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OUTRAS HISTÓRIAS DO PADRE BROWN / G. K. Chesterton
OUTRAS HISTÓRIAS DO PADRE BROWN / G. K. Chesterton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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O CRIME DO COMUNISTA

Três homens saíram debaixo do arco Tudor, na fachada rica de Mandeville College, para o sol forte da tardinha de um dia de Verão que parecia não ter fim. À luz do Sol viram uma coisa que explodiu como um relâmpago; acontecimento que talvez nunca esquecessem.
Mesmo antes de pensarem numa catástrofe, tiveram consciência de um contraste. Eles mesmos, numa forma estranha e vaga, estavam em harmonia com o ambiente. Embora os arcos Tudor, que contornavam os jardins do College como um claustro, tivessem sido construídos há quatrocentos anos, naquele momento quando o Gótico caiu do céu e arqueou, ou quase curvou, sobre os aposentos mais acolhedores do Humanismo e da Renascença — embora eles envergassem roupa moderna (isto é, roupa cuja fealdade teria assombrado qualquer um dos quatro séculos), no entanto, qualquer coisa no espírito do lugar uniu-os. Os jardins tinham sido tratados com cuidado para alcançarem o triunfo final de parecerem descurados; as próprias flores pareciam belas por acaso, como ervas elegantes; e os fatos modernos tinham pelo menos o pitoresco que pode ser criado com o desleixo. O primeiro dos três, um homem alto, calvo e barbudo, era uma figura familiar na faculdade, de boina e capa; a capa escorregava nos ombros inclinados. O segundo tinha ombros largos e angulosos, era baixo e entroncado, com um sorriso agradável, envergando um casaco, com a capa no braço. O terceiro era ainda mais baixo e muito mais desleixado, com roupa preta de clérigo. Mas todos pareciam em harmonia com Mandeville College; e a indescritível atmosfera das duas antigas e únicas universidades de Inglaterra. Encaixavam-se nela e diluíam-se nela; facto que era considerado lá da maior conveniência.

 

 

 

 

Os dois homens sentados em cadeiras de jardim perto de uma pequena mesa eram como que uma mancha brilhante naquela paisagem verde-acinzentada. Estavam vestidos sobretudo de preto e, no entanto, brilhavam da cabeça aos pés, das cartolas lustrosas às botas impecavelmente engraxadas. Era quase um ultraje que alguém andasse tão bem vestido na liberdade distinta de Mandeville College. A única desculpa era serem estrangeiros. Um era americano, um milionário chamado Hake, usando o vestuário impecável, fulgurante, elegante conhecido apenas dos ricos de Nova Iorque. O outro, que acrescentava a todas estas coisas o ultraje de um sobretudo de astracã (para não falar de um par de suíças floreadas), era um conde alemão muito rico, cuja parte mais curta do nome era Von Zimmern. O mistério desta história, porém, não era o mistério da sua presença ali. Eles estavam lá pelo motivo que geralmente explica a reunião de coisas incongruentes; propuseram dar algum dinheiro à faculdade. Vieram em apoio de um projecto patrocinado por vários financeiros e magnatas de muitos países, para a fundação de um novo Departamento de Economia em Mandeville College. Inspeccionaram a faculdade com aquela minúcia conscienciosa e infatigável de que nenhum filho de Eva é capaz, excepto os americanos e os alemães. E agora descansavam, depois de trabalharem e olharem com ar grave para os jardins da faculdade. Até aqui tudo bem.

Os outros três homens, que já os conheciam, passaram com uma saudação vaga; mas um deles parou; o mais pequeno dos três, de trajo clerical, preto.

— Digo — disse ele, com um ar de coelho assustado. — Não gosto do aspecto daqueles indivíduos.

— Meu Deus! Quem poderia gostar? — exclamou o homem alto, que por acaso era o mestre de Mandeville. — Pelo menos temos alguns homens ricos que não andam vestidos como manequins de alfaiate.

— Sim — disse o clérigo baixo com voz sibilante —, é isso que eu pretendo dizer. Como manequins de alfaiate.

— Que queres tu dizer? — perguntou o homem mais baixo, com brusquidão.

— Quero dizer que são como horríveis figuras de cera — disse o clérigo numa voz fraca. — Quero dizer que não se movem. Por que não se movem?

Despertando subitamente do devaneio sombrio, atravessou os jardins como uma seta e tocou no ombro do barão alemão. O barão caiu, cadeira e tudo, e as pernas com calças que estavam ao alto ficaram tão hirtas como as pernas da cadeira.

O Sr. Gideon P. Hake continuou a olhar para os jardins da faculdade com olhos vítreos; mas o paralelo de uma figura de cera confirmava a impressão de que os olhos pareciam feitos de vidro. De certa forma, a luz esplêndida do sol e o jardim colorido aumentavam a impressão arrepiante de uma boneca vestida e sem graça; uma marioneta num palco italiano. O homem baixo vestido de preto, que era um padre chamado Brown, tentou tocar no ombro do milionário, e este caiu para o lado, mas horrivelmente, como se fosse uma peça inteira esculpida em madeira.

— Rigor mortis — disse o padre Brown —, e etc. Mas difere bastante.

A razão por que os três primeiros homens se juntaram aos outros dois tão tarde (para não dizer tarde de mais) compreender-se-á melhor se se prestar atenção àquilo que acontecera no interior do edifício, atrás da arcada Tudor, mas pouco tempo antes de saírem. Tinham jantado todos em Hall, na High Table; mas os dois filantropos estrangeiros, escravos do dever em matéria de verem tudo, tinham voltado solenemente para a capela, onde não tinham examinado ainda um claustro e uma escadaria; prometendo juntar-se aos outros no jardim, para examinarem com o mesmo cuidado os charutos da faculdade. Os outros, com um espírito mais reverente e recto, tinham passado, como de costume, à mesa de carvalho, comprida e estreita, à volta da qual circulara o vinho depois do jantar, pois todos sabiam, desde que o colégio universitário fora fundado na Idade Média por Sir John Mandeville, para o encorajamento do relato de histórias. O Mestre, com a barba loira e grande e a testa calva, sentou-se à cabeceira da mesa, e o homem baixo e entroncado de casaco sentou-se à esquerda; pois era o tesoureiro ou o homem de negócios da faculdade. Ao seu lado, naquela parte da mesa, sentou-se um homem de aspecto estranho com aquilo a que se poderia chamar apenas um rosto torcido; uma vez que os tufos escuros do bigode e das sobrancelhas, enviesados em ângulos contrários, faziam uma espécie de ziguezague, como se metade do rosto estivesse contraída ou paralisada. Chamava-se Byles; era o leitor de História Romana, e as suas opiniões políticas baseavam-se nas de Coriolano, para não falar de Tarquinius Superbus. Este conservantismo cáustico, e a visão profundamente reaccionária de todos os problemas correntes, não eram totalmente desconhecidos dos professores universitários mais antiquados; mas no caso de Byles havia qualquer coisa que sugeria que era mais uma consequência do que uma causa da sua acerbidade. Mais que um observador atento, ficara com a impressão de que havia algo de errado em Byles; que algum segredo ou um grande infortúnio o enchera de azedume; como se aquele rosto meio atrofiado tivesse sido fulminado como uma árvore por um relâmpago. Além dele, estava uma vez mais o padre Brown e, na extremidade da mesa, um professor de Química, grande, loiro e brando, com olhos que eram mortiços e talvez um pouco maliciosos. Sabia-se que este filósofo simples considerava os outros filósofos, de uma tradição mais clássica, mais como botas-de-elástico. No outro lado da mesa, em frente do padre Brown, estava um jovem muito moreno e taciturno, com uma barba preta e pontiaguda, admitido porque alguém insistira na necessidade de haver uma cadeira de língua persa. Em frente do sinistro Byles estava um capelão baixo e de aspecto muito plácido, com uma cabeça parecida com um ovo. Em frente do tesoureiro, e à direita do Mestre, estava uma cadeira vazia; e havia lá muitas pessoas que gostavam de a ver vazia.

— Não sei se Craken vem — disse o Mestre, lançando um olhar nervoso à cadeira, que contrastava com a liberdade lânguida e habitual do seu comportamento. — Acho que vale a pena dar liberdade de acção às pessoas; mas confesso que cheguei ao ponto de ficar satisfeito quando ele está aqui, simplesmente porque não está em nenhum outro lugar.

— Nunca se sabe o que ele é capaz de fazer a seguir — disse o tesoureiro, prazenteiramente —, sobretudo quando está a ensinar os jovens.

— Um indivíduo brilhante, mas impetuoso, claro — disse o Mestre, ficando retraído de repente.

— O fogo-de-artifício também é ígneo e brilhante — resmungou o velho Byles —, mas eu não quero morrer queimado na minha cama para que o Craken possa aparecer como um verdadeiro Guy Fawkes.

— Pensas mesmo que ele seria capaz de participar numa revolução de força física, se houvesse uma? — perguntou o tesoureiro, a sorrir.

— Bem, ele pensa que sim — disse Byles, com rispidez. — Disse a uma classe inteira no outro dia que nada poderia impedir que a luta de classes se transformasse numa luta real, com matança nas ruas da cidade; e não importava desde que terminasse em comunismo e na vitória da classe operária.

— A luta de classes... — devaneou o Mestre, com uma espécie de repugnância suavizada pela frieza. Conhecera William Morris há muito tempo e familiarizara-se bastante com os socialistas mais artísticos e calmos. — Nunca conseguirei perceber tudo isto sobre a luta de classes. Quando era novo, o socialismo devia implicar que não existem classes.

— Outra maneira de dizer que os socialistas não constituem uma classe — disse Byles, com satisfação e azedume.

— Claro, ficarias mais contra eles do que eu — disse o Mestre, pensativamente. — Mas suponho que o meu socialismo é quase tão antiquado como o teu conservadorismo. Imagina o que os nossos amigos mais novos pensam realmente. Que pensas, Baker? — disse de repente para o tesoureiro à sua esquerda.

— Oh, eu não penso, como diz o provérbio — disse o tesoureiro, rindo. — Não podes esquecer que eu sou uma pessoa muito vulgar. Não sou um pensador. Sou apenas um homem de negócios; e como um homem de negócios, acho que tudo isso são disparates. Não podes tornar os homens iguais e é muito mau negócio dar-lhes salários iguais; sobretudo quando muitos deles nem sequer merecem um salário. Seja como for, tens de escolher o lado prático, porque é a única saída. Não temos culpa que a natureza tenha transformado tudo numa luta.

— Nesse ponto, concordo consigo — disse o professor de Química, falando com um receio que parecia infantil num homem tão grande. — O comunismo pretende ser muito moderno, mas não é... Apegado às superstições de monges e tribos primitivas. Um governo científico, com uma responsabilidade realmente ética para com as gerações futuras, procuraria sempre a linha do compromisso e do progresso; sem o aplanar e mergulhar de novo na lama. Socialismo é sentimentalismo; e mais perigoso que uma epidemia, porque nela pelo menos os mais fortes sobreviveriam.

O Mestre sorriu com um ar um pouco triste.

— Sabe que nós os dois nunca sentiremos o mesmo em relação às diferenças de opinião. Alguém aqui falou em passear à beira do rio com um amigo: «Não difere muito, excepto na ideia.» Não é esse o lema de uma universidade? Ter centenas de opiniões e não ser opinioso. Se as pessoas aqui caírem em desgraça, será por aquilo que são, não por aquilo que pensam. Talvez eu seja uma relíquia do século XVIII; mas tenho tendência para a antiga heresia sentimental: «Pois formas de fé permitem que fanáticos rudes lutem; aquele cuja vida está na razão, não pode estar errado.» Que pensa disto, padre Brown?

Ele lançou um olhar um pouco malicioso ao padre e ficou ligeiramente surpreendido. Pois achara sempre o padre muito alegre, amável e de trato fácil; e o seu rosto redondo estava quase sempre prazenteiro. Mas por qualquer motivo, o rosto do padre naquele momento estava franzido com uma expressão muito mais sombria do que qualquer uma que o grupo já vira nele. Assim, por instantes, aquele semblante banal parecia efectivamente mais sinistro e agourento que o rosto macilento de Byles. Pouco tempo depois, a nuvem parecia ter passado; mas o padre Brown falou ainda com uma certa sobriedade e firmeza.

— De qualquer maneira, não acredito nisso — disse ele, laconicamente. — Como é que a vida dele pode estar na razão, se toda a sua visão da vida está errada? Isso é uma confusão moderna que surge porque as pessoas não sabem o quanto as visões da vida podem diferir. Os Baptistas e Metodistas sabiam que não diferiam muito em questão de moralidade. É completamente diferente quando se passa dos Baptistas aos Anabaptistas; ou dos Teósofos aos Tugues. A heresia afecta sempre a moralidade, se for suficientemente herética. Suponho que uma pessoa pode acreditar piamente que o roubo não é um delito. Mas que adianta dizer que acredita piamente na desonestidade?

— Muito bem — disse Byles com uma contorção feroz do rosto, suposta por muitos como um sorriso amistoso. — E é por isso que me oponho à existência de uma cadeira de teoria do roubo nesta faculdade.

— Bem, estão todos muito fracos em matéria de comunismo, claro — disse o Mestre, com um suspiro. — Mas pensam realmente que há muito mais para saber? Há alguma das vossas heresias que seja suficientemente importante para ser perigosa?

— Penso que se tornaram tão importantes — disse o padre Brown com ar sério —, que em alguns círculos já são aceites como verdadeiras. Presentemente, estão inconscientes. Isto é, não têm consciência.

— E o fim disso — disse Byles —, será a ruína deste país.

— O fim será algo pior! — disse o padre Brown.

Uma sombra projectou-se bruscamente ou deslizou rapidamente pela parede apainelada em frente, seguida com a mesma velocidade pela figura que a provocara; uma figura alta, mas curvada, com um contorno vago como uma ave de rapina, acentuado pelo facto de haver uma semelhança entre o seu aparecimento súbito e passagem rápida de uma ave assustada que foge de uma moita. Era apenas a figura de um homem membrudo e de ombros altos com bigodes compridos e pendentes, de facto, bem conhecido de todos; mas algo no crepúsculo, na luz da vela e na sombra rápida estabeleceu uma relação estranha com as palavras ominosas e inconscientes do padre; exactamente como se aquelas palavras tivessem sido de facto um augúrio, no antigo sentido romano; e o seu sinal o voo de uma ave. Talvez Sr.. Byles tivesse uma conferência sobre esse augúrio romano; e sobretudo sobre aquele pássaro de mau agouro.

O homem alto precipitou-se ao longo da parede até se deixar cair na cadeira vazia à direita do Mestre; olhou de esguelha para o tesoureiro e para os outros com olhos fundos e cavernosos. O cabelo e o bigode pendentes eram muito loiros, mas os seus olhos eram tão cavados que pareciam negros. Toda a gente sabia, ou podia adivinhar, quem era o recém-chegado; mas imediatamente a seguir deu-se um incidente que bastou para clarificar a situação.

O professor de História Romana pôs-se de pé e saiu da sala com passo imponente, dando a conhecer, com pouca finesse, o seu desagrado em se sentar à mesma mesa com o professor de teoria do roubo, o comunista, Sr. Craken.

O Mestre de Mandeville disfarçou a situação embaraçosa com uma graça nervosa.

— Estava a defendê-lo, ou algumas das suas opiniões, meu caro Craken — disse ele a sorrir. — Se bem que tenha a certeza que me acharia muito indefensável. Afinal, não posso esquecer que os velhos amigos socialistas da minha juventude tinham um ideal muito puro de fraternidade e camaradagem. William Morris resumiu tudo numa frase: «A camaradagem é o paraíso, e a falta de camaradagem é o inferno.»

— Professores universitários como democratas; imaginem o cabeçalho — disse o Sr. Craken com muito mau humor. — E o Hake, Caso-Difícil, vai dedicar a nova cadeira comercial à memória de William Morris?

— Bem — disse o Mestre, mantendo ainda uma jovialidade desesperada —, espero que possamos dizer, em certo sentido, que todas as nossas cadeiras são cadeiras de camaradagem.

— Sim, essa é a versão académica da máxima Morris — resmungou Craken. — Uma camaradagem é o paraíso; e a falta de uma camaradagem é o inferno.

— Não se zangue, Craken — interveio o tesoureiro com vivacidade. — Beba um porto. Tenby, passe o porto ao Sr.. Craken.

— Oh, está bem, bebo um copo — disse o professor comunista com um pouco menos de rudeza. — Na verdade, vim aqui para fumar no jardim. Depois olhei pela janela e vi os vossos dois milionários afectados a resplandecer no jardim; botões viçosos e inocentes. Afinal, talvez valesse a pena dar-lhes um pouco do meu espírito.

O Mestre levantara-se sob a máscara da cordialidade convencional mais recente, e ficou muito contente por deixar o tesoureiro a fazer o melhor que pudesse com o Selvagem. Outros tinham-se levantado, e os grupos à mesa tinham começado a dispersar. O tesoureiro e o Sr. Craken ficaram mais ou menos sozinhos na extremidade da mesa comprida. Apenas o padre Brown continuou sentado a olhar para o vazio com uma expressão um pouco sombria.

— Oh, quanto a isso — disse o tesoureiro —, estou bastante farto deles, para dizer a verdade. Estive quase todo o dia com eles a analisar factos e números e tudo o que concerne a essa nova cadeira. Mas olhe, Craken — e debruçou-se sobre a mesa e falou com uma espécie de ênfase branda —, não precisava de fazer tanto barulho por causa dessa nova cadeira. Na realidade, não interfere na sua matéria. É o único professor de Economia Política em Mandeville, e, embora eu não pretenda concordar com as suas ideias, todos sabem que tem uma reputação europeia. Esta é uma matéria especial a que chamam Economia Aplicada. Por outras palavras, tive de falar de negócios com dois homens de negócios. Gostaria de o fazer? Invejaria esta tarefa? Suportá-la-ia? Isso não é prova suficiente de que existe uma matéria distinta e de que pode muito bem ser uma cadeira distinta?

— Meu Deus! — exclamou Craken com a invocação ardente de um ateu. — Pensa que eu não pretendo aplicar a Economia? Só quando nós a aplicamos é que dizem que se trata de destruição comunista e anarquia; e quando vocês a aplicam, eu tomo a liberdade de dizer que se trata de exploração. Se alguma vez aplicarem a economia, é muito possível que as pessoas consigam alguma coisa para comer. Nós somos pessoas práticas; e é por isso que nos temem. É por isso que têm de arranjar dois capitalistas manhosos para criarem outro leitorado; só porque eu deixei o gato fora do saco.

— Deixou um gato bastante selvagem fora do saco — disse o tesoureiro a sorrir. — Não foi?

— E um saco de ouro, não foi — disse Craken —, que estão a atar outra vez com o gato lá dentro?

— Bem, não creio que alguma vez estejamos de acordo em relação a tudo isso — disse o outro. — Mas aqueles companheiros saíram da capela para irem para o jardim; e se quer fumar lá, é melhor vir. — observou, divertido, o companheiro a procurar nos bolsos todos até tirar um cachimbo, e depois, ficou a olhar para ele, pasmado. Craken levantou-se, mas mesmo ao fazer isso, parecia sentir-se outra vez completamente senhor de si. Sr. Baker, o tesoureiro, pôs termo à controvérsia com uma gargalhada feliz de reconciliação. — Vocês são pessoas práticas, e farão explodir a cidade com dinamite. Talvez se esqueçam dela, como aposto que você se esqueceu do tabaco. Deixe lá, encha-o com o meu. Fósforos? — fez deslizar uma bolsa de tabaco e os acessórios na mesa, que foram apanhados pelo Sr. Craken com aquela destreza que um jogador de críquete nunca esquece, mesmo quando adopta conceitos que geralmente não são considerados dignos de um desportista.

Os dois homens levantaram-se ao mesmo tempo, mas Baker não pôde evitar fazer uma observação.

— São realmente as únicas pessoas práticas? Não há nada que se diga a favor da Economia Aplicada, que faça com que uma pessoa não se esqueça de trazer não só a bolsa do tabaco, mas também o cachimbo?

Craken fitou-o com um olhar furioso e disse, por fim, depois de beber o vinho devagar:

— Digamos que existe outro tipo de espírito prático. Creio bem que me esqueço de pormenores e coisas do género. Aquilo que quero que perceba é isto — devolveu automaticamente a bolsa; mas o seu olhar era distante e flamejante, quase terrível: — porque o interior do nosso intelecto mudou, porque temos realmente uma nova concepção daquilo que está certo, faremos coisas que considera deveras erradas. E serão muito práticas.

— Sim — disse o padre Brown, despertando repentinamente do êxtase. — É precisamente aquilo que eu disse.

Olhou de esguelha para Craken com um sorriso hialino e um tanto sinistro, dizendo:

— Sr. Craken e eu estamos totalmente de acordo.

— Bem — disse Baker —, Craken vai lá para fora fumar cachimbo com os plutocratas; mas duvido que vá ser o cachimbo da paz.

Virou-se bruscamente e chamou um criado de idade que estava no fundo da sala. Mandeville era um dos últimos colégios universitários mais antigos, e mesmo Craken era um dos primeiros comunistas; antes do bolchevismo de hoje.

— Isso faz-me pensar — dizia o tesoureiro — que, uma vez que não vai passar o cachimbo da paz, temos de mandar os charutos para os nossos ilustres convidados. Se são fumadores devem estar com uma vontade enorme de fumar, pois têm andado a examinar todos os cantos da capela, desde a última refeição.

Craken soltou uma gargalhada violenta e desagradável.

— Oh, eu levo-lhes os charutos — disse ele. — Eu sou apenas um proletário.

Baker, Brown e o criado viram o comunista sair com grandes passadas para o jardim para enfrentar os milionários; mas não se viu mais nada, nem se ouviu falar deles até ao momento, como já foi referido, em que o padre Brown deu com eles, mortos, nas cadeiras.

Foi acordado que o Mestre e o padre deveriam ficar lá para guardarem o local da tragédia. Enquanto o tesoureiro, mais novo e mais ágil, ia buscar médicos e polícias. O padre Brown aproximou-se da mesa onde ficara aceso um dos charutos, restando apenas uma ou duas polegadas; o outro caíra da mão e ficara reduzido a faúlhas que se extinguiram no carreiro feito de pedras irregulares. O Mestre de Mandeville sentou-se trémulo num banco suficientemente distante e enterrou a testa calva nas mãos. Depois levantou os olhos, a princípio com alguma lassidão, e então ficou com um ar muito assustado e quebrou o silêncio do jardim com uma palavra, como uma pequena explosão de horror.

Havia qualquer coisa no padre Brown a que se podia chamar arrepiante, às vezes. Pensava sempre naquilo que estava a fazer e nunca se estava feito; fazia as coisas mais repelentes, ou horríveis, ou indignas, ou sujas, com a mesma calma de um cirurgião. No seu espírito simples havia um certo vazio de todas aquelas coisas que geralmente se associam à superstição ou ao sentimentalismo. Sentou-se na cadeira onde caíra o cadáver, apanhou o charuto que o homem fumara parcialmente, tirou cuidadosamente a cinza, examinou a extremidade e depois enfiou-o na boca e acendeu-o. Parecia um palhaço obsceno e grotesco a escarnecer dos mortos; e para ele parecia ser o senso comum mais vulgar. Uma nuvem subiu no ar como o fumo de um sacrifício selvagem e idolatria, mas para o padre Brown parecia um facto perfeitamente incontestável de que a única maneira de descobrir como é um charuto é fumá-lo. Nem o facto de ter um pressentimento vago, mas vivo, de que o padre Brown estava, dadas as circunstâncias do caso, a pôr em risco a sua própria vida, não diminuiu o medo que o Mestre de Mandeville sentia por causa do seu velho amigo.

— Não, penso que está tudo bem — disse o padre, voltando a pousar a ponta do charuto. — Charutos óptimos. Os vossos charutos. Nem americanos nem alemães. Não creio que haja alguma coisa estranha no charuto em si; mas será melhor terem cuidado com as cinzas. Estes homens foram envenenados com uma substância que endurece rapidamente o corpo. A propósito, acolá vai alguém que sabe mais disto do que nós.

O Mestre endireitou-se com um movimento brusco e curiosamente incómodo; pois, na realidade, a sombra larga que caíra no carreiro, precedia uma figura que, embora fosse pesada, era quase tão suave como uma sombra. O Prof. Wadham, ocupante eminente da cadeira de Química, caminhava sempre muito silenciosamente, apesar da estatura, e não era nada estranho que andasse a deambular pelo jardim; todavia parecia haver algo espantosamente perfeito no facto de ter aparecido precisamente no momento em que se falava de química.

O Prof. Wadham orgulhava-se da sua quietude; alguns diriam da sua insensibilidade. Não virou um pêlo na cabeça achatada e loira como estriga de linho, mas ficou a olhar para os homens mortos com qualquer coisa que parecia vagamente indiferença no rosto largo, semelhante ao das rãs. Só quando olhou para a cinza do charuto, que o padre conservara, é que lhe tocou com um dedo; depois deu a impressão que tinha ficado ainda mais quieto; mas na sombra do seu rosto, os olhos por instantes pareciam projectar-se telescopicamente como um dos seus microscópios. Ele certamente compreendera ou reconhecera alguma coisa, mas não disse nada.

— Não sei por onde alguém vai poder começar neste caso — disse o Mestre.

— Eu começaria — disse o padre Brown — por perguntar onde estes desgraçados estiveram a maior parte do dia.

— Andaram bastante tempo no meu laboratório — disse Wadham, falando pela primeira vez. — Baker vai lá muitas vezes para conversar, e desta vez levou os dois patronos para inspeccionarem o meu departamento. Mas penso que foram a toda a parte; verdadeiros turistas. Sei que foram à capela e entraram mesmo no túnel por debaixo da cripta, onde se tem de acender as velas; em vez de digerirem a comida como homens sensatos. Parece que o Baker os levou a toda a parte.

— Interessaram-se por alguma coisa em particular no seu departamento? — perguntou o padre. — Nessa altura o que estava o senhor a fazer?

O professor de Química murmurou uma fórmula química que começava por «sulfato», e terminava em qualquer coisa parecida com «selénio», ininteligível para os dois ouvintes. Ele afastou-se com lassidão em seguida e sentou-se num banco afastado ao sol, fechando os olhos, mas levantando o rosto largo com invulgar presença de espírito.

Neste ponto, por um forte contraste, os relvados foram atravessados por uma figura viva que se deslocava tão velozmente e tão a direito como uma bala; e o padre Brown reconheceu a roupa preta e asseada e o rosto vivo como o focinho de um cão do médico da polícia que conhecera na zona mais pobre da cidade. Foi o primeiro a chegar do contingente oficial.

— Olhe — disse o Mestre ao padre, antes de o médico se aproximar —, preciso de saber uma coisa. Estava a falar a sério quando disse que o comunismo era um perigo real e levava ao crime?

— Sim — disse o padre Brown, fazendo um sorriso um tanto sinistro —, realmente tenho notado o alastramento de métodos e influências comunistas, e, em certo sentido, isto é um crime comunista.

— Obrigado — disse o Mestre. — Então tenho de ir tratar de um assunto imediatamente. Diga às autoridades que voltarei daqui a dez minutos.

O Mestre desaparecera numa das arcadas Tudor quase no momento em que o médico da polícia chegara à mesa e reconhecera com alegria o padre Brown. Quando este último sugeriu que tinham de se sentar à mesa da tragédia, o Dr. Blake lançou um olhar penetrante e desconfiado ao químico alto, brando e aparentemente sonolento, que ocupava um banco mais afastado. Foi devidamente informado da identidade do professor, e daquilo que fora recolhido do depoimento do mesmo até àquele momento, ouvindo tudo em silêncio enquanto fazia um exame preliminar aos cadáveres. Naturalmente, parecia mais concentrado nos cadáveres autênticos que no relato do depoimento, até que um pormenor o distraiu subitamente, completamente da ciência de anatomia.

— Que foi que o professor disse que estava a fazer? — perguntou ele.

O padre Brown repetiu pacientemente a fórmula química, que não percebeu.

— Quê? — disse o Dr. Blake com brusquidão, como um tiro de pistola. — Caramba! Isso é terrível!

— Porque é veneno? — perguntou o padre Brown.

— Porque é um disparate — replicou o Dr. Blake. — Não passa de um disparate. O professor é um químico muito famoso. Por que é que um químico famoso diz disparates deliberadamente?

— Bem, penso que sei responder — retorquiu calmamente o padre Brown. — Diz disparates porque está a mentir. Esconde alguma coisa, e quis, sobretudo, que aqueles dois homens e os seus representantes não soubessem.

O médico desviou os olhos dos dois homens e olhou para a figura do grande químico, quase estranhamente imóvel. Talvez estivesse a dormir; uma borboleta do jardim pousara nele e parecia transformar a sua quietude na quietude de um ídolo de pedra. As pregas largas do rosto semelhante ao de uma rã faziam lembrar ao médico as peles pendentes de um rinoceronte.

— Sim — disse o padre Brown, num tom de voz muito baixo. — É um homem malévolo.

— Diabo! — exclamou o médico, subitamente impressionado. — Quer dizer que um grande cientista como aquele é conivente em crimes de morte?

— Os críticos mais exigentes ter-se-iam queixado da sua conivência em crimes de morte — disse o padre, calmamente. — Não digo que goste muito de pessoas que são coniventes em crimes desses. Mas a questão principal é que eu tenho a certeza que aqueles desgraçados se contavam entre os seus críticos mais exigentes.

— Quer dizer que descobriram o segredo dele e ele silenciou-os? — disse Blake, franzindo as sobrancelhas. — Mas qual era o segredo? Como é que um homem podia matar em grande escala num sítio como este?

— Revelei-lhe o segredo dele — disse o padre. — É um segredo da alma. É um homem perverso. Por amor de Deus, não pense que digo isto porque ele e eu somos de escolas, ou tempos, ou tradições diferentes. Tenho muitos amigos cientistas, e a maior parte deles são heroicamente desinteressados. Mesmo os mais cépticos, diria somente que são irracionalmente desinteressados. Mas de vez em quando, encontra-se um homem que é materialista, no sentido de uma besta. Repito que ele é um homem perverso. Muito pior do que... — E o padre Brown parecia hesitar em busca da palavra desejada.

— Quer dizer muito pior do que o comunista? — sugeriu o outro.

— Não; quero dizer muito pior do que o assassino — disse o padre Brown.

Levantou-se distraidamente, e quase não notou que o companheiro o fitava.

— Mas não quis dizer — perguntou Blake, por fim — que esse Wadham é o assassino?

— Oh, não — disse o padre Brown com mais jovialidade. — O assassino é uma pessoa muito mais simpática e compreensível. Ele pelo menos estava desesperado, e a fúria súbita e o desespero justificavam-se.

— Porquê? — exclamou o médico. — Quer dizer que afinal foi o comunista?

Foi nesse preciso momento, bastante apropriado, que os agentes da polícia apareceram com uma notícia que parecia resolver o caso de um modo decisivo e satisfatório. Tinham chegado mais tarde ao local do crime, devido ao facto de terem já capturado o criminoso. Na realidade, tinham-no capturado quase na entrada da residência oficial. Já tinham motivos para suspeitar das actividades de Craken, o comunista, durante vários tumultos na cidade; quando souberam do crime, acharam que seria mais seguro prendê-lo, e consideraram a prisão inteiramente justificada. Pois, quando o inspector Cook explicou cheio de alegria aos professores e doutores, mal procuraram o comunista muito conhecido e constataram que trazia efectivamente uma caixa com fósforos envenenados.

Assim que o padre Brown ouviu a palavra «fósforos», saltou da cadeira como se tivessem acendido um fósforo debaixo dele.

— Ah — exclamou ele, com uma espécie de esplendor universal —, e agora está tudo claro!

— Que pretende dizer com a expressão «tudo claro»? — perguntou o Mestre de Mandeville, que regressara com toda a pompa do seu próprio oficialismo para igualar a pompa dos agentes da polícia que ocupavam já o colégio universitário como um exército vitorioso. — Quer dizer que agora está convencido que o caso contra Craken está esclarecido?

— Quero dizer que Craken está ilibado — disse o padre Brown com firmeza. — E o caso contra Craken está posto de lado. Acredita mesmo que ele é homem para andar a envenenar pessoas com fósforos?

— Está tudo muito bem — replicou o Mestre, com a expressão aflita que não perdera desde que se dera a primeira sensação. — Mas disse que fanáticos com falsos princípios podem fazer coisas terríveis. Quanto a esse assunto, foi você mesmo que disse que o comunismo está a aparecer em todo o lado e que as tendências dos comunistas se estão a alastrar.

O padre Brown riu-se com um sorriso um tanto tímido.

— Quanto a esse último ponto — disse ele —, creio que lhe devo um a satisfação. Parece que baralho tudo com as minhas estúpidas piadas.

— Piadas! — repetiu o Mestre, com os olhos arregalados de indignação.

— Bem — explicou o padre, coçando a cabeça. — Quando falei numa tendência comunista que se estava a alastrar, referia-me apenas a uma tendência que me apercebi duas ou três vezes, hoje mesmo. É uma tendência comunista que não é de modo nenhum exclusiva dos comunistas. É uma que muitos homens têm, sobretudo os ingleses, de meterem as caixas de fósforos das outras pessoas nos bolsos, sem se lembrarem de as devolver. Claro que pode parecer uma coisa insignificante para se perder tempo com ela. Mas acontece que foi assim que se cometeu o crime.

— Eu acho isso um disparate — disse o médico.

— Bem, se qualquer pessoa pode esquecer-se de devolver os fósforos, pode apostar que Craken se esqueceria de os devolver. Assim, o envenenador, que prepara os fósforos, livrou-se deles, entregando-os a Craken, pelo simples processo de os emprestar sem pedir que os devolvessem. Um processo admirável de fugir à responsabilidade, porque o próprio Craken seria incapaz de se lembrar onde os arranjara. Mas, quando se serviu deles, inocentemente, para acender os charutos que ofereceu aos nossos dois visitantes, foi apanhado numa armadilha evidente; uma daquelas armadilhas evidentes de mais. Era o revolucionário impudente e mau que assassinara os dois milionários.

— Então quem mais quereria matá-los? — resmungou o médico.

— Ah, quem? — replicou o padre; e o tom da sua voz tornou-se muito mais grave. — Chegamos então à outra coisa que eu lhe disse; e isso, deixe que lhe diga, não era uma piada. Disse-lhe que as heresias e as falsas doutrinas se tinham tornado comuns e frequentes em conversas; que todos estavam habituados a elas; que ninguém lhes prestava realmente atenção. Pensou que me referia ao comunismo quando disse isto? Era precisamente o contrário. Andavam todos tão nervosos como gatos por causa do comunismo e vigiavam Craken como se fosse um lobo. Claro que o comunismo é uma heresia, mas não é uma heresia que aceitam como verdadeira. É o capitalismo que aceitam como verdadeiro; ou melhor os vícios do capitalismo sob a máscara de um darwinismo morto. Lembram-se daquilo que todos estavam a dizer na sala de estar dos professores, acerca da vida que era apenas uma competição renhida, e que a natureza exigia a sobrevivência dos melhores, e que não importava se os pobres são pagos com justiça ou não? Esta, meus amigos, é a heresia a que se habituaram; e é precisamente uma heresia como o comunismo. Esta é a moralidade anticristã ou imoralidade que aceitam com toda a naturalidade. E essa é a imoralidade que fez hoje de um homem um assassino.

— Qual homem? — gritou o Mestre, e o tom da sua voz enfraqueceu subitamente.

— Deixe-me aflorar a questão de outra maneira — disse calmamente o padre. — Todos falam como se Craken tivesse fugido; mas não fugiu. Quando os dois homens caíram, correu pela rua abaixo, chamou o médico, gritando apenas através da janela, e pouco tempo depois tentava chamar a polícia. Foi assim que ele foi preso. Mas não o surpreende, agora que se pensa nisso, que Mr. Baker, o tesoureiro, ande à procura da polícia há tanto tempo?

— Então... que está ele a fazer? — perguntou o Mestre, com rispidez.

— Suponho que está a destruir papéis; ou talvez a esquadrinhar os quartos desses homens para ver se não nos deixaram uma carta. Ou talvez tenha alguma coisa a ver com o nosso amigo Wadham. Onde é que ele entra? Isso é realmente muito simples e também de certo modo uma piada. O Sr. Wadham está a fazer experiências com venenos para a próxima guerra, e um deles deita um fumo que matará uma pessoa. Claro que ele não teve nada a ver com a morte daqueles homens, mas escondeu o segredo químico por uma razão muito simples. Um deles era um americano puritano e o outro um judeu cosmopolita, e estes dois tipos são muitas vezes pacifistas fanáticos. Ter-lhe-iam chamado assassínio planeado e provavelmente ter-se-iam recusado a ajudar a faculdade. Mas Baker era amigo de Wadham e não teve dificuldade em mergulhar fósforos na nova substância.

Outra particularidade do padre de baixa estatura era que tinha um espírito aberto, e não tinha consciência de muitas incongruências; quando falava, passava de um assunto público para um particular, sem nenhuma perturbação especial. Daquela vez, fez com que quase todos arregalassem os olhos de estupefacção, começando por falar com uma pessoa quando estivera a falar com dez, completamente indiferente ao facto de que apenas essa podia fazer ideia daquilo que ele estava a dizer.

— Desculpe se o induzi em erro, doutor, com aquela divagação metafísica sobre o pecador — disse ele, apologeticamente. — Claro que não tinha nada a ver com o assassínio, mas a verdade é que na altura me esqueci disso por completo. Esqueceria tudo, compreende, excepto aquela visão do indivíduo, com um rosto enorme e desumano, acocorado no meio das flores como um monstro cego da Idade da Pedra. E estava a pensar que alguns homens são monstruosos, como homens de pedra, mas era tudo irrelevante. Ser mau por dentro tem muito pouco a ver com a perpetração de crimes cá fora. Os piores criminosos não cometeram crimes. O aspecto prático é por que razão o criminoso prático cometeu este crime. Por que razão quis Baker, o tesoureiro, matar estes homens? Neste momento, só isso nos interessa. A resposta é a resposta à pergunta que eu fiz duas vezes. Onde estiveram estes homens a maior parte do tempo, para além de andarem a meter o nariz em capelas ou laboratórios? Segundo as palavras do próprio tesoureiro, estiveram a falar de negócios com ele.

»Agora, com todo o respeito pelos mortos, não me rendo ao intelecto desses dois financeiros. As suas opiniões sobre economia e ética eram pagãs e desumanas. As sobre a paz eram absurdas. Aquelas que tinham sobre o vinho do Porto eram ainda mais deploráveis. Mas percebiam de uma coisa: negócios. E levaram muito pouco tempo a descobrir que o homem de negócios encarregado dos fundos deste colégio universitário era um vigarista. Ou, devo dizer, um verdadeiro seguidor da doutrina da luta, sem restrições pela vida e pela sobrevivência dos melhores.

— Quer dizer que iam denunciá-lo e ele matou-os antes de poderem falar — disse o médico, franzindo as sobrancelhas. — Há muitos pormenores que não compreendo.

— Eu também não tenho a certeza acerca de alguns pormenores — disse o padre, com sinceridade. — Desconfio que aquela história das velas escondidas serviu para o roubo dos fósforos dos milionários ou talvez para garantir que não tinham fósforos. Mas tenho a certeza em relação ao gesto principal, o alegre e descuidado gesto de Baker a atirar os fósforos ao descuidado Craken. Esse foi o golpe mortal.

— Há uma coisa que eu não entendo — disse o inspector. — Como é que Baker sabia que Craken não acenderia um fósforo para fumar à mesa e não se tornaria num cadáver indesejado?

O rosto do padre Brown ficou quase com uma expressão de censura, e havia na sua voz uma vivacidade um tanto melancólica, mas generosa.

— Diabos levem tudo isto! — disse ele. — Ele era apenas um ateu.

— Receio não perceber o que quer dizer — disse o inspector, delicadamente.

— Ele só queria abolir Deus — explicou o padre Brown, num tom moderado e razoável. — Só queria destruir os Dez Mandamentos; arrancar pela raiz toda a religião e civilização que o criara; fazer desaparecer todo o senso comum de posse e honestidade; e deixar que a sua cultura e o seu país fossem banidos da face da terra por selvagens. Era tudo o que ele queria. Não tem nenhum direito de o acusar de mais nada. Diabos levem tudo isto, toda a gente põe um termo a dada altura! E o senhor chega aqui e sugere calmamente que um homem de Mandeville, pertencente à antiga geração (pois Craken fazia parte da velha geração, fossem quais fossem as suas opiniões), que começaria a fumar, ou acenderia mesmo um fósforo, enquanto bebia o vinho do Porto da faculdade, da colheita de 1908... Não, não; os homens não vivem assim sem leis e limites! Eu estava lá; eu vi-o; ele não acabara de beber o vinho, e pergunta-me por que não fumou! Nunca nenhuma pergunta tão anárquica fez tremer os arcos do colégio Mandeville. Lugar singular, Oxford. Lugar singular, Inglaterra!

— Mas tem alguma relação particular com Oxford? — perguntou o médico, cheio de curiosidade.

— Tenho com a Inglaterra — disse o padre Brown. — Sou natural de lá. E a coisa mais curiosa é que mesmo que se goste dela ou se lhe pertença, não se consegue compreendê-la.

 

 

A PONTA DE UM ALFINETE

O padre Brown sempre afirmou que solucionou este problema durante o sono. E era verdade, se bem que de uma forma um tanto estranha; porque ocorreu num momento em que o sono foi perturbado. Foi perturbado de manhã bem cedo pelo martelar que começou no edifício gigantesco, ou meio edifício, que estava a ser construído em frente aos seus aposentos; uma colossal pilha de andares, ainda quase todos cobertos com andaimes e com tábuas, anunciando os senhores Swindon & Sand como os construtores e proprietários. O martelar repetia-se com intervalos regulares e era facilmente identificável: porque a firma Swindon & Sand se especializara num novo sistema americano de pavimentação em cimento que, apesar da subsequente lisura, solidez, impermeabilidade e conforto permanente (conforme se descrevia nos anúncios), tinha de ser fixado em certos pontos com ferramentas pesadas. O padre Brown, contudo, procurava não se incomodar demasiado, dizendo que o despertava sempre a tempo da primeira missa, e era, portanto, uma coisa do género de um carrilhão. Afinal, dizia ele, era quase tão poético que os cristãos fossem acordados por martelos como por sinos. Na realidade, as operações de construção, porém, irritavam-no um pouco, por outro motivo. Porque pairava como uma nuvem sobre o arranha-céus meio construído a possibilidade de uma crise laboral, que os jornais teimosamente insistiam em descrever como greve. Na verdade, se tal viesse a acontecer, seria um lock-out. Mas andava muito preocupado com essa eventualidade. E poder-se-ia perguntar se o martelar é mais uma tensão sobre a atenção, porque pode prolongar-se indefinidamente, ou porque pode parar de um momento para o outro.

— Por uma simples questão de gosto e imaginação — disse o padre Brown, olhando fixamente para o edifício com os óculos de mocho —, preferia que parasse. Gostava que todas as casas parassem enquanto têm ainda os andaimes. Chega a ser quase lamentável que as casas sejam concluídas. Têm um aspecto tão fresco e prometedor com toda aquela filigrana feérica de madeira branca; tão alegres e brilhantes ao sol; e muitas vezes um homem termina uma casa apenas para a transformar num túmulo.

Quando se afastava do objecto do seu exame minucioso, quase chocou com um homem que atravessava a rua a correr em direcção a ele. Era um homem que conhecia superficialmente, mas o suficiente para o considerar (naquelas circunstâncias) como uma espécie de ave agoirenta. O Sr. Mastyk era um homem atarracado com uma cabeça quadrada, que mal parecia europeu, vestido com um dandismo exagerado que parecia antes conscientemente europeizado. Mas Brown vira-o recentemente a falar com o jovem Sand da firma de construção, e não lhe agradou. Esse tal Mastyk era o chefe de uma organização nova na política industrial inglesa; criada por extremos em ambos os lados; um autêntico exército de não sindicalizados e trabalhadores estrangeiros contratados em grupos para várias firmas; e ele estava obviamente a rondar na esperança de a alugar para aquela. Resumindo, talvez negociasse uma forma de vencer o sindicato em estratégia e inundar as obras com substitutos dos grevistas. O padre Brown fora arrastado para alguns desses debates, sendo em certo sentido solicitado por ambas as partes. E enquanto os capitalistas declaravam que ele era um bolchevista e os bolchevistas afirmavam que ele era um reaccionário, intimamente ligado às ideologias bourgeois, pode concluir-se que ele dizia algumas coisas acertadas sem um efeito apreciável nas pessoas. As notícias trazidas pelo Sr. Mastyk, contudo, deveriam arrancar toda a gente da rotina vulgar da disputa.

— Querem que vá lá imediatamente — disse Sr. Mastyk, num inglês com sotaque arrevesado. — Há uma ameaça de morte.

O padre Brown seguiu o guia em silêncio, subindo várias escadarias e escadas de mão até a uma plataforma do prédio inacabado, onde estavam reunidas as figuras mais ou menos conhecidas das altas esferas da construção. Incluíam mesmo aquilo que em tempos fora a sua cabeça; embora ela tivesse sido durante algum tempo mais uma cabeça nas nuvens. Era pelo menos uma numa coroa, que se escondia da vista humana como uma nuvem. Lorde Stanes, por outras palavras, não só abandonara o mundo dos negócios, mas também fora levado para a Câmara dos Lordes e desaparecera. As suas raras reaparições eram desinteressantes e um tanto desinteressantes e lúgubres, mas aquela, juntamente com a de Mastyk, parecia, não obstante, ameaçadora. Lorde Stanes era um homem magro, de cabeça alongada, olhos fundos e cabelo loiro muito fraco, quase ralo; e era a pessoa mais evasiva que o padre já conhecera. Ninguém o igualava no verdadeiro talento de Oxford para dizer: «Tem toda a razão», para soar: «Sem dúvida pensa que tem razão», ou simplesmente para comentar: «Julga que sim?» para sugerir o suplemento ácido: «Pensaria.» Mas o padre Brown supunha que o homem não estava apenas enfadado, mas também um pouco irritado, embora fosse difícil saber se era por ter sido obrigado a descer do Olimpo para controlar querelas de negócios, ou simplesmente por já não as controlar.

De uma maneira geral, o padre Brown preferia o grupo de sócios mais bourgeois, Sir Hubert Sand e o sobrinho Henry; embora duvidasse interiormente que tivessem realmente muitas ideologias. De facto, Sir Hubert Sand alcançara uma reputação considerável nos jornais; tanto como patrono do desporto como patriota em muitas crises, durante e depois da Grande Guerra. Tornara-se uma notabilidade em França, para um homem da sua idade, e fora caracterizado mais tarde como um capitão triunfante da indústria, que vencia os obstáculos no seio dos operários das fábricas de munições. Chamaram-lhe um Homem Forte, mas a culpa não foi dele. Era de facto um inglês pesado, forte; um grande nadador; um excelente fidalgo rural; um coronel amador admirável. Na realidade, somente uma coisa que podia chamar-se um temperamento militar impregnava a sua aparência. Estava a ficar obeso, mas mantinha as costas direitas; o cabelo encaracolado e o bigode ainda estavam castanhos, enquanto a cor do rosto estava já um pouco baça e macilenta. O sobrinho era um jovem corpulento, enérgico ou, melhor, atrevido, com uma cabeça relativamente pequena, inclinada para diante sobre um pescoço grosso, como se atacasse as coisas com a cabeça baixa; uma atitude que se tornava de certo modo um tanto bizarra e infantil, devido às lunetas que estavam equilibradas no nariz achatado de pugilista.

O padre Brown já olhara antes para tudo isto, e naquele momento todos estavam a olhar para uma coisa completamente nova. No centro do madeiramento estava pregado um papel grande onde tinham escrito à pressa qualquer coisa com letras maiúsculas grosseiras e quase irregulares, como se o autor fosse praticamente analfabeto ou estivesse a fingir ou a parodiar o analfabetismo. Dizia o seguinte:

A Assembleia dos Trabalhadores adverte Hubert Sand de que se ele baixar os salários e não deixar entrar os trabalhadores haverá consequências mais drásticas. Amanhã, se houver despedimentos, será morto pela justiça popular.

Lorde Stanes afastava-se, recuando, depois de examinar o papel, e, olhando de esguelha para o sócio, disse com uma entoação muito estranha:

— Então é a si que querem matar. Evidentemente que acham que eu não mereço ser morto.

Um daqueles choques eléctricos, suaves da imaginação, que às vezes faziam vibrar o espírito do padre Brown de uma forma quase sem sentido, atravessaram-no rapidamente naquele preciso momento. Tinha a impressão de que o homem que estava a falar já não podia ser morto, porque já estava. Era, reconheceu ele com alegria, uma ideia perfeitamente disparatada. Mas havia qualquer coisa que sempre o horrorizava na fineza e desencanto do sócio aristocrata e mais antigo, na cor cadavérica e nos olhos sem vida. «O indivíduo», pensou da mesma maneira perversa, «tem olhos verdes e parece que tem sangue verde.»

Em todo o caso, era certo que Sir Hubert Sand não tinha sangue verde. O seu sangue, que era bastante vermelho em todos os sentidos, subia às suas faces enrugadas ou marcadas pelo tempo com toda a vivacidade e ardor que pertence à indignação natural e inocente das pessoas com bom coração.

— Em toda a minha vida — disse ele, numa voz forte e trémula —, nunca me fizeram nem disseram tais coisas a meu respeito. Posso ter mudado de opinião.

— Em relação a isso nunca podemos ter outra opinião — interveio o sobrinho com impetuosidade. — Tentei estar em boas relações com eles, mas isto é um pouco de mais.

— Não está a pensar — começou o padre Brown — que os seus operários...

— Digo que podem ter mudado de opinião — disse o velho Sand, ainda com alguma agitação. — Deus sabe que nunca me agradou a ideia de ameaçar trabalhadores ingleses com mão-de-obra mais barata.

— A nenhum de nós agradava essa ideia — disse o jovem —, mas se bem o conheço, tio, isto quase resolveu a questão.

Então, depois de uma pausa, acrescentou:

— Suponho, como o senhor disse, que estamos em desacordo em relação aos pormenores, mas quanto à verdadeira política...

— Meu caro amigo — disse o tio calmamente —, esperava que nunca chegasse a haver desacordo. — Com base nisto, qualquer pessoa que compreenda a nação inglesa pode muito bem concluir que houvera um desacordo considerável. Na realidade, o tio e o sobrinho divergiam quase tanto como um inglês e um americano. O tio tinha o ideal inglês de não se envolver nos negócios, e de arranjar uma espécie de álibi como um fidalgo rural. O sobrinho tinha o ideal americano de se envolver nos negócios; de entrar no próprio mecanismo como um mecânico. E, de facto, trabalhara com a maioria dos mecânicos e estava familiarizado com a maioria dos processos e truques do ramo. E era uma vez mais americano, pela simples razão de que fazia isto em parte como patrão, para manter os seus homens no nível desejado, mas de uma forma vaga também como um igual, ou pelo menos com um orgulho de se mostrar como um trabalhador. Assim aparecera muitas vezes quase como um representante dos trabalhadores, em questões técnicas que estavam a cem milhas de distância da superioridade popular do tio em política ou desporto. A recordação dessas ocasiões, quando o jovem Henry saíra praticamente da oficina em mangas de camisa, para pedir uma concessão relacionada com as condições de trabalho, conferia uma força peculiar e até violência à sua reacção contrária naquele momento.

— Então, desta vez ficam na rua por culpa deles! — exclamou ele. — Depois de uma ameaça como aquela só nos resta fazer-lhes frente. Só nos resta pô-los a todos na rua, imediatamente; sem demora. Caso contrário, seremos objecto de ridículo.

O velho Sand franziu as sobrancelhas com igual indignação, mas começou devagar:

— Serei muito criticado.

— Criticado! — exclamou o jovem com voz esganiçada. — Criticado se desafiar uma ameaça de morte! Faz alguma ideia de como será criticado se não a desafiar? Não gostará do cabeçalho? «Grande capitalista aterrorizado» — «Patrão rende-se a ameaça de morte.»

— Especialmente — disse Lorde Stanes, com um tom vagamente irritado. — Especialmente porque já apareceu em tantos cabeçalhos como «O homem forte da construção em aço».

Sand ficara outra vez muito vermelho e a voz saiu pastosa debaixo do bigode espesso.

— Claro que nesse ponto tem razão. Se estes brutos pensam que eu tenho medo!

Neste momento deu-se uma interrupção na conversa do grupo; e um rapaz correu para eles. A primeira coisa digna de nota é que ele era uma daquelas pessoas que os homens e as mulheres também consideram um pouco atraentes demais para serem escrupulosos. Tinha um belo cabelo escuro e encaracolado, um bigode sedoso e falava como um cavalheiro, mas com um sotaque quase excessivamente refinado e perfeitamente modulado. O padre Brown identificou-o logo como Rupert Rae, o secretário de Sir Hubert, que vira muitas vezes a deambular na casa dele, mas nunca com tanta impaciência nos movimentos ou com aquela ruga na testa.

— Peço desculpa, sir — disse ele ao patrão —, mas anda um homem a rondar aqui perto. Fiz o melhor que podia para me livrar dele. Traz apenas uma carta, mas jura que tem de lha entregar pessoalmente.

— Quer dizer que primeiro foi a minha casa? — disse Sand, olhando rapidamente para o secretário. — Espero que tenha lá estado toda a manhã.

— Estive, sir — disse o Sr. Rupert Rae.

Fez-se silêncio por instantes, e depois Sir Hubert Sand declarou com laconismo que seria melhor irem buscar o homem, e este apareceu na devida altura.

Ninguém, nem mesmo a senhora menos exigente, teria dito que o recém-chegado era bonito demais. Tinha umas orelhas muito grandes e um rosto como uma rã, e olhava em frente com uma fixidez quase sinistra, que o padre Brown atribuiu ao facto de ele ter um olho de vidro. Na realidade, a sua imaginação foi tentada a equipar o homem com dois olhos de vidro, pois olhou para o grupo com uns olhos vítreos. Mas a experiência do padre, tão diferente da sua imaginação, foi capaz de sugerir várias causas naturais para aquele olhar anormal de figura de cera; uma delas seria um abuso do dom divino da bebida fermentada. O homem era baixo e pobre e trazia um grande chapéu de coco numa mão e uma grande carta selada na outra.

Sir Hubert Sand olhou para ele, e depois disse com bastante calma, mas com uma voz que de certo modo parecia estranhamente fraca, que saía da opulência da sua presença física:

— Oh... é você!

Estendeu a mão para pegar na carta, e olhou em redor como quem pede desculpa, com o dedo indicador no ar, antes de abrir e ler. Quando acabou de a ler, meteu-a no bolso interior e disse com vivacidade e alguma rispidez:

— Bem, como você diz, parece que toda esta história terminou. Já não são possíveis mais negociações; de qualquer maneira, não poderíamos pagar os salários que eles querem. Mas vou querer falar consigo outra vez, Henry, sobre... sobre a conclusão do assunto, de uma maneira geral.

— Muito bem — disse Henry, um pouco mal-humorado, talvez, como se preferisse pôr termo a tudo sozinho. — Estarei no número 188 depois do almoço; tenho de saber até onde chegaram.

O homem com o olho de vidro, se era um olho de vidro, afastou-se com passadas pesadas e ruidosas, e o olho do padre Brown (que não era de modo nenhum um olho de vidro) seguiu-o atentamente, enquanto abria caminho por entre as escadas e desaparecia na rua.

Foi na manhã seguinte que o padre Brown teve a experiência invulgar de acordar tarde; ou pelo menos de acordar sobressaltado com a impressão de que devia estar atrasado. Isto devia-se em parte ao facto de ele se lembrar, como uma pessoa se pode lembrar de um sonho, de ter estado meio acordado a uma hora mais usual e voltado a adormecer; uma ocorrência bastante comum com muitos de nós, mas uma ocorrência muito invulgar com o padre Brown. E depois convenceu-se de uma forma estranha, com aquele seu lado místico que normalmente era afastado do mundo, que naquela ilhota remota e escura do reino da fantasia, entre dois sonos, se encontrava a verdade daquela história como um tesouro enterrado.

Assim, saltou da cama com grande desembaraço, vestiu-se à pressa, pegou no enorme guarda-chuva nodoso e saiu apressadamente para a rua, onde despontava a manhã clara como gelo estilhaçado em redor do gigantesco edifício preto à frente dele. Ficou surpreendido ao encontrar as ruas quase desertas na claridade cristalina e fria; a própria visão dizia-lhe que não podia ser tão tarde quanto ele temia. Então, subitamente, a quietude foi quebrada por um automóvel rápido como uma seta que parou em frente dos andares enormes e desertos. Lorde Stanes saiu curvado e aproximou-se da porta, transportando (um pouco langoroso) duas malas grandes. Ao mesmo tempo, a porta abriu-se e deu a impressão que alguém recuou em vez de sair para a rua. Stanes chamou por duas vezes o homem que estava lá dentro, antes de essa pessoa completar, segundo parecia, o gesto inicial, saindo e parando no degrau da entrada; depois os dois homens entabularam uma conversa breve, acabando o lorde por levar as malas pelas escadas, e o outro por sair para a luz do dia, mostrando os ombros fortes e a cabeça perscrutadora do jovem Henry Sand.

O padre Brown não tirou mais nenhuma conclusão deste encontro bastante estranho, até que dois dias depois o jovem apareceu no seu carro e implorou ao padre que entrasse.

— Aconteceu uma coisa horrível — disse ele. — E eu prefiro falar com o senhor do que com Stanes. Sabe que ele apareceu no outro dia com a ideia louca de acampar num dos andares concluídos há pouco. Foi por isso que tive de lá ir cedo para lhe abrir a porta. Mas tudo se manterá na mesma. Quero que venha comigo imediatamente à casa do meu tio.

— Ele está doente? — perguntou o padre, prontamente.

— Creio que está morto — respondeu o sobrinho.

— Crê que está doente, que quer dizer com isso? — perguntou o padre com alguma vivacidade. — Tem um médico?

— Não — respondeu o outro. — Não tenho um médico nem um paciente. Não vale a pena chamar um médico para examinar o corpo; porque o corpo fugiu. Mas receio bem saber para onde fugiu... A verdade é que... guardámos segredo durante dois dias, mas ele desapareceu.

— Não seria melhor — disse o padre Brown calmamente — se me contasse o que realmente aconteceu do princípio?

— Sei — respondeu Henry Sand — que é uma vergonha falar irreverentemente do pobre velho, mas as pessoas são assim quando estão abaladas. Não sou lá muito bom para guardar segredos; tudo quanto há a dizer sobre isto é... Bem, vou resumir. É aquilo a que as pessoas chamariam antes um caso intrincado; lançar suspeitas ao acaso e etc. Mas resumindo, o meu infeliz tio suicidou-se.

Naquele momento deslizavam dentro do carro através das últimas ruas marginais da cidade, das primeiras orlas da floresta e do parque do outro lado; os portões da pequena propriedade de Sir Hubert Sand ficavam a cerca de meia milha de distância no meio do bosque de faias. A propriedade constava principalmente de um pequeno parque e um vasto jardim ornamental, que descia em terraços de uma certa pompa clássica até à margem do rio principal do distrito. Assim que chegaram à casa, Henry conduziu o padre a toda a pressa através dos antigos compartimentos georgianos até ao outro lado; onde desceram uma ladeira bastante íngreme coberta de flores em silêncio, de onde podiam ver o rio claro estender-se à sua frente quase tão plano como se fosse visto do alto. Dobravam a esquina do caminho por debaixo de uma enorme urna clássica coroada com uma grinalda de gerânios, um pouco desarmoniosa, quando o padre Brown se apercebeu de uma agitação nos silvados e nas árvores fracas mesmo por debaixo dele, que parecia rápida como um movimento de aves assustadas.

No labirinto de árvores esguias junto ao rio, duas figuras pareciam afastar-se ou seguir em diferentes direcções; uma esgueirou-se, desaparecendo nas sombras, e a outra avançou para os enfrentar, fazendo-os parar e impondo-lhes um silêncio brusco, um tanto inexplicável. Então Henry Sand disse no seu jeito indolente:

— Suponho que conhece o padre Brown, Lady Sand.

O padre Brown conhecia-a, mas naquele momento quase era capaz de dizer que não. A palidez e a contracção do seu rosto era como um a máscara de tragédia; era muito mais nova do que o marido, mas naquele momento parecia de certo modo mais velha do que qualquer coisa naquela velha casa e naquele jardim. E o padre recordou, com um estremecimento subconsciente, que ela era de facto mais velha em classe e linhagem e era a legítima possuidora da herdade. Pois a sua própria família possuíra-a como uma aristocracia empobrecida, antes de ela recuperar a fortuna, casando com um homem de negócios rico. Enquanto estava ali parado, podia ser um retrato de família ou mesmo um espectro de família.

O rosto pálido daquele tipo aguçado, embora oval, que se vêem nalgumas gravuras antigas da rainha Maria dos Escoceses; e a sua expressão parecia ultrapassar a anormalidade natural de uma situação, na qual o marido desaparecera sob suspeita de suicídio.O padre Brown, com o mesmo movimento subconsciente do espírito, perguntou a si mesmo com quem estivera a falar no meio das árvores.

— Suponho que está a par desta horrível noticia — disse ela, com uma calma forçada. — O pobre Hubert deve ter sucumbido por causa de toda esta perseguição revolucionária, e perdeu a cabeça ao ponto de pôr termo à sua própria vida. Não sei se o senhor pode fazer alguma coisa; ou se esses horríveis bolcheviques podem ser responsabilizados pela perseguição que o levou à morte.

— Estou profundamente abalado, Lady Sand — disse o padre Brown. — E, todavia, devo confessar, um pouco desnorteado, a senhora fala de perseguição; acredita que alguém o pudesse perseguir e levá-lo à morte, pregando aquele papel na parede?

— Suponho — respondeu a senhora, com um sobrolho carregado —, que houve outras perseguições além do papel.

— Isso mostra os erros que uma pessoa pode cometer — disse o padre, melancolicamente. — Nunca pensei que ele seria tão incoerente ao ponto de morrer para evitar a morte.

— Eu sei — respondeu ela, olhando para ele com ar sério. — Nunca teria acreditado, se não tivesse sido ele a escrever aquilo com a sua própria mão.

— Quê? — exclamou o padre Brown, com um pequeno estremecimento como um coelho morto com um tiro.

— Sim — disse Lady Sand, calmamente. — Ele deixou uma confissão de suicídio; por isso temo que seja verdade. — E seguiu o seu caminho, subindo a ladeira sozinha, com todo o isolamento inviolável do espectro da família.

Os óculos do padre Brown estavam virados com um mutismo inquiridor para os óculos do Sr. Henry Sand. E o último cavalheiro, depois de um momento de hesitação, falou de novo com a franqueza e impetuosidade habituais:

— Sim, como vê, parece muito claro agora aquilo que ele fez. Sempre foi um grande nadador e costumava descer todas as manhãs com o roupão para tomar banho no rio. Desceu como de costume, e deixou o roupão na margem. Ainda lá está. Mas também deixou uma mensagem que dizia que ele ia nadar pela última vez e depois matava-se, ou qualquer coisa do género.

— Onde deixou a mensagem? — perguntou o padre Brown.

— Escreveu-a à pressa naquela árvore, suspensa sobre a água. Creio que foi a última coisa a que deitou a mão, mesmo por debaixo do lugar onde estava o roupão. Venha ver com os seus próprios olhos.

O padre Brown correu pela última ladeira abaixo até à margem e espreitou por debaixo da árvore pendente, cuja folhagem estava quase mergulhada no rio. De facto, viu na casca lisa as palavras rabiscadas conspícua e inequivocamente:

Mais um banho e depois afogamento. Adeus. Hubert Sand.

O olhar do padre Brown seguiu lentamente pela margem acima até se deter num enorme pedaço de vestuário, todo vermelho e amarelo, com borlas douradas. Era o roupão. O padre apanhou-o e voltou-o. Quase no momento em que fazia isso apercebeu-se de uma figura a atravessar o seu campo de visão; uma figura alta e escura que saíra furtivamente de um maciço de árvores para outro, como se seguisse o rasto da senhora que desaparecia. Tinha quase a certeza de que era o companheiro de quem se separara há pouco. Tinha a certeza de que era o secretário do homem morto, o Sr. Rupert Rae.

— Evidentemente que a ideia de deixar a mensagem lhe podia ter ocorrido depois — disse o padre Brown, sem olhar para cima, com os olhos fixos na peça de roupa vermelha e dourada. — Sempre ouvimos falar de declarações de amor escritas em árvores, e suponho que talvez haja declarações de morte escritas também em árvores.

— Creio que não devia ter nada nos bolsos do roupão — disse o jovem Sand. — E é natural que um homem que não tivesse canetas, nem tinta, nem papel, rabiscasse a mensagem numa árvore.

— Parecem exercícios de Francês — disse o padre soturnamente. — Mas não estava a pensar nisso. — Então, depois de uma pausa, disse numa voz um tanto alterada: — Para ser franco, estava a pensar se não seria natural que um homem rabiscasse a mensagem numa árvore, mesmo que tivesse montes de canetas, um quarto de galão de tinta e resmas de papel.

Henry olhava para ele com um ar de espanto, os óculos encaixados no nariz achatado.

— E que quer dizer com isso? — perguntou ele, com rispidez.

— Bem — disse o padre Brown pausadamente —, não quero dizer que os carteiros tragam cartas em forma de cepos ou que se escreva umas linhas a um amigo, colocando um selo do correio num pinheiro. Teria de ser um tipo de posição particular... Na realidade, teria de ser um tipo de pessoa particular, que na verdade preferisse este tipo de correspondência arbórea. Mas, dada a posição e a pessoa, repito o que disse. Mesmo assim escreveria numa árvore, como reza a canção, se todo o mundo fosse papel e todo o mar fosse tinta; se aquele rio corresse com tinta permanente ou esses bosques fossem uma floresta de penas e canetas de tinta permanente.

Era evidente que Sand sentia qualquer coisa de arrepiante nas figuras de retórica fantasistas do padre; ou porque as achava incompreensíveis, ou porque começava a compreendê-las.

— Sabe — disse o padre Brown, virando lentamente o roupão enquanto falava —, não se espera que uma pessoa escreva com a maior perfeição quando a grava numa árvore. E se o homem não fosse o homem, se me faço entender. Olá...!

Olhava para o roupão vermelho, e na altura deu a impressão que parte do vermelho passara para o dedo dele; mas os rostos dos dois que se viraram para ele já estavam um pouco mais pálidos.

— Sangue! — disse o padre Brown; e, subitamente, fez-se um silêncio sepulcral, quebrado apenas pelos ruídos melodiosos do rio.

Henry Sand pigarreou e limpou o nariz com ruídos que não eram nada melodiosos. Depois disse com uma voz um pouco rouca:

— Sangue de quem?

— Oh, o meu — disse o padre Brown, mas não sorriu.

Pouco depois, disse:

— Havia um alfinete nesta peça de roupa e piquei-me. Mas não creio que tenha chegado a avaliar a ponta... a ponta do alfinete, eu sim. — E chupou o dedo como uma criança.

— Sabe — disse ele depois de outra pausa —, o roupão foi dobrado e preso com alfinetes; ninguém podia tê-lo desdobrado, pelo menos sem se arranhar. Em palavras simples, Hubert Sand nunca usou este roupão. Como Hubert Sand jamais escreveu naquela árvore. Ou se afogou naquele rio.

As lunetas inclinadas no nariz inquiridor de Henry caíram com um estalido, mas ficou imóvel, como que paralisado pela surpresa.

— E isto leva-nos de novo — prosseguiu o padre Brown com jovialidade — à predilecção de alguém em escrever a correspondência particular em árvores, como Hiawatha e a sua pictografia. Sand tinha todo o tempo que quisesse antes de se afogar. Por que razão não deixou um bilhete à esposa como um homem são de espírito? Ou, deveríamos dizer... por que razão o outro homem não deixou um bilhete à mulher como um homem são de espírito? Porque teria de imitar a letra do marido. É sempre um problema delicado agora que os peritos são tão curiosos em relação a isso. Não se pode esperar que alguém imite até a sua própria letra, e isto para não falar da letra de outra pessoa, quando esculpe letras maiúsculas na casca de uma árvore. Isto não é suicídio, Sr. Sand. Se não é nada disso... é assassínio.

Os fetos e moitas do matagal partiram e estalaram quando o jovem corpulento se elevou no meio deles como um leviatão, e ficou de semblante carregado com o pescoço grosso inclinado para diante.

— Não sou forte em guardar segredos — disse ele —, e quase suspeitava de uma coisa como esta. Podia dizer que contava com isto há muito tempo. Para dizer a verdade, mal conseguia ser cortês com o indivíduo... com qualquer um dos dois, quanto a isso.

— Que quer dizer exactamente com isso? — perguntou o padre, olhando-o de frente com ar grave.

— Quero dizer — disse Henry Sand — que o senhor me mostrou o assassínio e eu penso que lhe poderia apresentar os assassinos.

O padre Brown ficou calado e o outro prosseguiu com alguma hesitação.

— Disse que às vezes as pessoas escrevem declarações de amor em árvores. Bem, na realidade, há algumas naquela árvore; há dois tipos de monogramas entrelaçados lá em cima, por debaixo das folhas. Suponho que sabe que Lady Sand já era a herdeira desta herdade muito antes de se casar, e nessa altura conhecia muito bem aquele secretário peralta. Creio que costumavam encontrar-se aqui e escrever juramentos na árvore. Parece que utilizaram a árvore do local de encontro para outro fim, mais tarde. Sentimentalismo, sem dúvida, ou economia.

— Devem ser pessoas terríveis — disse o padre Brown.

— Não houve sempre pessoas terríveis na História ou nos boletins da polícia? — perguntou Sand, com alguma excitação. — Não houve sempre amantes que fizeram que o amor parecesse mais horrível do que o ódio? Não conhece Bothwell e todas as lendas sangrentas desses amantes?

— Conheço a lenda de Bothwell — respondeu o padre. — Sei também que é legendária. Mas claro que é verdade que os maridos têm sido liquidados às vezes dessa maneira. A propósito, onde foi ele liquidado? Quero dizer, onde esconderam o corpo?

— Creio que o afogaram, ou o atiraram à água depois de morto — resmungou o jovem, com impaciência.

O padre Brown pestanejou pensativo e depois disse:

— Um rio é um sítio excelente para esconder um corpo imaginário. É um péssimo sítio para esconder um a sério. Quero dizer, é fácil dizer que se atirou para lá, porque podia ser arrastado para o mar. Mas se realmente se atirou para lá, isso seria quase impossível; as probabilidades de dar à costa em qualquer parte são imensas. Penso que deviam ter um plano melhor para esconder o corpo do que esse. Senão ele já teria sido encontrado. E se houvesse marcas de violência.

— Oh, darem-se ao trabalho de esconder o corpo! — disse Henry, com alguma irritação. — Não vimos o suficiente na inscrição na árvore diabólica?

— O corpo é em todos os casos de assassínio a principal testemunha — respondeu o outro. — A ocultação do corpo, geralmente, é o problema prático que tem de ser solucionado.

Fez-se silêncio, e o padre Brown continuou a virar o roupão e estendeu-o na erva brilhante da margem banhada pelo sol. Não levantou os olhos. Mas há algum tempo que se apercebera que a paisagem se alterara com a presença de uma terceira pessoa; absolutamente imóvel como uma estátua no jardim.

— A propósito — disse ele, baixando o tom de voz —, que me diz daquele homenzinho com o olho de vidro que levou a carta ontem ao seu desgraçado tio? Pareceu-me que ficou completamente alterado quando a leu; foi por isso que não fiquei surpreendido com o suicídio, quando pensei que tinha sido suicídio. Aquele indivíduo era um reles detective particular, se não estou enganado.

— Mas... — disse Henry, de modo hesitante. — Mas talvez fosse... os maridos, às vezes, contratam detectives para tragédias domésticas como esta, não contratam? Suponho que ele tinha provas da intriga, e por isso eles...

— Eu não falaria tão alto — disse o padre Brown —, porque o seu detective está a ver se nos descobre, a cerca de uma jarda, por detrás daqueles arbustos.

Levantaram os olhos, e lá estava o demónio com o olho de vidro a fitá-los com aquele olho desagradável, com um ar ainda mais grotesco por estar no meio das flores brancas e cerosas do jardim clássico.

Henry Sand endireitou-se atabalhoadamente com uma rapidez que parecia esbaforida para alguém com a sua corpulência, e perguntou ao homem muito colérica e abruptamente o que estava a fazer, ao mesmo tempo que lhe dizia que desaparecesse sem demora.

— Lorde Stanes — disse o demónio do jardim — ficaria muito grato se o padre Brown fosse lá a casa para falar com ele.

Henry Sand afastou-se cheio de fúria, mas o padre atribuiu a fúria à antipatia que se sabia existir entre ele e o lorde em questão. Quando subiam a ladeira, o padre Brown parou por instantes como se descobrisse marcas na casca lisa da árvore, olhou uma vez para o hieróglifo mais escuro e mais escondido que diziam ser um registo de romance, e depois olhou fixamente para as letras mais largas e mais irregulares da confissão, ou da suposta confissão de suicídio.

— Aquelas letras fazem-lhe lembrar alguma coisa? — perguntou ele. E quando o companheiro mal-humorado abanou a cabeça, acrescentou: — Fazem-me lembrar a letra naquele cartaz que o ameaçava com a vingança dos grevistas.

— Este é o enigma mais intrincado e a história mais estranha que me apareceu — disse o padre Brown, passado um mês, quando se sentou em frente de Lorde Stanes no apartamento recentemente mobilado do número 118. O último andar foi o último a ser concluído antes do interregno da disputa industrial e da transferência de trabalhadores do sindicato. Tinha uma mobília confortável, e Lorde Stanes estava sentado à cabeceira da mesa com grogue e charutos, quando o padre fez a sua confissão com um trejeito. Lorde Stanes tornara-se surpreendentemente amistoso, com frieza e indiferença.

— Sei que o seu relato é muito elucidativo — disse Stanes —, mas certamente que os detectives, incluindo o nosso amigo sedutor com o olho de vidro, não parecem capazes de ver uma solução.

O padre Brown pousou o charuto e disse prudentemente:

— Não é que não sejam capazes de ver a solução. É que eles não conseguem ver o problema.

— Na verdade — disse o outro —, talvez também eu não veja o problema.

— O problema é diferente de todos os outros problemas, por esta razão — disse o padre Brown —, parece que o criminoso fez deliberadamente duas coisas distintas, uma delas podia ser bem sucedida, mas se fosse feita em conjunto, só podia anular as duas. Parto do princípio, e acredito, sem sombra de dúvida, que o mesmo assassino afixou a proclamação ameaçando uma espécie de assassínio bolchevique, e escreveu igualmente na árvore confessando um suicídio vulgar. Agora pode dizer que afinal é possível que a proclamação fosse proletária; que alguns operários extremistas quisessem matar o patrão, e o tivessem morto. Mesmo que isso fosse verdade, continuaria a ser um mistério a razão por que deixaram, ou a razão por que alguém deixou uma pista falsa de suicídio falso. Mas certamente não é verdade. Nenhum desses operários, por muito rancoroso que fosse, teria feito uma coisa dessas. Conheço-os muito bem; conheço muito bem os seus chefes. Pensar que pessoas como Tom Bruce ou Hogan assassinariam alguém que podiam atacar nos jornais, e prejudicar de qualquer maneira, é o tipo de psicologia a que as pessoas sensatas chamam de demência. Não; houve alguém, que não era um operário indignado, que primeiro fingiu ser um operário indignado, e depois fingiu ser o patrão suicida. Mas perguntará porquê? Se ele pensava que podia fazer com que parecesse um suicídio, por que razão iria estragar tudo ao divulgar uma ameaça de morte? Podia dizer que a ideia de arranjar a história do suicídio lhe ocorreu mais tarde, por ser menos provocativa que a história do assassínio. Mas não o era menos depois da história do assassínio. Deve ter sabido que já tínhamos voltado os nossos pensamentos para o assassínio, quando o seu principal objectivo deveria ter sido evitar que pensássemos nisso. Se foi uma ideia que lhe ocorreu mais tarde, então deve ser uma pessoa descuidada. Parece-me que este assassino é uma pessoa muito ponderada. Consegue perceber alguma coisa?

— Não, mas percebo o que quer dizer — disse Stanes, quando afirma que eu nem sequer vi o problema. Não se trata apenas de saber quem matou Sand, mas a razão por que alguém deveria acusar outra pessoa de matar Sand e depois acusá-lo de se matar.

O rosto do padre Brown estava contraído e o charuto preso nos dentes. A ponta brilhava e escurecia cadenciadamente como o sinal de uma pulsação acelerada do cérebro. Depois falou como se fosse com os seus botões:

— Temos de seguir com muita atenção e muita clareza. É como separar fios de pensamento; uma coisa parecida. Porque a acusação de homicídio invalida praticamente a acusação de suicídio. Normalmente, ele não faria a acusação de homicídio. Mas fez; portanto, tinha outro motivo para a fazer. Era um motivo tão forte que talvez o tenha levado mesmo a atenuar a outra linha de defesa, que era um suicídio. Por outras palavras, a acusação de homicídio não era de facto uma acusação de homicídio. Quero dizer que ele não a estava a usar como acusação de homicídio; não fazia isso para culpar outra pessoa de homicídio; fazia isso por algum motivo extraordinário, pessoal. O seu plano tinha de conter uma declaração de que Sand iria ser assassinado, quer lançasse suspeitas sobre outras pessoas, quer não. De uma maneira ou de outra, a simples proclamação em si era necessária. Mas porquê?

Fumou e deitou baforadas de fumo com a mesma concentração vulcânica durante cinco minutos antes de falar de novo.

— O que podia fazer uma proclamação de homicídio, para além de sugerir que os grevistas eram os assassinos? O que fazia isso? Uma coisa é óbvia, fazia inevitavelmente o contrário daquilo que anunciava. Disse a Sand que não impedisse a entrada dos seus operários, e talvez tenha sido a única coisa que realmente o teria levado a fazer isso. Tem de pensar no tipo de homem e no tipo de reputação. Quando uma pessoa que foi chamada um homem forte nos nossos jornais sensacionalistas, que é afectuosamente considerada um desportista por todos os ases de Inglaterra, simplesmente não pode recuar só porque o ameaçam com uma pistola. Seria como deambularem Ascot com uma pena branca espetada no ridículo chapéu branco. Destruiria aquele ídolo interior ou ideal de si mesmo, que todos os homens, e não um covarde, preferem à vida. E Sand não era um covarde; o sobrinho, que estivera mais ou menos envolvido com os trabalhadores, exclamou logo que a ameaça devia ter uma resposta imediata e definitiva.

— Sim — disse Lorde Stanes —, eu reparei. — Olharam um para outro por instantes, e depois Stanes acrescentou descuidadamente: — Então, acha que aquilo que o criminoso realmente queria, era...

— O lock-out! — exclamou o padre, com energia. — A greve ou seja lá o nome que lhe dão, a interrupção do trabalho, de uma maneira ou de outra. Queria que o trabalho cessasse imediatamente; talvez para que entrassem os substitutos dos grevistas; certamente para que os sindicalistas saíssem imediatamente. Era isso que ele queria de facto; só Deus sabe porquê. E conseguiu isso com êxito, suponho eu, sem se preocupar muito com a outra implicação da existência dos assassinos bolcheviques. Mas depois... depois creio que falhou alguma coisa. Estou apenas a fazer suposições e a procurar alguma coisa às apalpadelas, mas a única explicação que me ocorre é que alguma coisa começou a atrair as atenções para o verdadeiro centro do problema, para o motivo, fosse ele qual fosse, que o levava a querer parar a construção do prédio. E depois, tardiamente, desesperadamente, e muito inconsequentemente, tentou lançar a outra pista que ia dar ao rio, pura e simplesmente porque desviava as atenções dos andares.

Olhou para cima através dos óculos redondos como a lua, absorvendo toda a elegância do ambiente e da mobília; o luxo sóbrio de um homem do mundo discreto; e contrastando-o com as duas malas com que o ocupante chegara há tão pouco tempo a um apartamento recentemente concluído e sem mobília. Depois disse abruptamente:

— Resumindo, o assassino estava com medo de alguma coisa ou de alguém nos andares. A propósito, por que é que o senhor veio viver para os apartamentos? Também, a propósito, o jovem Henry disse-me que marcou um encontro de manhã cedo com ele, quando se mudou para aqui. É verdade?

— De modo nenhum — disse Stanes —, o tio deu-me a chave na noite anterior. Não faço ideia por que Henry veio aqui naquela manhã.

— Ah — disse o padre Brown —, então creio que faço ideia por que veio... Pensei que o senhor o tivesse assustado ao entrar precisamente no momento em que ele ia a sair.

— E, no entanto — disse Stanes, olhando de esguelha com um brilho nos olhos verde-acinzentados —, pensa que eu também sou um mistério.

— Penso que são dois mistérios! — disse o padre Brown. — O primeiro é a razão por que se afastou dos negócios de Sand. O segundo é a razão por que veio viver desde essa altura nos prédios de Sand.

Stanes fumou com ar pensativo, sacudiu a cinza, e tocou uma campainha que estava na mesa à frente dele.

— Se me der licença — disse ele —, vou chamar mais duas pessoas para a reunião. Jackson, o detective baixo que conhece, responderá ao toque da campainha, e pedi a Henry Sand que viesse um pouco mais tarde.

O padre Brown levantou-se da cadeira, atravessou a sala e olhou para a lareira, franzindo as sobrancelhas.

— Entretanto — continuou Stanes —, não me importo de responder às suas duas perguntas. Abandonei os negócios de Sand porque tinha a certeza de que havia uma trapaçaria e que alguém estava a roubar o dinheiro todo. Voltei, e aluguei este andar, porque queria saber a verdade acerca da morte do velho Sand... sem demora.

O padre Brown virou-se quando o detective entrou na sala; parou a olhar fixamente para o tapete estendido em frente da lareira e repetiu:

— Sem demora.

— Mr. Jackson dir-lhe-á — disse Stanes — que Sir Hubert o encarregou de descobrir quem era o gatuno que estava a roubar a firma, e trouxe um relatório das descobertas no dia anterior ao desaparecimento do velho Hubert.

— Sim — disse o padre Brown —, e eu sei agora para onde foi. Sei onde está o corpo.

— Quer dizer...? — começou o anfitrião com vivacidade.

— Está aqui — disse o padre Brown, e bateu violentamente com os pés no tapete que estava em frente da lareira. — Aqui, por debaixo do elegante tapete persa nesta sala acolhedora e confortável.

— Como diabo descobriu?

— Lembrei-me agora mesmo — disse o padre Brown — de que fiz essa descoberta quando dormia.

Ele fechou os olhos como se tentasse visualizar um sonho, e prosseguiu com um ar sonhador:

— Esta é uma história de homicídio que depende do problema de saber como esconder o corpo; e eu descobri no meu sonho. Era acordado todas as manhãs pelo barulho martelado deste prédio. Naquela manhã, estava meio acordado, adormeci outra vez e acordei uma vez mais, constatando que já era tarde. Porquê? Porque tinham estado a martelar naquela manhã, embora tivesse parado o trabalho habitual; um martelar breve, apressado, poucas horas antes de despontar o dia. Automaticamente, uma pessoa a dormir desperta com um ruído familiar como aquele. Mas volta a adormecer, porque o ruído habitual não é à hora habitual. Então por que razão um criminoso misterioso quer que as obras parem de repente, e venham apenas trabalhadores novos? Porque, se os antigos operários viessem no dia seguinte, teriam descoberto uma parte do trabalho feita durante a noite. Os operários antigos saberiam onde pararam, e teriam descoberto o soalho desta sala já pregado. Pregado por um homem que sabia como fazê-lo, tendo-se envolvido com os trabalhadores e aprendido os seus métodos de trabalho.

Enquanto falava, a porta abriu-se de repente e apareceu uma cabeça com uma arremetida; uma cabeça pequena na extremidade de um pescoço grosso e uns olhos que o fitaram, pestanejando, através dos óculos.

— Henry Sand disse — comentou o padre Brown, olhando para o tecto — que não tinha jeito para guardar segredos. Mas creio que fez uma injustiça a ele mesmo.

Henry Sand virou-se e afastou-se rapidamente pelo corredor abaixo.

— Ele não só ocultou os roubos da firma com bastante sucesso durante anos — prosseguiu o padre com um ar distraído —, mas, quando o tio os descobriu, escondeu o corpo do tio de uma forma inteiramente nova e original.

Nesse mesmo instante, Stanes tocou uma vez mais a campainha, com um toque demorado, estridente e uniforme; e o homem baixo com o olho de vidro foi propulsionado ou projectado pelo corredor atrás do fugitivo, com uma espécie de movimento rotatório de uma figura mecânica num zoetrope. Nesse preciso momento, o padre olhou pela janela, debruçando-se numa pequena varanda, e viu cinco ou seis homens a sair repentinamente detrás de arbustos e grades na rua, em baixo, e a espalhar-se igualmente com movimentos mecânicos como um leque ou uma rede, desdobrando-se atrás do fugitivo que saíra como uma bala pela porta principal. O padre Brown viu apenas o desenho da história, que nunca se afastou daquela sala, onde Henry estrangulara Hubert e escondera o seu corpo debaixo de um soalho impenetrável, fazendo parar o trabalho no prédio para esse fim. Uma alfinetada despertara as suas próprias suspeitas, mas apenas para lhe dizer que fora levado pelo longo desvio de uma mentira. Só que a ponta do alfinete não tinha ponta.

Pensava que compreendia Stanes finalmente, e gostava de reunir pessoas que eram difíceis de compreender. Percebeu que aquele cavalheiro cansado, a quem acusara em tempos de ter sangue verde, tinha de facto uma espécie de chama verde e fria de consciência moral ou honra convencional, que o levara a afastar-se de um negócio pouco honesto, e que depois sentira vergonha de o ter passado para outros, e voltara como um detective diligente e enfastiado, montando o seu acampamento no local onde fora enterrado o cadáver. Assim o assassino, encontrando-o a farejar tão perto do cadáver, encenara desenfreadamente o drama alternativo do roupão e do homem afogado. Tudo isto era mais ou menos evidente, mas, antes de afastar a cabeça do ar da noite e das estrelas, o padre Brown lançou um olhar à gigantesca massa negra do edifício ciclópico, que se elevava na noite, e fazia lembrar o Egipto e a Babilónia, e tudo o que é imediatamente eterno e efémero na obra do homem.

— Aquilo que disse logo no princípio estava certo — disse ele. — Faz lembrar um poema de Coppée sobre o faraó e a pirâmide. Este prédio devia ter uma centena de habitações; e, no entanto, este enorme edifício é apenas a sepultura de um homem.


O PROBLEMA INSOLÚVEL

Este estranho incidente, em certos aspectos talvez o mais estranho dos muitos com que se deparou, aconteceu ao padre Brown na altura em que o seu amigo francês, Flambeau, abandonara a carreira do crime e abraçara com grande energia e sucesso a carreira de investigador do crime. Acontecia que tanto como ladrão e como captor de ladrões, Flambeau especializara-se antes em casos de roubo de jóias, onde era considerado um perito, tanto na identificação de jóias como na identificação dos que as roubavam. E foi em conexão com o seu conhecimento especializado sobre este assunto e uma comissão especial que ganhara que telefonou ao seu amigo, o padre, na manhã em que esta história começa.

O padre Brown ficou encantado por ouvir a voz do seu velho amigo, mesmo ao telefone, mas de uma maneira geral, e principalmente naquele momento particular, o padre Brown não apreciava muito o telefone. Era uma pessoa que gostava mais de observar os rostos das pessoas e sentir atmosferas sociais, e sabia bem que sem essas coisas, as mensagens verbais tendem a ser muito enganadoras, sobretudo de pessoas completamente estranhas. E parecia, naquela manhã, que uma multidão de desconhecidos estivera a sussurrar-lhe ao ouvido com mensagens verbais mais ou menos obscuras; o telefone parecia estar dominado por um demónio da trivialidade. Talvez a voz mais distintiva fosse uma que lhe perguntou se não passava mandados por homicídio e roubo mediante o pagamento de uma tarifa regular afixada na igreja; e quando o desconhecido, ao ser informado de que não era esse o caso, concluiu o colóquio com uma risada cavernosa. Pode presumir-se que não ficou convencido. Depois uma voz feminina agitada e um tanto inconsequente telefonou a pedir-lhe que fosse imediatamente a um certo hotel que ele sabia que ficava a umas quarenta e cinco milhas na rua, e que ia dar a uma diocese vizinha. O pedido foi imediatamente seguido por uma contradição na mesma voz, mais agitada e todavia mais inconsequente, dizendo-lhe que não tinha importância e que afinal já não era preciso. Depois veio um interlúdio de uma agência de publicidade a perguntar-lhe se tinha alguma coisa a dizer acerca daquilo que uma actriz de cinema dissera a respeito de bigodes para homens, e, por fim, ainda uma terceira chamada da senhora agitada e inconsequente no hotel, a dizer que afinal precisava dele. Pensou vagamente que aquilo marcava algumas das hesitações e pânicos conhecidos entre aqueles que enveredam vagamente pelo caminho da instrução, mas sentiu um certo alívio quando a voz de Flambeau concluiu a série com um aviso cordial de aparecer para o pequeno-almoço.

O padre Brown gostava muito de conversar com um amigo, sentado confortavelmente a fumar cachimbo, mas logo se tornou claro que a visita estava pronta para uma discussão, e cheio de energia, decidido a levar o padre baixo, cativo numa importante expedição.

Era verdade que estava em causa uma circunstância especial que devia exigir a atenção do padre. Flambeau figurara recentemente várias vezes como a pessoa que conseguira impedir um roubo de pedras preciosas famosas; arrancara a tiara da Duquesa de Dulwich da mão do bandido quando este atravessava o jardim como uma flecha. Armara uma cilada tão engenhosa ao criminoso que planeava levar o célebre colar de safiras, que o artista em questão levou afinal a cópia que ele próprio tencionava deixar no seu lugar.

Estas eram, sem dúvida, as razões que levaram à sua convocação para vigiar a entrega de um tipo de tesouro bastante diferente; talvez ainda mais valioso no material em si, mas possuía também outro tipo de valor. Um relicário famoso em todo o mundo, que se supunha conter uma relíquia da S.ta Doroteia, ia ser entregue ao mosteiro católico numa diocese, e pensava-se que um dos mais famosos ladrões internacionais de jóias estava com um olho nele, ou, presumivelmente, no engaste de ouro e rubis, e não no seu valor puramente hagiológico. Talvez houvesse alguma coisa nesta associação de ideias que fez com que Flambeau sentisse que o padre seria o companheiro apropriado à sua aventura, mas de uma maneira ou de outra, caiu sobre ele, exalando fogo e ambição e muito loquaz sobre os seus planos para impedir o roubo.

Flambeau, na realidade, escarranchou-se na lareira do padre com a arrogância dos antigos mosqueteiros, torcendo os enormes bigodes.

— Não pode — gritou ele, referindo a estrada de sessenta milhas até Casterbury. — Não pode permitir que um roubo profano como este se dê mesmo nas suas barbas.

A relíquia só deveria chegar ao mosteiro à tardinha, e não havia motivo para os seus defensores chegarem mais cedo; uma vez que uma viagem de automóvel demoraria quase todo o dia. Além disso, o padre Brown comentou casualmente que havia uma estalagem à beira da estrada onde preferia almoçar, uma vez que já lhe tinham pedido para a visitar assim que fosse conveniente.

Enquanto atravessavam de automóvel uma paisagem densamente arborizada, mas com uma população pouco densa, em que as estalagens e todos os outros edifícios pareciam tornar-se cada vez mais raros, a luz do dia começou a ficar com as características de um crepúsculo tempestuoso, mesmo com o calor do meio-dia, e nuvens vermelhas escuras formavam-se sobre as florestas cinzentas e sombrias. Como é comum sob a quietude sinistra daquele tipo de luz, qualquer cor que houvesse na paisagem ganhava uma espécie de brilho discreto que não se encontra em objectos sob o sol, e folhas vermelhas e irregulares, ou fungos dourados ou alaranjados pareciam arder com uma chama escura própria. Sob esta penumbra chegaram a uma clareira na floresta, semelhante a uma enorme fenda numa parede cinzenta, e viram ao longe, erguendo-se acima da abertura, a estalagem alta e com um aspecto um tanto exótico que tinha o nome de Green Dragon.

Os dois velhos companheiros tinham chegado muitas vezes juntos a estalagens e a outras habitações humanas, e depararam-se com um estado de coisas um pouco singular, mas os sinais de singularidade raramente se manifestavam tão cedo. Pois, enquanto o carro estava ainda a umas centenas de jardas da porta verde-escura, que condizia com as persianas da mesma cor do prédio alto e estreito, a porta abriu-se com violência e saiu a correr uma mulher com uma grenha ruiva, para ir ao encontro deles, como se se preparasse para abordar o carro em movimento. Flambeau parou o carro, mas antes de fazer isso, ela enfiou o rosto branco e trágico na janela, gritando:

— É o padre Brown? — E depois quase sem respirar. — Quem é esse homem?

— O nome deste senhor é Flambeau — disse o padre Brown, calmamente. — E o que posso fazer por si?

— Entrem na estalagem — disse ela, com uma rudeza extraordinária mesmo naquelas circunstâncias. — Deu-se um homicídio.

Saíram do carro em silêncio e seguiram-na até à porta verde-escura que dava para uma espécie de álea da mesma cor, formada por estacas e pilares de madeira, cobertas com videiras e heras, expondo folhas quadradas pretas e vermelhas e de muitas cores escuras. Esta por sua vez ia dar a uma porta interior de uma espécie de sala grande com troféus de armas de cavaleiros, cheios de ferrugem, onde a mobília parecia estar antiquada e também em grande confusão, como o interior de um quarto de arrumações. Ficaram muito surpreendidos na altura, pois parecia que um enorme traste velho se erguera e avançava para eles; tão cheio de poeira, tão andrajoso e tão desgracioso estava o homem que abandonava assim aquilo que mais parecia um estado de imobilidade permanente.

Caso curioso, o homem parecia ter uma certa agilidade e elegância quando se moveu, embora sugerisse os encaixes de madeira de um escadote delicado ou de um toalheiro obsequioso. Tanto Flambeau como o padre Brown tiveram a impressão de que nunca tinham posto a vista num homem que fosse tão difícil de identificar. Não era o que se chama um cavalheiro; no entanto tinha qualquer coisa da distinção árida de um intelectual; tinha qualquer coisa de vagamente rude ou declassé, e todavia o seu cheiro era mais livresco do que boémio. Era magro e pálido, com um nariz pontiagudo e uma barba escura pontiaguda. A testa era calva, mas o cabelo atrás era comprido, liso e pegajoso, e a expressão dos seus olhos ficava praticamente tapada por um par de óculos azuis. O padre Brown sentiu que conhecera alguém assim em qualquer parte, e há muito tempo, mas não conseguia lembrar-se de um nome. O refugo no meio do qual ele estava sentado era essencialmente literário, principalmente maços de panfletos do século XVII.

— Parece-me que ouvi a senhora dizer — perguntou Flambeau com ar grave — que se cometeu aqui um homicídio?

A senhora abanou a grenha ruiva com bastante impaciência, exceptuando aquelas madeixas chamejantes de cabelo emaranhado, perdera parte daquela expressão desvairada; o vestido escuro tinha uma certa dignidade e asseio; o rosto era forte e belo; e havia qualquer coisa nela que sugeria aquela energia dupla de corpo e espírito que torna as mulheres poderosas, particularmente em contraste com homens como o homem de óculos azuis. Não obstante, foi ele que deu a única resposta articulada, intervindo com uma certa galantaria bizarra.

— É verdade que a minha infeliz cunhada — explicou ele — sofreu há pouco tempo um choque terrível a que todos gostaríamos de a ter poupado. Só queria ter feito eu a descoberta e sentido a angústia de dar a terrível notícia. Infelizmente, foi a Sr.ª Flood que encontrou o avô idoso, há muito tempo doente e preso ao leito neste hotel, morto no jardim, em circunstâncias que sugerem, com demasiada evidência, violência e ataque. Circunstâncias estranhas, devo dizer, na realidade; circunstâncias muito estranhas. — E tossiu um pouco, como se pedisse desculpa.

Flambeau fez uma vénia à senhora e deu-lhe os pêsames; depois disse ao homem:

— Creio que disse, sir, que é cunhado da Sr.ª Flood.

— Sou o Dr. Oscar Flood — replicou o outro. — O meu irmão, o marido desta senhora, está presentemente no continente em negócios, e ela está a dirigir o hotel. O avô dela estava parcialmente paralisado e tinha uma idade avançada. Que se saiba, nunca saiu do quarto, por isso é muito estranho...

— Mandou chamar um médico ou a polícia? — perguntou Flambeau.

— Sim — replicou o Dr. Flood —, telefonámos depois da terrível descoberta, mas vão levar algumas horas a chegar aqui. Esta casa fica tão distante da estrada, só cá passam pessoas que vão para Casterbury ou ainda mais para longe. Assim pensámos que podíamos pedir a sua ajuda preciosa, até...

— Se podemos ajudar em alguma coisa — disse o padre Brown, interrompendo de um modo demasiado distraído para parecer ingrosseiro. — Eu diria que seria melhor irmos investigar imediatamente.

Encaminhou-se quase mecanicamente para a porta, e quase chocou com um homem que abria caminho com os ombros para entrar. Um jovem alto e forte, com cabelo escuro, despenteado e sujo, que mesmo assim deveria ser formoso se não fosse um pequeno defeito num olho, que lhe dava um aspecto um pouco sinistro.

— Que diabo está a fazer? — disse ele, abruptamente. — A contar a toda a gente... Pelo menos devia esperar pela polícia.

— Sou responsável para com a polícia — disse Flambeau com uma certa magnificência, e com um ar repentinamente de quem assumira o comando de tudo. Avançou para a porta, e como era muito mais alto do que o jovem alto, e os bigodes eram tão formidáveis como os chifres de um touro espanhol, o jovem alto recuou e ficou com um ar inconsequente de ter sido rejeitado e deixado para trás, enquanto o grupo saía para o jardim e subia o caminho coberto de lájeas em direcção à plantação de amoreiras. Somente Flambeau ouviu o padre dizer ao médico:

— Parece que não gosta muito de nós, pois não? A propósito, quem é ele?

— Chama-se Dunn — disse o médico, com algum constrangimento. — A minha cunhada incumbiu-o de arranjar o jardim, porque perdeu um olho na guerra.

Enquanto passavam pelas amoreiras, a paisagem do jardim apresentava aquele efeito rico, embora ominoso, que se encontra quando a terra está efectivamente mais brilhante do que o céu. Na luz do Sol, coada, as copas das árvores à frente deles erguiam-se como chamas verdes e pálidas sobre um céu que enegrecia gradualmente com uma tempestade, no meio de todos os tons de púrpura e violeta. A mesma luz incidia em faixas do relvado e dos canteiros, e aquilo que iluminava parecia mais misteriosamente sombrio e enigmático. O canteiro do jardim estava salpicado de túlipas, que pareciam gotas de sangue escuro, podendo afirmar-se que algumas eram realmente pretas, e a fila terminava apropriadamente com uma tulipeira onde o padre Brown estava inclinado, embora por uma recordação confusa, a identificar com aquilo a que vulgarmente se chama árvore da Judeia. Aquilo que ajudava a associação era o facto de que num dos ramos estava pendurado, como um fruto seco, o corpo mirrado e esguio de um homem de idade, com uma longa barba que abanava grotescamente com o vento.

Havia algo mais para além do horror da escuridão, o horror da luz do Sol, pois o sol caprichoso pintava a árvore e o homem de cores alegres, como um adereço de teatro. A árvore estava florida e o cadáver estava pendurado com um roupão verde-pavão desbotado, e tinha na cabeça, que oscilava, um boné escarlate. Tinha também uns chinelos de quarto vermelhos, um dos quais caíra e jazia na relva como uma mancha de sangue.

Mas nem Flambeau nem o padre Brown tinham estado a olhar para estas coisas. Estavam ambos a olhar fixamente para um objecto estranho, que parecia estar espetado no meio do corpo encolhido do morto, e que a pouco e pouco perceberam que era o punho de ferro preto e bastante enferrujado de uma espada do século XVII, que trespassara o corpo de um lado ao outro. Ficaram quase imóveis enquanto o fitavam; até que o Dr. Flood, inquieto, começou a dar sinais de impaciência por causa da impassibilidade deles.

— O que mais me confunde — disse ele, dando estalidos com os dedos, cheio de nervoso —, é o estado do corpo. E todavia já me deu uma ideia.

Flambeau aproximara-se da árvore e examinava o punho da espada com um monóculo. Mas por alguma razão estranha, foi nesse preciso momento que o padre, por malvadez, rodopiou como um rapa, virou as costas para o cadáver, e olhou atentamente na direcção contrária. Viu então a cabeça ruiva da Sr.ª. Flood no extremo do jardim, virada para um jovem moreno, pouco perceptível para ser identificado, que na altura subia para uma bicicleta motorizada, que desapareceu, deixando para trás apenas o ruído fraco daquele veículo. Depois a mulher virou-se e começou a atravessar o jardim, em direcção a eles, quase no mesmo instante em que o padre Brown também se virava e começava um exame atento ao punho da espada e ao cadáver suspenso.

— Suponho que apenas o descobriu há cerca de meia hora — disse Flambeau. — Esteve por aqui alguém pouco tempo antes disso? Quero dizer se esteve alguém no quarto, ou nessa parte da casa, ou nesta parte do jardim... digamos, uma hora antes?— Não — disse o médico com precisão. — Esse é o acidente trágico. A minha cunhada estava na despensa, que é uma espécie de anexo no outro lado; Dunn estava no quintal, que também fica no outro lado; e eu andava a remexer nos livros, num quarto mesmo ao lado daquele onde me encontraram. Há duas criadas, mas uma tinha ido aos correios e a outra estava no sótão.

— E alguma dessas pessoas — perguntou Flambeau, com muita calma —, e eu digo alguma dessas pessoas estava de más relações com o pobre senhor?

— Era estimado por quase toda a gente — replicou o médico solenemente. — Se havia desentendimentos, eram moderados e comuns nos tempos modernos. O velho estava ligado aos hábitos religiosos antigos, e a filha e o genro talvez tivessem um espírito mais aberto. Mas tudo isto não pode ter nada a ver com este assassínio horrível e fantástico.

— Isso depende da amplidão ou estreiteza das opiniões modernas — disse o padre Brown.

Nesse momento ouviram a Sr.ª Flood a gritar enquanto atravessava o jardim e a chamar o cunhado com uma certa impaciência. Ele correu para ela e deixaram de os ouvir passado pouco tempo, mas enquanto se afastava acenou com a mão como quem pede desculpa e depois apontou um dedo comprido para o chão.

— Vão achar as pegadas muito intrigantes — disse ele, com o mesmo ar estranho de um director de circo sombrio.

Os dois detectives amadores olharam de esguelha um para o outro.

— Eu acho intrigantes muitas outras coisas — disse Flambeau.

— Oh, sim — disse o padre, olhando para a relva com um ar pouco sensato.

— Estava a pensar — disse Flambeau — por que razão iam pendurar um homem pelo pescoço até estar morto, e depois darem-se ao trabalho de atravessar o corpo com uma espada.

— Mas estão em contradição — protestou o amigo. — Vejo com uma rápida vista de olhos que não o trespassaram vivo. O corpo teria sangrado mais e a ferida não teria fechado assim.

— E eu podia ver com uma rápida vista de olhos — disse o padre Brown, tentando espreitar, com a baixa estatura e a vista fraca — que não o penduraram vivo. Se olhar para o nó do laço, verá que está tão mal dado que um abanão na corda o afastaria do pescoço, por isso não podia estrangular um homem. Estava morto antes de lhe porem a corda, e estava morto antes de o trespassarem com a espada. E como é que o mataram, de facto?

— Creio — comentou o outro — que será melhor voltarmos para casa e darmos uma vista de olhos ao quarto... e a outras coisas.

— Assim faremos — disse o padre Brown. — Mas entre outras coisas talvez fosse melhor examinarmos estas pegadas. É melhor começar pelo outro lado, suponho eu, junto à janela. Não há pegadas no caminho empedrado, como podia haver, mas por outro lado, talvez não. Aqui está o relvado mesmo por debaixo da janela do quarto dele. E aqui estão as pegadas dele, bem visíveis.

Olhou para as pegadas com ar sinistro e a pestanejar; e depois começou a recuar com todo o cuidado na direcção da árvore, curvando-se de vez em quando de uma forma pouco digna para ver qualquer coisa no chão. Por fim, voltou para ao pé de Flambeau e disse muito depressa:

— Sabe qual é a história que está além escrita com toda a clareza? Embora não seja exactamente uma história clara.

— Eu não gostaria de lhe chamar clara — disse Flambeau. — Eu chamar-lhe-ia horrenda.

— Bem — disse o padre Brown —, a história que está gravada com bastante clareza na terra, com marcas perfeitas dos chinelos do velho, é esta. O paralítico idoso saltou pela janela e correu pelos canteiros paralelos ao carreiro, ansioso pelo prazer de ser estrangulado e apunhalado; tão ansioso estava que saltou ao pé coxinho de tanta alegria, e até deu algumas cambalhotas...

— Basta! — exclamou Flambeau, irritado. — Que pantomima diabólica é essa?

O padre Brown apenas levantou as sobrancelhas e fez um pequeno gesto na direcção do hieróglifo na terra.

— Só a meio do caminho é que há a marca de um chinelo, e em alguns sítios a marca de uma mão bem assente.

— Não podia ter ficado coxo e depois caído? — perguntou Flambeau.

O padre Brown abanou a cabeça.

— Pelo menos teria tentado usar as mãos e os pés, ou os joelhos e os cotovelos, para se levantar. Não há mais nenhum tipo de marca. Claro que o carreiro coberto de lájeas fica bastante perto, e lá não há marcas, embora pudesse haver na terra no meio das fendas. É um pavimento disparatado.

— Por Deus, é um pavimento disparatado; um jardim disparatado e uma história disparatada! — E Flambeau olhou sombriamente para o jardim escuro e açoitado pela tempestade, para os carreiros cheios de remendos e curvas que se ajustavam de facto ao adjectivo inglês, antigo e original.

— E, agora — disse o padre Brown —, vamos lá acima examinar o quarto. — Entraram por uma porta não muito afastada da janela do quarto, e o padre parou por instantes para olhar para uma vassoura de jardim, vulgar, para varrer folhas, que estava encostada à parede. — Está a ver isto?

— É uma vassoura — disse Flambeau, com ironia.

— É um grande disparate — disse o padre Brown. — O primeiro disparate que vi nesta trama curiosa.

Subiram as escadas e entraram no quarto do velho, e um relance tornou claros os principais factos, em relação à fundação e desunião da família. O padre Brown sentira logo que estava naquilo que era, ou tinha sido, uma casa católica, mas era habitada, pelo menos, em parte por católicos apóstatas ou muito liberais. As estampas e imagens no quarto do avô evidenciavam que a piedade positiva que existira se circunscrevera praticamente a ele, e que os parentes se tinham tornado pagãos, por uma razão ou outra. Mas reconheceu que era uma explicação desesperadamente inadequada mesmo para um homicídio vulgar; para não falar de um homicídio tão extraordinário como aquele.

— Diabos levem tudo isto! — murmurou ele. — O homicídio é de facto a parte menos extraordinária. — E mesmo quando utilizou a expressão fortuita, uma luz lenta começou a aparecer no seu rosto.

Flambeau sentara-se numa cadeira junto à mesa pequena que estava ao lado da cama do morto. Olhava com ar pensativo e sobrolho carregado para três ou quatro comprimidos brancos ou pílulas que estavam num pequeno tabuleiro ao lado de uma garrafa de água.

— O assassino ou assassinos — disse Flambeau —, por uma ou outra razão incompreensível, queriam que pensássemos que o morto foi estrangulado ou apunhalado ou ambas as coisas. Ele não foi estrangulado, nem apunhalado, nem nada que se pareça. Por que razão quiseram insinuar isso? A explicação mais lógica é que ele morreu de uma forma particular que, só por si, sugeriria uma ligação com uma pessoa particular. Suponhamos, por exemplo, que foi envenenado, e que a pessoa implicada se pareceria mais com um envenenador do que qualquer outra.

— Afinal — disse o padre Brown suavemente —, o nosso amigo dos óculos azuis é médico.

— Vou examinar esses comprimidos com muita atenção — prosseguiu Flambeau. — Não quero perdê-los, contudo. Parece que são solúveis em água.

— Talvez leve algum tempo a fazer algo de científico com eles — disse o padre. — E o médico da polícia pode chegar antes disso. Por isso, aconselhava-o a não os perder. Isto é, se tenciona esperar pelo médico da polícia.

— Vou ficar aqui até solucionar este problema — disse Flambeau.

— Então vai ficar eternamente — disse o padre Brown, olhando calmamente pela janela. — Seja como for, acho que não vou ficar neste quarto.

— Quer dizer que não solucionarei o problema? — perguntou o amigo. — Por que razão não havia de solucionar o problema?

— Porque não é solúvel nem em água nem em sangue — disse o padre, e desceu as escadas sombrias, saindo depois para o jardim que ficava escuro. Aí viu uma vez mais aquilo que já vira da janela.

O calor, o peso e a obscuridade do céu de trovoada pareciam abater-se sobre a paisagem. As nuvens tinham conquistado o sol que, no alto, numa abertura que estreitava, se erguia mais pálido do que a Lua. Ouviu-se um ribombar de trovão no ar, mas naquele momento nem uma folha bulia, e até as cores do jardim pareciam apenas tons mais ricos da escuridão. Mas uma cor continuava a brilhar com um fulgor suave, e era o cabelo ruivo da mulher daquela casa, que estava parada com uma espécie de rigidez, a olhar espantada, com as mãos enfiadas no cabelo. Aquela cena de eclipse, com algo mais profundo nas suas próprias dúvidas quanto ao seu significado, trouxe à superfície a recordação de linhas obsidentes e místicas, e deu por ele a murmurar:

— Um lugar secreto, tão selvagem e encantado como jamais se viu sob uma lua no quarto minguante era visitado por uma mulher que chorava o amante demoníaco. — O seu murmúrio tornou-se mais agitado. — Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores... é o que é; é tão terrivelmente parecido; a mulher que chora o amante demoníaco...

Estava hesitante e quase trémulo quando se aproximou da mulher, mas falou com a calma habitual. Ficando a olhar fixamente para ela, enquanto lhe pedia fervorosamente que não ficasse mórbida por causa dos simples acessórios acidentais da tragédia, com toda a sua fealdade.

— As gravuras no quarto do seu avô são um retrato mais fiel dele do que aquela imagem horrenda que vimos — disse ele, com voz grave. — Algo me diz que era um homem bom, e não interessa aquilo que os assassinos fizeram com o corpo dele.

— Oh, estou farta das gravuras e estatuetas sagradas! — disse ela, virando a cabeça. — Por que não se defendem, se são aquilo que o senhor diz que são? Mas os libertinos podem arrancar a cabeça da Virgem Maria sem que nada lhes aconteça. Oh, que adianta? Não nos pode culpar, não se atreveria a culpar-nos, se descobríssemos que o Homem é mais forte do que Deus.

— Certamente — disse o padre Brown com muita brandura —, não é generoso fazermos até mesmo da paciência de Deus para connosco num ponto contra Ele.

— Deus pode ser paciente e o Homem impaciente. — respondeu ela. — E suponho que preferimos a impaciência. Pode dizer que é sacrilégio, mas não pode impedir isso.

O padre Brown deu um saltinho estranho.

— Sacrilégio! — disse ele, e depois voltou repentinamente para ao pé da porta com um novo ar de determinação e vivacidade. Nesse mesmo instante, Flambeau apareceu na entrada, pálido da excitação, com um pacotinho de papel nas mãos. O padre Brown já abrira a boca para falar, mas o amigo impetuoso antecipou-se.

— Finalmente, estou na pista certa! — exclamou Flambeau. — Estes comprimidos parecem iguais, mas na realidade são diferentes. E sabe que, assim que os descobri, aquele bruto do jardineiro só com um olho enfiou a cara branca no quarto, e trazia uma pistola. Arranquei-lha da mão e atirei-o pelas escadas abaixo, mas começo a perceber tudo. Se ficar aqui mais uma ou duas horas, acabo o meu trabalho.

— Mas não vai acabá-lo — disse o padre, num tom deveras muito raro nele. — Não vamos ficar aqui nem mais uma hora. Não vamos ficar aqui nem mais um minuto. Devemos deixar esta casa imediatamente!

— Quê! — exclamou o estupefacto Flambeau. — Agora que estamos tão perto da verdade! Pode dizer que estamos a chegar à verdade porque eles têm medo de nós.

O padre Brown olhou para ele com um rosto duro e inescrutável, e disse:

— Eles não têm medo de nós se ficarmos aqui. Terão medo de nós apenas quando não estivermos aqui.

Ambos se tinham apercebido de que a figura um tanto nervosa do Dr. Flood rondava na névoa acobreada. Precipitou-se para diante com os gestos mais desenfreados.

— Parem! Ouçam! — gritou o médico, excitado. — Descobri a verdade!

— Então pode explicar à vossa polícia — disse o padre Brown, laconicamente. — Devem estar quase a chegar. Mas nós temos de ir andando.

O médico parecia mergulhado num turbilhão de emoções, acabando por vir à superfície com um grito de desespero. Abriu os braços como uma cruz, barrando-lhes o caminho.

— Assim seja! — exclamou ele. — Agora não os vou enganar dizendo que descobri a verdade. Só direi a verdade.

— Então pode confessar-se ao seu padre — disse o padre Brown, e começou a caminhar em direcção ao portão do jardim com grandes passadas, seguido pelo amigo de olhos arregalados. Antes de chegar ao portão, outra figura correra para ele como o vento, e Dunn, o jardineiro, gritava-lhe, escarnecendo dos detectives que fugiam do trabalho, embora não se percebesse bem. Então o padre baixou-se a tempo de fugir a uma pancada de pistola, empunhada como uma moca. Mas Dunn não conseguiu esquivar-se a uma pancada desferida com o punho de Flambeau, que era como a moca de Hércules. Os dois detectives deixaram o Sr. Dunn estendido ao comprido no caminho, e, transpondo o portão, entraram no carro em silêncio. Flambeau fez apenas uma pergunta breve e o padre Brown apenas respondeu:

— Casterbury.

Por fím, depois de um longo silêncio, o padre comentou:

— Tenho quase a certeza que a tempestade se circunscrevia apenas àquele jardim, e foi provocada por uma tempestade na alma.

— Meu amigo — disse Flambeau —, conheço-o há muito tempo, e quando mostra certos sinais de certeza, sigo o seu exemplo. Mas espero que não me vá dizer que me afastou daquele trabalho fascinante porque não gostou da atmosfera.

— Bem, era uma atmosfera terrível, sem dúvida — replicou o padre Brown, calmamente. — Horrível, ardente e opressiva. E o mais terrível de tudo isto é que... não havia ódio.

— Alguém — sugeriu Flambeau — parece ter tido uma certa antipatia pelo avozinho.

— Ninguém tinha antipatia por quem quer que fosse — disse o padre Brown com um suspiro. — Isso era a coisa terrível naquela escuridão. Era amor.

— Estranha forma de expressar amor... estrangular uma pessoa e trespassá-la com uma espada — replicou o outro.

— Era amor! — repetiu o padre. — E enchia a casa de terror.

— Não me diga — protestou Flambeau — que aquela mulher formosa está apaixonada por aquele aracnídeo de óculos.

— Não — disse o padre Brown e suspirou uma vez mais. — Está apaixonada pelo marido. É horrível.

— É um estado de coisas que eu lhe ouvi recomendar muitas vezes — replicou Flambeau. — Não pode chamar a isso amor sem lei.

— Não nesse sentido — respondeu o padre Brown. Depois virou-se bruscamente, apoiando-se nos cotovelos e falou com novo ardor: — Pensa que eu não sei que o amor de um homem e de uma mulher foi o primeiro mandamento de Deus, e é glorioso para sempre? É um desses idiotas que pensam que não admiramos o amor e o casamento? É preciso que lhe fale do Paraíso ou do vinho de Caná? É precisamente porque a energia era a de Deus, que brama com aquela força horrível, mesmo quando se liberta de Deus. Quando o Paraíso se transforma numa selva, mas mesmo assim uma selva gloriosa; quando a segunda fermentação transforma o vinho de Caná no vinagre do Calvário. Pensa que eu não sei tudo isso?

— Tenho a certeza que sabe — disse Flambeau —, mas ainda não sei muita coisa do meu problema do homicídio.

— O crime não pode ser desvendado — disse o padre Brown.

— E por que não? — perguntou o amigo.

— Porque não há crime para desvendar — disse o padre Brown.

Flambeau ficou calado, totalmente surpreso, e foi o amigo que prosseguiu num tom suave:

— Vou contar-lhe uma coisa curiosa. Falei com aquela mulher quando estava louca com o desgosto, mas nunca disse nada acerca do homicídio. Nunca mencionou o crime ou aludiu ao homicídio.

— Ela referiu-se várias vezes a sacrilégio.

Então, com outro sacão de desconexão verbal, acrescentou:

— Alguma vez ouviu falar de Tiger Tyrone?

— Claro que ouvi! — exclamou Flambeau. — Esse é o homem que julgam andar atrás do relicário, e que me encarregaram de apanhar. É um gangster muito violento e ousado que nunca visitou este país; irlandês, claro, mas do tipo anticlerical. Talvez tenha participado em rituais diabólicos nessas sociedades secretas. Seja como for, tem um gosto macabro em praticar todo o tipo de patifarias que parecem mais perversas do que são. Mas fora disso não é o mais perverso. Raramente mata, e nunca por crueldade; mas gosta de fazer coisas que choquem as pessoas, principalmente a sua gente, roubando igrejas ou desenterrando esqueletos ou outras coisas do género.

— Sim — disse o padre Brown —, tudo se encaixa. Devia ter visto isso há muito tempo.

— Não vejo como seríamos capazes de perceber o que quer que fosse, apenas com uma hora de investigação — disse o detective na defensiva.

— Devia ter percebido isso antes de haver alguma coisa para investigar — disse o padre. — Devia saber antes da sua chegada, hoje de manhã.

— Que diabo quer dizer?

— Isto só mostra como soam falsas as vozes no telefone — disse o padre Brown, pensativamente. — Ouvi três fases do caso esta manhã, e pensei que fossem ninharias. Primeiro, uma mulher telefonou-me e pediu-me para ir àquela estalagem o mais depressa possível. Que significava aquilo? Claro que queria dizer que o avô idoso estava moribundo. Depois telefonou para dizer que afinal já não era preciso ir. Que significava isto? Claro que queria dizer que o avô morrera. Morrera tranquilamente na cama; provavelmente de paragem cardíaca devido à idade avançada. E depois telefonou pela terceira vez e disse que afinal devia ir. Que significava isto? Ah, é muito mais interessante!

Ele continuou depois de uma breve pausa:

— Tiger Tyrone, cuja mulher o adora, apoderou-se de uma das suas ideias loucas, e, no entanto, também era uma ideia engenhosa. Ele soubera que você andava no encalço dele, que o conhecia a ele e aos seus métodos e ia salvar o relicário. Talvez tenha sabido que eu o ajudava às vezes. Queria obrigar-nos a parar na estrada, e o truque para fazer isso foi encenar um homicídio. Foi um acto malévolo, mas não foi homicídio. Provavelmente, assustou a mulher com um ar de senso comum brutal, dizendo que só podia escapar aos trabalhos-forçados, servindo-se de um cadáver que já não podia sofrer. Em todo o caso, a mulher faria qualquer coisa por ele, mas sentiu toda a hediondez antinatural daquela mascarada do enforcamento, e era por isso que falava de sacrilégio. Estava a pensar na profanação da relíquia, mas também na profanação do leito de morte. O irmão é um daqueles rebeldes «científicos», pretensiosos, que fazem bombas que não chegam a rebentar; um idealista desleixado. Mas é leal a Tiger, e o jardineiro também é. Talvez seja um ponto a seu favor, pois parece que há muita gente leal a ele.

»Havia um ponto que me fez pensar logo ao princípio. No meio dos livros velhos que o médico vasculhava, estava um maço de panfletos do século XVII, e vi um título: Declaração Verdadeira do Julgamento e da execução do Meu Lorde Stafford. Stafford foi executado durante aquela conspiração católica, que começou com uma das novelas policiais da História: a morte de Sir Edmund Berry Godfrey. Este último foi encontrado morto numa vala, e parte do mistério era que ele tinha marcas de estrangulamento, mas também tinha sido trespassado com a sua própria espada. Pensei imediatamente que alguém da casa podia ter tirado a ideia daqui. Mas não podia querê-la como uma forma de cometer um homicídio. Só a devia ter querido como uma forma de criar um mistério. Depois percebi que isto se aplicava a todos os pormenores chocantes. Eram diabólicos, sem dúvida, mas não era apenas crueldade. Havia uma pequena desculpa porque tinham de tornar o mistério o mais contraditório e complicado possível, para terem a certeza de que levaríamos muito tempo a desvendá-lo, ou antes a compreendê-lo. Assim arrancaram o pobre velho do seu leito de morte e obrigaram o cadáver a saltar, a dar cambalhotas e a fazer tudo aquilo que não podia fazer. Tinham de nos dar um problema insolúvel. Limparam as pegadas do caminho, deixando ficar a vassoura. Felizmente, percebemos a tempo.

— O senhor percebeu a tempo — disse Flambeau. — Eu talvez tenha demorado um pouco mais com o segundo rasto que deixaram, cheio de comprimidos variados.

— Bem, seja como for, fugimos — disse o padre Brown, reconfortado.

— E suponho que é essa a razão — disse Flambeau. — Por que estou a conduzir a esta velocidade ao longo da estrada para Casterbury.

Nessa noite, no mosteiro e na igreja de Casterbury, deram-se acontecimentos que iriam abalar a quietude monástica. O relicário da S.ta Doroteia, num pequeno cofre coberto de ouro e rubis, foi temporariamente colocado numa sala contígua à capela do mosteiro, para ser trazido com uma procissão durante um serviço especial, depois da bênção do Santíssimo. Estava a ser guardado nesse momento por um monge, que o vigiava de uma forma tensa e cautelosa; uma vez que ele e os seus irmãos estavam a par da sombra do perigo da perambulação de Tiger Tyrone. Assim, o monge pôs-se de pé num instante quando viu uma das janelas com gelosias baixas começar a abrir-se e um objecto escuro a rastejar como uma serpente preta pela abertura. Avançando com ímpeto, agarrou-o e descobriu que era o braço e a manga de um homem, que terminava com um punho elegante e uma luva fina cinzenta-escura. Segurando-o, gritou por socorro, e nesse mesmo instante, um homem entrou de roldão na sala por uma porta atrás dele e deitou a mão ao pequeno cofre que ele deixara em cima da mesa atrás dele. Quase simultaneamente, o braço preso na janela desprendeu-se da mão dele, e ficou a segurar o membro empalhado de um manequim.

Tiger Tyrone já pregara aquela partida, mas para o monge era uma novidade. Felizmente, havia pelo menos uma pessoa para quem os truques de Tiger não eram uma novidade, e essa pessoa apareceu com bigodes militantes, gigantescamente emoldurada na porta, no momento em que o Tiger se virou para fugir por ela. Flambeau e Tiger Tyrone olharam um para o outro fixamente e trocaram qualquer coisa que quase se assemelhava a uma saudação militar.

Entretanto, o padre Brown entrara sorrateiramente na capela, para dizer uma oração pelas várias pessoas envolvidas nestes acontecimentos indecentes. Mas estava mais a sorrir do que outra coisa, e, para dizer a verdade, de qualquer maneira, não estava desesperado com o Sr. Tiger e a sua deplorável família, mas bastante mais esperançado do que estava por muitas pessoas mais respeitáveis. Depois, os seus pensamentos dilataram-se com as perspectivas mais grandiosas do local e do momento. Encostadas aos mármores pretos e verdes no fundo da capela um pouco antiquada, as vestes talares vermelho-escuras da festa de um mártir eram por sua vez um fundo para um vermelho mais vivo; um vermelho como o de brasas; os rubis do relicário; as rosas de S.ta Doroteia. E teve ainda um pensamento para lançar de novo aos estranhos acontecimentos daquele dia, e à mulher que ficara horrorizada com o sacrilégio que ajudara a cometer. «Afinal», pensou ele, «a S.ta Doroteia também teve um amante pagão, mas ele não a dominara, nem destruíra a sua fé. Ela morrera livre e por amor à verdade, e depois mandara-lhe rosas do Paraíso.»

Levantou os olhos e viu por entre o véu de fumo de incenso e de luzes bruxuleantes que a Bênção do Santíssimo se aproximava do fim, enquanto a procissão esperava. A sensação de riquezas acumuladas de tempo e de tradição passou por ele como uma multidão que se move fila após fila através de séculos intermináveis, e lá no alto, por cima de todos, como uma grinalda de chamas imarcescíveis, como o sol da nossa meia-noite mortal, o enorme ostensório resplandeceu na escuridão das sombras arqueadas, como resplandecia no enigma sombrio do universo. Pois algumas pessoas estão convencidas de que este enigma também é um problema insolúvel. E outras têm igual certeza que tem apenas uma solução.


O VAMPIRO DA ALDEIA

Na curva de um caminho na colina, onde se erguiam dois choupos como pirâmides que impediam a minúscula aldeia de Potter’s Pond de crescer, um simples amontoado de casas, passou uma vez um homem com um fato de corte e cor muito invulgares, envergando um casaco magenta-viva e um chapéu branco, inclinado, sob caracóis pretos ambrosíacos, que terminavam com uma espécie de floreado byroniano de suíças.

O enigma da razão que o levava a usar uma roupa de tão fantástica antiguidade, embora a usasse com um ar de moda e até de jactância, era um dos muitos enigmas que acabaram por ser resolvidos ao desvendar-se o mistério do seu destino. A questão aqui é que, quando passara pelos choupos, deu a impressão de ter desaparecido, como se se tivesse diluído na aurora pálida e que se estendia ou tivesse sido levado pelo vento da manhã.

Somente uma semana depois é que encontraram o seu corpo a uma milha de distância, desfeito sobre as rochas escarpadas de um jardim em terraço, que ia dar a uma casa lúgubre e com as persianas corridas, a que chamavam The Grange. Pouco tempo antes de ter desaparecido, tinham-no ouvido por acaso a discutir, segundo parecia, com umas pessoas presentes, e sobretudo a escarnecer da aldeia, dizendo que era «um lugarejo miserável». Supunha-se ainda que levantara algumas paixões extremas de patriotismo local e acabara por ser a vítima. Pelo menos, o médico local declarou que o crânio sofrera uma pancada muito forte que podia ter sido a causa da morte, embora talvez tivesse sido desferida apenas com uma espécie de moca ou clava. Isto ajustava-se bastante bem à noção de um ataque por campónios muito selvagens. Mas ninguém foi capaz de descobrir um campónio em particular, e o inquérito apresentou um veredicto de homicídio por desconhecidos.

Um ano ou dois depois, a questão foi de novo levantada de uma forma curiosa; uma série de acontecimentos que levou um tal Dr. Mulborough, chamado pelos amigos Mulberry, numa alusão apropriada a qualquer coisa rica e carnuda na sua rotundidade pesada e no seu rosto um pouco violáceo, a viajar de comboio até Potter’s Pond, com um amigo que consultara muitas vezes sobre problemas do género. Apesar do exterior um tanto vinoso e pesado do médico, tinha um olhar vivo e era realmente um homem de inteligência excepcional, que pensou ter revelado ao consultar um padre baixo chamado Brown, com quem travara conhecimento há muitos anos, num caso de envenenamento. O padre baixo estava sentado à sua frente, com o ar de um bebé paciente a absorver conhecimentos, e o médico explicava minuciosamente os verdadeiros motivos da viagem.

— Não posso concordar com o cavalheiro do casaco magenta que Potter’s Pond não passa de um lugarejo miserável. Mas é certamente uma aldeia muito remota e isolada, por isso parece muito distante, como uma aldeia de há cem anos. As solteironas são de facto solteironas! Diabo, é quase possível imaginar que as viu a fiar! As senhoras não são apenas senhoras. São fidalgas, e o farmacêutico não é um farmacêutico, mas um boticário, mas pronunciam mal a palavra. Só admitem a existência de um médico vulgar, como eu, para ajudar o boticário. Mas sou considerado sobretudo uma inovação juvenil, porque tenho apenas cinquenta e sete anos e estive apenas vinte e oito anos no condado. O solicitador parece que a conhece há vinte e oito mil anos. E há também o velho almirante, que é tal qual uma ilustração de Dickens, com uma casa cheia de alfanges e lulas e equipada com um telescópio.

— Suponho — disse o padre Brown — que há sempre um certo número de almirantes lançados à praia. Mas nunca percebi porque vão para tão longe da costa.

— Certamente que nenhum lugar semimorto no interior do país fica completo sem uma dessas criaturinhas — disse o médico. — E depois, claro, há o tipo de clérigo apropriado, conservador e Igreja Alta com hábitos áridos, que datam do tempo do arcebispo Laud, mais uma mulher alcoviteira que qualquer uma das mulheres velhas. Ele é uma raposa velha, estudioso e de cabelo branco, que se choca mais facilmente do que as solteironas. Na realidade, as fidalgas, embora puritanas nos seus princípios, são às vezes muito francas nos seus discursos, como eram os verdadeiros puritanos. Uma ou duas vezes soube que a velha Miss Carstairs usou expressões mais vivas do que algumas da Bíblia. O velho e simpático clérigo lê com frequência a Bíblia, mas tenho quase a certeza que fecha os olhos quando chega a essas expressões. Sabe que não sou particularmente moderno. Não aprecio esse espalhafato e ruído da alegre juventude...

— A alegre juventude não aprecia — disse o padre Brown. — Essa é a verdadeira tragédia.

— Mas estou naturalmente mais em contacto com o mundo do que com as pessoas naquela aldeia pré-histórica — continuou o médico. — E cheguei a um ponto de aceitar quase com prazer o grande escândalo.

— Não me diga que a alegre juventude descobriu finalmente Potter’s Pond — comentou o padre, a sorrir.

— Oh, até o nosso escândalo assenta em frases melodramáticas há muito estabelecidas. Preciso de dizer que o filho do clérigo promete ser o nosso problema? Seria quase irregular se o filho do clérigo fosse muito regular. Tanto quanto eu posso ver, é muito moderado e quase tenuemente irregular. Viram-no pela primeira vez a beber cerveja forte em frente do Blue Lion. Só que parece que é um poeta, e isso nesta zona é quase o mesmo que ser um caçador furtivo.

— Certamente — disse o padre Brown —, mesmo em Potter’s Pond isso não pode ser o grande escândalo.

— Não — replicou o médico com ar sério. — O grande escândalo começa assim. Na casa a que chamam The Grange, situada no extremo do bosque, vive uma senhora. Uma senhora solitária. Diz chamar-se Sr.ª Maltravers (é assim que nós dizemos), mas ela chegou há um ano ou dois e ninguém sabe nada a seu respeito. «Não sei por que é que ela quer viver aqui», disse a senhorita Carstairs-Carew; «não a visitamos.»

— Talvez seja por isso mesmo — disse o padre Brown.

— Bem, o isolamento dela é considerado suspeito. Ela irrita-os porque é bonita e até por ter aquilo a que se chama bom gosto. E todos os homens jovens são avisados de que ela é uma mulher fatal.

— As pessoas que perdem toda a caridade geralmente perdem a lógica — comentou o padre Brown. — É bastante ridículo queixarem-se de ela ser reservada, e depois acusarem-na de seduzir toda a população masculina.

— Isso é verdade — disse o médico. — E, no entanto, ela é uma pessoa muito complicada. Vi-a e achei-a intrigante. É uma dessas mulheres morenas, altas, elegantes e lindamente feias, se me faço entender. É bastante espirituosa, e, apesar de bastante jovem, dá-me a impressão daquilo a que chamam... bem, experiência. Aquilo a que senhoras de idade chamam um passado.

— Todas as senhoras de idade que nasceram neste preciso momento — comentou o padre Brown. — Creio que posso concluir que pensam que ela seduziu o filho do vigário.

— Sim, parece constituir um problema terrível para o pobre vigário. Pensam que é viúva.

O rosto do padre Brown brilhou e contraiu-se de irritação, o que era pouco habitual nele.

— Ela é viúva, o filho do vigário é filho do vigário, o solicitador é solicitador e o senhor é médico. Por que diabo não devia ser viúva? Têm alguma prova prima facie para duvidarem que ela é o que ela diz ser?

O Dr. Mulborough endireitou os ombros largos e retesou-se na cadeira.

— Claro que tem outra vez razão — disse ele. — Mas ainda não chegámos ao escândalo. Bem, o escândalo é que ela é viúva.

— Oh — disse o padre Brown, e o seu rosto alterou-se e ele disse uma coisa suave e fraca, que quase podia ter sido «Meu Deus!».

— Antes de mais — disse o médico —, descobriram uma coisa sobre a Sr.ª Maltravers. É actriz.

— Pensei o mesmo — disse o padre Brown. — Não importa o motivo. Imaginei outra coisa relacionada com a Sr.ª. Maltravers, que pareceria ainda mais irrelevante.

— Bem, naquela altura já era um escândalo o facto de ser actriz. O velho e simpático clérigo, claro, está inconsolável, só de pensar que os seus cabelos brancos foram enxovalhados por uma actriz e aventureira. As solteironas guincham em coro. O almirante admite que foi algumas vezes a um teatro na vila, mas discorda que haja tais coisas naquilo a que chama «nosso seio». Bem, evidentemente que não tenho nenhuma objecção particular desse tipo. Esta actriz é certamente uma senhora, ainda que um pouco como a Dark Lady, segundo o estilo dos sonetos; o jovem está muito apaixonado por ela; e eu sou um velho idiota e sentimental por ter uma oculta simpatia pelo jovem insensato que anda a rondar a Moated Grange; e começava a ficar com uma disposição de espírito pastoral em relação a este idílio, quando, de repente, caiu o raio. E eu, que sou a única pessoa que alguma vez teve simpatia por essa gente, sou enviado como o mensageiro da desgraça.

— Sim — disse o padre Brown. — E por que razão foi enviado?

O médico respondeu com uma espécie de suspiro:

— A Sr.ª Maltravers não é apenas viúva, mas também é a viúva do Sr. Maltravers.

— Dito assim, parece uma revelação chocante — admitiu o padre com ar sisudo.

— E o Sr. Maltravers — prosseguiu o amigo médico — era o homem que, segundo parece, foi assassinado nesta mesma aldeia há um ou dois anos. Pensa-se que um dos aldeões simplórios lhe bateu na cabeça.

— Lembro-me de ter ouvido falar nisso — disse o padre Brown. — O médico, ou um médico qualquer, disse que morrera, provavelmente, por ter sido agredido na cabeça por uma moca.

O Sr. Mulborough ficou calado por instantes, embaraçado e de sobrolho carregado, e depois disse laconicamente:

— Cão não come cão, e médicos não mordem médicos, nem mesmo quando são loucos. Não gostaria de censurar o meu eminente antecessor em Potter’s Pond, se pudesse evitar isso, mas sei que sabe guardar segredos. Por falar em confidência, o meu eminente antecessor em Potter’s Pond era um idiota, um impostor alcoólico e absolutamente incompetente. O chefe da polícia do condado pediu-me (pois vivi muito tempo no condado, embora apenas recentemente na aldeia) que investigasse o caso, os depoimentos e os relatórios da investigação. E não há qualquer dúvida. Maltravers pode ter sido agredido na cabeça. Ele era um actor ambulante de passagem pela terra, e a gente de Potter’s Pond talvez pense que é muito natural que essas pessoas sejam agredidas na cabeça. Mas quem o agrediu não o matou. É simplesmente impossível que a lesão, como foi descrita, provocasse algo mais do que a perda de sentidos durante algumas horas. Mas nos últimos tempos, consegui descobrir outros factos relacionados com o caso, e o resultado é bastante sinistro.

Ficou a olhar para a paisagem com semblante carregado, enquanto passava suavemente pela janela, e depois disse com mais laconismo:

— Vou lá e preciso da sua ajuda, porque vai haver uma exumação. Há fortes suspeitas de envenenamento.

— E eis-nos chegados à estação — disse o padre Brown com jovialidade. — Suponho que a sua ideia é que o envenenamento do desgraçado se incluiria nos deveres domésticos da esposa dele.

— Bem, parece que nunca houve aqui outra pessoa que tivesse uma ligação especial com ele — replicou Mulborough, quando desceram do comboio. — Pelo menos parece que anda a rondar por aqui um amigo dele, um excêntrico, um actor sem futuro. Mas a polícia e o solicitador daqui parecem convencidos de que ele é um indivíduo desequilibrado, com alguma idée fixe por causa de uma discussão com um actor que era seu inimigo, mas que, certamente, não era Maltravers. Um acidente enquanto vagueava, diria, e que certamente não tem nada a ver com o problema do veneno.

O padre Brown ouvira a história. Mas sabia que nunca compreendia a história enquanto não conhecesse as personagens intervenientes. Passou os dois ou três dias seguintes a andar de um lado para o outro, com um ou outro pretexto delicado, para visitar os principais actores do drama. A primeira entrevista com a misteriosa viúva foi breve, mas animada. Extraiu dela pelo menos dois factores: um que a Sr.ª Maltravers às vezes falava de uma maneira a que a aldeia vitoriana chamaria cínica; e o outro, que ao contrário de muitas actrizes, pertencia, por acaso, ao seu credo religioso.

Não era tão ilógico (nem tão heterodoxo) ao ponto de concluir disto apenas que estava inocente do alegado crime. Tinha consciência de que o seu antigo credo religioso se podia vangloriar de vários envenenadores distintos. Mas não teve dificuldade em compreender essa ligação, naquele tipo de caso, com uma certa liberdade intelectual que aqueles puritanos chamariam relaxamento, e que certamente pareceria àquela parcela de uma Inglaterra mais antiga quase cosmopolita. De qualquer maneira, tinha a certeza de que ela podia ser muito útil, quer para o bem, quer para o mal.

Os seus olhos castanhos eram valentes, quase combativos, e a boca enigmática, petulante e um pouco grande, sugeriam que as suas intenções no tocante ao poético filho do vigário, fossem elas quais fossem, eram muito profundas.

O poético filho do vigário, entrevistado, para escândalo da aldeia, num banco à porta do Blue Lion, deixou uma impressão de puro mau humor. Hurrel Horner, filho do Rev. Samuel Horner, era um jovem de constituição atlética com um fato cinzento-claro com um toque de arte numa gravata verde-clara, mas tomava-se conspícuo, sobretudo por causa de uma cabeleira farta e ruiva e um olhar carrancudo permanente. Mas o padre Brown tinha um jeito de fazer com que as pessoas explicassem, com alguma minúcia, a razão por que se recusavam a dizer uma só palavra. Acerca do escândalo espalhado na aldeia, o jovem começou a praguejar sem constrangimento. Chegou mesmo a acrescentar um pequeno boato. Referiu-se com azedume a alegados namoricos do passado entre a puritana senhorita Carstairs-Carew e o Sr. Carver, o solicitador. Acusou mesmo essa personalidade jurídica de ter tentado insinuar-se junto da Sr.ª Maltravers. Mas quando começou a falar do seu próprio pai, ou por uma questão de decência amarga ou piedade, ou porque a sua raiva era tão profunda para poder falar, disse apenas umas palavras com brusquidão.

— Então, aí vai. Ele acusa-a dia e noite de aventureira pintada; uma espécie de empregada de bar com cabelo dourado. Eu digo-lhe que não é. O senhor conheceu-a, e sabe que não é. Mas ele nem sequer quer conhecê-la. Nem sequer a quer ver na rua ou olhar para ela através de uma janela. Uma actriz iria conspurcar a sua casa e até a sua presença sagrada. Se lhe chamam puritano, diz que tem orgulho em ser puritano.

— O seu pai — disse o padre Brown — tem direito a exigir que os seus pontos de vista sejam respeitados, sejam eles quais forem, embora sejam pontos de vista que eu próprio não compreendo bem. Mas concordo que não tem direito de censurar uma senhora que nunca viu e depois recusar-se a olhar para ela, para ver se tem razão. Isso não tem lógica.

— Nesse ponto é intransigente — replicou o jovem. — Nem sequer um encontro passageiro. Claro, também vocifera contra os meus outros gostos teatrais.

O padre Brown seguiu rapidamente a nova introdução, e ficou a saber mais do que queria saber. A alegada poesia, que era uma mancha no carácter do jovem, era essencialmente poesia dramática. Escrevera tragédias em verso que tinham sido admiradas por bons juízes. Não era um simples louco pelo teatro. Na realidade, não tinha nada de louco. Tinha algumas ideias realmente originais sobre a maneira de representar Shakespeare. Era fácil compreender o facto de ter ficado deslumbrado e encantado quando encontrou a brilhante senhora na Grange. E a simpatia intelectual do padre até apaziguou o rebelde de Potter’s Pond, que à despedida sorriu efectivamente.

Foi aquele sorriso que revelou repentinamente ao padre Brown que o jovem era realmente infeliz. Enquanto franzia as sobrancelhas, podia ter sido apenas mau humor; mas quando sorriu, foi de certa forma uma revelação mais real de mágoa.

Uma coisa continuou a perseguir o espírito do padre sobre aquela entrevista com o poeta. Um instinto interior atestava que o jovem robusto estava consumido por dentro, por um desgosto ainda maior que a história convencional de que os pais convencionais são obstáculos ao curso do verdadeiro amor. Era mais que isso, porque não havia alternativas evidentes. O rapaz era já um sucesso literário e dramático. Podia dizer-se que os seus livros estavam a ter grande aceitação. Também não bebia nem dissipava o dinheiro bem ganho. As suas folias conhecidas resumiam-se a um copo de cerveja branda, e parecia ser muito cuidadoso com o dinheiro. O padre Brown pensou noutra complicação possível relacionada com a riqueza de Hurrel e a despesa reduzida. O seu semblante ficou carregado.

A conversa sobre Miss Carstairs-Carew, que visitou a seguir, iria pintar certamente o filho do vigário com as cores mais escuras. Mas como se destinava a destruí-lo com todos os vícios particulares que o padre Brown sabia que o jovem não revelava, atribuiu aquilo a uma combinação vulgar de puritanismo e bisbilhotice. A senhora, embora altiva, era bastante atenciosa, porém, e ofereceu ao visitante um pequeno copo de vinho do Porto e uma fatia de bolo com sementes aromáticas, do mesmo modo das tias-avós mais idosas de toda a gente, antes de conseguir escapar a um sermão sobre a decadência geral da moral e da educação.

O porto de escala seguinte era muito diferente; pois ele desapareceu, descendo uma ruela sombria e suja, onde Miss Carstairs-Carew se recusaria a segui-lo mesmo em pensamento, e depois entrou numa casa de habitação, estreita que parecia mais barulhenta por causa de uma voz alta e declamatória num sótão... De lá voltou a sair, com uma expressão muito desorientada, seguido até ao passeio por um homem muito excitado com um queixo azul e uma sobrecasaca verde-escura, que em tempos fora preta, que gritava, argumentando:

— Ele não desapareceu! Maltravers nunca desapareceu! Ele apareceu: apareceu morto e eu apareci vivo. Mas onde está o resto da companhia? Onde está aquele homem, aquele monstro, que deliberadamente roubou o meu papel, depreciou as minhas melhores cenas e arruinou a minha carreira? Eu era o melhor Tubal que alguma vez pisou o palco. Ele desempenhou o papel de Shylock, mas para isso não precisava de representar muito! E assim acabou com a melhor oportunidade da minha carreira. Podia mostrar-lhe recortes de jornais sobre as minhas interpretações de Portinbras...

— Tenho a certeza de que eram esplêndidas e muito merecidas — disse o padre baixo, ofegando. — Disseram-me que a companhia saíra da aldeia antes de Maltravers morrer. Mas não há problema. Não há problema. — E começou a descer a rua uma vez mais, a toda a pressa.— Ele ia desempenhar o papel de Polonius — continuou o orador insaciável atrás dele. O padre Brown parou de repente.

— Oh — disse ele muito devagar —, ele devia desempenhar o papel de Polonius.

— Hankin, aquele patife! — gritou o actor. — Siga o rasto dele. Siga-o até aos confins da terra! Claro que saíra da aldeia, pode ter a certeza que foi isso que ele fez. Siga-o... descubra-o. E que as pragas... — Mas o padre afastava-se uma vez mais, descendo apressadamente a rua.

A esta cena melodramática seguiram-se mais duas entrevistas, muito mais prosaicas e talvez mais práticas. Em primeiro lugar, o padre entrou no banco, onde esteve fechado durante dez minutos com o gerente, e em seguida fez uma visita apropriada ao clérigo idoso e amável. Aqui uma vez mais tudo parecia como descrito, inalterado e aparentemente inalterável; um ou dois vestígios de devoção de tradições mais austeras, no crucifixo estreito na parede, a Bíblia grande na estante e o lamento inicial do senhor de idade por causa da inobservância crescente do domingo, mas tudo com um toque de distinção afectada a que não faltavam os pequenos requintes e luxos sem brilho.

O clérigo também deu um copo de vinho do Porto ao convidado, mas acompanhado de uma bolacha britânica antiga, em vez de bolo com sementes aromáticas. O padre teve de novo a sensação estranha de que tudo era quase perfeito de mais, e que estava a viver num século anterior. Somente num ponto o vigário amável se recusou a desfazer-se em amabilidades. Sustentava com docilidade, mas também com firmeza que a sua consciência não lhe permitiria que se encontrasse com uma actriz de teatro. Todavia, o padre Brown pousou o copo de vinho do Porto com palavras de apreço e agradecimento, e partiu para ir ao encontro do amigo, o médico, na esquina da rua. Daí iriam juntos até ao escritório do Sr. Carver, o solicitador.

— Suponho que deu um passeio monótono — começou o médico —, e descobriu que é uma aldeia muito parada.

A resposta do padre foi brusca e quase estridente.

— Não chame parada à sua aldeia. Garanto-lhe que é uma aldeia deveras muito extraordinária.

— Tenho estado a tratar da única coisa extraordinária que já aconteceu aqui, suponho eu — comentou o Dr. Mulborough. — E mesmo isso aconteceu a uma pessoa de fora. Devo dizer-lhe que fizeram a exumação ontem à noite com discrição, e fiz a autópsia esta manhã. Por palavras simples, estivemos a desenterrar um cadáver que está simplesmente cheio de veneno.

— Um cadáver cheio de veneno — repetiu o padre Brown, com um ar bastante distraído. — Acredite em mim, a sua aldeia tem algo muito mais interessante do que isso.

Fez-se silêncio de repente, seguido igualmente por um puxão repentino no botão da campainha na varanda da casa do solicitador, e logo foram levados à presença daquela personalidade jurídica, que os apresentou por sua vez a um cavalheiro de cabelo branco e rosto amarelo com uma cicatriz, que parecia ser o almirante.

Naquela altura a atmosfera da aldeia mergulhara quase no subconsciente do pequeno padre, mas estava consciente de que o advogado era de facto o tipo de advogado que aconselha pessoas como a senhorita Carstairs-Carew. Mas, embora fosse uma raposa velha, parecia algo mais do que um fóssil. Talvez fosse a uniformidade do ambiente, mas o padre teve uma vez mais a estranha sensação de que fora transplantado de novo para o princípio do século XIX, e não de que o solicitador sobrevivera até ao princípio do século XX.

O colarinho e a gravata quase pareciam de couro quando encaixava o queixo comprido dentro deles, mas estavam limpos e claros, e havia mesmo nele qualquer coisa de peralta velho e muito severo. Em resumo, era o que se chama bem conservado, se bem que em parte fosse por estar petrificado.

O advogado e o almirante, e mesmo o médico, mostraram alguma surpresa ao constatarem que o padre Brown estava disposto a defender o filho do vigário contra as lamentações locais em nome do vigário.

— Achei o nosso jovem amigo bastante atraente — disse ele. — É uma pessoa que fala bem e suponho que um bom poeta, e a Sr.ª Maltravers, que fala a sério pelo menos acerca disso, diz que é um actor bastante bom.

— Deveras — disse o advogado. — Potter’s Pond, excepto a Sr.ª Maltravers, está mais inclinada a perguntar se ele é um bom filho.

— Ele é um bom filho — disse o padre Brown. — Isso é que é extraordinário.

— Que diabo! — disse o almirante. — Quer dizer que ele gosta de facto do pai?

O padre hesitou. Depois disse:

— Disso não estou muito certo. Essa é outra coisa extraordinária.

— Que diabo quer o senhor dizer? — perguntou o marinheiro com blasfémia náutica.

— Quer dizer — disse o padre Brown — que o filho ainda fala do pai com muito rancor, mas parece que afinal tem feito mais que o seu dever. Tive uma conversa com o gerente do banco, e como estávamos a investigar confidencialmente um crime grave, com autorização da polícia, contou-me os factos. O velho clérigo deixou de fazer o trabalho da paróquia. Na realidade, esta nunca foi efectivamente a sua paróquia. E a população, que é bastante pagã, quando vai à igreja, vai a Dutton-Abbot, que fica a menos de uma milha. O velho não tem rendimentos, mas o filho ganha bom dinheiro; e o velho é bem tratado. Deu-me um vinho do Porto de uma excelente colheita. Vi filas de garrafas antigas, cheias de poeira, e deixei-o sentado à mesa quando lhe iam servir um almoço bastante recherché à moda antiga. Deve ser tudo feito com o dinheiro do rapaz.

— Um filho exemplar — disse Carver, com um sorriso escarninho.

O padre Brown acenou com a cabeça, franzindo as sobrancelhas, como se estivesse a revolver um enigma no espírito, e disse em seguida:

— Um filho-modelo. Mas um modelo mecânico.

Nesse instante, um empregado entrou com uma carta sem selo para o advogado,. que ele rasgou com impaciência depois de lhe dar uma vista de olhos. Quando ela caiu em pedaços, o padre viu uma caligrafia araneiforme, irregular e confusa e a assinatura de «Phoenix Fitzgerald», e fez uma conjectura que o outro confirmou laconicamente.

— É aquele actor melodramático que anda sempre a importunar-nos — disse ele. — Teve uma rixa com um actor morto e enterrado, que não pode estar relacionado com o caso. Todos nos recusámos a recebê-lo, excepto o médico, que o recebeu, e o médico diz que é louco.

— Sim — disse o padre Brown, apertando os lábios com ar pensativo. — Eu diria que é louco. Mas certamente que tem razão.

— Razão? — exclamou Carver, bruscamente. — Razão acerca do quê?

— Acerca disto estar relacionado com a antiga companhia de teatro — disse o padre Brown. — Sabem qual foi a primeira coisa que me pôs perplexo nesta história? Foi a ideia de que Maltravers foi morto pelos aldeões porque ele insultou a aldeia deles. É extraordinário aquilo que os magistrados provinciais fazem para convencer os jurados, e os jornalistas, claro, são incrivelmente crédulos. Não podem conhecer bem os camponeses ingleses. Eu mesmo sou um camponês inglês. Pelo menos fui criado, com outros nabos, em Essex. São capazes de imaginar um trabalhador rural inglês a idealizar e a personificar a sua aldeia, como o cidadão de uma cidade-estado da antiga Grécia; desembainhando a espada pelo seu estandarte sagrado, como um homem na pequena república medieval de um burgo italiano? Conseguem ouvir um velhote dizer: «Só o sangue pode limpar uma mancha na reputação de Potter’s Pond?» Por S. Jorge e o Dragão, quem me dera que o fizessem! Mas, na realidade, tenho um argumento mais prático para a outra noção.

Calou-se por instantes, como se estivesse a concentrar-se, e depois continuou:

— Não entenderam o significado das últimas palavras que ouviram dizer ao pobre Maltravers. Ele não estava a dizer aos aldeões que a aldeia era apenas um lugarejo. Repreendia um actor. Eles iam fazer uma representação teatral em que Fitzgerald seria Fortinbras, o desconhecido Hankin seria Polonius, e Maltravers, certamente, o príncipe da Dinamarca. Talvez outra pessoa qualquer quisesse o papel ou tivesse opiniões sobre o papel, e Maltravers disse furioso: «Serias um Hamlet miserável»; e é tudo.

O Dr. Mulborough estava boquiaberto; parecia estar a digerir a sugestão lentamente, mas sem dificuldade. Disse, por fim, antes que os outros pudessem falar:

— E o que é que sugere que devemos fazer agora?

O padre Brown levantou-se muito de repente, mas falou com bastante civilidade.

— Se estes senhores nos dispensarem por instantes, sugiro que o senhor e eu, doutor, façamos uma visita aos Horners, imediatamente. Sei que o vigário e o filho estão lá neste preciso momento. E aquilo que pretendo fazer, doutor, é isto. Suponho que ainda ninguém na aldeia sabe da autópsia e do resultado. Quero apenas que diga ao clérigo e ao filho, enquanto lá estão, o que aconteceu realmente; que Maltravers morreu envenenado e não por causa de uma pancada.

O Dr. Mulborough tinha motivo para reconsiderar a sua incredulidade quando lhe diziam que era uma aldeia extraordinária. A cena que se seguiu, quando ele pôs em prática o programa do padre, foi certamente daquelas em que um homem não acredita no que vê, como diz o ditado.

O Rev. Samuel Horner estava de pé com a sotaina preta, que realçava o prateado da cabeça veneranda. A mão estava pousada na estante, junto da qual ficava muitas vezes para estudar as Escrituras. Naquele momento estava ali, talvez por acaso, mas dava-lhe um ar de autoridade. E em frente dele estava o filho rebelde sentado de pernas abertas numa cadeira, a fumar um cigarro barato com o sobrolho muito carregado. Um retrato vivo de impiedade juvenil.

O velho fez um sinal delicado com a mão para que o padre Brown se sentasse. Ele sentou-se e ficou silencioso a olhar com uma expressão vaga para o tecto. Mas algo fez com que Mulborough sentisse que podia transmitir a notícia de uma maneira mais impressiva, ficando de pé.

— Creio — disse ele — que tem de ser informado, uma vez que de certa forma é o pai espiritual desta comunidade, de uma tragédia medonha que aqui ocorreu e que assumiu um novo significado, possivelmente ainda mais medonho. Lembra-se do triste caso da morte de Maltravers, que julgaram ter sido morto com um golpe desferido com um pau, provavelmente brandido por um inimigo da aldeia.

O clérigo fez um gesto com uma mão trémula.

— Deus não permita — disse ele — que eu faça alguma afirmação que possa parecer desculpar violência assassina! Mas, quando um actor traz a sua ruindade para esta inocente aldeia, está a desafiar a autoridade de Deus.

— Talvez — disse o médico com ar sério. — Mas, seja como for, essa autoridade não foi exercida assim. Fui encarregado agora mesmo de assistir à autópsia do corpo, e posso garantir-lhe, antes de mais, que a pancada na cabeça não podia ter causado a morte. Além do mais o corpo estava cheio de veneno, o que certamente foi a causa da morte.

O jovem Hurrel Homer fez voar o cigarro e pôs-se de pé com a agilidade e a rapidez de um gato. Foi estatelar-se a uma jarda, mais ou menos, da mesa de leitura.

— Tem a certeza disso? — perguntou ele, ofegante. — Tem a certeza absoluta que a pancada não podia provocar a morte?

— A certeza absoluta — disse o médico.

— Então — disse Hurrel —, quem me dera que esta pudesse.

Num instante, antes que alguém pudesse mexer um dedo, atingira o vigário com um murro na boca, atirando-o como uma boneca preta desconjuntada contra a porta.

— Que está a fazer? — gritou Mulborough, a tremer da cabeça aos pés com o choque e o som da pancada. — Padre Brown, o que é que este louco está a fazer?

Mas o padre Brown não se mexera. Olhava ainda serenamente para o tecto.

— Estava à espera que ele fizesse isso — disse o padre, tranquilamente. — Gostava de saber por que não fez isso antes.

— Meu Deus! — exclamou o médico. — Sei que pensávamos que ele era vítima de algumas injustiças, mas bater no pai. Bater num clérigo e num não combatente...

— Ele não bateu no pai, e não bateu num clérigo — disse o padre Brown. — Bateu num actor, canalha e chantagista, vestido de padre, que viveu às custas dele como uma sanguessuga durante anos. Agora sabe que está livre da chantagem, ataca, e eu não posso dizer que o censuro. Sobretudo porque tenho fortes suspeitas de que o chantagista é também um envenenador. Mulborough, penso que será melhor chamar a polícia.

Saíram da sala sem serem impedidos pelos outros dois, um aturdido e cambaleante, o outro ainda cego, a bufar e a arfar com paixões de alívio e raiva. Mas quando passavam, o padre Brown olhou uma vez para o rapaz, e ele foi um dos poucos seres humanos que viram aquela expressão implacável.

— Naquele ponto ele estava certo — disse o padre Brown. — Quando um actor traz a sua ruindade para esta aldeia inocente, desafia a autoridade de Deus!

— Bem — disse o padre Brown, quando ele e o médico se instalaram de novo numa carruagem parada na estação de Potter’s Pond. — Como diz, é uma história estranha, mas não creio que ainda seja uma história de mistério. De qualquer maneira, parece-me que a história não foi bem isso. Maltravers chegou aqui, com parte da companhia, em digressão. Uns foram directamente para Dutton-Abbot, onde iam todos apresentar um melodrama sobre o princípio do século XIX. Viram-no por acaso a rondar com um fato do guarda-roupa da companhia, o fato próprio de um peralta daquela época. Outra personagem era um vigário antiquado, cujo fato escuro era menos vistoso e podia passar apenas como sendo fora de moda. Esse papel era desempenhado por um homem que geralmente encarnava personagens masculinas de idade, desempenhara o papel de Shylock e depois iria fazer o papel de Polonius.

Uma terceira figura no drama era o nosso poeta dramático, que também era um actor dramático, e teve uma discussão com Maltravers por causa da representação de Hamlet, mas também por causa de assuntos mais pessoais. Creio que talvez estivesse apaixonado pela Sr.ª Maltravers já nessa altura. Não creio que houvesse algum problema entre eles, e espero que não haja agora. Mas pode ter-se irritado com a capacidade conjugal dele, pois Maltravers era um fanfarrão e capaz de provocar distúrbios. Numa dessas brigas lutaram com paus, e o poeta bateu com força na cabeça de Maltravers, e, tendo em conta a investigação judicial, tinha todos os motivos para pensar que o tinha morto.

Uma terceira pessoa estava presente ou era cúmplice do incidente, o homem que fazia o papel do vigário idoso, e resolveu fazer chantagem com o alegado assassino, obrigando-o a pagar a vida desafogada de um clérigo reformado. Era a mascarada óbvia para um homem como aquele numa terra como esta, limitando-se a usar as roupas do teatro como um clérigo reformado. Mas tinha os seus motivos para ser um clérigo muito reservado. Pois a verdadeira história da morte de Maltravers foi ele ter caído no meio de fetos muito altos, recuperou gradualmente os sentidos, tentou dirigir-se a uma casa, e acabou por sucumbir, não por causa da pancada, mas porque o clérigo benévolo lhe dera veneno uma hora antes, provavelmente num copo de vinho do Porto. Começava a pensar nisso, quando bebi um copo de vinho do Porto do vigário. Pôs-me um pouco nervoso. A polícia está a examinar essa hipótese neste momento, mas não sei se conseguirão provar essa parte da história. Terão de descobrir o verdadeiro motivo, mas é óbvio que este bando de actores andava sempre a discutir e Maltravers era odiado.

— A polícia talvez possa provar alguma coisa agora que tem essa suspeita — disse o Dr. Mulborough. — Só não percebo por que ficou com essa desconfiança. Por que diabo havia de suspeitar daquele cavalheiro inocente, vestido de preto?

O padre Brown esboçou um sorriso.

— Em certo sentido, suponho — disse ele —, que foi uma questão de conhecimento particular, quase uma questão profissional, num sentido particular. Sabe que os nossos polemistas se queixam muitas vezes de que existe muita ignorância sobre aquilo que é de facto a nossa religião. Mas é muito mais curioso que isso. É verdade, e não é de modo nenhum anormal, que a Inglaterra sabe muito pouco acerca da igreja Católica. Nem mesmo aquilo que eu sei. Ficaria admirado se lhe dissesse que muito poucas pessoas compreendem as controvérsias anglicanas. Muitas delas nem sequer sabem o que significa High Churchman ou Low Churchman, mesmo nos pontos particulares da prática, já para não falar das duas teorias da História e da Filosofia que estão por detrás delas. Pode ver essa ignorância em qualquer jornal, romance popular ou peça de teatro.

A primeira coisa que me surpreendeu foi o facto de aquele clérigo venerável ter baralhado tudo de uma maneira incrível. Nenhum vigário anglicano podia ignorar todos os problemas anglicanos. Ele devia parecer um velho High Churchman conservador; e depois gabou-se de ser um puritano. Um homem como aquele devia ser, quanto a mim, antes austero, mas ele nunca diria que isso era ser puritano. Simulava ter horror do teatro. Não sabia que os High Churchmen, geralmente, não têm esse horror particular, embora os Low Churchmen tenham. Falava do Sabbath como um puritano e tinha um crucifixo na sala. Evidentemente que não fazia a menor ideia do que devia ser um vigário muito devoto, só que devia ser muito solene e venerável e desaprovar os prazeres do mundo.

»Todo este tempo tive uma noção subconsciente a passar na minha cabeça. Algo que não conseguia fixar na memória, e então ocorreu-me de um momento para o outro. Este é um vigário de teatro. Isto é exactamente o idiota velho, venerável e vago que se aproximaria mais da noção de singularidade na figura de um religioso, de um escritor popular, ou de um actor da velha escola.

— Para não falar de um físico da velha escola — disse Mulborough, prazenteiramente —, que não tem pretensões de ser um homem religioso.

— Na verdade — continuou o padre Brown —, havia um motivo mais claro e gritante para desconfiar. Dizia respeito a Dark Lady, da Grange, que pensavam ser o vampiro da aldeia. Quase no princípio, fiquei com a impressão de que essa mancha preta era antes a mancha brilhante da aldeia. Ela era tratada como um mistério, mas não tinha nada de misterioso. Chegara aqui há pouco tempo, sem disfarces ou nomes falsos, para ajudar nas novas investigações que iam ser levadas a cabo relativamente ao seu marido. Ele não a tratara muito bem, mas era uma mulher de princípios, sugerindo que em parte estavam em causa o seu nome de casada e a justiça comum. Pela mesma razão, foi viver na casa em frente à que o marido fora encontrado morto. O outro caso inocente e claro, além do vampiro da aldeia, foi o escândalo da aldeia, o filho libertino do vigário. Ele também não escondeu a sua profissão ou a sua ligação passada com o mundo do teatro. Foi por isso que não desconfiei dele como desconfiei do vigário. Mas já adivinhou um motivo real e relevante para desconfiar do vigário.

— Sim, penso que — disse o médico — foi por isso que mencionou o nome da actriz.

— Sim, refiro-me à firmeza fanática em se recusar a ver a actriz — comentou o padre. — Mas, na realidade, não se recusou a vê-la. Ele não queria que ela o visse.

— Sim, compreendo — concordou o outro.

— Se ela tivesse visto o Rev. Samuel Horner, tê-lo-ia reconhecido imediatamente, Hankin, o actor infame, disfarçado de vigário com um carácter péssimo por debaixo do disfarce. Bem, creio que é tudo sobre este simples idílio de aldeia. Mas tem de admitir que cumpri a promessa; mostrei-lhe uma coisa na aldeia muito mais arrepiante do que um cadáver, mesmo que seja um cheio de veneno. O casaco preto de um vigário a tapar um chantagista, é pelo menos digno de nota, e o meu homem vivo é muito mais terrível do que o seu morto.

— Sim — disse o médico, recostando-se confortavelmente nas almofadas. — Se um dia precisasse de uma companhia agradável numa viagem de comboio, preferiria o cadáver.


O Caso Donnington

Era natural, obviamente, que se pensaria em pedir a opinião a um especialista quanto a esta tragédia ou, pelo menos, algo mais subtil do que chamar um polícia. Porém, tinha poucas ou nenhuma pessoa a quem pudesse consultar de forma mais privada. Lembrei-me de um investigador que tinha tido algum interesse no problema original de Southby, pois ocorreu-me o apelido curioso Shrike, mas foi-me relatado que tinha enriquecido e se reformado, e que atualmente andava de iate entre as ilhas do Pacífico.

O meu velho amigo Brown, padre católico em Cobhole, que muitas vezes me deu bons conselhos em pequenos problemas, ligou-me a dizer que receava não poder vir nem sequer por uma hora. Apenas adicionou — o que pensei ser inconsequente, confesso — que a chave pudesse ser encontrada na frase: “Mester era a alma mais alegre”.

O superintendente Matthews continua a carregar o peso como qualquer pessoa que tenha de facto falado com ele, mas é natural e oficialmente reticente na maioria dos casos, e nuns quantos oficialmente lento.

O Senhor Borrow parecia ter sido assolado por esta tragédia final, algo perdoável o suficiente para um homem muito velho que, independentemente dos seus defeitos, sofrera tragédia após tragédia com o seu próprio sangue e nome.

Wellman pode ser confiado com qualquer coisa, até as jóias da Coroa, mas não com uma ideia. Harriet é uma mulher demasiado bondosa para ser uma boa detetive. Assim, fiquei insatisfeito com a opinião do perito. Penso que os outros também o partilhavam até um certo ponto; desejávamos que um homem, diferente de nós todos, aparecesse na sala, um homem do mundo de fora, com mais experiência, tanta esta — se tal fosse possível — que deveria conhecer pelo menos um caso que tivesse sido semelhante ao nosso. Por certo, nenhum de nós tinha sequer alguma suspeita de quem esse homem seria.

Expliquei que, quando o corpo da pobre Evelyn foi encontrado, este estava envolto num roupão, como se ela tivesse sido chamada do quarto dela, e a porta do quarto do padre estava aberta. Agindo por impulso, vindo sabe-se lá de onde, fechei-a e, tanto quanto sei, esta não foi aberta outra vez até o ter sido por dentro. Confesso que, para mim, aquela abertura foi horrível.

O senhor Borrow, Wellman e eu estávamos sozinhos na câmara de tortura. Estávamos lá sozinhos até que um estranho entrou sem sequer tirar o chapéu. Era um homem robusto, manchado pela viagem, sobretudo nas perneiras que estavam cheias de argila e lama de inumeráveis valas. Mas parecia estar completamente despreocupado, muito mais do que eu estava, visto que, apesar da sua sujidade extra e do seu descaramento, reconheci-o como o prisioneiro fugitivo, Mester, cuja carta eu tinha passado de forma tão insensatapara o seu colega prisioneiro. Entrou com as suas mãos nos bolsos, assobiando. Depois, parou e disse:

— Parece que fechou a porta outra vez. Suponho que sabe que não é fácil abri-la deste lado.

Através da janela partida, a qual estava virada para o jardim, podia ver o superintendente Matthews, parado entre os arbustos com as suas costas grandes viradas para a casa. Dirigi-me à janela e também assobiei, mas com um espírito muito mais prático. Contudo, sei que não deveria chamá-lo de prático já que o superintendente, que deverá ter-me ouvido, não virou a cabeça, nem sequer se mexeu.

— Não me preocuparia com o pobre, velho Matthews — disse o homem de chapéu num tom amigável. — Ele é um dos melhores homens no serviço e deve estar extremamente cansado. Penso que posso responder a quase todas as perguntas que ele responderia — reacendeu um cigarro.

— Sr. Mester - respondi com algum ardor —, estava a chamar o superintendente para prendê-lo!

— Deveras — respondeu, atirando o fósforo pela janela fora. — Bem, ele não vai! — Estava a olhar para mim com profundo estoicismo. Porém, penso que a seriedade na sua cara tinha menos efeito sobre mim do que as costas grandes e indiferentes do polícia.

O homem chamado Mester continuou.

— Quero dizer que a minha posição aqui não é bem aquilo que pensa ser. É verdade que ajudei o rapaz a fugir, mas não creio que saiba o motivo pelo qual o fiz . Há uma velha regra na nossa profissão?

Antes que ele acabasse, gritei.

— Pare! Quem está atrás da porta?

Podia ver, através do movimento da boca de Mester, que ele ia preguntar qual porta, mas antes que os seus lábios pudessem mover-se, ele também foi respondido. De trás da porta selada da câmara secreta veio um barulho, algo vivo, se não era humano, que estava a mover-se, se não estivesse vivo.

— O que está dentro do quarto do padre? — Gritei. Procurei por algo com o qual pudesse arrombar a porta. Quase levantei um pedaço de uma barra de ferro dentada para tal. Depois a parte horrível que se tinha reproduzido durante aquela noite devastou-me, fui contra a porta e bati-a com as minhas mãos fracas, repetindo apenas:

— O que está dentro do quarto do padre? — Foi um facto horrível que uma voz, obscura mas humana, respondeu por detrás da porta fechada:

– O padre!

A porta pesada foi aberta muito lentamente, aparentemente empurrada por uma mão não mais forte que a minha. A mesma voz que me respondeu disse num tom muito mais simples:

— Quem mais é que esperavas? — A porta abriu completamente até às suas dobradiças, e revelou-se a silhueta preta de uma pessoa compacta e apologética com um chapéu grande e um mau guarda-chuva. Era uma pessoa não romântica e inapropriada em todos os aspetos para estar no quarto do padre, exceto o pequeno detalhe de ser um padre.

Dirigiu-se a mim antes que pudesse gritar:

— Afinal veio!

Apertou a minha mão e, antes de largá-la, olhou para mim com uma expressão singular e constante, triste, mas mais séria do que propriamente triste. Só posso dizer que era a cara que usámos num funeral de um amigo querido e não no leito da morte de um ente querido.

— Posso, pelo menos, felicitar-lhe. — Disse o padre Brown.

Penso que passei a minha mão de forma violenta pelo cabelo e tenho a certeza que respondi:

— E o que há neste pesadelo pelo qual possa ser felicitado?

Ele respondeu-me com a mesma cara séria:

— Pela inocência da mulher que será a sua esposa.

— Ninguém — gritei, indignado — tentou ligá-la ao caso.

Acenou gravemente como se estivesse a concordar.

— Esse era o perigo, sem dúvida — disse ele com um pequeno suspiro — mas ela agora está bem, graças a Deus. Não está? — E como se estivesse a dar o último toque à inversão, virou-se para fazer uma pergunta ao homem do chapéu.

— Oh, ela está bastante segura! — Disse o homem chamado Mester.

Não posso negar que um monte de dúvidas, que não sabia existirem dentro de mim, se dissipou, mas estava obrigado a prosseguir com o problema.

— Quer dizer, padre Brown — perguntei — que sabe quem é o culpado?

— De um certo modo, sim. — Respondeu ele. — Mas deve lembrar-se que, num caso de homicídio, a pessoa mais culpada nem sempre é o assassino.

— Então, e a pessoa mais culpada? — Gritei impaciente — Como é que vamos punir a pessoa mais culpada?

— A pessoa mais culpada está castigada. — Disse o padre Brown.

Havia um longo silêncio no crepúsculo da torreta e a minha mente trabalhavam as dúvidas, mas eram demasiado grandes. Por fim, Mester disse roucamente, mas não sem um tipo de bom caráter:

— Penso que os dois senhores reverendos deveriam ir e falar noutro sítio sobre Hades, por exemplo, ou o escabelo ou seja lá do que falam. Darei uma olhada nisto. O meu nome é Stephen Strike. Poderão ter ouvido falar de mim.

Mesmo antes de tais ideias terem sido tragadas pelo meu medo súbito dos movimentos dentro da câmara secreta, tinha enfrentado a alarmante possibilidade de este prisioneiro fugitivo ser realmente um detetive, mas não sonhara que fosse um tão famoso. O homem que estivera interessado em Southby e que desde então tivera ganho um enorme prestígio tinha alguma reivindicação no caso. Segui Brown, que já tinha ido em direção à entrada do jardim.

— A diferença entre Hades e o escabelo? — começou o padre Brown.

— Não se faça de parvo! — Disse eu de forma muito rude.

— ?não era sem algum valor filosófico. — Continuou o pequeno padre com o seu calmo, bom humor. — Os problemas humanos são maioritariamente de dois tipos. Há o acidental, o qual não consegue ver que está tão perto que pode tropeçar e cair sobre ele, tal como quando tropeça num escabelo e cai. E há um outro tipo de mal, o verdadeiro. O homem procurá-lo-á por muito longe que esteja, caindo profundamente num abismo perdido. — Inconscientemente, apontou com o dedo compacto para baixo em direcção à relva coberta de margaridas.

— Foi simpático da sua parte vir afinal — disse eu — mas gostava que pudesse fazer mais sentido com as coisas que diz.

— Bem — respondeu muito paciente — percebeu aquilo que lhe disse antes de cá vir?

— Quanto a isso, fez uma declaração descabida — respondi — ao dizer que a chave da história era Mester ser alegre, mas também é a chave, de certo modo!

— Apenas a chave, até agora — disse o meu companheiro — mas a minha primeira suposição parece ter sido certa. Não é muito comum encontrar tal alegria vivaz em pessoas sujeitas a servitude penal, especialmente aquelas arruinadas por uma acusação falsa. Parecia-me que o otimismo de Mester era um pouco exagerado. Também suspeitei que a sua aviação e tudo o resto, verdadeiro ou falso, era simplesmente destinada a fazer Southby pensar que a fuga era possível. Mas caso Mester fosse tal demónio para fugir, porque não escapou sozinho? Porque é que estava tão ansioso em arrastar um rapaz que não parece ter servido de muito para ele? Enquanto me questionava, o meu olho caiu sobre uma outra frase no seu manuscrito.

— Qual delas? – Perguntei.

Pegou num pedaço de papel no qual havia alguns rabiscos a lápis e leu em voz alta:

— “Depois atravessaram um recinto no qual outros prisioneiros estavam a trabalhar”.

Depois de uma outra pausa, retomou:

— Isso, como é obvio, foi suficientemente claro. Que tipo de prisão é esta em que os prisioneiros trabalham sem guardas a supervisionar ou a circular? Que tipo de guardas prisionais permitem que dois prisioneiros subam duas paredes e se vão embora como se fossem fazer um piquenique? Tudo isso é claro. E a conclusão é mais simples a partir de muitas outras frases. “Parecia algo impossível que ele pudesse evadir a matiz e gritar que tem de apanhar este voo.” Teria sido impossível se houvesse qualquer matiz e gritar. “Evelyn e Harriet ouviram-me ansiosamente e da primeira, comecei a suspeitar, que já tinha posse da história”. Como é que ela podia ter posse disso assim tão cedo, a não ser que os carros da polícia e os telefones ajudassem a passar apalavra de Southby? Podiam os prisioneiros apanhar um camelo ou uma avestruz? E olhe para o barco. Os barcos crescem nas árvores? Não, é tudo muito simples. Não só era o companheiro de fuga um polícia, como também o esquema inteiro da fuga foi um esquema da polícia, engendrado pelas autoridades mais altas da prisão.

— Mas porquê? — Perguntei, fitando-o. — E o que é que o Southby tem a ver com isso?

— Southby não tinha nada a ver com isso. — Respondeu. — Creio que agora está escondido numa vala ou num bosque, acreditando sinceramente que é um fugitivo perseguido. Mas não vão incomodá-lo mais. Ele fez o trabalho por eles. É inocente. Era importante que fosse inocente.

— Não compreendo nada disto! — Gritei, impaciente.

— Não compreendo metade disto. — Disse o padre Brown. — Há todo o tipo de dificuldades que lhe perguntarei mais tarde. Conhecia a família. Só digo que a frase sobre alegria revelou ser uma frase-chave afinal. Agora quero que concentre a sua atenção numa outra frase-chave. “Decidimos que Harriet devia ir a Bath sem perder tempo caso ela pudesse ser de alguma ajuda lá.” Note que isto aparece pouco depois da sua expressão de surpresa que alguém devia ter comunicado com Evelyn tão cedo. Bem, suponho que nenhum de nós pensa que o diretor da prisão lhe telegrafou “Pactuei a fuga do seu irmão, o Prisoneiro 99.” A mensagem deve ter vindo no nome de Southby, em todo o caso.

Pensei, olhando para os planaltos enquanto estes se levantavam e se repetiam por todos os espaços entre as árvores do jardim. Depois disse:

— Kennington?

O meu velho amigo olhou-mepor um momento com um olhar que desta vez não conseguia analisar.

— A parte de Capitão Kennington nesta questão é única na minha experiência — disse ele — e penso que seria melhor voltarmos a isso mais tarde. É suficiente que, por conta própria, Southby não lhe tenha dado a sua confiança.

Olhei outra vez para os vislumbres dos planaltos e pareciam mais grandiosos, mas mais cinzentos enquanto o meu companheiro continuava como alguém que só consegue colocar coisas na sua devida ordem.

— Significa que este argumento está perto, mas claro. Se ela tinha alguma mensagem secreta do seu irmão sobre a sua fuga, porque não terá uma mensagem sobre o lugar para onde ia fugir? Porque haveria de enviar a sua irmã para Bath quando lhe poderiam ter dito que o seu irmão não ia para lá? Por Certo, um rapaz poderá mais previdentemente dizer numa carta confidencial que iria para Bath do que iria escapar da prisão? Alguém ou alguma coisa deve ter influenciado Southby a deixar o seu destino incerto. E quem poderia influenciar Southby a não ser o seu companheiro de voo?

— Que estava a agir pela polícia, na sua teoria.

— Não. Na sua confissão. — Depois de um silêncio resfolgante, Brown disse, com um ênfase que nunca tinha visto nele, lançando-se para o banco do jardim:

- Digo-lhe que toda esta questão das duas cidades de refúgio — esta questão toda de Harriet Donnington ir para Bath — foi uma sugestão que passou por Southby, mas que veio de Mester ou Strike, ou seja lá qual for o seu nome, e é a chave para esta conspiração policial. — Sentou-se num lugar virado para mim, apertando as mãos sobre a grande cabeça do guarda-chuva num modo mais truculento do que era típico dele. Porém, a lua estava a reluzir sobre a pequena plantação debaixo da qual se sentou e, quando vi a sua cara singela outra vez, apercebi-me que era tão tranquila como a lua.

— Mas porque — perguntei — quereriam tal conspiração?

— Para separar as irmãs. — Disse ele. — Essa é a chave.

Respondi rapidamente:

— As irmãs não podiam ser realmente separadas.

— Sim, podiam. — Disse o padre Brown. — Muito facilmente e é por isso? — Aqui a sua simplicidade falhou e ele hesitou.

— É por isso? — Insisti.

— É por isso que posso felicitá-lo. — Disse por fim.

Mergulhou-se em silêncio novamente e não conseguo definir a irritação com a qual respondi:

– Oh, suponho que saiba sobre isso tudo?

— Não, não realmente! — Disse ele, inclinando-se para a frente como se estivesse a negar uma acusação de injustiça. — Estou confuso com toda esta questão. Porque é que os guardas prisionais não descobriram mais cedo? Porque é que descobriram de todo? Foi passada pelo forro? Ou era a letra assim tão má? Sei sobre ser bem-educado, mas certamente tiraram-lhe a roupa! Como é que veio a mensagem? Deve ter sido pelo forro.

A sua cara tornava-se tão honesta como um peixe achatado a flutuar e podia dizer com a suavidade adequada:

— Não sei mesmo do que está a falar, o senhor e o seu forro. Mas se está a falar da forma como Southby podia fazer chegar a sua mensagem previdentemente à sua irmã sem os riscos de interceção, devo dizer que não havia ninguém que o conseguisse com tanto sucesso. O rapaz e a rapariga sempre foram grandes amigos desde infância e tinham, tanto quanto sei, uma daquelas linguagens secretas que as crianças têm muitas vezes, o que mais tarde poderá ter sido facilmente transformado num tipo de código. Agora que penso nisso?

O chapéu-de-chuva pesado caiu do banco e bateu na gravilha, e o padre levantou-se.

— Mas que idiota que sou! — Disse — Mas é claro, qualquer pessoa poderia ter pensado num código! Isso foi um ponto para si, meu amigo. Suponho que sabe tudo sobre isso agora?

Estou certo que não se apercebeu que estava a repetir com sinceridade o que tinha dito com ironia.

— Não. — Respondi com verdadeira seriedade. — Não sei tudo sobre isso, mas penso que é bem possível que o senhor saiba. Conte-me a história.

— Não é uma boa história. — Disse ele numa forma muito dura. — Pelo menos, a coisa boa disso é que acabou. Mas primeiro deixe-me dizer o que menos gosto de dizer — que sabia bem. Pensei muito sobre um certo tipo de senhora inglesa, intelectual, especialmente quando é aristocrata e provincial ao mesmo tempo. Penso que foi julgada muito facilmente. Ou talvez, devo dizer, julgada muito severamente já que se supõe que é incapaz de tentações e paixões mortais. Deixe-a recusar champanhe ao jantar, deixe-a ser bela e saber o que se entende por dignidade num vestido, deixe-a ler muitos grandes livros e falar sobre altos ideais e vocês todos presumem que ela não pode cobiçar ou mentir; que as suas ideias são sempre simples e os seus ideais sempre cumpridos. Mas na verdade, meu amigo, segundo o seu relato, a personagem era mais diferente do que isso. Evelyn fingiu estar indisposta muito inteligentemente. Presumindo que ela era inocente, não consigo ver o motivo da sua necessidade em fingir alguma coisa. Mas, de qualquer forma, é apenas um dos poderes dados aos santos. “Começou a suspeitar” que Evelyn já sabia da fuga. Porque é que ela não lhe disse que sabia? Estava surpreendido que o superintendente Matthews tinha telefonado e que ela não tinha dito nada sobre isso, mas presumiu que era difícil de expedir. Porque é que seria difícil de expedir? Parece que foi invocado quando era procurado. Não, tentarei falar desta mulher, abençoada seja a sua alma, e cuja verdadeira defesa nunca ouvirei. Mas enquanto há pessoas vivas cuja honra está imerecidamente em cruel perigo, simplesmente recuso-me a começar com a suposição que Evelyn Donnington não podia fazer nada de errado.

As colinas nobres de Sussex pareciam tão sombrias quanto as charnecas de Yorkshire enquanto continua a espetar o guarda-chuva na terra intensamente.

— Os primeiros factos para a sua defesa, se ela precisar, são que o pai dela é um avarento, que tem um feitio violento combinado com um tipo de orgulho de família muito puritano e, acima de tudo, que ela tem medo dele. Agora, supondo que ela realmente queria dinheiro, talvez para um bom propósito ou, mais uma vez, talvez não. Ela e o seu irmão, disse-me o senhor, sempre tiveram linguagens secretas e conspirações, coisas comuns nas crianças assustadas e terrorizadas. Acredito firmemente que foi mais longe por desespero e que era verdadeira e criminalmente responsável pelo documento falso com o qual o seu irmão parecia procurar ajuda financeira. Sabemos que há muitas vezes semelhança familiar na escrita possibilitando a fac-símile. Não consigo ver, portanto, porque não haveria uma semelhança familiar parecida nos defeitos pela qual os peritos detetaram uma falsificação. De qualquer forma, o irmão tinha um registo mau, o que importa mais para a polícia do que deveria, e foi preso. Penso que concordará que ele agora tem um bom registo.

— Quer dizer — disse, curiosamente entusiasmado pela própria contenção da sua expressão — que Southby sofreu todo esse tempo em vez de falar?

— Não se regozije de mim, Satã, meu inimigo — disse o padre Brown — pois, quando cair, levantar-me-ei. Esta parte da história é mesmo boa.

Depois de um silêncio ele continuou:

— Quando foi preso, estou agora quase certo, ele tinha consigo alguma carta ou mensagem dairmã. Espero e acredito que seria algum tipo de mensagem penitente. Mas seja lá o que fosse, devia conter duas coisas: alguma admissão ou alusão que tornava a sua própria culpa clara e algum requisito urgente a pedir ao irmão para ir ter com ela assim que estivesse livre para tal. Mais importante de tudo, não estava assinado com um nome cristão, mas apenas com “A sua irmã infeliz”.

— Mas meu bom homem — gritei — fala como se tivesse visto a carta!

— Vejo-a nas suas consequências. — Respondeu. — A amizade com Mester, a discussão com Kennington, a irmã em Bath e o irmão no quarto do padre, tudo veio daquela carta e de mais nenhuma.

— A carta, contudo, estava escrita em código, um bastante difícil de decifrar, tendo sido inventado por crianças. Isso soa-lhe paradoxal? Não sabe que os sinais mais difíceis de interpretar são os arbitrários? E se duas crianças concordaram que “grunk” significa hora de dormir e “splosh” significa tio William, levaria um perito muito mais tempo a aprender isso do que expor qualquer sistema de letras ou números substituídos. Consequentemente, apesar de a polícia ter encontrado o papel, obviamente levou-lhes a meio do termo de Southby para compreender o papel. Depois sabiam que uma das irmãs de Southby era culpada, que ele era inocente e, por essa altura, compreenderam que nunca trairia a verdade. O resto, como disse, era simples e lógico. A única coisa que podiam fazer era aproveitar-se do facto de Southby ter sido pedido a ir ter com o seu correspondente culpado. Foram-lhe dadas todas as instalações para escapar e comunicar o mais rápido possível desde que a polícia pudesse assegurar a separação das irmãs, com o Mester levando a outra para Bath. Considerando isso, a irmã com quem Southby foi ter deve ser a culpada. E quando, durante essas noites horríveis, a polícia se reuniu à sua volta abundantemente como lobos e imóveis como fantasmas, não era Southby por quem esperavam.

— Mas porque é que esperavam por alguém? — Perguntei subitamente depois de um silêncio. — Se tinham a certeza, porque éque não a prenderam?

Acena e suspira:

— Talvez tenha razão. Talvez seja melhor assumir o caso Kennington aqui. Claramente, ele sabia de tudo desde do interior. O senhor notou que ele tinha privilégios naquela prisão. Entristecer-lhe-á, enquanto uma pessoa cumpridora da lei, saber que ele usou o seu poder para intercetar o que tinha sido decidido. Uma boa parte pode ser feita por marcações de faltas. Uma boa parte pode ser feita por pessoas presentes, normalmente batendo-as. Ele usou cada oportunidade, certa ou errada, para atrasar a detenção. Um dos milhares atrasos pequenos e desesperados foi “fingir doença”.

— Porque é que Southby o chamou de traidor? — Disse desconfiado.

— Por motivos extremamente justificados. — Disse o meu amigo. — Suponha que tinha fugido da prisão inocentemente, e o seu amigo mandou o seu carro para si e o levava de novo para lá. Suponha que o seu amigo se oferecera a ajudá-lo a fugir no seu iate e escolhesse o caminho errado até ser alcançado por um barco. Suponha que Southby estava a tentar ir Sussex e Kennington o conduzira sempre para Cornwall ou Irlanda ou Normandia, como é que esperaria que Southby o chamasse?

— Bem — disse— o que é que lhe chamaria?

— Bem — disse o padre Brown — chamo-lhe herói.

Procrastinei para a sua cara bastante inexpressiva através do crepúsculo da lua e depois ele levantou-se subitamente e caminhou com a impaciência de um aluno.

— Se pegasse uma caneta e um papel, escreveria a melhor história de aventura alguma vez escrita sobre isto. Alguma vez houve tal situação? Southby foi empurrado para frente e para trás, tão inconscientemente como uma bola de futebol, entre dois homens muitos hábeis e fortes, um dos quais queria apontar os rastros na direção da irmã culpada, enquanto o outro queria distorcer o rastro em todos os momentos. E Southby pensou que o amigo da sua casa era o seu inimigo, e o destruidor da sua casa o seu amigo. Os dois que sabiam têm de lutar em silêncio, pois Mester não podia falar sem avisar Southby, e Kennington não podia falar sem denunciar Evelyn. É claro pelas palavras de Southby, sobre falsos amigos e o mar, que Kennington eventualmente raptou Southby num iate, mas Deus sabe em quantos bosques confusos ou ilhas e rios ou caminhos a levar para lugar nenhum a mesma luta foi lutada; o fugitivo e o detetive a tentar preservar o rastro, o traidor e o verdadeiro amante a tentarem confundi-lo. Quando Mester ganhou e os seus homens se reuniram nesta casa, o capitão não podia fazer mais do que vir cá e oferecer a sua ajuda, mas Evelyn não lhe podia abrir a porta.

— Mas porque não?

— Porque ela tinha medo como também tinha a parte má. — Disse o padre Brown. — “Nem com um pouco de medo pela vida”, disse o senhor com uma forte penetração. Tinha medo de ser presa, mas, para a sua honra, também tinha medo de se casar. É um tipo produzido por todo este refinamento. Meu amigo, quero dizer a si e a todo o mundo moderno um segredo. Nunca atingirão o bem nas pessoas até terem passado pelo mau nelas.

Depois de um momento acrescentou que devíamos regressar a casa e caminhou mais rapidamente naquela direção.

— Claro — comentou. — o pacote de notas que levou através de Southby era apenas para ajudá-lo e poupá-lo da detenção de Evelyn. Mester não é um mau homem para um detetive. Mas ela apercebeu-se do perigo e estava a tentar entrar no quarto do padre.

Ainda estava soturnamente a pensar no caso estranho de Kennington.

— A luva não foi encontrada? — Perguntei.

— A janela não foi partida? — Perguntou por sua vez. — Uma luva de homem bem torcida e com nove libras de ouro, e provavelmente uma carta também, partirá a maioria das janelas se for atirada por um homem que foi lançador. Claro que havia uma nota. E, obviamente, a nota foi imprudente. Deixou dinheiro para fugir e deixou provas daquilo que ela estava a fugir.

— E o que é que aconteceu com ela depois? — Perguntei monotonamente.

— Algo semelhante ao que lhe aconteceu. — Disse ele. — Também teve dificuldade em abrir a porta secreta pela parte de fora. Também pegou naquele varão de cortinado ou naquela barra de janela torta para bater na porta. Também a viu abrir lentamente de dentro, mas não viu o que ela viu.

— E o que é que ela viu? — Disse por fim.

– Viu o homem que mais tinha enganado. – Disse o padre Brown.

– Quer dizer Southby?

— Não. — Disse ele. — Southby mostrou virtude heroica e está feliz. O homem que ela mais enganou foi o homem que nunca tinha tido, ou tentou ter, mais do que uma virtude — um tipo de justiça acre. E ela fê-lo injusto toda sua vida; fê-lo mimar a mulher maléfica e arruinar o homem íntegro. Disse-me, nas suas notas, que ele escondia-se muitas vezes no quarto do padre para descobrir quem era fiel ou infiel. Desta vez saiu com uma espada na mão, deixada naquele quarto nos dias em que os homens perseguiam pessoas da minha religião. Ele descobriu a carta, mas, obviamente, destruiu-a depois daquilo que tinha feito — do que fez. Sim, meu velho amigo, consigo sentir o horror na minha cara sem vê-la. Mas, de facto, vocês, pessoas modernas, não sabem quantos tipos de homens há neste mundo. Não estou a falar de aprovação, mas de simpatia, o tipo de simpatia que dei a Evelyn Donnington. Não tem qualquer simpatia para com a justiça fria, barbárica ou com o apaziguamento terrível de tal apetite intelectual? Não tem simpatia para com Brutus que matou o seu amigo? Não tem simpatia para com o monarca que matou o seu filho? Não tem simpatia com Virginius que matou? Mas acho que devíamos entrar agora.

Subimos as escadas em silêncio, mas a minha alma crescia na expectação de alguma cena que superasse todas as cenas daquela torre. E de um certo modo tive-a. O quarto estava vazio, exceto Wellman que estava atrás de uma cadeira vazia, tão impassível como se tivesse tido milhares de convidados.

– Mandaram vir o Dr. Browning, senhor. – Disse ele em tom incolor.

— O que quer dizer? — Gritei. — Não havia quaisquer questões sobre a morte.

— Não, senhor. — Disse com uma pequena tosse. — O Dr. Browning pediu que outro médico fosse enviado de Chichester e levaram o Sir Borrow.


A Máscara de Midas

Um homem estava à frente de uma pequena loja tão rigidamente como um montanhês de madeira à frente de uma tabacaria fora de moda. Era difícil de acreditar que alguém ficaria tão firmemente parado a não ser que fosse o lojista, mas havia uma quase incongruência caricata entre o lojista e a loja. A loja era um daqueles covis de lixo encantadores que as crianças e os muito sábios exploram com os olhos como se fosse um mundo de fantasia, mas que muitos outros com preferências mais limpas e mansas são incapazes de distinguir de um caixote de lixo. Em suma, intitulava-se de loja de curiosidades nos seus momentos mais gloriosos, mas era geralmente chamado de loja de lixo, especialmente pela população comercial prática e agitada do porto industrial numa das suas ruas mais intercalares na qual se situava. Aqueles que têm um gosto por tais coisas não precisavam de descobrir a história dos seus tesouros, dos quais os mais preciosos eram difíceis de ligar a qualquer propósito, como os pequenos modelos de navios completamente equipados dentro de garrafas de vidro ou cola ou alguma pastilha oriental estranha; bolas de cristais nas quais tempestades de neve caiem sobre figuras humanas muito estólidas; ovos enormes que podem ter sido postos por pássaros pré-históricos; cabaças deformadas que podem ter sido inchadas com veneno em vez de vinho; armas estranhas; instrumentos musicais desconhecidos e tudo o resto; tudo afundando cada vez mais em pó e desordem. O responsável, à frente de tal loja, bem podia ser algum judeu decrépito, com algo de dignidade e trajes longos dos árabes, ou algum cigano com um charme descarado e tropical e argolas de ouro ou bronze. Mas o sentinela era algo muito surpreendentemente diferente. Era um homem jovem magro, alerta, vestido de roupas limpas com um corte americano, e uma cara bastante rígida e longa, muitas vezes vista em irlandeses-americanos. Tinha um chapéu de cowboy Stetson a tapar um dos seus olhos e um cigarro Pittsburgh fedorento a sair do canto da boca num ângulo acentuado. Se tivesse uma pistola automática no bolso, aqueles que então olhassem para ele não ficariam muito surpreendidos. O nome gravado sobre a loja era “Denis Hara”.

Aqueles que então olhavam para ele eram pessoas com alguma importância, talvez até de alguma importância para ele. Mas ninguém poderia ter adivinhado das suas caraterísticas rígidas e posição angular. A mais proeminente delas foi o Coronel Grimes, o Comandante daquele condado. Um homem de constituição fraca com pernas longas e cabeça grande, confiado por todos aqueles que lhe conheciam bem, mas não muito popular até mesmo pela sua própria classe, porque mostrava sinais distintos de querer ser polícia em vez de um cavalheiro camponês. Em suma, o Comandante tinha cometido o pecado subtil de preferir a força policial no lugar do condado. Esta excentricidade tinha encorajado a sua taciturnidade natural e ele era, até mesmo para um detetive competente, invulgarmente silencioso e reservado quanto aos seus planos e às suas descobertas. Os seus dois companheiros, que o conheciam bem, ficaram ainda mais surpresos quando parou em frente do homem com o cigarro e falou num tom de voz alto e claro, algo que muito raramente se ouvia dele em público.

— É apenas justo lhe dizer, Senhor Hara, que os meus homens receberam informações que justificam a minha obtenção de um mandado de para examinar a sua loja. Poder-se-á verificar, como espero, que será desnecessário o incomodar mais. Mas devo avisá-lo que estamos a vigiar quaisquer movimentos de partida deste lugar.

— Querem todos obter um dos meus navios de brincar agradáveis, pequenos e feitos de pastilha? — perguntou o Senhor Hara com calma. — Bem, Coronel, não gostaria de colocar quaisquer limites à sua Constituição Britânica. Mas duvido que conseguirá arrombar o meu pequeno lar cinzento dessa forma.

— Descobrirá que estou certo — respondeu o Coronel. — Na verdade, vou diretamente para dois magistrados cujas assinaturas são necessárias para o mandado de busca.

Os dois homens atrás do Comandante exibiram uma mistificação fraca de tons subtis, mas diferentes. O inspetor Beltane, um homem grande, escuro, pesado, fiável no seu trabalho, se não mesmo rápido nele, parecia um pouco atordoado quando o seu superior se afastou abruptamente. O terceiro homem era troncudo e robusto, com um chapéu clerical preto e redondo e uma figura clerical preta e redonda, com uma cara redonda que parecia estar, naquele momento, um pouco ensonada, mas com um brilho mais pronunciado entre as suas pálpebras cerradas. Também estava a olhar para o Comandante, mas com algo um pouco mais do que mera perplexidade, como se uma nova noção lhe tivesse surgido subitamente na cabeça.

— Oiçam lá — disse o Coronel Grimes — os senhores vão querer o vosso almoço. É uma pena persegui-lo assim depois das três horas. Felizmente, o primeiro homem que quero ver está no banco pelo qual estamos a passar e há um restaurante bastante decente ao lado. Irei ter rapidamente com o outro homem que está na rua a seguir depois de vos dar o almoço. Há apenas dois nesta parte da vila e se tivermos sorte eles viverão perto um do outro. O banqueiro fará o que eu quiser imediatamente, portanto vamos já tratar disso primeiro.

Uma série de portas decoradas com vidro e douraduras levou-os por entre um labirinto de passagens em Casterville e County Bank e o Comandante foi diretamente para o santuário interior com o qual ele parecia estar bastante familiar. Lá encontrou o Senhor Archer Anderson, famoso escritor e organizador financeiro, chefe desta e muitas outras empresas bancárias muito respeitadas. Era um cavalheiro velho, sério e elegante com cabelo encaracolado e cinzento, e uma barba pontiaguda e cinzenta, com um corte bastante antiquado, mas, fora isso, vestido numa versão moderada, mas exata da moda atual. Um vislumbre dele sugeriria que se sentia em casa com o condado, mas parecia preferir o trabalho em vez da diversão, tal como o Comandante. Empurrou um bloco formidável de documentos para um lado e disse uma palavra de boas-vindas, apontando para uma cadeira e sugerindo uma disposição para tratar assuntos bancários a qualquer momento.

— Receio que isto não é assunto bancário — disse Grimes — mas, de qualquer forma, o meu assunto não lhe levará mais do que um minuto ou dois. É um magistrado, correto? A lei requere que eu obtenha a assinatura de dois magistrados para um mandado de busca numa loja que acredito ser bastante suspeita.

— Deveras — disse Senhor Archer, educadamente. — Que tipo de suspeitas?

— Bem — disse Grimes — é um caso estranho e bastante recente, devo dizer, nestas partes. É claro que temos a nossa própria população criminal, poderá o senhor dizer, e o que é muito diferente e muito mais natural é a disposição comum de maltrapilhos em juntar-se, até mesmo um pouco fora dos limites da lei. Mas parece-me que aquele homem, Hara, certamente americano, é um mafioso de grande escala e com uma maquinaria inteira de crime praticamente desconhecida por este país. Para começar, não sei se sabe as últimas notícias desta vizinhança.

— É bem possível que não — respondeu o banqueiro com um sorriso bastante gélido. — Não estou muito inteirado com as notícias policiais e só vim para cá recentemente para examinar alguns assuntos da filial. Até então estava em Londres.

— Um prisioneiro escapou ontem — disse o Coronel seriamente. — Sabe que há uma prisão grande na charneca a uma milha ou duas de distância desta vila. Há muitos homens lá presos, mas agora há menos um do que havia anteontem.

— Certamente, isso não é algo muito incomum — disse o outro. — Às vezes os prisioneiros fogem da prisão, certo?

— Verdade — concordou o Comandante. — Talvez isso não seja tão extraordinário por si mesmo. O que é extraordinário é que ele não só fugiu como também desapareceu. Os prisioneiros fogem da prisão, mas quase sempre regressam para lá ou, pelo menos, chegámos a alguma noção de como conseguiram fugir. Este homem parece ter simples e subitamente desaparecido, como um fantasma ou uma fada, a umas cem jardas de distância dos portões da prisão. Agora, como tenho sérias dúvidas sobre se ele é mesmo um fantasma ou uma fada, só tenho uma única possível explicação natural: Ele foi logo de seguida raptado por um carro, quase certamente parte de uma organização inteira de carros, para dizer nada de espiões e conspiradores a trabalhar num plano completo. Neste momento, tenho a certeza que os seus próprios amigos e vizinhos, por mais que possam simpatizar com ele, não podiam possivelmente organizar algo assim. É um homem bastante pobre, acusado de ser ladrão; todos os seus amigos são pobres e provavelmente a maioria ladrões. Não há dúvidas de que matou um polícia florestal. É apenas justo dizer que alguns pensaram que devia ter sido chamado homicídio involuntário e não assassinato. De facto, tiveram de reduzir a sentença para um encarceramento longo e desde então, talvez por uma reconsideração mais justa, reduziram-na para uma sentença comparativamente mais curta. Mas alguém reduziu-a muito mais do que isso. De uma forma que significa dinheiro, petróleo e experiência prática em tais rusgas, ele certamente não podia tê-lo feito sozinho e nenhum dos seus companheiros, de forma comum, poderia tê-lo feito para ele. Ora não vou incomodá-lo com os detalhes das nossas descobertas, mas estou certo de que a sede da organização está naquela loja de lixo pequena ao virar da esquina e a nossa melhor hipótese é obter um mandado de busca imediatamente. Compreenderá, Senhor Archer, que isto não o compromete em nada além da busca preliminar. Se o homem na loja for inocente, estamos todos livres para comprovar isso, mas estou certo de que a busca preliminar deve ser feita e para isso tenho de ter a assinatura de dois magistrados. É por isso que estou a gastar o seu tempo com notícias policiais, quando é tão valioso nas notícias financeiras. Se pensa que pode assinar tal documento, tenho-o aqui preparado para si e não terei mais desculpas para interromper das suas funções financeiras.

Colocou o papel em frente ao Senhor Archer Anderson e, depois de lê-lo rapidamente, franzindo de responsabilidade habitual, o banqueiro pegou na sua caneta e assinou-o.

O Comandante levantou-se, com expressões de obrigação rápidas mas cordiais, e dirigiu-se para a porta, remarcando simplesmente ao acaso, como um homem que estivesse a falar do tempo:

— Não suponho que um negócio como o seu com tanta importância é afetado por recessões ou complicações modernas. Mas é-me relatado que estes são dias ansiosos até mesmo para empresas pequenas, mas sólidas.

O Senhorr Anderson levantou-se rápida e rigidamente, com um certo ar de indignidade ao ser, mesmo momentaneamente, associado com empresas pequenas.

— Se souber alguma coisa de Casterville e County Bank — disse ele, mas não sem um toque pequeno de fervor — saberá que é pouco provável ser afetado por qualquer coisa ou alguém.

O Coronel Grimes pastoreou os seus amigos fora do Banco e, com um certo despotismo benevolente, depositou-os no restaurante ao lado enquanto ele se moveu rapidamente para completar a sua tarefa ao falar com o outro magistrado local, um velho advogado que também era um velho amigo, chamado Wicks, que o tinha ajudado às vezes em detalhes de teoria legal. O inspetor Beltane e o padre Brown foram deixados, virados um para o outro, um tanto ou quanto solenemente, no restaurante à espera do seu regresso.

— Estarei errado — perguntou o padre Brown com um sorriso amigável — se suspeitar que está um pouco confuso com alguma coisa?

— Não diria confuso — disse o inspetor. — Toda essa coisa com o banqueiro foi bastante fácil, mas quando conhece um homem muito bem, há sempre alguma sensação estranha quando não está a agir como ele mesmo. Ora o Coronel é o trabalhador mais silencioso e reservado que alguma vez conheci na polícia. Muitas vezes nunca diz aos seus colegas mais próximos o que passa pela cabeça no momento. Porque é que ficou a falar alto numa via pública para um inimigo a dizer-lhe que ia fazer uma rusga a sua loja? Outras pessoas, sobretudo nós, estavam a começar a juntar-se e ouvir. Por que diabo iria ele dizer a este pistoleiro esquecido que ia fazer uma rusga à sua loja? Porque é que não a fez apenas?

— A resposta é — disse o padre Brown — que ele não vai fazer uma rusga à sua loja.

— Então porque éê que gritou para a vila inteira que ia fazer isso?

— Bem, penso que — disse o padre Brown — foi para que a vila inteira pudesse falar da sua visita ao mafioso e não notar a sua visita ao banqueiro. As únicas palavras que realmente queria dizer foram as últimas que disse ao banqueiro para poder ver a sua reação. Mas se houvesse algum rumor sobre o banco, a vila estaria a falar sobre a sua ida ao banco. Tinha de ter uma simples e boa razão para lá ir e dificilmente poderia ter uma melhor que pedir a dois magistrados para assinar um documento comum. Mas que boa imaginação.

O inspetor Beltane estava de boca aberta do outro lado da mesa.

— Mas que raios é que quer dizer? — Reclamou por fim.

— Quero dizer — respondeu o padre — que o Coronel Grimes talvez não estivesse a ir muito longe ao falar do ladrão como uma fada. Ou digamos fantasma?

— Não quererá dizer — disse o inspetor incredulamente — que Grimes inventou da sua cabeça o polícia florestal assassinado e o prisioneiro fugitivo? Ora ele mesmo me falou sobre eles previamente, como uma parte dos assuntos policiais.

— Não iria assim tão longe. — Disse o padre Brown indiferentemente. — Poderá haver tal história local, mas não tem nada a ver com a história que Grimes pretende. Desejava que tivesse.

O padre Brown olhou para ele com os seus olhos cinzentos cheios de seriedade e candura inconfundíveis.

— Porque está fora da minha competência. — Disse ele. — Oh. Eu sei muito bem quando algo está fora das minhas competências e sabia que estaria quando descobri que estávamos a perseguir um financiador fraudulento em vez de um assassino humano comum. Sabe, não sei como é que entrei originalmente neste tipo de atividades de detetives, mas quase toda a minha experiência foi com assassinos humanos comuns. Ora os assassinatos são quase sempre humanos e pessoais, mas é permitido que o roubo moderno seja bastante impessoal. Não é só secreto como também é anónimo, quase reconhecidamente anónimo. Mesmo se morrer, poderá apanhar um vislumbre da cara do homem que o apunhalou. O meu primeiro caso foi apenas um pequeno caso privado sobre a cabeça de um homem ser cortada e outra ser colocada no corpo deste. Desejava estar novamente entre os idílios pequenos e familiares como esse. Não estava fora da minha competência com eles.

— Um incidente muito idílico, de facto. — Disse o inspetor.

— Um incidente muito idílico, de qualquer forma. — Respondeu o padre. — Nada a ver com este oficialismo irresponsável nas finanças. Não podem cortar cabeças como cortam a água quente pela decisão de um conselho ou uma comissão, mas podem cortar dívidas ou dividendos dessa forma. Ou, novamente, apesar de duas cabeças puderem ser colocadas num homem, todos nós sabemos que um homem não tem mesmo duas cabeças. Mas uma firma pode ter duas cabeças ou duas caras ou metade de cem caras. Não, desejava que o senhor me pudesse levar de volta aos meus ladrões assassinos e o meu polícia florestal assassinado. Sei tudo sobre eles, mas, infelizmente, é provável que nunca existiram.

— Oh, tudo isto é um disparate! — Gritou o inspetor, tentando livrar-se daquele ambiente. — Digo-lhe que Grimes falou sobre isso antes. Prefiro acreditar que o ladrão teria sido libertado em breve de qualquer forma, apesar de ter matado outro homem muito selvagemente, batendo-lhe repetidamente com a coronha da sua pistola. Mas considerou que o polícia florestal muito inadmissivelmente ocupado com as suas próprias instalações. Na verdade, o polícia florestal é que estava a roubar desta vez. Ele não tinha bom caráter na vizinhança e havia certamente aquilo que é chamado de provocação. Um assunto de lei não escrita.

— É isso o que quero dizer — disse o padre Brown. — O assassinato moderno, muitas vezes, tem ainda alguma ligação remota e perversa com a lei não escrita. Mas o roubo moderno assume uma forma de sujar o mundo com papel e pergaminho, cobertos apenas por escrita.

— Bem, não compreendo nada disto — disse o inspetor. — Há o ladrão que é um prisioneiro ou um preso fugitivo; há, ou havia, o guarda caças; e há, para toda a aparência mortal, o mafioso. Aquilo que quer dizer ao falar de toda esta coisa doida sobre o banco ao lado é muito mais do que consigo imaginar.

— É o que me incomoda — disse o padre Brown num tom moderado e abatido. — O banco ao lado está para além da minha imaginação.

Neste momento, a porta do restaurante abriu e o Coronel regressou com um ritmo de triunfo, estando atrás dele uma figura pequena e animada, com cabelo branco e uma cara enrugada com sorrisos. Era o outro magistrado, cuja assinatura era tão essencial para o documento requerido.

— Senhor Wicks — disse o Coronel, com um gesto introdutório — é o melhor perito moderno em todos os assuntos que dizem respeito a fraude financeira. É pura sorte que ele seja um dos J.P. neste distrito.

O inspetor Beltrane engoliu em seco e depois arfou.

— Não me está a dizer que o padre Brown estava certo?

— Sabia que aconteceria — disse o Coronel Grimes, com moderação.

— Se o padre Brown disse que o Senhor Archer Anderson é um enorme vigarista, estava certo — disse o Senhor Wicks. — Não preciso de lhe dar todos os passos de prova aqui. Na verdade, seria mais inteligente dar apenas os passos iniciais mesmo para a polícia e para o vigarista. Temos de observá-lo com cuidado e ver se não se aproveita de qualquer erro nosso. Mas penso que seria melhor irmos ter com ele e termos uma entrevista mais transparente do que aquela que tiveram, na qual o ladrão e a loja de lixo não serão, talvez, os temas mais proeminentes. Penso que posso deixá-lo saber o suficiente daquilo que sabemos para o acordar, sem quaisquer riscos de difamação e danos. E há sempre a hipótese de ele deixar escapar qualquer coisa na tentativa de mantê-la secreta. Vá lá, ouvimos falar de rumores inquietantes sobre o negócio e queremos isto e aquilo explicado na hora. Esta é a nossa posição oficial por agora. — Levantou-se com a atenção ou inquietação de um jovem.

A segunda entrevista com o Senhor Archer Anderson tinha certamente tido um tom diferente, especialmente no fim desta. Foram lá sem qualquer resolução final para desafiar o grande banqueiro, mas logo descobriram que era o banqueiro quem já estava determinado a desafiá-los. O seu bigode branco estava encaracolado como sabres prateados, a sua barba branca e pontiaguda expandia-se para a frente como um pico de aço. Antes de qualquer um deles ter dito mais do que algumas frases, ele levantou-se e bateu na mesa.

— Esta é a primeira vez que Casterville e County Bank têm sido tratados deste modo e prometo-lhes que será a última vez. Se a minha própria reputação não fosse tão alta para tais calúnias caricatas, o crédito da própria instituição por si só tê-las-iam tornado absurdas. Saiam deste lugar, senhores, e vão-se embora, divirtam-se expondo o Tribunal Supremo de Chancelaria ou inventado histórias perversas sobre o arcebispo de Canterbury.

— Isso está tudo muito certo — disse Wicks com a sua cabeça num ângulo de penitência e combatividade semelhante a um buldogue — mas tenho alguns factos aqui, Senhor Archer, os quais o senhor será obrigado a explicar mais cedo ou mais tarde.

— No mínimo — disse o Coronel num tom mais brando — há muitas coisas sobre as quais queremos saber mais.

A voz do padre Brown irrompeu como algo curiosamente frio e distante, como se viesse de um outro quarto ou da rua ou, pelo menos, de longe.

— Não acha, Coronel, que sabemos tudo o que queremos saber?

— Não — disse logo o Coronel. — Sou um polícia. Posso pensar muito e penso que estou certo. Mas não o sei.

— Oh — disse o padre Brown, abrindo bem os olhos por um momento — não estou a falar daquilo que pensa saber.

— Bem, suponho que é o mesmo que aquilo que pensa saber — disse Grimes muito asperamente.

— Lamento muito — disse o padre Brown penitentemente — mas o que sei é muito diferente.

O ambiente de dúvida e diferença, do qual o pequeno grupo se afastou, deixando supostamente o financiador arrogante mestre na matéria , levou-os a perambular mais uma vez para o restaurante para tomar um chá, fumar e tentar obter uma explicação para tudo.

— Sempre soube que era uma pessoa exasperante — disse o polícia para o padre — mas tive algum tipo de palpite sobre o que quis dizer. A minha impressão neste momento é que endoideceu.

— É estranho que diga isso — disse o padre Brown — porque tentei descobrir as minhas próprias falhas em muitas diferentes direções e a única coisa que penso saber sobre mim mesmo é que não sou doido. Sou culpado obviamente, de ser monótono, mas nunca perdi a noção da realidade e parece-me estranho que homens tão brilhantes como o senhor a possam perder rapidamente.

— O que quer dizer com “realidade”? — Reclamou Grimes depois de um longo silêncio.

— Quero dizer senso comum — disse o padre Brown com uma explosão tão rara dele que parecia uma pistola. — Já disse que estou fora das minhas competências com todo este assunto de complexidade financeira e corrupção. Mas, raios há uma forma de testar coisas por seres humanos. Não sei nada sobre finanças, mas já conheci financiadores. De um modo geral, já conheci financiadores fraudulentos. Mas deve saber muito mais sobre eles do que eu. No entanto, consegue admitir uma impossibilidade como essa.

— Uma impossibilidade como essa? — questionou o Coronel fitando-o.

O padre Brown tinha-se inclinado subitamente sobre a mesa, fixando os seus olhos penetrantes em Wicks com uma intensidade que raramente mostrava.

— Senhor Wicks, devia saber melhor do que isto. Sou apenas uma pobre pessoa e, obviamente, não sei melhor. Afinal, os nossos amigos, a polícia, não se encontram frequentemente com banqueiros, exceto quando um operador de caixa corta a sua garganta. Mas o senhor deve ter entrevistado frequentemente banqueiros, especialmente falidos. Já não esteve nesta exata posição 20 vezes antes? Não teve de ter a perseverança de atirar as primeiras suspeitas várias vezes a pessoas muito fiáveis tal como fez esta tarde? Já não falou com 20 ou 30 financiadores que estavam em queda, apenas um ou dois meses antes de eles caírem?

— Bem, sim — disse o Senhor Wicks, lenta e cuidadosamente. — Suponho que sim.

— Bem — perguntou o padre Brown — algum dos outros financiadores alguma vez falou assim?

A pequena figura do advogado deu um sobressalto tão pequeno e imperceptível que só se podia dizer que ele estava sentado mais retamente do que antes.

— Alguma vez, em toda a sua vida — perguntou o padre com um novo ênfase constante — conheceu um prestador de finanças suspeitas que se mostrou arrogante no primeiro momento de suspeita e que disse à polícia para não se meter com os segredos do seu sagrado banco? Ora, era como se estivesse a pedir ao Comandante para fazer uma rusga ao seu banco e prendê-lo no local. Bem, o senhor percebe dessas coisas, eu não. Mas arriscaria dizer que cada financiador duvidoso que alguma vez conheceu fez exatamente o oposto. As suas primeiras entrevistas teriam sido recebidas com divertimento e não raiva. Se alguma vez foi mais longe, teria acabado com uma resposta fraca e completa para cada uma das 999 perguntas que teve de fazer. Explicações! Eles dependem de explicações! Supõe que nunca fizeram perguntas a um financiador enganoso antes?

— Mas, raios, está a generalizar demasiado — disse Grimes. — Parece que criou a sua visão de um vigarista perfeito. Mas ainda assim até os vigaristas não são perfeitos. O que disse só prova que um banqueiro falido foi-se abaixo e perdeu a coragem.

— O padre Brown está certo — disse Wicks, intercedendo subitamente depois de um período de longo silêncio. — É verdade que toda aquela arrogância e provocação exuberante não podiam ser a primeira linha de defesa para uma vigarice. Mas que mais é que poderia ser? Banqueiros respeitáveis não atiram a bandeira, sopram a trompeta e desembainham a espada de imediato, mais do que banqueiros desonrosos.

— Além disso — disse Grimes — porque é que ele se mostrou arrogante de todo? Porque nos expulsaria do banco se não tem nada a esconder?

— Bem — disse o padre Brown muito lentamente — nunca disse que não tinha nada a esconder.

A reunião dispersou-se numa desordem silenciosa e confusa, na qual o persistente Beltane prendeu o padre com o braço por um instante e o agarrou.

— Quer dizer ou não — perguntou duramente — que o banqueiro não é um suspeito?

— Não — disse o padre Brown — quero dizer que o suspeito não é um banqueiro.

Enquanto saíam do restaurante, com movimentos mais vagos do que era normal para qualquer um deles, defrontaram-se com um susto e barulho vindo da rua. Deu primeiro a impressão de serem pessoas a partir janelas aolongo da rua, mas um instante de recuperação nervosa permitiu-lhes localizá-lo. Eram as douraduras das portas e das janelas do edifício pomposo em que tinham entrado naquela manhã; o recinto sagrado de Casterville e County Bank tinha sido abalado por um ruído vindo de dentro, semelhante a uma explosão de dinamite, mas que era, na verdade, apenas o poder destrutivo direto e dinâmico do homem. O Comandante e o inspetor entraram rapidamente pelos vidros partidos das portas para o interior escuro e regressaram com caras marcadas pelo espanto, ainda mais convicto e estólido por estar espantado.

— Agora não há quaisquer dúvidas — disse o inspetor. — Ele agrediu o homem que deixámos ficar de guarda na área com um espeto da lareira e atirou um cofre para apanhar pelo colete o primeiro homem que entrasse para averiguar o problema. Ele deve ser um animal selvagem.

Entre todo o desconcerto grotesco, o Senhor Wicks, o advogado, dobrava-se com um gesto de desculpa e elogio, e disse ao padre Brown:

— Bem, o senhor convenceu-me completamente. Ele é certamente uma versão totalmente nova do banqueiro fugitivo.

— Bem, tem de enviar os seus homens para detê-lo imediatamente — disse o polícia para o inspetor — ou ele destruirá a vila inteira.

— Sim, — disse o padre Brown —é um homem muito violento. A sua grande tentação. Pense sobre como usou a sua pistola cegamente como um taco de basebol no polícia florestal, batendo-lhe várias vezes, mas nunca tendo a intenç~so de a disparar. Obviamente, este é o tipo de homem que gere mal a maioria das coisas, até mesmo homicídios. Mas consegue geralmente fugir da prisão. — Os seus companheiros olharam para si com caras que pareciam ficar cada vez mais roliças, mas não conseguiram obter qualquer esclarecimento a partir do rosto comum e roliço do padre Brown antes de este se afastar e descer a rua lentamente.

— E assim — disse o padre Brown, sorrindo para o companheiro enquanto bebia uma cerveja Lager muito leve no restaurante e parecendo muito o Senhor Pickwick do clube da vila — e assim voltamos novamente à nossa velha, querida história rústica do ladrão e do polícia florestal. Levanta inexpressivamente o meu espírito ao lidar com uma acolhedora história de crime à lareira em vez deste nevoeiro branco e confuso sobre finanças. Um nevoeiro realmente cheio de fantasmas e sombras. Bem, obviamente, todos vocês conhecem a velha, velha história. Ouviram-na no colo da vossa mãe, mas é tão importante, meus amigos, manter essas velhas histórias bem claras nas nossas mentes como nos foram ditas. Esta pequena história rural tem sido contada muitas vezes. Um homem é preso por um crime de paixão, mostra uma violência semelhante na prisão, derruba um guarda prisional e escapa na bruma da charneca. Tem um golpe de sorte, pois encontra um cavalheiro, que está bem vestido e apresentável, e obriga-o a mudar de roupa.

— Sim, ouvi essa história muitas vezes — disse Grimes franzindo o sobrolho. — O senhor diz que é importante lembrar dessa história?

— É importante lembrar dessa história — disse o padre Brown — porque é um relato claro e correto daquilo que não aconteceu.

— E o que é que aconteceu? — questionou o inspetor.

— Apenas o simples contrário — disse o padre Brown. — Uma pequena mas simples correção. Não foi o prisioneiro que foi à procura do cavalheiro bem vestido, para se poder disfarçar com as suas roupas. Foi o cavalheiro que foi à procura do prisioneiro na charneca para poder gozar da euforia de vestir a roupa de prisioneiro. Ele sabia que havia um prisioneiro fugitivo na charneca e queria fervorosamente as suas roupas. Provavelmente sabia também que havia um esquema bem organizado para apanhar o prisioneiro e fazê-lo sair rapidamente da charneca. Não se sabe ao certo que papel é que Denis Hara e o seu gangue desempenharam neste assunto ou se eles estavam apenas cientes da primeira ou segunda conspiração. Mas penso que é provável que estivessem a trabalhar para os amigos do ladrão e apenas para o interesse do ladrão, que tinha muita simpatia pública entre a população mais pobre. Prefiro pensar que o nosso amigo, o cavalheiro bem vestido, efetuou a sua própria pequena cena de transformação com os seus talentos natos. Era um cavalheiro muito bem vestido com um fato muito moderno, como dizem os alfaiates, belos cabelos brancos e bigode, etc., o qual deve mais ao barbeiro do que ao alfaiate. Considerou esse traje muito útil em muitas alturas da sua vida e deve-se lembrar que ele só tinha aparecido por um período de tempo muito curto, até então, nesta vila e neste banco em particular. Ao saudar por fim a figura do prisioneiro cujas roupas cobiçava, verificou que era um homem com uma figura semelhante à dele. O resto consistiu meramente em cobrir o prisioneiro com o chapéu, a peruca, o bigode e as roupas até ao ponto do guarda prisional, a quem tinha batido na cabeça, não o reconhecer . Depois o nosso financiador brilhante vestiu as roupas do prisioneiro e sentiu, pela primeira vez em meses ou talvez anos, que tinha fugido e que estava livre. Ele não tinha nenhum grupo de pobres simpatizantes que o ajudariam ou esconderiam caso soubessem a verdade. Não tinha movimento em seu favor, entre os advogados e governadores mais decentes, sugerindo que tinha sofrido o suficiente ou que a sua libertação poderia ser permitida em breve. Não tinha amigos no submundo já que tinha sido um ornamento do mundo superior, o mundo dos nossos conquistadores e mestres, pelos quais nos permitimos dominar facilmente. Ele era um dos mágicos modernos; um génio das finanças e os seus roubos eram roubos a milhares de pobres. Quando atravessou a linha (bastante ténue na lei moderna), quando o mundo o descobriu, o mundo inteiro estava contra ele. Imagino que subconscientemente olhou para a prisão como um lar. Não sabemos exatamente quais eram os seus planos. Mesmo se as autoridades prisionais o capturassem e se dessem ao trabalho de provar com as suas impressões digitais que ele não era o prisioneiro fugitivo, não é fácil ver o que mais podiam usar contra ele nesta fase. Mas penso que é mais provável que ele soubesseque a organização de Hara o ajudaria e o tiraria do país sem muitas demoras. Poderá ter feito negócio com Hara, sem talvez lhe dizer toda a verdade. Tais compromissos são comuns na América entre um homem de grandes negócios e um chantagista, porque ambos trabalham na mesma área. Também não houve muitos problemas em persuadir o prisioneiro, penso eu. Parecer-lhe-ia à primeira vista um esquema muito promissor para ele, talvez pensasse que era parte do esquema de Hara. De qualquer forma, o prisioneiro livrou-se das roupas de prisão e vestiu roupas de primeira classe para uma posição de primeira classe, com as quais poderia ser socialmente aceite e, pelo menos, pensar nos seus próximos passos em paz. Mas, céus, que ironia! Mas que armadilha; que destino invertido! Um homem a fugir da prisão perto do fim da sua sentença, por um crime meio perdoado e obscuro, deleitado por vestir-se como um dândi no traje de maior criminoso do mundo, a ser objeto de caça dos holofotes no dia seguinte pelo mundo inteiro. Senhor Archer Anderson enganou muitas boas pessoas no seu tempo, mas nunca enganou um homem em tal tragédia como o que vestiu benevolentemente com as suas melhores roupas na charneca.

— Bem — disse Grimes bem-humorado — agora que nos deu uma dica, podemos provavelmente prová-lo porque já terão tirado as impressões digitais do prisioneiro.

O padre Brown curvou a sua cabeça num gesto vago de admiração e reverência.

— Mas é claro! — disse ele. — Nunca tiraram as impressões digitais do Senhor Archer Anderson. Meu bom senhor! Um homem naquela posição.

— A verdade é — disse Wicks — que ninguém parece saber muito sobre ele, tanto as suas impressões digitais como outra coisa qualquer. Quando comecei a estudar os seus modos, tive de começar com um mapa em branco que depois se tornou um labirinto. Por acaso sei alguma coisa sobre labirintos, mas este era mais labiríntico do que os outros.

— É tudo um labirinto para mim — disse o padre com um suspiro. — Disse que estava fora das minhas competências com este assunto financeiro. A única coisa de que tinha a certeza era do tipo de homem que se sentou à minha frente. E estava certo que ele era demasiado nervoso e agitado para ser um vigarista.

 

 

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