Vittorio Alfieri
TRAGÉDIA EM CINCO ATOS
Representada no teatro Lírico Fluminense na noite de 2 de agosto de 1869.
NOTÍCIA HISTÓRICA
Otávia era filha do Imperador Cláudio e da mais que famosa Messalina. Apenas chegada à puberdade foi prometida em casamento a Lúcio Silano; mas a ambição política e os ardis de Agripina, mãe de Nero, fizeram abortar este projeto, tornando-a a tão desgraçada esposa desse monstro, que de tal mãe foi digno filho. Pouco tempo depois este repudiou-a pretextando que era ela estéril, mas realmente por causa do amor que consagrava a Popeia, que efetivamente substituiu-a no leito nupcial e no trono de Nero. Popeia, entretanto, não se julgava segura enquanto Otávia vivia. Querendo descartar-se dela, acusou-a, ou mandou que alguém a acusasse de entreter relações criminosas com um de seus escravos. As servas da acusada foram sujeitas a tormentos, porque recusavam confirmar essas falsas imputações; mas entre as torturas proclamarão a sua virtude e inocência, a ponto tal que, não sendo possível condená-la à morte, mandaram-na em degredo para a Campânia. Tão injusta condenação provocou tal indignação e murmúrio no povo, que Nero, político medroso, julgou dever chamá-la a Roma. Com a volta de Otávia, a quem o povo acolheu entre ruidosas manifestações, renasceram, e mais vivamente os terrores de Popeia. Atirou-se ela aos pés do Imperador seu esposo, e alcançou dele, por fim, que, sob diversos pretextos, Otávia fosse de novo afastada de Roma e em seguida assassinada. Mandaram, pois, a infeliz princesa degradada para uma ilha, onde viu-se obrigada, contando apenas vinte anos de idade, a deixar que lhe abrissem as veias. Apenas a virão morta, cortaram-lhe a cabeça inocente que foi enviada à sua indigna rival.
PERSONAGENS: OTÁVIA POPEIA NERO SÊNECA TIGELINO Soldados e povo romano. A ação passa-se no palácio de Nero em Roma.
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ATO I
CENA I Nero, Sêneca.
SÊNECA Senhor do mundo inteiro, o que te falta?
NERO Tranquilidade.
SÊNECA Tê-la-ias, se aos outros não a tirasses.
NERO Doce e calma seria a minha vida, se odiosos laços não me prendessem a Otávia.
SÊNECA E terias porventura de Júlio César sido sucessor, terias aumentado a glória e o poder herdado, se Otávia te não desse a mão de esposo? Ela foi quem te abriu caminho para o trono; e entretanto hoje morre à míngua, em cruel e injusto degredo, essa mesma Otávia, que longe de ti, sabendo que abres os braços à sua orgulhosa rival, mísera, ainda te ama!
NERO A princípio talvez fosse ela instrumento de minha grandeza; mais tarde, porém, tornou-se a causa de todas as minhas desgraças, e ainda o é hoje, posto que repudiada. E este povo, a quem desprezo, ousa murmurar! atreve-se a queixar-se de seu senhor nos mesmos lugares onde reino e domino? De hoje em diante não se dirá mais em voz alta o nome de Otávia, nem se quer o murmuram baixinho lábios trêmulos, que o não quero eu, Nero!
SÊNECA Senhor, nem sempre julgaste indignos de ti os meus conselhos. Bem sabes como, com a arma poderosa da razão, moderei o ardor de tua impetuosa mocidade. Eu predisse que, repudiando Otávia e, mais que tudo, condenando-a a cruel desterro, chamarias sobre ti a censura, as acusações e as injurias. O coração do povo, dizia, eu, inclina-se para Otávia; Roma inteira manifestou sua dor ao saber que havias marcado para sua residência os campos de Plauto e a habitação de Burro, eu dizia...
NERO Basta. Disseste tudo isso, é certo; e entretanto fizeste o que eu quis! Durante algum tempo, talvez, me ensinasses a governar, mas, a não errar, jamais o fizeste; nem o podes tu ensinar, nem pode o homem adquirir esta ciência. Já basta que Roma me tenha ensinado a ser prudente por algum tempo. Enganei-me, julgando que devia desterrar esta mulher, que, pelo contrário, eu não devera afastar de mim.
SÊNECA Estás porventura, arrependido? É verdade o que acabo de ouvir? Volta à Roma Otávia?
NERO Sim.
SÊNECA Finalmente tiveste dela compaixão?...
NERO Compaixão?... É verdade, tive.
SÊNECA E virá ela de novo partilhar com vosso o leito e o trono?...
NERO Dentro em pouco voltará ela ao meu palácio; e então saberás para que volta. Oh! Sêneca, tu, sábio entre os sábios; tu, que já foste meu ministro e meu guia em circunstâncias mais críticas e mais melindrosas; não te mostrarás hoje contrário ao que foste outrora.
SÊNECA Tens por costume pedir inutilmente conselhos quando já tomaste cruéis resoluções. Não conheço quais sejam teus pensamentos; mas tremo por Otávia ouvindo as tuas palavras.
NERO Dize-me: tremeste porventura naquele dia em que meu irmão caía morto, vítima de um crime necessário? E no dia em que proferiste a sentença de minha orgulhosa mãe, tua cruel inimiga, tremeste porventura?
SÊNECA Que escuto?... Como ousas recordar estas cenas infames e execrandas? Não, eu não tingi minhas mãos nesse sangue que era também teu, tu, sim; o bebeste! Calei-me, é certo; calei-me obrigado. Foi criminoso meu silêncio, nem poderei jamais expiar um tal crime. Louco! Acreditei que Nero ficasse farto de sangue depois de ter derramado o de sua própria mãe! Hoje conheço que ali apenas começavam as atrocidades. Quando cometes um novo crime, não sei porque, cobres-me de dádivas odiosas, de favores que me pesão na consciência. Tu me obrigas a aceitá-la e o povo, que isto presencia, diz que essas dádivas são o preço do sangue derramado. Ah! Eu as entrego-te, toma-os e deixa-me que conserve a estima de mim próprio.
NERO Eu a deixo-te; conserva-a, se é que ainda possuis. Pregas moral e virtude como homem de experiência, mas bem sabes que não convém sempre seguir seus ditames. Se querias conservar intacta a reputação, se querias conservar o coração imaculado, por que trocaste o obscuro lar paterno pelo esplendor da corte? Bem o vês; eu, que não sou estoico, ensino te as regras do estoicismo, e entretanto tudo quanto sei a ti o devo. Se, pois, demorando-te por tua própria vontade nesta corte, arriscaste a primitiva candura, se perdeste o nome de homem honrado, nome este que nunca mais se recupera, auxilia-me agora; sei que o podes. Já desculpaste meus erros passados, continua. Dá mais branda cor aos meus atos, louvaos. A tua opinião é aqui respeitada, o povo te julga menos culpado do que os outros; acredita que tens sobre mim grande influência. Estás, enfim, tão intimamente ligado à minha corte, que partilhas das censuras que me são dirigidas.
SÊNECA Agrada-te, bem o sei, que outrem pareça mais culpado do que tu; o crime repartido pesa-te menos na consciência. E eu inocente, como o sabes, carrego com o castigo dos teus crimes; sobre mim recaem as consequências do modo porque reinas; sou, enfim, odiado por todos. Qual será a nova infâmia cuja execução me reservas, para aumentar ainda...
NERO Cumpre que destruas no coração do povo o amor que ele consagra a Otávia.
SÊNECA Não se destroem facilmente as afeições de um povo, não são como as tuas, senhor; o povo não sabe fingir.
NERO Quando é preciso, o sábio muda de parecer e de linguagem; e tu és sábio. Vai, aproveitar-me-ei de teus conselhos no dia em que possa dizer que o império é só meu. Por enquanto sou eu senhor; o teu dever é executar as minhas ordens; agora sou eu o mestre e tu o discípulo; mostra-te, pois, dócil. Não te ameaço com a morte, bem sei que ela não te assusta; mas o nome de que ainda gozas, a consideração que te rodeia, tudo isso depende de mim. Posso destruir tudo. Cala-te, pois, e faze o que mando; vai.
SÊNECA Acabo de ouvir as tuas ordens tirânicas, odiosas e sanguinárias; mas esperarei os acontecimentos quaisquer que eles possam ser: Todo o auxílio de minha parte seria inútil para os teus projetos, e eu ainda mais criminoso. Pois que! Nero já não basta para derramar sangue? Quem o crera?!
CENA II
NERO Vai, soberbo estoico, de uma vez porei termo à tua vida e a esta virtude que alardeias. Até hoje tenho te punido cobrindo-te de dons, mas no dia em que te houver rebaixado e reduzido à condição dos mais vis e desprezíveis dentre os homens, então te darei a morte. Que vale este meu poder soberano, imenso, absoluto, quando tantas dificuldades me contrariam? Odeio Otávia, amo Popeia mais do que posso dizê-lo; e terei de ocultar este amor e este ódio? O que não proíbem as leis ao mais vil de meus escravos, proibir-me-ão a mim, Nero, as murmurações do povo?
CENA III Nero e Popeia.
POPEIA Poderoso senhor, por cujo amor só vivo! Por que sempre pensativo foges para longe de mim, e me deixas entregue a cruéis angústias? Pois que, não será possível que esta minha afeição te dê alguns momentos de alegria?
NERO É justamente o teu amor que me afasta de ti algumas vezes, Popeia, nada mais. Sofri longo tempo, venci muitas dificuldades antes de conquistar teu coração; agora devo esforçar-me por conservá-lo; bem sabes que até à custa do próprio trono quero que sejas sempre minha.
POPEIA E quem poderá tirar-me de teu poder se não tu mesmo? A tua vontade, um gesto teu dão a lei em Roma. Em troca do meu amor deste-me o teu; podes tirá-lo, é certo, mas eu não sobreviverei a tamanha perda.
NERO Quem poderá separar-me de ti? Nem o próprio céu! Entretanto apareceu entre o povo criminosa agitação, ainda não acalmada: ousam censurar as minhas afeições, e vejo-me obrigado a prevenir...
POPEIA E que te importa a grita do povo?
NERO Espero mostrar em breve o caso que dela faço; mas não quero deixar erguida uma só cabeça dessa hidra furiosa; rolará, pelo chão a última em que Roma baseia sua esperança, e ao mesmo tempo cairá abatida, muda, despedaçada, esta plebe orgulhosa. Roma ainda não me conhece, arrancar-lhe-ei do coração seus antigos e loucos prejuízos de liberdade. Otávia é a última descendente dos Cláudios, seu nome está na boca de todos, chorão a sua sorte porque me odeiam, não porque a amem: no coração do povo não há lugar para o amor; mas a plebe insolente recorda-se saudosa da fraqueza do reinado de Cláudio, inepto, e suspira pela licença de que hoje não pode gozar.
POPEIA É certo; Roma não sabe conservar-se calada; mas o que puderam fazer hoje os Romanos mais do que murmurar; porventura os temes?
NERO Escolhi mal o lugar para exílio de Otávia; é ameno demais, e pouco prudente seria conservá-la ali. Está nas vizinhanças da Campânia o exército, onde ainda se conserva memória de Agripina. No coração dos soldados agita-se ainda o espírito de revolta; pérfidos, fingem-se doidos pela sorte da filha de Cláudio; criminosa esperança ainda está enraizada em seus peitos. Fiz mal em escolher para seu degredo tal lugar, e maior imprudência seria conservá-la ali.
POPEIA Por que motivo esta mulher merece tanta solicitude? Por que não a envias para os confins do teu vasto império? Qual será o degredo mais seguro? Qual a praia deserta e remota que mais longe de ti conservará esta mulher que ousa gabar-se de te ter dado o trono?
NERO Para que eu possa tirar-lhe a força e o poder de ser-me nociva nenhum lugar é mais próprio do que Roma, e em Roma o meu palácio.
POPEIA Que ouço? Otávia volta para Roma?
NERO Deixa-me explicar-te o motivo...
POPEIA O que será de mim?... Ela...
NERO Escuta-me!...
POPEIA Entendo... adivinho tudo... serei em breve repelida, expulsa...
NERO Escuta-me!... Não é para teu mal que Otávia volta a Roma; será antes em seu dano esse regresso.
POPEIA Talvez o seja para o teu. No entanto ouve: Otávia e eu não pudemos viver juntas, nem um só momento, nem no mesmo palácio, nem na mesma cidade. Volte pois, a Roma a mulher que elevou Nero ao trono do mundo; volte para daí expeli-lo. É por tua causa que me aflijo e não por mim; eu estou pronta a voltar para junto do meu fiel Óton; amou-me tanto!... deve amar-me ainda; e pudesse eu recompensar tão constante afeição! Mas, não, no coração de Popeia não cabem dois amores, nem quer ela um coração partido, não quer partilhar com uma odiada rival o teu amor. Não me seduziu o esplendor do trono, mas tu somente. Ah! ainda me seduz; o amor que tanta ventura me dava, não era o do poderoso senhor do mundo, mais sim o do meu querido Nero; se me tirares agora uma parte dessa afeição, se eu não reinar como única soberana, então nada quererei, cederei tudo. Ah! mísera, que não possa eu arrancar de meu coração a tua imagem tão facilmente como o fazes comigo!
NERO Eu te amo, Popeia, bem o sabes; prova-o tudo quanto por ti tenho feito e o que ainda tenciono fazer; mas tu...
POPEIA O que queres que eu faça? Poderei viver vendo a teu lado essa mulher que odeio? Poderei deixar de pensar em ti? Oh! indigna! que não pode, não sabe, não quer amar a Nero e ousa fingir que o ama!
NERO Tranquiliza-te, põe de parte os receios e os zelos; mas respeita por algum tempo ainda a minha vontade. É necessário que Otávia volte agora a Roma; já moveu os primeiros passos; amanhã aqui deve chegar. Assim o exigem o teu sossego e o meu; tal é a minha vontade e não estou habituado a que se oponham aos meus desígnios. Nem me satisfaz, senhora, esse amor que me ofereces, calmo e sem receios. Quem mais me teme e melhor me obedece, sabe-o, é quem mais me ama.
POPEIA O receio de perder-te tornou-me por demais ousada. Mas, que maior mal me poderás fazer do que privar-me do teu amor? Ah! tira-me antes a vida; menor será meu sofrimento.
NERO Basta, Popeia, confia em meu amor, nem receies que se abale a minha constância; mas nunca te oponhas à minha vontade. Odeio, mais que tu mesma, essa mulher a quem chamas de rival. Apenas eu conseguir separá-la de seus turbulentos amigos, vê-la-ás cercada pelos meus guardas; não terás nela uma rival, mas antes uma vil escrava, e dentro em pouco, ou eu nada sei da arte de reinar, ou ela própria te dará a coroa.
ATO II
CENA I Popeia, Tigelino.
POPEIA Corremos hoje o mesmo perigo, Tigelino; devemos pois procurar um mesmo asilo.
TIGELINO O que podes recear da parte de Otávia?
POPEIA Quanto à beleza nada temo; a rainha sempre prevalecerá aos olhos de Nero; temo, sim, o seu fingido amor, a sua dissimulada meiguice; temo os ardis e a eloquência de Sêneca, a grita da plebe e o remorso do próprio Nero.
TIGELINO Ama-te ele há tanto tempo e ainda não o conheces? Ele só sente remorsos de não ter feito maiores males. Fica certa de que, se chama Otávia a Roma, é só com o fim de tirar dela completa vingança. Deixa-me despertar-lhe o ódio inato e profundo que em seu coração se une ao rancor que vota à esposa. É este o asilo que devemos buscar ante o perigo que corremos.
POPEIA Estás tranquilo, eu, porém, não me julgo segura, mas a franqueza com que falas convida-me à franqueza. Bem conheço Nero, bem sei que nele o remorso nada pode; mas o medo, dize, não tem grande influência sobre seu espírito? Quem não o viu trêmulo junto da mãe que odiava? Amava-me ele já então loucamente e no entanto ousou porventura dar-me a mão de esposo enquanto ela foi viva? Não bastava a presença silenciosa de Burro para o fazer tremer! Enfim o próprio Sêneca, sem poder e sem influência, não o intimida às vezes com suas palavras vãs? São estes os únicos remorsos de que o julgo capaz. Ajunta a isso as murmurações e as ameaças dos romanos...
TIGELINO Tudo isto só servirá para arrastar Otávia ao laço onde já caíram, Agripina, Burro e tantos outros. Se desejas a morte de tua rival, deixa que novo terror aumente no corarão de Nero o medo antigo. Ele ainda não manifestou todo o sou pensamento, mas eu sei que nada há que tanto o domine como a sua pusilanimidade. Roma, pedindo o regresso de Otávia, pronunciou a sentença de morte da própria Otávia.
POPEIA É certo; mas, se ela conseguir reconquistar por um momento só a antiga influência...
TIGELINO Não, não o receies; Otávia não conhece o caminho que vai ter ao coração de Nero; sua virtude austera irrita o espírito do esposo; sua obediência, seu amor, sua timidez desagradam-lhe igualmente; Nero detesta em Otávia todos estes meios de sedução que a nós tanto aproveitam. Fala, o que deverei fazer?
POPEIA Emprega toda a tua perspicácia em saber o que se passa e todo o zelo em dizer-me; cumpre prever tudo; tornar Otávia ainda mais desprezível; descobrir mil meios de perdê-la e lembrá-los a Nero; inventar crimes de que ela nem sequer tenha ideia; desenvolver toda a astúcia de que és capaz; ir, vir, ocupar o espírito do imperador, enganá-lo, cegá-lo e estar sempre alerta. Eis aqui o que te cumpre fazer.
TIGELINO Assim o farei, mas creio que os projetos de Nero já estão assentados. Fica certa de que ele não precisa de lições para exercer vinganças e bem sabes que lhe exacerba a cólera quem quer mostrar que sabe tanto como ele.
POPEIA Tudo o irrita, bem o sei; ainda há pouco o excesso de meu amor excitou-lhe o furor; já não era o amante quem falava, mas sim o feroz senhor que ordenava do alto do trono.
TIGELINO Não o provoques jamais. Tens grande influência sobre seu coração; mas a cólera impetuosa, a embriaguez do poder e a sede feroz de vingança dominam no mais facilmente do que o faz o amor. Afastate daqui, é esta a hora em que ele tem por costume vir falar-me; confia em mim.
POPEIA Juro-te, que, se me servires agora, ninguém terá, mais do que tu, poder e influência junto de Nero.
CENA II
TIGELINO É verdade que se Otávia triunfasse, a nossa desgraça seria certa; mas eu gozo da confiança de Nero. Seu ódio é tão feroz e a inocência de Otávia tão completa, que ela não pode evitar sua triste sorte. Cumpre-me, entretanto, mostrar-me hábil; disfarçar seus terrores com o nome de prudência e dizer-lhe que a justiça é mais criminosa que a vingança. Senhor do mundo, tens em mim teu senhor, único, absoluto: eu só posso despertar-te na alma o terror ou dissipá-lo. Desgraçado de mim, se o medo não tivesse influência sobre a tua alma! É este o único meio que me resta para impelir-te ao mal; e quem poderia deter teus passos e dirigir-te para o bem?
CENA III Nero, Tigelino.
TIGELINO Ah! senhor, por que não chegaste mais cedo? Ouvirias ainda os soluços de uma mulher que te ama loucamente. A dúvida, o receio, o amor travam luta medonha no coração sensível e fiel de Popeia. Por que assim afliges quem te adora?
NERO Alucinada por injustos ciúmes, Popeia desconhece a verdade; a ela só amo.
TIGELINO Isto mesmo acabo de dizer-lhe; mas quem poderá melhor abrandar as angústias de um coração repleto de zelos do que o amante adorado? Oculta junto dela a terrível majestade que brilha em teu semblante. Um gesto, um sorriso, um olhar teu podem acalmar a tormenta que agita aquele coração. Ousei jurar-lhe em teu nome que nunca tiveste tenção de abandoná-la; que fora para altos fins, de mim desconhecidos, que chamaste Otávia a Roma, mas que o seu regresso não seria um mal para Popeia.
NERO Fiel intérprete de meus sentimentos, disseste-lhe a verdade. Já eu lhe fizera igual juramento, mais ela foi surda a meus protestos. O dia, que agora começa, não se acabará sem que o destino de Otávia esteja decidido e desta vez para sempre.
TIGELINO E eu espero que haverá tranquilidade, se quiseres patentear ao povo quanto Otávia é criminosa.
NERO Incorreu ela no meu ódio; queres maior crime? Mas, é porventura preciso que eu motive a minha vontade?
TIGELINO Demais! Ainda não pudeste reduzir este povo ímpio à degradação que ele tanto merece. Conservou-se silencioso, é certo, em face das fogueiras de Agripina e de Cláudio; calou-se ainda ao ver a de Britânico; entretanto hoje deplora a sorte de Otávia e atreve-se a murmurar. Patenteia-lhe os crimes de Otávia e a plebe emudecerá.
NERO Nunca amei esta mulher; pelo contrário, aborreci-a sempre; ela teve a audácia de chorar por seu irmão; vi-a obedecer cegamente à cruel Agripina; mais de uma vez tem repetido o nome de seus antepassados que empunharam o cetro; cada um destes atos é um crime e tanto me basta para julgá-la digna de castigo. Sua sentença está lavrada! Chegue ela, e minha vontade será feita. Roma saberá que Otávia deixou de viver; são estas as contas que de minhas ações devo aos Romanos.
TIGELINO Senhor, tremo por ti. Não é prudente afrontar a plebe enfurecida. Se podes infligir a essa mulher justo castigo, por que queres que ela pareça vítima de tua vontade absoluta? Não fora melhor desvendar os seus maiores delitos, mostrá-la ao povo criminosa como ela é, enquanto a julgam inocente?
NERO Cometeu ela porventura outros crimes... e maiores?
TIGELINO Ninguém ousou ainda revelar-te; mas deverei calar-me por mais tempo, agora que, repudiada por ti, e com razão, ela não é mais tua esposa? Essa mulher indigna estava ainda em teu palácio, partilhava contigo o leito e o trono, usurpava as homenagens devidas à imperatriz, e já se rebaixara mais do que o faria a mulher mais vil e criminosa; já resolvera esquecer seu ilustre sangue, sua honra, a dignidade própria e a de seus avós, junto de um miserável citarista, para quem voltava olhares amorosos.
NERO Que infâmia! que audácia!
TIGELINO O escravo Eucero tocara-lhe o coração; daí a calma com que suportou o repúdio, o desterro, tudo! Eucero compensava-lhe amplamente a perda de Nero: companheiro inseparável, fazia-lhe esquecer o desterro... Desterro? digo mal. Ameno refúgio os seus criminosos amores encontraram na tranquila Campânia. Ali, reclinada na relva, entre flores, à margem de um brando regato, ela escutava os sons suaves que a destra imbele de seu amante tirava da cítara e aos quais se casava o seu canto: ali não invejava ela as perdidas honras nem a anterior posição.
NERO Filha de Messalina, ela não podia desmentir o sangue de que nasceu. Mas, dize, será possível provar o que acabas do contar-me?
TIGELINO Muitas de suas criadas sabem os pormenores deste caso; e os contaram quando forem interrogadas. Eu não te revelaria este segredo, se Otávia tivesse em algum tempo possuído o teu amor. Mas que digo? louco! se ele merecesse a tua afeição, ter-te-ia jamais ultrajado assim? nem se quer lhe ocorreria tal pensamento. Razões políticas, contra a tua vontade, deram-te Otávia por esposa: ela conheceu que não era digna de ti e rebaixou seu coração vil em vis amores.
NERO Receio expor a luz infamante tão obscuro crime!...
TIGELINO A infâmia é só de quem cometeu o delito.
NERO É certo.
TIGELINO Tenha cada um a paga merecida; ela a de ré, tu a de justiceiro, e o podes ser sem perigo.
NERO Tens razão no que dizes; faze, pois, o que resolveste e sem demora.
CENA IV Nero, Tigelino e Sêneca.
SÊNECA Senhor, já Otávia transpôs os umbrais de teu palácio; se é infausta ou grata a notícia que te trago, não sei. Ninguém quis disputar-me a preferência em dar-te esta nova; o que me parece triste presságio.
NERO Vai, Tigelino, executa as minhas ordens, e tu volta pelo mesmo caminho por onde vieste; vai ao encontro de Otávia e dize-lhe que aqui estou só e que a espero também só.
CENA V
NERO É assaz culpada Otávia; posso duvidar de seus crimes? Lamento só que não fosse eu o primeiro a quem ocorresse a ideia de acusá-la. Será possível que Nero precise aprender com outrem os meios de derrubar seus inimigos? Mas aproxima-se o dia em que, para livrarme de quantos aborreço, bastar-me há fazer um gesto do alto do meu trono.
CENA VI Nero, Otávia.
OTÁVIA Por entre os horrores de uma noite tenebrosa, rodeada de soldados armados, sou arrastada a este mesmo palácio, de onde, há dois meses, fui expelida à viva força. Ser-me-á lícito perguntar ao meu senhor a razão desta mudança?
NERO Para altos fins nossos pais ligaram-nos pelo laço do casamento desde os mais tenros anos. Sempre porém, tuas palavras e tuas ações contrariam a minha vontade; tolerei tudo isto por tempo longo demais; e ainda o suportaria, se ao menos me houvesses dado real descendência, numerosa e bela, que me servisse de consolo a tantos desgostos. Debalde o esperei: eras planta estéril; o trono ficava sem herdeiros por culpa tua, e o doce nome de pai me era negado; por isso te repudiei.
OTÁVIA Fizeste bem. Se é certo que encontraste outra esposa, que mais feliz do que eu fui, pode dar-te numerosos filhos a quem ames e assim tornar-te alegre a vida. Outra que te ame tanto como eu, bem sei que não encontraste ainda, nem encontrarás jamais. Mas que fiz eu? Opus-me porventura à tua vontade? Vendo-te nos braços de outra, chorei, é certo, e choro ainda; mas ouviu alguém de mim jamais palavras de censura, ou apenas foi meu pranto silencioso, meus gemidos e suspiros abafados pelo respeito?
NERO Tens muita doçura nos lábios, mas não tanta no coração; adivinha-se em tuas palavras o fel oculto; mal disfarças o ódio que tens a Popeia, bem como a ambiciosa recordação de pretendidos direitos.
OTÁVIA Oh! pudesses esquecer, como eu esqueço, esses meus direitos assaz legítimos pois que sofro por eles tantas desgraças!... O ódio e o furor brilham em teus olhares!... Mísera! Bem conheço que me odeias mais do que pudera um marido odiar consorte estéril. Infeliz, tanto mais te ofendi, tanto mais te amei! Mas o que te pedi eu? O que te peço hoje? apenas uma vida obscura, solitária e liberdade para chorar!...
NERO E eu, certo de que te contentarias com essa existência obscura, te havia concedido; mas depois...
OTÁVIA Mas depois te arrependeste e tiveste remorsos de não me haveres tornado bastante infeliz. Quiseste que eu fosse testemunha de tuas novas afeições; quiseste tornar-me escrava de tua nova esposa, quiseste que eu fosse ludibrio do mundo e objeto de desprezo para tua corte. Aqui estou, obediente ao gesto do meu senhor; o que devo agora fazer? Ordena. Mas na tua mesma corte não me poderás tornar inteiramente infeliz, se a minha desgraça te der alguma alegria. Responde-me, estás satisfeito? Reina a tranquilidade em tua alma? Entre os braços da nova esposa gozas do sono calmo que tiras aos outros? Esta Popeia, a quem não privaste de um irmão, torna-te porventura mais feliz do que eu o fiz?
NERO Nunca soubeste avaliar o coração do senhor do mundo; sabe-o Popeia.
OTÁVIA A Popeia agrada o esplendor do trono, para o qual ela não nasceu; a mim agradas-me tu só. Não tentes comparar o meu amor ao dela. Possui ela o teu afeto, mas só eu o merecia.
NERO Não, não podes amar-me.
OTÁVIA Dize antes que o não devera; mas pelo teu não julgueis do meu coração. Bem sei que o meu nascimento me privará eternamente do teu amor; bem sei que tua imagem manchada com o sangue de meus parentes não devera ser acolhida em meu coração, mas a força do destino obriga. E se eu me esqueço de meu irmão e de meu pai, mortos por ti, como ousas acusar-me em nome desse irmão desse pai?
NERO O crime de que te acuso é o que cometeste com Eucero vil.
OTÁVIA Com Eucero!... eu?...
NERO Sim, é ele o amante digno de ti.
OTÁVIA Ah! justo céu! tu o ouves?...
NERO Houve quem ousasse acusar-te de impudico amor com ele; por isto só de novo te chamei a Roma. Prepara-te, pois, para desmentir tal acusação, ou para receber o merecido castigo.
OTÁVIA Oh! quanta maldade! que horrendo trama! Onde está o meu iníquo acusador?... Ai de mim! Louca, o que procuro? É Nero o acusador, o juiz e o próprio algoz!
NERO É assim o teu amor! Dá expansão a todo o ódio que tens no coração, se é certo que ele ainda não transbordou todo, depois que descobri as tuas secretas infâmias.
OTÁVIA Ai de mim!... O que mais me resta?... Não me bastava ter sido expelida do leito nupcial, do trono, do palácio, e até de minha pátria?... Oh! céu! só a minha reputação permanecia intacta; e isto me compensava todos os bens de que fui privada... um dote tão precioso era-me debalde invejado por aquela que já o não possui; agora esse mesmo querem roubar-me antes que me privem da vida? O que te detém, oh! Nero? Não poderás viver tranquilo, bem o sabes (se a tranquilidade cabe em tua alma), enquanto eu existir... Faltarte-ão porventura meios de assassinar uma mulher fraca e desarmada? Ordena que eu seja encerrada nas profundas masmorras deste palácio, funesto asilo da traição e da morte, e ali manda que me tirem a vida. Ou antes, por que com a própria mão não me assassinas?... Minha morte não só te dará prazer, sei que ela é já necessária! Só ela te satisfará. Já te perdoei o assassínio de meus parentes, agora te perdoo de antemão o meu próprio: mata, reina, mata ainda, sempre! Conheces os sangrentos caminhos do crime... Roma está habituada a colorir os teus atos de vingança... O que podes temer? Comigo se extinguirá a raça dos Cláudios, e acabará assim o amor e a lembrança do povo por ela... Os deuses estão já acostumados ao fumo do teu incenso sanguinário; pendem nos templos sinais evidentes, horríveis ofertas de cada um de teus crimes!... são estes os teus troféus; são teus triunfos ocultos assassinatos!... Baste minha morte para aplacar-te o furor... Por que cobrir-me de nodoa infamante, quando eu não fujo à morte?
NERO Para tua defesa concedo-te inteiro o dia de hoje; folgarei se não fores culpada. Nada receies do meu ódio, mas sim da enormidade do crime que cometeste.
CENA VII
OTÁVIA Mísera!... Nero cruel, sempre banhado em sangue, e sempre de sangue sequioso!...
ATO III
CENA I Otávia, Sêneca.
OTÁVIA Vem, ó Sêneca, vem, seja-me lícito ao menos chorar contigo; já não me resta outra pessoa com quem possa desafogar meus sentimentos.
SÊNECA Será possível, senhora? Que uma falsa e infame acusação...
OTÁVIA Tudo eu esperava de Nero, mas nunca este derradeiro ultraje, que por si só excede tudo quanto tenho sofrido até agora.
SÊNECA Mas, não passa de loucura acusar-te de crime tão infame; a ti, modelo vivo de amor e de fidelidade, a ti tão boa, tão modesta, tão piedosa, a ti que, não obstante, o laço que te prendia a Nero, te conservaste pura; será possível que manchem tua reputação? Não, assim, não acontecerá; eu o espero. Ainda estou vivo, eu que fui testemunha de todas as tuas virtudes... Roma me ouvirá proclamar tua inocência enquanto me restar um sopro de vida. Qual será o coração empedernido que de ti não terá compaixão? Ah! é inútil que contes teus sofrimentos, nem contá-los saberias... Eu sinto e partilho tuas dores.
OTÁVIA É em vão que esperas, Sêneca; Nero não ficará satisfeito enquanto não houver manchado o meu nome. Tudo aqui se curva à sua vontade: tu mesmo, te perderias e de balde. Ah! é por ti que eu tremo. É certo que defendem teu nome conhecidas virtudes. Ah! porque não acontece assim comigo! Mas sou jovem, sou mulher e cresci, fui educada no meio de uma corte corrompida... Oh! céu! E podem julgar-me ré do crime vil que me imputam! Ninguém acredita, ninguém pode acreditar que eu tenha conservado no coração o antigo amor que consagrava a Nero. E entretanto, sabe que o meu coração espezinhado mil vezes e de mil maneiras, não sente maior dor de que a de vê-lo amar outra mulher.
SÊNECA Nero ainda me conserva a vida; porque o faz, não sei; ignoro porque se afasta de mim sorte igual à de Burro e de alguns outros poucos virtuosos; mas, posto que demore o momento da vingança, sei que escreveu meu nome no seu livro de morte. Eu com minhas próprias mãos já teria posto fim a meus dias, se não me contivesse uma esperança (esperança ilusória!) de chamá-lo novamente ao caminho do bem. Espero entretanto que me seja dado, antes de morrer, arrancar de suas mãos um inocente... Se fosses tu, se eu pudesse ao menos poupar-te a infâmia... oh! morreria feliz.
OTÁVIA Ao entrar de novo neste palácio, perdi a esperança de viver mais tempo. Não penses que eu não receie a morte; débil mulher, como poderia eu ter tal coragem? Temo-a, é certo, e no entanto chamo-a de todo o coração, e, entre gemidos, volto os olhos para ti, meu mestre, que tão bem ensinas a morrer!
SÊNECA Ah! cala-te; assim me despedaças o coração... Ai de mim!...
OTÁVIA Tu só podes salvar-me, pelo menos da infâmia! E vê quem me acusa... É ela, Popeia, quem me exprobra semelhantes amores!
SÊNECA Ó digna esposa do feroz Nero!
OTÁVIA Não é a virtude decerto que mais agrada a Nero; o gesto desenvolto, a audácia são o jugo que a domina; a ternura, a meiguice, parecemlhe fastidiosas... Oh! quanto não fiz por agradar-lhe! Seus menores desejos eram leis para mim, sua vontade foi-me sempre sagrada. Chorei ocultamente a morte de meu irmão, se não felicitei Nero por este crime, também não ousei lança-los em rosto. Chorei longe dele; em sua presença calei-me. Fingi acreditar que não fora ele quem derramara o sangue dos meus: foi tudo em vão... O meu cruel destino quer que eu lhe desagrade sempre!
SÊNECA Porventura Nero poderia jamais amar-te, a ti que não és ímpia nem cruel? Mas deixemos isto de parte, tranquiliza o espírito. Já vem rompendo o dia. O povo, apenas souber que estás de volta, quererá ver-te e dar-te provas de sua afeição; espero muito dele. Suas murmurações eram já violentas quando partiste, nem cessaram durante a tua curta ausência. Nero é iníquo, mas é ainda mais cobarde; não ousa realizar todos os seus desejos porque sempre teme o povo. É cruel e orgulhoso, mas não se julga ainda bem seguro no trono; virá um dia em que...
OTÁVIA Que tumulto é este? que escuto?
SÊNECA Parece ser o povo de Roma...
OTÁVIA Oh! céu, aproxima-se deste palácio...
SÊNECA Ouço os gritos do povo em revolta.
OTÁVIA Ai de mim! o que terá acontecido!...
SÊNECA Nada receies; nós somos os únicos que estamos seguros neste palácio indigno.
OTÁVIA Cresce o tumulto. Ah! infeliz! talvez que Nero esteja em perigo... Mas que vejo?...
SÊNECA É Nero; ei-lo que para aqui se encaminha.
OTÁVIA Oh! quanta cólera brilha no seu olhar feroz! Eu tremo!...
CENA II Nero, Otávia e Sêneca.
NERO Quem és tu, quem és tu mulher pérfida, cuja volta provoca perturbações no povo de Roma e cujo nome ele ousa aclamar?... O que fazias aqui? O que planejavas com este réu, este traidor? Estás ambos em meu poder. Em vão o povo insensato reclama a tua presença. Ah! se tiver de mostrar-te à plebe, espero mostrar-te morta como mereces.
OTÁVIA Faze de mim, ó Nero, o que quiseres, mas, crê, sou inocente, não tive parte na revolta popular. Ao povo, juro, nada peço, nada dele espero; mas, já que contra minha vontade vos fiz mal, castiga meu crime involuntário.
NERO Antes de punir-te, quero que todos saibam quanto és criminosa.
SÊNECA Esperas iludir o povo com mentiras tão torpes?
NERO Tu também, cobarde instigador de revoltas, que aqui te escondes, chefe ignorado do tumulto popular, sentirás um dia o peso da minha cólera e da minha vingança.
CENA III Tigelino, Otávia, Nero e Sêneca.
TIGELINO Senhor...
NERO Que novas trazes, Tigelino, fala.
TIGELINO A revolta cresce de minuto em minuto; o único recurso agora é a tua presença. O povo, apenas soube que por ordem inesperada Otávia voltara a Roma, quis imediatamente vê-la. Julga, ignorante, que mudaste de opinião; há quem afirme que Otávia partilha de novo o leito imperial. Alguns correm ao Capitólio, e ali manifestam sua alegria e os votos que por ela fazem; outros coroam de louro triunfal as estátuas de Otávia, há tanto tempo abandonadas; outros, ébrios de prazer, derribam as estátuas de Popeia; outros, enfim, mais que audazes, arrastam-nas pelas ruas, gritando, amaldiçoando-a. Por toda a parte ouvem-se contra Popeia acusações infames; cobrem-na de ridículo; entoam louvores a Nero, mas querem que, pelo menos, Popeia seja expulsa de Roma; os mais temerários ousam em gritos pedir a sua morte. Ouves daqui os cantos de alegria, depois as ameaças, depois as súplicas. Reina por toda a parte a agitação; ninguém quer mais obedecer. Os soldados e os chefes debalde se esforçam por opor um dique à multidão furiosa, debalde; o povo rompe as fileiras da tropa, espalha em torno a confusão; já houve mortes; cumpre não perder um momento. O que deverei fazer? O que ordenas, Senhor?
NERO O que fazer?... Mostre-se Otávia ao povo, mostre-se já... e depois, morra.
OTÁVIA Eis o meu peito inerme, fere, se o queres, contanto que minha morte te aproveite... Mostra-me moribunda ao povo revoltado; acalmar-seá logo essa criminosa alegria. Só peço uma graça: sejam as minhas cinzas guardadas na mesma urna que encerra as de Britânico. O nosso túmulo servirá de base inabalável ao trono de Nero. O que te detém? tira-me a vida, e cesse o teu furor.
SÊNECA Se queres, ó Nero, perder ao mesmo tempo o trono e a vida, o meio é certo: manda assassinar Otávia.
NERO Hei de vingar-me, quaisquer que sejam as consequências do meu ato.
OTÁVIA Oh! quero antes sofrer mil mortes do que expor Nero ao menor perigo.
TIGELINO O tempo urge. Não ouves estes gritos furiosos? Nunca vi o povo possuído de tanta cólera; tanto mais devemos temê-lo, quanto mais o arrebata a alegria. Cumpre tomar já uma decisão.
OTÁVIA Por que hesitas, Nero? Para aplacar o povo, deves escolher entre estes dois extremos: matar-me, ou dar-me o teu amor. Nunca pudeste fingir que me amavas; concede me ao menos a morte que desejo ardentemente. Ilude este povo crédulo, cujo furor se acalmará em breve; o povo é sempre inconstante. Permite somente que eu me apresente a ele com semblante tranquilo, como se houvesse recuperado a tua afeição; saberei dissimular. Deste modo os grupos se dispersarão, cessará o tumulto, reinará de novo a ordem e terás então tempo para desembainhar a espada e degolar a vítima.
NERO Sim, mostrar-te-ei aos Romanos; mas antes quero saber se sou ou não senhor em Roma. Vai, Tigelino, corre ao acampamento, reúne em segredo os pretorianos, cai de surpresa sobre os audaciosos rebeldes, e, por onde passares, vai espalhando a morte.
TIGELINO Farei como o ordenas; mas o resultado é incerto. Parecerá cruel punir com a morte manifestações de alegria. E, se crescer o furor do povo? Ele é inconstante, bem sabes, da alegria passa facilmente a cólera; é difícil resistir a uma cidade inteira. Se formos vencidos, eu e os meus soldados, quem te defenderá?
NERO Tens razão... Mas, se eu ceder, puderam pensar que...
TIGELINO Confia em mim, senhor; não transformes um perigo momentâneo em grave mal; a tua presença bastará por si só para acalmar o povo.
NERO Eu... fico aqui para guardar Otávia. Vai tu, fala-lhe em meu nome, mostra-te em meu lugar; bem sabes o que seja o povo, é perigoso contemporizar com ele. Faze o que for conveniente: dissimula promete, concede, ilude-o, mata, se for preciso; lança mão do ouro, do terror, do ferro, das palavras enganadoras, contato que triunfos. Vai, voa, e volta.
CENA IV Nero, Otávia e Sêneca.
NERO Desgraçado de ti, Sêneca, se tentares sair deste palácio!... Mas afastate de mim... Não quero ver-te. Podes fazer votos por tua felicidade; espera, deseja, mas o teu dia se aproxima.
SÊNECA Eu o espero.
CENA V Nero e Otávia.
NERO Quanto a ti, fica certa de que é este o último triunfo que alcanças; goza-o, pois em breve...
OTÁVIA Dia virá, mas já tarde, em que conhecerás melhor Otávia.
CENA VI Popeia, Nero e Otávia.
POPEIA Dize-me, Nero, colocaste-me no trono a teu lado para que de mim zombasse a plebe insolente?... Mas que vejo?... em quanto me acabrunham de ultrajes, silencioso aí ficas sem me vingares junto dessa que é a causa de todas as desgraças! Será, pois, verdade que Nero é o senhor do mundo, quando o povo lhe impõe uma esposa?
OTÁVIA Tu única possuis o coração de Nero: que temes pois? Eu, vil prisioneira, sou apenas obstáculo à audácia do povo. Alegra-te, pois, põe de parte os cuidados; tuas lágrimas preciosas secarão em breve, quando vires correr em ondas o meu sangue.
NERO Dentro em pouco Roma inteira saberá da tua infâmia, e conhecerá quão indigno era o ídolo por ela escolhido. Os ultrajes, que te atiraram às mãos cheias, Popeia, transformar-se-ão em louvores; às homenagens, que a ela prestaram, substituirá o opróbrio.
OTÁVIA Se alguém tentasse convencer-me do crime infame de que me acusam com provas vãs, a ti só, Popeia, quisera eu por meu juiz. Tu sabes o que seja mudar a cada instante de amor, e sabes também qual a recompensa que merece quem de tal crime se torna ré. Mas a vossos olhos bem sei que sou inocente. Por que tu, que tens tanto orgulho da tua virtude, não ousas encarar-me?
NERO Que te atreves dizer? Respeita a esposa de teu senhor, treme...
POPEIA Deixa que ela fale; bem faz em escolher-me para juiz; onde acharia outro mais indulgente? E que melhor castigo poderia eu infligir aquela que traiu o amor de Nero, do que a perda desse amor? Haverá porventura pena mais suave? Logo que eu houver provado a existência da paixão infame, que debalde buscas esconder, tornarei público teu crime; amante indigna de Eucero, quero que sejas sua esposa.
OTÁVIA O escravo Eucero é aqui o véu que cobre uma iniquidade mais vil do que ele próprio. Mas recuso discutir contigo, não nasci para descer tão baixo, não sou, como tu, audaz...
NERO Com quem ousas comparar-te? A chama adúltera, em que ardes, põe-te abaixo da mais vil escrava; caíste da alta posição onde te colocara o nascimento.
OTÁVIA Não me odiaras tanto, se com efeito eu tivesse decaído, ou se ao menos pudesses crê-lo. Entregar-te-ei, se o quiseres, tudo quanto me pertence, mas não a minha inocência. Cruel Nero, embora sejas criminoso, não posso deixar de amar-te, nem de envergonhar-me deste amor. É opróbrio para mim, bem o sei, chamarem-me rival de Popeia; mas, não o sou, esta mulher nunca te amou, não te ama, e só ambiciona a tua posição, o teu trono, o esplendor que o cerca.
NERO Pérfida! Já...
OTÁVIA Quanto a ti, quando comecei a amar-te, não eras o que hoje és; tinhas nascido talvez para o bem. Jamais na tua infância deste prova de índole perversa. Eis aqui a mulher que envenenou-te a alma e o coração; ela foi quem perverteu a tua inteligência; ela, sim ela, quem te ensinou o sabor do sangue; eis aqui o gênio mão de Roma. De mim não falo, que nada valem meus males, comparados com os da pátria; mas tu tingiste de sangue as águas do Tibre; meu irmão, tua mãe...
NERO Cala-te! cala-te! ou eu...
POPEIA Merece ela porventura a tua cólera, senhor? O ultraje é sempre meio de defesa de que lança mão o réu. Se ela me houvesse ofendido, se lhe pudesses dar crédito, então suas palavras teriam peso para mim. Que disse ela? Que não te amo? Bem sabes...
OTÁVIA Melhor que ele o sabes tu; Nero só o saberá no dia em que perder o império; então te conhecerá qual és. Ah! porque no trono (causa única do ódio que me vota Nero) porque no trono tive eu o berço! por que não descendo de família obscura? Seria então menos suspeita e menos odiosa.
NERO Manos odiosa? Sempre o foste, e de dia em dia mais te tornas; agora, porém, sê-lo-ás por pouco tempo.
POPEIA Se não posso dizer-me descendente de família real, nasci porventura de sangue vil? E, quando o fosse, não me bastara não ser filha de Messalina?
OTÁVIA Reinavam meus pais, a isto deve-se o serem de todos conhecidos pequenos erros que cometeram. Mas, quem soube jamais o que fizeram vossos avós obscuros e ignorados? Ainda, porém, que me ousem comparar a ti, haverá quem possa acusar Otávia de ter sido de muitos esposa?... Fui porventura rejeitada por um Rufo, por um Óton?
NERO Em breve pertencerás à morte! Só me resta fixar a espécie de suplício que te reservo, não faças que eu escolha dentre eles o mais horrível. Retira-te, encerra-te em teus aposentos. Vai, não quero ouvir por mais tempo a tua voz.
CENA VII Nero e Popeia.
NERO Popeia, conhece melhor a Nero e a ti mesma. Inda que seja preciso incendiar Roma e afogá-la em sangue; inda que tenha de nela sepultar-me com meu trono, não mais, te juro, serás ultrajada por causa de Otávia, nem haverá força que a arranque do meu poder. Tranquiliza-te e confia em mim.
POPEIA Eu só receio morrer sem ser tua esposa.
NERO Oh! cala-te, o criminoso levantamento do povo se aplacará tão rapidamente quão rápido se manifestou. Eu, do meu lado, vou preparar-me. Fica tranquila, dentro em pouco me verás voltar, vingado o ultraje que ousaram fazer-te.
ATO IV
CENA I Popeia e Sêneca.
POPEIA Que me queres?
SÊNECA Desculpa-me se te vim importunar; mas é talvez para prestar-te um serviço.
POPEIA Donde te vem tão veemente desejo de me ser útil? Fostes alguma vez meu amigo? És mesmo neste momento? Que outro motivo, senão o desejo de molestar-me, te pode fazer proceder deste modo?
SÊNECA Certamente, eu não desejaria prestar-te um serviço, se a minha vinda aqui não devesse ser útil a Otávia. A compaixão, que essa mulher inocente e ilustre me inspira, o amor da justiça e o desgosto profundo de uma vida importuna e vergonhosa obrigam-me a falar. Teu próprio interesse é o que unicamente te deve forçar a ouvir-me.
POPEIA Eu te ouço. O que tens a dizer-me?
SÊNECA Que breve perderás a afeição de Nero, se o povo continuar a odiarte. Digo-te a verdade; bem sabes que conheço Nero, os Romanos, o século em que vivemos e a ti mesma, Popeia.
POPEIA Conheces tudo, mas não te conheces a ti.
SÊNECA Quando me virem morrer, saberão que eu bem me conhecia. Ouveme no entanto, ouve-me, eu te peço. Desejando com tanto ardor a morte de Otávia, preparas a tua própria. Os Romanos só a ti atribuem as desgraças de Otávia e seu desterro; se uma nova infâmia, se um castigo mais bárbaro lhe for imposto, tu serás ainda aos olhos do povo a única culpada. É por isto que cresce o ódio já grande que lhe inspiras, e suas murmurações tornam-se cada vez mais violentas. O povo amotinou-se, e ainda não foi dispersado; demos porém que o seja; não poderá ele amanhã reerguer-se mais terrível? Popeia, treme por ti mesma; Nero sacrificará tudo à própria segurança. Pequenos obstáculos muitas vezes estimulam o amor, mas um obstáculo invencível bem depressa o faz calar em um coração incapaz de nobres sentimentos. Não te iludas: Nero presa mais o seu trono do que o teu amor, e desgraçada de ti se Roma o obrigar a escolher entre os dois.
POPEIA E eu preso mais Nero do que o seu trono. Se eu pensasse que a minha presença, que a minha vida, eram para ele motivo de perigo... Mas, que vans palavras dizes? Não é Nero senhor absoluto em Roma? E deve porventura curvar-se ante a plebe vil, que sem murmurar obedecia a Tibério e a Caio?
SÊNECA Teme o furor dessa mesma plebe, se não conseguires destruir os terrores de Nero. Ousa, porém, livra-o do único freio que ainda o contém; serás a primeira a experimentar os efeitos de tão imprudente passo. Inútil terá sido todo o sangue derramado por ocasião de vossas bodas fatais, se a esse sangue ajuntares o de Otávia. Lembra-te de Agripina; ela amava seu bárbaro filho, mas jamais quis livrá-lo do terror que lhe causava seu irmão; no entanto a ardilosa crueldade de Nero prevaleceu; o desgraçado irmão morreu envenenado; foram baldados os ardis da mãe, igual sorte lhe coube em breve. Desde então temos visto Nero, de dia em dia mais feroz, passar de um crime a outro crime. Otávia é a única que resta como freio desse monstro, Otávia, ídolo de Roma, terror do próprio Nero. Faze que ela desapareça, deixa que ele te goze tranquilamente e em breve o verás saciado. Preza-te hoje, porque conquistou-te à custa de muitos crimes, mas se a tua existência for para ele motivo de perigo, ainda que passageiro, verás como morre o amor que te consagra. Então prepara-te para receber uma dessas recompensas de que o monstro é pródigo; a morte mais cruel ele a reserva para aqueles que mais o amam.
POPEIA Nero se aproxima; continua.
SÊNECA Não penses que eu hesite em fazê-lo.
CENA II Nero, Popeia e Sêneca.
NERO Pérfido, ousaste infringir as minhas ordens?
POPEIA Vem senhor, vem ouvi-lo.
NERO Ouvir, o quê? Dentro em pouco será ele quem ouvirá a resposta que eu vou dar ao povo. Oh raiva! O tumulto ainda não cessou, as súplicas não abrandam o furor do povo, será preciso empregar o ferro e abrir caminho por entre a massa popular. Tranquiliza-te, Popeia, amanhã tuas estátuas estarão de novo levantadas sobre seus pedestais, mas as de outros, manchadas de sangue, serão arrastadas pelo lodo das ruas.
POPEIA Seja qual for o resultado de tudo isto, cumpre que Roma saiba por ti que não fui eu quem pediu esse sangue, como satisfação das afrontas que me foram feitas, posto que me magoassem profundamente. O povo arde em desejos de poder imputar-me tal crueldade; o próprio Sêneca atreve-se a supor em mim essas intenções, bem que não esteja disso convencido. Bem o sabes tu, minha única divindade, bem sabes que só pedi o desterro de Otávia. Eu não podia ver a meu lado aquela que, sem o merecer, gozara antes de mim do amor de Nero. Mas, satisfeita por vê-la longe, pensei que era castigo digno de seus crimes perder a tua afeição. Tal era a pena que...
NERO Ah! deixa que fale Sêneca e que murmure o povo. Roma conhecerá hoje mesmo quem era o seu ídolo.
SÊNECA Cautela, Nero! É mais fácil intimidar Roma do que iludi-la; mais de uma vez o tem experimentado.
NERO É certo que mais de uma vez serviste-me de instrumento para iludila; eras para isso mais hábil do que eu.
SÊNECA Fui culpado, não o nego, mas pertencia à corte de Nero.
NERO Vil escravo!
SÊNECA Fui, é certo, vil, enquanto me conservei em silêncio; mas chegou o dia em que devo erguer a voz livre e dizer-te o que ainda não ouviste. Será isto pequena compensação para meus erros, mas a morte nestas circunstâncias justificar-me-á, talvez, aos olhos da posteridade.
NERO Terás, prometo, na história o nome que mereces.
SÊNECA Enquanto eu ouvir os clamores do povo, enquanto poder abrandar pelo terror a tua crueldade, hás de ouvir-me; apraz-me irritar-te, obrigar-te a ouvir a verdade, antes que caia morto, vítima tua: se não me deres antes a morte, juro-te que não a darás a Otávia. Eu posso novamente excitar o povo, despertar-lhe ainda o furor mal aplacado e torná-lo mais terrível. Posso revelar-lhe nossos crimes comuns e chamar sobre tua cabeça perigos mais sérios do que imaginas. Fui conselheiro de Nero, e meu coração, como o dele, tornou-se empedernido. Rebaixei-me até acreditar, ou antes, a fingir que acreditava que eram culpados Britânico, por ter perdido o trono, Agripina por o haver dado, Plauto e Sila por terem sido julgados dignos dele, e Burro por te haver conservado mais de uma vez. Eu sou, bem o sei, mais criminoso que eles todos; e, quer me conserves a vida, quer a me tires, di-lo-ei a quem quiser ouvir-me. Sacia em mim o teu furor; podes fazê-lo impune; mas treme, se assassinares Otávia; lembra-te que seu sangue cairá sobre tua cabeça. Eis quanto queria dizer-te; agora, se o queres, dá-me em resposta a morte.
CENA III Nero, Popeia.
POPEIA Senhor, abranda o teu furor...
NERO Vai, em breve expiarás as palavras que proferiste. Oh! que audácia! Quando não me cercam os meus guardas, sou eu porventura o mais fraco dos homens? E por toda a parte me prendem motivos vários! Vejo-me forçado a matar uns após outros, aqueles que quisera ver mortos, ao mesmo tempo, no mesmo instante!...
POPEIA Ah! quantos golpes me ferem o coração! Quanto me indigno contra mim própria! Eu, só, sou a causa criminosa de todos os teus tormentos.
NERO Tanto mais cara ficas sendo para mim, quanto mais difícil se torna a tua posse.
POPEIA Chegou enfim o momento; é tempo, Nero, que eu lance mão de um meio violento, e que só de mim depende. Não esperes que este povo audacioso se tranquilize enquanto eu estiver junto de ti. Sim, Roma despreza a prole ilustre que breve darei a Nero. Mais vale para ela que o poder imperial pertença um dia à descendência infame de um vil escravo. Posto que eu não seja se não o pretexto de uma revolta popular, a que outra causa deu nascimento, estou resolvida... Sim, devo, quero...
NERO Ah! Cala-te! Posso ainda ganhar tempo, como já o fiz. Que receias? Havemos de triunfar, espera...
POPEIA Ah! Permite que, se eu não expirar agora a teus pés, diga-te um eterno adeus...
NERO Oh! que dizes? Ergue-te! eu deixar-te!... nunca.
POPEIA De que te serve dissimular? Desde que Otávia chegou, as vociferações do povo encheram-te de susto; sua audácia tem ido em constante aumento, e o terror que sentes...
NERO Aterrado?... eu?
POPEIA Bem sei que o teu coração inabalável persiste em seus projetos de vingança; os meios, porém, são duvidosos, e no entanto continuas exposto a multiplicadas afrontas. Ouviste as palavras insensatas e injuriosas de Sêneca; bem vês que...
NERO Aterrado?... eu?
POPEIA Sim, por minha causa. Deixa que suba ao trono aquela a quem o povo quer ver no trono, já que é o povo o árbitro de teu coração.
Empunhe embora Otávia o cetro, que importa? mas que partilhe de novo o teu leito, que possua de novo o teu amor! oh! quanto sou desgraçada!... Só assim poderás ter paz e segurança.
NERO Cede às súplicas do esposo, ou respeita as ordens de teu senhor. Para a imensa cólera que ferve em meu coração, para a grande vingança que quero tomar, os meios, bem o sei, são por demais lentos, mas a lentidão não prejudica a vingança.
POPEIA Crê-me, para que te salves, para que ganhes tempo cumpre que eu parta; só a minha ausência pode ser útil neste momento. Queres que me forcem a partir, enquanto que agora o posso fazer voluntariamente? O povo ameaça obrigar-me a isso, e é esta a menos terrível de suas ameaças; pretende dar a Otávia novo esposo e que este com ela reine.
NERO Não prossigas, que mais provocas a minha cólera.
POPEIA Ainda quando por algum tempo fiques vencedor de Otávia e do povo romano, crescerá o ódio que inspiras e então, quem sabe se tu próprio não acusarás a desgraçada Popeia? Quem sabe se, levado pelo arrependimento não trocarás por ódio a afeição que hoje me consagras? Oh céu! Só este pensamento gela-me o sangue. Ah! deixa que eu morra longe de li; ao menos baixarei ao túmulo possuindo todo o teu amor...
NERO Basta!... Basta!... Já a minha raiva transborda; não penses mais em deixar-me... Roma, o mundo inteiro, o próprio céu debalde se oporão a que sejas minha. Nero o jura.
CENA IV
Tigelino, Nero e Popeia.
TIGELINO Viva Nero!
NERO Dispersaste o povo? Esmagaste-o? Sou senhor em Roma? Pois que! voltas sem que venha tinta de sangue a tua espada?
TIGELINO Ainda não chegou a hora em que convém derramar sangue, mas está próxima. Entretanto cumpre usar de astúcia; mandei espalhar por entre o povo falsos boatos; ora dizia-se que estavas disposto a chamar para junto de ti Otávia, se ela pudesse justificar-se dos crimes de que é acusada; ora que as afrontas insensatas de que tem sido vítima Popeia, indignaram nobre coração da própria Otávia, que volta a Roma para restabelecer a ordem e a tranquilidade, e não para dar causa a tumultos populares.
POPEIA E a plebe ignara julga que eu preciso da compaixão de Otávia?
NERO Sempre a astúcia, sempre, e o ferro nunca?
TIGELINO O povo aceita como verdade ainda mesmo o que é inverossímil. Ou fatigado, ou convencido por esses boatos, abrandou a criminosa alegria que o transportava. Mas já vai caindo o dia, e a noite verá bem diversos acontecimentos. Já em segredo se reúnem os pretorianos; já muitas cabeças ilustres estão designadas para o desterro. O sol de amanhã alumiará cenas de sangue, e, quando descambar, reinará o silêncio. Mas se queres que amanhã cesse o tumulto, que à falsa alegria passageira sucedam longas e verdadeiras dores, torna evidentes os graves crimes que se atribuem a Otávia; se assim não fizeres, jamais tocarás o almejado fim. Não podes assassiná-los a todos...
NERO Ah! Não posso!...
TIGELINO Mas podes a todos iludir. Será esta a última vez em que à matança preceda a astúcia.
NERO Vai, pois, e torna mais graves as acusações contra Otávia; dela tiraremos, Popeia, completa vingança. Oh! breve, eu espero, raiará o dia em que para saciar meus ódios eu não precise de socorro estranho.
ATO V
CENA I
OTÁVIA Calou-se enfim o povo: cessou o tumulto; chega a noite e com ela renasce silêncio de morte. Aqui devo esperar o meu destino; assim o manda o meu senhor. Mas, enquanto neste lugar solitário choro, Nero o que fará? Começa a noite por vergonhosas orgias. Julga-se, pois, em segurança? Já? Tão cedo? Assim é entretanto! Tão depressa se assusta, quão depressa se tranquiliza, e nunca o preocupa o perigo remoto. Ah! que não seja tão grande erro a causa de sua perda! É pois, em meio de prazeres impuros, da lascívia, da embriaguez, junto da mesa do banquete, que ele me prepara (não posso mais iludir-me!) horrível morte! Foi também em meio de um festim noturno que vi cair morto meu irmão; foi também à mesa do banquete que se traçou em letras de sangue a sentença de morte de Agripina. As primeiras iguarias, que devem ser servidas nas ceias alegres de Nero, são os membros ainda palpitantes de seus parentes. Mas, vai correndo o tempo e ninguém chega... de nada sei... O próprio Sêneca abandonar-me-ia? Ah! talvez tenha já deixado de existir... Oh! céu! o único que de mim se compadecia... Nero, sem dúvida, já nele saciou o seu furor... Mas... que vejo? oh! alegria! ei-lo, para aqui se encaminha.
CENA II Otávia, Sêneca.
OTÁVIA Sêneca, ainda vives? Vem, tu que és para mim mais do que um pai!... Mas, que tens? há menos tristeza em teu semblante... que novas me trazes?
SÊNECA Folga, Otávia, não puderam manchar a tua inocência! Tuas virtudes, com seus celestes raios, inflamam os corações mais baixos e servis. Entre martírios, sofrendo os mais bárbaros tormentos, tuas servas, unânimes, negaram teus supostos crimes. Márcia, mais que todas, tornou-se digna de admiração! com firme semblante, em atitude viril, livre (envergonhando-nos a todos nós, cobardes escravos) ela, intrépida, encarava Nero; e, fitando ora em Tigelino, ora em Nero, seu olhar altivo, chamava-os vis caluniadores; e arrebatada por generosa cólera, insensível às torturas, entoava um hino solene glorificando a tua virtude; por fim caiu exalando o último suspiro!
OTÁVIA Infeliz! era digna de melhor destino! Mas, para que serve tudo isto? Haverá sangue que baste para resgatar minha vida?
SÊNECA Agora, mais do que nunca, Nero hesitará em derramar teu sangue! Saíste coberta de glória e de honra, da cilada em que o monstro julgara que encontrarias a infâmia e a morte! Agora, Nero, soltando imprecações horrendas, vota a cabeça aos numes infernais; ora pronuncia palavras ferozes, mas sinceras, que atestam a tua inocência; ora jura que mais vale lançar mão das torturas, do suplício, do ferro que de calúnias compradas a peso de ouro. Conta a todos as promessas infames que lhe fizera Tigelino; os próprios algozes bárbaros, que o rodam, tomados de desusado horror, ouvem-no assombrados e imóveis. Vim correndo trazer-te estas gratas notícias.
OTÁVIA Ah! vê quem para aqui se encaminha, vê e espera ainda!...
SÊNECA Oh! céu!
CENA III Tigelino, Otávia e Sêneca.
TIGELINO O teu senhor a ti me envia.
OTÁVIA Ah! por que ao menos não me trazes a morte? Agora que a minha inocência está por todos reconhecida, grato me seria morrer.
TIGELINO Teu senhor não crê ainda nesta inocência; para te justificares não te bastava mandar envenenar Eucero e todas as criadas, tuas cúmplices, para que não pudessem elas resistir às torturas; poupaste-lhes o suplício, mas ao mesmo tempo te privaste dos meios de defesa.
OTÁVIA Oh! céu! que nova calúnia...
TIGELINO Doravante Nero não quer que te acusem senão de crimes patentes. Nova e mais grave acusação se dirige contra ti, e não foi no meio das torturas, não constrangido, mas sim em plena liberdade, que o teu cúmplice te denunciou.
OTÁVIA Que cúmplice? fala.
TIGELINO Aniceto.
SÊNECA O algoz de Agripina!
OTÁVIA Que ouço!
TIGELINO Aquele mesmo que salvou outrora Nero de um grande perigo, então era ele fiel a seu senhor; tu o arrastaste à traição; agora, arrependido, foi ele o primeiro a denunciar-te; revelou todo o plano, mas nem por isto será menor o castigo que o espera.
OTÁVIA Oh! que miserável mentira!...
TIGELINO Não te prometeu ele que a um sinal teu se levantaria com o exército que comanda em Micena? E preciso dizer quais foram as condições?
OTÁVIA Ah! deixa-me. Oh! nação celerada! Oh! século de horror!
TIGELINO Nero ordena que te defendas dos crimes de que te acusam, de teus criminosos amores, da rebelião a que arrastaste seus generais, das injurias audazes, de tantas ciladas indignas que em vão armaste a Popeia e do levantamento do povo; defende-te ou confessa a tua culpa; tens para isto todo o dia que começa.
OTÁVIA É tempo demais. Volta a ter com ele e pede lhe que venha aqui com Popeia. Só a eles quero revelar todos os meus crimes; nada mais peço; vai, quero que Popeia assista alegre à minha humilhação, eu os espero.
CENA IV Otávia e Sêneca.
SÊNECA Que queres tu fazer?
OTÁVIA Morrer em sua presença.
SÊNECA Que dizes?... Ah! ele não o permitirá, se vir que o desejas com tanto ardor.
OTÁVIA É isto porventura uma graça que peço a Nero? Tenho outro favor a suplicar-lhe e espero...
SÊNECA Pensava conhecer Nero, mas confesso que estou admirado de tanto horror; mostra-se ele sempre mais cruel do que se imagina.
OTÁVIA Sêneca, tu foste o escolhido por mim para auxiliar-me a efetuar a resolução que tomei. Se me estimas, se me amas, se te compadeces de minha sorte, poderás hoje provar a mim. Já me ensinaste a trilhar o caminho da virtude e da honra; agora que minha morte tornou-se necessária, ensina-me a morrer.
SÊNECA Oh! Céu! Que escuto?... Deve porventura a morte ser inspirada por insano ímpeto da alma?
OTÁVIA E julgas-me tu tão vil que não possa tomar inabalável resolução? Não é a morte agora para mim o menor dos males que me espera? Não é o meu único recurso? Responde! Ah! tu te calas...
SÊNECA Oh! dia horrível!
OTÁVIA Eia pois, responde; resta-me outra cousa a fazer?
SÊNECA Assim me partes o coração; mas posso ser cruel a ponto de...
OTÁVIA A tua ciência é pois tão enganadora? Podes ser cruel a ponto de deixar-me presa de uma rival feroz, para quem pouco valerá a minha morte, se com a perda da vida não for também a da reputação? Podes ser cruel a ponto de deixar-me exposta às calúnias dos malvados, à ira louca e insaciável de um monstro como Nero?
SÊNECA Oh! dia infausto!... por que vivi até este momento?...
OTÁVIA Mas o que te detém?... O que temes?... Conservas ainda alguma esperança?
SÊNECA Quem sabe?...
OTÁVIA Menos do que qualquer outro o esperas, bem conheces a Nero; estás resolvido (não me negas decerto), a evitar seu furor por meio de uma morte voluntaria. Julgas acaso menos firme do que a tua a minha resolução? E dizes que me amas! Devo tremer, decerto, enquanto este mísero corpo servir de abrigo a minha alma. A quantas afrontas não poderei ficar exposta? E, se aterrada pelas ameaças eu sucumbisse! Se porventura no meio dos suplícios eu deixasse cair dos lábios a mentirosa confissão de um crime que não cometi, de um pensamento que nunca tive!... Habituado desde longo tempo a encarar a morte, tu confias em ti mesmo; eu não, sou moça ainda, meu ânimo vacila, meus membros são delicados, e mal resistirei à ameaça de morte cruel e prematura. Posso facilmente abandonar a vida, mas não tenho forças para esperar longo tempo a morte.
SÊNECA Quanto sou infeliz! Esperava salvar-te dando em troca os poucos dias que me restam. Queria revelar ao povo os ardis infames, horríveis do criminoso Nero... Foi em vão que conservei a vida até hoje. O povo conserva-se mudo, e apenas escuta a voz do medo. Nem posso mais sair deste horrível palácio... Oh! Céu! quem poderá lutar contra um senhor ímpio, se, como ele, ímpio não for?
OTÁVIA Choras?... Eia, pois, da infâmia e do martírio salva-me; dá-me a morte, pois que, bem o vês, são ilusórias todas as esperanças. Salvame por compaixão.
SÊNECA Ainda quando o quisesse... Em tão breve espaço... como o poderia fazer? Não trago armas comigo, e Nero em breve aqui estará.
OTÁVIA Trazes sempre contigo um veneno subtil; é o único refúgio dos homens justos nesta corte infame.
SÊNECA Eu!... veneno?...
OTÁVIA Sim, tu mesmo o me disseste outrora, quando me confiavas os mais secretos sentimentos do teu coração atribulado, como o faria um pai à filha querida. Lembra-te que muitas vezes choramos juntos. Ah! recusas!... Elevar-me-ei acima de mim mesma; a necessidade torna animosos os mais fracos. Nero em breve aqui estará; à cinta traz ele sempre a espada; tirar-lhe-ei e com ela traspassarei o coração. Talvez meu braço débil sirva mal a minha coragem, mas farei o que digo. Se o golpe não me matar, Nero me acusará de ter querido assassiná-lo e então serei condenada a sofrer inauditos suplícios.
SÊNECA Ah! senhora, porque assim me dilaceras o coração!... Eu quisera... Mas não... Estás iludida, não trago veneno.
OTÁVIA E não trazes sempre contigo um anel? Ei-lo, é este, eu o quero.
SÊNECA Ah! deixa-me...
OTÁVIA Debalde te esforças... agora é meu! Sei como devo empregá-lo; sei que ele me dará morte suave e rápida.
SÊNECA O céu é testemunha... Ah! restitui-me o anel... Se um outro meio houvesse...
OTÁVIA Não, é este o único... Vês, ei-lo aberto... já sorvi o pó mortal que ele encerrava.
SÊNECA Ah! quanto sou desgraçado!
OTÁVIA Os deuses te recompensarão pela dádiva preciosa e necessária que me fizeste... Nero se aproxima... Vem, oh morte, apressa-te, salvame.
CENA V Nero, Popeia, Tigelino, Otávia e Sêneca.
NERO Causa funesta de todos os meus males, quem poderá agora arrancar-te de minhas mãos? Quem por ti clamará agora? Onde está o povo? Tiveste razão, o único partido que te restava era te mostrares tal qual és, revelar a Roma e ao mundo inteiro todos os teus crimes, e assim justificar perante o meu povo a morte que mereceste pelas tuas infâmias.
SÊNECA Já não tenho remorsos; era oportuno!
OTÁVIA Estás, ó Nero, completamente justificado. Folga, pois; eu própria já castiguei em mim o crime de ter sido tua esposa, de te haver amado.
NERO Tu própria?... Como?... Que fizeste.
OTÁVIA Cruel veneno circula já era minhas veias.
NERO Quem te deu?
POPEIA Oh! Nero, agora só a mim pertences!
NERO Quem te deu o veneno?... Mentes.
TIGELINO Não a creias, senhor, guardas severos...
SÊNECA Os guardas podem ser iludidos, e os teus o foram... Aos justos reservam os deuses sempre um refúgio.
OTÁVIA Em breve me verás cadáver... Foi este o homem compassivo que me forneceu o veneno, ou antes, eu de suas mãos violentamente o tirei. Se por isso o punires, apenas te anteciparás aos seus desejos; não te oculto, pois, o que ele fez por mim... Olha, sob esta pedra estava oculto o veneno. No dia do nosso infausto himeneu deveras ter me dado anel semelhante a este, em penhor de tua afeição.
NERO Bem conheço que este último e horrível trama foi urdido com o fim de tornar-me odioso ao povo romano. Homem perverso, tu que o plano concebeste, em breve...
POPEIA Escapaste ao suplício que te esperava, Otávia, mas debalde esperas escapar à infâmia!
OTÁVIA E tu esperas porventura que eu desça até responder-te? Escuta, Nero, minhas últimas palavras... Crê no que te digo... Estou chegada ao momento fatal em que desaparece todo o temor, em que é inútil o fingimento; e eu nunca te enganei... morro, e não é Sêneca quem me dá a morte, mas sim tu, Nero, tu só; posto que não o me desses, é teu o veneno que me consome a vida. Não penses que te acuso, mas deveras ter-me dado a morte quando comecei a aborrecer-te; fora menos cruel matar-me então do que preferir-me outra esposa, que, embora o quisesse, não poderia amar-te... mas tudo te perdoo; perdoa-me também tu; meu crime único consiste em, adiantando de algumas horas o momento de minha morte, tirar-te o prazer de uma vingança completa. Eu podia tudo sacrificar-te, Nero, exceto minha honra, podia tudo suportar menos a infâmia... de minha morte, espero, não resultará para ti perigo. É teu o trono, goza-o... possas nele encontrar a paz; juro-te... que jamais minha sombra... virá à noite... junto de teu leito ensanguentado... perturbar-te o sono... talvez um dia... conheças melhor... aquela mulher...
NERO Quanto mais a conheço, mais a estimo, e juro amá-la sempre!
SÊNECA Com estas palavras, revolves-lhe o punhal na ferida... ela expira!...
POPEIA Vem, abandonemos estes lugares funestos.
NERO Vamos, sim, e saiba Roma inteira e saiba o exército que não fui eu quem deu morte a Otávia. Saibam ao mesmo tempo o crime e a morte de Sêneca.
CENA VI
SÊNECA Vai, eu prevenirei a tua vingança, mas os séculos vindouros, inacessíveis ao temor e à lisonja saberão toda a verdade, saberão quem foi o assassino de Otávia.
Vittorio Alfieri
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