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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PACTO COM O DIABO / Jack Higgins
PACTO COM O DIABO / Jack Higgins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Vietnã • 1968
O helicóptero Medevac deslizava sobre o delta a uns 300 metros de altura, acompanhado de perto, à esquerda, pelo Huey Cobra, fortemente armado. O tempo se mostrava ameaçador, as nuvens negras se acumulavam sobre a floresta e já se ouvia ao longe o ronco dos trovões.
No interior do Medevac, sentada a um canto, Anne-Marie Audin mantinha os olhos cerrados, as costas apoiadas na caixa de socorros médicos. Era uma garota morena, de pequena estatura, os cabelos bem curtos, uma exigência das condições de vida nas linhas de frente da guerra do Vietnã. Usava um colete para saltos, com o zíper aberto na frente, camisa e calças caqui, enfiadas em pesadas botas francesas de paraquedistas. O que mais chamava atenção eram as câmeras fotográficas, duas Nikons presas em seu pescoço por correias de couro; os bolsos do colete de salto não continham munição, mas uma variedade de lentes e dúzias de rolos de filmes de 35 mm.
O jovem médico acocorado junto ao negro Chefe da Tripulação não tirava os olhos dela, em franca admiração. Os dois primeiros botões da camisa estavam soltos, permitindo divisar um pouco melhor o movimento ritmado dos seios, marcando a respiração enquanto ela dormia.
— Há muito tempo que eu não via uma coisa assim — comentou o médico. — Uma verdadeira dama.
— E alguma coisa mais, mocinho — replicou o Chefe, oferecendo-lhe um cigarro. — Não há um lugar onde esta garota não tenha estado. Chegou mesmo a saltar com o 503º de Paraquedistas em Katum, no ano passado. Não perdeu uma única ação importante. A revista Life publicou, há uns seis ou sete meses, uma reportagem a respeito dela. É de Paris, você acredita nisso? E de uma família proprietária de boa parte do Banco da França.

 


 


Os olhos do rapaz se arregalaram de espanto.

— Então, que diabos está ela fazendo aqui?

— Não me pergunte, moço — respondeu o Chefe, com um sorriso. — Não sei nem mesmo o que eu estou fazendo aqui.

— Vocês têm um cigarro? Parece que os meus acabaram — falou Anne-Marie.

Ao entregar-lhe o maço, o Chefe da Tripulação comprovou que aqueles eram os olhos mais verdes que ele jamais vira.

— Pode ficar com eles.

A moça tirou um do maço e o acendeu com um velho isqueiro em forma de bala; depois, fechou os olhos novamente, o cigarro esquecido entre os dedos. O médico tinha razão, naturalmente. O que estava fazendo ela ali, uma garota que tinha tudo o que quisesse? O avô, um dos mais ricos e poderosos industriais da França, deixara-lhe uma fortuna; o pai que, como coronel de infantaria sobrevivera à guerra da Indochina, para morrer logo depois na Argélia, cinco vezes condecorado e Cavalheiro da Legião de Honra, fora um autêntico herói.

A mãe nunca se recobrou do choque e morreu vítima de desastre de automóvel perto de Nice, dois anos mais tarde. Anne-Marie sempre suspeitou de golpe de direção deliberado que atirara o Porsche sobre a amurada da estrada nas montanhas, naquela noite.

Pobre menina rica. Sua boca retorceu-se em um sorriso irônico, os olhos ainda cerrados. As casas, os palacetes, a criadagem, as excelentes escolas inglesas, depois a Sorbonne; um ano naquela sufocante atmosfera acadêmica fora o bastante. Não esquecendo os casos de amor, naturalmente, e uma breve experiência com drogas.

Foi a arte fotográfica que a salvou. Desde sua primeira Kodak, aos oito anos de idade, ela sentiu a extraordinária vocação para a fotografia, que se foi transformando ao longo dos anos no que o avô chamava de pequeno passatempo de Anne-Marie.

Depois da Sorbonne, ela se dedicou inteiramente à sua arte. Durante seis meses praticou com um dos mais famosos fotógrafos de moda de Paris, em seguida passou a trabalhar na equipe do Paris-Match. Dentro de um ano, sua reputação se expandira extraordinariamente, mas isso não era o bastante; quando pediu para ser enviada para o Vietnã, riram de sua pretensão.

Por isso, demitiu-se, passou a trabalhar por conta própria e, depois de muita insistência junto ao avô, fez com que ele prometesse utilizar todo o seu formidável poder político para que a neta obtivesse do Departamento da Defesa as necessárias credenciais. Foi uma nova Anne-Marie que ele conheceu naquele dia: uma garota dominada por uma ideia fixa que o surpreendia, mas que também o enchia de relutante admiração. Seis meses, dissera ele. Apenas seis meses, e ela prometera, sabendo sem a menor dúvida de que não cumpriria a promessa.

Não cumpriu, realmente, pois, esgotado o tempo, era tarde demais para regressar. Ficara famosa, seus trabalhos eram publicados por todas as grandes revistas da Europa e dos EUA. Time, Paris-Match, Life, todas disputavam os serviços exclusivos daquela francesinha maluca que saltara com os paraquedistas em Katum, a garota para a qual nenhuma missão era por demais violenta ou perigosa.

Qualquer que fosse seu objetivo, ela descobriu o que significava a guerra, pelo menos no Vietnã. Nada de batalhas preparadas. Nada de clarins nem tambores ao longe, para colorir a imaginação. Era a selvagem luta de rua em Saigon, durante a ofensiva Tet. Eram os pantanais do Delta do Mekong, as selvas do planalto central; as úlceras que corroíam as pernas dos combatentes até o osso, como ácido, deixando cicatrizes que jamais desapareciam.


E agora ela chegara até ali. Uma manhã inteira na chuva, em Pleikic, tentando conseguir transporte para Din To; afinal, uma vaga no Medevac. Céus, mas como ela estava cansada! Cansada como jamais se sentira na vida. Ocorreu-lhe que talvez tivesse chegado ao fim de alguma coisa. Estremeceu ligeiramente. Foi então que o Chefe da Tripulação chamou-a com um gesto enérgico.

Ele estava junto à porta aberta, apontando para uma fogueira que se elevava para o céu a algumas centenas de metros a leste. O Medevac rumou na direção das chamas e começou a perder altura, seguido pelo Huey Cobra.

Anne-Marie levantou-se e, curiosa, correu para junto do Chefe da Tripulação. Em um dos cantos da plantação de arroz, lá embaixo, havia os destroços de um helicóptero incendiado, com vários corpos espalhados em torno dele. O homem que abanava freneticamente com as mãos de dentro de uma vala trajava um uniforme americano.

O Medevac continuou baixando, enquanto sua escolta circulava mais acima. Anne-Marie preparou a lente de uma de suas Nikons e começou a bater uma série de chapas, apoiada no ombro do Chefe da Tripulação.

De vez em quando, ele virava a cabeça com um sorriso; ao chegarem a uns 10 metros de altura, a moça percebeu, com um estranho sentimento de indiferença, que o rosto que ela focalizava na vala era o de um vietnamita, não de um americano. Um par de metralhadoras pesadas, escondida na vegetação, a menos de 50 metros, abriu fogo de repente. A essa distância, não havia possibilidade de erro.

O Chefe da Tripulação, em pé, junto à porta, não pôde esboçar sequer um gesto. As balas o atingiram em cheio, atirando-o de encontro a Anne-Marie que, por sua vez, caiu sobre a caixa de socorros médicos. Ela conseguiu afastar o corpo do chefe e tentou levantar-se. O jovem médico estava agachado a um canto, apertando contra o peito um braço que sangrava; uma nova rajada de metralhadora varreu a cabine e ela ouviu o grito do piloto.

A moça arrastou-se para frente, mas o helicóptero deu uma guinada violenta e ela foi projetada através da porta aberta, indo cair na lama da plantação de arroz.

O Medevac ainda elevou-se uns sete ou 10 metros, depois girou bruscamente para a esquerda e explodiu numa grande bola de fogo, espalhando combustível e destroços como uma granada.

Anne-Marie conseguiu levantar-se, coberta de lama, e viu à sua frente, o homem que, dentro da vala, acenava para o helicóptero, fardado de soldado americano. Era na verdade um vietnamita e o fuzil que ele lhe apontava era um AK47 russo. Mais atrás, escondidos na vala, meia dúzia de vietcongues, com seus chapéus de palha e macacões pretos, aproximavam-se lentamente.

O Huey Cobra ainda fez várias passagens, com suas metralhadoras varrendo a plantação de arroz e fazendo com que os vietcongues retomassem para o fundo da vala. Anne-Marie acompanhou com os olhos as manobras do helicóptero; logo depois, 40 ou 50 homens das tropas regulares do Vietnã do Norte, de uniforme caqui, surgiram do meio da selva, ao lado da lavoura de arroz, e começaram a atirar no Huey Cobra com todas as armas de que dispunham. O aparelho se deslocou na direção deles, disparando seus foguetes e fazendo com que os vietnamitas desaparecessem rapidamente na selva. O helicóptero fez meia-volta e afastou-se para o sul, talvez uns 500 metros, passando então a sobrevoar a área em lentos círculos.

Anne-Marie, acocorada na vala, procurou se acalmar, depois levantou-se devagar. Estava tudo muito quieto em torno dela, o helicóptero queimado, os corpos parcialmente mergulhados na lama e na água. Era um quadro de desolação, divisando-se um bosque de bambus, distante uns 30 ou 40 metros. Ela estava sozinha, correndo o máximo perigo e apenas podendo ser salva, se chegassem os reforços que o Huey Cobra certamente teria solicitado pelo rádio. Até que isso acontecesse, só havia uma coisa que ela podia fazer.

As Nikons presas a seu pescoço estavam cobertas de lama. Anne-Marie retirou outras lentes dos bolsos de seu colete de salto e colocou novos rolos de filme, começando a tirar fotos, enquanto se deslocava pela vala, com água pelos joelhos, desviando-se de cadáveres que boiavam e sentindo-se, apesar do frio, completamente calma e dedicada a seu trabalho. Foi então que, ao se virar, topou com três vietcongues, parados a uns 20 metros de distância, olhando para ela.

Houve um instante de completa imobilidade, os rostos graves dos orientais totalmente inexpressivos. O do centro, um garoto com não mais de 15 anos, levantou seu AK47 e cuidadosamente fez pontaria, enquanto Anne-Marie, com o mesmo cuidado, ajustava sua Nikon. É a morte, pensou ela. A última foto. Um belo rapazote de macacão preto. Acima da cabeça deles, os trovões rugiram, a chuva despencou em catadupas e ouviu-se um grito acima do ruído da chuva. Um grito estranhamente familiar de um samurai destemido, enfrentando perigos desconhecidos.

Os vietcongues se viraram para fugir. Do bosque de bambus, atrás deles, surgiu um homem, avançando lentamente, uma tira de pano caqui prendendo seu cabelo, o colete de salto cheio de granadas, o fuzil M16 já disparando, a boca escancarada em um grito selvagem.

Instintivamente, ela o focalizou com a câmera, registrando a habilidade com que disparava a arma apoiada no quadril, derrubando um, depois outro dos vietcongues e esgotando a munição, enquanto o terceiro, mais afastado, tentava reagir. A coronha do fuzil M16 descreveu um arco e o rapaz caiu. O homem não perdeu tempo em recarregar a arma. Pegou-a pelo braço e, patinando na água, os dois correram para o bosque de bambus.

Ouviam-se agora vozes atrás deles, na vala, e mais tiros. Pareceu que ela fora atingida na perna esquerda, pois tropeçou e caiu. O homem se voltou, introduziu um pente de balas no M16 e disparou na direção da vala, repetindo seu grito de guerra, enquanto Anne-Marie tentava levantar-se, sem deixar de olhá-lo, espantada. Quando ele veio puxá-la novamente, levantando-a, Anne-Marie sentiu a energia que havia nele, uma força natural que ela jamais conhecera, levando-a em segurança para o bosque.

Colocou-a sentada na margem lodosa, acima do nível da água; depois, cortou com a faca a perna esquerda da calça caqui dela e examinou o ferimento.

— Você teve sorte. A bala apenas atravessou a coxa. Pelo jeito, deve ter sido um Ml. Se fosse um AK, teria arrebentado o osso.

Habilmente, fez um curativo, abriu uma ampola de morfina e aplicou a injeção.

— Você vai precisar disso. Ferimentos de bala nunca doem logo de início. O choque é muito forte. A dor vem depois.

— Experiência própria?

— Pode classificar assim — replicou ele, meio sem jeito. — Queria lhe dar um cigarro, mas perdi meu isqueiro.

— Tenho um.

O homem abriu uma cigarreira de metal, tirou dois cigarros e tornou a fechá-la cuidadosamente. Anne-Marie passou-lhe o isqueiro. Ele acendeu os dois cigarros, colocou um nos lábios dela e examinou o isqueiro atentamente.

— Uma bala do 7.62mm russo. Olha isso, bem interessante.

— Foi do meu pai. Em agosto de 1944 ele salvou um coronel paraquedista alemão que ia ser fuzilado pelos guerrilheiros. O coronel lhe deu como lembrança. Foi morto em Argel — acrescentou ela. — Meu pai. Depois de libertar a cidade.

— Não deixa de ser uma situação irônica — comentou ele, devolvendo o isqueiro.

Ela sacudiu a cabeça e, por uma razão que não seria capaz de explicar, disse em voz baixa:

— Não, fique com ele.

— Como lembrança?

— Memento mori — falou ela. — Nunca sairemos vivos daqui.

— Não diga isso. Aquele Cobra ainda está sobrevoando por aí. Sou capaz de jurar que, dentro de uns vinte minutos, chegará a cavalaria, como nos filmes de mocinho. Bem em cima da hora. É até bom que os ajudemos a não perder tempo.

Tirou da cintura uma pistola de sinalização e uma chama vermelha explodiu alto, no céu.

— Isso não vai chamar a atenção dos vietcongues?

— Acho que não — retrucou ele, disparando novo sinal vermelho, seguido de um verde. — Cores do dia.

A perna dela começara a doer. Comentou, tentando sorrir:

— Agora eles sabem com certeza onde estamos; refiro-me aos vietcongues.

— Já sabiam.

— E não virão?

— Acho que sim.

Limpou o M16 com um pedaço de pano e ela, levantando a máquina, bateu a chapa. Como Anne-Marie ficou sabendo depois, ele tinha 23 anos, com 1,80 m, ombros largos, a tira de pano dando-lhe o ar de um lutador do século XVI. A pele parecia esticada sobre as maçãs do rosto celta, e uma barba rala cobria-lhe as faces encovadas e o queixo enérgico. Mas sua característica marcante eram os olhos, cinzentos, como água correndo sobre pedras, calmos, sem expressão, escondendo seus próprios segredos.

— Quem é você? — perguntou ela.

— Sargento Martin Brosnan, dos paraquedistas especiais.

— O que foi que aconteceu aqui?

— Um golpe errado. Foi isso o que aconteceu. Esses sujeitinhos, com a metade da nossa altura, que a gente pensava que fugiriam, pegaram-nos numa emboscada, como pegaram vocês. Estávamos de regresso para Din To, após uma patrulha de rotina. Éramos quatorze, mais a tripulação. Agora, parece que só eu sobrei. Talvez ainda haja algum vivo, escondido por aí.

Ela continuava tirando fotos.

— Você não pode parar — comentou ele. — É bem como disse o sujeito que escreveu, no ano passado, aquele seu perfil na Life. É uma obsessão. Meu Deus! Você ia tirar uma foto daquele garoto no momento em que ele se preparava para lhe dar um tiro!

Ela baixou a máquina.

— Você sabe quem eu sou?

— Quantas mulheres fotógrafas mereceram matéria de capa na Time? — indagou ele, com um sorriso.

Acendeu outro cigarro e passou-o a Anne-Marie. Havia qualquer coisa no tom de voz dele que a intrigava.

— Brosnan... Esse nome não me é familiar.

— Irlandês. Bem... Condado de Kerry, para ser exato. Você dificilmente acharia coisa parecida na Irlanda.

— Com franqueza, pensei que você fosse inglês.

Ele replicou com uma careta de fingido horror:

— Meu pai se revolveria na sepultura e minha mãe... Deus a abençoe... se esqueceria de que era uma dama e cuspiria em você. Irlandês-americano de boa cepa, safra de Boston. Os Brosnans emigraram por ocasião da grande fome, há muitos anos. Todos protestantes, acredita? Minha mãe nasceu em Dublin. Uma fiel católica que jamais perdoou meu pai por não me educar na religião dela.

Ele não parava de falar, procurando distraí-la. Anne-Marie bem percebeu a intenção e ficou grata por isso.

— E o sotaque? — indagou ela.

— Oh, isso vai por conta do colégio, Andover no meu caso, e da universidade, naturalmente.

— Deixe-me adivinhar qual foi. Yale?

— Minha família sempre desejou que fosse, mas decidi dar uma oportunidade a Princeton. Ela formou um Scott Fitzgerald, e eu também alimentava minhas pretensões de escritor. Mestrado de inglês no ano passado.

— E como foi que um mimado candidato a escritor veio parar no Vietnã, servindo como sargento em uma das mais duras unidades do Exército?

— Muitas vezes me fiz essa mesma pergunta — retrucou Brosnan. — Estava prestes a iniciar meu doutorado quando, um dia, encontrei Harry, nosso jardineiro, chorando num canto da estufa. Perguntei o que havia e ele, pedindo desculpas, disse que acabara de saber que seu filho, Joe, morrera em Nam. — O tom de voz dele agora era grave. — Mas o pior é que havia outro filho, Elie, morto em combate no Delta, no ano anterior.

Houve um pesado silêncio, enquanto a chuva aumentava.

— E depois?

— Minha mãe mandou chamá-lo e deu-lhe mil dólares. Não me esqueci da quantia, porque o terno que eu estava usando naquele dia custara oitocentos dólares em Savile Row, no ano anterior, quando fizemos uma viagem a Londres. E o homem estava muito agradecido!

Sacudiu a cabeça, baixando os olhos. Anne-Marie comentou, com voz macia: — E então você tomou sua decisão.

— É que me senti envergonhado e, quando fico assim, preciso de ação. Sou um sujeito muito existencialista.

Sorriu desajeitadamente, e ela perguntou:

— E como você achou o local?

— Nam? Ah, um verdadeiro inferno.

— Mas você ficou satisfeito, não foi? Acho que tem aptidão para matar. — Ele parou de sorrir, os olhos cinzentos à espreita. Anne-Marie prosseguiu: — Você tem que me desculpar, meu amigo, mas como sabe, minha especialidade é interpretar fisionomias.

— Não estou muito certo de que goste disso. Sei que sou bom no cumprimento de minhas missões. É preciso estar sempre atento, pois pode aparecer um sujeito com o fuzil na mão e, afinal, a gente quer passar o Natal em casa.

Houve um novo silêncio, desta vez mais longo. Afinal, ele confessou: — De uma coisa estou certo, já chega para mim. Meu tempo termina em janeiro e estou contando os dias. Lembra-se do que disse Eliot, sobre a porta que você nunca abriu e que dá para o jardim florido? Bem, de agora em diante, abro qualquer porta que me apareça.

A morfina realmente produziu efeito. A dor havia desaparecido, mas os sentidos dela também tinham perdido a agudeza.

— E depois? Volta para Princeton, para o doutorado?

— Não. Já pensei muito nisso. Estou mudado demais para continuar. Resolvi ir para Dublin, Trinity College. Paz, tranquilidade. Lembre-se de meus antecedentes. Falo razoavelmente bem o irlandês, que aprendi com minha mãe quando era criança.

— E antes disso? Nenhuma garota esperando você?

— Não mais de umas quinze ou vinte, mas preferiria estar sentado em um daqueles cafés de calçada dos Champs-Elysées, bebericando Pernod, e você com um vestidinho bem parisiense.

— E chovendo, meu amigo — balbuciou Anne-Marie, já com os olhos semicerrados. — Absolutamente indispensável que esteja chovendo. Só assim se pode sentir o aroma dos castanheiros molhados. É uma parte essencial do encanto de Paris.

— Você deve saber — disse ele, apanhando o Ml6, ao ouvir uns ruídos suspeitos nos arbustos próximos.

— Claro que sei, Martin Brosnan. — A voz dela já estava arrastada e sonolenta. — Terei um prazer imenso em servir de cicerone para você.

— Então está combinado — replicou ele em voz baixa, apoiando-se num joelho e atirando na direção dos arbustos.

Ouviu-se um grito de dor e o matraquear da resposta. Brosnan foi atingido na altura do ombro esquerdo e caiu de costas junto à moça.

Ela apenas estremeceu ligeiramente. Brosnan se levantou e, segurando o fuzil apenas com uma das mãos, alvejou o homem que avançava contra ele. Novamente aquele sorriso lhe assomou ao rosto e, tendo descarregado o M16, atirou-o na cabeça do último homem, empunhando a baioneta, à procura do coração do inimigo, e a enfiou entre suas costelas, rolando pela lama junto com ele.

Brosnan ainda ficou algum tempo apertando o pescoço do vietcongue, esperando que ele exalasse o último suspiro. De repente, dois helicópteros de socorro começaram a baixar, enquanto meia dúzia de Huey Cobras surgiam do meio da chuva, em formação de ataque.

Brosnan se ergueu desajeitadamente e tomou Anne-Marie nos braços, sufocando um gemido de dor provocada pelo ferimento no ombro. Com dificuldade, atravessou o bambuzal, procurando o espaço aberto da plantação de arroz.

— Bem que eu lhe disse que a cavalaria ia chegar.

— Na hora exata. — Ela abriu os olhos. — E depois?

— De uma coisa pode estar certa — replicou ele, com um sorriso. — Depois dessa, tudo deve melhorar.


1


Paris • 1979

 


Um vento gelado varria o Sena e atirava rajadas de chuva contra as janelas do café localizado perto da ponte. Era uma sala pequena e triste, aberta a noite inteira, meia dúzia de mesas e cadeiras, não mais, normalmente frequentada por prostitutas. Não, porém, em uma noite como aquela.

O homem do bar estava lendo o jornal, debruçado sobre o balcão forrado de zinco. Jack Corder, sentado a uma mesa junto à janela, era o único freguês: um sujeito alto, moreno, com pouco mais de 30 anos. A roupa que ele trajava — jeans, casaco de couro e boné de pano — dava-lhe um ar de porteiro noturno do mercado de peixe situado no fim da rua, profissão que estava longe de ser a dele.

Barry havia marcado onze e meia, de modo que Corder chegou às 11, para não correr risco. Agora, já passara meia hora depois da meia-noite, mas não havia razões para preocupação. Em se tratando de Frank Barry, nunca se sabia a quantas se andava e isso fazia parte da técnica. Corder acendeu um cigarro e pediu: — Café preto e outro conhaque.

O homem do bar assentiu com um movimento de cabeça pôs o jornal de lado e, nesse momento, o telefone começou a tocar. Ele atendeu imediatamente, depois voltou-se para o freguês, perguntando;

— Seu nome é Corder?

— Justamente.

— Parece que há um táxi esperando por você ali na esquina — informou ele, recolocando o fone no lugar. — Ainda quer o café e o conhaque?

— Apenas o conhaque.

Corder estremeceu por um motivo inexplicável e tomou o conhaque de um gole.

— Está frio, mesmo para novembro.

O homem do bar encolheu os ombros.

— Em uma noite como esta até as poules ficam em casa.

— Garotas sabidas.

Corder deixou uma nota na mesa e saiu. O vento jogou chuva em seu rosto e ele levantou a gola do casaco; correu para o velho táxi Renault estacionado na esquina, abriu a porta e entrou. O carro arrancou imediatamente, atirando-o contra o banco de trás. Atravessaram a ponte e as luzes dos grandes globos de vidro fizeram com que ele se recordasse de Oxford, com uma estranha sensação de déjà vu.

Doze anos de minha vida, pensou ele. O que seria eu agora? Um bolsista de Balliol? Talvez mesmo professor em alguma universidade de menor importância. Em vez disso... Mas esse tipo de recordação não faz nenhum bem... nenhum mesmo.

O motorista era um velho, com a barba por fazer, e Corder percebeu que ele o observava pelo retrovisor. Não trocaram uma palavra enquanto rolavam através da escuridão e da chuva, atravessando ruas laterais e finalmente chegando à zona do cais, até parar em frente a um armazém. Uma pequena lâmpada iluminava um letreiro: Renoir & Filhos — Importadores. O motorista ficou sentado, sem nada dizer. Corder saltou, batendo com a porta, e o Renault arrancou imediatamente.

Estava tudo muito silencioso, ouvindo-se apenas o marulho da água contra o cais, onde algumas dezenas de barcaças estavam ancoradas. A chuva continuava martelando, escorrendo fios de prata do letreiro. Havia uma portinhola encaixada no largo portão. Quando Corder tentou o ferrolho, a portinhola se abriu imediatamente e ele entrou.

O armazém estava abarrotado de fardos e engradados de toda espécie. A escuridão era interrompida apenas por uma pequena luz no fundo, e Corder se encaminhou para lá. Iluminado pela lâmpada, um homem estava debruçado sobre uma mesa tosca, examinando um mapa e tomando notas em um pequeno caderno de capa de couro.

— Alô, Frank — disse Corder.

O outro levantou os olhos:

— Ah, você já chegou? Desculpe tê-lo incomodado.

A voz revelava uma boa escola particular inglesa, apenas com um ligeiro sotaque da Irlanda do Norte. Recostou-se na cadeira. O cabelo louro, cortado rente, fazia com que ele parecesse ter menos do que seus 48 anos; a capa impermeável lhe dava uma aparência curiosamente elegante. Sem dúvida, um homem bonito, rosto fino, um dos lados da boca em permanente meio sorriso, como que achando graça do mundo e de seus habitantes.

— Alguma coisa importante? — perguntou Corder.

— Pode classificar assim. Você sabia que o Ministro do Exterior britânico está visitando o Presidente?

— Lord Carrington? — perguntou Corder, franzindo a testa. — Não, não sabia.

— Nem ninguém. Tudo muito na moita. O novo governo conservador tentando cimentar a entente cordiale que vem se deteriorando nos últimos anos. Não que vá conseguir algum resultado. Giscard d'Estaing sempre há de colocar a França no alto de sua lista, qualquer que seja a situação. A reunião final amanhã de manhã terá lugar em um castelo em Rigny — acrescentou, assinalando no mapa com o dedo. — Aqui, cerca de sessenta quilômetros de Paris.

— E então? — perguntou Corder.

— Ele parte de carro ao meio-dia para Vezelay. A Força Aérea mantém ali um campo de pouso de emergência, onde um avião da RAF o espera, para levá-lo de volta a sua querida Inglaterra; para todos os efeitos, ele nunca esteve ausente.

— Sim, mas o que adianta saber de tudo isso?

— Aqui. — Barry apontou outra vez para o mapa. — Saint-Etienne, vinte e cinco quilômetros de Rigny; apenas um posto de gasolina e um bar de beira de estrada, atualmente fechado. Um lugar perfeito.

— Perfeito para quê?

— Para caçar o homenzinho, quando ele passar. Um carro, a escolta de quatro guarda-costas em motocicletas. Não vejo problema algum.

Corder sentiu que o frio agora lhe atingia os ossos.

— Você está brincando. Nós jamais conseguiremos fazer isso. Quero dizer, uma coisa assim exige preparação, planejamento contando até segundos.

— Tudo foi providenciado — replicou Barry, alegremente. — Você já devia me conhecer, Jack. Sempre prefiro pessoal que trabalhe por dinheiro. Fanáticos radicais como você... marxistas honestos que acreditam na causa... levam tudo muito a sério e isso tende a perturbar o raciocínio. Não se consegue o toque profissional.

O sotaque irlandês era agora mais pronunciado, tudo parte de uma deliberada intenção de ser amável.

— Quem você contratou? — perguntou Corder.

— Três assassinos de Marselha, que acabaram de deixar a Union Corse, depois de certa prática. Um deles está acompanhado de sua garota. Farão qualquer coisa, desde que convenientemente remunerados, mais quatro passaportes falsos e passagens para a Argentina.

— E qual é o plano? — indagou Corder, debruçando-se para examinar o mapa.

— Simples. Como disse, o bar está fechado. Apenas estão lá, morando na garagem, o proprietário e a mulher. Daremos um jeito neles e meus homens estarão em posição, disfarçados como mecânicos, desde meio-dia e quinze, trabalhando em um carro na frente do posto.

Corder sacudiu a cabeça.

— Pelo que posso concluir, a comitiva passará por ali em alta velocidade. Lembra-se do que aconteceu em Petit-Clamart, quando Bastien Thiry e seus homens tentaram emboscar o General de Gaulle? Mesmo com metralhadoras atirando de perto, eles nada conseguiram, porque o carro do velho general não diminuiu a velocidade. Não se tem mais do que um segundo.

— Então, o que temos a fazer é parar o carro.

— Impossível. Hoje em dia, esses motoristas de gente importante são treinados justamente para enfrentar situações assim. Pelo que vejo no mapa, o trecho da estrada é reto, permitindo enxergar o local bem de longe. Se você bloquear a estrada com um veículo ou qualquer outra coisa, eles simplesmente farão meia-volta e fugirão o mais depressa possível. Não, Frank, esse motorista não vai parar e não há meio de obrigá-lo a isso.

— Aí é que você se engana — disse Barry. — Nessa altura entra em cena a garota a que me referi. No instante conveniente ela tenta atravessar a estrada, saindo da garagem empurrando um carrinho de criança. A garota tropeça, o carrinho lhe foge das mãos e rola para o meio da estrada.

— Você está louco?

— Estou? Esse truque funcionou há alguns anos, quando a Facção do Exército Vermelho pegou Schleyer, o chefão da Federação das Indústrias alemãs em Colônia. Como você vê, Jack — acrescentou Barry, com um sorriso —, a natureza humana sendo como é, acho que posso garantir, com toda certeza, que quando aquele motorista avistar um carrinho de criança atravessando a estrada fará apenas uma coisa: desviará para evitar o atropelamento e acionará os freios.

Barry tinha razão. O truque funcionaria. Corder acenou com a cabeça, concordando: — Desse jeito, acho que você está certo.

— Sempre estou, meu velho. — Abriu a pasta que deixara no chão, a seus pés, e retirou um transmissor. — Isso é para você. Há uma estrada de terra conduzindo a uma colina coberta por um pomar de macieiras, de onde se pode ver perfeitamente o castelo em Rigny. Quero que você esteja lá às onze da manhã. Há um carrinho Peugeot estacionado no pátio aí fora. Pode pegá-lo. As chaves estão no carro.

— E depois?

— No momento em que você perceber que Carrington está prestes a partir, avise pelo transmissor, canal quarenta e dois. Basta dizer: “Aqui é Vermelho falando. A encomenda já vai ser entregue.” Eu responderei: “Verde falando. Pegaremos a encomenda.” Então, você trata de cair fora. Preciso que esteja em Saint-Etienne antes que Carrington chegue.

— E você estará lá também?

Barry demonstrou surpresa:

— E onde mais eu poderia estar? Olhe, Jack — acrescentou, com um sorriso —, eu era segundo-tenente servindo com os Fuzileiros do Ulster na Coreia, em 1950. Você sabia disso, não é mesmo? Mas vou lhe dizer uma coisa. Quando meus rapazes chegavam no objetivo, eu estava sempre na frente deles.

— Empunhando um elegante bastão?

— Agora você está pensando no Somme — disse Barry, com uma risadinha. — Matei um bocado de maoistas por lá, Jack, o que não deixa de ser irônico, considerando minha posição atual. — Bateu no ombro de Corder e acrescentou: — E agora é melhor você ir andando. Tenha uma noite decente de sono e nada de álcool. É preciso estar com as ideias bem claras para o que você terá de fazer amanhã. — Olhou para o relógio e sorriu: — Corrijo: hoje.

Corder guardou o transmissor.

— Então, boa-noite.

O ruído de seus passos ecoou no enorme armazém, enquanto ele se dirigia para o portão, abria a portinhola e saía. Ainda chovia quando atravessou o pátio ao lado do armazém. O Peugeot estava estacionado perto do portão, as chaves no lugar, como Barry informara. Corder ligou o motor, as palmas das mãos suadas escorregando no volante, o coração batendo mais depressa.

Matar Carrington, um dos políticos mais decentes e humanos! Meu Deus, qual seria o próximo plano daquele bandido?

Mas não. Essa pergunta não precisaria de resposta, pois agora Barry estava definitivamente derrotado. Chegara a sua vez, a oportunidade que Corder estava esperando havia mais de um ano.

Pouco adiante encontrou o que procurava — um pequeno bar na esquina de uma das principais avenidas da cidade. No fundo da sala havia uma cabine telefônica.

Corder pediu café e comprou um punhado de fichas; depois, entrou na cabine e fechou a porta. Sua mão tremia ligeiramente, ao discar o código de Londres, seguido de uma série de algarismos.


O Serviço de Segurança da Grã-Bretanha, denominado Diretoria Geral do Serviço de Segurança — DI5, não existe oficialmente, para efeitos legais, embora ocupe de fato um grande edifício branco e vermelho perto do Hotel Hilton. Era para lá que Jack Corder estava telefonando; mais especificamente para um escritório conhecido como Grupo Quatro, que funcionava 24 horas por dia.

Alguém atendeu e ordenou com voz indiferente:

— Diga quem é.

— Lysander. Preciso falar imediatamente com o Brigadeiro Ferguson. Prioridade Um. Muito urgente.

— Qual o número desse telefone?

Corder pronunciou os algarismos cuidadosamente. A voz informou:

— Se a segurança confirmar, você será chamado.

A ligação foi cortada. Corder abriu a porta e dirigiu-se para o balcão. Havia um homem, trajando terno escuro, sentado a um canto, dormindo de boca aberta. O resto da sala estava vazio.

O garçom trouxe a xícara de café.

— Não quer comer alguma coisa? Talvez um sanduíche de presunto?

— Boa ideia. Estou esperando um telefonema.

O garçom virou-se para o forno e Corder serviu-se de açúcar. Todas as chamadas para a DI5 eram automaticamente gravadas. Naquele momento, o computador devia estar comparando a voz dele, registrada no arquivo, com a gravação da chamada. Ferguson provavelmente estaria em casa, dormindo. Eles telefonariam para ele e lhe transmitiriam a informação. Tudo não demoraria mais de 10 minutos.

Estava enganado. Ainda não se tinham passado cinco minutos e ele acabava de dar a primeira dentada no sanduíche, quando o telefone tocou. Corder correu para a cabine, fechou a porta e atendeu.

— Aqui é Lysander.

— Ferguson. — A voz era amável, um pouco cansada como a de um ator já idoso, representando em uma companhia de segunda classe, que quer ser ouvido pelos espectadores da última fileira do teatro. — Já faz muito tempo, Jack. Prioridade Um foi o que me disseram.

— Frank Barry, sir. Apareceu, afinal.

A voz de Ferguson se animou:

— Bem, isso é muito interessante.

— Lord Carrington, sir. Ele está hoje visitando o Presidente Giscard d'Estaing?

Houve uma ligeira pausa. Por fim, Ferguson alertou:

— Para todos os efeitos, ninguém sabe disso.

— Frank Barry sabe.

— Isso é ruim, Jack. Muito ruim. É melhor você dar detalhes.

Foi o que fez Corder, falando apressadamente em voz baixa. Cinco minutos depois, deixou a cabine e voltou para o balcão.

— Seu sanduíche, monsieur... já deve estar frio. Quer outro?

— É uma boa sugestão. E aceito um conhaque, enquanto espero.

Acendeu um cigarro e sentou-se em uma banqueta, sorrindo pela primeira vez naquela noite.


Em seu apartamento na Cavendish Square, o Brigadeiro Charles Ferguson estava em pé junto à cama, vestindo o robe, enquanto ouvia o gravador que repetia sua conversa com Corder. Era alto, um ar bondoso, já com umas gordurinhas na cintura, cabelos grisalhos e queixo duplo. Não havia qualquer traço militar em sua atitude, e os óculos com lentes de meia-lua, que ele colocara para consultar um pequeno caderno de bolso, davam-lhe um ar de professor primário. Na realidade, ele era implacável como um César Bórgia e totalmente sem escrúpulos, quando se tratava de defender os interesses do país.

Houve uma leve batida na porta e seu criado, um ex-naik gurkha apareceu, amarrando o cinto do roupão.

— Desculpe, Kim, mas temos um trabalhinho — disse Ferguson. — Um bule de chá e presunto com ovos. Não voltarei para a cama.

O pequeno gurkha se retirou e Ferguson se encaminhou para a sala de estar, acendeu a lareira, serviu-se de uma boa dose de conhaque, sentou-se junto ao telefone e discou um número de Paris.


O Serviço Secreto Francês — Service de Documentation Extérieure et de Contre Espionnage, SDECE — é dividido em cinco seções e vários departamentos. A mais interessante é certamente a Seção Cinco, mais comumente conhecida como Serviço de Ação, responsável, mais do que qualquer outra, pelo combate a terroristas. Foi o número do telefone da Seção Cinco que Ferguson discou.

— Ferguson falando, DI5. Ligue-me com o Coronel Guyon, por favor. Sim, eu sei que ele está em casa dormindo. Eu também estava. Estou tentando ganhar tempo. Diga-lhe para me ligar neste número.

Ditou os algarismos rapidamente e recomendou:

— É muito urgente. Prioridade Um.

Colocou o fone no gancho, enquanto Kim entrava com uma bandeja contendo ovos, presunto, pão, manteiga e geleia.

— Excelente — disse Ferguson, sorrindo para o pequeno gurkha que colocava uma mesinha à sua frente. — Desjejum às duas e meia da madrugada é uma bela ideia. Devemos repetir isto mais frequentemente.

Quando colocava o guardanapo em torno do pescoço, o telefone tocou. Atendeu imediatamente: — Ah, é você, Pierre? — disse em francês fluente. — Tenho novidades. Muito desagradáveis, por sinal. Você não vai gostar, mas ouça com atenção.


O armazém estava em completo silêncio, após a partida de Jack Corder. Barry foi até a entrada e correu o ferrolho da portinhola. Parou um instante para acender o cigarro e, ao regressar, um homem saiu da sombra e se encostou ao lado da mesa.

Nikolai Romanov tinha 50 anos, 10 dos quais como adido cultural na Embaixada soviética em Paris. Seu terno escuro levava a etiqueta da Savile Row, bem como o elegante sobretudo azul-marinho. Era um homem muito bonito, a fisionomia um tanto decadente, lembrando Oscar Wilde ou o próprio Nero; uma mecha de cabelos brancos dava-lhe o ar de um ator ilustre, embora ele fosse realmente um coronel da KGB.

— Não tenho muita confiança nesse sujeito, Frank — comentou em excelente inglês.

— Eu não tenho confiança em ninguém — retrucou Barry —, incluindo você, meu velho; entretanto, aparentemente, Jack Corder pode ser tido como um dedicado marxista.

— Oh, céus! — falou Romanov. — Era isso que eu temia.

— Tentou alistar-se no Partido Comunista britânico quando estudava em Oxford, há anos. Sugeriram que alguém como ele seria mais útil conservando a boca fechada e ingressando no Partido Trabalhista... o que ele fez. Durante seis anos foi membro ativo da Trade Union Organiser, depois sujou sua ficha perdendo a cabeça em uma greve de mineiros, há uns quatro anos, e agrediu um policial com uma machadinha, num piquete. O homem ficou seis semanas no hospital.

— E Corder?

— Dois anos de prisão. O sindicato não quis mais nada com ele, depois disso. Esses sujeitos são tão conservadores quanto Margaret Thatcher, quando se lembram de que são ingleses. Quando foi solto, Jack veio para cá e se envolveu com um grupo anarquista da extrema esquerda do Partido Comunista francês e foi então que o alistei. De qualquer modo, por que você se preocupa? Ou será que o Departamento de Desinformação da KGB mudou seus objetivos?

— Não — replicou Romanov. — O caos é ainda nossa meta, Frank, e precisamos torná-lo o maior possível no mundo ocidental. Caos, desordem, temor, incerteza. É para isso que empregamos pessoas como você.

— Não querem pouco, não é mesmo? — disse Barry, zombeteiramente.

Romanov debruçou-se sobre o mapa.

— Isso vai funcionar?

— Ora, vamos, Nikolai. Você não está realmente pensando que vamos matar Carrington em uma estrada francesa! Contraproducente demais; como o Exército Republicano Irlandês, o IRA, assassinando a Rainha. O preço não compensa.

Romanov olhou para Barry com ar surpreso:

— Que manobra você inventou agora?

— Ah, você me conhece. Gosto de planejar. E antes que me esqueça: preciso de dinheiro; nada de cheque. Caos, desordem, temor, incerteza... Farei o melhor para que você não se arrependa do dinheiro que está gastando.

Romanov hesitou, depois tirou do bolso um grosso envelope e o colocou na mesa. Barry apressou-se em guardá-lo na pasta.

— Podemos ir?

Dirigiu-se para o portão e destrancou a portinhola. Uma rajada de vento atirou chuva nos rostos de ambos. Romanov sentiu um calafrio e levantou a gola do sobretudo.

— Quando eu tinha quatorze anos, em 1943, juntei-me a um grupo de guerrilheiros na Ucrânia. Estive com eles por dois anos... Nessa época era mais simples. Lutávamos contra os nazistas, sabíamos onde estávamos. E agora?

— É um mundo diferente — disse Barry.

— E no qual nem você, meu caro, acredita em seu próprio país.

— Irlanda do Norte? — resmungou Barry. — Caí fora dessa confusão já faz tempo. Como disse alguém certa vez, não há nada pior do que um grupo de pessoas ignorantes reclamando com razão. Agora, vamos embora daqui.


As maçãs no pomar da colina junto a Rigny deveriam ter sido colhidas algumas semanas antes; estavam maduras demais e o ar ficara impregnado do cheiro das frutas apodrecendo no inesperado dia de sol quente.

Jack Corder, deitado na grama, um binóculo Zeiss ao alcance da mão, vigiava o castelo que se erguia na base da colina. Era uma construção clássica do século XVIII, com uma escadaria que levava ao pórtico da entrada principal.

Havia quatro automóveis no pátio e pelo menos uma dúzia de policiais ao lado de suas motocicletas, além de gendarmes no portão. Nada muito espetacular. O Presidente era, a esse respeito, como o General de Gaulle, não gostava de confusão.

Durante um tempo, Corder voltou a ser um garoto deitado na grama junto ao Rio Wharfe, perto da ponte, contemplando as ovelhinhas de Yorkshire espalhadas na outra margem. Com 16 anos, tendo a seu lado uma garota de cujo nome nem mais se lembrava, a vida lhe parecia oferecer uma série infinita de possibilidades. Sentiu uma ponta de saudade e tristeza, pois tudo não passara de um sonho até então. Nesse momento, o Presidente da França, Valéry Giscard d'Estaing, apareceu na entrada do castelo, seguido pelo Ministro do Exterior britânico.

Os dois homens se detiveram no alto da escada, flanqueados por seus assistentes, oferecendo um quadro claramente delineado no binóculo de Corder.

— Jesus! — murmurou ele. — Qualquer um, com um fuzil decente, daria cabo facilmente dos dois.

O Presidente apertou a mão do Ministro. Não houve abraços. Não era do estilo dele. Lord Carrington desceu os degraus e embarcou no Citroën preto.

Corder sentiu a garganta ressequida. Ligou o transmissor, pressionou o botão de transmissão, e disse apressadamente: — Vermelho falando, Vermelho falando. A encomenda vai ser entregue.

Um segundo depois ouviu a voz de Barry, fria e pausada:

— Aqui é Verde. Pegaremos a encomenda.

O carro de Carrington começou a se deslocar para a saída, acompanhado dos quatro motociclistas, precisamente como Barry descrevera. Corder pôs-se em pé e correu através do pomar até onde deixara o Peugeot estacionado.

Tinha tempo de sobra para alcançar a estrada principal antes da comitiva, mas tão logo chegou ao asfalto, pisou no acelerador e o Peugeot atingiu logo 100 quilômetros por hora.

As palmas de suas mãos começaram a suar novamente, e a garganta continuava seca. Acendeu um cigarro com uma das mãos. Não sabia o que ia acontecer em Saint-Etienne, esse era o problema. Possivelmente surgiriam policiais de todos os lados, atirando em qualquer coisa que se movesse, incluindo ele mesmo. Entretanto, tinha de prosseguir. Não havia alternativa. Se não o fizesse, Barry, sendo Barry, desconfiaria logo, suspenderia o plano e desapareceria, como já fizera tantas vezes antes.

Agora, já estava perto de Saint-Etienne. Faltavam apenas uns três ou quatro quilômetros quando aconteceu. Ao terminar de fazer uma curva, viu uma motocicleta surgir atrás dele, pilotada por uma figura sinistra, escondida pelo capacete, os grandes óculos de proteção e uma capa escura. O motociclista fez sinal para que Corder encostasse na margem da estrada. Seria essa a solução que Ferguson encontrara para livrá-lo da cena?

O policial parou mais à frente, saltou de sua pesada BMW e baixou o suporte. Depois, caminhou para o Peugeot, com o dedo da mão enluvada no gatilho da metralhadora portátil MAT49, em diagonal no peito. Parou junto a Corder, ameaçador atrás daqueles óculos enormes.

— Uma pequena alteração no plano — disse Frank Barry sorrindo e levantando os óculos. — Vou na frente e você me acompanha.

— Você suspendeu tudo? — perguntou Corder, aturdido.

Barry não escondeu a surpresa:

— Claro que não. Por que faria uma coisa assim?

Voltou para a BMW e retomou a marcha. Corder seguiu atrás dele, completamente perdido, sem saber o que fazer. Por um momento, apalpou o cabo da pistola Walther PPK que levava na cintura. Não que isso lhe trouxesse muito consolo, pois jamais atirara em alguém em toda a sua vida. Era pouco provável que fosse começar agora.

Cerca de um quilômetro antes de Saint-Etienne, Barry enveredou por uma estrada vicinal. Corder o seguiu, até alcançarem a cerca viva de uma pequena fazenda. Sob um grupo de árvores, no alto de uma colina verde, Barry fez sinal para parar, encostou a BMW e esperou que Corder se aproximasse.

— Escute aqui, Frank, o que está havendo?

— Nunca lhe falei da minha avó por parte de mãe, Jack? Sempre que sentia uma terrível dor de cabeça, uma hora depois desabava uma tempestade. Comigo é diferente. Tenho dor de cabeça quando sinto o cheiro de alguma coisa errada; é o que está acontecendo neste momento.

— Não compreendo — disse Corder, procurando falar com voz firme.

— É uma bela vista daqui — comentou Barry, caminhando sob as árvores e apontando Saint-Etienne, que se avistava nitidamente, como um brinquedo de criança. A garagem e o pátio de um lado da estrada; o bar e o estacionamento, do outro.

Barry tirou o binóculo do bolso do casacão e o entregou a Corder.

— Dê uma olhada. Tenho a sensação de que talvez seja mais interessante ver isso de longe.

Corder focalizou o binóculo no pátio em frente à garagem. Dois homens, vestindo macacões amarelos, trabalhavam no motor de um carro. O terceiro, junto a uma bomba de gasolina, conversava com uma moça que empurrava um carrinho de criança, usando um lenço vermelho na cabeça, blusa e saia de lã.

— Algum sinal do carro? — perguntou Barry.

Corder girou o binóculo para examinar a estrada.

— Não, mas vem vindo um caminhão.

— É mesmo? Isso é muito interessante.

O caminhão era do tipo reboque, com oito rodas e fechado com lona verde. Ao entrar no vilarejo, reduziu a marcha e dirigiu-se para o estacionamento. O motorista — um homem alto de macacão caqui — saltou da cabine e encaminhou-se para o bar.

Barry tomou o binóculo das mãos de Corder e focalizou o caminhão.

— Irmãos Bouvier, Transporte de Longa Distância, Paris e Marselha.

— Ele vai embora quando verificar que o bar está fechado — disse Corder.

— Dizem que há elefantes que voam — gracejou Frank Barry —, mas tenho minhas dúvidas.

Ouviu-se nesse momento um repentino matraquear de metralhadoras, partindo de dentro do caminhão e varrendo toda a área, estilhaçando a vitrine do bar, atirando a moça sobre o carrinho, derrubando os dois homens que trabalhavam no carro e arrebentando o tanque de gasolina, que se espalhou pelo chão. Tudo ocorreu em um instante, houve uma centelha, a gasolina se incendiou e o tanque logo explodiu em uma bola de fogo, lançando pedaços de metal para todos os lados. Terminada a destruição, pelo menos 20 policiais uniformizados saltaram do caminhão e correram para a estrada.

— Muito eficiente — comentou Barry, calmamente. — É justo reconhecer que esses canalhas trabalham bem.

Corder passou a língua nervosamente pelos lábios ressequidos e pôs a mão esquerda no bolso do impermeável, à procura da coronha da Walther.

— O que será que houve de errado?

— Um desses bandidos de Marselha deve ter dado com a língua nos dentes. E se a Union Corse souber... Enfim — acrescentou, encolhendo os ombros —, assassinato é uma coisa, delação é outra. Eles informariam sem um segundo de hesitação. Mas é melhor cairmos fora daqui. Vá sempre atrás de mim, como fizemos antes. Ninguém pensará em detê-lo, quando vir que você está sendo escoltado por mim.

Montou na BMW e deu partida. Corder o seguiu imediatamente. Era como um pesadelo e ele ainda conservava na retina, vívida como uma imagem em tela de cinema, o corpo da garota caído sobre o carrinho, atingido pela rajada de metralhadora. E Barry tinha previsto tudo. Previsto, mas ainda assim deixara que aqueles infelizes fossem fuzilados.

Continuou acompanhando a BMW de perto, percorrendo estreitas e mal cuidadas estradas vicinais, com muitas curvas. Não encontraram ninguém e, percorridos uns 15 quilômetros desde Saint-Etienne, pararam em um pequeno posto com bar à margem da estrada. Barry encostou sua moto e saltou. Corder não demorou a se aproximar.

— Conheço este lugar — falou Barry, desafivelando uma bolsa de lona presa na BMW. — Há um banheiro na parte de trás. Vou lá trocar de roupa. Deixamos a moto aqui e seguimos no Peugeot.

Antes que Corder pudesse fazer alguma pergunta, Barry dirigiu-se para os fundos do bar, enquanto uma moça que estava junto à bomba de gasolina se aproximava. Aparentava uns 25 anos, um simpático rosto redondo, usando casacão de homem, grande demais para ela.

— Gasolina, monsieur?

— Há telefone aqui? — perguntou Corder.

— No bar, monsieur, mas a casa está fechada. Não há mais ninguém aqui hoje, além de mim.

— Preciso telefonar. É muito urgente — insistiu Corder, com uma nota de 100 francos na mão. — Dê-me algumas fichas. Guarde o troco.

Ela sacudiu os ombros, abriu a porta do bar e voltou com algumas fichas.

— Vou mostrar onde está o telefone.

O bar era bem pequeno: algumas mesas e cadeiras, um balcão com garrafas de água mineral e cerveja, uma fileira de copos, uma porta que evidentemente conduzia à cozinha.

O telefone estava pregado na parede, uma lista telefônica pendurada ao lado.

— Bem — disse a moça — já que estou aqui, vou esquentar um café, aceita?

— Ótimo.

Ela desapareceu pela porta da cozinha e Corder rapidamente consultou a lista telefônica, procurando o número do distrito para fazer a ligação internacional. Seus dedos tremiam, ao discar o código de Londres, depois o da DI5.

Nem teve tempo de rezar. A chamada foi atendida imediatamente e uma voz feminina, a telefonista de dia, ordenou: — Identifique-se.

— Lysander. Mantenha a ligação, por favor. Preciso falar com o Brigadeiro Ferguson imediatamente. Prioridade total.

A voz de Ferguson entrou logo na linha, como se ele estivesse na escuta.

— Jack, o que houve?

— Não deu certo. Barry desconfiou. Ele e eu ficamos de fora. O restante do grupo foi fuzilado.

— E vocês conseguiram se afastar sem problemas?

— Sim.

— Barry não suspeita de você?

— Não. Ele acha que foi um daqueles bandidos de Marselha que vendeu a informação.


Na cozinha, Frank Barry, escutando na extensão, sorriu sarcasticamente. A moça estava estendida a seus pés, o sangue escorrendo de um profundo corte na testa, onde ele a golpeara com a pistola. Deixou o fone fora do gancho, tirou o silenciador do bolso e o prendeu ao cano da pistola; depois, dirigiu-se ao bar.

Corder ainda estava falando em voz baixa e apressada.

— Não, não tenho ideia do que posso ainda saber; esse é o problema.

— Jack! — disse Barry em tom suave, atrás dele. Quando Corder quis se virar, Barry o atingiu duas vezes, bem no coração, jogando-o para trás, contra a parede, e ele escorregou lentamente até o chão.

O fone ficara pendurado pelo fio. Barry o pegou:

— É você, Ferguson? Fala Frank Barry. Como vai, meu velho? Olhe, se quiser Corder de volta, mande um caixão para o Café Rosco, em Saint-Julien.

— Seu filho da mãe! — praguejou Charles Ferguson.

— Já me disseram isso antes.

Barry recolocou o fone no gancho e saiu, assobiando calmamente, enquanto desatarraxava o silenciador. Recolocou a pistola no coldre, montou na BMW e partiu.


2

 

 

Chovia muito na manhã seguinte, quando o automóvel de Ferguson parou em frente ao nº 10 da Downing Street. Faltavam 10 minutos para sua entrevista às 11 horas com a Primeira-Ministra. O motorista retomou a marcha imediatamente, e Ferguson atravessou a calçada apressadamente. A despeito da chuva, havia a costumeira aglomeração de turistas no outro lado da rua, conservados à distância por um par de policiais. Um terceiro se mantinha em pé, junto à porta, proteção simbólica do mais conhecido endereço da Inglaterra, sede do poder político e residência da Primeira-Ministra. Entretanto, Ferguson bem sabia que aquela proteção não era a única. Havia outras, menos evidentes, dispostas em locais estratégicos, prontas a entrar em ação ao menor sinal de anormalidade.

O policial fez continência e a porta se abriu, antes mesmo de Ferguson alcançá-la. Ele entrou.

Um jovem oficial de gabinete o recebeu.

— Brigadeiro Ferguson, por aqui, por favor.

Ao atravessar o saguão de entrada e o corredor que conduzia à parte de trás do edifício e ao Gabinete, ele ouviu os sinais de atividade, vindos da Sala de Imprensa, à direita do corredor.

A escada principal conduzindo ao primeiro andar estava ornamentada com retratos de antigos primeiros-ministros: Peel, Wellington, Disraeli, Gladstone. Ferguson sempre sentia uma aguda sensação de história ao subir aqueles degraus, embora fosse esta a primeira vez que o fazia para ser recebido pela atual Primeira-Ministra. Teria agora de prestar contas a uma mulher, por sinal uma mulher terrivelmente inteligente. Era sem dúvida uma nova experiência. Mas seria alguma novidade?

Quantas foram as tentativas de assassinato da Rainha Vitória? Disraeli e Gladstone não estiveram, por mais de uma vez, às voltas com fenianos, dinamitadores e anarquistas?

Ao fim do corredor, o jovem bateu discretamente em uma porta, abriu-a e fez sinal a Ferguson para que entrasse.

— Brigadeiro Ferguson, Primeira-Ministra — anunciou ele, retirando-se e fechando a porta atrás de si.

A sala pareceu a Ferguson agora mais elegante, com as paredes pintadas de verde-claro, cortinas douradas e móveis confortáveis, de indiscutível bom gosto. Nada, porém, era mais elegante em toda a sala do que a mulher sentada atrás da escrivaninha. O vestido azul, com um laço branco no pescoço, combinava perfeitamente com a cabeleira loura. Realmente uma mulher bonita, bem vestida; mas os olhos, quando se levantaram do documento que ela estava lendo e se fixaram em Ferguson, eram duros e perspicazes.

— Recebi esta manhã do Presidente da França o compromisso de que todo aquele infeliz incidente será mantido em absoluto segredo. Simplesmente não aconteceu. Entendido?

— Perfeitamente, madam.

Ela baixou os olhos para o papel à sua frente.

— Esse seu agente, Corder. Se não fosse por ele... — Indicou uma cadeira para Ferguson e pediu: — Fale-me dele.

— Recrutamos Jack Corder deve fazer uns doze anos, quando ele ainda estudava em Balliol. O caminho que ele escolheu foi se dedicar inteiramente à extrema esquerda. Tenho ouvido falar muito de agentes nossos que trabalham para os russos. Jack pertencia à outra face da moeda. Por duas vezes cumpriu sentenças de prisão, pelo exercício de atividades subversivas. Depois disso, resolvi transferi-lo para o setor terrorista europeu. Frank Barry era seu alvo mais importante.

— O Diretor-Geral da DI5 já me havia falado disso. Contou-me que por volta de 1972 um antecessor meu autorizou a criação na DI5 de uma seção conhecida como Grupo Quatro, com poderes outorgados diretamente pelo Primeiro-Ministro, para coordenar as ações em casos de terrorismo, subversão e semelhantes.

— Exato, Primeira-Ministra.

— E você é o chefe, Brigadeiro?

— Sim, madam.

Houve uma longa pausa, enquanto ela fitava o papel, pensativamente. Ferguson limpou a garganta e falou: — É claro que, se preferir fazer alguma alteração, estou pronto a renunciar imediatamente.

— Se eu pretendesse substituí-lo, Brigadeiro — replicou ela, rispidamente —, teria assinado logo sua exoneração. Mas não espere que eu tenha muita confiança nas atividades de sua seção, quando um dos principais ministros da Coroa esteve prestes a ser assassinado. Agora, fale sobre esse tal de Barry. Por que ele é tão importante e, sobretudo, por que consegue ser tão ardiloso?

— Um maníaco brilhante, madam. Genial à sua maneira. Tão importante no cenário terrorista internacional como Carlos, embora quase desconhecido do público.

— E por que isso acontece?

— Uma questão de psicologia pessoal. Muitos terroristas... veja, por exemplo, o grupo Baader-Meinhoff: alguns têm um desejo ardente de publicidade. Querem não apenas que o povo saiba quem são eles, mas também que podem iludir a polícia e os serviços de informação sempre que quiserem. Barry não parece necessitar desse tipo de publicidade e, como convém a nós não divulgar seus feitos, ele tem permanecido até agora completamente ignorado, pelo menos pelo público.

— O que se sabe de seus antecedentes?

— Receio que, do ponto de vista do sensacionalismo, o quadro seja o mesmo. Nasceu na Irlanda do Norte. Serviu como segundo-tenente nos Fuzileiros do Ulster. Lutou na Coreia. Excelente conduta em combate, devo dizer. É protestante. Tem um tio, Lord Strarriore, que é Par do Reino e andou muito envolvido na política de Orange a maior parte da vida, mas agora está com a saúde muito abalada. Barry é seu herdeiro.

— Santo Deus! — comentou a Primeira-Ministra.

— No início das manifestações irlandesas, Barry se declarou republicano. Como de costume, trabalhou à sua moda. Organizou um grupo chamado Filhos de Erin, que nos criou tremendos problemas na província. Totalmente repudiado pelo Exército Republicano Irlandês. Em 1972, quando foi criado o Grupo Quatro, consegui introduzir nos Filhos de Erin um agente nosso, o Major Vaughan. O desfecho desta pequena aventura foi Barry ficar seriamente ferido. Conseguiu se salvar graças à competência dos cirurgiões da Ala Militar do Hospital Musgrave Park, em Belfast.

— E o que aconteceu depois?

— O homem fugiu, madam. De acordo com o depoimento dos médicos, ele não estava sequer em condições de caminhar, mas atravessou todo o hospital disfarçado de carregador. Conseguiu chegar a Dublin vinte e quatro horas depois. Lá, naturalmente, não podíamos agarrá-lo. Esteve em vários hospitais, na Irlanda e na Suíça, por mais de um ano.

— E então?

— A partir daí, contando os casos em que temos certeza e os de que apenas suspeitamos, ele foi responsável por quinze assassinatos, pelo menos, e numerosos incidentes provocados por bomba. Seu modo de agir é característico e inconfundível; as implicações políticas parecem não entrar em suas cogitações. Um resumo de suas atividades durante estes últimos anos explicará melhor o que quero dizer. Em 1973, ele assassinou o general que chefiava o Serviço de Informações espanhol no território basco. A responsabilidade foi atribuída ao Movimento Nacionalista Basco, o ETA.

— Continue.

— Foi também responsável pela morte do General Hans Grosch, por ocasião de uma visita a Munique em 1975, fonte de sério embaraço para o Governo da Alemanha Ocidental. Grosch exercia funções semelhantes às minhas no Ministério da Segurança Nacional da Alemanha Oriental. Assim, como pode ver, Barry ora mata um fascista, ora um comunista.

— Disse que ele não tem filiação política?

— Nenhuma — replicou Ferguson, tirando do bolso uma folha de papel e colocando-a na mesa. — Aí está uma relação de casos em que, a nosso ver, ele se envolveu. Como é fácil verificar, suas vítimas pertencem a todos os setores do cenário político.

A Primeira-Ministra passou os olhos pela relação e franziu a testa.

— Quer dizer que ele trabalha para quem quer que o contrate?

— Não, madam. Acho que seu caso é mais sutil. Tudo o que ele faz obedece a um modelo, na medida em que provoca o máximo dano sempre que tem êxito. Por exemplo: ele assassinou um diplomata espanhol que visitava Paris em 1977... um fascista. O Governo francês teve de reagir e em vinte e quatro horas todos os agitadores esquerdistas de Paris estavam nas garras da polícia. Não apenas os comunistas, mas também os socialistas. O Partido Socialista não gostou, o que quer dizer que os sindicatos também não gostaram. Resultado: agitação de trabalhadores, greves, quebra-quebra.

Ela fez uma pausa na leitura da relação, já quase no fim da página, e levantou os olhos, enrugando a testa: — Menciona aqui um possível envolvimento no assassinato de Mountbatten?

— Temos sérias razões para acreditar que ele foi consultado.

— Isso não faz sentido — disse ela, sacudindo a cabeça.

— Talvez faça, se se considerarem suas conhecidas ligações com a KGB. Acredito que a maioria dos incidentes pelos quais ele foi responsável tem origem na KGB, até os assassinatos de supostos amigos, com a única finalidade de provocar a máxima confusão possível no Ocidente.

— Mas Barry não é marxista?

— Frank Barry, madam, não é filiado a coisa alguma. Sim, ele recebe seu dinheiro, sem dúvida, mas trabalha pela volúpia de fazer o mal. Creio que os psiquiatras têm alguns termos complicados para descrever suas condições mentais. Psicopata seria um deles, mas não estou muito interessado nisso. Quero apenas vê-lo morto.

A Primeira-Ministra restituiu o papel que acabara de ler.

— Então vá em frente, Brigadeiro.

Ferguson guardou o documento, enquanto ela apertava um botão de campainha.

— Alguma instrução, madam?

— Seu departamento tem competência... autoridade total outorgada por meu gabinete, segundo parece. Use-a, sir. Não vou lhe dizer como deve cumprir sua missão, tem capacidade suficiente para isso. Li sua ficha. A única coisa que posso acrescentar é que, obviamente, deve deixar tudo de lado e concentrar-se em Barry.

— Muito bem, Primeira-Ministra — disse Ferguson, levantando-se.

A porta se abriu atrás dele e o jovem secretário apareceu. A Primeira-Ministra voltou ao trabalho, enquanto Ferguson era acompanhado para a saída.


Normalmente, Ferguson preferia trabalhar em seu apartamento na Cavendish Square. Estava sentado em frente à lareira, tomando chá com torradas, quando Kim apareceu na porta e anunciou Harry Fox.

— Ah, já chegou! Conseguiu o que pedi?

— Sim, sir, tudo o que existe nos arquivos sobre Frank Barry.

Fox, aparentando uns 30 anos, era um homem elegante, usando a gravata dos Guardas Reais, o que não era nada demais para quem, até dois anos antes, servira como capitão do regimento. A luva de couro que usava permanentemente na mão esquerda escondia o fato de que perdera a original na explosão de uma bomba, quando prestava serviço em Belfast pela terceira vez. Já fazia um ano que assumira as funções de assistente de Ferguson.

— O que estamos realmente procurando, sir?

— Nem sei bem, Harry. Jack Corder foi o terceiro homem que escalei contra Frank Barry, e dois desses três acabaram assassinados. Temos de recomeçar com alguma coisa diferente, é tudo o que sei.

— Tem razão, sir. É preciso um ladrão para roubar outro ladrão, como se costuma dizer.

Ferguson parou um instante, preocupado em tirar uma torrada da grelha: — O que foi que você disse?

— Jack Grand, do Grupo Especial, estava me dizendo outro dia que eles puseram um de seus homens na Prisão Parkhurst, fingindo-se de condenado. Em menos de dois dias, o homem foi agredido e gravemente ferido. Parece que realmente a maioria dos bandidos é capaz de identificar um tira a cem metros de distância. Frank Barry é desse tipo, pode estar certo. Ele sentirá o cheiro do perigo em qualquer um que tentemos infiltrar no raio de ação dele.

— Talvez você tenha razão. Comece a ler esses arquivos em voz alta, por favor.

Trabalharam durante seis horas, apenas interrompidos por Kim que, de vez em quando, entrava trazendo mais chá e café. Já escurecera quando Ferguson se levantou, espreguiçou-se e caminhou até a janela.

— Gostaria de saber onde esse filho da mãe está agora.

— As fotos que temos dele são um pouco antigas — falou Fox. — Nada desde 1972. A mais recente parece ser de uma matéria do Paris-Match, escrito por uma jornalista em 1971. Quem são os outros dois com ele? Devlin, não é? Liam Devlin e Martin Brosnan.

Ferguson atravessou a sala com uma rapidez surpreendente para um homem de seu tamanho e examinou os recortes.

— Santo Deus! Liam Devlin e Brosnan! Tinha me esquecido de que eles, tempos atrás, tiveram atividades com Barry.

— Mas o que eles fizeram, sir?

— Ora, alguns atos anacrônicos, característicos dos dias iniciais do movimento irlandês. Anteriores à fase dos atentados a bomba e das carnificinas. O tipo de homens que pensam estar ainda em 1921, com Michael Collins carregando a Bandeira da Irlanda. Guerrilhas heroicas contra o poderio do Império britânico, colunas volantes, ações noturnas.

— Acho que vi um filme assim no cinema.

— Havia um homem chamado Sean McEoin, líder de uma coluna volante, que mais tarde chegou a general no Exército do Estado Livre. Em 1921, ele foi cercado em uma cabana perto da vila onde morava. Havia mulheres e crianças na cabana, de modo que McEoin resolveu sair, um revólver em cada mão, furando o cerco. Devlin e Brosnan pertencem a essa mesma categoria de malucos.

— Felizmente nunca topei com gente assim em meus períodos de serviço no Ulster — comentou Fox, visivelmente satisfeito.

— Mas é bom não esquecer que os homens do IRA, como os do Exército britânico ou de qualquer outra instituição, são seres humanos das mais variadas espécies. Vamos fazer uma pausa. Preciso pensar neste assunto por algum tempo.

Fox saiu. Ferguson se serviu de conhaque e caminhou até a janela, olhando a praça e pensando, com pesar, em Jack Corder e nos outros que ele tinha escalado contra Barry.

— Em algum lugar — murmurou, com raiva — esse filho da mãe ainda está rindo de mim.


Naquele mesmo momento, Barry estava fazendo a mesma coisa que Ferguson: encostado a uma janela, com um bojudo copo de conhaque na mão. No seu caso, o apartamento era em Paris e a vista, a do Sena. Houve uma discreta batida na porta e, pelo visor, ele reconheceu Romanov.

— Tudo bem? — perguntou Barry, abrindo a porta para o russo.

— Muita atividade na Seção Cinco, Frank. Eles sabem que você estava metido na operação, de modo que estão virando pedra por pedra a sua procura, com toda a assistência do Serviço de Informações britânico neste caso, é bom acrescentar. Seu amigo, o Brigadeiro Ferguson, e Pierre Guyon, da Seção Cinco, são íntimos.

— Bem, isso é novidade. Não sabia que a DI5 e o Serviço de Informações francês estivessem trabalhando em íntima colaboração. Como você pode ter certeza de que Ferguson e Guyon são tão velhos amigos? Há algum informante seu no departamento de Guyon?

— Tudo é possível — respondeu Romanov.

Barry estava surpreso e não o escondeu:

— Você está brincando. Pensei que o Serviço de Informações britânico tinha se livrado de todos os espiões. O homem que você tem certamente não me ajudou em nada. Veja o caso de Corder, tive que descobrir por mim mesmo.

— Para ser franco, no momento estamos recebendo apenas informações periféricas, mas esperamos melhorar em breve.

— Não conseguirão nada. É de se esperar que a DI5 verifique as credenciais de seus empregados até o momento em que nasceram.

— Talvez eles o façam, Frank, mas neste caso não vai adiantar muito.

— Tomara que sim. Pelo menos não restará ninguém que ponha as mãos em mim, exceto naturalmente você, meu velho.

O sorriso de Romanov era forçado:

— Considerando tudo, acho que seria conveniente se você desaparecesse por uns tempos.

— E para onde você sugere que eu vá?

— Inglaterra.

Barry deu uma risada:

— Bem, não deixa de ser uma ideia original. O último lugar que eles poderiam imaginar. Você tem alguma preferência especial?

— Lake District.

— Dizem que é um local encantador nesta época do ano — comentou Barry, servindo-se novamente de conhaque. — Está bem, Nikolai, vamos ao trabalho.

O russo abriu a pasta e tirou uma coleção de mapas:

— É terrivelmente simples. A balança do poder, quanto a forças terrestres na Europa, é francamente favorável a nós, principalmente porque somos capazes de apresentar para a luta quatro mil tanques a mais do que as forças da OTAN.

— E então?

— A Alemanha Ocidental surge com uma nova arma verdadeiramente brilhante. Suficientemente leve para ser levada por qualquer pelotão de infantaria. Quando dispara, a arma expele doze foguetes simultaneamente. São como mísseis em miniatura. Orientados pelo calor, naturalmente. Qualquer um desses foguetes é capaz de dar cabo do maior de nossos tanques.

— Jesus! — exclamou Barry. — Não se entende como essa gente perdeu a guerra. O que será que vão inventar agora?

— Fizemos o possível para nos apossar de um exemplar, mas, até agora, nada conseguimos. Precisamos disso, Frank.

— Entendo, mas onde eu entro na história?

Romanov começou a desdobrar os mapas:

— Tive hoje uma informação muito interessante. Os alemães pretendem, na próxima quinta-feira, fazer uma demonstração dessa arma aos britânicos e outros aliados no Campo de Provas de Foguetes do Exército, perto de Wastwater, Lake District. Um oficial e seis soldados. Há uma base da RAF desativada em Brisingham, trinta quilômetros apenas do Campo de Provas. Eles pousarão lá, fazendo o resto do percurso de caminhão.

— Interessante. — disse Barry, estendendo um mapa em cima da mesa.

— Frank, consiga isso para mim e terá meio milhão.

Barry pareceu não ter ouvido:

— Precisaria de apoio em terra, alguém de confiança, capaz de se encarregar de detalhes na área. De preferência, um escroque consumado. O pessoal de vocês em Londres pode arranjar um?

— Sem dúvida, Frank.

— E mais mapas. Mapas da Inspetoria de Material Bélico britânica. Quero ficar conhecendo a região como a palma da minha mão.

— Mando entregar amanhã de manhã.

— Esta noite. Preciso também de passaportes falsos. Um inglês, um francês e um americano, apenas para variar um pouco. Deixo a critério dos técnicos de vocês os detalhes de como sou.

— Está bem — falou Romanov.

— E tirem o SDECE de cima de mim. Informem que fui visto na Turquia ou que viajei para a Argentina.

Desde o escândalo do Sapphire, a rede de informações da maioria dos países do Ocidente passou a ter muitas reservas com o Serviço de Informações francês, suspeitando de que estivesse infiltrado de agentes da KGB, o que certamente era verdade, justificando a prontidão com que Romanov aceitou os pedidos de Barry.

— Mais uma coisa — lembrou Barry, quando Romanov já se dirigia para a porta. — Um depósito no banco, em nome de minha identidade inglesa. Cinquenta mil libras como capital de giro. E — acrescentou com um sorriso — o serviço vai custar um milhão, Nikolai. Nem um centavo a menos que um milhão.

Romanov sacudiu os ombros:

— Frank, consiga o exemplar para nós e fixe o preço que quiser. Prometo.

Despediu-se, e Barry fechou a porta, passando a corrente. Depois, voltou para a mesa, sentou-se em frente aos mapas e começou a pensar em seu problema.


Em Londres, Harry Fox estava prestes a entrar no chuveiro quando o telefone tocou. Soltando uma praga, enrolou uma toalha na cintura e foi atender.

— Harry? Ferguson falando. Você se lembra do que me disse de arranjar um ladrão para roubar outro ladrão? Isso me deu uma boa ideia. Vá ao escritório e me traga a ficha de Martin Brosnan. Aproveite e traga também a de Devlin.

Fox olhou para o relógio:

— Quer para amanhã de manhã?

— Quero agora, ora essa!

Ferguson desligou abruptamente, Fox colocou o fone no lugar e voltou a consultar o relógio. Eram pouco mais de duas da madrugada. Deu um suspiro, voltou para o banheiro e começou a se vestir.


3

 

 

— Martin Aodh Brosnan — disse Ferguson. — O Aodh é a forma gálica de Hugo, nome do avô materno, um líder muito respeitado em Dublin no seu tempo, se você estiver interessado.

A lareira estava acesa. Eram quatro da manhã, e Harry Fox se sentia inexplicavelmente excitado. Apenas a mão lhe doía um pouco, como se ainda estivesse no lugar. Isso sempre acontecia quando ele se excitava.

— De acordo com a ficha, o homem nasceu em Boston, sir, em 1945, filho de pais de origem irlandesa. Seu trisavô emigrou de Kerry durante a grande fome. Meteu-se em negócios de transporte marítimo e a família fez fortuna durante a segunda metade do século XIX. Nunca mais pensaram em voltar. Petróleo, construções, fábricas de produtos químicos — uma porção de coisas. E elevada representação social. — Fox levantou os olhos: — Protestante! Isso é surpreendente.

— Por quê? — perguntou Ferguson. — Antigamente havia na América muita prevenção contra os católicos. Provavelmente algum ancestral mudou de lado. Ele não será o primeiro protestante a querer uma Irlanda unida. O que me diz de Wolfe Tone? Ele deu início a tudo. E o homem que quase conseguiu ganhar a parada com o Governo britânico no seu tempo, Charles Stuart Parnell, foi outro.

— Conforme consta aqui, a mãe de Brosnan é católica.

— Inflexivelmente. Missa quatro vezes por semana. Nascida em Dublin. Conheceu o marido quando era estudante na Universidade de Boston. Ele morreu há alguns anos. Ela dirige o império da família com mão de ferro. Acredito que a única pessoa que ela nunca conseguiu dominar foi o filho.

— Parece que ele fez tudo certinho. Bom aluno, bem comportado, Andover, diploma de literatura inglesa em Princeton.

— Mestrado — corrigiu Ferguson.

— Como disse, sir?

— Aperfeiçoou-se em inglês, fez mestrado, como dizem nossos amigos americanos.

Fox sacudiu os ombros e voltou à ficha:

— Em 1966, apresentou-se como voluntário para lutar no Vietnã. Paraquedista e Serviços Especiais. E como sargento, sir, o que é um detalhe surpreendente.

— Tem razão, Harry. Esse é um ponto bem interessante.

Ferguson se serviu novamente de chá.

— Vietnã nunca foi uma causa popular na América. Se o convocado estivesse na faculdade, podia evitar a apresentação e era exatamente isso o que faziam quase todos os jovens nas condições de Brosnan. Ele podia ter evitado facilmente a convocação, permanecendo na universidade e fazendo o doutorado. Não quis. Qual é a palavra que se usa hoje, Harry? Machão? Talvez fosse isso, achando-se menos homem por não se apresentar antes. Afinal, o importante é que ele seguiu.

— E não foi em vão — comentou Fox, dando um assobio. — Cruz de Serviços Distintos, Estrela de Prata com Folhas de Carvalho, Cruz de Heroísmo Vietnamita. E mais esta: Legião de Honra. O que os franceses tiveram com isso?

Ferguson levantou-se e foi até a janela:

— Um detalhe interessante. Seu último gesto quixotesco. Salvou o pescoço de uma fotógrafa, uma correspondente de guerra francesa... uma mulher, veja você, chamada Anne-Marie Audin. Caíra em uma emboscada. Ela contou a história naquela Paris-Match, lembra? Na imagem apareciam Brosnan, Liam Devlin e Frank Barry. A ilustre senhorita tirou fotos deles, entre outros. Escreveu a mesma história para a revista Life e ganhou o Prêmio Pulitzer. Um relato dos bastidores da luta irlandesa. Muito apreciado em Boston.

Fox continuou a retirar fichas do arquivo.

— Mas, por que diabos Brosnan passou do Vietnã para o Exército Republicano Irlandês?

— Totalmente ilógico mas terrivelmente simples — disse Ferguson, retornando para perto da lareira. — Farei um resumo para você, a fim de poupar seu tempo. Ao deixar o Exército, Brosnan foi para o Trinity College, em Dublin, fazer seu doutorado, como já mencionei. Em agosto de 1969, estava visitando um velho tio católico, irmão da mãe, vigário de uma igreja na Falls Road, em Belfast... Quando foi que você esteve naquela linda cidade, Harry?

— Em 1976, sir.

— Pois desde então aconteceu tanta coisa, tanta água correu por baixo da ponte que os primeiros anos sangrentos da revolução devem parecer história antiga para gente como você. Quantos nomes e rostos... — Deu um suspiro saudoso, sentou-se e continuou: — Por ocasião da visita de Brosnan, grupos Orange deram início à violência, orientados pelos chamados Especiais B, uma organização hoje extinta, felizmente. Incendiaram a igreja do tio de Brosnan e bateram tanto no velho que ele perdeu um olho.

— Entendo — disse Fox, gravemente.

— Não, Harry, não entende. Tive certa vez um agente chamado Vaughan... Major Simon Vaughan. Já não trabalha mais para mim, mas essa é outra história. Ele realmente entendeu, pois, como Brosnan, a mãe era irlandesa. Olhe, o IRA tem também sua quota de assassinos e incendiários, muitos homens como Frank Barry, talvez, mas atrai também seus Liam Devlins, seus Martin Brosnans, idealistas genuínos, segundo a tradição de Pearse, Connolly e Michael Collins. Quer você concorde ou não, são homens que acreditam piamente que lutam porque está em jogo nada menos do que a liberdade de sua pátria.

Fox ergueu a mão enluvada.

— Desculpe, sir, mas vi tantas vezes mulheres e crianças aos gritos, fugindo de explosões de bombas, que não posso acreditar nesse tipo de patriotismo.

— Exatamente. Homens como Devlin e Brosnan querem lutar com as mãos limpas e um objetivo honroso. A tragédia deles é que esse tipo de guerra não existe mais.

Levantou-se novamente e ficou caminhando pela sala, inquieto.

— Veja, não posso culpar Brosnan pelo que aconteceu em Belfast naquela noite, em agosto de 1969. Um grupo de republicanos, não mais do que seis liderados por Liam Devlin, saiu para a rua. Tinham três fuzis, dois revólveres e uma antiquada submetralhadora Thompson. Brosnan estava na igreja atacada. Quando um dos homens de Devlin foi morto, Brosnan pegou o fuzil instintivamente. Era, sem comparação, o combatente de maior experiência entre todos. A partir daí abraçou a causa revolucionária irlandesa e tornou-se braço direito de Devlin no período em que ele foi Chefe do Estado-Maior no Ulster.

— E depois?

— Nos primeiros dois ou três anos, tudo correu bem. Homens como Devlin e Brosnan eram capazes de conduzir o velho tipo de guerrilha que encantaria Michael Collins. Nada de bombas; esse tipo de método era para homens como Frank Barry. Respeitar o Exército era a solução que Devlin adotara, procurando conquistar a simpatia mundial para a causa. Por falar nisso, o que você faria se fosse o comandante das forças que ocupavam a Irlanda do Norte e, ao entrar em seu escritório numa bela manhã encontrasse uma rosa em sua mesa?

— Santo Deus!

— Pois é. Brosnan adorava esses gestos quixotescos e temerários. A rosa era uma brincadeira em seu nome pessoal, naturalmente. Não fez isso apenas com o comandante da guarnição, mas também com o Primeiro-Ministro do Ulster e com o Secretário de Estado da Irlanda do Norte. As implicações eram suficientemente claras.

— Ele poderia tê-los matado e não o fez.

— Exatamente. Era a rosa de Brosnan — comentou Ferguson, com um sorriso. — Tivemos que esconder isso dos jornais, embora eles talvez nem acreditassem que fosse verdade. Quem acreditaria?

— E o que aconteceu depois?

— Mudou tudo, não foi? Uma escalada da pior espécie de terrorismo, os lançadores de bombas ganhando ascendência no movimento. Devlin passou a Chefe do Serviço de Informações em Dublin. Brosnan trabalhou com ele, como uma espécie de assistente itinerante.

Manuseando as fichas, Fox comentou:

— Diz aqui que ele adotou a nacionalidade irlandesa. Como foi isso?

— Bem... O Governo americano não estava naturalmente satisfeito com as atividades dele. Então, em 1974, Devlin o mandou a Nova York, a fim de dar cabo de um informante que as autoridades na Irlanda haviam ajudado se refugiar na América, depois que vendera informações que permitiram a prisão de quase todos os membros da Brigada Norte de Belfast. Brosnan cumpriu sua missão com a costumeira eficiência implacável e conseguiu escapar de Nova York, Deus sabe como. Quando o Departamento de Estado americano tentou sua extradição, ele alegou ser cidadão irlandês... o que a lei local lhe facultava, em razão de ser filho de irlandesa. Para seu governo, Harry, posso fazer o mesmo. Minha avó nasceu em Cork.

Fox continuou a consultar as fichas.

— E foi então que aconteceu o caso francês.

— Exatamente. Devlin o enviou à França em 1975, para negociar um embarque de armas. O intermediário na transação era um informante da polícia. Quando Brosnan chegou a uma vila de pescadores na costa da Bretanha, um destacamento policial o esperava. Na luta que se seguiu, ele feriu dois, matou um e foi condenado à prisão perpétua em Belle Isle.

— Belle Isle?

— Os franceses não têm mais a Ilha do Diabo, Harry. Agora, é a Belle Isle. No Mediterrâneo, naturalmente, que soa mais agradável, embora não seja.

— Tudo bem, sir — disse Fox, fechando a pasta. — Mas aonde nos leva tudo isso?

— Arranje um ladrão para roubar um ladrão. Foi você quem disse isso.

Fox olhou espantado para o chefe.

— Mas ele está na prisão, como acabou de contar.

— Nos últimos quatro anos. Mas o que acha de fazermos alguma coisa em seu favor?

A campainha do interfone soou e Ferguson atendeu, ouviu a informação e acenou com a cabeça.

— Está bem. Diga que já estamos descendo. — Voltou-se para Fox: — Está na hora, Harry. Pegue seu sobretudo e vamos andando. Não temos muito tempo.

Quando se dirigia para a porta, Fox perguntou:

— Com o devido respeito, sir, para onde vamos?

— Para Hereford, Harry. Quartel-General do 22° Special Air Service, para ser preciso. Explico melhor na viagem — acrescentou Ferguson, abrindo a porta e enfrentando o vento forte que soprava.

Estava muito frio na rua, a chuva se refletindo no asfalto negro. Quando o grande Bentley arrancou, Harry Fox encostou-se no banco e abotoou seu velho casacão de cavalaria, usando apenas a mão válida. Tantas coisas lhe vinham à mente, aprendera tanto a respeito de Brosnan, que não lhe saía da cabeça a imagem daquele homem que ele nem conhecia, mas que já lhe era tão íntimo quanto um irmão. Cerrou os olhos e se deixou ficar imaginando o que ele estaria fazendo naquele momento.


Belle Isle é um rochedo situado 60 quilômetros a leste de Marselha e a uns quinze da costa. A fortaleza, um anacronismo do século XVIII, parece um prolongamento das próprias rochas, constituindo uma das mais desoladas vistas de todo o Mediterrâneo. Além da fortaleza e das rochas, há cerca de 600 prisioneiros, desde condenados políticos a criminosos da pior espécie. A maioria cumpre prisão perpétua e as autoridades francesas levam a sentença a sério, de modo que quase todos morrem lá. Uma coisa é certa: ninguém jamais fugiu de Belle Isle.

As razões são simples. Nenhum navio pode se aproximar mais de quatro milhas e a área em torno da ilha é severamente vigiada por uma excelente rede de radar. Além disso, Belle Isle conta com um sistema de proteção altamente eficaz, fornecido pela própria natureza: um fenômeno conhecido pelos pescadores locais como a Roda do Moinho, por ser uma correnteza violenta, de dez nós, que cobre a água de uma espuma branca, mesmo nos dias mais calmos. Quando há tempestade, toda a área é um verdadeiro inferno.

Martin Brosnan estava deitado em sua cela, no beliche superior, lendo, a cabeça apoiada em um braço. Nu da cintura para cima, seu corpo forte e musculoso se enrijecera com o trabalho na pedreira. Apareciam as feias cicatrizes de dois antigos ferimentos de bala no lado esquerdo do peito. O cabelo negro lhe chegava até os ombros. Nesses assuntos as autoridades eram surpreendentemente complacentes, como comprovavam os livros acima do beliche.

O homem embaixo lhe atirou um maço de cigarros:

— Fume um, Martin — disse em francês.

Aparentava uns 65 anos, com uma cabeleira completamente branca e olhos de um azul intenso, destacando-se no rosto enrugado e simpático. Chamava-se Jacques Savary, membro da Union Corse e, no seu tempo, um dos mais famosos gângsteres de Marselha. Vinha cumprindo pena em Belle Isle desde 1965 e lá ficaria até morrer, caso raro para prisioneiros com suas credenciais, pois normalmente a Union Corse, o maior e mais bem organizado sindicato de criminosos da França, conseguia exercer sua formidável influência sobre o Judiciário.

O caso de Savary, porém, era diferente. Ele decidira aliar-se à causa dos colonialistas da OAS. Dizia-se que Charles de Gaulle sobrevivera a pelo menos 30 tentativas contra sua vida, mas nunca esteve tão perto da morte como durante o ataque planejado por Jacques Savary, em março de 1965. A Union conseguira pelo menos salvá-lo da execução, trocando-a pela prisão perpétua em Belle Isle, erradamente supondo que sua libertação poderia ser conseguida posteriormente.

A chuva batia na janela e o vento uivava.

— O que você está lendo? — perguntou Savary.

— Eliot. Ouça isto: “O que nós chamamos de começo é muitas vezes o fim e, para alcançar-se o fim, é preciso haver um começo. O fim depende de onde partimos.”

— Os Quatro Quartetos. “Little Gidding” — disse Savary.

— Bom aluno — replicou Brosnan. — Veja todos os benefícios de uma educação que custou caro e que você está tendo de graça.

— E você também, meu velho, aprendeu uma porção de coisas. Agora já pode abrir uma porta, do jeito que lhe ensinei...

Brosnan encolheu os ombros, saltou da cama, pegou uma colher em seu pequeno armário e aproximou-se da porta. A fechadura estava coberta por uma chapa de metal e ele rapidamente forçou o cabo da colher entre a beira da chapa e o batente. Trabalhou durante alguns segundos, houve um pequeno estalo e ele abriu a porta alguns centímetros.

— As mesmas fechaduras desde 1852 ou qualquer coisa assim — comentou Savary.

— Bem, mas isso não me tira daqui, exceto até o pátio. Nunca lhe disse antes, mas já descobri um jeito de sair. Uma pequena escalada, uma caminhada através do sistema da central de esgotos e estarei do lado de fora. Descobri isso já faz três anos.

Savary sentou-se na cama, espantado:

— Então por que nunca tentou nada?

— Porque não adianta. Continuaria no rochedo, sem ter para onde ir.

Ouviram-se sons de passos subindo os degraus de aço no início do corredor e Brosnan fechou rapidamente a porta, trabalhando novamente com a colher, até sentir que a fechadura voltara à posição normal. Depois, correu para a cama e se deitou.

Os passos se detiveram no lado de fora, uma chave foi introduzida na fechadura e a porta se abriu. O guarda uniformizado que apareceu era um sujeito amável, chamado Lebel, com um denso bigode de pontas caídas. Vestia capa.

— De pé os dois. Preciso de seus préstimos.

— E o que fizemos para merecer tanta honra, Pierre? — perguntou Savary.

— Quando eu sofro, vocês também sofrem. Sabem que gosto de vocês — disse Lebel, enquanto caminhavam pelo corredor. — Esses filhos da mãe acabaram de me encarregar da chefia dos sepultamentos do mês e vocês conhecem o regulamento. O último mergulho tem que ser à noite.

Pararam durante um momento, esperando que Lebel abrisse a porta na grande cortina de aço que fechava o corredor. Brosnan meteu a cabeça pela porta, examinando o saguão central embaixo.

— Quem foi que morreu? — perguntou Savary.

Lebel olhou para o papel que tinha na mão.

— Bouvier, 67824. Serviu trinta e dois anos. Câncer no intestino.

Era uma notícia suficientemente lúgubre para matar qualquer conversa e eles desceram em silêncio para o saguão e se dirigiram para a porta externa, onde outro guarda lhes deu passagem. Os três atravessaram o pátio e subiram os degraus que conduziam ao necrotério.


Era uma sala simples, com as paredes pintadas de branco e iluminada por uma única lâmpada. Havia vários bancos toscos, dispostos em fileira. O cadáver aguardava sobre um deles, envolto em lona. Um velho condenado, dentro de um macacão grande demais para ele, os ombros encurvados pela idade, lavava o chão com ácido fênico. Parou, apoiado na vassoura.

— Tudo pronto. O homem é seu.

Brosnan conhecia o ritual, já havia feito aquele serviço várias vezes. Havia um carrinho de madeira apoiado na parede; Brosnan foi buscá-lo e, com o auxílio de Savary, colocou o cadáver no carrinho.

— Tudo bem — disse Lebel. — Vamos indo.

— E o capelão? — quis saber Savary, enquanto manobravam o carrinho para a escada.

— O homem disse que não queria. Ateu.

Savary ficou chocado.

— Ora, todos têm direito a um padre na hora do enterro. — Virou-se para Brosnan e recomendou: — Você fica encarregado de verificar se eles vão proceder corretamente comigo.

— Você não vai morrer nunca, seu velho safado — replicou Brosnan. — Ficará para semente.

O guarda de serviço na entrada abriu o portão e eles saíram para a parte externa e tomaram a estrada, não em direção à baía, mas se desviando para a esquerda. Era necessário um grande esforço para empurrar o carrinho ao longo da subida. Finalmente, alcançaram um pequeno platô na borda de um penhasco.

Não havia luar e a rocha mergulhava, íngreme, uns bons 10 metros dentro d'água. Ouvia-se o arrebentar das ondas lá embaixo, e Brosnan sentia nos lábios o gosto do sal, como um símbolo de liberdade.

Atrás deles, Lebel acendeu uma lâmpada situada acima de uma porta de madeira e a abriu.

— Tudo bem. Vamos descarregar aqui.

A sala era pequena, tendo apenas um banco de madeira no centro, onde Brosnan e Savary depositaram o corpo. Em uma das paredes estava pendurada uma coleção de capas de oleado e coletes salva-vidas alaranjados. O detalhe mais interessante eram os rolos de corrente, cuidadosamente dispostos no chão, cada uma com peso próprio, de acordo com um quadro pendurado na parede atrás delas.

— Pronto — disse Lebel, consultando o documento que tinha na mão. — Ele pesava apenas quarenta e oito quilos ao morrer. Cristo! Isso não vai dar certo. Ele flutuará como uma rolha na correnteza. — Olhou para o quadro na parede. — Quarenta quilos de correntes, conforme a tabela. Prendam a corrente no cadáver.

Brosnan pegou uma corrente da pilha correta e começaram a enfiá-la nos orifícios especialmente previstos para essa eventualidade na capa de lona.

— Muitas vezes tenho me perguntado por que toda essa complicação de correntes, Pierre — observou Savary. — O que tem a ver com o peso do cadáver?

Lebel tirou do bolso um maço de Galoises e ofereceu cigarros aos prisioneiros.

— Simples. A Roda do Moinho não é apenas uma correnteza, como muita gente pensa. São duas. Ficando na superfície, a gente vai parar nas rochas de Saint-Denise, a dez milhas da costa e os corpos que aparecem boiando ali assustam as velhas senhoras que passeiam com seus cães. Mas se o corpo mergulhar uns cinquenta metros, a correnteza o levará para o mar. Assim, o fator peso é fundamental. Mas vamos tratar do serviço.

Brosnan e Savary carregaram o corpo até a beira do precipício. Pararam alguns momentos, e Savary reclamou: — Continuo achando que deveria ter um padre. Isso não é justo.

Lebel, com sua natural bondade, tirou o boné e cedeu: — Está bem. Senhor, coloco em Suas mãos a alma de Jean Bouvier, 67824. Não aproveitou muito desta vida. Talvez possa fazer mais por ele na próxima. — Recolocou o boné e ordenou: — Pronto, podem lançar.

Brosnan e Savary balançaram o corpo algumas vezes, depois o lançaram. Após dar uma volta no ar, o cadáver de Bouvier mergulhou na espuma branca e desapareceu. No alto do penhasco, os três homens ficaram contemplando as águas.

— A única maneira que me resta para sair deste rochedo — murmurou Savary. — Vou morrer aqui, Martin.

Havia desolação na voz, desespero total. Brosnan pôs a mão no ombro do velho.

— Talvez sim, mas também é possível que não.

Savary olhou para Brosnan, espantado, enquanto Lebel fechava a porta e apagava a luz.

— Bem, vamos embora.

Os dois homens seguiram atrás do guarda, curvando as cabeças contra as lufadas do vento, carregado de chuva.


Às seis horas, Ferguson e Harry Fox estavam tomando café da manhã num restaurante na beira da Estrada A-40, logo depois de Cheltenham. O presunto com ovos era o melhor que Fox se lembrava de ter comido, desde o tempo do Cassino dos Oficiais no quartel de Combermere, em Windsor. Ferguson estava obviamente com a mesma impressão.

— E Devlin, sir?

— Um sujeito notável. Deve ter sessenta e um agora. Irlandês do Norte, Província Down, acho. O pai foi fuzilado durante a guerra anglo-irlandesa, em 1921, por servir em uma coluna volante. Educado pelos jesuítas, diplomou-se com honras em Literatura Inglesa no Trinity College. Professor, escritor, poeta e um atirador do IRA altamente perigoso lá pela década dos trinta. Lutou na Espanha em 1936, servindo na Brigada Washington contra Franco. Capturado por tropas italianas e mantido prisioneiro na Espanha até 1940, quando a Abwehr o libertou, levando-o para Berlim, em uma tentativa de poder usá-lo no Serviço de Informações alemão.

— E ele aceitou, sir?

— A dificuldade estava em que, do ponto de vista dos alemães, Devlin representava um sério risco. Profundamente antifascista, entende? A Seção Irlandesa de Abwehr usou-o uma vez. Os alemães tinham enviado um agente para a Irlanda, um certo Capitão Goertz. Quando perderam contato com ele, lançaram Devlin de paraquedas, a fim de socorrê-lo. Infelizmente, Goertz tinha sido apanhado e Devlin passou vários meses escondido, antes de conseguir voltar para Berlim, via Lisboa. A partir de então, a Irlanda deixou de interessar à Abwehr e Devlin se empregou como professor na Universidade de Berlim. Lá ficou até o outono de 1943. — Ferguson serviu-se de mais geleia. — Realmente muito gostosa. Acho que levarei um pote.

— No outono de 1943 — repetiu Fox, pacientemente.

— O que sabe da tentativa alemã de matar Churchill em novembro daquele ano, Harry?

Fox deu uma risada:

— Ora, vamos, sir. Isso é conversa de comadre. — Depois, vendo o rosto sério de Ferguson, parou de rir. — Foi mesmo?

— Bem, vamos supor que tenha sido apenas uma história bem inventada, Harry, mais ou menos assim: Devlin, entediado até os ossos na Universidade de Berlim, foi convidado pela Abwehr para ser lançado de paraquedas na Irlanda e se instalar em Norfolk, a fim de agir como intermediário entre a mais bem-sucedida espiã que a Abwehr teve em toda a guerra e uma selecionada tropa de paraquedistas alemães, comandada por um certo Coronel Kurt Steiner; o objetivo da operação era aprisionar Churchill, que estava descansando em uma casa de campo perto da Vila de Studley.

— E...?

— Tudo inutilmente, claro. O hóspede nem era Churchill, apenas um sósia, enquanto o grande líder comparecia a uma conferência em Teerã. O caso é que morreram todos, Steiner e seus homens. Para falar a verdade, todos menos um, Devlin. Com sua natural habilidade irlandesa, conseguiu escapar.

Harry Fox não conseguiu dominar seu espanto.

— Quer dizer que a história é mesmo verdadeira?

— Faltam ainda alguns anos para que os documentos secretos sejam liberados. Vai ter que esperar, Harry.

— E Devlin trabalhou para os nazistas? Não consigo entender. Não disse que ele era antifascista?

— A coisa não é assim tão simples. Acho que se alguém do nosso lado tivesse sugerido que ele tentasse sequestrar Adolf Hitler, ele se dedicaria a essa tarefa com entusiasmo ainda maior. Há muitas vezes na vida, Harry, em que não dirigimos o jogo, mas somos joguetes. Você compreenderá isso melhor quando ficar mais velho.

— E mais sábio também, sir?

— Isso mesmo, Harry. Aprender a rir de si mesmo. Um recurso precioso. No pós-guerra, Devlin foi professor de um colégio no Centro-Oeste dos Estados Unidos. Retornou à Irlanda por pouco tempo, durante a guerra de fronteira, no fim da década dos cinquenta. Voltou lá novamente por ocasião das manifestações dos direitos civis de 1961, sendo um dos fundadores do Exército Republicano Irlandês Provisório. Como já disse, ele nunca aprovou a campanha de terrorismo. Em 1975, cada vez mais desiludido, desligou-se oficialmente do movimento. Uma lenda viva, qualquer que seja o sentido desse lugar-comum. Desde 1966, apesar da forte oposição de alguns setores, foi nomeado professor adjunto na Faculdade de Inglês em sua velha universidade, Trinity College.

Ferguson afastou a cadeira e se levantou.

— Mas ele e Brosnan eram amigos? — perguntou Fox.

— Acho que sim. Também me parece que o que aconteceu com Brosnan na França foi uma espécie de gota d'água para Devlin. Por enquanto. — Parou junto à porta, correu os olhos pelo estacionamento e fez sinal para o motorista: — É isso aí, Harry. Agora, vamos indo para Hereford.


Barry estava estudando os mapas em seu apartamento, logo depois do café da manhã, quando ouviu uma discreta batida na porta. Abriu e fez sinal para que Romanov entrasse.

— E os passaportes? — perguntou logo.

— Não há problema. Vá ao local de costume, às onze horas, para as fotos. Os passaportes ficarão prontos esta tarde. Mais alguma coisa?

— Sim, documentação para a excursão até Jersey. É como vou. Um turista francês em férias.

— Também não há problema.

Uma vez em Jersey, ele estaria em solo britânico e em condições de embarcar em qualquer voo interno para uma série de aeroportos na Grã-Bretanha, onde as exigências da alfândega e da imigração eram consideravelmente menos rígidas do que se o desembarque fosse no Heathrow, de Londres.

— Se eu conseguir a encomenda na tarde de quarta-feira, vocês devem estar preparados para recebê-la à noite — disse Barry. — De preferência uma traineira, a umas quinze milhas da costa.

— E como nos encontraremos?

— Vocês mobilizarão todo o seu pessoal em Londres para que arranje um barco. Uma boa lancha de quarenta pés, que opere na área. — Indicou um ponto no mapa e esclareceu: — Em algum lugar da baía, no lado oposto ao da Ilha de Man. Sul de Ravenglass.

— Ótimo.

— Sigo esta noite para Saint-Malo e atravesso para Jersey amanhã com o passaporte francês. Há um voo da British Airways de Jersey para Manchester à tarde. Entro em contato com seu agente em Londres no dia seguinte, no cais de Morecambe, ao meio-dia. É uma praia de veraneio logo abaixo de Lake District. Ele me reconhecerá pela foto que vocês certamente mantêm nos arquivos da seção da KGB, na Embaixada soviética em Londres.

Romanov fixou os olhos no mapa.

— Frank, se isso der certo, será o maior golpe da minha carreira. Você acha que terá êxito? Está absolutamente certo?

— De que você será um herói da União Soviética, condecorado pelo próprio Leonid Ilyich Brejnev? — gracejou Barry, batendo-lhe nas costas. — Não se incomode, meu velho. Vai ser uma barbada.


4

 

 

O 22° Regimento do Special Air Service (SAS) é uma unidade que os militares classificam como de elite. Alguém certa vez observou que esse regimento era a coisa mais parecida com as SS — um injusto tributo aos espantosos êxitos conquistados pela unidade nas operações contra motins e guerrilhas urbanas, áreas em que o Special Air Service era indiscutivelmente o conjunto dos melhores especialistas do mundo, com 30 anos de experiência adquirida nas selvas da Malásia e de Bornéu, nos desertos do sul da Arábia e Omã, nas verdes planícies de Armagh... e nas ruas de Belfast. O regimento só aceita voluntários, soldados que já serviram em outras unidades. Os processos de seleção são tão rigorosos, física e mentalmente, que apenas 5% dos candidatos conseguem aprovação.

O comando do 22º SAS em Hereford era simples e funcional, até mesmo espartano. O que mais surpreendia era o próprio comandante, muito jovem para um tenente-coronel, rosto grave e inteligente, bronzeado em virtude de longas exposições ao sol do deserto. As fitas de condecorações que ele ostentava no peito incluíam a Cruz Militar. Estava sentado, reclinado na poltrona, escutando com a maior atenção.

Quando Ferguson terminou sua exposição, o oficial sacudiu a cabeça: — Muito interessante.

— Mas será exequível? — indagou Ferguson.

— Oh, sim! — replicou o coronel, sorrindo. — No que nos diz respeito, Brigadeiro, não há problema. É o tipo de operação que meus rapazes vivem fazendo no sul de Armagh. Tony Villiers é o homem indicado para isso, segundo me parece. — Ligou o interfone e falou: — Capitão Villiers, venha logo que puder. Estamos tomando chá, enquanto esperamos.

O chá era excelente e a conversa girou sobre amenidades. Passados uns 15 minutos, houve uma batida na porta e entrou um jovem de 26 ou 27 anos. Em alguma ocasião seu nariz fora quebrado, talvez numa luta de boxe. Usava o uniforme preto de serviço, mas o que mais chamava atenção era sua cabeleira negra e revolta, que lhe chegava quase aos ombros.

— Desculpe o atraso, sir. Eu estava treinando.

— Está bem, Tony. Gostaria de apresentar o Brigadeiro Ferguson e o Capitão Fox.

— Muito prazer.

— O Brigadeiro Ferguson é da DI5, Tony. Ele precisa de alguém exatamente como você. Prioridade máxima. Acho que está dentro de sua especialidade.

— Irlanda, sir?

— Exatamente — replicou Ferguson. — Queria que você sequestrasse uma pessoa para mim. O que sei é que ela passará o fim de semana em sua vila no Condado de Mayo, na costa, perto da Baía Killala. Necessito dessa pessoa dentro de trinta e seis horas, entregue em Londres no domingo de manhã. Acha que pode fazer isso?

— Não vejo por que não, sir — replicou Villiers, caminhando até junto ao mapa da Irlanda, pendurado na parede. — Apenas cem a cento e dez quilômetros da fronteira do Ulster.

— Ótimo.

— Presumivelmente do IRA, sir? Alguém importante?

— Um professor universitário chamado Devlin. Darei todos os detalhes.

Villiers reagiu imediatamente:

— Liam Devlin? Pensei que ele já estivesse aposentado.

— É o que ele pensa também — replicou Ferguson, acrescentando depois de leve hesitação: — Você está certo de que pode montar esta operação assim, de repente?

Villiers sorriu e passou a mão pelos cabelos.

— É por isso que nunca vou ao barbeiro, sir. Uma dispensa especial. Quero dizer que em Crossmaglen a gente deve parecer que é do local. — Curvou os ombros e deu à voz o sotaque áspero e característico da Irlanda do Norte: — A camuflagem pessoal é muito importante, sir. Algumas pessoas treinam para falar com sotaque francês ou outro qualquer. No SAS, em quinze dias aprendemos como falar com o sotaque de qualquer região da Irlanda.

— A instrução militar certamente mudou muito desde o meu tempo — disse Ferguson.

O coronel se levantou.

— Muito bem, senhores. Acho que agora podemos tratar da operação. Fazer com que as coisas comecem a funcionar. Você na frente, Tony.

Quando passavam pela porta, Villiers notou a gravata da Brigada da Guarda, usada por Fox.

— Qual o regimento, sir?

Fox, que sabia reconhecer um membro da Guarda, com cabeleira comprida ou não, informou: — Blues and Royals. E você?

— Granadeiros. Perdeu a mão em serviço?

— Exatamente. Segurei a maleta errada.

— É, acontece.


Era uma manhã sem sol, a cerração cobrindo o pátio de exercício que eles atravessavam. Mal se avistava a torre central. Villiers informou: — Se os senhores estiverem interessados, estão gravados ali os nomes de todos os membros do regimento mortos em ação desde 1950.

Fox se deteve e passou os olhos pelos nomes dos que haviam morrido nos mais diferentes teatros de guerra. Franziu as sobrancelhas. .

— Santo Deus! Há um camarada que morreu na Etiópia em 1968! Que diabos estava fazendo lá?

— Procurando por mim — disse Villiers. — Não costumamos recordar os motivos que levaram à criação da longa série de lendas britânicas. Daqui a dez anos vai poder perguntar o que eu estava fazendo em Mayo, amanhã à noite.


Mais tarde, depois que o Bentley cruzou o portão de entrada e eles iniciaram o regresso para Londres, Fox perguntou: — Acredita realmente que eles farão o serviço, sir?

— No início de 1976, Harry, quarenta e nove soldados britânicos morreram em Armagh, sem que houvesse uma única baixa no Exército Republicano Irlandês, de modo que o SAS foi designado para agir secretamente. No ano seguinte, foram mortos em toda a área apenas dois membros voluntários do Regimento de Defesa da Irlanda do Norte. O resultado fala por si mesmo.

— Está certo, sir, mas há uma coisa que me preocupa. Sem dúvida Tony Villiers e seus rapazes são competentes. Os dois homens que ele escolheu para acompanhá-lo impressionam muito bem, não há dúvida. Acontece, porém, que Devlin também é bom. Sei que ele já está um tanto velho, mas o que acontecerá se ele resolver atirar primeiro?

— E é justamente o que aquele desgraçado vai fazer. Mas você ouviu as ordens que dei a Villiers. Quero o homem são e salvo. Não me adianta nada, se ele chegar capengando ou coisa assim. — Bocejou longamente e falou: — Vou cochilar um pouco, Harry. Acorde-me em Cheltenham, e vamos comer alguma coisa naquele excelente restaurante.

Fechou os olhos, cruzou as mãos sobre a barriga, inclinou-se para o canto e instantaneamente adormeceu.


Nesse momento, Frank Barry desembarcava do hidrofólio na baía de St. Helier na Ilha de Jersey, tendo acabado de completar p percurso de Saint-Malo. Conforme o falso passaporte francês forjado pela KGB, ele era um caixeiro viajante de Paris, chamado Pierre Dubois. Seu cabelo fora empastado de brilhantina e cuidadosamente repartido do lado. Com óculos de grossos aros pretos, sua aparência reproduzia exatamente a da biografia. Era impressionante como o disfarce lhe dera outro aspecto, mas, como tantas vezes teve oportunidade de constatar, um pequeno detalhe produzia grandes diferenças.

Quinze minutos mais tarde um táxi o deixou na entrada do aeroporto. Dirigiu-se diretamente para o balcão da British Airways e comprou uma passagem no voo para Manchester.

Uma hora de espera. Entrou na loja de artigos isentos de impostos para comprar um pacote de cigarros e uma garrafa de conhaque. A moça que o atendeu colocou tudo em uma sacola e sorriu:

— Espero que tenha gostado de sua visita.

— Certamente. É um lindo lugar. Voltarei logo que puder — respondeu ele, dirigindo-se para a sala de embarque.


A velha casa de campo que se aninha entre as árvores da colina que domina a Baía de Killala desfruta de uma das mais belas vistas de toda a costa ocidental da Irlanda.

Devlin não se cansava de admirá-la. Da varanda que ele construíra nas horas vagas durante o ano anterior, podia apreciar, atrás dos penhascos na direção de Newfoundland, o sol mergulhando no mar como uma laranja de sangue; à direita, a Baía Sligo e, mais além, as Montanhas de Donegal. Voltou-se e entrou em casa.

Liam Devlin era um homem baixo, com pouco mais de 1,65m, 61 anos, a densa cabeleira preta não mostrando sinais de se tornar grisalha. Havia uma cicatriz esmaecida no lado direito da testa, resultante de um ferimento de bala, e seu rosto era pálido com uns vividos olhos azuis e um sorriso levemente irônico permanentemente levantando o canto de sua boca. Dava a impressão de um homem que achava a vida uma história sem graça e decidira que a única coisa que lhe restava fazer era rir dela.

Entrou na cozinha, arregaçou as mangas de sua camisa preta de lã e preparou um cozido, descascando as batatas e selecionando os legumes metodicamente, sempre assobiando.

Ainda se conservava solteiro, situação resultante, mais do que qualquer outra causa, das circunstâncias de sua vida; agora, já se acostumara. Gostava de estar sozinho, sem amarrações, embora ainda houvesse mulheres, mesmo uma estudante ou outra, que ficariam felizes de passar seus fins de semana com ele em Mayo.

Devlin colocou a panela no fogo, voltou para a sala de estar e acendeu a lareira. Já escurecera. Correu as cortinas das janelas e serviu-se de uma dose de um uísque irlandês, Bushmills, seu favorito, e sentou-se perto do fogo. Correu os olhos pela estante junto à lareira, escolheu um exemplar de The Midnight Court, em irlandês, e começou a ler.

Uma rajada de ar frio bateu-lhe no rosto e ativou o fogo. Ao levantar os olhos, instantaneamente alerta, viu abrir-se a porta da frente e Tony Villiers entrar, vestindo casaco de couro e jeans, barba por fazer. O conjunto lhe dava a aparência de bandido. A pistola automática Browning na mão direita reforçava essa impressão.

Passou a mão rapidamente pelo corpo de Devlin, à procura de alguma arma escondida, nada encontrou e recuou satisfeito.

— O que está procurando, filho? — perguntou Devlin com voz macia, enquanto se levantava, apoiando-se na cornija da lareira, um pé sobre a grade inferior. — E qual é seu time, moço? Mão Vermelha do Ulster, UVF ou o quê?

— Tenha cuidado, Professor — disse Tony Villiers, pronunciando impecavelmente as sílabas em inglês.

— Jesus Cristo! — exclamou Devlin, amavelmente. — Não vocês de novo.

Desceu a mão direita até a grade e empunhou a coronha de uma pistola Walther que estava escondida na lareira, justamente para aqueles casos de emergência. Levantou a arma em um gesto ágil e atirou, atingindo Villiers no ombro esquerdo e lançando-o contra a parede, enquanto a Browning caía no chão.

Villiers se apoiou num joelho, o sangue escorrendo entre os dedos com que apertava o ombro.

— Bom — disse ele. — Realmente muito bom.

— Elogios não vão adiantar muito, filho — disse Devlin, mas se ouviu um estrondo atrás dele, quando a porta da cozinha foi aberta violentamente e os dois companheiros de Villiers irromperam na sala, pistolas em punho.

— Vivo! — gritou Villiers. — Não toquem em um fio dessa maldita cabeça. É uma ordem — acrescentou, sorrindo sardonicamente. — Estou esperando, Professor. Eles foram treinados para matar. Sugiro que entregue essa pistola.

— SAS? — perguntou Devlin.

— Receio que sim.

— Santa Maria! Por que não mandaram o próprio demônio? Com ele pelo menos estou mantendo boas relações. — Dirigiu-se depois aos outros dois: — Será que um de vocês não pode fazer alguma coisa por aquele ombro? É no tapete que estou pensando. Persa. Presente de um amigo.

Tony Villiers sacudiu a cabeça.

— Mais tarde, Professor. Por enquanto, faça o favor de arrumar uma maleta com o que achar necessário para uma longa viagem.

— E posso saber para onde vamos?

— Bem, se as coisas correrem de acordo com o plano, estaremos cruzando a fronteira do Ulster dentro de umas três horas. Depois, transporte de avião, cortesia do Corpo Aéreo do Exército, amanhã de manhã. Deve estar em Londres ao meio-dia. Aconselho que leve uma capa. — Villiers tirara do bolso um pacote de gaze e começou a abri-lo com os dentes. — O tempo lá tem estado horroroso — acrescentou.

Devlin concordou com um sinal de cabeça.

— Qual foi sua escola, filho?

— Eton.

— Eu devia ter desconfiado. O que seria do império sem vocês?

— Não grande coisa — replicou Villiers, secamente. — Mas o tempo é curto, Professor. Faça o favor de agir sem mais delongas.

— Já vou — falou Devlin, dirigindo-se para a porta, seguido por um dos soldados. — Mas apenas porque estou fascinado. Mal posso esperar para saber o que isso tudo quer dizer. Pode se servir do meu Bushmills.

Sorriu e passou para o saguão.


Morecambe é uma praia de férias na costa de Lancashire, ao sul do Lake District inglês, uma pequena cidade sossegada que, mesmo durante o período de veraneio, reúne principalmente pessoas idosas. Nunca vai muita gente. Certa vez alguém disse maldosamente que, quando morre uma pessoa em Morecambe, ao invés de a enterrarem, simplesmente a colocam sentada nos abrigos de espera dos ônibus, para dar a impressão de que o lugar é muito frequentado.

Frank Barry gostava muito da cidadezinha. Pouca gente por perto, o que só acontecia em novembro, mas então ele procurava locais fora do roteiro dos turistas. Os bares e as lojas fechavam no inverno, as calçadas ficavam vazias e ele passeava agora ao longo do cais, sentindo-se justificadamente satisfeito ao apoiar-se na amurada, respirando o ar salgado. As águas escuras da Baía de Morecambe estavam encrespadas pelo vento e, ao norte, através do nevoeiro, ele podia divisar as montanhas do Lake District, uma mancha escura no horizonte.

Acendeu um cigarro e esperou. Passado algum tempo, ouviu passos soando na calçada atrás dele. O homem que se encostou na amurada, à sua direita, usava um impermeável escuro e chapéu desabado. Tinha talvez uns 30 anos e um ar inteligente; os óculos de aros de aço, molhados pela chuva, o atrapalhavam visivelmente.

Barry, que se livrara dos óculos de grossa armação e da brilhantina que lhe empastava o cabelo, no banheiro do motel onde se hospedara na noite anterior, voltou-se e sorriu.

— Os óculos sempre atrapalham, quando faz um tempo como este.

O homem concordou com um aceno de cabeça, colocou no chão a maleta que levava e limpou os óculos com um lenço.

— Tem razão, Sr. Barry. Já tentei usar lentes de contato, mas infelizmente elas me provocam alergia. — Seu inglês era excelente, apenas com um leve sotaque.

— Tem alguma coisa para mim?

O homem tocou a maleta com a ponta do sapato.

— Tudo o que precisa.

— Bem, isso é um caso raro. Quero dizer que não é sempre que a gente consegue tudo nesta vida.

— Também incluí um contato em Londres, por intermédio do qual pode me chamar, em caso de emergência. Faça o favor de decorar os dados e destruir o papel.

Barry pegou a maleta e sorriu.

— Meu caro, já venho fazendo essas coisas desde o tempo em que você ainda mamava.

Afastou-se, caminhando ao longo do cais, seus passos ecoando no concreto. O jovem permaneceu imóvel. Somente quando o som dos passos se apagou de todo, ele deixou a amurada.

Barry alugara um Ford Cortina no Aeroporto de Manchester e guiava através de Lancaster, atingindo a Autoestrada M6 e rumando para o norte, na direção do Lake District, 20 minutos após sua entrevista com o contato da KGB, no cais de Morecambe. Guiou ainda uns 15 ou 20 quilômetros, e em seguida parou num acostamento da estrada, desligou o motor e abriu a maleta.

Como o jovem anunciara, havia tudo o que ele precisava. Seu contato seria em um lugar chamado Marsh End, ao sul de Ravenglass, na costa cumbriana, muito conveniente para o campo de provas de Wastwater. Providências para o encontro de quinta-feira à noite: eles arranjaram uma traineira de alto-mar, fornecida pela frota norte de pesqueiros russos. E, naturalmente, o número do telefone daquele jovem em Londres. Ainda mais interessante era a pistola com o silenciador, uma Ceska tcheca de 7,5mm. Havia também pentes adicionais de munição e 50.000 libras em notas de 20, cuidadosamente empilhadas.

— Bem, esta parece muito boa — murmurou Barry, sopesando a pistola e colocando-a no bolso da capa.

A seguir, fechou a maleta e a depositou no banco a seu lado, juntamente com a lista contendo as informações que deveria decorar. Retomou a estrada e, de vez em quando, passava os olhos pela lista, certificando-se de que estava guardando todos os detalhes. Uma hora depois, deixou a M6 na Ponte de Levens e parou em um bar na beira da estrada. Dirigiu-se ao banheiro dos homens, fechou-se em um boxe, acendeu um cigarro e queimou a lista na chama do isqueiro. Somente quando o papel estava reduzido a cinzas, ele o atirou dentro do vaso e acionou a válvula. Depois, voltou para o carro e tomou a estrada para Broughton-in-Furness e a costa cumbriana, assobiando baixinho.


Kim abriu a porta da sala de estar de Ferguson, e Tony Villiers entrou, acompanhado de Liam Devlin. Ferguson estava sentado junto à mesa, com Harry Fox, em pé, a seu lado. O brigadeiro levantou os olhos, fitando os dois homens por cima dos óculos de lentes em meia-lua, que, a seguir, retirou lentamente.

O casacão de Tony Villiers estava nos ombros, desabotoado. Por baixo dele se via o curativo e o braço apoiado numa tipoia. O rosto estava pálido e encovado, contraído em rugas de dor, a despeito da injeção que lhe haviam aplicado na Ala Militar do Hospital de Musgrave Park, em Belfast.

— O Professor Devlin, sir, conforme as ordens.

— Então era você, seu velho safado — disse Devlin, amistosamente. — Usou um bom garoto e não é digno dele.

Ferguson se levantou.

— Você devia estar no hospital, Capitão, e agora é uma ordem. Providencie isso, Harry. Pegue meu carro.

Villiers cambaleou e Devlin prontamente o agarrou pela cintura e o manteve em pé.

— Aguente firme, moço. Você já passou por coisa pior.

Villiers fez o possível para sorrir:

— Olhe, Professor, gosto de você. De verdade. Não é uma hora muito conveniente para esta confissão, considerando as circunstâncias.

— Você também não é de todo antipático — replicou Devlin. — Não gosto é do uniforme, não do sujeito dentro dele.

Harry Fox segurou Villiers pelo cotovelo.

— Está bem, vamos andando.

Quando chegaram à porta, Villiers se virou.

— Uma coisa, Professor. Podia ter me matado e não o fez. Por quê?

— O enorme desperdício que isso teria significado... — replicou Devlin, e subitamente os olhos azuis se tornaram frios. — Já não houve desperdício suficiente?

Villiers ficou olhando para ele, as sobrancelhas contraídas, e Devlin riu.

— Vá embora, moço, antes que eu acabe por corrompê-lo.

A porta se fechou atrás dele, e Devlin voltou a Ferguson, desafivelando o cinto da capa de chuva.

— Então, cá estamos.

— Realmente, cá estamos.

— Por acaso haveria tempo para uma xícara de chá? Foi uma longa jornada.

Ferguson sorriu e ligou o interfone.

— Chá, Kim. O meu, de costume, e outro bule, bem forte, do tipo irlandês. — Desligou, e perguntou a Devlin: — Não é assim, bem forte?

— Desde que a colher possa mergulhar nele...

Apanhou um cigarro do maço que estava na mesa de Ferguson, acendeu-o e se acomodou em uma das poltronas junto à lareira.

— Eles trabalham bem na DI5, devo reconhecer.

A porta se abriu e Kim entrou com o chá em uma bandeja de prata, seguido de Harry Fox.

— Acomodei-o no Bentley, e mandei que o chofer rumasse para a Ala Especial em Melbury House, sir. Telefonei para o Coronel Jackson, que já está a caminho.

— Está bem — disse Ferguson. — Vamos cuidar para que ele receba o melhor tratamento possível.

Devlin serviu-se de chá.

— E quem está metido nisso? — perguntou.

— Capitão Fox, meu assistente pessoal.

O olhar de Devlin se deteve na mão enluvada.

— E sem muita simpatia para pessoas como eu, imagino.

— Não muita, realmente — replicou Fox.

— Gosto disso, meu jovem. Assim ficamos sabendo claramente nossa posição.

Houve um silêncio. Ferguson levantou-se e foi até a janela, olhando para a praça e disse: — Está em maus lençóis, Devlin, e sabe disso, não é? Há uma série de crimes de que você é acusado, pelos quais pode pegar uns vinte anos no mínimo, ou mesmo a prisão perpétua. Que tal um julgamento na Corte Criminal de Londres?

Devlin soltou uma sonora gargalhada.

— Vá fazer sermão para sua avó, Brigadeiro. Não vou ser julgado pela Corte de Londres e você sabe disso, como também sabe o moço aqui, se tem algum miolo na cabeça. Fui trazido contra a minha vontade, de um Estado soberano para outro, sequestrado por tropas britânicas, forçado a atravessar a fronteira da República da Irlanda para o Ulster. Ora, sei que as coisas não estão correndo bem entre esses dois maravilhosos países, mas se você acha que o Gabinete britânico vai deixar que este caso chegue às Nações Unidas, está perdendo seu tempo.

Ele tinha razão. Estava certo disso e os outros também. Foi Harry Fox que traduziu seus sentimentos em palavras.

— Ele tem um trunfo, sir, um trunfo bem forte. Não há meios de fazê-lo trabalhar contra a vontade. Se ele não aceitar, temos que mandá-lo de volta.

— Não seja bobo, Harry. Sempre soube que corria esse risco — replicou Ferguson.

— Então — disse Devlin —, vamos ver que risco é esse.

Ferguson perguntou com voz muito calma:

— Quando foi que você viu Brosnan pela última vez?

— Martin? — estranhou Devlin. — Há uns quatro anos.

— Quer dizer fevereiro de 1975, quando você esteve com ele na França, pois a partir de então ele passou a residir, em caráter permanente, num desagradável estabelecimento chamado Belle Isle, na costa francesa do Mediterrâneo, do qual você certamente já ouviu falar.

— Um pequeno canto do inferno, segundo me disseram.

— É bem isso, e ele está lá para o resto da vida. É uma prisão que, como Alcatraz, orgulha-se de que jamais deixou alguém escapar.

— E daí?

— Que tal se eu puder tirá-lo de lá?

— E como você poderia? — indagou Devlin, franzindo a testa.

— Uma espécie de troca com as autoridades francesas.

— Mas com que fim? Por que se meter nessas complicações?

— Frank Barry.

A fisionomia de Devlin não escondeu seu total espanto.

— Frank Barry? — perguntou ele. — E que diabos ele tem a ver com isso?

— Se você conseguir ficar com essa boca irlandesa fechada durante quinze minutos, explico tudo.

Devlin não parou de caminhar de um lado para outro da sala, o cigarro pendurado no canto da boca, a fumaça espiralando.

— Está bem — disse por fim. — Frank Barry é um anormal, um desclassificado, não nego, como também não escondo meu desprezo pessoal por ele. Frank acredita no que alguns chamam de pureza da violência, uma expressão engraçada que, bem analisada, significa licença para matar quem se meter em seu caminho. No momento em que isso inclui mulheres e crianças, estou fora. Mas é a carne de vocês que ele está machucando e agarrá-lo representa o problema que devem enfrentar. Vocês, e não Martin Brosnan, muito menos eu.

— Frank Barry está em luta contra o mundo, Sr. Devlin — disse Harry Fox.

Devlin deu uma risada:

— Ora, isso não passa de um jogo de palavras, Capitão. Há por acaso uma parcela de sangue irlandês em suas veias?

— Seja razoável, Devlin — interveio Ferguson. — As atividades de Barry nunca contribuíram em favor de sua causa, você tem que admitir. Ele fez mais do que ninguém para sujar sua imagem naquela época, antes de se meter no atentado a Mountbatten... uma das piores coisas que aconteceram ao IRA, do ponto de vista da opinião pública mundial.

— Estou de acordo com você — disse Devlin —, exceto quanto a um detalhe: isso não é mais a minha causa.

Fox mostrou-se espantado.

— Está falando sério?

Devlin acenou com a cabeça.

— Sim, ainda sou cem por cento a favor de uma Irlanda unificada, mas dez anos, para mim, significam prazo suficiente. Muita gente morta, Capitão. Um rio de sangue e o que lucramos com isso? Francamente, acho que Martin Brosnan, vocês verão, pensa do mesmo modo.

— Então pergunte a ele — disse Ferguson. — Vá falar com ele, é tudo o que estou pedindo.

— E como se consegue isso?

Ferguson fez um sinal com a cabeça para Harry Fox. Ele abriu uma pasta e tirou um passaporte, colocando-o na mesa. Devlin o examinou. Estava em nome de Charles Gorman e a foto era dele mesmo, Liam Devlin.

— E quem seria Charles Gorman?

— Um respeitável advogado. Escritório no Edifício Lincoln. Visitando Brosnan para discutir problemas legais, ligados a assuntos de família. Também a possibilidade de um apelo de clemência.

Devlin meneou a cabeça, surpreso.

— Você está tentando me dizer que já me esperam ou coisa parecida?

— Exatamente. Terça de manhã. Daqui a dois dias. Você embarca na lancha de suprimentos da prisão em Saint-Denise, na costa, perto de Marselha.

Devlin passou a mão pela capa do passaporte, a testa franzida.

— Conseguir montar uma coisa assim exige um trunfo na França, mesmo para você.

— Nem tanto. A ligação certa com o SDECE. O Coronel Guyon, atual Chefe da Seção Cinco, está muito interessado em descobrir Frank Barry, particularmente depois da tentativa de assassinato de Lord Carrington em território francês. Foi graças à influência dele que pudemos arranjar tão rapidamente esta entrevista sua com Brosnan.

— Seção Cinco? — comentou Devlin, com uma careta. — Eles certamente põem Himmler e sua quadrilha no chinelo. Pelo que ouvi dizer, gostam de brincar com eletricidade.

— Bem, não tivemos muita escolha, não é mesmo?

— E Guyon pode conseguir a liberdade de Martin, é o que você está dizendo?

— Não é bem assim — replicou Ferguson, meneando a cabeça. — Isso exigiria algumas delicadas negociações em nível muito elevado. Não, no momento tudo o que desejo é que você fale com Brosnan e descubra se, em princípio, ele concorda.

— Concorda com quê? Obter a liberdade, se pegar Frank Barry e agir como uma espécie de carrasco público para você?

— Por que não? Uma simples troca de interesses. Ou você acha que ele prefere passar o resto da vida numa cela de Belle Isle?

Devlin sacudiu a cabeça:

— Nada sei sobre isso. Para começar, você está redondamente enganado se acha que Frank Barry vai recebê-lo de braços abertos. Sempre se antipatizaram. Desde o começo Martin achava que Barry era um carniceiro e não teve dúvida em dizer pessoalmente. Além disso, é um homem muito complexo, o nosso Martin. O instinto de matar foi a parte dele que veio à superfície no Vietnã e não terá desaparecido, mas aqui — e Devlin colocou a mão na testa — não passa de um estudioso, um filósofo e poeta de certo valor. Nunca se sabe qual a faceta que vai predominar.

— Quer dizer que ele precisa ficar furioso? — perguntou Ferguson. — Acho que se pode arranjar isso também.

Fez um sinal para Fox, que tirou uma foto da pasta e lhe entregou.

A moça estava sentada em um monte de areia, abraçando os joelhos, o rosto inclinado para a frente, com um largo sorriso. Não tinha mais de 17 anos, os longos cabelos pretos cobrindo os ombros. Era extraordinariamente bonita. O próprio Devlin empalideceu ao fixar os olhos na foto.

— Está reconhecendo a jovem? — perguntou Ferguson.

— Sim — respondeu Devlin, com voz sumida. — Norah Cassidy, prima de Martin. Uma linda garota de Belfast.

— E o que lhe aconteceu?

— Morreu há cerca de um ano, acho. Na França. — Devlin passou a mão no rosto, e depois se deteve. — França? — murmurou. — Aonde você quer chegar agora, Ferguson?

— Ela foi para a Sorbonne estudar francês em 1976. Como seria de esperar de uma garota com suas ideias políticas, dentro em pouco entrou em contato com várias organizações extremistas da universidade. Foi então que Frank Barry apareceu em cena.

— Barry? — estranhou Devlin. — Barry e Norah? Não acredito.

— Foram amantes por mais de um ano, mas Belfast deixara sua marca. Como muitas outras jovens dessa cidade, ela já vivia à base de tranquilizantes. Na companhia de Barry, passou a drogas mais fortes, tornando-se cada vez mais viciada, o que convinha a Barry, pois Norah ficava dia a dia mais dependente dele. A polícia quase o pegou em uma fazenda da Normandia há cerca de um ano. Conseguiu escapar em cima da hora, mas antes se livrou dela.

— O filho da mãe — praguejou Devlin.

— O que você vai ver agora não é agradável, mas acho indispensável — disse Ferguson, fazendo um sinal para Fox. — Agora, Harry.

Havia uma televisão num canto da sala, com um videocassete. Fox ligou e Ferguson informou: — Obtive isso por intermédio de Guyon, do Serviço de Informações francês.

A imagem oscilou por um momento, depois se tornou nítida. O rosto de Norah Cassidy encheu a sala, desfigurado, envelhecido, apenas uma caricatura da garota sorridente da foto. Chorava desconsoladamente e a câmera recuou para mostrar as duas enfermeiras que a seguravam. Uma delas arregaçou a manga da camisola do hospital e a câmera se aproximou novamente, mostrando as dezenas de picadas no braço, produzidas pelas injeções de heroína; algumas já estavam supurando.

A cena mudou. Agora ela estava deitada em uma cama estreita de hospital, presa com correias e debatendo-se desesperadamente. A cena foi cortada de repente e substituída por outra tomada, em close, do rosto dela em total repouso, relaxado, em paz. Não estava dormindo, mas morta, e a câmera recuou para revelar que ela jazia em uma mesa de necrotério, nua, a cabeça apoiada em um bloco de madeira. O patologista estava debruçado sobre ela com o bisturi na mão.

— Chega, Harry — disse Ferguson. — Não precisa prolongar essa agonia.

Fox desligou o aparelho. Devlin caminhou até a janela, os olhos cheios d'água, deixando-se ficar imóvel, os ombros caídos. Afinal murmurou: — Acho que vou vomitar. Onde é o banheiro?

— Nessa porta em frente — disse Ferguson, enquanto Fox corria para abri-la.

Devlin saiu, e Fox retirou a fita do aparelho e a guardou cuidadosamente na mesa de Ferguson.

— Devo confessar uma coisa, sir — disse ele, com voz trêmula. — Pesando tudo, acho que preferia voltar para Belfast.

— Compreendo, Harry, compreendo. Um negócio sujo, cada vez pior, mas alguém tem que fazer.

A porta se abriu e Devlin regressou. Foi até o bar e se serviu de uma boa dose de uísque; depois, ficou parado, bebendo lentamente.

— Martin amava essa garota como uma irmã, sabe? Em agosto de 1969, em Falls Road, ela levava munição para nós, debaixo de fogo. Não tinha então mais de doze anos.

— Você aceita? — perguntou Ferguson.

— Oh, sim! — respondeu Devlin, em voz baixa. — Acho que pode contar comigo.

— Ótimo. Você pode telefonar para quem quiser no Trinity College daqui. Diga que está tirando uma licença ou qualquer coisa assim. O que achar melhor. Pode ficar no apartamento de Harry esta noite. O voo para Marselha é amanhã. Está tudo providenciado: documentos, dinheiro... o que precisar. Você dispõe de dois dias, depois volte aqui.

— Para mim está bem — disse Devlin.

— Achamos que o contato russo de Barry em Paris é um sujeito chamado Nikolai Romanov. Tem o título de adido cultural da Embaixada soviética. Na realidade é um coronel da KGB. Aqui estão o endereço de seu apartamento em Saint-Germain, em Paris, seu chalé em Neuilly, e uma foto.

Devlin recebeu os papéis e examinou a foto, franzindo a testa.

— O Serviço de Informações francês certamente sabe quem é este homem?

— Naturalmente.

— Então por que não tomam alguma providência?

— Oficialmente é um diplomata, de modo que seria necessário um flagrante. E temos motivos para acreditar que a KGB está bem servida dentro do Serviço de Informações francês. Acho que ele tem alguns amigos por lá. Mas há ainda uma coisa que talvez possa ajudar. — Ferguson mostrou o velho exemplar do Paris-Match com a imagem de Devlin, Brosnan e Frank Barry. — Lembra-se da garota que tirou esta foto?

— Anne-Marie Audin — respondeu Devlin, segurando a revista. — Mil novecentos e setenta e um. Belfast estava coalhada de jornalistas nessa época. Todos queriam histórias. Entrevistas secretas com jovens heróis do Exército Republicano Irlandês. A garota “furou” todos eles.

— Mas ela levava uma vantagem, não é? — perguntou Ferguson. — Afinal, havia conhecido Brosnan no Vietnã. Tudo o que tinha a fazer em Belfast era avisar que estava lá. Tinha certeza de que ele a procuraria.

— Exatamente — falou Devlin. — Esteve conosco uma semana e fez o diabo para conseguir sua reportagem.

— Ela foi duas vezes a Dublin visitá-lo — acrescentou Ferguson. — Encontraram-se de novo em Paris, pelo menos uma vez. Diria que o interesse não era apenas jornalístico.

— Problema deles — retrucou Devlin, secamente.

— Bem, ela está com trinta e três anos e ainda solteira. Também estará em Londres neste fim de semana, para uma reportagem encomendada pela edição francesa da Vogue. Acha que vale a pena falar com ela? Afinal, dificilmente ela o denunciará à polícia.

— Não, a moça não faria isso — concordou Devlin, recordando aqueles dias agitados de 1971, atravessando os campos de Armagh à noite, ultrapassando à força uma barreira de estrada do Exército, balas estilhaçando os vidros do carro e ele se jogando sobre Anne-Marie, protegendo-a com seu corpo, deitados no piso do veículo.

— Bem — disse Ferguson —, providencie isso, Harry. — Empurrou o telefone para perto de Devlin e insistiu: — Mais uma última coisa. Ligue para a universidade e apresente suas desculpas.

Devlin pegou o fone e hesitou uns instantes.

— Você sabe, há um velho ditado irlandês. Mexa com o diabo, depois não se queixe.

— Interessante — comentou Ferguson. — E o que quer dizer exatamente?

— Oh, acho que você sabe muito bem. Você e eu, este moço aqui, Martin em sua cela. Frank Barry. Nenhum de nós pode parar, não é? Nem voltar atrás. Sangrentos coveiros, todos nós, sempre carregando algum pobre-diabo em seu caixão. — Parou por um momento, enquanto discava. — O problema todo, sabem, é que não dirigimos mais o jogo. Agora somos joguetes.


5

 

 

O granadeiro da Guarda, com seu quepe preto e túnica vermelha, estava de serviço no lado de fora do Palácio St. James, em rígida posição de sentido, fuzil no ombro e olhar firme para a frente, tentando ignorar a jovem modelo, exibindo terninho de seda branca e as sandálias douradas, apoiando-se no braço dele.

Era realmente um quadro jocoso, a chuva caindo e, apesar disso, o perfume dela penetrando-lhe pelas narinas, obrigando-o a respirar profundamente para manter-se imóvel.

Havia o auxiliar com as luzes, um segundo operador de câmera, a encarregada do guarda-roupa com duas assistentes, três outros modelos naquele momento trocando de roupa no reboque estacionado na praça, e uma pequena multidão de curiosos, observando o trabalho de Anne-Marie Audin.

Ela usava uma bota até os joelhos e um macacão caqui que se pode comprar em qualquer loja de artigos militares. Os longos cabelos que lhe chegavam à altura dos ombros estavam presos na nuca em um rabo-de-cavalo. No rosto moreno a única pintura era um leve batom nos lábios.

Fox estacionou o carro na esquina e acompanhou o irlandês que se dirigia para o grupo de curiosos, colocando-se no lado oposto do reboque.

— Ela mudou muito?

Devlin negou com um movimento de cabeça.

— Uma grande mulher, mas uma garota encantadora, embora ela achasse ruim se me ouvisse dizer isso.

— Ela e Brosnan chegaram a ser amantes? — perguntou Fox, delicadamente.

— Oh, sim! — Devlin continuava a observá-la, vendo-a tirar uma foto atrás da outra. — Mas eu não diria isso àquele velho bobo. Outra coisa, Capitão: quando foi que você nasceu? Fim de março, começo de abril, talvez.

Fox olhou para ele, admirado.

— Como soube disso? Sou de sete de abril.

— Então eu estava certo. Áries. O signo dos médicos. Surpreendente encontrar um soldado em você, um médico por natureza. Veja o caso de Ferguson. Não pode deixar de ser Escorpião. De acordo com meu livro favorito de astrologia, publicado no século XVIII, diga-se de passagem, se suas estrelas estavam em posição desfavorável, e certamente estavam, quem for desse signo adora se meter com assassinatos e roubos, promover sedição e perjúrio, é obsceno, arrojado e desumano. Reconhece algumas dessas características nele? — Levantou a mão, impedindo que Fox falasse. — Não, não precisa responder.

Anne-Marie conversava com sua assistente.

— Está bem — disse em francês. — Agora, vamos para o parque. Deixamos o Buckingham Palace para o fim.

O olhar dela passou por Devlin, ela parou e voltou atrás lentamente.

— Bom dia para você — disse ele, alegremente. — Um belo trabalho.

Anne-Marie Audin empalideceu. Devlin tomou as mãos dela e as beijou delicadamente.


Devlin e Anne-Marie estavam sentados em um banco no St. James Park, sob a chuva. Mais além, os auxiliares preparavam cenas para fotos junto ao lago.

O francês de Devlin era excelente, rápido e fluente, mas com um sotaque horroroso.

— Você está muito bem, garota.

— Você também, Liam. Ainda enterrado até as orelhas nessa sua velha causa? Pensei que Londres fosse território perigoso para você.

— História antiga. Não há mais causas. Estou ficando velho, meu bem.

— Ainda falta tempo — disse ela, passando instintivamente a mão nos cabelos.

Devlin lhe ofereceu um cigarro de sua amassada cigarreira de prata. A moça recusou com um movimento de cabeça e ele acendeu um.

— Fotos dos próximos lançamentos da moda? — perguntou ele, apontando o pessoal que trabalhava junto ao lago. — Não é um pouco desinteressante para a correspondente de guerra mais célebre da França? A moça que ganhou o Pulitzer?

— Aí temos o Professor falando. Não seja esnobe, Liam. É a mais famosa revista de moda do mundo e nunca faço senão o melhor que posso. Achei que você devia saber bem disso. Há sempre muito mais em uma forma de arte bem popular do que os críticos estão dispostos a admitir. De qualquer modo, não é só por isso que estou aqui. Esta noite vou trabalhar para Paris-Match, cenas de diferentes aspectos de Londres.

— Eu devia ter suspeitado — disse ele, desajeitadamente. — E ainda lutando pela causa feminina, ainda solteira e já com trinta e cinco anos.

— Trinta e três — corrigiu ela, batendo no ombro dele.

— Mas ainda solteira, e nós sabemos por quê.

Anne-Marie olhou para ele, o rosto impassível, e depois se virou para o lago.

— Há quanto tempo você não o vê? — perguntou Devlin, em tom carinhoso.

— A última vez que tentei já faz três anos. Consegui permissão através do Departamento Judiciário e fui a Belle Isle. Ele se recusou a me receber. Mais tarde escreveu uma carta, a última, na qual dizia que o considerasse morto.

— E então?

— Tirei algumas boas fotos — falou Anne-Marie, com um pequeno sorriso. — Um lugar horrível, Liam.

— Imagino. Vou visitá-lo na terça-feira. Será um encontro muito animador.

Ela o encarou de repente, os olhos brilhando:

— Você vai estar com Martin? Você? Mas como pode ser isso? — Enrugou a testa e dirigiu o olhar para o vulto de Fox, abrigando-se da chuva sob uma árvore. — Quem é esse homem, Liam? Qual é o jogo em que você está metido agora?

Devlin contou tudo, rápida e resumidamente, sem ocultar nada de essencial. Quando terminou, a moça permaneceu imóvel, olhando espantada para ele.

— Mas isso é incrível. Coisa de maluco.

— Pode tirá-lo de lá... ou você prefere que ele fique o resto da vida naquele rochedo?

— Não, naturalmente que não. Faria qualquer coisa, qualquer coisa mesmo para vê-lo em liberdade. Não em meu benefício, Liam, não por amor, mas por ele. — Os dedos dela apertaram com força o braço de Devlin.

— Sei muito bem disso, garota.

Uma das assistentes estava chamando do lago, agitando os braços.

— Preciso ir, mas quero falar com você outra vez.

— Sigo para Marselha amanhã cedo.

— Então esta noite, às nove. Estou fazendo a reportagem de que falei. Cenas de uma das cantinas da Assistência Social, atendendo desabrigados. No lado sul do Parque Lincoln. Esteja lá, por favor, Liam.

Ela falava em tom baixo, apressadamente. Quando se levantaram, Devlin segurou-lhe as mãos.

— Foi sempre difícil negar qualquer coisa a você.

Anne-Marie o beijou no rosto e desceu a encosta na direção do lago.


Estava começando a anoitecer, quando Barry chegou a Marsh End... não que Marsh End fosse muito grande. Uma série de casas espalhadas ao longo da estrada, muitas delas vazias. O local que ele procurava distava uns dois quilômetros dali. O portão de ferro estava aberto e uma estrada de cascalho serpenteava por entre as árvores e conduzia a uma casa de pedra, de cor cinza. A tabuleta no portão anunciava em letras douradas: Henry Salter — Casa Funerária e Crematório.

Barry estacionou o carro ao pé da escada que levava à porta de entrada. Ao saltar, uma garota apareceu, saindo do estábulo à direita, e se deteve, olhando para ele.

Usava botas de borracha, um velho impermeável, um lenço na cabeça e carregava um balde em cada mão. O rosto era calmo, revelando uma singular beleza à meia-luz do crepúsculo.

— O Sr. Salter está? — perguntou Barry.

Ela respondeu com um acentuado e característico sotaque cumbriano e havia uma forte determinação em sua voz.

— Vou ver, sir. Ninguém costuma vir aqui aos domingos. Quem devo anunciar?

— Sinclair — respondeu Barry, sorrindo. — Maurice Sinclair. Verá que ele está esperando por mim.

— Então vamos saber, não é? — disse ela, subindo as escadas, acompanhada de Barry.

Na sala de embalsamento estava tudo em silêncio, e Henry Salter trabalhava sozinho, o avental de borracha sujo de sangue. O cadáver que ele estava embalsamando era o de uma jovem e, naquele momento, as vísceras estavam sendo extraídas. A porta se abriu e a garota entrou. Tinha retirado o lenço da cabeça, soltando sua cabeleira preta; o velho vestido que ela usava era apertado demais, descosturando em vários lugares.

— Já lhe disse — reclamou Salter — que nunca me interrompa quando estou trabalhando, Jenny.

— Há um moço que deseja lhe falar. Chama-se Sinclair. Está esperando lá embaixo.

Salter olhou para ela por alguns segundos.

— Ah, sim, o Sr. Sinclair. Ele vai passar a noite aqui, Jenny, de modo que é preciso preparar o quarto de hóspedes. Depois arranje algo para ele comer.

— Sim, senhor — respondeu ela, naquela sua voz curiosa e olhando para o cadáver. — Era uma moça realmente bonita.

— Era, Jenny, mas é assim que ficamos todos, no fim das contas. Agora seja boazinha e vá tratar de seu serviço.

Ela saiu e Salter levantou o cadáver, mergulhando-o em um tanque cheio de formaldeído. O corpo deslizou no líquido e se manteve alguns centímetros acima do fundo, soltando bolhas de ar. Salter retirou as luvas e o avental de borracha, dirigiu-se para a outra extremidade da sala, onde havia um pequeno banheiro e começou a lavar-se.

A seguir, vestiu um terno de alpaca e colocou a gravata preta. O cabelo grisalho, o rosto magro, os óculos sem aro lhe davam exatamente a aparência que ele julgava o público tinha o direito de esperar de um agente funerário. A morte era um negócio sério e ninguém acreditava mais nisso do que o próprio Salter. Certamente havia pouca ligação entre o rosto grave e respeitável que ele estava vendo no espelho e o do ladrão de segunda classe, que cumprira três sentenças de prisão na juventude, antes de conformar-se com os fatos reais da vida.

Enquanto caminhava pelo corredor, recordou o que sabia daquele tal de Sinclair. A oferta que ele lhe fizera não se podia recusar. As 10.000 libras mencionadas vinham muito a calhar. Somente na semana anterior fora instalado o novo incinerador no crematório, com capacidade para consumir um corpo em 15 minutos. Bem diferente do anterior, tão obsoleto que era necessário deixar o crânio e os ossos da pélvis para o fim.

Outra razão que o impedira de recusar, mesmo que quisesse, era a origem do pedido. Gente de prestígio no submundo de Londres, com quem ele trabalhara inúmeras vezes. A costa junto a Marsh End era deserta, um recanto escondido, cheio de pequenas enseadas, ideal para um barco rápido entrar e sair à noite. Salter agia como intermediário no transporte de drogas para Londres. Quando alguém faz uma coisa dessas, mesmo que seja apenas um vez, nunca mais pode dizer não.

Salter desceu e encontrou Frank Barry encostado no balcão de recepção.

— Sr. Sinclair? — disse ele, estendendo a mão. — Sou Henry Salter. Vamos passar para meu escritório. Lá é mais confortável.

Barry o seguiu pelo estreito corredor e Salter abriu a porta de uma sala repleta de mobília vitoriana. As paredes estavam cobertas de damasco verde-escuro, as cortinas eram de veludo vermelho. Salter ativou o fogo com uma pinça.

— Bebe alguma coisa, Sr. Sinclair?

— Por enquanto, não — disse Barry. — Os negócios em primeiro lugar.

Tirou a pistola do bolso e a colocou sobre a mesa. Salter passou a língua pelos lábios, nervosamente. Barry então abriu a pasta e retirou vários pacotes de vinte libras, empurrando-os na direção de Salter.

— Cinco mil adiantados. O resto depois de completado o trabalho. Correto?

— Perfeitamente, Sr. Sinclair — replicou Salter, recolhendo o dinheiro e guardando-o em uma gaveta.

— Agora, a minha parte. Providenciou tudo?

— Pode ver o barco amanhã cedo. Está numa enseada perto daqui. Pensei que gostaria de passar a noite em nosso quarto de hóspedes.

— O que mais tem para oferecer?

— Uma pequena casa de fazenda no início do vale, a seis quilômetros daqui. Os dois homens que pediu chegaram esta tarde. Estão lá agora.

— Quem são eles?

— Gente do submundo de Liverpool. Já cumpriram pena por roubo à mão armada e coisas assim. Não se assustam com pouco, posso garantir.

— Exatamente o que preciso. Há tempo para vê-los amanhã. E o equipamento?

— Entregaram duas maletas hoje bem cedo.

— Quem?

— Não tenho a menor ideia. Um homem moço, de chapéu e sobretudo escuro. Nunca o tinha visto antes.

Barry sorriu e Salter comentou:

— Seu pessoal parece muito eficiente.

— E por que não seria? Vamos dar uma olhada nessas maletas.

Salter abriu um armário perto da lareira. As maletas eram de couro e tinham fechaduras de segredo, cuja combinação Barry havia decorado.

Girou rapidamente os botões, observando a sequência correta, e abriu a primeira maleta. Continha duas submetralhadoras, dois revólveres Smith & Wesson do Exército britânico, uma Browning automática e várias latas de gás. Os olhos de Salter quase pularam das órbitas. Barry fechou a maleta, desmanchou o segredo e abriu a outra, cheia de uniformes de camuflagem do Exército, boinas azuis e cinturões.

— Posso perguntar para que é tudo isso, Sr. Sinclair? — murmurou Salter, nervosamente. — Parece um grande envolvimento para mim.

— É por isso que estou pagando — replicou Barry, fechando a segunda maleta. — Agora, vamos ao drinque.

Nesse momento houve uma batida na porta e Jenny entrou com uma bandeja.

— Já lhe disse para não me interromper — disse Salter, asperamente.

— Pensei que gostariam de um chazinho.

Ela olhou para Barry; à luz do quarto e sem o lenço na cabeça, ele viu um rosto muito bonito, uma pele morena e lábios carnudos.

— Está bem, garota, vá andando e apronte uma refeição para o Sr. Sinclair.

A moça se retirou, e Frank Barry ignorou o chá, preferindo uma dose de uísque escocês, cuja garrafa vira na prateleira.

— É só ela que está aqui?

Salter enchia sua xícara de chá.

— Sim. Ela é um pouco mole, coitada. Morava no vale na fazenda do pai, um velho beberrão. Ele bateu com o carro num muro certa noite e morreu. A jovem teria ido para a rua, se eu não tivesse comprado a fazenda e tomado conta dela.

— Um filantropo — comentou Barry. — Percebe-se logo.

— Mas ela parece que nunca se recobrou. Sua carne... não sei, parece que está morta. Não reage... — Era como se ele estivesse falando consigo mesmo. Depois, levantou os olhos. — Entende, não é?

— Sim — replicou Barry, enfastiado. — Acho que entendo.

Salter bebeu apressadamente o resto do chá.

— Bem, se me dá licença... Tenho um trabalho para terminar. Um enterro amanhã à tarde. Não pode esperar. Jenny cuidará de tudo.

Retirou-se e Barry tomou seu uísque. A sala estava em silêncio, ouvindo-se apenas o tique-taque do velho relógio de pé. Sentia-se um indefinido odor de mofo, como em um quarto antigo fechado muito tempo, o que aliás combinava com a pesada mobília e a própria natureza do estabelecimento.

Ao abrir a porta, Barry sentiu o cheiro de comida e dirigiu-se para a velha cozinha de chão lajeado. A garota estava junto ao fogão, mexendo qualquer coisa em um panela com uma colher de madeira, e olhou para ele por cima do ombro.

— Está quase pronto — disse com voz incolor, guardando a colher e limpando as mãos no avental. — Vou ao galpão buscar mais lenha para o fogão.

Pegou um grande lampião vermelho embaixo da pia e dirigiu-se para a porta. Barry apressou-se e abriu-a.

— Vou com você. Pode precisar de ajuda.

Ela o encarou, hesitante, depois lhe entregou o lampião.

— Está bem. Fica do outro lado do pátio.

A trilha era irregular, e Barry caminhava com cuidado, praguejando ao pisar em algum buraco. Quando a garota abriu a porta do galpão, ele viu diversos veículos guardados lá dentro: um carro funerário preto, uma grande limusine também preta, um furgão e um Landrover.

A pilha de lenha estava num canto, sob uma galeria cheia de feno.

— Ilumine aqui, Sr. Sinclair — disse ela e, por um momento, à luz do lampião, ela lhe pareceu tão bonita como quando a vira pela primeira vez.

A garota se abaixou, colocando um joelho no chão, de maneira que o vestido de algodão ficou mais esticado nas pernas. Barry esticou o braço e acariciou-lhe a coxa. Ela levantou os olhos por cima do ombro e a indiferença lá estava, refletida neles, como Salter dissera.

Barry entregou-lhe o lampião e sorriu:

— Você leva isso. Eu carrego a lenha.

Ela se levantou, esperando por ele, o rosto na sombra, acima da luz do lampião. Barry pegou algumas achas de lenha, empilhou-as em um braço e dirigiu-se para a porta.


Como qualquer outra grande cidade do mundo, Londres tem sua quota de mendigos que não podem mais se sustentar, recorrendo à caridade alheia porque não têm outra solução.

Quando Devlin e Harry Fox chegaram ao Parque Lincoln pouco antes das nove horas, uma cantina móvel do Exército da Salvação já estava funcionando e a equipe de operadores franceses instalava seu equipamento. Fox estacionou o carro e, acompanhando Devlin, dirigiu-se para Anne-Marie, que vestia um largo casacão de pele de ovelha e conversava animadamente com uma senhora muito simpática, de uniforme de oficial do Exército da Salvação. Ao virar a cabeça, avistou Devlin e Fox que se aproximavam e foi logo ao encontro deles.

— Já é tempo de vocês se conhecerem — disse Devlin. — Harry Fox.

— É um grande prazer, Srta. Audin — falou Fox, amavelmente.

— Mas que diabos está fazendo aqui? — perguntou Devlin. — São câmeras de filmagem?

— Televisão — explicou ela. — Um documentário que estou fazendo para a televisão francesa sobre o lado pobre da vida londrina. — Apontou os vultos que se agrupavam sob os plátanos. — Homens sem esperança — disse ela. — Também algumas mulheres. Desempregados, bêbados, socialmente desajustados ou recém-egressos das prisões. Quando os albergues ficam lotados, os que não conseguem lugar passam mal. A sopa e os sanduíches que recebem aqui são provavelmente a única refeição que eles têm no dia.

Ficaram observando alguns instantes, enquanto os atendentes da cantina serviam o grupo de seres humanos mais infeliz que Harry Fox jamais vira na vida.

— Isso é terrível — comentou ele. — Nunca pensei que fosse assim.

— Alguns dormiram sobre a grade dos exaustores daquele hotel da esquina, aproveitando o calor do porão de aquecimento — disse ela. — O resto se enrola em jornais velhos e se acotovela no pavilhão ali no centro do parque. Pelo menos não se molham.

— Está bem — replicou Devlin —, mas o que você está querendo provar? Que está preocupada? Sei disso. O que deseja de mim?

— Quero ir com você amanhã. Para Marselha. Pode pedir a Martin que me receba. Ele talvez atenda.

— E este negócio aqui? — perguntou Devlin, passando os olhos em torno.

— Não há problema. Esta noite completo a filmagem de que preciso. Aliás, pretendia voltar a Paris na terça-feira.

Devlin olhou para Fox e concordou, com um aceno de cabeça.

— Ela pode ser muito útil.

— Muito bem, Srta. Audin — falou Fox. — Espero-a em Heathrow pela manhã. Antes das dez, por favor. Estarei com sua passagem. Vamos nos encontrar na entrada do saguão internacional.

— Combinado — replicou ela e beijou cerimoniosamente Devlin nas duas faces. — Obrigada, Liam. E agora, acho que devo começar a trabalhar.

Afastou-se em direção às câmeras. Na fila em frente à cantina alguém estava vomitando.

— Nossa Senhora! — exclamou Devlin. — É a única coisa que não posso suportar. Vamos embora daqui.

Os dois homens apressaram o passo, de volta para o carro.


Salter ia na frente, subindo os degraus da escada estreita, cobertos com linóleo. O lanço era longo. Salter afinal parou, abriu uma porta e acendeu a luz. Barry entrou logo atrás dele, carregando as duas maletas, que depositou no solo. O quarto tinha uma cama de casal com armação de ferro, um guarda-roupa, uma mesa de cabeceira de mogno vitoriano e uma pia de mármore.

— Vai ficar bem instalado aqui — disse Salter. — A escada de serviço é logo aqui atrás. Fico na parte da frente da casa. Só Jenny fica aqui em cima. — Sorriu levemente e acrescentou: — Volto pela manhã, para darmos uma olhada no barco. Depois vamos até a fazenda encontrar os outros.

Retirou-se, fechando a porta. Barry despiu o casaco e o pendurou nas costas de uma cadeira. Depois, ficou olhando para sua própria imagem refletida no espelho acima da pia. Havia qualquer coisa errada. Sentia isso no silêncio da garota, nos olhos maliciosos de Salter.

— Um rematado velhaco, se é que conheço essa espécie — murmurou Barry, indo até a porta e passando a chave.

Despiu-se e se estendeu na cama, recostado nos travesseiros, deixando a luz acesa. Acendeu um cigarro e reviu a situação. Tudo realmente muito simples. Deter o caminhão, colocar os alemães e sua escolta fora de ação, prosseguir até Marsh End com o caixão contendo o foguete, descarregá-lo no barco que Salter arranjara e rumar para o largo, ao encontro da traineira russa no fim da noite. Absurdamente simples. Tão simples que alguma coisa devia estar errada.

Acendeu outro cigarro e, nesse momento, viu que a maçaneta da porta girava lentamente. Apanhou a pistola, cruzou o quarto em um segundo e torceu a chave. Abriu a porta violentamente, a tempo de ver Jenny se afastando pelo corredor. Ela estava descalça e vestia apenas uma camisola branca, com um xale nos ombros.

A moça se virou e olhou para ele sem dizer uma palavra. Depois, viu a pistola e não mostrou a menor reação. Barry postou-se de lado, enquanto ela passava por ele e entrava no quarto, ainda muda, e se deitava na cama, os olhos fixos no teto, as mãos enroladas no xale. Barry fechou a porta, colocou a pistola ao alcance da mão e deitou-se ao lado de Jenny, surpreso com o ardor de seu próprio desejo. Quando a beijou, estremeceu como um rapazola, mas não sentiu qualquer reação de parte dela, nem mesmo quando ele lhe acariciou o corpo, levantando a camisola até a cintura, desnudando suas coxas.

Ela continuava imóvel, passivamente, deixando que ele fizesse o que lhe agradasse com o corpo dela, mas não mostrando a mais leve reação, os olhos imóveis, fixos no teto. Já então ele estava excitado demais, desejando-a como há anos não desejava uma mulher.

Afinal, exausto, rolou para um lado e acendeu um cigarro. Ela ainda ficou alguns instantes imóvel, depois levantou-se sem uma palavra, abriu a porta e saiu.

Barry se deixou ficar deitado, fumando e olhando para o teto. Inacreditável. Não fazia sentido. Havia muito tempo que ele precisava de alguém assim. Muito tempo, mesmo. Fechou os olhos e pensou em Norah Cassidy.


6

 

 

A maré estava subindo, a água gorgolejando nos buracos dos caranguejos, cobrindo os baixios lodosos com marolas que cresciam lentamente. Ao longe, um maçarico piou, cortando o silêncio.

Barry e a garota tomaram a estreita trilha de pedra e seguiram atravessando a alta vegetação das margens, que quase chegava à altura da cabeça deles. Para trás, o capim se estendia em uma Unha contínua até o mar, em ambos os lados do estuário, o vento assobiando ao passar entre as hastes esguias. Barry comentou à meia-voz:

— Tenho a sensação de que há olhos nos espiando em cada moita.

— As almas dos mortos — replicou ela. — Meu pai costumava dizer que os romanos estiveram aqui há dois mil anos. Ravenglass, um pouco mais acima na costa, já era então um porto. — Ficou parada por um instante, uma estranha e arcaica figura com um lenço amarrado na cabeça e um velho impermeável. Seu corpo estremeceu visivelmente.

— Não gosto deste lugar. Ele me assusta. Ninguém vem aqui, nem mesmo os que moram na vila, a menos que seja indispensável.

Ela pronunciou as palavras com aquela voz incolor, como o coro de uma peça grega. Barry observou: — Ótimo. Exatamente como eu queria.

Pouco adiante apareceu um pequeno regato. Havia um velho pier de madeira apoiado em estacas apodrecidas mergulhadas na água. Para surpresa de Barry, havia dois barcos atracados, em vez de um.

O primeiro era sofisticado, com uma proa levantada e linhas modernas, pintado de branco, com uma faixa preta ao longo da linha-d'água e obviamente tratado com muito carinho. O nome Kathleen estava caprichosamente pintado na popa em letras douradas.

— Este é o do Sr. Salter — esclareceu ela. — Trouxe o outro de um depósito de barcos em Ravenglass, ontem à tarde.

Era totalmente diferente, uma embarcação a motor de quarenta pés, pintada de preto e cujo nome, Jason-Fowey, estava tão apagado que Barry teve dificuldade em ler. Pulou por cima da amurada e foi examinar a casa do leme, com a garota atrás dele.

— Não parece, mas é um excelente barco no mar.

— Você já andou nele?

Ela confirmou com a cabeça.

— O Sr. Salter usa de vez em quando.

— Para quê?

— Pescaria, quando está de bom humor — disse ela, encolhendo os ombros. — Ele só sai no Kathleen quando o tempo está perfeito.

— E passa as folgas lustrando os metais e esfregando o casco?

Jenny olhou para ele, espantada.

— Como você sabe?

— Oh, percebe-se logo. — Acendeu um cigarro e ofereceu outro à moça. Ela sacudiu a cabeça, recusando.

— Esses homens lá na fazenda... Você já os viu?

— Fui levar leite para eles de manhã.

— Velhos amigos do Sr. Salter?

— Não sei dizer. Nunca os tinha visto antes.

— Mas você não gostou deles, não é verdade?

Estavam muito próximos, os ombros encostados, e ele sentiu novamente a excitação irracional. Ela se virou quase instintivamente, os olhos baixos, e Barry carinhosamente afagou-lhe o rosto. A moça se aproximou mais e, nesse momento, ouviu-se o ruído de passos no pier.

Barry subiu para o convés e encontrou Salter, que transpunha a amurada.

— Ah, já está aqui, Sr. Sinclair — disse Salter. — O que achou?

— O outro me parece mais adequado — respondeu Barry.

Salter ficou chocado e não procurou esconder.

— É meu barco particular, Sr. Sinclair. Uma beleza, como vê. Pode navegar em todo o Mediterrâneo. Este outro, porém, o Jason, é bem melhor do que parece, posso garantir. Pode não ser moderno, mas se testar o motor verá que é de primeira classe. Faz vinte e dois nós. Sonda de profundidade, piloto automático.

— Está bem — admitiu Barry. — Vou confiar em sua palavra.

Salter pareceu aliviado.

— Bem, agora, se não se incomoda, vou levá-lo à fazenda e apresentá-lo a Preston e Varley. Como lhe disse, tenho um enterro hoje e meu tempo está muito apertado.


Hedley Preston acordou e ficou olhando para o teto. Por uns instantes, não soube onde estava, mas afinal se lembrou. Tinha um gosto ruim na boca, a garganta estava seca; levantou-se e apanhou a garrafa de uísque no armário. Vazia. Atirou-a num canto e começou a vestir seu velho jeans e uma suéter. Era um homem com ar sarcástico, cabelo revolto e um rosto onde já se notavam os sinais de uma vida de dissipação.

Acendeu um cigarro, tossindo quando a fumaça lhe chegou à garganta. Olhando pela janela, avistou as encostas úmidas das colinas.

— Credo! — murmurou. — As delícias da vida campestre.

Ao abrir a porta, esbarrou em Jenny Crowther que, com os olhos arregalados de medo, era empurrada por Sam Varley, um sujeito enorme, de camiseta suada e calça grosseira; os olhos avermelhados fuzilavam de raiva. Preston protegeu a garota com um braço e manteve Varley afastado.

— Bem, qual é o problema?

— Eu tinha um pacote com duzentas libras em meu quarto, ontem à noite. Agora, o dinheiro não está mais lá. Esta cadela deve ter roubado.

Seu hálito era azedo, não apenas pela ressaca: o bafo indicava que já estivera em contato com a garrafa naquela manhã.

— Você perdeu o dinheiro para mim no pôquer ontem à noite — esclareceu Preston, pacientemente. — Bêbado demais para lembrar, esse é o problema.

— Não me venha com essa. Você está querendo proteger a garota.

Jenny conseguiu se libertar do braço de Preston e correu. Varley empurrou o outro para o lado e seguiu atrás dela. A porta estava aberta, a garota já estava quase fora quando foi segura pelo ombro. De repente, Varley pareceu cambalear e acabou de costas no chão.

Tentou se levantar, mas foi chutado violentamente nas pernas e voltou a cair, agora sentindo um pé apoiado em sua garganta; debateu-se em vão, olhando espantado para o rosto impassível de Frank Barry. A pressão na garganta aumentou, somente cessando quando Varley já estava sem ar. Barry tirou a pistola do bolso e encostou o cano na testa de Varley.

A garota deu um grito, colocou a mão na boca e ouviu-se a voz desesperada de Henry Salter: — Pelo amor de Deus, não faça isso, Sr. Sinclair.

Barry murmurou pausadamente:

— Toque outra vez nela e lhe arrebento os miolos.

Varley foi tomado de pavor e raiva, a espécie do pavor que lhe afetava os intestinos. Barry retirou o pé e recuou. Quando aquele homem enorme conseguiu ficar em pé, Preston, encostado na porta, começou a rir.

— Cena tocante — disse ele, caminhando na direção de Barry, que voltara a segurar sua pasta. — Sou Hedley Preston, Sr. Sinclair. Este troglodita da Idade da Pedra é Sam Varley. Peço que o desculpe, pois faz pouco tempo que aprendeu a não mais andar de quatro.

— Ainda arrebento essa sua boca a bofetões — ameaçou Varley, entrando na casa.

Preston se afastou um pouco da porta, com um sorriso sardônico, enquanto Barry passava, seguido da garota e de Salter. Quando se reuniram na sala, Varley estava perto do fogo, segurando uma garrafa.

Barry colocou a pasta na mesa e disse para a garota:

— Você vai para a cozinha fazer um pouco de chá ou outra coisa qualquer. — Jenny hesitou por um momento, mas Barry insistiu: — Pode ir, está tudo bem.

A garota se retirou, Salter fechou a porta e ficou encostado nela. Barry indicou Varley com um gesto de cabeça e disse a Preston: — Ele começa cedo.

— Apenas uma pequena fraqueza. Como se diz no teatro, ele estará perfeitamente bem esta noite.

— Estará mesmo? — perguntou Barry, colocando a pistola em cima da mesa e desabotoando o casaco.

— Então? Qual é o trabalho? — quis saber Preston.

— Muito simples. Vamos deter um caminhão numa estrada vicinal a uns trinta quilômetros daqui, na manhã de quarta-feira. Descarregar o que ele contém e trazer a carga para cá.

— E que carga é essa? — perguntou Preston.

— Não é de sua conta — replicou Barry, abrindo a pasta. Aqui está — acrescentou, jogando em cima da mesa vários maços de cédulas de 20 libras. — Cinco mil para cada um. Receberão a outra metade depois de completado o serviço.

Varley se levantou e quis pegar o dinheiro. Preston deu um tapa na mão dele.

— E isso é tudo o que vai nos dizer?

— É um trabalho muito simples — replicou Barry. — Simples demais. Saberão o que devem fazer na manhã de quarta-feira. Três horas de trabalho, no máximo, e podem ir embora. É claro que, se não estiverem interessados...

— Naturalmente que estamos — apressou-se a afirmar Preston, empilhando os maços. — Você manda, Sr. Sinclair. Como diz o sujeito da lâmpada de Aladim, é só ouvir e obedecer.

— Espero que seja assim — replicou Barry, fechando a pasta e virando-se para Salter: — Volto com você agora. Preciso daquele seu Landrover. Tenho algo a fazer à tarde.

— Vai voltar? — perguntou Preston.

— Claro. Pode ficar certo disso.

Quando Barry e Salter se dirigiam para a porta, Jenny apareceu, vinda da cozinha com uma bandeja nas mãos.

— Já vão? — perguntou ela.

— Volto esta noite — disse Barry, sorrindo. — Não se preocupe. Esse gorila não vai mais botar a mão em você. O companheiro dele, que tem mais cabeça, cuidará disso.

Piscou um olho, em uma atitude de conspiração, e entrou na limusine de Salter, partindo em seguida.

Observando tudo pela janela da sala, Varley ameaçou com raiva:

— Quando eu tiver dado cabo desse filho da mãe...

— Não seja bobo, Samuel — replicou Preston. — A menos que eu esteja muito enganado, ele pode rachar você ao meio quando quiser. — Bateu levemente nos maços de notas empilhados à sua frente. — Dez mil já no papo, Samuel, e outros dez a receber, o que é um total bem interessante, qualquer que seja a carga que venha naquele caminhão.

Varley sorriu com ar de cumplicidade.

— Escute, você está pensando a mesma coisa que eu?

— Estudei latim na escola, Samuel. Festine lente. Acelere lentamente. Dessa maneira, você consegue tudo no fim.

— Inclusive aquele sujeitinho?

— Não vejo por que não.

Varley riu satisfeito e pegou a garrafa.

— Vamos celebrar.


De volta à casa, Barry e Salter se dirigiram para o galpão e inspecionaram o Landrover. Salter procurava se desculpar.

— Não escolhi gente bem-educada. Aliás, disse que precisava de pessoal durão, homens capazes de topar qualquer serviço. Eles certamente correspondem ao que foi pedido.

— Qual é a ficha de Preston?

— Vem de família respeitável de classe média. O pai foi contador em Bradford, e Preston frequentou o ginásio lá, de modo que é mais ou menos preparado. Ouvi dizer que estava treinando para ser contador também, mas foi preso por alguma fraude. Desde então, nunca mais deixou o crime. Saiu da prisão há uns seis meses, depois de cumprir três anos de uma sentença de cinco, por assalto à mão armada a um supermercado. Varley, é evidente, não passa de um animal.

— Um animal bêbado — corrigiu Barry. — Mas não se preocupe. Pelo menos já sei com quem estou lidando. Volto cedo.

Guiou o Landrover para fora do galpão e cruzou o pátio. Salter se aproximou do carro funerário, agora já com o esquife e, tirando um lenço do bolso, cuidadosamente inspecionou todo o veículo, de vez em quando reforçando o polimento da parte cromada.


O jato da Air France pousou no Aeroporto Marignane, distante 25 quilômetros de Marselha, precisamente no horário. Havia poucos passageiros, apenas um quarto da lotação, de modo que a passagem pela Alfândega não demorou muito. Quarenta e cinco minutos depois, Devlin e Anne-Marie estavam rodando pela estrada da costa, em um Peugeot alugado.

— Vamos procurar um hotel em Saint-Denise para passar a noite — falou Devlin. — É de lá que partem as lanchas de suprimentos para a prisão.

Ela se limitou a acenar com a cabeça, concentrando-se em dirigir. Devlin continuou falando: — Compreende que não pode ir comigo amanhã, não é? Preciso sondar o terreno.

— Sei disso, Liam — replicou a moça, com um sorriso, e olhando de soslaio. — Como sei também que ele pode continuar não querendo me ver. Há muito tempo que aprendi a não esperar nada de Martin.

— Você fala sério?

— Certa vez, no Vietnã, quando tudo levava a crer que nós provavelmente não escaparíamos, falamos de um encontro em Paris. Em uma mesa de calçada de um café, sob a chuva, sentindo o cheiro dos castanheiros molhados.

— Absolutamente essencial — aparteou Devlin.

Ela sorriu, sem virar a cabeça.

— Querido Liam, por que não foi por você que eu me apaixonei? Eu devia usar um vestido bem parisiense, muito chique.

— Como os que anunciam na televisão. Um belo sonho.

— Com a diferença de que o nosso se concretizou. Ele teve uma licença no Ulster e me encontrou em Paris. Achamos o café, os castanheiros se comportaram à perfeição. Duas semanas apenas e ele regressou. — Encolheu os ombros e acrescentou: — Você entende, havia uma amante esperando por ele. Mais morena do que eu e infinitamente mais exigente.

Continuou guiando em silêncio, pois nada mais havia a dizer.


O salão do bar em Brisingham era espaçoso e confortável, com vigas descobertas, tamboretes altos junto ao balcão e algumas mesas de madeira. Havia fogo na lareira.

Barry era o único freguês. Estava sentado na mesa do fundo, devorando o último dos sanduíches de filé que a proprietária, uma matrona loura, havia trazido para ele.

— Tudo ótimo — comentou Barry. — Não podia estar melhor. — Voltou a encher seu copo de cerveja e perguntou: — Onde se meteram seus fregueses hoje?

— Não aparecem muitos turistas no inverno. Os daqui chegam mais tarde.

— Pensei que havia um campo de pouso da RAF aqui por perto. O local se chama Brisingham, não é?

— Foi fechado há alguns anos. Ficaram apenas uns dez ou doze homens cuidando do lugar. De vez em quando pousa um avião, mas raramente. Recordo o tempo — acrescentou ela com um suspiro —, uns doze anos atrás, quando o bar ficava repleto de rapazes no uniforme azul da RAF.

— Assim é a vida — disse Barry. — Tudo muda. Obrigado pelos sanduíches.

Dez minutos mais tarde, ele reduzia a marcha do Landrover ao avistar a cerca de arame que limitava o campo de pouso. Aproximou-se do portão de entrada, fechado a cadeado, depois retomou a velocidade e se afastou. Dez quilômetros mais à frente, um sinal indicava a entrada para Wastwater, à direita, uma estradinha estreita serpenteando montanha acima.

Barry encontrou o que procurava sem muita dificuldade. Um pequeno bosque, um trecho plano coberto de grama junto à estrada. Depois que desligou o motor, o silêncio foi quebrado pelo piar de um maçarico. Ele podia se sentir como o único homem vivo na face da terra. Saltou do carro e passou os olhos pelos arredores, sorrindo.

— Frank, meu velho — disse com seus botões — acho que você achou o lugar ideal.


O granito extraído de Belle Isle era famoso em toda a França e tão solicitado que as autoridades haviam construído um novo ancoradouro, em águas mais profundas, para embarcações de maior calado. A pedreira propriamente estava situada nos rochedos do norte e, quando Lebel se aproximou, as explosões recomeçaram, a bandeira vermelha de alerta flutuando ao vento.

Cada explosão ecoava como um trovão e arrancava um grande bloco de rocha que se repartia em milhares de pedaços, rolando em cascata. Ao som de um apito, os prisioneiros e seus guardas armados saíam dos abrigos e retomavam o trabalho.

Brosnan e Savary faziam uma dupla, este enchendo uma caçamba do vagonete cujos trilhos chegavam até junto à pedreira, enquanto Brosnan quebrava os pedaços maiores, utilizando uma marreta e uma cunha. Estava sem camisa, com uma tira de pano prendendo-lhe os cabelos. Os músculos das costas se retesavam com o movimento da marreta e seu número de prisioneiro aparecia claramente, tatuado no braço direito.

Com a aproximação de Lebel, Savary interrompeu o trabalho, apoiando-se na caçamba e enxugando o rosto com um trapo.

— Olhe, Pierre. Estou ficando velho. Que tal um serviço na cozinha ou mesmo na biblioteca? Não sou muito exigente.

— Bobagem — disse Lebel. — Você está em forma magnífica para um homem de sua idade. Tudo graças aos exercícios regulares e ao trabalho duro. — Virou-se para Brosnan e tirou um papel e uma caneta do bolso. — Você tem um visitante que chegou na lancha hoje de manhã. Vai recebê-lo?

Brosnan apoiou-se no cabo da marreta e perguntou:

— Quem é?

Lebel olhou para o papel.

— Monsieur Charles Gorman, Solicitador, Parque Lincoln, Londres. Solicitador? Que diabo vem a ser isso?

— É assim que os ingleses chamam os advogados — esclareceu Savary.

— Motivo da visita: assuntos legais — prosseguiu Lebel, com os olhos no papel. Depois, repetiu a pergunta: — Vai recebê-lo?

— Por que não? — replicou Brosnan.

Lebel lhe entregou o papel e a caneta.

— Então assine no lugar apropriado.

Brosnan obedeceu.

— Isso é tudo. Agora, voltem ao trabalho — disse Lebel, dobrando o papel e guardando-o no bolso. — Talvez tenha um trabalhinho para vocês esta noite. Outro corpo. Estão esperando lá na enfermaria que um velho paciente morra a qualquer momento.

— É muita bondade sua se lembrar de nós — ironizou Savary, pegando mais um pedaço de rocha enquanto Lebel se afastava. — Interessante, Martin. Você não me contou que seu advogado vinha visitá-lo.

— Interessante mesmo é que não é meu advogado. Nunca ouvi falar de Charles Gorman em toda a minha vida.

Levantou a marreta e bateu com toda a força, partindo ao meio o bloco que tentava quebrar.


Já escurecera quando Barry chegou à fazenda e freou o Landrover. Ao desligar o motor, ouviu um grito de mulher. No momento em que saltou do carro, a porta da frente se abriu e a luz iluminou o pátio. Jenny Crowther saiu correndo, mas Varley conseguiu agarrá-la.

O vestido dela estava rasgado, deixando um ombro a descoberto. Varley, completamente bêbado, tentava beijá-la. A moça se debatia, a repugnância e o pavor estampados no rosto, enquanto com as unhas procurava arranhá-lo. Barry se aproximou rapidamente e golpeou Varley nos rins, depois o segurou pela gola e o puxou para trás.

Varley deu um grito de dor e caiu sobre um joelho. Ficou nessa posição um momento, sacudindo a cabeça, em seguida levantou os olhos e se deparou com Barry. Levantou-se lentamente, sacudiu outra vez a cabeça como se quisesse clarear as ideias, depois se lançou para a frente, os punhos cerrados, furioso.

Barry saltou para um lado, prendeu o pulso direito de Varley, torceu-o e, aproveitando o impulso do atacante, atirou-o contra a parede. Ajoelhando-se outra vez, Varley ainda tentou se levantar, mas Barry lhe deu um violento chute no estômago. Quando ele caiu de costas, gemendo, Hedley Preston apareceu na porta, dando uma risada de bêbado.

— Bem que eu avisei, Samuel, que o homem podia parti-lo ao meio quando quisesse. Você devia ter me ouvido. Tenho sempre razão, nunca me engano. — Ergueu o copo, saudando: — À sua saúde, Sr. Sinclair, e a todos que navegarem com você.

— Podia ter evitado isso, seu filho da mãe. Não recomendei que o mantivesse na linha?

Tirou a mão direita do bolso, a pistola detonou uma vez, e Preston soltou o copo, gritando e pondo a mão no pescoço. Depois, apoiou-se no portal, o sangue escorrendo entre os dedos. Barry bateu levemente com o cano da pistola na mão ensanguentada.

— Não se assuste, Preston. É apenas um arranhão, para mostrar como sou bom nessas coisas. Na próxima, meu velho, você será um homem morto. — Virou-se, pegou a garota pelo braço e a empurrou para dentro do veículo. — Vou levá-la para a casa de Salter. Aliás, fico lá também esta noite.

Ela estava tremendo e agarrou com força o braço dele. Novamente ele sentiu ressurgir aquela estranha excitação.

— Está tudo bem, agora — disse Barry, acelerando e pegando a mão da garota. — Está tudo bem.


Mais tarde nessa noite, em pé junto à janela do quarto, fumando e olhando para o pátio, ele viu quando a garota saía da cozinha com o lampião e se dirigia para o galpão. Barry abriu a porta e desceu a escada rapidamente.

Ao entrar no galpão, viu a garota agachada, enchendo uma cesta com lenha.

— Espere aí. Deixe-me fazer isso.

— Não se incomode, eu me viro — disse ela em voz baixa, sem levantar a cabeça.

Barry acendeu um cigarro, sentindo uma pressão insuportável no peito, como se estivesse sendo sufocado. Ela trocara o vestido rasgado e o que usava agora era, como o outro, muito apertado, fazendo sobressair as nádegas e as coxas.

Quando ela se levantou, Barry jogou fora o cigarro e se aproximou, tomando-a nos braços e apertando-a contra o peito. Manteve-a assim por uns instantes, beijando-a no pescoço; depois, deitou-a com todo cuidado num monte de feno.

Foi então que ela realmente despertou para a vida, os dedos enfiados nos cabelos dele, a boca sôfrega, cobrindo-o de beijos que eram quase assustadores por sua intensidade.


7

 

 

Era dever de Lebel, como encarregado da seção de Brosnan, acompanhá-lo até a sala de visitas, na manhã de quarta-feira. Quando abriu a porta e entrou em companhia de Brosnan, Devlin estava em pé junto à janela, de costas para eles. Brosnan jamais tivera um choque tão grande em sua vida, como quando o visitante se voltou e veio a seu encontro.

— Ah, Sr. Brosnan! Meu nome é Charles Gorman. Minha firma foi contratada pela Brosnan Corporation de Boston, Massachusetts, para examinar certos aspectos legais que dizem respeito a seu futuro. Há também a ideia de um apelo de clemência, dirigido ao Presidente da França. Falei com sua mãe...

— Minha mãe está perdendo seu tempo, Sr. Gorman — interrompeu Brosnan. — A única maneira de eu sair daqui deste rochedo é dentro de um caixão.

— Monsieur Gorman, desculpe — disse Lebel. — Podem sentar e conversar à vontade. Na qualidade de representante legal, tem direito a isso. Fecharei a porta. Quando tiver terminado, faça o favor de tocar a campainha.

— Posso fumar? — perguntou Devlin.

— Mas claro, Monsieur.

Lebel retirou-se e fechou a porta à chave. Brosnan estendeu a mão por cima da mesa e Devlin a apertou, mantendo-a entre as suas durante algum tempo.

— Cead mile failte — disse Brosnan em irlandês. — Seja bem-vindo.

— Go raibh maith agat — replicou Devlin, com um sorriso. — Muito obrigado. Vamos falar em irlandês, para atrapalhar esses bobocas, caso estejam nos escutando.

Sentou-se, acendeu um cigarro e empurrou o maço para Brosnan por cima da mesa.

— É um prazer revê-lo, Marteen.

Era o apelido carinhoso que geralmente é usado com as crianças. Nos velhos tempos, Brosnan não se importava de ser chamado de Martinzinho por um homem muito menor do que ele. Depois, naturalmente, com o tempo, veio a conhecer Devlin a fundo.

— Apesar de tudo, Martin, você está com excelente aspecto.

— Nunca estive em tão boa forma. Trabalho na pedreira quase todos os dias. Você também parece não ter mudado muito. Ainda em Trinity?

— Eles me mantêm lá por pura consideração. Recebi um convite de Yale para ser professor contratado.

— Deus os abençoe.

— Deu em nada. O Departamento de Estado recusou o visto.

Devlin passou os olhos pela sala, não escondendo sua preocupação.

— É verdade tudo o que dizem disso aqui?

— Fecharam a Ilha do Diabo, mas mantêm esta de reserva. Diga-me, Liam, como você tem andado? Já encontrou aquelas Campinas de Mayo que sempre procurou? Recorda-se do poema do Cego Raftery?

— Uma vez, há mil anos. Novembro de 1943, para ser exato, na hora que se pode chamar de perigo máximo.

— O caso Churchill?

— Nada disso. Uma pequena camponesa feia que virou meu coração não apenas uma vez, mas duas. Tinha dezessete anos e eu trinta e cinco.

— Velho demais?

— Não para o que você está pensando. Mas havia um problema. Eu era o inimigo.

— Então o que está tentando dizer é que encontrou suas Campinas de Mayo já faz vinte e seis anos.

Devlin sorriu com infinita tristeza.

— E as perdi novamente. E agora a gente não fica com vontade de rir de tudo?

— Não necessariamente. Qual é a última?

— Muito simples. Você gostaria de sair daqui?

Brosnan, no primeiro momento, não levou a pergunta a sério.

— Bem, uma pequena intervenção divina não seria demais, contanto que fosse mesmo divina, pois esse detalhe é indispensável. Até minha mãe, que é uma pessoa formidável, descobriu há muito tempo que nem acendendo velas, rezando longos terços e gastando um bom dinheiro adiantaria muita coisa.

— Ela veio visitá-lo?

— Uma vez, há quatro anos. Concordei em recebê-la apenas para deixar bem claro que não queria que ela voltasse mais.

— E Anne-Marie?

Brosnan manteve-se em silêncio durante algum tempo, os nervos tensos.

— O que há com Anne-Marie?

— Deixei-a em Saint-Denise esta manhã. Ela quer vê-lo.

— Não — disse Brosnan. — Não farei isso.

Levantou-se e foi até a janela, agarrando-se às grades, o rosto contra a parede rochosa. Depois de algum tempo, virou-se.

A janela de grades enferrujadas não tinha vidraça e o vento entrava livremente. Devlin sentiu um calafrio.

— Deus tenha piedade de nós, mas não me conformo em ver você aqui.

Brosnan sentou-se novamente à mesa, acendeu outro cigarro e olhou para Devlin.

— Está bem, Liam. O que há em tudo isso? O que você pretende?

Devlin sorriu com ar astuto.

— Faça de conta que sou a tal intervenção divina a que você se referiu. Fique de boca fechada e ouça.


Quando acabou, Brosnan recostou-se na cadeira, pensativo, os olhos parados.

— E então? — perguntou Devlin.

— Não sei. No meu tempo, tinha facilidade em inventar frases como “A Irlanda deve ser livre”. Isso resultava naturalmente do gosto pela literatura, pelo jogo de palavras. De repente, porém, você descobre que, na realidade, deve estar preparado é para caminhar por cima de cadáveres, a fim de atingir seus objetivos.

— E eles compensam?

— Estou começando a duvidar se existe alguma causa que seja digna da perda de uma simples vida humana.

— Compreendo, Marteen. Seu ardor revolucionário esfriou um pouco. O meu também e olhe que estou nisso há muito mais tempo do que você.

Brosnan voltou para a janela, as mãos nas barras de ferro.

— De repente me senti velho, Liam, realmente velho. Entende o que quero dizer? Já não sou mais motivado como antigamente. Nem mesmo por Frank Barry, pela KGB, Ferguson, DI5 e as estúpidas jogadas sangrentas em que todos eles se metem.

— Nem mesmo para sair daqui?

— Não há jeito de Ferguson conseguir minha libertação.

— Ele acha que há.

Brosnan não replicou, e Devlin resolveu apelar para um trunfo que até então evitara.

— Martin, você soube o que aconteceu com Norah?

Brosnan acenou com a cabeça, sem se virar.

— Ouvi falar. Ela morreu há cerca de um ano e meio.

Devlin limpou a garganta.

— Mas soube como foi que ela morreu?

Brosnan se virou, rosto pálido, olhos fuzilando.

— Você tem algo para me contar?

— É difícil saber como começar, Marteen.

Brosnan atravessou a sala em rápidas passadas e segurou Devlin pelos ombros.

— Conte logo! — exclamou, com voz rouca. — Conte logo!

Debruçado sobre a mesa, a cabeça nas mãos, ele permaneceu longo tempo sem nada dizer. De súbito, levantou-se e tocou a campainha.

— Preciso pensar. Falo com você mais tarde. — Antes que Devlin pudesse replicar, a chave girou na fechadura e Lebel apareceu. — O Sr. Gorman trouxe papéis para eu assinar — disse Brosnan. — Gostaria de examiná-los mais detalhadamente. Posso ir para a minha cela por uma hora?

Lebel se virou para Devlin.

— Não tem objeções, monsieur?

— Absolutamente.

— Então faça o favor de esperar aqui. Volto logo e o levo até a cantina dos oficiais. Um refresco ajuda a passar o tempo.

Savary acabara de voltar para a cela, para o descanso do meio-dia. Estava deitado em seu beliche, fumando um cigarro, quando Lebel abriu a porta e Brosnan entrou.

— Volto em uma hora — disse o guarda e retirou-se.

— O que foi que você arranjou? — indagou Savary.

Brosnan fez-lhe um sinal para que ficasse em silêncio, atento ao ruído dos passos de Lebel, que se afastavam.

— Então temos mistério? — perguntou o velho, quando Brosnan sentou-se na cama ao lado dele. — Já percebi. Esse tal de Gorman... Um conhecido seu, afinal.

— Cale a boca e ouça. Não tenho muito tempo.


Quando acabou de falar, Savary estava sentado na cama, fechando e abrindo as mãos excitadamente.

— Pelo amor de Deus, não deixe escapar essa oportunidade, Martin! Vá!

Brosnan colocou a mão no ombro do companheiro, acalmando-o.

— Não, Jacques. Escute. Há ainda outras coisas. Primeiro, não creio que Ferguson seja capaz de conseguir tanto com as autoridades francesas. Não sou um simples larápio, um arrombador vulgar ou um vigarista. Matei um policial e você sabe como eles encaram isso no tal Palais de Justice. Em segundo lugar, mesmo que Ferguson possa ter êxito, levaria tempo... tempo demais para o que preciso fazer.

— Então qual é a alternativa?

— Vou fugir — disse Brosnan, simplesmente.

— Mas Martin, isso é impossível. Ninguém jamais conseguiu escapar deste miserável rochedo.

— Sempre soube que podia passar para o lado de fora dos muros através das galerias de esgoto. Já lhe falei sobre isso — explicou Brosnan. — Mas o problema não estará resolvido, porque continuarei na ilha. Foi quando estávamos naquele serviço de enterro com Lebel, na noite passada, que descobri a solução. Entramos no depósito, pegamos um par de coletes salva-vidas e caímos na água, no penhasco onde se lançam os corpos.

Savary fitou-o com os olhos arregalados.

— Nós? Você disse nós?

— Claro, nós dois, Jacques. Fique neste rochedo e acabará no mar, mais cedo ou mais tarde, enrolado em uma lona. Então, por que não tentar uma oportunidade, enquanto ainda tem forças para lutar?

— Mas... e a Roda do Moinho? — perguntou Savary. — Será a morte para os dois.

— Ou a salvação, entende? Essa correnteza chega a dez nós, virando depois na direção de Saint-Denise. Ora, se houver um barco esperando na área apropriada...

Savary interrompeu, meneando a cabeça.

— Nenhum barco pesqueiro pode chegar a menos de quatro milhas de Belle Isle. Você sabe bem disso.

— A corrente nos levará mais longe do que isso em meia hora.

— Mas o tal barco nunca nos achará. Use a cabeça, Martin. Naquele mar e ainda mais à noite.

— Já pensei nisso. Tudo o que precisamos é um desses aparelhos eletrônicos de sinalização, que os pilotos usam presos em seus coletes salva-vidas, de modo que, quando caem no mar, as lanchas de socorro podem encontrá-los mais facilmente.

— E se não nos acharem? — insistiu Savary.

— Ou se seu coração não aguentar, ou se você ficar enregelado, ou...

— Está bem, está bem. Você já me transmitiu o vírus de sua maluquice. Quando partimos?

— Não vejo nenhuma razão para hesitarmos. Podemos conseguir aqui tudo o que necessitamos, exceto os aparelhos eletrônicos. Eles são do tamanho de um maço de cigarros. Devlin tem de conseguir um e fazê-lo chegar às minhas mãos. Não vai ser difícil.

— E quanto ao barco?

— Estava pensando que é aí que seu filho entra em cena.

— Jean-Paul?

— Se a Union Corse não for capaz de preparar uma excursão noturna de uma traineira ao largo de Saint-Denise, então é melhor desistir.

— Claro que pode — replicou Savary, agora rindo, excitado. — Por Deus, Martin, estou me sentindo uma animação de qual até já tinha esquecido.

Abraçou o companheiro com entusiasmo, beijando-o no rosto. Brosnan levantou-se e bateu na porta da cela.

— Vamos, Pierre! Estou esperando você.


Anne-Marie, sentada na varanda do hotel em Saint-Denise, viu a lancha de suprimentos da prisão entrar na baía, de modo que não se surpreendeu quando Devlin surgiu na varanda ao lado 20 minutos depois. Ele saltou por cima da divisória e se afundou em uma cadeira de vime em frente à moça.

— Você o viu? — perguntou ela, ansiosamente.

— Sim, vi.

— E como ele está?

— Melhor do que nunca. De fato, parece ansioso por lutar.

O rosto dela ficou sombrio.

— O que aconteceu?

— Nada demais. A princípio, quando lhe apresentei a proposta, ele não se mostrou particularmente interessado. Em todo caso, não acreditou que Ferguson consiga tirá-lo de lá. Para ser franco, estou inclinado a concordar com ele.

— E daí?

— Contei sobre Norah. Foi um golpe duro. Se Frank Barry estivesse ao alcance de suas mãos, Martin o teria quebrado ao meio.

Anne-Marie levantou-se e preparou um uísque para ele.

— E isso mudou seu ponto de vista?

— Mais ou menos — disse Devlin, sorvendo um gole. — Céus! Estava precisando disso. Resolveu fugir dentro de dois ou três dias, acompanhado de seu companheiro de cela, um sujeito chamado Savary.

— Mas como ele vai fazer isso?

Devlin explicou detalhadamente. Quando terminou, foi preparar outra dose de uísque.

— O esquema mais complicado que já vi na vida.

Para espanto dele, Anne-Marie foi até o parapeito da varanda, olhando o mar onde a mancha escura de Belle Isle se destacava no horizonte.

— Não sei. Tenho a impressão de que há uma boa margem. É tão encantadoramente simples! Talvez ele tenha razão. Pode dar certo.

— Como pode não dar — disse Devlin, encostando-se no parapeito ao lado dela. — Estive conversando com o piloto da lancha de suprimentos. Ele me contou que em certas noites essa corrente que eles chamam de Roda do Moinho é como um rio em enchente.

— E o que você disse a Martin? Que o ajudaria?

— Não tive muita escolha. Ele me avisou que, se eu não estivesse com tudo preparado na quinta-feira à noite, ele se atiraria na água de qualquer maneira e tentaria boiar as dez milhas até Saint-Denise.

— Isso não é possível — disse ela, sacudindo a cabeça. — Morreriam de frio. Diga-me uma coisa: esse Savary que você mencionou será Jacques Savary, o gângster?

— Ele mesmo. Parece que tem um filho, Jean-Paul, que está seguindo com entusiasmo as pegadas do pai. Terei de entrar em contato com ele o mais cedo possível, em um clube noturno chamado Maison d'Or.

— Ah, eu conheço. O mais famoso estabelecimento do tipo em Marselha. Será interessante ver como você vai se comportar num local como esse. Com seu sotaque, meu querido Liam, acho que talvez você precise dos serviços de uma intérprete.

Devlin franziu a testa e segurou-a pelo braço, no momento em que ela se afastava.

— Está mesmo disposta a se meter nisso? Se não der certo, se sua participação for comprovada, você pode acabar na prisão também.

— Liam, meu querido — disse ela, beijando-o carinhosamente —, um homem tão astuto, com tanta experiência e ainda infantil... Acha que haveria uma maneira de me fazer ficar fora disso?

Deu-lhe uma palmadinha no rosto e entrou no quarto.


Estava chovendo novamente quando Frank Barry e Jenny Crowther chegaram à trilha que conduzia a Marsh End. Os dois barcos balançavam, amarrados no ancoradouro. Foi Kathleen, a embarcação de propriedade de Salter, que Barry escolheu desta vez. Saltou sobre a amurada e depositou no convés a maleta que trouxera. Depois, dirigiu-se para a casa do leme e examinou cuidadosamente seu interior, de joelhos, passando as mãos pelo soalho até encontrar o que procurava. Sob o painel de instrumentos havia uma placa que cobria os interruptores. Quando Barry puxou a placa, ela girou sobre seu eixo. Disse a Jenny: — Fique de olho na trilha. Seja uma boa menina e avise no caso de Salter aparecer.

Tirou do bolso vários objetos que havia comprado naquela manhã no supermercado local: uma chave de parafuso, um furador, uma pequena serra e um punhado de parafusos. Trouxera também algumas braçadeiras, do tipo utilizado para pendurar ferramentas na parede.

Hábil e metodicamente fez os necessários furos na tampa e colocou as braçadeiras. Depois, abriu a maleta, pegou uma das submetralhadoras Sterling, carregou-a e pendurou-a nas braçadeiras. A seguir, carregou também um dos Smith & Wesson e ajustou-o embaixo da Sterling. Fechou a tampa, ouvindo o estalido da lingueta.

Jenny, no lado de fora, sob a chuva, vigiava a praia e também observava o trabalho dele.

— Para que tudo isso? — perguntou ela, a voz agora totalmente diferente, como se pertencesse a uma nova pessoa.

— É o que eu chamo de trunfo de reserva.

Pegou a outra Sterling e com a serra cortou a ponta do detonador, o suficiente para que não atingisse o cartucho. Para ter certeza, carregou a arma e, apontando para o ar, puxou o gatilho, nada acontecendo. A seguir fez a mesma operação no outro Smith & Wesson.

Colocou as armas de volta na maleta, com as latas de gás, e virou-se para Jenny, que não escondia a surpresa.

— Assim, elas não vão funcionar.

— Exatamente, querida — replicou Barry, saindo para a chuva e abraçando a garota pela cintura. — Sou muito cauteloso, Jenny. Sempre gosto de saber exatamente minha posição.

Ela colou seu corpo ao dele, o rosto brilhando no prazer de ser beijada.

— Adoro a chuva — disse Barry. — Ela me dá uma sensação que não sei explicar. Está um dia excelente, graças a Deus. E como ainda temos muito tempo pela frente, sugiro que você me leve a essa trepidante metrópole chamada Ravenglass e me mostre seus pontos pitorescos.


Vinte minutos mais tarde e dez quilômetros além de Marsh End, no caminho de Ravenglass, ele encostou o carro na margem da estrada e desligou o motor.

— O que há de errado? — perguntou Jenny.

— Isso aí na frente. Que lugar é esse?

Havia uma torre de observação, vários hangares em mau estado de conservação e duas pistas em diagonal, cobertas de grama. A cerca de arame que delimitava o perímetro estava bem enferrujada.

— É o Aeroporto de Tanningley — esclareceu Jenny. — A RAF o construiu durante a guerra. Alguém tentou organizar um aeroclube aqui, há alguns anos, mas não deu certo. Está abandonado há alguns anos.

— É mesmo? Está aí uma coisa bem interessante — comentou Barry.

Tornou a ligar o motor e partiu.


A Maison d'Or ficava na parte antiga de Marselha e só se podia chegar lá atravessando a pé uma viela estreita, entre casas de quatro a cinco pavimentos, com balcões de ferro e janelas de venezianas. A despeito de novas e estritas leis invocadas pela polícia, as prostitutas se sentavam nas portas da rua, aproveitando o ar fresco da noite, vestidas das maneiras mais variadas para atrair a freguesia e conversando alegremente com as colegas da calçada em frente.

Quando Devlin passou, de braço com Anne-Marie, ambos foram alvo de numerosos gracejos, alguns obscenos. Devlin estava admirado ante a maneira descontraída com que Anne-Marie encarava a situação e a fluência de seu vocabulário, quando replicava.

— Uma coisa é certa — observou ele. — A mais antiga das profissões é algo deprimente. Como vocês a situam no movimento feminista?

— Cada mulher deve ter a liberdade de escolha, é tudo o que pleiteamos. O que fazem com essa liberdade é problema delas.

A porta da Maison d'Or estava fechada e Anne-Marie tocou a campainha. Um visor se abriu imediatamente na porta e um par de olhos azuis examinou o casal.

— Estamos procurando um pouco de diversão — disse a moça.

— Todos procuram, minha querida. Vocês são membros?

— Não, somos visitantes, mas prometi aqui ao meu amigo uma boa farra. — Levantou a mão e com os dedos fez um gesto obsceno.

A porta se abriu e eles entraram. O porteiro mais parecia um lutador de box, campeão peso médio de seu tempo, os olhos intumescidos pelas cicatrizes. Olhou para Anne-Marie de alto a baixo e assobiou, em sinal de aprovação.

— Você parece uma garota de primeira.

O saguão era decorado em vermelho e ouro. As duas garotas atrás do balcão de recepção usavam elegantes vestidos pretos e uma delas se aproximou para pegar os abrigos dos visitantes.

— Bem que avisei que a Maison d'Or era especial — falou Anne-Marie.

Pelo espelho de moldura dourada, Devlin viu um jovem surgindo de uma pequena porta lateral meio oculta pela cortina do corredor de entrada. Era um homem extraordinariamente atraente, com uma cabeleira ondeada e grandes olhos negros que se moviam com uma espécie de divertido desprezo. O nariz, embora quebrado, por alguma razão misteriosa, combinava perfeitamente com o elegante terno Yves St. Laurent, de flanela azul-marinho. Olhou para eles um momento, o cigarro pendurado no canto da boca, depois se aproximou..

— Monsieur permite? — disse ele.

Devlin levantou os braços, sorrindo ironicamente, enquanto o jovem o examinava com mãos ágeis.

— O que significa isso? — reclamou Anne-Marie, mostrando-se indignada.

— Calma, garota — disse Devlin. — Não há problema. Estou desarmado.

— Desculpe, é a rotina, monsieur — justificou-se o jovem, satisfeito.

— Desculpado — replicou Devlin, alegremente. — É sempre bom a gente estar seguro. Gostaríamos de falar com Monsieur Savary.

— Não é possível — replicou o jovem. — Monsieur Savary não se encontra na casa. Posso transmitir o recado.

— Nada feito. É do tipo que ele por certo preferiria receber pessoalmente. É do pai dele.

O porteiro interveio:

— Escute, que negócio é esse?

O jovem lhe fez um sinal, o sorriso ainda no rosto, mas os olhos denotando preocupação.

— Ah, isso é muito interessante.

— É, sim. Quando Savary chegar, faça o favor de dizer que estamos aqui. Não temos pressa.

Devlin tomou Anne-Marie pelo braço e ambos prosseguiram pelo corredor de entrada do clube. O jovem estalou os dedos e um maître apareceu de repente, levando os visitantes para uma mesa.

— Champanhe — ordenou Anne-Marie. — Uísque irlandês para o cavalheiro.

— Será que vocês têm uma garrafa de Bushmills? — perguntou Devlin.

— Naturalmente, monsieur. Aqui na Maison d'Or temos a vaidade de atender a todos os desejos.

— E espero que isso abranja um largo campo — replicou Devlin, passando os olhos pelo salão.

A cena era típica dos estabelecimentos do gênero em todo o mundo. Um trio tocando música suave, uma pequena pista de dança, mesas quase que umas sobre as outras e uma sala de jogo separada por um arco. Naquele caso específico, a única surpresa estava na ornamentação; a cor das paredes, as cortinas, os tapetes, os móveis — tudo revelava muito bom gosto.

O maître veio pessoalmente trazer os drinques.

— Alguma coisa para comer?

Foi Anne-Marie quem respondeu:

— Mais tarde. Por enquanto, estamos esperando Monsieur Savary.

O maître encolheu os ombros e afastou-se. Devlin, então, perguntou:

— Você não está com uma leve impressão de que não somos bem-vindos?

Levantou o copo, saudando-a e a moça sorveu um gole de champanhe. A maior parte dos fregueses ainda não chegara e o clube se encontrava naquele curioso meio caminho, característico da vida desses estabelecimentos, uma espécie de calmaria antes do lufa-lufa do auge da noite.

O porteiro estava encostado no balcão do bar, um copo na mão, observando-os ostensivamente. Esvaziou o copo e veio até a mesa deles.

— Fique firme — sussurrou Devlin. — A menos que me engane, vamos ter problemas.

— Olhe — disse o porteiro — Monsieur Savary não virá esta noite, de modo que, se eu fosse você, terminaria o drinque e cairia fora. A poule pode ficar, é claro.

A mão dele se apoiou no ombro de Anne-Marie, os grossos dedos escorregando ao longo do decote.

Ela nem pestanejou.

— Gostaria de tomar outra taça de champanhe — disse ela a Devlin.

— Pois não — replicou Devlin, pegando a garrafa. — A propósito — acrescentou, dirigindo-se ao porteiro —, peço desculpas pela falha. Quero dizer, a moça não perguntou de onde ela o conhece, perguntou?

Lentamente, o homem retirou a mão.

— Seu vagabundo de meia-tigela! Sabe o que vou fazer com você?

— Não — retrucou Devlin. — Faça o favor de dizer.

Tinha começado a encher a taça de champanhe de Anne-Marie e, com um gesto quase casual, inverteu a posição da garrafa e a estilhaçou na cabeça do porteiro. O homem deu um grito, caindo sobre um joelho, agarrado à toalha da mesa e fazendo os copos caírem no chão.

Houve logo um pequeno tumulto, os fregueses gritando alarmados. O trio parou de tocar e vários guarda-costas surgiram de todos os lados. Ouviu-se uma ordem enérgica do jovem de nariz quebrado, que apareceu com os braços erguidos.

Todos recuaram, o porteiro levantou-se sacudindo a cabeça como um touro ferido e procurando deter o sangue com um guardanapo molhado de champanhe.

— Tinha razão, chefe — disse ele. — O sujeito não é o que parece.

O jovem examinou o ferimento.

— Não foi grande coisa, Claude. Você já levou piores. Vá fazer um curativo.

Meia dúzia de garçons já arrumava a mesa. O jovem se aproximou.

— Muito bem, monsieur...

— Devlin.

— Apreciei seu estilo.

— Digo o mesmo do seu. É Jean-Paul Savary?

— Touché! — replicou Savary, com uma curvatura jocosa.

— Então por que toda essa encenação?

— Porque reconheci Mademoiselle Audin — disse, tomando a mão dela e beijando-a galantemente. — Não tem um admirador maior. De qualquer modo, precisava de tempo para pensar. Não gosto de agir precipitadamente. — Sentou-se e fez um sinal, chamando o maître. — Mas disse que tinha um recado de meu pai, não foi? Como pode ser isso?

— Ele é companheiro de cela de um amigo meu em Belle Isle.

— Prisioneiro 38930, Martin Brosnan — disse Savary.

— Exatamente. Você até decorou o número?

— Não há nada, relativamente a meu pai e a Belle Isle, que eu não saiba e, no rochedo, o número do prisioneiro o acompanha até a morte. Chegam a tatuá-lo no braço direito de cada um.

— Seu pai está lá faz algum tempo — disse Anne-Marie. — Estou admirada por a Union Corse não ter tomado uma providência.

— Se fosse outro crime qualquer e não aquele pelo qual ele está preso... Tentou dar cabo de De Gaulle. E quase conseguiu. Eles nunca o perdoarão. Ficará lá até morrer.

Havia um tom de súbita ferocidade em sua voz. Anne-Marie insistiu:

— Mas você nunca tentou arrancá-lo de lá?

— De Belle Isle? — perguntou ele, com uma risada de escárnio. — Ninguém jamais conseguiu fugir daquele rochedo desgraçado. Ninguém.

Devlin interrompeu, em tom alegre:

— Pois quinta-feira à noite, Martin Brosnan e seu pai tentarão acabar com essa lenda, com sua ajuda ou sem ela. Esse é o recado que trago de seu velho.

Jean-Paul Savary permaneceu imóvel, as mãos na mesa, os olhos fixos em Devlin. Depois, voltou-os lentamente na direção de Anne-Marie.

— Ele está falando sério?

— Absolutamente.

O jovem respirou profundamente e levantou-se.

— Então sugiro que passemos para meu escritório no andar de cima, para melhor discutirmos o assunto.


Estava muito quente no confortável escritório, e Anne-Marie abriu as portas que davam para a varanda e debruçou-se no peitoril, olhando a baía embaixo. Logo se ergueu e voltou para o escritório.

Devlin e Jean-Paul haviam tirado os paletós e estavam inclinados sobre a mesa coberta por um mapa da região de Belle Isle em grande escala.

— Dará certo? — perguntou Devlin.

— Teoricamente, sim. O aparelho eletrônico que Brosnan mencionou não é problema. Tenho boas ligações com os contrabandistas nessa área. Muitas vezes recolhemos material lançado na entrada da barra por navios usando esses aparelhos. O barco também não é problema. Entramos de sócios, no ano passado, de uma companhia de navios pesqueiros. Temos seis traineiras. Posso destacar uma para Saint-Denise amanhã.

— Em outras palavras: não há empecilhos técnicos para o funcionamento do plano.

— Sim, mas é preciso muito peito para saltar de um rochedo e tentar a fuga com não mais de cinquenta por cento de chances favoráveis.

— Você parece otimista quanto ao êxito.

— Meu pai está há quatorze anos em um túmulo de pedra, Sr. Devlin. Esta é a única oportunidade que ele jamais terá de ganhar a parada. Quem sou eu para recusar a tentativa? Entretanto, há outras coisas a considerar. Parece que não levou em conta alguns pontos muito importantes.

Ouviu-se uma batida na porta e apareceu a cabeça de Claude, o porteiro.

— O Dr. Cresson chegou — disse ele.

— Muito bem, mande entrar.

— Por que precisamos de um médico? — perguntou Anne-Marie.

Jean-Paul acendeu um Gauloise, sem deixar de sorrir.

— Você verá, chèrie, você verá.

André Cresson era um homem alto, moreno, de olhos tristes e papada. Sua roupa, de tão amassada, parecia ter servido de pijama. Fumava sem parar, acendendo um cigarro no toco do anterior, a camisa preta manchada de cinza.

— Disse que eles pretendem passar por dentro das galerias de esgoto? — perguntou ele.

— Exatamente — respondeu Devlin.

Cresson fez uma careta, encolhendo os ombros.

— Isso é mau. Os esgotos já são por si um ambiente horroroso, na melhor das situações, quanto mais em um lugar como Belle Isle. Provavelmente os túneis originais são do século dezoito. A emanação acumulada durante todos esses anos...

— O que quer dizer? — perguntou Jean-Paul.

— Bem, deve haver numerosos bolsões de C02 e metano. O primeiro asfixia. O segundo, além de asfixiar, explode com um simples fósforo aceso. Mas é um risco que eles precisam correr.

— Quer dizer que não podem levar velas nem fósforos? — perguntou Devlin.

— Exato. Vai estar com esse tal de Brosnan novamente, antes da tentativa, monsieur?

— Sim. Já falei com o assistente do diretor da penitenciária. Expliquei-lhe que ainda há alguns detalhes a serem esclarecidos entre mim e meu cliente. Não houve dificuldade. Tenho autorização para visitar Brosnan na quinta-feira de manhã.

— Então sugiro uma lanterna de bolso. Talvez não seja fácil contrabandeá-la para dentro da prisão, mas o grande perigo está nos gases acumulados. Provocarão náuseas, vômitos e mesmo a morte em poucas horas, devido ao acúmulo de agentes patogênicos nos intestinos. Há também a possibilidade de vírus de hepatite.

Seguiu-se um profundo silêncio. Foi Anne-Marie quem perguntou:

— E o que se pode fazer contra isso, doutor?

— Tratamento imediato, a partir do instante em que eles forem recolhidos — replicou Cresson, com um sorriso triste. — Se conseguirem recolhê-los. As águas da Roda do Moinho, meus amigos, mesmo em uma noite não muito fria, baixarão rapidamente a temperatura do corpo. Isso afetará em particular o meu velho amigo Jacques que, para falar a verdade, já não é muito moço.

— Está bem — disse Jean-Paul. — Então virá conosco na traineira para dar-lhes todo o tratamento que for necessário, no momento em que os recolhermos. Naturalmente será devidamente remunerado por esse serviço.

— Não, Jean-Paul — replicou Cresson, meneando a cabeça. — Seu pai e eu andamos juntos tantos anos que nem sei dizer quantos. É um velho amigo. Isso eu insisto em fazer por ele.

— Então agradeço em seu nome.

— Vamos supor que tudo funcione perfeitamente — interrompeu Devlin — e eles consigam escapar. O que faremos depois?

— Conforme lhe disse — respondeu Anne-Marie —, tenho um pequeno sítio nas colinas perto de Nice. Vou para lá quando quero ficar isolada um tempo. É muito sossegado e fica em uma elevação. Pode-se ver de longe quando alguém se aproxima. Eles podem ficar lá durante o período de recuperação.

— E quanto aos criados?

— Não há problema. Tenho apenas uma pequena criação de cabras, de um tipo especial, próprio para montanhas. Há um pastor, o velho Louis, mas está quase sempre percorrendo o campo.

— Parece uma boa solução.

— Agradeço a oferta — disse Jean-Paul —, mas tomarei conta de meu pai.

— Eles precisam desaparecer por algum tempo — recomendou Devlin. — Essa fuga vai dar muito o que falar. Toda a polícia da França estará procurando por eles. A Interpol será alertada.

— É verdade — replicou Jean-Paul —, mas devemos olhar também por outro ângulo. Que tal se o mar for mais forte do que eles? Se morrerem de frio e a Roda do Moinho carregar seus corpos para as rochas ao largo de Saint-Denise?

Houve um longo silêncio. Anne-Marie murmurou, como se tivesse receio de falar:

— Se o que você sugere for o que estou pensando, resta o evidente problema de que os corpos que eles encontrarem não sejam os de Jacques Savary e de Martin Brosnan.

— E não resistirão ao mais simples exame médico legal — acrescentou Devlin.

— Com os rostos completamente deformados, usando os uniformes da prisão, os números tatuados nos braços, os corpos flutuando presos a coletes salva-vidas roubados da prisão? — perguntou Jean-Paul. — Não creio que eles levem o exame além desses detalhes. — Endireitou o corpo, olhando pensativamente para o mapa. — Juntei uma fortuna considerável nos cassinos. Sempre ganhei porque as probabilidades são fortemente em favor da casa. Farei uma profecia neste caso... uma intuição de jogador. Acho que, se as autoridades encontrarem dois corpos, tratarão de enterrá-los o mais rapidamente possível, anunciando simplesmente que os prisioneiros Brosnan e Savary morreram de causas naturais ou talvez em um acidente na pedreira.

— Está querendo dizer que eles abafarão a história da fuga? — perguntou Devlin. — Em outras palavras, que ela não aconteceu?

— Solução muito conveniente, se bem considerada. Dessa maneira, as autoridades não ficarão com um caso para resolver e a reputação de Belle Isle, a prisão de onde ninguém jamais fugiu, permanecerá intacta.

— Acho que ele tem razão — apoiou Anne-Marie. — A coisa faz sentido.

— Pode ser — disse Devlin. — O tempo dirá. E o que mais temos a fazer?

Jean-Paul se virou para Cresson.

— Estamos em suas mãos agora, André. Vasculhe a cidade. Necrotérios, casas funerárias... todos os lugares possíveis. A traineira parte para Saint-Denise amanhã à tarde. Quando desatracar, deverá ter dois cadáveres no refrigerador.

André Cresson acendeu novo cigarro no toco do que estava fumando e tirou uma pequena caderneta do bolso.

— Conheço bem os detalhes de Jacques — disse a Devlin. — Fui seu médico durante anos. Talvez seja bom, monsieur, no interesse da precisão de minhas providências, que me dê uma descrição detalhada desse seu amigo Brosnan.


8

 

 

Frank Barry estava deitado na cama, olhando para o teto. Eram sete da manhã e uma chuva gelada de novembro batia na janela. Jenny Crowther dormia a seu lado, respirando tranquila, os lábios levemente abertos. Ela parecia, em repouso, incrivelmente inocente, até mesmo infantil. Ele agora não tomava muito conhecimento dela, o pensamento concentrado em coisas mais importantes.

Livrou-se dos cobertores, apanhou a roupa que deixara numa cadeira e vestiu os slacks e a velha suéter. Penteou os cabelos com os dedos e foi pegar as maletas.

Jenny acordou e sentou-se na cama.

— Já vai? — perguntou ela, um tom de alarme na voz.

Ele colocou as maletas no chão e se aproximou da cama.

— Não, você fica onde está. Não quero que apareça na fazenda hoje, entendeu?

— Você vai voltar? — perguntou ela, preocupada.

— Mais tarde.

Jenny passou os braços em torno do pescoço dele e o beijou apaixonadamente. O gesto não lhe provocou qualquer reação, e Barry já estava sentindo um estranho arrependimento.

— Seja boazinha — disse ele, apanhando as maletas e saindo.

Havia um cheiro de presunto frito e ele encontrou Salter na cozinha, junto ao fogão.

— Bom-dia, Sr. Sinclair. Posso oferecer-lhe alguma coisa?

— Não, obrigado — respondeu Barry, servindo-se de uma xícara de chá e bebendo apressadamente. — Sempre preferi trabalhar de estômago vazio.

— Hoje então vai ser o grande dia, não é? — comentou Salter, sorrindo.

— Pensei que um velho malandro como você já tivesse aprendido que, quanto menos se sabe de um negócio, melhor. — Dirigiu-se para a porta. — Avisei Jenny para não se aproximar da fazenda hoje. Esse aviso vale para você também.

A ameaça era implícita. Salter permaneceu imóvel, apertando o cabo da frigideira, com ar assustado. Barry saiu e atravessou o pátio na direção do galpão.


Quinze minutos mais tarde, estacionava o Landrover no início do ancoradouro. Continuava caindo uma chuvinha fina, e como de costume, não havia ninguém nos arredores. Barry saltou sobre a amurada do Kathleen e foi para a casa do leme. Inicialmente, examinou a chapa sob o painel, verificando que o Smith & Wesson e a Sterling ainda se encontravam lá. O pequeno bote do Kathleen, preso à popa por um cabo, era do tipo inflável, com um motor externo. Barry o puxou para junto do pier, saltou para o interior e ligou o motor. Como tudo o mais que fizesse parte do barco de Salter, seu estado era perfeito. Funcionou imediatamente e, obediente à manobra de Barry, afastou-se da enseada, em direção ao centro da baía.

Depois de inspecionar vários canais, Barry afinal encontrou um que, penetrando entre tufos altos de capim, conduzia a uma espécie de açude, de uns 20 metros de diâmetro, com as bordas escarpadas e uma profundidade de uns cinco metros no centro.

Era como se ele fosse a primeira pessoa a atingir aquele lugar. Não se ouvia o menor ruído, exceto o da chuva caindo, e ele teve um calafrio, recordando histórias que ouvira, em seus tempos de criança na Irlanda, a respeito de açudes como aquele, onde as fadas apareciam. Parecia-lhe que já havia estado ali antes, que o local esperava por ele. Imaginação, naturalmente, mas a verdade era que não poderia ter encontrado nada melhor. Ligou de novo o motor do bote e voltou à enseada onde se encontravam os dois barcos.


Hedley Preston estava em frente ao espelho do guarda-roupa e ajustava a posição da boina azul do Exército, apoiada numa orelha. O uniforme de camuflagem dava-lhe uma aparência sinistra, com o largo cinto apertado na cintura.

— Ora, vejam — comentou para si mesmo. — O que diriam se me vissem assim?

Desceu e encontrou Varley, uniformizado da mesma maneira, junto ao fogo, o copo na mão. Varley olhou para o companheiro por cima do ombro e rosnou, mal-humorado: — Olhem só o jeito dele. Bancando o herói.

— Uma coisa é certa — disse Preston, alegremente. — Você não vai se dar bem se Sinclair o encontrar com isso na mão.

— Lá vem você com Sinclair! — replicou Varley, mas, ao ouvir o ruído de passos, imediatamente escondeu o copo atrás de uma foto sobre a lareira.

Barry apareceu na porta com uma das maletas. O uniforme lhe assentava bem. Parecia um verdadeiro soldado e a Browning no coldre preso à cintura completava o quadro com perfeição.

— Bem, estamos prontos — disse Preston. — Agora, resta saber o que devemos fazer.

— Saberão apenas o necessário.

Barry colocou a maleta na mesa, abriu-a e tirou um mapa, desdobrando-o.

— Um caminhão, talvez dois, passando por este ponto na estrada para Wastwater. Uma meia dúzia de soldados, com certeza. Deve haver também uma escolta. Mais tarde saberei o efetivo.

— Soldados? — perguntou Varley. — Que negócio é esse?

— Não comece a tremer. Aqui na Grã-Bretanha eles não costumam andar com patrulhas pelos campos, de modo que não há com que se preocupar. Bloquearemos a estrada com o Landrover, para detê-los. — Tirou da maleta uma das granadas de gás. — Jogue isso na parte traseira do caminhão. O gás age instantaneamente. Eles ficarão sem sentidos durante uma hora.

— E quanto a nós? — perguntou Preston.

— Tudo providenciado — disse Barry, mostrando as máscaras, com uma pequena vasilha verde pendurada em cada uma.

— Então eles ficarão dormindo como bebês — gracejou Preston. — E o que nós faremos?

— Transferiremos para o Landrover o que encontrarmos no caminhão. A uns trinta minutos daqui, na costa, tenho um barco esperando. Depois de colocada a carga nele, estará acabado o serviço de vocês. Podem cair fora imediatamente.

— Com as outras cinco mil libras cada um — acrescentou Preston. — É bom não esquecer esse ponto, que é muito importante.

Barry tirou a submetralhadora Sterling e o Smith & Wesson da maleta.

— Estas duas armas estão carregadas, para o caso de acontecer algo errado, mas não quero tiros, salvo se eu der ordem. Entendido?

— Perfeitamente, Sr. Sinclair — disse Preston, acariciando a Sterling. — Esta é mesmo uma belezinha.

Varley apanhou o Smith & Wesson com familiaridade e o colocou no coldre.

— Uma coisa que eu gostaria de saber — disse, provocativamente — é que diabo de coisa tão importante está dentro do tal caminhão.

Barry fechou a maleta e se deixou ficar um longo tempo, imóvel, olhando para eles. Afinal, ordenou, como se nada tivesse ouvido: — Bem, vamos andando. — E saiu da casa.

— Espere um pouco — ia dizendo Varley.

Preston deu-lhe um encontrão.

— Cale essa boca, Sam. Vamos fazer tudo o que ele mandar, conforme já lhe disse, até que chegue o momento de agir. — Apanhou a Sterling e saiu atrás de Barry.


A agência funerária ficava na esquina de uma pracinha na parte velha da cidade. Quando Jean-Paul Savary, Devlin e Anne-Marie se aproximaram, viram um coche funerário parado em frente: uma esplêndida criação barroca, toda pintada de preto, com anjinhos dourados nos cantos e plumas pretas na cabeça dos cavalos.

— Penas de avestruz — esclareceu Jean-Paul. — Hoje, isso é proibido, mas quando o povo é conservador como o daqui, é difícil acabar com os velhos costumes.

Puxou a corrente de uma campainha na porta de entrada. Imediatamente apareceu um velho alto e magro, trajando um surrado terno preto.

— Por aqui, Sr. Savary — disse ele.

Todos seguiram pelo longo corredor escuro. O cheiro do incenso e da cera das velas enchia o ar, tornando-o pesado e opressivo. Havia capelas nos dois lados do corredor, a maioria delas com um cadáver sendo velado dentro de um esquife sem tampa, de maneira que os parentes e amigos pudessem vê-lo.

— Agradeço muito — disse Devlin —, mas gostaria de outra solução.

— Que diferença faz? — perguntou Anne-Marie. — Depois que se está morto, qualquer coisa serve.

Pararam em uma das capelas, examinando um homem deitado em um esquife forrado de cetim preto. Estava vestido com um terno azul, colarinho e gravata, o cabelo cuidadosamente repartido e o rosto bem maquiado, inclusive os lábios pintados de vermelhão.

— O que ele diria se visse o carnaval que fizeram com seu cadáver? — indagou Anne-Marie.

— Desde que isso tenha ajudado a confortar sua velha mãe, está justificado? — perguntou Devlin. — Não, obrigado. Como um mau católico, prefiro a cremação.

O velho abriu uma porta no fim do corredor e encostou-se a parede, para que os visitantes passassem. A sala onde eles entraram era a de preparação dos corpos para serem embalsamados ou lavados, conforme o tipo de enterro. O Dr. Cresson, com seu eterno cigarro no canto da boca, estava junto a um tanque de pedra, falando com um sujeitinho com cara de rato, que usava um velho terno azul-marinho e carregava uma maleta na mão.

Cresson saudou os recém-chegados.

— Tudo bem?

Havia duas mesas de pedra no centro da sala, cada uma com um cadáver coberto por um lençol.

— Está tudo correndo de acordo com os planos? — perguntou Jean-Paul.

— Penso que sim. Estes dois foram vítimas de desastre de automóvel.

— Pode-se dar uma olhada?

— Não aconselharia, a menos que alguém goste desses espetáculos. Foi um choque muito violento, esmigalhando o rosto dos dois.

— Isso será suficiente? — perguntou Devlin.

— Penso que sim, mas vou ainda complementar o trabalho — disse Cresson, indicando com um movimento de cabeça o homem com cara de rato. — Jean-Paul, este é o tatuador, Sr. Black. É inglês, mas está morando em Marselha já há algum tempo.

Jean-Paul estendeu-lhe a mão.

— Sou muito grato por seu auxílio neste caso. A Union Corse não esquece seus amigos, pode estar certo.

— É um prazer, monsieur. Podemos começar?

— Claro — disse Jean-Paul. — Trouxe os números, Cresson?

— Sim.

— Então é só cuidar para que cada cadáver tenha seu número certo.

Anne-Marie e Devlin observavam fascinados, enquanto o homenzinho abria sua pasta, tirava uma agulha elétrica que funcionava a pilha e um vidro de tinta, começando logo a trabalhar.

— Um detalhe suplementar, mas essencial — explicou Jean-Paul.

Sob os olhares dos visitantes, o tatuador inscreveu o número de Brosnan no braço do cadáver mais alto. Friccionou com tinta, depois lavou a pele e levantou o braço tatuado.

— Está bem assim, Sr. Savary?

— Ótimo — respondeu Jean-Paul. — Você é um verdadeiro artista, meu amigo. E agora, o número de meu pai, 28917.

— Perfeitamente, monsieur.

Jean-Paul voltou-se para Anne-Marie e Devlin, dizendo:

— O resto, agora, fica entregue à sorte.


De um local elevado, no meio das árvores que margeiam a estrada, duzentos metros ao norte do Aeroporto de Brisingham, Barry observava de binóculo o descarregamento do avião da Luftwaffe. Ele divisava apenas dois veículos: um grande caminhão de três toneladas e um jipe. Enquanto observava, soldados da Bundeswehr transferiram três caixas para o caminhão e subiram depois.

O oficial que os comandava ainda conversou durante algum tempo com um jovem usando o uniforme de capitão do Exército britânico. A seguir, eles tomaram o jipe que cruzou a pista, seguido pelo caminhão. Barry aguardou que os dois veículos passassem pelo portão e tomassem a estrada para ter certeza, e só então ligou o motor do Landrover e tomou o caminho de volta.

A chuva aumentara consideravelmente desde que Barry partira e não era muito agradável manter-se escondido, acocorado atrás de um muro no meio das árvores à margem da estrada. Varley tinha na mão uma garrafa de uísque, da qual tomava frequentes goles.

— Você realmente não passa de um sem-vergonha — disse Preston.

— Meta-se com sua vida nojenta — replicou Varley. — Ninguém vai me ensinar o que devo fazer. Nem você nem esse tal de Sinclair metido a todo-poderoso. — Esvaziou a garrafa e atirou-a no chão. — Darei cabo dele quando chegar a hora, você vai ver.

Preston sacudiu a cabeça, desanimado. Varley era um perigo, não apenas agora, mas também no futuro, disso ele não tinha dúvida. Por outro lado, quem precisaria dele? Preston acariciou o cano da Sterling e apurou o ouvido, subitamente alertado pelo ruído de um motor que se aproximava.

— Olhe, acho que ele vem chegando.

Momentos depois, o Landrover apareceu. Barry o encostou na margem da estrada, saltou e veio juntar-se a eles.

— Tudo bem? — perguntou Preston.

— Ótimo. Dois veículos. Vem um jipe na frente, com três passageiros, seguido de um caminhão de três toneladas. O motorista e um sargento na cabine, meia dúzia de Krauts atrás. Isso quer dizer três granadas. Atiro a primeira no jipe, quando for falar com eles. Você e Varley tomam conta do caminhão, uma granada na cabine e outra na parte de trás.

— Perfeito, General — disse Varley com voz pastosa, fazendo continência.

Barry se agachou, pegou a garrafa vazia e jogou-a longe, soltando uma praga. Depois, agarrou o brutamontes pela túnica do uniforme.

— Se você estragar meus planos, seu bêbado ordinário, arrebento seus miolos. É uma promessa.

Não houve tempo para mais discussões, pois de súbito se ouviu o ruído surdo de um motor no esforço da subida.

— Vamos lá — disse Barry. — Ponham as máscaras. — Virou-se e correu para a estrada. Abriu a porta do Landrover, pegou sua máscara, pendurou-a no pescoço e ficou esperando.

O major de artilharia alemão viajava no banco de trás do jipe, enquanto o jovem capitão inglês, sentado ao lado do motorista, estava meio de costas, para melhor falar com o major. Assim, só viu Barry quando o motorista chamou sua atenção e reduziu a marcha.

— O que será isso? — disse o capitão, baixando o vidro. — O que foi que aconteceu? — perguntou a Barry, que se aproximava.

— Mudança dos planos, meu velho — respondeu Barry. — Não lhe avisaram? Puxa, isso não se faz!

Arrancou o pino e jogou a granada pela janela aberta, virando-se imediatamente para afivelar a máscara.

Preston e Varley saíram correndo do meio das árvores, Preston dirigindo-se para a parte traseira do caminhão e atirando sua granada por baixo da lona lateral.

Foi Varley quem estragou tudo. Depois de arrancar o pino, começou a correr mas logo tropeçou e estatelou-se no chão, enquanto a granada lhe fugia das mãos e rolava descrevendo espirais de fumaça branca.

A porta do caminhão se abriu e um sargento saltou. Barry, não tendo opção, arrancou a pistola e atirou duas vezes, no momento em que o sargento se lançava em cima de Varley. Imediatamente, Barry pegou a granada fumegante e a jogou para dentro da cabine, onde o motorista continuava sentado atrás do volante.

De repente, tudo ficou em silêncio. Preston fez a volta por trás do caminhão, enquanto Barry ajudava Varley a levantar e o sacudia, furioso, a voz abafada pela máscara.

A seguir, dirigiu-se para a parte de trás do caminhão, baixou a tampa, subiu por cima dos corpos inertes dos soldados alemães e examinou os três caixotes verdes que se encontravam intactos.

Preston e Varley se aproximaram. Foram necessários exatamente quatro minutos para que eles fizessem a transferência da carga para o Landrover. Mais um minuto e o carro já se afastava, deixando os dois veículos do Exército silenciosamente sob a chuva, na margem da estrada.


Jenny Crowther caminhava pela trilha ao lado do estuário — uma figura solitária, com um lenço na cabeça e uma velha capa nos ombros. Sua vida, antes de encontrar Barry, nada mais era do que um dia cinzento depois de outro. Agora, porém, a pobre moça não conseguia pensar em mais nada.

Continuou caminhando pelo ancoradouro, depois parou, contemplando os dois barcos. A seguir, passou por cima da amurada do Kathleen e dirigiu-se à casa do leme, sentando-se no banco,, as costas apoiadas no anteparo, examinando o painel de instrumentos. Por fim, abaixou-se e afastou a placa que escondia a Sterling e o revólver. As armas continuavam penduradas nas braçadeiras. Recolocou a placa em seu lugar e levantou-se.

Passou para o Jason, sem saber o que fazer, procurando adivinhar o que significavam todos aqueles preparativos. Saltou para o barco e foi para a casa do leme, indecisa, sem atinar com o que estava fazendo ali. De repente, ouviu ao longe o ruído de um motor.

Quando ela chegou ao convés, o som já estava muito perto. Hesitou, depois desceu para a cabine, fechando a porta.

O Landrover parou perto do pier e Barry saltou; a seguir, dirigiu-se para a parte de trás, onde estavam Preston e Varley, com os três caixotes.

— Vamos agir, levar tudo para bordo do Jason, o mais rapidamente possível. Passem o primeiro. Posso carregá-lo.

— Como quiser — disse Preston, empurrando um dos volumes.

Era relativamente leve. Barry não teve dificuldade em passá-lo por cima da amurada e descer para a cabine. Jenny, percebendo sua aproximação, correu para o lado oposto da salinha e se escondeu no toalete.

Barry abriu a porta e entrou com sua carga, colocando-a no solo, enquanto Preston e Varley apareciam, trazendo o segundo volume, que era bem maior.

— Ótimo — disse Barry. — Mais um e o trabalho de vocês terá terminado, podem cair fora em seguida.

Varley e Preston trocaram um olhar furtivo e voltaram para o carro, Barry atrás deles. Os dois homens descarregaram o terceiro volume. Enquanto eles faziam o transporte para o Jason, Barry colocou a pasta a seus pés e desabotoou a alça do coldre. Chegavam a seus ouvidos os sons das vozes na cabine. Examinou novamente a Browning, engatilhou-a e a recolocou no coldre. Depois acendeu um cigarro e esperou.

Os dois homens voltaram para o convés e Preston perguntou:

— Trouxe o dinheiro que prometeu, não trouxe?

— Naturalmente.

— Bem, vamos ter uma conversinha a respeito. Gostaríamos de saber o que contêm os caixotes e quanto há de dinheiro nessa pasta.

— Em outras palavras, seu filho da mãe metido a espertinho — interrompeu Varley —, queremos tudo para nós.

Barry olhou para eles com um leve sorriso, o cigarro pendente do canto da boca. Preston o mantinha sob a mira da Sterling e Varley empunhava o Smith & Wesson.

— Depois posso ir embora?

— Receio que não, Sr. Sinclair — respondeu Preston. — Quem perde, perde mesmo.

— Estou muito desapontado — disse Barry, jogando fora o cigarro. — E pensar que vocês iam receber o pagamento combinado e cair fora, quietinhos...

Quando ele segurou o cabo da Browning, Preston puxou o gatilho da Sterling. Ouviu-se apenas o ruído seco do percussor. O sorriso desapareceu de seu rosto, compreendendo ele afinal o quanto se enganara.

No momento em que Barry o alvejou, Jenny surgiu da cabine e, vendo Preston de arma em punho, atirou-se contra ele. A bala a atingiu em cheio arremessando-a para a frente.

Preston a amparou, mantendo-a com um escudo, tentando recuar, mas Barry acertou-lhe um tiro no meio da testa, arrebentando a parte superior do crânio e atirando-o na cabine, ainda agarrado à moça.

Varley tentava freneticamente disparar seu Smith & Wesson, acionando repetida e inutilmente o gatilho. Com um grito desesperado, arremessou a arma contra Barry e pôs-se a correr. Barry o alvejou duas vezes, arrebentando sua espinha. O homenzarrão caiu de joelhos, agarrado à amurada.

Pássaros levantaram voo das margens, circulando em pânico, enchendo o ar com seus gritos. Barry guardou a arma, ajoelhou-se e tomou Jenny nos braços. Ela estava morta, os olhos arregalados. Ele os cerrou carinhosamente.

— Pobrezinha — murmurou, beijando-a na testa. — Não havia necessidade disso. Eu tinha preparado tudo.

Pegou-a no colo e a levou para a cabine, deitando-a em um sofá. Depois, voltou para o convés, ajoelhou-se junto a Preston, desabotoou-lhe a túnica e revistou-o rapidamente.

Conforme esperava, Preston tinha as 5.000 libras, o mesmo acontecendo com Varley. Barry jogou os dois cadáveres dentro da cabine, pegou sua pasta e correu para o Kathleen.

Entrou na casa do leme e iniciou a busca. Os lugares mais simples são sempre os melhores. Havia junto à parede um banco com almofadas servindo de encosto. Atrás delas, coberto por um painel, escondia-se um pequeno depósito de coisas velhas, cordas, latas, sacos plásticos. Colocou a pasta sob um dos sacos e voltou ao convés.

A seguir, enrolou rapidamente os volumes em capas impermeáveis, foi buscar o bote do Kathleen, puxou-o pelo pier e o amarrou à popa do Jason. Depois voltou para bordo e deu partida ao motor. Dez minutos depois, o Jason penetrava, abrindo caminho entre o capinzal, no açude que Barry anteriormente havia descoberto.

Desligou os motores. O Jason deslizou por um tempo e parou. Barry entrou na cabine, ignorando os corpos, e percorreu o barco da proa à popa, abrindo as válvulas do casco. Quando ele chegou ao convés, o Jason já começara a afundar. Barry inflou o bote, saltou para dentro dele e o encostou em uma das margens do açude.

O Jason agora afundava rapidamente, a água já quase atingindo o convés. Barry acendeu um cigarro até que, com uma súbita inclinação, o barco mergulhou de todo até o fundo do açude. Somente então ele ligou o motor de popa do pequeno bote e iniciou seu caminho de volta através do capinzal do estuário.


Henry Salter estava sentado na cozinha, tomando chá. Com os nervos abalados, sua mão tremia um pouco, ao derramar no chá uma dose de conhaque. O vento fustigava as janelas e a chuva batia nos vidros. Odiava o inverno. Irritava-o, deixava-o inquieto, embora não tanto quanto Barry conseguia fazê-lo. Estava agora ouvindo seu hóspede descendo a escada e, logo depois, aparecendo na cozinha, usando o impermeável que vestia quando chegara e carregando uma das maletas de couro. Sentou-se na cadeira em frente a Salter e colocou a maleta sobre a mesa.

— Bem, está tudo pronto. Liberei a fazenda. Não há mais ninguém lá.

— E Preston e Varley?

— Não quiseram esperar o restante do dinheiro e caíram fora. E por falar em dinheiro... — Abriu a maleta, retirou as 5.000 libras de Preston e empurrou as cédulas sobre a mesa, na direção de Salter. — Conforme o prometido.

Salter estava suando um pouco ao pegar os maços de cédulas.

— Estive escutando no rádio, Sr. Sinclair. Não houve qualquer menção a nenhum incidente no noticiário local.

— Mas por que essas coisas preocupam uma pessoa respeitável como o ilustre Sr. Salter?

— Tem razão. Por que eu haveria de me preocupar? Está de partida no Jason agora.

— O Jason já partiu, meu velho — replicou Barry com um sorriso. — Tudo providenciado. Sou um sujeito muito organizado, sabe? — Abriu a maleta, tirou o dinheiro de Varley e o entregou a Salter, maço por maço. Salter observava os movimentos de Barry, fascinado. — Uma gratificação, Sr. Salter. Foi mais do que atencioso e eu sempre soube dar valor aos que merecem. Espero voltar aqui dentro de pouco tempo. Nada muito complicado dessa vez, mas é confortador saber que você está aqui, pronto a atender meus pedidos.

— Claro, Sr. Sinclair. O que mandar.

— Bem, então vou indo.

Barry pegou a maleta e dirigiu-se para a porta. Salter perguntou:

— Ainda uma coisa, Sr. Sinclair. O que é feito de Jenny?

Barry se virou lentamente.

— Não precisa mais se preocupar com Jenny, Sr. Salter. Ela está a meus cuidados a partir de agora.

— Compreendo — disse Salter com ar grave. — Não é surpresa para mim. Ela gostou muito do Sr. Sinclair, aquela garota. Um caso de amor, não foi mesmo?

Barry forçou um sorriso.

— Bem, como se costuma dizer, é isso que mantém o mundo girando.

Saiu. Salter continuou sentado, escutando. Somente quando ouviu que o carro alugado se afastava, começou a contar o dinheiro com dedos trêmulos.


9

 

 

Quando Barry chegou ao Aeroporto de Manchester, seu cabelo já estava novamente empapado de brilhantina e cuidadosamente repartido; recolocara também os óculos de grossos aros de tartaruga. Já estava sendo feita a última chamada para os passageiros do avião de Jersey; como não havia outro naquele dia, foi com um sentimento de alívio que ele afundou na poltrona.

Depois de o avião decolar, pediu um uísque duplo à bela aeromoça da British Airways, acendeu um cigarro e se deixou ficar olhando pela janela, repassando seus pensamentos, com particular atenção para os problemas com Romanov.

— Pobre Nikolai — disse com seus botões. — Certamente vai ter um grande choque.

A aeromoça trouxe a bebida e ele a sorveu lentamente, com visível prazer. As coisas estavam correndo bem, muito bem até.

Uma hora mais tarde, transpunha a porta principal do Aeroporto de Jersey e tomava um táxi para o cais. Ocorreu então o primeiro contratempo. Conforme um aviso escrito a giz em um quadro-negro, não haveria mais saídas da barca para Saint-Malo.

Barry dirigiu-se ao balcão da agência de navegação e foi atendido por um funcionário que demonstrou a costumeira indiferença com o público.

— Um problema técnico, senhor. Amanhã cedo estará tudo restabelecido. Usarão outra barca, se necessário.

Barry, curvando-se ante o inevitável, caminhou ao longo do cais e se hospedou no Royal Yacht Hotel, para passar a noite.


Sentada na varanda do quarto de hotel em Saint-Denise, Anne-Marie procurava divisar Belle Isle no horizonte, pois o dia estava claro, com excelente visibilidade.

Afinal, com auxílio do binóculo, localizou uma mancha, não mais do que isso.

Devlin saiu de seu quarto para a varanda ao lado. Metido em um roupão de banho, enxugava o cabelo.

— Se você quer saber, a traineira ancorou há uma hora no cais pesqueiro.

— Jean-Paul está a bordo?

— Não. Ele virá amanhã com Cresson. Vai telefonar depois que eu tiver visitado a ilha novamente para se certificar de que está tudo bem.

— Você vai com eles amanhã à noite?

— Certamente.

— E eu não posso ir?

Ela não estava implorando, não era desse tipo.

Devlin ironizou:

— Que furo jornalístico isso representaria para você, hein? Que fotos! Outro Pulitzer.

— Filho da mãe! — retrucou ela, carinhosamente.

— Temos que considerar as piores hipóteses. Podemos não localizá-los...

— Ou encontrá-los já mortos de frio? — completou ela, tristemente. — De qualquer modo, gostaria de estar lá, Liam.

— Por que não?

— Obrigada.

— Agradecendo o quê? Deus que nos ajude. E agora me lembro de que tenho de dar um telefonema que venho protelando há pelo menos vinte e quatro horas.

— Importante?

— Ferguson — replicou Devlin.


Ferguson havia sido convocado minutos antes pelo diretor-geral. Quando o telefone tocou no apartamento da Cavendish Square, Harry Fox estava examinando uns documentos.

— O Brigadeiro Ferguson, por favor?

— Lamento, ele não está. Posso ser útil?

— Harry, meu jovem. É seu desaparecido Tio Liam.

Fox ficou imediatamente muito interessado.

— Ora viva, Professor, onde tem andado? Ferguson está uma fera, pois estava combinado que você daria notícias.

— Por Deus, Harry. Será que você não vai parar de me chamar de professor? Fico com a sensação de ser um velho ator representando o papel de Einstein num filme ruim de TV. Diga a Ferguson que tenho trabalhado como uma mula.

— Mas o que aconteceu? Esteve com Brosnan?

— Realmente estive, mas não consegui muita coisa antes de mencionar o caso de Norah. Foi isso que o deixou fulo de raiva.

— De modo que entrará no esquema?

— De certo modo, sim. Olhe, Harry, Ferguson não vai gostar disso, mas a verdade é que Martin não acredita muito no prestígio de seu chefe para tirá-lo de lá, e resolveu agir por conta própria.

— Como é? — exclamou Fox, não escondendo sua surpresa. — Isso é uma loucura. Não vai conseguir nada.

— Ele acha que vai. Você está gravando toda esta conversa, não está?

Fox não pôde evitar uma risada.

— Claro. A Srta. Audin está aí?

— Está. E agora, vou desligar.

— Um momento — pediu Fox. — Como entrar em contato com você?

— Não se incomode — replicou Devlin, com um muxoxo. — Eu telefono — e desligou.

Meia hora depois, Ferguson chegou. Tinha um ar cansado e dirigiu-se diretamente ao armário, servindo-se de um copo de conhaque.

— Que dia, meu Deus!

— O diretor-geral pediu coisa importante, sir?

— Mobilizou todos nós, Harry, todos os chefes de departamento e de seção. Um caso muito grave aconteceu hoje cedo no Lake District. Uma equipe de artilharia da Alemanha Ocidental estava a caminho do Campo de Provas de Wastwater pela rodovia, para uma demonstração do novo foguete antitanque que eles fabricaram. Alguém preparou uma emboscada e deu cabo deles em uma dessas estradas vicinais. Serviço de profissional. Granadas de gás nos veículos. Parece que são das nossas, do SAS.

— Houve tiroteio, sir?

— Um morto... um sargento alemão. Os atacantes usavam uniformes de combate, máscara contra gases e tudo mais. Levaram o foguete, naturalmente, e fugiram.

— Alguma missão especial para nós, sir?

— Não tenho certeza. Estritamente falando, é um problema para a polícia local. A Seção Especial está cooperando, claro, e mandei que Carter fosse com eles, pelo sim, pelo não. Em face da delicadeza do assunto, o diretor-geral recomendou o maior sigilo. Os alemães não vão gostar nem um pouquinho desse incidente.

— Devlin telefonou — disse Fox.

Os olhos de Ferguson se acenderam.

— Foi mesmo? Ora, graças. O que ele disse?

— É melhor ouvir diretamente — sugeriu Fox, ligando o gravador.

O rosto de Ferguson se tornava mais sombrio à medida que escutava. Quando a gravação chegou ao fim, ele se levantou e começou a caminhar nervosamente pela sala.

— Devlin não podia fazer isso comigo!

— Desculpe, sir, mas francamente não vejo que culpa Devlin possa ter. Afinal, foi decisão de Brosnan.

— Uma loucura. Se, por milagre, ele conseguir escapar, a França inteira vai falar do caso. O homem se tornará um herói popular. As autoridades, como medida de autopreservação, vão ser obrigadas a virar o país de cabeça para baixo a fim de encontrá-lo.

Encostou-se na janela, furioso. Harry Fox insinuou, com um sorriso.

— Pode facilmente evitar a fuga.

— Alertando o diretor de Belle Isle? Você faria isso, Harry?

— Não, sir, de jeito nenhum.

— Nem eu, e Devlin sabe disso, o sem-vergonha. De outro modo, não teria contado a história. Não sei o que fazer — acrescentou, sacudindo a cabeça. — Aquela moça, Anne-Marie, ainda está com eles?

— Aparentemente, sim. O que quer que eu faça?

— Não há muito o que fazer, Harry — replicou Ferguson, mas de repente pareceu mudar de ideia. — Espere aí. Você pode redigir um pequeno relatório de tudo o que aconteceu até agora. Os fatos principais, as pessoas envolvidas, as providências que tomamos. Tudo, exceto o detalhe sobre Norah Cassidy.

Fox não escondeu sua surpresa.

— Posso perguntar por que, sir?

— Explico mais tarde, Harry. Uma cópia para meu arquivo pessoal e outra para a Primeira-Ministra, exclusivamente para conhecimento dela.

— Mando essa cópia direto para Downing Street n° 10?

— Ainda não. Quero apenas estar preparado. Ela talvez mande me chamar a qualquer momento. Nunca se sabe. A cabeça dessa ilustre dama é como um relógio suíço. Ultrassecreto, não preciso dizer. Peça a Meg Johnson que datilografe pessoalmente. Ninguém mais deve ter conhecimento desse relatório.


Meg Johnson era uma secretária fora de série. Grisalha, com quase 60 anos, enviuvara em 1951, quando seu marido morreu em combate na Coreia. Desde que Ferguson assumira a direção do Departamento, ela exercia as funções de chefe da secretaria.

O relatório do caso Brosnan, que Harry Fox ditara para ela, cabia em uma única folha de papel ofício. A parte datilográfica estava impecável, as margens devidamente alinhadas. Se a Primeira-Ministra leria aquele documento, então tinha que ser perfeito.

Meg Johnson entregou-o a Fox, que o leu rapidamente e acenou com a cabeça em sinal de aprovação.

— Excelente, Sra. Johnson, como de costume. Uma cópia para a Primeira-Ministra, mas faça o favor de mantê-la com o original no arquivo pessoal do Brigadeiro Ferguson.

Ela voltou para sua sala, relendo ainda uma vez o documento, estritamente do ponto de vista da precisão. O assunto não lhe despertava interesse. Sempre procurara evitar que determinados detalhes de algum relatório a impressionassem. Chegou à conclusão, depois de todos aqueles anos, que essa era a atitude que melhor lhe convinha.

Satisfeita, abriu a porta de sua sala, que se comunicava com a do serviço de cópias. Quem estava trabalhando no copiador era Mary Baxter, secretária adjunta. As duas eram velhas amigas e companheiras de escritório por muitos anos.

— Olá, Mary — disse a Sra. Johnson. — O que está fazendo aqui?

— Aquela menina Jean se sentiu mal na hora do lanche. Estou no lugar dela.

Meg Johnson lhe entregou o relatório:

— Uma cópia, por favor.

Mary Baxter ligou a máquina imediatamente. Ultrassecreto. Pessoal para a Primeira-Ministra. Nesse momento, o telefone tocou na sala de Meg Johnson. A secretária correu para atender.

Era um assunto de rotina, que exigiu três ou quatro minutos para ser resolvido. Quando Meg tomava notas, ouviu uma tosse nervosa e, levantando os olhos, deparou-se com Mary Baxter, junto à mesa, com uma folha de papel na mão.

— Uma cópia só, não foi o que você pediu?

— Obrigada Mary. Ponha aí — replicou Meg Johnson, ainda terminando suas anotações.

Mary procedeu como solicitado e saiu. De volta à sala de cópias, fechou a porta cuidadosamente, depois pegou as duas cópias extras que tirara do relatório, dobrou-as duas vezes e guardou-as no bolso da saia. Consultou o relógio. Estava quase na hora de encerrar o expediente. Apagou as luzes e saiu.


Mary Baxter, como Nikolai Romanov informara a Barry, tinha ficha impecável. Seu pai trabalhara a vida inteira como médico do Exército e a mãe morrera quando ela tinha apenas cinco anos, de modo que sua infância transcorrera em uma sucessão de internatos.

Uma garota simples, mais para feia, ela possuía poucas amigas e ingressara no serviço público como secretária em um ministério. Sua total dedicação ao trabalho lhe assegurara rápidas promoções e, passado algum tempo, fora transferida para a DI5, por ser considerada funcionária de toda confiança.

Ela herdara algum dinheiro do pai, um bom apartamento em St. John's Wood e pouca coisa mais. Com 42 anos, ainda solteira, o cabelo puxado para trás amarrado em um coque e os vestidos muito simples, completados com sapatos de salto baixo, não contribuíam para melhorar-lhe a aparência.

Foi então que ela conheceu Peter Yasnov. Tinha sido convidada para uma recepção na Embaixada do Brasil, um desses convites que acontecem ocasionalmente. Em geral, ela não comparecia a reuniões assim, mas por uma razão qualquer resolveu aceitar, encontrando Peter Yasnov. Ele se mostrou mais do que atencioso. Esteve junto dela durante quase toda a recepção. Não apenas a acompanhou até em casa, mas ainda a levou a um concerto no Albert Hall na semana seguinte.

A gentil e constante insistência com que ele a procurava acabou levando-a para a cama, revelando àquela mulher madura, pela primeira vez, os prazeres do sexo. Foi também nessa ocasião que ela ficou sabendo que Yasnov era adido comercial da Embaixada soviética, mas então estava apaixonada e não se preocupou com o detalhe. A partir de então, qualquer coisa que ele desejasse, Mary conseguia, incluindo informações que chegavam ao conhecimento dela no escritório. Em geral, tais informações não eram de grande valor, mas agora havia algo realmente especial.

Conforme tinham combinado em seu último encontro, ela só deveria vê-lo novamente em quatro dias — uma eternidade de espera — e a ordem era não telefonar para seu apartamento. Naquele caso, porém...

Ela tirara duas cópias, para se assegurar de que pelo menos uma saísse boa. Guardou uma na gaveta de seu toucador, colocou a outra na bolsa e saiu.


Já havia dois anos que Peter Yasnov exercia as funções de adido comercial na Embaixada soviética em Londres. Com o posto de capitão da KGB, suas funções anteriores foram exercidas na Embaixada em Paris, onde, sob a orientação de Nikolai Romanov, fizera notáveis progressos. Jovem, bonito e elegante, era um homem que despertava facilmente as atenções femininas, o que oferecia certas vantagens e explicava por que seus chefes tinham permitido que ele alugasse uma casa em Ebury Court, não muito longe do St. James Palace.

Acabara de sair do chuveiro cantarolando baixinho e, de roupão, foi até a sala pegar um cigarro. Ao olhar distraidamente pela janela, avistou Mary Baxter dobrar a esquina e dirigir-se a sua casa, passando por dois operários da companhia telefônica que instalavam sua barraca verde na boca de entrada da galeria subterrânea. Yasnov rosnou uma praga e foi esperá-la na porta.


A principal função da Seção Especial da Polícia Metropolitana na Scotland Yard é atuar como agente executivo dos Serviços de Segurança. A vigilância constitui uma boa parte do trabalho da Seção Especial e os dois detetives disfarçados de operários da telefônica, na barraca em Ebury Court, vinham acompanhando as atividades de Peter Yasnov há um mês.

Mary Baxter tocou a campainha e, enquanto esperava, virou-se para a rua, permitindo que um dos detetives tirasse uma série de excelentes fotos.

— Eu nunca tinha visto essa mulher. E você? — perguntou o fotógrafo.

— Não faz o estilo dele — comentou seu colega. — Não tem nada de “boa”.

A porta se abriu e Yasnov apareceu com seu roupão branco. Mary Baxter passou os braços em torno do pescoço dele e o beijou, enquanto a câmera do detetive continuava funcionando.

— Essa agora foi um pouco estranha — disse o detetive, enquanto Mary Baxter entrava e a porta era fechada. — Ele pareceu não ter gostado. É melhor você seguir essa dona quando ela sair, George. Descubra quem é. Desta vez parece que há uma pista.


Yasnov não escondeu a irritação.

— Eu já a tinha proibido de me visitar — disse ele, sacudindo-a pelos ombros. — Está querendo botar tudo a perder?

— Desculpe, Peter. Não tive intenção de prejudicá-lo.

Havia lágrimas nos olhos dela. Yasnov fez um esforço para se dominar e apertou-a contra o peito.

— Está bem. Perdoe eu ter perdido a calma, mas você deve compreender minha posição.

— Tem razão, Peter. Lamento muito, mas — acrescentou ela, abrindo a bolsa — achei que você estaria muito interessado em ver este documento e me apressei em trazê-lo.

Ultrassecreto. Pessoal para a Primeira-Ministra. No momento em que Yasnov leu essas palavras, seu estômago se contraiu de excitação e o papel tremeu em suas mãos. Encostou-se na lareira e começou a ler o documento. A melhor informação que ele jamais poderia obter. Era inconcebível que aquela infeliz, metida em uma saia de lã, tivesse vindo trazer uma coisa assim. Ela se aproximou medrosamente.

— Fiz tudo direitinho? Não era isso o que você queria?

Ele se virou com um sorriso fascinante e tomou-a nos braços.

— Para uma garota excepcional, um beijo excepcional — exclamou, antes de colar os lábios nos dela.

Mary aconchegou-se no peito dele, trêmula de prazer.

— Oh, Peter! Farei qualquer coisa por você. O que quiser.

Yasnov acariciou-lhe os cabelos e olhou o relógio. Ainda tinha 15 minutos e podia fazê-la feliz. Passou o braço pela cintura dela.

— Vamos subir, minha querida — sussurrou no ouvido dela e conduziu-a para o quarto.


Mary Baxter saiu meia hora depois. Nunca se sentira tão feliz. Era como se algo que ela mantivera durante anos escondido de repente fosse libertado. O prazer de viver lhe despertara tanta energia, que caminhou boa parte do percurso até seu apartamento antes de tomar o metrô, sem desconfiar nem de leve que estava sendo seguida.


Yasnov deixou a casa uma hora depois e percorreu a pé cerca de dois quarteirões, antes de tomar um táxi. Saltou na Kensington High Street e caminhou até a sede da Embaixada Soviética, em Kensington Palace Gardens. Cinco minutos mais tarde era recebido por seu superior imediato, Coronel Joseph Golchek.

O coronel leu o documento duas vezes e sacudiu a cabeça, satisfeito.

— Muito interessante — comentou ele, acendendo um cigarro americano. — Claro que não vai provocar a Terceira Guerra Mundial ou coisa parecida. Seu verdadeiro valor está não na substância do relatório, mas nas possibilidades dessa tal de Mary Baxter de se apossar de um documento ultrassecreto, dirigido pessoalmente à Primeira-Ministra. Essas possibilidades me parecem fantásticas!

— E quanto ao relatório? O que devo fazer com ele? — perguntou Yasnov.

— Mande para Nikolai Romanov em Paris, Código Três, pessoal, secreto. Ele saberá o melhor meio de usá-lo.

— Está bem — disse Yasnov, dirigindo-se para a porta.

Ao abri-la, Golchek o chamou:

— Ainda uma coisa, Peter.

— O que é?

— Você precisa continuar fazendo essa mulher feliz.

— Por esse sacrifício — replicou Peter Yasnov com um suspiro — eu bem merecia ser condecorado como Herói da União Soviética.


Eram nove da noite quando Mary Baxter foi levada por uma detetive da Seção Especial à presença de Charles Ferguson. Ele fez um sinal com a cabeça e a detetive se retirou, fechando a porta.

— Sente-se, Srta. Baxter.

Ela obedeceu, sentindo-se subitamente cansada. Mas não estava assustada. O choque de sua prisão produzira um efeito entorpecente e ela não estava realmente em condições de raciocinar. Nunca lhe ocorrera, por um momento sequer, a possibilidade de que lhe acontecesse algo assim.

— Sabe por que está aqui? — perguntou Ferguson.

— Não tenho a menor ideia. Algum erro em meu serviço?

Ferguson empurrou na direção dela as fotos sobre a mesa. Mary olhou para elas, como se não entendesse, até que pôs os olhos na que mostrava o momento em que, na porta da casa de Yasnov, ela o beijava.

— Não tem o direito... — protestou ela.

— Temos todo o direito — interrompeu Ferguson. — Você trabalha para o Serviço de Segurança britânico. Bem sei que não é em um cargo de relevo, mas suas relações com um homem na posição de Yasnov são muito suspeitas.

— Mas ele é adido comercial da Embaixada soviética.

— E também, Srta. Baxter, capitão da KGB.

Ela arregalou os olhos, incrédula.

— Está inventando isso.

— Tenho aqui uma foto dele, fardado. Muito boa, não acha?

Depois de uma leve batida na porta, Harry Fox entrou, sua preocupação estampada no rosto. Olhou ligeiramente para Mary Baxter e colocou na mesa a segunda cópia do relatório Brosnan.

— Encontrei isso, sir, na gaveta do toucador no apartamento dela.

— Santo Deus! — exclamou Ferguson, fazendo um sinal para Fox e saindo ambos para o corredor.

— Fique de olho nela — recomendou à detetive, que entrou no escritório, fechando a porta.

— E agora, sir? — perguntou Harry Fox. — O que vamos fazer?

— O que pudermos, Harry, além de rezar para que Devlin ligue para nós outra vez. Esta traição vai criar sérios problemas.

— E quanto a essa mulherzinha?

— Vamos ver o que podemos fazer.

Retornaram para o escritório e a detetive novamente deixou a sala. Mary Baxter continuava sentada com os olhos fixos na foto de Peter Yasnov, fardado de capitão da KGB. Cessara de chorar e havia agora em seu rosto inchado algo que mais se assemelhava a ódio. Ferguson percebeu logo a mudança.

— Esse homem não teve pena de fazer você de boba, não acha?

— Ele jurou que me amava — disse ela, amargamente. — Tudo mentira, nada mais do que mentira — acrescentou, rasgando a foto. — Tenho vontade de matá-lo.

— É muito melhor fazer com que ele pague com a mesma moeda — sugeriu Ferguson, oferecendo-lhe um cigarro.

— O que quer dizer com isso?

— Você pode ir para a prisão. Por um longo tempo. Por outro lado, acho uma pena não aproveitar uma outra maneira de explorar o assunto. — Apontou o relatório e prosseguiu: — Isso aí é história passada. Nada podemos fazer.

— Qual é exatamente sua ideia?

— Muito simples. Você continua suas relações com Yasnov, como se nada tivesse acontecido, e passa a entregar-lhe informações fornecidas por mim.

Ela meneou a cabeça negativamente, muito chocada.

— Não creio que seja capaz de fazer uma coisa dessas.

— Por que não? Ele a explorou em favor de sua causa, não foi? A meu ver, é mais do que justo que você o explore em favor da nossa.

Ela parecia agora uma pessoa totalmente mudada, as faces em brasa.

— Olhe, Brigadeiro, estou achando que vou gostar de fazer isso. Dá licença para que eu passe um pouco de água no rosto?

— À vontade — respondeu Ferguson. — O banheiro é naquela porta.

— Santo Deus! — desabafou Harry Fox, quando ela saiu.

— É para você ver, Harry. Bem que o avisei o quanto este negócio é feito de sujeira. Pode dispensar a detetive da Seção Especial. Não vamos mais precisar dela.


Em Paris, a máquina de decodificação matraqueava na sala de rádio da seção de informações da Embaixada soviética. A operadora observava a mensagem que ia aparecendo, linha após linha, no mostrador. Quando a transmissão chegou ao fim, ela retirou a cópia e a levou para a supervisora.

— Um Código Três de Londres para o Coronel Romanov, pessoal secreto. Inclui três fotos transmitidas pelo rádio como informação complementar. Temos os números da série.

— Ele está em Berlim — respondeu a supervisora. — Deve voltar amanhã à tarde ou à noite. É indispensável sua chave pessoal para decodificar. Vou pegar as fotos na sala do rádio.

A supervisora saiu e a operadora colocou a cópia na gaveta, fechou-a à chave e voltou ao trabalho.


Era quase meia-noite e um vento frio soprava na varanda do quarto do hotel de Anne-Marie em Saint-Denise. Ela entrou, voltando logo depois, abrigada em seu casaco de pele de carneiro, e sentou-se novamente ao lado de Devlin.

— Amanhã à noite, mais ou menos a esta hora, estará tudo terminado.

— Tem razão — murmurou Devlin, a brasa do cigarro brilhando na escuridão.

— Como ele está, Liam?

— Mudado, Anne-Marie, e consideravelmente. Prepare-se para enfrentar algumas diferenças bem grandes.

— Não me preocupo com isso. É essencial para qualquer ser humano crescer ou mudar ou aprender a se conformar com suas limitações.

— Ah! Você está falando do espinhoso caminho da maturidade, mas eu me refiro a alguma coisa mais. Ele não é o sujeito valente que salvou sua vida naquele pantanal do Vietnã, nem o bravo soldado que combateu a meu lado no Ulster, em 1969. Para ser franco com você, se ele aprendeu algo útil é que nesse tempo todo apenas foi explorado em benefício de interesses alheios. Tenho a impressão de que ele não acredita em mais nada.

— Não posso concordar com você.

— Olhe aqui, querida, não tente fazer dele um herói mitológico. Martin pode ser tudo, menos isso. Agora, vou me deitar. A lancha de suprimentos parte às sete.

Passou uma perna sobre a divisória da varanda e entrou em seu quarto, enquanto Anne-Marie se deixava ficar, sozinha, mergulhada na escuridão.


10

 

 

Quando Lebel abriu a porta da sala de entrevistas e fez Brosnan entrar, Devlin estava parado junto à janela, olhando através das grades. Ao ouvir os passos, virou-se, sorrindo.

— Ah, chegaram.

— Como vai, Sr. Gorman? — disse Brosnan, estendendo a mão e se sentando em frente a Devlin.

— Se precisar de mim, monsieur, é só tocar a campainha — disse Lebel, saindo e fechando a porta.

Os dois homens começaram a falar em irlandês. Devlin perguntou:

— Ele costuma revistá-lo, quando o leva de volta para a cela?

— Pierre? Não, ele é muito descansado. O que foi que você trouxe para mim?

— Fume um cigarro — disse Devlin, abrindo a pasta e tirando dois pacotes. — Um contém o aparelho eletrônico e o outro uma lanterna elétrica. Receei que você não conseguisse arranjar uma, para andar no encanamento.

— Temos velas e fósforos.

— Santa Mãe de Deus! — exclamou Devlin. — A pior coisa que você poderia fazer. Haveria logo uma explosão. Agora, escute.

Com voz pausada, abordou todos os detalhes. Quando terminou, Brosnan acenou com a cabeça, agradecido.

— Você parece que pensou em tudo, o que não é de admirar, pois foi sempre do tipo metódico. Gostei da ideia dos dois cadáveres. Jacques vai achar muita graça. Como é natural, o filho vai nas pegadas do pai.

— A que horas vocês sairão?

— As celas são fechadas às oito e meia todas as noites. Já então está escuro e podemos nos movimentar a partir dessa hora. Não há outra inspeção antes da meia-noite.

— Quer dizer que só a essa hora eles darão falta de vocês?

— Não, da maneira como Lebel costuma inspecionar. Com um pouco de sorte, só descobrirão às sete da manhã.

— Entendo. E qual o tempo para percorrer os encanamentos?

— Inicialmente há um trecho em subida. Digamos que exija uma hora. Tudo correndo bem, estaremos na rocha dos funerais às nove e meia. A correnteza deve nos carregar para fora do limite das quatro milhas lá pelas dez e quinze.

Devlin ficou olhando para ele, a testa franzida.

— Sabe que é uma tentativa desesperada, não?

— Claro que sei — replicou Brosnan.

Devlin levantou-se e rolou uma pequena bola de plástico em cima da mesa.

— Quando se retira a casca, aparece o interior luminoso. É um artefato de sinalização que usamos na guerra. Salvou minha vida uma vez. Sei que há os fachos nos coletes salva-vidas, mas, se por acaso...

Encolheu os ombros e foi até a janela. Através das grades, podia divisar a Roda do Moinho, recoberta de espuma, apesar da calmaria no mar.

Brosnan se aproximou, batendo no ombro dele.

— Não se preocupe, Liam. Jacques Savary e eu sabemos bem o que estamos fazendo. Todos, afinal, acabaremos um dia dentro de um caixão. O importante é ter coragem para espernear.


O hidrofólio de Jersey para Saint-Malo levou quase uma hora para fazer a travessia. Frank Barry encheu o tempo lendo os jornais ingleses que comprara antes de deixar St. Helier.

Não havia a menor menção ao assalto de Wastwater, fato que lhe pareceu muito sintomático. Por outro lado, o sigilo fazia sentido. Era exatamente o tipo de notícia que nem mesmo os alemães ocidentais gostariam de divulgar.

Passou pela alfândega sem qualquer dificuldade, usando seu passaporte francês e imediatamente procurou um telefone público, ligando para Romanov, em Paris.

Atendeu a secretária da seção de pessoal da Embaixada soviética, Irana Vronsky, informando-o de que acabara de falar com Romanov em Berlim Oriental, e que ele não estaria de volta antes do voo da meia-noite.

— Se ele telefonar outra vez, avise que vou ligar amanhã de manhã.

Barry pegou sua maleta e deixou a cabine. O trem para Paris partiria em 20 minutos. Não havia razão para pressa. Tinha pela frente quase um dia inteiro e o tempo estava maravilhoso. Atravessou a praça e entrou em uma agência de carros de aluguel. Quinze minutos depois, corria pela estrada ao volante de um Peugeot conversível, com a capota arriada.


Estava bem escuro e a traineira atravessava a entrada da barra de Saint-Denise, quando Devlin desceu atrás de Jean-Paul a escada do depósito de peixes. A porta do frigorífico estava aberta e o Dr. Cresson, auxiliado por Claude, o porteiro do clube, abria os sacos de plástico que continham os dois cadáveres, colocados sobre a prancha destinada à limpeza dos peixes.

Pelo que Devlin podia ver, na meia-luz do frigorífico, os rostos dos dois homens estavam totalmente deformados, não dando margem à identificação.

— Credo! — exclamou ele.

— A força da corrente da Roda do Moinho, arrebentando contra as rochas ao longo dos recifes de Saint-Denise, deve provocar choques assim.

Devlin apalpou a perna de um dos corpos. Parecia de mármore.

— Se houver uma autópsia, descobrirão que o tempo em que ocorreu a morte foi bem diferente do que queremos que eles pensem. Isso não causará problemas?

— Conservando os corpos congelados, como fizemos, esse risco se reduz muito — explicou Cresson —, retardando o processo de decomposição. Mas, francamente, meu amigo, se isso acontecer é porque as autoridades aceitaram esses dois cavalheiros como o que pensam que são.

— Ou que não são — disse Devlin.

Voltou com Jean-Paul para o convés e ambos entraram na casa do leme. O comandante era mais idoso do que Devlin imaginara, o rosto enrugado meio oculto pela aba do boné. Usava capa de oleado. O charutinho que ele fumava tinha um cheiro tão forte que Devlin parou na porta.

— Então, Marcel — perguntou Jean-Paul —, como vão as coisas?

— Não muito bem, patrão. A previsão do tempo é desfavorável, ventos de sete a oito nós. Nada suficientemente violento para arrancar nosso mastro, mas para os homens que estão lá na corrente da Roda do Moinho...

Jean-Paul se voltou para Devlin, procurando esconder sua palidez.

— Não se preocupe. Esse velho lobo do mar é o melhor piloto de toda a costa. Se há alguém que pode quebrar este galho, não há outro como ele, naturalmente com o auxílio deste aparelhinho — acrescentou Jean-Paul, indicando a caixa azul em cima da prancheta. — É a última novidade. Mandei instalá-la ontem. Tudo automático. Uma vez ajustado no comprimento de onda do aparelho que Brosnan tem, estaremos diretamente no rumo, quaisquer que sejam as condições do tempo.

— Ótimo — disse Devlin. — Mas se você tiver algumas velas à mão, gostaria de acender algumas para ajudar na busca.

Jean-Paul retornou ao exame das cartas de navegação e Devlin dirigiu-se para a ponte, onde estava Anne-Marie, protegida por seu casacão de pele de carneiro. As ondas batiam no casco e salpicavam o convés, enquanto a traineira mergulhava a proa na espuma branca.

— Não está muito favorável, não acha? — comentou ela.

— Pela amostra, parece que não — replicou Devlin, segurando-se na amurada. — O comandante receia que o tempo ainda vá piorar, antes de começar a bonança.

— O bastante para detê-los? Martin e Savary, quero dizer.

— Posso falar apenas por Martin, mas, na minha opinião, nada impedirá que ele entre na água, desde que consiga sair de dentro das muralhas, por maior que seja a tempestade. Está preparado até para morrer, se necessário. Isso é que é o importante.

— Meu Deus! — murmurou Anne-Marie, e subitamente agarrou-se ao braço do amigo, quando um estrondo mais forte reboou ao longe. — Ouviu isso, Liam? O que significa?

— Pelo jeito, sou capaz de jurar que é a tal Roda do Moinho.

Ela não disse mais uma palavra. Devlin passou o braço pelos ombros da moça e os dois ficaram imóveis, junto à amurada, ouvindo o ronco cada vez mais perto.


Pierre Lebel abriu a janelinha na parte superior da porta da cela e espiou. Brosnan e Savary estavam sentados, um em frente ao outro, com um caixote entre eles.

Savary tinha nas mãos um baralho de cartomante e estava tirando a sorte.

— Isso responde às perguntas que faço — explicou ele. — Informa também o que vai acontecer no futuro próximo.

— É mesmo? — duvidou Brosnan. — Você me surpreende. Devo fazer uma cruz na palma da sua mão com uma moeda de prata?

— Já lhe contei uma vez que tenho sangue de cigano.

— Vocês já deviam estar na cama — interrompeu Lebel. — Vou apagar a luz.

A cela ficou mergulhada na escuridão. Savary não pôde se conter:

— Deus o abençoe, Pierre, e obrigado por tudo. Você sempre foi muito legal.

— Idiota! — resmungou Brosnan.

Lebel foi verificar a cela seguinte e eles ficaram ouvindo os passos do guarda, afastando-se pelo corredor. O portão de grades rangeu nos gonzos, ouviu-se ainda o som dos passos descendo a escada, depois reinou o silêncio.

— Acenda a lanterna — disse Savary. — Quero ver o que dizem as cartas.

Brosnan acendeu a lanterna que Devlin lhe dera e que emitia um facho luminoso surpreendentemente forte. Savary projetou a luz na primeira carta. Representava a morte, um esqueleto a cavalo, galopando por cima de cadáveres. Savary juntou o baralho e colocou-o na prateleira.

— Não preciso olhar mais nada. Já sei o que vem por aí. Vamos embora.

Brosnan levantou o colchão e, através de uma falha na costura, retirou de dentro dele um rolo de corda de náilon e um gancho com vários dentes. Tanto a corda como o gancho eram frequentemente usados na pedreira, para colocar cargas de dinamite em encostas escarpadas. Retirou também uma chave de fenda e um pesado alicate que Savary conseguira de um prisioneiro que trabalhava na oficina mecânica. Depois, cada um arrumou a respectiva cama, colocando peças de roupa e alguns livros sob as cobertas, de modo a dar a impressão de que estavam dormindo.

— Você acha que este truque pega? — perguntou Savary.

— Com Lebel? A maioria das noites ele nem olha dentro, mas se olhar, nem desconfiará. Agora, vamos andando. Temos um horário apertado.

Vestiram suas pesadas japonas, que a prisão fornecia para trabalhos ao relento em caso de mau tempo, bem como as luvas de couro e lona. Brosnan apanhou a corda e Savary ajoelhou-se junto à porta com a colher em punho. Ouviu-se um pequeno estalo e ele se levantou.

— Pronto, Martin. Podemos ir.

Saíram e depois fecharam a porta cautelosamente. Por um momento ficaram imóveis na escuridão, grudados à parede. Depois, caminharam lentamente pelo corredor.

O saguão central era iluminado apenas por uma lâmpada e ouvia-se uma música tocando no rádio da sala dos guardas de serviço. O teto gradeado ficava parcialmente escuro, acima da lâmpada. Brosnan subiu na grade e firmou o gancho entre as barras de ferro, enrolando a corda na cintura para mais comodamente usar o alicate.

Levou menos de cinco minutos para abrir um buraco na grade, permitindo atravessá-la. Uma vez no outro lado, apoiou-se em uma das vigas e, olhando para baixo, fez sinal para Savary que, ansiosamente, acompanhava seus movimentos.

Depois de ajudar o companheiro a subir, Brosnan amarrou a ponta da corda na cintura dele e batendo-lhe no ombro, começou a caminhar por cima da viga, Não havia necessidade de palavras, pois tinham decorado todos os detalhes do percurso e sabiam bem como proceder.

A parte mais difícil vinha agora, pois a grade que eles precisavam alcançar tinha uns 10 metros de altura e estava mergulhada na escuridão. E a viga fazia uma curva para cima, acompanhando a linha da parede. Brosnan passou a corda pela cintura, depois fez uma laçada, abraçando a viga e, agarrando-se a ela, começou a subir, usando a conhecida técnica dos que escalam postes.

Foi então que seu vigor e excelente condição física foram postos à prova. Brosnan foi subindo, palmo a palmo, até alcançar a vasta grade de ventilação, fixada por quatro parafusos. Brosnan apanhou a chave de fenda e, abraçado à viga, começou a trabalhar. Os parafusos não estavam muito apertados e saíram com facilidade. Propositadamente, ele deixou o último em posição, apenas mais frouxo, a fim de que a grade pudesse girar, desobstruindo a passagem, mas ainda se mantendo presa.

Até então tudo correra bem. Brosnan olhou para Savary, atirou-lhe a corda, e o francês, segurando-se nela e na viga, começou a subir. De repente, uma porta bateu e Savary, surpreendido pelo ruído inesperado, perdeu o equilíbrio e escorregou de volta.

Rilhando os dentes e encostando-se com toda a força contra a viga, um pé apoiado na parede, a corda ferindo seu ombro e as mãos, Brosnan conseguiu deter a queda de Savary, enquanto um guarda atravessava o saguão e entrava na sala. Ouviram-se vozes e algumas risadas.

Savary alcançou novamente a viga e recomeçou a subir, juntando-se a Brosnan. Após alguns minutos, Brosnan murmurou: — Vamos, Jacques, você na frente.

Savary desamarrou-se, inclinou o corpo e prosseguiu para a boca da chaminé de ventilação. Brosnan enrolou a corda cuidadosamente na cintura e seguiu atrás.

Uma nuvem de poeira o envolveu, levando-o a acender a lanterna, iluminando as paredes de metal de onde se desprendia, com o roçar do corpo de Savary, a ferrugem há tanto tempo acumulada. O francês agora progredia mais livremente e Brosnan o acompanhava. Afinal, sentiram uma corrente de ar, um zumbido mais embaixo e o encanamento desembocou em uma espécie de câmara central, onde terminavam outros encanamentos, os orifícios escuros dispostos a intervalos regulares. O zumbido vinha de um buraco de aproximadamente um metro de diâmetro, bem no centro da câmara. Brosnan rastejou até Savary e orientou a luz da lanterna.

— É bem aqui — disse ele. — Decorei o plano do sistema de ventilação há cerca de dois anos, quando trabalhei com o pessoal que estava instalando o aquecimento do hospital. Segundo me lembro, este encanamento vai dar diretamente no depósito das caldeiras, uns quinze ou vinte metros mais abaixo. Como você se sente?

— Ótimo — replicou Savary. — Não se preocupe comigo. Há muitos anos que não me sentia tão bem.

Brosnan examinou o interior do encanamento com a lanterna. As placas circulares de metal eram presas por suportes de aço.

— São bons apoios para os pés — disse ele. — Se você ficar cansado, basta se encostar por uns momentos. Vou na frente; se você cair, cairá em cima de mim.

Os dentes de Savary brilharam na escuridão.

— Boa sorte, Martin.

Brosnan começou a descer, mantendo a lanterna acesa. Agora era fácil, muito mais do que subir até a grade do saguão central. O zumbido dos geradores aumentava à medida que ele se aproximava do fundo, fechado por uma grade, através da qual se filtrava a luz da sala das caldeiras. Martin, apoiando-se nas paredes do encanamento, tentou examinar o local, mas apenas conseguiu ver o piso do depósito das caldeiras. Normalmente, àquela hora da noite, ninguém estava de serviço e, se houvesse alguém, provavelmente seria um prisioneiro. Não que ele tivesse muita escolha.

Brosnan levantou a lanterna e deu com Savary bem acima dele.

— Aguente aí, companheiro, que lá vou eu.

Enfiou a lanterna no bolso, apoiou as mãos nas paredes e se lançou com os dois pés contra a grade. Ela entortou, cedeu parcialmente e, na terceira tentativa, desprendeu-se completamente e caiu no chão, mais de dois metros abaixo, seguida pelo próprio Brosnan.

Ele se levantou, aturdido mas incólume, e olhou em volta. A sala estava em meia escuridão, apenas com uma pequena lâmpada pendurada junto ao painel de instrumentos, na parede do fundo. O mais importante, porém, é que não havia ninguém na sala.

— Tudo bem, Jacques. Pode saltar — avisou ele. Instantes depois, Brosnan amparava o francês, que se deixara escorregar encanamento abaixo.

Correram logo para a porta. Brosnan a abriu e olhou para fora. Chovia torrencialmente, inundando o pátio pavimentado de pedra.

— A tampa do bueiro é logo ali — disse ele. — À direita da entrada do hospital. Abaixe a cabeça e vamos em frente.

Procurando aproveitar a sombra das paredes, ele deu a volta no pátio, com Savary em suas pegadas, até alcançar a tampa do bueiro. Agachou-se, tirou do bolso a chave de fenda e limpou o barro que se acumulara nas alças da tampa, mas quando a puxou, nada conseguiu.

— O que houve? Está emperrada? — perguntou Savary, pela primeira vez revelando pânico na voz.

— Calma — replicou Brosnan. Provavelmente há anos não é aberta. Vou dar um jeito, não se incomode.

Com a chave de fenda raspou metodicamente a frincha nos bordos da tampa, reprimindo uma estranha vontade de rir. Lembrou-se de uma frase no quadro de avisos em Khe Sahn. Para os que lutam por ela, a vida tem um sabor que os protegidos da sorte jamais conhecerão. Quem quer que tenha escrito a frase, sabia o que estava dizendo.

Tentou novamente, puxando com toda força, ajudado por Savary, agarrado à sua cintura. A tampa cedeu tão súbita e facilmente que Brosnan perdeu o equilíbrio e ambos se estatelaram no chão.

O mau cheiro se fez sentir imediatamente, repugnante, acentuado pelo frescor da chuva. Savary exclamou: — Oh meu Deus! Nunca pensei que fosse tanto.

— É o único caminho, Jacques. Vamos descer.

Savary desapareceu pelo buraco escuro e Brosnan seguiu atrás, descendo uma pequena escada de ferro, depois de recolocar a tampa do bueiro. Ao acender a lanterna, iluminou o rosto de Savary, mergulhado até a cintura na água imunda, com excrementos boiando. O francês estava encostado na parede, vomitando.

Virou-se, lívido, e murmurou:

— Não vou aguentar muito isso, Martin.

— É apenas um pequeno trecho — mentiu Brosnan. — Uns duzentos metros, nada mais.

O túnel tinha uns dois metros de altura e era muito antigo, o reboco se desintegrando. À medida que avançavam, a luz da lanterna descobria ratos às dezenas, correndo ao longo das saliências das paredes laterais. Uns 50 metros mais adiante, o túnel desaguava em um poço, atravessado por uma viga de concreto. Era evidentemente o coletor principal de todo o sistema, havendo outros túneis também desembocando nele.

Brosnan caminhou sobre a viga, com a água pelo peito, mantendo a lanterna acima da cabeça. Savary, logo atrás dele, perdeu o equilíbrio e mergulhou. Brosnan agarrou-o pela gola e o francês voltou à tona, em estado miserável, o rosto coberto de imundície e refletindo imenso pavor.

— Vamos, Jacques — animou Brosnan. — Faça um último esforço.

Apoiado em uma saliência, conseguiu erguer Savary. Depois, sempre aproveitando a saliência, alcançaram uma escada de ferro, ao lado da qual a água do esgoto caía em cascata cerca de dez metros.

Os dois homens desceram a escada, percorreram um pequeno trecho, encontraram mais duas escadas e afinal o túnel se alargava.

— Devemos estar perto da costa — disse Brosnan. — Não pode faltar muito.

Deixou-se escorregar para a água, seguido de Savary. À medida que avançavam, a inclinação do fundo se acentuava e eles estavam quase sem pé. O mau cheiro já não era tão acentuado. De súbito, sentiram uma elevação no solo e o túnel simplesmente desapareceu.

— E agora? — perguntou Savary.

— A saída deve ser sob a superfície — disse Brosnan. — Não contava com esta.

— E o que faremos?

— Nadar para encontrá-la.

— Embaixo d'água? — protestou Savary. — Não sou capaz disso.

Brosnan lhe entregou a lanterna.

— Segure um pouco, enquanto dou uma olhada.

Respirou profundamente, atirou-se e nadou submerso, deslizando contra o teto do túnel. Dois metros, quatro, seis e, terminado o túnel, Brosnan veio à superfície, em um canal entre as rochas, ao pé do penhasco.

Estava muito escuro, a chuva caía e as ondas eram altas. Ele se deixou ficar boiando por uns instantes, normalizando a respiração, depois mergulhou novamente, voltando para o interior do túnel. Este retorno foi mais difícil, mas momentos depois surgiu ao lado de Savary e apoiou-se na parede do túnel, exausto.

— Que tal? — perguntou Savary.

— Uns seis metros apenas, Jacques, e estaremos do lado de fora.

— É demais para mim.

Brosnan estava desenrolando a corda que trazia na cintura e prendeu o gancho no cinto de Savary.

— Você quer voltar?

— Não. Prefiro morrer.

— Está bem. Vou mergulhar outra vez. Quando você estiver pronto, dê dois puxões na corda e prenda a respiração. Vou rebocá-lo.

Não deu tempo a Savary para protestar. Atirou-se novamente na água e percorreu nadando o mesmo percurso, encostado ao teto do túnel. Ao vir à tona, boiou por um momento, depois verificou que seus pés tocavam o fundo, pois se encontrava em uma enseada com cerca de metro e meio de profundidade. Puxou a ponta da corda até senti-la esticada e esperou. Os puxões, quando vieram, lhe pareceram enérgicos. Começou a recolher a corda com a maior rapidez, parando apenas quando a cabeça de Savary surgiu acima d'água, aflitivamente procurando respirar.

Brosnan esperou que Savary descansasse alguns minutos, depois disse:

— Agora, vamos sair daqui.

Lado a lado, eles foram saindo da água, subindo pela margem íngreme e vendo o vulto das muralhas de Belle Isle, sinistramente projetadas contra o negrume do céu acima deles.

Os relâmpagos iluminavam o horizonte quando eles chegaram à porta do depósito e Savary começou a trabalhar na fechadura. Em pouco tempo, a porta estava aberta.

Os dois homens entraram e Brosnan acendeu a luz.

— Tudo bem? — perguntou a Savary.

O francês sacudiu a cabeça, tentando um sorriso. O mar limpara a imundície de sua roupa e ele parecia ter recobrado o ânimo.

— Ganhamos a parada daqueles filhos da mãe, hein, Martin?

— Ainda não — replicou Brosnan. — Apronte-se o mais depressa que puder. Dois coletes salva-vidas, não um só. Precisamos de todos os recursos que encontrarmos aqui para nos manter à tona.

Cinco minutos depois os preparativos haviam terminado. Brosnan tirou do bolso o dispositivo eletrônico que Devlin lhe dera e o amarrou em um dos salva-vidas.

Depois, fez sinal para Savary, apagou a luz e abriu a porta. Os dois homens desapareceram dentro da noite.

A chuva recrudescera e, quando os relâmpagos faiscavam, eles viam as ondas arrebentando em nuvens de espuma. Cuidadosamente desceram o penhasco, seguindo o curso de uma ravina que, finalmente, conduziu-os até a água.

A rocha dos funerais se erguia acima da cabeça deles, mergulhado na noite. Savary não pôde evitar um comentário: — Talvez estejamos apenas poupando o trabalho de Lebel.

Brosnan desenrolou a corda e amarrou uma ponta em sua cintura e a outra na de Savary, deixando entre ambos uma espécie de cordão umbilical de dois metros.

— Os dois ou nenhum? — perguntou Savary.

— Exatamente.

Apertaram-se as mãos e caminharam pelas pedras até a arrebentação. Brosnan olhou interrogativamente para Savary, que respondeu com um aceno de cabeça e os dois se atiraram na água da Roda do Moinho.


Eles foram arrastados com uma velocidade espantosa, pois a corrente era de cerca de 10 nós. A princípio, para surpresa de ambos, o frio não se mostrou muito intenso, mas certamente não demoraria a se acentuar, apesar das roupas que vestiam. A noção do tempo foi se tornando incerta, restando apenas o ronco do mar e os puxões da corda na cintura, toda vez que Savary era arrastado mais fortemente. De vez em quando um relâmpago riscava o céu, mas tudo o que se via era a imensidão do mar, onde eles se encontravam sozinhos.

Depois de uns 15 ou 20 minutos, Brosnan começou a sentir os efeitos do frio. Quis saber como Savary estava se comportando e deu um puxão na corda, obtendo logo uma resposta. Belle Isle ficara já tão para trás, na escuridão, que não havia mais perigo de serem descobertos. Brosnan então acendeu a luz de seu colete salva-vidas.

Um pouco depois, Savary fez o mesmo e ambos continuaram, sacudidos pelas ondas, como dois fogos-fátuos boiando na escuridão.


Na ponte da traineira, Anne-Marie e Devlin continuavam encostados na amurada, sacudidos pelo balanço do navio. Ambos estavam protegidos por capas e chapéus de oleado, dos quais a água escorria em catadupas.

Um relâmpago mais forte revelou a violência das ondas recobertas de espuma branca. Devlin não ocultou seu desânimo: — Está demais. Assim não é possível.

Foi então que Jean-Paul gritou da casa.do leme, a voz vibrando de excitação: — Conseguimos contato!

Anne-Marie e Devlin correram para a cabine. Jean-Paul e Claude estavam com os olhos fixos na caixa azul sobre a prancheta. Os riscos se sucediam na tela, houve uma série de sons ritmados, os algarismos se sucederam no mostrador com incrível rapidez e finalmente pararam.

Jean-Paul fez um cálculo rápido.

— São eles — disse ao velho Marcel, imóvel no leme. — Estão a cerca de uma milha a nordeste. Rumo dois-quatro-dois. — Enquanto a roda do leme girava, Jean-Paul explicou a Devlin: — Quando as batidas deste sinal se mantiverem contínuas, com um som agudo, estaremos em cima deles.

Anne-Marie apertou a mão de Devlin e os dois ficaram imóveis, os olhos fixos na tela.


Brosnan estava gelado, o rosto e os olhos inflamados pela água do mar, exausto, verdadeiramente no limite de suas forças. Quando a luz do colete salva-vidas de Savary se apagou, ele sacudiu a corda, mas não teve resposta. Ainda quis puxar o francês mais para perto, mas não teve forças.

Minutos depois a luz de seu próprio salva-vidas se apagou. Era o fim. Daí em diante nada mais interessava. Deixou-se ficar flutuando, os olhos fechados, sacudido pelas ondas. De repente, entreabrindo os olhos, divisou as luzes de uma embarcação à sua direita.

A esperança o reanimou. Quando jogado para cima, na crista de uma onda maior, respirou fundo e gritou com toda a força de seus pulmões. O ronco do mar, porém, era tão forte, que nem ele mesmo ouviu seu grito.

Foi levantado por outra onda, Savary agora mais perto dele. A embarcação se aproximava, permitindo ver uma traineira com o convés iluminado. Brosnan tornou a gritar, sacudindo os braços, mas inutilmente. De súbito, ao mergulhar novamente, lembrou-se do presente que Devlin lhe dera, em sua última visita à prisão.

Meteu a mão no bolso e segurou desesperadamente, com os dedos entorpecidos, a pequena bola de plástico e arrancou a casca com os dentes. Apareceu uma luz fosforescente, de grande intensidade, brilhando na escuridão da noite como uma esfera incandescente. Brosnan esticou o braço e manteve a luz o mais alto que pôde.

Foi Claude quem a viu primeiro, a bombordo, correndo logo para a casa do leme. Marcel cortou os motores e manobrou a traineira. Devlin e Anne-Marie correram para bombordo, onde Jean-Paul e Claude já lançavam a escada de corda.

— O que você acha? — perguntou Devlin.

— Só podem ser eles — replicou Jean-Paul, angustiado.

Acendeu o holofote que Claude lhe trouxera e vasculhou as ondas com o facho luminoso.

— Não se vê nada! — exclamou Anne-Marie. — Nem o menor sinal.

Foi então que o vulto de Brosnan apareceu na crista de uma onda, o braço levantado e Savary amarrado junto a ele.


11

 

 

Brosnan tossiu, quando o uísque foi derramado em sua garganta. Abriu os olhos e viu Devlin sentado na beira do beliche.

— Bushmills? — perguntou, com voz rouca.

— O que mais podia ser? Trouxe esta garrafa especialmente para celebrar. E agora que você voltou à civilização, há alguém que quer vê-lo. Vou dar uma olhada, para saber como vai Savary.

Retirou-se e Anne-Marie entrou, ocupando seu lugar. Ela ainda estava com a capa de oleado e, com um gesto inimitável, afastava da testa a mecha de cabelos molhados.

— Cá estamos nós, juntos outra vez — disse Brosnan.

— Assim parece — murmurou ela, acariciando-lhe o rosto. — Você ainda está gelado.

— Até os ossos. Terei pesadelos pelo resto da minha vida, sonhando com a Roda do Moinho. Como está Jacques?

— O Dr. Cresson está tratando dele na cabine ao lado.

— Quer dizer que ele ainda não voltou a si?

— Receio que não.

Brosnan sentou, enrolando o cobertor em torno do corpo.

— Leve-me até lá.

Anne-Marie dirigiu-se para a cabine vizinha. Jacques Savary estava deitado no beliche, debaixo de uma pilha de cobertores, o rosto sem cor e inchado, as pálpebras cerradas. Jean-Paul e Devlin o observavam com ansiedade, enquanto o médico tomava sua temperatura.

— Ele ainda não reagiu. Está gelado. Nessa idade... — Preparou a injeção e fincou a agulha no braço direito do paciente. — O estimulante mais poderoso que tenho coragem de usar — disse ele a Jean-Paul. — O pulso está muito fraco. É preciso hospitalizá-lo o mais breve possível.

— Quem está dizendo essa bobagem? — murmurou Jacques Savary, com um fio de voz.

Abriu os olhos, sorriu debilmente. Jean-Paul segurou sua mão e ajoelhou-se junto ao beliche.

— O que você está tentando fazer? Fingir que não tem nada, só para me tranquilizar?

— Mais ou menos isso — disse Jacques Savary e procurou Brosnan com os olhos. — Tapeamos aqueles bestalhões, não foi?

— Completamente — replicou Brosnan.

— Todos para fora — ordenou Cresson. — Ele precisa dormir.

Savary agarrou o braço de Jean-Paul, quando ele se levantou.

— Olhe, não volto para aquele lugar, nunca mais. Entendeu?

— Fique tranquilo, pai.

— E agora que estamos salvos, a coisa mais importante é lançar aqueles corpos no lugar certo. Vão tratar disso e não se preocupem comigo. Tenho pela frente muito tempo para dormir.

Brosnan voltou para a outra cabine, seguido por Devlin e Anne-Marie. Sentou-se no beliche e perguntou: — O que vamos fazer agora?

— O comandante vai nos desembarcar em Saint-Denise dentro de uma hora. Jean-Paul tem seus planos para o pai. Nós três vamos para a fazenda de Anne-Marie, perto de Nice.

— E Barry?

— Haverá muito tempo para pensar nele, depois que você tiver descansado alguns dias. Sugiro que agora tire uma soneca, até atracarmos.

— Ele tem razão, Martin — disse Anne-Marie. — Vamos deixá-lo a sós.

Depois que eles saíram, Brosnan se enrolou nos cobertores, esticou-se no beliche e fechou os olhos, mas não conseguiu dormir, ainda sob a ação de imagens distorcidas, de ondas arrebentando na escuridão. Os olhos lhe doíam, pelo efeito do sal. Mas ele estava livre. Esse era o fato espantoso. Livre novamente, após quatro anos em uma das mais severas prisões da Europa. O surpreendente, porém, era que esse pensamento não o entusiasmava.

Acabou adormecendo, para acordar pouco depois, sobressaltado e dando-se conta de que a traineira estava quase parada. Ainda ficou deitado alguns momentos pensando, e por fim levantou-se e vestiu a roupa que haviam providenciado para ele: jeans, um grosso suéter de pescador e uma japona.

Quando chegou ao convés ainda chovia, mas o mar estava mais calmo, enquanto a traineira deslizava a sotavento em relação à costa. Anne-Marie, junto à amurada, observava Devlin e Jean-Paul que arriavam um dos corpos para dentro de um bote, onde estava Claude. O outro jazia ainda no convés, o rosto coberto por um pano a fim de esconder a mutilação, no uniforme de prisão de Brosnan, a japona e os dois coletes salva-vidas.

— Este é seu representante — disse Devlin, ajoelhando-se junto ao cadáver e arregaçando-lhe a manga, a fim de conferir o número tatuado no braço.

— Você pensa em tudo — comentou Brosnan.

— Foi ideia de Jean-Paul, não minha. Agora entendo por que esse rapaz tem tanto êxito em suas negociatas.

Arrastaram o segundo corpo e o entregaram a Claude e Jean-Paul, que já havia saltado para dentro do bote.

Brosnan recomendou:

— Não se esqueçam de amarrar os dois. É o detalhe da autenticidade.

— Não esqueceremos — disse Jean-Paul dando partida no motor de popa e rumando na direção da praia.

Os três, debruçados na amurada, ficaram observando a manobra.

— Como se sente, assistindo a seu próprio funeral? — perguntou Devlin.

— Igualzinho a Lázaro, ressuscitando.

— E para quê? — perguntou Anne-Marie. — Retomar a antiga luta? Ou começar uma vida nova?

— Talvez, depois de ter ajustado contas com Frank Barry.

Ela sacudiu a cabeça, descrente.

— Há um odor de morte em você, Martin, sabe disso? Não conseguirá mudar.

Afastou-se da amurada e desceu para a cabine.

Brosnan perguntou:

— O que há de errado com ela?

— Se você não sabe, meu velho, não serei eu quem vai explicar — replicou Liam Devlin.


As bocas de peixe de Saint-Denise estavam em plena atividade, com mais de vinte traineiras descarregando. Jacques Savary, sentado no banco de trás da limusine BMW, ao lado de Cresson, parecia muito à vontade num suéter de cashmere e um elegante casaco esporte. Jean-Paul se abaixou para colocar um cobertor nos joelhos do pai.

Brosnan, Devlin e Anne-Marie observavam ao lado do carro. Quando Jean-Paul se afastou, Brosnan deu um passo e apertou a mão de Savary.

— Talvez um dia possamos fazer isso outra vez, meu velho.

Savary deixou sua mão entre as de Brosnan por alguns momentos, depois, não podendo conter a emoção, puxou-o para dentro do carro, abraçando-o com lágrimas nos olhos.

Quando Brosnan se desvencilhou, foi a vez de Jean-Paul apertar sua mão, com ar grave, o rosto iluminado pela luz amarelada da lâmpada presa na parede do armazém, junto ao qual o carro estacionara.

— É impossível pagar o que fez por meu pai, mas tome nota disso: nós da Union Corse somos capazes de fazer uma porção de coisas. — Tirou a carteira do bolso, separou um cartão e o entregou a Brosnan. — São os números de meus telefones particulares. Todos os quatro — acrescentou, com um sorriso brejeiro. — Se houver qualquer coisa de que precise, qualquer coisa mesmo...

Abraçou Brosnan, puxando-o contra o peito. Depois, apertou as mãos de Devlin e de Anne-Marie e entrou no carro, fazendo um sinal para Claude que estava ao volante.

A grande limusine começou a rodar ao longo das docas do mercado de peixe.


Brosnan permaneceu imóvel, sentindo um súbito cansaço ao ver encerrado de maneira tão estranha aquele capítulo. Virou-se para Anne-Marie e Devlin.

— E agora?

A moça o agarrou pelo braço.

— Vamos embora, guerreiro. Apenas de olhar para sua cara vê-se que você precisa dormir pelo menos uma semana.

Sentou-se ao volante de um Citroën alugado, tendo Devlin a seu lado e Brosnan sozinho no banco de trás.

— Quanto tempo leva? — perguntou ele, quando o carro arrancou.

— Como ainda é cedo, umas três horas, se tivermos sorte. Durma.

Brosnan fechou os olhos e procurou se acomodar. A princípio, as imagens eram da Roda do Moinho, da água o sufocando, do mau cheiro do esgoto; depois, subitamente, a escuridão.


Eram pouco mais de seis horas, os primeiros raios de sol dourando o horizonte, quando Pierre Gaudier saiu de sua cabana, nas dunas a uns dois quilômetros de Saint-Denise. Sempre que havia descarga de navios pesqueiros ele acordava mais cedo, para ser o primeiro biscateiro a aproveitar qualquer coisa útil que a maré atirasse na praia. O carrinho de mão que ele empurrava seguia a trilha feita na areia pelos pneus de um carro e Gaudier parava de vez em quando para catar pedaços de madeira.

Quando o carrinho estava quase cheio, o biscateiro já alcançara o extremo da praia, onde a corrente da Roda do Moinho se chocava pela última vez contra as rochas enegrecidas. Parou, acendeu um cigarro e, ao retomar a caminhada, notou uma mancha alaranjada na rocha logo à frente.

Chegando mais perto, verificou que eram dois corpos, um deles preso na rocha, o outro boiando em um remanso, as ondas ininterruptamente cobrindo-os de espuma.

Gaudier se benzeu, entrou na água, segurou o corpo que estava no remanso e tentou arrastá-lo para a praia. Foi só então que percebeu que havia uma corda mantendo os dois cadáveres ligados.

Quando lutava para desentalar o corpo preso na rocha e desamarrar a corda, Gaudier viu quase simultaneamente duas coisas: a inscrição Departamento de Correção — Belle Isle, estampada no colete salva-vidas, e o número do prisioneiro, pintado nas costas da japona.

— Santa Mãe de Deus! — exclamou, benzendo-se outra vez e tentando virar o cadáver, mas ao ver seu rosto, ou o que restava dele, recuou horrorizado, perdendo o equilíbrio e caindo no remanso, ao lado do outro cadáver. Com um grito de pavor, levantou-se e, chapinhando na água, correu pela praia em direção a Saint-Denise.


O relógio na antessala do escritório do diretor de Belle Isle acabara de bater nove horas e Pierre Lebel continuava esperando, completamente arrasado. O que acontecera era tão inacreditável que ele ainda não se recobrara do choque. Sua descoberta da cela vazia, às sete da manhã, coincidira com o telefonema do Chefe de Polícia de Saint-Denise para o diretor da penitenciária.

Como acontecera, de que modo Savary e Brosnan haviam conseguido realizar o impossível — nada disso era relevante agora. A única coisa que o preocupava eram as consequências. Para Lebel, parecia haver apenas uma solução: seria demitido depois de 25 anos de serviço, por justa causa, sem direito a pensão.

A porta se abriu, e o diretor lhe fez sinal para que entrasse. Lebel obedeceu e ficou em pé junto à escrivaninha, enquanto o diretor acendia um charuto e caminhava até a janela, onde ficou olhando o mar. O que ele disse a seguir foi uma surpresa completa.

— Mergulhar naquele mar, com o temporal da noite passada! Inacreditável. Uns idiotas completos, isso é o que eles eram, Lebel. Por que foram fazer uma coisa dessas, arriscando-se inutilmente?

Lebel se espantou ao ouvir a própria voz:

— Queriam se livrar do rochedo, sir.

O diretor concordou com um gesto de cabeça, ainda olhando o mar.

— Sim, todos sonham com isso, não é mesmo?

Houve uma batida na porta e o chefe dos guardas apareceu.

— Já chegaram os corpos vindos de Saint-Denise, sir.

— Está bem — disse o diretor. — Vamos dar uma olhada.


Fazia frio no necrotério, um frio cortante e a água do mar escorria dos dois cadáveres estendidos em cima das bancadas, ainda vestidos com os uniformes da prisão e os coletes salva-vidas. O diretor arregaçou a manga de um dos corpos, depois a do outro e examinou os números tatuados. Levantou os lençóis que cobriam os dois rostos e tornou a cobri-los apressadamente.

— É isso o que fazem a Roda do Moinho e aqueles recifes de Saint-Denise. — Virou-se para o chefe dos guardas. — É uma pena que não possamos mostrar fotos desses dois a cada prisioneiro.

— Tem razão, diretor — disse o chefe dos guardas. — O que devemos fazer agora?

— Já falei pelo telefone com o Ministro da Justiça em Paris. A história será liberada para os jornais. Não há razão para que se faça segredo. O fato vem provar o que sempre soubemos: ninguém consegue fugir de Belle Isle.

— E o que fazemos dos corpos?

— Seguir a rotina, exatamente como prevê o regulamento, e hoje mesmo. Não quero aborrecimentos com parentes reclamando os corpos, particularmente aquele filho de Savary. É um grande escroque, da mesma marca do pai. Quanto a você — acrescentou dirigindo-se a Lebel —, levando em conta todas as circunstâncias, não me parece que possamos culpá-lo pelo que aconteceu. Entretanto, como devo dar uma solução ao inquérito, vou aplicar-lhe a multa de um mês de salário.

Lebel, não cabendo em si de contentamento, mal podia falar.

— Muito obrigado, diretor — balbuciou, afinal.

O diretor saiu e o chefe dos guardas comentou:

— Você é um homem de sorte, Pierre.

— Nem precisa me dizer.

— Como não preciso lembrar que você vai providenciar o funeral, de modo que é bom que comece a se mexer.

Depois que ele se retirou, Lebel deu com os olhos no velho Jean, servente do necrotério, em pé no meio das duas bancadas.

— Jacques Savary e Brosnan! Quem haveria de dizer.

O servente se abaixou e examinou o número tatuado no braço do corpo à sua direita, depois fez o mesmo com o outro.

— Estranho — murmurou.

— O quê? — perguntou Lebel.

— O número de Savary. O sete está escrito à maneira inglesa.

Lebel colocou os óculos, levantou o braço do cadáver e verificou o número. O velho tinha razão. O algarismo sete não tinha o corte horizontal, como se costuma fazer na França. O velho continuava olhando desconfiado.

— Talvez o tatuador tenha se enganado?

Lebel guardou os óculos e ordenou, sem alterar o tom de voz:

— Traga os sacos, Jean. E isso fica entre nós, está bem?

O velho servente sorriu e se encaminhou para o depósito, a fim de apanhar os sacos.


Os dois homens passaram pelo portão principal, empurrando a carreta pela trilha que levava à rocha do funeral. Lebel apanhou os pesos necessários e amarrou as correntes em torno de cada corpo, sem dizer uma palavra.

Era um dia claro, sem sinal de chuva, e o mar se estendia até o horizonte, onde fulgiam os últimos raios de sol. A carreta foi levada para a extremidade do penhasco, virada para um lado e os dois corpos escorregaram juntos, mergulhando no redemoinho de água que roncava lá embaixo, logo desaparecendo.

— É o único meio de alguém sair de Belle Isle — comentou o velho Jean. E deu alguns passos para trás, arrastando a carreta.

— Tem razão — falou Lebel. — E boa sorte para vocês, seus grandes espertalhões, onde quer que estejam — acrescentou entre os dentes.


Ferguson estava trabalhando em seu escritório na Cavendish Square, quando o telefone tocou.

— Más notícias, sir, trazidas por um telegrama de Paris — disse Harry Fox. — Não houve tempo ainda para que o relatório chegasse. Brosnan e Savary morreram afogados ontem à noite, tentando escapar de Belle Isle.

Ferguson soltou a caneta que estava usando.

— Você tem certeza disso, Harry?

— Nenhuma dúvida, sir. Os corpos foram encontrados na Baía de Saint-Denise esta manhã.

— Então, nada feito.

— Parece que sim, sir. Alguma notícia de Devlin?

— Nenhuma.

— Com certeza ele vai telefonar a qualquer momento, em vista do que aconteceu.

— Provavelmente. Fique atento, Harry. Falamos mais tarde.

Ferguson recolocou o fone no lugar e se recostou na poltrona por um momento. Depois, levantou-se e foi até a janela.

— Dane-se, Brosnan — murmurou. — Não podia ter esperado um pouco?


O avião de Nikolai Romanov ficara retido 14 horas em Berlim, por causa do mau tempo, e somente pousou no Aeroporto Charles de Gaulle ao meio-dia. O russo dirigiu-se imediatamente para a Embaixada soviética e estava tirando o sobretudo quando Irana Vronsky entrou com uma xícara de café.

Era uma bela mulher de 32 anos, com olhos calmos e cabelos negros amarrados por uma fita de veludo. A saia cinza, a blusa de seda branca, as meias pretas e os sapatos finos acentuavam ainda mais sua inegável elegância.

Já havia oito anos que Irana era secretária de Romanov e tornara-se sua amante logo após o primeiro mês de trabalho. Inteiramente devotada ao chefe, ela ignorava as aventuras dele com outras mulheres, certa de que não teriam consequências. Era a única constante em sua vida e isso a deixava feliz.

Não ocorria qualquer fato importante no escritório que não fosse de inteiro conhecimento dela. Na noite anterior já haviam se falado por telefone.

— Um voo pouco agradável, não foi, Coronel? — Ela sempre o tratava formalmente no serviço.

— Prefiro esquecer essas horas perdidas. O aeroporto é realmente insuportável, mas de que serve reclamar agora? Barry deu sinais de vida?

— Não faz uma hora. Disse que telefonará novamente.

— E não deu explicações por ter faltado ao encontro com a traineira da Frota Norte?

— Nenhuma, Coronel.

— Você leu os jornais ingleses?

— Nem uma palavra que remotamente diga respeito ao assunto ligado a Barry — replicou ela, acenando com a cabeça. — Há um comunicado urgente de nossa Embaixada em Londres, pessoal, Código Três. Talvez contenha alguma informação relevante.

— Vamos ver.

Dirigiram-se para a Sala de Códigos e Romanov recebeu o cifrado e as fotos. O operador colocou o documento na máquina, Romanov introduziu os dados de seu código pessoal e pouco depois a mensagem, devidamente decifrada, apareceu na folha de papel que Irana tirou da máquina e passou ao chefe.

A mensagem resumia para Romanov o caso Brosnan e continha também alguns dados sobre Devlin e Anne-Marie Audin, ilustrados pelas fotos que ele colocara na mesa.

— O que você acha disso? — perguntou a Irana, entregando-lhe os documentos.

Ela leu o relatório e franziu a testa.

— Coronel, há algo sobre esse assunto nos jornais de hoje.

— Tem certeza?

— Vou mostrar.

Retornaram pelo corredor que conduzia à sala de Irana, ao lado da de Romanov. Os jornais de Paris estavam na mesa dela. Depois de folhear um deles, a secretária exclamou, triunfante:

— Aqui está. Urgente. Prisioneiros se afogam tentando fugir da prisão de Belle Isle. Martin Brosnan e Jacques Savary.

Romanov tomou-lhe o jornal das mãos, sentou-se na ponta da mesa e começou a ler a reportagem.

— Este tal de Savary teve sua fama — comentou ele. — O nome não me é estranho.

— E Brosnan deve ter sido muito famoso também.

— Foi mesmo. Seria uma situação muito difícil, se eles tivessem tido êxito.

A campainha do telefone soou. Irana atendeu, disse algumas palavras e passou o fone a Romanov.

— É Barry.

Romanov não perdeu tempo e logo perguntou:

— Você está em Paris?

— Está parecendo — replicou Barry, bem-humorado.

— Em meu apartamento, trinta minutos — disse Romanov, desligando.


Barry estava debruçado na varanda do apartamento no Boulevard Saint-Germain e contemplava o rio.

— Seu pessoal trabalha realmente bem — disse ele, quando Romanov retornou à varanda, trazendo um copo de uísque com soda.

— Dispenso essas cortesias, Frank. O que quero são explicações. O que aconteceu de errado?

— Nada — replicou Barry, acendendo um cigarro e sentando-se em uma cadeira de vime. — Não podia ter saído melhor.

Romanov estava atônito.

— Quer dizer que você de fato completou o trabalho? Não é possível. Não há uma única palavra nos jornais ingleses.

— Problemas de segurança — explicou Barry. — O que faz sentido, se você analisar bem o caso. De qualquer modo, o que interessa é que estou de posse do tal foguete.

— Então por que você não o entregou à traineira da Frota Norte?

Barry encolheu os ombros.

— Nikolai, o que vou dizer pode ser um choque, em vista de nossa longa amizade, mas a verdade é que não confio nem um pouco em você e me ocorreu que, se eu embarcasse naquela traineira levando uma mercadoria tão valiosa, bem poderia acontecer que nunca mais me deixassem sair. Entendeu?

— Tolice — protestou Romanov, visivelmente magoado. — Alguma vez deixei de tratá-lo com a maior consideração? Quando foi que faltei a alguma promessa?

— Não você, meu velho, mas tenho de me cuidar com seus patrícios lá do alto comando. Este golpe agora foi grande, Nikolai. O maior que você já empreitou. A classificação, aliás, é sua. Um golpe talvez grande demais.

Romanov respirou fundo.

— O que você quer mais?

— Um avião esperando por mim onde eu indicar. Um Cessna estará bem. Piloto eu mesmo, claro.

— Para onde?

— De volta ao Lake District. Não há problema. Descobrirei algum campo de pouso abandonado perto do lugar para onde quero ir. Deixo o avião lá.

— E quanto ao Controle de Tráfego Aéreo britânico? Essa gente gosta de saber quem está voando em seu espaço aéreo.

— Ora, já estarei longe quando eles descobrirem onde pousei.

Romanov concordou com relutância.

— Está bem. Há um pequeno aeroclube perto de Croix, próximo a Paris. Já o usamos em outras ocasiões. Providenciarei para que um avião espere você. E agora me diga: que outras desagradáveis surpresas você guardou para mim?

— Número um: a troca terá lugar na Irlanda, ao sul da fronteira, naturalmente. — Romanov tentou iniciar um protesto, mas Barry sacudiu a cabeça. — Não aceito outra solução. Nada do que fiz até agora permite que eu seja extraditado. Estou seguro lá. Uma velha tia tem uma fazendola a uns quinze quilômetros de Cork, na costa. Um local muito apropriado para tratar de negócios. Dou todos os detalhes depois, naturalmente.

Romanov levantou a mão.

— Não estou sequer pensando em discordar. Diga-me agora o que deseja mais.

— Dois milhões. Isso é quanto vai custar.

Romanov se mostrou horrorizado.

— Dois milhões? Você deve estar maluco.

— Não. Estou apenas me aposentando. Já não sou criança, meu velho. — Houve um pesado silêncio. Depois, Barry insistiu: — Consegui o foguete, Nikolai, acredite. Por mais que queiram manter o caso em segredo, os contatos que você tem na Alemanha Ocidental poderão facilmente confirmar o que estou dizendo.

— Tem razão. Entretanto, não tenho autoridade para aceitar o preço. Preciso consultar Moscou. Volto a falar com você.

— Amanhã de manhã — disse Barry. — Não quero ficar dando sopa por aí.

Romanov reclamou, visivelmente magoado:

— Está se comportando como um canalha, Frank. Nunca deixei de lhe dispensar a maior consideração e você faz isso comigo. Deveria ter suspeitado.

Barry serviu-se de outro uísque.

— A gente aprende sempre alguma coisa todos os dias.

Romanov foi até a sala e retornou com a cópia da mensagem de Londres.

— É bom que leia isso.

Barry começou a ler o documento e, a certa altura, sorriu: — Ora, você está interessado nisso?

— Você não leu os jornais de Paris hoje de manhã?

— Não. Por que deveria?

Romanov entregou-lhe um exemplar:

— Edição do meio-dia. Convém ler.

A reportagem era completa, com fotos de Savary e Brosnan. Barry leu tudo.

— Brosnan morto? Nessa eu não acredito.

— Ninguém é eterno.

— Sempre desconfio de qualquer notícia sobre Martin Brosnan. Você não o conhece como eu. Já tentou me matar uma vez.

— Por quê?

— Vamos dizer que discordava da maneira pela qual eu travava nossa guerrinha particular naquele tempo.

— Uma velha história — replicou Romanov, encolhendo os ombros — que não tem mais sentido agora que ele está morto.

— Mas Devlin não está — disse Barry.

— Você acha que ele é ameaça? — perguntou Romanov, franzindo o cenho.

— Este é dos que podem levar vantagem até com o demônio — replicou Barry, levantando-se e caminhando pela varanda. — Gostaria de saber o que ele anda fazendo agora ou, o que é mais interessante, onde está.

— Em algum ponto da região de Saint-Denise, talvez, esperando Brosnan ontem à noite.

— É uma hipótese bem possível. E a garota Audin com ele. Nesse caso, onde estariam agora?

— De volta a Paris, acho.

— Fácil de localizar. Ela deve ter o nome na lista telefônica.


Cinco minutos depois tocava a campainha do telefone no apartamento de Anne-Marie em Paris. A empregada, que estava na cozinha, enxugou as mãos no avental e veio atender.

A voz no outro lado do fio falava um excelente francês, com leve sotaque.

— Mademoiselle Audin, por favor?

— Desculpe, monsieur, ela não está. Quem deseja falar com ela?

— É do Paris-Match — mentiu Barry. — É importante que eu entre em contato com ela. Sabe dizer onde posso encontrá-la?

— Sim, monsieur. Acabou de telefonar, não faz uma hora, avisando que vai passar uma semana em sua fazenda.

— Fazenda? — estranhou Barry, dando uma risadinha. — Isso não combina muito com Anne-Marie.

— Oh, é apenas um pequeno sítio perto de Vence, nos arredores de Nice. Uma vila chamada Saint-Martin. Algumas cabras, um velho pastor. Mademoiselle Audin vai para lá quando quer descansar. Nem tem telefone.

A empregada era do tipo das que não sabem parar de falar, mas Barry interrompeu: — Não se incomode. Posso esperar até que ela volte.


— E agora, o que pretende fazer? — perguntou Romanov.

— Acho que tomarei um avião até Nice. Afinal, é apenas uma hora de voo. Darei uma olhada nessa tal casa de campo; talvez Devlin esteja com ela.

— Por que não deixa isso, Frank? Tão logo eu receba aprovação de Moscou para pagar seu serviço, você pode desaparecer. Não há motivo para comprar nova briga com Devlin.

— Velhas contas a serem ajustadas. E estou ardendo de curiosidade. Você pode dizer que estou sob efeito de uma compulsão, louco para descobrir o que aquele filho da mãe está tramando.

— Bem, faça o que lhe agrada — disse Romanov, desanimado.

— Sempre faço, já reparou? Uma coisa que você pode fazer por mim é descobrir um endereço em Nice, onde me forneçam bons guarda-costas, caso necessário. Nada de especial, não quero gente metida a usar a cabeça. Apenas punhos fortes e pernas ágeis. Pode providenciar algo assim?

— Facilmente. Tenho excelentes contatos em Nice. Vou lhe dar um endereço.

— Ótimo. Estava certo de que podia confiar em você. Telefono logo que regresse. — Sorriu satisfeito, deu uma palmadinha nas costas de Romanov e dirigiu-se para a porta. — Alegre-se, meu velho. Tudo vai correr bem.


12

 

 

A casa da fazenda, nas colinas de Saint-Martin, tinha um aspecto medieval, com uma torre em uma das extremidades, o telhado vermelho já desbotado pelo sol. Devlin contemplava a vila, aninhada no fundo do vale, e a estrada que ziguezagueava colina acima, até a casa. O sol da tarde ainda estava quente. Desistindo de caminhar, ele se espreguiçou e voltou a casa, entrando pela porta da cozinha.

Anne-Marie estava junto ao fogão de lenha, preparando um assado. Usava blusa, calça comprida e gorro na cabeça.

— Que tal achou o lugar? — perguntou ela.

— Muito agradável. Um homem pode ser feliz aqui ou acabar completamente maluco de tédio.

Ela riu e Devlin perguntou:

— Como vai ele?

— Ainda dormindo a sono solto, na última vez que fui vê-lo — respondeu Anne-Marie, colocando uma panela no fogo. — Tive muita vontade de tirar um foto, mas fiquei com medo de acordá-lo. Ele parece diferente.

— Como?

— Não sei explicar. Muito jovem.

Devlin acendeu um cigarro e sentou-se, meneando a cabeça.

— Você está certamente se iludindo, minha cara. Não há mais jovens, pelo menos na geração de Martin ou na sua, no sentido em que você está falando. Há muito que desapareceram todas as esperanças, todas as aspirações, tragadas nos pântanos do Vietnã e nas ruas e vielas do Ulster.

Ela se virou, limpando as mãos em um guardanapo, e disse com ar grave: — Receio que você tenha razão. A crença de que a vida é uma aventura romântica é o ingrediente essencial que falta a nossa geração. Aprendemos, cedo demais, que á desonestidade é indispensável para a sobrevivência.

— O que é isso? O pensamento do dia?

A voz era de Brosnan, parado junto à porta do corredor, vestindo uma camisa de lã e jeans. Ainda não tinha feito a barba e a enorme cabeleira, quase chegando à altura dos ombros, estava toda desgrenhada.

— Você está parecendo um...

Anne-Marie interrompeu-se, procurando a palavra adequada e ele riu:

— Parecendo o quê? Um perigoso prisioneiro que fugiu?

— Desista desse papel — disse Devlin, entregando-lhe um jornal. — Anne-Marie esteve na vila comprando mantimentos. É a edição do meio-dia recém-chegada de Nice. Você está morto, meu velho, e o atestado de óbito é oficial.

Brosnan leu a notícia e não demonstrou a menor reação. Anne-Marie perguntou:

— Não sente nada? Absolutamente nada?

— Francamente, não — confessou Brosnan, passando a mão pelo rosto. — O que mais preciso é de ar fresco e uma sensação de espaço. Que tal uma caminhada por aí, no meio dessas suas cabras?

Ela consultou Devlin com o olhar.

— Vão vocês dois — disse ele. — Fico por aqui, preparando uma xícara de chá e lendo um livro. Não se incomodem comigo.

Brosnan e Anne-Marie saíram para o pátio e ele, com a mão na testa, protegendo os olhos contra a luz do sol, avistou um rebanho de cabras.

— Aquelas lá são suas?

— São. Cabras espanholas, próprias para montanhas.

— É preciso ser alpinista para chegar aonde elas estão.

— Ora, o velho Louis, meu pastor, está acostumado. Vem fazendo isso desde menino. Eu já sou mais moderninha.

Abriu a porta do celeiro e Brosnan viu uma motocicleta encostada a um canto.

— Quer dizer que você vai lá montada nisso?

— É para isso que ela serve. Também é espanhola. Marca Montesa, própria para terreno acidentado. Faz um quilômetro por hora, no barro, engrenada em primeira. Fora disso, ando um pouco mais depressa.

— Está bem. Quero ver suas habilidades.

— Com prazer.

Tirou a motocicleta para fora, montou e ligou o motor, que começou logo a funcionar. Brosnan acomodou-se na garupa, as mãos em torno da cintura dela.

— Agora, vamos ver o que você sabe fazer.

Ela soltou a embreagem e a moto arrancou.

A Montesa comportou-se exatamente como Anne-Marie anunciara, enfrentando as encostas com um ronco alegre, obedecendo ao comando do acelerador. Quando a trilha terminou, Anne-Marie escolheu uma encosta e subiu em linha reta, até alcançarem o topo da colina, onde as cabras pastavam tranquilamente. Por fim, ela parou junto a uma pequena cabana de telhado vermelho, escondida em uma depressão e cercada de oliveiras. Ao lado da cabana, uma bela ravina caía abruptamente.

— O velho Louis usa a cabana como base, quando fica por aqui, algumas vezes durante semanas. Não gosta da vida lá embaixo. — Anne-Marie fez um gesto com a cabeça na direção do vale, onde Saint-Martin aparecia, mergulhada no calor da tarde que morria.

— Entendo bem o que ele sente — disse Brosnan.

Ela abriu a porta e os dois entraram. Tudo se resumia a uma sala combinada com cozinha e um quarto de dormir. O chão era de laje, as paredes toscamente caiadas, mas o interior era fresco e agradável.

— Ele deve estar caminhando por aí — disse ela.

Abriu um armário, tirou uma garrafa de vinho branco e dois copos. Depois, levou Brosnan para fora e sentaram-se em um banco junto à parede. De algum ponto mais abaixo vinha o som cavo de uma sineta.

— Hércules, o carneiro mais velho — explicou ela. — Líder do bando ou devo chamar de rebanho? — Encheu os dois copos e se deixou ficar, contemplando o vale. — É minha hora favorita. Tudo parece incendiar.

Ela virou o rosto para o lado dele por um instante e Brosnan se deu conta, como se tivesse acabado de descobrir, do quanto ela era bonita.

— Houve gente que viveu aqui, faz muito tempo — disse ele. — Em outro mundo. Agora não é mais possível. Alguns ainda resistem. Tenho impressão de que é isso o que esse seu velho Louis está tentando recapturar.

Ela se sentou na relva em frente a ele, as pernas cruzadas.

— O que vai acontecer agora, Martin?

— A nós, você quer dizer?

Ela negou com um gesto de cabeça, com um toque de impaciência:

— Não, a você.

— Bem, primeiro é preciso resolver o caso de Frank Barry. Afinal, foi a causa de tudo.

Ela sacudiu a cabeça.

— Esqueça-se dele, Martin. Não vai adiantar nada. É um homem morto, mais cedo ou mais tarde, talvez na próxima semana ou no próximo ano. Em algum lugar haverá uma bala esperando por ele. Ele não pode ter ilusões a respeito disso.

— É bem provável, mas prefiro que essa bala seja minha. — A voz de Brosnan era calma, sem o mais leve sinal de emoção refletido no rosto. — Isso é pessoal, mas você sabe por quê?

— Norah? — disse ela, balançando a cabeça. — Costumávamos falar muito dela, recorda-se? Pela impressão que me ficou, ela seria a última pessoa a querer que você persistisse em vingança.

— Talvez, mas o caso é que Norah foi sempre boa demais para esta vida. Ela nunca fez a mais importante descoberta de todas.

— E qual é?

— Que não se trata apenas de canalhas como Frank Barry. A maioria das pessoas acaba fazendo alguma coisa contra você, de um jeito ou de outro. É uma realidade da vida — concluiu ele, com uma ponta de amargura na voz.

— Como eu, você quer dizer, ou Liam ou Jean-Paul? — Ela tirou os óculos lentamente, tentando controlar a irritação. — E o que me diz de Martin Brosnan, que arrancou um homem idoso de dentro de Belle Isle, quando seria muitíssimo mais fácil fugir sozinho?

— Devia isso a ele. Vivi em uma cela com ele por quatro anos. Ele me animou com seu espírito, sua coragem, sua experiência. Irônico, não é? — acrescentou, com um sorriso amargo. — Um gângster que passou a maior parte da vida à margem da lei e tem todas essas virtudes.

Ela se levantou, dirigiu-se à borda da ravina e contemplou outra vez a paisagem que se estendia pelo vale até o horizonte. Quando voltou, estava mais calma.

— Está bem. Vamos deixar Frank Barry de lado. Mas depois dele, como vai ser?

— Não sei. Irlanda, talvez. O único lugar seguro que me resta.

— De volta àquela velha luta que era tão importante? “Minha vida pela Irlanda.” Metralhadoras pipocando à noite, sem nunca acabar?

— Você quer dizer que é uma ideia fixa nossa? Quando empunhei um fuzil, naquela noite em Belfast, estava tentando impedir que os partidários de uma causa matassem os de outra. Daí em diante, enveredei por um caminho sem retorno. Recorda-se das palavras de Yeats? Quando o sacrifício é penoso demais, o coração se torna empedernido. — Sacudiu a cabeça, desalentado. — Muito sangue, minha querida, mortos demais. Não há nada que valha isso. Não há mais causas para mim.

— Então o que você vai fazer?

— Os Brosnans vieram de Kerry, você sabia? Comprei uma fazenda lá, há alguns anos. Principalmente cabras, como aqui — acrescentou, com um sorriso. — Gosto de cabras. Parece que elas não levam a vida muito a sério.

— Quer dizer que gostaria de voltar para lá?

— É um belo lugar. Mar e montanhas, relva verdinha, chuvas regulares, brincos-de-princesa enfeitando as cercas vivas, mais brilhante ao entardecer. Deorini Dei... Lágrimas de Deus ... é como são chamados lá. E há ainda — acrescentou com um sorriso ingênuo — as mais lindas moças da Irlanda.

Ele se levantara para esticar as pernas e reparou que Anne-Marie o olhava, uma sombra de mágoa nos olhos. Aproximou-se e tomou-lhe a mão.

— Você completa admiravelmente a paisagem.

Puxou-a contra o peito e beijou-a na boca. Os lábios dela eram doces e frios. Um tremor de excitação agitou o corpo dele. Por um momento, teve a impressão de que ela correspondia, mas, depois de um suspiro profundo, Anne-Marie desvencilhou-se dos braços dele.

— Não, Martin, não vamos recomeçar tudo. Apesar do que você disse, não creio que haja mudado. Acho que será sempre o agente oficial do Movimento. Agora, vamos andando.

Fechou a porta da cabana e foi pegar a motocicleta.


Frank Barry saltou do avião procedente de Paris no Aeroporto de Nice às quatro e meia da tarde. Alugou um Peugeot, informou-se da localização de Saint-Martin e rumou imediatamente para lá. Uma hora depois, tomando um drinque em um dos dois bares da vila, perguntou ao garçom onde ficava a fazenda de Anne-Marie Audin. Às seis horas, já estava agachado atrás de uma sebe, no pomar situado na parte oposta do vale, examinando a casa com um binóculo.

O único sinal de vida era a fumaça da chaminé, subindo em linha reta no ar parado. Acendeu um cigarro e esperou. Cerca de 15 minutos depois, a porta se abriu e Liam Devlin apareceu, caminhando pelo pátio.

— Ora essa — murmurou Barry —, quem diria?

Ouviu logo a seguir o ruído de um motor que se aproximava. Perscrutando com o binóculo a elevação atrás da casa, localizou a motocicleta.

A princípio, pensou que eram dois homens, porque o capacete e os óculos escondiam os rostos. Também não podia distinguir quem vinha na garupa. A moto entrou no pátio e parou. Quando Devlin foi ao encontro deles, Anne-Marie tirou o capacete e sacudiu os cabelos, enquanto Brosnan acendia um cigarro, permitindo uma visão completa de seu rosto.

Barry não pôde deixar de sorrir, com uma sensação de intenso prazer, que não sabia explicar nem a si mesmo.

— Deus sabe como, Martin — disse com seus botões —, mas você conseguiu ainda uma vez, seu filho da mãe.

Os três entraram na casa. Barry esperou alguns minutos, depois levantou-se e percorreu de volta a trilha que o levava ao local onde deixara o Peugeot.


— E o que faremos agora? — perguntou Brosnan a Devlin.

Tinham acabado de jantar e estavam sentados perto da lareira, fumando. Através da porta entreaberta, ouvia-se o ruído da louça que Anne-Marie lavava na cozinha.

— Podemos apenas fazer uma coisa — disse Devlin. — Procurar o contato de Barry na KGB em Paris, esse tal de Romanov.

— Mas não podemos simplesmente bater na porta da Embaixada soviética e perguntar por ele.

_ Não é necessário. Ferguson me deu o endereço do homem, tanto na cidade como no campo. Ele tem um apartamento no Boulevard Saint-Germain.

— Está bem. Então partimos para Paris amanhã.

Anne-Marie entrara na sala, trazendo uma bandeja com chá e café, a tempo de ouvir as palavras de Brosnan e a reclamação de Devlin: — Credo, Martin! Você nem dá tempo para a gente respirar?

— Não vejo razão para perder mais tempo — replicou Brosnan.

— Ele não pode esperar para assistir ao funeral — disse Anne-Marie, voltando para a cozinha.

— Já que não tenho outro remédio, é melhor arrumar nossas coisas — falou Devlin, saindo da sala.

Brosnan serviu-se de uma xícara de chá, tomando-a com prazer, uma regalia que lhe negavam em Belle Isle. Estava enchendo novamente a xícara, quando Devlin voltou, trazendo uma maleta que colocou na mesa e abriu.

— Um presente de despedida de Jean-Paul Savary. Vim de Londres sem trazer sequer um canivete, com receio de ter problemas na Alfândega.

Havia duas Browning, um Smith & Wesson de cano curto e uma Mauser de aspecto sinistro, com um silenciador atarraxado no cano.

— Muito interessante — comentou Brosnan, tirando a Mauser da maleta.

— Isso me desperta recordações — disse Devlin. — Modelo 1932. Especialmente aperfeiçoado pelo pessoal do serviço de contrainformação alemão. Pente de dez balas.

Brosnan voltou a olhar dentro da maleta, retirando um colete forrado de náilon.

— À prova de balas?

— É o que nós chamamos de modelo especial para chefões. Fabricado pela Wilkinson Sword Company. Náilon e titânio. Jean-Paul me disse que ele aguenta uma bala calibre quarenta e quatro, disparada à queima-roupa.

— Impressionante — disse Anne-Marie, em pé na porta da cozinha. — Quer dizer que vocês estão indo para a guerra outra vez?

Brosnan falou, como se nada tivesse ouvido:

— Acho que está na hora de dormir. Temos que levantar bem cedo amanhã.

— Está bem — respondeu Devlin.

Brosnan passou por Anne-Marie sem lhe dizer uma palavra e entrou no quarto. Ela então se aproximou da mesa, fechou a tampa da maleta com raiva e sentou-se.

— Bem que a preveni para não tentar fazer dele algo que ele não é — disse Devlin.

— Ele está mudado, Liam. Bem diferente do que eu esperava.

— Olhe, meu bem, ele nunca foi o que você à primeira vista pensou que fosse. O herói destemido que surgiu do meio do pantanal no Vietnã para salvá-la era um homem tão cheio de defeitos e falível como qualquer um. Essas fotos que você vem tirando em todos esses anos mostram apenas a superfície das coisas. É o perigo de sua profissão.

— Realmente nunca o compreendi. Só agora percebo isso.

— Um bom modelo para a página central. Fotogênico. Você sempre fez com que ele saísse bem nas fotos.

— Ele e suas malditas rosas — disse ela, com amargura. — Uma coisa que jamais entendi direito. Entrar certa vez no gabinete do comandante, no quartel-general do Exército em Lisburn e deixar uma rosa em vez de uma bomba, só para provar que Brosnan havia estado lá... Parece brincadeira de criança.

— Olhe, não é bem isso. É a parte poética que há nele, acho. O tipo que adora fazer o que vocês, franceses, chamam de beau geste. Há algo mais do que isso, porém. Os índios das planícies americanas, das tribos Sioux e Cheyenne, têm uma variação bem interessante sobre o tema da guerra. A maior prova de coragem que um guerreiro pode apresentar é chegar o mais perto possível do inimigo no combate para tocá-lo com um bastão. É a medida real da bravura de um homem, e não se ele matou ou deixou de matar o adversário.

— E você acha que é isso o que ele estava fazendo com suas rosas? Mostrando o quanto é corajoso?

— Não — respondeu Devlin, com ar grave. — Acho que o que ele quis dizer realmente foi: “Eu podia ter matado você, mas não matei. Talvez a lição lhe sirva e você se emende, encontrando o caminho certo.”

— Não sei, Liam. É tudo muito complexo para mim, inclusive a personalidade dele. Vou dormir. — Deu-lhe um beijo na testa e retirou-se.


Por trás da fachada dourada da Cote D'Azur, o submundo de Nice era tão violento e cruel quanto o de Paris ou Marselha e Barry sabia disso. O endereço que Romanov lhe dera levou-o a um cabaré localizado em uma rua escura, não muito longe do cais e dirigido por um sujeito chamado Charles Chabert.

Era um homem baixinho, com um ar surpreendentemente fino, usando bigode e óculos de aros de ouro. Estava muito bem vestido: terno escuro bem de acordo com suas maneiras. O conhaque que ofereceu era excelente também e Barry o elogiou, depois do primeiro gole.

— Quero gente forte. Meu contato em Paris garantiu que você é o homem capaz de arranjar o que preciso.

— Realmente tenho certa reputação, monsieur. Quantos homens?

— Três.

— Para enfrentarem quantos?

— Dois.

Chabert não escondeu a surpresa.

— Mais você, são quatro. Não é demais?

— Não, levando em conta quem são esses dois. Eu os conheço bem.

— Entendo. São formidáveis?

— Pode classificá-los assim. Prepare seus homens para amanhã bem cedo. Estarão liberados antes do meio-dia. Pagarei vinte mil francos.

— Há possibilidade de algum tiroteio?

— Muita.

— Bem, nesse caso o preço é trinta mil. Quarenta — acrescentou — para incluir minha comissão.

— Feito — replicou Barry sorrindo e estendendo a mão. — Outra coisa: quem dirige sou eu. Explique bem isso a eles. Nada de valentões.

— Mas claro, monsieur. É gente de minha confiança. Farão o que eu mandar. — Ligou o interfone e ordenou: — Mande Jacaud, Leboef e Deville a meu escritório.

— Esses nomes até parecem de um trio de cabaré — comentou Barry.

— De certo modo, é justamente o que eles são. Excelentes profissionais. Permita-me oferecer-lhe outro conhaque.

Um minuto depois ouviu-se uma batida na porta e os três homens entraram e se encostaram na parede, esperando. Embora bem vestidos, Barry teve apenas de olhar para aqueles rostos para certificar-se de que achara exatamente o que procurava.

— Satisfeito, monsieur? — indagou Chabert.

— Perfeitamente.

— Ótimo, então talvez seja melhor fecharmos o negócio. Pagamento adiantado é uma norma que não deixo de observar. Afinal, a vida é uma coisa muito incerta, e todos nós, inclusive você, meu amigo, somos vulneráveis, particularmente quando envolvidos em um caso como este.

Barry, que graças à cortesia de Romanov viera preparado, deu uma risada e tirou do bolso um maço de notas.

— Para falar a verdade, gostei de seu jeito de negociar — falou ele, começando a contar, em notas de 1.000 francos, a quantia fixada.


Devlin acordava normalmente de madrugada, hábito de muitos anos, mas naquela manhã dormiu demais e descobriu, ao abrir os olhos, que já eram oito e meia. Levantou-se rapidamente, entrou no chuveiro e começou a se vestir.

Hesitou por um momento, olhando para o colete à prova de balas, depois decidiu experimentá-lo, vestindo-o por baixo da camisa. Pesava uns oito quilos, mas se ajustava tão bem que não chegava a ser particularmente incômodo.

Quando Devlin entrou na cozinha, Brosnan estava à mesa, comendo presunto com ovos. Anne-Marie, junto ao fogão, aproximou-se com o bule de chá.

Tinha um ar cansado, olheiras profundas, parecendo haver passado a noite em claro.

— Bom-dia, Liam. O que quer comer? Ovos?

Devlin sacudiu a cabeça, recusando.

— Há anos que meu desjejum se resume a uma xícara de chá. — Sentou-se em frente a Brosnan e perguntou: — Como se sente nesta bela manhã?

— Não podia estar melhor — respondeu Brosnan. — Há anos que não durmo tão bem assim. — Esticou o braço por cima da mesa e abriu a camisa de Devlin, pondo à vista o colete à prova de balas. — Você perdeu um botão. Por que está usando isso?

— Bem, achei que devia experimentar. Você devia fazer o mesmo com o seu. É engraçado. — Tomou rapidamente o chá que Anne-Marie lhe servira e levantou-se. — Quando partimos?

— Na hora que quiser. Vamos de carro ou de avião?

— De carro vai demorar muito. Em compensação, é muito mais seguro. É preciso não esquecer que você tem a mesma cara.

— Estou morto, Liam. Ninguém vai olhar duas vezes para mim e aquele retrato que saiu nos jornais foi tirado há cinco ou seis anos. Nessa época, eu usava o cabelo curto. Ponho óculos escuros e fico descansado.

— Está bem — replicou Devlin. — Então vamos de avião. Enquanto você se apronta, vou até a vila dar um telefonema.

— Ferguson?

— Ele pode ter alguma informação que convenha ouvir.

— Se for sobre Barry, estou interessado.

Devlin disse a Anne-Marie:

— Vou pegar o Citroën, se me permite.

— Uma coisa, Liam — disse ela, entregando-lhe as chaves. — Quando vocês forem, não vou junto.

— Entendo — replicou Devlin olhando de soslaio para Brosnan, que continuava comendo, impassível. — Faça como achar melhor, minha querida. — Segurou a mão dela por um momento, depois saiu.


Barry guiou o Peugeot desde Nice, seguido pelos três capangas em um pequeno furgão, no qual estava pintado o nome de uma conhecida empresa de material elétrico de Nice. Os dois veículos pararam em um acostamento na entrada de Saint-Martin, e Jacaud saltou do furgão, levantou o capô e fingiu estar consertando o motor. Barry retomou a marcha na direção da vila. Não tinha resolvido ainda o que faria. Evidentemente não cometeria a infantilidade de ir diretamente para a fazenda de Anne-Marie. Subindo por aquela estrada deserta e estreita, os veículos seriam fatalmente percebidos.

O problema se resolveu inesperadamente, pois, no momento em que Barry passava em frente à igreja, avistou Devlin no volante do Citroën, abastecendo-se de gasolina no posto da rua principal.

Barry saltou do Peugeot, e sorrateiramente entrou na igreja, deixando a porta entreaberta e ficou esperando.


Reabastecido o carro, Devlin deixou o posto e estacionou pouco adiante, embaixo de uma árvore. Depois, saltou, atravessou a rua e entrou no bar da esquina. Uma garçonete estava arrumando meia dúzia de mesas e cadeiras dispostas na calçada.

— Bom-dia, monsieur. Aceita um café?

— Deus me livre de beber essa coisa horrível, mas se você me arranjasse uma xícara de chá seria ótimo, depois de eu ter dado um telefonema.

— Meu pai está falando neste momento, monsieur, transmitindo nosso pedido semanal ao fornecedor em Nice. Não vai demorar. Posso providenciar o chá enquanto espera.

— Boa ideia — falou Devlin, acendendo um cigarro e sentando-se ao sol da manhã.


O interior da igreja era calmo e silencioso, o ar frio impregnado do cheiro do incenso e das velas bruxuleantes; o altar da Virgem parecia flutuar na escuridão, um leve sorriso no rosto da santa. Não havia ninguém nos confessionários. Barry julgou que a igreja estivesse vazia, mas divisou um garoto ajoelhado junto ao altar, rezando. Quando ele se levantou e caminhou para a porta, Barry foi a seu encontro.

— Está procurando o cura, monsieur? Ele não está. Foi a Vence.

O menino não tinha mais que uns nove ou 10 anos, e Barry passou-lhe a mão pelos cabelos, com um sorriso.

— Não, obrigado, apenas esperando um amigo. Está vendo aquele homem sentado ali no bar?

— Sim, monsieur.

— Então vamos fazer uma brincadeira com ele.

— Uma brincadeira?

— Isso mesmo. Você vai até lá e lhe diz que o cura quer falar com ele. Então, quando ele entrar na igreja e der com os olhos em mim vai levar um susto enorme.

Tirou da carteira uma nota de 10 francos e a entregou ao garoto.

— Para mim, monsieur?

Barry afagou-lhe novamente os cabelos, com ar divertido:

— Vá logo, para não perdermos a oportunidade.

Devlin estava com o rosto virado para o sol, os olhos fechados, e só percebeu a presença do garoto quando ele puxou a manga do casaco.

— Monsieur? — disse o menino, timidamente.

— O que é, meu filho?

— O padre, monsieur, na igreja... Ele me pediu para chamá-lo.

— O padre? — estranhou Devlin. — Mas eu não o conheço. Deve haver algum engano.

— Oh, não, monsieur. Ele apontou o cavalheiro sentado à mesa e não há mais ninguém.

Devlin olhou em redor.

— Realmente, só eu. Está bem, vamos ver o que ele quer.

Tentou agradecer ao menino, mas ele saiu correndo. Devlin encolheu os ombros, atravessou a rua, passando pelo Peugeot, e subiu os degraus da igreja. Deteve-se um momento antes de entrar, com a precaução instintiva de quem viveu perigosamente durante anos, e apalpou a cintura, para sentir o cabo da Browning.

Estava escuro no interior da igreja, muito mais para quem deixara o sol radioso da manhã. Devlin deu apenas alguns passos, alerta, até ouvir alguém dizer em francês, com voz rouca:

— Por aqui, Monsieur Devlin.

Na meia-luz produzida pelas velas era possível distinguir um vulto, uma batina.

— O que quer dizer isso? — perguntou ele, dando mais alguns passos.

— Um recado de Jacques Savary, monsieur. Por favor, por aqui.

O padre entrou no confessionário, cerrou a cortina e Devlin se ajoelhou no lado oposto. Tudo agora lhe parecia normal, naturalmente, pois Savary e seu filho eram as únicas pessoas, que sabiam onde ele estava.

Houve um movimento do outro lado da grade e a voz disse:

— Você tem algo para confessar, meu filho?

— Bem, sou um grande pecador, padre, mas o que há com Savary?

— Se depender de mim, Liam, ele vai para o inferno com você.

O Ceska, na mão direita de Barry, tossiu duas vezes, estilhaçando a grade, chocando-se contra o peito de Devlin e o atirando para trás.

Durante breves instantes ele ainda lutou para respirar, depois mergulhou na escuridão.

Barry afastou a cortina e olhou para o vulto esparramado no chão.

— Nossas contas estão acertadas, Liam — murmurou em voz baixa.

Tirou a batina que apanhara na sacristia, colocou-a num banco, fechou a cortina que escondia o corpo de Devlin e saiu.


Ao contrário de Devlin, Brosnan vestiu o colete de náilon e titânio por cima da camisa. Não ficou de todo mal. Na verdade, até combinava com o jeans. Pegou também o casaco e colocou uma das Browning no bolso direito. A Mauser estava na cintura, quase nas costas.

Sorriu ao recordar que o próprio Devlin lhe ensinara a operação seguinte. Pegou o Smith & Wesson e foi para o banheiro, onde, com auxílio de várias tiras de esparadrapo, fixou o revólver na perna esquerda, logo acima do tornozelo, cobrindo-o com a meia.

Quando entrou na cozinha, o rádio estava ligado, mas não havia sinal de Anne-Marie. Encontrou-a sentada em um banco, tomando sol, os olhos fechados. Brosnan deu alguns passos, sem saber o que dizer. De onde estava, podia ver o Citroën subindo a estradinha sinuosa.

— Liam está voltando — disse ela.

— Já?

Brosnan encostou-se na parede.

— Você ainda pinta?

— Um pouco — respondeu Anne-Marie —, mas agora apenas aquarelas. Desisti dos óleos.

— Devlin me disse certa vez que qualquer um pode pintar a óleo, mas somente um verdadeiro pintor é capaz de fazer aquarelas.

Atrás dele, o Citroën entrava no pátio.

— Vá embora, Martin — disse ela, ainda de olhos fechados. — E por favor, não diga nada.

Brosnan virou-se para o Citroën e deu com Jacaud apoiado numa das janelas, apontando-lhe um revólver. Frank Barry, no banco traseiro, abriu a porta com um chute e saltou com o Ceska na mão.

O furgão surgiu no pátio, trazendo Leboef e Deville.

— Não quer que eu veja se ele está armado, monsieur? — perguntou Jacaud.

— Não tenha dúvida de que está.

Jacaud achou logo a Browning no bolso da japona.

— Onde está Liam? — perguntou Brosnan.

— No inferno, presumo. Na última vez que o vi ele parecia perfeitamente morto.

— Oh, não! — exclamou Anne-Marie.

Brosnan deu um passo à frente, os punhos cerrados.

— Miserável!

Jacaud o golpeou na altura dos rins com o cano da arma, fazendo com que Brosnan caísse de joelhos, soltando um gemido.

— É isso o que você merece — disse Barry, fazendo sinal para Jacaud. — Reviste-o outra vez. Ele é cheio de truques. Verifique nas costas, se bem me lembro.

Jacaud encontrou a Mauser e a entregou a Barry, que a examinou ligeiramente, devolvendo-a.

— Porcaria. Um tanto antiga para mim. Agora, vamos tratar dessa moça.

Anne-Marie tentou correr, mas Leboef e Deville a agarraram, jogando-a dentro do carro. Brosnan, respirando com dificuldade, levantou a cabeça.

— O que vocês querem com ela?

— Você pode descobrir isso quando chegar ao inferno, Martin.

— Devemos matá-la? — perguntou Jacaud.

Por um instante, Barry pareceu ver Jenny Crowther cair para a frente, sob o impacto da bala nas costas. Respondeu com raiva: — Não, tomo conta dela.

Tirou do bolso uma pequena caixa de plástico, abriu-a e pegou uma seringa, já carregada.

— Não me incomodo se você for fazer companhia a Devlin, Martin, mas não esta sua namoradinha. Seria um desperdício de mau gosto.

Anne-Marie deu um grito quando a agulha penetrou em sua carne. Segundos depois, sem sentidos, Barry a jogou no banco de trás do Citroën e a cobriu com um tapete.

— Vai dormir como uma criança até Paris.

— Narcótico — disse Brosnan com os dentes cerrados. — Suas armas de sempre.

— Ora essa, meu velho. Ela vai dormir serenamente por dez horas e acordar sem sequer uma dor de cabeça.

Entrou no Citroën e ligou o motor. Jacaud perguntou:

— O que vamos fazer com ele?

— Oficialmente, já é um homem morto. Assim, parece que a resposta é evidente.

— Você não tem coragem de fazer isso pessoalmente, Frank? — perguntou Brosnan. — Olhar para mim no fundo dos olhos, no momento de puxar o gatilho? Ou talvez prefira que eu fique de costas?

Jacaud e Deville o agarraram, enquanto ele se debatia e Barry dava uma risada.

— Você costumava me ridicularizar, Martin. Eu não era suficientemente bom para você e sua maldita causa. Agora, você está de joelhos no chão e é assim que quero conservar a recordação de nosso último encontro. Não merece sequer que eu o mate pessoalmente.

Bateu a porta do carro e partiu. Jacaud e Deville puseram Brosnan em pé e o arrastaram para o celeiro, seguidos por Leboef. Na porta, deram-lhe um forte empurrão, fazendo com que ele caísse de joelhos novamente.

Leboef percorreu o celeiro e examinou uma velha carroça.

— Que coisa antiga! — comentou.

Deville encostou-se na parede, junto à porta, enquanto Jacaud, Mauser em punho, se aproximava de Brosnan que, cambaleando, tentava se apoiar em um velho banco.

— Então é aqui? — perguntou ele, caindo outra vez.

— Não devia ter se metido nisso, caro senhor — gracejou Jacaud.

— Assim parece.

Brosnan se curvou, gemendo, e com a mão direita alcançou o cabo do Smith & Wesson preso no lado interno da perna esquerda. Sempre gemendo, apoiou-se num joelho, mas Jacaud o segurou pelos cabelos e puxou sua cabeça para trás, justamente no momento em que Brosnan conseguiu arrancar o revólver e, prolongando o gesto, disparou no coração de Jacaud.

A força do tiro à queima-roupa atirou o homem de costas no chão. No mesmo instante, Brosnan alvejou Leboef, antes que ele pudesse se virar, a bala estilhaçando sua espinha e o jogando de cabeça em cima da carroça.

Na porta, Deville deu um grito, tentando sacar a arma, mas já era tarde. A terceira bala do Smith & Wesson atingiu-o no meio da testa, fazendo com que ele caísse de costas no pátio.

Seguiu-se um pesado silêncio. Brosnan permaneceu imóvel um momento, as pernas separadas, perfeitamente equilibrado, o Smith & Wesson em punho. Era agora um homem diferente, um outro ser humano renascido.

Afinal, guardou o revólver no bolso e foi pegar a Mauser e a Browning de Jacaud. Depois, puxou a motocicleta encostada na parede da casa, ligou o motor e, furiosamente, atravessou o pátio, descendo pela estrada em direção a Saint-Martin.


13

 

 

Devlin voltou a si ouvindo uma voz longínqua e sentindo que o sacudiam levemente.

— Você está bem?

Ele abriu os olhos e viu o velho cura de joelhos a seu lado. Sentia-se como se tivesse tido todos os ossos triturados. Passou a mão no peito e, através de um rasgão da camisa, encontrou uma das balas que Barry havia disparado, encravada no colete à prova de balas.

— Monsieur esteve bebendo? — perguntou o padre.

— Absolutamente — respondeu Devlin, tentando sorrir. — Pode cheirar o meu hálito. Foi apenas um ataque de malária.

— Malária? — estranhou o padre, enquanto Devlin se levantava e repunha a cadeira no lugar.

— Peguei nos trópicos, anos atrás. De vez em quando ela se manifesta, sempre nos lugares mais impróprios.

Dirigiu-se para a porta, caminhando com dificuldade e sentindo o peito doer ao respirar. Logo ao sair encostou-se na parede, no alto da escada. Nesse preciso momento, Brosnan chegava na motocicleta e parava junto ao Citroën, estacionado em frente à igreja.

— Como diabos esse carro veio parar aí? — perguntou Devlin. — Deixei-o embaixo de uma árvore, perto do bar.

— Frank Barry o pegou para ir até a fazenda. Pensei que fosse você, Liam. Fomos completamente surpreendidos.

— Não mais do que eu. Deu-me dois tiros no peito, lá dentro da igreja — replicou Devlin, mostrando a bala ainda presa no colete. — Olhe, Martin, essas coisas são uma formidável invenção. Tudo o que me aconteceu foi ficar sem sentidos alguns minutos. Ainda pego aquele miserável.

— Não se eu o encontrar primeiro. Sequestrou Anne-Marie.

— Como é? — exclamou Devlin, chocado. — E por que deixou você inteiro?

Brosnan explicou. Ao terminar o relato, Devlin completou:

— Então, voltou para cá, transferiu Anne-Marie para outro carro e se foi. Agora me lembro que havia um carro estacionado perto da igreja quando atravessei a rua.

— Reparou na marca?

— Acho que um Peugeot. Um sedã.

— Está bem. Vamos atrás dele.

Brosnan desceu os degraus e Devlin se arrastou atrás dele.

— Escute um momento, Martin. Vamos para onde?

— Para Paris. Quando ele deu aquela injeção no braço dela, disse que ela ficaria quieta por todo o percurso até Paris.

— Está bem, mas qual caminho teria escolhido? Oito quilômetros ao norte daqui é preciso decidir entre três itinerários diferentes que atravessam os Alpes para Lyon. Por outro lado, ele talvez tenha seguido pela costa, subindo de Cannes para Avignon. Chega de alternativas?

Brosnan bateu a porta do Citroën, extravasando sua fúria.

— Mas por que diabos ele a levou? Com que fim?

— Inspiração de momento. Talvez quisesse que você, na hora de morrer, soubesse que ela estava nas mãos dele. Como arrancar as asas de uma mosca. Há somente uma coisa certa em todo esse negócio. Ele está indo para Paris, e Paris significa Romanov. Ora, se pegarmos um avião em Nice, chegamos antes dele, pois a presença de Anne-Marie o obriga a viajar sempre de carro.

— É mesmo. Tem razão. Vamos embora.

— Espere um momento — pediu Devlin, sufocando um gemido. — Falta esclarecer um ponto: como é que Frank Barry soube onde nós estávamos? Dê-me cinco minutos para um telefonema. Preciso falar com Ferguson.

Foi Harry Fox quem atendeu. Depois de ouvir por um momento, virou-se para Ferguson: — Devlin, sir.

— Passe-me o fone — disse Ferguson, imediatamente. — Pelo amor de Deus, homem, onde é que você tem andado?

— Isso não interessa agora. Pode explicar como Frank Barry conseguiu nos localizar, Brosnan, Anne-Marie e eu, em uma fazenda em Saint-Martin?

— Brosnan? — exclamou Ferguson, atônito. — Pensei que ele estivesse morto.

— É bom não acreditar em tudo o que lê nos jornais. Mas quero saber de Barry. O filho da mãe quase me fuzilou. Agora, ele está indo para Paris, levando Anne-Marie Audin.

— Escute, Devlin, é uma história muito complicada. Houve uma falha em nosso serviço e alguém transmitiu uma informação secreta para a KGB em Londres.

— Sobre nosso servicinho?

— Exatamente. Acho que Romanov tomou conhecimento de certos detalhes que ele, naturalmente, comunicou a Barry.

— Ficamos muito agradecidos. Nada como a eficiência. Foi isso que construiu o império. Queira me desculpar se sou obrigado a desligar.

— Mas, Devlin — apressou-se a perguntar Ferguson —, o que você vai fazer?

— Bem, não nos resta muito o que escolher, não acha? Vamos a Paris visitar o Coronel Nikolai Romanov.

Desligou e dirigiu-se para o Citroën.

— O que foi que você soube? — perguntou Brosnan.

— Toque para o Aeroporto de Nice, o mais rápido que puder. Conto tudo no caminho.


Barry escolheu o itinerário de turismo, pelos Alpes Superiores. Em Grenoble, tomou a estrada para Lyon e parou alguns quilômetros adiante, em um pequeno posto de gasolina, para reabastecer. Anne-Marie dormia placidamente no banco traseiro.

O velho que o atendeu comentou:

— Madame parece que ferrou no sono.

O cobertor havia escorregado e Barry apressou-se a recolocá-lo sobre o corpo de Anne-Marie, com muito cuidado.

— Estamos indo para Paris e esse é o melhor meio de passar o tempo nas viagens longas. Posso usar seu telefone?

— Naturalmente, monsieur. Ali no escritório.

— Obrigado. Faça o favor de verificar o óleo, a água e os pneus.

Quando discou o número do telefone direto de Romanov na embaixada foi Irana quem atendeu.

— Aqui é Barry. Ele está aí?

— Um momento.

— Como vão as coisas? — perguntou Romanov.

— Não podiam ir melhor. Você ficará surpreso se eu lhe disser que aqueles dois cavalheiros ainda andavam agindo por aí.

— É mesmo? — falou Romanov, calmamente. — Estou certo de que você resolveu tudo.

— Claro. Pode considerar o assunto encerrado. Há alguma novidade para mim?

— Sobre nosso negócio? Sem problemas de pagamento. Pode seguir o esquema que você propôs.

— Ótimo. Nesse caso, gostaria de ter esta noite o transporte que você prometeu arranjar. É possível?

— Perfeitamente.

— Então nos encontraremos em Croix, lá pelas dez horas.

No momento em que Barry desligou, o homem do posto entrou no escritório — Quanto foi tudo?

— Duzentos e cinquenta, monsieur.

Barry pagou, tendo acrescentado uma nota de 50 francos.

— É para cobrir a despesa com o telefonema.

— Por favor, monsieur, é demais.

— Bobagem. As coisas estão correndo tão bem para mim que gostaria de repartir minha boa sorte.

Sentou-se ao volante, depois de verificar como estava Anne-Marie. Ela ainda dormia tranquilamente, a fisionomia serena. Barry sorriu, afagou o rosto dela e ligou o motor, retomando a viagem.


Brosnan e Devlin chegaram ao Aeroporto de Nice e tiveram a primeira grande contrariedade. O quadro de avisos das partidas anunciava que todos os voos para Paris estavam atrasados.

— Vou saber o que há — disse Devlin.

Deixou Brosnan na banca de jornais e dirigiu-se para o balcão da Air France, onde duas encantadoras e imperturbáveis jovens faziam o possível para acalmar a fila de irritados passageiros. Quando chegou sua vez, Devlin perguntou:

— Qual é o problema?

— Os bombeiros estão em greve no Charles de Gaulle. Então, seus colegas em Orly e Le Bourget aderiram à greve, em nome da solidariedade da classe.

— E quanto tempo vai durar essa comédia?

— Honestamente, não sei dizer. A última foi de vinte e quatro horas, mas eles gostam de deixar todo mundo na expectativa. Sabe como são essas coisas.

— Infelizmente sei — respondeu Devlin, voltando para a companhia de Brosnan.

— Talvez tenhamos de esperar até amanhã.

— Essa, não — protestou Brosnan. — Amanhã pode ser tarde demais. Só nos resta voltar para a estrada e pisar no acelerador.

Agarrou Devlin pelo braço e dirigiu-se apressadamente para o estacionamento.


Croix era exatamente o que Barry esperava: um pequeno aeroporto, com uma torre de controle, dois hangares e três barracões, a sede de um aeroclube, conforme a tabuleta no portão de entrada.

As portas de um dos hangares estavam abertas e um Cessna 310 achava-se estacionado no lado de fora. Ao lado do avião havia um BMW preto e, quando Barry chegou em seu Peugeot e desligou o motor, ouviu vozes. Romanov e Irana Vronsky vieram a seu encontro, acompanhados de um homem moreno, metido num macacão branco.

Barry saltou para recebê-los.

— É este? — perguntou, apontando o Cessna.

— Exatamente. O melhor que Deforges pôde arranjar em tão pouco tempo. Ele é o controlador de voo aqui.

— Talvez seja melhor irmos até meu escritório para discutir os detalhes da viagem — sugeriu Deforges.

— Ótimo — disse Barry, abrindo a porta de trás do carro e pegando Anne-Marie no colo. — Vocês têm aí um sofá ou coisa parecida? Minha amiga ainda está ferrada no sono.

Deforges olhou para Romanov, como que pedindo orientação, depois encolheu os ombros.

— Sempre se dá um jeito — disse, procurando demonstrar indiferença.

Dirigiu-se para o interior do hangar, e Barry o acompanhou, com Romanov e Irana a seu lado.

— Não é a tal Anne-Marie Audin? Isso é uma loucura. O que você pretende fazer com ela? — perguntou Romanov.

— Levá-la comigo.

Entraram no escritório e Deforges abriu a porta de um pequeno quarto com uma cama, cobertores do Exército e uma pia.

— Pode usar este.

Barry deitou Anne-Marie na cama. Irana inclinou-se sobre ela e pôs a mão na testa da moça.

— Quanto tempo ela ainda vai ficar assim?

— Mais uma hora.

— Mas o que você pretende fazer, Frank? — perguntou Romanov.

— Bem, tenho que matá-la ou levá-la comigo e nunca fui muito bom em dar cabo de mulheres.

— Você está louco.

— Já me disseram.

— Você não tem problemas suficientes?

— Deixe isso comigo — replicou Barry, empurrando Irana e Romanov para fora do quarto e fechando a porta. — Quero saber do avião.

— Você o viu lá fora — disse Romanov.

— Quero ir para Lake District, na Inglaterra, pela rota da costa.

Deforges remexeu na gaveta onde guardava os mapas e finalmente achou o que procurava. Barry acompanhou com o dedo a linha da costa de Cumberland.

— Ravenglass. Deve haver uma antiga base da RAF, alguns quilômetros ao sul. Sim, aqui está. Tanningley Field.

— Está inoperante — observou Deforges.

— Eu sei, mas a pista pode servir perfeitamente. Verifiquei pessoalmente. Quanto tempo até lá no Cessna?

— Bem, a velocidade de cruzeiro é de duzentos e cinquenta quilômetros por hora, mas depende das condições atmosféricas. Vou ligar para Orly e me informar.

Quando ele se dirigiu à outra sala, Barry acendeu um cigarro e disse a Romanov: — Estive pensando, Nikolai, que seria muito aborrecido se, chegando lá, não encontrasse ninguém me esperando. Aquele sujeito que teve contato comigo no cais de Morecambe, lembra-se?

Irana corou, enraivecida, abriu a boca para dizer alguma coisa, mas Romanov a conteve.

— Frank, por que falar disso? Fizemos um negócio. Aceitei as condições que você impôs. Não quero mais complicações. Todo o meu interesse se resume naquele foguete.

— Ótimo — replicou Barry — pois, nesse caso, não há com que se preocupar.

Deforges voltou, trazendo as informações.

— Há um vento de proa vindo do Mar da Irlanda, que pode trazer chuva forte pela manhã. Há também ameaça de cerração densa. Nessas condições, calculo que sejam necessárias umas quatro horas e meia de voo, talvez cinco. Vai precisar de iluminação para pousar naquela pista.

— A que horas amanhece?

— Pouco antes das cinco.

— Então decolo lá pela meia-noite.

— Há um problema — disse Deforges. — Precisa ter seu plano de voo aprovado oficialmente, tanto para deixar a França como para entrar no espaço aéreo inglês.

Barry assentiu, com um aceno de cabeça:

— Como sugere que eu faça?

Deforges consultou o mapa por alguns momentos.

— Primeiro, tome o rumo do Aeroporto de Ronaldsway, na Ilha de Man. Fica a apenas uns oitenta quilômetros de seu destino final na costa inglesa. Quando chegar perto, avise ao Controle de Tráfego Aéreo de Ronaldsway que está rumando para Blackpool. A partir de então, sugiro que sobrevoe o mar até Tanningley a uma altura inferior a duzentos metros. Assim, não aparecerá na tela de nenhum radar. É evidente que há o risco de alguém ver o pouso, mas a essa hora da manhã não deve haver muita gente acordada.

— De qualquer modo, isso não me preocupa — replicou Barry. — Estarei longe, antes de qualquer aviso. Prepare tudo, então, enquanto dou uns telefonemas.

Deforges saiu e Barry dirigiu-se à cabine telefônica, fechou a porta e começou a discar um número. Irana e Romanov observavam seus movimentos através do vidro.

— Não confio nele, Nikolai — disse ela. — Já o enganou uma vez e é muito capaz de enganar novamente.

— Na verdade, meu amor, não tenho muita escolha. Preciso pôr as mãos naquele foguete...

— Para depois eles darem umas palmadinhas nas suas costas, promoverem você a general e o transferirem para Moscou? Para ser totalmente franca, Nikolai, prefiro ficar em Paris.

Ele não escondeu a irritação:

— Já mais de uma vez recomendei que você não fale assim. Um desses dias, esquece que está em má companhia e pode criar problemas.

— Estou apenas preocupada por você.

— Eu sei — disse ele, beijando-a no rosto com sincera afeição. — Não adianta continuar esperando aqui, até porque trouxe seu carro. Volte para o apartamento.

— E você?

— Fico até a partida de Barry, depois encontro você.

Ela apertou a mão dele, vestiu o casaco de pele e saiu. Romanov acendeu um cigarro e ficou observando Barry, agora empenhado em animada conversa telefônica.


Em Marsh End, Henry Salter acabara de se levantar quando o telefone tocou. Atendeu imediatamente, pois, como trabalhava com enterros, habituara-se ao fato de que as pessoas morrem a qualquer hora do dia ou da noite.

— Henri Salter falando.

— Ah, é você, meu velho? Aqui é Sinclair.

Um calafrio percorreu-lhe a espinha e ele teve de puxar uma cadeira e sentar-se.

— Em que posso ser útil, Sr. Sinclair? — perguntou, com voz trêmula.

— Como estão as coisas, desde que parti? Algum problema?

— Um grande movimento da polícia a uns trinta quilômetros daqui, na direção de Wastwater, subindo o vale.

— É mesmo? E o que foi que aconteceu?

— Ninguém sabe dizer.

— Essa é boa — disse Barry, com uma risada. — Quando nos separamos, avisei que voltaria. Você conhece o antigo campo de pouso em Tanningley?

— Sim.

— Estarei pousando lá em um avião pequeno, mais ou menos às cinco da manhã. Espere-me com o Landrover.

— Mas esse aeroporto há anos que não é usado.

— Cinco mil libras, em dinheiro vivo, por sua valiosa cooperação. Torno a partir duas horas depois. O que me diz?

Salter lutou contra sua natural ganância e perdeu.

— Estarei lá, Sr. Sinclair.

— Não se atrase — recomendou Barry, antes de desligar.


Devlin e Brosnan chegaram a Paris pouco depois das 11 da noite e se encaminharam diretamente para o endereço de Romanov, no Boulevard Saint-Germain. O apartamento ficava no andar mais alto, o que representava certo luxo.

— O que faremos, se ele não estiver em casa? — perguntou Brosnan.

— Como vou saber, mocinho? Esperar. Tentar abrir a fechadura. Vamos ver.

Caminharam pelo corredor atapetado e pararam em frente à porta com o número 13.

— Dizem que dá azar a alguns — murmurou Devlin, apertando a campainha.

Após alguns instantes, a porta se abriu e Irana Vronsky começou a dizer: — Por que demorou tanto, querido? Eu já...

O sorriso fugiu do rosto dela. Brosnan avançou rapidamente, tapando-lhe a boca, impedindo-a de gritar, e a arrastou para dentro do apartamento. Devlin calmamente fechou a porta atrás de si.

Brosnan atirou Irana sobre um sofá e apontou-lhe a Mauser com o silenciador.

— Isso aqui não faz o menor barulhinho. Comporte-se bem ou lhe arranco os miolos. Agora me diga: onde está Romanov?

Irana respirou fundo, procurando se acalmar.

— Vá para o inferno!

Usava um belo robe de seda preta que, quando ela tentou levantar, deixou entrever sua roupa íntima. Brosnan empurrou-a novamente, enquanto Devlin comentava:

— Vestida dessa maneira, parece que a dama espera o coronel a qualquer momento. Só nos resta aguardar. — Sentou-se na frente dela, tirou um cigarro russo da caixa de prata na mesinha e cheirou. — Mata-rato bolchevista. Tive um amigo que fumava essas coisas. Acabei me acostumando com eles na Guerra do Inverno, mas isso foi há muito tempo. Você por acaso sabe quem sou?

— Seu retrato tem sido muito publicado — respondeu, ela, calmamente.

— E meu amigo?

— Em se tratando de um homem morto, o Sr. Brosnan tem um aspecto muito bom.

Foi um erro grave da parte dela, e Devlin percebeu imediatamente.

— De modo que você viu Frank Barry.

Irana permaneceu imóvel, os olhos faiscando de raiva por ter sido tão estúpida.

— O que quer? — perguntou ela.

— Bem, acho que uma boa xícara de chá não faria mal — replicou Liam Devlin.


Anne-Marie abriu os olhos, espreguiçou-se e ficou olhando a lâmpada no teto. Ainda estava meio inconsciente, sem saber o que acontecera. Foi então que se lembrou dos homens na fazenda, Martin ajoelhado. Sentou-se na cama e deu com os olhos em Barry, que a observava da porta do quarto. Era impressionante como ela não sentia nada, a menor dor de cabeça, nenhuma tontura provocada pela droga.

— Onde estamos? — perguntou.

— Em um pequeno campo de pouso nos arredores, de Paris. — Havia um bule de café e duas xícaras em uma bandeja na mesa. Barry encheu uma das xícaras e passou para ela. — Beba isso.

A moça hesitou por um momento. Ele sorriu e sorveu um gole.

— Satisfeita?

Ela segurou a xícara, no momento em que a porta se abria e Romanov entrava.

— Tudo pronto para partir quando quiser, Frank. Deforges já ligou os motores — acrescentou, olhando para Anne-Marie.

— Ela continua indo com você?

Barry olhou para a moça, com ar interrogativo.

— O que acha?

— Tenho escolha?

Ele riu e se virou para Romanov.

— Ela vai comigo.

Romanov encolheu os ombros e retirou-se. Anne-Marie disse:

— É permitido perguntar para onde vamos?

— Lake District, Inglaterra. Vai gostar. É um lugar encantador nesta época do ano. Depois, se se comportar direitinho, Irlanda.

— Uma generosidade inesperada. Por que me leva? Não entendo.

— Ah, mas quando me conhecer melhor verá que sou um sujeito encantador e na Irlanda estarei em segurança. Nem os britânicos, os franceses ou quem quer que seja podem exigir minha extradição. Sou um criminoso político... uma situação muito útil neste momento. O Governo Irlandês não vai gostar, mas, uma vez lá, você pode botar a boca no mundo, que não adiantará nada.

Ela continuava imóvel, apoiada sobre um cotovelo, os olhos fixos nele.

— Você realmente matou Liam?

— Sim, na igreja de Saint-Martin.

— E Brosnan? — insistiu ela. — E por que não a mim, também?

— Esse meu amigo que acabou de sair acha que eu já devia ter feito isso.

— E por que não fez?

— Temos nossos pontos fracos, minha querida, mesmo um bandido como eu. Não mato mulheres. — Hesitou por um momento, lembrando-se de Jenny Crowther, e acrescentou: — Pelo menos intencionalmente.

— Ah, entendo! Não intencionalmente! Já é um consolo.

Ele se levantou, tirou o Ceska da cintura, verificou se estava carregado e recolocou-o no coldre.

— A decisão é sua.

Não havia o que decidir e ambos sabiam disso.

— Ora, eu não perderia isso por nada deste mundo — disse ela, levantando-se. — Quando partimos?

— Assim é que se fala. Sabia que você tem boa cabeça. Imagine só que filmes você pode rodar lá! Agora, dê-me suas mãos. — Tirou do bolso um par de algemas e prendeu os pulsos dela. — Este mundo é um lugar cheio de truques e gosto de ter certeza de certas coisas.

— A única certeza, até o momento, é que você ainda não me matou.

— Ora, moça, você devia ter mais fé — disse ele, abrindo a porta e empurrando-a para fora.

Havia uma densa cerração sobre o campo e, embora Deforges tivesse acendido as luzes, não era possível enxergar o fim da pista. Romanov viu quando o Cessna fez a volta e parou. Quando Barry soltou os freios, o avião saltou para a frente, o ronco dos motores enchendo a noite. Começou logo a decolar e, em um instante, foi engolido pela cerração.

Deforges se afastou do hangar, procurando acompanhar com o ouvido o som cavo do avião ganhando altura.

— Ele é bom mesmo? — perguntou.

— Ah, sim! — respondeu Romanov. — Tem um pacto com o demônio esse sujeito. Boa-noite, Deforges. — Fez meia-volta e encaminhou-se para seu carro.


Barry subiu até 2.000 metros, conferiu o rumo pelo Controle de Tráfego Aéreo de Orly, depois dirigiu-se para a costa do Canal da Mancha. Ligou o piloto automático e virou-se na poltrona, tirando os fones dos ouvidos e deixando-os pendurados no pescoço.

Anne-Marie estava sentada atrás dele, o cinto afivelado e os pulsos ainda presos pelas algemas.

— Quatro e meia a cinco horas de voo. Você pode ser boazinha e viajar confortavelmente, ou reagir e passar mal. A escolha é sua.

Ela lhe apresentou os pulsos, sem dizer uma palavra, e Barry abriu as algemas.

— Garota inteligente — disse ele. — Há café, sanduíches e até mesmo algumas garrafas de uísque nessa caixa aí a seus pés. Sirva-se à vontade.

Retornou à sua posição, desligou o piloto automático e assumiu os controles novamente.


Já era mais de meia-noite quando Romanov chegou a seu apartamento no Boulevard Saint-Germain. Estava cansado e com frio, mas a certeza de que Irana o esperava correspondia a um prazer antecipado. Tirou a chave do bolso, abriu a porta e logo ouviu a voz de Irana, gritando em russo: — Fuja, Nikolai!

Romanov viu-se frente ao cano de um revólver. Em seguida, Brosnan o agarrou pela gola, fechou a porta com um chute e o empurrou para dentro da sala.

Irana estava sentada no sofá, com Devlin em pé atrás dela. Romanov olhava para todos, atônito, enquanto Brosnan destramente o revistava, achando a pistola Walther PPK que ele carregava na cintura.

— Parece surpreso, Coronel Romanov, como de fato deveria estar, sabendo quem somos.

Romanov tentou se fazer de desentendido.

— Não sei o que querem comigo e claro que não tenho ideia de quem são. Se desejam dinheiro, há quatro mil francos em minha carteira.

— Pode ficar com eles — disse Devlin. — Sua amiguinha já deu com a língua nos dentes. Se demonstrou espanto ao nos ver é porque achava que estávamos mortos. Isso só pode significar uma coisa: falaram com Frank Barry ou tiveram notícias dele. Onde é que ele está?

Romanov pegou um cigarro russo na caixa.

— Você não espera que eu vá responder a uma pergunta dessas.

— Quando ele foi visto pela última vez levava uma amiga nossa, Anne-Marie Audin. Estamos muito preocupados com ela, Coronel — disse Devlin. — Quero alertá-lo de que meu amigo aqui está muito aborrecido com toda essa história e, quando fica assim, ninguém sabe o que ele é capaz de fazer.

Romanov olhou para o rosto duro e implacável de Brosnan.

— Não sei nada desse assunto.

Brosnan cerrou as cortinas das janelas, aproximou-se de Romanov e golpeou-o com força no esterno. O russo caiu de joelhos.

— Pouco me importa quem é você, nem mesmo de que lado está — disse Brosnan. — Estou interessado em salvar aquela moça. Dou-lhe um minuto, nada mais do que um minuto, para que comece a falar. Se não o fizer, vou jogá-lo pela janela e, pelo que vi, são uns quinze andares até lá embaixo.

Irana deu um grito e tentou ficar em pé. Brosnan a empurrou e recomendou a Devlin: — Não deixe que ela se meta.

Deu um chute no traseiro de Romanov, atirando-o esparramado na varanda. Irana olhou desesperada para Devlin: — Faça com que ele pare, pelo amor de Deus. Conto tudo o que quiserem saber.

Romanov, apoiado nas mãos e nos joelhos, virou-se para ela, sacudindo a cabeça, mas Brosnan deu-lhe um chute, segurou-o pela gola e começou a arrastá-lo para a janela que dava para a rua.

— Não, por favor! Não deixe que ele faça isso — exclamou Irana, agarrada ao casaco de Devlin.

— Toda a verdade — replicou ele. — Com detalhes.

— Prometo.

— Está bem, Martin — gritou Devlin para Brosnan. — Leve o homem para o banheiro e deixe o infeliz se lavar.

Romanov apoiou-se na pia, examinando o rosto no espelho. Seu nariz sangrava e o russo o limpou cuidadosamente com uma toalha.

— Você é muito bruto, Brosnan.

— Funciona, não é?

— Ah, sim, o velho truque. Um passa por bonzinho, enquanto o outro é implacável. Nunca falha. Já usei muitas vezes. Infelizmente — acrescentou com um suspiro —, a pobre Irana não sabe disso.

— Se você quer minha opinião, tudo o que Irana sabe é que o ama.

— Tem razão — disse Romanov, com voz grave. — Pelo menos é o que parece.

A porta do banheiro se abriu e Devlin anunciou:

— Podem vir agora.

Irana correu para os braços de Romanov.

— Perdoe, Nikolai, mas eu não podia suportar, eles iam matá-lo.

— Está bem, querida — replicou ele, acariciando-lhe os cabelos. — Na verdade, sinto-me lisonjeado.

Devlin transmitiu a Brosnan:

— Ele partiu à meia-noite de um antigo aeroporto nos arredores de Paris, pilotando um Cessna 310 e levando Anne-Marie.

— Para onde?

— Lake District, na Inglaterra. Conto o resto mais tarde. Vigie esses dois, enquanto telefono para Jean-Paul, e não Ferguson, ouviu? Para que incomodá-lo? O assunto já não é mais da competência dele — disse, com um sorriso.


Em Marselha, na Maison d'Or, Jean-Paul Savary estava contando a féria do cassino naquela noite, com ajuda do gerente, que atendeu o telefone, ouviu por uns instantes e anunciou:

— É para você, chefe. Um tal de Monsieur Devlin.

Jean-Paul atendeu imediatamente.

— Savary falando.

— Como vai seu pai?

— Tomando banhos de sol na Argélia. E você e Martin?

— As coisas podiam estar piores, mas seria difícil. Você ofereceu seus préstimos para quando precisássemos.

— E mantenho o que disse. Qual é o problema?

— Estamos em Paris. Precisamos de um avião pequeno, com um piloto do tipo dos que não fazem perguntas, a fim de nos levar até um aeroporto abandonado no Lake District, Inglaterra.

— Quando querem partir?

— Agora mesmo.

— Dê-me o número de seu telefone. Ligo daqui a pouco.

— Você pode dar um jeito?

— Meu amigo, a Union Corse pode dar jeito em tudo, exceto talvez eleger o Presidente.

Depois de desligar, Jean-Paul tirou da gaveta um pequeno caderno de endereços e folheou-o rapidamente. Pegou o fone outra vez e discou um número em Paris.


Debruçado na janela, fumando um cigarro, Devlin comentou:

— Estive pensando em toda essa história, Coronel, e cheguei à conclusão de que Barry fez você de bobo.

— Está bem — replicou Romanov, em tom de indiferença. — Posso até concordar com você, mas aonde quer chegar?

— Tudo me parece muito claro. Você lhe prometeu dois milhões e receberá o foguete na Irlanda. Pelo que me disse sua amiguinha, quando ficou mais nervosa, depreendi que os alemães se mostraram relutantes em deixar que os americanos examinem essa nova arma maravilhosa. Isso é compreensível, considerando que as relações entre eles, não faz muito tempo, dificilmente podiam ser classificadas de cordiais.

— E qual é sua sugestão? — perguntou Romanov, cautelosamente.

— Não quero estragar sua noite, mas se Frank Barry teve de vocês uma oferta de dois milhões, pensei que é muito provável que a CIA lhe pague cinco. Ou você acha que estou exagerando?

Romanov se mantinha imóvel, os olhos fixos em Devlin. Irana puxou-lhe o braço: — Bem que o avisei. Aquele sujeito nunca me enganou.

— Suposições.

A campainha do telefone tocou e Devlin atendeu. Depois de ouvir um momento, agradeceu: — Deus o abençoe, Jean-Paul. — Virou-se para Brosnan: ele disse que nos esperam em um pequeno aeródromo num lugar chamado Brie-Comte-Robert, a meia hora de carro.

— Sei onde é — disse Brosnan.

— Estão pretendendo fazer a caçada de avião? — comentou Romanov. — Muito tarde, Barry terá pelo menos duas horas de avanço sobre vocês.

— Vamos ver — replicou Devlin.

— E o que vamos fazer desses dois? — perguntou Brosnan.

— É uma boa pergunta — disse Devlin, olhando para eles, as mãos nos bolsos. — Certamente você vai telefonar para esse tal de Salter, a fim de avisar Barry de que estamos a caminho, apesar de tudo o que eu lhe disse dele.

Romanov não replicou, mas o brilho em seus olhos o traiu.

— Acho que sim — prosseguiu Devlin. — Dê uma busca na cozinha, Martin, e arranje umas cordas e uns panos de prato.

Brosnan não demorou a trazer um rolo de cordas.

— Ótimo. E a que horas a criada costuma chegar? — perguntou Devlin, dirigindo-se a Irana.

— Às sete e meia — respondeu ela, instintivamente.

— Bem, então ela os encontrará logo, em cada quarto. E aí já será tarde demais para qualquer providência contra nós.

Nada mais restava a Romanov do que se conformar. Em poucos minutos, estava bem amarrado, as mãos presas nas costas e os tornozelos aos pulsos. Brosnan o amordaçou e o deitou de lado.

— Não ficou muito confortável, infelizmente, não é?

Os olhos de Romanov despediram faíscas, enquanto Brosnan lhe fazia uma saudação irônica, saía e fechava a porta, justamente no momento em que Devlin fazia o mesmo no quarto vizinho.

— Tudo pronto. Vamos andando.


A cerração se tornara mais densa e, quando chegaram a Brie-Comte-Robert, chovia torrencialmente, mas encontraram o aeroporto sem dificuldade, três quilômetros no outro lado da vila.

Os portões da cerca de arame estavam abertos. O local permanecia escuro e, graças aos faróis do Citroën, Brosnan descobriu a pista de concreto rachado, com a grama alta nos dois lados. Havia quatro hangares, seus vultos escuros emergindo da cerração. Algumas lâmpadas se acenderam. A chuva continuava, implacável.

Abriu-se uma portinhola de um dos hangares e apareceu o vulto de um homem.

— Sr. Devlin? — perguntou ele, quando Brosnan desligou o motor.

— Sou eu — disse ele, saltando do carro.

— Por aqui, por favor.

O hangar estava parcamente iluminado por apenas duas lâmpadas. Havia três aviões — um velho Dakota, um Beaver e um Cacique Navajo.

— Barney Graham — disse o homem, estendendo a mão. Era baixo, magro, com olhos azuis muito calmos. Usava um casaco de couro dos pilotos da Segunda Guerra Mundial e botas de pele de cabra.

— Recebeu instruções de Savary?

— Sim. Querem ir para o Lake District. Vamos passar para o escritório.

Os dois o acompanharam. Sobre a mesa havia vários mapas.

— Uma noite horrível para uma missão perigosa.

— Quer dizer que não está disposto a cumpri-la? — perguntou Brosnan.

— Não se diz não à Union Corse — respondeu Graham, com uma risada. — Ela é a dona disso aqui e assegura meu pão, além da manteiga e um pouco de geleia. Onde exatamente querem pousar?

— Uma velha base da RAF, do tempo da guerra, ao sul de um lugar chamado Ravenglass. Tanningley Field.

— Uma região horrível para a gente voar. Um amigo meu bateu numa montanha lá por perto em 1943, pilotando um bombardeiro Lancaster. O único sobrevivente foi o artilheiro de ré, com as duas pernas quebradas. Olhe aqui — acrescentou, apontando o mapa. — Cá está ele. Desativado.

— Parece que a pista está perfeitamente utilizável — disse Devlin. — O homem que estamos seguindo conhece bem o lugar. Está neste momento voando para lá. Decolou à meia-noite.

— Em que avião?

— Um Cessna 310.

— Há esta noite um forte vento de proa. Falei com o pessoal da meteorologia. Isso quer dizer que, naquele aviãozinho, não fará mais de duzentos quilômetros por hora. Vamos dizer que chegue lá às quatro e meia, talvez cinco, com maior probabilidade. Com o dia nascendo e um campo sem recursos de apoio, ele será obrigado a fazer uma aproximação visual, o que exige luz. Como nós — acrescentou, dobrando os mapas.

Devlin consultou o relógio e viu que eram duas da madrugada.

— Então ele tem duas horas de vantagem.

Graham discordou com um movimento de cabeça.

— A velocidade do meu Navajo é de uns cento e cinquenta quilômetros por hora superior à do Cessna e não seremos tão prejudicados pelo vento de proa. Acho que podemos fazer o percurso em três horas.

— Chegando às cinco — completou Brosnan. — Bem no rastro dele. Vamos embora.

— Deixe-me explicar um detalhe, antes de decolarmos — disse Graham. — Preciso ter um destino para satisfazer os rapazes do controle de tráfego aéreo. Já avisei Orly de que estou fazendo um voo de emergência para Glasgow, a fim de pegar um suprimento de sangue para uma cirurgia em Paris esta tarde.

— Sangue? — estranhou Brosnan.

— Sim, um tipo raro. Sabe como são essas coisas. É um truque que uso ocasionalmente, quando preciso fazer um voo meio fora das regras. Jean-Paul já entrou em contato com um hospital em Glasgow, depois de falar com você, de modo que há uma explicação legal para este voo.

— Mas vamos aonde?

— O Lake District é bem na rota e não tem espaço aéreo controlado. No momento exato mergulho rapidamente, vocês saltam e decolo em seguida, torcendo para que algum radar não esteja me observando. A esta hora da manhã essa probabilidade é bem pequena.

— E se estiver?

— Penso em alguma explicação — respondeu Graham, sorrindo. — Fiz meu curso de piloto na RAF em 1943, Sr. Devlin. Servi muito tempo. Não há muita coisa que eles possam me ensinar. Se eu disser que tive um problema com os instrumentos, eles terão que acreditar.Agora é melhor irmos andando.

Abriram as portas do hangar. Devlin e Brosnan entraram no Navajo. Havia espaço para 10 passageiros. Graham entrou e fechou a porta.

— Vou deixar acesas apenas as luzes das asas — disse ele. — Com esta cerração, a decolagem pode parecer pior do que realmente é. Se não gostam de altura, é melhor que fechem os olhos.

Os motores roncaram e os dois passageiros afivelaram seus cintos, enquanto o avião taxiava até a cabeceira da pista e tomava posição.

— Você sabe o que os atores costumam dizer no teatro, Martin? — falou Devlin. — Desejar boa sorte a alguém dá azar.

— Muito obrigado — replicou Brosnan. — É justamente o que preciso.

O avião mergulhou na cerração, Graham confiando mais em seu instinto para levantar o nariz do avião no momento exato. A trezentos metros, livraram-se da cerração. O piloto forçou o leme da direita e começou a girar para estibordo.


Anne-Marie dormira algum tempo; ao despertar, viu os primeiros albores do dia no céu cinzento. Ao longe, na direção de bombordo, a Ilha de Man era uma mancha escura no horizonte.

Consultando o altímetro, ela verificou que estavam voando a 700 metros, sobre a imensidão desolada do mar.

A voz de Barry, falando no microfone, sobressaía acima do ronco dos motores.

— Ronaldsway, aqui é Golphe Alpha Yankee Foxtrot. Estou alterando o rumo para Blackpool. — Fez uma pausa, e depois continuou: — Não é emergência. Apenas uma mudança de plano.

Ligou o piloto automático e virou-se para trás na poltrona, com as algemas na mão.

— Não é que eu esteja pensando que você será tola o bastante para arranjar uma encrenca capaz de matar a nós dois, mas ficarei bem mais tranquilo se colocar isso outra vez.

Ela não esboçou a menor reação, sabendo que seria inútil. Simplesmente apresentou os pulsos para receber as algemas.

— Garota legal — disse ele, com um sorriso. — Agora, fique sentadinha aí e aprecie o pouso. É a parte excitante da viagem.

Retomou os controles e iniciou a descida.


14

 

 

Henry Salter teve a precaução de levar um bom alicate, ao partir para Tanningley Field. Foi fácil cortar a corrente enferrujada que fechava o portão principal, permitindo que ele entrasse com o Landrover.

Há anos não visitava o local e havia sinais de abandono em toda parte. Por entre as rachaduras do concreto da pista, a grama crescia e dois dos hangares estavam destelhados.

O terceiro parecia ainda em boas condições, ostentando um letreiro desbotado onde se lia Tanningley Aero Club. Com alguma dificuldade, Salter conseguiu rolar lateralmente uma das portas e entrar. A chuva penetrava pelas goteiras do teto. Fazia frio e ele levantou a gola do casacão. Então, ouviu o ruído do avião e correu para fora.

O Cessna se aproximou, vindo do mar, a baixa altura, guinou para estibordo e pousou suavemente na extremidade da pista. Salter agitou os braços e o Cessna moveu-se em sua direção e penetrou no hangar, o ronco de seus dois motores tornando o ambiente ensurdecedor, até que Barry os desligasse. Em seguida, o piloto abriu a porta da cabine e ficou em pé sobre uma asa.

— Sr. Sinclair — disse Salter, timidamente.

Barry agora puxava Anne-Marie, ajudando-a a saltar para o chão. Salter olhou para a moça, notando, apavorado, as algemas nos pulsos dela.

— Tudo bem. Vamos andando — disse Barry, levando Anne-Marie até o Landrover e fazendo-a se sentar no banco de trás, enquanto ele tomava a direção, com Salter a seu lado.

— Para onde vamos?

— Para Marsh. Aquele seu barco, o Kathleen, ainda está ancorado na enseada?

— Claro — respondeu Salter, espantado. — Não estou entendendo.

— Já vai entender — replicou Barry, passando rapidamente pelo portão.

— Espere um momento — pediu Salter. — Convém fechá-lo, pois alguém pode estranhar e querer saber o que há.

Barry parou o carro e Salter desceu, correndo até o portão. Quando voltava, parou um instante, escutando. Barry perguntou, impaciente: — O que é?

— Pensei ter ouvido o ruído de outro avião, mas deve ter sido engano.

— Suba logo, homem. Meu tempo é curto — exclamou Barry, exasperado, arrancando sem sequer dar tempo para Salter fechar a porta.


O ruído que Salter ouvira era do Navajo fazendo sua aproximação, mas o tempo havia piorado tanto que o teto se reduzira para trezentos metros, obrigando Barney Graham a retroceder para o mar.

— É um inferno este pouso às cegas. Corremos o risco de bater em uma montanha antes de saber o que está acontecendo.

— Você tem que nos deixar lá embaixo de um jeito ou de outro — disse Brosnan. — É absolutamente essencial.

— Quem sabe não preferem saltar? — replicou Graham, praguejando entre os dentes. — Está bem. Vou tentar nova aproximação pelo lado do mar.

Afastou-se um pouco mais, fez a curva, perdeu altura e, chegando a cento e cinquenta metros, avistou as montanhas como se corressem a seu encontro.

Foi Devlin quem viu a pista e os hangares logo a estibordo, através da chuva. Graham vinha com tanta velocidade e tão baixo que, quando inclinou o nariz para pousar, a asa da direita estava apenas dois metros acima do solo. O avião sacudiu-se com o choque e taxiou na direção dos hangares.

— Saltem! — gritou Graham. — Depressa!

Brosnan pulou e Devlin o seguiu tão rapidamente que tropeçou e caiu. Graham tornou a fechar a porta, taxiou o Navajo até a cabeceira da pista, parou por um instante, depois acelerou os motores e decolou.

Em poucos segundos já havia desaparecido na cerração e o ruído dos motores foi rapidamente esmaecendo na distância.

— Façamos votos para que seja aqui — disse Devlin. — Nada de erros.

Brosnan já chegara até a porta entreaberta do hangar. Quando a fez rolar para o lado, viu o Cessna.

— É aqui mesmo. Agora, onde está Barry?

— Meu palpite é que esse tal de Salter pode nos informar. Entrementes, por via das dúvidas, vamos evitar que Barry tente usar essa coisinha outra vez — disse Devlin, tirando a Browning do bolso e estourando as rodas do avião. O Cessna balançou ligeiramente, à medida que os pneus se esvaziavam.

— Boa ideia — disse Brosnan. — Agora, vamos andando, Liam. De acordo com o mapa, são cerca de oito quilômetros até Marsh End.

A sorte, entretanto, estava com eles. Cinco minutos depois de terem iniciado a caminhada pela estrada principal, um caminhão carregado de latões de leite passou por eles e se deteve logo adiante.

O homem que se debruçara na janela da cabine parecia bem alegre, apesar da hora matinal. Estava com a barba por fazer e o casaco do pijama aparecia sob o impermeável.

— Algum problema?

— Ainda pergunta! — respondeu Devlin com ar desanimado. — Vínhamos pela estrada no outro vale, quando o carro quebrou.

— Wastwater?

— Exatamente. Já devemos ter caminhado uns oito ou dez quilômetros.

— Mais de oito, com certeza. Para onde vão?

— Conhece a casa do Sr. Salter?

— Passo por ela todo dia. Se é para lá que vão, subam aí atrás e aproveitem a carona.

— Obrigado — disse Devlin. — Podemos de lá telefonar para a oficina.

Subiram no caminhão e se acomodaram entre os vasilhames de leite, Brosnan comentou: — Você nunca se atrapalha, não é mesmo?

— Tudo o que se tem a fazer é andar direitinho — replicou Devlin, com um sorriso astuto.


Barry guiou o carro pela estradinha que margeava a enseada e se deteve na extremidade do pier. O Kathleen balançava levemente sob,a chuva e a cerração envolvia todo o pântano em um manto cinzento. Ele ajudou Anne-Marie a descer e a levou pelo braço ao longo do pier.

Salter apressou o passo atrás deles.

— Mas o que vai fazer?

Barry auxiliou Anne-Marie a transpor a amurada do barco.

— Vou recuperar uma coisa que me pertence, Sr. Salter, e para isso preciso de seu barco. Depois, você recebe cinco mil francos, leva-nos de volta a Tanningley Field e decolo nesta manhã cinzenta, como um espírito que desaparece para sempre. Estou certo de que você ficará muito mais tranquilo.

Salter se mantinha imóvel, olhando para ele com ar atônito.

— Não podemos partir.

— Por que não? — perguntou Barry. — Você me disse, quando estive aqui na última vez, que mantém o Kathleen sempre pronto para fazer-se ao mar.

— É a chave para dar partida no motor. Não costumo andar com ela. Está lá em casa.

— Então vá buscá-la, seu idiota, e não demore.

Salter saiu correndo pelo cais e entrou no Landrover. Barry empurrou Anne-Marie pelo convés, fazendo com que ela descesse para a casa do leme.

— O que você está achando de tudo isso até agora?

O sorriso dele era forçado, os olhos brilhavam excitados e, quando acendeu o cigarro, suas mãos tremiam ligeiramente.

— Cuidado — recomendou Anne-Marie. — Você está caindo aos pedaços.

— Quem, eu? — replicou Barry, com uma risada. — Só depois que o inferno congelar.

Levantou a tampa do depósito embaixo do painel de instrumentos. A Sterling e o Smith & Wesson ainda estavam onde ele os deixara. Ao fechar novamente a tampa, ouviu o comentário de Anne-Marie:

— É muita coisa para o pobre do Sr. Salter.

— Eu sei, mas não gosto de correr risco. Ele podia não querer colaborar, não acha?

Tirou-a do caminho com um empurrão e levantou o encosto do banco, encontrando a pasta que colocara ali. Abriu-a, verificou que o dinheiro estava lá e tornou a fechá-la.

— Os fundos para a transação? — perguntou ela.

— Mais ou menos isso. — Dirigiu-se à entrada da casa do leme e ficou um instante escutando. Depois, disse em voz baixa: — Venha cá.

— Talvez ele não volte.

— Não diga bobagem.

— É que ele me pareceu completamente apavorado.

Barry a encarou, não mais sorrindo. Depois, tomou-a pelo braço e empurrou-a para fora da casa do leme, atravessou o convés e entrou no salão. Obrigou a moça a entrar, fechou a porta à chave, saltou por cima da amurada e saiu correndo pelo ancoradouro.


O caminhão do leite rodava dentro da cerração, mas Devlin e Brosnan puderam ler a placa pintada com letras douradas, em cima do portão.

— Henry Salter, Casa Funerária e Crematório — leu Devlin. — Muito bom gosto. Vamos ver se ele está em casa.

Na manhã chuvosa predominava um grande silêncio. Os dois homens deram a volta pelos fundos, aproveitando a cobertura das moitas de rododendros.

Chegando ao pátio, pararam, vendo a porta do celeiro aberta. Nesse instante, ouviram o ruído de um carro que se aproximava. O Landrover entrou no pátio e parou. Salter desceu e entrou na casa pela porta dos fundos.

— Diria que é o nosso homem — murmurou Devlin. — Tem um jeito de quem lida com defuntos, não acha?


Salter não estava nada feliz. Todo aquele negócio cheirava mal e Sinclair o apavorava. Por outro lado, não lhe restava alternativa. Quando pegou a chave do motor do barco, pendurada perto da geladeira, a porta atrás dele foi aberta violentamente. Antes que se desse conta do que estava acontecendo, foi atirado sobre a mesa, a mão de Brosnan em sua garganta, o cano da Mauser na testa. Nunca se sentira tão apavorado.

— Por favor, não! — gemeu ele.

— Você é Henry Salter, não é?

— Sim, monsieur — conseguiu balbuciar, depois que Brosnan afrouxou a pressão.

— Onde está Frank Barry?

— Frank Barry? Não conheço ninguém com esse nome.

A pressão dos dedos de Brosnan voltou a acentuar-se.

— Você acabou de pegá-lo em Tanningley Field, não faz mais de meia hora.

— Aquele era o Sr. Sinclair, Maurice Sinclair.

— Entendo — replicou Devlin. — E tinha uma moça com ele?

— Exatamente. Quando desceram do avião ela estava algemada.

— E onde estão agora?

— Lá na enseada, no meu barco, o Kathleen. Ele me mandou buscar a chave para ligar o motor. Olhe. — Mostrou a chave, que conservava na mão.

— Fico com ela — disse Brosnan.

— Ele já esteve aqui antes? — perguntou Devlin.

— Já, dias atrás.

— Para pegar o foguete?

Salter se mostrou espantado.

— Não sei o que ele veio fazer. Pagou-me para que eu arranjasse homens que deveriam ajudá-lo. Ficaram dois dias e foram embora. É tudo que sei.

Era evidente que ele estava falando a verdade, e Devlin concordou com um gesto de cabeça.

— Como se vai até onde está esse seu barco?

— Dobre a esquerda na estrada principal. Há uma placa de sinalização anunciando Enseada Marsh End. O Kathleen está atracado no pier. Não pode haver engano. É a única embarcação que tem lá hoje.

Devlin foi até a pia e pegou os panos de prato que estavam pendurados ao lado dela. Rasgou-os em várias tiras, que entregou a Brosnan.

— Pegue isso aí, Martin. Faça um servicinho direito.

Saiu para o pátio, sentou-se no Landrover e tirou sua Browning da cintura. Destravou o tambor e, com a unha, retirou as balas uma por uma, tornando a carregar a arma cuidadosamente. Quando estava terminando, Brosnan saiu pela porta da cozinha e sentou-se ao volante. Estava muito pálido, quando disse a Devlin: — Ele é meu, Liam. Não se esqueça disso.

— Os japoneses acreditam que a vingança é uma purificação, mas, pessoalmente, tenho minhas dúvidas.

Recostou-se e fechou os olhos, com a Browning no colo, enquanto Brosnan arrancava em direção à estrada.


Frank Barry, tomando o atalho através do jardim, viu o Landrover estacionado no pátio. Que manobra Salter estaria fazendo? Talvez a moça, afinal, estivesse com a razão. Nesse momento, reconheceu Liam Devlin que saía da casa e entrava no carro.

A primeira reação de Barry foi gritar contra aquele fantasma, afugentá-lo, pois na realidade se sentia súbita e estranhamente apavorado. Praguejou violentamente, acusando-se de idiota supersticioso. E então apareceu Martin Brosnan, saindo pela porta da cozinha, contornando o Landrover e desaparecendo da vista. Um segundo fantasma? Sentindo-se trêmulo, procurou ganhar coragem afagando o cabo de seu Ceska. Quantas vezes são necessárias para se matar um homem?


Quando Barry chegou ao pier, ofegante pelo efeito da corrida, já havia retomado seu controle. Que Devlin e Brosnan ainda estavam vivos era um fato indiscutível.

A explicação, naquele momento, era de secundária importância.

Percorreu o pier, de ouvido atento. O Landrover se aproximava, mas sem aquela maldita chave não seria possível mover o barco, pelo menos com o motor.

Recolheu os cabos da proa e da popa, apoiou-se no pier e afastou a embarcação o mais que pôde, abrindo um intervalo de três a quatro metros entre o Kathleen e o cais. Subitamente, porém, o intervalo começou a se reduzir. Barry percebeu logo que a maré estava subindo, criando uma correnteza que atirava o barco contra o pier.

Anne-Marie notou a presença de Barry no convés. Logo depois ele abriu a porta do salão, agarrou-a e a arrastou para fora. A moça não teve dúvida de que chegara sua vez, mas Barry a empurrou para dentro da casa do leme.

— O que significa isso? — perguntou ela.

— A repetição da cena — replicou Barry brutalmente.

E então o Landrover surgiu de dentro da cerração e parou na ponte do ancoradouro. O coração de Anne-Marie quase parou de bater.


Duas coisas aconteceram quase simultaneamente. Barry estilhaçou com o cotovelo o vidro da janela da casa do leme e Anne-Marie gritou o mais alto que pôde:

— Martin, cuidado!

Barry deu-lhe um empurrão e começou a atirar através da janela quebrada, na direção de Devlin e Brosnan, que corriam pelo ancoradouro. O Kathleen estava agora afastado menos de um metro, permitindo que Brosnan saltasse sobre a popa e se abrigasse atrás de um ressalto do convés. Devlin preferira a proa e ficou fora de vista, no lado oposto ao da entrada da casa do leme.

— Então, Frank — disse ele —, como vai você nesta bela manhã?

— Mais um milagre, Liam? — replicou Barry.

— É verdade. O demônio nos enviou do inferno especialmente para buscar você.

— Ele vai ter que esperar — preveniu Barry, segurando Anne-Marie pelos cabelos. — Estou com sua amiguinha, Martin. Se eu for, ela vai antes. Não esqueça. Se tentarem me pegar, a última coisa que farei será apertar este gatilho.

Com um braço, apertou Anne-Marie contra o peito, como se fossem dois amantes, a cabeça dela puxada para trás, o cano do Ceska apoiado em seu queixo.

— Duas soluções para escolherem — disse Barry. — Ou ela morre agora, mesmo que eu morra com ela, ou vocês dois jogam fora suas armas e se mandam daqui.

— Não, Martin — gritou Anne-Marie, fazendo com que Barry lhe desse um puxão nos cabelos.

— Não me venha com truques, Martin. Sim ou não.

Houve uma pausa, depois Brosnan ergueu-se, mostrando a Mauser.

— Jogue a arma dentro d'água! — ordenou Barry.

Brosnan obedeceu, com um gesto quase casual, os olhos sempre fixos no rosto de Barry.

Devlin contornara a casa do leme, parando a menos de dois metros de distância.

Sem esperar a ordem de Barry, atirou sua Browning pela borda.

— Muito bem — disse Barry. — Cheguem mais perto. — A voz estava insegura, revelando os primeiros sinais da tensão. — Eu disse mais perto!

Os dois homens se apresentaram lado a lado, em frente à casa do leme.

— Solte a moça, Frank — disse Devlin.

— Certamente, por que não? — replicou ele, empurrando Anne-Marie. No mesmo momento, abaixou-se, levantou a tampa sob o painel de instrumentos e tirou, com a mão livre, a submetralhadora que escondera ali.

— Meu trunfo de reserva, Liam — comentou, com um sorriso. — Aprendi com você a importância dessas precauções, lembra-se?

— O que vai acontecer agora? — falou Devlin. — Mais um fuzilamento?

— Ainda não. Primeiro, vou fazer vocês trabalharem para mim. A algumas centenas de metros daqui há uma espécie de açude na enseada. No fundo dele se encontra um barco, em cuja cabine há uma coisa de que preciso muito. Você pode mergulhar e trazê-la para mim, Martin.

— O foguete? — perguntou Devlin. — Muito engenhoso.

— Você continua como sempre muito bem informado. Mas chega de conversa. Martin, você e a moça sigam pelo convés. Devagar e sem truques. Quero os dois dentro do salão, enquanto ponho esta coisa em movimento. E você — acrescentou, dirigindo-se a Devlin — vá na frente deles até a popa.

Devlin foi o primeiro a se mover. Brosnan colocou Anne-Marie na sua frente e começou a caminhar de costas, protegendo-a com o corpo, sem retirar por um momento o olhar do rosto de Barry, que continuava na entrada da casa do leme, empunhando a Sterling.

— Você devia ter ficado na fazenda, Frank. Cometeu um grave erro ao deixar o serviço a cargo daqueles três vagabundos. Eles não aguentariam uma noite de sábado em Belfast.

— Tem razão. Desta vez eu mesmo completarei o trabalho.

Brosnan se virou, empurrou Anne-Marie escada abaixo para dentro da casa do leme e, pulando por cima da amurada, mergulhou na água barrenta da enseada, passando por baixo do casco, os pés tocando a lama do fundo.

A rajada da Sterling de Barry varreu a amurada tarde demais; ele ainda correu para atirar na água, mas já não havia sinais de Brosnan. Anne-Marie tornou a subir a escada, enquanto Barry se deslocava para a borda oposta e disparava mais uma rajada na água.

— Não adianta, Frank — disse Devlin. — Ele escapou.

— Cale essa boca! — gritou Barry.

Devlin acendeu tranquilamente um cigarro, enquanto Brosnan, subindo pela proa, ouvia o comentário dele: — Você foi sempre incapaz nas horas mais difíceis, não é verdade, Frank?

— Capacidade suficiente para dar cabo de você — disse Barry, encaminhando-se para Devlin.

— Já tentou uma vez e fez uma confusão dos diabos — falou Devlin, aproximando-se lentamente. — Não creio que tenha mais êxito agora.

Barry disparou uma rajada de quatro ou cinco tiros que rasgaram o impermeável de Devlin no lado esquerdo do peito, fazendo com que ele girasse sobre si mesmo.

Com um grito, caiu estatelado no convés.

Anne-Marie arrastou-se até ele, apoiando-se nas mãos algemadas, enquanto Brosnan deslizava pela amurada de bombordo e descia para a casa do leme, à procura do Smith & Wesson.

Barry, percebendo o movimento, tentou ir atrás dele, mas Brosnan o alvejou no braço direito. Com a força do impacto, Barry perdeu o equilíbrio e a Sterling lhe fugiu das mãos, descrevendo um arco no ar e desaparecendo na água.

Barry ficou apertando o braço ferido.

— A chave das algemas, Frank — pediu Brosnan. — Onde está?

Barry procurou-a no bolso com os dedos ensanguentados e atirou-a no convés. Anne-Marie conseguiu pegá-la e, embora com dificuldade, abriu as algemas.

— Por Deus, Martin, você sempre foi um sujeito traiçoeiro, mas nunca imaginei que acabasse trabalhando para a oposição.

— O que estou fazendo não é por eles, é por Norah. Pelo que você fez. Ela morreu gritando, Frank, amarrada a uma cama de hospital de pacientes mentais e tudo por sua causa.

— Quem disse isso não passa de um mentiroso — replicou Barry, sinceramente horrorizado. — Foram os franceses que torturaram Norah, aqueles canalhas da Seção Cinco do SDECE. Você sabe como são esses barbouzes. Usaram a eletricidade para obrigá-la a falar. Quando não conseguiram nada, recorreram às drogas e exageraram na dose.

— Você está mentindo — murmurou Liam Devlin, apoiado em Anne-Marie, o sangue correndo do ombro.

— Juro por Deus — reafirmou Barry, virando-se para Brosnan. — Matar Norah? Você acha isso possível, Martin? A única mulher que amei na vida. A única pessoa que sempre coloquei acima de tudo.

— Mentiroso! — exclamou Brosnan, detonando o revólver três vezes. O primeiro tiro atingiu Barry no ombro, fazendo-o girar; os outros dois, nas costas, lançando-o de cabeça por cima da amurada para dentro d'água.

Ouviram-se os gritos espantados das aves levantando voo. Brosnan ajoelhou-se junto ao amigo.

— Mentiroso — repetiu no ouvido de Devlin. — Você não acha?

Mas os olhos de Devlin estavam cerrados de dor e Brosnan não encontrou resposta, a não ser a piedade no rosto de Anne-Marie, que ele procurou ignorar. Não podia se deixar enfraquecer. Bandidos como Barry seriam sempre substituídos por outros bandidos. Mesmo os torturadores franceses não se extinguiriam. A culpa era de quem deu a ordem. Ferguson? A Primeira-Ministra?

Lamentou que fosse uma mulher. Seria mais fácil matar um homem.


O colete à prova de balas funcionou ainda uma vez, absorvendo o impacto da rajada que Barry disparara em Devlin, mas uma das balas acertara seu ombro e outra o atingira no braço.

Brosnan fez um curativo, com auxílio da caixa de primeiros socorros que encontrara no barco. Depois de terminar, preparou a ampola de morfina.

— Isso aliviará a dor por uns tempos.

— Você daria um bom médico, Martin — disse Devlin, esforçando-se para sorrir.

— Treinamento dos tempos de Comandos.

— Ele precisa de um hospital — disse Anne-Marie.

— Sim, mas não aqui na Inglaterra. Seria o melhor caminho para uma cela de prisão. Você ainda tem aquela lancha em Nice, como nos velhos tempos?

— Sim. Por quê?

— E você é capaz de pilotar esta?

— Claro. Não há problema. É uma excelente embarcação.

— Está bem. Acho que pode ir até a Irlanda em oito horas. Liam lhe indicará o local.

— Liam? Quer dizer que você não vem conosco? Não estou entendendo.

Ele não respondeu, pegou a maleta que Barry deixara na casa do leme e a abriu, mostrando a Devlin os maços de cédulas.

— Pelo menos trinta mil libras, Liam, talvez até mais. Diga-me o nome de uma pessoa em Londres que faça qualquer coisa por esse preço. Não quero gente ligada a política. Simplesmente um bom vigarista.

Devlin protestou com voz fraca:

— Deixe disso, Martin. Não adianta mais nada, agora.

— Ferguson mentiu sobre Norah, Liam.

— Está bem, mentiu. Achou que o fim justificava os meios. Queria a morte de Frank Barry.

— Todos queriam a morte de Frank Barry — replicou Brosnan. — Ferguson, a DI5, o Gabinete, a Primeira-Ministra. Quem mais? Estou cansado de ser instrumento para que alguém satisfaça seus desejos, metido na fogueira para que os demais tenham alguma vantagem.

— Não, não é isso, Martin — balbuciou Devlin, meneando a cabeça.

— Você me deve, Liam. Foi você quem primeiro me meteu nesse negócio.

— Mas o ajudei a ficar livre — replicou Devlin, furioso.

— Livre? — ironizou Brosnan. — Quem está livre?

Anne-Marie surpreendeu os dois homens.

— Faça o que ele pede, Liam. Não adianta discutir. Vamos embora daqui e ele que siga seu caminho para o inferno, como deseja.

Ela se levantou e se dirigiu para a casa do leme, enquanto Devlin tentava tirar os cigarros do bolso. Brosnan acendeu um para ele e ficou esperando sua decisão.

— Não posso lhe dar o nome de um homem, mas há uma mulher que conheci faz alguns anos. Não tem ligação política. Não é sequer irlandesa. Uma judia alemã que se chama Lily Winter. Tinha uma pequena loja no Cais da Grande Índia, em Wapping. Acho que ela pode ser a pessoa que você procura.

Brosnan fechou a maleta e se levantou.

— Qual é o número do telefone de Ferguson?

Devlin lhe disse e ele anotou.

— Obrigado. Adeus, Liam.

Quando entrou na casa do leme, Anne-Marie estava examinando o painel. Brosnan tirou do bolso a chave de ignição.

— É isso o que procura?

Ela ligou o motor, sem dizer uma palavra.

— Então está tudo bem, não é? — perguntou Brosnan.

— O que você espera que eu diga? — exclamou ela, angustiada. — Que Deus lhe conceda a graça de morrer na Irlanda? — Era o mais antigo dos votos irlandeses.

— Obrigado. É um desejo muito nobre, mas com muito pouca probabilidade de ser atendido.

Subiu a escada, saltou sobre a amurada e ficou observando o Kathleen se afastar e entrar no canal, desaparecendo na cerração. Somente então caminhou lentamente para o Landrover.


A coleção de ternos no guarda-roupa de Salter era tão numerosa que Brosnan concluiu que, ao longo dos anos, o agente funerário se especializara em roubar os mortos.

Tomou um banho, livrando-se do mau cheiro da água da enseada, e escolheu um terno de lã cinza, camisa e gravata, além de uma capa de chuva. A seguir, desceu para a sala, onde deixara Salter amarrado em uma cadeira. Olhou o relógio. Eram apenas sete da manhã.

— A que horas seus empregados costumam chegar? — perguntou a Salter.

— Depois que Sinclair me telefonou, dispensei todos na parte da manhã.

— Então só chegam lá pelo meio-dia.

— Isso mesmo — respondeu Salter, umedecendo com a língua os lábios secos.

— Vou lhe fazer um favor, deixando-o amarrado. Isso vai permitir que você represente o papel de quem não tomou parte em tudo o que aconteceu aqui.

— Fico muito grato — disse Salter. — Posso perguntar-lhe se o Sr. Sinclair está morto?

— Está — replicou Brosnan, saindo e fechando a porta.

Momentos depois, Salter ouviu o ruído do Landrover, a princípio bem forte, depois diminuindo, à medida que se afastava. Então, procurou descontrair e cuidar dos detalhes da história que deveria contar à polícia.


15

 

 

Antigamente, as Docas de Londres e as margens do baixo Tâmisa eram o centro da navegação mercante mundial, mas essa época já havia passado e, enquanto Brosnan caminhava pelo Wapping naquela tarde de terça-feira via apenas os sinais de decadência, os guindastes enferrujados apontando para o céu, os armazéns vazios, as janelas fechadas com tábuas.

De algum ponto do rio, vinha o uivo da sirene de um navio furando a cerração; não fosse esse som, ele poderia se considerar a única criatura viva no mundo.

Dirigiu-se ao Cais da Grande Índia, passando pelas docas vazias, e chegou a um armazém em frente ao rio. Na tabuleta sobre o portão estava escrito Winter & Co. Importadores. Brosnan abriu a cancela no portão principal e entrou.

O armazém estava atulhado de móveis velhos de toda espécie. Do mesmo modo que acontecera em sua visita anterior, o ambiente era escuro, mas desta vez o som de uma vitrola se filtrava, vindo de um pequeno escritório envidraçado, que parecia equilibrar-se no alto de uma escada íngreme.

— Sra. Winter! — gritou Brosnan.

A porta do escritório se abriu, a música soou mais alta.

— É o Sr. Brosnan?

— Sim, madame.

Ela acendeu outra lâmpada para vê-lo melhor e apoiou-se no corrimão. Tinha pelo menos 70 anos, o cabelo puxado para trás, preso em um coque do tempo antigo e mostrando um rosto pálido e enrugado. Trajava um vestido de lã, com uma saia que lhe chegava aos tornozelos. Sua mão direita segurava a coleira de um dos mais belos cães que Brosnan já vira, um Dobermann preto e castanho.

O inglês dela era excelente, com sotaque alemão.

— Isso me deixa intrigada, Sr. Brosnan. Karl nem sequer rosnou quando esteve aqui na primeira vez. Agora também permaneceu bem quieto. Nunca o vi se comportar assim.

— Não conhece o ditado? “Crianças e cães têm faro especial.”

Subiu a escada e acariciou a cabeça do animal, antes de entrar no escritório. Um disco na vitrola continuava tocando A Foggy Day in London, mas Brosnan não reconheceu o cantor.

— É Al Bowlly — disse ela. — O melhor que já houve. Morreu durante uma blitz sobre Londres. Eu costumava ouvi-lo no Restaurante Monseigneur, em Piccadilly, com Roy Fox e sua orquestra. Isso foi em 1932, antes de eu ter feito a bobagem de voltar para a Alemanha, quando meu pai morreu.

Brosnan acendeu um cigarro e sentou-se em frente à escrivaninha, ouvindo aquela voz cantando uma canção de outro mundo que, por alguma razão que ele não sabia explicar, o emocionava profundamente.

— Gosta? — perguntou ela.

— Oh, sim. Sempre gostei das cidades à noite ou de madrugada. Cerração, ruas molhadas, aquela incerteza total do que nos espera à frente, na próxima esquina, algo maravilhoso e surpreendente. A gente é assim quando jovem e ainda crédulo.

A canção chegou ao fim e ela desligou a vitrola.

— Deixei de ser crente em Dachau, Sr. Brosnan.

Arregaçou a manga do vestido e mostrou o número tatuado no braço. Então Brosnan tirou o casaco e desabotoou o punho da camisa. Ela segurou o braço dele por cima da mesa e examinou o número de prisioneiro, espantada.

— Mas você não pode ter estado nos campos de concentração. É jovem demais.

— Era coisa semelhante. Não tínhamos os fornos, mas os procedimentos normais não diferiam muito.

— Menos com você.

— Pode me considerar uma exceção — replicou Brosnan, vestindo o casaco.

Ela colocou um cigarro na piteira de marfim e fixou os olhos nele, enquanto acendia o isqueiro.

— Trouxe o dinheiro?

— Sim — disse Brosnan, colocando a maleta na mesa e abrindo.

Lily Winter olhou os maços de cédulas de 20 libras e apanhou um deles.

— Quanto tem aí?

— Trinta e cinco mil libras.

Ela ainda olhou durante uns momentos para a maleta, depois fechou-a.

— É muito dinheiro. Depois de Dachau, quando voltei para a Inglaterra em 1945, o dinheiro era a única coisa que me interessava. Deixei de acreditar nas pessoas, sabe? — Levantou-se, foi até uma mesinha ao lado e pegou um bule de café e duas xícaras. — Tornei-me, praticamente por acaso, receptadora de coisas roubadas, a de mais êxito em toda a cidade, antes de me aposentar. Tratei com todos eles. Todos os príncipes do submundo. Os irmãos Kray, a quadrilha Richardson...

— E Liam Devlin?

— O querido Liam — acrescentou ela, com um sorriso. — Esse era diferente. Eu gostava muito dele.

— E os negócios em que ele estava metido?

— Não me interessavam. Quando ele precisava de passaporte, eu arranjava, com o nome de um comprador de armas na Europa ou de um médico de confiança. Coisas assim, mas isso foi antigamente. Agora, como vê, negocio apenas com móveis usados. — Fez uma pausa e abriu novamente a maleta. — É realmente muito dinheiro.

— Todo seu, se puder me ajudar.

— A fazer o que, Sr. Brosnan? O que pretende?

— Isso é assunto pessoal meu.

— Você tem uma aura de revolta, Sr. Brosnan, e isso não é bom. Dê-me suas mãos.

— Minhas mãos?

— Sim. Sou clarividente. Psíquica. Naturalmente, sabe o que é isso... Vou mostrar.

As mãos dela eram macias e geladas, fazendo com que ele se lembrasse, sem uma razão plausível, de seus tempos de criança, de sua avó materna em Dublin, os lençóis de linho cheirando a alfazema e alecrim. Quando ela aumentou a pressão dos dedos, Brosnan sentiu como que uma picada de um rápido choque elétrico. Ela então abriu os olhos que mantivera cerrados, acariciou-lhe o rosto e sorriu.

— Agora sim, estou vendo tudo.

— O que quer dizer?

— A mulher que você procura pode ser encontrada em sua casa amanhã à tarde — disse ela em um tom de voz agora brusco e seco.

— Em casa? Mas isso quer dizer o número dez de Downing Street. Não há meios de entrar lá.

— Realmente, parece uma impossibilidade. Ninguém é admitido sem um convite pessoal ou um passe oficial atentamente examinado pela polícia na porta e por funcionários lá dentro. Entretanto, o fato interessante é que todas as recepções e jantares oficiais são organizados por empresas especializadas.

— E então?

— Amanhã, às seis e meia da tarde, a Primeira-Ministra oferecerá uma festinha de Natal para umas cem pessoas, que trabalharam ou estão trabalhando lá. Assistentes, datilógrafas, auxiliares, entende? O local escolhido foi o chamado Salão das Colunas. Já tomei providências para você ser incluído entre o pessoal do bufê, como garçom.

Brosnan estava atônito com a ousadia da ideia.

— Mas isso será possível? Nunca entrei lá.

Ela abriu uma gaveta e tirou uma folha de papel.

— Esta é a planta do térreo e do primeiro andar. Muito simples.

— Mas onde conseguiu isso?

— É uma informação já publicada em numerosos artigos de jornais e revistas ao longo dos anos. Não custou nada. Você precisa de um passe oficial, com sua foto. Esse tipo de falsificação não apresenta o menor problema para um sujeito que eu conheço. Entretanto, é de capital importância que, antes de tirar essa foto, você altere bem sua aparência.

— E como vou fazer isso?

— Tenho um velho amigo que é especialista nesses trabalhos. Sugiro que volte aqui mais tarde, digamos às dez horas. Pague sua conta no hotel e mude-se para cá.

— Está bem.

Levantou-se e caminhou para a porta. Lily Winter acrescentou:

— Oh, ia esquecendo. Pedi umas informações a Dublin. Devlin está hospitalizado na Casa de Saúde Mountjoy. Parece que vai passando muito bem.

— Não havia uma moça com ele?

— Exatamente. Ela se mudou ontem para o chalé de Devlin em Mayo.

— Quer dizer que vai indo tudo bem.

Quando desceu a escada, o Dobermann veio até o patamar e ficou vigiando, em silêncio. Somente quando Brosnan saiu e fechou a porta o cão retornou para os pés da dona.


Estava escuro no gabinete da Primeira-Ministra. A única luz era da lâmpada sobre a escrivaninha. Quando Ferguson entrou, ela escrevia, absorta em seu trabalho.

— O Brigadeiro Ferguson, Primeira-Ministra — anunciou o secretário e retirou-se.

Ela continuou escrevendo, sem sequer levantar os olhos. Impedido pelo protocolo de sentar-se sem ser convidado, Ferguson se manteve em pé em frente à escrivaninha, como um colegial compenetrado. Finalmente, ela soltou a caneta, recostou-se na poltrona e olhou para ele, o rosto calmo, mas com um olhar frio.

— Li seu relatório sobre o caso Brosnan, Brigadeiro. Pode assegurar-me de que nada deixou de ser tratado?

— O quanto me é dado saber, o serviço foi totalmente executado. Dou-lhe a minha palavra.

— Bem, então vamos tratar primeiro da parte mais importante. Afirma em seu relatório a intenção de procurar aquele foguete, observando as instruções de um tal de Brosnan. Obteve algum resultado?

— Tenho a satisfação de informar que recobramos o objeto em questão ainda há pouco, esta tarde. Eu estava presente, Primeira-Ministra. — Teve um ligeiro calafrio, recordando os corpos que os mergulhadores traziam para a tona, um a um.

— Isso pelo menos nos dá alguma esperança de restaurar a confiança em nossas relações com o Governo da Alemanha Ocidental — disse ela, abrindo a pasta e destacando uma página. — Na cópia de seu relatório, encontrada em poder de Mary Baxter, não há qualquer menção a essa moça, Norah Cassidy. Os detalhes de tão vergonhoso caso somente constam do último relatório que me enviou. Por que, Brigadeiro? Teria sido por vergonha?

Ferguson não achou o que dizer. A Primeira-Ministra prosseguiu, implacável: — De modo que mentiu sobre Norah Cassidy. Mentiu para o Professor Devlin e, através dele, para Brosnan.

— Achei que era necessário, madam. Precisava provocar a fúria de Brosnan, entende? Infelizmente, como tantas vezes ocorre, os acontecimentos fugiram ao nosso controle.

— Não aceito que o fim justifique os meios, Brigadeiro. Acredito nos imperativos morais — acrescentou, visivelmente indignada. — Não dou a menor razão a Martin Brosnan nem a qualquer causa que ele defenda. Ou, por falar nisso, a Devlin, por maior que seja a admiração que todos parecem lhe dedicar. Um terrorista é um terrorista, pelo que aprendi, e é exatamente isso o que foram esses homens.

— Sim, madam.

— Tendo mentido para Brosnan, levou-o a praticar atos desesperados e deu o direito de pôr a culpa não apenas no senhor, mas também em mim, como se fosse a mandatária. Não era esse mais ou menos o estado de espírito dele, quando lhe telefonou ontem?

— Sim, Primeira-Ministra. Para ser explícito, suas palavras foram estas: “Alguém terá de pagar. Nas atuais circunstâncias, vou me entender diretamente com a ilustre senhora.” E desligou.

Ela concordou, com um movimento de cabeça, muito calma, sem qualquer sinal de temor.

— Acha que ele pretende me matar, Brigadeiro?

— Só Deus sabe, madam. A verdade é que ele tem uma mente bem complexa.

— Também me parece — disse ela, folheando os documentos da pasta. — Rosas. Que ideia! — Fechou a pasta abruptamente e levantou-se. — Normalmente não preciso de mais de dez segundos para fazer meu juízo a respeito de uma pessoa e não gosto de vir a saber que estou errada. Considerando as circunstâncias, vou lhe entregar minha segurança pessoal, Brigadeiro. O que acha disso?

— Uma séria responsabilidade, Primeira-Ministra.

— É bom ouvir isso. Não tenho a menor intenção de alterar minha agenda. Estou muito ocupada. Outra coisa. Não quero ver a foto de Brosnan ao lado da minha na primeira página do Daily Express, com manchetes melodramáticas como PISTOLEIRO DO IRA ALVEJA PRIMEIRA-MINISTRA. E cuide para que suas providências sejam tomadas com a maior discrição.

— Fique descansada, madam.

— Eis aí a minha agenda para amanhã — disse ela, entregando-lhe uma folha de papel datilografada. — Receberá também passes especiais para o senhor e seu assistente, autorizando livre trânsito em Downing Street e na Câmara dos Comuns. — Voltou a sentar-se e apanhou a caneta. — Trate de pegá-lo, Brigadeiro. Eu diria que não é uma tarefa difícil. Agora, pode ir. Tenho muito expediente para despachar.

Apertou o botão da campainha e, quando ele chegou junto à porta, já a encontrou aberta pelo jovem secretário que o recebera.


Ferguson ordenou ao motorista que parasse na avenida que margeia o rio.

— Vamos caminhar um pouco, Harry.

Depois de andarem durante alguns minutos, com o automóvel os acompanhando lentamente, Ferguson debruçou-se na amurada, o olhar fixo na água do Tâmisa.

— Preocupado, sir? — perguntou Fox.

— Ela não está satisfeita, Harry. A última vez que recebi uma tarefa assim foi da minha professora na escola. Eu tinha então doze anos. — Meteu a mão no bolso, abriu a carteira e tirou um cartão, entregando-o a Fox.

— O que é isso, sir?

— Um passe especial, Harry, para andar à vontade por Downing Street e pela Câmara dos Comuns. Ela me encarregou de sua segurança pessoal, até que esse problema seja resolvido.

— Entendi — disse Fox, guardando o cartão. — Não creio que os guarda-costas oficiais da Primeira-Ministra fiquem muito satisfeitos com esta decisão.

Ferguson apanhou a agenda que havia recebido.

— Isto é o que ela vai fazer amanhã. Leia alto, por favor.

Retirou um charuto do estojo de couro e o acendeu lentamente, enquanto Fox estudava a agenda.

— Santo Deus! Ela começa às seis e meia da manhã e não para antes de uma da madrugada do dia seguinte!

— Eu sei. Agora me diga quais são os compromissos que podem oferecer risco.

— Há uma reunião do Gabinete, durando algumas horas, mas isso é em Downing Street. Um momento, há aqui uma possibilidade.

— O que é?

— A cerimônia religiosa em homenagem a Lord Mountbatten. Acha que ele se arriscaria lá?

— Não sei. O que mais?

— Regresso a Downing Street. Câmara dos Comuns às três da tarde. Novamente para Downing Street, reunião com ministros. Depois, ela dá uma entrevista a uma rádio e recebe o Embaixador da Alemanha Ocidental, que parece estar demissionário.

— Mais nada?

— Há uma festinha de Natal para os auxiliares às seis e meia, no Salão das Colunas. Volta à Câmara dos Comuns para jantar antes das nove. A seguir, retoma o trabalho, despachando. Não sei — acrescentou Fox, restituindo o papel a Ferguson — se ela recebe adicional de hora extra.

— Bem, parece que o único ponto perigoso é a cerimônia religiosa na Catedral de São Paulo. Quem mais estará lá? O Príncipe Charles, a Princesa Margaret. Credo! O último lugar onde desejaríamos que colocassem uma bomba.

— Mas Brosnan nunca foi de usar bombas, sir — observou Fox.

— Há sempre uma primeira vez.

— Acredita mesmo nisso?

— Não — replicou Ferguson, com um suspiro. — Não é o estilo dele. Ele é o último dos samurais, Harry, cavalgando contra a metralha com a espada em punho.

Voltaram para o carro e continuaram a analisar a agenda.

— A meu ver — disse Fox —, o único ponto perigoso é a cerimônia na catedral. O resto é em Downing Street ou na Câmara dos Comuns, e certamente ele não tem pacto com o demônio para entrar no Número Dez.

— A Câmara dos Comuns é vulnerável — observou Ferguson. — Uma porção de gente entrando e saindo. Eleitores que vêm falar com seus deputados, por exemplo.

— E o que faremos, então? — perguntou Fox.

— Marque uma reunião de todo o pessoal envolvido — determinou Ferguson, olhando a relógio. — Às onze, no meu escritório. Não dispenso ninguém. Prioridade máxima. Quero a presença de todos os chefes de departamentos da DI5. Também um representante da Seção Especial. Você sabe com quem deve falar?

— Sim, sir. Nós o pegaremos, fique descansado.

— Gostaria de ser assim tão sanguinário — falou Charles Ferguson, reclinando-se no banco do carro e cerrando os olhos.


Brosnan, sentado em frente ao espelho, toalha nos ombros, observava o velho que lhe penteava os longos cabelos agora cor de palha.

— Ótimo — disse o cabeleireiro. — Estou realmente satisfeito com meu trabalho. É claro que ainda está muito comprido.

Pegou uma tesoura e começou a cortar, cantarolando baixinho. Era tão idoso quanto Lily Winter e tão parecido com ela que se pensaria que fossem irmãos.

Sentada em um tamborete, observando, ela acendeu um cigarro e entregou-o a Brosnan.

— Shlomo é muito competente. Começou em um cabaré em Amsterdam. Fugiu pouco antes da entrada dos alemães.

— Estive em Elstree durante anos — disse o velho, trocando a tesoura por uma navalha. — Margaret Lockwood, James Mason... Trabalhei com todos os grandes. Noel Coward certa vez me deu uma cigarreira de prata, onde estava gravado: Para Shlomo, o Mágico, do Mestre.

O cabelo de Brosnan estava agora do comprimento convencional e o velho enxugou-o e o repartiu cuidadosamente. A diferença era extraordinária, especialmente em consequência das sobrancelhas esbranquiçadas.

— Fantástico — comentou Brosnan.

— Ainda não terminei. Agora, você parece apenas diferente. Quando tudo ficar pronto, será outra pessoa. Estique seu lábio superior e fique assim até que eu mande parar.

Brosnan obedeceu. O velho prendeu cuidadosamente um bigode louro, apanhou novamente a tesoura e o aparou.

— Tenho feito isso para pessoas importantes. Você sabe, artistas famosos que querem fazer compras sem ser perseguidos pelos fãs.

— E eu? — perguntou Brosnan. — De quem você acha que estou me escondendo?

— Nem quero saber. Não me interessa. Se Lily ficar satisfeita, estarei recompensado. Abra a boca. — Com enchimentos colocados nas gengivas, as bochechas de Brosnan pareceram mais gordas. — Acho que não precisamos pendurar argolas no nariz, hein, Lily?

— Não — disse ela, sacudindo a cabeça. — Só faltam os óculos.

Eram de aros de ouro e as lentes ligeiramente azuladas. O resultado não podia ser mais espetacular. O rosto que se refletia no espelho em frente a Brosnan era de uma pessoa completamente estranha.

— Não quisemos fazer com que você parecesse um estrangeiro — explicou Lily. — Se disséssemos que você é dinamarquês, provavelmente encontraria um garçom de Copenhague. É mais seguro ser George Jackson, de Manchester. — Examinou-o ainda uma vez, detidamente, e aprovou: — Está realmente perfeito. Agora, vamos tirar sua foto.


Ferguson estava parado junto à entrada da Catedral de São Paulo e observava os integrantes da comitiva real se dirigirem para seus carros. A cerimônia religiosa transcorrera sem incidente. A Primeira-Ministra, vestida de preto, desceu a escada, entrou em seu carro e partiu.

— Bem — disse Fox —, isso já está terminado, graças a Deus. — Caminhou ao lado de Ferguson até o carro e, depois de sentados, comentou: — O caso é que, sendo esta a única vez em que ela esteve realmente exposta, o que faremos agora?

— Fique grudado nela como um carrapato, Harry. É tudo o que podemos fazer — disse Ferguson, fazendo sinal para o motorista, que deu logo a partida, seguindo atrás do carro da Primeira-Ministra.


O andar térreo do número 10 de Downing Street era uma colmeia de atividade, à medida que se aproximava a hora da recepção. Os primeiros convidados já estavam chegando, inclusive muitos ex-funcionários. A porta dos fundos estava aberta, vigiada por um policial uniformizado, enquanto meia dúzia de garçons entrava e saía, carregando caixas de vinho e pacotes tirados de um furgão.

Brosnan era um deles. Ao passar com uma caixa de cerveja, o policial gracejou:

— Pode deixar cair uma dessas aqui, será bem-vinda.

Brosnan sorriu e continuou até a cozinha, onde logo lhe entregaram copos para limpar. Havia outros garçons trabalhando e, misturando-se a eles, sentiu que seus esforços seriam coroados de êxito, tendo conseguido chegar à cozinha. Nesse momento, o chefe dos garçons bateu-lhe no ombro:

— Você aí. Qual é mesmo o seu nome?

— Jackson, sir.

— Está bem. Troque de roupa e entre. Precisam de você lá dentro.

Brosnan tirou a jaqueta de alpaca escura, pendurou-a e vestiu o paletó branco de garçom, completando a indumentária com o par de luvas também brancas. Depois apalpou a cintura, sentindo embaixo da camisa o cabo do Smith & Wesson. A seguir, pegou uma bandeja de prata, respirou fundo e seguiu pelo corredor.

A Primeira-Ministra, trajando elegante vestido verde, movimentava-se entre os convidados, em companhia do marido e da filha, visivelmente satisfeita. Do outro lado do salão Brosnan a observava, enquanto servia copos de vinho, até que sua bandeja ficou vazia. Ele então voltou para a copa e o chefe dos garçons ordenou-lhe que recolhesse os copos vazios, levando-os para a cozinha. Brosnan obedeceu, fazendo três vezes o percurso entre o salão e a cozinha.

Agora que conseguira chegar até ali, não tinha a menor ideia do que fazer a seguir. Ao retornar da cozinha pela terceira vez, notou que a Primeira-Ministra se afastara do grupo com quem conversava e, com um sorriso no rosto, dirigiu-se para a escadaria que levava ao primeiro andar.

Brosnan lembrou-se da planta do edifício, que estudara tão cuidadosamente. O gabinete particular, o Salão Branco e o Salão Azul estavam naquele andar.

Os garçons abrindo garrafas de champanhe dispostas na mesa no centro da copa. Brosnan esperou sua vez, pegou uma garrafa e duas taças, colocou tudo cuidadosamente na bandeja, depois atravessou o salão repleto e barulhento, chegando ao saguão. No momento, ninguém à vista. Sem hesitar, subiu a escada para o primeiro andar.


A Primeira-Ministra estava sentada atrás de sua escrivaninha, lendo um memorando e tomando notas, quando ouviu uma discreta batida na porta. Logo a seguir, Brosnan entrou, fechando-a cuidadosamente e aproximando-se da escrivaninha.

Ela levantou os olhos, demonstrando surpresa.

— Como foi que você entrou aqui?

A garganta de Brosnan estava seca, seu coração batia aceleradamente e o Smith & Wesson parecia pesar na cintura. A voz lhe saiu rouca e sumida:

— Champanhe, madam.

— Não mandei que me trouxessem champanhe algum.

— O chefe dos garçons me deu ordem para trazer uma garrafa, madam, com duas taças. Foi muito claro nas instruções.

— Duas taças — repetiu ela, sorrindo de repente. — Entendo. Ponha aí em cima da mesa.

Baixou a cabeça e voltou a escrever. Brosnan sentiu o suor escorrer pela testa, ao colocar a bandeja na mesinha de centro. Endireitou o corpo e, com a mão no cabo do Smith & Wesson, voltou a encará-la. Em três segundos tudo estaria terminado.

Para ela, não para ele.

Chegaria sua vez também, um dia?

— Pode ir — disse ela, sem levantar os olhos.

Não existo para ela, pensou Brosnan, apesar de ter sua vida em minhas mãos. Oh, Norah, será que isso ou qualquer outra coisa vingará sua morte?

Foi então que ele viu as rosas no canto da escrivaninha. Rosas brancas de Natal, com longos caules.

— Não precisa de mais nada, madam?

— Não, obrigada — replicou ela, com um traço de impaciência na voz.

Continuou sem levantar os olhos, mesmo quando, com o coração batendo mais forte, Brosnan tirou uma rosa do vaso e a colocou na bandeja, entre as duas taças. Depois, fez meia-volta, abriu a porta, saiu e a fechou devagar.

O saguão estava deserto, quando ele desceu a escada, passando pelos retratos dos primeiros-ministros que ali trabalharam antes dela. Atravessou o salão ainda repleto, apanhou uma bandeja e começou a recolher copos vazios. Depois, levou-os para a cozinha.

A atividade aumentava, à medida que a recepção chegava ao fim e, através da porta dos fundos, os garçons carregavam as caixas de garrafas vazias para o furgão.

Brosnan entrou na cozinha, tirou seu casaco branco, vestiu a jaqueta de alpaca, pegou uma caixa e passou pelo policial que continuava vigiando a porta. Entrou na fila que se formara atrás do furgão, entregou sua caixa, depois contornou o veículo e atravessou o pequeno pátio com gramado no centro.

Downing Street estava muito movimentada com a partida dos convidados, muitos a pé, em busca de táxis. Brosnan simplesmente se misturou na multidão alegre, dobrou a esquina para Whitehall e se afastou rapidamente.


Cerca de cinco minutos depois, a Primeira-Ministra terminou de escrever seu memorando. Levantou-se, contornou a escrivaninha e dirigiu-se para a porta, com a intenção de voltar para o andar térreo. Passando os olhos casualmente pela mesinha, viu a rosa na bandeja, entre as duas taças. Deteve-se abruptamente, voltou para sua poltrona e ligou o interfone.


— Ele desapareceu, madam, sem deixar sinal — disse Ferguson.

— Isso não podia ter acontecido, não é mesmo?

A rosa jazia sobre a escrivaninha. Ferguson murmurou quase em um lamento: — Não consigo compreender. O que será que ele tinha na cabeça?

— Mas é tão simples, Brigadeiro. Não vê? — perguntou ela, segurando a rosa. — Ninguém está em segurança, é isso que o Sr. Brosnan está dizendo a nós. A espécie de mundo que criamos.

Ferguson sentiu um calafrio, quando ela delicadamente recolocou a rosa na mesa.

— E agora, Brigadeiro, é melhor eu descer para me despedir de meus convidados.

Ferguson abriu a porta e ela passou em silêncio.


A vitrola estava tocando novamente quando Brosnan entrou no armazém; a luz no escritório estava acesa. Ele subiu a escada e abriu a porta. Lily Winter estava sentada à sua mesa, examinando um colar antigo com o auxílio de uma lupa. O Dobermann veio se esfregar nas pernas de Brosnan.

Lily levantou a cabeça e ficou por algum tempo olhando para ele.

— De modo que você foi declarar guerra e acabou fazendo as pazes?

— Como soube?

— Bobo — disse ela, tirando uma garrafa de conhaque da gaveta e enchendo um copo. — Olhe, acha que eu teria concordado em ajudá-lo se, desde o começo, não tivesse percebido quem você é?

— Estive tão perto dela como estou agora de você — confessou Brosnan, o copo tremendo ligeiramente na mão. — Havia umas lindas rosas em um vaso. Coloquei uma na bandeja e me retirei.

— Um belo gesto, e o que prova isso?

— Fiz uma paz em separado, nada mais. — Sentou-se em um banco contra a parede e fixou os olhos no teto. — De repente, senti-me velho, realmente velho. Entende o que quero dizer?

— Sim.

A voz dela parecia vir de muito longe. Brosnan fechou os olhos e, após alguns instantes, o copo lhe escapou das mãos e ele adormeceu.


16

 

 

Em um quarto particular da Casa de Saúde Mountjoy, em Dublin, Liam Devlin tentava ser um bom paciente, enquanto a enfermeira lhe fazia curativos no ombro e no braço. A enfermeira-chefe, alta e empertigada em seu uniforme engomado, postara-se atrás do cirurgião, que observava os ferimentos.

— Muito bom — disse ele. — Muito bom mesmo. Pode enfaixar novamente, enfermeira.

Devlin reclamou com voz chorosa:

— Pelo amor de Deus, Patrick, quando é que você vai deixar eu ir para casa? Isso aqui é um lugar horroroso. Não me dão um drinque sequer e querem até proibir que eu fume.

— Mais uma semana, Liam — disse o médico, distinto professor do Trinity College. — Prometo que na próxima semana trato disso. — Virou-se para a enfermeira-chefe e comentou: — Esses acidentes de carro sempre provocam sérios ferimentos. Ele até que teve muita sorte.

— Mas fumo e álcool não ajudam em nada — replicou a enfermeira-chefe. — Não acha, Professor?

— Sim, claro. Tem toda razão. — Já na porta, para sair, acompanhado da enfermeira-chefe, acrescentou para o paciente: — Volto amanhã, Liam. Tenha juízo.

— Credo! Não sei qual o mais durão desses dois.

A enfermeira sorriu e deu os últimos retoques no curativo.

— Não espera que eu concorde com essa observação, não é Professor Devlin? Vou buscar seu chá.

A moça saiu e ele se recostou nos travesseiros. Houve uma discreta batida na porta e entrou uma jovem estagiária, trazendo um embrulho comprido e fino; uma das extremidades era arredondada.

— Que diabo é isso? — perguntou Devlin.

— É da loja de flores. Acaba de chegar. Quer que abra?

— Parece uma boa ideia.

Ele ficou observando a moça colocar o embrulho na mesa e abrir.

— Que interessante — disse ela, mostrando um cilindro de plástico, dentro do qual havia apenas uma rosa. — Alguém gosta muito do Professor.

Devlin ficou por um momento olhando a rosa.

— Não há um cartão? — perguntou.

— Não, sir.

— Realmente, não deveria haver.

— Sabe quem enviou?

— Oh, sim! — replicou ele à meia-voz. — Sei bem quem é. Pode deixar aí em cima da cama.

A moça se retirou e ele continuou contemplando a rosa, e depois sorriu.

— Então é isso, Martin — comentou baixinho. — Uma pequena comemoração parece que se impõe.

Sentou-se na cama com dificuldade, esticou o braço até a mesinha de cabeceira e pegou uma garrafa de Bushmills e um maço de cigarros.


Era um dos mais belos crepúsculos que Anne-Marie Audin havia presenciado. Sentada em frente ao cavalete, na beira de um penhasco nas proximidades do chalé de Devlin, ela pintava apressadamente, tentando aproveitar os últimos clarões do sol poente. A Baía de Killala se estendia no sopé do penhasco e ao longe, refletindo-se na água, as montanhas do Donegal eram uma sombra avermelhada.

Soaram passos atrás dela. Anne-Marie não se virou, um sexto sentido lhe dizendo quem devia ser. A voz de Brosnan fez-se ouvir:

— Você está pintando cada vez melhor. Esse fundo está fantástico.

Ela se virou e não escondeu sua surpresa:

— O que foi que houve com seu cabelo?

— É uma longa história — respondeu Brosnan, acendendo um cigarro e se agachando junto a ela.

— Um novo conceito de vida?

— Qualquer coisa parecida. Tinha esquecido como aqui é calmo e encantador.

Ela parou de pintar e o encarou de frente, ficando com o rosto na sombra.

— Mas por quanto tempo, Martin?

Ele não saberia responder. Nem a ela nem a si mesmo. O mar estava calmo, o sol, sumindo no horizonte. Um bando de procelárias passou gritando sobre a cabeça deles e se dirigiu para o mar.

 

 

                                                                  Jack Higgins

 

 

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