Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
PAIXÔES
ÍNDICE
Crime e perdão.
Refeição em família.
A mulher dos sonhos.
Duas cervejas
Sapatos
Tempos de república.
Fantasias de uma noite de verão.
Sábado à noite
Crime e perdão
No Período Pré-Cambriano apareceu a primeira alga nas águas da Terra. No Período Cambriano apareceram os corais. Depois, no Período Siluriano, o primeiro peixe, e no Período Devoniano as árvores, no Período Mesozóico os primeiros animais — e muito tempo ainda passaria antes do primeiro homem.
O homem existia há mais ou menos três milhões de anos quando, uns três mil anos atrás, começaram as escolas — primeiro para os nobres, navegantes, gladiadores e comerciantes, até que, de uns séculos para cá, os estudantes cobriram a Terra.
Para descontar o tempo perdido, convocaram urgente um congresso da União Nacional dos Estudantes. Paranápolis era uma cidade com ferrovia, casas com varanda, cachorros ainda sem medo de trânsito e a Faculdade ainda sem muros pichados. Então desceram na rodoviária, discutindo sem parar, uma bunduda de roupas de homem e um loiro de barbicha e unhas pretas de tinta.
— Não fala besteira, Palma. Sem apoio da pequena-burguesia vocês nunca vão ter revolução neste país.
— Revolução, Zanquetti, não é festa pra ir todo mundo.
Saqueiros descarregavam caminhão de café, pararam para ver Zanquetti na ponta dos pés e dedo esticado:
— Pode escrever isto: sem pequena-burguesia não haverá Revolução Brasileira!
Palma botou as mãos na cintura e riu jogando a cabeça para trás.
— Vocês deviam ler Lênin direito!
— Pois é justamente Lênin quem diz que. . .
Desceram uma rua, subiram outra. Cachorros e crianças olhavam a discussão ambulante. Iam tropeçando em meios-fios, de repente deram com um capinzal, era o fim da cidade. Onde era a Faculdade?
— Pensei que você soubesse, fui te seguindo.
— E eu pensei que você quem sabia.
Resolveram perguntar.
— Quem tem boca vai a Roma.
— Quem tem cabeça vai a Cuba.
Na Faculdade, passaram em revista todas as portas: onde seria o diretório estudantil?
— Aquela porta ali — informaram —, mas quase nunca abre.
Na cantina, pararam torcendo o nariz:
— Pingue-pongue!
Tocava música alegre e Palma perguntou a uma moçoila quem era do diretório. A outra demorou a entender, revirou os olhos:
— Diretório? Sabe que não sei?
Palma soprou a mecha da testa, encarou com as mãos na cintura:
— Você estuda aqui e não conhece alguém do diretório?
Fedia um suor de viagem, nariz lustroso, pés empoeirados. Zanquetti encostou no balcão pedindo um guaraná.
— Só coca-cola.
Pulou para trás como se o balcão desse choque:
— Não tem guaraná?
— Só coca. Duas?
— Mas como? Não tem guaraná?!
O sujeito virou as costas e foi lavar copos. Palma pediu uma coca.
— Não é passando sede que vou acabar com o imperialismo. . .
Zanquetti fervia. Ficou esmurrando a mão e olhando o mural: aviso de excursão, piadinhas, anúncio de baile, cartaz do alistamento militar. Olhou em volta, tirou o cartaz, dobrou, amassou devagar, com gosto, jogou no lixo. Pediu um copo d’água — Torneiral.
Palma arrotou perguntando quem era o presidente do diretório, o sujeito apontou e ela bufou: o presidente estava ao lado da moçoila! Soprou a Zanquetti:
— Alienação dá nojo. . .
O Presidente tinha um começo de careca, anel de rubi, camisa de colarinho. Jogava pingue-pongue tão mal que ficou feliz de parar:
— Jogo só porque todo mundo joga.
Palma e Zanquetti se apresentaram, ele arregalou os olhos:
— União Nacional dos Estudantes, é? Pois não. Façam o favor, façam o favor.
Saiu caçando chave pelos bolsos com pressa de anfitrião, abriu a sala. Escrivaninha empoeirada. Estante com taças e troféus. Na parede, flâmula do Rotary Club.
— Também sou secretário do Rotary.
Palma e Zanquetti se olharam engolindo. Mas não recuariam. Começaram a falar ao mesmo tempo: ia ser o maior congresso estudantil da nossa História, com gente do Brasil todo, portanto Paranápolis não podia faltar e. . .
— Perfeitamente — garantiu o Presidente arrumando os carimbos —, perfeitamente: no que depender de nós, Paranápolis será devidamente representada.
E então, com todos os carimbos arrumados:
— Não posso ir mas envio representante: vice-presidente é pra isso. Zanquetti atalhou de mansinho:
— A gente preferia voluntários. . .
Palma cotovelou:
—. . .quer dizer, interessados.
— Aliás, companheiro — ela falava soprando a mecha na testa —, a gente queria falar a todos — soprava — em assembléia. . .
—. . .no salão, no intervalo, pra não atrapalhar as aulas. — Zanquetti falava macio, arrumando mais ainda os carimbos.
O Presidente achou uma ótima idéia — Já vi que vocês têm experiência — e foi abrir o salão e avisar nas classes. Zanquetti desarrumou os carimbos com um tapa, puxou Palma pelo braço e soprou:
— Pô, companheira, essa gente nunca ouviu falar de política estudantil. . .!
— Por isso mesmo, não temos de ter papas na língua. Nada de ficar agradando burguesia!
Zanquetti retrucou e logo discutiam aos sussurros: quem falaria primeiro na assembléia? Na sala fechada, de vez em quando olhavam para trás, para os lados. Quando ela começou a soprar a mecha sem parar, ele cedeu:
— Mas se falar besteira eu corto.
Palma entortou a boca com desdém:
— Pensando bem, acho melhor falar por último pra corrigir tuas besteiras.
Agora Zanquetti também fazia questão de falar por último, mas tocou a sirene e o Presidente voltou — Vamos
— esfregando as mãos e olhando o relógio. Foram pelo corredor, o Presidente arrebanhando o pessoal que saía das classes:
— Reunião nacional no salão, gente!
— Já-já a gente vai, já-já — e iam para a cantina. Quando começaram a entrar no salão com garrafas, sanduíches e chicletes, tocou a sirene. O Presidente encheu o peito, resolveu:
— Vamos em frente, depois explico ao Diretor. É rotariano também.
E bateu palmas:
— Pessoal, vão falar para nós dois representantes da União Na-cio-nal dos Estudantes. Primeiramente, nossa colega. . .
Ela deu um passo à frente:
— Palma.
Ele ficou esperando — Palma do quê, por favor?
— Só Palma.
Enquanto isso, corria entre a mulherada um zunzum sobre o tipo macho da representante nacional. Olha os pés dela, que horror. Que cabelo ensebado, menina. Ai, que tipo. Parece que não toma banho, credo.
Palma esperou silêncio e falou do maior congresso estudantil da História, Paranápolis não podia faltar:
— E não pode faltar, gente, por um motivo muito simples: só o povo organizado derruba a ditadura, e a gente está mostrando o caminho ao povo, a gente está se organizando contra o imperialismo e a ditadura.
Silêncio bruto. O Presidente encarava o chão, abotoou os punhos. Palma falou do Terceiro Mundo, do Vietnã, da aliança operário-estudantil-camponesa contra o regime fascista sustentado pelo Capital Internacional. O salão resmungava. Essa dona já-já vai presa. Será que o loirinho é marido dela?
Palma captava o murmúrio. Era preciso ser mais clara e objetiva diante da massa:
— Então agora precisamos de uma tática certa, para continuar golpeando a ditadura e avançando com as alianças corretas, até formarmos uma frente ampla — mas não tão ampla que se perca ideologicamente, certo?
E insistia — Certo, gente?
Os cochichos corriam. Credo, que isso? Aliança, que eu sei, é de casamento. Você está entendendo alguma coisa? Ainda bem que o Capitão Amauri não veio hoje. . .
— Então — ela soprava a mecha com furor —, é principalmente isso que vamos resolver no congresso: quais as alianças corretas pra avançar a luta? Contamos com Paranápolis! Passo a palavra ao companheiro Zanquetti.
O salão se agitou. “Companheiro”, hem: não falei que devem morar juntos?
Zanquetti avançou batendo os coturnos, olhar flamejante:
— Gente, antes de tudo é preciso dizer que discordo do enfoque da companheira quanto ao objetivo do congresso e às táticas de luta.
Começava uma frase, ia se erguendo até ficar na ponta dos pés, aí batia os calcanhares no ponto final. E recomeçava se erguendo de novo:
— O principal não é a votação de uma linha tática, é fazer do próprio congresso uma ocasião de luta, embora a luta mais importante seja o dia-a-dia em cada escola.
Por que eles falam tanto em luta, meu Deus? Vai ter alguma guerra? Linha tática. Linha que eu conheço é de costura.
E Zanquetti falou dos estudantes na nossa História, concluiu:
— Jornadas heróicas mostraram ser correta uma política de alianças contra o inimigo comum, desde que a estratégia seja a Revolução Brasileira!
O salão ficava em suspense até o fim de cada frase, então corria um suspiro de alívio com murmúrios. Revolução? Mas ja não tivemos uma? Olhe bem para eles: nem sei para qual dos dois é pior viver juntos. Chi, rapaz, não entendo nada — será que eu é que sou burro?
Palma pediu aparte e condenou o imediatismo, o ativismo, o reformismo, o voluntarismo, o populismo, o idealismo e o aliancismo. Terminou arfando, os olhos brilhando: agora queria ver como Zanquetti ia se sair. Ele baixou a cabeça, calcou as mãos na testa e ficou assim um tempo, na estupefação geral, até erguer a cabeça abrindo os braços:
— Companheiros! Só o tempo dirá qual a tática correta. A massa é sempre lúcida, e dará a resposta no tempo certo!
Dedo esticado cutucando cada palavra no ar:
— Mas é preciso que representantes estudantis de todo o país estejam lá — então pergunto: quem quer representar Paranápolis no Trigésimo Congresso da União Nacional dos Estudantes?
Palma pulou afobada:
— Questão-de-ordem!
As coca-colas esquentavam esquecidas, sanduíches ainda na metade. Encostado na parede o Presidente olhava o chão, o relógio, o chão, o relógio. Palma soprou firme a mecha:
— O negócio é o seguinte, gente: antes de escolher representante é preciso aprofundar discussão sobre a importância da política estudantil na atual conjuntura e. . .
— A companheira desculpe mas isso não é questão-de-ordem — Zanquetti dedava quase no nariz dela.
Palma soprava a mecha e continuava:
— Bom, gente, eu represento um pessoal que representa a linha tática mais avançada para uma estratégia revolucionária, um pessoal que não é imediatista, e me disponho a ficar mais um dia à disposição de vocês para.. .
— Colegas! A sugestão da companheira Palma é, no fundo, autoritária e conchavadora! Ofende o caráter democrático desta assembléia!
Meu Deus! Se eles são assim em público, imagine em casa!
Palma soprou a mecha e abriu a boca mas não falou nada: um zunzum começou nas últimas fileiras — e nas outras fileiras as cabeças foram virando para trás, o zunzum crescendo em onda, as cabeças virando e cochichando. O Presidente cochichou a Zanquetti:
— Chegou o Capitão Amauri.
Zanquetti a Palma:
— Baixou repressão.
Palma a Zanquetti:
— Nossa segurança é a massa.
Mas o Capitão continuou de pé lá atrás com bigodes e cadernos, o zunzum foi morrendo. O Presidente apontou o relógio com aflição, Zanquetti pediu silêncio:
— Proponho que a gente escolha já os representantes.
Palma, de olho no Capitão:
— Concordo devido ao adiantado da hora. Quem indica alguém?
Silêncio.
— Hem, gente, quem indica alguém?
Zanquetti lembrou:
— Estadia e passagem de graça.
E Palma lembrou que tudo ia ser muito bem organizado, uma beleza.
— Então, gente, quem indica alguém?
Sussurros. Zanquetti estralava os dedos, atento na
massa: quantos levantariam o braço? Palma roía unha.
— Hem, gente?
A massa cochichava com risinhos.
— Gente, vocês têm de entender a importância desta assembléia.
Um cara levantou e saiu. Outro.
— Um pouco mais de responsabilidade, certo?
Outro, outro.
Zanquetti deu três passos bem medidos, abriu os braços baixando a cabeça e ficou assim. Os cochichos pararam, aumentaram os risos. Ele ergueu a cabeça devagar, crucificado, e gritou do fundo do peito:
— Nós somos a esperança deste país!
Riram — e mais outros, enfim dezenas se levantaram e foram saindo. O Capitão sumiu. O Presidente pediu desculpas, tinha aula importante. Desejou felicidade e um profícuo congresso — e sumiu.
Então apareceu, brotando do ar, um magrelinho espinhento, corado como se saísse de um banho quente e uma voz soprada:
— Quando vai ser esse congresso?
Zanquetti esticou o dedo para Palma:
— Você esqueceu de dizer a data!
— Que interessa a data? Ninguém vai!
— Mas quando é que vai ser? — o magrelinho insistia. Tinha um bandeide numa espinha do queixo, os olhos vivos mas os braços pendidos. Explicou balançando as mãos:
— Quem sabe eu queria ir.
No Bar e Restaurante Aurora, entre moscas gordas, saqueiros, putas-de-estrada e um bêbado cantando, Palma e Zanquetti comeram o mesmo sanduíche enquanto davam instruções. Um falava, o outro mastigava; depois trocavam. O magrelinho ouvia, comendo sozinho um sanduíche.
— O pessoal da nossa linha — Zanquetti dedava — acha que os estudantes, diante da conjuntura repressiva e das perspectivas sociais contidas no modelo capitalista em crise, podem formar um tripé com os operários e camponeses para uma resistência ao regime, viabilizando a longo prazo formas de luta mais efetivas, inclusive a luta armada.
— Já nosso pessoal — Palma soprava a mecha — nosso pessoal acha que os estudantes, diante da conjuntura repressiva e de um capitalismo com perspectivas limitadas mas ainda em expansão — certo? —, os estudantes devem estar à disposição do partido político revolucionário do proletariado, para começar já a luta armada.
Ele ouvia com o olhar parado. Comeu dois sanduíches. — Por conta do congresso — Zanquetti oferecia, contando o dinheiro. Bebeu cerveja até arrotar, balançando a cabeça e resmungando sim, claro, hum hum, até que nem resmungou mais: Palma e Zanquetti discutiam e ele pediu mais uma cerveja. Palma soprava a mecha e as moscas. Zanquetti engoli; aos trancos mais um sanduíche, falava de boca cheia:
— Vou acabar doente de tanto sanduíche. Mas Trótski corrigiu Lênin muito bem quando escreveu que. . .
Lá pelas tantas Palma foi lavar a cara na pia — Faz 42 horas que não durmo! — e o magrelinho não tirou os olhos daquela bundona. Zanquetti falava sobre as perspectivas e diretrizes, e cutucou — Certo, companheiro?
Ele não desviou o olhar da bundona — Certo.
E secou o copo de Zanquetti, que continuou falando da conjuntura e lembrou:
— Você precisa de um nome-de-guerra. Questão de segurança.
Palma voltou:
— Que tal Carlos? Lembra Karl Marx.
— E também Luís Carlos Prestes. Prefiro Carlos Frederico: Karl Marx e Friedrich Engels.
— Ou Vladimir.
Ele espertou:
— Tem um Vladimir no Vasco, não tem?
E engasgou com a cerveja, teve um acesso de tosse.
— Tenho asma.
Zanquetti se iluminou:
— Igual Guevara. Por que não Ernesto?
Pediram mais uma cerveja para comemorar:
— Ernesto de Paranápolis!
No dia seguinte Ernesto subiu num ônibus. Desceu numa cidade bem maior que Paranápolis, aqui e ali muro pichado. Tirou do bolso um papelzinho e perguntou a um guarda-de-trânsito onde era a Faculdade de Filosofia. Estava em frente. Entrou, perguntou e, numa salinha com cartazes de Guevara maiores que as estantes, apresentou-se num fôlego só:
— Sou Ernesto, de Paranápolis, disseram pra dizer que a senha é “o futuro dirá”.
Fecharam a porta, foi cercado por abraços e ta- pinhas:
— Então Paranápolis vai entrar na História!
— Antes que nunca.
— Mas Palma avisou que você só chegava amanhã, companheiro.
— Vim antes. Tem problema?
Claro que não, podia dormir ali no sofá. Tinha onde comer?
— A gente arranja, companheiro.
Deitavam mão no ombro dele. Companheiro. E assim passou dois dias dormindo ali e filando cerveja dos companheiros no bar da esquina. Encostava numa mesa, era logo apresentado:
— Ernesto, de Paranápolis.
Sentava, a conversa continuava; era apenas um magrelinho espinhento. Mas logo alguém soprava a alguém
— Ele vai ao congresso. O sussurro rodava a mesa, de repente estavam todos de olho nele:
— Então, companheiro, como vai Paranápolis?
— Mais ou menos. O prefeito asfaltou muito.
— Mas, politicamente falando, tem alguma coisa por lá?
— Alguma coisa. . .
Paravam de perguntar: não podia falar, respeitavam. Mas lamentavam — Pô, a gente devia manter mais contato.
— É por isso que nada vai pra frente.
— Mas por isso o congresso é importante: pra gente se organizar.
Ernesto entrava na conversa:
— Mais importante é discussão duma linha tática.
Acendia a discussão. Depende. . . Tem de ver o seguinte. A correlação de forças. Linha o caralho, o negócio é massa na rua. Espontaneísmo, condenava um. A massa quer lutar, outro defendia.
Ele ouvia secando um copo depois do outro. Depois ia bater pingue-pongue. De noitinha vinham com a marmita, ele comia entre cartazes de camponeses famintos, crianças do Vietnã e operários tchecos.
Palitava os dentes pelas esquinas, aproveitava para telefonar da farmácia. Voltava, ficava vendo bundas na cantina: de noite aquilo enchia de mulher — e dois ou três barbudos sempre discutiam num canto:
— A participação da burguesia no processo revolucionário, só em forma de quadros, nunca como classe.
— Na hora-H quem resolve é sempre o operariado. Alguém oferecia uma empadinha, Ernesto enchia a boca e ouvia:
— A gente tem é de formar quadros para pegar em armas. O negócio vai ser mesmo guerrilha.
— Mas precisa massa apoiando na cidade.
— Na hora a massa levanta.
Até que ele não agüentou: contou o dinheiro, foi a um restaurante e procurou massas no cardápio. Escolheu lasanha. Comeu, voltou e recebeu passagem e instruções:
— Você parte amanhã de manhã.
— Um cara de calça azul e camisa azul vai te esperar lá, com um jornal Última Hora.
— Você chega nele e pergunta onde vende passagem pra Paranápolis.
— Aí deixa o resto com ele. Tem dinheiro pra comer na viagem?
Fizeram uma coleta, ele embarcou de camisa xadrez com o bolso estufado de dinheiro miúdo.
Desembarcou na Grande Capital com a mochila cheia de roupa suja e um bafo de conhaque, sono e uma maçã.
Ficou lustrando a maçã na camisa e olhando em volta: cadê o cara de azul com a Última Hora? A rodoviária fervia de gente. Viu um cara de gravata com O Estado, outro com A Gazeta Esportiva e camisa amarela. Relembrou baixinho:
— Fico aqui, até um de-azul me perguntar onde compra passagem pra Paranápolis.
Quando acabou a maçã, já tinha repetido isso muitas vezes e as pernas doíam de ficar em pé. Deu uma volta, voltou, viu numa fila uma dona bunduda de cintura fina. Chegou perto e ficou chupando o ar com os dentes cerrados. Ela ouviu o chiado, empinou o nariz e ele sussurrou
— Orgulhosa. . .
Tomou a chupar ar nos dentes. Ela virou:
— Não conhece fio dental?
Ele saiu de perto. Logo achou outra e começou de novo.
Era uma coroa feia de doer mas bunduda, ele arriscou um sorriso. Ela também empinou o nariz, mas ficou com um sorrisinho. Ele tornou a chupar ar, o olhar preso naquela bunda. Ela abriu mais o sorrisinho, sorriu.
Ele ia avançando, sentiu um toque no ombro. Era o cara de amarelo com A Gazeta:
— Sabe onde compra passagem pra Paranápolis?
— Hã — ele olhava o decote da coroa.
Resmungou que não, o Camisa-Amarela foi afastando depressa, aí ele teve, um reflexo atrasado de comédia, foi correndo:
— Pra Paranápolis?
O outro ficou de pé atrás:
— Depende.
Ele arriscou:
— Você não acha a Última Hora melhor que A Gazeta?
— Depende. . . Você veio daonde?
— De Paranápolis. . . pra encontrar um cara de azul. O futuro dirá.
Camisa-Amarela olhou em volta:
— Certo. Vamos andando. A Última Hora acabou nas bancas.
Pegou Ernesto pelo braço e saíram. Famílias dormiam no chão entre sacos e malas.
— Telefonaram que você vinha de camisa xadrez.
— Troquei no ônibus.
Olhou para trás, a coroa continuava lá. Olhou para a frente: todos os muros estavam pichados.
Entrou num fusca, tinha uma gordota no banco de trás.
— Essa é a Lena.
— Oi — ela falou sem olhar, mexia na bolsa.
— Oi — ele falou aproveitando para cheirar o sovaco, precisava urgente de um desodorante.
— Você fica com ela até amanhã.
Lena abriu a boca para perguntar como iam as coisas por lá e Ernesto cheirou fruta no trânsito enfumaçado. Era meio estrábica e o cabelo escorria engordurado, mas não era feia, muito menos bonita.
— Em Paranápolis? A gente vai tocando, sabe como é.
— Pô, a gente não ouve falar de nada por lá.
Ele resumiu com modéstia e segurança:
— Vamos devagar, a correlação de forças lá é outra. Certo?
Ela engoliu concordando.
— E lá — aí ele encarou — eu lido principalmente na área operária, certo?
Ela sussurrou vencida — Certo.
O fusca driblava o trânsito: subiu em calçada num engarrafamento, entrava em curva guinchando pneu, porcas soltas grilavam. Mas agora o Camisa-Amarela diminuía a marcha interessado:
— Lidando com operário, é?
Ernesto resmungou qualquer coisa.
— Que tipo de coisa você faz com operários?
Ernesto olhou para trás, o fusca soltava um rolo de fumaça preta.
— Precisa trocar o óleo. Questão de segurança.
O outro entendeu, pediu desculpa, mudou de assunto:
— Eu acho — agora dirigia olhando para ele naquele trânsito louco — acho mesmo que as duas linhas têm suas razões, mas uma delas traz menos riscos porque . . .
Quase trombavam. Mais adiante quase atropelavam, e o outro dirigia falando sem parar. Lena tentava entrar na conversa dos homens:
— Revolução não é questão de riscos mas de audácia. Na verdade, a diferença entre as duas linhas é muito diferente do que você diz.
— A segurança é o primeiro dever de um revolucionário — o Camisa-Amarela furava tantos sinaleiros que Ernesto olhava sempre para trás: onde andaria a Polícia?
Lena e Camisa-Amarela discutiram, discutiram até que o silêncio dele falou mais alto e eles também silenciaram, então ele falou:
— Vocês falam demais.
Cada uma das três palavras ficou ecoando naquele silêncio, ou seja, no ronco do trânsito e do motor se moendo eternamente em terceira. Lena falou quase soletrando:
— Na área operária tudo é mais objetivo, não é?
Ernesto olhava a fumaceira por cima do ombro dela:
— Mais ou menos. Desse jeito vai fundir o motor.
Camisa-Amarela agora se desculpava ao superior:
— Não deu tempo de trocar óleo. Mas só preciso pegar mais três ou quatro hoje.
Parou num predinho preto de fuligem, Ernesto desceu. Lena desceu e debruçou na janela para cochichar, ele ficou medindo aquela bunda. Ela virou de repente, ele disfarçou coçando o nariz e ela comandou rápido:
— Eu entro com sua mochila, você espera um pouco e entra. Questão de segurança.
Ele deu uma volta no quarteirão, parou na banca, procurou futebol na primeira página dos jornais, só tinha política. Ficou por ali coçando o saco, depois telefonou da confeitaria, aí entrou no predinho. Entrou no elevador com uma velhota de carrinho-de-feira. Ela foi reclamando dos preços e ele leu riscado a chave na parede: Hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás.
— Letra de bolero?
— A alface dobrou de preço!
Saiu num corredor mofento cheio de portas. Na parede Abaixo a ditadura a batom. Tocou a campainha, Lena abriu imediatamente e puxou num repelão — Entra pô!
A velha passou resmungando com o carrinho. Lena espiou o corredor antes de fechar a porta:
— A repressão tá fogo.
Mas ele tranqüilizou, não tinha visto nada estranho:
— Conheço polícia de longe.
Ela olhou agradecida o homem de Paranápolis.
Era uma saleta com quartinho, cozinha e banheiro onde duas pessoas não podiam se vestir ao mesmo tempo sem bater cotovelos. Almofadas e discos pelo chão, Gue- vara na parede, livros pelos quatro cantos e um vasinho com uma flor seca. Ele pegou o porta-retrato: uma mulher sofrida sorria, era a cara dela.
— Minha mãe. Se dependesse dela, eu já estava casada. Não sei por que a gente tem mãe.
— Deve ser pela mesma razão que a gente tem filhos — ele falou mascando uma bolacha esquecida; ela ficou pensando admirada:
— É, pode ser isso mesmo. . . Mas por quê?
Acordou de repente:
— Vai ser o maior congresso estudantil da História!
Ele olhava Guevara, ela também parou olhando:
— Pra mim, essa é a melhor foto dele. . .
Ficou assim um tempo, até que acordou de novo
— Eu vivo sonhando! — e agachou elétrica, botou um disco que falava em fome e luta, luta e fome, enquanto fazia almoço e ele se esparramava nas almofadas.
Ela batia gavetas e talheres, abria e fechava a geladeira, até que chamou e apresentou o almoço: ovos gordurentos sobre arroz requentado e pão dormido, numa mesinha onde mal cabiam os pratos. Ele comeu com apetite de operário e ela achou melhor procurar mais na geladeira. Então ele parou de mastigar para olhar: de tão redonda e apertada, aquela bunda ameaçava pular fora das calças.
Ela virou, pegou o olhar dele. Mexeu sem jeito no cabelo, apresentou um queijo:
— Mãe mandou de Minas.
Ele roçou na mão dela para pegar o queijo. Ela desatou a falar sem olhar para ele, rodava os olhos por toda a cozinha e falava sem parar. O congresso era um marco na História Estudantil, estava chegando gente até do Acre, do Nordeste inteiro menos Sergipe e. . .
-— Começa amanhã? — ele enchia a boca.
— Já começaram as discussões preliminares, o congresso deve começar amanhã. Depende.
— Do quê?
— Das discussões preliminares.
E sonhou com olhar perdido — Do jeito que está, um voto pode decidir tudo. . . — depois encarou:
— Você vota na nossa linha?
— Claro — ele respondeu tranqüilo, com palma dinha na mão dela: podiam contar com ele. E liquidou três ovos, duas pratadas de arroz, um pão, três fatias de queijo com goiabada, depois tomou um copo de leite, mastigou umas bolachas, puxou um cigarro e ficou beliscando o queijo e fumando.
Ela estava admirada de caber tanta comida num magrelo.
— Sou magro mas forte — e engasgou com o cigarro, até avermelhar tanto que ela deu tapas nas costas.
Ele ergueu os olhos lacrimejando — Obrigado —, e sorriu sofrido:
— Ando meio esgotado, faz 48 horas que não durmo.
Ela parou o olhar no olhar dele, meio pasmada e meio encantada, mas logo pegou a bolsa:
— Dorme à vontade que eu volto amanhã cedo. Toalha tem ali.
Ele foi com ela até a porta, os braços pendidos.
— Só amanhã?
Só: ela era da Comissão de Propaganda, precisavam noticiar aquilo para todo o país e o mundo: o maior congresso clandestino da América Latina!
— Para saberem que resistimos!
Ele deu mais um sorriso sofrido, apertou o ombro dela:
— O mundo inteiro vai saber. . . minha querida companheira.
Ela baixou os olhos, remexeu na bolsa, saiu apalermada.
— Até amanhã. Não dorme de vitrola ligada.
Ele ficou olhando aquela bunda até o elevador. Depois tomou mais leite, lavou cueca, passou o desodorante dela, espremeu espinhas e saiu.
Deu uma volta no quarteirão, entrou na confeitaria e telefonou. Depois entrou num bar, bebeu cerveja, entrou num cinema, saiu, bebeu mais cerveja, entrou noutro cinema. Saiu de noite, tonto de tiroteios. Comeu pastéis, voltou chutando uma tampinha.
Ela estava sentada na escada.
— Só tenho essa chave, pô.
Entraram na escuridão, ele esbarrou nela: tinha um cheiro de Capital nas roupas e de manteiga nos cabelos. Ela acendeu a luz.
— Não devia ter saído. Questão de segurança.
Ele disse que precisava levar um recado:
— Pra um operário, entende?
Ela amaciou — Mas podia avisar, né?
— Voce falou que so voltava amanhã — ele falou com voz de pé de ouvido.
Ela baixou os olhos, começou a remexer na bolsa.
— Pois é, mas.. . quer ouvir um disco?
Ouviram discos. Ela acendia um cigarro depois do outro, deixava no cinzeiro e ele fumava.
— Não quer tomar banho?
Ele tirou a camisa.
— Você também vem. . . ?
Ela afundou os olhos na capa de um disco.
— Eu? Depois.
Ele foi, voltou esfregando toalha na cabeça, descalço e sem camisa.
Ela foi, voltou de blusa leve e a mesma calça desbotada que, quando sentava, quase abria nas costuras.
— Já leu alguma coisa da nossa linha?
E tirou da bolsa umas folhas amassadas, todas tão cheias de letras que ele bocejou, mas sentou no tapete para ler. Ela sentou do lado:
— Também não li direito.
Ficaram de cabeças quase coladas, respirando leve, muito leve. Ouviam o trânsito longe, um rádio, e um silêncio que ia engrossando: já ouviam cada um o próprio coração. Ele foi chegando a cabeça até colar na dela, então ela nem respirava mais. Ele passou o braço por trás, ela fechou os olhos. Quando abriu, a boca dele estava bem na frente no nariz — e então se beijaram Lena da Capital e Ernesto de Paranápolis.
Aí tocou a campainha.
Era um bando de barbudos de coturnos e botinas, umas donas de tênis e camisas de homem. Olheiras, cabelos torturados, olhos vermelhos de sono.
— Desculpa, Lena, a gente não tem onde se reunir, sabe como é.
— Entra, entra.
Entraram se acomodando pelas almofadas, caçando cinzeiros. Ela puxou Ernesto para o quarto, fechou a porta, sussurrou:
— É um pessoal de outra linha. Na hora do aperto, olhai — não têm nem onde se reunir!
Voltaram à sala, ele já de camisa, ela perguntando se queriam que os dois saíssem.
— A casa é sua, né, Lena.. .
Um magrelão tipo de padre vacilava, olhava para os outros. Um tipo nordestino resolveu com sotaque gaúcho:
— Pode ficar, a gente não faz segredo pra massa nem pra ninguém.
Lena sentou — Só um minutinho então — e ele sentou bem encostado nela. Todos acenderam cigarros, puxaram papéis das bolsas, encheram o peito como quem vai mergulhar, suspiraram, prontos para começar. O Padre começou — Bom, gente, vocês vêem que a situação . . .
O Nordestino-Gaúcho:
— Já tá tudo visto, né, companheiro, a questão é como dizia O Velho: o que fazer?!
Uma dona levantou a mão. Parecia uma menina e falava como velha:
— Antes de tudo, vamos organizar, né. Inscrição para falar.
Ernesto recostou numa almofada — mas se ergueu quando Lena pediu a palavra:
— Só pra apresentar o companheiro de Paranápolis.
Todos se entreolharam, olharam para Lena: um novato do interior numa reunião daquela!
— Tudo legal — ela baixou a voz para revelar — Ele lida com área operária.
Então ficaram todos olhando para ele. Ele escolheu um cigarro no maço, escolheu o fósforo na caixa, escolheu o lado da caixa, riscou, acendeu, ficou olhando a chama até apagar e não falou nada.
O Padre continuou respeitoso:
— Bom, gente. O seguinte diante da atual conjuntura. . .
A Menina-Velha atalhou:
— Inscrição para falar, companheiro.
— Mas tem alguém inscrito?
— Não.
— Então. O negócio, gente, é que esse congresso vai ser do jeito que eles querem: eles têm maioria nas comissões. Mesmo assim a gente precisa continuar lutando, propondo nossa linha. . .
E se entusiasmou:
—. . .porque, se temos certeza de nossa linha ser a única historicamente correta, então. . .
— Então, o que é preciso fazer é. . . — começou um Menino-Velho.
— Inscrição, companheiro — a Menina-Velha cortou imediatamente e virou para Lena — Sabe, a gente está aqui abrindo tudo na confiança em você.
— Tá legal — Lena bateu o cigarro com decisão
— nosso pessoal também está puto com eles.
— E desse jeito eles vão continuar fazendo o que querem: a gente só fala e não faz nada — uma voz falou e Ernesto procurou quem, mas o Padre já emendava:
— Até aproveitando que a Lena está aqui, né, podia transmitir ao pessoal dela — né, Lena? — que a gente precisa se unir, formar uma frente contra eles, né?
Uma voz — Essa questão depende de decisão mais central, né, companheiro.
Ernesto recostou na almofada. Choviam inscrições. Sussurrou a Lena: quem eram eles? A Polícia? Ela soprou que não, claro que não: eram gente de outra linha.
— Mas não existem só duas linhas?
— Claro que não! Três ou quatro, ou cinco, depende.
— Na área operária tudo é muito mais simples — ele fechou os olhos.
Depois de muito tempo, perguntou quanto demorava uma reunião daquelas.
— Depende.
— Do que?
— De tudo.
Ele quase deitou no tapete.
Meia-noite pegou o último cigarro dela e olhou mais uma vez a roda de caras cansadas. As olheiras. Os lombos curvados. As bocas amargando mais um cigarro, os dedos riscando a cabeça, os bocejos cada vez menos disfarçados. Cada vez que fechava os olhos demorava mais para abrir e, quando abria, todos continuavam ali como numa fotografia. A lua já tinha cruzado a janela e a reunião varava séculos:
— O feudalismo, companheiro. . .
— Uma forma avançada de socialismo. . .
— ... pois no estágio atual do capitalismo.. .
Cochilou, acordou com cotovelada de Lena — alguém queria ouvir o companheiro de Paranápolis. Despertamento geral: todos se mexeram olhando para ele.
Sentou cantando uma bituca, acendeu, puxou uma tragada bem comprida, bateu a cinza, fez jeito de falar mas puxou outra tragada.
— Bom. . .
Todos esperavam como jurados. A voz dele saiu como de um menino confessando:
— Acho que não tenho nada pra contar, é outra conjuntura por lá. Tudo é sempre questão de conjuntura, e o importante é a luta do dia-a-dia, certo?
Silêncio.
Padre achou que era hora de autocrítica:
— O companheiro de Paranápolis está dando uma lição na gente, por três razões.
E, depois de explicar as três razões e tirar várias conclusões, parou porque Menina-Velha controlava o tempo, curvada sobre o pulso do relógio. Outros também se autocriticaram, aproveitando para criticar as autocríticas, de modo que logo havia três ou quatro grupos de opinião e Lena achou melhor Ernesto falar da área operária.
— Não cabe agora, companheira — uma voz salvou.
Ele concordou:
— Questão de segurança.
E da participação da burguesia na Revolução, que que o companheiro achava?
— Só como quadros, nunca como classe.
Todos concordaram com as cabeças como galinhas em roda de um cocho, ficaram repensando no silêncio e logo choveram inscrições para falar. Lena apaziguava:
— Calma, gente, ainda estamos na Pré-História da Humanidade. Ele deitou nas almofadas.
Acordou com Lena ajoelhada — Ei, quer ir pra cama?
— Hum hum.
— Então vai, eu durmo aqui no tapete.
Ele olhou em volta. Estavam sozinhos.
Foi lavar a cara e ouviu que ela botava baixinho uma música romântica. Voltou sem camisa, cinto desafivelado.
Ela estava nas almofadas, abriu um novo maço de cigarros, ofereceu um e ele acendeu no dela, quase testa com testa. Ela ficou olhando a brasa:
— O pessoal fala demais, né. . .
— Pois é — ele se acomodou — na prática a teoria é diferente.
Ela olhou com olhos bem abertos:
— Um dia você me conta como é na área operária.
— Conto já — e deitou ao lado dela.
Tocou num cotovelo gordinho e áspero, deixou a mão ali, esquecida e eletrizada. Mexeu um dedo, o braço dela arrepiou, ele foi alisando de leve até o ombrc. O pescoço. Ela olhava a janela, sem respirar.
— Você é carinhoso — sussurrou.
— E você é linda.
Dez minutos depois ela sussurrou que era virgem mas ele continuou abrindo o zíper. Um minuto depois ela estava de calcinha e ele levantou depressa, apagou a luz e deitou beijando aqueles peitinhos e chutando fora os sapatos. Ela repetiu — Sou virgem, ouviu?
— Tudo tem uma primeira vez.
— Por isso mesmo, só posso decidir depois do congresso.
Ele levou a mão dela lá embaixo:
— Sente a conjuntura.
Desceu o zíper, ela enfiou a mão, pegou.
— Estou sentindo. Mas a gente dá um jeito.
E começou a dar um jeito.
— É grande!
— Usa as duas mãos.
Guevara olhava.
— Dá um beijinho — ele pediu.
— Cadê tua boca?
— Na boca não. Aqui.
Guevara olhava.
— Aí não.
Nem daria tempo — ele já esguichava e ela admirou:
— Agora sei por que você come tanto.
— Você ainda não viu nada.
Ouviram discos até o vizinho bater na parede, aí ficaram se alisando no silêncio — e logo ela teve que dar um jeito de novo. Depois foram até a geladeira e, tremendo pelados na cozinha fria, acabaram com o leite, o pão e a manteiga. Foram deitar e a cama tinha o cheiro dela, era estreita e tinham de dormir abraçados.
Lá pelas tantas, ela teve que dar um jeito de novo.
Amanhecendo, acabaram o pacote de bolacha enquanto ela fazia café. Tomaram café quietos, a qualquer momento tocaria a campainha — e, na luz do dia, ela tinha virado outra, ele não tinha mais nada a falar, estavam mal-dormidos — mas de repente ela abriu a janela:
— Bom dia, mundo!
Ele bocejou — Eu preferia dormir mais.
Logo passou um sujeito:
— O esquema furou, passo de noitinha. E levem cigarro pelo amor de Deus.
Tinha olheiras e barba de dias.
Eles repetiam discos, a manhã se arrastava — até que ele fechou a cortina e a sala quase anoiteceu.
Logo estava de novo em cima dela, e ela repetia que só depois do congresso. Ele fez que desistia, deitou de lado e foi se chegando devagarinho, fazendo ela virar e abraçando por trás. Ela foi deixando, até ficar de bruços com ele por cima — mas de repente virou depressa:
— Aí não.
Ele afastou sem falar nada. Passou tempo, ela ralou doce:
— Que é que você tem?
Ele grunhiu:
— Nada.
— Quem nada é peixe. Fala.
Ele suspirava, desamarrando a cara conforme ela fazia cafuné — e logo estava de novo por cima dela, com beijinho na orelha e voz sofrida:
— Amanhã a gente pode estar preso, certo?
— Eu sei, eu sei.
— Então?
— Não sei.
Enquanto isso, ele abria caminho com os dedos, devagar mas firme, acariciando e sussurrando — Deixa, deixa — Até que ela afundou a cabeça na almofada
— Então vem.
E ouviu um estalido: a cuspida dele na mão.
À tarde Camisa-Amarela apareceu de camisa branca.
— O esquema furou por causa deles.
— Eles quem? — Lena enfiava as meias com vergonha — Aqueles uns ou aqueles outros?
— Nem sei. Sei que foi sabotagem pura. Passei pra avisar: pego vocês amanhã cedo.
Ernesto não agüentava mais aqueles discos.
— Então vamos pegar um cinema.
Ela achou melhor não — questão de segurança. Botou um disco, tirou.
— Música é a televisão da gente. . . Pura alienação.
Pegou a bolsa — Vamos pro cinema.
Voltaram, dormiram no fim da tarde. De noitinha ele encostou nela e tornou a pedir com aquela voz. Ela deitou de bruços para o sacrifício, e logo gemia cada vez com menos dor.
Depois dormiram, depois ele levantou e se vestiu. Ela resmungou — Onde você vai, bem?
— Comprar cigarro.
Mas na sala pegou a mochila, catou o maço de cigarros dela, saiu e na rua perguntou pela rodoviária. Era longe. Telefonou numa farmácia:
— Tia? Bênção. Sou eu de novo. Continuo aqui mas sem dinheiro pra voltar.
Ouviu a tia declamar mais uma vez que ele precisava tomar jeito na vida, a mãe já tinha telefonado preocupada, ele olhasse bem o que andava fazendo.
— Eu sei, tia. Quero saber se a senhora paga o táxi.
Ouviu mais sermão e desligou. Saiu atrás de táxi.
A Grande Capital acendia e apagava, roncava, fedia, guinchava. Parou numa esquina: O povo unido jamais será vencido.
Espremeu espinha num espelho de bar. O Homem tinha subido da lama para a terra e das quatro patas para os dois pés, até lidar com as mãos e espremer uma espinha: agora ali estava ele no fim da Pré-História da Humanidade e não aparecia táxi.
Apareceu um fusca soltando fumaça lá longe, e veio fumaçando a rua, parou nele.
— Onde você vai? — era o Camisa-Branca.
— Fui comprar umas coisas.
O outro estava com olhos raiados. Apresentou um gaguinho:
— Pra-prazer.
— Ele vai levar vocês até lá — Camisa-Branca deixou a chave na mão do Gaguinho e evaporou. No apartamento, Lena estava enfiando blusa quando entraram.
— O esquema fu-furou de novo. Vocês te-têm de ir já.
Ela enfiou na bolsa um salame e uma lata de goiabada, embrulhou o resto do queijo.
— Estou pronta.
— Le-leva papel higi-giênico que é no mato.
Entraram no fusca, ainda faltava muito para amanhecer e só tinham um farol. Foram cabeceando, o motor gemendo e Gaguinho fumando um atrás do outro. Ernesto se esticou no banco de trás e cochilou ouvindo uma discussão que sempre terminava assim:
— Você é reformista, meu chapa.
— Você é espontaneísta, menina.
— Menina é a mãe. Aliás, a mãe da História é a violência, já disse Marx.
— A História não tem mãe, só filhos. É Lênin quem diz que. . .
E recomeçavam.
Acardou trepidando em estrada de terra. Sentou, viu pastos ao luar. As cercas pareciam parte da paisagem, mas Lena resmungou — Não existe coisa mais nojenta que cerca. Ele olhou melhor, as cercas passavam. Logo, lá no meio da escuridão, apareceram luzes e fogueiras.
— O congresso — Gaguinho apontou com desânimo.
Pegaram uma estradinha, de repente uma lanterna dançou lá na frente. O Gaguinho foi parando, botou a cabeça pra fora:
— So-sou eu.
— Eu que-quem?
Ele xingou já abrindo a porta:
— Ainda tenho de pegar mais três.
O fusca arrancou, Ernesto teve um acesso de tosse na fumaceira, só depois conseguiu olhar em volta. Amanhecia, passavam vultos enrolados em cobertores, outros tiritando em mangas de camisa. Urinou numa cerca, olhando o céu sem estrelas e bocejando. A noite cheirava a chuva, as árvores gotejavam. Quando procurou, Lena tinha sumido.
Andou entre grupos enrolados em sacos. Uma dona agachada roía pão seco, outros se espalhavam deitados com jornais nos pés, em camas de capim ou de folhas no barro. Passou um bando tagarela, ele ouviu que iam tomar banho, foi atrás — acabou num córrego de margem pisoteada. Escorregou, caiu de bunda, teve de vestir a calça amarrotada da mochila. Ficou andando de mão no bolso, chutando pedras, latas e garrafas, enquanto o congresso acordava sem vontade, gente se espreguiçando, cobertores, fogareiros, revistas, óculos e fivelas e — lá longe, a bunda de Lena e sua bolsa com comida.
Ele marchou através do acampamento. Um sujeito passava berrando — Delegação de Goiás, atenção, Goiás! Paraná! Rio Grande! Lena olhava tudo com as pernas abertas, orgulhosa da multidão morro abaixo:
— Vai ser um sucesso! Onde você se enfiou?
— Por aí — ele respondeu lançando uma vista geral
— Quero ver comida pra toda essa gente.
— Tá com fome? — ela enfiou a mão na bolsa. Comeram agachados no capim tosado pelo gado. De repente ele debruçou e mordeu a orelha dela.
— Vão até meio-dia pra abrir a assembléia — ela falou embrulhando devagar o salame.
— A gente podia passear por aí. . .
— Não — ela pensou um pouquinho — mas a gente podia ajudar na segurança. . .
Assim ele foi apresentado ao Chefe da Segurança, que logo quis saber como ele tinha chegado ali.
— Desde o começo.
— Bom — ele engoliu — é que a Palma. . .
O cara se iluminou:
— A Palma? Gente nossa, companheiro.
E apontou uma árvore perdida no pasto:
— Revezem um companheiro lá.
Foram pelo pasto. O sol era um borrão branco no céu, o ar estava úmido.
— Vai chover mais, ele falou por falar.
— Não pode! — ela parou olhando o céu.
— São Pedro tem a linha dele — ele falou continuando e ela foi emburrada atrás, chutando capim molhado.
Chegaram na árvore com as calças molhadas do joelho para baixo. Um sujeito estava sentado numa lata de costas para a árvore e levantou aliviado:
— Pensei que tinham esquecido de mim.
Entregou uma garrucha velha:
— Só tem um cartucho. Se aparecer milico, atira pro ar.
— E daí?
— Só me falaram isso.
Ela pegou a garrucha, sopesou, fez mira num mourão. Ernesto deitou num jornal:
— Vem cá, guerrilheira.
Ela deitou e ele começou a lidar com orelhas e botões. Quando ela já estava com as calças nos pés, ele olhou em volta:
— Não tem água pra me lavar depois: deixa pela frente, deixa.
— Não.
— Daqui a pouco pode chover, acaba o congresso.
— Não pode chover.
— Não vai chover. Vai ser uma maravilha de congresso, vamos comemorar desde já.
Ela resistiu, resistiu até que abriu as pernas, fechou os olhos. Quando ele entrou ela abriu os olhos, de dor, e ele gozou.
— Já?
Ele passou a mão lá embaixo, os dedos voltaram vermelhos.
— Esqueci do papel higiênico.
Quase dormiam abraçados quando ela sussurrou:
— Não ouviu alguma coisa?
— Nada. Sente a conjuntura.
Dali a pouco:
— Eu ouvi alguma coisa.
— Nada não.
Mas ela ergueu a cabeça: os soldados olhavam em círculo, uns já tinham até agachado. Levantaram arrumando as roupas.
— Cadê a garrucha? — ela procurava no capim.
— Tá louca?!
— Cadê?!
Foram cercados por fuzis e ele ergueu os braços ainda desabotoado, as calças desceram. Ela esperneou entre os soldados com a garrucha na mão, ergueu o braço e atirou. Falhou. Um soldado pegou a garrucha, outro deu um safanão e ela começou a marchar até o congresso, ele atrás. Foram apartados a cassetete — Homem pra cá, mulher pra lá — E assim, na última vez em que viu Lena, ela entrava num camburão gritando — Soldados! Nosso crime é só querer justiça! — e levou um safanão mas continuou — Povo unido jamais será vencido!
Ninguém fez coro, o safanão seguinte foi de despe- coçar, ela rolou no camburão, fecharam a porta.
Ernesto ofereceu cigarro dela a um soldado.
— Será que posso telefonar?
Sempre que o esperma entra no óvulo, recomeça toda a Pré-História — em miniatura. O óvulo se divide em duas células, quatro, dezesseis, milhões, enquanto o feto passa por todos os antepassados: molusco, peixe, depois um vertebrado que, lá pelo sétimo mês, está peludo como um macaquinho. Mas. quando nasce, geralmente está pelado — e sai fraco, chorão, um mamífero amigo dos gatos e cachorros, que também nascem sem enxergar e ainda sem saber lutar. Dez anos depois, já sabe — e é o animal mais perigoso do planeta.
Paranápolis, dez anos depois, tem antenas de televisão em todas as casas — e todo dia pichações nos muros.
— Só que agora — diz Zanquetti a Palma no ônibus — a política disputa com o prazer, olha só.
Num muro, uma estrela vermelha ao lado de um caralho. Ela sopra a mecha:
— É moda. (Sopra) Passa.
— Pois o prazer — Zanquetti suspira, joga o cabelo para trás — tomara que nunca passe.
Palma olha bem aquele sujeito ali ao lado, pisca, torna a olhar.
— Nem acredito que Paris te mudou tanto.
Ele encara sussurrando:
— Parei de ser mudado, querida. Agora eu mudei!
E arrebita o nariz olhando para a frente, mas o horizonte é a rodoviária. Descem entre mendigos, famílias pedintes, cambistas, tarados de mão no saco, sitiantes e policiais. Ele suspira:
— O Brasil é isto, e mais o que será.
Suspira, joga os cabelos para trás com a mão do anel, a da pulseira está com a frasqueira. O povo pára para ver a mulher vestida de homem e o homem de tamanco e lenços verde e amarelo no pulso, cinto azul e branco. Ele sente o peso dos olhares, de novo joga os cabelos para trás — e ela passa falando sem olhar:
— Por que você, pelo menos, não perde esse tique?
Ele pára com a mão no quadril e quase berra:
— Por que você ainda é virgem se não quer ser sapatona?
Ela volta bufando — a mecha voa.
— Eu não tenho nada com a tua vida, não enfia o nariz na minha!
Ele olha as unhas.
— Por que não? Desde que voltei estou pra perguntar: por que esse cabelo curtinho? Machona você não é, pelo menos ainda não resolveu ser.
E pisca:
— Até agora.
Ela cata a mala, dispara zunindo as calças, ele vai atrás:
— E por que essas calçonas de brim? Ou assume, machona, ou tira isso senão nunca arranja um bom partido . . .
— Já tenho meu partido — ela vai um passo à frente mas no mesmo passo dele.
— As freiras também têm Cristo, mas morreu faz tempo — e, ao que se saiba, ainda não ressuscitou na cama de ninguém.
Ela troca a mala de mão com um safanão.
— E em Paris? Como foi tua primeira noite com um homem?
Ele pára abrindo os braços:
— Primeira noite?f Querida, não houve uma primeira noite: houve muitas! Uma descoberta hoje, uma revelação amanhã. Levei uma década para descobrir que meu negócio não é homem, mas um determinado tipo de homem — muito feminino, aliás. E agora aqui estou eu em jejum desde Paris, mas não estou tenso como você, querida, porque finalmente sei o que quero!
Ela está com os olhos úmidos: nem ouviu o que ele disse, mas ali está ele de novo falando de braços abertos até ficar na ponta dos pés. Então desaba no ponto-final e ela não segura mais as lágrimas, ele vem de braços abertos e ela também se abre, ficam chorando abraçados enquanto os meninos param o futebol na rua, até um carro buzinar. Então andam sem rumo, abraçados, e não precisam falar nada quando sentam no mesmo bar e até as moscas parecem as mesmas.
— Você não mudou tanto — ela diz depois do primeiro copo.
— Mudei tanto — ele diz entre uma bicada e outra
— que, por isso mesmo, hoje sei o que quero até da politica. Meu partido é nenhum e todos, a Anistia: se eu mesmo mudei tanto, por que não perdoar a todos? Decerto já mudaram tanto também que todos somos outros.
Ela está boquiaberta:
— Anistia pra você é isso?
Ele fala olhando saqueiros que entram:
— Por enquanto. Minha coerência hoje, querida, vai só até a próxima idéia.
Ela estrala os dedos — Zanquetti, presta atenção — e ele pára de olhar os saqueiros de calção.
— Cada musculatura. Me chame de Zank, querida. Não o Zank ou a Zank, apenas Zank.
— Escuta, Zanquetti, nós viemos aqui para a fundação de um Comitê pela Anistia! E anistia, aqui pra nós, não é perdão — é justiça! Qual foi nosso crime?
Quatro ou cinco cervejas depois, ela já fala mole e ele trepa na cadeira para discursar agitando os lenços.
— Perdão para todos, querida! Políticos, milicos, policiais, torturadores. . . saqueiros!
Os saqueiros riem, cobertos de pó de estopa.
— Perdão para o povo, que deixou tudo acontecer como aconteceu. E, depois do perdão, vamos ser outro povo, outra vida, outro eu, outro você. Renascer, querida, renascer!
Até as moscas pararam no bar, os saqueiros riem muito e ele entra na roda.
— Muito prazer, desculpem, muito prazer. Me diz uma coisa você que parece o mais machão de todos: se um filho teu começa a desmunhecar, o que você faz? Condena? Mas não é o mesmo que condenar a você mesmo como pai?
O saqueiro ri sem jeito, coça a cabeça — e Palma passa com a mala — Estou indo. Vamos?
Ele sai jogando beijos, tropeça no meio-fio, o trânsito pára para ele passar agitando os lenços e falando sem parar:
— Tropeçar é uma das piores coisas da vida, mas cair é pior. Uma vez escorreguei no gelo e caí numa poça d’água em Amsterdã. Só tinha aquela calça. O pano endureceu de tão gelado. O pé só não congelou porque um travesti fez uma fogueira de caixote num beco, deu até pra secar o sapato. Depois tomei sopa no porão de um anarquista, dormi num sótão com um comunista e só vi comida de novo na noite seguinte no apê duma cantora. Um almoço aqui hoje, uma janta lá amanhã — lavando depois toda a louça duma semana. Você já tirou fruta do lixo alguma vez na vida? Você julga muito, querida, porque ainda não se fodeu bastante.
Ele desvia de formigas e pedrinhas, ela vai em frente.
— Pois te garanto — a voz dela vem de dentro — que sou feliz. Você é?
Ele pára abrindo os braços — Quem não é, se não quiser? — mas ela continua em frente, ele dá uma corridinha.
— Sou feliz — ela diz balançando a cabeça, cada palavra é uma descoberta: — Por que não sou feliz?
Enumera nos dedos, enquanto ele vai cantarolando atrás:
— Tenho saúde!
— E o humor?
— Tenho meu trabalho.
— Os carrascos também.
— Não dou satisfação a ninguém.
— Que pensa?
— Deito a cabeça leve no travesseiro: tenho meu partido, uma vida política...
— Pois você devia ter também — ele pára de cantarolar — uma vida prolífica, querida. Uma mãe, uma mulher, um monstro, algum ser vivo tem de sair dessa rocha! Já pensou num amante? Por falar nisto, não tinha aqui uns terrenos baldios? Pensar que, quando menino, nunca aceitei convite para ir no matinho. . . !
Estão diante de centenas de casas iguais enfileiradas. Ele pasma:
— De onde surgiu isso?
— Do campo — ela recita: — Êxodo rural, devido ao modelo político-econômico.
— Que ótimo! — ele abre os braços — Um bairro novinho em folha onde antes era pasto. Em dez anos, meu Deus: é uma revolução!
Palma senta na mala, os braços doloridos.
— Você está ficando louco: se isso é revolução, esta mala é uma motocicleta.
— Quem dera. Mas nem tudo está perdido: você está ficando de bom humor, querida. Não se preocupe com mais nada: a Revolução é toda mudança, sempre, nada mais, e chega! Onde é que estamos indo?
Andam perdidos. Ela caça nos bolsos o endereço.
— Agora temos hotel. E tem um deputado esperando a gente.
— Lembro um Congresso da Anistia, em Bonn: o hotel tinha um corredor tão comprido que, de noite, a gente ouvia até três portas batendo ao mesmo tempo. De manhã o telefone não parava antes do café. Não apareceu aí uma calcinha com nome bordado? Que nome? Bob. Não, tem uma cueca. Dessas de homem mesmo, antiga? Não, uma igual calcinha. Pode ser a minha. Bob é você? Não, é uma amiga minha. Menina, se naquele congresso tivesse torturadores, a gente transava até com eles!
— O hotel é nesta rua mesmo — ela acha o endereço no maço com o último cigarro e ele pega a mala — Minha vez, querida. Como é o nome?
— Novo Hotel.
— Então, querida — ele diz baixinho — vamos entrar. Acho que estamos em frente.
O deputado está no saguão, vem com abraços, careca lustrosa, temo brilhante, anel de rubi, sapato espe- lhante, olhar mais que ligeiro. Na primeira oportunidade Zank sussurra a Palma:
— Menina, esse malandro é deputado? Este país mudou!
— Você ainda não viu nada.
— Vi como ele te mediu a bunda já umas três vezes.
O deputado volta com uísques, tapinhas nas costas, mãozinha no ombro.
— A gente estava comentando, deputado — Zank zás-trás, desabraça do homem — como é importante ter gente com sua experiência na oposição: a malandragem popular — no poder!
Palma vira o copo, engasga, pega o de Zank.
— Cuidado, querida. Temos uma reunião pela frente.
— Pode deixar — o deputado abraça Palma e ela endurece — eu cuido dela.
Palma vira o copo.
— Não é fácil me derrubar. Que hora a madame chega?
Ela vai telefonar, o deputado fica olhando e pensa alto:
— Que cu!
— Você ainda não viu nada. Essa mulher na cama é um furacão: faladíssima!
Os olhos do deputado ficam miudinhos:
— Não me diga!
Palma volta e avermelha quando o deputado abraça os dois, a mão boba no seio dela.
— Mais um uísque, minha filha?
— O avião dela está chegando agora.
— Aliás, querida — Zank põe na mão dela o copo do deputado — por que ônibus para nós e para ela avião?
— Porque ela — Palma fala mole — é uma grande dama da política. Uma estrela, e eu sou uma obreira, uma formiga. Você é uma galinha colorida.
— Pois esta noite, querida — Zank joga os cabelos — garanto que também vou ser estrela.
Nessa hora, um homem chega ao apartamento. Amarra o saco de lixo, joga na lixeira, tira os sapatos, vê televisão. Vai à janela, passa o avião da Capital. Acende um cigarro, deita no sofá, olha o noticiário. De repente senta: o repórter apresenta no aeroporto uma mulher que ele olha, pisca, olha de novo:
— É ela!
Ele calça os sapatos, olha o relógio, sai depressa.
Oito em ponto fica claro que o atraso vai ser de hora: quase ninguém chegou e quem chegou ainda não sentou. As rodinhas falam da mesma pessoa:
— Ela sai candidata com certeza! E ganha!
— Entre os jovens ela praticamente encarna a Anistia.
— As mães também confiam muito nela: com velha- rada, tudo é questão de confiança.
— Mas é demagogia ela levar o filho nas reuniões. Aquele moleque é um capeta!
Palma e Zank sentam na platéia. Dedos apontam:
— Também vieram aqueles dois, e eu tenho olho clínico: sapatão e bicha.
— Qual o imbecil que não vê?
O deputado senta ao lado de Palma, ela fala enrolando:
— Será que a madame ainda demora?
— Ela chegando — deputado olha o relógio de ouro
— vão nos chamar para a mesa-de-honra, de modo que. . . Vamos combinar já tomar mais uns e outros depois?
Ela vira a cabeça devagar, mole, encara de olhar parado:
— Topo.
Já chegou bastante gente. De repente Zank respira como quem vai mergulhar, levanta num pulo:
— Vamos começar!
E atravessa o salão, sobe no tablado, senta à mesa entre corbelhas de flores. Põe uma na lapela. Burburinho. Ele abre a bolsa, tira outra bolsa, dela tira uma bolsinha e daí um relógio. Quem estava de pé vai sentando. Ele pega o microfone, esvoaçando os lenços.
— Já que ninguém se atreve mas o tempo não espera, vou começar pedindo a graça de Deus e que todos os anjos digam amém, negócio seguinte: uma das coisas que nunca me deu saudade do Brasil é essa mania de não respeitar horário. Então vou aproveitar para falar a vocês agora, antes que formem aqui a tal mesa de honra, imaginem se a esta altura da vida vou ter honra. E para que formalidades? Em política, toda forma é sempre começo de uma estrutura e, portanto, opressão. E Anistia é também liberdade, não?
Todos já sentaram, os cochichos vão morrendo.
— Que tal contar um pouco da minha experiência na Anistia Internacional? Como você sabem, anistia é igual briga de casal: só se fala em perdão depois de quebrar uns pratos. E, aqui entre nós. . .
Alguém cutuca Palma, o joelho do deputado desgruda do dela.
— Ele começou a reunião sozinho! Que é que fazemos?
Palma sorri mole:
— É a Revolução!. . .
E faz um gesto que o deputado não perde: seja o que Deus quiser.
Ele encosta o joelho. Ela soluça e se pergunta:
— Deus?!
Quando Lena chega, as moscas nem se atrevem a voar: todos ouvem num tal silêncio que ela pára na porta, vai entrando devagar, encosta numa parede entre gente em pé lá atrás. Zank fala fazendo com as mãos um teatrinho de lenços:
— O marido está sempre botando a culpa na mulher, a mulher botando a culpa no marido. O fato é que, nessa altura, o casamento está em crise: ou vai ou racha. Para continuar, é preciso um novo contrato de direitos e deveres, escrito pela experiência e pela compreensão. Mas uma nação não é um casal. Se acabar o casamento entre civis e militares, que é que vamos fazer com eles? Jogar no mar? A mãe com um filho comunista e outro policial vai torcer por um e delatar o outro ou vice-versa?
Os lenços se agridem, se enlaçam.
— Anistia, gente, é perdão para o renascimento, e isso só depende do coração. Que tal agora a gente cantar um samba?
Lena fica lá no fundo, de repente roendo as unhas. Tira cigarro, aparece isqueiro aceso:
— Boa noite. Lena?
Ela reconheceria essa voz até em outra vida, e ali está ele.
— Ernesto?
— Meu nome mesmo — ele engasga — é Jeremias. Jerê.
Ela olha bem no fundo dele:
— Você ainda usa cueca samba-canção?
Mas lá no fundo não faísca nenhuma malícia, o olhar dele agora tem a paz do sofrimento. Apareceu um violão e todos agora cantam um samba. As mães dos exilados mão sabem a letra mas batem palmas chorando, Zank agita os lenços e o deputado acena como em comício; Palma sussurra — É a Revolução...
Jerê toca Lena — Só pra ver se é mesmo verdade.
Ele sorri e ela vê, maltratado mas ainda vivo, o menino nele.
— Nem acreditei quando te vi na televisão. Você ficou famosa!
— Só continuei o que fazia naquele tempo: me meter na vida dos outros.
— Ficou presa quanto tempo?
— Daquela vez? — Ela ri — Saí antes de você, menos de uma semana. Depois fui presa várias vezes, mas não tenho do que lamentar: estou viva. Vamos a um bar?
Dão as costas aos aplausos, saem sem saber o que fazer das mãos. No bar, ele aproveita bem a claridade: ela virou uma mulher quase bonita. Os cabelos são outros! E emagreceu aqui, arredondou ali, ele não consegue segurar:
— O tempo fez um bom serviço em você.
Ela cutuca a barriguinha dele:
— Cerveja?
— . . . e trabalho: oito horas sentado todo dia.
— Pare com o açúcar.
— Minha ex-mulher adorava doce.
— Quantos filhos?
— Nenhum.
Ele pega um brilho no olhar dela.
— E você ainda tem espinhas.
— Cada vez menos. Demorou, mas vou amadurecendo.
— Não me olhe assim.
— Assim como?
— Como se me comesse. Mas acho que estou vendo demais.
Cada dedo que mexe diz coisas, cada olhar quando encontra o olhar do outro — até ele encostar o dedo na mão dela. Prendam a respiração.
— Por que você não se exilou?
Ela solta a respiração, relaxa e começa a falar, fala, fala, ergue um muro de palavras. Ele estica o braço através do muro, pega a mão dela e olha nos olhos:
— Você não se exilou porque tem coragem, sempre teve.
Ela está com a mão dura e fria.
— Coragem? Aquele bicha lá apanhou mais que vira-lata em velório, uma semana inteira. Uma noite foi jogado na cela e nem conseguia se arrastar. Mal amanheceu, começou a cantar.
Ele aperta, a mão dela está esquentando.
— Estão dizendo que você vai ser deputada.
Ela olha o relógio, levanta.
— Vou é já para a reunião.
Quando entram, Zank aponta e todos olham para trás, ele pára e ela avança acenando entre aplausos.
— Até logo, deputada — ele fala entredentes.
— Por favor — Palma sopra ao deputado: ele esfrega a perna na dela por baixo da mesa-de-honra.
— A toalha vai até o chão — o deputado sussurra sorrindo para a platéia — e agarra o joelho dela.
Lena sobe os degraus do tablado, pega o microfone e, de pé, encara aquele homem lá no fundo.
— Gente, o amor é a mais antiga invenção humana. Não vim ensinar ninguém a lutar, cada um tem suas forças e cada gente tem seu jeito. Vim só trazer confiança: querendo, vamos conseguir. Ontem visitei um dos nossos presos, ele duvidou — Será? Mas por que não seria assim? Nosso crime foi só ser brasileiros, nosso prêmio será ser civilização — a partir da Anistia!
Aplaudem. Quando ela deixa o microfone, os aplausos demoram enquanto alguns já começam a sair. Então corre um murmúrio: policiais à paisana estão tirando fotos. Zank pega o microfone.
— Gente, parece que por hoje é isso. Se não for pedir demais aos policiais em serviço, vamos cantar o Hino Nacional.
Todos ficam de pé, o policial pára com a máquina no peito e a mão no coração. O olhar de Lena acha o olhar de Jerê.
Depois do hino muitos saem depressa, muitos rodeiam Zank e Lena, Jerê fuma um cigarro depois do outro. Saem numa noite estrelada e ele pega a mão dela.
Na pizzaria, Zank fica quieto num canto. Por baixo da mesa, a mão do deputado está no joelho de Palma — e sobe — de leve, enquanto ela prende a respiração fechando os olhos e ele sussurra disfarçando com o guardanapo:
— Pedaço de pecado.
Ela abre os olhos, respira fundo:
— Quero café sem açúcar. Não sei se agüento ir até o hotel.
— Eu te levo — a mão do deputado aperta o joelho, sobe coxa acima até os primeiros pêlos.
— Aí não — ela sussurra.
— Aqui não, claro — ele tosse, pigarreia — mas deixa aberta a porta do quarto.
Ela engole o café. Lá embaixo a mão sobe e desce. Um pelinho fica repuxado. Ela se mexe para ajeitar o pelinho, depois continua esfregando as coxas. A mão sobe, um dedo já calcinha adentro.
— Não — num fio de voz tão fino que nem ela escuta, enquanto mais um dedo entra.
Os dedos em tesoura vão afastando os pêlos.
Ninguém está olhando. Zank saiu da fossa diretamente para as estrelas: está contando casos de Paris e riem até nas mesas vizinhas.
Palma fecha os olhos, cerra os dentes.
Os dedos afastam os últimos pêlos e abrem os grandes lábios.
Palma fecha as mãos.
Os dedos vão entrando, param. Cutucam.
O cigarro está inteiro no cinzeiro, mas o deputado acende outro. Palma continua uma pedra, as coxas apertadas. Ele se debruça para pegar o pão e cochichar:
— Então essa menina é virgem. . . E vai ganhar um perfume, sabia? Pode aguardar que eu mesmo levo ao seu quarto.
Palma pede um uísque.
— Duplo.
Agora são dois cigarros inteiros no cinzeiro. Lá embaixo a mão sobe de novo. Ele pega o pão de novo:
— Abre as pernas, menina.
E ela abre.
Noutra mesa, Jerê e Lena juntam cabeças.
— Te procurei, mas ninguém sabia teu nome verdadeiro. Esperei você aparecer no apartamento.
Ele olha através dela:
— Eu não queria perder prova de Matemática. Nem pensei em você.
Ela arma um sorriso sábio, de tão amargo e repetido, e afasta de leve a cabeça. Ele nem percebe — continua lembrando:
— Um dia, lembrei. Depois lembrei mais, comecei a comparar você com toda mulher que conhecia.
O sorriso dela abre de novo, o olhar brilha.
— Acabei o curso, o diploma me serviu menos que a amizade de meu pai com o quitandeiro: o genro dele era gerente de banco, fui ser bancário. Não sabia somar dois mais dois, mas pra toda situação eu tinha uma saída — Calma, gente, ainda estamos na Pré-História da Humanidade. Acabei gerente.
Ela ri. Ele olha ali, bem ali, ela.
Estende a mão, pega pela nuca e puxa, ela vem de olhos fechados.
O garçom:
— Aqui que pediram um duplo?
Ela alisa os braços dele, os pêlos arrepiam.
— Então você comparava todas comigo. . .
— Até casar. Aí te esqueci.
— Ela ganhou na comparação?
— Não sei: eu mal te conheci!
Aperta e beija as mãos dela.
— Já é hora de conhecer melhor, não acha?
— Arrepiei inteirinha. Que é que sua mulher acha?
Ele beija agora o ombro.
— Descasei.
Ela dá um gole, fala olhando um ponto perdido e a voz sai do fundo, longe como num sonho:
— No meu hotel ou num motel?
Ela mesma responde:
— Motel. Não quero ficar falada.
— Vai mesmo ser deputada?
Ela pega a bolsa, comanda:
— Saio primeiro, depois você sai de fininho.
Ela sai, ele derruba uma cadeira, esbarra numa mesa e, lá fora, ela vacila:
— Não sei se devia. Amanhã cedo o pessoal...
Ele espera com a porta do carro aberta, cigarro na boca.
— Amanhã é outro dia. Tem fogo?
Ela remexe na bolsa. O isqueiro é uma garruchinha, ela pega e fica olhando.
— Lembra?
Ela balança a cabeça, o olhar perdido de novo.
— Nunca mais ninguém me levou pro mato. . .
Ele liga o carro, ela entra. Ele muda de marcha, pega no joelho dela.
— Me sinto uma puta — ela sobe as unhas pela coxa dele.
— Ótimo. Eu me sinto um cafajeste: um belo par.
E se abraçam, ele guiando com uma mão e ela deitando a cabeça no peito dele.
— Estou ouvindo teu coração.
Passam pelas últimas casas, estão na rodovia. Ela olha as estrelas.
— Você não gosta de política, não é?
— Preparei uma resposta durante anos: para mim, a vida é perfeita porque é assim.
Ela sorri maternal:
— Será?
— Se acredito, é. Não me importa se continuamos um país capitalista sem capital ou se devemos ser socialistas bem ou mal. Tudo é o que tem de ser, e, enquanto isso, estamos aí. A maioria das pessoas pensa assim, e não estão nem certos nem errados: estão sendo o que são, só isso.
Pega a mão dela e põe no meio das pernas.
— Ainda se sentindo puta?
Ela afasta um pouco, olha aquele homem dirigindo um carro numa estrada escura.
— Tudo é o que tem de ser — sussurra debruçando e abraçando as coxas dele.
Abre o zíper.
Ele roda quase parando.
— Não tem um matinho por aí? — é a última coisa que ela fala.
Ele entra numa estrada de terra e pára depois da primeira curva. Faz uma lua tão cheia que ele vê as veias brilhando de saliva, ela chupando e ronronando.
— Gata.
De repente ela salta fora do carro.
— No mato, vem!
Depois, no motel, deitam abraçados vendo televisão e passa passeata de operários.
— Você parou com política logo depois da prisão?
Ele acende um cigarro antes de responder:
— Nunca lidei com política, conversei com operário só em bar e o assunto era sempre futebol. Nem sei por que me enfiei naquele congresso.
Beijo na orelha, unhas descendo pela barriga.
— Tudo não é o que tem de ser?
Biquinho endurecendo, a língua rodando a orelha, as unhas nos pêlos.
— Não me arrependo.
A língua, os lábios, os dentes, as unhas e os dedos, a língua, os grandes lábios, a boca cheia, os bicos durinhos, a bunda se abrindo e de repente ela fica de quatro:
— Você ainda gosta por trás?
Ele tem de engolir duas vezes antes de gaguejar:
— Por trás, você foi a primeira e última.
Ela se empina nas mãos e joelhos:
— Quer ou não quer?
Ele avança.
— Quero você. Como, tanto faz.
Depois ela faz cafuné e ele dorme.
Ela desliga a televisão, agacha ao lado da cama e fica olhando. Ele ronca. Ela apaga o abajur, deita e fica ouvindo o ronco quase até amanhecer. Então, quase dormindo, sussurra no ouvido dele:
— Meu bem.
Amanhece e ele acorda com cotovelo na costela: ela deu a primeira virada no sono. Até o sol bater nas paredes ele fica olhando para ela, depois beija a orelha:
— Meu bem.
Então ela começa a roncar e tocam as sirenes das fábricas. Ela acorda sacudida.
— Você não tinha de acordar às oito?
O sol já está alto quando Palma desce para o café. Zank não acredita:
— Você de saia!
Ela derrama café na toalha.
— Presente de mãe. Resolvi vestir hoje.
Ele suspira, cheira:
— Perfumada!
O deputado aparece, ela derrama o leite.
— Bom-dia, bom-dia — o deputado senta e Palma levanta para pegar suco. Zank aproveita:
— Podia ter sido um bom-dia só, deputado, mas. . . me diga: confirmou a fama da moça?
O deputado segue Palma com o olhar e um sorriso:
— Uma graça de menina. Entusiasmante — e eu preciso mesmo de um assessor político. Por que não assessora? Mais de acordo com os novos tempos, feminismo, você sabe, eu sou a favor das mulheres.
— E eu a favor também dos homens — Zank vê Lena passando pelo saguão, chama e ela vem bocejando.
— Chegando agora, querida? Vamos ou não vamos às visitas?
A roupa dela tem picões e folhas secas.
— Que isso, querida? Perdida no mato?
Ela sorri pegando uma torrada, e o sorriso continua até a xícara chegar à boca. Então começa a comer com uma fome quase espalhafatosa. Come até todos ficarem de boca aberta, aí arrota.
— Desculpem. Às vezes dá uma fome, não dá?
— Aproveite, querida. Nunca se sabe o dia de amanhã.
Ela espanta o sono batendo palmas e dando um pulinho:
— E vamos às visitas! É só trocar de roupa.
Zank e o deputado ficam olhando as duas à espera do elevador.
— Você estava muito mal informado — o deputado sorri: a moça não tem experiência, mas eu gosto mesmo é de ensinar.
— A primeira lição foi muito boa, deputado: é a primeira vez que vejo essas duas conversando como duas mulheres.
— E antes que me esqueça, alma — Lena fala com a voz mais casual — vai um amigo meu junto com a gente.
— Um amigo? Achou no mato?
— É á Manhã das Perguntas?
Estão rindo quando o elevador sobe.
— Anistia é — diz o deputado — condição sine qua non. . .
— Non, deputado — Zank suspira — é apenas um estado de espírito. Como o amor.
A primeira visita é a um ex-estudante torturado. Tocam a campainha, esperam. Nada. Tocam. Nada. Estão voltando ao elevador, a porta abre um dedo.
— Quem é?
Um olho miúdo na fresta. Uma corrente em cima, outra embaixo.
— Quem é?
Lena explica que são da Anistia, uma visita sem compromisso. A porta abre mais um dedo, o olhinho pisca na penumbra: o apartamento está de janelas fechadas e luzes apagadas. A porta abre mais, as correntes estiram.
— Anistia? Tem identidade?
Quando conseguem entrar, o sujeito pede desculpa pelos roupas espalhadas — A faxineira vem só uma vez por mês, e faltou o mês passado — e bota um rock no último volume. Eles ficam olhando enquanto ele fecha os olhos tocando guitarra de mãos vazias. Termina a música ele abre os olhos e fala, ninguém entende, ele baixa o som.
— Fiquem à vontade.
Começa outro rock e ele bota no último volume.
A segunda visita é a um velho ex-exilado:
— Passei pela tortura da saudade.
Tem idade para ser avô de todos e pai do deputado, mas se engraça com alma:
— Já vão? Você não vai: precisa me falar mais de anistia.
Zank suspira:
— Não torture a pobre moça. O dever ou o prazer? Isso dava uma novela.
A última visita é a um casal de velhos. O neto saiu um dia para voltar no outro e nunca mais.
— O Governo diz que ele morreu. Jornal diz que mataram. Que diferença faz?
A velha estava limpando frango quando eles chegaram. Lavou as mãos depressa, enxugou no avental. Apertou mão de todo mundo, pegou a aliança ao pé do pingüim em cima da geladeira, enfiou no dedo, rosqueou, então ficou completa. Acalmou, parou de puxar cadeiras e dizer para ficarem à vontade, sentou e, sem ninguém pedir ou perguntar, começa a contar.
Ele era um bom menino, só que gostava demais de ler, lia até jornad de embrulho, leu quase todos os livros da biblioteca pública. Dizem que juntou muita barata lá, por causa dos farelos de tanto sanduíche que ele levava pra não vir almoçar. E antes dos dez anos já discutia com o pastor e o padre, e na escola com os professores. Um dia a diretora chamou: era preciso dar um jeito naquele rapazinho; estava ficando insuportável. Então ela passou dias, semanas com aquela agulha espetada no peito, sangrando um pouquinho cada vez que pensava — Que vai ser dele?
Então ele perguntou um dia — Que tristeza é essa, Vó? — e ela falou que era uma dor. — Que dor, Vó?
— dor de saber que criei um neto insuportável pra tanta gente. Por que você faz tanta pergunta, menino, por que discute com todo mundo? — Não sei, Vó — ele respondeu de coração — mas sei que sou assim: deixa eu ser eu, Vó.
E ela resolveu deixar. O velho acha que estavam dando corda demais — A gente tem de segurar esse rapaz — mas quem segurava?
Agora ela está ali, viva, já sem força até para matar direito um frango, mas viva, e um menino como aquele, com a vida toda pela frente, morto — ela pensa falando, o olhar no tapete de remendos.
— Um dia, depois de tanto a gente pedir — ela olha para o velho, ele concorda —? mandaram uma caixa cheia de osso e um pouco de cabelo.
O velho respira forte, ela continua:
— Não era cabelo dele, até a cor era muito diferente. Mas a gente pensou — ela rosqueia a aliança — se não é dele, é de algum companheiro dele, então é tudo a mesma coisa, não é a mesma coisa?
O velho fala devagar, palavra por palavra:
— Tudo mesma coisa.
— Tudo — Jerê repete e todos engolem.
Depois a velha faz café, o cheiro enche a casa.
— Café torrado em casa e moído na hora, do jeito que ele gostava.
Zank sopra a xícara.
— Ele — sopra — gostava de ver a senhora triste?
Ela olha a porta com olhos úmidos. Ligam um rádio alto no vizinho. Zank abre os braços:
— A senhora quer dançar?
Ela sorri, ele abraça, ela quer fugir para o quarto, Lena não deixa, acabam dançando e chorando abraçados. Palma bate palmas no ritmo, o deputado passa o braço pelos ombros dela. A velha até que não dança mal, o velho reconhece — e abre um garrafão de vinho.
— O senhor não sente ciúme? — Jerê pergunta e Lena cutuca:
— Que pergunta!
— Pois então olhe só.
O velho toma dois copos, afasta Zank e dança com a velha.
O garrafão está pela metade quando Jerê olha o relógio:
— O banco.. .
Lena mexe na bolsa:
— Tem meu telefone? Me diga o seu.
— Vai embora hoje mesmo?
— No avião da noite.
— Adia — ele pede com aquela voz de antigamente.
— Não — mas o olhar diz sim.
Ele pede de novo olhando nos olhos:
— Adia.
— Só mais um dia.
— A gente só vive um dia de cada vez. Janta no meu apartamento?
Ele faz rosbife e pudim, mas ela não come mais carne nem açúcar.
— Você também devia evitar — ela diz cravando as unhas na barriga dele — notou que suas camisas estão justinhas?
Ele salta da cadeira:
— Gordinho mas muito ágil, você sabe disso.
Vira o disco e dança tirando ovos da geladeira.
— Você era tão magrinho — ela pensa olhando o prato vazio — e eu, que era gordinha, emagreci tanto.
— O tempo é um pássaro — ele canta — de natureza vaga.
Não falam mais nada enquanto ele cozinha, só a música continua repetindo — o tempo é um pássaro de natureza vaga — até ele pousar na mesa a frigideira chiando estufada de omelete.
— Magreza? Desânimo? Indecisão? A senhora precisa de um homem de camisa justa e costas largas! Precisa de confiança e isso vem da segurança. A senhora precisa de alguém como Jeremias Xavier dos Reis.
— Que nome horrível. Você cozinha bem.
— Tive de aprender: o que a gente mais sabe é o que aprendemos sem querer.
— Eu ainda nem sei fritar direito um ovo.
— Eu sei fazer todo tipo de carne — ele serve mais vinho — e massas em geral. Com receita, faço qualquer prato.
Ela começa a rir, engasga. Tapas nas costas, prato quebrado, água.
— Do que você riu?
Ela ainda está engasgada, olhos vermelhos.
— Fui ao aeroporto antes de vir aqui. Quase embarquei.
— Uma vez também quase fugi de você.
— Se tivesse mais um lugar no avião, eu tinha ido.
Ele sorri:
— Se o imprevisto não acontecesse sempre, não tinha nenhuma graça a vida.
Ela sorri:
— O imprevisto ou o inevitável?
Beijam com gosto de omelete. Logo estão no tapete e, depois que a luz cruzou toda a janela, a segunda garrafa rola e falam com sono:
— Sabe o que eu estava pensando?
— Que amanhã nunca chegasse.
— Como é que você sabe?
Então não falam mais nada, dormem abraçados.
— Desculpa por ontem à noite — ela diz de manhã
— acho que falei muita besteira. Coisa de menina.
— Eu também — ele diz enfiando a calça muito justa — me senti muito menino. Mas você tem razão: vou emagrecer.
— Tem meu telefone?
Ele espera um mês para ligar. Ela atende ao primeiro toque.
— Alô. Lena.
— Estava esperando chamada?
— Estou de saída. Quem é?
— Eu.
— Onde você está?
— Aqui. E aí? Está de saída?
— Estou. Estava.
— Vai mesmo ser deputada?
Ela senta.
— Alô. Taí? Hem?
— Estou.
— Então, vai mesmo ser deputada?
Ele ouve o canarinho dela, ela ouve o relógio-cuco dele.
— Eu estava indo a uma reunião — ela suspira — para resolver se saio candidata.
— E daí?
— Daí — ela aperta a cabeça — não sei. Não sei!
Ele tosse, ela suspira fundo.
— Escuta — ele engrossa a voz — de avião estou aí às nove.
Às nove ela está no aeroporto. Quando ele abre os braços ela se joga:
— Você veio mesmo!
Abraça e recua assustada:
— Você. . . emagreceu!
Ele faz aquela voz:
— Fiquei ainda mais ágil. . .
No carro ele pergunta depois do mais comprido beijo deles:
— Você foi torturada?
— Não, mas agüentei muita reunião torturante.
Ele dirige relaxado.
— Como você consegue? Eu dirijo aqui há anos e me apavora!
— Uma deputada como você vai precisar de um motorista como Jeremias Xavier dos Reis. Vamos conhecer o seu apartamento?
— Já conheço. Vamos à reunião que já atrasei duas horas.
— Então resolveu ser deputada.
— Não sei.
Ele pára o carro e encara.
— Se não, por que ir à reunião? Jogue tudo para o ar, não se preocupe com mais nada e pronto.
Ela suspira.
— Eu devia fazer isso. Política é o esgoto da frustração humana.
— Claro. Vá em frente. Jogue tudo para o ar. Que tal a gente tomar um porre?
É um homem calmamente furioso falando com ela, é de arregalar os olhos.
— Certo? Tomamos um porre e amanhã você telefona dando qualquer desculpa, aí pensa o que vai fazer da vida. O que você sabe fazer além de política?
Caem folhas no pára-brisa, ela olha muito tempo as folhas ao vento, sussurra empinando o nariz:
— Você sabe muito bem o que sei fazer — e olha para a frente.
Ele dá partida.
— Aonde, deputada?
— Em frente, Jeremias.
A cidade pisca em todos os horizontes.
— Jeremias.
— Pois não.
— Apenas uma coisa: nada de papéis, pelo menos por um tempo.
— Tenho a vida inteira, deputada.
Ela ri.
— Estou comprando um homem com um emprego público: isto é corrupção.
— Não. É a vida, minha queri. . . deputada.
— Certo, Jeremias. Vamos à reunião, depois ao apartamento.
— Sim senhora. Quero muito conhecer minhas acomodações.
— E meu filho — ela diz tão baixo que ele decerto nem ouviu.
Mas quando ela gira a maçaneta ele pergunta filho de quem. Ela não responde, acende a luz e apresenta a sala:
— Por enquanto, e isso ai. Quando for deputada, melhora.
— Vou votar na senhora.
Ela vai ao quarto do menino, quando volta ele já está na cama dela.
— Ele está dormindo bem. Que vai pensar de você dormir aqui?
— Vai se acostumar. Sabe que já fui apaixonado por tua bunda?
— Paixões passam.
— Estou ficando apaixonado pelos teus seios — ele abre a blusa e beija os biquinhos.
— Eram muito mais bonitos antes de eu ter filho.
— Se a gente pudesse voltar no tempo — ele sussurra — agora nunca existia.
Toca o telefone.
— Alô. Lena. Zank?
Logo ela está rindo e falando pelos cotovelos, enquanto ele abre botões. Quando ela desliga, está só de meias.
Depois, quando passa o avião ela lembra:
— Zank está voltando a Paris, quer estar perto das bombas quando a Terceira Guerra começar. E sabe quem vai também ser assessora de deputado? A Palma.
Mas ele já está dormindo.
Nem bem amanheceu o menino pula na cama e assusta com ele.
— Quem é, mãe?
Ele olha o menino, esfrega os olhos:
— É a minha cara!
— Pois é — ela pega o telefone — achei melhor você saber assim. Você é pai dele. Meu filho, este é seu pai.
Disca.
— Alô. Acorda, gente, não temos tempo a perder.
E pisca:
— Ainda estamos na Pré-História da Humanidade.
Refeição em família
Eu não estava em casa no dia em que Mãe achou maconha no quarto. Tinha deixado a cama desarruma, voltei e achei arrumada.
— Mãe, viu uma caixa-de-fósforo na minha cama?
Ela continuou arrumando a casa com cara de mártir, silêncio de condenada. Uma vez vi Pai no quartel passando em revista uma faxina: olhava tudo, tintim por tintim, fio de cabelo aqui, todo de cigarro ali. Decerto por isso Mãe nunca achou a empregada certa para ele: ela mesma cuidava de tudo, colecionando varizes e eletrodomésticos de presente no Natal ou no aniversário do casamento.
Limpava a casa com arroz no fogão. De repente parava, cheirava o ar, ia desligar o fogo: o arroz estava pronto. O nariz dela e o olho dele, vivendo na mesma casa com um maconheiro, um dia tinham mesmo de descobrir.
Com dezessete anos dizem que você já é homem para fazer o que eles querem, e ao mesmo tempo te tratam igual criança que nunca pode fazer o que quer. Então eu preferia me fazer de surdo-mudo quando falavam comigo, me sentia como visita naquela casa e vivia me trancando no banheiro ou no quarto. Chaveava a porta, pegava o fumo num taco solto debaixo da cama, acendia e segurava a fumaça no peito, deixava o cigarro queimando numa fresta da janela. Quando não agüentava mais, soltava a fumaça pela janela vendo a vizinha lavar louça. Os peitos balançavam mais ou balançavam menos conforme o tamanho da panela que ela esfregava — e às vezes, quando eu tinha sorte, ela abaixava fuçando na geladeira, e a bundona quase estourava a calça.
Então eu me trancava no banheiro e, quando estava me concentrando, alguém sempre batia na porta. Igual quando abria um livro, começava a viajar na história, pronto: Mãe berrava: — Tá na mesa! — E logo Pai também: — Tá na mesa! — Depois ela de novo: — Já cansei de avisar que tá na mesa! — Depois ele de novo:
— Se não vier já, vai ficar sem comer! — como se fossem comer tudo, ou como se eu fosse morrer por falta duma janta.
Mas naquele dia fui logo que chamaram a primeira vez. Pai estava na cabeceira, a filhinha querida à direita — a princesa. Sentei à esquerda e Mãe foi trazendo a comida com a mesma cara de quando morria parente na terra dela e não podia ir ao enterro.
Fomos comendo sem falar, ela sentou, fez o sinal-da-cruz e ficou olhando o prato vazio. Botou uma colher de feijão, uma de arroz, continuou olhando. Pai também mastigava olhando o prato. Princesa me olhava ligeira: de repente eu não era mais o idiota do quarto ao lado, era um viciado na erva maldita!
— Nunca viu?
Ela baixou o olhar e continuou comendo com aquela delicadeza de noiva em casa de sogra, deu uma bicada no copo e levantou para lavar o prato com aquelas mãozinhas que, no sábado, eu tinha flagrado agarrando o cacete de um carinha. Estavam num carro parado num escurinho — o cara debruçado nos peitinhos e ela de olhos fechados, de modo que não me viu passar. Senão, não ficava de nariz empinado daquele jeito, a princesa, sempre lavando o prato e ligando a televisão enquanto Mãe lavava o resto da louça. Depois Pai via o noticiário, Mãe via a novela enquanto ele lia o jornal, Princesa voltava da sorveteria de braço com a amiguinha: grande vida.
Mas naquela noite Mãe continuou olhando o prato e rolando na toalha uma bolinha de pão. Pai lambeu o prato com o pão, bebeu o refresco, tomou café, arrotou de leve com a mão na boca, pegou um cigarro, fuçou nos bolsos, tirou a caixa-de-fósforo, acendeu o cigarro. Tirou meu cigarrinho da caixa, deixou na toalha como se fosse uma bomba, aí ficamos os três olhando, olhando, e não explodia. Alguém tinha de dizer alguma coisa e eu disse que, tirando engano, aquele cigarrinho era meu. Ela fechou os olhos dolorosa, ele balançou a cabeça consolado:
— Pelo menos não mente.
Ele sempre teve orgulho da gente não mentir, mas é fácil nunca mentir com quem você nunca conversa — a última vez tinha sido quando tirei nota baixa em Matemática.
Ela rolava a bolinha de pão, enxugou os olhos numa ponta da toalha, ele disse para ela não fazer fita. Aí ela virou bicho:
— Fita?! Meu filho vira viciado e você acha que eu faço fita?!
Ele soletrou me encarando:
— Ma-co-nhei-ro. . .
Ele era desses: trombada na esquina? Maconha. Assalto a mão armada? Maconha! Matou os filhos e se matou? Maconha!! Então, que eu podia fazer além de coçar o nariz? Ele me mandou parar de ser cínico.
— Por que cínico?
— O senhor sabe. (Quando me tratam como criança, me chamam senhor.)
— Não sei.
— Sabe muito bem.
— Não sei.
Ele bufou: — O senhor vai descutir comigo?! — e ela começou a chorar de repente, primeiro baixinho, depois soluçando alto e sacudindo tanto os ombros que ele ficou desarmado repetindo — Vê o que você fez com sua mãe? vê o que você fez com sua mãe? Princesa veio da sala, ela abriu os braços:
— Vem, minha filha, vem.
Princesa sentou no colo da rainha-do-lar e ficou consolando. Ele ficou perguntando se agora eu estava satisfeito, se era isso mesmo que eu queria, matar minha mãe de desgosto, envergonhar a família, entregar a vida ao vício. Rainha chorava feito criança, Princesa consolava e eu coçava o nariz, mas ele disse que não havia de ser nada, estava disposto a gastar tudo que tinha num tratamento:
— Nós vamos curar esse rapaz.
— Curar do quê, pai?
Os três olharam para mim.
— Não estou doente.
Ele pegou o cigarro com muito cuidado, cheirou, deixou na palma da mão:
— Quer me enganar que isto não é maconha?
Rainha choramingou para ele queimar aquilo, não queria mais ver aquilo na frente. Princesa levantou ligeira:
— Eu jogo fora.
Saiu com o cigarro, deu descarga na privada, voltou e sentou me encarando de nariz empinado. Rainha choramingou:
— Vai pra sala, filha.
— Fica — mandou o comandante — e virou para mim — Era ou não era maconha?
Era da boa, e era o último cigarrinho que eu tinha — mas não falei nada. Uma me olhava através das lágrimas, outra me olhava como um estranho e ele olhava através de mim:
— Dezessete anos. . . nem o serviço militar fez ainda!
Devia estar me vendo no futuro, tenente igual ele, ou general, quem sabe marechal — mas de repente eu era um maconheiro, a mesa tinha virado sarjeta e lá ia eu na enxurrada para o bueiro.
— Deixa de tragédia, pai.
Ele me olhou desconhecendo. Me preparei para um tapa mas ele encheu de novo a xícara, tomou café morno enquanto ela começava a desfiar um rosário: que eu era tão sadio, tão moço, tão forte, tão bonito, tão inteligente e já viciado; e eles tinham esperado tanto de mim, agora não podiam esperar mais nada; e ela sempre tinha se preparado para perder um de nós porque a morte é certa sem tempo certo, mas nunca ia imaginar que eu, um filho dela, ia virar um... um...
— Maconheiro — ele repetiu — um maconheiro. Por que, meu filho, por quê?
Agora que sei por que faço as coisas, ninguém pergunta por quê — mas naquela noite senti que devia responder mesmo sem saber, então inventei:
— Fumo maconha, pai, porque não quero ir pra Escola Militar.
Ela desatou a choramingar que era um castigo para eles, tinham ambicionado tanto para mim que Deus estava castigando, só podia ser castigo.
— Sem-vergonhice, isto sim — e ele esticou o dedo para mim — O senhor me diga por que não quer mais a' Escola Militar.
— Eu nunca quis, pai.
Foi como se levasse um murro:
— Nunca quis? E por que nunca disse nada?
— O senhor nunca perguntou.
Então ele murchou, tonto, os ombros foram caindo, pegou a bolinha de pão e começou a apertar. Apertou, apertou, jogou na xícara de café pela metade.
— Mas por que você não falou, meu filho?
E encheu a xícara com café frio, ficou bicando e repetindo — Por que não falou, meu filho?
— Por medo, pai.
— Medo do quê, meu filho? Falasse que eu ajudava.
— Medo do senhor mesmo, pai.
Foi o segundo murro. Ele tonteou mais: pegou a xícara, engoliu o resto do café, cuspiu com nojo a bolinha de pão. Aproveitei e contei que tinha tanto medo que, uma vez, até me livrou da cadeia.
Era noitinha e fumei atravessando a ferrovia. Fumava dentro de vagão parado, tropeçando em mendigo, sempre de olho em ladrão ou polícia, o cigarro numa mão e o coração na outra. Naquele dia fumei um pacau inteiro, enfiei chiclete na boca e ia saindo da ferrovia quando dois caras me juntaram:
— Quieto, meninão.
Me encostaram no muro, revistaram bainha da calça, gola da camisa, cabelo, até que acharam a caixa-de-fósforo. Abriram clareando com lanterna, não acharam nada.
— Cadê o fumo?
Eu quieto.
Um me cheirou a boca, bafejei hortelã.
— Joga fora essa merda.
Cuspi o chiclete, ele me mandou falar que eu era um filho da puta, falei e ele mandou repetir; então fiquei repetindo sou um filho da puta, sou um filho da puta, enquanto ele me cheirava a boca tão de perto que senti cheiro de maconha no bafo dele!
— Por que carrega fósforo sem cigarro, meninão?
— Estava indo comprar.
— Continua falando filho da puta.
Continuei: sou um filho da puta, sou um filho da puta. . .
Meu pai me olhava de olho quase fechando, bufando leve:
— E você não fez nada, rapaz?
— Fazer o quê, pai?
— Falasse quem você era!
— Mas e o medo?
— Medo do quê?!
Ele já tinha esquecido:
— Medo do senhor, pai.
Ela nem choramingava mais: olhava o prato como se fosse um buraco.
Então continuei:
— Sou um filho da puta, sou um filho da puta.
— Pára. Cospe.
Cuspi, saiu saliva. Um cheirou a caixa-de-fósforo:
— Tem o cheirinho. . .
O outro me deu um pescoção:
— Entra no carro. Vai dar uma volta até secar a boca...
— ... aí vamos ver se consegue cuspir.
Princesa aproveita para exibir inocência:
— Maconha seca a boca?
O Comandante:
— Curiosa por quê? Querendo também?
A Rainha:
. — Que perigo, filho, que perigo. . .!
Joguei verde com Princesa:
— Com essa polícia, tudo é perigoso, mãe: até casal namorando em carro eles arrastam.
Princesa piscou, disfarçou mexendo na toalha. O Comandante me olhava arregalado — Eles arrastam?
— Levam pra delegacia, pai.
— Bom. Pensei que arrastassem pela rua.
— Bem que eles gostariam.
Ele me olhava: pela primeira vez na vida, eu falava, falava e ele me olhava.
Então me enfiaram na viatura e começaram a rodar, eu sentado no meio dos dois, um me dando pancadinha na perna com o cassetete, o outro mandando achar música no rádio. Essa aí, ele dizia, deixa nessa aí — mas mal eu sintonizava ele mandava achar outra, e o outro me dando pancadinha no joelho.
— Vamos ver o meninão cuspir daqui a pouco.
Já estava me secando a boca.
— Se cuspir seco, vai pra exame com o doutor.
— Já consultou médico-legista, meninão?
— Deixa ver o braço.
Me olharam os dois braços — mas se eu tivesse marca de picada o olho do Comandante tinha descoberto muito antes.
— Meninão só transa fuminho. . . Vai cuspir já-já.
— Essa aí, deixa nessa aí. Não, essa não.
— O doutor examina e dá um laudo, meninão: pupila dilatada, coração acelerado, descontrole de movimento — e pronto: o meninão vai passar a noite com mais dez numa cela. Gosta de tarado, meninão?
— Essa não — aquela.
— Meninão mexeu bem no som. Tem som em casa, meninão?
— Põe um som na mão da gente, fica limpo.
— Pega em casa, a gente espera na esquina.
— Rádio, gravador, qualquer som.
— Hem, meninão?
— Pára de mexer nessa bosta de rádio.
— Hem?
Eu quieto, só preparando a cuspida.
Aí eles pararam de novo na ferroviária. Me empurraram até um poste. Os armazéns tinham fechado, ali não passava ninguém. Me deram um pescoção para agachar, o chão estava branco de farinha de sacaria.
— Cospe.
Cuspi sangue: tinha mordido a boca por dentro.
— Por medo do senhor, pai.
Ele ficou um tempão olhando a xícara, depois pegou o bule frio, despejou, bebeu, fez cara de nojo por cima da cara de desgosto, aí desmontou: deixou cair os ombros, as mãos no meio das pernas, e foi enfiando o pescoço no peito, devagar, até virar um velho de repente. Então naquele silêncio vi nossa família como numa fotografia: um velho derrotado, uma rainha coitada, uma princesa decaída e um viciado na erva maldita.
A coitada:
— Pra mim ele falou que machucou a boca no futebol.
O velho:
— Aprendeu a mentir...
Falei que sim, até para amigo tinha aprendido a mentir:
— Pra amigo que não fuma, minto que não fumo. Pra amigo que fuma, minto que não tenho. E o senhor nem meu amigo é. . .
Agora ela balançava a cabeça olhando o prato, ele balançava a cabeça olhando a xícara.
Buzinaram na rua, Princesa pulou — Vou na sorveteria.
Ele me apontou o dedo no peito:
— Conhece esse fulano que está saindo com tua irmã?
Menti que não: o cara vivia nas bocas-de-fumo.
— Então pode ir, filha.
Princesa saiu, ficaram os dois me velando. De vez em quando ela fungava. Ele fez outra bolinha de pão, ficou apertando, esfarelou. Pigarreou. Aí Princesa voltou correndo — Vem lá fora um pouquinho.
Me pegou pela mão e, no jardim, me enfiou alguma coisa no bolso, voltou correndo para o carro, acenou rindo e enfiei a mão no bolso, ri por dentro: era o meu velho cigarrinho.
Acendi, fumei ali mesmo, apaguei, enfiei a ponta na minha velha caixa-de-fósforo, entrei em casa.
— O senhor sabe quanto dura o efeito da maconha?
Ele ainda fazia bolinha de pão, parou me olhando como se eu fosse marciano.
— Duas horas mais ou menos — falei com autoridade.
Agachei bem na frente dele: era só um cidadão de chinelo e bermuda, com uma unha esmagada e uma cicatriz na coxa. Olhei bem nos olhos e perguntei se naquela janta eu tinha faltado com o respeito. Ele engasgou:
— Não. . . meu filho.
Agachei na frente dela, perguntei se estava notando em mim alguma diferença.
— Não, meu filho — por quê?
— Porque eu estava maconhado, mãe. Fumei antes da janta.
Eles ficaram me olhando, e o que eu via também era um quadro muito louco: o velho, a coitada, os pratos sujos, a folhinha e o relógio na parede e, na prateleira, a foto de um cara muito parecido comigo fardado de cadete.
Dei uma boa olhada na foto, depois uma boa olhada no homem: estava na cara que eu era tão parecido com ele como é possível um filho ser parecido com o pai.
Começou a chover e ela levantou para fazer mais café, ele falou que não queria. Olhou o relógio, estava na hora da novela, mas ela falou que não ia ver. Levou a louça, com o meu jeito de andar, depois tornou a sentar — com o meu jeito de sentar.
Perguntaram se eu não ia sair aquela noite, falei que não. Então, pela primeira vez na vida ficamos conversando sem nada para resolver — mas fumar estraga a memória e não lembro direito da conversa, só que começamos a falar de diferenças e semelhanças e acabamos falando da vida.
A mulher dos sonhos
A estrada não tinha fim. Ainda secavam os atoleiros da última chuva, e nos trechos secos o carro já levantava poeira — mas de repente virou rua e ele entrou em Vila Alta. Era um acampamento virando povoado numa clareira de mata, casas de madeira nova ainda sem portas, colchões no assoalho, moleques com metralhadoras de plástico. O calor tonteava e, na sombra da única árvore, ficou respirando de leve e resmungou baixinho:
— Então ela se enfiou neste fim-de-mundo. . . Chutou uma pedra, passou um trator levantando poeira, um caminhão de toras para a serraria, um jipe largando torrões do pára-lama. Todo mundo suava descarregando caminhões, comprando e vendendo, martelando ou cavoucando, e ele procurou alguém desocupado.
Viu um jipe parado com as pernas do motorista para fora — decerto cochilava. Chegou perto e o homem estava morto, a camisa empapada de sangue e o banco encharcado.
— Esperando o caixão — alguém falou atrás dele. Era uma funerária, e sentado num banquinho lá estava o único homem quieto de Vila Alta, um velho picando fumo e balançando a cabeça com filosofia. Ele perguntou onde era a escola, o velho ensinou. Ia voltando para o carro, o velho estranhou ele não perguntar como o homem tinha morrido:
— Todo mundo pergunta.
— Não me interessa — e já morreu, de que adianta?
O velho resmungou que, sendo assim, ele ia se dar bem em Vila Alta. Ele agradeceu, entrou no carro e tocou: já tinha rodado três dias e agora em cinco minutos encontraria Isabel — o corpo moído, o coração partido e o radiador fervendo.
A rua virou de novo estrada, a estrada virou atoleiro e, lá longe, viu uma mulher de calça enrolada até o joelho, sapatos na mão, boné na cabeça e o jeito de andar de Isabel. Não pode ser, falou baixinho.
Desceu do carro atolando até as canelas, catou flores na beira da estrada. Ela vinha vindo, ele foi indo com as flores, parou como um menino:
— Flores para a professora.
Ela sorriu e disse oi, como se fosse muito natural ele rodar dois mil e quinhentos quilômetros de barro, poeira, calor de rachar e comida pior que de cadeia.
— Qual é o problema?
— Vim buscar você.
Ela tirou o boné e o cabelo desabou, as pernas salpicadas de lama, os pés no barro. Apesar de tudo, era mesmo Isabel, com o mesmo jeito simples de complicar as coisas:
— O problema é que não quero voltar. Fica você.
O sol ia deitando e as sombras se distanciavam na estrada.
— Ficar?! Eu vim buscar você!
Entraram no carro sem falar mais nada, ele sentou ao volante e suspirou tão fundo que ela pegou no braço dele, ficou alisando e ele arrepiou. Puxou a cabeça dele para olhar de frente e bem no fundo:
— Eu não vou. Fica.
Ele afundou no banco, emburrado.
— Não vou me enterrar aqui, Isabel.
Ela ficou com um resto de sorriso entristecendo. Que fosse como ele quisesse.
— Quero você.
— Eu também quero você.
Então voltasse com ele, Jesus Cristo! Mas eia ficou alisando a nuca dele corno quem consola criança, e pela milésima vez disse que queria viver a própria vida.
— Isso não é vida, Isabel.
— Estou viva, não estou?
Ele olhou bem, estava até mais bonita.
— Então eu volto — disse seco e esperou agarrado ao volante.
Ela apenas pediu — Fica um tempo.
— Só até amanhã — ele falou quase sem abrir a boca — só até amanhã e depois nunca mais.
Ela beijou a mão dele:
— Quem sabe? Sei que sempre vou te amar.
— Eu também, ele falou engasgando: era a primeira vez que ela falava aquilo.
A casa da professora era ao lado da escola na estrada, e ela apontou uma horta — Plantei repolho.
Uma casinha de metro era o banheiro, com um balde de água de poço. Ela ficou lavando os pés, ele entrou na casa.
Parecia feita por um carpinteiro cego: nenhuma mata-junta bem alinhada, todo prego mal batido, o assoalho desconjuntado — mas ali estavam todas as coisas dela, os quadros e o tapete, os bibelôs e o toca-discos sem eletricidade. O colchonete. Quatro livros espalhados que ela nunca acabaria, sempre começava outros.
Ele folheava um quando ela apareceu na porta, parou entre a escuridão e a última claridade lá de fora. Ele ficou vendo ela tirar a calça e a camisa, e sussurrou quando ela se enrolou na toalha — Você está melhor que nunca.
— Aproveite — ela sussurrou apertando a toalha nos peitos: vai ser a última vez, não vai?
— Vai — ele engoliu um caroço, chamou com voz apertada — Vem — e ela foi descalça, abraçou com a cabeça no peito dele. Ele apertou tanto que sentiu a toalha úmida — tinha tirado a camisa e ela foi beijando o peito cabeludo:
— Lá fora (beijo) não esqueça que sou a professora (beijo). Vou dizer (beijo) que você é meu irmão. . .
E então afastou um passo, tirou a toalha.
— ... a não ser que você fique de vez.
Ele ajoelhou enfiando a cara nos pêlos dela, sussurrou sufocado:
— Não vou ficar, Isabel.
— Então ela ajoelhou devagar enquanto ele beijava o umbigo, os peitos, o pescoço — deita e esquece.
A mata chiava, estrilava, grunhia, roncava, gemia, ria e cantava.
Primeiro se beijaram na boca, tanto que as línguas endureceram, depois no pescoço e nas orelhas, um repetindo o nome do outro, ela descendo pelo peito dele, barriga, até que falou só mais uma palavra — Saudade.
Quando ele não agüentou mais, disse outra palavra.
— Vem — e ela sentou sobre ele, tão úmida que entrou duma vez.
Ela gemeu, rodando agachada com os peitos entre os joelhos.
— Eu estava com saudade deles — ele falou beijando, cabiam inteiros na boca, um depois o outro, enquanto ela gemia rodando numa espiral cada vez mais larga e funda.
Ele enfiou a língua na orelha, ela deu um gritinho e se arrepiou inteira — então ele se ergueu nos joelhos, de repente ela se viu no ar e abraçou o pescoço, gemendo na orelha dele, a espiral fechando.
Ele pegou por trás dela, puxando como se pudesse entrar mais, os dois se beijando na orelha, no pescoço, nos olhos, boca passando por boca sem parar. Cada mão dele ajustava perfeitamente em cada metade dela, eram um homem e uma mulher nos tamanhos certos e agora tão ajustados que peito achatava com peito, de modo que ele falou dentro da orelha dela — Meu amor — e ela gemeu mais alto, agarrou o cabelo dele e a espiral começou a virar roxa, ela gemendo cada vez mais e ele começando a gemer, ela fechando a rosca, fechando, até que ele sentiu o gozo vindo e avisou — Ai, amor — com os dez dedos enterrados nela, puxando como se fosse varar do outro lado, a rosca cada vez fechando mais fundo e ele avisou de novo — Ai. — engasgando — Ai, Isabel, ai! — e o gemido dela enrouqueceu de repente, foi virando um ronco enquanto o dele virava grunhido, esticando até virar uivo -— e ela urrava.
A rosca agora era tão fechada que nem rodava mais: Ela só vibrava, roncando tão baixo e fundo que vibrava inteira, e ele ainda uivava voando.
Depois ficaram secando abraçados, no colchonete molhado e agora com o cheiro dele também. De repente ela levantou olhando Vila Alta pela janela:
— Estão colhendo o primeiro milho-verde daqui.
Aparecia um céu estrelado. Ela abriu as pernas para passar a toalha, ele foi com a língua. Começaram tudo de novo e, depois, com a cabeça dela no peito, ele falou com cansaço:
— A gente devia viver junto. Até agora foi aos pedaços.
Ela levantou enfiando a calça:
— Mas foram pedaços de céu.
E foram comer milho cozido em Vila Alta.
A serraria ainda serrava e numa casa ainda martelavam, um caminhão descarregava no armazém com lamparina na porta. O caixão saía da funerária em carreta de trator, os parentes saíram do oar, foram a pé atrás. Um cachorro também foi, voltou logo. Na escuridão do cemitério, lá na boca da mata, quatro lamparinas cercavam a cova.
O velho da funerária continuava pitando o palheiro.
— Meu irmão — Isabel apresentou.
O velho sorriu com olhar que via tudo — mas todos os outros acreditaram. Isabel andou com ele pelos armazéns, ele batia a cabeça em marmitas penduradas, baldes, pás e panelas. Mulheres com mão de homem e homens de pouca conversa — menos o açougueiro, que bebia no bar com o avental ensangüentado.
— Isto vai ser cidade um dia, o senhor devia ficar.
A carreta voltou vazia, os parentes do morto voltaram e pediram mortadela e um pacote de bolacha, comeram falando de sementes e máquinas. Uma brisa trouxe cheiro de sangue, ela explicou que o açougueiro matava boi ali perto, debaixo de uma árvore. A cerveja quente espumava afogando besouros no balcão. Ele apontou duas crianças brincando entre machados, motosserras e caixotes de peixe-seco, disse que aquilo era igual qualquer fim-de-mundo.
— Você é que vê tudo igual, disse ela — e a lamparina vacilou, o rosto dela sombreou. O açougueiro apagou de vez a chama para trocar a camisinha e ele aproveitou a escuridão:
— Te quero muito, falou encostando.
Pegou o cheiro dela entre todos aqueles cheiros de peixe e estopa, querosene e cebola, e repetiu — Muito, muito — suspirando e segurando o cheiro no pulmão.
— Será — ela puxou a voz como a ponta de um fio
— será que você me quer tanto só porque não me tem?
A lamparina acendeu, ele se aprumou pigarreando, soprou:
— Te quero demais.
Engoliu um caroço e apertou a voz:
— Te amo demais.
— O único jeito de amar é demais.
— Nunca amei ninguém assim.
Ela encarou:
— Você não ama ninguém. Ama o amor.
— Você quer me machucar.
— A verdade dói.
Então ele se castigou com mais duas cervejas quentes, arrotou soluçando doído e foi um homem muito cansado que levantou da mesa.
— Vamos dormir — falou o irmão da professora.
— Vamos — falou a professora, e saíram sem se olhar.
O carro iluminou Vila Alta: o cachorro vigiava sentado nas patas, no banquinho o velho velava fumando contra os mosquitos. Acenou como se abençoasse e ele acenou também, mudou a marcha e pegou no joelho dela.
Quando os faróis clarearam a escola e a casa, o carro ziguezagueava e se beijavam em desespero, um repetindo o nome do outro e se apertando com aflição.
— A única vantagem aqui é deixar o carro aberto
— ele falou quando chegaram, ela já debruçada no colo dele, ele manobrando com uma mão só, a outra enfiada nela. Desligou o motor, chutou a porta, saiu com ela nos braços e deram com as estrelas.
— Parece cena de filme — ela falou com a cabeça no peito dele.
— Vamos fazer um final feliz — ele falou na orelha e ela estremeceu apontando uma estrela cadente:
— Ganhei um pedido. Te dou de presente.
Ele pediu olhando as nuvens que passavam pela lua:
— Que tudo mude para melhor.
Ela falou olhando para dentro:
— Tudo só muda para melhor, aprendi aqui.
Umas nuvens passavam mais devagar, outras mais depressa.
— Quem sabe — ele falou amargo — eu aprenda na estrada de volta.
E andou com cuidado até a casa: um escorregão naquele barro e tudo virava comédia. Deixou ela na sala e sentou na escada para tirar os sapatos. Ela abraçou por trás e foi beijando a nuca, os ombros, o rego das costas conforme tirava a camisa dele, depois subiu beijando forte, quase mordendo, enquanto desabotoava embaixo.
Ele acabou pisando nas calças no barro, entrou tropeçando mas agora já era impossível virar comédia — e rolaram agarrados até o colchonete.
— Você é louca.
— Você que é bobo.
Longe garimpeiros atiravam nas estrelas.
O colchonete encharcou de suor, ela estendeu a esteira, cheirava a sabão-de-coco. A casa cheirava a madeira recém-serrada, e o cheiro dela agora estava úmido como fruta aberta. Ficaram se cheirando e alisando. A mata tinha acalmado mas ainda ouviam, longe, tiros e uivos dos garimpeiros.
— Acharam ouro.
— E eu demorei tanto pra te achar na vida.
— Eu sempre soube que ia te achar — ela quase declamou.
— Achar e perder — a voz dele saiu quebrada.
— Nunca vou te perder — ela declamou — nunca. Você vai estar comigo sempre.
— Na lembrança?
— Em sonho: você não diz que eu vivo sonhando?
Ele resmungou que palavras são ilusão, na realidade eram dois mil e quinhentos quilômetros de distância. Ela respondeu que conhecia bem a distância, tinha chegado em caminhão depois de semana sem ver comida quente, e agora vivia com terra nas unhas de tanto pisar na realidade.
Ele procurou os pés dela na escuridão, começou a beijar, ela começou a contar um sonho. Ele chegava um dia quando ela estava na casinha tomando banho; então pedia a ele para encher o balde, ele ia ao poço enquanto ela se ensaboava, depois também entrava na casinha e. . .
— ... por falar nisso, você não tomou banho: está cheirando viagem — ela correu o nariz pelo peito dele, desceu cheirando e ele sussurrou — Você é um milagre que se repete.
— Você gosta de fazer frases.
Ele abraçou forte — Tenho medo de te perder.
Ela cortou a escuridão com um fio de voz:
— Teu problema é queser ter, em vez de só querer.
Um carro passou na estrada, as sombras apareceram separadas na parede.
— E eu não quero ter — quero ser.
Ele grunhiu bem devagar que era tudo palavreado, querer ter, ter, não ter, ser ou não ser ou fosse lá o que fosse. O caso era só o seguinte: se um queria o outro, por que não viviam juntos?
— Eu topo — ela falou depois de muito tempo.
— Então voltamos, ele arriscou — e por garantia apertou a mão dela.
— Fica você — ela sussurrou e as mãos afrouxaram.
Ele levantou, enfiou um sapato, outro, acendeu a vela e viu no espelho um idiota pelado e calçado. Ela abraçou as pernas dele:
— Você não me entende porque só pensa em você.
Ele grunhiu enfiando a camisa:
— E nunca vou entender, professora.
Ela enfiou a cabeça no meio daquelas pernas, falando para um menino: que que adiantava ir embora de repente? E o final feliz?
Fez ele deitar como se deita uma criança, tirou os sapatos, beijou da cabeça aos pés até que ele sentou abraçando, enfiou a cabeça no cabelo dela e suspirou descarregando:
— Quem sabe um dia eu entendo, professora — ou fico louco.
Ela ficou fazendo cafuné:
— Você está fazendo tipo. Dorme.
— Você é louca.
— Que é que a gente ganha tendo razão? Dorme.
— Dormi duas vezes na viagem, com o mesmo sonho.
No sonho ele chegava em Vila Alta, conversavam, discutiam, brigavam com palavrinhas e silêncios. Ela cozinhava batendo panelas, ele sentava no chão — sentou de costas para a parede, ela ajoelhou entre as pernas dele beijando o peito, as mãos — e então ela acabava de cozinhar, vinha zanzar em volta dele arrumando os livros, esvaziando cinzeiro e. . .
— Uma dona-de-casa.
— É só um sonho.
— Sonho não mente.
Ele suspirou pesado, ela sentiu o corpo dele endurecendo e pediu alisando — Conta, conta o sonho — e ele foi relaxando de novo. Contou que no sonho ela zanzava em volta dele arrumando coisas, até que ele esticava a perna, trançando o pé nas pernas dela.
— Assim — começou a mostrar — assirn. . .
— Aí eu me derreto toda, me ajoelho e pergunto
— Sim, meu amo?
— Não, você ajoelha me abraçando as pernas, enfiando a cabeça no meio dos joelhos.
— Assim?
— Assim. Aí eu fico te passando a mão na cabeça e, sem precisar puxar, você vem me beijando.
— Vou indo... E aí? — a voz dela era um fiapo.
— Vem, vem.
— E aí?
— Pra falar a verdade eu nem sonhei — ele arfava.
— Sonhou agora — foi a última coisa que ela falou.
Depois, deitados olhando um pedaço de céu na porta, esperaram de novo secar o suor. Acenderam a lamparina, ficaram se olhando enquanto entravam besouros.
— Pra nunca mais te esquecer, ele falou.
— Pra sempre te lembrar assim, ela falou.
— Eu te amo.
— Você nunca tinha dito isso. Hoje disse duas vezes.
— Eu te amo, te amo, te amo, ele repetiu igual boneco-de-corda, e ela — Eu vou te amar sempre, vou te amar sempre. Então ele começou a chorar e ela chorou também.
Depois ele beijou os olhos dela — Eu não quero te deixar, mas não posso ficar — e ela beijou os olhos dele
— Eu não volto com você mas nunca vou te deixar.
Ficaram ouvindo a noite, até que ele riu, ela perguntou do quê.
— De mim mesmo. Dois mil e quinhentos quilômetros.
Depois foi ela quem riu.
— De mim mesma também: professora no fim do mundo.. .
— O salário compensa?
— Não. Mas, pelo menos, não sou mais a mocinha amante de um homem casado com três filhos.
Só um besouro voava no silêncio.
— Você volta um dia?
— Não sei. Só sei que sempre vou te lembrar.
— Que consolo — ele enfiou as sandálias: vou tomar banho.
Faltava uma telha na casinha e ele olhou as estrelas antes de pendurar o balde. Primeiro se ensaboou inteiro, depois puxou a corda e a água escorreu abençoando da cabeça aos pés. Ela gritou se ele não tinha esquecido nada. Apareceu na porta enrolada na toalha, entrou e, quando gozaram se esticando na ponta dos pés, viam no pedaço de céu as estrelas e a lua cheia.
A serraria apitou e ela disse que eram cinco da madrugada. Ele saiu molhado na primeira claridade, um bando de aves vermelhas cruzava a clareira. Vila Alta era uma fileira de telhados no horizonte, já com ronco de motor e pipoqueio de marteladas.
Ele entrou e enfiou as roupas, enfiou na boca um pedaço de pão, mastigou olhando nos olhos dela, ela olhando nos olhos dele com a faca e o queijo na mão.
— Então eu vou.
Ela sorriu velha e longe:
— Quem sabe um dia eu volto.
— Ou eu mudo — ele sorriu triste.
Ficou olhando através dela, até que levantou:
— Até.
Saiu pegando os sapatos.
— Até — ela disse agachando ao lado do carro, a boca repuxada num sorriso — e olhou em volta:
— O problema é sempre o mundo.
— Eu só vim trazer flores — ele acelerou em ponto-morto e meteu marcha: a vida continuava, e tinha muito chão pela frente.
Buzinou passando pela funerária. O velho levantou a cabeça, acenou e ele, antes de ligar o rádio, também resolveu filosofar:
— Ninguém morre de amor, o amor é que morre.
Uma viola foi ponteando, ele acelerou:
— O problema agora é enterrar.
E acelerou mais:
— Ou ressuscitar.
Olhou o mostrador: Jesus! Dois mil quatrocentos e noventa e nove quilômetros pela frente, e já com vontade de voltar.
Duas cervejas
Fazia sol com chuva quando eles entraram correndo no bar vazio — só o espelho estava lá mostrando os dois de roupa molhada. Ficaram ofegantes diante daquilo: juntos de novo, depois de tudo e apesar de tudo.
— Não tem ninguém — ela falou tão perto que ele cheirou os cabelos molhados.
— Seo Mário deve estar lá no fundo, ele falou — e ela ficou olhando as costas dele a caminho da cozinha com aquele andar de quem procura briga, e no entanto tão jeitoso que ela estava com medo do primeiro toque: depois viriam os lábios e depois motéis, sabonetes, sanduíches e só Deus sabia que mais. Então, quando sentaram, ela foi logo avisando — Sabe, antes eu era uma louca, mas agora tenho medo.
Ele sorriu — Não vou te comer não.
Ela ficou enrolando a ponta da toalha. Era bonita como menina de calendário, e de repente ergueu a cabeça rindo e batendo palma.
— Deu faniquito?
— Lembrei duma coisa que sempre quis te contar e sempre esqueci, falou com a risada já morrendo no canto da boca, já de novo olhando a mesa como se fosse um caixão de criança, um tanque d’água com um peixe morto.
Então contou que uma noite tinham estado ali, naquela mesma mesa de sempre, e tinham rabiscado os nomes na toalha de tardezinha.
— Lembra?
— Lembro.
De noite, ela voltou com o outro:
— E, quando vi, tinha sentado aqui na nossa mesa. Ele bateu o olho na toalha, viu os nomes e um coraçãozinho com flecha que você desenhou — lembra?
— E o que ele fez?
— Ficou quieto, depois perguntou quando a gente esteve junto a última vez. De tarde, falei. Aí ele perguntou — E de manhã, esteve com quem?
— E você? — ele bicou uma cerveja amarga.
— Levantei e fui embora, ele não me procurou uma semana.
A chuva continuava, seo Mário cochilava no balcão. O homem do cachorro-quente entrou de capa escorrendo, pediu uma pinguinha. Seo Mário botou uma dose, saiu bocejando — Cuida pra mim enquanto resolvo um problema.
Eles ficaram ouvindo a chuva e logo ouviam também o ronco dele resolvendo o tal problema lá no fundo.
— Eu queria ser assim — ela rodava o cinzeiro —, cair na cama e dormir.
— Você era assim — ele tocou a mão dela —, lembra até que. . .
— Mas agora não durmo fácil não — ela tirou a mão, voltou a enrolar a ponta da toalha.
Ele pegou de novo aquela mão fria — Você está nervosa — e começou a alisar, e ia levando até a boca, ia lamber a linha-da-vida e a linha-do-amor, ela ia se arrepiar e mostrar o braço ouriçado — Olha só — mas, em vez disso, apenas falou olhando a chuva:
— Eu tive um aborto.
Ele ficou sem saber o que fazer da mão dela, então apertou. Procurou os olhos mas ela enrolava a toalha, e o cachorreiro falou lá do balcão — Com essa chuva tudo cresce.
Ele se inclinou para ela. A espuma da cerveja ia secando, uma mosca pousou no copo e ela não espantou.
— Quando?
— Não era teu não.
— Como você sabe?
— A gente ja tmha acabado fazia seis meses.
Passou um menino descalço na enxurrada, ele lembrou:
— Quando eu era moleque gostava de andar em enxurrada, até que um dia pisei em caco de vidro.
— Um dia a gente se corta, né — ela mal abriu e já fechou um sorriso triste que ele não conhecia.
Então ele viu que ela tinha envelhecido, e por isso mesmo estava mais bonita. Apertou aquela mão branca, apertou forte, depois relaxou e ficou olhando aquelas linhas, formavam uma teia e ali ele deitou a testa, falou abafado:
— Você falou com ele?
— Falei. Mas também não era dele.
— Havia mais outro?
— Hum hum.
Ele ergueu a cabeça:
— Depois de mim?
Ela encarou:
— Durante.
Agora foi ele quem sorriu triste, e ela passou a mão naquele braço peludo.
— Era um cara que precisava de mim, pelo menos ‘dizia que precisava muito.
— E você falou com ele?
Ela tomou um gole, depois outro.
— Falei, e ele falou que era problema meu. Nem acreditei, fiz ele sentar e falei bem na cara — Meu nego, você sempre disse que precisava de mim, agora eu quem preciso de você. Ele disse que era problema meu. Falei que o filho não era só meu, e ele falou o seguinte — Quem garante que é meu mesmo?
Ela tomou o resto do copo, suspirou — Mulher é tonta, e eu era uma menina.
Ele passou a mão naqueles cabelos molhados, mas os olhos estavam duros de raiva e ele tirou a mão logo. Ela falava quase sem abrir a boca:
— Depois ele falou que sabia de você e, se eu tinha dois caras, podia ter mais quatro ou cinco que ele não sabia, o filho podia ser de qualquer um.
Ele encheu o copo dela, olhou a chuva — tinha afinado.
— Quando eu era frangote, passava uma galinhota sem dar bola, a gente ficava inventando: essa aí dá mais que chuchu na cerca; Fulano já comeu; Ciclano também já; biscatona; putona. Mas se ela desafiasse — Quero o mais forte de vocês — a gente se matava a pancada.
— Você com suas histórias, ela falou passando a mão na cabeça dele: quando se quebrava por dentro, por fora parecia um menino.
A chuva raleou. Ouviam ronco de seo Mário com distinção, o ronco da geladeira confundindo com a chuva, a enxurrada e o silêncio do cachorreiro com um jornal antigo no balcão.
— Então ele perguntou e ela contou do aborto. O primeiro exame, negativo — ela achou que era regra desregulada. O segundo, positivo — e aí já devia os dois exames à amiga de quarto, ficou pensando como ia pagar um aborto. Só se roubasse, ou se. . .
— Sei lá, suspirou.
Ele começou a enrolar a ponta da toalha.
— Você parou de trabalhar?
Ela sorriu cansada:
— Metade do que ganho vai para o aluguel e o dentista, a outra metade para comida e ônibus, e a terceira metade fica para o resto...
Ele perdeu o olhar nas flores da blusa dela — e sorriu, baixou os olhos: até as sandálias eram as mesmas que tinham andado pelos motéis, às vezes amanheciam no painel do carro.
— Qual é a graça?
— Nada. Lembrando aquele dia que amanhecemos no carro e você urinou no capinzal.
— Aí apareceu aquela família na estrada, até as crianças com enxada.
— E você correndo com a calcinha nas pernas.
— E você morrendo de rir.
Então riram, beberam e riram mais. Depois suspiraram, prontos para continuar uma história triste.
— Por que não me pediu dinheiro?
— A gente já tinha acabado.
— Tonta.
— Sou. Fui pedir a ele.
— Ficou uma fera.
— Foi como um irmão: me levou a uma clínica, foi rápido. Mas depois infeccionou, quase morri.
Ela balançou a cabeça lembrando, fez uma careta leve.
— Aí paguei em sofrimento tudo que gozei.
Bebeu.
— Nem devia beber, até hoje tomo remédio.
— Então pára — ele tirou o copo dela.
Ela pegou de volta — Não tenho pai faz tempo, tá?
Ele sorriu olhando aquela mulher por dentro, sugando com os olhos, e ela sentiu aquela ternura dele pronta para desabar misturada com dó e remorso. A chuva afinava mais, e ele já ia inclinando para encostar a cabeça, depois ia beijar a orelha, o pescoço, e depois iam se beijar e se afastar de leve, cada um olhando o olhar bobo do outro e. . . Então ela levantou:
— Já volto.
E ele sabia que ela voltaria fria.
Voltou dizendo que o mitório estava limpinho. Ele estava com outra cerveja na mesa, o cachorreiro bocejava no balcão e na rua a enxurrada ia perdendo a fúria. O sol tinha se escondido, agora aparecia de novo num pedaço de céu azul: de noite estrelaria, o bar estaria cheio e o mitório fedendo como na primeira vez em que vieram. Nas mesas, casais de homem com homem, mulher com mulher e até homem com mulher — e seo Mário sempre
servindo com um pano encardido no braço, enquanto os casais se beijavam ou se estapeavam.
— Bar Paixão — ele falou sozinho, olhando a placa lá fora.
Ela sorria olhando as coisas como se conversasse com elas — e ele viu que ela se despedia do bar. A geladeira era um bicho roncando macio, as garrafas olhavam da prateleira, o espelho era um juiz que nada julgava, só mostrava — e, dali onde estavam, mostrava ele inclinado para ela e ela reta na cadeira, as duas garrafas entre os dois. Só então ele notou: eram da marca que ela não gostava — e levantou:
— Vou pegar da tua marca.
Ela segurou pelo braço, de leve. . .
— Deixa, estou acostumando com qualquer coisa.
... e ele ficou um instante parado, esperando ela
continuar com a mão ali.
— A gente acostuma com tudo — ela continuou olhando a própria mão no braço dele — acostuma com umas coisas e esquece outras.
E tirou a mão.
Ele ficou alisando o rótulo suado, como se falasse com a garrafa:
— Você sofreu mesmo. . .
— Me senti judiada — ela olhava o cabelo dele, os ombros, o peito, as mãos caídas na mesa, tudo, aproveitando que ele olhava a garrafa.
— Você era uma menina mesmo. . .
— Mas nunca fiz nada que não quisesse, não sinta culpa. E não sou mais menina: faço vinte amanhã.
Ele levantou os olhos, sorriu forçado e beijou a testa dela — Vou te dar um presente.
— Não.
— Por que não? Não somos mais amigos?
— Alguma vez fomos? Quanto mais amantes, menos amigos — você não acha?
Além disso, ela agora vivia com o outro:
— Não vou esconder nada dele.
— Dou uma coisa que ele não perceba.
— Não. Me dá só outro beijo.
Ele se inclinou com os olhos quase fechando, mas ela botou o dedo nos lábios dele:
— Na testa.
Ele parou abrindo os olhos — Por quê?
— Por medo — ela sussurrou — e por ele.
— Mas você dizia que nunca ia viver com ele.
Ela abriu devagar mais um sorriso triste.
— Você ama ele?
O sorriso parou antes de aparecer os dentes.
— Hem? Ama?
Com o meio sorriso pregado na boca ela passou a mão no rosto dele, nos olhos:
— Quem é você pra falar de amor? Se você me amasse. . .
Ele baixou os olhos, ficou enrolando a toalha e ela sabia que agora um bicho roía por dentro dele, ela via e quase conseguia ouvir o ruído da dor.
— Acontecer que ele foi companheiro. Companheiro, entende?
Então o bicho virou um bruxo, e ele fez uma voz macia de vingança:
— Acontece que ficou pensando, será que você...
— Eu o quê? Fala.
— ... será que você não se vendeu a ele?
Esperou um terremoto, saiu gelo da voz dela:
— Não, eu não me vendi por um aborto nem por conforto — e ele virou menino de novo, enrolando a toalha.
A chuva tinha virado chuvisqueiro. Ele ouvia uma mulher desconhecida:
— Sabe, outro dia eu trouxe ele aqui. Ficou olhando tudo, depois disse que é o bar dos sofredores do amor. . . Disse que não ficava nem aqui — porque não precisa procurar, já me achou e pronto. Aí vi que eu também não consigo mais me dividir, entende?
Ele murmurou que entendia, sim, entendia.
Ela ofegou — Falei demais.
A chuva parou.
Ele olhou o relógio.
— Antes que me esqueça: precisa de dinheiro?
Ela falou que não, pegou a mão dele e beijou.
— Nunca vou te esquecer. Foi bom enquanto durou.
— É — ele perdia o olhar nas garrafas.
— Só que a gente nunca tirou uma fotografia, ela falou para si mesma.
Seo Mário apareceu de cara amarrotada, o cachorreiro saiu tirando a capa. Ele pegou a mão dela numa última tentativa:
— Devia ter me procurado, eu tinha dinheiro, também conheço médico.
Fazia uma cara de mágoa e ia apertando aquela mão tão leve, mas tão dura. Ela tirou a mão, enfiou nos cabelos dele, agarrou a nuca e falou olhando nos olhos sem qualquer mágoa:
— Pensando bem, sabe por que não te procurei?
E beijou um olho dele.
— Porque com ele eu sabia que, no fim, não acabava sozinha.
Beijou o outro olho e levantou, ele ainda ficou um tempo de olhos fechados. Quando abriu, ela estava no balcão pagando uma cerveja.
— Você paga a outra.
Deixaram seo Mário resmungando por causa do troco, saíram abraçados e agora o céu estava inteiro azul mas o sol morrendo.
Ele beijou de novo a testa dela. Por um instante ela olhou de novo com o jeito antigo e ele falou que ainda era uma menina. Ela riu:
— Cresci, abre os olhos.
Aí ele desceu a rua, ela subiu.
Sapatos
No tempo em que a rua ainda era de terra, sábado à noite ele subia levando em cada mão um par de sapatos de baile das tias. Elas iam amassando barro com os sapatos de todo dia. No começo do calçamento elas olhavam em volta e, se não vinha gente, apoiavam uma na outra equilibrando num pé só e calçavam os sapatos de salto alto. Desciam a rua tropeçando elegantes na direção das luzes da cidade — e ele voltava para casa com os sapatos pesados de barro.
Era só um menino de sapatos embarreados no sábado da decisão:
— Hoje vou entrar lá.
Falou baixinho e entrou no bar onde diziam que ele não devia entrar — só tinha bêbado e mulherada. Não tinha nenhum bêbado, pelo menos não tinha ninguém tropeçando nas pernas e falando mole como o pai quando chegava de madrugada — e só uma mulher muito bonita. Ela passou a mão na cabeça dele e — soltando um rastro de barro e lama — ele foi ficar na porta olhando a lua na poça d’água.
Depois foi olhando de viés, ouvindo a conversa dos homens no balcão.
— Galocha nunca entrou no meu pé e nunca vai entrar porque ninguém vai de galocha no caixão. Senão minha mulher, só pra me contrariar, era capaz de me engalochar depois de morto. Quero morrer antes dela.
O outro homem riu, a mulher levantou da mesa e foi muito devagar até eles.
— Pois eu uso galocha — ele disse abraçando ela pela cintura — porque não gosto de levar barro da rua a uma casa onde vou ser bem recebido.
A mulher beijou a orelha dele soprando alguma coisa.
De tão ernbarreado nem se via se era preto ou marrom o sapato do homem sem galochas. Ficou falando que quem tira sapato para entrar em casa é japonês, enquanto o outro ia com a mulher até uma porta com cortina de tampinhas, e lá ficaram de conversinha. Depois ele tirou as galochas e deixou ali, sumiram lá para os fundos e o menino, antes de sair, esfregou muito as solas no cimento. Em casa, fez pela primeira vez o que a mãe sempre pedia pelo amor de Deus: sentou no degrau da soleira e tirou os sapatos para entrar. Depois a mãe nem acreditou: pegou faca e jornal e limpou os sapatos.
Depois chegou o -dia em que entrou na loja com a mãe e começou a escolher na vitrina. Olhou os sapatos, as botinas, as sandálias, e tudo parecia condenado ao barro e ao pó — mas, de repente, lá estavam aqueles tênis azuis como céu com estrelas brancas: supertênis para um super-homem.
Apontou, a mãe agachou ameaçando baixinho:
— O senhor não comece com teimosia: pra festa de casamento tem de ser sapato!
Saiu com sapatos mais sem graça quanto mais ela falava que eram muito bonitos e resistentes — o vendedor tinha falado aquela palavra e agora ela repetia: resistentes.
— Sim senhor, resistentes, isso é o que interessa.
Até que ela ficou na casa da tia e ele foi para casa chutando toda pedra do caminho. Foi raspando o couro pelos muros, pisando nos cordões desamarrados e em toda poça d’água. Quando chegou, os sapatos pareciam velhos.
Esperou o pai no portão.
— Me compra um tênis, pai.
Não quis jantar.
De manhã não comeu, no almoço também não.
À tarde entrou na loja com a mãe, saiu com os tênis nos pés. Deu um supersalto enquanto a mãe enfiava o troco na bolsa resmungando: que que ele tanto via naqueles tênis? Ele via o Espaço pela frente e de todos os lados — foi até em casa correndo e pulando. E os suner- tênis voaram pelo quintal, arrombaram portas para ele entrar de revólver em punho e depois, em cima do telhado, abriu os esconderijos embutidos na sola: um micro-rádio, um estilete mortal, explosivo plástico, pastilhas de gás e pílulas de veneno para quando não restasse mais esperança.
No cinema, sentava num canto vazio — então descansava das trabalheiras de herói. Levantava ligeiro antes da luz acender, as calças de domingo zunindo de novas, passava reto pelas meninas: simples formigas mortais para um super-homem voando alto.
Era o primeiro a sair do cinema, atrás vinha o bando de galãs com topetes e chicletes, as mocinhas com olhares e sorrisinhos. Ele virava a esquina e se enfiava no terreno baldio. Lá no fundo, debaixo da mangueira de um quintal antigo, urinava em ruínas de civilizações, voava no espaço e no tempo também.
Subia na goiabeira e mirava o bando colorido passar na rua: eles iam em grupos com assobios e piadinhas, elas de braços dados com muxoxos e risinhos. Terráqueos.
O vento balançava a goiabeira e ele voava mais.
Um dia a supermoça aparecia em pleno ar, diria oi, ele diria oi.
— Posso voar com você?
Ele durão — O céu é de todos.
E depois um sorriso — Mas é um prazer, supermoça.
E voariam até terremotos, enchentes, incêndios e desabamentos, para salvar os feridos e ajudar os desabrigados.
No catecismo, ficava olhando as estrelas no azul do tênis. O padre ensinava o que era pecado, penitência e salvação. Ele voava longe, ainda salvando feridos e caçando bandidos.
A mãe encomendou um terno azul-marinho para a Primeira Comunhão: o paletó com leço costurado na lapela, a camisa branca com peitilho de renda, a calça curta — e no dia em que vestiu tudo aquilo pela primeira vez, de pé na frente do espelho, ela falou agachada ao lado da costureira:
— Agora só falta a gravata.
— E sapato — ele pediu exigindo: sapato de verniz.
A mãe achou bobagem, ninguém olha sapato — E
você vai receber Cristo, menino, não vai a uma festa não.
Ele bateu o pé: queria de verniz, bico espelhado, salto alto, para pisar como quem bate numa porta — toc toc toc. Toda a igreja ouviria ele voltando do altar com Cristo na boca — toc toc toc —, ajoelhando no corredor para o sinal-da-cruz, depois toc toc toc até o banco.
No ensaio, escolheu o último banco mas o padre mandou os menores para os bancos da frente. Ele acabou enfiado na segunda fila, só quatro ou cinco passos até o cálice.
Mas, no dia, recebeu Cristo e esperou um pouquinho, baixou os olhos, enfiou o queixo no peito como todos, as mãos bem juntas, ajoelhado naquele silêncio de roupas novas farfalhando — e então levantou, rodopiou sobre os sapatos de verniz e foi corredor afora — toc toc toc — até o último banco.
Sentou, o órgão começou e o coro acompanhou. Aleluia.
Mas num sapato o dedinho latejava. No outro, tinha estourado uma bolha no calcanhar e o esparadrapo esfregava em carne-viva.
De repente lembrou de Cristo: tinha derretido na boca.
O dedinho doía tanto que só podia ser castigo.
Na saída, agüentou todos os beijos e abraços dos parentes, depois foram ao fotógrafo. Depois foram em pequena procissão para o almoço, ele na frente era o andor
— mas na esquina de casa não agüentou mais. Nesse tempo já tinham calçado a rua e ele sentou no meio-fio, tirou os sapatos devagar como se a pele fosse sair junto, sem respirar. Depois tirou as meias e entrou em casa de ombros caídos.
Aprendeu: sapato novo precisava lassear no sapateiro. Ficou tempo na sapataria curtindo o cheiro de couro novo, vendo o sapateiro enfiar as fôrmas e rosquear até ranger.
No domingo calçava os sapatos para a missa, confessava e comungava, toc toc, atravessava toda a igreja olhando de viés as meninas, sentava no último banco. Depois dava voltas na praça, o sol brilhava no verniz. Depois do almoço ia ao cinema, passava pelas meninas pisando duro, voltava de repente até o pipoqueiro, os sapatos rodopiavam brilhando e assim ia se entupindo de pipocas e sorvetes pelas esquinas.
No Natal pediu de presente mais um par de verniz. No aniversário, outro. O pai dizia que era a Fase do Verniz, e numa janta a irmã disse que ele parecia um espelho ambulante. Chutou por baixo da mesa. Acabou sem comida, de castigo no quarto, mas depois a mãe levou um prato.
— Parecia entrar na Fase do Couro — o pai disse mostrando a cinta.
— Esta fase passa, dizia a mãe.
Não passaria jamais, ele se prometia engraxando os sapatos.
Um dia no cinema uma menina olhou para ele uma vez, outra vez. Nunca tinha tentado, mas quando a luz apagou, foi levado pelos sapatos — e pela primeira vez sentou com uma menina na escuridão. Eram sapatos fortes e firmes, mas finos, quase preciosos: davam confiança num homem, abriam caminho exigindo decisões — então ele sentou já puxando conversa:
— Quer bala?
Ela resmungou — A poltrona está guardada — sem tirar os olhos da tela. Passava propaganda.
Ele se ajeitou nos sapatos, ela deu uma olhadela. Ele afundou na poltrona se mostrando muito à vontade:
— Guardada para mim?
— Não — ela apontou um cara que apareceu ao lado: guardada para ele.
Sentiu no braço uma mão de homem:
— Some, guri.
Escapou na escuridão, até a última privada do mi- tório. Entrou cego, urinou tonto. Quando viu, os sapatos atolavam numa papa de urina e papel no chão, a fedentina chegava a arder os olhos.
Nunca mais quis sapatos de verniz.
E para que pressa? Um dia ela — Ela — apareceria dizendo oi, ele diria oi.
— Posso andar com você?
Ele durão — A rua é pública.
E logo, com um sorriso meio de lado:
— Mas é um prazer.
Andariam até onde tudo acontecesse sem dúvidas como, por exemplo, o que fazer depois de tirar a roupa e os sapatos.
Por isso, na escola ouvia conversa dos maiores:
— Mulher gosta é de beijo na orelha, fica taradinha.
— Mais ainda nos biquinhos.
— Na orelha, isto sim.
— Quer valer quanto?
Dúvidas iam e voltavam:
— Dei duas, a segunda de cata-cavaco.
— Pela frente ou por trás?
Como?
— Apertadinha que só ela.
— E mexe bem?
O quê?
— Entrei avisando: é grande, bem.
E ele — seria grande ou pequeno?
Entrava no banheiro, tapava o buraco da fechadura e se media com a régua, a fita, a trena: eram sempre os mesmos centímetros. Até quando cresceria, e até quanto?
Enfiava velhos sapatos, andava pelas ruas. Mulheres com mangueiras aguavam jardins, lavavam calçadas. Aqui um decote, ali uma coxa, depois anoitecia. Quando via, estava zanzando nas beiradas da zona. Luminosos acendiam vermelhos e azuis, as janelas acendiam e apagavam enfileiradas. Os trouxas entravam pela porta da frente. Os gigolôs pela de trás, sempre com sapatos da moda.
E ele com aqueles biscoitões de bico redondo, patas de elefante, só serviam para chutar pedra. De castigo, quando um par acabava a mãe comprava outro igualzinho.
— Assim você aprende a dar valor, moleque.
E o pai aprovava:
— Dinheiro não cai do céu, rapaz.
Para a mãe era sempre um menino, para o pai já era um homem. Por via das dúvidas, andava sozinho — nem homem nem menino, com sapatos nem de homem nem de menino.
Uma noite, na esquina da zona, via o sol morrer quando ouviu uma voz oleosa:
— Pensando no quê, bem?
Não estava pensando, mas imediatamente pensou que tinha no bolso dinheiro para o cinema, as balas, pastel, guaraná e ônibus. Agora corriam ônibus pela rua de casa, no terreno baldio erguiam um sobrado, a zona logo seria demolida, a cidade crescia. Então, quando a mulher perguntou por que não iam para o quarto, o coração dele disparou. Já tinha raspado a penugem do bigode, já tinha crescido o que era possível, diziam que só crescia mais com o uso e, sendo assim, trocou de pé, escondeu os sapatos na sombra do poste e tirou o dinheiro do bolso:
— Só tenho isto.
Ela contou, enfiou no decote:
— Rapidinho, tá?
Aí ela saiu da sombra, ele viu uma dona gorda da idade da mãe. Ficou parado enquanto ela cruzava a rua com andar de canseira, virou irritada — Vem ou não vem? Ele foi pisando em ovos. Entraram por uma porta rabiscada, e num colchão cheirando a porra viu a dona tirar a blusa, na penumbra azulada duas mamas bicudas despencaram, as coxas pregueadas tremeram celulites. As pernas arroxeadas de pancadas. Na barriga uma cicatriz.
— Tira os sapatos — ela mandou.
Ele tirou um, ela tirou a calcinha equilibrando num pé só, quase caiu apoiando no ombro dele — as unhas soltavam lascas vermelhas. Ele tirou o outro sapato, as meias, enfiou uma em cada sapato e, quando viu, ela estava deitada de pernas abertas e ligava o rádio.
— Rapidinho, bem.
Ele catou os sapatos, quase arrancou a maçaneta:
— Pode ficar com o dinheiro. Adeus.
Saiu descalço, na sarjeta calçou os sapatos com tanto sentimento misturado que não sabia o que estava sentindo. Por via das dúvidas, foi chutando pedras.
Nas férias tinha o dia inteiro para andar atrás não sabia do quê, pelas praças e ruas e até nas estradas. Numa praça duas peitudinhas olhavam nos peixes. Ele chegou, jogou pipoca, as carpas foram engolindo à flor d’água.
— Que fome, disse a feiosa.
— Que lindas, disse a bonitinha.
Ele chegou mais perto dela:
— Quer jogar uma?
Ela jogou uma pipoca na água, e no sábado estavam de mãos dadas no cinema. Agora ele tinha calças e camisas novas do Natal. Ainda não tinha barba mas passava loção do pai. Mas os sapatos precisavam meia-sola urgente.
A mãe reclamava que ele dormia até tarde e se trancava demais no banheiro, de modo que o pai resolveu: para não virar vagabundo pelo resto da vida, tinha de arranjar logo um emprego.
— Qualquer um, rapaz, só pra aprender a trabalhar.
— Dar mais valor nas coisas, menino.
Então, quando levou os sapatos no sapateiro, perguntou por perguntar — Tem emprego aí?
O sapateiro olhou, mediu.
— Já lidou com couro alguma vez?
— Não senhor.
— Bom. Assim aprende direito desde o começo.
E naquela mesma tarde começou a trabalhar, primeiro com as lixas e graxas, depois com as tintas e colas, até aprender a cortar com a meia-lua e furar com a sovela. Chegava da escola, almoçava, saía e a mãe ficava torcendo desgosto no avental:
— Que que esse menino viu nessa sapataria?
Ele via os sapatos que chegavam para conserto sexta-feira, escolhia um par, consertava, engraxava, à noite marchava ao encontro dela.
— Outro sapato?
— Tenho mania.
Pisava seguro pelas ruas escuras. Paravam em cada árvore, beijavam como nos filmes, ela na ponta dos pés, ele abraçando firme e, de vez em quando, abrindo os olhos para ver se os dela continuavam fechados.
Aprendiam a cada beijo, trocavam olhares úmidos.
— Você beija tão gostoso.
— Você beija mais gostoso.
— Você.
— Você.
E beijavam até enjoar, depois ela tirava um cisco invisível da camisa dele, perguntava aos botões como se fosse só por perguntar:
— Como vai o trabalho?
Ele respondia como se quisesse esquecer:
— Nem me fale. Meu pai já não faz nada sem falar comigo.
— E. . . que que ele faz mesmo?
Ele desconversava, beijava a pontinha da orelha, ela arrepiava, engolia a pergunta seguinte, abria os lábios fechando os olhos, na ponta dos pés: ele era mais alto e a moda era sapato de salto alto para os homens, baixo para as mulheres, acabavam com torcicolo.
Já pregava meia-sola sem errar um prego e sem pensar no que fazia: só pensava nela, a imagem dela em cada sola. Suspirava e, mesmo naquele cheiro de couro, sentia o cheiro dela, inconfundível e único no planeta Terra.
Então se trancava na privada e o sapateiro olhava enrugando a testa: outra vez?
Era um quartinho tão apertado quanto um guarda-roupa, fedido, sem janela — e ele nunca acendia a luz. Ouviu na escuridão que o sapateiro atendia alguém, e fechou os olhos. Ali estavam agora a professora, a tia, a empregada da vizinha, a filha do sapateiro, todas menos Ela — pura para sempre.
Então escolheu uma, fez o que quis e gozou silencioso, quase sofrendo, depois acendeu a luz para ver quanto tinha saído. Tirou do bolso o lenço da mãe — Uma hora a gente sempre precisa de lenço, filho — e se limpou curvado, o queixo no peito: agora o quartinho era guarda-roupa com espelho em cada parede.
Saiu, um vulto de moça entrava e ele piscou com a claridade: lá fora o sol saía das nuvens e foi até o balcão pisando em sapatos esparramados. Quando ergueu a vista, estava diante dela.
— Que você faz aqui? — ela ficou de boca aberta olhando o avental de couro e as mãos de graxa.
— Hem, que você faz aqui?
De noite ele saiu pelas ruas com o melhor sapato da vida, e andou até um poste apagado, aí chorou feito homem: a cara nas mãos, com vontade e com vergonha, depois com força, os ombros sacudindo e o nariz também vertendo água.
Ainda chorava quando encostou um carro e ouviu voz de mulher:
— Que isso, querido?
Levantou a cara lambuzada, a boca arreganhando:
— Não é nada.
Ela abriu a porta — Então entra.
Ele entrou se enxugando no lenço, tinha até esquecido de pegar outro limpo — e aquele cheiro fez ele chorar de novo.
— Chora, chora — ela falou pegando na coxa dele
— e ele logo parou de chorar.
— Não está melhor?
Estava mesmo: era um carro macio, era uma dona bem cuidada, a mão subia pela coxa e, afinal, ele era um homem, não era?
— Como é o nome da senhora?
— O nome da senhora não interessa, querido.
A mão subia duma vez e pegou apertando.
Depois, na cama, ela pediu vinho pelo telefone, bebeu e começou a conversar. Ele estava arriado, num cansaço tão bom que podia perfeitamente viver cansado assim pelo resto da vida, mas o espanto era ainda maior que o cansaço: de repente tinha aprendido tanto em tão pouco tempo!
— Trabalha com quê?
— Aprendiz de sapateiro.
— Tá aprendendo bem?
— Muito.
Ela pegou um sapato no tapete:
— Você que fez?
Ele riu como um homem em paz: não, claro que não, aquele era um sapato de mestres, não de aprendiz.
Ela olhou bem o sapato na frente do nariz, jogou no tapete:
— Gosto só de sandália e alparcata.
E começou a beijar as pernas dele, foi descendo.
Ele começou a explicar que era um sapato de cromo alemão legítimo, palmilha anatômica, solado para anos e anos. Ela não ouvia, lambia o joelho dele, mordia, agachada de quatro e gemendo baixinho. Mas ele podia ficar horas falando de sapatos se ela não sussurrasse — Prefiro teu pé — começando a beijar os pés dele no ar enquanto os espelhos sorriam.
Tempos de república
O Gringo um dia inventou o Exomelete, nosso omelete no exílio, mas na lembrança de todos há de ficar para sempre aquela sopa do Zé, quando alguém apareceu com um saco de batatas e ninguém sabia o que fazer com aquilo. O Gringo liderava quase todos os latinos e até parte dos brasileiros — porque a gente também se dividia em partidos que se dividiam em subpartidos, repartidos, apartados, agregados e variantes. Mas na hora de lidar com as batatas, depois de mil palpites, sugestões, propostas e, enfim, quase uma assembléia, enfim foi o Zé quem tomou a peito descascar a primeira batata:
— Cozida, frita ou assada, batata tem de ser descascada.
Tirou do cinto o canivete suíço, estendeu no chão jornais de todos os partidos (o Zé era um diplomata) e agachou descascando a batata e já proseando:
— Tem horas que penso por que é que entrei na política, por que é que fui exilado, por que é que estou aqui agora sentindo mais frio que um macaco num congelador, mas sempre acho que valeu a pena para ter hoje este canivete: olha a casquinha fina que ele tira.
E pronto: de repente, sem mandar nem pedir, lá estava ele comandando uma roda de barbudos descascando batatas com facas chilenas, brasileiras, argentinas e uruguaias. Começaram a disputar quem descascava mais e, logo, estavam num entusiasmo que, se lutassem assim na guerrilha, meu Deus, a pátria estava salva!
Parecia um bando de macacos, naquele estágio em que os machos batalhavam a comida e as fêmeas amamentavam as crias. Ali tinha muito mais machos que fêmeas, então elas viviam entocadas nos quartos ou emburradas pelos cantos (para não erguer o olhar e começar uma guerra: ciúme era tanto que se podia cortar no ar com uma faca). Além disso, não tinha ali — ainda — uma fêmea que enfrentasse, por exemplo, horas de discussão para resolver o que fazer com um saco de batatas. Assim, elas cuidavam dos filhos, todos de colo (era uma safra política no primeiro acasalamento) e eles cuidavam da comida.
Era melhor, até porque quase nenhuma sabia cozinhar; a que sabia, amamentava e, conforme a primeira e famosa Assembléia Feminina, uma mulher não podia amamentar e cozinhar ao mesmo tempo, embora todos eles e elas, conforme disse o Zé, fossem filhos de mulheres que cozinhavam, amamentavam, lavavam, passavam, limpavam a casa, e depois de comer, a primeira coisa que faziam era sempre lavar a louça.
Ali, isso era sempre a última coisa em que alguém pensava depois de comer, de modo que a louça vivia empilhada na pia, esperando discutirem de quem era a vez — e a discussão sempre acabava quando alguém lembrava que os gringos, apesar de tantas autocríticas, continuavam sujando mais e lavando menos louça que todos. Então os gringos lavavam metade da louça e deixavam a outra metade; um dia alguém teve a pachorra de contar: o número de pratos era ímpar, eles lavaram um a mais, mas um copo a menos.
E como se usava copos! Naquela tarde mesmo, para resolver O Que Fazer com as batatas, lá se foram três ou quatro garrafas, que para isso sempre aparecia algum dinheiro, embora oficialmente ninguém tivesse dinheiro algum. Agora, ali estavam todos já meio bêbados descascando batatas com todo o som e toda a fúria de quem sabia perfeitamente, pelo peso do silêncio no sobrado, que tinha tempestade se armando caso não surgisse comida antes da noite. A janta tinha sido rala e o café da manhã, chá, só chá sem mais nada, como os ingleses tomam às cinco da tarde depois de um belo almoço ao meio-dia; e nosso almoço também tinha sido vago, para dizer o máximo. Na última vez em que a situação tinha ficado assim, apesar de todas as assembléias, resoluções e comissões, elas se reuniram num canto do salão com as crianças e as malas e avisaram:
— Ou aparece comida até a noite, ou a gente pede asilo às embaixadas.
E não podia haver, nem em sonho, nada mais vergonhoso que uma Volta das Guerrilheiras. Algumas já tinham pegado em armas, embora agora só pegassem em fraldas, mas sempre ia ser um presente para a publicidade das ditaduras — que era a palavra mais ouvida além de cigarro, café e sono.
Então, enquanto elas dormiam curtindo a raiva com os nenês, agora eles, depois de duas horas discutindo, lutavam contra as batatas como uma questão de tempo e de honra. Pelo menos era alguma coisa a fazer, embora ninguém soubesse o que fazer em seguida.
— En mi tierra — começou o Gringo — usa-se muito cozinhar batatas na água, nada más.
— Água e sal, claro — soprou alguém dos brasileiros.
— Na minha terra — Zé falou fanhoso — a gente bota também manteiga na água.
— Pues entonces, manteca — o Gringo concordou, já que tinham concordado com ele.
Se discordassem dele, discordava de todos; Zé já tinha pegado isso e, então, primeiro concordava, depois ia ganhando terreno devagarinho: o Zé, além de brasileiro, era mineiro.
— Não temos manteiga — soprou alguém dos brasileiros.
— Mas temos óleo — Zé falou e o Gringo ficou desconfiado um tempinho mas concordou; pusessem óleo na água, tudo que quisessem, desde que fossem batatas cozidas.
Zé esperou um tempão, enquanto a bacia de lavar fraldas ia se enchendo de batatas, aí falou que era muita batata para comer só cozidas: algumas podiam ficar no caldeirão para amassar como purê. O Gringo concordou; podiam fazer purê, sim, desde que antes cozinhassem como na Argentina as batatas.
— Mas em algum lugar do mundo — soprou alguém dos brasileiros — existe outro jeito de cozinhar batatas?
O Gringo fez que não ouviu, mandou dois gringos lavarem o caldeirão, tão grande que nosso maior nenê cabia dentro. Lavaram o caldeirão, jogaram dentro as batatas, encheram de água e acenderam o Smolni, um fogão que pegamos no lixo e foi a coisa que mais funcionou naquela república. (A caixinha coletiva, o horário de silêncio e a escala de faxina nunca funcionaram, mas no Smolni assamos patos até que a Prefeitura colocou guardas nos parques senão acabavam os patos de Berlim.)
E Zé não botou óleo na água, saiu; voltou logo com umas cebolas, deixou na pia, tornou a sair e os brasileiros entenderam: ele ia fazer uma sopa. Deus deve saber como ele conseguiu, mas voltou com cogumelos e um maço de salsinha, dentes de alho e ossos de boi ainda sangrentos do açougue. As batatas cozinhando.
Quando ficaram meio moles, os apressados comeram queimando a língua. Quando ficaram moles, quase todos comeram, levaram para as mulheres e voltaram com cara de cornos. Logo elas desceram com cara de vítimas, destamparam o caldeirão:
— Tudo isso de batatas cozidas? Ficaram loucos?!
— Por que não fizeram uma sopa?
— Só se alguém picar a cebola e o alho — Zé falou como se tivesse a idéia naquele momento.
E assim saiu nossa primeira Sopa de Batata, tão gostosa que lambemos até os ossos. Mas o Gringo não se conformou. Na primeira assembléia, pediu a palavra para “um grave alerta”:
— Estamos correndo perigo.
O Gringo tinha sido guerrilheiro mesmo, a cicatriz na perna era mesmo de bala e as outras eram mesmo de tortura, mas era antes de tudo um ator. Quando mataram Allende e nos conhecemos todos na embaixada mexicana em Santiago, ele usou o mesmo truque teatral:
— Companeros, estamos prisioneiros — sem água e sem comida!
O embaixador parecia uma criança, correndo para lá e para cá apavorado. Nem nas festas a embaixada tinha enchido tanto, mas Zé acalmou o homem dizendo que não se preocupasse: com tanto asilado, a embaixada tinha virado albergue e todo albergue conta com a graça de Deus, portanto tudo seria provido — e no mesmo dia começou a chegar comida, Zé inventou uma escala semanal de banho e a caixa-d’água voltou a encher em dois dias; mas continuaria uma terrível falta de ter o que fazer. Eram todos viciados em fazer sempre alguma coisa, mimeografar, pichar muros, ler por obrigação, vender chaveiros pela Causa, votar nesta ou naquela proposta nas reuniões do partido; e, menos o Zé, todos se juntaram no pátio quando o Gringo anunciou uma reunião de todos os países e partidos. Enquanto isso, Zé examinava a caixa-d’água e ia até um supermercado com risco de cair preso, para trazer pacotes de fraldas, cuecas e calcinhas.
Quando voltou, o Gringo distribuía ordens: formar comissão disso, comissão daquilo, até Comissão de Estudos inventaram, porque era preciso não esquecer “somos políticos antes de exilados, e políticos seremos mesmo que tenhamos de morrer no exílio”, e então todos tinham tremido de calafrio e quase aplaudiram. Depois o Gringo deu idéia da gente escolher uma Direção Central de Emergência, “sem poder político, companheiros, mas com autoridade de fato”, o que era claramente um mistério — mas, depois de muita discussão, todos concordaram com a idéia se, em vez de Direção fosse Coordenação e em vez de Central fosse Coletiva e Unificada, de modo que a sigla era CU e os brasileiros rolaram de rir.
O Gringo pediu mais respeito, “estamos lidando com nossa sobrevivência, companheiros, e, portanto, com o destino de nossas pátrias: para voltarmos vitoriosos um dia, precisamos de muita seriedade agora”. Foi quando o Zé chegou com cuecas e calcinhas despencando dos braços e a alegria foi geral. Depois o Gringo pediu ordem, sentamos de novo no chão e ele disse que era preciso, então, escolher uma diretoria — e indicou humildemente o mais paspalho dos uruguaios, que já andavam murchos de tanto tempo longe de casa. Claro que o cara recusou e, para retribuir, indicou o Gringo — que agradeceu mas não podia aceitar: ainda sentia dores da tortura, ainda andava chocado:
— Vi minha noiva — e repetiu — vi a mi novia. . . violentada por três gorilas na minha frente.
E fechava as mãos esganando o ar. De manhã, tinha tomado sol de calção apesar do frio — e todos tinham visto as cicatrizes. Agora mostrava humildade. Foi aclamado presidente. Imediatamente marcou outra reunião para o dia seguinte — assunto: “discussão da conjuntura política nacional e internacional” — e esqueceu da comida e da água.
Agora, um ano e três países depois, não existia mais CU mas o Gringo ainda se achava presidente com o dever de prevenir: a gente corria perigo de, longe de casa e da luta, cair em senos desvios — divisionismo, ceticismo, irrealismo e muitos outros ismos que podiam perfeitamente corromper as bases da nossa república. E deu exemplo:
— O comportamento do companero José.
Quase engasgou o Zé: estava começando a acabar de acordar, ainda de pijama num canto do salão, caçando fósforo para esquentar o café.
— Eu?
O dedo do Gringo espetou o peito dele a dez metros de distância:
— Você! Acorda tarde, anda pela casa en pijamas, não leva uma conversa séria sobre nada, nem jornal lê e, várias vezes, desobedeceu às resoluções do Coletivo.
Zé olhou em volta:
— Coletivo? É algum novato?
E foi esquentar café com a mesma cara daquela noite no México, quando matavam estudantes na rua e a gente ouvia os tiros; e o Gringo foi inchando de ódio e revolta até explodir — Vamos sair, luchar mismo sin armas é melhor que viver depois disso! — mas Zé murchou todo mundo:
— Não vou não, não é briga minha; além disso, tenho medo.
E, até a Noite dos Porcos, a república viveu dividida. De um lado, os que seguiam o Gringo a todas as reuniões da Anistia e da Ecologia, cinemas de arte onde quase engoliam a tela de tanto bocejar e shows onde protestavam cantando de punhos cerrados. Do outro lado os que saíam sozinhos, não marcavam pontos para se encontrar, iam ninguém sabia aonde e voltavam ninguém sabia quando — ou, como dizia o Zé, qualquer cidade é uma festa quando a gente quer.
Até que — para encurtar a história — numa Sexta-Feira da Paixão alguns brasileiros inventaram de roubar galinhas:
— É um costume no Brasil — explicaram e saíram com sacolas; mas voltaram com dois porcos (na caminhoneta de um português que andava enroscado com uma chilena tão feia que ninguém nunca tinha encarado — até a primeira noite do Português na república, quando ela gemeu tanto que as mulheres fizeram assembléia e decidiram: ou ela parava de gemer ou arranjassem outro canto pra se enfiar). O Português ficou uma fera:
— Essa mulherada nunca gozou na vida, essa é a questão. E vocês dão muito espaço a elas: deixam até terem idéias próprias!
E arrancou o pé bambo da mesa da cozinha, aliás nossa única mesa, falou da porta do quarto com o porrete na mão:
— Daqui só saio morto!
A Chilena devia ser uma revolução na cama, de modo que todos ficaram interessados e decidiram (por uma questão de ordem) discutir o problema também numa assembléia geral no sábado — mas antes os brasileiros tinham pedido carona ao Português e agora ali estavam dois porcos de bom tamanho, tão limpos que só faltavam falar alemão. Ninguém contou onde tinham roubado, e ninguém quis mesmo saber: importante era o que fazer com os bichos.
O Gringo abriu a assembléia com os porcos ainda no salão, mas eles começaram a fuçar em todas as bolsas e foram empurrados até o porão. Eram tão mansos que as mulheres começaram a sentir dó. O Gringo foi duro:
— Não podemos nos dar o luxo de sentimentalismo, compañeros. Vamos voltar à questão: quem vai cozinhar?
Ele tinha aprendido: agora não discutia mais como cozinhar, mas quem — brasileiros, argentinos, uruguaios? Ou os chilenos também queriam disputar a honra? Aí os brasileiros fizeram contra proposta: uma comissão de todos os países. O Gringo então alterou sua proposta:
— Duas comissões: uma para cada porco.
Os argentinos eram maioria, iam acabar com maioria nas duas comissões — mas os brasileiros perceberam a manobra e, depois de conseguir o apoio dos chilenos com a promessa de um lombo só para eles, conseguiram maioria numa comissão e os argentinos na outra. Tudo resolvido — alguém até já falava que porco nunca se deve comer sem limão — quando começou o verdadeiro problema: matar os porcos.
Como eram todos estudantes, intelectuais ou artistas, ninguém tinha jamais matado um frango, quanto mais um porco. E agora os porcos pareciam maiores, mascando o estofamento de um sofá no porão onde vivia um rato. A luz era fraca, de repente pareciam bichos, bichos mesmo — e pareciam menores as maiores facas, que eram dos argentinos.
— Me dê uma — pediu o Gringo a um deles.
A faca estalou na mão dele — Gracias, compañero.
Então ele enrolou as mangas da camisa bem devagar, olhando um dos porcos como se já fosse cadáver. Ninguém piava. Ele agachou ao lado da cabeça e enfiou a faca no pescoço do porco — aí os porcos viraram uma porcada esperneando, grunhindo, escoiceando e mordendo tudo que viam pela frente; —; e o porão era pequeno, o Gringo acabou encurralado num canto, teve de pular de ponta pela janelinha.
A faca ficou lá no chão, ensangüentada e também já esmerdeada.
Os porcos bufavam. Encostamos na porta nossa única estante com o peso de todos os Marx e Lênin — mas era claro que, se porco não fosse tão burro, era só avançarem na porta como tinham avançado no Gringo: a canela dele inchava e ele não gemia de dor porque, afinal, era o Gringo. Logo levantou mancando e abriu uma fresta na porta:
— Cagones! Precisamos duma marreta.
Não tinha martelo, nem ao menos uma chave-de-fenda na república, então resolveram que uma pedra servia. Formaram uma comissão binacional para buscar uma pedra “pesada e bem quadrada” conforme os brasileiros, “pesada sim, mas redonda” conforme os argentinos. Os porcos desmontavam o sofá e o Português ria lá da sua janela, principalmente porque as mulheres tinham se trancado com algodão nos ouvidos.
Chegou a pedra, um paralelepípedo, e foi logo para as mãos do Gringo — mas agora ele fazia caretas de dor, mancando mais a cada passo:
— Não sei se tenho condições. . .
Um argentino tomou a pedra — Dejá conmigo, compañero.
Abriram a porta e ele entrou rápido, os porcos grunhiram num barulhão de sofá quebrando e ele saiu muito mais rápido — sem a pedra.
— Da próxima vez — falou um uruguaio — va un de nosotros.
— Entonces — falou um chileno — é melhor amarrar a pedra pra puxar de volta.. .
Buscaram outra pedra, tão grande que o uruguaio quase não agüentava — vi pela janela: mal entrou e, da porta mesmo, mais soltou que jogou. A pedra pegou no lombo dum porco, caiu no pé do outro e, depois que pararam de grunhir, bastante tempo depois, um mancava e o outro minava sangue pela boca. Então os chilenos resolveram pedir o porrete do Português.
O Chileno entrou, abriu as pernas e levantou o porrete bem alto, tão alto que bateu no teto, mas mesmo assim um porco levou uma pancada de tontear, um olho inchou e agora os dois porcos sangravam. Os chilenos fizeram festa e a Chilena, aproveitando o barulho, começou a gemer no quarto com o Português. As mulheres bateram as janelas, dois nenês começaram a chorar e o Gringo resolveu:
— Uma vez cada país. Agora é a vez de los brasilenos.
Um de nós aceitou o desafio, depois foi de novo a vez dos argentinos, depois os uruguaios e os chilenos. Uns acertavam pauladas na cabeça, outros no lombo dos porcos — que já não esperneavam, agora só esperavam, os dois de frente para a porta, as cabeças abaixadas, bufando de dor ou de raiva — quem podia saber? A gente só sabia que, agora, era preciso matar aqueles porcos de qualquer jeito — ou, conforme o Gringo:
— Isto é como a luta popular: depois de começar, ir em frente! Retroceder, jamás! E, além do mais, uma hora eles têm de arriar.
E os porcos arriaram, primeiro um, depois o cutro. Um encostou na perede, escorregou devagar para a lama de sangue no chão, aí ficou nuns estrimiliques, nuns soluços. O outro rodou pelo quartinho cheirando todas as paredes, depois parou, olhou para a lâmpada e caiu assim, a cabeça para o alto, esticando o corpo — até que relaxou, depois começou a se esticar de novo erguendo a cabeça, tão amassada que já não se via os olhos.
Então o Gringo abriu a porta, ficou de pernas abertas olhando os bichos. Parecia cinema: estendeu a mão para trás com a palma para cima, uma faca surgiu. Ele empunhou sem nem olhar a faca, mas devia ter olhado: era curta e foi enfiada até o cabo na garganta do primeiro porco — mas o bicho, além de não morrer, ficou de pé num pulo, esguichando sangue e guinchando tão alto que, num minuto, já acendiam janelas no quarteirão.
Mas o Gringo foi em frente: espetou o outro porco, e aí eram dois porcos guinchando e berrando tão alto que achamos melhor fechar a porta e a janela.
— Vão ouvir até no inferno — o Português botou a cara na janela — e vão ligar para a polícia, podem ter certeza.
Mas só conseguiu falar isso, foi puxado para dentro e logo começaram de novo os gemidos da Chilena, mais altos que nunca mas parecendo sussurros perto dos guinchos dos porcos. E agora eram três nenês chorando.
Uma das mulheres desceu tão assustada quanto furiosa, mandou que parassem com aquilo já, já, JÁ! — e começou a berrar. O quarteirão inteiro estava aceso. Eram casas velhas com jardins e casais tão alemães que a gente se sentia ali como um cancro; aliás, nosso sobrado estava condenado e bastava um telefonema à polícia e a república estaria com as horas contadas. Mas o Gringo pediu uma faca maior, entrou de novo no quartinho — ensangüentado até os cabelos — e, quando abriu a porta, os porcos guinchavam para o mundo.
Ele bateu a porta e, como a janela continuava fechada, ninguém nunca soube nem ele contou o que aconteceu lá dentro, mas o fato é que os porcos continuaram a berrar e guinchar mais ainda — e o Gringo não saía. Abriram a porta, puxaram para fora o homem desmaiado, empapado de sangue. Uma mulher se jogou sobre o corpo. Não era a mulher dele, era a do líder dos uruguaios — que imediatamente se ajuntaram num canto. Então o Gringo abriu os olhos e falou:
— Carajo!
Levantou-se olhando com cara de nojo: naquele frio, ele tinha virado um sorvete de sangue e merda até na boca. Quis passar o braço pela boca mas também estava sujo — então estendeu a mão de novo:
— Outra faca!
Um uruguaio meteu a mão no peito dele:
— Podes parar por ahi.
E então o líder dos uruguaios entrou com uma faca de quase dois palmos, mas que o Zé tinha apelidado de Maria Teimosa, não cortava nem manteiga. Os porcos já guinchavam menos, voltaram a guinchar para o mundo e depois o Uruguaio saiu com a faca vermelha e a cara branca:
— Carajo! — mal conseguia falar.
Então o Gringo deu nele um safanão e tornou a entrar com a melhor das facas mais compridas dos argentinos, enquanto os nenês continuavam a chorar e agora eram duas mulheres berrando.
Então o Zé chegou — bêbado.
Parou balançando com as mãos na cintura. Era um cara miúdo o Zé e, quando bebia, parecia menor ainda. Botou a mão no ouvido:
— Que isso? Começou a Revolução?
Andou tropeçando até a porta do porão, abriu e entrou. Saiu em menos de um minuto, com o canivete suspendendo o Gringo pelo queixo. Aí fechou a porta com o pé, empurrou o Gringo e ficou ali olhando cada um de nós, enquanto os porcos iam guinchando cada vez mais baixo, baixinho, até parecer que guinchavam para a gente. Então Zé falou e a voz já não era de bêbado:
— Vou sair e voltar. Quem abrir essa porta eu mato.
E saiu.
Voltou logo, num furgão que entrou na garagem. Desceu um alemão de paletó. Tirou o paletó, vestiu um macacão branco por cima das roupas, tirou os sapatos e enfiou botas de borracha branca, tirou do furgão uma marreta e uma faca de açougueiro, entrou no porão e num instante os porcos silenciaram.
Abrimos a porta, ele pediu uma bacia. Joguei as fraldas na pia e levei a bacia, ele deitou nela a cabeça de um porco, enfiou a faca no pescoço e ainda borbulhou sangue. Depois de sangrar os dois fez um sinal e pegamos cada um numa pata, fomos arrastando os porcos até o furgão, e ninguém dizia uma palavra.
As mulheres não berravam e os nenês não choravam mais, só a Chilena ainda gemia.
O furgão virou a esquina, ninguém ainda falava nada.
Zé entrou no banheiro, ligou o chuveiro.
As janelas foram apagando no quarteirão.
Zé saiu do banheiro com o rodinho, pegou a vassoura, deixou na porta do porão e foi dormir.
Peguei um balde e comecei a lavar o sangue — Antes que chegue a polícia, né?
Aí começaram a ajudar e, depois do porão, continuamos a lavar e varrer tudo — de modo que, quando amanheceu, a república estava irreconhecível de tão limpa, a gente se sentia melhor e o Português desceu para o café enrolado numa toalha, como tinha sido proibido numa das mais longas assembléias. Ninguém falou nada mas ele falou:
— Dá gosto morar aqui: limpeza faz bem à alma.
Meio-dia passou num desânimo de chá com bolachas, depois a tarde passou e, na janta, não tinha chegado polícia nem tinha comida para a janta. Zé acordou, me chamou e saímos.
Andamos até uma rua comercial. Num açougue, o Alemão estava atrás do balcão e cumprimentou de leve, apontou uma porta com o queixo. Entramos numa antecâmara frigorífica, no piso estavam dois pacotes. Zé falou com o homem em alemão, o homem devolveu as mesmas palavras, pegamos os pacotes e saímos. Na rua, perguntei o que tinham falado. Zé traduziu:
— Dois pernis e não se fala mais nisso.
— Dois pernis e não se fala mais nisso.
Falei que não sabia que ele falava alemão, ele falou que sabia bem poucas palavras:
— Só pra não passar fome.
E piscou:
— Existe sempre uma língua que todo mundo entende.
E riu. Chegamos, dobramos a bacia até virar uma assadeira, enfiamos no Smolni os pernis com cerveja, cebola, alho, batatas, um pouco de vinho, conhaque e outros restos de garrafa. E de madrugada começamos a comer a melhor carne de toda a história da nossa república.
Fantasias de uma noite de verão
Meia-noite um morcego cruzou rasante sobre a casa, desviando da antena no último instante — quando o homem desligava a televisão na sala. O morcego continuou guinchando tão fino que só o cachorro ouvia de orelha empinada; depois baixou as orelhas, lambeu a pata e dormiu de novo. Então o homem sentiu desejo.
Encarava a escuridão onde antes vinte sujeitos corriam atrás duma bola, e então ali, entre a disciplina dos móveis, sentiu o desejo inchando na bermuda. Baixou o zíper e tirou para fora aquele pedaço inconformado, ficou se exibindo para a escuridão como um menino para um trem. Mas de repente suspirou cansado e, naquele silêncio, o suspiro ecoava. A geladeira censurou roncando e ele fechou a bermuda.
— Precisa tomar jeito, rapaz — falou com uma voz.
— Preciso é de um buraco, de preferência quente e úmido — falou com outra voz a caminho do quarto.
Abriu a porta, o abajur estava aceso com uma lampadazinha azul, e a mulher ressonava; de repente resmungou. Estava com uma perna fora do lençol e a coxa azulava. Ele espalmou a canela e foi subindo a mão pela perna, passou pela dobrinha atrás do joelho, alisou a coxa e ela resmungou, virou gemendo e ajeitando a barriga, já tão grande que ela não dormia mais de bruços nem de costas, só de lado.
O lençol ergueu e apareceu a calcinha. Ele abriu a bermuda. Tudo no quàrto era azul, a renda branca refletia a penumbra azulada — e ele ajoelhou chegando o nariz como quem cheira uma fruta aberta.
Tinha cheiro de pomada.
Sentou na cama sem tirar os olhos daquela renda, ia pegando quando ela tornou a virar. Gemeu desabando a barrigona ao lado dele — e o nenê se mexia por baixo do lençol esticado.
Ele ficou olhando, até que parou de mexer.
Então ele fechou a bermuda, respirando fundo: era mesmo uma noite de verão, suor melava o pescoço.
— Você precisa dormir — sussurrou abrindo a porta.
— Mas quem dorme com um calor desses? — e fechou a porta, foi tateando o corredor com uma das mãos, a outra enfiada na bermuda.
Parou na porta do quarto da empregada, e juraria ouvir a respiração dela lá dentro. Depois juraria que ela acordou quando a porta estalou. Continuou colado na porta com a mão na maçaneta e, aos poucos — como ondas batendo longe numa praia — juraria ouvir o colchão rangendo compassado, rangendo.
Ela estava siriricando — claro, siriricando com as coxas apertadas, de bruços com a bundona arreganhada, uma mão lá embaixo e a outra amassando os peitos; e assim era só ele empurrar a porta — e foi descendo devagar o zíper da bermuda — para cair nela todinha aberta e desprevenida; e, antes de ela saber se era verdade ou imaginação, ele já espalmava aquela abundância, afastava as metades, cuspia no meio e pronto, como nas revis- tinhas de antigamente.
Então empurrou a porta e entrou com a bermuda escancarada, parou de pernas abertas. Não via nada. O quartinho estava enfumaçado contra pernilongo e ele ficou lacrimejando. Sabia onde era a cama mas, agora, não tinha mais certeza do que ia encontrar — ouvia só o coração batendo no peito, na cabeça.
Ficou esperando ela perguntar quem era.
Então responderia sussurrando — Adivinha — para ela saber logo que ele estava fora do sério. E ela então sussurraria também — Credo, a essa hora. . .
— Espantada?
— Mais ou menos. . .
— Já esperava alguém?
— Depende. . .
Ou:
— A gente sempre espera, né. . .
E pronto, aí seria só chegar perto, tatear até achar o braço, trazer bem devagar a mão lisa de detergente, bem devagar, quem sabe ela ainda se espantasse, bem devagar. Então esfregaria no peito, descendo, cada vez mais peludo, até deixar por conta da natureza. Mas quem sabe ela — só por malícia — ainda perguntasse:
— Que que é isto?
E pegaria bem de leve, como se pudesse quebrar.
— Hem, que que é isto?
— Quem sabe cheirando.,.
O colchão rangendo, ela decerto se erguendo sobre o cotovelo e, de repente, o toque do nariz, a cheirada, mais um sussurro:
— Não sei...
A voz dele já sufocada:
— Quem sabe o gosto. . .
E então um toque úmido, de língua de cobra. Depois outro, mais outro.
Depois uma lambida redonda, lenta, depois os lábios engolindo tudo e ele amassando aqueles peitos com as duas mãos, língua estalando e gemidinho rouco, até ele pedir comandando:
— Agora vira.
O colchão rangeu quando ela virou.
Virou, gemeu, começou um ronco leve.
Logo estava roncando como uma porca, e ele foi murchando de pé na escuridão. Saiu fechando a porta devagar, no quintal mijou olhando as estrelas todas piscando. A meia-lua espiava na beira duma nuvem. Um cachorro riu longe.
— Me gozando, seus putos?
Foi até o armário da cozinha, catou uma vela, acendeu e voltou — Quem vai gozar sou eu...!
O cachorro apareceu na porta da casinha, gemeu estranhando. Ele passou decidido, entrou de novo no quartinho remexendo o armário, abria e fechava portas, fuçava gavetas: tralha de pesca, latas de tinta, revistas velhas. Teve de derrubar uma lata para ela acordar com voz gosmenta:
— Que que foi?
— Acabou o espiral contra pernilongo — ele falou clareando a cama com a vela.
Ela acendeu a lâmpada e ele piscou. Quando viu, ela estava de pé, camisola de algodão como a da mãe dele quando morreu, os pés claros de mulata e o cabelo amassado. Começou a procurar no armário, na ponta dos pés, a bundona mexendo como gelatina — mas num instante virou com cara de coitada, ainda boba de sono, a caixa na mão e o sotaque da roça:
— Tá aqui, ó.
Ele pegou e saiu.
— Obrigado. Boa noite.
Só na sala lembrou da vela ainda acesa na mão.
Soprou a vela e ficou rolando na mão, redonda, dura, comprida. Foi de novo para o quarto.
Sentou na cama. A mulher tinha virado de novo. A camisola estava erguida e a calcinha resplandecia, tão fina e esticada que o rego aparecia.
Ele deitou devagar do lado, puxou com a ponta dos dedos e a renda escorregou devagar. Ela se encolheu, a calcinha esticou mais ainda: agora ele via o rego descendo mais fundo.
Ela se mexeu resmungando e ele aproveitou para puxar mais, até aparecer toda aquela visão redonda.
Então ele abriu a bermuda: o sangue latejava, esmurrava. Encostou e ela se ajeitou resmungando. Ele ficou se esfregando de leve, e de leve foi abrindo o rege com as mãos até que sussurrou:
— Posso?
Ela resmungou, decerto concordando. Decerto até queria: dobrou as pernas se abrindo ainda mais por trás. Ele afastou um pouco para olhar mais uma vez: redonda, aberta, azulada. Então cuspiu na ponta dos dedos e se lambuzou, encostou cutucando, procurando — mas de repente ela virou de barriga para cima e, com uma voz de sono e de dor, reclamou que mal podia respirar, não conseguia dormir. Nem percebeu a calcinha arriada e em menos de um minuto estava dormindo de novo.
Ele levantou, tirou a camiseta de dormir, transparente de tão lavada, e vestiu uma camisa tão comprida que encobria a bermuda. Pegou a chave do carro e assim, fantasma de meia camisola, saiu na noite.
Abriu os vidros e deixou o carro se guiar — rádio ligado e marcha lenta, abrindo e fechando o zíper da bermuda até que não conseguiu mais fechar.
Quando viu, estava na frente de um sobradinho de janelas escuras. Olhava com fervor, a mão mexendo por baixo da camisa — mas nenhuma janela acendeu.
E talvez ela nem morasse mais ali...
Dois estudantes vieram rua abaixo chutando uma lata, um chute cada um. Um sempre de mãos nos bolsos, o outro com os braços soltos e desengonçados: era assim que andavam de madrugada naquele tempo. Pararam para ver se a janela dela estava acesa, depois remexeram os bolsos debaixo do poste, contaram o dinheiro e entraram no sobradinho.
Era uma escada estreita e escura e, lá em cima, era preciso juntar os dois fios da campainha quebrada. A porta abriu logo e apareceu uma dona enrugada de cabelo loiro nas pontas, castanho na raiz, pantufas e camisola de negligê. Ficou de mão na maçaneta, procurando lembrar, enquanto eles viam a televisão ligada e vinha um cheiro de bife com talco e perfume.
O amigo esticou o braço e pegou um peito por cima da camisola — Sozinha?
Ela disse que a outra tinha saído — Mas podem entrar os dois.
Entraram, o outro já erguendo a camisola e agarrando o que podia, enquanto ela limpava os cinzeiros. Levou os copos sujos para a cozinha, perguntou se bebiam e eles disseram que estavam com o dinheiro contado. Ela passou pela televisão aumentando o volume, comandou entrando no quarto:
— Um de cada vez. Quem vai primeiro?
Depois, quando desciam a escada com os bolsos vazios, o outro parou pegando no braço dele — Ela te deu uma chupadinha antes?
Ele tinha vontade de confessar que tinha sido sua primeira vez. Mas perguntou com voz casual:
— Você ela chupou?
O outro ia gingando.
— Falei que senão não levantava — e chutou a lata antes dele, foi chutando sozinho.
Ele ia encolhido, a visão dos peitos da dona despencando sem o sutiã. A barriga estriada. As mãos pegando profissionalmente e o olho procurando gota de doença, depois as mãos trabalhando depressa, enfiando, e a voz repetindo goza, bem, goza, bem, goza, gostoso, goza e, de repente, um tremor curto e contraído, espirro em elevador — e pronto, pegar de novo as roupas enquanto ela passava papel no meio das pernas e chamava o outro. Ele ficou vendo televisão e, quando começou a entender o filme, o outro voltou. Ela veio enfiando meias de lã, sentou diante da televisão e eles saíram fechando a porta.
Chegaram na esquina onde sempre se despediam, um carro vinha atrás rodando devagar. Então ele arriscou com voz sumida:
— Por que você não quis ir primeiro?
O outro piscou:
— Falei que não queria sopa tua, então ela acabou deixando eu ir por trás.
O sino da igreja bateu, bocejaram se despedindo e cada um foi para um lado. O carro passou devagar: era um desses caras que saem com desculpa de comprar cigarro, chinelo no pé e bermuda, e ficam rodando atrás de mulher.
Ele sorriu com pena — jamais seria um desses.
— Jamais.
Estava pegando mania de falar sozinho.
Mordeu a língua virando o volante depressa, dobrou a esquina: lá vinha uma loira de salto alto, magrela de bunda arrebitada — rebolando.
— Quanto mais leve, mais mexe...
E estacionou fechando o zíper da bermuda. Ela passou rente, rebolando mais. Ele chupou o ar com os dentes cerrados: um chiado, quase um assovio — como faziam os amigos de antigamente, encostando em meninota no elevador ou, no cinema, quando aparecia peito ou bunda. Agora estava ali, cabelos já branqueando e ainda na mesma esquina onde caçava sábado à noite com o carro do pai.
Meteu ré, parou ao lado dela.
— Oi.
Ela veio, debruçou na janela.
Estava sem sutiã e ele viu dois peitos durinhos, bicos que nunca deram de mamar. Ela unhava de leve a nuca dele:
— Programa?
— Depende.
— Programinha rápido é 250 — e esticou a língua, rodou o dedo na orelha dele.
Ele arrepiou inteiro e arriscou:
— E no buraquinho?
Ela se endireitou, como se já atacada por trás.
— Não.
— Pago 400, ele sussurrou.
— Não.
— Então 500, ele falou.
— Não. . .
— E 600? — agora a voz era grossa e firme.
— ... Não.
— Então 700 — ele encerrou pisando no acelerador, o carro roncou.
— Depende — ela debruçou de novo.
— Depende do quê?
Ela tornou a unhar a nuca dele — 700 pra mim e você paga o quarto.
— A gente faz no carro mesmo, ele sussurrou.
Ela tornou a se endireitar — Nada feito.
E então, sem dizer mais nada, ele arrancou obedecendo aos roncos do carro — e nem tinha tanto dinheiro.
De longe viu outra loira — vestido longo, parada na esquina como se esperasse táxi para o baile.
Estacionou e ela debruçou com voz quente:
— Fala, bem. Programinha rápido?
Ele olhava os peitos, ela pegou o olhar:
— Pode pegar que não quebra.
E pegou a mão dele, enfiou no decote. Ele amassou — eram mais durinhos que de menina.
— Então vamos, bem?
— Só se for atrás.
Ela fez a voz ainda mais rouca — Tá bom.
— Mas eu só tenho 100.
— Tá bom, ela sussurrou lambendo os lábios e contornou o carro. Entrou, ele arrancou e ela foi abrindo o zíper, pegando — e debruçou: para quem visse de fora, ele dirigia sozinho.
De repente ela ergueu a cabeça para olhar a rua:
— Vira na próxima.
Ele virou numa viela de árvores antigas.
Parou o carro, ela tornou a debruçar.
Ele desligou tudo, olhou pelo retrovisor e então desceu as mãos pelo decote das costas, até embaixo. Era meio magra mas assanhada: contorceu todo o corpo conforme ele descia a mão, e gemia de gosto com a boca cheia: ou era muito profissional ou estava gostando mesmo.
Ele tentou levantar o vestido mas era muito longo, e ela comandou suplicando — Depois. . .
— Vou acabar gozando.
Então ela sentou entre as pernas dele, e ele respirou profundamente macho. Desceu as alças do vestido e foi beijando os peitinhos. Ela começou a gemer e repetir meu querido, meu amor, com aquela voz, aqueles arrepios — então ele teve certeza de que ela estava gostando mesmo, e de repente estavam se beijando na boca.
Apareceram em volta do carro todos os amigos da vida dizendo que aquilo era indecente, não se beija puta na boca, pega piorréia, sapinho ou sífilis.
Mas ela abriu os olhos bem melosa e repetiu — Meu amor... — então se beijaram de novo, até que ele teve de prevenir — Vou gozar.
— Então vem.
Ela virou de costas, levantou ligeira o vestido. Abaixou a calcinha e, enquanto uma igreja badalava três vezes e ela se abria repetindo vem, vem, vem, ele foi descendo a mão pelos peitinhos, a barriguinha, os pelinhos raspados e depois um pinto.
Puxou a mão.
Quis xingar, saiu um grunhido.
Fechou a bermuda. Olhava a noite, ouvia longe a voz do outro como os latidos dos cães:
— Pensei que você soubesse, bem. . .
Ligou o carro, o outro tornou a debruçar nas coxas dele:
— Não liga não, vamos de outro jeito.
Ele afastou aquela cabeça, acendeu os faróis e iluminou num muro os olhos de um gato.
Arrancou. O outro ia se arrumando de queixo erguido, um silêncio duro dentro do carro.
Parou quando o silêncio ameaçava estourar. O outro desceu chutando a porta:
— Pegue cancro, bofe!
Ele rodou olhando o marcador de gasolina, as ventarolas escancaradas, as avenidas se repetindo por castigo. Parou num carrinho de cachorro-quente, comeu sem sair do carro, suspirou:
— Não devia ter saído de casa.
O cachorreiro olhava o céu agora sem estrelas:
— Capaz de chover. Não entendo mais esse tempo.
— Tem muita coisa que a gente não entende.
Entrou em casa silencioso, o cachorro olhou sonolento. Tirou a roupa e deitou como se a cama fosse de vidro — mas nada se quebrou. Ela ressonava. . .
Ele ficou de olhos abertos até um galo cantar, depois levantou, foi tomar banho. Deixou a água escorrer da cabeça aos pés enquanto os galos cantavam. Voltou limpo para a cama, ficou olhando a escuridão.
Ela arfava, resmungava. De repente virou:
— Onde você foi?
— Saí.
— Eu sei que você saiu — voz de vítima — quero é saber onde foi.
— Rodar por aí. Muito calor.
— Você me procurou antes, né? Eu pensei que fosse sonho. . .
Suspirou com dó de si mesma — Eu durmo demais. . .
Cada um ficou ouvindo a respiração do outro, até que ela soprou — Foi gostoso?
— O quê?
— Foi gostoso?
— O quê?!
— Não queira me enganar: foi gostoso?
A voz dela estava quebrada.
Um galo cantou perto — e de repente a mão pousou na coxa dele, subiu devagar e leve, até pegar — e ele cresceu depressa na mão dela.
Outro galo cantou mais perto, e o remorso dela sussurrou:
— Você tá precisando, né?
Ele quieto.
— Você quer, não quer? — ela tentava se animar.
— Tua barriga tá muito grande.
Ela trabalhava com a mão e ele afastou:
— Assim não quero.
— Como você quer? — era um desafio.
— Vira, ele comandou.
Ela virou com esforço, ficou de quatro com a camisola erguida. Ele encostou no náilon frio da calcinha. Procurou os peitos, estavam inchados. Desceu a mão, abaixou a calcinha e ficou diante da visão branca e redonda.
Colocou no meio das coxas, ela pegou e enfiou na frente.
Mas estava larga e úmida, ele escapava mal entrava.
Tirou e ficou cutucando atrás.
— Que você quer? — a voz vinha do fundo dela.
Ele cutucando.
— Hem?
Ele cutucava no lugar, então ela forçou o corpo para trás:
— Vai.
Ele cuspiu nos dedos para se lambuzar e, quando ia avançar, a mão dela pegou, mostrou o caminho e ajudou, tão ligeira como se treinada.
Onde tinha aprendido?
Sentiu que ela mexia como nunca fazia, gemendo rouca de dor ou de gozo.
Onde e com quem?
Então arrancou de repente e ela gemeu de dor ou de susto.
— Que foi?
— Você já fez assim antes.
Ela encarava, estranha e azulada pelo abajur:
— Que que tem? Foi antes da gente casar.
Ele levantou — Não sabia que tinha casado com puta.
Bateu a porta do banheiro.
Tomou outro banho. Voltou, deitou. Ela chorava no travesseiro, ainda descoberta: a bunda sacudia branca na maldita penumbra azulada.
Então ele ajoelhou na cama e, no mesmo ritmo em que ela chorava, sacudindo, bateu punheta e gozou lambuzando aquela bunda e repetindo sua puta, sua puta, sua puta.
Depois deitou, ela ainda soluçava.
Ficou passando a mão na lambuzeira, foi secando, e ela foi parando de chorar, ele fechou os olhos.
Ela levantou. Muitos galos cantavam.
Ouvia ela mexendo na cozinha como num navio — ela na proa, ele na popa.
Depois ouviu que ela chamava, longe.
— Que é? — resmungou: podia ser sonho.
Vem logo, ela insistia longe.
Ele levantou, abriu a porta e saiu descalço no corredor molhado de água que escorria dela, encostada na parede com as pernas abertas e um copo de leite na mão.
— Rebentou a bolsa.
Ele deu o braço — Vem sentar.
Ela serena:
— Deixa escorrer tudo.
Depois ela pediu uma toalha, sentou na cama e se enxugou. Dobrou a toalha e prendeu no meio das pernas.
Ele segurava o copo de leite — Toma.
— Não, pode complicar a anestesia.
Mandou pegar a maleta ao lado da cama — e de passagem pelo armário ele enfiou calça e camisa. Depois ela pegou no braço dele, levantou com uma careta e, lá fora, o cachorro viu que saíam abraçados como no começo do casamento.
Ia amanhecendo. Nessa hora o morcego voltava rasante entre as antenas orvalhadas — e, se ficasse filmado o que os morcegos e os cachorros vêem, ele com a maleta e ela arrastando sandálias com pés inchados e as pernas aberta;, a camisola estufando na brisa, a barriga apontando para a frente, abraçados, eram a própria imagem do companheirismo e da felicidade.
Sábado à noite
Dorme, meu bem.
Às vezes ligo o rádio pra dormir — quer? Às vezes fico ouvindo fita, mas o gravador quebrou. Sei até de cor uma fita do meu tempo de peão.
Um galpão com cinqüenta beliches, um tão perto do outro que você dormia com bafo na nuca — e me imagine ali no meio de cem homens de todo tipo e tamanho. Tinha até um chinês que todo dia via na bosta se estava bom de saúde no corpo — a saúde de cabeça dizia que a gente vê pela memória. Então devo ter uma cabeça de vento: só lembro tanto daquele sábado porque gravei e ouvi depois muitas noites, muitas.
Todos tinham saído de tardezinha e ficaram no alojamento só eu e mais dois, um loiro e um moreno. Anoiteceu, chovia e o programa foi ficar queimando cigarro e coçando o saco no escuro: de dia faltava água e de noite faltava luz. Naquele sábado a caixa-d’água secou quando poucos tinham tomado banho, aí a Companhia mandou uns tambores num caminhão.
Eles tiravam água com caneca, garrafa, marmita, ou molhavam pano pra esfregar no corpo; e foram se esbofeteando com água na cara, no peito, no sovaco, naquela alegria de sábado. Agachavam pra lavar a mão esfregando com areia, até que um escorregou e caiu de bunda, jogou lama nos que riram e aí começou uma farra de água e uma guerra de barro, todo mundo rindo e sabonete voando.
Depois entraram, vestiram calça nova, camisa nova, sapato ainda rangendo e cinto brilhante, passaram brilhantina e todas essas pomadas e cremes pra cabelo, encharcaram o peito de desodorante, encheram o bolso de dinheiro, foram pra cidade. Mas eu, quando vi que dois iam ficar, arranjei uma desculpa, fiquei também.
Não dava nem pra respirar com tanto bafo de perfume, sabonete, desodorante, chulé, suor e aquela pressa de macho ainda no ar — sábado eles se aprontavam com uma ansiedade de dar dó: por que homem é assim? A Companhia apagava a luz às nove; antes, catei uma revista de mulher pelada, li um conto, depois fiquei no escuro ouvindo os grilos lá fora. Então o moreno falou uma coisa que na claridade decerto não falava:
— Não é a boca que sorri, é o olhar.
Ficamos naquele silêncio esperando ele continuar; a chuvinha caindo feito caspa lá fora, sem barulho e sem parar fazia horas.
— É o olhar que sorri — ele repetiu.
Aí o loiro desandou a falar que dava vontade de esquecer a chuva, meter o pé na estrada e amassar barro até a cidade — Igual quando eu morava na roça — com uma voz tão desacorçoada que no escuro a gente via ele continuando ali mesmo, fumando, coçando o saco naquele bafo de toalha úmida e aquele cheiro de porra cada dia mais no ar.
A brasa avivava quando ele tragava, ia apagando quando ele falava — No meu tempo de roça — e a brasa avivava, a fumaça formava vultos — no meu tempo de roça, chegava sábado eu botava a roupa-de-missa (ele falava bem assim), sempre a mesma calça e uma das duas camisas melhorzinhas, pegava um sapato em cada mão e andava duas léguas até a cidade. Lavava pé no último ribeirão, calçava e entrava na cidade com intenção de ir até o centro, mas nunca chegava lá. Encalhava no segundo ou terceiro boteco, tinha vez de dormir caído na rua.
E o moreno tomou a repetir — É o olhar que sorri, não é a boca não.
Aí, só de pirraça, nem eu nem o loiro perguntamos por quê. Ali toda noite pernilongo chupava sangue à vontade, e naquele sábado eram todos contra só nós três: o remédio era fumar sem parar esbofeteando a escuridão
— zumbia um enxame em volta de cada um. A chuva não parava nem engrossava, e todo minuto o loiro ia na porta dar uma olhada:
— É chuvinha que minha mãe chamava de molha-trouxa: o trouxa sai pensando que não vai molhar, chega encharcado.
E contou que eram oito irmãos, ele era o mais velho e sempre tinha algum de-colo cagando dia afora e noite adentro. Com chuva a mãe não podia lavar roupa, ia ficando aquela fedentina de fralda e merda por todo canto, até que ela, que nunca falava palavrão, ia na porta e gritava para o céu — Chuva de merda! — aí a chuva parava.
Então o moreno levantou, foi na porta berrar chuva de merda. Barulho a gente podia fazer à vontade: a vizinhança era quinhentas casas vazias — mas o loiro falou que não adiantava gritar:
— Só dava certo na boca de minha mãe; era uma santa.
Só reclamava quando nem a natureza agüentava mais, quando São Pedro já tinha torcido até a cueca pra chover mais um pouquinho, só aí ela berrava; uma santa. O pai chegava bêbado, batia até desancar e ela não abria a boca. Só falou alto uma vez que ele lembrava, numa noite em que apanhou até ter de pedir — Pára senão amanhã não levanto! Levantava sempre de madrugada pra fazer a marmita deles, depois cuidar da criançada, das galinhas, da vaca, da roupa, da cozinha, da limpeza e da costura, de modo que ele parou de bater porque era mesmo mau negócio.
Aí o moreno perguntou se a mãe dele tinha envelhecido logo; repare como funciona pensamento de macho.
— Ela sempre foi velha — o loiro estranhou — por quê?
— Pelo seguinte... o moreno começava e parava se coçando ou acendendo mais um cigarro (decorei até os silêncios da fita. Até vejo de novo o alojamento feito uma tumba, em cada beliche o cobertor feito um cadáver).
— Eu, se um dia fosse casar — o moreno continuou
— arrumava uma dona que não envelhecesse logo.
Mas então era preciso adivinhar se ela ia ou não sofrer na vida, conforme o loiro:
— O que envelhece é sofrimento.
E o moreno — Depende. Já vi menina que era um doce com dezesseis, nos vinte desanda a engordar ou enrugar, de repente varizes, cai o peito, a boca entorta, chega nos trinta mais acabada que quarentona.
O loiro — É o sofrimento.
E o moreno, que era motorista: — Não é; é o tipo de carroceria. Carroceria ruim você pode pintar depois de cada chuva, não adianta, apodrece. Tem mulher que com trinta já ficou feiosa, mas vai até os cinqüenta com a mesma cara — e tem mulher que na aparência não envelhece mas apita na curva dos cinqüenta. É o jeito da madeira.
Então o loiro disse que não mexia com caminhão, era vidraceiro — E sabe o que eu acho?
Perguntou e foi até a porta; achava que dinheiro no bolso dava vontade de beber e cigarro estava acabando
— Devia ter enfrentado a chuva até a cidade. Por que fazem estas casas tão longe?
— Para o povo morar perto da natureza — o moreno quis rir, engasgou, ficou tossindo; até a tosse aparece no gravador, enquanto o loiro já falava o seguinte:
— Essa hora eu devia estar na segunda foda. Na primeira a gente vai que é um rojão mas, na segunda, por mais que elas façam, eu me seguro bufando no cangote e, pra não gozar, fico calculando quanto trabalho custa cada foda.
O moreno — Cada foda, um dia de trabalho.
O loiro — Cada bufada, uma hora de trabalho.
— Por isso — o moreno sempre falava aos pedaços
— por isso só caso com mulher conhecida de família, depois de estudar bem a carroceria da mãe, da avó, da irmã. Em caminhão, quem vê boniteza passa a vida em oficina.
Passou um tempo, o loiro disse que a mãe tinha morrido com quarenta e cinco, depois do último filho; por melhor que fosse a carroceria, levou tranco demais:
— Descadeirou pra sempre, murchou de tanto dar o peito.
Aí, silêncio.
Fazia dois meses que eu trabalhava ali e nunca tinha falado de família com ninguém. Quando ele começou a falar da mãe, acendi um fósforo pra ver se estava gravando : ainda não sabia lidar direito com o gravador. Peão é assim, meu bem: no dia do pagamento o dinheiro coça no bolso, quer pular fora igual pipoca estourando, e meu primeiro salário ficou na primeira loja onde entrei procurando uma lanterna. Acabei saindo com uma lanterna do tamanho de um bonde, o gravador e a fita que até hoje tem o vendedor me chamando pelo nome, uma voz tão grossa, dizendo que nunca tinha visto um gravador combinar tanto com alguém.
Então, depois que apaguei o fósforo, o loiro lembrou que a mãe achava pecado ir farrear com roupa-de-missa.
— Farra nada, mãe. Vou dar uma volta na cidade, aproveito e rezo na igreja de lá que é maior.
E imitou a voz dela:
— Você vai é deixar dinheiro na mão de mulherada
— uma voz soprada, pra mostrar o cansaço dela ou o tempo que passou.
— Mas eu deixava dinheiro era em balcão de bar, ele continuou: bebia até arrotar alambique e nem conseguir mais enfiar troco no bolso.
Repare como é feita a cabeça de homem:
— Mulher entrava no bar, eu ficava empinado de tesão. Bebia mais uma pra tomar coragem e, enquanto isso, entrava outra e eu bebia mais outra pra decidir entre as duas. Aí uma acertava com alguém e já saíam se abraçando, eu ficava com ciúme.
Repare:
— Então eu bebia mais uma pra amansar o corno, ficava achando que aquela era a dona mais gostosa da vida — e não queria mais saber de outra, bebia esperando ela voltar, depois bebia porque tinha voltado, até que bebia a última pra tomar mais coragem e ela saía de novo com outro.
Teve noite de amanhecer bebendo; chegava em casa, o pai não falava nada — ele podia fazer de tudo desde que cedinho pegasse na enxada. Então chegava, curava a bebedeira com banho de ribeirão e lá mesmo batia uma punheta, aí passava o dia escorando na enxada, deitava de noitinha, batia outra na cama, acordava de madrugada pra bater outra à vontade que então a criançada dormia roncando — e assim foi até que um dia, com vinte anos nas costas, enfiou numa mulher pela primeira vez.
— Enfiei, gozei, tirei, voltei pra casa e bati uma punheta.
— E eu com dezoito anos — o moreno começou — entrei na cabine de um Ford como ajudante de motorista, só de gonorréia peguei meia dúzia dessas putinhas de estrada.
Na cabine não tinha água pra se lavar e ele sempre pensava “essa é mais jeitosinha, limpinha, na flor da idade; não pode ter perigo desta vez”. Três dias depois começava a purgar, deixava em farmácia tudo que economizava comendo sanduíche e dormindo debaixo do caminhão. Acabou com raiva de saia: era o mesmo que ver injeção. Mas enfiava umas pingas na cabeça, atiçava de novo:
— O motorista tinha mania de dormir em sombra de árvore depois do almoço, então eu enfiava na cabine a primeira que aparecesse, só pra matar a saudade do cheirinho — e logo parava de novo em farmácia, purgando arrependimento; até que resolveu sair do purgatório: casou.
Ai pararam de falar, desliguei o gravador.
O alojamento era bem no meio das casas, onde mais tarde ia ser a praça; agora era um mato vizinho de um brejo, a saparia roncava a noite toda. Então botei pilha na lanterna e disse que ia caçar rã no brejo, mas nenhum se animou.
Tirei a roupa devagar, fiquei só de calção na porta, tomando coragem pra sair na chuva e olhando as casas enfileiradas — todas iguaizinhas sem tirar nem pôr; como aquele cemitério dos pracinhas na Itália, vi numa revista. Então falei — Parece um cemitério.
— Parece um berçário, vi uma vez num hospital — o moreno falou e eu lembro sem ter gravado.
Ele achava que tudo ali ia avivar depois de cada morador plantar sua árvore, pintar a casa do seu jeito, botar cortina, fazer horta. Mas naquela noite parecia mesmo um cemitério. Agora, quando passo lá e vejo gente com cortina na janela e jardim, acho que continua um cemitério mas enfeitado e florido.
A chuva engrossou, tomei a me vestir e ligar o gravador. O loiro falou que era judiação botar gente naquele fim de mundo:
— Uma mocinha, aqui, pra pegar cinema na cidade tem de fazer uma verdadeira viagem — e na volta arrisca topar assaltante até no ônibus e tarado em cada poste.
E o moreno — Então eu devia ficar debaixo de um poste; ou casar.
Me tirou a lanterna, começou a ler revista. O alojamento boiava em cheiro de porra, e eu andava naquela fase de lua-nova na vida, começando a enxergar na escuridão da cabeça: meu negócio era homem mesmo, e aqueles dois só falavam de puta ou de casamento!
O loiro filou um cigarro e o fósforo avermelhou ainda mais a cara dele, perguntei se era filho de alemão. Já tinha trabalhado junto com ele, dormia do lado e não sabia quase nada do cidadão.
— Sou filho de polaco — falou e cuspiu.
Perguntei se polaco e alemão não era o mesmo, olha só o que a gente inventa pra amarrar um papo; e ele explicou que não, polaco é da Polônia, alemão é da Alemanha. Então lembrou que na guerra queimaram o paiol de milho do pai dele, eles se trancaram em casa e lá de fora gritavam — Sai pra levar bala, Alemão! E o pai nem sabia de que lado da guerra estava a Polônia; quando bebia não sabia nem o rumo de casa, e vivia bebendo.
E ele cresceu vendo no terreiro uma pilha de tábuas pra assoalho, esperando o pai um dia comprar os pregos. Um dia a mãe mandou ele junto com o pai até a venda, pra lembrar dos pregos. Na primeira pinga o pai estava enfezado, na segunda amansou, na terceira começou a alegrar, na quarta começou a discutir, na quinta deu de falar besteira, na sexta mandou ele pegar um doce, ele avisou dos pregos, levou um tranco na nuca.
Mas um dia o pai trouxe os pregos, ficou de botar cabo no martelo e as tábuas continuaram apodrecendo e criando escorpião. Uma vez por ano um chuchuzeiro cobria tudo, dava chuchu, secava, as tábuas continuavam lá.
Está com sono, meu bem?
Aí ele cresceu e começou a trabalhar fora, carpir arroz aqui, roçar pasto ali, ganhando o que pagavam. Ficava até um mês longe de casa, voltava com um dinhei- rinho — e a mãe gastava tudo em comida antes que o pai desconfiasse; o velho cheirava dinheiro à distância. Às vezes ia comprar por exemplo açúcar pra mamadeira do caçula, voltava trançando pé horas depois, pacote de farinha debaixo do braço; ou então saía atrás de remédio, voltava com lata de goiabada, cantando em polaco e bêbado de cair no vento.
Até que num sábado ele esperou o velho sair pra bebedeira, foi na serraria e comprou uma carroça de tábuas, emprestou serrote do vizinho e terminou o assoalho no domingo de tardezinha. Bateu o último prego, a mãe ajoelhou passando um pano com gordura de carneiro e o caçula começou a escorregar brincando, o assoalho logo ficou até lustroso.
Depois ele botou fogo na pilha de tábuas do pai, aquilo queimou que nem palha, enquanto ele matava um cabrito criado pelos irmãos. Anoitecendo, a fogueira tinha virado braseiro e ele fincou metade do cabrito no chão. Quando a carne suou, mandou cada irmão jogar um punhado de sal, chamou a mãe e pediu — A senhora jogue também — e ela jogou um punhadinho, cobrindo o rosto com a outra mão por causa do calor; depois ficaram agachados em volta, ela sentada no toco de rachar lenha.
O pai chegou de noite, ainda emendando a bebedeira do sábado. Eles já iam beliscando o cabrito, o velho perguntou com ordem de quem.
— O cabrito era nosso.
O velho ficou balançando no vento e resmungando:
— Aqui vocês só têm o buraco da porta, quem quiser pode sair e não precisa voltar.
Ele fez que não ouviu, deitou o cabrito no toco, cortou carne pra todos, chamando um por um como se fosse pai — Pega, Fulano; pega, Ciclano; pega, Mãe. Cortou um pedaço para o pai, que aí parou de resmungar e entrou na casa escorregando no assoalho novo, caiu e ficou.
A mãe jogou mandioca na brasa e, antes de dormir, ainda comeram mandioca com melado. O pai roncava no assoalho; e daquele dia em diante ele virou o pai de todos, até que a mãe morreu. Uma tia levou o caçula e ele ficou com os outros.
Gastou o resto de um lado da fita contando que, quando o mais velho ficou grande de cuidar dos outros, ele saiu de casa e entrou na Companhia. Todo mês mandava dinheiro e o mais velho mandava carta dizendo que também queria ser peão.
Até que outro irmão ficou cuidando dos outros e o mais velho apareceu um dia, sandália no pé e trouxa na mão. Depois foi a vez de outro e mais outro, até que todos saíram pra vida — e uma noite se encontraram na zona ele, o mais velho dos irmãos, e o caçula ainda com cara de moleque.
— Que que você faz aqui, guri?
— O mesmo que você, ué.
Beberam e, na hora de pagar, o caçula tirou do bolso mais dinheiro que ele.
Aí ele parou, troquei a fita, peguei já falando de novo:
— ... trinta e três anos nas costas e o que tenho é sapato pedindo meia-sola, boca pedindo reforma completa, um rádio, uma mala e só, até o travesseiro é da Companhia.
Então também achou que, por isso, precisava era casar; repare como é cabeça de homem. Porra que não sai, sobe na cabeça e emburrece o cidadão.
O moreno largou a revista:
— Acontece que você casa, a Companhia te despede. Vidraceiro solteiro sobra por aí.
O loiro concordou logo que solteiro era mesmo melhor, já estava viciado naquela vida; trabalhar feito burro de carga, comer o pão que o cachorro do capeta mijou — pra encher o bolso duas vezes por mês, entrar em casa de mulherada e pedir uma cerveja.
— Uma não; abre logo três.
E aí mandar a mulherada beber até o cu fazer bico. Aí, lá pelas tantas, quando até coruja fecha o olho, entrar num quarto com uma, meter quase dormindo, acordar meio-dia com gosto de maçaneta na boca, enfiar a cabeça debaixo duma torneira e voltar pra cama:
— A saideira, mulher.
E então desabafou só parando pra respirar:
— Aí é o tempo dela abrir as pernas dizendo que ainda precisa tomar banho, almoçar, passar na costureira, e começa a mexer e gemer desesperada até você gozar. Aí você fica vendo ela pular da cama, lavar a xoxota na bacia e levantar já esticando lençol pra te despachar logo.
Aí ele respirou e continuou:
— Depois você entra num mata-fome e pede um sortido com bisteca a cavalo, come até o garfo encurtar, entra arrotando num cinema pra cochilar no meio do tiroteio — ou então fica na praça apreciando motorista esfregar flanela no táxi, ou entra num boteco e fica destampando cerveja, comendo pastel até cuspir óleo e arrotar palmito. Depois entra em outra casa de noitinha, enfia em outra dona e, amanhecendo, toma o rumo do alojamento revirando os bolsos atrás de dinheiro.
— Aí vem o arrependimento — o moreno cortou mas ele continuou:
— Aí você se joga no beliche de roupa e tudo, na horinha em que o cozinheiro chama pro café, pão de ontem com uma água choca — e depois é pegar no serviço caindo de sono e prometendo nunca mais pisar em puteiro, até o próximo pagamento.
O moreno — Pois é, o negócio é casar.
E ele — Mas mesmo casado com a melhor mulher do mundo, numa casinha de cortina branca com fruta entrando pela janela e comida caindo diretamente do Céu na panela, mesmo assim eu nunca ia esquecer esse gosto de fim de farra.
Aí entrei na conversa:
— Diz que vicia mais que dar o rabo, conforme quem já deu.
Mas ele — Acabei é casado com a Companhia, comendo de bandeja feito porco em cocho, catando cabelo no arroz e asa de barata no feijão, dormindo em beliche pra ouvir pedido a noite inteira.
Foi até a porta e olhou o cemitério:
— Mas é melhor que a vida desse povo que vai morar aqui. Marmita fria e bicicleta velha, merda de criança e dívida no empório.
O moreno riu — Acontece que a gente, nessa vida, chega na velhice sem quem enfie uma colher de remédio na nossa boca, sem um buraco onde cair morto.
E ele — Pra cair morto não precisa buraco, é só cair.
Foi tirando a roupa de repente, ficou só de calção e saiu dizendo que ia lavar roupa — de noite, na chuva! Você entende homem?
O moreno falou que já tinha lavado roupa de manhã, andava botando ordem na vida:
— Chega uma hora a gente ou pega uma reta ou vai pra ribanceira; cansa de arroz grudento e só pulga na cama.
Foi falando, igual a gente fala depois de gozar, igual eu falando agora pra você. Lembrou que a mãe dele fazia um arroz soltinho parecendo pipoca, e que na casa deles lençol era de saco de farinha mas sempre branco de doer na vista, cheirando sabão feito em casa.
Falou que chega uma hora o cidadão enjoa de trepar com puta, despejar porra como quem despeja óleo numa máquina. Mas casar decerto não casava mais:
— Joguei fora a sorte-grande.
Depois de ajudante de caminhão tinha sido cobrador de ônibus e, no Dia de São Cristóvão, foi na festa do sindicato. Era num gramado com os barris de chope debaixo das árvores e tanta gente em volta que ele nem tentou beber. Depois de muita cotovelada pegou um churrasco frio, agüentou discurso e mais discurso, entrega de prêmios, diplomas, homenagem, hino nacional e salva de palmas. Quase ia embora quando de noitinha chegou a banda, e os músicos logo rodearam um barril. Primeiro tocaram marcha bebendo em copo; depois tocaram polca bebendo em caneco; aí tocaram choro, samba, baião e começou a dança.
As moças ficavam debaixo das lâmpadas nas árvores, como numa vitrine, as mães atrás e a criançada encapetando em volta. Ele olhou uma moreninha, ela olhou também. A mãe com uma garrafa de coca-família; e um guri que pareceu irmão.
Ele foi lá — Quer dançar? Ela virou pra mãe — Vou dançar. A mãe:
— Tá quase na hora de ir.
Mas ela passou o braço no ombro dele e saiu dançando, ele tropeçando junto. Começaram a conversar e ela ria de tudo; ria mais com os olhos que com a boca. Contou que era filha de motorista, e ele perguntou o nome do irmãozinho.
— É meu filho.
— Casada? — ele perguntou já olhando em volta.
— Fui — ela disse com um sorrisinho no olhar.
Foram dançando até que de repente enroscaram numa rede: o gramado era num campo de futebol e tinham entrado no gol. Ela riu e ele tentou encoxar mais, ela afastou. Ele tornou a puxar conversa, dançaram até o guri avisar que a vó estava indo embora.
Ela apresentou o filho, o menino estendeu a mão dizendo o nome, muito educado. Ele perguntou se gostava de futebol, de pescaria, de cinema, e o guri só respondia não senhor, não senhor. Gostava era de passarinho. Então ele contou que tinha feito muita arapuca no tempo de guri, e o guri mais que depressa — Também faço. Ele contou de um pássaro-preto que cantava no dedo, o guri mais que depressa — O meu também. Ele lembrou de um papagaio que vivia no ombro, o guri falou que não gostava de papagaio; mas perguntou se ele sabia pegar passarinho com lacre.
— Claro — ele garantiu logo, sem saber nem o que era lacre.
Acabaram combinando de ele ir na casa deles mostrar como se pega passarinho com lacre, e ela se despediu com sorriso na boca e no olhar:
— Ele vai gostar muito.
— Eu também — e viu que ela sorri ainda mais, por dentro.
Sábado à tarde bateu no portão deles: uma casinha de madeira com jardim de alecrim e palmas-de-são-jorge, as paredes muito tempo sem ver pintura, na sala um cheiro de quarto — o guri devia dormir ali. Conversou com o pai dela, apertou o braço da mãe que estava lavando louça, foi no quintal ensinar o guri a pegar passarinho com lacre. Tinha aprendido um dia antes, e fez tudo direitinho como ensinaram — mas não pegaram nada até de tardezinha.
Aí saiu um café com bolinho, depois ela convidou pra ver televisão na sala. Apareceu gente comendo melancia num filme, ela disse que gostava muito, ele ficou de levar uma no dia seguinte; aproveitou e levou uma gaiola para o guri. Tomava cafezinho sempre tirado na hora e sempre elogiava — pra ver se a velha amolecia a cara: continuava de cara dura, boa-tarde, boa-noite, volte-sempre nunca. Mas a filha se abria, ia se despedir no portão e o aperto de mão demorava cada vez mais, até que uma noite ficaram de mãos dadas debaixo do poste.
Na outra noite a velha mandou ele sentar na cozinha, ficou temperando uma panela de feijão, perguntou se ele sabia que a filha era largada do marido. Perfeitamente. Se ele sabia que ela tinha um filho. Perfeitamente. Se ele sabia que mulher assim podia ficar falada de namorar em portão; então ele mordeu a língua pra não falar nada.
— Ou o senhor não volte mais ou desembuche duma vez.
Ele falou que precisava pensar no caso, a velha perguntou quanto ele ganhava num mês. Explicou que fazia o curso pra motorista, quando pegasse no volante ia ganhar bem mais — e resolveu de repente:
— Vai dar perfeitamente pra sustentar uma casa.
E sustentou o olhar da velha. Ela despejou a panela numa tijela e perguntou se ele sabia quanto tempo durava aquele feijão, ele não tinha idéia. Numa casa de seis pessoas durava um dia, ela falou bem devagar, numa de três pessoas ia durar dois dias, e assim por diante. Ele, por acaso, sabia o preço do feijão?
— Se com salário de motorista não se vive, dona — ele agora falava firme — como é então que vocês vivem?
— Assim — ela mostrou a cozinha apertada, os banquinhos feitos pelo marido, a geladeira descascada e um pano-de-parede: Deus ajuda quem cedo madruga.
Aí ele já tinha derrapado, não podia mais brecar:
— Eu nasci numa casa assim, dona, sempre vivi assim.
A velha calou passando pano no fogão, depois serviu café:
— O senhor quem sabe; só peço que namorem dentro de casa.
E a partir daquela noite, o sofá ficou sendo deles. Tarde da noite, depois que o guri dormia no quarto dos velhos, passava filme de terror e ela pegava na mão dele; o pai cortava unha do pé com tesourinha, a mãe resmungava de deitar cedo pra cedinho aprontar a marmita.
Com o tempo, começaram a sair para cinema e quermesse, tomar sorvete na praça; às vezes com o guri, às vezes só os dois. Então demoravam mais pra voltar, vinham parando de árvore em árvore:
— Foi com ela que aprendi a beijar direito.
Depois passou no concurso pra motorista, a velha começou a servir o café com toalhinha na bandeja.
Uma noite, a caminho da quermesse ele parou:
— Por que a gente não fica aqui mesmo?
— Aqui onde? — ela olhou em volta, estavam numa rua escura.
Ele encostou no muro — Aqui.
Naquela mesma noite pegou nos peitos dela por dentro da blusa. Outra noite, gozou esfregando nas coxas. Aí passou a esperar toda noite a saída do colégio dela; voltavam pelos muros.
Depois, enfiou a mão dela calça adentro; depois, passou a tirar o pinto pra fora. Encostava por trás dela erguendo a saia, gozava no rego da bunda; ela gozava na mão dele, cada vez gemendo mais. Até que na noite de Natal estavam tão acostumados que arriscaram no quintal — a velha tinha deitado com dor de cabeça e o velho mamava num garrafão de vinho. Ele tirou o pinto e ela pegou já começando a gemer baixinho, então ele inventou — Agacha que a luz da cozinha tá te pegando.
Ela agachou.
Ele ficou encostado na parede e ela agachada na frente, lidando com as duas mãos; então ele puxou a cabeça dela um pouquinho. Ela nem esperou ele insistir, enfiou tudo na boca; você precisava ouvir a satisfação dele contando isso. . .
Mas de repente — olha a cabeça de macho funcionando — ele teve vontade de meter a mão na cara dela, aquela chupadora (quantos decerto ela já tinha chupado?!) — e de vingança gozou na boca, ficou vendo ela cuspir sem jeito. Chupadora.
No primeiro dia do ano falou de largar a companhia de ônibus — Pra ganhar mais, casar logo — e inventou que ia virar viajante, entrou na construtora como motorista de caminhão; aparecia na casa dela de quinze em quinze dias. Jantava o ensopadinho da velha, pedia licença pra sair com ela, acertar assuntos do casamento; e iam se esfregar em muro, em terreno baldio.
Uma noite mandou ela deitar no capim, ela bateu pé que não. Agora, sempre que erguia a saia pra gozar no rego dela, ele insistia:
— Deixa enfiar.
Ela não deixava.
— Só a pontinha.
— Só se você cortar a pontinha antes, senão o resto vem depois — ela ria, ele ficava louco.
Tanto fez que ela acabou deixando — e gemendo de dor — mas ele prometeu que, na volta, iam conversar tudo com calma: casar por contrato, montar casa, comprar móveis a prestação. . . Por via das dúvidas, ela que fosse tomando pílula:
— Só faltava gozar na frente.
Então ele viajou, voltou dizendo que tinha pressa, tinha de viajar de novo urgente — e ela topou entrar num hotelzinho. Ficaram três horas:
— Dei três; uma por hora.
Garantiu de pés juntos que, na volta, conversavam sem falta — e nunca mais apareceu:
— Não caso com mulher que chupa e dá atrás.
Esqueceu dela e de casamento, até que um dia topou com ela num velório — muito mais bonita, de braço com um coroa, toda feliz. O guri já era um rapaz, cumprimentou de longe. Ela deu os pêsames, saiu com o coroa. Ele despediu do morto, entrou num bar, encheu a cara até perder os documentos e esquecer até o nome; aí a fita acabou — e agora me diga: você entende homem?
Então — pra não ficar aquele silêncio — lembro que perguntei a idade, ele disse quarenta e um:
— Mas, se pudesse, voltava aos vinte e três e casava com ela.
O loiro entrou pendurando roupa num arame, depois pediu a lanterna: ia caçar rã. Toda noite algum dizia que ia caçar rã, mas ninguém ia. A saparia coaxava a noite toda — foi? não foi? foi? — e a gente dormia com aquela zoada, acordava com a buzina do cozinheiro, chacoalhava a botina pra não enfiar o pé em aranha, vestia a roupa dura de cimento, depois enfiava a mão no saco de pão e tirava um, engolia com aquele café coado em meia e agarrava no serviço.
Assim passava a semana, depois outra, até que num sábado a gente enchia o bolso e ia pra cidade. Eu comprava um sapato, uma camisa, um perfume que escondia na mala ou um rádio que logo emprestavam e eu ouvia de longe; nunca soube negar nada pra homem nenhum. Dinheiro sobrava, você sabe que não fumo, não bebo, não jogo e não gastava com mulher; aliás, saí da Companhia logo que começaram a perceber.
Cada um tem sua miséria na vida, meu bem, e a minha naquele tempo foi trabalhar em serviço de homem, cercado de homem, cheirando homem todo minuto, vendo homem pelado todo dia, ouvindo de noite ronco de homem — e depois o que ficou foi só isto: umas vozes num gravador, um espelhinho que roubei de um, uma cueca que roubei de outro e guardei bem dobradinha num plástico pra não perder o cheiro, olha a cabeça da gente como funciona. Mas o que consola é saber que naquelas casas todas, com família jantando junto e jardinzinho florindo, a solidão também deita na cama e passa a noite ouvindo os sapos, porque enquanto não encontra o amor — se é que ele existe, né? — todo mundo tem um brejo dentro; dorme, meu bem.
Domingos Pellegrini
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