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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PAGINAS POLICIAIS / Scott Nicholson
PAGINAS POLICIAIS / Scott Nicholson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Moretz começou a trabalhar em uma terça-feira, mas talvez seu trabalho de verdade não tenha começado até algumas semanas mais tarde.
Moretz foi o último cara a se candidatar para a posição de repórter policial. Eu não o teria contratado se eu não estivesse no fundo do poço da piscina de candidatos e me afogando em minha própria fadiga. Como editor do Sycamore Shade Picayune, se um dos meus escritores não aparecesse, seria o meu rabo que estaria na reta quando os chefes da corporação chegassem varrendo tudo em suas BMWs.
Os senhores supremos tinham me dado um orçamento apertado no último ano, e os dois preguiçosos que já estavam na folha de pagamento quando eu comecei esse trabalho ficavam matando o tempo até decidir o que eles queriam fazer quando crescessem. Eu já tinha traçado meu plano de carreira: ganharia o Pulitzer e me mudaria para o New York Times . Exceto pelo passo dado em um jornal trissemanal de uma cidade nas montanhas Blue Ridge com uma circulação de cinco mil exemplares, o plano seria perfeito.
Foi onde Moretz entrou.
Não esperava muito dele. Ele tinha um portfólio decente como escritor de um jornaleco semanal na Costa Oeste, um desses lixos que choramingavam sobre o desmatamento das sequoias e como Big Sur havia sido tomada por antigos drogados que cortavam os cabelos e se tornavam desenvolvedores.
Mas Moretz pegou alguns desvios durante sua carreira, e um ano tocando a campanha política de um senador derrotado em Orange County – Republicano, vale ressaltar, porém, como a maioria dos verdadeiros jornalistas, Moretz poderia mudar de lado num estalar de dedos se o dinheiro fosse melhor.

 

 


 

 


Quando Moretz veio para a entrevista, eu já tinha decidido por outra candidata,
uma garota de pernas longas cuja tinta do diploma de jornalismo ainda estava
secando. Eu tinha ilusões de oferecer a ela o benefício da minha experiência.
Moretz foi entrevisto em uma sexta-feira, o dia de prensar nossa edição de final
de semana, a hora mais trabalhosa para o Picayune. Eu tinha acabado de colocar o papel para dormir, um péssimo termo industrial para isso, dado que o nosso jornal
saía no meio do dia. Meus olhos estavam secos e ardendo, as vítimas de um
encontro às 4 da manhã com a tela do computador. Pisquei duas vezes quando
Moretz entrou, e então chequei o meu PDA para ter certeza que eu tinha marcado a reunião.
Eu tinha. Droga.
“Olá, Johannes,” eu disse, lendo do currículo. Pronunciei “Yo-hann”, incerto se
isso era algum tipo de pronúncia austríaca. Imaginei que alguém com um nome desse
deve ter apanhado bastante quando era criança.
“John,” ele disse. Ele era alto, escuro, e, se você gosta desse tipo de coisa, acho
que era bonito. Queixo quadrado, um pequeno brilho em seus olhos negros, moldado
como se tivesse jogado futebol americano no colegial, mas trocado a popularidade
por uma poltrona no domingo à noite. Ele parecia ter cerca de trinta anos, não muito
ameaçador, já que eu tinha alguns anos de longevidade sobre ele.
Afinal, ele era o cara procurando um emprego. Eu tinha um. Não um grande
emprego, mas um emprego sem dúvida.
Folheei seu portfólio. Ele tinha ganhado terceiro lugar em um concurso de escrita
da associação de imprensa com uma matéria sobre uma velha senhora com trinta
gatos. A audiência do Picayune, como a audiência da maioria dos jornais locais, é
idosa, parcamente educada, e bastante conservadora. Folheei o artigo e percebi que
John Moretz (assinando como John J. Moretz) não apelou nenhuma vez para o
sarcasmo ou o ridículo. Um tratamento sem viés, jornalisticamente sólido, justo e
balanceado.
Grande coisa. Isso atrairia propaganda?
“Então, John, essa posição é para repórter policial. Nós não temos um repórter
desse tipo de verdade desde que eu cheguei aqui. Eu gosto dos escritores que temos
agora, mas eles não sabem atacar a jugular.”
Isso era um eufemismo. Westmoreland era um ator aspirante cujo último grande
papel foi ser o narrador na peça “Nossa Cidade” no teatro da comunidade local.
Baker tinha trabalhado no Picayune como estagiário antes da minha nomeação, e se
demitido para sair em turnê com uma banda de música country; então engravidou a
namorada e precisava do plano de saúde, então rastejou de volta de quatro, as

malditas cordas do bandolim rastejando atrás dele.
Claro que eu o contratei de volta. Eu tinha um coração, a despeito de todas as
evidências contrárias.
“Eu consigo fazer o trabalho, senhor,” John disse.
Pontos principais. Eu prestei atenção nele para ter certeza que o “senhor” não era
ressentimento. Os olhos negros permaneceram negros, sem desviar a visão, sem
piscar, sem dar um sorrisinho. Ele possivelmente era durão.
“Ter esse trabalho significa que você terá de manter bons relacionamentos com a
polícia local. Não precisa gostar deles, mas precisa respeita-los. Acha que consegue
fazer isso?”
“Claro.” Ele não disse “Sim, senhor”, o que teria soado como um bajulador.
Comecei a respeitar o cara, especialmente desde que ele me respeitou primeiro. E
isso provavelmente significava que ele conseguia fingir respeitar os policiais.
“Nós temos outros bons candidatos para a posição, então estou certo que você
entende que essa é uma decisão difícil.”
“Sei que você tem que fazer o que for melhor para o seu jornal.”
Seu jornal.
Seu maldito jornal.
O cara atingiu meu ponto fraco. Chequei meu relógio. Tinha um almoço com a
Câmara de Comércio em meia hora. Eu havia ganhado nove quilos desde que assumi
o trono no Picayune, a maior parte por culpa da Câmara.
Algumas vezes eu me perguntava quem pagava a conta, porque não existe esse
negócio de almoço grátis. A menos que você esteja no negócio do jornalismo.
“Seu trabalho parece bom, John, mas claro que eu terei que falar com os
superiores.”
O que era uma total invenção. Na era das fusões corporativas, periódicos como o
Picayune não eram nada mais do que abatedores de imposto, e o editor sentado no
seu canto calculando cortes salariais. A internet estava nos matando a todos, mas
éramos cabeças-duras demais para admitir.
“Entendo,” John disse. “Eu apreciaria se pudesse me dar uma resposta o quanto

antes. Estou procurando por um apartamento agora e estou tentando definir meu
limite de preço.”
Não consegui dizer se isso era uma busca por simpatia. Provavelmente não. As
roupas de John eram limpas, mas baratas, sua camisa para dentro da calça, sapatos
não estavam terrivelmente arranhados. Ele era mais alto do que o delegado do
condado, o que poderia ser desfavorável, mas suas maneiras sugeriam que ele era
confiável.
Policiais em Pickett County tinham os lábios notoriamente fechados e não
gostavam da cobertura da mídia, a não ser que eles fossem fotografados sorrindo ao
lado de uma planta de maconha ou de pé do lado de fora dos restos contaminados de
um trailer usado como laboratório de anfetamina. Se John conseguisse bancar o bom
caipira e ainda fazer os policiais parecerem bons servidores públicos, ele poderia
conseguir boas histórias.
Droga. E eu já estava sonhando com aquela bunda da menina jornalista.
Chega uma hora na vida de um homem em que ele tem que fazer a coisa certa, não
importa o quanto ele odeie isso. John poderia beneficiar o Picayune muito mais do
que a bunda da jornalista poderia me beneficiar, mesmo que na minha idade o
máximo que eu poderia lidar fosse uma ocasional fantasia saudosista.
A verdade dói, e dizem que o jornalismo nada mais é do que a busca não viesada
pela verdade. Algumas vezes eu odeio ter nascido para ser um editor, e nós
deveríamos ter pena de todos aqueles que carregam o fardo de ter senso de
moralidade.
“Ligo para você amanhã,” eu disse, porém minha decisão já havia sido tomada. Eu
queria ligar para os outros candidatos primeiro. Dar a eles as notícias ruins e
convida-los para se candidatarem no futuro se as circunstâncias fossem merecedoras.
Planejei ligar para a jornalista por último. Talvez convida-la para um café para
falarmos sobre seu futuro.
John e eu demos as mãos e essa foi a última vez que o vi até terça-feira. Eu havia
deixado uma mensagem no seu celular dizendo que o trabalho seria dele se ele
quisesse. Ele retornou a mensagem dizendo que estava honrado por ser parte da
equipe do Picayune e que estava pensando em como me ajudar a levar o jornal para

outro nível, blá blá blá, mas que ele precisava da segunda-feira para se mudar.
Uma rodada de telefonemas mais tarde e outra insípida edição livre de crimes do
Picayune foi para as ruas. A página principal mostrava uma foto colorida do prefeito
cumprimentando o presidente de um novo banco, um artigo sobre a reunião dos
administradores da faculdade comunitária local, e os votos dos planejadores sobre
um complexo de condomínios com doze unidades.
Uma chatice mesmo para as pessoas cujos nomes estavam nos artigos. Sexo e
morte, essas grandes ferramentas de marketing para todas as idades, estavam
completamente ausentes. Não tínhamos nem mesmo a foto de um cachorro, pelo
amor de Deus.
Eu sempre chegava mais tarde às terças-feiras. Eram as manhãs que eu tirava para
mim, quando eu fazia coisas como dormir ou ir à loja de waffles e interrogar os
moradores locais. Sou um fã de futebol americano, Tennessee Titans, e eles tinham
jogado no “Monday Night Football” e perdido por uma margem de pontos pequena
o suficiente para me manter acordado até o último minuto. Eu não sou alguém que
bebe muito, mas futebol americano e Budweiser andam de mãos dadas. Deve ser
essa lavagem cerebral da mídia que ouvimos falar.
Quando entrei no Picayune com suas paredes pré-fabricadas me metal de merda,
Moretz já estava na mesa dele. A superfície estava vazia exceto por um único bloco
de notas aberto ao lado do telefone. O scanner da polícia colocado na divisória do
cubículo, transmitindo seu chiado pelo prédio, jargão policial ocasionalmente
surgindo.
Baker e Westmoreland estavam atrasados como sempre, ainda mais atrasados do
que eu. Vamos encarar, eles eram alcoólatras. A tradição do jornalismo prega que os
repórteres mantenham uma garrafa de 750 ml na gaveta de baixo de suas mesas.
Meus rapazes mantinham as deles no bolso do paletó. Mas éramos uma família,
pelo menos até que as coisas requisitassem a eliminação de uma posição.
Esse rapaz Moretz, no entanto, ele queria jogo. É fácil quando você é carne
fresca, ainda não desgastado pelo salário, mas ele tinha uma caneta de pena e um
copo de café, e o computador dele não estava logado em um website de encontros
online. Bons sinais, todos eles.

“Bom dia, Johnny Boy,” eu disse, embora geralmente tente me abster da
confraternização. Mas no primeiro dia, imaginei que deveríamos ser iguais.
“Oi, chefe,” ele disse. “Tenho uma provável apreensão de drogas na mira.”
Concordei com a cabeça. Apreensão de drogas. Grande matéria, hein!? Sessão
policial, página dois, talvez três colunas de uma polegada. Eu precisava de material
para a capa. “Mais alguma coisa?”
Moretz virou para mim, e seus olhos negros brilharam levemente com um pálido
vermelho. Devem ter sido aquelas três cervejas extras que eu tinha consumido após
o meu limite de dois drinks. Ou ainda os efeitos latentes de contaminação do
enroladinho de salsicha matinal.
“O prazo é hoje à noite?” ele perguntou.
“Nós podemos atrasar as prensas se for algo bom, só que os operadores das
máquinas vão esbravejar e reclamar. Ou então, você pode me mandar por e-mail e eu
vejo de manhã.”
O scanner estalou e a comunicação começou, parecia uma fumante de quarenta
anos que tinha falhado na indústria de sexo por telefone, transmitindo um 10-50 P.I.
Em linguagem humana, aquilo significava um acidente de carro com vítimas. Moretz
anotou o endereço, checou o mapa na parede e já tinha saído pela porta antes que eu
pudesse perguntar se Serena Fitz, a fotógrafa, poderia ir com ele.
Não que isso tivesse ajudado em algo. Fitz era uma dessas artistas,
provavelmente tinha saído tentando fotografar um esquilo enterrando uma noz ou
alguma velha cavando seu jardim de flores. Ela pensava “arte” enquanto eu pensava
em quadrados.
Não me espantava que Fitz tivesse se rebelado contra mim. Mas ela ganhava para
o Picayune um prêmio de imprensa quase todos os anos e ia aos eventos esportivos
do segundo grau. O que mais eu poderia querer de um fotógrafo na era digital?
Sentei na frente da minha mesa e comecei a atualizar o website do jornal. O
scanner cuspia estática e eclodia em tagarelice. O 10-50 P.I. virou um alerta de
incêndio, com a polícia requisitando os bombeiros, o esquadrão de resgate e um
serviço de ambulâncias. Acima das sirenes urrando ao fundo, uma voz em pânico
surgiu: “Requisitamos ASAS, transporte aéreo.”

Transporte aéreo. Coisa grande.
Ninguém queria ir para o hospital local se os danos causassem risco de morte.
Melhor pilotar um helicóptero até o centro médico local a meia hora de distância.
Mais do que eu odiei admitir, a possibilidade de traumatismo craniano encantou o
editor dentro de mim.

2.
Moretz chegou duas horas depois, um lado da camisa para fora da calça e o
colarinho amarrotado. Meus outros dois repórteres ainda não haviam chegado.
“A vítima era uma jovem,” Moretz disse.
“Vítima?” Eu teria dito “Vic”, enquanto que o perpetrador seria com certeza
“Perp”, mas esse não era um péssimo programa policial de TV, isso era realidade, e
meus olhos estavam me matando e minha pulsação era como um saco de pregos nas
minhas têmporas.
“Ela morreu en route.”
“En route?” Não me diga que “Yo-hann” era francês. Eles não gostavam da
França aqui nas montanhas da Carolina do Norte. Meus leitores tinham preconceito
com franceses, eram frequentadores de igrejas e leitores de obituários, faziam
donativos para abrigos de animais e liam as coisas horríveis habituais, como
carnificina relacionada com sexo.
Moretz chegou seu bloco de notas. “Carleena Whitley, 22, o endereço dado é
Estrada Swamp Box, número 1.322, Sycamore Shade.”
Whitley. Um nome que eu poderia esquecer. Mas não Carleena. A jornalista loira
com a bunda chamativa. Aquela que poderia estar sentada na cadeira de Moretz, e
com bojos muito mais atrativos embaixo do descanso de braço, posso afirmar para
mim mesmo. Agora ela era a manchete ao invés de escrever a história.
“Fatal?” usei a gíria da indústria para “fatalidade” para mostrar a Moretz que nós
conhecíamos a linguagem. Meus lábios dormentes, mas eu já imaginava o layout na
página.
“Tirei algumas fotos com minha câmera digital,” Moretz disse. “Não focalizei o
corpo.”
Eu poderia apostar que não tinha mesmo. Ou ele era gay ou tinha muito mais
distanciamento jornalístico do que eu. “Copie-as para o arquivo de fotos.”
“Álcool pode ter sido um fator.”
“Hum. Podemos fazer uma sequência sobre abuso de substâncias mais para o

final da semana.”
“Deixa comigo, chefe.”
Chefe. Gostei do som daquilo.
Eu já tinha chefiado três jornais, nenhum deles diário, mas eu tinha essa imagem
de mim mesmo como Ed Asner no antigo “Mary Tyler Moore Show”, o durão e
justo paladino da verdade e da justiça.
Uma carreira temperada por um saudável aumento no pagamento ao longo do
tempo, assim como meus cabelos cairiam. Até o dia em que eu atingiria o topo da
minha profissão. Seja lá qual for.
Sempre imaginei um ataque do coração e dez colunas de uma polegada sendo
prensadas, porque o seu jornal sempre tinha a obrigação de fazer de seu editor um
“herói da comunidade” a despeito do fato de que poucas pessoas fora da Câmara do
Comércio me reconheceriam na rua. Mas isso é tudo para o futuro. No negócio do
jornalismo, o futuro é um prazo estourado e notícias de ontem são notícias de
ontem.
“O policial trabalhando na cena me deu uma cópia do relatório dele,” John disse.
“Eles não terão o exame toxicológico até a semana que vem, mas ele disse, não
oficialmente, que o sangue dela queimava com uma chama azul, o índice alcoólico era
muito alto.”
“ O Picayune tem uma política de nunca tornar público o que autoridades nos
dizem não oficialmente.”
“Então você não teria como saber que tinha álcool envolvido.”
“Como nós podemos seguir com isso? Isso estava no relatório do acidente?”
Moretz sorriu, um sorriso torto, sinistro e cheio de dentes, como aquele que eu
via no espelho quando escovava meus dentes. “Eu os vi tirando latas de cerveja do
carro. Deixe o leitor fazer a dedução lógica.”
Dei alguns tapinhas nas costas de Moretz. Geralmente eu não me dou a essas
merdas de laços entre homens, especialmente com pessoas que trabalham para mim,
mas eu estava começando a gostar daquele cara. Além do mais, jogue um osso para
um cachorro uma vez e ele virá farejar sua mão para o resto da vida.

Aquele foi um bom dia. Meus outros dois repórteres trouxeram bom material,
mais tarde do que o normal, mas material de qualidade. Comecei a trabalhar na edição
de quarta-feira, reconfortado por saber que haveria uma morte na capa. Como o
clichê de uma redação diz, “se sangra, vende.”
O bom se tornou melhor, apesar de que eu nunca teria imaginado isso na hora. Em
meus seis anos no Picayune nós conseguíamos ouro vermelho para a capa uma vez a
cada dois meses ou mais. Geralmente acidentes de trânsito, mas ao menos que
tivéssemos a sorte de ouvir a respeito no scanner policial, nossa cobertura era
inconsistente.
A Patrulha Estadual das Estradas tinha o hábito de deixar os policiais da cavalaria
carregarem os relatórios dos acidentes com eles por dias antes de envia-los para os
escritórios de comunicação. Geralmente nós terminávamos com nada além de uma
foto de destroços amassados e presos a um guincho enquanto os atendentes da
emergência guardavam seu material.
Descobrir o nome da vítima era um exercício para o controle da pressão
sanguínea, e a tarefa tinha ficado ainda mais difícil com a aprovação de federal de leis
de privacidade que permitiam que todos evitassem dar informações relacionadas à
saúde.
Leis de privacidade eram apenas uma desculpa para os tiras, vigaristas e políticos
esconderem ainda mais coisas do público, mas as leis eram empacotadas como
“liberdades civis”, então a pílula de veneno era engolida sem problemas.
Mas dessa vez a verdade e a justiça vieram à tona.
Na sua primeira jogada da partida, Moretz tinha conseguido não apenas o nome e
o relatório policial, ele havia marcado presença na cena do acidente quando tudo
ainda estava fresco. Seu artigo estava cheio desses pequenos detalhes que realmente
tornam a história viva para o leitor: a caneca de café da Universidade da Carolina do
Norte que tinha voado de seu Subaru com o impacto, uma testemunha anônima
sugerindo que Carleena tinha excedido a velocidade segura, uma foto do interior do
sedan mostrando as latas vazias de cerveja.
Ele ainda tinha uma foto de uma única mão branca levemente aberta em meios aos
destroços, como se Carleena estivesse perguntando a um poder maior porque ela

tinha que morrer tão violentamente.
Eu provavelmente não usaria as fotos das cervejas e do corpo, mas era bom tê-las
só para garantir. Geralmente eu mantinha os limites do bom gosto, quando era
possível, mesmo sabendo que o mau gosto vende mais jornais.
Nós o finalizamos e o Picayune foi para as ruas no começo da tarde do dia
seguinte. Os repórteres algumas vezes saíam para almoçar depois que o jornal
estivesse pronto, especialmente por estarem quase vesgos devido à bebedeira e ainda
com dificuldades de olhar para as telas do computador. Fred Lance, o editor de
esportes, queria ir ao Tres Hombres Restaurante Mexicano, mas até aí, Lance
sempre queria burritos e cerveja importada.
O problema era que o seu notório e crônico problema com flatulências tendia a
empestear o escritório por duas horas depois que ele retornava, então eu
subitamente sugeri uma ida à casa de waffles no lugar. Moretz nos dispensou,
dizendo que tinha que checar algo no tribunal.
Eu tinha um cão farejador de crimes. Um repórter que dispensa uma refeição por
uma história era definitivamente um cara caxias.
A casa de waffles nos serviu bem, exceto pela descoberta de que omeletes
espanhóis causavam o mesmo efeito desafortunado em Lance que a comida
mexicana. Deve ser alguma coisa hispânica. Provavelmente ele tinha caído em um
pote de azeitonas ou em uma música do Ricky Martin. Talvez qualquer desculpa
serviria para Lance banhar o mundo com o seu odor.
Mas a tarde não foi uma total perda de tempo: Moretz tinha acertado de novo
enquanto estávamos fora. Eu estava prestes a fechar a porta da minha sala e curtir o
ar relativamente puro quando Moretz entrou correndo.
“Morte por drogas, chefe,” ele disse.
“Overdose?” Como a maioria dos jornais comunitários, nós minimizávamos
notícias de suicídios. Era fácil demais de serem copiadas e, a despeito da reputação
da imprensa de chafurdar no pior do comportamento humano, nos ocasionalmente
tínhamos respeito pelo sofrimento da família.
Mas o que era mais importante: suicídios não vendem jornal. Eles apenas
deprimem as pessoas ao invés de seduzi-las a efetuar a compra.

“Melhor do que isso. Um negócio com drogas terminou mal. Tiroteio.”
Em sua primeira história eu tive que conter um ímpeto de abraçar Moretz. Agora
eu precisava me virar de costas antes que eu desse um verdadeiro beijo no rosto do
cara. Negócio com drogas terminando mal. Investigação de assassinato. Apenas uma
coisa tornaria aquela história ainda melhor...
“Ótimo,” eu disse, mantendo minha compostura editorial. “Há alguma mulher
envolvida? Ou um filhote de cachorro?”
“Algum garoto universitário. Um verdadeiro Gente Fina, de acordo com as
testemunhas entrevistadas pela polícia.”
“Do Condado ou da cidade?” Delegado era uma posição eleita, então Hardison
adoraria posar ao lado de uma cena assassinato para um fotógrafo. O chefe de polícia
de Sycamore Shade era indicado pelo conselho da cidade, e consequentemente tinha
o cargo para o resto da vida a menos que fosse pego em algum negócio ilícito.
Tiras espertos raramente eram pegos, mas geravam matérias de ouro quando
acontecia, garantindo aumento na circulação e prêmios de imprensa. Eu não queria
que isso acontecesse em nenhuma comunidade que não fosse a minha.
“O corpo era do condado, mas o garoto vivia na cidade.” Moretz não mostrou
nenhum sinal de excitação. Mesmo repórteres veteranos ficam agitados com uma
potencial história desse calibre. Mas Moretz estava tão frio quanto a tinta às três da
tarde.
“Detalhes,” eu disse. Em uma redação você não desperdiça palavras. Você as quer
no jornal ao invés de evaporando no ar antes que alguém possa pagar por elas.
Moretz consultou seu bloco de notas. “Simon Hanratty, 22 anos, Apartamentos
Terrace Trace, número 2.753. Encontrado morto na cena do crime com um único
ferimento de bala na cabeça. Parece que o corpo foi jogado em uma área de camping
remota perto da floresta nacional. Arma do crime não foi localizada. A vítima seria
graduada na faculdade comunitária em Maio.”
“Alguma pista?”
“É muito recente. O delegado disse que o caso está oficialmente sob investigação
e que ele não podia comentar.”

“Droga. Ele sempre diz isso, até que o caso vá para Júri Popular.”
Moretz deu aquele sorriso torto dele, aquele que sugeria que ele tinha comido
corvos e achado gostoso. “Eu trabalhei nele por um tempo. Disse que respeitava a
necessidade de confidencialidade, mas que o público iria querer algumas respostas.
Ainda disse que eu teria problemas com o meu chefe se eu não trouxesse nenhum
detalhe.”
“Você fez um apelo à humanidade dele? É do delegado que estamos falando.”
“Funcionou,” Moretz disse. “O assassinato aparentemente ocorreu perto das
nove da manhã. Tiras conseguiram a descrição do carro com um vizinho. Parece que
o assassino pegou Hanratty em seu apartamento, o levou para a mata, matou e foi
embora dirigindo. O delegado imagina que a imprensa possa ajudar a espalhar a
notícia sobre o carro.”
“Uma mão lava a outra.”
“E ambas terminam vermelhas.”
Meu corpo estremeceu. Repórteres que utilizavam metáforas poéticas não eram
confiáveis. Mas Moretz havia sido uma bênção até então. Apenas esperei que nossa
sorte continuasse. “OK, vamos deixar tudo pronto para sexta-feira. Em momentos
como esse eu gostaria que fôssemos um jornal diário.”
“Posso escrever vinte polegadas com o que eu já tenho. Existe a chance de termos
mais novidades amanhã, assumindo que o delegado vá retornar minhas ligações.”
O delegado era um perito no uso da voz passiva, que praticamente evitava e
enfraquecia qualquer possível ação que ele tivesse a necessidade de tomar. Ele vivia
em um mundo onde erros eram cometidos e consequências eram enfrentadas uma
vez que os responsáveis fossem encontrados. Como nós poderíamos evitar tornar a
vida dele mais difícil ao pedir que ele comentasse as coisas?
“Vai com tudo,” eu disse.
Moretz afastou-se na direção da porta, seguindo para sua mesa.
“John,” eu disse.
Ele virou, as mãos nos bolsos da jaqueta. Os olhos dele estavam escuros e lisos,
vazios como uma caverna.

“Você conseguiu duas histórias de capa acima da média nas suas duas primeiras
edições. Bom trabalho.”
Ele deu de ombros. “Foi para isso que você me contratou, não foi?”
E saiu pela porta.

3.
Na sexta-feira, ele arrancou um pouco mais do delegado. O carro tinha sido
descoberto em um estacionamento em Charlotte. Fora da nossa jurisdição, mas o
caso era local, então o carro eventualmente terminaria aqui para testes. Conseguimos
uma foto dele da Associação de Imprensa, que também divulgou a foto que Moretz
tirou do corpo coberto por uma lona suja de sangue enquanto os tiras trabalhavam
na cena do crime.
A edição que foi para as ruas vendeu seis mil cópias. Não é muito se comparado
com o Washington Post, mas considerando que nossa circulação foi entregue às
quatro e meia, eu considerei esse número uma grande escalada.
Manhã de sábado, desci para o restaurante para me deleitar com o respeito
renovado. O Picayune tinha sido formado nas cinzas da Guerra Civil e surgiu para
rivalizar com um jornal da União. Nos tempos antigos, não era estranho que uma
cidade pequena tivesse três ou quatro jornais, cada um defendendo uma causa
diferente.
Mais pessoas liam jornais, apesar de menos pessoas conseguirem ler. Imagine a
cena.
De qualquer forma, meu jornal mantinha uma orgulhosa tradição ser impresso na
era dos emergentes da mídia, começo da Internet, propaganda local na TV a cabo, e o
inexplicável poder constante da estação de rádio AM da cidade, que basicamente
transmitia Rush Limbaugh e outros shows pré-embalados misturados com previsões
do tempo e a ocasional programação pop.
O que nenhuma dessas fontes era capaz de entregar eram as informações internas
que Moretz conseguia. Mesmo as estações de notícias regionais ficaram sem a
notícia sobre a história de assassinato por drogas porque o delegado se recusou a
gravar com eles.
No restaurante, sentei com o prefeito e com um cara que tinha feito uma fortuna
no ramo imobiliário. O prefeito, Patterson Wilbanks – um nome de prefeito, se é que
isso existe – e o empresário local, Andy Long, eram fãs do jornal, basicamente
porque ambos tinham interesses particulares.

O prefeito contava com aquelas fotos cortando fitas que sempre apareciam na
página dezesseis e Long era um anunciante, embora a maior parte dos seus anúncios
fosse feito nos classificados online. Eu suspeitava que o Picayune fosse um caso de
piedade para Long, mas nós agarraríamos toda a piedade que pudéssemos.
“Gosto daquele novo repórter,” o prefeito Wilbanks disse. Ele comia ovos e
cebolas com torrada e café preto. Long, levemente mais refinado, comia um bolo de
blueberry, uma tigela de flocos de milho e um copo de suco de tomate.
“Ele tem sido uma agradável surpresa.” Claro, eu achava que minha revisão na
decisão dos candidatos tinha muito mais a ver com o sucesso do que qualquer outra
coisa. A garçonete chegou, olhos púrpura devido aos cigarros e à bebedeira da noite
anterior, e abriu um cardápio a minha frente com um giro sobre a mesa engordurada.
Long ofereceu seu suco de tomate para mim. “Eu tenho assinado o jornal por
trinta e cinco anos, e eu costumava ler os exemplares dos meus pais antes disso. Os
últimos dois foram realmente fortes.”
“Obrigado,” eu disse, lutando contra o ímpeto de bajula-lo. Afinal, isso era
trabalho da equipe de vendas. Deixe que eles tenham dor nas costas de tanto se
curvarem para lamber sapatos de couro. Eles trabalhavam por comissão.
O prefeito Wilbanks falou enquanto mastigava seus ovos. “Imagino que o seu
repórter tenha ouvido sobre a colisão na noite passada.”
“Colisão?”
“Uma ambulância voltava para o hospital após atender um chamado de ataque
cardíaco e bateu de frente com um Jeep.”
Mexi inquieto com o meu guardanapo e com a prataria em cima dele. “Alguém
morreu?”
“A rádio disse que duas pessoas estão em estado crítico.”
Rádio. O que a rádio sabia?
Apertei o cardápio, desejando que eu pudesse ter uma edição antes de segunda-
feira. Quando você está no negócio da informação, nada dói mais do que esperar.
Uma das minhas mãos estava dentro da jaqueta, buscando meu telefone celular
quando ele vibrou contra o meu peito.

“Com licença, senhores.” Eu os deixei com suas refeições enquanto abria meu
telefone e falava. “Alô, aqui é o Howard.”
“E aí, chefe.”
“Moretz?”
“Espero não ter interrompido nada. Eu não ligaria no final de semana se não fosse
importante.”
Os outros repórteres nunca ligavam aos finais de semana. Portanto, eu nunca os
encontrava quando precisava deles. Nossa edição de segunda-feira era geralmente
morna, pois tentávamos juntar tudo na mesma manhã.
Não apenas era o começo da semana, e em vista disso as fontes costumavam
chegar mais tarde aos seus escritórios, mas a segunda-feira era ótima para feriados,
ficar doente e tirar férias. As chances de receber uma ligação de retorno eram quase
tão ruins quanto na sexta-feira à tarde.
“Fico feliz que tenha ligado, John. O que houve?”
“Você deve ter ouvido sobre a batida de frente noite passada.”
“Sim.” Eu disse como se tivesse dormido com o scanner ligado ao lado da cama,
mas na verdade, eu curtia meu período de descanso tanto quanto qualquer um. Não
tanto quanto os meus repórteres curtiam, mas eu o estimava mais. Ou pelo menos
era o que eu dizia a mim mesmo. Farmville, e-mail e aquele romance que eu tentava
arrumar por uma década eram responsabilidades muito sérias.
“Um deles morreu e o outro está provavelmente no rumo para ganhar uma
etiqueta no dedão nesse minuto.”
“Cacete. Onde você está?”
“No hospital. Eu dirigi até aqui para checar o estado deles.”
A garçonete voltou e encheu o copo de café do prefeito. Ela franziu a testa para
mim e bateu de leve no seu bloco de pedidos. Ela tinha um bigode ralo, de meia
idade, que parecia mais proeminente quando seu rosto se contraía. Voltei para o
telefone. “Como você passou da recepção? Com essas novas regulamentações
federais de privacidade, eles não deveriam dar nenhum tipo de informação sobre
pacientes.”

“Darão se você for um membro da família.”
Eu não sabia se deveria dar-lhe um chute por arriscar a reputação do Picayune ou
oferecer um aumento a ele. “Você chegou a ficar do lado da cama?”
“Perto o suficiente. Ouvi o médico falando com um dos parentes de verdade.
Traumatismo craniano maciço.”
Fiquei pensando em como nós poderíamos revelar essa informação sem entregar o
fato de que tínhamos violado padrões de integridade. Espere um segundo. O que eu
estava pensando, “integridade”? Isso era um jornal, pelo amor de Deus.
“OK, pegue os nomes e o básico e vamos colocar isso na página principal. Pena
que não conseguimos fotos da cena do acidente.”
“Chefe,” ele disse, como se estivesse falando com um idiota. Ou, desde que
idiotas não existiam mais nessa era do politicamente correto, com uma pessoa com
diferenças intelectuais.
“Eu fui para lá quinze minutos depois.”
Imaginei se Moretz tinha um scanner em casa. Eu havia tentando fazer com que
os outros repórteres carregassem scanners portáteis que eram do tamanho de um
rádio comunicador, mas eles deram pra trás. Eles consideraram isso uma outra
versão de prisão domiciliar. “Você tem um talento para esse tipo de coisa,” eu disse.
“Eu estava dirigindo pela estrada N.C. 16 quando vi duas luzes azuis girando indo
para o leste. E uma ambulância logo atrás dos carros de polícia. Então imaginei que
fosse algo bem grande.”
“Um Jeep, certo? Eles arremessam corpos como pipoca quente.” O prefeito e
Long tinham abandonado seus cafés da manhã e estavam grudados no final da minha
conversa.
“Sim, e eles estavam com os cortadores hidráulicos para o resgate. Abriram o
carro como uma lata de atum e puxaram os pedaços para fora. Tirei fotos do resgate,
não tem muito sangue, mas a sugestão de uma grande carnificina.”
“Ótimo.” Eu queria seguir para o escritório e começar a trabalhar no conteúdo,
mas não vi nenhuma vantagem nisso dado que faltavam quarenta e oito horas para a
próxima edição. “Uma pena que não podemos manter as atualizações fora do rádio.”

“Vou dizer na recepção que as famílias desejam manter confidenciais as condições
até que todos os parentes sejam notificados. Isso deve nos garantir uns dois dias, se
tivermos sorte.”
“Porra, Moretz, você tem certeza que não foi editor na vida passada? Ou talvez
um espião russo?”
“Se você quer enganar um rato, precisa espalhar o queijo.”
Eu não sabia o que aquele aforismo bizarro queria dizer sobre a condição da mídia.
“Está certo, vou usar cerca de vinte polegadas para isso.”
“Você as terá, chefe.” Moretz desligou e eu enfiei meu celular de volta no bolso
quente.
Long apontou seu garfo engordurado para mim. “Você sabe de alguma coisa, não
sabe?”
Calculei o quanto esganar um anunciante compensava o risco de ele espalhar os
detalhes antes que nós pudéssemos publicar a exclusiva. Inferno, ele nem era um
anunciante tão grande. E, assim como qualquer anunciante, ele voltaria correndo com
o talão de cheques se o público estivesse falando sobre nós.
“Apenas algumas pistas,” eu disse. “Não teremos nada sólido até segunda-feira.”
Eu quase o desafiei a ouvir o rádio para maiores detalhes, mas isso teria sido
arriscado. Long tinha uma conta na rádio AM local, e eles o deixavam ir ao estúdio
para entrevistas ocasionais.
Tudo o que o Picayune poderia oferecer era espaço gratuito em uma coluna, mas
nesse caso ele teria que escrever uma coluna. Você tem que realmente odiar alguém
para impor uma sentença de escrita involuntária e não remunerada a ele.
O prefeito Wilbanks sorriu, como se tivesse contado uma piada interna, ou então
por ter sofrido uma pontada no coração por conta do molho das salsichas. De
qualquer forma, eu tinha perdido meu apetite com a excitação.
“Desculpem-me, senhores, é melhor que eu vá para o escritório. As notícias
nunca dormem, vocês sabem.” O que era um coisa estranha para se falar após o café
da manhã, mas ambos concordaram com a cabeça como se eu tivesse acabado de lhes
entregar as placas de pedra do Monte Sinai.

Sábado no escritório do Picayune era como um mortuário fechado. O lugar estava
escuro e empoeirado, e a circulação de ar desligada. Ninguém tinha nenhum trabalho
ali, com talvez a exceção de Fred Lance incluindo alguns resultados dos campeonatos
escolares.
Eu gostei da paz e quietude. Tive tempo de preparar o layout básico da edição de
segunda-feira, checar meu e-mail e mensagens telefônicas e ver algumas fotos da
atrevida edição de trajes de banho da Sports Illustrated.
Não sou um desse babões no teclado, apenas sinto que isso é um papel
importante dos nossos direitos da Primeira Emenda. Pelo menos isso é o que eu digo
a mim mesmo.
Eu estava navegando em um site baseado em palavras-chave que não poderiam ser
impressas em uma publicação para o público geral quando as luzes da entrada se
acenderam. Abri um inócuo website, algo que seria aprovado mesmo pelo mais
pudico dos senhores supremos, e fingi estar ocupado com a papelada.
Moretz passou pela minha janela de vidro e me saudou com dois dedos em riste,
o que seria encarado como um sinal de paz algumas décadas atrás, mas que poderia
significar tesoura-corta-papel nos dias atuais. Ele sentou em frente ao seu
computador e debruçou sobre o teclado como se aquilo lhe desse prazer sexual. Não
que eu estivesse falando de experiências pessoais ou algo assim.
Li alguns textos enviados para a seção ‘cartas para o editor’. Ruby Wallace tinha
mandado sua nova matéria sobre conspiração governamental, tão confusa que você
não conseguiria dizer se ela estava a favor ou contra a administração atual, apenas
que alienígenas estavam provavelmente envolvidos de alguma maneira, porque ela os
tinha visto posando com Clinton na capa da The Weekly World News.
Até aí, todo mundo sabia que Clinton deveria estar sob a influência de poderes
celestiais, de outra forma, o mercado de ações não teria atingido níveis tão altos
durante sua permanência do poder, caindo apenas quando ele seguiu para o circuito
de palestras e contratos de livros com oito dígitos. No Mundo de Acordo Com
Wallace, “o grande governo é inimigo de J. Cristo,” e alerta a todos que duvidem.
Por sorte, o jornal tinha uma política de requerer um período de duas semanas
entre as cartas, então eu guardei o e-mail de Rudy na caixa “Em Espera” e segui em

frente.
Moretz veio até a porta da minha sala e ficou de pé como um emissário militar.
Ordinariamente, eu gosto que meus repórteres mantenham as linhas de comunicação
abertas, porque eles tendem a serem lobos solitários em um trabalho que servia ao
rebanho de ovelhas e franzia a testa sobre a expressão individual.
Mas Moretz estava começando a me incomodar um pouco. Não era o caso de ele
querer aprovação ou até mesmo conselhos de mim; eu tinha a sensação de que ele
servia a um propósito maior, um propósito invisível para pessoas como nós que
queriam um salário decente e uma promoção ocasional.
“Supimpa, Moretz?” eu disse, uma gíria velha e ultrapassada.
“Definitivamente supimpa,” ele disse, olhando para mim por baixo daquelas
sobrancelhas de Antonio Banderas. “Tenho sua história do acidente, além de um
possível caso de abuso sexual.”
“Abuso sexual?” olhei para a tela do meu computador, imaginando se eu tinha
deletado o histórico de visitas aos sites.
“Se liga – um homem de Sycamore Shade foi preso por estupro e exploração de
um menor.”
“Legal, mas isso não é muito incomum. Nós temos um desse a cada poucos
meses.”
“Com vídeo?”
“Do que você está falando, Moretzy?”
“O cara filmou a si mesmo com um jovem. Mais do que um, de acordo com
mandado. Os tiras apreenderam fitas com sete horas de filmagens.”
“Jesus Hemingway Cristo, você não está me dizendo que temos um círculo
pornográfico amador?”
Moretz sorriu como se ele tivesse engolido o gato que comeu o canário. “O cara
aparentemente era um grande pervertido. Melhor ainda, você deve reconhecer o
nome – Wilbanks.”
“Wilbanks? O prefeito?”
“O filho dele.”

“De jeito nenhum. Acabei de tomar café com o prefeito, e ele não tinha
preocupação nenhuma no mundo, exceto talvez ser reeleito ano que vem.”
“Isso foi naquele momento, e isso é agora. O mandado foi emitido há vinte
minutos.”
Eu tinha desenvolvido uma admiração pela atitude de farejar notícias de Moretz
em nosso curto tempo juntos, e planejava deixa-lo liderar um seminário interno em
como grampear fontes. Imaginei que Baker e Westmoreland pudessem aprender uma
coisa ou outra, ou ao menos usarem seus ressentimentos como motivação
temporária.
Agora eu estava realmente vendo Moretz como uma ameaça ao meu trabalho.
Tudo o que eu tinha a mais do que os outros membros da equipe, além da calvície,
era a habilidade de fazer layouts para as páginas, e eu acreditava completamente que
qualquer macaco poderia ser treinado para operar o programa. “Como você pescou
essa? Esse tipo de prisão não é comunicada no scanner.”
“Eu estava falando com o delegado sobre o acidente de carro quando ele me deu
essa colher de sopa. Acho que ele gosta de mim.”
Moretz não era tão aprazível assim, mas ele irradiava certo tipo de carisma
perturbado.
“Wilbanks,” eu disse, ainda em descrença. Dizem que o jornalismo faz de você
um cínico, e a política antecipa suas apostas e percebe o seu blefe. Mas Wilbanks
era um tipo brincalhão com cara de duende, o tipo que poderia se passar por Papai
Noel se lhe dessem uma barba de algodão.
Eu não conseguia imaginar seus filhos sendo nada menos do que quadrados cheios
de dever cívico. Novamente, dizem que as filhas do pastor nunca esperam até o
casamento, e eu tinha conhecido pelo menos uma que levava essa reputação a sério.
“Estou com tudo que precisamos,” Moretz disse. “A única questão é se eu vou
ter acesso aos vídeos que foram confiscados. Eles podem ser considerados públicos
caso sejam descritos no mandado.”
“Não podemos publicar nada desse tipo.”
Moretz ergueu a sobrancelha de Banderas e disse, “Não é para o jornal.”

“Ah. OK. Quantas polegadas você consegue me dar?”
“Quinze, e provavelmente uma foto do rosto. Vou tentar fazer uma história
paralela, talvez uma entrevista com uma das mães das meninas.”
Uma entrevista com a família da vítima. Uma mina de ouro para qualquer mídia
comercial. Fatos eram fatos, mas nada falava tão bem com o público quanto uma
pessoa ultrajada que não tinha nenhuma pista. Apenas olhe para a popularidade dos
chamados “reality shows.”
Precisávamos de uma moldura que nos dissesse qual parte era o entretenimento.
O ponto real era, “Dê-me sua dor e suas lágrimas.”
Cliquei pelas histórias que os outros escritores tinham enviado. A venda de
objetos antigos da Humane Society, o levantamento de fundos do Partido
Democrático, a chegada das Bandeirantes vendendo biscoito. Sem Moretz, o jornal
seria uma tigela de cereal sem açúcar.
O prefeito, perversão e indignação autocentrada expeliam de cada púlpito e
agência pública na comunidade, garantindo uma história constante vista por vários
ângulos.
E assim foi. A cada poucos dias, parecia que uma nova atrocidade ocorria. Na
quinta, Moretz escreveu uma história de um caso de auto asfixia erótica, que os
policiais não tinham tanta certeza de ser tão “auto”, mas estava sendo chamada
apenas de “morte suspeita” até então.
Embora nós não reportássemos suicídios, há muitos termos que você pode usar
para reportar “enforcamento acidental”, e poderíamos colocar a frase do delegado
dizendo que a morte estava “sob investigação.”
É o tipo de cópia em que você evita erotização e excesso de luxúria a qualquer
custo, sabendo que a maioria da audiência vai esticar o pescoço lendo as entrelinhas
e falando sobre coisas que eles sabem que não devem. Cria uma emoção barata e
aumenta a circulação.
No sábado, dois adolescentes foram encontrados afogados no rio Unegama. A
especulação dizia que o primeiro tinha escorregado e o segundo morreu tentando
salva-lo, embora ninguém estivesse disposto a dizer qual vítima era cada.
Nessas circunstâncias, havia apenas uma coisa a se fazer: declarar ambos heróis

que, sem dúvida, morreram com valentia e nobreza tentando salvar o outro.
E logo que o relatório do toxicologista saiu sem relatar a presença de álcool ou
drogas, então a história virou ouro e galões de tinta fluíram em homenagem. Moretz
estava na cena tanto na busca dos corpos quanto na subsequente cerimônia matinal
na escola.
Outros crimes cresceram da mesma forma. Furtos, arrombamentos, roubos em
lojas. O relatório de crimes que rastejava na página dois, dava um pulo para a página
oito a cada semana. Embora as estatísticas de crime aumentassem, as prisões caíam,
e Moretz arrancou algumas ótimas entrevistas do delegado, complete com a foto de
um vagabundo que simultaneamente olhou nos olhos de quaisquer candidatos a
bandidos e reassegurou aos eleitores que tudo o que era possível estava sendo feito e
que, provavelmente, erros haviam sido cometidos e procedimentos seriam revistos e
oficiais responsabilizados.
Nós seguimos com o caso do prefeito em todas as edições, e nossa seção editorial
expandiu-se para três páginas devido à todas as cartas de revolta enviadas pelos
leitores. O prefeito estava sob pressão para renunciar devido ao seu filho
supostamente pervertido, mas até então ele tinha resistido, fazendo um
pronunciamento de que ele não poderia abandonar a prefeitura enquanto o crime
fosse crescente.
Nós até mesmo fizemos uma série especial sobre nossa pequena onda de crimes,
com a página da igreja cheia de discursos sobre a quebra da família tradicional e
alguns gráficos de barras comparando nossos índices de mortes com os condados da
região.
A companhia mãe precisou atualizar as prensas, pois estávamos rodando o dobro
de cópias. Vendas de anúncios explodiram. O editor, um sujeito com cara de morsa
que tinha se casado com a companhia, surgiu da sua sala no canto como um urso
emergindo da hibernação e prontamente comprou um novo Porsche.
Quando as coisas não poderiam ficar melhores, Moretz trouxe o caso do primeiro
cadáver do Rebelde Cortador. Ninguém sabia que era a primeira vítima de um
assassino serial, claro, e o apelido de Cortador veio mais tarde, depois de certo
aliciamento ser implementado e ligado ao crime.

O corpo foi encontrado embaixo de uma canoa no parque do estado, perto das
docas onde guardas-florestais alugavam botes por hora para turistas que desejavam
remar pelo lago. O corpo era de uma mulher, perto dos vinte anos, parcialmente nua.
Guaxinins haviam roído algumas das partes carnudas. Aparentemente alguém tinha
batido nela com a parte larga de um remo.
Moretz capturou o horror em toda sua glória digital. Ele deve ter chegado lá
pouco depois da ligação para 9-1-1, antes do muro de fita amarela arrancar do
público seu direito Constitucional de ser barulhento.
Em um golpe de sorte, ele tinha saído para um compromisso daquele lado do
condado, para cobrir a violação de um lençol freático, onde um fazendeiro havia
cavado no córrego sem permissão, deixando a água marrom e irritando os turistas de
verão que demandavam uma visão imaculada de dentro da segurança de seus
veículos.
“Um presente de Hannukah adiantado, chefe,” dizia o e-mail que acompanhada o
arquivo com a história. Moretz sabia que eu era um católico relapso fingindo ser
Taoísta. Naquele momento, no entanto, eu teria me tornado um Satanista caso o
Cramulhão continuasse me suprindo com dinamites para a primeira página.
Tivemos que amenizar os detalhes grotescos, claro, o que foi um golpe no meu
ego, porque a natureza sensacional da história trouxe repórteres de muitos dos
diários regionais. Eles não tinham essas frescuras, e de alguma forma o fato de que
eles estavam entregando notícias a dezenas de milhares de pessoas os tornava menos
responsáveis do que o Picayune, que pretendia se importar com a comunidade.
O cínico dentro de mim, que está cerca de meia polegada embaixo da pele, não
importa onde você raspe, chamaria isso de cheeseburguerização da mídia, a chapa
sem o bife, a corrida por ibope.
O assassinato foi tão grande que eu visitei a cena do crime em pessoa, mas pouco
havia sobrado para se ver, além de poucos investigadores trabalhando na cena. O
parque era propriedade do Estado, então alguns agentes do SBI estavam
complicando as coisas.
O lago era cercado pela floresta, criando um maravilhoso lugar para matar alguém,
mesmo que essa seja uma opinião pessoal. Simplesmente matar com uma arma

branca, talhar ou estrangular, e então você poderia seguir pela margem até uma das
pequenas grutas, subir em uma bicicleta e descer uma das trilhas sinuosas, ou
simplesmente se enfiar entre as densas árvores e trotar até a rodovia a três milhas
para o sul.
Estava frio e os repórteres regionais apenas ficavam tempo o suficiente para
conseguirem uma fala utilizável antes de seguirem para o calor do bar local. No
entanto, uma delas estava por ali, enfiada em um casaco manchado de café.
Seu nome era Kelsey Kavanaugh, claramente um nome condizente com uma
repórter de TV, exceto pelo fato de que ela não era bonita o suficiente. O rosto dela
era como um todo de árvore que tinha recebido alguns entalhos em forma de coração.
Eu a tinha conhecido em um banquete de premiação da associação de imprensa,
quando ganhei terceiro lugar por um artigo sobre alfabetização. Minha história era
sobre uma mulher de oitenta e três anos que tinha aprendido a ler e finalmente
conseguido seu diploma na faculdade comunitária. Era o tipo de matéria que
arrebatava corações e nos ajudava a observar a injusta e patriarcal sociedade que por
tanto tempo evitou que ela tivesse educação.
Kavanaugh tinha abocanhado o primeiro e o segundo lugar em notícias de última
hora, o que geralmente significa crime ou cobertura de algum desastre. Havíamos
sentado na mesma mesa para o almoço e ela falou de sua ambição em trabalhar para a
Fox News.
Ambição é feio em qualquer pessoa, especialmente em um repórter. Ou talvez eu
estivesse apenas com inveja, porque ela tinha capacidade de conseguir.
Kavanaugh fumava um cigarro bem longe da cena do crime, batendo um pequeno
caderno contra seu rígido quadril.
“Então, Howard, conseguiu um pouco de ação por aqui,” ela disse.
“Pessoas são pessoas em qualquer lugar. E certo percentual é psicótico.”
Uma sobrancelha espessa levantou. “Você acha que isso é coisa de psicótico?”
Eu recuei rapidamente. “Provavelmente doméstico. Amante rejeitado, alguém
traindo, o normal.”
“Assassinato comum, hein?” Kavanaugh fez uma careta. O sol poente através das

árvores fez com que os dentes dela ficassem laranjas, a o ar estava pesado com a
neblina de Outubro.
“Claro. Eles acontecem aqui em Sycamore Shade, assim como na grande cidade.”
“Eu percebi. Muitas outras coisas, também. Eu folheei os relatórios lá na
delegacia.”
“Um incômodo, certamente. E também estamos fazendo muito mais matérias
investigativas, então, para quem vê de fora parece que tem alguma coisa na água e as
pessoas daqui estão ficando doidas.” Eu estava congelando, mas não queria parecer
mais fracote do que ela, então deixei meu casaco aberto. Virei e vi um par de tiras
circulando o perímetro.
“Esse seu repórter, Moretz. Ele consegue muitas coisas quentes.”
“Com boa direção editorial, repórteres realmente têm uma oportunidade de
brilhar,” eu disse, uma frase que tinha ouvido na escola de jornalismo e que soava
como se eu estivesse dando um tapinha de aprovação nas minhas próprias costas.
“Os seus garotos são bons com as competições de culinária lá no corpo de
bombeiros, mas fique fora do caminho quando as coisas grandes aparecerem, OK?”
“Moretz é tão bom quanto qualquer um do News & Observer,” eu disse, “só
pelo fato de termos três edições semanais não quer dizer que somos algo para o
filhote mijar em cima.”
Kavanaugh gargalhou, o som como o de uma foca latindo. Deixei minha raiva
cozinhar um pouco. Se eu perdesse tempo em um campeonato de nervos, talvez eu
perdesse algo que pudesse ser usado nas próximas matérias.
Por sorte, um daqueles detetives veio em nossa direção, passando por baixo da
fita de isolamento. Os detetives do condado de Pickett usavam uniformes, diferente
do que mostram os programas de televisão, embora os agentes do SBI usassem
roupas comuns. Kavanaugh correu na direção dele com surpreendente graça, como
uma gazela na base da cadeia alimentar do jornalismo.
“Alguma novidade?” ela perguntou.
O detetive deu de ombros. “O delegado vai enviar um comunicado assim que
definirmos a jurisdição.”

“Você encontrou a arma do crime?”
“Não.”
“Qual acredita ser a causa da morte?”
Kavanaugh cospia perguntar mais rápido que eu podia anotar as respostas do
detetive. Ele balançou a cabeça. “Você terá que esperar o relatório.”
“Então o condado está cuidando de tudo?” eu disse.
“É complicado,” o detetive disse. “O Estado tem uma flexibilização para a
conservação da propriedade, mas tecnicamente ela pertence ao condado.”
“O que significa que seremos barrados por pelos menos duas agências,”
Kavanaugh disse.
O detetive sorriu e deu de ombros, dando a entender que não podia fazer nada.
Ele era esperto o suficiente para ficar calado, assim como muitos tiras. Era de se
espantar que eles já tivessem resolvido algum caso, o que dirá um grande como esse.
Eles tratam a imprensa como adversários, dando apenas o mínimo de informações
requeridas pela lei de registros públicos. O jogo era assim há séculos. Pessoalmente,
eu culpo Gutemberg.
Para cada pessoa que acreditava no fluxo livre de informações, havia outra que
temia a informação. E alguns eruditos sentiam que controlar a informação seria o
próximo passo na criação de um governo mundial totalitarista.
Aquilo era grande demais para eu ficar refletindo. Tudo o que eu precisava era o
suficiente para fazer parecer que o Picayune estava fazendo seu trabalho.
“Vocês confiscaram o remo como evidência?” Kavanaugh disse, parecendo que
sequer movia os lábios.
“Que remo?” o policial respondeu.
“A arma do crime.”
O tira olhou para trás de mim, procurando por um oficial de patente maior. “Não
posso confirmar nem negar isso.”
Kavanaugh escreveu em seu bloco de notas com um lápis. Eu podia ver a jogada.
Mencionar o remo e deixar o leitor fazer a relação lógica.

Eu não ia me permitir ficar de fora. “Uma canoa normalmente tem dois remos,
não tem Tenente Mathis?” eu disse, lendo a plaquinha de cobre presa ao peito dele.
Mathis franziu a testa para mim, “Sem comentários” escrito nas frias e duras
linhas do seu rosto. Kanavaugh não tinha uma gota de brilho feminino, mas
aparentemente eu estava tão longe quanto de obter uma resposta.
“Demos ao seu repórter tudo o que tínhamos,” o tira disse.
“Podemos ajudar se você nos der uma descrição de qualquer veículo ou pessoa de
interesse.” Olhei para Kavanaugh, sorrindo com desdém pela única vantagem que
tínhamos sobre os grandes jornais.
“Cheque com o delegado. Terminamos por aqui.”
Enquanto ele voltada para a cena do crime, alheio a qualquer evidência que
poderia estar escondida na lama ou entre as folhagens, Kavanaugh terminou suas
anotações.
“Acho que teremos que esperar pelo relatório oficial, hein?” eu disse, tentando
ser amigável.
“É, claro,” ela grunhiu.
É, claro. Ela tinha um lápis. Eu tinha Moretz.

4.
Sycamore Shade era um grande burburinho sobre o último homicídio. Nosso
editor aumentou a tiragem com mil cópias extras, e eles venderam como água. As
equipes das televisões chegaram um dia depois, mas tudo o que conseguiram foi uma
entediante filmagem do lago e um par de entrevistas com pessoas na rua, as reações
chocadas típicas das pessoas que sempre esperam pelo pior, mas ainda demonstram
surpresa genuína quando ele acontece.
Kanavaugh encheu doze polegadas no News & Observer, com pouco mais do que
um nome, graduação, e número de identidade, embora o remo tenha sido um belo
toque. Não era preciso muita imaginação para imaginar um sereno passeio de canoa
se tornar mortal.
Mas até então ninguém tinha um suspeito em mente, embora a opinião pública
claramente favorecesse um triângulo amoroso que terminou mal.
Enquanto o delegado dizia sua besteira padrão “Em investigação”, Moretz havia
trabalhado por baixo dos panos para conseguir uma entrevista exclusiva com a irmã
da mulher morta. De alguma forma ele ainda a convenceu a tirar uma foto sentada em
um sofá, apertando lenços cheios de ranho e segurando um retrato da vítima. Ouro
de primeira página.
Depois que o jornal seguinte chegou às ruas, mandei uma mensagem para Moretz
pedindo que ele viesse ao meu escritório. Embora o cubículo dele fosse ao lado da
porta, eu tinha que fingir ser um cara da nova geração e não apenas gritar por ele.
Este é um dos desafios do negócio de jornais, abraçar a tecnologia enquanto fingia
que a tradição era tão importante.
Ele enfiou a cabeça para dentro da sala, impaciente. “Sim, chefe?”
“Você está na área há dois meses, e está conseguindo que todos esses locais
confiem em você. O que quer que você tenha, melhor engarrafar e vender para as
escolas de jornalismo.”
“Só estou fazendo o meu trabalho.”
Dei um tapa na nova edição sobre a minha mesa. “Isso é melhor do que trabalho.”

“Tudo o que fiz foi escrever o que aconteceu e o que as pessoas disseram. O
crédito vai para o assassino.”
Olhei para ele com os olhos apertados. Jornalistas tinham pouco espaço para
sentimentalismo, mas também fingíamos nos preocupar com o público. Não
demonstrávamos mais insensibilidade do que era necessário.
“Eu sei que íamos preferir publicar finais felizes,” eu disse. “Mas não criamos a
natureza humana.”
Os olhos negros dele pareceram absorver as luzes fluorescentes do meu escritório
e a sala ficou cada vez mais escura. Se eu não soubesse, poderia jurar que a
temperatura caiu muitos graus. “Se pudéssemos apenas contar a história do coração
humano, acho que seria melhor todos desistirmos.”
Eu ri, mas com esforço. “Sim. Todo jornalista é um novelista esperando
acontecer, certo?”
“Entendo o que quer dizer. Dê o público o que ele quer.”
“Sim.” A gramática dele estava tecnicamente errada, pois deveria ser “dê ao
público”, mas o seu rosto estava tão plácido e estranho que eu não ousei o corrigir,
nem para fazer piada.
“Eles queriam homicídio e conseguiram.” Monótono.
“Belo timing,” eu disse. “Você aparece e de repente temos uma onda de crimes.”
Ele se aproximou da minha mesa, mas não sentou na cadeira de interrogatório. “O
que isso quer dizer?”
“Exatamente o que eu disse. Você está passando todo mundo para trás – Frank
Comstock da estação de rádio, repórteres de todos os jornais diários, mesmo os
blogueiros de fofocas locais.”
Abaixei o tom da minha voz, embora a edição estivesse vazia, exceto por poucos
operadores de prensas batendo atrás do maquinário. “Acho que coisas como essas
estão acontecendo sempre, mas ninguém nunca as reportou.”
Moretz recobrou-se um pouco e quase sorriu. “Como, se uma árvore cai na
floresta e ninguém ouve, ela realmente caiu?”
“Algo desse tipo. Ou o som de palmas.”

Ele piscou. “Não entendi.”
“Você está se esforçando bastante, John. Por que não tira o dia de folga?”
“A notícia nunca dorme. Além disso, ainda estou em período de experiência.”
“Não se preocupe com a papelada. Vou compensar as tuas horas.”
Nossa diretora de recursos humanos levou o conceito de agressão passiva ao
patamar de uma forma de arte, ao ponto de que todos tinham medo de falar com ela,
ainda mais sobre benefícios, fundos de aposentadoria, ou quantas faltas por doença
nós tínhamos. Nós apenas preenchíamos os formulários apropriados e nos
certificávamos para que tudo parecesse bom no papel, então seguíamos em frente e
fazíamos o que fosse melhor para o time.
Eu não era tão leniente com os outros repórteres, os quais eu mal notei nos
últimos dias. Esperava que o desempenho de Moretz os inspirasse à mediocridade,
talvez até acima dela, mas aparentemente eles estavam felizes o suficiente em sentar
no banco de trás e enrolar um pouco mais.
“Não posso arcar com dias de folga,” Moretz disse.
“Você será pago. Está na folha salarial de qualquer forma.” Repórteres assinam
contratos especiais, concordando que eles trabalhariam um número maluco de horas
devido à natureza do trabalho. Além disso, trabalhadores por contrato eram
incrivelmente fáceis de serem demitidos.
“Não é pelo dinheiro. É pelo caso de homicídio. Acho que os tiras estão
escondendo algo de nós.”
“Nós fazemos o que podemos fazer como o Quarto Poder. Estamos nos
certificando de que nossos oficiais públicos estão servindo ao público.”
“É isso que não está me cheirando bem. Um homicida perdido no meio dessa
comunidade pequena, e parece que nós sabemos mais sobre isso do que qualquer
outra pessoa, incluindo a polícia.”
“Os tiras podem parecer idiotas, mas eles têm toneladas de recursos. Claro, eles
dificilmente conseguem resolver um caso de invasão, mas quando um caso está
estampado na primeira página, eles fazem uma prisão ou outra.”
O scanner da polícia na redação gralhou e Moretz esticou uma orelha, faminto por

uma emergência. A estática tentando falar Inglês, interrompida por um código
numérico, revelou que os tiras iriam em dez ou vinte minutos para um almoço tardio
no Tia Annie, uma boca de porco onde ainda era aceitável flertar com as garçonetes e
deixar fiado se você fosse um cliente regular. Moretz murchou um pouco devido à
falta de um crime, como um viciado vendo uma seringa vazia.
“OK,” disse Moretz. “Vou trabalhar de casa. Tenho algumas ligações para fazer,
de qualquer maneira.”
Ele parou na porta. “Mas mande-me uma mensagem se algo se desenvolver.”
“Claro,” eu disse, uma bizarra sensação de alívio me envolvendo. Tive a sensação
de que se eu o seguisse para fora do estacionamento, ele poderia se dissipar uma vez
que deixasse a propriedade, como se apenas existisse se estivesse atrás de uma
matéria.
O telefone tocou, minha linha direta, o que significava que era um dos Peixes
Grandes. “Alô, é o Howard,” eu disse com a voz velada que a maioria das pessoas
inicialmente acha que é uma gravação.
“Delegado Hardison,” veio a igualmente velada resposta.
“Olá, delegado, como posso ajuda-lo?”
“Essa sua história que acabou de sair no jornal.”
Olhei para a edição aberta em cima da minha mesa: a irmã com o coração partido,
a manchete em fonte tamanho quarenta Nenhuma Pista Ainda Sobre o Homicídio, e
uma pequena foto de Hardison apenas para lembrar a todos quem era o encarregado
pela bagunça. “Sim, senhor.”
“Aquele seu repórter escreveu sobre como a irmã falou do namorado da vitima.
Coisas que não tínhamos conhecimento foram ditas.”
“De acordo com a história, Jennings não era namorado, só um cara com quem ela
saiu algumas vezes no verão.”
“Mesma coisa. Qualquer homem farejando uma jovem coisinha doce que aparece
morta é uma pessoa de interesse.”
Eu odiei a frase “pessoa de interesse”. Ela fora criada para dar ao Governo a
permissão de chatear as pessoas sem a formalidade de chama-las de “suspeitos”.

Mas não era a hora, lugar ou oponente para lutar esta batalha particular. Eu peguei
uma frase emprestada de Moretz: “Meu repórter apenas escreveu o que ela disse.”
“Esta é o problema. Ela nunca se preocupou em mencionar o tal namorado para
nós quando a entrevistamos. Faz com que pareçamos como um bando de caipiras
burros querendo ser os ‘Justiceiros Incorruptíveis’”.
“Delegado, Moretz o convidou para ir oficialmente sem nenhuma restrição. E
você tem meu número direto.”
“É uma investigação em andamento.”
“Você já tinha dito.”
O delegado parou e soou como se estivesse cuspindo tabaco puro. “O público
pode dormir mais tranquilo sabendo que há um suspeito sentado na minha cadeia.”
“Mas você não quer apenas qualquer velho suspeito, quer? Você quer o suspeito
certo.”
“Howard, você e esse Moretz não estariam escondendo nada de mim, estariam?”
O que você quer dizer?”
“Seu repórter parece estar um passo a frente dos meus detetives na coisa toda.”
Eu sorri para mim mesmo. “Nós fazemos o que nós fazemos.”
“Apenas não fique fazendo joguinhos. Eu odiaria ter que descer e revirar o seu
prédio após receber uma denúncia anônima. Nem digo o que poderíamos achar.”
“Isso é uma ameaça, delegado?”
“Não, considere como uma dica anônima para uma notícia.” Ele desligou.
Então o delegado estava lendo nosso jornal assim como todos os outros. Talvez
esse fosse momento de perguntar para o editor se poderíamos nos tornar um diário.
Tudo dependeria do quanto ele gastou na Porsche.

5.
Foi a segunda vítima que trouxe à tona o apelido “O Rebelde Cortador.”
Duas semanas haviam passado, e os esforços da polícia no primeiro caso tinham
mudado para o misterioso namorado desaparecido. Nós fizemos nossa análise,
descobrimos o nome do cara e conseguimos uma foto do rosto, nenhuma passagem
pela polícia, apenas mais um recém-formado vivendo entre trabalhos e em tentar
perseguir outras oportunidades na maravilhosa nova economia.
Eu não reclamei demais por ter feito com que sua foto se tornasse uma pessoa de
interesse, pois Moretz tinha outras notícias do crime espremendo-se em volta dessa.
As invasões de domicílios estavam deixando o povo impaciente, e o delegado havia
prendido dois skatistas punks usando cabelos moicanos e os acusado.
Convenientemente para ele, os dois eram menores e seus nomes não podiam ser
liberados.
Moretz não estava no escritório quando o scanner anunciou que um corpo fora
descoberto, possível homicídio. Mandei uma mensagem de texto para ele, que me
respondeu dizendo que já estava na cena do crime. Claro.
Essa vítima também era uma mulher, um pouco mais velha, no meio dos trinta.
Ela foi encontrada sentada em seu carro atrás do departamento de saúde do condado,
a cabeça inclinada para frente sobre o volante. Seu cachecol havia sido fortemente
apertado em volta do pescoço, mas fora isso ela não tinha ferimentos.
Exceto por estar morta, é claro.
O marido dela tinha reportado seu sumiço depois da meia-noite, de acordo com o
artigo de Moretz. Dona de casa, sem filhos. Eu estava aliviado pela parte dos
“filhos”, embora pudéssemos ter espremido algumas polegadas sobre os pesarosos
orientadores invadindo uma escola local e protegendo as crianças das duras
realidades da vida.
“Queremos colocar a parte sobre os cortadores?” Moretz perguntou, assim que
provamos a história.
“Cortadores?”

“Encontrados na cena. Um par de pequenos cortadores de unha com uma
bandeira Rebelde presa no cabo.”
“Você acho que isso é significativo?”
“Hardison me pediu para manter isso não oficial. Eu vi com meus próprios
olhos.”
“Hmmm. Provavelmente nada. Talvez dessa vez nós joguemos um osso para o
delegado para evitar que ele rosne.”
“Você acha que não significa nada? Nenhum tipo de simbolismo?”
Agitei minha mão. “Se eles tiverem impressões digitais, talvez. Não acho que um
assassino vai sentar do lado e cortar as unhas de um cadáver para protestar contra a
agressão do Norte. ‘O Rebelde Cortador’ não está no mesmo time do Amarre-
Torture-Mate ou do Assassino de Green River.”
“Pode tornar a história mais interessante, no entanto.” Moretz repetiu a frase em
voz alta. “’O Rebelde Cortador’. Existe um prêmio para isso.”
“Sim, como Joe DiMaggio era “The Yankee Clipper” no baseball. Mas nós não
sabemos se é o mesmo assassino e acabamos de prometer ao delegado que
evitaríamos os pequenos detalhes.”
“Desde quando um jornalista mantém uma promessa quando ela se coloca na
frente de uma história?”
“Bom ponto. Se nada der errado, colocaremos isso na edição de sexta-feira.
Temos três horas antes da hora da prensagem. Ligue para alguns tipos aposentados
do FBI para conseguir uma frase de efeito.”

6.
O delegado não estava muito feliz com a história, mas ela o ajudou de uma forma.
O SBI enviou mais dois agentes, o que permitiu que o delegado desviasse parte da
culpa pelos assassinatos não resolvidos. Mais voz passiva.
“Foi feito progresso, mas os rapazes do estado me pediram para manter uma
tampa sobre isso,” ele disse na conferência de imprensa. “Pistas foram seguidas, mas
isso é tudo o que eu posso dizer.”
Sete jornais estavam representados na sala de conferência de paredes cinza no
porão fórum. Moretz estava lá pelo Picayune, é claro, sentado na frente de seu
laptop, e eu mandei Fitz com sua câmera para a foto oficial obrigatória do pódio.
Kavanaugh estava com seu resto de lápis riscando o bloco de anotações, olhando
fixamente para mim por ter criado o Rebelde Cortador. Eu imaginava que existisse
uma regra que um assassino serial deveria ser nomeado por um local, não por alguém
que apenas vagava pela cidade procurando uma história barata.
Duas das redes afiliadas tinham times de notícias à mão, e aqueles caras gostavam
de dominar uma sala, arrumando as cadeiras, ajustando as luzes, e colocando câmeras
na frente dos repórteres de jornais, os quais eles colocavam acima apenas dos
blogueiros de cinema na hierarquia da mídia.
Três estações de rádio tinham microfones estacionados na mesa na frente do
delegado, e ele olhava para eles ocasionalmente, como se estivessem prestes a
borrifar água nele. Hardison estava claramente desconfortável com toda a atenção,
mastigando a borda do seu copo de café de isopor e em certo ponto deixando um
pedaço branco cair dos lábios.
“Delegado,” Kavanaugh gritou assim que ele levantou para se retirar.
Ele piscou como se não soubesse que alguém realmente poderia fazer uma
pergunta em uma conferência de imprensa. “Hã?”
“O Rebelde Cortador. Você acha que é algum tipo de declaração política?”
“O quê? Como um terrorista ou algo assim?”
“Um cortador de unhas é uma coisa, mas uma bandeira Rebelde ainda é

controversa.”
“Assassinato é controverso,” o delegado disse. Bela frase.
Chequei para ter certeza que Moretz havia anotado. Deveria ser a única palavra
com cinco sílabas que Hardison disse na vida, embora ele tenha usado apenas quatro
dessas sílabas.
“Algo ligando as duas vítimas?”
“Ainda não averiguamos se as duas estão conectadas.”
“Exceto pelo fato de que as duas foram assassinadas,” um dos caras de pé falou,
alisando para trás seu cabelo com brilho molhado, preparando-se para aparecer na
frente da câmera e fingir que sabia mais do que o delegado. Os tipinhos da TV
gostam de ser provocativos, na esperança de conseguirem alguns segundos de
emoção para os zumbis de olhos vazios na audiência.
“Como eu disse, as cenas foram investigadas e as evidências foram coletadas,” o
delegado disse. “Nada mais pode ser compartilhado nesse momento.”
Moretz estava ocupado digitando quando o delegado se arrastou para fora da sala.
Kavanaugh veio até mim e me deu um cutucão com o cotovelo como se fosse um
jogador de rúgbi. “Esse é o seu garoto de ouro?”
“Sim,” eu disse. “Este é John. Esse caso nos dará uma vantagem nos prêmios da
associação ano que vem.”
“Não conte com isso,” Kavanaugh disse. “Novatos são fortes na rua, mas
cometem erros quando eles tentam manter o passo calmo e à distância.”
“Você veio de Raleigh apenas para juntas milhagem.” Eu não deixaria que ela me
intimidasse, embora ela o tenha feito, um pouco.
“Não, o chefe me disse para tirar alguns dias e escrever uma série. Falarão sobre
isso por todo o estado. Se os policiais ligarem os dois assassinatos, então você
começará a receber alguns peixes grandes por aqui, Fox News e CNN. Então
veremos o quão rápido você e John Moretz serão colocados de lado.”
Não gostei do som daquilo, mas era provável que acontecesse. Mesmo um herói
da casa como Hardison teria sua cabeça virada pela oportunidade de ir ao ar em rede
nacional. Tudo o que eu podia fazer era esperar que o Rebelde Cortador continuasse

pequeno, mas ainda vendesse jornais.
“O que me diz de irmos jantar e compararmos as anotações?” eu disse.
Ela franziu a testa. “Isto pode ser perigoso.”
“Isso é estritamente profissional.” Eu testei uma mentira. “Não estamos
competindo, desde que nossas audiências não se sobrepõem.”
“E Moretz?”
“Ele vai cobrir a câmara municipal hoje à noite.”
“Bem, você provavelmente sabe mais do que está colocando no papel.”
“Na verdade, menos.”
Ela torceu o nariz.
“Brincadeira,” eu disse. Aqueles repórteres de cidades grandes com certeza
levavam tudo a sério.
“Então, onde você acha que ele vai atacar de novo?”
“Primeiro, não sabemos se é um assassino serial, e segundo, isso pode ser algum
tipo de coincidência.”
“A coincidência é Sycamore Shade ter uma média de um assassinato por ano
durante a última década, e agora há dois nas duas últimas semanas? E mortes muito
mais violentas desde que Moretz chegou aqui?”
“Podemos falar sobre tudo no jantar.”
“Obrigada, mas eu não confraternizo com o inimigo.”
Enquanto ela se carregava para fora da sala, um dos cabeças de televisão gritou
com ela por ter empurrado a câmera enquanto estava de pé. Ela nem mesmo parou,
apenas encaixou o notebook contra o quadril alto o suficiente para perturbar o
pessoal do rádio que estavam no telefone dando boletins ao vivo.
Eu gostaria de poder pagar para contrata-la, mas sem chance de conseguir
competir com os salários da cidade grande. Além disso, embora ela tenha me
dispensado na questão do jantar, Moretz estava comendo o almoço dela.
E eu não acho que ela tenha gostado.

7.
A Vítima Número Três emergiu dezessete dias mais tarde.
Moretz ficou inquieto andando por todo o escritório, matando tempo com
algumas apreensões de drogas, uma entrevista exclusiva com o marido da segunda
vítima, e a acusação do filho do prefeito, na qual Wilbanks fora considerado
“Inocente” e teve sua fiança estabelecida de cinquenta mil dólares.
Kelsey Kavanaugh recheou sua série intitulada “Assassino sacode sonolenta
cidade nas montanhas”, e a vida estava mais ou menos de volta ao normal.
Loraine Shumate, 33 anos, foi encontrada no lado mais distante do lago no parque
estadual, menos de uma milha de distância da cena do primeiro assassinato. Dois
garotos com varas de pescar e cigarros descobriram o corpo, mas Moretz de alguma
forma descobriu e chegou lá antes da polícia e do esquadrão de resgate. Eu havia
pedido para ele checar a cena do primeiro assassinato, então ele deveria estar bem
perto quando a chamada foi feita.
Ao menos ele resistiu ao ímpeto de tirar o corpo da água e revista-lo, muito
embora tenha tirado dúzias de fotos do corpo com o rosto para baixo preso nos
juncos enlameados, um corte mal feito em volta do pescoço. Ele também falou com
um dos garotos, que perguntou se ela tinha sido morta “por aquele cara Cortador.”
A garganta de Shumate fora cortada, provavelmente com uma lâmina fina. Ela
vestia uma roupa de corrida lilás, os cabelos presos em um rabo de cavalo. Ela devia
estar colocando a corrida em dia nas trilhas na floresta quando o assassino pulou em
cima, deu a ela um sorriso extra, e a jogou no lago.
Um bate boca sobre jurisdição eclodiu, com Hardison tentando se apossar do caso
enquanto a SBI empurrava seus cartões de “propriedade do estado” a pedia por
recursos superiores. Ambos, delegado e a SBI gritavam com Moretz, com Hardison
ameaçando acusar meu repórter de ter mexido na evidência. Mas Moretz
permaneceu ali até que o corpo foi retirado da água e colocado em uma ambulância
duas horas mais tarde.
O melhor de tudo, ainda tínhamos uma hora até o fechamento.

“Nenhum cortador na cena?” perguntei, cruzando meus dedos mentalmente
enquanto Moretz pulava para dentro do cubículo dele.
“Nenhum até agora.”
“O que mais você conseguiu?” Ele havia me enviado alguns detalhes por
mensagem de texto, mas seu estilo era minimizar tudo até que tivesse fatos
suficientes para contar uma história.
“Ouvi por cima o Hardison falar para a SBI que a mesma pessoa tinha matado as
três vítimas, mas um dos de terno disse que assassinos seriais tendem a usar sempre
o mesmo modus operandi,” ele disse, movimentando-se dentro do cubículo e
despejando o laptop sobre a mesa. “Por ser tão perto da primeira cena, a SIB acha
que esse foi um copiador ou até uma isca ou desorientação.”
“O quê? Uma morte para tirar os tiras da trilha?”
“Não. Assim como talvez os dois primeiros assassinatos tenham sido cometidos
para cobrir esse.”
“Você pegou isso oficialmente?”
Ele escorregou para frente da mesa e abriu o laptop. “Não, chefe, mas ouvi com
meus próprios ouvidos, e isso é o suficiente para mim.”
Eu estava dando corda para Moretz, mas um pequeno sussurro preocupado
ecoava a palavra “ética” no meu crânio. Depois de entregar os óbitos e depois a
página de quadrinhos, onde a tirinha dos Peanuts era a usual mistura de quadros
aparentemente unidos aleatoriamente, eu precisava de um tapa frio na cara.
“John, nós não podemos simplesmente rodar com uma conversa ouvida por alto,”
eu disse. “Eles têm um suspeito?”
“Uma dúzia ou mais. Shumate é uma das herdeiras de Wade Murphy.”
“Murphy? O cara dos móveis de metal?”
Nós já tínhamos escrito várias matérias sobre o sucesso da fábrica local, que usou
projetos patenteados para criar uma marca avançada de mesas decorativas, cadeiras,
candeeiros, acessórios para lareiras, prateleiras para vinhos, candelabros, e outras
coisas que as pessoas normais não precisavam.
A questão da história era sempre como a ingenuidade americana de Murphy tinha

acertado a moda que acabou por mandar a maioria dos outros trabalhos
manufatureiros para fora da concorrência. Mas para mim parecia que ele havia usado
os sólidos ideais americanos de explorar seus trabalhadores, produzir barato, e
colocar contadores para fazer tudo parecer bonito no papel.
De qualquer forma, ele conquistou riqueza suficiente para abrir três fábricas
regionais e era o quarto maior empregador do condado, atrás do sistema educacional,
do hospital e do governo do condado. E riqueza era motivo para assassinato.
“Esse mesmo,” Moretz disse.
A coincidência era um pouco demais. “Você não entrevistou Murphy alguns dias
atrás para aquele artigo de desenvolvimento econômico?”
“Sim. Ele queria que o condado comprasse um lote para um complexo de
negócios. Poupar custos com infraestrutura, ele disse, e encorajar toda uma nova
classe de empreendedores.”
“Não vi essa história na pasta de notícias.”
“Eu ainda não a coloquei.”
Tínhamos que cancelar aquilo. Não podíamos publicar uma matéria enquanto a
sobrinha do homem estava esticada na maca do legista. Ainda assim, eu odiei perder
toda a entrevista.
“Ele por acaso disse algo presciente?” perguntei.
“Presciente?”
“Agourento. Como se visse o futuro.”
Moretz abriu o arquivo e correu pelas anotações. “Hmm. ‘Você não pode apenas
responder por futuras condições, você deve criar futuras condições.’ Este foi um
soco nos comissários por cortarem o orçamento do departamento de planejamento.”
Balancei minha cabeça. “Não serve. O que mais?”
“Que tal ‘O sucesso é construído com tradição, e se você se afasta da tradição, é
como se arrancasse as pernas dessa cadeira na qual estou sentado’? Este foi um
conselho geral para novos empreendedores.”
“Publique com isso. Mas deixe-me pensar sob o ângulo da conspiração. Não
quero ser irresponsável e deixar que nossos leitores assumam que alguém matou

Loraine Shumate por dinheiro.”
“Chefe, você não pode dizer para as pessoas o que elas podem assumir.” Moretz
estava quase digitando, meio que me ignorando.
Tentei imaginar a manchete. Mulher Encontrada Morta No Lago.
Sem chiados, sem vendas. À primeira vista, poderia parecer um afogamento. Não,
isso não ajudaria o editor a pagar sua Prosche.
Eu tinha que admitir, Herdeira Morta Em Possível Esquema era um chamariz.
Nós tínhamos muitos buracos, como descobrir quanto Murphy tinha e quanto um
parente poderia esperar ganhar. Nós também debatemos se usaríamos falas de
Hardison ou da SBI, dado que tecnicamente eles estiveram falando entre eles e não
oficialmente com Moretz.
Enquanto eu pensava sobre isso, dei uma olhada nas fotos de Moretz da cena do
crime para escolher uma imagem para a capa. A primeira chamou minha atenção.
Mostrava os dois garotos no lago, um deles apontando para a água com a boca
aberta pela surpresa.
Eu poderia ter mandado uma mensagem instantânea para Moretz, mas eu queria
ver a expressão dele, então voltei ao seu cubículo. Ele estava digitando como um
macaco que tentava copiar Shakespeare.
“John, essa foto dos garotos?”
“Sim,” ele disse sem olhar para cima, a língua com a ponta para fora entre os
dentes.
“Parece quase que você estava lá quando eles descobriram o corpo.”
Ele parou de digitar e olhou para mim. “O que você está tentando dizer?”
“O primeiro na cena. Todas as vezes.”
“Você sabe como isso funciona. Não podemos falsificar fotos, mas podemos
falsificar a realidade. Eu organizei esta, pedi para os garotos me mostrarem o que
fizeram quando encontraram o corpo.”
“Antes dos policiais chegarem?”
“Posso fazer alguma coisa se a disputa de jurisdição retardou o tempo de
resposta? E se ela estivesse seriamente ferida e precisasse de um transporte?”

“Sim,” eu disse, rindo um pouco. “Talvez Hardison devesse coloca-lo na folha de
pagamento.”
“Então eu só pude contar um lado da história,” ele disse, terminando sua
digitação. “Nós dois sabemos que as coisas nunca são como parecem.”
Eu não estava certo sobre o que ele quis dizer com aquilo e estava com medo de
perguntar. Moretz me assustava bastante.
Voltei para o meu escritório e terminei de formatar a página principal. Ficou
ótima, moveu uma tonelada de cópias das bancas, e extraiu a obrigatória ligação de
Hardison para perguntar onde Moretz tinha conseguido suas informações.
Outro sucesso. Então, por que eu estava sentindo meu estômago revirar?

8.
Moretz se tornou uma pessoa de interesse pouco antes de a quarta vítima ser
descoberta. As coincidências se empilharam até um ponto em que nem mesmo
Hardison poderia mais ignora-las.
Quando Moretz me disse que o delegado pedira uma reunião privada, meu
detector de merda começou a disparar. Hardison nunca, em seus nove anos de
mandato, voluntariamente convocou um membro da mídia, com a exceção de suas
raras conferências de imprensa.
Claro, ele sempre tinha o telefone de alguém à mão cada vez que uma apreensão
de drogas fotogênica estava na agenda, mas ele não buscava passar mais tempo do
que isso com a imprensa.
“Você acha que ele vai te dar uma exclusiva?” eu perguntei.
“É possível,” Moretz disse, checando a carga de bateria de sua câmera digital.
“Mas vocês esteve um passo à frente do departamento dele o tempo todo. É mais
provável que ele queira descobrir o que você sabe.”
Moretz quase sorriu, as feições eram algo entre um gambá e um político preso.
“Estamos fazendo com que ele fique mal, não estamos?”
“Ele já me ameaçou com uma manipulação.”
Moretz olhou para mim, me julgando. Editores de jornais eram como generais de
campo de batalha: eles nunca pediam para os seus subordinados se jogarem em um
trabalho que eles mesmos não fariam. “Você vai ataca-lo com isso? Um editorial,
talvez.”
Eu gesticulei negativamente. “Foi velado. Nada sólido, e é a palavra dele contra a
minha. Ele está aqui há mais tempo. Além do mais, ele está sob muito mais pressão
do que nós.”
Aquilo pacificou Moretz, embora seus olhos mantivessem o fundo negro que me
gelava até as entranhas.
“Separe um espaço para mim,” ele disse. “Vou tirar uma história disse, de um
jeito ou de outro.”

“Ótimo. Se não conseguirmos nenhuma novidade sobre o Rebelde Cortador,
teremos que colocar a angariação de fundos da United Way na capa. E ninguém
compra jornal para ler sobre caridade.”
“Você a terá, chefe.”
Eu me ocupei diagramando as páginas internas, enchendo as sessões de negócios e
religião primeiro, aquelas maravilhosas características do jornal de sexta-feira que
falhavam em confortar os aflitos. Devido a uma queda no servidor, tive que arrumar
uma rota diferente para enviar as páginas para nossos designers, e fiquei tão
envolvido na tarefa que não percebi que Moretz retornara. Mas a história dele surgiu
no depositório de notícias meia hora antes do prazo.
Eu ali friamente, então enviei uma mensagem instantânea convocando Moretz
para o meu escritório. Dessa vez ele se sentou, parecendo um estudante rigoroso que
fora convocado para a diretoria por ter colado.
“Meu Deus, John, parece que você foi interrogado,” eu disse.
“Tudo faz sentido,” Moretz disse. “Estou ligado a cada um dos assassinatos, sou
novo na cidade, e desde que cheguei aqui a folha de crimes sem solução triplicou.”
Eu havia pensado nisso tudo por mim mesmo, mas ouvi-lo dizer assim tão
calmamente deu a noção de que era simultaneamente mais plausível e altamente
absurdo. “Você sabe o que eles dizem,” eu brinquei. “Assassinato é mais bem
conduzido entre estranhos.”
“Eu sou o primeiro suspeito de assassinato na história da mídia impressa a cobrir
sua própria investigação? Isso é uma violação da ética jornalística?”
“Você é inocento, não é?” Era uma questão que Hardison aparentemente não
tinha feito a ele.
“Sim,” ele disse. “E eu não sou oficialmente suspeito, claro.”
Ainda assim, não dava para dizer isso pelo artigo, que pintava Moretz como um
homem vivendo sob uma nuvem negra de suspeição. Depois de colocarmos a edição
na cama, perguntei a Moretz. “Então, que tipo de álibis você deu ao delegado?”
“O normal. Trabalhando até tarde, vendo TV sozinho no meu apartamento,
saindo para longas caminhadas no parque.”

“Jesus Cristinho, isto soa como os tipos de atividades que um assassino serial
poderia listar em seu currículo. E eu imagino que eles tenham evidências físicas
ligando você a cada um dos assassinatos?”
“Bem, eu estava presente em cada uma das cenas, não estava?”
“Bom ponto. Eu não ignoraria a possibilidade do delegado prender você, muito
embora você seja inocente.”
“Claro. Isso tiraria as pessoas das costas dele e ele se mostraria para os meninos
do estado ao encerrar o caso enquanto eles ainda estão dançando em volta do
Departamento de Justiça com suas questões de jurisdição.” Moretz soou meio
advogado e meio tira, com uma pitada de romancista de mistério e teórico da
conspiração.
“E isso venderia uma tonelada de jornais,” eu disse ansioso.
“Todo mundo ganha,” Moretz concordou. “Eu ainda receberei o salário enquanto
estiver sentado na cadeia e escrevendo atualizações diárias?”
“Há um estatuto que previne um prisioneiro de lucrar com seus crimes.”
“Assim como Lindsay Lohan, você quer dizer? Além disso, eu não seria
condenado. Sou inocente, lembra-se?”
“Você está certo,” eu disse. “Não parece justo que todo mundo se beneficie de
um crime exceto o criminoso. O dono de uma propriedade recebe um cheque do
seguro, advogados conseguem mais honorários, a polícia consegue horas extras, e a
mídia vende propaganda com manchetes assustadoras.”
Moretz virou os olhos. “Chefe, você está falando sério.”
Dei de ombros. “Estamos aqui para servir ao público.”
E vender jornais.
E, se possível, irritar Kelsey Kavanaugh.
Para fazer o plano funcionar, Moretz e eu deveríamos deixar algumas evidências
extras. Eu não queria deixa-lo em uma situação em que lhe negassem fiança, mas
também precisava de algo forte o suficiente para fazer dele um suspeito legítimo.
Encontrar um par de cortadores de unha na gaveta de sua escrivaninha fez o
truque.

9.
O pessoal da SBI estava com um pouco de dúvida, notando que tais cortadores de
unha comemorativos poderiam facilmente ser encomendados pela internet por $4,95
mais custos de envio. Além disso, Moretz tinha boa aparência, a despeito daquela
escuridão em seus olhos que o fazia parecer ligeiramente selvagem e imprevisível.
Mas Hardison foi adiante com isso. Ele anunciou que “estava olhando mais
atentamente” para uma pessoa de interesse. Kavanaugh soltou a história, reportando
que John Moretz fora visto deixando o escritório do delegado.
Eu tive que morder o meu lábio um pouco ao ver isso ser anunciado pela linha da
Associação de Imprensa. Eu poderia ter avisado a todos, claro, mas aí a arma
fumegante seria apontada de volta para mim. Não, para vender essa história, eu tinha
que parecer surpreso.
Até mesmo o advogado distrital se envolveu dessa vez. Ele era um homem baixo
com um bigode de morsa e que era fortemente fiel ao Partido Republicano. No
entanto, ele nunca levava adiante um caso em que eram grandes as chances de perder.
Sua tática comum era fazer uma algazarra e balançar os braços, então declarar que
o advogado da defesa havia pedido um adiamento. Como todos os jurados eram
republicanos, a papelada sempre ficava boa, e algumas vezes eles todos ficavam
meses nem ter que realmente trabalhar.
Eu poderia ter feito um editorial sobre o sistema da corte, mas ninguém realmente
se importava se a corte fazia o seu trabalho. Depois de algumas continuações, as
vítimas geralmente ficavam cansadas de perderem seu tempo e pediam para o
Advogado Designado retirar as acusações, ou então a corte aceitava com alegria um
pleito de acordo que geralmente dobrava quando se tornava um acordo civil no
futuro.
Para o incidente de Moretz, o Advogado Designado até mesmo posou com
Hardison para uma foto tirada por Kavanaugh, a qual foi colocada na sessão de
notícias estaduais. O A.D. foi citado como se estivesse por trás de Hardison o
tempo todo e estava preparado para prosseguir com o processo tão logo o delegado
estivesse convencido de sua evidência.

Kavanaugh deu o tom da matéria do jeito que Moretz e eu havíamos planejado:
um repórter havia mudado para uma cidade pequena e, ao encontrar sucesso e
atenção após publicar a história de alguns crimes sensacionais, tornou-se um pouco
enlouquecido e decidiu apostar antes do pingo. Se Moretz tivesse ficado satisfeito
com aquele primeiro assassinato, ele provavelmente teria se safado com ele por um
bom tempo, o artigo de Kavanaugh sugeria. Mas, sedento por atenção, ele foi para o
segundo.
Ainda assim, Kavanaugh escreveu, os investigadores não tinham nada realmente
ligando Moretz aos dois crimes, além da coincidência do tempo. Então veio a
terceira vítima, e praticamente todos na cidade estavam sob suspeita. A cobertura
sugeria que Sycamore Shade era povoada por um bando de caipiras natos que eram
parcamente letrados, e Moretz nunca teria ganhado leitores sem algumas manchetes
gritantes.
O artigo de Kanavaugh não me mencionava, embora ela tenha me feito algumas
perguntas para melhor aprofundamento. Aparentemente Hardison tinha mantido as
cartas escondidas e não disse a ela quem tinha dado a dica aos policiais.
Tecnicamente, os detetives teriam a necessidade de um mandado de busca, mas eu
argumentei que a mesa de Moretz era propriedade do jornal e, em vista disso, eu
tinha o direito de remexer na sua gaveta superior. Eu estava procurando com códigos
do scanner, eu teria dito a Hardison, quando descobri o par de cortadores embaixo de
uma bandeja cheia de clipes de papel dobrados.
Hardison não executou a prisão, no entanto. Naquele ponto ele estava contente
em implicar que Moretz estava sob constante observação. Moretz foi aconselhado a
não deixar o condado até que a investigação estivesse completa. Tais instruções
vagas não significavam nada, mas serviram como uma boa embalagem para a história
de Kavanaugh.
Moretz estava de volta ao trabalho no dia seguinte. Fui forçado a seguir a história
que Kavanaugh havia escrito, mas também debati em uma pequena coluna sobre
“Inocente até que se prove o contrário.”
Ninguém realmente botava fé naquela frase. Injustiça fazia parte da experiência
coletiva de tal maneira que eu poderia facilmente ter dado o título de “Culpado até
que advogados caros subornem o juiz.”

“O que você quer que eu escreva, chefe?” Moretz perguntou. A mesa dele fora
esvaziada pelos tiras, mas ele tinha um caderno novo e algumas canetas em seu
bolso.
“Melhor evitarmos que você chame a atenção por um tempo,” eu disse. “Há uma
competição de preparo de chili em benefício do clube de campo.”
Moretz abriu um sorriso. “Nenhuma chance de um algum arsênico escorregar
junto com o cominho e com o alho? Com algum cortador de unha espalhado entre os
utensílios de cozinha?”
“Um repórter sempre pode sonhar. Mas eu garanto que a você que esse será o
artigo de bosta mais lido do ano. Você é uma celebridade agora.”
“É, uma legítima pessoa de interesse.”
Claro, as histórias anteriores de Moretz sobre os assassinatos havia se tornado
material quente, tanto que o editor deu o passo inédito de disparar as prensas
novamente e imprimir novas tiragens de cada uma das edições. Desde que os
colecionadores começaram a pedir múltiplas cópias, dada a chance de Moretz levar
uma injeção letal, a demanda estava no teto.
Ou pelo menos na porta dos fundos. Nelson, o operador da prensa principal, foi
pego carregando uma pilha para a caçamba de sua picape. Mas os tempos eram
bons, então o editor riu disso. Kavanaugh me enviou dois e-mails depreciativos,
chamando nossa cobertura de “desleixada” e “jornal de ontem para embalar peixes.”
Eu respondi dizendo que ela ficava uma gracinha quando personificava Ann
Coulter.
Claro, não havia como Moretz pagar um defensor com o salário de repórter, e nós
não iríamos enviar o advogado corporativo para a briga. Até onde o Picayune e sua
corporação matriz entendiam, Moretz não tinha, de forma alguma, agido em nome de
sua profissão no que quer que tivesse ou não cometido. E tenho certeza que a firma
cobrou da companhia um valor alto para garantir esse entendimento.
O editor perguntou se eu achava que deveríamos deixar Moretz de lado até que a
investigação terminasse. A implicação era que poderíamos ser mal vistos pela
comunidade por dar trabalho, ou ao menos tolerar, um criminoso.
Quando eu mostrei que a circulação aumentara 125 por cento desde a chegada de

Moretz, o que significava bônus de performance para toda a equipe, ele amoleceu
um pouco. Engraçado como a prudência jornalística dá passagem para o peso de um
carrinho de mão cheio de dólares.
Do seu lado, Moretz ficou numa boa pelo escritório. Brianna, a balconista da
mesa da frente que pegava as ligações e classificava os anúncios, piscou seus gordos
e falsos cílios para ele, mas ele não pareceu notar.
Eu não sei. Talvez ele fosse homossexual. Ele nunca disse nada sobre mulher e
filhos, e qualquer homem que chegue aos trinta sem história para contar deve ter algo
errado.
Exceto eu, claro. Eu estou bem.
Baker e Westmoreland deixaram seu ciúme para trás o suficiente para darem boas-
vindas para Moretz na turma, até mesmo levando-o para almoçar em um dia, embora
tenham negligenciado o convite ao cara dos esportes. Eles pediram dicas para ele, e
seus artigos ficaram melhores como resultado.
Eu estava quase começando a acredita nesse negócio de “trabalho de equipe.”
Então Kavanaugh me ligou e aceitou aquele convite para jantar.

10.
A lasanha sentava pesada no meu estômago quando eu a lavei com meu chá
gelado. Escolhi o Roman Joe, um lugar italiano com toalhas xadrez vermelho-e-
branco e velas com bulbos elétricos em formato de gotas. Joe era americano o
suficiente para vender cerveja e pizza, mas adicionou alguma grana à sua conta
porque ocasionalmente entrava pelo salão com um acordeão cantando uma versão
desafinada de “That’s Amore.”
Kavanaugh estava tão fria quanto os cubos de gelo tilintando no meu copo. Ela
pediu espaguete, e um pouco de molho de tomate sujava o seu queixo.
“Então, você quer falar,” eu disse.
“Achei que deveria falar isso com você primeiro, dado que nos conhecemos há
tempos,” ela disse. Ela tomava sua segunda Bud Lite, e pontuou a sentença com um
arroto.
“Sim. Agradeço o respeito.”
“Então, o que sua pesquisa sobre o passado de Moretz levantou?”
“Minha o quê?”
“Pesquisa. Você foi saber mais dele antes de contrata-lo, é claro.”
Mexi os cubos no meu copo. “Claro.”
“Então você sabe sobre a ficha criminal.”
“Tomo mundo merece uma segunda chance.” Eu estava desesperado para saber
sobre o que ela falava. Hardison deve ter dado a ela alguma informação por baixo dos
panos.
“Um pouco arriscado. Quero dizer, eu consigo entender deixar passar um furto
numa loja, ou até mesmo dirigir alcoolizado. Mas agressão física grave é algo bem
sério quando você espera ganhar a confiança do público.”
“O passado é o passado. Seu histórico profissional era sólido.”
“Passado recente. Ele defendeu-se da acusação, pegou seis meses de condicional e
200 horas de serviço comunitário. Esse buraco não apareceu no currículo dele?”

Eu não quis admitir que ele havia colocado em suas horas de trabalho uma
publicação servindo o sistema de seguros de saúde dos Estados Unidos. Assumi que
ele recebesse para isso, mas deveria estar trabalhando com a ameaça de cadeia nas
costas.
“Bem, eu nunca peguei todos os detalhes,” eu disse.
Roman Joe aproximou-se, cheirando a alho, e perguntou como nossa comida
estava. Kavanaugh disse “excelente” e pediu outra Bud Lite.
“Você é um desses que nunca raspa mais do que a superfície,” ela disse. “É a
marca registrada de alguém como você.”
“Alguém como eu?”
“Alguém que fica preso em um jornal de cidade pequena. Você luta por uns dois
anos, escreve um editorial criticando o conselho da cidade, inicia uma ou outra
investigação, mas nada leva a lugar algum. Você não recebe nenhuma carta do editor,
e os cabeças da corporação não te defendem. Nas histórias pesadas, eles enfiam uma
faca nas suas costas para ficarem bem com a Câmara de Comércio.”
“Você dá combate onde consegue.” Esperei que eu não estivesse chorando.
“Sim, mas então você fica confortável. O Picayune deveria ser um caminho, mas
você não deu a cara à tapa quando deveria ter dado. Depois de cinco anos em um
emprego como esse, ou você muda de carreira ou se acomoda. E nós sabemos que
estrada você seguiu.”
“O que tudo isso tem a ver com John Moretz?”
“Mostra o quão mole você é. Se você estivesse na pegada, teria botado o cara na
parede por ser um condenado. Ao invés disso, você praticamente rolou o tapete
vermelho. E se for descoberto que ele matou essas três mulheres, então você terá
sangue nas mãos.”
“Ei, ei, ei. Não comece a acreditar nas suas próprias matérias. Moretz foi
convocado apenas para questionamentos. Ele não foi sequer ‘levado’. Ele mesmo
dirigiu até o escritório do delegado e saiu de lá limpo. Se o delegado tivesse algo,
Moretz estaria atrás das grades agora.”
“Moretz tem experiência.”

“Espere, você está dizendo que ele veio para cá apenas para assassinar pessoas?”
“Não, eu acho que ele veio aqui para conseguir um trabalho, misturar-se, construir
uma fachada de respeitabilidade. Mas um homem com um passado de violência não
se livra disso tão facilmente. Diabos, quem sabe? Ele pode ter sido um assassino
serial na Califórnia e apenas se mandou antes que as pistas levassem a polícia até
sua porta dos fundos.”
Eu tinha que admitir, Califórnia era a capital dos assassinos seriais no mundo
livre. Mas Moretz, mesmo com sua natureza misteriosa e elusiva, não carregava essa
vibração. Eu sentia que ele era um barril de pólvora, caso alguém acendesse o pavio,
mas ele tinha lidado com algumas histórias bem estressantes. O caso do pervertido
Wilbanks era o suficiente para fazer qualquer um explodir, mas Moretz tinha escrito
sua matéria sem nenhum soluço.
“Essa prisão dele no passado? O que você descobriu?”
Ele deu um sorriso aberto no meio da espuma da cerveja. “Ele quebrou o braço de
um homem no trabalho.”
“Luta, então?”
“Na verdade não. Era o editor dele no San Obispo Courier-Times. O editor
mudou a manchete dele, fez com que sua impactante série investigativa sobre a
indústria de massagens parecesse uma comédia romântica sem sal, e Moretz
caminhou até lá e enfiou um laptop na cabeça dele. Se o editor não tivesse erguido o
braço em autodefesa, Moretz poderia ter dado início a uma sentença por
assassinato.”
A lasanha era como um saco de cimento nas minhas entranhas. “Ele é um
funcionário exemplar.”
“É a melhor fachada para um matador. E por isso que sempre pegamos aquelas
falas dos vizinhos dizendo ‘eu nunca teria suspeitado’.”
“Se os tiras tivessem algo contra ele, não o teriam deixado sair do prédio. Aquilo
foi só um circo para ganharem algum tempo.”
“Foi por isso que você não cobriu o fato?”
Foi a minha vez de sorrir, embora eu tenha me esforçado um pouco para isso. “A

circulação está em alta. Nossos leitores são cidadãos informados que respeitam a
integridade e os princípios da inocência até que se prove o contrário. Em minha
opinião, o News & Observer está rolando no esgoto com o National Enquirer. Mais
um pouco e vocês estarão noticiando o filho bastardo do Tiger Woods.”
“Talvez, mas ao menos nenhum de nós é um assassino. Você sabe o que o
Hardison disse que a SBI disse a ele?”
“Que rosquinhas deixam você gordo e lento?”
“Esse assassino serial pode ser um assassino serial, mas ele não está seguindo o
padrão. É como um matador que não coloca o coração no que faz. Ele não tira
nenhum orgulho de seu trabalho. Aquela coisa do cortador parece um pensamento
posterior, como se ele tivesse jogado uma engenhoca para ser levado a sério.”
“Existiriam outras formas de fazer isso. Como, marcar suas iniciais, roubar as
calcinhas, ou arrancar um órgão específico. Quero dizer, ele vai sentar no corredor da
morte e reclamar sobre sua coleção de cortadores de unha?”
Ela debruçou para frente, e eu fiz o mesmo. A cerveja estava fazendo um pouco
de efeito nela, e seu rosto relaxou. O candelabro elétrico faiscava em suas grandes
pupilas. “Você sabe de alguma coisa. Você é um espertinho.”
Eu sorri, um pouco mais facilmente dessa vez. “É parte do pacote. Arranhe um
cínico e você ganha um idealista desiludido.”
Ela esticou uma mão, aquela que rabiscava notas no seu bloco de notas, e tocou a
minha. Eu não pude evitar em reparar nas unhas dela. Elas tinham um pouco de
farelo das torradas de alho grudadas, mas, de resto, estavam saudáveis.
Ela curvou os dedos como uma garra e os raspou nas costas da minha mão, forte o
suficiente para deixarem traços vermelhos. “Eu arranho você e tudo o que eu vejo é
carne.”
Peguei a mão dela e gentilmente a segurei. “Você não devia estar dirigindo. Se for
parada, terei que colocar a sua prisão na primeira página, com uma deliciosa foto do
rosto.”
“Aposto que você diz isso a todas as repórteres.”
“Só para as deliciosas.”

O rosto dela ficou mais leve. Seus olhos ficaram mais leves. Seus cabelos ficaram
mais leves. Devia fazer bastante tempo que isso não acontecia para ela.
Fomos para o meu apartamento, onde algumas coisas ficaram mais leves e outras
ficaram mais duras.
Coisas como a minha vida.

11.
A ligação sobre o incêndio criminoso chegou cego na manhã seguinte. Eu estava
atrasado, sendo o cavalheiro que eu era, mas Moretz estava no seu cubículo como
sempre. Ele tinha me enviado uma mensagem, mas eu não ligara meu telefone,
porque odeio o som do bip quando estou tentando ser romântico. Mas ouvi as
sirenes no caminho e fiquei feliz por ter um repórter no trabalho que não precisava
dormir.
Se eu pudesse ser sortudo o suficiente e mantê-lo longe da prisão por um tempo.
Moretz me ligou do local e eu comecei a diagramar a página do obituário. Óbitos
eram um de nossos produtos básicos. Quando alguém morre em uma cidade
pequena, você pode contar que pelo menos trinta amigos e membros da família
comprariam uma cópia para guardar aquele último artefato público.
Por alguma razão, Facebook e Twitter não haviam apagado esse ritual simples e
solene para a maior parte das pessoas. Na morte nós ainda tínhamos a palavra final
– e um canto no mercado.
“Um sobrado, totalmente tomado,” Moretz disse.
Tentei não comemorar pela perda total. Aquilo não parecia boas maneiras.
“Alguma fatalidade?”
“Nada além de escoriações pelo fogo.”
“OK.” Se uma morte tivesse ocorrido, eu estaria em um conflito. Kavanaugh
provavelmente escreveria sobre isso no News & Observer, e a história dela chegaria
às ruas horas antes da nossa edição. Mas ela não cobriria um incêndio “corra-para-o-
celeiro”. Entendi a sabedoria no ditado, “Onde se ganha o pão não se come a carne.”
“Mas conseguimos um cachorro,” Moretz disse.
Morte de cachorro. Todos os contadores de histórias desde a aurora dos tempos
entendiam que você nunca matava o cachorro. Imole milhares, arranque a floresta
tropical, deixe a raça humana sofrer um holocausto nuclear, mas nunca, nunca deixe o
cachorro morrer. Dean Koontz tinha subsidiado uma nova peruca ao abraçar esse
princípio.

“Não podemos publicar isso,” eu disse. O que não evitava que eu publicasse a
sequência, a triste cena do velório e o pedido apaixonado de doações para o abrigo de
animais local, pela honra do Fido.
“Você vai querer essa,” Moretz disse. “O cachorro está preso dentro da casa, um
dos bombeiros sobe e bota a porta abaixo com uma marreta. O cachorro sai latindo e
fumegando, eles lhe dão um banho com a mangueira, felizes para sempre.”
Minha pulsação aumentou. “Você tirou fotos?”
“É para isso que você me paga tão bem, chefe.”
O fogo era o tipo de coisa de primeira página, um casal de férias que pouco saía
de casa. A casa pertencia a um médico que recentemente perdera sua licença por
forçar o uso de certas medicações, e diziam nas ruas que ele estava com as mãos
atadas financeiramente. Naturalmente, todos na comunidade acreditavam que ele
tinha torrado sua própria casa para pegar o dinheiro do seguro.
Mas nós, no negócio jornalístico, diferente do sistema judicial e da corte que era a
opinião pública, demos a ele o benefício da dúvida. Embora gostássemos de sugerir a
culpa quando isso pudesse fazer as pessoas gastarem suas moedas em nossas
pequenas caixas de metal.
Uma matéria sobre um “herói desvalorizado” era ainda melhor do que um
assassinato. Tinha drama – embora tivéssemos que abrilhantar o risco dos
bombeiros, pois esses caras sempre eram tratados por inalação de fumaça, quer
precisassem ou não – e tinha um cachorro. Com alguma sorte, o casal seria jovem e
bonito. E a história do médico poderia ser inserido no último parágrafo, junto com o
comentário clichê do chefe dos bombeiros “A causa do fogo está sob investigação.”
Cacete, Moretz poderia até mesmo ganhar um pouco de boa vontade com
Hardison e os outros tiras. A nós teríamos uma ou duas continuações sobre isso ao
recontarmos as transgressões passadas do médico e subitamente levantarmos uma
nuvem de suspeita.
“Pode escrever antes do final do prazo?” eu perguntei.
“Se eu não for preso antes dele.”
“Sim. É difícil digitar de algemas.”

“Estamos todos algemados,” ele disse. “Elas apenas estão invisíveis a maior parte
do tempo.”
Ele desligou com essa. Boa fala.
Liguei para Kavanaugh para ver se ela estava acordada e lhe dizer onde ficava o
café.

12.
Hardison ferrou com nossos planos ao ser competente, detalhista e apto em
deixar de lado seu desgosto pessoal por Moretz e pela mídia.
Resumindo, ele fez o inesperado.
Ele trouxe um suspeito diferente para interrogar. Era o homem que estivera
romanticamente ligado à primeira vítima do Rebelde Cortador, aquele que Moretz
tinha mostrado ao público e para Hardison. Ele estava na pequena lista inicial de
pessoas a serem interrogadas, mas o segundo assassinato fez a investigação dançar
em um estágio mais amplo.
O homem, Grayson Jennings, disse que soube da morte da mulher e havia
contatado a família dela. Ela terminara com ele um mês antes do assassinato, e ele a
retirou de sua lista de chamadas rápidas do celular e foi para a praia.
“Uma explicação sensível,” Hardison disse, de uma forma que sugeria que a
história seria um pouco sensível demais.
O fato de Jennings ter retornado era um pouco menos sensível. Ele ligara para o
delegado para perguntar se poderia ser de alguma ajuda, e o delegado ficou feliz em
obriga-lo. Kavanaugh deve ter recebido a dica, pois tinha uma foto de Jennings sendo
escoltado para a delegacia. Moretz, aparentemente, estava agora na lista “Não ligar”
do delegado, pelo menos como repórter.
Kavanaugh não mencionou isso para mim, provavelmente por vingança após eu
ter-lhe dado um gelo sobre a história do incêndio, e nosso pequeno namorico esfriou
quase tão rápido quanto começou. Quando a história dela saiu, fomos deixados com
ovos na cara.
Na verdade, eu acusei o golpe quando o editor me convocou para seu escritório e
jogou o News & Observer naquela mesa de bordo que custava quase tanto quando
meu salário anual. Eu captei a mensagem, que, é claro, significava que eu devia
publicar o caso de Moretz sendo pego.
A mesa dele, que costumava ser limpa e organizada, era agora uma bagunça de
marcas de copos de café, pedaços de papeis enrugados, clipes de papel dobrados, e

discos de computador riscados. Eu escorreguei o jornal por cima do seu teclado
enquanto ele digitava.
“Eu imaginei que você e ela fossem parceiros,” Moretz disse, olhando para cima
com seus olhos frios e negros.
Eu franzi a testa. Um jornalista sempre protege suas fontes, e eu mantinha em
segredo minha vida amorosa. Mas eu não deveria ficar surpreso, dada a esperteza de
Moretz. Ele sabia muito mais do que colocava no papel. “Isso não tem a ver com a
questão.”
“Está? Ela parece estar recebendo informações privilegiadas.”
“O que você quer dizer com isso?”
“Ela está incluindo detalhes que você recortou do meu artigo.”
“Eu editei para manter a precisão e evitar qualquer problema com calúnia.”
Ele jogou o jornal na direção da lixeira, mas ele abriu como um rígido paraquedas e
flutuou até o chão. “E então deu para ela comer como se fosse chantilly nos seus
dedos.”
“Olha, John, temos uma coisa boa acontecendo aqui. Eu jogo algumas migalhas
para ela e consigo o bolo inteiro, você me entende?”
“Claro, você está dormindo com o inimigo. E isso é mais importante do que a
verdade.”
“Ei, esse negócio com o Jennings tira você dos holofotes. Conseguimos nosso
passeio com o jogo da enganação, e agora podemos voltar a rodar edições e vender
jornais. Você ainda será uma celebridade até que eles façam uma prisão. E, quem
sabe, isso pode fazer sua carreira. As notícias se espalham nesse negócio, e alguém
provavelmente vai rouba-lo em seis meses.”
“Eu gosto daqui,” Moretz disse.
Eu agitei minha mãe. “Somos uma raça moribunda. Jornalismo impresso vai pelo
mesmo caminho dos discos de vinil e música disco. Você estará blogando ou fazendo
um podcast para a Internet em algum lugar, o próximo Julian Assange.”
“Se jornais impressos estão morrendo, o que você está fazendo aqui, então?”
Essa pergunta era mais do que qualquer um poderia responder. Mas esse era o

meu tiro único, e embora o Picayune fosse um jornal de uma cidade pequena, eu
queria um único sucesso para ter o que escrever no meu obituário.
Eu havia escrito óbitos o suficiente para saber que a maioria das pessoas não
conquistava nada significativo, e não existiam Prêmios de Conquistas de Vida por
ser um ser humano decente. Se você quisesse ser lembrado, tinha que fazer valer seu
momento.
Finalmente eu consegui sair com uma resposta cabível. “Estou fazer o melhor que
posso, é isto que estou fazendo aqui.”
“O melhor que você pode fazer é o segundo melhor.”
O scanner estalou e uma chamada de acidente com possíveis feridos surgiu.
Moretz pegou seu laptop e câmera. “Com alguma sorte, eu vou te dar alguma carne
fresca para a página principal,” ele disse.
Enquanto ele se mandava, eu disse, “Quem te contou sobre Kavanaugh e eu?”
“Eu tenho minhas fontes.”
Ele se apressou para fora, e de certa forma eu senti falta dos velhos tempos
quando ele me chamava de “chefe.”

13.
Eu estava bravo com Kavanaugh, mas uma vez que você esteve dentro da calha, é
difícil tirar o nariz dela. Ele estava no meu apartamento, enchendo-me de
informações sobre o interrogatório de Jennings. Em troca, eu enchia seu copo de
uísque.
“Você acha que ele fez isso?” eu disse, desabando ao lado dela no meu sofá de
mostrador de loja.
“Não importa o que eu ache,” ela disse. “E sim o que Hardison acha. Mas,
pessoalmente, soa como se Jennings não estivesse por perto quando Shumate foi
morta.”
Coloquei um braço em volta dela, para testar algumas coisas. Além do que era
Novembro e estava ficando frio. “Quando eles vão te mandar de volta para Raleigh?”
Ela deu de ombros, mas não forte o suficiente para se livrar do meu abraço. “Eles
estão pensando em montar um escritório aqui nas montanhas. Nossos leitores
gostam dessas pequenas colunas policiais dos caipiras.”
“Os gatões, né?”
“Os pega todas as vezes. E não se esqueça dos cachorros. Essa história de ‘herói
desvalorizado’ foi bastante sentimental, Howard.”
“Ora. Pela forma como você tem glorificado o Hardison, você não pode falar
muito.”
“Ele é a história. Se isso se tornar o caso de um verdadeiro assassino serial ao
invés de uma sequência de coincidências, precisaremos de um mastro principal.
Nesse momento, é Hardison. Eu poderia publicar com Jennings, mas tenho a
sensação que Hardison está apenas dando tiros no escuro, especialmente depois do
fiasco com Moretz.”
Eu não disse nada. A bebida manteve minha boca ocupada.
“Mas se conseguirmos um suspeito real, então ele se torna o mastro principal e
nós arrancaremos uma tonelada de polegadas do esquisito – sua infância prejudicada,
suas conexões com as vítimas, o escândalo do público por ter um monstro em nosso

meio. Então vamos para o tribunal e focamos nos defensores. Se tivermos sorte, há
uma sentença de morte e nós enchemos a página editorial com todo aquele debate
moral redundante.”
“Parece o suficiente para construir toda uma carreira.”
“Ou escrever um livro policial baseado em fatos reais.”
“Mas nós não temos nem certeza que é um caso de assassino serial.”
“Esse é o problema. A SBI não elevou o caso porque não há uma ligação
indicativa, e Hardison não tem nada além de alguns cortadores de unha, um par de
suspeitos aleatórios, e uma pegada de tamanho trinta e nove.”
Eu ergui um dos meus sapatos sujos. “Isto é mais ou menos a média para um
homem, o que nos deixa com cerca de três bilhões de suspeitos.”
“Se você pensar em todas as possibilidades, pode ligar aquele primeiro
assassinato, o caso Hanratty, com a pegada, e estará andando em círculos.”
“Mas aquele foi totalmente diferente. A vítima era um homem, a morte foi por
ferimento de tiro. Os outros foram com as mãos. Golpe, estrangulamento, lâmina.”
A bebida estava fazendo efeito nela, e ele sorriu. “Eu adoro quando você fala de
assassinato.”
Seus lábios tinham gosto de Jim Bean. “Bem,” eu disse, quando estava pronto
para recobrar meu fôlego. “se isso acabar virando quatro ou cinco assassinatos
diferentes, é uma bela sequência também.”
“Você ainda acha que Moretz está limpo?”
“Você mesma disse que Hardison não o teria deixado sair andando se houvesse
alguma chance de culpa.”
“Hardison não é a faca mais afiada da gaveta. Ele está evitando a SBI quando
deveríamos estar tirando vantagem dos seus recursos de laboratório. Aquele cortador
deve ser rastreável de alguma forma.”
“Fim da linha,” eu disse, indo de encontro a ela, não desnecessariamente
pressionando meu corpo contra o dela. Abri uma gaveta na mesa de centro e mostrei
o saco com os cortadores de unha. “Você compra essas coisas como doces. Não são
únicos o suficiente para pegar um assassino esperto. Imaginei que pudéssemos fazer

algum tipo de distribuição comemorativa quando isso acabasse.”
Ela pegou um e mexeu nele. Os cortadores tinham uma haste afiada que se abria
para que se pudesse terminar o serviço com uma bela ponta polida. “Não vejo
porque o negócio de “Rebelde Cortador” pegou. Eles encontraram cortadores com o
segundo corpo, mas não nos outros. Se não fosse por vocês terem criado esse
apelido, os tiras poderiam ter mais chances de lidar com os assassinatos.”
“Eu acho que eles encontraram sim nos outros dois,” eu disse. “Acredito que
estejam escondendo a informação.”
“Você disse que o seu garoto Moretz estava quente na cena da Shumate. Ele os
teria visto descobrindo os cortadores.”
“Eles estavam complicando as coisas para ele, lutando aquela guerrinha de
território, violando o direto público de ir e vir o quanto quiser. Eles acham que
podem brincar de Cabra-Cega com um pouco de fita amarela e amarrar a verdade na
cama.”
“Se Moretz estava lá, ele não precisaria plantar os cortadores, ou talvez tenha
ficado sem tempo.”
“Você está ficando paranoica,” eu disse. “Está passando tempo demais na
cidade.”
“Isso é um convite para vir morar com você?”
“Só por uma noite,” eu disse. “Uma coisa que você pode escrever na pedra é que
não existe futuro comigo.”
Ela beijou meu rosto. “Com certeza, senhor Melodrama.”
“Só uma coisa antes de irmos para a cama,” eu disse.
Ela rosnou impaciente. “Eu tenho um prazo a cumprir de manhã.”
“Aqueles tira-gostos que eu te dei, as coisas que eu cortei das histórias de
Moretz?”
“Ah, vá. Você não vai agitar essas coisas na frente do meu nariz, vai? Você já está
ganhando a sobremesa. Não precisa do suborno.”
“Estou apenas pensando se Moretz já nos viu no mesmo lugar ao mesmo tempo,
fora aquela coletiva de imprensa.”

“Quem se importa? Somos ambos adultos.”
“Ele pode estar me perseguindo. Ele sabe que estamos nos pegando.”
“Por favor. Chame de ‘encontro’. Eu sou à moda antiga e gosto de pensar que sou
uma dama.”
“De qualquer forma, ele sabe coisas que não deveria saber.”
“Este é o trabalho dele. Você mesmo disse que ele é bom no que faz.”
“Um pouco bom demais.”
Ele me apertou mais, seu hálito quente de uísque no meu rosto, o cheiro feminino
do campo em contraste direto com suas feições severas e queixo quadrado. “O que,
você está com medo que ele nos pegue e nos faça as vítimas quatro e cinco do
Rebelde Cortador?”
Só vítima quatro, pensei. Mas não disse isso. Não era romântico.

14.
A verdadeira quarta vítima foi encontrada na noite seguinte. Peggy McDonald
tinha vinte e poucos anos, vestida com trajes práticos e tênis, seu cabelo preto
comprido preso em um rabo de cavalo. Ela seguia para seu turno na biblioteca local
quando o Rebelde Cortador a fez se atrasar de outra forma.
McDonald vivia no centro da cidade e regularmente caminhava meia milha até o
trabalho. Uma parte da caminhada passava por um lote não utilizado que continha
dois celeiros tombados e decadentes. Era um atalho popular para os locais, e os
bêbados ocasionais encontravam refúgio nos celeiros em dias chuvosos.
Aparentemente o assassino escondeu-se nas sombras e a pegou quando ela
passava, enrolando um pedaço de fio de varal pelo seu pescoço. O corpo foi
descoberto por um empregado da cidade que estava mapeando o sistema de esgoto.
Moretz, que estava próximo, no tribunal de justiça, tinha tudo isso no seu artigo,
é claro. E, como se servisse para remover qualquer dúvida que o estrangulamento era
uma sequência do assassinato anterior, o confiável par de cortadores de unha fora
encontrado enfiado no bolso de McDonald.
Delegado Diz Que As Mortes Estão Ligadas, dizia meu cartaz mental. Enviei Fitz
para tirar uma foto do local onde o corpo fora encontrado, mas Moretz já tinha
cumprido seu modus operandi usual e estava na cena minutos depois da chamada
acontecer.
Como nosso scanner monitora todas as frequências de tráfego públicas ao invés
de apenas as emergências, ele interceptou a ligação original do funcionário para o
escritório da expedição.
Para ganhar alguns pontos com Hardison, eu incluí uma foto da sua cara queixuda
e preocupada. Havia a guerra de jurisdição usual, pois o corpo fora encontrado
dentro dos limites da cidade, garantindo que Hardison teria que batalhar tanto com
os guardas quando com a SBI durante sua investigação, saindo inevitavelmente com
nenhuma resolução.
Eu poderia ter mudado o mastro principal para o chefe de polícia da cidade, mas o
mantive enterrado embaixo de oito parágrafos, junto com a fanfarronice obrigatória

expressada por um escandalizado prefeito Wilbanks. Como um líder, Wilbanks
parecia completamente perdido sem um par de tesouras cerimoniais nas mãos, além
do que, ele também estava distraído pelo caso do seu pervertido filho.
“Você deveria ter ido lá,” Moretz disse, a face cheia de adrenalina quanto ele
correu para dentro, embora seus olhos estivessem tão frios e negros como sempre.
“Acredito que estarei, assim que ler seu artigo. Kavanaugh estava na cena?”
“Sim, você devia tê-la ouvido fritar o delegado. Perguntou a ele se era um
assassino serial ou o trabalho de um matador copiador.”
“Boa pergunta. Não é uma ‘sim-ou-não’ mas uma ‘isso-ou-aquilo’.”
“Hardison mandou o velho ‘Conclusões ainda não foram feitas’.”
“Vamos seguir com as duas hipóteses, deixemos o público se perguntando. Nada
os fará falar tanto quanto a noção de que pode haver dois matadores trabalhando.”
“Posso transformar em três matadores se você quiser. Não há nada no assassinato
de Hanratty também.”
Eu neguei com as mãos. “Coloque isso no último parágrafo só para lembrar as
pessoas, mas o caso não se enquadra no perfil de assassino serial que construímos.
Consegue terminar antes do prazo?”
Moretz concordou com a cabeça. “Engraçado como todos esses corpos
continuam surgindo pouco antes de irmos às prensas.”
Toquei o bibelô de cerâmica com os dizeres “Gênio Trabalhando” sobre a minha
mesa. “Não questione os deuses da tinta e do papel. Apenas contabilize suas
bênçãos e os dígitos no seu pagamento.”
Moretz escreveu um artigo novo enquanto Baker digitava uma rápida ordem
cronológica dos assassinatos. Vendo a lista em tópicos me fez perceber
completamente o quão rápido nossas vidas tinham sido alteradas desde a chegada de
Moretz. Claro, ela mudou mais drasticamente para aqueles agora imortalizados
como vítimas.
Moretz chegou com um artigo esquelético que tinha todos os detalhes
estatísticos, mas nenhuma cor. Mandei de volta e requisitei que ele encorpasse o
final, plantando especulações e sugerindo que a força policial estivesse confusa e

sem esperança.
Moretz não ficou feliz com isso. Ele invadiu meu escritório após receber a
mensagem com o pedido. No entanto, como eu era o editor e o chefe, aquilo na
verdade não tinha sido um pedido.
“Chefe,” ele disse, sua entonação beirando o sarcasmo. “Nós já fizemos desse
jeito. Você quase me fez ser preso, lembra-se? Você é aquele que me deu a aula sobre
não editar o artigo da notícia.”
“Isso é diferente,” eu disse. “Esse é só um caso de dar aos leitores o que eles
querem. Inferno, metade da cidade pensa que Hardison é um caipira idiota que nunca
seria contratado para o trabalho caso não tivesse sido eleito.”
“Ele não vai ficar feliz se você enfiar uma faca nas costas dele de novo.
Kavanaugh já está conseguindo mais informações internas do que eu.” Moretz
moveu-se até a minha mesa, seus punhos fechados. “Mas eu acho que você está
conseguindo muita coisa interna por ela, não está?”
“Olha, John, não estou tomando partido aqui. Tenho um dever com esse jornal e
com nossos leitores. Se quisermos continuar sendo a fonte confiável de notícias
dessa comunidade, temos que examinar as edições por todos os lados.”
Você imagina que o cara já teria uma casca mais grossa. Não é como se fosse o
primeiro rodeio dele. Essas pessoas eram todos estranhos. Pegue a mim, por
exemplo. Depois de formatar centenas de obituários, eu poderia provavelmente
colocar a minha própria avó ali e não derramar uma lágrima.
“Está certo, darei a você umas duzentas palavras,” Moretz disse. “Apenas
certifique-se que Kavanaugh não receba uma cópia antes disso chegar às ruas.”
“Isso não é o Facebook. Isso é vida real.”
“É. Vamos torcer para que eles não achem mais nenhum cortador de unha Rebelde
na minha mesa de novo. Kavanaugh pode começar a chegar antes de mim nas cenas
dos crimes.”
“Você diz como se esperasse que os assassinatos continuassem.”
“Depois de você publicar essa manchete, isso vai virar coisa nacional.
Provavelmente vamos atrair as grandes revistas e redes de notícias da TV a cabo.”

“Tenho fé em você. Você vencerá a todos.”
“Inclusive Kavanaugh?”
Eu não tinha decidido aquilo ainda, mas não vi razão de chateá-lo antes que ele
terminasse seu artigo. “Você é o meu Número Um no topo das paradas.”

15.
É claro, os abutres voaram para cá. Fox News, MSNBC, 60 Minutes, The New
York Times, e USA Today fizeram boletins, a maioria compilações das nossas
matérias publicadas, o jeito preguiçoso do jornalista de poltrona. The Washington
Post foi a única franquia de mídia tradicional a enviar um repórter de verdade.
Deadspin e TMZ mandaram jornalistas de fofocas, a prova de que as matérias sobre
boatos das celebridades, notícias sensacionalistas e a integridade jornalística estavam
ofuscados por um obscuro ensopado cor de sangue.
Dando crédito a ele, Hardison ergueu-se diante do desafio, convocando uma nova
coletiva de imprensa que era uma cópia da anterior, só que dessa vez ele estava
preparado para responder perguntas. Bem, ele não respondeu realmente, mas pelo
menos debateu alguma coisa.
“Nenhum possibilidade foi eliminada,” ele disse para a audiência de três dúzias
enquanto o defensor do distrito ficava de pé ao seu lado. “Essa delegacia está
cooperando completamente com a SBI e com o Departamento de Polícia de
Sycamore Shade para trazer o perpetrador à justiça.”
“Então há apenas um perpetrador?” perguntou um cara de cabelinho curto com
um microfone, e que tinha um rosto feito para o rádio. Mas ele falava alto o
suficiente para compensar quaisquer outras deficiências.
“É forma de dizer,” Hardison disse.
“Os cortadores de unha têm alguma significância?” gritou um dos caras da TV.
“Culpe a maldita Internet,” o delegado disse, em uma rara demonstração de
delicadeza. “Estamos trabalhando para descobrir a origem, mas eles podem ter vindo
de qualquer lugar. Qualquer um com alguma informação é encorajado a dar um passo
adiante, e uma recompensa está sendo oferecida.”
O advogado caminhou até o microfone e adicionou, “A recompensa é válida
apenas caso ocorra uma acusação de sucesso, e a oferta não é válida onde seja
proibida por lei.”
“Delegado, você fez alguma conexão sólida entre algumas das vítimas?”

Kavanaugh perguntou, embora eu soubesse que ela já tinha feito a pergunta para ele
em particular. Ela estava do outro lado da sala, de onde estávamos Moretz e eu,
preferindo manter nossa relação longe dos olhares do público.
Eu sabia que até mesmo Hardison era esperto demais para sair com algo
sarcástico como “Bem, estão todos mortos.” Ele deixou sua mandíbula inclinar-se
um pouco mais do que o normal, fazendo que ele parecesse cão de caça vencido.
“Estamos vendo histórias de famílias,” Hardison disse. “Todas as vítimas eram
moradores locais, e é possível que seus passos se cruzassem de tempos em
tempos.”
“Você pode disponibilizar mais detalhes sobre o último assassinato?” Moretz
perguntou, erguendo seu lápis, muito embora estivesse tomando notas no seu
laptop.
O delegado olhou para ele e então para mim. “Toda a informação foi
disponibilizada,” Hardison disse. “Além de alguma informação que não é sabida.”
Algumas mãos se ergueram diante da afirmação confusa, mas o delegado ergueu as
palmas das mãos. “Isso é tudo por hoje,” o delegado disse. “Esses crimes não se
resolvem sozinhos.”
A atenção nacional fez surgir um punhado de pedidos por e-mail, então o editor
aumentou a tiragem em mais três mil cópias.
Nossas assinaturas aumentaram também, e Westmoreland até mesmo ousou
mencionar a possibilidade de um aumento para a equipe de escritores. E eles dizem
que os jornalistas são cínicos.

16.
Encontrei Kavanaugh para jantar cinco dias e duas edições depois. Ela tinha ido
para Raleigh para arquivar algumas histórias e trabalhar em um grande escândalo do
governo, mas nós ficamos em contato via mensagens de texto. Moretz pensava que
estava dando informações confidenciais para ela, mas o acordo funcionava para
ambos os lados. Kavanaugh não tinha a habilidade de Moretz de estar nos lugares,
mas era bastante precisa em análise e conversa fiada.
Depois de outra rodada de couvert de alho no Roman Joe, eu sugeri que
visitássemos a cena do primeiro assassinato e caminhássemos sob a luz da lua ao
redor do lago debatendo conexões entre as vítimas, fazendo trabalho de campo para
uma série retrospectiva para fazer com que nossos leitores revivessem os crimes. E,
claro, comprassem mais jornal.
“Romântico,” ela disse.
“E podemos pedir reembolso da quilometragem,” eu disse.
“Combinando negócios com prazer. Ainda melhor.”
Chegamos ao lago em vinte minutos. A cena original do crime não estava mais
cercada, e tinha se tornado como uma pequena atração turística. Latas de cerveja e
papeis de hambúrgueres sujavam a mata. Eu fiquei um pouco triste pelo local do
assassinato não ter se tornado uma espécie de santuário memorial, mas eu sabia, pela
minha vasta experiência, que notícias de ontem eram notícias de ontem.
“Ele estava parado bem aqui,” eu disse, medindo a distância até o lago. “Talvez
ele já tivesse planejado a coisa toda, ou talvez ele apenas tenha cruzado com o remo
e ficou insano.”
O que ela me disse em seguida me surpreendeu, mas provavelmente não deveria.
“Você acha que é o Moretz, não acha?”
Fiquei em silêncio por um tempo, ouvindo os grilos, sapos e o gentil movimento
das ondas. “Ele é o Johnny on the Spot, o primeiro na cena do crime. Talvez o
delegado esteja mantendo o olho mais perto dele do que imaginamos.”
“Se for verdade, o delegado ferrou tudo deixando mais duas pessoas morrerem

antes de efetuar a prisão. A carreira dele está morta e boiando.”
“Assim como a terceira vítima. Com uma lâmina.”
“O que é isso?”
“Padrões. O negócio com o remo foi uma aberração. Mas então tivemos um
estrangulamento, uma lâmina no pescoço, e então outro estrangulamento. A despeito
daquela bugiganga cortadora, parece que ele tem uma queda por pescoços.”
“Você parece gostar do meu,” ela disse.
“Junto com todo o resto.” Eu a puxei para dentro dos meus braços e lhe dei um
leve beijo. Eu estava começando a gostar de Kavanaugh. Estava quase indo adiante
quando os holofotes nos atingiram com cinco mil watts de brilho branco, deixando-
me cego por um momento.
“Não se mova,” gritou uma voz masculina.
“Coloquem as mãos onde possamos vê-las,” comandou outra.
Não imaginei que fosse terminar desse jeito. Com toda a sua incompetência, a
turma de Hardison agiu como profissionais quando mais importava. Eu tirei minha
mão do bolso e deixei a lâmina cair no chão.
Pensei em pegar os cortadores no meu outro bolso, mas imaginei que qualquer
movimento brusco poderia matar a chance de um movimento futuro.
Kavanaugh tossia com o choque, os tiras se aproximaram e fizeram seu trabalho, e
tudo virou um borrão depois disso. Quando eles chegaram na parte de “Tudo o que
disser poderá ser usado contra você no tribunal,” eu simplesmente disse, “Erros são
cometidos.”

17.
Minha advogada de defesa concordou em permitir que John Moretz me
entrevistasse. Ela achou que eu ganharia simpatia das pessoas que eventualmente
poderiam compor o corpo de jurados, assumindo que o julgamento não ocorresse em
outro lugar. Ou ao menos a entrevista providenciaria bastante munição para a
alegação de insanidade que provavelmente faríamos.
“Li seus artigos sobre a minha prisão,” eu disse, sentando de frente para a mesa
na sala de concreto nu, um forte sargento nos vigiando. “Digno de prêmio, com
certeza.”
Os olhos de Moretz estavam escuros e destituídos de compaixão humana como
sempre. “Como você disse, é o assunto da história que ganha os prêmios, não o
repórter.”
“Eu disse isso?”
“Sim.”
“Eu gostei especialmente da parte em que você ligou meu computador e viu que
eu tinha diagramado a manchete do dia seguinte.”
“Repórter Morta No Lago. Eu não teria percebido se você não tivesse digitado a
manchete.”
Eu citei a mim mesmo. “A polícia ficou chocada quando a quinta vítima do
Rebelde Cortador foi descoberta no mesmo lugar do primeiro assassinato. Kelsey
Kavanaugh, 33 anos, uma repórter do News & Observer, estava cobrindo o caso
quando morreu devido a ferimentos causados aparentemente por um instrumento
afiado.”
“Mesmo depois de editar tantas histórias minhas, você ainda não consegue
escrever tão bom quanto eu.”
“Bem.” Eu disse. “A gramática correta é, ‘Você ainda não consegue escrever tão
bem quanto eu’.”
“O editor sempre tem a palavra final,” ele disse.
“Como está Kavanaugh?”

“Você não soube?”
Olhei para as paredes de concreto, a pequena janela espelhada de dois lados, e o
guarda estoico. Dei de ombros. “Não tenho saído muito.”
“Ela foi no ‘Good Morning America’, arrumou um agente e um contrato de seis
zeros para um livro, e vai ser o assunto de um especial de uma hora no Showtime.”
“Boa garota. Ela merece isso.”
Moretz debruçou para a frente, como se me estudasse. “Por que você fez isso?”
“Não oficialmente?”
“Você me ensinou que nada é não oficial.”
Dei de ombros novamente. Eu havia contraído um conveniente caso de brio de
cadeia. “Pressão pelo final do prazo. Isso te pega depois de algum tempo.”
“Você digita a manchete, deixa tudo pronto, me dá uma dica de onde o corpo será
encontrado. Estou na cena em cima da hora de conseguir escrever para a edição
seguinte. Nada de ligações, então ninguém poderia nos pegar.”
“Mais ou menos. Se o Picayune tivesse se tornado um diário como eu queria,
tudo teria funcionado bem melhor.”
“Hardison quase me prendeu por causa disso. Ele pensou que estivéssemos
conspirando. Eu era o repórter policial, afinal de contas.”
“Aquele remo, aquilo foi um golpe de mestre, inspirado por toda aquela morte e
carnificina que atinge como uma praga bíblica, logo que você chegou à cidade. Aquilo
me deu uma ideia de como aumentar a circulação. Depois do primeiro, eu estava até
o pescoço. Não pelos assassinatos, aquilo era só um trabalho desagradável que
costuma quebrar suas unhas. Mas vender jornais era uma urgência.”
“Você é louco.”
Eu sorri. “Esta é uma opinião editorial, não um diagnóstico clínico.”
“Você queria aumentar a circulação e conseguir alguns aplausos. Entendi essa
parte. Mas não havia retorno real. Qual era realmente o objetivo?”
Eu estive pensando nisso por mim mesmo, mas acho que finalmente consegui
uma resposta.

“Óbitos,” eu disse.
“O obituário do jornal?”
“Você lê muitos deles, e todos juntos dão uma grande tigela de cereal. Dona de
casa, mecânico aposentado, ex-militar, professora de escola. Apenas imaginei o meu
obituário, minha palavra final, e tudo o que eu vi foi ‘Editor de jornal.’ Nada
memorável no grande esquema das coisas. Com certeza digitado em fontes
pequenas.”
“E agora você é famoso. Uma manchete. Howard Nance, o Rebelde Cortador.”
“Bem, eu poderia pensar em um nome melhor, mas boto a culpa na pressão pelo
final do prazo.”
“Todos nós escrevemos nosso próprio obituário, chefe,” Moretz disse. “Dia a
dia.”
O guarda nos interrompeu e disse que nossos cinco minutos haviam terminado.
Moretz permaneceu sentado quando me levantei, as algemas batendo. “Não dá pra
digitar muito bem com algemas,” eu brinquei.
“Todos nós estamos algemados,” Moretz disse, enfim dando a palavra final.
“Elas apenas estão invisíveis a maior parte do tempo.”

 

 

                                                                  Scott Nicholson

 

 

 

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