eles. Cores nítidas, garridas, davam vida a uma época há muito desaparecida. Aquela aldeia, cheia de gente e chalés robustos. Homem, mulheres e crianças a trabalhar nos campos. Grach sarapintados a puxar arados e carroças. Guardas Zebak, correntes, gaiolas de ferro...

A mão de Rowan ardia.

As sombras pintadas vivem de novo...

Cada rolo de seda contava uma história diferente. E todas as histórias juntas formavam uma história mais longa — uma história triste e terrível que esperara trezentos anos para ser contada.

— Há muito tempo, Rowan, o nosso povo era um só — disse Shaaran, passando a mão pelas sedas mais antigas. — Éramos escravos dos Zebak há tanto tempo que a nossa história antiga se tinha perdido, pois os Zebak matavam todos os que se referiam ao passado. Nós trabalhávamos nos campos, cultivando comida para a cidade. Éramos muitos... corajosos e tímidos, fortes e fracos, os que sabiam pintar, costurar e curar os doentes... e os que conseguiam escalar, correr e lutar.

Ela estava a repetir uma lição que tinha aprendido há muito tempo, e as palavras vinham-lhe com facilidade. Mas os seus olhos estavam tristes, como se, naquele momento, ela estivesse a viver no passado e sofresse.

— Há trezentos anos, os líderes Zebak fizeram um plano grandioso para invadirem um país do outro lado do mar — prosseguiu ela. — Eles já tinham lutado contra o povo desse país e sabiam que eles iriam defender-se com todas as suas forças. Muitos Zebak morreriam. Assim, eles decidiram aumentar o número dos seus guerreiros. Levaram os mais fortes e os mais corajosos entre nós para serem treinados como guerrei­ros e sacrificados à causa...

O rugido nos ouvidos de Rowan era tão grande que ele mal conseguia ouvir a voz dela. Mas não precisava de fazê-lo. Uma pintura mostrava a história muito claramente.

Ela mostrava guardas a prender pessoas na aldeia e a metê-las em gaiolas de ferro a que estavam atrelados grach. Mostrava os choros e o sofrimento quando filhos e filhas eram arrancados das mães, irmãos eram separa­dos de irmãos, maridos de mulheres.

Os que estavam a ser levados eram altos e fortes. Faziam-lhe lembrar a sua família, as pessoas que ele conhecia no seu país, e Norris. Os que ficaram para trás eram mais pequenos e tinham um ar mais fraco... não tinham qualquer utilidade como guerreiros. Eram como Shaaran. Como Thiery. Como ele próprio.

O dedo magro de Shaaran apontou para uma velha curvada ao lado de uma das gaiolas de ferro. Tinha na mão um molho de ervas, para mostrar que era feiticeira e curandeira. Ela estava a passar secretamente algo a outra mulher, através das barras da gaiola. A mulher no interior da gaiola era muito mais nova.

Rowan inclinou-se para ver o que era o objeto e quando viu, soltou uma exclamação. Era um medalhão enfiado num cordão de seda entrelaçado.

— É o mesmo — disse Shaaran. — É o que está a usar agora. Tem passado de geração em geração ao longo de trezentos anos, e agora foi devolvido. Nós sem­pre acreditamos que o seria um dia.

— Então vocês sabiam que os escravos guerreiros não tinham morrido — disse Rowan lentamente. — Sabiam que eles se viraram contra os Zebak e ajudaram a derrotá-los.

Shaaran acenou a cabeça em sinal de concordância, apontando para o pedaço de seda seguinte que mos­trava cenas vividas de batalha. Os Zebak estavam a ser empurrados para o mar pelos seus próprios escravos fortes. Com os escravos estavam os Maris, que tinham sido pintados com caudas de peixe, e os Viajantes, com penas e rostos ferozes, sorridentes.

Perlain soltou uma risada de desdém.

— Os Maris não têm caudas — disse ele num tom rí­gido.

— E espero que os Viajantes também não tenham este ar de demônios — sorriu Zeel.

— Os meus antepassados não podiam pintar com exatidão o que nunca tinham visto — disse Shaaran num tom apologético. — Eles tinham que se basear nas histórias que ouviram quando os Zebak que tinham sobrevivido regressaram, derrotados. Foi assim que eles souberam que a sua gente perdida tinha ficado na nova terra.

— E esqueceram alegremente os entes amados que tinham deixado para trás em escravidão! — a voz de Allun era dura.

— Não os julgue, Allun — disse Rowan em voz baixa. — Os Zebak têm formas de controlar mentes, e é óbvio que sempre assim foi. Eles apagaram as memórias dos escravos guerreiros, para que eles combatessem bem e não tivessem saudades dos entes amados.

Shaaran acenou a cabeça em sinal de concordância.

— Foi por isso que os meus antepassados correram um risco enorme e começaram a pintar as sedas. Para que, se alguma vez os entes perdidos regressassem a esta terra, eles as pudessem encontrar e ficar a conhecer a sua história... mesmo que não houvesse mais ninguém para a contar.

Ela disse estas últimas palavras numa voz muito suave. Rowan olhou para os restantes pedaços de seda. Eles mostravam pessoas a trabalhar como outrora, mas ainda mais duramente e com maior tristeza. Mostravam guardas a prender os jovens que manifestassem o mínimo sinal de rebelião e a atirá-los para as Terras Perdidas. Mos­travam campos mal tratados e casas a desabar gradual­mente. Mostravam adultos a envelhecer e a morrer, mas cada vez menos crianças a nascer para ocupar os seus lugares. Mostravam Zebak a serem trazidos para fazer o trabalho deles, para que continuasse a haver comida para alimentar a cidade. A última mostrava apenas três figuras. Duas crianças e um velho, sozinhos de pé ao lado de uma sepultura.

Quando a dor é verdade e a verdade é dor...

— Os meus pais só tiveram filhos porque a nossa família sempre pintou sedas, e eles queriam que o tra­balho prosseguisse durante o mais tempo possível — disse Shaaran. — Eles viram desde o início que Norris... não era adequado. Assim, tiveram-me a mim. Mas nós somos os últimos.

Assim, Thiery, Norris e Shaaran eram tudo que res­tava daquele povo tranqüilo e meigo. Eles tinham prefe­rido definhar a continuar a ter filhos em escravidão.

Rowan compreendeu. Ele teria sentido o mesmo. E compreendeu também, finalmente, a razão por que ele era diferente dos outros na sua aldeia e por que tinha havido outros iguais a ele no passado.

Embora os habitantes de Rin tivessem esquecido os entes amados que tinham deixado para trás, a natureza não esquecera.

De vez em quando, tal como sucedera com os novilhos bukshah pretos, nasciam seres estranhos. Seres estra­nhos como ele, que saía ao lado da família de Rin que ninguém sabia que existia.

— O avô pintou esta seda depois de os nossos pais terem morrido com uma febre, há sete anos — estava Shaaran a dizer. — Ele nunca mais pintou. Não tem tido coragem e não tem havido nada para contar.

— Bem, agora já há qualquer coisa — disse Zeel com veemência.

— Há, sim — concordou Allun. — Mas acho que não podemos esperar pela pintura. Este lugar é perigoso para nós. Perlain já está impaciente. Eu noto isso na forma como ele abana a cauda.

Shaaran soltou uma gargalhada, depois mordeu o lábio e olhou para Perlain, para ver se ele se sentia in­sultado. Mas Perlain limitou-se a sorrir tranqüilamente.

— Eu estou, de fato, impaciente — disse ele. — E se tivesse realmente uma cauda, estaria a agitá-la como uma serpente. Temos que encontrar uma forma de sair daqui o mais depressa possível. Mas vamos precisar de ajuda.

— Eu e Norris os ajudaremos — ofereceu-se pronta­mente Shaaran. — Temos amigos de confiança entre as pessoas que trabalham nos campos. E quando os guardas vierem, nós podemos atrasá-los enquanto vocês...

— Não, Shaaran — interrompeu Rowan. — Nós não iremos sozinhos. Vocês virão conosco.

Ela ficou a olhar para ele, espantada.

— Nós não podemos ir — murmurou ela. — Os guardas não nos deixarão partir.

— Eles também não vão nos deixar partir, se conse­guirem evitá-lo — disse Rowan, no tom mais alegre que conseguiu. — Arrume as sedas. Não vamos deixá-las para trás.

Shaaran deu meia volta e, com dedos trêmulos, come­çou a enrolar as tiras de seda.

— Rowan! — a expressão do rosto de Perlain era muito grave, e Rowan sabia em que é que ele estava a pensar. Até àquele momento, eles tinham sobrevivido por milagre. A partir dali, o caminho ia ser duas vezes mais difícil. Com mais quatro pessoas, incluindo uma criança pequena e um velho frágil, como poderiam so­breviver?

Mas Rowan sabia que não podia deixá-los. Procurou o embrulho de tecido encerado de Sheba na camisa, tirou de lá um pau e mergulhou-o na chama da vela.

A luz verde iluminou as paredes de pedra, as figuras imóveis dos seus amigos, o rosto espantado de Shaaran, os rolos de seda. Sentiu a dor de queimadura. Viu o rosto de Sheba a sorrir para ele...

Quando o mal ataca e a fúria desperta,

Então o amor enfrentará a escolha feita.

O amigo leal a morte libertará.

Tal como começou, assim terminará.

Preso ao animal, o teu papel desempenharás...

O coração sofredor confortarás.

Lutando contra a onda de cansaço e desespero que o invadia, Rowan repetiu as palavras. Os amigos não disseram nada — o que poderiam eles dizer?

No entanto, certamente que o significado dos versos não podia ser o que parecia.

— Não significa que nós temos só morte e escravidão à nossa frente — murmurou ele ao fim de algum tempo. — Não pode significar isso.

— A Sheba avisou-nos — disse Allun, com os lábios torcidos num sorriso amargo.

Rowan sabia que ele estava a pensar nas palavras que os tinham atormentado desde o início, embora nunca tivessem falado nelas.

Cinco partem, mas cinco não regressam...

Shaaran olhou para o tecido encerado malcheiroso caído, amarrotado, no chão do porão. A única coisa que restava do seu conteúdo era uma mão-cheia de erva mole, pálida, e um único pau.

— Ainda... ainda falta um pau — gaguejou ela. — Isso não significa que é demasiado cedo para perder a esperança?

Rowan olhou rapidamente para ela. Havia medo es­pelhado no seu rosto pálido, mas ela estava a lutar contra o medo com todas as suas forças e não se deixaria vencer por ele.

E ele também não.

— Tem razão — disse ele, dobrando o tecido e colocando-o novamente dentro da camisa. — A história ainda não acabou.

Ouviram-se passos pesados nos degraus do porão. De­pois Norris entrou trazendo nos braços Annad, cheia de sono e a pestanejar.

— Os guardas vêm marchando em direção ao recinto — disse ele num tom de urgência. — As pessoas irão fazê-los demorar um pouco no portão, mas têm que se apressar. Se eles os encontrarem aqui, seremos todos mortos.

 

TAL COMO COMEÇOU...

Thiery estava à espera deles no exterior, com uma expressão de alarme no rosto. O grach silvou ansio­samente ao seu lado, e ele fez-lhe afagos no pescoço, tentando acalmá-lo, enquanto os amigos discutiam ra­pidamente o que deveriam fazer.

— Não posso enfrentar novamente as Terras Perdi­das — disse Allun num tom firme. — Isso é certo.

— A profecia disse “Tal como começou, assim terminará”— disse Perlain. — A nossa viagem começou no mar. Temos que tentar chegar à costa e roubar um barco.

— Se ao menos eu não tivesse sido obrigada a deixar o meu papagaio para trás quando mudei de roupa! — Zeel abanou a cabeça com um ar zangado, depois virou-se para Norris.— Pode indicar-nos o caminho mais rápido para a costa?

— Eu poderia fazê-lo — disse Norris num tom sombrio —, mas não ajudaria. A muralha dá a volta na cidade. As Terras Perdidas são o único lugar em que os portões não têm guardas de dia e de noite. E, em qualquer caso, a costa está cercada por arame farpado que não é possível atravessar.

— Mas seguramente... — começou Allun a dizer.

O rosto de Norris ficou vermelho de raiva.

— Se a fuga fosse tão fácil como vocês parecem imaginar, nós próprios já teríamos fugido — gritou ele, olhando para eles com os punhos cerrados. — Eu não sou um covarde nem um tolo. Pensam que eu quero permanecer aqui na escravidão?

A raiva do neto fez Thiery suspirar. Mas os visitantes compreendiam-no perfeitamente. Era a raiva que qual­quer cidadão normal de Rin teria manifestado se esti­vesse no lugar de Norris.

— Ninguém duvida da sua coragem nem do seu bom senso, meu amigo — disse Perlain calmamente. — Mas agora nós estamos com você. Isso faz uma diferença.

— Ah é? — escarneceu Norris. — E porquê?

— Porque se nós conseguirmos fugir da cidade, pelo menos sabemos para onde podemos navegar para che­gar a um local seguro — disse Rowan.

— Local seguro? — perguntou Norris com desdém. — A sua terra não é um lugar seguro. Não compreen­de? O teste que trouxe a sua irmã até aqui demonstrou aos Zebak que um ataque aéreo será bem sucedido. Eles não vão desperdiçar mais tempo. Segundo se diz, neste preciso momento a frota de grach está a juntar-se na praça, a preparar-se para partir. Em breve a sua terra será invadida e dominada.

— A nossa terra não vai ser dominada — disse Zeel com firmeza. — O nosso povo vai lutar.

Norris abanou a cabeça.

— Nada pode derrotar os grach guerreiros. A pele deles é dura como ferro, e as garras, os dentes e as caudas podem matar com toda a facilidade.

— E, no entanto, a sua grach é muito meiga. — Rowan olhou para o animal enorme que cheirava ternamente a mão de Thiery.

Norris encolheu impacientemente os ombros.

— A Unos é uma grach de trabalho. Os grach guerrei­ros foram criados especialmente para a guerra. Eles aprendem a procurar o cheiro de um animal que existe apenas na sua terra. Os treinadores têm a pele de um animal desses, trazido pelos sobreviventes daquilo a que eles chamam a Guerra da Planície.

— Mas a Guerra da Planície foi há muito tempo! — exclamou Allun.

— A invasão aérea é, há muitos anos, um plano muito apoiado pelo Controle Central — disse Norris. — Tem custado muito caro em provisões e trabalho. Não agrada muito às pessoas, mas dizem-lhes que é necessá­rio para sua própria segurança.

— Isso é uma mentira— disse Perlain num tom inex­pressivo. — Nós só lutamos para nos defendermos.

— No seu íntimo, as pessoas já sabem isso — concor­dou Thiery com um aceno de cabeça. — Há muito tempo que o seu trabalho e as suas vidas têm sido desper­diçados a fazer uma guerra inútil. A sua raiva está a ficar suficientemente forte para ultrapassar o medo de desobedecer. Já existem murmúrios sobre uma rebelião.

— Mas é por isso que o Controle Central está deci­dido a que esta invasão tenha êxito, Avô — rosnou Norris. — Os líderes acreditam que, se houver novas terras para colonizar e novos escravos para trabalhar nos campos, os protestos terminarão.

Rowan sentiu um arrepio de medo, depois deu um salto ao ouvir gritos distantes. Os guardas tinham che­gado aos portões do recinto.

— Temos que partir imediatamente — disse Allun abruptamente. — Norris... vai levar-nos até à costa, ou não?

Norris hesitou.

— Se o Norris não os levar, eu levo. Viraram-se todos, surpreendidos, pois fora Shaaran quem falara. Ela tinha estado tão calada que quase se tinham esquecido dela. O rosto ardia-lhe, mas ela retri­buiu o seu olhar com determinação.

— Eu também sei o caminho — disse ela.

— Não, Shaaran! — gritou o velho num tom de la­mento, e Unos, a grach, gemeu suavemente, sentindo o medo do seu dono.

— Seria um desperdício de vida inútil. Não é possível fugir pelo mar — teimou Norris.

— Esta é a nossa oportunidade de sermos livres, Norris! — exclamou Shaaran. — Vamos aproveitá-la!

O velho parou, olhando, ora para um, ora para outro. Depois, estranhamente, sorriu. Baixou-se para beijar a testa de Shaaran e colocou suavemente uma mão no ombro de Norris.

— Os dois têm razão, meus queridos — murmurou ele. — Perdoem-me. Por um momento, eu vacilei. O medo sempre foi o meu inimigo. Vocês dois ensina­ram-me a ser forte.

Ele levantou a mão para fazer mais um afago a Unos, depois deu meia volta e começou a dirigir-se apressada­mente para o monte de feno.

— Antes de se poder fazer alguma coisa, tenho que tratar do guarda ferido — disse ele por cima do ombro. — Ele já deve ter acordado.

— O velho é louco! — explodiu Zeel.

— Nós não podemos esperar— murmurou Perlain.

— Vamos ter que deixá-lo aqui.

— Não! — exclamou Norris.


— Avô — chamou Shaaran colocando a caixa das sedas nos braços de Rowan e correndo atrás do velho. — Avô, temos que partir!

— Não se aproxime, Shaaran — gritou Thiery, re­mexendo o feno e espalhando-o por todo o lado. — Esta tarefa é minha!

Unos tinha aberto as asas e seguia atrás do dono, a bater lentamente as asas como um enorme pássaro a tentar proteger o seu filhinho.

Subitamente, Rowan percebeu de algo e virou-se para Norris.

— As asas da sua grach... não foram aparadas! — exclamou ele.

— Não. Há muitos anos que o meu avô suborna os guardas dando-lhes comida extra para eles pouparem a Unos — respondeu Norris num tom áspero. — Ele deu a sua palavra que, enquanto fosse vivo, não a deixaria voar, para que o Controle Central nunca soubesse.

A mente de Rowan fervilhava. Um grach tinha rou­bado Annad, voado para longe com ela. Isso fora o prin­cípio. E o vôo de um grach poderia ser o fim.

— A Unos é suficientemente grande para nos levar a todos — exclamou ele. — Nós podíamos...

Norris abanou a cabeça, observando o velho.

— O avô deu a sua palavra — disse ele, num tom mal-humorado. — Ele nunca voltaria atrás. Nem sequer...

Depois, subitamente, ele abriu muito os olhos e, no mesmo instante, Rowan ouviu Shaaran gritar.

Uma figura escura estava saltando de dentro do monte de feno. Zanel tinha-se libertado da gaiola. Ele estivera escondido, à espera...

— Escravo! Traidor! — gritou ele com o rosto distor­cido de raiva. — Como é que se atreve a aprisionar-me! — Ele agarrou em Thiery, sacudindo-o como a uma boneca de trapos. Depois, a lâmina de um punhal bri­lhou à luz do sol quando ele a ergueu e mergulhou no coração do velho.

Shaaran gritou, correndo para a frente ao mesmo tempo que Thiery se curvava e caía ao chão. Zanel agar­rou-a, e ela soltou outro grito. Rowan, Norris, Allun, Perlain e Zeel saltaram para ajudá-la, gritando. Mas os seus gritos foram abafados por outro som — o terrível grito de dor animal de Unos a chorar o seu dono.

— Não se aproximem! — gritou Zanel, com o pu­nhal na mão erguida. — Se se mexerem, eu mato a menina.

Eles pararam, olhando-o com um ar desconfiado.

— Idiotas! — disse ele com desdém. — Acham que eu teria só uma arma? Acham que um cadeado conse­guiria manter-me dentro de uma gaiola quando o punhal que eu trago na minha bota o pode facilmente abrir? Deitem-se no chão. Agora! De barriga para baixo na terra, que é esse o seu lugar. Senão a menina pa­gará por isso.

Os amigos olharam uns para os outros, com um ar sombrio.

— Vão embora! Fujam! — soluçou Shaaran, debatendo-se contra o braço forte do guarda. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, mas ela abanou violenta­mente a cabeça. — Por favor! Não se importem comigo! Vão embora, já!

Zanel apertou-lhe mais o pescoço, estrangulando os seus gritos. Pegando nela com facilidade, arrastou-a para a frente, passando por cima do corpo de Thiery e dando-lhe descuidadamente um pontapé.

A grach, que chorava a morte do dono, ergueu o focinho. Os seus olhos amarelos planos ardiam e, ao olhar para o homem que tinha morto o seu amo, ela emitiu um silvo vindo no fundo da garganta.

Zanel olhou em volta, surpreendido. Para ele, os grach tinham sido sempre bestas de carga, para serem utilizados, como os escravos, sem qualquer respeito e certamente sem medo. Mas ele nunca vira uns olhos de animal tão cheios de ódio.

Uma expressão de medo perpassou-lhe o rosto.

— Para baixo, grach! — disse ele num tom inseguro. Unos mostrou os dentes. Deitou a língua bifurcada de fora, provando o medo do inimigo. Os espinhos do seu pescoço eriçaram-se e ficaram eretos. Todo o seu corpo pareceu inchado quando ela avançou lentamente para Zanel, abrindo as enormes asas.

— Para baixo! — gritou Zanel, recuando e tentando em vão atacá-la com o punhal que tinha morto um velho mas que, contra aquele terrível inimigo, era tão inútil como um brinquedo. Depois, ele deu subitamente meia volta, atirou Shaaran para o lado e desatou a correr.

A grach parou. A princípio, mal se atrevendo a olhar, Rowan pensou que ela ia deixar o guarda ir-se embora. Depois, quando ele estava quase fora do seu alcance, a cauda dividida estremeceu. Como três chicotes cravados de espinhos, ela atingiu-o com uma força mortífera. Zanel só soltou um grito. Mas, quando chegou ao chão, já não respirava.

Rowan tremia com o horror do que tinha visto. Ouvia Shaaran a chorar, Allun a praguejar e Annad a cha­má-lo. Mas quando viu Unos a voltar lentamente para junto deles, com as asas coriáceas a tocar na poeira atrás de si, recordou-se das palavras de Sheba.

Quando o mal ataca e a fúria desperta,

Então o amor enfrentará a escolha feita.

O amigo leal a morte libertará.

Tal como começou, assim terminará.

Aproximou-se de Shaaran com o coração pesado.

— Não chore — disse ele suavemente. — O seu avô morreu como queria. Ele fez a sua escolha. O seu juramento morreu com ele, por isso a sua amiga leal está livre para voltar a voar. E, tal como ele planejou, ela irá levar-nos de regresso a casa.

 

...ASSIM TERMINARÁ

Agrach voou para ocidente, seguindo o cheiro. Voava há muito tempo e estava cansada e com fome, mas a voz meiga e mãos acariciadoras do rapaz davam-lhe forças para prosseguir. Havia poucos pensa­mentos por trás dos olhos amarelos planos. Apenas uma idéia fixa. Ela tinha que seguir o cheiro, chegar ao local a que lhe tinham dito que chegasse e levar os seus passa­geiros para onde eles queriam ir.

Há muito que o mar tinha ficado para trás, e a grach teve vagamente a noção de que por baixo dela havia agora colinas verdes ondulantes e um riacho sinuoso, a brilhar à luz do sol. Percebeu que uma monta­nha, com o cume escondido no meio das nuvens, se erguia no horizonte azul à sua frente.

Mas os seus olhos não eram importantes. Nem os ouvidos, fechados para se protegerem do vento, nem o bater das asas doloridas, eram importantes. A única coisa que era importante era a língua bifurcada que entrava e saía da boca, provando o ar frio, provando o cheiro.

Ela sabia que estava perto do seu objetivo. O cheiro era mais forte — o cheiro bom a pó, fogo, cinzas e ervas amargas que fazia os seus maxilares descair de fome. Sheba. Ela até sabia o nome.

— Sheba — dissera o rapaz meigo, agitando o pe­queno embrulho de tecido encerado à frente do seu focinho, tirando de dentro dele folhas moles de erva descorada para ela comer, de modo a que o seu deli­cioso sabor agridoce se misturasse com o cheiro. Quando os passageiros subiram para o seu dorso e se instalaram, bem presos, nos seus lugares, o rapaz dissera outra vez — Sheba. Busca!

Depois, a grach tinha aberto as asas e voado. Por cima dos chalés vazios em ruínas e dos campos onde os tra­balhadores olharam para cima, acenando e aplaudindo, e um pelotão de guardas gritou. Por cima da cidade com a sua torre flamejante, do seu exército de grach guerreiros, das suas figuras vestidas de cinzento a apon­tar e a correr. Depois por cima da muralha cintilante, dos penhascos denteados e, por fim, daquela terra verde.

O cheiro a Sheba era forte. Os cheiros a grach e a Zebak também, e estavam a tornar-se mais intensos. Mas havia outros cheiros. Alguns destes, Unos já tinha provado antes. Dois, ela não conhecia. Um dos que ela ainda não tinha provado era um cheiro quente a animal. Este não continha qualquer ameaça. Mas o outro en­cerrava muitos perigos. Era fogo, neve e gelo. Era um hálito quente, presas a pingar e poder antigo, cioso.

A grach sentiu um formigamento de aviso nos espinhos coriáceos do dorso. Mas a voz tranqüilizadora do rapaz era suave ao seu ouvido, pelo que os seus olhos amarelos de lagarto não pestanejaram, e o bater das suas asas escamosas sarapintadas não vacilou enquanto ela conti­nuava a voar em direção a Rin.

 

Estrela perscrutou o céu muito azul por cima da aldeia. Ainda estava límpido, com exceção da nuvem que envolvia sempre o cume da Montanha proibida, e dois papagaios, um branco e um vermelho, a flutuar ao vento. E, no entanto... certamente que havia algo no céu a temer. Algo a temer... mas algo que também era bem-vindo. Os cheiros eram mistos. Bons e maus. A apro­ximarem-se.

Ela já tinha levado a manada para a parte mais baixa do campo, para lá do lago onde eles bebiam. Agora começou a colocá-la num círculo. Era altura de fazê-lo. Os pássaros há muito que se tinham escondido. Ela ou­via gritos na aldeia. Via pessoas com armas e archotes a arder. Para lá da aldeia, ela conseguia ver Ogden, o Viajante, de pé numa colina, como uma árvore recor­tada contra o céu, a observar os papagaios e a escutar, a escutar.

Mas o seu dever principal era para com a manada. Proteger os novilhos, manter o círculo. Ela permaneceu no seu lugar, imóvel como uma estátua. Estava pronta. Tinha feito o que podia.

 

— Não podemos ter certeza de onde os animais vão aterrar! — Solla, o doceiro, gorducho e afável, di­rigiu-se, ofegante, com o seu andar gingão, para o campo dos bukshah. Ele agarrava com força na lança que afiara rapidamente, enquanto os seus olhos disparavam de um lado para o outro.

— Não podemos ter certeza — disse a velha Lann ao seu lado. — ÉE por isso que os Viajantes estão de guarda nas colinas e que eu deixei alguns soldados na praça. Mas se os animais tiverem sido treinados para seguir o cheiro dos bukshah, conforme o Timon acredita, eles irão aterrar no campo.

Ela estava apoiada na sua bengala, mas na outra mão tinha também uma lança. Esta pertencia-lhe, e ela ti­nha-a afiado com as suas próprias mãos. Ela tinha sido outrora a maior guerreira de Rin e estava decidida a que a idade não a impedisse de voltar a defender a sua terra... com a sua própria vida, se o destino assim qui­sesse.

Ela parou para descansar, e os seus olhos penetrantes varreram o céu. Distinguiu as figuras minúsculas de Tor e Mithren a balançar, desprotegidos, por baixo dos seus papagaios, tentando avistar o inimigo. O seu cora­ção de guerreira sentiu-se emocionado com a coragem deles. Perguntou a si própria quantas vezes ela zombara dos Viajantes devido aos seus modos inconstantes e despreocupados.

Já tinha me esquecido, pensou ela. Na Guerra da Planície, eu combati ao lado dos Viajantes, e também dos Maris. Eu, de entre todos os que aqui estão, devia recordar-me do seu valor. Mas o tempo passou e eu esqueci-me.

Ela olhou para Bronden, a marceneira, que tinha parado ao seu lado. Bronden, de rosto macilento, tam­bém estava a olhar para o ar. Lann sabia que ela não dormia desde o dia em que Annad fora levada, e Rowan dos Bukshah, Perlain de Pandellis, Allun, o padeiro, e Zeel dos Viajantes tinham partido à procura dela.

Não era aquilo de que Bronden estava à espera — que os seres desprezados, os seres estranhos, fizessem o que ela própria nunca se atreveria a fazer. Isso tinha-a sacudido até ao íntimo.

Lann viu os olhos de Bronden abrirem-se e olhou para cima. Os papagaios estavam a descer, precipitando-se no ar como aves aquáticas a mergulhar para apanhar peixe. E, na colina silenciosa, Ogden estava a levantar os braços.

O inimigo vinha aí.

A boca de Lann estava cerrada numa linha firme e dura. Agarrou com mais força na lança e dirigiu-se mais uma vez para o campo dos bukshah.

Bronden caminhava o seu lado, entroncada e forte. Quando ela falou, a sua voz era dura e áspera.

— Eles não vão nos conquistar — disse ela. — O nosso povo não voltará a ser escravo. Preferimos morrer.

— Não pensemos em morrer — respondeu calma­mente Lann. — Só em vencer.

As suas palavras eram as palavras de uma líder mas, quando chegou ao campo e viu o seu povo reunido, à espera, sentiu o coração pesado. Eles eram corajosos e determinados, mas eram poucos. E de que serviam as suas armas contra os animais que estavam prestes a enfrentar?

À frente, muito alto acima dos restantes, estava Jonn Forte. Ao seu lado estavam Jiller e Marlie, a tecelã, ambas com arcos e flechas na mão.

Estes três pareciam estar separados da multidão. Estavam pálidos e os seus rostos tinham as marcas de um grande sofrimento. Mas mantinham-se juntos, ombro a ombro. Para eles, a batalha seria não só pela liberdade, como também pela vingança.

Lann abriu caminho por entre a multidão até chegar ao pé deles.

— Viram a Sheba? — perguntou. — Ela disse alguma coisa?

Jiller abanou a cabeça.

— Aconteceu o mesmo que antes — disse ela num tom inexpressivo. — Ela não se moveu. Havia partículas de cinza no seu rosto e uma aranha teceu uma teia à volta da sua cadeira. A lareira ardia com um fogo verde que não nos deixou aproximar dela.

Lann franziu a testa.

— É doença? Transe?

— Seja o que for, ela não se mexeu, por mais alto que gritássemos — disse Jiller. — Tinha os olhos fechados. Mas está a respirar. É como se o seu espírito tivesse abandonado o corpo.

— Ali! — gritou Jonn, apontando para cima. — Olhem para ali!

No horizonte azul claro surgira um ponto negro que se tornava-se maior a cada segundo que passava. Os papagaios rodavam e avançavam rapidamente em direção a ele.

— Só um! — gritou alguém na multidão, num tom de alívio.

— Talvez seja o mesmo, que tenha vindo buscar outra criança — exclamou outra voz. — Bem, desta vez esta­mos prontos para o receber.

Jonn abanou a cabeça.

— Ogden disse que sentia uma enorme ameaça — murmurou ele. — Muito maior do que antes. Se for só um, deve ser o primeiro de muitos.

Eles ficaram a ver, petrificados, a forma negra ficar cada vez maior. Agora conseguiam ver as suas enormes asas a bater no ar. Os papagaios desceram sobre ela e descreveram círculos à sua volta, e ela pareceu descer ainda mais no céu.

— Eles estão a importuná-lo — disse Jonn com uma satisfação sombria.

Marlie falou pela primeira vez.

— Estou a ver formas em cima do seu dorso — disse ela. — Ele traz gente.

Jiller ergueu o rosto pálido e endireitou os ombros, colocando lentamente uma seta no seu arco.

 

— Papagaios! — gritou Annad para Rowan acima do som do vento. Ela contorceu-se impacientemente, a tentar acenar para Tor e Mithren, puxando a corda que a mantinha presa ao dorso da grach.

Rowan sentiu Unos vacilar.

— Annad, fique quieta! — gritou ele. Puxando as suas próprias cordas, ele estendeu a mão e esfregou o pes­coço escamoso no local em que ele sabia que o animal mais gostava. Sabia que ela estava muito cansada. Quase conseguia sentir a dor das suas asas exaustas e a secura da sua garganta. Quase conseguia ver o medo a esprei­tar atrás dos seus olhos fixos.

Preso ao animal, o teu papel desempenharás...

O coração sofredor confortarás.

— Unos linda — sussurrou-lhe ele ao ouvido, tal como fizera muitas vezes durante a longa viagem —, em breve terá comida. Terá mais daquela erva pálida, se a Sheba a der. E água fresca e descanso. Não tenha medo. Já falta pouco.

— Ele é meigo como o meu Avô! Ele acha que o animal compreende as suas palavras? — a voz de Norris flutuou acima do vento.

— Ela compreende o que ele quer dizer, Norris. — O tom da voz de Shaaran era muito mais baixo, mas Rowan ainda conseguiu ouvi-la.

— Sem as palavras de conforto de Rowan, há muito que o animal teria desistido e caído do céu. — Era Allun. — Ela não foi treinada para uma viagem destas. Há muitos anos que ela não voa tanto. Ela só nos trouxe tão longe porque o Rowan está conosco.

Com que então, Sheba, o meu papel é este, pensou Rowan, confuso. Mas ainda resta um pau no embrulho que me deste. O que me irá ele dizer quando arder?

— As pessoas reuniram-se no campo dos bukshah — gritou Zeel. — Elas estão armadas. Não nos conse­guem ver! Elas pensam que...

O vento arrastou consigo as suas últimas palavras.

Rowan viu o papagaio de Mithren passar velozmente por ele. Viu os olhos de Mithren, espantados, a olhar para os seus. Viu a flauta vermelha ser levada aos lábios de Mithren e uma mensagem a ser enviada. Perguntou a si próprio se esta chegaria a tempo.

 

TERROR

Não desperdicem setas, arqueiros — estava a velha Lann a gritar. — Façam pontaria com cuidado! Esperem até verem bem!

Pela primeira vez em vários minutos, Jonn ergueu o olhar para a colina. Ogden já lá não estava. Jonn per­guntou a si próprio porquê.

Jiller e Marlie estavam agora à sua frente. Todos os arqueiros estavam na linha da frente. Eram eles que iriam tentar fazer cair os que vinham montados no ani­mal. Os espadachins, como Jonn, e os que tinham lanças estavam atrás deles. O animal era o seu alvo, tal como os animais que viriam a seguir.

Jonn sentiu a espada pesada na mão. Tinha perten­cido ao seu pai, e estivera ociosa desde a Guerra da Pla­nície. Mas agora iria provar novamente o sangue Zebak. Talvez pela última vez.

O animal aproximava-se. Não como um relâmpago, como fizera na primeira vez, mas lentamente, como se tivesse dificuldade em mover-se sob o peso que trans­portava. Agora via-se nitidamente a sua enorme e hedionda forma. Os seus passageiros eram figuras escuras contra o céu. Eram sete.

— Sete alvos — resmungou Lann. — Sete alvos fá­ceis.

Os papagaios continuavam a descer, pairando entre o animal e o chão. Porque é que eles não se afastam?, pensou Jonn com impaciência. Vão estragar a pontaria dos arqueiros. Ogden devia fazer-lhes sinal para que se fossem embora. Ergueu novamente o olhar para a colina, mas o contador de histórias não tinha voltado.

Ouviu-se um ruído surdo vindo do cume da Monta­nha. O Dragão estava a mexer-se no seu palácio gelado.

A multidão virou-se para olhar, mas os arqueiros não tiraram os olhos do céu.

— Prontos! — gritou Lann. — Quando o papagaio branco passar...

Os arqueiros ergueram os arcos.

Estrela estava a chamar do seu lugar no círculo dos bukshah. Jonn deu meia volta para olhar para ela, intrigado com o fato de o som não ser um grito de medo, mas sim um som de saudação. Estava a escavar o chão e a acenar a cabeça. Ela voltou a chamar. Mas não quebrou o círculo.

Jonn ouviu Lann fazer um estalido com a língua, irri­tada, quando o papagaio branco se afastou e o papagaio vermelho ocupou imediatamente o seu lugar, interpondo-se entre os arqueiros e o animal. Ele conseguia agora ouvir Tor e Mithren gritar ao longe. Mas havia outros gritos a flutuar no ar. Com um choque, percebeu que os sons vinham dos que montavam o animal. Por que motivo estariam eles a chamar? A não ser que...

— Lann... — começou ele a dizer.

O papagaio vermelho foi apanhado por uma rajada de vento e empurrado para cima. O alvo estava final­mente bem visível.

— Prontos... — gritou Lann.

— Parem!

Era Ogden, a acenar, correndo em direção a eles com a testa alta a brilhar de suor.

— Deponham... as suas armas! — disse ele ofegante, enquanto corria. — Eu recebi... uma mensagem. Os passageiros... são amigos.

Lann hesitou, franzindo a testa. Depois...

— Parem! — gritou ela para os arqueiros.

Eles fi­caram imóveis, continuando a fazer pontaria.

— O que se passa? — perguntou ela bruscamente a Ogden. — Amigos? Como pode isso ser?

— Não sei — respondeu o contador de histórias apontando para o céu e abanando a cabeça. — A men­sagem dizia “Amigos! Não tenham medo.” Vim a correr para lhes dizer. Eu sabia... que você não prestaria ouvidos a mais ninguém. Deponham as suas armas. Deixem-nos aterrar.

— O animal... — começou Lann a dizer.

Mas nesse mesmo momento Jiller gritou e baixou o seu arco. No momento seguinte, ela estava a correr para a sombra do animal, erguendo os braços.

— Rowan! — gritou ela. — Annad!

— Annad! — Marlie apenas murmurou o nome. Parecia petrificada, com as mãos ainda a agarrar no arco. O seu rosto pálido estava ainda mais branco do que antes.

Jonn olhou para cima. E viu finalmente o que elas tinham visto.

Era algo que estava para além dos seus sonhos mais fantásticos. Presos com cordas ao dorso do animal, a oscilar e a deslizar, enquanto ele aterrava no campo dos bukshah, estavam Rowan, Annad, Zeel, Perlain e Allun.

E no meio deles já a deslizar para o chão com os outros à medida que as suas cordas eram desapertadas, es­tavam dois desconhecidos. Um rapaz forte e belo e uma menina de ar delicado que parecia ser mais a irmã de Rowan do que a impetuosa Annad alguma vez conse­guiria parecer.

Estupefato Jonn viu Jiller tomar os filhos nos braços e Marlie correr para junto de Allun. Ouviu o calmo e tranquilo Perlain gritar como um louco.

— Estamos todos vivos! Mas Sheba tinha razão. Não regressaram cinco. Regressaram oito. Oito! — ele sen­tiu as pessoas à sua volta avançar e ouviu-os dar vivas de alegria, maravilhadas. Viu o enorme animal sarapintado dirigir-se para o riacho para beber, enquanto os bukshah emitiam rugidos de aviso. Viu a velha Lann, tão perplexa de alegria e espanto como ele, a observar os desconhecidos.

— Então — murmurou Ogden ao seu lado. — Rowan trouxe-os para casa. Eu devia ter confiado nele. Em todos eles. Mas até eu tive medo. — Ele respirou fundo. — E, de fato, já era tempo. Mas só há dois?

Jonn deu meia volta, com os olhos cheios de pergun­tas. Mas Ogden já estava a avançar, abrindo os braços para Zeel, dando uma palmada nas costas de Perlain, e conduzindo cortesmente Lann na direção dos desconhecidos.

— Esta é a sua gente — Jonn ouviu-o dizer à velha. — Dê-lhes as boas-vindas, mas guarda as perguntas para mais tarde. Receio que a nossa provação ainda esteja para vir.

— É verdade — exclamou o rapaz. — Os Zebak não podem estar muito longe. E são muitos.

— Quantos? — perguntou Lann, pondo à parte a surpresa e as perguntas como a velha guerreira que era.

Mas no momento em que Norris começava a res­ponder, ouviu-se um grito oriundo da multidão e, no instante seguinte, estavam todos a apontar.

O horizonte estava cheio de formas pretas voadoras. No início parecia um enxame de abelhas, depois foram-se tornando maiores e mais próximos a cada abrir e fechar de olhos — um enorme exército sobre asas couraçadas a adejar.

Os bukshah gritaram, escavando a terra. A grach junto do riacho emitiu um silvo de aviso. E a Montanha pare­ceu tremer com os rugidos do Dragão. O seu fogo ardia na nuvem, manchando de escarlate o branco nebuloso.

— Posições, arqueiros! — ordenou Lann. — Os ou­tros, recuem!

— Rowan, toma conta dela! — gritou Jiller, atirando-lhe Annad para os braços. — As crianças estão todas no moinho. Leva-a para lá!

E ela afastou-se, correndo para o seu lugar.

As pessoas estavam a acender novos archotes, endi­reitando as costas, atirando os ombros para trás e er­guendo as armas. Allun, Perlain, Zeel e Norris estavam a juntar-se às suas fileiras com as armas que consegui­ram encontrar. Mas Shaaran tinha recuado para a orla do campo, onde havia uma pilha de archotes apagados ao lado de uma fogueira. Olhava para o céu com os olhos muito abertos de medo e segurava a caixa de sedas contra o corpo como se ela a pudesse proteger do mal.

Rowan também olhou para o céu. Este estava a ficar mais escuro à medida que o inimigo se aproximava deles, mais rápido do que o vento. Há demasiados, pensou ele. Demasiados.

Ele levou Annad até onde Shaaran estava.

— Temos que levar Shaaran para o moinho, Annad — disse ele com urgência. — Despache-se.

Annad abanou a cabeça.

— Leva-a você, Rowan — respondeu ela. — Eu vou lutar. — Soltando-se dele, ela agarrou num archote e acendeu-o, brandindo-o por cima da cabeça com um ar feroz.

— Deixe-a fazer o que ela quer — disse Shaaran. Rowan viu com espanto que os seus lábios pálidos se curvavam num sorriso enquanto ela observava Annad a voltar a correr para o campo. Depois voltou-se para ele.

— Ela é forte e impetuosa — explicou ela. — É como o Norris. Todos eles são assim. É tão estranho!

— Aqui não é estranho — disse Rowan num tom som­brio. — Aqui eu e você é que somos os seres singulares.

Shaaran riu-se, voltando-se para ele.

— Não tão singulares, se somos dois — disse ela.

Rowan sentiu uma dor terrível no coração.

— Shaaran, vá para o moinho — suplicou ele. — Consegue encontrar o caminho... — Mas, no preciso instante em que falou, ele soube que era demasiado tarde. O exército Zebak tinha sobrevoado as colinas e a sua sombra estava a tornar o vale escuro.

Shaaran pousou a caixa no chão ao pé de si e acendeu o archote como Annad fizera.

— Não há esperança, não é, Rowan? — pergun­tou ela com tristeza.

Não há esperança.

As palavras ecoaram na mente de Rowan enquanto ele procurava o embrulho de tecido encerado dentro da camisa e tirava de lá o último pau.

— Shaaran, aconteça o que acontecer, mantenha o archote reto — disse ele, enfiando o pau na chama que ela segurava. A dor percorreu-lhe o braço e ele gemeu, mas manteve a mão firme. Shaaran susteve a respiração quando o verde vacilante tomou o lugar do vermelho e o rosto de Sheba surgiu na chama. Mas ela segurou um braço magro com o outro, para que o ar­chote não tremesse quando as palavras vieram.

Quando o medo, como a noite, se aproximar

Foge do campo e esconde-te do olhar.

O poder agita-se, a ira desperta,

Na escuridão a raiva penetra.

Uma lição assustadora e bem assimilada,

Uma história que só por eles pode ser contada.

As palavras terminaram com um suspiro e a chama morreu. Soltando uma exclamação, Rowan abanou a cabeça para desanuviá-la e olhou para trás.

O exército de Rin continuava firme no seu lugar. Ninguém se tinha movido. O rugido da montanha pa­recia um trovão. Para além do seu lago, os bukshah permaneciam de pé como pedras cinzentas. E estava a ficar escuro. Escuro como a noite. A sombra do inimigo estava quase sobre eles.

Foge do campo e esconde-te do olhar

Desta vez Rowan não pensou, não questionou.

— Pegue nas sedas e vá para o pomar! Esconda-se nas árvores. Depressa! — gritou ele para Shaaran por cima do barulho. Depois, correu para a frente da mul­tidão e bradou o mais alto que conseguiu:

— Saiam daqui! — disse ele. — Fujam para o pomar!

A multidão vacilou, oscilando como trigo num campo varrido pelo vento.

— Mantenham as suas posições! — trovejou Lann, franzindo, furiosa, as sobrancelhas.

Rowan aproximou-se dela.

— Eu não posso explicar, mas sei que está certo! — gritou ele. — Não demore. Diga-lhes! Diga-lhes! Diga-lhes!

Enquanto Lann hesitava, Rowan ouviu um movi­mento atrás de si. Jiller e Jonn tinham saído do seu lugar e estavam a dirigir-se para o pomar. Marlie, Allun, Perlain, Zeel e Norris abriam caminho por entre a mul­tidão para se juntarem a eles, seguidos de muito perto por Timon. E quando Bronden também se começou a mover, fazendo sinal a Val e a Ellis para que a seguissem, o resto da multidão não vacilou mais e fugiu para salvar a vida.

Ao fim de poucos minutos o centro do campo estava vazio, com exceção de Rowan e Lann, que ficaram frente a frente.

— Até hoje nós nunca fugimos de um inimigo, Ro­wan dos Bukshah — silvou a velha.

— Não estamos a fugir de um inimigo — disse Ro­wan em voz baixa. — Estamos a deixar o caminho livre para... uma lição.

Ela olhou-o fixamente.

— Venha comigo, Lann — suplicou-lhe ele. — Venha esconder-se comigo, que já vai ver.

 

A LIÇÃO

Os escravos estão a dispersar! A esconder as suas cabeças lamurientas! — O comandante da frota Zebak olhou para o campo vazio lá em baixo, sorrindo de satisfação. Mas, logo a seguir, gritou num tom zan­gado quando o seu grach rolou no ar, quase o fazendo cair.

— E o rugido e o clarão da montanha ali adiante, sir — gritou o tratador do animal. — O Bara tem medo deles.

— Seu idiota! O que poderá haver em qualquer mon­tanha que um grach guerreiro possa temer? — cuspiu o oficial. — Fá-lo provar o chicote!

Mas o tratador não teve oportunidade de erguer o chicote nem sequer de responder. Subitamente, houve um rugido mais alto do que qualquer outra coisa que ele já ouvira e, no momento seguinte, ele estava agarrado ao pescoço do grach, temendo pela sua vida. E gritava, tal como o homem orgulhoso atrás de si e o próprio grach gritavam. De terror.

A nuvem que envolvia o cume da montanha estava a rodar para o lado. E, elevando-se em direção a eles, rugindo fogo, havia algo sugerido apenas no seu pior pesadelo — uma coisa antiga enorme, terrível, branca como o gelo com os maxilares abertos, dentes afiados como agulhas e uma ira terrível.

Comparados com aquilo, os ishkin não passavam de pequenos vermes. Os grach eram lagartos do deserto comedores de lixo. Este era soberano. Era poderoso. A terra abaixo de si não lhe despertava qualquer inte­resse. Mas o céu era o seu domínio. Eles tinham-se atrevido a invadir o seu espaço.

Bara estava a chorar, contorcendo-se, mergulhando, e os outros grach daquela enorme frota que voava em formação cerrada faziam o mesmo. Os cintos que pren­diam os passageiros aos seus assentos estavam a partir-se como se fossem feitos de cordel. Os guardas caíam, aos gritos, para a terra lá em baixo.

E o Dragão rugia numa fúria selvagem, e o seu hálito queimava a terra e o ar com línguas de chamas.

— Ajudem-me! — O tratador ouviu o longo grito quando o seu chefe se despenhou no chão que planejara possuir. Mas ele não se podia virar. Não podia fazer nada a não ser agarrar-se ao pescoço escamoso de Bara quando o animal rodou, a silvar, e começou a voar a grande velocidade, voltando para trás pelo caminho por onde viera. Para longe da ira escaldante, ciosa. Para longe do local que os seus amos tinham julgado tão fácil de conquistar, mas que provara ter um guardião que assombraria para sempre os seus pesadelos.

 

Quando tudo terminou, o povo de Rin saiu dos seus esconderijos. Estavam todos bem. Estavam todos em se­gurança.

— Eles nunca voltarão — disse Timon. — Aprende­ram uma lição que nem nós sabíamos. Os sobreviventes espalharão a palavra. Os nossos céus estão ainda melhor protegidos que os nossos mares.

Uma lição assustadora e bem assimilada,

Uma história que só por eles pode ser contada.

— O Dragão da Montanha — murmurou Lann. — Nunca pensei chegar a vê-lo. — Ela estava agarrada ao braço de Rowan. Tinha as mãos a tremer.

O campo onde eles tinham estado ficara queimado e negro. O lago dos bukshah ainda fumegava. Mas a manada já se aproximava tranquilamente do riacho para beber, os novilhos estavam a investigar o estranho animal sarapintado mas aparentemente amigável que se espojava nas margens arrelvadas, e Estrela andava à procura de Rowan.

Quando o viu, soprou e desatou a correr, com a terra preta a voar por debaixo dos cascos.

— Se tivéssemos ficado no campo... — as palavras murmuradas passaram de uns para os outros até a mul­tidão inteira começar a murmurar. — Se não fosse o Rowan...

— Quem os salvou não foi o Rowan dos Bukshah, fui eu — a voz áspera serrou o ar como uma faca ferrugenta.

A grach Unos, que se encontrava junto do riacho, le­vantou a cabeça. Silvando ansiosamente, começou a subir a margem.

Sheba saiu da sombra das árvores do pomar. O cabelo oleoso balançava-lhe em volta da cara como caudas de ratos. A sua roupa em farrapos cheirava a cinza, pó e ervas amargas.

— Venha aqui, coelho magricela! — ordenou ela.

Rowan deixou Estrela com Lann e dirigiu-se lenta­mente para a velha. Sentiu Unos caminhar pesada­mente atrás dele, farejando, deliciada, o ar. Todos os que ali estavam estremeceram ao vê-la e recuaram.

— Então voltou, Rowan dos Bukshah — guinchou Sheba. — Voltou você e os seres estranhos e idiotas que te acompanharam, e ainda trouxeram convosco mais dois seres estranhos.

Ela lançou um olhar trocista a Norris e a Shaaran. Norris franziu o cenho, Shaaran encolheu-se e recuou. Sheba desatou à gargalhada.

— Você veio conosco, Sheba — disse Allun em voz baixa.

— E bastante trabalho me deram — resmungou ela. — Dias e noites de vigia. Dias e noites sem comer, sem beber nem dormir...

— Temos uma grande dívida para com você — disse Rowan.

— É verdade! — replicou Sheba com ar de troça. — E eu vim reclamá-la! — Ela mostrou um bilhete amarro­tado! — Escrito pela sua própria mão! — prosseguiu ela. — O seu presente prometido!

Rowan olhou para o riacho onde o novilho bukshah brincava com os amigos, e foi como se dedos ossudos lhe apertassem o coração. Mas ele tinha prometido.

Virou-se para Sheba.

— Eu não me esqueci — disse ele.

Ela sorriu, mostrando os seus dentes castanhos com­pridos.

— Mas eu mudei de idéia sobre a companhia que prefiro — disse ela. — A idéia do novilho enfada-me. Tem havido outros novilhos negros na manada. Eu prefiro... isto.

Ela apontou para a grach.

Rowan olhou para Shaaran e para Norris. Norris encolheu os ombros. Shaaran olhou e viu Unos baixar a cabeça e roçar a mão da velha, e acenou a cabeça em sinal de assentimento.

— Ela chama-se Unos — disse ela.

— Muito bem. Ela será uma companheira adequada para mim. — Sheba acariciou o pescoço sarapintado da grach com estranha ternura. — Ela é uma verdadeira singularidade.

Sheba fungou e afastou-se, fazendo estalidos com a língua para Unos enquanto caminhava. A grach se­guiu-a, silvando alegremente.

— Ótimo. Unos vai ser feliz com ela — suspirou Shaaran, vendo-os afastar-se. Mas os seus olhos ti­nham-se enchido de lágrimas. Rowan sabia que ela estava pensando no avô e que se sentia perdida. Sentiu o nariz de Estrela a tocar-lhe no pescoço e virou-se para lhe fazer uma carícia. Estrela, pelo menos, sentia-se aliviada por a grach ficar longe da sua vista. Mas Shaa­ran...

— E assim encontramos uma casa para um dos nossos novos cidadãos — disse Allun do seu lugar no meio da multidão. — E os outros?

Ele e Marlie deram alguns passos em frente; sorri­dente, no meio deles, estava Sara, a sua mãe.

— A minha mãe não é um ser estranho — disse Allun para Norris e Shaaran. — A única coisa estranha que ela fez na vida foi casar-se com um Viajante, e pagou muito caro por isso ao ter a mim como filho. Mas em breve ela será como uma ave que perdeu o seu único passarinho, porque a Marlie teve a idéia tola de concordar em se casar comigo.

Ele olhou em volta, sorrindo do murmúrio de sur­presa e parabéns que se elevou da multidão e igno­rando o pontapé que Marlie lhe deu na canela. Depois virou-se novamente para Shaaran e Norris.

— O casamento será muito em breve. Antes que Marlie caia em si e mude de idéias — prosseguiu ele. — Por isso a minha mãe pede-lhes que venham encher o seu ninho. Afinal de contas, alguém tem que arrancar as ervas daninhas do seu jardim. E ela é uma excelente cozinheira.

Sara sorriu a Norris e Shaaran, que tinham uma ex­pressão de espanto no rosto.

— Não liguem para tolices do meu filho! — disse ela. — Mas eu teria todo o gosto em recebê-los, se quise­rem vir viver comigo.

Shaaran olhou para Norris e viu o seu rosto abrir-se num enorme sorriso. Virou-se para Sara.

— Obrigada — disse ela timidamente. — Gostaría­mos muito.

Allun esfregou as mãos.

— Então está decidido — disse ele, com um ar alegre. — E agora, comida! Comer peixe seco e biscoitos de algas é bom, mas comer pão, queijo e bolos é muito melhor.

— Isso é uma questão de gosto — disse Perlain, apro­ximando-se silenciosamente dele com Zeel. — Mas, para já, eu contento-me com o queijo. Na realidade, eu seria capaz de comer uma serpente num só trago, se me fosse oferecida uma.

As pessoas que estavam perto riram-se, surpreendi­das, enquanto começavam a dirigir-se para a aldeia. Era apenas uma pequena piada, mas eles nunca tinham percebido de que um Maris era capaz de dizer piadas.

Com a caixa das sedas na mão, Rowan seguiu ao lado de Jonn, Jiller, Annad e Shaaran. Annad dançava impacientemente, a tagarelar e a puxar pela mão de Shaaran para a fazer andar mais depressa. Jiller ria-se, radiante de felicidade.

Mas o olhar intrigado de Jonn ia do rosto de Shaaran para o de Rowan.

— Acho que tem muito para nos contar, Rowan de Rin — murmurou ele.

Rowan olhou para a caixa das sedas que tinha nos braços e sentiu-se inundado por uma alegria tranquila.

— Sim — replicou ele. — Tenho muito para lhes con­tar.

 

                                                                                            Emily Rodda

 

 

                      

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