Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PAIXÃO EXPLOSIVA / Sandra Brown
PAIXÃO EXPLOSIVA / Sandra Brown

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

Generosa, Jenny Fletcher punha em segundo lugar os seus próprios sonhos e necessidades, e em primeiro os de seu noivo, Hal, um homem mais comprometido com uma causa que com ela. Na véspera de sua viagem para a América Central, ele lhe deu o que Jenny mais queria na vida... uma noite de paixão. Foi seu último presente.

Cage Hendren contrastava em tudo com o irmão, Hal. Ovelha negra da família, ele só tinha ternura por Jenny. Mas ela sempre o achara selvagem e implacável demais... ai que Cage lhe mostrou o lado selvagem que ela mesma não sabia que tinha dentro de si. E agora que fora desencaminhada... já não podia mais voltar atrás!

 

 

 

 

 

Se não parassem de falar naquilo, Jenny iria gritar.

Mas nenhum deles parecia ter a menor intenção de calar-se. O grande acontecimento estava na cabeça de todos, e nada era mais remoto que a possibilidade de mudarem de assunto. O tema em discussão os levara a comer carne de panela, o tipo do prato geralmente reservado aos domingos, como se aquela fosse uma ocasião para comemo­rar, não para lamentar.

Sarah se esfalfara na preparação do jantar. Ha­via até pãezinhos recém-saídos do forno para embeber no molho denso e saboroso da carne, sem falar no pudim tão escandalosamente gostoso, re­cheado com calorias.

Mas a julgar pelo que Jenny aproveitou da igua­ria, seu paladar devia estar entorpecido. Sua lín­gua parecia grudar-se no céu da boca a cada garfada, a garganta ameaçava fechar-se na hora de engolir.

Agora, enquanto Sarah servia o café nas xícaras de porcelana chinesa pintadas com motivos flo­rais, eles continuavam falando na iminente viagem de Hal à América Central. Viagem por tempo indeterminado e que virtualmente faria dele um fora-da-lei e, com toda certeza, colocaria sua vida em perigo.

No entanto, todos se mostravam entusiasmadíssimos, principalmente o próprio Hal, que não cabia em si de contente. Seus olhos castanhos bri­lhavam de expectativa.

— É uma tremenda façanha. Mas, não fosse à coragem daquela pobre gente de Monterico, tudo que fizemos e pretendemos fazer teria sido em vão. A glória é toda deles.

Sarah serviu a última xícara e, ao sentar-se, acariciou com ternura o rosto do filho caçula.

— Mas foi você que estimulou a construção dessa ferrovia clandestina para ajudá-los a fugir. Eu acho maravilhoso. Simplesmente maravilhoso. Mas... — seu lábio inferior tremeu um pouco —... você vai tomar cuidado, não vai? Jura que não há perigo?

Hal deu um tapinha carinhoso na mão que lhe segurava o braço.

— Mamãe, eu já disse mil vezes que os refu­giados políticos estarão a nossa espera na fron­teira de Monterico. Só precisamos encontrá-los, atravessar o México com eles e...

— Ajudá-los a entrar ilegalmente nos Estados Unidos — completou Cage com azedume.

Sarah fuzilou o irmão mais velho de Hal com o olhar, mas ele não deu a mínima para a ex­pressão de censura, já estava acostumado com aquele desdém. Limitou-se a esticar as pernas e afundar na cadeira do modo que sempre irritava a mãe. Na adolescência, fazia questão de manter aquela postura à mesa até ver Sarah nervosa e indignada. Os longos sermões de nada serviam. Ele pousou um tornozelo no outro, exibindo as botas de salto carrapeta e o jeans desbotado, e encarou o irmão. Tinha sobrancelhas espessas e claras como a areia.

— Quero só ver se você vai continuar com esse entusiasmo fanático quando a polícia da fronteira o jogar na cadeia com um pontapé.

— Se você não é capaz de incentivar seu irmão, é melhor sair da mesa — ralhou o reverendo Bob Hendren.

— Desculpe papai.

— Se Hal for preso — prosseguiu o pastor —, será por uma boa causa, por uma coisa em que ele acredita.

Cage tomou um gole do café antes de falar:

— Não foi isso que disse quando foi me tirar do xadrez.

— Você foi preso por bebedeira!

O rapaz arreganhou um sorriso.

— Eu acredito num bom pileque. Faz bem de vez em quando.

— Por favor, meu filho — interferiu Sarah com um longo suspiro de contrariedade. — Procure se comportar pelo menos uma vez na vida.

Jenny baixou os olhos e olhou para as próprias mãos. Detestava aquelas cenas de família. Era evidente que Cage estava provocando, mas, na­quele momento, tinha toda razão em apontar sem rodeios os riscos do envolvimento de Hal naquela aventura. Por outro lado, qualquer um conseguia ver que sua atitude era apenas uma reação à óbvia preferência dos pais pelo filho mais novo, que, aliás, movia-se desconfortavelmente na cadeira. Por mais que estivesse satisfeito com a aprovação de Bob e Sarah, sentia-se mal com aquele favo­ritismo descarado.

Cage apagou o sorriso irônico do belo rosto, mas continuou argumentando.

— O problema é que essa obra de caridade, essa missão de Hal, pode ter como resultado um tiro na cabeça. Para que arriscar a pele num lugar onde eles atiram primeiro e perguntam depois?

— Você nunca vai entender os motivos de Hal — disse Bob, endereçando-lhe um gesto de desprezo.

Cage endireitou o corpo na cadeira e, apoiando os braços na mesa, inclinou-se para frente a fim de enfatizar suas palavras:

— Eu entendo que ele queira libertar pessoas marcadas para morrer, claro. Mas não acho que esta seja a melhor maneira de fazê-lo. — Impa­ciente, passou a mão nos cabelos loiros. — Aven­turar-se em uma estrada de ferro clandestina, atravessar o México com refugiados políticos, en­trar ilegalmente nos Estados Unidos — disse num tom irônico, enumerando nos dedos os estágios da missão do irmão. — E como esses pobres-diabos vão sobreviver quando estiverem aqui no Texas? Onde vão morar? Que vão fazer? Como consegui­rão trabalho, habitação, comida, remédio e roupa? Você não pode ser ingênuo a ponto de acreditar que serão recebidos de braços abertos só porque vieram de um país conflagrado. Eles serão vistos como trabalhadores clandestinos, como qualquer estrangeiro que entra ilegalmente no país. E tra­tados como tal.

— Seja tudo como Deus quiser — disse Hal sem dissimular a incerteza. Sempre ficava inse­guro diante do pragmatismo do irmão. Toda vez que pensava que uma convicção sua era inabalá­vel, Cage a questionava e o fazia vacilar. Qual um terremoto, seus argumentos abriam fissuras nas certezas que ele antes considerava sólidas e indestrutíveis. Depois de muito meditar e rezar, Hal sempre chegava à conclusão de que Deus se servia de Cage para testá-lo. Ou seria a astúcia do irmão um dom que o diabo usava para tentá-lo? Seus pais não teriam dúvida em optar pela se­gunda hipótese.

— Pois bem, só espero que Deus tenha mais bom senso que você...

— Chega! — atalhou Bob com indignação.

Cage encolheu os ombros e, pousando os coto­velos na mesa, levou a xícara de café à boca. Não usava a pequena asa. Jenny duvidava de que seus longos dedos coubessem no oco daquela estreitís­sima saliência da porcelana. Ele a segurava com ambas as mãos, como se fosse uma tigela.

Sentia-se deslocado na cozinha da casa paro­quial, com as cortinas finas e muito franzidas à janela, o piso de vinil amarelado e o armário de portas de vidro, no qual ficavam guardados os serviços de delicada louça usados unicamente nos feriados. Sua presença parecia ocupar demasiado espaço, turvando a atmosfera aconchegante. Não que fosse tão corpulento ou alto. Fisicamente os dois irmãos se pareciam muito. De longe, estando eles de costas, era difícil distinguir um do outro, a não ser pela constituição um pouco mais robusta de Cage. E essa diferença se devia mais à ocupação a que cada um se dedicava que à hereditariedade.

No entanto, toda semelhança entre ambos ces­sava ali. Suas atitudes nada tinham em comum. A presença marcante de Cage dava a impressão de encolher as dimensões de qualquer sala em que entrasse. Um quê indefinível o rodeava qual uma aura e fazia parte dele tanto quanto sua pele bronzeada. Entre quatro paredes, era como se sua exagerada corpulência estivesse forçando as costuras da roupa muito justa. Num ambiente fechado, ele parecia oprimido como se só coubesse em espaços amplos e abertos, como se precisasse de muita terra e de muito céu. Uma essência de liberdade o acompanhava aonde quer que fosse. Cage parecia levar o vento dentro de si, na roupa, nos cabelos.

Jenny nunca se aproximara dele o bastante para averiguar, mas alguma coisa lhe dizia que sua pele devia ter o cheiro do sol. As longas horas passadas na intempérie se estampavam em seu rosto, particularmente no canto dos olhos de um castanho muito claro. A rede de finíssimas rugas fazia-o parecer mais velho do que era. Assim como a vivência que ele acumulara em seus trinta e dois anos.

E, aquela noite, como sempre quando Cage se achava presente, tudo indicava que haveria dis­córdia, se não um conflito aberto. A agitação e a revolta o acompanhavam como uma sombra. Ele era um predador em plena selva, que, ao passar, inquietava seus pacíficos habitantes, perturbava, irritava e tirava o sossego mesmo quando não es­tava procurando barulho.

— Tem certeza de que checou todos os pontos de encontro? — Sarah perguntou. Embora con­trariada porque o filho recalcitrante havia arrui­nado o perfeito jantar de despedida que preparara para Hal, tentava não fazer caso dele e manter a qualquer custo a aparência de harmonia.

Vendo Hal começar a repassar pela centésima vez o seu plano de viagem, Jenny se levantou discretamente para tirar a mesa. Quando ela se inclinou por cima de seu ombro para pegar o prato, ele lhe segurou a mão, acariciou-a, levou-a aos lábios e a beijou, tudo sem interromper o zeloso monólogo.

Ela teve vontade de se curvar e beijar-lhe a cabeça loira, de apertá-la no peito e pedir-lhe que não fosse. Mas não fez isso. Tal atitude seria um ultraje, todos à mesa pensariam que ela havia perdido o juízo.

Jenny reprimiu as emoções e levou os pratos para a pia. Ninguém ofereceu ajuda. Ninguém a notou. Desde que se mudara para a casa paro­quial, era sua tarefa lavar a louça do jantar.

Quinze minutos depois, enxugou as mãos no pano de prato, e cuidadosamente o pendurou no gancho perto da pia. Ela saiu pela porta dos fundos e desceu os degraus do alpendre. Atravessou o quintal e, apoiando os braços na cerca branca que o delimitava, ali ficou.

A noite estava agradável, quase sem vento, o que era uma bênção no oeste do Texas. No­tava-se apenas um vestígio de poeira no ar. A lua cheia, muito redonda, parecia colada no negrume do céu. As poucas estrelas que as luzes da cidade não empanavam eram grandes e pa­reciam próximas.

Uma noite perfeita para os amantes, para estar abraçada com alguém, sussurrando tolices român­ticas. Não para despedidas. E, se o adeus fosse inevitável, essa palavra devia ser dita com paixão e saudade, temperada com juras e carícias, não com detalhes do itinerário.

Jenny estava inquieta, como que às voltas com um comichão impossível de localizar.

A porta telada dos fundos se abriu e voltou a fechar-se com o baque suave da madeira antiga. Ela se voltou e viu Cage descendo os degraus. E o acompanhou com o olhar até que se aproximasse da cerca e parasse ao seu lado. Sem falar, ele tirou o maço de cigarros do bolso da camisa, sa­cudiu-o, aproximou-o da boca e puxou um deles com os lábios. Acendeu-o com um isqueiro cuja chama lhe iluminou momentaneamente o rosto. Apagou-o e tornou a guardá-lo no bolso, com os cigarros, ao mesmo tempo em que dava uma tra­gada profunda.

— Isso mata — disse Jenny, os olhos perdidos na noite.

Cage voltou à cabeça e a fitou em silêncio, depois girou o corpo até ficar quase de costas para a cerca.

— Eu comecei a fumar com onze anos e con­tinuo vivo.

Ela o encarou sorrindo, mas sacudiu a cabeça.

— Que vergonha. Imagine o que isso já deve ter feito com seus pulmões. Você devia parar.

— Devia? — perguntou ele com aquele sorriso que mexia com o coração das mulheres, fossem mo­ças, velhas, solteiras ou casadas. Não existia uma única em La Bota capaz de ficar indiferente ao sor­riso de Cage Hendren. Algumas se perguntavam o que ele dizia. Quase todas sabiam. Eu sou macho, você é fêmea: é tudo que a gente precisa saber.

— É, devia parar. Mas não vai. Ouvi dizer que Sarah lhe pede há anos que pare de fumar.

— Ela não gosta dos cinzeiros cheios nem do cheiro. Nunca me pediu que parasse de fumar por estar preocupada com a minha saúde. — Um brilho de tristeza passou fugazmente pelos olhos cor de âmbar. Uma pessoa menos sensível que Jenny não teria notado.

— Eu me preocupo com a sua saúde — disse ela.

— É mesmo?

— É.

— Por isso me pede que pare de fumar?

Jenny sabia que ele estava apenas provocando-a, mas continuou o jogo. Erguendo ligeiramente o queixo, respondeu com firmeza:

— Por isso.

Cage jogou o cigarro no chão e o esmagou com a bota.

— Pronto. Já parei.

Ela riu. Mal sabia quanto ficava bonita quando inclinava a cabeça para trás daquele modo e ria. Seu pescoço se arqueava com graça, exibindo o tom de mel da pele. Os cabelos castanhos e sedosos oscilavam cheios de liberdade, roçando-lhe os om­bros. Seus olhos verdes se iluminavam. O narizinho arrebitado se enrugava encantadoramente. Seu riso um tanto rouco era uma sedução, muito embora Jenny estivesse longe de perceber.

Mas Cage percebeu. Seu corpo reagiu de pronto àquele som delicioso, e ele nada pôde fazer para evitá-lo. Ficou olhando fascinado para os seus lá­bios, para os seus dentes brilhantes.

— É a primeira vez que a vejo rir hoje.

Jenny ficou séria instantaneamente.

— Não tenho motivo para rir.

— Porque Hal vai viajar?

— É claro.

— Porque vão adiar o casamento mais uma vez?

Ela baixou a cabeça e arranhou a cerca com a unha do polegar.

— Também. Mas não é isso que importa.

— Como não? — surpreendeu-se Cage. — Sem­pre pensei que o dia do casamento fosse o mais importante da vida de uma mulher. Quer dizer, pelo menos de uma mulher como você.

— É, mas em comparação com a missão que Hal vai cumprir...

Cage murmurou uma palavra escandalosamen­te obscena, coisa que a calou de súbito.

— E as outras vezes? — perguntou bruscamente.

— Está se referindo aos outros adiamentos?

— Estou.

— Hal precisava fazer o doutorado. Era impor­tante que concluísse a dissertação antes de nos casarmos... e começarmos uma família.

Como sempre, Cage a fizera gaguejar feito uma idiota. Ela queria lhe pedir que não se aproxi­masse tanto, mas ele não estava tão perto assim. Era só impressão. Tinha sempre aquele efeito so­bre ela. Fazia-a ficar sem fôlego, sentir uma leve tontura. Provocava-lhe uma necessidade estranha de unir as mãos e apertá-las com força, de man­ter-se intacta como se estivesse a ponto de explodir em pedaços. Aquele homem a perturbava. Jenny não sabia por que, mas era assim. Especialmente aquela noite, em que ela estava com os nervos à flor da pele e mal conseguia manter o autocontrole, era difícil enfrentar aquele olhar penetran­te. Ele via demais.

— Diga-me uma coisa: quando você e Hal co­meçaram a sair juntos afinal?

— A sair juntos? — O tom de voz de Jenny sugeria que aquela expressão não fazia parte de seu vocabulário.

— E, sair, ficar de mãos dadas. Ficar se beijando no drive-in. Namorando. Só pode ter sido quando eu estava na faculdade, porque não me lembro.

— Bom, nós nunca começamos a sair juntos propriamente. Apenas... apenas aconteceu. Es­távamos sempre juntos. Éramos considerados um casal.

— Jenny Fletcher — disse Cage, cruzando os braços no peito largo e olhando para ela com in­credulidade —, está querendo me dizer que não teve nenhum outro namorado?

— Não. Ninguém queria me namorar! — ela retru­cou numa atitude defensiva.

Cage ergueu as mãos num gesto de capitulação.

— Calma mocinha. Não foi isso que eu quis dizer. Você podia ter todos os rapazes da cidade aos seus pés.

— Eu nunca quis ter alguém aos meus pés. Não me parece uma coisa digna.

Jenny corou, e Cage não resistiu à tentação de roçar o dorso da mão em seu rosto. Ela afastou a cabeça, e ele interrompeu o gesto.

— Qualquer homem estaria disposto a mandar a dignidade às favas por você, Jenny — disse pensativo, depois falou num tom mais leve. — Mas nunca saiu com outro rapaz porque isso não seria justo com Hal, não é mesmo?

— Exatamente.

— Mesmo quando os dois estavam na União Cristã do Texas?

— Sim.

— Hum... — Num gesto automático, Cage fez menção de pegar o maço de cigarros, mas, lembrando-se, mudou de ideia. Não tirava os olhos de Jenny. — Quando foi que Hal a pediu?

— Faz tempo. Anos. Acho que quando estáva­mos na UCT.

— "Acho"? Você não se lembra? Como pode ter esquecido um momento tão decisivo?

— Não quero falar sobre isso, Cage.

— Não foi decisivo?

— A vida não é como no cinema.

— Você deve ter assistido aos filmes errados — ele comentou com um sorriso irônico.

Jenny lhe endereçou um olhar acusador.

— Eu sei muito bem a que filmes você assiste. Aos que Sammy Mac Higgins exibe na sala dos fundos da piscina coberta de madrugada.

Cage tentou ficar sério ante aquele tom solene, não conseguiu e, desistindo, exibiu uma vez mais o seu sorriso estonteante.

— As damas também podem assistir. Quer ir comigo um dia desses?

— Não!

— Por que não?

— Por que não? Nem morta eu assistiria a um filme desses. São nojentos.

Ele se inclinou para frente, aproximando o rosto.

— Como pode saber que são nojentos se nunca assistiu a eles? — Jenny lhe empurrou o ombro, e ele recuou, mas não antes de sentir-lhe o per­fume fresco e floral. O sorriso se desfez aos poucos, dando lugar a uma expressão sombria, seus olhos procuraram os dela.

— Jenny, quando foi que Hal a pediu em casamento?

— Eu já disse, foi...

— Onde vocês estavam? Descreva o lugar. Que aconteceu? Ele se ajoelhou? Foi no banco traseiro do carro? De dia? De noite? Na cama? Quando?

— Pare com isso! Eu já disse que não me lembro.

— Meu irmão chegou a fazer o pedido mesmo? — falou tão baixo que ela precisou aguçar os ouvidos.

— Como assim?

— Ele disse alto e bom som: "Jenny, quer se casar comigo?"

Ela desviou o olhar.

— Nós sempre soubemos que íamos nos casar.

— Quem sempre soube? Você? Hal? Mamãe e papai?

— Todo o mundo. — Ela virou as costas e fez menção de voltar para a casa. — Eu preciso entrar e...

Cage lhe segurou o pulso, detendo-a. Sua mão era grande e cálida.

— Peça a Hal que desista dessa viagem maluca.

Ela deu meia-volta.

— Quê?

— Você me ouviu. Mande-o ficar aqui, onde é o lugar dele.

— Eu não posso.

— Você é a única pessoa a quem Hal daria ouvidos. Não quer que ele vá, quer?

Jenny não respondeu.

Cage repetiu a pergunta com mais ênfase.

— Não! — gritou ela, afastando-se com um safanão. — Mas não posso impedi-lo de cumprir uma missão divina.

— Ele a ama?

— Ama.

— E você o ama?

— É claro.

— Quer se casar com ele e ter uma casa, filhos e tudo o mais, não quer?

— Isso é problema meu e de Hal.

— Droga, não estou querendo me intrometer em sua vida pessoal. Estou tentando impedir que o meu irmão se mate estupidamente naquele fim de mundo. Agora, queiram ou não, continuo sendo membro da família, e você vai responder.

Jenny cedeu ante aquelas palavras. Sentiu ver­gonha de estar excluindo-o dos assuntos da família do mesmo modo que seus pais costumavam fazer. Afinal, a pessoa de fora era ela, não Cage. Seus olhares se encontraram.

— E claro que quero tudo isso. Há anos que espero esse casamento.

— Muito bem — disse ele com mais calma —, então lhe dê um ultimato. Diga-lhe que não vai estar aqui quando ele voltar. Mostre-lhe o que está sentindo.

Ela sacudiu a cabeça.

— Hal se sente na obrigação de participar dessa missão.

— Pois então o obrigue a fazer outra coisa, Jen­ny. Eu penso nele tanto quanto você. Puxa vida, se nem os presidentes, os diplomatas, os merce­nários e sabe Deus quem mais conseguem dar um jeito naquela confusão na América Central, Por que Hal acha que vai conseguir?

— Deus há de protegê-lo.

— Você só está repetindo o que ele disse. Eu também conheço a Bíblia, Jenny. Enfiaram ver­sículo por versículo na minha cabeça. Houve uma época em que estudei muito os generais hebreus. Sim, eles foram capazes de algumas batalhas mi­lagrosas, mas Hal não conta com um exército. Não conta nem sequer com o apoio do governo dos Es­tados Unidos. Deus deu a cada um de nós um cérebro com que raciocinar, e o que meu irmão está fazendo é irracional.

Jenny concordava com Cage. Porém ele era es­pecialista em distorcer as palavras e as verdades a fim de ajustá-las aos seus próprios fins. Acei­tar a sua maneira de pensar significava flertar com a heresia. Além disso, a obrigação dela era ser leal com Hal e com a causa à qual ele se dedicava.

— Boa noite, Cage.

— Há quanto tempo você mora conosco, Jenny?

— Desde os meus quatorze anos. Há quase doze. — Os Hendren a acolheram em casa quando seus pais morreram tragicamente. Um dia, estando ela na escola, o aquecedor a gás explodiu em sua casa, incendiando-a por completo. Jenny se lem­brava de ter ouvido as sirenes do caminhão dos bombeiros e da ambulância durante a aula de álgebra. Não sabia que o acidente envolvera seus pais e sua irmã menor, que aquele dia ficara em casa com dor de garganta. O pai tinha voltado do trabalho na hora do almoço para saber se a menina estava melhor. Ao anoitecer, Jenny se viu sozinha no mundo, sem nada seu além da roupa do corpo.

Os Fletcher eram muito amigos do pastor Bob Hendren e de sua esposa Sarah. Como Jenny não tivesse parentes vivos, não houve muita discussão sobre o seu futuro.

— Eu lembro que voltei da faculdade no feriado de Ação de Graças e encontrei-a aqui — disse Cage. — Mamãe havia transformado a sala de costura num quarto digno de uma princesa. Finalmente tinha a filha que sempre desejara. Man­daram-me tratá-la como uma pessoa da família.

— Seus pais foram muito bons para mim — con­cordou Jenny com voz sumida.

— É por isso que nunca se opõe a eles?

Ela ficou ofendida e não o dissimulou.

— Não sei do que está falando!

— Ora, sabe sim. Será que tem medo que a joguem na rua se não concordar com eles?

— Isso é ridículo!

— Não, não é ridículo. É triste — retrucou Cage, projetando o queixo quadrado e firme. — Eles sempre decidiram quem podia ou não ser seu amigo, a roupa que devia usar, o colégio que freqüentava, até mesmo com quem ia se casar. E agora parece que vão decidir inclusive a data do casamento. Será que também vão planejar quantos filhos você terá?

— Pare com isso, Cage. Nada do que está di­zendo é verdade, e eu não vou ouvir mais nenhu­ma palavra. Você andou bebendo?

— Infelizmente não. Mas eu deveria ter to­mado um porre. — Avançou um passo e lhe agar­rou o braço. — Acorde Jenny. Eles a estão su­focando. Você é uma mulher, uma mulher lin­díssima. Que poderá acontecer se fizer uma coisa que eles não aprovam? Já não tem catorze anos. Ninguém poderá puni-la. Se a mandarem embora, coisa que nunca vão fazer, que importa? Você pode ir aonde quiser.

— Ser uma mulher independente? É isso?

— É, acho que a palavra é essa.

— E acha que eu devia "cair na vida" como você?

— Não. Mas também acho errado que ocupe noventa por cento do tempo envolvida em grupos de estudos bíblicos.

— Eu gosto de trabalhar para a igreja.

— Excluindo tudo o mais? — Agitado, ele passou os dedos nos cabelos. — O trabalho que faz na igreja é admirável. Eu não tenho nada contra. Mas não suporto vê-la definhando feito uma velha senhora muito antes do tempo. Você está jogando a vida fora.

— Não estou. Vou ter a minha vida com Hal.

— Não se o matarem na América Central. — Ele a viu empalidecer de súbito e abrandou o tom de voz. — Escute, eu lamento. Não queria ser tão rude.

Ela aceitou o pedido de desculpas com indulgência.

— O que importa agora é Hal.

— É verdade. — Cage lhe tomou as mãos. — Fale com ele, Jenny.

— Não posso mudar o seu modo de pensar.

— Ele precisa ouvi-la. Vai se casar com você.

— Não tenha tanta esperança.

— Não vou responsabilizá-la pela decisão dele, se é isso que está querendo dizer. Só peço que me prometa tentar convencê-lo a não ir.

Ela olhou na direção da cozinha. Pela janela viu Hal e os pais ainda reunidos em torno da mesa, discutindo animadamente.

— Vou tentar.

— Ótimo. — Apertou-lhe as mãos antes de soltá-las.

— Sarah disse que você vai dormir aqui hoje. — Por alguma razão, Jenny não queria que Cage soubesse que ela havia arrumado o quarto para que ele passasse a noite, arejando-o durante a tarde e trocando a roupa de cama. Preferia dei­xá-lo pensar que a mãe tinha se dado ao trabalho.

— É, prometi estar aqui para a grande des­pedida de Hal amanhã cedo. Espero que não aconteça.

— Bom, de qualquer modo, Sarah fica contente quando você dorme aqui.

Ele sorriu com doçura e lhe roçou a face.

— Ah, Jenny, você é uma grande diplomata. Mamãe me convidou e, logo depois, mandou-me aproveitar para levar embora todos os troféus de futebol e de basquete do meu quarto. Diz que está cansada de tirar o pó de tanta porcaria.

Com pena de Cage, tomada de emoção, Jenny engoliu em seco. Poucas semanas antes ela e Sa­rah tinham embrulhado os troféus esportivos de Hal em panos limpos e os guardado em caixas no sótão. Havia doze anos que sabia perfeitamente quem era o filho preferido. Mas Cage não podia culpar ninguém disso a não ser a si mesmo. Havia escolhido um estilo de vida que seus pais jamais aprovariam.

— Boa noite, Cage.

Jenny teve o súbito desejo de abraçá-lo. Muitas vezes ele parecia carente, o que era uma idéia ridícula em face de sua reputação de "garanhão" na cidade. Mas será que aquele tipo de amor era suficiente mesmo para um homem tão arisco e dado a aventuras?

— Boa noite.

Ela o deixou com certa relutância e entrou na casa pela porta dos fundos. Hal a fitou e fez um sinal com a cabeça para que se aproximasse. Es­tava ouvindo atentamente os planos do pai de an­gariar doações em todo o estado quando os refu­giados chegassem ao Texas.

Colocando-se atrás da cadeira dele, Jenny lhe abraçou os ombros e se inclinou a fim de apoiar o queixo em sua cabeça.

— Cansada? Vai ter de acordar cedo amanhã para me ajudar.

Ela suspirou e ocultou o rosto nos cabelos do noivo: não queria que ninguém visse o seu desespero.

— Eu não vou conseguir dormir.

— Tome um dos comprimidos que o médico re­ceitou para mim — sugeriu Sarah. — São fracos, um só não vai fazer mal. Ajuda a descansar o cérebro e a dormir.

— Vamos — disse Hal, afastando a cadeira. — Eu subo com você.

— Boa noite, Bob. Boa noite, Sarah — disse Jenny com desânimo.

— Filho, você não me deu o nome do seu contato no México — lembrou o pastor.

— Ainda não vou dormir. Eu volto já. Em um minuto.

Os dois subiram juntos a escada. Lá em cima, Hal parou à porta do quarto dos pais.

— Você quer o comprimido?

— Sim. Do contrário vou acabar passando a noite em claro.

Ele se afastou para retornar um momento de­pois com dois pequenos comprimidos rosados na palma da mão.

— A bula diz um ou dois. Acho melhor tomar dois.

Entraram no quarto dela. Jenny acendeu o aba­jur do criado-mudo. Cage tinha razão. Assim que a levaram para a casa paroquial, aquele quarto se havia transformado nos aposentos de uma ver­dadeira princesa. Infelizmente, ela não tivera oportunidade de dar o menor palpite na decoração. E, poucos anos antes, quando Sarah chegara à conclusão de que estava na hora de fazer algumas mudanças, a detestável cortina de bolinhas azuis foi substituída por uma de bolinhas cor-de-rosa. O quarto era muito juvenil para o gosto de Jenny. Mas por nada neste mundo ela magoaria Sarah. Só esperava que, quando se casasse, lhe fosse per­mitido decorar a suíte que lhe estava reservada. Não se falara em mudança para uma casa só deles porque Hal assumiria a paróquia quando Bob se aposentasse.

— Tome o remédio e ponha o pijama. Eu espero para cobri-la.

Jenny foi para o banheiro, onde engoliu ambos os comprimidos como ele mandara. Mas não pôs o pijama. Vestiu a camisola que havia comprado às escondidas na esperança de ter uma ocasião como àquela para usá-la.

Olhou-se no espelho e tomou a decisão de agir como Cage recomendara. Não queria que Hal via­jasse. Era uma missão perigosa, louca. E, mesmo que não fosse, atrapalharia uma vez mais seus planos de casamento. Que mulher se dispunha a suportar semelhante coisa?

Tinha o pressentimento de que seu futuro de­pendia daquela noite. Precisava impedir Hal de viajar, do contrário sua vida ficaria alterada para sempre. Precisava entrar no jogo, e o prêmio seria tudo ou nada. Usaria o estratagema mais antigo do mundo para assegurar a vitória.

Deus sancionara a noite de Rute com Boaz. Tal­vez aquela fosse uma ocasião equivalente.

Mas Rute não se apresentara com uma camisola a roçar-lhe pecaminosa e sensualmente a pele, as duas alças finas como cordas de violino a segurar a peça, cujo decote descia entre seus seios, expondo-lhes as generosas curvas. A camisola pérola se ajustava perfeitamente ao seu corpo, sem deixar escapar nenhum detalhe, alargando-se levemente nos quadris. A barra roçava-lhe o peito dos pés.

Ela pôs um suave perfume floral e escovou os cabelos. Estando pronta, fechou os olhos e tentou com todo ardor reunir coragem para abrir a porta. Apagou a luz antes.

— Jenny, não se esqueça de...

O que Hal ia dizer se apagou por completo em sua mente no momento em que ele a viu. Aquela visão, ao mesmo tempo sensual e etérea, cami­nhou devagar até a porta, os pés descalços, fe­chou-a mansamente e a trancou. A luz dourada do abajur lhe banhava a pele, projetando a sombra de suas pernas na transparência da camisola.

— O que você... Onde arranjou essa... ãh... essa roupa? — balbuciou Hal.

— Estava guardada para uma ocasião especial — respondeu Jenny em voz baixa, estendendo as mãos para ele, tocando-lhe o peito. — Acho que é hoje.

Ele riu sem jeito. Enlaçou-lhe a cintura, embora frouxamente.

— Seria melhor guardá-la até o dia do ca­samento.

— E quando vamos nos casar?

Jenny acomodou o rosto no peito desnudo pela camisa de algodão. Hal se vestia com simplicidade, estava de jeans.

— Assim que eu voltar. Você sabe. Eu prometi.

— Já prometeu tantas vezes.

— E você sempre foi tão compreensiva — disse ele com fervor. Roçou-lhe os cabelos com os lábios, acariciou-lhe as costas. — Desta vez, não vou que­brar a promessa. Quando eu voltar...

— Isso pode levar meses.

— Pode — disse Hal com tristeza, inclinando-lhe a cabeça para trás a fim de lhe ver o rosto. — Sinto muito.

— Eu não quero esperar tanto tempo, Hal.

— Como assim?

Jenny se acercou mais, encostando o corpo no dele, fazendo com que suas pupilas se contraíssem como se estivessem diante de demasiada luz.

— Me ame.

— Mas eu a amo, Jenny.

— Eu estou dizendo... — Ela umedeceu os lábios e respirou fundo. — Me abrace. Venha para a cama comigo. Vamos fazer amor.

— Jenny... — murmurou Hal. — Por que está agindo assim?

— Porque estou desesperada.

— E está me fazendo ficar mais desesperado ainda.

— Não quero que viaje.

— Eu preciso ir.

— Fique, por favor.

— É um compromisso.

— Case-se comigo — sussurrou ela com os lábios colados em seu pescoço.

— Vamos nos casar quando tudo estiver acabado.

— Eu preciso de uma prova de amor.

— Você tem todas.

— Então mostre. Ame-me agora.

— Eu não posso. Não seria correto.

— Para mim, seria.

— Não seria para nenhum de nós.

— Nós nos amamos.

— Por isso mesmo temos de fazer sacrifícios um pelo outro.

— Você não me deseja?

Apesar da hesitação, Hal a estreitou com mais força e beijou seu pescoço.

— Desejo sim. Às vezes fico imaginando como seria bom ir para a cama com você e... Sim, Jenny, eu a desejo.

Beijou-a. Entreabriu os lábios nos dela, deslizou a mão na curva de seu quadril. Ela reagiu apertando-o com mais força, roçando a coxa na dele. Suas línguas se encontraram. Ela gemeu.

— Por favor, faça amor comigo, Hal — pediu, agarrando-lhe a camisa. — Eu preciso de você hoje. Preciso do seu abraço, do seu carinho, preciso ter certeza de que você vai voltar.

— Eu vou voltar.

— Mas não tenho certeza. Quero fazer amor antes que você parta. — Cobriu-lhe de beijos os lábios, o rosto, o pescoço. Hal tentou se afastar, mas Jenny continuou beijando-o. Por fim, ele lhe prendeu os braços e a arredou de si. Estava muito sério.

— Pense um pouco, Jenny!

Ela o encarou como os olhos arregalados, como se tivesse sido esbofeteada. Sem fôlego, engoliu em seco.

— Nós não podemos fazer isso. Seria contra os nossos princípios. Amanhã cedo, vou partir numa missão enviada por Deus e não posso permitir que você, linda e desejável como é, me distraia. Além disso, meus pais estão me esperando. — Inclinou-se e a beijou castamente no rosto. — Ago­ra seja uma boa menina e vá se deitar. — Levou-a para a cama e afastou as cobertas. Obediente, Jenny se deitou. Hal a cobriu, esforçando-se para não olhar para os seios fartos. — Até amanhã. — Sua boca tocou a dela de leve. — Eu a amo sim, Jenny. Por isso não vou fazer o que está me pedindo. — Apagou o abajur, saiu e fechou a porta, deixando o quarto na escuridão.

Jenny se virou para o lado e começou a chorar. As lágrimas quentes e salgadas rolavam em seu rosto, molhando a fronha. Nunca se sentira tão abandonada, nem mesmo ao perder a família. Es­tava sozinha, mais sozinha do que em qualquer outro momento da vida.

Até mesmo seu quarto parecia estranho e des­conhecido. Talvez fosse o efeito do sedativo. Ela tentou distinguir a forma dos móveis e o contorno das janelas na escuridão, porém tudo parecia bor­rado e confuso. Sua percepção estava embotada pela droga que tomara.

Jenny teve a sensação de flutuar, de adormecer, mas as lágrimas continuavam escorrendo, impe­dindo-a de dormir. Que humilhação! Acabara de violar o seu próprio código moral. Oferecera-se ao homem que amava. Hal jurava que a amava, mas a rejeitara pura e simplesmente!

Mesmo que não houvesse chegado a consumar o ato de amor, ele podia ter se deitado a seu lado, abraçando-a, oferecendo-lhe uma prova da paixão que afirmava sentir, deixando-lhe um fragmento de lembrança a que se ater enquanto ele estivesse ausente.

Mas a rejeição fora total. Afinal, que lugar ela ocupava na ordem de prioridades da vida daquele homem? Hal tinha coisas mais importantes a fazer que amá-la e confortá-la.

Então a porta do quarto se abriu.

Jenny se virou na direção do ruído e tentou focalizar os olhos marejados no facho de luz que se recortava na escuridão. Viu a silhueta de um homem no súbito clarão, um segundo antes quê ele entrasse e fechasse a porta atrás de si.

Jenny se sentou e estendeu os braços para ele, o coração a saltar de alegria.

— Hal! — exclamou.

 

Ele se aproximou e sentou-se na beira da cama. Sua sombra se fundiu com as outras que povoavam o quarto.

— Você voltou, você voltou! — repetia Jenny, segurando-lhe as mãos, levando-as aos lábios, cobrindo-as de beijos. — Eu estava tão triste. Preciso de você hoje. Abrace-me. — Suas palavras se afo­garam em soluços. Ele a estreitou com ternura. — Oh, sim, abrace-me com força.

— Psiu...

O movimento repentino de erguer o corpo na cama, as poucas palavras que acabava de dizer, tudo con­tribuiu para lhe entorpecer ainda mais a coordenação já afetada pelo remédio. Sem forças, Jenny pousou o rosto na concha daquelas mãos. Ele lhe acariciou as bochechas com o polegar, enxugando-lhe as lágrimas.

— Psiu.

Ela mergulhou a face na depressão entre o pes­coço e o peito dele. Sentiu-lhe a aspereza da barba. Num gesto espontâneo, ergueu a mão para lhe tocar o rosto. Passou delicadamente as unhas em seu queixo, roçando-lhe acidentalmente os lábios com a ponta dos dedos.

Ele deixou escapar um gemido. Um gemido que parecia vir de longe, embora a excitação de seu corpo estivesse muito próxima, muito presente. Com o peito vibrando, fez com que Jenny incli­nasse a cabeça para trás e procurou sua boca. Num gesto possessivo, segurou-lhe o rosto. Ofe­recendo os lábios, ela abandonou os derradeiros pensamentos conscientes, entregando-se unica­mente ao instinto sensual que a dominava.

Ele a beijou. Desta vez, sua hesitação foi breve. Não tardou mais que um instante para que sua língua mergulhasse na doçura da boca de Jenny, agitando-se loucamente, buscando seus mais se­cretos recessos.

Estonteada, ela se agarrou com mais força àque­le corpo quente e convidativo. Não sabia se o zum­bido em sua cabeça e o delicioso flutuar dos sen­tidos se deviam ao poder do beijo ou aos compri­midos que tomara. Era tão bom! O beijo prosse­guiu mais impetuoso e voraz a cada segundo, a cada batida do coração.

Acaso o lençol e o cobertor haviam caído no chão? Sim, com certeza, pois ela sentiu frio. Depois calor. Era a mão dele a aquecê-la. A mão? Sim, sua mão lhe percorria o corpo, tocava-lhe os seios, roçando e acariciando.

Jenny sentiu na cabeça a maciez do travesseiro e se deu conta de que ele a havia deitado suave­mente. As alças da camisola caíram de seus om­bros. Ela gemeu sem saber se num protesto ou se para manifestar consentimento. Não sabia de nada. Só sabia daquelas mãos que passeavam em sua nudez, que exploravam as suas formas, moldando-se aos volumes e curvas de seu corpo. Só sabia daqueles dedos resvalando em seus mamilos, repetidamente, prendendo-os com delicadeza, acariciando-os.

Depois, ela se sentiu entregue a um turbilhão de sensações cálidas e envolventes, que se arras­tavam em sua pele. Uma boca? Sim, sim, sim! A doce umidade de uma língua a beijá-la mansamente, a afagá-la em movimentos ora circulares, ora em linha reta, devagar, depressa, de leve.

Jenny quis agarrar-lhe a cabeça e prendê-la contra si, mas não conseguiu. Seus braços jaziam na cama, pesados e inúteis, como que presos por mãos invisíveis. O sangue latejava em suas veias, mas ela não tinha nem força nem energia para se mover.

Recebeu com prazer o peso de seu corpo quando ele se estendeu na cama, cobrindo-a parcialmente. A língua explorava o interior de sua boca, com doçura, feito um invasor furtivo. Era delicioso. Ele era delicioso.

Orientada por aquelas mãos, Jenny ergueu os quadris, ajudando-o a despir-lhe a camisola. Ficou nua e vulnerável debaixo dele. Contudo, as mãos que lhe percorriam o corpo eram doces, gentis, davam-lhe prazer. Tocavam-na em toda parte, detendo-se com freqüência, tornando cada carícia um adorável presente.

Até mesmo seus pés acariciavam os dela. Ou seria sua língua? Sentiu-a nas panturrilhas. Nos joelhos. Nas coxas. Então as mãos a ergueram, posicionaram-na, e ela sentiu o contato do lençol na sola dos pés.

Jenny obedecia a cada silenciosa ordem sem pensar. Seria inconcebível recusar, resistir. Era escrava daquele amo sedutor, uma sacerdotisa da sensualidade, uma discípula do desejo.

Os cabelos dele fizeram cócegas em seu ventre quando ele se pôs a mover a cabeça de um lado para outro, mordiscando de leve a carne macia entre seus lábios, passando a língua, sugando com delicadeza.

E, ao sentir aquela mão espalmada em seu pú­bis, ela pousou a cabeça no peito largo e saboreou a encantadora carícia, a doce fricção.

Oh, sim! gritou sua mente com alegria. Ele a amava! Desejava-a! E ela tratou de mostrar seu amor, movendo o corpo num tempestuoso bailado.

Os dedos curiosos e investigantes provocaram a reação natural: sua carne se tornou úmida e escorregadia. Uma massagem sensual lhe ace­lerou a respiração e lhe apressou as batidas do coração.

Mais. Mais depressa. Com mais sensualidade. Num ritmo vertiginoso. Até que...

Jenny sentiu a alma abrir-se e dela escapar um bando de pássaros a cantar, que se espalharam com um rumor de asas.

Não bastava! Ela ainda ansiava por mais.

O brim do jeans dele era áspero, mas não de­sagradável. Os botões se abriram. O tecido caiu. Então...

Pêlos. Pele. Um membro rijo, quente e aveludado. Um doce roçar de corpos, as línguas se en­contraram e houve uma explosão de cores.

A penetração foi rápida e segura.

Ela ouviu o grito agudo um instante depois de sentir o ardor espalhar-se em todo o seu corpo, mas não lhe ocorreu que saíra dela aquele som carregado de surpresa. Estava demasiado fasci­nada pela sensação de plenitude. Porém, assim que ela chegou a perceber o esplendor daquela posse, ele começou a escapar.

— Não, não!

As palavras ecoaram nos espaços escuros de sua mente, e ela se perguntou se de fato as havia dito em voz alta. Estava consumida pela convic­ção de que não tinha acabado ainda, não podia ter acabado.

Como que movidas por vontade própria, suas mãos escorregaram por dentro do jeans aberto e lhe pressionaram os músculos das nádegas. Ela sentiu o espasmo agitar o corpo masculino, ou­viu-lhe um gemido animal, sentiu na orelha o seu hálito febril e, como num milagre, sentiu aquela rigidez penetrando-a ainda mais uma vez.

Dúctil, maleável, Jenny se rendeu sob ele e ficou numa posição mais confortável, que permitia o máximo de sensações. Uma chuva de beijos lhe caiu no pescoço, no rosto, nos seios, deixando im­pressões ardentes em sua pele.

Todo seu corpo reagiu à miríade de sensações que a invadiu. Ela parecia presa ao ritmo que sacudia seus corpos unidos em perfeita harmonia.

Então, a mola que vinha se enrolando cada vez mais dentro dela soltou-se de súbito.

Seu corpo ficou tenso e Jenny sentiu cada pre­ciosa erupção do amor.

Ela estava quase dormindo quando ele final­mente se afastou e, deitando-se a seu lado, ani­nhou-a nos braços. Jenny se agarrou àquele corpo sólido, sentindo sua camisa úmida. Uma sensação de paz e segurança nunca experimentada antes se apossou dela.

Ainda tonta, ainda arrebatada, ainda confusa com a experiência, estava sorrindo quando resva­lou docemente num sono sem sonhos.

Jenny acordou cedo. Estava sozinha. Hal a ha­via deixado durante a noite. Era compreensível, e ela lhe perdoou, mesmo pensando que teria sido maravilhoso despertar em seus braços. Mas os Hendren jamais aprovariam o que se passara aquela noite. Do mesmo modo que Hal, Jenny achava melhor manter aquela noite como um se­gredo só dos dois.

Ouviram-se passos no patamar da escada, um sussurro de vozes atravessou as paredes da velha casa. Ela sentiu cheiro de café. Eram os prepa­rativos da partida. Ao que tudo indicava Bob e Sarah ainda não sabiam de nada.

A noite anterior havia alterado tudo. Agora, Hal devia estar tão ansioso pelo casamento quanto ela. Jenny relembrou a deliciosa noite de amor e não sentiu vergonha, mesmo tendo-a usado para con­vencê-lo a ficar.

O lugar dele era ao lado dela. Podia continuar sendo o pastor auxiliar até que o pai se aposen­tasse, então assumiria plenamente a paróquia. Jenny se sentia preparada para ser a esposa do reverendo. Decerto seu noivo tinha compreendido que era aquilo que Deus queria para eles.

Mas como reagiriam os Hendren à mudança de planos?

Para não deixar que Hal enfrentasse a tempes­tade sozinho, Jenny afastou as cobertas e quase se surpreendeu ao ver que estava nua. Oh, sim, ele lhe havia despido a camisola, não havia? E com muita impetuosidade, aliás, pensou sorrindo com malícia.

Estava muito corada quando entrou no banheiro e ligou o chuveiro. Nada mudara em sua aparên­cia, embora, numa inspeção mais detida, pudes­sem se notar certas marcas rosadas em seus seios.

Sim, Hal deixara em sua pele um sinal indelé­vel. Pensando nisso, ela voltou a sentir o peso gostoso de seu corpo, os movimentos flexíveis de seus músculos, tornou a ouvir-lhe os gemidos de gratidão. E ficou ao mesmo tempo envergonhada e emocionada ao sentir a reação de seu corpo às lembranças.

Vestiu-se apressadamente e desceu a escada an­siosa por ver o noivo. Ao entrar na cozinha, estava com o coração palpitante de expectativa. Sem fô­lego, parou na soleira e observou a cena.

Os Hendren achavam-se em atitude de oração à mesa posta para o café da manhã. Cage também estava presente, muito reclinado na cadeira, porém olhando fixamente para a xícara que ele man­tinha equilibrada na fivela do cinturão.

E Hal, onde estava? Não era possível que con­tinuasse dormido.

Bob disse amém e levantou a cabeça. Viu-a.

— E Hal? — ela perguntou.

Os três a fitaram em silêncio. Jenny sentiu o ar pesado, como se nuvens de chumbo estivessem se acumulando num horizonte ameaçador.

— Ele já foi minha filha — respondeu Bob com delicadeza. Levantou-se, pôs a cadeira no lugar e deu um passo em sua direção.

Ela recuou como ante uma ameaça. Alguma coi­sa a sufocava, impedindo-a de respirar. A cor su­miu de seu rosto.

— Não pode ser... — Suas palavras eram quase inaudíveis. — Ele nem se despediu de mim.

— Não quis submetê-la a uma cena triste de despedida — explicou o reverendo. — Achou que seria mais fácil assim.

Aquilo não podia estar acontecendo. Jenny ha­via representado mentalmente a cena: Hal hip­notizado ao vê-la. Imaginara os dois entreolhando-se, dois amantes a compartilhar um segredo que ninguém mais conhecia.

Mas ele tinha partido, e tudo o que Jenny via eram aqueles três rostos voltados para ela, dois deles com compaixão, o de Cage sem demonstrar o menor vestígio de emoção.

— Eu não acredito! — gritou. E, atravessando precipitadamente a cozinha, quase tropeçou numa eira antes de sair pela porta dos fundos.

O quintal estava deserto. Ela contornou a casa e não viu carro algum na rua.

Hal tinha partido.

A verdade a atingiu como um raio. Jenny teve vontade de vomitar. Vontade de se jogar no chão e esmurrar a terra dura. Vontade de gritar. Es­tava muito decepcionada.

Mas que esperava afinal? Hal nunca demons­trara grande afeição por ela. Agora, à luz do dia, era fácil perceber quanto se havia iludido. Em nenhum momento ele prometera cancelar a viagem. Simplesmente tinha selado seu com­promisso de amor com um ato físico. Haver es­perado mais que isso era falta de realismo. Nada mais característico de Hal que poupá-la da hu­milhação de lhe suplicar que não viajasse. Sim­plesmente tinha preferido evitar o sofrimento para os dois.

Neste caso, por que ela se sentia tão abandonada? Sentia-se perdida, triste, preterida e rejeitada.

E furiosa.

Palavra, ela estava furiosa. Como seu noivo ti­nha sido capaz de deixá-la? Como? Como, se ela sentira tanto o fato de não poderem terminar a noite nos braços um do outro?

Jenny ficou parada na calçada rachada, olhando para a rua vazia. Como ele podia tê-la deixado tão despreocupadamente, sem nem sequer dizer adeus? Será que ela era tão pouco importante? Se Hal a amasse...

A idéia a fez interromper os pensamentos abruptamente. Acaso ele a amava? De verdade.

E ela? Amava-o de fato? Ou era como Cage su­gerira na noite anterior? Será que ela e Hal sim­plesmente haviam assumido o relacionamento que todos esperavam deles porque lhes era convenien­te? Para ela oferecia segurança, e para ele não lhe tomava tempo, não o desviava de seus deveres paroquiais?

Que idéia desalentadora!

Jenny se esforçou para descartá-la. Por que não conseguia conservar a felicidade que tanto a aca­lentara, depois de fazerem amor?

Mas as dúvidas não podiam ser varridas para debaixo do tapete. Permaneciam ali, no primeiro plano, e ela se dava conta de que precisava chegar a uma conclusão antes que Hal retornasse da via­gem. Seria insensato aventurar-se no casamento com tantas incertezas a atormentá-la. A união de seus corpos fora gloriosa, porém evidentemente aquela não era a melhor base para alicerçar um matrimônio. Sem contar que tudo acontecera quando ela estava atordoada com o sedativo. Tal­vez a lembrança que guardava da experiência se­xual fosse mais encantadora do que tinha sido na realidade. Talvez tudo não passasse de uma fan­tasia erótica induzida pela droga.

Girando sobre os calcanhares a fim de voltar Para a casa, quase se chocou com Cage, que havia se aproximado tão silenciosamente que ela não percebera a sua presença.

Jenny teve um sobressalto ante o impacto de seu olhar.

Ele a examinava atentamente; seus olhos cor de mel, toldados pelas sobrancelhas espessas, cla­ras como a areia, não piscavam, eram como os de um gato.

Cage permaneceu imóvel até que um canto de sua boca se erguesse involuntariamente.

Jenny atribuiu ao arrependimento e ao remor­so aquele gesto fingido. Estaria com pena dela porque não tinha conseguido convencer Hal a fi­car? Seria assim que todos na cidade passariam a vê-la, uma pobre amante abandonada, rejeita­da por um homem cujo trabalho era mais im­portante que ela?

Irritada com a idéia, Jenny desviou o olhar, en­direitou os ombros e tentou afastar-se. Ele deu um passo para o lado, bloqueando-lhe o caminho.

— Você está bem, Jenny? — Juntou as sobran­celhas. As rugas no canto dos olhos se pronun­ciaram. Seu queixo parecia duro como o granito.

— Claro que sim — ela se apressou a dizer com um sorriso forçado. — Por que não estaria?

Ele deu de ombros.

— Hal viajou sem se despedir de você. Foi embora.

— Mas vai voltar. E fez bem em partir assim, sem grandes cenas melodramáticas. Eu não teria agüentado a despedida — retrucou Jenny, perguntando-se se suas afirmações pareciam tão fal­sas para ele quanto para ela.

— Você falou com ele ontem?

— Falei.

— E?

A voz lhe falhou, ela desviou o olhar.

— E ele fez com que eu me sentisse muito melhor. Quer que nos casemos assim que es­tiver de volta.

Não chegava a ser uma mentira. Tampouco era verdade, e os olhos perscrutadores de Cage lhe diziam que ele não estava convencido. Jenny avançou rapidamente rumo ao quintal.

— Já tomou café? Vou preparar alguma coisa. Dois ovos mexidos?

Ele sorriu.

— Você não esqueceu que eu gosto disso?

— Claro que não.

Subiram os degraus do alpendre, e ela abriu a porta telada. Quando Cage passou, seus corpos se roçaram brevemente. A reação foi imediata. Todas as células de Jenny pegaram fogo. Seus seios se intumesceram instantaneamente. Um calor invadiu-lhe as entranhas. Seu coração disparou.

Atônita, ela tratou de ocultar a agitação pre­parando o lanche de Cage o mais depressa pos­sível. Suas mãos tremiam incontrolavelmente. E, assim que acabou de servi-lo, correu para o quarto.

Agora que seu corpo adormecido tinha des­pertado para a sexualidade, parecia não querer dormir outra vez. Mas será que ele não tinha o menor discernimento? Nenhuma discrimina­ção? Precisava reagir desse modo a todo e qual­quer homem em que ela tocasse, mesmo que acidentalmente?

A idéia a deixou constrangida. Mesmo assim, ela tirou a roupa, entrou debaixo das cobertas e encolheu os joelhos junto ao peito. As imagens sensuais da noite anterior desfilaram uma vez mais diante de seus olhos, desencadeando as sen­sações obscenas que continuavam a lhe percorrer o corpo.

A bebida não oferecia nenhum lenitivo para a culpa de Cage, mas o atraía como se tivesse o poder de absolvê-lo.

Havia três garrafas de cerveja enfileiradas no tampo envernizado da mesa. Vazias. Ele mudara para o uísque cerca de uma hora antes, porém a culpa que lhe envenenava o organismo se recu­sava a dissolver-se mesmo em quantidades quase letais de álcool.

Tinha violado Jenny.

Não fazia sentido usar eufemismos para tentar aparar as arestas de sua culpa. Podia dizer que fizera amor com ela, que a havia iniciado nos ritos da sexualidade, que a tinha deflorado. No entanto, por mais que sua consciência tentasse manipular a semântica, ele a violara. Podia não ter sido um estupro brutal, mas ela estava inconsciente, sem condições de consentir. Fora uma sórdida violação.

Cage tomou mais um gole da forte bebida. A garganta lhe ardeu. Seria bom se conseguisse ficar bêbado a ponto de vomitar. Talvez se purificasse um pouco.

Que pensamento idiota era aquele? Nada podia purificá-lo. Fazia anos que ele não se sentia cul­pado por motivo algum. Agora, estava se afogando no remorso. E que podia fazer para reparar o mal? Contar a ela? Confessar?

— Oh, a propósito, Jenny, aquela noite, você sabe, na véspera da viagem de Hal, quando você fez amor com ele... Bom, não foi com ele. Foi comigo.

Cage soltou um palavrão e tomou o uísque de um trago. Podia imaginar o lindo rosto dela desfigurando-se diante de seus olhos. Jenny ficaria horrorizada. Saber que tinha dormido com ele pro­vavelmente a deixaria num estado catatônico do qual jamais se recuperaria. O mais famoso mu­lherengo do oeste do Texas tinha transado com a doce Jenny Fletcher.

Não, não podia lhe contar.

Eleja tinha feito muitas coisas ruins, mas dessa vez descera baixo demais. Gostava de sua repu­tação de mau elemento. Vivia para ela, agia para mantê-la viva, fazia questão de lembrar as pessoas de quem ele era, para que não pensassem que Cage Hendren estava amolecendo com o passar dos anos. Chegara até a assumir o que não tinha feito. Limitava-se a responder com um sorriso vago quando lhe imputavam alguma culpa: os in­terlocutores que tirassem suas conclusões quanto à veracidade ou não do boato.

Mas agora...

Fazendo um sinal para o garçom, Cage se deu conta do ambiente familiar em que se achava. A fumaça dos cigarros enevoava a atmosfera estagnada, aumentando ainda mais o ranço de cerveja do bar. Letreiros de néon azuis e vermelhos, anunciando várias marcas de cerveja, piscavam nas Paredes como espectros fosforescentes. Um triste ouropel* ali deixado desde o último Natal oscilava numa luminária em forma de roda de carroça, onde uma aranha tinha feito sua teia entre dois raios. Na vitrola do canto, Waylon Jennings la­mentava um amor fracassado.

Era ordinário. Era vulgar. Era o lugar dele.

— Obrigado, Bert — disse Cage laconicamente quando o garçom colocou outro copo de uísque a sua frente.

— Um dia difícil?

Uma semana difícil, pensou Cage. Fazia uma semana que convivia com seu pecado, e a culpa continuava incomodando-o. Seus dentes afiados não cessavam de lhe dilacerar a alma. A alma? Acaso ele tinha isso?

Bert se curvou sobre a mesa e colocou as gar­rafas vazias na bandeja.

— Ouvi dizer uma coisa que pode lhe interessar.

— É? O quê? — Havia uma gota de água na parte de fora do copo de uísque, que o lembrou das lágrimas de Jenny. Ele a enxugou com o polegar.

— Sobre aquelas terras a oeste da meseta. — Apesar do estado de espírito sombrio Cage se interessou instantaneamente.

— O sítio do velho Parson?

— Isso mesmo. Parece que os filhos estão dis­postos a falar em dinheiro com o primeiro que se interessar.

Cage abriu um sorriso digno de um comercial de pasta de dentes, e deu a Bert uma nota de dez dólares.

— Obrigado, compadre.

Bert também sorriu e se foi. Gostava de Cage, estava contente de havê-lo ajudado.

Cage Hendren era, sem dúvida, um dos melho­res negociantes da região. Conseguia farejar o pe­tróleo, dava a impressão de saber por instinto onde encontrá-lo. Formara-se em geologia para tornar tudo oficial e inspirar confiança. Mas tinha um dom especial para sentir onde o mineral es­tava. Havia perfurado alguns poços secos, porém poucos. Tanto que merecia o respeito de homens que já estavam no negócio quando ele nem era nascido.

Fazia anos que vinha tentando adquirir o direito de explorar as terras dos Parson. O velho casal tinha morrido havia poucos meses, contudo os fi­lhos alegaram que não queriam profanar a pro­priedade da família perfurando poços de petróleo. Era um absurdo, e Cage sabia disso. Só haviam recusado porque os preços estavam subindo. Ele precisava telefonar para o inventariante no dia seguinte.

— Oi, Cage.

Estava tão perdido em pensamentos que não viu a mulher até que ela se aproximasse de sua mesa, e roçasse o quadril em seu ombro ao cumprimentá-lo. Ele ergueu os olhos com evidente fal­ta de interesse.

— Oi, Didi. Como vai?

Sem uma palavra, ela colocou uma chave na superfície polida da pequena mesa redonda, conduziu-a com o dedo indicador e a empurrou na direção de Cage.

— Sonny e eu finalmente nos separamos.

— É mesmo?

O casamento de Didi e Sonny estava em crise havia meses. Nenhum deles levara a sério os ju­ramentos, muito menos o de manter a fidelidade conjugal. Mais de uma vez ela havia se insinuado para Cage, mas este preferira manter a distância. Embora não tivesse lá muitos escrúpulos, não abria mão de um princípio: nunca com mulher casada. Apesar de tudo, ainda acreditava no ca­ráter sagrado do casamento e jamais quis ser res­ponsável por uma separação.

— Hum-hum. É mesmo. Agora sou solteira, Cage. — Didi sorriu para ele. Só faltou lamber os lábios para se tornar a imitação perfeita de uma gata que acabava de esvaziar uma tigela de creme de leite. Dona de um corpo exuberante, es­tava com um jeans da griffe Neiman-Marcus e um suéter muito decotado. Inclinando-se, ofereceu um generoso panorama de suas virtudes.

Em vez de lhe provocar o desejo, fez com que ele se enojasse.

Jenny. Jenny. Jenny. Tão limpa. Um corpo tão asseadamente feminino. Sem exageros, sem ex­travagância, sem volúpia, apenas feminino.

Droga!

Mentalmente ele endireitou o corpo, embora continuasse reclinado na cadeira, girando descuidadamente o copo na mesa.

Didi passou a unha comprida em seu braço.

— Tchau, Cage — disse com voz sedutora, e se afastou rebolando muito.

Ele levantou um canto do lábio num sorriso sardônico. Será que aquela mulher pensava que um convite tão direto era atraente? Os modos de Didi chegavam a ser ridículos.

Jenny nem sabia que era sexy. Usava uma fragrância tão sutil. Em compensação, o perfume de Didi perdurava desagradavelmente no ar depois que ela ia embora.

A voz de Jenny tinha um tom ligeiramente rou­co, era natural, espontânea, e, por isso mesmo, muito mais sensual que o ronronar afetado de Didi. E as carícias amadorísticas de Jenny o ex­citaram mais que o jogo calculado que qualquer uma de suas antigas amantes havia praticado.

Com o cenário montado diante de seus olhos, ele deixou o pensamento viajar ao quarto que de­via pertencer a uma menina, não a uma mulher de camisola de seda. E era de seda. Seu tato co­nhecia bem a textura da seda num corpo de mu­lher, e a pele de Jenny tinha a mesma maciez. E seus cabelos. E...

Sua virgindade fora um choque para ele. Não era possível, não era possível que Hal fosse tão insensível. Como tinha podido morar sob o mesmo teto com Jenny durante tantos anos e não ter feito amor com ela?

Será que ele era tão diferente do irmão? Fi­sicamente, nada havia de errado com Hal. Cage era obrigado a admirar a moralidade inabalável do irmão, muito embora não conseguisse ima­ginar ninguém impondo um código tão rígido a si mesmo.

Jenny não era assim, era?

Mostrara-se disposta a entregar-se ao noivo na véspera da viagem. Que idiota tinha sido Hal: não aceitar um presente tão precioso. Cage não gostava de pensar no irmão em termos tão de­preciativos, mas não pôde evitar. Será que Hal não se dera conta do sacrifício que Jenny estava fazendo por ele? No momento em que encontrou a frágil barreira de sua virgindade, Cage se deu conta.

E acaso ele havia conhecido prazer maior que quando estava nos braços dela? Acaso ouvira sons mais doces do que os seus gemidos quando a pai­xão chegou ao auge?

Nunca. Nunca tinha sido tão bom.

Pudera, nenhuma outra mulher era Jenny. Ela era a intocável. A proibida. A que estava além de todos os limites. Além até mesmo das vastas fronteiras do próprio Cage.

Ele sabia disso havia anos. Assim como sabia que ela pertencia a Hal. Estava claro. Anos antes, Cage teve de aprender a conviver com essa rea­lidade. Podia ter a mulher que quisesse, exceto Jenny.

Ele não prestava mesmo. Paciência. Não se im­portava com ninguém, com coisa alguma. Era o que diziam em toda parte e não deixava de ser verdade. Mas não queria que Jenny e Hal tivessem seu amor destruído devido a sua interferência.

Guardara bem o seu segredo. Ninguém sabia. Ninguém era capaz de imaginar. Muito menos ela, que não tinha ideia de que, toda vez que estava em sua presença, ele morria de vontade de tocá-la. Não sexualmente. Simplesmente tocá-la.

A afeição que Jenny tinha por ele era pura­mente fraternal. No entanto, Cage sempre sen­tira que ela tinha medo dele. Ele a fazia sentir-se incômoda, coisa que o magoou muitas vezes. Seu medo era justificado, naturalmente. Consideran­do sua reputação escandalosa, qualquer mulher honrada tratava de manter distância, como se a sua sexualidade fosse contagiosa e temível como a lepra.

Mas ele sempre se perguntava o que teria acon­tecido se Jenny tivesse vindo morar na casa pa­roquial mais cedo. Se ele não estivesse na facul­dade, se já não fosse conhecido como mau ele­mento. Se tivessem tido tempo de desenvolver um relacionamento, será que Jenny o teria preferido a Hal?

Essa era a sua fantasia favorita. Porque ele sentia que sob a aparência reservada de Jenny havia um espírito livre que ansiava por liberdade, uma mulher sensual, sexual, presa na gaiola in­visível da circunspecção. Se lhe dessem essa li­berdade, que aconteceria?

Talvez ela quisesse ser libertada. Talvez vi­vesse pedindo silenciosamente que a libertas­sem e nenhum homem conseguisse perceber. Talvez...

Você está se iludindo, Cage. Em nenhuma circunstância, ela aceitaria ter a vida misturada com a sua.

Ele arrastou a cadeira e se levantou, jogando com raiva o dinheiro na mesa. Mas, nesse mo­mento, deteve-se como que surpreendido por um pensamento.

A menos que a sua vida mude.

Cage não entrara no quarto de Jenny aquela noite com a intenção de fazer o que havia feito. Ouvira-a chorar e sabia que Hal não atendera o seu pedido. Ela estava magoada e sua intenção era consolá-la.

Mas Jenny o confundiu com Hal e, como as on­das na praia, ele se sentiu compulsivamente atraí­do por ela. Aproximou-se da cama no quarto es­curo, dizendo a si mesmo que ia se identificar no primeiro momento. Tocou-a. Notou o desespero em sua voz. Sabia muito bem o que era o desespero de amar e não receber amor. Atendeu ao seu pe­dido e a abraçou. E, tendo-a beijado, sentiu a rea­ção daquele corpo cálido agarrado ao seu e não conseguiu voltar atrás.

O que ele fizera era imperdoável. Mas o que pretendia fazer talvez fosse pior. Pretendia tentar roubá-la do irmão.

Agora que a possuíra, não podia deixá-la es­capar, mesmo que o inferno se abrisse e o en­golisse. Não deixaria que sua família conti­nuasse sufocando o seu espírito. Hal havia tido uma grande oportunidade de receber o amor dela, mas a rejeitara. Cage não ficaria vendo a ansiedade em seu rosto transformar-se em derrota, sua vitalidade converter-se em resig­nação e toda a sua energia definhar num casulo de moralismo.

Ele tinha meses para conquistá-la até que Hal voltasse e, por Deus, era isso que ia fazer.

— Didi!

Ela estava num canto escuro, a uma mesa, abra­çada com um cafajeste que enfiara a mão sob seu suéter e a língua em sua orelha. Irritada com a interrupção, livrou-se do parceiro.

— Você esqueceu uma coisa — disse Cage, jo­gando a chave para ela.

Didi não conseguiu pegá-la no ar, e o objeto caiu ruidosamente na mesa. Olhou para Cage com ar interrogativo.

— Para que isso?

— Eu não vou precisar.

— Bastardo — rosnou a mulher com ódio.

— Eu nunca disse o contrário — sorriu Cage quando já estava abrindo a porta do bar.

— Ei, cara — gritou o homem que a acompa­nhava —, você não pode falar assim com a moça...

— Ora, deixe para lá, querido — sussurrou Didi, acariciando-lhe o peito. E os dois recomeçaram o que tinham interrompido.

Cage saiu à noite fria e respirou fundo para livrar a cabeça dos vapores de álcool e do cheiro do bar. Colocando-se ao volante de sua Corvette Stingray 63, ligou o motor e partiu.

Aquele automóvel clássico restaurado provoca­va a inveja de todos os homens num raio de mil e quinhentos quilômetros de La Bota e costumava ser imediatamente identificado com seu dono. Era sinistramente preto, com estofamento de couro da mesma cor.

Cage percorreu voando a auto-estrada, depois diminuiu a velocidade para passar pelas ruas da cidade. A meia quadra da casa paroquial esta­cionou no meio-fio e desligou o motor.

A janela do quarto de Jenny já estava às escu­ras, mas ele passou uma hora ali, olhando fixa­mente para ela, exatamente como tinha feito nas últimas seis noites.

 

Do altar, Jenny olhou para a porta da igreja e, contra a forte claridade do sol lá fora, viu a silhueta de um homem alto que acabara de entrar. A última pessoa que esperava ver ali era Cage. Mas ele tirou os óculos escuros de aviador e atravessou o corredor atapetado da nave.

— Olá.

— Olá.

— Parece que preciso aumentar o meu dízimo — disse ele apontando com o queixo para o ma­terial de limpeza aos pés dela. — Será que a igreja não tem dinheiro para contratar uma faxineira?

Sem se perturbar, Jenny enfiou o cabo do es­panador no bolso de trás do jeans, deixando para fora as plumas alaranjadas.

— Eu gosto de fazer isto.

Ele sorriu.

— Você parece surpresa em me ver.

— E estou mesmo — ela admitiu com franqueza.

— Há quanto tempo não entra na igreja?

Ela estava tirando o pó do altar para colocar o arranjo que acabava de chegar da floricultura. Os raios do sol se filtravam nos altos vitrais coloridos, fazendo as partículas de poeira dançarem alegre­mente no ar. A luz projetava um arco-íris em sua pele e em seus cabelos, que estavam presos num coque improvisado. Usava um jeans bem largo e um par de tênis já muito gasto. Cage achou-a linda como um botão de flor e mais sexy que nunca.

— Desde a Páscoa. — Ele se sentou no banco da frente e apoiou os braços no encosto, estendendo-os a ambos os lados. Examinou o santuário e percebeu que não havia mudado, continuava exatamente o mesmo.

— Oh, sim — disse Jenny. — Nós fizemos um piquenique no parque àquela tarde.

— E eu a empurrei no balanço.

Ela riu.

— Como pude me esquecer disso? Eu gritava para que não me empurrasse com tanta força, mas você não parava.

— Mas você gostou.

Ela sorriu. O brilho travesso em seu olhar o encantou.

— Como sabe?

— Intuição.

Quando Cage também lhe endereçou um sorriso. Jenny pensou que ele era capaz de intuir muita coisa com relação às mulheres: nenhuma sem malícia.

Ele, por sua vez, pôs-se a recordar a primavera anterior, o domingo de que estavam falando. Era Páscoa, o céu estava azul e límpido, o ar, quente. Jenny trajava um vestido leve, solto, que ora os­cilava ao redor de seu corpo, ora colava-se a ele com o sopro do vento do sul.

Fora delicioso puxá-la para junto do peito quando ela se sentou no velho balanço preso à árvore gigantesca por cordas grossas como seu pulso. Ele a segurou bem perto de si mais tempo que o necessário, provocando-a, ameaçando em­purrá-la para frente, mas sem soltá-la.

Aquilo lhe deu oportunidade de aspirar ao aroma fresco de seus cabelos, de sentir no peito o contato de suas costas esguias. Quando finalmente a soltou, ela riu com alegria de criança. A música daquele riso ainda soava nos ouvidos de Cage. Toda vez que o pêndulo do balanço a trazia de volta, ele empurrava o assento, quase lhe tocando os qua­dris. Não ousou tanto.

Era verdade o que escreviam os poetas românticos sobre as fantasias dos rapazes na primavera. As sen­sações viris lhe invadiram o corpo aquele dia, enchendo-o de impetuosidade, do desejo de acasalar-se.

Queria deitar-se na relva com Jenny, deixando os raios do sol beijarem suavemente a sua face enquanto ele lhe beijava os lábios. Queria pousar a cabeça em seu colo e contemplar-lhe o rosto lindo. Queria fazer amor com ela, sem pressa, sua­ve e delicadamente.

Mas Jenny era a namorada de Hal, sempre fora. E quando Cage se cansou de vê-los juntos, foi com passos largos para o carro e bebeu uma das cervejas geladas que havia trazido numa caixa de isopor. Seus pais manifestaram sua desapro­vação com veemência.

Por fim, para não arruinar à tarde de todos, principalmente a de Jenny, pois sabia que ela detestava brigas na família, Cage grunhiu um até-logo para todos e foi embora em sua Corvette preta.

Agora, estava sentindo a mesma compulsão de tocá-la. Até vestida para a faxina ela era desejá­vel, merecia ser tocada. Ele se perguntou se as paredes da igreja não desabariam caso a tomasse nos braços e a beijasse como ansiava.

— Quem doou as flores esta semana? — per­guntou antes que seu corpo denunciasse os pen­samentos lúbricos que o assediavam.

Todo ano distribuíam um calendário aos fiéis. Cada família escolhia o domingo em que se en­carregaria de fornecer as flores do altar, geral­mente em homenagem a uma ocasião especial.

Jenny pegou o cartão preso ao buquê de palmas-de-santa-Rita vermelhas.

— Os Randall. "Em memória de nosso querido filho, Joe Wiley" — leu em voz alta.

— Joe Wiley Randall — murmurou Cage com um sorriso nos lábios.

— Você o conheceu?

— Claro que sim. Ele estava bem mais adiantado que eu na escola, mas andávamos juntos às vezes. — Inclinou a cabeça e, por cima do ombro, olhou para um banco várias fileiras mais atrás. — Olhe ali, na quarta fila. Joe Wiley e eu estávamos sen­tados naquele banco, quando a bacia de esmolas passou e ele grudou um chiclete na parte de baixo. Ficamos acompanhando a trajetória da bandeja, de mão em mão. Você pode imaginar a cara das pessoas quando ficavam com os dedos grudados no chiclete? Era de morrer de rir.

Com os olhos brilhando, Jenny se sentou ao seu lado.

— Que aconteceu?

— Eu levei uma surra. Ele também.

— Não, é que o cartão diz "em memória".

— Oh! Joe morreu no Vietnã. — Cage passou um longo momento olhando para as flores. — Não voltei a vê-lo depois que concluiu o colegial.

Jenny estava imóvel, calada, ouvindo apenas.

— Ele era um puto jogador de basquete — pros­seguiu Cage pensativo. Mas logo encolheu os om­bros e baixou a cabeça como se Deus fosse casti­gá-lo com um raio. — Desculpe a gente não diz essas coisas na igreja, diz?

Ela riu.

— Que diferença faz? Deus o ouve dizer pala­vrões o tempo todo. — De repente ficou séria e o fitou nos olhos, tentando sondá-lo. — Você acre­dita em Deus, Cage?

— Acredito. — Sem dúvida era verdade. Rara­mente seu rosto ficava tão sombrio. — E eu O adoro à minha maneira. Sei o que dizem de mim. Até meus pais pensam que sou ateu.

— Tenho certeza de que não é isso o que pensam.

Ele pareceu em dúvida.

— E você? Que pensa de mim?

— Que você é um típico filho de pastor.

Cage inclinou a cabeça para trás e riu uma boa gargalhada.

— É muito simples, não acha?

— De jeito nenhum. Na adolescência, você se comportava mal para que ninguém pensasse que; fosse um "santinho".

— Faz tempo que saí da adolescência, mas con­tinuo não querendo ser "santinho".

— Não se preocupe ninguém o acusaria disso. — provocou ela, cutucando-lhe a coxa com o in­dicador. Retirou a mão depressa. Sua carne era dura, exatamente como a de Hal, e lhe trouxe à lembrança coxas musculosas, vestindo jeans, esfregando-se nas suas pernas nuas. Para dissimu­lar o constrangimento, tentou mudar de assunto,

— Lembra que você tentava me fazer rir quando eu estava cantando no coro?

— Eu? — perguntou ele com ar indignado. — Nun­ca me passou pela cabeça fazer uma coisa dessas.

— Você vivia fazendo caretas para mim, envesgava de propósito. Lá no último banco, onde ficava com suas namoradas. Costumava...

— Com "minhas namoradas"? Até parece que eu tinha um harém.

— E não tinha? Não tinha?

Ele baixou a vista, percorrendo-lhe o corpo lentamente.

— Sempre há lugar para mais uma. Quer se candidatar?

— Ora! — exclamou Jenny, levantando-se de um salto e encarando-o com simulada fúria, as mãos nos quadris. — Quer dar o fora daqui? Eu tenho muito que fazer.

— É, eu também — suspirou ele, erguendo-se. — Acabo de assinar um contrato para explorar dois hectares nas terras dos Parson.

— E isso é bom? — Jenny pouco sabia do trabalho de Cage, só que tinha a ver com petróleo e que ele era considerado bem-sucedido.

— Muito bom. Já estamos prontos para começar as perfurações.

— Parabéns.

— E melhor esperar até que o primeiro poço comece a jorrar.

Distraído, ele prendeu uma mecha de cabelo castanho que tinha escapado do coque. Depois deu meia-volta e se afastou rumo à saída.

— Cage! — Jenny o chamou de súbito. Ele se voltou.

— Sim?

Estava bonito, queimado de sol, os cabelos re­voltos. Irreverente. Perigoso. Os polegares presos no cinturão. O zíper da jaqueta jeans puxado até o queixo.

— Por que veio aqui?

Cage deu de ombros.

— Por nenhum motivo especial. Tchau, Jenny.

— Tchau.

Fitou-a um momento antes de pôr os óculos e sair.

Jenny estava lutando para prender o lençol mo­lhado no varal antes que a forte ventania o arrancasse das mãos. A roupa já pendurada inflava-se como velas e sacudia-se ao seu redor feito asas gigantes.

Quando ela prendeu o último pregador e deixou cair os braços exaustos, seus ouvidos foram invadidos pelo rugido de um monstro. Um vulto ameaçador surgiu atrás do lençol e a agarrou. Envolveu-a nos enormes braços ao mesmo tempo em que rosnava como para devorá-la.

Ela deixou escapar um grito, mas sua exclama­ção foi abafada pelo braço que a prendia.

— Eu a assustei? — o atacante ainda invisível grunhiu em seu ouvido ao mesmo tempo em que a puxava mais para junto de si.

— Solte-me!

— Peça, por favor.

— Por favor!

Cage a soltou e, contornando o lençol, de cujas dobras Jenny ainda tentava se livrar, olhou para ela. Miraculosamente, a peça de roupa de cama con­tinuava bem presa na corda apesar da brincadeira.

— Cage Hendren, que susto você me pregou!

— Ora, que bobagem, você sabia que era eu.

— Só porque já fez isso comigo antes. — Fez um esforço desesperado para afastar dos olhos os cabelos agitados pelo vento. Foi tão inútil quanto o esforço para não sorrir. Por fim, acabou às gar­galhadas com ele. — Você vai ver... — ameaçou, sacudindo o dedo. Num movimento rápido, Cage lhe agarrou a mão e a prendeu na sua.

— O quê? Vou ver o quê, Srta. Fletcher?

— Um dia desses, você me paga.

Ele levou o dedo de Jenny à boca e o mordeu de leve, rosnando feito um canibal.

— Eu não apostaria nisso.

Ver seu dedo preso entre aqueles dentes fortes e brancos a deixou confusa, ela queria achar um modo de retirá-lo sem causar constrangimento a nenhum dos dois. Por fim Cage a soltou, e Jenny recuou como se tivesse se aproximado demais do fogo sem perceber, saindo chamuscada.

Não entendia por que ele estava na casa paro­quial aquele dia nem por que suas visitas tinham se tornado tão freqüentes. Desde que Hal viajara, Cage aparecia a toda hora e pelos motivos mais banais. O pretexto de tais visitas era saber se haviam chegado notícias de Hal, mas alegava des­culpas de tal modo esfarrapadas que Jenny se perguntava se não as fazia por consideração aos pais. Se fosse assim, era um gesto comovente.

Ele fora diversas vezes à casa paroquial para tirar de seu antigo quarto tudo que Sarah lhe havia pedido que tirasse, muito embora pudesse ter feito o trabalho numa só viagem. Depois apa­receu com um enorme bolo comprado na quer­messe da cooperativa, argumentando que não con­seguiria comê-lo sozinho. Uma noite foi pedir em­prestada a lixadeira elétrica de Bob para polir o carro com a peça para lustrar.

Todos esses pretextos eram válidos, porém Jen­ny continuava suspeitando de que havia algum motivo por trás.

Não era próprio de Cage mostrar tanto interesse pelo estado das coisas na casa paroquial. Habitual­mente, ele gastava as noites nos bares, batendo papo com boêmios, caubóis e homens de negócio, quando não estava às voltas com algum rabo-de-saia.

E quanto mais tempo passava em sua compa­nhia menos Jenny gostava de imaginá-lo com ou­tras mulheres. As pontadas de ciúme que sentia eram inexplicáveis, e ela não tinha a menor idéia de porque começaram a incomodá-la tão subita­mente, à conta de nada.

— O secador de roupa está quebrado? — Cage perguntou, erguendo no ombro o cesto de roupa vazio e acompanhando-a a porta dos fundos.

— Não, mas os lençóis e as fronhas ficam mais cheirosos quando secam no varal.

Ele sorriu e abriu a porta para ela.

— Você é um caso perdido, Jenny.

— Eu sei, antiquada até a medula.

— É o que gosto em você.

Uma vez mais Jenny sentiu necessidade de au­mentar a distância entre os dois. Quando ele fi­cava tão perto, fitando-a nos olhos com aquele seu modo particularmente penetrante, ela mal conseguia respirar.

— Você quer... quer um refrigerante?

— Boa idéia.

Cage levou o cesto à lavanderia contígua à co­zinha enquanto Jenny abria a geladeira, punha gelo nos copos que tirou do armário e os enchia com o líquido borbulhante.

— Mamãe e papai, onde estão?

— No hospital. Tinham muita gente para vi­sitar hoje.

Dando-se conta de que estava a sós com Cage no velho casarão, Jenny ficou extremamente ner­vosa. Foi com mãos trêmulas que colocou o copo na mesa, diante dele. Não queria correr o risco de tocá-lo. Sempre evitava tocá-lo se possível, mas ultimamente...

Inquieta, sentou-se na cadeira em frente e bebeu sofregamente o refrigerante gelado. Cage a estava observando. Embora não estivesse olhando diretamente para ele, Jenny sentiu seus olhos escrutando-a. Por que não tinha posto nada sob a camiseta aquele dia?

Então, para seu grande tormento, como se o fato de pensar neles tivesse provocado uma rea­ção, seus seios começaram a intumescer-se sob a malha macia.

— Jenny?

— Quê?

Ela se sobressaltou como se tivesse sido surpreen­dida fazendo alguma coisa muito errada. Sentiu-se febril e com tontura, exatamente como na noite em que fizera amor com Hal. Ele estava vestido exata­mente como Cage agora: jeans e camisa de algodão.

Jenny quase podia sentir a diferença de textura dos tecidos na pele nua, o frio contato da fivela de metal antes que ele a tivesse soltado, o cálido volume de sua virilidade quando se despiu. Ela se encolheu na cadeira e, juntando os joelhos, pres­sionou-os com força embaixo da mesa, tentando manter o rosto impassível.

— Alguma notícia de Hal?

Ela sacudiu impetuosamente a cabeça, tanto para responder à pergunta quanto para negar as sensações que a agitavam por dentro.

— Nada desde aquele cartão-postal datado de um mês atrás. Será que isso significa alguma coisa?

— Significa. — Ela ergueu bruscamente a cabeça, mas Cage estava sorrindo. — Que tudo está em ordem.

— Nenhuma notícia significa que está tudo bem.

— Mais ou menos isso.

— Bob e Sarah não dizem nada, mas eu sei que estão preocupados. Não imaginávamos que ele fosse entrar no país, não devia ter passado a fronteira. Já devia estar voltando para casa agora.

— Pode ser que esteja e não teve tempo de nos avisar.

— Pode ser.

Jenny estava magoada porque, nas poucas vezes em que escrevera, Hal tinha endereçado os bilhetes a todos. Comunicava que a situação em Monterico estava ruim, mas que ele se achava bem e fora de perigo. Não acrescentou uma palavra especial para ela. Sua noiva. Acaso aquilo era normal num homem apaixonado, sobretudo depois do que tinha aconte­cido na véspera da viagem?

— Está com saudade? — perguntou Cage em voz baixa.

— Muita. — Ela ergueu os olhos para ele, porém baixou-os em seguida. Era impossível mentir diante daquele olhar. Impossível até mesmo omitir a verdade. Ela estava com saudade de Hal, mas não tanto assim, não como pensava que ficaria, não como devia. De certo modo, sentia-se até ali­viada porque ele não a estava censurando cons­tantemente. Não era esquisito?

Agora que estivera na cama com Hal, não o queria mais? Será que ela estava afundando numa espécie de depravação?

Jenny ansiava muito por tornar a experimentar aquela alegria plena e total, aquele indescritível prazer físico, mas não se sentia particularmente ansiosa por rever o noivo. Provavelmente porque ainda estava zangada por ele ter partido sem se despedir. Pelo menos era a resposta que ela dava a si mesma. Não chegava a ser satisfatória, mas era a única que lhe ocorria.

— Ele está bem. Hal sempre se sai bem de qualquer enrascada. — Cage se reclinou na ca­deira, equilibrando-a nos dois pés traseiros. — Havia uma família do outro lado da rua... bem antes que você viesse morar conosco. Eu devia ter uns doze anos; Hal, oito ou nove. A filha do casal era muito gorda. Obesa mesmo. Os meninos, na escola, a chamavam de Tanque, de Baleia, de Leitoa. Havia uns moleques que costumavam es­perá-la na esquina para lhe gritar nomes quando voltava para casa.

Jenny ficou atraída por seu tom de voz. Era grave, ligeiramente áspero, como se um pouco da areia do Texas estivesse presa a suas cordas vo­cais. Enquanto falava, ele corria os dedos distraí­dos no copo, que a condensação tornara escorre­gadio. Os pêlos em suas falanges pareciam mais claros em contraste com a pele bronzeada. Ela nunca tinha reparado nisso antes. O modo como Cage acariciava o copo quase a hipnotizou, ela chegou a imaginar como seria se...

— Um dia Hal estava voltando para casa com a menina e, quando os moleques começaram a caçoar dela, avançou contra eles feito uma onça. Saiu com o nariz sangrando, um olho roxo e o lábio cortado. Mas defendeu a amiga. De noite, meus pais o elogiaram como um herói. Mamãe preparou uma sobremesa especial para ele. Papai comparou sua boa ação com a luta entre Davi e Golias. Eu pensei, ora, se é isso que os faz feliz, eu também posso fazê-los. Sempre soube brigar muito melhor do que Hal. Assim, no dia seguinte, fiquei esperando os garotos escondido atrás da ga­ragem. Queria que se arrependessem de terem batido no meu irmão e de não darem sossego à pobre menina.

— Que você fez?

— Eles caminhavam seguros de si pela calçada, rindo, falando alto. Eu saí de trás da garagem e joguei a tampa de uma lata de lixo no rosto de um deles. Quebrei-lhe o nariz. Dei um soco no estômago do outro e o deixei sem ar. No terceiro eu acertei um pontapé no... bem, ali onde mais dói nos meninos.

Jenny sorriu sem jeito, corou e baixou a cabeça. Depois, tornou a olhar para ele.

— Que aconteceu?

— Eu esperava o mesmo elogio que Hal recebera na noite anterior. — Ele curvou os lábios num sorriso amargo. — Pois me deram uma surra, fizeram-me escutar um terrível sermão e me mandaram para o quarto sem jantar. Além disso, proibiram-me de andar de bicicleta durante quinze dias. — Cage ba­teu com os pés dianteiros da cadeira no chão como para arrematar o relato. — Portanto, Jenny, se eu tivesse me encarregado dessa missão na América Central, teriam me rotulado de desordeiro, de de­magogo, diriam que eu estava procurando confusão. Mas Hal sempre faz as coisas certas...

Sem pensar, ela estendeu o braço por cima da mesa e lhe cobriu a mão com a sua.

— Eu lamento muito, Cage. Sei como isso dói.

Ele segurou imediatamente a mão que acari­ciava a sua e a fitou nos olhos verdes, banhados de lágrimas de empatia.

— Jenny! Nós já chegamos. Onde você está?

Os Hendren acabavam de entrar pela porta da rua.

Cage e Jenny permaneceram cativos um do outro, só soltando-se as mãos e desviando o olhar um segundo antes que Sarah e Bob irrompessem na cozinha.

— Ah, você está aqui! Olá, Cage.

Jenny se levantou de um salto, perguntando se o velho casal queria um refresco ou um café. Cage também se levantou.

— Eu já vou. Só passei para saber se havia notícia de Hal. Mais tarde eu volto. Tchau.

Não havia por que prolongar a visita. Ele queria saber de Hal, mas o principal motivo que o levara à casa paroquial era Jenny.

Precisava vê-la.

Ela o havia tocado.

Na verdade, fora iniciativa de Jenny estender a mão para tocá-lo.

Que bom!

 

Jenny se curvou para colocar a sacola do su­permercado no banco traseiro do carro. Os Hendren tinham lhe dado aquele modelo popular guando ela se formara na UCT. Um longo assobio de admiração a fez endireitar o corpo depressa, alto que quase bateu a cabeça.

Cage estava montado numa motocicleta de aspec­to agressivo, com uma expressão que combinava per­feitamente com o assobio. Um capacete preto e bri­lhante oscilava pendurado em seu braço. Vestia uma camisa azul de cambraia, cujas mangas tinham sido arrancadas. Ou o vento tirara todos os botões das casas, ou ele não tivera o cuidado de abotoá-la. Em todo caso, a única coisa que o salvava da indecência era o fato de a camisa estar por dentro do jeans.

Nada nele era decente.

Trazia no pescoço um lenço vermelho desbotado. Parecia um bandido. Os HelFs Angels o teriam recebido de braços abertos e seriam capazes até de elegê-lo presidente.

Jenny ficou intrigada com a quantidade de pêlos aloirados que lhe cobriam o peito. Espalhavam-se nos músculos do tórax e iam se estreitando mais abaixo, até se tornarem uma linha que lhe dividia a barriga em duas partes. Não foi fácil para ela tirar os olhos daquela charmosa visão: a pele bron­zeada, o crespo tapete de pêlos masculinos.

— Que maneira escandalosa de se vestir! — exclamou ela com simulada indignação.

— Obrigado, senhorita.

Jenny riu.

— Que maneira escandalosa de se vestir! — retrucou Cage.

— Que há de errado com a minha roupa?

— Seu jeans é muito justo, pode incendiar a imaginação de um homem.

Olhando para baixo a fim de se examinar, ela replicou:

— De alguns homens. Talvez dos que só pensam em sexo.

— Hum... Parece que está se referindo a mim.

— A carapuça serviu... Nenhum outro homem assobiou para mim hoje.

— E que nenhum a viu na posição em que você estava.

Ela o fuzilou com o olhar.

— Depravado!

— E me orgulho disso.

Jenny pôs as mãos na cintura e perguntou:

— E se eu ficasse atrás de você è assobiasse desse jeito?

— Eu a levaria para o mato no mesmo instante.

— Você não vale nada mesmo!

— É o que dizem. — Cage sorriu, e seus dentes brilharam ao sol. Apoiando as mãos no guidom da moto, inclinou-se ligeiramente. Os músculos de seus braços se avolumaram, e ela viu as grossas veias por baixo da pele morena.

— Vamos dar uma volta?

Desviando a vista, Jenny bateu a porta de trás com ênfase e abriu a da frente.

— Dar uma volta com você? Só se eu tivesse enlouquecido.

Olhou com desprezo para a motocicleta.

— Ora, não sou tão depravado assim.

Ela fez uma careta, ele sorriu mais abertamente.

— Vamos, Jenny. Você vai gostar.

— De jeito nenhum!

— Por quê?

— Não confio em você.

Cage explodiu numa gargalhada.

— Eu estou completamente sóbrio.

— Que milagre!

Foi à vez dele fazer uma careta. Jenny disse:

— Uma vez saí de carro com você e arrisquei a vida a cada quilômetro. A polícia rodoviária nem se deu ao trabalho de persegui-lo. Sabia que não conseguiria alcançá-lo.

Ele deu de ombros, contraindo todos os múscu­los do corpo.

— É por isso que gosto de dirigir em alta ve­locidade. Ninguém me pega.

— Além disso, o sorvete está derretendo — disse ela pela janela do automóvel, já ligando o motor.

Ele a seguiu até em casa, ultrapassando-a ora pela esquerda, ora pela direita, contornando o automóvel, obrigando-a a frear uma dezena de vezes para não colidir com a moto. Abaixo do visor escuro do capacete, seu amplo sorriso era visível. Jenny tentou manter uma expressão séria, mal-humorada até, mas estava rindo quando chegaram à casa paroquial.

— Viu? — Ele estacionou a motocicleta ao lado do carro e tirou o capacete. — Absolutamente ino­fensivo. Vamos, venha dar uma volta comigo.

O sol bateu em seus cabelos, dando-lhe a cor do trigo maduro. Por entre os cílios densos, seus olhos eram um convite. Jenny hesitou, a sacola do supermercado estava ficando cada vez mais pesada em seus braços.

— Quando foi à última vez que fez uma coisa es­pontânea? — Cage perguntou num tom de desafio.

Na noite em que seduzi Hal.

Mas Jenny nem queria pensar em Hal. Fazia dois meses e meio que ele partira. Case visitava a casa paroquial com muita freqüência. Sempre aparecia inesperadamente, como aquele dia, no estaciona­mento do supermercado. Se não o conhecesse bem, ela era capaz de dizer que a seguia.

— Não posso — disse. — Não posso mesmo.

— Claro que pode. Vamos, ande logo. Eu a ajudo a guardar as coisas.

Não havia como discutir com ele. Guardaram rapidamente as compras no armário e na gela­deira e, como Bob e Sarah não estavam em casa, Jenny foi uma presa fácil. Cage sabia muito bem farejar as fraquezas de uma mulher e valer-se delas.

— Por favor — implorou, dobrando os joelhos para ficar com o rosto à altura do dela. O sorriso lhe fez surgir duas covinhas nos cantos da boca, coisa que, na opinião de Jenny, devia ser proibida por perturbar a ordem pública. — Venha comigo.

— Está bem — rendeu-se ela com um suspiro irritado. Na verdade, seu coração palpitava de ansiedade.

Cage a segurou com firmeza e apressou-se a levá-la para fora sem lhe dar tempo de mudar de idéia.

— Tenho um capacete extra.

Jenny colocou-o em sua cabeça e prendeu a cor­reia por baixo de seu queixo. Durante um instante, só um instante, seus olhos se encontraram. Ele lhe tocou a face. Porém, antes que Jenny pudesse entender o que significava o brilho em seus olhos, o momento passou, e ele se pôs a ensinar-lhe a viajar na garupa da motocicleta.

Quando ela se sentou conforme as instruções, Cage se acomodou a sua frente e disse:

— Agora se segure em mim.

Ela vacilou, depois, com muita cautela passou os braços no corpo dele. Ao entrar em contato com o peito nu, os pêlos encaracolados lhe fizeram cócegas nos pulsos, e ela afastou bruscamente as mãos.

— Desculpe — murmurou como se tivesse pi­sado nó pé de um desconhecido no elevador. Seu coração batia aceleradamente.

— Tudo bem. — Cage lhe segurou as mãos e as colocou juntas na altura de sua cintura. — Precisa segurar com força.

Jenny estava atordoada. Sentia a garganta seca. Se não estivesse com tanto medo de ficar com tontura e cair, teria fechado os olhos quando ele ligou o motor e desceu a rua. Manteve as mãos imóveis, muito embora sentisse uma vontade ur­gente de correr os dedos nos pêlos do peito dele, de apalpar-lhe os músculos rijos.

— Está gostando? — gritou Cage por cima do ombro. Tendo superado a inibição inicial, ela respondeu com franqueza.

— Adorando!

O vento quente açoitava-os implacavelmente quando saíram dos limites da cidade, e Cage co­meçou a acelerar. Entraram velozmente na rodo­via, com a precisão de uma vespa em pleno vôo. Era incrivelmente excitante ter unicamente as duas rodas da moto a separá-la do asfalto que passava vertiginosamente por baixo dela. A po­derosa vibração do motor lhe sacudia as coxas, o ventre, os seios. Era delicioso.

Cage saiu da rodovia e entrou por uma estrada estreita, embora asfaltada, e finalmente passou por um largo portão. A casa no alto de uma ele­vação no terreno plano era autenticamente vito­riana. O pátio cercado estava coberto de plantas e flores, e uma grande variedade de árvores lhe davam sombra. A varanda, que compreendia três lados da casa, ficava protegida do sol pelos ter­raços do primeiro andar. No alto de um dos can­tos da fachada havia uma cúpula em forma de cebola. Digna de um cartão-postal, a estrutura cor de areia tendia ligeiramente para um matiz de ferrugem.

De um lado ficava a garagem. Jenny viu a Corvette estacionada junto a uma coleção de outros veículos. Mais adiante, achava-se o estábulo. Vá­rios cavalos pastavam no campo que se estendia na parte detrás da casa.

— Aqui é onde moro — disse Cage com modés­tia. Parou a moto e desligou o motor. Esperou que Jenny descesse. Ela tirou o capacete e ficou olhando admirada para o imóvel.

— É aqui que você mora?

— É. Já há dois anos.

— Nunca nos convidou a vir aqui. — Voltou-se Para ele. — Por que, Cage?

— Porque não aceitariam o convite. Meus pais con­sideram esta casa o próprio antro do pecado, nunca poriam os pés aqui. Hal também não, pois sabe que eles desaprovariam. Achei melhor não convidar ninguém e tornar as coisas mais fáceis para todos.

— E eu?

— Você teria vindo?

— Acho que sim.

Nenhum dos dois acreditou naquelas palavras.

— Pois agora já está aqui. Quer conhecer lá dentro?

Foi um pedido humilde. Apesar de todo o ma­chismo, Cage parecia extremamente vulnerável. Jenny não hesitou dessa vez. Queria muito co­nhecer a casa dele.

— Quero sim. Posso entrar?

Ele abriu um largo sorriso e a conduziu à porta.

— A casa foi construída na virada do século. Per­tenceu a vários proprietários, e cada um a deixou deteriorar-se um pouco mais. Estava quase em ruí­nas quando a comprei. O que me interessava era o terreno, tinha intenção de demoli-la e construir um chalé em estilo contemporâneo. Mas a casa começou a ficar importante, parecia fazer parte do lugar. En­tão decidi mantê-la, e mandei reformar tudo.

Ele falava com modéstia.

— É linda — observou Jenny, percorrendo os cômodos de pé-direito alto e iluminados pelo sol.

Cage a havia decorado com simplicidade, tudo pin­tado de branco: as paredes, as venezianas, os baten­tes, as portas enormes que separavam o hall central da sala de estar, a um lado, e da sala de jantar oval do outro. O assoalho de carvalho tinha sido raspado. A mobília, privilegiando o conforto, misturava com bom gosto o antigo e moderno tudo muito arrumado.

A cozinha era um milagre da era espacial, porém todas as instalações de última geração ficavam ocultas por uma fachada com o charme da passa­gem do século. No primeiro andar havia três dor­mitórios. Só um tinha sido totalmente restaurado.

Da porta, Jenny olhou para o quarto em que Cage dormia. Decorado com os tons do deserto, combinava com seus cabelos claros. A cama enorme estava co­berta com um acolchoado de forma irregular, que dava a impressão de ser macio. Pela porta contígua, ela entreviu um banheiro luxuoso, com uma opu­lenta janela panorâmica perto da enorme banheira.

Cage reparou no que ela estava olhando.

— Eu gosto de ficar contemplando a paisagem no banho. Dali, o pôr-do-sol é espetacular — falou muito perto dela, o bastante para que seu hálito quente lhe arrepiasse os cabelos. — E nas noites de lua cheia, com o céu estrelado, você não ima­gina como é lindo.

Jenny sentiu uma atração hipnótica por ele, um desejo irresistível de se acercar mais... Tratando de se reprimir, endireitou o corpo.

— A casa combina com você, Cage. No começo achei que não, mas combina sim.

Ele gostou de ouvir aquilo.

— Venha ver a piscina.

Desceram a escada, passaram por uma varanda telada e saíram ao quintal calçado de pedra. Era uma explosão de cores. Havia uma infinidade de vasos de barro com gerânios vermelhos. Num can­to, um canteiro de cactos prodigalizava botões amarelos e rosados. As salvas prateadas, com suas flores purpurinas, acompanhavam toda a extensão da cerca. A piscina era de um azul profundo como o da safira.

— Puxa! — sussurrou Jenny.

— Quer nadar?

— Eu não trouxe maio.

— Quer nadar?

O convite veio carregado de implicações sutis e sedutoras, mas indubitavelmente claras.

Tudo se paralisou dentro de Jenny. O sangue cessou de lhe correr no corpo porque seu coração parou. Os pulmões detiveram a atividade. Ela não conseguia nem mesmo piscar, tão cativada estava pelo olhar e a voz rouca que a convidava.

Era inconcebível, naturalmente.

Mesmo assim ela pensou na hipótese.

E os pensamentos, criando-lhe um caleidoscópio na mente, fizeram subir sua temperatura. Ela con­seguia ver os dois nus, o sol batendo em sua pele, o vento seco agitando as águas ao seu redor. Cage nu, o corpo moreno coberto de pêlos dourados e macios. E ela desnudando-se timidamente para o homem.

A fantasia lhe deu asas à imaginação.

Jenny imaginou-se tocando-o, viu suas mãos resvalando naqueles braços fortes, viu seus dedos acompanhando as veias que apareciam sob a pele, mergulhando na doce pelúcia de seu peito.

Viu-o tocando-a, viu suas mãos grandes acariciando-lhe os seios, os túmidos mamilos, descendo por seu ventre até as coxas, depois subindo até...

— Eu preciso ir embora! — Ela se voltou e atravessou o quintal e a casa praticamente correndo, como se o próprio diabo estivesse no seu encalço. Aquele homem não tinha chifres nem tridente, mas seu sorriso era a pior das tentações.

Cage a alcançou na varanda. Rígida ao seu lado, Jenny ficou esperando que trancasse a porta. Quando ele lhe tocou o braço para descerem os degraus, esquivou-se bruscamente.

— Algum problema, Jenny?

— Não, não, claro que não — disse ela, umedecendo os lábios ressecados com nervosos movi­mentos da língua.

Por que estava agindo daquele modo? Cage não ia lhe fazer mal. Ela o conhecia fazia anos, viviam sob o mesmo teto quando ele voltava da faculdade nas férias.

Por que ele parecia subitamente um estranho, embora um estranho que ela conhecesse melhor que qualquer outro ser humano? Não tomava o partido dele, como o de Hal, em suas silenciosas discussões. Porém sentia uma afinidade por aquele homem que não tinha nenhuma explicação racional. Por quê?

O que sentia por ele a abrasava por dentro. Eram sentimentos tão estranhos, tão sexuais. Sentimentos tão bons.

— Ok, agora você já sabe... — disse Cage, sal­tando sobre a motocicleta assim que ela se sentou em seu lugar. — Segure-se bem, mocinha.

— Cage!

Foi à última vez que Jenny conseguiu respirar para valer. Ele começou a acelerar, na rodovia, até que a paisagem não passasse de uma mancha indefinida. Defendendo a vida, ela se agarrou ao seu corpo, sem nenhuma inibição de espalmar as mãos em sua barriga firme e colar-se às suas cos­tas. Prendendo as coxas em seus quadris, pousou o queixo em seu ombro.

Quando chegaram à rua da casa paroquial, Cage diminuiu a velocidade consideravelmente, mas su­biu na calçada e dirigiu em ziguezagues entre as árvores que algum espírito cívico havia plantado três décadas antes. Como não havia pedestres, não havia perigo, mesmo assim Jenny gritou:

— Você é louco, Cage Hendren!

Estavam sem fôlego de tanto rir quando para­ram na entrada da casa paroquial, e ele desligou o motor.

— Quer dar outra volta amanhã? — perguntou por cima do ombro.

Jenny desceu, seus joelhos quase se dobra­ram. O entusiasmo lhe roubara o equilíbrio, de­morou um momento para que ela o recuperasse apoiada nele.

— Não. Nunca mais! A viagem de volta foi como desafiar a morte.

Ela estava corada, seus olhos verdes brilhavam muito. Cage nunca a tinha visto sorrir daquele modo. Desaparecera a máscara conservadora atrás da qual se escondia. Jenny tinha uma na­tureza aventureira, impetuosa, e Cage a estava vendo emergir pela primeira vez.

Ele desceu da motocicleta e tirou o capacete.

— Logo vai se acostumar. — Ajudou-a a também tirar o capacete e, como se fosse à coisa mais natural do mundo, alisou-lhe os cabelos com os de­dos. — Da próxima vez, vamos romper a barreira do som.

Pôs o braço em seus ombros. Ainda com as per­nas bambas, ela se apoiou nele e lhe enlaçou a cintura. Juntos, foram com passos trôpegos até a porta dos fundos.

Esta se abriu de repente. Bob saiu e se apro­ximou dos degraus. Endereçou um olhar acusador a Cage, depois a Jenny. Aquela expressão dura os fez parar abruptamente.

— Papai! Bob! — disseram em uníssono. Mas eles já antecipavam a notícia.

— Meu filho morreu!

 

— Jenny... — sussurrou Cage preocupado, mas sem obter resposta. — Jenny, por favor, não chore. Quer que eu peça alguma coisa à aeromoça?

Ela sacudiu a cabeça e tirou o lenço úmido dos olhos.

— Não, obrigada, Cage. Eu estou bem.

Mas não estava. Não estava desde o dia anterior, quando Bob Hendren lhes contara que Hal tinha sido morto por um grupo armado em Monterico.

— Não sei por que deixei você vir. Que burrice! — disse Cage, censurando-se amargamente.

— Era uma coisa que eu precisava fazer — in­sistiu ela, ainda enxugando os olhos vermelhos e limpando o nariz.

— Vai ser um desgaste inútil, só servirá para tornar as coisas mais difíceis para você.

— Não, não vai. Eu não podia simplesmente ficar em casa, esperando. Se não viesse junto, fi­caria louca.

Ele a compreendia. Era uma dura missão viajar a Monterico a fim de identificar o corpo de Hal e providenciar o transporte aos Estados Unidos.

Seria terrível enfrentar a burocracia do Departa­mento de Estado, sem falar nas difíceis negocia­ções com a arrogante junta militar do país cen­tro-americano. Mas era melhor que ficar em casa, presenciando o luto inconsolável dos Hendren.

— Jenny, onde você estava? — tinha gritado Sarah, estendendo os braços ao vê-la entrar na sala de estar da casa paroquial. Bob acabara de dar a ela e a Cage a terrível notícia. — Seu carro estava aí... nós a procuramos em toda parte... Oh, Jenny!

Sarah tombou em seus braços e se pôs a soluçar descontroladamente. Cage se sentou no sofá, as pernas muito abertas, inclinou o corpo para fren­te e ficou olhando fixamente para o chão. Ninguém se deu ao trabalho de consolá-lo pela perda do irmão. Nada tinha a fazer lá, a não ser padecer os olhares de condenação que Bob pousava nos dois capacetes de motociclista que ele deixara jo­gados no chão do corredor ao entrar correndo.

Jenny acariciou os cabelos claros de Sarah.

— Eu lamento muito não estar aqui. Eu... Cage e eu fomos dar uma volta de moto.

— Você estava com Cage? — Sarah ergueu ra­pidamente a cabeça e olhou para o filho. Era como se sua existência fosse uma grande surpresa para ela, como se nunca o tivesse visto na vida.

— Quem lhe trouxe a notícia, mamãe? — per­guntou ele em voz baixa.

Sarah parecia num estupor. Sua expressão não dizia nada, sua palidez impressionava. Foi Bob quem lhes contou o pouco que sabia.

— Um representante do Departamento de Estado telefonou há mais ou menos uma hora. — O pastor parecia repentinamente envelhecido. Pela primeira vez, a pele sob seu queixo pendia flácida, mole. Seus olhos tinham perdido o brilho e a vivacidade habituais. Sua voz, tão impressio­nante e convicta no púlpito, claudicava misera­velmente. — Parece que aqueles fascistas assas­sinos que controlam o governo de lá não gostaram da interferência de Hal. Ele e alguns membros de seu grupo foram presos junto com os rebeldes que deveriam sair do país. — Olhou tristemente para a esposa e revelou o que lhe haviam comunicado oficialmente. — Mataram... todos. O governo vai enviar uma nota formal de protesto.

— Hal morreu! — gemeu Sarah. — De que ser­vem os protestos agora? Nada vai trazer o nosso filho de volta.

Jenny concordou calada. As duas mulheres pas­saram o resto da tarde abraçadas, chorando, la­mentando. A notícia se espalhou na comunidade. Os paroquianos começaram a chegar enchendo de solidariedade os grandes cômodos da casa e de comida a cozinha.

O telefone tocava sem cessar. Numa ocasião, Jenny ergueu os olhos e viu Cage atendendo-o. Em algum momento, ele voltara para casa e havia trocado de roupa. Estava de calça social, camisa esporte e paletó. Enquanto ouvia o que lhe diziam do outro lado da linha, esfregou os olhos com o indicador e o polegar. Encostado na parede como estava, parecia cansado. E desolado.

Ela não tivera tempo nem sequer para subir e pentear os cabelos depois do passeio com Cage. Mas ninguém parecia notar que estava desgrenhada. Todos caminhavam de um lado para outro, feito robôs, como se houvessem perdido o interesse pela vida. Não conseguiam acreditar que a exis­tência de Hal tinha sido irreversivelmente arre­batada, e com tanta violência e crueldade.

— Você parece exausta. — Jenny estava se servindo de uma xícara de café e, voltando-se, deu com Cage a suas costas. — Comeu alguma coisa?

Os pratos de comida trazidos pelos membros da comunidade estavam enfileirados nos balcões da cozinha. Não a atraíam, na verdade, a ideia de ingerir alguma coisa lhe era repulsiva.

— Não. Não quero comer nada. E você?

— Ainda não estou com fome.

— É melhor comermos alguma coisa — disse Bob, aproximando-se deles. Sarah, que estava agarrada a seu braço, sentou-se numa cadeira.

— Papai, um sujeito chamado Whithers telefo­nou, é do Departamento de Estado — informou Cage. — Amanhã vou buscar o corpo de Hal.

Sarah reprimiu o pranto, apertando os dedos nos lábios.

— Vou me encontrar com esse tal Whithers na Cidade do México e ele irá comigo para me ajudar nos trâmites. Eu telefonarei assim que souber de alguma coisa para que vocês possam providenciar o enterro.

Sarah cruzou os braços na mesa, deitou a cabeça neles e começou a chorar novamente.

— Eu vou com você, Cage.

Jenny declarou calmamente a sua intenção. Os Hendren tentaram impedi-la, mas ela estava de­cidida, e eles, transtornados demais para discutir.

Os dois partiram de manhã cedo rumo a El Paso a fim de tomar o avião para a capital do México, o mesmo vôo em que Hal tinha ido havia quase três meses.

Agora Cage viajava ao seu lado. Embora houvesse uma poltrona vazia na fila, sentara-se na do meio, perto dela, como se quisesse protegê-la do resto do mundo. Quando acabaram os lenços de papel, tirou um de pano do bolso do paletó e o entregou a ela.

— Obrigada.

— Não me agradeça Jenny. Eu não agüento vê-la chorando.

— Eu me sinto tão culpada.

— Culpada? Mas culpada de quê?

Ela fez um gesto de frustração e voltou a olhar para o vazio pela janela do avião.

— Não sei. Por um milhão de razões. Por ter ficado zangada quando ele partiu. Por ter ficado magoada e com raiva porque não mandou um car­tão-postal só para mim. Tolices, besteiras desse tipo.

— Todo mundo se sente culpado pelas pequenas coisas quando uma pessoa morre. É natural.

— Sim, mas... eu me sinto culpada por... estar viva. — Virou a cabeça e o fitou com os olhos cheios de lágrimas. — Por ter me divertido com você ontem, quando Hal já estava morto.

— Jenny. — Cage sentiu uma dor no peito. A mesma culpa o visitara, mas ele não ia lhe contar isso.

Pôs o braço em seus ombros e a puxou para junto de si. Com a outra mão, fez com que pousasse a cabeça em seu peito e lhe acariciou os cabelos.

— Não precisa se sentir culpada por estar viva. Hal não ficaria contente. Ele escolheu isso. Sabia do risco que corria e o assumiu.

Cage tomou consciência do quanto era bom abraçá-la. Quantas vezes desejara abraçá-la! Mas só agora tinha oportunidade: naquela situação ter­rível. Ainda assim não pôde ficar alheio ao enorme prazer de sentir aquele corpo miúdo e delicioso pressionado no seu.

Por que Hal tinha de morrer? Por que, droga? Cage queria ter ganhado Jenny numa luta leal. Não havia nenhuma vitória no fato de ela ter fi­cado subitamente disponível com a morte de Hal. Será que seu sentimento de culpa se tornaria um novo obstáculo que ele teria de superar?

— Por que ficou zangada quando Hal viajou?

Acaso ela tinha mudado de sentimento, acaso se arrependera do que havia acontecido na cama àquela noite? Oh, não, por favor! Talvez ele re­cebesse a resposta que não queria ouvir, mas pre­cisava perguntar.

Jenny hesitou durante tanto tempo que Cage chegou a pensar que não ia responder. Então ela disse com a voz entrecortada:

— Aconteceu uma coisa na véspera da viagem que nos aproximou muito. Eu pensei que tudo tinha mudado. Mas, na manhã seguinte, Hal partiu sem nem sequer se despedir de mim, como se não tivesse acontecido nada.

É que não tinha acontecido nada com Hal.

— Eu esperava que ele cancelasse a viagem — prosseguiu Jenny, suspirando, e Cage sentiu-lhe o peito dilatar-se com a respiração. — E me senti rejeitada. No íntimo, não acreditava que meus sentimentos fossem mais importantes para ele que a sua missão, mas...

Cage ficara desesperado para saber o que ela estava pensando e sentindo aquela manhã. En­quanto a observava à mesa da cozinha, mil per­guntas lhe passaram pela cabeça, mas ele não teve coragem de fazê-las. Sua própria traição o condenava ao silêncio.

Tivera vontade de perguntar: "Você está bem?", "Eu a machuquei?" "Jenny, fui eu que imaginei que foi maravilhoso ou foi mesmo?", "Aconteceu de ver­dade ou tudo não passou de um sonho fantástico?"

E continuava sem saber as respostas. Mas fossem quais fossem, pertenciam a Hal, não a ele. Jenny ficara magoada com a aparente indiferença do noivo pelo fato de terem feito amor pela primeira vez. Não conseguia entender como ele pudera viajar como se aquilo não significasse alguma coisa para ele. Hal não merecia o seu ressentimento. Mas ela tam­bém era inocente. Só havia um culpado na história toda e, como de costume, era Cage.

Devia lhe contar agora que seu irmão se mostrara indiferente porque não era ele que tinha feito amor com ela aquela noite? Pelo menos a livraria da culpa que a atormentava. Devia contar-lhe?

Não. De maneira nenhuma. Jenny não se con­formava com a morte de Hal. Como suportaria saber que tinha dormido com o homem errado? Que mulher se perdoaria em semelhante situação? Que mulher perdoaria o homem que a enganara de forma tão aleivosa?

Talvez sentindo a tensão nos braços de Cage, Jenny endireitou o corpo de repente, aumentando a distância entre eles.

— Eu não devia importuná-lo com isso. Tenho cer­teza de que a minha vida íntima não lhe interessa.

Oh, sim, interessava e muito! Eles já haviam ex­perimentado o máximo de intimidade que dois seres humanos podiam ter. Só que ela não sabia. Não sabia que Cage a havia acariciado até que a textura da pele dela ficasse gravada na palma de suas mãos e na ponta de seus dedos. Não sabia que ele conhecia a forma de seus seios e continuava sentindo o sabor de seus lábios, de sua língua. Que os sons que lhe escaparam da garganta no paroxismo da paixão lhe eram conhecidos como a sua própria voz, pois, qual um gravador, ele os repetia sem cessar à noite, quan­do estava sozinho na cama, pensando nela. E tinha certeza de que nenhum homem, nem mesmo seu irmão, a havia beijado com a mesma intimidade. Ninguém a conhecia como ele.

Cage teve um sobressalto.

Que diabo estava fa­zendo afinal? Francamente, ele era um canalha! Um vilão! Hal acabava de morrer, e ele se permitia ficar pensando em Jenny na cama!

— Nós já vamos aterrissar — resmungou a fim de encobrir sua própria culpa, seu desconcerto.

— Então preciso me arrumar um pouco.

— Você está linda.

Jenny sacudiu a cabeça.

Apesar da raiva que estava sentindo de si mes­mo pelos pensamentos que acabavam de lhe ocor­rer, Cage não conseguia deixar de admirar a be­leza de Jenny.

Ela o fitou nos olhos, lembrando-se de que nin­guém lhe havia agradecido o trabalho que tivera para cuidar de tudo. Ele assumira as desagradá­veis tarefas sem que lhe pedissem.

— Você tem ajudado muito, Cage. Aos seus pais, a mim. — Pousou a mão em seu braço. — Que sorte contar com você!

— Eu também tenho sorte de contar com seu apoio — sorriu ele com doçura.

Fizera bem em não lhe contar que havia sido o seu amante aquela noite. O Cage de outrora, o egoísta, não teria permitido que o irmão ficasse com a glória de ter dado prazer a Jenny. Mas o novo Cage, o mudado, podia muito bem deixá-la pensar que havia feito amor com Hal e, assim, poupá-la de acrescentar vergonha à tragédia.

A capital de Monterico era uma cidade baru­lhenta, suja e quente.

Em toda parte erguiam-se esqueletos de concreto e aço, sombrias lembranças dos prédios de outrora, agora meras ruínas. As pilhas de entulho tornavam algumas ruas intransitáveis. Nas paredes e nos mu­ros, os slogans políticos pichados em vermelho pro­clamavam a história medonha da guerra civil. Sol­dados com calça de campanha, botas de combate e camiseta patrulhavam a cidade constantemente. Tinham expressão sombria, modos grosseiros e ar­rogantes. Atemorizada, a população civil passava a caminho do trabalho com olhos vigilantes e as­sustados, com movimentos furtivos.

Jenny nunca tinha visto um lugar tão depri­mente. Começou a sentir certa empatia com a cau­sa de Hal e a experimentar a sua determinação de corrigir tantos erros e dar fim àquela supressão do espírito humano.

Whithers, o funcionário do Departamento de Es­tado que os recebera na Cidade do México, era uma decepção. Ela que esperava um Gregory Peck cujo porte proclamava autoridade e impunha a obediên­cia, encontrou um homenzinho aparentemente in­capaz de aguentar um vento mais forte, quanto me­nos a má vontade de um governo hostil aos Estados Unidos. Com seu terninho listrado e amarrotado, nada tinha de autoritário ou impositivo. Ela o vi­sualizava muito mais como um objeto de chacota que como uma ameaça à junta militar.

Mas Whithers tinha sido gentil e se mostrara sensível a sua dor no povoadíssimo aeroporto, quando os conduziu ao avião que os levaria a Monterico. Tratara-a com o máximo respeito.

Jenny preferiu que Cage falasse a maior parte do tempo, e mesmo enquanto se encarregava dos as­suntos oficiais, ele não deixava de prestar atenção nela. Nunca se afastava muito, ficava constantemente ao seu lado, em geral com o braço protetor em seus ombros ou segurando-lhe delicadamente o braço.

Ela confiava em sua força, apoiava-se nela sem constrangimento. Santo Deus, que faria sem ele?

Por que as pessoas achavam que Cage não tinha a menor sensibilidade?

Cage Hendren não dá a mínima para ninguém nem para nada.

Era o que diziam.

Mas estavam errados. Ele gostava do irmão. Muito. E não podia ter sido mais gentil com ela.

Ao chegar a Monterico, Jenny, Cage e o Sr. Whithers foram instalados no banco traseiro de um velho Ford. Na frente, iam o motorista e um sol­dado com um AK-47 soviético a tiracolo. Toda vez que olhava para o fuzil automático, Jenny sentia um frio na espinha.

O motorista e seu companheiro representavam o governo que assumira o controle do país. Não faziam o menor esforço para dissimular o desprezo que tinham pelos passageiros.

Depois de dar muitas voltas na cidade, finalmente foram deixados diante de um prédio que antiga­mente era a sede de um banco e que, naquele mo­mento, servia de quartel-general do governo. Havia um bode amarrado numa das colunas da fachada do prédio. Parecia tão mal-humorado e hostil quanto os demais habitantes de Monterico.

Lá dentro, os ventiladores no teto tentavam em vão fazer circular o ar denso e sufocante. Mas o saguão do antigo banco pelo menos oferecia abrigo contra o sol escaldante. A blusa de Jenny se havia colado a suas costas. Fazia tempo que Cage tirara o paletó, a gravata, e arregaçara a manga da camisa.

Um soldado antipático apontou com o cano do fuzil para um velho sofá e grunhiu o que eles interpretaram como uma ordem para que se sen­tassem. O Sr. Whithers foi chamado ao escritório do comandante. Minutos depois, saiu de lá agita­do, enxugando a testa suada com o lenço.

— Fique sabendo que Washington será notifi­cada disso — gritou indignado.

— Notificada de quê? — quis saber Cage.

De pé, as pernas abertas, o paletó pendurado no dedo em gancho junto ao ombro, a camisa desabotoada, o peito exposto, já quase rosnando en­tre os dentes cerrados, ele dava mais medo que os próprios soldados.

O Sr. Whithers explicou que o corpo de Hal ain­da não tinha chegado à capital.

— A aldeia onde ocorreu a... ãh...

— A execução — completou Cage sem rodeios.

— Sim... Bem, a aldeia está isolada por causa dos combates com a guerrilha. Mas eles esperam que o corpo seja entregue ao anoitecer — apres­sou-se a acrescentar.

— Ao anoitecer! — exclamou Jenny. Passar uma tarde inteira naquele lugar dilacerado pela guerra era uma perspectiva desalentadora.

— Temo que sim, Srta. Fletcher. — O diplomata americano olhou com nervosismo para Cage. — Pode ser que chegue mais cedo. Ninguém sabe ao certo.

— E o que vamos fazer enquanto isso? — ela Perguntou.

O homem temperou a garganta e engoliu em seco.

— Esperar.

E foi o que fizeram, durante horas e horas que se arrastavam com monótona lentidão. Não lhes deram autorização para sair do prédio. Quando o Sr. Whithers, valendo-se de seus poderes diplo­máticos, conseguiu que providenciassem comida e bebida, serviram-lhes sanduíches de presunto estragado e água morna e turva.

— Isto deve ser sobra dos campos de prisioneiros — disse Cage com cara de nojo, jogando o san­duíche infame na lata de lixo mais próxima.

Jenny também não conseguiu comer aquele pre­sunto coberto por uma camada esverdeada. Mas os três beberam a água para evitar a desidratação. Ficaram suando no calor da tarde enquanto os soldados, encostados nas paredes com seus fuzis, entregavam-se à indefectível siesta.

Cage andava de um lado para outro, resmun­gando pragas contra Monterico em geral e contra aqueles guardas em particular. A pele clara e os olhos verdes de Jenny eram uma raridade no país, onde a maior parte da população tinha ascendên­cia hispânica. Cage sabia disso, embora ela não soubesse. E toda vez que os soldados endereçavam um olhar cheio de malícia na direção dela, ele os encarava ameaçadoramente.

Ninguém sabia que aquele estrangeiro falava fluentemente o castelhano e, quando um deles fez uma observação obscena sobre Jenny ao compa­nheiro, Cage arremeteu contra ele com os punhos cerrados. Whithers o segurou a tempo.

— Pelo amor de Deus, rapaz, não faça nenhuma besteira! Do contrário terei de mandar três corpos para os seus pais amanhã.

O diplomata americano tinha razão, naturalmente, e, com relutância, Cage voltou a ocupar seu lugar no sofá. Segurou com força a mão de Jenny.

— Não saia de perto de mim nem um instante, aconteça o que acontecer.

Quando o sol estava se pondo no alto da densa selva visível à distância, um enorme caminhão militar fez trepidar a rua toda e parou em frente ao quar­tel-general do governo. O motorista e sua escolta de­sembarcaram despreocupadamente, acendendo ci­garros, fazendo piadas, espreguiçando-se depois do que devia ter sido uma longa viagem em estradas empoeiradas. O mais barrigudo e de patente mais alta entrou lentamente no escritório do comandante.

— Acho que chegaram — disse o Sr. Whithers cheio de esperança.

E tinha razão. O comandante saiu do escritório com um maço de papéis na mão e lhes fez sinal para que fossem com ele para fora. Abriram a parte de trás do toldo de lona da carroceria, e o coman­dante subiu. Whithers o seguiu. Depois Cage.

— Não — disse Cage a Jenny, quando ela fez menção de subir também.

— Mas...

— Não! — repetiu ele com determinação. Havia quatro caixões no caminhão. Hal estava no terceiro que abriram. Quando levantaram a tampa, Jenny soube disso pela expressão de Cage. A Mudança foi brusca. Ele comprimiu as pálpebras e cerrou os dentes numa careta de horror. Whithers lhe fez uma pergunta. Ele respondeu com um gesto afirmativo. Depois, passeou os olhos no interior da carroceria como se não fosse capaz de tornar a olhar para o irmão. Mas conseguiu. Sua expressão se abran­dou e lhe saltaram lágrimas dos olhos. Ele estendeu a mão e tocou no rosto de Hal com ternura.

Então, a uma ordem brusca do comandante, fe­charam o caixão novamente. Cage e Whithers des­ceram do caminhão, e quatro soldados receberam ordem de subir e retirar o cadáver.

No momento em que saltou da carroceria, Cage abraçou Jenny. Só então ela percebeu que também estava chorando.

— Vamos embora daqui — disse ele ao diplo­mata que se aproximara. — Mande-os levar o cai­xão ao aeroporto, e vamos partir imediatamente.

Whithers se afastou apressado. Colocando o dedo no queixo de Jenny, Cage perguntou:

— Você está bem?

— Ele estava... O rosto dele está...

— Não — atalhou ele com delicadeza, acariciando-lhe os cabelos. — Hal está perfeito, parece que está dormindo. Incrivelmente jovem. Em paz.

Jenny deixou escapar um soluço e mergulhou o rosto no peito de Cage.

Ele baixou a cabeça e a estreitou, acariciando-lhe as costas. Apesar de seus sentimentos confusos por Hal, ele era antes de tudo um irmão para ela. Tinham morado na mesma casa o tempo su­ficiente para se sentirem parentes. Cage sabia o que ela estava sofrendo. Era como se uma parte dele mesmo estivesse naquele caixão.

Whithers pigarreou ruidosamente para chamar a atenção.

— Áh... Sr. Hendren. — Quando Cage ergueu a cabeça e o fitou, ele falou depressa. — Estão levando o corpo do seu irmão para o aeroporto agora. — Apontou para uma caminhonete desen­gonçada que se afastava com as engrenagens ge­mendo como se estivesse subindo uma ladeira.

— Ótimo. Eu quero tirar Jenny deste inferno o mais depressa possível. Podemos chegar à Ci­dade do México às...

— Há um problema.

Cage já estava se afastando. Deteve-se e, sem soltar o braço de Jenny, girou nos calcanhares.

— Que problema?

O diplomata americano transferiu o peso do cor­po de uma perna para outra, depois voltou à po­sição anterior.

— Eles não deixam nenhum avião decolar de­pois do anoitecer.

— Quê? — explodiu Cage. O sol acabava de se pôr. A escuridão era impenetrável como só acon­tece nas regiões tropicais.

— Medidas de segurança — explicou Whithers. — Não acendem as luzes da pista quando escu­rece. Não sei se hoje, ao chegar, o senhor reparou que a pista estava camuflada.

— Sim, sim, eu me lembro. — Irritado, Cage pas­sou a mão nos cabelos. — Quando poderemos viajar?

— Amanhã cedo.

— Se não partirmos amanhã bem cedo, vou criar urna grande confusão aqui. Também sei jogar sujo. Eles ainda não toparam com um guerrilheiro pior que eu — ameaçou ele com o dedo em riste. — E se acham que vou sujeitar Jenny a passar a noite neste banco, estão muito enganados!

— Não, não, não se preocupe. As autoridades já reservaram lugar para nós num hotel.

— Aposto que sim — resmungou Cage. — Mas nós mesmos vamos escolher o hotel.

Infelizmente, as opções eram limitadas, de modo que acabaram ficando no lugar indicado pelos fun­cionários do governo. Se os quartos fossem tão precários quanto o saguão principal, pensou Jen­ny, aquela noite seria das mais desconfortáveis. A mobília manchada estava coberta de poeira. Os ventiladores no teto giravam irregularmente. A barra das cortinas encardidas roçava o piso es­buracado. A pilha de revistas descoradas e tam­bém empoeiradas devia estar lá havia mais tempo que as cortinas.

— Não chega a ser o Fairmont — murmurou Cage com o canto da boca. O saguão estava po­voado não de porteiros, empregados e carregado­res, mas de soldados de ar sardônico e armados de fuzis automáticos.

Depois de conferenciar com o desgrenhado recep­cionista, Whithers entregou uma chave a cada um.

— Vamos ficar todos no mesmo andar — disse alegremente.

— Fantástico. Vou mandar levarem champanhe e caviar para a nossa festa.

Embora ofendido com o sarcasmo, o diplomata se voltou para Jenny.

— Srta. Fletcher, o seu quarto é o trezentos e dezenove.

Cage interceptou a chave antes que ela a pe­gasse e verificou o número da sua.

— A Srta. Fletcher vai ficar comigo no trezentos e vinte e cinco. Vamos, Jenny.

Tomou-a pelo braço e rumou com ela para a escada, preferindo subir a pé a servir-se do ele­vador. Se este se encontrasse nas mesmas condi­ções que tudo o mais naquele país desolado, era melhor não arriscar a vida, usando-o.

— Mas as autoridades foram muito específicas — protestou Whithers, correndo atrás deles feito um cachorrinho. — Nós devemos ficar em quartos separados.

— As autoridades que vão para o inferno! Acha que vou deixar Jenny sozinha à mercê dessa gen­te? Pense um pouco, amigo.

— Mas isso é romper o nosso acordo.

— Pouco me importa se a ruptura do seu acordo provocar a Terceira Guerra Mundial!

— Duvido muito de que façam mal a Srta. Flet­cher. Afinal de contas, eles não são selvagens.

Cage se virou e olhou com tanta fúria para o diplomata que este se encolheu.

— Ela vai ficar comigo.

Não havia como discutir ante a firmeza com que ele pronunciou essas palavras.

O quarto trezentos e vinte e cinco era quente, abafado e empoeirado como todo Monterico parecia ser. Cage usou o dimmer para escurecer um pouco o abajur. Foi até a janela e olhou para fora. Como era de se imaginar, estavam sendo vigiados por dois soldados na rua, dos quais se via unicamente a brasa dos cigarros na escuridão. Deixando a janela aber­ta, ele baixou a persiana para que tivessem um mínimo de privacidade. O ar fresco da noite tornou o quarto de hotel um pouco mais habitável.

— Whithers disse que vão mandar o jantar para cá.

— Se for como o almoço vai ser uma maravilha — disse Jenny, deixando cair à bolsa no colchão e sentando-se na beira da cama. Era evidente que estava muito triste, mas Cage se alegrou ao ver que não tinha perdido o senso de humor.

— Tire os sapatos e deite-se.

— Sim, vou descansar um pouco — concordou ela com desânimo e se deitou. A colcha tinha um estampado de flores vermelhas que pareciam que­rer engoli-la viva.

Meia hora depois, um soldado bateu na porta uma vez, abriu-a e entrou com uma bandeja. Jenny, que estava cochilando, sentou-se rapidamente na cama. Sua saia se ergueu, expando-lhe parte das coxas. O soldado a examinou com interesse.

Sem fazer caso da advertência de Whithers, Cage pegou a bandeja e empurrou o rapaz para fora. Bateu a porta encardida, trancou-a e a travou com uma cadeira sob a maçaneta. Tais medidas não deteriam as balas de um AK-47, mas fize­ram-no sentir-se melhor.

O jantar consistia em arroz, frango, feijão e pi­menta suficiente para que escorressem lágrimas dos olhos de Jenny. Em todo caso, ela estava sem apetite e, depois de dois bocados, deixou o garfo no prato.

— Coma — ordenou Cage.

— Estou sem fome.

— Coma mesmo assim. Pelo menos o que não estiver andando no prato.

Continuou insistindo até que ela se dignasse a engolir meia porção, escolhendo com muito critério os fibrosos pedaços de frango. Uma garrafa de vinho tinto denso e escuro acompanhava a refeição. Cage serviu-se de um pouco, provou-o e torceu o nariz.

— Acho que eles lustram os móveis com isto.

— É o expert em bebidas do distrito de La Bota que está falando?

— E assim que me chamam?

— Às vezes.

Cage lhe serviu o vinho.

Jenny aceitou, mas ficou olhando demoradamente para o copo, indecisa.

— Beba — disse ele, respondendo a muda per­gunta. — Não confio na água daqui. Pode ter cer­teza de que nenhum micróbio consegue sobreviver nessa beberagem.

Jenny experimentou o vinho, fez uma careta, riu de si mesma e tornou a beber. Conseguiu to­mar apenas cinco goles.

— Não aguento mais — disse, estremecendo com o sabor amargo.

Cage colocou a bandeja com os pratos sujos no chão, perto da porta. Passou um bom tempo ten­tando escutar algo, mas duvidava de que o esti­vessem vigiando. Pelo menos do outro lado. Em todo caso, sabia que havia uma sentinela a postos entre o elevador e a escada.

Será que o chuveiro funciona? — perguntou Jenny, aventurando-se no banheiro.

— Experimente.

— Não corro perigo de pegar uma infecção?

Ele riu.

— A esta altura é melhor arriscar. — Mostrou a camisa imunda. — Eu não tenho escolha.

— Eu também não — sorriu ela, olhando para o seu reflexo no espelho manchado e cheio de ondulações.

Fechando a porta, tirou a roupa e entrou no boxe. Normalmente, não teria coragem de pisar descalça num cubículo tão embolorado, entretan­to, como dissera Cage, não tinha escolha. Ou to­mava banho ou teria de ficar suja coberta de suor e poeira.

Para sua surpresa, a água que saiu do chuveiro estava quente e o sabonete era importado dos Es­tados Unidos. Ela até o usou para lavar os cabelos já que não tinha xampu.

Depois de se enxugar, ficou num dilema quanto ao que vestir. Precisava lavar a roupa de baixo e a blusa, do contrário não seria capaz de vesti-las novamente na manhã seguinte. Resolveu dormir de combinação, se bem que com o casaco do tailleur, questão de decência. Ficou ridícula com aque­la indumentária, mas não havia outra alternativa.

Lavou a lingerie na pia e pendurou a calcinha, as meias, o sutiã e a blusa no único toalheiro disponível. Apagando a luz, abriu a porta.

Seus olhos hesitantes encontraram os de Cage, curiosos, do outro lado do quarto. Constrangida, ela repuxou a gola do casaco, procurando cobrir os seios. Estava com os dedos dos pés muito encolhidos. Alguma vez Cage a tinha visto com os cabelos molhados?

— Eu... ãh... é que só havia uma toalha. Desculpe.

— Eu me seco com o ar. — Ele sorriu e tentou falar com voz despreocupada, mas seus olhos es­tavam presos à renda da combinação pouco acima de seus joelhos.

Jenny se aproximou da cama ao mesmo tempo em que Cage passava por ela rumo ao banheiro. Quando a porta se fechou, lembrou-se da roupa íntima pendurada no toalheiro. Sentiu o rosto ar­der. O que era uma tolice. Tinham morado na mesma casa. Quando Cage voltava nas férias, suas roupas eram lavadas juntas. Era impossível ir à lavanderia ou ao quintal sem que um visse uma peça do outro no varal. E em diversas oca­siões ele a vira de camisola ou roupão.

Mas agora era diferente. Inútil fingir que não. E pensar em Cage olhando para a sua calcinha a fez corar novamente.

Quando ele saiu do banheiro, Jenny havia ti­rado o casaco e estava deitada sob o lençol.

Ele exalava um cheiro bom de sabonete. Tinha posto só a calça. Vinha descalço. Os pêlos de seu peito es­tavam úmidos e encaracolados. Devia ter enxugado os cabelos com a toalha. As mechas loiras não pingavam, mas continuavam molhadas e despenteadas.

Apagou a luz, aproximou-se e se sentou na borda da cama.

— Muito desconfortável?

— Nem tanto, apesar dos pesares.

Cage segurou uma de suas mãos, que segura­vam o lençol junto ao queixo, e passou os dedos entre os dela.

— Você é uma mulher e tanto, Jenny Fletcher — disse em voz baixa. — Sabia disso?

— Como assim?

— Enfrentou o próprio inferno hoje, mas não se queixou uma só vez. — Com a outra mão, ro­çou-lhe os cabelos. — Acho-a fantástica.

— Você também é. — A voz dela estava trêmula. — Até chorou por Hal.

— Ele era meu irmão. Apesar de nossas dife­renças, eu o amava.

— Eu não consigo parar de pensar... — Sem conseguir refrear o pranto, ela mordeu o lábio quando uma lágrima lhe desceu pela face.

— Não pense nisso, Jenny. — Cage lhe alisou o rosto com o dorso da mão.

— Como não pensar?

— Não vale à pena. Vai enlouquecer se insistir.

— Você também está passando por isso, Cage. Eu sei que está. Que aconteceu a ele antes de morrer? Foi torturado? Espancado? Será que...

Cage pousou o dedo em seus lábios, calando-a.

— Claro que também pensei nisso. E tenho cer­teza de que Hal enfrentou tudo com bravura. Ele tinha uma fé inabalável. Estava fazendo o que achava que devia fazer. Duvido de que a fé tenha lhe faltado nessa hora.

— Você o admirava — sussurrou Jenny numa súbita percepção.

O rosto dele se cobriu de tristeza.

— Sim, admirava. Nossas reações às situações eram sempre diferentes. Eu era violento, Hal sem­pre foi pacífico. Às vezes a gente precisa ter mais coragem para ser doce e bom do que para sair dando bordoadas por aí.

Sem pensar, ela estendeu o braço e passou a mão em seu rosto.

— Ele também o admirava.

— A mim? — perguntou Cage com incredulidade.

— Por sua atitude desafiadora, por sua cora­gem, sei lá que nome dar a isso.

— Pode ser — concordou ele pensativo. — Eu gostaria de acreditar. — Puxando o lençol, ele lhe cobriu os ombros. — Agora durma um pouco.

Apagou o abajur e hesitou apenas um momento antes de se inclinar e lhe beijar fraternalmente a testa. Depois, foi se instalar na única cadeira moderadamente confortável do quarto, a que fi­cava perto da janela.

O dia tinha sido longo e cansativo. Em poucos minutos ambos estavam dormindo.

— Que é isso? — Jenny se sentou na cama com um sobressalto. O quarto estava escuro, mas um forte clarão iluminava a janela com regularidade.

Cage se levantou ao ouvir a exclamação e foi precipitadamente para a cama.

— Está tudo bem, Jenny. — Sentou-se e tentou fazer com que ela voltasse a se deitar, mas não conseguiu. Estava rígida. — E a muitos quilôme­tros daqui. Faz mais de meia hora que estou ou­vindo. Lamento que o barulho a tenha acordado.

— Não é trovão! — balbuciou ela. Cage fez uma pausa antes de responder.

— Não.

— É um combate?

— É.

— Oh, meu Deus! — Jenny cobriu o rosto com as mãos e se deixou cair nos travesseiros. — Eu odeio este lugar. É sujo, é quente, e eles matam sem parar. Matam gente boa, gente bonita como Hal. Quero ir embora — gritou. — Estou com medo e tenho raiva de estar com medo. Mas não posso fazer nada.

— Ah, Jenny.

Cage se deitou ao seu lado e a tomou nos braços, segurando-a com força.

— Estão combatendo longe daqui. Amanhã cedo iremos embora e você nunca mais vai pensar em Monterico. Mas agora eu estou com você. — Pas­sou os dedos em seus cabelos. Beijou-lhe a testa com carinho. — Não vou deixar que lhe aconteça nada. Por Deus, enquanto eu estiver vivo, nada vai lhe acontecer.

Aquelas roucas palavras, murmuradas e repetidas com tanta doçura, lhe deram segurança. A força física de Cage era como uma bóia salva-vidas à qual ela se agarrava. Quando ele se encostou na guarda da cama e a puxou para junto do peito, Jenny não resistiu e se aninhou nele, procurando instintiva­mente o contato de seu corpo grande e forte.

Mergulhando os dedos no emaranhado de pêlos de seu peito, pressionou o queixo naquela parede de músculos. Com o outro braço, enlaçou-lhe a cintura e se abrigou em seu abraço.

Cage a estreitou com força, murmurando pro­messas que ela ansiava por ouvir. A mente dele estava ciente da deliciosa proximidade de Jenny.

A combinação dela era macia e clara na escu­ridão do quarto. A seda rendada se estreitava na cintura, moldando-se à curva atraente dos qua­dris. Seus seios se comprimiam suaves, femininos, no peito dele.

Às vezes Jenny tinha um calafrio, um tremor, e Cage lhe beijava os cabelos e, encantado com a sua­vidade de sua pele, acariciava-lhe os ombros nus.

Por fim, Jenny adormeceu. Ele percebeu pela respiração regular e quente que lhe soprava os pêlos do peito. E quando, dormindo, ela pôs a per­na em cima da dele, repousando a coxa em sua coxa, o joelho quase a lhe roçar a braguilha, ele cerrou os dentes num esforço para resistir ao de­sejo que o sacudia. Olhou para aquela mão ador­mecida em seu colo. A necessidade de que ela o tocasse era tão profunda que quase o matou. Porém, se Jenny o tivesse tocado, ele provavelmente tam­bém morreria num espasmo de agonia e êxtase.

Ficou escutando o trovejar distante da batalha até que o silêncio finalmente prevaleceu. Viu os primeiros clarões do dia no horizonte. E continuou com ela nos braços, a noiva de Hal.

A mulher que ele amava.

 

O enterro de Hal Hendren atraiu mui­ta gente. Todos o consideravam um mártir. Os que zombavam dele antes de sua par­tida, chamando-o de fanático, estavam agora de cabeça baixa e cheios de reverência à beira do túmulo. As equipes de jornalismo das emissoras das principais cidades do Texas e de várias redes nacionais de televisão circulavam no cemitério à procura dos melhores ângulos para as câmeras.

Sentada ao lado de Sarah e Bob sob o toldo de lona ali armado, Jenny continuava sem acreditar que a missão do noivo terminara daquele jeito. Ainda lhe parecia impossível que ele estivesse morto. E espe­rava acordar a qualquer momento daquele pesadelo.

Desde seu retorno de Monterico em companhia de Cage, a casa paroquial se havia transformado num verdadeiro caos. O telefone não parava de tocar. O fluxo de visitantes era constante. As agências do governo mandaram representantes entrevistá-los sobre suas impressões do país centro-americano. Graças à interferência de bem-intencionados mem­bros da igreja, criou-se um clima de carnaval.

Jenny tinha dormido pouco desde que despertara nos braços de Cage no quarto de hotel em Monterico. Acordara lentamente e, ao perceber que estava aninhada em seu tronco nu, vestindo apenas combinação, levantou-se de um salto e deu com os olhos dele abertos e vigilantes.

— Co... com licença — gaguejou, saindo desajei­tadamente da cama para se refugiar no banheiro.

Enquanto se vestiam para partir, a tensão entre os dois crepitava qual uma fogueira. Mais de uma vez, um esbarrou no outro acidentalmente, o que os obrigava a murmurar constrangidos pedidos de desculpa.

Toda vez que Jenny arriscava olhar na direção de Cage, topava com seus olhos penetrantes a es­tudá-la e analisá-la. Então passou a evitá-lo, e ele se irritou.

Outro carro caindo aos pedaços os levou ao aero­porto, onde tomaram o mesmo avião que trans­portava o corpo de Hal. Na capital do México, o Sr. Whithers se pôs a correr de um lado para outro qual uma barata tonta, providenciando o vôo para El Paso, onde a limusine de uma casa funerária de La Bota estaria à espera deles a fim de levar o féretro para casa.

Cage ficou à janela do aeroporto, olhando para o nada, os ombros caídos, o rosto tenso, fumando um cigarro atrás do outro. Ao vê-la observando-o com expressão de surpresa, resmungou uma praga entre os dentes e apagou o cigarro no primeiro cinzeiro que encontrou. Jenny não o via fumar desde a noite da véspera da viagem de Hal.

Não tinham falado muito durante o vôo a El Paso.

Permaneceram quase totalmente em silêncio também na interminável viagem de automóvel a La Bota, acompanhando a limusine com sua triste carga.

E desde então, haviam trocado poucas palavras.

A camaradagem que se desenvolvera entre eles em Monterico deixara de existir. Por motivos que não conseguia identificar, Jenny se sentia ainda menos à vontade na presença de Cage que antes. Ele entrou na sala. Fitou-a; ela desviou o olhar. Não era capaz de dizer por que procurava evitá-lo, mas sabia que tinha a ver com a noite passada no hotel em Monterico.

Ele a havia tomado nos braços. E daí?

Daí, passaram a noite abraçados na cama, dor­mindo, ela vestia só a combinação, e ele, só a calça. E daí?

Estavam cercados pelo perigo. Estavam isolados e não tinham amigos naquele país estrangeiro. Em situações como aquela, as pessoas tinham ati­tudes que normalmente não teriam. Não se podia levar em conta um comportamento adotado em circunstâncias de tal modo excepcionais.

E provavelmente não significava nada o fato de ter acordado com a mão dele espalmada em sua nádega, a outra pousada um tanto possessivamen­te em seu pescoço, ao passo que ela estava com os dedos enroscados nos pêlos do peito de Cage, os lábios muito próximos de um mamilo rosado.

Agora Jenny olhava fixamente para frente, para o caixão coberto de flores, tentando desem­baraçar-se das lembranças daquela manhã. Não queria recordar o intervalo infinitesimal em que, despertando, sentira-se confortável, serena e se­gura. Mas não tardou a se dar conta do quanto àquela serenidade estava errada.

Não queria expor-se ao risco de se aproximar tanto de Cage novamente. Sua força e obstinação eram como um ímã que a atraía implacavelmente. Ela se sentiu tentada a buscar apoio em seus olhos, mas ele estava sentado ao lado de Bob, seus pais entre os dois.

O bispo concluiu a cerimônia à beira da sepul­tura com um longo sermão. Na limusine que os levou para casa, Sarah continuou chorando bai­xinho no ombro do marido. Sombrio, Cage ia olhando para fora. Tinha afrouxado a gravata e desabotoado o colarinho. Jenny se limitou a torcer o lenço calada.

Várias senhoras da igreja já se encontravam na casa paroquial, preparando o café e o ponche, cortando bolos e tortas para os que viriam dar os pêsames após o funeral. E eram muitos. Jenny pensou que aquele desfile não fosse terminar nun­ca mais. Cansada de ser consolada, ela saiu da sala e foi para a cozinha, onde fez questão de lavar a louça.

— Por favor — disse à mulher que ela substituiu a pia —, eu preciso fazer alguma coisa.

— Pobrezinha.

— O seu querido Hal partiu.

— Mas você ainda é moça, Jenny.

— A vida precisa continuar. Pode ser que de­more um pouco...

— Você está aguentando firme.

— É o que todo mundo diz.

— A viagem que fez àquele país horrível deve ter sido um pesadelo.

— E ainda por cima com Cage!

Esta última acrescentou um muxoxo às pala­vras e sacudiu gravemente a cabeça, insinuando que, para uma mulher, viajar na companhia de Cage era um destino pior do que a morte.

Jenny teve vontade de dizer a todas que, se não fosse Cage, ela dificilmente teria aguentado. Mas sabia que aqueles comentários eram inocen­tes, baseados na ignorância. Quando foram em­bora, ela agradeceu uma a uma, perdoando-lhes a burrice, pois sua preocupação era sincera.

Terminou de lavar a louça empilhada no balcão e foi procurar as peças que estavam espalhadas na casa. Ao entrar na sala de estar, ficou aliviada ao encontrar apenas os Hendren. Finalmente as visitas tinham ido embora. Jenny se deixou tom­bar numa poltrona e inclinou a cabeça para trás.

Abriu os olhos ao ouvir o clique de um isqueiro. Cage acabara de acender um cigarro. Guardando o maço no bolso, deu uma longa tragada.

— Eu já lhe pedi que não fume nesta casa — disse Sarah. Estava enrugada e encolhida no sofá, quase esquelética. Seus olhos agora enxutos con­tinuavam inchados, sombrios. Sua expressão era tão amarga que beirava a crueldade.

— Desculpe — disse ele. Levantou-se calma­mente, foi até a porta da rua e jogou o cigarro na noite que, sem que percebessem, havia chega­do. — É o hábito.

— Você precisa trazer os seus péssimos hábitos para esta casa? — perguntou Bob. — Não tem respeito por sua mãe?

Cage, que estava voltando para a poltrona, deteve-se surpreso com o tom ríspido do pai.

— Eu tenho respeito por vocês dois — respondeu em voz mansa, embora a tensão fosse visível em seu corpo.

— Você não respeita ninguém — retrucou Sarah. — Eu não o ouvi dizer uma só vez que sentiu a morte de seu irmão. Não vi nenhum gesto de simpatia.

— Mamãe, eu...

Ela prosseguiu como se não o tivesse ouvido.

— Mas também não sei por que cheguei a es­perar alguma coisa de você. Não fez outra coisa senão me dar desgosto desde o dia em que nasceu. Nunca teve consideração por mim como Hal tinha.

Jenny endireitou o corpo na poltrona e quis lem­brar Sarah de que fazia dias que Cage vinha cui­dado de tudo, da mídia e dos detalhes legais li­gados à morte de Hal. Mas não teve oportunidade de dizer nada, pois Sarah continuou falando.

— Hal teria ficado o tempo todo ao meu lado numa situação destas.

— Eu não sou Hal, mamãe.

— E acha que não sei disso? Você nunca chegou aos pés de seu irmão.

— Por favor, Sarah — pediu Jenny, escorre­gando para a beira da poltrona.

— Hal era tão bom, tão bom e tão doce. O meu filho querido. — Os ombros de Sarah se sacudiram, e seu rosto se contraiu numa nova crise de choro. — Se Deus tinha de levar um dos meus filhos, por que escolheu Hal e deixou você?

Jenny levou a mão à boca.

— Oh, meu Deus!

Bob se pôs de joelhos em frente à esposa, tentando consolá-la. Cage passou um longo tempo olhando para os pais com incredulidade; depois, seu rosto se endureceu. Ele deu meia-volta e foi para a porta. Bateu-a com violência, atravessou com passos largos a varanda da frente e desceu os degraus.

Sem parar para pensar, Jenny correu atrás dele. Atravessou o jardim e foi alcançá-lo no meio-fio, onde estava estacionada a Corvette. Ele acabava de tirar o paletó do terno azul-marinho, que parecia quei­mar-lhe as costas, e de desabotoar o colete.

— Volte para lá — gritou ao vê-la. Sentou-se ao volante do carro esporte e deu a partida. Faltou pouco para que a chave se que­brasse no contato. Pisando com violência na embreagem, engatou a primeira. Jenny abriu depres­sa a porta do lado direito e entrou no carro um segundo antes que ele pisasse no acelerador.

A Corvette arrancou feito um míssil. Derrapou no meio da rua e carenou quando ele virou a esquina sem desacelerar antes de fazer a curva. Jenny agar­rou a maçaneta e, milagrosamente, conseguiu fechá-la sem cair no asfalto ou deslocar o braço.

Cage já estava em quarta marcha quando che­garam ao limite do perímetro urbano. Ao manejar o câmbio, cerrou os dentes com força como se, com isso, adquirisse maior controle do automóvel.

Jenny não se atreveu a olhar para o velocímetro. A paisagem era um borrão. Os faróis fendiam a interminável escuridão a sua frente.

Ele manipulou os botões do rádio, com uma só mão no volante, até encontrar a estação de heavy metal que procurava. Aumentou o volume ao má­ximo, inundando o interior do carro com o som ensurdecedor e agressivo do rock.

— Você cometeu um grande erro — gritou em meio ao barulho. — Devia ter ficado em casa.

Estendendo o braço e roçando os joelhos dela, abriu o porta-luvas, de onde tirou um frasco pra­teado. Prendendo-o entre as pernas, desatarraxou a tampa e o levou aos lábios. Tomou um longo trago. A julgar pela careta que fez ao engolir, a bebida devia ser forte. Bebeu novamente e continuou via­jando em alta velocidade, uma só mão na direção.

As janelas estavam abertas. Agitando os cabelos de Jenny, o vento soltou todos os grampos que os prendiam num discreto coque, e mal a deixava res­pirar. Ela não sabia como Cage conseguira acender o cigarro, porém, na penumbra do carro apenas ilu­minado pelas luzes do painel, a brasa brilhava entre seus lábios, afogueando-lhe o rosto sério.

— Está gostando? — perguntou ele com sarcasmo. Aparentemente indiferente à provocação, Jenny virou a cabeça e ficou olhando para frente. Não se dignou a lhe dar resposta. O automóvel em al­tíssima velocidade a aterrorizava. Ela desaprovava aquilo tudo, mas permaneceria muda mesmo que tivesse de morrer ali, o que podia acontecer a qual­quer momento, sobretudo quando ele saiu bruscamente da rodovia e entrou por uma estrada de terra sem nenhuma sinalização. Como conseguiu fazer a manobra, Jenny era incapaz de imaginar.

Exigiu muito da velha Corvette, dirigindo da­quele modo na pista ondulada feito uma tábua de lavar roupa. Os dentes de Jenny bateram com força quando ela os cerrou para mantê-los intac­tos. Ia agarrada ao estofamento do banco para não bater a cabeça no teto com os solavancos.

Estavam subindo. Ela sentia a mudança de al­titude, muito embora não conseguisse ver nenhum relevo na escuridão que os cercava. A luz dos faróis oscilava loucamente com os movimentos erráticos do veículo. Até a lua havia desaparecido atrás de uma nuvem, deixando a noite ainda mais escura: parecia querer dizer que Cage Hendren se entre­gara a mais uma de suas selvagens empreitadas e era melhor que ninguém a testemunhasse.

Ele freou abruptamente, fazendo os pneus ge­merem; o carro avançou uns dois metros antes de parar completamente. Jenny quase bateu a ca­beça no pára-brisa.

Com o motor desligado, criou-se um repentino silêncio, pois o rádio também emudeceu. Apoiando o braço na janela, Cage tirou o cigarro da boca e o substituiu pelo gargalo do frasco. Bebeu mais uma vez, estalando a língua com satisfação. Vol­tou-se para Jenny, que o observava calada.

— Desculpe. Que falta de educação a minha! Aceita um trago?

Ofereceu-lhe o frasco. Ela não se moveu, não mudou de expressão.

— Não? — Ele sacudiu os ombros. — Pior para você. — Bebeu mais, depois agitou o maço de cigarros diante dela. — E fumar, você quer? Oh, não. Claro que não.

Jenny o fitava enquanto ele tomou mais um gole.

— Você é a moça mais pura e imaculada que existe. A virtude em pessoa. Perfeita. Intocável. Digna unicamente de um santo como o nosso fa­lecido Hal Hendren. — Deu uma longa tragada e soprou a fumaça diretamente em seu rosto.

Jenny não reagiu.

Talvez irritado com tanta compostura, ele jogou o cigarro pela janela.

— Vamos ver. O que pode abalar você? O que preciso fazer para que comece a gritar de pavor? Para que dê o fora do meu carro, para que suma da minha frente, para que suma da minha vida maldita?

Cage berrava. Estava ofegante, desfigurado. Jenny, contudo, percebeu que se esforçava para se controlar. Quando ele tornou a falar, a voz ain­da lhe saiu trêmula de dor e carregada de ódio, mesmo assim parecia mais calma.

— O que preciso fazer para lhe dar nojo? Para que fuja daqui com a sua grande virtude? O quê? Dizer palavrões? Sim, pode ser. O mais provável é que não conheça nenhum, mas não custa tentar. Quer que os coloque em ordem alfabética ou prefere que os diga conforme me ocorrerem?

— Você nunca vai me dar nojo, Cage.

— Quer apostar?

— Pode fazer ou dizer o que quiser, eu não vou embora daqui.

— Não mesmo? Quer dizer que está disposta a me salvar? É isso? — Ele soltou uma gargalhada histérica. — Não perca tempo, menina!

— Eu não vou embora.

— Não? — Um sorriso sádico lhe retorceu os lábios. — É o que vamos ver.

Inclinou-se no banco e, segurando-lhe a nuca, puxou-a para junto de si. Pressionou os lábios nos dela. Chocou brutalmente os dentes com sua boca delicada. Jenny não ofereceu resistência. Mesmo quando ele mergulhou a língua entre seus lábios, violando-lhe a boca da maneira mais sórdida, su­portou tudo sem se defender.

A roupa que ela escolhera para o enterro de Hal era um conjunto preto de duas peças. Cage lhe apalpou a cintura, levantou o casaco e mer­gulhou a mão por baixo dele.

— Tenho certeza de que conhece a minha re­putação com as mulheres — murmurou seu hálito ardente a queimar-lhe o pescoço. — Eu sou im­placável, não tenho escrúpulos. Um deflorador, um destruidor de lares, uma máquina de sexo totalmente descontrolada. Dizem que sou tarado, que não consigo ficar com a braguilha fechada. — Enfiou o joelho entre as pernas dela, abrindo-as. — Sabe o que isso significa para você, Jenny? Um sério problema. Você acaba de se meter numa enrascada, mocinha.

Invadiu-lhe a boca novamente com um beijo injurioso ao mesmo tempo em que lhe agarrava o seio por baixo da roupa. Apertou-o com força, de­pois puxou o frágil bojo do sutiã para desnudá-lo.

Massageou-o rudemente, esfregando o polegar no delicado mamilo.

Embora decidida a não reagir, Jenny afastou as costas do respaldo do banco, endireitando o corpo tenso, mas não lutou. Resistiu passivamente.

No entanto, o suspiro que lhe escapou foi mais efetivo que uma sirene. Cage voltou a si ao ouvi-lo, percebeu o que estava fazendo e se desaprumou diante dela feito um boneco inflável a quem ti­vessem furado com um alfinete. Respirou fundo, os lábios ainda encostados nos dela, mas já des­pojados de violência.

O oxigênio dispersou a neblina de álcool e raiva que o envolvia. Constrangido, ele lhe soltou o seio e, numa patética tentativa de reparar o mal, ten­tou recolocar o sutiã de renda no lugar. A seguir, recuou e saiu do carro.

Jenny mergulhou o rosto nas mãos e respirou fundo alguns momentos. Estava trêmula. Recompondo-se, alisou a roupa, os cabelos, abriu a porta e também saiu.

Encontrou Cage sentado no pára-lama, contem­plando a escuridão. Ela reconheceu o lugar onde estavam. Era a meseta, um planalto que se ele­vava na zona rural e se estendia por quilômetros e quilômetros. Lá embaixo, a planície escura es­tava no mais profundo silêncio. O vento quente e seco colava a roupa em seu corpo e lhe agitava os cabelos, enquanto uivava lúgubre o seu pranto.

Jenny se colocou diante dele, obrigando-o a vê-la. Seus joelhos quase se tocaram. Cage ergueu a cabeça, fitou-a um momento, depois olhou para o chão.

— Desculpe. Eu lamento muito.

— Eu sei. — Ela lhe tocou os cabelos, afastan­do-os da testa, mas o vento os arrebatou imedia­tamente de seus dedos.

— Como eu pude...

— Não faz mal, Cage.

— Claro que faz — insistiu ele entre os dentes. — Faz muito mal!

Ergueu novamente a cabeça e pousou delicada­mente a mão no seio que pouco antes apertara com tanta violência. Nada havia de sexual naquele contato. Era como se estivesse segurando o ombro de uma criança ferida.

— Eu a machuquei?

Sua mão estava quente. Jenny a cobriu com a dela.

— Não.

— Machuquei.

— Não tanto quanto eles o machucaram.

Passaram um bom tempo entreolhando-se. Uma emoção sem nome vibrou entre eles qual uma cor­rente elétrica. Jenny afastou a mão. Ele a imitou. Ela se sentou ao seu lado no pára-lama da Corvette. A superfície lustrosa estava quente, mas nenhum dos dois reparou.

— Sarah não sabia o que estava dizendo, Cage.

Ele riu.

— Sabia sim.

— A coitada está transtornada. Foi à dor que falou não ela.

— Não, Jenny. — Cage sacudiu a cabeça com tristeza. — Eu sei o que eles sentem por mim. Queriam que eu não tivesse nascido. Eu sou a lembrança viva de uma coisa na qual os dois fra­cassaram, um incômodo perpétuo e um insulto constante a sua fé, a suas convicções. Mesmo que não o digam em voz alta, eu sei o que pensam. Provavelmente é o que todo o mundo pensa. Cage Hendren merece morrer. Seu irmão não merecia.

— Não é verdade!

Ele se levantou e foi até a borda da meseta. Pôs as mãos nos bolsos. Sua camisa branca se realçava na escuridão. Jenny o seguiu.

— Quando isso começou?

— Quando Hal nasceu. Talvez antes. Não me lembro. Só sei que sempre foi assim. Ele era o anjinho loiro, literalmente. Eu devia ter nascido de cabelos pretos. Então sim, seria a ovelha negra dos pés à cabeça.

— Não diga isso de você mesmo.

— Ora, é a pura verdade! — exclamou ele brus­camente, voltando-se para encará-la com hostilidade. — Veja o que fiz com você. Faltou pouco para que estuprasse a mulher que eu... — Interrompeu a frase. Ele apertou os lábios como para esconder as palavras não ditas e virou para o outro lado novamente.

— Eu sei por que fez isso comigo, por que bebeu e começou a correr com o carro. Estava tentando provar que eles têm razão. Mas acontece que não têm Cage. — Aproximou-se dele. — Você não é uma pessoa de má índole que, graças a um aci­dente genético, apareceu numa família perfeita. Eu não sei o que veio primeiro, a sua rebeldia, com a qual eles não souberam lidar, ou o desprezo deles, que o tornou rebelde. — Segurou-lhe a manga da camisa, forçando-o a olhar para ela. — Não lhe parece lógico? Você passou a vida reagindo a eles. Esforça-se para ser mau porque é o que as pessoas esperam de você. Fez carreira de ovelha negra na família de um pastor. Você não vê Cage? Desde menino fazia coisas erradas para lhes cha­mar a atenção, porque eles preferiam Hal. Eles erraram. Eles fracassaram não você. Eram dois filhos, cada um com uma personalidade diferente. Mas Hal se parecia mais com eles, e acabou sendo transformado no modelo a ser seguido. Você ten­tou ganhar a sua aprovação e, como não conse­guiu, passou a fazer o contrário.

Ele sorriu com ironia.

— E, pelo que vejo você percebeu tudo.

— Percebi. Do contrário teria ficado apavorada com o que aconteceu agora há pouco. Mesmo al­guns meses atrás teria ficado. Mas hoje eu sabia que não me faria mal. Eu o conheço melhor agora. Observei-o. Vi você chorar a morte do seu irmão. Você está muito longe de ser "mau" como quer que as pessoas pensem que é. Como não podia competir com a bondade de Hal, resolveu ser cam­peão em outra arena.

Cage a ouvia com atenção, e, por mais que qui­sesse contestá-la, o que Jenny dizia tinha sentido. Ele olhou para baixo e revolveu a terra com o bico do sapato, levantando pequenas nuvens de poeira que rodopiaram no vento.

— O que me preocupa é até quando vai agir assim.

Ele a fitou.

— Assim como? Que está querendo dizer?

— Você foi levado a sentir que não tem valor ne­nhum. Até onde é capaz de chegar para provar que isso é verdade? Até onde é capaz de chegar para provar que não presta mesmo, que não vale nada?

Cage prendeu os polegares no cós da calça e inclinou a cabeça para o lado com arrogância.

— Você já me analisou até aqui. Por que não continua e não diz o que está vendo? Acha que estou me matando?

— As pessoas que não têm auto-estima cometem grandes tolices.

— Como dirigir em alta velocidade, beber muito e viver ao deus-dará?

— Exatamente.

— Ora bolas! É só perguntar por aí. Qualquer um é capaz de falar de minha auto-estima.

— Eu não estou falando de suas ações, mas de seus sentimentos. Eu vi o seu lado sensível, aquele que você não mostra para ninguém.

— Acha que estou cometendo uma espécie de suicídio lento?

— Eu não disse isso.

— Mas foi o que quis dizer. — Ele passou os dedos nos cabelos com impaciência. — Você exa­gerou um pouco na psicologia, Jenny.

Estava muito defensivo para admitir que talvez ela tivesse razão.

— Ok, desculpe. Só estou preocupada porque gosto de você, Cage.

Ele relaxou imediatamente, seus olhos se abrandaram.

— Obrigado, mas não precisa se preocupar com o modo como vivo. Gosto de velocidade, de bebida e de... Qual era a outra coisa? — perguntou, testando-a. Porém Jenny ainda não tinha terminado.

— Eu acho que seus pais também gostam de você.

Seu estado de espírito flutuava. Com olhos tris­tes, ele olhou por cima da cabeça de Jenny, para a paisagem árida.

— Será que mamãe não percebe que eu queria ficar com ela, ficar com os dois? Desde que chegou a notícia da morte de Hal, tenho vontade de abra­çá-los. — Sua voz desceu um decibel. — De que eles me abracem.

— Cage. — Jenny estendeu o braço para tocá-lo. Ele lhe empurrou a mão. Não queria a compaixão de ninguém.

— Eu não me aproximei porque sabia que eles não me queriam, mas tentei mostrar o meu amor e a minha solidariedade de outro modo. — Exalou um longo suspiro. — Mas eles nem notaram.

— Eu notei. E fiquei agradecida.

— Mas você também não deixa que eu me apro­xime Jenny — disse Cage abruptamente, fitando-a nos olhos.

Ela desviou o olhar rapidamente.

— Não sei o que está querendo dizer.

— Sabe, sim! Quando estávamos em Monterico, você se apoiou em mim, apoiou-se em mim emocional e fisicamente. Desde que voltamos você me evita. "Tire as mãos." "Não me toque." "Não fale comigo." Droga, você nem sequer olhou para mim.

Ele tinha razão, mas ela não podia admitir.

— Por acaso está me evitando por causa da noite que passamos juntos em Monterico?

Ela ergueu a cabeça e umedeceu os lábios, em­bora sua língua tivesse ficado subitamente seca.

— Claro que não.

— Tem certeza?

— Tenho. Que diferença isso poderia fazer?

— Nós dormimos juntos.

— Não nesse sentido! — exclamou Jenny defensiva.

— Exatamente — disse Cage, aproximando-se até ficar bem perto dela. — Mas, a julgar pelo seu comportamento é como se tivesse sido "nesse sentido". Por que se sente tão culpada?

— Eu não me sinto culpada.

— Não? Não anda pensando que não tinha nada de dormir nos meus braços, estando quase sem roupa, só com aquela combinação? Não sente que, de certo modo, nós fomos desleais com Hal: afinal ele ainda estava no caixão, não é mesmo? Não é nisso que anda pensando?

Jenny lhe deu as costas, cruzou os braços sobre o estômago, como se estivesse doendo, e apertou muito as mãos nos cotovelos opostos.

— Eu não devia ter ficado daquele jeito com você.

— Por quê?

— Você sabe muito bem.

— Porque você sabe o que todo mundo pensa "e uma mulher que passa a noite na cama comigo”.

Ela não disse nada.

— Do que tem medo, Jenny?

— De nada.

— Tem medo que alguém descubra sobre essa noite?

— Não.

— Medo que seu nome passe a figurar na lista de conquistas de Cage Hendren?

— Não.

— Tem medo de mim?

Nem mesmo o vento implacável foi capaz de dissimular a hesitação e o tremor em sua voz. Jenny deu meia-volta e viu a tristeza estampada no rosto dele.

— Não, Cage, não.

Para prová-lo, avançou um passo, enlaçou-lhe a cintura e pousou a cabeça em seu peito. No mesmo instante, ele a tomou nos braços.

— Eu não a culparia se tivesse principalmente depois do que aconteceu hoje. Mas eu não aguen­taria isso. Seria a pior coisa do mundo. Não aguentaria saber que você teme que eu lhe faça algum mal.

Jenny podia ter dito que tinha menos medo dele que de suas próprias reações. Quando Cage estava por perto, ela saía da concha em que vivia na casa paroquial e se transformava em outra mulher.

Ele fazia o seu coração bater mais depressa, sua respiração acelerar-se, suas mãos ficarem úmidas. Jenny se transformava quando estava com Cage. Em sua companhia, ela esquecia quem era e de onde vinha, vivia só o momento.

Era quase como se tivesse passado todos aqueles anos apaixonada por Cage, não por seu irmão. Ela fizera amor com Hal, mas a noite em que tinha dormido nos braços de Cage também fora maravilhosa. Mas que difícil admitir isso! Aceitar isso! Como era possível que, apenas uma semana depois da morte de Hal, estivesse se perguntando como seria fazer amor com Cage? Assustada com a idéia, ela recuou.

— E melhor voltarmos para casa. Já devem es­tar preocupados.

Ele se mostrou desapontado, mas acompanhou-a até o carro sem discutir. Jogou o maço de cigarros pela janela.

— Isso é lugar de jogar lixo?

— Mulheres — resmungou Cage, engatando a primeira marcha. — Nunca estão contentes.

Sorriram. Tudo estava em ordem.

Quando chegaram à casa paroquial, após uma viagem prudente até a cidade, ele desceu primeiro e foi abrir a porta para ela. Pôs a mão em sua cintura enquanto a acompanhava até a porta. Ela fez o mesmo.

— Obrigado, Jenny.

— Por quê?

— Por ser minha amiga.

— Você também tem sido meu amigo.

— Mesmo assim, obrigado. — A porta, eles fi­caram face a face. Cage parecia não querer ir em­bora. — Bom, boa noite.

— Boa noite.

— Acho que vai demorar para que eu volte aqui.

— Eu entendo.

— Mas telefonarei para você.

— E pena que isso tenha acontecido entre você e seus pais no momento em que mais precisam um do outro.

Ele suspirou com amargura.

— É, mas é assim. Se precisar de alguma coisa, qualquer coisa, avise-me.

— Aviso.

— Promete?

— Prometo.

Cage lhe apertou a mão, inclinou-se e a beijou de leve no rosto. Demorou um pouco para afastar os lábios. Ou talvez tivesse sido só a imaginação de Jenny. Ela ainda não tinha chegado a nenhuma conclusão quando entrou e subiu ao primeiro an­dar. A casa estava às escuras. Os Hendren já ti­nham ido para a cama.

Ela abriu a porta e entrou. Olhou para o quarto com decoração infantil. E agora? perguntou-se.

O que Jenny Fletcher faria com o resto de sua vida?

Ponderou a questão enquanto se despia e, já na cama, passou longas horas às voltas com o mesmo problema, sem conseguir dormir.

Ao amanhecer encontrou a resposta. Mas como poderia contar aos Hendren?

 

Bob estava preparando torradas quan­do Jenny entrou na cozinha na ma­nhã seguinte. Ela sorriu ao vê-lo de avental e lhe beijou o rosto. Tendo se servido de café, sentou-se à mesa com Sarah, que, distraída, empurrava os ovos mexidos de um lado para outro do prato.

— Aonde você foi ontem?

Nenhum "Bom dia", nenhum "Dormiu bem?" Nada. Só a pergunta direta. E Sarah a fez com os lábios apertados, seu rosto estava tenso.

— Nós — Jenny fez questão de sublinhar a palavra — fomos dar uma volta de carro.

— Você chegou muito tarde. — Bob tentou fazer o comentário parecer casual, porém Jenny sabia que aquela conversa nada tinha de casual ou es­pontânea. A atmosfera entre eles era de suspeita e hostilidade, como se fossem inimigos patrulhan­do o campo de batalha.

— Como vocês sabem a que horas eu cheguei? Já estavam dormindo.

— A Sra. Hicks passou por aqui hoje. Ela viu... ela disse que viu você e Cage juntos ontem.

Jenny olhou de um para o outro. Estava ao mesmo tempo surpresa e zangada. A Sra. Hicks era a grande fofoqueira do bairro. Adorava espalhar boatos, principalmente os ruins.

— Que mais ela disse?

— Nada — respondeu Bob com desconforto.

— Não, eu quero saber! Que mais ela disse? Seja o que for, é óbvio que os deixou contrariados.

— Nós não estamos contrariados, Jenny — disse Bob diplomaticamente. — É que não queremos que as pessoas comecem a ligar o seu nome ao de Cage.

— O meu nome já está ligado ao de Cage. Ele é um Hendren, filho de vocês — ela lembrou ir­ritada. — Eu passei os últimos doze anos de minha vida na casa da família Hendren. Como o meu nome poderia não estar ligado ao dele?

— Você sabe o que estamos querendo dizer, meu bem — interferiu Sarah. As lágrimas já brilhavam em seus olhos. — Nós só temos você agora. E não...

— Não é verdade! — gritou Jenny com raiva, levantando-se. — Vocês têm Cage. Nunca imagi­nei que um dia eu chegaria a dizer uma coisa destas, mas estou com vergonha de vocês. Sarah, você tem ideia do quanto magoou Cage ontem? Não precisa aprovar tudo que ele faz na vida, mas ele continua sendo seu filho. Você disse que preferia vê-lo morto!

Sarah baixou a cabeça e começou a chorar. Ar­rependida de sua explosão, Jenny voltou a sen­tar-se. Bob deu um tapinha no ombro da esposa numa débil tentativa de consolá-la.

— Ela estava transtornada ontem quando vocês saíram daqui — explicou. — Já compreendeu que não devia ter dito aquilo e lamenta muito.

Jenny ficou calada, tomando seu café, até que Sarah parasse de chorar. Por fim, pôs a xícara no pires.

— Eu resolvi ir embora.

Como ela previa, os dois ficaram atônitos. Pas­saram longos momentos imóveis, incrédulos, olhando-a com os olhos parados.

— Embora? — Sarah enfim perguntou.

— Vou sair da casa paroquial e começar a minha própria vida. Há anos que moro aqui, esperando o dia em que ia me casar com Hal. Talvez se hou­véssemos nos casado, se tivéssemos filhos... — Tra­tou de apartar o pensamento. — Mas, como não aconteceu e não pode mais acontecer, eu já não tenho motivo para ficar. Preciso construir o meu futuro.

— Mas o seu futuro é aqui conosco — con­trapôs Bob.

— Eu sou uma mulher feita. Preciso...

— Nós precisamos de você, Jenny — gritou Sa­rah, pousando á mão fria e úmida em seu braço. — Você nos lembra Hal. E como se fosse nossa filha. Não pode fazer isso conosco. Por favor, não vá embora. Nos dê um pouco de tempo para nos adaptarmos à perda de Hal. Não pode ir embora assim. Não pode. — E se pôs a soluçar novamente, o lenço amarrotado e úmido no rosto.

Jenny sentiu uma pontada de culpa. Era res­ponsável pelos dois, não era? Eles a haviam aco­lhido e lhe deram um lar quando ela não tinha mais nada na vida. Acaso não lhes devia isso?

Pelo menos algum tempo. Algumas semanas? Al­guns meses?

A ideia a deprimia, mas o dever sempre unia as pessoas.

— Está bem — concordou com desânimo. — Mas saibam que não vou viver sob a censura da Sra. Hicks nem de ninguém. Eu era noiva de Hal e o amava, mas ele morreu. Preciso seguir minha vida.

— Você tem a liberdade de ir aonde quiser. Sem­pre teve — disse Bob, aliviado porque tinha ter­minado a conversa sobre sua partida. — Foi por isso que lhe compramos o carro.

Para Jenny não se tratava desse tipo de liber­dade, mas era inútil tentar explicar-lhes. Eles não entenderiam.

— Minha outra condição é que peçam desculpas a Cage pelo que disseram ontem.

Os velhos fizeram menção de protestar, mas Jenny os encarou com firmeza. Os dois baixaram a vista.

— Está bem, minha filha — cedeu Bob por fim. — Nós vamos fazer isso. Por você.

— Não. Por mim não. É por vocês e por ele. — Levantou-se e foi para a porta. — Acho que Cage vai perdoá-los porque ele os ama. Só espero que Deus também lhes perdoe.

Os carrinhos de supermercado se chocaram, Jenny estremeceu com o impacto. Uma caixa de sabão em pó tombou. As latas de conserva rolaram ruidosamente. Um rolo de papel de cozinha caiu na bandeja de ovos.

— Olá.

— Seu bruto. Você fez isso de propósito.

O sorriso dele era sereno, sem sombra de arrependimento.

— E um bom truque para ficar conhecendo uma bela mulher. Dar uma trombada em seu carrinho de compras. Ela pode ficar confusa, zan­gar-se até, mas já está à mercê da gente. Geral­mente tento bloquear as rodas do carrinho. — Olhou para baixo e enrugou a testa. — Você foi muito rápida para mim.

— Você não tem consciência, Cage Hendren.

— Nem um pingo.

— E que acontece depois? — perguntou Jenny. — Estou fascinada.

— Você diz, depois...

— Depois que bateu no carrinho de sua vítima e bloqueou as rodas, ela fica confusa etc. Que você faz então?

— Proponho que vá para a cama comigo.

Jenny recebeu a resposta como uma leve bofetada.

— Oh! — Afastou o carrinho do dele, que estava vazio, e seguiu pelo corredor de ração para cães. Como os Hendren não tinham cães, a atenção que ela dava às mercadorias era simplesmente absurda.

— Bom, você disse que estava fascinada — de­fendeu-se Cage, colocando-se ao seu lado.

— E estou, quer dizer, estava, mas imaginei que fosse um pouco mais sutil ao seduzir uma mulher.

— Por quê?

— Por quê? — Ela girou sobre os calcanhares para encará-lo, abandonando momentaneamente a busca nas prateleiras. — Você está dizendo que é simples assim? Num estalar dos dedos? — E estalou os dela.

Cage franziu a testa, fingindo concentração.

— Nem sempre. Às vezes exige mais tempo e esforço. — Seus olhos castanho-claros, de reflexos dourados, a percorreram dos pés à cabeça, despindo-lhe a calça, o pulôver de lã, as peças íntimas, tudo. — Veja você por exemplo. Aposto que seria um caso difícil.

— Por quê?

— Quer ir para a cama comigo?

— Não!

— Está vendo? Eu sempre tenho razão. — Bateu a ponta do indicador na testa. — Quando tiver tanta experiência quanto eu, você também vai aca­bar aprendendo. A gente desenvolve uma espécie de sexto sentido, sabe? Com você, por exemplo, eu poderia dizer imediatamente que tenho de usar uma abordagem lenta, cuidadosa, demorada. Foi a leve careta que fez no momento em que a caixa de sabão amassou a embalagem do marshmallow que me fez chegar a essa conclusão. Uma dica de que não ia ser fácil.

Ela o fitou em muda admiração; no fim de vários segundos, soltou uma gargalhada.

— Cage, você é amoral, juro.

— Talvez um pouco sem-vergonha. — Ele piscou — Mas ninguém pode dizer que não sou sincero.

Jenny saiu da seção de ração para animais e entrou em outra. Ele se colocou a sua frente, bloqueando-lhe a passagem.

— Você não está com boa aparência.

— É essa a sua abordagem lenta, demorada e cuidadosa? — perguntou Jenny com frieza. — Se for, acho que não vai funcionar.

Quando ela tentou avançar, Cage atravessou o carrinho no corredor, obstruindo o caminho inteiramente.

— Você sabe o que estou querendo dizer. Parece cansada. Emagreceu. Que andam fazendo com você naquela casa?

— Nada — respondeu ela, desviando o olhar.

Mas sabia que não o enganaria: tampouco con­seguia enganar-se a si mesma. Os Hendren não deviam ter ouvido bem a sua declaração de inde­pendência. Ou a ouviram, mas não fizeram caso do que ela tinha dito. Suas atividades diárias já estavam todas programadas antes mesmo que ela descesse para o café da manhã.

Primeiro fora preciso escrever cartões de agra­decimento a todos os que compareceram no en­terro de Hal. Ela recebeu a tarefa quase com gra­tidão, pois tivera um pretexto para telefonar para Cage e pedir-lhe que os viesse buscar e os colo­casse no correio. O que criou uma oportunidade para que seus pais pedissem desculpas.

Foi uma reunião constrangedora. Cage ficou postado à porta da rua como que a temer que o convidassem a entrar. Jenny conteve a respiração, mal compreendendo as palavras que trocou com Bob no hall. Depois, ele ficou de pé na sala de estar, olhando para Sarah, que estava encolhida no sofá. Por fim ergueu a cabeça.

— Olá, Cage. Obrigada por ter vindo.

— Olá, mamãe. Como está passando?

— Bem, bem — disse ela vagamente. Olhou interrogativamente para Jenny, que lhe fez um leve sinal afirmativo. Sarah umedeceu os lábios. — Quanto àquela noite, no dia do enterro... de Hal... O que eu disse...

— Não tem importância, mamãe — Cage se apressou a dizer. Atravessou a sala e, ajoelhando-se diante dela, tomou-lhe os dedos pálidos e frios nas mãos. — Eu sei como estava se sentindo.

O coração de Jenny palpitou por Cage. Ele que­ria tanto acreditar naquilo. Em todo caso, fosse sincero ou não o pedido de desculpas de Sarah, ele acreditasse ou não em suas palavras, pelo me­nos estavam manifestando em voz alta os senti­mentos que deviam ter.

As tarefas de Jenny na casa paroquial eram in­termináveis. Os Hendren chegaram até a discutir a possibilidade de ela continuar a cruzada de Hal em favor dos refugiados políticos da América Cen­tral. A mera ideia de controlar tal campanha a dei­xava exausta, e ela se recusou a tomar a palavra nas reuniões, mas assumiu a tarefa de enviar circulares detalhando os problemas que testemunhara pessoalmente e pedindo doações para a causa.

Sabia que a fadiga estava estampada em seus olhos, sabia que tinha emagrecido devido a uma notável falta de apetite, sabia que estava branca e pálida por não passar muito tempo ao ar livre.

— Estou preocupado com você — disse Cage com delicadeza.

— Eu ando cansada. Todo mundo anda. A morte de Hal, o enterro, tudo isso nos desgastou.

— Já faz mais de quinze dias. Você tem passado mais tempo do que nunca na casa paroquial. Não faz bem para sua saúde.

— Mas é necessário.

— A igreja é a vocação deles, não a sua. Eles vão transformá-la numa velha se você deixar, Jenny.

— Eu sei — concordou ela com desânimo, es­fregando a testa. — Por favor, não me atormente com isso, Cage. Eu lhes disse que queria me mu­dar, morar sozinha, mas...

— Quando?

— No dia do enterro.

— Por que não se mudou?

— Eles ficaram chateados, não tive coragem. Teria sido cruel ir embora logo depois da morte de Hal.

— E agora?

Ela sorriu e sacudiu a cabeça.

— Eu não tenho emprego. Como vou ganhar a vida? Sei que preciso construir a minha própria existência, mas deixei-os cuidar de tudo durante tanto tempo, que não sei nem como começar agora.

— Eu tenho uma ideia — disse Cage de súbito, segurando-lhe o braço. — Vamos.

— Não posso largar as compras aqui.

— Desta vez você não tem a desculpa do sor­vete. Eu a peguei antes que tivesse tempo de ir à geladeira.

Ela teimou:

— Não posso largar um carrinho cheio de mer­cadorias no meio do corredor.

— Ora, pelo amor de Deus! — exclamou Cage irritado. Pegou o carrinho e, com passos largos, empurrou-o até a frente do supermercado.

— Ei, Zack!

O gerente olhou por cima da parede baixa de seu escritório. Estava contando dinheiro.

— Olá, Cage.

— A Srta. Fletcher vai deixar as compras aqui — disse ele, colocando o carrinho perto de uma pilha de panelas e frigideiras que podiam ser tro­cadas por cupons. — Ela virá buscá-las mais tarde.

— Claro Cage. Até depois.

Cage pegou uma barra de chocolate ao passar pela gôndola dos doces e acenou com ela para o gerente antes de pôr o braço nos ombros de Jenny e sair.

— Você roubou isso?

— Claro — sorriu ele, abrindo a embalagem e mordendo um bom pedaço do chocolate. — A me­tade é sua.

— Mas...

Cage lhe interrompeu o protesto enfiando o doce em sua boca.

— Você nunca roubou nada no supermercado?

Jenny sacudiu a cabeça ao mesmo tempo em que passava o enorme pedaço de chocolate de um lado para outro da boca, num esforço para mas­tigar antes que ele a asfixiasse.

— Bom, já estava na hora de começar. Agora é minha cúmplice no crime.

Abriu a porta da Corvette e, gentil, mas inexoravelmente, obrigou-a a embarcar. Dirigiu no trá­fego intenso do centro da cidade apenas com um pouco mais de disciplina que na estrada. Estacio­nou numa vaga em frente a um conjunto de es­critórios. Ao descer, pegou um saco de pano de­baixo do banco. Era do tipo que a prefeitura usava para cobrir os parquímetros nos feriados. Tapou com ele o parquímetro em frente à Corvette e piscou para Jenny. Tomando-a pelo braço, levou-a para a porta.

— A gente pode fazer isso? — ela perguntou, olhando preocupada para o parquímetro.

— Eu fiz.

Abriu a porta do escritório e entrou depois dela.

Porém, ao passar pela soleira, Jenny parou de súbito e olhou a sua volta com desânimo. A luz estava apagada, mas tudo piorou quando Cage se aproximou da janela e entreabriu a persiana empoeirada para deixar entrar o sol.

Ela nunca tinha visto uma sala tão desordena­da. Havia um sofá, provavelmente tirado de uma comédia de televisão dos anos cinquenta, encos­tado na parede. O estofamento outrora rosado, aliás, muito feio, ganhara uma coloração cinzenta com as incontáveis camadas de poeira. As almofadas tinham fundas depressões no centro. Frias estantes de metal ocupavam outra parede. Esta­vam atulhadas de papéis e mapas de cantos recurvos e amarelados. Todos os cinzeiros transbor­davam com pontas de cigarro. A escrivaninha, no centro da parede oposta, devia ter sido jogada fora anos antes. Um baralho inteiro servia de calço para um dos pés, que ficara mais curto que os outros, pois perdera a roda. Estava coberta de revistas velhas e copos descartáveis usados, sem falar nos arranhões e cicatrizes. Um vândalo ti­vera a audácia de gravar suas iniciais a canivete num dos cantos.

Jenny se voltou lentamente para ele.

— Que é isso?

— Meu escritório — disse ele sem jeito. Ela ficou boquiaberta.

— Você trabalha nesta lata de lixo?

— Não exagere.

— Cage, se Dante ainda estivesse vivo, não des­creveria o Inferno de outro modo!

— Você acha?

— Acho. — Jenny se acercou da escrivaninha e, passando o dedo no tampo, colheu um centí­metro de pó. — Nunca lhe ocorreu mandar limpar este lugar?

— Já. Uma vez eu contratei um serviço de lim­peza. O funcionário que mandaram para cá era muito engraçado. Nós íamos beber e...

— Pode deixar, eu já imagino. — Ela contornou um transbordante cesto de lixo e se aproximou de uma porta que devia ser a do banheiro.

— Jenny... — Cage ergueu a mão, tentando im­pedi-la, mas era tarde.

Ao abrir a porta, ela esbarrou o ombro numa gigantesca folhinha de parede. Recuou assustada. E mais assustada ficou ao examinar a fotografia ali estampada. A voluptuosa ruiva tinha uma es­trela azul e fulgurante colocada num lugar estratégico, onde se lia "Nas Profundezas do Texas". Os seios enormes, com mamilos que mais pare­ciam dois morangos, ocupavam boa parte da foto. Cage pigarreou desconcertado.

— Ganhei de alguns amigos no Natal passado.

Jenny fechou a porta e o encarou.

— Por que me trouxe aqui?

Ele pôs as mãos nos bolsos de trás do jeans, tirou-as, depois bateu na própria coxa com nervosismo.

— Venha, Jenny, sente-se — disse, de repente, apressando-se a limpar um lugar para ela no sofá.

— Eu não quero sentar. Quero sair daqui e res­pirar um pouco de ar fresco. Diga por que me trouxe aqui.

— Bom, você disse que estava sem trabalho e eu pensei...

— Você só pode estar brincando — atalhou ela antes que terminasse.

— Escute, Jenny. Deixe-me acabar de falar. Eu estou precisando de uma pessoa que...

— Você está precisando é de uma demolidora, de um trator. Quando eles terminarem, sugiro que comece da planta. — Ela fez menção de caminhar para a porta.

Cage lhe obstruiu a passagem e lhe segurou os ombros.

— Não estou falando na limpeza. Isso eu provi­dencio. Pode deixar por minha conta. Achei que você podia atender o telefone, fazer o serviço geral, sabe?

— Você sobreviveu sem mim todos esses anos. Quem atende o telefone aqui?

— Uma empresa recebe os telefonemas.

— Por que quer mudar agora?

— E muito incômodo ter de verificar as men­sagens de hora em hora.

— Use um pager.

— Já tentei.

— E?

— Eu o pendurava no cinto, mas acabei perdendo-o.

Jenny o fitou nos olhos. Ele parecia culpado.

— Hum, posso imaginar como devia ser incon­veniente para você andar com isso preso no cinto.

Tentou avançar, Cage a deteve.

— Jenny, escute, por favor. Você está procu­rando emprego. Eu estou oferecendo.

— Qualquer chimpanzé pode ser amestrado para ficar atendendo o telefone. Além disso, você já tem quem faça o serviço.

— Mas como eu posso saber se eles recebem todos os telefonemas? Além disso, há outras coisas que fazer.

— Por exemplo?

— A correspondência. E muita coisa, você não imagina.

— Quem cuida disso agora? Você?

— Não, uma amiga.

Ela o encarou mais uma vez, ele suspirou exasperado.

— E essa sua amiga tem uns oitenta e sete anos, é míope e usa uma máquina de escrever pré-histórica. — Jenny olhou a sua volta. — Nem máquina de escrever você tem.

— Eu compro. Do tipo que você quiser.

A ideia de ser mais produtiva a animava, era um desafio, mas ela sabia que não podia aceitar a oferta. Derrotada, deu de ombros e sacudiu a cabeça.

— Não posso Cage.

— Por que não?

— Seus pais precisam demais de mim.

— Acertou na mosca. Precisam demais de você. Acha que está fazendo um grande favor para eles dando-lhes comida na boca? Eles já não são moços, mas se não tiverem um objetivo na vida, vão en­velhecer depressa. Precisam levar sua própria vida novamente, mas não conseguirão se tor­narem-se dependentes de você. Eu nunca fui pai, portanto não sei o que é perder um filho. Mas posso imaginar que a tentação seja de encolher-se num canto e definhar até morrer também. Se você continuar paparicando mamãe e papai, o mais pro­vável é que acabem fazendo exatamente isso.

Cage tinha razão, naturalmente. Os Hendren pareciam encolher-se mais a cada dia. E enquanto Jenny estivesse a sua disposição, eles a usariam até que a vida dos três tivesse passado.

— Quanto você me pagaria?

O rosto dele se iluminou com um sorriso.

— Que grande mercenária você é!

— Quanto? — insistiu ela sem se importar com o epíteto.

— Vamos ver — disse ele, esfregando o queixo. — Duzentos e cinquenta por semana?

Jenny não sabia se o salário era justo ou não, e quis aceitar de pronto. Mesmo assim, fingiu hesitar.

— Com décimo - terceiro e todos os benefícios?

— É pegar ou largar, Srta. Fletcher — disse ele com ar sério.

— Eu aceito. Das nove as cinco com uma hora e meia para o almoço. — Isso lhe daria tempo de voltar à casa paroquial e almoçar com os Hendren, se bem que a ideia de comer fora todo dia lhe parecesse bem mais interessante. — Um mês de férias pagas e todos os feriados. E, às sextas-feiras, trabalho só até a hora do almoço.

— Você está me explorando — disse Cage, fran­zindo a testa. Na verdade estava excitadíssimo. Se tivesse de dobrar o salário e aceitar outras exigên­cias, não vacilaria. O que importava era tirá-la da casa paroquial e livrá-la do controle de seus pais.

— Eu não porei os pés aqui enquanto isto não estiver limpo. Estou dizendo bem limpo.

— Sim, senhora! — Ele bateu continência.

— A folhinha tem de desaparecer.

Cage olhou para a porta do banheiro e fez uma expressão desolada.

— Ah, que pena! Eu estava começando a gostar dela. — Deu de ombros. — Mais alguma coisa?

Jenny estava pensando em como aquele homem era adorável, mas voltou a se concentrar em seus problemas.

— Sim. Como vou contar aos seus pais?

— Não lhes dê nenhuma escolha. — Ele esten­deu a mão. — Está bem? Combinado?

— Combinado. — Ela lhe deu a mão, porém, em vez de apertá-la, ele a puxou e a encostou no peito.

— Não é com um aperto de mão que se fecha negócio com uma mulher fantástica.

E, antes que Jenny pudesse reagir, baixou a cabeça e beijou-a. Enlaçou-lhe delicadamente a cintura e, com o polegar, acariciou-lhe as costas.

O beijo foi prolongado. Cage ficou com os lábios entreabertos nos dela, mas não usou a língua. Apenas a manteve na expectativa, provocando-a com a possibilidade de mergulhá-la a qualquer momento em sua boca. Mas não o fez. E, ao erguer a cabeça novamente, limitou-se a sorrir.

Mais tarde, já de volta ao supermercado, tendo terminado de fazer as compras, Jenny se perguntou por que não tinha feito nada para impedir aquele beijo. Podia ter lhe dado uma bofetada, pisado no seu pé ou mesmo rido dele. Por que, quando Cage finalmente se afastou dela, ficou simplesmente olhando para ele com os olhos límpidos, o coração batendo forte e as pernas trêmulas?

A única resposta que encontrou era que seus membros tinham ficado entorpecidos, deliciosa­mente entorpecidos. E fracos de prazer. Não te­ria podido erguer um só dedo para se esquivar do beijo de Cage mesmo que quisesse. Mas ela não quis.

Os Hendren não receberam bem a notícia de seu novo emprego. Sarah deixou o garfo cair no prato quando ela anunciou:

— Começo segunda-feira.

— Você vai trabalhar...

— Para Cage? — Bob concluiu a pergunta da esposa.

— Vou. Se quiserem que eu faça alguma coisa até lá, avisem.

Saiu da cozinha antes que eles se refizessem do assombro. Seguindo o conselho de Cage, não lhes deixou nenhuma escolha.

Um minuto antes das nove horas da manhã da segunda-feira seguinte, Jenny entrou no escritó­rio. A porta estava destrancada. No primeiro mo­mento, chegou a pensar que tinha errado de en­dereço. O lugar não estava simplesmente limpo, estava transformado.

As paredes cinzentas tinham sido pintadas de cor creme. O horroroso sofá fora substituído por duas belas poltronas de couro marrons escuras. Entre elas, havia uma mesa de nogueira. O piso de linóleo tinha sido coberto com tábua corrida. Um tapete com motivos étnicos ocupava o centro da sala. No lugar das estantes metálicas, havia um conjunto de prateleiras e armários de madeira. Todas as peças estavam dispostas com bom gosto, de modo a maximizar o espaço para que tudo fi­casse bem guardado.

A superfície da escrivaninha, que agora domi­nava a sala, era uma lustrosa pista de gelo. Atrás dela, achava-se uma cadeira de couro que mais parecia um trono. Na escrivaninha havia um bu­quê de flores ainda orvalhadas pela umidade do refrigerador da floricultura.

— São para você.

Jenny se virou e deu com Cage no banheiro. A porta estava aberta.

— Como você fez isso? — perguntou ela atônita.

— Com o talão de cheques. Funciona melhor que uma vara de condão hoje em dia. Gostou?

— Sim, mas... — Jenny ficou subitamente cons­trangida. — Eu não devia ter criticado. Você gas­tou uma fortuna.

— Ora, ora, não precisa ficar assim. Você só me estimulou a fazer uma coisa que devia ter sido feita há anos. Eu andava recebendo os clien­tes no bar porque tinha vergonha desta "lata de lixo", como disse uma pessoa que nós todos co­nhecemos e amamos. — Sorriu ao vê-la corar. — A propósito, tenho uma coleção de folhinhas para você escolher.

Entregou-lhe a primeira, e ela não reprimiu um suspiro.

— "O Gostosão do Mês" — anunciou Cage so­lenemente, esforçando-se para não rir. O musculoso modelo estava com uma sunga minúscula, um capacete de futebol americano e sorria com malícia. — Este é o Mister Outubro. Temporada de futebol compreende? Quer dar uma olhada nos outros meses? — perguntou com aparente inocên­cia, folheando o calendário.

— Não, não precisa. Que mais você tem aí?

Ele pôs a folhinha de lado e pegou outra.

— "Um Gato por Dia", não aparece à cabeça, só o corpo.

Um peito untado de óleo, um par de dilatados bíceps e uma barriga musculosa ocupavam o es­paço da fotografia.

Jenny fez uma careta e sacudiu a cabeça.

— Ou então... — Cage abriu na mesa a terceira opção — Ansel Adams.

— Pendure o Ansel Adams.

Ele ficou contente e se voltou para fazer a von­tade dela.

— Mas guarde as outras no armário — disse Jenny com malícia.

Cage a encarou com os olhos mais arregalados do mundo; e os dois riram uma boa gargalhada.

— Cage, o escritório ficou lindo. Eu adorei.

— Que bom. Quero que se sinta bem aqui.

— Obrigada pelas flores.

— E uma ocasião especial.

Jenny se colocou timidamente atrás da escri­vaninha e experimentou a cadeira de couro.

Seus olhares se encontraram e ficaram algum tempo presos um ao outro; então ele lhe mostrou onde ficava guardado o material de escritório e como funcionava a máquina de escrever.

— Pode começar com estas cartas. — Entre­gou-lhe uma pasta. — Eu as escrevi à mão, espero que consiga entender a letra. Gertie conseguia.

— A sua amiga de oitenta e sete anos?

Ele ajeitou uma mecha de cabelo de Jenny.

— Isso mesmo.

Saiu pouco depois, dizendo que ia para as terras dos Parson.

— Como estão indo as perfurações?

— As possibilidades são ótimas. Se não achar­mos petróleo, eu sou um arcanjo. — Pôs os óculos escuros e girou a maçaneta. — Tchau.

— Tchau.

Deteve-se e ficou um momento olhando para ela.

— Santo Deus, como você fica bonita sentada aí.

Cage retornou pouco depois de meio-dia, tra­zendo um saco enorme.

— Hora do almoço! — gritou ao entrar. Jenny lhe fez um sinal nervoso para que ficasse quieto. Estava ao telefone, anotando o que lhe diziam.

— Sim, eu tomei nota e informarei o Sr. Hendren quando ele voltar. Obrigada.

Desligou e, orgulhosa, entregou-lhe a mensagem. Cage a leu e bateu no papel.

— Fantástico! Fazia tempo que eu estava es­perando autorização para ver essa propriedade. Você está me dando sorte. — Sorriu e colocou o embrulho na mesa. — O seu almoço.

— Posso contar com esse tratamento todo dia? — Ela se levantou para espiar o que era.

— De jeito nenhum, mas, como eu disse, esta é uma ocasião especial.

— Na verdade preciso ir para casa ver como estão Bob e Sarah.

— Eles estão bem. Telefone mais tarde se quiser.

O bom humor de Cage era contagioso, e Jenny o contraiu quando estavam desembrulhando o al­moço que ele comprara na única delicatessen da cidade.

— E para coroar tudo... — Desapareceu no ba­nheiro e voltou com uma garrafa de champanhe.

— Tintim!

— De onde tirou isso?

— Da geladeira?

— Há uma geladeira no banheiro?

— Uma pequena. Você não viu?

— Não. Estava ocupada. — Jenny apontou para a pilha de cartas que aguardavam a assinatura dele.

— Então você merece uma taça de champanhe — disse Cage, abrindo a garrafa. A rolha saltou com um estouro, mas o vinho espumante não caiu. Ele encheu um copo descartável até a boca.

Jenny aceitou, não tinha como recusar.

— Palavra que eu não devia Cage.

— Como não?

— Pode ser difícil de acreditar, mas não é sem­pre que servirmos champanhe no almoço na casa paroquial — disse ela com sarcasmo. — Não estou acostumada.

— Ótimo. Talvez você fique bêbada, tire toda a roupa e se ponha a dançar nua em cima da mesa.

Correu um olhar especulativo pelo corpo dela, tentando imaginar o maravilhoso espetáculo. Ser­viu-se de mais champanhe. Sem jeito, Jenny ficou observando-o.

— Você faz esse tipo de coisa com freqüência?

— Tomar champanhe ao meio-dia? Não.

— Então como sabe que não é você que vai ficar bêbado, tirar a roupa e dançar nu em cima da mesa?

Ele encostou o copo descartável no dela e sussurrou:

— Porque, se nós dois ficássemos nus em cima da mesa, querida Jenny, não seria para dançar.

Ela sentiu um frio no estômago. Desviando o olhar daqueles olhos claros que pareciam hipnotizá-la, notou que estava com as mãos trêmulas.

— Tome um gole — pediu Cage no mesmo tom de voz.

Ansiosa por fazer alguma coisa, Jenny obede­ceu. O champanhe gelado lhe acariciou a língua.

— Está bom?

Ela tomou outro gole.

— Está ótimo.

Cage aproximou a cabeça até quase roçar a dela. Parecia encantado.

— E o que você acha...

— Do quê?

— Da comida.

Nenhum almoço podia ser mais delicioso. Na verdade, aquela era uma das refeições mais fa­bulosas que Jenny experimentara na vida. En­quanto comiam, Cage falou de seus negócios e ficou satisfeito com as perguntas inteligentes e intuitivas que ela fazia.

Não conseguiu convencê-la a beber mais que meio copo. Quando terminaram, teve o cuidado de pegar as bandejas vazias e colocá-las nova­mente no saco de papel.

— Eu não me atreveria a sujar o seu escritório — sorriu.

Muito tempo depois que Cage tinha ido embora, Jenny continuava imaginando os dois nus em cima da mesa. O que ele tinha querido dizer com "não seria para dançar”? Ora, ela sabia muito bem!

E também não conseguia parar de pensar nisso.

Pouco a pouco, os dias foram se convertendo em uma espécie de rotina, muito embora a vida com Cage fosse sempre espontânea e sem planejamen­to. Era como viajar rio abaixo numa selva miste­riosa. Nunca se sabia que inesperada surpresa surgiria na curva seguinte.

Ele costumava deixar-lhe pequenos presentes que, embora simples, eram verdadeiros tesouros para ela. Afinal, nunca tinha sido cortejada.

Um bolo com uma velinha estava a sua espera na manhã em que Jenny completou uma semana no escritório. Em outra ocasião, encontrou uma rosa vermelha ao lado da cafeteira elétrica. Certa manhã, ao abrir a porta, quase gritou ao ver um gigantesco urso de pelúcia sentado em sua cadeira.

Era evidente que corriam boatos sobre os dois na cidade. Os funcionários do banco ficaram cho­cados quando Jenny começou a administrar a con­ta de Cage. Agora começavam a acostumar-se com a nova situação, mas era inegável que ficavam cochichando quando ela ia embora.

O diretor da agência do correio, que a conhecia havia anos, continuava simpático e amigável, porém agora que ela estava cuidando da cor­respondência de Cage, endereçava-lhe olhares maliciosos.

Cage passou a ir à igreja regularmente, coisa que atiçou ainda mais os mexericos.

Jenny gostava do desafio do novo emprego e já na segunda semana de trabalho tinha pleno do­mínio das situações. Era uma profissional.

— Empresas Hendren.

— Jenny querida, pode pôr sua roupa de festa — disse Cage, rindo.

Jenny conseguia ouvir a gritaria no fundo.

— Você encontraram petróleo? — gritou ela.

— Está jorrando! — ele confirmou com entu­siasmo. Os operários a sua volta já estavam abrin­do as garrafas de cerveja gelada. — Querida, vou levar o maior almoço para viagem que encontrar na cidade. Estarei aí em uma hora.

— Eu preciso fazer um serviço externo. Por que não nos encontramos em algum lugar?

— Tudo bem. No Wagon Wheel ao meio-dia e meia?

Jenny concordou com o lugar e a hora.

Mas ao meio-dia e meia, estava andando sem rumo na rua principal, seu cérebro não registrava nada. Numa espécie de transe, parou na calçada e ficou olhando sem ver para a rica variedade de mercadorias na vitrine de uma loja.

Cage passou de carro, avistou-a, gritou seu nome e buzinou. Jenny não se voltou. Não o tinha ouvido.

Ele fez uma conversão proibida, estacionou na úni­ca vaga livre a caminhonete com que viera do local da perfuração e foi ao encontro dela. Estava com as botas e a barra da calça sujas de terra e petróleo.

— Jenny — disse quase sem fôlego —, você está indo na direção errada. O Wagon Wheel fica ali atrás.

Seu sorriso desapareceu quando ela se virou e fitou nele um olhar vazio. Alarmado, ele lhe se­gurou o braço e a sacudiu de leve.

— Que aconteceu, Jenny?

— Cage? — Sua voz era um débil sussurro. Pis­cando muito, olhou a sua volta como que percebendo pela primeira vez onde se achava. — Oh, Cage...

— Meu Deus, não me assuste! — exclamou ele preocupado, a testa enrugada. — Que aconteceu? Qual é o problema? Você está doente?

Jenny sacudiu a cabeça e baixou os olhos.

— Não, mas não quero almoçar. Desculpe. Estou muito contente com o poço de petróleo, mas prefiro não... Desculpe-me...

— Quer parar de se desculpar? O almoço ficará para outro dia. Conte-me o que aconteceu.

Apoiou-se nele como se fosse cair.

Cage a abraçou resmungando, achando-se inep­to e tolo.

—Venha, meu amor. Vamos tomar um refrigerante.

Caminharam meia quadra até a lanchonete. Na verdade, só Cage caminhou. Apoiada nele, Jane foi quase se arrastando. E praticamente tombou na cadeira de vinil quando chegaram.

— Hazel, dois refrigerantes, por favor — pediu ele à garçonete atrás do balcão.

Não tirava os olhos de Jenny que, entretanto, não olhava para ele. Olhava para as próprias mãos presas às dele na mesa de fórmica.

Hazel serviu a bebida gelada.

— Tudo bem, Cage?

— Tudo — murmurou ele vagamente.

A garçonete deu de ombros e voltou lentamente para a caixa registradora. As pessoas andavam di­zendo que Cage Hendren tinha mudado muito desde a morte do irmão. Comentavam que não largava à jovem Fletcher. Ora, aquilo só mostrava que os boa­tos tinham um fundo de verdade. Hazel estava acos­tumada a ouvir as piadas picantes de Cage quando ele passava na lanchonete. Hoje, estava tão con­centrado em Jenny Fletcher que não tirava os olhos dela, não via mais nada a sua volta.

— Jenny, tome o refrigerante. Você está pálida como um lençol. Agora me conte o que aconteceu.

Ela bebeu. Permaneceu de cabeça baixa durante um tempo que, para Cage, pareceu uma eterni­dade. Ele estava a ponto de perder o controle quando ela finalmente o fitou.

Estava com os olhos cheios de lágrimas.

— Cage — sussurrou com medo, parando para respirar. — Eu estou grávida.

 

Para Cage, foi como levar um murro no estômago. Seus olhos claros fica­ram vidrados. Engolindo em seco, ele permaneceu imóvel, olhando fixamente para o rosto de Jenny.

— Grávida?

Ela fez que sim.

— Estou voltando do consultório médico. Vou ter um bebê.

Ele enxugou a palma das mãos na calça.

— Você não sabia?

— Não.

— Não percebeu?

— Acho que não.

— A menstruação não atrasou?

Jenny corou e baixou a cabeça.

— Atrasou, mas eu pensei que fosse por causa da morte de Hal e de tudo o que aconteceu depois. Nunca imaginei... Oh, sei lá... — disse, apoiando a cabeça na mão. — O que vou fazer Cage?

Ora, deveria ir ao cartório imediatamente e ca­sar-se com ele. Só isso. Iam ter um filho! Caramba! Um filho!

A alegria tomou conta do corpo de Cage. Ele tinha vontade de se levantar e pular de felicidade, de sair à rua, parar o tráfego e contar a todo mundo que ia ser pai.

Porém viu a postura desanimada de Jenny, ouviu o seu pranto e compreendeu que não podia deixar transparecer o que de fato estava sentindo. Ela pen­sava que o filho era de Hal. Cage não podia lhe contar a verdade, pois ela passaria a desprezá-lo justamente quando estava começando a confiar nele.

Seria esse o castigo de todos os pecados que cometera na vida? Ele sempre tomava precauções para não gerar um filho indesejável. E fazia ques­tão de que as mulheres com quem dormia sou­bessem dessas precauções para que, depois, não viessem responsabilizá-lo de algum incidente que não ocorrera com ele.

Mas agora que queria proclamar a sua paternidade, não podia. Não podia ter o privilégio de assumir o filho que tinha gerado com a mulher que amava e sempre amara.

Que castigo!

Conte a ela, conte tudo agora mesmo, sussur­rou-lhe uma voz interior.

Ele queria tomá-la nos braços e dizer-lhe que não tinha motivo para chorar. Queria proclamar que a amava e ao seu filho, e prometer que en­quanto vivesse cuidaria dos dois. Era isso o que ele queria fazer.

Mas não podia. Descobrir que estava grávida já tinha sido devastador demais para Jenny. Cage não podia aumentar seu sofrimento contando-lhe que o pai da criança não era quem ela pensava.

Por ora, devia contentar-se com o papel de amigo.

— Não adianta chorar, Jenny. — Entregou-lhe um lenço. Ela enxugou os olhos e olhou preocu­pada a sua volta. Estavam sozinhos na lancho­nete. Hazel, concentrada numa revista sobre ar­tistas de cinema, esquecera-os.

— Todos vão dizer que eu não presto. E Hal... — Ela inclinou a cabeça imaginando o que as pes­soas iam pensar do jovem pastor agora.

— Ninguém vai pensar que Jenny Fletcher não presta. — Cage torceu o canudinho do refrigeran­te, sentindo-se culpado por manipulá-la. — Eu não sabia que você e Hal tinham esse tipo de relações.

— Nós não tínhamos. — Jenny falou tão baixo que Cage precisou se inclinar para ouvi-la. — Só ficamos juntos na véspera da viagem. — Ergueu a cabeça e o viu estudando-a detidamente. Tanta aten­ção tornou ainda mais constrangedor o tema que estavam discutindo. Quando começou a falar nova­mente, a voz lhe falhou. — Lembra que me pediu para tentar impedi-lo de partir? Pois bem, eu tentei. — Riu um riso nervoso. — Mas não consegui.

— Que aconteceu?

Cage sentiu um nó na garganta, mal conseguia falar. Mas queria saber o que ela havia sentido aquela noite. Não era justo aproveitar-se da situação para induzi-la a contar tudo, mas precisava saber.

— Ele subiu comigo. Eu... — Jenny baixou o olhar e respirou fundo. — Eu lhe pedi que não fosse para Monterico. Hal não cedeu. Então tentei atraí-lo para a cama. Mas ele saiu do quarto.

— Neste caso eu não entendo...

— Voltou um pouco mais tarde. Então nós... nós fizemos amor.

Passaram-se vários segundos sem que nenhum dos dois falasse, ambos perdidos em seus próprios pensamentos. Jenny recordando a alegria que sen­tiu quando a porta se abrira e ela vira a silhueta de Hal projetada no estreito facho de luz. Cage lembrando a mesma coisa, mas da sua perspec­tiva. Jenny sentando-se na cama, o rosto banhado de lágrimas.

— Foi a primeira vez que vocês...

— Primeira e única. Nunca imaginei que uma mulher pudesse ficar grávida fazendo amor uma única vez. — Amassou o guardanapo de papel que estava encharcado sob o copo gelado de refrige­rante. — Que engano o meu!

— Foi bom, Jenny? — Ele a encarou. — Quer dizer, já que você era virgem... não doeu?

— Um pouco no começo. — Deu um sorriso tí­mido que fez o coração dele encolher-se no peito. Depois o fitou nos olhos. — Mas foi maravilhoso. A melhor coisa que já me aconteceu. Nunca senti tanta proximidade com outro ser humano. E, se­jam quais forem às consequências, não me arre­pendo do que fiz aquela noite.

Dessa vez foi Cage que baixou os olhos. Era difícil refrear as lágrimas. A emoção lhe bloqueava a gar­ganta, formigava-lhe o corpo. Ele desejava abraçá-la, sentir seu calor. Queria contar que compreendia per­feitamente o que ela estava dizendo porque sentira exatamente a mesma coisa.

— Você deve estar de...

— Quase quatro meses — completou Jenny.

— E não sentiu nenhum mal-estar?

— Agora que sei que estou grávida, percebo que sim. Antes não. Eu tenho me sentido cansada e de­sanimada. Logo depois de voltar de Monterico, ema­greci um pouco, mas já recuperei o peso. Meus seios... — Interrompeu-se, olhando para ele sem jeito.

— Continue Jenny — pediu Cage com delica­deza. — Que têm seus seios?

— Estão mais sensíveis, parece que cocam, for­migam, sabe como é?

Ele sorriu.

— Não, eu não sei.

Ela riu.

— Como poderia saber? — Rir lhe fez bem, mas ela cobriu a boca. — Não acredito que esteja rindo de uma coisa tão séria.

— É melhor assim. Mesmo porque isso é motivo para comemorar, não para chorar. Não é todo dia que um homem acha petróleo e, ainda por cima, fica sabendo que vai ser... tio.

Ela estendeu a mão por cima da mesa e segurou a dele.

— Obrigada por sentir isso, Cage. Quando saí do consultório, eu estava desesperada. Não sabia quem procurar, aonde ir. Senti-me tão perdida e sozinha.

— Não precisa ficar assim, Jenny. Você sabe que pode contar comigo. Sempre.

— Eu agradeço a sua atitude.

Se ela soubesse qual era seu verdadeiro senti­mento. Cage estava ao mesmo tempo tremendamente feliz e infinitamente triste. Ia ter um filho, mas ninguém saberia que era dele. Nem mesmo a mãe da criança.

— Que está pensando em fazer?

— Não sei.

— Case-se comigo, Jenny.

Ela ficou sem fala. Olhou atônita para ele ao mesmo tempo em que procurava acalmar o cora­ção, fazê-lo parar de saltar no peito como um pás­saro na gaiola. Sabia que ele agira motivado pela compaixão, possivelmente lealdade pela família, mas, no desespero de agarrar-se à segurança que aquela proposta oferecia, teve vontade de dizer sim. Era ridículo, naturalmente.

— Não posso.

— Por quê?

— Por mil razões.

— Mas tem uma boa razão para aceitar.

— Cage, não posso deixá-lo arruinar sua vida por mim e por meu filho. Nunca. Não, obrigada.

— Deixe eu mesmo decidir o que pode arruinar a minha vida ou não, por favor. — Apertou-lhe a mão. — Vamos fugir hoje mesmo ou esperamos até amanhã? Você pode escolher o lugar que quiser para a lua-de-mel. Com exceção de Monterico.

Os olhos dela estavam cheios de ternura e úmi­dos de lágrimas.

— Você é uma pessoa maravilhosa.

— E o que dizem.

— Mas não posso me casar com você, Cage.

Ele ficou sério.

— Por causa de Hal?

— Não. Não é por causa dele. Tem a ver com você e comigo. Nós estaríamos nos casando pelos motivos errados. Jenny Fletcher e Cage Hendren. Que piada!

— Você não gosta de mim? — perguntou ele, esbanjando todo o seu charme num sorriso.

Jenny também sorriu.

— Você sabe que não é isso. Eu gosto muito de você.

— Você ficaria assombrada com os tantos casais que eu conheço que se detestam. Há mais afeto entre nós do que em muitos deles.

— Mas o seu estilo de vida não combina com mulher e filho.

— E só mudar de estilo de vida.

— Não quero que faça esse sacrifício.

Cage teve vontade de sacudi-la e gritar-lhe que não estava fazendo sacrifício algum. Mas agora tinha de lhe dar espaço. Jenny precisava de tempo para se adaptar à idéia de ser mãe antes de pensar na possibilidade de aceitar um marido com fama de mulherengo inveterado. Nada neste mundo ha­veria de impedi-lo de casar-se com ela, de torná-la sua para sempre, de criar seu filho num lar cheio de amor, não de censura.

— Bem, já que prefere machucar o meu coração e me rejeitar, que está pensando em fazer daqui por diante?

— Posso continuar trabalhando para você?

Ele enrugou a testa.

— Precisa perguntar?

— Obrigada, Cage.

Relaxando, Jenny se encostou na cadeira e, in­conscientemente, passou a mão na barriga que ainda nem começara a crescer. Ela é tão pequena, pensou Cage. Seria possível que houvesse uma criança dentro dela?

Jenny era mesmo pequena. Ele quase deixou escapar um gemido ao se lembrar de quando a abraçava. Agora estava preocupado. E se tivesse dificuldade para dar à luz?

Olhou para seus seios. Não estavam maiores, imãs eram cheios como duas frutas maduras. Ar­redondados e maternalmente bojudos: tudo o que Cage queria naquele momento era acariciá-los, co­bri-los de beijos apaixonados.

— Seus pais terão de saber.

Ele tirou com relutância os olhos daqueles seios e removeu do pensamento a fantasia.

— Quer que eu conte para eles?

— Não. A responsabilidade é minha. Mas queria muito saber como vão reagir.

— Como poderiam reagir? Vão adorar. — Cus­tou-lhe muito acrescentar as últimas palavras: — Será uma herança viva de Hal.

Ela continuou brincando com o guardanapo que, a essa altura, tinha se transformado numa bola de papel molhado.

— Talvez. Em todo caso, duvido de que seja tão simples. Os dois são muito moralistas, Cage. Nem preciso lhe dizer isso. Para eles, a fronteira entre o bem e o mal está claramente delimitada. Em sua maneira de pensar, não existem regiões cinzentas na moralidade.

— Mas meu pai passou a vida pregando a caridade cristã. A misericórdia de Deus e o perdão foram o tema de muitos de seus sermões. — Tomou-lhe a mão. — Não vão condená-la, Jenny. Tenho certeza.

Ela bem que queria ter a mesma confiança. Sor­riu para ele.

Antes de saírem, Cage a obrigou a tomar um cho­colate vitaminado, dizendo que era mais importante que nunca que se alimentasse bem. Chocaram os copos, brindando o poço de petróleo e a criança.

— Acho que vou ter de dividir meu urso de pelúcia com o bebê — disse ela quando saíram à rua, balançando as mãos dadas.

Ele sorriu.

— Defenda os seus interesses. Durante muito tempo você será maior que o bebê. — Levou-a para o carro e abriu a porta. — Vá para casa e tire uma soneca.

— Mas eu só trabalhei meio período hoje.

— É mais do que suficiente. Vá descansar. À noite eu telefonarei para saber como você está.

— Até lá eu já terei dado a notícia a Sarah e Bob.

— Eles vão ficar tão entusiasmados quanto eu.

Era impossível. Ninguém ficaria entusiasmado com o bebê como ele. Cage estava a ponto de de­clarar o quanto se sentia feliz, o quanto a amava, o quanto amava a criança que tinham gerado.

Era obrigado a calar-se, mas não resistiu à ten­tação de abraçar Jenny. Atraiu-a para si. Ela se deixou envolver, e os dois ficaram abraçados em plena luz do dia, alheios a tudo ao seu redor, in­clusive aos olhares curiosos.

Ela chegou a sentir as batidas do coração dele. Aqueceu-se no calor de seu corpo. Aquele homem estava se tornando importante em sua vida, im­portante demais. Precisava muito de um amigo, e Cage não recusara a sua amizade. Por isso se agarrava à força e ao apoio que ele oferecia. E, enquanto o abraçava, deliciou-se com a fragrância de sol e ar livre que seu corpo exalava, o cheiro da loção de barbear, perfumes que pertenciam uni­camente a Cage Hendren.

Ele a segurou com força, adorando o contato da­queles seios exuberantes. Colando os lábios no alto de sua cabeça, demorou-se num beijo que na verdade não era um beijo. Doía-lhe não poder agradecer-lhe por havê-lo abençoado com um filho, não poder pousar a mão em seu ventre e conversar tolamente com a criança aninhada lá dentro. Não poder acariciar-lhe os seios e contar-lhe o quanto queria ver o bebê ma­mando. Pior ainda: doía-lhe ter de deixá-la ir embora.

Mas deixou-a enfim.

— Prometa que vai se deitar assim que chegar em casa.

— Prometo.

Acomodou-a no banco dianteiro do carro e a aju­dou a prender o cinto de segurança.

— Para proteger você e o bebê de motoristas como eu — disse com um sorriso irônico, e seguiram.

— Obrigada por tudo, Cage.

Ao vê-la afastar-se, perguntou-se se Jenny lhe agradeceria também se soubesse que era ele, não Hal, o responsável por sua gravidez.

Cage chegou à casa paroquial por volta das sete horas.

Depois de mandar Jenny para casa, passou o resto da tarde no local das perfurações. Por mais ocupado que estivesse, não parava de pensar nela. Preocupava-se com ela, com seu estado de espírito, com sua condição física, com sua ansiedade para contar aos pais adotivos que estava grávida.

Por fora, a casa paroquial conservava a apa­rência de sempre. O carro de Jenny se achava estacionado ao lado do de seus pais. A luz estava acesa na cozinha e na sala de estar. Mesmo assim, Cage intuiu que havia alguma coisa errada.

Bateu na porta da frente e a abriu.

— Olá! — gritou.

Entrou sem ser convidado e encontrou Bob e Sarah sentados na sala.

— Olá, Cage — disse seu pai sem entusiasmo. Sarah permaneceu calada. Não parava de torcer o lenço que tinha nas mãos.

— Onde está Jenny?

Bob pareceu achar difícil responder, pois hesi­tou várias vezes. Quando finalmente conseguiu articular as palavras, foi lacônico.

— Foi embora.

A raiva começou a ferver dentro de Cage.

— Foi embora? Como assim? O carro dela está aí fora.

Bob passou a mão no rosto, desfigurando suas feições.

— Preferiu ir embora sem levar nada, só a roupa.

Cage deu meia-volta e subiu a escada de dois em dois degraus como costumava fazer na ado­lescência. Era contra as regras da casa, mas ele as transgrediu como transgredia antigamente.

— Jenny!

Ela não estava no quarto. Ele se aproximou do armário e o abriu. A parte umas poucas peças de roupa penduradas, estava vazio. Nas gavetas da escrivaninha, que abriu freneticamente, o vazio indicou que Jenny partira.

— Droga! — rugiu como um leão ferido e desceu correndo a escada. — Que aconteceu? Que vocês fizeram? Que disseram a ela? — perguntou. — Ela contou que está grávida?

— Contou — disse Bob. — Nós ficamos chocados.

— Chocados? Descobriram que Jenny está es­perando o primeiro neto de vocês e a única coisa que lhes ocorreu foi ficar chocados?

— Ela diz que o filho é de Hal.

Fosse outro homem, não seu pai, que se atre­vesse a questionar a honra e a virtude de Jenny, Cage o teria agarrado pelo colarinho e o espancado até que se arrependesse de haver dito uma só palavra contra ela.

No entanto, limitou-se a grunhir e a avançar um passo ameaçador. Pouco importava que, na verdade, não se tratasse do filho de Hal. Jenny pensava que era. Achava que estava lhes contando a pura verdade.

— Vocês duvidaram dela?

— Claro que duvidamos — disse Sarah, falando Pela primeira vez. — Hal jamais teria... cometido esse... esse pecado. Muito menos na véspera da viagem à América Central, como ela diz.

— Pode ser uma surpresa para você, mamãe, mas Hal era homem antes de ser missionário.

— Você por acaso está querendo dizer...

— Estou dizendo que ele também, como qual­quer outro homem, tinha impulsos e desejos. O que me admira é que tenha demorado tanto para levar Jenny para a cama.

Hal nunca levara Jenny para a cama, porém Cage não estava pensando com sensatez naquele momento.

— Cale a boca, Cage, pelo amor de Deus! — gritou Bob, levantando-se para encarar o filho mais velho. — Como se atreve a falar com sua mãe em termos tão grosseiros?

— Tudo bem — disse ele, cortando o ar com um gesto. — Eu não dou a mínima importância para o que vocês pensam de mim, mas como ti­veram a coragem de mandar Jenny embora num momento como este?

— Ninguém a mandou embora. Ela foi porque quis.

— Vocês devem ter dito alguma coisa, do con­trário ela não tomaria uma atitude tão drástica. O que foi?

— Jenny esperava que acreditássemos que Hal... que Hal fez isso com ela — disse Bob. — Sua mãe e eu até admitimos que pudesse ter acon­tecido. Afinal, como você mesmo disse, seu irmão era homem. Mas, se chegou a fazer uma coisa dessas, foi porque ela deve tê-lo tentado mais do que ele era capaz de resistir.

Francamente, o que Cage não entendia era como Hal tinha conseguido resistir àquela noite. Ele não teria resistido. Nem em um milhão de anos. Mesmo que as portas do inferno se abrissem para devorá-lo.

— Seja como for, eles fizeram isso por amor.

— Eu acredito. Mesmo assim... — disse Bob, sacudindo obstinadamente a cabeça. — Hal não teria se distraído de sua missão a menos que tivesse sido muito tentado. E é possível, sim, é bem possível que tenha continuado pensando nisso lá em Monterico, ou sentindo-se culpado pelo pecado que cometeu, ou em conflito consigo mesmo. Tal­vez tenha sido por isso que não se cuidou como deveria e acabou sendo capturado e morto.

— Santo Deus! — exclamou Cage, apoiando-se na parede como se acabasse de levar um soco. Encarou os pais perguntando-se como duas pes­soas tão medíocres e estreitas podiam tê-lo posto no mundo.

— Vocês disseram isso a Jenny? Culparam-na da morte de Hal?

— Ela é culpada — disse Sarah. — As convicções de Hal eram tão firmes, ela só pode tê-lo seduzido. Você consegue imaginar quanto nos sentimos traí­dos? Nós a criamos como nossa própria filha. Em troca... Ela me aparece com um filho ilegítimo... Oh, meu Deus, quando penso no quanto isso vai prejudicar a memória de Hal. Todos o amavam e o admiravam. Essa história vai destruir tudo que ele representava. — Sarah apertou os lábios, transformando-os numa linha fina e branca. Virou a cabeça.

A indecisão mortificava Cage. Seus pais estavam culpando Jenny da morte de Hal, no entanto o único culpado dessa morte era o próprio Hal, que não se deixara seduzir nem podia ter se sen­tido culpado de haver dormido com Jenny. Cage podia absolvê-la naquele instante, revelando que era ele quem tinha feito amor com ela. Contudo, se os velhos a condenavam por ter dormido com Hal, eram capazes de apedrejá-la na rua se sou­bessem que tinha dormido com Cage.

Aquela atitude o deixava doente. Ele tinha ga­rantido a Jenny que os velhos ficariam contentes com a notícia. Em vez disso, num comportamento que nada tinha de cristão, a haviam condenado e crivado de acusações. Cage teve vontade de cha­má-los de hipócritas, mas não havia tempo a per­der. Afinal, para que desperdiçar energia? Eles eram uma causa perdida. A única coisa que in­teressava agora era encontrar Jenny.

— Aonde ela foi?

— Não sabemos — respondeu Bob num tom que indicava que também não queria saber. — Ela chamou um táxi.

— Vocês me dão pena — disse Cage, saindo precipitadamente.

— Há quanto tempo?

— Bom, vamos ver. — O homem correu o dedo nodoso na coluna de horários de saída, depois tra­çou uma linha na lista de cidades. — Aproxima­damente meia hora. Devia partir as seis e cin­quenta e, pelo que sei, não houve atraso.

— Ele pára em muitos lugares?

O empregado da empresa de ônibus tornou a consultar a lista com uma precisão tão meticulosa que quase enlouqueceu Cage. Será que aquele su­jeito não era capaz de dar uma resposta sem fazer uma consulta?

Depois de falar com o proprietário da única frota de táxis da cidade e ficar sabendo que Jenny tinha ido para a estação rodoviária, ele fora para lá em alta velocidade. Uma rápida vistoria na sala de es­pera revelou que ela já tinha viajado. Só uma pas­sagem fora vendida a uma moça cuja descrição coin­cidia com a de Jenny. Passagem de ida para Dallas.

— Não. Não pára em lugar algum. Quer dizer, só em Abilene.

— Eles seguem por qual estrada?

O homem respondeu e, quando terminou suas demoradas explicações, Cage já estava correndo para a rua.

Ligou o motor da Corvette e praguejou ao ve­rificar o tanque de gasolina. Não conseguiria via­jar sessenta quilômetros. Parando no primeiro posto, encheu o tanque tão depressa quanto a bom­ba permitia.

— Não tem trocado? — choramingou o frentista quando ele lhe entregou uma nota de cinqüenta dólares. — Puxa vida, Cage, você vai levar todo o meu troco.

— Desculpe. E o que tenho e estou com muita pressa. — Droga, ele precisava de um cigarro. Por que tinha prometido a Jenny parar de fumar?

— Tem encontro marcado? — O frentista piscou com malícia. — E loira ou morena?

— Eu já disse que estou...

— Com pressa, eu sei, eu sei — disse ele, pis­cando novamente. — Bom, vamos ver o que se pode fazer. — Examinou a gaveta da caixa regis­tradora por cima dos óculos. — Uma de vinte, não, esta é de dez. E uma de cinco.

Será que a cidade inteira tinha ingerido algum produto químico? Todo mundo parecia ter se tor­nado imbecil.

— Quer saber de uma coisa, Andy? Guarde o meu troco, mais tarde venho buscar.

— Caramba, que pressa! — gritou ele às costas de Cage. — Deve ser um mulherão!

— É mesmo — disse Cage ao entrar na Corvette. Segundos depois, desapareceu na escuridão da noite.

Jenny decidira parar de lutar com o balanço do ônibus, preferindo deixar-se embalar por ele. Era quase agradável. A monotonia do movimento a ajudava a não pensar no futuro.

Que futuro?

Ela não tinha futuro algum.

Os Hendren disseram tudo que sentiam. Ela não passava de uma Jezebel que tentara seu santo filho, que procurara desviá-lo de sua vocação fi­cando grávida dele.

Seus olhos se encheram de lágrimas, mas Jenny não cedeu a elas. Fechou-os e reclinou a cabeça no encosto da poltrona, desejando conseguir dor­mir. Não conseguiu. Sua mente era um turbilhão, e os passageiros ao seu redor estavam se mos­trando cada vez mais inquietos e falantes.

— Você viu isso?

— Que louco!

— Será que o motorista viu?

— Esse homem pensa que está na Fórmula Indy?

Curiosa com o que lhes havia chamado a atenção,

Jenny olhou pela janela. Só viu o seu próprio reflexo no vidro e um negro vazio mais além. Porém logo reparou no carro esporte ao lado do ônibus, que se aproximava perigosamente das enormes rodas.

— O homem só pode ser maluco.

Jenny arregalou os olhos e abriu a boca ao reconhecer o carro de Cage.

— Oh, não!

De súbito o ônibus deu um solavanco quando o motorista freou e, saindo da pista, foi parar no acostamento.

— Senhoras e senhores — disse ao microfone instalado perto do volante. — Desculpem o transtorno, mas sou obrigado a parar. Há um motorista evidentemente bêbado tentando nos jogar fora da estrada. Vou tentar falar com ele antes que nos mate a todos. Tenham calma. Em breve continua­remos a viagem.

Muitos passageiros correram à janela para ver melhor. Jenny afundou-se no seu banco, o coração disparado. O motorista abriu a porta automática do ônibus e ia se levantar quando um homem entrou no veículo.

— Por favor, cavalheiro — pediu o motorista, obviamente preocupado com a segurança dos pas­sageiros. Ergueu as mãos. — Nós somos pessoas inocentes e...

— Calma. Eu não sou assaltante. Não vou fazer mal a ninguém. Só vim buscar um dos passageiros.

Cage passou rapidamente os olhos pelo interior do ônibus, examinando cada rosto. Jenny conti­nuou calada e imóvel em seu lugar. Ele entrou pelo corredor.

— Desculpem o incômodo — disse amigavel­mente aos passageiros que olhavam para ele com desconfiança. — Não vai demorar mais de um minuto, palavra. — Ao encontrar quem procurava, parou e suspirou aliviado. — Pegue as suas coisas, Jenny. Vai voltar comigo.

— Não, não vou, Cage. Eu lhe expliquei tudo numa carta. Pus no correio antes de partir. Você não devia ter vindo atrás de mim.

— Mas acontece que estou aqui, e não fiz a viagem à toa. Agora venha.

— Não.

Todos estavam prestando atenção à conversa dos dois.

Zangado com ela como um pai que acaba de en­contrar o filho perdido, Cage pôs as mãos na cintura.

— Está bem. Se você prefere lavar a roupa suja aqui mesmo, na frente de toda essa gente simpá­tica, por mim tudo bem, mas acho melhor pensar duas vezes antes de entrarmos nos interessantes detalhes.

Jenny correu os olhos pelos passageiros.

Todos a olhavam com curiosidade.

— Que foi que essa moça fez, mamãe? — perguntou uma garotinha. — Alguma coisa ruim?

— Como prefere, Jenny?

— A senhora não precisa ir a lugar nenhum com ele, moça — disse o motorista atrás de Cage. Ele não deixaria um marido violento tirar a esposa indefesa de seu ônibus.

Jenny fitou Cage. Ele estava com os dentes cer­rados e o maxilar tenso. Seus olhos brilhavam como chamas amareladas. Seu corpo parecia mais sólido que a rocha de Gibraltar. Não voltaria atrás, e ela não queria ser responsável pela con­fusão a bordo do ônibus.

— Oh, está bem, eu vou. — Saiu ao corredor depois de pegar uma pequena valise. — Tenho outra mala no compartimento de bagagem — disse delicadamente ao motorista, ciente de que todos os olhares estavam voltados para ela.

Os três desceram. O motorista abriu o compar­timento de bagagem sob o ônibus. Ao lhe entregar a mala, perguntou:

— Tem certeza de que quer ir com esse homem? Ele não vai machucá-la, vai?

Jenny sorriu.

— Não, não. Não é nada disso. Ele não vai me bater.

Depois de fuzilar Cage com o olhar e resmungar alguma coisa contra as imprudências que ele co­metera nas estradas, voltou para o ônibus. Um momento mais tarde, já ia pela estrada, os pas­sageiros esticando o pescoço à janela para ver as duas pessoas que ficaram no acostamento.

Rígida, Jenny se voltou para encarar Cage. Deixou cair à bagagem com um enfático baque.

— Que belo espetáculo, Sr. Hendren. Que es­perava ganhar com isso?

— Pretendia tirá-la do ônibus e impedi-la de fugir feito um coelhinho assustado.

— Bem, talvez eu não seja outra coisa — gritou ela, dando vazão às lágrimas que vinha reprimin­do desde a cena na casa paroquial.

— Que pretendia fazer, Jenny? Ir a uma clínica de abortos em Dallas?

Ela cerrou os punhos.

— Nem considerei essa possibilidade desprezível!

— Que ia fazer então? Qual era a sua intenção. Ter o bebê e entregá-lo à adoção?

— Não!

— Escondê-lo? — Ele avançou um passo. A res­posta que Jenny daria à pergunta seguinte era de suma importância para ele. — Você não quer o bebê, Jenny? Tem vergonha dele?

— Não é nada disso — gemeu ela, cobrindo a barriga com ambas as mãos. — É claro que eu o quero. Eu já o amo.

Cage relaxou os ombros com alívio, mas sua voz ainda conservava um timbre irritado.

— Então por que resolveu fugir?

— Eu não sabia o que fazer. Seus pais deixaram claro que não me queriam mais lá.

— E daí?

— Daí? — Ela fez um gesto na direção que o ônibus acabava de seguir. — Nem todos têm co­ragem de sair perseguindo um ônibus. Ou de via­jar de moto a cento e cinqüenta quilômetros por hora. Eu não sou como você, Cage. Você não se importa com o que as pessoas pensam. Faz o que bem entende. — Espalmou a mão no peito. — Eu não sou assim. Eu me preocupo com o que as pessoas pensam. E estou com medo.

— De quê? — perguntou ele, empinando o quei­xo com hostilidade. — Dessa cidadezinha cheia de cabeças medíocres? De como essa gente pode prejudicar você? Qual é a pior coisa que podem lhe fazer? Falar mal? Desprezá-la? O quê? Nin­guém precisa da amizade de quem é capaz de fazer isso. Está com medo de sujar o nome de Hal? Eu também não gosto de imaginar esses hi­pócritas pensando mal dele. Mas Hal morreu. Não vai saber disso. E o trabalho que ele iniciou con­tinuará. Você mesma cuidou disso, organizando a rede de coleta de doações. Pelo amor de Deus, Jenny, não seja tão dura consigo mesma. Você é a sua pior inimiga.

— Que sugere que eu faça? Que volte e fique trabalhando em seu escritório?

— Sim.

— Neste estado?

— Você devia se orgulhar dele.

— Ter este bebê sabendo que ele passará a vida, rotulado com um nome sujo?

Cage apontou o dedo para o peito dela.

— Quem rotular esse bebê de qualquer outra coisa que não seja "maravilhoso" está arriscando a vida.

Jenny teve vontade de rir de tamanha ferocidade.

— Mas nem sempre você estará por perto para protegê-lo. Não será fácil para esta criança viver numa cidade tão pequena, onde todo o mundo co­nhece a sua origem.

— Tampouco seria fácil para ela crescer numa cidade grande, onde sua mãe não conhece nin­guém. A quem você pediria ajuda, Jenny? As pes­soas mais hostis que você encontrar em La Bota são pelo menos familiares.

Era difícil admitir quanto a havia aterrorizado a ideia de se mudar para outra cidade sem muito dinheiro, sem emprego nem lugar onde morar, sem amigos nem parentes.

— Não está na hora de mostrar um pouco de coragem, Jenny?

Ela levantou a cabeça.

— Como assim? — perguntou irritada.

— Desde os catorze anos deixa os outros toma­rem decisões por você.

— Nós já discutimos isso há alguns meses. Eu tentei governar o meu próprio destino. Veja o que aconteceu.

Cage ficou ofendido.

— Você não disse que tinha sido bom fazer amor? E, como resultado, vai ter um bebê. Acha mesmo que é ruim?

Ela baixou a cabeça e pressionou as mãos no ventre.

— Não. E maravilhoso. Eu fico assombrada quando penso nesta criança. Assombrada com o milagre.

— Então! Volte a La Bota comigo. Tenha esse lindo bebê e ignore os que não gostam dele.

— Até mesmo seus pais?

— A reação que tiveram hoje foi um ato reflexo. Quando pensarem um pouco, eles vão mudar de opinião.

Meditando, Jenny olhou para a noite escura.

— Acho que tem razão. Eu não posso achar um futuro para mim e o bebê. Tenho de construí-lo. Certo?

Ele sorriu e fez um sinal positivo com o polegar.

— Eu não saberia expressar isso melhor.

— Oh, Cage — ela suspirou, os braços pendendo frouxamente junto ao corpo. Tinha perdido subi­tamente a energia.

— Obrigada uma vez mais.

Ele se aproximou, suas botas fazendo crepitar o pedrisco do acostamento. Tomando-lhe o rosto nas mãos, acariciou-lhe a face com os polegares.

— Você podia se casar comigo. O bebê teria um pai, e tudo ficaria na mais perfeita ordem.

— Não posso Cage.

— Tem certeza?

— Tenho.

— Em todo caso, não pense que esta é a última vez em que farei esse pedido.

Seu hálito quente e doce tocou os lábios dela antes do beijo delicado e possessivo. Como da ou­tra vez, seus lábios estavam entreabertos e úmi­dos. Mas, à diferença da outra, desta vez suas línguas se tocaram. Apenas o suficiente para pro­vocar uma reação imediata nos seios de Jenny.

Em movimentos lentos, Cage saboreou a língua dela. Mas logo parou, deixando-a com vontade. E quando ele se afastou e lhe segurou o braço para conduzi-la ao automóvel, ela sentiu frio com a au­sência do calor do corpo dele.

Cage colocou as malas atrás dos bancos da Corvette.

— A primeira coisa a fazer é arrumar um lugar para você morar — observou quando estavam viajando.

Sem se dar conta, Jenny pousou a mão na perna dele.

— Tem alguma ideia? — perguntou vagamente.

— Você pode morar comigo.

Os dois se entreolharam. Ele, com expressão interrogadora e maliciosa; ela, com ar de censura.

— Alguma outra ideia?

Cage riu de bom humor.

— Acho que podemos conseguir alguma coisa com Roxy.

 

Roxy Clemmons?   — Jenny perguntou, tirando imediatamente a mão da perna dele.

— Sim. Você a conhece?

— Já ouvi falar. — Sabia que era uma das com­panhias mais constantes de Cage.

Voltou-se para olhar pela janela do carro, o gosto azedo do desespero e da decepção na boca.

Cage a havia beijado com tanta doçura, com tanta intimidade. Seu abraço era cálido, dava segurança. Jenny estava começando a gostar de quando ele a tocava e mais ainda de quando a beijava. Porém Cage não fazia senão o que tinha feito com centenas de outras mulheres. Seus bei­jos podiam provocar-lhe incêndios, mas aquele tipo de paixão nada tinha de novo para ele. A técnica perfeita com que beijava só podia ser resultado de horas e horas de prática.

Estaria ela destinada a tornar-se uma das mu­lheres de Cage Hendren? Será que ele planejava incluí-la naquela confraria, deixando-a guardada sob um teto qualquer, sempre disponível para re­ceber sua visita?

— Você não ficou muito entusiasmada com a idéia — ele comentou.

— Não tenho muita escolha, tenho?

— Eu lhe ofereci uma alternativa. Você recusou.

Jenny mergulhou num silêncio de pedra. Estava zangada e não sabia exatamente o motivo. Por que se sentia tão irritada, tão insultada? Decerto não tinha nada em comum com Clemmons. Havia uma diferença enorme entre elas.

Jenny Fletcher não era uma das mulheres de Cage. Ainda não...

Acaso vinha alimentando subconscientemente a ideia de tornar-se amante daquele homem? Por quê? Porque ele a havia beijado algumas vezes? Por causa da noite em Monterico? Ou seria porque sempre sentira uma inexorável atração por ele? Atração que a assustava e à qual resistia. Pelo menos acreditava que sim.

Bem, se Cage pensava que ela ia constar de sua lista de conquistas, estava muito enganado. Roxy Clemmons e as outras não passavam de contas de um rosário de aventuras sexuais que se estendia a vários distritos. Talvez porque ela havia caído em desgraça com Hal, Cage agora a considerasse fácil. Pois não poderia estar mais equivocado.

Nenhum dos dois falou durante a viagem. As ruas da cidade estavam desertas quando ele parou o carro no estacionamento de um conjunto resi­dencial e desligou o motor.

— Onde estamos? — quis saber Jenny.

— Aqui é o seu novo endereço, espero. Venha.

Subiu com ela ao apartamento em que uma pla­ca discreta dizia "Administração". Tocou a cam­painha. Pelas paredes, ouvia-se Johnny Carson entretendo o público. Quando a porta se abriu, Jenny viu Roxy Clemmons. A mulher a examinou com polida curiosidade, depois olhou para Cage na penumbra.

— Olá, Cage. — O sorriso que ela lhe endereçou fez qualquer coisa se encolher dentro de Jenny. — Que houve?

— Podemos entrar?

— Claro.

Roxy se afastou para lhes dar passagem. Depois de fechar a porta, foi até o televisor e baixou com­pletamente o volume.

— Desculpe vir incomodá-la tão tarde da noi­te, Roxy.

— Ora, você sabe que eu o recebo de braços abertos a qualquer hora.

Sentindo o coração contorcer-se no peito, Jenny olhou para o chão.

— Roxy, esta é Jenny Fletcher.

— Sim, eu sei. Olá, Jenny. Prazer em conhecê-la.

A gentileza da moça a surpreendeu; ela ergueu a cabeça e disse:

— O prazer é todo meu, Srta. Clemmons.

A outra riu.

— Pode me chamar de Roxy. Querem beber al­guma coisa? Aceita cerveja gelada, Cage?

— Nada mal.

— E você, Jenny?

— Nada, obrigada.

— Nem um refrigerante?

Para não ser grosseira, ela respondeu com um sorriso apagado.

— Sim, está bem, um refrigerante.

— Sentem-se, fiquem à vontade.

Roxy se voltou para a porta vaivém que dava para a cozinha. O jeans muito justo realçava seus exuberantes quadris. Os seios voluptuosos oscila­vam livremente sob a camiseta. Estava descalça. Seus cabelos avermelhados, embora despenteados, eram bonitos e atraentes. Ela parecia estar saindo da cama ou prestes a ir se deitar. Era o tipo da mulher com a qual um homem podia re­laxar e entregar-se ao prazer, uma amante per­feita. Simpática, hospitaleira, sensível, disposta. A ideia quase provocou náuseas em Jenny.

Cage se havia acomodado no sofá e estava fo­lheando um exemplar da Cosmopolitan que ali encontrara.

— Sente-se — disse, notando que Jenny conti­nuava de pé e sem jeito no centro da sala.

Pouco à vontade, como se pudesse sujar a saia se não tomasse cuidado, ela escolheu uma cadeira. Cage parecia divertir-se, e ela se irritou.

Roxy voltou com a bebida. Depois de tomar um longo trago da lata de cerveja, ele disse:

— Você tem algum apartamento vago? Estou precisando de um.

A mulher pousou um olhar intrigado em Jenny, depois se voltou novamente para ele.

— Puxa, que ótimo, parabéns. Mas qual é o problema com a sua casa?

Cage riu.

— Que eu saiba, nenhum. Mas acho que você não entendeu. É Jenny que vai morar no apar­tamento. Sozinha.

Jenny teve vontade de estrangulá-lo por ter dado a impressão de que iam morar juntos. Ficou vermelha como um pimentão. Agora que a situa­ção estava esclarecida, ela se pôs a procurar sinais de alívio em Roxy, que devia estar contentíssima por ele não ir morar com a nova amante bem diante do seu nariz. Porém tudo que a expressão da moça dizia era que ela lamentava o engano que acabava de cometer.

— Oh! — Roxy olhou para Jenny e sorriu. — Você está com sorte. Eu tenho um apartamento vago. Quarto e sala.

Jenny chegou a abrir a boca para falar, contudo Cage se adiantou.

— De que tamanho? Ela vai ter um bebê. Há espaço para um berço?

Roxy se mostrou chocada com a notícia. Fitou Cage boquiaberta. Depois, voltando-se para Jen­ny, olhou imediatamente para sua barriga.

— Você não tem restrições a inquilinas com be­bês, tem?

— Não. Claro que não. — Indisfarçavelmente, Roxy se recompôs, tratando de colocar as coisas em sua adequada perspectiva. Calçou um par de sandálias e se levantou. — Vamos até o aparta­mento, e vocês decidem se é o que estão procu­rando. — Minutos depois, quando iam pela cal­çada entre os prédios, falou por cima do ombro. — O lugar é muito bom. — Tinha ido buscar a chave do apartamento vago no quarto que lhe ser­via de escritório. — E bem tranquilo, mas não isolado a ponto de dar medo de morar sozinha, Jenny. — E prosseguiu, falando nas vantagens do conjunto habitacional, exaltando a lavanderia e a piscina.

Jenny escutou calada. Endereçava olhares as­sassinos a Cage, que tivera a coragem de revelar o seu estado a... àquela mulher. Na manhã se­guinte, a cidade inteira estaria sabendo de sua gravidez.

— Chegamos. — Roxy abriu o apartamento e entrou com eles. Acendeu a luz. — Puxa como está abafado! Eu não o abro desde que o pessoal da limpeza e os pintores estiveram aqui.

De fato, o apartamento cheirava a desinfetante e tinta fresca, mas Jenny não se importou com isso. Era perfeito.

— Aqui é a sala de estar, é claro. A cozinha fica ali.

Roxy a conduziu por uma porta vaivém igual à do seu próprio apartamento. As instalações bri­lhavam. Jenny abriu a geladeira, também estava muito limpa.

Não tardaram a examinar o apartamento todo. Só havia um banheiro e um quarto além da sala de estar.

— E o aluguel? Quanto é?

— Quatrocentos por mês. Mais o condomínio.

— Quatrocentos dólares? — perguntou Jenny— Acho que não...

— Sem mobília? — indagou Cage.

— Oh, imagine! — exclamou Roxy, levando a mão à cabeça. — Eu estou fazendo confusão. Os apartamentos de um quarto sem mobília custam duzentos e cinquenta.

— Melhorou — disse ele.

Jenny calculou seu salário e as despesas. Con­seguiria pagar o aluguel se economizasse. Além disso, aquele era um dos conjuntos habitacionais mais bonitos da cidade, e suas escolhas eram li­mitadas. Tinha tido sorte de encontrar um apar­tamento vago. Tentando esquecer que ia ser quase vizinha de uma das amantes de Cage, disse:

— Preciso assinar um contrato?

— Quer dizer que vai ficar com ele? — quis saber Roxy.

— Vou, acho que vou — respondeu Jenny sem entender por que a outra mulher se mostrava tão satisfeita.

— Fantástico. É bom saber que seremos vizi­nhas. Venha, vamos voltar ao escritório.

Quinze minutos mais tarde, Jenny estava com uma cópia do contrato e um molho de chaves na mão.

— Pode se mudar amanhã mesmo. De manhã cedo eu abrirei as janelas para arejar um pouco.

— Obrigada. — As duas se despediram. Cage acompanhou Jenny até o carro, esperou que ela se instalasse no banco e voltou. Roxy continuava à porta de seu apartamento.

— Obrigado por contornar a questão do aluguel.

— Você me colheu de surpresa, mas consegui pegar a coisa no ar — disse ela, sorrindo. — Vai me informar dos detalhes desse acordo ou eu terei de recorrer à imaginação?

— Está curiosa?

— Muito.

Ele riu.

— Depois conversaremos. Obrigado por tudo.

— Não há de quê. Amigo é para essas coisas.

Cage a beijou rapidamente nos lábios e lhe deu um tapinha no traseiro antes de descer correndo e ir ter com Jenny no carro. Ela estava rígida feito uma estátua, olhando fixamente para frente, as pontadas de ciúme a lhe machucarem o peito.

Não tinha ouvido a conversa à porta, mas vira muito bem como um sorria para o outro e quando Cage se inclinou para beijar Roxy. A descuidada familiaridade com que eles se tocavam afrontava a compostura de Jenny. Por mais que ela dissesse que não se importava, seu coração protestava.

— A primeira coisa que precisamos fazer ama­nhã é comprar os móveis — disse Cage.

— Você já ajudou muito. Não posso pedir que...

— Você não pediu nada. Eu é que estou ofere­cendo. Faça uma lista de tudo que vamos precisar.

— Não posso comprar muita coisa. Só o essen­cial. Aliás, onde estamos indo agora? — Até o momento, ela não se dera conta de que, até o dia seguinte, continuava sendo uma sem-teto. Onde ia dormir aquela noite?

— Imagino que não queira voltar à casa paroquial.

— Não.

— Pode passar a noite em minha casa.

— Não há lugar.

— Naquela casa enorme?

— Há só uma cama.

— E daí? Não será a primeira vez que dormimos na mesma cama. — As palavras foram ditas em voz baixa e rouca. Jenny não respondeu. Após algum tempo, ele suspirou e disse: — Vou levá-la a um hotel.

Pouco depois estava estacionando a porta de um hotel à beira da estrada.

— Espere aí.

Jenny o observou entrar no saguão bem-iluminado. Pela vidraça, viu o recepcionista noturno tirar os pés de cima da escrivaninha e deixar de lado o romance policial que estava lendo. Pelo amplo sorriso que exibiu e a efusão com que aper­tou a mão de Cage, era óbvio que o conhecia.

Nem lhe pediu que preenchesse a ficha, entre­gou-lhe imediatamente a chave de um quarto. Inclinando-se numa postura conspirativa, cochichou alguma coisa que Cage, no entanto, recusou com um gesto negligente.

Depois olhou para o carro de longe. Jenny viu-lhe a expressão de surpresa quando a reconheceu. Sorrindo, fez outro comentário, o qual levou Cage a unir as sobrancelhas numa carranca. Carranca essa que não tinha desaparecido quando ele voltou para o automóvel depois de dar um seco boa-noite ao recepcionista.

— Que ele disse? — perguntou Jenny.

— Nada.

— Ele disse alguma coisa. Eu vi.

Cage ficou calado, mas foi com o carro diretamente para o quarto, sem necessidade de conferir os números nas portas. Parou bruscamente e, sem ocultar o mau humor, desligou o motor.

— Você já esteve aqui — disse ela intuitivamente.

— Jenny...

— Não esteve?

—... pare com isso.

— Não esteve?

— Pode ser.

— Muitas vezes?

— Muitas!

— Com mulheres?

— Sim!

Ela sentiu o peito apertado. Ficou sem fala, mal conseguia respirar.

— Você dormiu com outras mulheres aqui e é isso que o recepcionista está pensando que vai acontecer agora. O que ele disse a meu respeito?

— Não interessa o que ele...

— A mim interessa — gritou ela. — Conte-me.

— Não.

Cage desceu do automóvel e pegou a bagagem atrás dos bancos. Sem verificar se ela o estava seguindo, caminhou com passos largos para a por­ta do quarto e a abriu. Guardou as malas no ar­mário e acendeu o abajur.

— Que foi que ele disse? — perguntou Jenny da porta.

Cage girou nos calcanhares e viu-lhe a expressão resoluta. Parecia cansada e transtornada, zangada e vulnerável. Estava pálida e desgrenhada, tinha olheiras profundas. Sua boca tremia levemente. Pa­recia uma criança perdida, um soldado derrotado.

Ele nunca a desejara tanto. Mas não podia pos­suí-la ali, e isso alimentava a sua raiva. Jenny lhe pertencia, droga, mas ele não podia aproxi­mar-se dela. Amava-a tanto quanto ela o amava, porém as circunstâncias os mantinham separados. Estava pagando caro aquela noite no paraíso. O desejo de possuí-la outra vez vinha transformando a sua vida num inferno.

Disposto a magoá-la como ela o magoava, Cage abriu o jogo:

— Muito bem, Srta. Fletcher. Faz questão de saber o que ele disse? Disse que, desta vez, a coisa ia ficar em família.

Jenny cravou os dentes no lábio inferior para não gritar a sua indignação. O ódio ferveu dentro dela, procurando uma válvula de escape. Cage era a única disponível.

— Está vendo o que fez? Contou a Roxy Clemmons, que como todo mundo sabe é uma de suas amantes, que estou grávida. Agora me traz ao mesmo hotel onde costuma trazer suas mulheres. Amanhã cedo à cidade inteira vai saber que estive aqui com você. Acontece que eu não quero ser arrastada de um lado para outro como uma presa sua. Não quero que ninguém me confunda com uma de suas amantes, Cage.

— Por quê? Porque não presto? Não quer que a vinculem ao filho transviado do pastor, ao ma­luco que ninguém consegue controlar, ao homem que sempre está metido em confusão, que sempre tem problemas, que sempre se envolve com a mu­lher errada?

Avançou sobre ela com uma postura agressiva, selvagem. Jenny tentou recuar, mas chocou-se com a cômoda.

— Não foi isso que eu quis dizer...

— Foi isso sim! — rosnou Cage. — Pois bem, tem todo o direito de ser cautelosa comigo. Eu não presto mesmo. Não devo prestar. Eu sou um lixo. — Estendendo a mão, prendeu-lhe a nuca. Crispando os dedos em seus cabelos, puxou-lhe a cabeça para trás. — Pode ser que eu tenha trazido muitas mulheres a este quarto, mas nunca desejei nenhuma como desejo você.

Agarrou-lhe o pulso com a outra mão.

— Não! — gritou Jenny ao perceber a sua in­tenção. Tentou soltar-se, mas ele não deixou. Enlaçando-lhe a cintura, puxou-a para junto de si, pressionando o corpo no dela, fazendo-a sentir a sua excitação.

— Sentiu como eu a desejo? Faz muito tempo que isso acontece e já estou cansado de ocultar esse fato. E agora? Está com medo? Passando mal? Com nojo de mim? Quer fugir? Gritar? Ou prefere voltar à segurança da casa paroquial? — Baixando-lhe a mão, forçou-a a apalpar sua rija virilidade. — Sinta Jenny. Sinta. Veja o meu estado.

Agarrando-a de súbito, beijou-a com descontro­lada voracidade. Desatadas as emoções todas, es­magou-lhe os lábios com os seus. Mergulhou pro­fundamente a língua em sua boca, depois recuou, mas tornou a invadi-la com sofreguidão, repeti­damente, num movimento que evocava a cópula.

A seguir, com a mesma fúria com que a sujei­tara, soltou-a. Afastando-se precipitadamente, saiu e bateu a porta com ruído.

Jenny foi tropegamente para a cama e se deixou cair. Queria negar que estivesse decepcionada por­que ele não concluíra o que havia começado. Mas não conseguia. Sentia o corpo débil e mole de de­sejo. Enfeixando o que lhe restava de força, ela foi ao banheiro e tirou a roupa. Evitou olhar no espelho, não queria ver a palidez de seu rosto nem o túmido rosado de seus seios.

O chuveiro estava muito quente, chegava a queimar, uma pequena amostra da autoflagelação que ela merecia. Os jatos de água lhe alfinetaram a pele sem piedade. Ainda lhe ardia o corpo quan­do ela tirou uma camisola da mala e a vestiu. Deitou-se e fechou os olhos, as pálpebras aperta­das na esperança de também vedar a mente.

Mas o beijo era muito recente para ser removido da memória. O sabor dos lábios de Cage conti­nuava em sua boca, ela ainda sentia o contato daquele sexo rígido e palpitante, e recordava a cadência daquele beijo.

Quando o telefone tocou junto ao seu ouvido, ela saltou como que atingida por um raio.

— Alô!

— Me perdoe.

Nenhum dos dois falou durante um longo mo­mento; Os seios de Jenny tremeram de emoção sob a camisola fina. Ela prendeu o fone entre a cabeça e o ombro.

— Tudo bem.

— Eu perdi a cabeça.

— Eu o provoquei.

— Nós tivemos um dia difícil.

— Estamos muito sensíveis.

— Eu a machuquei?

— Não, claro que não me machucou.

— Fui grosseiro. — Ele baixou a voz. — Estúpido.

Jenny olhou para a própria mão, talvez à pro­cura de um sinal. Engoliu em seco.

— Eu vou sobreviver.

— Jenny.

— Quê?

Houve uma longa pausa.

— Eu não estou pedindo desculpas porque a beijei, e sim pelo modo como a beijei. — Esperou um momento. — E, se existia alguma dúvida quanto ao que sinto por você, agora não é mais segredo.

Tocada pelo tom gentil, mas imperativo de sua voz, ela sentiu a garganta fechar-se, sentiu von­tade de chorar.

— Eu não estou em condições de pensar nisso, Cage. Aconteceu muita mudança em minha vida.

— Eu sei, eu sei. Durma bem. Descanse bas­tante. O escritório vai ficar fechado amanhã. Eu passarei por aí por volta das dez horas. Tomare­mos o café, depois vamos fazer compras. Ok?

— Ok.

— Boa noite, Jenny.

— Boa noite, Cage.

— Bom dia, Jenny.

— Hum?

— Eu lhe disse bom-dia.

Jenny bocejou com o rosto mergulhado no tra­vesseiro, espreguiçou-se ao máximo debaixo das cobertas e abriu lentamente os olhos. Ergueu o corpo num sobressalto. Cage estava sentado na beira da cama, sorrindo para ela.

— Bem-vinda à terra dos vivos.

— Que horas são?

— Dez e dez. Eu cheguei as dez em ponto, bati na porta, mas você não atendeu. Fui à recepção, peguei outra chave e entrei.

— Desculpe — pediu ela, afastando os cabelos dos olhos. Corou sob aquele olhar ardente que a examinava com interesse e tapou com o lençol o decote da camisola. — Eu estava exausta.

— Está com fome?

— Muita.

— Vou pedir alguma coisa na lanchonete en­quanto você se veste.

Jogou-lhe um beijo antes de se levantar.

— Eu vou já para lá — gritou ela ao vê-lo fechar a porta atrás de si.

Vinte minutos depois, quando foi ter com ele, Jenny estava com aparência saudável e descan­sada. Tinha escolhido uma saia e uma blusa sim­ples, mas prendera um lenço vistoso na cintura. Os sapatos sem saltos e presos por uma correia estreita nos tornozelos chamaram a atenção de Cage quando ela se aproximou. Sabia que ela havia usado o primeiro pagamento para renovar o seu guarda-roupa. Passara a se vestir de maneira mais esportiva e alegre que no tempo em que era noiva de Hal.

— Estou atrasada?

— Acabam de servir a comida. Gostei dos seus sapatos.

— São novos — disse ela distraída, examinando a refeição. — Isso é só para mim?

— Exclusivamente.

— Não espera que eu coma tudo, espera?

— Espero sim, senhora. Pode começar.

— Mas você não vai comer? — perguntou ela, estendendo o guardanapo no colo.

— Já comi.

Ele estava concentrado num bloco de papel onde anotara a longa lista de coisas de que ela ia precisar.

Jenny ficou olhando para ele fascinada. Havia mil nuanças de castanho, do mais claro ao mais escuro, em seus cabelos, e o conjunto resultava num tom de areia que parecia eternamente agi­tado pelo vento e contrastava com seu rosto bronzeado.

Cage acabava de fazer a barba e o cheiro bom da loção era mais forte até mesmo que o aroma do café que a garçonete estava servindo. Estava de jeans e com uma camisa esporte, mas havia um paletó de seda no encosto da cadeira. Era uma estranha combinação, coisa que só podia ocorrer a um homem inclinado a transgredir to­das as regras.

Aquele homem era lindo e perigosamente sexy. Ela conhecia bem a dimensão do perigo. Despertava a mulher que havia nela a ponto de Jenny mal se reconhecer. Procurou afastar aqueles pen­samentos antes de comer o primeiro bocado.

Quando ela terminou o café da manhã, Cage já havia mapeado o itinerário do dia.

— Não esqueça que o meu orçamento é modesto — pediu Jenny quando estavam caminhando para o carro, e ele começou a enumerar as lojas em que fariam compras.

— Pode ser que seu patrão lhe dê um aumento.

Ela parou e o encarou. Empinou o queixo num gesto de teimosia.

— Uma coisa precisa ficar clara, Cage. Eu não vou aceitar a sua caridade.

— Quer se casar comigo?

— Não.

— Então se cale e entre no carro.

Abriu a porta da Corvette.

Era inútil discutir. Ela teria de se impor quando chegasse a hora de decidir o que podia e o que não podia comprar. Cage gostava de coisas caras, e tudo que ele sugeria era exatamente o que ela teria escolhido se não lhe faltasse dinheiro.

— Eu não posso comprar este sofá. Aquele outro custa à metade.

— Mas é muito feio.

— E funcional.

— E duro e... sem graça. Este aqui tem almofadas de trinta centímetros de espessura, é tão fofo.

— Por isso é caro. Não precisa ser tão fofo assim.

Ele sorriu com malícia e falou com voz curio­samente doce.

— Depende do que pretende fazer no sofá.

O vendedor estava próximo o bastante para ou­vir, mas ficou muito sério quando Jenny se voltou e olhou para ele.

— Eu fico com o mais barato — disse com dignidade.

Tiveram idêntica discussão sobre a cama, as poltronas, as cadeiras, a roupa de cama, os pratos, as panelas e até sobre um abridor de latas. Em todos os casos ele insistia em que ela comprasse a mercadoria de melhor qualidade e, portanto, mais cara. Jenny obstinou-se em ser econômica.

— Cansada?

Ela ia com a cabeça reclinada no encosto do banco do carro.

— Estou — respondeu com um suspiro. — Nun­ca mais vou mudar de apartamento. Não aguen­taria passar por isso novamente.

Cage riu.

— Mandei entregarem tudo que compramos hoje à tarde. A noitinha, seu apartamento vai es­tar parecendo um verdadeiro lar doce lar.

— Como conseguiu fazer com que entregassem tudo hoje mesmo?

— Suborno, ameaças, chantagem, todos os recursos.

Ele abriu um sorriso brincalhão, mas Jenny acreditou.

— Olhe um carro igualzinho ao meu! — Ela endireitou o corpo quando pararam em frente ao apartamento.

— E o seu — disse Cage despreocupado, aju­dando-a a descer da Corvette.

— Como veio parar aqui?

— Eu mandei buscá-lo. — Ele abriu a porta do automóvel, abaixou-se e ergueu o tapete, onde pe­dira ao motorista do guincho que deixasse a chave. Entregou-a a ela. — Palavra que é um carrinho muito modesto, mas sei quanto você gosta dele.

Jenny ficou contrariada.

— Cage, eu não queria tirar nada da casa dos seus pais.

Ele colocou as mãos na cintura:

— Pelo amor de Deus! Há anos que eles lhe deram esse carro de presente. Para que vão pre­cisar de três automóveis, o deles, o de Hal e o seu? Mamãe raramente dirige.

Ela aproximou-se de Cage e o empurrou para poder entrar no carro.

— Vou levá-lo de volta.

Ao vê-la fechar a porta, Cage se curvou, enfiou o rosto pela janela e disse com voz cantada:

— Então vou ser o seu único meio de transporte.

Jenny hesitou; depois, capitulando, deitou a ca­beça no volante.

— Isso é chantagem.

— Eu sei.

Rindo da situação e de si mesma, ela se deixou conduzir ao apartamento. Roxy tinha cumprido a promessa. As janelas estavam abertas, e o ar fresco removera totalmente o cheiro de ambiente fechado.

Meia hora depois as compras começaram a chegar.

— Oh, deve haver um engano! — exclamou Jenny ao abrir a porta para receber a primeira entrega.

— Não há engano algum, madame. Com licença. — O homem passou o enorme charuto de um canto da boca para o outro e roçou nela sem querer ao passar carregando uma poltrona. — Tragam o sofá! — gritou para os ajudantes que acabavam de descer do caminhão.

— Mas espere esse móvel não é meu.

— É o que está escrito na fatura.

Colocou a poltrona no chão e lhe entregou um papel verde. Jenny leu rapidamente, depois releu mais devagar.

— Oh, não! Cage, houve um terrível...

Interrompeu-se ao ver o sorriso de satisfação com que ele experimentava o sofá de almofadas fofas que havia escolhido, os dois braços estendi­dos no encosto. Parecia um Papai Noel contente na manhã de Natal.

— Que você fez? — interrogou ela.

— A palavra que me ocorre é sabotagem.

Era exatamente o termo apropriado. Conforme as peças compradas iam chegando, Jenny se deu conta de que Cage encomendara secretamente as coisas que ela queria, mas não tinha dinheiro para comprar.

— Como vou pagar tudo isso? — gritou.

— Em várias parcelas. O que pagou hoje ficou como entrada. Eu consegui abrir um crediário para você, com prestações que estão ao seu al­cance. Qual é o problema?

— Eu não posso fazer isso, Cage. Você esta me obrigando a tomar decisões contrárias ao bom senso. Mas isso vai acabar agora mesmo. Eu não fico neste apartamento se tiver de comprar estes móveis.

— Tudo bem. — As duas palavras de concessão não vieram acompanhadas de um suspiro nem de um dar de ombros. Pelo contrário, ele abriu um amplo sorriso, foi para a porta e assobiou. — Ei, amigos, ponham tudo no caminhão outra vez e levem para a minha casa. Ela resolveu se casar comigo em vez de morar sozinha aqui!

— Oh, meu Deus! — murmurou Jenny, cobrindo o rosto com as mãos. — Que maluquice!

Rindo muito, Cage fechou a porta e se aproximou.

— Você não tem nada melhor para fazer que ficar me pajeando?

— Não consigo imaginar nada melhor.

— Desde que Hal partiu você tem sido ma­ravilhoso. Por que está fazendo tudo isso para mim, Cage?

Ele a fitou com seus olhos cor de mel. Afastou com o dedo uma mecha de cabelo que lhe caía na testa.

— Porque gosto da cor dos seus cabelos. Prin­cipalmente quando o sol da tarde os ilumina como agora.

Acercou-se mais. Ela inclinou a cabeça natural­mente para trás a fim de continuar olhando para o seu belo rosto.

— E porque gosto dos seus olhos — acrescentou ele. Envolvendo-a nos braços, desatou o lenço de seda que Jenny trazia na cintura e, tirando-o len­tamente como se fosse uma peça mais íntima, deixou-o cair.

Jenny sentia-se hipnotizada por ele.

— Eu adoro a sua maneira de rir. E o que o seu riso me faz sentir. — Tomou-a pela cintura. — E gosto da forma do seu corpo. — Aproximou o rosto do dela. — E da forma da sua boca.

Uma fração de segundo depois, seus lábios se encontraram. Ele mordiscou os dela de leve, re­petidamente, até que se entreabrissem, pedindo para ser possuídos. E, atendendo a essa súplica muda, uniu suas bocas. Nada mais havia da vio­lência do beijo da noite anterior, mas a ternura deste era igualmente poderosa e também desper­tou o corpo de Jenny. Movida por uma necessidade de se aproximar ainda mais, ela o abraçou com força e se surpreendeu quando seus corpos se co­laram do peito aos pés.

— Oh, Jenny — sussurrou ele. Seu hálito era quente e perfumado, aquecia-lhe a face. Seus lá­bios úmidos lhe prenderam o lóbulo da orelha, provocando-lhe arrepios no corpo todo.

Ela teve a impressão de que estava flutuando sem controle, ao léu, totalmente entregue àquele senhor implacável.

— Cage, a gente não devia...

— Psiu, psiu.

A memória dela se mobilizou. Parecia se lem­brar de alguma coisa...

Porém, antes que pudesse identificar a esquiva recordação, o beijo de Cage a seduziu completa­mente, e tudo se perdeu numa bruma.

Cage lhe ergueu os braços fazendo com que ela envolvesse o seu pescoço. Percorreu-lhe o corpo com as mãos, detendo-as em suas axilas, tocan­do as curvas externas de seus seios. Acariciou-os lentamente. Jenny suspirou com a boca colada na dele.

— É bom?

Ela murmurou que sim. O beijo se intensificou.

Estreitando-a com mais força, Cage desceu a mão pelas suas costas e, ao encontrar os quadris, pressionou-o de modo que ela sentisse plenamente a urgência de seu desejo.

Jenny gemeu, febril, latejante, deliciosamente envolvida naqueles braços.

— Eu a quero, Jenny.

Deslizando a mão, tomou-lhe o seio, apalpando-o com ternura. Com a ponta do dedo médio, acariciou a protuberância hipersensível do mamilo, excitando-o ainda mais.

— Ah, que maravilha! — Ele estava encantado com a reação do corpo dela aos seus carinhos. — Eu quero ver, quero sentir o gosto, sentir o seu gosto.

Inclinou a cabeça e lhe beijou o seio por cima da blusa, tocou-lhe o mamilo com a língua.

— Eu quero fazer amor com você. — Aproximou a boca de seu pescoço, onde podia lhe tocar a pele cálida. Sua voz estava rouca. — Você entende? Quero ficar com você. Bem junto, abraçados.

Seus lábios reclamaram os dela novamente, com voracidade, com gana.

— Ei, vocês dois, abram essa porta! — Estavam batendo com força. — Vamos comemorar!

Cage se separou de Jenny e deixou escapar um feio palavrão. Respirou fundo. Olhou para ela e sorriu sem jeito.

— Não podemos ser grosseiros com a senhoria.

Jenny se pôs a alisar a roupa. Estava muito corada.

Cage foi abrir a porta para receber Roxy.

 

 

 

 

CAPÍTULO IX

 

 

 

Roxy entrou com um garrafão de vinho numa mão e uma sacola de super­mercado na outra.

— Ei, o que é isso? — perguntou Cage, pegando a sacola para espiar seu conteúdo. — Chips, patê, pipoca e queijo!

— Foi o que eu disse, vamos comemorar — sor­riu a moça com alegria. — E então, Jenny? Está gostando do apartamento?

— Estou sim, é muito bonito.

— Como ficou lindo! — Roxy assobiou de ad­miração ao examinar a mobília nova.

Cage tinha pedido aos carregadores que arru­massem os móveis à medida que os iam trazendo para dentro, mas não sem antes consultar Jenny quanto ao lugar de cada um. As peças se ajusta­vam perfeitamente às dimensões da sala.

— Vocês têm copos? — perguntou Roxy. — Ve­nha, vamos brindar à casa nova. — Sem ser con­vidada, dirigiu-se à cozinha. Cage a seguiu. Jenny não teve escolha senão acompanhá-los, muito em­bora os três mal coubessem ali.

Cage abriu as embalagens, embebeu um chip no patê e o ofereceu a Roxy. Rindo muito, ela mordeu um pedaço ao mesmo tempo em que ten­tava desarrolhar o garrafão de vinho. O que Roxy não comeu, Cage pôs na boca. Depois lam­beu os dedos.

Jenny preferiu ficar no segundo plano, sentia-se fora de seu elemento em meio à diversão dos dois. Não estava com humor para festejar nada.

— Não é qualquer inquilino que eu recebo assim — disse Roxy a Jenny enquanto tirava a etiqueta dos copos comprados aquela manhã e os lavava um a um. Estava muito à vontade, parecia não se sentir nada constrangida na cozinha dos outros.

— Mas, como você é amiga de Cage, e ele é meu amigo... Ai! — grunhiu quando este a agarrou por trás e a abraçou com força, as mãos prendendo-a pouco abaixo dos volumosos seios.

— Sua sem-vergonha, amigos até debaixo da água!

— Largue-me, seu louco, e vá cortar o queijo.

Jenny se sentia demais ali. Não pertencia àquele grupo. Não sabia participar daquele tipo de camara­dagem. Roxy dava a impressão de saber exatamente o que dizer para que Cage risse. As mãos dele pa­reciam acostumadas a tocá-la com frequência.

Por que aquela familiaridade a incomodava tan­to, Jenny não sabia. Mas, afinal, como esperava que eles se comportassem quando estavam juntos? Não eram amantes? Ela sabia disso. Mas saber e presenciar eram coisas muito diferentes. Doía-lhe no fundo do coração que, poucos segundos an­tes de Roxy aparecer, Cage a estivesse beijando com tanta ternura, com tanto fervor.

Será que ele era capaz de esquecer sua paixão conforme lhe conviesse? Acaso tinha esquecido que a estava beijando e dizendo quanto a desejava? Conseguia transferir tão depressa o seu afeto de uma mulher para outra? Tudo indicava que sim. A prova de seus desejos de camaleão estavam bem diante de seus olhos.

Servido o vinho, eles brindaram ao apartamento novo. Jenny tomou um gole da bebida barata. Dei­xando o copo, pediu licença e, sem saber se tinha sido ouvida em meio às gargalhadas dos dois, foi para o banheiro e fechou a porta. Por pouco não vomitou no chão.

— Jenny? — Cage bateu na porta do banheiro alguns momentos depois. Sua voz estava carre­gada de preocupação. —Algum problema?

— Eu já vou sair — gritou ela. Lavou o rosto, bochechou e passou os dedos nos cabelos.

— Está zangada conosco? — perguntou ele no momento em que Jenny abriu a porta. — Eu sei que não gosta de bebida. Esta é a sua casa. Não queríamos ofendê-la.

Foi nesse momento que ela compreendeu que o amava. Provavelmente sempre o amara. Mas só naquele instante, ao vê-lo olhando para ela com ar tão constrangido, teve certeza de seu sentimen­to. Passara anos enganando-se a si mesma, ten­tando se convencer de que, se ficasse longe dele, a atração que sentia desapareceria. Mas, ao con­trário, aquele sentimento ficara aninhado dentro dela como uma ostra na concha, reunindo grãos de conhecimento sobre Cage, um olhar, um toque, um som, até que seu amor por ele se transfor­masse numa pérola rara incrustada em sua alma. Queria cair em seus braços, sentir a sua força. Mas não podia. Era absurdo. Jenny Fletcher e Cage Hendren? Impossível. Ela estava grávida de outro homem, o irmão dele. Mesmo que não fosse assim, os dois não combinavam, um não servia para o outro. Acaso podiam existir criaturas tão diferentes? Era um despropósito pensar em fica­rem juntos, em desenvolverem qualquer tipo de relação, em terem um romance, não havia a menor esperança. Ah, mas ela o amava!

— Não, não é isso, Cage — disse Jenny com um sorriso amarelo. — É que não estou me sen­tindo bem.

Ele ficou tenso.

— O bebê? Algum problema. Está com cãibra? Sangramento? Que aconteceu? Quer que chame o médico?

— Não, não. — Ela pousou a mão em seu braço para tranquilizá-lo, mas retirou-a logo. — Só estou cansada. Passei o dia todo de pé e acho que não aguento mais.

— Eu merecia ser fuzilado — disse ele. — Devia tê-la posto na cama no minuto em que chegamos.

— Eu não tinha cama quando chegamos.

Ele forçou um sorriso.

— Bom, assim que a entregaram você devia ter ido se deitar. — Tomou-lhe a mão e a conduziu à sala. — Diga boa noite, Roxy. Vamos embora para que madame possa dormir.

Roxy se levantou de um salto do sofá novo e olhou detidamente para ela.

— Você está pálida como um fantasma, meu bem — disse, encostando o dorso da mão no rosto de Jenny. — Posso fazer alguma coisa?

Pode sim, ir embora, Jenny teve vontade de gri­tar. E trate de ficar longe de Cage. A sua principal doença era o ciúme. Ela sabia disso, mas não con­seguia evitar. Só queria ver a amante de Cage fora de sua casa.

— Não, vou melhorar quando descansar um pouco — disse com diplomacia.

A despeito de seus protestos, Cage e Roxy ar­rumaram a nova cama para ela, estendendo os lençóis ainda duros de goma.

— Se quiser lavar a roupa de cama amanhã para amaciá-la um pouco — sugeriu Roxy —, eu a ajudarei a levar tudo à lavanderia. Passe lá em casa.

— Obrigada — disse ela, plenamente consciente de que nunca na vida pediria um favor a Roxy Clemmons.

Uma vez arrumada à cama, guardaram os salgadinhos e o vinho. A porta, Cage segurou ambas as mãos de Jenny.

— Tranque bem a porta.

— Pode deixar.

— Se precisar de alguma coisa durante a noite, a qualquer hora, vá ao apartamento de Roxy e telefone para mim.

— Não se preocupe...

— Vou me preocupar com você quanto eu quiser — atalhou ele. — Amanhã o telefone será insta­lado aqui.

— Mas eu não mandei...

Cage pousou o dedo nos lábios dela.

— Eu mandei quando você estava no toalete depois do almoço. Agora vá se deitar e durma um pouco. Boa noite. — Beijou-lhe a boca delicada­mente. Passou a língua em seu lábio inferior com tanta suavidade que ela ficou na dúvida se era imaginação ou não. — Vamos, Roxy querida. Eu a acompanho até sua casa.

Jenny fechou a porta. Cage ia levar Roxy para casa. Sem dúvida continuariam a festa interrom­pida. Ela se pôs a imaginar os dois juntos, as bocas unidas, os corpos entrelaçados. Ficou muito tempo deitada na cama nova sem conseguir dor­mir. Atormentava-a pensar em Cage com Roxy. Em Cage com quem quer que fosse.

Era muito tarde quando o ouviu ligar o motor da Corvette, ainda estacionada do lado de fora, e partir.

O dia seguinte era sábado, de modo que não havia pressa para se levantar e ir trabalhar. Jen­ny tirou a roupa da cama, pois mesmo antes que Roxy o sugerisse, tinha decidido lavá-las para ti­rar a goma.

Ainda de penhoar, preparou uma xícara de café na cafeteira nova, apenas um de uma centena de itens que ela e Cage haviam comprado no depar­tamento de utilidades domésticas no dia anterior.

Ia levar a xícara à boca quando bateram na porta. Olhando pela janela primeiro, para saber quem era, ela se encostou na parede com desâni­mo. Não estava disposta a tolerar Roxy logo de manhã.

— Olá — disse ela alegremente quando Jenny abriu uma pequena fresta na porta. — Eu a acordei?

— Não.

— Ótimo. Cage me mataria. Escute, eu fiz esta torta. Está uma delícia. Mas é muito grande para mim, queria dividi-la com você.

Seria indelicado não convidá-la a entrar, de modo que Jenny se fez a um lado, forçou um sor­riso e disse:

— Entre. Eu acabei de fazer café.

— Legal! — Roxy colocou o pacote de papel alu­mínio na mesa de madeira maciça e se sentou numa das cadeiras que a acompanhavam. — Você tem muito bom gosto — comentou, olhando a sua volta. — Palavra que adorei tudo aqui.

— Obrigada, mas Cage me ajudou a escolher.

— Ele também tem muito bom gosto. — Piscou, mas Jenny não soube dizer o que a piscadela sig­nificava. Concentrou-se em servir uma xícara de café para a vizinha. — Açúcar? Leite?

— Puro, com adoçante... diz a gorducha enquan­to come o bolo — riu-se Roxy, zombando de si mesma. E tratou de desembrulhar a torta. — Você tem uma faca e dois pratinhos?

Ao receber seu pedaço de torta, Jenny disse com delicadeza:

— Deve estar uma delícia.

— Tomara que sim. Eu peguei a receita em uma revista. — Roxy atacou o seu pedaço.

Mais reservada, Jenny provou o doce e achou-o muito gostoso.

— Vai precisar de mim para ajudá-la em alguma coisa como levar a roupa para a lavanderia?

— Não, obrigada.

— Tem certeza? Tempo é o que não me falta hoje.

— Não precisa — disse Jenny.

— Quer outro pedaço de torta?

— Não, obrigada. Foi muita gentileza sua ter trazido essa delícia.

Roxy deixou a faca de lado e colocou os antebraços na mesa. Pousou os olhos desconcertantemente cândidos em Jenny.

— Você não gosta de mim?

Jenny foi colhida de surpresa. Passara a vida evitando confrontos e mal conseguia acreditar que estava envolvida em um. Abriu a boca para negar da maneira mais diplomática possível, porém Roxy se adiantou.

— Não minta. Eu sei que não gosta de mim e também sei por quê. Porque já dormi com Cage.

A cor que tingiu o rosto de Jenny e os olhos arregalados valeram como uma admissão de cul­pa. Roxy se encostou na cadeira.

— Pois pode economizar essa hostilidade. Por­que, na verdade, eu nunca fui para a cama com Cage. Está surpresa? — perguntou ao ver a in­credulidade estampada no rosto de Jenny. — Mui­ta gente ficaria. E fique sabendo que não foi por falta de vontade nem de oportunidade. Cage é sedutor, todo mundo sabe. Qualquer mulher daria tudo para transar com ele.

Jenny engoliu em seco.

— Cage lhe contou como nos conhecemos? — quis saber Roxy.

Jenny sacudiu a cabeça.

— Quer saber? Foi num baile, depois de um rodeio. Meu marido... Você sabe que já fui casada?

Jenny continuou calada.

— Pois é, eu fui. Aquela noite, meu marido es­tava de péssimo humor porque não tinha conse­guido montar um touro e acabou perdendo o di­nheiro do prêmio para outro vaqueiro, e resolveu descontar em mim como era seu costume. Quase me matou aquela vez.

— Ele batia em você?

Roxy riu da inocência de Jenny.

— E como! Só que, aquela noite, ele estava mui­to bêbado e exagerou. Cage ouviu os meus gritos no estacionamento onde Todd, esse era o nome dele, tinha me arrastado. Cage deu uma surra em meu marido e lhe disse que se ele voltasse a pôr as mãos em mim apanharia de novo. — Mer­gulhou o dedo no pedaço de torta que estava no prato e lambeu o creme. — Fazia anos que era assim. Todd ficava de mau humor, bebia, sentia ciúme e me batia. Mas eu o amava, sabe? Por outro lado, não tinha mais ninguém no mundo. E não tinha aonde ir. Não tinha dinheiro.

— E os seus pais?

— Minha mãe morreu quando eu tinha dez anos. Papai era petroleiro. Vivia me arrastando de um campo de petróleo para outro. Quando me casei, aos dezesseis anos, ele achou que tinha cumprido o seu último dever de pai e se mandou para o Alasca. Nunca mais tive notícias dele. Acabei ficando nas mãos de Todd. Uma noite ele ficou tão bravo que pensei que fosse me matar. Não era a primeira vez que me ameaçava de morte, mas naquela ocasião achei que era para valer. Cage tinha me dado o número de seu telefone. Eu liguei, e ele foi me buscar. Levou-me ao hos­pital e pagou a conta. Depois disso, eu passei mais de um mês na casa dele. Foi quando começaram a dizer que estávamos tendo um caso. — Ela riu. — Eu não tinha condições de atrair homem algum. Estava toda arrebentada. Todd ficou furioso. Acu­sou-nos de havê-lo enganado durante meses, o que não era verdade. Foi para o México e pediu di­vórcio. Eu achei muito bom. Só que fiquei sem nada, não tinha um tostão e não podia continuar morando na casa de Cage. Mas ele convenceu uns amigos a montarem uma sociedade e comprar este centro habitacional. E me instalou aqui como administradora. Com direito a apartamen­to e salário.

Jenny estava boquiaberta. Lia os jornais, as­sistia à televisão. Sabia que esse tipo de melo­drama acontecia, mas não conhecia ninguém que realmente tivesse experimentado tal vida.

Roxy a fitou nos olhos.

— Cage é o melhor amigo que tenho. A primeira pessoa que verdadeiramente cuidou de mim. Eu lhe devo tudo, absolutamente tudo. — Inclinou-se para frente. — Se esse homem tivesse me pedido que pagasse na cama o que ele fez por mim, eu não hesitaria. E provavelmente teria adorado. — Baixou a voz para dar ênfase a suas palavras. — Mas isso nunca aconteceu, Jenny. Acho que Cage sempre soube o que eu só vim a descobrir mais tarde. Se tivéssemos nos tornado amantes, nossa amizade teria terminado, e eu teria sido, a mais prejudicada. — Estendeu a mão e cobriu a de Jen­ny. — Não precisa ter ciúme de mim.

As duas passaram um longo momento entreolhando-se, depois Jenny baixou a vista.

— Você não entendeu. Cage e eu não somos... não temos... quer dizer, não é isso...

— Talvez ainda não — atalhou Roxy. Jenny não teria dúvidas sobre o futuro de seu relacionamento com Cage se o houvesse observado na noite anterior, no apartamento de Roxy. Fora engraçado. Roxy já tinha visto homens em todas as situações, porém nunca topara com um tão apaixonado. Sentado no chão, encostado no sofá, ele ficou olhando para o nada, com uma expressão estranhíssima. Falou em Jenny sem parar, foi pre­ciso que Roxy o sacudisse e o mandasse embora, dizendo que estava morrendo de sono e que se ouvisse uma vez mais o nome de Jenny seria capaz de vomitar.

Para mudar de assunto e desculpar-se, Jenny disse:

— Eu fui tão grosseira com você!

— Ora — disse a outra, dispensando as des­culpas com um gesto —, deixe para lá. Eu já estou acostumada a ser tratada aos pontapés, como uma "mulher perdida".

— Eu gosto de você — declarou Jenny de súbito, percebendo que era verdade. Com Roxy, qualquer um sabia onde estava. Ela nada tinha de hipó­crita. Não fingia e não deixava que fingissem na sua frente.

— Muito bem — disse ela, como se tivessem chegado a um acordo após dias e dias de debate. — Agora coma mais desta torta antes que eu acabe com ela. Você, com esse corpinho, pode se fartar. Eu, com este traseiro enorme, nem tanto.

Rindo, Jenny se serviu de mais um pedaço.

— Eu prometi a Cage que comeria bem.

— Ele está preocupado com o bebê.

— Está? — Ela tentou se mostrar indiferente, mas não conseguiu.

Roxy sorriu.

— Acha você delicada demais para carregar um bebê na barriga. Eu fiz o que pude para convencê-lo de que a sua gravidez será das mais tranqüilas.

— Eu não estou preocupada comigo. O que me preocupa é o bebê, tenho medo de que as pessoas o punam por alguma coisa que eu fiz.

— Esqueça as pessoas.

— É o que Cage diz.

— E com razão. Você não está contente com o bebê?

— Claro que sim. Muito — confirmou Jenny, os olhos brilhando.

— Com o amor da mãe e do tio Cage, ele não terá problemas.

— Você não tem filhos?

O sorriso de Roxy desapareceu.

— Não. Sempre quis ter, mas Todd... ele me machucou uma vez, sabe? Eu precisei ser operada, tiraram tudo.

— Oh, meu Deus, que coisa horrível! — excla­mou Jenny em voz baixa.

Roxy deu de ombros.

— Ora, já estou muito velha para pensar em ter filhos, e Gary diz que não se incomoda com isso.

— Gary?

— O meu namorado. Foi Cage que nos apresentou. Ele trabalha na companhia telefônica. Aliás, deve estar chegando para instalar o seu telefone.

É A julgar pela descrição de Roxy, Jenny esperava que Gary fosse um daqueles bonitões que apare­ciam na capa de Playgirl. Não era. Tinha orelhas enormes, nariz comprido, um sorriso dentuço, mas seu rosto irradiava energia e bom humor. Poucos minutos após a sua chegada, ficou claro que ele e Roxy estavam perdidamente apaixonados.

— Eu queria ter vindo à festinha de ontem para também lhe dar as boas-vindas — disse Gary, apertando a mão de Jenny —, mas tive de atender uma emergência. Onde quer que instale os telefones?

— Os telefones? Como assim?

— São três.

— Três?

— Foi o que Cage encomendou. Eu sugiro um no quarto, um na sala e outro na cozinha.

— Mas...                                                            I

— É melhor aceitar, Jenny — disse Roxy. — Foi Cage que encomendou.                                  

— Oh, está bem.

Enquanto Gary se encarregava da instalação dos aparelhos, Roxy ajudou Jenny a arrumar a cozinha. Depois, lavaram a roupa de cama e as toalhas, dobraram-nas e as guardaram. Falavam sem parar. Por volta de meio-dia, Jenny tinha a impressão de que conhecia aquela moça desde me­nina. Apesar de terem histórias tão diferentes, era enorme a afinidade que as unia.

— Alguém está com fome? — Cage enfiou a cabeça pela porta que Gary deixara entreaberta numa de suas viagens até o furgão.

Jenny ficara tão aliviada de saber que ele e Roxy nunca tinham sido amantes que, ao ouvir a sua voz, voltou-se com um sorriso encantador nos lábios. E correu ao seu encontro, mas se deteve quando faltava pouquíssimo para cair em seus braços.

— Ei, não pare aí! — protestou ele com um sorriso.

Ela venceu a pequena distância que os separava e o abraçou, chegando até a enfiar as mãos por baixo de sua jaqueta de brim.

— Olá, querida. — Cage lhe examinou o rosto com olhos interessados. — Conte o que eu fiz para merecer esta recepção. Vou passar o resto da vida fazendo a mesma coisa.

— Pois saiba que estou zangada com você.

— Continue zangada. Eu estou gostando muito. Abrace-me outra vez.

— Uma vez basta.

— Mas estou com as mãos cheias, não posso re­tribuir o abraço. Você tem de me abraçar por mim.

Era um absurdo, mas, no estado de espírito em que se encontrava, aquilo fazia um sentido per­feito para Jenny. Ela o envolveu novamente e in­clinou a cabeça para fitá-lo.

— Por que está zangada comigo?

— Que vou fazer com três telefones?

— Andar menos. — Ele a beijou rapidamente.

— Mas você ficou contente ao me ver. Confesse. Eu quero saber por quê.

— Porque você trouxe comida — ela disfarçou, apontando para os sacos de papel que Cage tinha nas mãos.

— Gosta de hambúrguer?

— Acebolado?

— Acebolado.

— Adoro.

Os quatro almoçaram alegre e ruidosamente.

— Aposto que vocês planejaram tudo — disse Roxy desconfiada, mordendo uma batata frita.

— Eu não planejei nada — defendeu-se Cage.

— Você planejou alguma coisa, Gary?

— Eu não — respondeu o outro, lambendo os dedos. — Quer me passar o catchup, por favor?

— Roxy e eu podíamos ter planejado outra coisa para o almoço — disse Jenny, afetando superioridade.

Cage riu satisfeito porque ela estava se sentindo à vontade com os gracejos de seus amigos.

— É que partimos do princípio de que vocês não planejariam nada.

— Verdade? Acho bom não terem tanta certeza assim a nosso respeito, não é mesmo, Jenny?

— Exatamente.

Ela ia morder o sanduíche naquele momento, mas Cage se inclinou e lhe beijou a boca com ternura.

Jenny não se lembrava de haver se sentido mais feliz nem mais livre na vida. Embora grávida, tinha a impressão de não pesar mais de cinqüenta quilos. Tinha deixado a casa paroquial no passado qual uma pele velha. Todo o seu ser respirava vida nova. Nem por isso ela negligenciava as res­ponsabilidades para com a igreja. Frequentava-a regularmente, e Cage a acompanhava. Sentavam-se numa das ultimas fileiras e raramente viam Bob, a não ser no púlpito. Este, por sua vez, se sabia que eles se achavam lá, não dava sinal. Não viam Sarah em seu lugar habitual, na se­gunda fileira.

Ela e Cage tinham perfeita consciência dos olha­res furtivos que lhes endereçavam e sabiam dos cochichos a suas costas, mesmo assim faziam questão de conversar educadamente com todos. Com Cage a seu lado, era fácil para Jenny manter a cabeça erguida e caminhar segura de si.

Ela se comprometeu mais com o trabalho no escritório. Passou não só a atender o telefone e redigir a correspondência como também a cuidar do arquivo e das pesquisas, coisa de que Cage não a havia encarregado.

— Você vai ficar exausta — disse ele um dia, quando passou por lá para tomar uma providência qualquer e a encontrou trabalhando ainda.

— Que horas são?

— Quase cinco e meia.

— Isto aqui é tão interessante. Eu perdi a noção do tempo.

— Não pense que vou lhe pagar horas extras.

— Eu lhe devo muitas horas de trabalho. Fui ao médico no meu horário de almoço.

— Você tem uma hora e meia de almoço.

— Mesmo assim. Eu sei que estou devendo ho­ras de trabalho, portanto deixe acabar essa tarefa.

— Você está ficando muito mandona, Srta. Fletcher. Se não tomar jeito, vou desistir de me casar com você e começar a procurar uma garota mais obediente e que me trate com o respeito que mereço.

Ela dobrou o mapa que tinha nas mãos.

— Se o tratarem com o respeito que merece, vai se transformar num capacho.

— Hum, não deixa de ser... interessante.

Cage foi até onde ela estava junto ao armário de arquivo, envolveu-a pelas costas e aproximou os lábios de sua nuca.

— Não diga que está se tornando sadomasoquista.

— Sadomasoquista? — Ele riu, afastando os lá­bios de sua nuca, porém mantendo-a aprisionada entre os braços. — Que você sabe sobre o sado-masoquismo?

— Muita coisa. Roxy tem um livro que dá ins­truções passo a passo.

— Roxy a está desencaminhando. Eu não de­via tê-la confiado a ela. Não leia mais nenhum livro dela.

— Não tenha medo. Não vou me envolver com nada que inclua chicotes e algemas. Deve doer. Por outro lado — ela riu —, duvido que uma roupa justa de couro preto fique bem no meu corpo agora.

— Eu acho que o seu corpo atual fica bem com qualquer coisa. É lindo.

Ele desceu as mãos por sua barriga, massageou-a com delicadeza, depois continuou até suas coxas por cima da saia. Jenny gemeu e tentou se virar. Ele não a impediu, mas o fato de ficarem frente a frente não lhe deu mais liberdade. Na verdade, tornou sua situação ainda mais perigosa.

— Eu preciso ir, Cage.

— Depois. — Ele lhe afastou os cabelos com o nariz e começou a lhe fazer carinho na orelha com os lábios.

— Está ficando tarde — balbuciou Jenny ao lhe sentir a língua úmida. — Eu já devia estar em casa.

— Depois.

Falou com os lábios colados nos dela e, quando os fechou, toda a resistência de Jenny se esfumou. Apoiando-se no armário de arquivo, Cage pres­sionou o corpo no dela. Repetiu esse movimento várias vezes, e sempre que sentia o contato de sua masculinidade, Jenny experimentava verda­deiras correntes elétricas no corpo.

Sem soltá-la, Cage a beijou com mais sofreguidão.

— Cage, não — protestou ela.

— Por que não?

— Porque não é sadio.

Ele colou o corpo no dela.

— Tem certeza?

— Não devemos...

Cage a pressionou novamente contra o armário, arrancando-lhe um gemido apesar de suas inten­ções de se manter indiferente.

— Não devemos fazer isso aqui, no seu escritório.

— E na minha casa?

— Não.

— No seu apartamento?

— Não.

— Onde então?

— Em lugar nenhum. Não devíamos estar fa­zendo isto.

Ultimamente, toda vez que Cage a beijava, ela se lembrava da noite com Hal. Aqueles beijos evo­cavam lembranças demasiadamente vivas. Os dois irmãos beijavam com igual intensidade, suas carícias eram igualmente estimulantes. Mas, por algum motivo, ao reagir aos beijos de Cage, Jenny sentia que estava traindo Hal. Acaso tremera nos braços do noivo do mesmo modo que tremia quando Cage a tocava?

— Jenny, por favor.

— Não.

— Eu não aguento mais. Não fico com uma mulher desde... — Conteve-se antes de dizer "Desde que fiz amor com você". Preferiu mudar a frase. — Há muito tempo.

— Por culpa de quem?

— Sua. Eu não quero dormir com ninguém. Só com você.

— Vá procurar uma de suas amantes. Tenho certeza de que não vai faltar quem queira lhe fazer a gentileza. — Jenny era capaz de morrer se ele fizesse isso. Diariamente sofria muito, perguntando-se quando Cage se cansaria de passar tanto tempo em brancas nuvens em sua compa­nhia. — Ou então vá tomar um pouco de ar fresco.

— Convide-me para passar a noite em sua casa.

— Não.

— Faz mais de vinte dias que se mudou para lá e só me convidou duas vezes.

— E foi demais. Você fica até tarde e não se comporta como devia. — Ela não ia aguentar se ele continuasse beijando-lhe o pescoço daquele jei­to. Era tão gostoso! — As pessoas nos vêem juntos por aí e já estão começando a falar.

— De que outra coisa elas poderiam falar se a temporada de futebol ainda não começou.

— Você não entende? Quando souberem que estou grávida, vão pensar que... — ela preferiu não concluir a frase.

Cage continuou roçando os lábios em sua orelha.

— Vão pensar o quê?

— Que o bebê é seu — respondeu Jenny com os olhos pregados em seu colarinho, incapaz de fitá-lo nos olhos.

— E seria tão terrível assim? — A voz lhe saiu grave carregada de emoção como a dela.

— Não quero que o acusem de uma coisa que não fez.

— Eu não consideraria isso uma acusação. E não me importaria nem um pouco de assumir a paternidade do bebê.

— Mas seria errado, Cage.

— Já me culparam de tanta coisa que não fiz. As pessoas inventam o que querem. E, quando confundem os fatos, não há o que as faça mudar de opinião.

— Duvido.

— Você não acreditava que Roxy era minha amante?

— Não!

— Você não sabe mentir, Jenny — ele riu.

— Chegou até a dizer que ela era um de meus casos mais constantes. Pensou que tínhamos um caso. Foi por isso que ficou tão mal-humorada aquela noite em que eu a tirei do ônibus.

— Se fiquei mal-humorada foi porque eu não estou acostumada a ser perseguida por um ma­níaco que tem a coragem de parar um ônibus no meio da estrada e tirar uma pessoa lá de dentro!

A irritação dela o encantava.

— Muito bem, você é esperta. — Cage lhe beijou a ponta do nariz. — Mas não pense que vai escapar mudando de assunto. Confesse que achava que Roxy e eu tínhamos um caso.

— E daí? A culpa é minha? — defendeu-se ela.

— Você não pára de passar a mão nela.

Ele lhe acariciou o corpo.

— Eu também não consigo parar de passar a mão em você, mas isso não significa que estamos dormindo juntos.

Ela se sentiu lisonjeada.

— Fato que me leva ao começo da conversa. Você não devia ficar passando a mão em mim o tempo todo. — Sua voz carecia de convicção aos seus próprios ouvidos.

— Não gosta que eu passe a mão em você?

Quem não gostaria? Quem não adoraria sentir aqueles polegares roçando de leve a parte inferior de seus seios enquanto os outros dedos se alinha­vam em suas costelas?

— Eu adoro tocá-la — sussurrou ele, estreitando-a para um novo beijo impossível de resistir. — Convide-me para jantar, Jenny. Que mal há em jantar na sua casa?

— Porque quando Cage Hendren vai jantar na casa de uma mulher, é evidente que acaba dor­mindo com ela.

Suas bocas continuavam juntas em úmidas carícias.

— Isso é boato.

— Todo boato tem um fundo de verdade.

— Ok, eu confesso. Quero passar uma noite so­zinho com você. Ficar abraçadinho, beijando-a... Que há de mal nisso?

— Tudo.

— Muito bem — suspirou ele. — Eu pedi com educação, mas você prefere jogar pesado. Não vou deixá-la sair daqui enquanto não me convidar para jantar em seu apartamento. E posso muito bem ficar aqui, beijando-a, até o dia do Juízo Fi­nal. O único problema é que estou ficando exci­tado. — Aproximou-se ainda mais dela, seus qua­dris se colaram. — Em breve, os beijos não bas­tarão. Eu vou ser obrigado a desabotoar os botões da sua blusa. Já os contei. São exatamente quatro. Não demoraria mais que três segundos, três segundos e meio no máximo. Então eu saberia se o seu sutiã é roxo ou azul. Já sei que é transpa­rente, mas não consegui descobrir a cor. E depois...

Ela o empurrou. Apesar do sorriso diabólico, Cage falou como um bom menino que acabava de tirar as melhores notas na escola.

— Eu tenho a noite de sexta-feira completa­mente livre.

— Não apele, Cage — disse ela com sarcasmo.

— Jenny, o que estou pedindo é tão pouco. Ape­nas um jantar!

— Oh, você é um monstro. — Tornou a empur­rá-lo e pegou a bolsa. — Está me chantageando de novo, mas tudo bem, venha às sete horas.

— Às seis.

Jenny o fuzilou com o olhar e caminhou rapi­damente para a porta.

— Jenny.

Ela se voltou.

— De que cor é o seu sutiã?

— Só eu sei — respondeu ela e girou a maçaneta.

— E eu vou descobrir — retrucou Cage com um sorriso.

 

Jenny segurou a barriga na esperança de conter o formigamento. Umedeceu os lábios. Passou a mão nos cabelos. Respirou fun­do e abriu a porta.

Cage estava na soleira: calça social marrom, camisa bege e uma jaqueta de antílope. O conjunto combinava perfeitamente com seus cabelos claros e a pele bronzeada. Era óbvio que havia se pen­teado, porém, como de hábito, o vento lhe desfizera os cabelos. Parecia estar saindo da cama ou do banho. Era o que insinuava sua expressão. Ele fitou Jenny com os olhos ansiosos. Seu rosto se iluminou com um sorriso.

— Olá — disse ela timidamente.

— Podemos ir direto à sobremesa? — perguntou Cage com voz rouca. — Eu dispenso o prato principal.

Eram ridículas as sensações que pulsavam em Jenny. Afinal, ela havia passado a manhã com Cage no escritório, atualizando a correspondência da semana. Os dois tinham trabalhado num clima de agradável camaradagem. De onde vinha àquela tensão entre eles? Que estava lhe causando tanta aflição? O ar chegava a estalar de sensualidade, e ela sabia que Cage sentia exatamente a mesma coisa. Nas horas de trabalho, até que conseguiam controlar aquelas correntes elétricas. Porém bas­tava deixarem de lado a barreira profissional para que o desejo latente começasse a crepitar entre os dois, a borbulhar feito água no fogo.

Jenny saíra do escritório ao meio-dia, como em todas as sextas-feiras. Mas nem pensou em des­cansar aquela tarde. Entregou-se de corpo e alma aos preparativos da noite. Queria que o jantar, o apartamento e ela mesma estivessem perfeitos.

A cada hora que passava, sua expectativa cres­cia, e cresceu até aquele momento. Agora, estando face a face com Cage, tinha a impressão de que estava a ponto de desmaiar.

Jenny reparou no enorme buquê de rosas cor-de-rosa que ele trazia. As longas hastes estavam embrulhadas em papel verde e as flores impreg­navam o ar com um doce perfume natural.

— São para mim?

— Você tem uma irmã gêmea?

— Não.

— Então acho que são para você mesmo.

Ao receber as flores, Jenny se afastou para lhe dar passagem. Cage avançou dois passos e parou.

— Mas, o que...

Olhou a sua volta assombrado. A sala tinha sofrido uma verdadeira metamorfose desde que ele a vira pela última vez. Jenny tinha passado os intervalos do almoço e as tardes percorrendo as lojas de artigos usados em busca de pequenos enfeites. Com a ajuda de Roxy, transformara o apartamento num lar e estava orgulhosa do resul­tado. Embora já tivesse vinte e seis anos, era a primeira vez na vida em que gozava do privilégio de escolher a decoração de sua própria casa. Ao con­trário do quarto que ocupava na casa paroquial, ali não se via uma renda, uma fita, um babado. Seu gosto, embora simples e elegante, era moderno.

— Gostou? — perguntou ela, torcendo as mãos com ansiedade.

— Se eu gostei? Posso mudar para cá hoje mesmo.

Jenny riu, sabendo que ele não estava sugerindo nada ilícito, apenas elogiando o seu esmero.

— Eu gastei uma fortuna para que um deco­rador arrumasse a minha casa. Devia tê-la con­tratado. Não sabia que tinha esse talento oculto. — Cage a examinou com olhos curiosos. — Que outros talentos ocultos você tem?

Tomada de uma onda de emoção, Jenny se apressou a mudar de assunto.

— Você precisava ver Roxy pechinchando as plan­tas. Nós as compramos de um particular. O homem queria cinquenta dólares. Roxy conseguiu tudo por dez. A seguir, telefonou para Gary pedindo que vies­se buscá-las com a caminhonete antes que o homem mudasse de ideia. Eu tive de, vir na carroceria para que nenhuma planta se machucasse.

— Eu também defenderia a minha orquídea com a própria vida. Não deixaria que se machucasse.

A expressão dele era angelical demais para não despertar suspeitas. Suas palavras tinham duplo sentido, mas Jenny achou melhor não pe­dir explicação.

— Veja que beleza essa cadeira vienense. Só estava precisando de uma demão de tinta.

— Gostei do que fez naquela parede.

— O tecido estava em oferta no K Mart. Roxy me ajudou a colá-lo na parede. Ficou bom, não?

O resto do tecido, ela havia usado para forrar almofadas para o sofá. As cores que escolhera para combinar com a mobília eram serenas e ao mesmo tempo estimulantes: vinho, azul-marinho, azul pe­tróleo e bege.

— As velas são cheirosas — disse Cage, apon­tando para o caprichado arranjo na extremidade da mesa.

— Eu achei os castiçais de latão numa loja de antiguidades, uma daquelas lojinhas minúsculas na estrada de Pecos. Precisei afastar muitas teias de aranha para chegar a eles. Gastei duas latas de um produto limpante e três noites de trabalho para poli-los.

— Ficou tudo lindo.

— Obrigada — respondeu ela com um trejeito.

— Principalmente você.

Cage inclinou subitamente a cabeça para bei­já-la. Jenny esperava um beijo suave, fraternal, no entanto, seus lábios foram imperiosos, sua lín­gua, ousadíssima. Passados vários momentos, ela teve de se afastar para tomar fôlego.

— Acho melhor pôr as flores na água antes que murchem.

Caminhou apressadamente para a cozinha e procurou por um vaso digno das rosas. Não en­controu nenhum e acabou usando uma jarra de vidro. Já fizera um arranjo de urzes para enfeitar a mesa, de modo que colocou as rosas na mesinha de centro da sala de estar, pedindo desculpas pela simplicidade do vaso.

— Roupa nova?

— É — respondeu ela com nervosismo. — Roxy a escolheu e me obrigou a comprá-la.

— Que bom.

A saia longa e a blusa solta eram de seda crua em sua cor natural e diferiam de tudo que ela usara até então. Na cintura, colocara um largo cinto tran­çado. Estava com os sapatos sem saltos de que Cage gostara. Os cabelos tinham sido presos com calcu­lada negligência, de modo que algumas mechas es­capavam e lhe caíam no pescoço e na face.

— E uma espécie de roupa de cigana — disse consciente de que estava sendo analisada. — Só deixei Roxy me convencer a comprá-la porque a blusa é bem larga e poderei usá-la quando minha barriga crescer.

— Vire-se.

Ela girou trezentos e sessenta graus e tornou a encará-lo.

— Lindíssima. Perfeita — sorriu Cage. — Mas será que você está aí mesmo? Tanta roupa a esconde.

— É claro que estou aqui — disse ela, batendo na própria barriga. — E já engordei um quilo.

— Que bom! E o médico que diz? Tudo bem? — Ele juntou as sobrancelhas preocupado. — Você já está na metade da gravidez, mas a sua barriga ainda não cresceu.

— Não cresceu? Você devia me ver sem roupa.

— Eu adoraria.

A expressão dele ficou demasiadamente sexy.

— O que eu quero dizer — apressou-se a ex­plicar Jenny — é que já estou ficando barrigudinha. O médico disse que o meu filho está se de­senvolvendo bem. Exatamente do tamanho que devia estar.

— Filho?

— É. O médico acha que é menino por causa das batidas do coração. Os meninos costumam ter batidas mais lentas que as meninas.

— Então eu sou atípico — sussurrou Cage. — Meu coração está a mil.

— Por quê?

Os olhos claros dele a atraíam como um ímã. Jenny se inclinou ligeiramente em sua direção.

— É que ainda estou pensando em vê-la sem roupa.

O impulso de se aproximar de Cage era quase irresistível, no entanto ela se controlou para não fazê-lo. Tratando de afastar-se dele tanto física quanto mentalmente, voltou-se para a porta vai­vém que abria para a cozinha.

— Preciso verificar o jantar.

— Que vamos comer? O aroma está delicioso.

Cage empurrou a porta a tempo de vê-la curvando-se para verificar o que estava no forno. Sentiu-se mais uma vez atraído por aquele corpo adorável.

— Lombo de porco, aspargos ao molho branco... Você gosta de aspargos? — Ele fez que sim e ela se mostrou aliviada. — Batata sautée e sorvete de creme.

— Está brincando! Sorvete de creme?

— Não, não estou brincando.

Cage entrou na cozinha. Assim que Jenny fe­chou o forno, segurou-lhe o braço e fez com que se voltasse e ficasse de frente para ele.

— Tentando me impressionar?

— Por que está perguntando isso?

— Você teve muito trabalho. — Cage pegou uma mecha de cabelo dela e a enrolou no dedo. — Por que, Jenny?

— Porque gosto de cozinhar. — Ficou como que hipnotizada quando ele levou a mecha de cabelo aos lábios e a beijou ao mesmo tempo em que aproximava o rosto perigosamente. — E... e... seus pais não gostavam de novidades. Eu gosto de ex­perimentar novas receitas, mas eles queriam co­mer sempre a mesma coisa...

Cage interrompeu a nervosa explicação com um beijo.

— Posso escolher a sobremesa? — perguntou num brando murmúrio ao afastar os lábios dos dela.

— Não.

— Eu escolho você: a mulher mais doce que já provei na vida.

Avançou até encurralá-la no balcão. Colou o cor­po no dela, moldando um no outro de forma tão perfeita que não deixava dúvida sobre quem era o macho e quem era a fêmea ali. Segundos depois, Jenny já agarrava as costas dele. O abraço voraz durou até que o cheiro do assado impregnasse o ar da pequena cozinha.

— Cage — murmurou ela sem fôlego —, a carne está queimando.

— Não faz mal — ronronou ele, roçando os lá­bios em seu pescoço.

— Faz sim. — Jenny o empurrou. — Tive muito trabalho.

Suspirou e afastou-se para tirar a comida do forno.

— Posso tirar o paletó?

— Está com calor?

Em resposta, ele ergueu a sobrancelha.

— Pegando fogo, Jenny querida! Pegando fogo!

Momentos depois, foi para a mesa em mangas de camisa.

— Deve estar uma delícia — disse ao sentar-se diante dela.

Jenny o serviu e ficou esperando com ansiedade o veredicto após a primeira garfada.

— Bem melhor que o que mamãe faz — sor­riu ele.

Satisfeita, ela também sorriu e começou a comer.

— Você os tem visto, Cage?

— Quem? Ah, mamãe e papai? Não, pelo menos não conversei com eles. E você?

— Não. Eu me sinto mal por representar um obstáculo entre você e eles.

Cage riu sem alegria.

— Jenny, o obstáculo que há entre nós existe desde que eu estava aprendendo a andar.

— Mas a minha gravidez e a minha mudança piorou tudo. E horrível. Eu esperava que se apro­ximassem mais. Eles precisam de você agora.

Cage percorreu o apartamento com os olhos.

— Sabe? Eu acho que eles ficariam com ciúme se vissem o que fez aqui.

— Com ciúme?

— É. Acho que queriam que precisasse deles tanto quando eles precisavam de você. Mas não preci­sou. Não precisa. Eles temiam lhe dar liberdade porque sabiam que você acabaria descobrindo isso. E fizeram tudo para mantê-la presa pela gratidão.

— Isso não é justo, Cage. Seus pais não são manipuladores.

— Não me entenda mal — disse ele, segurando-lhe a mão um instante. — Eu não estou que­rendo dizer que fizeram isso conscientemente. Os dois ficariam horrorizados de se imaginar tão egoístas. Mas pense bem, Jenny. Já que eu não era o filho que queriam, eles concentraram todas as esperanças e todas as energias em Hal. Feliz­mente ele era o menino perfeito para o que meus pais tinham em mente, por isso o adestraram me­ticulosamente. Então você apareceu. Uma menininha meiga e obediente que seria uma nora adorável.

— Tenho certeza de que não é o que eles pen­sam agora.

— Eu também tenho essa certeza, mas é melhor assim. Você é livre. Isso não significa que goste me­nos deles. — Cage sacudiu a cabeça. — Coisa que nunca conseguiram entender. Eu os amava e queria que eles me amassem. Se tivessem mostrado um pouco de afeição por mim, eu não teria me tornado tão insuportável, não seria necessário. — Fitou-a nos olhos. — Você se rebelou a sua maneira. Pode ser que desta vez eles consigam entender.

— Tomara que sim. Eu acho horrível imaginá-los sozinhos naquele casarão depois da morte de Hal. Creio que cedo ou tarde, com o nosso apoio ou não, eles conseguirão se adaptar à perda.

— E você, Jenny? Adaptou-se?

Terminando de comer, ela colocou os talheres no prato.

— Eu tenho saudade de Hal. Nós éramos muito unidos. Passávamos horas conversando. — Não reparou na veia que começou a pulsar na têmpora de Cage enquanto a ouvia. — Ele era um homem doce, incapaz de magoar quem quer que fosse.

— Você ainda o ama?

Jenny já nem sabia se o amara alguma vez na vida, mas se calou. Durante anos acreditara que amava Hal. Acaso havia passado todo esse tempo tentando convencer-se de que era assim? Por enorme que fosse o afeto que tinha por ele, seus beijos nunca a fizeram sentir o que sentia quando Cage a beijava. O coração dela não flutuava no peito cada vez que Hal aparecia. Não, Jenny jamais provara aquele de­sejo, aquela necessidade de entregar-se como sentia por Cage. Era uma ansiedade permanente, cons­tante como as batidas de seu coração.

Por respeito a Hal, não podia discutir com Cage seus sentimentos por ele. Preferiu não dar uma resposta clara.

— Eu sempre vou amar Hal de um modo especial.

Cage não gostava de rodeios. Jamais se esqui­vava de um tema, fosse qual fosse, e não toleraria que Jenny o fizesse.

— Se Hal ainda estivesse vivo, você quereria casar-se com ele?

Ela o encarou, mas logo desviou o olhar.

— Nós teríamos de pensar no bebê...

— E se você não estivesse grávida?

Jenny hesitou porque precisava entender o que vivera na cama com Hal. Teria sido apenas um daqueles mágicos cometas de emoção que passam pela vida da gente para logo se apagar? Teria sido uma casualidade? Será que, aquela noite tão especial, um e outro estavam emocionados a ponto de perder facilmente a cabeça? Ela começava a acreditar que tinha sido assim. Por maravilhoso que tivesse sido, ela agora sabia que sua paixão não se limitava necessariamente a uma única pes­soa. Tinha ficado tão excitada com os beijos de Cage quanto com Hal aquela noite.

Ciente de que ele aguardava sua resposta, res­pondeu em voz baixa:

— Não, acho que não. Depois de morar sozinha, percebo que Hal e eu não estávamos destinados a ser marido e mulher. Amigos. Bons amigos. Tal­vez irmão e irmã. Mas duvido de que pudesse ser uma boa esposa para Hal.

Cage tratou de não deixar transparecer o alívio e a alegria que estava sentindo.

— Vou ajudá-la a tirar a mesa — disse, levantando-se.

— Você ainda não comeu a sobremesa.

— Prefiro esperar um pouco para aumentar o prazer.

Sua inflexão sugeria um significado subenten­dido, porém, uma vez mais, Jenny achou preferível não insistir no tema. Os olhos dele mostravam um brilho dourado que só parcialmente se devia à luz das velas.

Conversaram tranquilamente enquanto arru­mavam a cozinha. O segundo poço de petróleo jorrara nas terras dos Parsons e já haviam come­çado a perfurar o terceiro. Cage já estava tentando comprar outra propriedade, na qual tinha certeza de que havia um lençol petrolífero.

Jenny adorava o entusiasmo com que ele falava em procurar petróleo em terras consideradas im­produtivas. Seu sucesso era inegável, porém não era o dinheiro que o motivava. Era o desafio, a jogada no escuro, o flerte com o desastre. Isso o incentivava. Cage dirigia em alta velocidade, mas sabia o que fazia ao volante de um carro. Valia-se da mesma ousada habilidade no negócio de perfurações.

Serviu o sorvete, lambendo a concha sem a me­nor cerimônia, enquanto Jenny colocava as xíca­ras de café numa bandeja. Foram juntos para a sala de estar.

— Não derrube nem uma gota no meu sofá novo — ralhou Jenny quando ele levou à boca uma colherada de sorvete.

— Maravilhoso simplesmente maravilhoso! — Cage deixou o sorvete derreter em sua boca.

— Então é verdade o que dizem?

— O quê?

— Que o caminho do coração de um homem passa pelo estômago.

Ele estava com a colher virada para baixo na boca, limpando a concavidade com a língua; puxou-a len­tamente para fora, os olhos pregados nos de Jenny.

— Não deixa de ser um dos caminhos, mas eu conheço outro bem mais divertido. Quer que mostre?

— Açúcar ou adoçante? — perguntou ela em voz alta, quase estridente.

Cage riu, sacudindo as mãos, enquanto ela o servia.

— Jenny, há anos que faz café para mim. Sabe muito bem que eu o tomo amargo.

— Esqueci.

— Esqueceu nada. Está até tremendo por causa do que eu disse.

— Foi uma grosseria, um atrevimento. — Jenny não conseguia fitá-lo diretamente nos olhos. Es­tava vermelha como um pimentão.

— Você é um paradoxo — observou ele, encostando-se no sofá para tomar o café. Tinha terminado o sorvete e colocado a tigela vazia na bandeja.

— Um paradoxo?

— Sim. Mesmo estando grávida, fica completa­mente desarvorada quando se menciona, ainda que superficialmente, o tema sexo.

O sorvete perdeu subitamente o gosto, e ela se livrou da tigela depois de umas poucas colheradas.

— Você me acha casta e antiquada, um dinos­sauro da época vitoriana tentando sobreviver na era do iluminismo sexual?

— Não ponha palavras na minha boca. Eu não quis dizer nada disso. A sua inocência é um encanto.

— Eu não tenho nada de inocente — murmurou ela, fincando o queixo no peito. Cerrou os olhos e recordou a sua própria respiração no momento do clímax. Os gemidos de prazer ainda lhe ecoavam na mente quando se lembrava de seu corpo desabrochando, explodindo qual uma flor exótica de néon. E sentiu novamente as costas arqueadas, os quadris erguendo-se, os membros trêmulos, o corpo inteiro entregue ao mais desenfreado prazer.

— Você disse que ainda era virgem na noite...

— E era mesmo.

— Nunca tinha feito antes?

— Nunca.

— Nada parecido?

— Nada.

Cage colocou a xícara de café na bandeja. Acer­cou-se dela, pousando o cotovelo dobrado no res­paldo do sofá. Roçou de leve os dedos em sua face.

— Você devia estar muito motivada àquela noite para acabar com a virgindade que havia conser­vado durante tanto tempo. Muito concentrada em seus pensamentos, Jenny levou inconscientemente a mão ao peito. Pas­sou os dedos no decote da blusa.

— Foi como se eu tivesse saído de mim mesma e estivesse observando uma coisa que estava acon­tecendo com outra pessoa. Despojei-me de todas as minhas inibições. Livrei-me das restrições que sempre me impunha. Eu estava vivendo unica­mente para aquele momento. Tornei-me puramen­te carnal, no entanto, meu espírito nunca se sentiu mais elevado que naquela noite. — Ergueu os olhos para ele feito uma garotinha confusa. — Você entende o que estou dizendo?

— Entendo perfeitamente.

— Nada que fizemos me pareceu sórdido ou errado. Foi lindo. Eu queria amar e ser amada. Não bastava verbalizar o nosso amor; era preciso demonstrá-lo.

— E Hal estava disposto?

— No princípio não.

Ele lhe segurou o rosto com ternura.

— Mas você o convenceu.

— É uma maneira delicada de dizer que eu o seduzi.

— Tudo bem, você o seduziu. E então? Que aconteceu?

Jenny sorriu e baixou a cabeça timidamente.

— Então ele se mostrou mais que disposto. Hal nunca tinha ficado assim comigo.

— Assim como?

Se Jenny estivesse olhando para ele naquele momento, teria visto sua expressão voraz. Fechou os olhos um momento, como para controlar-se, e tratou de escolher as palavras. Cage observou a trajetória de sua língua quando ela umedeceu o lábio inferior antes de prosseguir.

— Sensual, cheio de desejo, um pouco selvagem até. — Ela riu. — Não sei como descrever.

— Selvagem? Ele foi bruto com você?

— Não, não é isso que quero dizer.

— Delicado?

— Sim. No meio de tudo isso, Hal foi extrema­mente delicado, mas... ao mesmo tempo apaixonado...

— Você ficou com medo quando ele tirou a sua camisola?

Jenny o fitou intrigada, e Cage teve raiva de si mesmo pelo deslize.

— Quer dizer, você estava de camisola, não estava?

Nos últimos minutos, sua voz doce e rouca a vinha induzindo a um transe, e, como que hipno­tizada, Jenny correspondeu a ele. Contudo, a per­gunta a arrancou do estupor.

— Eu não devia falar com você sobre isso, Cage.

— Por que não?

— E constrangedor. Por outro lado, não é justo com Hal. Por que quer tanto saber dessa noite?

— Porque sou curioso.

— Ou doente!

— Eu não tenho nada de doente, Jenny. Sou normal. — Cage aproximou o corpo do dela e pren­deu-a entre os braços. — Só quero saber o que é fazer amor para você.

— Por quê? — perguntou ela, quase chorando. Cage baixou a cabeça, e suas palavras foram doces e enfáticos sopros de ar nos lábios de Jenny.

— Porque eu quero fazer amor com você, mas resiste a cada gesto meu. Quero saber o que a fez mudar de atitude aquela noite. Que a levou a viver unicamente para o momento? Que fez o seu amante para que você se desembaraçasse das inibições e das restrições que normalmente se impunha? Que foi que a tornou tão carnal? Em resumo, Jenny, que foi que a transformou de tal modo?

Ela ficou excitada com aquele tom inquisitivo e com a força do corpo que a prendia no sofá. Seu peito arfou com a respiração acelerada. Seus olhos não conseguiam escapar ao elétrico campo mag­nético dos dele.

— Foi o ambiente que rompeu suas barreiras? — Cage perguntou. — Ele conseguiu criar um cenário tão romântico que você não foi capaz de se refrear?

Jenny sacudiu a cabeça e respondeu:

— Foi no meu quarto.

— Aquele quarto não era bonito, isso eu sei.

— Estava escuro.

Cage estendeu o braço atrás dela, quase a cobrindo com o corpo, e apagou o abajur. Só então Jenny reparou que ele havia apagado a luz da cozinha e a luminária da mesa. Ficaram mergulhados na pe­numbra, só a luz das velas a iluminá-los, proje­tando sombras longas e trêmulas nas paredes, as quais realçavam os contornos do rosto dele.

— Assim?

— Não. Totalmente escuro. Eu não conseguia ver nada.

— Nada? — Seus longos dedos lhe alisaram os cabelos e lhe seguraram a cabeça, obrigando-a a fitá-lo nos olhos.

— Nada.

— Não conseguia ver o rosto de seu amante?

— Não.

— Não teve vontade?

— Tive, tive, tive — gemeu Jenny, tentando virar a cabeça. Ele não deixou.

— Então agora é melhor. Olhe para o rosto do seu amante desta vez, Jenny. Pelo amor de Deus, olhe para mim.

Ele a beijou com sofreguidão, e não era outra coisa que ela esperava. Seus lábios reagiram aos dele com fúria possessiva e se entreabriram para receber as excitantes carícias de sua língua. Ela o abraçou, cravando os dedos nos músculos rijos de suas costas.

— O que ele lhe disse, Jenny? — Cage lhe cobriu de beijos o rosto e a boca. — Todas as coisas que você queria e precisava ouvir?

Enquanto aqueles lábios brincavam com os dela, Jenny se pôs a rememorar.

— Ele disse... — Nada lhe ocorreu. — Ele não disse nada.

— Nada?

— Não. Acho que suspirou o meu nome... uma vez.

— Não lhe contou quanto você é bonita e desejável?

— Eu não sou nada disso.

— E sim, meu amor, é sim. Tão linda! — Cage sussurrou diretamente no ouvido dela, seu hálito era quente e úmido. — Você está vendo o meu es­tado, Jenny. Como pode achar que não é desejável. Nunca na vida desejei uma mulher como a desejo.

— Cage — gemeu Jenny quando ele finalmente interrompeu o beijo incendiário e lhe lambeu os lá­bios delicadamente, fazendo cócegas em sua boca.

Deslizando a mão até sua cintura, desafivelou o cinto. Tocou-lhe o pescoço e acariciou-lhe a nuca com a ponta dos dedos.

— Ele disse que sua pele é macia como seda? — Baixou ainda mais a cabeça para lhe afagar o pescoço com o nariz e a boca. — E que o seu perfume é divino? — Beijou-lhe a curva do ombro, deixando um rastro úmido com a língua.

Jenny só se deu conta de que sua blusa tinha sido desabotoada quando Cage começou a despi-la. Escapou-lhe um gemido. Ele a tocou com carinho. Ela fechou os olhos e se entregou às sensações que aqueles dedos e aquelas mãos provocavam.

— Ele devia ter dito que seus seios são lindos.

— Beijou-os por cima do sutiã. — Que seus mamilos são os mais delicados do mundo, os mais doces, os mais perfeitos. Devia ter dito tudo isso, porque é verdade. — Em silêncio, soltou o fecho do sutiã e o despiu. — Ah, Jenny, deixe-me amá-la.

E, tomando-a nos braços, beijou-a novamente.

Ela não sabia que os beijos podiam ser tão de­liciosos e ao mesmo tempo tão hedonistas, que os lábios eram capazes de sugar tão ardentemente e sem causar dor, que a língua podia ser tão rápida e ágil e, contudo, não ter pressa alguma.

As carícias se prolongaram até que ela se viu à deriva num efervescente oceano de sensações. Miríades de sentimentos começaram a jorrar em suas terminações nervosas. Ela sabia que era er­rado reviver com o irmão de Hal a noite de amor que tinham vivido. Mas, fazia tempo que ultra­passara os limites do bom senso e agora já não havia como voltar atrás. Era mais uma vítima do charme lendário de Cage. Jenny Fletcher entraria no rol de suas amantes, mesmo assim, sem saber por que, não conseguia deixar de acreditar que aquela noite era diferente também para Cage.

— Você gostou de sentir o corpo dele no seu Jenny?

— Gostei.

— O contato da sua pele?

— Ele não tirou a roupa — confessou ela sem fôlego, sentindo-lhe a boca nos seios.

— E você?

— Eu sim, eu fiquei...

— Nua?

— É.

— E como foi para você?

Jenny recordou o momento em que ficou sem a camisola, o corpo nu e vulnerável à mercê de seu amante.

— Eu não senti vergonha. Só queria...

— O quê?

— Ora, nada.

— O quê? — insistiu ele. Ergueu a cabeça e prendeu os olhos dela com o olhar. — Desabotoe a minha camisa.

Jenny vacilou só um instante antes de afastar os olhos dos dele e olhar para o primeiro botão da camisa. Viu seus próprios dedos aproximan­do-se dele automaticamente, como que em obe­diência a uma ordem inquestionável. O botão es­corregou na casa. Seguiram-se os demais.

Ela exalou um leve suspiro de súplica quando aquele peito se desnudou diante de seus olhos, quando viu os pêlos claros que se espalhavam nos músculos esculturais qual um leque dourado e os mamilos escuros que insistiam em aparecer à meia-luz.

Seus olhos se encheram de lágrimas. A máscula perfeição de Cage lhe dava vontade de chorar. Ele era belo. Ela agarrou o pano da camisa e a despiu lentamente. Passou a mão em sua pele bronzeada e lisa, pontilhada de sardas nos om­bros. Acompanhou com o dedo a linha azulada das veias de seu bíceps.

Aos poucos, ele se colocou sobre ela até que o peito se unisse aos seios, a leve aspereza dos pêlos à maciez, o músculo masculino à suavidade feminina.

— Jenny, Jenny, Jenny...

Suas bocas se uniram exatamente como seus corpos. Cage se aproximou com cuidado, colocan­do-se um pouco de lado para que ela não tivesse de suportar todo o seu peso. Jenny sentiu o pal­pitar de seu coração no dele.

Ele a amava. Era incrível, mas a amava. E mal podia acreditar que ela finalmente seria dele.

— Viu como foi bom ter comprado o sofá mais macio?

— Hum. Era isto que você tinha em mente quando tentou me convencer a comprá-lo?

— Isto e muito mais.

Beijaram-se com paixão e com erotismo.

— Jenny, vamos para a cama.

— Cage...

— Eu não vou machucá-la. Juro.

— Não é isso.

— O que é então?

— Oh, por favor, não me toque aí — murmu­rou ela.

— Não é bom?

— Puxa vida, é bom demais. Por favor, Cage...

— Assim? Aqui?

— É.

Suas bocas se dissolveram uma na outra.

— Toque-me — ele implorou.

— Onde?

— Em qualquer lugar.

Jenny pôs a mão em seu peito. O mamilo se arrepiou ao contato do dedo.

— Eu não aguento mais. Venha para a cama comigo, Jenny.

— Não posso.

— Você não me quer?

Ela respondeu comprimindo o corpo no rijo vo­lume do dele. Cage entendeu aquilo como um sim. Levantando-se, deu-lhe a mão. Ela a segurou e se deixou conduzir. Foram para o quarto.

A porta da frente vibrou com uma forte batida, seguida de um palavrão de Cage.

— Com os diabos!

Jenny correu até o sofá, pegou a blusa, vestiu-a as pressas e começou a abotoá-la. Escondeu o sutiã debaixo da almofada.

Cage não se mostrou preocupado com sua apa­rência. Com a camisa aberta e fora da calça, foi para a porta e a abriu com violência.

Viu Roxy e Gary do lado de fora.

— O prédio pegou fogo? — rosnou Cage.

— Não.

— Então, boa noite.

Tentou bater a porta na cara deles, porém Roxy a segurou a tempo.

— Mesmo assim, é um caso de vida ou morte. Se Gary não se casar comigo hoje mesmo, eu me mato!

 

— Casar! — Jenny exclamou, avançando um passo e colo­cando-se junto a Cage. O assombro lhe removera a inibição. Ela só se lembrou do estado em que se achava ao ver os olhos de Roxy brilhando de curiosidade.

— Nós interrompemos alguma coisa importante? — ela perguntou, piscando com cômica inocência.

Cage ficou ainda mais carrancudo.

— Desculpe meu velho — murmurou Gary desconcertado.

— Então sejam breves e sumam daqui.

— Cage, você não ouviu o que Roxy disse? Eles vão se casar.

— Isso mesmo! — Roxy enlaçou o braço de Gary e o apertou nos seios voluptuosos. — Quer dizer, se você for conosco a El Paso e trouxer de volta o carro de Gary.

— Vocês devem ter perdido o juízo! — exclamou Cage, olhando de um para outro. Ainda estava se recuperando da frustração. — Vão mesmo se casar?

— Vamos! — exclamou Roxy radiante de entusiasmo.

— Bom, que fantástico. Parabéns! — Cage apertou a mão do amigo, depois deu um forte abraço em Roxy.

— Parabéns, Gary — sorriu Jenny. E, entrando no espírito da ocasião, abraçou-o com força, coisa que fez as enormes orelhas dele ficarem vermelhas como um tomate. Ela abraçou Roxy também.

— Quero que sejam muito felizes.

— Eu também, menina, eu também. Ele é a me­lhor coisa que já me aconteceu. Eu não o mereço.

— Claro que o merece. — Jenny sorriu nova­mente, e as duas tornaram a se abraçar.

— Agora, que história é essa de levá-los a El Paso? — quis saber Cage quando as duas mulhe­res se separaram, enxugando as lágrimas.

— Nós temos reserva no vôo do meio-dia de lá para Acapulco amanhã. Gary é tão convencional — provocou Roxy —, faz questão de se casar antes da lua-de-mel. Por isso estamos indo para El Paso procurar por um juiz de paz. Queremos que vá junto para trazer de volta o carro de Gary, caso não se importe de ir nos buscar dentro de uma semana. Além disso, vai ser muito mais divertido se estiver lá no momento em que amarrarmos a corda no pescoço.

Gary sorria tolamente e balançava a cabeça, concordando com as explicações de Roxy. Cage sorriu com satisfação.

— Eu estou nessa! E você, Jenny?

Passavam das dez horas. Ela não conseguia ima­ginar pegar a estrada no meio da noite. No caminho para El Paso só havia areia, erva rala e coelhos.

Todavia a ideia de fazer uma viagem tão impetuosa era instigante e diferente de tudo quanto havia feito na vida. Jenny passara a gostar muito de Roxy e de Gary e queria ser testemunha de seu casamento.

— Acho extraordinário!

Todos se entregaram a um tumulto de movi­mentos e tomadas de decisão, que enfim, vinte minutos mais tarde, culminou à porta do aparta­mento de Roxy.

— Acho que pegamos tudo — gritou ela, er­guendo bem alto uma garrafa de champanhe. Trancou a porta depois de se certificar de que o apartamento estava em condições de passar uma semana fechado. A bagagem dos dois já tinha sido colocada no porta-malas. — O administrador as­sistente, o Sr. Burton, vai cuidar de tudo enquanto eu estiver fora, Cage — ela explicou ao se sentar no banco da frente, ao lado de Gary.

— Não se preocupe. Jenny e eu também esta­remos por aqui. Concentrem-se em ter uma lua-de-mel inesquecível.

— É o que pretendo — disse Roxy, aconchegando-se a Gary. Tocou-o num lugar tão íntimo que o fez saltar no banco, perdendo momentanea­mente o controle do automóvel.

— Assim não dá — sorriu Cage. — Gary não vai conseguir dirigir e ao mesmo tempo se con­trolar. Vamos parar lá em casa e pegar o meu Lincoln. Assim vocês podem se divertir no banco traseiro durante todo o caminho para El Paso.

— Ótima idéia! — entusiasmou-se Roxy. — Você não acha, querido?

Gary fez que sim.

— Além disso — acrescentou Jenny com sar­casmo —, se Cage estiver dirigindo, vamos chegar lá na metade do tempo.

— Sabe de uma coisa, garota, se você não parar de me gozar, sou obrigado a tomar medidas drás­ticas para calá-la.

Cage a agarrou num abraço e a beijou, afas­tando-se dela só quando pararam diante de sua garagem.

— Tempo! — gritou Roxy como um árbitro in­terrompendo uma partida.

Cage resmungou uma obscenidade.

— De qualquer modo nós teríamos de parar para respirar, Cage — cochichou ela ao mesmo tempo em que alisava a roupa e arrumava os cabelos.

Todos acharam o comentário engraçadíssimo, e foi às gargalhadas que passaram do carro de Gary para o de Cage. O Lincoln era tão antigo quanto a Corvette e também tinha sido meticulosamente restaurado. Cinza metálico, dava a impressão de ter meio quarteirão de comprimento.

— Fiquem à vontade — sorriu Cage por cima do ombro, voltando-se para o banco traseiro.

— É a nossa intenção — respondeu Roxy. E aninhou-se num canto arrastando Gary consigo, que, embora algo inibido, mostrou-se igualmente disposto a aproveitar a viagem ao máximo.

Ao entrar na estrada, Cage vaticinou:

— Duvido que eles digam mais alguma coisa antes de chegarmos a El Paso. — Exatamente nesse momento, ouviu-se um gemido de prazer no banco traseiro. — Bem, talvez digam — cor­rigiu-se, rindo baixinho.

O Lincoln avançava rapidamente pelo centro da rodovia de duas pistas. Cage ia a cento e qua­renta quilômetros por hora ou mais, porém Jenny se sentia segura. Podiam ver os faróis dos outros veículos a uma grande distância. Nada havia na paisagem que lhes encobrisse a visão.

— Está gostando? — ele perguntou após vários minutos de silêncio. Havia sintonizado uma estação FM. A música suave era interrompida de vez em quando por uma voz neutra que mantinha os ou­vintes informados da hora e das condições do tempo.

— Hum, estou — suspirou Jenny.

— Com sono?

— Não muito.

— Você está tão quieta.

— Pensando.

— Sabe? Mesmo que este carro seja enorme para os padrões atuais, não somos obrigados a ocupar todo o banco da frente.

— Como assim?

— Em outras palavras: fique mais perto de mim.

Jenny sorriu e escorregou para junto dele.

— Melhorou muito.

Cage pôs o braço em seu ombro e, imediata­mente, cobriu-lhe o seio com a mão.

— Cage! — Ela lhe afastou a mão.

— Eu desenvolvi e aperfeiçoei esta técnica quando ainda estava no colégio. Não venha me dizer que não funciona.

— Comigo não funciona — ela retrucou.

— Nunca funcionou com as boas garotas — res­mungou ele. — Mas não custa tentar. — Passou a lhe acariciar o pescoço com os dedos. — Em que você estava pensando?

Com toda naturalidade, Jenny pousou a cabeça no ombro dele. Pôs a mão em sua perna e a deixou ficar.

— Eu nunca fiz uma coisa tão maluca.

— Maluca? Nós só estamos viajando. Claro que não é todo dia que duas pessoas obviamente apai­xonadas e que vão se casar em breve resolvem viajar no meio da noite.

— Eu não disse que vou me casar com você.

Ele fez uma pausa breve e significativa.

— Eu estava me referindo a Roxy e Gary.

Jenny ficou mortificada. Retirou imediatamente a mão de sua perna e tentou afastar-se. Cage não per­mitiu. Segurou-a junto de si apesar da resistência.

— Fique aqui — sussurrou. — E pare de querer fugir, pois não vou soltá-la. — Jenny obedeceu. — Então você pensou que eu estava falando de nós dois? Quer dizer que somos duas pessoas ob­viamente apaixonadas? Nós estamos apaixonados um pelo outro, Jenny?

— Não sei — murmurou ela, baixando a cabeça.

— Eu só posso falar por mim, é claro. — Tirou os olhos da estrada. — Eu a amo, Jenny.

Ela ergueu a cabeça e ficou fascinada com a expressão eloquente de seus olhos. Os dois ficaram um longo momento entreolhando-se, o carro a avançar velozmente na rodovia. Por fim, ele voltou à atenção para a pista.

— Eu sei que você está pensando que eu disse essas palavras a dezenas de mulheres. Bem, disse mesmo. Disse tudo que fosse necessário para levá-las para a cama. Fiz amor com elas porque estava bê­bado, ou com raiva, ou triste, ou contente. Por todos os motivos que possa imaginar. E houve ocasiões em que fiz mesmo sem vontade, simplesmente por­que fiquei com pena da mulher e sabia que ela estava precisando de carinho. Estive com mulheres bonitas e algumas não tão bonitas. Nunca fui de escolher muito. Mas eu juro Jenny — voltou o rosto para ela novamente, estava muito sério —, que nunca amei ninguém. Até agora. Você é a única mulher que amei. E começou há muito tempo, mas não via nenhum sentido em investir nisso. Todo mundo diria que eu não servia para você. Você mesma teria fu­gido apavorada se eu tivesse me aproximado seria­mente. Mamãe e papai morreriam de ódio e, além de tudo, havia Hal, e eu não queria magoá-lo.

Jenny pressionou o rosto banhado de lágrimas no ombro dele.

— Por que está me contando isso agora?

— Não acha que já estava na hora de saber? — Abraçou-a com mais força e lhe beijou a testa.

— Você me ama, Jenny?

— Sim, acho que sim. Quer dizer, eu o amo, sei que amo, mas estou confusa.

— Confusa?

— Até a alguns meses, minha vida estava tão bem planejada e organizada, tão cuidadosamente controlada! A partir da véspera da viagem de Hal para a América Central, nada voltou a ser como antes. Aquela noite me mudou. Eu me tornei di­ferente, não consigo explicar.

Cage fechou os olhos um momento. Queria lhe contar, queria dizer, "Você mudou porque nós fi­zemos amor e foi lindo, os nossos corpos nos con­taram uma coisa que já sabíamos secretamente, mas que preferimos não fazer caso durante anos: você estava envolvida com o irmão errado".

Mas não podia lhe dizer isso. Ainda não. Nunca poderia. Era um segredo com o qual ele teria de conviver o resto da vida, mesmo que isso significasse não poder reconhecer seu próprio filho. Jenny já tinha sofrido muito, ele não a faria sofrer mais.

— Eu sou como um animal criado no cativeiro que acaba de ser posto em liberdade. Estou ex­perimentando o meu caminho na vida. Aprenden­do uma coisa por dia. Tem de ser um processo gradual. — Jenny ergueu a cabeça e se virou para ele. — Não me peça um compromisso, Cage. Tudo é tão complicado. — Sua mão estava na perna dele novamente, seus dedos se crisparam na carne dura. — Só sei que, se você saísse repentinamente de minha vida, eu não suportaria.

Cage cobriu a mão dela com a sua.

— Você sabe o que teria acontecido se Roxy e Gary não nos houvessem interrompido, não sabe?

— Nós teríamos feito amor.

— Ainda estaríamos fazendo amor.

— O que seria errado.

— Como pode dizer isso se acabamos de admitir que nos amamos?

— Há outra pessoa envolvida.

— Hal?

— O filho de Hal — respondeu ela em voz muito baixa.

Cage ficou muito tempo calado antes de dizer:

— Esse filho também é seu, Jenny, uma parte viva de você. Eu a amo, e também amo essa crian­ça. Nada mais simples.

— Não é simples. — Ela voltou a deitar a cabeça em seu ombro e, depois de alguns momentos, con­fessou. — Eu queria fazer amor com você hoje, mas até isso me confunde.

— Por quê?

— Não sei dizer ao certo. É você que quero ou apenas outra noite de amor como a que tive com Hal? Pode parecer horrível e sórdido, eu sei, mas, quando se trata de fazer amor, não consigo sepa­rar vocês dois em minha mente.

Cage sentiu uma pontada no coração.

— Vai ser maravilhoso conosco. Eu prometo. Vai ser exatamente como você quer que seja. Mas, já que a tenho, nunca mais vou deixá-la partir. — Já havia desistido dela em favor de Hal. Não estava disposto a desistir novamente. — Esteja segura de poder assumir um compromisso antes de fazer amor comigo.

Jenny sorriu para ele, um sorriso tímido e sexy que lhe fez o coração saltar no peito. Mas, em vez de apertar mais o acelerador, Cage pisou no freio e parou o carro no acostamento.

— Por que estamos parando? — perguntou Gary atordoado no banco traseiro.

— Eu estou com fome — respondeu Cage.

— Como consegue pensar em comida numa hora destas? — queixou-se Roxy.

— Eu não estou pensando em comida. — Cage puxou Jenny para junto de si e a beijou.

Demorou bastante para que o Lincoln retomasse a viagem.

— Eu achei extremamente romântico — disse Jenny, tentando inutilmente cobrir com a mão um enorme bocejo.

— Pois, na minha opinião, nós fomos o grupo mais esquisito que já apareceu por aqui — co­mentou Cage. — Se eu fosse o juiz de paz, teria trancado a porta.

Haviam tirado da cama o funcionário público, que, embora sonolento, concordara em celebrar a ceri­mônia de casamento. Deixaram os noivos num hotel, onde passariam algumas horas antes de ir para o aeroporto. Depois de tomar diversas xícaras de café numa lanchonete vinte e quatro horas e de reabas­tecer o Lincoln, Cage iniciou a viagem de volta.

— Nós podíamos ter alugado um quarto e dor­mido algumas horas — disse a Jenny.

— Não, eu estou tão animada! Acho melhor fa­zer logo a viagem e depois dormir na minha pró­pria cama.

Cage olhou para ela e riu. Em dado momento da noite, Jenny havia capitulado na batalha vã de manter os cabelos presos e acabara tirando todos os grampos. As mechas castanhas pendiam desalinhadas ao redor de seus ombros. A saia e a blusa novas estavam totalmente amarrotadas.

— Eu devo estar um horror, não? — ela per­guntou, adivinhando-lhe os pensamentos.

— Está um encanto. Deite-se e durma um pouco — disse Cage, dando um tapa na própria perna para que Jenny nela pousasse a cabeça.

— Tenho medo de que você cochile se eu não lhe fizer companhia.

— Não se preocupe, não vou cochilar. Tomei muito café. Além disso, estou acostumado a estas excursões noturnas. — Cage fez uma careta para ela e riu. — Venha.

— Tem certeza?

— Absoluta.

Ela se deitou de lado, esticando o corpo tanto quanto possível, e pousou a cabeça na perna dele. Fechando os olhos, respirou fundo.

— Que gostoso.

De olho na estrada, Cage puxou-lhe a blusa e se pôs a massagear suas costas. Jenny suspirou.

— Você está me mimando.

— O prazer é todo meu.

A pele dela era suavíssima e quente. Ele ficou passando a mão em sua espinha de cima para baixo, de baixo para cima, apertando-lhe os mús­culos para tirar o cansaço e a tensão. Às vezes lhe acariciava as costelas e a barriga. Abaixo de seu braço erguido, encontrou a maciez do seio.

— Cage...

— Calma — disse ele em voz baixa. Era tão gostoso, Jenny voltou a relaxar.

— Onde está o seu sutiã?

— Eu tive de escondê-lo debaixo da almofada do sofá quando você foi abrir a porta. — Cage riu, e ela sorriu com os lábios colados no tecido de sua calça. — Não tive tempo de recolocá-lo antes de partirmos.

— Ainda bem — sussurrou ele, e as carícias que fazia ecoaram suas palavras.

— Eu que o diga.

Cage não tinha intenção de excitá-la, queria apenas agradar. Estava com o coração cheio de amor, sentia-se feliz porque ela agora confiava nele a ponto de permitir aquele tipo de familiaridade. Poucos minutos depois, percebeu pela res­piração regular que Jenny havia adormecido. Vencido pela tentação, passou os dedos em seu mamilo. Embora muito leve, o toque provocou uma reação instantânea mesmo durante o sono. Jenny se mexeu, mudou de posição e esfregou o rosto em seu colo, depois se acomodou e voltou a ficar imóvel. Cage cerrou os dentes numa verdadeira agonia de prazer.

— Jenny — sussurrou a si mesmo —, com uma coisa você não precisa se preocupar. Enquanto sua cabeça estiver no meu colo, não há perigo de eu pegar no sono.

E o automóvel seguiu avançando no cinzento do amanhecer.

— Onde nós estamos? — Jenny se sentou e piscou ante a luz do sol. Flexionou o pescoço e espreguiçou.

— Em casa. Quer dizer, quase. Você deve estar com fome. Eu estou morrendo.

Pelo pára-brisa marcado de insetos esmagados, ela viu que se encontravam no mesmo hotel de beira de estrada, na periferia de La Bota, em que Cage a havia deixado na primeira noite. Ele havia estacionado em frente à lanchonete.

— Eu não posso entrar aí com esta cara! — exclamou ela.

— Bobagem. Você está linda.

Abriu a porta do carro e, depois de parar para arquear as costas e espreguiçar-se, contornou-o e foi para o lado de Jenny, que se entregara ao esforço inútil de alisar a roupa e ajeitar os cabelos.

— Eu estou horrorosa — disse quando Cage lhe tomou o braço e a ajudou a descer. Vacilou e se agarrou a ele. — Oh, meu pé dormiu. Você vai ter de me carregar.

— Não faz mal — ronronou ele em seu ouvido. — Mas você precisa saber que eu tomei certas liberdades quando você estava dormindo.

— Você é bem capaz disso. — Jenny tentou fin­gir-se zangada, mas o brilho dos olhos a denunciou.

— Ei, o que é isso? — Alguma coisa lhe havia chamado a atenção à luz do sol matinal. Cage estendeu a mão atrás do banco dianteiro e pegou uma garrafa de champanhe fechada. — Puxa, veja só. Esquecemos de brindar com eles.

Com um muxoxo, Jenny pegou a garrafa.

— Vamos guardá-la para depois do café.

— Caramba, eu criei um monstro! Você vai ser uma mulher com gostos caros. Eu devia tê-la acos­tumado à cerveja.

Grogues e cansados, subiram tropegamente os degraus rumo à porta da lanchonete. Cage a abriu bem no momento em que outro casal ia saindo.

Bob e Sarah Hendren.

Era uma tradição deles tomar o café da manhã fora todo sábado. Desde que os filhos aprenderam a cuidar de si mesmos, os Hendren se permitiam essas duas horas semanais de solidão. As exigên­cias da profissão de Bob deixava-lhes pouco tempo, de modo que eles encaravam toda manhã de sá­bado como uma ocasião especial e passavam a semana planejando aonde iriam, procurando sem­pre escolher um restaurante diferente.

O casal se deteve estarrecido ao ver o estado da roupa de Jenny à barba por fazer de Cage. A tentativa de passar a mão nos cabelos só serviu para chamar a atenção para quanto se achavam embaraçados. Seus lábios estavam naturalmente pintados pelos beijos apaixonados da noite anterior. A maquiagem ficara borrada durante o sono. Se olhassem com mais atenção, os dois velhos teriam notado a mancha na calça de Cage. Mas sua atenção estava concentrada principalmente em Jenny, que sofrerá uma enorme metamorfose desde que a ti­nham visto pela última vez e que, agora, abraçava inconscientemente uma garrafa de champanhe.

— Olá, mamãe, olá, papai. — Cage foi o primeiro a romper o tenso silêncio. Pensou em tirar o braço da cintura de Jenny para aliviar o constrangi­mento do momento, mas temeu que ela não con­seguisse ficar de pé por si só. Acabava de tropeçar.

— Bom dia — cumprimentou Bob com uma evi­dente falta de civilidade.

Sarah não disse nada, continuou olhando fixa­mente para Jenny. As duas não tinham estado face a face desde a cena terrível, na casa paro­quial, em que Sarah a acusara de haver seduzido Hal. A expressão dura desta última mostrava que continuava achando que tinha razão em acusá-la.

— Sarah, Bob — disse Jenny com voz de súplica —, não é o que parece. Nós... Cage e eu fomos... Fomos levar...

Cage interferiu para ajudá-la.

— Nós fomos levar a El Paso um casal amigo que ia se casar. Fomos e voltamos. Viajamos a noite inteira e acabamos de chegar. — Tentava enfatizar que não tinham dormido juntos, muito embora agora achasse que seria bem melhor se tivessem. Pelo me­nos Bob e Sarah não ficariam sabendo e aquela cena que, ele já previa, tendia a se tornar ainda mais desagradável, teria sido evitada.

Jenny riu um riso nervoso, como se acabasse de ser presa e acusada de um crime hediondo e não soubesse se si tratava de uma brincadeira ou não.

— O champanhe era para o casamento. Mas esquecemos de tomá-lo. Está vendo? Nem o abri­mos. Agora nós estávamos brincando e...

— Você não precisa lhes dar explicação alguma — disparou Cage irritado.

Não estava zangado com Jenny. Sabia do seu constrangimento e daria tudo para poupá-la de tal situação. Mas estava furioso com a atitude julgadora de seus pais, com o fato de haverem chegado precipitadamente à conclusão errada.

Não podia culpá-los por pensarem o pior dele, mas será que não podiam conceder a Jenny o benefício da dúvida?

— Você era uma filha para mim — disse Sarah com voz trêmula. Estava com os olhos cheios de lágrimas. Tentou refreá-las piscando e apertando os lábios.

— Ainda sou — gemeu Jenny com meiguice na voz. — Quero ser. Eu os amo e sinto saudade.

— Saudade de nós? — O tom rude de Sarah rejeitou a idéia. — Já sabemos de seu aparta­mento novo. Você não se deu ao trabalho de nos dar seu endereço, muito menos de vir nos visitar.

— Eu achei que não queriam me ver.

— Você nos esqueceu tão depressa quanto es­queceu Hal — acusou Sarah.

— Eu nunca vou esquecer Hal. Como poderia? Eu o amava. E estou esperando um filho dele.

O lembrete falado com delicadeza rompeu o di­que das lágrimas de Sarah, que se pôs a soluçar nos braços de Bob.

— Ela está transtornada — disse Bob com voz calma. — Sente muita saudade de você, Jenny. Eu sei que não recebemos bem a notícia de sua gravidez, mas tivemos tempo de pensar melhor. Nós queremos participar da vida do nosso neto. Hoje mesmo falamos em telefonar para você e fa­zer as pazes. E nosso dever cristão manter a fa­mília intacta. Eu não poderia dar o exemplo, que devo dar se não resolvesse o que há entre nós. — O pastor olhou para Cage, para o acusador champanhe, para o quadro escandaloso que os dois formavam. — Mas agora, vendo-os assim, eu não sei. — Sacudiu a cabeça com tristeza e se voltou, abraçando e protegendo Sarah, que não parava de chorar.

— Oh, por favor — pediu Jenny, dando um passo à frente e estendendo os braços como para tocá-los.

— Jenny, não — disse Cage em voz baixa e a puxou para trás. — Dê tempo ao tempo. Eles pre­cisam pensar sobre isso ainda.

Levou-a de volta ao automóvel sem mais dis­cutir. Decerto Jenny agora não estava em condi­ções de ser vista em público. De fato, assim que entrou no carro, ela começou a chorar.

Tinha a impressão de que para cada passo que avançava na vida acabava retrocedendo dois. Ti­nha se humilhado e suplicado a Hal que fizesse amor com ela, mesmo assim ele partira. Na au­sência do noivo, havia descoberto que não o amava como uma esposa devia amar o marido. Ele mor­rera, deixando-a com a culpa, como se ela o tivesse abandonado, não o contrário.

Tentando reorganizar a vida, ela arranjou um emprego, mas logo descobriu que estava grávida. Agora, era uma pária para os entes queridos que desde a adolescência considerava a sua família.

Não queria retornar à vida que tivera antes da viagem de Hal. Era uma vida sufocante, e ela não poderia suportar novamente aquela espécie de morte lenta. Depois de haver experimentado a independência, queria desfrutá-la. Havia con­quistado uma parcela de liberdade, mas a que preço? A libertação de Jenny Fletcher custara muito caro. Custara-lhe o amor e o respeito dos que lhe eram mais queridos.

Lágrimas amargas rolaram em sua face até a boca. Sabendo que a fadiga e a gravidez eram parcialmente responsáveis pela vontade de cho­rar, ela se entregou ao pranto. Era sadio extra­vasar as emoções, mais valia deixar acontecer, sem prestar atenção onde Cage a estava levando. Até que ele desligou o motor.

Jenny levantou a cabeça e enxugou os olhos.

— E a sua casa — observou embora não hou­vesse a menor necessidade.

— Isso mesmo.

Ele desceu e deu a volta para ajudá-la.

— Que viemos fazer aqui?

— Vou providenciar um bom café da manhã para você. E — ele enfatizou ao vê-la abrir a boca para protestar — não vai haver nenhuma discus­são sobre isso.

Jenny estava exausta demais para discutir, de modo que não disse nada. Cage abriu a porta da casa e a levou para o quarto.

— O banheiro é todo seu durante dez minutos. — Ele abriu uma gaveta e tirou uma camiseta da Universidade do Texas. O U e o T vermelhos, num fundo preto, estavam desbotados após muitas lavagens. — Tome um banho e vista isso quando sair. Se não estiver lá embaixo dentro de dez minutos, eu virei buscá-la. — Beijou-a rapidamen­te e saiu.

A água estava quente, o sabonete era cheiroso e fazia muita espuma, o xampu, delicioso, as tolhas, fofíssimas. Quando ela vestiu a camiseta, estava se sentindo cem por cento melhor e faminta.

Hesitante, parou à porta da cozinha. Sentia-se vulnerável e exposta. Com os cabelos molhados, tudo o que tinha no corpo, além da camiseta, era a calcinha. Embora a barra da camiseta lhe che­gasse à metade das coxas, continuava se sentindo sem jeito e envergonhada.

Cage não deu mostras de notar nem a escassez de sua roupa nem o constrangimento que a ator­mentava. No momento em que a viu, disse:

— Muito bem, não fique parada aí. Quatro mãos valem mais que duas.

— Que quer que eu faça?

— Passe manteiga nas torradas.

Ela obedeceu e, poucos minutos depois, ambos estavam sentados diante de dois pratos de ovos com bacon. A fome tornava as boas maneiras dis­pensáveis, e ela atacou a comida sem pestanejar. Depois de vários bocados vorazes, deu com os olhos divertidos de Cage pregados nela. Inibida, enxu­gou a boca com o guardanapo e tomou um gole de suco de laranja gelado.

— Você cozinha bem.

— Posso fazer ainda melhor.

Ao terminar de tirar a mesa, Jenny estava tão exausta que mal conseguia segurar a xícara de chá que Cage havia preparado para ela.

— Venha antes que acabe caindo — disse ele, puxando sua cadeira.

— Aonde?

— Para a cama. — Ele a tomou nos braços.

— Para a sua cama?

— É.

— Eu preciso me vestir e ir para casa. Ponha-me no chão, Cage.

— Primeiro vai dormir um pouco.

Jenny devia detê-lo antes que subisse mais um degrau da escada, porém não conseguiu reunir ener­gias. O breve descanso no carro não fora suficiente. Ela não se lembrava de ter se sentido tão cansada. Apoiando a cabeça no peito dele, fechou os olhos. Cage era forte. Capaz. Confiável. E ela o amava.

A manga de sua camisa era áspera na parte posterior de suas coxas. Coisa que a lembrou da noite na cama com Hal e da aspereza de sua roupa, do quanto tinha sido sensual.

Cage a colocou ao lado da cama, porém continuou amparando-a com o braço enquanto afastava a colcha. Então, deitou-a delicadamente nos lençóis cheirosos.

— Durma bem — sussurrou ao cobri-la. Afastou uma mecha úmida de cabelo de seu rosto.

— Que vai fazer?

— Lavar a louça.

— Não é justo. Você dirigiu a noite inteira. Pre­parou o café da manhã. — Jenny estava com di­ficuldade para organizar as palavras na ordem correta. Mal conseguia articulá-las.

— Não faltará ocasião para que retribua. Agora, você e o bebê precisam descansar.

Beijou-lhe os lábios de leve, mas ela não sentiu. Já estava dormindo.

 

Ao despertar, Jenny ficou alguns momentos desorientada. Imóvel sob as cobertas, passou os olhos sonolentos pelos arre­dores até que enfim reconheceu o quarto de Cage. Então se lembrou de toda a seqüência de eventos que a levaram a dormir na cama dele. Tanta coisa havia acontecido desde a noite anterior, quando abrira a porta de casa e dera com ele sorrindo, o buquê de rosas na mão.

Era quase noite novamente. O céu que se en­trevia pelas frestas da veneziana matizava-se do violeta ao púrpura. Emoldurada pela janela, a lua leitosa parecia ao alcance das mãos. Uma estrela brilhava alegremente pouco abaixo, a um lado.

Jenny bocejou, espreguiçou-se e, rolando no col­chão, colocou-se de costas. Sentou-se e sacudiu os cabelos emaranhados. Viu a camiseta retorcida ao redor da cintura. Deslizou as pernas nuas nas cobertas, sentindo a sedosa maciez da própria pele. Dobrou os joelhos e arqueou as costas para se espreguiçar novamente.

Teve um leve sobressalto.

Cage estava deitado ao seu lado, de costas, os braços erguidos, as mãos entrelaçadas sob a nuca, absolutamente imóvel, e a observava.

Achando inconveniente dizer o que quer que fosse, Jenny o olhou em silêncio.

Ele havia tomado banho enquanto ela dormia. Seu corpo exalava o perfume do mesmo sabonete que usara. Tinha se barbeado também. Seus cabelos estavam revoltos como de costume. Aquelas mechas loiras e desordenadas eram tão típicas de Cage que Jenny teve vontade de tocá-las. Porém aproximar-se dele também lhe pareceu inconveniente.

Naquele momento, a carícia mais provocante era o contato visual. Por isso ela limitou-se a fitá-lo com a mesma intensidade com que ele a fitava. O desejo vibrava entre os dois como as cordas de uma harpa. Seus sentidos estavam perfeitamente sintonizados, contudo, por ora, ambos concorda­vam tacitamente em se valer apenas do sentido da visão.

Os olhos de Cage não se moviam, mas Jenny sabia que estavam olhando para ela toda: para os cabelos, o rosto, a boca, os seios. Claro que estavam olhando para seus seios. Jenny os sentia tremer de emoção, sentia os mamilos espetarem o fino tecido da cami­seta como que para lhe chamar a atenção.

Cage tampouco podia deixar de ver as pernas qua­se desnudas. Decerto aquela parte de seu corpo não tinha escapado aos seus olhos claros e observadores. Sob um olhar tão ardente, as zonas erógenas do corpo dela se abrasavam e começavam a pulsar numa deliciosa agonia. E Jenny não conseguia ti­rar os olhos dos dele.

Notou que a parte interna dos braços de Cage não era tão bronzeada como o resto do corpo. Teve vontade de cravar os dentes nos músculos duros de seu bíceps, mas sabia que ele ficaria chocado se o fizesse. As mulheres deviam ser passivas, não deviam? Por outro lado, tal conduta ia muito além de sua experiência.

Os tufos de pêlo de suas axilas pareciam macios e perfumados. Será que faziam cócegas? Sem dúvida. Ela teria coragem de verificar? A timidez a fez baixar os olhos um momento, para logo erguê-los novamente.

Desde a noite em Monterico, ela ficara fascinada por seu tronco nu. Totalmente à vontade agora, examinou-o por completo, registrando cada deta­lhe, os músculos curvos do peito, os pêlos doura­dos, o modo como o tórax se estreitava à medida que descia para a barriga dura e plana.

Cage tinha cruzado as pernas nos tornozelos. Descalço, vestia apenas um jeans, o qual estava desabotoado.

Era a calça normalmente usada pelos operários e caubóis, com a antiquada braguilha de botões. As costuras estavam desbotadas, o tecido, esgar­çado em certos lugares. Envolvia-lhe as longas pernas, deixando entrever o volume do sexo. Um único pêlo assomava na abertura.

Jenny se deu conta de que estava com a respiração suspensa. Fechando os olhos, exalou um lento sus­piro. Era fácil imaginar o que havia acontecido. Ao sair do chuveiro, Cage se rendera ao cansaço e se deitara sem se dar ao trabalho de abotoar o jeans. Afinal de contas, tinha dirigido a noite inteira.

Mal estava vestido, bastava que ela...

Com o coração disparado, Jenny tornou a abrir os olhos. Como que donos de vontade própria, eles se voltaram imediatamente para o colo de Cage, cujo tórax subia e baixava com a respiração, fa­zendo com que os músculos abdominais executas­sem um bailado extremamente erótico.

Jenny ficou hipnotizada. Sentia-se compelida. Por que resistir?

Com a ponta dos dedos, percorreu a fina trilha de pêlos que lhe dividia o abdômen. Parou no um­bigo. Testou, medrosa, a profundidade daquela tentadora depressão com o indicador, enroscando-o nos pêlos que a rodeavam.

Ele era tão quente e cheio de vida! A energia que emanava de seu corpo enviava correntes elé­tricas que lhe subiam pelos dedos. Cage era masculinidade em estado bruto. Jenny se sentia fraca e indefesa ante o seu poder.

Inexoravelmente atraída, sua mão continuou descendo. Os pêlos que encontrou dentro da aber­tura da calça eram mais escuros e densos.

Ela hesitou e virou a cabeça. Ao lhe fitar o rosto, deixou escapar um gemido quase inaudível.

Cage estava com lágrimas nos olhos. Não havia se movido, não alterara em nada a sua posição, não tinha dito uma palavra, porém seus olhos es­tavam cheios de emoção. Aquilo a comoveu de um modo que transcendia ao desejo.

Ninguém jamais havia demonstrado amor por aquele homem. Ninguém o acariciara com afeto. O amor estivera ausente em sua vida. Ninguém se entregara a ele com desprendimento.

Jenny não vacilou. Na verdade nem pensou. Em sua mente nada havia de deliberado. Mergulhou a mão por dentro do jeans.

Um gemido emergiu das profundezas do peito de Cage. Ele baixou as mãos e agarrou os lençóis. Cer­rando os dentes numa expressão de êxtase, mergu­lhou a nuca no travesseiro. As lágrimas lhe escor­reram pelos cantos dos olhos quando os fechou, aper­tando muito as pálpebras, e se entregou à paixão que fluía dentro dele como um rio caudaloso.

Num gesto impetuoso, desceu o jeans até a me­tade das coxas, depois, movimentando freneticamente as pernas, livrou-se dele.

Os olhos de Jenny brilharam de espanto e ela o admirou com olhos indisfarçavelmente ávidos.

Agindo por instinto, voltou-se e se deitou: o rosto apoiado na coxa de Cage, muito próximo daquela virilidade. Seus cabelos se espalharam sobre o cor­po dele qual um manto de seda.

Estava se sentindo muito bem e queria que ele soubesse quanto o achava maravilhoso, de corpo e alma. Levantando a cabeça, aproximou-se ainda mais e, abandonando-se ao mais espontâneo dos impulsos, beijou sua intimidade com voracidade.

O que aconteceu a seguir ficou além de sua com­preensão. Com um doce gemido, Cage mudou de posição e começou a acariciá-la. Houve um mo­mento em que Jenny percebeu que estava sem calcinha, muito embora não pudesse lembrar como ele a havia despido.

Sentiu as mãos que a apalpavam e acariciavam em suas coxas. Sentiu-se tocada da maneira mais íntima concebível. E então sentiu a sua boca ar­dente, úmida e delicada.

Fizeram amor com os lábios e a língua. A at­mosfera era rica e deliciosamente aveludada. Na­quele reino não existiam arestas, dificuldades nem duras realidades. Só doces sentimentos e emoções. Tudo era suave e completo, tudo fácil de com­preender. Não havia feiúra nem ambigüidade. Tudo era bonito e luminoso.

Virando-se e colocando-se sobre ela, Cage disse:

— Abra os olhos, Jenny. Olhe para quem a ama.

Embora embaciados de emoção, Cage compreen­deu que os olhos dela o estavam vendo e reco­nhecendo. Num movimento ao mesmo tempo ágil e delicado, mergulhou no acetinado calor da inti­midade de Jenny. Sorriu para ela com ternura. Observou as tantas expressões que dançaram em suas feições amadas em resposta aos seus rítmicos movimentos. Viu o encantamento surgir em seus olhos à medida que alcançavam níveis cada vez mais elevados de excitação.

Viu a luz brilhar nas profundezas de sua alma quando ela finalmente experimentou a satisfa­ção... e a viu cintilar de amor quando ele experi­mentou a dele.

— Você é maravilhosa, e eu a amo, Jenny. Sempre a amei. — Cage estava com os lábios colados em seu ouvido. As mechas loiras misturavam-se com os belos tons castanhos dos cabelos dela no traves­seiro. Seu rosto pareceu igualmente febril quando ele o aproximou ainda mais. — Eu a amo.

Ergueu a cabeça e a fitou nos olhos, que bri­lhavam qual duas esmeraldas.

— Eu também o amo, Cage.

Jenny lhe tocou a face, as sobrancelhas, os lá­bios, como para se convencer de que ele estava verdadeiramente ali, que não tinha sido um sonho.

— Lembra o que lhe prometi?

— Lembro. E você cumpriu. Foi maravilhoso como disse que seria.

— Maravilhosa é você.

Ele se moveu.

— Não. Fique comigo.

— É o que pretendo — sussurrou com os lábios nos dela. — Mas quero beijá-la.

O beijo proporcionou prolongados momentos de prazer para Jenny.

Desnudando-a completamente, ele falou:

— E verdade o que eu disse, Jenny. Faz muito tempo que a amo. Mas não podia fazer nada. Você pertencia a Hal. Aceitei isso sem discutir, exata­mente como todo mundo, inclusive você.

— Eu sentia que havia alguma coisa entre nós. Mas não sabia o que era.

— Desejo e paixão.

Ela sorriu e passou os dedos em seus cabelos.

— Fosse o que fosse, me dava medo.

— Pensei que tivesse medo de mim.

— Não, só do que me fazia sentir.

— Era por isso que me evitava?

— Era tão óbvio assim?

— Sim. — Ele estava concentrado nos seios dela, em sua forma, nos mamilos rosados. Examinava-os com amor. — Bastava eu chegar para que você se escondesse.

— Era perigoso ficar perto de você. Eu fazia o possível para que não ficássemos a sós. Você consumia todo o oxigênio ao meu redor, e eu não conseguia respirar. — Ela gemeu quando Cage baixou a cabeça e passou a ponta da língua em seu mamilo. — E continua não me deixando respirar.

— Não posso fazer segredo do que você faz comigo.

Jenny sentiu-o excitado novamente e segurou os músculos firmes de suas nádegas, fazendo com que a penetrasse mais. Cage lhe acariciou o seio, provocou-lhe o mamilo até que ficasse túrgido e corado, então o tomou na boca.

Jenny o observava acariciá-la, via as contrações dos músculos de seu rosto enquanto ele satisfazia a necessidade que tinha dela. Queria ser capaz de apagar de seu passado todas às vezes em que ele precisou de amor e não o encontrou.

Ela queria encontrar maneiras de lhe dar prazer e satisfazê-lo, mas acabou se entregando ao prazer que ele lhe dava. A excitação dele aumentara e ela arqueou o corpo ao seu encontro. Mas os movimentos se tornaram mais rápidos e ela teve medo. Seu corpo ficou rígido sob o de Cage e, em vez de procurar conhecê-lo mais e mais, ela se encolheu.

— Não, não, pare. — Agarrou-lhe a cabeça e a levantou, afastando-a de seus seios. Retorceu-se até se livrar dele e virou-se imediatamente. — Pare, pare.

— Jenny! — A respiração de Cage estava acelerada. Ele demorou vários segundos para focali­zar a vista novamente e recolocar o mundo no eixo. — Que aconteceu? Eu a machuquei? — Seu coração se contraiu de medo ao vê-la dar-lhe as costas e unir os joelhos ao peito em posição fetal. — Oh, meu Deus, alguma coisa está errada. O que houve? Conte-me!

Nunca sentira tanto medo na vida. Segundos antes, Jenny estava fazendo amor com ele. Seu corpo reagia ao dele com avidez. Agora ela chorava e agia como se estivesse sentindo muita dor.

Pousou a mão em seu ombro, e Jenny se enco­lheu ainda mais.

— Que foi? Quer que eu chame um médico? — Só recebeu soluços por resposta. — Pelo amor de Deus, Jenny, diga pelo menos se está sentindo dor.

— Não, não — gemeu ela. — Não é isso.

— O que é então? — Ele passou a mão na ca­beça, empurrando com impaciência os cabelos que lhe caíam na testa. — Que aconteceu? Por que você parou?

— Eu senti o bebê se mexer.

As palavras foram murmuradas no travesseiro, a voz lhe saiu abafada. Cage demorou um pouco a decifrá-las, porém, quando conseguiu entendê-las, relaxou aliviado.

— Foi à primeira vez?

Jenny fez que sim.

— O médico disse que em breve eu começaria a senti-lo. Foi à primeira vez.

Ele sorriu atrás dela. Seu filho tinha falado com ele, mas era evidente que Jenny ficara preocupada com isso. Ele tornou a lhe tocar o ombro e, dessa vez, não retirou a mão mesmo quando ela ficou tensa de aversão. Pelo contrário, deitou-se a seu lado e tentou abraçá-la.

— Tudo bem, Jenny. Não vamos machucar o bebê se tomarmos cuidado.

Ela se sentou abruptamente e o encarou.

— Será que não entende?

Cage fitou-a com incredulidade quando ela sal­tou da cama, puxou o lençol e o enrolou no corpo. Caminhou com passos apressados até a janela e ali ficou encostada, de costas para o quarto.

Ele estava magoado e com raiva, coisa que se tornou evidente quando se levantou também, pe­gou o jeans e o vestiu com movimentos bruscos.

— Acho que não entendi Jenny. Por que não me conta?

Ela não ouvira seus passos no macio carpete e se assustou ao voltar-se e dar com ele tão perto. Estava carrancudo. O jeans ficara desabotoado. Seus cabelos estavam desfeitos das tantas vezes que ela mergulhara os dedos neles. Era a própria personificação da sexualidade masculina e tão atraente que foi difícil resistir.

— Pode ser que você não tenha nenhuma res­trição moral a esse comportamento de gato vira-lata, mas eu tenho.

— Você acha que o que estávamos fazendo era comportamento de gato vira-lata? — perguntou ele, a voz trêmula de raiva.

— Depois que senti meu filho se mexer, sim.

— Pois eu acho isso lindo. Queria que tivesse compartilhado a sensação comigo.

— É o filho de outro homem, Cage! Não percebe que tipo de mulher isso me torna?

A raiva dela tinha passado, em seu lugar estava à vergonha e o sofrimento. Jenny baixou a cabeça, e as lágrimas começaram a rolar. Cage viu seus ombros sacudirem-se com os soluços. Suas mãos pequenas e frágeis seguravam o lençol ao redor de seu corpo do mesmo modo que Eva devia ter segurado a primeira folha de figueira para esconder sua vergonha.

— Que tipo de mulher isso a torna?

Jenny sacudiu a cabeça, incapaz de verbalizar os pensamentos. Tentou enxugar as lágrimas.

— O que nós fizemos... o modo como eu agi quando estávamos... fazendo amor...

— Continue — pediu ele quando ela hesitou.

— Eu não me conheço mais. Eu o amo, mas estou com o filho do seu irmão em meu ventre.

— Hal morreu. Nós estamos vivos.

— Eu neguei isso até para mim mesma, mas seus pais tinham razão quando disseram que ten­tei seduzir Hal para que abandonasse a missão.

— Que você está dizendo? — Cage uniu as so­brancelhas, preocupado.

— Aquela noite, quando ele me levou para o quarto para me pôr na cama, não tinha intenção alguma de fazer amor comigo. Eu o beijei e su­pliquei que ficasse, que desistisse da viagem e se casasse comigo.

— Você já me contou isso. Disse que ele saiu, depois voltou.

— É verdade.

— Portanto, você não pode se condenar por havê-lo seduzido. Hal tomou sua própria decisão sem nenhuma coerção de sua parte.

Ela encostou a cabeça no batente da janela e ficou olhando sem nada ver pelas frestas da veneziana.

— Mas você não compreende? Pode ser que ele tenha voltado só para ver se eu estava bem, para me dar mais um beijo de boa-noite. Eu estava desesperada, e ele deve ter percebido.

Cage sentiu um nó no estômago. Durante quan­to tempo podia continuar insistindo naquela men­tira? Por que insistia em vir assombrá-lo toda vez que ele divisava a felicidade com Jenny? Como um porteiro maligno, aquele pecado isolado im­pedia-o de conhecer o paraíso.

— Mesmo assim, a decisão foi dele — disse com firmeza.

— Mas se aquela noite não tivesse existido, tal­vez Hal ainda estivesse vivo. Eu não cheguei a me preocupar com a possibilidade da gravidez, mas talvez ele tenha se preocupado. Talvez esti­vesse pensando nisso quando se descuidou e aca­bou sendo capturado. Eu não tinha o direito de tentar seduzi-lo e dissuadi-lo de uma missão en­viada por Deus se o tempo todo o amava, um amor que eu era muito fraca e medrosa demais para admitir. Agora, estou dormindo com você... O bebê não conhecerá o pai por minha causa.

Cage ficou um momento em silêncio, depois foi para a cama e se sentou. Com os cotovelos apoia­dos nos joelhos e a testa nos punhos cerrados, ficou olhando para o chão entre seus pés.

— Você não tem motivo para se sentir culpada, Jenny.

— Não tente fazer com que eu me sinta melhor. Eu tenho raiva de mim mesma.

— Ouça-me. Ouça-me até o fim — disse Cage secamente, levantando a cabeça. — Você não é cul­pada de ter seduzido Hal, nem de havê-lo distraído de sua missão e muito menos de sua morte. Tam­pouco de fazer amor comigo ao mesmo tempo em que está com o filho dele na barriga.

Ela se voltou perplexa. O luar incidia sobre um lado de seu rosto, deixando o outro na sombra. Melhor assim, pensou Cage. Ele temia ver sua expressão quando acabasse de lhe contar. Respi­rou fundo e falou em voz baixa, embora não hou­vesse nenhuma hesitação em sua confissão.

— Não foi Hal que gerou o seu filho, Jenny. Fui eu. Eu entrei no seu quarto aquela noite. Eu fiz amor com você.

Ela fitou nele os olhos arregalados, parados. Es­corregando lentamente pela parede, sentou-se no chão. O lençol se espalhou ao seu redor. Só seu rosto ficou visível, pálido de incredulidade, e suas mãos, cujas articulações tinham ficado muito brancas.

— E impossível — disse num frágil alento.

— É a mais pura verdade.

Jenny sacudiu furiosamente a cabeça.

— Ele entrou no meu quarto. Eu o vi.

— Foi a mim que você viu. O quarto estava escuro. Eu fiquei contra a luz ao abrir a porta. Você só viu uma silhueta.

— Era Hal!

— Eu estava passando pela porta do seu quarto e a ouvi chorar. Pensei em ir chamar Hal, mas ele estava lá em baixo, conversando animadamen­te com mamãe e papai. Então resolvi entrar e ver o que estava acontecendo com você.

— Não — disse ela quase sem voz, sacudindo a cabeça nervosamente.

— Antes que eu tivesse dito alguma coisa, você se sentou na cama e se dirigiu a mim corno se fosse a Hal.

— Não acredito em você!

— Então como posso saber o que aconteceu? Você estendeu os braços para mim. Estava com lágrimas no rosto. Cheguei a ver a luz refletida nelas antes de fechar a porta. Reconheço que devia ter me identificado no momento em que você me confundiu com Hal, mas não fiz isso. Não quis fazer e não me arrependo.

— Eu não quero ouvir mais nada! — Jenny cobriu os ouvidos com as mãos.

Cage prosseguiu imperturbável.

— Eu sabia que você estava sofrendo. Que es­tava magoada e necessitava de consolo. Franca­mente, eu duvidava que Hal pudesse lhe dar o que você precisava.

— Mas você sim, você podia! — rosnou ela em tom acusador.

Cage se levantou e foi em sua direção.

— Você me pediu que a abraçasse, Jenny.

— Eu pedi a Hal que me abraçasse!

— Mas Hal não estava no quarto, estava? — gritou ele com raiva. — Preferiu ficar lá em baixo, falando sobre visões, vocação, causas, missões, quando devia estar cuidando da noiva.

— Eu fiz amor com Hal! — gritou Jenny numa derradeira e frenética tentativa de negar o que acabava de ouvir.

— Você estava triste. Tinha chorado. Hal e eu tínhamos praticamente a mesma constituição, era fácil confundir um com o outro. Estávamos com roupa parecida, jeans e camisa. Eu não disse nada, de modo que você não pôde reconhecer a minha voz.

— Mas eu saberia a diferença.

— Com que poderia me comparar? Nunca tinha tido outro amante.

Ela tentou esquecer a ansiedade com que se­duzira aquele amante para que a abraçasse e bei­jasse, do mesmo modo que tentou esquecer o se­dativo que havia tomado aquela noite. Afinal, não estava sedada, com a mente nublada? Depois, não chegou até a pensar que aquilo podia ter sido apenas sua imaginação? Não parecera tudo um sonho?

— Não era a mim que você esperava — disse Cage. — Era Hal. Simplesmente não lhe passou pela cabeça que podia ser outra pessoa.

— O que equivale a reconhecer que você é um sórdido vigarista.

Ele a mirou nos olhos.

— Aquela noite você não me achou tão vigarista assim. Nem chegou a se importar com isso.

— Pare. Não...

— Me agarrou como um urso faria com um pote de mel.

— Cale a boca!

— Reconheça Jenny, você nunca tinha sido beijada como aquela noite. Hal nunca a beijou assim, beijou?

— Eu...

— Reconheça!

— Nunca!

— Muito bem, pode negar quanto quiser, mas sabe que é verdade. Eu a toquei, e nós dois nos entregamos por completo.

Jenny fechou os olhos.

— Eu não sabia que era você.

— Não tem importância alguma.

Ela abriu os olhos de súbito.

— É mentira!

— Não, não é. E você sabe que não é.

Jenny apertou os lábios.

— Como pode ter sido tão vil? Como foi capaz de me enganar assim? Como teve a coragem de... — Engasgou com as últimas palavras.

Cage caiu de joelhos diante dela. Tinha passado a raiva, a voz lhe saiu trêmula e grave.

— Porque eu a amava. Porque eu precisava de você do mesmo modo que você precisava do amor de um homem. Fazia anos que eu a desejava, Jen­ny. Era desejo, sim, mas também era muito mais do que isso. Aquela noite, você estava lá, na cama, nua, quente, doce e excitada. Primeiro pensei ape­nas em abraçá-la e beijá-la algumas vezes antes de me identificar. Mas no momento em que a to­mei nos braços, senti o seu gosto, a sua língua na minha, no momento em que toquei em seus seios... — Ele deu de ombros num gesto de impotência — Não houve como conter a avalanche. Fiquei surpreso, não sabia que era virgem. Mas mesmo descobrir isso não bastou para me deter. Todo o meu ser se concentrou em amá-la. Tudo o que eu queria era aliviar a sua dor com o meu amor. Pela primeira vez na vida, senti que estava fazendo uma coisa boa. Uma coisa pura e correta, Jenny. Você mesma me comunicou isso.

— Eu pensei que estivesse me referindo a Hal.

— Mas não estava. Eu fui o seu amante. Pense bem naquela noite e compare-a com hoje. Você sabe que não estou mentindo. — Cage levantou-se novamente e se pôs a caminhar no carpete entre a cama e a janela. — Depois de termos feito amor, eu não consegui mais me afastar de você. Queria conquistá-la aos poucos. Planejei cortejá-la de modo que, quando Hal voltasse, você estivesse dis­posta a romper o noivado, se possível sem sofrer, e a ficar comigo. — Parou e sorriu para ela. — No dia em que me contou que estava grávida, eu mal consegui me conter. Tive vontade de saltar e tomá-la nos braços e dançar com você na lan­chonete. Hoje, quando me contou que o bebê se mexeu, fiquei no mesmo estado.

Lembrando-se do que se passara poucos minu­tos antes, Jenny olhou para a cama. Era terrível. Horroroso. Mas acreditava nele. Tudo tinha sen­tido. Como ela não havia percebido antes de saber? Era tão óbvio, tão evidente.

Na parte mais secreta do seu eu, ela sabia! Não. Pelo amor de Deus, não!

— Por que não me contou Cage? Eu fiz amor com um homem pensando que era outro! Por que não me contou nada?

— Antes de mais nada, porque pensei que você ainda amasse Hal. Você ficaria arrasada se achas­se que tinha sido infiel a ele.

— Eu fui.

— Não foi. De jeito nenhum. Se alguém foi infiel, esse alguém sou eu!

Ela fez um esforço para se levantar, seu peito arfou.

— Já se passaram muitos meses. Por que não me contou depois?

— Eu não queria magoá-la.

— E acha que não me está magoando agora?

— Não devia. Você não tem culpa alguma. O pecado foi meu, Jenny, não seu. Você é inocente, e eu estava tentando poupá-la.

— Por quê?

— Porque você tem uma tendência masoquista a assumir a responsabilidade pelos erros das ou­tras pessoas. Se sente culpada pelas falhas de todo o mundo. De meus pais, de Hal, das minhas.

Ela suspirou profundamente.

— Mas esse não é o único motivo. — Ele a fitou nos olhos. — Eu queria agir corretamente. Era como se eu tivesse o compromisso com Hal de não lhe contar a verdade. Enquanto eu passava a vida na farra, bebendo e dormindo com todas as mulheres que atravessassem o meu caminho, ele dedicava a vida a fazer o bem. Eu roubei uma coisa que per­tencia a ele... muito embora eu a amasse. — Apro­ximou-se dela. — Queria que você fosse parte de minha vida, mas sabia que o preço que teria de pagar seria altíssimo. Um cafajeste como eu não é recompensado sem pagar muito caro.

— Que está dizendo, Cage? Para mim, até agora você ficou isento. Que tributo pagou?

— Um deles foi ouvi-la gritar o nome de meu irmão quando chegou ao clímax pela primeira vez.

Ela baixou a cabeça.

— Outro foi saber que você pensava que tinha sido Hal quem a levara a descobrir o paraíso. Ou­tro foi à noite em Monterico, quando a abracei enquanto dormia, mas não pude expressar o meu amor. O pior de todos foi você pensar que o meu filho, o meu filho, era de outro homem.

Jenny quase lhe perdoou nesse momento. Quase sucumbiu ao tremor de sua voz e ao seu olhar intenso. Quase se atirou em seus braços e clamou o seu amor. Mas não podia. O que ele tinha feito era horrível, e um pecado daquela magnitude não podia ser perdoado levianamente.

— Então, por que resolveu me contar agora?

— Porque está se culpando pela morte de Hal. Eu não suporto isso, Jenny. Ele partiu para sua missão com o corpo e a consciência limpos. Você não teve culpa alguma de sua morte. Não podia tê-la evitado. E não vou deixá-la passar o resto da vida culpando-se disso e acreditando-se res­ponsável pelo fato de seu filho ter ficado órfão. — Estendeu a mão e tomou a dela. Estava fria e inerte. — Eu a amo, Jenny.

Ela afastou a mão da dele.

— O amor não é feito de enganos e mentiras, Cage. Você passou meses mentindo para mim. Que quer que eu faça?

— Que volte a me amar.

— Você me fez de boba!

— Eu fiz de você uma mulher! — Cage afas­tou-se dela, tentando controlar-se. — Se parar de passar tudo pelo filtro de pureza, consciência e culpa, conseguirá ver a situação com mais clareza. Aquela noite foi à melhor coisa que já aconteceu a nós dois. Libertou-nos a ambos.

— Libertou? — gritou Jenny. — Libertou? Eu vou passar o resto da vida carregando o peso da­quela noite!

— Está chamando o meu bebê de peso?

— Não, não é o bebê — replicou ela. — É a culpa. A culpa de ter feito amor com um irmão estando noiva do outro.

— Oh... — gritou ele, dando um murro na pa­rede. — Voltamos a tocar a mesma tecla!

— Exatamente. E estou cansada dela. Leve-me para casa.

— De jeito nenhum. Não enquanto não tivermos resolvido tudo.

— Eu quero ir embora — teimou ela. — Se não me levar, eu pegarei a chave de um de seus au­tomóveis e vou sozinha.

— Você vai ficar aqui, do contrário eu...

— Não me ameace! Eu não tenho mais medo de você, mesmo porque suas ameaças são vazias. Que pode me fazer que seja pior do que já fez?

Os maxilares de Cage se contraíram de raiva. Jenny viu seus olhos se encherem de fúria para, a seguir, tornarem-se duros e frios. Ele lhe deu as costas abruptamente. Entrando no banheiro, pegou uma camisa no armário e um par de botas.

— Se vista — disse entre os dentes. — Virei buscá-la dentro de cinco minutos.

Quando Cage voltou, Jenny estava pronta. Desceu a escada diante dele e saiu pela porta da rua. Estava escuro quando atravessaram o quintal rumo à ga­ragem. Ele abriu a porta do Lincoln, e ela entrou.

Fizeram todo o percurso até a cidade em silên­cio. Cage segurava o volante como se quisesse ar­rancá-lo. Dirigiu em alta velocidade. Quando freou diante do apartamento, Jenny foi jogada para frente com o impacto. Inclinando o corpo, ele abriu a porta. Ela saiu do carro.

— Jenny! — Cage continuava inclinado sobre o banco. — Eu já fiz coisas terríveis. Quase sempre por pura maldade. Mas desta vez tentei agir cor­retamente. Quis fazer o melhor por você e pelo bebê. — Riu de si mesmo com amargura. — Mes­mo quando tento fazer o melhor, dá tudo errado. Talvez seja verdade o que sempre disseram de Cage Hendren. Ele não presta para nada mesmo. — Agarrou a porta e a bateu com violência.

Jenny entrou no apartamento. Sentia-se esgo­tada, desanimada. Era possível que na noite an­terior ela tivesse jantado com Cage à luz de velas? Sim, as tigelas de sorvete e as xícaras de café ainda estavam na mesa, esquecidas quando eles tiveram de sair para levar Roxy e Gary a El Paso. Podia ter acontecido numa vida passada.

Deixando a luz apagada, Jenny atravessou o apar­tamento e caminhou para o quarto, que lhe pareceu frio, vazio, diferente do quarto da casa de Cage.

Não, não valia à pena pensar.

Mas ela continuava pensando, e não havia como conter as lembranças que lhe assaltavam a mente. Cada contato, cada beijo, cada palavra.

Recordou a expressão dos olhos dele pouco antes de se separarem. Será que Cage estava tentando fazer o melhor possível ao silenciar sobre o que havia acontecido entre eles?

Sem dúvida, não se mostrara orgulhoso na ma­nhã da partida de Hal. Estava tenso e alerta, mas de modo algum satisfeito ou presunçoso. Se tivesse sido apenas um golpezinho cruel que aplicara nela, certamente teria se gabado disso depois.

Cage a amava? Estivera disposto a abrir mão de reclamar o próprio filho. Tal sacrifício não era uma prova extrema de amor por ela?

E, se ele a amava, por que ela estava tão chateada?

Cage era o seu único amante. Aquilo lhe dava uma sensação interior cálida e vibrante. O encan­tamento daquela noite tinha sido dos dois. Ela devia saber! Nunca se sentira daquele modo na vida... até aquela noite!

Quando eles se amaram, seu corpo não tinha sido familiar, uma extensão do dela? Ambas às vezes, ela não se sentira completa? A união de seus corpos não montara todas as peças do com­plexo quebra-cabeça que era Jenny Fletcher?

Acaso era a fim de aliviar sua própria consciên­cia que ela acusava Cage de havê-la enganado? Porque ela mesma enganara Hal, os Hendren e toda a cidade durante anos. Participara de seus planos de casamento sabendo perfeitamente que o amor que tinha por Hal não era suficiente para um matrimônio. Jamais tivera com ele a afinidade que tinha com Cage. Hal não satisfazia a inquie­tude de seu espírito. Com ele, Jenny teria conti­nuado a viver sob restrições permanentes. Cage a levou a ousar ser ela mesma.

Não podia perdoá-lo por ter mantido segredo durante tantos meses? Se Cage não tivesse feito amor com ela aquela noite, se Hal não tivesse morrido, Jenny teria se casado com o noivo. E, por mais infeliz que isso a fizesse, aceitaria aquela condição. Antes de seu relacionamento com Cage, não teria reunido coragem para procurar sua pró­pria felicidade, teria continuado deixando que os outros o fizessem em seu lugar.

Cage lhe havia ensinado a construir seu próprio futuro. Não era razão suficiente para amá-lo?

No dia seguinte ela pensaria mais um pouco nisso. Talvez telefonasse para Cage, pedisse des­culpas por sua intolerância e, juntos, os dois con­seguiriam resolver tudo.

Fatigada, Jenny se despiu, pôs uma camisola e foi para a cama. Mas não conseguiu dormir. Tinha dormido boa parte do dia, e o mundo parecia não querer deixá-la ter o repouso tranqüilo de que necessitava. As sirenes gemiam nas ruas da cidade e quando ela conseguiu afastar Cage do pensamento e começou a relaxar, o telefone tocou com estridência.

 

Considerando que podia ser Cage, Jenny pensou duas vezes antes de atender. Já estava preparada para falar com ele? Só quando o aparelho tocou pela sexta vez, cedeu e tirou o fone do gancho.

— Alô.

— Srta. Fletcher?

Não era Cage, e ela sentiu uma pontada de decepção.

— Sim.

— É Jenny Fletcher? A que morava com o re­verendo Hendren?

— Eu mesma. Quem está falando?

— Rawlins, o auxiliar de xerife — identificou-se o interlocutor. — A senhora saberia dizer onde podemos localizar os Hendren?

— Já procuraram na igreja e na casa paroquial?

— Sim, senhora.

— Neste caso, sinto muito, não sei onde estão. Posso ajudar em alguma coisa?

— Nós precisamos muito falar com eles — disse o policial sem ocultar a urgência que tinha. — O filho deles sofreu um acidente.

Jenny empalideceu. Um enjôo lhe revolveu o estômago. Estrelas amareladas explodiram na es­curidão quando ela fechou os olhos. Foi-lhe ne­cessário um grande esforço para não cair.

— O filho deles? — perguntou com a voz entrecortada.

— É, Cage.

— Mas ele acaba de...

— Aconteceu há poucos minutos.

— Ele está... foi... foi fatal?

— Ainda não sei, Srta. Fletcher. A ambulância está a caminho do hospital. É grave, sem dúvida. Um trem colidiu com seu carro.

Jenny conteve o grito com a mão trêmula. Um trem!

— E por isso que precisamos localizar um pa­rente próximo.

Santo Deus, que expressão oficial terrível! "Lo­calizar um parente próximo" era a frase normal­mente empregada no jargão policial para designar os que precisam ser notificados que um ente que­rido faleceu num acidente longe de casa.

— Srta. Fletcher?

Passaram-se vários minutos de silêncio en­quanto Jenny procurava absorver a trágica enor­midade daquele telefonema.

— Eu não sei aonde Bob e Sarah foram. Mas vou imediatamente para o hospital. Até logo. Te­nho de me apressar.

Desligou o telefone sem dar ao auxiliar de xerife oportunidade de dizer mais nada. Seus joelhos se dobraram quando ela saiu da cama. Foi com passos trôpegos até o armário, de onde tirou a pri­meira roupa que suas mãos tocaram.

Tinha de ir ver Cage, naquele instante. O mais depressa possível. Precisava dizer-lhe que o ama­va antes que...

Não, não. Ele não ia morrer. Jenny não podia nem sequer pensar em sua morte.

Oh, meu Deus, por que fez isso?

No momento em que o auxiliar de xerife a in­formou do acontecido, Jenny se perguntou se tinha sido acidente ou não. Qual era a última coisa que Cage lhe havia dito? "Eu não presto para nada mesmo." Teria sido a rejeição dela pelo seu amor a última que ele podia suportar? Teria sido aquele acidente uma tentativa de obter aprovação livran­do o mundo de Cage Hendren?

"Não!"

Ela só se deu conta de que tinha gritado quando a palavra ecoou nas paredes silenciosas do apar­tamento. Correu pelos cômodos escuros em direção à porta da rua. As lágrimas lhe banhavam a face, e seus dedos tremiam tanto que ela mal conseguiu pôr a chave no contato do carro.

Jenny avistou o local do acidente a vários quar­teirões de distância. Um guincho havia tirado o carro de Cage dos trilhos, mas a polícia continuava mantendo a área isolada com holofotes a fim de desencorajar os curiosos.

O Lincoln prateado parecia uma folha de alu­mínio que algum gigante petulante havia amas­sado nas mãos e jogado fora. Jenny sentiu o peito dolorosamente apertado. Ninguém podia ter saído vivo daquelas ferragens. Embora estivesse sen­tindo os braços muito fracos para dirigir, forçou a si mesma a seguir adiante. Precisava chegar ao hospital a tempo.

Ao chegar, estacionou e foi correndo para a por­ta do pronto-socorro. Não morra, não morra, não morra, seu coração pedia a cada passo. Aquela comoção emocional e o esforço físico não podiam fazer bem ao bebê, porém Cage era a única coisa que importava naquele momento.

— Cage Hendren? — perguntou ela quase sem fôlego, batendo a mão no balcão da recepção.

A enfermeira de plantão ergueu os olhos para ela.

— Já subiu para a cirurgia.

— Para a cirurgia?

— É. Com o Dr. Mabry.

Se resolveram operá-lo, ele ainda estava vivo, Graças a Deus, graças a Deus! Jenny respirou fundo para tomar fôlego.

— Em que andar?

— Terceiro.

— Obrigada.

Ela correu para o elevador.

— Senhorita. — Jenny se voltou. — Pode ser que ele demore muito lá em cima.

A enfermeira lhe estava comunicando de forma diplomática que não devia ter muita esperança.

— Eu esperarei, não importa quanto tempo demore.

No terceiro andar, a enfermeira de plantão no setor confirmou que Cage se achava na mesa de operação.

— A senhora é parente dele? — perguntou com delicadeza.

— Eu... eu fui criada com ele. Seus pais me adotaram quando fiquei órfã.

— Compreendo. Nós não conseguimos entrar em contato com os pais dele, mas continuamos tentando.

— Tenho certeza de que saíram um pouco, mas não demoram a voltar. — Jenny mal podia acre­ditar que estava conseguindo conversar. Tinha vontade de gritar até derrubar as paredes. Queria jogar-se no chão e arrancar os cabelos.

— Deixaram um policial esperando à porta da casa para trazê-los para cá.

Jenny mordeu o lábio.

— Eles vão ficar desesperados. Perderam o filho mais novo há poucos meses.

A enfermeira sacudiu a cabeça, lamentando.

— Não quer se sentar ali? — ofereceu, apontando para a sala de espera. — Tenho certeza de que em breve vão informá-la do estado do Sr. Hendren.

Qual um autômato, Jenny foi para a sala de es­pera e se sentou no sofá. Devia ir para a casa pa­roquial e encarregar-se de dar a notícia do acidente quando os Hendren chegassem. Mas não sairia dali. Não tinha coragem de deixar Cage sozinho! Preci­sava ficar bem perto dele, transmitindo-lhe o seu amor e todas as palavras de encorajamento, através das paredes, para a sala de operação, onde ele se agarrava precariamente à vida.

E sua vida era tão preciosa para ela! Cage não sabia disso? Como podia ter...

Oh, Deus, ela o deixara ir embora pensando o pior de si mesmo! Do mesmo modo que seus pais o haviam rejeitado na noite do enterro de Hal, ela batera a porta em sua cara quando ele abrira o coração. Os Hendren podiam ser ignorantes demais da psique de Cage para não perceber o mal que lhe tinham feito a vida inteira, mas ela o conhecia bem.

Quantas vezes ele duvidara do valor de sua vida? Não flertava com a morte toda vez que de­safiava a autoridade ou se punha ao volante do carro para ultrapassar os limites de velocidade? Não vivia cometendo loucuras unicamente para chamar a atenção que sempre lhe fora negada?

Oh, Cage, perdoe-me. Eu o amo. Eu o amo. Você é a pessoa mais importante neste mundo para mim.

— Srta. Fletcher!

Ela se levantou de um salto ao ouvir o seu nome. Estava com os olhos fechados, rezando angustia­da, pedindo a Deus que poupasse a vida de seu amado. Esperava ver um médico olhando para ela com expressão de comiseração, mas o homem que a chamara estava com farda de policial.

— Sim?

— Eu sabia que era a senhora. Sou o auxiliar de xerife Rawlins. Falamos pelo telefone.

Jenny enxugou as lágrimas.

— Claro, eu me lembro.

— E este é o Sr. Hanks. Foi à família dele que Cage salvou.

Só então ela reparou no homem parado um pou­co atrás do policial. Ele avançou um passo desa­jeitado, o macacão e as botas de trabalho a con­trastar com a limpeza do corredor do hospital.

Estava com os olhos vermelhos de chorar, a cabeça calva humildemente inclinada.

— Salvou? — indagou Jenny. A voz mal lhe saiu. — Não entendo.

— A mulher e os filhos dele estavam no carro que ficou preso nos trilhos. Cage se colocou atrás dele e o empurrou para fora. Apenas teve tempo de tirá-los de lá. É claro que o maquinista per­cebeu o que estava acontecendo e diminuiu a ve­locidade do trem o mais que pôde, mas não teve tempo de parar. — Pigarreou sem jeito. — Ainda bem que a batida foi do lado do passageiro, e Cage teve sorte de não estar com a Corvette. Teria sido esmagada como um inseto.

Cage não tentara se suicidar! Fora embora zan­gado e ressentido, mas não tivera intenção de tirar a própria vida. Que tola ela havia sido de sim­plesmente ter suspeitado tal coisa!

As lágrimas tornaram a correr em seu rosto. Ele havia tentado salvar outras vidas. Se mor­resse, seria um herói, não um suicida. Ela olhou para o Sr. Hanks.

— Sua família está bem?

Ele fez que sim.

— Continuam assustados, mas, graças ao Sr. Hendren, estão todos vivos. Eu gostaria de lhe dizer pessoalmente quanto estou agradecido. E peço a Deus que o salve.

— Eu também peço.

— Sabe — disse o Sr. Hanks, levantando a ca­beça e sacudindo-a com tristeza —, eu sempre tive uma péssima impressão de Cage Hendren por causa das histórias que contam por aí. Sempre o via na cidade com seus carros de luxo, dirigindo feito um demônio. Achava que só podia ser louco para arriscar a vida daquele jeito. — Suspirou. — Reconheço que tive de aprender da pior ma­neira a não condenar um homem que mal conheço. Ele não tinha nenhuma obrigação de subir nos trilhos e tirar o carro de minha mulher da frente do trem de carga. Mas subiu. — Seus olhos se encheram de lágrimas novamente. Constrangido, ele cobriu o rosto com as mãos.

— Vá para casa, Sr. Hanks — sugeriu delica­damente o auxiliar de xerife Rawlins, colocando a mão em seu ombro.

— Obrigada, Sr. Hanks — disse Jenny.

— Por quê? Se não fosse aquele meu calham­beque imprestável...

— Obrigada assim mesmo — repetiu ela em voz baixa.

Hanks se curvou solenemente diante dela antes que o policial o conduzisse ao elevador.

A previsão da enfermeira, segundo a qual em breve teriam notícia do estado de Cage, era falsa. Jenny ficou sozinha na sala de espera. Ninguém saiu da sala de operação para informá-la de nada.

Fazia quase duas horas que ela aguardava quando as portas do elevador se abriram e Sarah e Bob saíram precipitadamente. Estavam com os olhos arregalados, o rosto desfigurado de preocu­pação e renovado pesar.

Jenny os viu deter-se junto ao balcão e identi­ficar-se. Receberam da enfermeira as mesmas palavras tépidas de consolo que ela ouvira. Apoiando-se um no outro, voltaram-se para a sala de espera. Quando viram Jenny, seus passos vacilaram.

No primeiro momento, os olhos dela os conde­naram. Sua expressão parecia dizer, Vocês não gostavam dele, agora vêm chorar no seu leito de morte. Mas não podia incriminá-los sem também incriminar-se a si mesma. Afinal, podia haver as­sumido o seu amor por Cage anos antes se não tivesse tanto medo de como isso podia transformar a sua vidinha pacata.

E naquele dia, quando ele precisava tanto saber que tinha sido perdoado e que ela o amava, rejeitara o seu pedido de desculpas. O mais irônico era que Cage lhe havia pedido desculpas por ter feito amor com ela, por lhe ter proporcionado a noite mais es­plêndida de sua vida. E ela se recusara a desculpá-lo! Como podia condenar os Hendren por sua miopia se a dela tinha sido ainda mais cruel?

Jenny se levantou e abriu os braços para Sarah. Com um grito de alegria, a velha avançou tropegamente. As duas se abraçaram.

— Calma, Sarah, ele vai ficar bom. Eu sei que vai.

Soluçando a cada palavra, Sarah explicou onde estavam.

— Nós fomos visitar um amigo doente fora da cidade. Quando voltamos, demos com o carro do xerife estacionado em frente a nossa casa. Adivi­nhamos que tinha acontecido alguma coisa terrí­vel. — Sentaram-se juntas no sofá. — Primeiro Hal, agora Cage. Eu não vou agüentar...

— Vocês sofreriam tanto assim se Cage morresse?

Jenny mal pôde acreditar que lhes tinha feito de maneira tão direta a pergunta que não lhe saía da cabeça. Os dois olharam chocados para ela. Embora soubesse que deveria ser branda com eles naquele momento difícil, ela não en­contrava piedade no coração. Se a crueldade era capaz de despertá-los para a maneira horrível como tratavam o filho, ela seria cruel. Estava lutando por Cage.

— Ele acha que vocês não sofreriam.

— Mas Cage é nosso filho. Nós o amamos — gritou Sarah.

— Alguma vez lhe disseram que o amavam? Alguma vez lhe disseram que dão valor a ele? — Bob baixou a vista cheio de culpa. Sarah engoliu em seco. — Não precisam responder. Enquanto morei com vocês, não os ouvi dizer nada disso.

— Nós... nós tínhamos dificuldades com Cage — disse o pastor.

— Porque ele não se ajustava ao molde ao qual queriam que se ajustasse. Cage nunca se sentiu aceito. Vocês detestavam a sua individualidade. Ele sabia que jamais conseguiria corresponder às suas expectativas, por isso desistiu de tentar. As suas atitudes duras, frias e cínicas não passam de um mecanismo de defesa. Ele quer desesperadamente ser amado. Quer que vocês, os seus pais, o amem.

— Eu tentei amá-lo — confessou Sarah. — Mas ele não parava quieto. Não ficava aninhado no meu colo como Hal. Não se comportava bem como Hal. Era difícil gostar de Cage. Sua turbulência e seus modos inquietos me assustavam.

— Eu sei o que quer dizer — sorriu Jenny ao mesmo tempo em que dava um tapinha na mão de Sarah. — Aprendi a entendê-lo. Eu o amo muito.

Bob foi o primeiro a falar.

— Você o ama, Jenny?

— Sim. De todo o coração.

— Como é possível tão pouco tempo depois da morte de Hal?

— Eu amava Hal. Mas ele era mais um irmão para mim. Só percebi isso quando passei há con­viver o tempo todo com Cage. Então compreendi que fazia muito tempo que o amava, mas como vocês, eu tinha medo dele.

— Vai demorar para que nos acostumemos com a idéia de vê-los juntos.

— Eu também demorei a me acostumar.

— Eu sei que não fomos justos com você — interveio Sarah. — Queríamos conservá-la conos­co para compensar o vazio no coração que a morte de Hal nos deixou.

— Eu tenho a minha própria vida.

— Agora nós percebemos. A única maneira de conservá-la conosco é deixando-a partir.

— Não vou muito longe — assegurou Jenny com um sorriso. — Eu os adoro. Fiquei muito triste com a nossa briga.

— O bebê foi um choque para nós, Jenny. — Bob olhou para a barriga dela. — Sei que é capaz de entender. Mas, enfim, também é o filho de Hal. Vamos aceitá-lo e amá-lo por esse motivo.

Jenny chegou a abrir a boca para falar, porém outra voz a interrompeu.

— Reverendo Hendren?

Eles se voltaram e reconheceram o Dr. Mabry com o avental verde de cirurgião. Estava com a testa úmida de suor. Parecia exausto. Jenny abra­çou o próprio ventre como que para impedir o filho de ouvir a má notícia sobre seu pai.

— Ele está vivo — informou o médico, aliviando-os do maior medo. — Não sei como. Sua si­tuação ainda é crítica. Ele se achava em estado de choque quando o trouxeram para cá. Os órgãos internos foram muito afetados. Estava com he­morragia interna. Tivemos de fazer transfusão de sangue e de remendá-lo, literalmente. Mas acho que conseguimos costurar tudo. Ele quebrou a tí­bia direita e está com uma fratura capilar no fêmur direito. Escoriações e cortes no corpo todo. Mas isso é de menos.

— Ele vai sobreviver Dr. Mabry? — Sarah fez a pergunta como se sua própria vida dependesse da resposta.

— É bem possível porque é um homem forte como um touro e teimoso como um elefante. So­breviveu ao acidente e à operação. Se conseguiu resistir aos dois traumas, sou capaz de apostar muito dinheiro que vai se recuperar. Agora, com licença, preciso voltar.

— Nós podemos vê-lo? — Jenny perguntou, se­gurando o braço do médico.

Ele refletiu por um momento, mas a ansiedade naqueles rostos o convenceu.

— Assim que for transferido para a UTI, um de vocês poderá passar três minutos com ele. Fa­larei com vocês mais tarde. — Virou-se e seguiu pelo corredor com passos apressados.

— Eu preciso vê-lo — disse Sarah. — Preciso lhe contar quanto o amamos.

— Claro, querida — concordou Bob. — Você vai.

— Não — Jenny se opôs com firmeza. — Eu é que vou ficar com ele. Vocês tiveram a vida inteira para lhe dizer que o amavam e não o fizeram. Só espero que tenham o resto da vida para remediar esse mal. Mas quem vai vê-lo hoje sou eu. Ele precisa de mim. Oh, e quanto ao bebê... — Ela sentiu a última corda de opressão soltando-lhe o coração. — Não é filho de Hal. E de Cage. Eu estou esperando um filho de Cage.

Os dois velhos ficaram boquiabertos em muda surpresa, porém a Jenny pouco importava que en­tendessem ou não. Dessa vez, não deixaria que as convenções e os hábitos de uma vida inteira a intimidassem.

— Espero que vocês nos amem. — Pôs as mãos nos ombros de ambos e falou com toda sinceridade. — Nós os amamos e gostaríamos de ser uma fa­mília. — Respirou fundo e deixou as mãos caírem junto ao corpo. Refreou rapidamente as lágrimas que lhe inundavam os olhos, não fossem os pais de Cage atribuir sua origem à fraqueza, não o alívio. — Mas, se não puderem nos aceitar como somos, se não puderem aceitar o amor que temos um pelo outro, vocês é que sairão perdendo. — A coragem e a esperança fervilhavam dentro dela.

— Eu amo Cage e ele me ama, e me recuso a me sentir culpada por causa disso. Nós vamos nos casar e criar o nosso filho, e ele saberá em cada dia de sua vida que é amado pelo que ele é, não pelo que nós queiramos esperar que seja.

Meia hora depois, quando o médico retornou para levar um deles ao leito de Cage na UTI, Jenny o acompanhou.

 

— O que está acontecendo aqui afinal?

— Nada. Só estamos tomando banho.

— Mas que bagunça!

— A culpa é de Trent. Ele adora jogar água para todos os lados.

— E quem o ensinou a fazer isso?

Da porta do banheiro, Jenny sorriu para o marido e o filho na banheira. Aos sete meses, Trent estava sentado no colo do pai, as costas apoiadas nas coxas de Cage, os pezinhos gorduchos em sua barriga.

— Ele está ficando limpo pelo menos?

— Quem? Trent? Claro. Positivamente imaculado.

Jenny entrou e se ajoelhou junto a eles. Reco­nhecendo a mãe, Trent abriu um belo sorriso, mos­trando com orgulho seus dois únicos dentes. Apon­tou para ela e balbuciou alguma coisa.

— Isso mesmo, meu filho — disse Cage. — Ela é estonteante, não acha?

— Estonteados vão ficar vocês dois se não saí­rem logo daí para enxugar o chão. — Jenny tentou se mostrar séria, mas riu ao se inclinar para tirar Trent da banheira. Ao erguê-lo, viu a cicatriz rosada no abdômen de Cage. Aquilo nunca deixava de afetá-la e fazê-la endereçar aos céus uma ora­ção de agradecimento.

— Veja só, ele está mais escorregadio que uma truta — disse Cage, emergindo do banho. A água escorreu em seu corpo musculoso e esguio. Jenny sabia agora que ele não tinha a menor vergonha de sua nudez, o que a agradava muito.

— Estou vendo — sorriu ela ao mesmo tempo em que tentava segurar o filho que esperneava e en­volvê-lo numa toalha. Desistira de se manter seca. O corpinho inquieto de Trent já havia molhado a frente de seu penhoar.

Ela levou o bebê para o quarto, que ficava em frente à suíte, do outro lado do amplo hall. Tinha transformado um dos cômodos do primeiro andar do velho casarão num quarto de bebê digno de qual­quer revista. Seguindo suas instruções, Cage se en­carregara da maior parte do trabalho nos fins de semana. Estavam muito satisfeitos com o resultado.

Jenny era tão habilidosa para cuidar do filho sempre em movimento que, quando Cage se jun­tou a eles, já enxuto e com um robe felpudo, Trent estava de fralda e acabava de vestir o pijama.

— Dê boa-noite para o papai. — Jenny ergueu o filho para receber o beijo de Cage, que o tomou nos braços e lhe deu um sonoro beijo na bochecha.

— Boa noite, meu filho. Eu o adoro. — Abraçou o bebê enquanto Jenny os observava encantada. Trent estava com sono. Deitou a cabeça coberta de cachos dourados no ombro do pai e abriu um enorme bocejo.

— Ele estava precisando dormir — disse Jen­ny mais tarde, a caminho de seu próprio quarto. — E eu também estou. — Abriu os braços e se jogou de costas na cama. — Vocês dois me dei­xam exausta.

— Ah, é? — Cage passou os olhos pelo seu corpo da cabeça aos pés. O penhoar tinha ficado aberto, expondo-lhe a perna esguia e macia. Naquela po­sição, os braços estendidos no colchão, seus seios pareciam ao mesmo tempo sensuais e vulneráveis. Sem a menor cerimônia, ele desatou o cinto do robe, despiu-o e se deitou sobre ela.

— Você precisa superar a timidez, Cage.

— Espertinha! — Ele riu, colando os lábios no ouvido dela. Jenny tinha se banhado pouco antes dele e de Trent, sua pele estava quente e perfu­mada. Não vestia nada além do penhoar. — Para que perder tempo com as preliminares? Prefiro ir logo ao que interessa.

— E o que é que interessa, eu?

— Hum... — Ele lhe cobriu o pescoço de beijos inocentes. — Sempre interessou. Os três meses mais longos de minha vida foram os que se se­guiram ao nascimento de Trent.

— Não se esqueça das semanas antes do parto.

— Não me esqueci — rosnou ele. — Continuo achando que aquele médico impôs restrições des­necessárias. Deve ter sido vingança.

— Quê?

— Nada.

Jenny mergulhou os dedos em seus cabelos e os puxou até que ele levantasse a cabeça.

— Quê?

— Ai!

— Conte.

— Tudo bem, tudo bem. Não é nada de mais. Anos atrás eu andei saindo com uma enfermeira dele. Quando brigamos, ela ficou tão zangada que largou o emprego e saiu da cidade. Ele ainda tem raiva de mim.

— Com quantas mulheres você... teve caso?

Cage ficou calado. Parou de acariciá-la. Fitou-a nos olhos.

— Isso tem alguma importância, Jenny?

Ela desviou o olhar do dele e ficou olhando para seu pescoço.

— Você tem saudade daquele tempo?

— Que você acha?

Cage lhe abriu o penhoar e pressionou o corpo no dela. Jenny sentiu sua cálida virilidade no ventre.

— Acho que não.

— Acertou.

Ele a beijou com apaixonada voracidade, elimi­nando qualquer resquício de dúvida. Quando seus lábios se separaram, o sangue de Jenny pulsava ardente nas veias.

— Eu o amo, Cage.

— Eu a amo.

— Sabe que dia é hoje?

Ele pensou um momento.

— O acidente?

— Está fazendo um ano.

— Como você se lembrou?

Jenny lhe tocou os lábios.

— Porque este é o dia em que pensei que o havia perdido. Passei horas na sala de espera da­quele hospital sem saber se você viveria o sufi­ciente para que eu lhe contasse quanto o amo e quanto a sua vida é importante para mim. Pri­meiro, eu só rezava por isso. Depois, quando você estava fora de perigo, fiquei mais ambiciosa e pas­sei a rezar para que vivesse até ficar muito velho.

Ele sorriu.

— Espero que Deus atenda o segundo pedido.

— Eu também. Mas não desperdiço nenhum dia. Dou graças a Ele a cada dia que passamos juntos.

Beijaram-se novamente, reconfirmando seu amor.

Quando se separaram, Cage mergulhou os de­dos nos cabelos dela, espalhando-os na colcha.

— Quando eu recuperei a consciência, na UTI, vi seu rosto e não tive coragem de morrer e deixá-la.

— Você se lembra daqueles primeiros dias?

Ela achava estranho que não tivessem conver­sado muito sobre o acidente. Ralhara com ele e tivera de controlá-lo nos primeiros meses de con­valescença. Cage não estava acostumado a ficar confinado e a ter suas atividades limitadas. Seu ajustamento psicológico tinha sido tão difícil quan­to à recuperação física.

Todavia, a paciente diligência de Jenny valera à pena. Tanto que surpreendeu os médicos que Cage voltasse ao normal poucos meses depois da operação. E, aliás, passaram a provocá-lo porque ele havia parado de fumar e até de beber.

Depois, Trent nasceu, e eles se acomodaram à rotina familiar. Os negócios de Cage continuaram a prosperar, pois ele conseguira dirigi-los por telefone durante a convalescença. Agora, tinha dois empregados na folha de pagamento, uma secre­tária, que passou a ocupar o lugar de Jenny depois do nascimento de Trent, e um geólogo encarregado de colher e analisar as amostras. Mas ainda era Cage quem especulava, quem convencia os inves­tidores a aplicar seu dinheiro, quem fazia os ne­gócios e achava o petróleo.

O ano anterior tinha sido tão movimentado que Jenny preferira esquecer as horas difíceis e os dias sombrios que se seguiram ao acidente. Nunca perguntara a Cage às impressões que tivera no hospital.

— Não lembro muita coisa, só que você estava lá. Também me lembro de que vi mamãe e papai. Recordo que tentei sorrir para que soubessem que eu estava contente de vê-los. Mamãe me segurou a mão, inclinou-se e me beijou. Papai também. Pode não ser muita coisa, mas para mim foi um mundo.

Jenny reprimiu as lágrimas.

— Você teria ficado orgulhoso de me ver en­frentá-los, dizer-lhes que o bebê que eu estava esperando era seu.

O beijo que se seguiu foi consideravelmente mais sedutor que o anterior.

— Mamãe e papai já superaram o susto — disse Cage quando suas bocas se separaram. — São loucos por Trent e o acham o bebê mais maravi­lhoso do mundo.

— Adivinhe quem foi que lhes deu essa idéia! — Ela brincou com os pêlos de seu peito. — Se não tomarmos uma providência, esse menino vai acabar ficando mimado demais nas mãos deles, de Roxy e de Gary. — Jenny riu. — Sabe quando descobri que a sua família ia nos aceitar?

— Quando papai nos casou no hospital?

— Não — disse ela, sorrindo automaticamente com a recordação. — Antes disso, quando Gary telefonou de El Paso, querendo saber por que não estávamos no aeroporto para apanhá-los quando eles voltaram da lua-de-mel. Eu fiquei chateada e sem jeito. Tinha esquecido completamente deles enquanto você estava em tratamento intensivo. Bob se ofereceu para ir buscá-los em El Paso. En­tão eu compreendi que, se ele podia aceitar Roxy, podia aceitar-nos também.

— Você ganhou muitos pontos com eles quando criou o Fundo Hal Hendren de Ajuda aos Refu­giados Políticos.

— E você ganhou mais pontos ainda quando fez aquela enorme doação.

— Só porque você insistiu em que eu doasse a mesma quantia que tinha gastado para comprar o seu anel de noivado.

— Você teria dado o dinheiro de qualquer jeito.

— Não sei — sorriu ele, olhando para o anel de esmeraldas e brilhantes. — Foi caríssimo.

Ela lhe beliscou a pele macia. Os dois riram muito. Depois, ele a fitou com os olhos brilhando de desejo.

— Você é o meu amor, Jenny. Eu a adoro. Minha vida só passou a valer à pena quando você come­çou a me amar.

— Então vai valer a pena à vida inteira, pois eu vou amá-lo para sempre.

— Jura?

— Juro. — Seus lábios se uniram uma vez mais, incendiando-lhes o desejo. — Mas você continua sendo terrível — sussurrou ela.

— Eu?

— Hum-hum. Veja o que fez de mim. — Abriu o penhoar e colocou a mão dele em seu seio. Cage sentiu o cálido volume, o mamilo intumescido.

— Eu fiz isso?

— Fez. E eu era uma menina tão boazinha. Você me desencaminhou.

Ele lhe beliscou de leve o já excitado mamilo.

— Eu sou um garoto levado, é verdade. Baixou a cabeça e roçou a boca no seio rosado.

Beijou-o muitas vezes.

— Você tem um sabor delicioso.

Cage entregou-se ao seu sabor e a sua textura. Quando subiu a mão pela sua coxa, encontrou-a já antecipadamente úmida. As carícias a fizeram es­quecer tudo. Então sua masculinidade a reclamou.

— Jenny, eu a amo tanto!

O tempo ficou suspenso até que o universo ex­plodisse numa cascata de luz. Demorou muito tempo para que eles voltassem a respirar em ritmo normal. Então, Cage se ergueu e sorriu para ela.

Jenny também sorriu lentamente, cheia de sen­sualidade, e ronronou:

— Você é impossível, Cage Hendren. E os dois riram de si mesmos.

 

                                                                                Sandra Brown  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Voltar à Página do Autor