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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CEMITÉRIO ESPACIAL / A. C. Crispin
CEMITÉRIO ESPACIAL / A. C. Crispin

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

 

"O Espaço, a fronteira final.

Essas são as viagens da nave estelar Enterprise, prosseguindo em sua missão para explorar novos mundos, pesquisar novas vidas, novas civilizações, audaciosamente indo onde ninguém jamais esteve."

 

U.S.S. Enterprise NCC-1701-D

A United Space Ship Enterprise, cruzador de exploração da classe Galaxy, é a quarta nave herdeira do número de matrícula, NCC-1 701, maior e mais rápida que suas predecessoras. Sua missão de trinta anos é expandir as fronteiras territoriais, científicas e culturais da Federação de Planetas. Construída nos estaleiros de Marte, seu casco é feito de uma liga especial de tritanium/duranium. Tem um comprimento de 642,5m, largura de 467m e altura de 137,5m. Sua velocidade máxima de cruzeiro é feita em dobra 9.

A nave foi construída para que, em casos de emergência, o disco principal - onde estão as famílias dos 800 tripulantes, cerca de 300 passageiros entre cônjuges e crianças - se separe da seção de batalha.

 

Capitão Jean-Luc PICARD, é o comandante da nova Enterprise. Nasceu na França. Com vasta experiência em missões de exploração e pesquisa no espaço, tem uma extraordinária capacidade de comando. Possui uma lógica clara, muita perspicácia e ação decisiva. Tem um senso de justiça, honra e conduta bem definidos. É sagaz, decidido, romântico e diplomático, além de verdadeiro gentleman.

Comandante William T. RIKER, é o imediato da Enterprise. Sua maior responsabilidade é a defesa e proteção da vida do capitão. É de sua competência também, certificar-se que a nave se mantenha operacional e sua tripulação treinada. Lidera os grupos de exploração. Possui inteligência arguta e um senso de humor apurado que o auxilia no relacionamento com seus subordinados.

Tenente-comandante DATA, piloto da nave For ser um andróide não sente emoções e tem grandes dificuldades em entendê-las. Tem pele dourada, olhos amarelos e enorme força física. É muito literal e se confunde facilmente quando se usam figuras de linguagem. Registra em seu cérebro positrônico tudo o que aprende ou vê.

Conselheira Deanna TROI. Nasceu no planeta Betazed, mas é apenas meia betazóide - seu pai é um oficial terrestre da Frota. Possui a capacidade de sentir as emoções da maioria dos seres vivos da Galáxia herdada de seus ancestrais betazóides. Usa suas habilidades e sua empatia para auxiliar o Capitão Picard a tomar decisões.

Tenente Geordi LA FORGE, é o navegador da Enterprise. Mesmo cego de nascença, consegue "enxergar" graças ao visor, um aparelho que funciona como um órgão sensorial capaz de distinguir várias faixas do espectro eletromagnético -luz, infravermelho, ultravioleta, raios-x - além de ampliar as imagens como um microscópio.

O tenente WORF, é o oficial de armamentos. E o primeiro oficial klingon nos quadros da Frota. Quando criança, foi o único sobrevivente de um ataque dos romulanos ao planeta Khitomer. Adotado por um oficial da Frota viveu, desde então, entre os humanos. Procura sempre manter o autocontrole, apesar de sua natureza agressiva.

WESLEY Crusher, filho da doutora Crusher, é um adolescente superdotado. Possui incrível facilidade para visualizar e projetar sistemas de circuitos eletrônicos. Tem paixão por física avançada, comandos computadorizados das dobras espaciais e tecnologia de raios tratores e repulsores.

Doutora Beverly CRUSHER, é a médica-chefe. Nasceu na colônia Alveta III, onde apaixonou-se pela medicina após observar sua avó improvisar um tratamento à base de ervas para salvar seu planeta de uma epidemia. Seu marido foi morto numa missão comandada por Picard e, apesar de não culpá-lo, tem emoções conflitantes a esse respeito. Possui personalidade forte e vibrante.

 

 

 

 

O tenente comandante Geordi La Forge, engenheiro chefe da nave estelar Enterprise, acordou em sua cabine coberto de suor e com o coração disparado, saindo das trevas absolutas de seu sonho para a escuridão da vida real sem o auxílio de seu VISOR. Permaneceu algum tempo pestanejando e ofegando, sem saber ao certo se estaria realmente acordado. Quando finalmente se sentiu plenamente desperto, sentou-se no leito e tateou a mesinha de cabeceira à direita, procurando o VISOR.

Ao colocá-lo nos olhos, posicionou as hastes laterais sobre os sensores bio-eletrônicos implantados em suas têmporas e pressionou-as, encaixando-as no lugar, e teve imediatamente que suprimir um espasmo de dor. Era-lhe doloroso reativar a visão.

Geordi já se acostumara ao constante desconforto causado pelo ato de "ver". A maior parte do tempo mal se dava conta disso. Por muitos anos havia-se treinado com técnicas de biofeedback, o que lhe permitia conviver com a dor e dominá-la. Era o preço que tinha que pagar para ter uma existência normal e não reclamava disso.

A simples aceitação da dor, contudo, não a eliminava, mas era o primeiro passo para aprender a conviver com ela. La Forge suspirou quando a dor reassumiu seu lugar costumeiro junto às têmporas. A cabine escura iluminou-se, à medida que seu VISOR captava a porção infravermelha do espectro. Os objetos foram surgindo como formas tremeluzentes e multicoloridas, dependendo de que modo retinham ou refletiam o calor nelas incidido.

O engenheiro jogou as pernas para fora do leito e ergueu-se. Em seguida, perguntou ao quarto, numa voz rouca de sono, que horas eram.

Obedientemente, o quarto respondeu. Ainda era "noite" pelo horário do turno de La Forge.

— Que dia do mês? — perguntou, com súbita intuição do que havia causado aquele sonho repleto de temores. — Calendário terrestre, não a data estelar.

— Estamos no dia dezesseis de setembro.

De alguma forma, eu sabia disso, pensou La Forge. Mesmo sem ter consciência do fato. Há vinte e sete anos, neste mesmo dia, experimentei meu último momento de verdadeira cegueira.

Geordi lembrou-se vividamente dos odores e ruídos do hospital em que acordou na manhã de sua cirurgia, quando ainda era um menininho assustado — assustado porem determinado a submeter-se ao novo tratamento que, segundo os médicos, poderia fazê-lo "ver".

— Ver? — relembrou ter perguntado, quando seus pais e o médico lhe falaram pela primeira vez a respeito da nova técnica desenvolvida pela medicina. Naquela ocasião, tinha nas mãos seu brinquedo favorito: um modelo de nave estelar. Ao escutar a explicação, seus dedos sensíveis acariciaram a superfície lisa e bem conhecida do brinquedo, tateando cada milímetro e sentindo cada minúscula irregularidade ou saliência de sua forma graciosa. — Vou conseguir ver como todo mundo?

— Em muitos aspectos — disse solenemente o Dr. Lenske — você verá melhor do que todo mundo.

— O suficiente para eu poder entrar na Academia da Frota Estelar? — perguntara Geordi, tencionando seu pequeno corpo com súbita e imprevista esperança.

— Creio que sim — respondeu o médico. — Contudo... Geordi, preciso ser sincero com você. Há um preço a pagar por sua nova visão. O VISOR é um aparelho novo, e usá-lo lhe causará dor.

O menino enrijeceu o queixo. Ele sabia o que significava dor — dor era o que acontecia sempre que a gente dava uma topada no dedão do pé ou tropeçava e caía, quando não estava usando a roupa sensora. Seus dedos apertaram com força a réplica da nave estelar.

— Não me importo — disse ele, em voz baixa. — Quero entrar para a Academia mais do que qualquer coisa no mundo. Quero ser oficial da Frota Estelar. Quero enxergar.

Absorto em suas lembranças, La Forge recordou-se do que sentira ao deitar-se na maça antigravitacional e ser conduzido pelos reverberantes corredores até a sala de cirurgia. O perfume de sua mãe fora substituído pelos discretos porém desagradáveis odores do hospital. Sua mãe e seu pai haviam apertado sua mão com força. Esse toque foi a última coisa de que se lembraria, além do calor sobre suas pálpebras, indicando haver uma luz forte brilhando sobre sua cabeça.

Quando acordou e colocaram-lhe o VISOR pela primeira vez, ele gritou — em parte por causa da dor, mas principalmente devido ao atordoante choque das imagens que inundaram sua mente, retorcendo-se, oscilando e tremeluzindo. Cores. Ele estava vendo cores!

Enquanto erguia-se da cama e caminhava pesadamente até o armário para apanhar um par de calças comuns e uma camisa de manga curta, Geordi pensou: Será que o que eu chamo de "vermelho" tem qualquer semelhança com o que as pessoas de visão normal chamam de "vermelho?"

La Forge suspeitava que seu perturbador sonho de cegueira havia sido desencadeado não apenas pelo aniversário de seu VISOR, mas também pela visita que fizera à enfermaria na manhã anterior. A Doutora Crusher o havia examinado, assegurando que ele estava em perfeita saúde, e depois lhe perguntara se havia chegado a uma decisão quanto a manter seu VISOR ou permitir que ela e a Doutora Selar tentassem regenerar seu nervo óptico.

Se eu tivesse uma visão normal, pensou La Forge, enquanto lavava o rosto e passava um pente no cabelo curto, não me preocuparia tanto com a impressão que meus olhos causam nas outras pessoas — especialmente as mulheres — quando estou sem o VISOR. Sentiu o rosto afoguear-se ao lembrar o modo como desconhecidos mal-educados reagiam ao vê-lo, quando era criança. "Oh, coitadinho!" exclamara, certa vez, uma mulher. "Ele não consegue ver com esses olhos, não é?" perguntara um homem, em voz alta, como se Geordi também não pudesse ouvir.

Por outro lado, se desistisse do VISOR para ter uma visão normal, perderia sua habilidade especial de "ver" o que as pessoas "normais" não conseguiam ver. Além disso, ser cego e usar uma prótese visual eram parte da personalidade de Geordi La Forge — tanto quanto sua carreira na Frota Estelar. Será que ele gostaria de tornar-se outra pessoa?

La Forge sabia que levaria pelo menos um ano para submeter-se ao tratamento de regeneração e aprender a ver como as pessoas normais. Ele tinha sido recentemente promovido a engenheiro chefe e fora recomendado pelo capitão Picard por seu desempenho. Será que desejava arriscar-se a perder tudo isso?

Geordi suspirou fundo, cansado de se debater com perguntas que pareciam não ter uma resposta satisfatória. Por um instante, pensou em descer à engenharia, mas a quase imperceptível vibração dos motores de impulso da Enterprise deu-lhe a certeza de que tudo estava funcionando perfeitamente. Não seria preciso nada além da força de impulso para a tarefa que estavam cumprindo, enquanto a imensa nave mapeava e explorava aquele setor relativamente desconhecido da galáxia.

Sim, e não se esqueça de que Sonya Gomez ficou responsável pelo turno, lembrou-se Geordi. A pobre menina já está suficientemente nervosa. Não vai querer que ela pense que você confia tão pouco na competência dela, a ponto de precisar verificar o que ela anda fazendo.

Além do mais... ele não estava muito a fim de pensar em trabalho naquele momento. Queria conversar com alguém. Não de modo oficial. Não era algo tão importante a ponto de ter que procurar a conselheira da nave. Contudo... falar a respeito do assunto poderia afastar os medos do sonho que tivera, no qual ele se vira novamente cego.

Calçando um par de mocassins, La Forge saiu da cabine e virou à esquerda no corredor. Tinha pensado em descer até o convés de recreação para conversar com Guinan. A enigmática atendente era boa ouvinte, e uma bebida poderia fazê-lo relaxar um pouco.

Guinan deixava Geordi intrigado. Fora-lhe dito que a cor da pele dela era quase igual à sua, e ele sabia que sua aparência externa era praticamente humana, mas a visão especial de La Forge mostrava-lhe mais do que as pessoas normais conseguiam ver. Ele sabia que Guinan era alienígena — humanóide porém não humana. Sua temperatura corpórea e as taxas de metabolismo a denunciavam, bem como outras diferenças que só ele conseguia detectar.

A caminho do turboelevador, porém, o engenheiro chefe parou e franziu a testa. Devia haver amigos seus no convés de recreação, e Geordi realmente não estava a fim de se ver no meio de muita gente. A maioria de seus amigos mais chegados trabalhavam no mesmo turno e portanto deviam estar dormindo ...

... com uma exceção, naturalmente.

Sorrindo, La Forge virou-se e caminhou de volta pelo corredor, até a porta de uma cabine, e apertou a campainha.

— Entre — disse uma voz. A porta se abriu e Geordi entrou.

— Data, sou eu — disse La Forge, ao cruzar o quarto e dirigir-se à pequena sala de estar. A sala tinha uma mobília normal, à qual fora acrescentada um cavalete de pintor. Um terminal de computador piscava na parede. Sobre a escrivaninha, havia uma caixa de violino, que estava empurrada para um canto.

O tenente comandante Data estava sentado à escrivaninha, segurando nos dedos um instrumento pequeno e fino, que La Forge não reconheceu. O andróide estava cercado por um halo dourado claro de energia, e seu corpo brilhava nas tonalidades laranja, amarelo e verde claro. As cores espalhavam-se de modo uniforme por todo o corpo, em vez de concentrarem-se no tórax, como Geordi enxergava os humanos quando usava a porção infravermelha de sua visão. Ele sabia que o oficial artificialmente criado parecia bastante humano para seus companheiros de visão normal, com exceção de sua pele dourada e seus olhos reluzentes, mas o VISOR captava sua imagem de modo muito diferente.

Data ergueu o olhar para o amigo que entrava, e colocou uma espécie de tampa no objeto que segurava.

— Olá, Geordi — disse ele, com seu modo preciso e monotônico de falar.

— Oi, Data. O que é isso aí?

— Uma réplica perfeita de uma antiga caneta-tinteiro — explicou o andróide, erguendo o objeto.

— Uma o quê?

— Uma caneta-tinteiro. — Percebendo que La Forge continuava sem entender, Data acrescentou atenciosamente: — Um instrumento para se escrever à mão.

— Você quer dizer produzir um impresso escrevendo à mão no papel? Para que você quer fazer isso? — perguntou La Forge, suspirando discretamente. Ele já conhecia o entusiasmo repentino de Data por certas coisas, e algo lhe dizia que era isso mesmo que estava acontecendo naquele instante.

— Para despertar minha musa — disse Data. — Um famoso escritor do século XX, cuja obra tenho estado a ler, declarou categoricamente ser impossível produzir boa literatura por meios eletrônicos.

Dessa vez La Forge suspirou bem alto. Estava a ponto de mencionar que ele mesmo, Data, funcionava por meios eletrônicos, bem como, em última análise, os próprios humanos, mas conteve-se.

— Ahn, quer dizer que está produzindo literatura de próprio punho?

— Creio ter sido isso o que eu disse — respondeu Data.

— Que tipo de literatura?

Algo parecido com orgulho transpareceu na voz do andróide.

— Estou escrevendo um romance.

— Oh — conseguiu dizer La Forge, depois de uma pausa — Ahn... bem... que ótimo, Data. Sobre o que fala seu romance?

— É uma narrativa fictícia dos primeiros dias das viagens interestelares. Uma obra épica, cheia de paixão e nobreza, mas escrita num estilo acessível ao grande público — explicou Data.

— Como se chama?

— A obra ainda não tem título. Estou certo de que terei a inspiração para um título apropriado antes da publicação do livro.

— Publicação? — Geordi estava estupefato. — Você já vendeu esse livro?

— Não. Ainda não o terminei e por isso não o submeti à apreciação de um editor. Mas, quando o momento chegar, tenho certeza que será digno de ser publicado — disse Data, sem emoção. — Afinal de contas, analisei mais de quinhentos anos de literatura humana, estudando seus temas e componentes mais básicos. Estou certo de que posso igualar, ou talvez superar, a qualidade das obras de ficção que já foram publicadas até recentemente.

— Ahn... claro — disse La Forge, sem muita convicção. Ele tivera uma amiga na Academia, Laura Wu, que tentara publicar vários contos sem nunca conseguir. Desiludida, ela acabou abandonando suas aspirações.

— Quer que eu leia a cena que estou revendo agora? — perguntou Data.

Geordi detestou a idéia, lembrando-se das vezes que tentara ler e comentar os trabalhos de Laura. Somente conseguira magoar-lhe os sentimentos e causar ressentimentos.

— Claro — disse em voz alta, conseguindo simular um entusiasmo bastante convincente.

— Muito bem. — Data apanhou uma folha de papel de modo bastante afetado. Pigarreou, tentando limpar a garganta de modo teatral, mas conseguindo apenas uma espécie de grunhido artificial. — Esta cena ocorre entre Fritz e Penélope, meus dois protagonistas. Eles estão na base estelar Luna, sob um dos domos de observação. Um ambiente muito romântico para uma cena de amor, não concorda? Penélope está perturbada porque Fritz partirá no dia seguinte em sua nave, e ela teme nunca mais vê-lo novamente. — Data começou a ler:

 

"As pontiagudas montanhas lunares perfuravam o negror do céu crivado de estrelas, como diapasões vibrando ao som da música das esferas celestes. Penélope voltou-se para Fritz com lágrimas escorrendo pelo rosto, borrando-lhe a maquiagem e avermelhando seus olhos normalmente tão belos quanto safiras.

— Temos apenas esta noite — sussurrou ela. — Amanhã, você terá partido, e nunca nos veremos de novo.

Be a tomou nos braços com força, fazendo com que ela expulsasse o ar dos pulmões ao comprimir-lhe o abdômen.

— Eu voltarei — prometeu ele. — Nossa jornada pode levar anos, mas prometo que voltarei. Vai esperar por mim, querida?

— Não tenho outra escolha — disse ela. — Quando estou a seu lado, sinto-me transtornada. Minhas pernas ficam bambas, o sangue corre loucamente pelas minhas veias, todo o meu corpo formiga só de estar próximo do seu. Por que só você consegue fazer-me sentir assim?

— Essas reações não são incomuns, Penélope. São meros sinais fisiológicos da excitação sexual na fêmea humana — murmurou Fritz, enquanto se apossava, ou melhor saqueava seus lábios entreabertos.

Elaa gemeu, quando ele ... "

 

— Ahn... Data — interrompeu Geordi, acenando a mão para chamar a atenção do amigo. — Espere um pouco. Não sou escritor, mas tem algo estranho no modo como Fritz fala com ... ahn, Penélope, era esse o nome dela? Bem, um ser humano do sexo masculino jamais ficaria listando todos os sintomas físicos da... paixão. Ele simplesmente beijaria a moça.

— Mas ela fez uma pergunta — explicou Data. — Quando se faz uma pergunta, espera-se uma resposta.

— Bem, geralmente isso e verdade, mas num caso como esse, o tal do Fritz, ou qualquer homem, não perderia tempo fazendo um discurso para esclarecer a mocinha. Ele a beijaria e continuaria daí para a frente.

Data olhou para seu critico com desânimo crescente.

— É isso o que ele faria? Acha mesmo?

— Bem, não me considero a maior autoridade do universo em cenas de amor na lua, mas, sim, tenho certeza que sim. — La Forge sorriu com malícia — Se quer alguém que certamente e um expert no assunto, procure o comandante Riker.

— Vou corrigir essa parte — prometeu Data, solenemente. — Mas, com exceção disso, que achou do texto?

Geordi hesitou. Para ser sincero, tinha achado tudo muito ruim. Não podia, contudo, dizer a verdade. Não queria magoar os sentimentos de Data, supondo que o andróide tivesse sentimentos que pudessem ser magoados. Data certamente parecia quase humanamente orgulhoso de sua produção literária.

— Bem ... — começou a dizer. — Acho que definitivamente poderia dizer que é ... interessante. Sem dúvida muito interessante.

— Poderia ser mais específico a respeito do que gostou e do que não gostou? Que emoções foram despertadas em você?

O engenheiro chefe gemeu internamente.

— Bem, eu...

La Forge foi salvo por um apito do intercomunicador da cabine de Data

— Tenente comandante Data? — era a voz do oficial da ponte, o alferes Whitedeer.

— Data falando — respondeu o andróide.

— Estamos recebendo uma mensagem do comando da Frota Estelar, senhor.

— Onde esta o capitão?

— Em seus alojamentos, senhor.

— E o comandante Riker?

— No Holodeck três, senhor.

O andróide ergueu-se, arrumando o uniforme e tampando rapidamente a caneta.

— Estou a caminho da ponte, alferes.

— Sim, senhor.

Geordi já estava a meio caminho da porta, profundamente agradecido por ter sido dispensado do papel de crítico literário.

— Vou vestir meu uniforme e dou uma passada por lá para saber qual é o agito.

— "Agito"? — repetiu Data. Depois, fez que sim com a cabeça. — Ah, já sei. Você quer dizer "qual é o agito?" como quando diz "o que está acontecendo?", "o que se passa?", "o que é que há?", "qual é, ô meu?"...

— Você entendeu, Data — exclamou La Forge, quando a porta da cabine do andróide se abriu. — Vejo você na ponte.

Quando La Forge, novamente cm seu uniforme amarelo escuro e preto, chegou à ponte, encontrou o comandante William Riker, que chegara antes dele. Se Data havia chamado Riker, isso queria dizer que a mensagem era mais do que uma simples comunicação de rotina. Geordi foi verificar os monitores do posto de engenharia da ponte, mantendo o ouvido atento para qualquer indício do que estava acontecendo.

Pouco depois, o próprio capitão Jean-Luc Picard apareceu, impecavelmente vestido e bem arrumado como sempre, mas Geordi teve a impressão de que o comandante da Enterprise havia sido despertado de um sono profundo. O engenheiro esperava apenas que a misteriosa mensagem fosse suficientemente importante para justificar a quebra da rotina de todos os integrantes do turno. O comando da Frota Estelar muitas vezes fazia tempestade em copo d'água.

Picard leu silenciosamente a mensagem, depois ergueu-se.

— Comandante Riker, Sr. La Forge, Sr. Data, queiram acompanhar-me à sala de conferências — disse ele, com a costumeira dicção impecável e o semblante impassível. — Sr. Crusher, assuma as comunicações.

Geordi relaxou um pouco ao caminhar para a sala de conferências. O capitão raramente deixava transparecer qualquer indício de seu sotaque natural francês, que aparecia somente quando ele estava profundamente aborrecido ou preocupado. Isso não havia acontecido naquele momento. Obviamente não se trata de uma invasão romulana em larga escala, concluiu o engenheiro chefe. Novas ordens, talvez. Mas não terminamos de mapear este setor... o que significa que, seja o que for, deve ser algo suficientemente importante para tirar-nos de uma missão ainda não concluída.

Depois de sentarem-se ao redor da mesa da sala de conferências que ficava atrás da ponte de comando, uma sala confortável cuja mobília neutra era eclipsada pela estupenda vista das estrelas, os oficiais superiores da ponte esperaram o oficial comandante manifestar-se.

— Recebemos ordens de investigar um problema ocorrido na recém inaugurada rota comercial que passa pelo setor 3SR-5-42, ligando o território da Federação ao Império Klingon — começou Picard. — O único planeta habitado nas redondezas é Thonolan Quatro, uma colônia andoriana recém instalada. O comando da Frota Estelar notificou-me o desaparecimento de vários cargueiros da federação em curso por esse setor. Eles sumiram sem deixar qualquer rastro aparente. Houve três naves desaparecidas nos últimos seis meses.

Xii, pensou La Forge. Parece que lá vem encrenca. Está com cara de uma missão do tipo "estiquem o pescoço para fora da trincheira para ver o que acontece".

— Ontem, o Alto Comando Klingon perdeu contato com uma de suas naves: o cruzador klingon PaKathen. Temos ordens de investigar seu desaparecimento c, se possível, resgatar o PaKathen.

Picard voltou-se para Data.

— Sr. Data, a partir de nossa atual posição, quanto tempo levaremos para chegar ao setor 3SR-5-42, em velocidade máxima de cruzeiro?

— Quatro dias e sete horas, capitão — respondeu o andróide, quase imediatamente.

— Partiremos às mil e trezentas horas, assim que encerrarmos as operações aqui — Picard olhou para os presentes, com uma expressão sombria. — Algum comentário ou pergunta?

O comandante Riker acenou com a cabeça.

— Pelo que entendi, algumas naves passaram por essa região sem qualquer incidente, estou certo?

— Correto, Imediato.

— Então sugiro que consultemos os diários de bordo de algumas dessas naves. Talvez uma delas tenha percebido algo que nos dê uma pista do que aconteceu às naves desaparecidas.

— Concordo, Imediato. Peça ao comandante Data que inicie essa pesquisa assim que estivermos a caminho. — Picard fitou o segundo em comando pensativamente. — Comandante Riker, qual é a situação atual de nossa missão de mapeamento?

— Estamos — Riker sorriu com malícia — estávamos na metade, senhor.

— Instrua sua equipe científica para que interrompa o trabalho e transmita todos os dados obtidos ao comando da Frota Estelar. Lembre-se, partimos em uma hora. — Picard inclinou a cabeça para seus oficiais mais graduados — Dispensados.

A tenente Selar observava a pequena criança de pele azulada que vestia um brilhante casaquinho preto e andava de modo hesitante em direção à parede, até que ela parou subitamente.

— Distância da parede? — perguntou Selar.

— Um metro e trinta centímetros, como você disse — respondeu a menininha.

— Excelente — disse Selar. — Você está ganhando confiança.

— Fica mais fácil a cada vez que procuro combinar os sinais de minha rede sensora com as sensações de minhas antenas. Esta rede sensora é bem melhor do que a outra que eu tinha. — A menina voltou-se para a médica vulcana, com seus pálidos olhos fitando fixamente um ponto acima da cabeça de Selar. — Obrigada por ensinar-me a usá-la, Doutora Selar.

A vulcana sacudiu negativamente a cabeça, esquecendo-se momentaneamente de que a criança andoriana não podia ver seu gesto.

— Esse é o meu trabalho, Thala. Não é necessário agradecer alguém pelo simples cumprimento de seu dever.

A criança sorriu de repente, de modo travesso.

— Você passou mais tempo comigo do que devia, eu sei. Ouvi a Doutora Crusher dizer isso durante meu último exame médico. Ela achou que eu não estava ouvindo, mas eu estava.

Selar ergueu uma sobrancelha, surpresa.

— Tenho que avisar a Doutora Crusher para ter mais cuidado com a sua acuidade auditiva.

A pequenina menina enrugou subitamente o rosto azulado, sob seu cabelo e antenas brancas.

— Oh, não. Eu fiz de novo, não foi? Wesley costuma dizer que minha boca se move em dobra espacial enquanto minha mente ainda está em velocidade de impulso.

A vulcana concordou intimamente que a metáfora era bem aplicada, mas o riso não transpareceu em seu rosto bem treinado.

— Quanto mais praticarmos o uso da rede sensora antes de aportarmos na próxima base estelar, onde você tomará um transporte para seu planeta natal, mais fácil será para você utilizá-la.

Thala fez que sim com a cabeça, contendo as emoções como uma vulcana. Por um momento, Selar arrependeu-se de ter mencionado a iminente partida da criança, mas reprimiu os sentimentos. Ela tinha que se acostumar com a idéia de que em breve partiria para crescer em um planeta que jamais conhecera.

A menina andoriana havia nascido no espaço. Seu pai, Thev, era um embaixador andoriano que viajava a trabalho diplomático. A mãe de Thala, especialista em línguas, morrera seis anos antes, quando sua filha tinha apenas um ano de idade, de uma virose que contraíra. O pai da menina tinha morrido havia cinco semanas, sendo uma das dezoito vítimas fatais do ataque dos borgs.

Thala estava sozinha, e as leis determinavam que deveria ser enviada de volta para a família o mais breve possível.

Desde a morte de Thev, a tenente Selar havia tentado dizer a si mesma que Thala estaria melhor com seus parentes, mas preocupava-se com o futuro da criança. A vida a bordo de uma nave estelar era muito diferente da vida na superfície de um planeta — especialmente no planeta natal dos andorianos.

Os andorianos eram uma raça temperamental, não tão avançada tecnológica e socialmente quanto os vulcanos ou mesmo os terráqueos. Apegavam-se a suas antigas tradições, fundamentadas em seu passado bárbaro e sanguinário. As fraquezas e deficiências não eram encaradas com tolerância, mas como uma vergonha para a família. Alguns clãs andorianos, segundo os boatos, ainda sacrificavam as crianças nascidas imperfeitas. A verdade era que Selar, em seus quinze anos de prática médica na Frota Estelar, jamais havia encontrado um andoriano com qualquer tipo de deficiência física.

Como Thala seria tratada pelo seu povo? No ano anterior, Selar havia trabalhado com a Doutora Pulaski e depois com a Doutora Crusher, quando esta retornou ao serviço, realizando testes e exames em Thala para que ela recebesse um VISOR muito semelhante ao que o tenente comandante La Forge usava. O implante de sensores e a calibração de um VISOR jamais tinham sido realizados em um andoriano. Selar tinha feito grande parte do trabalho sozinha, com a ajuda e conselhos de La Forge.

Se Thala partir, perguntou-se Selar, será que seu clã providenciará para que a criança receba os melhores cuidados médicos a fim de um dia "ver" da mesma forma que o engenheiro chefe? Em seu íntimo, a vulcana tinha suas dúvidas.

Além disso, havia algo no qual Selar vinha trabalhando com o Doutor Pulaski no setor de desenvolvimento: substitutos bioeletrônicos para partes do corpo. Já se descobrira um modo de implantar olhos bioeletrônicos no tenente comandante La Forge, para que ele tivesse uma aparência normal — supondo que ele não desejasse tentar a regeneração do nervo óptico. Mas o engenheiro chefe havia recusado a oferta, porque a retirada de seu VISOR significaria a perda de uma porcentagem significativa de seu espectro especial de visão.

Mas para Thala, que nunca havia experimentado a visão ampliada proporcionada pelo VISOR, não seria ideal ter olhos bioeletrônicos? Eles enxergariam e funcionariam de modo mais semelhante à visão normal, mas dariam à menina a capacidade de "ver" um espectro maior. Além disso, com eles a pequena andoriana não precisaria sofrer a dor constante que La Forge sentia.

Selar suspirou em voz alta, e Thala voltou-se cm sua direção, surpresa.

— Está cansada, Doutora? Podemos parar com a aula, se quiser.

— Não, absolutamente — disse a vulcana. — Mas estamos na hora do almoço. — Ela ergueu-se graciosamente. Era uma mulher alta e magra, com cabelos negros e curtos, e uma franja que quase tocava suas sobrancelhas oblíquas, deixando à mostra suas elegantes orelhas pontudas. A doutora tinha por volta de quarenta anos, sendo ainda bastante jovem pela contagem de seu povo, e suas feições marcantes eram bastante atraentes, apesar de sua pouca mobilidade.

— É mesmo. E eu estou com fome — disse Thala. Ela hesitou um pouco, depois perguntou em voz baixa — Terei outra aula com a senhora amanhã, doutora?

Selar hesitou, notando a admirável maneira com que a menina procurava disfarçar a ansiedade em sua expressão.

— Creio que sim — disse ela. — A menos que haja uma emergência inesperada na enfermaria. — Algo na expressão tristonha da menina fez Selar perguntar — Gostaria de acompanhar-me até o convés de recreação para almoçar comigo? Não tenho outros compromissos no momento.

— Posso mesmo? — disse Thala, abrindo um grande sorriso e esticando as antenas de alegria. — Isso seria ótimo! Muito obrigada, doutora!

— Não precisa me agradecer — disse Selar. — Ambas precisamos comer, e uma companhia agradável nas refeições auxilia na digestão. — A criança aproximou-se dela, com passos hesitantes. Ela ainda não aprendeu a usar bem sua nova rede, pensou a vulcana. É melhor não atrapalhar seu progresso por causa de um escorrerão ou tropeço.

Por isso, quando Thala chegou perto dela, a doutora segurou-lhe a mão.

— Venha, então, vamos subir juntas.

Os pequenos dedinhos azuis apertaram os pálidos dedos esverdeados, e elas saíram juntas da cabine da menina e seguiram pelo grande corredor, com Selar dirigindo discretamente a menor. Através do contato físico, a médica conseguia perceber telepaticamente o prazer sentido por sua companheira e o entusiasmo pela perspectiva de passarem mais algum tempo juntas.

— Depois do almoço, você pode me atualizar a respeito do progresso de seus estudos — disse a vulcana enquanto caminhavam.

Thala fez que sim com a cabeça.

— Tenho estudado muito, e com esta nova rede vai ser muito mais fácil trabalhar com o computador, doutora.

— Já nos conhecemos há um vírgula quatro anos — observou Selar, olhando para as feições sinceras da menina. — Não é mesmo?

— É verdade — concordou Thala, séria. — Desde que a senhora começou a trabalhar com a Doutora Pulaski para ajudar-me a ver melhor. Eu era apenas uma menina naquela época — disse ela, esticando-se para ficar mais alta. Os lábios de Selar retesaram-se num sorriso discreto.

— E agora você já está muito mais velha, não é? Thala concordou com a cabeça.

— Nesse caso — prosseguiu a vulcana — como já somos quase da mesma idade, talvez esteja na hora de você começar a chamar-me por meu nome. Poderia chamar-me de Selar, por favor?

A criança inclinou a cabeça, de modo formal, e segurou com mais força a mão da professora.

— Será uma honra, Selar — disse a menina, em voz baixa.

 

O tenente comandante Data estava sentado diante do console do computador de sua cabine, repassando o registro de todas as naves que haviam cruzado o Setor 3SR-5-42 nos últimos cinco anos. A rota de comércio entre Thonolan IV e a Federação não existia até um ano antes, tampouco a que ligava a Federação ao Império Klingon, mas algumas naves entraram no setor, na maior parte pequenos cruzadores e cargueiros particulares.

Além disso, como Data havia acabado de descobrir, quinze vírgula quatro por cento das naves desapareceram sem deixar qualquer vestígio.

As viagens espaciais ainda eram um empreendimento arriscado por natureza, mas Data sabia que esse percentual era mais alto demais para os riscos comuns encontrados nas viagens interestelares. No entanto, nenhum dos diários de bordo das naves que haviam conseguido passar pelo setor em segurança relatava qualquer coisa fora do comum.

O andróide passou mais uma vez os olhos pelos registros, procurando qualquer tipo de informação que pudesse relatar a Picard, mas não havia nada. Piratas renegados? Pensou ele, afastando imediatamente a idéia. Seria improvável num local tão afastado das rotas espaciais. Qualquer que fosse o carregamento roubado não compensaria o combustível e o tempo gastos para transportá-lo até um planeta onde pudesse ser revendido, como Arcturus VI, cujo governo planetário era complacente para com as atividades clandestinas e a lavagem de créditos.

 

As feições pálidas de Data permaneceram serenas ao levantar-se da cadeira e caminhar lentamente pela cabine. Muitos humanos alegavam que esse tipo de movimentação os ajudava a pensar mais claramente. O andróide não via muita lógica nisso, mas imaginou que poderia testar empiricamente o fato. Talvez devesse também apanhar um cachimbo e seu chapéu de caça, das aventuras de Sherlock Holmes do holodeck.

Enquanto caminhava pela cabine, Data viu a caneta tinteiro e as páginas que enchera com sua caligrafia perfeita. Uma súbita lembrança de sua conversa com La Forge passou de relance na mente do andróide. Geordi não havia mostrado tanto entusiasmo pelo livro que Data estava escrevendo quanto ele esperava. Talvez o engenheiro não conhecesse muito de ficção.

Ou podia ser que o que Data tinha escrito não estivesse muito bom. Talvez, como em muitas outras coisas, Data tivesse deixado de entender algo intangível, que faria sua obra compreensível e agradável para um público humano. Era possível que tivesse fracassado novamente.

O andróide decidiu que precisava de outra opinião, talvez duas ou três.

Com resolução, ele voltou sua atenção novamente para a análise de todos os registros que havia acessado em sua pesquisa, verificando se não havia deixado escapar nada nem menosprezado coisa alguma. Seu cérebro positrônico era extremamente meticuloso e preciso, mas Data não era um computador e seria remotamente possível que viesse a cometer um erro.

Mas não daquela vez, concluiu ele, um minuto depois. Não havia deixado escapar nada. Tampouco havia dados suficientes para formular uma hipótese, por mais remota que fosse.

Data deixou a cabine e seguiu resolutamente para a ponte, a fim de apresentar seu relatório ao capitão. Ele sabia que Picard não ficaria satisfeito, mas não poderia colocar a culpa em seu oficial andróide. Jean-Luc Picard esperava resultados quando estes eram possíveis, nunca admitindo desculpas, mas era um homem justo que reconhecia um mistério real quando se deparava com ele.

E era exatamente isso que tinham pela frente naquele momento. Algo estava lá fora, mas não havia como especular o que poderia ser. A Enterprise e sua tripulação teriam que descobrir por experiência própria.

 

A tenente Selar sentou-se em sua cabine, relendo a mensagem pessoal que havia recebido pelo canal subespacial antes de a Enterprise ter entrado em velocidade de dobra, a caminho de sua tarefa prioritária. A mensagem dizia:

 

Em reconhecimento a suas importantes publicações de pesquisa e longa experiência no desenvolvimento de próteses bioeletrônicas, em particular no campo da xenobiologia, os Diretores da Academia Vulcana de Ciências convidam Selar, atualmente ocupando o cargo de tenente da Frota Estelar, designada presentemente à equipe médica da U. S. S. Enterprise, NCC-1701-D, para o cargo de Diretora de Pesquisa Bioeletrônica da Academia Vulcana de Ciências.

 

A médica vulcana precisou reprimir fortemente uma onda de orgulho puramente egoísta ao terminar de ler pela terceira vez o comunicado. Oportunidades como essa somente ocorriam uma vez na vida das pessoas, quando muito. Logicamente ela iria aceitar o cargo com bastante entusiasmo.

Selar imaginou como seria voltar para Vulcano depois de passar quinze anos fora do planeta. Ela estava satisfeita e realizada com sua vida a bordo da nave estelar. Sabia que estava realizando um trabalho essencial, sabia que era necessária; e ser útil era a meta almejada pela maioria dos vulcanos, desde os dias de Surak, que costumava dizer: "A vida sem um propósito benéfico é vazia. O que se entende por um propósito benéfico? É aquele que se opõe à progressão da entropia no universo".

Como diretora de pesquisa bioeletrônica na Academia Vulcana de Ciências ela poderia fazer bem mais. Poderia desenvolver procedimentos para a implantação de próteses bioeletrônicas em diferentes espécies, para que houvesse métodos estabelecidos que os médicos de toda a Frota Estelar e da Federação pudessem consultar. Crianças como Thala poderiam ser ajudadas, quer tivessem ou não o privilégio de morar a bordo de uma nave estelar.

Selar ergueu-se da cadeira e caminhou lentamente pela cabine, passando os olhos pelos objetos de arte e curiosidades que havia juntado durante seus quinze anos na Frota Estelar. Ela havia sido integrada à Frota apenas poucos dias depois de ter terminado a residência na faculdade de medicina, e nunca mais havia voltado para casa.

Apertou nos dedos uma peça polida de madeira petrificada de Komeera VII. Como seria voltar para sua terra natal? Rever a família? Será que eles conseguiriam esquecer o que se passara? Será que ela conseguiria fazê-lo?

Selar enrijeceu os lábios ao imaginar o rosto do pai, da mãe, dos avós e primos. Os hologramas mostravam imagens limitadas. Será que eles teriam mudado tanto quanto ela?

A tenente era de uma família muito tradicional; seu clã era muito antigo e orgulhoso de sua linhagem. Desaprovavam muitas das mudanças que ocorreram em Vulcano depois que o planeta se havia filiado à Federação. Como a maioria das famílias tradicionais vulcanas, Selar havia assumido um contrato de casamento aos sete anos, tendo sua mente unida a de um menino que no futuro viria a tornar-se seu marido. O noivado da menina a Sukat havia sido considerado pela família como muito promissor. A família de Sukat, apesar de não tão antiga quanto a sua, era muito mais rica e influente.

Enquanto cresciam, as duas crianças encontravam-se ocasionalmente, mas excetuando-se o tênue e facilmente ignorado elo mental que os unia, ela pouco sabia a respeito do menino com quem se casaria um dia no Koon-utkal-if-fee. Sukat era simplesmente parte do futuro distante, que estava muito afastado de sua existência cotidiana.

Desde a juventude, Selar tivera o desejo de tornar-se uma curadora. Salvar vidas e aliviar o sofrimento parecia-lhe a mais nobre das missões da vida. Ela estudou muito, mostrando-se uma aluna excepcional, mesmo pelos padrões vulcanos. Aos dezessete anos de idade, ela foi aceita cm uma boa escola e começou a estudar medicina.

Um ano depois, Sukat começou a estudar na mesma escola. Ela o via freqüentemente, pois tinham diversas aulas e sessões de laboratório cm comum. E sentavam-se próximos um do outro no almoço ou no jantar. Pela primeira vez, Selar começou a conhecer melhor seu noivo ...

... e descobriu que não gostava de Sukat. A idéia de passar quinze ou dezesseis décadas como esposa dele parecia-lhe intolerável.

Suas personalidades simplesmente não eram compatíveis. Selar tinha vivida curiosidade pelas outras espécies, inclusive os humanos, compreendendo e apreciando as diferenças existentes entre as culturas. A xenobiologia era uma matéria que a fascinava. Ela respeitava e seguia os princípios da IDIC, a crença vulcana que exigia reverência pela Infinita Diversidade em Infinitas Combinações.

Sukat, por sua vez, considerava todo ser não-vulcano automaticamente como inferior, em termos intelectuais, físicos e éticos. Selar reconhecia que, em muitas ocasiões, ele estava certo em suas suposições, mas nem por isso estava livre de ser considerado o que os humanos teriam, centenas de anos antes, chamado de preconceituoso.

Selar queria conhecer planetas distantes e as maravilhas existentes entre as estrelas, mas Sukat considerava as viagens um estorvo infreqüente porém muitas vezes necessário.

A única coisa que tinham em comum era a ambição. Selar aspirava tornar-se uma líder cm seu campo profissional algum dia, o mesmo ocorrendo com Sukat. Selar, porem, levava uma pequena vantagem como estudante e durante a residência médica ela recebeu mais menções honrosas do que ele de seus mentores. Sukat reagiu ao sucesso de sua futura esposa como se ela tivesse deliberadamente decidido humilhá-lo. No entanto, quer por palavras ou por ações, ele nunca demonstrou esses sentimentos, mas Selar sabia o que ele pensava.

Durante o último ano de seu noivado, Sukat confidenciou a sua prometida que desejava ter uma grande família e considerava o fato de atrasar a procriação devido à carreira da esposa como algo impróprio. Ele argumentava que, afinal de contas, era bem mais lógico que as fêmeas procurassem desenvolver sua carreira depois que os filhos estivessem alcançado a idade da independência, em vez de interrompê-la em um momento crucial devido ao aumento de responsabilidades em relação à criação dos filhos.

Selar não concordava. Parecia-lhe preferível estabelecer primeiro um firme alicerce para sua carreira, depois ambos os pais dividirem as responsabilidades da criação dos filhos. Mas ela nunca manifestava sua opinião. Naquela altura ela já sabia, sem ter que perguntar, qual era a reação de Sukat para com os que discordavam dele. Por fim, quando a formatura para o título de "Curadora" estava se aproximando, e a data de seu casamento marcada, Selar sabia que não poderia prosseguir com o casamento.

Desapaixonadamente, ela informou sua decisão à família. Eles ficaram tão desapontados quanto ela previra. Lembraram-lhe que seu casamento com Sukat era algo eminentemente lógico. Eram um casal perfeito em termos sociais, educacionais e genéticos. Disseram a Selar que ela estava sendo tola e que todo o trabalho que tivera junto aos humanos tinham-na contaminado.

A jovem vulcana, porém, mostrou-se inflexível. Ela não se casaria com Sukat. Ela procurou a família dele e informou-lhes de sua decisão. Eles reagiram não com desapontamento mas, sim, com desprezo e um mal-disfarçado alívio por Sukat não se casar com uma pessoa tão ilógica e imatura.

Com os lábios rígidos e o rosto empedernido, Selar saiu da bela casa designada à família de Sukat e foi procurá-lo em seu apartamento. A lembrança daquela visita ainda estava vivida em sua mente, não tendo desaparecido com o passar dos anos...

Sukat encarou-a inexpressivo, mas por meio de seu elo mental ela pôde sentir seu desapontamento. Deve haver um engano, disse ele, sem emoção, enrijecendo suas belas feições. Não se desfaz um elo sem um bom motivo.

Eu tenho um bom motivo, replicou ela imediatamente.

Mas você acabou de dizer que sou plenamente aceitável, em termos físicos e mentais, e que não devo considerar sua decisão como uma rejeição a minhas qualidades como futuro companheiro, disse ele, parecendo irritado e um pouco chocado. Se isso for verdade, então que outro motivo poderia haver para essa rejeição?

Tenho meus motivos, repetiu Selar em voz baixa.

Posso saber quais são? perguntou ele, com fria arrogância na voz. Através do elo mental ela sentiu sua desaprovação.

Não tem nada a ver com você, é algo pessoal; por isso não achei relevante contar-lhe por que não quero me casar com você, disse ela após algum tempo.

Mesmo assim, quero saber o motivo. Tenho esse direito, insistiu ele.

Muito bem, disse ela. Pela primeira vez, ela hesitou, desviando o rosto do firme olhar com que ele a encarava. Não creio que sejamos ... compatíveis, murmurou ela.

Compatíveis? Sukat ergueu uma sobrancelha. O que a compatibilidade tem a ver com tudo isso? Parece uma humana falando, com todo aquele palavreado a respeito do amor! Que coisa mais ilógica ... Ele procurou as palavras certas. Isso é totalmente ... ridículo!

Não creio que seja ridículo ou ilógico que marido e mulher se sintam bem e satisfeitos na companhia um do outro, insistiu ela. Creio que é essencial para o bem-estar mútuo, bem como para o de seus descendentes.

Sinto-me bem a seu lado.

O momento havia chegado. Ela havia desejado que ele não chegasse até aquele ponto; mas naquele momento a única solução seria dizer a verdade.

Mas eu não me sinto bem em sua presença, declarou ela categoricamente. Quando estamos juntos, meu único desejo é afastar-me de você. A idéia de ... intimidade física ... entre nós dois não é algo que eu consiga desejar. Ao terminar, Selar desejou que a conversa tivesse terminado; quis sair dali, para o ar livre, ficando sob o claro céu que estava mais vermelho do que nunca após o surgimento do planeta companheiro de Vulcano no horizonte.

Como pode dizer isso? perguntou ele. Você mesma me disse que sou alguém que a maioria das fêmeas consideraria extremamente desejável. Sua reação é totalmente ilógica.

Talvez minha reação seja ilógica, Sukat, admitiu ela. Pois que seja Não me casarei com você. Vamos terminar por aqui.

Como você é tola, T’Para, disse ele secamente. Ainda bem que estou livre de você.

Meu nome não é mais esse, respondeu ela, quase sem se dar conta do insulto, de tão aliviada que estava por terminar a conversa. O prefixo 7" somente se aplica a mulheres comprometidas, e isso é algo que já não sou mais.

Escolhi um novo nome, pelo qual serei conhecida na equipe médica da Frota Estelar. A partir de amanhã serei a alferes Selar. Vou desfazer o elo e peço-lhe que faça o mesmo.

Sem dizer mais nada, ela aprofundou-se em sua própria mente, sabendo que Sukat estaria suficientemente zangado para obedecer, e rompeu o elo mental. Depois, sentindo-se estranhamente nua mas euforicamente livre, virou-se e saiu...

Selar despertou de seu devaneio com um sobressalto ao ouvir o som de seu intercomunicador. Repreendendo-se mentalmente por deixar-se levar por antigas recordações, apertou o botão para ativá-lo.

— Tenente Selar falando.

O belo rosto da Dra. Beverly Crusher, emoldurado por seu cabelo da cor do céu de Vulcano, encheu a tela.

— Selar, acabei de receber más notícias a respeito de Thala — disse ela sem rodeios.

A vulcana reprimiu uma onda de ansiedade, hábito adquirido após anos de controle, e manteve o rosto impassível.

— Ela se feriu?

— Oh, não foi nada disso — assegurou Crusher. — Sinto muito, creio que me expressei mal. Fisicamente Thala está muito bem. Mas acabo de receber uma mensagem de sua família a respeito dela.

— Sim?

— Seu clã não a quer de volta. Eles alegam não ter condições de cuidar de uma criança inválida. — Beverly Crusher enrijeceu os lábios com amargura. — Foram bastante frios a esse respeito. Disseram que não querem Thala e não se importam com o que aconteça com ela.

— O que o regulamento determina em casos como esse? A médica ruiva suspirou.

— Sinto dizer que as regras são bastante específicas. Se não houver uma família para a qual a criança possa ser encaminhada, ela será levada até o planeta mais próximo em que a população majoritária seja de seu povo, onde será deixada aos cuidados das autoridades planetárias como órfã. — A médica balançou a cabeça negativamente. — No caso de Thala, creio que esse planeta seja Thonolan IV.

Selar sentiu uma pontada de angústia ao pensar que dentro de alguns dias não voltaria a ver a menina novamente.

— Mas o povo de Thonolan IV tampouco desejará recebê-la — lembrou Selar.

— Mas terão que aceitá-la. Suponho que acabará sendo adotada.

— Ou acabará em um orfanato — disse Selar bruscamente.

— Espero que não. — Crusher estremeceu diante da idéia. — Oh, meu Deus, espero que não. Thala e uma menina tão inteligente!

— Não existe uma alternativa legal? — perguntou Selar. — Se alguém estivesse disposta a pagar sua passagem para a Terra, ou para Vulcano, será que isso seria permitido? Mesmo que Thala não tenha ninguém da família ali, posso assegurar que um orfanato cm Vulcano seria muito melhor para ela do que qualquer um que haja em Thonolan IV, ou em qualquer planeta andoriano. Os vulcanos dão valor às crianças, e Thala não seria exceção. Sua mente seria estimulada em meu planeta. Ela seria bem tratada e receberia excelente educação.

— Não sei se teríamos permissão de enviá-la a qualquer outro lugar — disse Crusher, desanimada. — Vou perguntar ao tenente Greenstein. Ele é o especialista em regulamentos.

— Por favor, faça isso — disse Selar. — Enquanto isso, sugiro que não conte nada a Thala. Não há motivo para enchê-la de preocupações sobre seu destino.

— Concordo plenamente.

Muito tempo depois de a imagem de Beverly Crusher ter desaparecido do visor, Selar continuava a fitar a tela escura. Não é justo, pensou ela, recordando-se do riso de Thala, no dia anterior, enquanto a menina comia a sobremesa. Uma mancha de gelatina de laranja no canto da boca contrastava ridiculamente com sua pele azul. Você tem tanto para oferecer, se apenas lhe dessem uma chance...

A médica vulcana suspirou, lembrando a si mesma que o universo não primava nem nunca primara pela justiça.

— Comandante Riker... pode me dar licença? — perguntou Data ao preocupado primeiro oficial, assim que as portas do turboelevador começaram a fechar-se.

O homem alto, cuja barba realçava a bela fisionomia, voltou-se na direção da voz.

— Espere, elevador — ordenou ele. — Abra as portas. O elevador obedeceu.

— Sinto muito, Data — disse William Riker quando o andróide entrou no elevador. — Eu estava pensando. Prossiga, elevador — ordenou.

— Compreendo plenamente — disse Data, quando o elevador começou a subir com um sibilo. — Eu também estive tentando fazer uma estimativa do que nos espera cm nosso destino.

— É o quadrante errado para piratas, e muito longe da zona neutra para serem romulanos. Klingons renegados? — sugeriu Riker. — Talvez eles tenham enviado mais daquelas naves hibernantes além das que Worf e K'ehleyr conseguiram interceptar.

— Talvez — disse Data. — Mas se for esse o caso, então por que não saíram daquele setor? Por que se contentaram em atacar umas poucas naves mercantes? A honra klingon de um século atrás exigiria um ataque ao espaço e às naves da Federação.

Riker deu de ombros.

— Você está certo. — O turboelevador parou. — Estou indo para a engenharia para uma inspeção. E você?

— No momento, para nenhum lugar em particular — disse Data. Will Riker notou que Data estava carregando algo na mão.

— Acho que irei para a ponte, pois meu turno começa cm uma hora. Mas, comandante... — o andróide interrompeu o que dizia, numa hesitação quase humana.

Riker olhou-o com curiosidade.

— Há algo que o preocupa, Data? Quero dizer, além de nossa missão?

— Para ser franco, sim, senhor. — O andróide pareceu tomar coragem. — Gostaria de saber sua opinião a respeito de uma obra de ficção.

— Não sou o melhor especialista em literatura, Data — avisou Riker. — O capitão tem muito mais conhecimento do que eu nesse assunto.

Riker e Data saíram do turboelevador e caminharam juntos pelo corredor.

— Não preciso de conselho para a escolha de material de leitura, senhor

— disse Data. — A obra em questão fui eu mesmo que escrevi.

— Oh — disse Will. Percebendo a falta de entusiasmo em sua própria voz, acrescentou de modo bem-humorado — Bem, é uma honra ter um escritor iniciante em nosso meio. O que deseja que eu faça?

O andróide entregou uma folha de papel a Riker.

— Simplesmente que leia isto aqui e me diga a sua opinião sincera.

O segundo em comando da Enterprise encostou-se na parede de metal enquanto lia lentamente a cena manuscrita. Ele cocou o queixo, pensativamente, enquanto procurava as palavras certas, e por fim disse:

— Bem, sem ter lido a obra inteira, não posso dar uma opinião definitiva...

— Eu ficaria satisfeito em entregar-lhe tudo o que escrevi até o momento

— respondeu Data, rapidamente.

Riker pigarreou, pensando no que dizer.

— Ahn... Data... É claro que me sinto lisonjeado, mas estou um pouco ocupado no momento, com essa ameaça desconhecida no Setor 3SR-5-42. Você compreende...

— É claro, comandante — disse o andróide, sem emoção. — Mas ainda não me disse quais foram suas primeiras impressões a respeito da cena que leu.

— Oh... sim, é claro. Achei muito interessante, Data. Sua utilização de palavras foi muito... diferente. — Num ímpeto de sinceridade, Riker acrescentou — Mas esse tipo de cena de amor... bem, não é exatamente o estilo que eu escolheria para minha leitura pessoal. Creio que prefiro ... um estilo mais masculino de contar histórias, se é que se pode dizer assim.

— Como qual?

— Bem, Riverton é um de meus favoritos. E, naturalmente, Hemingway. Adeus às Armas e Por Quem Dobram os Sinos... são livros excelentes. Sem sombra de dúvida ele foi um mestre.

— Compreendo... — disse Data. — Obrigado, comandante. Deu-me muito em que pensar. Talvez eu reescreva alguns trechos...

Riker deu um tapinha nas costas do andróide.

— Continue tentando, Data — disse ele, num tom de alegre incentivo de homem para homem. — Tenho certeza de que todos os grandes autores aprenderam a importância de refazer o que escreveram.

O comandante seguiu pelo corredor, caminhando para a engenharia, com um incômodo sentimento de culpa e uma pontada de pena no peito. Não podia dizer-lhe que era uma droga, disse a si mesmo. Isso o teria deixado arrasado. Riker suspirou, lembrando-se da primeira vez em que se encontrara com Data. Pobre Pinóquio...

— Mensagem do Comando da Frota Estelar, capitão Picard — disse o alferes Whitedeer.

— Obrigado, alferes — respondeu Picard. — Eu a receberei em minha sala.

Erguendo-se, ele atravessou a ponte e entrou em seu santuário privativo. Parou por um instante diante da janela, com seu esguio e elegante corpo delineado contra a escuridão e as listras formadas pelas estrelas que passavam. O capitão era calvo, tinha um nariz proeminente e penetrantes olhos castanhos. Seu rosto majestoso não ficaria mal em um imperador romulano, mas a dureza de suas feições eram atenuadas por um leve toque de bom humor em volta dos olhos e dos lábios.

Naquele momento, porém, o capitão não estava nem um pouco bem humorado. Sentando-se diante do terminal do computador, ordenou a Whitedeer que lhe repassasse a mensagem.

O capitão enrijeceu os lábios enquanto passava os olhos pela mensagem. A Marco Polo, uma nave mercante registrada na Federação, havia entrado no Setor 3SR-5-42 no dia anterior e já estava seis horas atrasada em relação ao horário em que deveria chegar à doca da estação espacial de Thonolan IV.

A nave estava definitivamente atrasada, e os transmissores sub-espaciais de Thonolan IV haviam informado terem perdido contato com o cargueiro. Aparentemente o contato simplesmente tinha sido interrompido. Não houve qualquer indicação prévia de que o cargueiro tivesse encontrado qualquer coisa fora do comum.

A Enterprise tinha ordens de procurar e resgatar também a Marco Polo. Jean-Luc Picard ergueu os olhos da tela e fitou seu santuário privativo, soltando um suspiro. Em seus muitos anos no espaço, ele havia desenvolvido uma certa ... intuição, que jamais expressara abertamente. Em geral, ele tomava toda as suas decisões por meio do raciocínio, mas sempre havia aquelas raras situações em que a razão se mostrava inadequada e se fazia necessário confiar na intuição.

Picard sentiu um súbito pressentimento que lhe provocou calafrios na espinha. Será esta nossa última missão? pensou ele, perturbado, correndo os olhos pela magnífica nave que lhe fora confiada. Ele observou seu peixe colorido e exótico nadando no aquário redondo, então se ateve no modelo da Stargazer. Depois de perder a Stargazer, jamais posso voltar a perder minha nave. Seria como perder minha própria vida.

Ele suspirou. Ouviu então a campainha da porta e ergueu o rosto.

— Entre! — chamou Picard.

Ao identificar a pessoa que estava à porta, ele sorriu.

— Estava esperando que viesse.

A conselheira da nave Deanna Troi sorriu suavemente para o capitão, com seus exóticos, negros e compreensivos olhos betazóides.

— Sempre que o senhor fica tão perturbado quanto está agora, não posso deixar de perceber seus sentimentos — relembrou-lhe ela com sua voz melodiosa e gentil. Ela era uma mulher atordoantemente bela, com um corpo perfeito e longos cabelos negros presos por uma fiara cravejada de jóias.

— Estou ciente disso — disse ele. — Outra nave desapareceu, conselheira. Desta vez foi um cargueiro com registro da Federação. A Marco Polo.

— Uma notícia perturbadora — disse ela, fitando-o intensamente com seus olhos cor de ébano. — Mas não é a única coisa que o preocupa. Algo o intriga...

Picard assentiu com a cabeça.

— A Marco Polo estava levando um carregamento de sementes para Thonolan IV. Sementes de feleen que foram especialmente modificadas para poderem crescer no solo thonolano, que é mais rico em potássio do que o de outros planetas andorianos.

— E daí? — perguntou ela, quando o capitão interrompeu o que dizia, permanecendo em profundo silêncio, imerso em seus pensamentos.

Ele assustou-se, como se desse conta naquele instante da presença da conselheira.

— Como?... Oh, sim, perdoe-me, conselheira. O que me intriga é não conseguir imaginar por que alguém desejaria roubar essa nave em particular. Eles não poderiam vender seu carregamento roubado em nenhum outro lugar. As sementes de Feleen não teriam nenhum valor cm outro planeta. Simplesmente não cresceriam. E se os ladrões tentassem vendê-las para os thonolanos, estariam se denunciando como os atacantes da Marco Polo.

— O senhor está baseando suas suposições na hipótese que os desaparecimentos foram causados por piratas ou algo do gênero?

— Sim, essa era minha suposição. Mas tudo mudou agora — disse Picard, preocupado. — Fui forçado a descartar essa teoria como pouco provável. Por maiores que sejam as fraquezas morais dos ladrões, suas ações geralmente são extremamente práticas.

— E o que nos resta então?

— Não sei. Não consigo imaginar os romulanos afastando-se tanto assim de seu espaço para atacar abertamente as naves da Federação. Isso seria uma declaração de guerra, e eles não têm demonstrado estarem preparados para iniciar um conflito neste momento.

— Ferengi? — sugeriu Troi, hesitante. Picard sacudiu negativamente a cabeça.

— Eles nunca capturariam uma nave com um carregamento que lhes fosse inútil. Isso seria contrário a suas convicções mais profundas e seu desejo de lucro.

— Então com o que ficamos? — perguntou a conselheira, como se já soubesse a resposta.

O capitão assentiu com a cabeça.

— Se não é alguém nem algo que conhecemos, então por definição deve ser algo alienígena. É bem possível que seja algo que nunca vimos antes. Talvez algo hostil ... e, pelo que parece, mortal.

— Um fenômeno natural?

— Algum tipo de fenômeno espacial desconhecido, talvez? — Picard tamborilou os dedos na superfície polida da mesa. — É possível...

— Mas não é essa sua opinião — disse Troi, lendo-lhe a hesitação com a

experiência de uma bem treinada obscrvadora.

— Não sei! — disse Picard, traindo momentaneamente sua frustração, mas voltando imediatamente à sua calma habitual. — Não é essa minha opinião, Deanna. Na verdade... meus instintos, como creio que você os chamaria, me dizem que devemos nos preparar para cumprir o objetivo principal desta nave.

— Contato com civilizações alienígenas.

— Sim. Contudo, neste caso em particular, esses alienígenas atacaram oito naves. Não pretendo deixar que a Enterprise seja a nona.

A conselheira assentiu com a cabeça, compreensivamente.

— É um mistério, capitão. Digno do seu Dixon Hill, pelo que me parece. Um leve sorriso esboçou-se no canto dos lábios do capitão.

— Ah, sim. Quem sabe eu conseguiria investigar melhor o problema se pusesse meu chapéu e o sobretudo.

Troi sorriu maliciosamente, fazendo os olhos negros faiscarem.

— Nesse caso, senhor, seria mais do que justo permitir que o comandante Data usasse aquele chapéu de caça ridículo e seu cachimbo fedorento.

Picard abriu um sorriso e abanou o ar em frente do nariz, fazendo uma careta ao lembrar-se do cheiro do cachimbo.

— Posso admitir o chapéu — disse ele. — Mas aquele cachimbo é uma ameaça ao sistema ambiental. Pode descartar Dixon Hill também. Tenho que resolver este problema como Jean-Luc Picard.

O rosto do capitão tomou-se mais sombrio e duro.

— E pode estar certa de que o farei, conselheira — acrescentou em voz baixa.

 

— Entrando no Setor 3SR-5-42, capitão — anunciou o alferes honorário Wesley Crusher. A tripulação da ponte ergueu os olhos de suas tarefas para as estrelas que riscavam a tela com as cores do arco-íris.

— Reduzir a velocidade para dobra um, Sr. Crusher.

— Sim, senhor.

O jovem timoneiro tocou o imenso painel de controle, e a enorme nave obedientemente diminuiu sua desabalada carreira.

— Dobra um, capitão.

Jean-Luc Picard recostou-se em sua cadeira de comando no centro da ponte, com a conselheira da nave Deanna Troi em sua posição costumeira à sua esquerda.

— Muito bem, Sr. Crusher.

Picard voltou o rosto para seu oficial andróide, que estava sentado junto ao painel de operações ao lado de Wesley.

— Sr. Data, em nossa velocidade atual, quanto tempo levaremos para chegar à última posição registrada da Marco Polo.

— Uma hora e dezessete minutos, capitão — disse Data. Seu rosto estranhamente pálido parecia ainda menos humano sob as luzes intensas da ponte. — Estou realizando uma varredura com os sensores de longo alcance, conforme ordenado, senhor.

— Obrigado, Sr. Data. E quanto tempo levaremos para nos aproximarmos da PaKathen!

— A última posição registrada dessa nave fica relativamente próxima das coordenadas onde foi perdido o contato com a Marco Polo. Cerca de meio ano-luz. Não posso ser mais preciso que isso, porque a PaKathen não estava transmitindo quando desapareceu, de modo que a localização exata da nave klingon não é conhecida.

— Compreendo... — O capitão pensou por um instante, depois se aprumou na cadeira de comando. — Sr. Crusher, prepare um padrão de busca sub-luz que inclua os dois grupos de coordenadas, com uma margem de erro de meio ano-luz. Providencie para que ela seja realizada no mínimo de tempo de busca e com o máximo de economia de combustível.

— Sim, capitão! — respondeu Wesley, entusiasmado. O jovem adolescente imediatamente começou a trabalhar no computador, assumindo a expressão absorta que costumava surgir em seu belo rosto sempre que resolvia um problema abstrato. Ele se parece tanto com o pai. Pensou Picard. Jack costumava assumir essa mesma expressão quando tinha um problema para resolver. E quanto mais difícil era o desafio, mais ele o apreciava.

Um discreto e carinhoso sorriso esboçou-se no rosto do capitão enquanto observava o jovem de cabelos castanhos inclinado com tanto empenho sobre o painel do computador. Percebeu então que Troi o observava com um sorriso compreensivo, e rapidamente voltou à sua expressão de costume.

— Sr. Data — disse bruscamente. — Já conseguiu a informação a respeito da Marco Polo que pedi?

— Sim, capitão — disse o andróide, voltando o rosto para seu oficial comandante. — Devo colocá-la na tela principal?

— Sim, por favor, Sr. Data.

Data apertou um botão no painel de operações, e o desenho esquemático de uma nave apareceu no lugar do espaço estrelado na tela principal. A nave era um cargueiro grande, que não tinha as formas esguias da Enterprise. Abaixo do pequeno setor do disco, os compartimentos de carga da nave davam-lhe a aparência de estar prenhe.

— A Marco Polo é um cargueiro classe um, capitão. — disse Data, passando a falar como se estivesse dando uma aula. — E uma nave construída para transportar produtos agrícolas e artigos de luxo. Tem uma tripulação de quarenta e três pessoas. Seus compartimentos de carga têm a capacidade de

— Conheço muito bem a capacidade de carga de um cargueiro classe um, Sr. Data — interrompeu o capitão. — Qual a idade desse cargueiro em particular?

— Ele foi originalmente lançado há noventa e três anos, senhor, mas foi completamente remodelado há trinta e um anos.

— Ainda assim é bem antigo — disse o capitão, mais para si mesmo, cocando o queixo, pensativo. — Numa nave tão velha como essa, deve haver muitos vazamentos iônicos dos motores.

— Creio que tem razão, capitão.

— Poderemos rastrear uma trilha iônica, então. Procure identificá-la com os sensores, Sr. Data.

— Sim, capitão.

 

 

— Selar, eu vou ter que deixar você, a Dra. Crusher e meus amigos em breve? — perguntou Thala, hesitante. — Meus parentes vão vir e me levar embora daqui?

A médica vulcana ergueu uma sobrancelha ao ouvir a pergunta da menina.

Ela e a criança andoriana estavam sentadas no alojamento da médica, ouvindo um dos compositores humanos favoritos de Selar, Johann Sebastian Bach. Na opinião da vulcana, Bach era o gênio humano que melhor tinha compreendido o valor da moderação, da ordem, do controle das emoções e sua canalização para a criação da beleza. Ouvir Bach muitas vezes ajudava Selar a resolver seus problemas, mais do que qualquer compositor de músicas para harpa vulcana.

Thala também gostava de música clássica humana, mas de um tipo muito diferente. Seu compositor favorito da Terra era Elvis Presley.

Esticando o braço para o controle do computador, Selar diminuiu o volume da música.

— Por que pergunta isso, Thala?

— Porque você e a Dra. Crusher disseram que meus parentes em meu planeta natal haviam decidido o que fariam comigo, e que eu não poderia mais morar aqui na nave. Mas isso já faz muitos dias, e nenhuma de vocês me disse nada a esse respeito desde então.

Os olhos cegos da menina ficaram fitando por sobre o ombro esquerdo de Selar, mas a médica leve a perturbadora impressão de que a menina conseguia perceber seus pensamentos melhor do que qualquer pessoa com visão normal.

Sua suspeita foi confirmada pouco depois, quando Thala acrescentou:

— Sei que você tem estado preocupada comigo ultimamente.

— Você tem estado... freqüentemente... em meus pensamentos — disse Selar. — É verdade que tenho me preocupado com seu futuro.

— Por quê?

A vulcana ergueu-se e caminhou lentamente pelo alojamento, pensativa. Thala é uma criança cheia de imaginação, apesar de todo o seu lado prático. Ela pode muito bem estar imaginando uma situação bem pior do que a realidade. Não posso mentir para ela, pois sou vulcana. Selar parou diante do pequeno nicho com as cortinas vermelhas e o tradicional incensório. Procurou escolher bem as palavras

— Quando você ficou sabendo que teria que deixar a Enterprise e possivelmente voltar para seu planeta natal, onde moram seus parentes que você nunca conheceu, lembra-se do que disse, Thala?

— Sim — respondeu a menina com firmeza. — Eu disse que não desejava ir morar com estranhos, mesmo que fossem meus parentes.

— Isso mesmo. Bem, quando a Dra. Crusher entrou em contato com seu clã, aparentemente seus parentes tiveram a mesma reação.

Selar voltou-se para encarar a menina, esperando ver o desapontamento tomar-lhe o rosto. Mas Thala permaneceu impassível como uma vulcana adulta.

— Bem, não os culpo por não me quererem. Não os quero também — disse Thala. — Eu não os conheço.

— É verdade — concordou Selar.

A criança pensou por instante, depois sorriu.

— Se eles não me querem, então isso quer dizer que posso ficar com você na nave, Selar?

— Ainda não sei o que vai acontecer, Thala — disse a vulcana, com tato.

— Pode ser que nem eu mesma permaneça na Enterprise.

— O que quer dizer com isso? — perguntou Thala, desconcertada.

— Ofereceram-me um cargo em meu planeta natal, na Academia Vulcana de Ciências, de chefe de pesquisas. E um cargo muito bom, e estou pensando em aceitá-lo.

Pela primeira vez em semanas a criança mostrou-se realmente desapontada.

— Você vai embora! Oh, não! Se você partir, nunca mais a verei de novo!

— Ela começou a embalar-se na cadeira, abraçando-se a si mesma. Os andorianos não choram, pois não possuem duetos lacrimais, mas um som discreto e raspado soou do fundo de sua garganta.

Selar enrijeceu os lábios e hesitou, perguntando-se se deveria chamar Beverly para cuidar da situação. Ela não se sentia capacitada a lidar com transtornos emocionais. Era óbvio que Thala estava sofrendo ao pensar que teria de separar-se dela. Toda aquela situação estava deixando a vulcana mais perturbada do que ela gostaria de admitir.

Depois de um longo minuto de hesitação, ela percebeu que não poderia ficar lá sem fazer nada. Aproximou-se da criança e colocou, hesitante, a mão em sua cabeça, entre as antenas, sentindo a maciez de seu cabelo e o calor de sua pequena cabeça. Sentiu algo torcer dentro de si ao perceber a dor que a criança sentia.

— Thala — disse ela suavemente, procurando transmitir calma e consolo da melhor maneira possível. — Por favor, não fique assim. Você fará novos amigos, aonde quer que vá...

— Mas você não estará lá — soluçou a criança.

— Thala, escute o que vou dizer — Selar continuou a sussurrar, mas sua voz assumiu certo tom de autoridade. — Está-me ouvindo?

— Sim...

— Dou-lhe minha palavra que não deixarei a Enterprise antes que você tenha encontrado um lugar para morar. Está bem? Não aceitarei esse cargo até que tenham sido feitos os acertos para que você seja levada em segurança para seu novo lar, onde quer que seja. — Ela pensou no que um atraso prolongado significaria para suas chances de assumir o cargo e afastou a idéia com determinação. Alguém tinha que assumir a responsabilidade de providenciar para que Thala fosse bem tratada, e ela era sua médica e professora. Era seu dever.

— Promete...?

— Acabei de fazê-lo.

A menina ergueu seus dedinhos azuis e apertou a mão da vulcana.

— Obrigada, Selar.

— Procure não se preocupar. A Dra. Crusher e eu vamos fazer todo o possível para assegurar seu bem-estar.

— Eu sei.

Selar ouviu o pequeno tremor na voz da criança, mas vendo que Thala estava tentando controlar suas emoções, não fez caso disso. A vulcana também procurou ignorar o alívio que ela mesma sentiu ao tomar essa decisão. O alívio de poder adiar o dia em que teria de encarar sua família, Sukat e a família dele, em Vulcano.

 

— Não sei não, Sonya — disse Geordi La Forge para a jovem de pele azeitonada que estava verificando as leituras dos motores de dobra da Enterprise sob sua supervisão. — Essa nova tarefa está-me dando calafrios. As naves estão ali em um momento e desaparecem no outro. Não gosto disso.

A alferes Gomes afastou uma mecha de seu cabelo escuro que lhe caía até os ombros e fez uma anotação no diário de engenharia.

— Deve ser apenas um renegado ferengi, piratas ou coisa parecida. Talvez sejam klingons fora-da-lei. Você vai ver. Assim que eles verem a Enterprise em suas telas, vão morrer de medo e fugir às pressas.

— Pode ser... — disse La Forge. — Eu concordaria plenamente se aquela nave klingon não tivesse desaparecido. Atacar uma nave cheia de klingons não é algo que a maioria dos piratas pensaria em fazer, mesmo em seus sonhos mais desvairados. E você conhece o desprezo que os klingons sentem pelos ferengis. Elas lutariam até a morte para evitar a desonra de perderem para aqueles gnomos gananciosos.

— Bem, talvez tenha sido outra nave cheia de klingons.

— A última coisa que klingons renegados gostariam de fazer seria atrair a atenção de uma nave klingon oficial. O império enviaria uma esquadra inteira para vingar a perda de um cruzador, se isso fosse necessário.

Gomez ergueu o rosto, pensou um momento, depois deu de ombros.

— Você tem razão. É mesmo uma missão estranha, não é?

— É, sim. Faz-me lembrar as histórias que li a respeito da Velha Terra, quando havia navios que cruzavam os mares.

Gomez, que nunca tinha visto a Terra, tendo nascido em uma colônia, ficou curiosa.

— Que tipo de histórias?

— Há centenas de anos, contava-se lendas a respeito de locais que eram armadilhas para marinheiros incautos. Você podia ficar presa pelas calmarias na região da Latitude do Cavalo...

— Não sabia que havia cavalos no oceano — interrompeu Gomez. Pensei que eles fossem mamíferos herbívoros e terrestres.

— Não havia cavalos no oceano — disse Geordi. — Apenas cavalos-marinhos.

— Cavalos-marinhos? São cavalos que moram no mar?

— Não cavalos-marinhos não são eqüinos. São... droga, não sei o que são. Moluscos, talvez, ou crustáceos...

— Baleias? As baleias corcundas que estão sempre sendo mencionadas nos artigos sobre repopulação?

Geordi estava começando a sentir-se como quando conversava com Data.

— Não, Sonya. Esses são cetáceos. Animais marinhos inteligentes. Cavalos-marinhos são pequenas criaturas aproximadamente deste tamanho — mostrou o tamanho com o indicador e o polegar — que não têm nada a ver com os cavalos de quatro patas.

— Certo, já entendi. Continue. Os marinheiros se perdiam...

— Isso. Os navios costumavam desaparecer, e eles tinham todas aquelas lendas para explicar o por quê. Havia de tudo, desde dragões marinhos que comiam os navios ate a queda da borda do oceano. Eles costumavam marcar as regiões inexploradas em suas cartas de navegação com o aviso: "Aqui habitam monstros".

Gomez deu uma risadinha.

— E a verdade a respeito desses desaparecimentos misteriosos era que a tripulação apenas tinha decidido amotinar-se e passar a ter uma vida boa em uma ilha tropical, com lindas mulheres quase sem roupa, certo?

— Claro, isso acontecia muitas vezes. Mas havia lugares que eram realmente perigosos para os navios. Um dos mais perigosos era o Mar de Sargaços.

— Sargaços?

— Sargaços é um tipo de alga que cresce desde o fundo do oceano até a superfície. Um navio pode estar navegando livre como um pássaro num minuto e de repente ser apanhado na rede de sargaços, ficando totalmente impedido de prosseguir. A alga enrola-se na quilha do navio, que fica preso, para nunca mais libertar-se.

— O navio não poderia cortar simplesmente as algas.

— Os infelizes marujos tentavam de tudo para libertarem-se: arrastar o navio com barcos a remo, cortar as algas, tudo o que conseguiam imaginar. Suponho que alguns conseguissem escapar, mas geralmente os que ficavam presos não tinham qualquer chance de libertar-se. Os navios e a tripulação permanecia ali, indefesos e aprisionados, até não haver mais água potável nem comida. Às vezes os homens conseguiam sobreviver meses com água de chuva e peixes, mas... — Ele sacudiu a cabeça, imaginando a situação. — Acabavam ficando loucos e voltavam-se para o cani...

Ele interrompeu abruptamente o que dizia, percebendo como era desagradável o quadro que estava pintando.

— De qualquer forma, era horrível. Os navios que voltavam ao porto contavam ter encontrado cascos apodrecidos cheios de esqueletos espalhados pelo convés...

Geordi percebeu Sonya estremecer subitamente, vendo a cor do corpo dela mudar de aspecto, dando-se conta de que tinha realmente assustado a moça.

— Ei. Chega de histórias arrepiantes — disse ele, dando um tapinha amigo nas costas da colega.

— É melhor nos apressarmos na preparação do relatório de consumo de combustível — disse ele bruscamente, mudando de assunto — antes que Wesley nos chame. Wes anda tão entusiasmado para impressionar o capitão com a eficiência de seu padrão de busca, que é capaz de descer até lá pessoalmente para contar cada átomo usado para fornecimento de energia.

— Certo, chefe — disse Gomez, com um sorriso trêmulo. — Por falar nisso — disse ela enquanto andavam até o outro lado do convés da engenharia — se decidir que está entediado com o serviço a bordo de uma nave estelar, podia muito bem seguir carreira como escritor de histórias de terror.

Geordi deu uma risadinha.

— Vou deixar isso para o Data.

 

A Dra. Beverly Crusher sentou-se diante da tela de comunicação de seu consultório, esforçando-se para não deixar transparecer a raiva que estava sentindo. Sua chamada para Thonolan IV não estava indo muito bem.

— Deixe-me ver se entedi direito, administrador Thuvat — disse ela. — Você aceita receber a menina cm sua base, mas somente se tivermos tentado entrar em contato com todos os possíveis parentes em todos os planetas colonizados pelos andorianos e ela for recusada por todos eles? Isso pode levar meses!

— É possível. — O rosto azulado do administrador ficou um pouco mais roxo e ele retorceu as antenas de impaciência. — Mas regras são regras. Não devemos deixar passar a menor chance de que alguém de sua família a aceite. Possivelmente encontraremos um lugar para acolhê-la em uma de nossas colônias agrícolas remotas, onde qualquer mão de obra, por mais incapacitada que seja, será de grande ajuda. Diga-me, a menina sabe costurar? Cerzir? Eles dizem que... — franziu ainda mais os lábios — pessoas cegas são geralmente muito hábeis com as mãos. Talvez essa criança possa ser treinada cm algum tipo de trabalho manual que não exija o uso da visão... — Ele suspirou, deixando transparecer seu desprezo.

Beverly Crusher respirou fundo e contou até dez, primeiro em sua própria língua, depois em alemão, em seguida cm Vulcano.

— Administrador Thuvat. Parece achar que Thala é mentalmente retardada além de cega. Isso definitivamente não é verdade. Ela é uma criança extremamente brilhante. Com a devida educação, poderá ser bem sucedida cm muitas carreiras: trabalhar com computadores, por exemplo, ou direito, física, como professora, escritora, centenas de coisas! E se receber uma prótese visual adequada, poderá realizar qualquer tarefa da mesma forma que uma pessoa não incapacitada. Nosso engenheiro chefe a bordo da Enterprise, o Sr. La Forge, é cego de nascença e exerce uma carreira extremamente bem sucedida como oficial da Frota Estelar!

— Mmmm... — foi a única resposta que Thuvat deu ao discurso inflamado da médica. O andoriano hesitou, percebendo evidentemente que Crusher não estava satisfeita com o curso que a conversação havia tomado. — Compreenda, doutora, que não me cabe tomar essa decisão. Asseguro-lhe que faremos tudo o que for exigido de nós nessas circunstâncias. Simplesmente estou-lhe informando quais são as normas referentes às crianças órfãs.

— Suponha que ninguém da família de Thala, em qualquer dos planetas andorianos, queira aceitá-la. Nesse caso, o que aconteceria? — perguntou Crusher com rispidez.

— Então seguiremos as normas, naturalmente, e encontraremos um lugar para ela em Thonolan IV.

— Um lugar — repetiu Beverly, lentamente. — O que significa isso? De que tipo de lugar estamos falando?

— Existem muitas instituições cm nossas maiores cidades que cuidam daqueles que não se enquadram em nossa sociedade. Esses indivíduos desafortunados recebem comida, abrigo e cuidados nesses lugares.

Cuidados! Crusher quase engasgou de indignação ao imaginar a situação. Ele parece que está falando de animais rejeitados!

— E quanto a uma adoção? — perguntou ela, esforçando-se para controlar o tom de voz.

Thuvat surpreendeu-se com a sugestão.

— Suponho que seja possível — conseguiu dizer, por fim. — Talvez possamos encontrar algo...

E claro que sim, pensou Beverly, com amargura. Alguma gentil família que precise de alguém para tricotar suéteres ou o equivalente andoriano, sentada à beira da lareira, agradecida por receber as sobras da casa. Maldito seja você! Sentiu uma pontada no coração de imaginar Thala, ou qualquer outra criança, vivendo em um lar onde não era benquista.

— Administrador Thuvat — disse ela, por fim. — posso fazer um pedido para que essa pesquisa seja efetuada pelas agências da Federação. Mas francamente acho que isso vai levar muito tempo. Talvez se você realizar as pesquisas, consiga alcançar resultados mais rápidos.

Thuvat suspirou.

— Possivelmente. Farei o que puder, se esse for o seu pedido. — Ele estava visivelmente ansioso para que ela não o fizesse. De repente, pareceu ter uma idéia. — Diga-me, doutora, será que os pais dessa infeliz criança tinham alguma propriedade de valor? Isso pode fazer diferença ao procurarmos uma família que queira adotá-la.

Essa foi a última gota. Beverly Crusher lutou silenciosamente consigo mesma para não dar vazão a sua vontade de dizer umas verdades, então sacudiu a cabeça, pesarosamente.

— Sinto dizer que não, administrador — mentiu ela. — Há apenas um pequeno fundo de auxílio que será entregue a Thala pessoalmente quando ficar adulta.

— Oh, isso é uma pena — o interesse momentâneo do administrador arrefeceu-se. — Bem, sinto dizer que tenho outros compromissos. Algo mais que queira dizer? Deseja que eu solicite a pesquisa de registros?

— Não, obrigada, administrador — disse a médica. — Detestaria dar-lhe mais preocupações. Vou deixar que o pessoal da Federação cuide disso.

— Ótimo. Desejo-lhe boa sorte na resolução de seu problema.

— Muitíssimo obrigada, administrador Thuvat que todos os seus problemas sejam pequenos como este — disse Beverly, com fingida doçura.

O andoriano não percebeu o sarcasmo.

— Obrigado — disse ele. — Adeus, doutora.

Com uma pancada violenta, a médica interrompeu a ligação com Thonolan IV.

— Maldito verme burocrata — murmurou ela, depois que a tela estava apagada. Suspirando, Beverly passou a mão no cabelo, depois inclinou a testa sobre o dorso das mãos. Começou em seguida um exercício de meditação-relaxamento.

Preciso contar a Selar. Vulcana ou não, isso vai deixá-la perturbada. Que confusão. Pobre Thala...

 

Na ponte da Enterprise, Wesley Crusher subitamente aprumou-se em sua cadeira.

— Capitão, estou captando uma trilha iônica — disse ele, sem conseguir disfarçar seu entusiasmo.

— Muito bem, Sr. Crusher — disse Picard para o ar, e o computador automaticamente retransmitiu sua voz. — Imediato, o Sr. Crusher parece ter encontrado algo promissor.

— Estou a caminho — respondeu a voz de Will Riker.

O capitão esperou até seu segundo em comando chegar, enquanto Wesley trabalhava febrilmente no computador. Riker olhou para o painel por cima do ombro do jovem oficial, depois acenou silenciosamente com a cabeça, demonstrando sua aprovação. Wesley corou de satisfação.

— Parece ser o que estávamos esperando encontrar — disse Riker. — É exatamente o tipo de trilha que seria deixada por uma nave como a Marco Polo.

— Ela foi arrastada para fora de seu curso, capitão — disse Wesley — por algum tipo de ... ahn... campo de... energia.

— Um raio trator? — perguntou Riker, olhando para o tenente Worf, que permaneceu junto ao painel de segurança e comunicações, na parte de trás da ponte. O chefe de segurança klingon cerrou os lábios, mas o restante de suas feições permaneceram impassíveis.

— Não, senhor — disse Wesley, sacudindo a cabeça, perplexo. — Aparentemente teve o mesmo efeito que um raio trator, mas esse tipo de energia... bem, não é nada que eu já tenha visto antes.

— Confirmado — disse Data, em resposta ao olhar inquiridor de Riker. — Não é semelhante a nada que já foi encontrado no espaço da Federação, dos romulanos ou dos klingons.

— Um novo tipo de campo de energia ... — Picard ergueu-se e caminhou até a tela principal. — Destrutivo? Algum sinal de fragmentos que possam indicar uma explosão ou uma batalha?

— Não, senhor — respondeu Crusher. — Parece um raio trator, mas é baseado cm um tipo inteiramente diferente de energia. Ele simplesmente arrastou a nave para fora do curso.

— E quanto à PaKathen? — rosnou Worf. — Algum sinal dessa nave?

— Não, tenente — o jovem oficial enrugou a testa. — Mas as naves klingons são construídas de modo a não deixarem uma trilha iônica que indique sua localização. Portanto ela pode também ter sido arrastada para fora do curso.

— É também inteiramente possível que os dois desaparecimentos não tenham qualquer relação entre si — disse Picard, fitando as profundezas do espaço, com a luz das estrelas refletindo cm seu rosto austero.

— É possível, mas estatisticamente improvável — acrescentou Data, solícito.

— Qual é a potência desse campo, Sr. Crusher? Será que a Marco Polo conseguiria libertar-se dele?

— Duvido, capitão — o rosto magro do jovem estava bastante sério. — Um cargueiro nunca teria tanta força, senhor.

— E quanto à Enter...

O capitão interrompeu subitamente o que dizia quando sua nave literalmente deu uma guinada no espaço. Apesar do campo gravitacional artificial, dos estabilizadores, dos escudos contra meteoros e de todos os dispositivos de proteção que a enorme nave estelar possuía, por um momento a Enterprise corcoveou sob seus pés, como um cavalo xucro. O alerta vermelho disparou automaticamente.

Picard quase perdeu o equilíbrio, mas a nave estabilizou-se novamente, impedindo-o de cair. O capitão voltou-se para encarar a tripulação da ponte e com admirável sangfroid completou sua frase.

— A Enterprise conseguiria libertar-se desse campo de energia desconhecido?

— Não se sabe, capitão — disse Data. — Mas suspeito que iremos descobrir a resposta muito cm breve, senhor. O campo, ou seja lá o que for, acabou de nos prender.

 

— Podemos nos libertar? — perguntou Picard.

— Não sei, capitão — disse Data. — Certamente não sem danificar os motores de dobra. Este raio trator é muito mais poderoso do que jamais encontramos.

Houve um momento de silêncio depois do andróide ter falado. Picard então olhou para o oficial klingon.

— Tenente, peça ao Sr. La Forge que venha para a ponte. Quero que ele assuma o posto de engenharia.

— Sim, capitão.

Não levou muito tempo para o jovem oficial aparecer. Assim que a nave se deparou com o campo de energia desconhecido, Geordi somente permaneceu na engenharia o tempo suficiente para verificar se a Enterprise havia sofrido algum dano. Depois, antecipando a ordem do capitão, seguiu imediatamente para a ponte de comando. La Forge já estava no turboelevador quando lhe foi repassada a ordem do capitão.

Assim que o engenheiro chegou à ponte, ele olhou em volta para identificai' os presentes, cujos espectros de cor eram tão característicos de cada pessoa para o oficial cego quanto seus rostos o seriam para um tripulante com visão normal.

— Quero sua opinião sobre o que acabamos de encontrar, Sr. La Forge — disse o capitão.

— Sim, senhor. — La Forge dirigiu-se imediatamente para o painel da engenharia na parte de trás da ponte. Ao examinar as leituras, espantou-se com o que viu. — Eu achava que já tinha visto de tudo — murmurou para si mesmo, sacudindo tristemente a cabeça.

— Alguma conclusão, Sr. La Forge? — perguntou o capitão. Geordi aprumou-se e resistiu ao ímpeto de cocar a cabeça.

— Fomos envolvidos por uma forma desconhecida de energia, de origem artificial. Está começando a arrastar a nave pelo mesmo caminho seguido pela Marco Polo. E ê extremamente potente.

— Artificial... — repetiu Picard, pensativo. — Isso nos deixa duas possibilidades. Ou este campo representa algum tipo de descoberta científica recente de seres já conhecidos, ou..

Ele olhou para o segundo em comando de modo significativo, e Riker concluiu seu pensamento:

— Ou ela é gerada por algo que nunca vimos antes. Algo alienígena.

— Qual é nossa posição atual, Sr. Crusher? — perguntou Picard, voltando-se para seu oficial mais jovem.

— Estamos sendo arrastados, senhor, como o Sr. La Forge disse. Nossa velocidade está aumentando gradativamente à medida que o campo sobrepuja nossa inércia.

— Se continuarmos nesse passo, qual é a velocidade provável que chegaremos a alcançar? — perguntou Riker.

Wesley franziu a testa. Geordi viu a face do menino mudar de cor quando seus músculos se contraíram.

— Bem, isso depende do que está nos puxando. Melhor dizendo, depende da distância que estamos de nosso destino. Eu diria que vamos atingir a velocidade mínima de impulso cm cerca de duas horas.

— Quanto tempo ele levou para nos envolver?

— Três vírgula um segundos, senhor.

— Capitão — disse La Forge — já tenho força de dobra a nosso dispor, por isso podemos tentar nos libertar.

— Acha que conseguiremos, Sr. La Forge? O engenheiro chefe hesitou.

— Não tenho certeza, capitão. Isso exigirá uma potência considerável, se a força que nos está arrastando permanecer constante... — sacudiu a cabeça. — Bem, talvez.

— Muito bem — disse Picard, pensando em silêncio por um instante. — Tenente Worf, é possível fazer contato com o Comando da Frota Estelar?

— Negativo, capitão — a voz grossa do klingon não denotava qualquer pesar. Não existe nada que Worf aprecie mais do que a chance de enfrentar todos os inimigos com as próprias mãos, pensou Geordi. Já faz algum tempos que não encontramos um problema de verdade, e ele está ansioso por isso.

— O campo está impedindo todas as transmissões e recepções em todas as freqüências do subespaço, senhor. Até que consigamos nos libertar será impossível qualquer comunicação, exceto em distâncias muito curtas.

O capitão voltou-se para o primeiro oficial.

— O que recomenda, Imediato?

— Recomendo que tentemos nos libertar agora, capitão. Depois procuremos seguir o campo de energia até sua fonte usando nossos sensores.

Picard pensou em silêncio por um instante, depois sacudiu a cabeça.

— Não. Ainda não é o momento de procurarmos nos libertar. Recebemos ordens de encontrar e resgatar a Marco Polo e a PaKathen, e a melhor chance que temos de encontrá-las será deixando que sejamos arrastados até o lugar para onde foram levadas.

— Quer dizer... permitir que sejamos aprisionados na armadilha? — perguntou Riker lentamente.

O silêncio e a tensão na ponte tornaram-se quase tangíveis de tão intensas.

Picard assentiu com a cabeça.

— Se tentarmos nos libertar agora e fracassarmos, teremos forçado nossos motores de dobra além de sua capacidade, sem termos alcançado nosso objetivo. Creio que se preservarmos nossa energia permitindo que essa "força desconhecida" nos dê uma carona até conseguirmos identificar seu ponto de origem em nossos sensores, poderemos então tentar nos libertar para investigar e talvez resgatar as duas naves.

Riker acenou com a cabeça, admirado. Picard voltou-se para o oficial klingon.

— Tenente Worf, é possível lançarmos uma bóia com velocidade suficiente para que se liberte do campo?

O chefe da segurança fez alguns cálculos.

— Sim, capitão, creio que isso será possível.

— Prepare um resumo de nossa situação e lance a bóia, tenente.

— Sim, senhor.

— Quero todos os sensores ajustados na potência máxima em todas os comprimentos de onda, Sr. Data — ordenou Picard. — Quero ser imediatamente informado se algum sinal de nosso destino for detectado. Por favor informe seu substituto que continue monitorando todos as faixas do espectro.

— Isso não será necessário, capitão — disse Data.

— O que quer dizer com isso? — disse o capitão, consultando Riker com o olhar. — Seu turno está prestes a terminar, não é mesmo?

— Sim, senhor — concordou o andróide, ao mesmo tempo que o primeiro oficial confirmava o fato. — Mas estou preparado para permanecer em serviço durante toda a duração deste alerta.

O capitão fitou a tela, pensativo.

— Isso não será necessário — disse ele, depois voltou-se para o andróide, com as feições um pouco abrandadas. — Porém considero sua disposição de trabalhar além de seu turno algo muito louvável. Pode permanecer em serviço, se desejar, comandante. Não creio, contudo, que encontraremos qualquer tipo de perigo hoje... ou pelo menos nas próximas horas.

— Meus instrumentos confirmam essa conclusão, capitão. Não há qualquer sinal de nosso... — pensou um pouco — inimigo até onde meus sensores podem captar, o que significa que o contato com nosso destino desconhecido não poderá ocorrer nas próximas seis horas, pelo menos.

— Seis horas — repetiu Picard, secamente. — Temos tempo para respirar, Sr. Data. Devemos procurar desfrutar essa trégua enquanto durar.

 

Apesar dos riscos envolvidos na missão que a nave havia recebido, o alferes interino Wesley Crusher estava de bom humor quando entrou na sala de recreação principal da nave, que se chamava Ten-Forward. O capitão Picard havia aprovado seu padrão de busca, e ele fora elogiado na frente do comandante Riker quanto ao modo criativo que havia entrelaçado as linhas de busca de modo a economizar combustível e tempo. Apesar de o capitão sempre reconhecer o mérito merecido, um elogio público de Jean-Luc Picard era tão raro a ponto de ser algo memorável e que devia ser saboreado com gosto...

Sorrindo discretamente ao recordar-se desse fato, o jovem passeou pela sala de recreação. O Ten-Forward era um salão grande e pouco iluminado, com mesas com luminárias, sofás e cadeiras espalhados, muitos deles voltados para as diversas janelas, que mostravam as estrelas em movimento, oferecendo um maravilhoso cenário de fundo. Conversas particulares criavam um efeito sonoro que suplantava a música ambiente. Distraidamente, Wesley identificou a música como sendo um dos poemas tonais da compositora vulcana T’Nira.

— Quer tomar alguma coisa, Wes?

O jovem saiu de seu devaneio, percebendo que havia cruzado o salão e sentado-se junto ao bar sem tomar consciência do que fazia. Guinan estava diante dele, inclinada sobre a superfície polida do balcão, com um discreto e bem conhecido sorriso nos lábios. Sua pele morena era talvez um pouco mais clara que a de Geordi, e suas feições era bastante humanas... mas curiosamente desprovidas de pelo. Acima de seus lábios carnudos, os olhos castanhos de Guinan brilhavam debaixo de sobrancelhas quase inexistentes de tão finas. Wesley chegava a perguntar-se se Guinan teria algum cabelo no alto da cabeça ou apenas um rabo de cavalo comprido. Mas não havia como saber. A atendente sempre usava chapéus chamativos que complementavam suas roupas esvoaçantes.

— Oh, oi, Guinan. Pode me fazer um daquele com frutas?

— Você quer dizer o Fomalhaut Frenzy? Aquele verde e cor de rosa?

— Isso. E um sanduíche, por favor. De queijo suíço com bacon e tomate.

— Já está saindo — disse ela, virando-se para programar o processador de alimentos.

A atendente do Ten-Forward era um enigma para a maioria da tripulação da nave. Ninguém sabia exatamente de que planeta ela tinha vindo. Jean-Luc

Picard havia pessoalmente escolhido Guinan para dirigir o salão de entretenimento de sua nave. Obviamente ele já a conhecia, mas se sabia algo a respeito dela, obviamente não tinha intenções de contar a ninguém.

Guinan colocou o sanduíche e a bebida diante do jovem oficial e sorriu, de modo bondoso e enigmático, fazendo Wesley perguntar-se, não pela primeira vez, qual seria a idade dela. Fisicamente ela parecia ter a idade de Geordi, trinta e poucos anos, mas Wes sabia que ela devia ser mais velha que isso. Precisar quão mais velha era realmente um mistério. Às vezes, ela parecia quase tão jovem quanto ele, mas outras vezes, especialmente quando ele olhava no fundo daqueles olhos castanhos, Wesley sentia que ela já havia vivido centenas de anos e visto praticamente tudo que havia para se ver.

— Você parecia muito feliz da vida quando entrou aqui — disse ela, enquanto ele atacava a comida com o entusiasmo típico dos adolescentes.

O jovem oficial assentiu com a cabeça, com a boca cheia.

— Estava sim, quero dizer, ainda estou. O capitão deu-me uma tarefa e quando terminei ele disse que eu havia feito um excelente trabalho. E mais — fez uma pausa para dar ênfase — ele disse isso na frente do comandante Riker!

Guinan fez cara de ter ficado impressionada.

— Que elogio, hein? Então, qual é a situação de nossa missão? Wesley deu de ombros.

— O capitão disse que estamos num período de trégua. Há um campo trator alienígena de alguma espécie que está nos arrastando para um destino desconhecido. Mas por enquanto, o capitão quer que ele nos arraste, para ver aonde está nos levando. Ele acha que teremos tempo para nos libertar mais tarde.

Guinan encheu de novo o copo do rapaz, sem que ele pedisse.

— O capitão geralmente tem bons motivos para as decisões que toma.

— É claro — disse Wesley, mordendo o último bocado. — Ótimo sanduíche — disse ele, de modo quase incompreensível. — Obrigado, Guinan.

— Quer outro?

Wes pensou por um instante, depois suas feições normalmente sérias abriram-se em um amplo sorriso.

— Por que não?

Depois de ter terminado o segundo sanduíche tão rapidamente quanto o primeiro, Wesley recostou-se na cadeira e ficou observando a atendente servir ao tenente Worf uma porção generosa de gagh klingon. Wesley deu uma olhada no prato, depois desviou rapidamente o rosto. Ainda não conseguia se acostumar com a idéia de comer algo que se movia.

O comandante Riker deve ter nervos de aço, pensou ele, reprimindo uma expressão de nojo, para ter conseguido servir em uma nave klingon e comer no refeitório deles. Também deve ter um estômago de ...

Foi interrompido por uma voz.

— Olá, Wesley.

Wes girou na cadeira e viu Data de pé a seu lado. O andróide carregava uma porção de folhas de papel que pareciam estar preenchidas com letras escritas à mão.

— Oh, olá, Data. Sente-se.

— Obrigado, Wesley. Farei isso.

Guinan perguntou com o olhar se algum dos dois queria algo (Data não precisava comer ou beber como os humanos, mas podia fazê-lo e às vezes acompanhava os amigos em um brinde), mas ambos os oficiais acenaram negativamente.

Wes olhou com curiosidade para as folhas que o amigo carregava.

— O que está levando aí, Data?

— É um trecho do romance que estou escrevendo, Wesley — respondeu o andróide. — Vim aqui pedir-lhe que o leia e me dê sua opinião a respeito. Fiz várias modificações nele, desde que pedi ao comandante Riker que me dissesse o que achava da minha história.

Wesley ficou em dúvida, surpreso com o pedido.

— Ahn... não sei. O meu forte são a engenharia e a ciência, não a literatura. Fiz um teste sobre os poetas do século vinte na semana passada e errei todas as questões em que tinha que identificar as referências míticas e bíblicas da obra de T. S. Eliot. Não acho que esteja qualificado para ser crítico literário.

— Mas Wesley, este é um romance que foi escrito para agradar o público em geral — argumentou Data. — Você certamente conseguirá dizer-me se ele o deixa emocionado, se o faz querer ler mais... se contém os elementos adequados para um livro popular. Sua opinião e crítica serão tão boas quanto a de qualquer outra pessoa.

— Oh — disse Wes, sem conseguir pensar em nada que pudesse refutar esse comentário. — Está bem. Vou ler. Qual é o enredo?

— É uma história de aventura e romance, nos primeiros dias das viagens interestelares. Esta cena mostra um casal na noite anterior à partida do homem, que irá comandar uma nave pioneira nas trilhas estelares.

— Tudo bem.

Data entregou as folhas ao rapaz. Wesley começou a ler:

 

As montanhas da lua estavam iluminadas pelo raiar do sol, que durava vários dias, exceto nos lugares cobertos pela escuridão jamais tocada pela luz, pois na lua algumas noites não têm fim. Juan observou o sol e depois olhou para o rosto da mulher inglesa, Maggie, pensando em muitas coisas. Bueno, pensou ele, muito bom. E bom que ela esteja aqui comigo, pois esta pode ser a última vez que nos veremos por muito tempo. Talvez para sempre.

— Não temos muito tempo — disse ele, percebendo que ela sabia que ele dizia a verdade Sentiu a pressão da mão dela apertando a sua até ficar branca como a luz do sol no alto das montanhas pontiagudas, fazendo-o desejá-la urgentemente, intensificando a necessidade que tinha dela, enchendo todo o seu ser com a dolorosa agonia do desejo.

— Maggie, oh, Maggie — disse ele, ansiosamente

— Sim. Sim. sim — disse ela com grande emoção.

A superfície macia do carpete da estação espacial, o discreto sibilo dos filtros do sistema de ar condicionado, os odores dos produtos de limpeza e o toque dos dedos dela em sua pele; tudo isso ele jamais esqueceria enquanto vivesse, por mais longa que fosse sua vida. Rara ela, havia o brilho do sol refletindo no topo esparramado das montanhas, com uma luz tão intensa que era dolorosa de se ver, obrigando-a a fechar os olhos, mas mesmo assim incomodando-a tanto a ponto de deixá-la ofuscada, tanto pela luz do sol quanto pela presença dele. Rara ele, tudo era escuridão e uma onda de calor semelhantes as de quando a galáxia foi criada, antes que qualquer coisa existisse. O tempo parou e ele sentiu a galáxia mover-se e estremecer sob seus pés, girando e fugindo para longe

Depois disso, ele recompos-se e sorriu para ela debilmente.

— Eu amo você. Não posso suportar o fato de ter que deixá-la, mas você sabe que preciso fazê-lo. Sentiu a galáxia mover-se?

— Sim — disse ela. — Sinto o mesmo e sempre sentirei.

 

Wesley chegou ao fim do trecho e parou de ler. Sentiu o rosto quente, não sabia dizer se pelo tema da conversa ou porque tinha vergonha de Data. O rapaz ficou contente por o salão ser mal-iluminado. Isto aqui é horrível, mas o que posso dizer para ele ? pensou consigo. Data é meu amigo e parece óbvio que é algo importante para ele. Não posso ferir seus sentimentos!

— Então? — perguntou o andróide, que o observava atentamente sob sua calma costumeira. — O que achou, Wesley?

— Bem, parece-me bem ... clássico... no estilo — disse o jovem, escolhendo cuidadosamente as palavras. — De fato, se não me tivesse dito que foi você quem o escreveu, diria que era um trecho de um romance de Hemingway — um dos ruins, pensou sem dizer.

Data pareceu satisfeito.

— Era o tipo de clima que eu estava querendo criar, Wesley — admitiu. — Ernest Hemingway é o escritor favorito do comandante Riker.

— Talvez seja melhor mostrar isso para ele, então.

— Talvez depois de terminarmos nossa missão. Mas diga-me, Wesley, pareceu realístico para você? Achou emocionante?

Wes sentiu o rosto em chamas novamente. Procurou as palavras, sem jeito.

— Ahn... Bem, Data, não posso dizer que tenho muita... ahn... experiência no assunto, para dizer a verdade. — pigarreou — Se achei... emocionante... ahn, bem... acho que sim. Quero dizer... todas essas partes a respeito do que Maggie está pensando e sentindo... bem, eu não sou urna garota, uma mulher — seu rosto iluminou-se — Talvez precise da opinião de uma mulher. Afinal de contas, elas lêem mais romances e histórias de amor do que os homens, certo?

— Creio que sim — disse Data, apanhando as folhas de volta. — E uma boa sugestão, Wesley. Vou pô-la cm prática assim que puder.

Wesley ficou imensamente aliviado por ter-se livrado do problema. Escorregou para fora do banco e ficou de pé.

— Acho que vou passear na engenharia — disse ele. — Já fazem quase oito horas desde que encontramos o campo. Talvez alguma coisa esteja finalmente acontecendo. Geordi está monitorando a situação e deve saber o que está acontecendo.

— Vou acompanhá-lo até o turboelevador — disse Data.

Os dois deixaram a sala de recreação e Wesley avistou uma figura conhecida saindo do turboelevador.

— Olá, Thala — chamou ele.

A menina andoriana parou e esperou que eles a alcançassem. Ela estava vestindo, como sempre, uma de suas reluzentes redes sensoras sobre seu macacão bege. Vendo seu rosto delicado e anguloso, com o suave tom azulado da pele e as antenas, Wesley lembrou-se novamente do antigo mito terreno das fadas.

Quando o alferes honorário se aproximou, a menina ergueu a cabeça, quase como se o pudesse vê-lo. Wesley sabia que ela estava "vendo" o formato de seu corpo delineado pela energia térmica que emanava dele, em tons de cor alienígenas fornecidos pelas antenas sensoras que captavam as cores dos objetos.

— Olá, Wesley! — disse ela quando pararam à sua frente. — Quem está com você? Meus sensores me dizem que há alguém, mas as leituras térmicas são esquisitas.

— É o tenente comandante Data — disse Wesley. — Ele é um andróide.

— Olá, Thala — disse Data, formalmente. — Como vai você? A menina inclinou a cabeça na direção da voz.

— Vou bem, obrigada. É um prazer conhecê-lo. Nunca encontrei um andróide antes. Já vi robôs, mas eles não se parecem com você.

— Não ficaria surpreso — disse Data — pelo que sei, ainda sou único.

Wesley conhecera Thala havia alguns anos, pois ela já havia viajado na Enterprise quando ele e a mãe dela integraram-se à tripulação. Quando o pai da menina, Thev, morreu, o jovem oficial havia conversado com a menininha andoriana, procurando consolá-la, pois ele próprio havia enfrentado a mesma perda. Os rituais fúnebres do povo da menina eram muito diferentes dos humanos, mas Wesley, sua mãe e a tenente Selar haviam participado do "canto da morte" de Thev e das exéquias da sacerdotisa.

— Eu sei — disse Thala, em resposta ao comentário de Data. — O Dr. Soong o construiu. Ouvi uma fita a esse respeito. Você é tão forte como dizem?

— Sou bastante forte — admitiu Data.

— Pode erguer-me com uma mão só? — perguntou, curiosa.

— Naturalmente — disse o andróide, demonstrando. Thala surpreendeu-se de ser erguida no ar, mantida suspensa por vários segundos depois colocada gentilmente de volta ao chão de modo a sequer balançar quando tocou o solo.

— Wesley! — exclamou ela, sem fôlego. — Viu só?

— Eu vi — disse o alferes interino, com um sorriso nos lábios. — Data, você e um exibido!

— Faz de novo? — pediu ela, voltando-se para o andróide.

— Agora não — disse Data. — Outra vez, quem sabe.

— Vou ficar esperando! — O rostinho dela ficou sério de repente, como se tivesse lembrado algo. — Wesley, vamos ancorar em alguma base estelar em breve?

— Não sei, Thala — respondeu o rapaz. — Neste instante estamos no meio de uma missão, por isso acho que não estaremos indo para uma base estelar por no mínimo uma semana.

O seu rosto azulado não mudou de expressão, mas seus ombros encurvaram-se um pouco.

— Oh. Ouça, Wesley, pode me fazer um favor?

— Claro. O que é?

— Avise-me assim que estivermos indo para uma base estelar. Você cuida do leme na maior parte do tempo, por isso deve ser o primeiro a saber, não é?

— Se eu estiver em serviço — disse ele — prometo que ligo para sua cabine, está bem?

— Obrigada, Wesley — disse ela, depois voltou-se para Data. — Obrigada por erguer-me no ar!

— De nada — disse Data, depois os dois oficiais continuaram a seguir pelo corredor.

— Ela uma boa menina — comentou Wesley quando chegaram ao turboelevador e o chamaram. — Minha mãe está preocupada com o que vai acontecer com ela — disse ele, suspirando. — A vida é bem complicada, às vezes, não é?

Data encarou-o com sua expressão costumeira de andróide.

— Para os humanos, certamente que sim. — concordou. — Posso apenas invejar-lhes a riqueza de vida. A maior parte do tempo, minha vida parece demasiadamente simples em comparação.

O turboelevador chegou, eles entraram e foram rapidamente levados para outro lugar.

 

 

Thala observou o contorno oscilante do andróide e a silhueta de Wesley Crusher, que era mais sólida e de carne e osso, entrarem no turbo elevador e desaparecerem. Depois, ele voltou-se e dirigiu-se a seu alojamento, uma suíte que antes compartilhava com o pai, mas que passara a ser somente seu. Pelo menos por enquanto. Thala não tinha qualquer ilusão de que continuaria a ser só dela por muito tempo. Em breve seria enviada para longe da nave estelar e de todos os que conhecia, e isso deixava-a cheia de temores e de determinação em decidir seu próprio futuro.

Apesar de a menina nunca ter pisado em solo andoriano, ela sabia melhor que qualquer humano ou Vulcano que uma pessoa como ela jamais seria bem-vinda entre os andorianos. Thala havia estudado a história e os costumes de seu planeta por muitos anos. Ela também aprendera muito a respeito de seu povo da boca do pai, enquanto crescia, quando Thev falava francamente com seus companheiros de tripulação, sem perceber que a filha estava ouvindo. A audição de Thala era excepcionalmente aguçada, até mesmo para uma andoriana, para compensar sua falta de visão.

Era engraçado notar, ponderou a menina, que muitas pessoas pareciam imaginar que por ser cega ela deveria ser surda também. Ela ficou imaginando se as pessoas surdas seriam tratadas como se fossem cegas também.

Com resolução, ela voltou a atenção para a tarefa que tinha pela frente.

Wesley dissera que estavam em uma missão que ocuparia a Enterprise por pelo menos mais uma semana. A Dra. Crusher dissera que ela não iria para Thonolan IV, por isso Thala pretendia estar pronto para a próxima vez que a nave atracasse, fosse onde fosse.

Cruzou seu alojamento, evitando a mobília mais pelo hábito do que pelos sinais captados por sua rede sensora, até chegar a uma pequena estatueta que representava uma antiga deusa andoriana. A escultura era feita de pedra lisa e fria, muito semelhante, ao tato da menina, com os ornamentos de jade do cabo de uma adaga cerimonial vulcana que Selar lhe havia mostrado. Excetuando-se o fato de que Thala fora informada que aquela estátua era amarela, enquanto que o cabo da adaga de Selar era vermelho.

Vermelho... amarelo... a menina andoriana lembrou-se de que Selar havia tentado aperfeiçoar olhos que lhe permitiriam conhecer o significado real dessas palavras. Ela apertou a estátua nas mãos, até recuperar o controle das emoções.

Por que nasci assim? pensou pela milésima vez. Ser cega de nascença já era ruim demais, mas ser cega de nascença e andoriana ao mesmo tempo...

Thala sentiu uma súbita saudade de Thev. Ele havia admiravelmente vencido os preconceitos que lhe foram ensinados desde a infância. Tivera grande afeição pela filha e a havia encorajado a desenvolver talentos que a preparariam para viver longe de seu povo. Thev havia planejado estabelecer-se com ela em Delma, um planeta do setor Vega, assim que terminassem sua viagem diplomática. Naquele planeta havia muitas oportunidades para pessoas inteligentes, e todos eram julgados pelo que podiam fazer e não pelo que não podiam fazer.

Thev e Selar haviam ensinado a Thala que seu defeito seria um problema apenas se ela o considerasse assim. Foi um choque terrível para menina quando lhe contaram que o pai havia morrido.

A nave borg havia aberto um rombo enorme na Enterprise, e Thala fora a única não tripulante na área em que o casco fora rompido e o setor sofrerá descompressão. Thala sabia que o pai estava morto, mas por vezes se via atormentada pela idéia de que ele aproveitado o ataque borg como meio de fugir do fardo que era ter uma filha cega.

Era difícil prantear um corpo ausente. Selar a havia consolado dizendo-lhe que Thev, com toda a certeza, não tivera tempo de perceber o que lhe acontecera. Seu fim devia ter sido praticamente instantâneo. Foi por meio de Selar que Thala ficou sabendo que seu pai havia morrido. Selar foi direta e sincera, mas sob a impassividade vulcana, era possível sentir-lhe a preocupação e a bondade.

Desde a morte de Thev, Selar tinha estado com ela todos os dias, às vezes por uns poucos minutos, quando tinha muitos pacientes, mas nunca deixou de vê-la. Em breve, porém, mesmo que Thala recebesse permissão de ficar na Enterprise, Selar já não estaria mais lá. Essa idéia era suficiente para fazer com que a menina andoriana tivesse vontade de gritar.

Depois de um momento, porém, a menina engoliu em seco e endireitou os ombros com determinação. Sc ficasse pensando em Selar, não conseguiria fazer o que precisava ser feito.

Agarrando a estatueta com uma mão e a base na outra, Thala girou os punhos. A escultura abriu-se cm duas. Era oca por dentro. Ela segurou a parte de cima, derramando seu conteúdo na mão.

Sentiu nas mãos o frio metal, as duras superfícies facetadas das jóias e as redes das antenas de sua mãe. Cuidadosamente, Thala contou as jóias novamente.

Dezesseis cristais solares rigellianos, variando cm tamanho de um quarto de quilate até quase dois quilates. As pedras não era extremamente raras, mas ela ficara sabendo que eram perfeitas e de excelente coloração: um laranja avermelhado brilhante, a cor de uma das estrelas do sistema Rigel. Estavam engastadas em um oriri antigo feito de uma liga de ouro, cobre e irídio, muito apreciado por seu povo.

A menina andoriana tinha uma vaga idéia do valor das jóias e do metal na praça, mas tinha certeza de que dariam o suficiente para comprar sua passagem até Vulcano e sustentá-la naquele planeta até que encontrasse trabalho.

Thala planejava trabalhar como escriba-tradutora. Ela falava três línguas fluentemente: andoriano, Vulcano e a língua da Terra. Sempre haveria necessidade de pessoas que podiam transcrever e traduzir. Apesar da invenção do Tradutor Universal, um século antes, muitos mercadores vulcanos e terráqueos ainda preferiam utilizar um ser vivo como intérprete durante as negociações. Eles alegavam que as traduções feitas por intérpretes vivos reproduziam melhor os subcontextos e inflexões da pessoa que falava: elementos essenciais durante uma barganha.

Assim que estivesse cm Vulcano e ganhasse o suficiente para sustentar-se sem precisar trabalhar por dois anos, Thala tinha apenas uma vaga idéia de quanto tempo levaria para alcançar esse objetivo, então ela começaria a freqüentar a Academia de Ciências de Vulcano. Então poderia encontrar Selar novamente. Elas seriam... amigas.

Thala tentou imaginar quanto tempo isso levaria e sentiu um nó na garganta. Mas estava decidida. Nada a impediria de levar adiante seu projeto. Ela não iria para um planeta andoriano.

Em seu planeta natal ela só poderia esperar encontrar uma existência vazia, desprovida de amigos, em uma instituição ou cercada de outros que, como ela, haviam sido ensinados a não tentarem superar suas deficiências. Os andorianos que eram portadores de doenças debilitantes ou outras imperfeições ou ferimentos somente eram considerados honrados se não incomodassem os outros com sua presença ou necessidades.

Uma instituição seria seu destino mais provável, mas se fosse extremamente bem afortunada, num sentido irônico e pessimista da palavra, poderia não ser enviada a uma instituição, mas ser adotada por um dos clãs que haviam perdido grande parte de sua população nas sangrentas lutas internas de seu planeta. Sua cegueira não era de causa genética, o que a tornava apta para ser adotada, porque em um ano ou mais ela teria idade suficiente para ter filhos. Ela seria colocada em um dos haréns do clã, fertilizada com bebês do sexo masculino por machos selecionados cm intervalos clinicamente seguros, e depois seus filhos seriam levados para serem treinados como guerreiros.

Thala achava que seu povo tinha razão em uma coisa, pelo menos. A morte era mil vezes preferível a qualquer desses destinos.

Ela ficou pensando e planejando, fazendo uma lista mental de o que poderia levar e o que deixaria para trás, enquanto passava as finas correntes do oriri de uma mão para a outra.

— Doutora Crusher? — uma voz hesitante fez-se ouvir junto à porta do consultório de Beverly, que sempre ficava aberta.

A oficial médica chefe ergueu o rosto.

— Data? Precisa de alguma coisa?

— Estou incomodando? — perguntou ele, com uma ansiedade quase humana em seu rosto anormalmente pálido.

Se não achasse isso impossível, diria que ele está nervoso, pensou Crusher. Depois disse:

— Não, de modo algum. Entre, por favor. Ele entrou e parou junto à porta.

— Não quero atrapalhar seu trabalho, doutora.

— Não estou fazendo nada de importante no momento, Data — disse ela. — Sente-se, por favor. O que o preocupa?

Ela reclinou-se na cadeira, pensando que nunca tinha visto Data tão inseguro.

O andróide sentou-se, com as feições serenas, mas algo nele continuava agitado.

— Dra. Crusher... — disse ele, depois calou-se.

— Data, quando estamos apenas conversando, por que não me chama apenas de Beverly? — disse ela, com um olhar inquiridor — Porque, corrija-me se eu estiver errada, mas não creio que tenha vindo até aqui por um motivo oficial.

— Tem razão — disse Data. — Muito bem, Beverly... — Ele fez uma pausa, depois prosseguiu rapidamente, quase de modo apressado. — Preciso da opinião sincera de uma mulher a respeito de algo que escrevi e imaginei que talvez pudesse me conceder esse favor.

— Algo que você escreveu? — Ela ficou surpresa, mas procurou não demonstrar. — Quer dizer... escreveu um livro?

— Sim, doutora. — disse ele, puxando de dentro do uniforme um maço de folhas dobradas com um texto manuscrito. — Fiz vários esboços de um romance a respeito dos primeiros dias da exploração espacial e um caso de amor entre o capitão de uma nave e a mulher por quem ele está apaixonado. Esta cena passa-se na lua da Terra, na véspera de sua partida. — Ergueu os olhos para ele, esperançoso. — Reescrevi o livro para que tivesse um estilo mais masculino, por sugestão do comandante Riker. Depois, quando pedi a Wesley que lesse a cena, ele sugeriu que, como a cena incluía o ponto de vista de uma mulher, eu pedisse a opinião de alguém do sexo feminino.

— Ele sugeriu especificamente que viesse me ver? — perguntou Crusher, pensando que teria de conversar com o filho a respeito de passar a batata quente para os outros, mas Data negou.

— Não, senhora. — Contudo, você e a conselheira Troi são as duas mulheres com quem trabalho mais de perto, e como ela não está disponível, sobrou-me apenas você.

— Compreendo... — Beverly conseguiu sorrir. — Bem, Data, sinto-me honrada em saber que considera minha opinião importante, mas devo dizer que não tenho muita experiência como crítica literária.

— Não tem problema, doutora... Beverly. Meu romance foi escrito para um público leigo e não erudito. — Ergueu o maço de folhas. — Quer que eu o leia para você?

— Não. Acho melhor ler por mim mesma — disse ela, estendendo a mão. Ela apanhou as folhas, começou a ler, bastante ciente do olhar esperançoso de Data. Isso dificultava-lhe a concentração, para dizer o mínimo.

 

Ela leu a cena duas vezes, uma para analisar a fluência e o ritmo, outra para examinar o estilo e o conteúdo. Depois, ergueu o rosto.

— Não sei o que dizer, Data — disse ela, com sinceridade. Porque não posso dizer-lhe a verdade, ou seja, que está horrível!

— Diga-me apenas se a deixou emocionada — pediu Data. — É dessa maneira que uma mulher se sente durante um encontro com alguém do sexo oposto?

Nenhuma mulher que eu conheço reagiria assim, pensou Crusher, séria. Parece uma fantasia juvenil de um rapaz sobre os sentimentos de uma mulher... Quando ele diz que a presença de Juan e o sol a incomodavam, acho que usou uma palavra bem apropriada.

— Bem — começou a dizer, com tato — toda mulher anseia em encontrar sua alma gêmea, alguém que realmente precise dela e que expresse seu amor por ela e... ahn — ela olhou para as folhas — ahn, Juan... certamente parece estar fazendo justamente isso — disse ela, não convencendo nem a si mesma.

—Mas uma cena de amor em uma cabine pressurizada não me parece ser um local muito romântico. Quero dizer, com o cheiro dos produtos de limpeza e o sibilo do ar condicionado... coisas que são muito banais para serem consideradas românticas. Talvez devesse mudar o local em que se passa a cena.

Data mostrou-se entusiasmado.

— Finalmente uma crítica concreta! Agradeço muito sua sugestão, doutora. Posso mudar o local para algo mais romântico. O herói e heroína poderiam encontrar-se no Jardim Botânico Lunar.

— Hmmm ... — murmurou Crusher, dando de ombros — Pode ser que funcione. Além disso, Data, ahn, apesar de eu gostar de literatura comercial como todo mundo... — sorriu, sem jeito — não conte para ninguém, mas eu tenho uma coleção inteira das obras de Jacqueline Susann... bem, seja como for, para eu me envolver emocionalmente com os personagens, prefiro histórias de amor em que as pessoas não caiam no chão juntas e ahn... tenham relações, mas que conversem entre si. Histórias em que as pessoas desenvolvam um relacionamento por algum tempo até que ele se transforme em amor.

— Pode me dar algum exemplo? — pediu ele.

— Bem, minha autora preferida é Jane Austen. Seus personagens sempre expressaram seus sentimentos de modo bastante claro e espirituoso, fazendo a emoção transparecer, sem mencionar seu estilo refinado que me dá tanto prazer de ler.

— Jane Austen — repetiu Data, pensativo. — Vou pensar no que disse, Beverly. Agradeço por ter-se dado ao trabalho de ler o que escrevi.

— Oh, de nada — disse ela, incomodada por saber que não havia expressado sua "opinião sincera", como ele havia pedido. — Talvez seja bom pedir a opinião de outra mulher... talvez mais de uma — sugeriu ela, imaginando que se Data consultasse muitas pessoas, poderia chegar à conclusão certa sozinho.

— Farei isso — disse Data, solenemente, juntando as folhas de seu manuscrito. — E vou pensar sobre no que consiste o amor numa obra de ficção.

— Talvez devesse ler E o Vento Levou — sugeriu Beverly. — E Jane Eyre. Ou Chamas da Escuridão de Hightower.

— Já os li — respondeu Data. — Mas vou revê-los, pode estar certa.

— Muito bem — disse ela, procurando lembrar-se de outros exemplos de romances populares. Nesse momento, a tenente Selar parou junto à porta, hesitou, depois começou a afastar-se.

— Selar! — chamou Crusher, com certo alívio. — Tudo bem. o tenente comandante Data e eu já estávamos terminando nossa conversa. Pode entrar.

O andróide ergueu-se e cumprimentou a médica vulcana que entrava.

— Obrigado novamente, doutora. Vou lembrar-me de seus comentários — prometeu ele. Depois saiu, levando o manuscrito.

— Não quis interromper — disse Selar. — Estes relatórios do estoque de medicamentos poderiam ter esperado até que estivesse desocupada, Beverly.

Crusher reclinou-se na cadeira e suspirou.

— Eu queria ser interrompida — disse ela. — Eu precisava de alguém que viesse me socorrer. Não estava gostando do papel de crítica literária.

Selar apenas ergueu uma sobrancelha.

 

— Comandante Riker — disse o tenente Worf, subitamente. — Estou recebendo uma transmissão, senhor.

— Uma transmissão? — Riker aprumou-se na cadeira de comando de um salto. — De onde está vindo? Pode identificar a origem, tenente?

— Está vindo de um ponto a aproximadamente cinco anos-luz de distância, comandante — disse o klingon em sua voz retumbante. — Sua origem, porém... não consigo identificar com precisão. O sinal é fraco, mas creio ser da Marco Polo.

— Pode ampliar o sinal para torná-lo mais claro? O sinal repetiu-se?

— Não, comandante, foi uma única transmissão. Vou tentar amplificar o registro para podermos compreender, senhor, mas... — o klingon parou de falar enquanto trabalhava, enrugando a testa.

— Riker para o capitão Picard.

— Picard falando.

— Senhor, acho que encontramos algo. O tenente Worf acredita estar recebendo uma transmissão da Marco Polo. Ele está tentando amplificar o sinal neste momento.

— Estou a caminho, Imediato.

Quando o capitão chegou à ponte, o oficial klingon já havia conseguido amplificar o fraco sinal.

— Na tela, tenente — ordenou o oficial superior.

— Senhor, não há visual, apenas áudio, capitão.

Picard ergueu as sobrancelhas, surpreso, mas assentiu com a cabeça.

— Muito bem, Sr. Worf. Toque a parte de áudio.

— Sim, capitão. — O chefe da segurança tocou um controle e um ruído crepitante com muita estática encheu a sala. Worf piscou os olhos e ajustou o controle de volume.

Ouviu-se uma voz, tão rouca e ofegante que fez Riker ter dúvidas se seria humana:

— ... invadidos... não identificado... — estática — ... os sintomas variam... oito suicídios, três assassinatos... estamos indefesos... — A voz passou a gaguejar, quase soluçando — Oh, meu Deus, os sonhos estão nos matando! Por favor, socorro... mas... Oh, meu Deus! Não pode ser! Não! Para trás! Chega de mortes, por favor...

Ouviram-se alguns soluços inarticulados, depois apenas estática.

— É só isso, tenente? — perguntou Picard. Riker, que estava agarrado ao espaldar da cadeira ao lado, ficou espantado ao ver a calma demonstrada pelo capitão, mas então percebeu a tensão em seus ombros e a rigidez de seu queixo. Ele também ficou perturbado, pensou o comandante. Mas tem muito autocontrole para deixar transparecer.

Wesley Crusher, por outro lado, que estava de serviço no leme, tinha o rosto pálido e assustado. Riker não tinha como censurar o pobre menino. Havia tamanho desespero e agonia naquela voz rouca e suplicante.

O capitão ergueu um pouco a voz.

— Doutora Crusher, queira comparecer à sala de conferências, por favor — disse ele, erguendo-se. — Comandante Riker, tenente Worf, conselheira, Sr. Crusher... reunião. — Voltou-se para o andróide — Sr. Data, assuma o leme.

Quando sentaram-se ao redor da mesa comprida e lustrosa, Picard ordenou que a mensagem fosse tocada mais duas vezes. Depois olhou em volta, com o rosto sério.

— Opiniões?

— Eles mencionaram uma invasão — disse Worf. — Devemos estar prontos para atacar a força alienígena.

A Dra. Crusher sacudiu negativamente a cabeça.

— Não concordo. Parecia mais tinham contraído algum tipo de doença desconhecida. Pode-se chamar isso de invasão. Lembrem-se de que falaram em sintomas.

— Concordo que estejamos lidando com algum tipo de problema médico e não militar — disse a conselheira Troi. — Será algum tipo de praga que ataque a mente das pessoas? Ele disse que os sonhos os estavam matando...

Wesley Crusher parecia céptico mas interessado. Era óbvio que seu ágil cérebro juvenil estava especulando a respeito da idéia.

— Um tipo de doença que provoca sonhos mortíferos? — perguntou ele, lentamente. — Isso é possível?

— Os pesadelos podem causar grande estresse ao corpo — disse Crusher. — Eles aceleram o coração, causam a secreção de adrenalina e fazem subir a pressão arterial.

— Posso garantir que sim — disse Riker. — Quando fui picado por aquele inseto alienígena e a equipe médica precisou usar pesadelos para matá-lo em minhas células, senti como se tivesse lutado vinte rodadas de anbo-jyutsu contra o campeão da galáxia! Todos os músculos de meu corpo ficaram doloridos, e eu me senti exausto.

— Mas os sonhos podem matar? — perguntou Picard.

— É possível, sob certas circunstâncias — respondeu Crusher. — Uma pessoa com um coração fraco ou com uma doença debilitante pode sofrer tamanho choque em decorrência de um pesadelo a ponto de vir a morrer.

— Mas a julgar pela transmissão, parece evidente que toda a tripulação havia sido afetada — disse Riker. — É difícil acreditar que todos sofressem do coração. Além do que, isso não explicaria os suicídios e assassinatos que foram mencionados.

— Os sonhos são ligados ao nosso inconsciente — explicou a conselheira Troi. — Talvez estejam sofrendo algum tipo de invasão mental alienígena que os esteja fazendo matarem-se uns aos outros. Essa invasão mental também poderia ser descrita como um pesadelo.

— É possível — disse o capitão, pensativo. — Já aconteceu antes.

Riker olhou em volta da mesa e percebeu que todos se lembravam, como ele, da ocasião em que um capitão ferengi ávido de vingança havia usado uma máquina alienígena para provocar esse efeito na mente de Jean-Luc Picard. As lembranças de sua nave perdida, a Stargazer, haviam atormentado o capitão em sonhos bastante vividos.

— Se for algum tipo de invasão mental, será que isso significa que estamos enfrentando uma ameaça ferengi? — disse Riker, depois sacudiu negativamente a cabeça. — Não. Não parece do estilo deles, senhor.

— Concordo, Imediato. A natureza desse campo de energia faz-me supor que estamos enfrentando uma força ou um ser desconhecido ou alienígena.

Picard ergueu-se lentamente e inclinou-se sobre a mesa, apoiando-se nos braços estendidos.

— Creio que é hora de tentar livrar-nos desse campo. Devemos estar suficientemente próximos da Marco Polo para conseguirmos localizá-la em nossos sensores. — Aprumou-se e depois olhou para Riker. — Imediato, quero o Sr. La Forge na ponte para cuidar do posto da engenharia.

— Entendido, capitão.

Picard voltou o olhar para o restante da tripulação da ponte.

— Todos a seus postos.

A sala de conferências esvaziou-se rapidamente.

Poucos minutos depois, Geordi La Forge estava observando os controles de seu posto na ponte e acenou com a cabeça.

— Temos força de dobra à disposição, senhor. A seu comando. Picard acenou com a cabeça para o jovem oficial do leme.

— Siga para nosso novo curso, Sr. Crusher. Ativar.

Atento a seus controles, Wes ativou os poderosos motores da nave. A Enterprise começou a vibrar quase imperceptivelmente, enquanto os monitores de navegação mostravam que ela estava desviando-se do curso anterior.

— Pronto, capitão — disse o jovem timoneiro, sem tirar os olhos dos instrumentos. — Estamos nos libertando...

Ele deixou a frase no ar quando a Enterprise subitamente sacudiu, quase tão violentamente quanto no primeiro encontro com o campo de energia alienígena.

— Capitão — disse Geordi, tenso. — O campo está ficando mais forte, quanto mais energia usamos para nos libertar, mais forte ele nos segura! Se isso durar muito tempo, vamos sobrecarregar os motores de dobra e estaremos realmente em apuros!

Picard olhou para Riker.

— Desligar os motores — sua voz estava tensa de raiva. Mas somente alguém que conhecesse o capitão tão bem quanto o comandante Riker teria percebido quão irado estava Jean-Luc naquele momento.

Riker olhou para os instrumentos por cima dos ombros de Data.

— O campo não apenas aumentou sua potência o suficiente para nos segurar, senhor — informou Riker. — Ele mudou de lugar junto conosco, para manter-nos no centro.

— Como uma aranha que não quer deixar sua presa escapar — disse Picard, sombrio. — Não gosto disso, Imediato.

— Nem eu, capitão.

Data subitamente endireitou-se em sua cadeira.

— Capitão, estou captando algo parado à nossa frente. Creio termos finalmente chegado a nosso destino, senhor.

Jean-Luc Picard semicerrou as pálpebras e sussurrou algo baixinho.

— Como disse, capitão? — perguntou Data. — Não entendi sua ordem.

— Eu disse: "aumente a potência dos escudos, Sr. Worf" — sua voz estava extremamente tensa.

Will Riker procurou manter o rosto impassível, para não mostrar que sabia que o capitão estava mentindo. Ele tinha ouvido o que o oficial comandante havia dito na primeira vez. Picard não dissera "aumente a potência dos escudos" .

O que ele havia murmurado era uma interjeição em sua própria língua. Jean-Luc havia dito: "Merde".

Fitando a tela e imaginando o que iria acontecer em seguida, Riker não podia deixar de concordar com seu capitão.

 

— Aumentada a potência dos escudos, capitão — disse o oficial klingon.

— Em nosso aceleração atual, qual é o horário previsto de chegada a nosso destino, Sr. Data?

— Nossa velocidade aumentou até quase a velocidade máxima de impulso, senhor. Iremos encontrar a fonte desse campo em... vinte e dois minutos, capitão.

— Por que não conseguiu determinar nosso destino mais cedo por meio dos sensores, Sr. Data? — Picard estava apenas perguntando, sem acusar.

— Não sei, senhor — respondeu o andróide, parecendo perplexo. — É possível que o campo de energia alienígena distorça a leitura de nossos sensores.

— O que dizem nossos sensores a respeito de nosso... — o capitão hesitou, depois continuou com certa ironia — nosso anfitrião, Sr. Data?

— O objeto localizado no centro do campo de energia parece ter aproximadamente cinco quilômetros de comprimento.

Picard contraiu discretamente os lábios. Isso significava que aquela coisa tinha o tamanho de uma base estelar.

— Qual é seu formato, Sr. Data?

— Creio que seja aproximadamente retangular, senhor, mas o campo de energia continua a distorcer as leituras, o que torna difícil determinar os parâmetros exatos. Não consigo identificar a substância de que o objeto é construído. As únicas ligas e materiais registrados pelos sensores são das naves que cercam o artefato alienígena.

— Naves? — perguntou bruscamente o capitão. — Mais de uma? Quantas são?

— Não estou bem certo, capitão. Algumas delas estão tão juntas umas das outras que fazem com que suas leituras se encontram sobrepostas. No entanto, estimo que haja pelo menos uma centena.

— Uma centena? — Seria talvez uma armada alienígena? — Elas são semelhantes entre si no desenho e na construção, comandante?

— Não, senhor. Elas diferem muito umas das outras.

— Estão atracadas?

— Não, senhor. Parecem estar paradas, mas ... à deriva.

Será possível que aquela coisa tenha capturado tantas naves assim? Picard lançou um olhar para Riker, que ergueu as sobrancelhas.

— Compare essa quantidade com o número de naves que desapareceram neste setor.

— Algo entre quatorze e vinte naves com registro da Federação passaram por este setor e aparentemente desapareceram, capitão. Não posso ser mais preciso porque vários cargueiros particulares de pequeno porte não tiveram o cuidado de entrar em contato com todos os portos de controle. Presume-se que suas atividades não sejam plenamente condizentes com as leis da Federação.

— Você quer dizer que são contrabandistas, Data — disse Geordi do outro lado da ponte.

— Exatamente.

— Entendo — disse Picard. — Já podemos vê-las na tela?

— Ainda não, senhor. Mas poderemos dentro de dez minutos.

O tempo arrastou-se lentamente, enquanto a tripulação da ponte aguardava calada em seus assentos. Picard olhou em volta, notando a tensão nos ombros de La Forge, Worf e Riker, apesar de eles não demonstrarem qualquer outro sinal de nervosismo, por serem muito bem treinados. Deanna Troi estava tranqüila, com as mãos cruzadas sobre a saia turquesa, mas Picard percebeu a preocupação que transparecia de seus olhos escuros. Wesley Crusher ainda estava bem pálido, mas as mãos do jovem oficial moviam-se seguros em seu painel de controle.

Ele ainda vai ser um capitão de nave estelar, pensou Picard, não pela primeira vez. Ou seja, se não decidir tornar-se engenheiro ou cientista. Por um instante fugaz, Jean-Luc lembrou-se do ser que chamavam de Viajante e sua profecia de que Crusher tinha um futuro grandioso pela frente. Mas somente se sobreviver para cumprir seu destino, pensou o capitão, com amargura. E a essa altura dos acontecimentos, começo a duvidar se algum de nós estará vivo amanhã..

— Sr. Worf — disse ele — está captando algum transmissão da PaKathen ou da Marco Polo!

— Negativo, senhor — respondeu o klingon, em sua voz tonitruante, um minuto depois. Picard suspirou. — Continue tentando entrar em contato com eles em intervalos regulares, tenente. — Para o caso de algum deles estar vivo para responder...

— Entendido, capitão.

— Senhor — disse Data, voltando-se subitamente no assento para encarar o capitão com seus olhos estranhamente amarelos. — Creio que temos contato visual.

— Na tela — ordenou o capitão. — Sr. La Forge, se conseguirmos uma boa imagem daquela coisa, quero que a examine em todo o espectro de luz visível.

O engenheiro chefe assentiu.

Sim, senhor, capitão.

Data operou febrilmente os controles, e a visão das estrelas fixou-se.

— O objeto bem no centro da tela é nosso destino, senhor — informou Data. — Ele pode ser visto porque está bloqueando a visão de parte da nebulosa Eta Carinae. O objeto por si só é iluminado... mas a esta distância, visto contra as estrelas, ele aparece escuro.

Picard fixou os olhos na tela. Depois de fitá-la por algum tempo, conseguiu identificar uma pequena mancha delineada contra o brilho da nebulosa.

— Ampliação fator dez, Sr. Data.

A tela oscilou, então o objeto apareceu bem maior, mas ainda muito pequeno para identificarem-se os detalhes. Era simplesmente uma mancha escura no espaço.

O capitão da Enterprise esperou mais cinco minutos, até que Data informou que a distância até o artefato era cem mil quilômetros. Picard então ordenou:

— Ampliação, fator cem, Sr. Data.

A tela oscilou novamente, então o artefato alienígena apareceu como uma forma pouco iluminada, apesar de estar borrada devido à grande ampliação. Como Data havia predito, ele era grosseiramente retangular, apesar de grande parte de sua superfície estar escondida pelos cascos de naves de todos as formas e tamanhos que ali flutuavam.

Picard examinou-as, tentando identificá-las pelo formato, mas ainda estavam muito distantes e havia muitas delas. Devem ser naves à deriva que foram trazidas para cá ao longo dos anos, pensou ele. Deve haver naves com centenas de anos ali, lembrou-se subitamente. Mon Dieu, pode haver naves que tenham milhares de anos... ou milhões.

— Elas estão presas — ouviu Geordi sussurrar. — E nós também vamos ficar presos... como no mar de sargaços...

Jean-Luc Picard imediatamente relembrou a referencia, concordando que era bem apropriada.

— Sr. Crusher, consegue fixar as órbitas das naves, de modo a estabelecer um curso até as proximidades da PaKathen e da Marco Polo']

— E o que venho tentando fazer, capitão — respondeu o jovem alferes interino. — Podemos manobrar de modo limitado, desde que não tentemos nos livrar do campo. Creio que conseguirei traçar um curso.

— Muito bem. Faça isso. Mantenha os escudos na potência máxima, Sr. Worf. Vamos ter que procurar não colidir com alguma das naves à deriva.

Quando a nave estelar aproximou-se até cinqüenta mil quilômetros do artefato, Wesley Crusher informou:

— Curso traçado, capitão.

— Consegue diminuir nossa velocidade?

— Vou tentar, senhor. — As mãos do jovem oficial moveram-se habilmente, e a carreira desabalada em direção ao destino alienígena foi visivelmente freada. — O efeito trator diminuiu, capitão — disse Wesley, parecendo surpreso.

— Ele não quer que trombemos com ele — supôs Picard. — Nenhuma dessas naves mostra qualquer sinal de impacto, estou certo?

— É verdade, capitão.

— Senhor — disse Riker, ansioso. — Talvez consigamos nos libertar agora.

— Duvido, Imediato — disse Picard brandamente. — Se começarmos um cabo-de-guerra provavelmente vamos acabar nos chocando com uma das naves à deriva. Vamos esperar até chegarmos aonde ele quer nos levar. Pode ser que então o raio trator seja totalmente interrompido. E não se esqueça que temos ordens de resgatar quaisquer sobreviventes dessas duas naves. — Ele aprumou-se na cadeira — Sr. Crusher, pode iniciar o curso, quando estiver pronto.

— Sim, senhor.

A Enterprise começou a seguir por um caminho complicado entre as naves. Ainda estavam movendo-se rápido o suficiente para fazer com que algumas naves parecessem passar perto demais, mas o curso traçado por Wesley era excelente.

Enquanto passavam pelas naves que flutuavam, os olhos treinados de Picard identificaram uma nave mercante ferengi, uma ave de rapina romulana, um cruzador gorn, um velho corsário akameriano, um cruzador klingon (será a PaKathen ou outra nave! perguntou-se ele), um correio delosiano, um cruzador de batalha promeliano, um cargueiro benzita, uma nave de escravos orion, uma nave de passageiros deltana... Era como um catálogo de naves, do passado e do presente, e havia muitas que lhe eram totalmente desconhecidas.

A Enterprise diminuiu a velocidade e parou completamente a vinte quilômetros da Marco Polo e a cerca de cinqüenta quilômetros da nave klingon.

— Tela frontal no artefato, Sr. Data. Vamos dar uma boa olhada na coisa — ordenou Riker.

A tela oscilou por um instante, depois encheu-se com a imagem do captor alienígena. Ele estava a 250 quilômetros à frente, totalmente visível. Picard focalizou seu olhar no artefato...

Então, quase imediatamente, teve que desviar o olhar. A seu lado, Deanna Troi pareceu sufocar. Ouviu Riker murmurar um gemido discreto, como se sentisse dor. Em seguida, Wesley engasgou.

Com enorme força de vontade, Picard forçou-se a olhar novamente. Assim que seus olhos focalizaram-se no artefato, sentiu uma desorientação tão grande que seus olhos, acostumados a ângulos normais, parábolas previsíveis e linhas retas que permaneciam retas, não conseguiam seguir os contornos daquela coisa, afligindo profundamente seu cérebro e corpo. Sua visão encheu-se de cores alienígenas e loucas. Acometido de náuseas e conseguindo a muito custo controlar a vertigem, o capitão ordenou:

— Data! Ligue os filtros! Em toda a nave!

O andróide não respondeu ao comando até depois de ter cumprido a ordem, mas naquelas circunstâncias Picard não estava com muita disposição de preocupar-se com o protocolo. Os filtros amenizaram os contornos do artefato e suavizaram as cores que perturbavam a mente humana, tornando o objeto menos perturbador de se olhar. O capitão percebeu que conseguia olhar para a coisa por dois segundos antes de ser obrigado a desviar os olhos.

Por fim, Picard ergueu-se, respirando fundo. Seus joelhos estavam bambos, e ele deu alguns passos até sentir-se mais seguro de si. Depois voltou-se e olhou para a tripulação da ponte. Ninguém estava olhando para o artefato, com exceção de Geordi. Quem sabe o que ele está enxergando ali?

Deanna Troi estava branca como cera, enquanto cerrava os punhos com toda a força. O rosto de Will Riker estava bastante pálido, contrastando com sua barba escura. Wesley estava quase verde. Até Worf parecia como se estivesse acometido de um gagh ruim e tivesse dificuldade em controlar-se.

Apenas Data e Geordi não pareciam ser afetados pela visão daquela coisa. Picard teve que esforçar-se para retomar a calma costumeira. A leve corrente de ar do sistema de suporte de vida tornou viscosas as golas de suor em sua testa.

— Sr. Data, há qualquer leitura de forma de vida naquela coisa? — perguntou ele.

— É impossível dizer ao certo, capitão, porque o campo alienígena provoca distorções importantes cm nossos instrumentos — disse o andróide. — Mas não estou detectando nada em meus sensores que possa ser reconhecido como vida orgânica.

O andróide ajustou o controle.

— Nem na PaKathen, senhor. — Picard olhou para Worf e viu que ele

franzia os lábios, mas não manifestou nenhuma outra reação à notícia dada. Pouco depois, Data acrescentou: — Mas estou detectando dezessete formas de vida a bordo da Marco Polo.

— Condições?

— A distorção impede que tenhamos informações precisas, senhor. A maioria delas está imóvel, como se estivesse dormindo ou inconsciente.

O capitão voltou-se para a conselheiro.

— Consegue sentir alguma coisa na Marco Polo?

Troi concentrou-se, com os olhos fechados.

— Posso senti-los — disse ela, em voz baixa. De repente, colocou a mão na cabeça, gemeu e oscilou na cadeira.

— Conselheira! — chamou Picard, bruscamente, mas sem obter resposta. De um salto, Riker colocou-se ao lado de Troi e inclinou-se sobre ela.

— Deanna! — exclamou, tocando-lhe gentilmente o ombro. — Você está bem?

Ela ergueu cegamente uma mão, e o primeiro oficial segurou-a com força. O toque pareceu acalmá-la, mas ela ainda tremia, como se um tipo de febre estivesse corroendo-lhe os ossos.

— Capitão... — balbuciou, rouca. — Eles estão morrendo... oh, meu Deus... precisamos salvá-los...

Ela tombou o corpo para o lado novamente, depois para frente, desmaiada.

Will Riker segurou-a antes que fosse ao chão. O alto oficial ergueu-a nos braços como se fosse uma criança. Seu longo cabelo escuro cascateou sobre o braço dele, como se fosse um rio e ébano.

Picard ergueu a voz para falar ao intercomunicador.

— Ponte para a enfermaria. Precisamos de um médico aqui, acelerado. Uma voz desconhecida respondeu:

— Sim, senhor!

Riker subiu a rampa curva e esperou junto à porta do turboelevador. Pouco depois, a porta se abriu e duas pessoas, uma delas carregando uma maça antigravitacional entraram apressadas.

— Ela desmaiou — disse Riker, enquanto colocava cuidadosamente o corpo da conselheira na maça.

Um dos integrantes da equipe médica passou um sensor sobre o corpo inconsciente de Troi, depois assentiu com a cabeça.

— Ela está apenas desmaiada, senhor. Vai ficar bem.

Riker involuntariamente fez como se fosse acompanhá-los quando levaram a conselheiro para o turboelevador, mas permaneceu onde estava. Seus olhos azuis refletiam ansiedade quando desceu a rampa, mas mostrava determinação nos passos. A voz da Dra. Crusher fêz-se ouvir na ponte.

— Capitão? Eu estava em meu alojamento e estou a caminho da enfermaria. O que aconteceu?

— A conselheira Troi acabou de desmaiar aqui na ponte. A equipe médica a está levando para a enfermaria.

— Tem idéia do que há de errado com ela?

— Pelo que sua equipe médica disse, suponho que tenha apenas desmaiado. Acabamos de ter uma primeira visão do artefato, que aparentemente está causando todos os nossos problemas. A visão era... no mínimo perturbadora.

— parou um pouco, como se lembrasse de algo. — Espere um instante, Dra.

— Voltou-se para Data e ordenou: — Sr. Data, ordene que todas as janelas sejam escurecidas. Não quero que mais ninguém desmaie ao ver aquela coisa.

— Sim, capitão.

— Doutora — prosseguiu Picard — essa... coisa, seja o que for, é tão alienígena, tão fora de nossos padrões de referência, que apenas olhar para ela é fisicamente perturbador. A conselheira, creio eu, teve uma reação a essa coisa. Ela também captou emoções muito perturbadoras em meio à tripulação da Marco Polo. Nossos sensores indicam que ainda há dezessete pessoas vivas, mas a conselheira nos disse que elas estão morrendo.

Picard sabia exatamente o que Beverly Crusher diria em seguida, e ela não desapontou.

— Peço permissão para reunir uma equipe médica para ser transportada para lá a fim de resgatar essas pessoas, capitão.

— Não tenho certeza se poderemos utilizar o transportador — respondeu ele.

— Então iremos na nave auxiliar — respondeu ela, prontamente.

— Doutora, levarei seu pedido em consideração e voltarei a entrar em contato com você em seguida — disse o capitão, de modo bem formal.

— Mas...

— Picard desligando. Sr. Data, será que podemos abaixar alguns de nossos escudos para utilizar o transportador?

— Nossa posição é estável, senhor. O campo trator parece ter-se estabilizado depois que chegamos aqui. Se abaixarmos os escudos para permitir a utilização do transportador não resultará em qualquer perigo... ao menos para a estrutura da nave, capitão.

Picard compreendeu o que o andróide queria dizer.

— Sim, mas isso nos deixaria indefesos contra o ataque mental referido na mensagem da Marco Polo.

Riker voltou-se para Worf.

— Consegue captar qualquer registro no diário de bordo ou outras informações a respeito das condições da PaKathen, tenente?

— O último registro no diário foi feito pelo capitão Khlar, quando a nave parou aqui, comandante. Ele relatou que havia brigas e assassinatos em sua tripulação e registrou sua decisão de destruir a estrutura que os tinham aprisionado. Esse foi seu último registro.

Riker olhou para Picard inquiridoramente.

— Consegue determinar como as condições de suas armas, tenente?

— A leitura do posto de armamentos indica que todos os bancos disruptores dianteiros foram descarregados, senhor.

— Confirmo a informação do tenente Worf — disse Data. — Estou detectando partículas ionizadas nesta área, indicando ter havido disparos de disruptores.

— Mas o artefato continua inalterado — murmurou Picard. Ponderou as alternativas por um instante, depois suspirou. Por algum motivo, não gostava da idéia de abaixar os escudos, mas estava em uma missão de resgate e geralmente tinham que enfrentar riscos para cumprir as ordens recebidas. — Tenente Worf, decidi enviar uma equipe medica para a Marco Polo e tentar trazer os sobreviventes para cá — disse ele ao chefe de segurança klingon. — Reúna uma equipe de segurança para enfrentar qualquer problema que possa ser encontrado lá e lidere pessoalmente essa equipe.

— Sim, capitão ! — Worf, como sempre, preferia agir a esperar.

— Capitão — disse Riker, ansioso — solicito permissão para acompanhar a equipe de segurança.

— Negado, Imediato — disse Picard, impassível. — Quero você aqui. Se essa... invasão mental começar a atacar a Enterprise, então você e eu deveremos estar prontos para observar um ao outro, procurando qualquer sinal de instabilidade mental. Esteja preparado para tomar as devidas medidas caso venha a observar alguma coisa. Entendido?

— Sim, senhor — respondeu Riker, igualmente sério.

— Tenente Worf, reúna sua equipe de segurança. Use a sala de transporte 3. Peça ao chefe O’Brien que informe a ponte quando estiverem prontos para ser transportados, a fim de que possamos abaixar os escudos.

— Sim, senhor! — O oficial klingon acenou para um alferes que o substituísse em seu posto, depois caminhou para o turboelevador.

O capitão disse para o ar:

— Dra. Crusher, aqui fala o capitão. Quais são as condições da conselheira Troi?

— Fisicamente ela está bem, mas decidi sedá-la para amenizar os resultados da proximidade da tripulação da Marco Polo — disse a oficial médica chefe. — Aparentemente muitos deles estão enlouquecidos. Senhor, quando poderemos transportar a equipe de resgate?

— Doutora, estou aprovando seu pedido de enviar uma equipe de resgate para ajudar os sobreviventes da Marco Polo — respondeu Picard formalmente. — Contudo, como oficial médica chefe, quero que permaneça na Enterprise. Se essa... doença ou praga mental, seja lá o que for, invadir a Enterprise precisarei mais de você do que de qualquer outra pessoa, por isso não posso permitir que corra qualquer risco. Pode recomendar alguém para liderar a equipe médica. De preferência alguém muito... estável.

— A tenente Selar, capitão. Ela é vulcana. Preciso dizer mais?

— Realmente. Excelente escolha. Peça à tenente e sua equipe de resgate que reúnam-se ao tenente Worf e a equipe de segurança na sala de transporte 3 assim que possível.

— Sim, capitão — respondeu ela bruscamente.

Tendo imaginado que teria que discutir com ela a respeito de quem lideraria a equipe médica, Jean-Luc Picard suspirou de alívio.

 

 

Selar estava a caminho do alojamento de Thala para conversar com a menina andoriana, quando recebeu o chamado da oficial médica chefe.

— Tenente Selar falando — disse ela — tocando o intercomunicador.

— Selar, acabei de recomendá-la para liderar a equipe de resgate que será enviada para a Marco Polo — disse Beverly Crusher. — A conselheira Troi relatou que a tripulação eslava sofrendo algum tipo de distúrbio mental. Estamos tendo dificuldade de captar informações mais precisas por causa do campo de energia que a estrutura alienígena está emitindo, mas pelo que pudemos determinar há dezessete seres humanos vivos a bordo, a maioria inconsciente, mas alguns estão em condições de andar e podem ser violentos. Se for transportada para lá junto com uma equipe de segurança, quantas pessoas precisará para estabilizar as condições dos pacientes e transportá-los de volta para a Enterprise!

Selar fez um breve cálculo mental, depois disse quase sem fazer pausa:

— Eu e mais seis pessoas.

— Quem recomendaria para sua equipe?

— As Dras. Logan e Chandra — disse Selar imediatamente. — Também a enfermeira Johnson, o enfermeiro Selinski, a Dra. Gavar, se ela quiser voluntariar-se para esta missão, e a enfermeira Itoh.

— Não me sinto muito segura em enviar Chandra — discordou Crusher. — Sua gravidez está bastante adiantada. Se houver algum tipo de força mental maligna ali, quem sabe como isso afetaria o feto?

Selar concordou.

— Tem razão. Muito bem, peço o Dr. Grunewalt em lugar dela.

— Aprovado. Pedirei a todos que se remiam imediatamente na enfermaria.

— Estou a caminho — disse Selar, tocando o comunicador para fechar o canal de transmissão. — Rapidamente, voltou para o turboelevador, pensando se teria tempo de pedir que Beverly fosse ver as condições de Thala enquanto ela estava fora com a equipe de resgate. Ela não tinha visto a menina desde sua crise emocional no dia anterior e estava preocupada.

— Selar! Espere! — uma voz conhecida fez-se ouvir no corredor.

— Espere elevador — ordenou a vulcana. Um segundo depois Thala entrou correndo, ofegante por tentar alcançá-la. — Estava indo vê-la — disse Selar para a menina andoriana. — Mas nossa conversa terá que ficar para depois. Recebi ordens de levar uma equipe médica para a Marco Polo.

O rostinho azulado de Thala ficou enrubescido de ansiedade.

— Selar, o que está acontecendo? Todos dizem que as janelas foram fechadas! A nave está cm perigo? — engoliu em seco. — Os borgs voltaram?

— Estamos a trilhões de quilômetros da região dominada pelos borgs — assegurou Selar. — Não, não estamos tendo problemas com eles no momento.

A menina relaxou um pouco.

— Então, o que está acontecendo?

— Não fui totalmente informada ainda — respondeu Selar, sem mentir. — E provavelmente não poderíamos conversar a esse respeito mesmo que eu soubesse do que se trata. Mas creio que não estamos enfrentando nenhum perigo sério por enquanto. Afinal de contas — lembrou ela — o capitão Picard desativou o alerta vermelho.

— Certo — sussurrou Thala. Depois desabafou: — Selar, você não vai estar correndo perigo no lugar para onde vai, não é?

— Não sei — disse a vulcana, sendo forçada a dizer a verdade pela franqueza da pergunta. — Mas haverá uma equipe de segurança me acompanhando, e estou certa de que o tenente Worf saberá nos proteger de qualquer ameaça.

Thala assentiu com a cabeça, aparentemente convencida.

— É, acho que sim. Ele é enorme, e Wesley disse que é muito forte e o melhor atirador da nave... — a frase morreu-lhe na garganta. Depois prosseguiu animada, como se tivesse lembrado algo: — Mas não é tão forte quanto Data! Selar, você não vai adivinhar o que aconteceu quando conheci o tenente comandante Data!

— Não posso adivinhar — começou a dizer Selar, quando então o elevador parou com um sibilo — mas não posso ficar adivinhando agora — acrescentou. — Mas mais tarde eu irei visitá-la e tentarei adivinhar. Preciso ir agora.

— Está bem — disse Thala brandamente. Depois, quando a vulcana saía do elevador, ela agarrou de repente a mão dela. — Tome cuidado! — sussurrou.

Selar fez que sim com a cabeça.

— Tomarei, Thala.

A porta do elevador fechou enquanto a menina acenava sua despedida.

A médica andou rapidamente pelo corredor e entrou na enfermaria. Encontrou todos muito atarefados em reunir o equipamento. Ela havia escolhido seis que, como ela, tinham experiência na ala psiquiátrica. Todos eram calmos e imperturbáveis por natureza. Até a Dra. Gavar, a médica tellarita do programa de intercâmbio da Frota Estelar. A maioria dos tellaritas eram briguentos e se irritavam com facilidade, mas Gavar era uma exceção. Selar ficou satisfeita em ver que ela havia decidido voluntariar-se para aquela missão. Ela era forte como um sehlat, no caso de algum dos pacientes tornar-se violento. Pelas informações dadas por Beverly Crusher, Selar imaginava que tinham havido assassinatos e suicídios a bordo da Marco Polo.

A Dra. Logan era uma mulher de baixa estatura, gorda e grisalha que vinha servindo na Frota Estelar desde sua formatura na faculdade de medicina. Selar a escolhera para aquela missão por que ela havia trabalhado em um hospital psiquiátrico humano.

Selinski era um homem alto e forte, com pouco mais de quarenta anos. Era um excelente enfermeiro: eficiente, consciencioso e cuidadoso para com os pacientes.

A enfermeira Itoh era uma mulher baixa e de olhos amendoados como os dos vulcanos, e a enfermeira Johnson era uma mulher musculosa de pele e cabelos bem escuros. Mas sua natureza era bem diferente da que os humanos esperariam em vista de sua aparência: apesar de grandalhona, Johnson falava baixinho e era tímida, enquanto a pequena Itoh era decidida, comunicativa e expansiva, dada a gargalhadas e piadas sujas.

Johannes Grunewalt era um homem baixo e enrugado, com pouca força física (motivo pelo qual Selar não o havia escolhido em primeiro lugar). Mas era um médico competente, apesar de um pouco limitado em sua capacidade de chegar a diagnósticos.

Juntando o equipamento medico e as maças portáteis antigravitacionais, a equipe médica seguiu Selar até a sala de transporte, onde a vulcana encontrou o tenente Worf e três seguranças armados, que foram apresentados como sendo Clara Bernstein, Ricard Montez e Caledon. O’Brien informou o capitão de que a equipe resgate estava pronta.

Pouco depois, a equipe de segurança subiu na plataforma e desapareceu numa coluna de luz. Selar acenou para sua equipe, e todos subiram na plataforma. A vulcana fez um sinal com a cabeça para o chefe de transporte O'-Brien, que mexeu nos controles, fazendo-a sentir a conhecida sensação de ser transportada de um local para o outro.

A equipe médica da Enterprise materializou-se no convés de carga, que era um dos lugares suficientemente espaçosos do cargueiro para receber toda a equipe junta. O ambiente era frio, devido ã refrigeração, e mortalmente silencioso. Selar estremeceu levemente, sentindo mais frio que um humano e uma discreta perturbação mental. A Marco Polo estava silenciosa demais. Ela viu Johnson tremer e Grunewalt olhar para trás, por cima do ombro, preocupado.

A equipe de segurança acenou para eles, avisando-os para permanecerem onde estavam, depois com os phasers em prontidão deram a volta nas pilhas de carga e caminharam até a porta do convés. Cada membro da equipe de resgate havia recebido um mapa esquemático do cargueiro.

Pouco depois, Selar ouviu os grunhidos de Worf.

— Doutora, encontramos alguém, mas acho que é muito tarde para podemos ajudá-la.

Selar aproximou-se rapidamente de onde estava a equipe de segurança, sendo seguida pela equipe médica. Worf e sua equipe estavam agachados ao lado de um corpo caído junto à porta aberta. Uma pequena poça de sangue sujava o chão cinza claro do convés, sob o rosto escondido do corpo.

— Ela está fria — disse Worf, enquanto Selar se aproximava correndo. — Não consigo sentir o pulso.

Agachando-se ao lado dele, Selar passou o sensor médico sobre o corpo da mulher, depois acenou bruscamente com a cabeça.

— Ela já está morta há umas duas horas — Já sabendo o que veria devido à leitura do tricorder, a médica virou o corpo da morta.

Era uma mulher que já fora atraente, com mais de quarenta anos e cabelos louros encaracolados. Uma adaga ornamental estava espetada em seu peito. A lâmina perfurara o ventrículo esquerdo, provavelmente causando-lhe morte imediata, ô que explicava a pouca quantidade de sangue.

O corpo estava gelado por ter ficado caído no compartimento refrigerado.

Selar ergueu o rosto para sua equipe e viu que Johnson estava com os olhos arregalados de medo. Procurou lembrar-se de manter a mulher a seu lado.

— Vamos nos dividir em grupos de busca de três pessoas — ordenou a vulcana rispidamente. — Um médico, um enfermeiro e um segurança em cada grupo, entendido? — Todos assentiram com a cabeça. — Dr. Grunewalt, você e o enfermeiro Selinski ficarão no mesmo grupo. — Worf acenou a Bernstein que se juntasse ao grupo formado.

— A enfermeira Johnson e eu ficaremos no mesmo grupo — Worf acenou para Caledon, um homenzinho de cabelo escuro de Próxima II, que se juntou à vulcana e Johnson. — Dra. Logan, você e a enfermeira Itoh formarão o último grupo — o próprio Worf preparou-se para acompanhar o grupo de Logan.

— E eu? — perguntou a Dra. Gavar.

— Você e o segurança Montez permanecerão aqui no convés de carga — disse Selar. — O chefe O’Brien disse que o campo de energia que cerca as duas naves está causando certa distorção em seus instrumentos. Por isso, a pedido dele, vamos transportar todos os pacientes de volta a partir do convés de carga. Gavar e Montez cuidarão dos pacientes que estiverem aguardando o transporte.

Ela olhou em volta.

— O processo de transporte seguirá os procedimentos normais de descontaminação, mas pelo que a Dra. Crusher observou até agora, não estamos lidando com organismos patogênicos. Creio que estamos lidando com algum tipo de invasão mental alienígena maligna, possivelmente gerada pelo artefato. — Fez uma pausa. — Tenho sentido alguma coisa desde que nos materializamos aqui. E vocês?

Todos os integrantes da equipe médica e de segurança fizeram que sim com a cabeça. Até mesmo, depois de certa hesitação, o tenente Worf.

— Mas pensei que não tínhamos identificado nenhum tipo de forma de vida a bordo — disse o Dr. Grunewalt.

— E não identificamos. Contudo, houve muitas descobertas novas relacionadas a esta missão, por isso não podemos ter certeza que nossos instrumentos conseguem identificar corretamente tudo que se refere ao artefato — lembrou Selar. — Mas, por enquanto, estamos preocupados apenas com esta nave. Minha opinião é que seja o que for que afetou a tripulação desta nave pode igualmente nos afetar. Se observarem sinais de deterioração mental em qualquer membro da equipe, estão a partir de agora incumbidos de relatar imediatamente suas impressões a mim e a outros membros não afetados da equipe. Entendido?

Todos assentiram com a cabeça, lançando olhares preocupados uns para os outros.

— Muito bem. Grupo Um — disse ela, apontando para Grunewalt e Selinski — vocês vasculharão o salão de recreação, os alojamentos dos oficiais e a cozinha...

Um minuto depois, tinha terminado de dar as designações aos grupos, e todos estavam a caminho.

Selar seguiu seu tricorder até o local em que se encontrava o primeiro sobrevivente. Passou por seis corpos no caminho, dois inteiramente vestidos, um de pijama e três despidos. Os dois que estavam vestidos haviam-se suicidado, um com uma overdose de tranqüilizantes (a mulher era integrante da equipe médica da nave ou havia arrombado o armário de medicamentos), o outro com um disparo de phaser na cabeça. Os outros que estavam caídos na porta de seus alojamentos pareciam ter acordado do sono, saído apressadamente para o corredor, onde tombaram mortos. Selar rapidamente verificou a causa da morte enquanto passavam e disse, olhando para Caledon:

— Ataque cardíaco — disse ela.

— Parece que alguma coisa os matou de medo — disse ele.

— Sonhos? — perguntou a enfermeira Johnson a meia voz. Apesar da cor escura de sua pele, ela parecia pálida.

O sobrevivente, quando o encontraram, era um homem com seus cinqüenta anos, tão encolhido em posição fetal que parecia impossível ter ossos. Selar e Johnson colocaram-no sobre a maça e levaram-no de volta ao ponto de transporte.

Nos quarenta e cinco minutos seguintes, encontraram e resgataram cinco sobreviventes. Os outros grupos também foram bem sucedidos, com exceção de um tripulante que se tornou agressivo quando o puseram na maça antigravitacional. Ele gritava e berrava tão alto que os ouvidos sensíveis de Selar escutaram os gritos a um convés de distância. O homem morreu pouco depois, apesar de todos os esforços de ressuscitação realizados pelo Dr. Grunewalt

Enquanto levavam o último sobrevivente para o local designado, o comunicador de Selar apitou. Ela o tocou e disse:

— Selar falando.

— Aqui fala Logan! — ouviu-se uma voz ofegante. — É a enfermeira Itoh! Ela atacou o tenente Worf, gritando que ele era um maldito espião klingon. quando tentei ajudá-lo, ela me atacou! Conseguimos dominá-la juntos, mas quando me virei para pegar um tranqüilizante, ela literalmente jogou o tenente no chão e fugiu! Nunca vi tanta força!

— Onde ela está agora?

— Não sei! Ela desapareceu na direção da cozinha, mas isso vai dar no corredor principal, portanto pode estar em qualquer lugar!

— Acalme-se, por favor, Doutora. Onde está o tenente Worf? Logan respirou fundo, depois falou de novo, mais calma.

— Ele está aqui comigo.

— Tenente? — disse Selar.

— Estou aqui, doutora — ouviu-se a voz de baixo tonitruante.

— Peça que a Dra. Logan seja transportada de volta, depois venha juntar-se imediatamente a meu grupo. Estamos nos alojamentos da tripulação, no convés A. Estaremos caminhando em direção às coordenadas de transporte a partir daqui.

— Entendido. Worf desligando.

Selar acenou para a enfermeira Johnson e Caledon para que conduzissem a maça antigravitacional e seguiu pelo corredor. Mesmo estando alerta e pronta para detectar a presença de qualquer pessoa, foi surpreendida. Ao virar cuidadosamente uma curva do corredor, foi atacada por uma pessoa enlouquecida, cujos gritos feriram-lhe os ouvidos. Caiu sob uma chuva de socos e pontapés, de alguém que tentava morder-lhe o rosto.

 

Selar imobilizou Itoh, conseguindo evitar que ela lhe mordesse o rosto. A força da mulher enlouquecida era inacreditável, como a Dra. Logan havia relatado. Uma mão atacou o rosto da vulcana, arranhando-o profundamente. A dor fez com que Selar conseguisse jogar a mulher para longe. A enfermeira ergueu-se cambaleante, e Selar avançou em sua direção, apoiada nos braços, dando-lhe uma cabeçada nos joelhos e jogando a mulher para longe.

A queda deixou a humana atordoada por um segundo precioso, no qual Selar arrastou-se rapidamente até junto de Itoh. Num piscar de olhos, os dedos da vulcana encontraram o nervo entre o pescoço e o ombro da outra. A enfermeira caiu, inconsciente.

Respirando com dificuldade, Selar virou o corpo inerte da enfermeira e sentou-se, com o rosto dolorido. Passou os dedos pelo rosto e viu que ficaram manchados de verde. Selar utilizou sua visão interna para identificar seus ferimentos e ficou aliviada ao ver que não passavam de arranhões e escoriações.

A enfermeira Johnson e Caledon a fitavam, mudos de espanto, ainda segurando a maça antigravitacional.

— É melhor colocarmos a enfermeira também sobre a maça — disse Selar, esforçando-se para ficar em pé, segurando os joelhos para firmar-se. — Precisamos correr. O tenente Worf deve estar ficando preocupado conosco.

Ao olhar para o rosto da amiga inconsciente, o rosto da enfermeira Johnson subitamente adquiriu uma coloração acinzentada e ela começou a tremer. Por um momento, Selar pensou que estivesse prestes a ter de lidar com outro caso de loucura, mas a mulher conseguiu controlar-se. Endireitando os ombros, ela apanhou Itoh pelos pés enquanto o segurança a levantava pelos ombros, e juntos colocaram Itoh na maça, ao lado do tripulante da Marco Polo.

Quando a grupo chegou às coordenadas de transporte no convés de carga, encontraram Worf com o phaser na mão olhando desconfiado para a Dra. Gavar, que estava sentada sobre o corpo inconsciente do segurança Montez.

— O que aconteceu? — perguntou Selar rispidamente, pensando que Gavar também tivesse sido pelo que havia afetado Itoh e a tripulação da Marco Polo. Mas os pequenos olhos da médica tellarita não mostravam ar de loucura.

— Ele começou a dizer que as sombras dos mortos estavam voltando à vida e juntando-se a nossa volta — respondeu a médica, com uma dramaticidade não proposital. — Então ele sacou o phaser e atirou em um deles. — Ela apontou para uma pilha de sacos de semente com um sinal enegrecido.

— A essa altura eu já sabia que ele estava, como meu povo costuma dizer, remando um barco com uma peneira cm vez de remo. Concordei em ajudá-lo a matar as sombras e consegui chegar perto o suficiente para injetar-lhe uma ampola cheia de clorpromazina. Então, para garantir que ele não iria lugar nenhum, sentei-me em cima dele. — Lembrou-se de algo, então acrescentou:

— Os outros grupos já voltaram para a Enterprise.

— Sob minhas ordens — acrescentou Worf.

Selar meneou a cabeça e acenou para que a tellarita se erguesse. Ela o fez, e o oficial klingon aproximou-se e ergueu o homem drogado nos braços, colocando-o sem esforço sobre os ombros.

— Bom trabalho, Dra. Gavar — disse a vulcana, e a tellarita enrubesceu de orgulho. Selar tocou seu comunicador.

— Chefe O’Brien?

— O’Brien falando — ouviu-se imediatamente a resposta.

— Pode transportar o restante da equipe de resgate, juntamente com o último sobrevivente da Marco Polo, por favor.

Ela foi envolvida pela sensação conhecida, vendo as paredes do cargueiro morto desaparecerem, sendo em seguida substituídas pelas paredes limpas e reluzentes da Enterprise.

— Selar? — a voz de Beverly Crusher soou no intercomunicador. — Você está bem? A Dra. Logan disse que você teve problemas com a enfermeira Itoh.

— Já voltamos à Enterprise — informou Selar. — Não sofri lesões, e a enfermeira Itoh está fisicamente bem, mas teve que ser sedada. Aparentemente aquilo que afetou a tripulação da Marco Polo também teve efeito sobre a enfermeira Itoh e o segurança Montez.

— Não são os únicos — disse a oficial médica, parecendo falar com grande esforço. — Começou assim que abaixamos os escudos para que sua equipe fosse transportada. Tivemos duas tentativas de suicídio e uma tentativa de assassinato. Seja lá o que foi que atacou a tripulação da Marco Polo está agora se espalhando pela Enterprise.

 

Thala abriu caminho pelos escombros do convés, com as mãos para a frente, cega e desesperada. Sua rede sensora não estava funcionando porque havia sido danificada pela explosão do convés 18, quando a arma borg atravessou os escudos da nave estelar. Ela sentiu cheiro de algo queimando e ouviu o ar sibilando e escapando para o espaço.

Ao tropeçar em algo molhado e pegajoso, ela caiu de cabeça sobre algo macio. Atordoada pelo impacto, tateou a sua volta, tentando descobrir onde estava e no que havia tropeçado. Havia um corpo mutilado e com as vísceras de fora embaixo dela. Sentiu as mãos afundarem em algo úmido e frio até perceber os contornos de órgãos. Uma alça de intestino estava enrolada em seus pés, como uma serpente.

Sentindo náuseas, ela ergueu-se e apalpou o corpo; tentando irracionalmente sentir-lhe o pulso, apesar de saber que a pessoa estava morta. Ao tentar inutilmente encontrar o pescoço ou o rosto, Thala sentiu seus dedos afundarem em algo gelatinoso até encontrar uma superfície sólida. Sentiu um frio na barriga ao perceber que havia enfiado os dedos nas órbitas dos olhos do morto...

Chorando e quase vomitando, Thala retirou bruscamente os dedos da gelatina pegajosa em que os olhos haviam-se transformado.

— Desculpe — sussurrou ela, sentindo o cadáver estremecer de dor, como se tivesse voltado à vida.

Movida por uma compulsão, Thala tateou novamente o rosto anguloso e o cabelo macio, até encontrar, horrorizada, um par de antenas.

Thev. Aquele era o corpo de seu pai, que começou a mover-se, emitindo um som áspero e lamuriento. Thala sentiu as mãos do pai tatearam seu rosto, procurando seus olhos.

— Eles de nada vão servir para o senhor, pai! — gritou ela. — Eu sou cega!

Mas o morto-vivo agarrou-a com força, enfiando as mãos nas órbitas de seus olhos. Thala sentiu uma dor como nunca havia experimentado antes, deixando escapar um grito do fundo da garganta...

... Sentou-se então na cama, na segurança de sua cabine a bordo da Enterprise. Seu coração estava batendo tão forte a ponto de chegar a doer, e por um instante ela conseguiu apenas apertar as mãos contra o peito e embalar-se em agonia, emitindo um soluço do fundo da garganta.

Depois, começou a chorar bem alto, aterrorizada e solitária. Para ela, apenas um pensamento conseguiu evitar que morresse de medo e solidão.

Vestindo sua rede sensora por cima da camisola, pulou da cama e correu em direção da porta, saindo às pressas para o corredor.

— Selar — choramingou ela, enquanto corria para o elevador, elevando gradativamente a voz, até estar gritando a ponto de fazer a garganta arder.

— Selar, Selar, Selar! SELAR! SELARSELAR!

Jean-Luc Picard encarou sua tripulação ao redor da mesa, com as mãos apoiadas na superfície polida e uma expressão séria no rosto. Pouco antes de convocar a reunião, ele havia tomado uma xícara de seu chá Earl Grey, que era seu favorito, mas isso pouco havia aliviado o imenso peso do cansaço que o envolvia como uma túnica.

— Como estão passando os sobreviventes da Marco Polo! — perguntou ele a Beverly Crusher.

Ela deu de ombros, cansada. Seus cabelos ruivos normalmente sedosos escorriam sem brilho pelos ombros. Grandes olheiras escuras marcavam-lhe a pele clara, dando-lhe um aspecto mais velho e abatido do que de costume. Picard perguntou-se quanto tempo ela já estaria sem dormir.

— Talvez venhamos a perder um deles hoje — disse ela. — Não consigo trazê-lo de volta do estado de sonho ou fuga em que se encontra. Suas funções metabólicas vão entrar em colapso. Ninguém consegue viver tanto tempo sentindo tanto medo. — Ela suspirou. — Mas os outros estão estáveis. A maioria deles está catatônica. Selar disse que a Academia Vulcana de Ciência tem médicos telepatas que talvez consigam entrar em suas mentes e trazê-los de volta cm segurança de seu estado de fuga. Mesmo assim, provavelmente precisarão de meses de terapia para superar a experiência. Não se esqueçam que muitos deles podem ter cometido suicídio, sob a influência dessa coisa alienígena, seja ela o que for.

— Há algum deles capaz de conversar racionalmente? Poderíamos então descobrir o que aconteceu — disse Riker.

— Talvez o primeiro oficial, depois de sair do tratamento de regeneração neural. Enquanto o preparávamos para o tratamento, ele conseguiu proferir algumas frases e parecia razoavelmente lúcido. Mas havia perdido tanto sangue que se encontrava em estado crítico, e logo entrou em choque profundo. Quase o perdemos.

— Ele estava fisicamente ferido? — perguntou Picard.

— Ele foi esfaqueado doze vezes por seu próprio capitão. Foi isso que ele me disse — respondeu Crusher sem rodeios. — Ele também disse que foi ele que enviou o pedido de socorro.

Visualizando a cena, Picard sacudiu negativamente a cabeça, reprimindo um tremor.

— Como está a conselheira Troi? Ela bem que poderia ser a que melhor poderia nos oferecer orientação nesta situação.

O rosto de Beverly ensombreceu.

— Capitão, fui obrigada a mantê-la sedada. Temo por sua sanidade se permanecer acordada, a agonia mental da tripulação da Marco Polo aparentemente a está perturbando muito, mesmo sem que ela esteja acordada.

— Acha que o artefato alienígena a está afetando também? — perguntou Riker.

— Creio que sim. Ela estava desperta e consciente quando os sobreviventes da Marco Polo foram teleportados para a nave, mas desmaiou assim que o primeiro grupo materializou-se. — Crusher cerrou os lábios e baixou a cabeça. — Antes de eu sedá-la, ela quase entrou em fibrilação. Se eu permitir que recobre a consciência, pode ser que não apenas sua sanidade mental esteja em perigo.

— Compreendo — disse Picard, pausadamente.

Houve um momento de pesado silêncio. O capitão então endireitou os ombros e aprumou-se na cadeira.

— Vamos rever nossa situação. Estamos presos por algum tipo de campo trator que aparentemente nunca encontramos antes, o qual é aparentemente capaz de aumentar proporcionalmente sua potência para manter cativo tudo o que conseguir prender. — Respirou fundo. A fonte desse campo é um artefato que foi evidentemente construído por seres que nos são totalmente alienígenas, a ponto de que até mesmo olhar para o objeto que construíram pode ser muito desorientador para a visão humana.

— Nossos instrumentos não detectaram nenhuma forma de vida a bordo do artefato, mas o campo de energia que o cerca interfere consideravelmente no funcionamentos dos nossos sensores. Apesar disso, como nossas transmissões de saudação não produziram qualquer resposta e não há absolutamente nenhuma indicação de que exista algo orgânico a bordo do artefato, suponho que o artefato esteja funcionando por controle remoto ou obedecendo uma programação que lhe foi dada por seres que ou estão mortos ou longe daqui.

— Usando o computador biblioteca para identificar o maior número possível de naves ... — Picard voltou o olhar para La Forge — ... neste espaço de sargaços, descobrimos que o artefato aparentemente vem aprisionando naves não apenas desde a época da formação da Federação, mas antes mesmo do aparecimento dos impérios romulano e klingon.

Wesley Crusher arregalou os olhos ao imaginar algo tão antigo.

— Cada uma das naves, pelo que pudemos avaliar, estão em perfeito estado de funcionamento. Não foram danificadas por poeira cósmica, não há sinal de impactos de meteoros, nada. Alguma coisa neste campo aparentemente as tem preservado além de aprisioná-las.

Picard passou os olhos por seus oficiais.

— Quando vi o artefato alienígena pela primeira vez, foi difícil discerni-lo porque meus olhos se recusavam a seguir seus contornos, Minha reação emocional foi desviar o olhar, porque a coisa não se enquadrava em nada que meu cérebro conseguisse compreender de imediato. Quando, porém, forcei-me a concentrar-me em suas formas e cores, senti tamanha vertigem que fiquei um pouco nauseado. E vocês?

Riker, Wesley e Worf disseram ter tido experiência semelhante. Beverly Crusher, que havia observado o registro do evento depois de ele ter ocorrido, declarou que ela também havia ficado nauseada com a visão do artefato. O capitão voltou-se para o terceiro em comando.

— Sr. Data, que efeito a visão do artefato teve em você? O andróide pensou um pouco.

— Não senti qualquer perturbação emocional, repugnância, vertigem ou náusea, como aparentemente o artefato foi capaz de provocar nos humanóides — disse ele, por fim. — Contudo, meus circuitos não estão calibrados para ver aquele objeto de uma forma compreensível. Para mim, trata-se apenas de uma mancha disforme, apesar de que eu ter conseguido identificar alguns detalhes. As cores provocam uma sobrecarga nos circuitos de captação de cores de meu cérebro positrônico, de modo que eu o enxerguei basicamente cm tons de cinza e valores de sombra e luz.

Picard fez que sim com a cabeça depois se voltou para o engenheiro chefe.

— Sr. La Forge, que aparência tinha o artefato para você? Geordi deu de ombros.

— Capitão, eu o examinei cuidadosamente, e não parecia com nada que já vi antes... mas sua visão não me incomodou — sorriu, meio sem jeito. — Pode parecer loucura, mas havia nele uma simetria... que me pareceu, sabe., bonito. As cores harmonizavam-se com as formas das várias pontas que ele tem.

Surpreso, Picard olhou para o segundo em comando. Riker ergueu as sobrancelhas, depois sacudiu a cabeça em silêncio.

— Sr. La Forge — disse o capitão, — pode fazer-nos um desenho da forma que o artefato se mostrou a sua visão? Pelo menos um esboço aproximado de seus contornos?

— Não sou desenhista, mas posso tentar, senhor — disse Geordi, ativando

os controles da mesa para que seu desenho fosse mostrado na tela a fim de que todos o vissem.

Movendo os dedos de modo hesitante, Geordi fez um "esboço", usando o computador, manipulando as cores, linhas e perspectivas da imagem tridimensional, até produzir uma forma que era vagamente retangular, mas com diversas protrusões saindo dela. Cada contorno era apenas "aproximado". Algumas protrusões assemelhavam-se a esferas, algumas eram quase retangulares, com exceção de uma com a lateral estranhamente parabólica. Outras assemelhavam-se a quadrados, triângulos ou trapézios. Havia formas que não se pareciam com nada. O objeto inteiro reluzia em várias cores vivas, como a paleta de um pintor louco e brilhante.

Os oficiais da Enterprise ficaram observando em silêncio a criação de Geordi por vários minutos. Riker foi o primeiro a romper o silêncio provocado pelo estranho objeto.

— O que será isso? — perguntou em voz alta.

— Algum tipo de arma — disse Worf, de imediato. — Uma arma destinada e destruir e distorcer a mente em vez do corpo. É uma criação verdadeiramente diabólica.

— Você quer dizer uma arma avançada destinada a matar somente os seres vivos de uma nave, sem afetá-la, de modo que ela fique inteiramente preservada? — Picard considerou a idéia repugnante. — Não é algo agradável de se imaginar.

— Mas não é uma idéia nova, capitão — disse Data. — No final do século vinte, na Terra, existiu uma arma chamada bomba de nêutrons, que se destinava a destruir a vida, sem afetar as construções existentes.

Worf olhou para os humanos, surpreso.

— Não fazia idéia que os humanos fossem capazes de inventar algo tão medonho e eficiente assim — murmurou ele com sua voz cavernosa.

— Não é algo de que nos orgulhamos, tenente — disse o capitão, com aspereza. — E trata-se de algo criado há centenas de anos.

— Agora que resgatamos os sobreviventes da Marco Polo, — disse Wesley Crusher — precisamos tentar nos libertar.

— Estive ponderando a esse respeito — admitiu Picard. — É somente a proximidade das outras naves que me preocupa. O impacto contra uma delas na tentativa de escaparmos do campo trator pode acabar enfraquecendo nossos escudos.

— Poderíamos desintegrar as naves mais próximas — disse Worf. — Eu ia sugerir que fizéssemos isso com os guerreiros a bordo da PaKathen, de modo que tivessem um fim honroso.

— Mas se o artefato for uma arma — disse Geordi — é possível que seus sistemas de defesas sejam ativados por disparos feitos contra uma nave ou contra o próprio artefato.

— Não sabemos ainda se trata-se realmente de uma arma — lembrou o capitão.

— O que mais poderia ser? — perguntou Worf, mas ninguém tinha qualquer sugestão a oferecer.

O capitão suspirou.

— O último registro do diário de bordo da PaKathen indica que os klingons chegaram a disparar contra o artefato, ... aparentemente sem qualquer resultado.

— A Enterprise é uma nave bem maior e poderosa — lembrou Riker. — Talvez nossos phasers consigam danificá-lo, apesar de as armas da PaKathen não terem conseguido fazê-lo.

Picard pensou por um instante.

— Quem não se arrisca não petisca, Imediato — disse ele. — Creio que é hora de tentarmos. — Picard ordenou ao console — Computador, volte ao modo visual normal na tela da sala de conferências.

A tripulação da ponte desviou o olhar quando a tela escura subitamente encheu-se com as formas nauseantes do artefato, somente La Forge permaneceu olhando para a estrutura alienígena. Picard então tocou seu comunicador.

— Alferes Whitedeer, aqui fala o capitão.

— Sim, senhor? — ouviu-se a voz do jovem oficial de segurança que substituía Worf.

— Prepare-se para disparar uma salva de cinco segundos dos bancos phasers anteriores diretamente contra o artefato, ao meu sinal, alferes.

— Sim, senhor — houve uma pausa de alguns segundos, em seguida: — Pronto para disparar, capitão.

— Fogo, alferes.

— Disparando, senhor!

Rapidamente a tripulação deu as costas para a tela, fechando os olhos com força, quando os disparos mortais encheram a tela de uma coloração dourada e ofuscante. O capitão contou mentalmente os segundos. Em cinco segundos, os disparos cessaram e o brilho dissipou-se.

O artefato não sofreu a mínima alteração. O capitão desviou o olhar da visão perturbadora. Um murmúrio de admiração e preocupação fez-se ouvir na sala de conferências, seguido pela voz de Whitedeer.

— Meus instrumentos não mostram qualquer dano infligido à estrutura, capitão... De fato, a coisa parece ter absorvido noventa e dois por cento da energia do phaser, senhor.

— Compreendo. É tudo, alferes — disse Picard, suspirando em seguida. — Computador, desligue novamente a tela.

O artefato desapareceu de vista.

Will Riker sacudiu negativamente a cabeça, com o rosto sério.

— Não ganhamos nem petiscamos nada.

— E se usarmos torpedos fotônicos, senhor? — perguntou La Forge.

— As ondas de choque de uma detonação tão próxima certamente danificariam a Enterprise — avisou Data. — A menos, é claro, que o campo de energia absorvesse o impacto, como fez com o disparo do phaser.

— Mas poderíamos tentar — disse Riker — Com toda a potência transferida para os escudos dianteiros, talvez os danos não fossem tão grandes.

— Estaríamos correndo um risco muito grande, Imediato — disse o capitão. — Gostaria de dispor de mais informações antes de tentar algo assim. — O capitão voltou-se para a oficial médica chefe. — Dra. Crusher, quais são as condições mentais da tripulação. Exatamente quantos incidentes já ocorreram?

— Cinco, capitão — disse ela, em voz baixa. — Duas tentativas de suicídio, uma tentativa de assassinado ... o homem está confinado na sala de isolamento da enfermaria... um caso de histeria, uma criança andoriana há algumas horas. E um caso de catatonia, como os que transportamos da Marco Polo.

Picard contraiu os lábios, pensativo.

— Cinco. Já estamos dentro da esfera de influência do artefato por quase dez horas. Doutora, havia quanto tempo que os vinte e seis casos fatais estavam mortos quando a equipe de resgate examinou os corpos.

— Dois deles estavam mortos havia dezoito horas, mas a maioria tinha sido morta quinze horas antes ou menos — informou ela. — Como deve lembrar-se, um deles morreu enquanto estava sendo examinado.

— Para mim, isso sugere que seja o que for que os matou não está tendo tanto sucesso para invadir a Enterprise quanto teve na Marco Polo — disse o capitão. — Imagino que sejam nossos escudos que nos estão protegendo.

— É verdade que a maioria dos casos ocorreram enquanto estávamos com os escudos abaixados para permitir que os integrantes da equipe de resgate e os pacientes fossem trazidos de volta para a nave — disse Crusher.

— Não admira que tenha afetado a Marco Polo de modo muito mais rápido! — disse Riker. — Um cargueiro não possui escudos, além dos escudos normais de navegação.

— Mas a PaKathen tinha escudos — lembrou Worf. — Era uma nave de guerra.

— A nave klingon foi capturada muitos dias antes da Marco Polo — disse Riker. — Além disso, os efeitos podem ter sido mais imediatos e severos nos klingons.

— Sentiu qualquer perturbação, tenente? — perguntou Crusher, preocupada.

— Certamente que não — disse o chefe da segurança, impetuosamente. Depois hesitou, exibindo a expressão que sempre trazia no rosto quando enfrentava um conflito entre seu dever como oficial da Frota Estelar e sua dignidade e honra como klingon. Por fim, assentiu relutantemente. — Enquanto estava a bordo da Marco Polo — confessou — senti uma certa perturbação mental. — Arregalou os olhos e encarou o grupo reunido. — Todos na equipe de resgate sentiram o mesmo, inclusive a tenente Selar.

— Entendo... — disse Picard, procurando não sorrir. O capitão ergueu-se e começou a andar de um lado para o outro, com as mãos nas costas, como se estivesse ponderando as alternativas. — Decidi que estamos em relativa segurança por enquanto. E usaremos esse tempo para descobrir mais a respeito de nosso inimigo. Sr. Crusher, você o tenente comandante La Forge, com a ajuda do tenente comandante Data, tentarão recalibrar nossos sensores para que possamos ter uma idéia do que existe no interior do artefato. Procurem especificamente por qualquer evidência de dispositivos de controle ou máquinas que possam estar gerando o campo. Tentem descobrir como ele absorve nossos phasers. Têm oito horas para isso.

O capitão voltou-se então para a oficial médica.

— Doutora, volte por favor para a enfermaria e forneça-me um relatório a cada hora da situação mental e emocional de nossos tripulantes e passageiros.

— Entendido, senhor — disse Crusher, agarrando-se à mesa para erguer-se. — Cuidarei disso pessoalmente.

— Não, não faça isso — disse o capitão brandamente — Pelo menos até ter dormido um pouco. Precisará estar com a mente clara, doutora, não exausta de cansaço. Entendido?

Beverly Crusher aprumou-se solenemente, mas quando fitou o olhar do capitão, seus lábios tensos descontraíram-se num sorriso cansado mas bem-humorado.

— Está bem. Concordo em descansar, capitão — disse ela. — Desde que o senhor concorde em fazer o mesmo. O comandante Riker pode receber os relatórios enquanto o senhor estiver dormindo. Não quero ser obrigada a declará-lo incapacitado para o cargo.

Ninguém que permanecia sentado à mesa olhou para o capitão naquele instante. Todos estavam subitamente fascinados pelas pontas dos próprios dedos, com a superfície da mesa ou com algum fiapo imaginário na manga do uniforme. Até mesmo Data havia desviado o olhar.

O capitão respirou fundo, depois assentiu com a cabeça. — Considere isso uma troca, doutora.

 

Jean-Luc Picará estava sentado imóvel na cadeira do co-piloto a bordo da nave auxiliar que manobrava lentamente pelo sistema estelar Maxia-Zeta. Cada nervo e músculo de seu corpo estava gritando de agonia por causa do stress físico pelo qual ele acabara de passar... mas seu corpo estava no ápice de sua forma, em comparação a seu estado mental.

O capitão não conseguia se mexer, mal podia pestanejar, e cada movimento ou guinada da pequena nave parecia fazer sua cabeça explodir de dor. O cheiro de fumaça e dos instrumentos incendiados invadiam-lhe as narinas. Aquele mau cheiro parecia ter ficado entranhado no tecido queimado de seu uniforme.

Mas tudo isso não era nada comparado à dor que sentia na mente e no peito.

Perdi minha nave. Perdi minha nave. Perdi minha nave. As palavras se repetiam na mente como um mantra insano, até que Jean-Luc Picará sentiu que seria infinitamente mais fácil amaldiçoar todos os deuses existentes e morrer... ou deixar-se enlouquecer. Olhando para o casco fumegante e abandonado com a identificação NCC2893 que até uma hora antes havia sido uma reluzente nave estelar classe Constellation, Picará sentiu a própria essência de sua existência dissolver-se e ruir.

Perdi minha nave. Eles haviam confiado a nave de exploração do espaço profundo Stargazer a seus cuidados, e ele a havia perdido em um ataque não provocado de uma nave não identificada. A janela da nave auxiliar que se afastava lentamente mostrava a nave flutuando no espaço, como um brinquedo quebrado e queimado, quase deixando de parecer real.

Espero que seja um pesadelo, pensou o capitão, fechando os olhos com força, como uma criança, pedindo para voltar no tempo. Faça com que isso não tenha acontecido.

Mas quando abriu os olhos, algumas batidas do coração mais tarde, o casco escurecido da Stargazer ainda estava lá, tornando-se lenta e gradativamente menor. Em breve desapareceria para sempre de sua vista. O que eu podia ter feito para evitar que isso acontecesse? Perguntou-se Picard, limpando distraidamente o rosto na manga do uniforme, sentindo novamente o cheiro de queimado. Deve ter havido algo que eu poderia ter feito. E mesmo que não, o que estou fazendo aqui? Um bom capitão deve afundar com sua nave...

Alguém tocou-lhe o ombro suavemente, mas Picará não esboçou qualquer reação, nem sequer olhou em volta.

— Capitão — a voz do primeiro oficial soou-lhe nos ouvidos, com suavidade. — O oficial médico irá vê-lo agora.

A Stargazer ia ficando cada vez menor, enquanto a pequena esquadrilha de naves auxiliares reuniu-se em formação para a longa viagem até a mais próxima base da Federação. Picard sacudiu a cabeça negativamente para o jovem oficial. Nenhum médico seria capaz, de curar as feridas de sua alma, e ele não merecia o alívio do sono, porque havia perdido sua nave.

— Senhor — insistiu o oficial, suavemente. — O médico deseja vê-lo agora.

— Estou bem, comandante — conseguiu dizer Picard, com a voz rouca de tanto gritar ordens e inalar fumaça.

— Com todo o respeito, senhor, não está não. Está ferido, capitão. Seu braço direito...

Entorpecido, Picard olhou para seu próprio braço e percebeu pela primeira vez um profundo ferimento que se estendia do cotovelo até o músculo deltóide. Escorria sangue do corte, molhando-lhe a mão e gotejando de seus dedos. Havia uma poça de sangue no piso da nave auxiliar. Seu uniforme rasgado pendia-lhe do ombro como um trapo, e pedaços do tecido estavam grudados na ferida. Queimaduras de segundo grau estavam começando a formar bolhas em seu ombro, na testa, na mão e no punho.

No ímpeto de comandar a batalha, salvar sua tripulação (e perder sua nave, disse uma voz irônica no fundo de sua mente) e supervisionar os procedimentos de evacuação da nave, ele não havia sentido qualquer dor... ele não sentira nada. E continuava sem sentir nada.

— Isso pode esperar, Imediato — disse ele — até que todos os outros feridos tenham sido atendidos. — Engoliu em seco, sentindo a garganta arder em fogo. — Houve mais baixas?

— Não depois das duas primeiras, capitão — o comandante fez uma pausa, depois disse lentamente — Senhor... é um longo caminho de volta até a civilização... e parte dele por espaço não mapeado.

Picard visualizou em sua mente o caminho mais curto, depois assentiu com a cabeça.

— Senhor! — disse novamente o primeiro oficial, hesitante. Jean-Luc suspirou. Ele preferia que o jovem oficial fosse embora dali.

— Sim, Imediato.

— Com todo o respeito, senhor, posso lembrar o capitão de que precisamos dele para voltar, ou não temos a mínima chance de sobreviver?

Lentamente, Picard desviou o olhar da Stargazer que se afastava lentamente e olhou para o segundo em comando.

— Nós sobreviveremos — disse ele, por fim.

— Eu sei, senhor — disse o homem. — Mas somente se o senhor estiver no comando. Para ser sincero, senhor, não vou conseguir sozinho. — Apontou com a cabeça para o ferimento do capitão. — Por isso, venha ver o médico, por favor.

Era a coisa mais difícil que Jean-Luc Picard já tivera que fazer, mas lentamente endireitou os ombros. Fez que sim com a cabeça e ergueu-se, meio cambaleante, ficando de pé sem ajuda. Sentindo tonturas por causa da perda de sangue, conseguiu falar de modo seguro.

— Tem razão, Imediato — disse ele. — Este ferimento precisa de cuidados. Onde está o médico?

Ao voltar-se para seguir o comandante até o setor de carga da nave auxiliar, que havia sido transformado numa enfermaria improvisada, a visão da Stargazer destroçada chamou a atenção de Picard pela última vez. Eu perdi minha nave...

Com determinação, Jean-Luc voltou as costas e saiu do compartimento do piloto sozinho. Haverá uma corte marcial, pensou ele. Pode ser que eu perca meu posto. Posso até mesmo ser acusado de crime...

Ele também sabia que haviam acabado de embarcar em uma jornada tão perigosa quanto a que o capitão deposto e os tripulantes leais do navio britânico Bounty haviam enfrentado centenas de anos no passado. Desafiar o espaço desconhecido em uma minúscula nave auxiliar era, na opinião de muitos, uma loucura. Mas de alguma forma Picard sabia que havia dito a verdade para seu primeiro oficial Eles conseguiriam sobreviver. Ainda não era o fim.

Comparado à perda de sua nave, as acusações, a corte marcial e o espaço a ser cruzado pareciam não ter qualquer importância. Sou um capitão que perdeu sua nave, pensou ele. Nada pior pode acontecer comigo...

 

Na escuridão de sua cabine a bordo da Enterprise, Jean-Luc Picard abriu os olhos e sentou-se sonolento.

— Luzes — disse ele, e o quarto obedientemente iluminou-se. Ele jogou as pernas para o lado do leito, tocou o ombro com a mão esquerda, esfregando-o para amenizar a dor que sentia ali. Uma dor fantasma, pensou ele. A lembrança da dor, revivida pelo sonho mais vivido que já tive na vida...

Foi até o banheiro para vestir um roupão, depois caminhou até a abertura na parede.

— Chá, Earl Grey, quente — ordenou, por força do hábito. Quando seu pedido foi atendido, porém, ele não sentia vontade de beber. Apanhou a xícara e colocou-a sobre a cômoda, sem sentir o calor em seus dedos. — Água, fria — ordenou.

Quando o copo de água surgiu reluzente diante dele, ele o bebeu rapidamente, sentindo que limpava sua garganta. Lembrança de ter inalado fumaça? pensou ele. Uma reação psicossomática?

Massageou novamente o braço dolorido. Os médicos haviam conseguido curá-lo tão bem que praticamente não havia qualquer cicatriz. Mas Picard ainda conseguia sentir a dor do antigo ferimento.

Se outras pessoas estiverem tendo sonhos tão reais como este, não é de se admirar que estejam ficando loucas, pensou ele. Pegou seu chá e caminhou de volta para o leito, sentindo a maciez do carpete sob seus pés descalços. Bebeu o chá, fechando os olhos e saboreando seu sabor, feliz por estar de volta ao presente, longe daquela ocasião, apesar do perigo que enfrentavam a bordo da Enterprise.

Eu revivi um acontecimento real, pensou ele, e saí dele sentindo-me tão mal como no dia em que ele ocorreu, que acho ser o mais próximo que cheguei de cometer um suicídio em toda a minha vida. Reviver um acontecimento real tão traumático com tamanha verossimilhança foi algo bastante horrível... mas e se o maldito artefato conseguir criar um pesadelo com essa mesma sensação de realidade ? Mon Dieu, não é à toa que estão tendo ataques cardíacos!

Por um instante, ficou imaginando se Beverly Crusher teria tido um desses sonhos também. Se tiver, espero que seja uma experiência mais agradável do que a minha, pensou ele. Tirando o roupão, ele caminhou até o chuveiro e ajustou-o para "massagear".

Sentindo seu corpo ser massageado lentamente, aliviando a tensão dos músculos, conseguiu relaxar por fim. O capitão sorriu com amargura ao ajustar o chuveiro para "água quente". Não foi exatamente o que Beverly tinha em mente ao prescrever-me um descanso. Sinto-me tão exaurido como naquele dia...

Depois de lavar-se e vestir um uniforme limpo, Picard olhou para o leito e sorriu com ironia. Quem disse que "o sono afasta as preocupações?" pensou ele. Vai-se passar muito tempo antes que eu consiga deitar-me para dormir com um pouco de tranqüilidade.

Ficou ali parado, pensando, lembrando-se, o tempo todo alisando a cicatriz quase invisível que lhe marcava a pele do braço. Muito tempo mesmo...

 

— Ei, Geordi!

O tenente comandante La Forge ergueu o rosto quando Wesley Crusher o chamou pelo nome.

— Que foi? — perguntou ele, erguendo a voz acima do pulsar dos motores de anti-matéria e dos geradores de cristais de dilítio que regulavam a energia dos sistemas de suporte à vida e dos escudos da Enterprise.

— Você e Data podem vir até aqui um instante?

— Está bem — respondeu Geordi, olhando para o andróide que o ajudava na verificação dos sistemas.

Os dois oficiais subiram para o convés superior da engenharia, onde o jovem estava parado diante de dispositivos sensores idênticos aos que havia na ponte.

— O que encontrou, Wes? — perguntou La Forge.

— Estive analisando o campo de energia gerado pelo artefato — disse Crusher, com um olhar de perplexidade. — E encontrei algo de muito estranho nele.

Data passou os olhos pelos monitores, depois voltou a encarar o jovem, expressando sua dúvida no rosto:

— Pode ser mais específico, Wesley? Como todas as informações de que dispomos a respeito do artefato indicam que ele foi construído completamente fora de nosso padrão de referência, eu diria que existem muitas coisas "estranhas" nele, não apenas algo, como você mencionou a princípio.

Geordi fez uma careta.

— Data, às vezes parece que você engoliu um dicionário.

— Jamais engoli um dicionário — disse o andróide com seriedade. — No entanto, meus centros de memória contêm...

— Pode deixar — interrompeu Geordi, com resignação. — Wes, o que você quis dizer quando comentou que havia algo de estranho a respeito do artefato? Data está certo. Há um monte de coisas estranhas com relação àquela criatura.

— Eu sei — concordou Crusher — mas minhas leituras do campo de energia que o cerca indica que o efeito do campo trator é apenas uma pequena parte da potência efetiva do campo. Na verdade, seria mais preciso dizer que o artefato está emitindo muitos tipos diferentes de comprimento de onda que se misturam para formar o campo que nos está prendendo.

Geordi examinou os monitores pessoalmente. Wesley apontou para uma linha verde na representação visual da análise espectral do campo do artefato.

— Vê esta parte do comprimento de onda? É ela que nos está segurando aqui. Todo este restante — passou o dedo por todo o restante da faixa espectral — é outra coisa. Ou talvez uma porção de coisas diferentes. Estamos sendo bombardeados com esses tipos de energia, todos eles de um tipo que nunca encontrei antes, mas não consigo precisar o que faz cada um deles... com exceção do campo trator, que também é muito esquisito.

— Como assim, esquisito?

— É como se o efeito trator fosse um efeito colateral do campo, não seu principal propósito. Não acho que tenha sido criado para esse fim. Em vez disso, acho que foi criado para produzir um efeito totalmente diferente em naves completamente diferentes das que os humanos ou humanóides têm usado para as viagens espaciais. Seja qual forem as criaturas que construíram o artefato, elas têm uma abordagem diferente da ciência, tanto da física, da matemática e tudo o mais.

— Como assim?

— Pelo que posso dizer, os seres que criaram o artefato não se movem por dobras espaciais, mas viajam em volta do espaço.

— Como é que se viaja em volta do espaço? Perguntou Data, obviamente intrigado.

— Não tenho certeza, mas acho que eles caem em outra dimensão onde tudo é muito comprimido. — Ele fez um gesto com as mãos como se esmagasse algo. — Um universo que 'e muito menor do que o nosso, por isso precisam cobrir apenas uma curta distância, depois voltam para o ponto correspondente em nosso universo. Com isso conseguem cruzar distâncias incríveis em nosso espaço em apenas algumas horas. Mas não viajam dentro deste continuum tempo-espaço. Eles desviam-se inteiramente dele.

A geometria multiuniversal e a física teórica nunca foram as matérias preferidas de Geordi. Ele preferia o aqui e agora, o bom e velho universo onde E era igual a me ... apesar de que os humanos há muito tempo tinham descoberto maneiras de dobrar o espaço, de modo que as equações do doutor Einstein não eram válidas.

La Forge cocou a cabeça.

— Mas você nunca viu uma dessas naves, a menos que o artefato seja um delas.

Wesley fez que não com a cabeça.

— Tenho certeza de que se trata apenas de uma estrutura, como uma estação espacial. Ela não pode mover-se por si mesma.

— Então se não é uma nave, o que o faz pensar saber que tipo de naves eles possuíam?

O menino mordeu os lábios em frustração.

— Eu não sei, Geordi! Parece-me que eles tinham um jeito diferente de encarar a física, o modo que o universo funciona, que eu ainda não entendo direito. Por isso eu diria que se trata de uma teoria sem muitos dados para comprová-la, poucas informações colhidas e nada de concreto. É apenas uma intuição que tive ao ver o modo como eles fizeram esse campo de energia funcionar.

— Quer dizer que é apenas um chute.

— Acho que sim — admitiu Wesley, deixando os ombros cair.

Geordi sorriu. Se aquele comentário tivesse sido feito por qualquer outra pessoa, o engenheiro chefe teria revirado os olhos. A engenharia constituía de fatos: fórmulas matemáticas, observação... não de palpites. Mas ele conhecia Wesley Crusher havia alguns anos e sabia muito bem que o menino tinha algo mais que a maioria. Um sexto sentido, uma centelha genial que às vezes permitia pular os fatos e chegar a soluções intuitivas que se mostravam corretas, para não dizer brilhantes.

Por isso, Geordi levou a sério as palavras de Wesley.

— Apesar de esses campos de energia sobrepostos serem alienígenas, eles são aparentemente inofensivos — comentou Data. Enquanto os dois humanos discutiam a teoria do espaço-tempo, seus olhos estranhos tinham estudado os monitores.

— Eu sei, mas alguns deles devem ser a causa da insanidade, a depressão e todos os outros distúrbios emocionais e mentais que estão afetando a tripulação — disse Wesley.

— Será que essas transmissões podem ser captadas... absorvidas ... por partes do cérebro humano ou humanóide? — perguntou Geordi, avaliando a teoria.

Wesley assumiu uma atitude pensativa, depois apertou vários comandos. Outra faixa de comprimento de onda apareceu acima da primeira, e o jovem deixou escapar um grito de vitória e apontou triunfantemente:

— Geordi, você é um gênio!

La Forge sorriu. Não, não sou. Apenas me esforço em meu trabalho. Você que é o gênio, garoto. Mas em voz alta ele disse impassível:

— Sou mesmo?

— Claro que é! Olhe aqui, esse pico de energia alienígena que se assemelha muito ao padrão eletroencefalográfico de ondas alfa! Essas são ondas que o cérebro humano emite o tempo todo, mas principalmente quando as pessoas estão dormindo!

A voz do menino falseou de excitação, mas Geordi não caçoou dele por isso. Ele ainda se lembrava muito bem da época em que estava mudando de voz.

— Ei, acho que você encontrou algo realmente importante aqui, Wes — disse La Forge, estudando os padrões e observando as semelhanças. Seu VISOR conseguia correlacionar e comparar os dois comprimentos de onda até melhor do que a visão humana. — Não são exatamente idênticas, mas muito semelhantes. Essa porção de energia deve ser o que está afetando as pessoas durante o sono.

— Existe algum meio de nos protegermos dela? — perguntou Data, de modo prático.

— Nossos escudos estão absorvendo parte dela, mas não integralmente — disse Geordi. — E eles estão funcionando na potência máxima. É uma boa coisa que não estejamos nos movendo, ou não teríamos força suficiente para mantê-los nesse nível por tanto tempo.

Wesley olhou para ele com irritação.

— É uma pena que não estejamos nos movendo — corrigiu ele. — Preferia que estivéssemos nos afastando daqui. O artefato está realmente prejudicando as pessoas. Não se esqueça disso.

— Eu sei — disse Geordi, suspirando. — Desci à enfermaria hoje pela manhã para ver Thala. A pobre menina parecia que tinha passado por um dos rituais klingons de ascensão do Worf.

— Minha mãe disse que ela chegou correndo e gritando à enfermaria, como se tivesse visto um fantasma — disse Wesley, distraído, enquanto estudava os monitores de perto.

— Foi mesmo — disse Geordi, pesaroso. — Eu estava lá quando ela descreveu o sonho que o maldito artefato teve a bondade de lhe enviar. Antes que ela terminasse, perdi o apetite. Corpos eviscerados e olhos vazados... — Ele sentiu um calafrio. — Fiquei com medo de dormir depois disso.

— Você precisa dormir de vez em quando — disse Wesley.

— Eu sei — concordou Geordi, com seriedade. — É por isso que eu preferia estar a cem anos-luz daquela coisa — apontou para a direção em que se encontrava o artefato, a estibordo da nave — antes de colocar a cabeça num travesseiro outra vez.

— Wesley — disse Data — e se você acessasse o computador médico e pedisse que ele procurasse outras correlações com as ondas cerebrais.

— Boa idéia — disse o adolescente, colocando a sugestão em prática.

Pouco depois, receberam a resposta. Muitas das ondas geradas pelo campo de energia tinha correlação aproximada com os padrões de onda dos cérebros de humanos, betazóides, andorianos, klingons e vulcanos. Por estranho que fosse, não havia ondas que se correlacionassem com os padrões cerebrais dos tellaritas, o que talvez explicasse a imunidade da Dra. Gavar à psicose que acometeu o oficial de segurança Montez.

Wesley então instruiu o computador biblioteca a procurar correlações com os padrões cerebrais de todos os seres sencientes conhecidos.

— Processando — respondeu o computador, e os oficiais voltaram a atenção novamente para a estrutura do próprio artefato, sabendo que a pesquisa provavelmente levaria vários minutos para ser realizada. O computador da Enterprise era uma maravilha da mais avançada engenharia cibernética, mas havia um número muito grande de raças sencientes conhecidas.

— Ei — disse Wesley, um minuto depois. — Isto é interessante. Estive usando os sensores para examinar a estrutura do artefato em todos os comprimentos de onda, todos os espectros, com sondas sônicas e tudo o mais... até mesmo sensores de raios-X, pois não creio que haja nada vivo ali que pudesse ser prejudicado pela radiação... — Fez uma pausa e ajustou um controle. — E adivinhem só.

— O suspenso está me matando — disse Geordi secamente.

— Ela tem câmaras internas, de formato tão estranho quanto os compartimentos que vemos do lado externo. Existem centenas delas... — Ele tocou um controle. — Correção, mil e noventa e duas câmaras e compartimentos.

— Isso é esquisito — disse Geordi, sem querer, usando uma das expressões favoritas de Wesley. O rapaz sorriu discretamente, fazendo-o perceber o que havia dito. — Qual você supõe ser o propósito dessas câmaras?

O jovem oficial deu de ombros.

— Seu palpite é tão bom quanto o meu.

— As câmaras têm formatos diferentes — disse Data, analisando a imagem de raios-X. — Presumivelmente com funções diferentes, caso contrário, por que teriam sido construídas de formatos tão distintos?

— Pode haver várias razões para isso, Data — disse Geordi. — Normas religiosas, tradição, preferência pessoal do arquiteto que desenhou o lugar... ou alguma razão alienígena que nunca vamos descobrir qual foi. — Ele hesitou, pensou um pouco, depois perguntou. — Há algum sinal de alojamentos? Estava-me perguntando se essa coisa não seria algum tipo de quartel espacial, ou mesmo uma estação espacial.

— Tive a mesma idéia — disse Wes. — Mas se não temos a menor idéia de como essas pessoas se pareciam, como vou conseguir identificar um alojamento.

— Há alguma coisa que possa ser identificada como mobília? Qualquer repetição de forma que pudesse indicar o equivalente a camas, compartimentos de estoque ou cadeiras... mesas... qualquer coisa do gênero?

— Nada. Existem alguns objetos em algumas das salas. Mas cada objeto é completamente diferente de todos os outros. E pelo que pude avaliar setenta por cento das câmaras estão vazias.

— Qualquer sinal de armas?

— Nada que eu possa identificar como uma arma ou sistema de orientação — disse Wesley. — Nenhum radiação detectável pelos nossos sensores.

— Bem, isso é tranqüilizador — disse Geordi. — Talvez consigamos explodir a coisa em mil pedacinhos e dar o fora daqui.

— Seria uma pena destruir o artefato — disse Data.

— Por quê? — perguntou Wesley. — Ele é perigoso.

— Sim, mas ele e as naves que aprisionou constituem um inestimável tesouro histórico e arqueológico — respondeu Data. — Os cientistas poderiam aprender muito a respeito da história de nossa galáxia estudando...

O andróide interrompeu o que dizia quando o computador subitamente emitiu um sinal sonoro.

— Completada a análise de dados solicitada — anunciou a suave e impessoal voz feminina.

— Pode dizer — ordenou Geordi.

— A comparação dos comprimentos de onda do campo de energia com os padrões cerebrais gerados por espécies inteligentes conhecidas mostrou os seguintes resultados — começou o computador. — Andoriano: zero vírgula quatro, dois de correlação. Betazóide: ...

Os resultados da pesquisa do computador foram surpreendentes, pensou Geordi minutos depois. Apenas um tipo de ser conhecido tinha uma correlação bastante elevada: os medusanos.

— Medusanos! — murmurou La Forge. — Acho que não devia ter-me surpreendido por descobrir que eles têm algum relacionamento com os construtores do artefato. São tão alienígenas que nem sequer conseguimos suportar olhar para eles. Da mesma forma que os humanos não agüentam olhar para o artefato.

— Os medusanos já tiveram colônias ou coisa parecida? — quis saber Wesley.

— Nada consta dos registros — disse Data. — Francamente, acho duvidoso que os próprios medusanos tenham construído o artefato. Creio ser mais provável que as criaturas que construíram o artefato tivessem processos mentais semelhantes ao modo como funciona o cérebro dos medusanos.

— Isso faz sentido — disse Geordi, pensativo. O engenheiro então suspirou. — Ouçam, descobrir uma raça que pode ser aparentada com os medusanos é muito interessante, mas não nos ajuda a nos libertarmos deste espaço de sargaços.

— Você tem razão — concordou Wesley. — Mas isto aqui pode! — ele apontou para o monitor. — Eles têm uma atmosfera de oxigênio e nitrogênio lá dentro!

— Está brincando! — disse Geordi, depois assobiou baixinho. — Cada vez mais esquisito, não c, Data?

— Não creio que esse achado seja tão extraordinário quanto você parece ter achado, Geordi — disse o andróide. — Afinal de contas os medusanos respiram oxigênio e nitrogênio, correto? Então por que você está surpreso por descobrir que os criadores do artefato fazem o mesmo?

Wesley deu de ombros e deu um sorriso torto para o engenheiro.

— Ele está certo.

— Mas descobrir que existem câmaras lá dentro e que podemos respirar o ar sem trajes espaciais deu-me uma idéia — disse La Forge. — Talvez possamos transportar uma equipe de exploração para lá e tentar descobrir os controles do campo trator para desligá-lo! Então poderíamos sair daqui, e a coisa não conseguiria mais capturar outras naves.

— Não sei — disse Wes. — Se ficamos desorientados só de olhar para o artefato, como seria explorar o interior dele?

— Se for parecido com o exterior, então vai ser uma coisa danada de esquisita — concordou Geordi. — Mas valeria a pena o risco, se conseguíssemos nos safar. Há espaço em alguma das câmaras para que transportemos uma equipe de exploração?

— A maioria delas é muito pequena, mas existem várias quase do tamanho do convés de uma pequena nave auxiliar — respondeu o adolescente.

— Ótimo. Materializar dentro de uma parede não é o que eu chamaria de uma coisa muito agradável.

— Existe alguma indicação da presença de motores ou geradores que pudessem ajudar a escolher o local para o transporte da equipe? — perguntou Data.

— Nada que nos dê qualquer certeza — respondeu Wesley. — Como já lhe disse antes, tudo é muito — sorriu para Geordi, como que pedindo desculpas — esquisito lá dentro.

 

Will Riker, com quinze anos de idade, estava no seu primeiro dia de folga da Academia da Frota Estelar e depois de passar o dia visitando os lugares turísticos de San Francisco, estava olhando maravilhado, como muitos haviam feito antes dele, para a ponte Golden Gate. Ela erguia-se contra o céu, refletindo-se nas águas da baía, parecendo a ponte para o Valhala ou o Vorta Vor, o paraíso romulano dos guerreiros. A ponte para o infinito...

Os olhos do menino acompanharam cada uma de suas linhas, apreciando o triunfo da engenharia humana que permanecera por tanto tempo de pé. Réstias de luz do deslumbrante por do sol iluminavam as torres, fazendo os cabos de sustentação brilharem num tom vermelho dourado.

Ele sorveu toda a beleza da estrutura, sentindo o vento nos cabelos, parado em Land's End, com o parque Golden Gate às suas costas e à esquerda, a uma distância de apenas alguns quilômetros de agradável caminhada dali.

Will havia gostado muito do parque. Tinha sido ótimo passear por ele, andando na grama e observando as árvores e os pássaros: coisas naturais em vez das salas de aula, corredores e simulações de nave estelar. Will tinha nascido no Alasca e estava apreciava a vida ao ar livre: acampar, caminhar e pescar, mais do que a da cidade.

Sem mencionar que havia escrito ao pai duas vezes, antes de receber a mensagem de um dos amigos do pai, informando-o de que Carl Riker havia sido chamado pelo Comando da Frota Estelar para resolver uma situação delicada no sistema Procyon.

Naturalmente seria muito trabalho contar pessoalmente ao único filho aonde estava indo, pensou Will, com amargura. Estou ficando cansado de sempre ficar no fim de sua lista de prioridades. Ele provavelmente nem vai se importar em saber que tirei a melhor nota na...

— Ninguém o avisou que se fizer essa carranca sua cara pode ficar assim para sempre, cadete? — perguntou uma suave e risonha voz. de soprano.

Will surpreendeu-se e virou-se rapidamente para ver uma mulher parada a seu lado. Ela o fitou com olhos grandes e risonhos, que eram da cor da água da baía, de um cinza esverdeado e luminoso. Seu rosto era exótico e cativante, com ossos salientes, lábios grossos, dentes fortes e perfeitos, e um queixo anguloso. Seus cabelos negros num penteado elegante emolduravam-lhe o rosto ao sabor do vento. Apesar de não ser de uma beleza clássica, ela era a mulher mais linda que ele já tinha visto.

Estava usando um vestido vermelho de material semelhante a seda, e o vento realçava-lhe as formas, delineando seus pequenos seios, a suave curva dos quadris e a fina cintura.

— Desculpe se o assustei — disse ela, com um sorriso, apesar de ele saber que ela tinha feito de propósito. — Mas você parecia uma nuvem de chuva. Você e muito jovem para ficar tão bravo.

Ele sabia que ela estava zombando dele... mas de alguma forma aquilo não importava. Olhou para ela, percebendo que, apesar de ela ser de boa altura, ele era mais alto que ela. Will havia atingido sua altura adulta no ano anterior. Seu peso estava começando a equiparar-se a ela. Ainda era magro, mas devido aos exercícios que regularmente fazia no ginásio da academia, estava começando a tornar-se musculoso nos ombros e no peito. Na maior parte do tempo, porém, ainda se sentia magricela, desajeitado e sem graça. Era sempre um choque perceber que estava mais alto do que a maioria das pessoas que encontrava.

Ele retribuiu o sorriso, hesitante, e conseguiu dizer:

— Minha mãe costumava brincar comigo a respeito das carrancas que eu fazia, mas isso já faz muito tempo. Acho que me esqueci do conselho que ela me deu — disse ele, abrindo o sorriso. — Desculpe se a assustei.

— Oh, assustou mesmo — disse ela, impassível. — Mas eu o perdôo. — Ela estendeu-lhe a mão, transformando seu sorriso de zombaria em uma expressão mais sincera. — Olá. Sou Paula Andropova.

— Will Riker — disse ele, sentindo o calor de seus dedos longos e finos ao tomar-lhe a mão. Lembrando-se do que lera em um antigo livro chamado Pimpinela Escarlate, inclinou-se e beijou-lhe os dedos, com medo de estragar tudo com seu embaraço ou falta de finesse. Mas pela primeira vez conseguiu realizar um gesto cortês sem estragar tudo. Curvou-se de modo gracioso e ergueu-se como um aristocrata de tempos passados, não como um adolescente desajeitado.

E para sua surpresa, no exato momento, ela segurou a saia do vestido vermelho e retribuiu o cumprimento com uma perfeita mesura!

Ele segurou-a pelos dedos, ajudando-a a erguer-se, depois soltou-os no momento certo.

— Não posso acreditar — disse ele, para si mesmo, sentindo-se muito espirituoso e cortês. — Encontrei alguém mais que aprecia romances antigos? Pensei que era o único que ainda lia romances como Pimpinela Escarlate/

Ela riu.

— Devo admitir minha culpa, gentil senhor. De fato, não apenas li Pimpinela Escarlate mas também dancei há algum tempo.

— Uma bailarina — disse ele, admirando seu longo e gracioso pescoço e suas pernas firmes. — Eu devia ter imaginado.

O vento soprou novamente, dessa vez fazendo-a estremecer.

— Oh — disse ela, olhando em volta. — Acho que perdemos o final do por do sol.

— Está com frio? — perguntou ele, desejando ter um casaco para oferecer a ela. Talvez assim ela ficaria mais um pouco ali.

— Para dizer a verdade, estou sim — admitiu ela. — Mas adoraria conversar mais um pouco com você. Não é todo dia que encontro um membro da aristocracia. Posso convidá-lo a beber algo?

Sua folga terminava à meia-noite.

— Seria um prazer — conseguiu dizer. Tomou galantemente Paula pelo braço, percebendo pela primeira vez que aquela linda mulher estava interessada em passar algum tempo com ele, o magricela e pescoçudo Will Riker. Por um breve e fervoroso segundo, ele agradeceu a todos os deuses do universo por estar, pelo menos uma vez na vida, com o rosto livre de espinhas naquele momento.

Beberam sintetol juntos, mas não sem antes exclamar o costumeiro brinde: "Aos ferengis!" porque os ferengis inventaram essa bebida, que relaxava e descontraía as pessoas tanto quanto o álcool, mas seus efeitos podiam ser voluntariamente interrompidos por quem a bebia.

Conversaram por várias horas a respeito de livros que haviam lido e músicas de que gostavam e peças a que haviam assistido. Ele descobriu que ela havia sido bailarina, mas teve sua carreira encerrada por uma lesão permanente no joelho. Ela contou-lhe a respeito dos bales que havia dançado, e ele contou-lhe como era ver o sol batendo no pico nevado do monte McKinley do alto de um pico vizinho.

Por fim, percebeu que era quase hora de seu dia de folga terminar, só lhe restando o tempo suficiente para apresentar-se na Academia.

— Tenho que ir — disse ele, com tristeza. — Mas preferia não ter que fazê-lo — hesitou, depois tomou coragem e disse: — Ahn... será que podemos nos ver de novo? Não conheço ninguém em San Francisco alem dos outros cadetes, e conhecê-la foi simplesmente... — sorriu e encolheu os ombros — maravilhoso.

— Adoraria vê-lo novamente, Will — disse Paula, séria, dando-lhe seu endereço. — Venha visitar-me quando estiver de licença. Avise-me com um dia de antecedência, está bem?

— Para que você possa mandar embora todos os seus outros pretendentes? — perguntou ele, ousadamente.

Paula sorriu.

— Oh, eu nunca os mando embora. Quando eles se tornam aborrecidos eu os sirvo a meu molusco de Aldebaran, o Arquibaldo. — Ela olhou novamente para o cronômetro. — Agora corra. Não quero que se atrase!

Riker correu quase todo o caminho de volta até as torres da sede da Frota Estelar e depois para seu dormitório. Parte do motivo da corrida era não se atrasar, mas o principal era por estar tão excitado e cheio de energia que não

conseguia andar! ele sentia vontade de gritar de alegria, mas conseguiu se conter.

Ela gosta de mim! Quer ver-me de novo! Uma mulher como aquela, que podia ter quem ela quisesse...! Sua cabeça girava a mil... estava maravilhado com Paula.

Quando eu conseguir minha licença, vou visitá-la. O que acontecerá então? Será que ela vai querer sair? E se ela quiser ficar? Se isso acontecer, será que vamos apenas... conversar? pensou ele, enquanto trocava de roupa Isso seria ótimo, mas algo cm seu sorriso me dizia que ela estava pensando cm outra coisa... eu acho... espero...

Apesar de pouco experiente, Will sabia reconhecer quando uma mulher estava interessada. E se ela quiser ir para a cama? A idéia encheu-o de desejo e medo. Ela vai perceber que é minha primeira vez, não vou conseguir disfarçar. O que vou fazer?

Por fim, conseguiu acalmar-se e até estudar um pouco para a aula de cálculo avançado que teria no dia seguinte. Talvez ela não queira me ver. É melhor nem me preocupar com isso até minha próxima licença. Droga, pode ser que não consiga uma licença pelo resto do ano...

Mas ele consegui uma no mês seguinte. Will ligou para ela, e ela o convidou a seu apartamento, claramente feliz, de poder vê-lo novamente. Ela quis conversar e não saíram para passear. Falaram sobre uma coisa ou outra, depois a conversa foi morrendo, até se calarem...

Se ela adivinhou que aquela era a primeira vez de Will, foi sensata o bastante para não mencionar o fato. E como em todos os outros assuntos, o cadete mostrou que aprendia extraordinariamente rápido.

Continuaram a encontrar-se por três anos e meio. Paula permanece misteriosa, quase sem lhe dizer nada a respeito de seu passado. Ele sabia que ela trabalhava como representante dos atores que trabalhavam cm um grande teatro, mas era tudo que ele sabia. Nunca chegou a conhecer qualquer dos colegas de trabalho dela.

Ela, porem, mostrou-lhe muitas dos entretenimentos da cidade: concertos, teatro, bale, ópera. Nas suas raras licenças de fim de semana, ele a levava para passear e fazer caminhadas na Sierra. Paula parecia tão à vontade usando calças jeans e um casaco de couro enquanto montava uma barraca no campo como quando vestia um deslumbrante vestido de noite e valsava em um salão iluminado por lustres de cristal.

Riker sabia que ela fora casada e tinha-se divorciado, mas não linha certeza de sua idade. Era mais velha que ela, claro, mas tão bela. Com sua paixão pela boa forma física, característica das bailarinas, a diferença de idade pouco importava.

Quando faltavam alguns meses para Will completar dezenove anos, ele recebeu sua primeira designação para servir como alferes a bordo do cruzador Nogura. Ele estava extremamente entusiasmado pela chance de viajar para o espaço profundo pela primeira vez, mas sua única tristeza era deixar Paula.

— Vou sentir tanta saudade — sussurrou-lhe Will, deitado na cama depois de fazerem amor. Ele ia partir no dia seguinte.

— Vou sentir saudades também, Will — disse ela, branda e tristemente, com os olhos refletindo o luar que entrava pela janela.

— Mas não será para sempre, Paula — disse ele, com sinceridade. — Talvez um ano apenas, até que eu volte para uma licença e um curso de atualização de um ano aqui cm San Francisco. Decidi fazer o curso de oficial.

— Ótimo — disse ela. — Você nasceu para ser comandante, Will. Você inspira confiança. Quando der ordens, as pessoas lhe obedecem. Nem todo mundo tem essa capacidade.

Ele afastou uma mecha de cabelo do rosto dela e beijou-lhe o pescoço, quase sem ouvir o que ela dizia. Tinha outra coisa em mente.

— Só um ano — murmurou. — Não é tanto tempo assim. Vai-me esperar, não vai?

Will sentiu os ombros dela enrijecerem. Ele afastou-se, tentando fitar-lhe o rosto, mas ela virou-se para longe dele, cobrindo os seios com o lençol.

— O que foi? — perguntou ele, ansioso e confuso. — Pensei que você... sentisse por mim o mesmo que sinto por você. Não sente?

— Will — disse ela, meigamente.

— Paula... — disse ele, com uma pontada de receio. Droga, eu a amo! Ela deve saber o que sinto por ela! — Eu amo você — disse ele, ansioso. — Você sabe disso. E você me ama.

Ele a ouviu suspirar.

— Não, Will, não amo — disse ela, impassível.

Murmurando um palavrão, Riker acendeu a luz da cabeceira da cama. O rosto de Paula estava tenso e um pouco pálido na penumbra, mas seus olhos o encararam com firmeza.

— Sinto muito, Will — disse ela.

— Sente muito por quê? Sente muito por não me amar? Isso é coisa que se diga? Não é verdade, eu sei que não é! — Mas um receio terrível roía-lhe a mente, pois ela o tinha dito com bastante certeza.

— É verdade. Gosto muito de você, Will. E até o amo de certa forma. Mas não da maneira que você está pensando. Não do modo como você pensa que me ama.

— Que eu penso! — ele lutava para manter o controle. — Eu não penso,

eu sei! Paula... por quê?... — Não estava conseguindo manter a calma, e sua voz parecia chorosa até a seus próprios ouvidos. — Por que você não me ama? Ela suspirou e voltou-se para encará-lo, com um olhar carinhoso.

— Will, meu bem, não o amo porque não somos iguais. Ele só conseguiu ficar olhando para ela, surpreso. Paula sorriu debilmente.

— Oh, não. Não estou bancando a esnobe ou coisa parecida. Só quero dizer que em termos de idade e experiência, não somos iguais e nunca seremos. A diferença é muito grande. Quando você conseguir me alcançar, nosso relacionamento seria impossível, pois eu estaria muito velha.

Ele começou a protestar, mas ela tocou-lhe gentilmente os lábios com o dedo.

— Will, sabe quantos anos eu tenho?

— É mais velha que eu — admitiu ele, mal-humorado. — Mas, droga, isso não significa nada! Que são cinco ou seis anos? Ou mesmo dez?

Ela sorriu debilmente.

— Obrigada, Will. Eu escolhi bem naquele dia em Land's End. Você tem a intuição de um diplomata e lábios de ouro. Vai fazer muito sucesso entre as mulheres da galáxia. — Paula hesitou, depois disse secamente. — Will, tenho um filho cinco anos mais velho que você.

Ele ficou olhando para ela, surpreso, depois exclamou:

— Não me importo! Que diferença isso faz?

— Vou-lhe dizer a diferença que faz — disse ela. — Will, você estaria louco se quisesse se amarrar a alguém sendo assim tão jovem. Muito menos sendo uma pessoa que não poderia esperar você voltar de uma missão prolongada.

— Não poderia? — repetiu ele, atordoado. — Não está me dizendo que está doente ou coisa parecida, está?

— Claro que não. Mas na minha idade, não posso perder tempo esperando. E para ser sincera, não quero ficar esperando você. Já passei por isso antes. É melhor você me esquecer, acredite.

Ele sentiu-se atordoado.

— Não vai querer me ver quando eu voltar?

— Não, Will. Não seria sensato. Eu estaria mentindo se dissesse que sim. Nunca menti para você, meu bem.

Ele sabia que era verdade.

Paula inclinou-se e beijou-o com carinho.

— Agora durma um pouco — disse ela, com firmeza fingida — assim poderemos passar algum tempo juntos pela manhã. Quero que você parta para as estrelas distantes com belas recordações.

Mas depois que ele percebeu que ela tinha adormecido, Will saiu silenciosamente da cama, encontrou suas roupas pelo tato e levou-as até a sala para vestir-se. Saiu do apartamento, perguntando a si mesmo se deveria deixar um bilhete, mas sentindo que tudo já fora dito. ele não queria magoar Paula saindo daquele jeito, mas não suportaria vê-la novamente sabendo que ela não o amava.

San Francisco estava silenciosa e iluminada pelo luar enquanto ele caminhava pensativo e cabisbaixo. No dia seguinte, ele partiria para o espaço profundo pela primeira vez. Tudo mudaria em sua vida... ou melhor, já havia mudado. Ela já se sentia diferente: mais forte, mais maduro, mais velho.

No final do quarteirão, ele parou e voltou-se, divisando a janela do apartamento dela com precisão. Será que ela estava mesmo dormindo ou só fingindo, pensou ele, desconfiado da segunda hipótese. Ela sabia que seria melhor para nós dois dessa forma, concluiu ele.

Sorrindo debilmente, ele lançou um beijo na direção do apartamento, depois virou e caminhou para dentro da noite... para o futuro.

 

O comandante Will Riker abriu os olhos na escuridão e sentou-se. A loura que se aninhara a seu lado soltou um murmúrio inquiridor e abriu um de seus olhos azuis.

— Já é hora de levantar? — murmurou do fundo do travesseiro.

— Não... pode continuar dormindo — sussurrou ele.

— Está bem... — disse ela, fechando os olhos.

Riker ergueu-se e ficou olhando para ela por um momento, perguntando-se se ela estaria sonhando também. Concluiu que tinha tido sorte. Seu sonho, apesar de ter sido tão real quanto o descrito por outras pessoas, tinha sido agradável.

Mas ele sentiu-se estranhamente desconsolado ao perceber que não tinha pensado em Paula havia muitos anos. Ele perguntou-se onde estaria ela naquele momento, o que estaria fazendo. Já fazia... puxa vida, fazia quase vinte malditos anos desde que ele a conhecera. Tiveram bons momentos juntos...

Sabe de uma coisa, Paula? pensou ele. Você está certa a respeito de muitas coisas, mas errou em algo muito importante. Eu realmente a amava. Só percebi isto agora, mas eu realmente amava você. Houve muitas mulheres depois de você... uma imagem de Deanna Troi surgiu involuntariamente em sua mente, e amei várias delas, mas agora sei o que isso quer dizer, e foi sem dúvida o mesmo que senti por você.

Silenciosamente, ele saiu do dormitório na ponta dos pés. Entrou no estúdio e ativou o intercomunicador da mesa, apenas no áudio, pois estava sem roupa. Depois de um instante, ouviu a voz precisa da tenente Selar.

— Enfermaria. Selar falando.

— Doutora, aqui fala o comandante Riker. Estou ligando para saber como está a conselheira Troi.

— Suas condições são estáveis, comandante. Nós a estamos mantendo sedada para evitar outros traumas mentais e emocionais.

— Houve mais problemas com a tripulação, tenente?

Seu sotaque Vulcano alterou-se, denotando um pouco de pesar.

— Perdemos um dos tripulantes da Marco Polo, senhor. Um caso de catatonia. Seu coração não suportou o estresse. Tivemos um suicídio esta manhã...

Riker suspirou e procurou perguntar sem transparecer emoções.

— Quem foi, tenente?

— Uma de nossas enfermeiras, senhor. Penélope Johnson.

— Entendo... — disse Will. — Lamentou saber disso, tenente. Riker desligando.

Em seguida, ligou para a ponte.

— Capitão?

— Imediato?

— Sim, senhor. Acabei de falar com a enfermaria. Perdemos um tripulante.

— Eu sei — disse o capitão, pesarosamente. — Espero que Geordi, Data e Wesley conseguiam encontrar alguma coisa. Faltam duas horas para o término do prazo que lhes dei.

— Senhor, a respeito dos sonhos... — Riker começou a dizer, então hesitou.

— Sim, Imediato? — incentivou Riker depois de um instante, ao ver que o segundo em comando não prosseguia o que estava dizendo.

— Eu compreendo agora, senhor. O que me disse a respeito de quão real eles pareciam... Foi como se eu estivesse revivendo cada momento...

Picard mostrou-se mais gentil.

— Foi um pesadelo?

— Na verdade, não, capitão. Em nada semelhante ao sonho que me descreveu. Mas foi muito real.

— Eu sei, Will — disse Picard, com certa amargura. — E aparentemente o sonho de Johnson também foi muito real.

— Vou verificar o que Geordi e Data estão fazendo — disse Riker. — A idéia de passar mais uma ou duas horas de olhos fechados não me parece muito atraente agora — concluiu, sério.

— Boa idéia. Entendo o que quer dizer — disse Picard.

— Riker desligando.

 

— Doutora?

Beverly Crusher ergueu o rosto e deparou-se com a tenente Selar de pé junto à porta de seu consultório.

— Entre — disse ela. Selar entrou.

— Mandou-me chamar, doutora?

— Sim — disse Crusher, apontando para uma cadeira. — Eu queria saber como a equipe tem reagido à morte de Johnson. — Ela sorriu debilmente. — As pessoas geralmente procuram manter as aparências quando o chefe faz as perguntas.

A vulcana assentiu com a cabeça, compreendendo o que Crusher estava dizendo.

— A equipe está reagindo de acordo com as expectativas, creio eu. A enfermeira Johnson era muito querida, mas sua morte foi encarada como um efeito colateral indesejável de nossa presente missão, não como uma reação negativa a palavras ou atos de seus amigos. Não observei em nenhum de seus colegas de trabalho a típica reação humana do tipo "se ao menos eu tivesse...", que é característica de um sentimento de culpa.

— Bem, já é alguma coisa — Crusher sacudiu lentamente a cabeça, mordendo os lábios. — Fico-me perguntando o que a levou a fazer algo assim?

Selar ergueu uma sobrancelha.

— Não há qualquer vantagem em entregar-se a especulações. Não importa que sonho ou alucinação tenha desencadeado a infeliz reação de Johnson. Em última análise, o artefato é o responsável.

— Você teve um desses sonhos, Selar? — a medica chefe desviou o olhar, não querendo encarar a oficial vulcana.

— Meu povo raramente sonha — respondeu a tenente, impassível. — Até o momento, fui poupada.

— Eu tive um sonho — disse Crusher, erguendo seus olhos verdes para encarar os olhos escuros da colega à sua frente e endireitando os ombros com repentina determinação. — Ele fez-me compreender porque Penny foi levada a fazer o que fez.

— Logicamente não mencionaria seu sonho provocado pelo artefato a menos que quisesse discutir o assunto comigo — observou Selar, descontraindo-se um pouco e deixando de lado a postura oficial diante da confidencia da Dra. Crusher. — O que você sonhou, Beverly?

Houve uma longa pausa.

— Sonhei com o dia mais feliz da minha vida — disse Crusher, por fim. — Mas na ocasião eu não tinha consciência disso. Foi somente algum tempo depois, depois que Jack morreu, que eu me dei conta que aquele havia sido o mais próximo que já chegáramos de um dia perfeito — ela sorriu débil e tristemente. — Ao menos nesta vida, imagino eu.

— Você sonhou com seu marido morto?

— Sim... — Crusher cerrou os punhos sobre a escrivaninha. — Selar, foi tão real. Eu achei que estava lá. Não parecia ser um sonho. Não havia aquela preocupação que geralmente acompanha os sonhos agradáveis de que quando acordarmos tudo estará terminado. Enquanto eu estive nele, eu realmente estava lá.

Ela suspirou profundamente.

— Wesley ainda era um menininho — disse ela, sem perceber que um leve toque de preocupação materna coloria seu calmo discurso. — Jack estava em casa de licença. Foi uma licença bastante prolongada, a maior que ele havia tirado desde o nascimento de Wesley. Certo dia, voamos até Black Hills. Era verão, o período mais bonito dessa estação, e havia muito verde em toda parte. O céu estava mais azul do que nunca e as encostas das montanhas estavam cobertas de pinheiros e outras árvores. As campinas estavam verdejantes e havia animais pastando ao longe. Creio que eram cervos ou alces. Saímos para um passeio, com Wesley montado nos ombros do pai. Lembro-me que ele queria saber o nome de tudo que encontrávamos pelo caminho. Começamos a rir, depois de algum tempo, e dissemos que acabaríamos tendo que inventar alguns nomes, porque nenhum de nós conseguia identificar todas aquelas plantas. Dissemos para Wesley, brincando, que ele era nosso filhote de elefante.

Selar ergueu uma sobrancelha inquiridora, e Beverly fez uma pausa e sorriu.

— Foi uma alusão a uma história escrita por Rudyard Kipling, a respeito de um jovem elegante que tinha uma curiosidade insaciável. É um conto de fadas escrito para explicar às crianças por que os elefantes têm uma tromba tão comprida.

A vulcana assentiu com a cabeça.

— Compreendo. Os humanos têm a tendência de fantasiar todas as coisas. Beverly soltou um risinho.

— É verdade. Depois que Jack e eu havíamos caminhado alguns quilômetros, sentamo-nos à beira de um córrego e molhamos os pés na água. Ela estava muuuito gelada! Parecia que tinha saído de uma geleira, o que provavelmente era verdade. — Ela estremeceu dramaticamente, sorrindo. —Viramos crianças e começamos a jogar água um no outro, ate ficarmos bem molhados, e rimos como bobos.

A tenente parecia um pouco surpreendida, parecendo não compreender a sensação de prazer relacionada com o fato de alguém ser espargido com água gelada, mas não fez qualquer comentário, apenas esperou que Crusher continuasse a narrativa.

— Então deitamo-nos na grama, e Wesley tirou uma soneca. Jack e eu... queríamos fazer amor, mas não nos arriscamos porque Wes estava ali, por isso apenas ficamos abraçados um ao outro. .. — Beverly interrompeu o que dizia e ficou olhando para as mãos cerradas, tentando controlar-se.

— Se falar sobre isso a deixa perturbada... — começou a dizer Selar, mas Crusher sacudiu os cabelos vermelhos em negativa.

— É importante que a equipe médica procure entender o que está acontecendo aqui — disse ela, brandamente. — Como você não teve um sonho, e pelo que me contou provavelmente não o terá, precisa entender como são eles. Além disso, quando os humanos têm um sonho perturbador, sentem-se melhor quando podem contá-lo a outra pessoa. Não sei realmente por que... talvez isso ajude a nos a distanciarmos um pouco. — Ela ergueu da cadeira e começou a andar de um lado para o outro no pequeno consultório. — Eu preciso... apenas de um momento, pode deixar.

Por fim, voltou para a cadeira e continuou a narrativa.

— Então, depois da guerra de água, também caímos no sono. Quando acordamos estávamos secos... e famintos. Voltamos para onde o nosso transporte estava estacionado, para comer um lanche. Eu o havia preparado pessoalmente, e estava tão gostoso! — ela ergueu os olhos para Selar. Posso lembrar-me de cada bocado. Além disso, durante a primeira meia hora depois que acordei, não senti qualquer fome. Geralmente não consigo ficar sem tomar o café da manhã, mas eu me sentia satisfeita, saciada, como se tivesse realmente comido todo aquele lanche.

Crusher sorriu.

— Eu havia feito um suflê de queijo e colocado na unidade de estase. Tinha ficado perfeito. — Ela suspirou. — O cheddar ficou como eu queria, estufado como as nuvens que passavam acima de nós. Para acompanhar, havia o pão que eu mesma tinha feito, com manteiga e mel de verdade. Também havia frutas, pêras e maçãs, além de uma banana para Wesley... ele adorava bananas...

— Está me deixando com fome — disse Selar, secamente, e a médica sorriu debilmente.

— Depois, para sobremesa, mousse de chocolate. Feito cm casa. Oh, era indescritível! Jack disse que foi o melhor que eu já havia feito.

Ela fez uma pausa, e a vulcana disse, hesitante:

— E depois, o que aconteceu?

A oficial médica chefe deu de ombros.

— Nada espetacular, para quem estava de fora. Pusemos nossas coisas no transporte e voamos para casa. Depois que Wesley dormiu, fizemos amor e caímos no sono. É tudo... — a voz sumiu-lhe na garganta e lágrimas surgiram-lhe nos olhos.

Por fim, ela sussurrou.

— E durante o tempo todo em que tudo isso acontecia, não me dei conta de que aquele era o dia mais feliz de minha vida! Se soubesse disso, eu o teria saboreado com mais intensidade, cada minuto, cada segundo. Não teria saído do lado de Jack um minuto que fosse. Depois de fazermos amor, eu não teria virado para o outro lado e dormido. Eu teria ficado acordada a noite inteira, amando-o...

— E você acordou do sonho plenamente consciente do que havia deixado de fazer... — disse Selar.

— Sim — respondeu Crusher, em voz baixa. — Quando acordei, passei novamente por toda a dor e desolação que senti na morte de Jack. Como se fosse pela primeira vez. Enquanto eu sonhava, ele estava realmente vivo. Quando acordei, foi como se ele tivesse acabado de morrer. Passei por tudo aquilo de novo.

— Compartilho de seu pesar — disse Selar, com um tom de voz formal que fez Beverly perceber que Selar estava literalmente traduzindo a expressão de sua língua natal. — Você comentou essa experiência com mais alguém?

Beverly fez que não com a cabeça.

— Em sua consulta de rotina, o capitão relatou que havia sonhado com o dia em que perdera a Stargazer. Aparentemente esse foi um dos piores momentos de sua vida. Ele não entrou em detalhes, mas agora sei muito bem... De qualquer forma, deve ter sido extremamente doloroso para ele.

Ela suspirou profundamente.

— Então ele me perguntou se eu havia tido um sonho. Eu menti e disse que não. Seria muito doloroso contar-lhe. Jean-Luc é uma pessoa com quem jamais poderei compartilhar a dor que sinto pela morte de Jack. Isso faria reviver sentimentos que estou tentando esquecer, sem mencionar que seria extremamente cruel para Jean-Luc. Sei agora que a morte de Jack foi de certa forma tão traumática para ele quanto foi para mim.

— Imagino que sim — disse a vulcana. — Creio que você deve contar ao capitão que teve um sonho, mas se ele perguntar sobre o que sonhou, diga que prefere não discutir o assunto. Sendo um homem com muita diplomacia e sensibilidade, certamente não insistirá em saber dos detalhes.

— Tem razão, Selar — concordou Beverly. — É o que farei. Mas não sei por que as vítimas "sortudas" estão entrando em catatonia e as menos felizes acordam desesperadas e deprimidas a ponto de buscarem alívio na morte. Muitas pessoas têm fantasmas sombrios no passado, e se sentirem-se forçadas a reviver aqueles momentos, como se eles estivessem realmente acontecendo, enquanto estão sob a influencia daquela coisa... — ela apontou para a direção em que o artefato se encontrava — bem, posso compreender por que estão cometendo suicídio.

— Sim — disse Selar. — Existem momentos em meu passado que não desejo reviver.

Crusher endireitou os ombros.

— Suponho que seja evidência de maior estabilidade mental dos que passaram pelo treinamento da Frota Estelar o fato de que apenas dois tripulantes da Enterprise tenham descarregado sua fúria contra seus companheiros, do mesmo modo que os tripulantes da Marco Polo fizeram. E graças a Deus, Itoh e Montez foram contidos antes de conseguirem ferir gravemente suas vítimas em potencial.

— É possível que você esteja certa — disse Selar. — Contudo, também me parece, de acordo com as descobertas de seu filho, que os escudos da Enterprise estão nos protegendo parcialmente da influência do artefato, o que não ocorreu com a tripulação da Marco Polo.

— Wesley... — Beverly passou a mão pelos cabelos, distraída. — Meu Deus, será que ele teve um desses sonhos?

— Não, pelo menos até uma hora atrás, quando falei com ele. Ele me pediu dados de nossos bancos médicos referentes às ondas cerebrais dos seres inteligentes.

— Suponho que seja para sua pesquisa — Ela sorriu de modo um pouco tenso. — O capitão tem grande confiança em Wesley para dar-lhe uma tarefa relacionada à segurança e a sanidade mental da tripulação. Espero que não seja responsabilidade demais para alguém tão jovem.

— Pelo que pude observar, Wesley aprecia desafios — disse Selar. — Não se esqueça de que ele já é quase um adulto, Beverly.

— Tem razão — Ela sacudiu a cabeça. — Parece que foi ontem que ele tinha a idade de Thala. Por falar nisso — disse, erguendo o rosto — como vai Thala?

— Melhor. — Selar retesou discretamente os lábios. — Apesar de ter sofrido um grande trauma. Ela está fisicamente apta a deixar a enfermaria...

Selar deixou a frase no ar, e Beverly completou-a.

— Mas...

— Mas ela tem implorado tão veementemente para não ser enviada de volta a sua cabine, que eu deixei que ficasse. — Selar parecia procurar uma justificativa para sua atitude que fosse convincente.

Beverly confortou sua subordinada, dizendo:

— Não se preocupe com isso. Não estamos com tanta falta de espaço assim. .. por enquanto. A coitadinha merece toda a segurança que pudermos lhe oferecer, depois de tudo pelo que passou.

— Descobriu se Thala pode ser legalmente enviada para outro lugar que não seja uma colônia andoriana, se alguém pagar suas despesas de viagem? — perguntou Selar.

— Sim. Conversei com o tenente Grcenstein há alguns dias, pouco depois de ter conversado com o administrador de Thonolan IV. — Ela olhou de soslaio para a vulcana. — Por falar nisso, quando mencionou que alguém pagaria as despesas de viagem, o que seria consideravelmente dispendioso considerando o setor em que nos encontramos, por acaso tinha alguma pessoa em mente? — Crusher fez a pergunta como se já soubesse a resposta.

— Eu pagarei as despesas — disse a vulcana, sem hesitar. — Para que Thala tenha uma chance de continuar a receber cuidados médicos adequados e prosseguir nos estudos, eu ficaria muito satisfeita de poder fazê-lo.

Crusher assentiu com a cabeça.

— Bem, pelo que Howard disse, enviar Thala para Vulcano seria uma questão bastante delicada. — Quando Selar ergueu uma sobrancelha, a médica explicou: — Isso poderia tecnicamente ser interpretado como uma violação da lei.

Os olhos escuros da tenente deixaram transparecer sua decepção.

— Isso é realmente uma pena.

— No entanto, só entre nós duas — disse Beverly, inclinando-se para frente, encarando a vulcana nos olhos — duvido que seja necessário apelar para a lei nesse caso.

— Por que não?

— Porque os andorianos não a querem. E se ela desaparecer convenientemente, ninguém fará questão alguma de saber seu paradeiro.

Selar ergueu uma sobrancelha.

— Sério?

Crusher enrijeceu os lábios com raiva.

— A única razão que os oficiais com quem conversei levaram em consideração para acolherem Thala seria o recebimento de alguma herança sua — Ela riu com amargura. — Para dizer a verdade, no parecer deles, poderíamos vender a menina a um bordel, desde que repartíssemos o dinheiro com eles! Esse tipo de atitude me deixa furiosa.

Beverly respirou fundo para recuperar o controle, depois conseguiu sorrir debilmente.

— Selar, se quiser pagar a passagem de Thala para Vulcano, para que ela seja acolhida por uma instituição do planeta no qual receba bons cuidados médicos e uma educação decente, tirarei meu chapéu para você.

Selar ficou confusa.

— Seu chapéu? — disse ela, inexpressiva. — Já vi você usando um chapéu, quando estava a caminho do holodeck calçando um daqueles desconfortáveis sapatos de salto alto.

A médica olhou para o teto.

— Não, não. O que eu quis dizer é que vou ajudá-la em tudo que puder.

— Oh. — O rosto de Selar ficou discretamente mais alegre. — Obrigada, Beverly. Agradeço seu apoio.

— Sou eu que fico agradecida — disse Crusher. — Quero que saiba que nos últimos dias tem sido muito reconfortante saber que posso contar com você para manter as coisas estáveis por aqui. Não pense que não valorizo tudo que tem feito.

— Eu sei — disse Selar, suspirando também. — Beverly... preciso contar-lhe algo.

— Que foi?

— Recebi o convite para um outro cargo, muito bom por sinal, na Academia Vulcana de Ciências, como chefe do departamento de pesquisas bioeletrônicas. Se eu aceitá-lo, terei a oportunidade de fazer muito mais do que Frota Estelar, trabalhando para melhorar as próteses para pessoas como Geordi La Forge e Thala. Estou considerando seriamente a possibilidade de aceitar o cargo. — Ela fez uma pausa, depois acrescentou, com um toque de humor negro — Se sobrevivermos a esta missão, obviamente.

— Parabéns, Selar. É uma grande honra! Você será uma excelente chefe de departamento, a julgar pelo modo como você domina tanto a medicina quanto a eletrônica. E claro que vamos sentir muito sua falta aqui, mas acho que você deveria aceitar, se for realmente o que deseja.

— Não estou bem certa do que desejo fazer — disse a vulcana, séria. Sei que é isso que deveria desejar, algo por que trabalhei nos últimos quinze anos, mas... — deixou a frase incompleta, sem querer encarar Beverly.

— Mas, o quê? — perguntou Beverly, com delicadeza. — Não deseja voltar para Vulcano?

Selar ergueu o rosto, surpresa. Seus olhos arregalaram-se um pouco.

— Como... — disse ela, hesitante, depois completou com determinação — Como sabia disso?

— Temos trabalhado muito tempo juntas — disse a médica. — Tenho observado suas reações — sorriu — sempre que alguém menciona seu planeta. E Deanna comentou certa vez sua aversão em falar sobre sua família. Os vulcanos raramente são tagarelas, em comparação aos humanos, mas outros vulcanos a bordo falam muito mais a respeito de seu lar do que você.

— É porque minha família me considera uma... — Ela pensou um momento. — Acho que na sua língua vocês dizem uma 'cabra negra'.

— Ovelha — corrigiu Beverly, esforçando-se para não sorrir.

— Obrigada. Eu não me casei com o homem que foi escolhido para mim, e minha família não ficou muito satisfeita com isso. Eles nunca esquecerão minha transgressão, minha quebra da tradição. Toda semana recebo uma comunicação deles, e quase nunca deixam de lembrar-me de minha desgraça e de quão bem sucedido meu ex-prometido se tornou.

Ela suspirou.

— Foi um imenso alívio para mim quando Sukat finalmente se casou, pois pelo menos não tive mais que ouvi-los dizer que talvez ainda não fosse tarde, se eu apenas voltasse para Vulcano e me humilhasse diante dele, quem sabe ele me faria a imensa honra de aceitar-me de volta.

Beverly sacudiu a cabeça, compreensiva.

— Posso imaginar. Famílias... — fez uma careta. — Eu tenho... tive um tio que tinha uma língua muito ferina, e a pior coisa que... — ela interrompeu a frase e sacudiu a cabeça. — Bem, é uma longa história, mas sei o que quer dizer. Podemos escolher os amigos, mas os parentes... estamos presos a eles.

— É verdade — disse Selar, com igual ironia. — Já é ruim o bastante receber essas indiretas a parsecs de distância, mas como seria morar no mesmo planeta que meus parentes?

— Parece-me que você terá que dizer-lhes que a deixem em paz — disse Beverly. — Se você deixar bem claro que não deseja ouvir... indiretas, talvez eles acabem parando com isso. Pois afinal de contas, você não é mais uma garotinha que acabou de sair da escola. Estará voltando como uma profissional reconhecida em seu campo.

Selar assentiu com a cabeça, como se não tivesse pensado nisso naqueles termos.

— Eu poderia deixar bem claro que somente me casaria com alguém de minha escolha — disse ela.

— É claro! Se fizerem escândalo a esse respeito, peça-lhes que escrevam suas reclamações num papel, dobre-o e mande que o enfiem num lugar que nunca toma sol — sugeriu a médica chefe, com um brilho nos olhos.

— Um lugar que nunca toma sol... — Selar deixou a frase no ar, quando compreendeu a metáfora. — É um excelente conselho, doutora — disse ela, impassível.

 

 

— Não vou cobrar nada por ele — disse Crusher, imitando-lhe a seriedade.

Quando Selar terminou de examinar seus pacientes, já era quase hora do almoço. Foi procurar Thala, para sugerir-lhe que descessem juntas à sala de recreação. Encontrou a menina debruçada sobre um terminal de computador e a cumprimentou.

— Olá, Thala. Quer almoçar comigo?

A cabeça branca da menina ergueu-se com um sobressalto, e ela desligou rapidamente o computador antes que a vulcana visse o que aparecia na tela. Parecia um tipo de grade que a menina estava traçando com os dedos, enquanto o computador identificava vocalmente cada área.

— Oh, Selar! — disse ela, um pouco ofegante. — Não sabia que estava aqui!

— Sinto muito por tê-la assustado — disse a vulcana. Depois, curiosa sobre o que a menina estivera fazendo, ela comentou: — Parece que você estava estudando.

— Sim... sim, estava. — Seu rosto azulado assumiu uma expressão preocupada, enquanto ela se perguntava quanto a outra havia visto de seus "estudos". — Estava estudando a localização das bases estelares mais próximas — confessou ela, por fim. — Decorando a posição de cada uma, para o caso de voltar a visitar uma delas... então poderei encontrar meu caminho.

— Você já visitou bases estelares antes — disse Selar, ainda sem entender, mas certa de que havia algo por trás daquilo. — E não deve fazer planos de ficar passeando de uma base estelar para a outra sozinha. Isso não seria muito aconselhável.

— Sim, já visitei bases estelares com meu pai — admitiu Thala. — Mas era diferente. Eu queria... — Ela hesitou, depois acrescentou às pressas: — Wesley prometeu levar-me para passear quando atracarmos em uma delas, e quero impressioná-lo mostrando que conheço tudo!

— Entendo — disse Selar, admitindo a si mesma que a explicação era perfeitamente lógica, mas nem por isso fazia com que acreditasse nela.

Por um instante, a médica pensou em dizer à menina que havia decidido pagar sua passagem para Vulcano a fim de que fosse colocada em uma ótima instituição de ensino e tratamento médico de seu planeta, mas resolveu não fazê-lo. Ela falaria sobre isso mais tarde, depois que a missão estivesse terminada (no pressuposto que conseguissem sobreviver) e todos os acertos tivessem sido feitos. Seria melhor não elevar as expectativas da menina antes de tudo estar certo; pois ainda faltava muito tempo.

Além disso, Thala ainda estava-se recuperando dos efeitos do terrível trauma por que passara com o pesadelo induzido pelo artefato. As grandes emoções, mesmo as agradáveis, deviam ser evitadas até que os efeitos do trauma fossem completamente superados.

Por isso, em vez de fazer-lhe as perguntas que tinha em mente, Selar apenas assentiu com a cabeça.

— Quer almoçar? Ou devo ir sozinha?

— Já estou indo! — Thala ergueu-se alegremente de um salto, com o rostinho radiante. — Estou morrendo de fome!

 

O menino caminhava descalço pela beira da estrada, sentindo a aspereza da poeira quente entre os dedos dos pés. Fazia calor sob os raios brilhantes dos sóis duplos. A estação chuvosa em Khitomer ainda estava muitos dias adiante, e a paisagem marrom e cinza esverdeada brilhava sob o sol da tarde. Pequenas nuvens de poeira esbranquiçada subiam a cada passada dos pés descalços de Worf, enquanto ele caminhava atrás de LengwI', seu targ de estimação.

O targ era um animal cinzento de grande porte, musculoso e focinhudo, de olhos pequenos e brilhantes. O animal batia acima da cintura do menino, apesar de Worf ser grande para sua idade. Ainda faltava muito para o primeiro Rito de Ascensão de Worf, mas ele já sonhava com isso. Sonhava com o dia em que seria um guerreiro, viajando pelas estrelas em um cruzador de batalha. O menino também sonhava com o dia em que comandaria uma nave, imaginando-se sentado na cadeira de comando, sentindo em sua mente o peso da armadura de couro e metal sobre os ombros.

O targ rosnou subitamente e correu em direção à sombra de algumas árvores. Latindo e rosnando selvagemente, cavou sob as árvores, rasgando a terra com as presas, escavando o solo esverdeado. Ouviu-se então uma luta desesperada, depois um guincho de vitória do targ, ao arremeter-se contra uma pequena criatura peluda com as patas dianteiras e abocanhá-la. A garganta do infeliz animalzinho esguichou sangue quando as presas afiadas do targ quase a rasgaram pelo meio. Em seguida, a fera klingon engoliu sua presa em duas bocados.

— Bom menino, LengwI! — elogiou Worf. O targ rosnou e contorceu-se de prazer, enfiando o focinho comprido na mão do menino para ser acariciado. — Você apanhou aquele animalzinho! Você é o melhor targ de caça de todo o planeta! — alisou o pelo grosso e cinzento da fera, procurando evitar os espinhos pontudos.

LengwI fungou, obviamente sem saber que era o único targ naquele fim de mundo do império que era o planeta chamado Khitomer. O rostinho de Worf contraiu-se numa careta ainda mais marcada que a de costume. Ao menos sua família havia-lhe permitido levar consigo seu animal de estimação para a colônia klingon. Não podia imaginar como seria estar ali sem LengwI para auxiliá-lo nas caçadas e fazer-lhe companhia.

Worf suspirou. Não gostava de estar preso naquela colônia distante e pouco povoada, enquanto Mogh, seu pai, trabalhava no estabelecimento do sistema de comunicação planetário. Eles já estavam ali meia estação a mais do que Mogh havia previsto.

Distraído, Worf passou o dedão do pé sobre o buraco que LengwI havia cavado, cobrindo de volta as raízes da árvore. Se ao menos Mogh levasse Worf, LengwI, a mãe e a babá de Worf, Kahlest, de volta para casa, tudo voltaria a ficar bem. Em seu planeta havia outras crianças com quem treinar batalhas estratégicas e combate corpo-a-corpo. Havia poucas crianças da idade de Worf naquela colônia, e a maioria eram meninas.

Não que houvesse algo de errado com as meninas, pensou Worf. Algumas delas lutavam até que muito bem, compensando a menor estatura com reflexos mais rápidos, mais esperteza e mais ferocidade no furor da batalha. Mas não era o mesmo que ter outros meninos com quem fazer amizade.

O menino suspirou, e LengwI grunhiu, percebendo-lhe o estado de espírito, e esfregou o focinho espinhudo na mão de Worf. Quando o menino olhou para seu animal de estimação, viu em seus olhinhos um certo brilho que lhe era familiar.

— Mas você acabou de comer — disse ele. — Será que já está com fome de novo?

LengwI fungou em assentimento.

— Bem, ainda não é hora de sua refeição, portanto se estiver com fome vai ter que caçar alguma coisa. Pode ir! Mate!

O focinho úmido e espinhudo do targ estremeceu, enquanto ele cheirava o ar. Logo partiu correndo em direção a outra árvore. Worf observou com orgulho o targ rapidamente cavar, matar, rasgar e devorar outro animalzinho, um pouco maior que o primeiro.

Bom menino! — elogiou ele.

Worf olhou para o céu, vendo que o pequeno sol avermelhado estava quase tocando o horizonte. Seu estômago roncou de fome. Logo seria hora do jantar e sua mãe estava preparando uma torta de sangue de rokeg.

O estômago do menino roncou ansioso com a lembrança. Ordenando ao targ com um aceno que deixasse de lado os últimos restos do animalzinho, Worf começou a caminhar de volta para casa. Ouviu atrás dele as patas do targ cobrindo de terra seca o buraco. Então gritou:

— Dessa vez você não me alcança! — e partiu correndo para casa.

Worf abriu os olhos, sentou-se e olhou em volta, encontrando-se em sua própria e bem conhecida cabine. O sonho fora tão real! O cheiro do pó e da vegetação de Khitomer ainda permanecia cm suas narinas. Seu estômago rugia de fome e sentia água na boca ao imaginar como seria comer uma torta de sangue de rokeg de verdade, quente, suculenta e salgada. Os sintetizadores de comida da Enterprise, por mais precisos que fossem, não conseguiam reproduzir o sabor de carne fresca, recém-abatida.

Ele ergueu-se de sua estreita e dura cama. A cabine de Worf era quase tão despojada quanto a cela de um monge.

Worf vestiu rapidamente o uniforme. Passou sua faixa cm volta do ombro, ajustando-a no espelho, e verificou a carga do phaser. Alisou o cabelo, que não era tão longo quanto o da maioria dos klingons, pois Worf procurava manter um equilíbrio entre a aparência exigida de um oficial da Frota Estelar e um guerreiro klingon.

Depois disso, o chefe de segurança caminhou até a porta, mas parou subitamente e enrijeceu o corpo. Aquele sonho... não havia sido apenas um sonho. Era uma lembrança. Aquilo realmente havia acontecido. Ele se lembrava...

... lembrou-se de ter sido acordado no meio daquela mesma noite por seu pai, que fez com que ele, a mãe de Worf e sua babá, Kahlest, corressem para o abrigo antiaéreo.

Pouco depois o ar encheu-se com o cheiro de destruição e morte, bem como os gemidos dos feridos e agonizantes. Sua mãe havia apertado o filho nos braços, sem importar-se com os protestos do menino, dizendo que queria lutar e matar os inimigos que os atacaram de modo tão covarde.

O ataque romulano à colônia Khitomer fora inesperado e sem ter havido qualquer provocação. Antes do amanhecer do dia seguinte, quatro mil klingons, incluindo toda a família de Worf e seu targ de estimação, estavam mortos. Oficiais da federação encontraram o menino klingon movendo-se debilmente sob os destroços que o cobriam e o trouxeram de volta à luz. A primeira coisa que ele viu foi um uniforme da Frota Estelar, semelhante ao que usava naquele momento.

Worf tinha passado o resto de sua vida entre humanos...

Aquela torta de sangue de rokeg foi a última vez em que estivemos juntos, pensou Worf. Lembrou-se de ter jogado os restos para LengwI', que estava embaixo da mesa, e de ser repreendido por sua mãe. Ouviu também em sua mente o eco do riso áspero e ruidoso de seu pai...

O klingon continuou seu caminho. Já bastavam aquelas recordações. Tristeza e solidão não tinham lugar no coração de um guerreiro klingon. Ele tinha coisas para fazer e tarefas para cumprir.

Com passos rápidos e decididos, Worf saiu de seu alojamento. Seu estômago roncou novamente de fome, mas por estranho que parecesse, percebeu que já não tinha vontade de comer uma torta de sangue de rokeg.

 

Assim que o grupo de pesquisa reuniu suas observações, Picard convocou uma reunião na sala de conferências, para que um relatório fosse apresentado aos oficiais superiores. Data, La Forge e o alferes interino Crusher relataram individualmente o que haviam descoberto. Wesley fez um resumo dos resultados e conclusões referentes ao artefato. A princípio, o jovem oficial estava um pouco nervoso, o que era bastante visível, mas à medida que prosseguia sua explanação, a hesitação desapareceu e ele falou de modo conciso e claro a respeito dos resultados das leituras dos sensores e suas correlações com os dados do computador médico.

Picard acenou com a cabeça quando o rapaz terminou sua explicação.

— Obrigado, Sr. Crusher. Foi muito esclarecedor. Alguém tem algum comentário a fazer?

Na verdade, o capitão já havia decidido o que devia ser feito, mas preferiu ouvir todos os pontos de vista relevantes antes de anunciar seus planos. Naturalmente, se ouvisse argumentos suficientemente convincentes, estaria disposto a mudar de idéia.

Não seria esse o caso naquele momento. Durante vários minutos, o capitão ficou ouvindo o debate, no qual se repetiram especulações e teorias já mencionadas anteriormente. Worf e Riker acreditavam que o artefato era uma arma e que a Enterprise devia correr o risco de tentar destruí-la. La Forge era a favor de que fosse teletransportada uma equipe de exploração, para tentar desligar seus sistemas. Beverly Crusher, por outro lado, era da opinião que se devia evitar todo contato com o ambiente alienígena.

Picard ouviu todas as opiniões, depois ergueu a mão pedindo silêncio.

— Decidi seguir a sugestão do tenente comandante La Forge e autorizar uma equipe de exploração a transportar-se para o artefato, numa tentativa de desligar o campo de energia que nos está prendendo. — Voltou-se para Will Riker. — Número um, você irá liderar a equipe.

Riker assentiu com a cabeça, com o rosto barbado contido porém sereno.

Liderar esse tipo de equipe era uma parte importante de sua função, mas obviamente ele não poderia discutir se Picard manifestasse o desejo (como fazia ocasionalmente) de liderar pessoalmente uma equipe de exploração.

— Tenente Worf, você será o oficial de segurança nesta tarefa.

O oficial klingon não sorriu, mas algo como um discreto esgar de satisfação surgiu em sua face quase imóvel. Era evidente que ele estava ansioso por alguma ação, como sempre.

— Comandante La Forge e Data, quero que acompanhem a equipe e usem a visão e a percepção especiais que ambos possuem para descobrir tudo o que puderem a respeito do local.

— Sim, senhor — murmuraram os dois.

— Capitão, gostaria de recomendar mais uma pessoa para integrar a equipe de exploração — disse Riker.

— Sim, Imediato?

— Gostaria de pedir à Dra. Crusher que permitisse que a Dra. Gavar, da equipe médica, nos acompanhasse. Se os tellaritas são realmente imunes aos campos de alteração mental do artefato, então a presença de Gavar pode ser muito útil.

Picard assentiu.

— Concordo. Dra. Crusher? A oficial médica chefe hesitou.

— Concordo que isso pode ser uma medida sensata, já que Gavar demonstrou na Marco Polo que possui alguma resistência à influência do artefato. No entanto, preferia não dar-lhe uma ordem. Afinal de contas, ela é uma oficial da Frota Estelar em estágio a bordo desta nave. Mas se ela se apresentar como voluntária... — ela deixou a frase no ar.

— Muito bem — disse Picard. — Ela irá, se concordar em ser voluntária para essa missão.

A médica tocou seu comunicador.

— Doutora Gavar?

— Sim, doutora? — ouviu-se a voz da tellarita.

— O capitão está enviando uma equipe de exploração para o artefato, numa tentativa de livrar-nos de seu campo trator. Descobrimos que a razão aparente por que você não foi acometida da mesma psicose que atacou Montez é o fato de que o cérebro dos tellaritas não pode ser afetado pelas ondas de energia do artefato. Por esse motivo, o capitão Picard está procurando um tellarita que se apresente como voluntário para integrar a equipe de exploração.

Houve um instante de hesitação, depois a médica disse com tranqüilidade:

— Informe o capitão de que sou voluntária.

— Obrigada, Gavar — disse Crusher. — Vou informar ao capitão. — Crusher desligando.

Ela tocou novamente no comunicador, para fechar o canal, depois acenou afirmativamente com a cabeça para Riker.

— Quando pretendem partir?

O comandante ergueu-se decididamente.

— Por mim, gostaria de estar bem longe daquela coisa. — Riker olhou para Picard com uma expressão inquiridora no rosto. — Por isso, sugiro que a equipe de exploração seja enviada para lá o mais breve possível.

O capitão assentiu com a cabeça.

— Providencie para que assim seja. Imediato. E boa sorte.

 

Ao reunirem-se do lado de fora da sala de transporte 4, o comandante Riker fez uma avaliação crítica de sua equipe de exploração. Data, Geordi, Worf e a Dra. Gavar, bem como o próprio Will, estavam usando o uniforme de trabalho pesado com coletes inflados. A leitura dos sensores de Data e Wesley indicava que o ambiente a bordo do artefato era bastante frio — pouco acima da temperatura de congelamento.

Riker verificou o ajuste e a carga de seu phaser pela última vez, e a equipe seguiu seu exemplo. Apesar de não ter sido detectada qualquer forma de vida a bordo do artefato, não havia como prever o tipo de sistemas de defesa automáticos que iriam encontrar. Alem disso, apesar das leituras dos sensores, Will não estava totalmente convencido de que não havia seres vivos ali. Muitos aspectos do artefato tinham-se mostrado de tal modo alienígenas a ponto de serem praticamente indetectáveis pelos sensores.

Ele olhou para a tellarita e viu que ela tinha uma pequena bolsa presa ao cinto. Percebendo seu olhar, ela tocou na bolsa com sua mão grossa e semelhante a uma pata de animal.

— É um estojo médico — explicou ela, com sua voz rouca e áspera.

— Duvido que precisemos disso no lugar para onde estamos indo — disse Riker — mas suponho que é melhor estarmos preparados para tudo. Gostaria de levar um phaser, doutora?

— Não, senhor. — respondeu ela, enrugando o focinho. — Minha pontaria não é grande coisa. Tenho medo de tropeçar e acertar em alguma coisa ou em alguém por engano.

Worf não chegou a revirar os olhos, mas a expressão do rosto do chefe de segurança klingon foi bastante eloqüente.

— Tudo bem, Gavar — disse Riker apressadamente. — Estamos todos armados. A propósito, gostaria de agradecer-lhe por voluntariar-se pessoalmente para fazer parte da equipe de exploração.

— É meu dever como médica, senhor. — respondeu ela com firmeza, revelando seriedade nos pequenos e frágeis olhos envoltos por pregas de pele cor de rosa. — Farei tudo o que puder para ajudar a salvar meus pacientes nesta emergência.

— Comandante Data, quero que registre tudo que encontrarmos e virmos — instruiu Riker. — Compreendido?

— Sim, comandante — respondeu o andróide, fazendo a verificação final em seu tricorder.

— Todos prontos?

Ao ver o sinal de assentimento, Riker conduziu o grupo até a sala de transporte, onde o chefe O’Brien aguardava junto aos controles.

— O’Brien — disse Riker. — Quero que nos mantenha focados o tempo todo, para poder transportar-nos imediatamente de volta, se houver problemas.

— Sim, comandante. — disse o chefe. — Mas para isso, a equipe terá que se manter unida o tempo todo. A distorção causada pelo campo torna a localização e a focalização individuais praticamente impossíveis.

Riker assentiu com a cabeça.

— Compreendo, chefe O’Brien. — Voltou-se então para sua equipe com seriedade. — Todos devem ficar juntos, fui claro?

— Sim, senhor — responderam todos.

— Boa sorte, comandante. — O rosto amplo e geralmente bem-humorado de O’Brien mostrava-se preocupado, e Will imaginou ter visto algumas rugas em torno de seus olhos e da boca. Riker ficou pensando se o chefe de transporte de cabelos castanhos claros não teria tido um daqueles sonhos.

Nesse caso, seria mais um dentre muitos. Um número cada vez maior de membros da tripulação estava apresentando no rosto uma expressão assustada, um olhar vazio ou cheio de temor. A Dra. Crusher tinha relatado que quase quarenta por cento da tripulação e metade de sua família havia tido um daqueles sonhos "reais" induzidos pelo artefato. Nem todos os sonhos eram assustadores, mas os pesadelos eram mais numerosos do que os sonhos agradáveis.

Havia outras estatísticas ainda mais preocupantes. Dezessete tentativas de suicídio, uma bem sucedida e outra que provavelmente não sobreviveria. Cinco tentativas de assassinato. Quarenta e três casos de catatonia. Oitenta e quatro crises nervosas. Cento e sessenta e duas pessoas em tratamento para depressão severa. Sem mencionar uma betazóide que não podia ser despertada de seu sono, pelo risco de que o trauma emocional e mental que assolava a nave pudesse destruir-lhe a vida ou a razão.

A caminho da sala de transporte, antes de reunir-se com a equipe de exploração, Will havia passado pela enfermaria. Ficou observando por um momento as belas feições da conselheira inconsciente, emolduradas por grandes madeixas de cabelo encaracolado e negro. Bela Adormecida, pensou ele, sentindo em seguida um súbito nó na garganta. A visão de Troi adormecida fez reviver uma série de lembranças e recordações que ele imaginava estarem enterradas havia muito tempo.

Tomando-lhe a mão inerte, Riker dirigiu um pensamento a ela, esperando que de algum modo ele pudesse alcançá-la em meio a seu sono induzido pelos medicamentos. Agüente firme, Deanna. Vamos tirar você disso, eu prometo, meu bem. Agüente firme...

Ao sair da enfermaria, ele ficou preocupado ao perceber que todos os leitos estavam ocupados e quase todas as salas de estar e dormitórios haviam sido ocupados pela equipe médica para cuidar dos tripulantes que ficaram incapacitados devido à influência do artefato.

A diminuição do pessoal em serviço estava começando a prejudicar a eficiência da nave, e havia casos novos chegando à enfermaria a toda hora. Temos que conseguir desligar aquele campo, pensou Riker. Ou vamos ter que correr o risco de fazer explodir aquele maldito artefato.

A equipe subiu no transportador e manteve-se ereta e pronta. Worf colocou a mão sobre a arma. Riker acendeu sua lanterna, para o caso de materializarem-se num ambiente escuro, e acenou com a cabeça para o chefe de transporte.

— Acionar — ordenou ele.

As paredes da sala tremeluziram ao redor deles, tornando-se indistintas. Riker sentiu seu corpo desaparecer no espaço e depois materializar-se em outro lugar — uma sensação profundamente perturbadora mas já bem conhecida depois de tantos anos.

O ar frio atingiu-lhe o rosto e a garganta. Ele viu-se cercado de luzes e cores e muitos sons ressoavam em seus ouvidos. Um segundo após perceber que o transporte estava concluído, Riker foi acometido de intensa vertigem, mil vezes maior do que a sensação que experimentara ao observar o artefato pela primeira vez.

O comandante respirava com dificuldade. Sentiu-se cego e surdo ao ver-se cercado de cores e sons alienígenas que não eram próprios para serem assimilados ou sequer tolerados pelos olhos e ouvidos humanos. Um odor estranho invadiu-lhe as narinas, mais doce que vinho tinto e ao mesmo tempo mais amargo que bile.

Encolhendo-se, nauseado, Riker cambaleou alguns passos, tentando fechar os olhos e tapar os ouvidos com as mãos, mas foi atacado pelas horríveis e gritantes cores. Sua visão foi invadida por formas impossíveis, enquanto sons insanos rasgavam-lhe a mente através de seus tímpanos, fazendo-o desejar a surdez ou a morte. O próprio ar torturava-lhe a pele do rosto e das mãos, fazendo sua carne arrepiar-se e enrugar-se, até parecer-lhe que os ossos iriam saltar fora.

Chega! Teve vontade de gritar. Meu Deus, faça isso parar! Chega, por favor! Mas sua boca e sua língua não lhe obedeciam. Seu corpo estava caindo para o lado, fora de controle, sem conseguir manter-se ereto, porque já não lhe pertencia mais...

Nem sua mente. E essa era a pior parte do ataque.

A dor do nascimento, a agonia da morte, orgasmo, sofrimento — experiências físicas e emocionais nuas e cruas amontoavam-se em sua mente enquanto ela se torcia e debatia, tentando inutilmente funcionar e compreender as imagens, acontecimentos, sentimentos que lhe eram total e inegavelmente estranhos e alienígenas.

Ele foi dominado por emoções, todas elas estranhas, alienígenas, intensas e fundamentalmente erradas, distorcidas, enviesadas, retorcidas. O comandante sentiu que essas emoções estavam destruindo sua sanidade mental, rasgando-a em pedaços, expulsando sua psique e enviando-a de volta para os mais profundos recessos de sua consciência, enquanto sua essência, seu ego, sua alma, lutava sem sucesso para evitar essa violação final.

Will Riker teve um breve repente de lucidez para perceber que estava caído de lado, encolhido, com o cheiro de seu próprio vômito ofendendo-lhe as narinas, e que iria morrer ou perder a razão. Naquele último segundo, rezou desesperadamente para morrer, sabendo que nenhum conceito antiquado de inferno eterno poderia se igualar ao que o aguardava nos recônditos de sua própria mente, caso conseguisse permanecer vivo.

 

Geordi La Forge estava gritando, mas não conseguia ouvir a si mesmo. Tudo que podia perceber era o turbilhão de sons estridentes que o envolviam, o pandemônio que refletia o caos que reinava em sua própria mente. Sua pele era uma prisão de gelo flamejante. O gosto que lhe enchia a boca era tão azedo que parecia fazer sua língua murchar.

Ele havia perdido todo o senso de direção ou localização no espaço. Não sabia mais onde estavam seus companheiros. O engenheiro cambaleou sozinho, chocando-se contra as paredes e formas, gritando enquanto caminhava, até finalmente tropeçar em algo sólido, desabando pesadamente no chão.

Descobriu então que a movimentação ajudava a conter o ataque mental, pois assim que ficou imóvel, sentiu sua mente ser invadida com selvagem intensidade por algo que tentava remodelar, reestruturar e refazer a própria configuração de sua razão. Ele sentiu seu corpo tentando respirar num ritmo alienígena, seu sangue tentar correr segundo um padrão não humano, sua carne retesar-se tentando remoldar sua forma física.

O Deus, faça com que eu fique surdo? Pensou ele, enfiando os dedos nos ouvidos, tentando concentrar a mente na tabuada de multiplicação, na tabela de logaritmos naturais, na tabela de raízes quadradas — em qualquer coisa que fosse racional e ordenada, qualquer coisa que o protegesse do caos.

Enquanto lutava sua batalha perdida, Geordi jogava a cabeça para cima e para baixo, usando seu VISOR para ver e afastar a escuridão que ameaçava arrastar sua mente para uma abençoada inconsciência. Concentrou-se, tentando manter um minuto ou segundo que fosse a consciência, porque não podia deixar de ver.

Momentos depois, as trevas venceram a batalha, e La Forge afundou no vazio, consciente apenas do terrível sentimento de pesar por não ter conseguido perseverar, por não ter-se provado digno de sua própria visão.

 

Ele sentia-se tomado pelo may'QeH, o furor da batalha, e isso era bom. Rosnando, Worf disparou pelos corredores, sem saber ao certo onde estava, pois na verdade os lugares físicos e labirintos alienígenas confundiam-lhe a mente. Ou talvez estivesse em algum outro nível de existência, era impossível saber. Nada disso importava. Ele estava ali para lutar, e o prazer da batalha sobrepujava todos os seus outros conhecimentos ou objetivos.

Já não se importava de procurar manter a postura de oficial da Frota Estelar. Isso era coisa do passado. O fogo que havia-se apossado de seu sangue tinha expulsado todas as fracas inibições que lhe foram impostas pela criação e o treinamento na Frota Estelar. Havia apenas a inebriante e avassaladora certeza de que estava diante do inimigo e a obstinada busca da vitória.

Ele sabia que estava em perigo, mas esse conhecimento era como o calor do Hiq correndo em seu sangue, como se tivesse realmente ingerido alguma bebida embriagante, como a cerveja romulana, não o fraco sintetol consumido pelos humanos. Cego de fúria, ou talvez por causa das luzes que explodiam em sua visão. Pouco importava. Atacou, soltando um rugido. Seu punho deveria estar protegido. Onde estavam suas manoplas? Esmurrou novamente uma superfície dura.

Ensurdecido pelo glorioso hino de guerra que ressoava em seu sangue, ou será que estaria incapaz de ouvir porque seus ouvidos estavam cheios de estranhos sons alienígena? Isso também não importava. Ele estava ali e iria lutar!

Mas que lugar era aquele? Confuso, Worf girou em volta, sem saber se ainda estava em seu próprio corpo ou se estava lutando contra um inimigo saído do fundo de sua própria mente. Não tinha certeza se o que via era real ou uma ilusão, mas isso também não importava! Tentando distinguir uma coisa da outra causava-lhe agonia, e isso não importava. Um guerreiro usava sua própria dor como incentivo e estímulo que impelia o ser valoroso para frente até uma glória mais elevada!

Worf piscou os olhos, percebendo subitamente algo perturbador. Seu phaser! Já não estava mais em sua mão! Quando isso teria acontecido? Ele precisava encontrá-lo. Com o phaser, ele poderia provocar uma destruição muito maior do que com seus pés e mãos, por mais hábeis e treinados que fossem.

Dando meia-volta (será que tinha realmente se movido?... era impossível dizer), ele começou a procurar sua arma. Devia estar em algum lugar. Com a arma ele conseguiria alcançar sua glória final. Os inimigos iriam sentir sua fúria, bem como todo aquele lugar. (Mas seria aquilo um lugar? Ou estaria ele dentro de sua própria mente?)

Sacudindo a cabeça, Worf arreganhou os dentes e apertou os olhos, tentando focalizá-los, mas por mais que tentasse, somente conseguia ver a estranheza, mas nada de seu phaser! Ele começou a berrar palavrões, porque as malditas cores, imagens e formas QI’yaHghuy-cha' estavam atrapalhando seu caminho! E pior de tudo, ele não conseguia sequer ouvir os próprios palavrões que proferia por causa dos Qu'vatlh sons alienígenas!

— naDev vo 'ylghoS! — rugiu ele, ordenando que as imagens, cores e sons desaparecessem!

Mas eles não sumiram. Worf virou cambaleante uma esquina, avistando por trás da tela de cores uma figura mais escura e quase familiar que se movia. Finalmente, algo concreto que ele podia matar!

Worf atacou a figura com fúria assassina, mas ela esquivou-se de seu punho (será que estava realmente ali?) Tropeçou em alguma coisa e estatelou-se no chão, mas com sendo um guerreiro bem treinado, ergueu-se num piscar de olhos e preparou-se para atacar novamente.

Mas as cores, imagens e sombras que haviam invadido sua mente zombavam dele. Não havia nada ali. Nada...

A raiva de Worf esfriou subitamente, como brasas em contato com água. Onde estava seu phaser? Ele devia estar atirando, atacando o inimigo, matando sua presa! O que havia de errado com ele? O oficial klingon fez um esforço para ver, para concentrar-se...

... E enquanto lutava para agir, pensar, lugar, ele tombou como um galho seco, atingindo a superfície dura sob seus pés com um ruído seco. E lá permaneceu, com o rosto para baixo, imóvel.

 

Gavar percebeu que estava com problemas no instante em que se materializou. Seus pequenos olhos foram atacados por mil cores, com visões de formas impossíveis e perturbadoras, enquanto suas pequenas orelhas pregueadas eram feridas por sons estranhos. Odores enjoativamente doces assaltaram suas narinas sensíveis. Meus sentidos, pensou ela, procurando freneticamente manter os olhos fechados. Não posso confiar neles...

Algo pesado estatelou-se a seu lado: um corpo. Ajoelhando-se, Gavar tateou com sua mão grossa de dois dedos e um polegar a figura caída até encontrar um rosto, percebendo que a "carne" era mais lisa do que a de qualquer humano ou klingon. Tratava-se do comandante Data. Os circuitos do andróide deviam ter entrado em curto devido à sobrecarga sensorial.

Procurando às cegas em seu estojo médico, a tellarita conseguiu localizar pelo tato o rolo de ataduras e uma tesoura cirúrgica. Resistindo à vontade de abrir os olhos e tentando desesperadamente ignorar os sons alienígenas que pareciam determinados a introduzirem-se em seus ouvidos como insetos furiosos, ela cortou tiras de ataduras e enfiou-as nos ouvidos com força, até bloquearem a pior parte dos sons. Deu um longo e aliviado suspiro, depois amarrou uma faixa em volta da cabeça para manter os tampões no lugar.

Passou a cuidar dos olhos. Com cuidado, Gavar mediu uma faixa de atadura e amarrou-a cm volta da cabeça, cobrindo os olhos. Procurou ver através da venda translúcida e deu um grunhido de satisfação. A atadura atenuava as cores nauseantes e obscurecia os ângulos e arestas das formas e imagens impossíveis que a cercavam e a deixavam tonta e enjoada.

Perguntou-se então quanto tempo teria passado desde que tinham sido transportados para aquele lugar. Calculou que não devia ter passado mais de um minuto. Tocou o comunicados, sem saber se sua própria voz seria ouvida e compreendida em meio a todos aqueles sons.

— Gavar falando — disse ela, com sua voz raspada e fanhosa. — Encontramos terríveis distorções sensoriais. Tive que cobrir os olhos e os ouvidos para não ficar louca. O comandante Data está inconsciente ... ou desligado ... sei lá. Não posso ouvi-los porque não me arrisco a destampar os ouvidos. Não façam qualquer tentativa de resgate antes que eu me comunique com vocês novamente. Este lugar... é terrível. É como estar no meio de um pesadelo... — Ela parou de falar por um instante, depois continuou: — Entrarei cm contato em breve. Gavar desligando.

Ao longe, ela ouviu um som diferente, o som de um humano sofrendo, algo que já tinha ouvido muitas vezes no passado. Isso fez com que se lembrasse dos sons que ouvira ao ser designada para uma ala psiquiátrica humana: um grito agudo e estridente que se prolongava continuamente, penetrante como a adaga da loucura.

Percebendo o contorno de uma figura escura que se movia em sua direção, Gavar esquivou-se rapidamente para trás, e o humano, ou seja o que fosse, tropeçou no corpo inerte de Data e caiu. Por alguns segundos ele contorceu-se e debateu-se. Gavar apenas conseguia ver os contornos indistintos da figura movendo-se à sua frente, gritando o tempo todo daquele modo agudo e estridente. Então, subitamente, ele parou de mover-se.

A tellarita arrastou-se até o corpo para verificar-lhe o pulso. O homem estava respirando e vivo, mas seu pulso estava fino e rápido. Tateando-lhe o rosto, ela encontrou o formato de meia-lua do VISOR. Era La Forge.

Gavar deixou-o onde estava, com as pernas apoiadas sobre o dorso de Data. Ficando em pé, seguiu cambaleante, apoiada na parede, procurando qualquer forma familiar entre as imagens alienígenas que mal conseguia discernir.

Suas narinas sensíveis captaram um cheiro conhecido entre os odores alienígenas: vômito humano. Ela agachou-se e identificou uma forma escura surgindo entre as cores insanas. Comandante Riker! Perguntou-se ela. Pouco depois, tocando a testa do homem, descobriu a resposta.

Aparentemente estava vivo, mas em pior estado do que La Forge. Agarrando as dobras de seu colete, ela começou a arrastar o pesado corpo de volta para junto dos outros. Resfolegando, largou-o quando chegou a um passo dos outros oficiais, depois ergueu-se. O klingon... para onde teria ido?

Ela tocou o comunicador.

— Aqui fala Gavar novamente. Encontrei os humanos. Estão vivos. Vou procurar Worf. Gavar desligando.

Sem saber por onde começar, decidiu arriscar-se a afrouxar a atadura que cobria uma das orelhas. Ficou atenta por um segundo...

Esse segundo quase foi sua perdição. Gavar recostou-se na parede, com os joelhos fracos, sentindo a mente chacoalhar, como se a loucura estivesse tentando derrubar as frágeis barreiras que ela havia erguido para proteger-se. Mas ela tinha ouvido um rosnado bem claro que em nada se assemelhava com os sons indefinidos e alienígenas que a cercavam. Tinha vindo, supôs ela, da direita...

A médica hesitou, pensando e avaliando. Humanos insanos eram uma coisa, mas um klingon enlouquecido era algo completamente diferente. Por um instante, ficou tentada a abandonar o chefe de segurança e pedir à Enterprise que os transportasse de volta. Então apertou os dedos roliços e aprumou seu corpo atarracado e porcino. Tinha ao menos que tentar. Não podia abandonar um companheiro para morrer naquele lugar horrendo.

Ao virar a cabeça para a direita, seus dedos tocaram o estojo médico. Gavar parou e abriu-o rapidamente, com súbita inspiração. Se conseguisse encontrar a ampola certa...

Removendo o injetor, procurou lembrar-se da disposição dos medicamentos no interior do estojo, tentando visualizar a imagem mental de seu arranjo. Crusher freqüentemente treinava sua equipe a trabalhar cm ambientes sem gravidade, com pouca ou nenhuma luz e em meio a destroços simulados.

Encontrei, pensou ela, quando seus dedos grossos e cascudos apanharam uma ampola de sedativo. Orou a suas deusas tellaritas para que fosse o medicamento correto. Se tivesse cometido um erro, Worf poderia morrer.

Tirando a atadura da orelha novamente por apenas um instante, ela ouviu novamente o rosnado demente. Tinha que ser o klingon.

Apoiando-se na parede, segurando firmemente o injetor com a outra mão, Gavar caminhou para a direita. Quando percebeu pelo tato que havia chegado a um cruzamento de corredores, ela chamou:

— Tenente? Está aí?

Ela não achava que receberia uma resposta racional, apenas esperava que ele a ouvisse e rugisse furioso novamente.

Levou aproximadamente um minuto, calculado pelo pulsar de seu coração acelerado, chamando e ouvindo por rápidos instantes, para ela escutar novamente o rugido. Vinha da direita...

Por fim, ao virar outro corredor, sentiu uma vibração, como se um corpo pesado tivesse atingido uma superfície dura. Gavar parou onde estava, perguntando a si mesma se deveria arriscar-se a erguer a venda por um instante que fosse, forçando a vista através da atadura, procurando uma figura escura à frente...

A parede vibrou novamente, mais forte. Afrouxando por um rápido momento a atadura que lhe cobria a orelha, Gavar ouviu o gemido raivoso do klingon.

Mãe de Muitos, pensou ela, com um estremecimento de pavor. Esqueci-me do phaser!

Ela encolheu-se, meio que esperando ser desintegrada ou vaporizada a qualquer momento. Diante de seus olhos surgiu uma figura escura. Tinha que ser Worf!

Ele correu em direção dela, e Gavar esquivou-se, com surpreendente agilidade nos pés cascudos, apesar de todo o seu peso. O klingon girou o corpo e atacou novamente, esticando os braços para a médica, fazendo com que ela sentisse seu bafo quente no rosto por um instante, então a tellarita chutou a canela dele com toda a força, e ele caiu. Rápida como um pensamento, ela agachou-se a seu lado e injetou-lhe o sedativo, sem saber ao certo em que parte do corpo. No ombro, provavelmente. Afastou-se imediatamente, quando ele se ergueu.

Gavar contou os segundos, baseando-se nas batidas de seu coração: dez, doze, quinze... Oh, Minha Mãe, serão que não funcionou?

Dezessete, vinte... vinte e dois.

Então sentiu o chão sob seus cascos vibrar com a queda do klingon, que desabou como uma estátua.

Obrigada, Mães, todas vocês... orou Gavar fervorosamente, enquanto verificava rapidamente o pulso e a respiração de Worf pelo tato. Ele estava totalmente inconsciente. Ela tinha-lhe dado a dose completa, porque não conseguira calibrar o injetor. Mas não havia dúvidas de que ele estava vivo. Ela tinha usado a medicação correta.

Agarrando a parte de trás do colete do klingon com ambas as mãos, ela começou a arrastá-lo. Mas antes de ter ido muito longe, sentiu intensa dores nas costas por caminhar encurvada. Rapidamente, Gavar tirou o próprio colete, virou o klingon de barriga para cima e amarrou as mangas do colete cm volta da cabeça dele. Depois deu a volta, deu-lhe as costas, agachou-se e segurou-o pelos pés. Erguendo os pés do klingon até a altura dos cotovelos dela, agarrou-lhe os calcanhares. Assim era muito melhor. Começou então a caminhar...

... Parou pouco depois, com o coração palpitando. Será que estava no caminho certo?

Passou algum tempo tentando lembrar se havia virado para a direção certa. Por fim, decidiu que estava indo na direção errada. Sabia que um engano significaria morte certa para ambos. Lentamente, Gavar virou-se até estar voltada para o outro lado. Começou então a arrastar o klingon.

Manteve o cotovelo esquerdo encostado na parede, tentando achar o caminho de volta...

A certa altura, sentiu o cotovelo solto no ar. Rezando o tempo todo para ter escolhido a direção certa, virou à esquerda.

Com certeza não tinha andado tanto assim! Devia ter errado o caminho e estava perdida naquele labirinto de insanidade! Gavar endireitou os ombros com determinação e começou a contar os passos, desejando ter feito isso desde o princípio. Vinte e cinco, vinte e seis, vinte e sete...

Decidiu que iria parar e voltar quando chegasse a cinqüenta...

Quarenta e três, quarenta e quatro, quarenta e cinco, quarenta e seis...

Seu pé cascudo tocou em algo macio. Tinha-os encontrado!

Com um soluço de alívio, Gavar deixou cair seu fardo. Tocou o comunicador.

— Gavar, falando — ofegou, numa mistura de pavor e cansaço pelo esforço realizado. — Estou com todos aqui. Estamos juntos. Leve-nos de volta, O’Brien!

Por estar vendada, não viu o efeito do transportador formar-se à sua volta, mas depois de um segundo sentiu a abençoada sensação de desmaterialização.

Assim que se materializaram, ela rasgou a atadura que lhe envolvia os olhos e orelhas, podendo ouvir a voz das pessoas e sentir o toque de suas mãos.

Enxergou então a imagem sadia e nítida da sala de transporte da Enterprise e do rosto da Dra. Chandra. A raça de Gavar não chorava, mas ela sentiu os joelhos bambearem e teria caído ao chão se não fosse auxiliada pela mulher humana.

— Estão todos vivos? — perguntou ela, olhando temerosa para os companheiros caídos. Beverly Crusher estava passando o sensor sobre o corpo do comandante Riker. As prioridades médicas retomaram seu lugar em sua mente e a médica procurou reassumir sua postura profissional.

— Dra. Crusher — conseguiu dizer, num tom mais seguro — tive que sedar o klingon com vinte centímetros cúbicos de Qong-Hergh.

Beverly Crusher ergueu o rosto, com uma expressão terrivelmente preocupada, mas sem a tristeza que Gavar temia ver.

— Estão vivos, Gavar — disse ela, procurando tranqüilizá-la. — Graças a você, estão todos vivos.

 

Jean-Luc Picard entrou na enfermaria quase correndo. Beverly Crusher raramente o tinha visto tão visivelmente agitado. Quando ele a viu ao lado da maça de diagnóstico e tratamento na qual Will Riker jazia inconsciente, Picard parou e se aproximou com cautela, como se temesse despertar o paciente do coma.

— Como está ele? — perguntou Picard, em voz baixa.

Beverly suspirou. Se fosse possível acordar Will apenas com barulho. Não vai ser assim tão fácil. Em voz alta, ela disse:

— Fisicamente ele está bem. Mas recolheu-se para o fundo da própria mente, provavelmente num último recurso para conservar a própria sanidade.

Picard olhou em volta.

— E quanto a La Forge, Worf e Data?

— Todos estão-se recuperando — relatou ela, animada. — Geordi voltou a si poucos minutos depois de voltar à nave, sob a ação de uma pequena dose de tircordrazina. Worf ainda está dormindo. Gavar aplicou-lhe uma forte dose de sedativo klingon. Mas seu padrões cerebrais indicam atividade normal. Ele deve acordar normalmente em aproximadamente oito horas. A Dra. Selar e o comandante La Forge estão agora trabalhando para restaurar Data a suas plenas funções. Disseram que não deve demorar muito.

— O que aconteceu com Data? Por que o artefato o afetou? Certamente um trauma mental não poderia perturbá-lo, pois é um andróide.

— Aparentemente seu cérebro positrônico desligou automaticamente ao deparar-se com um ambiente sensorial instável e contraditório a bordo do artefato. Ele foi o primeiro a perder a consciência.

— Quero conversar com todos eles, com exceção naturalmente do tenente Worf, assim que possível. — Picard olhou para o rosto barbado de Riker. — Ele está em coma?

— Não — respondeu Crusher. — Sua condição atual assemelha-se à catatonia apresentada por muitas outras vítimas do artefato que examinamos.

— Ele vai-se recuperar normalmente ou você vai tentar tirá-lo desse estado?

Ela suspirou.

— Não creio que consiga recuperar-se sem intervenção médica. No momento, estou avaliando as minhas opções. Pensei em pedir a um dos vulcanos que tentasse uma fusão mental, mas nenhum dos integrantes de nossa equipe é médico com formação psicológica. Essa é uma especialidade vulcana equivalente à de psiquiatra na Terra. Os médicos da Academia Vulcana de Ciências talvez sejam capazes de ajudá-lo... — Ela interrompeu o que dizia, balançando a cabeça.

— Não posso esperar uma cura hipotética! — exclamou o capitão. — Droga, doutora! Preciso do comandante Riker, e preciso dele agora.

Os olhos castanhos de Picard encheram-se de preocupação e... sim, medo. Algo que Beverly Crusher nunca vira acontecer até então.

— Esta crise está ficando pior a cada momento. Dentro de doze horas a Enterprise provavelmente estará nas mesmas condições em que encontramos a Marco Polo.

Crusher enrijeceu os lábios de frustração e apontou com raiva para a enfermaria repleta de pacientes.

— Ninguém tem mais consciência desse fato do que eu, senhor. Mas não posso permitir a utilização de qualquer tratamento que possa colocar em risco a vida ou sanidade de um de meus pacientes!

— E quanto à conselheira Troi? Ela e Will compartilham um ... elo especial. Seria possível ela chamá-lo de volta, usando suas capacidades empáticas e sua voz?

Crusher hesitou.

— Isso seria possível. Mas se eu despertar Troi, ela ficará sujeita ao trauma mental que está assolando a nave. Seria muito arriscado.

— Você pode monitorar suas condições. Sc o estresse for muito grande, pode voltar a sedá-la. — Picard olhou para a conselheira adormecida. — Se Deanna soubesse que Will precisava dela, com certeza iria querer ajudá-lo, não importando os riscos que tivesse de correr — em voz baixa, acrescentou — sei disso tão bem quanto você, Beverly.

A oficial médica chefe de cabelos ruivos fitou o rosto de Riker por um minuto, em silêncio, depois ergueu lentamente a cabeça, com os olhos azuis brilhando.

— Acho que posso ter encontrado um meio — sussurrou ela. — Sc ao menos isso desse certo...

— Se o quê desse certo, doutora? — exigiu Picard.

— Quando o comandante Riker contraiu aquela doença de uma planta alienígena, todas as áreas de seu córtex cerebral foram monitorizadas numa tentativa de se descobrir que tipo de lembranças conseguiria matar o vírus invasor — explicou Crusher.

— Prossiga — pediu o capitão.

— Assim sendo, tenho dados extremamente detalhados do cérebro do comandante, mais do que de qualquer outra pessoa a bordo. Se conseguirmos trazer a conselheira Troi de volta à consciência e fazer com que sua mente seja canalizada para formar um elo exclusivo com o comandante Riker, em vez de abrir sua percepção para que receba o trauma mental de todos os tripulantes da nave... — Ela bateu o punho na palma da mão, ficando cada vez mais entusiasmada. — Ela poderia concentrar-se numa área específica do cérebro de Riker, fazendo-o saber que está em segurança. Jean-Luc, isso pode dar certo!

O capitão assentiu com a cabeça, com os olhos brilhantes de satisfação e respeito.

— Faça isso, doutora. Beverly concordou.

— Eu o avisarei quando estiver pronta para realizar a tentativa — Picard assentiu com a cabeça e virou-se para sair. — A propósito, capitão...

Ele voltou-se.

— Sim, doutora?

— Quero recomendar a Dra. Gavar para que receba uma medalha de bravura.

— Eu mesmo iria sugerir algo semelhante, doutora — disse o capitão. — Terei muito prazer em endossar sua recomendação. Por falar nisso, gostaria que a doutora estivesse presente quando a equipe de exploração apresentar seu relatório. — Ele olhou rapidamente para o segundo oficial que jazia inconsciente. — Assim que o comandante Riker estiver em condições.

— Entendido, capitão — disse Crusher. — Começarei imediatamente.

— O que é isso? — perguntou uma voz. O som penetrou em sua mente, despertando pela primeira vez. um pensamento consciente. — Não é humano, é?

O conhecimento fluiu, numa resposta automática às perguntas. O conhecimento que havia sido acumulado por muito tempo, à espera de um momento como aquele. O ser que atendia pelo nome "Data" abriu os olhos...

(Eu sou um "ele"? perguntou-se automaticamente a si mesmo, e a resposta interna imediata foi: Sim, minha programação e características corpóreas foram desenhadas para corresponder aos atributos de um ser do sexo masculino.)

... seu olhos tiveram pela primeira vez em sua existência uma visão consciente das coisas.

Havia rostos à sua volta, que sua programação reconheceu como sendo "humanos". Dois homens e uma mulher. Ele sentiu-se agradavelmente surpreso por perceber que não tinha dificuldade em distinguir o sexo daquelas pessoas.

(Devo ter sido programado com grande número de informações e capacidade de discernimento. Isso é bom. Informação é algo valioso e contribui para o conhecimento e a sabedoria.)

— Parece um tipo de robô — acrescentou uma voz diferente. Novamente o conhecimento fluiu, e Data percebeu que sua boca se abria.

— Não sou um robô — disse ele. — Sou um andróide. Chamo-me Data. Os humanos deram um passo para trás, surpresos e assustados.

— Ele fala! — exclamou o primeiro humano.

— Sim, é verdade — respondeu Data. Ele ergueu-se e moveu a cabeça para apreciar os arredores. Ele estava sentado em uma prancha de pedra lisa dentro de um nicho escavado na rocha. Além dos corpos humanos ele viu mais rocha cinzenta e uma escadaria cavada na pedra. — Sou capaz de falar em muitas línguas diferentes — acrescentou ele. — Saudações.

Eles haviam-se agrupado em formação defensiva, e Data percebeu que todos tinham a mão sobre o coldre de armas que sua memória havia identificado como "phasers". Seus olhos fitaram seus rostos pálidos e sobressaltados.

— Ah! — disse ele. — Uma típica reação de medo humana! Por favor, estejam certos de que não pretendo fazer-lhes nenhum mal. Poderiam fazer a gentileza de identificarem-se?

O primeiro homem engoliu em seco. Data observou, fascinado, seu pomo de Adão mover-se e seus músculos do pescoço contraírem-se. (Preciso experimentar isso! Qual será a sensação?)

— Somos tripulantes da nave estelar Trípoli — disse o homem de pele clara, numa voz mais aguda do que a que havia usado anteriormente. — Sou o tenente Adams. Esta é a alferes Sait — disse ele, apontando para a mulher de pele escura. — E este é o tenente Maginde — apontando para o outro homem, que tinha a pele mais escura de todos.

— É uma honra conhecê-los — disse Data, assim que seus bancos de memória lhe forneceram um cumprimento apropriado.

— Como você chegou aqui... ahn, Data? — perguntou a mulher.

O andróide olhou em volta novamente. Por alguma razão, seus olhos fixaram-se na parede de rocha à sua esquerda, mas ele não sabia por que nem sua memória lhe forneceu a resposta.

— Não sei — disse ele, lentamente. — Sinto que fui programado para acordar aqui, desta maneira, quando fosse descoberto por seres sencientes como vocês... mas não sei o motivo.

— Há outras pessoas morando neste planeta? — perguntou Maginde. — Pensamos que haveria uma colônia aqui, mas não encontramos qualquer sinal dela.

Novamente Data fitou a parede de pedra, mas não teve nenhuma recordação.

— Não sei. Devo ter sido colocado aqui por alguém, mas se foram pessoas deste planeta ou de outro, não sei dizer. Suponho que fui trazido para cá de outro lugar.

Os humanos entreolharam-se.

— Escute, Data — disse Adams. — Vamos voltar agora para nossa nave e relatar o que vimos a nosso capitão... nosso oficial superior. Ela decidirá o que faremos com você.

— Vocês voltarão para cá? — perguntou Data, desejando subitamente que não fosse deixado sozinho.

Deve ter havido algo em sua voz que revelou sua preocupação, porque a mulher sorriu de repente.

— Não se preocupe, Data. Prometo que alguém voltará para cá.

Momentos depois, os três desapareceram por meio do que os bancos de memória do andróide identificaram como um raio transportador padrão da Federação.

Data aproximou-se da beira da prancha de pedra e sentou-se. Examinou seu próprio corpo. Ele estava vestindo um macacão dourado. Curioso, abriu a veste e examinou a substância semelhante a carne que lhe cobria o peito. Estranhamente pálida, parecia ter um discreto brilho dourado e opalescente. Ele tocou a cabeça e descobriu cabelos, perguntando-se qual seria a cor deles. Abrindo mais a sua veste, descobriu, como algo em sua programação lhe

havia informado, que possuía todo o equipamento necessário para simular perfeitamente um humano do sexo masculino.

Sua programação também lhe informou que era inteiramente funcional como parceiro sexual humano. Sua memória continha extensas informações a respeito do assunto.

Data fechou o macacão e lentamente tentou ficar de pé. Deu um passo, perguntado-se se aquele teria sido a primeira vez que o fazia. Sob seus pés, o chão era duro e levemente irregular. Com cuidado, o andróide caminhou alguns passos até sair do nicho escavado na rocha onde havia despertado. Olhou para a escadaria.

Quem terá me construído? perguntou-se ele. E por quê? Tenho uma consciência. .. mas ela é gerada artificialmente. Não sou humano. Ele pensou em Adams, Sait e Maginde. Eles me chamaram de "isso", uma "coisa". Não me consideram humano, não importando o quanto me assemelhe a um deles.

O andróide subiu lentamente a escada até chegar no nível da superfície. Sem qualquer esforço, sua mente forneceu-lhe o nome das coisas que seus olhos visualizavam: árvores, grama, arbustos, campos, céu... até que sua vista fixou-se nas montanhas ao longe. Data caminhou pela grama até aproximar-se de uma árvore. Olhou ao redor, percebendo que a vegetação não se enquadrava no parâmetro de "saudável", segundo seus bancos de memória. Este lugar está morto, pensou ele, preocupado em perceber que havia algo de errado com seu planeta. Por quê?

Momentos depois, ele pensou: Eu viverei mil anos. Posso ser destruído, mas excluindo-se dano físico, minha mente e meu corpo irão durar para sempre, desde que eu seja devidamente suprido de peças de reposição.

Ele pensou novamente nos humanos. Mas eles irão morrer. Outra coisa que me diferencia deles.

Data olhou para o céu, perguntando-se onde a nave estaria naquele momento. Será que cumpririam sua promessa de voltar? Ou ele seria abandonado ali, num planeta morto, para existir por séculos até que algum circuito vital viesse a falhar e sua consciência fosse apagada? A idéia de que isso poderia acontecer fez com que surgisse nele o interno desejo de que as coisas não ocorressem dessa forma. Ele não queria ficar sozinho. Desejava companhia. Ele sabia que havia sido criado para ser útil, não para existir na solidão.

Ele falou em voz alta, olhando para o céu.

— Não me deixem sozinho... por favor. Quero ir com vocês.

Pensando nos humanos a bordo da nave, os quais podiam conversar, compartilhar amizade, tarefas e um propósito na vida, Data experimentou pela primeira vez a idéia que iria caracterizar e definir toda a sua existência. Eu gostaria de ser verdadeiramente um deles. Eu gostaria de ser humano...

— Só mais um toque nesta conexão frouxa... Aí está! Isso deve bastar! — disse uma voz conhecida.

Data abriu os olhos e encontrou Geordi La Forge e a Dra. Selar fitando-o atentamente.

— Data, está me ouvindo, cara? — perguntou Geordi, preocupado.

— Estou ouvindo você, Geordi — disse Data, vendo o rosto de La Forge iluminar-se com um amplo e aliviado sorriso. Até o rosto geralmente inexpressivo da tenente Selar relaxou um pouco.

— Ótimo! — disse La Forge. — Sabe que você me deixou preocupado há pouco, Data! Pensei que havia colocado todas as peças de volta, mas você não recobrava a consciência. Fiquei morto de medo, até que Selar viu uma conexão que estava meio solta.

O andróide ignorou as palavras do amigo, ao perceber algo extraordinário.

— Geordi — disse ele, apressado, tocando o braço do engenheiro. — Eu tive um sonho!

— Você o que? — La Forge deixou cair o queixo. — Isso é possível?

— Foi o que aconteceu — disse Data, pensativo, relembrando o que ocorrera. — Sonhei com o dia em que acordei pela primeira vez em meu planeta natal, onde o Dr. Soong me construiu. Eu revivi toda a experiência, exatamente como aconteceu!

— Acha que foi o artefato? perguntou La Forge, ainda esforçando-se para compreender o que havia acontecido.

— É mais provável que tenha sido a conexão frouxa — sugeriu Selar. — Ela estimulou uma área específica de seu centro de memória, Data.

— Seja lá como tenha sido — disse o andróide — isso realmente aconteceu. Compartilhei a experiência sofrida pelo restante da tripulação. Dessa vez... — ele apertou com mais força o braço de La Forge (sempre cuidadoso para não exercer pressão excessiva) — ... não fiquei de lado. Compartilhei uma experiência vivenciada por muitos humanos a bordo desta nave. Reagi de modo humano.

Geordi deu de ombros.

— Acho que sim. Diga-me Data, foi um sonho agradável ou um pesadelo?

— Foi um sonho muito agradável — disse Data com muita seriedade. — Sonhar fez-me perceber o quanto progredi nos últimos vinte e oito anos. Ao contrário de muitos seres nesta nave, devo agradecer ao artefato por esse vislumbre que me concedeu do passado.

 

Havia perigo a toda a volta. A entidade que no mundo exterior conhecia a si mesma pelo nome de William T. Riker estava extremamente ciente do perigo e da necessidade de permanecer escondida, sem se mexer, temporariamente em segurança naquele lugar escuro e secreto. Não tinha bem certeza de onde estava... tudo que sabia era que as coisas que o tinham afugentado para aquele esconderijo não o haviam encontrado. Ele estava temporariamente seguro. Sabia, porém, que se tentasse sair dali, as coisas o pegariam. Elas o devorariam e o engoliriam de uma só vez, fazendo-o desaparecer para sempre. Mesmo que parte dele detestasse ficar escondida, porque sempre havia sido um ser corajoso que encarava o perigo de frente, a minúscula parte racional que lhe restara dizia-lhe que algumas ameaças eram grandes e assustadoras demais para serem enfrentadas.

Ele vira certa vez um mapa copiado de um original do século XVI, que fora feito na época em que os homens navegavam pelo mar e não pelas estrelas. Canais, passagens e ventos alísios estavam nele assinalados, mostrando as rotas seguras pelas quais os navios podiam chegar ao Novo Mundo. Havia, porém, algumas áreas em branco, não mapeadas. Nessas áreas foram desenhadas criaturas fantásticas, muito semelhantes aos habitantes de Berengaria VII, cheias de escamas, com presas, asas e caudas bifurcadas. O mapa mostrava a seguinte inscrição: "Aqui Vivem Monstros".

Riker concluíra estar preso no meio de uma dessas regiões não mapeadas, cercado de bichos muito piores que dragões. Naquele instante, estava a salvo, mas somente se não se mexesse e não tentasse sair dali. Suas lembranças forneceram exemplos de ocasiões em que havia usado a razão para enfrentar o medo, ou como último recurso, havia lutado para proteger-se. Mas aqueles monstros eram fortes demais. Só conseguiria permanecer a salvo se ficasse escondido.

Por isso, encolheu-se naquele minúsculo e escuro refúgio, para continuar escondido.

Deu-se conta, porém, de modo não muito preciso, de que não poderia permanecer escondido para sempre, mas a minúscula parte de sua mente que ainda era capaz de raciocinar argumentou que se os monstros não o encontrassem por bastante tempo, provavelmente iriam procurar outra presa, dando-lhe então a chance de escapar. Mas ele teria de esperar até ter certeza de que eles tinham ido embora.

Naturalmente, não havia como determinar a passagem do tempo naquele lugar, mas Riker não se permitiu pensar nisso. Tudo que sabia era que estava em segurança, desde que não se mexesse nem saísse de seu esconderijo.

De repente, ele sentiu uma certa perturbação nos limiares de seu santuário. Ele prestou atenção, sentindo medo de novo. Os monstros o haviam encontrado!

Will... ressoou uma voz até os recessos de sua mente. Will Riker...

A voz (ou seria um pensamento? não havia como saber...) parecia familiar. Mas os monstros, ao menos alguns deles, eram inteligentes. Podia ser que estivessem tentando enganá-lo para que saísse de seu esconderijo.

Riker não respondeu. Vão embora, pensou ele, com o que lhe restava de seu raciocínio.

O tempo passou... ele não tinha como saber quanto. Começou a relaxar novamente.

Então, subitamente, a voz voltou, dessa vez bem mais próxima.

Will! E Deanna. Onde está você? Você pode sair agora, não há mais perigo.

Deanna? Ele havia conhecido uma Deanna. Tinham sido amantes por algum tempo, depois, mais recentemente, tornaram-se amigos. Ele podia confiar em Deanna... ele sempre havia confiado em Deanna...

Mas talvez fosse um monstro, tentando enganá-lo.

Ele ficou escondido.

Will! A voz chamou-o de quase dentro de seu esconderijo! Will, saia de onde estiver. Está seguro, pode vir. Entrar em contato com você é muito difícil para mim. Will, se eu ficar aqui por mais tempo, posso perder minha identidade! Will, imzadi, preciso de você, confie em mim!

Somente Deanna o chamava de imzadi. Ninguém mais conhecia aquele apelido secreto. Isso, junto com seu apelo "preciso de você" tocaram-no mais do que qualquer coisa seria capaz de fazer.

Deanna? pensou ele, movendo-se para junto da presença dentro de sua mente. Deanna, é mesmo você?

Sua resposta foi cheia de alegria e alívio. Sim, Will. Sou eu mesma! Oh, meu Deus, estou tão contente de tê-lo encontrado! Venha comigo.

Mas existem monstros aqui, disse ele, com simplicidade infantil.

Não se ficarmos juntos, foi a resposta dela. Quando ficarmos juntos, estaremos a salvo e felizes, não é mesmo?

Sim... , concordou ele.

Will, é perigoso para mim ficar aqui, disse ela. Especialmente para mim. Se não quer que eu me prejudique, tem que sair agora mesmo!

Ele não queria que Deanna se ferisse. Amava Deanna, sempre a amara, apesar desse sentimento ter mudado com o correr dos anos, transformando-se numa verdadeira e cálida amizade, em lugar da paixão romântica que existira no início. De modo algum ele permitiria que ela se ferisse.

Uma frase da infância surgiu-lhe na mente. Muito bem! Prontos ou não, aqui vou eu!

Ele lançou-se na direção da presença.

Deanna estava lá com ele. Era mesmo Deanna. Seu amor o envolveu, mantendo-o em segurança, e como a Beatriz de Dantc, ela o guiou, conduzindo-o pelo caminho, para alem dos monstros, através do inferno, para fora de seu tormento particular... e os monstros rosnaram, grunhiram e uivaram, mas estavam impotentes naquele instante em que os dois estavam juntos.

A sombria paisagem de seu purgatório particular iluminou-se e tornou-se brilhante quando os dois emergiram de volta ao mundo consciente. Sua capacidade de raciocinar retornou, juntamente com os sentidos de seu próprio corpo e todo o seu conhecimento.

Ele estava inteiro novamente... curado..

Will Riker abriu os olhos e viu três rostos que o fitavam preocupados. Deanna Troi, Jean-Luc Picard e Beverly Crusher. Deanna estava segurando sua mão com força quase a ponto de fazê-la doer... mas ele não queria que ela o largasse. Precisava do carinho humano de seu toque. Will passou a língua pela boca que estava tão seca quanto as areias de Velara III.

— Olá — sussurrou ele. Estava confuso. Não tinha acabado de ser enviado pelo transportador com a equipe de exploração. Foi fora parar naquele lugar? Onde estava ele? — Onde estou?

— Ele voltou! — disse Crusher, parecendo muito aliviada. — Deanna, você conseguiu. Agora tem que voltar para a cama.

Dois rostos desapareceram. Riker sentiu Troi soltar-lhe a mão. Sentindo-se abandonado, tentou virar a cabeça para acompanhar a saída das duas com os olhos, mas estava muito dolorido e fraco, que mal conseguiu virar o pescoço.

Imediatamente outra mão tocou-lhe a testa.

— Will — disse Picard calorosamente, com um sorriso de alívio nos lábios. — Seja bem vindo!

Riker esforçou-se para formar palavras e por fim conseguiu dizer:

— É bom estar de volta. Seja aqui onde for.

A última coisa de que se lembrava era ter desmaiado a bordo do artefato. Ele olhou em volta e viu-se em um ambiente que lhe era familiar. Estou na enfermaria, reconheceu ele.

— Você está na enfermaria — disse Crusher, voltando para perto dele. — De volta a bordo da Enterprise.

— Onde está Deanna?

— Tive que sedá-la novamente — disse Crusher. — Era muito estressante para ela permanecer acordada.

— Posso me sentar? — perguntou Riker, empurrando gentilmente o painel de diagnóstico e tratamento que cobria seu tórax. — E posso beber alguma coisa?

— Sim. Pode sentar-se, se conseguir — disse ela, afastando a unidade dele. Picard ajudou-o a erguer-se. Riker sentou-se no leito e bebeu um copo de água fria.

— Não consigo lembrar-me de quase nada — confessou ele. — Exceto que eu estava em algum lugar... em segurança e não queria sair...

As lembranças voltaram aos poucos, e Will virou-se para olhar para a paciente adormecida no leito ao lado. Sua aparência era exatamente igual à que Riker havia visto antes de partir com a equipe de exploração, com exceção de um discreto sorriso que lhe aparecia nos lábios.

— Deanna! — exclamou Riker, quando se lembrou de tudo. — Era sua voz, sua mente, chamando-me de volta.

— Sim — assentiu a médica. — Ela despertou apenas o tempo suficiente para entrar em contato com você. Depois tive que sedá-la novamente. Mas ela o salvou, Will. Quando ela acordar, deve agradecer a ela.

— Vou convidá-la para jantar no melhor restaurante que houver na próxima base estelar em que atracarmos. — disse Will com entusiasmo. — E duas dúzias de rosas vermelhas — pensou por um instante. — É melhor que sejam três dúzias e uma caixa de seu chocolate favorito.

Beverly Crusher sorriu.

— Acho que é um bom começo.

 

 

Picard estava sentado no pequeno consultório de Crusher, observando a equipe de exploração recém-ressuscitada. Estavam todos lá, com exceção de Worf que ainda dormia. O capitão preferia que ele estivesse dormindo para não se sujeitar aos efeitos do artefato. Não queria um klingon enfurecido derrubando tudo em sua nave. Ele tinha uma boa idéia do motivo por que a tripulação da PaKathen não tinha sobrevivido por muito tempo.

Will Riker ainda estava pálido, mas seus olhos tinham o brilho usual. Geordi La Forge parecia um pouco abatido, mas seu sorriso matreiro estava de volta. Data olhava fixamente para um ponto aproximadamente na altura do ombro do capitão, como se estivesse refletindo sobre algo bastante pessoal. Gavar parecia estar em pior condições que todos, o que não era de se espantar. O rosto da tellarita era difícil de se analisar, mas sua postura era de quase exaustão, ela estava sentada junto a uma mesa, apoiando-se pesadamente nos cotovelos, com os braços cruzados à frente.

O tricorder de Data estava sobre a mesa, ligado ao terminal da sala de instruções. O aparelho tinha sido encontrado nas mãos do andróide quando ele foi transportado de volta. Como ele tinha caído por cima do aparelho, cobrindo-o com o próprio corpo durante a maior parte da missão da equipe de exploração, não havia muitas imagens visuais gravadas, e mesmo essas não podiam ser vistas por um ser humano a não ser que fossem altamente filtradas. Os sons gravados não eram algo que Picard quisesse ouvir novamente.

Mas os sensores haviam registrado grande quantidade de informações a respeito da gravidade, atmosfera, fontes de energia e estrutura do interior do artefato. Eles sabiam muito mais a respeito de como a estrutura alienígena havia sido construída. Picard tinha examinado todos esses achados, perguntando-se o tempo todo se haveria algo que indicasse a presença de armamento defensivo ou os controles do campo de energia.

O capitão pigarreou.

— Antes de começarmos nossa conversa sobre a missão malsucedida da equipe de exploração, gostaria de expressar minha profunda gratidão pelos atos heróicos da Dra. Gavar para salvar nossos companheiros. — Picard encarou a tellarita com seriedade — Tenente, obrigado. Pretendo fazer tudo que estiver a meu alcance para que tais ações sejam devida e formalmente reconhecidas pelo Comando da Frota Estelar.

Uma discreta coloração avermelhada espalhou-se pelo rosto da médica, que abaixou o olhar, encabulada.

— Obrigada, capitão Picard.

Valha-me Deus, pensou Picard. Ela está enrubescendo.

Os outros oficiais imediatamente acrescentaram seus agradecimentos pessoais à médica. Depois disso, quando a pobre Gavar parecia tão encabulada com a situação quase a ponto de sair correndo da sala. o capitão ergueu a mão, pedindo silêncio.

— Voltemos a nossos deveres — disse ele. — Gostaria que cada membro da equipe de exploração descrevesse detalhadamente suas experiências, do modo mais coerente que puder. Comandante Riker?

Os relatos prosseguiram, e cada oficial apresentou sua versão dos acontecimentos. O relato de Gavar, naturalmente, foi o mais longo, e Picard deixou-o para o fim. quando ela terminou, ele suspirou.

— Uma experiência bastante perturbadora para todos — comentou ele. — Qual sugerem ser nosso próximo passo?

Riker aprumou-se, sério.

— Capitão, não podemos esperar mais. Devemos correr o risco de usarmos nossos torpedos fotônicos numa tentativa de destruir o artefato. Precisamos escapar! Nenhuma das informações registradas pelo tricorder indicam qualquer tipo de armamento a bordo daquela coisa.

— Indicando talvez que não seja uma arma? — perguntou Picard, erguendo uma sobrancelha.

— Não foi isso que eu disse, senhor — corrigiu o segundo cm comando. — Ainda acredito que seja uma arma. E extremamente letal. Não se trata apenas de uma arma física, excluindo-se seus efeitos colaterais. E uma arma destinada a destruir mentes, que considero ainda mais letal e cruel do que qualquer bomba ou phaser que já foi inventado.

— Concordo, capitão — ouviu-se uma voz grave ressoando da porta. O tenente Worf estava lá, apoiando-se à parede, de pé apenas pela força de vontade. O klingon entrou cambaleante na sala de instruções e sentou-se numa cadeira, como se temesse que as pernas lhe falhassem.

— Tenente...! — começou a dizer Picard.

— Tentei impedi-lo — disse Crusher, seguindo o klingon para dentro da sala, tensa de indignação, com o cabelo ruivo desarrumado, como se tivesse sido empurrada para o lado pelo comandante da segurança. — Mas ele estava decidido a sair da cama! — Ela olhou para o klingon com irritação.

— Capitão, é meu dever estar aqui — disse Worf, num tom de quase súplica.

O capitão acenou para a médica enfurecida.

— Pode deixar, Dra. Crusher. Já que ele está aqui, deixe-o ficar. Suas opiniões podem ser bastante úteis.

— Obrigado, senhor — disse Worf. Beverly Crusher voltou-se e saiu da sala, indignada.

— Tenente, gostaríamos de ouvir sua versão do que aconteceu a bordo do artefato — disse Picard.

Worf relatou o que lembrava do acontecido, depois olhou meio sem jeito para Gavar.

— Doutora, contaram-me o que fez. Devo por minha honra reconhecer que fiz mal juízo de você quando a considerei incapaz de acompanhar-nos em nossa missão. Portou-se hoje com a coragem de uma verdadeira guerreira. Devo honrá-la por isso.

— Obrigada, tenente — murmurou ela.

— Capitão — disse o klingon, encarando Picard com seriedade. — Concordo com o comandante Riker. O artefato é uma arma extremamente perigosa, e devemos fazer todo o possível para destruí-lo imediatamente.

— Mas não sabemos se os torpedos fotônicos serão capazes de atravessar o campo que protege o artefato — lembrou o capitão. — Lançá-lo a uma distância tão curta pode ser extremamente perigoso para a nave.

— É verdade, senhor — disse Riker — Mas acho que devemos correr o risco, seja ele qual for.

Picard voltou-se para Data.

— Qual é sua impressão, comandante?

— Devo salientar, capitão, que não permaneci consciente por tempo suficiente para formar uma opinião sobre o que vi no interior do artefato. Contudo, se o artefato for realmente uma arma maligna, por que então alguns dos sonhos e experiências por ele provocadas foram benignas e até mesmo agradáveis?

— Boa pergunta — disse Picard. — No entanto, não creio que o propósito pelo qual o artefato foi criado, seja ele maligno ou benigno, importe tanto para nós quanto o efeito que ele está tendo sobre nós, que é extremamente negativo e perigoso. Estou começando a acreditar que nossa única alternativa será tomar todas as medidas necessárias para destruí-lo. Sim, existe um grande risco envolvido, mas permanecer aqui pode significar insanidade ou mesmo morte para todas as pessoas a bordo. Dra. Gavar, tem algo a acrescentar?

— Não, capitão — disse ela. — Deixo as decisões táticas a critério seu e de seus oficiais, que são mais experientes nesse assunto. Meu principal interesse e dever, a esta altura dos acontecimentos, é voltar para junto de meus pacientes.

— Entendo — assentiu Picard. — Está dispensada, doutora.

— Obrigada, capitão — disse a tellarita, apressando-se para sair.

— Tenente La Forge, você foi o único que não disse nada — comentou Picard. — Qual acha ser a melhor opção? A julgar pelas suas observações e leituras, devemos lançar torpedos fotônicos contra o artefato?

O engenheiro chefe suspirou.

— Sim, capitão... creio ser essa provavelmente nossa única escolha, do modo como as coisas estão... Apesar de que tenho a impressão de que não vai ter qualquer efeito, ao menos no artefato. As ondas de choque podem de fato causar conseqüências sérias para nós. — Cerrou os punhos sobre a mesa. — Mas devo dizer que é uma pena destruir uma coisa tão bela.

Riker, Data e Worf voltaram-se juntos para encarar La Forge, surpresos. Riker foi o primeiro a manifestar-se.

— Be/a? Geordi, será que aquela coisa o afetou tanto assim? Foi terrível estar lá. Como pode dizer que a coisa é bela!

— Concordo que foi terrível estar lá — admitiu La Forge. — Quase fiquei louco também, lembra-se? — Enrijeceu os lábios com determinação — Mas as imagens nas paredes, as cores que fluíam, os desenhos e padrões foram as coisas mais bonitas que já vi. Podia ter ficado admirando-as por horas a fio.

Picard inclinou-se para a frente, interessado.

— Sr. La Forge — disse ele. — Quero que descreva o mais precisamente possível o que foi que viu lá.

Geordi gesticulou sem saber o que dizer, depois deu de ombros.

— Capitão, era literalmente indescritível. Havia imagens de coisas, algumas delas repetidas. Elas fluíam e se moviam de vez em quando. Algumas delas ficavam paradas. As imagens estavam nas paredes. Algumas no teto. Tinham cores diferentes de tudo que já vi mas pareciam belas para mim.

Ao perceber como era incompreensível o que estava dizendo, suspirou de novo.

— E só uma suposição, mas acho que as imagens que mais se repetiam eram dos construtores do artefato. Eles tinham corpos, mas nada que eu tivesse visto antes. Pareciam... triângulos alongados feitos de diferentes tipos de cristais, ou metais, pois eram brilhantes. E tinham umas fitas saindo deles, diferentes umas das outras. Cada um deles tinha um padrão individualizado e muito belo. Não sei dizer se eram o equivalente a pele ou a roupas.

Picard enrugou a testa, perplexo, e olhou para os outros. Riker parecia céptico; Data, curioso; Worf, perturbado. Geordi sacudiu a cabeça negativamente.

— E preciso que entenda, capitão, que quando uso a palavra triângulo, trata-se apenas de uma aproximação. Estou apenas tentando explicar da melhor forma possível algo que simplesmente não pode ser traduzido para nossa língua.

— Compreendo — disse Picard. — Prossiga.

— Seja como for, aquelas coisas triangulares tinham uma superfície lisa, enrugada ou sedosa, além de serem brilhantes. Não estou bem certo, mas acho que os sons tinham alguma coisa a ver com eles também. Meu VISOR conseguia traduzir as imagens para algo que eu pudesse entender, o que não aconteceu com o comandante Riker e o tenente Worf. Mas meus ouvidos são normais, por isso os sons que ouvi foram uma barulheira horrível que quase me fez desejar ser surdo. Eu sentia-lhes o cheiro, o gosto e o tato em minha pele. — Estremeceu ao lembrar-se.

— Viu alguma coisa além do lugar em que nos materializamos? — perguntou Riker.

— Não, eu também desmaiei logo depois. Mas gostaria de ter visto.

— Havia outras coisas além dos triângulos que pudessem ser consideradas criaturas vivas? — perguntou Data.

— Havia, mas os triângulos eram os que mais apareciam. Foi isso que me fez concluir que deviam ser imagens dos construtores do artefato.

Geordi começou a desenhar figuras no ar, enquanto continuava a explicar.

— Havia umas coisas serpeantes que pareciam cobras, mas com folhas como a de um salgueiro. E grandes blocos de alguma coisa volumosa que pareciam montanhas refletidas na água... entendem... com aquelas ondulações em volta — sacudiu a cabeça — E tudo que lembro. Fiquei consciente só uns segundos a mais que o comandante Riker.

Geordi calou-se, enquanto o capitão parecia imerso em seus pensamentos.

— Você disse que era belo — murmurou Picard.

— Era mesmo! — disse Geordi. — Tão belo que vou me lembrar pelo resto da vida.

— A beleza — disse o capitão, erguendo a cabeça, com os olhos castanhos muito sérios — está nos olhos de quem vê.

— Uma expressão antiga, geralmente usada por apreciadores de arte — explicou Data.

Picard assentiu.

— Exatamente.

— Arte? — murmurou Geordi. Então seu rosto iluminou-se e ele ergueu a cabeça subitamente. — É claro... arte!

Will Riker ficou confuso por um instante, depois lentamente foi compreendendo e arregalou os olhos.

— Está dizendo que o artefato é... uma coleção de objetos de arte alienígena? Como uma galeria de arte?

— Creio que sim, Imediato — disse o capitão. — Que outro tipo de lugar teria pequenas salas contendo um único objeto? Que outro tipo de lugar teria corredores e salas com as paredes cobertas de imagens?

— Uma idéia extraordinária — comentou Data. — Isso realmente explicaria muitas coisas a respeito do artefato. Por exemplo, o por que de haver tantos objetos ali e todos serem diferentes entre si. Devem ser esculturas ou obras de arte tridimensionais.

— Mas por que o artefato mostrou-se tão destrutivo? — rosnou Worf, ainda confuso e descrente. — Sua visão ou mesmo sua proximidade prejudica os humanóides.

— Isso acontece porque não foi criado para ser apreciado por seres humanóides — disse Geordi, entusiasmado. — Foi construído por outra raça. Uma raça que poderíamos chamar, na falta de outro nome, de os artistas. Esses alienígenas tinham variedades de arte semelhantes às dos humanos: escultura, música, pintura e animação. Mas suas mentes eram tão alienígenas que sua arte faz mal aos humanos que a vêem ou escutam, da mesma forma como sua arquitetura!

— Sim, e creio que existe mais uma coisa — disse Picard. — Creio que os artistas criaram uma forma de arte que utiliza as emoções. Eles compõem usando emoções. É como uma história em que não conhecemos o enredo, apenas as emoções do protagonista. Mas suas emoções alienígenas são extremamente perturbadoras para os seres humanos — apontando para Worf com a cabeça, acrescentou: — e também para os humanóides.

— Então o campo de energia que nos cerca está tentando contar-nos algo que seria compreensível para os artistas, mas que nossos cérebros não podem tolerar — disse Geordi, pensativo. — Não é de se surpreender que os klingons estejam todos mortos. As emanações do artefato despertou neles o desejo de lutar.

— Sem dúvida teve o mesmo efeito em mim — disse o oficial klingon.

— Creio que conseguimos realmente solucionar parte do mistério — disse o capitão. — Mas a descoberta da verdadeira natureza do artefato, apesar de bastante interessante, não nos ajuda a resolver nosso problema. O artefato, mesmo que não seja intencionalmente destrutivo, constitui uma séria ameaça para esta nave.

— Suponho que ainda teremos que tentar destruí-lo — arriscou Riker. — Gostaria que tivéssemos uma alternativa. A idéia de explodir uma galeria de arte... bem, eu me sentiria melhor se ainda estivesse pensando naquilo como uma arma letal abandonada — disse ele, incomodado. — Pelo menos não temos mais que nos preocupar com a presença de um sistema automático de defesa, suponho.

— Não necessariamente, Imediato — disse Picard. — Não se esqueça de que as galerias de arte humanas possuem sistemas de segurança. No entanto,

— apontou para o tricorder — a julgar pelas leituras desse aparelho e as outras informações de que dispomos, não creio que o artefato alienígena possua capacidade defensiva... com exceção, obviamente, do campo de energia que consegue absorver nossos disparos phaser.

— Os torpedos fotônicos são nossas armas mais poderosas — disse Riker.

— E utilizam outro tipo de energia. Pode ser que o artefato não consiga absorver esse tipo de energia.

— Destruir o artefato pode significar a destruição do último legado de uma raça talvez extinta, capitão — lembrou Data. — Isso seria uma grande perda.

— Eu sei, Data. Concordo. — O capitão suspirou. — Se houvesse um modo de livrar-nos do campo trator ou desligá-lo de alguma forma, eu estaria disposto a tentar. Mas não há.

Geordi franziu a testa.

— Talvez eu possa voltar ao artefato com um tampão nos ouvidos e procurar os controles do campo trator. — O engenheiro chefe inclinou-se para a frente, tenso. — Droga, deve haver algo que possamos fazer! Não me conformo em termos que destruir algo tão belo! Capitão, o artefato pode tornar-se um tesouro da galáxia, se suas obras forem estudadas e traduzidas em termos compreensíveis aos humanos.

— Está se esquecendo das composições mentais — lembrou Riker, sério. — Geordi, depois de sessenta segundos você perderia completamente o juízo e nada mais poderia fazer por nós.

— Talvez a tellarita... — disse Worf, fazendo com que Picard voltasse o olhar para ele, surpreso. Era inesperado ver um klingon interessado por arte.

Riker sacudiu negativamente a cabeça.

— A Dra. Gavar é uma profissional médica. Mesmo que conseguisse encontrar o caminho, sem o auxílio da visão ou da audição, suas chances de conseguir encontrar e desligar os controles do campo trator seriam ínfimas.

— E verdade — concordou La Forge, desanimado. — A pessoa mais capacitada para a tarefa seria Data, mas seus circuitos não estão calibrados para suportar um lugar como aquele.

Fez-se um silêncio pesado e sombrio. Picard então endireitou os ombros, ergueu-se e disse:

— Gostaria de não ter que fazê-lo, mas a segurança da nave vem em primeiro lugar. — Voltou-se para Worf. — Tenente, prepare-se para disparar torpedos fotônicos a meu comando.

Worf ergueu-se, ainda um pouco vacilante.

— Sim, capitão.

— Capitão — disse Data, abruptamente. — Espere, por favor. Creio que tenho uma solução.

Picard sentou-se novamente, e Worf afundou em sua cadeira um segundo depois.

— Prossiga, Sr. Data — disse o capitão.

— O tenente La Forge tem razão ao dizer que meus circuitos e programação não foram calibrados para suportar e entender o ambiente a bordo do artefato. — O rosto e o olhar do andróide estavam extremamente sérios. — Mas senhor, eu sou... uma máquina, portanto posso ser reprogramado e meus circuitos podem ser recalibrados... ajustados para que eu suporte os efeitos do artefato. — Data voltou-se para La Forge. — Você e a Dra. Selar podem tornar-me capaz de funcionar a bordo do artefato.

Todos os olhares estavam fixos no andróide.

— Data, sabe para o que está se voluntariando? — perguntou Picard, por fim.

— Sim, senhor — respondeu o andróide, sem vacilar. — Sei muito bem. Não teria feito a sugestão se não estivesse disposto levá-la adiante, capitão.

— Mas não há como garantir que depois de mudarmos seus circuitos e programação consigamos fazê-lo voltar a sua condição anterior, Data — disse La Forge. — Isso pode ser o equivalente a ... uma missão suicida.

— Estou disposto a correr o risco, Geordi. Creio que está certo ao dizer que o artefato constitui um tesouro. Pode ser a última recordação de uma raça desaparecida. Nunca saberemos quem foram, o que aconteceu com eles ou se houve sobreviventes, a menos que o artefato seja estudado por arqueólogos da Federação.

— Mas mesmo que o campo trator e emocional que cerca o artefato seja eliminado — disse Riker, o ambiente a bordo do artefato é tão... insano que os arqueólogos não conseguiriam trabalhar ali. Não conseguiriam suportar mais tempo dentro dele do que nós conseguimos.

— Podem fazer a maior parte do trabalho preliminar utilizando sondas robotizadas — disse Picard. — Diante de um mistério tão fascinante quanto o artefato, certamente encontrarão um meio. No entanto, não é isso que nos preocupa. Estamos discutindo a proposta do comandante Data. — Picard encarou o andróide. — Data, quanto tempo acha que levaria para seus circuitos e sua programação fossem alterados para compatibilizarem-se com o ambiente no interior do artefato?

— Pelo menos uma hora, capitão. A Dra. Selar, a Dra. Crusher, Wesley Crusher e Geordi poderiam trabalhar enquanto eu estivesse desligado. Eu não sofreria qualquer desconforto, senhor. O único problema seria que depois de alterado e reativado, eu sentiria o ambiente a bordo da Enterprise extremamente perturbador. Eu teria que ser mantido em um lugar bastante simples e despojado até ser transportado para o artefato.

— Sc escurecermos a sala de transporte e a mantivermos acusticamente isolada... — disse Geordi, pensando à frente.

Picard ergueu a mão, chamando a atenção de todos.

— Senhores, estou disposto a autorizar essa experiência, porque creio que a sugestão do comandante Data pode ser viável. No entanto, seja o que for que precisem fazer para realizar a recalibração e a reprogramação, isso deve ser feito nos próximos noventa minutos. Não podemos esperar mais que isso. Lembrem-se que a cada hora mais pessoas são vitimadas pela profunda angústia provocada pelo artefato.

Geordi então ergueu-se, ansioso.

— Venha, Data. Temos pouco tempo. Vamos dar no pé.

— Dar no pé... — repetiu o andróide, perplexo, enquanto seguiam para a porta. — Oh, compreendo. Está dizendo que devemos sair logo daqui para...

A voz precisa do andróide foi sumindo ao longe. Riker estava sorrindo, mas seu rosto denotava preocupação.

— Espero que não percamos Data por causa dessa experiência, capitão.

— Compartilho de seus sentimentos, Imediato — concordou o capitão, sério. — Vamos...

Um som forte, semelhante a uma buzina, interrompeu sua frase. Os dois olharam para Worf. O sedativo que ainda estava em seu organismo havia finalmente vencido seu senso do dever, e Worf tinha caído em sono profundo, com a cabeça pendendo para trás. Um ronco extraordinário ressoava-lhe da boca aberta.

Riker piscou os olhos, exageradamente.

— Nunca tinha um ouvido um klingon roncando — disse ele. — Graças a Deus, quando eu servia como primeiro oficial a bordo da Pagh, os oficiais tinham cabines particulares.

O capitão já estava de pé.

— Vamos deixar a Bela Adormecida terminar sua soneca, Imediato.

Os dois humanos deixaram a sala sem fazer barulho, apesar de Picard estar convencido de que mesmo que tivessem saído a galope no dorso de cavalos, não teriam conseguido despertar o tenente adormecido.

 

O tenente comandante Data seguiu calma e tranqüilamente pelo corredor, carregando uma caixa debaixo do braço. Ao passar pela porta da enfermaria, virou e entrou. Usando apenas parte de sua atenção, percebeu que a enfermaria estava lotada de pacientes. Gemidos, soluços e lamentos ressoavam de muitos leitos, criando um clima pesado de sofrimento. Data concluiu que aqueles sons deviam ser enervantes para os médicos e enfermeiras que tinham de ouvi-los o tempo todo. Correu os olhos pela sala ao lado e deteve o olhar em um rosto familiar. La Forge estava sentado junto a um terminal, concentrado em seu trabalho.

O engenheiro chefe ergueu o rosto quando o andróide aproximou-se.

— Oi, Data. Estamos quase prontos para realizar as alterações finais em sua programação a fim de recalibrar seus circuitos.

— Ótimo — disse Data. — Estou preparado, mas gostaria de fazer-lhe um pedido.

— Pode dizer.

— Como as alterações finais que você vai fazer exigirão que eu seja desligado, gostaria de pedir-lhe que guardasse algo para mim — o andróide olhou em redor e abaixou a voz. — .Assim... se alguma coisa acontecer comigo... ou seja, se não conseguir fazer com que eu volte à minha... — hesitou — personalidade normal, na falta de um termo mais preciso, então isto aqui estará a salvo.

Lenta e hesitantemente, o andróide entregou-lhe a caixa. La Forge tomou-a nas mãos e examinou seu conteúdo, encontrando uma pilha de folhas de computador com um texto grafado na letra precisa e bem espaçada de Data.

— É seu romance.

— É.

— Vou tomar conta dele até você voltar — prometeu o engenheiro chefe. — Mas, Data. Você vai ficar bem. Prometo que não vou descansar enquanto não conseguir restaurá-lo completamente.

— Confio em você, Geordi — disse o andróide. — Sei que estou fazendo a coisa certa. — Observou La Forge folhear distraidamente as páginas manuscritas. — Sei que você tem andando muito atarefado, mas se lhe sobrar algum tempo extra, gostaria que o lesse, por favor.

La Forge pigarreou, sem jeito.

— Ahn... Vou estar muito ocupado mesmo — murmurou.

— Irá notar que mudei bastante aquela cena, desde que a leu pela primeira vez — disse Data, esperando que o engenheiro encontrasse tempo para ler o que ele havia escrito. Histórias eram para ser lidas, caso contrário por que escrevê-las? — Mudei o cenário para algo mais romântico, e o diálogo ficou muito mais espirituoso, creio eu.

— Ahn... claro — La Forge ergueu então o rosto, preocupado. — Data... você está com medo. Ainda e tempo de desistir, se quiser.

— Não sou capaz de sentir medo — disse o andróide, sem emoção. — Mas mesmo que pudesse, tenho certeza de que neste caso a curiosidade sobrepujaria qualquer temor que eu viesse a sentir. Sou capaz de sentir curiosidade, e o artefato é um mistério extremamente intrigante.

— Pode dizer isso de novo — disse Geordi, colocando o manuscrito cm uma gaveta e trancando-a em seguida.

Obedientemente, Data começou a dizer:

— Não sou capaz de sentir medo... — interrompeu a frase quando La Forge acenou negativamente.

— Não! Não foi isso que eu queria dizer. Só disse que você tinha razão. "Pode dizer isso de novo" é uma expressão coloquial humana.

— Outra delas! — exclamou Data, satisfeito. — Agora tenho na memória um grande número de expressões coloquiais e gírias.

— Eu sei — concordou La Forge. Em seguida, ergueu-se, resoluto. — Selar deve estar terminando de reposicionar os microcircuitos. Está pronto para deixar-nos realizar as alterações finais?

— Sim, estou — disse Data, com firmeza.

— Certo. Então vamos para a sala de transporte. Vou pedir que Selar nos encontre lá. Assim que terminarmos, nós o transportaremos diretamente para o artefato.

Os dois oficiais seguiram calados pelos corredores da imensa nave estelar. Geordi está preocupado com o fato de não voltar a me ver de novo, concluiu Data. Ele está com receio de que as alterações que irá fazer venham a causar minha "morte".

O andróide tentou pensar em algo para dizer que pudesse afastar a preocupação da mente de La Forge, mas não conseguiu. A situação era muito séria e incerta. Nessas ocasiões, refletiu Data silenciosamente, os humanos geralmente disfarçam ou dissipam a tensão com piadas. Mas ele havia aprendido havia muito tempo que o humor humano era algo complexo e incerto. Toda vez que havia tentado ser intencionalmente engraçado, tinha perdido seu tempo. Mas os humanos freqüentemente achavam graça do que ele fazia, muitas vezes por motivos totalmente incompreensíveis para Data.

Data desejou poder rir novamente como já havia feito certa vez. Aquela única ocasião em que experimentou o riso verdadeiro tornara-se para ele uma ocasião memorável. Q era um ser estranho e muitas vezes perigoso, mas havia concedido ao andróide um grande presente naquela inesquecível ocasião em que fizera com que Data conseguisse rir, embora por pouco tempo.

Quando chegaram à sala de transporte, Geordi avisou Selar que estariam esperando por ela. Geordi pareceu considerar a espera extremamente enervante. Ele ficou inquieto, caminhando de um lado para o outro. Data esperou pacientemente enquanto o chefe O’Brien fixava nele um translocalizador adaptado especialmente para o andróide, para que o chefe do transporte pudesse mantê-lo constantemente focalizado, a fim de transportá-lo de volta no momento em que isso fosse necessário.

As portas da sala de transporte se abriram, e Wesley Crusher e a Dra. Selar entraram.

— Terminei os ajustes necessário — disse Selar a Geordi. — Wesley ajudou-me a completar os últimos.

O adolescente caminhou até junto do andróide, transparecendo preocupação no rosto fino.

— Data, quero que saiba que o considero muito corajoso por fazer isso por nós — disse ele, brandamente.

— Minhas ações não exigem coragem, Wesley — disse o oficial andróide. — Trata-se simplesmente do desejo de preservar tesouros artísticos antigos para que não se percam para sempre.

Wes sacudiu a cabeça negativamente.

— Acho que em qualquer livro de história isso seria considerado um ato de coragem, Data.

Solenemente, o menino estendeu a mão. Depois de um instante, Data apertou-lhe a mão, cuidando para não exceder na força.

— Thala veio-nos seguindo até a sala de transporte — disse o jovem oficial. — Quando lhe dissemos que você ia para o artefato tentar libertar-nos, ela disse que queria dizer-lhe algo. Pode ser? Ela está esperando lá fora.

— Naturalmente — disse Data, perguntando-se por que a criança desejaria vê-lo.

O alferes interino caminhou até a porta da sala de transporte, abriu-a a chamou:

 

— Tudo bem, pode entrar.

Um pouco hesitante, a menina andoriana entrou na sala de transporte.

— Olá, Thala — disse Data.

— Olá Data — disse ela, virando-se então, evidentemente analisando as leituras de sua rede sensora. — Oh, olá, chefe O’Brien. Olá, Geordi.

Os oficiais retribuíram a saudação.

— Thala — lembrou Wesley — o capitão deu-nos um prazo para completarmos a tarefa. Ande logo.

— Certo — disse ela, então caminhou até Data. — Wesley me disse que você vai tentar fazer com que o artefato pare de nos fazer sonhar aqueles sonhos horríveis, e que isso será muito arriscado para você. Quero dizer-lhe obrigada, Data. Acho que você é muito corajoso.

Ela estendeu a mãozinha azulada, mas quando o andróide inclinou-se para apertá-la, ela impulsivamente lhe abraçou o pescoço e lhe deu um beijo no rosto. Visivelmente embaraçada por sua atitude emotiva, ela virou-se e correu para a porta. O mecanismo automático de abertura quase não teve tempo suficiente para abrir-lhe caminho. Com um brilho de sua rede sensora, ela desapareceu porta afora.

Data voltou-se para Wesley.

— Quando a vir novamente, diga-lhe que agradeço o beijo. — O menino assentiu com a cabeça. Lenta e solenemente, Data caminhou até a unidade portátil antigravitacional que Selar havia deixado em um canto e deitou-se nela.

Os dois humanos e a vulcana concentraram-se nas avaliações finais e na reposição de microcircuitos. Data ficou deitado, ouvindo a conversa, até que Geordi se aprumou e disse:

— Estamos prontos.

O engenheiro chefe aproximou-se do andróide e perguntou.

— Está na hora de desligá-lo, Data. Tudo bem?

— Estou pronto — disse Data, sem vacilar. — Deseje-me sorte, Geordi. O engenheiro chefe fez que sim com a cabeça.

— Toda a sorte do universo, Data — disse ele, dando um tapinha de apoio no ombro do amigo. Então La Forge inclinou-se, e Data sentiu os dedos do humano movendo-se sob seu braço esquerdo, procurando o botão de "desligar". Ele sentiu um súbito desejo de mudar de idéia, mas reprimiu-o. Será que estou prestes a morrer?

Depois disso, não sentiu mais nada.

 

Quando voltou à consciência, sentiu que havia algo muito errado acontecendo. O ambiente pouco iluminado visto pela porção infravermelha de sua visão mostrava-se extremamente desorientador. Os contornos e ângulos da sala tinham uma aparência perturbadoramente errada.

Data lembrou-se da razão dessa desorientação. A sala de transporte continuava a mesma que sempre fora e que ele é que havia mudado não o ajudou muito naquela situação. Ele já não mais ele mesmo.

Data ouviu sons enquanto se movia e compreendeu intelectualmente que se tratavam de vozes que sussurravam na língua da Terra. Sua memória até conseguiu lembrar o significado das palavras, mas isso de nada adiantou, pois as palavras e frases não se correlacionavam com sua mente. Não conseguia mais compreender o contexto no qual aquelas palavras e frases faziam algum sentido.

Era como ser duas pessoas ao mesmo tempo, como no antigo (e errôneo) termo esquizofrenia, que significava personalidade dividida. Uma pequena parte de sua mente, a que ele chamava de o velho Data, lembrava-se de quem e o que ele era e por que estava fazendo aquilo. Enquanto a outra parte, maior e mais recente estava totalmente desorientada e confusa.

Ele teve que reprimir o desejo de levantar-se e fugir dali. A própria presença daquelas criaturas causavam-lhe extremo desconforto. Tudo que conseguiu fazer foi ficar parado e calado.

O novo Data queria produzir sons, o mais próximo possível dos sons a que tinha sido programado para entender que seu corpo fosse capaz de produzir, mas a parte antiga do cérebro de Data insistia que ele devia permanecer em silêncio, pois esses sons seriam perturbadores para os seres que estavam a sua volta. O novo Data não conseguia identificá-los adequadamente, seus olhos não conseguiam precisar seus contornos alienígenas, mas apesar de suas formas serem estranhas, ainda eram familiares à parte antiga do cérebro de Data.

Ele ficou um pouco preocupado com a possibilidade de que o novo Data viesse a sobrepujar o antigo Data antes que o transportador pudesse ser ativado, mas então uma sensação tomou-lhe o corpo, e a parte antiga da mente de Data reconheceu tratar-se de um raio de teletransporte. O novo Data sentiu o desejo de lutar contra aquela sensação, por não reconhecê-la, mas o velho Data conseguiu manter o corpo quieto até que a sensação desaparecesse.

Ele viu-se então deitado no chão, a bordo do artefato. Ergueu-se lentamente. O novo Data assumiu o controle da situação, pois para isso fora criado. O novo Data era Data, naquele instante ao menos. No fundo de sua consciência o antigo Data preocupou-se com a possibilidade de o novo Data ficar sendo Data para sempre, mas conseguiu rapidamente desvencilhar-se dessa preocupação.

O andróide olhou em volta com sua visão alterada, ouviu com sua audição alterada e sentiu com seu tato alterado.

Geordi estava certo. Era mesmo muito belo.

Data olhou para os murais que o cercavam, observando e apreciando cada nuance de cor, sombra, textura e iluminação. Algumas das gravuras eram sem movimento, mas outras eram semelhantes a registros holográficos animados com uma seqüência de movimentos que nunca se repetiam.

E os sons! Data tocava violino e considerava-se um bom conhecedor da música de vários planetas da Federação, mas nunca ouvira nada semelhante. A escala era extraordinária, ultrapassando os limites da audição humana, envolvendo cada nota com intervalos tonais e atonais, criando um imenso tapete sonoro.

O som proporcionava o fundo musical para as gravuras, como La Forge havia suposto. Cada figura tinha seu próprio tema, e parte de sua história era contada pela música. A comparação mais aproximada com uma forma de arte humana que Data pôde lembrar-se foi a ópera, mas as emoções sentidas pelos participantes também faziam parte da história, e mudavam de imagem para imagem e de um momento para o outro.

Data conseguiu discernir, mas não sentir, o conteúdo emocional das obras. Novamente se sentiu limitado por ter sido criado como máquina. Ele podia perceber e acompanhar o componente emocional de cada história, mas não conseguia sentir as emoções por ele mesmo. E isso causou, como sempre, profundo desapontamento ao andróide.

Todas as figuras tinham sua própria história, que se entrelaçavam e se misturavam em um grande tema, que falava de esperança, benevolência e coragem diante da morte inevitável. A arte fazia parte da vida daquelas pessoas. Elas tinham realmente vivido para criar, assim como algumas culturas existiram para explorar, acumular riquezas ou conquistar o poder.

Data começou a andar, olhando em volta, escutando. Tudo gravava em seu tricorder. Não podia deixar que algo tão belo se perdesse.

Ele passou por saletas que exibiam esculturas intrincadas e belas, que brilhavam e fluíam. Algumas delas também se moviam, mudando a aparência de modo lento e fascinante, o que também fazia parte de sua mensagem.

Cada obra de arte era acompanhada de um fundo musical e emocional.

Percebendo uma luzinha que piscava em seu tricorder, Data lembrou-se de que havia prometido relatar seu progresso à Enterprise (a palavra humana parecia-lhe tão alienígena que era difícil até mesmo pensar nela.) Conforme havia sido previamente combinado, ele tocou um botão do tricorder, enviando à nave um sinal de que estava bem e que prosseguia na missão. Outro botão enviaria um sinal de que ele queria ser levado de volta à nave.

Memorizando automaticamente o caminho trilhado, Data seguiu adiante, gravando, saboreando, mas sem nunca se esquecer de que estava procurando um centro de controle que devia estar em algum lugar no meio dos labirintos do artefato.

Ele prosseguiu, seguindo com os olhos as imagens e histórias das paredes, ouvindo os tons indefiníveis da doce música de fundo.

Muitos das salas por que passou eram pequenas demais para ele, forçando-o a contentar-se cm ajoelhar-se junto à entrada e espiar o interior. Ele ficou com a impressão de que os artistas tinham sido um povo muito pequeno, provavelmente com aproximadamente um metro de altura, no máximo.

Mapeando, observando e registrando tudo, Data caminhou pelos corredores, ciente de que era o primeiro a fazê-lo em centenas, ou talvez milhares de anos.

Algumas das histórias pareceram-lhe extremamente tristes (ele era capaz de reconhecer a tristeza intelectualmente), outras eram alegres. Havia outras cujo propósito lhe escapavam. Assemelhavam-se à poesia humana chamada haiku, em que uma única impressão era o propósito da imagem ou som. A maioria das impressões eram incompreensíveis para ele.

Ele verificou a leitura do tricorder, apertou o botão para enviar outro sinal de que tudo estava bem e viu que mal havia percorrido um terço da estrutura monolítica.

Os muitos pequenos nichos existentes contendo obras de arte sólidas mostravam que havia um número muito grande de salas na galeria alienígena. Lembrando-se de como os sistemas humanos eram desenhados, Data deixou passar vários corredores e dirigiu-se diretamente ao centro do artefato.

Esse foi um dos únicos aspectos em que a arquitetura dos artistas assemelhava-se ao dos humanos. A parte central da estrutura tinha vários compartimentos contendo equipamentos artificiais que vibravam suavemente, mantendo a atmosfera, o calor, as luzes e, em algum lugar, o campo que cercava a galeria. O campo que os havia aprisionado e matado a tripulação de mais de uma centena de naves ao longo de um período desconhecido de tempo.

Data começou a verificar o funcionamento das máquinas. Obviamente, a língua dos artistas tinha sido totalmente diferente de qualquer método humano de comunicação, mas o Tradutor Universal que fazia parte de seu cérebro positrônico era capaz de fazer traduções, desde que tivesse uma amostra suficientemente grande da língua em questão.

Pouco depois, ele encontrou, como se tivesse sido deixada ali de propósito pelos artistas, ou alguém que tenha visitado o local posteriormente. Um painel começou a projetar imagens assim que foi tocado. Era uma Pedra de Roseta interestelar, que mostrava conceitos universalmente simples, como os números e termos como planeta ou estrela. As imagens progrediam gradualmente, de maneira lógica, para idéias e termos mais complexos, como velocidade da luz, nave estelar e desastre.

O cérebro positrônico de Data funcionava com a velocidade dos pulsos elétricos (a mesma da luz), por isso ele somente ficava limitado à velocidade física com que seus olhos conseguiam captar as imagens, sendo que ele podia captar, compreender e decorar a uma velocidade muito maior que a dos humanos.

Em pouco tempo, ele leu todo o conteúdo da Pedra de Roseta, aprendeu sua língua e gravou na mente a história do artefato e de seus criadores.

Eles deram o nome de Yla a seu mundo, sendo conhecidos como ylanos. Tinham sido um povo pacífico, dado a entretenimentos calmos e tranqüilos. Não havia em seu vocabulário palavras equivalentes a guerra ou luta. O mais próximo que chegavam era desentendimento. A arte tinha sido sua maior paixão, e quase todos exerciam alguma tipo de atividade artística, independentemente da profissão que possuíam. Nem todos os ylanos eram artistas exímios. Os talentos variavam de uma pessoa para outra. Mas todos os esforços eram realmente valorizados.

Os ylanos existiram como uma sociedade unificada e civilizada, vivendo em harmonia por pelo menos quinze mil anos, até sobrevir-lhes uma catástrofe. Seu sol, anteriormente benéfico, começou a emitir radiações mortais, matando em pouco tempo quase um quarto da população. Foi uma tragédia grande demais para ser imaginada. No transcorrer dos anos, porém, ficou evidente que a radiação tivera um efeito ainda mais mortal. Os machos, sem exceção, haviam ficado estéreis.

Tratava-se de uma sentença de morte para sua raça, e eles logo deram-se conta disso. Eram um povo longevo, por isso muitos deles esforçaram-se para resolver o problema cientificamente. Sua história relatava seus esforços, que foram todos em vão.

Centenas de anos antes de serem traídos pelo seu próprio sol, os ylanos haviam desenvolvido as viagens espaciais, mais como uma curiosidade do que um meio visando um fim. Não tinham o grande interesse dos humanos pela exploração, e o comércio não era uma motivação, pois não haviam encontrado nenhuma outra espécie inteligente em seu afastado setor da galáxia. O controle populacional tinha sido um dos primeiros problemas que tinham resolvido como povo civilizado que eram.

Quando os ylanos mais idosos começaram a morrer, sem ser substituídos por seres mais jovens, a população entrou em declínio. A taxa de suicídio aumentou porque as pessoas não podiam ter filhos e não viam motivo para continuarem vivendo.

Foi nessa ocasião, que vários líderes dos ylanos conceberam a idéia de construir o artefato. Seu desenho e construção deu ao restante da população um motivo para continuarem vivendo e a chance de participar pela última vez de um projeto criativo. O artefato tinha sido um projeto envolvendo o planeta inteiro, e para construí-lo os ylanos tiveram que relembrar tecnologias e conhecimentos de engenharia já quase esquecidos. Lentamente, nos anos restantes do povo, eles construíram, no espaço, uma estrutura na qual seriam guardados os tesouros artísticos do planeta.

Construíram o artefato como um monumento em memória de sua própria raça e como gesto de boa vontade para quaisquer espécies inteligentes que surgissem na galáxia posteriormente. Eles o construíram e colocaram em movimento, numa trajetória que o levaria lentamente até o braço de Órion da Via Láctea.

Pelo que Data conseguiu calcular, o artefato estava vagando no espaço por pelo menos meio milhão de anos.

Vagando... e aprisionando, e matando.

Data ficou feliz pelo fato de que os gentis ylanos jamais ficariam sabendo o que haviam desencadeado involuntariamente no cosmos nem quantas mortes violentas haviam causado.

Depois de ponderar um pouco sobre o que havia aprendido, Data emitiu o sinal de "tudo bem" por meio de seu tricorder e começou a examinar outros registros. Tudo aquilo era muito interessante. Conforme Wesley havia concluído, os ylanos tinham um jeito muito especial de encarar o universo. Muito de seu conhecimento científico era completamente diferente de tudo que Data tinha visto até então. Por exemplo: havia sementes estocadas a bordo do artefato que, quando plantadas em solo fértil, cresciam para tomar-se obras de arte vivas. Data sabia que muitos horticultores da Terra consideravam sua profissão como um tipo de arte, mas aquilo era algo diferente. Tratavam-se de plantas geneticamente manipuladas para crescerem e tornarem-se esculturas vivas, como um tipo de bonsai pré-programado.

Será que as sementes ainda seriam férteis depois de mais de quinhentos mil anos? Dificilmente isso seria possível, mas Data chegou a pensar em levar algumas delas para a Enterprise e fazer algumas experiências nos laboratórios botânicos da nave.

Percebendo que já eslava a bordo do artefato por mais de uma hora, o andróide começou a ler os registros com mais rapidez, procurando qualquer referência feita pelos ylanos ao campo de energia que circundava a nave.

Por fim, ele encontrou o que procurava. Mais uma vez, Wesley Crusher havia demonstrado sua genialidade. O menino havia dito que sentia, quase intuitivamente, que o campo que cercava o artefato não tinha sido proposital-mente construído para ser prejudicial.

Wesley estava certo. O campo trator era um efeito colateral inesperado do tipo alienígena de energia utilizado pelo artefato. Nunca teria reagido dessa maneira nas naves construídas pelos ylanos para cruzar o espaço interestelar. Como Wesley havia previsto, os ylanos viajavam por fora do espaço, Mas as naves construídas para entrar e sair das dobras espaciais, o campo de energia funcionava como um raio trator.

Os ylanos haviam criado o campo de energia que circundava a nave como um tipo de sinal ou convite, dizendo: "Venham todos ver nossa galeria de arte!" Era basicamente um tipo de propaganda.

Data examinou as referências, com a velocidade máxima permitida por seus olhos de andróide, até encontrar a parte que procurava. Depois, caminhou até o painel mais distante e agachou-se para ficar da altura dos controles.

Ele tocou um disco vermelho na parte superior do painel, então, quando as luzes azuis começaram a piscar, digitou-as na seqüência prescrita. Depois de meio milhão de anos em funcionamento, a discreta vibração da máquina cessou e suas luzes se apagaram.

O campo de energia foi desligado, e com isso acabaram-se as transmissões emocionais. O espaço de sargaço deixou de existir. A Enterprise estava livre.

 

— Consegui — exclamou o chefe O’Brien, entusiasmado. — Estou captando o sinal para trazê-lo de volta.

— E tem mais! — gritou La Forge, que estava fazendo companhia ao chefe da equipe de transporte enquanto esperavam pela volta de Data. — Ele desligou o campo de energia! O artefato não está mais transmitindo coisa alguma... Podemos abaixar nossos escudos!

O’Brien ficou mais relaxado.

— Então estamos livres. Graças a Deus — murmurou baixinho.

O comunicador de Geordi sinalizou. O engenheiro chefe tocou o aparelho e disse:

— La Forge falando.

— Imagino que esteja acompanhando tudo, Sr. La Forge — soou a voz de Picard.

— Pode estar certo que sim, capitão! Ele conseguiu!

— Sim, Sr. La Forge, sem dúvida nenhuma ele conseguiu. — No painel de Geordi os escudos da nave foram sendo desligados um a um. — O comandante Data deu o sinal para ser transportado de volta? — perguntou Picard.

— Sim, senhor. Já o estamos trazendo de volta.

— Mantenha-me informado de tudo.

— Sim, senhor.

Geordi tocou o comunicador.

— Tenente Selar?

— Selar falando.

— Estamos trazendo Data de volta.

— Estou a caminho.

O'Brien cuidadosamente escureceu o ambiente, depois manipulou os controles, fazendo o aparelho emitir o conhecido zumbido do transporte. Uma figura escura materializou-se sobre a plataforma...

Data apareceu e cambaleou.

— Data, você está bem? — disse Geordi, aproximando-se dele. O amigo encolheu-se, retraindo-se e cobrindo os olhos com as mãos. Ouviram-se sons da garganta do andróide que não se assemelhavam nem um pouco a qualquer língua ou sons conhecidos pelo engenheiro.

— O que houve com ele? — perguntou O’Brien. — Ele parece assustado.

— Não. Não se trata de uma reação emocional — disse La Forge, analisando o amigo de perto. — Parece que ele passou tempo demais no artefato e agora está tendo dificuldade em fazer a transição do modo recalibrado para sua condição normal.

— Por que ele está cobrindo os olhos e ouvidos?

Data encolheu-se ainda mais ao ouvir o som da fala humana, e Geordi abaixou a voz.

— Seus sensores auditivos e visuais estão-lhe fornecendo dados contraditórios, desorientando-o e impedindo o funcionamento de seu cérebro positrônico.

— Por que ele simplesmente não desligou, como aconteceu antes? — perguntou O’Brien, preocupado.

— Não estou certo, mas acho que é por que ele se encontra num lugar basicamente familiar, o que não acontecia a bordo do artefato da primeira vez que foi para lá. Mas depois de ter passado muito tempo a bordo do artefato, seu cérebro se adaptou para suportar seu ambiente. — Suspirou. — Para isso, Data teve que dividir seu cérebro, por assim dizer. Agora sua parte alienígena e a normal estão em conflito.

— O que podemos fazer então?

La Forge fitou o andróide, preocupado.

— Não sei. Se eu pudesse desligá-lo, posso atrapalhar a transição. Lentamente, começou a aproximar-se do amigo.

— Calma, Data — disse ele, como se estivesse tranqüilizando um cão desconhecido. — Fique tranqüilo... sou eu, Geordi. Você vai-me deixar desliga-lo para que eu possa consertá-lo, de modo que consiga funcionar aqui na Enterprise de novo.

Deu outro passo, e o andróide cambaleou para trás, encostando-se na parede, com os olhos arregalados e aterrorizados, soltando uma seqüência de guinchos e sons profundamente graves da garganta. Quando Geordi deu mais um passo adiante, o andróide gesticulou, socando o ar e tornando-se cada vez mais agitado.

— Oh, droga — murmurou La Forge, lançando um olhar desanimado para O’Brien. — Ele é mais forte que um pelotão de klingons. Se não me deixar chegar perto dele o suficiente para que eu o desligue, jamais vamos conseguir forçá-lo.

— Não pode usar um phaser para tonteá-lo? — perguntou O’Brien.

— Ele é um andróide, não um homem. Seu cérebro positrônico não seria afetado por um phaser em tonteio. Se eu usasse um nível mais potente poderia machucá-lo de verdade!

Data encolheu-se para mais longe, e Geordi encostou um dedo nos lábios.

— Quando falamos ele parece ficar mais desorientado ainda — sussurrou. O’Brien fez que sim com a cabeça e calou-se.

De repente, a porta da sala de transporte abriu-se e Selar entrou. Ela olhou para La Forge na escuridão da sala, depois para Data encolhido no canto. Rapidamente ela compreendeu a situação. Voltou-se para os humanos com uma sobrancelha erguida, como se perguntasse "e agora"?

Geordi sacudiu negativamente a cabeça e deu de ombros.

O comunicador do engenheiro chefe apitou, e todos, principalmente Data, sobressaltaram-se.

— Sr. La Forge, o que está acontecendo? — perguntou Picard. Geordi tocou o comunicador.

— A situação não está nada boa, senhor — sussurrou. — A parte alterada da mente de Data parece tê-lo dominado. Não conseguimos chegar perto dele. Ele parece bastante desorientado e assumiu uma atitude defensiva.

— O comandante Riker e eu estamos descendo imediatamente.

Enquanto esperavam o capitão, Selar, O’Brien e La Forge saíram da sala para poderem conversar normalmente, mas não sem antes travar o transportador para que não fosse utilizado.

— Se chamarmos um pelotão de seguranças... - sugeriu O’Brien, mas La Forge sacudiu a cabeça negativamente.

— Alguém acabaria se ferindo. Data é muito forte, pode crer! Já o vi forçar uma porta de metal sólido ou erguer uma pedra de quinhentos quilos.

— Eles não teriam que contê-lo por muito tempo — disse Selar. — Apenas um segundo, até que um de nós conseguisse desligá-lo.

— É muito perigoso — insistiu La Forge. — Sc pudéssemos sedá-lo com uma droga ou coisa parecida... mas Data não seria afetado por tranqüilizantes, não é?

Foi a vez de Selar sacudir negativamente a cabeça.

— A única coisa que podemos fazer — decidiu Geordi — é transportar nós dois de volta para o artefato juntos. Assim que ele deixasse de estar desorientado, ele recobraria o controle, e eu poderia desligá-lo lá, então ambos seríamos transportados de volta.

— Pelo que ouvi a respeito das condições a bordo da estrutura alienígena, isso seria um grave risco à sua sanidade mental — disse Selar.

— Não é nada agradável estar lá, concordo, mas posso agüentar alguns segundos, espero... — disse Geordi, incerto.

Ouviram-se passos, e os três oficiais viram o comandante Riker e o capitão Picard aproximando-se. La Forge rapidamente apresentou um resumo da situação, incluindo sua sugestão de ser transportado para o artefato junto com Data.

— Já perdi tripulantes demais para aquela coisa — disse Picard, sério. — Não correrei o risco de perder mais um. — Franziu a testa, pensativo. — Onde fica exatamente o controle que desliga Data?

— Do lado esquerdo — disse Riker — quase na altura dos rins. Picard apontou para a porta.

— Abra-a, chefe O’Brien. Quero avaliar a situação pessoalmente. Riker deu um passo adiante.

— Senhor, não está pensando em aproximar-se dele, está?

Picard não respondeu, apenas acenou para O’Brien.

O chefe do transporte rapidamente destrancou a porta e abriu-a. Riker fez que ia impedir o capitão de entrar, mas Picard sacudiu negativamente a cabeça, como se dissesse "não discuta comigo, Imediato", fazendo-o sair do caminho.

O capitão entrou calmamente na sala, depois deu alguns passos adiante para observar a figura encolhida de seu terceiro em comando andróide.

— Comandante Data — disse ele, a meia voz.

Um guincho encheu a sala, e Data debateu-se como pôde e fugiu de perto de Picard. O capitão deu mais um passo na direção do andróide.

— Senhor — sussurrou Riker, preocupado. — Deixe-me tentar. Correrei o risco.

Picard ignorou-o.

— Data — disse o oficial em comando — sou eu, o capitão. Sabe quem eu sou.

O andróide rosnou ameaçadoramente e sacudiu os braços, defensivamente. Picard deu mais um passo.

— Senhor — disse Riker, ansioso. — Não acha melhor...

— Não, Imediato. Não acho — interrompeu Picard, sem voltar a cabeça. — O comandante Data está aí dentro, mesmo que sua mente normal não esteja no controle neste instante. Sei que ele não vai-me ferir. Confio nele, e na programação do Dr. Soong, que o torna incapaz de ferir um ser humano, por maior que seja a provocação.

— O Dr. Soong também programou Lore, senhor — lembrou Riker. — E Lore estava disposto a causar a morte de muitos de nós.

— Data é ... Data, comandante. Confio nele — deu mais um passo, lenta e confiantemente.

— A ponto de arriscar a sua vida, senhor? — sussurrou Riker, tenso. — Lembre-se de como ele é forte.

— Data não vai ferir-me, Imediato. — Picard avançou, tranqüilo. Estava quase chegando à plataforma, onde o andróide gemente contorcia-se e agitava-se.

Ele continuou a aproximar-se, em passos lentos e tranqüilos. Data encolheu-se ainda mais, gemendo ocasionalmente, como se estivesse prestes a desmaiar. Os sons que emitia tornaram-se menos audíveis.

Geordi conteve a respiração quando o capitão subiu lentamente na plataforma do transportador e aproximou-se de Data. O andróide gritou e moveu-se, socando o ar, mas não chegou a tocar no capitão.

— Calma, Data — sussurrou Picard, enquanto inclinava-se e esticava o braço até as costas do andróide.

Um segundo depois, Data caiu inerte.

La Forge retomou o fôlego e deu um longo suspiro.

 

 

Uma hora depois, o engenheiro chefe voltou-se para Beverly Crusher em meio à enfermaria lotada.

— Diga a Selar que estou pronto.

Pouco depois, os dois terminaram as últimas verificações. Geordi tocou seu comunicador.

— La Forge falando. Pediu-me que o avisasse quando estivéssemos pronto para a tentativa, capitão.

— Estou a caminho — respondeu o capitão.

Quando Picard e Riker chegaram, acompanhados por Wesley Crusher, Geordi estava com as mãos suadas. Olhando para o rosto inerte do amigo, ele orou silenciosamente para que ele assumisse a expressão de inocência que lhe era característica assim que fosse reanimado. Se algo der errado, prometeu a si mesmo, jurou que vou fazer com que aquele livro seja publicado, mesmo que eu tenha que gastar dois anos de soldo para convencer alguém a fazê-lo, Data. Mas espero que isso não seja necessário.

Picard fez sinal com a cabeça.

— Prossiga, Sr. La Forge.

Colocando as mãos às costas, Geordi cruzou os dedos da mão esquerda e por dentro da bota cruzou os dedos dos pés. Depois, com a mão direita, discretamente trêmula, por mais que tentasse controlar-se, tocou o controle e reativou o andróide.

Os olhos dourados de Data se abriram. Lentamente, ele olhou em volta, vendo os rostos da Dra. Crusher, Selar, Riker, Picard, Wesley e finalmente do próprio Geordi.

— Geordi — disse ele, claramente. — Você estava certo. É tudo muito belo.

— Data! — exclamou La Forge, exultante. Colocou o braço no ombro de Wesley Crusher e abraçou o rapaz, que sorria como um bobo. Depois de alguns momentos de comemoração sincera mas pouco efusiva (em respeito aos muitos pacientes que lotavam a enfermaria), o grupo calou-se, e Data sentou--se, parecendo o mesmo de sempre.

Lenta e formalmente, Jean-Luc Picard colocou as mãos nos ombros do andróide e disse:

— Data, há um velho ditado na Terra. "Que amor maior existe do que o do homem que dá a vida pelos amigos". Parece-me que a disposição de sacrificar a própria vida vale tanto quanto o sacrifício propriamente dito. Devemos-lhe muito.

— Mas capitão — protestou Data. — Não sou um homem, sou um andróide.

— Você é você mesmo, Data. E único — corrigiu Picard, com firmeza. — E temos muita sorte de tê-lo como amigo.

— Pode dizer isso de novo, capitão — disse Geordi, sorrindo.

 

Thala?

A menina andoriana acordou sobressaltada, sem saber quem a havia chamado. Depois de um momento, ouviu novamente:

— Thala, você está aí? — com uma sensação de alívio, ela reconheceu a voz e percebeu que estava vindo do intercomunicador de sua cabine.

Ergueu-se da cama rapidamente e ativou seu terminal.

— Wesley, estou aqui.

— Onde você estava?

— Eu estava dormindo, mas está tudo bem. O que está acontecendo?

— Você pediu-me que a avisasse quando estivéssemos prontos para atracar. Estaremos atracando na base estelar 127 em aproximadamente dez minutos.

A menina sentiu-se tomada por várias emoções diferentes: entusiasmo, tristeza, preocupação, determinação.

— Oh — disse ela. — Obrigada por lembrar-se, Wesley. Agradeço sua atenção.

— Não tem de quê — respondeu ele alegremente. — Vejo você mais tarde.

— Ahn... claro. Obrigada, de novo.

Então, o momento com que ela havia sonhado por tanto tempo tinha chegado. Era hora de deixar a Enterprise para sempre. Thala engoliu em seco. Tinha sido uma longa jornada desde o local em que se encontrava o artefato, mas estava chegando ao fim. Seria então o início de sua própria jornada.

Depois de o comandante Data ter conseguido desligar o campo de força que havia prendido a nave estelar, a Enterprise usara seus phaser para destruir a PaKathen, de acordo com o pedido do Alto Comando klingon. Em seguida, com a Marco Polo a reboque, a nave havia rumado para Thonolan IV a fim de entregar o carregamento de sementes destinado à colônia andoriana.

Thala havia permanecido em silencioso estado de pânico durante todo o tempo em que orbitaram a colônia andoriana, com medo de que as autoridades locais mudassem de idéia e decidissem aceitá-la, mas evidentemente não fora esse o caso.

Nos últimos dias, a menina havia permanecido quieta em seu alojamento. Devido ao excesso de pacientes na enfermaria, Selar estivera muito ocupada para receber visitas, mas a vulcana tinha conseguido alguns minutos todos os dias para ligar para sua amiguinha e perguntar-lhe como estava. No dia anterior, a médica havia convidado Thala para jantar, dizendo ter algo muito importante para contar-lhe.

Sinto muito Selar, pensou Thala, com tristeza. Gostaria de deixar-lhe uma mensagem pedindo desculpas por não ter ido jantar com você, mas não posso me arriscar a deixar nenhuma pista. Caminhando até a estátua andoriana, abriu-a rapidamente e retirou a jóia nela escondida. Por um instante, desejou levar consigo a estátua, mas era muito pesada, e ela não poderia carregar nenhum peso extra, pois teria que andar depressa naquele dia.

Rapidamente, a menina andoriana forçou-se a comer alguma coisa (não tinha idéia de quando teria chance de fazê-lo novamente), tomou um banho sônico e vestiu suas roupas. Antes de vestir-se, usou uma faixa de pseudo-pele cirúrgica que havia surrupiado da enfermaria para prender as antenas de sua rede ao tórax. Em seguida vestiu várias peças de roupa e, depois, sua melhor rede sensora. Não tinha como levar qualquer coisa em uma mala, pois isso despertaria suspeitas.

Por último, enfiou um manto de seda altairiana no bolso do cinturão de seu pai e no pequeno espaço restante colocou um pequeno lanche. As propriedades isolantes da seda altairiana evitariam que seu calor corpóreo fosse detectado pelos sensores da nave.

Quando verificou seu cronômetro, Thala descobriu que tudo isso havia levado apenas uma hora. Suspirou. Levaria ainda muito tempo para a equipe médica da nave terminar de supervisionar o transporte de todos os pacientes para o hospital da base estelar. Ela sentou-se, tensa, e esperou.

Felizmente, havia menos pacientes do que Selar e Beverly Crusher tinham previsto. Assim que o campo maligno do artefato foi desligado, muitos dos casos de depressão e catatonia começaram a recuperar-se espontaneamente.

Mesmo assim, a conselheira Troi ainda teve muito trabalho, aconselhando as pessoas, pois os sonhos provocados pelo artefato tinham reavivado questões e acontecimentos que muitos teriam preferido que ficassem esquecidos. No entanto, nos últimos dias, ela parecia entusiasmada com o progresso de seus pacientes. Thala tinha escutado Deanna dizer a Beverly Crusher que havia apenas um ou dois casos que ainda a preocupavam quanto à sua total recuperação.

Muitos dos pacientes transferidos para o hospital da base estelar seriam encaminhados para a Academia de Ciências de Vulcano, onde médicos telepáticos poderiam gentilmente ajudá-los a consertar o dano causado à sua psique.

Por fim, depois de esperar por duas horas inteiras, depois de a Enterprise ter atracado, Thala ergueu-se, "olhou" pela última vez para sua casa, depois deixou a cabine. Caminhou pelo corredor e virou à esquerda, em direção ao turbo-elevador mais próximo, rumo à sala de transporte.

Enquanto caminhava, disse um silencioso adeus a tudo o que havia conhecido. Não se permitiu pensar em Selar. Seus passos eram ligeiros e decididos, e não olhou para trás.

 

— Está ocupada, conselheira?

Deanna Troi estava em uma de suas mesas preferidas no salão de recreação, saboreando um dos deliciosos sundaes com calda de chocolate quente de Guinan, fartamente coberto de raspas de chocolate.

— Oh, Data! — exclamou ela. — Não, estou apenas dando vazão a um de meus vícios preferidos. Não quer sentar-se?

— Obrigado — disse o andróide. Troi percebeu que ele carregava uma caixa debaixo do braço. Lambeu delicadamente o chocolate dos cantos dos lábios e limpou a boca com um guardanapo.

— Como vai você? — perguntou ela. — Já se recuperou totalmente da recalibragem de seus circuitos?

— Estou completamente recuperado — disse Data. — E você, conselheira?

— Data, estamos fora de turno aqui. Pode me chamar de Deanna — disse, ela sorrindo calorosamente para ele. — Estou bem, obrigada. Neste instante, estou me recompensando por todo o trabalho duro que tive durante a viagem de volta. Meus pacientes estão todos se recuperando bem. — comeu mais um bocado do sundae, deixando o sabor encher-lhe a boca. Depois, suspirou. — Chocolate é uma coisa maravilhosa. É poesia para o paladar e para a alma.

Os olhos dourados de Data brilharam.

— Por falar em literatura, Deanna... — disse ele, colocando a caixa sobre a mesa ao lado.

Ela olhou para a caixa, curiosa.

— O que você está levando aí dentro? O andróide hesitou, então disse:

— Gostaria que me desse sua opinião sincera sobre um texto que escrevi. Poderia ler esta cena e dizer-me o que acha dela, por favor?

— Um texto? — surpreendeu-se ela. — Quer dizer que está escrevendo um livro!

— Sim. Um romance. E uma aventura romântica que se passa nos primeiros dias das viagens espaciais, a respeito do relacionamento entre um dos primeiros capitães de nave estelar e a mulher por quem ele está apaixonado. — Fez uma pausa, depois continuou, apressado. — Pedi a opinião de várias pessoas da nave, mas a Dra. Crusher sugeriu que eu deveria ouvir a opinião de outra mulher, por isso pensei em você.

A conselheira deu de ombros.

— Está bem. Vou ler. Mas quero que saiba que uma de minhas melhores amigas em Betazed era uma escritora muito famosa. Kathella costumava pedir-me que lesse suas histórias, porque me considerava uma crítica muito severa. Disse-me certa vez que seus livros não teriam a metade de seu valor sem meu conselho e críticas literárias.

— É isso que eu quero — disse Data, com firmeza. — Aqui está a mesma cena que pedi que a Dra. Crusher lesse, com algumas modificações que fiz depois que ela o leu.

Entregou a ela um pequeno maço de folhas.

Deanna acomodou-se na cadeira, lambeu os últimos resquícios de chocolate dos lábios e leu:

 

Rouco depois de Margaret ter voltado ao jardim botânico para retomar seu passeio interrompido, viu o Sr. Rodriguez, que caminhava em sua direção exibindo em cada traço do rosto sua firme intenção. Sob a luz da Terra que atravessava o domo transparente, ela percebeu o olhar devastador com que ele a fitava e sentiu-se enrubescer. O educado cumprimento com que ela pretendia saudá-lo morreu em seus lábios antes de ser proferido. Be caminhou diretamente até ela, fitando-a intensamente, e disse:

— Querida Lady Margaret, como devo embarcar amanhã para uma viagem arriscada e de futuro incerto, devo confessar-lhe os sentimentos que nutro do fundo da alma por você. Eu a admiro, mas isso é apenas o começo.

Tomando-lhe veementemente as mãos, ele prosseguiu, extremamente ansioso:

— Rara ser franco, minha adorada Lady Margaret, eu amo você!

Pode-se imaginar a confusão e a profunda perplexidade com que Margaret ouviu essa confissão da boca do orgulhoso e bem-nascido Rodriguez. Ba o encarou em silêncio, perguntando a si mesma se ele teria perdido o juízo. Ou teria sido ela que enlouquecera?

Enquanto ela se esforçava para encontrar palavras, ele caiu de joelhos na calçada do jardim botânico e, com um movimento súbito, beijou-lhe as mãos, não apenas uma, mas diversas vezes, murmurando ardentemente:

— Amo você. Amo você!

Margaret tentou inutilmente retirar a mão, esforçando-se ao máximo para dirigir-lhe a palavra com serenidade

— Peço-lhe que solte a minha mão, Sr. Rodriguez — gemeu ela, agoniada pela preocupação de que algum andarilho solitário invadisse a privacidade daquele momento. — Devo dizer-lhe que em menos de duas semanas após tê-lo conhecido eu soube que era o tipo de homem que eu vinha procurando a vida inteira. Se nossas condições fossem mais compatíveis... Se apenas...

 

Sem conseguir mais conter o riso, Deanna Troi parou de ler e caiu na risada.

— Oh, Data! Isso está muito engraçado! O andróide mostrou-se satisfeito.

— E um grande alívio que pense assim. Trabalhei muito para conseguir fazer com que o diálogo ficasse sofisticado e espirituoso.

— Adorei! — disse ela, em meio a um risinho, virando outra página. — É a melhor paródia de Jane Austen ... ou será Charlotte Brontë? ... que já li. É histericamente engraçada!

O rosto pálido de Data mostrou-se surpreso.

— Não era para ser... uma paródia.

Deanna parou imediatamente de rir.

— Não?

— Não.

— Oh, Data... — ela engoliu em seco. — Sinto muito. Pensei que você estivesse querendo fazer uma paródia de um estilo antigo para ser engraçado.

— Estava tentando escrever de modo sofisticado, semelhante ao usado por Jane Austen. Mas este romance deveria ser basicamente um texto sério — ele fitou-a intensamente com seus olhos amarelos. — Qual sua opinião sincera a respeito do que escrevi, considerando ser esta uma obra séria?

Troi respirou fundo.

— Minha opinião sincera é que você nunca vai chegar a lugar nenhum como escritor enquanto não encontrar seu próprio modo de dizer as coisas, Data. É um fato bem conhecido que os escritores escrevem melhor a respeito de coisas que conhecem. Isso de modo algum impede o exercício da criatividade. .. mas significa que uma pessoa que nunca teve filhos e detesta crianças não deve tentar escrever histórias infantis. — Suspirou fundo. — E também significa que uma pessoa que nunca se apaixonou não deveria tentar escrever uma história de amor.

— Então não acha que minha história seja boa.

Ela sacudiu a cabeça negativamente, com firme intenção de ser sincera, como ele havia pedido.

— Não, Data. Não acho.

Ele lentamente recolheu as folhas e colocou-as de volta na caixa.

— Depois de ouvir o que me disse, creio que meus outros críticos também eram da mesma opinião... mas não foram tão sinceros quanto você. Agradeço muito, Deanna. Eu precisava ouvir o que acabou de me dizer.

Ela estendeu a mão em sua direção, sentindo que tinha cometido um pequeno assassinato.

— Data, posso ajudá-lo a melhorar — sugeriu ela.

— Obrigado, Deanna — respondeu ele, com seriedade. — Vou pensar na sua oferta.

Ele saudou-a com a cabeça, ergueu-se e saiu do salão de recreação. Troi ficou olhando desanimada para o prato, depois voltou-se para Guinan.

— Vou querer mais um deste — disse ela para a atendente, apontando para o sundae derretido. — Agora sou eu que estou deprimida.

A outra assentiu com a cabeça.

— Ouvi tudo o que aconteceu. Você estava certa em dizer-lhe a verdade, Deanna.

— Acha mesmo?

— Tenho certeza. É como costumam dizer: "A verdade sempre dói". Mas exceto no caso da moda e dos penteados, a sinceridade é a melhor política.

— Obrigada, Guinan — disse Troi, sorrindo calorosamente para a atendente. — Às vezes até a conselheira precisa de uns conselhos. Especialmente se forem tão sensatos quanto os seus.

A atendente apanhou o prato e virou-se.

— Outro sundae saindo.

 

 

Selar não costumava ir ao salão de recreação sozinha, mas depois de cuidar da transferência de todos aqueles pacientes, sentia que precisava de um momento de tranqüilidade para meditar. Além disso, tinha-se esquecido de comer naquele dia e estava com fome.

Depois de passar pelas portas duplas, seguiu até o bar e sentou-se junto ao balcão. Guinan cumprimentou-a com um sorriso e perguntou:

— O que vai ser, tenente? Selar pensou um pouco.

— Você tem sopa plomeek em seu cardápio?

— A melhor que você vai encontrar fora de Vulcano — prometeu a atendente. — Já está saindo.

Quando a sopa chegou, Selar deliciou-se com o aroma, e seu estômago roncou com avidez. Ela tomou tudo até limpar o prato. Sem que lhe fosse pedido, Guinan colocou uma tigela de aipo e cenouras com molho de tofu sobre o balcão, acompanhado de um copo d'água cristalina.

— Que missão puxada — disse a atendente, observadora.

Selar passou uma cenoura no molho e deu uma mordida. Fez que sim com a cabeça enquanto comia. Depois, surpresa consigo mesma pelo desejo de confidenciar seus sentimentos a alguém, disse:

— Esta pode ter sido minha última missão na Enterprise.

A mulher de pele morena ergueu uma de suas sobrancelhas sem pelo.

— É mesmo? Para onde está indo? Foi transferida?

— Não exatamente. A Frota Estelar deu-me uma licença de prazo indefinido para que eu pudesse aceitar o cargo que me foi oferecido na Academia de Ciências de Vulcano — disse a médica. — Serei chefe do departamento de pesquisa bioeletrônica.

Guinan pareceu impressionada.

— Quando vai partir?

— Quando a Enterprise zarpar amanhã, não estarei a bordo — disse a tenente. — Ficarei na base estelar para cuidar dos pacientes. Quando alguns deles forem transferidos para Vulcano, na semana que vem, eu os acompanharei.

— Oh, você tem mesmo pouco tempo, não é? Selar assentiu com a cabeça.

— Creio que depois desta última missão, será um alívio ter um pouco de paz e tranqüilidade para suas pesquisas — disse a atendente, lustrando o balcão com um pano. — Ou seja, você não vai sentir muita falta de nós.

— Vou sentir saudades da Enterprise — admitiu Selar. — Mas a pessoa de quem vou ter mais saudades estará no mesmo planeta que eu, de modo que poderei visitá-la de vez em quando.

— Quem é essa pessoa?

— Thala, a menina andoriana que perdeu o pai recentemente. — Selar apanhou um salsão, molhou-o lentamente no tofu e começou a comê-lo.

— Conheço Thala. Você a trouxe até aqui diversas vezes. Wesley também. Ela vai para Vulcano então? Com você?

— Não exatamente. Vou viajar a bordo de uma nave médica da Frota Estelar. Mas comprei uma passagem para Thala em uma nave de passageiros, que vai partir quase ao mesmo tempo que a Lancet, que é a minha nave. Chegaremos em Vulcano com um dia de diferença.

— O que acontecerá a Thala depois disso?

— Quero ver se consigo fazer com que ela seja colocada em uma excelente instituição de ensino e cuidados médicos, para que receba uma boa educação e o melhor tratamento possível para sua cegueira. Creio que ela pode vir a receber uma prótese ocular que lhe permitirá fazer tudo o que quiser na vida. O desenvolvimento de próteses para andorianos será uma de minhas prioridades.

— É muito louvável da sua parte — disse Guinan, começando a lustrar o balcão de novo. Selar estava para mencionar que ela já havia lustrado aquela parte do balcão, quando a atendente observou candidamente: — É ótimo que a menina possa ir para uma boa instituição... mas estou certa de que nenhuma instituição pode substituir o lar.

— Sei disso — disse Selar, constrangedoramente ciente de que a mulher alienígena tinha tocado num ponto que no fundo da mente a vinha incomodando há algum tempo. — Mas ela é órfã...

Guinan lançou um olhar de esguelha para a vulcana, cheio de cumplicidade.

— Mas não há nenhuma lei que a obrigue a permanecer assim.

Selar havia levado o copo até os lábios, mas colocou-o de volta no balcão, sem beber.

— O que quer dizer com isso?

— Ela pode ser adotada — disse a atendente. — Se houver alguém que se importe o suficiente com o bem estar dela.

— Duvido que haja muitos casais vulcanos dispostos a adotar uma criança de um povo tão cheio de paixões e emoções como os andorianos — disse Selar.

— Talvez não — admitiu Guinan — mas não é preciso que haja uma mãe e um pai para formar uma família. Muitas pessoas conseguem criar muito bem uma criança sozinhas. — Lançou outro olhar de esguelha para a vulcana. — Não acha que Thala ficaria melhor tendo um dos pais do que sem nenhum? Quero dizer... — disse, sorrindo — apenas achei que isso seria a solução lógica.

Selar ergueu o copo e bebeu um gole, pensativa.

— Está sugerindo que eu adote Thala? Guinan deu de ombros.

— Por que não?

A médica encarou a atendente em silêncio por quase um minuto.

— Realmente, por que não? — disse ela, por fim. — Sem dúvida sua solução tem um toque elegante de lógica.

Guinan sorriu enigmaticamente.

— Tem mesmo, não é?

— Se eu adotasse Tahala, poderia supervisionar seu tratamento médico e sua educação pessoalmente. Não teria que confiá-la aos cuidados de outras pessoas. Poderia garantir que nada lhe faltasse.

— Sim, é verdade — concordou Guinan, com brandura. — E do ponto de vista emocional, você já está acostumada a Thala, por isso será capaz de conviver com ela melhor do que qualquer outro Vulcano. — Ela olhou para a médica com ar matreiro. — Quem sabe? Pode ser até que... venha a gostar da companhia dela.

— Isso já acontece — disse Selar, impassível. — A felicidade e o bem estar de Thala são muito importantes para mim.

— E ela gosta de você tanto quanto você gosta dela?

— Sim, creio que sim. Guinan abriu os braços.

— Então, o que mais você quer?

Selar ergueu a sobrancelha e franziu os lábios.

— Sua lógica é impecável, Guinan. — Resolutamente, a médica tocou seu comunicador. — Selar falando — disse ela. — Dra. Crusher, eu decidi...

Beverly Crusher interrompeu-a, ansiosa.

— Selar, eu estava para entrar em contato com você! Thala fugiu! Selar obrigou-se a permanecer impassível.

— O que aconteceu? Onde ela foi vista pela última vez?

— Ela convenceu La Forge a levá-la para a base estelar. Quando ele virou o rosto para o outro lado, ela escapou dele e desapareceu completamente.

— Terá sido raptada?

— Não. Geordi disse que parecia proposital. Eles estavam andando pelo parque e não havia ninguém por perto porque a base estelar estava em seu período noturno. Quando ele percebeu que não a encontraria, informou o pessoal da segurança da base estelar e eles ligaram uma rede sensora por todo o parque, mas não encontraram nada até agora.

— Então a conclusão lógica é que a criança ainda está no parque.

— Sim, mas onde poderia estar? Geordi procurou-a com seu VISOR, mas sem resultado. Mesmo que ela conseguisse esconder-se da visão normal, certamente ele a veria com sua visão infravermelha.

— Não se esqueça de que Thala também é cega. Se há uma pessoa que pode imaginar um jeito de escapar da visão especial de La Forge, essa pessoa é Thala.

— Então acha também que ela está fugindo e se escondendo? Por que faria uma coisa dessas? Para chamar a atenção?

A vulcana lembrou-se de ter visto a menina estudando a planta da base estelar.

— Não, não se trata disso. Foi uma tentativa intencional de fugir da Enterprise. Pensando bem, acho que ela já vinha planejando isso há algum tempo.

— Temos que ir procurá-la. Vou chamar a segurança da Enterprise.

— Deixe-me tentar primeiro — pediu a vulcana. Tenho algo que quero dizer a Thala. Decidi adotá-la... se ela quiser me aceitar.

— Oh, Selar, isso seria maravilhoso! — Crusher mostrou-se bastante entusiasmada. — Ela gosta muito de você.

— Creio que seria melhor se eu lhe fizesse a proposta em particular. Por isso, deixe-me procurá-la primeiro. Volto a entrar em contato com você dentro de trinta minutos.

— Está certo. Estarei esperando.

— Selar desligando.

A vulcana ergueu-se do banco e lançou um longo olhar para Guinan.

— Obrigada — disse ela — por ajudar-me a encontrar a única solução lógica.

Guinan sorriu.

— Onde vai procurar?

— Obviamente vou começar pelo parque. Se não a achar lá, continuarei tentando até a encontrar.

A atendente assentiu com a cabeça.

— Boa sorte.

 

Thala encolheu-se sob o manto de seda altairiana, escondida no pequeno espaço existente entre as raízes de uma grande árvore flinan de Deneb IV. As raízes de flinan tinham pequenas aberturas em forma de caverna embaixo delas, algo que não era do conhecimento da maioria, mas que Thev lhe havia mostrado cm uma das visitas que fizeram ao planeta. Com o manto disfarçando sua leitura térmica, ela tornava-se praticamente indetectável, a menos que fossem usados aparelhos altamente sofisticados.

Dando um suspiro, contorceu-se um pouco, tentando achar uma posição mais confortável, depois verificou o cronômetro embutido em sua rede sensora. Havia-se passado pouco mais de uma hora desde que fugira de Geordi. Ela detestara ter tido que fazê-lo. La Forge era seu amigo, e ela sentiu-se péssima ao ouvir a preocupação com que ele a chamou enquanto a procurava. Mas sua firme determinação fez com que continuasse escondida.

Ela ficou se perguntando se as pessoas da Enterprise iriam dar-se ao trabalho de procurá-la. Pode ser que o fizessem. Tinha planejado esconder-se em outro lugar, caso isso acontecesse. Procurando lembrar-se da planta da base estelar, localizou o esconderijo mais próximo, que ficava na sala de armazenamento de um centro de computação próximo.

Quando tempo a Enterprise ainda permaneceria atracada? Quanto tempo ainda faltava para que ela pudesse andar em liberdade e procurar uma joalheria que lhe oferecesse o melhor preço? Não tivera coragem de perguntar a Wesley o tempo de permanência da nave na base estelar 127, para não parecer muito curiosa.

De repente, sentiu o sangue congelar-se nas veias. Uma voz conhecida a estava chamando.

— Thala! Thala! Thala, você está aí?

Era Selar. A menina tapou os ouvidos com as mãos, não querendo ouvir a voz da médica vulcana. Ela precisava fugir. Tinha que fazê-lo! Se desistisse, sabia que acabaria em um planeta colônia como um peso morto ou como uma escrava de harém de reprodução. Não deixaria que isso acontecesse a ela!

Cuidadosamente, tirou os dedos do ouvido e escutou:

— Thala!

Selar estava gritando mais alto e se aproximando cada vez mais.

— Thala, este parque tem apenas cem metros de diâmetro, por isso sei que com sua audição andoriana você está me ouvindo! Ouça bem e saberá que o que eu vou lhe dizer é a pura verdade. Juro por minha honra de vulcana... você não será enviada a nenhum planeta andoriano.

Thala deixou cair o queixo, surpresa por ouvir a amiga vulcana gritando uma mensagem pessoal em um parque público a plenos pulmões. Mesmo sendo "noite" naquele lugar, havia a possibilidade de alguém ouvir seus gritos. Naquele instante, a normalmente imperturbável Selar parecia tudo menos calma e lógica.

— Thala estou pedindo que você volte comigo para Vulcana Quero que fiquemos juntas — tossiu, depois continuou, meio rouca. — Thala, está me ouvindo? Por favor, saia de onde estiver! Estou ficando rouca de tanto gritar.

Com um soluço, a criança saiu de sob o manto e engatinhou para fora de seu esconderijo. Sem dar atenção à leitura de sua rede sensora por causa da emoção, correu em direção da voz da oficial.

— Selar! — gritou.

Ao sair correndo, tropeçou em uma raiz e caiu pesadamente, torcendo o tornozelo. Mal sentiu a dor. Estava eufórica. Será que Selar está dizendo a verdade? perguntou-se, incrédula. Vulcanos não mentem, por isso deve ser verdade!

Ela ouviu passos que se aproximavam rapidamente. Percebeu por meio da rede sensora uma sombra que se movia velozmente em sua direção, então sentiu que alguém lhe apertava os ombros.

— Thala!

— Você estava falando sério? — gaguejou a menina. — É verdade? Posso ir para Vulcano com você?

— É claro que eu estava falando sério — disse Selar, ajoelhando-se ao lado dela, também um pouco ofegante. — Iremos para casa juntas. Thala, se você aceitar, quero adotá-la. Quero que seja minha filha.

A menina andoriana encarou boquiaberta a amiga. Por fim, conseguiu acenar afirmativamente com a cabeça e sussurrar:

— Isso seria maravilhoso!

— Bom, então está combinado — disse a médica, erguendo-se. — Venha. Precisamos voltar para a Enterprise. Todos estão preocupados com você.

— Estão mesmo?

Thala tentou andar, mas fez uma careta de dor ao pisar com o pé torcido.

— O que foi? — perguntou a vulcana, ajoelhando-se novamente e examinando a lesão com seus dedos experientes.

— Torci o tornozelo — disse Thala, tentando apoiar o peso no pé machucado. A dor estava diminuindo aos poucos. — Já passou.

Viu-se erguida por braços fortes, que a levantaram como se fosse um bebezinho.

— Agarre-se ao meu pescoço — ordenou Selar.

— Eu consigo andar — disse Thala, mas obedeceu assim mesmo. Era bom ser carregada, quase tão bom quanto saber que teria um novo lar.

— Prefiro carregá-la nas costas — disse Selar, começando a andar. — Logicamente é o meio mais rápido e eficaz de alcançarmos nosso destino.

Thala suspirou, feliz.

— Acho que vamos fazer tudo de modo muito lógico daqui por diante.

— Essa é uma dedução bastante lógica — disse Selar, com firmeza.

— Como vou chamá-la de agora em diante? — perguntou a menina, timidamente. — Vou mesmo ser sua filha?

— Sim — disse Selar. — E pode me chamar do modo que se sentir mais à vontade.

— Vou pensar nisso — prometeu Thala.

Geordi La Forge estava sonhando com o artefato, admirando com os olhos da memória a beleza de seus murais, quando o intercomunicador soou, arrancando-o do sono. Praguejando em voz baixa, o engenheiro chefe rolou para fora da cama e disse cm voz alta:

— La Forge falando.

— Geordi — ouviu-se a voz de Data — Quer me ajudar em uma tarefa pessoal? Pode vir até meu alojamento?

La Forge reprimiu um bocejo.

— Claro, Data. Estarei aí em um minuto.

Preparando-se para o que tinha que fazer, apanhou o VISOR e colocou-o no lugar, sentindo a dor costumeira morder-lhe as têmporas. Suspirou. Droga. Queria não ter que conviver com essa dor...

As imagens de seu sonho voltaram-lhe à mente, e ele sorriu ao lembrar-se da beleza do artefato. Passou distraidamente os dedos ao longo das hastes do VISOR, acariciando-o. Se não fosse por isto, bem como minha capacidade de utilizá-lo corretamente, toda aquela beleza teria se perdido para sempre, pensou ele. Um discreto sorriso surgiu-lhe no canto dos lábios.

— Acho que isso compensa tudo, não é? — murmurou sozinho. — Talvez o velho provérbio Vulcano que diz que devemos valorizar as diferenças bem como as semelhanças esteja certo...

Ele lembrou-se de que Data o estava esperando, por isso começou a apressar-se. Vestiu-se e seguiu alegremente para o alojamento de Data. Encontrou o andróide arrumando duas pilhas de papéis.

— Pode me ajudar a carregar uma delas, Geordi? — perguntou ele.

— Posso pedir um flutuador no convés de carga — disse La Forge, olhando para a pilha inquiridoramente.

— Não — disse Data, com firmeza. — Isso não será necessário.

— Está bem — concordou Geordi, percebendo que a questão estava fechada. Apanhou uma das pilhas sem discutir mais.

— Para onde vamos? — perguntou, enquanto caminhavam pelo corredor, cada um com sua pilha de manuscritos.

— Você verá — disse Data, enigmaticamente.

Chegaram à sala de transporte. Data pediu a O’Brien que saísse do caminho, então colocou sua pilha sobre a plataforma do transportador, fazendo um gesto indicando a Geordi que fizesse o mesmo.

— Mas Data, este é o seu livro — protestou o engenheiro chefe, mas o amigo sacudiu a cabeça negativamente.

— Não, Geordi — disse ele. — Isso é algo que preciso fazer.

Depois que as pilhas de manuscritos foram colocadas sobre a plataforma, o andróide ajustou os controles para dispersão máxima e ativou o aparelho.

Todas as várias versões do romance do andróide tremeluziram e desapareceram.

La Forge cocou a cabeça, sem saber o que dizer.

— Por que, diabos, você fez isso, Data? — perguntou, por fim.

— Por que não era bom — disse o andróide, brandamente. — Pior que isso, era ruim. A conselheira Troi finalmente me disse a verdade, ou seja, que os escritores devem escrever a respeito daquilo que conhecem para escreverem bem. Não sou humano, portanto não tenho nada que ficar tentando escrever algo do ponto de vista humano.

— Data ... — La Forge sentia-se extremamente constrangido, querendo consolar o amigo, mas sem saber como. — Puxa, sinto muito. Talvez você possa escrever sobre algo que conheça bem.

— Já pensei nisso — disse Data, mostrando-lhe um disco de dados. — Mas descobri que isso já foi feito.

Entregou o disco a La Forge, que leu a etiqueta com um peso no peito: Eu, Robô.

— Queria poder dizer alguma coisa — disse La Forge, sentindo-se péssimo — Droga, Data, você não é um robô.

— Mas não sou humano, tampouco — disse Data. — E já é hora de parar de fingir que sou.

— Sinto muito — balbuciou La Forge. — Foi preciso coragem para fazer o que fez. Talvez devêssemos ter conversado a respeito antes de você ter... desintegrado ... toda a sua obra.

— Agradeço sua preocupação, Geordi — disse Data, impassível. — Mas já havia tomado minha decisão.

La Forge encolheu os ombros.

— Está certo, a decisão era sua. Sei que foi difícil.

Os dois amigos saíram da sala de transporte, deixando o perplexo chefe O'-Brien para trás.

— Quer descer até a sala de recreação? — perguntou Geordi, esperançoso.

— Está bem — disse Data, sem entusiasmo.

Quando chegaram à sala de recreação, foram recebidos por uma voz conhecida.

— Data! Era justamente a pessoa que eu estava procurando!

Os oficiais cruzaram o salão quase deserto até onde estavam Picard e Riker. Como a Enterprise estava seguramente atracada, os dois haviam decidido tomar um drinque juntos.

— Sentem-se, juntem-se a nós — disse o capitão, com bom humor.

Depois de lançar um olhar hesitante para Data, La Forge sentou-se.

— Olá, capitão — disse ele. — Olá, comandante.

Os oficiais superiores retribuíram o cumprimento.

Data deteve-se por um instante ao lado de La Forge, como se considerasse a possibilidade de recusar o convite. Guinan materializou-se como por um passe de mágica e serviu bebidas aos recém-chegados. Aparentemente motivado pelo copo que lhe foi oferecido, o andróide sentou-se também e cumprimentou educadamente os oficiais superiores com um meneio da cabeça.

— Disse que estava querendo me ver, capitão? — perguntou ele.

— Sim, estava, Sr. Data! — Picard exibiu um de seus raros sorrisos. — Estive conversando com o professor Jonas, chefe da equipe arqueológica da Federação em Castor III, e ele ficou quase maluco de entusiasmo com a notícia da descoberta do artefato, principalmente por causa de seu relatório sobre os ylanos e suas formas de arte. — Data fez que sim com a cabeça. — Ele pediu-me para cedê-lo por algumas semanas para que você ajude a equipe de exploração arqueológica que eles irão enviar para fazer os estudos preliminares dos ylanos e do artefato. Disse que o artefato representa o mais precioso achado arqueológico do século!

Riker assobiou, admirado.

— Isso é realmente impressionante, capitão. Houve muitas descobertas importantes nos últimos cinqüenta anos.

— Ah, mas o artefato... o professor Jonas acredita que o artefato será considerado bem mais importante que qualquer uma delas, depois de ter sido profundamente estudado.

— Esse professor Jonas— ficou impressionado com meu relatório? —

perguntou Data. La Forge ficou contente de ver que o rosto do andróide se mostrava um pouco mais animado.

— Sem dúvida nenhuma! Ele disse que você pode fazer uma contribuição sem par para a expedição, se concordar em participar das investigações preliminares.

— Estive trabalhando em minha programação, tentando suavizar a transição entre o velho Data e o novo Data, para que isso possa ser feito a meu comando — disse Data, pensativo. Ficou um pouco mais animado. — Como acha que eu ficaria com um chapéu de abas largas?

— Acho que muito elegante e distinto — disse Picard, sorrindo gentilmente. — Isso quer dizer que devo pedir ao Comando da Frota Estelar que o coloque em esquema de tarefa especial nas próximas semanas?

O andróide assentiu com a cabeça.

— Sim, capitão, apreciaria muito se o fizesse.

La Forge suspirou.

— Sonhei com os murais que vi a bordo do artefato. É uma pena que o senhor e o comandante Riker não os tenham visto, capitão.

— É algo que lamento profundamente, Sr. La Forge — disse o capitão. — Interesso-me muito por arte. De vez em quando, por sinal, até me arrisco a pintar um pouco. — Olhou para Data com um sorriso torto.

— Se houvesse um meio de fazer com que a arte dos ylanos, toda sua história, suas imagens, musica, literatura e tudo o mais pudessem ser traduzidos em termos compreensíveis aos humanos — sugeriu Geordi. — Então todos poderíamos conhecer sua história e o que pretendiam fazer quando construíram o artefato.

— Creio que isso seja impossível — disse Riker, pesarosamente. — Ninguém seria capaz de ver ou ouvir a arte deles sem acabar enlouquecendo.

— Eu posso — corrigiu Data solenemente.

— E verdade. Você pode — concordou Riker.

Fez-se uma longa pausa. Geordi foi abrindo um grande sorriso, então se virou para Data, que estava pensativo.

— Data! — disse entusiasmado. — É isso! Essa é sua chance! Algo que só você pode fazer. Algo que só você pode conhecer. Sua chance de oferecer uma grande obra de arte ao universo!

— Era exatamente no que eu estava pensando — disse Data. Seus estranhos olhos brilhavam de curiosidade e excitação. — Seria algo especial e único, não é mesmo?

— Algo que ninguém mais poderia fazer — disse Geordi, com sinceridade. — Realmente único.

— Posso gravar a estrutura inteira e todo o material guardado nos bancos do computador deles, depois trabalhar nesses dados durante meus períodos de folga — disse o andróide, pensativamente. — Seria um projeto de vários anos.

— As maiores obras de arte e da literatura geralmente levam muito tempo para ser concluídas — lembrou o capitão. Depois sorriu e disse: — Não posso imaginar um desafio maior. A história de toda uma raça, desde o início até o fim. É um projeto heroicamente grandioso. Está disposto a encará-lo, comandante?

Data fez que sim com a cabeça. Seu rosto impassível encheu-se de determinação.

— Eu o farei — disse ele, fazendo com que essa simples declaração assumisse a importância de um juramento solene.

Jean-Luc Picard ergueu o copo, sendo rapidamente imitado por La Forge e Riker.

— Um brinde — disse o capitão — a Data e seu novo empreendimento.

Os olhos de Data brilhavam quando os três oficiais solenemente esvaziaram seus copos num brinde formal. Tendo ao fundo as janelas da sala de recreação, as silhuetas do andróide e dos humanos destacavam-se contra a gloriosa beleza das estrelas distantes.

 

                                                                    A. C. Crispin 

 

 

Este Glossário contém nomes e termos específicos mencionados neste livro. Procuramos destacar os nomes próprios que têm alguma importância na trama e os termos técnicos mais freqüentemente mencionados na série Jornada nas Estrelas. Os conceitos científicos deste Glossário fazem parte do universo ficcional da série, não devendo, portanto, serem confundidos com os conceitos científicos reais abordados no Glossário Cultural.

ACADEMIA VULCANA DE CIÊNCIAS: Localizada na cidade de ShiKahr, capital do planeta Vulcano, a Academia é conhecida através da Galáxia por seus estudos e pesquisas em todas as áreas do conhecimento. Devido às suas habilidades telepáticas, os vulcanos naturalmente estão interessados nos poderes da mente. A Academia Vulcana investiga também isto, de maneira científica, embora coexista com uma corrente mística bem desenvolvida.

BETAZÓIDE: Raça humanóide do planeta Betazed, um mundo extraordinariamente bonito, chamado "a jóia da coroa sideral". São tão semelhantes aos humanos terrestres que o casamento entre essas raças é muito comum. São telepatas avançados e o fato de deixarem suas mentes abertas para os outros resultou numa cultura fundamentada na sinceridade absoluta. Deanna Troi, a conselheira do Capitão Picard, é filha de um terrestre com uma betazóide e herdou de sua mãe a capacidade para captar as emoções e perceber os sentimentos e estados de espírito de outros seres.

ESCUDO DEFLETOR: Uma barreira física invisível que suporta cargas (disparos e impactos) de altíssima intensidade Todos os escudos do sistema de defesa são ativados automaticamente por qualquer objeto em curso de colisão com a nave

FILOSOFIA DE SURAK: O planeta Vulcano passou, nos primórdios de sua história, por um período sangrento no qual diversas tribos digladiavam-se na busca da soberania do planeta. Surak, um filósofo, historiador e político, usando seu carisma e seus imensos poderes mentais, iniciou uma campanha para substituir as emoções pela lógica. Graças a essa filosofia, baseada na "disciplina lógica", é que os vulcanos conseguiram escapar à auto destruição e floresceram como uma das raças mais inteligentes, sábias e pacíficas do Universo. Os dissidentes que não aceitaram a filosofia de Surak, emigraram de Vulcano e acabaram fundando o Império Romulano. 

HEALER: Médico vulcano que cuida tanto da mente quanto do corpo das pessoas. Usa conhecimentos médicos tradicionais para tratar da parte física. Tem grande poder telepático, usando-o para cuidar da parte emocional e psíquica das pessoas, através de elos mentais.

I.D.I.C. : Símbolo e base da filosofia do planeta Vulcano, estabelece que a "Suprema Glória da Criação está em sua Infinita Diversidade em Infinitas Combinações".

KAHS-WAN: Na idade dos sete anos, o jovem vulcano deve passar por um rito de iniciação: o kahs-wan. Esse teste de maturidade é, na verdade, um curso de sobrevivência, onde o jovem deve passar no máximo dez dias no deserto.

KLINGON: No passado, o Império Klingon era a maior ameaça militar para a Federação Unida dos Planetas mas, devido ao colapso econômico do Império, foi estabelecida uma aliança de paz entre eles (veja volume 4 da Coleção Star Trek — A Terra Desconhecida). Entretanto, facções esparsas dos klingons ainda mantém os velhos costumes de guerra, conceito central da sua religião — um complexo código de ritual, honra e crueldade — e tem suas bases firmadas na conquista de outros planetas.

KOON-UTKAL-IF-FEE (ou KUNAT KELIFE): A cerimônia conhecida como Koon-ut-Kal-if-fee ("casamento ou desafio") é feita em um terreno específico para esse propósito. Através de um acordo de casamento entre as famílias, os meninos e as meninas predestinados realizam um ritual telepático que produzirá uma compulsão para que o macho faça uma jornada até o local do Koon-ut-Kal-if-fee durante seu período de pon farr. A fêmea envolvida escolhe entre Kal-if-farr (casamento sem desafio) ou Kal-if-fee (desafio, com dois rivais machos lutando até a morte pela fêmea).

 

Este Glossário contém verbetes sobre diversos ramos do conhecimento humano. Objetiva não apenas uma compreensão de alguns termos usados neste livro, mas procura também servir de alicerce, estímulo e motivação para a ampliação e busca de novos conhecimentos.

AUSTEN: Jane Austen (1775-1817) foi autora de muitos romances famosos entre os quais poderíamos citar Sense and Sensibility (1811), Pride and Prejudice (1813), Mansfield Park (1814) e Emma (1816).

BACH: Família de compositores alemães que atingiu o auge da fama nos séculos XVII e XVIII. Seu mais ilustre representante foi Johann Sebastian Bach (1685 - 1750).

Mestre do barroco, é aclamado como um dos maiores gênios musicais da humanidade

BRONTË: Família de escritoras que produziu dois dos mais significativos romances do século 19: "Jane Eyre" de Charlotte Brontë(1816 - 1855) e "O Morro dos Ventos Uivantes" de Emily Brontë (1818 - 1848). 

ENTROPIA: Grandeza física relacionada com o Segundo Princípio da Termodinâmica. De certa forma ela quantifica o grau de desordem de um sistema. Para ter uma noção elementar deste conceito podemos imaginar uma tropa de soldados marchando com uma certa velocidade Se eles estiverem marchando em ordem unida, veremos um bloco coeso com todos os soldados marchando na mesma direção e praticamente parados uns em relação aos outros. Se, mantendo a mesma velocidade média, eles começarem a se mover ao acaso, mudando de direção a cada poucos passos, veremos de longe um bloco parado mas com muita agitação interna. Somando a energia de movimento dos soldados em ambos os casos veremos que ela é praticamente a mesma, só que no primeiro caso ela está organizada e, no segundo caso, desorganizada.

Dizemos que, no segundo caso, a ENTROPIA é maior. Se substituirmos o bloco de soldados por uma bala de revólver, por exemplo, disparada contra um anteparo, onde cada átomo seria um dos soldados, podemos distinguir duas situações. Na primeira, a bala está se movendo rapidamente com todos os átomos se deslocando juntos na mesma direção. Macroscopicamente dizemos que a bala está fria e está dotada de energia mecânica (no caso, cinética). Na segunda, a bala bateu contra o obstáculo e parou. Seus átomos, porém, não pararam: eles continuam se movendo, mas de forma caótica, mudando constantemente a direção de sua velocidade, naquilo que denominamos "agitação térmica". Macroscopicamente dizemos que a bala transformou sua energia mecânica em energia térmica: parou mas, em compensação, ficou mais quente Nessa transformação, ocorreu um aumento da entropia. As transformações espontâneas, no Universo, sempre ocorrem com aumento de entropia. Ninguém espera que um bloquinho de chumbo quente e parado esfrie de repente e saia zunindo a toda velocidade! Em alguns casos, porém, como no fenômeno "vida" e suas conseqüências, a entropia pode diminuir localmente, mas sempre às custas de um aumento muito maior na entropia do ambiente A superfície do planeta Terra, por exemplo, está infestada com a espécie (Homo Sapiens) que inventou o motor a gasolina. Nesse motor há um abaixamento local da entropia, pois energia térmica é transformada em mecânica. Seu rendimento, entretanto é de cerca de 30% (ou 1/3), ou seja, de cada 3 litros de gasolina, 1 é usado para fazer o carro andar e 2 para abaixar localmente a entropia. Esses 2, porém, aquecem o meio ambiente, o poluem e aumentam a degradação ambiental, fazendo a entropia do sistema Terra crescer. Alguns cosmólogos afirmam que o Universo terminará com a chamada "morte entrópica", onde não haverá mais energia em forma "organizada", e portanto, aproveitável para a vida. 

HEMINGWAY, ERNEST (1899 - 1961): Escritor norte-americano famoso por seu estilo limpo e direto. Participou da primeira guerra mundial como motorista de ambulância e foi gravemente ferido.

Em "Adeus às armas" e "Por quem dobram os sinos" sua experiência de guerra transparece.

Com "O Velho e o Mar" recebeu o prêmio Pulitzer em 1953 e acabou sendo laureado com o Nobel de Literatura em 1954. Se matou com um tiro em 2 de julho de 1961. 

KIPLING, RUDYARD (1 865 - 1 936): Nasceu em Bombay na índia e descreveu, como ninguém, o fascinante mundo da floresta em "The Jungle Books" no qual se inspirou o moderno desenho animado de Walt Disney, "Mowgli". Ganhou o prêmio Nobel de literatura em 1907.

PRESLEY, ELVIS (1 935 - 1977): astro do Rock'n Roll notabilizou-se pelos trejeitos que exibia enquanto cantava e pela profunda voz baritonal. Sua imagem sexy foi exaustivamente explorada em 33 filmes de qualidade duvidosa. Mesmo após sua morte, continuou alimentando a fantasia de milhões de adolescentes — da menarca à menopausa. 

SANG FROID: Expressão francesa que significa, textualmente, sangue frio, ou seja a capacidade de se manter calmo mesmo em situações que poderiam gerar pânico.

  1. S. ELIOT (1883 - 1965): Talvez um dos mais influentes escritores de seu tempo. Apresentava idéias extremamente tradicionalistas e conservadoras de uma forma revolucionária e moderna.

Amante dos gatos escreveu "Old Possum’s Book of Practical Cats" em 1939, que acabou dando origem, nos anos oitenta, à até agora em cartaz comédia musical "Cats". Na poesia sua obra "The Waste Land" (1922) é considerada talvez a mais desafiadora.

Como dramaturgo produziu "Murder in the Cathedral" (1935) sobre o assassinato do arcebispo Becket e "The Cocktail Party" baseado no antigo drama "Alcestis" de Eurípedes.

Thomas Stearns Eliot (aposto que é a primeira vez que você descobre o que significam o T.S. — como no Tiberius do Kirk) ganhou o prêmio Nobel de literatura em 1948.

 

 

                      

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