Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Operação Cavalo de Troia
Livro I / Segunda Parte
J E R U S A L É M
Tanto quanto me permitiram, ajudei as mulheres a atiçar a fogueira e a transportar as canecas de leite, fornecido naquele momento por duas cabras que Filipe, segundo parecia, conseguira na quarta-feira e que tinham prendido dentro da gruta.
Enquanto preparávamos o pequeno-almoço, e quase à mesma hora que no dia anterior, entrou no acampamento o jovem João Marcos.
Chegou com uma cesta pouco maior que a da véspera e, também sem pronunciar palavra, entregou-a às mulheres, sentando-se depois junto do fogo. Ali permaneceu com o queixo apoiado nos joelhos, como que hipnotizado pelo frágil baile das chamas.
Alguns dos discípulos começaram a dar sinais de vida, espreguiçando-se sem o menor pudor. Dois deles, ao descobrirem a criança, aproximaram-se e tentaram que Marcos lhes contasse o que tinham feito durante aquele longo passeio de quarta-feira. Mas o rapaz, com os olhos baixos e as sobrancelhas franzidas, não despregava os lábios. E quando as pressões dos homens de Jesus chegaram ao máximo, João negou com a cabeça, com visível e crescente irritação. Algumas das mulheres protestaram contra aquele interrogatório e pediram aos discípulos que deixassem a criança em paz. Outros membros do grupo tinham-se unido aos inquisidores curiosos pedindo e suplicando-lhe que lhes dissesse, pelo menos, onde tinham estado e se podiam ter sido espiados pela guarda do Sinédrio. No final - suponho que aborrecido por tanta pergunta -, Marcos abriu a boca e deu por encerrado o assunto com uma explicação que muito bem conheciam os adeptos do Mestre:
- O Rabi pediu-me que nada dissesse a ninguém...
E ali, como disse, terminou o interrogatório. Em diversas ocasiões, Jesus fizera confidências aos discípulos, pedindo-lhes que nada dissessem. E todos, de um modo geral, tinham sabido respeitar o pedido.
Os discípulos não ficaram muito satisfeitos, em especial Simão, o Zelota, que fizera o último turno de vigilância na porta do jardim e temia, mais do que ninguém, pela segurança do Mestre e do resto do grupo.
Quanto a mim, aquele obstinado hermetismo de João Marcos só serviu para despertar mais ainda a minha curiosidade. Tinha de averiguar o que acontecera naquela quarta-feira e que, nos textos dos evangelistas, aparece igualmente em branco, em relação às atividades do Nazareno. Mas, como podia fazer falar o fiel acompanhante de Jesus? Naquela mesma tarde de quinta-feira se apresentaria a grande oportunidade...
Jesus não tardou a aparecer. O rosto apresentava leves olheiras, resultado, provavelmente, das poucas horas de sono. Ao vê-lo, senti-me responsável. Se não O tivesse envolvido na minha conversa, certamente teria descansado um pouco mais. E ao pensar naquilo que O esperava, comecei a tremer. Aquela, na realidade, fora a Sua última noite em paz...
Mas as minhas preocupações desvaneceram-se imediatamente. O Galileu estava de um humor invejável. Saudou todos e, segundo o Seu costume, encaminhou-se para o largo vaso de barro, com o objetivo de lavar-se. Mas, a meio do caminho, João Marcos - que acabava de o ver - saiu correndo, abraçando-se à sua cintura. O Mestre, surpreendido por aquela calorosa recepção, envolvendo o rosto da criança nas suas grandes mãos e inclinando-se levemente para ele perguntou-lhe num tom de cumplicidade:
- Lembraste-te das passas de Corinto?
O pequeno sorriu e fez um aceno afirmativo de cabeça. E Jesus, esfregando as mãos em sinal de contentamento, começou a despir-se. Passas de Corinto? pensei. A que se referiu ? E, de repente, lembrei-me de uma das explicações de Lázaro. O Mestre gostava muitíssimo das uvas sem sementes, como as que nasciam da parreira que o pai do ressuscitado plantara no pátio central de sua casa.
E dispus-me a levar a cabo outra das missões encomendadas pela Operação Cavalo de Tróia. Parecia ser um bom momento... disse para comigo tentando tranqüilizar-me.
O Gigante terminou as abluções e, quando recebia das mãos de uma das mulheres o lenço com que devia secar-se, aproximei-me, pedindo-Lhe que me permitisse ajudá-Lo. O Nazareno resistiu mas, perante a minha insistência, deixou parte do pano nas minhas mãos, enquanto Ele - divertido com o que parecia um jogo e uma delicadeza – se esfregava com a outra ponta do lenço.
A manobra tinha, na verdade, duplo objetivo: por um lado, proceder à exploração manual e direta do corpo de Jesus - o que não seria lógico nem fácil se não aproveitasse uma oportunidade daquelas e, em segundo lugar, tentar a medição das principais partes anatômicas. Este segundo objetivo, principalmente era de vital importância para uma melhor análise do Seu organismo durante as horas da Crucifixão.
Através daquele suave pano, as minhas mãos foram-lhe apalpando o pescoço, ombros e costas. Aquele galileu - tal como se depreendia de uma simples observação visual - era um exemplar robusto. Os músculos da parte posterior e superior do tronco - em especial os trapézios - estavam muito desenvolvidos. Esta sensação de força fruto, sem dúvida, de um duro e constante trabalho manual durante muitos anos - alongava-se igualmente aos músculos deltóides, na zona dos ombros. Estes, e também os sólidos conjuntos musculares,
que se distribuíam de um e outro lado da coluna vertebral (os grandes dorsais e os infra-espinhosos) levaram-me a pensar que Jesus gozava de uma perfeita sincronização no encher e no esvaziar da caixa torácica.
Os braços, de acordo com a configuração e o considerável volume dos músculos dos ombros e parte superior e posterior do tronco, eram igualmente maciços. Em minha opinião os bíceps braquiais eram especialmente espessos e poderosos. Também os grandes peitorais (o que familiarmente conhecemos por peito) se encontravam fortemente consolidados, como se o Galileu tivesse praticado a natação. A sua capacidade respiratória tinha de ser excelente.
Nem a cintura nem a parte inferior das costas apresentavam um grama de gordura (1). E o mesmo apreciei na face frontal do abdômen; a parede muscular do grande reto era lisa, sem qualquer indício de tecido adiposo.
Quanto às coxas e pernas, tanto os costureiros como os músculos adutores, bicípite crural, semitendinosos e gêmeos apresentaram-se ao tato firmes e duros como pedras. Em minha opinião, as pernas teriam sido a inveja de um corredor de maratona...
Esta harmoniosa e musculosa constituição - unida à elevada estatura do Mestre - convertiam-no, sem qualquer tipo de dúvidas, num exemplar especialmente atraente. Era como se a Natureza tivesse sido especialmente cuidadosa na altura de moldar.
Aquele homem à sua evidente perfeição natural tinha de juntar também aqueles três últimos anos de incansável atividade, percorrendo todos os caminhos de Israel, que lhe tinham proporcionado uma invejável forma física.
Uma vez concluída a minha exploração - e ante o espanto de todos que me observavam - retirei o pequeno cordel do fundo da minha bolsa de borracha e, antes de Jesus se envolver na túnica, supliquei-lhe que aguardasse uns instantes. O Mestre, sem perder o Seu sorriso, deixou-me atuar com uma docilidade que apenas serviu para me aturdir mais.
De mútuo acordo com o meu companheiro no módulo, fora previsto que - uma vez terminada cada medição - eu pressionaria o ouvido direito, transmitindo-lhe o número correspondente. Desta forma, Eliseu poderia registrar as medidas, submetendo-as posteriormente a um estudo mais complexo.
* Nesta exploração chamou-me poderosamente a atenção a grande superfície que devia ocupar a membrana aponevrótica romboidal (em toda a região lombar) e que marcava igualmente a tremenda força daquele homem. (N. do M.)
Como já assinalei, aquela corda - totalmente branca – fora dividida em centímetros. Contudo, em vez de os numerar, cada separação era, na realidade, uma marca negra para ser mais exato uma circunferência, que rodeava totalmente o perímetro do cordel. Para poder efetuar os cálculos com precisão e com o fim de iludir qualquer tipo de suspeita,
Cavalo de Tróia imaginara um sistema de numeração, baseado em cores e letras (de dez em dez centímetros, a separação correspondente, em vez de ser negra, fora pintada de acordo com as seis cores básicas do espectro. A partir do centímetro número setenta e até ao cem as cores voltavam a repetir-se.) A ordem para as cores era a seguinte, da menor para a maior: violeta, azul, verde, amarelo, laranja e vermelho. Os centímetros existentes entre estas dez numerações foram convertidos em letras, segundo o alfabeto grego. Assim, por exemplo, quando a medição marcava trinta centímetros, eu devia anunciar a Eliseu verde. Se se tratava de oitenta centímetros, azul-duplo, se, pelo contrário, eram quarenta e um centímetros, a cifra era amarelo e alfa (primeira letra do alfabeto grego).
Sem perda de tempo, comecei pelos membros superiores. Do ombro à ponta do dedo médio, a medição registrou oitenta e dois centímetros.
A cifra para transmitir aquela medição foi, portanto, azul-duplo e beta. A estas medidas seguiram-se as das extremidades inferiores, perímetros, altura da cabeça, pescoço, etc.
* Os nove primeiros números - correspondentes a cada um dos centímetros - foram associados às nove primeiras letras do alfabeto grego: alfa para o 1, beta para o 2, gama para o 3, delta para o 4 epsilon para o 5, dzeta para o 6, tau para o 7, zeta para o 8 e iota para o 9. (N. do M. ).
2 As naturais dificuldades para proceder a uma medição antropológica rigorosa - que teria exigido a utilização de instrumentos mais idôneos - foram resolvidas, em
parte, no módulo, mediante um estudo computadorizado dos números que foram transmitidos por mim, de acordo com padrões normativos. Estas medições anatômicas - uma vez processadas - deram os seguintes resultados. Membros superiores (total): oitenta e dois centímetros (braço: trinta e sete centímetros e antebraço quarenta e cinco centímetros. Destes últimos, vinte correspondiam à mão). Comprimento dos membros inferiores (total): noventa e quatro centímetros (medidos do calcanhar à articulação da anca).
Coxa: cinqüenta e cinco centímetros e perna trinta e nove centímetros.
Largura dos ombros (medida entre os pontos acromiais): quarenta e cinco centímetros.
Tronco do manúbrio ou zona superior do esterno ao ponto trocanteriano ou saliente do fémur, ao nível da articulação): sessenta e dois centímetros.
Diâmetro torácico (nas costas): quarenta e um centímetros.
Perímetro da caixa torácica (medida por altura do grande peitoral): noventa e nove centímetros.
Comprimento máximo da cabeça (do ponto opistocraniano à glabela): 19,9 centímetros.
Largura máxima da cabeça (entre parietais): quinze centímetros.
Largura bizigomática (da apófise zigomática: de pômulo a pômulo): catorze centímetros.
Altura total do rosto (do gônio ao ponto alveolar ou próstio): 18,9 centímetros.
Perímetro da cabeça: cinqüenta e oito centímetros.
Perímetro máximo dos braços: trinta e cinco centímetros.
Perímetro máximo do antebraço: trinta e um centímetros.
Como salta aos olhos, o Mestre era um homem de compleição atlética, com um poderoso desenvolvimento do esqueleto e da musculatura. Os seus membros eram longos e o tórax realmente imponente, com ombros largos e sólidos como rochas. A gordura ou tegumento adiposo era muito escasso, praticamente inexistente. A cabeça apresentava-se firme e alongada, com um rosto igualmente alongado na parte média e queixo e relevo ósseos acentuados. O crânio, como Já disse, era alto e estreito.
Estas características faziam com que se destacasse da média normal da raça judaica daquela época. Segundo os estudos de Von Luschan e Renan, entre os judeus da Rússia do Sul, a altura média oscilava pelo metro e sessenta, chegando a um metro e setenta entre os hebreus de Londres e os judeus espanhóis de Salónica. O tipo mesocéfalo de Cristo também não era freqüente. Entre os hebreus da Rússia do Sul, por exemplo, a percentagem de indivíduos braquicéfalos (de crânios curtos) era de 81 %, alcançando os mesocéfalos 18% e os dolicocéfalos 1% . Entre os judeus de Salónica - expulsos de Espanha – os dolicocéfalos eram 14,6% e os braquecéfalos 25%. Além da sua elevada estatura -1 metro e 81- Jesus de Nazaré
* Perímetro máximo da anca: cinqüenta e sete centímetros.
Perímetro máximo de perna: quarenta e seis centímetros.
Joelho (perímetro máximo): quarenta e dois centímetros.
Estatura: 1 metro e 81 centímetros.
A linha média ou axial (da nuca ao canal interglúteo: ponto superior da prega interglútea) surgia recta, sem desvio.
Comprimento máximo do pé: trinta e um centímetros (planos de primeiro grau).
Segundo os índices de Decourt e Pende, o morfotipo somático de Jesus Cristo era
fundamentalmente microssômico, participando do tipo atlético e, em certa medida, do pícnico. Os índices - resultantes da multiplicação das suas medidas reais pelos fatores encontrados pelos mencionados cientistas para o caso dos homens - foram os seguintes:
Altura: 181 centímetros x fator 0,470 = 85,07; altura
trocânter: 94 cm x 0,457 = 42,96;
bitrocanteriano: 37 cm x 1,250 = 46,25: bi-humeral: 45
cm x 1,052 = 47,34;
occipito-mento: 22 cm x 0,870 = 19,14; perímetro torácico: 99
cm x 0,470 = 46,53 e
bimaxilar: 14 cm x 1,820 = 25,48.
Quanto ao índice de Pignet, Cavalo de Tróia comprovou que o Mestre correspondia à descrição de MUITO FORTE (índice de Pignet = altura em centímetros - perímetro torácico em expiração máxima mais o seu peso, em quilos = 181 - 97 mais 80 = 4). Naturalmente, os últimos dois números – perímetro torácico em máxima expiração e peso - são calculados. (O índice de Pignet estabelece a seguinte classificação média: IP 10 = pessoa muito forte; IP 15 a 20 = pessoa forte; IP 20 a 25 = pessoa mediana; IP 25 a 30 = pessoa fraca e IP 30 = pessoa muito fraca.)
Em relação ao índice craniano ou cefálico, os peritos de Cavalo de Tróia - sempre
de acordo com as medidas obtidas - deduziram que Jesus de Nazaré era mesocéfalo, com uma ligeiríssima dolicocefalia. Este índice – 75% – foi obtido de acordo com a fórmula convencional:
I.C = 1 15 x 100 = 75 19,9 DAP (medida entre opistio e gabela)
Na avaliação lateral, o índice craniano deu 100,5 %. Quer dizer, hipsocéfalo. Por outras palavras, com uma altura craniana claramente superior ao diâmetro longitudinal.
Por último, ao examinar o crânio frontalmente, o índice do Galileu foi de setenta e cinco por cento. Quer dizer, com uma ligeira tendência para a estenocefalia (crânio estreito). (N. do M. )
Chamava também a atenção pelo seu perímetro torácico, maior que a média dos seus compatriotas. Além disso, esta tipologia atlética condizia consideravelmente com o temperamento enequético, descrito por Mauz: fraca reação ante os estímulos, movimentos seguros e vigorosos, ainda que escassamente pródigos. De maior força que precisão.
Foi sem dúvida essa força física que pôde contribuir para suportar em parte, o brutal castigo que o aguardava. Apesar de tudo – como bem depressa veremos - os médicos e especialistas de Cavalo de Tróia jamais puderam entender como aquele Homem conseguiu resistir até ao final à cadeia de horríveis torturas a que foi submetido.
Tenho de o confessar. Aquela parte da missão foi possivelmente a mais ingrata. Durante muito tempo, e apesar da docilidade demonstrada por Jesus, tive a sensação de que, submetendo-o às citadas medições antropométricas, tinha abusado daquele Homem. E ainda hoje o continuo a sentir...
Felizmente para mim, nenhum dos presentes se lembrou de me perguntar porque me empenhara naquela insólita – quase ridícula operação. A verdade é que, desde o princípio, gozava entre os adeptos do Rabi da fama de homem estranho e isto - não o sei muito bem pôde explicar talvez o meu comportamento singular naquela esplêndida manhã de quinta-feira, 6 de Abril.
O Mestre acabou de se vestir e, continuando com aquele bom humor, juntou-se ao grupo de amigos que o esperavam para a refeição da manhã.
Filipe pôs-se a distribuir o pão - ainda quente - que nos trouxera o rapaz e as mulheres distribuíram as tigelas de leite. No cesto havia também muito grão tostado, figos secos e uma jarra de barro, cheia das famosas passas de Corinto. Tudo aquilo, oferta da família de João Marcos ao Mestre e ao Seu grupo.
O próprio João se encarregou de abrir a jarra e, radiante de satisfação, derramou um bom punhado daquele fruto negro e brilhante nas palmas da mão de Jesus. Depois, seguindo as instruções do Galileu, foi distribuindo o resto das passas por quantos se encontravam no jardim.
Aquela refeição matutina decorreu num ambiente descontraído. Os apóstolos pareciam um pouco mais serenos que na noite anterior, ainda que alguns - como Pedro, Tomás e o Zelota - não tardassem a descobrir que faltava Judas. Contudo, pelos comentários que pude apanhar, os discípulos atribuíram o fato às habituais obrigações de Judas Iscariotes como administrador geral do grupo e, mais concretamente, aos pormenores da preparação da festa da Páscoa. Nenhum dos que ali estavam reunidos sabia, ao certo, onde e como o Mestre a pensava celebrar. Na minha opinião, e à vista dos graves acontecimentos que se iam desenrolando, por causa da determinação do Sinédrio em prender Jesus, o tema da Páscoa também não os preocupava excessivamente.
Pelas dez da manhã apareceu no acampamento José de Arimatéia.
Acompanhava-o um dos seus servos. Ao vê-lo, o Nazareno convidou-o a sentar-se junto do grupo. Mas José recusou amavelmente, dizendo que precisava de Lhe falar a sós.
O Mestre levantou-se e ambos se afastaram uns passos, até se deterem junto ao muro da cuba de pedra destinada a lagar de azeite. José de Arimatéia com semblante sério, gesticulava, expondo ao Galileu o que eu já sabia sobre os planos de Judas.
Felizmente, nenhum dos discípulos conseguiu escutar o tema da conversa do ancião e do seu Mestre. Este ouviu-o sem se perturbar. E quando José acabou de falar, agarrou-lhe o braço, iniciando ambos um breve passeio ao longo do muro de pedra.
Durante quinze ou vinte minutos, Jesus dialogou com o demitido membro do Sinédrio. Naquela mesma noite - já madrugada – de quinta-feira, José me revelaria as palavras que lhe dirigira o Mestre durante aquele breve encontro no acampamento. A súbita chegada de José de Arimatéia e a misteriosa troca de impressões com o Rabi não passaram despercebidas aos discípulos. Todos imaginaram razões quanto ao motivo daquela visita. E a maioria acertou...em parte. Murmurando entre si, os apóstolos opinavam que alguma coisa de grave estava para acontecer e que essa alguma coisa tinha muito a ver com a prisão do Mestre e com a possível desintegração do movimento em que participavam. E as suas almas voltaram a ficar na dúvida.
Terminada a conversa, José dirigiu-se a uma das tendas, trocando umas quantas palavras com David Zebedeu. Por último, e depois de se despedir de todos, afastou-se na direção de Jerusalém.
Jesus, que tinha voltado para o grupo, à espera em volta da fogueira, parecia um pouco mais sério. E antes que alguém resolvesse fazer perguntas, pediu aos homens e às mulheres que O acompanhassem. Pelas dez e meia, o grupo completo - constituído por umas cinqüenta pessoas - começou a subir a encosta do monte das Oliveiras. Eu, que ficara para trás , avisei Eliseu da direção que o grupo seguia, prevendo a aproximação da zona de segurança do módulo. Ao chegar ao cimo do monte, o Nazareno rogou aos amigos que se sentassem e ouvissem as Suas palavras. Felizmente, a nave encontrava-se muito mais a norte.
Havia tanto inquietação como expectativa nos olhares daqueles galileus. No fundo, só desejavam ter a certeza de uma coisa: que o Mestre tomara a decisão - como já fizera noutras ocasiões de se retirar da jurisdição da Cidade Santa, evitando assim as ameaçadoras castas sacerdotais. Mas não foi isto que escutaram, embora o Rabi fizesse algumas alusões ao poder terreal...
- Os reinos deste mundo - disse entre outras coisas - sendo, como são, materiais, podem considerar freqüentemente que é necessário empregar a força física para a execução das leis e manutenção da ordem. No reino do céu os crentes não recorrem ao emprego da força física.
- O reino do céu, sendo, como é, uma irmandade espiritual entre os filhos de Deus, pode promulgar-se unicamente pelo poder do espírito. Esta distinção de procedimento não anula, no entanto, o direito de os grupos sociais de crentes a manter a ordem nas suas fileiras e administrar disciplina entre os membros ingovernáveis e indignos. Não é incompatível ser filho do reino espiritual e cidadão do governo secular e civil. É dever do crente dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus... Não pode haver desacordo entre estes dois requisitos. A não ser esclareceu Jesus - que um César tente usurpar as prerrogativas de Deus e peça homenagem espiritual e que se lhe preste culto supremo. Nesse caso só deveis adorar a Deus, enquanto tentais iluminar esses dirigentes mal guiados. Não
deveis prestar culto espiritual, aos dirigentes da terra.
- Também não deveis empregar a força física dos governos terreais. Ser filhos do reino, do ponto de vista de uma civilização avançada prosseguiu Jesus, dirigindo-me uma significativa mirada deve converter-vos em cidadãos ideais dos reinos terrenos. A fraternidade e o serviço - não o esqueceis - são as pedras angulares do evangelho. O apelo do amor do reino espiritual deve provar que é efetivo na hora de destruir o instinto do ódio entre os cidadãos não crentes e guerreiros do mundo terreno. Porém, estes filhos das trevas, com mentalidade material, nunca saberão da vossa luz espiritual, a não ser que vos aproximeis deles. Por isso deveis ser honrados e respeitados entre os cidadãos e entre os dirigentes deste mundo. Esse serviço social generoso é apenas conseqüência de um espírito que vive na luz.
- Como homens mortais sois em verdade cidadãos dos reinos terrenos e deveis ser bons cidadãos e muito mais quando tiverdes voltado a nascer no espírito. Tendes, portanto, uma tripla obrigação: servir a Deus, servir ao homem e servir à fraternidade de crentes em Deus.
- Não adoreis os chefes temporais nem empregueis a força para o fomento do reino espiritual. Mas manifestai-vos num honrado ministério do serviço do amor, tanto aos crentes como aos não crentes. É, no evangelho do reino que reside o poderoso Espírito da Verdade. Eu verterei sobre vós esse Espírito de Verdade e os seus frutos serão poderosas alavancas sociais que elevarão as raças das trevas. Em verdade vos digo que este Espírito chegará a ser o vosso fulcro, com um poder multiplicador.
- Espalhai sabedoria e mostrai sagacidade nos vossos contatos com os dirigentes civis não crentes. Por meio da discrição, mostrai-vos peritos na altura de aplanar desacordos pouco importantes e resolver fúteis erros de entendimento. Procurai, por todos os processos leais, viver pacificamente com todos os homens. Sede sempre sábios como as serpentes e tão inofensivos quanto as pombas...
- Sereis melhores cidadãos se souberdes iluminar o vosso espírito com a verdade do evangelho. E os dirigentes nos assuntos civis melhorarão, como resultado desta crença no reino celestial.
- Enquanto os chefes dos governos terrenos procuram exercer a autoridade, como ditadores religiosos, vós - os que acreditais no evangelho - só podeis esperar problemas, perseguições e, mesmo, a morte...
Jesus fez uma pausa, deixando que aquelas últimas palavras flutuassem como um negro presságio.
- Mas eu vos digo - prosseguiu o Mestre num tom firme e esperançoso - que essa mesma luz que levareis ao mundo, e até o modo como padecereis por ela, iluminará finalmente por si mesma toda a humanidade e dará, como resultado, a separação gradual da política e da religião.
O Galileu voltou a fixar os olhos em mim. E continuou:
- A persistente pregação deste evangelho do reino conduzirá um dia as nações a uma nova e inacreditável libertação, a uma liberdade intelectual e à liberdade religiosa.
- Eu vos anuncio agora que, com as próximas perseguições dos que odeiam este evangelho da alegria e da liberdade, vós florescereis e o reino de Meu pai prosperará. Mas não vos enganeis. Correreis grave perigo quando, nos tempos posteriores, a maioria dos homens falam bem dos crentes no reino e muitos, mesmo, ocupando altos cargos, aceitem o evangelho. Aprendei a ser leais ao reino, mesmo em tempo de paz e prosperidade. Não tenteis os anjos que vos vigiam. Não os tenteis a levar-vos por caminhos semeados de dificuldades, como amante da disciplina quando vos deixeis arrastar pela moleza e a vanglória. Recordai que deveis pregar este evangelho - o supremo desejo de fazer a vontade do Pai, junto com a alegria suprema na realização da fé de serem filhos de Deus - e não deveis deixar que nada desvie a vossa atenção. Fazei que toda a humanidade beneficie do extravasamento do vosso amante ministério espiritual, iluminando a comunhão intelectual e inspirando o serviço social. Mas nenhum destes humanitários labores deve ocupar o verdadeiro objetivo dos vossos corações: proclamar o evangelho. Não deveis procurar a promulgação da Verdade, nem estabelecer a honradez por meio do poder dos governos civis, como também não pela promulgação de leis seculares. Podeis trabalhar para persuadir as mentes humanas, mas nunca nunca - vos deveis atrever a impor-vos. Não esqueceis a grande lei da justiça humana que vos ensinei: o que desejardes que outros vos façam, fazei-o vós a eles...
- Quando um crente for chamado a servir o governo terreno, deixai que preste esse serviço como cidadão temporal do referido governo, embora tenha demonstrar todos os traços e sinais vulgares da cidadania. Estes foram realçados pela ilustração espiritual da enobrecedora associação da mente do homem mortal como o espírito divino que nele habita. Se o não crente chega a qualificar-se como um servidor civil superior, deveis perguntar-vos seriamente se as raízes da Verdade do vosso coração não morreram por falta das águas vivas da comunhÃo espiritual com o serviço social. A consciência de serem filhos de Deus deve acelerar toda a vida de serviço aos vossos semelhantes.
- Não deveis ser místicos passivos ou esvaídos ascetas. Não deveis tornar-vos sonhadores ou cata-ventos, caindo no cômodo letargo de acreditar que uma fictícia providência vos vai abastecer até do necessário para viver. Na verdade, deveis ser suaves nos vossos contatos com os mortais que se enganam. E pacientes nas vossas conversas com os homens ignorantes. E de sangue-frio ante a provocação...
- Mas também deveis ser valentes na hora de defender a honradez e fortes na promulgação da verdade e até audazes para pregar este evangelho do reino. E devereis chegar até aos confins do mundo...
- Este evangelho é uma verdade viva. Disse-vos que é como a levedura do pão e como o grão de mostarda. E agora vos declaro que é como a semente do ser vivo que, de geração em geração embora continue a ser a mesma semente viva, se desenvolve indefectivelmente em novas manifestações e cresce de forma aceitável, adaptando-se às necessidades peculiares e condições de cada geração. A revelação que vos fiz é uma revelação viva... O Galileu salientou estas duas últimas palavras com uma força indescritível.
- Uma revelação viva - disse -, e é Meu desejo que dê frutos apropriados a cada indivíduo e a cada geração, de acordo com as leis do crescimento espiritual. É Meu desejo que se incremente e tenha desenvolvimento. De geração em geração este evangelho deve mostrar vitalidade crescente e maior profundidade de poder espiritual. Não se deve permitir que chegue a ser uma simples recordação sagrada, uma mera tradição sobre Mim ou sobre os tempos em que agora vivemos... Aquele olhar profundo e afiado como um punhal percorreu, um a um, todos os ouvintes. E, ao chegar a mim, Jesus repetiu:
- Não se deve permitir que chegue a ser uma simples recordação sagrada, uma mera tradição sobre mim ou sobre os tempos em que agora vivemos.
Depois, descendo a um tom mais calmo, prosseguiu:
- E não esqueceis que não dirigimos um ataque pessoal aos indivíduos nem à autoridade dos que se sentam na cadeira de Moisés. Apenas lhes oferecemos a nova luz, que eles repudiaram com tanto vigor. Se nos lançamos contra eles foi apenas pela sua deslealdade espiritual para com aquelas mesmas verdades que afirmam ensinar e salvaguardar. Chocamos com estes dirigentes estabelecidos e chefes reconhecidos apenas quando se opuseram diretamente à pregação do evangelho. E mesmo agora não somos nós que lutamos contra eles, mas sim eles que procuram a nossa destruição. Não estais aqui para atacar as antigas formas. Deveis pôr habilmente a levedura da nova Verdade no meio das velhas crenças. E deixai que o Espírito faça o Seu próprio trabalho. Deixai que venha a controvérsia,
só quando aqueles que vos desprezam a ela vos forcem. Mas, quando os não crentes vos ataquem intencionalmente, não hesiteis em vos manterdes numa vigorosa defesa da Verdade, que vos salvou e santificou.
- Recordai sempre: amai-vos uns aos outros. Não luteis com os homens, nem sequer com os não crentes mostrai misericórdia, mesmo com os que, desdenhosamente, abusem de vós mostrai-vos cidadãos leais, honrados artesãos, vizinhos merecedores de louvor, parentes devotos, pais compreensivos e sinceros na fraternidade do reino do Espírito.
- E eu vos asseguro que o Meu Espírito estará convosco agora e sempre até ao final do mundo...
Entre as horas sexta e nona (no nosso sistema horário atual poderiam ser as treze horas), Jesus deu por terminada a pregação. E foram os gregos que assistiam à reunião os que mais perguntas formularam. Do meu ponto de vista, aqueles gentios tinham assimilado melhor que os próprios apóstolos as intenções e ensinamentos do Mestre. Os onze quase não abriram a boca. E se tenho de julgar pelos seus comentários, enquanto descíamos para o acampamento, não conseguiam entender que relação podia existir entre os seus martírios, perseguições e morte - anunciadas pelo Rabi - e a inevitável propagação do evangelho por todo o mundo. Persuadidos como estavam, com exceção do jovem João, de que aquele reino de que falava Jesus tinha muito a ver com um sistema político que libertasse Israel do domínio estrangeiro, também não conseguiam compreender que a difusão da verdade como o Mestre tinha pedido pudesse ser levada a efeito sem a promulgação de leis seculares.
As suas mentes, uma vez mais, tinham naufragado numa infinidade de especulações e de dúvidas. Para a maioria, as últimas frases do Rabi, sobre a destruição que os dirigentes judeus procuravam, foram interpretadas como uma grande tragédia que estava prestes a assolar o mundo. E, embora conhecessem a ordem concretíssima do Sinédrio de caçar Jesus, a sua fé nos poderes do Galileu era tal que resistiam a admitir que os sacerdotes pudessem tocar-lhe sequer. Em outros momentos, diziam uns aos outros no simples desejo de se tranqüilizarem o Mestre enganou-os. Porque não o faria agora...? É quase certo que aquela destruição a que Jesus se refere tem a ver com um cataclismo ou com o fim do mundo...
Estas impressões dos discípulos viram-se alimentadas pela atitude pessoal de Jesus naquela manhã. Salvo na breve conversa com José de Arimatéia, o Nazareno demonstrara um humor excelente... Se o Mestre temesse pela sua segurança, argumentavam com boa lógica, não assumiria uma atitude tão alegre e inconsciente... (Nesta altura da minha narrativa, quero realçar uma circunstância a que já mencionei mas que, dada a sua importância, acho que deve ser considerada novamente. O discurso de Jesus de Nazaré tivera a duração aproximada de pouco mais de duas horas. Referi unicamente as passagens que considerei mais interessantes. Pois bem, tal como se reflete no Novo Testamento, nenhum dos evangelistas conseguiu recolhê-lo com um mínimo de rigor e de amplitude. No máximo, nos textos evangélicos aparecem algumas frases ou sentenças, perdidas aqui e além e desvinculadas do que era na realidade um texto
uniforme e perfeitamente estruturado. Para mim, estas graves deficiências - repetidas, como disse, noutros capítulos – não são conseqüência de uma ação negligente dos escritores sagrados.
A única razão por que os Evangelhos Canônicos não foram eco destes ensinamentos é, na realidade, muito mais simples mas, nem por isso, menos lamentável: do meu ponto de vista pessoal, quando os evangelistas tentaram escrever a vida, obra e pensamento de Jesus passara já o tempo suficiente para que a maioria dos seus ensinamentos não pudesse ser recordada textualmente. Se não fosse o meu sistema de filmagem-gravação, também eu não teria sido capaz de memorizar o que tinha ouvido. E tenho de insistir em algo que não consigo compreender: por que motivo nenhum daqueles discípulos se preocupou em ir tomando notas do que via e escutava? Desta forma tão elementar, disporíamos hoje de uma visão muito mais ampla e certa do que disse e fez o Mestre da Galiléia.)
Para mim, a nível pessoal, algumas das afirmações de Jesus naquela inesquecível manhã no cume do monte das Oliveiras revestiram-se de grande importância. Por exemplo, nunca pude esquecer as suas alusões à esperança: ...A persistente pregação deste evangelho tinha prometido, conduzir um dia as nações a uma nova e inacreditável libertação...
Quanto eu ansiei por ver cumprida tal afirmação! No entanto, ainda hoje, essa maravilhosa realidade parece muito distante... Se Jesus foi capaz de vaticinar - quarenta anos antes! - a total destruição de Jerusalém pelas legiões de Tito, porque iria enganar-se naquela outra profecia?
Também me desconcertou a recomendação sobre a forma como devia ser promulgada a Verdade. Não deveis procurar assegurou, a propagação desta Verdade por meio de leis seculares. E uma pungente dúvida me ficou no coração, teria aprovado o Filho do Homem o intrincado emaranhado de leis, normas e códigos que regeram e continuam a reger os destinos das igrejas e que, no fundo, não são mais que uma asfixiante burocracia secular, dissimulada em pretextos espirituais e sagrados, mais ou menos claros?
Mas a minha missão não era fazer juízos, mas sim observar e prestar testemunho. A quem possa ler este diário, peço que me desculpe...
Quando entramos no acampamento, David Zebedeu tinha a comida pronta. Notei que estava nervoso e mal-humorado. Num primeiro momento, atribuí-o ao nosso atraso. Normalmente, aquele almoço - a meio do dia - costumava ser por volta das doze. O aborrecimento de Zebedeu, pensei, está mais que justificado.... Mas, era devido à demora do grupo...
Fomo-nos acomodando em redor do fogo e as mulheres começaram a servir: guisado à base de lentilhas aromatizado com pedacinhos de cominho negro e coentros (1), espigas frescas passadas levemente pelo lume ou grão tostado (proporcionado por João Marcos) e uma dose de requeijão, feito pelas mulheres com leite de cabra. E, como complemento, além do vinho, tortas de farinha, amassadas naquela mesma manhã, à base de água e sal. O processo utilizado pelas mulheres do acampamento na cozedura daquelas tortas, de uns doze centímetros de diâmetro, era muito singular. Pelo menos para mim. Empregavam um forno - se é que lhe podemos chamar assim -, que consistia num grande jarro, perfeitamente coberto de barro por fora. Era firmado no solo e dentro acendia-se o fogo. Quando a chama aquecera devidamente as paredes do jarro, as mulheres apagavam o fogo, pegando então as tortas à superfície interior do forno. Em geral comiam-se quentes. Mas quando Jesus e os discípulos chegaram ao jardim, as tortas havia muito que tinham arrefecido. Alguns dos comensais, no entanto, remediaram aquele contratempo salpicando-as de mel.
* Os coentros ou Coriandrum sativum das umbelíferas, são o fruto mais conhecido no Ocidente por coriandro, por causa do forte cheiro a percevejos que larga quando colhido recentemente. Uma vez seco, torna-se muito aromático. O utilizado pelos Israelitas era amarelado e do tamanho do grão da pimenta. É menos excitante e afrodisíaco que o cominho. Segundo pude comprovar, muitos hebreus misturavam este último com mel e pimenta, tomando-o duas vezes ao dia. Isto, segundo me disseram, excitava-os sexualmente. (N. do M.)
Jesus mal provou o guisado de lentilhas, dedicando a sua atenção ao requeijão e à sua preferida ração de passas sem sementes...
A meio do almoço, Judas apareceu no acampamento. Ninguém se surpreendeu. Apenas Jesus, David Zebedeu e eu o seguimos com o olhar. Judas Iscariotes, de olhos baixos, pegou numa das escudelas de madeira, servindo-se de uma generosa ração de lentilhas.
E no mesmo silêncio com que entrara no jardim assim se retirou e se isolou, sentando-se entre as raízes de uma das oliveiras mais próximas. Durante um bom pedaço, o traidor concentrou a sua atenção na comida. Uma vez terminada, e enquanto procedia ao palitar dos dentes com uma palha, levantou os olhos para o céu, na direção do sol. (Suponho que procurando averiguar o que restava da luz.) E ali continuou, atento a todos e a cada um dos movimentos do Galileu e dos Seus mais chegados.
Devia faltar uma hora para as três da tarde, quando David Zebedeu - cada vez mais inquieto - se levantou e praticamente puxou por Jesus, caminhando com Ele na direção das tendas. Falaram uns minutos e observei como o Mestre lhe respondia, ao mesmo tempo que levantava a mão esquerda, como que procurando tranqüiliza-lo. Judas, impassível, seguia a cena, sem se mover do seu lugar.
Quando David voltou para o grupo, procurei interrogá-lo:
- Que tens? - perguntei-lhe, baixando o tom de voz, de modo a não ser ouvido pelos outros.
- Os meus homens em Jerusalém - explicou-me, com desespero trouxeram-me más notícias... Começava a compreender do que se tratava e qual era, na verdade, o motivo da progressiva agitação do discípulo.
- Seguiram Judas e, tal como me haveis avisado, os planos para prender o Mestre estão quase preparados. Será hoje. É provável que depois do pôr do Sol. O capitão da guarda do Templo está furioso com a fuga de Lázaro e incitou Judas Iscariotes para que a prisão seja consumada.
- Sabeis onde será?
- Não. Tudo o que sei é que não podemos perder de vista aquele bastardo... - resmungou David, cravando o olhar em Judas.
- E que disse Jesus?
Zebedeu encolheu os ombros, e dando ainda provas da evidente surpresa que lhe causara a resposta do Galileu, comentou:
- Pediu-me que não falasse disto a ninguém, mas a ti sim posso dizer-to, uma vez que já sabes... Sim, David, respondeu-me sei tudo. E sei que tu sabes, mas cuida de nada dizeres a ninguém. E, quando tentava persuadi-lo a que fugisse, declarou: Não duvides de que a vontade de Deus prevalecerá no final. Juro-te, Jasão, que não consigo compreendê-Lo. Se Ele quisesse, agora mesmo poríamos ao Seu serviço mais de uma centena de homens armados que O escoltariam e defenderiam até chegar a Pereia...
Coloquei as mãos nos seus ombros, tal como vira Jesus fazer, e tentei animá-lo com o olhar. Porém, a tristeza daquele homem era muito mais profunda do que eu podia supor.
A súbita chegada de um dos correios arrancou David dos seus sombrios pensamentos. Acompanhei-o até à tenda dos homens e ali, na presença de Zebedeu, o emissário – que vinha de Filadélfia - leu uma mensagem de Abner. Até àquela remota cidade oriental tinham chegado também os insistentes rumores sobre uma conspiração para matar o Mestre e ele pedia instruções. Devia mobilizar-se com toda a suas pessoas e dirigir-se a Jerusalém?
O Zebedeu leu a carta e imediatamente procurou o Galileu. Este, uma vez conhecida a notícia do homem que dava proteção a Lázaro, transmitiu a David:
- Diz a Abner que continue com o seu trabalho. Se me despeço de vós em carne é porque posso voltar em espírito. Não vos abandonarei. Estarei convosco até ao final.
Outro mensageiro partiu a correr para Filadélfia e eu aproveitei a oportunidade para perguntar ao Zebedeu pela mãe de Jesus. Era quase a hora nona (as três) e Maria e os seus familiares ainda não tinham dado sinais de vida. Como disse, a possibilidade de me encontrar frente a frente com a mãe do Galileu fora excitando o meu espírito, enchendo-me de curiosidade. Como era realmente aquela mulher? Teria o aspecto que nos dá a tradição pictórica universal? Que havia ao certo sobre todas aquelas virtudes e qualidades que tinham sido constantemente louvadas pelos investigadores e estudiosos mariológicos?
David não pôde satisfazer a minha dúvida. O caminho desde Betsaida, na Galiléia, a cerca de seiscentos estádios (perto de cento e dez quilômetros), representava um esforço considerável, principalmente para um grupo em que viajavam várias mulheres. Tinha de se esperar.
Assim que David se retirou da presença de Jesus, logo Filipe, o chefe da intendência, se aproximou do Mestre para Lhe perguntar:
- Uma vez que se aproxima a hora da Páscoa, onde queres que preparemos a ceia?
O Galileu respondeu-lhe:
- Vai procurar Pedro e João e eu vos darei as instruções para a ceia que comeremos juntos esta noite. Quanto à Páscoa, dela vos falarei depois da ceia...
Este assunto tinha muito interesse para Judas. E, levantando-se, começou a caminhar na direção de Jesus com o propósito - suponho de averiguar onde e a que hora ia celebrar-se a ceia daquela quinta-feira. Mas o Zebedeu – que não o perdera de vista - compreendeu as tenebrosas intenções de Judas Iscariotes e, com um admirável reflexo, interpôs-se no caminho do traidor entretendo-o.
Judas, nervoso, viu como Filipe, Pedro João e o Mestre se separavam do grupo, entrando numa das tendas isoladas. Poucos minutos depois, os três apóstolos saíram do abrigo e sem fazerem o menor comentário, abandonaram o jardim, seguindo ladeira abaixo.
Por um momento hesitei. Que devia fazer? Juntava-me ao grupo dos apóstolos que acabava de sair do acampamento ou continuava junto do Mestre? David ia entretendo Judas Iscariotes que, com o rosto desolado mas sem perder o sangue-frio, parecia resignado à sua sorte.
* A rota utilizada habitualmente naquela época, a partir da localidade de Betsaida (Bethsaide Julias) até Jerusalém forçava a passar pelas povoações de Kursi e Hippos, na margem oriental do lago de Genesaré G daros e PéLa e, dali, seguindo
a margem do rio Jordão , chegava-se a Bethabara, na região de Pereia e por último, Jericó, Betânia e Jerusalém. A outra rota - a que atravessava pelo centro da Samaria - não era muito recomendável, dados os contínuos conflitos entre os habitantes da Judéia e Galiléia e os Samaritanos. (N. do M.)
Deixei-me guiar pelo instinto e, dissimuladamente, fui atrás de Filipe e dos seus companheiros. Alcancei-os quando atravessavam para o outro lado do Cédron, ladeando a muralha sul-oriental da Cidade Santa, em direção à Porta dos
Essênios. Ao verem-me, os discípulos mostraram-se um tanto surpreendidos. Mas tentei dissipar os receios, comentando-lhes que - uma vez que se aproximava a festa pascal tinha intenção de agradecer a hospitalidade do Mestre, entregando-lhe uma oferta (1).
- Vi-os seguir para Jerusalém - disse-lhes - e pensei que esta era uma boa ocasião para lhes pedir um conselho...
Só João - melhor observador e mais sensível que os seus amigos se comoveu com aquele meu gesto. E, agarrando-me pelo braço, perguntou-me:
- E que pensaste oferecer-lhe?
- Talvez uma nova túnica - improvisei.
- Não é má idéia - meditou em voz alta -, mas, talvez fosse mais prático que comprasses um manto... Ele gosta muito da sua túnica. Já pensaste que foi confeccionada à mão e sem costuras...
Disse-lhe que me parecia uma excelente idéia e que, se dispusessem de uns minutos, me acompanhassem e recomendassem um bom mercador de panos.
Pedro interveio e num tom brusco - como se estivesse de mau humor - revelou o que, precisamente, eu desejava saber:
- Espera, Jasão. Agora não pode ser. O Mestre incumbiu-nos de um assunto um tanto estranho...
Na sua voz adivinhei aquela quase genética incapacidade para compreender muitas das ações de Jesus.
- Temos de ir até às portas da cidade e procurar um homem - exclamou com ironia - com um cântaro de água... Imaginem! Com milhares de peregrinos em Jerusalém...
João censurou-lhe a pouca fé.
- Se o Mestre nos disse que ao passar as portas encontraremos esse homem com o cântaro, nada mais há a dizer. Mas tens de concordar - tentou conciliar Filipe - que Pedro tem razão. Não teria sido mais fácil e prático que Jesus
nos tivesse dado a direção da casa onde deseja cear esta noite ou o nome do seu proprietário? Porquê tanto mistério?
Que necessidade há de tanto enigma? Sorri só para mim, recordando o texto evangélico onde se narra este episódio. Teria sido interessante que os escritores sagrados mencionassem aquele diálogo entre os discípulos e que retratava maravilhosamente a fé cega de uns e as dúvidas lógicas de outros. (Tem de se considerar a possibilidade de, com o passar dos anos, nem Pedro nem Filipe desejassem que a incipiente comunidade cristã viesse a saber da sua fraqueza de espírito. O que é muito humano e compreensível.)
* O costume judeu daquela época estabelecia que, para se cumprir o preceito de se estar alegre pela Páscoa, era aconselhável fazer ofertas, tanto aos amigos como aos familiares e, principalmente, às mulheres. E ainda que não fosse este o meu caso, dada a minha condição de gentio, considerei aquele pretexto muito adequado aos meus fins. (N. do M.)
Os três homens continuaram entregues àquela discussão, até chegarem ao umbral da grande Porta dos Essênios, de frente para o vale do Hinnon. Àquela hora da tarde as pessoas que entravam e saíam de Jerusalém eram suficientemente numerosas para desalentar quem tentasse localizar um homem com um cântaro de água.
De repente, naquele confuso movimento de gente, João chamou-nos a atenção para um grupo de mulheres que saíam da cidade. Duas levavam cântaros à cabeça. As outras possivelmente lavadeiras - com grande destreza, equilibravam à cabeça cestos de vime cheios de roupa. Mas Pedro, cada vez mais desalentado, observou ao jovem discípulo que se tratava de mulheres e que, além disso, iam na direção oposta que lhes indicara o Rabi.
Ao passarem o arco de pedra da gigantesca porta os três apóstolos pararam diante das primeiras casas do Bairro Batxo. E, durante uns minutos, entregaram-se a inspecionar quantos passavam por ali. Não precisaram de muito tempo para descobrir, à direita da Porta dos Essênios, um homem que estava sentado e com as costas apoiadas à muralha. A seu lado havia um cântaro de quase meio metro de altura dos que eram usados habitualmente para ir buscar água às fontes situadas perto de Jerusalém.
Os discípulos olharam-se em silêncio e João, sorridente e resoluto, avançou até ficar a dois metros do homem. Filipe seguiu-o e Pedro, ainda hesitante, acabou por se juntar aos seus amigos, negando sistematicamente com a cabeça.
Nem João nem os outros chegaram a abrir a boca. Quando o homem que parecia estar farto de esperar os viu, imóveis e com os olhos nele, esboçou um sorriso e, sem mais palavras, levantou-se, agarrando no pesado cântaro. Em seguida, e com o recipiente bem apoiado na anca esquerda, pôs-se a andar, apressadamente. Pedro, em silêncio e de olhos baixos, tinha corado de vergonha.
Em questão de minutos, a misteriosa personagem levou-nos pelas íngremes e apertadas vielas da zona meridional de Jerusalém até uma casa de dois pisos, situada muito perto da residência de Anás, o ex-sumo sacerdote e sogro de Caifás.
À porta daquela mansão, quase tão luxuosa como a de José de Arimatéia, esperava alguém que era conhecido de todos: o pequeno João Marcos!
Pelo que parecia, não fui o único a ficar surpreendido. Os três discípulos, ao verem o adolescente, entreolharam-se, adivinhando então as intenções de Jesus. Pela minha parte, o aparecimento, considerado milagroso, do encontro com o homem do cântaro, começava a ter uma explicação mais racional. Embora naqueles instantes não dispusesse de provas suficientes, um pressentimento começou a insinuar-se em mim. Não teria o Mestre dado instruções a João Marcos, durante o longo passeio de quarta-feira, para que um membro da sua família - talvez um servo - fosse a uma determinada hora às portas de Jerusalém levando um cântaro de água?
Se não fosse assim, como explicar a presença do rapaz, justamente no degrau da porta onde se deveria celebrar o que ia ser conhecido pela última ceia? Aquela hipótese foi ganhando terreno no meu subconsciente. O férreo mutismo do jovem às perguntas dos discípulos e a extrema prudência do Mestre no momento de indicar o lugar onde desejava encontrar-se com os mais íntimos.
Jesus de Nazaré estava a par da conspiração que Judas protagonizava, bem como das suas manobras para facilitar a captura. Era lógico que, se o Galileu não desejava ser incomodado no decorrer da ceia, tomasse as necessárias medidas de precaução. E aquela manobra, evidentemente, fazia parte do plano.
O jovem Marcos levou-nos ao interior da casa, apresentando-nos a seus pais, Elias e Maria. A família – pelo que pude averiguar - era aparentada com a de Jesus, comungando plenamente nos seus ensinamentos. Filipe, como responsável pela preparação da ceia, pediu a Elias Marcos que lhe mostrasse o local escolhido e o restante dos preparativos.
Prudentemente, e uma vez que o rapaz se encontrava ali, abstive-me de formular perguntas aos donos da casa. No entanto, depois de verificar que a ceia teria seria no andar de baixo da mansão dos Marcos, as minhas dúvidas quanto ao acordo secreto entre Jesus e o filho deles ficaram praticamente dissipadas. Só restava que o rapaz ou os seus pais me confirmassem. Porém, isso aconteceria umas horas depois...
Me preparava para seguir Filipe e Pedro até ao primeiro andar, iniciando assim outra das minhas delicadas missões , confiadas pelo Cavalo de Tróia, quando, inesperadamente, João, o Evangelista, me propôs aproveitar aqueles minutos para visitar o bairro próximo dos tintureiros, satisfazendo assim o meu desejo de comprar o manto para o Mestre. Vi-me apanhado na minha própria armadilha e não tive outro remédio senão aceitar, simulando - ainda por cima - grande contentamento por aquela gentileza do discípulo.
O grêmio dos tintureiros, tal como João me anunciara ao sair de casa, ficava muito perto. Descemos por uma viela estreita, tão mal calçada quanto pestilenta, até desembocarmos num largo de pequenas casas de um piso, situado à sombra da muralha exterior e no extremo sul-oriental da cidade. As trinta casas eram, na realidade, tinturarias. João levou-me até uma delas, onde entramos, e que era propriedade de um velho amigo, um tal Malkiyas, hábil artesão e digno sucessor de uma antiga família de tintureiros.
E, sem que tivesse essa intenção, vi-me dentro de um piso térreo de seis por três metros, quase em completa escuridão , e num dos extremos vi dois grandes tanques de quase um metro de diâmetro por oito de altura. A seu lado tinham posto várias tinas pouco fundas e um banco de alvenaria. Nos tanques fora introduzido potássio e cal apagada, bem como uma pequena quantidade de índigo numa e bastante mais na outra. Cada tanque, tapada com uma tampa de pedra, que apresentava um pequeno orifício ou boca (com cerca de quinze centímetros) ao centro.
Por ali o amigo Malkiyas ia introduzindo os fios dos diferentes tecidos, tingindo-os. Numa das tinas, vários operários manipulavam grandes peças de pano mergulhando-as em banhos de púrpura e de escarlate.
(1) A julgar pela cor azul e pela sua forma, em blocos quadrados de 125 gramas de peso cada, aquela pasta tintureira devia ser uma das espécies de índigo da Índia, muito apreciada na arte de tinturaria. (N. do M.)
João expôs-lhes o meu desejo de fazer uma oferta a um amigo, pedindo-lhe que nos mostrasse alguns dos mantos mais bem acabados e prontos para serem vendidos. O chefe da tinturaria aceitou com gosto, mostrando-nos uma grande variedade de roupões e de túnicas de lã e algodão, mantos para mulheres (muitos parecidos com o atual xale) e finas indumentárias de fio do Egito, todos eles tingidos nas mais variadas e sugestivas cores.
E, de repente, ao ver todas aquelas prendas, tive uma idéia. Procurei entre os tecidos mais delicados e apontando a João um manto de linho branco disse-lhe:
- Este... Gostaria de levar este...
O discípulo olhou-me com assombro e comentou:
- Mas, Jasão, este é um manto de mulher...
- Eu sei - respondi -, mas acabo de ter uma idéia melhor.
João respeitou o meu silêncio, e sem me fazer pergunta alguma sobre aquela mudança repentina, discutiu com o mestre artesão o preço do rico manto. Embora aquele tipo de operações comerciais estivesse proibido - uma vez que os tintureiros não podiam vender os seus produtos diretamente ao público – a amizade entre João e Malkiyas serviu para dar solução ao problema.
E cerca das quatro horas da tarde depois de irmos ao encontro de Filipe e de Pedro, e na companhia do jovem João Marcos, que quis se juntar a nós, retomamos o caminho de regresso ao acampamento de Getsémani. Na casa da família Marcos, tudo estava pronto para a ceia. As circunstâncias tinham-me impedido o acesso ao andar de cima e isso começava a preocupar-me. Era vital para o completo desenvolvimento da missão que eu pudesse entrar na referida sala, antes de ser ocupada por Jesus e pelos doze...
Ao ver-nos chegar, David Zebedeu se apressou em me interrogar, enquanto Pedro, Filipe e João comunicavam a Jesus que tudo estava preparado para a ceia.
O astuto David explicou-me que, dadas as circunstâncias, tinha sugerido a Judas que lhe entregasse algum dinheiro, com a finalidade de ir satisfazendo as necessidades do grupo.
- Para surpresa minha - acrescentou - aquele maldito não ofereceu resistência, e entregou-me a totalidade dos fundos líquidos e os recibos do dinheiro em depósito, me anunciou sem gaguejar: Tens razão. Creio que és o mais indicado... Está tramando qualquer coisa contra o Mestre e, no caso de me acontecer alguma coisa não serias incomodado por ninguém. , Vês isto Jasão? - comentou com desalento.
- Este cínico acaba de me confessar que teme pela vida de Jesus...
Aquele gesto de Judas - livrando-se de todo o dinheiro do movimento - mais ainda apoiou a minha suspeita de que o traidor não agia por avareza.
Pelas cinco da tarde, quando só faltava uma hora para o anoitecer, notei um movimento que não era habitual no acampamento. Filipe informou-me que o Mestre tinha pressa de seguir para Jerusalém. Os apóstolos não conseguiam entender a razão por que o Mestre organizara aquela reduzida e insólita ceia, a que só podiam assistir os seus doze homens de confiança. Os comentários eram variados. O costume judaico estabelecia com grande rigor que o almoço pascal devia celebrar-se - uma vez sacrificado o obrigatório cordeiro ou cabrito no Templo - na véspera da Páscoa propriamente dita (1). Nesta ocasião a festa pascal caía ao sábado, pelo que era duplamente solene, como julgo ter comentado. Se a tradicional ceia religiosa tinha de se efetuar no dia seguinte, sexta-feira, 7 de Abril, e uma vez tendo anoitecido, era lógico que os discípulos se interrogassem sobre o misterioso banquete organizado para aquela noite de quinta-feira. Só alguns – João, Judas Iscariotes, naturalmente e David Zebedeu - tinham a intuição de que aquela ceia ia ser um ato muito especial, anterior à imediata e fulminante captura do Mestre.
Para mim, aquela pressa de Jesus em abandonar o jardim foi o sinal que me levou a retirar-me, antecipando-me ao grupo. Dadas as especialíssimas características da última ceia à qual, insisto, só podiam assistir Jesus e os seus doze apóstolos - Cavalo de Tróia considerara que a minha presença poderia quebrar o caráter íntimo que o Mestre pretendia. Era pouco ético, portanto, que eu me sentasse junto dos treze. Mas a missão não podia passar por alto um fato tão transcendente e significativo como aquele. Eu deveria recolher um máximo de informação sobre o que verdadeiramente ocorrera no andar superior da casa dos Marcos. E, para isso, o general Curtiss preparara uma solução intermédia, além das minhas indagações acerca dos protagonistas, a totalidade das palavras de Jesus e dos doze seriam recolhidas mediante um sensível e diminuto microfone, que eu deveria ocultar num lugar estratégico do cenáculo. (Dificilmente podia então supor que aquela minúscula maravilha da eletrônica – construída com grande apuro pelos especialistas da ATT (American Telephone and Telegraph), empresa norte-americana de exploração telefônica, para o nosso projeto – ia constituir uma das razões que aconselharam a Cavalo de Tróia uma segunda grande viagem, à época de Cristo...)
Depois de deixar nas mãos de Zebedeu o manto que tinha comprado na tinturaria de Malkyias, fui colher ramos de alfazema e lírios cor de amora e brancos que cresciam nas proximidades do olival. E andando, meti-me no caminho mais curto para Jerusalém, avisando o módulo de que me preparava para colocar o microfone e a vara de Moisés na casa de Elias Marcos.
* A festa da Páscoa judaica - também chamada hag ha-massot ou festa dos ázimos - era celebrada anualmente a 15 de Nisan, coincidindo com a lua cheia da Primavera. Naquele ano 30 esta data -15 de Nisan - calhou a um sábado, 8 de Abril. O cordeiro pascal era sacrificado na véspera (14 de Nisan) e era comido em família, logo que anoitecesse; quer dizer nesta sexta-feira, 7 de Abril. O Galileu celebrou, portanto, a última ceia a 13 de Nisan ou quinta-feira, 6 de Abril. O mês de Nisan era o primeiro do ano judaico, correspondendo ao nosso Março ou Abril. (N. do M.)
O gentil e sereno chefe de família não se surpreendeu quando lhe anunciei que Jesus e os doze não tardariam a chegar e que, como prova da minha amizade e afeto pelo Mestre, desejava contribuir, adornando a mesa com aquele humilde mas aromático presente. O meu plano surtiu efeito e um dos servos – por indicação de Elias - acompanhou-me ao andar de cima.
Subimos por uma estreita escada de pedra e, ao abrir uma porta de duplo batente, o improvisado guia convidou-me a que o precedesse. Assim fiz, penetrando numa espaçosa sala retangular com pouco mais de vinte metros de comprimento por seis ou sete de largura. No centro fora colocada uma mesa baixa, em forma de U e de características muito parecidas com as que vira em casa de Simão, o Leproso. À volta encontravam-se treze divãs, orientados quase perpendicularmente à mesa. O que ocupava o centro, ou base do U, era um pouco mais alto que os outros. Deduzi imediatamente que aquele era o lugar destinado ao convidado de honra: quer dizer, a Jesus. Um dos divãs - muito semelhante a bancos de quatro pernas, mas sem braços nem encosto algum - era mais baixo que os restantes. Encontrava-se situado num dos extremos da mesa e, ao vê-lo, deduzi que o anfitrião tivera problemas para conseguir tantos divãs.
À esquerda da sala de jantar (tomando sempre como referência a única porta de entrada), e unidos praticamente à parede de tijolo - cuidadosamente reforçado à base de argamassa – contei três lavatórios de bronze, erguidos sobre o soalho em pés de madeira. Todos eles, curiosamente, munidos de rodas. Desta forma, aqueles recipientes - de quarenta centímetros de diâmetro e profundidade escassa - podiam ser deslocados comodamente para qualquer lado do aposento. Junto dos lavatórios, o dono da casa preparara várias jarras com água, bem como algumas bacias e panos para enxugar. A luz fraca que entrava pelas janelas estreitas – quase frestas - que se distribuíam ao longo das paredes, obrigara os servos a acender as candeias de azeite. Numa rápida exploração observei que as seis ou sete lamparinas encostadas às paredes, e a cerca de metro e meio do solo, não davam uma chama suficientemente grande para iluminar a sala com amplitude. O problema fora resolvido com um lampião quadrado, em cujo interior ardia mais azeite com uma mecha tripla de cânhamo. Este reforço, colocado na parte interior do U, e apoiado a pouco mais de um metro do chão por um pé de ferro forjado, belamente trabalhado, proporcionava à mesa e às suas imediações uma claridade generosa. Através das paredes de vidro - sutilmente tingidas de ouro -, a luz do lampião inundava e banhava de amarelo os divãs avermelhados e a branca e imaculada toalha.
Num dos extremos da mesa (o mais distante do lugar onde se encontravam os lavatórios rolantes), a criadagem colocara o pão, o vinho, a água e vários pratos com legumes. E, em cima, no lugar de cada convidado, treze pratos de fina cerâmica, decorados com estreitas bandas vermelhas e brancas, possivelmente traçadas a pincel pelo artesão. Junto da baixela, e para cada convidado, quatro taças de cristal de Sídon. A presença de tantos cristais fez-me pensar que Jesus pensava celebrar aquela ceia segundo o rito pascal.
Como única decoração, embelezavam a sala alguns tapetes vermelhos, pendurados estrategicamente nas paredes. À direita da porta, no canto do cenáculo a mãe do jovem Marcos pusera um discreto ornamento, à base de brilhantes ramos de oliveira e folhas de palma, firmemente espetadas num vaso com terra.
Depois daquela vertiginosa olhadela à casa, compreendi que o lugar ideal para esconder o microfone multidirecional era a base do lampião. Daquele ponto, eqüidistante de quase todos os discípulos, as vozes podiam chegar com nitidez até ao sensível receptor. Mas, ao voltar-me para a porta, a presença do criado que me acompanhava fez-me desistir dos meus propósitos. Tinha de ficar sozinho, ainda que fosse unicamente por dois minutos...
De repente, notei que ainda tinha as flores na mão esquerda e, entregando-as ao servo, pedi-lhe que as colocasse numa jarra. O bom homem não entendia bem o grego e tive de me exprimir por sinais. Por fim, pareceu entender-me e afastou-se, escadas abaixo, com o fim de satisfazer o meu pedido.
Sem perder um segundo tratei do microfone, ajoelhando-me junto do lampião. Felizmente, a base era igualmente de ferro e o dispositivo magnético agarrou-se imediatamente. As franjas que pendiam da lanterna formaram uma camuflagem excelente. Recuei, saindo do centro da mesa e, dirigindo-me rapidamente ao divã que, provavelmente, seria ocupado pelo Galileu, recostei-me nele, estabelecendo contato com a nave. Eliseu respondeu imediatamente. Durante uns segundos dirigi a minha voz - em diferentes níveis de intensidade para o lampião, situado a pouco mais de três metros da curvatura do U. Repeti depois as provas de som dos dois extremos da mesa.
Eliseu verificou as recepções, anunciando-me que o som chegava cinco por cinco (1).
Um pouco mais seguro, coloquei-me então no canto onde Marcos dispusera o adorno floral. Em minha opinião, aquele era o único canto de onde seria possível uma completa filmagem da ceia. Mas, ao examinar a posição da única lente capaz - neste caso - de registrar os acontecimentos, verifiquei que existiam dois obstáculos que dificultavam a filmagem, de um lado, as folhas de palma ocupavam a maior parte do campo visual. Do outro, embora não houvesse aquele inconveniente, o lugar que o Mestre tinha de ocupar ficava parcialmente oculto pelo lampião central.
Tratei de me acalmar e, tomando de novo a vara, esquadrinhei toda a sala. Logo desisti. Não tinha uma só zona onde apoiar o cajado com garantias de uma filmagem correta sem que levantasse suspeitas. Desalentado, dirigi-me então para o ponto que escolhera em princípio, com o fim de colocar a vara de Moisés atrás dos ramos e palmas. Pelo menos, disse para comigo, será filmado o local e algumas das personagens.. A minha missão, neste caso, era simples: bastava que apertasse no prego que ativava o mecanismo.
Uma vez terminada a ceia, e se não surgisse algum impedimento, era tudo questão de subir novamente e de retirá-la.
Mas, quando me faltavam só uns passos para chegar ao canto, o servo apareceu na sala, anulando as minhas intenções. Trazia na mão um pequeno jarro de barro, e lá dentro, as minhas flores. Tive de forçar um sorriso. Depois, quase como um autômato coloquei-o em cima da mesa, em frente do prato e das taças dedicadas ao Nazareno.
Profundamente contrariado, abandonei aquele histórico lugar. Já me preparava para me despedir da família de Marcos quando o rude e áspero som das cornetas do Templo anunciaram o final do dia. A minha intenção era esconder-me nas proximidades da casa e esperar a chegada de Jesus e dos discípulos. Deste modo poderia controlá-los e, principalmente, manter-me a par dos movimentos de Judas. Mas a hospitaleira família não me deixou partir. Elias pediu-me que aceitasse um copo de vinho e que, se não alterava assim os meus planos, continuasse na sua companhia até ao regresso do grupo a Getsémani. O pai de Marcos conhecia a decisão do Rabi sobre a ceia, ninguém - com exceção dos treze - deveria participar na refeição pascal. Nem sequer haveria servos. E ainda que eu me apressasse a recordar-lhe aquele desejo do Mestre, o bom homem insistiu em que não era preciso que eu estivesse presente no andar de cima. Podia satisfazer o meu apetite e, de passagem, abrigar-me no andar de baixo ou no pequeno jardim contíguo à casa.
Refleti e aceitei. Talvez fosse aquela a localização ideal para a minha missão. Apesar de tudo, do andar inferior e, mesmo do pátio era possível seguir os movimentos todos que subissem ou descessem do cenáculo. Aquele amável convite permitiu-me, além disso, descobrir outro dado curioso, o resumo da última ceia. De acordo com os costumes judaicos, a refeição pascal era constituída por um prato único – o cordeiro ou cabrito - guarnecido e acompanhado por uma série de verduras, igualmente obrigatórias. Maria Marcos preparara vários pratos com alface, cerefólios aromáticos (com um suave perfume parecido com o anis), um cardo chamado eringe ou eríngio e as imprescindíveis ervas amargas, tudo isto, sem ferver nem cozer, tal como prescrevia a lei.
Quando lhe perguntei como se preparava o cordeiro, a matrona levou-me ao jardim, mostrando-me brasas de madeira de pinho, dentro de uma fogueira delimitada por grandes pedras de rio.
Um dos criados velava para que o fogo não se apagasse, enquanto dois outros preparavam o cordeiro que não pesaria mais do que oito ou dez quilos. Com uma destreza admirável, os criados cortaram-lhe as pernas e extraíram a totalidade das vísceras. Depois, meteram tudo aquilo - perfeitamente esfolado e purificado com água - no bucho do cordeiro. Um dos homens pegou brotos de alforva, louro e pimenta, acabando de encher o animal sacrificado. Depois, fecharam o ventre do cordeiro com ramos de alecrim, dispostos em volta da peça.
O segundo servo introduziu então um comprido e sólido pau da romanzeira pela boca do cordeiro, atravessando todo o corpo e fazendo-o sair pelo ânus.
Uma vez preparado deste modo, as pontas da vara de romanzeira foram colocadas em forquilhas de ferro, firmemente cravadas na terra. E deu-se começo a um lento e meticuloso assado. Seguindo um antigo ritual, antes dos criados colocarem o cordeiro sobre as brasas, o pai de família dirigiu o seu olhar para o céu, verificando que nos encontrávamos entre duas luzes, tal como se determina no Êxodo (12,6). O banquete fora completado com alhos porros, ervilhas, pão ázimo e, como sobremesa, nozes, amêndoas torradas e uma torta sem levedura, à base de figos secos.
Com o fim de aliviar o sabor das obrigatórias ervas amargas, a mãe do pequeno João Marcos tinha uma deliciosa compota ou marmelada - chamada jaroset - preparada à base de vinho, vinagre e frutas moídas. O vinho (os convidados deviam beber, no mínimo, quatro taças, previamente misturadas com água) era proveniente do Monte de Simeão, de grande prestígio em Israel.
Pelas seis e meia, o benjamim dos Marcos entrou dentro de casa em grande correria. Ofegante e suado, comunicou ao pai que o Mestre estava já perto da mansão...
A alegria da família ao receber o Galileu e os apóstolos não teve limites. E, durante largos minutos, a confusão foi completa. Maria Marcos subia e descia constantemente, enquanto a criadagem tratava dos últimos pormenores da ceia. Os discípulos - por conselho de Jesus - foram subindo as escadas, a caminho do andar de cima. Conforme pude apreciar, não faltava nenhum. Judas num mutismo completo, seguiu os seus companheiros, enquanto o Rabi conversava com a família. A julgar pelos Seus alegres comentários sobre o carneiro, continuava de excelente humor. Nada parecia perturbá-lo. No entanto, e a partir daquele momento, eu devia manter-me em alerta total. Judas Iscariotes, por fim, soubera do local onde ia celebrar-se a misteriosa ceia e os seus pensamentos só podiam estar entregues àquilo que para ele era imperioso, sair de casa de Marcos e correr ao Templo para pôr em andamento a operação de prisão do Nazareno. Às sete, Jesus retirou-se, dirigindo-se ao cenáculo. O seu semblante continuava a transmitir grande jovialidade.
A partir daquele instante, coloquei-me no vão da porta que dava para o jardim, montando guarda a poucos metros da escada que subia para o primeiro andar.
Dali a pouco, o prestativo João Marcos - por indicação de seu pai trouxe-me um pequeno tamborete. Sentei-me e ele fez o mesmo, observando-me em silêncio. Comi lentamente o prato de peixe cozido que me servira a dona da casa e, sem muitas esperanças de êxito, comecei a interrogar o rapaz. Mas João, apesar de muito novo, possuía um profundo sentido da lealdade e, acima de todas as coisas deste mundo, amava Jesus. Assim as minhas perguntas falharam, uma atrás da outra, ante o obstinado silêncio do rapazinho. Quando, por fim, me atrevi a expor-lhe a minha teoria sobre a sua combinação secreta com o Rabi, em relação ao homem do cântaro de água e aos outros planos sobre a ceia, João Marcos empalideceu. E num impulso, levantou-se, fugindo para o fundo do jardim.
Sem querer, a sua atitude denunciara-o. Mas não quis forçar a situação. Mais ou menos na altura em que se iniciava a ceia, Tiago e Judas de Alfeu - os gêmeos - apareceram na escada. Pus-me de pé. Mas, ao vê-los entrar no pátio e pegar na bandeja de madeira onde estava o cordeiro – previamente trinchado - tranquilizou-me. Tinham o olhar grave. E a curiosidade voltou a assaltar-me. Que estava acontecendo lá em cima? Por que aquela sombra de angústia nos rostos dos irmãos, habitualmente risonhos? A constante presença da família Marcos impediu-me de consultar o módulo, e optei por me acalmar. Teria tempo para desvendar aquele mistério. João Marcos, um pouco mais calmo e sorridente, levou-me o prato.
Procurei mostrar-me amistoso, trocando o meu anterior tema de conversa por outro mais caloroso. Desta forma - fazendo de Jesus o centro das minhas palavras - o rapaz esqueceu os seus receios, demonstrando-me o que eu já sabia: que a sua paixão pelo Mestre não tinha limites e que, se fosse preciso, ele seria o primeiro a oferecer a sua vida pelo Rabi, segundo disse.
Conforme ia avançando a noite, sem o poder remediar também o meu nervosismo ia aumentando. Até que, finalmente, pelas nove vi descer Judas. Evidentemente, ia com pressa. E, sem sequer nos olhar, abriu o portão da entrada, saindo de casa.
De um salto, corri à porta e observei como se afastava precipitadamente. João Marcos, alarmado com a minha súbita atitude, perguntou se acontecera alguma coisa. Se as minhas suspeitas eram corretas, Judas Iscariotes encaminhava-se para o Templo. Aquilo significava que eu perderia a sua pista imediatamente. Era preciso atuar com rapidez e inteligência. E, de repente, encarando o rapaz, ocorreu-me uma solução.
- Conheces a casa de José, José de Arimatéia? - perguntei-lhe, tentando não o alarmar. João Marcos assentiu.
- Pois bem, corre até lá e diz a José que vá imediatamente ao Templo. É importante que ele ou Ismael encontrem Judas...
Sem perguntar nem fazer o menor comentário, o rapaz – que percebera a minha preocupação - correu rua abaixo, na direção da piscina de Siloé.
Assim, sem que Judas Iscariotes percebesse, iniciei uma tenaz perseguição ao traidor.
Aquelas horas da noite, o número de transeuntes diminuíra sensivelmente. Com muita dificuldade, ajudado mais pelo luar que pelas míseras e mortiças candeias de azeite das ruas, pude seguir os passos apressados do judeu até um casebre, quase nos limites do Bairro Baixo com a Cidade Alta. Ali, Judas entrou na casa, saindo poucos minutos depois na companhia de outro indivíduo. E ambos se dirigiram então para a muralha ocidental do Templo.
Quando cheguei ao Átrio dos Gentios vi como Judas Iscariotes e aquele que o acompanhava se afastavam pelo solitário terreno, a caminho das escadarias que rodeavam o Santuário. Alguns dos vinte e um guardas que montavam o habitual serviço de vigilância em volta do Templo vieram cortar-lhes o caminho.
Dialogaram uns segundos e, imediatamente, dois dos levitas os acompanharam ao interior do Templo.
Obviamente, terminou ali o meu trabalho. E, confiando que tanto José de Arimatéia como Ismael, o Saduceu, soubessem interpretar a minha mensagem, indo o mais cedo possível ao Templo para poderem espiar os movimentos de Judas, dei meia volta, tentando orientar-me para voltar a casa dos Marcos.
Preocupado com Judas Iscariotes não reparei que entrava numa viela solitária sem iluminação. De repente, da minha esquerda, apareceu um vulto que me barrou o caminho. Fiquei paralisado pelo susto. A Lua iluminou então um indivíduo de baixa estatura e cerrada barba, que avançou lentamente para mim. Um reflexo azulado numa das mãos gelou-me o sangue. O ladrão lançou-se contra mim e, sem troca de palavras, vibrou-me duro golpe no ventre. Porém, a adaga partiu-se pela base, caindo nas pedras da rua com um eco metálico. A pele de serpente livrara-me de sério problema. O homem, desconcertado, olhou a lâmina partida e, largando o punho da arma, recuou aos tropeções, sem poder acreditar no que estava acontecendo. Segundos depois, desapareceu pela viela estreita, gritando como um louco.
Felizmente, o rasgão na túnica não era muito grande e, imediatamente, abandonei o local.
Poucos minutos depois das dez batia à porta dos Marcos. A possibilidade de que Judas e os onze tivessem Já saído do cenáculo me preocupava. Não quis alarmar Eliseu, dando-lhe conta do triste incidente com o ladrão. Apesar de tudo, encontrava-me bem. Se o assaltante, em vez de atacar, tivesse exigido, por exemplo, a bolsa com o dinheiro, talvez a situação tivesse sido radicalmente diferente. As minhas possibilidades de defesa eram quase nulas e o mais provável
era aquele inoportuno o bandoleiro ficar com o dinheiro do Cavalo de Tróia e, o que teria sido muito mais lamentável, com o pequeno estojo que continha as lentes de visão infravermelha. Ao ver-me, João Marcos correu ao meu encontro. O Mestre e os discípulos continuavam ainda no primeiro andar. Respirei, aliviado. José de Arimatéia, tinha recebido o meu recado e - segundo me explicou o rapaz - saiu imediatamente para o Templo. Agradeci-lhe e, um tanto contrariado, obedeceu à mãe, retirando-se para repousar. Porém, o seu sono não ia ser muito prolongado...
Pelas dez e meia, pouco mais ou menos, ouvi um hino. Elias ofereceu-me um copo de vinho com mel e, apontando para o local de onde vinha aquele cântico, avisou-me que Jesus e os discípulos não tardariam. A verdade é que nunca eu precisara tanto de um copo de vinho como naqueles momentos. Bebi-o de um trago e, efetivamente, dali a poucos segundos - uma vez acabado o hino religioso -, os apóstolos começaram a descer.
Jesus foi o último. Os onze, pelo menos naqueles instantes, estavam muito menos tensos que durante a manhã. Despediram-se da família e eu acompanhei-os no caminho de regresso ao acampamento.
Enquanto atravessávamos as ruas solitárias do Bairro Baixo, em direção à Porta da Fonte, no extremo sul de Jerusalém, consegui que André se separasse do grupo. E, um pouco para trás , interessei-me pela forma como correra a ceia. O chefe dos apóstolos começou dizendo-me que, tanto ele como os seus companheiros, estavam intrigados com o repentino desaparecimento de Judas e, muito especialmente, pelo fato de não ter voltado ao cenáculo. De inicio, quando o vimos sair, todos pensamos que vinha ao andar de baixo, talvez à procura de algum dos víveres para a ceia.
Outros acreditaram que o Mestre lhe confiara algum encargo...
Os pensamentos dos discípulos eram corretos, Já que ninguém dispunha de verdadeira informação sobre a conspiração. Por outro lado, com exceção de David Zebedeu - que não participara no convite nem André nem os restantes sabiam ainda que Judas Iscariotes deixara de ser administrador e que o dinheiro comum estava desde essa tarde em poder do chefe dos emissários.
E André continuou com a sua narrativa, destacando um fato que acontecera logo à entrada no andar de cima da casa dos Marcos, e que - do meu ponto de vista – esclarecia perfeitamente a razão por que o Nazareno se decidiu a lavar os pés dos discípulos. Os evangelistas tinham dado uma versão correta, Jesus levou a cabo aquele gesto, manifestando a muita honrosa virtude da paciência. No entanto, qual fora o lampejo ou o motivo que obrigou o Mestre a proceder à lavagem dos pés? Será que tudo aquilo era devido a uma pura e simples iniciativa de Jesus? Talvez sim e talvez não...
Ao visitar a sala onde ia celebrar-se a ceia pascal, eu tinha reparado nos lavatórios, jarros e toalhas, colocados para as lavagens obrigatórias de pés e de mãos. O costume judaico exigia que, antes de se sentar à mesa, o convidado devia ser lavado pelos servos ou pelos próprios anfitriões. Aquela, repito, era a tradição. No entanto, as ordens do Mestre tinham sido terminantes, não haveria criadagem no andar de cima. E a prova é que - segundo pude verificar - os gêmeos desceram a dada altura para virem buscar o cordeiro assado. Pois bem, aí surgiu a discussão entre os doze...
- Quando entramos no cenáculo - continuou André -, todos reparamos que estavam ali os jarros e a água para a lavagem dos pés e das mãos. Mas, se o Rabi ordenara que não haveria criadagem na sala, quem se encarregaria da lavagem obrigatória? Tenho de te confessar humildemente que, tanto eu como os restantes, tivemos os mesmos pensamentos. Eu não cairia tão baixo que me prestasse a lavar os pés dos outros. Essa era uma missão da criadagem...
- E, todos em silêncio, dissimulamos, evitando qualquer comentário sobre a questão da lavagem. O ambiente começou a ficar perigosamente pesado e, para cúmulo, o aborrecido assunto da limpeza pessoal viu-se envenenado por outro fato que nos irritou, originando uma azeda discussão. O Mestre demorava em subir e, entretanto, cada um de nós dedicou-se a examinar os divãs. Saltava à vista que o lugar de honra correspondia ao divã mais alto - o colocado ao centro – e novamente caímos na tentação. Quem ocuparia os lugares próximos de Jesus? Suponho que quase todos voltamos a pensar o mesmo: Será o Mestre a escolher os discípulos prediletos. E nestes pensamentos estávamos quando, inesperadamente, Judas se dirigiu para o assento colocado à esquerda do que fora reservado para o Rabi, manifestando a sua intenção de nele se sentar como convidado preferido. Esta atitude de Judas Iscariotes nos revoltou, originando-se uma desagradável discussão. Mas Judas já se instalara no divã e João, num dos seus impulsos, fez o mesmo, apoderando-se do lugar da direita.
- Como pode imaginar, a irritação foi geral. Porém, as ameaças e protestos de nada serviram. Judas e João não estavam dispostos a ceder. Talvez o mais aborrecido fosse meu irmão Simão. Sentia-se ferido e prejudicado pelo que chamou orgulho indecente dos seus companheiros. E, visivelmente zangado, deu uma volta à mesa, escolhendo então o último lugar, justamente no divã mais baixo. Sabes que Pedro é bom e ama intensamente o Mestre mas, naquela altura, a sua fraqueza foi grande. Conheço meu irmão e sei porque fez aquilo...
- Porquê? - animei-o a que fosse sincero comigo.
André precisava contar a alguém e desabafou!
- Aturdido pelos ciúmes e pela impertinente iniciativa de Judas e de João, Simão não hesitou em se sentar no último lugar da mesa com uma secreta esperança: que, quando entrasse, o Mestre, lhe pedisse publicamente que deixasse aquele divã, afastando assim Judas ou, mesmo, o jovem João.
- Desta forma, ocupando um lugar de honra, seria honrado e deixaria mal os seus orgulhosos companheiros. Quando o Rabi apareceu na abertura da porta, ainda nos encontrávamos em plena batalha dialética, recriminando-nos mutuamente pelo sucedido. Vimo-Lo e, bruscamente, fez-se silêncio. Jesus permaneceu uns instantes no umbral. O seu rosto fora ficando paulatinamente sério. Evidentemente, tinha compreendido a situação. Mas, sem fazer comentário algum, dirigiu-se para o seu lugar, ante o olhar desolado de meu irmão Pedro.
Foram minutos difíceis. No entanto, Jesus foi recuperando a habitual e característica doçura e todos nos sentimos um pouco mais calmos. As conversas voltaram a surgir, ainda que alguns dos meus companheiros continuassem empenhados em se atacar por causa do incidente da escolha dos divãs, bem como da aparente falta de consideração da família Marcos, ao não ter previsto um ou vários servos para a lavagem dos pés.
Jesus desviou então o Seu olhar para os lavatórios, verificando que, efetivamente, não tinham sido utilizados.
Mas também nada disse. Tadeu começou a servir a primeira taça de vinho, enquanto o Rabi escutava e observava em silêncio. Como sabes, uma vez bebida esta primeira taça, a tradição estabelece que os hóspedes devem levantar-se e lavar as mãos. Nós sabíamos que o Mestre não apreciava muito estes formalismos e aguardamos em expectativa. Ante a surpresa geral, o Rabi levantou-se, caminhando silenciosamente para os jarros de água. Encaramo-nos surpreendidos e, sem uma palavra, despiu a túnica, cingindo um dos panos em volta da cintura. Depois, pegando num vaso e na água, deu a volta completa à mesa, chegando até ao lugar menos honroso, o que meu irmão ocupava. Ajoelhando-se, com grande humildade e submissão, dispôs-se a lavar os pés de Pedro. Ao vê-lo, os doze nos levantamos como um só homem. Do espanto, passamos à vergonha. Jesus tomara para Si o trabalho de um criado, recriminando-nos assim pela nossa falta de consideração e de caridade. Judas e João baixaram os olhos, aparentemente mais feridos que os restantes...
- Judas também? - interrompi-o, com alguma incredulidade.
- Sim...
André deteve os seus passos e, olhando-me fixamente, perguntou por sua vez:
- Jasão, tu sabes alguma coisa... Que se passa com Judas?
Encolhi os ombros, procurando esquivar-me. Mas o chefe dos apóstolos insistiu e - dada a iminência da prisão - expus-lhe que, efetivamente, também eu duvidava da lealdade de Iscariotes. Prosseguimos, e ao atravessarmos o Cédron, o meu companheiro saiu do seu mutismo. Supliquei-lhe que continuasse a sua narrativa e André acabou por aceitar.
- Quando Simão viu Jesus ajoelhado na sua frente, o seu coração inflamou-se de novo e protestou energicamente. Como te disse, meu irmão ama o Mestre acima de tudo e de todos.
Suponho que ao vê-lo assim, como um criado insignificante e disposto a fazer o que nem ele nem nós tínhamos aceitado, compreendeu o seu erro e quis dissuadir o Mestre. Porém, a decisão do Rabi era irrevogável e Pedro consentiu. Um a um, como te dizia, Jesus foi-nos lavando os pés. Depois das palavras de Pedro, nenhum se atreveu a protestar. Num silêncio dramático, o Mestre foi rodeando a mesa até chegar ao último dos convidados. Depois vestiu a túnica e voltou ao Seu lugar.
- João e Judas continuavam à direita e à esquerda do Mestre, respectivamente? - Sim, ninguém saiu dos seus lugares, com exceção de Judas, que saiu da sala pouco antes de ter sido servida a terceira taça, a das bênçãos...
A proximidade do acampamento obrigou-me a suspender aquela esclarecedora narrativa. No entanto, na minha mente ainda se acumulavam muitas interrogações. Como fora a revelação de Jesus a João sobre a identidade do traidor? Como era possível que os outros apóstolos não o tivessem ouvido? Não havia dúvidas de que assim era, já que nenhum estava a par dos atos Judas Iscariotes. Só havia suspeitas... Era importante que, nas horas seguintes, arranjasse uma oportunidade para interrogar João. Naquele momento, pouco me preocupava não conhecer os longos ensinamentos do Mestre durante a ceia.
Eliseu me informara que a transmissão e a gravação tinham decorrido sem problemas. No meu regresso ao módulo na manhã de domingo, ia ter a possibilidade de escutá-las na sua totalidade. E devo repetir que a transcrição das palavras dos evangelistas é apenas um pobre reflexo do que se falou naquela noite da chamada quinta-feira santa. Quando uma pessoa conhece esses sentimentos e mensagens na sua totalidade, fica sabendo que as igrejas com a passagem dos séculos, quase reduziram o imenso caudal espiritual daquela reunião com Jesus a uma fórmula matemática.
* O interessante conteúdo das pregações e ensinamentos de Jesus de Nazaré durante a última ceia aparecerão num volume seguinte, em que são narradas as vivências do major norte-americano durante a sua segunda grande viagem, ao ano 30. (N. do A.)
Pelas onze da noite, quando entrávamos no jardim, André respondeu a uma última pergunta que, embora para ele não apresentasse interesse, era, para mim, de extrema importância.
À minha pergunta se Jesus tinha ceado abundantemente, o discípulo, visivelmente surpreendido, respondeu que muito pouco. E acrescentou que, tal como tinha por hábito, o Mestre não provou o delicioso assado de carneiro.
Assim, o Galileu apenas teria comido algumas das verduras e legumes - incluindo as ervas amargas - bem como um pouco de pão ázimo, vinho com água e, provavelmente, um pouco da sobremesa. Este dado era de indubitável valor, principalmente dadas as possíveis reações do organismo do Nazareno nas terríveis e prolongadas horas que tinha pela frente. Às torturas, perda de sangue, esgotamento e dor dilacerante, se juntariam também uma notável falta de recursos energéticos, em conseqüência de uma ceia escassa e de um jejum total, a partir das dez da noite daquela quinta-feira.
Na primeira oportunidade, transmiti ao módulo as características e volume aproximado dos alimentos que Jesus teria ingerido na ceia, bem como os tempos do começo e do fim. (Segundo os meus cálculos, a refeição pascal, propriamente dita, pôde iniciar-se por volta das oito ou oito e meia da noite, terminando, aproximadamente, hora e meia depois.)
O computador central do berço proporcionou-nos a seguinte tabela de calorias - sempre de uma forma estimativa -, com base nos alimentos mencionados e que constituíram a dieta de Jesus naquela noite: tendo em conta que cada uma das quatro taças de vinho fora misturada com água, isso somava um total aproximado de trezentas calorias. Quanto às mancheias de nozes e amêndoas - alimentos de máximo poder energético de quantos o Mestre ingerira - o computador calculou o número de calorias entre quinhentas e seiscentas. Considerando, por último, que cada grama de gordura proporcionava nove calorias, a chamada última ceia de Jesus de Nazaré resultou num total aproximado de setecentas e cinqüenta calorias. Um aporte energético muito baixo tendo em conta as características físicas do Gigante. (O metabolismo basal de Jesus - quer dizer, o que o seu corpo necessitava diariamente para se manter com vida, sem fazer exercício - foi igualmente calculado por Papai Noel em 1728 calorias. No caso de o Mestre desenvolver um mínimo de atividade física - andar, etc., - o número se elevava a três mil ou três mil e quinhentas calorias, como consumo médio diário.)
* O volume da taça foi calculado em duzentos centímetros cúbicos, dos quais cem correspondiam a água (um litro de vinho representa um aporte energético de setecentas calorias, aproximadamente). (N. do M.)
2 O Metabolismo basal, de Jesus: 40x1,8 metros quadrados de superfície total x24 horas = 1728 calorias (quando me refiro a calorias, entenda-se quilocalorias,). (N. do M.)
As mulheres e os quarenta ou cinqüenta discípulos que aguardavam no acampamento receberam o Mestre e os apóstolos com grande alegria. Porém, aquele entusiasmo não tardaria em decair. A causa, uma vez mais, foi Judas.
Ao certificarem-se de que Judas Iscariotes também estivera presente em Getsémani, alguns dos homens do Nazareno começaram a suspeitar de que a alusão do Mestre durante a ceia sobre uma iminente traição, tinha muito a ver com o desaparecido administrador. David Zebedeu, ao escutar o que se dizia, esqueceu momentaneamente os seus mensageiros, aproximando-se dos grupos. Porém, a sua atitude continuou a ser prudente. Escutou uns e outros sem revelar o que sabia. Simão, o Zelota, mais nervoso que os outros, encabeçou um grupo e, aproximando-se de André, começou a fazer-lhe perguntas. O responsável pelo grupo, que na realidade carecia de informação, limitou-se a responder:
- Não sei onde está Judas... Mas temo que nos tenha abandonado.
O desalento espalhou-se rapidamente. E Pedro, o Zelota, Tomás e Tiago, entre outros, reuniram-se na tenda, com a intenção de examinarem a situação e adotarem as medidas de segurança que julgassem oportunas.
Nisto, o jovem João Marcos apareceu no recinto. Cobria-se com um lençol branco e, ao ver-me, correu ao meu encontro, rogando-me que não o denunciasse. Quando lhe perguntei por que motivo, confessou-me, que fugira de casa. Ao ouvir como Jesus e os onze abandonavam a mansão, levantou-se da cama, cobrindo-se a toda a pressa com o que primeiro encontrou: o lençol de linho. E assim chegara ao acampamento. A fidelidade daquele rapaz pelo Galileu encheu-me de admiração. É muito possível que o Mestre notasse imediatamente o ambiente tenso que reinava entre os discípulos, porque os chamou, dizendo-lhes: - Amigos e irmãos, não me resta muito tempo para estar entre vós. Desejaria que nos isolássemos com o fim de pedir a Nosso Pai Celestial a força necessária nesta hora e seguir assim a obra que, em Seu nome, devemos realizar.
Os discípulos e os gregos acompanharam-no então encosta acima até uma plataforma rochosa, em pleno cume do monte das Oliveiras. Uma vez ali, pediu que nos ajoelhássemos à sua volta. Eu continuei de pé, ao mesmo tempo que filmava aquela cena impressionante. O Gigante, banhado pelo luar, levantou os olhos para as estrelas e com voz poderosa exclamou:
- Pai, chegou a minha hora!... Glorifica o Teu filho para que o Filho possa glorificar-Te. Sei que Me deste plena autoridade sobre todas as criaturas do Meu reino e darei a vida eterna a todos aqueles que, pela fé, sejam filhos de Deus. A vida eterna está em que as minhas criaturas te reconheçam como o único e verdadeiro Deus e Pai de todos. Que acreditem Naquele que enviaste ao mundo. Pai, exaltei-te nesta terra e cumpri a ordem que Me deste. Quase terminei a minha efusão nos filhos da nossa própria criação. Só Me resta sacrificar a Minha vida carnal.
- Agora, Pai, glorifica-me com a glória que tinha antes de este mundo existir e recebe-Me uma vez mais à Tua direita.
Jesus fez uma breve pausa, enquanto os seus cabelos começavam a agitar-se por uma brisa sempre mais forte.
- Tenho-Te revelado ante os homens que escolheste no mundo e me deste - prosseguiu. - São Teus, como toda a vida entre as Tuas mãos. Vivi com eles, ensinando-lhes as normas da vida e eles acreditaram. Estes homens sabem que tudo o que tenho vem de Ti e que a encarnação da Minha vida está destinada a dar a conhecer Meu Pai no mundo. Revelei-lhes a Verdade que me deste e eles - meus amigos e meus embaixadores – quiseram sinceramente receber a Tua palavra. Disse-lhes que sou Teu descendente, que Me enviaste a esta terra e que Me dispondo a voltar para ti... Pai, rogo por todos estes homens escolhidos.
- Rogo por eles, não como o faria por toda as pessoas, mas como homens que escolhi para Me representarem depois de ter voltado para ti. Estes homens são Meus. Não posso permanecer mais tempo neste mundo. Vou voltar à obra de que Me encarregaste. É preciso deixar estes companheiros depois de Mim, para que Nos representem e representem o Nosso Reino entre os homens. Pai, preserva a sua fidelidade enquanto Me preparo para abandonar esta vida carnal. Ajuda-os a estar unidos em espírito como Tu e Eu estamos. São meus amigos.
- Durante a minha estada entre eles podia velar e guiá-los, mas agora vou partir. Pai, permanece junto deles até que possamos enviar um novo instrutor que os console e reconforte. Deste-me doze homens e eu conservei todos menos um, que não quis manter a sua comunhão conosco. Estes homens são débeis e fracos, mas sei que posso contar com eles. Submeti-os a provas e sei que Me querem. Embora tenham de padecer muito por Minha culpa, desejo que estejam convictos.
- O mundo pode odiá-los como Me odiou. Mas não peço que os retires do mundo, somente que os livres do mal que existe neste mundo. Santifica-os na Verdade. A Tua palavra é a Verdade. Tal como Me enviaste ao mundo, assim Eu os vou enviar pelo mundo. Por eles vivi entre os homens e consagrei a Minha vida ao teu serviço, com o fim de os inspirar para que purifiquem na Verdade e no Amor que lhes mostrei. Bem sei, Meu Pai que não preciso de Te rogar que olhes por eles depois da Minha partida. E também sei que os amas tanto quanto Eu. Faço isto para que compreendam melhor que o Pai ama os mortais tal como o Filho. Desejo demonstrar fervorosamente aos Meus irmãos terrestres a glória que gozava a Teu lado antes da criação deste mundo que se conhece tão pouco...
- Oh!, Pai justo, porém, eu Te conheço e Te dei a conhecer a estes crentes, que divulgarão o teu nome a outras gerações. Prometo-lhes que estarás perto deles no mundo, da mesma maneira que estiveste comigo.
Levantando os longos braços para o céu, Jesus concluiu:
- Eu sou o pão da vida... Eu sou a água viva... Eu sou a luz do mundo... Eu sou o desejo de todas as idades... Eu sou a porta aberta à salvação eterna... Eu sou a realidade da vida sem fim... Eu sou o bom pastor... Eu sou a caminho da perfeição infinita... Eu sou a ressurreição e a vida... Eu sou o segredo da vida eterna... Eu sou o caminho, a verdade e a vida... Eu sou o Pai infinito dos meus filhos limitados... Eu sou a cepa verdadeira e vós os sarmentos... Eu sou a esperança de todos aqueles que conhecem a verdade vivente.... Eu sou a ponte viva que une um mundo ao outro... Eu sou a união viva entre o tempo e a eternidade... Depois de uns minutos de silêncio, o Galileu pediu aos Seus homens que se levantassem e - um a um - abraçou-os. Quando chegou a mim, os Seus olhos estavam marejados de lágrimas.
Pouco depois, o grupo regressou ao acampamento.
David Zebedeu e João Marcos aproximaram-se de Jesus e tentaram inutilmente convencê-lo a que se afastasse de Jerusalém. A partir daqueles instantes - quase meia-noite – o habitual bom humor do Rabi desapareceu. Com palavras entrecortadas de profunda emoção, o Mestre rogou aos discípulos que fossem dormir. Contrariados, os apóstolos foram-se acomodando na tenda e nos seus lugares habituais de repouso. Mas, enquanto o Nazareno pedia a João, a Tiago e a Pedro que permanecesse um pouco mais com Ele, Simão, o Zelota, dirigiu-se com grande cautela a um dos lados da tenda dos homens, e abriu um grande fardo. Eram espadas!
Os oito apóstolos restantes atenderam ao chamamento do Zelota e guardaram as armas. Todos menos um: Bartolomeu. Este, repudiando o equipamento de combate, exclamou:
- Irmãos meus, o Mestre disse-nos muitas vezes que o Seu reino não é deste mundo e que os Seus discípulos não devem combater com a espada para o estabelecer. Em minha opinião, acredito e penso que o Mestre não precisa que empreguemos armas para O defender. Todos fomos testemunhas do Seu poder e sabemos que pode defender-se dos Seus inimigos se o desejar.
- Se não quiser resistir é porque esta linha de conduta representa o Seu intento para cumprir a vontade do Pai. Pela minha parte rezarei, mas não empunharei a espada.
Ao ouvir Bartolomeu, André devolveu a sua arma. Se não me enganava, naquele momento eram nove os apóstolos que cingiam uma espada. Todos menos Bartolomeu, André e João (ainda que deste último não estivesse muito certo).
Por fim, francamente esgotados, os apóstolos e discípulos retiraram-se, estabelecendo um rigoroso sistema de vigilância, com turnos de dois homens armados às portas do acampamento.
Pelo que pude deduzir o grupo estava persuadido de que a detenção do Mestre pelos chefes dos sacerdotes não seria levada a cabo antes da manhã seguinte. E adormeceram com a intenção de se levantarem muito cedo, preparados para o pior. João, Pedro e Tiago tinham-se sentado em volta da fogueira e esperavam Jesus. Este chamara David Zebedeu, pedindo-lhe o mensageiro mais veloz. Regressou dali a pouco com um tal Jacobo, que desempenhara as funções de correio noturno entre Jerusalém e Betsaida. E o Nazareno disse-lhe:
- Vai imediatamente a casa de Abner, em Filadélfia, e diz-lhe o seguinte: o Mestre envia-te os Seus desejos de paz. Diz-lhe também que chegou a hora em que serei entregue aos meus inimigos e morto...
O emissário empalideceu, mas Jesus continuou sem se alterar:
- Diz-lhe igualmente que ressuscitarei de entre os mortos e que lhe aparecerei antes de regressar para junto de Meu Pai. Então lhe darei instruções sobre o momento em que o novo instrutor virá morar nos vossos corações.
David e eu entreolhamo-nos. Jesus rogou então a Jacobo que repetisse a mensagem e, uma vez satisfeito, despediu-o com estas palavras:
- Não temas. Esta noite, um mensageiro invisível correr a teu lado. Enquanto o Zebedeu preparava a partida do correio, Jesus dirigiu-se aos gregos que acampavam junto da cuba de pedra do lagar e despediu-se deles. Eu permaneci sentado muito perto de Pedro, João e Tiago. Os apóstolos, apesar dos seus esforços para se manterem acordados, começaram a baixar as pálpebras e a cabecear. O mestre regressou para junto da fogueira e, quando se dispunha a afastar-se com os seus íntimos para o interior do olival, David reteve-o uns instantes. Com voz trêmula e os olhos a chorar conseguiu por fim dizer-lhe:
- Mestre, tive uma grande satisfação em trabalhar para ti. Meus irmãos são Teus apóstolos, porém, alegro-me por Te ter servido nas coisas menores. Lamentarei com todo o meu coração a Tua partida... As lágrimas acabaram por rolar-lhe pela cara curtida. E o Galileu, sem poder conter o seu amor por aquele homem prudente e eficaz, agarrou-o pelos ombros, dizendo-lhe:
- David, Meu filho, os outros fizeram o que lhes ordenei. Mas, no teu caso, foi o teu próprio coração que respondeu e serviu com devoção. Tu também virás um dia servir a Meu lado no reino eterno.
E antes de se separar definitivamente do Mestre, David confessou-lhe que dera ordens para que a Sua mãe e a Sua família se dirigissem a Jerusalém. Jesus não pareceu muito surpreendido.
- Um mensageiro comunicou-me - concluiu - que, esta mesma noite, chegaram a Jericó, e que amanhã cedo estarão aqui.
O Nazareno olhou-o e respondeu:
- David, que assim seja.
E, unindo-se aos três apóstolos, que esperavam junto do olival, perdeu-se na escuridão da noite. A grande tragédia estava prestes a começar...
7 DE ABRIL, SEXTA-FEIRA
Um silêncio estranho caíra sobre o acampamento. Eu sabia que aquela não ia ser uma noite como as anteriores, mas, apesar disso, notei no ambiente uma espécie de turbulência. Como se milhares de fantasmas - talvez esses mensageiros invisíveis a que Jesus se referira - pairassem sobre as copas das oliveiras, agitando fracas línguas de fogo, diante das quais eu permanecia. E um calafrio correu-me pelas costas. O acampamento dormia quando, à meia-noite, e uma vez que Jesus e os seus três discípulos tinham desaparecido entre as oliveiras, me levantei, avisando Eliseu de que me dirigia para o extremo norte do jardim. Com um relancear de olhos percorri as tendas, o tanque, os corpos adormecidos dos gregos e, uma vez certo de que tudo estava calmo, encaminhei os meus passos para o muro que limitava o jardim pelo lado oriental e que eu já explorara na minha primeira visita à herdade de Getsémani.
Antes de desaparecer na subida do monte, David Zebedeu anunciara-me que de mútuo acordo com João Marcos, levariam a cabo um turno adicional de vigilância. Ele nas proximidades do cume do monte das Oliveiras - cobrindo assim o flanco oriental do acampamento - e o rapaz na caminho que serpenteava junto à
porta de entrada do jardim, para ir terminar na ponte sobre o barranco do Cédron. Desta forma, se a guarda do Templo tentasse assaltar o refúgio do Nazareno - pelo caminho mais curto, o de Cédron, ou pelo cimo do monte das Oliveiras João,
Marcos ou o Zebedeu poderiam dar alerta. Mas os acontecimentos iam desenrolar-se de outra forma.
Lentamente, procurando ocultar-me entre o arvoredo, fui avançando para a gruta, sem perder contato, em momento algum, com o parapeito de pedra. De acordo com os objetivos de Cavalo de Tróia, a minha observação daquilo a que os cristãos chamavam a oração do jardim devia efetuar-se sem que os seus protagonistas tivessem conhecimento ou suspeitassem da minha presença. Para isso, tinha de saber com precisão em que lugar permaneceriam os três apóstolos e onde pensava orar o Mestre. Se como supunha, Jesus, elegia as proximidades da gruta, o meu esconderijo seria precisamente aquela parede que cercava a propriedade de Simão, o Leproso. Eliseu tinha razão. Tal como me avisara horas antes, a forte perturbação nas altas camadas da atmosfera - a leste da Palestina - começava a notar-se sobre Jerusalém. Um vento cada vez mais insistente e tempestuoso agitava as árvores, assobiando como um lúgubre presságio por entre as ramadas retorcidas e as raízes das oliveiras. A canafístula que crescia junto da caverna castanholava cada vez com mais força, ajudando-me a orientar-me. Ao alcançar o fundo do jardim descobri imediatamente a figura do Galileu, de pé e de cabeça baixa, quase apoiada no peito. Encontrava-se, efetivamente, a quatro ou cinco metros da entrada da gruta, a meio da reduzida clareira entre o olival e o rochedo. Aos pés do Mestre uma daquelas camadas de calcário que a lua cheia iluminava. Sem perder um minuto, saltei para o outro lado do muro e, arrastando-me sobre as ervas, rodeei a caverna, postando-me atrás da enorme canafístula. Dali – perfeitamente oculto - pude acompanhar, passo a passo, todos os movimentos e palavras de Jesus de Nazaré.
A claridade da Lua permitia-me ver a figura do Mestre facilmente. No entanto, precisei de habituar os olhos à escuridão que dominava a massa das oliveiras para descobrir, por fim, as silhuetas de Pedro, João e Tiago. Os discípulos tinham-se sentado na terra, acomodando-se com os seus mantos entre as últimas árvores, a pouco mais de uma trintena de passos do ponto onde o Nazareno permanecia. Daquela distância, e apesar dos meus esforços, não pude confirmar se se encontravam adormecidos ou não. Passados quinze ou trinta minutos, deduzi que pelo menos dois deles deviam ter mergulhado num profundo sono, a julgar pelas suas posições - totalmente deitados no solo - e pelos inconfundíveis roncos de Pedro. Um terceiro, no entanto, estava encostado ao tronco de uma das oliveiras e eu não podia jurar que estivesse dormindo.
De repente, quando me encontrava atarefado a preparar a vara de Moisés, um rangido de ramos sobressaltou-me. Voltei-me e, a uns dez ou quinze metros, os meus olhos ficaram presos a um vulto branco que deslizava por entre os arbustos, aproximando-se. Peguei no cajado em atitude defensiva e, com os joelhos por terra, dispus-me a repelir o ataque daquilo que, num primeiro instante, identifiquei como um estranho animal. Mas, quando aquela coisa estava quase ao alcance da minha vara, parou. Era o jovem João Marcos!
Respirei fundo, fazendo-lhe um sinal para que continuasse agachado. O rapaz chegou junto de mim, explicando-me ao ouvido que tinha abandonado a sua guarda por querer estar perto do Mestre. Não me atrevi a sugerir-lhe que regressasse ao caminho mas, dadas as circunstâncias, pedi-lhe que ficasse comigo e no mais absoluto silêncio. Ao ver Jesus em atitude de oração, Marcos entendeu e fez-me um gesto de aprovação. A partir daqueles momentos, e embora procurasse não perder de vista o impetuoso adolescente, a minha atenção concentrou-se no Gigante da Galiléia.
E nisto estava quando, subitamente, Eliseu - com grande excitação abriu a ligação auditiva, informando-me de algo que me deixou atônito. O radar do módulo estava recebendo informação de um objeto que voava sobre a área!
- Mas, não é possível! - respondi-lhe, metendo praticamente a cabeça entre os joelhos, de modo a que o rapaz não pudesse ouvir-me. Jasão, juro-te que manobrei a antena e o visor de aproximação do radar (1) está reconhecendo um eco metálico. Aí por cima, a uns seis mil pés, alguma coisa está se movendo... Sim, agora vejo melhor... Encontra-se em trezentos e sessenta-trinta milhas. Santo Deus! Parou... Levantei os olhos para o firmamento e na direção que Eliseu transmitira, mas nada observei de anormal. A forte luminosidade da Lua, sempre mais alta, dificultava a visão das estrelas.
O meu companheiro no berço, tão confuso e perplexo como eu, permaneceu com os cinco sentidos atentos àquele insólito visitante, mas o objeto imobilizara-se e assim permaneceria durante longo tempo.
Ainda não me recompusera da surpresa provocada pela aproximação daquele misterioso objeto voador quando vi como Jesus desfalecia, cravando os joelhos na terra. A pancada seca contra o solo fez estremecer João Marcos. Nem eu nem o rapaz tínhamos visto o Galileu com um semblante tão pálido e abatido.
Durante alguns minutos, permaneceu com o queixo entre as pregas do manto que lhe cobria os ombros e o peito. Aquela profunda inclinação da cabeça não me deixava ver com clareza o rosto, embora quase tivesse a certeza de que estava com os olhos fechados. Os seus braços, imóveis e prostrados ao longo do corpo, acentuavam mais ainda o repentino abatimento.
* Nos finais de 1972 e graças a um esplêndido serviço de espionagem norte-americana, Cavalo de Tróia obtivera os planos do radar Oun Dish, que seria utilizado meses depois pelos Egípcios na Guerra do Yom Kippur (Outubro de 1973), e cuja freqüência era de dezesseis GHz. Quer dizer, dezesseis mil Mc/s. Este complexo radar tinha sido colocado a bordo do módulo.
2 A localização do objeto era de trezentos e sessenta graus (a norte) e trinta milhas de distância do ponto onde se encontrava pousado o módulo. (N. do M.)
Depois, muito lentamente, foi elevando a cabeça, até deixar os olhos fitos no céu. O vento começara a emaranhar-lhe os cabelos. Levantando os braços ao alto, exclamou em voz apagada e suplicante:
-Abb !... Abb !...
Fiquei desorientado. Aquela palavra aramaica - que eu ouvira mais de uma vez, quando as crianças se dirigiam aos pais - queria significar papai. Era o familiar e conhecido chamamento carinhoso que por certo, os Judeus nunca empregavam quando se dirigiam a Deus. Porque o utilizava Jesus?
Os Seus olhos igualmente me impressionaram: o brilho habitual embaciara-se. Pareciam agora afundados e ensombrados por uma tristeza que, se não tivesse conhecido e experimentado a têmpera daquele Homem, juraria que se encontrava muito perto do medo.
- Abb ! - murmurou de novo. - Vim a este mundo para cumprir a Tua vontade e assim fiz... Sei que chegou a hora de sacrificar a Minha vida carnal... Não recuso, mas gostaria de saber se é Tua vontade que Tu bebas este cálice...
Aquelas palavras ecoaram no jardim como um timbale fúnebre.
Não podia acreditar nos meus ouvidos. Jesus estava atemorizado?
Dá-Me a certeza - prosseguiu - de que com a Minha morte Te satisfaço, como o fiz em vida.
As Suas mãos, abertas, tensas e implorantes, foram baixando pouco a pouco. Mas o rosto - fracamente iluminado pelo luar - não se moveu. Sem saber porquê, também eu olhei para a legião de estrelas e astros, esperando que chegasse algum sinal.
Nesse instante, e como se tivesse lido os meus pensamentos, o módulo restabeleceu a ligação e Eliseu gritou:
- Jasão, Jasão... Está se movendo outra vez. Esse objeto está deslocando-se... Não posso acreditar!... Mudou de rumo; está seguindo agora a radial duzentos e quarenta... Jasão, vem pra cá! Está a ouvindo, Jasão?
- Ouço cinco por cinco - respondi eu como pude. - Mas não será algum meteoro? Eliseu quase me mandou para o inferno com aquela pergunta, evidentemente estúpida.
- Essa coisa, Jasão manteve-se estacionária durante mais de vinte minutos... Agora move-se devagar.
Se aquele inexplicável objeto se encontrava ainda a umas trinta milhas da nossa posição, era ridículo que eu continuasse a sondar o espaço. Procurei acalmar o meu irmão no módulo, pedindo-lhe que me mantivesse devidamente informado das evoluções do eco no radar. Entretanto, o Mestre tinha-se levantado e, dado meia volta, caminhou para os discípulos. Dada a distância, não pude registrar as Suas palavras, mas observei, como se inclinava para os ombros deles, tocando-lhes com a mão esquerda. Os dois que estavam deitados despertaram e vi como se levantavam parcialmente.
* O objeto, que tinha seguido uma trajetória norte, começava a deslocar-se na direção oés-sudoeste. Justamente para a zona de Jerusalém. (N. do M.)
Quer dizer, tinha permanecido estático ou imóvel. (N. do I.)
Dali a pouco, Jesus voltou para a clareira. Os três apóstolos observaram durante breves minutos, acabando por se deitarem novamente. À medida que se aproximava, percebi algo estranho. O Gigante cambaleava. Os seus passos eram vacilantes, como se estivesse prestes a cair...
E, mal chegou junto da laje de pedra, caiu de bruços. Por um instante, pensei que tinha desmaiado. Parte do seu corpo ficara sobre a superfície rochosa, de cara contra o chão, imóvel. João Marcos levantou-se, disposto a socorrê-lo. Mas, segurando-o pelo braço, fiz-lhe ver que não era conveniente incomodá-lo. Calculo que se o Galileu não se mexesse o fogoso João Marcos não teria seguido os meus conselhos e correria em auxilio do Mestre. Mas Jesus estava plenamente consciente e o jovem tranqüilizou-se.
Como se uma força invisível tivesse deixado cair sobre ele um fardo de cem quilos, assim o Mestre se foi levantando. Muito lentamente, sempre com a cabeça descaída, o Galileu acabou por se sentar nos calcanhares. E assim ficou algum tempo, de joelhos, num silêncio angustiado, e sem levantar o rosto. Inconscientemente, João Marcos e eu entreolhamo-nos.
Que estava se passando? A que era devido aquele súbito abatimento? Jesus ergueu o rosto para as estrelas e, gemendo, chamou novamente por Seu Pai. Os pômulos e o nariz pareciam emagrecidos. A expressão do rosto impressionou-me. Havia uma mistura de angústia e pavor. Os lábios entreabertos começaram a tremer e, quase imediatamente, todo o seu corpo foi agitado por espasmos. Eram convulsões breves, muito rápidas e quase imperceptíveis. Como se um vento gelado lhe açoitasse cada célula. O Nazareno cruzou os braços sobre o tórax, fazendo força com as mãos nas costelas, como tentando dominar aquelas
convulsões . E, de repente, a testa, pescoço e fontes umedeceram-se com um suor frio. Os tremores tornaram-se então mais intensos e prolongados e Jesus vergou pela cintura, tocando a superfície da pedra com a testa.
- Abb !... Abb !...
Foi aquela a única palavra que conseguiu pronunciar. Contudo, mais que um chamamento, era um grito de angústia e de terror. Agora tenho a certeza que, naqueles momentos duros e cruciais, o Galileu deve ter experimentado um pungente e indescritível sentimento de solidão , de horror e, quem sabe, de medo perante o que o desconhecido lhe reservava.
Continuou a tiritar e, de repente, num arranque, lançou-se para trás , levando as mãos ao rosto.
Ao vê-lo, fiquei petrificado...
O rosto, testa e pescoço, bem como as palmas das mãos, estavam cobertos de vermelho. A fina película inicial de suor convertera-se em sangue. .
João Marcos ocultou o rosto nas mãos.
Do couro cabeludo, grandes gotas ensangüentadas foram resvalando sobre aquele extravasamento, deslizando pelos cantos internos dos olhos e rodando depois pelas faces até se perderem no bigode e na barba. Algumas grandes gotas
permaneciam por segundos nas comissuras da boca, convertendo-as em fios de sangue que escorriam depois pelos músculos do pescoço. Num daqueles tremores, Jesus inclinou um pouco a cabeça e os reflexos da lua mostraram o Seu cabelo empapado de sangue.
Meio hipnotizado por aquela súbita reação do organismo de Jesus quase me esqueci de utilizar a vara de Moisés.
Precipitadamente, coloquei-a de modo a que pudesse filmar a cena e, ao mesmo tempo, iniciar uma exploração da pele e de alguns órgãos internos de Jesus, mediante o rastreio ultra-sônico. (Como já mencionei, o cajado, encerrava, entre outros dispositivos, um equipamento miniaturizado, capaz de emitir este tipo de ondas mecânicas ou ultra-sons. A cabeça emissora, disposta na parte superior da vara - a um metro e setenta da base - fora condicionada para captar as ondas refletidas, ampliando-as proporcionalmente e acumulando a informação na memória de titânio do computador nuclear. Uma vez no módulo, os ultra-sons - previamente codificados - podiam ser convertidos em imagens, procedendo-se à análise dos órgãos e das reações fisiológicas do Mestre, tentando assim encontrar explicações.)1
* Dado não podermos tocar em Jesus, Cavalo de Tróia colocou dentro da vara de Moisés, um complexo conjunto de equipamentos miniaturizados, com o fim de explorar o corpo do Mestre, tanto no simples fenômeno do suor sanguinolento do jardim de Getsémani como na flagelação e nas longas horas da crucifixão.
Estes sistemas - que irei descrever - consistiam, fundamentalmente num equipamento de teletermografia e nos já referidos ultra-sons. Este último foi selecionado pelos peritos de Cavalo de Tróia pela sua natureza inofensiva e pelas suas características, que o indicavam para a exploração, e posterior conversão em imagens, de órgãos internos tão importantes como o pâncreas, a bexiga o fígado e o abdômen, bem como o controle da corrente sanguínea através das grandes artérias e vasos intermédios, coração, olhos e tecidos moles em geral. Cavalo de Tróia, baseando-se no chamado efeito piezoelétrico, descrito pelos Curie e segundo o qual a compressão da superfície de um cristal de quartzo cria nele uma corrente (ultra-sons), dispôs, na cabeça emissora, de uma placa de cristal piezoelétrico, formado por titanato de bário.
Um gerador de alta freqüência alimentava a referida placa, produzindo assim as ondas ultra-sônicas (numa freqüência que oscilava entre os dezesseis mil e os 10 Hertz). Estes ultra-sons - com uma velocidade de propagação no corpo humano de mil a mil e seiscentos metros por segundo, à exceção dos ossos - permitem, como disse, uma excelente exploração e posterior visualização dos órgãos desejados, conseguindo-se mesmo, captar o som cardíaco e o fluxo sanguíneo, através de um sistema de adaptação denominado efeito Doppler. Com intensidades que oscilam entre os 2,5 e os 2,8 miliwatts por centímetro quadrado e com freqüências aproximadas dos 2,25 megaciclos, o dispositivo de ultra-sons transforma as ondas iniciais noutras audíveis, mediante uma complexa rede de amplificadores, controladores de sensibilidade, moduladores e filtros de bandas.
Com a finalidade de solucionar o difícil problema do ar - inimigo vital dos ultra-sons -, e já que as medições e rastreios só podiam efetuar-se a uma certa distância de Jesus, os especialistas do Projeto conceberam um sistema revolucionário, capaz de encarcerar e guiar os ultra-sons através de um finíssimo cilindro, de luz laser de baixa energia, cujo fluxo de elétrons livres ficava congelado no instante da sua emissão. O processo para congelar, o laser, dando lugar ao que poderíamos qualificar como luz sólida, - cujas aplicações, no futuro, são inimagináveis - não o posso revelar, por agora. Naturalmente, ao conservar um comprimento de onda superior a oito mil Armstrong (0,8 micras) o tubo laser continuava a desfrutar da propriedade essencial do infravermelho, que só podia ser visto mediante as lentes especiais de contato. O orifício comum de saída e projeção destes delicados sistemas fora igualmente camuflado com uma faixa de tinta preta. E, no bordo da faixa, Cavalo de Tróia colocara mais dois pregos de cabeça de cobre. Apertando cada um deles, punha-se automaticamente em funcionamento o mecanismo correspondente ou o de ultra-sons ou o de teletermografia.
Para que pudesse orientar com precisão cada um destes fluxos a missão dotara-me com lentes de contato a que chamávamos crótalos. Estas lentes especiais - de tipo duro – foram fabricadas com um produto de uma qualidade muito superior ao que normalmente utilizam os laboratórios de ótica e que, dado o seu caráter secreto não posso revelar (2). O ideal, naturalmente, teria sido a utilização de óculos de visão noturna, com que pudesse seguir a trajetória do laser infravermelho bem como as alterações de cores no corpo do Nazareno 3, conseqüência das variações da temperatura corporal e das diferentes alterações fisiológicas provocadas pelas torturas. Mas, obviamente, tal não era possível e Cavalo de Tróia desenhara estas lentes, totalmente transparentes que, uma vez ajustadas aos olhos, tornavam realizável o acompanhamento sem levantar perigosas estranhezas entre as pessoas daquela época. Procurando virar as costas a João Marcos, lancei mão ao pequeno estojo que continha os crótalos, adaptando-os aos meus olhos. Embora as lentes tivessem sido aperfeiçoadas com sais monoiónicos 4 capazes de permitir aceitável circulação da lágrima no olho e excelente oxigenação que me fornecera Cavalo de Tróia. Desta forma, as ondas ultra-sônicas podiam deslizar pelo interior da tubagem formada pela luz sólida ou coerente, podendo ser lançada a distâncias que oscilavam entre os cinco e vinte e cinco metros. (N do M.)
* Precisamente pela sua relativa semelhança com as fossas infravermelhas, destas serpentes, que lhes permitem caçar, servindo-se das emissões de radiação infravermelha dos corpos das presas.
2 Geralmente, as lentes de contato do tipo duro baseiam-se num produto denominado polimetil-metacrilato (PMMA), que na realidade constitui a base fundamental da lente.
3 Como se sabe, qualquer corpo cuja temperatura seja superior ao zero absoluto (menos 273 graus centígrados) emite energia IV ou infravermelha. Esta emissão de raios infravermelhos - invisíveis para o olho humano - é provocada pelas oscilações atômicas no interior das moléculas e, conseqüentemente, encontra-se estreitamente ligada à temperatura de cada corpo. Pois bem, o olho do homem, como está demonstrado, só vê uma pequena parcela do espectro electromagnético da luz: a que vai dos quatrocentos aos setecentos nanômetros. Por cima desta última aparecem as gamas do infravermelho. Mas, mediante o uso de óculos especiais, adequados à emissão do infravermelho, o homem pode ver também nesta freqüência. (Por sua vez, esta região do infravermelho está subdividida em infravermelho próximo, médio, distante e extremo.) Os sensores IV ou infravermelho das serpentes americanas - crótalos - são formados precisamente por uma membrana dotada de inúmeros terminais nervosos, que lhes permitem detectar variações de temperatura da ordem de um milésimo de grau. (N. do M.)
Os especialistas do Projeto tinham conseguido estas quase milagrosas lentes de contato infravermelhas juntando uma série de bandas periféricas à superfície básica monocurva, dotadas de centenas de microcélulas que não eram mais que outros tantos filtros Wratter 89 B que só deixavam passar a radiação infravermelha. O peso específico conseguido foi de 1,19. A sua força flexional (ppi) situava-se entre dez mil e quinze mil e a dureza Rockwell em M85-M105.
da córnea, o general Curtiss avisara-me repetidamente que não abusasse, limitando o seu uso a períodos máximos de 30 ou 40 minutos. Com rapidez apertei o prego que acionava a emissão de ultra-sons 2. O espetáculo que a meus olhos se ofereceu (embora, na realidade, devesse dizer ao meu cérebro) foi quase dantesco: o rosto, pescoço e mãos de Jesus tornaram-se de um tom azul-esverdeado, conseqüência da baixa da temperatura corporal nas referidas zonas (provavelmente, pelo efeito refrigerante do suor e do sangue que saíam dos poros). A túnica emitia um branco muito mais intenso, enquanto o manto tinha uma tonalidade mais escura, quase negra. A folhagem verde do olival explodiu num vermelho indescritível... Ao pressionar a cabeça do prego para a sua segunda posição - a mais funda -, da parte superior da vara de Moisés surgiu um finíssimo raio de luz avermelhada: era o laser infravermelho. Sem perder um segundo dirigi-o para o rosto, pescoço, cabelos e mãos do Nazareno. Como é evidente, nem João Marcos nem ninguém que tivesse podido presenciar aquela cena teria visto ou ouvido alguma coisa. Como já disse, o laser trabalhava na freqüência do infravermelho e, portanto, era invisível ao olho humano. Depois de ter percorrido minuciosamente todas as áreas ensangüentadas, alterei a freqüência dos ultra-sons (fazendo voltar o prego para a sua primeira posição), centrando o feixe de luz na parte superior do ventre do Rabi. Desta forma, explorando o pâncreas talvez obtivéssemos uma explicação satisfatória sobre a origem daquele suor na forma de sangue. (Quando, no nosso regresso desta primeira grande viagem, Cavalo de Tróia pôde analisar todas as imagens por estes processos, os especialistas em bioquímica e hematologia chegaram a várias e interessantes conclusões. O suor ensangüentado ou hemato-hidrose fora provocado por um agudo stress. O Nazareno - tal como eu pudera apreciar - viu-se num profundo abatimento, motivado, por uma explosiva mistura de angústia, solidão , tristeza e, talvez, temor perante as duríssimas provas que o esperavam. Esta violenta tensão emocional segundo os especialistas, conduzira à libertação de determinados elementos existentes no pâncreas 3, que forçaram a ruptura dos capilares, encharcando as glândulas sudoríparas. Uma vez rasgados os poros subcutâneos, o sangue fluiu para o exterior, misturado com o suor. O fenômeno - tão espantoso quanto raro - é, no entanto, perfeitamente possível do ponto de vista médico. O evangelista Lucas, neste caso, estava certo. (Pierre Benoit conta numa das suas obras como, em 1914, um soldado que ia ser levado ao pelotão de fuzilamento suou sangue, em conseqüência do pavor, que não pôde dominar, provocado por aquela angustiante situação. )
* Ainda que remota, a possibilidade de tropeçar com uma fonte energética natural de grande intensidade (caso de ter olhado para o Sol), poderia provocar graves lesões nos meus olhos. E ainda que nada disto sucedesse, o contato direto da córnea com os crótalos não aconselhava o seu uso excessivo.
2 No caso dos ultra-sons, a cabeça de cobre - de cor branca - podia adotar duas posições perfeitamente diferenciadas: a primeira, para ativar o lançamento de ondas com uma freqüência de 3,5 MHz (Suficiente para explorar órgãos internos) e a segunda de 7,5 a 10 MHz (para o rastreio da superfície e tecidos moles). (N. do M.)
3 Embora de início se pensasse que a hemato-hidrose, fora provocada por um excesso de histamina, libertada pelo sistema nervoso em conseqüência da grande tensão emocional, e lançada na corrente sanguínea, rompendo assim os capilares, as investigações sobre o pâncreas inclinaram os especialistas para a hipótese da chamada fibrinólise, que consiste na ativação patológica de um mecanismo normal. Um súbito aumento de plasmina (lisoquinase) pode originar o derramamento generalizado de sangue, diluindo o cimento endotelial, o que daria como resultado a passagem do sangue para o exterior. (N. do M.)
Embora este derramamento ensangüentado, ou extravasamento - que não era hemorragia -, no Filho do Homem não representasse uma perda importante de sangue, as informações de Cavalo de Tróia consideraram que deixou a pele de Jesus num alarmante estado de fragilidade. Esta circunstância seria determinante no sangradouro, mais que suplício, a que seria submetido poucas horas depois. Refiro-me, naturalmente, ao castigo dos açoites. A ruptura generalizada da rede dos capilares converteria a flagelação num trágico banho de sangue... Uma das minhas preocupações naqueles primeiros momentos de grande angústia foi o ritmo cardíaco e arterial de Jesus. Ao dirigir os ultra-sons para o coração o efeito Doppler registrou o ritmo de 135 pulsações por minuto. Quanto a tensão arterial, o número elevava-se a 210 (O ritmo cardíaco normal do Nazareno foi calculado em sessenta pulsações por minuto e a sua tensão arterial era de cento e trinta máxima e de oitenta mínima. Aquilo significava, evidentemente, uma profunda alteração orgânica. Os especialistas de Cavalo de Tróia avaliaram igualmente que a descarga prévia de adrenalina na corrente sanguínea daquele Homem - à vista da resistência arterial periférica - podia ser da ordem de dez microgramas por quilo e por minuto.)
Pouco a pouco, ao cabo de dez ou quinze minutos, conforme o Rabi ia serenando o espírito, os ritmos cardíaco e arterial foram recuperando a normalidade. No entanto, aquela dura prova - na opinião dos especialistas em nutrição - significou, ainda, o gasto total das setecentas e cinqüenta calorias fornecidas ao organismo na ceia. O stress deve ter atingido um consumo de calorias sensivelmente superior a essa quantidade pelo que o Nazareno, na opinião dos médicos de Cavalo de Tróia, teve de recorrer às suas reservas naturais, possivelmente a partir da uma ou das duas da madrugada de sexta-feira. (Com aquele suporte energético, e pressupondo que Jesus se tivesse retirado para repousar imediatamente, o organismo teria podido agüentar até às oito da manhã, aproximadamente. Mas, com a crise iniciada no jardim de Getsémani, os especialistas, consideraram que o organismo do Filho do Homem teve de iniciar uma lipólise, ou dissolução da gordura do tecido adiposo, com o fim de administrar ácido gordo e sobreviver. As reservas de glicogênio, ou açúcar concentrado, se esgotariam em questão de horas, e a natureza do Galileu não teria alternativa senão utilizar, às suas gorduras.)
Do ponto de vista puramente médico, a situação do Mestre começava a ficar delicada. Quinze ou vinte minutos depois de iniciado aquele primeiro exame base de ultra-sons - desliguei o laser, e retirei os crótalos. João Marcos continuava com o rosto escondido nas mãos, negando-se a olhar para o seu Mestre. Passei-lhe o braço pelos ombros e afaguei-lhe a cabeça. Pouco a pouco, foi descobrindo o rosto.
Estava chorando. Na clareira, o Galileu fora baixando as mãos. As convulsões tinham cessado e também o fluxo de sangue. Alguns dos fios de sangue, maiores que os outros, tinham coagulado. Se o Mestre não tivesse a precaução de se lavar, não tardaria, que o sangue seco transformasse o Seu rosto
perfeito numa máscara.
Jesus de novo ergueu os olhos para o firmamento e, com voz mais serena, repetiu, praticamente, a sua primeira oração:
- Pai... sei muito bem que é possível evitar este cálice. Tudo é possível para Ti... Porém, Eu vim para cumprir a Tua vontade e, não obstante ser tão amargo, beberei, se assim é o Teu desejo...
Entre esta segunda oração (não sei se a deveria classificar assim) e a primeira, observei uma mudança notável, tanto no estado emocional do Mestre como na Sua atitude perante os acontecimentos já iminentes. Enquanto nas suas primeiras palavras havia dúvida, nesta altura o Galileu parecia ter ultrapassado parte da inquietação, mostrando-se, definitivamente, decidido a assumir a Sua sorte. É possível que esta transformação mental fosse responsável, em boa medida, pela progressiva serenidade. Porém, tudo isto, naturalmente, são apenas apreciações muito subjetivas.
O caso é que, absorto nas minhas primeiras verificações médicas e suspenso das palavras de Jesus, quase tinha esquecido de Eliseu e da aproximação daquele enigmático objeto. Mas o meu companheiro não tardou em mo recordar:
- Atenção, Jasão... Aquela coisa abandona o estacionário e move-se de novo... Com todos os...
A transmissão do meu companheiro interrompeu-se durante breves segundos. Por fim, Eliseu - muito agitado - continuou:
- Caiu como... Jasão, aquela bugiganga desceu ao nível trinta num segundo. Não pode ser... Se continua descendo, vou perdê-lo... Não! De momento, mantém-se... Mas dirige-se para nós.
Unindo os lábios ao tronco da canafístula perguntei:
- Ouvi trinta...
- Afirmativo - respondeu Eliseu. - É trinta... E continua a aproximar-se na radial cem (2)... O radar calcula a sua posição em dez milhas. Se não mudar de rumo, depressa você o verá...
Mas, por mais que olhasse não consegui distingui-lo. Foi então, ao levantar o olhar para as estrelas, que notei outro estranho fenômeno: a ramagem da árvore frondosa atrás da qual me ocultava ficara subitamente imóvel. O vento tinha parado.
Também não notei movimento algum nas copas das oliveiras nem no mato que nos rodeava. O cabelo de Jesus estava igualmente em repouso. Um tanto alarmado, interroguei Eliseu sobre velocidade e direção do vento...
1 Nível trinta: três mil pés (cerca de mil metros).
2 Radial Cem: o objeto aproximava-se com rumo de cem graus (aproximadamente direção és-sudeste).
- A quarenta mil pés, cento e vinte graus-cinquenta (1) - respondeu o meu irmão. - Mas, espera... Ao nível dez desapareceu... Não compreendo... De repente, da minha esquerda com rumo leste, aproximadamente, distingui um ponto de luz que se deslocava por cima do cume do monte das Oliveiras. Vinha direito à nossa posição e com uma trajetória que, em princípio, me pareceu totalmente horizontal ao solo.
Atônito e meio a gaguejar, carreguei no meu ouvido direito:
- Eliseu... Eu estou vendo... Pelas nove, da minha posição(2)... Traz rumo leste... Mas, com todos os diabos, que é aquilo? A resposta do módulo serviria para confirmar que não era vítima de uma alucinação...
- Afirmativo - exclamou Eliseu, tão desconcertado como eu. O visor de altura continua a detectá-lo ao nível 10... Acaba agora de sobrevoar o berço... Estou vendo-o...
Velocidade? É inacreditável, não chega às sessenta milhas por
hora... Mas, o que é isso?
A comunicação voltou a interromper-se. Foram segundos eternos. Entretanto, aquela luz atingira a nossa vertical. E parou:
- Jasão – apareceu por fim o meu companheiro - Jasão, está me ouvindo?
- Afirmativo - apressei-me a responder-lhe. – Ele está cima das nossas cabeças...
- Jasão, alguma coisa está acontecendo com o radar. Aquela coisa está a bloqueando 4... Nota-se descida de nível?
- Negativo - respondi, sem perder de vista a luz – Parece continuar estacionado.
Ainda não acabara de transmitir estas palavras a Eliseu quando, em décimos de segundo, a luz efetuou uma queda livre, imobilizando-se talvez a cinqüenta ou cem metros por cima da clareira. Foi tudo tão vertiginoso que não tive tempo para nada. Fiquei paralisado. Como eu, João Marcos e - suponho – todos que se encontravam à nossa volta.
Eu continuava absolutamente consciente, via e escutava, mas não conseguia mexer um músculo. As minhas pernas não obedeciam aos impulsos do cérebro e da vontade. Era inútil tentar forçá-los. A proximidade daquela luz circular, de um branco acima do da soldadura autógena, e poderosíssima, imobilizava-nos. Durante os segundos que aquilo durou, pude ouvir, sim, a voz do meu companheiro no módulo, que - extremamente preocupado - não fazia mais do que chamar-me...
Mas, apesar dos meus esforços, não era capaz de articular palavra.
* Naquela altura o vento tinha a direção de cento e vinte graus (sudeste) e cerca de cinqüenta nós de velocidade (aproximadamente cem quilômetros por hora). (N. do M.)
2 Na terminologia aeronáutica, à esquerda do observador, considerando sempre as doze horas de um relógio como o ponto frontal de observação. As três, seria, por exemplo, à direita.
Quase ao mesmo tempo que aquela massa luminosa - de mais de cinqüenta metros de diâmetro - parava sobre o local, uma espécie de cilindro luminoso partiu do centro do disco, iluminando Jesus, as lajes de pedra e o terreno, num raio aproximado de cinco ou seis metros. O Mestre, com o rosto para o alto, não parecia alarmado. E continuou de joelhos...
A minha confusão não tinha limites. Como era possível que o Nazareno não se sentisse tão aturdido e atemorizado como eu?
Aquele medo que me invadia era partilhado pelo meu jovem companheiro, a julgar pela posição em que ficara. A fulminante descida da luz fizera que levantasse os braços para cima da cabeça, num movimento instintivo de proteção. E assim continuava, com o corpo encolhido e o rosto voltado para a silenciosa luz... Não consigo entender como chegou ali, mas, quase no mesmo instante que o cilindro de luz branca tocou na clareira, uma figura humana - assim me pareceu pelo menos - surgiu sobre a laje de pedra, aproximando-se imediatamente do Rabi. Estava de costas para mim e, naturalmente, apesar da luz ofuscante que inundava o lugar, a sua estrutura física tinha de ser sólida e consistente, e a prova é que ao chegar próximo ao Mestre, o escondeu com o corpo.
O pavor, possivelmente, tornou ainda mais agudos os escassos sentidos que continuava a controlar. E toda a minha atenção ficou polarizada na figura daquele ser. Era muito alto. Muito mais que Jesus. Possivelmente, ia além dos dois metros. Não se vestia como nós. Pelo contrário, a sua indumentária lembrou-me a dos pilotos de combate da USAF, embora com um corte muito mais justo ao corpo e brilho metalizado intenso. (Ainda que esta sensação pudesse ser devida à claridade reinante.) O vestuário parecia ser feito de uma só peça, com um cinto relativamente largo e do mesmo tom - semelhante ao do alumínio - do resto do traje. As calças (isso chamou-me muito a atenção) estavam enfiadas dentro das botas de meio cano, douradas. Quanto à cabeça, só consegui ver a zona occipital e a nuca. Tinha cabelo branco, liso e abundante, que lhe caía até aos ombros. Não havia dúvida de que se tratava de um indivíduo musculoso, de costas muito largas. Embora o silêncio fosse total, não consegui ouvir palavra alguma. Ignoro se houve diálogo. Tudo o que pude perceber foi o movimento do braço direito daquele ser, dirigido para Jesus, o qual, provavelmente devia continuar de joelhos... Se não fosse Eliseu, também não teria sido capaz de contar o tempo decorrido. Segundo o meu companheiro, aquele lapso - em que a ligação auditiva com o módulo ficou em branco - durou entre quatro e cinco minutos, aproximadamente.
Ao fim deste tempo, a figura daquele ser e o cilindro luminoso extinguiram-se instantaneamente. Não houve - ou, pelo menos, não pude perceber - elevação do ser para o disco luminoso. E também não o vi afastar-se ou desaparecer no olival... Pura e simplesmente, não tenho qualquer explicação. Em seguida, a luz oscilou suavemente, elevando-se na vertical, com uma aceleração que me deu vertigens. Num abrir e fechar de olhos (partindo do princípio que me era possível pestanejar), o objeto converteu-se num ponto insignificante, perdendo-se no infinito. Quase imediatamente, tanto João Marcos como eu recuperamos a mobilidade. E o vento voltou a soprar com força por entre as ramadas das árvores, enquanto as cabras guardadas na gruta baliam em lamentos. ..
- Jasão... Está recebendo... ? Jasão! Pelo amor de Deus...Responda...
A voz de Eliseu continuava a insistir. Inspirei com toda a força, tentando acalmar os nervos.
- Afirmativo... - respondi, com o pouco de voz que me restava. - Roger... Até que enfim!... Jasão, você está bem?... O que aconteceu?
Tranqüilizei como pude o meu companheiro, dizendo-lhe que tentaria explicar mais tarde. A verdade é que a minha confusão tinha aumentado. Por um instante pensei que fora tudo um pesadelo. Mas não. Ao olhar o Mestre, a minha perplexidade aumentou, a película ensangüentada e os regos de sangue que lhe enchiam o rosto, pescoço e mãos tinham desaparecido! O semblante continuava pálido e macilento, mas não apresentava sinais do recente fenômeno da hemato-hidrose.
Era impossível que Jesus tivesse tido tempo de ir até algum dos recipientes de água do acampamento e proceder à lavagem do rosto, pescoço e mãos. Além disso, se assim tivesse acontecido eu o teria visto afastar-se e, naturalmente, voltar à rocha.
Pelo contrário, tenho certeza - certeza absoluta - de que o Mestre não abandonara em momento algum a sua posição, ajoelhado, na clareira.
Incompreensivelmente, João Marcos, continuava escondido atrás do muro de pedra, como se nada tivesse acontecido. Mais tarde, quando o interroguei quanto ao que se passara naquela noite no jardim, o rapaz respondeu afirmativamente:
- Sim - disse sem dar excessiva importância, e como se tivesse sido testemunha de outros acontecimentos semelhantes -, o Pai mandou um anjo... Claro que o vi...
O Galileu, muito mais sereno, levantou novamente o olhar para os céus e sorriu. Depois levantou-se e, com passada firme, dirigiu-se para o olival. Não sei como mas a súbita presença daquele anjo, astronauta, fantasma, ou seja que fosse, influíra decisivamente no ânimo do Filho do Homem. A expressão do evangelista - e o anjo o confortou - não podia ser mais apropriada. O Nazareno devia ter encontrado os Seus discípulos novamente adormecidos. Depois de gesticular com eles voltou atrás, ajoelhando-se pela terceira vez junto da pedra. Era assombroso. Nenhum dos discípulos parecia ter-se apercebido do que acontecera. Provavelmente, estavam dormindo. Uma vez ali, e no tom de voz habitual, o Mestre falou assim, sempre com os olhos postos no céu:
- Pai, vês os Meus apóstolos adormecidos... Estende sobre eles a Tua misericórdia. Na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca...
Jesus ficou em silêncio e inclinou a cabeça, fechando os olhos. Depois, decorridos poucos segundos, voltou novamente o rosto para os céus, exclamando:
- E agora, Meu Pai, se este cálice não se pode afastar... bebê-lo-ei. Que seja feita a tua vontade e não a minha...
Devia ser quase uma da madrugada daquela sexta-feira, 7 de Abril, quando o Gigante - depois de permanecer uns minutos em recolhimento total - se levantou pela última vez, dirigindo-se ao ponto onde os três apóstolos dormiam profundamente. Mas, nesta ocasião, o Galileu não regressou à clareira.
Acordou os seus homens e, pouco depois, os quatro metiam-se pelo olival, perdendo-se de vista. Meditei muito sobre aquelas estranhas palavras de Jesus. Que queria dizer, quando falou em afastar o cálice? Referia-se à possibilidade de evitar os suplícios e a morte? Durante algum tempo, assim pensei. Mas, depois de ser testemunha da Sua Paixão e outra interpretação - mais sutil - veio substituir a minha idéia anterior. Comecei então a ter a intuição da grande tragédia do Mestre naqueles críticos momentos da chamada oração do jardim.
Não foi o medo o que possivelmente provocou a sua imensa angústia e o suor ensangüentado. Ele sabia o que o destino Lhe reservava e, como demonstrou claramente, enfrentou a dor abertamente e com valentia. Mas, pela mão dessas torturas, o Galileu sabia que também chegariam as humilhações. Deve ter sido a visão dos vexames a que criaturas por Si criadas iriam submetê-lo, que levou o Galileu a mergulhar num estado de aguda prostração.
Se, realmente, era o Filho de Deus, a simples observação – e muito mais o sofrimento - da barbárie e primitivismo dos Seus homens para com Ele próprio tinha de lhe ser insuportável.
Guardadas as devidas proporções, imagino o terrível sofrimento moral de um pai, ao ver como os seus filhos o esbofeteiam, insultam, ferem e injuriam.
João Marcos e eu apressamo-nos a saltar o muro que nos separava da clareira onde tivera lugar a tripla oração do jardim e, com idêntica prudência, penetramos no olival, seguindo os passos de Jesus e dos discípulos. À medida que nos aproximávamos do terreno do acampamento, um pensamento - talvez tão absurdo quanto inoportuno - continuava a martelar-me o cérebro. Não podia afastar da mente as imagens daquele ser de mais de dois metros e do objeto – porque aquilo era um veículo tripulado - que tinha sido capaz de desafiar tão eloqüentemente as leis da gravidade. Que tipo de objeto era aquele? Que tecnologia podia realizar tais acelerações e desacelerações (1)? E, principalmente, que relação tinha tudo aquilo com Jesus e com a Divindade? Daria anos de vida para ter registrado a conversa entre o Mestre e aquele misterioso ser. Amaldiçoei a minha má estrela, que não me deixou ver os rostos de ambas as personagens, e interpretar pelo menos, o que se tinha passado entre eles. Desde então uma grande incerteza tomou conta de mim, podia ser um anjo? Se realmente era assim, como os teólogos estão longe da verdade...
* Como membro da Força Aérea sei até onde chega a resistência humana à gravidade. Alguns astronautas, utilizando fatos muito sofisticados chegaram a suportar 11 Gs (o valor normal da aceleração da gravidade - quer dizer de uma G - é de 9,80665 metros por segundo, em cada segundo). Segundo o meu cálculo, aquele objeto praticou uma queda, e um arranque que deve ter submetido os pilotos, a 20 g ou 30 g. (N. do M.)
Quando, por fim, chegamos ao acampamento, tudo continuava mais ou menos igual. Os discípulos do Mestre, profundamente adormecidos, mantinham-se alheios a quanto acabava de acontecer a poucos metros das barracas. E digo que tudo estava mais ou menos como antes porque, coincidindo com o nosso regresso, dois dos agentes secretos de David Zebedeu entravam também no jardim. Ofegantes e excitados, perguntaram pelo seu chefe. Foi João Marcos quem lhes apontou o lugar onde ele estava de guarda.
Entretanto, o Mestre, aconselhava Pedro, João e Tiago a que fossem dormir. Mas os apóstolos, talvez suficientemente repousados pelos sonos breves mas profundos que tinham desfrutado nas proximidades da gruta, e mais nervosos perante a súbita chegada dos mensageiros, recusaram. Sem poder resistir à tentação, o fogoso Pedro interrogou um dos agentes de Zebedeu. O homem, apertado pelas perguntas de Simão, acabou por lhe dizer que um destacamento de soldados do Sinédrio e uma escolta romana se encaminhavam para ali. De rosto contorcido, Pedro recuou. Mas quando se dirigia para as tendas, na intenção de acordar os companheiros, Jesus interpôs-se no seu caminho, ordenando-lhe que se mantivesse em silêncio. A recomendação do Galileu foi tão firme que os discípulos, desconcertados, ficaram como que pregados ao chão.
Os gregos, que acampavam ao ar livre, foram também acordados pela entrada dos agentes de Zebedeu e não tardaram em rodear Jesus e os três apóstolos, interrogando-os. Porém, o Mestre que recuperara a serenidade habitual pediu-lhes que se tranqüilizassem e que voltassem para junto do tanque de azeite.
Foi inútil. Nenhum dos presentes se moveu do lugar em que estava.
O Nazareno compreendeu a atitude dos homens e, sem dizer uma palavra, afastou-se do grupo, deixando o acampamento com grandes passadas.
Durante uns segundos, os gregos e os apóstolos vacilaram. Uma vez mais foi o jovem João Marcos quem tomou a iniciativa. Num abrir e fechar de olhos saiu do jardim e desapareceu, encosta abaixo. Aquela inesperada reação de Jesus, saindo da herdade de Getsémani, desorientou-me. Segundo os evangelhos canônicos , fonte principal de informação, a prisão devia ser levada a cabo no jardim. No entanto, o Nazareno acabava de o deixar... Sem pensar duas vezes, segui os passos do rapaz, deixando os três apóstolos e os gregos, imóveis, no meio do acampamento.
Tanto Jesus como João Marcos tinham ido pelo caminho que percorria a encosta ocidental do monte das Oliveiras e que em várias alturas me levara até à pequena ponte sobre o leito agora seco do Cédron. Naquele momento, e justamente do outro lado da ponte, chamou-me a atenção o movimento de um grande número de archotes. Ao observar mais atentamente, verifiquei que se dirigia para aquele lado do monte. Deviam ser aqueles os homens armados de que falara o mensageiro de Zebedeu.
Surpreendido, continuei descendo a caminho até que, numa das curvas vi João Marcos - seria mais correto dizer que só distingui o seu lençol branco -, que se refugiava numa pequena barraca de madeira, mesmo junto do atalho.
Parei, sem saber que fazer. Mas as minhas surpresas naquela madrugada de sexta-feira mal tinham ainda começado.
Junto da barraca avistei outra cuba - semelhante à da entrada do acampamento de Getsémani -, que devia fazer parte de um dos tanques de azeite, tão abundantes no monte das Oliveiras. O Mestre sentara-se no pequeno muro de pedra da prensa, a dois passos do caminho, voltado para onde, sempre mais perto, vinha o oscilante enxame de luzes amareladas.
Num primeiro momento, pensei também em esconder-me na barraca. Mas desisti da idéia. Ignorava absolutamente o curso que os acontecimentos podiam tomar e preferi manter-me em local mais aberto. De ambos os lados da caminho alongavam-se os olivais. Podia ser um bom ponto de observação. Rapidamente, deixei o caminho, enfiando-me pelo escuro olival situado à esquerda do atalho. Escolhi uma das árvores mais altas e ocultei-me na ramagem. Dali via Jesus, a pouco mais de cinco ou seis metros. Mas, de repente, fui assaltado por uma dúvida que quase me fez descer da oliveira. E se o Galileu regressasse ao acampamento? Nesse caso, não teria outro remédio senão arriscar-me a ir atrás do grupo armado...
Se não me enganava, a distância percorrida por Jesus da porta de entrada ao jardim de Simão, o Leproso, até àquela curva do serpenteante caminho em ferradura, fora de uns cem ou cento e cinqüenta passos. Ao vê-lo ali, tão estranhamente sereno, comecei a compreender. Não era preciso ser muito inteligente para se perceber que aquele rápido afastamento da zona onde continuavam os seus homens só podia ser motivado pelo desejo de que o seu encontro com Judas e a guarda do Sinédrio não afetasse os discípulos. Ele sabia que muitos dos discípulos e dos gregos tinham armas, e, provavelmente, quis evitar o risco de um choque armado. Se a memória não me enganava, no acampamento devia haver, naquele momento, à volta de sessenta homens. Bastaria que algum deles - Pedro ou Simão, o Zelota, por exemplo - desembainhasse a sua espada, para provocar um sangrento combate. Se a versão do agente secreto de Zebedeu estava certa, aos levitas do Templo tinha de se juntar a patrulha romana. E isto, sem dúvida alguma, complicava as coisas. Os legionários da Fortaleza Antonia não se distinguiam precisamente pelos modos suaves... Eu fora testemunha da sua ferocidade no espancamento de um camarada.
Que podia então esperar-se daqueles soldados aguerridos no caso de se chegar a um combate? O mais provável, era que muitos dos discípulos do Mestre fossem feridos ou mortos e, no melhor dos casos, feitos prisioneiros. E Jesus, a julgar pelas orações do olival, queria evitá-lo a todo o custo. Que teria sido da sua missão e da futura propagação do evangelho do reino, se os pregadores tivessem tombado, aquela noite, no Getsémani? Os archotes apareciam e desapareciam no arvoredo, aproximando-se cada vez mais. Pedi a Eliseu que me informasse quanto à hora exata. Eram uma e quinze minutos da madrugada.
A Lua continuava brilhando, proporcionando-me uma mais que aceitável visibilidade. De repente, e quando o cacho de archotes se encontrava ainda a certa distância do lugar onde Jesus esperava, vi aparecer na caminho um indivíduo. Subia correndo, seguindo na direção do acampamento. Jesus, ao vê-lo,
pôs-se de pé, e postou-se no meio do caminho. O apressado caminhante - que a princípio não consegui identificar – logo descobriu a alta figura do Galileu, com a branca túnica banhada pelo luar. A presença inesperada do Mestre, cortando-lhe a passagem, deve tê-lo desorientado, porque estacou. Mas após segundos de indecisão continuou a avançar, desta vez sem muita pressa. A misteriosa personagem, envolta num manto escuro, devia encontrar-se a trinta ou quarenta metros do Rabi, quando, ao fundo da caminho, entrou em cena o pelotão que trazia os archotes. Vinha em desordem, embora formando uma longa fileira de gente. À primeira vista, deviam ser mais de cem homens.
Conforme foram se aproximando, pude distinguir, entre os homens à frente, cerca de trinta soldados romanos. Traziam a mesma indumentária que já vira entre os legionários da Torre Antonia, e estavam armados de espadas, algumas lanças e escudos. Imediatamente atrás - quase misturados com os primeiros - um tropel de quarenta ou cinqüenta levitas, ou guardas do Templo, na sua maioria armados com bastões e clavas de pregos. A surpresa que experimentei atingiu o máximo quando, à minha direita, surgiram outros archotes, espalhados entre as oliveiras. Não eram muitos, talvez uma dezena. Mas ziguezagueavam a grande velocidade, descendo para o ponto onde se encontrava Jesus. Pela direção que traziam, pensei que se tratava dos discípulos. E um calafrio voltou a percorrer-me o corpo. Se os dois grupos chegassem a enfrentar-se, sabe-se lá o que poderia acontecer.
O grupo à minha esquerda - o que vinha de Jerusalém - continuou a avançar em silêncio, até se deter à distância de uma pedrada do Galileu. Por seu lado, os que acabavam de aparecer pela direita, acabaram por se concentrar no caminho. Uma vez reagrupados, continuaram descendo, mas agora com grande lentidão .
Quando o grupo armado que viera para prender o Nazareno parou, os adeptos de Jesus fizeram o mesmo. Estavam agora muito mais perto do Mestre. Talvez a vinte ou vinte e cinco passos.
À luz das tochas, distingui Pedro na primeira linha. E com ele João, Tiago e uma vintena de gregos. No entanto, por mais que observasse, não vi Simão, o Zelota, nem os outros apóstolos e discípulos. Aquilo significava que ninguém os acordara.
Durante uns minutos que me pareceram intermináveis, só o vento assobiou por entre as oliveiras, agitando as chamas dos archotes de ambos os grupos.
Jesus - no meio - continuava à espera daquele homem que se destacara da turba vinda da Cidade Santa. Quando faltavam apenas uns metros para que chegasse junto do Rabi, a Lua fez sobressair a palidez do seu rosto. Era Judas!
Mas por que razão se adiantara à força armada? O mistério seria deslindado na manhã seguinte, pouco antes do fatal e inesperado acontecimento que provocaria a morte de Iscariotes. (Uma vez mais, Judas maquinara os seus planos com tanta astúcia como maldade.)
Por fim, Jesus reagiu. Com grande dignidade, avançou para Judas, mas, ao chegar junto dele, desviou-se para o limite esquerdo do caminho, evitando o traidor. Judas Iscariotes, perplexo, voltou-se. O Mestre tinha continuado na direção da soldadesca, detendo os seus passos a poucos metros do grupo. Dali, em voz muito alta, interpelou o que parecia ser o chefe: - Que procurais aqui?
O soldado romano, que, julgando pelo capacete com um penacho de penas vermelhas e pela espada (colocada na ilharga esquerda), devia ser um oficial, avançou por sua vez e, em grego, respondeu:
- Jesus de Nazaré!
O Mestre avançou então para o suposto centurião, e com grande solenidade, exclamou:
- Sou Eu...
Ao escutarem as serenas e majestosas palavras daquele Gigante, os cinco ou seis legionários que ocupavam a primeira fila recuaram bruscamente. Este movimento súbito fez que alguns esbarrassem nos companheiros colocados imediatamente atrás, provocando uma série de quedas grotescas. Entre os que deram com os ossos em terra estavam também alguns que traziam archotes. E estes, ao caírem sobre os companheiros no chão, contribuíram para multiplicar a confusão. O oficial, indignado, recuou até ao grupo da frente e começou a golpear os covardes e vacilantes soldados com o bastão que trazia na mão direita. (Aquela cena trouxe-me à memória o relato evangélico de João: o único que fala desta queda da força armada que viera prender o Mestre. Mas, bem longe do caráter milagroso que alguns teólogos e comentaristas quiseram ver no referido acontecimento, a única verdade é que aqueles homens rolaram no solo em conseqüência de um movimento mal calculado.
Outra questão é o motivo por que recuaram. Em minha opinião é possível que tivessem medo. Quase todos tinham visto Jesus quando pregava no adro do Templo e também era muito provável que tivessem sabido dos Seus prodígios e do Seu poder. Se unirmos isto à valentia com que o Galileu se apresentou perante eles, talvez tenhamos aí a resposta...Enquanto os soldados romanos se punham de pé e recuperavam a sua maltratada dignidade, Judas - cujos planos não estavam saindo tal como tinha previsto, segundo pude averiguar horas mais tarde - aproximou-se do Nazareno, abraçando-o. Imediatamente, e de modo ostensivo - para que todos o pudessem ver -,levantou-se nas pontas das sandálias, dando um beijo na testa de Jesus, ao mesmo tempo que Lhe dizia:
- Saúde, Mestre e Guia!
O Galileu, sem perder a serenidade, respondeu-lhe:
- Amigo... não basta fazer isto? Será que queres ainda trair o Filho do Homem com um beijo?
E antes que Judas pudesse reagir, o Mestre libertou-se do abraço do traidor, fitando novamente o oficial romano e a restante força armada.
- Quem procuram?
- Jesus de Nazaré - repetiu o oficial.
- Já te disse que sou Eu... Portanto - prosseguiu Jesus -, se era a Mim que procuravas, deixa que os outros sigam o seu caminho... Estou disposto a seguir-Te...
O oficial achou que era razoável o pedido do Nazareno.
Pôs-se a Seu lado e, quando se dispunha a regressar a Jerusalém, um dos guardas do Sinédrio saiu do pelotão, lançando-se sobre Jesus. Trazia nas mãos uma corda. E, apesar de o chefe da patrulha romana não ter dado tal ordem, aquele sírio, que respondia ao nome de Malchus ou Malco, apressou-se a agarrar os braços do Rabi, tentando atá-los pelas costas.
Ao vê-lo o oficial levantou o bastão, disposto, sem dúvida, a afastar o intruso. Mas a fulminante entrada em ação de Pedro e dos seus companheiros iria anular os propósitos do responsável pela prisão. Efetivamente, com rapidez vertiginosa, Pedro e os outros - indignados pela ação de Malco - precipitaram-se sobre o guarda do Sinédrio. Simão Tiago e alguns dos gregos tinham desembainhado as espadas e, soltando todo o tipo de imprecações, prepararam-se para o combate. Antes que a escolta romana tivesse tempo de proteger Malco, Pedro - espada ao alto - caiu sobre o aterrorizado servo do sumo sacerdote, vibrando-lhe um violento golpe na cabeça. No último instante, Malco conseguiu desviar-se, evitando que o poderoso golpe de Pedro lhe abrisse o crânio. No entanto, o fio da espada passou-lhe rente ao lado direito do rosto , levando-lhe a orelha e ferindo-o no ombro. Então, Jesus levantou um braço para Pedro e, com grande severidade censurou-lhe o procedimento:
- Pedro, embainha a tua espada... Quem quer que desembainhe a espada morrer pela espada. Não compreendeis que é vontade de Meu Pai que Eu beba este cálice? Não sabeis que agora mesmo poderia enviar dezenas de legiões de anjos e os seus companheiros me libertariam das mãos dos homens?
Os discípulos - Pedro, especialmente - ficaram aturdidos.
Não entendiam as palavras do Mestre e, menos ainda, a sua docilidade perante o inimigo.
Malco continuava a torcer-se e a gritar de dor, quando Jesus se inclinou para ele. Com grande firmeza retirou-lhe a mão do ouvido ensangüentado, colocando a sua palma direita sobre a ferida. Em questão de segundos, os gemidos diminuíram, tornando-se sempre mais fracos e espaçados. Depois, o Rabi repetiu a operação, pondo-lhe a mão sobre o ombro. Do cimo da árvore, não pude verificar que tipo de cura fez o Galileu. No entanto, o que era claro é que fizera parar a abundante hemorragia e praticamente congelara a dor daquele infeliz. (No decorrer das duas intensas jornadas seguintes, antes do meu regresso definitivo ao módulo, procurei, por todos os meios, localizar o sírio e verificar o ferimento que Pedro lhe fizera. No entanto, os meus esforços foram perdidos.) A atitude belicosa de Pedro e dos companheiros só serviu para piorar as coisas. O oficial romano ignorou as palavras pacíficas e o gesto humanitário de Jesus com Malco e ordenou aos legionários que o prendessem, atando-Lhe os pulsos atrás das costas. Enquanto o manietavam, o Mestre, profundamente magoado por aquela humilhação, dirigiu-se aos levitas e soldados que, com as espadas e bastões preparados para repelir qualquer outro ataque, contemplavam a cena:
- Para que empunhais as espadas e paus contra Mim, como se fosse um ladrão? Todos os dias estive convosco no Templo, educando e ensinando publicamente o povo, sem que nada fizésseis para me deter... Mas ninguém respondeu.
Uma vez o Rabi imobilizado com grossas cordas, o oficial dirigiu-se aos seus homens, ordenando que prendessem também aquele grupo de fanáticos, segundo as suas próprias palavras. Porém, a patrulha não reagiu a tempo e Pedro e os seus companheiros fugiram dali, atirando os archotes contra os romanos. Este novo erro da escolta foi mais que suficiente para que a vintena de adeptos do Mestre se dispersasse pela encosta, entre os olivais. A quase totalidade dos legionários foi em sua perseguição. No entanto, os discípulos – que conheciam melhor o terreno e iam com pânico bastante para voar, mais do que correr - não tardaram em desaparecer. A prova é que, cinco ou dez minutos depois, o grupo armado regressou ao caminho, iniciando o regresso a Jerusalém. Fortemente escoltado, o Mestre não tardou em desaparecer com eles, numa das curvas do caminho. Eram duas da madrugada...
A vozearia dos legionários foi-se dissipando. E ali fiquei eu, com o coração apertado e num silêncio de morte. Tinha, porém, de continuar com a minha missão. E assim, tentando não fazer barulho, desci da copa da oliveira. As minhas idéias - reconheço-o - não eram muito claras. Durante alguns segundos, e ainda junto da árvore, vacilei. Que caminho devia tomar? Voltar ao acampamento e juntar-me ao que restasse do grupo de gregos e discípulos não me parecia o melhor. Além disso, sabe-se lá onde teriam ido parar? Era muito mais lógico seguir as pisadas do pelotão de soldados e guardas do Templo. Mas, como chegar junto deles sem levantar suspeitas e, o que era pior, sem que me detivessem? Quando me preparava para deixar o olival e encaminhar-me para a Cidade Santa, as silhuetas de dois legionários que tinham ficado para trás apareceram de repente entre as oliveiras, do outro lado da caminho. Agarrei-me como pude a um dos troncos e esperei que passassem. Se descobrissem a minha presença estaria numa situação delicada. Mas, no momento em que os soldados entravam na caminho, João Marcos - que se mantivera escondido durante tudo aquilo - assomou à porta da barraca. Embora procedesse com grande cuidado, os romanos viram imediatamente o seu lençol branco e correram para o rapaz. Desta vez, a reação dos soldados foi tão rápida que Marcos não teve tempo de escapar.
Um dos legionários agarrou o lençol, enquanto o segundo, também correndo, seguia atrás do companheiro. Mas o ágil Marcos não se deu por vencido. Sem pensar duas vezes, largou o lençol, fugindo nu por entre as oliveiras de onde tinham vindo os inoportunos estrangeiros. Aquela manobra do jovem apanhou os romanos desprevenidos, e fez que perdessem segundos preciosos. Aquele que tinha conseguido agarrar João Marcos, atirou o lençol ao chão e, soltando várias maldições, desembainhou a espada e desatou a correr às cegas.
O companheiro fez o mesmo, enfiando-se novamente pelo bosque.
Mas, naquela noite, a má sorte parecia encarniçar-se contra os soldados romanos, e o segundo legionário tropeçou numa das raízes do olival, caindo de bruços. Em conseqüência da queda, o capacete do romano foi arremessado, rolando pela encosta. Porém, o enfurecido soldado - na ânsia de apanhar o emboscado - não procurou o elmo.
Sabia que era arriscado mas, deixando-me guiar pela intuição, abandonei o meu esconderijo e aproximei-me do lugar onde caíra o capacete. Apanhei-o e, tentando tranqüilizar-me, esperei. Era, efetivamente, um elmo de couro, sem adornos ou distintivos.
Não tive de esperar muito. Em poucos minutos, os legionários regressaram à estrema do olival. No entanto, preocupados em encontrar o capacete, não deram pela minha presença. Então, levantando a voz e o elmo, dirigi-me a eles em grego. Ao verem-me, os soldados não reagiram. Pouco a pouco, foram-se aproximando. Um suor frio começou a encharcar-me a túnica. Se aquele estratagema não desse resultado, a minha segurança podia ver-se seriamente ameaçada. O que tinha perdido o elmo, chegou até mim e, parando a uns dois metros, inspecionou-me dos pés à cabeça. Estava suado e sem fôlego. O segundo legionário não tardou em pôr-se a seu lado. Tentei sorrir mas, francamente, não sei se o consegui. O caso é que, procurando esconder o tremor das mãos, entreguei-lhe o capacete. O romano apressou-se a recebê-lo, arrebatando-mo com violência, e imediatamente o pôs na cabeça.
- Quem és? - falou, por fim, o segundo soldado.
- Chamo-me Jasão - respondi, com o coração apertado. – Sou grego e vou para Jerusalém... De repente, lembrei-me da autorização que me concedera o procurador romano, com a finalidade de me facilitar a entrada na Fortaleza Antonia. Sem hesitar, lancei mão da bolsa e mostrei-lhes o salvo-conduto, explicando-lhes que naquela mesma manhã de sexta-feira deveria visitar Pôncio Pilatos.
Os legionários desviaram o olhar para o rolo, embora eu duvidasse que soubessem ler. Contudo, deviam ter identificado a assinatura de Pilatos, porque a sua atitude se tornou mais condescendente.
- De onde vens?
- De Betânia...
- Então - continuou o legionário que falava grego – não sabes o que aconteceu aqui?
- Aqui - perguntei, num tom de total ignorância. - Não, que aconteceu?
- Não tem importância - concluiu o legionário. - Nós também vamos para Jerusalém. Se queres, podemos escoltar-te...
Senti-me encantado com tal oferta mas, quando parecia tudo resolvido, o soldado que perdera o capacete pegou na lança do acompanhante e sem uma palavra inclinou-a para o meu peito.
Fiquei paralisado. Ao olhar de novo para o soldado, o seu rosto pareceu-me familiar. O soldado acabou por sorrir. Claro!
Logo me lembrei. Era a sentinela da Torre Antonia, o que me apontara o pilum enquanto eu e José de Arimatéia esperávamos que voltasse o seu companheiro... Retribuí o sorriso e o legionário - satisfeito por ver que o tinha reconhecido - retirou a lança, explicando ao segundo e intrigado soldado que, efetivamente, me vira às portas da Torre Antonia e que eu não mentia.
Aquele encontro fortuito com o meu amigo legionário ia ser-me muito útil...
Os soldados tinham pressa de alcançar o pelotão que conduzia o Nazareno e, dali a pouco, avistamos os archotes. Mas, para minha surpresa, o grupo parara no do meio caminho. Quando os dois retardatários se juntaram à patrulha romana, insinuei que talvez fosse mais prudente eu continuar na retaguarda ou seguir diretamente para Jerusalém. Mas a sentinela, que parecia muito honrada com a minha amizade, aconselhou-me a permanecer junto dele. E assim fiz. Desta forma, ao aproximar-se do oficial que comandava o pelotão, compreendi porque tinham parado. O chefe dos levitas teimava em levar o Nazareno à residência de Caifás. No entanto, o optio romano, uma espécie de lugar-tenente dos centuriões (1), responsável pela captura e custódia do prisioneiro, opunha-se a esta decisão, considerando que as suas ordens eram precisas:
Jesus de Nazaré devia ser conduzido à presença do ex-sumo sacerdote Anás. (Segundo parecia, as relações entre o procurador romano e as castas sacerdotais judaicas continuavam a manter-se, através do poderoso e influente sogro de Caifás.) Os guardas levitas tiveram de ceder e Arsenius - o optio ou oficial subalterno romano - ordenou que a patrulha recomeçasse o seu caminho para o Bairro Baixo de Jerusalém. Durante a discussão, Jesus permaneceu em silêncio, de olhos baixos e praticamente ausente.
Judas, por seu lado, colocara-se entre os dois chefes – o romano e o levita - mas, por mais que tentasse o diálogo, estes evitavam as suas perguntas, permanecendo num silêncio total e violento. Quando perguntei ao legionário a razão daquela atitude do optio e do capitão dos guardas do Templo para Judas Iscariotes, o meu amigo respondeu com uma afirmação contundente:
- É um traidor...
Estávamos a poucos metros da ponte que unia a encosta do monte das Oliveiras ao terreiro situado junto da muralha oriental do Templo, quando se deu um fato desconcertante e imprevisto.
À cabeça do cortejo marchavam ambos os capitães. No meio deles, Judas, e, imediatamente atrás, a patrulha romana, cercando Jesus. Por último, o bando dos levitas e servos do Sinédrio, envoltos nos seus mantos, furiosos pela firme decisão do oficial romano de entregar o Galileu ao antigo sumo sacerdote. Eu caminhava à esquerda do grupo, junto dos últimos legionários.
Subitamente, João, o Evangelista, apareceu à direita, avançando até chegar perto do Mestre. Fiquei estupefato perante a valente resolução do jovem discípulo. Pelo que pude observar, João devia ter perdido o manto na fuga anárquica dos adeptos do Rabi. Trazia apenas a sua túnica curta - até aos joelhos - e, na faixa, uma espada. Ao verem-no, os guardas do Templo ficaram alarmados e avisaram o chefe da presença do galileu. O pelotão parou novamente e o capitão dos levitas ordenou aos seus homens que prendessem e atassem também João. Mas, quando os sicários de Caifás se dispunham a amarrá-lo, Arsenius interveio de novo.
* A figura do optio representava um oficial subalterno, diretamente sob o comando do centurião. Geralmente, enviava pequenos grupos de tropas aliviando o oficial das suas funções administrativas, disposição das guardas, instrução militar etc. Deu-lhes o nome de optiones, segundo Festo, porque, desde o tempo em que foi permitido aos centuriões eleger ou optar o que desejavam. foi-lhes aplicado também o nome de optio, por causa da eleição. (N. do M.)
O veterano oficial, sagaz e de nobre condição, interpôs-se entre o apóstolo e os levitas, exclamando:
- Alto! Este homem não é um traidor e também não é um covarde! Os hebreus não pareciam muito dispostos a perder também aquela oportunidade e protestaram energicamente. Os olhos do ajudante do centurião cravaram-se nos do capitão da guarda do Sinédrio. Baixou o rosto, mal barbeado, cerrou fortemente os maxilares e, levantando o bastão até o deixar a um palmo da testa do chefe dos levitas, repetiu em tom ameaçador:
- Estou lhe dizendo que este homem não é um traidor nem um covarde... Pude vê-lo antes e não puxou da espada para resistir. Agora teve a valentia de vir até aqui para estar com o seu mestre.
Fazendo assobiar a vara com uma série de curtos e breves movimentos de pulso, acrescentou, ao mesmo tempo que o responsável dos judeus recuava, espantado:
- Que ninguém ponha as mãos nele... A lei romana concede a todos os prisioneiros o privilégio de um amigo que o acompanhe ante o tribunal. Portanto, ninguém impedirá que este Galileu permaneça ao lado do réu.
O ódio e o desprezo do optio romano pelos judeus, em geral, e por aqueles, em particular, deviam ser tão grandes que, no fundo, a insólita ordem do oficial podia ser motivada, em minha opinião, não só por admirar o gesto audaz de João, mas também para humilhar e contrariar aqueles covardes, incapazes de enfrentar por si mesmos o Nazareno. (Ao chegar ao palácio de Anás, José de Arimatéia me explicaria, com grande soma de pormenores, as manobras tortuosas de Judas Iscariotes e dos levitas, que chegaram até, a solicitar à guarnição romana que os acompanhasse para deter Jesus.) E devo acrescentar que, no meu regresso desta primeira grande viagem, consultei distintos especialistas de direito e jurisprudência romanos, procurando averiguar se, efetivamente, existira essa lei, invocada pelo optio. Mas, até este momento, as minhas indagações têm sido vãs.
Os antigos romanos, como hoje os ingleses tradicionalistas, não eram muito amantes de leis, tal como nós as interpretamos. O seu direito, felizmente para eles, não se baseava precisamente em leis 1.
Alguns especialistas falam na possibilidade de a referida lei, se tratar, na realidade, de uma adaptação muito particular do regime da garantia de apresentação perante o juiz, mediante os chamados praedes vades, que servia precisamente para evitar a prisão preventiva do réu, tal como se faz atualmente com a abusivamente chamada fiança, (que não é uma garantia pessoal. mas sim um depósito em dinheiro). (N. do M.)
Segundo os especialistas que interroguei, a disposição invocada pelo oficial Arsenius não era hábito da época e, principalmente, das autoridades que ocupavam aquela província romana. A arbitrariedade existente na altura de aplicar justiça ou de tratar de um prisioneiro era tal que, pelo menos para os estudiosos do Direito Romano, a conduta do oficial era perfeitamente possível. Não podemos esquecer que os donos e senhores de vidas e bens daquele país revolucionário continuavam a ser os romanos.
Esta providencial ordem do optio da Torre Antonia veio responder a outra das minhas interrogações. Como era possível que João Zebedeu fosse o único apóstolo a declarar nos seus escritos ter sido testemunha ocular de muitos dos acontecimentos que se viveram ao longo daquela sexta-feira? Logicamente, se não fosse esta inestimável ajuda do oficial subalterno Arsenius, o discípulo de Jesus teria tido muitos problemas em poder assistir aos interrogatórios e à Crucificação. Tal como as coisas estavam, teria sido quase impossível que as castas sacerdotais - que odiavam o Mestre e os seus discípulos - cedessem e aceitassem a livre presença de algum dos amigos do Prisioneiro. Só uma imposição superior, emanada, neste caso, da autoridade romana, pôde permitir a João assistir à morte de Cristo.
Apesar de tudo, o oficial romano, por cautela, ordenou a um dos seus homens que desarmasse João. E o pelotão continuou o seu caminho.
O reconhecimento público da valentia de João pelo oficial romano representou um duro golpe na dignidade de Judas.
Envergonhado, de cabeça baixa, sobrancelhas franzidas, foi abandonando o passo até ficar para trás e sozinho. E assim chegou à casa de Anás.
João, prudentemente, em momento algum falou com seu Mestre, que também não manifestou vontade de se dirigir ao jovem. Aliás, as circunstâncias não o aconselhavam. No entanto, quando nos metemos pelas ruas desertas de Jerusalém, consegui pôr-me ao lado de Zebedeu e perguntar-lhe pelos outros homens e, muito especialmente, porque tomara a perigosa decisão de se unir a Jesus. O apóstolo, com os olhos vermelhos de tanto ter chorado, pareceu alegrar-se um pouco ao verificar que não se encontrava só e confessou-me que, depois de terem conseguido despistar os legionários ele e Pedro tinham decidido seguir Jesus. De resto, só sabia que tinha fugido em direção ao acampamento. Enquanto silenciosamente o seguia, João lembrou as instruções que o Mestre lhe dera de permanecer a Seu lado, e apressou-se a alcançá-Lo. Entretanto, Pedro - se é que não tinha mudado de idéia- devia encontrar-se a certa distância, seguindo-nos, escondido pelas árvores.
Às duas e quinze da madrugada, a comitiva parou diante da casa de Anás, não muito longe da Porta de Sião, no extremo ocidental da cidade e a breve distância, segundo os meus cálculos, da casa de João Marcos. Ali, diante da cancela do espaçoso jardim, que se alongava em frente da casa, o oficial romano entregou oficialmente o prisioneiro ao chefe dos levitas. Mas antes, dirigindo-se a um dos legionários e de modo a que todos pudessem ouvi-lo, ordenou:
- Acompanha o preso e vela para que estes miseráveis não o matem sem o consentimento de Pilatos. Evite que o assassinem e providencie para que este galileu - disse referindo-se a João - possa acompanhá-lo a todo o momento. Observe bem tudo que acontecer...
E, dando meia volta, afastou-se do local, na companhia do pelotão de legionários. Ao despedir-me do soldado meti-lhe dissimuladamente uma moeda de prata na mão, agradecendo a sua ajuda e pedindo-lhe que antes de regressar à Fortaleza, falasse ao companheiro que fora designado por Arsenius para defender Jesus e João e lhe suplicasse que me permitisse fazer-lhes companhia. O soldado sorriu e, sem fazer perguntas, entendeu-se com o legionário para que os meus desejos fossem cumpridos. Outro discreto e oportuno denário de prata no punho deste último acabou por dissipar todas as reservas e receios.
No momento, a minha presença na casa de Anás estava garantida.
Uma vez no pátio, parte da guarda do Templo despediu-se, afastando-se da suntuosa residência do antigo sumo sacerdote. Vários servidores de Anás aproximaram-se precipitadamente do chefe dos levitas. Este ordenou que avisassem o amo:
- O prisioneiro chegou - disse-lhes, apontando o Nazareno, que continuava com as mãos atadas atrás das costas e imóvel, no meio do pátio lajeado.
João continuava ao lado do Mestre e o legionário, por sua vez, procurava não os perder de vista, bem como um reduzido grupo de guardas e serventes do Templo que se esforçavam para acender uma fogueira. Empilharam vários troncos num dos cantos do escuro pátio e, depois de os salpicarem com azeite, inclinaram um dos fachos para a lenha, ateando-lhe fogo. A temperatura tinha baixado alguns graus e quase todos os presentes foram se aproximando do fogo. Dali a poucos minutos, no centro do pátio apenas se encontravam Jesus, o chefe dos levitas - que continuava a segurar a grossa corda com que tinham amarrado o Filho do Homem -, o jovem discípulo, o soldado romano e eu. Diante de nós, erguia-se uma imponente mansão de dois andares, com uma fachada inteiramente de pedra
lavrada, e delicadas escadas semicirculares de mármore. Na porta, fracamente iluminada por muitas lanternas de azeite, encontrava-se uma mulher gorda, de baixa estatura, que sorria sem cessar.
Mas aquela primeira exploração do recinto viu-se interrompida pelo aparecimento de Judas. O traidor acabava de chegar à casa de Anás. Ao ver Jesus e João, ficou atrás das grades altas que se erguiam sobre o muro de pedra. Dali a poucos minutos afastou-se, seguindo pela mesma rua por onde tinham ido os guardas levitas. No seu rosto, duro e impassível, não notei sinal algum de arrependimento. Pelo contrário. Tive a sensação de que, durante aqueles instantes, Judas Iscariotes gozou o espetáculo. No fundo, a sua vingança contra o Mestre e contra o discípulo de Jesus começava a dar fruto.
João também viu Judas, mas o Nazareno, que continuava de costas à porta de entrada, não pôde distingui-lo. O semblante do Galileu não se alterara. Continuava ligeiramente pálido e grave. Tinha levantado os olhos apenas duas vezes. Poucos minutos depois da saída do traidor, voltei a sobressaltar-me. Agora era Pedro quem se encontrava atrás dos portões. Fiquei sem perceber como não cruzou com Judas.
Nervoso, caminhava de um lado para o outro do gradeamento, tentando fazer que o notassem. Ao vê-lo, João fez um sinal com os olhos. Assenti com a cabeça, indicando-lhe que já reparara nele.
Sinceramente, tive pena daquele impetuoso, amigo e bondoso apóstolo. Ao ter certeza de que tanto João como eu tínhamos percebido sua presença, Simão agarrou os ferros com ambas as mãos e começou a fazer sinais com a boca. João e eu entreolhamo-nos, sem conseguirmos entender as intenções de Pedro, até que, apontando um dedo para o peito, o discípulo moveu a cabeça, comunicando-nos com aquela mímica labial que também ele desejava entrar na casa. Olhei-o, encolhendo os ombros. Que podia eu fazer?
Naquele momento, um dos servos de Anás saiu da mansão, fazendo sinal ao chefe dos levitas para que entrasse.
Voltei-me para Pedro e li no seu rosto a mais profunda das desolações. Mas, ao passar o umbral, João dirigiu-se à mulher que continuava à porta rogando-lhe que deixasse entrar o seu amigo. E o apóstolo indicou Pedro com a mão. Fiquei surpreendido ao ouvir como a gorda matrona sem sequer pestanejar e num tom cordial, acedia ao pedido do Zebedeu, tratando-o mesmo pelo seu nome de batismo. (Ao longo daquela angustiante madrugada, João disse-me que não havia qualquer mistério no amável comportamento da guardiã. Tanto ele como seu irmão Tiago eram velhos conhecidos da mulher e dos servos da casa. João e sua família - em particular a mãe, Salomé, parente afastada de Anás - tinham sido convidados, em numerosas ocasiões, do palacete do antigo sumo sacerdote.)
Enquanto o chefe dos levitas conduzia o Nazareno ao interior da mansão, a porteira desceu a escadaria, resolvida a permitir a entrada do abatido e assustado Pedro. Fui ali invadido por outra grave dúvida. Ao ver entrar Simão recordei que - se os Evangelhos não estavam errados – as famosas negações do fogoso discípulo não tardariam a dar-se. E ainda que os evangelistas Mateus, Marcos e Lucas as situassem na casa do sumo sacerdote Caifás, pensei que o testemunho de João - que situa este acontecimento no pátio de Anás – devia ser o que estava correto. Ao notar a minha indecisão, o discípulo insistiu que o acompanhasse. Mas preferi ficar no pátio, junto de Pedro. E assim lhe disse. Afinal, o que pudesse acontecer na casa do sogro de Caifás estava perfeitamente coberto com a presença de João.
Estas razões não me tranqüilizaram inteiramente, mas corri ao encontro de Pedro. O homem, ao ver-me, abraçou-se a mim, sem poder conter as lágrimas. Estava confuso. Não conseguia entender o que estava se passando e por que razão Jesus se deixara prender tão facilmente.
- Ele, capaz de ressuscitar os mortos - lamentava-se – não mexeu um dedo para impedir que O capturassem... E o que é pior - acrescentava com uma raiva surda - é que nem deixou que o ajudássemos... Porquê?... Porquê?
Com muita dificuldade o tentei serenar. Mas os seus limitados dotes de inteligência e a sua paixão por Jesus não lhe permitiram raciocinar com clareza. A sua mente era um turbilhão onde se misturavam, em doses iguais, o ódio por Judas e pelos membros do Sinédrio, o medo pela sua própria segurança e do grupo e uma imensa incerteza quanto ao rumo que os acontecimentos estavam seguindo. É triste e quase inacreditável mas, não me cansarei de insistir neste ponto, nem Pedro nem os restantes apóstolos tinham entendido naquela altura a verdadeira missão do Filho do Homem...
Simão tinha começado a tremer. Ainda não sei se de medo e angústia se de frio. O caso é que, inconscientemente, fomos nos aproximando da fogueira. Uma meia-dúzia de levitas e de servos de Anás tinham-se sentado à turca, aquecendo-se muito perto do fogo. Eu fiz o mesmo e Pedro continuou de pé, com os olhos perdidos nas chamas. Nisto, a mulher que lhe abrira a cancela saiu novamente de casa, pondo-se por baixo do dintel da porta. Os guardas comentavam os incidentes da prisão, amaldiçoando os romanos. Um deles, no entanto, aludiu ao gesto do Rabi, que milagrosamente curara Malco. Mas a tímida defesa do levita foi imediatamente sufocada por alguns interlocutores, que explicaram o sucedido como mais uma clara prova de poder diabólico de Jesus. Um dos acérrimos defensores desta hipótese lembrou aos seus colegas como os demônios, na realidade, eram anjos banidos, invisíveis e capazes de tomar as mais estranhas formas, deixando quase sempre umas pegadas semelhantes às dos galos. Outro dos servidores do Templo opôs-se redondamente a esta explicação, argumentando que os demônios eram os filhos que Adão gerara quando tinha cento e trinta anos...
A discussão estava no auge quando, inesperadamente, a guardiã sem perder aquele constante e malicioso sorriso - avançou para o fogo, increpando Pedro do extremo oposto do círculo:
- Tu não eras também um dos discípulos deste Homem?
Os guardas voltaram-se para Simão com gesto ameaçador e o apóstolo, cujos pensamentos se encontravam muito longe deste súbito ataque, abriu desmedidamente os olhos, sem poder acreditar no que estava acontecendo.
Aquela pergunta, no fundo, era tão absurda como mal intencionada. Se Pedro tivesse reagido com um mínimo de frieza e sensatez, teria se percebido de que a matrona fora a pessoa que, justamente, lhe abrira o portão, a pedido de João. Era óbvio, portanto, que a mulher estava a par da amizade existente entre ambos. Mas o medo, mais uma vez, se apossou do seu cérebro e, gaguejando, respondeu:
- Não sou...
A porteira continuou impassível junto do fogo. Porém, a sua atenção depressa se desviou para a conversa dos serventes e levitas, que tinham voltado ao tema dos demônios. Nenhum dos presentes parecia dar muita importância à presença de Pedro nem à sua possível ligação com o prisioneiro. Se o apóstolo tivesse reparado nesta atitude generalizada dos levitas, provavelmente teria conseguido vencer o pânico. Quando o olhei corou. Simão evitou o meu olhar mordendo os lábios e amassando nervosamente as pregas do manto. Naquele momento reparei que não trazia a sua habitual espada. Certamente a perdera na fuga, ou talvez se tivesse livrado dela antes de se aproximar da casa de Anás.
O guarda cuja versão sobre os demônios fora interrompida pela chegada da porteira retomou o fio da conversa fazendo ver aos presentes que o Galileu bem podia ser um dos tais filhos de Adão .
Mas a explicação do levita não satisfez a maioria. Outro dos servidores do Sinédrio acrescentou que, geralmente, estes demônios costumavam habitar nos pântanos, ruínas e à sombra de certas árvores...
- Este - concluiu - não é o caso do Galileu. Todos o vimos pregar abertamente no meio do Átrio dos Gentios. Que demônio agiria assim...?
- E não esqueçamos - interveio outro dos presentes - que o Rabi de Galiléia curou muitos aleijados... (1)
Distraído com aquela conversa não reparei na presença atrás de mim de uma figura. Ao sentir uma mão no meu ombro esquerdo sobressaltei-me. Era José de Arimatéia! Levantei-me imediatamente, afastando-me da fogueira e caminhando com o ancião até ao centro do pátio.
Tanto ele como eu estávamos ansiosos por nos interrogarmos mutuamente. Anunciei-lhe que o Mestre fora conduzido à presença de Anás, pondo-o a par de tudo que acontecera na herdade de Simão, o Leproso, e pelo caminho do monte das Oliveiras. José escutou em silêncio, movendo de vez em quando a cabeça em sinal de preocupação. Como era natural, estava a par das andanças de Judas Iscariotes. O rápido aviso de João Marcos permitira-lhe chegar ao Templo, a tempo de controlar os passos seguintes de Judas. Aliás encontrou com Ismael, o saduceu, que contribuiu eficazmente para as suas investigações.
Arimatéia fez um movimento para entrar na mansão mas retive-o, pedindo-lhe que me informasse sobre a conduta do traidor. E sem querer comecei a bombardeá-lo com todo o tipo de perguntas. Quem era aquele misterioso amigo que o acompanhou até ao Templo? Que acontecera dentro do Santuário? Por que razão Judas tinha esperado pela meia-noite para levar a cabo a captura do Nazareno? Porque ia ele na frente do pelotão...?
José pediu-me calma.
- Para começar - esclareceu o ancião -, aquele primeiro acompanhante a que te referes, e que Judas encontrou antes da sua chegada ao Templo, também se chama Anás. É primo dele. Justamente aquele de quem nos falou Ismael e que apresentou o traidor aos sacerdotes na manhã de quarta-feira. Quando cheguei ao Santuário, estavam ambos falando com o porteiro-chefe da correspondente seção semanal (2). Nesta altura, estava de serviço o levita Yojanan ben Gudgeda, um indivíduo particularmente brutal. Para que faças uma idéia da sua índole basta que te diga que não só espanca com o bastão os guardas que descobre dormindo, como, em certas alturas, tem chegado a atear-lhes fogo à roupa...
* O argumento do levita era correto. A profunda superstição daquelas pessoas considerava que os demônios atacavam principalmente os aleijados, os noivos e os jovens de honra, segundo informação de Papai Noel. Logo, não era lógico, que um demônio (Jesus) curasse os aleijados... (N. do M.)
2 Como julgo ter explicado anteriormente. os levitas (cerca de dez mil) estavam distribuídos, tal como os sacerdotes, em vinte e quatro seções semanais. Estas revezavam-se todas as semanas. Cada seção tinha um chefe. Além dos serviços inferiores - música e algo de semelhante aos atuais sacristãos – os levitas encarregavam-se da vigilância do Templo. Filon descreve a suas funções pormenorizadamente. Uns, os porteiros, estavam às portas. Outros no adro do Templo, no pronau ou terraço, e os restantes patrulhando em volta. Havia, naturalmente. duas guardas: a diurna e a noturna., A vigilância, portanto estava dividida em três grupos: os porteiros das portas exteriores do Templo, os guardiões do terraço que separava o Átrio dos Gentios do recinto sagrado do Santuário e as patrulhas do Átrio dos Gentios. Durante o dia vigiavam também o Átrio das Mulheres. Uma vez fechadas as portas do Santuário, ao pôr do Sol, os guardas noturnos ocupavam os postos, vinte e um no total. A zona sagrada - a que não tinham acesso os levitas - era guardada pelos próprios sacerdotes. Os chefes destes levitas eram chamados strategoi, tal como refere S. Lucas (22,4). Alguns, efetivamente, estavam presentes na prisão de Jesus. (N. do M.)
- Pois bem, este capitão da guarda noturna ouviu atentamente a informação de Judas. O traidor e o seu primo explicaram-lhe que o Mestre se encontrava naquele momento numa casa do Bairro Baixo - na de Elias Marcos, como bem sabes - e que a sua prisão podia ser fácil. Segundo Judas Iscariotes, só dois dos onze homens que tinham ficado no cenáculo empunhavam espada, Pedro e Simão, o Zelota. Mas Judas avisou Gudgeda que não convinha demorar-se. No acampamento de Getsémani encontravam-se cerca de sessenta discípulos e havia por lá um respeitável arsenal.
- Graças ao céu, os planos do traidor não saíram como previra.
- Porquê? - perguntei eu ao ancião , com grande curiosidade.
- Judas tinha chegado ao Templo antes do que se previra e foram necessárias muitas idas e vindas do porteiro-chefe à residência de Caifás e às diferentes dependências do Templo para conseguir reunir um número suficiente de guardas. Era impossível levar os que estavam de guarda naquele momento, fora e dentro do Santuário, e isto, como te disse, atrasou consideravelmente a saída do pelotão.
- As dificuldades para encontrar homens de folga foram tais que, por fim, desesperado, o sanguinário Yojanan viu-se obrigado a solicitar do sumo sacerdote em funções o apoio dos servidores e confidentes de Caifás. No total, se a memória me não falta, saíram do Templo uns trinta e cinco ou quarenta esbirros, armados com todo o gênero de clavas e de paus...
- Mas... e a escolta romana? - intrometi-me eu novamente, sem me poder conter.
- Espera, Jasão. Como te disse, felizmente, as coisas não estavam acontecendo como tinham sido planejadas. O Sinédrio queria prender o Mestre quando a cidade estivesse deserta. E esta era também a intenção de Judas, que, pelo que pude deduzir, tinha medo da reação e possíveis represálias dos homens de Jesus.
Enfim, Ismael encarregou-se de seguir o pelotão e eu fiquei no Templo, à espera de novos acontecimentos. Mas o traidor e o seu grupo cercaram a casa de Marcos quando o Mestre e os onze discípulos tinham praticamente acabado de sair, a caminho do jardim. Foi essa a informação que Ismael recebeu de Elias.
- Então, Judas não chegou a ver Jesus e os onze...
- Não. Mas foi por pouco. Se a patrulha não se demorasse tanto, certamente que a prisão do Mestre se teria dado mesmo ali. Elias, ao ver Judas e os homens armados, apercebeu-se imediatamente das suas funestas intenções, negou-se a falar com Judas Iscariotes e expulsou-o a pontapés.
- A pontapés?
- Sim, e receio que essa ofensa possa custar caro ao pobre Elias...
Havia alguma coisa que não conseguia compreender.
- Se Judas conhecia os hábitos do Mestre, porque não o seguiu até Getsémani?
José de Arimatéia sorriu, tristemente.
- Se conhecesses Judas entenderias. Humilhado e temeroso ante a violenta reação do dono da casa, Judas Iscariotes deve ter compreendido que se a atitude daquele adepto do Rabi fora tão radical, a do grupo acampado na herdade de Simão não podia ser menor. E, segundo Ismael, o traidor - cada vez mais nervoso - explicou aos que o seguiam que o Nazareno e os seus íntimos podiam ter seguido em direção ao monte das Oliveiras. Quando os levitas o incitaram a ir em sua perseguição, Judas Iscariotes deteve-os, afirmando que não era prudente fazerem frente a sessenta homens armados com espadas. Aquela alteração de plano significava que os guardas do Templo teriam de lutar e, possivelmente, prender também os apóstolos ou pelo menos os dirigentes do grupo de Getsémani. E as ordens de Caifás não eram bem essas. Para o sumo sacerdote, o único homem importante era o Galileu. Que fazer?
- O pelotão encontrou-se, portanto, numa difícil encruzilhada. E em vez de se arriscarem, tomando, além disso, uma iniciativa que não fora considerada por Caifás resolveram regressar ao Templo.
- Aquilo tranqüilizou Judas, mas aumentou o nervosismo dos chefes dos levitas. Tal como pensava, a reunião secreta de Caifás com as suas pessoas de confiança no Sinédrio fora marcada para aquela noite. E, aí pelas onze horas, quando Judas e o grupo voltaram ao Templo, alguns dos fariseus, escribas e saduceus tinham começado chegando à sala das pedras lavradas.
- O nervosismo dos guardas, ao apresentarem-se a Caifás sem o prisioneiro, era mais que compreensível. O tempo era escasso e, por um instante, tanto Judas como os sacerdotes chegaram a considerar a idéia de adiar a prisão. Não dispunham de uma força suficientemente grande e poderosa para correr o risco de invadir o jardim e prender o Mestre.
Cheio de amargura, José prosseguiu:
- Tanto eu como Ismael chegamos a acreditar que, no momento, tudo estava resolvido e Jesus continuaria em liberdade. Vã esperança... Caifás não é homem que se dê por vencido facilmente e o seu ódio por Jesus é tal que não hesitou em propor uma solução que repugnou mesmo aos seus colegas, solicitar uma escolta armada do procurador romano. Desta forma, argumentou o astuto sumo sacerdote da prisão do impostor não será difícil e, ao mesmo tempo, a responsabilidade de captura caberá às forças estrangeiras de ocupação... Alguns dos membros do Sinédrio tentaram que Caifás renunciasse àquele projeto, referindo as idéias de Jesus sobre a violência. Pensavam, com razão, que o Galileu não permitiria que os seus desembainhassem armas. Mas Judas interveio novamente. E a sua covardia veio à tona mais uma vez. Manifestou a sua concordância com os sacerdotes, mas foi de opinião que os discípulos não obedeceriam ao Mestre. A sugestão de Caifás, acrescentou parece-me excelente. Vamos quanto antes à Torre Antonia. E os sacerdotes designaram uma representação do Sinédrio, que seguiu imediatamente para o quartel-general romano. Porém, o centurião de guarda negou-se a deixar sair uma escolta. Era muito tarde e, além disso, a ordem deve vir de Pôncio Pilatos, explicou-lhes o oficial. Os sacerdotes insistiram e o centurião não teve outro remédio senão chamar Civilis, o comandante-chefe da guarnição destacada em Antonia, que tu conheces. O nosso amigo comum - muito aborrecido com aquela visita - perguntou-lhes qual a razão por que lhes deveria proporcionar a escolta. E Judas, antes que os sacerdotes reagissem, dirigiu-se a Civilis, avisando-o de que Jesus fazia parte de um grupo de zelotas clandestinamente acampado na herdade de Getsémani.
* Quando consultei o módulo sobre os zelotes ou zelotas, Papai Noel enviou-me a seguinte informação. Este movimento revolucionário e clandestino - semelhante, em certa medida, aos atuais grupos terroristas da Europa e da América - começou a desenvolver a sua atividade guerrilheira e de perseguição ao exército romano na época de Augusto, comandados, de início, por certo Judas ben Ezequias, da Galiléia, que no tempo de Herodes se distinguira pelo assalto a um arsenal do exército real e pelos seus atentados e incêndios. Ao ter notícia destes bandos que assolavam o país, Varo apressara-se a partir de Antioquia com duas legiões. Arrasa as cidades de Zippora, (Seforis) e Emmaus e os seus habitantes, partidários do rebelde Judas ben Ezequias, são vendidos como escravos. Varo ordena a captura e execução de todos os guerrilheiros do galileu, crucificando mais de dois mil dos seus partidários, mas o chefe, Judas Galileu, consegue escapar e, com a ajuda de outro extremista - um fariseu chamado Zadok -, inicia um lento e profundo movimento de luta clandestina contra o Império Romano. Na infância e juventude de Jesus de Nazaré este movimento - que adota o nome de zelotas ou zeladores, - começa a ganhar adeptos, estendendo-se como uma mancha de azeite por todo o Israel. Uma vez mais, a Galiléia foi o berço e o coração destes patriotas extremistas, que não cessam nas suas hostilidades contra a legião romana fixada na Cesareia e no restante território da nação judaica. Camuflados com um ardente espírito religioso, estes terroristas do século I empunham as armas de acordo com uma doutrina que poderia sintetizar-se nos princípios seguintes:
1º O reinado de Deus sobre Israel é incompatível com qualquer domínio estrangeiro. Aceitar o César de Roma como rei é violar a lei divina. Deus é o único rei do povo;
2º O culto ao imperador, em qualquer das suas formas, é abominável. O zelo de muitos destes zelotas chegava ao extremo de não tocarem sequer nas moedas romanas que tivessem a efígie de César. O pagamento dos impostos a Roma era uma idolatria e uma apostasia, uma vez que implicava submissão a Roma e ao Imperador. (Precisamente o nacionalismo zelota surge com Judas ben Ezequias e tem origem na ordem de Augusto para que toda a nação hebraica seja recenseada. Esta operação de censo tinha, na realidade uma motivação mais econômica que estatística. E isto indignou os Judeus);
3º Os Judeus não deviam esperar passivamente a chegada do Reino de Deus. Era necessária a colaboração com Deus, mediante a revolução e a guerra santa. Acreditavam nos milagres de Deus e consideravam que estes deviam estar sempre ao serviço daquela idéia libertadora;
4º O objetivo principal da luta armada era conseguir a liberdade e independência política de Israel. Os zelotas tinham tomado a libertação do Egito por Yavé como o símbolo e modelo a imitar;
5º Segundo a filosofia zelota, a conversão a Deus exigia necessariamente a desobediência à autoridade romana e sacrificar o dinheiro, a tranqüilidade e até a vida em benefício destes princípios salvadores.
- Aquela vil mentira de Judas Iscariotes fez que o centurião hesitasse. Os romanos, como sabes, perseguem encaniçadamente os revolucionários. No entanto, o oficial comandante da legião ordenou-lhes que esperassem, enquanto ia à residência do procurador. Enfim, nisto e naquilo o Sinédrio perdeu uma hora. Pilatos recolhera-se para dormir e, num primeiro momento, não quis saber de nada. Mas os enviados de Caifás não deixaram de insistir obrigando Civilis a procurar Pilatos pela segunda vez, anunciando-lhe que no acampamento se descobrira importante arsenal e que se conseguissem capturar o chefe - Jesus de Nazaré - o procurador obteria um triunfo importante aos olhos de César.
- Por fim, e talvez para se livrar dos odiosos sacerdotes, Pilatos consentiu, e o centurião de guarda entregou o comando de um pelotão de trinta ou quarenta legionários - não saberia precisar-te o número certo ao seu optio: um tal Arsenius.
Desta forma, e às pressas, o destacamento saiu de Jerusalém guiado por Judas. O resto tu já sabes...
Sim, conhecia, mas alguns pormenores continuavam sem explicação. Por exemplo, por que motivo Judas Iscariotes se separou do pelotão? O que seria lógico é que, se devia guiar os soldados, levitas e serventes do Templo até Getsémani e denunciar-lhes o Rabi, não se tivesse separado deles em momento algum. Além disso, se a intenção do oficial subalterno era capturar um chefe zelota e o seu grupo por que razão Arsenius se contentou em prender Jesus de Nazaré? Porque não assaltou o acampamento? (Como disse, na manhã seguinte, sábado, ficaria resolvida a primeira incógnita. Quanto à segunda, o procurador ia esclarecer-me, na minha próxima visita à Torre Antonia.)
José, naturalmente, não pôde esclarecer-me estas dúvidas. Nem ele nem Ismael se tinham atrevido a unirem-se ao pelotão, que saiu do Templo minutos depois da meia-noite, pela Porta Dourada. Quanto à minha pergunta sobre a razão por que o Mestre fora conduzido a casa de Anás, em vez de ser levado imediatamente à presença de Caifás, José de Arimatéia - evidentemente cansado - comentou:
- Feliz és tu, Jasão, que não tens de viver as constantes intrigas destes homens impuros... Não sei ao certo, mas penso que Anás e o seu genro estão de acordo em deter o Mestre neste lugar até que Caifás consiga reunir um máximo de sacerdotes dedicados. Desta forma, o julgamento ser implacável. A lei diz, além disso que o Conselho do Sinédrio não pode reunir-se antes da primeira oferenda. - E a que hora tem lugar esse primeiro sacrifício?
- Às três da madrugada. Como vês, ainda temos tempo. Talvez aconteça o milagre que tanto desejamos...
E José concluiu a sua pormenorizada narrativa afirmando que aquele réptil chamado Caifás, com o objetivo de não levantar suspeitas - nem sequer entre os seus próprios homens e servidores - ordenara a dois dos seus confidentes que pagassem generosamente ao optio romano para que, mesmo contra a opinião do chefe dos guardas do Templo, levasse Jesus de Nazaré ao palacete do seu sogro Anás.
* Com tudo isto, é fácil entender a confusão de alguns dos discípulos e apóstolos de Jesus - caso de Simão, o Zelota, e do próprio Judas Iscariotes -, que acreditaram desde o começo que a doutrina do Galileu tinha muito a ver com este movimento de libertação nacional. Os zelotas foram os causadores diretos das sangrentas revoltas contra Roma nos anos 68 a 70 da nossa Era, bem como da registrada em 135. (N. do M.)
Arimatéia despediu-se, mostrando-me que tinha intenção de entrar na residência do antigo sumo sacerdote e fazer tudo que estivesse na sua mão – subornar até, o velho Anás - para que Jesus fosse posto em liberdade. Ao vê-lo desaparecer dentro de casa não pude reprimir um sentimento de tristeza por aquele leal adepto do Mestre. Estava no seu direito de acalentar a esperança. O que ele não podia saber é que essa esperança morrera muito antes, no jardim de Getsémani...
Semi-oculto no escuro do pátio informei Eliseu do curso dos acontecimentos, pedindo-lhe que me avisasse pouco antes da madrugada. Voltei ao fogo. Pedro, fechado nos seus pensamentos, nem sequer notara a chegada de José de Arimatéia.
Tinha-se sentado atrás dos levitas, cobrindo a calva com o manto. Suponho que aquele gesto pouco tinha a ver com o frio reinante e sim com o seu desejo ardente de que ninguém voltasse a descobri-lo e a denunciá-lo.
Os guardas e sicários continuavam a discutir as tradições e lendas sobre os demônios. Na residência de Anás, tudo parecia tranqüilo. Não observei movimento algum nem sinal de violência ou de agitação. E pensei - erradamente - que o interrogatório do antigo sumo sacerdote decorria sem incidentes. Eu estava sentado perto de Pedro havia pouco mais de meia hora quando se aproximou do círculo uma segunda mulher. Era mais nova, e, pelo vestuário, deduzi que se tratava de outra serva. Colocou-se junto da porteira e esta, ao vê-la, inclinou-se para o seu ouvido esquerdo, segredando-lhe qualquer coisa, ao mesmo tempo que indicava Pedro com a mão.
A recém-chegada olhou com atenção. Mas, pela maneira de olhar calculei que fosse míope. Deu então uns passos, rodeando os que estavam juntos em volta do lume. Ao chegar junto do apóstolo deu um puxão ao manto que escondia a cabeça de Simão, gritando-lhe:
- Não és um dos fiéis daquele galileu...?
A inesperada exclamação da hebréia assustou ao mesmo tempo os levitas e Pedro, e o discípulo, branco como a cal, levantou-se aos tropeções, olhando a moça.
- Não conheço aquele homem - gritou, ele mais alto que a sua inquisidora. - E também não sou um dos seus discípulos...!
Pusera tanta veemência nas suas frases que as artérias do pescoço lhe, incharam e o seu rosto se fez de púrpura. Os olhos do aterrorizado amigo de Jesus quase lhe saíram das órbitas enquanto um delgadíssimo fio de saliva descia pela comissa esquerda dos lábios.
A agressividade de Pedro foi tal que a serva recuou assustada, fugindo dali em direção à porta da casa. Desta vez, os servos e guardas permaneceram uns segundos com a vista cravada no infeliz pescador. Pedro, aturdido, deu meia volta, afastando-se do fogo.
Pensei que a sua intenção fosse fugir do recinto e pouco me faltou para ir atrás dele. Mas não, apesar da sua fraqueza, Pedro continuava a amar o Mestre. Como se escreveu pouco e pobremente da tortura íntima deste primitivo galileu, consciente dos seus erros, dominado pelo instinto da sobrevivência e forçado pelo seu temperamento àquele trágico beco sem saída! Tive de me esforçar para não correr para junto dele e consolá-lo. No entanto, o objetivo da minha missão conseguiu impor-se e esperei.
Encostado às grades do muro, curvado e silencioso, Simão batia muitas vezes com a cabeça nos ferros. Temi que se ferisse. As cabeçadas, secas e constantes, em vez de o magoarem pareciam trazer-lhe alguma serenidade. Dali a pouco, depois de secar as lágrimas com uma das mangas do manto, voltou a juntar-se ao grupo. (Sinceramente, aquela atitude do apóstolo - voltando ao fogo - fez-me refletir, levando-me a esquecer até a sua detestável e até certo ponto compreensível conduta. As igrejas - especialmente a Católica - julgaram e classificaram este episódio das três negações como um procedimento lamentável de Simão Pedro. Mas muito poucos teólogos e moralistas parecem ter em consideração uma atenuante poderosa em favor do renegado. Pedro poderia ter abandonado o Pátio de Anás depois da sua primeira traição. E não o fez. E também não o fez depois da segunda e da terceira e da quarta... Porque, embora os evangelistas citem três negações, na realidade houve mais uma, embora também seja certo que essa negação extra não teve caráter público. Quero dizer com tudo isto que, se é verdade que Pedro não se portou dignamente, não é menos verdade que a sua presença no local o redime em boa medida, daqueles momentos de fraqueza.
O teimoso galileu não estava disposto a imitar os companheiros que tinham fugido pelo monte e, vencendo o medo, acomodou-se como pôde entre os serventes, os quais - seja dito de passagem - em nenhum momento se converteram em acusadores nem o incomodaram. Pelo menos, os homens que, naquela altura, se uniam em torno das chamas. Mas quis a má sorte, pouco depois o grupo fosse aumentado por meia-dúzia de sacerdotes, chegados, ao que parecia, de casa de Caifás, trazendo por missão coordenar e controlar a transferência do Nazareno.
Depois de pedirem informações aos levitas ali reunidos, quatro desses sacerdotes dirigiram-se para o interior da casa de trás tendo os outros dois permanecido junto da fogueira. Logo no primeiro instante se sentiram atraídos pela animada conversa sobre as superstições do povo judeu.
Alguém tinha falado em Lilith e a conversa animou-se novamente. Pelo que se dizia, Lilith era o nome de um dos diabos mais famosos. A maioria dos presentes aceitava a sua existência, classificando-o como demónio fêmea. Este curioso espírito concentrava os seus ataques, como fêmea que era, nos homens, e mais concretamente naqueles varões que se atreviam a ficar sós numa casa. E só o Divino, bendito seja o seu nome, sabe quando pode apresentar-se - reforçou outro dos servidores do Sinédrio. A crença em questão não foi muito bem recebida por um dos sacerdotes um tal Mardoqueu, mais conhecido em Jerusalém por Petajfa (e ao qual me referi anteriormente), como conseqüência da sua grande facilidade para as línguas. (Conhecia, dizia o povo, mais de setenta idiomas e dialetos. Daí a sua alcunha: Petajfa, da palavra patj: abria as palavras, ao interpretá-las.) Este sacerdote, responsável também por uma das caixas do Templo e homem de grande cultura, riu de tais patranhas. As gargalhadas de Petajfa indignaram um dos guardas que, apontando primeiro Pedro e depois o interior da casa, exclamou:
- Podes rir o que quiseres, mas olha esse galileu... Tu próprio assististe à sua entrada triunfal em Jerusalém, no lombo de um jumento. Não teve a precaução de colocar uma cauda de raposa ou um trapo vermelho entre os olhos do burrico e imagina o que lhe trouxe a fortuna (1)... Naquele instante, Simão cometeu novo erro. Irritado por aquela arraigada superstição hebraica, interveio na discussão tentando esclarecer os presentes de que o Rabi da Galiléia não precisava de se proteger de tão absurdas crendices e que o Seu poder era tal que, se assim desejasse, podia fazer cair fogo do céu e arrasar o Sinédrio, sem atingir os inocentes. Os levitas e servidores do Templo não prestaram muita atenção à valente mas inoportuna defesa de Pedro. No entanto, Petajfa - que imediatamente percebera o forte sotaque galilaico do apóstolo - encarou-o, desviando o rumo da conversa para um caminho que novamente deixou arrepios na pele de Simão:
- Tu tens de ser um dos adeptos do preso. Este Jesus é um galileu e a tua maneira de falar atraiçoa-te... Falas como um verdadeiro galileu. Antes que Simão pudesse reagir, um dos sicários do Sinédrio - precisamente aquele que tinha falado da milagrosa cura de Malco - confirmou a descoberta de Petajfa, desvendando a todos um fato que, até àquele momento, passara despercebido:
- Além disso - exclamou, em alarme -, tu estavas no caminho do monte das Oliveiras... Vi como feriste o meu parente... Aquilo mudou tudo. Já não se tratava unicamente de acusações, mais ou menos veladas, de partilhar a doutrina do Galileu. A última afirmação podia arrastar o apóstolo à prisão imediata, como culpado de agressão a um dos servos do sumo sacerdote.
E acredito que foi esta circunstância o que realmente fez ceder os nervos de Pedro. Não se tratava de renegar Jesus mas, principalmente, de evitar tão perigosa acusação.
Alguns dos levitas puseram-se de pé, brandindo os seus cacetes numa atitude ameaçadora, e provavelmente, teriam prendido Pedro, se não fosse a torrente de juramentos que começou a brotar da sua boca. Aquele obsceno e azedo chorrilho de imprecações - em que o aterrorizado amigo do Nazareno chegou a incluir a própria mãe e os filhos travou o ímpeto dos guardas. Quando, finalmente, o acossado galileu jurou pelo ouro do Templo, abrindo o manto de modo a que todos pudessem ver que não trazia espada, aqueles servis personagens acabaram por deixá-lo em paz. (Jurar e dar por testemunho o Templo era importante, mas fazê-lo pelo ouro do Santuário era muito mais...) Quando Pedro viu que se afastava o fantasma da sua prisão, fez meia volta e, muito devagar - procurando não levantar novas suspeitas -, distanciou-se da fogueira.
* Na primeira oportunidade que tive solicitei a Papai Noel informações sobre as principais superstições dos judeus daquela época. Entre outras figurava, efetivamente, a de não empreender viagem alguma - por breve que fosse - sem antes ter colocado um rabo de raposa ou um trapo vermelho entre os olhos da cavalgadura. Por exemplo: se num banquete dois convidados atiravam um ao outro bolinhas de pão, era garantido que ficariam doentes. Outra das superstições, relacionada com a presença dos demônios nas latrinas, chegava a sugerir que se fosse ao referido lugar na companhia de um cordeiro. Desta forma, o Judeu podia fazer as suas necessidades sem problemas. (N. do M.)
Arrastando os pés sem forças e com a alma duramente castigada, foi sentar-se nas escadas de mármore da porta. Durante uns minutos não me atrevi a sair do perto do fogo. O infeliz discípulo enterrara o rosto entre as mãos pequenas e calejadas, marcando o evidente desespero com uma ininterrupta e ritmada oscilação frontal do corpo. Eram quatro da madrugada. Consumara-se a terceira negação pública.
O silêncio continuava a dominar Jerusalém. Ao longe, a espaços, ouviam-se alguns dos muitos cães vadios que eu vira na minha passagem pela Cidade Santa. Foram aqueles quase sempre queixosos latidos a trazer-me à memória outro fato que, precisamente, ainda não se tinha registrado. Pedro negara o seu Mestre três vezes, mas no entanto, eu não tinha ouvido o famoso canto do galo. Não que este episódio me preocupasse demasiado, muito menos quando estava vivendo - e sofrendo - as angústias de Simão totalmente exausto e abatido junto ao portão de entrada da casa de Anás. Contudo, e enquanto esperava o amanhecer procurei apurar o ouvido. Meditando sobre este pormenor compreendi que os galos de Jerusalém não podiam ter iniciado os seus característicos cantos pela simples razão de que ainda faltava mais de uma hora para amanhecer (naquela sexta-feira, 7 de Abril, como citei em outros momentos o nascer do Sol deu-se às cinco horas e quarenta e dois minutos). A certa altura cheguei a acreditar que os evangelistas tinham voltado a enganar-se. As três negações (2), como disse, tinham acontecido e os cronômetros monoiónicos do módulo marcavam quatro da madrugada. Mas não. Desta vez não houve erro, embora as versões dos escritores sagrados também não coincidam cem por cento... Mas tenho de me prender a uma rigorosa ordem cronológica.
* A lei judaica permitia este tipo de maldições - contra o pai e a mãe - desde que a maldição não fosse nominal. Neste sentido. Pedro teve especial cuidado em não citar os nomes de batismo dos seus progenitores (N. do M.)
2 Cavalo de Tróia dotou o módulo de um sistema múltiplo de relógios cujo fundamento não era o sistema tradicional de radiação do Césto 133 dos relógios atômicos, mas sim a manipulação ou aprisionamento de um íon - um só íon – num campo magnético, mediante o uso de um delgadíssimo feixe de laser. É quase certo que este novo sistema de medição do tempo - com uma precisão cem mil vezes superior à dos relógios atômicos - participe definitivamente na vida do homem nos próximos anos. Graças a estes sofisticados instrumentos, o orto ou aparecimento no horizonte do limbo superior do Sol – para Jerusalém: latitude aproximada trinta e dois minutos N – foi calculada pelas cinco horas e quarenta e dois minutos naquele 7 de Abril do ano 30 (sempre tempo local). Quanto ao ocaso ou desaparecimento abaixo da linha do horizonte do limbo superior do Sol, foi calculado às dezoito horas e vinte e dois minutos (teve-se em conta a refração, que, nos acontecimentos referidos, eleva o astro aproximadamente trinta e quatro
segundos de arco). Para esta latitude, a variação das horas de orto e ocaso é, aproximadamente, de quatro minutos por cada cinco graus de separação em latitude. (N. do M.)
Quando achei que Pedro estava mais calmo, eu também me retirei do grupo dos levitas. Deixei-me cair junto do discípulo e aproximei a mão do seu ombro esquerdo. Pedro teve novo sobressalto. Interrompeu aquele movimento quase catatônico e, ao verificar que era eu, suspirou aliviado.
Durante algum tempo não falamos. Que podia eu dizer-lhe? Dali a pouco, Pedro - que tinha recuperado o ânimo - olhou-me fixamente, exprimindo uma idéia que ainda me deixou mais confuso:
- Reparaste, Jasão, com que habilidade destruí as acusações daqueles servis escravos do Templo?
Um sorriso mecânico acompanhou as inesperadas palavras de Simão. Compreendi, então, que a sua máxima preocupação naqueles momentos não era, como acreditara, o bem pouco nobre fato de ter renegado o seu amigo. Nada disso. Em minha opinião, Pedro não tinha a consciência clara de ter traído o Mestre. O que o angustiara e aterrorizara era a ameaça de um possível encarceramento.
Esta suspeita, que foi ganhando terreno no meu coração, viu-se confirmada pelos comentários seguintes do apóstolo, que a si próprio se felicitava por ter evitado a sua identificação.
- Além disso, aquelas mulheres – acrescentou Pedro, dizendo em voz alta aquilo que pensava - não têm autoridade moral. Não podem interrogar-me... Não têm direito... Não, não têm... Não têm... O Galileu repetiu aquela monótona cantilena como se precisasse se justificar, e em momento algum lembrou ou disse o nome de Jesus. Penso não estar enganado se disser que o pescador só teve verdadeira e definitiva consciência do seu feio gesto ao escutar o canto dos galos da cidade. Só então recordou a profecia do Mestre e assumiu todo o peso da sua infidelidade.
Quando o interroguei sobre a sorte dos companheiros, Pedro nada soube dizer-me. Ignorava tudo. Só se lembrava que, quando se encontrava a poucos metros da cerca de pedra do jardim de Simão, qualquer coisa o obrigou a deter a fuga. Cego de raiva, escondeu-se entre as oliveiras, disposto a seguir o grupo que tinha capturado o Rabi. E ali continuamos até que, poucos minutos antes da alvorada, a porteira e a serva que tinham comprometido a segurança do apóstolo com as suas perguntas voltaram à carga. Aproximaram-se de nós inesperadamente e, quase sem levantar a voz, a porteira comentou em tom sereno, sem a malícia inicial:
- Tenho a certeza de que és um dos discípulos deste Jesus. Não só porque um dos seus fiéis me pediu para te deixar entrar no pátio, como ainda porque o meu irmão te viu no Templo com Aquele homem... Para quê negar?
Pela quarta vez Pedro negou qualquer ligação com o Nazareno.
Porém, nesta ocasião, a sua negativa foi muito mais fria e calculista. As suas idéias sobre a falta de autoridade legal das mulheres para o acusarem e o fato de o novo ataque não ser feito em público, foram, em minha opinião, decisivos.
Mas nem Pedro nem eu contávamos que justamente naqueles momentos, quando a claridade do novo dia despontava a leste, no interior da mansão começaram a ouvir-se algumas vozes. Pusemo-nos de pé, ao mesmo tempo que um dos criados de Anás saía precipitadamente, alertando os guardas.
Tudo aconteceu tão rapidamente que nem conseguimos reagir. De repente, no umbral da porta apareceu o Mestre. Continuava atado. Junto dele, João, o legionário e mais dois servos de Anás.
Pelo espaço de um minuto, enquanto os levitas do Templo se organizavam para escoltar o preso, Jesus levantou lentamente a cabeça, voltando o rosto para nós, que continuávamos à sua direita e a pouco mais de dois metros. À luz trêmula e avermelhada dos archotes, os olhos do Galileu cravaram-se única e exclusivamente nos do seu amigo Pedro. Jesus não sorriu, mas o Seu olhar transmitia uma profunda e comovedora mensagem de amor e de piedade. Com aquele gesto, o Gigante chegou como nunca antes conseguira ao aturdido coração do renegado. Não havia necessidade de palavras. O Mestre parecia saber o que acontecera durante aquelas quase três horas passadas no pátio do antigo sumo sacerdote, e Pedro, ao receber aquela intensa mensagem, começou a avaliar em profundidade a dimensão da sua culpa. Naquele instante, quando o soldado romano atrás do Nazareno o obrigou a descer as escadas com violento empurrão, ali perto, um galo rasgava o silêncio da alvorada em canto demorado e estridente. O amigo do Mestre empalideceu.
A porteira, que permanecia a nosso lado, dirigiu-se velozmente para a cancela, abrindo a rangente porta de ferro, e o grupo de levitas, cercando sempre o Mestre, saiu da casa de Anás.
A partir daquele momento, e durante algum tempo, outros galos encheram com o seu canto os primeiros alvores daquela sexta-feira 7 de Abril, que nunca poderei esquecer...1
Teria dado tudo para continuar ao lado de Pedro. Creio que a partir do canto do galo, o apóstolo deixou de ser o mesmo. É certo que o inexplicável prodígio da ressurreição do Mestre o afetou decisivamente. No entanto, aquelas negações pesariam para sempre na sua alma. Ali, estou convencido, morreu, senão toda, pelo menos boa parte do Simão assustadiço, grosseiro e vaidoso. O seu espírito, recebera o mais rude dos golpes...
* Não era certo, como pretenderam alguns comentaristas que se apóiam nos escritos rabínicos Baba gamma (VII, 7-VIII,10 e 82b) que a criação de galinhas estivesse proibida em Jerusalém. (Pensava-se que, ao escavarem, podiam desenterrar coisas impuras.) Segundo a Misn , o canto do galo servia precisamente como sinal para o toque das trombetas. Assim o confirmam os textos da Sukka V, 4, o Tamid I 2 e o Yoma I, 8. Entre as informações fornecidas pelo computador do módulo garantia-se que a Misn se refere a um galo de Jerusalém que, segundo Yuda ben Baba, tinha sido lapidado por ter morrido um homem. Segundo parece o referido galo trespassara com o bico o crânio de um menino. Também em T os.B. Q. VIII 10 (361,29) se diz que a criação destas aves domésticas era permitida na Cidade Santa, sempre e quando se dispusesse de um jardim ou de uma estrumeira onde pudessem escavar. (N. do M.)
Mas a missão exigia que permanecesse o mais perto possível do Nazareno. Numa breve corrida juntei-me a João e ao soldado romano. Ao atravessar a porta de entrada do palacete de Anás surpreendeu-me ver João Marcos desta vez coberto, por um manto. Como chegara ele até ali? Não pude parar para lhe perguntar, mas deduzi, que, depois de escapar aos legionários, teria arranjado aquele manto, seguindo a escolta romana, tal como João Zebedeu e Pedro. A comitiva meteu-se pelas ruas desertas de Jerusalém no momento em que as trombetas do Templo começavam a despertar a população. Perguntei a João se sabia para onde nos encaminhávamos.
- Os sacerdotes enviados por Caifás - disse-me - anunciaram ao sogro dessa ratazana que o tribunal do Sinédrio estava reunido. Receio que bem depressa o saberemos...
Naquele momento, Eliseu estabeleceu de novo ligação, avisando-me de que eram cinco horas e quarenta e dois minutos.
O seu novo boletim meteorológico veio confirmar o que tinha dito no dia anterior: subida constante dos barômetros e aumento da velocidade do vento, com perigo de siroco. Aquele amanhecer, efetivamente, não foi tão fresco como os anteriores.
Às pressas o pelotão puxava pelo Mestre.
Assim, interroguei João Zebedeu sobre o que acontecera em casa do poderoso e influente Anás. Tal como suspeitava – sempre segundo o testemunho de João, que nem por um momento se afastou de Jesus - o encontro entre Anás e o Galileu decorreu de forma estranhamente lenta. No fundo a presença do Rabi perante o ex-sumo sacerdote não fazia sentido, era apenas um estratagema urdido entre Caifás e o seu sogro, a fim de retê-lo num local seguro até os saduceus, escribas e fariseus comprometidos na trama acabarem de comparecer ante o sumo sacerdote.
José de Arimatéia, que assistiu a parte do interrogatório e que preferira ficar com Anás, completaria horas mais tarde a narrativa de João, explicando-me que o hábil sogro de Caifás tinha, desde o primeiro instante, a secreta intenção de liquidar ali mesmo aquele incômodo assunto. Pelo que se via, conhecendo o caráter violento e impulsivo do seu genro, não desejava que o processo contra o Mestre caísse nas suas mãos.
Porém, a inesperada atitude de Jesus de Nazaré abortou os seus planos...
- Anás - informou-me o discípulo do Rabi - conhecia o Mestre há muitos anos. Como toda as pessoas em Israel, também ele tinha ouvido falar dos sinais, prodígios e ensinamentos de Jesus. Ao receber-nos nos seus aposentos privados, Anás quis prescindir do representante do optio e de mim, mas o legionário opôs-se, avisando-o de que se tratava de uma ordem do procurador. Como sabes, as relações daquele corrupto sacerdote com os romanos são excelentes e, finalmente, teve de se resignar. Sentou-se numa das cadeiras e esteve um bom momento sem pronunciar palavra, observando o Mestre com grande curiosidade. Depois, com a sua habitual presunção e auto-suficiência, dirigiu-se a Jesus nos seguintes termos.
- Já sabes que tenho de fazer qualquer coisa quanto aos Teus ensinamentos... Andas a perturbar a paz e a ordem do nosso país.
O Mestre levantou a cabeça e olhou-o fixamente. Mas não abriu a boca.
Aquilo não agradou a Anás. Os seus nervos começaram a ceder e sem poder ocultar a raiva exigiu:
- Diga-me os nomes dos teus discípulos...
Mas o Mestre permaneceu calado. E, sem pestanejar, continuou de olhos fitos no velho réptil.
- Juro-te, Jasão que muito poucas vezes tinha visto tanta majestade no rosto do nosso Mestre. Enquanto Anás se encolerizava, Jesus, de pé, e apesar de estar amarrado, demonstrava àquele bastardo a Sua verdadeira grandeza... Apesar das circunstâncias, João falava do Galileu com tanto ou mais entusiasmo, se é possível, do que em momentos semelhantes ao da sua entrada triunfal em Jerusalém.
- Então, para minha surpresa, e penso que também para surpresa de Jesus - continuou o jovem Zebedeu -, Anás mudou de tática. Chegou a sugerir ao Mestre que estava disposto a esquecer tudo, com uma condição.
Também aquilo era novo para mim e, enquanto subíamos pelas vielas da Cidade Baixa, com o claro objetivo de chegar à sede do Sinédrio - situada na zona exterior e sul-ocidental do Templo (muito perto daquilo que ainda hoje se conserva e se chama muro das Lamentações) - prestei toda a minha atenção às palavras do discípulo.
- Sabe do que foi capaz...? Anás propôs perdoar-Lhe a vida se saísse imediatamente da Palestina... Mas o Mestre não manifestou qualquer sinal de interesse. Aquele silêncio exasperou mais ainda o antigo sumo sacerdote, que, aos murros nos braços da cadeira, gritou a Jesus: Não vês que sou muito bondoso contigo...? Não te percebes de quanto é o meu poder? Eu posso determinar o resultado final do teu próximo julgamento...
Jesus, pela primeira vez, falou e dirigindo-se a Anás, disse-lhe:
- Sabes que nunca poderás ter poder sobre Mim sem permissão de Meu Pai. Alguns gostariam de matar o Filho do Homem porque são uns ignorantes e não sabem fazer outra coisa. Mas tu, amigo, tens, sim, idéia do que fazes. Como posso então repelir a luz de Deus?
A inesperada amabilidade do Mestre para com aquela serpente derrotou Anás e surpreendeu-me.
E o velho pôs-se a maquinar, procurando, suponho, alguma nova trama para perder Jesus.
Um momento depois perguntou de novo:
- Que tentas ensinar ao povo? Quem pretendes ser?
O Mestre de modo algum iludiu as questões. E dirigiu-se a Anás com grande firmeza:
- Muito bem sabes que falei claramente às pessoas. Ensinei nas sinagogas muitas vezes e também no Templo, onde judeus e gentios me escutaram. Nada disse em segredo. Qual é então a razão por que me interrogas sobre os Meus ensinamentos? Porque não convocas os Meus ouvintes e te informas por eles? Toda a Jerusalém Me ouviu. E tu também, embora não tenhas entendido os Meus sentimentos.
Antes que Anás pudesse responder-lhe, um dos servos da casa voltou-se para o Mestre e esbofeteou-o violentamente, dizendo:
- Como te atreves a responder assim ao sumo sacerdote?
- Ah, Jasão, como me fervia o sangue...!
Quando me interessei pela reação de Jesus, João encolheu os ombros e indicando o Mestre, que caminhava uns quantos metros à nossa frente, comentou: - Não vi sombra alguma de ódio ou ressentimento nos Seus olhos. Simplesmente, pôs-se na frente do bajulador dos betusianos e com a mesma transparência e docilidade com que se dirigira a Anás respondeu:
- Meu amigo, se falei erradamente, testemunha contra mim. Mas, se é verdade, porque me maltratas?
Perguntei então ao discípulo se aquela bofetada provocara alguma hemorragia nasal em Jesus. João disse que não. Efetivamente, quando vi aparecer o Galileu na porta da grande casa de Anás o Seu rosto não apresentava sinais de violência. Pelo menos, eu não consegui distinguir. Havia algum tempo que observava como Pedro nos seguia à distância. Mas, ao aproximarmo-nos do arco de Robinson, e numa das alturas em que virei a cabeça para verificar se o solitário e infeliz Simão continuava ali, vi-o sentar-se ao pé da muralha meridional que separava os dois grandes bairros de Jerusalém. Pela maneira como caiu nos degraus e meteu a cabeça entre as mãos compreendi que o apóstolo se dera por vencido. A sua derrota naquela hora era completa. Se eu não conhecesse o final daqueles acontecimentos, não teria posto as minhas mãos no fogo quanto à sua sorte...
Infelizmente, não voltaria a vê-lo.
João, que naquele momento não estava a par das negações do amigo, terminou assim a sua narrativa:
- Anás teve um gesto de reprovação pela brutalidade do seu servo com o Mestre, mas o seu orgulho é tal que não lhe fez qualquer observação. Limitou-se a levantar-se da cadeira e saiu da sala. Só o voltamos a ver passadas duas horas...
- Durante esse tempo, Jesus disse-te alguma coisa?
- Não - respondeu João. - O Mestre, os servos, o soldado e eu continuamos Aliás sem nos mexermos, e em silêncio. Passado este tempo, Anás voltou à sala, e aproximando-se de Jesus recomeçou o interrogatório:
- Consideras-te o Messias, o libertador de Israel?
Jesus levantou novamente os olhos e com idêntica calma disse-lhe:
- Anás, conheces-me desde a minha juventude e sabes que não pretendo ser mais nem menos do que delegado de Meu Pai. Fui enviado a todos os homens tanto gentios como judeus.
Mas o sumo sacerdote não ficou satisfeito e repetiu a pergunta:
- Ouvi dizer que pretendes ser o Messias. É verdade?
- O Mestre esperou um pouco antes de responder. Por um momento acreditei que não desejava falar. Mas acabou por o fazer. E com que segurança, Jasão!
- Tu o disseste!, disse Ele por fim.
- Foi então que entraram os sacerdotes. Vinham da parte de Caifás, e, aproximando-se de Anás, murmuram-lhe qualquer coisa ao ouvido. Não posso dizer-te o quê, embora suponha que muito tem a ver com o Conselho do Sinédrio. Como te dizia, não tardaremos em saber.
- O resto já sabes. Anás ordenou que levassem Jesus à presença do seu
genro e saímos...
Pouco antes das seis da manhã o pelotão que conduzia Jesus parou na frente de uma grande casa rústica, situada a pouca distância do grande retângulo do Templo. Concretamente, junto da esquina sul-ocidental, numa reduzida área ajardinada, perfeitamente isolada daquele setor da Cidade Baixa pelos arcos de Wilson e Robinson, a norte e a sul, e pela muralha meridional e pela parede do Templo, a oriente e a ocidente, respectivamente.
Andorinhas madrugadoras voavam, brincalhonas, entre os beirais do segundo andar daquela grande casa de mais de cinqüenta metros de comprimento por trinta e quatro de fundo.
Os gorjeios dos emigrantes negros e o barulho surdo e ritmado da moenda do trigo levantando-se de todas as casas de Jerusalém, foram os últimos e agradáveis sons que escutamos antes de entrar naquele antro.
Durante este novo deslocamento de Jesus, a possibilidade de que nos dirigíssemos para a tradicional sede do Sinédrio dentro do Santuário, fez-me tremer. Se assim fosse, nem o legionário nem eu poderíamos entrar. Felizmente - tal como soubera pelos textos do historiador Flávio Josefo -, poucos meses antes de se iniciar o ano 30, as castas sacerdotais tinham descongestionado a célebre sala das pedras talhadas (situada num dos ângulos sul-ocidentais do Átrio dos Sacerdotes), transferindo o local de reunião do Sinédrio para este edifício de grandes pedras cinzentas e somente desbastadas (1). O tribunal que Caifás planejara - como iremos ver - não era muito ortodoxo e, embora o Conselho Supremo israelita continuasse a reunir-se, por vezes no Santuário, nesta altura - com grande contentamento da minha parte - o sumo sacerdote e os seus correligionários tinham preferido resolver o assunto na nova sede, muito mais discreta que a câmara das pedras talhadas.
Os levitas atravessaram um apertado e escuro corredor, desembocando no reduzido pátio central do bouleyterion ou quartel-general do Sinédrio. Dali, e sem perda de tempo penetramos numa sala quadrada, muito espaçosa e de teto alto, situada - a julgar pelo caminho que tínhamos percorrido – na ala mais ocidental do edifício. A escassa claridade que entrava pelas frestas forçava a manter acesas as lanternas de azeite.
Tal como receava, mal pisamos a quadra onde deveria acontecer o julgamento contra o Galileu, um dos servos do sumo sacerdote atravessou-se no meu caminho, exigindo que me identificasse.
Foram segundos de grande tensão. Na minha condição de simples mercador grego não tinha razão alguma para assistir à assembléia. Perante aqueles hebreus, a minha presença não se justificava. Quando Já pensava estar tudo perdido, o legionário, que ainda se encontrava a meu lado, resolveu a dificuldade com uma resposta oportuníssima:
- Alto...! Este homem vem comigo. Como eu, representa o procurador romano.
Aquela mentira - conseqüência do denário de prata que entregara ao delegado do oficial subalterno Arsenius – foi determinante, e sem mais explicações, dirigimo-nos para o centro da câmara.
* Tanto Josefo, na sua obra Guerras dos Judeus (V.4,2 e VI. 6,3), como a Misn (Mid. V. 5; Samb. XI.2 e Tamid II,S entre outros documentos) asseguram de forma muito precisa que o Sinédrio se mudou, quarenta anos antes da destruição do Templo, da sala das pedras talhadas para uma espécie de bazar, praticamente encostado ao Santuário pelo lado ocidental. Assim o dá a entender também Fatos (23,10) (N. do M.)
Um pouco mais de metade da sala (de uns dez metros de lado) era ocupada por um banco corrido de madeira, de forma semicircular ou de meia-lua. Este assento comum, sem braços e dotado de altos espaldares, primorosamente trabalhados, fora colocado sobre um tablado de cerca de quarenta centímetros de altura, de modo que os seus ocupantes pudessem dominar o recinto. Em frente destes assentos - fechando o semicírculo - observei três filas de bancos, igualmente de madeira, mas sobre o lajedo do pavimento e, portanto, a um nível muito mais baixo. Quando entramos, o banco em forma de meia-lua estava ocupado por um total de vinte e três sacerdotes. Mais seis ou sete tinham se acomodado na primeira das três filas de bancos a que fiz referência. As outras duas filas continuavam vazias. (Posteriormente, ao comparar estas informações com as do computador central do berço, cheguei à conclusão que aquela meia-dúzia de saduceus e fariseus que se sentava fora do semicírculo procedera assim porque aquele lugar era o do chamado Sinédrio menor, formado única e exclusivamente por vinte e três membros. Caifás conseguira reunir uns trinta adeptos e, conseqüentemente, nem todos puderam participar no tribunal oficial.) Sentados à beira do tablado, um em cada ponta do semicírculo, encontravam-se dois escribas judiciais. Vestiam as suas tradicionais túnicas de linho branco, trazendo nas faixas umas caixinhas de madeira de onde começaram a tirar os utensílios de escrita, penas de junco, dois pequenos frascos que faziam as vezes de tinteiros e vários rolos de couro. Para dizer a verdade, aqueles dois escribas foram a única coisa legal e correta do simulacro de julgamento. (Um, segundo a Misn , encarregava-se de ir recolhendo as alegações a favor da absolvição do detido ou detidos, e o segundo escrevia as propostas de condenação.) Jesus, sempre na companhia do legionário que controlava a corda que lhe amarrava os pulsos, foi obrigado a colocar-se mesmo junto do tablado, de frente para os juízes e de costas para as três filas de bancos. João e eu, na companhia de outros levitas e criados do Sinédrio, post mo-nos atrás das filas de assentos, à esquerda do Mestre. Ao fundo da sala, por uma porta situada nas nossas costas e que permanecia entreaberta, descobri um grupo de hebreus. Mas, julgando pela sua indumentária, não pareciam ser sacerdotes nem membros do Sinédrio. (A incógnita não tardaria a ser desvendada.) Logo no primeiro instante me chamou a atenção um personagem que ocupava o centro do tribunal. Devia andar pelos cinqüenta anos. Era baixo e muito gordo. A sua obesidade notava-se especialmente na cara, redonda e congestionada, e numa grande papada sobre a qual se apoiava uma barba grisalha. A cabeça, sem o turbante que alguns dos seus companheiros de banco usavam era rematada por cabelo preto, muito curto, ao estilo juliano.
* 1 Papai Noel deu os seguintes dados sobre a composição oficial do Sinédrio naqueles tempos: uma instituição superior, ou Sinédrio maior, formado por setenta e dois membros, e um Sinédrio menor, constituído por vinte e três membros. Os dois tribunais tinham competência em casos criminais e os dois membros mais destacados do grande Sinédrio eram o nasi, ou presidente, o ab bet din, ou pai do tribunal, títulos, segundo parece, puramente honoríficos. As três filas de bancos do Sinédrio menor, eram destinados aos discípulos dos sábios. Dadas as características daquele tribunal e a hora irregular, era natural que os alunos dos juízes não estivessem presentes. (N. do M.)
A sua grande corpulência via-se notavelmente multiplicada por vestes muito diferentes da dos restantes juízes. Envergava uma túnica e calções, tudo de seda de um tom fulvo. O peito estava cingido por cinco faixas ou listras, cada uma de sua cor: ouro, carmesim, escarlate, azul-violáceo e alionado.
Aquele indivíduo era José ben Caifás, sumo sacerdote, desde o ano 18, por designação do procurador romano Valério Grato, antecessor de Pilatos.
À direita e à esquerda do genro de Anás, estavam sentados mais vinte e dois membros do Sinédrio, quase todos envoltos em amplos mantos multicores. Em voz baixa, João foi-me indicando os mais venenosos e intriguistas: Sermes, Dothaim Levi, Gamaliel, Jairo, Neftali e um tal Alexandre na sua maioria saduceus.
Nos rostos daqueles indivíduos - quase todos com idades que andavam à volta dos sessenta anos - havia perplexidade. O porte majestoso e sereno do Nazareno devia causar-lhes profunda impressão. Assim que Jesus foi posto na sua frente não pararam de murmurar.
Mas Caifás parecia ter pressa e, a uma ordem sua alguns dos guardas convidaram o grupo de judeus que aguardava na sala contígua a que se aproximasse do conselho. Primeiro, surpreendido, depois indignado, João viu aquelas testemunhas começarem a fazer declarações contra os ensinamentos e a pessoa do Galileu. Os seus ataques, tão exaltados como desordenados, incidiam fundamentalmente nas numerosas violações do sábado e das leis mosaicas, que segundo eles, Jesus e o seu grupo de esfarrapados galileus tinham cometido. Os perjuros, com toda a evidência comprados pelo Sinédrio, contradiziam-se constantemente transformando a sessão numa farsa. O desfile de falsas testemunhas chegou a ser tão lamentável que alguns dos juízes, envergonhados, baixavam a cabeça ou se agitavam, nervosa e violentamente, nos assentos.
O Mestre, que nesta altura levantara o rosto, permanecia impassível, sobressaindo dos acusadores não só pela estatura como pelo porte majestoso. Aquele semblante sereno, sem a menor sombra de orgulho ou de vaidade, exasperou mais ainda Caifás e os seus cúmplices, que não compreendiam como um homem podia manter tal serenidade quando tudo se encaminhava para uma sentença de morte.
- Este profanador do sábado - afirmou uma das testemunhas - é reincidente, pois consta que foi admoestado pelos sacerdotes em várias ocasiões. Portanto, é réu de extermínio...
*De acordo com a Misn - capítulo Sinédrio-Makkot - o que profanava o sábado com premeditação e de modo reincidente devia ser morto por lapidação.
Outra das falsas testemunhas fez uso da palavra, e apontando o Galileu lembrou à sala a multiplicação dos pães e dos peixes.
- De acordo com as nossas leis - afirmou – este homem é um mágico que enganou o povo com os Seus atos. Aquiba diz em nome de Yehosua: Se dois unem pepinos servindo-se da magia, um dos coletores não é culpado, mas o outro sim. O que realiza o ato é culpado e o que só engana a vista não é culpado. Fomos muitos os que então pudemos ver como este enviado do Príncipe dos Demônios levava a cabo o ato e os discípulos o secundavam...
Um murmúrio de aprovação se prolongou entre os juízes. Mas o Mestre continuou mudo.
- Segundo o Levítico – argumentou outro hebreu -, o réu adquiriu impureza por contato com cadáveres. E, como se isto não fosse culpa bastante, atreveu-se a violar a sagrada crença da ressurreição dos mortos, tirando Lázaro do túmulo... Alguns dos saduceus, cuja filosofia recusava de forma liminar a ressurreição dos mortos, moveram a cabeça em negação, sorrindo abertamente.
Caifás, que pertencia a esta casta, deixou passar a impertinência dos saduceus. Não era o melhor momento para entrar em polêmicas com os fariseus, que tinham franzido a sobrancelha com claro desagrado pelas irônicas e silenciosas manifestações da outra parte do tribunal. A momentânea tensão entre os juízes viu-se dissipada quando a testemunha desviou a acusação para o novo fato mágico de Jesus ter erguido Lázaro do sepulcro num tempo inferior ao toque do sofar. (Aquele dado fez-me pensar que, uma vez que cada um daqueles toques de como dos levitas do Templo nunca se prolonga para além dos quinze segundos, a ressurreição de Lázaro - desde que Jesus o chamou até voltar à vida, se deu entre doze e quinze segundos.)
A acusação, como quase todas, era tão pueril e falha de base que o sumo sacerdote - cada vez mais agitado - apressou as testemunhas seguintes para que continuassem. Mas as alegações posteriores não foram mais brilhantes...
Alguns judeus, acompanhando as suas palavras com grande ostentação de gestos, lembraram ao tribunal mais um dos delitos de Jesus: Não ter comido o obrigatório cordeiro pascal...
Aquela informação só podia ter sido dada por Judas. Judas Iscariotes, que tinha chegado ao edifício do Sinédrio muito antes de nós, mantinha-se atrás do grupo de testemunhas, embora em momento algum chegasse a depor. As normas daquela gente proibiam que um traidor se dirigisse publicamente ao Conselho. A lei mosaica, efetivamente, estabelecia que todos os israelitas eram obrigados a comer carneiro ou cabrito na festa da Páscoa. Só anos mais tarde, depois da destruição do Templo, a Misn , no seu capítulo IV (pesahim)I suaviza as normas, dizendo textualmente que o lugar onde não seja costume comer carne, não se coma.
* Depois da destruição do Templo, havia quem não comesse carne assada para evitar que se dissesse que era carne de sacrifício pascal, proibido depois da referida destruição. (N. do M.)
Um dos últimos acusadores chegou a dar uma reviravolta completa àquele desfile de incongruências e despropósitos. Aludindo a outra lei judaica, chegou a acusar o Nazareno de homicídio frustrado. O seu fraco e ridículo argumento baseava-se noutra norma, que decretava a culpabilidade daquele que ferisse o seu próximo com uma pedra, de tal maneira que o matasse. A testemunha ensinada expôs então o incidente protagonizado por uma adúltera, salva do apedrejamento popular quando Jesus, dirigindo-se à multidão , convidou aquele que estivesse livre de pecado a atirar a primeira pedra.
Para o retorcido hebreu, o gesto constituía delito, pois incitava ao assassínio... A grotesca cena atenuou-se um pouco quando, subitamente, os vinte e três juízes e os restantes membros do Sinédrio se puseram de pé. Fez-se na sala pesado silêncio e um dos saduceus - o que estava sentado à direita de Caifás - deixou o seu lugar para o ceder a um indivíduo baixo e curvado, que acabava de entrar na sala.
- É Anás - murmurou João.
Durante a minha passagem pela casa do antigo sumo sacerdote não tivera oportunidade de conhecê-lo. Agora, ao vê-lo subir para o estrado, ajudado por um dos seus servos, senti uma certa decepção. O poderoso sogro de Caifás, pai da influente família sacerdotal, era na realidade, um velho decrépito, muito próximo dos setenta anos e afetado por um adiantado mal de Parkinson. Como sagan, ou presidente da câmara dos anciões, ocupou o lugar à direita do sumo sacerdote em exercício naquele ano. Imediatamente, os outros juízes voltaram a sentar-se, e Caifás, com um gesto displicente das mãos gorduchas, indicou às testemunhas que prosseguissem.
Apesar da sua mais que provável esclerose cerebral, Anás ou Anano - como lhe chama Josefo - conservava uns olhos de rapina noturna, grandes e penetrantes. Mal se sentou, logo eles percorreram a sala, indo pousar nos do Mestre. A tremura das mãos do velho acentuou-se. Jesus sustentou-lhe o olhar e Anás, indeciso, procurou esconder as mão cheias de rugas por baixo do roupão púrpura que o cobria. Depois, desviando a atenção para o inquisidor de serviço, pareceu esquecer-se do Galileu.
- Este homem - começara a proclamar a testemunha – afirmou que destruiria o Templo e que em três dias edificaria outro, mas sem a ajuda da mão do homem.
Os archontes, ou chefes do Templo, tinham encontrado, por fim, um motivo condenatório suficientemente sólido. Naturalmente, não fora aquilo que Jesus dissera. Aliás, nem esta testemunha nem a seguinte, que confirmou as suas declarações, fizeram qualquer alusão ao decisivo gesto do Rabi quando, ao mesmo tempo que pronunciava aquelas palavras proféticas, apontava o Seu corpo com um dedo.
Se não me falha a memória, aquele foi o único testemunho em que dois indivíduos conseguiram estar de acordo. Antes mesmo de terminarem os testemunhos, o clamor dos archiereis ou sacerdotes-chefe foi geral, perturbando a ordem da sala com exagerados sinais de desagrado e incredulidade.
Caifás levantou os braços pedindo calma enquanto um cínico sorriso se desenhava no rosto. E o silêncio restabeleceu-se pouco a pouco. Naquele momento, Anás fez um sinal ao genro. Este inclinou-se e o antigo sumo sacerdote disse-lhe qualquer coisa ao ouvido. Ao terminar, ambos tinham os olhos fitos em Jesus, que se mantinha imperturbável.
Nenhuma das alegações conseguira alterar a sua disposição.
- Não respondes a nenhuma das acusações? - gritou-lhe de repente Caifás, com a sua voz guinchada e desagradável.
Os juízes, testemunhas, levitas e restantes espectadores, esperaram a resposta do Galileu. Foi inútil. O Mestre, com os olhos postos em Caifás, não abriu a boca. Aquele silêncio do acusado, aliado à sua extrema dignidade, fez que Caifás corasse. As pálpebras começaram a abrir-se e a fechar-se ritmicamente, num tique nervoso. É muito possível que o ódio daquele hebreu por Jesus de Nazaré chegasse naquele momento ao seu ponto extremo, quase tenho a certeza também de que, além dos ensinamentos e milagres de Cristo, o que verdadeiramente alimentava a vingança do sumo sacerdote era o domínio de que constantemente o Mestre fazia gala. Se Jesus se tivesse humilhado ou adotado uma atitude conciliatória, talvez aquela aparência de julgamento não tivesse originado tão dolorosas conseqüências para o Rabi da Galiléia. Quando tudo parecia indicar que Caifás estava prestes a explodir, Anás levantou-se. Tirou um rolo de pergaminho de dentro da manga direita e, enquanto o desenrolava anunciou ao tribunal que aquela ameaça do Galileu de destruir o Templo, era razão mais que suficiente para considerar as seguintes acusações [...).
Com voz rápida e vacilante, quase encostando o documento aos olhos, fez a leitura das acusações que, obviamente, tinham sido estabelecidas, antes, mesmo, da sessão do Sinédrio: [...) O acusado desvia perigosamente as pessoas do povo e além disso, ensina-as. [...) O acusado é um revolucionário fanático que aconselha a violência contra o Templo Sagrado e, além disso, o pode destruir. [...) O acusado ensina e pratica a magia e astrologia. O fato de prometer edificar um novo santuário em três dias e sem auxílio das mãos é concludente.
João, estupefato, deu-me a ver algo que era claro como a luz: a redação de tais acusações tinha de ter sido feita de comum acordo com os falsos testemunhos.
Mas as indignidades do conselho ainda mal tinham começado.
Anás voltou a enrolar o pergaminho e aguardou, de pé, a resposta do réu. No entanto, Jesus, não moveu um só músculo. O ancião, visivelmente contrariado, deixou-se cair e um silêncio pesado e ameaçador de novo inundou a câmara. Num
acesso de ira, Caifás saiu do seu lugar e, pondo-se na frente do Mestre, intimou-O com o dedo, gritando-lhe:
- Em nome de Deus vivo - bendito seja - ordeno-Te que me digas se és o libertador, o Filho de Deus... bendito seja o Seu nome:
* A astrologia era então punida severamente. Rops garante que era uma ciência funesta, que engendrava todas as maldades (N. do M.)
Desta vez, Jesus, olhando o baixo e colérico sumo sacerdote, deixou ouvir a sua voz poderosa:
- Sou... E bem cedo estarei junto do Pai. Não tarda que o Filho do Homem seja investido de poder e reine de novo sobre os exércitos celestiais.
As sonoras palavras do Nazareno retumbaram na sala como um golpe de maça. Caifás recuou dois passos. Tinha a boca aberta e trêmula e os olhos injetados de sangue, tal como a cara e o pescoço. Sem deixar de olhar para Jesus, deitou mão às cinco faixas que lhe cingiam o peito e, com um puxão fez saltar os fechos que as prendiam nas costas.
Os ornamentos sagrados do sumo sacerdote tombaram no chão, com um quase imperceptível estalido das agulhas de marfim ao caírem no lajedo.
Caifás, fora de si, exclamou com voz quebrada pela raiva, ao mesmo tempo que uma involuntária chuva de gotículas de saliva lhe saltava da boca:
- Que necessidade temos de testemunhas...? Ouviram a blasfêmia deste homem... O que pensam e como temos de proceder com este violador?
Os trinta saduceus, fariseus e escribas puseram-se de pé como um só homem, vociferando em coro:
- Merece a morte... Crucifixão...! Crucifixão...!
A palpitação acelerada das artérias do pescoço de Caifás mostravam às claras que o seu organismo sofria uma importante descarga de adrenalina. Da mesma maneira furiosa com que arrancara parte das vestes, voltou a encarar o Mestre, dando uma violenta bofetada na face esquerda de Jesus. Os sinetes da mão esquerda do sumo sacerdote (cheguei a identificar uma pedra de jaspe uma ágata e uma cornalina) feriram o pômulo e dois finíssimos fios de sangue correram até à barba.
Mas o Galileu não deixou escapar um só lamento. Baixou os olhos e não voltaria a levantá-los até a guarda do Templo O conduzir à sala onde vira reunidas as testemunhas.
O genro de Anás voltou para o seu lugar, enquanto o coro de juízes continuava vociferando:
- Morte!... Morte!...
João agarrou-se ao meu braço, mordendo o manto, numa crise de impotência e de desespero. Mas ninguém, nem sequer o legionário, moveu um dedo em defesa de Jesus.
O sogro do sumo sacerdote, que foi o único que continuou sentado e em silêncio, pediu calma. Quando o último dos sinedristas obedeceu à ordem de Anás, este dirigiu-se ao perturbado conselho, sugerindo que se obtivessem novas acusações, em especial acusações que pudessem comprometer o Nazareno perante a autoridade romana. Com uma inteligência muito mais sutil do que os que ali estavam reunidos, o velho ex-sumo sacerdote deu-lhes a entender que aquelas alegações podiam não satisfazer Pôncio Pilatos.
* 1 Naquele tempo, nem os homens nem as mulheres usavam botões. Em Israel não eram conhecidos. Em seu lugar usavam passadores: uma espécie de agulha grande com um orifício no centro, a que se prendia um cordão . Era usada inserindo-a no pano e passando o cordão por detrás da ponta e da cabeça. (N.do M.)
Mas os sacerdotes, Caifás à cabeça, opuseram-se com firmeza e, durante bastante tempo, os chefes do Templo, escribas e fariseus discutiram acaloradamente, interrompendo-se uns aos outros. Daquela azeda discussão deduzi que os archiereis – tal como demonstrara Caifás não desejavam demorar o processo por duas razões fundamentais: primeira, porque era o dia da preparação da Páscoa e, segundo a Lei, todos os trabalhos tinham de terminar antes do meio-dia. Segunda, porque o receio geral incidia na possibilidade de o procurador deixar
Jerusalém, regressando à sua base: Cesareia.
Esta última razão pesou muito mais que a primeira. Se Pilatos saísse da Cidade Santa, as manobras do Sinédrio seriam estéreis. Anás não pôde controlar a situação e os juízes, imitando o sumo sacerdote, levantaram-se, abandonando a sala. Mas antes, um após outro, passaram diante do Mestre, cuspindo-lhe no rosto. Se bem recordo, trinta cuspidelas. Ou antes, escarros e cusparadas em partes iguais. Quando o Mestre passou ao nosso lado, a caminho do local onde ia ter lugar uma das mais selvagens e injuriantes afrontas daquela jornada, o jovem discípulo voltou a cara, impressionado pelas expectorações repugnantes que quase escondiam o rosto e a barba do dócil Jesus. João sofreu um acesso de fortes vômitos, acabando por vomitar num dos cantos da sala. Desta forma, no meio de grande confusão, deu-se por concluída a primeira parte daquele julgamento. Eram seis e meia da manhã...
Na realidade, aquela pausa no julgamento judeu de Jesus de Nazaré ia ser, uma nova e grotesca caricatura do que deveria ter acontecido num julgamento objetivo. As normas hebraicas - como irei pormenorizando no final destes dois comparecimentos do Rabi da Galiléia perante o irregular Conselho do Sinédrio - eram muito rigorosas em quanto se relacionava com causas de sangue. Na sua ordem quarta (Capítulo V), a Misn israelita estabelece com grande rigor e pormenor que se o réu é considerado inocente, é posto em liberdade. Caso contrário, os juízes adiam a sentença para o dia seguinte ....
Pois bem, esta importantíssima prescrição jurídica não só não foi tida em conta por aqueles trinta sequazes do sumo sacerdote como, além disso, foi grosseiramente manipulada. De mútuo acordo, Caifás e os seus partidários retiraram-se da sala do tribunal, reduzindo as obrigatórias vinte e quatro horas de reflexão e jejum, antes da sentença definitiva a trinta escassos minutos. Meia hora que, em minha opinião, alcançou uma das mais altas quotas de selvajaria a que pode chegar um grupo que se considera civilizado... É possível que, por ignorância, ou por um respeito muito humano, os evangelistas não nos digam praticamente nada do que padeceu o Mestre naqueles momentos e naquele local. Pessoalmente, inclino-me para a primeira razão: a falta de informação. Como pormenorizarei imediatamente, o jovem João não pôde estar presente naquela horrível meia hora. Os escritores sagrados fazem algumas alusões - sempre muito superficiais e como se não quisessem entrar em pormenores - sobre uma bofetada, algumas cuspidelas e pancadas dadas pelos servos do Sinédrio... Creio, honestamente, que os evangelistas - talvez com a preocupação de não mortificar os seus leitores com os padecimentos de Cristo prestaram um fraco serviço à Verdade, ao não exporem com mais pormenores o amargo transe do Nazareno. Precisamente, ao conhecer com exatidão o sucedido naquela manhã, numa das câmaras do Sinédrio, uma pessoa pode ter a intuição de que foi aquele, talvez, o momento, mais amargo e humilhante de toda a Paixão. Muito mais, naturalmente, que a flagelação ou que a aterrorizante cena do pregar dos cravos... Entendo que, para qualquer pessoa normal - e muito mais logicamente, se essa pessoa é a própria Divindade - os ultrajes e ataques à sua dignidade podem ser mais dolorosos que as pancadas ou torturas propriamente ditas. E foi isto o que aconteceu, enquanto os juízes deliberavam no jardim central do edifício.
Sem um instante de hesitação fui atrás do soldado que escoltava Jesus, enquanto João, muito impressionado por aquela repulsiva desonra da pessoa do seu Mestre, saia, procurando respirar ar puro e recompor-se física e emocionalmente.
Mas, poucos minutos depois, vi-o entrar na sala para onde os levitas tinham levado Jesus. Encontrávamo-nos num cubículo de reduzidas dimensões, totalmente vazio, sem móveis e sem ventilação alguma. Dois dos servos do Sinédrio empunhavam archotes que, juntamente com três pequenas candeias de azeite penduradas das paredes de tijolo, iluminavam o retângulo com uma luz avermelhada e fantasmagórica. O Nazareno ficou no centro do úmido e fedorento cubículo, enquanto os guardas e servos do Templo - uns doze, mais ou menos se acomodavam, encostando-se às paredes ou sentando-se no chão duro.
A minha primeira impressão, ao verificar o silêncio e total indiferença daqueles indivíduos, foi relativamente tranqüilizadora. Era evidente que os sicários de Caifás tinham recebido ordens para escoltar o réu e esperar o recomeço do processo. Mas, quando mal tinham passado ainda dois minutos, um dos levitas que acompanhara o Conselho apareceu à porta, chamando por sinais um dos que empunhavam archotes.
Depois de um breve segredar, o recém-chegado desapareceu e o do archote deu uns passos para o seu companheiro, transmitindo-lhe a ordem que, sem dúvida, o guarda acabava de trazer.
Os criados e levitas formaram um círculo, dialogando em voz baixa e lançando constantes olhares ao preso. Alguma coisa tramavam...
Naqueles momentos críticos Jesus voltou a levantar o rosto, procurando com o olhar. Por fim, deteve-se em João, que continuava muito próximo da porta e, sem dizer palavra, fez-lhe um gesto com a cabeça, ordenando-lhe que saísse dali. Aquele sinal foi peremptório. Mas o discípulo vacilou, respondendo com uma negativa. O Mestre, pela segunda e última vez, virou a cabeça para a direita, apontando-lhe a porta. Nos olhos do Nazareno havia uma força e uma certeza tais que, por fim, João acabou por ceder, saindo do local.
O legionário, testemunha como eu, da silenciosa ordem do réu, interrogou-me com o olhar. Mas só pude encolher os ombros. Naquele instante não era capaz de perceber o motivo por que Jesus de Nazaré obrigara o seu amigo inseparável a deixar-nos. Lamentavelmente, não tardaria em saber...
Logo que João saiu, o Mestre limitou-se a observar-me durante escassos segundos. Naqueles olhos semi cerrados em conseqüência das cuspidelas - já secas - adivinhei uma mistura de infinita tristeza e resignação. Depois, o Gigante baixou novamente a cabeça, mergulhando nos seus pensamentos.
Aquela tensa calma não tardou em se quebrar. O grupo de assassinos contratados rodeou o Mestre. Os que tinham archotes colocaram-se um de cada lado de Jesus e, sem prévio aviso, o criado que recebera a misteriosa ordem despiu o manto e atirou-o para uma ponta da câmara.
Depois, pondo-se a quatro dedos do peito do Rabi, levantou os olhos e começou a interrogá-lo:
- Diz, príncipe de Belzebu... como se chamam os Teus cúmplices?
Mas Jesus nem sequer levantou o rosto.
Naquele momento, comecei a entender em que consistiria a ordem que os guardas e servidores do Sinédrio acabavam de receber. Se bem estava lembrado, Anás fizera-lhe aquela mesma pergunta. Era mais que provável que o Conselho dos saduceus, escribas e fariseus, que se apartara no julgamento, tivesse decretado que os guardas do Mestre tentassem aproveitar aqueles minutos para interrogarem e maltratarem o impostor.
- Conhecemos Judas - acrescentou o lacaio, com um sorriso que me fez temer o pior -, também Simão, o Zelota, e aquele João Zebedeu... Mas quem são os outros...? Responde!
O Galileu nem pestanejou. O rosto, voltado para as lajes cinzentas do pavimento, estava ausente.
- Negas-te então a responder.
E o criado virou-Lhe as costas, dando um breve passo em frente. De repente voltou-se, esbofeteando-o com a esquerda. O golpe foi tão duro quanto inesperado. E todo o corpo de Jesus tremeu. Os restos de escarros na face direita do Rabi ficaram agarrados à palma da mão do esbirro que, com uma careta de repugnância, sacudiu os dedos uma e outra vez, procurando livrar-se daquelas imundícies. Finalmente, aproximou a mão do manto do Nazareno, esfregando-a no pano.
Quando o legionário tentou acabar com o súbito e selvagem ataque, um dos guardas do Templo pôs-lhe a mão no ombro e, afastando-o do Rabi, entregou-lhe uma pequena bolsa de couro, murmurando que não interviesse e que dividisse as moedas comigo. O suborno tornou surdo e mudo o soldado que, a partir daquele momento, não saiu de um dos cantos da sala. A sua satisfação aumentou quando me neguei a aceitar a minha parte.
Apesar da raiva que começara a queimar-me as entranhas, não pude fazer mais que observar e tentar não alterar os acontecimentos, tal como impunha o código de Cavalo de Tróia...
A partir daquele instante uma saraivada de murros e bofetadas começou a cair no corpo do Mestre. De vez em quando, entre pancada e pancada, um dos levitas voltava a interrogá-lo...
- Responde... Quantos são vocês?... Como se chamam os Teus adeptos?... Quem tomou o comando?...
Jesus, com os lábios rasgados pelas pancadas, não cedia. Alguns dos murros atingiram-lhe os olhos, provocando um lento mas alarmante inchaço.
No meio daquela iniqüidade fiquei espantado mais uma vez perante a serenidade e resistência física do Galileu. Muitas das pancadas, dadas com frieza em pontos tão delicados e vulneráveis como olhos, lábios, ouvidos, rins e estômago, teriam lançado por terra um homem vulgar.
No entanto, o Nazareno - ainda que chegasse a vacilar em várias ocasiões - não soltou um só lamento, conservando sempre o equilíbrio.
O completo silêncio do Rabi aumentava o furor dos levitas, que redobraram na agressão. Suados, ofegantes e arrastados pelo paroxismo, os energúmenos, não satisfeitos com o violento castigo que estavam a infligir, foram procurar um cântaro de água, submetendo Jesus a um dos suplícios mais angustiantes que um ser humano possa inventar.
Um dos sicários pôs-se nas costas do Nazareno, puxando-lhe violentamente os cabelos. Logo o robusto corpo se inclinou para trás . Um segundo guarda forçava a boca de Jesus a abrir-se enquanto um terceiro, que segurava no cântaro, começava a deitar água na boca do Nazareno.
O líquido foi entrando aos borbotões durante muitos e intermináveis segundos, até que, finalmente, o Rabi teve um seco e forte acesso de tosse, que pôs termo à tortura. Sem o saberem, aquelas bestas humanas tinham aliviado - e de que maneira! - o organismo castigado do prisioneiro. (Por causa das horas de angústia no Getsémani, o Mestre da Galiléia tinha começado a fazer um grave e decisivo processo de desidratação, que iria agravar-se sensivelmente depois dos açoites.)
O criado que segurava o recipiente de barro afastou-se para o lado e, enquanto o levita continuava a puxar pelo cabelo do réu, outro esbirro levantou a perna esquerda, atirando um pontapé ao baixo ventre do prisioneiro indefeso.
Foi uma das poucas vezes que ouvi um gemido da boca de Jesus.
A dor deve ter sido tão dilacerante que, apesar de estar vergado para trás, o tronco e a cabeça do Galileu endireitaram-se com um movimento reflexo, ao mesmo tempo que os joelhos cediam. Cristo caiu, indo o rosto bater nas lajes.
- Estúpidos! - interveio o legionário, vindo em socorro do preso. Será que querem acabar com ele?
O guarda que estivera puxando pelo cabelo do Rabi largou a mecha que lhe ficara nos dedos e, arrancando o cântaro ao colega, despejou o conteúdo na nuca do Nazareno.
Sinceramente, dado Jesus ter caído de bruços, não pude verificar se - como temia - desmaiara. Por continuar com os pulsos atados atrás das costas, tiveram de ser os criados e levitas, ajudados pela sentinela romana, a levantarem-no. Quando, por fim, consegui ver-lhe o rosto, percorreu-me um calafrio, Jesus empalidecera em extremo e uma das sobrancelhas (a esquerda) rasgara-se, possivelmente em conseqüência do choque com o lajedo. O nariz, apesar de alguns hematomas não parecia gravemente ferido com a queda. Pensei que o Mestre ainda se encontrava consciente no instante do embate com o pavimento, podendo talvez, amortecer o violento empate rodando a cabeça. O sangue, no entanto, começara a correr com abundância, logo cobrindo a parte esquerda do rosto .
Por instinto, o Nazareno começou a inspirar profundamente. Pouco a pouco foi-se recompondo, ainda que o rosto não tivesse qualquer semelhança com aquele semblante majestoso e sereno que apresentava ao entrar na sede do Sinédrio.
O sangue começara a pingar da barba, manchando o manto e parte da túnica.
Os sequazes de Caifás, um pouco mais apaziguados, isolaram-se num dos cantos da quadra, iniciando outra troca de impressões. E dali a pouco o que se desembaraçara do seu roupão, levantou-o do chão, lançando-o à cabeça do Rabi. Vendo-o de cabeça tapada, outro levita aproximou-se de Jesus, gritando-lhe entre
sonoras gargalhadas.
- Faz profecias, libertador... Diz-nos, quem Te bateu?
Empunhando um bastão de uns quatro centímetros de diâmetro com a mão esquerda vibrou uma paulada seca no rosto do silencioso Mestre, que recuou uns passos em conseqüência da pancada. Antes que pudesse desequilibrar-se, outro criado agarrou-O pelas costas, impedindo que caísse.
As gargalhadas alastraram rapidamente e, um após outro, todos os homens participaram naquele jogo cruel.
As bofetadas e pauladas continuaram durante os últimos dez minutos, e a cada pancada o agressor fazia a mesma pergunta cínica:
- Faz uma profecia... Quem te bateu?... Faz uma profecia, bastardo !
Pelas sete da manhã, quando o Nazareno, curvado e apoiado a uma das paredes, parecia prestes a desfalecer, entraram vários levitas, ordenando aos outros que levassem o Rabi à presença do Sinédrio.
Quando aqueles selvagens tiraram o manto da cabeça do Mestre, pareceu-me que o sangue se me gelava nas veias. Se não soubesse que era Ele, acho que não O reconheceria. A paulada - suponho que a primeira -, apesar de o golpe ter sido amortecido, caíra sobre o pômulo e parte do nariz, provocando o inchaço de ambas as zonas. Esta pancada, ou talvez os outros murros e bofetadas, tinham originado uma enorme hemorragia nasal. Os fios de sangue saíam de ambas as narinas, correndo pelos lábios e empapando bigode e barba. Os hematomas dos dois olhos eram tão grandes que o Rabi quase não podia abri-los.
Aquele rosto quebrado, inflamado e com a metade esquerda ensangüentada, deixou sem fala alguns dos criados e sicários do Sinédrio. Era evidente que o castigo fora brutal. Para minha surpresa muitos dos levitas nervosos, começaram a discutir quanto a conveniência de lavar e tornar mais apresentável a face do Mestre. Não por misericórdia, naturalmente, mas pelo receio de possíveis represálias ou recriminações dos juízes e, talvez, dos adeptos do Nazareno. Por fim, um dos serventes embebeu uma das pontas do roupão ou manto com que Lhe tinham tapado a cabeça na água que restava do cântaro. Num impulso que nunca consegui explicar, dirigi-me ao guarda, identificando-me como médico e pedindo-lhe que me permitisse lavar o rosto do Galileu e, de passagem - disse-lhes - examinar as possíveis fraturas.
* Nos antigos textos gregos é descrito um jogo. Chamado muinda, que consistia em tapar os olhos a um dos jogadores (com um lenço ou com a própria mão). Este tinha de adivinhar o objeto que lhe era apresentado ou a pessoa que lhe tocava. Se acertava ocupava o seu lugar aquele que tinha perdido.
2 O bastardo, embora existissem diferentes interpretações era em linhas gerais, o filho nascido do adultério. Não eram admitidos na assembléia de Israel, como também não o eram os seus descendentes até à décima geração. Não podiam contrair casamento com nenhum membro legítimo da comunidade judaica, discutindo-se vivamente, até se as famílias de bastardos poderiam participar na libertação final de Israel. Este insulto era considerado como uma das piores injúrias. Aquele que o proferia podia ser condenado a trinta e nove açoites. (N. do M. )
Os guardas concordaram, um tanto aliviados, mas sugeriram-me que fosse diligente no arranjo. O Conselho estava à espera. Obviamente, nos planos do Cavalo de Tróia não era contemplada a possibilidade de que eu reparasse, nem nada que se parecesse, as feridas de que pudesse sofrer Jesus de Nazaré.
Tal como referi, isso estava rigorosamente proibido. No entanto, e dado que os levitas se dispunham a lavar a face martirizada do prisioneiro, considerei que aquela era uma oportunidade única de verificar de perto e pessoalmente as lesões exteriores e visíveis mais graves. No entanto, e apesar desta justificativa, houve também uma vontade pessoal que me levou a tomar semelhante decisão...
Peguei, pois, na ponta do áspero manto e, com toda a delicadeza de que fui capaz, comecei a limpar as crostas de sangue que se tinham agarrado ao malar e à face esquerda. As hemorragias, tanto a provocada pelo rasgão na sobrancelha esquerda como a nasal, tinham sido enormes, embora ficasse com a impressão de que a perda de sangue não era importante. A julgar pelos rastos, crostas e sangue acumulado na barba, manto e túnica, não creio que fosse superior a duzentos ou trezentos centímetros cúbicos.
Pude igualmente deduzir que a capacidade de coagulação do sangue de Cristo era normal. Tanto o golpe na sobrancelha como os cortes dos lábios e os dois fios de sangue que vinham das narinas tinham coagulado muito rapidamente.
Quando aquela metade do rosto ficou limpa larguei o manto. Antes que os criados de Caifás pudessem reagir, introduzi os dedos no rasgão feito pelo punhal do bandido que tentara assaltar-me na noite anterior e, com dois fortes puxões, consegui arrancar um bocado da minha túnica. Introduzi-o na boca do cântaro, molhando-o o mais que me foi possível, e logo voltei à parede onde Jesus continuava encostado, passando o leve lenço cor de osso pelo nariz deformado e pelos lábios, sobrancelhas e pálpebras (1).
*1 Graças àquele gesto. Cavalo de Tróia pôde conseguir uma inestimável mostra do sangue de Jesus de Nazaré. E ainda que as análises feitas com os coágulos que ficaram no pedaço da minha túnica não pudessem ser efetuadas com a velocidade aconselhada em tais casos, puderam, averiguar, entre outras coisas, que naquela altura (sete da manhã) os eritrócitos por milímetro cúbico de sangue eram, aproximadamente, de quatro milhões e novecentos mil (pouco menos que o normal, possivelmente em conseqüência das perdas que tinham começado a verificar-se). Também observamos alguns leucócitos (muito poucos). Por meio de análises comparativas estabeleceu-se que, tanto o número destas células (sete mil por milímetro cúbico), como os tipos examinados (neutrófilos, eosinófilos, basófilos linfócitos e monócitos) correspondiam ao normalmente exigido num indivíduo saudável. E se bem que a primeira análise fosse feita antes de trinta e seis horas, não foi possível encontrar plaquetas, tinham desaparecido todas. No entanto, encontramos vestígios de trombina e alguns produtos próprios da degradação da fibrina. Num dos coágulos - que conservava leves vestígios de umidade – foi possível detectar algumas proteínas do plasma (fundamentalmente, albuminas e globulinas), bem como ligeiros indícios de glicose, vitaminas, hormônios e diversos aminoácidos. Não pudemos descobrir restos de colesterol. Quanto à coagulação, e só através da observação pessoal das feridas, pudemos estabelecer que era normal. Esta dedução viu-se reforçada pela análise de uma das proteínas do plasma - o fibrinogênio - que, depois de se converter em fibrina, tinha ficado degradada. (N. do M.)
Ao apalpar o inchaço do pômulo direito concluí que a paulada tinha afetado uma ampla zona do osso malar, atingindo parte do olho direito. Se o hematoma continuasse a aumentar, o mais provável era que o Nazareno acabasse por ter sérias dificuldades em conseguir abrir aquele olho.
Quanto ao nariz, a impossibilidade de tirar uma radiografia deixou-me na dúvida se a pancada teria fraturado a cana, formada pelos ossos nasais. Estes dois ossos, como todos os médicos sabem, são frágeis, podendo ser quebrados por um murro.
Para mim, e depois daquela observação, os treze ossos da cara de Jesus pareciam estar intactos. Insisto, no entanto, nas minhas sérias dúvidas quanto aos nasais. Dada a violência da pancada, era de prever a possibilidade de que estivessem fraturados. (Entendo, Aliás, que a famosa profecia em que se diz que nenhum dos ossos do Messias ficaria partido, bem pode referir-se aos ossos longos.) Em especial houve um pormenor que, com a devida reserva, me inclinou a acreditar desde o primeiro momento que os dois pequenos ossos nasais podiam estar seriamente magoados.
Durante esta segunda limpeza, e quando toquei na massa muscular inflamada do nariz (piramidal e transverso, fundamentalmente), ao palpar a área da cartilagem nasal o Rabi recuou levemente. Apesar da minha extensa suavidade, o simples toque do tecido naquele ponto do nariz multiplicou a dor.
Naquele momento, o Gigante - que continuava silencioso entreabriu os olhos como pôde, fixando em mim o olhar. Tentei sorrir e acho que o consegui. Era quanto podia dar. Jesus compreendeu a minha pobre mas sincera prova de amizade e os Seus lábios estremeceram. De repente, para meu desconsolo, uma lágrima correu do olho esquerdo, afundando-me mais ainda na impotência...
O sicpario que tinha avisado os verdugos voltou a aparecer à porta e, com um gesto de impaciência, abriu caminho até ao réu.
Agarrando-O por um braço, puxou-O para a saída. Com passo vacilante, o Mestre entrou novamente na sala do Sinédrio.
A falta de sono, a dor e o cansaço, depois do espancamento, tinham começado a minar o Seu organismo. Fui o último a abandonar aquele lugar trágico. Esperei, de propósito, que o último levita saísse para, baixando-me, apanhar a mecha de cabelo que um dos guardas involuntariamente arrancara do crânio de Jesus.
Escondi-a na minha bolsa juntamente com o farrapo ensangüentado da minha túnica e apressei-me a ir ao encontro do Conselho do Sinédrio.
Os Juízes tinham ocupado os mesmos lugares e o Nazareno, escoltado pelo legionário e mais dois serventes, tentava manter-se de pé diante do semicírculo. A Sua aparência, apesar da rápida lavagem ao rosto, era tão lamentável que aqueles trinta judeus não puderam dominar a surpresa. Durante alguns minutos trocaram olhares sarcásticos, imaginando o suplício a que fora submetido o impostor e regozijando-se, suponho, pela alteração súbita daquele majestoso e sereno rosto.
João, que se juntara a mim, não conseguia articular palavra. Os seus olhos, espantados, miravam e remiravam o semblante do Mestre sem poder dar crédito ao que, infelizmente, era só o princípio do fim...
Quando os escribas judiciais ocuparam os seus lugares, Anás fez uso da palavra e, apontando um pergaminho que o seu genro tinha nas mãos, insistiu novamente na idéia que expusera na primeira parte daquela reunião. Para o antigo sumo sacerdote, a acusação de blasfêmia carecia de força, pelo menos em relação ao procurador romano. E insistiu na necessidade de redigir uma série de alegações que comprometessem o Rabi da Galiléia com a justiça que Pilatos representava. Ao escutar o sogro de Caifás, imaginei que o rolo a que aludira devia conter a sentença definitiva contra Jesus. Sem poder reprimir a curiosidade, perguntei a João o que sucedera na deliberação dos juízes.
O cada vez mais desmoralizado discípulo nem sequer me ouviu. Tive de o sacudir ligeiramente para que, por fim, desse atenção à minha pergunta. Com lágrimas nos olhos explicou-me que durante a improvisada reunião dos saduceus e fariseus no pátio central do edifício, aqueles indignos sacerdotes só tinham chegado a um acordo, executar Jesus.
Apesar de ter ficado muito perto dos juízes, João não chegou a conhecer o texto da sentença, redigido pelo próprio Caifás, após não poucas discussões .
Por um instante acreditei que o sumo sacerdote leria a acusação ou acusações. Mas não foi assim. Depois de muitos rodeios e divagações da assembléia, três dos fariseus levantaram-se dos lugares, renunciando a continuar naquele julgamento. Embora estivessem de acordo em dar morte ao Rabi, o seu tradicional sentido da pureza aconselhava-os - segundo manifestaram publicamente - a não tomar parte naquela flagrante ilegalidade, a não ser que o Nazareno fosse conduzido perante Pilatos, quando se Lhe desse a saber a razão por que fora condenado.
Caifás não se impressionou com este desaire que lhe era infligido pelos chamados santos ou separados e, depois de consultar o tribunal, suspendeu a sessão.
Às sete e meia da manhã, os saduceus, escribas e os poucos fariseus que se tinham mantido fiéis a Caifás desfilaram pela segunda vez diante da figura martirizada de Jesus de Nazaré.
O Mestre não tardou a seguir os passos dos juízes. Fortemente escoltado, o Galileu ficou uns minutos no jardim interior do Sinédrio. A um canto, Caifás e os seus homens continuaram a discutir acaloradamente.
Voltaram a entrar no hemiciclo e, passado algum tempo, reapareceram no pátio central. O gordo sumo sacerdote levava dois pergaminhos na mão esquerda. Aquilo não me causou estranheza. Em seguida, Caifás, pôs-se à frente dos levitas e servos, ordenando que apertassem o círculo em volta do blasfemo, enquanto se dirigiam ao quartel-general romano. Anás e a maior parte dos juízes despediram-se de Caifás, regressando à quadra onde se realizara a primeira parte do julgamento.
Judas Iscariotes, que não trocara uma só palavra conosco, juntou-se à comitiva.
O sumo sacerdote em exercício, a meia-dúzia de saduceus e o pelotão que rodeava o Mestre, meteram-se pelas ruas da Cidade Alta, em direção à Porta dos Peixes. Ao passarem na frente dos bazares, as pessoas levantavam-se, saudando reverentemente o sumo sacerdote. Em minha opinião, nenhuma das assombradas testemunhas chegou a reconhecer Jesus. Os hematomas nos olhos, nariz e pômulo direito tinham deformado o Seu rosto ao ponto de o tornarem quase irreconhecível. Enquanto caminhávamos apressadamente para a fortaleza reparei novamente nos dois rolos que Caifás levava. Qual seria o seu conteúdo?
Tratar-se-ia da sentença que tinha de apresentar a Pôncio Pilatos?
Na minha mente agitava-se incessantemente aquele aviso do tribunal prometendo uma segunda audiência. Se as minhas informações estavam corretas, Jesus não voltaria a entrar no Sinédrio. Que ia então acontecer?
Pensando bem, perante aquele excesso de irregularidades cometidas no simulacro de julgamento, que haveria a esperar de uma segunda audiência?
Fazendo um estudo sumário do julgamento, os sinedristas tinham infringido, pelo menos, doze das normas básicas que as leis hebraicas estabeleciam para julgamentos relacionados com a pena capital. Vejamos algumas das mais gritantes.
1.a Para começar, e segundo a Misn (Ordem Quarta, Sinédrio), os chamados julgamentos de pena capital tinham de se iniciar defendendo-se a inocência do réu e não a sua culpabilidade.
2.a Os julgamentos de sangue - ou em que se presume estar em jogo a vida do acusado - deviam ser celebrados de dia e a sentença, se fosse condenatória, nunca poderia ser pronunciada durante esse mesmo dia. Por isso, diz a lei, não pode realizar-se o julgamento de sangue na véspera do sábado de um dia festivo.
Portanto ao reunir-se, na sexta-feira, 7 de Abril, véspera de sábado e da Páscoa, o pequeno Sinédrio cometeu um duplo delito.
3.a Nos julgamentos capitais, a audiência devia ser aberta sempre por um dos juízes que se sentava ao lado do mais antigo, a fim de que os juízes de menor autoridade não fossem influenciados pelos antigos (na audiência contra o Mestre foram os falsos testemunhos que deram início ao pleito).
4.a Falando de falsos testemunhos, bastaria a atuação deste grupo para invalidar qualquer outra audiência semelhante. A lei judaica era, e é, extremamente rigorosa em relação a este ponto. Antes de se iniciar o julgamento, as testemunhas deviam ser admoestadas severamente: quando eram introduzidas na sala - diz a Misn - era-lhes infundido temor, ao dizerem-lhes que não falassem por mera suposição, pelo depoimento de outra testemunha, pela declaração de um homem digno de fé que tivessem ouvido ou que não pensassem que, em última análise, não seria examinado e analisado o seu depoimento. Deveis saber, dizia-se às testemunhas, que, nos julgamentos de sangue, o sangue do réu e o sangue de toda a sua descendência cair sobre a falsa testemunha até ao fim do mundo (...].
Nada disto aconteceu no Sinédrio. Mais ainda: as testemunhas compradas caíram em contradições constantes e grosseiras. A lei esclarecia que as falsas testemunhas deviam ser flageladas ou, mesmo, condenadas à morte. É óbvio, portanto, que aqueles indivíduos se prestaram a semelhante risco porque lhes fora
Garantido previamente imunidade e, naturalmente, muito dinheiro.
5.o Se o réu era considerado culpado, continua a lei mosaica, a sentença devia ser adiada para o dia seguinte. Como me referi, nada disto foi respeitado. No máximo, o tribunal suspendeu a audiência durante meia hora, logo voltando à sala.
Entretanto, prossegue a lei, os juízes reúnem-se dois a dois, comem muito frugalmente, não bebem vinho durante todo o dia, passam toda a noite a discutir e a deliberar e, pela manhã, levantam-se e vão para o tribunal.
6.o Se depois de tudo isto continuassem a considerar o preso merecedor da pena capital, a sentença definitiva devia ser dada mediante votação. Se doze o declaravam inocente e doze o consideravam culpado, era dado como inocente. Se doze o declaravam culpado e onze inocente ou, mesmo, se onze o declaravam inocente e outros onze culpado e um diz não sei, ou ainda se vinte e dois o consideram inocente ou culpado e um diz não sei, têm de se reunir mais juízes. Quantos era possível reunir no máximo? Sempre mais dois até se chegar aos setenta e um. No julgamento presidido por Caifás não houve qualquer votação.
7.a A lei hebraica proibia que a mesma pessoa fosse juiz e acusador. No nosso caso, Caifás acumulou as duas situações.
8.a Também não foi pronunciada a sentença tal como prescrevia a lei: [...] Escreve-se (a sentença) e enviam-se mensageiros a todos os lugares dizendo que fulano de tal, filho de fulano de tal, foi condenado à morte pelo tribunal. Foi esta uma das razões por que os fariseus que faziam parte do Conselho decidiram retirar-se. E, no cúmulo da irregularidade jurídica, nem sequer o próprio julgado conheceu o texto definitivo da sentença de morte. (Tal como veremos mais adiante, Jesus de Nazaré morreu sem saber oficialmente a Sua culpa...)
9.a Até a resposta dada pelo Mestre a Caifás, quando este o intimou a que declarasse se era o Messias, não foi motivo de blasfêmia. Segundo a Misn , o blasfemo não é culpado enquanto não menciona explicitamente o Nome. Na resposta de Jesus, como se recordar , não era citado o Nome, quer dizer, Yavé, Deus ou o Divino. Jesus disse: Sou ...]: Sou ...] E não tardarei em ir para junto de Meu Pai. Em breve o Filho do Homem será investido de poder e reinará de novo sobre os exércitos celestiais. Onde aparece nestas frases o Nome explícito de Deus?
10.a Mesmo que assim tivesse acontecido, a lei especificava que, uma vez concluído o julgamento, não o sentenciarão à morte usando circunlóquio, mas pondo todo o público fora da sala de tribunal perguntarão à testemunha de mais dignidade: Diz, que ouviste de modo explícito? Ela diz. Então os juízes punham-se de pé, rasgando as vestes, que não podiam ser cosidas. A segunda testemunha dizia: Também eu ouvi o que ele ouviu e a terceira afirmava: Também eu (ouvi) como ele. Será que no litígio contra o Nazareno sucedeu algo como isto? Nem sequer Caifás chegou a rasgar verdadeiramente as vestes...
11.a Se o tribunal considerou que Jesus era um falso profeta - como aconteceu - a lei também não autorizava o Seu julgamento, a não ser pelo grande Sinédrio, formado sempre por setenta e um membros. E naquele, como disse, só constavam, oficialmente, vinte e três.
12.a Finalmente, embora, como disse, o rosário de faltas e irregularidades nesta querela pudesse ser muito longo, os juízes também não respeitaram as normas legais, que fixavam as segundas e as quintas-feiras como datas oficiais para as diferentes comissões e assembléias dos tribunais de justiça (assim o fixa a Misn , na sua Ordem Terceira, capítulo 1).
Enquanto durou o meu treino para esta missão, tive oportunidade para investigar em numerosas fontes, observando como, até hoje, entre os comentaristas e mais doutores e estudiosos desta parte da Bíblia, não existe acordo quanto aos responsáveis pelo julgamento e posterior condenação à morte do Nazareno. Para muitos (fundamentalmente autores judeus), o Sinédrio daquela época gozava da prerrogativa da pena capital. E se Jesus de Nazaré dizem foi executado ao estilo romano é porque não havia conflito entre eles. (1)
Para outros, o Conselho Supremo da comunidade israelita – o Sinédrio - podia julgar mas nunca aplicar e executar a pena máxima. Neste pressuposto, as castas sacerdotais não tiveram outro remédio senão procurar Pôncio Pilatos, para que confirmasse a sentença(2). Nunca consegui entender a razão destas diferenças de critério, pelo menos entre os comentaristas e escritores católicos. A maioria manifesta-se de acordo com o misterioso e dificilmente comprovável acontecimento da ressurreição de Jesus (sempre dentro de um ponto de vista histórico-científico) e, no entanto, correm rios de tinta a favor e contra a jurisdição penal do Sinédrio. Se o assunto fosse verdadeiramente aprofundado - além das numerosas referências históricas sobre o poder de Roma e dos seus procuradores – se observaria que, tendo em conta o ódio de Caifás e dos seus correligionários por Jesus, bem fácil teria sido ditar a pena de morte e executá-la sem mais demora. O fato indiscutível da sua visita à Fortaleza Antonia e a submissão geral judaica ao juízo de Pilatos evidencia uma questão objetiva: era Roma quem, definitivamente tinha a última palavra. Nos casos das mortes de Estevão (ano 36 da nossa Era) e de Tiago, um dos irmãos de Jesus de Nazaré (ano 62 depois de Cristo), muitos dos defensores da culpabilidade romana na execução do Mestre da Galiléia quiseram ver duas provas decisivas dessa capacidade legal do Sinédrio para ditar e executar sentenças máximas. Entendo, porém, que ambas as lapidações ou apedrejamentos - levados a cabo, efetivamente pelo Sinédrio - aconteceram em períodos nos quais a província romana da Judéia se encontrava temporariamente sem procurador.
No ano 26, Vitélio enviou Pilatos a Roma para prestar contas ao imperador Tibério e em 62, segundo narra Flávio Josefo (Antiguidades, XX,197 e segs.), o procurador romano Festo acabava de morrer e o seu substituto, Albino, não chegara ainda à Judéia.
*1 Assim pensam e escrevem, entre outros, autores como S. Zeitlin (The crucifixion of Jesus reexamined ), H. Mantel (Studies in the Story of the Sanhedrin), P. Winter (On the trial of Jesus), J. Carmichael (The death of Jesus), D. Flusser, J. Isaac, H. Cohn, W. R. Wilson, Catchpole e um longo et coetera. (N. do M.)
2 Entre os defensores desta segunda hipótese encontram-se, por exemplo Blinzer (O Processo de Jesus), Jeremias, E. Lohse (Sunedrion), Strack-Billerbeck, Mommsen (Rmishe Strafecht), Sherwin-White (RomAn society and Roman Law in the New Testament), A. Strobel (Die Stunde der Wharneit), E. Schurer, et coetera. (N. do M.)
Existe, ainda, outra opinião. Se o Sinédrio tivesse gozado verdadeiramente dessa capacidade legal para aplicar e consumar a pena de morte, porque não foi Jesus executado ao estilo judeu?
A lei judaica, mais uma vez, era muitíssimo cuidadosa neste aspecto. Na Ordem Quarta (capítulo VII), a Misn diz textualmente: O tribunal podia infligir quatro tipos de penas de morte: a lapidação, o abrasamento a decapitação e o estrangulamento. Geralmente, a lapidação ou apedrejamento era a pena mais dura. Era aplicada - e continuo a citar a lei hebraica - aos seguintes: ao que tem relação sexual com sua mãe ou com a mulher de seu pai ou com a nora ou com um varão ou com um animal; a mulher que atrai a si um animal (para copular com ele); o blasfemo; o idólatra; o que oferece os seus filhos a Moloc (um ídolo); o nigromante; o adivinho; o profanador do sábado; o maldizente do pai ou da mãe; o que copula com uma jovem prometida; o que conduz uma pessoa à idolatria; o sedutor, que leva toda uma cidade à idolatria; o feiticeiro e o filho obstinado e rebelde:.
Quanto ao abrasamento - que tive a oportunidade de contemplar na minha segunda grande viagem - a lei estabelecia que eram réus de tal execução o que tinha relação sexual com uma mulher e com sua filha e a filha do sacerdote que tivesse fornicado (depois de ter contraído matrimônio).
Morriam decapitados o homicida e os habitantes de uma cidade apóstata. Por último, a pena de estrangulamento recaía nos seguintes: Naquele que fere seu pai e sua mãe; no que rapta uma pessoa em Israel no ancião que se rebela contra a sentença do tribunal; no falso profeta; no que tem relação sexual com a mulher de outro; no que levanta falso testemunho contra a filha de um sacerdote ou se deita com ela. Admitindo, por conseqüência, que o Sinédrio tivesse tido poder para executar Jesus, e se as acusações mais importantes eram as de blasfemo, falso profeta, mágico e profanador do sábado, lógico teria sido que os hebreus o tivessem lapidado ou estrangulado. Porque pediram então a morte por crucifixão?
Em minha opinião só pode obedecer a uma dupla causa: primeira, porque o tribunal sabia que era o procurador romano quem devia decidir; segunda, porque naquele simulacro de julgamento a maior parte dos juízes eram saduceus. Por outras palavras, a ala dura das castas sacerdotais. Caifás era um deles e soube ganhar para si um importante grupo, que foi o que assistiu à sessão matinal do pequeno Sinédrio. Como Já referi, os saduceus - qualificados nos Atos dos Apóstolos (5, 17) como o círculo do sumo sacerdote Caifás – estavam em aberta oposição aos fariseus, desfrutando de uma teologia e código penal próprios. Se o Tribunal fosse constituído por uma maioria de fariseus, possivelmente as coisas seriam muito diferentes e Jesus teria terminado a vida apedrejado ou estrangulado. Mas a morte por crucifixão era muito mais vil e humilhante do que as ditadas pela leia mosaica e é quase certo que a maioria saduceia pendera para esta, refinando até ao limite o seu ódio contra o impostor. No entanto, a dúvida continuava a agitar-se no meu cérebro. Por que razão os inquisidores tinham gritado e voltariam a gritar perante Pôncio Pilatos pela pena de crucifixão?
Só quando tive conhecimento das acusações que, efetivamente, figuravam num dos pergaminhos que Caifás levava pude deslindar o mistério. Mas antes, um fato totalmente imprevisto ia obrigar-me a alterar os planos de Cavalo de Tróia...
Faltavam poucos minutos para as oito da manhã quando a reduzida comitiva deixou para trás o Bairro Alto de Jerusalém. Cavalo de Tróia acreditara desde o começo que o encontro dos sinedristas com o procurador romano se daria, precisamente, no portão e no túnel da fachada ocidental da Torre Antonia (aquela por onde eu tivera acesso, na companhia de José de Arimatéia). Mas não foi assim. Caifás e os saduceus atravessaram diante do muro de proteção situado na frente do fosso e, sem hesitar, viraram a esquina noroeste, em direção a uma outra porta de entrada do quartel-general de Pilatos na Cidade Santa. Eu tinha combinado com Pilatos e o seu primeiro centurião, Civilis, que a minha entrada na fortaleza se faria pelo posto de guarda. Durante uns segundos, enquanto o meu cérebro procurava a solução, deixei-me arrastar - quase por inércia - pelo pelotão. Ao virar aquela esquina de Antonia, a súbita presença do ancião José de Arimatéia e de um jovem hebreu fez que esquecesse momentaneamente as minhas dúvidas. José, logicamente, estava a par dos passos de Jesus e do sumo sacerdote. Embora não o tivesse visto no julgamento, deduzi que os seus contatos o mantinham devidamente informado. O fato de estar ali era uma prova.
Caifás deve ter visto José. Passou praticamente a seu lado. No entanto, nem sequer o saudou. O ancião , ao descobrir o Mestre, angustiou-se. Embora, possivelmente, estivesse informado também da tortura a que fora submetido, ao verificá-lo por si mesmo empalideceu. Sem levantar muitas suspeitas fui ficando para trás , até me reunir com ele e o seu companheiro. E assim seguimos o pelotão. Arimatéia, que parecia ter perdido as esperanças que tentara incutir-me no pátio da casa de Anás, ao notar a minha desconfiança pela presença do jovem desconhecido instigou-me a falar abertamente.
Quem o acompanhava era um dos correios de David Zebedeu. Estava ali, segundo me explicou, para transmitir as últimas notícias ao corpo de emissários, que fora centralizado por David no acampamento de Getsémani.
Desta forma, à medida que nos aproximávamos da porta norte da Torre Antonia, José e o emissário puseram-me a par da sorte que tinham tido os restantes discípulos e aqueles de que não tinha notícia alguma desde a prisão.
A maior parte dos gregos e discípulos que foram testemunhas da prisão do Mestre, no caminho que percorre a encosta do monte das Oliveiras, acabou por voltar ao jardim de Simão, o Leproso, despertando os oito apóstolos e outros adeptos, que permaneciam alheios àquilo que, entretanto, se passava.
Minutos depois, era o muito jovem João Marcos que corria até ao cimo do monte das Oliveiras, para avisar David Zebedeu, que continuava de guarda e à margem dos últimos acontecimentos.
Após uns primeiros instantes de natural confusão, o grupo concentrou-se em torno do moinho de pedra situado à entrada da herdade, iniciando-se viva discussão. O chefe dos apóstolos, André, estava de tal modo confundido que não foi capaz de dizer nada. E foi Simão, o Zelota, quem, por fim, acabou por se empoleirar no muro do lagar, falando aos seus companheiros para que pegassem em armas e se lançassem na perseguição dos guardas, libertando Jesus.
Segundo o correio - testemunha ocular dos acontecimentos quase todos os presentes naquela madrugada no jardim (à volta de meia centena) corresponderam com veemência ao incitamento do revolucionário Simão, membro ativo - como insinuei noutra altura do grupo clandestino e terrorista dos Zelotas. E é muito possível que se tivessem lançado, monte abaixo, no encalço do Mestre, se não se tivesse dado a oportuníssima intervenção de Bartolomeu. Logo que Simão, o Zelota, acabou de falar, Bartolomeu pediu calma e lembrou aos seus amigos os constantes ensinamentos sobre a não-violência, que Jesus lhes pregara. De modo suave, o apóstolo reavivou a memória dos inflamados discípulos, citando as palavras pronunciadas pelo Rabi naquela mesma noite, ordenando-lhes que protegessem e conservassem as suas vidas, para que pudessem difundir e propagar a mensagem do reino dos céus.
A tese de Bartolomeu foi apoiada vivamente por Tiago, o irmão de João Zebedeu, que também explicou aos companheiros como Pedro, alguns gregos e ele próprio tinham desembainhado as espadas no momento da prisão de Jesus e como o Mestre lhes pedira que guardassem as armas.
Os ânimos, assim parecia, foram-se apaziguando. Depois, também intervieram Filipe e Mateus e, por último, Tomé, que insistiu com o seu característico sentido prático – na necessidade de não se exporem a perigos mortais, tal como Jesus tinha sugerido ao seu amigo Lázaro.
Os argumentos de Tomé - pedindo aos discípulos que se dispersassem enquanto esperavam por novos acontecimentos - acabaram por dominar a ânsia de luta dos adeptos de Cristo e os discípulos acabaram por dispersar.
Pelas duas e meia ou três menos um quarto daquela madrugada, o jardim ficou deserto. Apenas David Zebedeu e um reduzido grupo de mensageiros continuaram no acampamento, preparando-se para uma missão que como Já insinuei, seria vital. O intrépido discípulo soube organizar-se de tal forma que, por intermédio de João Zebedeu, de José de Arimatéia e de outros agentes, pôde dispor de uma notável e precisa informação sobre o decorrer dos acontecimentos. De hora a hora, aproximadamente, um dos seus velozes mensageiros se encontrava com os citados, trazendo as notícias ao improvisado quartel-general do Getsémani. Dali, por sua vez, David enviava outros correios para os pontos onde os apóstolos tinham combinado esconder-se: cinco Bartolomeu, Filipe, os dois gêmeos e Tomé - nas aldeias de Betfagé e Betânia. Os quatro restantes - Simão, o Zelota, Tiago, Tadeu e André em Jerusalém.
Quando perguntei ao emissário por Pedro, o jovem tranquilizou-me.
Pouco depois do amanhecer, David encontrara-o nas proximidades do acampamento, sem rumo certo e cheio de tristeza. É possível que, naqueles instantes, nem David Zebedeu, o emissário ou discípulos soubessem a verdadeira razão da imensa angústia do fogoso Simão. A verdade é que David ordenou a um dos correios que o acompanhasse a casa de Nicodemo, na Cidade Santa, ponto de encontro de seu irmão André e dos outros três apóstolos.
O emissário que acompanhava José de Arimatéia informou-me também que, pouco depois da partida de Pedro, chegou ao jardim um dos irmãos carnais do Mestre, Judas. Adiantara-se ao resto da família e soube ali da trágica prisão de Jesus. A pedido de David Zebedeu, voltou apressado pelo atalho que atravessa o monte das Oliveiras juntando-se a Maria, sua mãe, e aos restantes elementos da família. As ordens de David eram que a família do Mestre se conservasse na casa de Marta e de Maria, em Betânia. E assim se fez.
Isto significava que Maria, a mãe de Jesus de Nazaré, se encontrava nas proximidades de Jerusalém... e que, naturalmente, devia estar avisada do que acontecia ao Filho. A possibilidade de me encontrar com Maria fez-me estremecer...
O vento soprava com mais força. Quando alcançamos Caifás e as suas hostes, um dos dois legionários que estavam de guarda do lado norte da muralha exterior que rodeava a fortaleza acorreu ao interior do quartel, para anunciar a presença daquele importante grupo de sacerdotes. Segundo parecia, o sumo sacerdote tinha avisado a sentinela de que o procurador sabia daquela visita matinal.
José e eu entreolhamo-nos, deduzindo que Pôncio Pilatos podia ter tido conhecimento do fato pelos judeus que na noite anterior lhe tinham solicitado uma
escolta.
Fosse como fosse, há algum tempo que Pilatos aguardava a chegada da representação do Sinédrio.
Enquanto esperávamos junto do parapeito de pedra, anunciei a José de Arimatéia que, aproveitando a ordem que me concedera o próprio procurador, tentaria antecipar-me a Caifás e ao seu pelotão. Ele concordou, acrescentando que era intenção sua continuar ao lado do Mestre e que, provavelmente, nos voltaríamos a ver na residência do procurador.
Assim, esquecendo a minha intenção de entrar na Torre Antonia pelo túnel da ala ocidental, peguei no salvo-conduto, apresentando-o ao legionário. Este, ao ler a autorização e ao ouvir o nome de Civilis, deu-me passagem, apresentando-me a vários soldados que estavam de guarda do outro lado do fosso, junto de uma grande porta aberta na muralha e ladeada por duas pequenas torres de vigilância.
Ao atravessar a ponte levadiça, semelhante à que facilitava o acesso pelo túnel, um dos guardas cortou-me a passagem. Tive de repetir a operação. A sentinela voltou a examinar o documento ordem do procurador e ordenou-me que esperasse. Depois, deixou o seu posto de guarda e entrou na fortaleza. A porta monumental coroada por um arco de volta inteira tinha dois grandes batentes de madeira presos a postes verticais, que podiam girar em encaixes na pedra.
Pensei que, desta maneira, em momentos de perigo ou ataque, se podiam fechar batentes, trancando-os por dentro. Poucos minutos depois, o legionário chamava-me de uma escadaria de pedra existente ao fundo. Caminhei sozinho até à sentinela, atravessando um largo pátio, perfeitamente empedrado com cantos rodados. Junto da escadaria, o soldado indicou-me um oficial, dizendo:
- Ele te levará até Civilis...
Assim foi. No final daqueles quinze degraus esperava-me um centurião. A escadaria dava acesso a uma espécie de terraço retangular, cuidadosamente ladrilhado e cercado de ambos os lados por uma série de balaústres de mármore com um metro de altura.
Era a entrada principal do que poderíamos denominar a residência privada do procurador: um edifício suntuoso, relativamente afastado do conjunto, ainda que dentro da fortaleza.
O oficial guiou-me até uma entrada de extraordinárias dimensões , de onde partiam três escadarias, todas de mármore branco.
- Espera aqui - disse-me, enquanto se dirigia para as escadas que ficavam em frente da outra escada de duplo batente do vestíbulo. Junto da referida escadaria estavam de guarda mais dois soldados, com as suas lanças e cotas de malha.
Obedeci, contemplando com admiração a série de envidraçados multicores que se alinhavam ao longo das paredes, proporcionando à quadra uma abundante luz natural. Nas paredes, revestidas a granito de Siena, tinham sido abertos numerosos nichos, onde se encontravam bustos do imperador, jarros gregos decorados com cenas mitológicas e candelabros de prata.
O pavimento do vestíbulo fora trabalhado com um extenso mosaico, que nada tinha a invejar aos que eu vira nas ruínas de Pompéia.
Distraído com aquela luxuosa decoração, não notei a chegada de Civilis.
O centurião e comandante da legião saudou-me, sorridente.
Naquela altura trazia um capacete extremamente polido e rematado por um penacho de penas vermelhas. Antes que pudesse explicar-lhe que desejava alterar os meus planos, Civilis avançou até à porta do vestíbulo e, apontando o portão da muralha, anunciou-me que o dia se tinha complicado. Com um gesto de aborrecimento, revela:
- Esta manhã, Pilatos tem de receber vários representantes do Conselho de Justiça dos judeus...
- Já sei - respondi - é disso justamente que te queria falar...
O centurião fitou-me, surpreendido.
.. Ouvi dizer que os judeus querem julgar um mágico. Eu o vi passar. Sabes que me interesso pelos astros e seus desígnios e gostaria de te pedir, e pedir ao procurador, uma pequena alteração de planos.
Civilis continuou a ouvir-me com atenção.
- Tenho ouvido dizer - continuei - que esse homem a quem chamam Jesus de Nazaré tem feito grandes prodígios e, abusando da vossa hospitalidade, gostaria de estar presente quando ele for levado à presença de Pilatos.
Antes que o centurião pudesse responder, concluí as minhas palavras com uma afirmação que, tal como esperava, só em parte atraiu a curiosidade do romano:
- Soube que ainda hoje, tu, o procurador, eu e toda a cidade teremos oportunidade de assistir a um estranho fenômeno celeste...
O pragmático e incrédulo oficial sorriu zombeteiramente, limitando-se a responder:
- Está bem, Jasão, vou dizer a Pilatos...
Civilis desapareceu pela escadaria central, ao encontro do procurador, não sem antes me ter dito para ficar ali.
- Aquelas ratazanas - comentou para mim, referindo-se aos sacerdotes, que aguardavam junto do parapeito exterior – não têm escrúpulos em nos virem pedir que executemos um dos seus e, no entanto, não querem entrar no pretório, com medo de se contaminarem e não poderem celebrar a sua maldita Páscoa...
Civilis tinha razão. Para a celebração da festa anual da Páscoa, os judeus - muito especialmente os membros das diferentes castas sacerdotais - tinham proibido a entrada nas casas dos gentios (todas elas suspeitas de albergar alimentos que pudessem conter fermento, sendo este contato com substâncias fermentadas rigorosamente proibido) (1). Isso fez-me pensar que o procurador e os seus homens não teriam outro remédio senão ouvir Caifás e os saduceus às portas do pretório (quase por certo, concluí, muito próximo daquelas escadarias que acabo de subir.) E preparei a minha vara de Moisés para o que ia ser o primeiro encontro oficial de Pilatos com os membros do Sinédrio. Efetivamente, pelas oito e quinze minutos daquela manhã de sexta-feira, 7 de Abril, o gordo procurador apareceu no alto da escadaria central do vestíbulo onde eu esperava. Vinha acompanhado por Civilis e por mais três ou quatro centuriões.
Ao ver-me, apressou-se descendo as escadas, saudando-me com os braços erguidos. Pilatos mudara de indumentária. Nesta altura, e dada a sua qualidade de representante de César, trazia uma armadura de metal, curta e musculada, belamente trabalhada e brilhante como um espelho ao estilo das melhores couraças gregas da época. Por baixo da armadura via-se uma túnica curta de seda, de meia manga, cor de osso, cuidadosamente engomada e rematada por franjas douradas. O volumoso ventre do procurador sobressaía por baixo da couraça, dando-lhe um perfil bem pouco cavalheiresco. Em volta do pescoço, e caindo-lhe pelas costas, trazia um manto, ou sagum, de tom vermelho-arroxeado, muito claro. Porém, o que mais me chamou a atenção, foram as pernas: apareciam envolvidas inteiramente em faixas de linho. Aquilo fez-me suspeitar de que o procurador padecia de varizes.
1 Na sua Ordem Segunda, a Misn estabelece que na noite de 14 do mês de Nisan (véspera da festa da Páscoa) tinha de se retirar toda a substância com levedura (geralmente cereais) à luz de uma vela. (N do M.)
O centurião-chefe Já o informara dos meus desejos e do tal presságio celeste de que falara a Civilis e, sem poder conter a sua curiosidade, interrogou-me, ao mesmo tempo que me convidava a caminhar junto dele até à porta de entrada da residência oficial. Expliquei-lhe como pude que os astros tinham anunciado para aquela mesma manhã um funesto augúrio e que, para o bem de todos, tomasse todas as precauções... Não houve tempo para mais. Pôncio Pilatos e os seus ficaram pelo terraço enquanto um dos centuriões descia as escadas, ao encontro, sem dúvida, de Caifás e daquele Galileu que começara a estragar o tranqüilo dia do procurador. O vento despenteou Pilatos, pondo-o em dificuldade com a cabeleira postiça, o que deve ter aumentado ainda mais o seu mau humor. O fato de ter de ir até às portas do pretório para receber o sumo sacerdote e os membros do Sinédrio não o fazia muito feliz... Pouco depois, vi aparecer pelo arco da muralha o grupo que Caifás guiava. Logo atrás, Jesus o legionário romano que o escoltara durante toda a noite, João Zebedeu e os levitas e servos do Sinédrio. Ao chegarem junto da escadaria, os saduceus pararam, avisando o procurador de que a sua religião os impedia de darem um só passo mais. Pilatos olhou para Civilis e, com um gesto de aborrecimento, avançou, até ficar mesmo no cimo da escadaria. Uma vez ali, e em tom desabrido, perguntou-lhes:
- Que acusações tendes contra este Homem?
Os juízes trocaram um olhar e, por ordem de Caifás, um dos saduceus respondeu:
- Se este homem não fosse um criminoso não o teríamos trazido...
Pilatos manteve-se em silêncio. Segurou o manto e começou descendo as escadas. Imediatamente, Civilis e os outros centuriões se apressaram a acompanhá-lo, rodeando-o.
O romano, sempre em silêncio, aproximou-se de Jesus, observando-o com curiosidade. O Mestre continuava de cabeça baixa e de mãos atadas atrás das costas. Os cabelos, agitados pelo vento, escondiam parcialmente os ferimentos do rosto.
Pilatos deu uma volta completa em redor do Nazareno. Depois, sem fazer comentário algum, mas com uma evidente careta de repugnância nos lábios, voltou a subir os degraus. Sem qualquer dúvida - e Civilis confirmaria a minha suspeita pouco depois - o procurador fora previamente informado da sessão matinal do Sinédrio, bem como das divergências surgidas entre os juízes, no momento de estabelecer as acusações. (Segundo Civilis, uma das servas e intérprete da mulher de Pilatos, Cláudia Procula, conhecia os ensinamentos de Jesus de Nazaré, tendo informado o procurador dos prodígios e das pregações do Rabi.) Quando ia a meio da escadaria, Pilatos parou e, rodando nos calcanhares voltou-se novamente para os hebreus, dizendo-lhes:
- Dado que não estais de acordo com as acusações, porque não levais este Homem, para que seja julgado em conformidade com as vossas próprias leis?
As palavras do procurador caíram como um balde de água fria. Os homens do Sinédrio que não esperavam tal resistência de Pilatos, responderam, visivelmente nervosos.
- Não temos o direito de condenar um homem à morte. E este perturbador da nossa nação merece a morte pelo que disse e fez. Esta é a razão por que viemos ter contigo: para que ratifiques esta decisão.
Pilatos sorriu maliciosamente. O reconhecimento público da impotência judaica para pronunciar e executar uma sentença de morte, nem mesmo contra um dos seus, encheu-o de satisfação. O seu ódio pelos Judeus era muito mais fundo do que podia supor.
- Não condenarei esse Homem sem um julgamento - interveio o romano, apontando Jesus com a mão direita. - E nunca consentirei que O interroguem sem que receba, por escrito - acentuou com ênfase -, as acusações...
No entanto, o procurador tinha subestimado os sinedristas. Quando Pilatos pensava que o assunto estava encerrado, suspendendo assim a aborrecida questão, Caifás entregou um dos rolos que trazia a um escriba judicial que os acompanhava, pedindo ao procurador para ouvir as acusações, conforme era vontade sua. A manobra surpreendeu o romano, que não teve outro remédio senão deter os passos à porta da sua residência. Cada vez mais irritado pela tenaz insistência de Caifás e dos saduceus, dispôs-se a ouvir o conteúdo do pergaminho. O escriba desenrolou-o e, em Tom solene, deu início à leitura:
- O tribunal do Sinédrio considera que este Homem é um malfeitor e um perturbador da nossa nação, tendo por base as seguintes acusações:
- 1º Por perverter o nosso povo e incitá-lo à rebelião;
- 2º Por impedir o pagamento do tributo a César
- 3º Por a Si mesmo se considerar rei dos judeus e propagar a criação de um novo reino. Ao conhecer as acusações oficiais compreendi que o texto - que nada tinha a ver com o que fora discutido em juízo – tinha sido preparado por Anás e pelos restantes membros do Conselho na sua segunda entrada na sala do Tribunal, enquanto o Mestre e todos os outros esperavam no pátio central do Sinédrio.
Agora conseguia entender a razão das azedas discussões entre Caifás, Anás e os juízes, e o súbito aparecimento de um segundo pergaminho nas mãos do sumo sacerdote, momentos antes de sair para a Torre Antonia.
Muito astutamente, os saduceus tinham preparado aquelas três acusações, de modo que o procurador romano se visse inevitavelmente envolvido no processo. Pilatos pediu a Civilis que se aproximasse e segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido. O centurião fez com a cabeça um aceno afirmativo. (Aquela consulta confidencial - conforme soube pelo comandante-chefe da legião - incidira nas informações que estavam em poder do procurador e que, tal como todos sabíamos, indicavam que a conspiração contra o Nazareno tinha raízes pura e inteiramente religiosas.)
Pilatos compreendeu imediatamente que a mudança de estratégia dos sacerdotes obedecia, unicamente, ao seu fanatismo e ódio cego por aquele visionário, que fora capaz de desafiar a autoridade do sumo pontífice, ridicularizando as castas sacerdotais. Sem que o pretendessem, Caifás e os seus servos tinham conseguido com aquela falsidade que Pôncio Pilatos logo pendesse, desde o começo, não a favor de Jesus - que praticamente ignorava - mas contra aquela ralé de mãe, segundo as palavras do próprio romano. (Era extremamente importante ter em conta estes fatos, perante a conduta e as sucessivas tentativas do representante do imperador para libertar o Mestre. Nada teria dado mais satisfação ao seu desprezo pela suprema autoridade judaica que fazê-los morder o pó, pondo em liberdade o prisioneiro.) Mas os acontecimentos - contrariando o procurador - iam encaminhar por caminhos inesperados, Pilatos ficou em silêncio. Lançou um olhar de desprezo aos juízes e, descendo as escadas pela segunda vez, abriu caminho até Caifás. Uma vez ali, ante a expectativa geral, perguntou ao Mestre o que tinha a alegar em Sua defesa. Jesus
não levantou o rosto. Civilis, que seguira as passadas do chefe, levantou o bastão de vide, pronto para ferir o Galileu pelo que considerou uma falta de respeito. Mas o procurador deteve-o. Ainda que a sua confusão e enfado fossem cada vez maiores, o romano compreendeu que aquele não era o local mais adequado para interrogar o prisioneiro. Bastava a presença dos judeus para imaginar um obstáculo, tanto para ele como para o réu. Voltando-se para o primeiro-centurião deu ordem para que levassem o Rabi à sua residência.
Civilis fez um sinal ao soldado que escoltava o Mestre e ambos, na companhia de João Zebedeu e de alguns dos serventes do Sinédrio, seguiram Pilatos e os oficiais. Caifás e os juízes permaneceram no pátio. A contrariedade refletida nos seus rostos punha bem a claro o seu desejo frustrado de acompanhar Jesus de Nazaré e assistir ao interrogatório privado. Porém, o seu fanatismo religioso acabava de se voltar contra eles (Aliás, duvido muito que Pilatos tivesse autorizado a presença deles no interrogatório). Ao passar por mim, o procurador fez-me um gesto, convidando-me a acompanhá-lo.
- Diz-me, Jasão - perguntou-me Pôncio, enquanto atravessávamos o vestíbulo em direção à escadaria fronteira - conheces este mágico?... Achas que possa ser um zelota?
Foi um momento especialmente delicado para mim. Teriam bastado umas quantas explicações para que a balança do instável procurador pendesse a favor do Mestre. Porém, não era a minha missão. E respondi à sua pergunta com outra pergunta:
- Ouvi dizer que os teus homens foram destacados ontem à noite até uma herdade em Getsémani, com o objetivo de verificarem se havia por lá um acampamento zelota. Encontraram esses guerrilheiros? O procurador, que fazia grande esforço para subir os vinte e oito degraus da escadaria, parou, ofegante:
- E como sabes tu isso?
Enquanto Civilis guiava o Nazareno e o pequeno grupo por um luminoso corredor de mármore númida, tendo à direita estátuas assentes em pedestais de Carrara, tranqüilizei Pilatos, narrando-lhe o meu encontro casual com os dois legionários que perseguiam um dos simpatizantes do mágico.
O procurador confessou-me então que as suas informações sobre o tal Jesus de Nazaré datavam de anos atrás, especialmente desde que um dos seus centuriões lhe confessou como o mágico tinha curado um dos seus servos mais queridos, em Cafarnaum. Pouco a pouco Pôncio Pilatos fora reunindo dados e confidências suficientes para saber se o grupo que o Rabi dirigia era ou não perigoso, apenas do ponto de vista que o podia interessar: o da rebelião contra Roma.
Os agentes do procurador junto do Sinédrio tinham-no avisado de numerosas reuniões celebradas com a finalidade de prender e perder o Nazareno. Pilatos, estava, portanto, ao corrente das intenções dos que esperavam no pátio e do caráter místico e visionário - segundo expressão sua - do movimento que Jesus
orientava.
- Por que razão iria eu fazer a vontade àqueles invejosos - concluiu Pilatos - prendendo uns pobres-diabos cujo único mal é acreditar em fantasias e sortilégios?...
As revelações do governador da Judéia abriram-me definitivamente os olhos. Era claro que, pela minha parte, também subestimara o poder de Pilatos. Era natural que, numa província como aquela, tão rebelde e difícil, o poder de Roma tivesse os meios e tentáculos suficientes para saber quem era quem. E, evidentemente, Pilatos sabia quem era o Mestre.
- Então - perguntei com curiosidade -, porque concordaste em enviar um pelotão de soldados a Getsémani?
O procurador voltou a sorrir maliciosamente.
- Tu ainda não conheces estas pessoas. São teimosos como mulas. Além disso, as minhas relações... digamos comerciais, com Anás, sempre foram excelentes. Não vou negar que a procuradoria recebe importantes quantias, a troco de certos favores...
Não me atrevi a perguntar que tipo de favores aquele corrupto representante de César prestava, mas o próprio Pilatos facilitou-me a pista:
- Anás e esse açougueiro que tem por genro amontoaram grandes riquezas à custa do povo e do tráfico de moedas e de animais para os sacrifícios... Julgo que estejas informado do desastre sofrido pelos cambistas e intermediários do terreiro do Templo, precisamente por causa desse Jesus. Pois bem, os meus interesses nesse negócio obrigavam-me, em parte, a salvar as aparências e ajudar o antigo sumo sacerdote na sua pretensão de apanhar o mágico...
Aquele descarado nepotismo da família Anás - colocando os membros do seu clã nos postos-chave do Templo - era um segredo de polichinelo. A atuação do procurador pareceu-me, portanto, inteiramente verossímil.
Chegado ao fim do corredor Civilis abriu uma porta dando passagem a Pilatos. Atrás, e por ordem do centurião, entraram Jesus, João Zebedeu, mais dois oficiais e eu. O legionário e os criados ficaram fora. Ao entrar naquela sala reconheci imediatamente o gabinete oval onde tivera a minha primeira entrevista com o procurador. A ala norte da fortaleza encontrava-se, pois, em ligação direta com a sala de audiências de Pilatos. Compreendia agora a razão por que não tinha visto guardas naquela porta: possivelmente comunicava com os aposentos privados do romano por onde vira aparecer na manhã de quarta-feira, o servo que nos anunciou o almoço. Pôncio Pilatos dirigiu-se à sua mesa e convidou o Nazareno a que se sentasse na cadeira que José de Arimatéia tinha ocupado. João, timidamente, fez o mesmo com aquela que eu utilizara. Os oficiais postaram-se um de cada lado do Rabi, enquanto Civilis ocupava a sua habitual posição, na extremidade da mesa, à esquerda do procurador. Eu, discretamente, procurei ficar junto do chefe dos centuriões.
A luz que vinha da grande janela nas costas do romano permitia-me explorar com facilidade o rosto do Mestre. Jesus abandonara em parte aquela atitude de permanente ausência.
Levantava agora a cabeça. O nariz e o arco zigomático direito ( área malar ou do pômulo) continuavam muito inchados, tendo afetado, como eu temia, um olho. Quanto à sobrancelha esquerda, o golpe parecia bem fechado. Os coágulos de sangue das fossas nasais e lábios tinham secado, enegrecendo a parte do bigode e da barba.
Pilatos retomou o fio da conversa, indicando ao Rabi que, para começar e para Sua tranqüilidade, não acreditava na primeira das acusações.
- Sei dos Teus passos - disse-lhe com ar conciliador – e custa-me a acreditar que sejas um agitador político.
Jesus observou-o com ar cansado.
- Quanto à segunda acusação, disseste alguma vez que não se deve pagar o tributo a César?
O Mestre com a cabeça indicou João e respondeu:
- Pergunta a este ou a quem quer que me tenha ouvido.
O procurador interrogou o jovem Zebedeu com o olhar e João atabalhoadamente, explicou que tanto o seu Mestre como os restantes do grupo pagavam sempre os impostos do Templo e os de César. Quando o discípulo se dispunha a deter-se noutros ensinamentos, Pilatos fez um aceno de mão, ordenando-lhe que se calasse.
- Chega - disse-lhe. - E cuida de não dizeres a ninguém o que me disseste.
E assim foi. Nem mesmo no texto evangélico escrito por João muitos anos mais tarde se lê aquela parte da entrevista do procurador romano com Jesus. (Mais ainda, o escritor sagrado nem sequer faz menção da sua presença no referido diálogo. Se esta parte do interrogatório - tal como se depreende do Evangelho de São João - se verificou dentro do pretório e, portanto, privadamente, como é possível que o Zebedeu a descreva, referindo-se aos conhecidos temas do reino e da verdade? (João 18, 28-38). Só podia ter uma explicação: que ele, precisamente, fora testemunha). Pilatos dirigiu-se novamente ao Galileu:
- No que se refere à terceira das acusações, diz-me, és Tu o rei dos Judeus?
O tom do procurador era sincero. Foi essa, pelo menos, a minha impressão. E o Mestre esboçou um débil sorriso. Ao fazê-lo, uma das gretas do lábio inferior voltou a abrir-se e um fio de sangue correu pelos pêlos da barba.
- Pilatos - respondeu o Rabi -, fazes essa pergunta por ti próprio ou recolheste-a dos acusadores?
O procurador abriu os olhos indignado.
- Será que sou judeu? O Teu próprio povo Te entregou e os principais sacerdotes pediram-me para Ti a pena de morte...
Pilatos tentou recuperar a serenidade e,mostrando os dentes de ouro, acrescentou:
- Duvido da validade destas acusações e procuro apenas descobrir por mim mesmo aquilo que fizeste. Por isso te perguntarei pela segunda vez, disseste que eras o rei dos Judeus e que pretendes formar um novo reino?
O Galileu não se demorou na resposta:
- Não vês que o Meu reino não é deste mundo? Se assim fosse, os Meus discípulos teriam lutado para que não me entregassem aos judeus. A Minha presença aqui, perante ti e amarrado demonstra a todos os homens que o Meu reino é um domínio espiritual, o da confraternização dos homens que, por amor e fé, passaram a ser filhos de Deus. Esta oferta é a mesma, tanto para gentios como para judeus.
Pilatos levantou-se e, batendo na mesa com a palma da mão, exclamou, sem poder reprimir a sua surpresa:
- Por conseguinte, és rei!
- Sou - respondeu o prisioneiro, olhando de frente para o procurador. - Sou um rei deste gênero e o Meu reino é a família dos que crêem em Meu Pai que está nos céus. Nasci para revelar Meu Pai a todos os homens e testemunhar a verdade de Deus. E neste mesmo instante declaro que o amante da verdade Me ouve.
O procurador deu uns passos em volta da mesa e colocando-se entre João e o prisioneiro comentou para consigo:
- A verdade?... Que é a verdade?... Quem a conhece?...
Antes que Jesus pudesse responder, fez um sinal a Civilis, dando por terminado o interrogatório.
Os oficiais forçaram o Rabi a pôr-se de pé e Pilatos abriu a porta ordenando aos seus homens que levassem o Nazareno à presença de Caifás. Quando novamente caminhávamos pelo corredor, Pilatos pôs-se a meu lado fazendo um único mas eloqüente comentário:
- Este homem é um honesto. Conheço os Seus ensinamentos e sei o que pregam, o homem sábio é sempre um rei.
Depois daquele pensamento concluí que o romano estava disposto a libertar Jesus. Ao apresentar-se pela segunda vez diante dos judeus, a sua atitude confirmou o meu pressentimento.
Pouco antes das nove da manhã, Pilatos veio ao terraço e, assumindo um tom autoritário, sentenciou:
- Interroguei Este homem e não vejo nEle culpa alguma. Não o considero culpado das acusações. Por esta razão, penso que deve ser posto em liberdade.
Caifás e os saduceus ficaram desconcertados. Mas logo reagiram, gritando e manifestando grande indignação. Civilis interrogou Pilatos com o olhar, ao mesmo tempo que levava a mão à espada. Mas o procurador voltou a pedir-lhe calma. Um dos oficiais regressou precipitadamente ao pretório, possivelmente em busca de reforços.
Muito irado, um dos judeus separou-se do grupo, e subindo três ou quatro degraus, enfrentou Pilatos com as seguintes palavras:
- Este homem incita o povo!... Começou pela Galiléia e continuou pela Judéia É causador de desordens e um malfeitor. Se deixares esse homem livre vais lamentá-lo durante muito tempo...
Sem que o pretendesse, aquele saduceu acabava de proporcionar a Pilatos um motivo para se furtar ao desagradável assunto, pelo menos temporariamente. O procurador aproximou-se então do seu centurião-chefe, comunicando-lhe:
- Este homem é um galileu. Conduzam-no imediatamente à presença de Herodes... Civilis preparou-se para cumprir a vontade de Pôncio e, quando se dirigia para o legionário encarregado da escolta do Mestre, Pilatos voltou ao alto da plataforma, acrescentando:
- Ah!... e quando o tiver interrogado tragam-me as suas conclusões.
Nesta altura foi o próprio Civilis quem se responsabilizou pela escolta do Mestre. Os ânimos dos judeus estavam tão exaltados que, com muito bom critério, o centurião se rodeou de uma pequena escolta de dez legionários, pondo-se a caminho da residência de Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia e, como Pilatos, visitante, por aquela altura, de Jerusalém. Este Herodes era filho do tristemente célebre Herodes, o Grande, que ordenara a matança das crianças em Belém e ao seu redor.
Uma chacina muito própria do caráter e trajetória daquele rei, odiado pelo povo e ao qual chamavam desdenhosamente criado indumeu. Através de numerosas pesquisas, Cavalo de Tróia conseguiu averiguar que a sanguinária matança dos inocentes envolveu cerca de trinta crianças. Civilis, na frente, atravessou a ponte levadiça. Atrás, os soldados, defendendo o Mestre e formados em duas filas. E a pequena distância, o resto do grupo: Caifás, o punhado de juízes, Judas Iscariotes, João Zebedeu, o ancião José de Arimatéia e eu. Enquanto saíamos da fortaleza voltei-me para o portão aberto na muralha norte e a confusão reinou de novo no meu espírito. Segundo os textos evangélicos, uma grande multidão tinha acorrido àquelas mesmas portas do Pretório. Mas, como podia ser isso? De momento, as entrevistas com Pôncio Pilatos tinham-se dado mais ou menos de modo privado. Só aquela reduzida representação do Sinédrio pudera entrar na Torre Antonia...
Além disso - continuei eu a refletir, enquanto prosseguíamos em direção ao Bairro Alto da cidade -, sem o expresso consentimento do procurador ou dos seus oficiais, nenhum hebreu podia passar do muro ou parapeito exterior, e muito menos, do fosso que rodeava aquela zona do quartel-general romano.
* Antes de iniciar a missão. eu tinha recebido uma completa informação quanto a quem era aquele tetrarca ou governador da Galiléia: Herodes, por cognome Antipas, ou igual a seu pai. E a verdade é que aquela designação lhe assentava perfeitamente. Herodes Antipas herdara o governo das terras do norte (Galiléia) por morte do seu funesto pai, Herodes, o Grande, no ano 4 antes de Cristo. Tinha dezessete anos. De acordo com o primeiro testamento de seu pai, Antipas deveria receber o reino da Judéia. Mas Herodes, o Grande, mudou de idéia e substituiu Antipas pelo outro seu filho, Arquelau, que tomou a seu cargo o reino da Judéia. Herodes Antipas recebeu a Galiléia. Um terceiro filho, Filipo, foi designado também tetrarca da Pereia. Foi precisamente a este último que Herodes Antipas tiraria a mulher, a não menos célebre Herodíade, responsável, segundo parece, pelo assassínio de João Baptista, primo-direito de Jesus de Nazaré. (N. do M.)
Logo, que ia acontecer, para que a multidão judaica pudesse chegar até à escadaria da residência privada de Pilatos? João, o discípulo amado de Jesus, informou imediatamente José e o mensageiro de quanto acontecera junto do pretório e no interrogatório privado do procurador, evitando, assim, a sua conversa com o romano. O jovem Zebedeu recuperara as esperanças. Vi-o otimista perante as declarações de Pilatos. Na verdade, tinha razão. Se o processo se tivesse mantido dentro daquela linha, praticamente circunscrita ao pequeno círculo do homens do Sinédrio e do governador estrangeiro, talvez a sorte do Mestre tivesse sido outra. Porém, as maquinações de Caifás e dos seus homens não paravam...
Uma vez recolhidas as últimas notícias sobre Jesus, o correio despediu-se dos amigos do Rabi, partindo a correr para o acampamento de Getsémani.
Foi ao passar a Porta dos Peixes que José de Arimatéia, ao ver como um grande grupo de hebreus, presidido por vários chefes do Templo e outros fariseus, se unia ao sumo sacerdote e aos saduceus, exprimiu o seu desalento. Enquanto aguardava em frente do parapeito de pedra de Antonia, José tinha recebido uma informação que vinha complicar tudo, de mútuo acordo com os juízes, Anás começara a distribuir secretamente moedas de ouro pertencentes ao tesouro do Templo. Depois de tomar nota dos nomes de cada um dos subornados, os três gisbarim ou tesoureiros oficiais tinham dado uma palavra de ordem comum:
Clamar perante Pôncio Pilatos a morte do impostor da Galiléia.
Ao ver como o grupo inicial de saduceus aumentava sensivelmente, perguntei aJosé de Arimatéia como pensava Caifás introduzir aquela multidão no recinto da fortaleza.
- Duvido muito - disse-lhe - que Pilatos e as suas tropas o consintam.
José desfez as minhas dúvidas num segundo. Justamente naquela manhã de sexta-feira, véspera da Páscoa, os judeus desfrutavam de uma antiga prerrogativa. Centenas de hebreus tinham por costume subir até às imediações do Pretório e assistir à libertação de um preso. Aquela graça, poder que cabia ao procurador, constituía um dos gestos de amizade e simpatia de Roma para com os seus súbditos. Encerrava, por conseqüência, um manifesto caráter festivo e, durante os dias precedentes, tanto os habitantes de Jerusalém como os milhares de peregrinos discutiam, apostando por este ou por aquele candidato. Naquela altura, o nome que mais se ouvia entre os hebreus era o de Barrabás, que segundo José de Arimatéia, era membro ativo do grupo revolucionário zelota, um filho de pai desconhecido, vil e sanguinário, capturado pelas forças romanas numa revolta.
* Ao consultar os arquivos de Papai Noel, o computador central confirmou que o nome de Barrabás era de origem semita (mais exatamente aramaica). Podia ter vários significados: Bar, que significa filho em aramaico e, Rabba, ou mestre e rabi. Também era válida a explicação de Bar Abba, ou filho de seu pai, que era uma maneira de chamar todo aquele cujo pai fosse desconhecido. (N. do M.)
O esclarecimento do ancião amigo de Jesus permitiu-me compreender muitas coisas. Em primeiro lugar, e como era evidente, a cidade despertara naquela manhã de sexta-feira, 7 de Abril, sem o menor conhecimento da prisão do seu ídolo, Jesus de Nazaré. Só alguns sabiam. Em segundo lugar, a próxima e iminente manifestação de judeus em frente da residência de Pilatos nada tinha a ver com o Mestre da Galiléia. Mesmo que Jesus não tivesse sido preso, teria celebrado da mesma forma. Foram, como disse, as pérfidas manobras do Sinédrio e a quase total ausência de amigos e partidários do Nazareno na referida manifestação popular, para pedir a libertação de um réu, que levaram ao que todos conhecemos.
O palácio dos antigos asmoneus - residência provisória de Herodes Antipas durante a sua breve passagem por Jerusalém - encontrava-se muito perto da muralha que ia do soberbo conjunto palaciano de Herodes, o Grande (no extremo ocidental da cidade) ao Templo. Tratava-se de uma velha construção, à base de enormes silhares de vinte côvados de comprimento por dez de largura, que, nas palavras de Josefo, não podiam ser cavadas nem quebrados com ferro, nem movidos com todas as máquinas do mundo.
Às portas do palácio saiu ao nosso encontro uma parte da guarda pessoal de Antipas, constituída, na sua maioria, por mercenários trácios, germanos e gauleses. Muitos tinham servido antes o pai do atual Herodes. Vestiam longas túnicas verdes - de meia manga - com o tronco e o ventre cobertos por uma espécie de camisa ou couraça entrançada, feita de escamas metálicas. Quase todos traziam às costas aljavas de couro, cheias de flechas. (Em face do considerável número de soldados que vi dentro do palácio, Herodes devia temer pela sua segurança pessoal. )
Civilis trocou algumas palavras com os porteiros e a guarda abriu passagem à escolta romana e a um reduzido grupo de sacerdotes. Os outros, incluindo José de Arimatéia, tiveram de esperar em frente do edifício.
Uma vez mais, a sorte esteve do meu lado. Antes de entrar no palácio, o centurião agarrou-me pelo braço, anunciando-me que o tetrarca era um entusiasta da Grécia e que, se me parecesse bem, ele teria muito prazer em me apresentar a Herodes, falando-lhe das minhas virtudes como astrólogo ao serviço do imperador. Aceitei, encantado, ainda que dos planos do Cavalo de Tróia não fizesse parte uma entrevista com o governador da Galiléia.
Como era natural, o centurião não podia imaginar que o interrogatório de Antipas a Jesus de Nazaré fosse tão breve quanto estéril. Apesar da antiguidade daquele palácio, Herodes encarregara-se de o embelezar até limites de que não se suspeitava. Do pátio central, ocupado por um tanque retangular e onde, no lajedo, bicavam inúmeras pombas, alguns dos criados, guiados sempre por um somatophylax, ou guarda-costas da corte herodina (que respondia ao nome de Corinto), conduziram-nos ao andar superior. No primeiro piso do palácio, aberto na sua totalidade para o jardim interior e coberto por um artístico claustro de mármore, encontrava-se a sala de audiência de Antipas. O que primeiro me atraiu a atenção na espaçosa sala, perfeitamente iluminada por três grandes janelas orientadas a norte, foi um cadeirão de madeira preta, magistralmente talhada e colocado à direita da câmara. Tratava-se, sem dúvida, de um trono. Fora colocado em cima de um estrado, também de madeira escura. A pouca distância, e ocupando o centro da sala, abria-se uma piscina circular de quatro a cinco metros de diâmetro e profundidade difícil de calcular, por causa do líquido branco que a enchia. Aos pés do trono, uns vinte indivíduos estavam recostados em grandes almofadões brancos de penas. Ao verem-nos, fez-se um grande silêncio.
* Alguns daqueles gauleses tinham participado na guarda de Cleópatra, rainha do Egito, atingindo o seu número mais de quatrocentos. (N. do M.)
Mas, por mais que tentasse identificar Antipas, não consegui. O Mestre foi colocado pelo centurião em frente do cadeirão de madeira, entre a piscina e aquela plêiade de brilhantes primos e amigos do tetrarca, que olhavam estupefatos para o Galileu e para os legionários romanos.
Caifás rompeu por fim o pesado silêncio. Avançou para o grupo de cortesãos e entregou o pergaminho das acusações a um indivíduo extremamente fraco, igualmente recostado e meio escondido entre os coxins. Ao pôr-se de pé, apareceu na minha frente um Herodes difícil de imaginar. Apesar dos seus cinqüenta e cinco anos parecia um velho. Por baixo da túnica, praticamente transparente, adivinhava-se o corpo esquelético, semeado de crostas acinzentadas e sujas, provocadas decerto por uma doença a que os romanos chamavam mentagra.
Aquelas úlceras - que hoje nos fariam pensar na sífilis - tinham-lhe atacado especialmente as mãos, o pescoço e o rosto.
Para cúmulo, Antipas exibia cabelo comprido e aparado na testa, pintado de louro brilhante.
Depois de examinar o pergaminho, Herodes lançou um olhar a Jesus, ao mesmo tempo que o sumo sacerdote se multiplicava em todo o gênero de explicações sobre o processo que se levantara contra o impostor e sobre o desejo do procurador romano de que o tetrarca procedesse ao interrogatório do Galileu.
Antipas arremessou o rolo aos pés de Caifás. Este, confundido pela inesperada reação do governador da Galiléia, emudeceu, enquanto um dos seus levitas se apressava a apanhar o pergaminho.
Sem dizer palavra, o tetrarca começou a dar voltas em redor do Nazareno. Finalmente, parou em frente de Jesus soltando sonoras gargalhadas. Os cortesãos não tardaram em imitá-lo e os risos acabaram por ecoar nas paredes de mármore da sala. Herodes levantou então os braços e as gargalhadas cessaram imediatamente. Depois, baixando as mãos devagar, comentou, divertido.
- E assim, no fim de contas, o milagreiro presunçoso acabou por visitar a velha raposa...
* Plínio, o velho, na sua História Natural, descreve esta doença garantindo que as úlceras começavam sempre pelo queixo. Segundo o nosso computador, a doença teve origem na Ásia, transmitida por um cidadão de Perusa. (N. do I.)
O tetrarca, evidentemente, conhecia o Mestre e estava informado das palavras de Jesus, que lhe chamava raposa. Antipas esperou pela resposta do prisioneiro. Mas o Rabi, com a cabeça descaída para o peito nem se dignou olhá-lo. Durante pouco mais de quinze minutos, o filho de Herodes, o Grande, perseguiu o prisioneiro com perguntas, mas nem uma só resposta obteve. Uma das principais preocupações de Antipas - a julgar pelas suas perguntas - era a possibilidade de aquele galileu ser a reencarnação de João Baptista, que ele executara três anos antes (1). Saltava à vista que os remorsos se tinham apossado da alma daquele governante despótico e cruel.
Desiludido com o silêncio do Galileu, Herodes mudou de tática. Fazendo um sinal a um dos seus leais, exclamou:
- Manaen!... Chama Herodíade!
E o velho syntroplzos, o preceptor de Herodes Antipas, apressou-se a sair do salão de audiências, para ir procurar a amante do senhor. Longe de se irritar com o mutismo do Galileu, Herodes parecia ter íntima satisfação com isso. Aquela atitude era muito estranha e, dissimuladamente, o tetrarca foi caminhando pela beira da piscina, procurando não escorregar no polido pavimento de mármore, com incrustações de coral rosa. A sua paixão pelo helenismo, tal como me dissera o centurião, notava-se não só no seu vestuário e nos homens que o rodeavam mas também na decoração do palácio. O pavimento, por exemplo, primorosamente trabalhado com pedacinhos de coral brilhante e uniforme a que se chamava pele de anjo - provavelmente retirado do Mediterrâneo - era uma das provas mais eloquentes do requinte de que fazia gala aquela personagem. Os artesãos fenícios ao serviço de Antipas tinham conseguido formar um formosíssimo e gigantesco quadro da lendária Medusa e de seu matador, Teseu 2, embutindo nas placas de mármore milhares de grânulos de coral, que davam forma à cena mitológica. Desta forma, aproximei-me de Civilis e, em voz baixa, perguntei-lhe por que razão o tetrarca adotava aquela atitude.
O centurião - que conhecia bem a desordenada vida de Antipas - sugeriu-me uma explicação que nada tinha de subestimável:
- Todo Israel sabe que Herodes temia e respeitava o fogoso profeta a quem chamavam Baptista. Em certa altura, este louco chegou a comentar que Jesus da Galiléia podia ser João. Não seria de estranhar que, ao verificar o silêncio do prisioneiro, a sua desequilibrada razão tenha recuperado a calma.
De repente, Antipas saiu dos seus pensamentos e, pegando numa taça de cristal, aproximou-se do tanque. Inclinou-se e encheu-a. Depois, pondo a taça à altura do rosto do Nazareno, perguntou-lhe com malícia:
- Diz-me, Galileu, podes transformar o leite em vinho?
Jesus, imóvel, não pestanejou. Continuava de cabeça baixa. Herodes encolheu os ombros e voltou ao seu colchão de penas. Um dos criados, possivelmente um eunuco, a julgar pelos anéis nas orelhas e pelas ancas e meneios femininos, ajoelhou-se na frente do tetrarca, para o calçar. Aquelas sandálias com tiras douradas atraíram-me a atenção. Ambas as solas pareciam cobertas com uma série de finíssimas almofadinhas. Uma vez calçadas, Antipas pôs-se de pé e, para minha surpresa, com o peso do seu corpo, as bolsinhas começaram a ressumar um líquido transparente e aromático. Eram vaporizadores (uma espécie de desodorizante que tinha começado a fazer furor entre as classes endinheiradas de Roma e da Grécia, e que eliminava, em boa medida, os desagradáveis cheiros da transpiração).
*1 Quando Herodes Antipas se apaixonou pela mulher de seu irmão Filipe. tetrarca na região de Pereia a oriente do Jordão, aproveitou uma viagem a Roma para se unir a Herodíade.
A sua mulher legítima, filha do xeque árabe Areta, quarto rei dos Nabateus, teve de sair de Israel regressando com a família. Desde então, João Baptista aproveitou quantas oportunidades teve para censurar Herodes e a amante, Herodíade, em permanente adultério. As críticas do primo-direito de Jesus foram tão duras que Antipas, possivelmente a conselho de Herodíade, mandou encarcerar Baptista numa fortaleza afastada na margem oriental do mar Morto, e que os Beduínos ainda conhecem por Mashnaka ou Palácio Pendente. Ali seria decapitado pouco depois. Desde então Antipas viveu sempre com o medo de que o fantasma de João Baptista voltasse para fazer justiça. De acordo com as nossas investigações, era improvável que Antipas tivesse consentido degolar Baptista por causa da famosa dança de Salomé, a filha de Herodíade. Naquela época, Salomé devia ser uma adolescente. O verdadeiro nome da enteada de Herodes é nosso conhecido graças ao testemunho de F. Josefo e à inscrição de uma moeda, em que aparece junto de seu marido, Aristóbulo. Segundo os historiadores, a versão mais racional e verossímil é a de que João Baptista tenha sido encarcerado e executado por causa das suas duras críticas contra o tetrarca e contra a esposa de Filipe. (N. do M.)
2 A lenda grega conta que havia três irmãs - as Górgonas - que tinham um único olho e um único dente, passando-os umas às outras quando queriam ver ou comer. Isto segundo a lenda, simbolizava que a inveja, a calúnia e o ódio viam com um único olho e se alimentavam com o mesmo dente. Uma destas terríveis irmãs, velhas como a Humanidade com serpentes em vez de cabelos (Medusa), tinha o poder de converter em pedra tudo aquilo que olhasse. Mas foi morta por Teseu, que lhe cortou a cabeça. Segundo a mitologia, uma parte do seu sangue foi cair no mar, convertendo-se em coral. Daí que o coral tenha tido sempre uma grande aceitação entre estes povos, como valiosos amuletos contra o mau olhado,
e a inveja. (N. do M.)
Antipas não se rendia, e tentou que o Mestre o divertisse com algum dos Seus prodígios. Pegou numa bandeja de prata, onde se alinhavam pequenas tiras de carne e, apresentando-a a Jesus, increpou-o nos seguintes termos:
- Se foste capaz de multiplicar pães e peixes acho que não Te seria muito difícil fazer o mesmo com estas línguas de flamingo... Terias a amabilidade de...
O silêncio foi a única resposta. Herodes, que tinha passado da zombaria à cólera, levantou a peça de metal, deixando cair o seu manjar favorito na cabeça e nos ombros do Rabi. O gesto foi imediatamente apoiado pelos risos dos seus acólitos.
Mas o Mestre não se mostrou impressionado. A grotesca cena viu-se interrompida pelo súbito aparecimento de uma mulher. Antipas, ao vê-la, apressou-se a ir ao seu encontro agarrando-a por uma mão e levando-a até Jesus. Apesar de ter passado a barreira dos quarenta, a beleza de Herodíade, amante de Antipas, era excitante. O seu vestuário consistia numa série de gazes de Malta, que formavam uma dupla túnica, deixando ver a pele cor de azeitona. Na cabeça tinha uma faixa branca que lhe cingia as têmporas e das quais se erguiam três andares de tranças, tão negras quanto os seus olhos. O original penteado tinha por remate pequenos caracóis, feitos de anéis de cabelo. Ao ver Herodíade, Civilis fixou os olhos nos seios pequenos, perfeitamente visíveis através dos tecidos, e voltando-se para mim piscou-me um olho.
Antipas aproximou-se de Jesus e, sacudindo com os dedos algumas das línguas de flamingo que lhe tinham ficado enredadas no cabelo, tranqüilizou a mulher garantindo-lhe que aquele mago nem sequer era a sombra do aborrecido João Baptista. Herodíade, com as sobrancelhas e pestanas besuntadas de uma substância gordurosa e as pálpebras sombreadas por uma mistura de lápis-lazúli moído, observou atentamente o réu. Depois rebolando as ancas sem o mesmo pudor, afastou-se do Mestre, indo sentar-se no trono de madeira. Uma vez ali, e ante a expectativa geral, fez sinal a Antipas, pedindo-lhe que se aproximasse. Herodes obedeceu imediatamente. Depois de lhe segredar qualquer coisa, o tetrarca sorrindo maliciosamente, desceu do estrado e foi postar-se atrás do Rabi. A seguir pegou na orla da túnica de Jesus, levantando-a lentamente, de modo a que Herodíade e os seus cortesãos pudessem contemplar as pernas do Nazareno. Antipas continuou, até descobrir a totalidade das musculosas pernas do prisioneiro, bem como a tanga que o cobria. Os lábios de Herodíade, de um vermelho carmesim, abriram-se com visível admiração, ao mesmo tempo que uma vaga de indignação começava a queimar-me as entranhas. Civilis notou a minha crescente cólera e, inclinando-se para mim, comentou:
- Não te alarmes. A lei judaica concede àquele porco um máximo de dezoito mulheres mas a sua impotência é tão pública e tão notória que Herodíade até nos escravos das cavalariças procura consolo... E Herodes sabe.
- Herodíade tem-no agarrado pelo trono e pelos testículos.
As palavras do oficial eram tão certas quanto proféticas. Bem pouco suspeitava Antipas que, justamente, aquela mulher seria a causa da sua desgraça final... 1
A humilhante cena foi interrompida pelo centurião. O tempo era pouco e com amáveis mas firmes palavras pediu ao tetrarca que lhe comunicasse o seu veredicto.
* Esta fulminante afirmação do major levou-me a procurar quantos documentos me foram possíveis, em busca do desgraçado final de Herodes Antipas. Com grande surpresa minha, descobri que o filho de Herodes, o Grande, acabara por ser vítima da ambição e do domínio da sua amante, Herodíade. Depois da morte do imperador Tibério, no ano 37 da nossa era, outro membro da numerosa família dos Herodes, irmão de Herodíade, foi libertado do cárcere de Roma pelo novo César, Caio, Aliás Calígula ou Botinha. Perante o desespero de Antipas e da sua amante, Herodes Agripa foi nomeado rei de todo o Israel.
Antipas deixou-se influenciar por Herodíade e acorreu a Roma, disposto a pedir para si o título de rei. Mas Calígula, que, por aquele tempo - ano 39 da nossa Era - se encontrava em plena campanha militar nas Gálias, não só não foi ao encontro dos desejos do tetrarca da Galiléia como, para desorientação do velho raposo, lhe retirou o título, desterrando-o. Flávio Josefo e Tilemont estão de acordo em que Herodes Antipas e sua mulher Herodíade, se viram obrigados a peregrinar por Espanha, onde possivelmente se fixaram e morreram. (Por aquele tempo existiam na Península Ibérica sete cidades mediterrânicas com importantes colônias judaicas bem como outras zonas da Andaluzia, onde Herodes pôde fixar residência.) (Nota de J. J. Benitez. )
- Veredicto? - respondeu Antipas, que há muito compreendera que o Galileu não desejava abrir a boca. - Diz a Pilatos que lhe agradeço a gentileza, mas que a Judéia não entra na minha jurisdição. Que seja ele a decidir.
Dando meia volta encaminhou-se para um dos seus amigos. Arrancou-lhe um rico manto de púrpura com que se cobria e, sem mais palavras, foi pô-lo nos ombros do Mestre, soltando uma longa e estridente gargalhada, que foi aplaudida pelos amigos e parentes.
Caifás e os sacerdotes, tão desiludidos como Antipas, encaminharam-se para a porta, enquanto Civilis, depois de saudar de braço levantado o tetrarca e Herodíade, empurrou Jesus, indicando-Lhe que a audiência tinha terminado.
Ao deixar a sala ainda ecoavam os aplausos da camarilha de Herodes, extremamente agradada por aquele último gesto de troça e de escárnio do idumeu. (Uma vez mais, o testemunho de alguns comentaristas não coincidem com a realidade. Jesus não foi tapado com um manto branco, sinal de loucura, como dizem estes comentadores bíblicos, mas sim com um manto vermelho-vivo, que refletia a mofa de Herodes Antipas, considerando-o um libertador ou um rei de
mentira. Um manto que iria acompanhar Jesus de Nazaré até ao momento crítico da flagelação e que, como mais adiante veremos, foi aquele com que o cobriram os legionários romanos.)
Pelas dez da manhã, a escolta retirou-se do palácio dos Asmoneus, retomando a viagem de regresso à Fortaleza Antonia.
Tal como na ida, um numeroso grupo de hebreus seguiu, silencioso e vigilante, os legionários que protegiam o Rabi. Naquele momento, inesperadamente, Judas Iscariotes afastou-se da turma encabeçada por Caifás e surpreendeu-me com uma pergunta... A princípio hesitou. Olhou à sua volta com desconfiança e, finalmente, decidiu-se a falar. Judas devia pensar que a minha constante presença perto do Mestre me convertera num dos Seus adeptos. No entanto, acabou por vencer o seu receio e, afastando-se do pelotão de escolta perguntou-me como decorrera o interrogatório no palácio de Antipas. Contei-lhe o sucedido e Iscariotes, como único comentário, lamentou o silêncio de Jesus, acrescentando:
- Que nova oportunidade perdida!...
Disse-lhe que não entendia e Judas Iscariotes, evitando me olhar falou-me dos seus tempos como discípulo de Baptista e de como nunca perdoara ao Mestre não ter intercedido pela vida de João. Agora - segundo o traidor - Jesus também nada fizera para reivindicar a memória do seu amigo e precursor. A confissão surpreendeu-me. Pelo que via, Judas Iscariotes unira-se ao Nazareno devido à prisão de Baptista, e cheguei a pensar que boa parte do seu ódio pelo Rabi tinha por motivo aquele fato. Continuamos os dois em silêncio. Eu ardia no desejo de lhe perguntar o motivo da sua traição, mas não tive coragem, e só me atrevi a perguntar porque razão se antecipara ao grupo de soldados na noite da prisão. Isolado e humilhado por uns e por outros, Judas sentia a necessidade de confessar-se. Mas a sua resposta foi uma meia-verdade...
- Sei que ninguém acredita em mim - lamentou-se -, mas a minha intenção foi boa. Se me pus à frente dos soldados e levitas do Templo foi para avisar o Mestre e os meus companheiros da tropa que vinha prende-lO.
Calei-me. Aquela explicação, de fato, era difícil de aceitar. É possível que Judas, covarde como era, tivesse podido maquinar semelhante arranjo. De qualquer forma, os discípulos talvez não tivessem chegado a desconfiar dele. Mas
as suas intenções, se é que realmente foram essas, ficaram anuladas perante a inesperada presença do Nazareno a meio do caminho que conduzia ao jardim.
Não tivemos tempo para mais. Civilis e os seus homens entraram novamente pela muralha norte da Torre Antonia, encaminhando-se para a escadaria do Pretório.
Ao chegar ao terraço onde se celebrara a primeira parte do interrogatório, estranhei a presença de um estrado semicircular, sobre o qual fora colocada uma cadeira curul, geralmente destinada a aplicar a justiça. O centurião deixou Jesus entregue aos seus homens e entrou na residência.
Os hebreus, com o sumo sacerdote na primeira linha, esperaram, como habitualmente, junto das escadas. Desta vez, José de Arimatéia tinha entrado no recinto da Torre. Pilatos não tardou a aparecer e, sentando-se na cadeira transportável, dirigiu-se a Caifás e aos saduceus:
- Haveis trazido este Homem à minha presença, acusando-O de perverter o povo, de impedir o pagamento do tributo a César e de pretender ser o rei dos Judeus. Interroguei-O e não O creio culpado de tais acusações. Na realidade, não vejo falta alguma... Enviei-O a Herodes e o tetrarca deve ter chegado à mesma conclusão, pois que me enviou novamente. Com toda a certeza, este Homem não cometeu delito algum que justifique a morte. Se considerais que deve ser castigado, estou disposto a impor-Lhe uma sanção antes de O soltar. Sem poder conter a sua alegria, João deu um salto, abraçando José de Arimatéia.
Mas, quando tudo parecia a favor do Nazareno, o pátio entre a escadaria e o portão da muralha foi subitamente invadido por centenas de judeus. Entraram tranqüila e silenciosamente, com um grupo de soldados romanos à frente. Tal como me tinha avisado o ancião de Arimatéia, a multidão acorrera à casa do procurador, desejosa de assistir ao indulto de um réu. E é de grande importância acentuar que, no momento em que aquela massa humana chegou diante da residência de Pilatos – com prévia autorização da guarda - nenhum dos israelitas sabia o que estava acontecendo. Foi ali, à vista de Jesus e dos sacerdotes, que se deixaram arrastar pela hábil e oportuna intervenção de Caifás e dos saduceus. Se o julgamento de Jesus se tivesse dado noutro momento ou noutro dia, sem a presença daquela turba, é bem possível que o Sinédrio não tivesse levado a melhor.
Pilatos sabia da chegada da multidão. De fato, a colocação do estrado e da cadeira sobre o empedrado do terraço obedeciam única e exclusivamente à cerimônia da tradicional anistia. Mas, desejando agir de boa fé, Pilatos cometeu um grave erro. Depois de efetuar uma série de consultas aos seus centuriões, pôs-se de pé e, elevando a voz, perguntou à multidão o nome do preso escolhido.
- Barrabás! - respondeu o povo como um só homem.
Até àquele momento, nem Pilatos nem os juízes tinham pronunciado o nome de Jesus. Aquilo significava, tal como supunha, que os hebreus tinham vindo até ao pretório com intenção premeditada de solicitar a libertação do terrorista, e assim o manifestarem antes de o procurador lhes pedir silêncio e lhes explicar como os sacerdotes tinham levado Jesus à sua presença e de que o acusavam. Em suma, aquela gente mesmo sem a presença do Rabi da Galiléia - teria gritado por Barrabás, o Zelota. Mas, como referi, a oportuna intervenção de Caifás e dos seus sequazes e o ouro que fora distribuído entre um punhado de judeus, colocados estrategicamente por entre a multidão, acabaram por inclinar a balança a favor do Sinédrio.
Quando Pilatos acabou de explicar à multidão a presença de Jesus no tribunal, deixando bem claro que não via naquele homem razões que justificassem a sentença, formulou uma segunda pergunta:
- Quem desejais que eu liberte? Barrabás, o assassino, ou este Jesus da Galiléia?
Por um instante, a multidão de judeus ficou atônita. Não houve resposta imediata. Aquelas pessoas, isso foi evidente, vacilou. Caifás e os saduceus compreenderam o grave risco que aquele silêncio representava e, avançando para Pilatos, gritaram com força:
- Barrabás!... Barrabás!...
A iniciativa dos homens do Sinédrio teve um rápido eco. De diferentes pontos do pátio cheio de gente se levantaram outras vozes, pertencentes, sem dúvida, aos judeus comprados, que clamaram também pela libertação do revolucionário. Em questão de segundos, toda aquela multidão imitou os sacerdotes unindo-se em coro a Caifás. Foi inútil que João Zebedeu quase perdesse a voz a gritar o nome do seu Mestre. Ficou abafado por um Barrabás! rotundo e generalizado, repetido outra e outra vez até o procurador, levantando os braços, pedir silêncio.
Nos olhos de Pilatos havia um brilho de ódio por aqueles saduceus, flagrantes instigadores de uma massa amorfa e ignorante. Como disse, a irritação do procurador romano não tinha a sua origem no fato circunstancial de aquele Galileu poder ou não vir a ser executado. O que o encolerizava era, precisamente, que a sua decisão de pôr em liberdade o Mestre se visse olimpicamente desprezada pela casta sacerdotal. Mas o erro de Pilatos, oferecendo Jesus como possível candidato à libertação, ainda era susceptível de retificação. Tomando novamente a palavra, recriminou-lhes a conduta traiçoeira:
- Como é possível escolher a vida de um assassino - disse, apontando diretamente para Caifás - contra a deste Galileu, cujo crime mais grave é se julgar rei dos Judeus?
O resultado daquelas palavras foi totalmente contrário ao que Pilatos podia esperar. Os juízes mostraram-se extremamente ofendidos pelo que consideraram um insulto à sua soberania nacional, instigando a multidão a que gritasse ainda com mais força pela liberdade do zelota. E assim aconteceu. Aqueles hebreus, na sua maiorias pessoas inculta, pisoeiros, carregadores, mendigos, peregrinos e, naturalmente, levitas livres de serviço no Templo, levantaram de novo as vozes, exigindo a libertação de Barrabás. A súbita explosão popular fez que o procurador vacilasse, e, acompanhado pelos seus oficiais, retirou-se para deliberar. Estou agora convencido que se Pilatos não tivesse metido o Nazareno naquela eleição, certamente não se teria visto comprometido perante os dignitários religiosos.
Entretanto, Jesus permanecia tranqüilo diante da multidão.
Aqueles minutos de espera - e os que se seguiram – foram decisivos para Caifás. Aproveitando a momentânea ausência do procurador arranjou maneira de os seus companheiros de conspiração se espalharem entre os que ali estavam reunidos incitando-os constantemente a que pedissem a libertação do popular Barrabás. Era triste e decepcionante observar aqueles judeus, muitos dos quais conheciam e tinham admirado as palavras e a coragem do Galileu, quando, por exemplo, varrera o átrio dos Gentios do sacrílego comércio dos cambistas e intermediários.
Num instante e, sem o menor critério pessoal, tinham-se voltado contra o indefeso Jesus.
Pilatos voltou à sua cadeira e observou a multidão . Tinha firmado os cotovelos nos braços da cadeira, apoiando a cabeça nas mãos entrelaçadas, em atitude pensativa. Como medida de precaução, Civilis dera ordem para que a porta da muralha fosse fechada, colocando várias unidades armadas em torno da multidão. Foi pena que os judeus não tivessem reparado antes naquela manobra dos romanos. Conhecendo como conheciam a crueldade de Pilatos, talvez que ao verem que estavam sendo cercados disfarçadamente, se preocupassem mais com a sua segurança que com a libertação de alguém.
O comandante-chefe da legião acabara de dar ordens precisas aos seus legionários. Se a ordem fosse ameaçada tinham autorização para desembainhar as espadas.
Durante uns minutos, o governador romano ficou em silêncio. A multidão imitou-o à espera de uma decisão. E estávamos nisto quando um dos serventes do Pretório apareceu no terraço, entregando uma carta lacrada a Civilis, ao mesmo tempo que lhe comunicava qualquer coisa. O centurião examinou a pequena folha de pergaminho e avançou até à cadeira, arrancando Pilatos dos seus pensamentos. O procurador abriu a carta e, depois de ler atentamente, levantou-se. Caifás, os juízes e todos os que ali estavam reunidos ficaram intrigados. Pilatos parecia hesitar. Deu dois breves passos pelo terraço e, por fim, parando, voltado para a multidão , anunciou que tinha recebido uma carta de sua mulher, Cláudia Prócula, e que desejava lê-la em público. O vento obrigou-o a segurar o pergaminho com ambas as mãos. Com voz clara e forte começou a ler: - Rogo-te que em nada intervenhas para a condenação do homem íntegro e inocente que se chama Jesus. Esta noite, durante um sonho, sofri muito por Ele. Ao conhecer o conteúdo da carta, José de Arimatéia pareceu alegrar-se muito. Embora o ancião não chegasse a confessar-mo abertamente, todos os indícios apontavam para ele o importante fato de a esposa de Pôncio conhecer e aceitar os ensinamentos do Mestre da Galiléia (segundo pude entender, alguns dos seus servos faziam parte do primeiro grupo dos que seguiam Jesus).
De início, ao reparar no intenso olhar de Civilis, não associei o texto da carta de Prócula com a aguda superstição que dominava o procurador e com o augúrio que eu me atrevera a formular na presença do centurião. Foi pouco depois, quando nos dirigíamos para o pátio central da fortaleza para assistir à flagelação do Mestre, que o oficial-chefe recordou as minhas palavras sobre o estranho fenômeno celeste que eu vaticinara para aquela manhã, vinculando-o ao misterioso sonho da mulher do procurador. Tudo aquilo, segundo parecia, tinha influído - e não pouco - em Pilatos. Talvez por isso, depois da leitura da mensagem da mulher, o governador, com voz trêmula, se dirigiu novamente à multidão , perguntando-lhe:
- Porque quereis crucificá-Lo? Que mal vos fez?
Os sacerdotes perceberam imediatamente a crescente fraqueza do representante de César e lançaram-se contra ele, vociferando sem parar:
- Crucifica-o... Crucifica-o!
O paroxismo dos judeus chegou a tal extremo que a pergunta seguinte de Pilatos quase não foi ouvida.
- Quem quer testemunhar contra Ele?
A multidão só sabia repetir uma palavra:
- Crucifica-o!
Em vista daquele tumulto, Civilis desembainhou a espada e, levantando-a mais alto que o capacete, preparou-se para dar sinal aos seus homens para entrarem em ação. Porém, Pilatos obrigou o centurião a embainhar a arma, e, agitando as palmas das mãos, pediu silêncio. Pouco a pouco, aqueles fanáticos foram recuperando a serenidade. E o procurador ignorando os pedidos anteriores do populacho, repetiu a pergunta:
- Peço-vos mais uma vez que me digais que preso quereis que libertemos neste dia de Páscoa.
A resposta foi igualmente monolítica e contundente:
- Entrega-nos Barrabás!
Pilatos ficou silencioso e, movendo a cabeça em sinal de desaprovação, insistiu:
- Se solto Barrabás, o assassino, que faço com Jesus?
Aquele novo sinal de fraqueza do governador foi acolhido com uma brutal explosão de violência. E a palavra crucifica-o! levantou-se como um trovão. A turba, com os punhos levantados, continuou clamando, sempre mais alto:
- Crucifica-o!... Crucifica-o!... Crucifica-o!
* 1 Ainda que na primeira grande viagem, de Cavalo de Tróia não chegasse a encontrar-me com Cláudia Prócula ou Procla, todas as nossas informações assinalavam a origem desta mulher como distinta,, e, possivelmente, entroncada no ramo dos Próculos, pertencentes, como Pilatos, à ordem eqüestre. Foram muito conhecidos Tício Próculo, amigo de Sila; Cervário Próculo, que conspirou contra Nero; Licino Próculo, servidor de Otão e prefeito do Pretório, e Volúsio Próculo, que comandou a esquadra de Messina. Uma das tradições colocava Prócula como descendente dos Cláudios, oriundos, por sua vez, das Gálias, e talvez parenta afastada de Tibério. Se isto fosse certo, talvez pudesse explicar-se a razão por que Pôncio Pilatos foi desterrado por Calígula para as Gálias, depois da morte de Tibério. (N. do M.)
A gritaria impressionou tanto Pilatos que, assustado, se retirou do terraço, voltando para a sua residência. Um dos oficiais, seguindo as instruções de Civilis, apressou-se a seguir o procurador. E um momento depois, enquanto a multidão, possessa pela idéia de matar o Mestre, continuava com o seu funesto pedido de crucifixão, o centurião que tinha saído logo depois de Pilatos reapareceu à entrada do pretório, trazendo a Civilis uma trágica ordem. O centurião-chefe assentiu com a cabeça e, levantando os braços num gesto autoritário, ordenou silêncio. A multidão obedeceu, consciente do poder e da extrema dureza do estrangeiro. Uma vez obtido o silêncio, Civilis pronunciou breves mas dramáticas palavras que gelaram o coração de José e de João:
- A ordem do procurador é esta, o prisioneiro será açoitado...
E com o mais absoluto dos desprezos girou nos calcanhares fazendo um gesto aos seus homens para que conduzissem o réu ao pretório. Sem parar para pensar, lancei-me atrás de Civilis, juntando-me à escolta que atravessava o vestíbulo da residência oficial. Eram dez e meia da manhã...
Daquela vez, João Zebedeu não acompanhou o Mestre. E alegrei-me profundamente. O espetáculo de que estava prestes a ser testemunha o teria abatido moralmente.
Seguimos pela escadaria da direita e enfiamos por um comprido e úmido corredor, iluminado apenas por algumas candeias de azeite, cujas chamas oscilavam à passagem da escolta.
O centurião, visivelmente desgostoso pelo curso que os acontecimentos estavam seguindo, lamentou-se da fraqueza do procurador. Se tivesse dependido dele, o processo contra aquele Galileu teria acabado sem contemplações...
- Entre este visionário e um zelota assassino - garantiu-me, enquanto percorríamos os últimos metros do corredor -, Roma não teria hesitado. E muito menos quando este ninho de serpentes tem o atrevimento de desafiar a autoridade de César...
Ao sair do túnel logo reconheci o pátio com pórticos que tinha atravessado na manhã de quarta-feira, quando José e eu nos preparávamos para nos encontrarmos com Pilatos.
Do vestíbulo do pretório podia ter-se acesso, pois, àquele pátio e ao túnel abobadado da entrada ocidental na fortaleza, para o que bastava percorrer o corredor de escassos cinqüenta metros. A saída encontrava-se exatamente no canto nordeste do pátio, à direita das escadas de mármore que conduziam ao escritório oval de Pilatos.
Seguindo, pelo que parecia, um costume muito freqüente, os soldados chegaram ao centro do pátio, detendo-se junto da fonte circular da deusa Roma. O centurião ordenou que tirassem dali os cavalos que estavam sendo escovados e, enquanto os cavaleiros os puxavam pelas rédeas, várias dezenas de legionários de folga foram-se aproximando. A notícia da iminente flagelação dAquele judeu - que se qualificava como rei dos Hebreus - espalhara-se rapidamente pela guarnição que, naturalmente, não quis perder o acontecimento.
Civilis sugeriu que me afastasse.
- Pilatos quer um castigo... especial - acrescentou o centurião com um sorriso sarcástico. - E por Zeus que o vai ter!
As palavras do oficial fizeram-me tremer. Olhei para Jesus, mas o Gigante continuava ausente e imóvel, de olhos fitos no jorro de água que saía da pequena esfera que a deusa tinha na mão esquerda.
Os cascos dos cavalos, afastando-se para um dos cantos do recinto, marcaram o começo da tortura. Dos legionários tinham-se separado dois, especialmente robustos. Ambos tinham nas mãos grandes flagrum, ou látegos curtos, formados por cabos de couro e metal, com apenas trinta centímetros de comprimento. Do cabo partiam três correias de quarenta ou cinqüenta centímetros cada, armadas nas extremidades por pares de astrágalos (tali) ou ganizes de carneiro. O outro verdugo afagava os anéis de ferro da sua plumbata, da qual saíam duas tiras de couro, munidas de um par de bolinhas de metal (possivelmente, chumbo) em cada ponta.
A um sinal do oficial comandante, dois dos soldados da escolta puseram o Mestre diante de um dos quatro marcos, de quarenta centímetros de altura, que rodeavam a fonte e que eram usadas para prender as rédeas dos cavalos. Um dos legionários tentou soltar as ataduras dos pulsos de Jesus, mas de tal forma tinham sido dados os nós que, depois de várias e inúteis tentativas, teve de lançar mão da espada, cortando-as de um golpe. Depois de quase oito horas com os pulsos atados atrás das costas, as mãos de Jesus estavam tumefatas e com uma cor violácea.
Uma vez desatado, os legionários tiraram o manto púrpura que Herodes Antipas Lhe prendera ao pescoço, despindo depois o amplo roupão. Com a mesma violência O despojaram da túnica. As roupas do Mestre caíram num dos charcos de urina dos cavalos. Por último, descalçaram-lhe as sandálias. Em seguida, o mesmo soldado que tinha cortado as ataduras colocou-se na frente do prisioneiro, atando-lhe os pulsos à frente com os restos da corda que acabara de cortar.
Com uma completa e absoluta docilidade, Jesus tudo consentia sem reagir. O Seu corpo começara a suar. Aquela reação do organismo pôs-me alerta. A temperatura ambiente não era, nada que se parecesse, tão elevada que pudesse provocar a transpiração súbita. Dei uns passos em volta da fonte, de modo a ficar na frente dEle, e verifiquei efetivamente, como o rosto, pescoço e peito começavam a ficar molhados. Naquele momento lamentei não ter posto as lentes de visão infravermelha. A julgar pelas pulsações cada vez mais aceleradas das artérias carótidas e pelas inspirações profundas e sucessivas, o Rabi começara a experimentar uma nova elevação do ritmo cardíaco.
O Nazareno estava perfeitamente consciente daquilo que O esperava e o organismo reagiu como o de qualquer indivíduo. Com um puxão, o legionário obrigou-O a inclinar-Se para o marco de pedra, prendendo a corda na argola metálica que coroava a pequena coluna. A grande altura do Galileu e o reduzido tamanho do marco obrigaram-no a abrir muito as pernas, ficando numa posição muito forçada. O cabelo caíra para a cara, escondendo as feições completamente. De alguma forma alegrei-me por não Lhe poder ver o rosto...
O suor foi aumentando, convertendo as largas espáduas e o torso numa superfície brilhante. De repente, um dos carrascos avançou e agarrando a tanga de Jesus arrancou-a com um puxão brusco, deixando-o inteiramente nu. O quebrar dos cordões que seguravam a tanga provocou uma dor súbita e intensa nos órgãos genitais de Jesus. O corpo estremeceu e os joelhos vergaram pela primeira vez. Ao verem-no nu, os legionários soltaram uma gargalhada. Mas as troças da soldadesca foram interrompidas pela chegada de Pilatos. Sem mais preâmbulos, o procurador ordenou aos verdugos que começassem. Num silêncio de expectativa, o legionário mais alto, postado à direita do Mestre, levantou o seu flagrum de triplo rabo, atirando uma terrível chicotada às costas de Jesus, ao mesmo tempo que cantava o número do golpe.
- Unus!
A chicotada foi tão brutal que os joelhos do Rabi vergaram e foram bater no empedrado de calcário com um som seco. Mas, com um movimento reflexo, o Galileu voltou a pôr-se de pé, ao mesmo tempo que o segundo verdugo vibrava novo golpe com o seu flagrum bífido.
- Duo!
- Três!
- Quattour...
Os soldados profissionais consumados, manejavam os látegos com um simples rodar dos pulsos. Deste modo, as correias ondeavam, alcançando-se o máximo efeito com o mínimo de esforço.
- Quinque!
O entrechocar dos ossinhos e das bolas de metal foram o único som perceptível durante os primeiros minutos. Jesus, inteiramente curvado, ainda não deixara escapar um só gemido. Os astrágalos e as peças de chumbo caíam-lhe nas costas, arrancando de cada vez pedaços de pele. Logo à primeira chicotada vários fios de sangue tinham começado a correr pelo corpo, escorrendo pelas ilhargas e pingando no pavimento. Tal como suspeitava, depois do fenômeno do suor ensangüentado, a pele do Mestre ficara num estado de extrema fragilidade, e
aquela saraivada de golpes múltiplos não tardou em rasgá-la, pondo os ombros, costas e cintura em carne viva. Pouco a pouco, a cada silvo do flagrum, os astrágalos e as bolas penetravam na pele, provocando a sua ablação ou separação, rasgando os tecidos musculares e arrancando vasos e nervos.
- Triginta!
Ao trigésimo açoite, o Rabi caiu, ficando de joelhos e com os dedos fortemente agarrados ao aro de metal da coluna. As costas, ombros e zonas lombares estavam encharcados de sangue, com uma infinidade de hematomas azulados e grandes como ovos de galinha. As correias, por seu lado, tinham desenhado dezenas de vergões - como unhadas - de um tom de vinho. Os múltiplos hematomas - alguns dos quais tinham começado a rebentar - levaram-me a pensar que a dor que Jesus de Nazaré suportou naqueles primeiros minutos devia ter atingido o paroxismo.
Mas, felizmente para Ele, as chicotadas, infligidas com tanta sanha como precisão, foram abrindo muitos dos hematomas, transformando as costas num rio de sangue e, conseqüentemente, em certa medida, diminuindo a dor.
- Quadraginta!
A chicotada número quarenta chegou quatro ou cinco minutos depois do começo do suplício. Mas, longe de estremecer, como acontecera com os golpes anteriores, o corpo do Nazareno não reagiu. Civilis levantou a sua vara de vide, interrompendo a flagelação. Um dos suados verdugos aproximou-se do Mestre, puxando-Lhe os cabelos. Depois de verificar que desfalecera, soltou a cabeça, que tombou desmaiada na abertura entre os braços.
O centurião apressou os seus homens. Um dos legionários encheu um balde com a água da fonte, despejando-o na nuca do Nazareno. Ao contato com o líquido a cabeça de Jesus moveu-se ligeiramente, enquanto parte do sangue escorria para o chão, arrastado pela água.
Havia algum tempo que a coluna, uma ampla faixa da parede circular da fonte e os rostos, braços e túnicas dos verdugos estavam tintos de vermelho. A hemorragia, generalizada nas costas e zona dos rins, começara a ser preocupante. Ainda que o suplício tivesse parado na quadragésima chicotada, coincidindo assim casualmente com a fórmula judaica de flagelação a intenção de Pilatos - que acompanhava, impassível e silencioso, o decorrer da tortura - era que aquele massacre continuasse. Os verdugos aproveitaram o breve descanso para se debruçarem sobre o tanque e refrescarem a cara, ao mesmo tempo que esfregavam os braços para os lavarem de todos aqueles salpicos de sangue. Embora os legionários encarregues do tormento conhecessem o latim, tenho quase a certeza – a julgar pelas barbas ralas e abundantes - de que eram mercenários sírios ou samaritanos. Geralmente, os romanos designavam-nos quando o condenado era judeu. O seu ódio ancestral pelos Judeus convertia-os em executores exemplares.
O Mestre fora-se recompondo. Um dos verdugos agarrou-o então pelas axilas, puxando-o para cima. Mas o peso era excessivo e teve de pedir ajuda. Quando, por fim, conseguiram levantá-lo, outro soldado - com uma caçarola de latão nas mãos - pôs-se na frente do torturado Nazareno, enquanto os verdugos, sem contemplação alguma Lhe puxavam o cabelo e O obrigavam a erguer o rosto.
Assim o mantiveram até o romano que tinha a caçarola a esvaziar na boca do Galileu. Ao perguntar a Civilis do que se tratava, explicou-me que a caçarola continha água com sal. Era evidente que o exército romano conhecia muito bem os graves problemas que podiam vir de um castigo como aquele. Em especial, o da desidratação. Embora Jesus tivesse sido obrigado, a ingerir uma grande quantidade de água no Sinédrio, a excessiva sudação no jardim de Getsémani e, agora, durante a flagelação, mais as grandes hemorragias que sofrera, tinham determinado as reservas e o equilíbrio hídrico do corpo, tanto intracelular como extracelular. A água com sal, constituía, pois, um reforço decisivo, se é que Pilatos desejava, realmente, que o prisioneiro não morresse durante os açoites. (Também havia o perigo de que a excessiva concentração de cloreto de sódio na água - o ideal teria sido uma proporção de 0,85%, pudesse ocasionar o aparecimento de edemas ou inchaços brandos em diversas partes do corpo.)
* A Lei judaica estabelecia para o castigo da flagelação um total de quarenta chicotadas menos uma. Assim estava escrito: em número de quarenta (o estabelecido, segundo R. Yehud , seria quarenta). O réu era açoitado com as mãos atadas a uma coluna. O servidor da sinagoga agarrava-o pela roupa e rasgava-as, rasgava-as e dilacerava-as, dilacerava-as até ficar com o peito a descoberto. Depois colocava uma pedra e em cima dela o servidor da sinagoga, tendo na mão uma correia de vitela. Esta era primeiro dobrada em duas e as duas em quatro outras duas correias subiam e baixavam nela. (N. do M.)
Mas, tal como sentenciara Civilis, a pretensão do procurador era torturar Jesus até ao limite, de tal forma que o Seu estado lamentável pudesse satisfazer e comover os ânimos agressivos dos saduceus. Assim, uma vez bebido o conteúdo da caçarola, o centurião levantou o seu bastão e os legionários voltaram a empunhar os flagrum, prosseguindo o castigo.
- Unus!
O novo golpe e os que se seguiram foram dirigidos especialmente às coxas, pernas, nádegas, ventre e parte dos braços e peito. As costas e a cintura foram desta vez poupadas.
Os golpes das correias, enroscando-se nas pernas do Mestre, obrigaram-no a uma suprema contração dos feixes musculares, em especial dos que se encontravam nos lados posteriores das coxas, que assim ficaram mais vulneráveis. Bem depressa, a pele se foi abrindo, provocando uma hemorragia muito mais forte que a das costas.
- Decem!
Num esforço titânico para suportar a dor, Jesus de Nazaré agarrara-se à argola da coluna, levantando o rosto até onde lhe era possível. Os músculos do pescoço, tensos como a corda de um arco, contrastavam com as fossas supraclaviculares, inundadas por um suor frio que escorria sem parar e que esbatia o vermelho-vivo do sangue.
- Duo-de-viginti!
O verdugo cantou o número dezoito, atirando o látego ao peito do Mestre. Um dos pares de ossinhos deve ter ferido o mamilo esquerdo de Jesus, e a fortíssima dor provocou um movimento reflexo. O Gigante levantou-se com todas as Suas forças, ao mesmo tempo que os dentes - solidamente apertados uns contra os outros - se abriam, lançando um gemido lancinante. Era o primeiro lamento do Rabi.
O esticão foi tão rápido e forte que as cordas que o prendiam à argola se partiram e o corpo do Mestre foi violentamente atirado para trás apanhando desprevenidos os verdugos e o resto da tropa, que recuaram, assustados. O Nazareno caiu pesadamente de costas, resvalando pelo empedrado, onde deixou um largo rasto de sangue. Quando os legionários se precipitaram para ele, levantando-o pesadamente, a respiração de Jesus estava extremamente agitada.
Eu aproveitei aquele momento de confusão para pôr os crótalos e iniciar uma exploração exaustiva dos danos provocados pela flagelação. Apertei o prego dos ultra-sons na sua posição máxima (7,5 MHz) e preparei-me para examinar, primeiro, os tecidos superficiais. Os soldados tinham arrastado o Mestre até à pequena coluna, prendendo-O novamente à argola. E os verdugos recomeçaram os açoites, extremamente irritados por aquela contrariedade.
As chicotadas, cada vez mais implacáveis, foram abatendo pouco a pouco o corpo do Mestre, que acabou por vergar os joelhos, enquanto os dedos, a escorrer sangue, se crispavam de dor. A cada açoite, Jesus tinha começado a responder com um curto e breve gemido.
Uma vez traduzidas as ondas ultra-sônicas em imagens, o resultado da flagelação surgiu-me em todo o seu dramatismo. Os verdugos, consumados especialistas, sabiam muito bem as zonas em que podiam tocar e aquelas em que não. Desde o primeiro momento, chamou-me a atenção o fato inacreditável de nenhuma das costelas ficar fraturada. A precisão das chicotadas, em contrapartida, foram abrindo os flancos de Jesus até deixar a descoberto as faixas fibrosas, ou aponevroses, dos músculos infra-espinhosos. A dor, ao destruir estas últimas proteções das costelas, teve de alcançar limiares difíceis de imaginar.
Na opinião dos peritos de Cavalo de Tróia, superiores mesmo aos vinte e dois JND. Naturalmente, grande parte dos músculos das costas - dorsais, infra-espinhosos e deltóides - apareceram rasgados e cheios de hematomas que, por não rebentarem, esticaram extraordinariamente o que restava de pele, multiplicando a sensação de dor.
Ao examinarem os tecidos superficiais, os investigadores ficaram surpreendidos por verificar como os legionários tinham escolhido as zonas mais dolorosas, mas menos susceptíveis de provocarem uma parada cardíaca, que talvez pudesse fulminar o Nazareno. Escolheram, principalmente, a parte dianteira das coxas, peitorais e zonas internas dos músculos, evitando o coração, o fígado, o pâncreas, o baço e as artérias principais, como as do pescoço.
Ao alterar a freqüência dos ultra-sons, passando a 3,5 MHz, a análise dos órgãos internos pôs em evidência, desde o primeiro instante, uma considerável perda de sangue. A volemia de Jesus (ou volume total de sangue) foi fixada entre seis e seis litros e meio. Pois bem, depois do duríssimo castigo da flagelação a volemia baixara vinte e sete por cento o que significava que o Galileu perdera, no total, desde os ultrajes na sede do Sinédrio, cerca de 1,6 litros de sangue. Uma quantidade importante, embora não fosse a suficiente para alterar de forma definitiva - física e psiquicamente – uma pessoa normal. E uma prova disto foi que Jesus de Nazaré ainda teve forças e lucidez de mente para responder às perguntas que lhe fizeram depois dos açoites. No entanto, os derrames circulatórios provocaram nEle uma angústia crescente, palpitações esporádicas, fraqueza e, principalmente, sede sufocante.
* Um aumento na intensidade de um estímulo que origina uma diferença perceptível no grau de dor recebe a designação de diferença apenas perceptível ou just noticeable difference (JND). Aplicando todas as intensidades de estímulos entre o nível em que não há dor e o nível da dor mais intensa, verificou-se que o doente comum pode distinguir vinte e dois JND. (N. do M.)
Quanto à freqüência cardíaca, as oscilações foram contínuas. Alguns dos golpes - em especial um dos últimos, que atingira diretamente os testículos - o pico alcançou as cento e setenta pulsações por minuto, descendo rapidamente a noventa e provocando o segundo desmaio. Devido à intensa descarga de adrenalina a tensão arterial elevou-se também em alguns momentos até 210 mm H20 de máxima, embora, depois, o progressivo esgotamento de adrenalina fosse dando lugar a um domínio do sistema vago e seu intermediário, a acetilcolina, que foi acompanhada por uma baixa de tensão arterial, traduzida no final do suplício, num estado de prostração quase total. A análise da corrente sanguínea também nos permitiu a confirmação de um fato evidente: o sucessivo aumento dos índices de sódio, cloro e da pressão osmótica eram inequívocos sinais da grave desidratação por que começava a passar o organismo do filho do Homem.
- Quadraginta!
A chicotada quarenta, que, na realidade, completava os oitenta açoites, se tivermos em conta os quarenta primeiros, caiu num homem praticamente destruído. O Mestre, com o corpo deformado pelos hematomas e banhado em sangue, Já mal se mexia. Os Seus lamentos imperceptíveis Já não se ouviam e só ecoava no pátio o estalido dos látegos ao cravarem-se na carne e a respiração cada vez mais ofegante dos verdugos, visivelmente esgotados. Havia algum tempo que o Nazareno se enrolara num novelo, com a cabeça e parte do tórax apoiados nos braços, em posição fetal. As chicotadas, cada vez mais lentas e espaçadas, continuavam a dilacerar-lhe as nádegas, ventre, ilhargas e zonas laterais das pernas, ferindo, até, as plantas dos pés.
Alguns dos legionários, aborrecidos ou comovidos por aquele selvático espancamento, tinham começado a abandonar o local, tratando das suas ocupações habituais.
Civilis, que observava o progressivo esgotamento dos verdugos, dirigiu um significativo olhar a Lucílio, o gigantesco centurião que eu tinha visto no apaleamento do soldado romano. O da Panônia compreendeu as intenções do primus prior e, abrindo caminho aos empurrões por entre os elementos da corte, levantou o braço, apanhando em vôo o flagrum do legionário postado à direita do Mestre, quando aquele se preparava para vibrar novo golpe. A súbita presença daquela torre humana, empunhando o látego de triplo rabo, foi bastante para que ambos os verdugos se retirassem, deixando-se cair - quase sem fôlego - nas lajes do pátio. A soldadesca, que conhecia a força e a crueldade do oficial, ficou em silêncio, suspensa de todos e cada um dos movimentos daquele urso. Lucílio afagou as correias, limpando-as do sangue com os dedos. Depois, colocando-se a um metro da ilharga esquerda do prisioneiro, levantou o braço direito, lançando uma chicotada feroz e certeira à parte inferior das nádegas de Jesus. O açoite deve ter-lhe atingido o cóccix e a aguda dor reativou o sistema nervoso do Rabi, que chegou a levantar-se durante uns segundos. Mas, entre grandes tremores, os músculos fraquejaram, caindo de joelhos. Os legionários acolheram aquele ataque estudado com uma exclamação que se iria repetindo a cada chicotada:
- Cedo alteram!
Um segundo golpe desta vez dirigido à curva da perna esquerda, fez o Mestre gemer, ao mesmo tempo que a soldadesca repetia, entusiasmada:
- Cedo alteram!
A terceira, quarta e quinta chicotadas caíram sobre os rins...
- Cedo alteram!... Cedo alteram!... Cedo alteram!...
A violência de Lucilio era tal, que os astrágalos de carneiro ficavam incrustados na carne, provocando em cada golpe uma abundante hemorragia. - Cedo alteram!... Cedo alteram!...
A sexta e a sétima chicotadas caíram em cada um dos pavilhões auditivos de Jesus. Quase instantaneamente, de ambos os lados do pescoço, correram largos regos de sangue. O Mestre inclinou a cabeça para o aro de metal e o centurião procurou o flanco direito, soltando toda a sua fúria no umbigo de Cristo.
- Cedo alteram!
A selvática pancada no ventre do Mestre afetou decisivamente o castigado diafragma, cortando praticamente a respiração penosa. Aquele, provavelmente, foi um dos momentos mais delicados do castigo. Durante segundos que me pareceram intermináveis, a caixa torácica do Galileu permaneceu imóvel. Mas, por fim, os músculos intercostais reagiram, aliviando a tensão pulmonar.
- Cedo alteram!
O nono açoite, vibrado pelo colosso no flanco dilacerado de Jesus - e julgo que lançado com toda a intenção sobre os abertos músculos denteados, para assim reativar a respiração bloqueada -, emitiu um som oco, como se os astrágalos tivessem golpeado diretamente as costelas. O ímpeto do oficial, que tinha começado a suar abundantemente da testa, foi tal, que o corpo do Nazareno se desequilibrou, caindo para o lado esquerdo.
É muito possível que, naquele instante, outra dor – abafada pelo atroz calvário da flagelação - ferisse o organismo do Galileu. Refiro-me à bexiga urinária. De tal modo devia estar cheia que, involuntariamente, os esfíncteres dos ureteres se abriram, dando origem a uma micção abundante (a julgar pelo tempo que durou o derrame urinário, a bexiga devia conter aproximadamente entre trezentos e cinqüenta e quatrocentos centímetros cúbicos). Felizmente, a urina - ainda que extremamente amarela - não trazia sangue. Mas a descarga involuntária da urina serviu apenas para provocar o riso dos romanos e um ataque muito mais violento de ira em Lucílio, que considerou aquilo como um insulto pessoal.
Levantando o látego, apontou-o com raiva para os testículos do Mestre. Uma das pontas do flagrum tocou na pele do escroto e as outras duas caíram na bolsa testicular.
Reagindo ao golpe dilacerante, Jesus encolheu-se, ao mesmo tempo que a pulsação se acelerava e um gemido angustiante se confundia com o último Cedo alteram!
Imediatamente o pulso baixou para noventa e o Mestre, empalidecendo, desmaiou.
Civilis levantou a vara novamente, ordenando aos soldados que examinassem o Rabi. Depois, aproximando-se do procurador, pediu-lhe instruções. Devia continuar o castigo? Antes que Pôncio tomasse uma decisão, o brutal Lucílio insinuou ao governador que, dada a situação do prisioneiro, melhor seria acabar com Ele ali mesmo.
Pilatos dirigiu o olhar para o corpo rígido e sangrento do Rabi, hesitando. O oficial que tinha executado aquela última parte da flagelação lançou mão da espada, convencido de que o bom senso de Pilatos se inclinaria para a solução que acabava de propor. Mas a água que fora baldeada novamente sobre a cabeça e a nuca do prisioneiro estimulou o precário estado de Jesus, que, lentamente, foi recobrando os sentidos. A progressiva recuperação do Nazareno inclinou Pilatos para continuar com o seu plano e, antes de se retirar do pátio, ordenou a Civilis que cuidasse do Galileu, levando-o à sua presença assim que fosse possível.
Eram onze da manhã. Os legionários soltaram as cordas e, com muita dificuldade apoiaram as costas do prisioneiro contra a coluna que servira para a flagelação. Um dos soldados colocou-se de cócoras atrás do marco, procurando suster pelos ombros o corpo maltratado de Jesus. O Gigante com as pernas estendidas no pavimento, respirava ainda com dificuldade, acusando com esporádicos estremecimentos a infinidade de pontos dolorosos. Como os tremores fossem mais intensos e regulares, cheguei a temer que a febre pudesse ter-se apossado do Mestre. Não me enganava...
Outro legionário, sempre sob a atenta vigilância de Civilis, aproximou dos lábios do Rabi um segundo púcaro, obrigando-o a beber nova dose de água com sal.
Algumas das feridas tinham começado a coagular e muitos dos fios sanguinolentos a secar. As dos flancos, no entanto, continuavam a verter sangue, que caía na laje, ao ritmo do movimento respiratório, cada vez mais curto e rápido.
O centurião moveu a cabeça em sinal de desaprovação. Não era preciso ser médico para perceber que o castigo fora desproporcionado, ao ponto de temer pela vida do Mestre.
Antes que fosse demasiado tarde, desliguei o sistema ultra-sônico, apertando o segundo prego. Ao ativá-lo, o minicomputador alojado na vara de Moisés deu passagem ao fluxo de raios infravermelhos, dispostos para as análises de teletermografia dinâmica.
A detecção da temperatura cutânea à distância - base das nossas experiências de teletermografia - realizou-se graças à propriedade da pele humana, capaz de se comportar como um emissor natural da radiação infravermelha ou RI. Tal como se sabe pela fórmula da lei de Stephan-Boltzmann (W=eJT), a emissão é proporcional à temperatura cutânea, e devido a que T se encontra elevada à quarta potência, pequenas variações no seu valor provocam aumentos ou diminuições, assinalados na emissão infravermelha. (W: energia emitida por unidade de superfície; e: fator de emissão do corpo considerado; J: constante de Stephan-Boltzmann; T: temperatura absoluta.) Em numerosas experiências, iniciadas por Hardy, em 1934, fora possível comprovar que a pele humana se comporta como um emissor infravermelho, semelhante ao corpo negro e, conseqüentemente, não emite radiação infravermelha refletida de volta.
Como referi anteriormente, os crótalos, ou lentes especiais de contato, permitiam-me dirigir o sistema de teletermografia para as zonas que desejasse, podendo assim ordenar o máximo de explorações. As imagens obtidas por este processo foram simplesmente dramáticas. A maior parte do corpo de Jesus, banhado em sangue venoso, oferecia uma tonalidade vermelho-pardacenta, enquanto os hematomas (muito mais quentes) lançavam uma cor azul intensa. O rastreio permitiu-nos observar como a rede arterial principal não fora lesada, ainda que a vascularização cutânea e o sistema venoso superficial (especialmente, em extensas zonas dorsais) apresentassem numerosas destruições. Segundo os médicos do Projeto, na hipótese de que o Mestre tivesse vivido, a recuperação - com as técnicas e fórmulas da época - teria se prolongado por um período de mais de três meses. A análise das retinas foi satisfatória. A sua cor amarela-avermelhada veio demonstrar que a visão estava correta. Não se pôde dizer o mesmo de algumas das articulações - em especial as da perna esquerda (concavidade do poplíteo) e as dos ombros - seriamente afetadas pelas bolas de chumbo e pelos astrágalos de carneiro. A temperatura dérmica destas articulações, extraordinariamente inflamadas, tinha aumentado o calor do corpo em três graus centígrados.
Quanto à elevada temperatura geral (que variava entre os trinta e nove e os quarenta graus), veio ratificar a minha impressão pessoal: Jesus estava com febre, que não O abandonaria até à morte. O rastreio minucioso do corpo do Galileu permitiu-nos distinguir, pelo menos, 225 pontos quentes, correspondentes a outros tantos golpes provocados pelos flagrum. As escoriações, hematomas e rasgões tinham originado outras tantas áreas inflamatórias, geralmente circulares, que marcavam com a sua elevada temperatura o trágico mapa dos açoites. Foi este o guia da flagelação, pormenorizada pelo computador central do módulo: costas e ombros - cinqüenta e quatro golpes; cintura e rins - vinte e nove; ventre - seis; peito - catorze; perna direita (zona dorsal) - dezoito; perna esquerda (dorsal) – vinte e dois; perna direita (zona dorsal) - dezenove; perna esquerda (frontal) onze golpes - braço direito (ambas as faces) - catorze; orelhas, um golpe em cada uma; testículos - dois; nádegas - catorze. A estes danos teve de se acrescentar uma infinidade de vergões ou arranhões, provocados pelas correias dos látegos. A imensa maioria destas feridas tinha um comprimento de três centímetros, com a típica forma de pesos de ginásio, conseqüência dos escorpiões das pontas: bolas de metal e astrágalos. Em síntese, um castigo tão brutal que nenhum dos especialistas do Projeto chegou alguma vez a compreender como Aquele homem lhe pôde resistir.
*(Este espectro de radiação infravermelha emitido pela pele humana é amplo, com um pico máximo de intensidade fixado em 9,6q.) O nosso dispositivo de teletermografia consistia, portanto, num aparelho capaz de detectar, à distância, intensidades mínimas de radiação infravermelha. Contava basicamente de um sistema ótico que focava a RI num detector. Este era formado por substâncias semicondutoras (principalmente SbIn e Ge-Hg), capazes de emitir um mínimo sinal elétrico sempre que um fóton infravermelho de um intervalo de comprimento de onda determinado incidia na sua superfície. Ainda que o detector fosse de tipo pontual, - capaz de detectar a RI procedente de um único ponto geométrico -, Cavalo de Tróia conseguira ampliar o seu raio de ação, mediante complexo sistema em leque, formado por mini-espelhos rotativos e oscilantes. A alta velocidade com que o leque varria permitia analisar por completo o corpo de Jesus, várias vezes por segundo. Isto, por sua vez, possibilitava a obtenção de imagens dinâmicas (de onde o nome de teletermografia dinâmica). A seguir à emissão, o sinal elétrico correspondente à presença de fótons infravermelhos era ampliado e filtrado, sendo conduzido posteriormente a um osciloscópio miniaturizado. Nele, graças à alta voltagem existente e a um leque que varria sincronicamente com a do detector, obtinha-se a imagem correspondente, que ficava gravada na memória de cristal de titânio do computador. Naturalmente o nosso teletermógrafo dispunha de uma escala de sensibilidade térmica (0,1, 0,2 ou 0,5 graus centígrados, etc.) e de uma série de dispositivos técnicos adicionais, que facilitam a medida de gradientes térmicos diferenciais entre zonas do termograma (isotermas, análise linear, etc).
As imagens assim obtidas podiam ser de dois tipos: na escala de cinzentos, muito adequadas para o estudo morfológico dos vasos; na escala de cor, entre oito e dezesseis cores, muito útil para efetuar medições térmicas diferenciais com precisão. Naturalmente, os dois sistemas podiam ser usados de forma complementar. Cavalo de Tróia, depois de numerosas provas, selecionou os equipamentos AGA-661, bem como uma associação do Barnes-Pyroscan e os do sistema CSF-IR-815, como os mais adequados para a nossa missão. (N. do M.)
- Já chega! Ponham-No de pé e vistam-No.
A voz do oficial-chefe ressoou, cheia de impaciência. Enquanto os soldados levantavam Jesus, eu desliguei os circuitos da vara de Moisés, guardando as lentes de contato.
Foi preciso que dois legionários amparassem o maltratado corpo do Mestre para recuperar a posição vertical. A extrema fraqueza fez que os joelhos vergassem, obrigando os soldados a segurá-Lo pelas axilas. Outros romanos, a uma ordem de Civilis, ajudaram os companheiros, tentando que o Rabi não tombasse no lajedo. Ao ser levantado, algumas das feridas -- especialmente as dos flancos - voltaram a sangrar em borbotões e o sangue correu abundante pelo ventre, virilhas, coxas e pernas, até cair nas lajes. Alguém apanhou a roupa e depois de lhe vestir a túnica, colocou a manta sobre o ombro esquerdo, envolvendo depois o tórax. O roupão ficou firmemente preso ao peito e às costas de Jesus, de modo que, juntamente com a túnica, fizeram as vezes de ligaduras. Os romanos sabiam que era um excelente processo para estancar muitas das feridas, impedindo assim parte das hemorragias. Senti um estremecimento ao imaginar o que podia acontecer no momento em que o Galileu fosse despojado da roupa. Se os coágulos ficavam presos ao tecido - como seria natural -, arrancar a túnica significaria um novo e doloroso suplício com a conseqüente abertura das chagas. O sangue empapou imediatamente a túnica branca, que começou a pingar pelas mangas e pela orla inferior, e o esponjoso tecido viu-se tingido com inúmeros círculos avermelhados. Os soldados obrigaram o Nazareno a dar alguns passos mas, quando mal tinha arrastado os pés descalços pelo pavimento, as forças abandonaram-No, começando a cair. A rápida intervenção dos legionários de Civilis evitou que tombasse. O grupo interrogou o centurião com o olhar e este, desalentado, indicou aos seus homens que O sentassem num dos bancos de madeira do pórtico.
Civilis compreendeu que, no momento, era inútil levar o Mestre até ao terraço onde o procurador devia estar esperando. Teria sido necessário que vários soldados o acompanhassem e amparassem.
Os tremores febris continuaram a sacudir o corpo do Nazareno que, pouco a pouco, passo a passo, foi levado pelos romanos até um dos bancos do lado oriental do pátio enquanto outros legionários tinham começado a lavar o lajedo e a coluna onde se dera a flagelação. Os cavalos voltaram para junto da fonte e os seus tratadores continuaram a escovar-lhes os lombos com folhas de poejo, cujo cheiro - segundo a crença popular - matava os piolhos.
O centurião tirou o capacete e, depois de meditar uns segundos, afastou-se do pórtico, na direção do túnel que conduzia ao pretório. Devo indicar que, conforme observava o vacilante caminhar do Mestre reparava num visível claudicar da perna esquerda, o que me levou à conclusão de que a chicotada de Lucílio em plena curva tinha alterado a articulação daquele joelho (isto viria a ser confirmado posteriormente como indiquei, pelo exame teletermográfico).
Por fim, sentaram Jesus num dos bancos, e, ao fazê-lo. Um rito de dor se desenhou novamente no Seu rosto. Era muito possível que aquele gesto fosse provocado pelos golpes no cóccix ou nos rins. Ao apoiar-se na madeira, o osso inferior da coluna e as zonas lombares deviam ter acusado o contato com assento e encosto, respectivamente. Durante uns minutos, a atitude dos legionários foi calma, mesmo correta. Dois continuaram juntos do Nazareno, suspensos da Sua recuperação, e os outros juntaram-se a um grupo que vociferava, num dos cantos do pátio. Ao ver que o Mestre se encontrava um pouco mais tranqüilo, não pude resistir à tentação e aproximei-me também do círculo de legionários que, sentados ou de cócoras, concentravam a atenção numa das lajes do pavimento.
Ao debruçar-me sobre a cabeça dos soldados verifiquei que se tratava de um jogo (uma espécie de três na raia, descrito por Plutarco). Usando as espadas, os membros da guarnição tinham riscado um círculo numa daquelas lousas, gravando também, dentro do círculo, uma série de toscas figuras e letras. Pude distinguir um B - que servia, segundo parecia, para a chamada jogada do Rei ou de Basileus, em grego é uma coroa real. Todas estas figuras estavam separadas umas das outras por meio de uma linha que ziguezagueava por dentro do círculo. Os participantes serviam-se de quatro astrágalos, previamente marcados com letras e números, que eram lançados para dentro do círculo, e cantando as diferentes jogadas, segundo as figuras ou letras onde calhavam cair.
O jogo foi-se animando paulatinamente e vários dos legionários cantaram jogadas como a de Alexandre, Dario e o Efebo. Por último, um dos jogadores teve a fortuna de um dos ossinhos rolar até à coroa, gritando jogada do rei, que equivalia ao nosso xeque-mate e portanto, ao final do jogo.
Os soldados apanharam os astrágalos e o que tinha ganhado, influenciado certamente por aquele último golpe de sorte, reparou no Galileu animando os camaradas a que continuassem o jogo, mas desta vez com um rei de verdade...
A idéia foi acolhida com entusiasmo e o grupo dirigiu-se para o banco disposto a divertir-se à custa dAquele que se proclamava rei dos malditos e odiados hebreus. A ausência de Civilis fez hesitar os que escoltavam Jesus, mas depressa se juntaram às graçolas e grosserias dos companheiros. Imediatamente aquela dezena de legionários aborrecidos e ociosos fizeram alas, dando passagem a mais dois soldados.
Com ar marcial e contendo o riso, os dois soldados foram-se aproximando do Nazareno, que tinha voltado a inclinar a cabeça, suportando com o mutismo habitual o novo e amargo transe.
Um dos que tinha começado a desfilar em direção ao prisioneiro trazia nas mãos o que, num primeiro instante, me pareceu um cesto de vime às avessas. Mas quando chegou junto do Galileu compreendi. Não se tratava de um cesto, mas de um complicado capacete, entrançado, à base de sarças espinhosas.
Tinha a forma de uma meia laranja, com um aro ou suporte na base, formado por um feixe de juncos verdes, perfeitamente ligados por outras fibras, igualmente de junco. Segundo pude julgar, o capacete espinhoso fora entrançado com meia-dúzia de ramos muito flexíveis, entre os quais se destacava um aterrorizador enxame de puas retas e em forma de bico de papagaio, com dimensões que oscilavam entre os vinte milímetros e os seis centímetros, aproximadamente (1). Era evidente que, enquanto o grosso dos legionários concentrava a sua troça em Jesus, aqueles dois indivíduos tinham entrado em algum dos depósitos de lenha da fortaleza, ocupando-se na sinistra idéia de entrançar uma coroa para o rei dos judeus.
A idéia foi recebida com risos e aplausos. O que trazia aquele perigoso capacete de ramos delgados e pardacentos inclinou-se, simulando uma reverência. Depois, levantou a coroa a meio metro acima da cabeça do Mestre, baixando-a violentamente e enfiando-a na cabeça do Rabi. Um alarido de satisfação escapou das gargantas da soldadesca, abafando o gemido de Jesus que, ao contato dos espinhos, levantou a cabeça, batendo involuntariamente com a região occipital no muro a que estava encostado o banco. O embate na parede mais fez enterrar as puas na zona posterior do crânio.
O elmo, brutalmente posto, cobriu quase toda a cabeça do Mestre. O arco a que se prendia a rede espinhosa ficou à altura da ponta do nariz, dificultando, até, a visão do Rabi.
A aguda dor dos vinte ou trinta espinhos que perfuraram o couro cabeludo, testa, têmporas, orelhas e parte das faces, abalou novamente o Filho do Homem, que, com os olhos cerrados num movimento reflexo de proteção, permaneceu durante alguns segundos com a boca entreaberta, tentando inspirar. Ao ver aparecer seis grossos fios de sangue pela testa e têmporas temi que as puas tivessem perfurado a veia facial (que vem do queixo à zona ocular). Aproximei-me quanto pude do rosto, mas não cheguei a descobrir espinho algum espetado no sector que essa veia atravessa. Mas outros espinhos tinham perfurado a testa e a região malar esquerda. Uma das puas, em forma de gancho, penetrara a poucos centímetros da sobrancelha esquerda (no músculo orbicular), dando lugar a uma copiosa hemorragia, que cobriu rapidamente o arco supraciliar, inundando de sangue o olho, face e barba.
* Num primeiro exame visual. pensei identificar aquelas sarças com as plantas chamadas Poterium spinosam, muito comum na Palestina e usada habitualmente para acender o fogo, o que confirmava a hipótese do doutor Ha Reubeni, diretor do Museu Botânico da Universidade Hebraica de Jerusalém, desautorizando muitas outras teorias sobre a origem da planta utilizada para o entrançado da coroa de espinhos,. A mais conhecida e popular indicava a Ziziphus, ou Spina Christi (Palinurus Aculeatus) como a sarça utilizada nesta coroação,. (N. do M.)
A sangria indicava que os espinhos tinham afetado gravemente a aponevrose epicraniana (situada logo abaixo do couro cabeludo). A retração dos vasos rasgados pelos espinhos nesta zona - extremamente vascularizada - fez-se notar, como disse, imediatamente. O sangue começou a fluir em abundância, pingando constantemente da barba para o peito. Mas os soldados, que ainda não estavam satisfeitos com este bárbaro atentado, foram à procura do manto púrpura, que tinha ficado no lajedo, pondo-lho sobre os ombros. Um outro legionário meteu-lhe uma cana nas mãos e, ajoelhando-se, exclamou entre o regozijo geral:
- Salve, rei dos Judeus!
As reverências, imprecações, cuspidelas e pontapés nas canelas do Nazareno eram sempre mais freqüentes, divertindo cada vez mais a turba. Um dos soldados pediu passagem e, pondo as nádegas a pouco centímetros do rosto de Jesus, levantou a túnica e aliviou-se dos gases do intestino com muito ruído, provocando novas e estridentes gargalhadas. O divertimento da soldadesca viu-se subitamente interrompido pela presença do gigantesco Lucílio sem dúvida atraído pelo alvoroço dos seus homens. Observou a cena em silêncio e, com um sorriso de cumplicidade, pôs-se na frente do Mestre. Os legionários, intrigados, calaram-se e levantando o fraldelim, o centurião urinou para as pernas, peito e rosto de Jesus de Nazaré.
A nova injúria arrastou os romanos para uma estrepitosa gargalhada que se prolongaria, mesmo depois de o oficial ter acabado. O meu coração sentiu-se tão oprimido e ferido como se aquelas ofensas me tivessem sido feitas pessoalmente.
Abatido, encostei-me à parede do pórtico, com um único desejo, ver aparecer Civilis.
Desta vez os meus desejos viram-se realizados. O comandante das forças legionárias fez a sua entrada no pátio central da Fortaleza Antonia no momento em que um daqueles desalmados arrancava a cana das mãos do Nazareno e lhe vibrava um forte golpe no elmo de espinhos. Os risos e os legionários desapareceram imediatamente, ante a súbita chegada de Civilis.
Quando o centurião interrogou a escolta sobre aquele novo escárnio, os soldados encolheram os ombros, responsabilizando os companheiros. Mas estes tinham-se dispersado por entre as colunas e o pátio.
Visivelmente aborrecido com a indisciplina dos seus homens, o oficial ordenou aos soldados que pusessem de pé o condenado e que o seguissem. Assim o fizeram e Jesus de Nazaré, um pouco mais recomposto, embora sempre com calafrios constantes, começou a caminhar para o túnel, arrastando praticamente a perna esquerda. A seu lado, e atentos ao Galileu, avançaram também mais três soldados, que não se separariam do Rabi até ao Seu regresso ao lugar da flagelação.
Eram onze horas e quinze minutos da manhã...
Ao sair do pretório, o Sol, cada vez mais alto, iluminou a alta figura de Jesus. Ao vê-lo, a multidão que esperava em frente das escadarias deixou escapar um murmúrio, inevitavelmente surpreendida pelo terrível aspecto do Mestre.
A escolta parou no meio do terraço, à esquerda da cadeira onde Pilatos aguardava. Este, ao ver o capacete de espinhos no crânio do Mestre, agitou-se, nervoso e indignado, olhou para Civilis, interrogando-o, enquanto apontava com o dedo indicador a cabeça do Rabi. Ignoro o que o centurião lhe disse. A minha atenção ficara presa no Galileu. Ao parar em frente da multidão , Jesus - curvado e com os dedos entrelaçados, tentando dominar assim os grandes tremores que O Sacudiam sentiu imediatamente a cálida presença do Sol. Muito lentamente, como procurando absorver a doce carícia dos seus raios, foi levantando o rosto, até olhar de frente o disco solar. Durante escassos segundos, as profundas olheiras e a catarata de sangue que lhe escondia a cara ficaram perfeitamente visíveis à multidão . Mas, ao levantar a cabeça, as puas foram contra a base do pescoço, perfurando-lhe novamente a nuca, e a dor obrigou-o a baixar o rosto.
Paralisado pela trágica transformação do Mestre, João Zebedeu reagiu por fim e, soltando o braço de José de Arimatéia, correu para Jesus, ajoelhando-se e chorando aos pés do Rabi. Os legionários interrogaram o centurião com o olhar, dispostos a afastar o jovem amigo do Prisioneiro, mas Civilis, estendendo a mão esquerda, fez sinal para que o deixassem. Durante uns minutos, tanto Pilatos como a multidão ficaram surpreendidos pelo choro do rapaz, e um respeitoso silêncio reinou no pátio.
Por duas vezes o Mestre quis inclinar-se para João, tentando aproximar as mãos tremula e ensangüentadas do discípulo mais amado, mas a coroa de espinhos e a rigidez das ataduras impediram-no.
O novo gesto de valentia do discípulo e o semblante destroçado do Nazareno comoveram sem dúvida o procurador. Levantando-se do cadeirão, deu breves passos para o alto da escadaria. Depois, apontando Jesus e sem perder de vista Caifás e os saduceus, exclamou, tentando despertar a piedade dos acusadores:
- Aqui tendes o Homem... De novo vos declaro que não O julgo culpado de crime algum... Depois de castigá-lo, quero dar-Lhe a liberdade.
Mais uma vez Pilatos se enganava. E embora a multidão não se atrevesse a replicar, o sumo sacerdote e os seus homens, esses sim, responderam, entoando o conhecido crucifica-o! Pouco a pouco, a multidão foi-se juntando às manifestações dos homens do Sinédrio, fazendo coro impiedosamente:
- Crucifica-o! Crucifica-o!
Desiludido, Pilatos regressou ao tribunal e esperou que a multidão serenasse. O vento, cada vez mais quente e desagradável, começava a levantar grandes remoinhos de pó que eram arrastados para oriente fustigando sempre com maior dureza a ala norte da Torre Antonia. Civilis percebeu imediatamente a alteração atmosférica e, depois de verificar como as sentinelas de atalaia nos torreões da muralha procuravam refugiar-se do vento em rajada, olhou-me fixamente, recordando-me com o seu rosto grave o meu presságio. Com um movimento de cabeça, assenti.
Mas o nosso diálogo silencioso viu-se interrompido pela voz do procurador. Uma vez serenada a turba, Pilatos - a mão direita segurando a peruca, que o siroco ameaçava – falou aos hebreus, com um tom inconfundível de desalento nas suas palavras.
- Reconheço perfeitamente que vos haveis decidido pela morte deste homem. Mas que fez Ele para merecerá a condenação? Quem quer declarar o Seu crime? Caifás, congestionado pela ira, subiu as escadas e, depois de cuspir em Jesus, encarou o governador, gritando-lhe:
- Temos uma lei sagrada pela qual Este homem tem de morrer. Ele próprio declarou ser o Filho de Deus... Bendito seja o Seu nome!
Voltando a cabeça para o prisioneiro cabisbaixo, tornou a cuspir-Lhe. O procurador fitou Jesus com um súbito medo. O sangue continuava a pingar-Lhe da testa, manchando o manto de João, que, ajoelhado e abraçado aos pés do Mestre, parecia não prestar atenção alguma ao que estava acontecendo.
Caifás regressou com passo decidido para junto da multidão e Pilatos, com a face pálida e o cabelo em desordem, bateu nos braços do cadeirão com ambas as palmas, ordenando a Civilis que levasse o Galileu para a sua residência. Os soldados forçaram o Rabi a dar meia volta, novamente levando-o para o átrio. Obedecendo a um impulso, baixei-me para João, animando-o a que se levantasse e parasse com o seu choro.
Depois, envolvendo-lhe os ombros com o braço e encostando-lhe a cara ao meu peito, levei-o para o pretório. Pilatos, com as mãos atrás das costas, dava curtos passos pelo centro do local. Entretanto, a pouca distância da porta, Civilis e os soldados aguardavam. Ao ver-me, o procurador interrompeu os seus nervosos passos e interrogou-me em voz baixa, como se temesse que o pudessem ouvir:
- Jasão, acreditas realmente que este Galileu possa ser um deus que tenha descido à Terra como as divindades do Olimpo?
Os olhos claros do romano brilhavam e agitavam-se, invadidos por um medo supersticioso e, assim me parecia, cada vez mais profundo. Mas Pilatos não esperou pela minha resposta. Depois de alisar o postiço deu meia volta, aproximando-se do Mestre, e em voz trêmula perguntou:
- De onde vens?... Quem és? Porque dizem que és Filho de Deus?
O Nazareno levantou levemente o rosto, lançado um olhar cheio de piedade àquele juiz fraco e encurralado pelas suas próprias dúvidas. Mas os lábios trêmulos de Jesus não chegaram a abrir-se. Pilatos, cada vez mais inquieto, insistiu:
- Negas-Te então a responder? Não compreendes que ainda tenho poder bastante para Te libertar ou Te crucificar?
Ao escutar as ameaçadoras advertências, o Galileu respondeu por fim num fio de voz:
- Não terias poder sobre Mim sem a permissão de cima...
A extrema debilidade do Mestre fez que as Suas palavras chegassem muito abafadas aos ouvidos do procurador. Este, aproximando-se o mais que pôde do sangue coagulado agarrado à barba e ao bigode do Mestre, pediu-Lhe que repetisse.
- Que dizes?
- Não podes exercer autoridade alguma sobre o Filho do Homem acrescentou Jesus, fazendo um esforço - a não ser que o Pai Celestial o consinta...
Pilatos recuou, com os olhos muito abertos de espanto. Mas o Nazareno não tinha terminado. ..
- Mas tu não és totalmente culpado, uma vez que ignoras o evangelho. Aquele que Me traiu e a ti Me entregou cometeu o maior dos pecados.
O romano sabia de sobra a quem se referia o prisioneiro e a inesperada confissão, libertando, em parte, Pilatos da sua responsabilidade, pareceu aliviá-lo muito. O governador esqueceu as suas perguntas e, esboçando um sorriso de agradecimento, voltou ao terraço. A escolta preparou-se para o seguir mas o Nazareno, dirigindo-se a João, pousou a mão na cabeça do discípulo, fazendo-lhe um pedido:
- João, nada podes fazer por mim... Vai e traz minha mãe, para que me veja antes de morrer.
Civilis também escutou aquelas dolorosas palavras e, tendo a intuição do desenlace, animou João Zebedeu para que cumprisse a última vontade do Galileu sem perda de tempo. Soltei o rapaz e, dissimulando a minha angústia, assenti com a cabeça, ratificando a nobre intenção do oficial. João atravessou o umbral do pretório, perdendo-se entre a multidão. Previamente, o oficial ordenou a um dos seus homens que acompanhasse o apóstolo até às portas da muralha, ajudando-o a transpô-la sem dificuldades. De volta ao terraço, Pilatos - muito mais animado pelas palavras do Prisioneiro - tinha começado a falar à multidão. O tom da sua voz denotava o firme desejo de libertar Jesus. O rosto de José de Arimatéia voltou a iluminar-se pela esperança e, até Judas, que fora um dos poucos que não se unira aos gritos de crucificação, pareceu aliviado pela atitude resoluta do procurador.
- Estou convencido de que este Homem - anunciou Pilatos apenas cometeu
falta quanto à religião, pelo que deve ser preso e submetido às vossas próprias leis... Porque esperais que O condene à morte, por estar em conflito com as vossas tradições?
A inesperada mudança do governador de Roma exasperou os ânimos dos saduceus, que formaram um círculo, discutindo acaloradamente. Pilatos, extremamente satisfeito com a irritação geral dos saduceus, sentou-se no cadeirão transportável, dando uma piscadela de olho a Civilis. Mas, antes que o procurador pudesse saborear aquele efêmero triunfo, Caifás, pálido e com os olhos injetados de sangue, voltou a subir as escadas e, ameaçando Pilatos com a mão esquerda, atirou-lhe à queima-roupa:
- Se soltas esse Homem, não és amigo de César...
A cólera do sumo sacerdote era tal que o seu ventre volumoso começou a subir e descendo, agitado pela respiração. À sentença do sumo sacerdote Pilatos empalideceu.
- Tentarei por todos os meios - rematou o astuto genro de Anás - que o imperador tenha conhecimento disto.
Conhecendo o procurador como conhecia a vaga de denúncias, prisões e execuções que inundava naqueles últimos meses o império, o fulminante ultimato de Caifás acabou por desarmá-lo. Sem dúvida alguma, foi um golpe baixo. Tibério, e mais concretamente o temido Sejano, haviam tido notícia das duas revoltas provocadas pela intransigente posição de Pilatos (uma, motivada pela colocação dos emblemas e insígnias do imperador no centro de Jerusalém, e a segunda pela
expropriação ilegal do tesouro do Templo para a construção de um aqueduto) e ambos os acontecimentos tinham valido admoestações ao procurador. Se o inflexível general da guarda pretoriana, que ocupava o lugar de César, voltasse a receber notícias inquietantes sobre a conduta do seu homem de confiança naquela província, a carreira política de Pilatos podia ver-se seriamente ameaçada. De fato, pouco tempo depois da morte de Jesus de Nazaré, o procurador cometeu novo erro político que precipitou o seu fim.
Além disso, o sumo sacerdote tinha-se referido intencionalmente ao seu título de amigo de César o que abateu ainda mais a vontade do juiz romano. (Embora Pôncio Pilatos, sem dúvida alguma, fosse conhecido e amigo de Tibério, a alusão de Caifás era explosiva.) O Chefe dos sacerdotes sabia que o governador era membro da ordem eqüestre, ostentando o título de aeques illustrior e a dignidade de amigo de César quer dizer, uma distinção muito especial. Era precisamente aquele privilégio que tornava ainda mais delicada a situação de Pilatos perante a cúpula do Império. O Sinédrio tinha meios para fazer chegar a Sejano e a Tibério, na ilha de Capri, as suas queixas sobre o que consideram uma nova irregularidade do procurador, e Pilatos sabia-o.
Em minha opinião, esta astuta manobra final desmoralizou o romano, que não possuindo um rigoroso sentido de justiça e sem tempo para refletir friamente, acabou por ceder. Confuso e fora de si levantou-se da cadeira curul e, apontando Jesus, disse sarcasticamente:
- Aqui está O vosso rei!
Caifás e os juízes hebreus sabiam que acabavam de ferir de morte os propósitos do romano e, animando novamente a multidão , responderam a Pilatos:
- Acaba com ele!... Crucifica-o!... Crucifica-o!
O governador deixou-se cair na cadeira e, praticamente sem forças, exclamou:
- Vou crucificar O vosso rei?
Um dos saduceus subiu para o segundo degrau e gritou, apontando para a fachada do pretório:
- Só César é o nosso rei!
* Poucos anos depois da morte de Cristo. Numerosos samaritanos se uniram em torno de um pretenso messias, que lhes prometeu descobrir os vasos sagrados enterrados por Moisés num dos montes de Samaria. Pilatos soube desta manifestação popular no monte Garizim e cercando com as suas tropas os samaritanos, carregou sobre eles, provocando grande mortandade. Samaritanos e judeus dirigiram-se então a Vitélio, supremo governador da província da Síria, acusando Pilatos do horrível assassínio de milhares de samaritanos. Vitélio não tinha autoridade para julgar o procurador de Israel e enviou-o a Roma, para que comparecesse perante o imperador. Mas, durante a viagem, Tibério morreu. assumindo o império Caio, Aliás Calígula. Este, ao conhecer os fatos, desterrou Pilatos e a família para as Gálias, onde, segundo parece, morreu. (Algumas tradições apontam para o fato de Pilatos ter acabado por se refugiar na que hoje conhecemos como Lausane, na Suíça, suicidando-se.) (N. do M.)
Pilatos tinha consciência de que aquela afirmação era hipócrita, mas não se atreveu a replicar. Chamou Civilis e, depois de trocar algumas frases com o primeiro oficial, anunciou aos judeus a sua intenção de soltar Barrabás. O populacho aplaudiu a decisão do governador, mas Pilatos, alheio a este reconhecimento, pediu que lhe trouxessem uma bacia com água. Ao ouvir Pilatos, o centurião manifestou a sua estranheza. Mas obedeceu ordenando a um dos legionários que se apressasse a cumprir os desejos do procurador. Creio que, salvo Pilatos e eu, nenhum dos presentes sabe qual a intenção daquele pedido do romano. Com a cabeça inclinada e cheio de febre, Jesus assistiu em silêncio àquela última parte do combate dialético entre os judeus e o representante de César.
Quando o soldado voltou ao terraço, trazendo uma grande bacia de barro, transbordante de água, pôs-se na frente de Pilatos e esperou. O procurador introduziu as mãos gorduchas no recipiente, esfregando-as durante uns segundos. Depois, perante o olhar atônito do centurião, dos legionários e da multidão , ordenou ao soldado que se retirasse. Levantando os braços acima da cabeça, gritou, de modo que todos o pudessem ouvir com clareza:
- Estou inocente do sangue deste Homem! Estais decididos a que morra? Pois bem pela minha parte, não O considero culpado...
A multidão voltou a aplaudir, ao mesmo tempo que se ouvia a voz de um dos homens do Sinédrio:
- Que o Seu sangue caia sobre nós e os nossos filhos!
Como um só homem, a multidão fez coro com a trágica sentença, ignorante das gravíssimas horas que a Cidade Santa viveria quarenta anos depois e em que, justamente, o sangue de muitos daqueles hebreus e o de seus filhos seria derramado pelas legiões de Tito. Embora, à primeira vista, a auto justificação do saduceu e do populacho pudesse parecer uma simples manifestação emocional própria daqueles momentos de ódio e de cegueira, a verdade é que a afirmação encerrava um significado muito mais profundo e transcendente. Os juízes - ignoro se acontecia o mesmo com aquela massa humana, inculta e vociferante - conheciam muito bem o que dizia a leia mosaica a este respeito. A Misn , na sua Ordem Quarta, especifica textualmente que em processos de pena capital, o sangue do réu e o sangue de toda a sua descendência penderá sobre a falsa testemunha até ao fim do mundo.
Outra das tradições judaicas afirma também que todo aquele que destruir uma só vida em Israel, é considerado pela Escritura como se tivesse destruído todo um mundo e todo aquele que deixar subsistir uma pessoa em Israel, a Escritura o considerará como se deixasse subsistir todo um mundo. Portanto, o Sinédrio estava plenamente consciente do valor e da gravidade da sua sentença, pedindo que o sangue de Jesus caísse sobre eles e os descendentes.
Pilatos enxugou as mãos na orla do manto e, virando as costas a Caifás e à multidão , saudou o Nazareno com o braço levantado. Logo a seguir, ao mesmo tempo que se encaminhava para a porta do Pretório, voltou o rosto para Civilis, dizendo-lhe:
- Fica a teu cargo.
E os legionários, com o centurião à frente, seguiram as passadas do procurador, retirando-se do terraço. A sorte estava lançada.
A partir daquele momento os fatos sucederam-se no meio de grande confusão. Por um lado, perdi de vista João Zebedeu e José de Arimatéia e, como era natural, todos os adeptos e simpatizantes do Mestre.
Só depois de abandonar a Fortaleza Antonia conseguiria encontrar-me de novo com José e animá-lo a que acompanhasse de perto a decisiva visita de Judas Iscariotes à sede do Sinédrio. E disse decisiva porque, como terei oportunidade de relatar, as circunstâncias que cercaram e encurralaram o traidor foram mais complexas e extensas do que aquilo que nos levam a crer os evangelistas.
A escolta que rodeava Jesus seguiu o caminho do túnel, desembocando novamente no pátio com pórtico. Para minha surpresa Pilatos estava presente quando os legionários pararam junto da fonte. O procurador estava com pressa de acabar com aquele aborrecido assunto e apressou Civilis para que Jesus fosse transferido sem demora para o local da execução. Segundo parecia, e depois da derrota pública sofrida pelo governador diante dos dignitários do Sinédrio, o seu propósito de regressar a Cesareia quase se convertera numa obsessão. Pilatos estava consciente de ter cometido um atropelo e nem sequer teve coragem para encarar Jesus. O centurião trocou impressões com vários dos oficiais e, finalmente, foi nomeado um tal Longino, soldado veterano, natural de Túsculo, cidade encravada nos montes Albanos, conterrâneo e amigo daquele que fora senador do imperador Augusto, Sulpicius Quirinius.
Com ele combatera, precisamente na guerra contra os Homonadenses, uma tribo rebelde que habitava a cordilheira do Tauro, na atual Ásia Menor. A julgar pelos seus modos, era homem de poucas palavras, de olhar afetuoso e direto e bom conhecedor das pessoas e da terra. Naquele momento - graças à sua coragem e provada lealdade - fora promovido ao posto de Quartus princips posterior ou centurião da segunda centúria, do segundo manípulo da quarta corte. Pela sua idade - possivelmente andaria pelos cinqüenta e cinco, ou sessenta anos devia estar prestes a deixar o serviço. Nos cabelos viam-se numerosas cãs e no pômulo e sobrancelha uma funda cicatriz, fruto, sem dúvida, de alguma das batalhas que travara desde a juventude.
Civilis, em minha opinião, acertou ao escolher Longino como capitão e responsável pela escolta que devia acompanhar o Mestre até ao Gólgota. Tremi por momentos, receando que a missão fosse atribuída, por exemplo, ao cruel Lucilio, Aliás Cedo alteram.
No total foram nomeados quatro legionários e um optio, ou oficial subalterno, como patrulha encarregue da custódia e posterior execução. Foi grande a minha surpresa ao verificar que o optio ou lugar-tenente do Longino era precisamente Arsenius, o romano que dirigira a prisão do Nazareno no monte das Oliveiras.
* O famoso governador Cirino como é conhecido através dos escritos romanos, desempenhou um papel importante às ordens de Augusto, sendo o responsável pelos dois censos efetuados durante o mandato daquele César na então província romana da Síria. O primeiro destes censos teve lugar entre os anos 10 e 7 antes de Cristo, e foi, precisamente, o que levou José e Maria a Belém. O segundo censo deu-se entre os anos 6 e 7 da nossa Era. Nesta segunda ocasião, Sulpicius Quirinius ou Cirino foi enviado por Roma na companhia de Copônio, primeiro procurador da Judéia. (N. do M. )
Tudo parecia resolvido. Longino encarregou um dos seus homens de medir a envergadura de Jesus, enquanto outro se encaminhou para o posto de guarda da entrada ocidental, em busca de um objeto cujo nome não consegui ouvir. Pilatos estava preparado para se retirar quando Civilis, depois de consultar o responsável pela escolta, lhe sugeriu alguma coisa que, em princípio, não estava prevista, porque não aproveitar a oportunidade para crucificar também os dois terroristas, companheiros de Barrabás?
O procurador hesitou. Segundo parecia, a execução daqueles assassinos fora marcada inicialmente para os dias seguintes à celebração da Páscoa. Pilatos fez uma careta de desagrado, mas o centurião-chefe insistiu, fazendo-lhe ver que - tal como as coisas estavam – a crucifixão coletiva simplificaria os riscos que sempre vinham com a morte de zelotas. Boa parte do povo judeu protegia e encorajava os revolucionários e era muito possível que a sua condenação provocasse alteração da ordem pública. Depois da implacável insistência dos sacerdotes na promulgação da pena capital para o Galileu, era de duvidar que se registrassem protestos se a execução dos membros do movimento separatista se realizasse ao mesmo tempo que a do pretenso rei dos Judeus. O procurador escutou em silêncio as razões do comandante e, movendo as mãos displicentemente, deu a entender a Civilis que tinha a sua aprovação, mas que agisse com rapidez.
Com um simples movimento de cabeça, o centurião indicou a Arsenius que tratasse da transferência dos Zelotas. Naquele momento, Pilatos reparou na minha presença e, enquanto os oficiais esperavam a chegada dos novos réus, o gordo procurador chamou-me de parte, dizendo-me:
- Jasão, que diz a tua ciência de tudo isto? Não tive tempo para te perguntar com calma sobre esse augúrio que prognosticaste para hoje... Fala-me com clareza... Ordeno-te.
A curiosidade e o medo consumiam Pilatos em partes iguais. E assim não tive outro remédio senão improvisar.
- Ontem, à meia-noite - menti-lhe -, quando me encontrava no monte das Oliveiras, pressenti qualquer coisa... E depois de procurar um lugar puro, um augurale, voltei-me para o Setentrião, traçando na terra com o meu cajado o templum ou quadrado. Depois, como sabes, peguei neste lituus - indicando-lhe a minha vara de Moisés - e fiz o ritual da descrição das regiões. Uma vez situado, implorei aos deuses um sinal...
Contendo a respiração, Pilatos animou-me a que prosseguisse.
- céu, estimado procurador, tinha-se tornado sereno e transparente como os olhos de uma deusa. Felizmente - voltei a mentir-lhe. o vento tinha parado. Tudo parecia pressagiar uma resposta... E subitamente, as infernais aves inferae surgiram à minha esquerda. O seu vôo rasante e a sua direção foram determinantes...
- Mas o quê? - explodiu Pôncio. - Que queres dizer com isso?
Adotei uma falsa serenidade e, olhando-o fixamente, respondi-lhe, fazendo minha uma sentença de Ennio:
- Então, para cúmulo do infortúnio, trovejou à esquerda estando o céu absolutamente sereno.
Pilatos abriu muito os olhos, espantado. Ele sabia bem o significado daquelas patranhas, maravilhosamente criticadas por Cícero. Pálido suplicou-me que lhe decifrasse o augúrio.
- Em minha humilde opinião - conclui - Júpiter, e por razões que não consigo compreender - menti-lhe pela terceira vez -, está desolado. E é possível que manifeste a sua ira sem tardar muito. O céu será testemunha de quanto te revelei.
- Hoje mesmo?
Assenti com rosto grave, ao mesmo tempo que desviava o olhar para o Nazareno. Pilatos virou também a cabeça, comovendo-se. Depois, esquecendo a conversa e esquecendo-Se de mim, voltou para junto dos centuriões.
Preparava-me para solicitar a Civilis que me autorizasse a ir na escolta e a presenciar as execuções quando entrou no pátio, vindo de uma das múltiplas portas que se abriam por baixo das colunatas, o legionário que tinha medido a envergadura de Jesus. Para tal, o soldado, muito habituado a este mister, a julgar pela sua desenvoltura, tinha pegado numa das lanças e, enquanto outro companheiro levantava os braços do Galileu na posição de crucificado, o portador do pilum pôs-se atrás do réu, medindo a distância entre as pontas das duas mãos.
Agora, uma vez feita a macabra medição, o romano tinha voltado ao pátio central, carregando um pesado madeiro, um tronco extremamente tosco, por desbastar, com um grosseiro buraco ao centro. Esta rude abertura, de uns dez centímetros de diâmetro, atravessava o madeiro de um lado ao outro, no sentido da espessura.
O legionário, que vinha munido de uma comprida e grossa corda, assentou o patibulum 2, apoiando uma das facas - perfeitamente serrada - no lajedo. E esperou.
* Felizmente para mim, eu fora instruído na arte dos antigos augures e arúspices, gregos e romanos. Uma vez no templum, ou espaço do cbu que se devia observar, o augure pegava no seu lituus e voltava-se para o sul, traçando uma linha no céu – de norte a sul - chamado cardo. Depois fazia o mesmo de oriente para ocidente (decumanus) dividindo assim em quatro áreas a parte visível do rku. Em seguida, traçando duas linhas paralelas às duas traçadas anteriormente, formava um quadrado, que projetado sobre a terra, formava o prisma ou templum. A zona que ficava na sua frente chamava-se antica e a que ficava atrás postica. (N. do M.)
2 A origem do patibulum remonta à viga que servia para trancar as portas de Roma. Ao removê-la, abria-se a porta. Daí o nome. (M do M.)
Ao colocar a madeira na posição vertical pude verificar que o seu comprimento atingia quase dois metros (possivelmente, um metro e noventa). Quanto à sua espessura, calculo que andaria pelos vinte e cinco centímetros. Era. em resumo, um sólido lenho, com um peso que não seria inferior a trinta quilos. Simulando grande curiosidade aproximei-me do legionário, perguntando-lhe para que servia aquele tronco. O soldado sorriu ironicamente e, apontando primeiro para Jesus, fez-me depois um significativo sinal com o dedo polegar. Colocou-o para baixo, à maneira dos Césares quando decretavam a morte dos gladiadores.
Passei as mãos pela superfície rugosa do patibulum e concluí que se tratava do troço de uma árvore, de alguma das espécies de pinheiro, tão freqüentes na Palestina ou importado talvez dos bosques do Líbano. (Não tenho certeza, mas talvez fosse o chamado Pinus halepensis, de uma madeira quase incorruptível.)
Absorto na análise não reparei na chegada dos dois zelotas. O optio e os legionários tinham-nos trazido amarrados, até junto do procurador e dos restantes centuriões. Mal os viu, Civilis ordenou que lhes arrancassem as túnicas ensebadas e dessem início ao castigo obrigatório que antecedia a crucifixão. Quatro legionários, empunhando cada um o seu flagrum, começaram a açoitar os guerrilheiros. Um deles, rapazote ainda, caiu de joelhos na frente de Pilatos, gemendo e implorando piedade. Mas o governador apressou-se a dar meia volta, afastando-se do prisioneiro. Naquele instante, enquanto os látegos silvavam novamente a meio do recinto, o legionário que desaparecera no túnel abobadado da porta ocidental de Antonia regressou correndo, entregando a Longino uma tabuleta de madeira de sessenta por vinte centímetros, totalmente branqueada, à base de gesso e de alvaiade. O centurião pegou na tabuleta e numa espécie de pequeno carvão, pedindo ao soldado que arranjasse mais duas tábuas. Chamou depois a atenção do governador,mostrando-lhe a tabuleta e o pedaço de carvão afiado, recordando-lhe que a escolta teria de pôr nas cruzes a identidade de cada um dos condenados e a natureza dos seus crimes.
A emoção voltou a sacudir-me. Estava prestes a assistir à redação do chamado INRI. Também nesta questão, e ainda que fosse só no aspecto circunstancial da redação, os quatro evangelistas tinham-se mostrado discordantes. Qual deles tinha acertado no texto? Marcos dissera: o Rei dos Judeus (Mc, 15, 26). Mateus, por seu lado, acrescenta: Este é Jesus, o Rei dos Judeus (Mt, 27, 37). Quanto a Lucas, o seu INRI diz assim: Este é o Rei dos Judeus (Lc, 23, 38). Por último, João Zebedeu, conhecido por o Evangelista, reproduziu o seguinte: Jesus Nazareno, o Rei dos Judeus (Jn, 19, 19). Quem tinha razão?
Discretamente, olhei por cima do ombro do procurador e vi como a sua mão tremia. Segurava a tabuleta em posição horizontal, firmemente apoiada na couraça reluzente. Tinha pegado no pequeno carvão com a direita mas o seu rosto desviara-se da superfície do retângulo branco de madeira. Reparei que olhava Jesus de soslaio. O Mestre, que não descolara os lábios em todo aquele tempo, conseguira regularizar o ritmo respiratório, mas continuava curvado e trêmulo. O sangue, embora em menor quantidade, continuava a pingar da orla da túnica, formando um círculo em volta dos pés.
Um dos guerrilheiros - mais adulto - retorcia-se no lajedo, retorcendo-se a cada chicotada. Os legionários tinham-lhe rasgado a túnica, deixando a descoberto o tronco. Apesar de ter as mãos amarradas atrás das costas e de estar seguro por outro soldado, que conservava entre as mãos a ponta da corda com que fora atado, o zelota, no seu desespero e dor, revolvia-se em cima das lajes, pondo em grande dificuldade este último soldado. O mais jovem, com a roupa igualmente rasgada, enroscara-se em si mesmo, procurando defender a cabeça com as pernas. Mas os golpes eram tão violentos e continuados que não tardou em se pôr de joelhos, oferecendo as costas aos verdugos e soltando gritos que fizeram aparecer o corpo da guarda e numerosos legionários. De repente, Pilatos - sempre mais nervoso - começou a escrever com a sua característica letra quadrada... Jesus de Nazaré....
As primeiras palavras foram escritas em aramaico, da direita para a esquerda. Tinham uns trinta milímetros de altura e ocupavam toda a parte superior da tabuleta. Pilatos hesitava. Parecia não saber que acrescentar. Na realidade, tinha consciência da falsidade das acusações e, logicamente, acabava de tropeçar num sério problema. O zelota mais novo levantou a cabeça e, com o rosto suado e
contraído, procurou Jesus. Depois, apesar dos puxões do guarda, arrastou-se nos joelhos até ao Rabi e, ao chegar a seus pés, no meio de uma chuva de furiosas chicotadas, pondo o rosto sobre as grandes pingas de sangue que caíam da orla da túnica do Rabi, exclamou, entre soluços:
- Mestre... Tem misericórdia de nós... Não nos deixes morrer!
Jesus entreabriu os olhos inflamados e violáceos, mirando o infeliz com infinita ternura. Mas, antes de poder responder-lhe, o soldado que agarrava a corda do jovem zelota deu ao Mestre um violento empurrão, fazendo-O recuar e vacilar. Um dos verdugos dirigiu então o seu flagrum, preparado para o ferir, mas Civilis, atento ao que acontecia, interpôs-se, amparando o Nazareno pelas axilas e evitando que caísse. Depois voltou-se para o pelotão, ordenando-lhes que não flagelassem o rei dos Judeus.
- Este já recebeu o seu castigo - declarou.
Os verdugos prosseguiram no seu ataque desapiedado, abrindo novas feridas nas costas, pernas e flancos dos zelotas. Enquanto o que se aproximara do Galileu continuava de joelhos, com a cabeça assente nas lajes, o companheiro, num arranque de desespero, levantou-se, atirando um pontapé frenético ao baixo ventre de um dos fustigadores. O romano vergou como um boneco, caindo no chão entre gritos de dor. De costas para a cena sanguinária, Pilatos voltou a escrever:
... rei dos Judeus.
João era, pois o único evangelista que tinha sido absolutamente fiel na transcrição do INRI (Jesus Nazarenus, Rex Judaeorum).
Imediatamente, de modo quase mecânico, o procurador repetiu a frase Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus em grego e, por último, em latim. Devolvendo a tabuleta a Longino sacudiu as palmas das mãos, fazendo uma careta ostensiva de repugnância. Mas o legionário enviado pelo centurião à procura das outras duas pranchas de madeira regressou naquele instante e Pilatos, muito contrariado, teve de repetir a operação. Desta vez foi muito mais rápido. Depois de perguntar os nomes dos condenados, escreveu na parte branca das tabuletas: Gistas. Bandido e Dismas. Bandido. Tudo isto, naturalmente, nas três línguas de uso comum naqueles tempos na Palestina: aramaico, em primeiro lugar, grego (o idioma universal, como o pode ser hoje o inglês ou o espanhol) e o latim, língua natal de Pilatos. O procurador deu uns passos para o tanque circular e enxugou as mãos. Quando se dispunha a retirar-se, adiantei-me e supliquei-lhe que me permitisse assistir às execuções.
- Se realmente vai acontecer alguma coisa de anormal – disse quero estar presente...
Pilatos encolheu os ombros e, mecanicamente, como que mergulhado noutros pensamentos, transmitiu o meu pedido a Civilis. Este encarregou-se de me apresentar a Longino, anunciando-me como um augure, amigo de Tibério.
Acho que a primeira qualificação não impressionou excessivamente o veterano centurião. Mas a segunda foi diferente. Naquele instante, a intervenção de Arsenius, que participou ao capitão da escolta que me tinha encontrado na noite anterior, revestiu-se também de importância.
Levantando o braço com enfado, Pilatos saudou os oficiais e retirou-se. Civilis não tardaria muito a segui-lo. Quando os restantes legionários viram como o seu companheiro caía, vítima do pontapé do terrorista, os flagrum Já não foram os únicos instrumentos de tortura. Com uma raiva pouco habitual, os restantes verdugos, a que se tinham unido outros curiosos, acompanharam as chicotadas com uma infinidade de pontapés que acabaram por fazer cair o revolucionário. Uma vez por terra, as solas cardadas dos romanos incrustaram-se muitas vezes no corpo do condenado e, poucos segundos depois, um fio de sangue correu entre as comissuras dos seus lábios. A chegada dos novos madeiros, um pouco mais curtos que o destinado à Cruz do Nazareno, interrompeu a flagelação. Mas a trégua momentânea foi apenas o prólogo de uma peregrinação angustiosa...
Sob a vigilância atenta de Longino e do seu optio, e sem demonstrarem qualquer cuidado, os soldados puseram os dois troncos de madeira sobre os ombros e últimas vértebras cervicais dos zelotas, ao mesmo tempo que outros legionários obrigavam os prisioneiros a estender os braços, até que as faces dorsais das mãos tocassem na áspera superfície dos madeiros. O revolucionário mais novo continuou de joelhos, enquanto o seu companheiro, semi-inconsciente, era atado ao patibulum na mesma posição em que tinha ficado, estendido e de barriga para baixo.
Nenhum deles teve força bastante para resistir. O que tinha pedido clemência continuou a soluçar lastimosamente, enquanto uma longa e grossa corda lhe imobilizava os pulsos, braços e axilas. Os romanos iniciaram a sujeição do primeiro condenado pela ponta direita do patibulum. Foram depois prendendo os braços até terminar no pulso esquerdo. E dali a corda caiu até ao pé esquerdo do culpado, sendo atada em volta do tornozelo. Com a mesma corda, e uma vez rematada a colocação do primeiro madeiro, os verdugos levantaram o segundo guerrilheiro, repetindo a manobra. Finalmente, os soldados transportando uns quatro metros de soga (os últimos do mesmo braço), dirigiram-se ao Mestre. Docilmente Jesus viu-os chegar, e antes que os legionários o ferissem ou o puxassem pelo cabelo, para que se inclinasse, lançou o corpo para a frente, oferecendo os ombros martirizados. Mas a estatura do Rabi ultrapassava em muito a dos verdugos e a inclinação voluntária do tórax não foi suficiente. Desse modo, um dos soldados, não podendo empurrar a cabeça do Mestre, agarrou-lhe as barbas, puxando por elas até ao chão, e assim o manteve, à espera que os companheiros colocassem o patibulum nos ombros do Rabi.
Dois legionários estenderam os braços de Jesus e outros dois soldados pegaram no madeiro. Levantaram-no pelas pontas e, de repente, encaixaram-no contra a nuca do Galileu. Mas as múltiplas ramificações da coroa de espinhos eram um obstáculo, o espesso cilindro de madeira não se ajustava com precisão aos músculos trapézios, rolando pelas costas. Cada vez mais embaraçados, por três vezes os romanos golpearam o pescoço de Jesus até que, por fim, em novas dores, foi o Mestre que se inclinou ainda mais facilitando a colocação do patibulum nas omoplatas. A cada uma daquelas tentativas selvagens de colocação do madeiro experimentei uma espécie de chicotada que me percorreu as entranhas. As puas da nuca e da zona occipital cravavam-se um pouco mais a cada esforço, rasgando o couro cabeludo e, possivelmente, enterrando-se no penósteo craniano
(película que envolve os ossos). (Os traumatólogos sabem muito bem que tipo de dor produz a perfuração desta película.) A dor intensa e contínua fez com que Jesus gemesse a cada um dos três embates e, em questão de segundos, o cabelo e o pescoço voltaram a brilhar, abundantemente ensangüentados.
Os carrascos estenderam os braços por baixo da zona inferior do tronco e ali os deixaram, atando a corda - da direita para a esquerda - rematando a prisão no tornozelo esquerdo. O peso considerável do patibulum - pelo menos para um homem tão extremamente castigado - levou o corpo do Rabi a inclinar-se perigosamente, obrigando-O a flexionar as pernas. Jesus tentou levantar a cabeça. Os músculos e artérias pareciam ir rebentar por baixo da pele avermelhada do pescoço mas, a cada tentativa de se levantar e vencer o peso do lenho, a nuca embatia na casca rugosa do patibulum e a dor provocada pelos espinhos que entravam sem piedade na cabeça do Rabi, vencia-O, forçando-O a baixar o rosto.
Compreendendo que era inútil todo o esforço para recuperar a posição ereta, o Mestre pareceu resignar-se. A respiração tornara-se novamente agitada e temi que, a qualquer momento, o esforço acabasse em novo desfalecimento. (Logicamente, os evangelistas não refletem, nos seus testemunhos, a dureza daquele instante, pois que nenhum deles assistiu ao carregar do patibulum.)
O enfraquecido organismo de Jesus de Nazaré viu-se subitamente esmagado por um madeiro, deixando os seus músculos na posição em que se encontravam na altura em que lho colocaram nos ombros e nuca. Não houve pré-aquecimento nem possibilidade de os principais feixes musculares poderem reagir convenientemente. Isto, em suma, precipitou as freqüências cardíaca e arterial, disparando-as pela enésima vez. Em questão de três a cinco minutos - desde o momento em que os soldados conseguiram amarrar o tronco aos braços – o coração de Jesus chegou às cento e setenta pulsações por minuto, elevando a tensão arterial máxima a cerca de cento e setenta. Em minha opinião, aquele foi um golpe que consumiu as escassas energias que ainda podiam restar ao Rabi.)
Ao ver o Mestre naquele estado lamentável perguntei-me quanto poderia ainda resistir com o patibulum às costas...
Mas um outro fato ia originar novo e dilacerante sofrimento ao Gigante da Galiléia. Enquanto Arsenius pregava as três tabuletas no fuste de madeira de um dos pilum, outro legionário reparou nas sandálias do Mestre e mostrou-as a Longino que, num gesto de honradez e comiseração, ordenou ao soldado que as calçasse nos pés de Jesus. O soldado acocorou-se na frente do Rabi e, ao obrigá-lo com ambas as mãos a levantar o pé esquerdo, para calçar a sandália, o corpo do Nazareno desequilibrou-se para o lado contrário, provocando aparatosa queda, tão rápida quanto inesperada. Com os braços amarrados, o Galileu não pôde evitar que o patibulum O arrastasse e, depois de bater nas lajes com a ponta direita, foi cair de bruços no pavimento, ficando esmagado debaixo do travessão da Cruz.
Ao ver e ao ouvir o violento embate contra as lajes receei o pior. Quando os soldados correram a levantá-lo observei que, felizmente, o elmo de espinhos atuara como amortecedor, evitando que os ossos do rosto se fraturassem, mas as puas da testa, têmporas e faces tinham perfurado ainda mais a carne, deixando a descoberto nalgumas áreas parte do tecido celular subcutâneo, dando lugar a novas e abundantes hemorragias.
Apesar da violência da queda, o Nazareno não chegou a perder os sentidos. Dois verdugos levantaram o patibulum, escorando-o com os ombros, enquanto o desastrado legionário acabava de calçar Jesus. Uma vez terminada a infeliz operação, os verdugos soltaram o madeiro e o Rabi voltou a suportar-lhe o peso, inclinando-se uma segunda vez. A impossibilidade de inclinar a cabeça para trás diminuía-lhe consideravelmente o campo de visão, limitando-o praticamente ao terreno que pisava. Em vários momentos, enquanto durou aquela curta mas acidentada caminhada para o Calvário, observei como o Mestre se esforçava por elevar o olhar para o alto. Mas, ao enrugar a testa, os espinhos dilaceravam as feridas e a dor intensa obrigava-O a baixar os olhos. Pela hora sexta, Longino deu ordem de marcha. A escolta fora aumentada com outros legionários, todos eles fortemente armados. Oito postaram-se de ambos os lados dos prisioneiros e os restantes, de um total de doze, distribuíram-se entre a vanguarda da comitiva, imediatamente atrás do centurião e do seu lugar-tenente e a retaguarda. A cada condenado, portanto, fora atribuído um contingente de quatro soldados, expressamente encarregados da sua vigilância e posterior crucificação. Um destes soldados transportava ainda um ensebado saco de couro pendurado de um pau terminado em forma de forca e que logo pôs ao ombro. Fechavam o cortejo dois romanos que carregavam uma escada de mão com cinco metros, aproximadamente.
Quatro dos soldados postados à direita e à esquerda dos zelotas desenrolaram os látegos, recomeçando a flagelação dos infelizes, tal como tinham por costume antes da execução. Entre gemidos e com o corpo sangrando, os dois primeiros condenados começaram a andar, cambaleando com o peso dos troncos. Cumprindo rígidas normas de segurança, os três prisioneiros, tinham sido atados pelos artelhos a uma mesma corda. Deste modo, qualquer possível tentativa de fuga era extremamente problemática. Ao pôr-se em marcha, o condenado que vinha no meio deu um esticão à corda, obrigando o Nazareno - que ocupava o terceiro e último lugar - a acompanhá-lo. As oscilações do lenho que o Rabi carregava e os seus passos vacilantes, inseguros, com o arrastar penoso da perna esquerda, fizeram-nos recear a todos uma nova e imediata queda e, o que era muito pior, uma possível parada cardíaca. E digo a todos porque, desde o princípio, os quatro legionários que comigo fechavam a escolta trocaram alguns olhares de preocupação, confirmando com movimentos de cabeça significativos que Aquele prisioneiro não estava em condições de chegar ao Gólgota. Mas, ninguém disse nada. Os condenados percorreram os primeiros vinte e cinco metros e o pelotão entrou no túnel abobadado da porta ocidental, aquela por onde eu entrara em Antonia na companhia do José de Arimatéia. Ali, infelizmente, se deu um novo problema...
Algumas sentinelas tinham assomado por curiosidade à porta do corpo da guarda, assistindo entre risos, à passagem dos condenados. Quando o guerrilheiro que caminhava no meio chegou à altura dos guardas, aproveitando-se do fato de os legionários terem interrompido as chicotadas por causa da penumbra e da estreiteza da passagem, o tal Gistas voltou-se para a esquerda, cuspindo no romano mais próximo. E antes que os seus verdugos pudessem pôr-lhe as mãos em cima, arremeteu com a extremidade do patibulum contra o legionário que marchava à sua direita, apontando-lhe o tronco para o rosto. O soldado caiu para trás, indo contra Jesus. Ambos rolaram no escuro e úmido empedrado do túnel. Nesta altura, o choque fez com que o Galileu caísse de costas. O tumulto foi indescritível. Vários membros do corpo da guarda e alguns dos romanos da escolta, enraivecidos contra o guerrilheiro, enterraram-lhe as hastas das lanças no ventre, costelas e boca do provocador, até o fazerem cair de joelhos.
Longino e Arsenius correram imediatamente ao centro da passagem, tentando restabelecer a ordem. Outros soldados ajudavam o companheiro que fora ferido com o madeiro. Uma das arestas rasgara-lhe o pômulo esquerdo, originando forte hemorragia. O centurião examinou a ferida, ordenando que fosse rendido imediatamente. O seu lugar foi ocupado por uma das sentinelas. Entretanto, Jesus continuava imóvel, de rosto para cima e impotente para se levantar. Os espinhos tinham voltado a ferir-lhe a nuca e o Mestre, com uma contração de dor, tentava levantar a cabeça, evitando assim o contato com a madeira. Alguns dos legionários que empunhavam os flagrum, cegos de fúria, lançaram-se também contra o Rabi e começaram a feri-Lo, insultando e exigindo que se levantasse, exigências tão inúteis quanto absurdas. Naquela posição, ninguém poderia erguer o tronco pelos seus próprios meios. Numa tentativa desesperada para obedecer, o Nazareno tentou dobrar as pernas, retesando os músculos. Mas, segundos depois, vencido e exausto, desistiu. Antes que a lógica e bom senso se impusessem entre a soldadesca confusa, um dos romanos inclinou-se para o Mestre e, agarrando-O pela barba, começou a puxar por ele, gritando um chorrilho de imprecações e blasfêmias. A raiva do verdugo era tal que, num daqueles selvagens puxões, os dedos crispados do legionário se soltaram do rosto de Jesus levando com ela uma mecha de pêlos. Com aquele pedaço de barba, o soldado arrancou também parte da epiderme e do cório ou camada interna da pele, deixando a descoberto - entre borbotões de sangue - as faixas fibrosas do músculo quadrado (na zona direita). Com um forte queixume, o Galileu deixou cair a cabeça sobre o patibulum, invadido pela dor insuportável,que vinha do dilaceramento de um sem-número de papilas nervosas. (É importante anotar que, entre os minúsculos órgãos violentamente arrancados se encontravam os conhecidos como intérpretes da sensibilidade dolorosa, alguns receptores específicos para a dor e que se ramificam em terminações nervosas livres, que se multiplicam nos interstícios do epitélio cutâneo.) A surpresa e o susto da sentinela foi tal que não voltou a agredir Jesus. O optio, com mais sensatez que os seus homens, ordenou que O levantassem, e a comitiva continuou a sua marcha, com dois revolucionários massacrados a chicotadas e pancadas e com um Jesus de Nazaré irreconhecível, consumido pela febre e pela fraqueza galopante. Ao pisar a cobertura metálica da ponte levadiça, o Sol, quase no zênite, iluminou plenamente figura do Mestre. As quedas tinham aberto algumas das suas feridas, empapando novamente a túnica, que perdera a cor original. Vários fios de sangue corriam incessantemente pelos tendões de Aquiles, encharcando as sandálias. Arrastando os pés, o Mestre foi-se aproximando do parapeito exterior da Torre Antonia. A Sua respiração era cada vez mais ofegante e a cabeça e o tronco iam-se inclinando centímetro a centímetro.
Na abertura do muro, quando já tínhamos percorrido mais de quarenta e cinco metros a partir do centro do pátio com pórtico, o pelotão parou novamente. A passagem muito apertada obrigou os legionários a inclinar os troncos dos condenados, de moda a poderem atravessar o recinto exterior do quartel general.
A partir dali, as coisas podiam complicar-se e os soldados cerraram fileiras, guardando uma distância mínima entre si e os condenados. Longino fez um sinal ao lugar-tenente e este pôs-se à frente da comitiva, arvorando com ambas as mãos o pilum, onde tinham sido presas as três tabuletas com os nomes e os crimes dos que eram levados ao patíbulo. Mal deixamos a fortaleza, fomos surpreendidos por um vento em rajadas, muito mais forte do que aquele que notara durante os debates de Pôncio Pilatos no terraço do pretório. O vento leste, vinha carregado de pó e de areia. Intrigado com o súbito agravamento do tempo, premi a ligação auditiva e perguntei a Eliseu que notícias tinha quanto à anunciada instabilidade das altas camadas da atmosfera, nas proximidades da fronteira do atual Iraque com a Arábia Saudita. O meu companheiro - que eu praticamente abandonara havia horas - censurou-me o silêncio, embora compreendesse que as circunstâncias não tinham sido ótimas para o manter informado. Imediatamente começou a explicar-me que a turbulência se convertera num haboob(1), ou tempestade com vento violento, alimentado pelo contato entre uma corrente em jorro e outro sistema de pressão barométrica distinto. A tempestade fora aumentando, especialmente na periferia ocidental da depressão bárica, localizada, como disse, a sul do Iraque. Os sistemas eletrônicos do berço tinham detectado correntes cônicas de partículas suspensas no ar, movendo-se em direção noroeste, e em frentes que oscilavam à volta dos cem quilômetros. As faixas deste haboob tinham-se enroscado e alargado, até atingirem os quinhentos quilômetros levantando à sua passagem gigantescas nuvens de areia, provenientes dos desertos arábicos de Nafud e Dahna. Segundo os detectores do módulo, as rajadas atingiam vinte e cinco e trinta nós por hora. Contrariamente àquilo que Eliseu calculava, a chegada da tormenta elevara a umidade relativa, avaliando-se também uma ligeira baixa da temperatura.
- A visibilidade dentro do turbilhão de pó - acrescentou o meu irmão - foi calculada por Papai Noel nuns trezentos metros. Tempo previsto para que o lóbulo central do haboob varra a cidade... entre trinta e quarenta e cinco minutos a partir deste mesmo instante.
Aquilo significava que se a comitiva conseguisse alcançar o local da crucifixão antes da chegada da tempestade à zona de Jerusalém, as trevas - provocadas pelos bancos de areia em suspensão - cairiam sobre nós durante a execução. Quem podia imaginar naquele instante que as famosas trevas descritas
pelos evangelistas pouco tinham a ver com o obscurecimento do Sol pela areia...
A curta distância do parapeito de pedra que rodeava aquela zona da Torre Antonia um grupo de judeus esperava (calculei uns duzentos), entre os quais se encontravam uns quantos saduceus - os mesmos que tinham assistido à condenação de Jesus no Pretório - e, naturalmente, José de Arimatéia, na companhia de outro jovem emissário de David Zebedeu. Este acabava de comunicar ao ancião que Maria, a mãe do Mestre, e outros familiares vinham a caminho de Jerusalém e que, provavelmente, se encontrariam com João no caminho de Betânia.
Segundo José de Arimatéia, Caifás e os outros membros do Sinédrio tinham-se dirigido ao Templo, dispostos a dar notícia dos acontecimentos daquela manhã e da morte iminente do Rabi da Galiléia. Mas a preocupação de José não era a sorte do Mestre. Ele sabia que a sentença do procurador era inapelável e que só os poderes divinos de Jesus O poderiam libertar da morte certa. Os pensamentos do ancião dirigiam-se para outro problema. Uma vez conseguida a sentença contra o Galileu, os sacerdotes saíram da fortaleza, discutindo e preparando a sua próxima ação, a prisão e aniquilamento dos discípulos de Jesus. José avisara o correio sobre tal manobra e insistiu para que fosse a Getsémani e pusesse de sobreaviso David e quantos adeptos e amigos pudesse localizar. Assim fez. Eu atrevi-me a insinuar-lhe que a sua presença perto do sumo sacerdote e dos saduceus podia ser muito mais útil que naquele trágico cortejo e José, sem poder conter as lágrimas assentiu com a cabeça, enquanto observava Atônito o rosto ensangüentado do Nazareno e o seu corpo cada vez mais esgotado e vergado ao peso do tronco.
* Em meteorologia, chama-se haboob a uma tempestade de pci que se forma nos desertos durante um período de instabilidade convectiva. O termo haboob deriva de um outro árabe, que significa vento violento,. São notáveis e famosos os haboobs do Sudão , com velocidades que chegam aos oitenta e cinco quilômetros por hora. (N. do M.)
Ao lerem o INRI de Jesus os dirigentes judeus saíram ao caminho do optio e do pelotão e, furiosamente protestaram contra a inscrição. Longino tentou serenar os ânimos exaltados dos hebreus, fazendo-lhes ver que as tabuletas tinham sido escritas pelo punho e com a letra do próprio procurador.
Foi inútil. Os saduceus exigiram que o centurião mudasse o texto, retirando a expressão rei dos Judeus. A tensão chegou ao máximo quando alguns deles se puseram a atirar pedradas aos soldados. Vários legionários avançaram, defendendo Longino e o optio com os escudos. Sem perder a calma, o centurião afastou o soldado que o protegia e erguendo a voz, ordenou ao grupo que dispersasse. Depois, apontando a terceira tabuleta – a correspondente a Jesus Nazareno -, lembrou aos homens do Sinédrio que, se desejavam alterar a inscrição, voltassem a Antonia e discutissem o assunto com Pilatos. As palavras de Longino apaziguaram a cólera dos judeus e três juízes retiraram-se apressadamente em direção ao Pretório, dispostos a negociar o que consideravam um insulto ao seu nacionalismo. (Eu não voltaria a ver Pilatos naquela primeira grande viagem. No entanto - e antecipando acontecimentos -, posso dizer que, na nossa segunda aventura, Civilis me relatou o novo encontro com os desprezíveis sacerdotes, congratulando-se com a atitude de Pilatos. O governador foi inflexível, lembrando aos hebreus de que Jesus se proclamara rei dos Judeus fora um dos motivos da sua condenação. Segundo parece, quando os saduceus se convenceram da dura e intransigente posição do romano, sugeriram-lhe que, pelo menos, trocasse o dístico por outro: Disse: sou o Rei dos Judeus. A resposta de Pilatos foi a idêntica às anteriores: O que escrevi, escrito está por mim. E a representação do Sinédrio não teve outra solução que não fosse retirar-se, mas antes ameaçou o governador com uma infinidade de maldições e castigos divinos...)
Encerrado o incidente, o centurião deu ordem para continuar. Desembainhou a espada e, sem hesitação, abriu passagem entre a turba. As centenas de fanáticos, na sua maiorias pessoas sem ocupação, comprada pelo Sinédrio ou, simplesmente, doentiamente sedenta de sangue, recuaram imediatamente, abrindo um corredor por onde desfilou o pelotão com os condenados. Por mais que olhasse não pude descobrir um só dos amigos ou discípulos de Jesus.
Quanto à multidão que gritara pela libertação de Barrabás e pela crucifixão do Galileu, onde estava? Aqueles hebreus constituíam uma ínfima parte dos dois ou três mil que se tinham juntado minutos antes, diante da escadaria da residência do procurador.
Este súbito desinteresse pelo final do odiado rei dos Judeus confirmou a minha hipótese. A imensa maioria dos judeus que nessa manhã subiu até ao Pretório só tinha uma intenção: solicitar a tradicional libertação de um preso. No fundo, pouco lhes importava em quem recaísse a graça. Se os juízes tivessem clamado pela liberdade de Jesus, aquelas pessoas, provavelmente, teria feito coro pelo nome do Nazareno. Uma vez satisfeita a sua curiosidade, os milhares de peregrinos e habitantes de Jerusalém retiraram-se, esquecendo-se praticamente do condenado. Mas tropeçar naqueles duzentos covardes algum efeito teve, Longino, homem de grande experiência, pensou sem dúvida que a passagem dos zelotas e do rei pelas ruas da cidade alta de Jerusalém podia originar complicações para si e para os seus homens. Com sensatez alterou o caminho que tradicionalmente era seguido por aquele tipo de desfiles. Em geral, os justiçados eram levados pelas vielas da cidade, para que assim se desse exemplo ao povo.
Nesta ocasião, insisto, o centurião decidiu-se por um caminho muito mais curto. Tenho pena de desiludir quantos acreditaram e acreditam numa via dolorosa pelas estreitas ruas do Bairro Alto de Jerusalém. Nada disso. O centurião e os soldados desviaram-se para norte, entrando pelo caminho poeirento que conduzia a Cesaréia e que percorria quase paralelamente o vale do Tyropeon. (Hoje, essa mesma via atravessa - um pouco mais a norte - a Porta de Damasco, na muralha setentrional.) Os primeiros a ficarem surpreendidos por esta mudança de itinerário foram os hebreus que tinham arremessado pedras contra a escolta romana. Dali a pouco, encabeçados pelos saduceus, começaram a seguir Longino e os legionários. Suponho que a inesperada alteração do caminho tradicional, lhes
acendeu ainda mais, a curiosidade.
De acordo com os meus cálculos, Jesus caminhara cem metros desde o pátio da Torre Antonia, quando o centurião, de repente, abandonou a calçada, virando à esquerda e iniciando a descida pela quebrada do Tíropéon, em direção a uma das esquinas da muralha norte da cidade. Naquela zona exterior de Jerusalém o vento levantava grandes massas de poeira e de terra, dificultando o penoso caminhar do Mestre e dos bandidos. Estes tinham voltado a ser açoitados, embora aquele declive e a irregularidade do terreno impedissem a precisão dos golpes dos verdugos.
Foi precisamente ao descer pela curta ladeira, cheia de cardos e de abrolhos espinhosos, que o corpo destroçado do Nazareno perdeu novamente o equilíbrio, caindo por terra entre uma nuvem de pó. Desta vez, Jesus conseguiu apoiar-se nos joelhos, que foram bater em pedras. A terceira queda do Prisioneiro obrigou a comitiva a parar. Dois dos verdugos recuaram e, às chicotadas, tentaram obrigar o Mestre a levantar-se. De boca aberta, resfolegando e a meio de uma nova elevação do ritmo cardíaco, o Gigante - que tinha ficado de joelhos - conseguiu por fim firmar-se na perna direita. Mas a esquerda, destroçada pelo flagrum, não correspondeu. O Filho do Homem apertou os dentes com todas as forças. Os músculos do pescoço tornaram a ficar tensos dando-se uma perigosa contração do esterno. Os olhos fechados refletiam o firme desejo de vencer o peso do madeiro, mas o esgotamento, a sede e a cada vez mais preocupante baixa da volemia (naquele momento era muito possível que o Rabi tivesse perdido dois litros de sangue), puderam mais que Sua vontade e, apesar das chicotadas, o corpo do condenado, longe de se recompor, foi-se inclinando mais e mais, até a barba tocar no joelho direito. Naquele momento crítico a voz do centurião deteve os legionários. E o próprio Longino, ajudado por mais dois soldados, se encarregou de levantar o patibulum, aliviando assim a recuperação do Prisioneiro. Uma vez de pé a comitiva continuou a descida até chegar ao fundo do vale. A partir dali e até ao Gólgota, o caminho foi muito mais dramático. Segundo os meus cálculos, a depressão do Tiropéon encontrava-se na cota 745. Tínhamos descido cinco metros (a cota da Fortaleza Antonia e da Pista de Cesaréia era de Setecentos e cinqüenta metros) e o Calvário encontrava-se a 755 metros de altitude sobre o nível do mar, o que significava, a partir daquele instante, um caminho em constante declive... Mas, para surpresa minha, o Nazareno conseguiu descer a rampa com menor dificuldade do que eu imaginava. Cambaleando e respirando pela boca, conseguiu vencer outra centena de metros. Aquilo somava cerca de duzentos e cinqüenta metros desde a nossa saída de Antonia.
Porém, enganava-me. A triste realidade não tardou em se impor. De repente Jesus parou. O lenho oscilou nervosamente para um e outro lado e o Nazareno caiu de joelhos, sacudido por convulsões mais intensas. Desta vez, felizmente para Ele, a comitiva apenas se deteve uns segundos. O Rabi prosseguiu o avanço, arrastando os joelhos pela ladeira áspera. Não pude evitar um sentimento de admiração. Aquele homem, no declive da Sua vida, era capaz de continuar - fosse como fosse - o caminho para o fim... Longino tinha escolhido o perímetro externo da muralha norte, evitando assim as concorridas ruas de Jerusalém e, ao mesmo tempo, encurtando o caminho. Apesar disso, o esgotamento físico e penso que mental, de Jesus estava a beirar novamente o estado de choque.
As pontas dos dedos tinham começado a tingir-se de um tom violáceo, sinal inequívoco de má circulação nas extremidades superiores conseqüência do agarrotamento prolongado. Embora fosse difícil verificá-lo naqueles angustiantes momentos, era mais que certo que os braços e os ombros estavam a iniciar um processo de tetanização, juntando assim uma nova e pungente dor, conseqüência da progressiva cristalização dos cristais microscópicos de ácido lático dos músculos. (O processo de tetanização seria um dos mais duros suplícios que o Mestre teria de enfrentar durante os primeiros minutos da crucifixão.) Com a cabeça e o tronco flexionados, o Galileu foi ganhando cada palmo de terreno, envolto numa vaga de poeira e levantando as pequenas colunas de pó à medida que arrastava os joelhos. O sangue que lhe empapava a túnica foi-se enchendo de terra, bem como o cabelo, barba e rosto. A respiração era cada vez mais rápida e, quando tinha ganhado mais cinqüenta metros, um suor frio banhou-lhe as têmporas e o pescoço. Jesus avançava com movimentos muito bruscos, quase aos sacões em típica marcha espástica, conseqüência da rigidez muscular. De súbito, vi-o levantar o rosto por duas vezes, procurando inspirar e, sem que ninguém pudesse evitá-lo tombou, ficando estendido na terra. Os soldados não hesitaram, e antes que o centurião tivesse tempo de intervir atacaram a pontapé o corpo inerme do Nazareno. As catorze cardas em forma de S das solas foram abrindo novas feridas nas pernas e, suponho, em quase todos os pontos que atingiam: rins, costelas e costas. O pé esquerdo ficara voltado para a direita e um dos furiosos verdugos pisou-o por duas vezes.
À segunda patada, a unha do dedo grande soltou-se por completo. Quando faltavam poucos metros para vencer o declive, as forças tinham abandonado de vez o Condenado. A chegada de Longino pôs termo ao espancamento inútil. E digo inútil porque o Mestre desmaiara. O oficial, que estava informado da dura intervenção dos legionários na flagelação, censurou aos soldados aquele absurdo comportamento. Baixou-se e colocando os dedos na artéria carótida mediu a pulsação.
- Ainda vive - exclamou, aliviado.
Os quatro legionários que o tinham à sua guarda levantaram então o patibulum. Mas Jesus ficou materialmente suspenso do lenho, com a cabeça pendente para o peito. Um dos soldados sugeriu ao centurião que soltassem o tronco. Longino dirigiu o olhar para o horizonte poeirento e ao ver que estava muito perto da porta de Efraim, recusou a idéia, ordenando que transportassem o condenado e o patibulum até junto da muralha.
Assim se fez. Sem se deter em contemplações de tipo algum, o pelotão recomeçou a marcha em direção à referida entrada noroeste da cidade. Dois dos verdugos apoiaram as extremidades do madeiro nos ombros, carregando assim com o corpo desmaiado do Prisioneiro. Durante estes novos oitenta ou cem metros os pés de Jesus foram arrastados sem piedade pelo mato e pequenas formações rochosas, ulcerando mais ainda os tecidos. Uma vez junto da muralha, ao pé da referida porta e do atalho que da esquina seguia para Jaffa, os soldados sentaram o Mestre, encostando-o aos blocos do muro alto. Enquanto dois lhe amparavam o tronco, outro soltou a corda, desatando Jesus. Os braços, exânimes, tombaram contra os flancos, e o mesmo aconteceu com a cabeça, que ficou inclinada para o tórax. Os verdugos que tinham açoitado os zelotas aproveitaram aquele descanso para se sentarem à beira do caminho, enquanto os
guerrilheiros, exaustos, igualmente se deixavam cair.
Não tardou a aparecer um bando de curiosos. Mas, ao ver que o pelotão estava parado, conservou-se a prudente distância, suspensa de todos e de cada um dos movimentos dos romanos. A passagem de caminhantes pela calçada era muito freqüente. Estávamos muito perto da tradicional celebração da ceia pascal e os peregrinos apressavam o passo, tocando as cavalgaduras, e os rebanhos de ovelhas. Muitos paravam por baixo do arco da Porta de Efraim, surpreendidos com o aspecto daqueles homens ensangüentados, meio nus, esmagados pelo peso dos troncos. Mas a tempestade de pó e de areia continuava a aumentar e depois de deitar uma olhadela, a maior parte dos curiosos logo se retirava. Parece-me que bem poucos chegaram a reconhecer o Nazareno.
O centurião e o seu lugar-tenente voltaram a observar Jesus. Ambos se mostravam seriamente preocupados. Não queriam de modo algum que o condenado perdesse a vida durante o percurso, o que só ia complicar as coisas. A pedido de Longino, o legionário que trazia o saco de couro retirou dele um cântaro de barro envolto numa rede entrançada à base de cordas e, protegendo-o do pó com o próprio corpo, encheu um púcaro de metal, de um tom esverdeado, com um líquido incolor. O centurião aproximou o recipiente dos lábios de Jesus que, ao contato com o que em princípio identificou como água, reagiu favoravelmente. Vi então como tinha os lábios gretados, com as características manchas amareladas nos bordos, próprias da desidratação. Lentamente, o Galileu foi engolindo a beberagem.
Ao terminar a boca ficou entreaberta, com o corpo a tremer de febre e a conseqüente sensação de frio. Então, ao reparar na sua boca, verifiquei com espanto que a bela dentadura do Rabi parecia estar partida. Acocorei-me, ao lado de Longino e tocando-lhe no lábio inferior com os dedos descobri a dentadura. Um dos incisivos superiores tinha desaparecido e outro estava reduzido apenas a uma parte da coroa, o que só podia ter acontecido nalguma das quatro quedas. Em minha opinião, na primeira ou na quarta e última.
Ao notar a suave pressão de dedos, baixando-lhe o lábio Jesus abriu os olhos como pôde. O esquerdo estava praticamente fechado pelos hematomas e o rasgão na sobrancelha. O meu olhar deve ter sido tão intenso e compassivo que adivinhei uma centelha de gratidão naquela pupila. A hipotonia ou brandura do globo ocular era tão evidente que imediatamente tive a certeza da gravíssima desidratação de que padecia.
A temperatura do lábio era muito alta e sem poder remediar, comentei com o oficial o estado delicado de Jesus. Longino levantou-se e com um gesto de preocupação dirigiu-se para o caminho pondo-se a observar os passantes. De início estranhei aquela atitude do capitão da escolta, mas compreendi depois a razão por que se afastara do pelotão.
Enquanto observava como o Galileu ia recuperando alento um grupo de vinte ou trinta mulheres apareceu debaixo do Arco de Efraim. Vinham, sem dúvida alguma, ao encontro do Mestre porque, ao descobrirem-No ao pé da muralha, pararam. Avançaram timidamente e, quando se encontravam a três metros, um dos legionários cortou-lhes a passagem com a lança. Pus-me de pé e procurei com ansiedade a mãe do Mestre, mas depressa compreendi que a tentativa de identificação era ridícula. Eu não conhecia Maria. As mulheres começaram a chorar. Foram lágrimas amargas e silenciosas. Então o Galileu virou a cabeça e, ao contemplar o grupo de judias, inspirou profundamente. Depois, para surpresa geral, exclamou com voz rouca:
- Filhas de Jerusalém!... Não choreis por Mim. Chorai antes por vós e pelos vossos...
O vento agitava os mantos das hebréias, que não paravam de soluçar. E Jesus, após uma breve pausa, acrescentou:
- A Minha missão está quase cumprida. Bem depressa Me juntarei a Meu Pai... mas a época de terríveis males para Jerusalém não fez mais que começar...
Os calafrios agravaram-se e, fazendo um último esforço, concluiu:
- Vereis chegar dias em que direis: Benditas as estéreis e aquelas cujos seios não amamentaram os filhos... Nesses dias pedireis às rochas que caiam sobre vós para vos libertarem do terror das vossas atribulações.
Aquelas mulheres tinham sido valentes. Muito mais que os discípulos e amigos do Mestre. Com exceção de João Zebedeu, de José de Arimatéia e do jovem João Marcos - que encontraria poucos minutos depois - os outros não tiveram a coragem bastante para acompanhar o Mestre, nem sequer de longe. No meio da perturbação, o Nazareno percebeu isso e talvez por essa razão tenha dirigido aquelas quentes palavras ao pequeno grupo de simpatizantes. Empunhando o pilum com ambas as mãos, o soldado obrigou as judias a recuar. Mas uma delas, em vez de obedecer, avançou até ao soldado,mostrando-lhe uma moeda.
Depois murmurou qualquer coisa ao ouvido do verdugo. Este aceitou o dinheiro e depois de ver o que a mulher fechava na mão deixou-a passar. A hebréia, que eu tinha visto nas tarefas domésticas do acampamento de Getsémani, correu para o Rabi e, caindo de joelhos estendeu a mão esquerda, depositando qualquer coisa nos lábios do Nazareno. Eram passas! Passas de Corinto! Um dos frutos preferidos de Jesus...
A boa mulher ainda conseguiu meter três passas na boca do Mestre. Não teve tempo para mais. O mesmo legionário que a deixara passar, uma vez afastado o grupo, voltou atrás, obrigando a hebréia a sair dali. Comovido com aquele último gesto de amor pelo Filho do Homem não vi chegar Longino. Junto dele encontrava-se um homem corpulento, de uns cinqüenta anos e de pele branca, embora ligeiramente acobreado. Trazia um turbante e o vestuário distinguia-o do comum dos hebreus por umas calças de tom esverdeado brilhante, muito folgadas em cima mas apertadas a meio da perna.
Pelo que pude apreciar, só falava grego e com evidente dificuldade. A uma ordem do centurião carregou o patibulum de Jesus e os legionários levantaram-se, recomeçando as chicotadas às costas dos zelotas. O optio voltou à vanguarda do pelotão enquanto Longino dizia a dois dos seus homens que cuidassem do terceiro condenado. Os soldados puseram os escudos em bandoleira e soergueram o Galileu pelas axilas. A comitiva dividiu-se então em duas partes. Em primeiro lugar, os rebeldes, com Arsenius a abrir o cortejo. Atrás, a uns cinco ou dez metros, mais quatro verdugos, dois deles amparando o Rabi. Imediatamente, cerrando o pelotão, o chamado Simão, natural de Cerne, país que se situava no Norte de África, entre o Egito e a Tripolitânia. Durante o tempo em que Cristo esteve suspenso na Cruz, tive oportunidade de trocar algumas palavras com o cireneu, escolhido pelo centurião pela sua força física. Segundo me contou, Longino escolhera-o quando, na companhia de outros amigos e peregrinos, como ele de Cirene, se dirigia pela estrada de Jaffa, do acampamento que lhes servia de refúgio temporário para o Templo. Como judeu, tinha intenção de assistir aos ofícios rituais daquela sexta-feira.
Mas as suas intenções viram-se impedidas pelo chamamento inesperado do oficial romano.
Não vinha, portanto, de nenhuma herdade, como explicaram numerosos comentários bíblicos. Aquele Simão, como muitos outros peregrinos, viera para a festa da Páscoa e, por não dispor de melhor albergue, montara a sua tenda muito perto das muralhas. Daí vem o erro de Marcos (15,21) quando afirma que voltava do campo. Como era natural, naquele tempo, Simão de Cirene praticamente não conhecia Jesus. Alguma coisa tinha ouvido, sim, sobre os Seus prodígios e curas, mas, pelo menos naqueles históricos momentos, a tragédia do Filho do Homem em nada o afetou. Cumpriu o que lhe tinham ordenado, permanecendo depois durante algum tempo perto das cruzes por pura curiosidade. Anos mais tarde, no entanto, tanto ele como seus filhos Alexandre e Rufo se converteriam em eficazes pregadores do Evangelho no Norte de África.
Envoltos na sibilante tempestade de areia, os soldados atravessaram o caminho, dispostos a percorrer os últimos metros que nos separavam do local da execução. Os homens que ajudavam o Nazareno tinham passado os Seus braços por cima dos ombros, agarrando-O pela cintura e pelos pulsos. E assim, incapaz de andar, arqueando a perna direita com dificuldade e com a esquerda inutilizada Aquele destroço humano foi socorrido e transportado até ao Gólgota. De acordo com os meus cálculos a via dolorosa - nunca melhor utilizado foi o adjetivo - tivera um total aproximado de quatrocentos e oitenta metros.
Eram doze horas e trinta minutos de sexta-feira, 7 de Abril. Meio cego pelas partículas de pó e de terra, por pouco não tropecei nas rochas calcárias que se amontoavam por aquelas paragens a noroeste da cidade. Sem saber encontrava-me ao pé do Rás ou Cabeço também conhecido por Calvário e Gólgota.
Embora a visibilidade ainda fosse aceitável, os turbilhões de areia dificultaram a minha primeira exploração daquele local.
Só depois do falecimento do Nazareno - uma vez serenada a tormenta e livre o Sol do singular fenômeno que se registraria passadas as treze horas e trinta - pude analisar com certo sossego o ponto onde realmente me encontrava. O centurião e os seus homens conheciam bem aquele cerro rochoso - pois de tal se tratava na realidade - e apressaram-se em alcançar o cume. O primeiro e maior dos penhascos (posto que a formação abrangesse duas moles contínuas) tinha uma altura máxima de sets ou sete metros, tomando como referência o nível do caminho que quase tocava as bases de ambos os promontórios.
* O termo Gulgultha é a forma aramaica do hebreu Gulgoleth, que quer dizer crânio,. Por eliminação de um dos l, aparece a palavra grega Golgotha e a siríaca Gugultha. A versão latina lê-se Calvarium. De onde a denominação final de Calvário. (N. do M. )
Enquanto subia pelas crostas de calcário corroídas, o que em primeiro lugar me chamou a atenção foi a paupérrima vegetação existente no local e o arredondado do cerro. Era muito provável que a nudez da rocha - observada de certa distância - desse asas à imaginação dos habitantes de Jerusalém, que tinham posto o nome de crânio(1) àquele penhasco. O lugar, como era natural, tornara-se ideal para este tipo de execuções públicas. Elevava-se a uma centena de metros da porta ocidental de Efraim mesmo ao pé do concorrido caminho para Jafa. Se realmente se pretendia impressionar os habitantes e peregrinos da Cidade Santa, aquele era um ponto de notável interesse.
No que concerne às dimensões do Gólgota ou Cabeço (e faço referência a esta denominação - Rás - porque se trata da última explicação oferecida pelo prestigiado arqueólogo Vicent, baseado no que pude ouvir de um velho habitante do bairro do atual Santo Sepulcro), o cabeço mais volumoso sobre o qual se iriam dar as crucifixões, penso que teria entre vinte e trinta metros de diâmetro na base, com uma coroa ou cume arredondado de doze a quinze metros, aproximadamente.
Quanto ao penhasco situado logo a seguir, e para norte, as suas dimensões eram sensivelmente menores. Aquele iria ser, enfim, o cenário de toda uma série de trágicos e desconcertantes acontecimentos.
Como descrever aquele lugar e aquele momento? Como transmitir a imensa solidão de Jesus de Nazaré ao pisar a calva pedregosa do Gólgota? Hoje, ao defrontar-me com esta parte do meu diário, estive prestes a abandoná-lo. Também a mim me faltam forças, abalado pelas recordações. E se voltei à narrativa desta primeira grande viagem foi pelo respeito à promessa feita ao meu irmão Eliseu... Espero que aqueles que leiam este testemunho saibam perdoar a pobreza da minha linguagem.
* Das diversas interpretações que eu tinha estudado acerca deste lugar durante o meu treino para a missão Cavalo de Tróia, só que associava a forma de penhasco com a palavra crânio me parecia a mais verossímil. E não estava enganado. Para alguns, entre os quais se encontrava São Jerônimo, o Gólgota tinha este nome por ser o local onde eram justiçados e sepultados os criminosos. Crasso erro, já que os Judeus tinham por costume enterrar os executados numa fossa comum ou, até,
lançá-los para os barrancos de Geena ou Hinnom, ao sul de Jerusalém, onde eram devorados pelos cães, ratazanas e outros animais. Uma segunda teoria - mais peregrina que a anterior alude a uma velha lenda, segundo a qual aquele promontório foi assim denominado porque numa caverna inferior se encontrava o crânio de Adão. Assim o acreditaram, por exemplo, personalidades tão importantes como Orígenes, Santo Atanásio, Santo Ambrósio, Santa Paula, etc. Neste sentido, uma vidente chamada Ana Emmerich chegou a escrever o seguinte na sua obra A Dolorosa Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo:
Quanto à origem do nome Calvário, eis o que sei. A montanha que tem esse nome, apareceu-me no tempo do profeta Eliseu. Não era então como no tempo de Jesus, era uma elevação com muitas muralhas e grutas que pareciam sepulcros. Vi o profeta Eliseu descer aquelas grutas (não sei se o fez realmente ou se era simplesmente uma visão). Vi-o tirar um crânio de um sepulcro de pedra, onde repousavam ossos. Alguém que estava a seu lado, creio que era um anjo, disse-lhe: É o crânio de Adão . O profeta quis levá-lo, mas quem estava com ele não o permitiu.
Vi sobre o crânio alguns cabelos louros dispersos. Soube também que o profeta, tendo contado o que lhe acontecera, originou que o local recebesse o nome de Calvário. Enfim, vi a Cruz de Jesus, assente verticalmente sobre o crânio de Adão. Com toda a minha consideração pela citada vidente, as suas informações não concordam com os estudos arqueológicos nem com a própria natureza da humilde rocha. (N. do M. )
A ascensão até à plataforma arredondada que coroava o penhasco - o qual, creio ter dito, ter doze a quinze metros de diâmetro - foi muito breve. Os soldados meteram-se por uma espécie de canal situado no lado oriental e que, na realidade, mais não era que uma fenda natural, conseqüência de alguma racha remota da enorme massa pétrea. Bastaram vinte passos para chegar à zona superior, que não me decido a chamar cume.
Ao pisar o local, o meu espírito ficou oprimido. As rajadas de vento não assobiavam, antes uivavam, entre meia-dúzia de postes altos, enterrados firmemente nas fendas da rocha. Eram os estipes, palus ou staticulum, como eram chamados os madeiros verticais das cruzes! Foi medo o que senti ao ver aqueles troncos rugosos? Agora, à distância, penso que teve de ser uma mistura de terror e de decepção. Terror, pelo seu perfil negro e pontiagudo, e decepção porque influenciado talvez pelas inúmeras tradições e imagens sobre a Cruz bíblica, por excelência, em mim se formara uma imagem muito diferente daquela que tinha diante dos olhos. Aquilo nada tinha a ver com as majestosas, polidas e trabalhadas cruzes que foram e são representadas nas igrejas ou por quase todos os mestres universais da pintura e da escultura. Na minha frente, quase no centro do dorso convexo do Gólgota, só havia seis árvores mutiladas, nuas,mostrando aqui e além as cicatrizes circulares e esbranquiçadas, onde, em tempos, tinham florescido outras tantas ramadas. Conservavam ainda a casca cinzenta e áspera própria das coníferas, ainda com resina que escorrera em fios por entre fendas da casca e se solidificara.
Quase todos apresentavam na parte inferior uma infinidade de marcas que permitiam ver a face sólida da madeira. Porém, naqueles instantes não soube adivinhar a que eram devidas.
Nas extremidades, os estipes - cujas alturas oscilavam entre os três e os quatro metros -, afiados muito toscamente. Como se os responsáveis pelo patíbulo tivessem a pretensão de lhes aguçar a ponta a golpes de machete!... Eram as únicas zonas claras daqueles sinistros fantasmas, alinhados em duas fileiras quase paralelas. Nas pontas as seis árvores apresentavam diversas rachas, à maneira de forquilhas. A separação de poste a poste - na primeira fila - não chegava aos três metros. Quanto aos outros paus, tinham sido cravados quatro ou cinco metros mais atrás e um deles, o voltado para ocidente, estava inclinado. Sem dúvida, as cunhas de madeira que serviam para escorar a árvore tinham cedido. Houve também outra coisa que me causou estranheza, dois tinham sido perfurados, mais ou menos a um metro do chão, por barras de ferro, que ficavam a descoberto de um lado e outro dos postes cilíndricos. Os sediles em questão (foi a única identificação que me veio à memória) tinham sido dispostos no madeiro central da primeira fileira e no que se erguia à esquerda deste, quer dizer, no que ocupava o extremo oriental da citada primeira fila de estipes.
Não podia saber então, mas a presença do último sedile viria a ser de certa transcendência naquilo que poderia qualificar de diálogo entre o Galileu e um dos zelotas. Durante uns minutos que me pareceram intermináveis, tanto os bandidos como Jesus permaneceram com o olhar fixo naqueles troncos. O silêncio, quebrado pela tempestade, foi longamente significativo. Mas aquela situação tensa duraria pouco. Sete dos soldados tomaram posições, rodeando as três primeiras árvores, enquanto o que transportava o saco de couro se apressava a meter-lhe as mãos dentro e a tirar de lá uma série de ferramentas. Gelou-me o sangue nas veias ao ver um molho de cravos (julgo que contei quinze), dois martelos de grandes cabeças quadrangulares de madeira, tenazes de ensebados cabos de couro, uma corrente de um metro de comprimento e um machete de curtas dimensões e lâmina larga.
Os terroristas, como que hipnotizados ao pé dos estipes, logo saíram do seu mutismo. Dois membros da patrulha tinham começado a soltar a corda que amarrava ao patibulum o mais velho dos zelotas. Foi aquela a chispa que incendiou um dos seus últimos ataques de histerismo e desespero. Ao compreender que fora escolhido como primeira vítima, começou a gritar desesperadamente, sacudindo o madeiro com os braços e atirando pontapés aos legionários. Longino, que parecia esperar aquela reação, ordenou qualquer coisa a um terceiro soldado.
Este pôs-se atrás do condenado e, agarrando-o pelo cabelo, deu-lhe um forte puxão, imobilizando-o. Sem perder um segundo, o centurião agarrou uma das lanças e, depois de apontar a base do fuste à cabeça do prisioneiro, vibrou uma pancada seca que o fez desmaiar. Uma vez livre das ataduras, e enquanto era amparado por dois dos soldados, o que o tinha imobilizado acabou por lhe arrancar a túnica rasgada respeitando, no entanto, a tanga. Com uma precisão e um desembaraço que me deixaram perplexo, os romanos estenderam de costas o
guerrilheiro inconsciente, esticando (a palavra mais exata seria retesando) os braços sobre o madeiro. Por se tratar de um patibulum perfeitamente cilíndrico cada um dos legionários encarregados de puxar pelos braços se ajoelhou na frente de cada uma das pontas do lenho, segurando-o com os joelhos e as coxas. Deste modo se conseguia uma estabilidade aceitável durante o processo do encravamento.
Quando os verdugos consideraram que o patibulum se encontrava perfeitamente seguro, fizeram um aceno de cabeça e o soldado responsável pelas ferramentas veio à cabeceira, ajoelhando-se também na rocha branca. Os seus joelhos musculosos prenderam a cabeça do réu, esmagando-lhe, praticamente, as orelhas, ao mesmo tempo, e embora aquela última medida de segurança não parecesse necessária no caso do bandido, um quarto legionário uniu os tornozelos, rodeando-os com a corrente.
* O sedile era uma peça de madeira ou de metal - ferro, geralmente - que em certas alturas era colocada nas zonas baixas da estipe. Era colocado quando se desejava prolongar a agonia do crucificado. Nesta peça, que adotava formas diversas - de uma simples barra a um taco de madeira, passando por uma estrutura semelhante a um corno -, o condenado podia apoiar os pés e, conseqüentemente, o peso do corpo. Tertuliano cita-o numa ocasião, chamando-lhe sedilis excelsus, ou assento elevado. (N. do M.)
O soldado que as postara atrás do condenado, controlando-lhe a cabeça, tirou um dos compridos cravos, que tinha metido no cinturão. À sua direita, sobre a rocha do Gólgota, estava um dos volumosos maços. O Mestre, ao ver-se sem os guardas que O acompanhavam, deixara-se cair de joelhos no Calvário, e continuava na mesma posição, dentro do círculo formado pelo pelotão e voltado para os estipes. No entanto, não creio que chegasse a contemplar a cena. A cabeça e o olhar estavam voltados para a terra e assim continuou até os homens de Longino virem buscá-lo.
Com a minúcia própria de um profissional muito experimentado naquele funesto mister, o carrasco romano pegou no cravo com a mão direita e foi apalpando com a ponta afiada os diferentes ossos do carpo ou pulso esquerdo pela face palmar.
Notei como localizava as artérias radial e cubital, pressionando suavemente a veia que tem este último nome. Depois, fez um pequeno rasgão no ponto certo passou o cravo para a outra mão e colocou-o verticalmente por cima do ponto escolhido. Pegou em seguida no martelo e levantou os olhos, esperando que o oficial o autorizasse a golpear. Longino assentiu com uma leve inclinação de cabeça e o legionário aproximou o maço até tocar suavemente na cabeça de cobre. Em seguida, levantou o martelo mais alto que a orelha direita, deixando-o cair com força no cravo.
A seção quadrada - com cerca de oito centímetros – penetrou sem dificuldade, atravessando o pulso e entrando também na madeira do patibulum. O cravo - de vinte ou vinte e cinco centímetros de comprimento - inclinara-se ligeiramente, ao enterrar-se no carpo. A cabeça aparecia agora voltada para os dedos. Naquele momento, com o coração pulsando aceleradamente, não reparei num pormenor que muito depunha a favor do carrasco... Com uma segunda martelada - muito menos violenta que a primeira - o cravo entrou um pouco mais. A cabeça tinha ficado a uns dez centímetros da pele. O sangue demorou dois ou três segundos a sair. O guerrilheiro não reagiu. Estava inconsciente, e o carrasco apressou-se em repetir a operação no pulso direito. Nesta altura nem sequer olhou para o centurião. Mais duas marteladas foram suficientes para pregar o condenado ao madeiro. Curiosamente, a cabeça do cravo voltou a ficar obliquamente. Apercebi-me então de como ambos os polegares se tinham voltado bruscamente para o centro da palma das mãos. Os outros dedos tinham ficado apenas dobrados. (Ao dirigir os ultra-sons para os pulsos do Mestre pude formular
uma hipótese - confirmada por estudos anatômicos posteriores sobre a causa deste fenômeno.)
Ao atravessar os pulsos do zelota, dois borbotões de sangue jorraram lentamente, escorrendo pela casca do lenho e pingando na rocha, onde formou duas pequenas poças. Embora as hemorragias não fossem preocupantes, a visão do sangue e o encravamento do seu companheiro provocaram o desmoronamento do debilitado sistema nervoso do jovem terrorista. Com o rosto suplicante conseguiu arrastar-se de joelhos até Longino. Uma vez a seus pés baixou a cabeça até ao solo, pedindo aos gritos que tivesse compaixão dele. Durante décimos de segundo, os olhos do centurião embaciaram-se com uma sombra de piedade.
Levantou as mãos em sinal de impotência e, de modo a que o condenado não o notasse, pediu ao legionário mais próximo o pilum. Longino não podia evitar a crucificação do rapaz, mas podia evitar que sofresse as dolorosas perfurações dos cravos nos pulsos. Levantando a lança com ambas as mãos preparou-se para golpear o crânio do aterrorizado prisioneiro.
- Alto!... Que quereis daqui?
Os gritos de uma das sentinelas interrompeu os propósitos do oficial. Ao voltar-se, viu um grupo de seis ou sete mulheres que subia com passo decidido pela fenda do penhasco. Longino esqueceu-se do réu e avançou ao encontro das hebréias. As mulheres trocaram algumas frases com o centurião, mostrando-lhe um pequeno cântaro de barro vermelho. O chefe da patrulha tranqüilizou os seus homens, permitindo que as judias chegassem ao alto do Calvário. Uma vez lá em cima, a que trazia a vasilha dirigiu-se ao guerrilheiro que acabava de ser pregado. Seguiu-a uma segunda mulher e as restantes ficaram em silêncio à beira do patíbulo, defendendo-se das aceradas rajadas de vento com os seus amplos mantos negros e verdes.
Ao verem que aquele homem jazia inconsciente, as resolutas mulheres voltaram-se para Longino. O centurião, antecipando-se aos seus pensamentos, indicou-lhes o segundo réu, que continuava sob o peso do patibulum, sangrando e chorando desesperadamente.
Mas antes que as filhas de Jerusalém abrissem o cântaro e cumprissem o velho conselho do filho dos Provérbios – daí bebidas fortes ao que vai perecer e vinho à alma amargurada - o oficial fez sinal aos legionários para que içassem o primeiro bandido. A escada foi apoiada a uma das estipes da primeira fileira (a de ocidente), enquanto dois soldados levantavam, não sem dificuldade, o lenho a que estava pregado o condenado. Sem perda de tempo, o carrasco responsável pelas perfurações amarrou uma corda à volta do tórax, dando logo a seguir dois nós rápidos em cada uma das pontas do patibulum.
Por fim, exibindo grande destreza, rematou a amarra com uma laçada central. Um quarto soldado pôs-se no alto da escada e os que seguravam o guerrilheiro transportaram-no até junto do madeiro vertical. O autor do encravamento estendeu a soga ao companheiro no alto da escada e este introduziu-a na ranhura superior da árvore. Imediatamente, o legionário começou a puxar pela grossa corda, ajudado em baixo pelo optio. A cada puxão, a corda, em contato com a estipe, emitia um rangido agudo, que ia confundir-se com os gritos desesperados do segundo zelota. Em questão de minuto e meio, o patibulum foi içado até ao cimo. O lugar-tenente de Longino esticou ao máximo a corda e, antes que o romano empoleirado na escada soltasse a soga, os três soldados que vigiavam a elevação do réu correram em auxílio de Arsenius, agüentando no ar o preso e o patibulum.
Ao desfazer-se da corda, o legionário que estava em cima prendeu-a nos dois ramais da laçada central, arrastando a abertura do tronco para a ponta da estipe. Uma vez encaixado o patibulum, o soldado deu um grito e os quatro romanos largaram o comprido cabo. Com um rangido, deslizou para baixo até ficar enfiado na estaca vertical.
O corpo do bandido caiu também em peso, dando-se uma máxima distensão nos braços, que fizeram um ângulo de sessenta e cinco graus com a estipe. Esta descaída aterrorizadora abriu as feridas dos pulsos e provocou ainda a distensão dos ligamentos das articulações dos ombros e dos cotovelos.
A dor devia ter sido tão insuportável que o infeliz reagiu, voltando a si. Os olhos queriam saltar-lhe das órbitas. Mas a posição forçada em que ficara quase lhe bloqueara o aparelho respiratório e a boca desarticulada, não conseguiu emitir som algum. No entanto, os soldados pareciam não ter excessiva pressa. Antes de descer da escada, o legionário pegou no maço e deu umas quantas marteladas no patibulum, firmando-o. Depois aceitou das mãos do optio a tabuleta onde se lia o nome de Gistas e pregou-a no troço superior da cruz, um palmo acima do madeiro transversal. Os duzentos curiosos que tinham seguido a patrulha e que iam tomando agora posição em redor do rochedo romperam em gritos e exclamaram de protesto ao verem como o soldado pregava o inri do zelota. Com efeito, Longino tinha razão. Se a comitiva se tivesse aventurado pelas ruas de Jerusalém com os dois guerrilheiros, quem sabe do que teria sido capaz o populacho. Pouco a pouco, o grupo inicial de observadores judeus foi multiplicando-se com outros peregrinos que iam e vinham pela estrada de Jafa.
Muito perto, na primeira fila - cerca de dez metros em linha reta distingui alguns dos saduceus. E, entre estes, Judas Iscariotes, com a cabeça coberta pelo manto. (Ignoro se por medo às possíveis represálias dos amigos e adeptos do Mestre ou para se proteger como muitos outros, dos turbilhões de areia que varriam os arrabaldes da cidade.) Sinceramente, ao ver o traidor, o meu desejo foi descer do Gólgota e ir ter com ele. O seu estranho suicídio era um dos acontecimentos que teria gostado de esclarecer. Mas a missão impunha claramente que não devia separar-me de Jesus naqueles momentos críticos.
O encarregado do encravamento apanhou o martelo e, pondo-se na frente do condenado, fincou o joelho esquerdo na terra. Tirou outro cravo do cinto e fez sinal aos seus companheiros. Um deles agarrou o pé direito do crucificado, esticando a perna, e ajustou a planta do pé à superfície da estipe. Este movimento deixou rente à pele um dos ossos do tarso – o astrágalo -, que serviu de referência ao hábil carrasco.
Colocou o cravo sobre o referido osso e de uma só martelada pregou-o à madeira. A dor subiu pelo corpo de Gistas, transformando-se imediatamente num uivo. E antes que o outro romano estendesse a perna esquerda do zelota, encostando a planta do pé ao pau vertical, um jorro de sangue nasceu por baixo do pé recém-cravado, correndo pela árvore até às cunhas que a escoravam. Ao uivo seguiram-se uma série de berros entrecortados. O diafragma do zelota tinha começado a ressentir-se e a sua respiração entrou num enfraquecimento angustiante. Poucos minutos depois, entre um grito e outro grito, o desesperado Zelota começou a ofegar, multiplicando as curtas e dramáticas inspirações de ar.
Os gritos - mistura de espanto, dor e raiva - arrancaram ao seu isolamento o jovem terrorista. Levantou penosamente a cabeça e ao ver o companheiro empalideceu e começou a suar. Os legionários terminaram o encravamento do prisioneiro, cujo pé esquerdo ficou a dez ou quinze centímetros acima do direito.
O sangue, correndo em abundância pela estipe, acabou por provar fortes náuseas no segundo guerrilheiro, que não tardou em vomitar. Longino apressou os seus homens para que desatassem Dimas. O infeliz, atordoado e tremendo de medo, não opôs resistência. Uma vez nu, banhado em suor frio, as mulheres receberam do centurião sinal para que lhe ministrassem a poção. Mas, antes, quatro legionários rodearam o condenado, quase lhe espetando as pontas das lanças nos rins, costas e ventre. As tremuras do bandido foram aumentando e os joelhos começaram a oscilar. Contagiadas pelo pavor do prisioneiro, as judias encheram com mãos tremula uma escudela funda de madeira com o líquido amarelo-esverdeado do cântaro. Ao aproximar-me cheguei a cheirar a beberagem, identificando entre os seus ingredientes o odor especial do fel ou bílis de touro. Ao interessar-me pela natureza da mistura, a que trazia o cântaro explicou-me com algum temor - confundindo-me possivelmente com alguma elevada personalidade estrangeira - que consistia essencialmente num vinho aguardentado a que se juntava o conteúdo de uma ou várias bolsas biliares de boi recém-sacrificado. Longe de conter algum tipo de narcótico, os hebreus utilizavam para estes fins um processo muito mais corrente e natural. Preparavam em primeiro lugar um extrato de fel, deitando num filtro de balta o conteúdo das bolsas.
Depois punham-no a evaporar em banho-maria, sem pararem de o agitar. Desta forma se obtinha o extrato desejado que podia conservar-se indefinidamente. Quando aquela piedosa associação de mulheres tinha notícia de uma execução, vertiam o extrato de fel de boi num vinho ou aguardente de elevada graduação alcoólica. A fulminante ação metabólica da bílis libertava o álcool do vinho, provocando assim no condenado uma rápida e considerável embriaguez que lhe embotava o cérebro, aliviando em certa medida os seus sofrimentos e debilitando principalmente a sua consciência. Assim, Mateus foi o único que estava certo ao narrar esta passagem evangélica. Marcos (15, 23) garante que as mulheres deram a beber a Jesus vinho com mirra. Isto é inexato. Entre outras razões, porque a mirra, pela sua natureza excitante, tônica e emenagoga, provavelmente teria atuado de forma contrária ao fim desejado. (Naquele tempo era geralmente utilizada como bálsamo, como pomada para certos tumores articulares, como elemento dentifrício e, principalmente, como perfume.) A hebréia pousou a mão direita sobre a escudela de madeira, para que o pó e a terra arrastada pelo vento não contaminassem o vinho. Olhou para Longino e este voltou a indicar o prisioneiro, autorizando-a a que se aproximasse. A mulher foi até Dimas e estendeu-lhe a beberagem. Acossado pelo terror, o rapaz não reagiu. Os seus olhos, avermelhados pelo choro, desviaram-se para o centurião, interrogando-o com o olhar.
Bebe! - ordenou-lhe Longino.
o zelota ergueu os braços pegando na escudela. Mas as suas convulsões eram tão fortes que parte do líquido se perdeu.
Por fim conseguiu levar a escudela à boca, bebendo os duzentos e cinqüenta ou trezentos centímetros cúbicos que continha. As hebréias retiraram-se, juntando-se ao grupo, e o condenado foi levado aos empurrões para junto das estipes que estavam livres na primeira fila e para junto das quais tinham transportado o patibulum. Dimas foi colocado de costas para os postes e, enquanto dois dos legionários lhe puxavam os braços para trás, um terceiro derrubou-o de costas. O centurião, postado atrás do réu, pegou numa lança, disposto a bater no crânio do prisioneiro se assim fosse necessário. Levantou a conteira do pilum e esperou. No entanto, o terrorista quase não ofereceu resistência. Aparentemente, parecia ter assumido a sua sorte. O medo, Aliás, garrotara-lhe os músculos. Ao encostarem-no ao madeiro levantou a cabeça e com um fio de voz começou a chamar por sua mãe.
Mas os constantes chamamentos desapareceram quando o carrasco vibrou a primeira martelada.
Um grito elevou-se da rocha, e a multidão acolheu o novo encravamento com fortes assobios e protestos. O prisioneiro, olhos a saltar das órbitas e com os músculos anteriores e posteriores do pescoço tensos como cordas de violino, estremeceu, deixando cair a cabeça para trás do tronco.
Naquele instante, o vento espalhou um grande fedor. O legionário que segurava os pés do condenado explodiu em mil imprecações e insultos contra o zelota. Num pânico incontrolável, os esfíncteres do rapaz tinham-se aberto, soltando as fezes.
Ao pregarem-lhe o pulso direito, o jovem perdeu os sentidos, e os carrascos aproveitaram o fato de estar inconsciente para acelerar o seu levantamento na estipe. Quando se dispunham a içar o patibulum surgiu uma dúvida. Em qual dos dois madeiros livres deviam crucificá-lo? Os legionários perguntaram ao oficial e este encolheu os ombros. Foi o encarregado dos cravos quem deu a solução, bem recebida por todos.
- Deixemos o rei no centro... - comentou, divertido.
Assim se fez. Foi esta a razão por que os chamados ladrões ficaram à direita e à esquerda do Mestre. Quando foi a vez do pé esquerdo do guerrilheiro, o verdugo atravessou-o de tal forma que os dedos ficaram sobre um dos braços do sedile de ferro que, como disse, atravessava a árvore de um lado ao outro. Esta circunstância proporcionaria a Dimas certo alívio quando precisou inspirar. O pé direito foi pregado um pouco mais baixo e na face frontal da estipe. O segundo braço do sedile - que ficaria paralelo ao patibulum como na Cruz de Cristo - não foi utilizado. É minha opinião que este relativo descanso pôde influir decisivamente neste crucificado, até ao ponto de lhe permitir uma melhor oxigenação e, conseqüentemente, maior lucidez. Concluída a crucificação de Dimas, os soldados, suados e manchados de sangue, recuperaram a corda que tinha servido para levantar o réu e lançaram os olhos para Jesus de Nazaré. O meu coração voltou a estremecer ao notar sorrisos sarcásticos nos rostos de alguns romanos. Eram treze horas...
A súbita intervenção de Eliseu distraiu-me momentaneamente. O módulo detectava o olho do siroco a pouco mais de quinze minutos de Jerusalém. A velocidade de haboob baixara ligeiramente, mas o arrasto de areia era muito considerável, levantando turbilhões de partículas até dois mil e dois mil e quinhentos metros do solo. Para o meu companheiro, o mais preocupante daquela tempestade seca era a possibilidade de arrastar agentes biologicamente ativos que poderiam afetar-me. Sinceramente, a advertência de Eliseu não me preocupou. O meu coração e os meus cinco sentidos encontravam-se a quatro metros de mim mesmo, na figura daquele Homem de 1,81 metros, agora curvado e destruído. O Mestre foi levantado sem mais demora. Foi-lhe tirado o manto púrpura que ainda conservava nos ombros, preso ao pescoço, cabendo depois a vez ao roupão. Ao desenrolá-lo ficou a descoberto a parte superior da túnica. E ao vê-la, fechei os olhos. Era uma mancha informe, sangrenta e colada ao corpo por cima das feridas da flagelação. Engoli em seco. Que aconteceria no momento de o despir?
Porém, o transe angustiante foi atrasado por um problema com que ninguém tinha contado: a coroa de espinhos. Quando um dos soldados se preparava para tirar a túnica, outro reparou no entrelaçado das puas, fazendo notar que ou rasgavam a túnica ou tinham primeiro de tirar a coroa.
Os soldados enredaram-se numa discussão. Penso que se teria prolongado indefinidamente se o optio não interviesse. Com um sentido prático bastante mais acentuado que o dos seus soldados, limitou-se a tocar no tecido e ao verificar que se tratava de uma túnica inconsútil, ou seja, sem costura, ordenou aos carrascos que o despojassem da coroa. De início, pareceu-me absurdo que os legionários discutissem por uma coisa que podia ter tido uma solução rápida e fácil, rasgar a roupa. Depois compreendi. Segundo parecia era costume não oficial que os carrascos distribuíssem entre si a roupa do justiçado (1).
Assim, um dos romanos pôs-se na frente de Jesus, introduzindo lentamente os dedos por duas das aberturas da coroa, quando as mãos agarraram o feixe de juncos por altura das orelhas deu um violento puxão para cima. O Mestre estremeceu. Mas o elmo de espinhos não se soltou por completo. Algumas das compridas e afiadas puas estavam solidamente enterradas na carne e aquela primeira tentativa apenas conseguiu dilacerar mais ainda os tecidos, provocando o nascimento de novos fios de sangue.
Arsenius moveu a cabeça com impaciência, lembrando ao soldado que primeiro teria de alargar horizontalmente e depois puxar por cima. O Nazareno apertou os lábios e esperou pelo segundo puxão. Ao alargar para os lados, muitos dos espinhos das áreas parietais e frontal soltaram-se. O carrasco repetiu a manobra. O puxão vertical foi tão violento que o elmo saltou, mas as puas situadas por cima das faces e da nuca arranharam a pele, e dois dos espinhos - cravados no tumefacto pômulo direito e no músculo elevador esquerdo, partiram -se e ficaram alojados em ambas as regiões do rosto. Um gemido acompanhou aquele arranque brutal e os saduceus, atentos no Mestre acolheram a manobra com aplausos e aclamações. Antes de o Rabi ter tempo de se recompor das novas e agudas dores, dois dos soldados levantaram-lhe os braços, enquanto um
terceiro o despia levantando a túnica pela orla inferior. Ao descobrir-lhe as pernas senti como o meu coração acelerava o seu ritmo. Estavam atravessadas e percorridas em todos os sentidos por regos de sangue, coágulos, hematomas azulados ou rebentados e uma infinidade de pequenos círculos, na sua maioria abertos pelas cardas das sandálias romanas. Quanto aos joelhos, o esquerdo apresentava um inchaço considerável. O direito, embora menos deformado, estava aberto na face anterior da rótula, apresentando múltiplos rasgões e perda do tecido celular subcutâneo, podendo ver-se mesmo parte do penósteo do osso. Era incompreensível como Aquele ser humano conseguira caminhar e arrastar-se sobre os joelhos até à muralha. As forças - confesso - começaram a faltar-me de novo.
* A partir do imperador Adriano (117-138) torna-se oficial este costume. denominado pannicularia ou propina, por decreto recolhido no Degusto. (N. do M.)
Mas o martírio ainda nem sequer começara...
O rangido da túnica ao despegar-se do tronco de Jesus fez-me empalidecer. O legionário, ao verificar que o tecido se encontrava colado às feridas não hesitou, voltou a cabeça e, sorrindo maliciosamente aos companheiros, foi levantando a túnica com lentidão . O linho foi-se descolando das feridas, arrancando grandes crostas de sangue. Corei de fúria. E apertei a vara de Moisés até quase parti-la. Grandes gotas de suor começaram a rolar-me pelas têmporas e tive de morder uma das mangas do manto para não me atirar àqueles sádicos.
Por fim, quando a túnica foi arregaçada até à altura do rosto do Nazareno, os soldados baixaram os braços e a cabeça do Rabi, despojando-o de toda a sua roupa.
E o Filho do Homem ficou inteiramente nu, ligeiramente inclinado e banhado por novas hemorragias. Ao ver aquelas costas abrasadas por hematomas e rasgões, Longino ficou perplexo. O cruel descolamento da túnica abrira muitas das feridas, originando outra sangria abundante. Apesar da proteção dos mantos e da túnica, o madeiro tinha ferido a parte superior das espáduas, ulcerando as áreas da omoplata direita e a pele situada sobre o feixe muscular esquerdo do trapézio. Nesta última região observei uma esfoladura de uns nove por seis centímetros, com bordos irregulares e enrugamento da pele, produzida possivelmente nalguma das violentas quedas (talvez na segunda, ao tombar de costas no túnel da Fortaleza Antonia).
Os cotovelos encontravam-se também praticamente desfeitos pelos golpes e quedas. Quanto ao antebraço esquerdo, a fricção com a corda do patibulum tinha desfibrado o plano muscular, com perda de substância e amplas áreas arroxeadas. Mas a visão mais aterrorizadora era a das costas. As patadas tinham rebentado alguns dos hematomas e massacrado muitas das fibras musculares vitais na função respiratória. O sangue corria de novo por Aquele destroço humano que, ao ser desapossado da roupa, tinha começado a tiritar, acusando os duros embates do vento e do pó.
A impotência, abandono e amargura daquele Homem alcançaram naquele instante um dos seus pontos culminantes. Os curiosos e passantes que tinham vindo a engrossar o grupo inicial de testemunhas romperam aqueles dramáticos momentos, troçando e acolhendo com grande risota a nudez do Galileu. Os sacerdotes, principalmente, foram os mais corrosivos. Alguns chegaram mesmo a saltar para os penhascos inferiores do Gólgota, gesticulando e imitando Jesus que, humilhado e de cabeça baixa, ocultava com ambas as mãos a região pudenta. Livres da tenaz do elmo de espinhos, os cabelos começaram a flutuar ao vento, descobrindo as marcas das chicotadas de Lucílio nas orelhas. Apesar dos 17,5 graus centígrados que o módulo registrava naquele momento em Jerusalém, o Mestre continuava a tremer de frio. Ao ficar sem a proteção das roupas, amplas zonas dos braços, tórax, ventre e pernas ofereciam o conhecido aspecto de pele de galinha. A febre, em vez de ceder, continuava a enfraquecê-lo.
Como estava longe a majestosa figura do Galileu! Embora os Seus discípulos e amigos não se encontrassem presentes, estou convencido de que muito poucos O teriam reconhecido. As dores, o esgotamento e a sede deviam ser insuportáveis, no entanto, ao contemplá-lo ali, só, ultrajado e sem o mais fugaz alento ou prova de amizade ou encorajamento, acho que a Sua verdadeira e mais profunda tortura não eram os padecimentos físicos, mas sim, a sensação de aniquilamento moral que sempre invade um homem injustamente condenado. Porém, são apenas reflexões pessoais de um mero observador. Quem poderia adivinhar os pensamentos de Jesus de Nazaré? A verdade é que o Seu fim se encontrava muito próximo. Enquanto os soldados colocavam o patibulum perto da estipe central, Longino dirigiu-se ao grupo de mulheres e convidou-as a que dessem também ao Rabi a beberagem de fel e vinho. E as mesmas hebréias, com passo apressado, encaminharam-se para o Mestre.
Ao separar-se das suas companheiras, logo atrás das encarregadas da beberagem, tinha aparecido o jovem João Marcos.
Ignoro como pôde chegar até ali mas, antes que cometesse alguma loucura, fiz-lhe sinal para que se aproximasse. As judias encheram pela segunda vez a escudela de madeira, oferecendo a Jesus o líquido fétido. O Nazareno levantou a cabeça e fitou as mulheres. Estas, estranhando o silêncio do Condenado, fizeram um ligeiro movimento com a escudela, animando-o a que bebesse.
Mas o Gigante não se decidia.
As mãos não se moviam dos genitais.
Respeitando o pudor do Galileu, a que segurava a beberagem colocou-a junto dos lábios, inclinando o recipiente de modo a que pudesse bebê-la sem necessidade de utilizar as mãos. O Mestre entreabriu a boca e provou o líquido. Mas assim que percebeu o que era Jesus afastou a cara, negando com a cabeça. A atitude do prisioneiro deixou atônitas as hebréias e o centurião. Olharam para Longino e este voltou a encolher os ombros, dando por concluído o assunto.
Ao ver-me, o rosto de João Marcos iluminou-se. Atravessou em corrida os escassos metros que o separavam de mim abraçando-me. Tinha as faces sujas, sinal inequívoco do seu pranto. Choramingando e entre soluços, o pequeno rogou-me que salvasse o Mestre. Não pude fazer mais do que sorrir-lhe. Como podia explicar-lhe quem era e no que consistia a minha missão?
Não vou ocultar que naquele instante cheguei a pensar nessa possibilidade. Que teria acontecido se, daquele promontório, eu tivesse dado ordem a Eliseu para que deslocasse o módulo e rumasse ao Gólgota? Teria sido extremamente simples descer no penhasco e arrebatar o Galileu das garras da patrulha. Mas eram sonhos impossíveis.
Antes que o rapaz atraísse a atenção dos legionários consegui persuadi-lo a que se afastasse dali, responsabilizando-o por um trabalho que - umas horas depois - seria muito importante para mim. João Marcos não entendeu, mas obedeceu.
O optio, alertado por um dos soldados que estava de guarda em volta do patíbulo aproximou-se de nós, aconselhando-me com cortesia mas com uma firmeza que não dava lugar a dúvidas, que tirasse dali o jovem.
Não foi necessário repeti-lo. João Marcos desapareceu, metendo-se entre as mulheres que desciam do Gólgota. Dali a pouco vi-o junto de Judas Iscariotes, tal como lhe pedira. A atitude de Jesus, recusando a aguardente biliosa, desconcertou-me. Ao abrir a boca, a língua com as mucosas secas como estopa, revelava o angustioso suplício da desidratação. Os lábios gretados como o casco de um velho barco encalhado deviam estar suportando uma sede sufocante.
Não pude entender porque o Mestre voltou o rosto à escudela de vinho. Se realmente o fez - como suspeito - para manter ao máximo a lucidez ameaçada, só posso descobrir-me, ante a Sua coragem.
- Chegou a hora - avisou o centurião.
Submisso, com as mãos escondendo os testículos, o Nazareno começou a arrastar-se - mais do que a caminhar - na direção das cruzes. Longino e outro legionário escoltaram-no, amparando-o pelos braços. O suor frio começou a envolver-me.
O guerrilheiro que fora pregado em primeiro lugar continuava vivo, tendo convulsões de quando em quando. Mas os soldados não lhe prestavam a menor atenção. Ajoelhado diante do patibulum, o carrasco responsável pelo encravamento esperava com um dos aterrorizadores cravos de ferreiro na mão direita.
Era praticamente semelhante aos utilizados anteriormente, de vinte centímetros de comprimento - talvez um pouco mais – e com a ponta afiada, ainda que não tanto como os seus Irmãos.
Houve outro pormenor que também o distinguia dos precedentes, embora a seção fosse quadrangular, as arestas estavam notavelmente deterioradas, com rebarbas e dentes. Os soldados colocaram o Mestre de costas para o lenho e, afastando-lhe os braços puxaram-no para a terra, ao mesmo tempo que um terceiro legionário repetia a rasteira. Nesta altura a extrema fraqueza do condenado foi mais que suficiente para acelerar a queda.
Uma vez com as omoplatas no madeiro, os carrascos apoiaram os braços do Mestre no patibulum, ao mesmo tempo que seguravam as pontas do cilindro rugoso com os joelhos. As palmas ficaram para cima, com as pontas dos dedos levemente flexionadas, tremula e - como os braços e antebraços - salpicados de sangue seco.
A perna esquerda, inflamada à altura do joelho, tinha ficado dobrada, mas o encarregado da corrente tratou de a estender, baixando-a com uma seca palmada na rótula. O Galileu acusou a dor, abrindo a boca. Mas não soltou gemido algum. Longino, no seu posto rotineiro - junto da cabeça do acusado, que tocava na rocha com o cabelo - preparou-se, apontando a hasta do pilum à testa de Jesus. Os ajudantes do carrasco principal estenderam os braços e o que se encontrava na ponta esquerda do tronco, desembainhando a espada, e colocando a lâmina sobre
os quatro dedos maiores de Mestre. Aquela novidade, pelo que parecia, facilitava o trabalho de fixação da extremidade superior ao patibulum. Se o prisioneiro tentasse reagir, ao agarrar-se ao gume se cortaria fatalmente. O grau de crueldade e perícia daqueles legionários parecia não ter limites...
Em certa medida os regos de sangue numerosos que banhavam os largos antebraços do Nazareno dificultaram a exploração dos vasos. Finalmente, o verdugo pareceu distinguir as linhas azuladas das artérias e veias, marcando o ponto escolhido para a perfuração.
Antes de levantar os olhos para o centurião, o soldado que se preparava para martelar o cravo - extremamente surpreendido ante a docilidade do rei dos Judeus - olhou para os companheiros, acentuando a surpresa com um significativo movimento das sobrancelhas. Os outros, igualmente atônitos, responderam com idêntico sinal.
Longino, cansado de agüentar a lança, baixara a arma, autorizando o primeiro golpe com outro leve aceno de cabeça.
E o carrasco, segurando o cravo totalmente perpendicular ao centro do pulso (no conjunto de pequenos ossos do carpo), lançou o maço contra a cabeça do cravo. A ponta, um tanto romba, perdeu-se imediatamente pelo interior dos tecidos. A pele que rodeava o metal rebentou como uma flor, logo brotando uma densa coroa de sangue. Ao abrir-se a ponta do cravo passou entre os tendões, ossos e vasos, deve ter roçado pelo nervo mediano, um dos mais sensíveis do corpo, provocando uma descarga dolorosa difícil de compreender. Instantaneamente, os braços contraíram-se, a cabeça de Jesus disparou para cima, permanecendo tensa e oscilante, paralela ao solo. Os dentes apertados durante escassos segundos abriram-se e o condenado, quando todos esperavam um natural e agudo grito, limitou-se a inspirar numa respiração curta e ofegante.
Os soldados, que esperavam uma reação violenta, não saíam do seu assombro.
Por fim, derrotado pela dor, o Mestre deixou cair a cabeça para trás, ferindo-se na rocha. Todos acreditamos que desmaiara. Mas, segundos depois, abria o olho direito, acelerando o ritmo respiratório.
Como é que eu não percebera antes! Jesus só respirava pela boca. Aquilo fez-me suspeitar que o septo nasal tinha de apresentar alguma complicação - resultado das pancadas -, dificultando a respiração pelo nariz.
O carrasco mudou de posição, inclinando-se desta vez para o braço direito. Porém, a segunda perfuração ia ter complicações.
O sangue tinha começado a sair com extrema lentidão, formando como que uma pulseira em redor do pulso esquerdo do Nazareno. Evidentemente, o cravo estava servindo de tampão, dando lugar a hemóstase ou estancamento do derrame sanguíneo.
Porém, a fraca hemorragia constituía uma arma de dois gumes. Os médicos sabem que, nestas situações, a dor aumenta. Arsenius e o oficial entreolharam-se, sem compreender a ausência de gritos e do espernear clássico de todo o homem que se sabe à beira da morte. Pelo contrário, Aquele condenado, longe de provocar problemas, tinha começado a despertar uma profunda admiração em Longino e no seu lugar-tenente. O contraste com o zelota que suspenso da cruz rasgava o ar com os seus berros e pragas era tão extraordinário que o oficial, ao ver que ainda tinha nas mãos a lança a arremessou violentamente contra a base das cruzes, subitamente indignado consigo mesmo.
A segunda martelada foi tão precisa quanto a primeira. O cravo inclinou-se igualmente, voltando a cabeça para os dedos do Mestre. Porém, em vez de penetrar na madeira do patibulum, seguindo a direção do cotovelo, a peça mal arranhou o tronco.
Neste segundo encravamento, o Rabi nem sequer levantou a cabeça. Grandes gotas de suor tinham começado a escorrer pelas têmporas, esbarrando aqui e além nos coágulos. Limitou-se a abrir a boca ao máximo, soltando um som gutural sufocado e indecifrável.
- Que há? - perguntou o centurião, ao ver a cabeça do cravo mais de catorze centímetros acima do pulso direito. O carrasco soltou o braço e examinou a superfície côncava do lenho. Ao passar as polpas dos dedos pela casca moveu a cabeça contrariado, e dirigindo-se a Longino explicou-lhe que tinha dado num nó. Senti que me ardiam as entranhas.
Sem perder a calma, o legionário colocou novamente o pulso torturado contra o patibulum e, segurando a aresta do cravo entre os dedos indicador e polegar, preparou-se para vencer a resistência do inoportuno obstáculo com nova martelada.
A pancada foi tão violenta que a seção piramidal do cravo se quebrou a poucos centímetros da pele ensangüentada do condenado.
O novo contratempo foi acompanhado por uma soez imprecação do legionário.
Atirou o maço para um lado e ordenou aos companheiros que segurassem o antebraço. Depois, agarrando como pôde a extremidade do metal fez força, tentando arrancar o que ficara do cravo. Foi em vão. A ponta tinha conseguido perfurar o nó e o metal resistiu.
Entre novas maldições, o furioso soldado levantou-se, pisou a zona cúbito-radial de Jesus com a sandália e começou a arrancar o cravo, fazendo-o oscilar para um lado e para o outro. Até Longino empalideceu ao ver aquele novo massacre. Os puxões bruscos do verdugo, procurando a libertação do metal, alargaram a abertura do pulso, rasgando tecidos e inundando de sangue os dedos do carrasco, o patibulum e a rocha.
É muito provável que a dor se tivesse atenuado, em parte, pela hemorragia abundante. De contrário, não posso explicar o comportamento do Galileu. A cada movimento pendular do soldado, no seu esforço para extrair a peça, Jesus de Nazaré respondeu com um lamento. Cinco, seis... oito sacudidelas e outros tantos gemidos, acompanhados por alguns ofegos e vários movimentos de cabeça. Porém, o Gigante não protestou...
Ao fim de uma eternidade, o carrasco separou a ponta do tronco e, depois de arrancar a barrinha metálica do carpo, avermelhada e gotejante, encaminhou-se para o saco de couro, rebuscando lá dentro. Ao voltar para junto do Nazareno, vi que trazia uma espécie de verruma curta, com um cabo de madeira.
Afastou o braço do Galileu e, depois de cuspir na mancha de sangue que cobria o madeiro, limpou com a mão a zona onde se encontrava o nó. Pegou na ferramenta e introduziu a rosca em espiral no buraco feito pelo cravo. Apoiando todo o peso do seu corpo no cabo, fez girar a verruma de ferro, abrindo a rugosidade com movimentos lentos mas firmes.
A operação foi laboriosa. Entretanto o sangue do Rabi continuou a correr, fazendo uma extensa poça na superfície branca do Gólgota. A julgar pela velocidade do derrame, não creio que as arestas em serra do cravo chegassem a rasgar alguma das artérias ou veias principais. No entanto, aquela perda de sangue começava a ser dramática.
Jesus empalidecia por instantes e receei que entrasse em novo estado de choque.
Quando o soldado considerou ter verrumado o patibulum quanto era preciso, rebuscou no cinto e tirou outro cravo. Antes examinou a ponta e a cabeça. Uma vez satisfeito levantou o antebraço do condenado até à posição inicial. No entanto, contrariamente ao que eu pensava atravessou o pulso pela larga abertura. Quando a ponta saiu pelas costas da mão, o carrasco introduziu-a no buraco que acabara de fazer e só então repetiu a martelada. Vencido o nó, o cravo entrou sem problemas no lenho. Com segunda pancada, o braço direito do Mestre ficou definitivamente pregado.
A base do cravo, tal como aconteceu com o pulso esquerdo, não chegou a tocar a carne. Ambas as cabeças - horas depois compreenderia a razão – sobressaíam entre oito e dez centímetros. Tal como acontecera com os guerrilheiros, ao dar-se o encravamento dos pulsos, os polegares de Cristo vergaram, saltando e voltando-se para dentro das palmas das mãos, em direção oposta à dos quatro dedos, ligeiramente flexionados.
Enquanto a ferida do pulso esquerdo - de forma oval - tinha apenas quinze por dezenove milímetros, a da direita era muito mais aparatosa, com quase vinte e cinco milímetros de comprimento, no sentido do eixo do antebraço.
Àquela abertura fez-me temer pela estabilidade do Mestre quando fosse içado para a estipe. Não se daria um rasgão nos tecidos?
Às soldados obedeceram ao oficial. Aquilo estava demorando muito. Assim, ajudados pelo optio, içaram o patibulum e o crucificado com ele, atuando com ligeireza na altura de enroscar o prisioneiro na soga que deveria servir para o erguer até ao alto da árvore. Ao passar a corda pela ranhura da extremidade da etipe e começar a esticá-la, o madeiro - controlado pelos legionários para que não perdesse a sua posição horizontal - iniciou uma lenta e exasperante elevação.
As fortes rajadas de vento, cobrindo o corpo do Nazareno com sucessivas cargas de pó e terra, começaram a pôr em dificuldade o levantamento. Gritando, o centurião exigiu a presença dos dois homens que estavam de sentinela no Gólgota, colocando-os junto da escada de mão, como apoio ao soldado que em cima puxava.
Enquanto o Galileu conservou os pés sobre a rocha a posição dos braços pôde manter-se mais o menos no eixo do patibulum.
Pouco a pouco, a cabeça recuperou a verticalidade, caindo por vezes para a frente, tocando na extremidade superior do esterno. Num dos puxões, depois de ter sorvido lentamente o ar, Jesus levantou fugazmente a cabeça e dirigindo o olhar para o céu, exclamou:
- Pai!... Perdoa-lhes!... Eles não sabem o que fazem!
Os soldados, ao escutarem a quebrantada voz, pararam. O Mestre tinha falado em aramaico. Creio que, com exceção de um ou dois legionários, os outros não entenderam. Mas, lamentavelmente, quiseram saber o significado. Os dois que tinham compreendido encararam-se indecisos e, antes de traduzirem as palavras do condenado, um dos soldados deu uma bofetada no rosto de Cristo.
- Maldito hebreu! – resmungou aquele que o esbofeteara. - Nem mortos nem vivos são dignos de piedade!
A versão do tradutor foi correta, mas os incultos legionários interpretaram erradamente as palavras de Jesus.
- Não sabemos então o que fazemos... - gritou-lhe o que tinha feito as perfurações. - Espera que já vês!
E indo até ao centro do Calvário apanhou do chão o elmo de espinhos voltando logo ao Galileu.
O centurião que também não entendera o sentido da expressão vacilou perante a atitude irritada dos seus homens. Penso que não se atreveu a intervir. No fundo, também ele se sentiu ofendido pelo que parecia ser a troça pelo seu profissionalismo. O carrasco afastou do patibulum a cabeça do Mestre e com uma palmada enfiou-lhe o capacete de puas. A colocação, talvez pelo receio de se ferir nos espinhos, não foi excessivamente violenta, e a massa espinhosa ficou meio folgada sobre as têmporas do prisioneiro. A multidão , àquela altura devia oscilar entre dois mil e três mil pessoas, gritou de prazer ao ver o gesto do romano.
O Mestre permaneceu de cabeça baixa e os seus torturadores continuaram a içar o tronco. A elevada estatura e o peso de Jesus - possivelmente à volta dos oitenta quilos - foram outra desvantagem para os suados carrascos, que não tardaram em encorajar-se mutuamente, acompanhando cada puxão com um ei.
Palmo a palmo, a corda foi içando o crucificado numa elevação interminável e penosa. Para cúmulo, a multidão - cada vez mais excitada juntava-se às interjeições dos legionários, animando-os com os seus eis.
Mas os braços fortes dos três soldados que do chão e do alto da escada puxavam não eram suficientes. Temendo que condenado e madeiro caíssem por terra, Longino e Arsenius não tiveram remédio senão unirem as suas forças às dos soldados no levantamento.
- Ei!... Ei!
O corpo do Galileu soltou-se por fim do solo e aí teve começo a demolidora contagem decrescente para uma horrorosa agonia. Ao perder o apoio dos pés, os braços do Gigante ficaram tensos e os estalidos dos seus ossos uniram-se durante alguns segundos ao rangido da corda na forquilha do pau vertical.
Naquele instante, as clavículas, esterno e costelas ficaram desenhadas por baixo da pele e fios de sangue lhe percorreram a pele, enquanto os músculos peitorais dos ombros, pescoço e braços se esculpiam, retesados, a um passo da distensão. Mas a força daqueles feixes musculares era ainda grande e evitou a luxação dos ombros e dos cotovelos. As fibras dos antebraços, especialmente os músculos extensores das mãos e dos dedos, ficaram afiados como sabres e fechei os olhos, temendo que saltassem num daqueles puxões.
- Ei!..
Jesus estava suspenso a meio metro do solo. A força da gravidade fez com que, desde o primeiro momento da suspensão absoluta, os braços girassem e, arrastados pelo peso do corpo descaíram até ficarem num ângulo de uns setenta e cinco graus com a estipe.
O formidável peso que o Nazareno suportou em cada um dos golpes nos pulsos, juntamente com o rasgar das feridas e a extrema tensão dos ligamentos de ombros e cotovelos multiplicou as Suas dores (considerando que lhe restasse capacidade para isso) até à loucura. Em vários momentos, acossado pelo sofrimento, lançou a cabeça para trás , procurando ar e, principalmente, um ponto de apoio. Mas esses pontos só os podia encontrar num lugar. Ou antes, em dois, nos cravos que lhe atravessavam os carpos. Mas, como elevar-se sobre peças de metal, estando suspenso?
A cada recuo do crânio, os espinhos mais e mais se cravavam na região occipital, forçando o Mestre a desistir. As derrotas sucessivas para ganhar algum oxigênio transformaram a Sua respiração num ofegar descompassado e agitado do tórax, cada vez menos eficiente. O fantasma da asfixia começava a pairar sobre o Filho do Homem...
- Ei!... Ei!
Quando os soldados pararam o pesado avanço da corda, o corpo de Jesus balançava a cerca de um metro do chão. Os pés, escorrendo sangue, palparam a casca do tronco vertical e a ele se agarraram desesperadamente. Mas as hemorragias fizeram-No escorregar uma e outra vez. E, em questão de minutos, toda a parte dianteira do tronco se tingiu de vermelho na zona que ia das omoplatas aos calcanhares.
O legionário colocado no extremo superior da estipe cerrou os dentes e começou a puxar a laçada central. Mas o patibulum não se moveu um centímetro. O peso do madeiro e do condenado (pouco mais de cento e dez quilos) era excessivo para o exausto soldado. Quase em uníssono, o centurião e Arsenius gritaram-lhe para que se esforçasse no arranque final. Foi inútil. O romano, ofegante, fez um sinal de impotência com a mão direita, deixando-se cair sobre a forquilha da estipe.
* Um simples cálculo matemático proporciona-nos a imagem aterrorizadora do peso que Jesus de Nazaré teve de suportar durante a angustiante elevação. Distribuindo o peso total do Mestre pelos dois braços (cerca de quarenta quilos em cada) a força de tração exercida em cada um deles é igual a 40/coseno de 65o = 40 0,4226 = 95 quilos, aproximadamente. (N. do M.).
Observei Jesus e vi a freqüência respiratória. Trinta e cinco brevíssimas inspirações por minuto! As pontas dos dedos tinham começado a ganhar um tom azulado. A cianose, ou deficiente oxigenação do sangue, dava sinal da sua presença.
Alarmado, examinei os Seus lábios. Mas a diminuição da quantidade normal de oxigênio no sangue não se manifestava ainda na mucosa labial nem nas orelhas. O pulsar do exausto coração do Mestre aumentou de ritmo, mas duvido que fosse suficiente para irrigar as partes mais periféricas do corpo.
Se Longino e os seus homens não atuassem com rapidez, a má circulação e a conseqüente falta de oxigênio no cérebro podiam originar, primeiro, a perda de conhecimento de Jesus, e o Seu falecimento fulminante. Honestamente, em alguns daqueles críticos segundos cheguei a desejá-lo com todas as minhas forças. Seria a forma de acabar de vez com as torturas. Mas o oficial, sem se deixar dominar pelos nervos, ordenou aos que permaneciam ao pé da estipe que colaborassem com o legionário que devia encaixar o patibulum. Mas como - pensei - se só há uma escada de mão... A solução não tardou.
Dois daqueles destros soldados, ágeis e treinados, agarraram-se com ambas as mãos à estaca vertical enquanto os outros dois lhe trepavam para os ombros, alcançando assim os extremos do madeiro transversal. A um sinal do que voltara a prender o nó central, empurraram o lenho até a afiada ponta da árvore entrar no buraco central do patibulum.
- Agora! - gritou o soldado, no alto da escada.
Os soldados saltaram para a rocha, ao mesmo tempo que o centurião e os outros carrascos soltavam de repente a corda.
O pau horizontal precipitou-se para terra. Mas, a uns quarenta centímetros da forquilha, ficou encaixado no grosso perímetro da estipe. A manobra foi recebida pela multidão com muitos vivas e aplausos. O Mestre acusou o choque com um lamento mais forte. A respiração ficou suspensa por segundos e os raspões nos pulsos tornaram-se maiores. Os dedos, quase imobilizados, mal puderam reagir à bárbara tração. Longino estendeu a tabuleta ao soldado e este pregou-a por cima do patibulum.
Enquanto acabava de ajustar o pau transversal, um outro romano esticou com força a perna direita de Jesus, forçando o abaixamento do ombro e de toda aquela metade do corpo do Nazareno. Ao sentir o puxão, Jesus inclinou ainda mais a cabeça, separando o tronco e as nádegas do madeiro. O joelho direito dobrou-se involuntariamente, mas o carrasco que se preparava para pregar o pé esmagou-o com uma súbita martelada.
O companheiro que tinha esticado a perna obrigou a planta do pé a assentar na estipe. Um terceiro cravo massacrou o pé do Nazareno, entrando pelo peito por um ponto próximo da prega de flexão. (Ao examinar de perto a entrada e a saída do cravo pensei que o legionário tinha perfurado o ligamento anular anterior do tarso. Desta forma, o metal deslizou entre o tendão do músculo extensor próprio do dedo grande e os do extensor comum dos dedos, penetrando à força entre os ossos calcâneo e cubóides e o astrágalo e escafóides por dentro. Os quatro ossos ficaram habilmente separados e o cravo dirigiu-se para trás e para baixo, ficando mais perto do calcanhar que dos dedos.) Nesta altura, apesar da destreza do carrasco, a ponta ou as arestas do cravo deslocaram ou esmagaram algumas ramificações das artérias digitais ou da veia safena externa, causando uma hemorragia que me assustou.
O sangue jorrou aos borbotões, banhando inteiramente o escasso metro existente entre o pé direito e o solo do Gólgota. É de supor que tal destruição afetasse também o nervo tibial anterior, lacerando perna e coxa e provocando uma insuportável dor reflexa nas ramificações e nos nervos denominados plexo sacro e lombar, em pleno ventre. Apesar das horríveis dores, o Galileu continuou consciente. Não encontrava explicação para aquilo! O encravamento do pé direito, incrivelmente, aliviou o ritmo respiratório do Nazareno, pelo menos durante os primeiros minutos da crucifixão. Ao apoiar o peso do corpo no cravo, distribuindo assim os pontos de sustentação, os pulmões conseguiram captar maior volume de ar, ventilando um pouco mais os alvéolos. Mas, à custa de que sofrimento conseguiu a momentânea regularização respiratória?
Aquela inspiração mais funda durou uns décimos de segundo. Quase instantaneamente, o corpo do Galileu voltou a cair, afundando o diafragma e entrando numa nova e angustiante fase de asfixia progressiva. As inspirações, sempre pela boca, tornaram-se vertiginosas, curtas e em todos os aspectos insuficientes para encher e ventilar os pulmões. Um pouco mais sereno, o carrasco colocou o quarto cravo na zona dianteira do pé esquerdo. A pancada nos ligamentos posteriores do joelho tinha inchado e enegrecido toda a região onde se inseriam o fémur, a tíbia e o perônio e, apesar da rigidez daquela perna, o legionário dobrou-a violentamente fazendo estalar as massas ósseas. O cravo entrou sem dificuldade, sobressaindo - como no caso do pé direito - entre cinco e seis centímetros acima do peito do pé. O sangue correu em menor quantidade, ou porque o metal não chegou a tocar em vasos importantes ou, simplesmente, porque a volemia do Nazareno descera consideravelmente.
A perna esquerda tinha ficado flexionada, formando com a estaca vertical um ângulo de cerca de cento e vinte graus e aberta para a esquerda da cruz. Embora a árvore dispusesse, como referi antes, de uma barra de ferro ou sedile, atravessada a cerca de um metro e vinte da extremidade inferior da estipe e paralela ao patibulum, nesta altura não foi eficaz. A considerável estatura do condenado fez que os pés ficassem mais baixos que o apoio que - caso lá tivessem chegado - talvez só tivesse servido para prolongar a sua agonia.
Ao ver consumada a crucifixão do Rabi, a multidão começou a gesticular, sublinhando o macabro trabalho dos legionários com uma grande salva de aplausos. Os sacerdotes, principalmente, davam mostras de especial satisfação. Toda a sua cólera anterior se convertera em júbilo. A sua vingança estava quase saciada. E digo quase porque, mesmo depois de morto o cadáver do Filho do Homem se veria ameaçado por aquela enlouquecida escumalha sacerdotal...
A minha atenção fixou-se em Iscariotes. Assim que pregaram o segundo pé do Mestre, o traidor afastou-se da multidão perdendo-se no caminho poeirento, rumo a Jerusalém. João Marcos desapareceu também da minha vista, pelo que supus que teria seguido os passos de Judas.
O triste espetáculo tinha entrado no último ato. Os curiosos começaram a desfilar, retirando-se para a Cidade Santa.
Jesus de Nazaré e os zelotas - pregados na direção Sul - eram apenas destroços... Pelas treze horas e trinta minutos daquela sexta-feira, 7 de Abril, comuniquei a Eliseu o final do duro encravamento. E tanto meu irmão como eu ficamos em silêncio. Um doloroso silêncio.
Se o texto que figurava na tabuinha de Jesus de Nazaré tivesse sido outro - ao gosto dos sacerdotes judeus - a troça ao crucificado talvez tivesse sido menor. Conto isto porque, a partir do momento em que ergueram o patibulum na estipe, os risos e os sarcasmos dos que assistiam foram mais freqüentes durante algum tempo e, pelo que parece, de acordo com averiguações posteriores, como vingativa compensação pelo conhecido INRI. Ao fracassarem com Pilatos, os juízes tiveram um especial cuidado em intoxicar a multidão , ridicularizando o Mestre e, por esta forma sutil , tirando seriedade às três inscrições, evitar que os testemunhos pudessem tomar a sério o título de rei dos Judeus. Assim, voltando-se para a cada vez menos numerosa massa humana, alguns dos saduceus começaram a apontar a cruz do Galileu, exclamando aos gritos:
- Salvou os mais, mas não pode salvar-se a si mesmo!
E a multidão aprovou esta nova forma de escárnio com grandes e repetidos aplausos. Dali a pouco, outra voz se destacava entre a turba, perguntando ao Nazareno:
- Se és o Filho de Deus, bendito seja o seu nome, porque não desces da Tua cruz?
Tal como a patrulha e como eu Jesus pôde escutar estas exclamações, impregnadas da mais cruel e mordaz ironia.
Encontrando-se a um escasso metro do solo e a pouco mais de dez da primeira fila de judeus não era muito difícil ouvir estes gritos e até as conversas que os legionários tinham entre si no apertado círculo de pedra do Gólgota.
Estes terminada a trabalhosa crucificação, fizeram uma pausa de descanso. O optio suspendeu o cordão inicial de segurança em volta do promontório, formado, como disse, por seis soldados, reduzindo a vigilância a um primeiro turno de quatro soldados. Cada um deles se postou nos pontos cardeais, rodeando os três condenados e os outros legionários do pelotão.
Os outros - exceto dois - não tardaram em se sentar a uns três metros das cruzes. E contemplaram enfadados como os seus dois companheiros retiravam a escada de mão, enrolando cuidadosamente a corda e apanhando as diversas ferramentas utilizadas no encravamento. Os preparativos pareciam indicar uma longa espera. Era isto pelo menos, o que Longino e os seus homens acreditavam. Na realidade, segundo me informou o centurião, a rendição não chegaria antes do ocaso.
- Avistas já da tua posição as primeiras frentes do haboob?
As palavras de Eliseu recordaram-me a iminente proximidade do olho do siroco. Protegi a vista com a mão esquerda, fazendo pala e, efetivamente, ao longe - atrás do monte das Oliveiras - descobri massas pardacentas e oscilantes que avançavam numa frente extensa. O oficial também reparou nas ameaçadoras nuvens de pó e, como bom conhecedor daquele tipo de fenômeno meteorológico, alertou os legionários. A primeira medida de precaução foi verificar a estabilidade, das cruzes. As estipes, em princípio, pareciam estar solidamente cravadas nas gretas da rocha. No entanto, Arsenius ordenou que as cunhas de madeira fossem entaladas ao máximo. Depois, os soldados rasgaram os restos das túnicas dos zelotas, convertendo-as em estreitas tiras.
E sem perda de tempo o oficial distribuiu-as eqüitativamente entre os doze soldados. Só quando vi cada um deles cobrindo as pernas nuas com aquelas faixas de pano compreendi o sentido da operação.
Prudentemente, os romanos procuravam defender a pele do açoite daquele vento terroso. Por último, os seis escudos dos homens de folga do serviço de vigilância do Calvário foram deitados no chão com a face côncava para cima, uns juntos dos outros, formando uma fileira. Alguém recordou ao pelotão as vestes do Nazareno, que ainda estavam caídas na extremidade sul do penhasco. Mas, quando os soldados as apanharam, dispostos a rasgá-las, os quatro legionários responsáveis pela guarda e encravamento de Jesus, protestaram, aludindo - com toda a razão - que aquelas roupas lhes pertenciam e que, dado o seu bom estado, as queriam para si.
O resto da tropa cedeu, e precipitadamente, antes que a tempestade de areia caísse sobre Jerusalém, o oficial fez o inventário, distribuindo as roupas pelo quarteto. Coube a um a capa púrpura que Antipas dera, a outro o cinto. Ao terceiro, o par de sandálias e o último viu-se recompensado com o esplêndido manto. Mas restava a túnica. Que fazer com ela? Insistiram alguns na primitiva idéia de rasgá-la, mas o subalterno opôs-se. Apesar do seu aspecto deplorável – cheia de sangue seco, molhada pela água e a urina de Lucílio, suja do pó do caminho e com alguns rasgões à altura dos joelhos – aquela peça de roupa, tecida à mão, merecia um final mais honroso que o de enfaixar as pernas dos romanos. A solução foram os dados. O soldado responsável pelo saco de couro não tardou em voltar para junto do grupo, fazendo chocalhar nas mãos um terço de dados. Formaram um círculo apertado e, um após outro, foram lançando os pequenos cubos de madeira de dois centímetros de lado pelo chão do patíbulo. Com o uso, as peças tinham perdido a sua primitiva cor branca, bem como o gume das arestas. A sujidade acabara por lhes dar um brilho característico. Os valores de cada face - perfurados por meio de alguma ferramenta em brasa - estavam distribuídos de maneira que sempre a soma dos lados opostos desse sete.
Os dados foram lançados: 1-5-3 (com o primeiro jogador); 6-3-4 (para o segundo jogador); 1-3-5 (com o terceiro) e 1-5-3 na última jogada.
* Embora não seja entendido nos chamados mistérios da Cabala, ou Qabbalahá(vocábulo hebraico equivalente a conhecimento ou tradição), convido quem possa ler este diário a submeter as sucessivas numerações aparecidas nos dados ao método de conversão utilizado por Cagliostro e que pressupõe uma correspondência entre os números e as letras, segundo os alfabetos hebraico e latino. Fi-lo e fiquei surpreendido com as palavras que parecem formar os números 153-634-135-153...
O que ganhou dobrou cuidadosamente a sua túnica enquanto, da multidão, e ouviam frases ferinas contra o Mestre:
- Tu, que querias destruir o Templo e reconstruí-lo em três dias... salva-te a Ti mesmo!
- Se és o Rei dos judeus - interrogavam outros - desce da cruz e acreditaremos em Ti...
- Confiou-se a Deus - bendito seja - para que O libertasse e chegou a pretender ser Seu filho... Olhai-O agora! Crucificado entre dois bandidos.
O autor daquela última frase - outro dos sacerdotes de Caifás - não conseguiu o efeito desejado. A multidão , como era natural, não considerava Gistas e Dimas como ladrões e não fez coro ao mal-intencionado saduceu.
Enquanto os soldados guardavam as roupas do Mestre assaltou-me um pensamento. Que aconteceria com aquelas vestes. Onde iriam parar?
De uma coisa estava certo: os legionários não ofereciam nem deixariam facilmente aquilo que, segundo o costume, lhes pertencia. Por outro lado, seguir a pista daquela roupa não seria tarefa fácil para os discípulos de Jesus. Na sua maioria, os legionários romanos em breve regressariam ao seu acampamento-base, na cidade de Cesaréia e, com o andar dos meses, muitos mudariam de destino ou seriam licenciados. Tudo isto me fez suspeitar que - contrariamente ao que aconteceria com o lençol que serviu para o Seu enterramento - Jesus de Nazaré não era muito partidário de que os seus discípulos guardassem aquelas relíquias, suscetíveis sempre de se converterem em motivos de adoração supersticiosa, com o conseqüente risco de esquecerem ou relegarem para segundo plano a sua verdadeira mensagem.
* o nome cósmico, de Jesus - sempre segundo o Esoterismo - como ainda, principalmente, quando esta seqüência numérica é traduzida, ou convertida em letras (as do alfabeto hebraico) os peritos em Cabala descobriram com assombro uma mensagem completa. Através deste sistema - conhecido na ciência cabalística como gueematria - estes números (pela mesma ordem que aparecem no texto) foram decifrados e interpretados, obtendo, como disse, uma mensagem múltipla. Prefiro que seja o leitor a trabalhar com este apaixonante enigma e descubra por si mesmo o segredo da referida numeração. Apenas acrescentarei o seguinte, no meu desejo de verificar e analisar quantos dados aparecem neste diário, submeti os lançamentos dos dados a um exame frio e rigoroso, por parte do
catedrático de Ciências Matemáticas e Estatísticas, J. A. Viedma, e de um grupo de especialistas em Informática, dirigidos pelo meu bom amigo José Mora, todos eles residentes em Palma de Majorca. Pois bem segundo estes peritos, o cálculo de probabilidade matemática para a saída dos referidos números, e por aquela ordem, é de 1/1.679.616 = 0,00000059537. Quer dizer, a probabilidade é baixíssima. (N. de J.J.B.)
Como bem sabem os crentes das igrejas - especialmente da Igreja Católica - o atual número de relíquias, supostamente relacionadas ou pertencentes à Paixão do Galileu, vai para além do milhar. Isto, de um ponto de vista objetivo, arqueológico e científico, é tão absurdo quanto impossível. Na Basílica de Saint-Denis, em Argenteuil, ao norte de Paris, conserva-se, por exemplo, uma suposta túnica sagrada, E o mesmo acontece na catedral de Tréveris. Com o devido respeito pelos que acreditam em ambas as túnicas, nenhuma delas pode ser a que o Mestre da Galiléia vestiu. Na primeira, ainda que as dimensões sejam próximas das reais (1,45 m de comprimento por 1,15 m de largura), carecendo até de costuras, o tecido, em contrapartida, é um entrançado de fios de estopa de cânhamo, que nada tem a ver com a natureza das roupas usadas habitualmente pelos Hebreus naquela época, algodão , lã e linho. (Por uma túnica confeccionada com um pano tão ralo como tosco, os legionários não teriam perdido tempo a jogá-la aos dados.) Quanto à segunda, ainda se torna mais difícil identificar. Trata-se de uma série de fragmentos de um tecido muito fino e pardacento, envoltos e protegidos contra a traça entre dois panos. Um deles é de seda adamascada, fabricada possivelmente no Oriente entre os séculos VI e IX.
Com os cravos e a cruz de Cristo acontece algo de semelhante. Segundo a tradição, a piedosa imperatriz Santa Helena desenterrou-os no século IV. (Para começar, duvido que as forças romanas perdessem tempo e dinheiro sepultando as estipes e patibulum, bem como os cravos, depois de cada execução, como pretendem alguns comentaristas, em defesa da tradição da mãe do imperador Constantino.)
Segundo as lendas, com um dos cravos, Santa Helena mandou fazer um freio para o cavalo de seu filho (conserva-se hoje em Carpentras). Com outro formou um círculo para o capacete de Constantino e diz-se que esse círculo faz agora parte da coroa de ferro dos reis lombardos, conservada em Monza. O terceiro cravo conta-se que serviu para serenar uma tempestade no Adriático...
A verdade é que, em várias igrejas da Europa veneram cravos da Paixão, num total de dez! Dois em Roma, um em Santa Cruz de Jerusalém, em Santa Maria do Capitólio, em Veneza, em Tréveris, em Florença, em Sena, em Paris e em Arras.
No que diz respeito aos madeiros da cruz de Jesus, o assunto complica-se muito. O mundo dos cristãos está materialmente semeado com pedaços de todos os tamanhos, todos eles supostamente retirados da verdadeira Cruz.
Como diziam Breckhenridge e Salmásio, entre outros, se juntassem estas relíquias poderíamos plantar um bosque...
Talvez o troço mais volumoso seja aquele que se venera em Espanha, em Santo Toribio de Liébana, na província nortenha de Santander. A tradição assegura que este lignum crucis foi trazido de Jerusalém por S. Tonôio, bispo de Astorga, em Espanha, e contemporâneo de S. LeÃo I, o Grande.
Um dos dados a favor deste suposto resto da cruz em que foi crucificado o Mestre é o tipo de madeira, pinho. Mas, de um ponto de vista científico, as dúvidas continuam a envolver a sua origem. (N. do M.)
Concluída a distribuição das roupas, Longino pediu ao seu lugar-tenente que examinasse também o encravamento dos condenados. O optio aproximou-se primeiro da cruz da direita e tocou na cabeça do cravo do pé esquerdo do guerrilheiro.
Parecia solidamente pregado. O zelota, com o corpo descaído e violentamente curvado para a frente, nem por um momento tinha parado de gritar e de se torcer, tentando sobreviver! Mas a cada vez maior dificuldade em respirar, só lhe tinha acrescentado novas dores e maiores hemorragias.
Ao ver Arsenius ao pé da cruz, Gistas fez um supremo esforço e retesando os músculos dos ombros conseguiu elevar os braços. Inspirou e, logo, enquanto expulsava o pouco ar conseguido, atirou uma cuspidela misturada com sangue contra o suboficial.
Indignado, o ajudante do centurião agarrou uma lança, batendo com o fuste de madeira em cheio na boca do estômago do zelota. O diafragma ainda mais se ressentiu, mergulhando o condenado num processo mais acelerado de asfixia. Sem deixar de olhar para cima, desconfiado, o optio repetiu a verificação nos pés de Jesus e, finalmente, com os cravos do terceiro crucificado.
Este fora recuperando os sentidos, ainda que o seu olhar - possivelmente conseqüência da aguardente - se tivesse tornado opaco e desfocado. A dor tinha-o arrancado da sua inconsciência e os gemidos Já não cessariam. De repente, entre um berro e outro berro, Gistas, com o rosto banhado em suor frio, virou a cabeça para a esquerda, gritando ao Mestre:
- Se és filho de Deus... porque não garantes a Tua salvação e a nossa?
Mas logo, sufocado pelo esforço, caiu sobre os pontos de apoio inferiores, ofegante e empenhado em novas e rapidíssimas inspirações. Mas o Mestre não respondeu. Fê-lo, em contrapartida, o outro guerrilheiro. Apoiado como estava com a ponta do pé esquerdo em metade do sedile a sua respiração não era tão fatigante como a dos seus companheiros de cruz, e com voz balbuciante censurou o amigo.
- Nem sequer temes a Deus?... Não vês que os nossos sofrimentos... são pelos nossos atos?
Dimas fez uma pausa, lutando para respirar de novo e, por fim, continuou: .. - Mas... Este homem sofre injustamente... Não seria preferível que procurássemos o perdão dos nossos pecados... e a salvação... das nossas... almas?
Os músculos dos braços relaxaram e o ventre voltou a inchar como um globo.
Jesus de Nazaré, que escutara as palavras dos dois zelotas, entreabriu os lábios, com desejo evidente de responder. Mas o corpo, solto da estipe e muito descaído para as extremidades inferiores, não Lhe obedeceu. No entanto, o Gigante não se rendeu. Acelerou o número de inspirações orais - cheguei a contar quarenta por minuto, quando o ritmo normal e inconsciente de respirações de um ser humano é de dezesseis - e tentou contrair os poderosos músculos das coxas, no esforço para se elevar uns centímetros e deixar entrar ar nos pulmões.
No entanto, aqueles cinco ou dez primeiros minutos na cruz foram queimando o escasso potencial de todos os feixes musculares das coxas e das pernas - utilizados pelo Rabi no apoio sobre os cravos dos pés para aspirar oxigênio - e os tricípites, costureiros, retos internos, vastos e gêmeos negaram-se a funcionar. A rigidez de todas estas fibras musculares levou-me a concluir que a temida tetanização se iniciara antes do previsto. (Este doloroso quadro – a tetanização - registra-se sempre que os músculos entram num processo anaeróbico ou de falta de oxigênio. Nestas condições, o ácido lático existente nas fibras musculares não pode metabolizar-se, cristalizando. O organismo vê-se então submetido a uma dor dilacerante, bem conhecida pelos atletas.)
O Mestre, ao compreender que as pernas tinham começado a falhar - apanhadas pelas primeiras convulsões e espasmos musculares, próprios da inicial mas irreversível tetanização -, forçou as articulações dos cotovelos, ao mesmo tempo que, procurando apoio nos cravos dos pulsos pedia aos músculos dos antebraços que lhe servissem de ponte, para elevar os ombros.
Entre ofegos, inspirações e lamentos entrecortados - provocados pelo roçar ou esmagamento dos nervos médios dos pulsos no metal que lhe atravessava os carpos -, aquele Homem venceu por fim a força da gravidade, elevando-se sobre si mesmo, relaxando o diafragma. Os deltóides, duros como pedras, transformaram os ombros em mãos e a boca do Nazareno, abriu-se, trêmula, ganhando meia batalha pela inspiração do ar poeirento que nos fustigava.
Ao observar o esforço titânico de Jesus, o zelota que O tinha defendido voltou a falar-Lhe:
- Senhor - disse-Ihe, em voz suplicante. - Lembra-te de mim... quando entrares no Teu reino!
Ao mesmo tempo que expulsava parcialmente o pouco ar conseguido na última inspiração, e com as artérias do pescoço tensas como tábuas, o Galileu ainda foi capaz de responder:
- Em verdade... te digo hoje... que um dia estarás junto de Mim... no Paraíso...
Os músculos dos ombros, braços e antebraços foram-se abaixo e, com eles, toda a massa corporal do Nazareno, que ficou novamente vergada em serra e sem esperanças imediatas de repetir semelhante trabalho. Devido à degradação acelerada do organismo do Gigante, preparei-me para colocar nos olhos os crótalos e iniciar uma das mais delicadas e importantes operações de exame médico daquela missão.
Mas dois fatos - um deles absolutamente imprevisto e desconcertante - atrasariam uma nova observação do corpo do Galileu...
Os homens de Cavalo de Tróia, numa informação posterior a esta primeira grande viagem e baseados no peso de Jesus, no comprimento dos seus braços, as distâncias ombro-cravo e o ângulo de trinta graus que os membros superiores formavam com a horizontal, expuseram, entre outras, as seguintes considerações teóricas, a distância entre os cravos dos pulsos e uma linha horizontal (imaginária) que passasse pelo centro de ambas as articulações dos ombros era de 26,5 centímetros, aproximadamente. Esta era, em suma, a arrepiante altura a que tinha de se elevar o Mestre sempre que fazia uma destas inspirações um pouco mais fundas. Pensando que o músculo deltóide (que se estende da clavícula e da omoplata ao úmero) está concebido para elevar o membro superior cujo peso é de
pouco mais de um quilo, o esforço a que se viu submetido, no caso do Galileu, é simplesmente excepcional. Se fizermos atuar o deltóide em sentido inverso - tornando fixas as suas inserções no úmero, puxando para cima os ombros para elevar o peso do corpo - verificaremos que as enormes dificuldades que isso pressupõe, perfeitamente evidentes nesse exercício de ginástica, único, que é levado a cabo com as argolas e que, popularmente é conhecido como fazer o Cristo. Não podendo contar com a ajuda dos músculos das extremidades inferiores, a musculatura do homem tinha de elevar o peso correspondente à cabeça, tronco e ventre, até à raiz dos membros inferiores. Ou seja, calculando que a massa total de Cristo fosse de uns oitenta e dois quilos, esses músculos teriam de arcar com a elevação de dois terços do peso do corpo. Por outras palavras, à volta de 54,6 quilos. De acordo com a fórmula peso = massa x gravidade, obteve-se: 54,6x9,8=535,73 joules. Ao cronometrar essa elevação de 26,5 centímetros (0,265 metros), nuns 1,5 segundos, Cavalo de Tróia deduziu que a aceleração sofrida por Jesus de Nazaré foi, aproximadamente, 0,2355 metros por segundo, em cada segundo. (Foram considerados, obviamente, os seguintes parâmetros: e = espaço ou distância percorrida; Vo, = velocidade inicial, neste caso zero: a = aceleração e t = tempo gasto. Ou o que é o mesmo: e=Voñ1/2.a.tZ. Isto significava o seguinte: 0,265=1/2 a.l,5z.)
Também foi calculada a força que o Mestre teve de fazer em cada uma destas violentas elevações em vertical: peso – força = massa x aceleração. Quer dizer, 535 73-F=54,6x0,2355. O resultado foi: F=522,87 joules.
Quanto ao trabalho desenvolvido, eis o aterrorizante número: trabalho = força x distância (T=522,87x0,265=138,56 newtons). Isto equivale a uma potência de 92 37 watts (potência = trabalho/tempo ou 138,56/1,5.)
Se compararmos estes 92,37 watts com os 2,5 que normalmente a mesma musculatura realiza para elevar simplesmente o braço, começaremos a ter idéia do gigantesco e extremamente doloroso esforço que, como disse, Jesus de Nazaré fez na Cruz. (N. do M)
Pelas treze horas e quarenta minutos a voz de Eliseu fez-se ouvir cinco por cinco no meu ouvido. Com uma certa excitação, deu-me a conhecer antecipadamente qualquer coisa que, tanto os hebreus como o pelotão de vigilância no Gólgota e eu próprio tínhamos à vista e que não tardaria em converter a Cidade Santa e aquele lugar num inferno. A primeira frente do haboob acabava de cair como uma neblina tenebrosa e negra sobre a encosta oriental do monte das Oliveiras. Como medida de precaução, o berço ativara o seu cinturão de defesa. As rajadas de vento, à passagem pelo módulo, alcançavam os trinta e cinco nós.
Ao avistar as nuvens pardacentas da tempestade, avançando de oriente como uma onda gigantesca, a multidão começou a agitar-se, fugindo precipitadamente para a muralha. Muitos meteram-se pela Porta de Efraim e outros bons conhecedores daquela espécie de siroco, procuraram refúgio ao pé do alto muro que rodeava Jerusalém naquele ponto. O Sol continuava a brilhar no alto, na metade de um céu azul e transparente.
Creio que este registro é extremamente interessante, contrariamente ao que dizem os evangelistas, a multidão não se retirou das proximidades do Calvário em conseqüência das trevas que ainda não tinham feito a sua entrada em cena.
Não notei que naquele momento sentissem medo. O fenômeno – não me cansarei de insistir nisto - era mau, mesmo perigoso, mas freqüente por aquelas latitudes. Portanto, os Judeus estavam acostumados às tempestades de pó e de areia. Em princípio, não era lógico que lhes causasse pânico. No entanto, o terror de que Mateus, Marcos e Lucas falam foi real. Mas, tal como narrarei em seguida, a origem desse medo não esteve no siroco...
Poucos minutos depois, daquelas centenas de pessoas que estavam vendo os crucificados só ficou um pequeno grupo de sacerdotes e curiosos. Talvez meia centena. A maioria, como se se tratasse de uma medida de proteção habitual, começou a sentar-se no terreno, cobrindo as cabeças com os mantos pesados e coloridos. O pequeno grupo era mais uma prova do que afirmo. Sabiam que estava chegando uma tempestade seca e, no entanto, encaravam a questão com filosofia. Como era natural, optaram e preferiram o espetáculo macabro dos condenados, debatendo-se entre a vida e a morte. Estive tentado a aproveitar aqueles momentos para me servir das lentes de contato e examinar o corpo do Mestre. Mas a chegada iminente do escuro e denso turbilhão me fez desistir. A tal velocidade - uns setenta quilômetros por hora - as partículas de terra e os grãos de areia teriam danificado a delicada superfície dos crótalos, impossibilitando aquela fase da missão, pondo até em risco a integridade física dos meus olhos. Assim, optei por adiar o registro ultra-sônico e teletermográfico. Segundo Eliseu, o focinho do haboob e os dois ou três turbilhões que vinham atrás não eram muito fundos, calculando-se que durassem entre quinze e vinte minutos.
Não foi necessário que o centurião desse muitas indicações. Cada homem sabia como se comportar naquela contingência.
Ao verificar a retirada em massa dos judeus, Longino permitiu às sentinelas que se agrupassem no extremo sudeste do cume do Gólgota, de frente para a tempestade.
Juntaram os quatro escudos, formando um parapeito, e assentaram os joelhos na rocha, mantendo aquela defesa improvisada com as braçadeiras na parte interior de cada escudo.
Os outros elementos da patrulha levantaram a fileira de escudos que tinham sido dispostos sobre a superfície do patíbulo, formando um segundo muro, defensivo.
A totalidade do pelotão - incluindo o oficial e Arsenius - agachou-se, voltado para o sempre mais próximo temporal. Ao ver-me de pé e indeciso, Longino fez-me um sinal com a mão para que me refugiasse junto do grupo formado pelos seus homens. Assim fiz, sem perda de tempo. Mas, em vez de me acocorar como os legionários na direção do siroco sentei-me de costas para a patrulha, sem perder de vista os crucificados.
O vento rapidamente, tornou-se mais quente e sibilante. O primeiro turbilhão do haboob precipitou-se sobre Jerusalém, e sobre o penhasco onde nos encontrávamos, com violência considerável. Em questão de segundos, uma massa esbranquiçada, de toneladas de areia e pó em suspensão, arrasou o lugar, ouvindo-se a areia a bater contra os escudos. Apesar do manto que me cobria a cabeça, uma miríade de grãos de areia fina começou a acossar-me, penetrando por todas as aberturas da roupa e ferindo-me a pele - especialmente nas pernas – como alfinetes. O bramido do tornado foi aumentando com a velocidade. Dali a pouco, tanto os soldados como eu nos vimos obrigados, quase com desespero, a fechar os olhos e proteger a boca, ouvidos e fossas nasais daquela poeirada angustiante. À medida que o siroco ia aumentando, os gritos dos zelotas - de cara para o vento e quase nus - tornaram-se cada vez mais fortes. As rajadas tinham começado a fustigar-lhes os corpos indefesos, massacrando-os com milhões de partículas de terra, acrescentando assim um novo e insuportável suplício. Como pude levantei a cabeça e, por entre as colunas de pó, ouvi, mais do que vi, um dos guerrilheiros, pedindo entre gritos que acabassem com ele. Quanto a Jesus quase não pude distinguir-Lhe a figura, mas imaginei o tormento sufocante que estava suportando. Duvido muito que alguém no Gólgota ou nas suas imediações, ou mesmo na cidade, pudesse levantar os olhos durante aquele pesadelo. As sucessivas frentes do haboob, cujo teto era quase impossível fixar em semelhantes condições, elevavam-se - isso sim - a uma altitude suficiente para ocultar o disco solar, pelo menos para qualquer observador que se encontrasse imerso no tornado.
Contudo, não observei enfraquecimento da luz diurna a que fosse lícito chamar trevas. Houve, naturalmente, uma quebra na visibilidade, como conseqüência do arrastamento de areia e do pó, mas não aquela escuridão cerrada que parece depreender-se dos textos evangélicos. Quem quer que tenha vivido uma destas experiências sabe que, por muito espesso que seja o fenômeno meteorológico em questão, dificilmente chega às trevas. Uma vez afastados os três ou quatro turbilhões de cabeça, Eliseu estabeleceu novamente a ligação auditiva, anunciando-me que a cauda do siroco, muito enfraquecida, precisaria de mais cinco ou dez minutos para atravessar a região. As massas de terra em suspensão eram menos consistentes, embora os ventos à superfície mantivessem velocidades não inferiores aos vinte ou vinte e cinco nós.
O centurião, ao perceber que o turbilhão principal parecia diminuir, levantou-se parcialmente, inspecionando os quatro soldados que se resguardavam a escassos metros da nossa paliçada. Não devia ter observado muitas anomalias porque voltou a acocorar-se imediatamente, à espera das últimas rajadas do haboob. Eliseu não estava enganado. Por volta das catorze horas, a força do tornado diminuiu tal como a poeira. Felizmente, o corpo principal do siroco fora-se fragmentando desde o seu nascimento nos desertos arábicos, alcançando as terras da Palestina com uma cabeça cujo comprimento foi calculado pelos instrumentos do módulo em cerca de vinte quilômetros e cuja frente tinha quase cento e vinte cinco. No entanto, as rajadas, só parariam bastante mais tarde.
Quando a tempestade acabou, o espetáculo que se ofereceu à minha volta era simplesmente dantesco. Naturalmente, eu e todos os legionários estávamos cobertos de areia. O pó embranquecera as sobrancelhas, cabelo e roupas dos soldados, bem como os mantos dos escassos cinqüenta judeus que tinham preferido agüentar o açoite do vento junto ao Gólgota. Quanto aos crucificados, ao vê-los mudos e com as cabeças imóveis descaídas para o peito, o que logo pensei é que tinham morrido por asfixia. Longino deve ter pensado o mesmo porque se precipitou para as cruzes, dando palmadas na roupa e sacudindo a terra acumulada. Contudo, ao pararmos junto dos condenados, verificamos - eu, pelo menos, com alívio – que continuavam vivos. As costelas flutuantes de Jesus registravam oscilações esporádicas, sinal de débil ventilação pulmonar.
As feridas e fios de sangue tinham absorvido uma infinidade de partículas de terra e areia chegando a formar tampão nos fundos golpes das ilhargas e no dilacerado da rótula. Os cabelos, os pêlos das axilas e púbis, bem como do peito, estavam irreconhecíveis. Tinham-se convertido em massas encanecidas. A cabeleira, principalmente, encharcada pelas hemorragias, era agora, com o pó, um viscoso e cinzento penduricalho. Fiquei aturdido ao ver-lhe a barba e o bigode carregados de pó e os lábios, com uma crosta terrosa que escondia as mucosas e, até, as feridas mais profundas.
As chagas dos cravos, tanto no Mestre como nos zelotas, quase tinham sido tapadas pelo haboob. Aquele vento infernal que acabava de atentar contra o fio de vida que ainda flutuava no alto daquelas árvores, tinha conseguido o que parecia ser um milagre, deter a perda de sangue do Nazareno (ainda que, sinceramente, por aquela altura da crucifixão já não saiba o que teria sido melhor). De qualquer modo, o destino é muito estranho...
Os guerrilheiros e Jesus de Nazaré estavam desmaiados. No fundo, era o melhor que lhes podia ter acontecido.
Foi então que aconteceu. Pelas catorze horas e cinco minutos, o meu companheiro no módulo - com uma excitação semelhante à que tivera durante a minha permanência na herdade de Getsémani - estabeleceu bruscamente ligação, anunciando-me alguma coisa que pôs a oscilar os meus esquemas mentais.
- Aí está ele outra vez!... Jasão, tenho-o na tela!... O radar registra um eco... Direção ?... Afirmativo, vem de oriente. Isto é uma loucura!
Voltei-me para o local, mas, mais uma vez, nada observei de anormal. Era natural. Embora a vaga de pó se tivesse desfeito aquele objeto encontrava-se ainda, segundo o radar de bordo, a cento e trinta e cinco milhas do ponto de contato onde estava pousado o berço.
- Não vem muito depressa - prosseguiu Eliseu, que devia estar com o nariz encostado ao visor do radar. - Calculo que a uns quatrocentos nós... Oh...
A voz do meu irmão interrompeu-se. Cercado como estava pelos doze legionários e pelos chefes não pude restabelecer a ligação e dirigir-me a ele. Que diabo estava se passando no módulo?
- Jasão, nunca acreditarão em nós!... O eco acaba de fazer uma ruptura de quase noventa graus... Tenho-o em rumo cento e noventa... Se continuar assim passará quase na tua vertical... Mas, como conseguiu?... Que tipo de coisa pode dar uma volta assim? Jasão, percebo que não podes informar-me. Continuarei a informar... Reduz, afirmativo, reduz a velocidade! E também o nível... Deixe ver... com efeito... Roger! Passa de quatrocentos nós para duzentos e setenta e cinco... Nível?...Trezentos e continua descendo... Dou-te pegeons 1 no módulo: noventa milhas e mantendo-se em cento e noventa... Um instante!... Acelera!... Afirmativo, está acelerando: quatrocentos... setecentos... novecentos nós!... não é possível... Estabilizou-se ao nível de cento e vinte (quatro mil metros)... Vai vê-lo se mantiver esta velocidade... Penso que às duas da tua posição...
Efetivamente, cinco minutos e seis segundos depois, a voz de Eliseu entrou-me novamente no ouvido. Mas, desta vez, sim, tinha-o à vista, de começo como um ponto brilhante. Depois, à medida que ia se aproximando perdeu luminosidade, convertendo-se numa espécie de lua cheia, de tom mate.
Os soldados não tardaram muito a ver. E o centurião, erguendo o olhar, ficou tão perplexo como eu.
- Jasão!... Consegue vê-lo? Eu vejo-o nos meus doze e alto...Continua a doze mil pés! Parou!... Afirmativo! Está estacionado!...
As últimas palavras do módulo, carregadas de emoção, acabaram por me contagiar. Esfreguei os olhos, convencido de que estava tendo alucinações... Mas logo compreendi que essa explicação era ridícula: Longino, os legionários e eu podíamos sofrer qualquer tipo de transtorno mas não o radar.
Aquela coisa segundo Eliseu estabilizara-se a cerca de quatro mil metros na vertical de Jerusalém. E assim permaneceu durante dois ou três minutos. A julgar pela altura a que se encontrava e pelo seu tamanho aparente - superior ao de dez luas - as dimensões eram enormes. Enquanto observava boquiaberto aquele fenômeno passaram-me pela mente uma infinidade de explicações possíveis que, naturalmente, não me satisfizeram. Era o segundo objeto voador que via nas últimas catorze horas. Como podia aquilo acontecer? Que significava?
E, mais importante, que ser ou que seres o tripulavam? Mas as minhas alucinações viram-se definitivamente pulverizadas quando meu irmão, depois de verificar três vezes o diâmetro do objeto voador me anunciou as suas dimensões : 1757,9096 metros! Quase um quilômetro e oitocentos metros! Ou seja, uma superfície ligeiramente superior a toda a Cidade Santa...
* Pegeons: entre pilotos e astronautas, proporcionar distâncias e rumo. (N. do M.)
A presença do monstruoso disco, totalmente silencioso, flutuando no céu como uma frágil pena, fez passar a escolta e os hebreus da estupefação ao medo. Num movimento reflexo, o centurião e alguns dos seus homens desembainharam as espadas, recuando para a base das cruzes. Mas nenhum conseguiu falar. Um pânico irracional tomara conta dos seus corações e o mesmo acontecia com a meia centena de curiosos que permanecia junto ao Gólgota. Os olhares de todos estavam fitos naquela lua misteriosa.
Pelas catorze horas e oito minutos, de acordo com os cronômetros do módulo, o objeto oscilou ligeiramente – como se tremesse - e lentamente, numa ascensão que me atreveria a classificar como majestosa dirigiu-se para o Sol. Ao alcançar o nível cento e oitenta (dezoito mil pés) voltou a ficar estacionário.
Um grito coletivo soltou-se das gargantas dos judeus quando viram como o misterioso objeto começava a interpor-se entre o disco solar e a Terra. E fê-lo de Leste para Oeste (considerada sempre a observação do Calvário e suas imediações).
Em segundos, com uma precisão que me secou a garganta, o formidável objeto tapou o círculo ardente, dando lugar a um progressivo obscurecimento de Jerusalém num raio dilatado no qual, naturalmente, me encontrava. Aquela interposição ao Sol, milimétrica e magistralmente desenvolvida por aqueles que governavam o imenso aparelho, deu-se com certa lentidão , mas sem vacilações. Hoje, ao lembrá-lo, tenho a sensação de que os responsáveis pela operação quiseram que o eclipse pudesse ser observado passo a passo.
Em menos de cento e vinte segundos, o astro-rei desapareceu e, com ele, a claridade. Ou melhor, cerca de oitenta por cento da fonte luminosa. Obviamente, ainda que a grande massa metálica - confirmada pelo radar - projetasse imediatamente um grande cone de sombra sobre a Cidade Santa e arredores, as radiações solares continuaram presentes, formando uma coroa ou aura luminosa que abarcava toda a curvatura do enigmático objeto. As trevas, efetivamente caíram sobre Jerusalém, mas não com o caráter absoluto de uma noite cerrada, por exemplo. A claridade existente em volta do disco era suficiente para que pudéssemos distinguir à nossa volta com um índice de luminosidade muito semelhante ao que costuma seguir-se ao pôr do Sol. E assim se manteve até chegar o momento fatídico... (Não julgo necessário alongar-me em profundidade sobre esta ilógica explicação científica, que procura resolver o fenômeno das trevas com o auxílio de um eclipse total do Sol. Basta lembrar que por aquela data se registrava precisamente a lua cheia e, conseqüentemente tal eclipse do Sol era impossível. A Lua, pelas catorze horas de 7 de Abril de 30, ainda se encontrava oculta abaixo do horizonte oriental. Os astrônomos sabem, também, que um eclipse desta natureza sempre se inicia pelo lado ocidental do disco solar.
Aqui acontecia o contrário. O obscurecimento do Sol começou por oriente.
Uma vez consumado o ocultamento solar, Eliseu verificou os parâmetros a bordo, confirmando que aquela espécie de super fortaleza voadora tinha ficado ancorada a dezoito mil pés de altura, mantendo uma velocidade de deslocamento de 1431,055 km/hora. Nos quarenta e cinco minutos que o fenômeno das trevas durou, o objeto cobriu um total de 1073,2912 quilômetros, sempre a uma altitude de seis mil metros. (O diâmetro solar aparente correspondia a um arco cujo valor aproximado era de trinta e três minutos e dez segundos.) Ao consumar-se o eclipse que, insisto, só pôde ter uma projeção puramente local, muitos dos judeus - espantados - caíram com o rosto em terra, batendo no peito com ambas as mãos e dando gritos de terror. Os saduceus, desorientados, não sabiam como proceder. Por fim, a maioria dos hebreus fugiu para a Porta de Efraim, enquanto os seus dirigentes - não muito convencidos - tentavam retê-los, gritando-lhes que tudo aquilo só podia obedecer a algum encantamento do crucificado ou a um fenômeno celeste... Foi inútil. A perturbação dos incultos e supersticiosos inimigos de Jesus era tal que nem sequer escutaram as razões dos sacerdotes. E ali ficou o desamparado grupo de juízes, muito mais dependentes do que acontecia nos céus que no patíhuln. Suponho que, se continuaram no Gólgota não foi por Ihes sobrar valentia, mas sim em obediência a Caifás e ao Conselho.
O oficial romano teve de fazer um supremo esforço para serenar o seu nervosismo e o dos seus homens. Se os Hebreus tinham medo daquele tipo de fenômeno, os Romanos muito mais.
À força de rudes gritos, Longino conseguiu finalmente que os seus soldados ocupassem os postos de sentinela indicados pelo optio antes da tempestade de areia. A julgar pela gritaria que se levantava mais para além da muralha, a confusão e o medo entre os peregrinos e os habitantes de Jerusalém tinham de ser extremos.
Enquanto aquela área permaneceu em penumbra, muitos curiosos chegaram a se aproximar da Porta de Efraim, intrigados e, suponho, ansiosos por saber se tudo aquilo tinha alguma ligação com o prodigioso Mestre da Galiléia. Mas ninguém teve coragem para se aproximar.
Ou melhor, houve um grupo que o fez...
Poucos minutos depois de se iniciarem as trevas, pelo caminho que partia de Jerusalém destacaram-se umas vinte pessoas. Com passo rápido e decidido foram-se aproximando da grande rocha. Por causa das sombras só pude distinguir o jovem apóstolo João quando estava a poucos metros do ponto onde eu me encontrava. Acompanhava-o outro homem e dezoito mulheres, todas elas meio escondidas nas suas vestes. Mas não consegui reconhecer nenhum dos amigos de Zebedeu.
Era muito estranho. Na realidade, tudo era estranho desde a aproximação daquele objeto, que continuava fixo e imperturbável sobre as nossas cabeças. Precisamente desde o seu aparecimento no espaço - embora só tivesse consciência disso com a chegada de João e do seu grupo - o vento tinha parado. E, com ele, todos os sons próprios e naturais do campo. Pelo menos, os que habitualmente tinha ouvido. Até os trinos fugazes das andorinhas e outras aves, o zumbido dos insetos, o silvo das nuvens de moscas verdes e grandes como moedas, que, antes da passagem do haboob, tinham começado a pousar às dezenas no sangue dos crucificados.
* Não posso resistir à tentação de recordar ao leitor outro acontecimento que parece ter uma estreita relação com este: o Sol que dançou em Fátima em 1917. Quanto ao objeto que provocou as trevas, sobre Jerusalém e ao seu redor, o computador do módulo calculou que girava geo-sincronicamente sobre a Cidade Santa (paralelo calculado para Jerusalém: 5463 quilômetros). (N. do M.)
Quando me preparava para descer pela fenda, um súbito gemido do Galileu deteve-me. O Mestre parecia ter recobrado a consciência. O centurião e eu demos uns passos e, efetivamente, verificamos como o Crucificado se esforçava de novo por respirar com mais força A queda do diafragma inchara-lhe o ventre e o tórax estava rígido como o madeiro de onde pendia. Apesar do pó e da terra que o cobriam – quase como uma fatídica antecipação da sepultura - os sinais da cianose eram cada vez mais visíveis. As poucas unhas dos pés que não estavam banhadas por sangue tinham começado a ganhar uma característica coloração azulada. O mesmo acontecia com as pontas dos dedos. A tetanização dos membros inferiores era galopante. Os músculos das coxas e das pernas continuavam a sofrer espasmos embora cada vez mais longos.
Os dedos grandes de ambos os pés tinham entrado em aducção, desviando-se para o plano central do corpo do Nazareno. De repente, uma mão me pousou no ombro esquerdo. Era João. Com a sua coragem habitual tinha subido ao alto do Calvário.
Vinha só.
A verdade é que nem sequer se demorou olhando o Mestre. Os olhos estavam enterrados no rosto, marcados pelas muitas horas sem sono e pelo sofrimento. Parecia um velho...
Com voz trêmula dirigiu-se a Longino, suplicando-lhe que, ao menos por um instante, permitisse à mãe de Jesus de Nazaré aproximar-se da cruz e dar o último adeus a Seu filho.
João acompanhou o pedido, dirigindo o braço direito para o reduzido número de mulheres que esperava a pouca distância dos saduceus.
Apesar de quanto vivera e sofrera naquela missão, ao ouvir o Zebedeu, os meus joelhos tremeram. Maria estava ali!
Longino não teve coragem para negar, e autorizou o discípulo a que acompanhasse a mãe do Mestre até ao cimo do monte, com a condição de que as outras ficassem onde estavam e de que a permanência junto da cruz fosse o mais breve possível.
João agradeceu o gesto humanitário do centurião e apressou-se a voltar para junto do grupo. Trocou algumas palavras com as mulheres e, em seguida, uma das hebréias começou a subir por entre as rochas, ajudada por João e por outro homem. À medida que se aproximavam, o meu pulso acelerou. Poucos segundos depois tinha na minha frente a mãe terrena do Gigante...
Os legionários, um pouco mais tranqüilos, tinham descido pelo segundo penhasco em busca de lenha seca com que pudessem acender uma fogueira. Como era lógico, não podiam prever a duração da escuridão e Arsenius, prudentemente, ordenou aos soldados que fizessem uma boa provisão de combustível. Faltavam quatro horas para o anoitecer e a guarda dos condenados podia ser longa.
No instante em que Maria chegava junto da cruz central, dois dos soldados pousaram na rocha feixes e ramadas da giesta chamada de escovas, muito leve e de excelente qualidade para os seus objetivos.
Apoiando-se nos antebraços de João e do segundo homem (que se chamava Jude ou Judas e que, segundo consegui apurar no dia seguinte, era irmão carnal de Jesus), a hebréia de rosto extremamente pálido, parou a um metro do madeiro em que se encontrava pregado o filho. Não era muito alta. A cabeça, levantada para o Mestre, tinha ficado, mais ou menos, à altura dos joelhos do Nazareno. Possivelmente, teria entre 1,60 e 1,65 metros. Contava à volta de cinqüenta anos, embora a sua figura frágil, um pouco curvada, e as rugas que nasciam nos belos olhos amendoados a tornassem mais venerável.
Apesar do escuro chamou-me a atenção a testa alta e ampla, rematando um rosto ovalado em que despontava um nariz pequeno e direito. Tinha na cabeça um manto castanho-claro que não me permitiu ver-lhe o cabelo. No entanto, a julgar pela cor das sobrancelhas - finas e ligeiramente arqueadas - deviam ser de um negro de azeviche. A túnica, de um tom semelhante ao do manto, embora um pouco mais apagado, quase roçava pelo chão do Gólgota.
Ninguém disse nada. João começou a chorar, agarrando-se ao braço da senhora. Longino, comovido, retirou-se. No entanto para minha surpresa, Maria não derramou uma lágrima.
Só o tremor das mãos compridas e calejadas, sob cuja pele serpenteava uma rede de veias azuis e pronunciadas, refletia a sua aflição. Os meus problemas viram-se aliviados quando o oficial, noutro gesto que muito dizia em seu favor, voltou até junto de nós, trazendo uma tocha que acabava de acender. Quando Longino aproximou o improvisado archote do corpo do Mestre com o fim de que a sua mãe O pudesse ver melhor, o Galileu, acordado talvez pelo resplendor avermelhado do fogo, descolou o queixo do peito, vendo a Sua família. A respiração voltou a agitar-se e o olho direito abriu-se ao máximo. A mulher, tal como João e o irmão de Jesus, não tiravam os olhos do rosto do crucificado.
A boca do Gigante abriu-se ligeiramente, tentando falar.
Porém, os pulmões - diminuídos na sua capacidade vital pelas múltiplas lesões dos músculos respiratórios e pelas angustiantes faltas de apoio - encontravam-se perante uma gravíssima insuficiência ventilatória restritiva. (Poucos minutos mais tarde, quando ajustei os ultra-sons ao tórax de Jesus, Cavalo de Tróia receberia informação sobre aquela delicada situação, comprovando as minhas suspeitas; a capacidade vital de Jesus encontrava-se muito abaixo dos oitenta por cento do valor teórico normal, avaliado - como se sabe - em 5,50 litros.)
Apesar disso, o Nazareno, num esforço titânico contraiu os músculos abdominais e, quase em uníssono, a esgotada musculatura dos antebraços e dos ombros começou a palpitar, procurando a energia necessária para elevar a parte superior do corpo naqueles quilométricos 26,5 centímetros. Porém, as reservas do Cristo estavam quase esgotadas e a Sua vontade não foi suficiente. Naqueles momentos dramáticos aconteceu uma coisa insignificante, pouco menos que imperceptível para os que se encontravam junto da cruz, mas que, para mim, como um médico, me gelou o coração.
Jesus arqueou o diafragma pela segunda vez e distendeu de novo os músculos flexores e extensores, fazendo-os vibrar. Ao mesmo tempo, o seu pulso esquerdo girou um centímetro no eixo do antebraço. Aquele movimento do carpo no cravo colaborou decisivamente na elevação dos ombros. A cabeça do Rabi cravou-se no patibulum e a barba voltou-se para o céu, enquanto a violenta dor provocada pelo mínimo movimento do pulso esquerdo fazia pulsar com precipitação as paredes da veia jugular externa, marcando as fossas supraclaviculares e os músculos do pescoço como nunca vi em ser humano.
Logo, da ferida meio fechada do pulso esquerdo surgiram dois fios de sangue, finíssimos e divergentes, que correram até ao cotovelo.
O Mestre - a que preço! - conseguira o Seu propósito. Ao elevar-se, a boca abriu-se ao máximo e um hausto de ar fresco penetrou-lhe os pulmões, ao mesmo tempo que o afundamento do ventre deixava a descoberto a crista ilíaca do quadril
direito. O corpo do crucificado voltou a cair e Jesus, baixando o rosto, esboçou um sorriso estranho. Aquele rito alarmou-me, não se tratava na realidade de um sorriso, mas sim de outro sintoma da tetanização que o acossava e que em medicina é conhecido por sorriso sardônico, lábios apertados, com as comissuras para fora e para cima.
Ao contemplar o esforço desesperado do Filho, Maria baixou o rosto e as pernas fraquejaram-lhe. Mas João Marcos e Judas ampararam-na. Os lábios do Mestre, apenas sombreados pela luz do archote, começaram a tremer e as profundas olheiras que acentuavam os pômulos altos e afilados confundiram-se com a amargura escura e insondável de uns olhos que, apesar de tudo, conservavam singular beleza.
- Mulher!
A voz arrastada do Mestre fez que Maria e todos os outros levantassem o rosto. E o semblante da hebréia iluminou-se.
- Mulher - repetiu Jesus -, aqui tens o teu filho!
João enxugava as lágrimas com a palma da mão direita, olhando o Mestre sem conseguir compreender.
Depois, desviando o rosto para o apóstolo exclamou, quase sem forças:
- Meu filho... aqui tens tua mãe!
A pequena inspiração do Crucificado estava quase esgotada. A Sua respiração entrou em queda e gastando as últimas forças, ordenou entre ofegos:
- Desejo... que abandoneis... este... lugar.
O abdômen voltou a deformar-se e a cabeça, tal como os músculos dos braços e ombros, descaíram.
Os homens manifestaram a intenção de darem meia volta e retirarem-se mas Maria, sempre em silêncio, deu um passo para o Crucificado. Inclinou-se muito lentamente e beijou o joelho direito de Jesus. Depois, escondendo o rosto nas mãos, abandonou o penhasco, amparada por seu filho e por João.
Creio que tanto o centurião como eu ficamos impressionados pela força daquela mulher. Uma hebréia que teria oportunidade de voltar a ver e da qual colheria uma revelação preciosa e inestimável.
A pequena, quase insignificante, sombra de Maria, mãe do Mestre, não tardou em se desvanecer na penumbra. João e Judas acompanharam-na no seu caminho, de regresso a Jerusalém. Mas as outras mulheres continuaram a curta distância, suspensas do Crucificado agonizante. Estavam ali, entre outras adeptas e crentes, Ruth, também irmã carnal do Nazareno; Salomé, a mãe de João; Miriam, esposa de Cleopas e irmã da mãe de Jesus; Rebeca e Maria, a de Magdala, mais conhecida hoje por Madalena.
Pelas catorze horas e vinte e cinco minutos, o optio autorizou ao que fazia as vezes de rancheiro que distribuísse a comida entre os homens da patrulha, porco salgado, queijo, pão e uma ração de água com vinagre, conhecida com o nome de posca. Todos os soldados, com exceção dos que estavam de sentinela se reuniram em volta da fogueira, dando boa conta da comida.
Durante aqueles breves momentos de tranqüilidade perguntei ao oficial por que razão os legionários tinham empilhado tantos montes de rama na base de cada uma das cruzes.
Convidando-me a saborear o vinho fermentado, Longino explicou-me que era uma simples medida de graça. Caso fosse necessário, se assim se ordenava ou se a agonia dos condenados se prolongava demasiado, deveriam deitar fogo à lenha. O fumo acabava com os crucificados, asfixiando-os em questão de minutos. Alguns dos soldados, procurando apaziguar o medo que, sem dúvida, ainda os atormentava, começaram a gracejar à custa dos prisioneiros. Um deles, mais ousado que os outros, voltou-se para Jesus, brindando com o seu púcaro de latão:
- Saúde e sorte ao rei dos Judeus!
Aquilo contagiou os outros, que também levantaram a sua caneca para a cruz do Galileu.
Interrompendo a respiração ofegante, Jesus exclamou:
- Tenho sede!
O optio consultou o centurião e este autorizou-o a que aproximasse do Galileu a tampa do cântaro que continha a água envinagrada. Arsenius agarrou na tampa e depois de a espetar na ponta de uma das lanças da escolta aproximou-se do madeiro, levantando o pilum de modo a que a rolha previamente impregnada de posca, tocasse nos lábios poeirentos do Mestre.
Naturalmente, não desperdicei a oportunidade. Jesus abriu a boca, mordendo ansiosamente a cortiça. O líquido limpou a terra mas, ao penetrar nas feridas, o ácido feriu novamente a carne do Nazareno, que logo afastou a cabeça. Arsenius baixou a lança e, ao observar que o prisioneiro não tinha intenções de repetir o umedecimento da boca, afastou-se.
Os lábios do Rabi acusavam com os seus tremores uma intensificação da crise febril. Peguei então num archote e, ao aproximá-lo do rosto de Jesus, descobri como a tetanização começara a reduzir o brilho do esmalte dentário e aumentara a opacidade do cristalino. O olho esquerdo continuava fechado pelos hematomas. (A insuficiência paratiroidéia, provocada pela tetanização, devia ser alarmante, com uma acentuada baixa da concentração de cálcio no sangue.) Não havia tempo a perder. Afastei-me uns passos, até chegar ao extremo do promontório e, de costas para os legionários, coloquei os crótalos nos olhos. Segundos antes, quando tirava as lentes de contato da bolsa, vi como João e o seu companheiro regressavam da cidade, unindo-se às mulheres.
Avisei Eliseu do exame iminente, anunciando-lhe que, se não me enganava, Jesus de Nazaré tinha entrado em pleno no processo pré-agônico e que, a fim de sincronizar a exploração médica com o tempo real, ajustasse os cronômetros do módulo com a ativação do circuito ultra-sônico, recordando-me a hora de cinco em cinco minutos. Recuei de novo, postando-me a três metros da cruz central, e ativei as ondas ultra-sônicas.
Eram catorze horas e trinta minutos...
A minha primeira preocupação foi conhecer a perda geral de sangue. As hemorragias constantes - em especial depois do encravamento - fizeram-me suspeitar de uma grave baixa da volemia. As ondas de 3,5 MHz procuraram as principais artérias e o efeito Doppler nas cavas e na aorta confirmaram os meus temores, naquele momento, o volume total de sangue foi calculado em quarenta e sete por cento. Portanto, pelas catorze horas e trinta minutos Jesus tivera uma perda de 2,82 litros. (Estes dados e outros mais complexos que preferi poupar no meu diário, foram obtidos, como anotei na devida altura, depois do termo daquela primeira parte da grande viagem.)
O Nazareno, pois, tinha perdido quase metade da volemia, continuava a sangrar e sem possibilidade de repor, pelo menos, parte do plasma perdido - fato este francamente difícil -, a anemia galopante acabaria por provocar um desfalecimento de que não poderia recompor-se. Naquele momento, supondo que isto pudesse ser possível, o corpo do Messias deveria ser colocado em posição horizontal:
- Catorze e trinta e cinco...
O imediato exame do baço veio confirmar a quase total destruição do circuito gerador de glóbulos vermelhos ou eritrócitos, que tinham descido ao alarmante número de dois milhões e setecentos mil por milímetro cúbico de sangue, o baço fora libertando as suas reservas, mas depressa ficou esgotado. Quanto à aceleração da eritropoiese na medula óssea e a estimulação da síntese protéica, havia tempo que tinham descido ao limite mínimo.
Estas perdas na corrente sanguínea e a não ingestão de líquidos compensadores desde que fora içado ao madeiro vertical estavam originando uma sede esmagadora - talvez um dos piores sofrimentos - e, conseqüentemente, um desmedido esforço cardíaco. A insuficiente ventilação pulmonar, cada vez mais precária, fizera disparar todos os alarmes e o coração, num esforço supremo, lutava para bombear sangue à musculatura dos ombros, braços e intercostais. Estes últimos, principalmente, tinham tomado a seu cargo, praticamente, noventa e, por vezes, cem por cento da responsabilidade respiratória.
O músculo cardíaco, enfim, que numa pessoa normal trabalhava à razão de sessenta a setenta pulsações por minuto, martelava a caixa torácica de Jesus a uma média de cento e vinte, cento e trinta pulsações, afligido pela dramática carência de oxigênio e de força das áreas nobres do organismo: cérebro, rins e, nestas circunstâncias, da musculatura que lutava pela entrada de ar nos pulmões. O instinto de sobrevivência estava a imprimir ao coração um débito que Cavalo de Tróia avaliou entre trinta e quarenta litros por minuto. No entanto, à medida que o tempo ia passando as formidáveis palpitações do Nazareno foram oscilando, com sucessivas baixas, conseqüência da menor atividade do bolbo raquidiano, que começava também a fraquejar, enviando muito menos impulsos nervosos ao coração.
Este, em suma, provocaria um círculo vicioso de caráter irreversível.
- Catorze e quarenta...
O Mestre, com as costelas tensas como arcos e as artérias pulsando sem descanso afastou o queixo do tórax. O olho direito começava a dar sinais de um ligeiro estrabismo ou desvio divergente. Franziu as sobrancelhas e com um gemido suplicante exclamou:
- Tenho sede!
Longino repetiu a manobra mas, nesta altura, os lábios de pergaminho mal roçaram a tampa esponjosa do cântaro. O centurião oscilou o archote à altura do rosto do Galileu, com lentos movimentos da direita para a esquerda. Mas a pupila,
muito dilatada, não chegou a mover-se. Jesus começara a perder a visão! O olhar vidrado fez-me pensar na possível formação de um edema pupilar ou inchaço do nervo ótico no fundo daquele olho, certamente em conseqüência da hipertensão intracraniana ou do menor fluxo sanguíneo naquela região da cabeça.
O oficial examinou atentamente o rosto do Rabi. O nariz, apesar do hematoma e do possível desvio ou fratura dos ossos, começara a adquirir um sombreado alongado (sinal inequívoco da fase pré-mortal). Também as cavidades orbitais estavam mais acentuadas, registrando-se um afundamento da bolsa adiposa do pômulo direito. O esquerdo encontrava-se tão tumefacto e ensangüentado que nele era impossível descobrir sinal algum.
- Este - comentou Longino - está pronto.
E voltou para junto dos seus homens, movendo a cabeça com certo desalento.
Acocorei-me e dirigi o finíssimo laser avermelhado para baixo do último segmento do esterno o apêndice xifóide, procurando assim evitar o choque dos ultra-sons com as costelas falsas e as flutuantes. Ao encontrar a massa esponjosa e elástica dos pulmões, a catástrofe respiratória surgiu em todo o seu dramatismo. O pulmão esquerdo encontrava-se quase em colapso, por causa de um derrame pleural. As chicotadas e suas sucessivas pancadas e pontapés nos flancos - e concretamente no esquerdo - tinham originado, sem dúvida a acumulação de líquido na parte inferior do saco pleural que envolve o pulmão.
* Ao medir os mais importantes parâmetros da respiração de Jesus de Nazaré, o computador encarregado das avaliações e registros - um Dataspir, sistema on line, EDV 70 - calculou que naqueles momentos (Utilizando o chamado Sistema l, baseado em tabelas francesas elaboradas em Nancy foram desenvolvidos cerca de quarenta parâmetros. Por exemplo, a VC, ou capacidade vital VT ou volume corrente; RV, ou volume residual; TLC, ou capacidade pulmonar total; MV, ou volume-minuto; transferência ou difusão pulmonar do oxigênio; RAW, ou resistência de vias aéreas; distensibilidade pulmonar e torácica, e PST, ou pressão de retração elástico-pulmonar. (N. do M).
Catorze horas e quarenta minutos, tal como supunha, a capacidade vital do Galileu encontrava-se em fase crítica, com déficit superior a setenta por cento.
Esta diminuição generalizada das funções respiratórias ocasionara igualmente uma baixa no volume residual do ar, avaliado em condições normais em 1,67 litros. Enfim, as quebras da capacidade vital, volume residual e TLC, ou capacidade pulmonar total, tinham provocado em Jesus a formação do chamado pulmão pequeno. Por outro lado, o aumento da freqüência respiratória - acima mesmo das quarenta respirações por segundo - só permitia um pobre arejamento dos chamados espaços mortos, boca, traquéia etc., sendo muito pouco efetiva na altura de transportar oxigênio aos alvéolos pulmonares. E, conseqüentemente, a hipoventilação que derivava da existência do pulmão pequeno originou imediatamente o aumento de CO2 ou anidrido carbônico, que contribuiu para o envenenamento progressivo e intoxicação do Rabi. Esta dosagem elevada de CO2 não tardaria em deprimir o sistema nervoso central.
Cavalo de Tróia considerou que o aumento do anidrido carbônico alcançara valores superiores aos cinqüenta, sessenta miligramas de pressão trinta minutos depois de ter sido pregado na cruz. O aumento do PaCO2, ou pressão arterial do anidrido carbônico teve, no entanto, uma repercussão que poderíamos qualificar como relativamente benéfica para o Nazareno, ao multiplicar-se a presença deste tóxico, o organismo de Jesus entrou numa fase de adormecimento que, sem dúvida, tornou mais suportável o tormento.
- Catorze e quarenta e cinco...
A baixa saturação de oxigênio em hemoglobina estimulou uma vez mais o instinto de sobrevivência do Mestre. E içando-se de novo nos cravos dos pulsos aspirou o que seria o último hausto de ar. A partir daquele momento, afetado por uma taquicardia muito mais agressiva, o Galileu - consciente dos poucos minutos de vida que Lhe restavam começou a recitar o que me pareceu passagens das Sagradas Escrituras. O centurião e vários legionários aproximaram-se, intrigados. Mas a Sua linguagem era quase ininteligível. As forças escapavam-lhe atropeladamente e só de vez em quando as suas palavras me chegavam com um mínimo de nitidez aos ouvidos. Ao reter algumas daquelas frases percebi que o Mestre não procurava dizer-nos coisa alguma. Estava simplesmente orando.
Pude assim escutar, por exemplo:
- Sei que o Senhor salvará a sua unção... ou A tua mão descobrirá todos os meus inimigos e, principalmente, a impressionante e polêmica Meu Deus, meu
Deus... por que me abandonaste?
Ao voltar ao módulo consultei o livro dos Salmos e, efetivamente, verifiquei que o Mestre recitara algumas das passagens deste texto sagrado. Entre os que consegui identificar encontravam-se parágrafos dos salmos XX, XXI e XXII. Este último (Salmo 22, 2) diz exatamente: Meu Deus, meu Deus: Por que me abandonaste? As palavras do meu brado não são por Vós ouvidas.
Não pude deixar de sorrir. Os teólogos, comentaristas e moralistas de todas as Igrejas escreveram durante séculos rios de tinta tratando de interpretar e acomodar estas últimas palavras de Jesus. Para alguns, principalmente para os padres latinos, este suposto lamento do Nazareno era apenas uma expressão metafórica: Jesus, dizem, fala em nome da Humanidade pecadora e, na Sua pessoa, os pecadores são abandonados por Deus. Assim pensavam, por exemplo, Orígenes Atanásio, Gregório Nazianzeno, Cirilo de Alexandria e Agostinho, entre outros.
Uma segunda hipótese - defendida por Eusébio e Epifânio - chegou a propor o seguinte: A natureza de Jesus fala à Sua natureza divina, queixando-se ao Verbo de que vai abandonar a natureza humana no sepulcro por algum tempo.
Por último, uma terceira teoria aponta para o fato de Cristo chegar a sentir-se verdadeiramente abandonado pelo Pai.
Assim dizem, pelo menos, homens tão prestigiados como Tertuliano, Teodoreto, Ambrósio, Jerónimo, S Tomás e uma infinidade de teólogos modernos.
Em minha opinião, o Mestre, angustiado pela sombra da morte, refugiou-se em alguma coisa que é comum a muitos humanos quando se vêem em transe semelhante: a oração.
- Catorze e cinqüenta...
A fulminante baixa da acidose foi outro anúncio do final iminente do Nazareno. Ao voltar a observar a corrente sanguínea verificamos uma alarmante quebra do pH. De 7,20 - 7,30 no momento da crucifixão, tinha baixado para 7,15. O rim continuava ainda a fabricar angiotensina, lutando para fazer subir a tensão, mas tudo aquilo era pouco mais que inútil. Na realidade, os últimos movimentos respiratórios de Jesus de Nazaré, cada vez mais breves e acelerados, eram movidos pela hipoxia, ou baixa quantidade de oxigênio na hemoglobina do sangue. Porém, este último e sábio estímulo da natureza humana tinha os minutos contados.
A cianose dominava todas as mucosas e partes acras: pontas dos dedos das mãos e dos pés, língua, lábios e, até, algumas regiões da pele. De repente, o ritmo galopante do coração aumentou ainda mais, batendo à razão de cento e sessenta e nove pulsações por minuto. Cristo, com os dedos enclavinhados, tinha iniciado a sua última elevação muscular.
O pulso esquerdo girou pela segunda vez mas, nesta altura, o sangue que saiu era muito mais viscoso e arroxeado. Apesar disso, fios de sangue correram pelo antebraço, pingando na rocha do Calvário quando se detiveram no cotovelo. O pescoço inchou e os músculos intercostais passaram por novos espasmos, enquanto o rosto ganhava altura, milímetro a milímetro. Com os olhos e a boca muito abertos, o Mestre parecia querer apanhar a vida, que Lhe abandonava...
A caixa torácica, a ponto de estalar, inspirou o ar suficiente para que Jesus de Nazaré, com uma força que fez voltar a cabeça de todos os legionários, exclamasse:
- Acabei! Pai, ponho nas Tuas mãos o Meu espírito!
Naquele instante o Seu corpo descaiu, fazendo ranger todas as articulações. A voz de Eliseu anunciou-me as catorze e cinqüenta e cinco...
Ao escutar a retumbante frase do Condenado, o oficial correu para a base da estipe. E, antes que me esqueça, desejo explicar que, tal como assinala João no seu Evangelho (única testemunha entre os quatro escritores sagrados), não houve grito, no sentido literal da palavra. A voz propagou-se, estentórea, isso sim, e talvez por isso, com o passar dos anos, as mulheres e o próprio centurião tenham confundido a derradeira manifestação do Mestre com um grito. Tal como diz S. João, Jesus não deu semelhante grito.
Dito isto, continuemos.
Longino aproximou de novo o facho do rosto do Nazareno. Tinha o olho aberto e a pupila dilatada. Na revisão das filmagens pôde precisar-se como minutos antes da última perda de consciência, a córnea do olho se tornara opaca. Foi uma pena que o olho direito estivesse fechado. Muito provavelmente os analistas de Cavalo de Tróia teriam detectado o chamado sinal de Larchert. Exteriormente cessara toda a evidência respiratória. O Mestre, com o queixo enterrado no esterno, permanecia de boca entreaberta. Apressei-me a dirigir os ultra-sons para a região cardíaca. Cavalo de Tróia considerou que, a partir das catorze horas e cinqüenta e quatro minutos - quando as pulsações do coração tinham, havia uns três minutos aproximadamente, uma freqüência vertiginosa (que alcançou o seu ponto máximo nas mencionadas cento e sessenta e nove pulsações por minuto) - o pulso baixou em queda vertical. O nódulo senoauricular (que pulsa normalmente à razão de setenta e duas vezes por minuto) ficou muito abaixo dos sessenta impulsos e, em questão de segundos, todo o miocárdio entrou
numa fibrilação ventricular. Depois de trinta segundos de arritmia o Mestre tombou fulminado, embora a paragem cardíaca final só se desse dois minutos e meio depois. Segundo estas apreciações, o falecimento de Jesus de Nazaré deve ter ocorrido às catorze horas, cinqüenta e sete minutos e trinta segundos de sexta-feira, 7 de Abril de 30.
Apesar do esforço cardíaco, a circulação sanguínea que chegava ao cérebro não foi suficiente, provocando, entre outros efeitos, o referido desmaio ou perda de consciência, de que não haveria regresso.
- Morreu...
O centurião pronunciou aquela última palavra com uma certa piedade. Como se o desaparecimento do Justiçado tivesse representado alguma coisa para ele... Na realidade, como disse, a morte clínica do Nazareno só se daria uns segundos mais tarde. Porém, isto não o podia saber Longino.
O Mestre não tardaria a entrar na morte biológica. Suspenso dos cravos dos pulsos, o ventre aparecia muito inchado. O tórax ficara metido para dentro e os músculos peitorais – que não tinham parado de oscilar e de ter convulsões - jaziam rígidos, desmaiados. Entre os ramos e espinhos da coroa notava-se, cada vez mais acentuado, um círculo violáceo em volta do nariz deformado. As têmporas, semi ocultas pelo cabelo, estavam encovadas e a orelha direita, um pouco visível, tinha-se retraído. A pele, situada imediatamente por cima da barba, enrugou-se e o globo ocular foi-se obscurecendo, como se o cobrisse uma espécie de teia viscosa. Pelas feridas dos cravos - especialmente na do pé direito - continuava emanando sangue, ainda que a coloração fosse muito mais rosada. (No momento do falecimento a volemia passara a barreira dos cinqüenta por cento. Ou seja, Cristo tinha derramado mais de metade do seu volume sanguíneo.)
* Este sinal bem conhecido dos médicos, que pode anteceder a morte, apresenta geralmente no olho direito uma opacidade da esclerótica um pouco mais pálida que a do esquerdo. Quase sempre se registra esta mancha ocular, primeiro num olho e depois no outro. (N. do M.)
Justamente naquele momento registrou-se o relaxamento dos esfíncteres, que juntaram ao tétrico aspecto de Jesus o cheiro fétido de excrementos quase líquidos e amarelentos, que escorreram pelas faces internas das pernas. Hesitei no momento de utilizar o circuito teletermográfico. No entanto, apesar do meu atordoamento, cumpri o estabelecido pelo Projeto.
Daquele último e rápido exame pôde deduzir-se, por exemplo, que a acumulação de sangue nos membros inferiores - apesar da ruptura de uma das artérias do pé direito – tinha sido considerável. Poucos segundos depois da morte, a temperatura dos membros inferiores, como conseqüência da sobrecarga sanguínea, era de um grau centígrado acima do normal.
Ao observar os tecidos superficiais verificou-se também que o agudo e decisivo processo de tetanização utilizara as pernas e coxas do Nazareno doze minutos depois da sua elevação e encravamento na árvore. Isto confirmava as minhas impressões sobre os esforços titânicos que o Rabi da Galiléia teve de fazer sempre que lutava por um hausto de ar. Ao faltarem os hipotéticos pontos de apoio dos cravos dos pés, como disse, foi a musculatura superior (ombros, antebraços e músculos intercostais) que arcou com o gasto energético. Porém, estas fibras se veriam bloqueadas também pela tetanização poucos minutos depois: aos dezoito, os deltóides, vasos externos dos braços e supinadores, palmares maiores, cubitais e ancôneos dos antebraços. Aos vinte minutos, aproximadamente, ficaram anulados os grandes peitorais e a poderosa rede muscular da zona superior da espádua: os trapézios. Este quase congelamento da formidável musculatura do Galileu precipitou a Sua morte, ao sinal principal e horrível da asfixia.
Entre os muitos déficits circulatórios, ventilatórios, renais e do sistema nervoso central que confluíram e O empurraram para o fim, Cavalo de Tróia considerou sempre que a causa básica do óbito (se é que a esta morte se pode dar o qualificativo de natural) do Mestre foi a asfixia.
Pelas catorze horas e cinqüenta e cinco minutos, o cérebro de Jesus entrou em coma Depasé, com as trágicas conseqüências que isto significa...
As áreas das perfurações dos carpos e pés projetavam um azul intenso sinal evidente do importante processo inflamatório que tinham padecido e, conseqüentemente, de uma maior temperatura. Quando situei o laser no olho de Jesus, a dilatação da pupila ofereceu unicamente uma mancha escura, sinal claro de uma perda de visão. A temperatura das estreitas zonas periféricas da córnea, no entanto, ainda conservavam calor e foi possível registrar uns breves anéis azuis.
O cristalino, finalmente, ganhara opacidade e a íris estava assimétrica. Na realidade, pouco mais se podia fazer. O general Curtiss lutou para que os técnicos aperfeiçoassem o sistema de ressonância magnética nuclear, que nos teria permitido fazer o rastreio dos movimentos atômicos de algumas zonas-chave do cérebro do Nazareno, mas os trabalhos não chegaram a tempo.
Tristemente, Aquele Homem, que eu começara a admirar e querer, estava morto. Apesar de todo o meu treino, ao tirar os crótalos deixei-me cair no duro chão do Gólgota. A melancolia foi germinando no mais íntimo da minha alma e senti que uma parte de mim mesmo ia com aquele ser. Uma melancolia sem horizontes que sei, se afastará do meu angustiado coração quando a morte encerrar definitivamente a minha pobre existência. Entretanto, como naquele dia junto das cruzes, continuo a chorar.
Nem Eliseu nem ninguém do Projeto jamais soube. A partir do fatídico momento da morte de Jesus, algo ficou destruído no mais fundo do meu ser. As minhas últimas horas na Palestina quase não tiveram sentido. Cumpri o que fora programado por Cavalo de Tróia, mas quase como um autômato. E o pior é que nunca consegui recompor-me...
Pelas catorze horas, cinqüenta e sete minutos e trinta segundos - justamente quando o coração do Nazareno parou para sempre - aconteceu o inesperado. Com uma sincronização que ainda me aterra e que só pode ter uma explicação, aquela lua gigantesca começou a mover-se. E com a mesma lentidão com que encobrira o Sol, assim se foi deslocando para oriente, devolvendo-nos a transparente luminosidade daquela sexta-feira.
O meu companheiro no módulo apressou-se a confirmar o que eu estava vendo. Pouco a pouco, sem pressa, como que a deixar-se ver o objeto dirigiu-se para levante, desaparecendo atrás do monte das Oliveiras. Aquele singular amanhecer foi acolhido com vivos sinais de alegria e assombro pelos legionários e
pelo pequeno grupo de mulheres e saduceus que continuavam junto do penhasco. O mesmo aconteceu na cidade. Os seus habitantes consideraram esta libertação do Sol como um sinal de bom augúrio. Foi então, enquanto o gigantesco disco deixava o seu estacionário, afastando-se, que o centurião, voltando-se para a cruz, de onde o Mestre pendia, bateu na couraça que lhe protegia o tórax, com o punho direito e, apoiando esta atitude de saudação, sentenciou:
- Certamente era um homem íntegro!... Deve ter sido realmente o Filho de Deus...
Os soldados, inquietos, pediram instruções ao optio e ao oficial. Mas nem Arsenius nem Longino souberam que fazer.
Muito simplesmente, como medida de segurança, reforçaram a guarda. Aqueles homens, ao atuarem assim tinham a intuição de alguma coisa. E não se enganavam... Ao desaparecer a penumbra, a luz do Sol iluminou os crucificados, desvendando todo o horror dos corpos dessangrados, grotescamente contorcidos e cobertos de areia.
Os zelotas continuavam inconscientes e assim continuaram - felizmente para eles – até chegarem os três novos legionários...
A pele do Galileu, apesar da grossa película de pó que aderira às feridas, cabelo, coágulos e manchas de sangue, depressa começaria a sobressair com a típica tonalidade marmórea dos cadáveres. O cheiro das fezes tornava insuportável a permanência junto da cruz e os soldados que não estavam de guarda retiraram-se para a beira do patíbulo. A situação passou a ser um pouco melhor quando, mal voltando a nascer o Sol, o vento recomeçou a soprar de leste,
embora mais fraco que nas horas anteriores. É agora, com a perspectiva do tempo, que para mim faço uma pergunta que então nem me passou pela cabeça. Teve alguma coisa a ver a presença daquele formidável objeto com a estranha quietude que sobreveio ao mesmo tempo que as trevas e com o posterior regresso do vento? O cientista não tem resposta mas o homem intuitivo que também trago em mim diz-me que sim...
Notei um natural alarme entre as mulheres e em João e no irmão de Jesus. A absoluta imobilidade do Mestre começava a inquietá-los. O meu estado de ânimo era tão fraco que me voltei de costas, não desejando cruzar o meu olhar com o do jovem Zebedeu. Então, para ocidente, notei uma curiosa agitação entre os bandos de pássaros que geralmente tinham ninho nos muros da cidade. Apesar do vento, tinham levantado vôo, dispersando-se em total desordem. Encolhi os ombros.
Contudo, quase ao mesmo tempo, uma confusa barreira me fez voltar a cabeça para a muralha. O que vi deixou-me perplexo. Pela Porta de Efraim começara a sair um tropel de cães, latindo queixosamente. Eu sabia que havia cães em Jerusalém, mas nunca pensei que fossem tantos. Pareciam nervosos, muito excitados e, principalmente, assustados. Como se alguma coisa ou alguém os tivesse posto em fuga repentinamente. Mas o quê ou quem?
Longino e eu entreolhamo-nos sem compreender, igualmente alarmados. Que estava acontecendo em Jerusalém?
Os cães atravessaram o caminho em frente do penhasco, em direção aos campos de norte e de noroeste. Alguns, arquejantes, e farejando o terreno sem cessar treparam no alto do Gólgota, mas foram rapidamente expulsos pelos legionários. Poucos segundos depois, uma comunicação do berço causou-me um estremecimento, explicando em parte o anômalo comportamento dos animais: os sensores de bordo tinham começado a detectar uma série de gases, com elevado teor de enxofre, bem como um leve aumento da temperatura ao nível do solo.
Eliseu não tinha a certeza mas era possível que se aproximasse um movimento sísmico. Aquela hipótese, sim, podia esclarecer em parte a inquietude das aves e dos cães! (Os animais, e também o homem, ainda que em menor proporção, têm capacidade para inalar os gases que freqüentemente antecedem o
desencadeamento de um terremoto. Ao registrarem-se as primeiras perturbações no interior da Terra, os gases são expulsos através das estreitas fendas do solo e os animais podem inalá-los. Estes segregam imediatamente nos seus cérebros um volume de serotonina muito superior ao normal e s citados hormônios desencadeiam os mecanismos da excitabilidade do indivíduo. No caso dos cães, tinham fugido, retirando-se das perigosas áreas de edifícios de Jerusalém.
No entanto, os dois sismógrafos Teledyne e Geotech, instalados por Cavalo de Tróia para medir o terremoto a que alude o evangelista Mateus no seu texto sagrado (27, 51) - e do qual eu, sinceramente, me esquecera por completo - não registravam qualquer sinal. Ambos, especialmente desenhados pelos especialistas do Centro Nacional de Terremotos e Meteorologia de Tóquio - e nos quais colaborou decisivamente o professor Nagamune, chefe de Informação de Prognósticos de Terremotos -, foram colocados pelos técnicos em dois dos suportes ou trens de aterragem do berço. No delicado processo de miniaturização e adaptação à nossa nave, um dos aparelhos foi convertido em sismógrafo horizontal e o segundo em vertical. Os pesados pêndulos foram substituídos por feixes de luz laser, capazes de registrar as ondas dos sismos profundos (até setecentos e vinte quilômetros) e, naturalmente, as provenientes de movimentos intermédios ou superficiais, com uma profundidade limite de sete quilômetros abaixo da superfície. No horizontal - especialmente programado para os movimentos de vaivém ou de rolo do terreno - o espelho tradicional que serve como registro fotográfico tinha sido eliminado. Os impulsos do laser eram codificados imediatamente num papel especial, podendo ampliar as vibrações mais de cem mil vezes. Quanto ao pêndulo Iaser de conformação vertical, preparado para os movimentos de compressão, estava em contato com um papel térmico e um registro tradicional de fita magnética. Foi pouco depois - pelas quinze horas e um minuto - que sentimos o primeiro abalo.
Recordo um pequeno pormenor que, nos primeiros décimos de segundo, mais contribuiu ainda para aumentar a minha confusão. Um dos legionários, por ordem do optio, agarrara com ambas as mãos a vasilha envolvida na malha de corda e preparava-se para despejar parte da água nas chamas da fogueira. E assim fez.
Mas no instante em que deitava o líquido no fogo, o primeiro estremecimento do terreno desequilibrou-se e o jorro de água foi cair no rosto de um companheiro que estava sentado muito perto da fogueira.
O legionário caiu em cima da rocha e também o cântaro que se partiu em pedaços.
A oscilação do solo originou imediatamente que os soldados que estavam sentados se pusessem de pé e, atordoados, nem tiveram tempo de olhar uns para os outros. Embora nas verificações posteriores se considerasse que a primeira onda sísmica teve apenas uma duração de dezesseis segundos, a deslocação horizontal dos estratos - em forma de vaivém - trazia consigo força suficiente para derrubar vários soldados. No meu caso, o que mais me incomodou naqueles segundos iniciais foi o aflitivo enjôo que comecei a sentir. Era como se uma força invisível me estivesse a agitar o cérebro...
Ao sentirem o estremecimento, as mulheres começaram a gritar, vítimas do mesmo pânico que nos invadia a todos.
Mas, subitamente, da mesma maneira como chegara, desapareceu. Longino e o subalterno, pálidos como a pele de Jesus esperaram uns segundos. Os seus olhares estavam postos nas extremidades superiores das cruzes. Mas as estipes, ao cessar o tremor, tinham ficado tão Imóveis como antes do sismo. E o oficial, com muito bom critério, dirigiu-se aos seus homens, gritando-lhes:
- Para baixo!... Vamos todos para baixo!
A patrulha, incluindo as sentinelas obedeceu imediatamente precipitando-se para a fenda de acesso ao Gólgota. Na fuga precipitada do patíbulo, alguns dos soldados esqueceram os escudos e capacetes. Quando o oficial se preparava para descer pelo caminho parou e rodando nos calcanhares, foi até à fogueira, apagando-a com pisadelas.
Naquele momento, o meu coração encolheu-se de medo: um bramido surdo e longínquo começou a levantar-se de oriente. Quase imediatamente se fez sentir o segundo e mais vigoroso abalo. Todo o penhasco tremeu e oscilou - não estou muito certo se foi apenas um destes movimentos ou os dois ao mesmo tempo – e senti-me violentamente deslocado, caindo sobre a vibrante superfície do Calvário. (É curioso mas, ao ver e sentir aquelas vibrações da rocha veio-me à memória a cena dos espasmos da carne da vaca recém-sacrificada...)
Do solo, impotente para me levantar, vi como o centurião tinha caído também e como a cruzes acusavam a segunda réplica com uma espécie de matraquear rapidíssimo, que fez tremer os corpos dos judeus. Uma das estipes situada atrás dos crucificados - a que se encontrava ligeiramente inclinada - bamboleou como um junco agitado pelo vento, acabando por tombar.
O pânico e o enjôo sufocante foram tais que – apesar de necessitar - não soube ou não pude gritar nem pronunciar palavra. Caído de barriga para baixo e aferrado às irregularidades da rocha, só fui capaz de formular um pensamento: sobreviver!
As sucessivas convulsões do terreno feriam-me incessantemente, chegando mesmo, a atirar-me ao ar a vários centímetros do solo.
Hoje, depois da amarga experiência, recordo muito bem como as pedras soltas do penhasco saltavam como bolas de borracha, se deslocavam horizontalmente como projéteis e chocavam violentamente contra as bases das cruzes e contra o meu corpo e o do oficial.
Submerso num pavor incontrolável e irracional, aqueles segundos não tiveram tempo nem medida. Foram, simplesmente, eternos. O trovão que parecia nascer de cada centímetro quadrado do solo e a agitação violenta da Natureza tiveram, no entanto, uma duração relativamente curta, quarenta e sete segundos, de acordo com os instrumentos do módulo.
Para mim, aqueles quarenta e sete segundos pareceram-me séculos...
Ao cabo daquele tempo, tudo voltou a serenar. E um silêncio de morte caiu sobre o penhasco e os seus arredores. Quando consegui levantar-me tive de me apoiar na vara de Moisés.
Agora era o estômago que me dava voltas, com uma angustiante vontade de vomitar. Um suor frio encheu-me o corpo quase ao mesmo tempo. Sei hoje que parte daquele mal-estar era conseqüência do medo...
Longino permaneceu uns instantes de joelhos, com o olhar fixo no solo da rocha, como se esperasse por um terceiro abalo. Mas não se repetiria. Ao constatar que o novo abalo não chegaria, o oficial levantou-se, fazendo-me um gesto com o braço para que o seguisse.
Creio que nunca obedeci tão cegamente a uma pessoa. Poucos segundos depois, o centurião e eu não corríamos, voávamos pela fenda do Calvário, saindo para campo aberto e juntando-nos ao pelotão.
Quase todas as mulheres estavam caídas por terra, gemendo e soltando uns gritos que acabaram por me eriçar os cabelos. João e Jude, tão aterrados como os outros, não sabiam se corriam para a campina ou se voltavam à cidade. Mas, pouco a pouco, à medida que o terremoto se ia distanciando na memória, os ânimos começaram a recompor-se e impôs-se a sensatez.
Pelo menos do lado dos oficiais romanos e do jovem Zebedeu. A trágica realidade dos crucificados - esquecida durante os abalos - apresentou-se logo aos olhos dos amigos e familiares do Mestre. Mas, antes de continuar, quero narrar um fato altamente misterioso detectado pelo módulo.
Segundo os dados recolhidos nos registros permanentes ou sismogramas do berço, os dois abalos tinham somado um total de sessenta e três segundos.
A primeira onda muito mais fraca que a segunda, correspondia ao tipo L, também chamadas longas ou superficiais. Os sismógrafos detectaram um predomínio da variante Love, mais de acordo com a natureza uniforme dos estratos superficiais daquela zona geológica. A velocidade calculada foi de 3,3 quilômetros por segundo. No entanto, neste primeiro sismo - cuja magnitude não foi excessivamente importante: 4,1 na escala de Richter - os aparelhos não receberam como teria sido de esperar, as séries de coleios das ondas P ou primárias nem o ziguezaguear posterior das ondas S, mais lentas que as P 1.
Ante o espanto geral, apenas surgiram as ondulantes, lentas e superficiais Love (que de amorosas nada tiveram). No segundo abalo, em contrapartida, apareceram as ondas P e S e, por último, as L.
Os cientistas, à vista dos dados acumulados pelos sismógrafos, classificaram este segundo e mais intenso sismo na magnitude de 6,8z. Até aqui, quase tudo normal dentro do que é e pressupõe um quadro sísmico, com exceção da mencionada ausência das ondas de impulso e das secundárias. Porém, o espanto dos homens de Cavalo de Tróia chegou ao limite quando, muito depois do
segundo abalo e dos correspondentes feixes de ondas, todo o módulo estremeceu e rangeu pela terceira vez.
Nesta altura, no entanto, os sismógrafos tinham emudecido. O que fez vibrar o berço - segundo os dados dos instrumentos de bordo - foi uma onda expansiva! E o mais inacreditável é que aquela onda expansiva viajando à razão de trezentos metros por segundo - tinha o seu nascimento na mesma área onde os especialistas em sismologia tinham localizado o epicentro do terremoto: a uns setecentos e cinqüenta quilômetros a sul-sudeste de Jerusalém, em pleno deserto, muito perto do atual limite entre a Jordânia e Arábia e ao sul da atual povoação de Sakaka.
* A energia libertada num terremoto desloca-se pela rocha sob a forma de onda. A referida rocha atua como um corpo elástico. As partículas individuais dos estratos rochosos vibram de um lado ao outro com grande rapidez, à medida que se transmite o movimento ondulatório. Ainda que os seus padrões sejam extremamente complexos, constantemente modificados pelas propriedades de reflexão, difração, refração e dispersão das ondas, foram divididas internacionalmente em três grandes grupos: Onda P ou primária, de impulso, compressional, ou longitudinal,, que viaja pelo interior da Terra a grande velocidade (entre 6 e 11,3 quilômetros por segundo), sendo que a primeira chega à estação registradora. Transmite-se como as ondas sonoras, por compressão e expansão alternadas do volume da rocha ao longo da direção de percurso das ondas.
Pode atravessar sólidos, líquidos e gases. Onda S ou secundária, de sacudida, de esforço cortante, distorcionais ou transversais. Formam um corpo de onda mais lento que as p, andando entre 3,5 e 7,5 quilômetros por segundo. São as segundas a chegar aos sismógrafos. Viajam também através do interior da Terra, sendo transmitidas - tal como as ondas de luz - por vibrações perpendiculares à trajetória em que viajam as ondas nas rochas. A sua velocidade é proporcional à rigidez do material que atravessam, não podendo atravessar os líquidos.
Por último, as ondas L, também conhecidas por longas, ou superficiais,. São lentas - cerca de 3,5 quilômetros por segundo -, variando a sua deslocação com a elasticidade da rocha. Tem uma natureza ondulatória, movendo-se fundamentalmente por baixo da superfície terrestre. São conhecidos dois tipos principais: as ondas Love, em sólidos uniformes, e as Raleigháem sólidos não uniformes. (N. do M.)
2 Como base puramente comparativa, o famoso terremoto de Lisboa de 1755, cuja magnitude foi avaliada em nove, provocou uma onda sísmica ou maremoto denominada tsunami, que destruiu a capital portuguesa e os seus arredores, provocando sessenta mil mortos. Trata-se do sismo mais forte da história moderna. Até o lago Lomond, na Escócia, oscilou por causa do abalo. (N. do M.)
Quando se concluíram as verificações, o general Curtiss e todos nós vimo-nos ultrapassados pelos resultados, aquele tipo de onda expansiva e parte das ondas sísmicas obedeciam aos efeitos de uma explosão nuclear subterrânea. Sinceramente, ficamos mudos com a surpresa...
Ao fato inquestionável da escassa sismicidade da Palestina - muito inferior às da Grécia, Itália e Espanha, para estabelecer algumas comparações (no período compreendido entre 1901 e 1955, por exemplo, registraram-se em Israel e zonas limítrofes do Libano e da Síria atuais, um total de treze tremores. Segundo Karnik, que tornou públicos os dados em 1971, destes, dez foram de uma magnitude compreendida entre 4,1 e 5,1, sempre segundo a escala de Richter. Dois oscilaram entre 5,2 e 5,6 e apenas um roçou os 6,2 graus de intensidade) - tivemos que acrescentar este novo e inesperado fator. Se era improvável que um sismo coincidisse quase com a morte de Jesus de Nazaré, o problema agravou-se quando os instrumentos captaram a enigmática explosão nuclear subterrânea. (Não quero, nem devo alongar-me mais neste fascinante acontecimento pela simples razão de que, justamente, foi mais um dos motivos que levou Cavalo de Tróia a programar e executar a segunda grande viagem.)
Dez ou quinze minutos depois do sismo, Longino e os soldados regressaram ao alto do Gólgota, recomeçando a guarda dos crucificados.
Minutos antes, o jovem João tinha-se aproximado do centurião, interrogando-o acerca da sorte do Mestre. Ao vê-lo mover a cabeça negativamente e baixar os olhos, o apóstolo compreendeu que nada havia a fazer. Mas no seu coração não havia lágrimas e, simplesmente, limitou-se a pedir às mulheres que se fossem daquele lugar. No meio de uma explosão de dor, a maior parte do grupo – que acreditava firmemente que Jesus faria um milagre e se salvaria - obedeceu ao Zebedeu, retirando-se na companhia de Jude para casa de Elias Marcos, quartel-general dos mais chegados ao Mestre desde a definitiva dispersão de David Zebedeu e seus correios, perante a chegada dos levitas do Templo. Mas tentei não me antecipar aos acontecimentos, cingindo-me à mais rigorosa ordem cronológica dos fatos.
* 1 Um dos testemunhos mais antigos de que se dispõe na atualidade sobre os sismos em Israel procede de Flávio Josefo. No seu livro I, capítulo XIV da Guerra dos Judeus, e com o título As ciladas de Cleópatra contra Herodes e da guerra de Herodes contra os Árabes e um muito grande tremor de terra que então aconteceu, o historiador diz: ... perseguindo Herodes, o Grande, os inimigos, sucedeu-lhe por vontade de Deus outra desdita, pelos sete anos do seu reinado, e no tempo em que fervia a guerra de Accio, porque no começo da Primavera houve um tremor de terra, em que morreu muito gado e pereceram trinta mil homens, ficando a salvo e ileso todo o seu exército por estar no campo. O terremoto aconteceu portanto, pelo ano 35 antes de Cristo, justamente sessenta e quatro ou sessenta e cinco anos antes do sismo que os Evangelhos mencionam. (N. do M.)
João continuou à sombra do Gólgota, na companhia de quatro ou cinco hebréias que se negavam a regressar a Jerusalém.
Enquanto subia novamente ao cimo do penhasco, reparei nos saduceus. O pânico tinha-os paralisado. Pensei que, uma vez consumada a morte do odiado impostor, se retirariam.
Como estava enganado... Quando Jude e as mulheres se afastaram pelo poeirento caminho, Longino e Arsenius, que com vários homens verificavam os danos e estabilidade das cruzes, tiveram novo sobressalto. A Porta de Efraim começara a vomitar um rio de gente enlouquecida e vociferante que, segundo parecia, fugia da cidade.
Ante a terrível possibilidade de novo tremor, milhares de cidadãos e peregrinos, que os dois abalos tinham surpreendido em Jerusalém, decidiram pelo imediato abandono das vielas da Cidade Santa, em busca de terreno aberto.
Centenas de homens, mulheres e crianças - muitos carregando pesados volumes e puxando por cavalgaduras e conduzindo rebanhos - começaram a desfilar apressada e ininterruptamente em frente do Calvário, rumo às lombas próximas de Gareb.
Os soldados interromperam a sua inspeção, reforçando a guarda periférica do penhasco. Mas, para dizer a verdade aqueles rostos desencorajados pelo medo nem sequer repararam em Jesus e nos zelotas. O seu verdadeiro problema era escapar, fugir o mais depressa possível dos muros da cidade.
Pouco antes do pôr do Sol, quando, por fim, tive oportunidade de entrar em
Jerusalém, fiz perguntas quanto aos possíveis danos causados pelos dois abalos. Segundo Elias Marcos e José de Arimatéia, os sismos tinham provocado muito mais medo que destroços materiais. As edificações, quase todas de um ou dois pisos e de materiais leves, tinham agüentado os sacões. Deram-se alguns pequenos desmoronamentos mas, felizmente, os feridos não eram muitos nem com gravidade. Um dos fatos que provocaria uma infinidade de comentários - chegando a ser registrado, até pelos evangelistas - foi a ruptura de um dos dois grandes véus ou cortinas postos em frente do Debir, ou lugar santíssimo (também chamado oráculo), do Hekal, ou lugar santo, que precedia o primeiro. Encontrando-se ambos no interior do Santuário, foi-me impossível verificar os rumores, ainda que todas as notícias - transmitidas pelos hebreus em voz baixa e com uma alta carga de superstição – façam referência ao primeiro e mais importante: o que fechava a passagem para a sempre misteriosa quadra cúbica de nove metros de lado, considerada a morada de Deus, e onde se erguiam os dois querubins de quatro metros e meio de altura, belamente esculpidos em madeira de oliveira e cobertos de ouro. Quanto eu teria dado para poder entrar no referido recinto e examinar o interior da arca da aliança, depositada no centro do pavimento sob as asas abertas dos anjos. Porém, isto era um sonho impossível... Quando a patrulha se convenceu de que a multidão só tentava pôr-se a salvo e que nem sequer se detinham à passagem pelos juízes, o oficial e os seus soldados recomeçaram a inspeção do patíbulo, tentando fazer o inventário dos possíveis danos causados pelo terremoto.
* Das dimensões deste grande véu nos dá idéia o seguinte dado do escrito rabínico Middot (III, 8): Se o véu do Templo foi manchado tem de ser lançado num banho que precisa da presença de trezentos sacerdotes. (N. do M.)
Juntei-me a eles, concentrando a minha atenção nos crucificados. As estipes tinham suportado bem as convulsões das rochas, salvo a voltada para ocidente e atrás dos condenados.
Os legionários firmaram-na de novo. Ao terminarem o que se tinha responsabilizado por apanhar os pedaços do cântaro de água reparou em qualquer coisa e chamou a atenção de Longino.
A poucos passos das cruzes, na direção sul, o penhasco estava aberto. Tratava-se de uma fenda não muito larga - de uns vinte e cinco centímetros - mas bastante funda. Talvez de dois metros ou mais. No entanto nenhum dos soldados pôde garantir se aquela fenda estava ali antes do sismo ou se, pelo contrário, acabava de se abrir. Nem o centurião nem os outros romanos lhe concederam muita importância. E cada um voltou ao seu trabalho.
Pelo meu lado, também não podia garantir que a fenda no alto do Gólgota fosse conseqüência do abalo. O que é certo, sim, é que a pequena fenda não seguia a direção da estratificação natural do promontório. Pelo contrário, cortava a superfície da rocha transversalmente.
Pelas quinze horas e trinta e cinco minutos a saída de hebreus da cidade começou diminuindo consideravelmente. A calma foi-se restabelecendo e aquelas pessoas, acampadas nas cercanias de Jerusalém, começaram a perambular, indecisas, e perseguindo-se mutuamente com perguntas. Considero que o paulatino regresso das aves às muralhas do Templo e da cidade contribuiu decisivamente para serenar os ânimos.
Muitos receberam com alvoroço este regresso em massa das pombas e andorinhas a Jerusalém e ganharam coragem para atravessar novamente a Porta de Efraim. O centurião, Arsenius, os seus homens e eu próprio respiramos também com alívio quando, de repente, um punhado daquelas pombas cinzento-azuladas fez uma paragem no vôo, pousando nos madeiros transversais das cruzes.
Que triste e significativa me pareceu aquela imagem! Três ou quatro pacíficas aves descansavam no patibulum de Jesus de Nazaré, voltando a voar uns segundos mais tarde. O regresso da multidão espantada a Jerusalém foi muito mais tranqüilo.
Nesta altura chegando a parar diante do patíbulo, observando em silêncio ou interrogando os saduceus. Estes aproveitaram a oportunidade para anunciar aos quatro ventos que o Galileu tinha morrido e que quase com toda a certeza, o responsável por aquele terremoto era Jesus, aliado de Belzebu...
A maioria não prestou muita atenção a essas besteiras, mas alguns - arrastados pela veemência dos sacerdotes voltaram a insultar o Mestre, engrossando o número dos curiosos que continuava à beira da grande rocha.
A atenção do oficial e dos legionários viu-se subitamente desviada pela chegada ao patíbulo de três soldados vindos da Fortaleza Antonia. Depois de saudarem Longino explicaram-lhe o motivo da sua presença na rocha: traziam ordens expressas do procurador para darem o golpe de misericórdia nos condenados e levar os corpos para a vala comum aberta no vale da Geena, ao sul da cidade.
O oficial interrogou os legionários quanto à razão que levara Pilatos a tomar uma decisão aparentemente tão precipitada. Segundo explicaram, pouco antes do sismo, um grupo de homens do Sinédrio tinha visitado novamente o governador, expondo-lhe o que eles denominavam o desejo do povo de Jerusalém ou seja, que os corpos dos executados fossem despregados antes do pôr do Sol, tal como ordenava a Lei, que aquele era o dia da Preparação.
Pilatos - cujo estado de ânimo se encontrava fortemente impressionado pelas trevas - acedeu, dando as devidas ordens a Civilis para que enviasse alguns homens.
Longino não dissimulou a sua estranheza. Se os mensageiros, em vez de serem legionários, tivessem sido judeus do Sinédrio provavelmente não teria aceitado. No fundo, os costumes judeus não lhe davam cuidados. Por um lado, a mudança de planos aborrecia-o profundamente. Mal tinham passado duas horas e meia depois que se tinham iniciado os trabalhos de levantamento e encravamento dos zelotas e lhe exigiam a não menos trabalhosa e desagradável tarefa de os desencravar e transportar para a sepultura comum dos criminosos.
Claro que, por outro lado, a contra-ordem também apresentava um certo atrativo. Se as operações se fizessem com rapidez, não passariam aquela noite ao relento, expostos a novas tormentas nem ao rigor da vigilância. E assim, dispostos a terminar com o caso, o oficial e Arsenius ordenaram a descida dos zelotas e do Galileu. Longino avisou os recém-chegados de que Jesus tinha morrido.
Os três legionários, que vinham munidos de bastões, idênticos aos que eu vira usar no apaleamento do soldado romano, ocuparam posições. Dois na frente de Dimas e o terceiro à direita do segundo guerrilheiro, também, como os seus companheiros, a um escasso meio metro das extremidades inferiores de Gistas. Um quarto legionário, de espada na mão, completou o quadro, postando-se em frente da perna esquerda do zelota mais velho. Não houve sinal algum. Os quatro romanos firmaram bem as sandálias na dura crosta da rocha e, brandindo os bastões e a espada, deram quatro golpes, tremendos e secos, nas pernas dos infelizes. O estalar das tolas estilhaçadas por altura do terço inferior foi seguido por uma série de curtas e violentas convulsões. Os zelotas tinham sido despertados pela dor.
Provavelmente, as pancadas tinham afetado também o perônio porque, imediatamente, as pernas se inflamaram e os corpos, sem terem sequer o árduo consolo do apoio dos cravos dos pés, descaíram uns centímetros, enquanto os desgraçados, entre gritos, abriam as bocas desesperadamente, em pleno e irreversível processo da asfixia.
Gistas, nesta ocasião, tinha apanhado a pior parte. A espada do soldado cortara-lhe a perna. Em questão de segundos o choque traumático e uma possível embolia aceleraram a morte por asfixia.
Às quinze horas e quarenta e cinco minutos ambos deixavam de existir.
Apesar da advertência do centurião, um dos soldados encarregado de acabar com os condenados, colocou-se por baixo do cadáver do Mestre, examinando-O atentamente. A verdade é que, nem Longino nem o resto da tropa se aperceberam das intenções do soldado. A maior parte dos romanos esforçava-se nos preparativos para a descida dos justiçados.
Suponho que procurando livrar-se de qualquer responsabilidade, o romano deitou mão a um pilum e, sem pensar duas vezes, espetou o flanco direito do Mestre, enterrando a lança quinze a vinte centímetros. Mas o corpo do Nazareno, como era de esperar, não teve reação. O soldado, convencido do falecimento do Prisioneiro, procurou retirar a arma. No entanto, a ponta em flecha do pilum esbarrou ou enganchou-se nos tecidos, resistindo.
À segunda tentativa, o flanco cedeu e o ferro ensangüentado ficou livre. Pela ferida, de uns quatro centímetros e meio de comprimento, saíram mansamente uns dez centímetros cúbicos de sangue e, a seguir, uma pequena quantidade de um líquido seroso. Ao aproximar-me e examinar a lançada notei que tinha entrado entre a quinta e a sexta costelas, com uma trajetória logicamente ascendente e que, presumivelmente, trespassara o plano muscular intercostal, as pleuras parietal e visceral, o pulmão e o pericárdio, entrando em cheio na aurícula direita. Esta zona do coração conserva precisamente uma certa quantidade de sangue líquido, uma vez ocorrido o óbito.
Em minha opinião, foi este o sangue que se derramou. Quanto a água que João, o Evangelista, diz ter visto, e que surgiu imediatamente depois do derrame sanguíneo, é muito possível que se tratasse do referido humor de caráter seroso que enche a cavidade existente entre as túnicas das pleuras pulmonares. (A visceral, como se sabe, adere intimamente ao pulmão e a parietal forra as paredes do tórax; por baixo, cobre o pulmão e o diafragma exceto no centro. Por dentro protege a face mediastínica e por fora a face interna das costelas.)
Quando a lança rasgou estas pleuras, o referido líquido, ao variar a pressão, acabou por sair, derramando-se imediatamente depois do sangue. À sua maneira, o jovem João dissera a verdade... Mas as afrontas ao corpo de Cristo não tinham terminado.
Tendo passado a escuridão e o vento forte, as moscas e os insetos caíram sobre os corpos dos crucificados, convertendo as feridas em coroas negruscas e palpitantes. Com uma grande experiência neste tipo de execuções, o carrasco encarregado dos encravamentos sugeriu ao oficial que se iniciasse a operação da descida pelo condenado que tinha morrido há mais tempo. Longino concordou. Também ele sabia que a rigidez cadavérica não tardaria a começar, dificultando os trabalhos do transporte para Geena.
Era simplesmente assombroso. Naqueles momentos - quase às quatro da tarde - nenhum dos discípulos ou amigos do Mestre viera ainda pedir o corpo do Rabi. A idéia do centurião, tal como o dera a entender o procurador, era retirar os corpos das cruzes e transportá-los para a vala comum. João, que seguia atentamente os movimentos dos soldados, não saíra das proximidades do patíbulo. Atendeu durante breves minutos um dos correios de David Zebedeu - informando-o do falecimento do Mestre - e, uma vez afastado o mensageiro, continuou junto do cabeço, visivelmente desmoralizado.
Quando o oficial romano se postou por baixo da cruz de Jesus, vigiando os preparativos da descida, reparou imediatamente na nova e grande ferida do flanco. O sangue começara a formar grossos grumos no franjado lábio inferior da ferida. Compreendeu imediatamente que o cadáver fora lanceado e, com grande irritação, voltou-se para os seus homens repreendendo-os pela desobediência. Mas ninguém disse nada. Sem perda de tempo, o carrasco começou a manipular a cabeça do cravo que atravessava o pé direito do Mestre, enquanto outro soldado encostava a escada de mão atrás da estipe, preparando novamente a comprida corda que tinham utilizado nos levantamentos.
Com precisão estudada, o legionário aprisionou a base do cravo a mãos ambas, fazendo-o oscilar para cima e para baixo. Sabiamente, o responsável pelo encravamento tinha deixado a cabeça a uns dez centímetros acima da pele. Desta forma, dispunha de espaço suficiente para o manejar. Poucos segundos depois, com um forte puxão, a ponta metálica estava fora da madeira e a extremidade inferior do Galileu relaxou-se totalmente, oscilando ligeiramente no vazio. O soldado agarrou então o calcanhar com a mão esquerda, arrancando o cravo com a direita.
Ao desenterrá-lo do peito do pé, o sangue brotou novamente, formando uma enorme rosa avermelhada em volta da ferida.
Antes de se postar diante do pé esquerdo, o carrasco certificou-se se o seu companheiro, no alto da escada, tinha atado a corda ao patibulum. Esperou até que rematasse a laçada central e, em seguida, repetiu a extração do segundo cravo.
Também aqui não se registrou problema algum. O corpo do Mestre pendia, inerte, escorrendo sangue pelas pontas dos pés. Os dedos grandes, encontravam-se visivelmente separados dos outros, muito forçados para o eixo central do cadáver. Boa parte do volume sanguíneo acumulado nas pernas, e que ficara relativamente estancado pelos próprios cravos, ao desaparecer o efeito hemostático começou a fluir, convertendo aquela parte da rocha num extenso charco em que os legionários escorregaram várias vezes.
Livres os pés, mais dois soldados se aferraram a ambos os lados da árvore e um terceiro e um quarto legionários, saltando para os ombros daqueles, dispuseram-se a repetir a operação do levantamento do madeiro transversal. Suspenso das operações não me apercebi de que a minúscula representação do Sinédrio se vira aumentada por outro grupo de sacerdotes recém-chegados à base do Gólgota. Aqueles sacerdotes preparavam-se para protagonizar outro lamentável acontecimento...
Em uníssono, os soldados postados por baixo de cada uma das pontas do patibulum e o que agarrava a corda do alto da escada fizeram força elevando o lenho até à afiada ponta da estipe ficar fora do orifício central do madeiro.
Naquele preciso instante, o soldado da escada deu um grito, avisando os que controlavam a corda em baixo e atrás da cruz que podiam ir afrouxando. E assim fizeram. Jesus e o madeiro foram baixando lentamente, palmo a palmo. Uns centímetros antes de os pés tocarem na rocha, de modo que o cadáver chegou ao solo totalmente horizontal. Ao recuar, esbarrei sem querer com alguém. Quando ia desculpar-me, deparei com o ancião José de Arimatéia, que era acompanhado por outro judeu de pequena estatura, cerca de um metro e cinqüenta.
José alegrou-se ao ver-me. Esboçou um triste sorriso e apresentou-me o seu companheiro, Nicodemo, como ele membro do Conselho do Sinédrio e da chamada nobreza laica de Jerusalém.
Os dois homens, com uma coragem que, na minha humilde opinião, nunca foi devidamente valorizada, traziam uma ordem assinada pelo próprio Pôncio Pilatos, autorizando a transladação do cadáver do Nazareno para um túmulo privado.
José, conhecendo a triste sorte sempre reservada aos justiçados - cujos corpos eram geralmente devorados pelas ratazanas e animais selvagens na vala de Geena -, apressara-se a visitar o procurador, suplicando-lhe a custódia do Mestre. Pelo que se via, este tipo de petições não era raro. Muitos dos familiares e amigos dos executados tinham por costume recorrer à máxima autoridade romana e, a troco de dinheiro ou de ofertas, conseguiam os seus propósitos.
José levara uma grande quantia ao Pretório.
Mas, quando Pilatos teve conhecimento das intenções do seu velho amigo, recusou o dinheiro, assinando imediatamente a autorização.
Mau foi José e Nicodemo terem chegado ao patíbulo pouco depois dos seus fanáticos companheiros do Sinédrio...
O centurião desenrolou o papiro e, depois de ler atentamente o texto, concordou, dando a sua autorização.
Mas a inesperada presença dos membros demitidos do Conselho de Justiça judeu junto das cruzes mobilizou imediatamente os saduceus. Os sacerdotes viram perfeitamente como José entregava o rolo ao oficial e suspeitaram que os discípulos do Galileu procuravam apossar-se do cadáver. Entretanto, o carrasco conseguira desencravar o pulso esquerdo de Jesus. E quando se preparava para fazer o mesmo com o último cravo, uma súbita gritaria o deteve.
A patrulha e todos nós vimos então como alguns dos juízes, vermelhos de ira, se precipitavam para o alto do Gólgota, exigindo o direito de dispor dos corpos dos três justiçados. Longino fez um sinal aos seus homens e os quinze legionários, com Arsenius na primeira fila, cobriram o rebordo oriental da penha, cortando a passagem aos furiosos sacerdotes. Estes, ao chegarem ao final da fenda que dava acesso ao promontório, pararam de repente, estupefatos perante os reflexos das ameaçadoras espadas. Mas, longe de recuarem, enfrentaram a escolta, exigindo o corpo do Mestre.
Parte dos curiosos que se tinham unido aos juízes, instigados e encorajados por estes, gritaram também, insultando os romanos e arremessando pedras. Os amotinados, enraivecidos, começaram a avançar para o Calvário.
Mas o centurião, desembainhando a espada, pôs-se à cabeça dos legionários e deu ordem de atacar. Em formação cerrada, os romanos começaram a avançar com passo firme e resoluto para os judeus que tinham subido até ao penhasco. Os seus rostos tensos, exprimindo uma raiva mal contida, fizeram-me tremer, pareciam estar dispostos a tudo.
Mas os sacerdotes, compreendendo o perigo, deram meia volta, fugindo em atropelo. Um ou dois, na sua precipitação, rolaram pelo caminho, sendo espezinhados sem piedade pela patrulha que, em fila, corria na direção dos hebreus furiosos.
O ataque não tardou a surtir efeito. Quando o populacho viu os soldados de espadas ao alto, dispostos a massacrá-los se fosse preciso, recuaram, dispersando em todas as direções.
Uma vez restabelecida a ordem, o pelotão voltou ao alto da rocha, formando um novo e mais numeroso cinturão de segurança em volta das cruzes.
João e as mulheres, que tinham sido obrigados a correr, fugindo da furiosa carga, viram de longe como o carrasco concluía o seu trabalho de desencravamento de Jesus. Os restantes sacerdotes e judeus que se tinham rebelado desapareceram pelos campos e no interior da cidade. Só uns poucos, de longe, e dispersos, se atreveram a espiar os movimentos dos guardas.
Mas em momento algum tiveram coragem para se aproximarem a menos de cem metros do patíbulo.
Apesar do forçado isolamento do Calvário, Longino - procurando agir sempre com um mínimo de justiça - chegou à beira do promontório e, levantando a voz, leu a ordem de Pilatos. Duvido muito que os enraivecidos juízes chegassem a escutar o oficial.
Depois, avançando para José de Arimatéia, comunicou-lhe solenemente:
- Este corpo pertence-te. Faz o que consideres necessário. Os meus soldados te ajudarão para que ninguém se oponha ao teu desejo.
O ancião, pálido ainda pelo susto, agradeceu as palavras de Longino e, na companhia de Nicodemo, dirigiu-se para o lugar onde se encontrava o cadáver do Mestre. O patibulum fora retirado e também o elmo espinhoso, que foi arremessado com força pelo carrasco para o pequeno penhasco situado a ocidente. Nem José nem o seu amigo nem os soldados prestaram a menor atenção à coroa de espinhos.
Só eu o vi perder-se no mato do terreno acidentado. Enquanto os soldados iniciavam a segunda descida, o velho José ajoelhou-se junto da cabeça martirizada de Jesus e, depois de O contemplar em silêncio, estendeu a mão baixando a pálpebra direita do Mestre.
Depois de vinte ou trinta segundos retirou os dedos, mas o olho do Galileu voltou a abrir-se. José pousou de novo a mão sobre a pálpebra, e assim esteve durante quase dois minutos. Nesse momento, uma lágrima solitária correu pelo rosto do amigo do Nazareno.
Embora o rigor mortis - que se veria indubitavelmente acelerado pela tetanização - só começasse umas seis horas depois do falecimento, o certo é que a queda do maxilar inferior me fez suspeitar de que os músculos da boca, que ficara aberta, não tardariam a entrar em rigidez. Por outro lado, a perna esquerda do Mestre encontrava-se flexionada, possivelmente pela posição forçada e constante na cruz. Os dedos - em garra - e com os polegares virados para o centro das palmas, tinham-se tornado muito mais azulados.
Uma vez fechado aquele olho de Jesus, Nicodemo pousou no chão um par de saquinhos que, unidos por um cordel, pendiam do seu ombro esquerdo e dos quais não se separara durante todo aquele tempo.
Com a ajuda de José desdobrou por toda a zona seca da rocha um lençol branco que trazia dobrado debaixo do braço. (Segundo me confessaria naquela mesma noite no domicílio de Elias Marcos, José de Arimatéia tinha comprado aquelas seis varas de pano de um comerciante da vizinha localidade de Palmira, a norte.) Examinei o tecido e verifiquei que se tratava de um pano de linho. Medi-o dissimuladamente com a ajuda da vara de Moisés e deduzi que tinha uns 4,30 metros de comprimento por um pouco mais de um metro de largura. (Na nossa segunda aventura, as análises verificadas no interior do módulo sobre esse pano dariam assombrosos e desconcertantes dados quanto ao que pôde acontecer no sepulcro e que, sem dar lugar a dúvidas, coroaram a nossa missão. Na referida análise, verificamos, por exemplo, que as dimensões exatas do pano eram 4,36 x 1,10 metros, com um peso de 234 gramas por metro quadrado. Quer dizer, o peso
total daqueles 4,80 metros quadrados elevava-se a 1123 gramas.
A fibra, efetivamente, era de linho e nas ampliações até cinco mil vezes apareceu uma estrutura denominada quatro em espiga ou em cauda de peixe. Este tecido de sarja, tal como Nicodemo me dissera, provinha dos teares de Palmira. Curiosamente, este tipo de confecção só entraria na Europa em meados do século XIV. Mas não desejo alongar-me sobre as nossas fascinantes descobertas no lençol que cobriu o cadáver de Cristo durante aquelas históricas trinta e seis horas...).
José de Arimatéia viu a posição do Sol e apressou Nicodemo para que o ajudasse a transportar o cadáver para o lençol estendido. O ancião postou-se junto da cabeça do Mestre e o amigo, por sua vez, aos pés. Ambos se inclinaram ao mesmo tempo. José enfiou as mãos por baixo dos ombros do Galileu, segurando-o pelas axilas. Nicodemo fez o mesmo, agarrando o Gigante pelos tornozelos. Trocaram um olhar e, quando consideraram estar preparados, tentaram levantar o pesado corpo. E digo tentaram porque, naturalmente, só Arimatéia conseguiu levantá-lo uns centímetros.
Tentaram segunda vez, mas foi igualmente inútil. Os funcionários judiciais e aquelas pessoas que alguma vez se viram na obrigação de mover um cadáver sabem por experiência que não é nada fácil. E, menos ainda, se os pontos de apoio não forem os adequados. Era este o caso de Nicodemo...
Absolutamente impotentes para levantarem o Nazareno, José não teve outro remédio que não fosse o de solicitar o auxílio do oficial. Longino, compreendendo a delicada situação dos hebreus, suspendeu o desencravamento de Dimas, que ficou pendurado do patibulum. Um dos legionários, mais jovem e robusto que José, encarregou-se da parte superior do Mestre. Passou os braços pelas axilas, levantou o tronco do cadáver do Rabi. Ao mesmo tempo, outro soldado dobrou ao máximo os joelhos de Jesus, abraçando ambas as pernas pela altura das curvas. O corpo do Galileu formou então um V e, com a ajuda de mais dois soldados que colocaram as mãos nos rins e nas costas do Cristo - os oitenta ou oitenta e dois quilos do Filho do Homem puderam ser levantados e levados para o lençol.
O corpo foi depositado a uns vinte centímetros da ponta da mortalha mais perto das cruzes, com a cabeça quase ao centro do lençol. Naquela deslocação de apenas cinco metros, a intensa flexão do tronco comprimiu as vísceras torácicas e abdominais, dando lugar a uma hemorragia. Sem dúvida, a pressão esvaziou uma das veias cavas (possivelmente a inferior) e um largo fio de sangue brotou pela ferida da lança, jorrando pelo flanco direito, escorrendo ao longo das costas, até à cintura. Nicodemo tentou baixar o joelho esquerdo do Mestre mas, embora o fizesse descer uns centímetros, os hematomas, as articulações dilaceradas e a rigidez da perna tornaram impossível abaixá-la totalmente.
José de Arimatéia acabou com os esforços do seu companheiro, cobrindo o cadáver com os dois largos metros de linho que tinham ficado livres. O oficial, que acompanhava atentamente a manobra, compreendeu imediatamente que as dificuldades daquela voluntariosa parelha de sacerdotes não terminariam ali. Confusos, Nicodemo e José, ao compreenderem que o transporte de Jesus requeria a colaboração de, pelo menos, quatro homens, voltaram-se, implorando, para Longino. E este, sorrindo, entregou ao seu lugar-tenente a tarefa da descida dos zelotas, dizendo depois a quatro dos seus homens mais corpulentos que o acompanhassem bem como aos proprietários do cadáver até ao túmulo escolhido.
Nicodemo e José rogaram ao oficial que lhes permitisse ajudar no transporte do improvisado féretro. E assim se fez. Pelas dezesseis horas e trinta minutos, o próprio centurião, outro legionário e os dois amigos de Jesus levantaram a mortalha do frio solo do patíbulo, carregando os restos mortais do Filho do Homem. Atrás, os outros soldados, com as espadas desembainhadas e eu, com a alma tão descarnada como aquela funesta rocha que nunca esquecerei.
Devia ter pensado nisso. Embora João fale na sua narrativa de um sepulcro situado no mesmo local onde o Mestre fora crucificado, por mais que olhasse enquanto estive no alto do Gólgota não consegui descobrir um só ponto - próximo do penhasco - que reunisse as principais características indicadas pelos evangelistas, quer dizer, um jardim e alguma penha onde se pudesse escavar um túmulo.
Mas depressa ficaria esclarecido este novo mistério. Mal tínhamos descido do maciço rochoso, o jovem Zebedeu e as mulheres vieram ao nosso encontro. José tranqüilizou o centurião que, ao ver aproximar-se o reduzido grupo, se pôs em guarda. Quase de joelhos, o apóstolo suplicou ao legionário que agarrava uma das pontas da mortalha que lhe cedesse o seu lugar. Longino respondeu ao interrogativo olhar do seu soldado com um movimento de cabeça afirmativo e João substituiu-o na transladação.
Nenhum crucificado podia ser enterrado num cemitério judeu. Assim o estabelecia a Lei. José e Nicodemo sabiam-no e, antes mesmo de visitarem Pilatos, tinham previsto enterrar o Mestre numa das propriedades de Arimatéia. Mas o final daquela trágica sexta-feira aproximava-se a passos de gigante. As trombetas do Templo não tardariam a anunciar o anoitecer e, com ele, a entrada do sábado e da solene festa da Páscoa. Era preciso andar depressa.
E os antigos membros do Sinédrio, que seguravam a mortalha com os pés, apressaram o passo. Atrás, a quatro ou cinco metros, seguiam-nos Maria, a de Madalena, Maria, a mulher de Cleopás, Marta, outra das irmãs da mãe de Jesus, e Rebeca de Seforis.
Os legionários, por sua vez, tinham-se dividido, cobrindo os flancos do cadáver. Ao contemplar aquele cortejo fúnebre silencioso e esquivo, não pude reprimir uma tristíssima sensação de solidão. Abandonado pela maioria dos amigos e adeptos fiéis, ultrajado quase depois da descida por aquela turba de fanáticos, agora – a caminho do sepulcro - nem sequer podia receber um funeral com o mínimo de dignidade e repouso.
Até o mais pobre e miserável dos Judeus, segundo a Lei, tinha o direito, pelo menos, a um enterro com dois músicos de flauta e uma carpideira. Para o Nazareno não restavam lágrimas.
Os corações das mulheres e dos seus três amigos tinham secado. Quanto ao acompanhamento, tudo o que recordo foi os passos apressados da escolta e dos que carregavam o cadáver, arrastando cardos e abrolhos.
José de Arimatéia e Nicodemo orientaram a transladação, ladeando a muralha norte de Jerusalém e seguindo praticamente o mesmo itinerário da via dolorosa. Atravessamos a estrada de Samaria e dez ou quinze minutos depois de ter abandonado o patíbulo, suada e com os dedos doridos pelo peso do corpo, a comitiva parou diante de um jardim. Encontrávamo-nos ao norte do Gólgota e relativamente perto da Torre Antonia, aproximadamente a uns cem ou cento e cinqüenta metros. (Era natural que os ricos proprietários de Jerusalém não situassem as suas herdades e plantações ou jardins de recreio perto daquele penhasco onde se justiçavam os ladrões e criminosos. Aquele, em contrapartida, parecia ser um lugar tranqüilo e formoso.) Uma das mulheres, julgo que foi Madalena, adiantou-se e soltou a corda que, à maneira de laço, prendia uma porta de madeira, de um metro de altura, a uma cerca de estacas impecavelmente caiadas. A sebe, de altura semelhante à da cancela de entrada, perdia-se, à direita e à esquerda, entre o emaranhado de uma infinidade de árvores frutíferas. Ao rodar, as ferragens articuladas dos gonzos gritaram como um animal ferido. O grupo precipitou-se para o interior da herdade. Caminhamos cerca de cinqüenta passos, sempre numa frondosa plantação de pequenas árvores selecionadas, até chegar a uma bifurcação do estreito caminho que começava precisamente no umbral da porta do jardim.
Após uma breve pausa, suficiente para recuperar o fôlego, José e Nicodemo deram indicações aos soldados e metemos por um caminho à direita. O da esquerda ia dar a uma casinha situada aí a uma centena de metros e que a julgar pela coluna de fumo coleante e espigada, que escapava pela chaminé, devia ser habitada.
Dois pequenos cães acorreram de entre as árvores, saltando e ladrando alegremente às pernas de José de Arimatéia. Mas o ancião, com um grito autoritário, mandou-os embora.
A uns vinte metros da bifurcação apareceu na minha frente uma suave elevação de terreno. Era uma formação calcária que não sobressairia mais de metro e meio do nível do chão.
Paramos, e José de Arimatéia anunciou ao oficial que podiam depositar o corpo de Jesus no solo. A dois passos do ponto onde repousava o cadáver do Nazareno, o terreno argiloso que rodeava a uma cunha rochosa tinha sido removido. José, proprietário do sítio, mandara construir umas escadas rústicas, que desciam atém uma estreita galeria de apenas dois metros de largura. Ao descer os cinco degraus, encontrávamo-nos num corredor diante de uma fachada, perfeitamente trabalhada na rocha viva. Grosso modo, calculei a altura daquela parede rochosa nuns três metros.
No centro havia uma pequeníssima porta quadrangular, de noventa centímetros de lado. José rogou-nos que o desculpássemos e afastou-se correndo em direção à casinha.
Enquanto os soldados aproveitavam a parada para sentar e descansar, acocorei-me e tentei dar uma olhadela no interior da cripta. Uma pedra redonda, muito parecida com uma mó de moinho, de um metro de diâmetro, repousava à esquerda da boca de entrada no sepulcro. Mesmo ao pé da fachada fora aberta uma calha de uns vinte centímetros de profundidade por uns trinta de lado que corria a toda a largura. A pedra, cujo peso devia ser superior a quinhentos quilos, e tão toscamente polida quanto a fachada, estava colocada de tal maneira que, para tapar a estreita abertura que fazia às vezes de porta - bastava fazê-la rolar na calha, a que se ajustava quase matematicamente. Ao passar a mão por aquela mole redonda imaginei o enorme esforço que deviam ter tido os operários para a transportarem até ao fundo da galeria e, naturalmente, o que exigiria cada encerramento e abertura do sepulcro.
Mas, ao meter a cabeça dentro da cripta, a escuridão era tal que não consegui distinguir-lhe a profundidade nem a altura das paredes nem qualquer outro pormenor.
Levantei-me e enquanto esperava José, entreguei-me a medir aquela espécie de antecâmara ou galeria, da fachada ao último degrau eram 2,20 metros. As paredes da galeria, a céu aberto, iam baixando desde os três metros (altura máxima que correspondia à fachada do sepulcro) até pouco mais ou menos um metro ao nível do degrau mais alto.
As minhas medições foram interrompidas pelo regresso do ancião, que vinha acompanhado de um hebreu de cerca de cinqüenta anos de barba curta e cuidada e de corpulência que instintivamente me lembrou o falecido Mestre.
Trazia na cabeça um chapéu largo de palha e carregava uma volumosa e pesada ânfora. José trazia dois archotes de cabo curto e uma espécie de pequena trouxa. Pelas cinco da tarde, o dono do jardim ajoelhou-se na frente da câmara sepulcral e, com extremo cuidado, alongou a mão esquerda, colocando um dos archotes no interior da cripta. Depois entregou o segundo facho ao seu servo e jardineiro, que, hierático e mudo como uma estátua, não se moveria da galeria.
José, sempre naquela posição incômoda, arrastou-se, penetrando na gruta.
O tremeluzir avermelhado do archote dentro do sepulcro desapareceu segundos depois. E o ancião , assomando a cabeça pela abertura, pediu o segundo archote. O seu ajudante apressou-se a entregá-lo, fazendo o mesmo com a trouxa.
Quando José considerou que tudo estava preparado, saiu do sepulcro, dizendo a Nicodemo que descesse o corpo do Mestre. Os soldados cumpriram a ordem, colocando o cadáver sobre a terra vermelha e calcada da galeria, orientando-o de modo a que a cabeça ficasse voltada para a porta estreita. José de Arimatéia voltou então ao interior, seguido pelo centurião.
Uma vez lá dentro, ambos começaram a puxar pela mortalha, sendo ajudados de fora por mais três legionários. Quando, por fim, o corpo foi introduzido no sepulcro, Nicodemo passou a José o par de sacos, que ainda trazia pendurados do ombro, e a ânfora. Satisfeita esta última parte da laboriosa transladação aquele inclinou-se também e, de joelhos, perdeu-se na mortiça claridade do sepulcro, seguido por João.
Ignorando se tinha lugar, aventurei-me a seguir Nicodemo. O meu metro e oitenta de altura obrigou-me a dobrar a espinha e a arrastar-me por um piso tão rugoso quanto ingrato.
Ao levantar os olhos encontrei-me num espaço quadrado, de uns três metros de lado e 1,70 metros de altura, aproximadamente. (Deste último número estou bastante certo porque, durante o tempo que permaneci dentro da cripta, não tive outro remédio senão inclinar a cabeça para não bater no teto rochoso, duramente trabalhado à base de escopro de cantaria, a julgar pelos cortes em bisel da abóbada e das paredes.) A minha intromissão foi bem recebida. Quando me levantei, os quatro homens esforçavam-se por levantar o cadáver até uma espécie de banco de sessenta e cinco centímetros de altura, igualmente roubado da rocha e aberto na parede direita (tomando como referência a abertura da entrada).
Apressei-me a unir os meus esforços aos deles, colaborando no último levantamento do Nazareno. Sei que aquele pobre e insignificante gesto não teria sido aprovado pelo código rigoroso do Projeto, mas que importância pode isso ter agora... Os restos mortais de Jesus descansavam finalmente num leito de pedra de 1,89 metros de comprimento por 0,93 metros de largura. Para dizer a verdade, o túmulo parecia escavado expressamente para o grande corpo do Galileu.
José apressou-se a descobrir o cadáver, enquanto Nicodemo abria o saco de pano, extraindo, em primeiro lugar, duas penas totalmente brancas, que, à primeira vista, poderiam ser de algum tipo de ave doméstica.
À luz trêmula dos archotes - colocados por José em cada um dos cantos do altar ou poial de rocha - apareceu novamente diante de todos o ensangüentado, sujo e malcheiroso corpo de quem umas horas antes fora o majestoso Filho do Homem. As crostas de excrementos tinham acabado se secando na pele das coxas e pernas, exalando um fedor insuportável.
Embora só tivessem decorrido duas horas desde o momento da morte clínica, os pés, com as unhas azuladas, apresentavam uma contração post mortem com predomínio extensor dos dedos. A rigidez, tal como eu temia, avançava sem remédio. A cabeça, caída para o lado direito, conservava a boca aberta, apresentando um tom lívido e um acentuado arroxeado dos lábios. O tórax, totalmente relaxado, estava coberto por uma mistura de terra e sangue seco, com uma miríade de coágulos que não obedecia à lei da gravidade e que despontava sobre toda a caixa torácica.
Observei o afundamento do epigástrio e, com ele, as pregas do abdômen, especialmente na sua metade inferior. Mas o que mais me atraiu a atenção foi a mão direita. As costas e o bordo cubital encontravam-se praticamente ocultos por uma grande mancha de sangue coagulado e os quatro dedos longos, com uma acentuada cianose e dimensões ligeiramente superiores às da esquerda, que conservavam o referido bloqueamento em forma de garra. Aquela hiper-extensão dos quatro dedos longos da mão direita, na minha opinião, só podia ser originada por alguma das terríveis lesões, nos correspondentes músculos extensores, derivadas da extração do cravo e da segunda perfuração do carpo.
O joelho esquerdo continuava dobrado e ambos os cotovelos rígidos, mantinham os braços em flexão.
Quando vi como Nicodemo introduzia as pequenas penas nas fossas nasais de Jesus compreendi as suas intenções. Se o suposto falecido conservasse um mínimo de vida, o roçar das penas irritava as mucosas, excitando assim a respiração. Era, tal como escrevera o rabino A. Levy, o certificado da morte.
Não é preciso dizer que o Galileu não manifestou reação alguma. Cumprido o trâmite, José voltou a assomar-se à entrada do sepulcro, logo regressando.
- Temos de andar depressa - disse em voz baixa. – Não tardar aí o sábado!
Abrindo a ânfora, verteu parte da água num pedaço de esponja, acinzentada e perfumada por centenas de minúsculos orifícios. Nicodemo postou-se aos pés do Mestre levantando a extremidade inferior esquerda até onde foi possível. José de Arimatéia despiu o manto e arregaçando a túnica, começou a esfregar e a limpar a face posterior da coxa e da perna.
Repetiu depois a lavagem da perna direita, concluindo com uma série de deficientes fricções nas nádegas, testículos e ânus de Jesus.
- Melhor deixá-lo assim... - disse Nicodemo, cada vez mais nervoso ante a aproximação do final da sexta-feira. José de Arimatéia arremessou a esponja para o chão e começou a desatar os sacos de raízes, enquanto o seu companheiro procurava no fundo do saco.
Um dos sacos continha entre quinze e vinte quilos de um pó granulado, de tom amarelo-ouro, muito aromático e que bastou abri-lo, para se espalhar uma fragrância deliciosa por toda a cripta.
Longino e eu entreolhamo-nos, agradecendo aquela súbita mudança no pesado ambiente do túmulo. No segundo saco, distingui um bojudo jarro de cobre perfeitamente lacrado com um tampão de pano, que foi aberto. José voltou-se para Nicodemo, repreendendo-o pela sua lentidão.
Por fim, entre as mãos peludas do antigo membro do Sinédrio, vi aparecer retalhos de pano. Eram umas tiras estreitas, esgarçadas e que, pela irregularidade dos fios, deviam ter sido rasgadas à mão e apressadamente de algum pano velho. Nicodemo escolheu uma daquelas vendas (de pouco mais de um metro de comprimento) e, puxando pelas duas pontas, esticou-a e estabilizou-a a uns dois palmos acima do saco que albergava o pó dourado. Sem perder um instante, José de Arimatéia enfiou a mão esquerda no saco, trazendo um punhado daquela espécie de pó, e deixou-o cair pela parte inferior do punho, cobrindo mais que generosamente a superfície do pano.
O pulso trêmulo do ancião fez que boa parte do acíbara ou aloés - pois de tal se tratava - caísse no saco ou se derramasse no chão rude da câmara mortuária. Sem muita dissimulação guardei um pedacinho daquele pó. Uma vez de regresso ao módulo, e submetido à correspondente análise microscópica, Cavalo de Tróia soube que aquela substância era na realidade uma das variantes do acíbara, o chamado sucotrino, que deve o seu nome à ilha de Socotor , à entrada do golfo Arábico. Apresenta-se geralmente em blocos de fratura brilhante e como que vítrea, vermelhos, esverdeados ou amarelados e que submetidos a pulverização, proporcionam um produto granulado, idêntico ao que tinha em frente dos olhos. No caso do aloés originário de Socotor, a sua origem, como noutros tipos de acíbara - hepático ou das Barbadas, eqüino, etc. - está no sumo que se extrai de diferentes espécies botânicas. Trata-se de plantas grandes e vistosas, da família das Liliáceas (tribo das Asfodelos), que crescem nas regiões quentes da Ásia, África e América. Do centro de um conjunto de folhas grandes e carnudas, com bordos armados de espinhos, sai um talo ou pedúnculo vigoroso que eleva no topo uma longa espiga de flores tubulosas, geralmente bilabiadas e vermelhas.
Esse sumo é produzido pelas folhas. José levantou-se e, aproximando-se dos pés do Mestre, tentou juntá-los, levantando-os de modo a que o seu companheiro pudesse passar a peça de pano, impregnada de acíbara, por altura dos tornozelos.
A seguir, Nicodemo foi soprando o aloés e, para surpresa minha, o seu particular aroma tornou-se mais intenso e penetrante. Atou a venda nos artelhos e, voltando ao saco, repetiu a operação com uma segunda tira. Nesta altura, antes de atar as mãos do Galileu, José teve a precaução de as depositar reverente e pudicamente sobre o púbis do cadáver. A esquerda por cima da direita. Tanto aquela como esta apresentavam uma roseta de sangue coalhado na parte superior do pulso. A forma triangular da ferida, com os seus bordos negros e descarnados, fez-me estremecer. Uma vez atado, tal como indicava a Lei judaica, os amigos do Rabi inclinaram-se novamente para os saquitéis.
Nicodemo removeu o conteúdo do jarro enquanto José enchia ambas as mãos com uma apreciável quantidade de acíbara. Na palma esquerda do primeiro apareceu uma substância pastosa, de aspecto gomo-resinoso, que cintilou à luz dos archotes como um milhar de lágrimas avermelhadas. Era mirra. O seu cheiro forte, muito menos agradável que o do aloés, misturou-se em seguida com o do pó granulado, sufocando-me.
Nicodemo colocou-se na frente da metade superior do cadáver, enquanto o velho José fazia o mesmo junto dos membros inferiores de Jesus de Nazaré. José de Arimatéia permaneceu uns segundos com as mãos firmemente fechadas, aprisionando o pó dourado. Quando as abriu, a acíbara tinha-se transformado numa massa macia, quase plástica. Ao mesmo tempo, ambos pegaram as massas de mirra e aloés, untando e fechando as brechas e orifícios naturais do corpo.
Nicodemo ocupou-se das fossas nasais, ouvidos e das grandes feridas das ilhargas. José dos profundos rasgões dos joelhos, cravos das mãos e pés e da rede de pequenos orifícios provocados pelas cardas das sandálias dos soldados (paradoxalmente, aqueles que O tinham defendido depois de morto...).
Ficavaevidente a pressa daqueles homens. Se tivessem atuado com menos rapidez, era bem provável que o tamponamento só tivesse sido feito por último. Uma prova do que digo surgiu quando José recordou que faltava o reto. Mas os membros inferiores de Jesus estavam atados e foi precisa a ajuda de Nicodemo que, resmungando, levantou novamente as pernas do Galileu, possibilitando que o ancião tamponasse o ânus. Naturalmente, ao levar a cabo esta manobra, grande parte do pó dourado depositado na faixa que mantinha unidos os pés escorregou, caindo na mortalha de linho.
Ao terminar, José, enervado pela chegada do crepúsculo, dirigiu-se novamente à pequena porta. Mas, na sua precipitação, tropeçou na ânfora e pouco faltou para que caísse de bruços. Uma vez verificada a posição do Sol, voltou ao banco de pedra, resmungando qualquer coisa em voz baixa.
Então, Nicodemo - mais sereno que José - tinha desatado do braço direito um comprido lenço cor de bago de romã, utilizado habitualmente por aquelas pessoas para enxugar o suor. Torceu-o habilmente, com ele rodeando a cabeça de Jesus.
O lenço fortemente atado no alto da cabeça levantou o maxilar inferior, fechando assim a boca do Cristo.
Tudo estava consumado naquele frenético e provisório enterro. Antes de abandonar a cripta, enquanto Nicodemo recolhia e levava para fora os diversos instrumentos, José pegou na sua bolsa e ao acaso, retirou duas pequenas moedas de bronze de uns dezesseis milímetros de diâmetro cada uma.
Cumprindo um velhíssimo costume, José de Arimatéia colocou-as sobre as pálpebras do Nazareno. Mas a grande inflamação do olho esquerdo fez escorregar o leptom.
Ainda que a cabeça do Mestre tivesse sido escorada – junto das orelhas - por apoios de mirra, a tremenda deformação da região malar mantinha o olho enterrado, tornando difícil a colocação da moeda sobre a pálpebra quase irreconhecível. Mas José insistiu, conseguindo um equilíbrio precário da moeda sobre os hematomas.
Os archotes, com o seu cintilar, puseram um lampejo de vida nas superfícies brilhantes dos leptones. Ao inclinar-me, verifiquei que a cunhagem de ambas era extremamente rudimentar, com uma efígie descentralizada e numerosas imperfeições. As duas provinham certamente da mesma emissão, a julgar pelas inscrições idênticas e lituus ou cajado central e, principalmente, pelo mesmo erro ortográfico nas letras que cingiam em círculo a efígie do lituus ou cajado mágico 3. A legenda em questão dizia assim: TlsErIoY CaIcAroc. Ou seja, Tiberiou Kaisaris ou de Tibério César.
Com curiosidade, peguei na moedinha da pálpebra direita e, no reverso, descobri a não menos gasta silhueta de um simpulum ou caneca utilizada nas oferendas rituais das libações pagãs.
No centro, junto desta conhecida a péssima reputação do procurador romano como cunhador de moedas, não estranhei excessivamente. Outro erro, conseqüência do comodismo, dos moedeiros, aparece nos dois últimos C de CAICAPOC. Na realidade, a mencionada palavra grega deveria ter sido escrita com E (letra sigma). Provavelmente, os artesãos preferiram truncar o aborrecido
sinal, deixando-o reduzido a metade: <, ou C (N. do M.)
* Esta moeda. semelhante à perutaháde Agripa I, era cunhada em Jerusalém. Encontraram-se exemplares emitidos por Copônio, Valério Graco, Pôncio Pilatos e António Felix. O seu valor era mínimo: um denário de prata valia 192 perutah, aproximadamente. (N. do M.)
2 Ao consultar os principais catálogos mundiais de moedas judaicas do tempo de Cristo - especialmente o de moedas antigas do Museu Britânico e o livro de Madden sobre moedas judaicas, publicado em 1864 e reimpresso em 1967 - especialistas de Cavalo de Tróia verificaram que a maior parte das moedas cunhadas por Pôncio Pilatos (de 26 a 36 da nossa Era) se distinguiam precisamente por sinais como lituus simpulum, etc., que, pelo seu caráter pagão, ofendiam os sentimentos religiosos do povo hebreu. No caso do lituus, ou cajado do áugure ou adivinho é de supor que esta ousadia de Pilatos - único governador romano que se atreveu a ferir assim a fibra religiosa da Judéia - encerrasse também um alto grau de adulação a Tibério, grande entusiasta, como vimos dos astrólogos. (N. do M.)
3 Um dos erros de ortografia mais evidentes era o C inicial da palavra CAICAPOC. Natural seria que o responsável pela cunhagem tivesse cunhado o referido título com o K, grego: ,KAICAPOC ou Kaisarisô (de Césarô). Mas, por outro lado, escudela ou púcaro, lia-se o número 16, formado por um jota (equivalente ao 10 e o chamado episemon, que corresponde ao
6). Por outras palavras, a data 16 ano do reinado de Tibério César ou 29 da Era Cristã.
Antes de o cobrir definitivamente com metade da mortalha, o bom amigo de Jesus ajoelhou-se diante do cadáver e, baixando a cabeça, guardou uns minutos de silêncio. O Zebedeu imitou-o. Foram momentos especialmente intensos e emotivos. Compreendi, com desolação, que aquela era a última vez que veria o corpo sem vida do Mestre. Não devo ocultar que, ao olhar para os Seus restos destroçados, me assaltou uma dúvida densa e aflitiva como aquela câmara funerária; ressuscitaria, tal como tinha anunciado? Aquela catástrofe devastadora tinha reduzido o Seu corpo à ruína...
Confesso com toda a sinceridade. O meu espírito científico rebelou-se. Ninguém que eu saiba, o conseguira em toda a história da humanidade. Como iria conseguir aquele Galileu, tão humano como os outros? Se realmente gozava de poderes tão extraordinários, porque não tinha evitado tanto suplício e, principalmente, uma morte tão cruel e humilhante? Nicodemo e quase todos os Seus amigos e discípulos também não estavam muito certos da ressurreição anunciada do Seu Mestre, o próprio José duvidava. Um sinal palpável do que disse estava justamente naquele rápido e provisório embelezamento do cadáver. As intenções do ancião de Arimatéia, do seu companheiro e das mulheres que esperavam fora da cripta, nada tinham a ver com a suposta ressurreição do Rabi. Se, na verdade, tivessem acreditado num acontecimento tão prodigioso, por que razão adiar o definitivo embalsamamento do corpo de Jesus para depois da festa de sábado?
O mais natural teria sido não fechar sequer as feridas nem cobri-las com aqueles produtos aromáticos, destinados unicamente a contrariar o fedor próximo da putrefação.
Curvado, aturdido e extremamente cansado por tantas emoções e pela falta de sono, não fui capaz de formular um só pensamento ou uma fugaz oração perante o Filho do Homem. Com grande desolação da minha parte descobri que não me lembrava de nenhuma daquelas poucas orações que aprendi na minha meninice. No entanto, também eu me uni, simbolicamente, a José de Arimatéia quando, levantando-se, se inclinou para a testa do amigo, nela depositando um terno e prolongado beijo. Depois, cobriu o corpo de Jesus com a mortalha, pegando nos archotes.
Apressei-me a apanhar o manto e naquele momento, ao baixar-me, descobri num dos cantos da câmara - meio escondidos na penumbra dois cestos de vime, cheios de entulho, e uma pequena picareta. José reparou no que eu observara, desculpando-se pela desordem do lugar. Segundo comentou, o sepulcro ainda se encontrava em obras...
Pelas dezessete horas e quarenta e cinco minutos, Longino, José e eu saímos da galeria. O resto foi relativamente fácil. Enquanto José de Arimatéia segurava os archotes, o centurião, os seus quatro soldados e o hortelão empurraram a rocha circular, pondo-a a rolar pela profunda ranhura até tapar totalmente a pequena abertura da fachada. E insisto no relativamente fácil porque, se não estivessem ali aqueles seis homens, não sei como se arranjariam José e Nicodemo para deslocar meia tonelada...
O rangido sinistro e aterrador da penha, no seu último roçar pela parede principal do sepulcro, pôs ponto final a muitas das esperanças daqueles homens e mulheres. Como era possível supor em tais momentos que o encerramento do sepulcro não era mais que um parêntese breve nesta inacreditável e desconcertante história?
Antes de partir para Jerusalém, José agradeceu a decisiva e inestimável ajuda dos legionários entregando a cada um deles uma generosa quantia. Julgo não me enganar mas, a partir daquela sexta-feira, a amizade entre Longino e José de Arimatéia germinou, firme e sincera. Ao abandonar o jardim, as mulheres, que tinham se mantido afastadas do sepulcro, tal como especificava a Lei judaica, uniram-se aos cansados passos de José, manifestando as suas dúvidas quanto à perfeição com que teria sido feito aquele apressado enterro do Mestre.
Tanto Nicodemo como o ancião concordaram com as apreciações das hebréias, autorizando-as a que, mal despontasse domingo, procedessem um embalsamamento mais correto. Nicodemo, inclusive, entregou-lhes o que restava de acibara e mirra, comentando que, embora eles tentassem estar presentes, não se esquecessem de aparar o cabelo e a barba de Jesus, de lavá-lo esmeradamente e colocar sobre o seu corpo a pena ou a chave, símbolo do seu celibato, tal como se fazia desde tempos imemoriais.
Diante da Porta dos Peixes, o oficial e os seus homens despediram-se dirigindo-se novamente para o Gólgota, com a expressa missão de transportar os corpos dos zelotas para a vala da Geena. Pelas seis horas daquela tarde, quando nos encontrávamos a poucos passos da casa de Elias Marcos, três toques de trompa vieram da cúpula do Templo, anunciando à cidade o final da jornada.
A partir daquele momento, em plena festividade da Páscoa, a atividade em Jerusalém foi decrescendo. As pessoas, alegres e recompostas do susto provocado pelos tremores de terra, corriam apressadas para os seus lares, dispostas a festejar e dar boa conta da ceia pascal. Não sei por que razão, mas aquela excitação e as constantes saudações dos hebreus, desejando mutuamente paz quando se cruzavam nas apertadas ruelas, trouxe-me à memória o ambiente festivo e tão especial das tardes que precediam o Natal e que eu tinha vivido no meu país.
Curiosamente, salvo Nicodemo, o jovem João e o grupo de mulheres, que caminhavam cabisbaixos, os restantes peregrinos e habitantes da Cidade Santa não se mostravam aflitos - nem nada que se parecesse - pelo que acabava de acontecer no penhasco do Calvário.
Estou convencido de que uma imensa maioria, não conhecia ainda a trágica morte do profeta da Galiléia. E se o sabiam, evidentemente o tinham esquecido ou não se preocupavam...
Este era o triste mas autêntico e real panorama de Jerusalém a 7 de Abril do ano 30. Um dia que, durante muito tempo, seria recordado, não pela crucifixão de Jesus de Nazaré, mas pelo nefasto augúrio do obscurecimento do Sol e sismo posterior.
Nicodemo e João despediram-se à porta do domicilio de Marcos. O primeiro, resolvido a reunir-se com os apóstolos que se tinham refugiado em sua casa e a celebrar com eles a obrigatória Páscoa. O jovem Zebedeu, por sua vez, desalentado e mergulhado numa tristeza infinita, dirigiu-se a sua casa, onde o esperava Maria, a mãe do Nazareno.
José aceitou acompanhar as mulheres até à mansão dos Marcos, onde se encontravam as companheiras que Jude trouxera do patíbulo. A família, desolada pelos acontecimentos, acolheu o ancião e as hebréias com grande solicitude, rogando-lhes que a pusessem ao corrente de quanto acontecera a partir da morte do Mestre. O eficaz serviço de mensageiros de David Zebedeu mantivera pontualmente informados os núcleos principais e amigos e adeptos do Rabi. Por meio destes correios, Elias Marcos e os restantes apóstolos, distribuídos em Jerusalém, Betânia e Betfagé, souberam do falecimento do Galileu entre uma e duas horas depois de verificado o óbito.
Quando o ancião concluiu o seu relato, a mulher de Elias voltou a encher os nossos copos com aquele vinho quente e reconfortante. E antes de José tomar a decisão de abandonar os Marcos, pedi-lhe que me informasse quanto ao que acontecera desde o momento em que o vi afastar-se para o Templo, em pleno incidente com os juízes e judeus que tentavam alterar o texto do inri do Nazareno. José olhou-me com profundo cansaço.
- Para quê recordar essa triste história? - comentou, sem entusiasmo. Contudo, eu tinha de averiguar o sucedido no interior do Santuário. Que se passara na reunião do Sinédrio? Que tinha acontecido a Judas Iscariotes?
O filho de Elias Marcos não se encontrava em casa ou, pelo menos, eu não conseguira vê-lo, e por isso preocupava-me. Supliquei-lhe com tal ansiedade que o bom José acabou por ceder.
- Dos muros da Torre Antonia - começou o ancião - dirigi-me ao Templo. Tal como tínhamos falado, no meu coração havia uma suspeita: os cegos saduceus, leais ao clã de Caifás e do seu sogro, podiam conspirar também contra os íntimos do Mestre. O seu temor de um levantamento dos adeptos e amigos de Jesus não se dissipara com a condenação à morte aprovada por Pilatos. Muito pelo contrário. Precisamente a partir daquele momento - segundo eles - a situação tornara-se mais delicada. E da mesma forma que tinham tentado capturar Lázaro, adotaram as medidas necessárias para prender e encarcerar os discípulos.
- Medidas? Que medidas? - interrompi.
- Assim que voltaram ao seu quartel-general no Santuário, os levitas, cumprindo instruções do sumo sacerdote, formaram uma escolta e saíram para a herdade de Simão, o Leproso, em Getsémani. Graças à infinita bondade de Deus - bendito seja o Seu nome! - pouco antes da partida pude estabelecer contato com um dos emissários de David Zebedeu. Ao informá-lo do que o Sinédrio pretendia correu para o monte das Oliveiras, dando o alerta. Mas, quanto à sorte dos ali acampados não posso acrescentar grande coisa. Sei apenas que, no seu regresso, o capitão da guarda do Templo se mostrou furioso. Os adeptos do impostor, explicou a Caifás, fugiram como covardes, porém, incendiamos o seu acampamento... O sumo sacerdote e a maioria dos membros do Sinédrio tranqüilizaram-se considerando que a debandada dos homens do Nazareno reduzia consideravelmente o perigo de um motim. E Caifás, reunido com o Conselho na sala das pedras talhadas, continuou o seu relatório quanto ao sucedido na noite e madrugada até ao momento em que o nosso Mestre foi introduzido definitivamente no Pretório.
- O cúmulo de mentiras, injúrias e arbitrariedades esgrimidas pelo genro de Anás foi tal que, enjoado, me retirei do tribunal. Mas, quando me dispunha a sair do Templo, apareceu Judas. Olhamo-nos em silêncio e o traidor entrou na sala do Sinédrio. Regressei de novo à sede do Conselho, disposto a destruir aquele miserável. Mas não foi preciso. Ao verem o Iscariotes, Caifás e os seus homens começaram a murmurar entre si. Mas ninguém lhe dirigiu a palavra. Segundo parecia, Judas esperava uma recepção triunfal. Pensou, erradamente, que aquela ralé o cumularia de honras, enaltecendo o seu grande serviço à nação. Pobre desgraçado!
- A um sinal do sumo sacerdote, um dos servidores dirigiu-se a Judas e, tocando-lhe nas costas, convidou-o a que o acompanhasse. Visivelmente confuso e desiludido, o traidor obedeceu e ambos saíram da sala. Então, o servo, entregando-lhe uma bolsa, disse-lhe: Judas, fui encarregado de te pagar por teres traído Jesus, o Galileu. Aqui tens a tua recompensa.
- Judas Iscariotes, pálido, abriu a bolsa e com um sangue frio que ainda me aterra contou as moedas...
José fez uma pausa e, quando eu dava como certo que me iria dizer o montante da recompensa, esquivou-se ao assunto. Vi-me obrigado a interrompê-lo novamente e interessar-me pela soma.
- Trinta moedas... - replicou o ancião com repugnância.
- Denários de prata? - insisti.
José, aborrecido com a minha insistência, esclareceu:
- Não, trinta seqel.
(Esta moeda de prata, conhecida popularmente como siclo de Tiro, constituía, como disse, o dinheiro habitual no pagamento dos tributos do Templo. Era, enfim, uma moeda usada habitualmente pelos sacerdotes na maior parte das suas transações comerciais. A sua equivalência, naquela época, era de uns quatro denários de prata por seqel. Uma soma, portanto moderada. Tem de se ter em conta que, segundo o testemunho evangélico de Mateus (29,9), os sacerdotes compraram um campo com o dinheiro que Judas tinha recusado. Hoje, aqueles cento e vinte denários de prata poderiam valer cerca de duzentos dólares.)
José de Arimatéia prosseguiu:
- Quando o traidor se certificou do valor da bolsa, lívido e mudo de estupor lançou-se para a porta do Conselho, disposto - suponho - a protestar. Mas o porteiro não o deixou passar, proibindo-lhe a entrada. Derrotado, Judas passou da cólera à sua habitual frieza. Deixou cair a bolsa na algibeira, afastando-se da sala das pedras talhadas. A partir daí não o voltei a ver...
Foi inútil a minha insistência. José de Arimatéia, efetivamente, perdera a pista do traidor. Ignorava a sua sorte e, naturalmente, não podia conhecer o incidente do Templo e o gesto desesperado de Judas Iscariotes, arremessando as
moedas ao tesouro do Santuário. Eu estava a par desta última atitude de Judas pela leitura prévia de Mateus, mas, as coisas tinham acontecido tal como descreve o autor sagrado?
Quis a sorte que pudesse desvendar esta incógnita pouco depois da saída do ancião da casa de Elias Marcos.
Havia dois assuntos que me levavam a permanecer naquele domicílio e que, sem ter essa intenção, foram um magnífico pretexto para averiguar outro dado. Cavalo de Tróia tinha-me confiado a iniludível missão de recuperar o microfone que ficara camuflado no candeeiro posto na sala onde tivera lugar a última ceia de Jesus.
Uma das normas básicas do Projeto especificava que os astronautas não podiam deixar na área de exploração nenhum resto, sinal ou indício da sua passagem. Também não era lícito transportar para o nosso tempo real nada que pudesse pertencer à referida época.
A recuperação desta peça, por conseqüência, era obrigatória. Por outro lado, era imprescindível que eu falasse com o jovem João Marcos. Mas o adolescente tardava em aparecer.
Foi assim que, invocando um sentimental desejo de ver pela última vez o cenáculo, convenci a mulher de Elias a que me acompanhasse ao andar de cima.
Quando entramos na quadra, o meu coração quase parou. A Pantera tinha desaparecido!
A hebréia notou a minha palidez, confundindo a minha angústia com uma natural e honrosa emoção ao pisar de novo o recinto onde ceara o Mestre. Tentando não me enervar passeei o olhar pela sala, procurando teimosamente a maldita lanterna. Mas, evidentemente, alguém a tirara dali.
À beira do colapso, interroguei a dona da casa sobre o paradeiro da formosa peça. A mulher, desconcertada, explicou-me sem dar importância ao caso que se partira durante o tremor de terra. Um dos serventes tinha-a levado a uma oficina de Jerusalém para que fosse consertada.
Agradeci a sua gentileza por me permitir ver o cenáculo e, voltei ao andar de baixo. Sabia que, a partir do toque das trombetas e tratando-se de uma festa tão solene como aquela, as atividades artesanais e de qualquer outro tipo cessavam automaticamente, e só recomeçariam terminada a Páscoa. Como podia recuperar o microfone se o regresso ao módulo fora estabelecido para as sete da manhã de domingo? Como julgo ter insinuado, este contratempo veio juntar-se à série de razões que aconselhavam Cavalo de Tróia à repetição do grande salto ao ano 30.
Preocupado com o inesperado incidente, quase não percebi a passagem do tempo. A família de Marcos, ocupada nos preparativos da ceia pascal, pouco notou a minha presença.
Pelas oito da noite, quando o sono começava a vencer-me, alguém me arrancou aos meus confusos pensamentos. Ao levantar os olhos encontrei na minha frente rostos bem conhecidos.
Um, sorridente - do ativo David Zebedeu - e outro, pelo contrário, triste e angustiado, o do jovem filho dos meus hospitaleiros anfitriões.
A presença de ambos aliviou-me momentaneamente. David, com um alegria que não conseguia entender, pôs nas minhas mãos um manto de linho branco que eu comprara na tarde da quinta-feira na tinturaria de Malkiyas e do qual, honestamente, me tinha esquecido.
- Considero que estás informado de tudo o que aconteceu - disse por fim o chefe dos emissários.
Assenti em silêncio.
Ao ver o meu desalento, David abraçou-me carinhosamente, exclamando com uma convicção que me deixou atônito :
- Ressuscitará! Prometeu...
Perscrutei os olhos cansados daquele hebreu e fiquei maravilhado. David Zebedeu acreditava realmente no que estava dizendo. Era assombroso. Tinha na minha frente o único que cria cega e firmemente na promessa do Mestre. Nem o audacioso João, o Evangelista, nem José de Arimatéia nem qualquer outro discípulo ou amigo de Jesus tinha manifestado uma fé como a daquele homem... E, paradoxalmente, quase não é citado nos textos evangélicos...
Estava clara a razão da sua alegria.
Antes da sua partida para casa de Nicodemo, para onde transferira o seu centro de correios, David informou-me das suas últimas peripécias no acampamento de Getsémani. Efetivamente, ao receber o aviso de José, desmontou velozmente as tendas de campanha, transferindo o seu posto de comando para o ponto mais alto do monte das Oliveiras. Dali, uma vez superada a ameaça dos levitas, continuou a enviar o mensageiro a todos os pontos onde sabia que se encontravam os apóstolos, amigos e familiares do Nazareno.
Logo que foi informado por um dos seus agentes a ordem de crucifixão, outros tantos velozes mensageiros correram para Péla, Betsaida, Filadélfia, Sídon, Damasco e Alexandria, com a notícia da iminente morte de Jesus, por ordem do procurador romano.
Durante parte daquela jornada, David não parou de enviar correios a Jerusalém e a Betânia, informando pontualmente os discípulos e a família de Jesus de quanto estava acontecendo. Se não fosse a perícia e valentia deste judeu, a maior parte dos apóstolos, escondidos e temerosos, teriam tardado algum
tempo a conhecer o triste fim do Mestre.
Por último, com o anoitecer, David Zebedeu suspendeu os correios, permitindo aos seus mensageiros que fossem descansar e celebrar a obrigatória festa pascal. No entanto, a sua convicção na ressurreição do Rabi era tão firme que, antes de partirem, lhes comunicou em segredo a obrigação de se concentrarem na casa de Nicodemo, às primeiras horas da manhã de domingo.
A sua intenção era transmitir a boa nova quando ela se desse.
A minha admiração por aquele homem não teve limites...
E antes que o filho dos Marcos se juntasse à família no banquete da Páscoa a minha curiosidade viu-se satisfeita ao desvendar, por fim, a sorte de Iscariotes.
Deu-me muito trabalho persuadir o jovem João Marcos a que falasse.
Naquelas últimas dez horas, a sua alma de criança consumira-se entre a dor a raiva e a impotência. Ele nunca esqueceria a ensangüentada figura do seu ídolo e amigo: Jesus de Nazaré.
Como também não poderia apagar a imagem dos sacerdotes fanáticos e a de um populacho que, pouco antes aclamara as intervenções lúcidas e corajosas do Mestre no Átrio dos Gentios e que, agora, teria lapidado o Galileu na mesmíssima fachada do Pretório romano. Tentei serená-lo, recordando-lhe as palavras que acabava de pronunciar David Zebedeu sobre a ressurreição.
Mas João olhou-me sem compreender.
Aquela expressão - e ressuscitarei ao terceiro dia - ia além do seu entendimento de criança.
Tanto João Marcos como a sua família sabiam que eu tinha permanecido junto da cruz e, como reconhecimento do que eles consideravam um gesto de amor e valentia pelo Rabi, o rapaz acabou por me narrar o que vira e ouvira desde que lhe pedira para seguir Judas. Foi este o seu entrecortado e lacônico relato:
- Quando o traidor viu como os legionários acabavam de pregar os pés de Jesus, com a cabeça coberta pelo manto, afastou-se do patíbulo. Tu viste-o...
Encorajei-o a continuar.
- Então, Judas foi diretamente ao Templo. Não lhe consegui ver a cara, porque ia sempre atrás dele, mas vendo as suas grandes passadas e os empurrões com que abria caminho no adro do Santuário, diria que estava furioso.
- Caminhou até às portas da Sala do Conselho de Justiça mas, ao tentar abri-la, o porteiro pôs-se na sua frente. Judas, com uma maldição que não me atrevo a repetir, esmurrou-o no rosto, derrubando-o e deixando-o como morto. (A reação, estava de acordo com a violência que, em certos momentos explode nos grandes tímidos. E Iscariotes era um deles.) - Abriu a grande porta da sala das pedras talhadas e, descobrindo-se, entrou no Tribunal. Eu não me atrevi a passar o limiar da porta. Se alguém me tivesse posto a mão em cima, com certeza que me açoitavam...
Correspondi com um sorriso de gratidão e João Marcos continuou:
- Só pude ver Caifás e alguns dos saduceus, escribas e fariseus sentados nos seus bancos de madeira. Quando Judas Iscariotes avançou até aos degraus, os juízes emudeceram. Nos seus rostos havia surpresa. Pelo que se via, não esperavam o traidor. E Judas, arquejando e num tom que quase me fez pena disse-lhes:
- Pequei por ter traído um sangue inocente... Haveis-me oferecido dinheiro por este serviço – o preço de um escravo - e, com isso, me insultastes...
- Os sacerdotes, atônitos, pareciam não acreditar no que estavam ouvindo. E Judas concluiu assim:
- ... Arrependo-me do meu ato. Aqui tendes o vosso dinheiro. Tirou então uma bolsa da faixa e mostrou-a ao Conselho.
- Por fim, exclamou com voz imperiosa:
- ... Quero libertar-me desta culpa!
- As gargalhadas não tardaram a encher a grande sala. Aqueles hipócritas, dando grandes palmadas nos assentos, troçaram e ridicularizaram-no cruelmente. Um dos que ocupava um lugar perto de Judas levantou-se e aproximando-se dele convidou-o com a mão a que se retirasse. Mas antes disse em voz alta: O teu Mestre foi condenado pelos romanos. Quanto à tua culpa, em que é que isso nos diz respeito? Trata tu do assunto e vai-te embora!
- Judas Iscariotes deu meia volta e de cabeça baixa afastou-se do Tribunal, enquanto os risos e insultos começavam novamente. Quando passou a meu lado, a sua cara meteu-me medo. Levava a bolsa na mão esquerda e os olhos no chão. Acho que nem me viu.
- Com grandes passadas seguiu na direção do Átrio das Mulheres, entrando na sala das caixas. Com grande calma pegou num punhado de moedas e arremessou-as como quem atira uma bola, atirando os restantes siclos contra os ladrilhos. Quando viu que não tinha mais moedas, atirou a bolsa para o pavimento, espezinhando-a com fúria.
- Então, abrindo caminho violentamente entre os atônitos homens que ali se encontravam, saiu em direção ao Átrio dos Gentios.
Acho que esta aparentemente insólita atitude de Judas Iscariotes, livrando-se das trinta moedas de prata, merece um comentário. As palavras do traidor diante do Tribunal
– Aqui tendes o vosso dinheiro e quero libertar-me desta culpa – não foram uma simples e humana reação de arrependimento.
Judas sabia, como todos os judeus, que a Lei protegia os vendedores de algo ou de alguém. A Misn , na sua Ordem Quinta: Votos de Avaliação (arajin), estabelece, num total de nove capítulos as disposições em volta dos chamados votos de avaliação, quer dizer, aqueles pelos quais uma pessoa se compromete a entregar ao Templo o valor de uma determinada pessoa tal como é determinado no Levítico (27, 1-8), em relação com a idade e o sexo. Além disso, abarca uma minuciosa normativa sobre a compra e doação de terras herdadas e de casas como, também, sobre o seu resgate e os votos de extermínio. Pois bem, tendo em vista a atuação de Judas Iscariotes, entendo que este considerou - ou tentou considerar perante os sinedristas - que a entrega do seu Mestre entrava plenamente no que poderíamos denominar um venda ou transação comercial pelo que, inclusivamente, recebera uma compensação econômica.
Neste sentido, pelo menos no que concerne a bens puramente materiais - casas, campos, etc. - se o vendedor, uma vez efetuada a operação, não a considerava justa ou, simplesmente, resolvia voltar atrás, podia recorrer dentro de um prazo de doze meses, a contar do dia da venda. A Misn , no capítulo IX (4) do citado artigo sobre Votos de Avaliação, reza textualmente neste sentido: Se chegou o último dia dos doze meses e não foi redimida a casa, por exemplo, torna-se definitivamente sua quer dizer, do comprador) quer a tivesse comprado ou recebido em oferta, uma vez estar escrito no Levítico (25,30): Em perpetuidade.
Antigamente o comprador escondia-se quando chegava o último dia dos doze meses a fim de que se tornasse definitivamente sua a casa. Mas Hilel, o velho dispôs que o vendedor que pudesse colocar o dinheiro na câmara do Templo, poderia arrombar a porta e entrar na casa e que o outro pudesse vir quando quisesse a receber o dinheiro.
Por conseqüência, Judas tinha agido de acordo com a Lei. Não estava de acordo com a venda de Jesus de Nazaré e fez uso do seu direito, no próprio dia do pagamento da transação. E embora Judas Iscariotes soubesse também que no capítulo primeiro (artigo 3) do referido tema dos Votos se esclarece que o moribundo e o que é conduzido à morte por sentença de um tribunal judeu, que não admite apelo não podem ser objeto de voto nem podem ser avaliados, forçou os seus direitos ao máximo, acreditando ingenuamente que aquele gesto anularia a venda.
Tem de se reconhecer, para atenuar a culpa de Judas Iscariotes, que, pelo menos, esgotou todas as possibilidades jurídicas, em benefício do Mestre.
De pouco serviu, naturalmente, mas creio que é justo esclarecer este fato, tão pouco contado pelo escritor sagrado.
Muitas pessoas poderão perguntar-se - também eu o fiz - por que razão Judas aceitou esta venda, se sabia que a sua traição acabaria com o justiçamento do Nazareno.
Pessoalmente, dado o comportamento de Judas Iscariotes na sala do Sinédrio e, posteriormente, na do Tesouro, creio que Judas nunca chegou a pensar que o Mestre fosse condenado à morte. Tinha-O entregado aos dignitários das castas sacerdotais, convencido de que estes se limitariam a custodiá-lo, interrogá-lo e, quando muito, encarcerá-lo e desterrá-lo.
Não tento fazer uma extrema defesa do traidor, mas a sua fria vingança contra o Galileu e o seu movimento teria visto suficientemente satisfeita com a vergonhosa captura e a possível dispersão dos discípulos.
Porém, os acontecimentos, como sabemos, seguiram outros rumos.
Do que não posso estar certo é quanto à razão que mais teria pesado no coração perturbado de Judas Iscariotes, a iminente morte do Rabi ou o ridículo a que se viu submetido pelos sacerdotes. Como referi, não era o dinheiro que Judas
perseguia. A sua obsessão era o reconhecimento público e as honras prometidas e sonhadas e que, infelizmente para ele, nunca chegaram.
Logicamente, se as suas maquinações tivessem como base o objetivo final o dinheiro, porque iria prescindir daquelas trinta moedas de prata? Em todo o caso, as teria levado para o túmulo. A luta íntima do traidor naquelas horas deve ter sido tão aguda que não teve coragem para o julgar nem para julgar a sua trágica e última decisão...
É curioso, mas, se Jesus não tivesse sido condenado à morte, talvez Judas tivesse tido êxito na sua tentativa de anulação da venda. A Lei, pelo menos, previa o prazo de um ano para que o comprador - neste caso, o Sinédrio - se retratasse e
devolvesse a mercadoria. João Marcos, meio adormecido, concluiu o seu testemunho com uma notícia que modificava - em parte - o que afirma Mateus no seu evangelho:
- Judas desceu pelo Bairro Baixo. Primeiro, pensei que se dirigia a minha casa ou a Betânia. Ia com muita pressa. Não cumprimentava ninguém. Saiu da cidade pela porta da Fonte e, para espanto meu, virou à direita, em direção à garganta do Hinnon. Começou a subir entre os penhascos e ao chegar a uma das rochas mais altas e pontiagudas tirou o manto e o cinto. Eu estava tão assustado que me colei ao chão, tremendo de medo.
- Então, vi Judas, à beira do precipício, amarrando uma das pontas do cinto ao ramo de uma pequena figueira que crescia entre as fendas da rocha. Quando percebi o que queria fazer pus-me de pé, resolvido a pedir-lhe que não o fizesse. Mas nem sequer tive tempo para abrir a boca. O Iscariotes deu outro nó em volta do pescoço e, em silêncio, saltou da rocha...
O rapaz, com uma extrema palidez, tapou a cara com as mãos e começou a soluçar. Tive de esperar que serenasse. Por fim, choramingando, concluiu:
- Foi horrível, Jasão... Corri para a figueira. Naquele momento só tive um pensamento, cortar, morder, arranhar o cinto... Tudo menos deixar que se enforcasse.
- Quando cheguei à beira do abismo, o corpo do pobre Judas balançava no ar, esperneando e girando sobre si mesmo como um zevivon 1... Tinha as mãos agarradas ao pescoço, tentando lutar contra a asfixia, e os olhos muito abertos, quase fora das órbitas.
Os meus joelhos tremiam e a garganta ficou seca, como se tivesse engolido uma colher de areia. Mas, quando me preparava para subir na árvore e partir o ramo, o nó soltou-se e Judas caiu no precipício, indo esmagar-se contra as pedras.
- Foi tudo tão rápido que não pude fazer absolutamente nada.
- Fiquei ali em cima, como um poste, contemplando o corpo imóvel de Judas. Depois, nem sequer com força para chorar, regressei à cidade e, quando tentava voltar ao Gólgota, veio o tremor de terra... Foi tão grande o meu terror que voltei à Porta da Fonte, fugindo para o acampamento. Foi ali que David me encontrou...
Ao perguntar-lhe se o corpo de Iscariotes continuava ainda no fundo do barranco, João Marcos encolheu os ombros. Pelo que parecia, não falara do caso a ninguém. Era eu o primeiro a saber. Agradeci-lhe a informação, pedindo-lhe que fosse descansar.
- Amanhã, pela hora primeira, se não vês inconveniente - disse-lhe - quero que me acompanhes até essa garganta...
João Marcos concordou como um autômato, desaparecendo no pátio onde estava prestes a começar a ceia pascal.
A versão do rapaz variava ligeiramente a sempre trágica sorte do traidor. Tinha de confirmar se Judas morrera por enforcamento ou pela queda. Embora as suas intenções, no fundo, fossem claras - suicidar-se - quem sabe se a sua morte verdadeira (calculando que tivesse morrido) teria sido a que sempre conhecemos e aceitamos.
E, abusando da generosidade daquela família, escolhi um dos cantos do andar de baixo, envolvendo-me no manto. Ao ficar só estabeleci uma última ligação com o módulo, anunciando a Eliseu a minha intenção de visitar o Hinnon e, calculando que ainda ali estivesse, examinar o cadáver de Judas. Pelas vinte e uma horas e trinta minutos, o sono dissipou a minha fadiga e as minhas angústias. Pareceu-me estranho, muito estranho, que Jesus da Nazaré não estivesse vivo e perto. Sem querer, tinha-me habituado à sua presença majestosa.
* Nos relatos tradicionais da festividade judaica das luminárias ou Januk (que costuma coincidir com as Natalícias), conta-se que, durante a ocupação romana no século I, estava proibida a reunião de grupos para estudar a Tora. Quando um vigia alertava o grupo de estudiosos da proximidade de legionários, alguém tirava um zevivon ou pequeno dado, com base pontiaguda e uma asa superior para o pó-lo a girar. Desta forma dissimulavam apostando na face do dado que ficaria para cima. Mesmo atualmente é freqüente ver as crianças israelitas brincando com um destes zevivon durante os dias da Januk . (N. do M.)
8 DE ABRIL, SÁBADO
Pouco antes do amanhecer, Eliseu arrancou-me de um sono profundo, que teve pesadelos nos quais, curiosamente, se misturavam as mais absurdas situações e vicissitudes, tanto do tempo real em que me movia como do meu verdadeiro século.
As condições atmosféricas tinham mudado. O dia prometia serenidade. Vento fraco, excelente visibilidade, baixa umidade relativa e temperatura de dez graus centígrados, em ascensão. Do módulo, os radares de longo alcance desenhavam com toda a nitidez os perfis do árido Negev.
João Marcos não tardou em se apresentar. Trazia uma grande caneca de leite de cabra e algum pão, fabricado durante a manhã de sexta-feira. O meu esgotamento tinha desaparecido e praticamente devorei o frugal desjejum.
Com a primeira claridade da manhã e o som das trombetas do Santuário, anunciando o novo dia o meu jovem amigo e eu atravessamos as ruas desertas de Jerusalém. O barulho habitual da moenda tinha desaparecido.
Ninguém parecia ter pressa de se levantar. Por um lado alegrei-me. Se o corpo de Judas continuasse entre as penhas, preferia que ninguém nos visse junto dele. Assim era muito mais seguro. Uma vez fora de muralhas, o rapaz guiou-me para ocidente, seguindo quase paralelamente ao muro sul da cidade. A escassos metros da Porta da Fonte, por onde tínhamos saído, o terreno modificou-se. Entramos naquilo a que os Judeus chamavam a Geena ou inferno. Suponho que pelo acidentado da depressão e pelas numerosas fogueiras que se levantavam aqui e além, numa permanente queima de lixo.
Efetivamente à medida que caminhávamos, observei como aquele lugar tétrico tinha sido convertido numa imensa esterqueira, por onde vagueavam uma quantidade de cães vadios e ratazanas grandes como lebres.
João Marcos parou. Observou a paisagem e, poucos segundos depois, reatou a marcha. Cinco minutos de caminho e a Geena convertia-se num labirinto de penhascos, barrancos estéreis e pequenos mas agudos precipícios. De acordo com as cotas dos nossos mapas, o extremo sul de Jerusalém oscilava entre os 612 e 630 metros, nas proximidades da Porta da Fonte e, os 685, nas cercanias da Porta dos Essênios. Entre ambos os pontos o perfil do terreno sofria bruscas variações, com desníveis de vinte, trinta e mesmo quarenta metros.
Ao percorrer aquele inferno, pensei que se Judas Iscariotes tinha caído em algum daqueles barrancos, o mais provável é que estivesse despedaçado nas arestas cortantes das penhas. Por fim, João Marcos parou. Nos encontrávamos a uns duzentos metros em linha reta da muralha e num daqueles calvos promontórios.
Apontou-me uma figueira nova nascida milagrosamente entre as rochas e fendas da rocha, que, tal como me tinha explicado, crescia com metade da ramagem para ocidente e por cima do abismo. Lentamente, aproximei-me da beira do precipício.
O rapaz, inquieto e trêmulo agarrou-se ao meu braço. De início, nada distingui de anormal. O barranco caía quase na vertical, de uns trinta e cinco ou quarenta metros. Mas a meia claridade da madrugada era suficiente para ver lá em baixo com nitidez.
Depois de uns dois minutos de nervosa busca João Marcos deu um grito que por pouco não me fez perder o equilíbrio.
- Ali!... Olha, está ali!
Segui a direção do dedo e, com efeito, confundido entre as pedras, avistei um vulto leitoso, imóvel e que, do meu ponto de observação, parecia um homem envolvido em qualquer coisa semelhante a uma túnica ou manta branca.
Ordenei a João Marcos que não saísse dali e escolhi um dos atalhos para começar a descida. Depois de não poucas voltas, escorregadias e sobressaltos entre as paredes resvaladiças do precipício, vi-me por fim no fundo do barranco, a pouco mais de quatro metros do corpo.
Observei-o sem mover um só músculo. Parecia desmaiado ou morto. Evidentemente, era um homem, envolto numa túnica cor de marfim, semelhante à que Judas usava. Estava de barriga para baixo, com a perna esquerda violentamente flexionada por baixo do abdômen.
Quando, finalmente, me decidi a avançar para ele, uma coisa negra, grande e peluda, como um coelho saltou por baixo dele, fugindo para as sarças próximas. Parei. Um calafrio correu-me pelas entranhas. As ratazanas tinham começado a devorá-lo...
Apressei-me a virá-lo e o rosto imberbe, pálido e afilado de Judas Iscariotes apareceu na minha frente. Tinha os olhos abertos com a expressão do horror nas pupilas. Um dos globos oculares tinha desaparecido, com as investidas dos roedores.
Por mais que examinasse o corpo não notei sinal de sangue. Só um delgadíssimo fio seco, vinha da comissura direita da boca. Tinha o cinto atado ao pescoço. Ao observá-lo, vi que não estava partido ou esgarçado. Simplesmente, como dissera João Marcos, tinha-se desatado. Apertava a garganta de Judas mas, para surpresa minha a conjuntiva ou membrana mucosa que forra as pálpebras e a zona anterior dos olhos não apresentava as características manchas vermelhas dos enforcados.
Afastei o cabelo negro e fino mas também não observei aquele tipo de equimose atrás das orelhas.
A língua não estava presa entre os dentes nem exibia o habitual tom de azul, sinais característicos entre os enforcados.
Se realmente se tivesse registrado a obstrução completa de toda a irrigação e circulação cerebral, a cara de Judas estaria embotada. No entanto, o seu aspecto - apesar das quinze horas que possivelmente teriam decorrido desde o óbito - era quase normal. As pupilas que primeiro se haviam dilatado, tinham começado diminuindo, entrando na fase de miose (possivelmente, a partir das nove da noite de sexta-feira). Apresentava também a lividez própria do estado post-mortem, mas, insisto, as veias jugulares e artérias carótidas não apresentavam sinais de estrangulamento, habituais nos enforcados 1.
Perante aquele conjunto de provas negativas, a minha impressão pessoal foi a seguinte: Judas Iscariotes não tinha morrido por enforcamento, mas de queda.
* Em Medicina legal está perfeitamente determinado que para se dar a obstrução total das jugulares são precisos uns cinco quilojoules. No caso das carótidas, entre dez a quinze quilojoules (N. do M.)
Esta teoria viu-se apoiada com a palpação dos membros e do resto do corpo. As pernas e um dos braços tinham sofrido fraturas quádruplas e os derramamentos internos eram generalizados.
Mas o que acabou por me convencer foi o som do crânio, ao agitá-lo nas mãos. Aquele som - parecido com o de um saco de nozes - era típico das pessoas que sofreram uma queda de grande altura. Embora fosse verossímil que o traidor, no seu desespero, não desse convenientemente o nó do cinto, caindo antes de morrer por enforcamento nunca pude compreender como aquele homem - geralmente meticuloso - pôde cometer tal erro.
Voltei a deixar o corpo sobre as pedras e, depois de lhe fechar os olhos (ou o que deles restava), permaneci uns minutos de pé e em silêncio contemplando o desgraçado.
Perguntei-me se aquele Iscariotes ou homem de Carioth, filho de Simão, um homem ilustre e endinheirado da Judéia, discípulo de João Baptista e atormentado investigador da Verdade, merecia realmente um fim tão desolador...
Regressei para junto do meu amigo, confirmando-lhe a morte de Judas. João Marcos tinha recuperado o manto do renegado e, lentamente, em silêncio, voltamos a Jerusalém. Uma vez na cidade, depois de lhe pedir que me levasse até
casa de João Zebedeu, solicitei-lhe que se pusesse em contato com a família de Judas, a fim de ir levantar os seus restos mortais antes que as ratazanas e os animais da Geena acabassem por desfigurá-lo.
Com grande diligência, como era seu hábito, o filho dos Marcos cumpriu o meu novo pedido.
João Zebedeu não me esperava. Mas recebeu-me com um abraço caloroso. Dispunha de uma casinha de um só piso, muito humilde e quase vazia, na zona norte da cidade. Num bairro que, então, começava a crescer e era conhecido por Bazatha. Evitei um caldeiro em que ardiam alguns pequenos troncos e que estava destinado geralmente a afugentar os insetos e mosquitos, e atravessei o umbral da porta. Dentro da única dependência, muito mal iluminada por uma candeia de azeite, logo distingui quatro mulheres. Eram Maria, mãe de Jesus, sua irmã, Miriam, Salomé, mãe de João, e a jovem Ruth, irmã do Nazareno.
Não havia cadeiras nem bancos e o Zebedeu convidou-me a que me sentasse numa das esteiras estendidas sobre a terra batida que era o chão da casa. Estranhei a singular austeridade daquela morada, com um telhado leve à base de ramadas cobertas de terra e barro e sem uma só janela ou fresta. Soube depois que aquela não era a residência habitual dos Zebedeus. Esta situava-se ao norte, na Galiléia.
João não me apresentou às mulheres. Não era costume, mas, além disso, também não era preciso. Todas as hebréias se mostravam especialmente solícitas com Maria. Uma delas acabava de lhe oferecer uma escudela de madeira com leite. Mas a mãe do Galileu não o queria beber. Quando os meus olhos se foram habituando à penumbra, verifiquei que tinha a cabeça descoberta. O cabelo era muito mais negro do que pensara.
Penteava-se com risca ao meio, recolhendo na nuca uma sedosa e negríssima massa de cabelo. As olheiras, muito mais acentuadas que no momento do encontro com o Crucificado refletiam uma noite sem dormir e sofrimento. Estava sentada numa daquelas grosseiras esteiras de palma e de junco, com o corpo e a cabeça encostados à parede de adobe, olhos semi cerrados. De vez em quando, um suspiro profundo agitava todo o seu ser e os bonitos olhos rasgados entreabriam-se. Por um momento, ao perceber da amargura resignada daquela hebréia, senti-me desfalecer.
Não tinha coragem para a interrogar. As forças e o ânimo pareciam fugir-me, diminuído como me sentia perante a angústia de uma mãe que acabava de perder o filho primogênito.
Como podia iniciar o diálogo? Com que coragem ia enfrentar aquela mulher, destruída pela dor, para lhe pedir que me falasse de seu Filho, da sua infância e da sua não menos ignorada juventude?
Foi João quem, sem querer, me facilitou tão árduo trabalho, previsto por Cavalo de Tróia, como um dos últimos objetivos da minha missão. Depois de sacudir um velho e enegrecido couro de cabra, o discípulo encheu outra escudela de madeira com um leite espesso e ácido, pedindo-me que aceitasse o humilde alimento.
- Não te incomodes com o cheiro - disse-me. - Sacia melhor a sede...
Não quis melindrá-lo e bebi a escudela pestilenta, esforçando-me por fechar os olhos e reter a respiração.
Quando acabei, o Zebedeu recebeu o recipiente e apontando o manto de linho branco que eu trazia suspenso do cinto, exclamou:
- Vejo que não esqueceste o teu presente...
Baixei os olhos e compreendi. E embora aquela espécie de xale tivesse sido comprado para Marta, a irmã de Lázaro, a genial sugestão do discípulo alterou os meus planos.
Efetivamente: aquele podia ser o meio ideal para ganhar a estima e confiança de Maria... Como não me ocorrera aquilo antes?
Tomei-o nas mãos e, levantando-me, aproximei-me do canto onde descansava. Ajoelhei-me na sua frente e estendendo para ela o rico presente roguei-lhe que se dignasse aceitá-lo.
Maria e as mulheres que a rodeavam olharam-me e entreolharam-se. Mas, por fim, a mãe do Rabi, afastando-se da parede, pegou no manto e envolveu-me no seu olhar profundo. Um olhar que me lembrou o do Filho.
João, atento e solícito, aproximou a candeia de barro, para que Maria pudesse contemplar melhor a finíssima textura do linho. Então à luz da lanterna de azeite, os olhos daquela mulher surgiram na minha frente em toda a sua formosura, eram verdes!
Depois de acariciar o tecido, Maria levantou de novo os seus olhos para mim e mostrando-me uma dentadura branca e perfeita, exclamou:
- Obrigado, filho!
Era a primeira vez que escutava aquela voz forte e, no entanto, quente e firme. A partir daquele instante - oito da manhã, aproximadamente - e depois de João Zebedeu lhe explicar quem eu era e porque estava ali, Maria acedeu com agrado a falar-me de Jesus dos seus primeiros anos em Nazaré, das viagens pelo Mediterrâneo e, da morte em acidente de trabalho de seu esposo, o construtor e carpinteiro chamado José.
Tentando ordenar as idéias e os milhares de temas que se agitavam na minha mente, comecei por lhe fazer perguntas sobre o nascimento do Gigante 1..
Pelas onze horas e trinta minutos a nossa conversa viu-se interrompida com a chegada de Jude e José de Arimatéia. Traziam as últimas notícias.
Uma vez terminada a ceia da Páscoa, os homens do Sinédrio tinham voltado a reunir-se desta vez em casa de Caifás. Segundo o ancião, o único tema discutido foi a profecia feita por Jesus de ressuscitar ao terceiro dia. Os sacerdotes, em especial os saduceus, não concediam grande crédito às palavras do Justiçado. Mas os intriguistas membros do Sinédrio consideraram que o mais prudente seria vigiar o sepulcro.
Segundo afirmaram, prosseguiu José podia dar-se o caso de os amigos e crentes em Jesus roubarem o cadáver, propagando depois a mentira da Sua ressurreição. Com o fim de abortar qualquer tentativa de roubo, o sumo sacerdote nomeou uma comissão, encarregada de visitar o procurador romano à primeira hora da manhã de sábado. Pois bem, aquele grupo de sacerdotes acabava de se encontrar com Pilatos. Avisado por um dos seus confidentes, José apressara-se a ir ao Templo. Ali, depois de não poucas troças e ferinas insinuações por parte desta comissão - conhecedora da sua ligação ao Nazareno – o proprietário do jardim onde o Mestre fora sepultado conheceu finalmente os pormenores da conversa entre os sacerdotes e Pilatos.
- Senhor - disseram os juízes ao governador -, recordamos-te que Jesus de Nazaré, esse falsário, disse em vida: Passados três dias ressuscitarei. Por conseguinte, apresentamo-nos perante ti para te rogar que dês as instruções necessárias para que o sepulcro seja devidamente protegido contra os Seus discípulos, enquanto não se passarem estes três dias. Tememos que os Seus fiéis tentem roubar o corpo durante a noite e, a seguir, proclamem ao povo que ressuscitou de entre os mortos. Se o consentíssemos seria um erro maior do que se O tivéssemos deixado com vida.
E Pilatos, depois de escutar este pedido, respondeu:
- Dar-vos-ei uma escolta de dez soldados. Vão e organizem a guarda em frente do sepulcro. Prosseguiu José de Arimatéia:
- Aquela escolta romana e mais dez levitas, recrutados numa das seções semanais do Templo encontram-se na frente do sepulcro, tal como pude verificar antes de vos vir procurar.
- Aquelas bestas hipócritas que rodeiam e adulam Caifás não tiveram o menor escrúpulo em violar o sagrado sábado e invadiram a minha propriedade. Quando tentei descer à cripta, alguns dos guardas do Santuário cortaram-me o caminho, obrigando-me a sair do jardim. É indigno!
* 1 O extenso relatório do Major sobre esta apaixonante conversa com a mãe de Jesus de Nazaré, em que aparecem uma infinidade de dados novos e fascinantes sobre a infância, juventude e maturidade do Galileu, foi retirado do diário e incluído - devido à sua extensão - num próximo volume. Lamento, sinceramente, deixar o leitor com água na boca...
(Nota de J. J. B.)
- Então - insinuei -, ninguém pode aproximar-se do sepulcro.
- Ninguém, a não ser a guarnição de Antonia ou o corpo de levitas. Os selvagens retiraram até lousa que tapava o poço do hortelão, encostando-a à rocha que fecha a câmara sepulcral. Depois, colocaram o selo de Pilatos, para que ninguém as possa remover.
A notícia deixou-me francamente preocupado. Precisamente, os últimos minutos da minha missão deviam decorrer o mais perto possível do sepulcro. Cavalo de Tróia tinha especial interesse, como é natural, em averiguar se a ressurreição do Mestre da Galiléia fora ou não uma realidade objetiva ou, pelo contrário, uma lenda. Como podia levar a cabo a minha observação se o caminho para o sepulcro estava impedido pelas vinte sentinelas?
Ainda me restavam muitas horas e preferi não me atormentar com tal dilema. De alguma coisa me lembraria...
A mudança de tema na conversa de José ajudou-me a esquecer temporariamente o assunto. Com grande surpresa minha uma das grandes preocupações do ancião era compor o epitáfio que devia ser gravado na fachada rochosa do sepulcro, onde repousava o corpo do Mestre. José trazia, até, algumas frases escritas que deu lendo a Jude e a João.
Em atitude grave, os três homens discutiram quanto ao possível texto, chegando à conclusão de que a última era talvez a mais adequada. Pedi a João que me deixasse ver o pedaço de pergaminho e, em aramaico, li o seguinte:
“Este é Jesus, o Messias
Não há aqui ouro nem prata
mas sim os Seus ossos.
Maldito seja o homem
que o abra.”
Eu sabia que o saque de túmulos estava na ordem do dia em Israel, mas não podia aceitar a falta de fé daqueles íntimos de Jesus de Nazaré que não hesitavam em qualificar o Galileu como Messias, renunciando por completo à idéia da Sua ressurreição. Era tão triste quanto anacrônico...
Uma vez decidido o epitáfio, José mostrou a frase escolhida à mãe de Jesus. Mas Maria negou-se a lê-la. E pondo os olhos em cada um dos presentes, censurou-lhes a falta de confiança com um comentário lapidar:
- O Messias escreverá o seu epitáfio com uma só palavra: Ressuscitou.
Um pesado silêncio caiu sobre todos durante alguns minutos. José de Arimatéia moveu a cabeça negativamente e Jude e João limitaram-se a baixar o rosto, manifestando assim as suas dúvidas.
Mas a senhora não insistiu. Novamente se encostou à parede e semicerrou os olhos. José de Arimatéia rompeu a embaraçosa situação, tentando convencer-nos e convencer-se de que não devíamos acalentar falsas ilusões José de Arimatéia comentou:
- A notícia da promessa da Sua ressurreição acabou por invadir as ruas e Jerusalém inteira fala do caso. Se o Mestre não cumpre o que prometeu, em que situação ficarão os Seus discípulos e Ele próprio?
Infelizmente, aquela atitude, própria de um homem inteligente e com um grande bom senso, era compartilhada pela quase totalidade dos apóstolos, escondidos desde a noite de quinta-feira em diferentes casas de Jerusalém e Betânia, mortos de medo e sem a menor esperança quanto ao seu futuro.
Se aqueles rudes galileus tivessem a fé de David Zebedeu, para dar um exemplo, as coisas teriam sido muito diferentes...
Ainda que com o risco de me repetir, creio ser de extrema importância salientar esta ingrata mas muito humana disposição dos apóstolos e adeptos do Filho do Homem em relação ao tema da ressurreição. Estão enganados os que possam pensar que os discípulos esperavam ansiosos pelo amanhecer do terceiro dia. Ninguém em seu são juízo podia aceitar que um cadáver, trinta e seis horas após o falecimento, fosse capaz de se levantar e de viver. Mas o surpreendente Rabi nunca falava em vão...
Meia hora antes do ocaso - pelas seis - Jude e sua irmã Ruth puseram-se a caminho, acompanhando sua mãe, à residência de Lázaro, em Betânia. João, obedecendo à recomendação feita por André, acorreu a casa de Elias Marcos, onde se marcara uma reunião de urgência de todos os discípulos e fiéis de Jesus que se encontrassem na Cidade Santa.
Ofereci-me para acompanhar a família do Nazareno e, desta forma, pude ampliar os meus conhecimentos sobre a vida de Jesus. Pelas dezenove horas e trinta minutos, as irmãs do Mestre receberam-nos no seu lar, manifestando-nos muitas atenções.
Mas a noite chegava e, depois de me despedir dos meus novos amigos, agradeci a Marta e a Maria a sua generosa hospitalidade, anunciando-lhes que ia fazer uma longa viagem e que, quase com toda a certeza, não tardaria em regressar.
Aquela mentira piedosa, que talvez tenha aliviado o aflito coração de Marta, acabaria por ser realidade. Uma realidade que foi ao encontro das aspirações deste cada vez menos incrédulo e cético oficial da Força Aérea norte-americana. A irmã mais velha de Lázaro, com os olhos inundados de lágrimas, confiou-me em segredo que seu irmão tivera de se refugiar em Filadélfia e que elas, logo que pudessem vender as suas terras e bens, seguiriam os passos dele. Eu conhecia a primeira parte da informação, mas - estúpido que fui! - naquele instante, enquanto me despedia, não soube adivinhar o que verdadeiramente encerrava a sua confissão...
Pouco antes da meia-noite, preocupado com o tardio da hora e em encontrar alguma maneira que me permitisse observar a entrada do sepulcro com o máximo de clareza e segurança, iniciei a ascensão do monte das Oliveiras. Iria realmente acontecer o grande feito? Teria realmente a grandiosa oportunidade de
verificar com os meus próprios olhos o anunciado prodígio da ressurreição?
9 DE ABRIL, DOMINGO
Pela uma da madrugada, sem ar nos pulmões e escorrendo suor por todo o corpo, avistei por fim a cerca de madeira da herdade de José de Arimatéia. Tudo se encontrava em silêncio. Solitário. Caminhei nervosamente para cima e para baixo da cerca, pensando nalguma maneira que me conduzisse são e salvo ao interior do jardim. Mas o cérebro, com toda aquela pressa, negava-se a trabalhar. Eliseu, à minha passagem pelo cume do monte das Oliveiras, tinha-me recordado a imperiosa necessidade de contar com a minha presença antes das cinco horas. Os preparativos para o regresso exigiam um mínimo de verificações e a definitiva regularização do computador. Penso que lhe prometi voltar muito antes daquela hora. Não me lembro bem. A excitação ia tomando conta de mim, à medida que corria ladeira abaixo, em direção à zona norte da cidade.
Agora, com a missão quase concluída, sentia-me incapaz de coroar com êxito o que, sem dúvida, podia ser a fase decisiva de todo o Projeto.
Inspirei profundamente e, sem mais demoras, saltei para dentro da propriedade. Podia ter aberto a cancela mas pensei melhor. Os gonzos ferrugentos podiam denunciar-me.
Uma vez entre as árvores frutíferas permaneci uns minutos agachado, atento ao menor ruído. Tudo continuava calmo. E, a mim mesmo encorajando, arrastei-me pelo seco terreno argiloso, apoiando-me, a cada lanço, nos antebraços e cotovelos. Tinha saltado à esquerda da porta, com uma intenção: tentar alcançar a parte posterior da casinha do hortelão. Uma vez lá, se os guardas não me descobrissem muito antes, logo se veria...
Fui fazendo pequenas pausas, escondendo-me atrás dos fracos troncos das árvores de fruto e tentando penetrar no pequeno bosque com os olhos. A lua, praticamente cheia, irradiava uma claridade que, aqueles decisivos minutos, podia trair-me. Uns metros mais, disse para comigo, estou quase conseguindo. Arquejando com a túnica avermelhada pelo barro escondi-me, por fim, atrás do muro de pedra do poço, situado a uma dezena de passos da casa do jardineiro. Levantei lentamente a cabeça por cima do poço e verifiquei com alívio que a porta se encontrava fechada. Dentro não havia luz alguma e a chaminé estava inativa. Talvez os soldados o tenham obrigado a largar a casa, pensei, e naquele instante uma dúvida mortal me secou a garganta.
E se tivesse chegado demasiado tarde? E se a ressurreição já tivesse acontecido? O único indício neste sentido aparece no texto evangélico de Mateus (28, 1-8). Se o autor sagrado tinha razão e o prodígio devia acontecer ao amanhecer do primeiro dia - quer dizer, de domingo – tudo estava perdido. O orto ou aparecimento do limbo superior do Sol no horizonte fora estabelecido por Papai Noel com uma precisão matemática: dada a latitude aproximada de Jerusalém - 32 graus norte - esse instante ocorreria pelas cinco horas e quarenta e dois minutos. O ocaso, como referi na devida altura, se registraria, conseqüentemente, pelas dezoito horas e vinte e dois minutos.
Os planos do general Curtiss, pelo menos neste sentido, teriam falhado. O meu regresso ao berço, como mencionei anteriormente, tinha de se dar, o mais tardar, pelas cinco dessa madrugada.
Mas um inesperado acontecimento me arrancou destas meditações, fazendo-me tremer dos pés à cabeça. De repente, os cães de José de Arimatéia começaram a ladrar furiosamente.
Não tinha contado com aquele novo problema!
Colei-me à parede do poço, tentando adivinhar a posição dos cães. Não tardaria a descobri-lo. Dois ou três minutos depois senti nas minhas costas o rosnar dos animais. Tinham-me localizado, permanecendo a dois ou três metros, com as faces abertas e ameaçadoras. Voltei-me, disposto a bater-lhes e a pô-los fora de combate se fosse preciso.
Na realidade, tratava-se de dois pequenos animais e pensei que não seria muito difícil amedrontá-los ou bater-lhes com a vara de Moisés.
O que mais me preocupava era que a escolta romana ou levítica pudesse aparecer e descobrir-me. Preparei-me e, pondo-me de pé, decidi afugentá-los. Mas o meu sangue gelou-se, uma mão rude e pesada caiu-me no ombro direito...
Ao virar-me, quando considerava que tudo estava perdido, encontrei na minha frente a imensa silhueta do hortelão!
Antes que pudesse dar-lhe uma explicação, levou o indicador aos lábios, pedindo-me para manter silêncio. Logo a seguir, fez-me sinal para que o acompanhasse. Surpreendido, obedeci como um autômato.
Os cães, ao verem o inquilino da casa, ficaram em silêncio, seguindo-nos docilmente até dentro da residência. Uma vez ali, o hortelão soube das minhas intenções. Tinha me reconhecido e, como adepto dos ensinamentos do Mestre, mostrou-se contente ante a minha suposta fé, prometendo ajudar-me a encontrar o lugar indicado e satisfazer assim o meu aparentemente insólito e louco desejo. Muito devagar, medindo cada passo, aquele homem rodeou a casa, entrando num pequeno vinhedo a ocidente da cripta e que eu vira rapidamente durante a minha primeira visita ao jardim.
Próximo do promontório onde fora sepultado o corpo do Nazareno levantava-se uma espécie de enorme caixote, de uns dois metros de altura. Ele escondeu-se atrás de um dos muros de tábuas do misterioso cubo e eu fiz o mesmo.
– Daqui poderás observar sem perigo...
Abriu depois o pequeno alçapão existente na base daquele lado do caixote, fazendo-me sinal para que me abaixasse e entrasse. Sem saber o que me esperava, pus-me de joelhos, e entrei. Na minha precipitação esqueci a vara de Moisés no solo. Mas quando quis recuar, o hortelão baixara o alçapão.
Empurrei mas... estava fechada por fora! Desesperado, escutei os passos do jardineiro, afastando-se em direção à casa.
Que podia fazer? Se gritasse, pedindo a presença do guarda, os soldados ouviriam. Além disso - pensei com descontrolado nervosismo como vou sair daqui? Sons de asas esvoaçando reconduziram-me ao presente. Levantei o rosto, tentando identificar aqueles sons e, ao levantar-me as trevas do caixote converteram-se num bombardeamento de pequenos corpos brancos, chocando entre si, contra a minha cabeça e contra as paredes do cubículo.
Instintivamente, defendi-me com ambos os braços. Mas o aterrador e aterrado ir e vir daqueles seres continuou pelo espaço de alguns minutos. Acocorei-me novamente e, pouco a pouco, tudo foi serenando.
O chão, de terra, estava atapetado com penas. Ao examiná-las, compreendi, estava num pombal! Apesar do susto, não pude evitar uma gargalhada abafada. O bom hortelão tinha-me metido num pombal...
Para dizer a verdade, durante mais de meia hora, a minha preparação de anos como astronauta, os meus estudos, investigações e aprendizagem para tão importante projeto, de nada me serviram. Simplesmente, o general Curtiss não tinha previsto aquela ridícula situação e, naturalmente, eu não tinha a menor idéia de como serenar trinta pombos, certamente assustados com a brusca entrada de um estranho em sua casa.
Se não conseguisse tranqüiliza-los seria muito difícil espreitar pela rede metálica existente na parte superior do caixote.
Duas vezes tentei, mas o resultado foi igualmente caótico. Apesar dos meus suaves assobios, ternas palavras e meus gestos apaziguadores, as inquietas aves entraram em alvoroço em ambas as ocasiões.
Rendido, deixei-me cair no fundo do pombal. Cheguei a pensar em matá-los. Mas só a idéia me repugnou. Durante uns minutos com a cabeça pousada nos joelhos, tentei lembrar quanto sabia ou tinha visto relacionado com aqueles animais. No escasso caudal de recordações veio-me à memória a figura de meu avô, velho caçador de patos nas lagoas de Baton Rouge, na Luisiana.
Relembrei algumas alvoradas na sua companhia durante as minhas saudosas férias da juventude nas margens do lago Pontchartrain. Lembrei as garças e - céus - de repente, como um milagre, no meu cérebro surgiu a cara de meu avô, com um raminho entre os dentes, dando estalos com as mandíbulas e movendo a cabeça para cima e para baixo, numa imitação das garças no cio. Aquela cena, que sempre me divertira, podia ser a solução...
Procurei mas não encontrei um só ramo. Sem desanimar, peguei na pena mais comprida que havia no chão e, metendo-a entre os dentes, comecei a oscilar a cabeça umas oito ou dez vezes por minuto. Depois, com uma lentidão que me pareceu desesperante fui-me levantando em direção aos poleiros e aos ninhos, tentando emitir qualquer coisa parecida com um arrulho.
A meio caminho parei, observando-os, sem deixar de mover a cabeça. Aquele velho sistema para atrair a atenção das garças-fêmeas na América parecia ser bom. Alguns esvoaçaram inquietos mas a maioria continuou impassível. (Ignoro se absortos ou surpreendidos - ou ambas as coisas ao mesmo tempo - com aquele pobre estúpido que pretendia fazer-se passar por mais um pombo.) Dez ou quinze minutos depois, Cavalo de Tróia ficava em dívida com o meu desaparecido e imaginativo avô, os pombos, tranqüilos, acabaram por me aceitar ou me esquecer. (Porque este pormenor nunca ficou muito claro...)
Sem deixar de mexer a cabeça, com a ponta da pena entre os dentes, assomei à rede de metal.
A minha posição, tal como dissera o hortelão, era privilegiada. Encontrava-me a uns oito ou dez metros do final do estreito caminho que conduzia às escadas do sepulcro. A Lua iluminava muito bem a parte superior da penha, bem como os soldados que estavam de guarda mesmo à entrada da galeria ou ante-sala da cripta.
Tinham acendido uma fogueira, formando dois grupos perfeitamente diferenciados e distanciados entre si uns três ou quatro metros. Pouco a pouco, fui reconhecendo as sentinelas. Os que se reuniam em volta do fogo eram legionários romanos.
Porém, não vi oficial algum. O segundo pelotão, também de dez homens, era constituído por levitas. Era curioso, durante mais de meia hora, nenhum dos guardas do Templo se dirigiu aos seus companheiros de serviço.
Ou muito me enganava ou se ignoravam mutuamente. Aquela situação era perfeitamente verossímil, tendo em conta o ódio recíproco de ambos os povos...
Apesar da minha proximidade, a boca da câmara funerária não era visível do improvisado observatório. Estando abaixo do nível do terreno, era praticamente impossível avistá-la. Quando muito, e levantando-me até ao teto do pombal, conseguia ver um pedaço da zona superior da fachada sepulcral.
Aquilo inquietou-me, mas tentei acalmar-me. Apesar de tudo, se acontecesse alguma coisa, os primeiros a notar seriam os próprios guardas. Bastava não os perder de vista. O fato de ali estarem, tranqüilamente sentados ou deitados no terreno, era sinal de que, de momento, nada de estranho tinha acontecido.
E pelas duas horas e trinta minutos, tal como programara Cavalo de Tróia, Eliseu efetuou a primeira das chamadas ligações em cadeia. Até às três horas e trinta minutos daquela madrugada, o meu companheiro no módulo iria me recordando o horário de meia em meia hora. A partir desse momento - e até às cinco horas - as chamadas, porque de tal se tratava, se efetuariam de quinze em quinze minutos. O Projeto tinha previsto - e assim foi por todos os componentes da missão - que, em caso de alta emergência, o módulo descolaria mesmo com um só astronauta. (Nesta altura da operação, alta emergência significava apenas uma coisa: que eu não pudesse ir ao encontro do berço antes da decolagem automática.)
Naturalmente, não quis inquietar o meu irmão, explicando-lhe que me encontrava fechado num pombal...
E pelas duas horas e quarenta minutos aconteceu o inexplicável. Quando vigiava os movimentos do guarda, notei algo de estranho...
Não saberia como o explicar.
Foi como que um abalo. Não, talvez a palavra mais exata fosse vibração...
Mas uma vibração seca. Quase instantânea. Sem ruído...
Cessou nuns décimos de segundo.
A minha primeira impressão foi confusa. Pensei que talvez o pombal tivesse oscilado devido a alguma rajada de vento. Mas logo apercebi dois fatos importantes. Em primeiro lugar, não havia vento. E, segundo, os pombos também tinham sentido aquela espécie de descarga elétrica... para de algum modo lhe dar um nome. Desta vez tenho a certeza, não fui eu o causador do agitar dos pombos, que abriram as asas e começaram a soltar um som parecido com o gluglu dos perus. Se tratasse de um novo sismo, Eliseu imediatamente o registraria e me avisaria. Mas a voz do meu companheiro continuou muda.
Agarrei-me com força à rede metálica e concentrei os meus cinco sentidos nos soldados. Dois ou três legionários tinham-se levantado, mas, a não ser isto, tudo parecia tranqüilo.
Ainda nem dois minutos tinham decorrido quando um novo abalo, ou vibração, ou descarga - juro que não sei como o classificar - fustigou o pombal e, a julgar pelo espanto das sentinelas, as cercanias do sepulcro.
As aves começaram a esvoaçar. As vibrações pareciam encadeadas. Sucediam-se quase sem interrupção e com uma força que fez tremer a frágil estrutura de tábuas onde me encontrava prisioneiro. Ao mesmo tempo, e creio que foi isto o pior, um zumbido agudíssimo - infinitamente mais forte e agudo que o de um gerador – me feriu os ouvidos, perfurando-me os tímpanos. Pensei que fosse enlouquecer. Tentei proteger os ouvidos com as mãos, mas foi inútil. Aquele silvo continuava cravado no meu cérebro com uma freqüência muito próxima dos dezesseis mil Hertz.
Caí no chão, meio inconsciente e, quando pensava que a cabeça me ia rebentar, tudo cessou. As vibrações e zumbidos desapareceram inteiramente. Ao levantar o rosto, vi alguns pombos no chão, mortos ou com os espasmos da agonia.
Levantei-me, como que movido por uma mola.
Que era aquilo? Que estava acontecendo?...
Ao olhar para fora vi os soldados meio caídos por terra, gritando e agarrando a cabeça com as mãos. O zumbido, não havia qualquer dúvida também os atingira.
Chamei Eliseu, pedindo-lhe informação sobre a hora e um possível registro nos sismógrafos. Eram duas horas e quarenta e quatro minutos e, tal como suspeitava, os instrumentos de bordo não detectavam oscilação alguma de terreno. Sem poder conter-me relatei a Eliseu o sucedido, manifestando-lhe a minha preocupação pelo que estava acontecendo.
Durante os minutos seguintes, a calma foi completa. Os soldados foram-se recompondo, travando uma viva discussão quanto ao sucedido. Uns diziam que fora um novo terremoto.
Outros, em contrapartida, falaram de uma tempestade.
Tempestade disse para comigo. Observei o céu. Continuava transparente, sem o menor sinal de nuvens.
Impossível, disse para comigo. Não conheço uma tempestade que seja capaz de originar um zumbido como este. Além disso, como explicar os abalos?
Alguns levitas insinuaram que deviam avisar os chefes, mas, finalmente, perante a falta de motivos, desistiram e voltaram a sentar-se. Às três horas Eliseu fez a segunda chamada.
Perguntou-me se tudo continuava em ordem e, ao responder-lhe afirmativamente, sugeriu-me que não me descuidasse.
- Às cinco - comentou - tomaremos chá...
Agradeci o gracejo do meu irmão. Bem precisava. Aquela tensão estava me destruindo. Quando começava a acreditar que tudo aquilo podia ter sido fruto da minha imaginação, um novo acontecimento veio agitar este parêntese. Sete ou oito minutos depois da última ligação com o módulo, um silêncio estranho e anormal - muito semelhante ao que tinha sentido em Getsémani - caiu sobre a zona. Observei os pombos.
Inexplicavelmente, estavam encolhidos no fundo dos pequenos ninhos, visivelmente assustados.
Escutei.
Nada. Não se ouvia o mais ligeiro som.
Os soldados romanos, intrigados com o silêncio, tinham-se posto de pé.
Pelas três horas e dez minutos, no meio daquele espesso silêncio, um calafrio percorreu-me dos pés à cabeça. Como um rugido, como uma mão de ferro que se arrastasse sobre uma rocha, assim comecei a ouvir o lento, muito lento, roçar de uma pedra por outra.
Se não tivesse assistido ao encerramento do sepulcro do Nazareno com a enorme lousa acho que não teria associado aquele bramido com o ruído da mó ao rolar pelo fundo da ranhura.
O meu pressentimento viu-se confirmado quando, subitamente, um dos levitas foi à galeria do sepulcro, lançando um grito assustador. Os seus companheiros e também os legionários acorreram. Poucos segundos depois começaram a recuar, gemendo e tropeçando uns nos outros.
- As pedras - gritavam em plena confusão. - As pedras estão se movendo sozinhas!... As pedras!
Os guardas do Templo, invadidos por um pânico indescritível, fugiram em todas as direções, berrando e batendo nos ramos mais baixos das árvores frutíferas.
Quanto à escolta romana, alguns recuaram até à fogueira, desembainhando as espadas.
Dois, não sei se paralisados pelo terror ou mais audazes que os seus companheiros, mantiveram-se à beira dos degraus que conduziam ao sepulcro. Durante segundos que me pareceram séculos, o rugido da pedra circular, rolando e arranhando a fachada do sepulcro, tudo encheu.
Os levitas tinham desaparecido do jardim. Quanto aos legionários, embora continuassem a poucos metros da abertura do túmulo, os seus rostos estavam banhados por um suor frio.
De repente, o barulho da lousa cessou. E quase simultaneamente, da galeria brotou uma labareda de luz. Não foi fogo. E também não o poderia definir como uma explosão, entre outras razões, porque não ouvi estampido algum. Só posso dizer que se tratou de luz. Uma língua, ou bolha, ou radiação luminosa, de um branco azulado indescritível.
Aquela explosão luminosa - não encontro palavras para a descrever - saiu do sepulcro. Disso, sim, estou certo. E prolongou-se instantaneamente até às árvores mais próximas, situadas a pouco mais de quatro metros dos degraus de acesso ao sepulcro.
A sua trajetória foi oblíqua, seguindo uma lógica via de escape. De certo modo, lembrou-me uma onda expansiva mas luminosa. Em décimos de segundo desapareceu e tudo ficou no mais absoluto silêncio. Os soldados jaziam por terra, como mortos. Agitei-me, inquieto, tentando ver alguém. Ali, era evidente, acontecera algo de anormal e inexplicável à luz de toda a razão. Mas, por mais que percorresse o local com os olhos, o sepulcro e as suas proximidades continuavam solitárias. A fogueira estava crepitando e do túmulo - tinha certeza disso - não saíra ninguém. Mas, quem podia aparecer por aqueles degraus que não fosse o próprio Jesus de Nazaré?
Jesus de Nazaré?
Sem saber como nem porquê, sentei-me no chão do pombal, atirando furiosos pontapés à portinhola. Tinha de sair. Tinha de entrar no sepulcro e desvendar a tremenda dúvida que acabava de me assaltar. Ainda estaria lá o cadáver de Jesus de Nazaré?
Maldita porta! Abra-se!
E num daqueles violentos pontapés, a portinhola saltou.
Enfiei-me como um louco pela abertura, seguido por um não menos enlouquecido turbilhão de pombos. Recuperei a minha vara e corri, corri sem fôlego. Os legionários, com os olhos muito abertos, continuavam por terra.
E comecei a descer os degraus. Mas, de repente, tive medo. Um pânico irracional que me eriçou os cabelos. Dei meia volta e saí dali correndo, sufocado e com a língua endurecida como cartão.
Mas, quando me preparava para me aventurar por entre as árvores, sem rumo certo qualquer coisa me deteve. É possível que fosse o bater do coração acelerado para lá das cento e oitenta pulsações por minuto. Respirei fundo, encostei-me ao tronco de uma das árvores e tentei pensar.
Tinha de voltar! Era preciso...
Contactei o módulo e pedi a Eliseu que não me perguntasse nada:
- Fala-me só, fala-me sem parar até que eu te avise.
Eliseu, bendito seja, não fez perguntas, mas, consciente de que algo de grave acontecia, procurou animar-me...
- Tenho um livro nas mãos - começou - e vou ler uma passagem. Olha a oriente... Olha a oriente do teu coração...Nasce um novo sol...
Enquanto aqueles versos me soavam no cérebro como uma mão mágica (nunca soube quem era o autor), voltei ao caminho, aproximando-me entre tremores do fosso da cripta.
.. Dizem que deixa sulcos de liberdade... Dizem que é a esperança. A esperança adormecida até hoje na outra margem...
Um, dois, três, quatro degraus... Só me faltava um. Respirei fundo muitas vezes e, à luz da Lua, aproximei-me da fachada do sepulcro. As duas pedras, efetivamente, tinham sido empurradas para a esquerda, deixando a descoberto a escura cavidade da gruta. Mas, disse para comigo, se os vinte guardas estavam ali em cima, quem rolou estes penedos? O seu peso total devia ser mais de setecentos quilos... Os selos do procurador estavam destruídos e tinham sido atirados para a galeria.
Comecei a suar... Entrava?... E se não estivesse?...
.. Olha para oriente... Para oriente de ti mesmo...
Tenho de entrar. E, acocorando-me, enfiei a cabeça. Mas a escuridão no interior da cripta era total: cerrada como goela de lobo. É impossível, disse para comigo. Preciso de um archote.
Voltei atrás pegando num dos lenhos chamejantes da fogueira.
Ainda que paralisados, os soldados estavam vivos. O pulso não oferecia dúvidas.
... Está amanhecendo na costa do teu olhar... Brilha Já uma nova estrela...
Desci as escadas e com o coração à beira de uma síncope, introduzi o facho pelo buraco da entrada. A luz avermelhada da madeira ardente logo inundou a câmara sepulcral. Rastejei um pouco mais e ao levantar os olhos, um abalo me destruiu a alma. O archote caiu no chão e eu ali fiquei, de joelhos, de boca aberta e olhos fitos naquele banco de pedra... vazio!
... Já chega... JÁ tens o meu sinal nas tuas mãos...
E sem poder conter-me, as lágrimas começaram a correr-me pelo rosto. O medo tinha desaparecido. Jesus de Nazaré não estava!... Mas aos meus ouvidos continuavam soando os últimos versos de Eliseu:
... Já chega... Já tens o meu sinal...
Deixei que as minhas lágrimas caíssem no chão do Sepulcro, enquanto uma paz infinita me aliviava o coração torturado.
Sem pestanejar, sem me mover, examinei as mortalhas. O lençol mortuário estava no lugar que o Nazareno ocupava. E entre ambos os lados da mortalha, no lugar onde pousara a cabeça do Mestre, distinguia-se o relevo do sudário, ou lenço, com que Nicodemo lhe prendera o maxilar inferior. Era como se o cadáver tivesse sido retirado dali por sucção.
Como se aquele grande corpo se tivesse evaporado. A posição da mortalha
Vazia - não deixava dúvidas. Se alguém tivesse roubado ou transportado o cadáver, os lençóis nunca teriam ficado naquela posição impressionante.
Mas como?
Como?, repetia eu para mim, constantemente.
Primeiro foram as trepidações. Depois as pedras que rolam, empurradas por uma força invisível e, por último, aquele fogo luminoso... Como?
E agora, como o maior prodígio de todos os tempos, um sepulcro vazio.
Seria preciso esperar pela minha segunda grande viagem à Palestina do ano 30 para começar a ter a intuição do que acontecera dentro daquele sepulcro. Foi a análise dos lençóis que nos deu uma pista. Como antecipação, posso dizer que a ressurreição do Galileu - o fato físico e milagroso da sua ressurreição - se deu poucos minutos ANTES da desintegração dos seus restos mortais. Nada teve a ver uma coisa com a outra. O cadáver evolara-se, sim, mas ANTES, insisto, Jesus tinha feito o grande prodígio.
Finalmente, avisei o meu companheiro de que ia começar o meu caminho de regresso à nave. E pelas três horas e trinta minutos, depois de beijar o solo rochoso da cripta, deixei o jardim de José de Arimatéia. Os soldados da Fortaleza Antonia ali continuavam, desmaiados, como testemunhas mudas da mais formidável notícia: a Ressurreição do Filho do Homem.
Pelas cinco horas e quarenta e dois minutos daquele domingo de glória, 9 de Abril do ano 30 da nossa Era, o módulo decolou ao nascer do Sol. Ao elevarmo-nos para o futuro, uma parte do meu coração ficou para sempre naquele tempo e Naquele homem a quem chamam Jesus de Nazaré.
J. J. Benitez
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