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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PALACIO DA LUA / Paul Auster
PALACIO DA LUA / Paul Auster

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

ERA O VERÃO EM QUE o homem pisou pela primeira vez na Lua. Embora eu fosse muito jovem nessa época, não acreditava no futuro. Queria viver perigosamente, seguir até onde fosse possível para então ver o que aconteceria quando lá chegasse. Quase não consegui chegar. Vi o meu dinheiro acabar-se pouco a pouco; perdi meu apartamento; passei a viver na rua. Não fosse uma moça, Kitty Wu, talvez eu tivesse morrido de fome. Eu a havia conhecido pouco antes, por acaso; acaso que depois passei a ver como algo providencial, um modo de salvar-me com a ajuda dos outros. Essa foi a primeira parte. Coisas estranhas aconteceram-me a partir de então. Trabalhei para um velho entrevado em cadeira de rodas. Descobri quem era meu pai. Atravessei o deserto a pé, de Utah à Califórnia. Isso foi há muito tempo, mas lembro-me bem dessa época. Vejo-a como o começo da minha vida.
Cheguei a Nova York no outono de 1965, quando tinha dezoito anos. Durante os primeiros nove meses morei no alojamento da universidade, onde deviam morar os calouros da Colúmbia que vinham de outras cidades. Alguns meses depois, porém, mudei-me para um apartamento da Rua 112 Oeste. Foi lá que vivi os três anos seguintes, até chegar ao fundo do poço. Diante das adversidades, foi um milagre eu ter sobrevivido.
Morei nesse apartamento na companhia de mais de mil livros, que haviam pertencido ao meu tio Victor. Ele os juntara ao longo de uns trinta anos e, num gesto impulsivo, os oferecera de presente, pouco antes de eu partir para a universidade. Era um presente de despedida. Fiz o possível para recusá-lo, mas não pude desapontar meu tio, um homem sentimental e generoso.
- Não tenho dinheiro para lhe dar - ele me disse. - Nem conselhos. Ficarei feliz se você aceitar esses livros.
Fiquei com eles, mas durante um ano e meio não abri nenhuma das caixas onde estavam guardados. Meu objetivo era convencer meu tio a recebê-los de volta. Enquanto isso, pretendia que nada os danificasse.

 

 

 


 

 

 


As caixas de livros foram-me, todavia, muito úteis. Como não houvesse móveis em meu apartamento, transformei-as em "mobília imaginária", em vez de gastar dinheiro com coisas que não queria nem podia comprar. Foi mais ou menos como montar um quebra-cabeça: agrupei-as em módulos de configurações diversas, alinhei-as, empilhei-as, reagrupei-as, até que passaram a se assemelhar a objetos de uso doméstico. Um grupo de dezesseis serviu de suporte para o colchão; outro de doze funcionou como mesa, outros de sete transformaram-se em cadeiras, um de duas caixas foi usado como mesa de cabeceira, e assim por diante. O efeito geral era um tanto monocromático, marrom-claro por toda parte, mas não pude deixar de me sentir orgulhoso de minha engenhosidade. Meus amigos achavam aquilo um pouco estranho, mas já haviam aprendido a esperar coisas estranhas de minha parte. Eu costumava sugerir-lhes que pensassem na satisfação de rolar na cama, sabendo que os sonhos haveriam de acontecer em cima da literatura americana do século 19. E também que imaginassem o prazer de sentar-se para uma refeição servida numa mesa que continha todo o Renascimento. Na verdade, eu não fazia a menor ideia dos livros guardados em cada caixa, mas tinha talento para inventar histórias e gostava do modo como soava aquilo que eu lhes dizia, ainda que fosse falso.

Minha mobília imaginária permaneceu intacta durante quase um ano. Depois, na primavera de 1967, tio Victor morreu. Sua morte foi um terrível golpe para mim; o pior que sofri, sob muitos aspectos. Tio Victor não era apenas quem eu mais amava no mundo, mas também meu único parente, meu único vínculo com alguma coisa além de mim mesmo. Sem ele, senti-me abandonado, arrasado pelo destino. Se eu estivesse preparado para aceitar sua morte, teria sido mais fácil enfrentá-la. Mas quem está preparado para a morte de um homem de cinquenta anos que sempre esteve bem de saúde? Certa tarde, em meados de abril, meu tio simplesmente morreu. Minha vida começou a mudar a partir de então; e eu, a ingressar num outro mundo.

Não há muito a contar a respeito de minha família. O elenco era pequeno, e a maioria das personagens só ficou a meu lado durante pouco tempo. Vivi com minha mãe até os onze anos, até ela morrer num acidente, em Boston, atropelada por um ônibus que se desgovernara ao escorregar na neve. Meu pai nunca esteve presente. Éramos apenas nós dois, minha mãe e eu. O fato de ela usar o nome de solteira revelava que não se casara, mas somente depois de sua morte eu soube que era filho ilegítimo. Quando criança, nunca me ocorreu perguntar sobre tais coisas. Eu era Marco Fogg; minha mãe, Emily Fogg; e meu tio de Chicago, Victor Fogg. Éramos todos Fogg, e parecia-me perfeitamente natural que pessoas da mesma família tivessem o mesmo sobrenome. Mais tarde, tio Victor haveria de contar-me que o sobrenome de seu pai fora Fogelman, mas algum funcionário da Imigração, em Ellis Island, o reduzira a Fog, com um só "g", e esse passara a ser o sobrenome americano da família até 1907, quando o segundo "g" foi acrescentado. Fogel significava pássaro, explicou-me meu tio, e eu gostava da ideia de possuir um pássaro embutido no meu ser. Imaginei que algum bravo antepassado meu tivesse mesmo sido capaz de voar. Eu o via como um pássaro gigante que, em meio à névoa, atravessara o oceano sem parar, até chegar à América.

Não tenho nenhuma fotografia de minha mãe, e lembro-me com dificuldade da aparência dela. Sempre que evoco sua imagem, vejo uma mulher de cabelos escuros, pequena, pulsos finos de criança e dedos brancos, delicados. Às vezes, eu me recordo de repente do quanto era bom sentir-lhe o toque das mãos. Ela me surge na memória sempre jovem e bonita. Talvez fosse mesmo assim; tinha apenas vinte e nove anos ao morrer. Moramos em vários apartamentos pequenos em Boston e em Cambridge. Acho que ela trabalhava numa editora qualquer de livros didáticos, mas eu era muito jovem para ter ideia do que minha mãe fazia no emprego. Mais que qualquer outra, ficou-me a lembrança de quando íamos juntos ao cinema (os faroestes de Randolph Scott, A Guerra dos Mundos e Pinóquio) e nos sentávamos no escuro, de mãos dadas, a comer pipocas de um mesmo saco. Minha mãe fazia-me rolar de rir com as piadas que contava, mas isso só acontecia raramente, na correta configuração astral. Na maior parte do tempo mantinha-se sonhadora, entregue a um ligeiro mau humor. De vez em quando, ela me transmitia autêntica tristeza, dando-me a impressão de que lutava contra uma grande confusão em seu íntimo. À medida que eu crescia, aumentava a frequência com que ela me deixava em casa, na companhia de uma baby-sitter. Só mais tarde, bem depois de sua morte, vim a compreender a que se deviam tais misteriosas saídas. Quanto a meu pai, tudo era uma lacuna, tanto antes quanto depois de ela morrer. Minha mãe se furtava a tocar no assunto e permanecia impassível diante de perguntas a respeito.

- Ele morreu há muito tempo - respondia. - Antes mesmo de você nascer.

Nenhum vestígio dele em casa. Nenhuma fotografia. Nem mesmo o nome. Na ausência de referenciais, eu o imaginava um Buck Rogers de cabelos escuros, um viajante do espaço que entrara na quarta dimensão e não encontrava mais o caminho de volta.

Minha mãe foi enterrada ao lado dos pais dela no Cemitério Westlawn. Depois disso, passei a morar com meu tio Victor, no lado norte de Chicago. Muito do que aconteceu nesse período encontra-se hoje perdido para mim, mas devo ter sofrido bastante, a vagar de um lado para outro, e também soluçado à noite ao travesseiro, como um patético herói órfão de romance novecentista. Certa vez, uma conhecida de tio Victor, bastante tola, encontrou-nos na rua e começou a chorar ao ser-me apresentada. Ela passava o lenço pelos olhos e referia-se a mim, eufemisticamente, como o rebento da paixão da pobre Emmie. Eu nunca ouvira essa expressão, que me parecia ligada a coisas horríveis e infelizes. Quando pedi a tio Victor que a explicasse, ele deu uma resposta de que nunca me esqueci:

- Todas as crianças são rebentos da paixão, mas só as melhores são chamadas desse jeito.

Mais velho que minha mãe, tio Victor era um solteirão de quarenta e três anos, nariz fino e adunco, que ganhava a vida como clarinetista. Assim como os demais Fogg, ele tinha propensão para o devaneio e a falta de objetividade, para fugas repentinas e prolongados torpores. Depois de um início promissor como membro da Cleveland Orchestra, tais características passaram a predominar. Ele perdia a hora dos ensaios por dormir demais, ou comparecia sem gravata às apresentações. Certa vez, teve a ousadia de contar uma piada forte perto do maestro búlgaro. Despedido, tio Victor passou por várias orquestras de nível inferior, cada uma gradativamente pior que a anterior e, ao voltar a Chicago, em 1953, aprendera a aceitar a mediocridade de sua carreira. Quando passei a morar com ele, em fevereiro de 1958, tio Victor dava aulas de clarineta para principiantes e tocava na Howie Dunn’s Moonlight Moods, pequena orquestra que costumava animar casamentos, festas de formatura e outras de cunho religioso. Consciente de que lhe faltava ambição, também sabia existirem no mundo outras coisas além da música - tantas, na verdade, que ele não dava conta de todas. Era do tipo que sempre sonhava com algo diferente daquilo com que se ocupava: era incapaz de ensaiar uma música qualquer sem interromper-se para resolver um lance de xadrez que tinha em mente; incapaz de jogar xadrez sem pensar nas derrotas do Chicago Cubs; incapaz de ir ao estádio sem refletir sobre algum personagem secundário de Shakespeare; e depois, ao voltar para casa, incapaz de ler por mais de vinte minutos sem sentir-se compelido a tocar clarineta. Onde quer que estivesse, aonde quer que fosse, ele sempre deixava para trás um rastro de más jogadas de xadrez, de escores incompletos e de leituras interrompidas.

Não era difícil, no entanto, gostar do tio Victor. A comida sabia pior que nos tempos de minha mãe; os apartamentos em que moramos, mais pobres e menores. A longo prazo, porém, nada disso importava muito. Tio Victor não presumia ser alguém que ele não era. Consciente de que a paternidade estava além de seus limites, tratava-me mais como amigo do que como criança, um pequeno e querido amigo. Era um arranjo que nos convinha a ambos. Um mês após minha chegada, criamos um jogo de inventar países, mundos imaginários que subvertiam as leis da natureza. Alguns deles, os melhores, levávamos semanas a aperfeiçoar; eu chegava a fazer mapas desses mundos e os pendurava em lugar de honra, acima da mesa da cozinha. A Terra da Luz Esporádica, por exemplo, e o Reino dos Homens de Um Olho Só. Diante das dificuldades que o mundo real nos apresentava, era até de esperar que quiséssemos abandoná-lo, sempre que possível.

Não muito depois de minha mudança para Chicago, tio Victor levou-me para ver A Volta ao Mundo em 80 Dias. O herói do filme chamava-se Fogg, é claro, e a partir de então titio passou a chamar-me carinhosamente de Phileas - uma secreta referência àquele estranho momento em que, segundo ele, "nos confrontamos com nós mesmos na tela". Tio Victor adorava elaborar teorias estapafúrdias e nunca se cansava de trazer à luz as glórias escondidas em meu nome: Marco Stanley Fogg. Para ele, o nome era a prova de que as viagens estavam em meu sangue, de que a vida haveria de me conduzir a lugares onde o homem nunca estivera. Marco, sem dúvida, vinha de Marco Polo, o primeiro europeu a visitar a China; Stanley, do jornalista americano que encontrara o dr. Livingstone "no coração da África Negra"; e Fogg devia-se a Phileas, o homem que percorrera o mundo em menos de três meses. Não importava que minha mãe houvesse escolhido Marco apenas por gostar do nome; ou Stanley porque fosse o nome de meu avô; e que Fogg viesse de um erro de grafia, mero equívoco de um funcionário público semianalfabeto.

Tio Victor encontrava significados onde ninguém os via e depois os transformava, muito habilmente, numa espécie de apoio clandestino. A verdade era que eu gostava de toda aquela atenção a mim dirigida. De certo modo, eu também acreditava em tudo o que ele me dizia, embora soubesse que seus discursos não passavam de bazófias, de um monte de bobagens. Mas, no curto prazo, o nominalismo de tio Victor ajudou-me a sobreviver às dificuldades que encontrei nas primeiras semanas em outra escola. Os nomes são alvos facilmente atacáveis, e Fogg prestava-se a numerosas investidas desse tipo: Fag (homossexual) e Frog (rã), por exemplo, além de outras tantas associações a fenômenos meteorológicos (por causa de fog, névoa em inglês), tais como: Snowball Head, Slush Man, Drizzle Mouth, respectivamente Cabeça de Bola de Neve, Homem de Neve Meio Derretida e Boca de Chuvisco.

Esgotado o sobrenome, o alvo seguinte foi meu primeiro nome. O "o" de Marco, muito sonoro na pronúncia inglesa, levou a epítetos como Dumbo, Jerko e Mumbo Jumbo, ou seja, Estúpido, Boçal, Coisa Sem Sentido. Havia, porém, variações que desafiavam as expectativas: Marco tornou-se Marco Polo; Marco Polo tornou-se Polo Shirt (Camisa Polo); Polo Shirt tornou-se Shirt Face (Cara de Camisa); e Shirt Face tornou-se Shit Face (Cara de Merda) - enorme crueldade que me deixou perplexo quando a ouvi pela primeira vez. Acabei passando por minha iniciação nessa escola, mas ficou-me o senso da imensa fragilidade do meu nome, tão ligado à noção de quem eu era. Assim, passei a querer protegê-lo de outros danos. Aos quinze, mudei minha assinatura para M. S. Fogg, imitando pretensiosamente os deuses da literatura moderna e, ao mesmo tempo, encantando-me com o fato de as iniciais também significarem manuscript, ou original datilografado. Tio Victor entusiasmou-se com tal reviravolta.

- Todo homem é o autor de sua própria vida - ele comentou. - E você ainda está escrevendo seu livro, elaborando seu original. O que poderia ser mais apropriado?

Pouco a pouco, Marco foi saindo de circulação. Para titio eu era Phileas e, ao entrar na faculdade, era M. S. para as demais pessoas. Alguns espertinhos chegaram a me apontar que tais letras podiam ser a sigla de uma doença, mas, a essa altura, eu já recebia com satisfação quaisquer associações ou ironias que me fossem acrescentadas. Kitty Wu, por exemplo, chamava-me de vários nomes, nomes de que eu também gostava, como Foggy, usado apenas em ocasiões especiais, e Cyrano, por motivos que mais tarde explicarei. Esses, porém, eram de sua propriedade, por assim dizer. Caso tio Victor a tivesse conhecido, teria com certeza apreciado o fato de que Marco, a seu modo, modestamente, houvesse ao menos colocado os pés na China.

Como eu não me saísse bem nas aulas de clarineta (meu fôlego não ajudava, meus lábios revelavam impaciência), logo tratei de abandoná-las. O beisebol me atraía mais, e, aos onze anos, eu já me tornara um desses meninos americanos, bem magros, que carregavam a luva para todo lugar, enfiando a mão direita no bolso umas mil vezes por dia. O beisebol ajudou-me, sem dúvida, a superar algumas dificuldades na escola. Naquela primeira primavera, eu já participava do campeonato local, e tio Victor comparecia a quase todos os jogos para me incentivar. Em julho de 1958, no entanto, mudávamo-nos de repente para St. Paul, Minnesota ("uma rara oportunidade", disse titio, referindo-se à proposta que recebera de lá para ensinar música). No ano seguinte, porém, já voltávamos para Chicago. Em outubro, tio Victor comprava um aparelho de televisão e permitia que eu faltasse na escola para assistir ao campeonato de beisebol, em que o White Sox se desclassificou após seis jogos. Aquele foi o ano de Early Wynn e seus rebolados no campo, de Wally Moon e suas estratosféricas corridas pelo circuito a fim de marcar pontos. Torcíamos por Chicago, é claro, mas ficamos silenciosamente satisfeitos quando o homem de sobrancelhas grossas arremessou, no jogo final, a bola para longe. Na temporada seguinte, voltamos a torcer para o Cubs, o pobre e trôpego Cubs, time que conquistara nosso coração. Tio Victor era um firme adepto do beisebol diurno, sem luzes artificiais.

- Quando vou a um jogo - dizia ele -, as únicas estrelas que quero ver são as que estão no campo. É um esporte para a luz do sol e muito suor. O carro de Apolo atravessando o zênite. A bola a percorrer em chamas o céu da nação!

Naquela época, mantínhamos longas conversas a respeito de gente como Ernie Banks, George Altman e Glen Hobbie. Este era o favorito de meu tio, mas, mantendo-se fiel a sua visão de mundo, tio Victor previa que esse nunca chegaria a ser um grande batedor, pois seu nome implicava amadorismo. Comentários malucos desse tipo eram essenciais ao seu senso de humor. Tendo já então aprendido a realmente apreciar as piadas de meu tio, eu compreendia por que ele as dizia em tom de seriedade.

Pouco depois de eu ter completado catorze anos, a população de casa cresceu para três. Dora Shamsky, née Katz, era uma viúva robusta, de seus quarenta e cinco anos, extravagante cabeleira descolorida e ancas apertadas por cinta. Desde a morte do sr. Shamsky, seis anos antes, ela trabalhava como secretária no Departamento Atuarial da Mid-American Life, uma empresa de seguros. Ela e tio Victor se conheceram no salão de bailes do Hotel Featherstone, onde a Moonlight Moods se encarregava do entretenimento musical dos funcionários da companhia na festa de Ano-Novo. Depois de um tempestuoso namoro, o casal se uniu em março. Nada vi de errado nisso; orgulhava-me, aliás, de ter sido padrinho do casamento. Uma vez, porém, que a poeira começou a assentar, passei a ver com tristeza que minha nova tia não achava tanta graça nas piadas de titio. Perguntei-me se isso não seria em razão de uma certa obtusidade, de uma certa lentidão mental da parte dela, que indicava maus augúrios para o relacionamento. Logo descobri que havia duas Doras. A primeira era agitada, um azougue de caráter rude e masculino, que trovejava pela casa com um eficiência de sargento, uma muralha de energia e disposição, uma sabe-tudo, um feitor. A segunda Dora era chegada à bebida, chorosa, coquete, uma sensualidade cheia de autopiedade que andava aos tropeços em roupão cor-de-rosa e vomitava as tripas pelo chão da sala. Das duas, eu preferia a segunda, ao menos pela ternura que aparentemente ela manifestava por mim. No entanto, a Dora beberrona me colocava um enigma que eu não conseguia resolver, pois ela deixava tio Victor sombrio, infeliz, e eu detestava ver seu sofrimento. Ele podia suportar a Dora sóbria e apoquentadora, mas as bebedeiras da mulher despertavam nele uma severidade e uma impaciência que não me pareciam naturais, antes uma perversão de seu verdadeiro eu. O bom e o mau encontravam-se, portanto, sempre em guerra um com outro. Quando Dora era boa, Victor era mau; quando Dora era má, Victor era bom. A boa Dora criava um Victor mau; e o bom Victor retornava apenas quando a boa Dora partia. Por mais de um ano fiquei prisioneiro dessa máquina infernal.

Por sorte, a empresa de ônibus de Boston havia pago uma indenização generosa pelo acidente com mamãe. Pelos cálculos de tio Victor, haveria dinheiro suficiente para custear quatro anos de faculdade, com modestas despesas de subsistência, e ainda me sobraria algum para começar a vida. Nos primeiros anos, esse dinheiro permaneceu intacto. Tio Victor me sustentava por conta própria e ficava satisfeito com isso. Orgulhava-se de sua responsabilidade. Não demonstrava o menor interesse em tocar nessa provisão. No entanto, com a entrada de Dora em cena, ele mudou de planos. Sacou os juros acumulados, mordiscou mais alguma coisa e matriculou-me num colégio interno em New Hampshire, julgando com isso compensar os efeitos de seu erro de cálculo. Se, por um lado, Dora não se tornara a mãe que meu tio esperava me proporcionar, por outro ele não via motivo para buscar solução diferente. Eu ficaria sem o dinheiro extra, é claro, mas, o que fazer? Forçado a escolher entre o agora e o depois, tio Victor sempre escolhera o agora. E como toda a sua vida se orientara pela lógica desse impulso, era de esperar que ele novamente optaria pelo agora.

Passei três anos na Anselm’s Academy para rapazes. Quando voltei para casa, depois do segundo ano, Victor e Dora já estavam separados. Como, porém, não mais houvesse sentido em mudar de escola, retornei a New Hampshire no final das férias de verão. Titio fez um relato bastante confuso do divórcio, e assim eu nunca soube ao certo o que aconteceu. Ouvi qualquer coisa a respeito de sumiço de contas bancárias e de pratos quebrados. Um certo George foi também mencionado, o que me levou a pensar que ele talvez estivesse envolvido. Não forcei meu tio a contar detalhes. Tudo já havia mesmo acontecido, e ele parecia mais aliviado do que pesaroso por encontrar-se de novo sozinho. Tio Victor sobrevivera às guerras conjugais, mas isso não significava que houvesse saído ileso. Sua aparência tornara-se perturbadoramente descuidada (botões que faltavam, colarinhos sujos, barras de calça desfeitas), e até mesmo suas piadas adquiriram um tom melancólico, quase de sofrimento. Já eram maus indícios, mas seus lapsos físicos deixavam-me mais inquieto. Ele às vezes tropeçava ao andar (um misterioso arqueamento de joelhos), trombava com objetos da casa, parecia esquecer onde estava. Eu sabia que a convivência com Dora cobram seu preço, mas devia haver algo mais nessa história. Querendo conter minha preocupação, tratei de me convencer de que seus problemas tinham menos a ver com o corpo do que com o estado de espírito. Talvez eu não me enganasse, mas, olhando para trás, acho difícil imaginar que os sintomas já apresentados naquele verão não estivessem relacionados com o ataque cardíaco que o vitimou três anos depois. Tio Victor nada dizia, mas seu corpo falava comigo em código, sem que eu soubesse compreendê-lo.

Quando voltei a Chicago, nas férias de Natal, a crise parecia ter passado. Tio Victor recuperara muito de seu vivacidade; grandes mudanças sobrevieram. Em setembro, ele e Howie haviam desfeito a Moonlight Moods e formado outro grupo, unindo-se a três jovens músicos que ficaram com a bateria, o piano e o saxofone. Passaram a chamar-se Moon Men, Homens da Lua, e a apresentar números de sua própria autoria. Tio Victor escrevia as letras, Howie compunha a música e os cinco cantavam, não muito bem.

- Nada de velhos sucessos - anunciou titio assim que cheguei. - Nada de música para dançar. Nada de casamentos cheios de bêbados. Deixamos as apresentações ordinárias para entrar no mundo do estrelato.

Eles haviam, sem dúvida, criado algo original. Quando os vi na noite seguinte, suas canções foram uma verdadeira revelação para mim - cheias de humor e espirituosidade, uma alegre e exuberante forma de agressão que debochava de tudo, da política ao amor. As letras de tio Victor tinham um sabor vivaz de cançoneta, mas o tom subjacente era quase swiftiano. Uma fusão de Spike Jones com Schopenhauer, caso isso seja possível. Howie arranjou trabalho para os Moon Men num clube do centro de Chicago e lá acabaram tocando nos fins de semana, de meados de novembro a meados de fevereiro. Logo que retornei a Chicago, depois de formar-me na escola, já havia uma turnê prevista e até a possibilidade de lançarem um disco por uma gravadora de Los Angeles. É aí que os livros de tio Victor entram na história. Ele partiria em meados de setembro, sem data para voltar.

Era tarde da noite, a menos de uma semana de minha partida para Nova York. Tio Victor, sentado perto da janela, acabava com um maço de cigarros e tomava aguardente num copo barato. Eu, esticado no sofá, flutuava feliz num torpor de bourbon e fumaça. Estávamos há três, quatro horas sem falar nada importante, até que cada um passou a divagar no silêncio dos próprios pensamentos. Titio deu uma última tragada no cigarro, espremeu os olhos por causa da fumaça que se voltava para o rosto e esmagou a ponta em seu cinzeiro favorito, lembrança da Feira Mundial de 1939. Examinando-me com nebulosa afeição, tomou mais um gole de bebida, estalou os lábios e soltou um profundo suspiro.

- Chegamos ao momento difícil - ele anunciou. - O final, a despedida, as famosas últimas palavras. Levantar acampamento, como dizem nos filmes de faroeste. Caso fique sem notícias minhas, Phileas, lembre-se de que estarei sempre pensando em você. Gostaria de saber onde vou estar, mas mundos novos estão acenando para nós, e não acredito que tenhamos muito tempo para escrever cartas.

Tio Victor fez uma pausa para acender outro cigarro. Suas mãos tremiam ao segurar o fósforo.

- Ninguém sabe quanto isso vai durar - ele prosseguiu. - Mas Howie está muito otimista. Nossa agenda já é extensa e, com certeza, outros compromissos vão surgir. Colorado, Arizona, Nevada, Califórnia. Estou indo para o Oeste, para uma terra inculta. Deve ser interessante, acredito, não importa o que venha a acontecer. Um bando de almofadinhas na terra dos cowboys e dos índios. Mas gosto da ideia de percorrer aquela imensidão, de tocar minha música sob os céus do deserto. Quem sabe alguma nova verdade não me será revelada?

Tio Victor riu, como que para atenuar a seriedade do que dizia.

- Assim sendo - ele concluiu -, diante de tantos caminhos a serem percorridos, devo carregar pouca coisa. Terei de me desfazer de muitos objetos, desvencilhar-me deles, jogá-los fora. Mas, como acho doloroso fazer isso, decidi dá-los a você. Em quem mais eu poderia confiar? Quem mais existe para levar adiante a tradição? Começo pelos livros. Sim, sim, todos eles. Ao que me parece, isso não poderia acontecer em melhor momento. Eu os contei hoje à tarde; são mil quatrocentos e noventa e dois volumes. Um número propício, creio eu. Evoca a descoberta da América por Colombo, em quem a universidade para onde você vai se inspirou ao escolher o nome. Alguns são grandes, outros pequenos. Alguns espessos, outros finos. Todos, no entanto, contêm palavras. Se você as ler, talvez elas ajudem em sua educação. Não quero nem saber de protestos. Assim que você estiver instalado em Nova York, eu os envio. Fico com o segundo exemplar de Dante, e o resto é todo seu. Além disso, há o tabuleiro de xadrez. Fico com o magnético, mas o de madeira você leva. Há também a caixa de charutos com autógrafos de jogadores de beisebol. Temos os de quase todos das duas últimas décadas, algumas estrelas e outros menos famosos. Matt Batts, Memo Luna, Rip Repulski, Putsy Caballero, Dick Drott. A estranheza dos nomes já lhes deve garantir a imortalidade. Há ainda várias bugigangas, objetos variados. Os cinzeiros de lembrança de Nova York e do Álamo, as gravações de Haydn e Mozart feitas pela Cleveland Orchestra, o álbum de fotografias da família, a placa que ganhei quando criança por ter tirado o primeiro lugar no concurso estadual de música. Isso foi em 1924, acredita?, há muito, muito tempo. Por fim, quero que fique com o terno de tweed que comprei na Loop poucos invernos atrás. Não vou precisar dele nos lugares onde estiver. É da melhor lã escocesa. Eu o usei apenas uma vez e, se o der para o Exército da Salvação, vai acabar com algum bêbado da cidade. Melhor que fique com você. Vai lhe dar uma certa distinção, e não há crime algum em apresentar-se bem, não é mesmo? Amanhã de manhã já vamos ao alfaiate para ajustá-lo.

Depois de uma pausa, ele acrescentou:

- Acho que é isso. Os livros, o tabuleiro de xadrez, os autógrafos, as bugigangas, o terno. Agora que meu reino lhe foi entregue, estou feliz. Você não precisa olhar para mim desse jeito. Sei o que estou fazendo, e isso me deixa satisfeito. Você é um bom rapaz, Phileas, e sempre estará comigo, não importa onde eu esteja. Por enquanto, vamos seguir rumos opostos. Mas cedo ou tarde nos encontraremos de novo, tenho certeza. No final, tudo acaba dando certo, tudo acaba encontrando suas correlações. Os nove círculos. Os nove planetas. Os nove tempos na partida de beisebol. Nossas nove vidas. Pense nisso. As correspondências são infinitas. Mas... bem, chega de bobagens. Já é tarde, e o sono nos espera. Venha, me dê a mão. Pegue com firmeza. Assim. Agora aperte. Isso, um bom aperto de despedida. Um aperto que vai ficar conosco para sempre.

A CADA UMA OU DUAS semanas, tio Victor enviava-me um cartão-postal, geralmente espalhafatoso, muito colorido; crepúsculos nas Montanhas Rochosas, fotografias de motéis de beira de estrada, cactos e rodeios, ranchos de lazer, cidades-fantasmas, cenas do deserto. Às vezes, vinham saudações circunscritas num laço de cowboy, e, certa vez, até um jumento falava num balão de quadrinho: "Saudações, de Silver Gulch". As mensagens no verso eram breves rabiscos criptográficos, mas eu não desejava tanto ter notícias de meu tio quanto receber dele algum sinal de vida. O verdadeiro prazer estava nos próprios cartões; quanto mais banais e vulgares fossem, mais satisfeito eu ficava. Sentia-me cúmplice de uma piada cifrada, cada vez que os encontrava na caixa de correspondência. Para mim, os melhores eram uma fotografia de um restaurante vazio em Reno e uma mulher gorda montada a cavalo em Cheyenne. Cheguei até a pregá-los na parede, acima de minha cama. Meu companheiro de quarto compreendeu o restaurante vazio, mas a amazona desconcertou-o. Expliquei-lhe que ela era muito parecida com Dora, a ex-mulher de meu tio. Diante das surpresas que o mundo nos traz, acrescentei, não seria nada impossível que a mulher fosse a própria Dora.

Como tio Victor não permanecia por muito tempo em lugar algum, era difícil mandar resposta. No final de outubro, escrevi-lhe uma carta de nove páginas sobre o blecaute de Nova York (eu havia ficado preso com dois amigos num elevador), mas somente a enviei em janeiro, quando os Moon Men começaram uma temporada de três semanas em Tahoe. Se, por um lado, eu não escrevia com frequência, por outro tentava manter-me em contato espiritual com meu tio ao usar seu terno. Naquela época, não era comum que estudantes usassem terno, mas eu me sentia em casa ao fazê-lo. E, como não tivesse outra casa, usei-o do começo ao fim do ano, todos os dias. Nas horas de esgotamento e de infelicidade, era reconfortante estar envolvido no calor da roupa de tio Victor. Às vezes, eu imaginava que o terno preservava minha integridade; que, não fosse ele, meu corpo se desvaneceria. O terno funcionava como uma membrana protetora, uma segunda pele que me defendia dos golpes da vida.

Hoje, ao olhar para trás, dou-me conta da figura estranha que eu devia compor: muito magro, desgrenhado, nervoso, alguém visivelmente desajustado ao ritmo do resto do mundo. Na verdade, porém, eu não queria me ajustar. Se meus colegas tachavam-me de esquisito, isso era problema deles. Eu era o intelectual sublime, a esquiva ovelha desgarrada do rebanho. Quase enrubesço ao lembrar-me das poses ridículas que eu então assumia. Era um grotesco amálgama de timidez e arrogância que alternava longos e estranhos silêncios com rompantes inflamados. Quando me dava na veneta, passava noites inteiras nos bares, fumando e bebendo como se quisesse me matar, citando versos de poetas menores do século 16, fazendo obscuras referências em latim a filósofos medievais, esforçando-me ao máximo para impressionar os amigos. Dezoito anos é uma idade terrível, e eu estava convencido de ser mais adulto que meus colegas de classe. Na verdade, eu apenas encontrara um modo diferente de ser jovem. Mais que qualquer outra coisa, o terno era o elemento distintivo de minha identidade, o emblema de como eu queria ser visto pelos outros. Do ponto de vista objetivo, nada havia de errado com o terno. Era de tweed escuro, esverdeado, xadrez miúdo e lapelas estreitas - um artigo de qualidade. No entanto, depois de vários meses de uso constante, passou a dar uma impressão de desleixo, pendurado em meu corpo esquelético como uma ideia tardiamente expressa, um desaprumo feito de lã. Meus amigos não sabiam, é claro, que eu o usava por motivos sentimentais. Sob minha postura inconformista, eu também satisfazia o desejo de ter meu tio perto de mim, e o caimento da roupa quase não era relevante nesse sentido. Se tio Victor me tivesse dado um terno roxo e bem largo, eu o teria usado da mesma forma que o tweed.

Quando na primavera acabaram as aulas, descartei a proposta de meu colega de quarto quanto a dividirmos um apartamento no ano seguinte. Eu gostava bastante de Zimmer (ele era de fato meu melhor amigo), mas, depois de quatro anos a compartilhar dormitórios com colegas, não resisti à tentação de morar sozinho. Encontrei o apartamento da Rua 112 Oeste e mudei-me para lá em 15 de junho. Cheguei com minhas malas pouco antes de dois homens corpulentos aparecerem com as setenta e seis caixas de livros de tio Victor, que haviam ficado nove meses num depósito. Era um apartamento tipo estúdio, no quinto andar de um grande prédio com elevador: uma sala de tamanho médio com a pequena cozinha num canto, um armário, um banheiro, um par de janelas que davam para um beco. No parapeito, pombas batiam as asas e arrulhavam. Abaixo, na viela, havia seis latões de lixo amassados.

A atmosfera lá dentro era cinzenta, com escassa luminosidade, até mesmo nos dias mais claros. No começo, assaltava-me às vezes um certo medo de ficar sozinho, mas logo fiz uma singular descoberta que me ajudou a aquecer o ambiente e ali me instalar. Na segunda ou terceira noite depois da mudança, muito por acaso, estava eu em pé entre as duas janelas, meio voltado para a esquerda. Olhei de relance nessa direção e vi, de repente, uma fresta entre os dois prédios dos fundos. Por ali eu podia ver a Broadway, uma ínfima parte da Broadway, e todo esse espaço visual era ocupado por um luminoso de néon, um refulgente archote de letras cor-de-rosa e azuis que formavam a palavra MOON PALACE, Palácio da Lua. Nele reconheci o cartaz do restaurante chinês logo abaixo no quarteirão, mas a força com que essas palavras me atingiram ofuscou qualquer referencial e associação de ordem prática. Eram para mim letras mágicas suspensas na escuridão como uma mensagem do céu. MOON PALACE. Pensei imediatamente em tio Victor e sua banda. Então, nesse primeiro momento irracional, meus temores perderam o poder que exerciam sobre mim. Eu nunca havia experimentado nada tão súbito e absoluto. Uma sala simples e desmazelada transformara-se em lugar de introspecção, em ponto de contato com estranhos presságios e acontecimentos misteriosos, arbitrários. Continuei olhando para o luminoso e, pouco a pouco, fui compreendendo que viera para o lugar certo, que aquele pequeno apartamento era onde eu realmente deveria morar.

Passei o verão trabalhando meio período numa livraria, indo ao cinema, apaixonando-me e desapaixonando-me por uma moça chamada Cynthia, cujo rosto logo desapareceu de minha memória. Sentia-me cada vez mais em casa no novo apartamento e, quando no outono as aulas recomeçaram, lancei-me a noitadas em que bebia até tarde na companhia de Zimmer e outros amigos, a buscas amorosas e a prolongados períodos de leitura e estudo. Bem mais tarde, ao contemplar isso tudo pelo crivo dos anos, compreendi o quanto essa época me fora fértil.

Poucas semanas depois de completar vinte anos, recebi uma carta quase incompreensível de tio Victor: uma carta longa, escrita a lápis no verso de formulários amarelos de encomendas da Enciclopédia Humboldt. Pelo que entendi, tempos difíceis haviam chegado para os Moon Men. Depois de longa temporada de má sorte (contratos rompidos, pneus furados, um bêbado que dera um murro no nariz do saxofonista), o grupo acabou por se separar. Tio Victor vivia desde novembro em Boise, Idaho, onde arranjara trabalho temporário como vendedor ambulante de enciclopédias. A situação não era nada boa, e eu reconhecia, pela primeira vez na vida, um tom de derrota nas palavras de tio Victor. "Minha clarineta está no penhor", dizia a carta, "minha conta bancária está a zero, e os moradores de Boise não se interessam por enciclopédias."

Mandei dinheiro para o meu tio e também um telegrama chamando-o a Nova York. Tio Victor respondeu dois dias depois, agradecendo o convite. Ele faria as malas e, no final da semana, tomaria um ônibus. Calculei que ele chegaria na terça-feira, quarta no máximo. A quarta, porém, passou, e tio Victor não apareceu. Mandei outro telegrama, mas não obtive resposta. As possibilidades de desastre me pareciam infinitas. Imaginei tudo o que seria possível acontecer a um homem entre Boise e Nova York, e o continente americano logo se transformava numa extensa zona de perigo, num pesadelo de armadilhas e labirintos. Tentei localizar o proprietário da casa que alojava tio Victor. Nada consegui. Como último recurso, telefonei para a polícia. Expliquei cuidadosamente o problema ao sargento que me atendeu. Neil Armstrong era o seu nome. No dia seguinte, o sargento Armstrong me dava notícias. Tio Victor fora encontrado morto em seu quarto de pensão na Rua 12 Norte. Estava caído numa cadeira, de sobretudo vestido, apertando com a mão direita a clarineta semidesmontada. Duas malas já feitas encontravam-se à porta. O quarto fora vasculhado, mas as autoridades nada encontraram que pudesse sugerir algum crime. De acordo com o relatório preliminar do médico-legista, a causa provável da morte era ataque do coração.

- Triste sorte, rapaz - acrescentou o sargento. - Sinto muito.

Na manhã seguinte, tomei o avião para o Oeste. Identifiquei tio Victor no necrotério, paguei dívidas, assinei documentos, providenciei o traslado para Chicago. O agente funerário de Boise ficou aflito com o estado do corpo. Depois de quase uma semana no apartamento, não havia muito o que fazer com ele.

- Se eu fosse você - preveniu-me o agente -, não esperaria nenhum milagre.

Marquei o funeral pelo telefone, avisei alguns amigos de tio Victor (Howie Dunn, o saxofonista de nariz quebrado, vários ex-alunos), fiz algumas débeis tentativas de localizar Dora (não a encontrei) e, em seguida, acompanhei o caixão até Chicago. Tio Victor foi enterrado ao lado de minha mãe; o céu castigava-nos com chuva enquanto assistíamos a nosso amigo desaparecer na terra. Depois, fomos à casa de Dunn, no lado norte, onde sua mulher nos ofereceu sopa e um modesto prato de frios. Eu, que não parava de chorar havia quatro horas, consumi umas cinco ou seis doses duplas de bourbon junto com a refeição. O álcool animou-me consideravelmente o espírito, tanto que, cerca de uma hora depois, comecei a cantar em voz alta. Howie acompanhou-me ao piano, e, durante algum tempo, a reunião foi um tanto ruidosa. O encanto quebrou-se quando vomitei no chão. Às seis horas, despedi-me e saí para a chuva. Andei à deriva por umas duas, três horas; vomitei novamente na entrada de uma casa; encontrei Agnes, uma prostituta magra, de olhos cinzentos, que se encontrava sob um guarda-chuva numa rua cheia de luminosos de néon. Levei-a a um quarto do Eldorado Hotel, fiz-lhe uma breve palestra a respeito dos poemas de Sir Walter Raleigh e cantei-lhe canções de ninar enquanto ela se despia e abria as pernas. Ela me chamou de maluco, mas concordou em passar a noite comigo depois que eu lhe dei cem dólares. Dormi mal, no entanto. Saí da cama às quatro da manhã, vesti minhas roupas molhadas e tomei um táxi para o aeroporto. Cheguei a Nova York às dez.

O PROBLEMA NÃO ERA propriamente desgosto. Talvez fosse no início, mas o desgosto acabou sendo substituído por outra coisa - algo mais tangível, mais calculável em seus efeitos, mais violento no dano que causou. Toda uma corrente de forças havia sido posta em movimento. A certa altura, comecei a oscilar, a voar em círculos cada vez maiores ao redor de mim mesmo, até que saí de órbita.

O fato era que minha situação financeira se deteriorava. Já havia algum tempo que tinha consciência disso, mas até então a ameaça apenas me acenava a distância, sem que eu a avaliasse com seriedade. Contudo, na esteira da morte de tio Victor, depois de ter gasto milhares de dólares naqueles dias terríveis, meu orçamento estava reduzido a migalhas. A não ser que eu tomasse alguma providência para arranjar dinheiro, não conseguiria terminar a faculdade. Calculei que, se continuasse gastando como vinha fazendo até o momento, já em novembro de meu último ano eu não teria mais nada - nada mesmo, nenhum centavo.

Meu primeiro impulso foi desistir dos estudos, mas, depois de brincar com a ideia durante uns dois dias, eu a reconsiderei. Havia prometido a meu tio que me formaria. Como, porém, ele não mais estivesse por perto para aprovar qualquer mudança de planos, não me senti autorizado a descumprir minha palavra. Além do mais, havia a questão do serviço militar. Se eu deixasse a faculdade, minha dispensa temporária seria revogada, e não me agradava nem um pouco a ideia de ter uma morte prematura nas selvas da Ásia. Diante disso, eu ficaria em Nova York, não iria abandonar a Colúmbia. Era a decisão sensata, o melhor a se fazer. Depois de um início tão promissor, não me seria difícil continuar agindo sensatamente. Havia muitas opções para as pessoas que se encontravam na minha situação - bolsas de estudo, empréstimos, trabalho para estudantes -, mas, ao pensar nisso, fui tomado por profunda aversão. Tratava-se de uma reação involuntária, um convulsivo ataque de náusea. Dei-me conta de que não queria ter participação alguma nessas coisas, eu as rejeitava - obstinadamente, com desprezo -, sabendo muito bem que estava sabotando minha única esperança de sobreviver à crise. Daí por diante, nada fiz para me ajudar, recusei-me a levantar um só dedo. Sabe Deus por que eu me comportava assim. Arranjei incontáveis motivos para tanto, motivos que talvez se resumissem em desespero. Eu estava desesperado e, diante de tamanha revolução, achava necessário tomar alguma atitude drástica. Eu queria cuspir no mundo, fazer o que houvesse de mais grosseiro.

Com todo o fervor e o idealismo de um jovem que lera e refletira muito, decidi que não deveria fazer nada: minha ação seria a recusa militante em agir. Era um niilismo elevado à categoria de proposta estética. Eu transformaria minha vida numa obra de arte, sacrificando-me a paradoxos tão requintados que cada respirar me ensinaria a descobrir o prazer de minha própria condenação. Todos os sinais apontavam para um eclipse total, e, embora eu me esforçasse para fazer outra leitura, a imagem da escuridão cada vez mais me atraía, seduzindo-me com a simplicidade de sua forma e de seu propósito. Eu não faria nada para me opor ao inevitável, tampouco sairia correndo a seu encontro. Se a vida pudesse prosseguir como até então, tanto melhor. Eu seria paciente, aguentaria firme. Sabia o que estava para acontecer comigo, e aconteceria mais cedo ou mais tarde. O eclipse total. O animal havia sido sacrificado, e suas entranhas decodificadas. A Lua esconderia o Sol, e nesse momento eu desapareceria. Ficaria sem um tostão, seria um resto de naufrágio em carne e osso.

Foi então que comecei a ler os livros de tio Victor. Duas semanas depois do enterro, peguei uma das caixas ao acaso, parti cuidadosamente com uma faca a fita adesiva, e li tudo o que havia dentro. Era uma estranha miscelânea, aparentemente guardada sem nenhum critério. Havia romances, peças de teatro, livros de história, relatos de viagens, livros de xadrez, romances policiais, ficção científica e obras de filosofia - um caos total. Para mim, no entanto, não fazia diferença. Li todos os livros até o fim e recusei-me a julgá-los. No que me dizia respeito, cada livro era igual ao outro, cada frase composta com o número exato de palavras, cada palavra onde devia estar. Foi o modo que escolhi de guardar luto por tio Victor. Eu abria as caixas uma a uma; e lia os livros, um a um. Determinei-me a cumprir essa tarefa, e com ela prossegui até o amargo fim.

Cada caixa continha um amontoado de livros semelhantes ao da primeira. Eram cheias de altos e baixos. Continham clássicos e livros de interesse passageiro; livros de bolso maltratados e edições em capa dura; literatura de entretenimento junto de John Donne e Leon Tolstói. Tio Victor nunca organizara sua biblioteca de modo sistemático. Quando comprava um livro, colocava-o na estante ao lado do que comprara antes. Assim, pouco a pouco, as prateleiras foram se expandindo, preenchendo mais e mais espaço ao longo dos anos. Foi precisamente nessa ordem que os livros entraram nas caixas. Havia aí ao menos uma cronologia, intacta, preservada por negligência. Achei ideal o arranjo. Sempre que eu abria uma caixa, entrava num período da vida de meu tio, um certo período de dias, semanas ou meses. Consolava-me o fato de sentir que estava ocupando o mesmo espaço mental que tio Victor ocupara - lendo as mesmas palavras, vivendo as mesmas histórias, tendo talvez os mesmos pensamentos. Era quase como seguir a rota de um explorador de antigamente; reproduzir seus passos à medida que ele se aventurava num território virgem, acompanhando o Sol em seu caminho para o Oeste, perseguindo a luz até que ela finalmente se extinguisse. Como as caixas não estivessem numeradas nem etiquetadas, eu não podia saber em que período estava para ingressar. A jornada dividia-se, portanto, em segmentos estanques e descontínuos. De Boston a Lenox, por exemplo. De Minneapolis a Sioux Falls. De Kenosha a Salt Lake City. Pouco importava o fato de eu ter de saltar no mapa. No final, não haveria lacunas, todas as distâncias seriam percorridas.

Já havia lido muitos daqueles livros; alguns eu ouvira o próprio tio Victor ler para mim em voz alta: Robinson Crusoe, O Médico e o Monstro, O Homem Invisível. Mas disso não fiz nenhum entrave. Eu devorava todos, obras antigas e novas, com igual paixão, com idêntica voracidade. Pilhas de livros já lidos formaram-se nos cantos do apartamento, e, sempre que alguma dessas torres ameaçava cair, eu enchia duas sacolas desses volumes pensos e os levava em minha visita seguinte à Colúmbia. Bem diante dos campus, na Broadway, ficava a Livraria Chandler’s, uma entulhada e poeirenta toca de ratos que praticava um ágil comércio de livros usados. Entre o verão de 1967 e o de 1969, apareci lá dezenas de vezes, desfazendo-me pouco a pouco de minha herança. Essa era uma ação que eu me permitia: dispor do que era meu. Achava uma violência separar-me das coisas que haviam pertencido a tio Victor, mas estava certo de que ele não me condenaria por isso. De alguma forma, eu já havia saldado minha dívida ao ler os livros, e, como tivesse tão pouco dinheiro, parecia-me lógico dar o passo seguinte, convertendo-os naquilo de que necessitava.

O problema era que eu não conseguia ganhar o suficiente. Chandler fazia jogo duro, e a avaliação que tinha de um livro diferia tanto da minha que eu mal sabia o que lhe dizer. Para mim, os livros não eram tanto um receptáculo de palavras, mas as próprias palavras; e o valor de um deles era determinado por sua qualidade espiritual, não pelo estado de conservação. Um Homero cheio de rugas valia, por exemplo, mais que um Virgílio em condições impecáveis; três volumes de Descartes valiam menos que um de Pascal. Eu achava essas distinções essenciais, mas para Chandler elas não existiam. Ele considerava o livro apenas um objeto, algo que pertencia ao mundo das coisas; não era, portanto, diferente de uma caixa de sapatos, de um desentupidor de privada ou de um bule de café. Cada vez que eu lhe trazia mais uma parte da biblioteca de tio Victor, o velho reagia com a atitude costumeira: folheava os livros com desprezo, lia atentamente as lombadas, procurava manchas e estragos, dando sempre a impressão de estar mexendo num monte de sujeira. Esse era o seu jogo. O fato de depreciar a mercadoria permitia a Chandler oferecer preços mínimos. Depois de trinta anos de prática, seu número estava mais que ensaiado e pronto, com todo um repertório de resmungos e apartes, caretas, estalos de língua e sacudidas de cabeça que afetavam tristeza. A cena toda era para dar-me a entender o quanto minha pretensão era descabida, para fazer-me sentir, antes de tudo, vergonha da ousadia de apresentar-lhe aqueles livros. Acha que isso vale alguma coisa? Quer que o lixeiro lhe pague para levar o seu lixo?

Eu sabia que estava sendo logrado, mas raramente me dava ao trabalho de protestar. Afinal, o que poderia fazer? Chandler negociava de uma posição de força, e nada haveria de mudar essa condição, pois eu sempre estava desesperado para vender, e ele indiferente para comprar. Também não havia sentido em fingir indiferença para vender. O negócio simplesmente não seria feito, e não vender acabaria sendo pior do que ser logrado. Descobri que costumava ser mais vantajoso vender pequena quantidade de livros, não mais que doze ou quinze de cada vez. A média de preço por volume parecia então subir um pouco. Quanto menor a venda, porém, maior a frequência com que eu tinha de voltar, e minhas visitas precisavam limitar-se a um mínimo, já que, quanto mais eu negociasse com Chandler, mais fraca ficava a minha posição. Assim, não importava o que eu fizesse, Chandler sempre saía vencedor. Ao longo dos meses, o velho foi se poupando até de falar comigo. Não dizia alô, nunca esboçava um sorriso nem me estendia a mão. Sua atitude era tão apática que às vezes eu me perguntava se ele se lembrava de mim. Para Chandler, talvez eu fosse um cliente novo a cada vez que aparecia, um bando de estranhos que ali chegava ao acaso.

À medida que eu ia vendendo os livros, o apartamento sofria alterações. Isso era inevitável, pois, a cada caixa aberta, eu destruía mais uma peça de mobília. Minha cama foi desmantelada, as cadeiras encolheram até desaparecer, minha escrivaninha minguou até reduzir-se a nada. Minha vida tornava-se um zero; se algo havia de visível e concreto era o crescente vazio. Cada vez que negociava com o passado de meu tio, havia consequência no mundo físico, bem diante de meus olhos. Eu não tinha como evitá-las. Tantas caixas existissem, tantas iriam sumir. Bastava eu olhar ao redor no apartamento para ver o que acontecia. Minha casa dava bem a medida da minha condição: o quanto de mim ainda sobrava, o quanto se fora. Eu era réu e testemunha; ator e plateia num teatro de uma só pessoa. Podia acompanhar o avanço de meu próprio desmembramento. Peça por peça, via-me desaparecer.

AQUELES ERAM, SEM DÚVIDA, dias difíceis para todo mundo. Lembro-me do tumulto na política, das multidões, das afrontas, dos megafones, da violência. Na primavera de 1968, a cada dia ocorria um cataclisma. Não fosse Praga, era Berlim; não fosse Paris, era Nova York. Havia meio milhão de soldados no Vietnã. O presidente anunciava que não voltaria a se candidatar nas eleições seguintes. Pessoas eram assassinadas. Depois de anos de combate, a guerra tomara tal proporção que até nossos mais ínfimos pensamentos encontravam-se por ela contaminados. Não importava o que eu fizesse ou deixasse de fazer, eu sabia dela fazer parte, tanto quanto qualquer outro cidadão. Certa noite, sentado num banco do Riverside Park, vi um tanque de petróleo explodir na outra margem do rio. Chamas ocuparam subitamente o céu e, ao ver os destroços incendiados flutuarem pelo Hudson e chegarem aos meus pés, ocorreu-me que o interior e o exterior não podiam ser separados sem que a verdade fosse arranhada. Mais tarde, naquele mesmo mês, o campus da Colúmbia transformou-se em campo de batalha, centenas de estudantes foram presos, entre os quais sonhadores como eu e Zimmer. Não é minha intenção esmiuçar o assunto. Todos conhecem a história desse período, e não há motivo para que eu repise aqueles acontecimentos. Isso, porém, não significa que deseje que sejam esquecidos. Minha própria história situa-se no entulho desses dias, e não fará sentido sem tal perspectiva.

Quando começaram as aulas de meu terceiro ano (setembro de 1967), meu terno já se estragara há tempo. Maltratado pela chuva que tomara em Chicago, desgastado no fundilho, com os bolsos e a abertura de trás descosturados, precisei finalmente abandoná-lo como a uma causa perdida. Pendurei-o no armário como lembrança de dias mais felizes e comprei as roupas mais baratas e duráveis que pude encontrar: botas de trabalho, blue jeans, camisas de flanela e uma jaqueta de couro de segunda mão que achei numa loja de artigos militares. Meus amigos ficaram pasmos com a transformação, mas nada comentei a esse respeito, pois não me preocupava nem um pouco com o que pensassem. O mesmo aconteceu com o telefone, desligado não para que eu me isolasse do mundo, mas porque era uma despesa com a qual se tornara impossível arcar. Certo dia, diante da biblioteca, quando Zimmer se queixou do quanto ficara difícil me encontrar, desviei-me da questão de meus problemas materiais por meio de um longo discurso sobre telefonemas, vozes e o desaparecimento do contato humano.

- Uma voz transmitida eletronicamente não é uma voz de verdade - argumentei. - Nós nos acostumamos a esses simulacros de nós mesmos, mas basta pensar um pouco para percebermos que o telefone é um instrumento de distorção, um veículo de fantasias. É comunicação entre fantasmas, secreções verbais de mentes sem corpos. Eu quero ver a pessoa com quem estou falando. Se não puder, prefiro não falar.

Discursos desse tipo tornavam-se cada vez mais frequentes de minha parte: desculpas, conversa fiada, teorias esquisitas apresentadas em resposta a perguntas perfeitamente razoáveis. Como não queria que ninguém soubesse que eu estava em dificuldades, não via solução a não ser mentir para livrar-me de situações embaraçosas. Quanto pior eu estivesse, mais estranhas e complicadas eram minhas invenções. Por que motivo eu deixara de fumar, de beber, de ir a restaurantes - eu nunca deixava de apresentar uma explicação plausível, ainda que absurda. Passei a ser visto como um ermitão anarquista, um excêntrico da moda. Meus amigos, porém, se divertiam comigo, e assim eu protegia meu segredo. O orgulho, sem dúvida, tinha participação nessa história, mas o mais importante era que eu não queria a interferência de ninguém no rumo que estabelecera para mim mesmo. Qualquer comentário a esse respeito somente inspiraria pena; talvez me oferecessem ajuda, mas isso estragaria tudo. Então, isolei-me no delírio de meu projeto, fazendo-me passar por palhaço sempre que fosse o caso, e desse modo esperava que o tempo corresse.

O último ano foi o mais difícil. Em novembro, eu deixava de pagar as contas de luz, e em janeiro um técnico da companhia aparecia para cortar os fios do medidor de consumo. Durante as semanas seguintes, experimentei grande variedade de velas, testei-as segundo o critério de preço, luminosidade e duração. Para minha surpresa, descobri que mais vantajosas sob tais aspectos eram as que os judeus empregavam em seus cultos. Além disso, produziam chamas e sombras tremulantes de extrema beleza. Como ainda por cima a geladeira (com seus espasmódicos e inesperados tremores) houvesse sido silenciada, achei que talvez eu estivesse muito melhor sem eletricidade. Não se podia negar que eu era uma pessoa bem adaptável. Encontrava vantagens ocultas nas privações e, uma vez que tivesse aprendido a viver sem determinada coisa, tirava-a para sempre do pensamento. Sabia que não poderia prosseguir assim indefinidamente, que haveria um limite para aquilo de que eu poderia abrir mão. Durante algum tempo, porém, fiquei encantado com o fato de lamentar tão pouco o que se fora. Devagar mas com segurança, descobri que eu era capaz de ir muito mais longe do que julgara possível.

Depois de pagar o último semestre na faculdade, fiquei com menos de seiscentos dólares, além de doze caixas de livros, a coleção de autógrafos e a clarineta. Às vezes, para fazer companhia a mim mesmo, montava o instrumento e soprava-o, enchendo o apartamento de estranhas ejaculações de som, numa bulha de guinchos, gemidos, risos e lamentos rosnados. Em março, vendi os autógrafos a um colecionador, Milo Flax, homem pequeno, esquisito, de cabelos loiros em tufos encaracolados, que colocava anúncios nas últimas páginas do Sporting News. Flax ficou acachapado ao ver aquelas assinaturas todas. Examinou-as com reverência, olhou-me com lágrimas nos olhos e previu corajosamente que 1969 seria o ano do Cubs. Quase acertou. Sua previsão não teria falhado não fossem as derrotas no final do campeonato e a ascensão explosiva do insignificante Mets. Obtive cento e cinquenta dólares com os autógrafos, o que cobriria mais de um mês de aluguel. Os livros me garantiam a comida, e assim consegui manter-me com a cabeça fora d’água durante os meses de abril e maio. Terminei os trabalhos da faculdade, rachando de estudar e datilografando à luz de velas. Depois, vendi minha máquina de escrever por vinte e seis dólares, podendo então alugar um barrete e uma beca para participar da contracerimônia de formatura, organizada pelos estudantes em protesto à entrega oficial de diplomas.

Eu havia feito o que planejara, mas sem poder saborear meu triunfo. Chegara aos últimos cem dólares, e os livros limitavam-se a três caixas. Impossível pagar o aluguel. O depósito de garantia me permitiria ficar mais um mês, mas, depois disso, eu seria despejado do apartamento. Se as intimações começassem a chegar em julho, a ordem viria em agosto, e em setembro eu já estaria na rua. Em primeiro de junho, no entanto, eu ainda me encontrava a anos-luz do final do verão. O problema era menos o que fazer depois do que chegar lá. Os livros me renderiam uns cinquenta dólares; eu ainda tinha outros noventa e seis. Isso significava cento e quarenta e seis dólares para eu passar três meses. Parecia insuficiente, mas, se eu fizesse apenas uma refeição por dia, ignorando jornais, ônibus e despesas frívolas, talvez conseguisse fazer o dinheiro esticar. Assim começou o verão de 1969. Estava quase certo de que seria o último verão que eu passava na face da Terra.

AO LONGO DO INVERNO E do início da primavera, havia guardado minha comida no peitoril da janela, do lado de fora. Várias coisas haviam congelado nos meses mais frios (barras de manteiga, embalagens de requeijão), mas nada que não pudesse ser comido depois de se descongelar. O maior problema havia sido proteger os alimentos da fuligem e do cocô dos pombos, mas logo aprendi a embrulhá-los num saco de plástico. Depois que um dos sacos voou do parapeito durante uma tempestade, passei a prendê-los com barbante no aquecedor da sala. Tornei-me bastante hábil na utilização desse sistema, e, como o gás estivesse generosamente incluído no aluguel (eu não tinha, portanto, que me preocupar com o fogão, pois não ficaria sem poder usá-lo), a questão da comida me parecia estar sob controle. Isso durante o tempo de frio. No entanto, com a mudança de estação, o parapeito deixava de ser um bom lugar para a conservação dos alimentos. Com treze, catorze horas de sol, o leite coalhava, o suco azedava, a manteiga derretia-se em reluzentes poças de gosma amarela. Sofri vários desastres desse tipo até que comecei a reformular minha dieta, evitando tudo o que fosse perecível. Em 12 de junho, sentei-me e planejei o novo regime: leite em pó, café instantâneo, pequena quantidade de pão. Esses seriam os produtos básicos. Comeria a mesma coisa todos os dias: ovos, o alimento mais barato e nutritivo conhecido pelo homem. De vez em quando também comeria uma maçã ou chuparia uma laranja e, se tivesse muita fome, eu me permitiria um hambúrguer ou uma lata de cozido de carne com legumes. Assim, a comida não se estragaria e, em princípio, eu não morreria de fome. Seriam, por dia, dois ovos quentes no ponto certo (fervidos dois minutos e meio), duas fatias de pão, três xícaras de café e toda a água que fosse possível beber. Mesmo sem ser atraente, o plano ao menos tinha uma certa elegância geométrica. Diante da escassez de opções, eu tentava me estimular com isso.

Não morri, mas eram raros os momentos em que eu não sentia fome. Eu sempre sonhava com comida, e minhas noites naquele verão eram povoadas de banquetes e comilanças: travessas de bife e carneiro, leitões suculentos a flutuar em bandejas, sobremesas e bolos em forma de castelo, gigantescas tigelas de fruta. Durante o dia, meu estômago não parava de reclamar, roncando com o fluxo de sucos inquietos, atormentando-me com a sensação de vazio; somente com muita força de vontade eu conseguia ignorá-lo. Eu, que já não era nem um pouco gorducho, fui perdendo peso ao longo do verão. De quando em quando, punha uma moeda na balança da farmácia só para ver o que estava acontecendo comigo. De quase setenta quilos em março, passei a pesar sessenta e três em julho e cinquenta e cinco em agosto. Para alguém que media pouco mais de um metro e oitenta de altura, meu peso começava a baixar perigosamente. Afinal de contas, há um limite para sermos pele e osso, e chega-se a um ponto em que ocorrem sérios danos.

Eu tentava separar-me de meu corpo, contornar meu dilema ao supor que ele não existia. Outros já haviam percorrido esse caminho, mas acabaram todos descobrindo o mesmo que eu: a mente não pode vencer a matéria, pois, quando da mente se fazem excessivas exigências, ela logo revela ser também matéria. Para poder erguer-me acima das circunstâncias, tive que me convencer de que eu não mais era real, e o resultado disso foi que a realidade começou a oscilar. Coisas que não estavam diante dos meus olhos surgiam de repente e, em seguida, desapareciam. Um copo de limonada gelada, por exemplo. Um jornal com meu nome na manchete. Meu velho terno sobre a cama, em perfeito estado. Certa vez, cheguei até a ver uma velha versão de mim mesmo a andar aos tropeços pela sala, como bêbado, à procura de algo que não encontrava. Tais alucinações duravam apenas um instante, mas continuavam a ressoar em meu espírito por horas a fio. Depois, ocorreram novos períodos em que eu simplesmente perdia a noção de mim. Ocorria-me um pensamento qualquer e, quando eu o concluía, erguia os olhos e constatava que já era noite. Não há como calcular quantas horas passei desse modo. Outras vezes, via-me a mastigar comida imaginária, a fumar cigarros imaginários e a soprar ao meu redor imaginários anéis de fumaça. Talvez esses fossem os piores momentos, pois eu então me dava conta de que não podia mais confiar em mim. Minha mente ia ficando à deriva, e eu era incapaz de interromper esse processo.

A maior parte desses sintomas só foi aparecer em meados de julho. Eu lera diligentemente os últimos livros de tio Victor para depois vendê-los a Chandler, rua acima. Mas, quanto mais perto chegava do final, mais dificuldades eu tinha com eles. Sentia minha vista absorver as palavras na página, mas os significados não emergiam, nenhum som ecoava em minha mente. Os sinais impressos deixavam-me completamente desorientado, pareciam um conjunto arbitrário de linhas e de curvas que nada revelava além de sua mudez. Por fim, eu nem mais fingia compreender o que estava lendo. Tirava um livro da caixa, abria-o na primeira página e percorria com o dedo a primeira linha. Quando chegava ao fim, começava a segunda linha, a terceira e assim por diante, até embaixo. Foi assim que cumpri minha tarefa: como um cego que lê em braile. Já que não conseguia ver as palavras, queria ao menos tocá-las. Tudo nessa altura se tornara tão sufocante para mim que isso até parecia ter sentido. Toquei todas as palavras desses livros e, com isso, ganhei o direito de vendê-los.

Por coincidência, levei os últimos a Chandler no mesmo dia em que os astronautas pousaram na Lua. Obtive pouco mais de nove dólares com a venda e, depois, seguindo pela Broadway a caminho de casa, decidi parar no Quinn’s Bar and Grill, lugar pequeno e muito frequentado que ficava na esquina sudeste da Rua 108. Como fizesse muito calor naquele dia, não haveria mal algum em gastar vinte centavos com duas cervejas. Sentei-me ao balcão, numa banqueta, perto de três ou quatro clientes, e fiquei desfrutando da penumbra e do ar-condicionado. Havia ali, ligado, um grande aparelho de televisão que sombriamente projetava luz nas garrafas de rye e de bourbon. Foi assim que, por acaso, assisti ao evento. Vi os primeiros passos naquele mundo sem atmosfera das duas figuras acolchoadas, vi-as saltitar na paisagem como bonecos de brinquedo, vi-as plantar uma bandeira no olho daquela que fora a deusa do amor e da loucura. A radiante Diana, pensei, imagem de tudo o quanto há de escuro em nós. Depois, o presidente falou. Numa voz solene e maquinal, ele declarou que aquele era o maior acontecimento desde a criação do homem. Os velhos clientes do bar riram ao ouvir isso, e eu acredito até ter conseguido abrir uns dois sorrisos. Mas, apesar do absurdo dessa declaração, havia algo que ninguém podia negar: desde o dia em que foi expulso do Paraíso, Adão nunca estivera tão longe de casa.

Durante um breve período posterior, vivi quase em estado de perfeita calma. Meu apartamento, então, estava vazio, mas em vez de me trazer desânimo, como eu havia esperado, esse vazio parecia me reconfortar. É-me difícil explicar o motivo, mas, de repente, meus nervos se apaziguaram e, ao longo de três ou quatro dias, quase voltei a me reconhecer. Atrevo-me a dizer que me senti feliz nesse curto intervalo de tempo que se seguiu à venda dos últimos livros de tio Victor, embora seja curioso empregar tal palavra nesse contexto. Assim como um epiléptico à beira de um ataque, eu entrara nesse estranho meio mundo em que tudo começa a brilhar, a irradiar uma nova claridade.

Não fiz muita coisa durante esses dias. Andava para lá e para cá no apartamento, esticava-me no colchão, anotava meus pensamentos num caderno. Até mesmo o não fazer nada me parecia importante, e eu não tinha o menor escrúpulo em deixar que o ócio preenchesse minhas horas. De vez em quando, plantava-me entre as duas janelas e ficava olhando para o luminoso do Moon Palace. Isso também me entretinha, conduzindo-me a um fluxo de pensamentos interessantes. Tais pensamentos parecem-me hoje um tanto obscuros - conjuntos de associações desenfreadas, torrentes de fantasias erráticas. Contudo, na época, achava-os tremendamente significativos. Talvez, depois de eu ter visto o homem a caminhar na superfície da Lua, a palavra moon já não fosse a mesma para mim. Talvez eu estivesse perplexo com a coincidência de ter encontrado em Boise, Idaho, um homem que se chamava Neil Armstrong e, depois, ter visto outro que tinha o mesmo nome e partira numa viagem espacial. Talvez eu estivesse apenas delirando por causa da fome, e as luzes do cartaz me houvessem trespassado. Não tenho certeza de nada disso, mas o fato era que as palavras Moon Palace haviam começado a me assombrar o pensamento com todo o mistério e o fascínio de uma oráculo. Tudo nelas se encontrava misturado: tio Victor e a China, naves espaciais, a música, Marco Polo e o Oeste americano. Olhava para o luminoso e começava a pensar em eletricidade. Isso me conduzia ao blecaute ocorrido em meu primeiro ano de faculdade, o que, por sua vez, me transportava aos jogos de beisebol no Wrigley Field e, em seguida, de volta a tio Victor e às velas fúnebres que ardiam no parapeito da janela. Um pensamento puxava outro, em espiral, formando massas cada vez maiores de associações. A ideia de viajar para o desconhecido, por exemplo, e os paralelos entre Colombo e os astronautas. A descoberta da América como resultado do fracasso em se chegar à China; comida chinesa e meu estômago vazio; o pensamento que se consubstancia em comida, e a cabeça em palácio dos sonhos. Eu pensava: o Projeto Apolo; Apolo, o deus da música; tio Victor e os Moon Men viajando pelo Oeste. E também: o Oeste; a guerra contra os índios; a guerra no Vietnã, antes chamado de Indochina. E ainda: armas, bombas, explosões; nuvens radiativas nos desertos de Utah e de Nevada. Em seguida, eu me perguntava: Por que o Oeste dos Estados Unidos se parece tanto com a paisagem da Lua? E assim por diante, indefinidamente. Quanto mais eu me abria para essas correspondências secretas, mais próximo eu me sentia da compreensão de alguma verdade fundamental a respeito do mundo. Talvez eu estivesse ficando louco, mas nem por isso deixava de sentir que crescia em mim um formidável poder, uma alegria gnóstica que penetrava fundo no âmago das coisas. Mas, de repente, com a mesma rapidez com que adquiri esse poder, eu o perdi. Depois de passar uns três, quatro dias dentro de meus pensamentos, certa manhã acordei e descobri que estava em outro lugar: de volta ao mundo dos fragmentos, de volta ao mundo da fome e das paredes brancas, vazias. Tentei recuperar o equilíbrio dos dias anteriores, mas não consegui. O mundo me puxava novamente para baixo, e eu mal podia retomar o fôlego.

Entrei em novo período de abatimento. Estava prosseguindo por teimosia, mas minha determinação gradualmente fraquejava, até que, em 1º de agosto, resolvi ceder. Fiz o possível para entrar em contato com vários amigos, decidido a tomar-lhes dinheiro emprestado, mas - depois de umas tantas exaustivas caminhadas sob o calor, com apenas alguns centavos no bolso - nada consegui. Era verão, e parecia que todo mundo deixara a cidade. Até mesmo Zimmer, com quem eu certamente poderia contar, havia desaparecido. Fui várias vezes ao seu apartamento na esquina da Avenida Amsterdam com a Rua 120, mas ninguém atendeu. Deixei vários recados em sua caixa de Correio. Mais tarde vim a saber que ele se mudara. Quando lhe perguntei por que não me dera o novo endereço, ele me respondeu que eu lhe falara de passar o verão em Chicago. Havia me esquecido dessa mentira, mas, naquela altura, eu já inventara tantas que as perdera de vista.

Sem saber da mudança, continuei indo ao velho apartamento e deixando bilhetes debaixo da porta. Certa manhã de domingo, no início de agosto, finalmente aconteceu o inevitável. Toquei a campainha, já esperando não encontrar ninguém, até mesmo voltando-me para ir embora, quando ouvi ruído lá dentro: um arrastar de cadeira, passos, tosse. Inundou-me uma onda de alívio, mas, no instante seguinte, quando a porta se abriu, vi que tudo dera em nada. A pessoa que deveria ser Zimmer não era ele, mas outra completamente diferente: um jovem de barba escura, encaracolada, e cabelos que chegavam aos ombros. Supus que ele houvesse acabado de acordar, pois estava apenas de cueca.

- Em que posso ser útil? - ele perguntou, examinando-me com uma expressão amigável e um tanto intrigada.

Nesse momento, ouvi risos vindos da cozinha (vozes masculinas e femininas) e percebi que devia estar acontecendo uma espécie de festa.

- Acho que vim ao lugar errado - respondi. - Estava procurando por David Zimmer.

- Ah! Você deve ser Fogg - logo concluiu o estranho. - Já tinha perguntado a mim mesmo quando você voltaria.

O dia lá fora estava difícil de aguentar, fazia um calor de rachar, que quase acabara comigo; e ali, diante do estranho, eu sentia o suor a escorrer pelos olhos e a estupidez esponjosa de meus músculos. Perguntei-me então se o havia ouvido bem. Meu impulso era o de sair correndo, mas senti-me de repente tão fraco que tive medo de desmaiar. Apoiei-me com a mão no batente da porta e disse:

- Desculpe-me, mas você poderia repetir o que disse? Acho que não entendi muito bem.

- Disse que você deve ser Fogg - repetiu o desconhecido. - É muito simples. Se está procurando por Zimmer, então deve ser Fogg. Foi quem deixou muitos recados debaixo da porta.

- Muito esperto - respondi, soltando um leve suspiro trêmulo. - Por acaso você saberia onde posso encontrar Zimmer?

- Sinto muito, mas não faço a menor ideia.

Procurei novamente juntar coragem para ir embora, mas, quando estava para voltar-me, notei que o estranho fixava o olhar em mim. Era um olhar penetrante, dirigido para o meu rosto.

- Há alguma coisa errada? - perguntei.

- Estava apenas me perguntando se você é amigo de Kitty.

- Kitty? Não, não conheço nenhuma Kitty. Nunca conheci.

- É que você está usando uma camiseta igual à dela. Isso me fez pensar que talvez vocês tivessem alguma ligação.

Olhei para o meu peito e vi que estava com uma camiseta do Mets. Eu a comprara por dez centavos no ano anterior, numa liquidação.

- Eu nem mesmo gosto do Mets - retruquei. - Torço pelo Cubs.

- Que estranha coincidência! - prosseguiu o estranho sem prestar atenção ao que eu acabara de dizer. - Kitty vai adorar. Ela adora coisas do gênero.

Antes de poder protestar, vi-me conduzido pelo braço até a cozinha, onde encontrei um grupo de cinco ou seis pessoas que, sentadas à mesa, tomavam o café da manhã de domingo. A mesa estava cheia de comida: bacon e ovos, uma cafeteira cheia, bolinhos, requeijão, uma travessa de peixe defumado. Fazia meses que eu não via nada daquilo. Mal sabia como reagir. Equivalia a, de repente, eu ter entrado num conto de fadas. Eu era a criança faminta que se perdera no bosque e encontrara a casa encantada, feita de comida.

- Vejam só - anunciou, sorridente, meu anfitrião de peito nu. - É o irmão gêmeo de Kitty.

Fui então apresentado a todos que estavam à mesa. Todo mundo sorriu e disse alô. Eu fiz o possível para retribuir-lhes o sorriso. Soube que a maioria estudava na Juilliard. Eram músicos, bailarinos, cantores. O anfitrião, que se mudara no dia anterior para o apartamento de Zimmer, chamava-se Jim ou John. Os outros haviam ido a uma festa à noite, alguém disse, e, em vez de voltarem para casa, decidiram fazer uma surpresa a Jim ou John, aparecendo de repente com um café da manhã de inauguração do apartamento. Isso explicava a pouca roupa (ele estava dormindo quando tocaram a campainha) e a abundância de comida que eu via na minha frente. Eu lhes acenava educadamente com a cabeça enquanto me contavam tudo isso, mas apenas fingia ouvir. Na verdade, porém, pouco me importava, e, quando a história acabou, eu já havia esquecido os nomes de todos. Na falta de coisa melhor a fazer, fiquei observando minha irmã gêmea, uma jovem chinesa miúda, de dezenove ou vinte anos, que usava pulseiras de prata nos dois braços e, na cabeça, uma tiara de contas navajo. Ela retribuiu meu olhar com um sorriso - um sorriso excepcionalmente caloroso, senti, cheio de humor e cumplicidade. Em seguida, voltei a atenção para a mesa, incapaz de ficar muito tempo sem olhar para a comida. Percebi que estava a ponto de me colocar em situação constrangedora. Os aromas me torturavam, e, enquanto esperava que me convidassem para sentar, mal conseguia me conter para não agarrar qualquer coisa e mandá-la à boca.

Foi Kitty quem quebrou o gelo.

- Agora que meu irmão está aqui - ela observou, entrando claramente no astral do momento -, o mínimo que pode fazer é convidá-lo para tomar o café da manhã conosco.

Quis beijá-la pelo fato de ter lido meus pensamentos daquele modo. Seguiu-se, no entanto, um momento embaraçoso, quando se constatou que não havia cadeira sobrando. Kitty, porém, veio novamente me socorrer, fazendo o gesto para que eu me sentasse entre ela e a pessoa a sua direita. Fui logo me encaixando ali, pousando uma nádega em cada cadeira. Trouxeram-me um prato, mais todo o aparato necessário: garfo, faca, copo, xícara, guardanapo, colher. Depois disso, entrei num miasma de deglutição e esquecimento. Era uma reação infantil, mas, uma vez que a comida chegou à boca, não pude mais me controlar. Eu engolia um prato após outro, devorando tudo o que pusessem na minha frente. Era como se eu tivesse perdido a cabeça. A generosidade das pessoas parecia infinita, e assim continuei comendo até que tudo na mesa acabara. É, ao menos, do que me lembro. Refestelei-me durante uns quinze, vinte minutos, e, quando terminei, restava apenas uma pilha de espinhas de peixe, nada além disso. Tento localizar na memória se ainda havia sobrado mais alguma coisa, mas nada encontro. Nadinha. Nem mesmo uma migalha de pão.

Só depois é que fui notar a intensidade com que todos fixavam o olhar em mim. Teria sido assim tão grotesco o meu comportamento?, perguntei-me. Por acaso teria eu babado? Oferecido um espetáculo de mim mesmo? Voltei-me para Kitty e mostrei-lhe um débil sorriso. Ela parecia mais espantada do que enojada. Isso me tranquilizou um pouco, mas quis compensar a ofensa que eu talvez lhes tivesse feito. Era o mínimo que me cabia: cantar para pagar a comida, fazê-los esquecer que eu lambera todas as travessas. Enquanto aguardava uma oportunidade para entrar na conversa, tornava-me cada vez mais consciente do quanto era bom estar ao lado da irmã gêmea que eu nunca conhecera. Pela conversa ao meu redor, concluí que ela era bailarina e que, sem dúvida, fazia muito mais por sua camiseta do Mets do que eu pela minha.

Era difícil não ficar impressionado, e, enquanto ela falava e ria com os outros, eu ficava a lançar-lhe breves olhares de soslaio. Ela não usava maquiagem, nem sutiã, e um constante tilintar de pulseiras e brincos acompanhava seus movimentos. Seus seios eram bonitos, e ela os exibia com admirável naturalidade, sem ostentá-los nem fingir que não existiam. Achei-a linda e, mais que isso, gostei de seu jeito, do fato de ela não se mostrar paralisada com sua beleza, ao contrário do que acontece com muitas moças bonitas. Talvez fosse a liberdade de seus movimentos, o tom direto e terra a terra que havia em sua voz. Ela não era uma criança mimada e classe-média como os outros, mas alguém que sabia de si, que se esforçara para aprender as coisas por conta própria. O fato de parecer gostar da proximidade do meu corpo, de não se ter afastado do meu ombro ou da minha perna, de até mesmo permitir que seu braço nu ficasse encostado ao meu, tudo isso me deixava a ponto de enlouquecer.

Não demorou para que eu encontrasse uma brecha na conversa. Alguém começou a falar na chegada do homem à Lua e, em seguida, outro declarou que isso não havia de fato acontecido. Tudo não passava de um embuste, ele acrescentou, de uma encenação extravagante que o governo fizera transmitir pela televisão para que as atenções se desviassem da guerra.

- As pessoas acreditam em tudo como sendo verdade - ele prosseguiu. - Mesmo qualquer besteira filmada num estúdio de Hollywood.

Era tudo de que eu precisava para começar a falar. Lançando a mais atrevida observação que pude conceber, disse calmamente que não apenas a alunissagem do mês anterior fora autêntica, como também não fora, de modo algum, a primeira. Havia centenas, talvez milhares de anos que os homens já iam à Lua, acrescentei. Todos abafaram o riso diante disso, mas então adotei meu melhor estilo cômico-pedante e, durante uns dez minutos, despejei sobre eles uma história erudita a respeito da Lua, cheia de referências a antigos exploradores. Queria impressioná-los com meu conhecimento, mas também fazê-los rir. Estimulado com a refeição, determinado a provar a Kitty que eu era diferente de todos que ela tivesse conhecido, procurei mostrar-me em minha melhor forma. Não tardou para que um discurso ágil e incisivo os pusesse a rolar de rir. Quando eu descrevia a viagem de Cyrano à Lua, alguém me interrompeu. Cyrano de Bergerac era apenas um personagem de ficção, de peça de teatro, essa pessoa observou. Não pude deixar de corrigir tal erro. Fiz, portanto, uma breve digressão para lhes contar a história da vida de Cyrano. Falei rapidamente do tempo em que ele era soldado, discorri a respeito de sua carreira de filósofo e poeta e, em seguida, demorei-me um pouco a expor as dificuldades que ele encontrara ao longo da vida: problemas financeiros, um terrível ataque de sífilis, a luta contra as autoridades por causa de seus pontos de vista radicais. Contei-lhes como ele finalmente conseguira a proteção do duque d’Arpajon e que, três anos depois, morrera numa rua de Paris, atingido na cabeça por uma pedra caída de um telhado. Fiz uma pausa dramática para que o grotesco e o humor dessa tragédia fossem assimilados.

- Ele tinha só trinta e seis anos na ocasião - acrescentei. - E até hoje ninguém sabe se foi ou não um acidente. Teria sido assassinado por algum inimigo? Ou morrido por simples casualidade? Ou ainda teria sido o destino cego que havia lançado do céu a destruição? Pobre Cyrano! Isso não é ficção, meus amigos. Ele era uma criatura de carne e osso, uma pessoa real que vivia no mundo real e que, em 1649, escreveu um livro a respeito de sua viagem à Lua. Como se trata de um relato de primeira mão, não vejo por que alguém haveria de duvidar do que ele diz. De acordo com Cyrano, a Lua é um mundo igual a este. Vista de lá, a Terra parece a Lua que vemos daqui. O Jardim do Éden fica na Lua, e, quando Adão e Eva comeram da Árvore do Conhecimento, Deus os baniu e enviou à Terra. Cyrano primeiramente tentou chegar à Lua amarrando ao corpo garrafas cheias de um gás mais leve que o ar, mas, ao chegar a Meia Distância, flutuou de volta à Terra e desceu numa tribo de índios nus na Nova França. Lá ele construiu uma máquina que acabou levando-o a seu destino, o que por certo demonstra que a América sempre foi o lugar ideal para lançamentos à Lua.

Tomei fôlego e prossegui:

- Cyrano encontrou na Lua pessoas de quase cinco metros e meio de altura, que andavam de quatro e falavam duas línguas diferentes, sem palavras. A primeira, usada pela gente comum, era um intricado código de gestos de pantomima que exigia o movimento constante de todas as partes do corpo. A segunda era falada pelas classes superiores e consistia em puro som, um complexo e não articulado murmúrio muito parecido com a música. O povo da Lua não se alimentava ingerindo comida, mas cheirando-a. A moeda deles era a poesia, poemas escritos em pedaços de papel cujo valor era determinado pelo conteúdo dos próprios versos. O pior crime era a virgindade, e os jovens tinham que demonstrar desrespeito pelos pais. Quanto mais comprido fosse o nariz, mais nobre era considerado o caráter da pessoa. Os homens de nariz pequeno eram castrados, pois o povo da Lua achava preferível morrer enquanto raça a ter que conviver com tamanha fealdade. Lá havia livros que falavam e cidades que viajavam. Quando morria um grande filósofo, seus amigos bebiam-lhe o sangue e comiam-lhe a carne. Os homens levavam pênis de bronze pendurados na cintura, do mesmo modo que os franceses do século 17 portavam espadas. Um homem da Lua perguntou ao perplexo Cyrano: "Não é melhor honrar os instrumentos da vida que os instrumentos da morte?" Cyrano passa a maior parte do livro numa gaiola. Como fosse muito pequeno, os habitantes da Lua achavam que ele devia ser um papagaio sem penas. No fim, um gigante negro o lançava de volta à Terra, junto do Anticristo.

Continuei a falar desse modo por vários minutos ainda, mas essa palração toda deixara-me exausto, e minha inspiração começava a esmorecer. Em meio ao meu último discurso (sobre Júlio Verne e o Baltimore Gun Club), ela me abandonou completamente. Minha cabeça encolheu e, em seguida, ficou enorme. Vi luzes curiosas e cometas em disparada por trás dos olhos; meu estômago começou a roncar, a inchar com dores cortantes. Dei-me conta, de repente, de que ia vomitar. Interrompi de modo brusco o meu discurso, levantei-me e disse que precisava ir embora.

- Muito obrigado pela gentileza, mas um assunto urgente me aguarda - desculpei-me. - Vocês são muito simpáticos e generosos. Prometo que me lembrarei de todos em meu testamento.

Era uma atitude desconcertante, um procedimento de louco. Saí cambaleando da cozinha, derrubando uma xícara de café, tateando o caminho. Quando cheguei à porta, Kitty estava em pé a meu lado. Até hoje não compreendo como ela conseguiu chegar lá antes de mim.

- Você é um irmão muito estranho - ela observou. - Parece homem, mas de repente se transforma num lobo. Depois, o lobo se transforma numa máquina de falar. Em você, tudo tem a ver com a boca, não é mesmo? Primeiro a comida, em seguida as palavras. É um entra e sai. Mas você se esquece do melhor em relação à boca. Sou sua irmã afinal, e não vou deixá-lo sair sem um beijo de despedida.

Comecei a pedir desculpas, e então Kitty - antes mesmo que eu pudesse dizer mais alguma coisa - ergueu-se na ponta dos pés, levou a mão à minha nuca e beijou-me - com muita ternura, quase com compaixão. Eu não soube o que fazer. Seria aquele um beijo sincero ou faria parte de algum jogo? Antes de poder concluir, encostei-me por acaso à porta e ela se abriu. Interpretei aquilo como uma mensagem, um sinal secreto para me advertir de que era o fim. Sem nenhuma palavra, continuei recuando, até que, ao atravessar a soleira da porta, voltei-me e fui embora.

DEPOIS DISSO, NÃO HOUVE mais refeições gratuitas. Quando, em 13 de agosto, chegou a segunda ordem de despejo, restavam-me apenas trinta e sete dólares. Por coincidência, foi nesse dia que os astronautas chegaram a Nova York para um grande desfile com chuva de papel picado. O Departamento de Limpeza Pública mais tarde revelaria que trezentas toneladas de lixo haviam sido recolhidas das ruas durante a festividade. Era um recorde absoluto, acrescentaram, o maior desfile já ocorrido no mundo. Conservei-me a distância de tal evento. Sem saber a quem mais recorrer, eu saía do apartamento o mínimo possível, procurando preservar as forças que ainda tinha. Apenas dava um pulo até a esquina para comprar mantimentos e voltava para casa, nada além disso. Meu rabo ficou assado de tanto limpá-lo com sacos de papel marrom de supermercado, mas o que mais me fazia sofrer era o calor. A temperatura dentro do apartamento era insuportável, uma sauna permanente. Mesmo com as janelas completamente abertas, nenhuma brisa entrava. Meus poros exsudavam o tempo todo. Eu transpirava até mesmo sentado e, quando me mexia, era um jorro de suor. Eu bebia a maior quantidade possível de água. Tomava banhos frios, molhava a cabeça na torneira, passava toalhas úmidas pelo rosto, pescoço e pulsos. Isso mal servia de alívio, mas ao menos me mantinha limpo. O sabonete do banheiro reduzira-se a um toco esbranquiçado, e eu o poupava para barbear-me. Como meu estoque de lâminas também diminuísse, eu me limitava a fazer barba duas vezes por semana, cuidando para que isso coincidisse com os dias em que saía às compras. Embora não fizesse a menor diferença, consolava-me o fato de procurar manter as aparências.

O essencial era planejar o passo seguinte. Mas era justamente isso o que mais me dava trabalho, o que já não conseguia fazer. Eu havia perdido a capacidade de prever o futuro; por mais que tentasse, não me era possível enxergar adiante. O único futuro que eu tinha era o presente que estava vivendo, e a luta para manter-me naquele presente havia pouco a pouco aniquilado todo o resto. Eu não tinha mais ideias. Os momentos se desdobravam sucessivamente e, em cada um, o futuro surgia diante de mim como uma lacuna, uma página em branco de incertezas. Se a vida era uma história, como dizia tio Victor, e cada homem era o autor de sua própria história, então eu estava construindo a minha. Eu a construía sem enredo; escrevia cada frase do modo como aparecia, recusando-me a pensar na seguinte. Talvez não houvesse nisso o menor problema, mas a questão já não era se eu conseguiria conceber uma história - o que já havia sido feito. Era o que fazer quando acabasse a tinta da caneta.

A clarineta continuava comigo, guardada no estojo, ao lado da cama. Hoje eu me envergonho, e devo admitir que quase cedi ao impulso de vendê-la. Pior ainda, cheguei certo dia até mesmo a levá-la a uma loja de instrumentos musicais para saber quanto valia. Quando vi que não me ofereciam o suficiente para cobrir um mês de aluguel, desisti da ideia. Foi só isso o que me poupou da indignidade de fechar o negócio. Com o tempo, fui percebendo quão perto estivera de cometer um pecado imperdoável. A clarineta era meu último vínculo com tio Victor e, assim sendo, carregava consigo toda a força da alma dele. Sempre que olhava para o instrumento, eu sentia essa força dentro de mim. Era um objeto de apego, um resto de naufrágio que me impedia de afundar.

Dias depois de eu ter ido à loja de instrumentos musicais, ocorreu um pequeno desastre que quase me afogou. Os dois ovos - minha refeição diária - que eu ia colocar para ferver numa vasilha de água escorregaram-me dos dedos e quebraram-se no chão. Eram os últimos de meu estoque do momento, e não pude deixar de sentir que aquilo era a coisa mais cruel e terrível que jamais me acontecera. Caíram com um estalo medonho. Eu me lembro de ter ficado estatelado de horror ao vê-los escorrer pelo chão. Suas entranhas translúcidas e cor de sol entraram nas frestas do piso; a gosma espumante se espalhou ao redor da casca. Uma das gemas resistira à queda, mas, quando me inclinei para pegá-la, ela deslizou da colher e partiu-se. Era como uma estrela a explodir, um grande sol que tivesse acabado de morrer. O amarelo foi cobrindo o transparente em remoinho, transformando-se numa vasta nebulosa, num torvelinho de gases interestelares. Aquilo era demais para mim - a última e imponderável gota d’água. Então sentei-me e chorei.

Lutando para controlar as emoções, saí de casa e cometi o destempero de fazer uma refeição no Moon Palace. Não adiantou. A autopiedade dera lugar à extravagância, e odiei-me por ter cedido ao impulso. Para ir ainda mais longe em meu desgosto, comecei tomando sopa com fios de ovos, incapaz de resistir à perversidade do trocadilho. Depois, comi bolinhos de carne e camarões picantes. Pedi também uma garrafa de cerveja chinesa. O bem que o alimento me poderia ter feito foi, no entanto, anulado pelo veneno de meus pensamentos. Quase vomitei ao levar o arroz à boca. Não se tratava de um jantar, disse a mim mesmo, mas de uma última refeição, da comida que servem a um condenado antes de o levarem ao cadafalso. Forçando-me a mastigar e a engolir, lembrei-me de uma frase da última carta de Walter Raleigh a sua mulher, escrita na véspera de sua execução: "Meu cérebro quebrou". Nada teria sido mais adequado que tais palavras. Pensei na cabeça decapitada de Raleigh, que sua mulher conservava numa caixa de vidro. Pensei na cabeça de Cyrano, esmagada pela pedra que caiu sobre ela. Depois, imaginei minha própria cabeça a abrir-se, a partir-se como os ovos que haviam caído no chão do meu apartamento. Senti meu cérebro a vazar pelo crânio. Vi-me rompido em pedacinhos.

Deixei uma gorjeta exorbitante ao garçom e voltei a pé para casa. Ao entrar no saguão do prédio, fiz a rotineira parada diante da caixa do Correio e constatei que lá dentro havia algo além das notificações de despejo. Era a primeira correspondência que eu recebia naquele mês. Por um instante, sonhei que um benfeitor desconhecido me havia mandado dinheiro, mas, ao examinar a carta, vi que se tratava de outro tipo de notificação. Convocavam-me para, em 16 de setembro, fazer exame médico num posto do Exército. Diante da condição em que me encontrava naquele momento, até que recebi a notícia com relativa calma. Naquela altura, não me parecia importante onde a pedra caísse. Nova York ou Indochina, disse a mim mesmo, dava na mesma. Se Colombo havia confundido a América com Cathay, quem era eu para fazer vãs especulações a respeito de geografia? Entrei no apartamento e deixei a carta dentro do estojo da clarineta de tio Victor. Em poucos minutos, já me esquecia completamente do assunto.

Ouvi alguém bater à porta, mas concluí que não valia a pena o esforço de ir ver quem era. Eu estava pensando e não queria ser incomodado. Horas depois, ouvi que batiam novamente. Dessa vez era uma batida diferente, provavelmente de outra pessoa, uma batida rude, bruta, irritada, que fazia a porta estremecer nas dobradiças. A primeira havia sido discreta, quase uma tentativa: o trabalho de um único nó de dedo a transmitir pela madeira sua mensagem íntima, delicada. Passei horas a comparar tais diferenças, refletindo a respeito da riqueza em informação humana contida em sons tão simples. Se a mesma pessoa houvesse batido aquelas duas vezes, pensei, então o contraste talvez refletisse alguma terrível frustração. Não me parecia, no entanto, provável que alguém estivesse assim tão desesperado para me ver. Nesse caso, minha primeira interpretação deveria ser a correta. Duas pessoas teriam batido à porta. A primeira viera em nome da amizade, a segunda, não. Continuei pensando nisso até o cair da noite. Assim que me dei conta da escuridão, acendi uma vela e retomei o fio do pensamento até adormecer. Contudo, nesse tempo todo, não me perguntei quem teriam sido essas pessoas. Para ser mais exato, não fiz o menor esforço para compreender por que eu não queria saber quem eram.

As batidas recomeçaram na manhã seguinte. Quando já estava bem acordado para reconhecer que não sonhava, ouvi um tilintar de chaves no corredor - uma grande e ressonante trovoada que explodiu em minha cabeça. Abri os olhos e, nesse instante, uma chave entrou na fechadura. A maçaneta girou, a porta escancarou-se, e Simon Fernandez, o zelador do prédio, entrou no apartamento. Ele surgiu com a costumeira barba de dois dias, usando a calça cáqui e a camiseta branca que vestia desde o início do verão e que, naquela altura, estavam sujas, manchadas de fuligem cinzenta e respingos de dezenas de almoços. Fernandez olhou-me bem nos olhos e fingiu não me ver. Desde o Natal, quando eu deixara de lhe dar a usual gratificação (mais uma despesa cancelada), ele se tornara hostil comigo. Passara a não me cumprimentar, a não mais fazer comentários a respeito do tempo, a não mais contar histórias sobre seu primo que quase conseguira ser jogador de beisebol do Cleveland Indians. Ele se vingava agindo como se eu não existisse, e havia meses que não trocávamos nem uma palavra sequer. Nesse manhã muito especial, houve, porém, uma inesperada mudança de estratégia. Ele ficou algum tempo a dar voltas pelo apartamento, a bater de leve nas paredes, como que à procura de estragos, até que, na segunda ou terceira vez que passou ao lado da cama, parou, voltou-se na minha direção e fingiu, muito afetadamente, que me via pela primeira vez.

- Meu Deus! Você ainda está aqui? - ele perguntou.

- Ainda. Por assim dizer - respondi.

- Você tem de ir embora hoje - retrucou Fernandez. - O apartamento está alugado a partir do dia primeiro do mês que vem, e Willie vai vir amanhã cedo com os pintores. Você não quer que a polícia o arraste para fora, não é mesmo?

- Não se preocupe. Eu sairei bem antes disso.

Fernandez olhou ao redor, dando-se ares de proprietário do apartamento. Em seguida, sacudiu a cabeça, com expressão de repulsa.

- Mas que casa a sua, meu amigo! Desculpe-me, mas me faz lembrar um caixão de defunto. Um desses de pinho em que se costuma enterrar os mendigos.

- É que meu decorador estava de férias - respondi. - Pensávamos em pintar as paredes em azul cor de ovo de pisco, mas não tínhamos certeza de que esse tom combinaria com os azulejos da cozinha. Assim, concordamos em esperar um pouco para evitar precipitações.

- Você tem algum tipo de problema ou o quê? Um rapaz de nível universitário!

- Problema nenhum. Apenas alguns reveses de ordem financeira, só isso. O mercado tem andado em baixa ultimamente.

- Se o problema é dinheiro, por que não trabalha? Pelo que vejo, você passa o dia inteiro sem tirar o rabo do assento. Parece um daqueles chimpanzés do zoológico, sabe qual é? Não pode pagar o aluguel se não trabalha.

- Mas acontece que eu trabalho. Levanto de manhã cedo como todo mundo e depois fico pensando como fazer para sobreviver mais um dia. É um trabalho de período integral, sem intervalos para cafezinho, sem fins de semana, sem férias. Não estou me queixando, veja bem, mas o salário é baixíssimo.

- Você não passa de um fodido, isso sim. Pode ser que seja universitário, mas não deixa de ser um fodido.

- Não superestime a universidade; não é lá grande coisa.

- Se eu fosse você, procuraria um médico - aconselhou Fernandez, demonstrando de repente alguma simpatia. - Veja só o seu estado. Isso é muito triste, rapaz. Não lhe resta mais nada além dos ossos.

- Estou de regime. É difícil manter boa aparência comendo apenas dois ovos quentes por dia.

- Não sei - disse Femandez, entregando-se aos próprios pensamentos -, mas parece que todo mundo está ficando louco. Deve ser por causa dessas coisas que andam lançando ao espaço. Todas essas merdas de satélites, foguetes, homem na Lua. Alguma consequência há de ter. Está me entendendo? As pessoas começam a fazer coisas estranhas. Não se pode mexer com o céu e esperar que nada aconteça.

Ele desdobrou o exemplar do Daily News que levava na mão esquerda e mostrou-me a primeira página. Aquela era a prova definitiva. Não percebi logo de início do que se tratava, mas depois vi que era a fotografia aérea de uma multidão. Dezenas de milhares de pessoas concentravam-se numa aglomeração gigantesca. Eu nunca vira antes tantos corpos juntos. Era em Woodstock. Aquilo tinha tão pouco a ver com minha situação que não soube o que pensar. Eram pessoas da minha idade, mas, apesar da ligação que eu sentia ter com elas, parecia-me que estavam em outro planeta.

Fernandez saiu, e eu fiquei onde estava por mais alguns minutos. Depois, levantei-me da cama e vesti-me. Não me demorei a ficar pronto. Enfiei algumas bugigangas na mochila, o estojo da clarineta debaixo do braço e fui embora. Eram os últimos dias de agosto de 1969. Tanto quanto me lembro, o sol brilhava naquela manhã e uma leve brisa soprava do rio. Voltei-me na direção sul, fiz uma breve pausa e dei um passo. Em seguida, mais um passo, e assim comecei a descer a rua. Não olhei para trás nem uma vez sequer.


2

DAQUI PARA A FRENTE, a história fica mais complicada. Posso escrever a respeito do que me aconteceu, mas, por mais que o faça de modo preciso e abrangente, o relato dará apenas pálida ideia do que estou tentando contar. Outros participaram, e enfim tiveram tanto quanto eu a ver com o que passei. Estou pensando em Kitty Wu, em Zimmer, em pessoas que na época eu ainda não conhecia. Bem mais tarde, por exemplo, vim a saber que foi Kitty quem bateu à porta de meu apartamento. Ela ficara assustada com a minha estranha atitude naquele café da manhã de domingo e, em vez de apenas preocupar-se, decidira ir até minha casa para ver se eu estava bem.

O problema era descobrir meu endereço. No dia seguinte, ela o procurou no catálogo telefônico, mas, como eu não possuía linha, meu nome não constava. Isso a deixou ainda mais preocupada. Lembrando-se de que eu procurava por Zimmer, passou a procurá-lo também. Ele talvez fosse a única pessoa em Nova York que lhe poderia dizer onde eu morava, ela devia supor. Infelizmente, ele não se mudou para o novo apartamento antes da segunda quinzena de agosto, uns dez ou doze dias mais tarde. Mais ou menos no mesmo momento em que ela conseguia descobrir o número de telefone de Zimmer no serviço de informações, eu deixava os ovos caírem ao chão do apartamento. (Foi a conclusão a que chegamos, depois de termos minuciosamente revisto a cronologia dos fatos.) Ela ligou de imediato para Zimmer, mas o número estava ocupado. Quando, depois de alguns minutos, conseguiu falar com ele, eu já estava no Moon Palace, torturando-me diante da comida chinesa. Em seguida, Kitty tomou o metrô até o Upper West Side. Como o percurso tivesse demorado mais de uma hora, já era tarde demais quando ela chegou ao meu apartamento. Eu estava perdido em pensamentos e não atendi quando ela bateu à porta. Kitty contou-me que ficara uns cinco ou dez minutos do lado de fora e que me ouvira falar sozinho (minha voz chegava-lhe muito abafada para que ela pudesse entender as palavras). Parece que de repente comecei a cantar - uma cantoria maluca, sem melodia alguma, ela disse. Voltou a bater, mas novamente permaneci onde estava. Não querendo me incomodar, Kitty desistiu e foi embora.

Foi isso o que ela me contou. De início, pareceu-me bastante plausível, mas sua história foi se tornando cada vez menos convincente à medida que eu pensava nela.

- Continuo não entendo por que você me procurou - eu lhe disse. - Nós nos vimos só uma vez, e naquela altura eu não devia significar nada para você. Por que se deu a tanto trabalho por alguém que você nem conhecia?

Kitty desviou de mim o olhar e lançou-o ao chão.

- Porque você era meu irmão - ela respondeu baixinho.

- Mas isso era só uma brincadeira. Ninguém faz o que você fez por causa de uma brincadeira.

- Não, acho que não - ela disse com um leve encolher de ombros.

Pensei que Kitty fosse prosseguir, mas, decorridos alguns segundos, ela continuava em silêncio.

- Então? Por que me procurou? - perguntei.

Ela olhou para mim brevemente e voltou a fixar os olhos no chão.

- Porque achei que você estava correndo perigo - ela respondeu. - E nunca antes eu tinha sentido tanta pena de alguém.

Ela voltou ao meu apartamento no dia seguinte, mas eu já havia partido. Como, no entanto, a porta estivesse entreaberta, ela a empurrou e, ao entrar, viu Fernandez que ia de um lado a outro, irritado, a enfiar minhas coisas num saco de lixo e a praguejar em voz baixa. Segundo Kitty, ele parecia estar limpando o quarto de alguém que houvesse morrido de peste: movia-se rapidamente num pânico de repulsa, mal tocando minhas coisas, com medo de contaminar-se. Ela perguntou a Fernandez se ele conhecia meu paradeiro, mas ele pouco tinha a lhe dizer. Eu era um louco, um filho da puta, um fodido, ele disse; e, pelo jeito, eu deveria estar rastejando por aí, à procura de um buraco onde morrer. Nesse momento, Kitty saiu, desceu à rua e telefonou novamente para Zimmer da primeira cabine que encontrou.

O apartamento novo de Zimmer ficava na Rua Bank, no West Village, mas, quando ele ouviu o relato de Kitty, deixou de lado tudo o que estava fazendo e foi ao seu encontro. Foi assim que acabei por ser salvo: porque os dois saíram a minha procura. É claro que, nessa altura, eu não sabia o que eles andavam fazendo, mas, sabendo o que agora sei, é-me impossível pensar naqueles dias sem sofrer um acesso de nostalgia por meus amigos. De algum modo, isso altera a realidade daquilo que experimentei. Eu havia saltado num precipício e, quando estava para chegar ao fundo, algo extraordinário aconteceu: descobri que havia quem me amasse. Ser amado assim é o que faz toda a diferença. Não diminui o terror da queda, mas traz uma perspectiva nova à visão que se tem do terror. Eu havia de fato saltado num precipício, mas, no último instante, algo me agarrou em pleno ar. É esse algo que chamo de amor, a única coisa que pode impedir a queda de alguém, a única coisa com força suficiente para contrariar as leis da gravidade.

EU NÃO SABIA BEM O que fazer. Naquela manhã em que deixei o apartamento, comecei simplesmente a caminhar, seguindo apenas a decisão de meus passos. Se em minha cabeça havia algum pensamento, era o de permitir que o acaso determinasse o que fosse acontecer, o de seguir a trilha do impulso e da arbitrariedade. Como meus primeiros passos houvessem sido na direção sul, continuei nesse rumo, dando-me conta, dois ou três quarteirões depois, de que talvez fosse mesmo melhor afastar-me da vizinhança. Vejam como o orgulho enfraqueceu minha decisão de não me preocupar com o estado de miséria, com o próprio orgulho e a noção de vergonha. Uma parte de mim estava perplexa com o que eu permitira acontecer a mim mesmo; eu não queria correr o risco de encontrar algum conhecido. Ir para o norte significava Morningside Heights, com suas ruas cheias de rostos familiares. Senão amigos, com certeza pessoas que eu conhecia de vista: os velhos frequentadores do bar do West End, colegas de classe, ex-professores. Faltava-me a coragem de enfrentar os olhares que eles me lançariam, atônitos ou dissimulados. Pior ainda, causava-me horror a ideia de ter de falar com algum deles.

Prossegui para o sul e, ao longo da temporada que passei na rua, não voltei a pôr os pés na Upper Broadway. Eu tinha uns vinte dólares no bolso, além de uma faca e uma caneta esferográfica. Na mochila, um suéter, uma jaqueta de couro, uma escova de dentes, um aparelho de barbear, três lâminas novas, um par de meias de reserva, roupa de baixo e um pequeno caderno verde com um lápis enfiado na espiral. Logo ao norte de Columbus Circle, menos de uma hora depois de eu ter começado minha peregrinação, houve um acontecimento implausível. Eu estava diante da vitrine de uma relojoaria, observando o mecanismo de um relógio antigo, quando, de repente, olhei para o chão e vi uma nota de dez dólares bem aos meus pés. Fiquei perplexo demais para saber como reagir. Minha mente já estava confusa e, em vez de considerar aquilo um simples golpe de sorte, convenci-me de que algo profundamente importante acabara de ocorrer: um fato religioso, um milagre inimaginável. Quando me abaixei para pegar o dinheiro e vi que não estava sonhando, comecei a tremer de alegria. Tudo iria dar certo, disse a mim mesmo; no fim, eu me sairia bem. Sem parar para refletir melhor, entrei num café grego e pedi um lauto café da manhã: suco de grapefruit, flocos de milho, presunto e ovos, café, tudo. Depois da refeição, cheguei até a comprar um maço de cigarros e fiquei ao balcão para tomar mais um café. Estava tomado por incontrolável sensação de felicidade, bem-estar e amor pelo mundo. Tudo no restaurante me parecia maravilhoso: as cafeteiras fumegantes, as banquetas giratórias, as torradeiras para quatro pães, as máquinas prateadas para milk-shake, as rosquinhas frescas empilhadas nos recipientes de vidro. Senti-me como se estivesse para renascer, como alguém prestes a descobrir um novo continente. Enquanto fumava mais um cigarro, fiquei observando o trabalho do atendente do balcão e, em seguida, desviei a atenção para a garçonete desmazelada de cabelos de um falso ruivo. Havia neles algo de pungente. Quis dizer-lhes o quanto significavam para mim, mas não saiu palavra alguma de minha boca. Passei mais alguns minutos ali sentado, eufórico, a ouvir-me a pensar. Minha cabeça transbordava de maluquices, de um pandemônio de pensamentos ritmados. Quando meu cigarro virou um toco, reuni forças e saí.

O calor era sufocante no meio da tarde. Sem saber o que mais fazer de mim mesmo, entrei num cinema de sessão tripla da Rua 42, perto de Times Square. Foi a promessa do ar condicionado que me atraiu, e eu entrei ali às cegas, sem mesmo me dar ao trabalho de conferir os filmes em cartaz. Por noventa e nove centavos, eu me dispunha a assistir ao que houvesse. Escolhi um lugar entre os fumantes, na parte de cima, e cheguei a fumar mais uns dez ou doze cigarros durante os dois primeiros filmes, de cujos títulos já não me lembro. O cinema era um desses pomposos palácios dos sonhos construídos na época da Depressão: grandes lustres suspensos no saguão de entrada, escadarias de mármore, enfeites rococós nas paredes. Mais que um cinema, era um templo dedicado à glória da ilusão. Dada a temperatura exterior, grande parte da população marginal de Nova York parecia estar ali dentro naquele dia. Havia bêbados e drogados, homens com cicatrizes no rosto, outros que falavam sozinhos e respondiam aos atores na tela, alguns que roncavam, peidavam e mijavam na calça. Uma equipe de lanterninhas patrulhava as fileiras para ver se alguém dormia. Barulho era tolerado, mas parecia ser contra a lei perder a consciência na plateia. Cada vez que um lanterninha encontrava um homem adormecido, lançava-lhe no rosto o facho de luz e pedia-lhe para abrir os olhos. Se o homem não respondesse, o funcionário iria até ele e o sacudiria até que a exigência fosse atendida. Os recalcitrantes eram expulsos do cinema, quase sempre a protestar amargamente e em voz alta. Isso aconteceu umas seis vezes ao longo da tarde. Só depois ocorreu-me que os lanterninhas deviam estar verificando se havia alguém morto.

Não deixei que nada daquilo me perturbasse. Fiquei calmo, tranquilo, satisfeito. Diante das incertezas que me aguardavam fora dali, conseguia manter um notável autocontrole. Quando, porém, começou o terceiro filme, senti faltar o chão sob os pés. Era A Volta ao Mundo em 80 Dias, o mesmo filme que eu vira em Chicago com tio Victor, onze anos antes. Pensei que gostaria de revê-lo, tanto que, por algum tempo, cheguei até a julgar que era sorte estar por acaso no cinema no dia em que o exibiam - justamente aquele filme. Pareceu-me que o destino zelava por mim; era como se minha vida estivesse sob a proteção de espíritos benfazejos. Logo, no entanto, estranha e inesperadamente, surgiam-me lágrimas nos olhos. No momento em que Phileas Fogg e Passepartout entraram no balão de ar quente (na primeira meia hora de filme), os canais lacrimais finalmente cederam, e eu senti uma torrente escaldante e salgada de lágrimas escorrer-me pelo rosto. Mil tristezas de infância voltaram-me à consciência, atacando-a, e me senti impotente diante delas. Caso tio Victor pudesse então me ver, pensei, ficaria de coração rasgado. Eu me reduzira a nada, a um morto que mergulhava de cabeça no inferno. David Niven e Cantinflas admiravam a exuberante paisagem francesa, sobre a qual flutuavam no bojo do balão, enquanto eu, no escuro, entre um bando de bêbados, chorava amargamente de infelicidade, a ponto de não conseguir mais respirar. Levantei-me da poltrona e desci a escada de saída. Lá fora, assaltou-me a luminosidade do fim do dia, cercando-me de um calor repentino. É o que mereço, disse comigo mesmo; já que havia me aniquilado, então que aprendesse a viver assim.

Passei vários dias nesse estado de espírito. Meu humor oscilava de um extremo a outro, levando-me da alegria ao desespero em intervalos tão curtos que eu ficava mentalmente esgotado. Quase tudo servia para acionar esse mecanismo: um súbito confronto com o passado, o sorriso casual de um estranho, o modo como a luz incidia sobre a calçada em determinado momento. Lutei para alcançar algum equilíbrio, mas em vão: tudo era instabilidade, tumulto, revoltante capricho. A certa altura, lancei-me a uma busca filosófica, profundamente convencido de que estava para me juntar às fileiras dos iluminados. No momento seguinte, já estava em lágrimas, esmagado pelo peso da angústia. Estava de tal modo absorto em mim mesmo que não mais via as coisas como elas eram: os objetos transformavam-se em pensamentos, e cada pensamento fazia parte de um drama representado dentro de mim.

Uma coisa era ficar em casa esperando que o céu desabasse, e outra era estar na rua, a descoberto. Dez minutos depois de sair do cinema, compreendi finalmente o que teria de enfrentar. A noite se aproximava e logo eu precisaria encontrar um lugar para dormir. Por incrível que pareça, eu ainda não havia pensado muito nesse detalhe. Achava que o problema se resolveria por si, que a sorte pura e simples haveria de me socorrer. No entanto, quando comecei a avaliar minhas perspectivas, vi o quanto eram negras. Eu não iria dormir na calçada como um mendigo, disse comigo mesmo, nem passar a noite enrolado em jornais. Se fizesse isso, ficaria exposto a qualquer louco que surgisse; seria o mesmo que pedir a alguém que me cortasse o pescoço. Mesmo que não fosse atacado, certamente seria preso por vadiagem. Por outro lado, que chances eu teria de encontrar abrigo? A ideia de passar a noite num albergue me repugnava. Não conseguia me ver deitado entre um bando de miseráveis, obrigado a ouvir os gemidos dos velhos que se enrabavam uns aos outros. Não queria saber de ficar num lugar desses, nem de graça. Havia as estações de metrô, é claro, mas eu já previa que seria impossível pregar os olhos lá embaixo: o movimento, o barulho, as luzes fluorescentes. Um policial também poderia surgir a qualquer momento e bater-me com o cassetete na sola dos pés. Passei várias horas a vagar, em pânico, tentando tomar alguma decisão. Se acabei optando pelo Central Park, foi porque estava cansado demais para pensar em outro lugar. Por volta das onze horas, vi-me a caminhar pela Quinta Avenida, passando distraidamente a mão pelo muro de pedra que separa o parque da rua. Olhei por cima do muro, vi o parque imenso, deserto, e concluí que àquela hora não encontraria nada melhor. Ao menos ali o chão seria macio, e agradava-me a ideia de deitar na grama e dormir num lugar onde ninguém me visse. Mais ou menos na altura do Museu Metropolitan, entrei no parque, continuei andando durante algum tempo e, em certo ponto, agachei-me sob um arbusto. Não estava disposto a procurar coisa melhor. Eu ouvira muitas histórias terríveis a respeito do Central Park, mas, naquele momento, a exaustão era maior que o medo. Eu me defenderia com a faca se tentassem me agredir. Usei a jaqueta de couro como travesseiro e fui me aninhando no chão até me sentir confortável. Logo que parei de me mexer, ouvi um cricrido de grilo no arbusto ao lado. Pouco depois, uma leve brisa começou a agitar os galhos em torno de minha cabeça. Eu não sabia mais o que pensar. Não havia lua no céu naquela noite, nem uma estrela sequer. Antes mesmo que me lembrasse de tirar a faca do bolso, já tinha adormecido.

Quando acordei, senti-me como se tivesse dormido dentro de um vagão de trem de carga. Acabara de amanhecer. Meu corpo inteiro doía, meus músculos pareciam estrangulados. Saí com cuidado de sob o arbusto, praguejando, resmungando, e fui fazer o reconhecimento dos arredores. Eu havia passado a noite à beira de um campo de softball, numa moita logo atrás da trave. O campo situava-se numa depressão do terreno, e, naquela hora da manhã, uma fina camada de névoa cinzenta pairava por sobre a grama. Não havia ninguém à vista. Alguns pardais pousavam e chilreavam numa extremidade; um gaio soltava seu canto áspero por entre as árvores. Eu estava em Nova York, mas não era a cidade que eu conhecia. Era um lugar que não despertava em mim associação alguma, que bem poderia ser um outro qualquer. Enquanto ruminava tal pensamento, ocorreu-me de repente que eu conseguira vencer a primeira noite. Não diria que o feito me trouxesse satisfação, pois meu corpo doía muito, mas estava certo de haver ultrapassado uma barreira importante. Eu vencera a primeira noite e, já que fizera isso uma vez, não havia motivo para pensar que não podia fazê-lo de novo.

Dormi no parque todas as noites seguintes. O lugar transformara-se para mim num santuário, num refúgio de privacidade que me defendia das massacrantes exigências das ruas. Eu tinha uns trezentos e quarenta hectares para caminhar e, ao contrário da cadeia de edifícios e torres que se erguia fora dali, o parque me oferecia a possibilidade de ficar só, de me isolar do resto do mundo. Nas ruas tudo é comoção e corpos, e, quer se goste ou não, é impossível estar nelas sem aderir a regras rígidas de comportamento. Andar no meio de uma multidão significa nunca ir mais depressa que os outros, nunca permanecer muito tempo atrás de alguém, nunca fazer coisa alguma que interrompa o fluxo de pessoas. Quem respeita tais regras geralmente é ignorado por todos. Há um olhar de gelo muito peculiar nos nova-iorquinos quando andam pelas ruas, uma forma natural, e talvez necessária, de indiferença para com o próximo. Pouco importa, por exemplo, a aparência de alguém. Roupas extravagantes, penteados esquisitos, camisetas com slogans obscenos, nisso ninguém presta atenção. Por outro lado, é da maior importância a maneira como alguém se comporta dentro das roupas. Gestos estranhos são imediatamente tomados como ameaça. Falar sozinho, coçar o corpo, olhar bem nos olhos de alguma pessoa são transgressões que podem desencadear reações hostis, violentas por vezes, de quem estiver ao redor. Ninguém deve cambalear, desmaiar, nem agarrar-se às paredes. Tampouco se deve cantar, pois todas as formas de comportamento espontâneo ou involuntário com certeza irão atrair olhares, provocar observações cáusticas e até mesmo um eventual empurrão ou pontapé na canela. Nunca cheguei tão longe a ponto de receber algum tratamento desse tipo, mas vi isso acontecer a outros, e eu sabia ser perfeitamente possível que, em algum momento, viesse a perder o controle sobre mim mesmo.

Em contraste, a vida no Central Park permitia uma gama muito maior de variáveis. Ali não causava estranheza que alguém se deitasse na grama ou dormisse em pleno dia. Ninguém ficava perplexo se alguma pessoa ficasse sentada sob uma árvore sem nada fazer, tocasse clarineta ou gritasse com toda a força dos pulmões. A não ser os que trabalhavam em algum escritório e vinham à beira do parque na hora do almoço, a maioria das pessoas ali agia como se estivesse de férias. As mesmas coisas que as teriam espantado nas ruas eram vistas como diversões inocentes. As pessoas sorriam umas às outras, andavam de mão dadas, colocavam o corpo em posições pouco comuns, beijavam-se. Era para todos um viver à vontade, e, desde que não se interferisse diretamente no que os outros faziam, era possível fazer o que desse na veneta.

O parque me fez, sem dúvida, um grande bem. Proporcionou-me privacidade, mas, além disso, permitiu-me pensar que eu não estava assim tão mal. A grama e as árvores eram democráticas, e, quando eu vagava ao sol de um fim de tarde ou subia nas pedras ao anoitecer, sentia de tal modo integrar-me ao ambiente que até mesmo a alguém muito observador eu poderia passar por uma pessoa comum que ali fora fazer piquenique ou passear a pé. Já as ruas não me permitiam tais ilusões. Sempre que eu caminhava entre a multidão, logo me dava conta de estar envergonhado de mim mesmo. Sentia-me um grão de areia, um vagabundo, uma pústula de fracasso na pele da humanidade. A cada dia eu estava um pouco mais sujo, desarrumado, confuso e diferente de todos. No parque, todavia, eu não precisava carregar o fardo da autocrítica. Isso me dava um parâmetro, um meio de distinguir o interior do exterior. Se as ruas me forçavam a ver a mim mesmo do modo como os outros me viam, já o parque permitia que eu me voltasse para dentro, que eu me ativesse exclusivamente ao que acontecia em meu âmago. Descobri que era possível viver sem um teto, mas não sem estabelecer um equilíbrio entre o interior e o exterior. O parque trazia-me esse equilíbrio. Talvez não fosse propriamente um lar, mas, na falta de outro abrigo, até que era bem semelhante.

Lá sempre me aconteciam coisas inesperadas, coisas que hoje, em retrospecto, me parecem quase impossíveis. Certa vez, por exemplo, uma jovem mulher de cabelos muito ruivos se aproximou de mim e pôs uma nota de cinco dólares na minha mão - assim mesmo, sem nada explicar. Noutra ocasião, um grupo de pessoas convidou-me para juntar-me a elas no piquenique que faziam sobre a grama na hora do almoço. Poucos dias depois, passei uma tarde inteira jogando softball. Diante da condição física em que me encontrava, minha atuação até que foi bastante elogiável (fiz dois ou três pontos e uma defesa em mergulho), e, sempre que meu time estava no ataque, os outros jogadores não deixavam de me oferecer sanduíches, salgadinhos, latas de cerveja, charutos e cigarros. Foram momentos muito felizes para mim. Ajudaram-me a suportar as situações mais negras, quando minha sorte parecia ter se esvaído completamente. Talvez fosse isso o que eu quisesse comprovar desde o início: que, quando se joga tudo para cima, descobrimos coisas que não poderiam ser descobertas em nenhuma outra circunstância. Eu estava meio morto de fome, mas, sempre que me acontecia algo de bom, atribuía o fato não tanto à sorte quanto a um especial estado de espírito. Achava que, se fosse capaz de manter um perfeito equilíbrio entre o desejo e a indiferença, poderia de algum modo conseguir que o universo colaborasse comigo. De outra maneira, como poderia explicar todas essas incríveis manifestações de generosidade? Eu nunca pedia nada a ninguém, nunca saía do meu lugar, mas mesmo assim sempre aparecia quem me ajudasse. Alguma força devia emanar de mim para o mundo, pensei, algo indefinível que fazia as pessoas agirem daquele jeito. Com o tempo, comecei a notar que as coisas boas só me aconteciam quando eu parava de desejá-las. E se isso era verdade, o oposto também era: desejar muito alguma coisa impedia que ela acontecesse. Essa era a consequência lógica da minha teoria, pois, se eu havia provado a mim mesmo que podia atrair o mundo, podia também repeli-lo. Em outras palavras, é não querendo que se consegue o que se quer. Não fazia sentido, mas o próprio teor incompreensível do argumento era o que me atraía. Se via atendidos meus desejos somente quando não pensava neles, então todos os pensamentos a respeito da minha situação eram contraproducentes. No momento em que abracei essa ideia, vi-me a andar pela corda bamba da consciência. Parecia-me impossível não perder o equilíbrio. Como é viável não pensar na fome quando se está sempre com fome? Como silenciar o estômago quando ele está sempre a pedir que o encham? É quase impossível ignorar tais súplicas.

De tempo em tempo, eu cedia e, feito isso, sabia ter destruído a chance de receber ajuda. O resultado era implacável; rígido e preciso como uma fórmula matemática. Enquanto eu me preocupasse com meus problemas, o mundo estaria de costas para mim. Isso não me deixava escolha: tinha de cuidar de mim mesmo, tentar conseguir as coisas, fazer tudo por conta própria e da melhor forma possível. O tempo passava. Um dia, dois, talvez três ou quatro, e assim, pouco a pouco, eu purgava da mente todos os pensamentos a respeito de ser salvo, dava-me por perdido. Somente então, como um raio vindo do nada, poderia ocorrer algum fato milagroso. Isso era imprevisível, e, quando acontecia, eu já podia ir descartando a possibilidade de que acontecesse novamente. Cada milagre era, portanto, o último. E, como era o último, eu estava sempre recomeçando a batalha.

Dedicava grande parte do dia à busca de comida no parque. Isso ajudava a conter as despesas, mas também permitia adiar o momento em que eu teria de me aventurar nas ruas. E eram justamente as ruas o que eu viera mais a temer; dispunha-me a fazer quase tudo para evitá-las. Nesse aspecto, os fins de semana eram especialmente úteis. Quando fazia tempo bom, era enorme o afluxo de pessoas ao parque, e logo descobri que a maioria delas sempre trazia algo para comer: todos os tipos de lanche e petiscos com que se fartavam. Isso conduzia inevitavelmente ao desperdício; gigantescas quantidades de comida eram jogadas fora. Levei algum tempo para me adaptar, mas, uma vez aceita a ideia de levar à boca coisas que já havia tocado a boca de outros, encontrei uma inesgotável provisão de alimentos. Fatias de pizza, pedaços de cachorro-quente, nacos de sanduíche, latas de refrigerante parcialmente cheias - os gramados e as pedras estavam repletos dessas coisas, as latas de lixo transbordavam disso tudo. Para enganar minha suscetibilidade, passei a dar nomes divertidos às latas de lixo. Chamava-as de restaurantes cilíndricos, jantares-surpresa, merenda municipal - qualquer coisa que me poupasse de dizer o que de fato eram. Certa vez, quando remexia uma delas, um policial se aproximou de mim e perguntou o que eu estava fazendo. Pego desprevenido, gaguejei um pouco, mas logo disse que era estudante, que estava trabalhando num projeto de estudos urbanos, e que durante o verão estivera fazendo levantamento estatístico e pesquisa sociológica a respeito do conteúdo das latas de lixo da cidade. Para tornar minha história mais convincente, levei a mão ao bolso e mostrei-lhe minha carteirinha da Universidade de Colúmbia, na esperança de que ele não notasse que o documento havia expirado em junho. O policial examinou a fotografia por algum tempo, olhou-me no rosto, voltou a examinar a foto para comparar e, em seguida, encolheu os ombros.

- Veja se não enfia muito a cabeça aí dentro - ele gracejou. - Você pode ficar entalado.

Não quero dar a entender que achava isso agradável. Não era nada romântico catar migalhas, e a novidade que havia no início logo se esgotou. Lembrei-me de uma passagem de um livro que eu lera, Lazarillo de Tormes, na qual um fidalgo pobre andava sempre com um palito de dentes na boca para dar a impressão de que acabara de sair de um lauto repasto. Passei também a adotar o truque do palito. Sempre que ia tomar café em algum bar, pegava um punhado deles e, assim, eu tinha o que mastigar entre as refeições. Além disso, achava que o palito me dava um certo ar descontraído, um toque de autossuficiência e tranquilidade. Não era grande coisa, mas eu precisava de todos os adereços possíveis.

Era-me especialmente difícil aproximar-me de uma lata de lixo quando percebia que alguém me espiava. Eu me esforçava ao máximo para agir com discrição. Se minha fome costumava vencer as inibições, era simplesmente porque não a suportava mais. Riram-se de mim em várias ocasiões, e, uma ou duas vezes, vi crianças me apontarem, dizendo às mães que olhassem para o bocó que comia lixo. São coisas de que ninguém se esquece, não importa há quanto tempo tenham acontecido. Eu lutava para manter minha raiva sob controle, mas lembro-me ao menos de um episódio em que rosnei com tamanha agressividade para um menininho que ele começou a chorar. De um modo geral, contudo, eu conseguia encarar essas humilhações como consequência natural da vida que estava levando. Em momentos mais inspirados, chegava a interpretá-las como iniciações espirituais, como obstáculos colocados em meu caminho para testar a fé em mim mesmo. Se aprendesse a superá-las, alcançaria por fim um estágio elevado de consciência. Mas, nos momentos menos otimistas, ficava propenso a olhar-me de um ponto de vista político, na esperança de justificar minha condição ao julgá-la um desafio ao estilo de vida americano. Eu era um instrumento de sabotagem, dizia comigo mesmo, uma peça solta dentro da máquina do país, um desajustado com a missão de estragar a festa. Ninguém olhava para mim sem sentir vergonha, raiva ou pena. Eu era a prova viva de que o sistema falhara, de que a tão incensada terra da abundância entrava finalmente em decadência.

Pensamentos desse tipo ocupavam grande parte do tempo que eu passava acordado. Eu tinha sempre muita consciência do que me acontecia, mas, diante do acontecimento, minha mente não tardava a se inflamar de paixão incendiária. Minha cabeça ardia de teorias livrescas, de vozes combativas, de complicados colóquios interiores. Mais tarde, depois de eu ter sido salvo, Zimmer e Kitty não paravam de me perguntar como conseguira passar tantos dias sem fazer nada. Não tinha ficado aborrecido? Entediado? Eram perguntas lógicas, mas o fato era mesmo que eu nunca me aborrecia. No parque, eu ficava à mercê de todos os humores e emoções, menos do tédio. Quando não estava ocupado com questões práticas (procurando onde dormir, cuidando do estômago), parecia haver sempre uma infinidade de coisas para fazer. No meio da manhã, quase sempre era possível encontrar um jornal em alguma lata de lixo, e assim eu passava a hora seguinte a percorrer minuciosamente suas páginas, na tentativa de manter-me informado do que se passava no mundo. A guerra prosseguia, é claro, mas também havia outros fatos e casos de interesse: o incidente com Ted Kennedy em Chappaquiddick, protestos e repressão em Chicago, o julgamento dos Panteras Negras, mais um pouso na Lua, o desempenho do Mets. Acompanhei com especial atenção a queda espetacular do Cubs no campeonato, pasmo com a completa desagregação do time. Era-me difícil deixar de encontrar correspondências entre a decadência do Cubs e minha própria situação, mas não me incomodei com isso. Na verdade, achava até gratificante a boa sorte do Mets, cuja história era ainda mais abominável que a do Cubs. Aquela implausível e repentina ascensão das profundezas parecia provar que tudo neste mundo era possível, o que não me servia de consolo. Havia muito que a causalidade deixara de ser o demiurgo oculto que regia o universo: embaixo era como em cima, o último era o primeiro, o fim era o começo. Heráclito havia sido resgatado do monte de esterco, e o que ele tinha a nos mostrar era a verdade mais simples: a realidade não passava de um ioiô, a mudança era a única constante.

Depois de fazer uma apreciação das notícias do dia, eu costumava passear pelo parque, explorando áreas ainda não visitadas. Agradava-me o paradoxo de viver num ambiente natural construído pelo homem. Aquilo era a natureza intensificada, por assim dizer, pois o parque apresentava uma variedade topográfica que a natureza por si só raramente oferecia numa área tão restrita. Havia morros, campos, elevações rochosas, selvas de folhagem, pastos macios e intricadas redes de grutas. Eu gostava de passar pelos diversos setores e de imaginar que, ao fazer isso, percorria grandes distâncias, ainda que permanecesse nos limites do meu mundo em miniatura. Havia o zoológico, é claro, no fundo do parque; o lago onde as pessoas alugavam barquinhos de recreio; o reservatório; os playgrounds das crianças. Eu passava boa parte do tempo apenas a observar os outros: estudando-lhes os gestos e o andar, imaginando como haviam sido suas vidas, tentando abandonar-me totalmente ao que estava vendo. Quando minha mente se encontrava bem vazia, via-me com frequência entregue a jogos obtusos e obsessivos. Contando o número de pessoas que passavam por determinado lugar, por exemplo, ou classificando os rostos de acordo com os animais a que mais se assemelhavam - porcos, cavalos, animais roedores, pássaros, caracóis, marsupiais, gatos. Às vezes, eu anotava algumas dessas observações no meu caderno, mas, em geral, não me sentia muito inclinado a escrever, pois não queria me afastar muito dos acontecimentos a meu redor. Compreendi que havia estado grande parte da vida em meio às palavras e que, se fosse para encontrar algum significado na experiência pela qual passava, eu devia viver a fundo essa experiência, evitando tudo o que não fosse o aqui e agora, o tangível, a vastidão sensorial que me pressionava a pele.

No parque também encontrei perigos, mas nada de calamitoso, nada de que, no fim, eu não pudesse fugir. Certa manhã, um velho sentou-se a meu lado no banco, estendeu a mão e apresentou-se como Frank.

- Pode me chamar de Bob, se quiser - ele acrescentou. - Não sou de fazer cerimônia. Desde que não me chame de Bill, tudo bem.

Em seguida, quase sem pausa, começou a contar um história complicada a respeito de jogatina, demorando-se a falar de uma aposta de mil dólares que fizera em 1936 e que envolvia um cavalo chamado Cigarillo, um gângster chamado Duke e um jóquei chamado Tex. Na terceira frase eu já não estava entendendo mais nada, mas não deixava de ser agradável ouvir aquela história mal costurada, e, como ele me parecesse inofensivo, não me afastei. No entanto, depois de dez minutos de monólogo, ele se levantou de repente do banco, agarrou o estojo da clarineta que estava em meu colo e saiu correndo como um atleta inválido, pateticamente, em pequenos passos arrastados, jogando braços e pernas em todas as direções. Não foi difícil alcançá-lo. Assim que o peguei, torci-lhe bruscamente o braço para trás, virei-o de frente para mim e arranquei-lhe das mãos o estojo da clarineta. Ele parecia surpreso com o fato de eu ter ido atrás.

- Não é assim que se trata um velho - ele protestou, sem demonstrar o menor remorso com o que tinha feito.

Senti um forte impulso para esmurrar-lhe o rosto, mas ele tremia tanto de medo que me contive. Quando eu estava para lhe dar as costas, ele me olhou com desprezo, assustado, e mandou uma cusparada na minha direção. Metade escorreu-lhe pelo queixo, e o resto veio parar na minha camisa, na altura do peito. Desviei dele o olhar para conferir o estrago, e nessa fração de segundo ele voltou a fugir, desconjuntadamente, espiando por cima do ombro para ver se eu o perseguia. Achei que o incidente havia chegado ao fim, mas, quando o velho já se encontrava a uma boa distância, parou, virou-se para mim e começou a agitar o punho cerrado, apunhalando o ar com indignação.

- Comunista de merda! - ele gritava. - Agitador! Devia voltar para a Rússia. É lá que é o seu lugar.

O velho me desafiava para que eu fosse de novo atrás dele, obviamente querendo prolongar a aventura. Não mordi a isca. Sem nada dizer, dei-lhe as costas e deixei-o onde estava.

Foi um episódio banal, é claro, mas houve outros mais ameaçadores. Certa noite, um bando de adolescentes perseguiu-me em Sheep’s Meadow, e o que me salvou foi que um deles caiu e torceu o tornozelo. Uma outra vez, um bêbado agressivo ameaçou-me com uma garrafa de cerveja quebrada. O momento mais apavorante se deu, porém, certa noite de céu encoberto quando topei com um arbusto onde três pessoas faziam amor - dois homens e uma mulher. Era difícil enxergar alguma coisa, mas pareceu-me que eles estavam nus e, pelo tom de voz, também embriagados. Um galho partiu-se sob meu pé esquerdo, e então ouvi a voz da mulher seguida de um repentino farfalhar de folhas e raminhos.

- Jack! - ela chamou. - Há um intrometido aí.

Duas vozes responderam em vez de uma, ambas grunhindo de hostilidade e com uma violência que eu raramente ouvira. Em seguida ergueu-se um vulto, apontando para mim o que parecia ser um revólver.

- Nenhum pio, babaca - ele rosnou. - Ou já lhe mando umas seis.

Supus que ele se referisse às seis balas do revólver. Se o medo não houvesse distorcido minha percepção, diria que ouvi um clique naquele momento, o som da arma sendo engatilhada. Antes mesmo de me dar conta do meu pavor, fugi. Simplesmente virei-me e saí correndo. Caso o fôlego não me tivessem faltado, eu continuaria correndo até de manhã.

É impossível saber por quanto tempo eu teria aguentado. Se ninguém me matasse, acho que poderia resistir enquanto o frio não viesse. Afora alguns incidentes inesperados, a situação me parecia sob controle. Eu gastava com cuidado excruciante o meu dinheiro - nunca mais que um dólar ou dólar e meio por dia -, e isso adiava o momento em que chegaria às últimas consequências do que estava fazendo. Além disso, quando minhas reservas se aproximavam perigosamente do fim, sempre acontecia alguma coisa no último instante: eu encontrava dinheiro no chão ou algum estranho fazia um daqueles milagres de que já falei. Eu não me alimentava bem, mas não creio que tenha passado um dia inteiro sem ao menos comer um pouquinho. É verdade que, já perto do fim, eu ficara reduzido a uma magreza assustadora, apenas cerca de cinquenta quilos, e foi justamente nos últimos dias no parque que perdi mais peso. Isso porque adoeci - uma gripe, um vírus, sabe Deus -, e daí por diante não comia mais nada. Estava fraco demais e vomitava sempre que conseguia levar algo à boca. Se meus amigos não me tivesse encontrado no momento certo, com certeza teria morrido. Eu me havia esgotado. Não me restava nada por que lutar.

O tempo me fora favorável desde o início, tanto que deixei de considerá-lo um problema. Quase todos os dias eram uma repetição do dia anterior: lindos céus de fim de verão, um sol de rachar, a atmosfera que chegava fresca à noite cheia de grilos. Ao longo das primeiras duas semanas, pouco choveu, mas, quando choveu, não passou de uns respingos. Comecei a abusar da sorte, dormindo mais ou menos a descoberto, já então persuadido de encontrar-me em segurança onde quer que estivesse. Certa noite em que dormia na grama, completamente exposto aos céus, fui finalmente pego por uma tromba-d’água, por uma dessas chuvas cataclísmicas: o céu de repente partiu-se em dois e soltou uma furiosa e sonora torrente. Acordei encharcado, os pingos me atingiam como tiros de chumbo grosso. Comecei a correr no escuro, freneticamente à procura de algum lugar onde me esconder. Só alguns minutos depois fui encontrar abrigo sob a saliência de umas rochas, mas, nessa altura, pouco importava onde eu estivesse. Molhara-me como alguém que houvesse atravessado o oceano a nado.

A chuva continuou até o amanhecer, às vezes reduzindo-se a um chuvisco, em outros momentos explodindo em fortes catadupas - pura ira dos céus. Tais erupções eram imprevisíveis, e eu não queria correr o risco de ser pego por uma delas. Assim, agarrava-me a meu minúsculo esconderijo, em pé, botas encharcadas, jeans colado ao corpo e jaqueta de couro reluzente de água. Minha mochila havia sofrido a mesma lavagem; eu não tinha, portanto, nenhuma roupa seca para vestir. O jeito era esperar, tremendo no escuro como um cachorro perdido. Nas primeiras duas horas, fiz o possível para não sentir pena de mim mesmo, mas depois desisti, soltando uma fieira de gritos e pragas, colocando todas as minhas energias nas imprecações mais vis - uma sequência de invectivas nojentas, insultos torpes e sinuosos, exortações bombásticas contra Deus e a pátria. Depois de algum tempo, havia chegado ao ponto em que soluçava sem sequer interromper a enxurrada discursiva, feita de frases tão contundentes e bem construídas que até mesmo um degolador turco ficaria impressionado. Isso prosseguiu por mais ou menos meia hora. Exausto, acabei por dormir ali mesmo, em pé. Cochilei por alguns minutos e acordei com outra tromba-d’água. Quis renovar o ataque, mas estava cansado e rouco demais para continuar gritando. Assim, passei o resto da noite num transe de autopiedade, à espera de que a manhã chegasse.

Às seis horas, entrei numa bodega qualquer da Rua 48 e pedi um prato de sopa. Sopa de legumes, eu acho, com nacos gordurosos de aipo e cenouras que boiavam num caldo amarelado. Aqueci-me um pouco, mas a umidade da roupa ainda grudada ao corpo era tão penetrante que o efeito da sopa não durou muito. Fui ao banheiro e sequei a cabeça no secador de mãos elétrico. Para meu desgosto, as lufadas de ar quente deixaram meus cabelos num emaranhado ridículo. Fiquei parecendo um gárgula, uma dessas figuras hediondas que se destacam na torre de uma catedral gótica. Desesperado para desfazer aquela maçaroca, pus uma lâmina nova no aparelho de barbear, a última que eu tinha, e comecei a tosar os nós serpentinos. Quando acabei, meus cabelos estavam tão curtos que não me reconheci. Acentuava minha magreza de um modo quase aterrorizante. Minhas orelhas saltavam à vista, bem como o pomo de adão; minha cabeça não parecia maior que a de uma criança. Estou encolhendo, disse comigo mesmo. De repente, vi-me a falar em voz alta diante do espelho:

- Não tenha medo. Ninguém morre mais de uma vez. A comédia vai logo chegar ao fim, e você nunca mais vai ter de passar por isto.

Mais tarde, naquela mesma manhã, passei duas horas a ler na biblioteca pública. Contava com o calor da sala para que minha roupa secasse. Infelizmente, à medida que a roupa secava, começava também a cheirar. Era como se todas as pregas e costuras tivessem de repente decidido revelar seus segredos. Isso nunca me acontecera antes, e chocava-me perceber que um cheiro tão repulsivo viesse da minha pessoa. A combinação de suor velho com água da chuva devia ter produzido alguma estranha reação química, e, quanto mais seca ficasse a roupa, piorava o cheiro. Acabei por sentir até mesmo o cheiro dos pés - um fedor terrível que atravessava o couro das botas e invadia minhas narinas como uma nuvem de gás venenoso. Parecia impossível que isso estivesse acontecendo comigo. Continuei a folhear as páginas da Enciclopédia Britânica, rezando para que ninguém mais sentisse o odor. Minhas preces não foram atendidas. Um velho sentado diante de mim, à mesma mesa, ergueu o olhar do jornal, começou a fungar e, em seguida, olhou-me com ar enojado. Por um momento, vi-me tentado a levantar da cadeira e recriminá-lo pela indelicadeza, mas percebi que não tinha forças para tanto. Antes mesmo que ele tivesse a oportunidade de dizer qualquer coisa, ergui-me e saí.

Lá fora, o tempo estava sombrio. Era um dia triste, pesado, cheio de névoa e desesperança. Eu sentia que aos poucos ia ficando sem ideias. Uma estranha fraqueza tomava conta de meus ossos, e eu me esforçava para não tropeçar. Comprei um sanduíche numa delicatessen não muito longe do Colisseum, mas mal consegui comê-lo. Depois de várias mordidas, embrulhei-o e guardei-o na mochila para mais tarde. Minha garganta doía, e eu passara a transpirar muito. Atravessei a rua em Columbus Circle, voltei ao parque e comecei a procurar um canto onde me deitar, pois todos os meus habituais abrigos me pareciam precários, expostos, inúteis sem a proteção da noite. Eu nunca antes dormira durante o dia.

Continuei seguindo para o norte, na esperança de encontrar um lugar qualquer antes que desmaiasse. Minha febre aumentava, e um torpor de exaustão parecia engolir pedaços do meu cérebro. Não havia quase ninguém no parque. Estava para perguntar a mim mesmo por quê, quando começou a chuviscar. Se minha garganta não doesse tanto, eu provavelmente riria. Em seguida, brusca e violentamente, comecei a vomitar. Resíduos da sopa de legumes e pedaços de sanduíches saltavam da minha boca e se espatifavam no chão, bem aos meus pés. Agarrei-me aos joelhos e fiquei de olhos fixos na grama, à espera de que o espasmo passasse. Essa é a solidão humana, disse a mim mesmo. Isso é o que significa não ter ninguém. Eu não estava mais zangado, no entanto. Tal pensamento ocorreu-me com tremenda candura e absoluta objetividade. Dois ou três minutos depois, parecia-me que todo o episódio acontecera meses atrás. Continuei caminhando, sem querer desistir de minha busca. Caso viesse a dar com alguém, eu provavelmente lhe pediria que me levasse a um hospital. Mas ninguém apareceu. Não sei quanto tempo levei até encontrar um aglomerado de rochas grandes, cercadas de espessa folhagem. As rochas formavam uma gruta natural. Sem parar para pensar, entrei agachado naquela concavidade, juntei alguns galhos soltos para tapar a entrada e, em seguida, dormi.

Não sei quanto tempo passei ali dentro. Dois ou três dias talvez, mas isso pouco importa agora. Quando Zimmer e Kitty me perguntaram a esse respeito, respondi três; apenas porque se tratava de um número literário, o mesmo número de dias que Jonas passou na barriga da baleia. Fiquei a maior parte do tempo como que inconsciente, e, mesmo quando parecia acordado, encontrava-me tão envolvido com as atribulações do meu corpo que perdera a noção de onde estava. Lembro-me de longos acessos de vômito, de momentos frenéticos em que eu não parava de tremer e o único som que ouvia era o bater dos dentes. A febre, supostamente bem alta, trouxe consigo sonhos terríveis - visões mutantes e intermináveis que pareciam brotar da minha pele incandescente. Nada em mim conservava sua forma. A certa altura, vi o luminoso do Moon Palace diante de mim, mais vívido do que nunca. As letras cor-de-rosa e azuis de néon eram tão grandes que seu clarão se espalhava por todo o céu. De repente, elas desapareceram, menos os dois "o" de Moon. Vi-me pendurado num deles, lutando para não cair, como um acrobata que tivesse executado mal um número perigoso. Depois, enrosquei-me na letra tal qual uma minhoca e desapareci. Os dois "o" transformaram-se em olhos - olhos humanos, gigantescos, que me viam com desprezo e impaciência. Ficaram algum tempo fixados em mim, e então convenci-me de que eram os olhos de Deus.

O sol voltou no último dia. Não me lembro de ter feito isso, mas, a certa altura, devo ter me arrastado para fora da gruta e me esticado na grama. Minha cabeça estava tão perturbada que imaginei o calor do sol como sendo capaz de evaporar minha febre, de literalmente sugar de meus ossos a doença. Lembro-me de ter repetido várias vezes a mim mesmo as palavras Indian summer, que denotam os dias quentes do início do outono, a ponto de perderem o sentido. O céu acima de mim era imenso, de uma claridade infinita, acachapante. Senti que, se continuasse olhando para ele, eu me dissolveria na luz. Em seguida, sem me dar conta de ter adormecido, comecei a sonhar com índios. Eu me via trezentos e cinquenta anos atrás a seguir um grupo de homens seminus pelas florestas de Manhattan. Era um sonho estranhamente vibrante, inclemente, preciso, cheios de corpos que deslizavam com rapidez por entre folhas e galhos manchados de luz solar. Uma leve brisa soprava pelas folhagens, abafando os ruídos dos passos dos homens. Eu os seguia em silêncio, com a mesma agilidade, sentindo que a cada passo eu me aproximava da compreensão do espírito da floresta. Talvez eu me lembre tão bem dessas imagens porque foi nesse momento que Zimmer e Kitty me encontraram. Eu estava deitado na grama com esse estranho e delicioso sonho a se desenrolar na cabeça. Primeiro, vi Kitty, mas não a reconheci, embora seu rosto me parecesse familiar. Como ela estivesse com a tiara navajo nos cabelos, minha primeira reação foi tomá-la por uma imagem retida, mulher-sombra incubada na escuridão do meu sonho. Mais tarde, Kitty contou-me que eu lhe sorrira. Contou-me também que, ao se debruçar para me ver mais de perto, me ouvira chamá-la de Pocahontas. Lembro-me de que era difícil enxergá-la por causa da forte claridade. Estou certo, porém, de nesse momento ter visto lágrimas em seus olhos, embora ela nunca houvesse admitido isso. Depois, Zimmer entrou em cena.

- Cretino! - ele exclamou. Houve uma breve pausa, e, em seguida, sem querer confundir-me com um discurso longo demais, ele repetiu: - Seu cretino! Seu cretino de uma figa!


3

FIQUEI MAIS DE UM MÊS no apartamento de Zimmer. A febre cedeu no segundo ou terceiro dia, mas continuei sem forças durante um bom tempo ainda. Mal podia me levantar sem perder o equilíbrio. No começo, Kitty vinha me visitar duas vezes por semana, mas nunca falava muito e costumava sair em vinte ou trinta minutos. Estivesse eu mais atento, teria me perguntado o motivo disso, principalmente depois que Zimmer me contou como eu havia sido salvo. Afinal, era um tanto estranho que uma pessoa que houvesse passado três semanas revirando o mundo de cabeça para baixo a fim de me encontrar agisse de repente com tamanha reserva ao alcançar o objetivo. Mas era assim mesmo, e eu não questionava o fato. Estava fraco demais para isso e aceitava suas idas e vindas do modo como se davam. Julgava-as ocorrências naturais que traziam em si a mesma força e inevitabilidade do clima, do movimento dos planetas ou da luz que se infiltrava pela janela às três horas da tarde.

Foi Zimmer quem cuidou de mim durante minha convalescença. Ele se mudara para um apartamento no segundo andar de um velho prédio de aluguel, em West Village - um apartamento de paredes sujas, desbotadas, cheio de livros e discos, com duas salas sem porta a separá-las, uma cozinha rudimentar, um banheiro sem janela. Percebi o sacrifício que ele fazia para me acolher, mas, sempre que eu procurava demonstrar gratidão, Zimmer desconsiderava meu gesto, fingindo não lhe dar importância. Ele me alimentava com dinheiro do próprio bolso e deixava que eu dormisse na sua cama. Não pedia nada em troca. Ao mesmo tempo, estava furioso comigo e não fazia nada para esconder sua revolta. Segundo ele, eu não só agira como um imbecil como também quase me matara. Era indesculpável que alguém com a minha inteligência fizesse o que eu havia feito, ele disse. Era grotesco, era tolo, um despropósito. Se eu tinha problemas, por que não lhe pedira ajuda? Como ignorava que ele teria feito o possível para me socorrer? Praticamente não respondi a esses ataques. Compreendi sua mágoa e envergonhava-me de tê-la causado. Com o tempo, foi se tornando mais difícil reconhecer a dimensão do desastre que eu havia provocado. Julgara estar sendo corajoso, mas simplesmente demonstrara a mais abjeta forma de covardia ao deleitar-me com o desprezo que tinha pelo mundo, ao recusar-me a ver as coisas de frente. Agora tinha remorsos e a sensação de ter sido mutilado por minha própria estupidez.

O tempo passava no apartamento de Zimmer, e eu me recuperava lentamente. Nesse meio-tempo, ia me dando conta de que precisava começar tudo de novo. Queria reparar meus erros, recompensar as pessoas que ainda gostavam de mim. Estava cansado de mim mesmo, dos meus pensamentos, de ficar ruminando meu destino. Sentia necessidade de me purificar, de me purgar do envolvimento excessivo com meu próprio eu. Depois de ter ficado imerso no total egoísmo, queria atingir um estado de altruísmo completo. Eu pensaria nos outros antes de pensar em mim, tentaria diligentemente desfazer o mal que havia causado. Assim talvez eu começasse a realizar alguma coisa neste mundo. Era um plano impossível mas apeguei-me a ele com um fanatismo quase religioso. Eu queria virar santo, um santo sem deus que andaria pelo mundo a fazer o bem. Por mais absurdo que isso hoje me pareça, creio que era exatamente o que eu queria fazer. Eu procurava desesperadamente uma certeza e me dispunha a qualquer coisa para encontrá-la.

Havia, no entanto, mais um obstáculo no caminho. A sorte acabou me favorecendo, mas foi por um triz que não me dei mal. Uns dois dias depois de passada a febre, levantei-me da cama e fui ao banheiro. Era de noite, eu acho, e Zimmer, na outra sala, trabalhava à escrivaninha. Ao voltar para a cama em meu passo arrastado, vi no chão o estojo da clarineta de tio Victor. Não pensava no estojo desde o dia em que havia sido salvo e fiquei horrorizado com seu estado. Metade do couro preto que o revestia desaparecera, e em grande parte do que restava haviam surgido bolhas e rachaduras. A tempestade no Central Park o maltratara demais, e perguntei-me se a água não teria danificado também o instrumento. Peguei o estojo e levei-o até a cama, esperando pelo pior. Abri os fechos, ergui a tampa e, antes mesmo que chegasse a examinar a clarineta, um envelope branco caiu ao chão, esvoaçando. Percebi nesse momento que meus problemas estavam apenas por começar. Era a carta do posto de alistamento do Exército. Eu não só me esquecera da data do exame médico como também de ter recebido o comunicado. Eu talvez fosse um fugitivo da justiça, pensei. Caso tivesse deixado de comparecer ao exame médico, o governo já teria feito expedir a ordem de prisão - o que significava um preço muito alto a pagar, consequências que eu nem sequer imaginava. Abri o envelope e verifiquei a data datilografada no espaço em branco do formulário: 16 de setembro. Fiquei na mesma, pois não sabia em que dia estava e era incapaz de arriscar um palpite. Havia perdido o hábito de consultar relógios e calendários.

- Uma pergunta - eu disse a Zimmer, que continuava debruçado sobre o trabalho. - Sabe por acaso que dia é hoje?

- Segunda-feira - ele respondeu sem erguer o olhar.

- Quero saber a data. O dia do mês. Não precisa dizer o ano, que isso eu sei.

- Quinze de setembro. - Novamente ele não se deu ao trabalho de erguer o olhar.

- Quinze de setembro? Tem certeza?

- Claro que tenho. Não há a menor dúvida.

Afundei-me no travesseiro e fechei os olhos.

- É incrível - murmurei. - Absolutamente incrível.

Zimmer finalmente desviou a atenção do trabalho e olhou-me, intrigado.

- O que há de tão incrível nisso? - ele perguntou.

- Quer dizer que não sou um criminoso.

- O quê?

- Quer dizer que não sou um criminoso.

- Eu ouvi da primeira vez. Repetir não esclarece nada.

Ergui a carta e sacudi no ar.

- Assim que você ler isto, vai compreender o que eu disse.

Tinha de me apresentar na Rua Whitehall na manhã seguinte. Eu e Zimmer - que havia passado por seu exame médico em julho e fora dispensado por causa da asma - ficamos umas duas, três horas conversando a respeito do que eu teria pela frente. Era basicamente a mesma conversa que milhões de jovens americanos mantinham na época. Mas, ao contrário da maioria deles, eu não me preparara para enfrentar o momento da verdade. Não possuía nenhum atestado médico, não me lançara às drogas para prejudicar a coordenação motora, não fingira colapsos nervosos para estabelecer um quadro clínico de perturbações mentais. Sempre soubera que nunca entraria no Exército e, ao chegar a essa conclusão, deixara de me preocupar com o assunto. Assim como diante de tantas outras coisas, eu me submetera novamente à inércia e, com eficiência, afastara o problema do pensamento. Zimmer ficou perplexo, mas também ele acabou admitindo ser tarde demais para se tomar alguma providência. Eu teria de comparecer ao exame médico e, se fosse considerado apto, haveria para mim duas opções: sair do país ou ir para a cadeia. Zimmer contou-me várias histórias de pessoas que tinham ido para o estrangeiro - Canadá, França, Suécia -, mas eu não estava muito interessado nisso. Não tinha dinheiro, eu lhe disse, nem queria viajar.

- Então de qualquer modo você vai acabar sendo um criminoso - ele argumentou.

- Um prisioneiro - corrigi-o. - Prisioneiro de consciência. Há uma diferença aí.

Eu ainda estava nos primeiros estágios da convalescença e, na manhã seguinte, ao me levantar e me vestir - com roupas de Zimmer, que eram vários números abaixo do meu -, dei-me conta de não estar em condições de ir a lugar nenhum. Eu me achava exaurido, e o simples fato de atravessar o quarto exigia de mim toda energia e concentração. Até então, não havia saído da cama por mais de um ou dois minutos de cada vez; levantava-me apenas para ir, trôpego, ao banheiro. Zimmer literalmente me manteve em pé, descendo as escadas com os dois braços ao redor do meu corpo e deixando que eu me apoiasse nele enquanto cambaleávamos a caminho do metrô. Era um espetáculo deprimente, creio eu. Ele me levou até a porta de entrada do prédio da Rua Whitehall e apontou para um restaurante bem em frente, onde estaria me esperando quando eu saísse.

- Não se preocupe - ele disse, apertando o meu braço para me dar coragem. - Você vai ser um excelente soldado, Fogg. Isso está escrito na sua testa.

- Tem razão - respondi. - O melhor soldado do maldito Exército deste país. Qualquer idiota pode ver isso.

Despedi-me de Zimmer com uma continência debochada, entrei no prédio e fui adiante apoiado às paredes.

Grande parte do que aconteceu em seguida encontra-se hoje esquecido. Lembro-me de alguns fragmentos; nada, porém, que permita recompor tudo o que se passou e de que eu possa falar com alguma convicção. Essa incapacidade de registrar o episódio demonstra quão fraco eu devia estar. Recorri a toda força que tinha para me manter em pé, sem cair, e isso me impediu de prestar a devida atenção. Na verdade, creio ter ficado de olhos fechados a maior parte do tempo, e, quando conseguia abri-los, nunca era por tempo suficiente para que eu retivesse do mundo alguma impressão.

Havia uns cinquenta ou cem jovens ali comigo. Lembro-me de estar numa sala grande, sentado a uma escrivaninha, e de ouvir o sargento falar conosco. Não me recordo, porém, do que ele dizia, de uma palavra sequer. Deram-nos formulários para preencher e, em seguida, houve uma espécie de teste escrito. É possível, no entanto, que o teste tenha vindo antes dos formulários. Lembro-me de ter enumerado as organizações a que pertencera - entidades pacifistas estudantis -, de ter levado algum tempo a fazer isso e de ter precisado explicar as circunstâncias em que se dera minha prisão no ano anterior. Fui o último da sala a terminar, e, no fim, o sargento já me espiava por cima do ombro, murmurando qualquer coisa a respeito de Ho Chi Minh e da bandeira americana.

Depois disso, veio um intervalo de vários minutos, talvez meia hora. Vejo corredores, luzes fluorescentes, grupos de jovens em pé no corredor, de cuecas. Lembro-me da intensa vulnerabilidade que então senti, mas muito outros detalhes sumiram da minha memória. Onde nos despimos, por exemplo, e o que nos dissemos uns aos outros enquanto esperávamos em fila. Mais especificamente, sou incapaz de recordar alguma imagem referente a nossos pés. Acima dos joelhos, vestíamos só cuecas, mas, abaixo, é tudo um mistério para mim. Era-nos por acaso permitido ficar de sapatos e/ou meias? Fizeram-nos andar descalços pelos corredores? Tudo é lacuna a esse respeito; não me ocorre sequer o mais vago vislumbre.

Por fim, mandaram-me entrar numa sala. Um médico me deu tapinhas no peito, nas costas, espiou dentro de minhas orelhas, pegou-me no saco e pediu que eu tossisse. Tais coisas exigiam de mim pouco esforço, mas, quando chegou a hora da coleta de sangue, o exame ficou mais animado. Eu estava tão magro e anêmico que o médico não conseguia encontrar veia nenhuma em meu braço. Espetou-me duas ou três vezes, maltratando-me a pele, mas não havia jeito de o sangue entrar na seringa. Eu já devia então ter ficado com uma aparência horrível, pálido. Meu mal-estar era semelhante ao de alguém que fosse sofrer um desmaio. O médico logo desistiu e mandou-me sentar num banco. Foi gentil comigo, creio eu. Ou pelo menos indiferente.

- Se voltar a sentir tontura - ele recomendou -, sente-se no chão e espere passar. Senão você pode cair e bater a cabeça.

Lembro-me muito bem de estar sentado no banco e, depois disso, de me encontrar deitado numa mesa, em outra sala. Impossível saber quanto tempo passou entre um momento e outro. Acho que não desmaiei, mas, quando tentaram novamente me tirar sangue, é provável que não quisessem arriscar. Amarraram um cordão de borracha ao redor do meu bíceps para que a veia saltasse, e, quando nela finalmente o médico espetou a agulha - não sei se o mesmo médico ou outro -, ele fez algum comentário a respeito da minha magreza. Perguntou também se eu havia tomado café da manhã. Tive então, com certeza, o momento mais lúcido daquele dia. Voltei-me para ele e dei-lhe a resposta mais simples e sincera:

- Mas, doutor, acha que pareço capaz de ficar sem o café da manhã?

Houve mais, deve ter havido muito mais, mas não consigo evocar quase nada. Sei que nos serviram almoço - no mesmo prédio?, num restaurante fora dali? -, e a única coisa de que me lembro a esse respeito foi que ninguém queria ficar a meu lado. À tarde, novamente nos corredores de cima, por fim nos mediram e pesaram. Quando pisei na balança, o peso indicado era absolutamente ridículo - cinquenta quilos, eu acho, talvez cinquenta e dois. A partir de então, fiquei separado do grupo. Mandaram-me a um psiquiatra, um sujeito gorducho, de dedos curtos e grossos. Lembro-me de ter pensado que ele era mais parecido com um pugilista do que com um médico. Nada de contar-lhe mentiras. Eu já havia entrado num novo período de potencial santidade, e a última coisa que queria era fazer algo de que depois me arrependesse. O psiquiatra suspirou um par de vezes durante a conversa que tivemos. Afora isso, ele aparentemente não se abalou, nem com meus comentários, nem com minha aparência. Devia ter feito tantas entrevistas daquele tipo, pensei, que nada mais o deixava perturbado. De minha parte, surpreendeu-me que suas perguntas fossem tão vagas. Ele me perguntou se eu tomava drogas e, quando lhe respondi que não, ergueu a sobrancelha e repetiu a pergunta. Dei-lhe a mesma resposta, e ele não insistiu no assunto. Em seguida, passou a fazer-me perguntas de rotina: como meus intestinos funcionavam, se eu tinha ejaculações noturnas, com que frequência eu pensava em cometer suicídio. Respondi com a maior simplicidade que pude, sem floreios nem comentários. À medida que eu falava, ele, sem olhar para mim, ia assinalando uns quadradinhos numa folha de papel. Eu sentia algo de reconfortante em tratar daquele modo assuntos tão íntimos. Era como se estivesse falando com um contabilista ou com um mecânico de automóveis. No entanto, quando ele chegou ao fim da página, ergueu novamente os olhos e fixou-os em mim por uns bons quatro ou cinco segundos.

- Você não está nada bem, rapaz - disse ele enfim.

- Eu sei - respondi. - Não ando mesmo muito bem, mas acho que estou melhorando.

- Quer falar disso?

- Se o senhor quiser.

- Pode começar pelo seu peso. Por que está tão magro?

- Gripe. Também fiquei mal do estômago há duas semanas e não tenho conseguido comer.

- Quanto peso perdeu?

- Não sei. Uns vinte, talvez.

- Em duas semanas?

- Não. Em dois anos, mais ou menos. Mas foi neste verão que perdi mais peso.

- Por quê?

- Problema de dinheiro. Não tenho tido o suficiente para comprar comida.

- Não tem emprego?

- Não.

- Tem procurado?

- Não.

- Também vai ter de explicar isso, rapaz.

- É um assunto muito complicado. Não sei se o senhor vai me compreender.

- Deixe-me chegar a essa conclusão por mim mesmo. Conte-me apenas o que aconteceu e não se preocupe com o que possa parecer. Não temos pressa.

Por algum motivo, senti um desejo incontrolável de contar minha história àquele estranho. Nada poderia ser menos adequado, mas, antes mesmo de pensar em me conter, as palavras jorravam da minha boca. Eu percebia o movimento dos lábios, mas era como se ouvisse outra pessoa falar. Minha voz não parava de contar histórias a respeito da minha mãe, do tio Victor, do Central Park e de Kitty Wu. O médico fazia acenos de cabeça, educadamente, mas era óbvio que não compreendia nada do que eu estava a dizer. À medida que eu prosseguia a explicação de como tinha vivido nos últimos dois anos, notava o seu crescente desconforto. Isso me frustrava, e, quanto mais incompreensão ele demonstrasse, mais desesperadamente eu tentava ser claro. Eu sentia que, de certa forma, minha condição humana estava em jogo. Não importava que ele fosse um médico do Exército; ele era um ser humano, e nada era mais importante do que obter sua compreensão.

Foi um desastre. Minha linguagem tornou-se cada vez mais desajeitada, abstrata, e vi que, por fim, o médico já não me ouvia. Ele mantinha o olhar fixo num ponto invisível acima da minha cabeça, seus olhos turvaram-se com uma mistura de confusão e piedade. Não sei quantos minutos durou meu monólogo, mas foi o bastante para que ele concluísse que eu era um caso perdido - um autêntico caso perdido, não um daqueles espúrios casos de loucura que ele aprendera a detectar.

- Está bem, rapaz - disse ele, interrompendo-me no meio da frase. - Acho que estou entendendo.

Continuei sentado durante uns dois minutos, em silêncio, tremendo e transpirando, enquanto ele escrevia algo numa folha de papel timbrado. O médico dobrou a folha ao meio e a entregou para mim por cima da mesa.

- Leve isso ao oficial comandante, mais abaixo no corredor - ele instruiu. - E, ao sair, diga ao próximo que pode entrar.

Lembro-me de seguir pelo corredor com o papel na mão, lutando contra a tentação de ler o que estava escrito. Impossível deixar de sentir que era vigiado, que as pessoas naquele prédio podiam ler meus pensamentos. O oficial comandante, um homem corpulento, de uniforme, com um ziguezague de medalhas e condecorações no peito, ergueu o olhar de uma pilha de papéis que se encontravam sobre a escrivaninha e fez um gesto descontraído para que eu entrasse. Entreguei-lhe o papel. Assim que ele bateu os olhos no parecer do psiquiatra, abriu um largo sorriso cheio de dentes.

- Graças a Deus! - ele exclamou. - Você acaba de me poupar uns dois dias de trabalho.

Sem maiores explicações, ele começou a rasgar os papéis que tinha diante de si e a jogá-los no cesto de lixo. Parecia tremendamente satisfeito.

- Que bom que você foi dispensado, Fogg! - ele exclamou. - Teríamos de fazer uma investigação completa a seu respeito. Agora não precisamos mais.

- Investigação?

- Por causa das organizações a que você pertenceu - ele explicou, quase com alegria. - Não podemos ter agitadores, nem comunistoides subversivos no Exército, não é mesmo? Não é bom para o moral.

Não me lembro da exata sequência de acontecimentos depois de então, mas pouco demorou para que eu me visse sentado numa sala junto de outros desajustados e rejeitados. Devia haver uns dez ali; eu nunca havia visto um grupo tão patético de pessoas reunidas num lugar só. Um dos rapazes, com rosto e costas cobertos de horrível acne, falava sozinho a um canto. Outro tinha um braço atrofiado. Outro ainda, encostado à parede, não devia pesar menos de cento e trinta quilos. Fazia com a boca ruídos de peido e, em seguida, punha-se a rir como uma criança problemática. Eram os simplórios, os grotescos, os excluídos. Não falei com nenhum deles. Nessa altura, já estava a ponto de desmaiar de cansaço. Sentei-me numa cadeira, perto da porta, e fechei os olhos. Quando voltei a abri-los, um oficial sacudia o meu braço e pedia que eu acordasse.

- Pode ir para casa - ele disse. - Pronto, acabou.

Atravessei a rua sob o sol do final da tarde. Zimmer estava à espera no restaurante, como havia prometido.

GANHEI RAPIDAMENTE PESO depois de então. Em cerca de dez dias, engordei uns nove quilos, e, lá pelo fim do mês, voltava a ter ares da mesma pessoa que eu fora em outros tempos. Zimmer me alimentava zelosamente, enchendo a geladeira com todo tipo de comida. Quando eu já parecia recuperado o bastante para poder me aventurar nas ruas, ele passou a levar-me todas as noites a um bar próximo. Era um lugar escuro e sossegado, sem muito movimento, onde bebíamos cerveja e assistíamos aos jogos pela televisão. O gramado era sempre azul naquele aparelho; os tacos, um borrão cor de laranja; e os jogadores pareciam palhaços. Era, porém, agradável ficar ali em nosso banco isolado, conversando horas a fio sobre o que tínhamos pela frente. Foi um período delicioso e tranquilo de nossas vidas: um breve intervalo de quietude antes de entrarmos de novo em movimento.

Foi durante essas conversas que fiquei sabendo mais a respeito de Kitty Wu. Zimmer a achava adorável, e, ao falar dela, era evidente em seu tom de voz a admiração que sentia. Certa vez, chegou mesmo a dizer que, se já não estivesse apaixonado por outra, teria caído de boca em cima de Kitty. Ela se aproximava da perfeição o bastante para ele aprová-la como namorada, disse Zimmer, e a única coisa que o intrigava era o fato de ela se sentir atraída por um tipo tão desinteressante como eu.

- Não creio que ela se sinta atraída por mim - respondi. - É que ela tem bom coração. Ficou com pena de mim e quis me ajudar, só isso. Do mesmo modo que qualquer pessoa tem pena de um cão ferido.

- Eu estive com ela todos os dias, M. S. Todos os dias durante quase três semanas. Ela não parava de falar a seu respeito.

- Que absurdo!

- Acredite. Sei do que estou falando. Ela está loucamente apaixonada por você.

- Então, por que ela não vem me ver?

- Está ocupada. As aulas na Juilliard já começaram, e ela tem um emprego de meio período.

- Não sabia disso.

- Claro que não. Você não sabe de nada. Fica na cama o dia todo, vai à geladeira, lê meus livros. De vez em quando resolve lavar a louça. Como poderia saber de alguma coisa?

- Estou recobrando forças. Em poucos dias volto ao normal.

- Fisicamente. Quanto à cabeça, ainda vai demorar.

- O que quer dizer com isso?

- Quero dizer que você precisa ir além das aparências, M. S. Você tem de usar a imaginação.

- Sempre achei que fiz muito isso. Agora estou tentando ser mais realista, e ter os pés no chão.

- Em relação a você, sim. Mas não com os outros. Por que acha que Kitty se afastou? Por que ela já não o vem visitar?

- Porque está ocupada. Você acabou de me dizer isso.

- Mas não é tudo.

- Estamos andando em círculos, David.

- Estou apenas querendo lhe mostrar que há mais coisas do que você pensa.

- Bem, então o que é?

- Discrição.

- Essa é a última palavra que eu empregaria para descrever Kitty. Talvez ela seja a pessoa mais aberta e espontânea que eu conheço.

- É verdade. Mas, atrás disso, há uma grande reserva, uma verdadeira delicadeza de sentimentos.

- Ela me beijou na primeira vez em que a vi, sabia disso? Eu estava de saída quando ela me barrou à porta, me abraçou e me beijou na boca. Eu não chamaria isso de reserva nem de delicadeza.

- Foi bom o beijo?

- Para ser sincero, foi. Extraordinário. Um dos melhores beijos que experimentei na vida.

- Está vendo só? Isso confirma o que eu disse.

- Não confirma nada. Foi apenas um gesto impulsivo.

- Não. Kitty sabia o que estava fazendo. É verdade que ela cede aos impulsos, mas esses impulsos são também uma forma de conhecimento.

- Você parece ter muita certeza do que está dizendo.

- Ponha-se no lugar dela. Ela se apaixona por você, beija-o na boca, deixa tudo de lado para ir procurá-lo. E o que você fez por ela? Nada. Nada de nada. O que diferencia Kitty das outras pessoas é que ela se dispõe a aceitar isso. Imagine só, Fogg. Ela salva a sua vida e, no entanto, você não lhe deve nada. Ela não espera gratidão de sua parte. Nem mesmo amizade. Ela talvez queira isso tudo, mas não vai cobrar nunca. Respeita demais as pessoas para forçá-las a fazer alguma coisa contra a vontade delas. Ela é aberta e espontânea, mas, ao mesmo tempo, prefere morrer a passar por oferecida. Aí entra a discrição. Ela já foi bem longe e agora tudo o que tem a fazer é parar e esperar.

- O que está querendo dizer?

- Que está tudo nas suas mãos, Fogg. Cabe a você dar o próximo passo.

De acordo com o que Kitty contou a Zimmer, seu pai fora um general do Kuomintang, na China pré-revolucionária. Nos anos 30, ele ocupara o cargo de prefeito ou dirigente militar de Pequim. Embora fosse membro do círculo mais próximo de Chiang Kai-shek, certa vez salvara a vida de Chu En-lai, oferecendo-lhe um salvo-conduto para sair da cidade, depois de Chiang tê-lo encurralado a pretexto de arranjar um encontro entre o Kuomintang e os comunistas. Mesmo assim, o general permaneceu fiel à causa nacionalista e, depois da revolução, mudou-se para Formosa com os demais seguidores de Chang. A casa Wu era enorme. Compunha-se da mulher legítima, duas concubinas, cinco ou seis filhos e um quadro completo de criadagem. Kitty nasceu em fevereiro de 1950, filha da segunda concubina. Dezesseis meses depois, quando o general Wu foi indicado embaixador do Japão, a família mudou-se para Tóquio. Foi uma atitude inteligente da parte de Chiang: honrar o general inconformista, que não media palavras, com um cargo importante e, ao mesmo tempo, afastá-lo do centro de poder em Taipé. O general Wu estava então com quase setenta anos, e seus dias como homem de influência pareciam estar chegando ao fim.

Kitty passou a infância em Tóquio, frequentou escolas americanas - o que explicava o seu inglês perfeito - e desfrutou de todas as vantagens de sua condição privilegiada: aulas de balé, Natal à americana, carros com motorista. Apesar de tudo, era uma criança solitária. Tinha dez anos menos que a meia-irmã mais próxima, e um de seus irmãos, um banqueiro que morava na Suíça, era trinta anos mais velho. Pior ainda, a condição de segunda concubina deixava sua mãe, dentro da hierarquia da família, quase na condição de um criado. A esposa de sessenta e quatro anos e a primeira concubina de cinquenta e dois tinham ciúme da jovem e atraente mãe de Kitty e faziam tudo para enfraquecer sua posição dentro da casa.

Segundo as palavras de Kitty a Zimmer, era mais ou menos como viver na corte imperial chinesa com todas as suas rivalidades, facções, maquinações secretas, conspirações silenciosas e sorriso hipócritas. O general raramente era visto. Quando não estava ocupado com seus deveres oficiais, passava a maior parte do tempo cultivando a afeição de várias jovens de reputação duvidosa. Tóquio era uma cidade rica em tentações, e as oportunidades para galanteios desse tipo eram inesgotáveis. Assim, acabou arranjando uma amante, instalou-a num apartamento chique e, para fazê-la feliz, gastou prodigiosas quantias em roupas, joias e, por fim, um carro esporte. Com o tempo, porém, isso se tornou insuficiente, nem mesmo um caro e doloroso tratamento contra impotência foi capaz de mudar o rumo dos acontecimentos. As atenções da amante começaram a se dispersar, e, certa noite em que o general apareceu de surpresa, encontrou-a nos braços de um homem mais jovem. A luta que então se seguiu foi terrível: vozes esganiçadas, unhadas cortantes, uma camisa rasgada e manchada de sangue. Foi a última ilusão do velho tolo. O general foi para casa, pendurou a camisa rasgada no meio do quarto e nela prendeu uma folha de papel com a data do incidente: 14 de outubro de 1959. Deixou a camisa naquele mesmo lugar até o fim da vida, saboreando-a como um monumento à vaidade destruída.

A determinada altura, a mãe de Kitty morreu. Zimmer não soube me dizer ao certo quais as causas e em quais circunstâncias. O general já estava então com mais de oitenta anos e pouca saúde, mas, num último rasgo de preocupação com a filha mais nova, mandou-a para um colégio interno nos Estados Unidos. Kitty tinha apenas catorze anos quando chegou a Massachusetts para entrar na Fielding Academy. Com o seu jeito de ser, não levou muito tempo para se adaptar nem para arranjar uma casa. Ela representava e dançava, fazia amigos, estudava o suficiente para conseguir boas notas. No fim do quarto ano, estava convencida de que não voltaria ao Japão. Nem a Taiwan, ou qualquer outro lugar. Os Estados Unidos tornaram-se seu país, e, aproveitando bem a pequena herança que recebera depois da morte do pai, pagou os estudos na Juilliard e mudou-se para Nova York. Já estava na cidade havia mais de um ano e começava o segundo período de aulas.

- Não lhe soa familiar? - perguntou Zimmer.

- Familiar? - retruquei. - É uma das histórias mais exóticas que ouvi.

- Apenas superficialmente. Tire a cor local que fica bem parecida com a história de alguém que eu conheço. Alguns detalhes são diferentes, é claro.

- Hum! Percebo o que está querendo dizer. Órfãos expostos à tempestade, esse tipo de coisa.

- Exatamente.

Fiz uma breve pausa para considerar o que Zimmer acabara de dizer.

- Até concordo que haja mesmo certas semelhanças - acrescentei enfim. - Mas acha que ela está contando a verdade?

- Não posso ter certeza alguma. Mas pelo que conheço dela, ficaria muito chocado se fosse mentira.

Bebi mais um gole de cerveja e fiz um aceno de cabeça. Mais tarde, quando a conheci melhor, soube que Kitty nunca mentia.

QUANTO MAIS EU PERMANECIA na casa de Zimmer, menos à vontade ia ficando. Ele arcava com as despesas da minha convalescença, e, embora nunca se queixasse, eu sabia que meu amigo não estava tão bem de finanças a ponto de continuar me sustentando por muito mais tempo. Zimmer recebia algum dinheiro da família, que morava em Nova Jersey, mas basicamente tinha de se arranjar sozinho. Por volta do dia 20 do mês, ele começava um curso de pós-graduação em literatura comparada na Colúmbia. A universidade o atraíra com uma bolsa de estudos, oferecendo-lhe curso gratuito, mais dois mil dólares - uma boa quantia naquela época, mas insuficiente para um ano inteiro. Assim mesmo ele continuava a tomar conta de mim, gastando sem compunção suas magras economias. No entanto, apesar da generosidade, devia haver em sua atitude mais do que puro altruísmo. Recordo-me de ter sempre sentido, em nosso primeiro ano como colegas de quarto, que ele ficava um tanto intimidado comigo, subjugado, por assim dizer, com a intensidade das minhas loucuras. Com a chegada de tempos difíceis para mim, ele talvez tivesse encontrado a oportunidade de tentar controlar-me, de restabelecer o equilíbrio interno de nossa amizade. Duvido que Zimmer tivesse consciência disso, mas sua voz passara a trair um certo tom de superioridade quando ele falava comigo, e era difícil não notar o prazer que ele sentia ao me alfinetar com brincadeiras. Eu não me ofendia, no entanto; suportava aquilo. Minha autoestima diminuíra tanto que eu secretamente recebia bem seus constantes ataques, considerando-os uma forma de justiça, um merecido castigo por meus pecados.

Zimmer era baixo, magro, de cabelos pretos encaracolados e postura senhoril. Usava óculos de aro de metal, muito comum entre os estudantes da época, e barba curta e rala, o que o deixava com ares de jovem rabino. De todos os estudantes que eu tinha conhecido na Colúmbia, ele era o mais brilhante e consciencioso. Não havia dúvida de que faria notável carreira universitária, caso a escolhesse. Compartilhávamos a mesma paixão por livros obscuros e esquecidos (Cassandra de Lycophron, os diálogos filosóficos de Giordano Bruno, os cadernos de Joseph Joubert, apenas para mencionar alguns que descobrimos juntos), mas, enquanto minha tendência era para o louco entusiasmo e para a dispersão, Zimmer mostrava-se abrangente e sistemático, a ponto de, com frequência, me surpreender. Contudo, ele não se orgulhava muito de seu talento para a crítica, atribuindo-lhe importância secundária. O grande interesse de Zimmer era escrever poesia, com o que se ocupava durante horas a fio, trabalhando cada palavra como se o destino do mundo delas dependesse - certamente a única maneira sensata de alguém praticar essa arte.

Sob muitos aspectos, os poemas de Zimmer se assemelhavam ao seu corpo: compacto, tenso, inibido. Suas ideias se entrelaçavam de modo tão denso que, não raro, era difícil apreender-lhes o sentido. Mesmo assim, eu admirava a estranheza e a linguagem dura dos poemas. Zimmer confiava nas minhas opiniões, e eu era tão sincero quanto possível quando ele as pedia, encorajava-o ao máximo. Recusava-me, no entanto, a medir palavras quando achava que algo não estava bem. Eu não tinha ambições literárias, e isso talvez tornasse tudo mais fácil. Ele sabia que, quando eu lhe criticava o trabalho, não se tratava de alguma silenciosa competição entre nós.

Havia dois ou três anos que ele estava apaixonado pela mesma moça, Anna Bloom ou Blume - eu nunca me lembrava da grafia correta do sobrenome. Ela havia crescido na casa em frente à de Zimmer, num subúrbio de Nova Jersey, e fora da mesma classe que a irmã dele. Isso significava que era dois anos mais nova que o namorado. Eu a encontrei apenas uma ou duas vezes. Era uma moça de rosto bonito, cabelos escuros, pequena, personalidade fogosa e agitada. Eu sempre suspeitara que Zimmer, com seu temperamento de estudioso, teria problemas com ela. No início do verão, a jovem partira repentinamente para encontrar-se com o irmão, William, que trabalhava como jornalista no estrangeiro. Desde então, Zimmer não recebia notícias dela - nenhuma carta, nenhum cartão-postal, nada. As semanas passavam, e o silêncio o deixava cada vez mais desesperado. Todos os dias começavam com o ritual de ir lá embaixo examinar a caixa do Correio, e, sempre que ele saía ou chegava, de novo verificava se havia alguma correspondência.

Isso podia acontecer a qualquer hora, até mesmo às duas ou três da manhã, quando não havia possibilidade alguma de ter sido feita uma nova entrega. Era uma obsessão; Zimmer não resistia. Quantas vezes, ao voltarmos para casa da White Horse Tavern, meio bêbados de cerveja, não tive de presenciar a dolorosa cena de ver meu amigo procurar nos bolsos a chave da caixa do Correio e, em seguida, às cegas, enfiar a mão lá dentro para pegar uma carta que nunca chegaria. Talvez tenha sido por isso que Zimmer tenha suportado por tanto tempo minha presença no apartamento. Ao menos assim ele teria com quem conversar, alguém que o distraísse de seus problemas - uma estranha, cômica, imprevisível forma de alívio.

Eu não deixava, porém, de trazer-lhe despesas, e, quanto mais tempo passava sem que ele me dissesse coisa alguma, pior eu me sentia. Meu plano era sair para procurar emprego assim que tivesse forças suficientes (qualquer emprego, não importava o que fosse) e começar a devolver parte do dinheiro que Zimmer gastara comigo. Isso não resolvia o problema de onde morar, mas ao menos consegui convencê-lo a deixar-me dormir no chão para que ele voltasse à própria cama. Dois dias depois de trocarmos de quarto, começaram suas aulas na Colúmbia. Certa noite, durante a primeira semana, ele voltou para casa com um calhamaço de papéis e, desanimado, contou-me que uma amiga do Departamento de Francês fora contratada para fazer uma tradução urgente e só depois percebera que não teria tempo para isso. Zimmer então se ofereceu para fazer a tradução em seu lugar, e ela gostou da ideia. Foi assim que o original entrou em casa, um documento tedioso, de umas cem páginas, a respeito da reorganização estrutural do consulado francês em Nova York. No momento em que Zimmer começou a falar do caso, vi aí a oportunidade de me mostrar útil. Meu francês era tão bom quanto o dele, argumentei, e, já que eu não estava propriamente atolado de trabalho, por que ele não deixava a tradução comigo? Zimmer fez objeções, como era de esperar, mas, pouco a pouco, fui vencendo sua resistência. Eu queria acertar as contas com ele, expliquei, e fazer aquele trabalho era o modo mais rápido e prático de se chegar a isso. Eu lhe entregaria o dinheiro, uns duzentos ou trezentos dólares, e assim estaríamos quites. Esse último argumento acabou por convencê-lo. Zimmer gostava de desempenhar o papel de mártir, mas, quando compreendeu que se tratava do meu bem-estar, cedeu.

- Bem, se isso é tão importante para você, podemos pelo menos dividir o dinheiro - ele propôs.

- Não. Você continua não compreendendo. Vai tudo para você. Não faria sentido ser de outro jeito. Comigo não fica nenhum centavo.

Consegui o que queria, e, pela primeira vez em meses, senti que encontrava de novo um propósito na vida. Zimmer acordava cedo para ir à Colúmbia, e eu passava o resto do dia ocupado com meus afazeres, livre para plantar-me a sua escrivaninha e trabalhar sem interrupção. O texto era abominável, cheio de jargão burocrático, mas, quanto mais dificuldade eu encontrava, mais o encarava como desafio, recusando-me a deixá-lo de lado antes que algum sentido despontasse das frases canhestras e confusas. Era a dificuldade que me encorajava. Se a tradução tivesse sido mais fácil, eu não teria achado que expiava devidamente os erros que cometera. De certa forma, era a total inutilidade do projeto que o valorizava. Sentia-me a arrastar correntes, condenado a trabalhos forçados. O serviço consistia em quebrar pedras e, em seguida, quebrá-las em pedaços menores, e assim sucessivamente. Não havia propósito nisso, mas eu não estava interessado em resultados. O trabalho era um fim em si mesmo, e eu me lançava a ele com toda a determinação de um prisioneiro modelo.

Nos dias de tempo bom, eu às vezes saía para refrescar a cabeça num passeio rápido pela vizinhança. Já era outubro, o melhor mês em Nova York, e eu me deleitava em observar atentamente a luz do início de outono, que parecia adquirir uma nova luminosidade ao incidir obliquamente nos tijolos dos prédios. O verão terminara, mas o inverno ainda era percebido a distância, e eu me entregava com prazer a esse equilíbrio entre frio e calor. Durante esses dias, nas ruas, em qualquer lugar aonde eu fosse, só ouvia falar no Mets. Era um desses raros momentos de unanimidade, em que todo mundo pensava na mesmíssima coisa. As pessoas andavam por toda parte com seus radiotransistores sintonizados no jogo, aglomeravam-se diante das vitrinas das lojas de eletrodomésticos para ver a partida em aparelhos mudos de televisão, aclamações entusiásticas irrompiam de repente nos bares de esquina, nas janelas dos apartamentos, nos terraços invisíveis. Primeiro foi Atlanta, na fase eliminatória, depois Baltimore na decisão. Dos oito jogos do Mets, em outubro, o time perdeu apenas um, e, quando a aventura chegou ao fim, houve outro desfile com papel picado nas ruas de Nova York. Dessa vez, a manifestação ultrapassou a homenagem prestada aos astronautas dois meses antes. Mais de quinhentas toneladas de papel foram lançadas às ruas, recorde ainda não superado.

Passei a almoçar em Abingdon Square, pequeno parque que ficava mais ou menos a um quarteirão e meio a leste do apartamento de Zimmer. Havia ali um playground bastante modesto, e agradava-me o contraste entre a linguagem morta do documento que eu traduzia e a energia furiosa, atirada, da algazarra das crianças a meu redor. Descobri que isso me ajudava a concentrar e cheguei várias vezes a fazer minha tradução ali, no meio daquela balbúrdia toda. Foi numa dessas tardes de meados de outubro que finalmente reencontrei Kitty Wu. Eu estava às voltas com uma passagem difícil do texto e não notei a presença de Kitty senão quando dei com ela já sentada a meu lado, no banco. O encontro foi tão repentino que fui pego desprevenido. Desde o sermão que Zimmer me fizera no bar, havia poucas semanas, eu estivera pensando nas coisas brilhantes que eu diria quando voltasse a vê-la. Naquele momento, porém, em que a tinha ali em carne e osso, mal consegui falar.

- Como vai, senhor escritor? - ela me saudou. - É bom encontrá-lo de novo em pé por aí.

Ela estava de óculos escuros e lábios pintados de vermelho-vivo. Como eu não pudesse ver os seus olhos, tudo o que me restava era olhar para sua boca.

- Não estou escrevendo de fato - respondi. - É uma tradução que estou fazendo para ganhar algum dinheiro.

- Eu sei. Encontrei David ontem, e ele me falou disso.

Pouco a pouco, fui me descontraindo em meio à conversa. Kitty tinha um talento natural para fazer as pessoas falarem, apaixonarem-se por ela, sentirem-se à vontade em sua presença. Tio Victor me dissera uma vez, havia muito tempo, que uma conversa é como pegar a bola que nos é atirada. Um bom companheiro de time lança a bola diretamente na nossa luva, para que seja quase impossível falharmos. E nunca falha quando é ele quem deve pegar, mesmo no caso de um mau arremesso. Era o que Kitty fazia. Ela mandava a bola diretamente para a minha luva e, quando era eu quem arremessava, Kitty defendia até os lançamentos mais canhestros: saltava para engolir com a luva as bolas que vinham voando acima de sua cabeça, mergulhava com agilidade à direita ou à esquerda, corria e dava cambalhotas para apanhar as bolas baixas. Além disso, era tão hábil que me fazia sempre sentir que eu arremessava mal de propósito, apenas para tornar o jogo mais interessante. Ela me fazia sentir melhor do que eu era, e isso aumentava minha confiança; o que, por sua vez, contribuía para que eu lhe fizesse arremessos menos difíceis. Em outras palavras, comecei a falar com ela em vez de comigo mesmo, e o prazer que isso me trouxe foi maior que tudo o que eu desde muito vinha experimentando.

A conversa prosseguia sob o sol de outubro, mas eu já tentava encontrar um meio de prolongá-la. Estava muito empolgado e feliz; não queria que Kitty fosse embora. Ela trazia ao ombro uma bolsa que deixava entrever suas roupas de dança (a manga da malha de balé, a gola da camiseta, a ponta da toalha), e isso me fazia temer que ela estivesse com pressa por causa de algum compromisso. Havia um leve toque de frio no ar, e notei, depois de uns vinte minutos, que Kitty tremia um pouquinho. Juntei coragem, fiz um comentário qualquer a respeito do frio e propus que fôssemos ao apartamento de Zimmer tomar um café quente. Por milagre, Kitty fez que sim com a cabeça e disse que era uma boa ideia.

Comecei a fazer o café. Em vez de esperar por mim na sala, Kitty ficou sentada na cama, pois o quarto era mais perto da cozinha. Assim poderíamos continuar conversando. A mudança para dentro de casa alterou, porém, o tom da conversa. Ficamos mais quietos e cuidadosos, como se procurássemos interpretar o que então dizíamos. Certa expectativa pairava no ar. Eu achava ótimo estar ocupado com o café e, desse modo, poder disfarçar a confusão que de repente tomara conta de mim. Algo estava para acontecer, mas eu tinha medo de pensar nisso, sentindo que, se me permitisse alguma esperança, tudo poderia ser destruído antes mesmo de tomar forma. A certa altura, Kitty ficou muito calada, sem nada dizer por uns vinte ou trinta segundos. Continuei às tontas na cozinha, abrindo e fechando a geladeira, pegando xícaras e colheres, despejando leite numa jarra, e assim por diante. Por um breve momento, virei-me de costas para Kitty, e, antes mesmo que eu percebesse, ela já havia saído de onde estava e vindo à cozinha. Sem dizer palavra, ela se aproximou de mansinho por trás de mim, pôs os braços ao redor da minha cintura e recostou a cabeça nas minhas costas.

- Quem é? - perguntei de brincadeira.

- É a Mulher-Dragão - respondeu Kitty. - Ela veio pegá-lo.

Segurei suas mãos e tentei não tremer ao sentir a maciez da pele.

- Acho que ela já me pegou.

Houve uma breve pausa e, em seguida, Kitty apertou-me a cintura com os braços.

- Você gosta de mim um pouquinho, não gosta? - ela perguntou.

- Mais que um pouquinho. Você sabe disso. Muito mais que um pouquinho.

- Não sei. Faz tanto tempo que estou esperando que já nem sei de nada.

Havia algo de imaginário nessa cena toda. Eu sabia que era real, mas, ao mesmo tempo, melhor que a realidade, mais próxima da projeção daquilo que eu esperava dela. Meus desejos eram mesmo muito fortes, intensos, mas foi só por causa de Kitty que tiveram a oportunidade de se expressar. Tudo estava acontecendo por causa de suas reações, seus estímulos, seu conhecimento dos gestos, sua falta de hesitação. Kitty não tinha medo de si própria, vivia dentro do corpo sem constrangimento ou reservas. Talvez isso se devesse ao fato de ser bailarina, mas era bem mais provável que fosse o contrário: o prazer que encontrava no corpo era o que a fazia capaz de dançar.

Passamos horas no apartamento de Zimmer, fazendo amor à luminosidade cadente da tarde. Foi, sem dúvida, uma das coisas mais memoráveis que me haviam acontecido. Creio que fiquei profundamente perturbado com isso. Não estou falando apenas de sexo ou das permutações do desejo, mas de um dramático ruir de paredes interiores, um terremoto no âmago da minha solidão. Eu me acostumara tanto a ser só que não achava possível que aquilo acontecesse. Eu me havia resignado a um certo tipo de vida, mas, por razões completamente obscuras, uma linda moça chinesa de repente surgira diante de mim, como um anjo vindo de um outro mundo. Teria sido impossível não me apaixonar por ela, não ficar tomado por sua simples presença.

DEPOIS DISSO, OS DIAS se tornaram mais cheios para mim. Eu trabalhava na tradução de manhã e à tarde; saía à noite, para me encontrar com Kitty, geralmente nos arredores da Colúmbia e da Juilliard. Se alguma dificuldade havia, era que não tínhamos muitas oportunidades de ficarmos a sós. Kitty morava numa residência universitária e dividia o quarto com outra estudante; no apartamento de Zimmer, não havia porta a isolar a sala do quarto. Mesmo que houvesse uma, seria impensável ficar lá com Kitty. Diante das circunstâncias da vida amorosa de Zimmer, eu não teria coragem de fazer isso com ele: infligir-lhe os sons do amor entre mim e Kitty, forçá-lo a ouvir nossos gemidos e suspiros. Vez ou outra, a colega de quarto da Juilliard saía à noite e então aproveitávamos sua ausência para ocuparmos a cama estreita de Kitty. Outras tantas vezes, encontrávamo-nos em apartamentos vagos. Era Kitty quem acertava os detalhes desses encontros, contatando amigos e amigos de amigos para pedir-lhes que nos cedessem um quarto por algumas horas.

Havia algo de frustrante nisso tudo, mas o toque de perigo e incerteza acrescentado a nossa paixão não deixava de me emocionar e excitar. Nós nos arriscávamos de um modo que hoje me parece impossível: verdadeiras temeridades que nos poderiam trazer os problemas mais embaraçosos. Certa vez, por exemplo, paramos o elevador entre dois andares, e, enquanto os moradores do prédio batiam e gritavam furiosos por causa da demora, abaixei o jeans e a calcinha de Kitty e provoquei-lhe um orgasmo com a minha língua. Uma outra vez, numa festa, fizemos amor no chão do banheiro: trancamos a porta e nem nos preocupamos com as pessoas que aguardavam em fila no corredor. Era um misticismo erótico, uma religião secreta restrita a apenas dois seguidores. Durante todo o período inicial de nossa relação, bastava que nos víssemos para ficarmos excitados. Era só Kitty se aproximar de mim que eu começava a pensar em sexo. Não conseguia ficar sem pôr as mãos nela e, quanto mais conhecia seu corpo, mais queria tocá-lo. Certa vez, chegamos a fazer amor no camarim, depois de um ensaio de Kitty, quando ficamos sozinhos. Ela devia fazer uma apresentação no mês seguinte, e eu ia a seus ensaios, à noite, sempre que possível. Para mim, vê-la dançar era a segunda melhor coisa - tê-la em meus braços era a primeira -, e eu acompanhava o movimento de seu corpo pelo palco numa espécie de concentração febril. Eu adorava isso, mas ao mesmo tempo não compreendia. A dança era algo completamente estranho para mim, fora do alcance das palavras, e eu não tinha outra alternativa senão ficar ali em silêncio, abandonado ao espetáculo da pura emoção.

Terminei a tradução no final de outubro. Dias depois, Zimmer recebeu o pagamento, e, à noite, fomos todos - eu, ele e Kitty - jantar no Moon Palace. Coube-me a escolha do restaurante, mais pelo valor simbólico do que pela qualidade da comida. Comemos bem, todavia, pois Kitty falou em mandarim com os garçons e pediu pratos que não constavam do cardápio. Zimmer, em boa forma naquela noite, não parava de falar em Trotsky, em Mao, na teoria da revolução permanente. Lembro-me de que, a certa altura, Kitty pousou a cabeça em meu ombro e abriu um sorriso lânguido, muito bonito. Nós dois então caímos de costas nas almofadas do banco, deixando David prosseguir seu monólogo, acenando com a cabeça diante das soluções que ele apresentava para os dilemas da existência humana. Foi um momento maravilhoso para mim, um momento de alegria e equilíbrio surpreendentes, como se meus amigos estivessem ali reunidos para comemorar meu retorno à terra dos vivos.

Terminado o jantar, abrimos os biscoitos da sorte sempre oferecidos em restaurantes chineses e, afetando solenidade, comentamos o prognóstico para cada um. Por incrível que pareça, lembro-me do que saiu para mim como se ainda estivesse com o papelzinho na mão. Ali estava escrito: "O Sol é o passado, a Terra o presente, a Lua o futuro". Eu ainda haveria de deparar novamente com essa frase enigmática. Quando isso aconteceu, pareceu-me carregado de estranha e premonitória verdade o fato de tê-la encontrado pela primeira vez no Moon Palace. Por motivos que na hora não examinei, pus o papelzinho na carteira e lá o deixei ao longo dos nove meses seguintes, esquecido de tê-lo guardado.

Na manhã seguinte comecei a procurar trabalho. Nada consegui naquele dia; no outro tampouco. Percebendo que por meio do jornal eu não arranjaria nada, decidi ir até a Colúmbia e tentar a sorte na agência de empregos para estudantes. Como ex-aluno da universidade, eu podia utilizar esse serviço. Além disso, como não houvesse taxas a serem pagas no caso de acharem alguma coisa para mim, parecia-me sensato começar por lá. Dez minutos depois de ter entrado no Dodge Hall, encontrei a solução para o meu problema; estava datilografada num cartão pregado na parte de baixo, no canto esquerdo do quadro de avisos: "Senhor de idade em cadeira de rodas procura jovem que lhe faça companhia e possa dormir no emprego. Passeios diários e pequenos serviços de secretário. Cinquenta dólares por semana, mais alojamento e refeições". Foi esse último detalhe o que me pegou. Não apenas ganharia dinheiro como poderia finalmente deixar o apartamento de Zimmer. Melhor ainda, eu me mudaria para a esquina da West End Avenue com a Rua 84, o que significava morar bem mais perto de Kitty. Parecia perfeito. Não era propriamente um trabalho que pudesse inspirar orgulho a alguém da família, mas, em todo caso, eu não tinha mesmo família.

Telefonei imediatamente, querendo marcar entrevista, receoso de que escolhessem outra pessoa antes de mim. Duas horas depois já estava sentado na sala de estar de meu futuro patrão, e, às oito da noite, ele ligava para a casa de Zimmer e dizia que o emprego era meu. O senhor que me contratava fez parecer que tomara uma decisão difícil, que eu fora escolhido entre vários outros bons candidatos. A longo prazo, duvido que isso tivesse alterado alguma coisa, mas, se na hora eu soubesse que ele estava mentindo, talvez tivesse feito uma ideia melhor daquilo em que estava entrando. A verdade era que não havia nenhum outro candidato. Eu fora o único interessado.


4

A PRIMEIRA VEZ EM QUE bati os olhos em Thomas Effing, tive a impressão de nunca ter visto ninguém mais frágil. Todo ossos e carne trêmula, coberto de mantas axadrezadas, seu corpo parecia o de um passarinho destroncado, caído para o lado na cadeira de rodas. Tinha oitenta e seis anos, mas parecia mais velho; cem, talvez mais se possível, uma idade fora de conta. Tudo nele era remoto, permeado de uma impenetrabilidade de esfinge. Suas mãos retorcidas, cheias de manchas, agarravam os braços da cadeira e, no único sinal de vida consciente, faziam às vezes um movimento adejante. Não era sequer possível estabelecer contato visual com ele, pois Effing era cego, ou pelo menos fingia ser. No dia em que fui a sua casa para ser entrevistado, ele estava de venda negra nos olhos. Hoje, quando evoco esse começo, parece-me apropriado que fosse então 1º de novembro, o Dia dos Mortos, dedicado a desconhecidos santos e mártires.

Quem me abriu a porta do apartamento foi uma mulher de indefinida meia-idade, deselegante, pesada, que usava um vestido solto, esvoaçante, com estampa de flores cor-de-rosa e verdes. Assim que se certificou de que eu era o mesmo Fogg que telefonara à uma da tarde para marcar entrevista, ela estendeu a mão e apresentou-se como Rita Hume, enfermeira e governanta do sr. Effing havia nove anos. Fez isso enquanto me examinava atentamente, inspecionando-me com a aberta curiosidade de quem vê pela primeira vez um marido arranjado pelo correio sentimental. Havia, no entanto, algo de tão sincero e amistoso nesse olhar que não me ofendi. Teria sido difícil não gostar da sra. Hume, com seu rosto largo, balofo, ombros poderosos e seios gigantescos, tão grandes que pareciam de cimento. Ela puxava esse peso todo com um passo largo, gingado. Enquanto me conduzia pelo corredor, a caminho da sala de estar, eu ouvia perfeitamente o assobio do ar que entrava e saía de suas narinas.

Era um daqueles apartamentos enormes do West Side, com longos corredores; portas de correr, em carvalho, entre as salas; cornijas nas paredes. Havia ali uma densidade vitoriana, e era-me difícil absorver a repentina plenitude de objetos ao meu redor: livros, quadros, mesinhas, um amontoado de tapetes, um apinhamento de madeira escura. No meio do corredor, a sra. Hume pegou-me na mão e falou baixinho em meu ouvido:

- Não desanime se ele se comportar de modo um pouco estranho - ela me preveniu. - Muitas vezes ele se empolga, mas isso não quer dizer nada. As últimas semanas não têm sido boas para o senhor Effing. A pessoa que tomava conta dele havia trinta anos morreu em setembro, e tem sido difícil para ele se acostumar.

Senti que tinha uma aliada, e, assim, estaria protegido contra qualquer coisa de estranho que estivesse para acontecer. A sala de estar era extraordinariamente grande, com vista para o rio Hudson e para Nova Jersey, na outra margem. A cadeira de rodas de Effing surgiu no meio da sala, de frente para uma mesa baixa e um sofá. Talvez a primeira impressão que tive dele foi a falta de reação quando entramos.

- O senhor M. S. Fogg está aqui para a entrevista - anunciou a sra. Hume.

Ele, porém, não respondeu; não moveu um músculo sequer. Era uma inércia sobrenatural. Pensei que estivesse morto, mas então a sra. Hume sorriu para mim e fez um gesto para que eu me sentasse no sofá. Ela saiu, e vi-me a sós com Effing, à espera de que ele rompesse o silêncio.

O homem demorou a falar, mas, quando por fim o fez, sua voz ecoou pela sala com uma força surpreendente. Não me parecia possível que seu corpo fosse capaz de emitir tais sons. As palavras vinham estalando de sua traqueia com uma energia furiosa, rascante, e era como se de repente um rádio tivesse sido sintonizado numa daquelas estações distantes que às vezes captamos no meio da noite. Tratava-se de algo absolutamente inesperado. Uma sinapse casual de elétrons transmitia sua voz ao longo de milhares de quilômetros, e a clareza do som me atordoava os ouvidos. Por um breve instante, cheguei a perguntar-me se não havia um ventríloquo escondido na sala.

- Emmett Fogg - disse o velho, cuspindo as palavras com desprezo. - Que raio de nome de maricas é esse?

- M. S. Fogg - retruquei. - O "M" é de Marco, o "S" de Stanley.

- Hum! É até pior. O que vai fazer quanto a isso, rapaz?

- Nada. Eu e meu nome passamos por tanta coisa juntos que, com o tempo, acabei gostando dele.

Effing respondeu com um risinho irritado, fazendo parecer que com isso encerrava definitivamente o assunto. Logo em seguida, ergueu o tronco na cadeira de rodas, e sua aparência se modificou com notável rapidez. Ele deixava de ser o semicadáver comatoso perdido em divagação crepuscular, para transformar-se todo em nervos e atenção, numa massa de energia fervilhante, ressuscitada. Esse era o verdadeiro Effing, conforme vim a descobrir mais tarde, se é que se pode empregar tal adjetivo para se falar dele. Havia tanto de falsidade e fingimento no seu caráter que era quase impossível saber quando dizia a verdade. Ele adorava enganar o mundo com suas súbitas inspirações e experiências. Entre as tantas peças que gostava de pregar, a preferida era fazer-se de morto.

Effing se inclinou para a frente na cadeira, como dando a entender que a entrevista começava a sério. Seus olhos se mantinham fixos na minha direção, apesar de vendados.

- Responda-me, Fogg. Você é um homem de visão?

- Eu costumava pensar que sim, mas já não estou tão certo disso.

- Quando vê alguma coisa diante dos olhos, é capaz de identificá-la?

- Com frequência, sim. Mas às vezes é difícil.

- Por exemplo...

- Por exemplo, às vezes acho difícil distinguir homens de mulheres nas ruas. Tanta gente hoje usa cabelos compridos que um olhar de relance nem sempre é suficiente. Principalmente quando vemos um homem feminino ou uma mulher masculina. Os indícios podem me confundir.

- E que palavras lhe ocorrem quando você olha para mim?

- Que estou vendo um velho numa cadeira de rodas.

- Um velho?

- Sim, um velho.

- Um homem muito velho?

- Sim, muito velho.

- Notou alguma coisa de especial em mim, rapaz?

- A venda nos olhos, eu acho. E também o fato de suas pernas parecerem paralisadas.

- Sim, sim. Minhas enfermidades. Elas lhe chamam logo a atenção, não é mesmo?

- É, por assim dizer.

- Chegou a alguma conclusão a respeito da venda nos olhos?

- Nada de muito definido. Primeiro pensei que o senhor era cego, mas o fato de usar venda não significa necessariamente que seja. Por outro lado, se alguém não vê, por que se daria ao trabalho de deixar evidente que não? Não faria sentido. Ocorrem-me então outras possibilidades. Talvez a venda esteja cobrindo algo pior que a cegueira. Alguma horrível deformidade, por exemplo. Ou talvez o senhor tenha acabado de passar por uma operação e precise usar a venda por recomendação médica. Ou então o senhor talvez seja parcialmente cego e a luz forte lhe irrite os olhos. Ou ainda pode ser que simplesmente goste de usar a venda, por achar que lhe fica bem. Há mesmo muitas possibilidades. No momento, não tenho informações suficientes para chegar a alguma conclusão. A única coisa que sei ao certo é que o senhor está usando venda negra nos olhos. Posso dizer que a vejo, mas não por que o senhor a usa.

- Em outras palavras, você não arrisca nada.

- Isso pode ser perigoso. Muitas vezes as coisas não são o que parecem, e tirar conclusões nos pode meter em alguma encrenca.

- E quanto a minhas pernas?

- Essa pergunta já acho mais simples. Embora cobertas pela manta, parecem fracas, atrofiadas, o que me leva a supor que há muitos anos não são usadas. Se for esse o caso, seria razoável concluir que o senhor não anda. Talvez nunca tenha andado.

- Um velho que não vê e não anda. O que acha disso, rapaz?

- Acho que esse homem depende mais dos outros do que gostaria.

Effing grunhiu, recostou-se na cadeira e inclinou a cabeça para o teto. Ficamos em silêncio durante uns dez, quinze segundos.

- Qual é o seu tipo de voz, rapaz? - ele enfim perguntou.

- Não sei. Não a ouço bem quando falo. A primeira vez em que a ouvi no gravador, achei horrível. Mas isso parece acontecer com todo mundo.

- Ela se mantém?

- Como?

- Ela não se cansa? Você seria capaz de falar por duas, três horas seguidas sem ficar rouco? Conseguiria passar uma tarde inteira lendo para mim sem deixar de pronunciar bem as palavras? É isso que quis dizer.

- Acho que sim.

- Como você mesmo observou, eu perdi a visão. Assim, nosso relacionamento seria feito de palavras. Se sua voz não aguentar, você não me servirá para nada.

- Compreendo.

Effing inclinou-se de novo para a frente e fez uma breve pausa de efeito dramático.

- Tem medo de mim, rapaz?

- Não, acho que não.

- Deveria ter. Se eu me decidir a contratá-lo, você vai saber o que é medo, posso lhe garantir. Eu não vejo nem ando, mas tenho outros poderes, poderes que poucos homens conseguiram dominar.

- Que tipo de poderes?

- Mentais. Uma força de vontade capaz de se refletir no mundo material do modo que eu quiser.

- Telecinesia.

- Sim, se preferir. Telecinesia. Lembra-se do blecaute de uns anos atrás?

- Foi no outono de 1965.

- Exatamente. Fui eu que o provoquei. Eu tinha perdido a visão havia pouco tempo. Estava nesta sala sozinho, praguejando contra o destino, quando, por volta das cinco horas, disse a mim mesmo: "Queria que o mundo todo vivesse na mesma escuridão em que me encontro". Em menos de uma hora, todas as luzes da cidade se apagaram.

- Podia ser uma coincidência.

- Não existem coincidências. Só os ignorantes usam essa palavra. Tudo no mundo é feito de eletricidade, tanto as coisas inanimadas quanto as vivas. Até os pensamentos soltam descargas elétricas. Se forem bastante fortes, os pensamentos de um homem podem transformar o mundo ao seu redor. Não se esqueça disso, rapaz.

- Não vou me esquecer.

- E você, Marco Stanley Fogg, que poderes tem?

- Que eu saiba, nenhum. Tenho os poderes humanos normais, eu acho. Nada além disso. Posso comer e dormir. Posso ir de um lugar para outro. Posso sentir dor. Às vezes, posso até pensar.

- Ah, um agitador! É isso o que você é, rapaz?

- Não creio. Duvido que eu consiga convencer alguém a fazer coisa alguma.

- Então, uma vítima. Uma coisa ou outra. Ou você age ou sofre as consequências da ação de outros.

- Somos todos vítimas de alguma coisa, senhor Effing. Ao menos, do fato de estarmos vivos.

- Tem certeza de que está vivo, rapaz? Talvez você apenas pense que esteja.

- Tudo é possível. Pode ser que nós dois não passemos de ficção, que não estejamos de fato aqui. Admito essa possibilidade.

- Sabe conter a língua?

- Se for necessário. Acho que posso fazer isso tão bem quanto o próximo.

- Próximo? Alguém em especial?

- É um modo de dizer. Qualquer pessoa. Posso falar ou calar-me, dependendo da situação.

- Se eu o contratar, Fogg, provavelmente vai acabar me odiando. Digo isso para o seu próprio bem. Há um objetivo oculto em tudo o que faço, e você não há de querer me julgar.

- Tentarei não me esquecer disso.

- Muito bem. Agora chegue perto de mim e deixe-me sentir os seus músculos. Nenhum fracote poderia ficar me empurrando pelas ruas, não é mesmo? Se você não tiver bons músculos, não vai me servir para nada.

DESPEDI-ME DE ZIMMER naquela noite. Na manhã seguinte, pus na mochila o pouco que possuía e fui para o apartamento de Effing, no norte de Manhattan. Só revi Zimmer treze anos depois. As circunstâncias nos afastaram, e, quando finalmente o encontrei por acaso, na primavera de 1982, na esquina da Rua Varick com a West Broadway, na parte sul de Manhattan, não o reconheci de imediato, tanto ele havia mudado. Estava com uns dez quilos a mais, e, ao vê-lo com a mulher e dois menininhos, dei-me conta de sua aparência extremamente convencional: a barriga, os cabelos ralos do início da meia-idade, o ar tranquilo e abobalhado de um perfeito chefe de família. Seguíamos em direções opostas, passamos um pelo outro, e, de repente, ele me chamou.

É um acontecimento comum, creio eu, encontrar na rua alguém que tenha pertencido ao nosso passado, mas o fato de ter visto Zimmer nessa circunstância despertou em mim todo um mundo de coisas esquecidas. Quase não tinha importância o que ele fizera da vida, que fosse professor de alguma universidade da Califórnia, que tivesse publicado um ensaio de quatrocentas páginas sobre o cinema francês, que não escrevesse um poema sequer havia mais de dez anos. O importante era simplesmente tê-lo visto. Ficamos uns dez, quinze minutos ali na esquina, conversando a respeito dos velhos tempos, até que ele e a família retomaram o caminho. Desde então, eu não o tenho visto nem tido notícias dele, mas suspeito que a ideia de escrever este livro tenha surgido logo depois desse encontro, quatro anos atrás, no exato momento em que Zimmer, rua abaixo, desapareceu novamente da minha vida.

Quando cheguei ao apartamento de Effing, a sra. Hume me levou à cozinha e serviu café. O patrão estava no sono matinal, disse ela, e não sairia da cama antes das dez. Então me explicou quais seriam meus deveres na casa, a que horas eram servidas as refeições, quantas horas por dia eu passaria com Effing e assim por diante. O "trabalho corporal" - em suas próprias palavras - ficava por conta dela: vesti-lo, dar-lhe banho, pô-lo e tirá-lo da cama, fazer-lhe a barba, pô-lo sentado e erguê-lo do vaso sanitário. Já o meu trabalho seria mais complexo e menos definido. Não estava sendo contratado para ser propriamente amigo de Effing, mas algo parecido: uma companhia agradável, uma pessoa que quebrasse a monotonia de sua solidão.

- Deus sabe que não lhe resta muito tempo de vida - ela acrescentou. - O mínimo que podemos fazer é cuidar para que seus últimos dias não sejam tão tristes.

Respondi que compreendia perfeitamente.

- Ele vai ficar mais animado com a companhia de um jovem - ela prosseguiu. - Isso para não falar de mim mesma.

- Estou satisfeito por ter arranjado este trabalho - respondi.

- Ele gostou da conversa que teve ontem com você. Disse que foram boas as suas respostas.

- Na verdade, eu não sabia bem o que dizer. Às vezes, é difícil acompanhá-lo.

- E eu não sei? Ele está sempre cozinhando alguma coisa no cérebro. É um pouco lunático, mas eu não diria que é senil.

- Não. Ele é muito perspicaz. Acho que não vai me permitir um segundo de desatenção.

- Ele me disse que você tinha uma voz agradável. Já é um bom começo.

- Não consigo imaginá-lo a dizer a palavra "agradável".

- Talvez não seja exatamente essa a palavra, mas foi o que ele quis dizer. Disse que sua voz o fazia lembrar-se de alguém que conheceu.

- Espero que ele tenha gostado dessa pessoa.

- Ele não me disse quem era. Esse é o tipo de coisa que você vai descobrir a respeito do senhor Thomas. Ele nunca deixa escapar nada que não queira.

Meu quarto ficava no fim de um longo corredor. Era um quarto pequeno, com uma só janela dando para o beco atrás do prédio, um espaço singelo, do tamanho da cela de um monge. Aquilo me era familiar, e não levei muito tempo para me sentir à vontade com tão pouca mobília: uma cama antiga de cabeceira e pés com barras verticais de ferro, uma cômoda, uma estante de livros junto à parede, na maioria obras russas e francesas. Havia apenas um quadro no quarto, uma gravura com moldura preta envernizada que retratava uma cena mitológica, povoada de figuras humanas e repleta de detalhes arquitetônicos. Mais tarde vim a saber que se tratava de uma versão em preto e branco de um dos painéis da série de pinturas de Thomas Cole intitulada The Course of Empire, saga visionária a respeito da ascensão e queda do Novo Mundo.

Tirei as roupas da mochila e vi que tudo o que possuía cabia perfeitamente na gaveta superior da cômoda. Trouxera apenas um livro comigo: Pensamentos, de Pascal, em francês, um exemplar de bolso que Zimmer me dera como presente de despedida. Deixei-o em cima do travesseiro e dei um passo atrás para apreciar meu novo quarto. Não era grande coisa, mas, depois de tantos meses de incerteza, achava reconfortante estar entre aquelas quatro paredes, saber que havia um lugar no mundo que eu podia chamar de meu.

Choveu sem parar nos dois dias seguintes a minha chegada. Sem podermos passear à tarde, não saímos da sala de estar. Effing estava menos agressivo do que durante a entrevista. Permaneceu calado a maior parte do tempo, apenas me ouvindo ler para ele. Era-me difícil julgar a natureza daquele silêncio, saber se eu estava sendo testado em alguma coisa ou se o comportamento de Effing era simplesmente o reflexo de seu estado de espírito. Ou eu desconfiava de alguma finalidade sinistra em sua atitude ou então a atribuía a algum impulso ocasional - era assim quase o tempo todo que eu passava com ele. As coisas que Effing me dizia, os livros que me mandava ler, as estranhas tarefas de que me incumbia - faria tudo isso parte de algum plano obscuro, elaborado, ou apenas em retrospecto é que dava essa impressão? Às vezes, eu achava que ele me queria transmitir algum conhecimento arcano, misterioso, assumindo por conta própria a condição de guia do meu progresso interior, mas sem o dizer, sem explicar as regras do jogo que ele me impingia.

Esse era Effing enquanto exótico mentor espiritual, mestre excêntrico em luta para me iniciar nos segredos do mundo. Nos momentos, porém, em que ele transbordava de egoísmo e arrogância, eu o via apenas como um velho maldoso, um maníaco entrevado a viver por um fio entre a morte e a loucura. De um modo geral, Effing abusava bastante de mim, e não tardou para que eu passasse a tomar muito cuidado com ele, apesar do crescente fascínio que me inspirava. Várias vezes pensei em desistir, mas Kitty me convencia a não fazê-lo. Acredito, no entanto, que a maior parte do tempo eu queria ficar, mesmo quando isso parecia impossível. Eu passava semanas inteiras mal suportando olhar para ele; só o fato de permanecer na mesma sala exigia de mim um enorme esforço. Mas aguentei firme, prossegui até o amargo fim.

Até mesmo quando estava em seus humores mais tranquilos, Effing se comprazia em fazer pequenas surpresas. Naquela primeira manhã por exemplo, apareceu na sala de óculos escuros de cego, movimentando ele próprio a cadeira de rodas. A venda negra nos olhos, que havia dado margem a tanta discussão durante a entrevista, simplesmente não estava sendo usada. Como Effing não comentou a troca, concluí que aquele deveria ser um dos momentos em que eu tinha que conter a língua. Assim, tampouco fiz comentário algum. Na manhã seguinte, ele surgiu de óculos de aro metálico, normais. As lentes, porém, eram tão espessas que distorciam a forma de seus olhos e davam-lhes a aparência de ovos de pássaro - duas grandes esferas azuis que saltavam das órbitas. Era-me difícil dizer se aqueles olhos eram ou não capazes de enxergar. Havia momentos em que eu me convencia de que aquilo tudo não passava de embuste e de que ele podia ver tão bem quanto eu. Em outros, no entanto, eu acreditava na cegueira total.

Era o que Effing queria, é claro. Ele lançava de propósito alguns sinais ambíguos e, em seguida, recusando-se terminantemente a esclarecer a situação, divertia-se com a incerteza que provocava. Havia dias em que não usava nem venda nem óculos. Outros ainda em que vinha com uma faixa preta ao redor da cabeça, como um prisioneiro prestes a ser fuzilado. Era-me impossível saber o significado de cada uma dessas formas de apresentação. Ele nunca dizia nada a respeito, e eu nunca tive coragem de perguntar. O importante, concluí, era não me incomodar com suas excentricidades. Ele que fizesse o que bem entendesse; desde que eu não caísse na armadilha, nada disso me haveria de afetar. Era pelo menos o que dizia a mim mesmo. Às vezes, no entanto, ficava difícil resistir. Principalmente quando ele não cobria os olhos. Nessas ocasiões, quase sempre me descobria a olhá-los fixamente, indefeso diante da atração que exerciam sobre mim. Era como se eu estivesse tentando achar neles alguma verdade, uma abertura que me conduzisse à escuridão de sua mente. Nada consegui, no entanto. Apesar das centenas de horas que assim passei, os olhos de Effing nunca me revelaram coisa alguma.

Ele havia escolhido com antecedência todos os livros, sabia exatamente o que queria ouvir. As leituras que eu lhe fazia eram para Effing menos um entretenimento do que uma linha de conduta, uma persistente investigação de certos assuntos bem precisos e restritos. Isso não tornava seus objetivos nem um pouco mais claros para mim, mas ao menos me permitia encontrar uma lógica subterrânea em sua atitude. A sequência inicial de livros tratava de viagens, quase sempre viagens para o desconhecido, e da descoberta de novos mundos. Começamos com as viagens de São Brandão e Sir John de Mandeville. Depois passamos para Colombo, Cabeza de Vaca e Thomas Harriot. Lemos trechos de Viagens pela Arábia Deserta, de Doughty; mergulhamos completamente no livro de John Wesley Powell a respeito de sua expedição de mapeamento do rio Colorado; lemos ainda várias histórias de prisioneiros dos séculos 18 e 19, relatos em primeira mão escritos por desbravadores brancos capturados pelos índios. Eu achava tais livros igualmente interessantes. Acredito que até cheguei a desenvolver um bom estilo de leitura, depois que minha voz se acostumou a trabalhar por longos períodos de tempo. Tudo se baseava na clareza do enunciado, o que, por sua vez, dependia de modulações de tom, pausas sutis, atenção constante às palavras do texto. Effing raramente fazia algum comentário durante a leitura, mas eu sabia que ele não deixava de me ouvir - isso por causa dos ruídos que dele provinham quando chegávamos a alguma passagem particularmente intrincada e empolgante. Talvez fosse durante essas sessões de leitura que eu mais me sentisse em harmonia com ele. Logo, porém, aprendi a não confundir sua silenciosa concentração com receptividade para comigo. Depois do terceiro ou quarto livro sobre viagens, fiz-lhe casualmente a sugestão de que ele poderia gostar de ouvir trechos da viagem de Cyrano à Lua. Effing respondeu com um grunhido:

- Guarde suas ideias para você mesmo, rapaz. Se quiser sua opinião eu a peço.

Uma estante de livros cobria do chão ao teto a parede do fundo da sala de estar. Não sei quantos livros havia nessas prateleiras, mas deviam ser ao menos quinhentos ou seiscentos, ou até mesmo mil. Effing parecia saber onde estava cada um, e, na hora de começarmos outro livro, ele me dizia exatamente onde pegá-lo.

- Segunda prateleira - ele me orientava -, doze ou quinze espaços a partir da esquerda. Lewis e Clark. Um livro vermelho com encadernação em tecido.

Ele nunca se enganava, e era impossível eu não me impressionar com a crescente evidência do poder de sua memória. Certa vez, perguntei-lhe se ele estava familiarizado com os sistemas de memorização de Cícero e Raymond Lull, mas ele desprezou a pergunta com um aceno de mão.

- Não é possível estudar essas coisas - ele retrucou. - Trata-se de um dom, de um talento natural, inato. - Fez uma breve pausa e prosseguiu em tom de voz malicioso, trocista: - Mas como pode ter certeza de que eu sei onde estão os livros? Pense um pouco. Talvez eu venha aqui à noite, enquanto você dorme, e os coloco onde quero. Ou talvez eu possa mover os livros por telepatia quando você está de costas. Não é mesmo, rapaz?

Tomei a pergunta como retórica e nada disse para contradizê-lo.

- Mas lembre-se, Fogg - ele prosseguiu -, não tenha certeza de nada. Principalmente no que diz respeito a uma pessoa como eu.

Passamos os dois primeiros dias na sala de estar, enquanto lá fora a pesada chuva de novembro castigava as janelas. A casa de Effing era muito silenciosa, e, quando às vezes eu interrompia um pouco a leitura, o som mais alto que se escutava era o tique-taque do relógio acima da lareira. De quando em quando, a sra. Hume fazia um ou outro barulho na cozinha. Da rua subia o ruído abafado do trânsito, o chiado dos pneus a rodar pelo chão molhado. Eu achava estranhamente agradável estar ali dentro enquanto o mundo seguia o seu rumo. Os livros talvez reforçassem essa sensação de afastamento. Tudo neles era distante, cheio de sombras e coisas espantosas: um monge irlandês que atravessou o Atlântico à vela no ano 500 e encontrou uma ilha que julgou ser o Paraíso; o reino mítico de Prester John; um cientista americano que só tinha um braço, fumando o cachimbo da paz com os índios zunis do Novo México. As horas passavam sem que nenhum de nós se mexesse do lugar: Effing na cadeira de rodas, e eu no sofá, diante dele. Às vezes, me absorvia tanto na leitura que mal me dava conta de onde estava, sentia-me fora da própria pele.

O almoço era ao meio-dia e o jantar às seis - refeições sempre servidas na sala de jantar. Effing seguia rigorosamente esse horário. Bastava a sra. Hume enfiar a cabeça dentro da sala, anunciando que a mesa estava posta, para ele bruscamente desviar a atenção do livro. Não importava em que ponto da história estivéssemos. Mesmo a uma ou duas páginas do final, Effing me interrompia no meio da frase, pedindo-me que parasse.

- Hora de comer - ele dizia. - Recomeçamos depois.

Não que ele estivesse com muita fome - na verdade, comia pouco -, mas a compulsão de ordenar seus dias de modo rigoroso e racional era forte demais para ser ignorada. Uma ou duas vezes, chegou a lamentar a interrupção, mas nunca a ponto de querer modificar o horário estabelecido:

- Que pena! Justamente agora que estava ficando interessante.

A primeira vez em que isso aconteceu, ofereci-me para prosseguir um pouco mais na leitura.

- Impossível - ele retrucou. - Não podemos desarranjar o mundo por causa de prazeres momentâneos. Amanhã teremos bastante tempo para isso.

Effing era frugal, mas o pouco que comia dava-se em meio a um esparramar de grunhidos e alimento derrubado. Espetáculo constrangedor, mas eu tinha de presenciá-lo. Sempre que Effing percebia que eu o observava, sua exibição tornava-se ainda mais repulsiva: deixava a comida cair da boca e escorrer pelo queixo, arrotava, fingia náusea, ataque do coração, tirava a dentadura e a deixava sobre a mesa. Gostava especialmente de sopas, e durante todo o inverno começamos as refeições com uma diferente. Era a própria sra. Hume quem as preparava: deliciosas sopas de legumes, de agrião, de alho-porro com batatas. Logo, porém, passei a ter horror do momento em que seria forçado a ver Effing ingeri-las. Ele não as sorvia, sugava-as, enchendo o ambiente com a estridência e a intensidade sonora de um aspirador de pó com defeito. Era um ruído tão enervante, tão impositivo, que comecei a ouvi-lo o tempo todo, mesmo quando não estava à mesa. Ainda hoje, ao concentrar-me devidamente, consigo evocar muitas das suas características mais sutis: o choque do momento em que a colher chegava aos lábios de Effing; o silêncio, rompido com a violência da sucção: o estardalhaço prolongado, agudo; o furacão que parecia transformar o líquido numa mistura de pedregulho e vidro quebrado a descer por sua garganta. Vinha em seguida uma breve pausa, o retinir da colher no prato e um resfolegar estremecido. Depois de um estralar de lábios ou de uma careta de prazer, tudo recomeçava com mais uma colherada. Para diminuir o trajeto da colher, Effing se debruçava; o que, no entanto, não impedia sua mão trêmula de despejar de volta ao prato alguns bocados de sopa. Não tardava a haver nova sucção explosiva e um rachar de tímpanos. Felizmente, ele nunca tomava o prato todo, pois três ou quatro dessas colheradas cacofônicas bastavam para deixá-lo exausto. Effing então empurrava a sopa para o lado e calmamente perguntava à sra. Hume qual era o prato principal. Não sei quantas vezes ouvi esse barulho, mas, em todo caso, foi o suficiente para saber que nunca vou me esquecer dele, que o terei na cabeça pelo resto da vida.

A sra. Hume demonstrava admirável paciência diante de tais exibições. Não se exaltava nem se horrorizava. Para ela, era como se o comportamento de Effing fizesse parte da ordem natural do mundo. Assim como alguém que morasse ao lado dos trilhos de uma ferrovia ou perto de algum aeroporto, estava acostumada a periódicas erupções de barulho ensurdecedor, e, sempre que Effing começava seu espetáculo de sucção e baba, ela simplesmente parava de falar, à espera de que o ruído passasse. O trem-bala para Chicago surgia rasgando a noite, fazendo as janelas estremecerem, sacudindo os alicerces da casa, para logo em seguida ir embora, com a mesma rapidez da chegada. Às vezes, quando Effing fazia uma apresentação especialmente deplorável, a sra. Hume olhava para mim e piscava, como se dissesse: "Não se incomode; o velho já não está bem da cabeça, e não há nada que possamos fazer". Hoje, ao recordar, dou-me conta do quanto ela era importante para trazer à casa alguma estabilidade. Uma pessoa mais suscetível ficaria tentada a responder aos desaforos de Effing, e isso somente haveria de piorar a situação, pois, quando desafiado, o velho se mostrava feroz. O temperamento fleumático da sra. Hume revelava-se bastante adequado para evitar dramas incipientes e cenas desagradáveis. Tão grande quanto o próprio corpo, seu coração era capaz de absorver muita coisa, sem dar sinais visíveis de abalo. No começo, eu ficava revoltado ao vê-la suportar tanto abuso, mas vim a compreender que aquela era a única estratégia razoável de lidar com as excentricidades do velho. Sorrir, dar de ombros, reagir com bom humor. Foi ela quem me ensinou a tratar com Effing. Sem o seu exemplo, duvido que eu tivesse conservado o emprego por muito tempo.

Ela sempre chegava à mesa munida de uma toalha limpa e de um babador. Este era amarrado ao pescoço de Effing antes da refeição, e a toalha servia para limpar-lhe o rosto em caso de emergência. Sob esse aspecto, equivalia a sentar-se à mesa com uma criancinha. A sra. Hume desempenhava com grande segurança o papel de mãe atenciosa. Tendo criado três filhos, segundo me disse, não precisava pensar duas vezes para executar seu serviço. Os cuidados corporais com Effing eram apenas um lado da questão, pois havia também a responsabilidade de falar com ele de modo a mantê-lo sob controle. Para isso, ela agia com a habilidade e experiência de uma prostituta diante de um cliente difícil. Nenhuma exigência era absurda demais para ser negada, nenhuma sugestão a chocava, nenhum comentário era estranho demais para não ser levado a sério. Uma ou duas vezes por semana, Effing a acusava de conspirar contra ele - de envenenar a comida, por exemplo (com desprezo, ele cuspia no prato pedaços semimastigados de cenoura e de carne), ou de planejar roubar-lhe o dinheiro. No entanto, em vez de se ofender, ela respondia que, se assim fosse, logo estaríamos mortos, os três, já que a comida era a mesma para todos. Ou então, caso ele insistisse, a tática mudava:

- É verdade - ela admitia. - Coloquei seis colheres de arsênico no purê de batata. O veneno vai começar a fazer efeito daqui a uns quinze minutos, e então todos os meus problemas chegam ao fim. Eu serei uma mulher rica, senhor Thomas. - Era sempre assim que o chamava. - E o senhor vai estar finalmente apodrecendo no túmulo.

Esse tipo de conversa nunca deixava de diverti-lo.

- Ah! Ah! - ele exclamava. - Então é isso! Você está atrás dos meus milhões, não é mesmo? Vaca gananciosa! Eu sempre soube disso. Depois virão as peles e os diamantes. Mas não vai adiantar nada, sua gorda. Não importa o que vista, você sempre vai ter cara de lavadeira robusta.

Em seguida, sem atentar para a contradição, mandava com prazer mais comida envenenada à boca.

Effing não dava trégua à sra. Hume, mas, no fundo, creio que ela lhe fosse mesmo muito dedicada. Ao contrário da maioria das pessoas que cuida de idosos, ela não o tratava como se ele fosse uma criança retardada ou um vegetal. Ela lhe permitia resmungar à vontade, porém, quando necessário, era capaz de agir com firmeza. Reunira uma coleção de epítetos e nomes que não hesitava em empregar quando provocada: velho tonto, patife, gralha, embusteiro - um suprimento inesgotável. Não sei como lhe ocorriam tais palavras, mas o fato era que jorravam de sua boca aos borbotões, sempre misturando o tom de insulto ao de afeição. Já estava com Effing havia nove anos, e, como não parecesse alguém que gostasse de sofrer, devia de algum modo encontrar satisfação em seu trabalho. Do meu ponto de vista, nove anos formavam algo aterrador. Levando-se em conta que ela tinha apenas uma folga por mês, esse tempo todo se tornava quase inconcebível. Eu ao menos conservava as noites livres e, a partir de certa hora, podia ir aonde quisesse. Eu tinha Kitty e também o consolo de saber que meu trabalho com Effing não era o objetivo central da minha vida. Mais cedo ou mais tarde, eu mudaria de atividade. Já a sra. Hume não tinha por onde escapar. Estava em serviço o tempo todo e saía de casa apenas para fazer compras durante uma ou duas horas todas as tardes. Não era bem o que eu chamaria de vida. Lia suas revistas - a Reader’s Digest e a Redbook - e às vezes algum romance de mistério em edição de bolso. Tinha também sua pequena televisão em preto e branco que ligava baixinho depois de colocar Effing na cama. Seu marido morrera de câncer treze anos antes, e os três filhos crescidos viviam longe dela: uma filha na Califórnia; outra no Kansas; o filho na Alemanha, servindo o Exército. Ela escrevia a todos, e sua maior satisfação era receber fotografias dos netos, as quais depois pendurava nos cantos da penteadeira. Nos dias de folga, visitava o irmão Charlie num hospital do Bronx. Ele tinha sido piloto durante a Segunda Guerra Mundial e, do pouco que eu soube a seu respeito, concluí que não devia ser bom da cabeça. Ela ia vê-lo religiosamente a cada mês, nunca se esquecendo de levar-lhe um pacotinho de chocolates e uma pilha de revistas de esportes. O tempo todo em que estive perto dela, nunca a ouvi se queixar de ter de ir lá. A sra. Hume era uma rocha. A esse respeito, ninguém me ensinou tanto quanto ela.

Effing era um caso difícil, mas seria um equívoco defini-lo apenas nesses termos. Se fosse só maldade e destempero, haveria uma previsibilidade em seus humores, seria mais simples cuidar dele, pois, nesse caso, saberíamos onde estávamos pisando. O velho era, no entanto, muito ardiloso. E o problema, em grande parte, se devia ao fato de não ser difícil o tempo todo, e assim Effing conseguia manter as pessoas em constante estado de desequilíbrio. Dias inteiros transcorriam sem que de sua boca nada saísse além de sarcasmo e rancor. Contudo, justamente quando eu me convencia de que nele não restava o menor vestígio de bondade ou solidariedade humana, ele vinha com algum comentário tão devastadoramente compassivo, uma frase que revelava um conhecimento tão profundo dos outros, que eu era forçado a admitir que me enganara, que ele não era assim tão mau quanto eu supunha.

Pouco a pouco, comecei a perceber que havia um outro lado em Effing. Não chegaria a dizer que fosse um lado sentimental, mas às vezes se aproximava disso. No princípio, quis crer que se tratava de uma farsa, de um truque, para ele me manter fora de eixo, mas isso implicaria que Effing premeditava tais enternecimentos, que, no entanto, pareciam ocorrer espontaneamente, motivados por algum detalhe fortuito da conversa ou de algum acontecimento qualquer. Mas, se era autêntico esse lado bom de Effing, por que então ele não o deixava vir à tona com maior frequência? Seria apenas uma aberração do verdadeiro eu de Effing, ou, ao contrário, a essência do que ele de fato era? Nunca cheguei a nenhuma conclusão definitiva a esse respeito, exceto talvez que era impossível excluir qualquer dessas alternativas. Effing era as duas coisas ao mesmo tempo. Era um monstro, mas também guardava em si um homem bom, um homem que eu até poderia vir a admirar. Isso me impedia de odiá-lo por completo, como eu gostaria. E, como eu não o pudesse registrar em minha mente com a força de um único sentimento - e assim despreocupar-me -, acabava pensando nele quase o tempo todo. Passei a vê-lo como uma alma torturada, um homem perseguido pelo passado, em luta para esconder alguma angústia secreta que o devorava por dentro.

Meu primeiro vislumbre desse outro lado de Effing ocorreu durante o jantar, na segunda noite depois da minha chegada. A sra. Hume me perguntava a respeito da infância, e eu acabei mencionando que minha mãe morrera atropelada por um ônibus em Boston. Effing, que até o momento não estivera prestando atenção à conversa, pousou de repente o garfo, virou o rosto na minha direção e falou num tom de voz que nele eu não conhecia, cheio de ternura e calor humano:

- Mas isso é terrível, rapaz. De fato terrível. - Não havia aí o menor indício de que ele estivesse querendo dizer outra coisa.

- É, isso me abalou demais - respondi. - Eu tinha apenas onze anos quando aconteceu e continuei sentindo falta da minha mãe durante muito tempo. Para ser sincero, ainda sinto falta dela.

A sra. Hume sacudiu a cabeça quando eu disse isso. Vi em seus olhos um brilho súbito de tristeza.

- Os carros são mesmo uma ameaça - disse Effing depois de uma breve pausa. - Se não tomarmos cuidado, eles nos atropelam. O mesmo aconteceu dois meses atrás com meu amigo russo. Ele saiu de casa de manhã para comprar jornal, desceu no meio-fio para atravessar a Broadway e foi pego por um maldito Ford amarelo. O motorista fugiu a toda velocidade. Nem se deu ao trabalho de parar. Não fosse esse louco, Pavel estaria sentado na mesma cadeira em que você está agora, Fogg, comendo a mesma comida. Em vez disso, está enterrado a sete palmos num canto esquecido do Brooklyn.

- Pavel Shum - explicou a sra. Hume. - Ele começou a trabalhar para o senhor Thomas em Paris, nos anos 30.

- O nome dele era então Shumansky, mas encurtou-o quando chegou aos Estados Unidos em 1939.

- Isso explica os livros russos que estão no meu quarto - observei.

- Os livros russos, os franceses, os alemães - acrescentou Effing. - Pavel falava fluentemente seis ou sete línguas. Era um estudioso, um verdadeiro acadêmico. Quando o conheci em Paris, em 32, ele trabalhava lavando pratos num restaurante e morava no sexto andar de um prédio, num quarto de empregada, sem água encanada nem aquecimento. Era um dos eslavos que haviam chegado à França durante a guerra civil russa. Todos perderam tudo o que tinham. Eu o acolhi, dei-lhe um lugar onde morar, e, em troca, ele me ajudava. Foi assim por trinta e sete anos, Fogg. A única coisa que lamento é não ter morrido antes dele. Foi o único verdadeiro amigo que tive.

Os lábios de Effing começaram de repente a tremer, como se ele estivesse à beira das lágrimas. Apesar de tudo o que acontecera antes, não pude deixar de sentir pena dele.

O SOL VOLTOU A APARECER no terceiro dia. Effing tirou sua costumeira soneca matinal e, às dez horas, quando a sra. Hume o trouxe do quarto, ele já estava vestido para o nosso primeiro passeio. Veio todo enrolado em agasalhos de lã, brandindo a bengala com a mão direita. Podia-se dizer dele o que fosse, menos que fazia as coisas sem paixão. Ele ansiava por um passeio pela vizinhança com o entusiasmo de um explorador prestes a empreender uma viagem pelo Ártico. Antes de sairmos, havia numerosos preparativos: verificar a temperatura e a velocidade do vento, estabelecer a rota, certificarmo-nos de que ele estava devidamente agasalhado. Quando fazia frio, Effing usava todo tipo de proteção exterior supérflua; embrulhava-se em malhas, cachecóis, num enorme casaco que lhe chegava aos tornozelos, numa manta, vestia luvas e levava na cabeça um chapéu russo de peles com proteção para as orelhas. Nos dias particularmente gélidos (quando a temperatura caía para menos de dois graus negativos), ele também usava uma máscara de esquiador. Todo esse amontoado de roupas praticamente o soterrava, fazendo-o parecer ainda mais frágil e ridículo do que de costume. Effing, porém, não tolerava desconforto físico e, já que não se incomodava em atrair atenção, levava até o fim suas extravagâncias no modo de vestir-se. No dia do nosso primeiro passeio, fazia um frio penetrante e, enquanto nos preparávamos para sair, ele me perguntou se eu tinha casaco. Respondi que não, que possuía apenas uma jaqueta de couro. Não era suficiente, ele observou, de jeito nenhum.

- Não quero que você congele o rabo durante o passeio - ele explicou. - Precisa de roupas que o permitam ficar bastante tempo na rua, Fogg.

A sra. Hume recebeu então ordem de ir buscar o casaco que pertencera a Pavel Shum. Era uma surrada relíquia de tweed que acabou me servindo bem: marrom, sarapintado de vermelho e verde. Apesar das minhas objeções, Effing insistiu para que eu ficasse com ele. Eu não podia, portanto, recusá-lo sem provocar discussão. Foi assim que acabei herdando o casaco do meu antecessor. Achava esquisito usá-lo, mas o fiz em todos os nossos passeios até o fim do inverno. Para abrandar minha resistência, tentei encará-lo como uma espécie de uniforme de trabalho, mas isso não adiantou muito. Sempre que o vestia, não deixava de sentir que estava entrando no corpo de um homem morto, que eu me transformara no fantasma de Pavel Shum.

Não levei muito tempo para me sair bem na condução da cadeira de rodas. Houve alguns solavancos no primeira dia, mas, depois que aprendi a incliná-la no ângulo certo ao subir e descer calçadas, tudo se normalizou. Effing era extremamente leve, e empurrá-lo não exigia muito esforço dos meus braços. Sob outros aspectos, no entanto, nossas excursões eram um tanto penosas para mim. Assim que chegávamos à rua, Effing começava a brandir a bengala no ar, perguntando-me em voz alta para qual objeto ele apontava. Eu respondia, e ele então me mandava descrevê-lo. Latas de lixo, vitrinas de lojas, entradas de prédios: Effing queria que eu lhe fizesse uma descrição minuciosa de tais coisas e, caso eu não construísse as frases com rapidez suficiente para satisfazê-lo, ele explodiria de ira.

- Maldito rapaz! - ele me repreendia. - Use os olhos que você tem! Eu não enxergo nada e você fica aí gastando saliva com "poste como qualquer outro", "uma boca de lobo absolutamente comum". Não. Não há duas coisas iguais, seu trouxa, qualquer idiota sabe disso. Quero saber o que você está vendo, sua descrição tem que me permitir visualizar perfeitamente as coisas!

Era humilhante sofrer uma descompostura dessas em plena rua, ficar ali parado enquanto o velho me chicoteava com palavras, ter de suportar as pessoas se voltarem para ver que alvoroço era aquele. Uma ou duas vezes fiquei tentado a ir embora e deixá-lo ali, mas, na verdade, a atitude de Effing até que não era totalmente injustificada. Eu não estava fazendo um bom trabalho. Dei-me conta de que nunca tivera o hábito de olhar atentamente para as coisas, e, agora que me pediam para fazer isso, os resultados eram catastróficos. Até então sempre tivera tendência para generalizar, para ver em tudo semelhanças, em vez de diferenças. Agora, porém, eu estava sendo atirado ao mundo das particularidades, e a luta para traduzi-las em palavras, para recolher os dados imediatos que me vinham pelos sentidos, apresentava-me um desafio para o qual eu não estava preparado. Para conseguir o que queria, Effing precisava contratar Flaubert para empurrá-lo pelas ruas - mas até mesmo Flaubert trabalhava devagar; ficava horas a elaborar uma boa frase. Eu não tinha somente que descrever as coisas com precisão, mas também fazê-lo em questão de segundos. Antes de tudo, porém, eu odiava as inevitáveis comparações com Pavel Shum. Certa vez, quando eu estava especialmente incomodado com isso, Effing deu de falar por vários minutos a respeito do falecido, descrevendo-o como um mestre da construção poética, um inigualável criador de imagens perfeitas e surpreendentes, um estilista cujas palavras revelavam, como que por milagre, a verdade palpável dos objetos.

- E pensar - Effing acrescentou - que o inglês nem era sua língua materna.

Essa foi a única vez que lhe respondi de modo atravessado a respeito do assunto. Mas senti-me tão magoado que não pude resistir.

- Se preferir outra língua - rebati -, terei o maior prazer em satisfazê-lo. Que tal latim? Daqui por diante posso falar só em latim com o senhor. Melhor ainda, em latim vulgar. O senhor não deve ter nenhum problema para compreendê-lo.

Foi uma estupidez dizer isso. Effing logo me pôs em meu lugar.

- Cale a boca, rapaz - ele me reprimiu. - Agora vamos, diga-me como são as nuvens neste momento. Fale-me de todas as que estão no céu a oeste, de todas as que puder ver.

Para fazer o que Effing mandava, tive que aprender a ficar distanciado dele. O essencial era não me aborrecer com suas ordens e transformá-las em algo que eu mesmo quisesse fazer. Afinal, nada havia de intrinsecamente errado naquela atividade. Pensando bem, o esforço de descrever as coisas com precisão era o tipo de disciplina que me poderia ensinar aquilo que eu mais queria aprender: humildade, paciência, rigor. Em vez de apenas desincumbir-me de uma obrigação, passei a encará-la como um exercício espiritual, um treinamento em olhar para o mundo como se o estivesse descobrindo naquele momento. O que você vê? Como colocar o que vê em palavras? O mundo entra em nós através dos olhos, mas só lhe conferimos sentido quando ele desce até nossa boca. Passei a perceber quão longa era a viagem de um ponto a outro. Em termos objetivos, era uma questão de centímetros, mas, diante de tantos acidentes e perdas que ocorrem no caminho, poderia muito bem comparar-se a uma viagem da Terra à Lua. Minhas primeiras tentativas com Effing foram desanimadoramente vagas, meras sombras que esvoaçavam contra um fundo impreciso. Eu já havia visto antes tais coisas, disse comigo mesmo, então como ter dificuldade em descrevê-las? Um hidrante, um táxi, um sopro de vapor a subir da calçada - tudo isso me era profundamente familiar; eu supunha conhecer tais coisas de cor. Não levava, porém, em conta sua instabilidade, o modo como se transformavam de acordo com a intensidade e o ângulo de incidência da luz, como ganhavam uma nova aparência em razão do que acontecia ao redor: uma pessoa que passava, uma súbita rajada de vento, um estranho reflexo. Tudo estava em constante fluxo. Ainda que dois tijolos de uma parede fossem muito parecidos, não se poderia dizer que fossem idênticos. Ou mais precisamente: um tijolo nunca era de fato o mesmo. Estava se desgastando, consumindo-se imperceptivelmente sob a ação da atmosfera, do frio, do calor, das tempestades a que se expunha e, por fim, depois de séculos, podia ter desaparecido. Todas as coisas inanimadas estavam se desintegrando; todas as coisas vivas, morrendo.

Minha cabeça começava a latejar sempre que eu pensava nisso e imaginava os movimentos furiosos, frenéticos, das moléculas, as incessantes explosões da matéria, as colisões, o caos fervilhante sob a superfície de todas as coisas. Effing me prevenira em nosso primeiro encontro: "Não tenha certeza de nada". Da indiferença fortuita, passei para um estado de alerta constante. Minhas descrições tornaram-se de uma meticulosidade exagerada, tentavam desesperadamente capturar todas as nuanças daquilo que eu estava vendo e, para que nada ficasse de fora, reuniam os detalhes num amontoado maluco. As palavras vinham da minha boca como balas de metralhadora, atacando em staccato. Effing vivia pedindo que eu não fosse tão depressa, queixava-se de que não conseguia acompanhar. O problema não era tanto o meu modo de falar quanto a abordagem geral. Era um acúmulo excessivo de palavras que, em vez de revelarem o objeto descrito, acabavam por obscurecê-lo, soterrá-lo sob uma avalancha de sutilezas e abstrações geométricas. O importante era não esquecer que Effing era cego. Eu não devia deixá-lo exausto com extensos catálogos, mas ajudá-lo a ver as coisas por si mesmo. As palavras, enfim, não interessavam. A função delas era permitir-lhe apreender os objetos com a maior rapidez possível, e, para isso, eu precisava fazê-las desaparecer no momento em que as pronunciava. Passei semanas a esforçar-me para simplificá-las, para aprender a separar o acessório do essencial. Descobri que quanto mais espaço eu deixava em torno de um objeto, melhores eram os resultados, pois assim Effing podia fazer o trabalho mais importante: construir uma imagem a partir de alguns indícios, sentir a própria mente viajando na direção daquilo que lhe era descrito.

Desgostoso com o meu desempenho inicial, comecei a praticar quando estava só; de noite na cama, por exemplo. Eu então me exercitava com os objetos do quarto para ver se me saía melhor. Quanto mais trabalhava, mais a sério levava o que estava fazendo. Já não mais via aquilo como atividade estética, mas moral, e passei a ficar menos irritado com as críticas de Effing, perguntando-me se sua impaciência e insatisfação não haveriam de servir a algum propósito superior. Eu era um monge em busca de iluminação, e Effing o meu açoite, a camisa de crina com que me penitenciava. Eu havia, sem dúvida, melhorado, mas isso não significava que estivesse satisfeito com meus esforços. As exigências das palavras são demasiado grandes para isso; depara-se tantas vezes com o fracasso que não se pode exultar com o ocasional sucesso.

Com o tempo, Effing tornou-se mais tolerante com minhas descrições, mas não sei se isso queria dizer que estivessem mais próximas do que ele desejava. Talvez ele tivesse perdido a esperança, ou talvez começasse a perder o interesse. Era-me difícil saber. Podia ser até que simplesmente ele estivesse se acostumando comigo.

Durante o inverno, costumávamos restringir nossos passeios à vizinhança imediata. West End Avenue, Broadway, as travessas das ruas 70 e 80. Muitas das pessoas por que passávamos conheciam Effing, e, ao contrário do que eu poderia supor, mostravam-se alegres ao vê-lo. Algumas até paravam para lhe dizer alô. Quitandeiros, jornaleiros, pessoas idosas em passeios solitários. Effing as reconhecia pela voz e as tratava com cortesia, talvez com uma certa distância: o nobre que descera do castelo para misturar-se ao povo da cidade. Ele parecia inspirar-lhes respeito, e nas primeiras semanas muito se falou a respeito de Pavel Shum, uma pessoa que todos conheciam e de quem aparentemente gostavam. O modo como morrera era de conhecimento geral na vizinhança (alguns até haviam presenciado o acidente) e Effing suportou muitos apertos de mãos sinceros e sentidas condolências, recebendo-os com naturalidade. Era admirável a elegância com que se portava quando assim queria, a compreensão que demonstrava das convenções do comportamento em público.

- Este é o meu novo acompanhante - ele me apresentava, fazendo um gesto na minha direção. - Senhor M. S. Fogg, recém-formado pela Universidade de Colúmbia. - Tudo muito distinto e correto, como se eu fosse uma pessoa importante que houvesse deixado de lado numerosos compromissos para honrá-lo com minha presença.

Pode-se dizer o mesmo de seu comportamento na confeitaria da Rua 72, onde às vezes parávamos para uma xícara de chá antes de voltarmos para casa. Nada de babas e sucções ruidosas. Coisa nenhuma lhe caía da boca. Diante de estranhos, Effing era um perfeito cavalheiro, um notável exemplo de decoro.

Era difícil conversarmos durante esses passeios. Como estivéssemos os dois voltados na mesma direção - e minha cabeça muito acima da dele -, as palavras de Effing costumavam perder-se antes de chegarem aos meus ouvidos. Eu precisaria me debruçar para ouvir o que ele dizia. Effing, porém, não gostava que parássemos ou diminuíssemos o passo, e assim guardava seus comentários para quando estivéssemos numa esquina à espera de atravessar a rua. Quando não me pedia para fazer descrições, ele raramente ia além de frases curtas e perguntas. Que rua é esta? Que horas são? Estou ficando com frio.

Havia dias em que mal pronunciava uma palavra do começo ao fim do passeio, abandonando-se ao movimento da cadeira de rodas. Seu rosto então voltava-se para o sol e ele gemia baixinho, num transe de prazer físico. Effing adorava sentir o ar na pele, refestelar-se na luz invisível que se derramava ao seu redor. Nos dias em que eu conseguia manter um ritmo estável, sincronizar meu passo com o girar das rodas, eu o sentia ir cedendo à música do nosso avanço pelas ruas, aos poucos ir soltando o corpo como um bebê num carrinho.

No final de março e início de abril, começamos a fazer passeios mais longos, deixando para trás o setor norte da Broadway e percorrendo outras vizinhanças. Apesar da temperatura mais elevada, Effing continuou a usar agasalhos pesados e, até mesmo nos dias mais amenos, recusava-se a sair de casa sem o casaco e, sobre as pernas, a manta xadrez. Sua sensibilidade ao clima era tão acentuada que ele parecia temer expor as entranhas caso não tomasse medidas drásticas para protegê-las. No entanto, desde que estivesse aquecido, agradava-lhe o contato com o ar, nada como uma boa brisa para insuflar-lhe ânimo. Quando o vento soprava nele, Effing inevitavelmente começava a rir, a praguejar, a brandir a bengala contra os elementos, num enorme alvoroço. Mesmo no inverno, seu lugar favorito era o Riverside Park, onde passava várias horas em silêncio, sem nenhum cochilo - ao contrário do que eu esperava -, apenas ouvindo, tentando seguir o que acontecia ao seu redor: pássaros e esquilos num farfalhar de folhas e galhinhos, o vento que agitava as ramagens, o ruído do trânsito mais abaixo na via expressa. Passei a levar comigo um guia da flora, para, quando ele me perguntasse, saber dizer os nomes das plantas e flores que encontrávamos. Assim aprendi a identificar dezenas de plantas e a examinar com maior curiosidade e interesse suas folhas e inflorescências. Certa vez em que Effing se encontrava particularmente receptivo, perguntei-lhe por que ele não morava no campo. Havia pouco que eu o conhecia - devia ser final de novembro ou início de dezembro - e ainda não passara a ter medo de fazer-lhe perguntas. O parque parecia dar-lhe tanto prazer, comentei, que era uma pena ele não poder estar o tempo todo rodeado pela natureza. Ele demorou tanto a responder que pensei que não tivesse ouvido a pergunta.

- Eu já fiz isso - disse ele finalmente. - Já fiz isso. Agora está tudo na minha cabeça. Já vivi sozinho num lugar completamente isolado, deserto, durante meses e meses... uma vida inteira. Quando se faz isso, rapaz, nunca se esquece. Não preciso mais ir a lugar nenhum. No momento em que começo a evocar, estou lá de volta. Aliás, é lá que hoje passo a maior parte do tempo: num lugar deserto.

EM MEADOS DE DEZEMBRO, Effing perdeu de repente o interesse por livros de viagem. Já então tínhamos lido uns doze e estávamos em meio a Uma Viagem pelo Canyon, de Frederick S. Dellenbaugh - uma narrativa da segunda expedição de Powell pelo Colorado -, quando ele me interrompeu no meio da frase e anunciou:

- Já basta, senhor Fogg. Está ficando maçante, e não temos tempo a perder. Precisamos trabalhar, cuidar de negócios.

Não fiz a menor ideia da qual trabalho ele se referia, mas devolvi com satisfação o livro à estante e fiquei aguardando instruções. Foi uma decepção.

- Vá até a esquina - pediu ele - e compre um exemplar do New York Times. A senhora Hume lhe dará o dinheiro.

- Só isso?

- Só isso. E vá depressa. Não temos tempo para embromação.

Até o momento, Effing não havia demonstrado o menor interesse em acompanhar o noticiário. Às vezes, eu e a sra. Hume conversávamos a esse respeito durante as refeições, mas o velho nunca participava, nunca fazia comentário algum. De repente, porém, não queria saber outra coisa. Assim, durante as duas semanas seguintes, passei todas as manhãs a ler-lhe diligentemente artigos do New York Times. Predominavam as notícias da Guerra do Vietnã, mas ele também queria ouvir sobre outros assuntos: debates do Congresso, três alarmes de incêndio no Brooklyn, facadas no Bronx, listas de ações da Bolsa de Valores, críticas de livros, resultados de jogos de basquete, terremotos. Nada disso parecia justificar o tom de urgência com que ele me mandara comprar o jornal na primeira vez. Estava claro que Effing tinha algum plano em mente, mas eu não conseguia imaginar qual haveria de ser. Ele se aproximava de forma oblíqua de seu objetivo, cercava-o, fazia jogo de gato e rato. Queria, sem dúvida, confundir-me. Mas, ao mesmo tempo, tais estratégias eram tão transparentes que só faltava ele me dizer para estar alerta.

Acabávamos sempre nossas sessões matinais de notícias com a leitura completa das páginas do obituário. Isso parecia prender a atenção de Effing mais que os outros artigos, e às vezes eu me espantava em ver o interesse com que ele ouvia a prosa sem colorido desses relatos. Capitães de indústria, políticos, americanos ufanistas, inventores, estrelas do cinema mudo: todos despertavam-lhe igualmente a curiosidade. Com o passar dos dias, começamos pouco a pouco a dedicar mais tempo ao obituário. Algumas histórias ele me mandava ler duas ou três vezes e, nos dias em que se registravam poucas mortes, pedia que eu lesse os anúncios pagos, publicados em tipografia minúscula no fim da página. "George de Tal, sessenta e nove anos, adorado marido e pai, pranteado pela família e pelos amigos, será levado hoje, à uma hora da tarde, a sua última morada, no Cemitério de Nossa Senhora das Dores". Effing parecia nunca se cansar dessas recitações enjoativas. Por fim, depois de quase duas semanas a deixá-las para o final das sessões de leitura, ele parou de fingir que tinha interesse pelas notícias e pediu-me para começar pelo obituário. Não comentei a mudança de ordem. Só depois de lidos os falecimentos, quando vi que ele não pedia que eu prosseguisse, fui perceber que havíamos chegado a um ponto decisivo.

- Agora já sabemos como são, não é, rapaz? - ele perguntou.

- Acho que sim - respondi. - Lemos o bastante para saber como é o esquema geral.

- É deprimente, admito. Mas acho que precisávamos de uma pequena pesquisa antes de começarmos nosso projeto.

- Nosso projeto?

- Está chegando a minha vez. Qualquer idiota sabe disso.

- Não espero que viva para sempre, mas o senhor já viveu mais do que muita gente e não há motivo para pensar que não continue vivo por muito tempo ainda.

- Talvez. Mas se estiver enganado, esta vai ser a primeira vez.

- Está dizendo que sabe quando?

- Exatamente. Sei quando. Centenas de indícios me alertaram. Meu tempo está se esgotando, e precisamos começar antes que seja tarde demais.

- Continuo não compreendendo.

- Meu obituário. Precisamos começá-lo já.

- Nunca soube de ninguém que tenha escrito o próprio obituário. Outras pessoas deveriam escrevê-lo para o senhor, depois de sua morte.

- Sim, se tivessem os fatos. Mas, e quando não há nada registrado?

- Entendo. Quer reunir as informações básicas.

- Exatamente.

- Mas o que o faz pensar que vão querer publicar?

- Já publicaram, cinquenta e dois anos atrás. Não vejo por que não haveriam de aproveitar novamente a oportunidade.

- Não estou entendendo.

- Já morri. Não se publicam obituários de pessoas vivas, não é mesmo? Já morri, ou ao menos pensaram que morri.

- E o senhor não desmentiu?

- Não quis. Gostei da ideia. E, depois que publicaram a notícia nos jornais, podia muito bem continuar morto.

- O senhor deve ter sido uma pessoa importante.

- Muito importante.

- Como então nunca ouvi falar do senhor?

- Eu tinha outro nome. Livrei-me dele depois que morri.

- Qual era?

- Um nome de maricas: Julian Barber. Sempre detestei esse nome.

- Também nunca ouvi falar de Julian Barber.

- Já faz muito tempo para que alguém se lembre. Estou falando de coisas de cinquenta anos atrás, Fogg. Mil novecentos e dezesseis, ou dezessete. Desapareci, como eles dizem, e nunca mais voltei.

- O que o senhor fazia quando era Julian Barber?

- Eu era pintor. Um grande pintor americano. Se tivesse continuado, provavelmente seria reconhecido como o artista mais importante da minha época.

- Uma declaração modesta, sem dúvida.

- Estou apenas lhe falando de fatos. Minha carreira foi muito curta, e não trabalhei o suficiente.

- Onde estão os seus quadros agora?

- Não tenho a menor ideia. Sumiram, creio eu, desapareceram no ar. Mas isso não me preocupa.

- Então, por que quer escrever o obituário?

- Porque vou morrer logo, e então pouco vai me importar manter o segredo ou não. Cometeram uma gafe na primeira vez, quem sabe agora façam a coisa certa.

- Compreendo - respondi, mas sem compreender coisa alguma.

- Minhas pernas têm muito a ver com o que aconteceu, é claro - ele prosseguiu. - Você já deve ter tido a curiosidade de saber como fiquei assim, não é mesmo? Todo mundo tem, é natural. Minhas pernas inúteis, atrofiadas. Não nasci aleijado, é bom deixar isso claro desde o início. Fui um rapaz cheio de vida, esperto, saía por aí com outros, aprontando algazarras. Isso foi em Long Island, numa casa grande onde passávamos os verões. Hoje, só existem lá casas populares e terrenos de estacionamentos, mas naquela época era um paraíso, nada além de campinas e paisagem costeira, um pequeno céu na Terra. Quando me mudei para Paris, em 1920, não havia necessidade de fornecer os fatos a ninguém. Não importava mesmo o que pensassem. Desde que eu fosse convincente, quem haveria de se importar com o que tinha realmente acontecido? Inventei várias histórias, cada uma melhor que a anterior. Eu as contava de acordo com as circunstâncias e o meu estado de espírito. Sempre as mudava um pouco, embelezando um incidente aqui, aprimorando um detalhe ali, brincando com elas ao longo dos anos até torná-las perfeitas. As melhores talvez fossem as histórias de guerra; acabei ficando muito bom nisso. Estou falando da Primeira Grande Guerra, a guerra que arrancou o coração das coisas, a guerra que iria pôr fim a todas as guerras. Você devia ter me ouvido falar da lama e das trincheiras. Eu era eloquente, inspirado. Sabia como ninguém transmitir a sensação de medo, descrever o estrondo dos canhões no meio da noite, os soldados com cara de idiota a se borrar nas calças.

"Mais de seiscentos estilhaços me atingiram as pernas, eu dizia. Os franceses engoliam, queriam mais. Havia também uma história da Esquadrilha Lafayette, o relato vívido, arrepiante, de como eu fui abatido por um alemão. Essa era muito boa, acredite, sempre os deixava a pedir mais. O problema era lembrar-me de qual história eu já tinha contado a quem. Eu me preocupei durante anos em ter tudo certo na cabeça, tomando o cuidado de não contar à mesma pessoa uma versão diferente. Saber que eu poderia ser desmascarado a qualquer momento, que alguém poderia se levantar de repente e me chamar de mentiroso, isso acrescentava uma certa emoção ao que eu fazia. Quem mente pode estar criando uma situação perigosa para si próprio."

- E durante esses anos todos o senhor nunca contou a ninguém a verdadeira história?

- A ninguém.

- Nem mesmo a Pavel Shum?

- A ele muito menos. Ele era a própria discrição. Nunca me perguntou, nem eu jamais lhe contei.

- E agora está preparado para contar?

- Quando chegar a hora, rapaz. Quando chegar a hora. Você precisa ter paciência.

- Mas por que vai contar a mim? Nós nos conhecemos há apenas dois meses.

- Porque não tenho escolha. Meu amigo russo está morto e a senhora Hume não serve para essas coisas. Quem mais haveria de ser, Fogg? Quer goste ou não, você é o único ouvinte que eu tenho.

EU ESPERAVA QUE EFFING voltasse ao assunto na manhã seguinte, que o retomasse por onde o havia interrompido. Diante do que acontecera no dia anterior, seria lógico que assim fosse, mas eu já devia estar preparado para não esperar dele lógica alguma. Sem fazer referência à conversa de antes, o velho foi logo começando um discurso confuso, intrincado, a respeito de um homem que ele parecia conhecer. Passava destrambelhadamente de uma coisa a outra, soltando um remoinho de lembranças fragmentadas que não tinham para mim o menor sentido. Fiz o que pude para o seguir, mas era como se ele já tivesse começado antes de eu estar presente e fosse tarde demais para alcançá-lo.

- Um anão - disse ele. - O desgraçado parecia um anão. Trinta e cinco, quarenta quilos, se tanto; olhos fundos, distantes, olhos de louco, ao mesmo tempo em êxtase e em depressão. A última vez que o vi foi pouco antes de o internarem. Nova Jersey. Era como ir para o fim do mundo. Orange, East Orange, porra de nome. Edison também estava numa dessas cidades. Mas ele não conhecia Ralph, talvez nunca tivesse ouvido falar dele. Ignorante, cretino. Foda-se Edison. Ele e sua maldita lâmpada. Ralph me disse que estava ficando sem dinheiro. Nem podia ser diferente; com oito filhos para criar e uma mulher daquelas. Fiz o que estava ao meu alcance. Eu era rico na época, dinheiro não era problema. Pronto, eu disse, enfiando a mão no bolso, tome isso, para mim não vai fazer falta. Não me lembro de quanto era. Cem dólares, duzentos. Ralph ficou tão agradecido que começou a chorar. Isso mesmo, a berrar como um bebê bem ali na minha frente. Patético. Hoje, quando penso nisso, me dá vontade de vomitar. Um dos maiores homens que tivemos e lá estava ele, todo descomposto, a ponto de perder a cabeça. Ele costumava me contar suas viagens para o Oeste; viagens em que passava semanas a fio a vagar pelo deserto, sem ver uma vivalma. Ficou lá três anos. Wyoming, Utah, Nevada, Califórnia, tudo isso era selvagem naquela época. Nada de luz elétrica ou cinema, pois é, nada de automóveis para nos atropelar.

"Ele gostava dos índios, foi o que me disse. Eram bons para ele, e o deixavam ficar em suas aldeias quando ele aparecia de passagem. Quando por fim enlouqueceu, vestiu uma roupa de índio que um certo chefe lhe tinha dado vinte anos antes e saiu assim pelas ruas da maldita Nova Jersey. Penas espetadas na cabeça, enfeites de contas, faixas, cabelos compridos, faca na cintura, a parafernália toda. Pobre coitado. Como se isso não bastasse, tinha posto na cabeça começar a fazer o próprio dinheiro. Isto é, passou a pintar notas de mil dólares, com o retrato dele próprio no meio, bem ao estilo do retrato de algum pai da pátria. Certo dia ele entra num banco, entrega ao caixa uma dessas notas e lhe pede que a troque. Ninguém acha engraçado, principalmente depois que ele começa a se queixar com estardalhaço. Ninguém pode avacalhar com o todo-poderoso dólar e esperar que fique tudo por isso mesmo. Então, o arrastaram para fora dali, todo esperneante e esbravejante naquela roupa de índio ensebada. Não demorou para que decidissem dar um jeito nele de uma vez por todas. Foi parar em algum canto do Estado de Nova York, eu acho. Ficou no hospício até morrer, mas, por incrível que pareça, continuou pintando. O filho da puta não sabia parar. Pintava em tudo o que lhe chegasse às mãos. Papel, papelão, caixas de charutos e até persianas. O mais extraordinário aconteceu quando seu trabalho anterior começou a vender. Preços salgados, veja bem, quantias inéditas por quadros que poucos anos antes ninguém nem olharia. Um maldito senador de Montana chegou a pagar catorze mil dólares por Moonlight, o mais alto preço oferecido pelo trabalho de uma artista americano vivo. Não que isso tivesse melhorado a vida de Ralph ou da família. Sua mulher vivia com cinquenta dólares por ano numa choça perto de Catskill, o mesmo território que Thomas Cole costumava pintar, e não podia nem sequer pagar a passagem para visitar o marido no hospício. Ele era um sujeito franzino, mas muito agitado, frenético, martelando o teclado do piano enquanto pintava seus quadros. Eu o vi certa vez fazer isso: correr do cavalete ao piano, indo e vindo; nunca vou me esquecer. Meu Deus, agora tudo me volta claramente à memória. O pincel, a espátula, a pedra-pomes. Lançando e espalhando tinta, eliminando o excesso. Nunca houve nada parecido. Nunca, nunca, nunca."

Effing interrompeu-se para retomar o fôlego e, em seguida, como se voltasse de um transe, virou pela primeira vez o rosto na minha direção.

- O que acha disso, rapaz? - ele arrematou.

- Se ao menos eu pudesse saber quem era Ralph - respondi educadamente.

- Blakelock - sussurrou Effing, como se lutasse para controlar os sentimentos. - Ralph Albert Blakelock.

- Creio que nunca ouvi falar dele.

- Então, você não sabe nada de pintura? Pensei que fosse uma pessoa instruída. O que lhe ensinaram naquela sua faculdade, seu toupeira?

- Não muita coisa. Em todo caso, nada a respeito de Blakelock.

Pareceu-me sem sentido tentar defender-me, então segurei a língua e fiquei à espera. Passou-se um bom tempo - dois ou três minutos, uma eternidade quando se aguarda que alguém comece a falar. Effing deixou cair a cabeça, como se estivesse cansado e quisesse dar um cochilo. Quando voltou a erguê-la meu único pensamento era o de que eu estava para ser despedido. Caso ele já não se sentisse ligado a mim, creio que teria acontecido isso mesmo.

- Vá à cozinha - ele por fim falou - e peça à senhora Hume dinheiro para o metrô. Depois vista casaco, luvas, e saia pela porta. Desça pelo elevador, saia para a rua, e ande até a estação mais próxima. Ao chegar lá, entre na estação e compre duas passagens. Guarde uma delas no bolso. Use a outra para passar na roleta, desça as escadas, e tome o trem número um, direção sul. Desça na Rua 72, atravesse a plataforma e espere o trem expresso, para o centro, o trem número dois ou três, não sei bem qual. Quando as portas se abrirem, suba no trem e procure um lugar para sentar-se. Como já passou a hora de maior movimento, não vai ser difícil achar assento vago. Sente-se e não fale com ninguém. Isso é muito importante. Do momento em que sair daqui até voltar para casa, não diga uma palavra sequer. Nenhum pio. Finja que é surdo-mudo se alguém vier falar com você. Ao comprar as passagens, mostre dois dedos ao bilheteiro para indicar quantas quer. Fique sentado no trem expresso até chegar à Grand Army Plaza, no Brooklyn. A viagem deve levar uns trinta, quarenta minutos. Durante esse tempo, permaneça de olhos fechados. Pense o mínimo. Em nada, se possível. Se isso for pedir muito, pense em seus olhos e no extraordinário poder que eles têm de ver o mundo. Imagine como seria se fosse cego. Imagine-se olhando para alguma coisa sob as várias luzes que tornam o mundo visível para nós: luz do sol, luar, luz elétrica, luz de velas, luz de néon. Escolha uma coisa bem simples, comum. Uma pedra, por exemplo, ou um bloco de madeira. Pense com cuidado na mudança que sofre a aparência desse objeto sob cada uma dessas luzes. Não pense em nada além disso, se for o caso de pensar em alguma coisa. Quando chegar à Grand Army Plaza, abra os olhos. Desça do trem e suba as escadas. Dali, vá ao Museu do Brooklyn. Fica na Eastern Parkway, a não mais que cinco minutos de caminhada a partir da saída do metrô. Não peça informações. Mesmo que se perca, não fale com ninguém. Você vai acabar encontrando o museu, não vai ser difícil. É um grande edifício de pedra projetado pela McKim, Mead e White, a mesma firma que projetou os prédios da universidade em que você se formou.

"O estilo lhe deve ser familiar. Aliás, Stanford White foi morto a tiro por Henry Thaw no andar de cobertura do Madison Square Garden. Tal fato se deu em mil novecentos e quase nada; provavelmente porque White fez coisas que não devia à senhora Thaw. Foi muito comentado na época, mas não se preocupe com isso. Pense apenas em encontrar o museu. Quando o encontrar, suba a escada, entre no saguão, pague a entrada à pessoa de uniforme sentada a uma mesa. Não sei qual o valor, mas não deve passar de dois dólares. Pegue o dinheiro com a senhora Hume junto com o da passagem de metrô. Lembre-se de não falar ao comprar a entrada. Tudo isso deve ser feito em silêncio. Descubra o andar onde fica o acervo de pintura americana e entre na galeria. Faça o possível para não olhar nada atentamente. Na segunda ou terceira sala, você encontrará numa das paredes o Moonlight de Blakelock e, então, pare. Olhe para o quadro. Continue olhando pelo menos por uma hora. Ignore os outros quadros. Concentre-se. Olhe para o quadro de várias distâncias; de três metros, de meio metro, de dois centímetros. Analise a composição geral, analise os detalhes. Não anote nada. Veja se consegue memorizar todos os elementos, a localização exata das figuras humanas, os objetos naturais, as cores de cada canto da tela. Feche os olhos e tente lembrar-se disso tudo. Abra-os de novo. Veja se consegue entrar na paisagem que está na sua frente. Veja se é capaz de penetrar na mente do artista que pintou aquela paisagem. Imagine que você é Blakelock a pintar aquele quadro. Depois de uma hora, faça um intervalo. Se quiser, dê uma volta pela galeria e veja outros quadros. Volte para Blakelock. Fique mais uns quinze minutos diante do quadro, entregue-se a ele como se não houvesse outro no mundo. Depois, vá embora. Saia pelo mesmo caminho que fez para entrar no museu. Chegando à rua, siga para a estação do metrô. Pegue o expresso de volta a Manhattan, troque de trem na Rua 72 e venha para casa. No trem, faça a mesma coisa que na ida: fique de olhos fechados e não fale com ninguém. Pense no quadro. Tente visualizá-lo. Tente lembrar-se, fixar-se nele ao máximo. Compreendeu?"

- Acho que sim - respondi. - Mais alguma coisa?

- Mais nada. Mas lembre-se: se não fizer exatamente o que peço, nunca mais vou falar com você.

Fiquei de olhos fechados no trem, mas era difícil não pensar em nada. Tentei concentrar-me numa pedra pequena, mas isso foi mais difícil do que eu esperava. Havia muito barulho ao redor, muita gente falando e esbarrando em mim. Naquela época ainda não existiam nos trens os alto-falantes que anunciavam as paradas, e assim eu tinha de me localizar pela memória, contando nos dedos o número de estações: menos uma, faltam dezessete; menos duas, faltam dezesseis. Era inevitável ouvir conversas de outros passageiros. Suas vozes se impunham aos meus ouvidos, e eu não tinha como os fazer calar. A cada nova voz que eu ouvia, dava-me vontade de abrir os olhos para ver de quem vinha. Era uma tentação quase irresistível. Quando se ouve alguém falar, forma-se logo em nós uma imagem mental dessa pessoa. Em questão de segundos, assimila-se todo um espectro de informações, como sexo, idade aproximada, classe social, lugar de origem, até mesmo cor da pele. Se for possível ver a pessoa, nosso impulso natural é o de tentar ajustar a imagem mental ao que vemos. É mais comum haver correspondência próxima, mas às vezes cometemos enganos espantosos: professores universitários que falam como motoristas de caminhão, velhas que soam como mocinhas, negros que afinal são brancos.

Não pude deixar de pensar nessas coisas enquanto o trem seguia chacoalhando pela escuridão. Com o esforço em manter-me de olhos fechados, comecei a ansiar por um relance para o mundo. Percebi que estava pensando em como seria a cegueira - exatamente o que Effing queria que eu fizesse. Ative-me a tal pensamento por vários minutos, até que, num súbito pânico, dei-me conta de que já não sabia quantas paradas o trem havia feito. Se por acaso não tivesse ouvido uma mulher perguntar se a Grand Army Plaza era a estação seguinte, poderia ter ido dar no final do Brooklyn.

Era uma manhã de inverno, no meio da semana, e o museu estava quase deserto. Depois de pagar a entrada, mostrei cinco dedos ao ascensorista e subi em silêncio. A pintura americana ficava no quinto andar, e, com exceção de um guarda sonolento, eu era a única pessoa na sala e na galeria toda. Gostei disso; era como se a solenidade da ocasião se acentuasse. Atravessei várias salas até encontrar Blakelock, fazendo o possível para seguir as instruções de Effing e ignorar os outros quadros nas paredes. Captei alguns vislumbres de cor, registrei alguns nomes - Church, Bierstadt, Ryder -, mas não cedi à tentação de olhar para valer. Assim que cheguei ao Moonlight, objetivo da minha estranha e complicada viagem, não pude negar a decepção que senti. Não sei o que estava esperando - talvez algo grandioso, alguma mostra gritante e pomposa de brilho superficial -, mas com certeza não era aquele quadro sombrio que estava diante de mim. Media apenas setenta por oitenta centímetros, e, à primeira vista, pareceu-me quase desprovido de cor: marrom-escuro, verde-escuro, um toque mínimo de vermelho num dos cantos. Tratava-se, sem dúvida, de um trabalho bem executado, mas nada ali encontrei da dramaticidade que eu julgara ter atraído Effing. Talvez eu não estivesse tão decepcionado com o quadro quanto comigo mesmo por ter interpretado Effing tão mal. Era uma obra profundamente contemplativa, uma paisagem de intimismo e calma; confundiu-me pensar que tivesse algum significado especial para o louco do meu patrão.

Tentei tirar Effing da cabeça e dei um passo ou dois atrás para apreciar o quadro com meus próprios olhos. Uma perfeita lua cheia pairava no meio da tela - no centro exato, geométrico, pareceu-me. O disco pálido iluminava tudo acima e abaixo: o céu, o lago, uma grande árvore com galhos em forma de aranha e os morros no horizonte. Em primeiro plano, havia duas áreas separadas por um riacho. Na margem esquerda, uma tenda de índio e uma fogueira. Algumas formas humanas, mínimas sugestões, mal se distinguiam, avermelhadas, ao redor do fogo. Pareciam representar pessoas sentadas, umas cinco ou seis. À direita da grande árvore, uma solitária figura a cavalo, absolutamente imóvel, como que perdida em meditação, lançava o olhar para além das águas. Atrás, uma árvore quinze ou vinte vezes maior que essa figura fazia-a parecer frágil e insignificante. Ela e o cavalo não passavam de silhuetas, contornos negros sem profundidade nem caráter individual. Na outra margem, tudo era ainda mais escuro, quase totalmente mergulhado em sombras. Havia ali algumas árvores pequenas, também com galhos em forma de aranha, e, mais ao fundo, via-se uma breve insinuação de claridade, que bem poderia ser outra figura humana (deitada de costas - talvez dormindo, talvez morta, ou então contemplando o céu noturno) ou os restos de outra fogueira - não sabia dizer o quê.

Envolvi-me de tal modo na observação desses detalhes obscuros da parte de baixo do quadro que, quando voltei a olhar para o céu, fiquei chocado com a claridade de tudo. O céu era visível demais, mesmo levando-se em conta a lua cheia. A tinta embaixo do verniz rachado da superfície do quadro brilhava com uma intensidade nada natural, e, quanto mais próximo do horizonte, mais forte se tornava esse brilho - como se fosse luz do dia e os morros estivessem iluminados pelo sol. Assim que reparei nisso, comecei também a ver outras coisas estranhas no quadro. O céu, por exemplo, apresentava uma tonalidade bastante esverdeada. Refletia o amarelado das bordas das nuvens e remoinhava ao lado da árvore grande num tumulto de pinceladas cada vez mais espessas, adquirindo um aspecto de espiral, de vórtice de matéria celeste a mergulhar fundo no espaço. Como poderia ser verde?, perguntei a mim mesmo. Era da mesma cor que o lago embaixo, e isso não era plausível. A não ser na escuridão da mais negra das noites, o céu e a terra são sempre diferentes. Blakelock, por certo, não haveria de ignorar isso. Se sua intenção não tivesse sido representar uma paisagem real, então qual seria? Fiz o possível para imaginar, mas o verde do céu me impedia. Um céu com a mesma cor da terra, uma noite que parecia dia, todas as formas humanas diminuídas pela grandeza da cena - sombras ilegíveis, os mais simples ideogramas da vida. Eu não queria fazer nenhum apressado juízo simbólico, mas, diante da evidência do quadro, parecia que eu não tinha escolha. Apesar de sua pequenez em relação ao cenário, os índios não demonstravam medo ou ansiedade. Estavam à vontade em seu ambiente, em paz com eles próprios, com o mundo, e, quanto mais eu pensava nisso, mais tal serenidade parecia dominar o quadro.

Perguntei-me se Blakelock não teria pintado um céu verde para realçar essa harmonia, para evidenciar a relação entre o céu e a terra. Se os homens puderem viver confortavelmente em seu meio, ele parecia dizer, se conseguirem sentir-se parte integrante das coisas ao seu redor, então talvez a vida no planeta se torne imbuída de um sentimento de santidade. Eu apenas fazia suposições, é claro, mas ocorreu-me de repente que Blakelock havia pintado um idílio americano, o mundo que os índios tinham habitado antes de os brancos chegarem para destruí-lo. A placa na parede indicava que o quadro fora pintado em 1885. Se bem me lembrei, a época coincidia com o período entre o último Reduto de Custer e o massacre de Wounded Knee - em outras palavras, bem no fim, quando já era tarde demais para se ter esperança de que aquelas coisas pudessem sobreviver. Talvez, pensei comigo mesmo, o quadro quisesse representar tudo aquilo que havíamos perdido. Não era uma paisagem, mas um momento, uma canção de luto por um mundo desaparecido.

Passei mais de um hora diante do quadro. Vi-o de longe, de perto, e aos poucos o fui memorizando. Não sabia se tinha descoberto o que Effing esperava, mas, quando saí do museu, senti que ao menos alguma coisa fora descoberta, embora eu não soubesse o quê. Fiquei exausto, completamente sem energia. Quando novamente entrei no trem expresso e fechei os olhos, tudo o que consegui fazer foi me esforçar para não dormir.

Passava um pouco das três quando cheguei ao apartamento. Segundo a sra. Hume, Effing dormia um pouco. Como não costumasse fazer isso, àquela hora, julguei que ele não queria falar comigo. Pois bem, tampouco eu queria falar com ele. Tomei café na cozinha com a sra. Hume e resolvi sair novamente. Vesti o casaco e tomei um ônibus para Morningside Heights. Eu iria ver Kitty às oito horas, mas, até lá, poderia fazer uma consulta na biblioteca de arte da Colúmbia. Pouca coisa encontrei sobre Blakelock: alguns artigos aqui e ali, dois catálogos velhos, nada demais. Reunindo esse pouco, descobri no entanto que Effing não mentira para mim, e era isso o que importava. Ele embaralhara certos detalhes, confundira-se um pouco na cronologia, mas os fatos essenciais eram verdadeiros. Blakelock levara uma vida miserável. Sofrera, ficara louco, fora negligenciado. Antes de o internarem no hospício, ele havia de fato pintado notas de dólares com sua efígie. Mas em vez de notas de mil, como dissera Effing, eram de um milhão, quantias inimagináveis. Quando jovem, ele viajara para o Oeste e vivera entre os índios. Era incrivelmente baixo (menos de um metro e meio, menos de quarenta quilos) e pai de oito filhos - tudo isso era verdade. Achei particularmente interessante saber que parte de seus primeiros trabalhos haviam sido pintados no Central Park durante a década de 70 do século passado. Ele pintara as choupanas que lá havia quando o parque ainda era novo, e, ao ver as reproduções daquelas paisagens rurais da Nova York de antes, não pude deixar de lembrar-me do tempo infeliz que eu lá passara. Descobri também que os melhores anos de Blakelock enquanto artista haviam sido dedicados à pintura de cenas de luar. Havia dezenas de quadros semelhantes àquele que eu vira no Museu do Brooklyn: a mesma floresta, a mesma lua, o mesmo silêncio. Nesses quadros, a lua era sempre cheia, sempre a mesma: um círculo perfeito, pequeno, no meio da tela, irradiando uma luz muito pálida e branca. Depois de ver umas cinco ou seis, começaram a se isolar daquilo que as rodeava, e eu não mais conseguia vê-las como luas. Tornaram-se buracos na tela, aberturas brancas que davam para um outro mundo. Talvez o olho de Blakelock. Um círculo em branco suspenso no espaço, a olhar para baixo, para coisas que lá não se encontravam mais.

NA MANHÃ SEGUINTE, Effing parecia pronto para trabalhar. Sem mencionar Blakelock nem o Museu do Brooklyn, pediu-me que fosse à Broadway comprar um caderno e uma boa caneta.

- Chegou o momento da verdade - ele anunciou. - Começamos hoje a escrever.

Quando voltei, sentei-me de novo no sofá, abri o caderno na primeira página e fiquei aguardando que ele começasse. Esperava que Effing fosse fazer uma introdução com certos fatos e dados, tais como data de nascimento, nome dos pais, escolas que frequentou, para depois passar a coisas mais interessantes. Não foi, porém, de modo algum o que aconteceu. Ele simplesmente começou a falar, lançando-nos bem no meio da história.

- Foi Ralph quem me deu a ideia - disse ele -, mas foi Moran quem me levou a aplicá-la. O velho Thomas Moran, com sua barba branca e seu chapéu de palha. Naquela época ele vivia no extremo de Long Island, onde pintava o braço de mar em pequenas aquarelas. Dunas, relva, ondas e luz, esse tipo de coisa bucólica. Muitos pintores hoje vão lá, mas ele foi o primeiro quem começou tudo. Por isso mudei meu nome para Thomas. Em homenagem a ele. Effing já é uma outra história; levei algum tempo para chegar a isso. Talvez você mesmo possa descobrir como foi. É um trocadilho.

"Eu era jovem. Vinte e cinco, vinte e seis anos. Ainda nem casado. Tinha uma casa em Nova York, na Rua 12, mas passava a maior parte do tempo em Long Island. Gostava de ficar lá; era onde eu pintava e tinha os meus sonhos. A casa já não existe mais, mas o que se pode esperar? Isso foi há muito tempo, e as coisas mudam, como dizem. É o progresso. Os bangalôs e as casas populares tomaram conta de tudo, qualquer idiota tem o seu carro. Aleluia!

"A cidade se chamava Shoreham. Ao que eu saiba, ainda se chama. Está anotando isso? Não vou repetir nada. Portanto, o que você não assimilar ficará perdido para sempre, caso não anote. Lembre-se disso, rapaz. Eu o mato se não fizer o seu trabalho. Sou capaz de estrangulá-lo com minhas próprias mãos.

"Por acaso, foi lá em Shoreham que Tesla quis construir a Torre Wardenclyffe. Isso, em 1901 ou 1902, para o sistema de radiotelefonia. Provavelmente você nunca ouviu falar dela. J. P. Morgan a financiou e Stanford White fez o projeto arquitetônico. Falamos dele ainda ontem. Foi baleado no salão de festas do Madison Square Garden, e depois disso o projeto fracassou. O que restou dele ainda permaneceu lá durante uns quinze, dezesseis anos. Podia ser visto de qualquer lugar. Sessenta metros de altura. Uma coisa gigantesca. Parecia um robô de sentinela. Eu costumava chamar aquilo de Torre de Babel: transmissões de rádio em todas as línguas, o mundo inteiro se desentendendo. Tudo bem ali na cidade onde eu morava. A torre foi finalmente demolida durante a Primeira Guerra Mundial. Diziam que os alemães a usavam como fonte de espionagem e, então, a puseram abaixo. Mas nessa altura eu já tinha saído de lá, pouco me importava. Mesmo que tivesse permanecido na cidade, eu não teria lamentado o que fizeram. Que tudo venha abaixo, é o que eu digo. Que tudo caia e desapareça de uma vez por todas.

"Conheci Tesla em 1893. Eu ainda era rapaz, mas lembro-me bem da data. Foi na época da Exposição Colombo em Chicago, e meu pai me levou lá de trem. Antes disso, eu nunca tinha ficado longe de casa. A ideia era comemorar o quarto centenário da descoberta da América por Colombo, expondo todas as invenções dos nossos cientistas e demonstrando o quanto eles eram inteligentes. Vinte e cinco milhões de pessoas foram à exposição; era como ir ao circo. Lá foi exposto o primeiro zíper, a primeira roda-gigante, todas as maravilhas do mundo moderno. Tesla ficou encarregado da apresentação da Westinghouse, chamada de o Ovo de Colombo. Lembro-me de ter entrado num teatro e visto no palco um homem alto de smoking branco, falando ao público com um sotaque peculiar - sérvio, acabei descobrindo -, e a voz mais lúgubre que podia haver. Ele fazia truques mágicos com eletricidade: girava pequenos ovos metálicos ao redor da mesa, soltava fagulhas pelas pontas dos dedos. Todo mundo se espantava com aquilo, até eu. Ninguém antes tinha visto nada parecido. Eram os tempos das guerras entre a corrente contínua e a alternada, de Edison contra a Westinghouse. A apresentação de Tesla de certa forma servia como propaganda. Ele havia descoberto a corrente alternada dez anos antes, o campo magnético rotativo, e isso representava um grande avanço em relação à corrente contínua, que Edison vinha empregando. Era muito mais poderosa. A corrente contínua precisava de um gerador a aproximadamente cada dois, três quilômetros. Já com a corrente alternada, bastava um só gerador para uma cidade inteira. Quando Tesla chegou aos Estados Unidos, tentou vender sua ideia a Edison, mas o cretino o dispensou em Menlo Park. Pensou que isso iria tornar obsoleta a sua maldita lâmpada elétrica. Tesla então vendeu a patente da corrente alternada para a Westinghouse, que seguiu adiante e começou a construir a usina geradora de Niagara Falls, a maior do país. Edison atacou. Disse que a corrente alternada era muito perigosa, que mataria as pessoas que dela se aproximassem. Para provar o que afirmava, mandou seus homens pelo país afora para fazer demonstrações em feiras estaduais e regionais. Vi uma dessas demonstrações quando era bem pequeno e cheguei a fazer xixi na calça. Levavam animais ao palco e os eletrocutavam. Cachorros, porcos e até vacas. Matavam os bichos ali à vista de todos. Foi assim que inventaram a cadeira elétrica. Edison a concebeu para mostrar o perigo da corrente alternada, depois a vendeu para o presídio de Sing Sing, onde até hoje a usam. Lindo, não? Se o mundo não fosse um lugar tão maravilhoso, todos nós haveríamos de nos tornar cínicos."

Effing prosseguiu contando:

- O Ovo de Colombo pôs fim a toda controvérsia. Muita gente viu Tesla, e já não tinham mais medo dele. Era um louco, sem dúvida, mas ao menos não fazia aquilo por dinheiro. Alguns anos depois, a Westinghouse teve problemas financeiros, e Tesla, num gesto de amizade, rasgou o contrato que lhe garantia o recebimento de royalties. Milhões e milhões de dólares. Rasgou-o e foi fazer outra coisa. Não preciso dizer que morreu sem dinheiro.

"Depois de ter visto Tesla, passei a acompanhá-lo pelos jornais. Naquela época, não paravam de escrever sobre ele, falando de suas novas invenções, das coisas estranhas e incômodas que ele costumava dizer a quem quisesse ouvir. Ele rendia notícias. Um bicho do mato de idade indefinida que vivia sozinho no Waldorf com um pavor doentio a germes, paralisado por todo tipo de fobia, sujeito a ataques de hipersensibilidade que quase o levavam à loucura. Uma mosca zumbindo na sala ao lado soava-lhe como uma esquadrilha de aviões. Se passasse por baixo de uma ponte, era capaz de sentir a pressão na cabeça, como se estivesse para ser esmagado. Seu laboratório ficava na parte sul de Manhattan, na West Broadway, eu acho, esquina de West Broadway com Grand. Deus sabe o que ele inventou por ali. Válvulas de rádio, torpedos movidos por controle remoto, um projeto para eletricidade sem fio. Isso mesmo, sem fio. Espetava-se no chão uma haste de metal para extrair a energia do ar. Certa vez ele declarou ter construído um aparelho de ondas sonoras capaz de canalizar os impulsos elétricos da Terra para um ponto minúsculo, concentrado. Ele o teria encostado à parede de um prédio da Broadway, e, em cinco minutos, a estrutura toda começava a tremer. Teria caído se ele não tivesse afastado o aparelho. Eu adorava ler essas coisas quando era menino; isso me enchia a cabeça. As pessoas faziam todo o tipo de especulação a respeito de Tesla. Ele era uma espécie de profeta de um novo tempo, e ninguém podia resistir a suas ideias. A conquista total da natureza! Um mundo em que todos os sonhos seriam realizáveis! A maior bobagem que disseram a seu respeito veio de um tal Julian Hawthorne, que aliás era filho de Nathaniel Hawthorne, o grande escritor americano. Julian. Meu nome também era esse, caso se lembre. Então, acompanhei o trabalho do jovem Hawthorne com um certo interesse pessoal. Ele era o escritor popular do momento. Escrevia mal tanto quanto o pai escrevia bem. Um ser humano lamentável. Imagine só crescer tendo em casa a presença de Melville, Emerson, e acabar dando naquilo. Escreveu uns cinquenta e tantos livros, centenas de artigos para revistas, tudo lixo. A certa altura, chegou a ser preso por causa de uma falcatrua qualquer com ações; sonegou imposto de renda, parece. Não me lembro de detalhes. Em todo caso, esse Julian Hawthorne era amigo de Tesla. Em 1899, talvez 1900, Tesla foi para Colorado Springs e montou um laboratório nas montanhas para estudar os efeitos de uma forma extremamente rara de relâmpago, em que bolas muito luminosas se movem a uma velocidade moderada e desaparecem sem explosão. Certa noite, ficou trabalhando até tarde e se esqueceu de desligar o receptor. Estranhos ruídos começaram a vir da máquina. Estática, sinais de rádio, sabe-se lá o quê. Quando ele contou a história aos repórteres no dia seguinte, declarou que aquilo provava a existência de vida inteligente no espaço sideral, que os tais marcianos haviam falado com ele. Por incrível que pareça, ninguém riu do que ele disse. O próprio Lord Kelvin, bêbado num banquete, afirmou que se tratava da maior descoberta científica de todos os tempos. Não muito depois desse incidente, Julian Hawthorne escreveu um artigo sobre Tesla numa revista de circulação nacional. A mente de Tesla era tão avançada, dizia Hawthorne, que ele não podia ser humano. Tesla teria nascido num outro planeta. Vênus, eu acho. E teria sido enviado à Terra numa missão especial para nos ensinar os segredos da natureza, revelar ao homem os caminhos de Deus. Diante disso, novamente seria de esperar que as pessoas rissem, mas não foi o que aconteceu. Muita gente levou tal afirmação a sério, e, mesmo hoje, sessenta, setenta anos depois, há milhares que ainda acreditam nisso. Existe na Califórnia uma seita que cultua Tesla, considerando-o um extraterrestre. Não precisa acreditar em mim. Sobre o assunto, tenho aqui em casa alguns livros que você mesmo pode consultar. Pavel Shum costumava lê-los para mim nos dias de chuva. São hilariantes. De tanto rir, a gente pensa que a barriga vai se rachar ao meio.

"Estou falando de tudo isso para que você tenha uma ideia do que significa para mim. Tesla não era uma pessoa qualquer, e, quando começou a construir sua torre em Shoreham, não acreditei na minha sorte. O grande homem em pessoa vinha a minha cidadezinha uma vez por semana. Eu costumava ir vê-lo descer do trem, achando que talvez pudesse aprender alguma coisa pelo simples fato de olhá-lo, que a mera proximidade dele seria capaz de me contaminar com seu brilho - como se isso fosse uma espécie de doença contagiosa. Nunca tive coragem de falar com ele, mas não importava. Inspirava-me saber que ele estava por perto, que eu poderia vê-lo de relance sempre que quisesse. Certa vez, nossos olhares se cruzaram. Lembro-me bem disso. Foi muito importante. Nossos olhares se cruzaram, e senti o dele me atravessar, como se eu não existisse. Foi um momento magnífico. Senti o olhar dele chegar a minha nuca depois de torrar meu cérebro e reduzi-lo a cinzas. Pela primeira vez na vida, dei-me conta de que não era ninguém, absolutamente ninguém. Não, isso não me incomodou do modo como você talvez pense. Espantei-me no início, mas, assim que comecei a assimilar o choque, senti-me revigorado, como se tivesse conseguido sobreviver a minha própria morte. Não, não foi bem assim. Eu tinha apenas dezessete anos, era pouco mais que um menino. Quando o olhar de Tesla me atravessou, experimentei pela primeira vez o gosto da morte. Isso se aproxima mais do que estou querendo dizer. Senti na boca o gosto da mortalidade e, nesse momento, compreendi que não iria viver para sempre. Levamos muito tempo para compreender isso, mas, quando finalmente aprendemos, tudo muda dentro de nós, nunca mais voltamos a ser o que éramos antes. Eu tinha dezessete anos e, de repente, sem a menor sombra de dúvida, compreendi que minha vida me pertencia, a mim e a mais ninguém.

"Estou falando de liberdade, Fogg. De uma sensação de desespero que se torna tão grande, tão esmagadora, tão catastrófica, que ela só nos pode libertar. Senão, é nos arrastarmos a um canto e ali morrermos. Tesla me deu minha morte, e eu soube nesse momento que iria ser pintor. Era o que eu queria, mas até então não tinha tido estofo para admitir. Meu pai só falava em ações e títulos, um maldito ricaço que me devia achar um maricas. Eu, porém, fui em frente. Tornei-me artista, e, poucos anos depois, o velho caiu morto no escritório de Wall Street. Eu estava então com vinte e dois, vinte e três anos, e acabei herdando todo o dinheiro dele, cada tostão. Ah! Fiquei sendo o pintor mais rico que já existira no mundo. Um artista milionário. Pense nisso, Fogg. Eu tinha a mesma idade que você agora, mas tinha tudo, tudo o que queria.

"Voltei a ver Tesla, mas isso foi depois, bem depois do meu desaparecimento, de minha morte, depois que saí do país e regressei, em 1939 ou 1940. Fui embora da França com Pavel antes que os alemães chegassem. Fizemos as malas e partimos. Aquele lugar não era mais para nós: um americano aleijado e um poeta russo. Não fazia sentido ficar lá. De início, pensamos na Argentina, mas, que diabo, talvez fosse bom voltar para Nova York. Eram vinte anos de ausência, afinal de contas. A Feira Mundial tinha acabado de abrir quando chegamos. Um outro hino ao progresso que, no entanto, não me entusiasmou muito. Não depois de ter conhecido a Europa. Aquilo tudo era um equívoco. O progresso iria acabar conosco, qualquer idiota era capaz de perceber isso. Você deveria conhecer Charlie Bacon, irmão da senhora Hume. Ele foi piloto durante a guerra. Já no final, mandaram-no a Utah, para treinar com aquele grupo que jogou a bomba atômica no Japão. Ele ficou louco quando descobriu o que estava acontecendo. Pobre infeliz! Quem o poderia censurar? Eis o progresso: a cada mês uma ratoeira maior, mais aperfeiçoada. Logo conseguiremos matar todos os ratos ao mesmo tempo.

"De volta a Nova York, eu e Pavel começamos a fazer passeios pela cidade. Como agora: ele empurrava a cadeira de rodas e, às vezes, parava para que víssemos as coisas. Os passeios eram, porém, bem mais longos; duravam o dia todo. Era a primeira vez que Pavel vinha a Nova York. Eu lhe mostrei os lugares, indo de bairro em bairro, enquanto também tentava reconhecer a cidade. Certo dia de verão, em 1939, visitamos a biblioteca pública, na Rua 42 com Quinta Avenida, e parávamos para descansar no Bryant Park. Foi quando revi Tesla. Pavel estava a meu lado, sentado num banco, e, a uns três, quatro metros de nós, havia um velho em pé, dando comida aos pombos. Os pássaros esvoaçavam ao seu redor, pousavam em seus braços, na cabeça, dezenas de pombos arrulhantes que sujavam suas roupas e comiam nas suas mãos. O velho conversava com eles, chamava-os de queridinhos, gracinhas, anjinhos. Na hora em que ouvi sua voz, soube que se tratava de Tesla. Logo em seguida, ele voltou o rosto para mim, e pronto! Lá estava ele, um homem de seus oitenta anos. Magro, de um branco espectral, tão feio quanto eu agora. Ao vê-lo, quis rir. O outrora gênio vindo do espaço sideral, o herói da minha juventude. Já não passava de um velho acabado, um vagabundo. ‘Você é Nikola Tesla’, eu lhe disse. ‘Eu o reconheci.’ Ele sorriu e me saudou de leve. ‘No momento, estou ocupado’, ele respondeu. ‘Talvez possamos conversar em outra oportunidade.’ Virei-me para Pavel e pedi-lhe que desse algum dinheiro ao senhor Tesla para ele talvez comprar mais alimento para os pombos. Pavel levantou-se, aproximou-se de Tesla e entregou-lhe uma nota de dez dólares. Foi um momento histórico, Fogg. Nunca haverá outro parecido. Ah! Nunca me esquecerei da confusão que vi nos olhos daquele filho da puta. O Senhor Amanhã, o profeta de um novo mundo! Quando Pavel lhe apresentou a nota de dez dólares, ele lutou para ignorá-la, para desviar o olhar do dinheiro, mas não conseguiu. Permaneceu imóvel, olhando para a nota como um pedinte enlouquecido. Em seguida, pegou o dinheiro, arrebatando-o das mãos de Pavel, e enfiou no bolso. ‘É muita gentileza sua’, ele agradeceu. ‘Muita gentileza. Meus queridinhos precisam mesmo se alimentar.’ Tesla deu as costas para nós e murmurou qualquer coisa aos pombos. Pavel então foi me levando embora dali, e fim. Nunca mais voltei a vê-lo."

Terminando seu longo relato, Effing permaneceu algum tempo calado, a saborear a lembrança de sua crueldade. Em seguida, em tom mais brando, recomeçou:

- Eu vou prosseguir, rapaz. Não se preocupe. Continue anotando, e tudo bem. No fim, tudo estará dito, tudo terá vindo à tona. Eu estava falando a respeito de Long Island, não é mesmo? A respeito de Thomas Moran e sobre como tudo começou. Não esqueci. Continue anotando. Não vai haver obituário algum a menos que você escreva.

"Foi Moran quem me convenceu a fazer o que fiz. Ele havia estado no Oeste na década de 1870 e conheceu tudo por lá. Claro que não viajou sozinho, como Ralph; não vagou pelo deserto como algum peregrino ignorante. Não era o mesmo tipo de busca. Moran tinha classe. Foi o artista oficial da expedição Hayden em 71, e voltou lá com Powell em 73. Lemos há dois meses o livro de Powell, e todas as ilustrações ali são de Moran. Lembra-se da figura de Powell à beira do penhasco, agarrado à vida apenas por um braço? Muito bom, não é mesmo?

"Você tem de admitir, o velho sabia desenhar. Moran ficou famoso pelo trabalho que fez lá. Foi ele quem mostrou aos americanos como era o Oeste. O primeiro quadro do Grand Canyon é de Moran e está hoje no edifício do Capitólio, em Washington. O primeiro quadro de Yellowstone, o do deserto de Great Salt, os primeiros quadros dos desfiladeiros do sul de Utah, tudo isso é de Moran. Fizeram mapas, pinturas, digeriram tudo na grande máquina americana de fazer lucros. Aquelas eram as últimas regiões inexploradas, desertas, do continente. Mas lá estavam elas, transpostas para que todo mundo as visse. A lança de ouro espetada em nosso coração!

"Não pense que eu pintava como Moran. Sendo da nova geração, nada tinha a ver com toda aquela baboseira romântica. Havia estado em Paris em 1906 ou 1907, e sabia das coisas. Os fauvistas, os cubistas. Entrei em contato com tudo isso, e, quando se toma gosto pelo futuro, não há retorno. Eu conhecia o pessoal da Galeria Stieglitz, na Quinta Avenida. Saíamos juntos para beber e conversar sobre arte. Gostavam do meu trabalho, espalhavam que eu era um dos novatos mais importantes. Marin, Dove, Demuth, Man Ray, eu conhecia todos. Eu era muito esperto, muito perspicaz naquela época. Tinha a cabeça cheia de ideias sagazes. Todo mundo hoje fala do Armory Show, mas isso para mim já não era novidade quando aconteceu. Eu era, no entanto, diferente da maioria dos outros pintores. A linha não me interessava. A abstração mecânica, a tela enquanto mundo, a arte intelectual, eu via nisso tudo um beco sem saída. Eu me interessava era pela cor, meu tema preferido era o espaço: puro espaço e luz, a força da luz ao atingir o olho. Eu ainda trabalhava a partir da natureza e por isso gostava de conversar com Moran. Ele era da velha-guarda, mas havia sido influenciado por Turner. Tínhamos isso em comum, bem como a paixão pela paisagem, pelo mundo real. Moran não parava de me falar do Oeste. ‘Se você não for até lá’, ele me dizia, ‘nunca vai compreender que tipo de espaço é aquele. Seu trabalho vai deixar de crescer se você não fizer essa viagem. Você tem de vivenciar aquele céu; isso vai mudar sua vida.’ E assim por diante. Ele sempre me dizia a mesma coisa quando nos encontrávamos, até que, finalmente, pensei comigo mesmo: não custa nada ir conferir."

Depois de uma pausa para tomar fôlego, Effing prosseguiu:

- Era 1916. Eu tinha trinta e três anos e estava casado há cerca de quatro. De tudo o que fiz, esse casamento foi meu maior erro. Chamava-se Elizabeth Wheeler. Vinha de família rica e, portanto, não casou comigo por dinheiro. Mas, diante de nosso relacionamento, poderia muito bem ter sido assim. Não demorei a descobrir a verdade. Ela chorou como uma colegial em nossa noite de núpcias, e, depois disso, os portões se fecharam. É claro que às vezes eu atacava o castelo, mais de raiva do que por qualquer outro motivo. Apenas para fazê-la entender que eu não podia aguentar aquela situação o tempo todo. Até hoje eu me pergunto o que me levou a casar com ela. Talvez ela tivesse um rosto muito bonito, talvez seu corpo fosse cheio e redondo, não sei. Eram todas virgens naquela época, ao se casarem. Pensei que ela poderia acabar gostando, mas não. Eram sempre só lágrimas, luta, gritaria e repulsa. Ela devia me imaginar um animal, um agente do Diabo. Devia ter pegado sífilis, aquela puta frígida! Devia ter ido morar num convento. Eu lhe mostrei a escuridão e a sujeira que move o mundo, e ela nunca me perdoou por isso. Homo erectus, nada a horrorizava mais que isso: o mistério da carne masculina. Assim que ela descobriu o que acontece a essa carne, desmoronou. Não vou continuar falando disso. São águas passadas. Com certeza você já ouviu histórias semelhantes. Passei então a procurar prazer em outros lugares. Nunca houve falta de oportunidade, posso lhe garantir; meu pênis nunca sofreu por negligência. Eu era um cavalheiro jovem, charmoso. Dinheiro não era problema e minha virilha ardia em fogo. Aquelas vaginas pulsantes, o sangue que afluía a minha terceira perna... As outras duas podem ter morrido, mas a irmãzinha delas teve uma vida à parte! Até hoje, Fogg, acredite. O velho aqui nunca se aposentou.

"Está bem, está bem. Chega! Isso não é importante. Estou apenas tentando situar a cena, apresentar um pano de fundo. Caso você precise de uma explicação para o que aconteceu, o casamento com Elizabeth vai ajudá-lo. Não estou dizendo que fosse a única causa, mas certamente era um fator a considerar. Quando tive a oportunidade de sumir, de morrer, aproveitei-a. Não lamentei o que fiz.

"Não planejei nada daquele modo. Em três ou quatro meses, pensei, estaria de volta. As pessoas em Nova York acharam que eu era louco de ir até lá, não viam nenhum motivo para isso. ‘Vá à Europa’, elas me diziam, ‘não há nada para se aprender na América.’ Expliquei-lhes minhas razões, e só o fato de falar nisso deixava-me cada vez mais empolgado. Comecei a me preparar, mal podia aguardar o momento de partir. Já fazia algum tempo que eu decidira levar alguém comigo: Edward Byrne, um jovem companheiro. Os pais o chamavam de Teddy. O pai dele era meu amigo e acabou me convencendo a levar o rapaz. Não fiz objeções. Achei até que seria bom ter companhia, e Byrne possuía presença de espírito. Eu já tinha navegado com ele umas duas vezes, e sua cabeça era boa. Ele era confiável, aprendia tudo rapidamente, um jovem forte e atlético de uns dezoito, dezenove anos. Sonhava tornar-se topógrafo. Queria fazer pesquisas geológicas para o governo e passar a vida ao ar livre. Era essa época, Fogg. Teddy Roosevelt, bigodes fininhos, arqueados, essas coisas de machismo. O pai de Byrne comprou-lhe o equipamento: sextante, bússola, teodolito, a parafernália toda. Quanto a mim, comprei material de pintura para uns dois anos: lápis, carvão, tinta, pincéis, rolos de tela, papel. Esperava trabalhar bastante. Eu já tinha então assimilado a conversa de Moran, e minha expectativa era grande em relação à viagem. Lá eu iria desenvolver meu melhor trabalho, e não queria que me faltasse material.

"Apesar da frigidez, Elizabeth passou a mostrar-se incomodada com a minha partida. À medida que a data se aproximava, ia ficando cada vez mais infeliz: chorava, implorava para que eu ficasse. Ainda não entendo. Seria de esperar que ela quisesse se livrar de mim. Mulher imprevisível! Sempre indo contra as expectativas. Na véspera da minha partida, à noite, prestou-se até a fazer o sacrifício supremo. Acho que antes se embebedou um pouco para juntar coragem e foi em frente, oferecendo-se a mim: braços abertos, olhos fechados, como se fosse uma mártir. Nunca me esquecerei disso. ‘Oh, Julian’, ela dizia, ‘oh, meu querido marido!’ Assim como a maioria dos loucos, ela devia pressentir que tudo ia mudar radicalmente. Fiquei com ela naquela noite; era meu dever, afinal de contas. Mas isso não me impediu de partir no dia seguinte. Foi a última vez que a vi. Assim seja. Estou apenas lhe fornecendo os fatos. Faça deles o que quiser. O que aconteceu naquela noite trouxe consequências, e seria negligência minha não mencioná-los. Passou, porém, muito tempo até eu saber quais foram. Trinta anos, aliás, toda uma vida a partir de então. Consequências. É isso, rapaz. Sempre há consequências, quer a gente queira ou não.

"Byrne e eu fomos de trem. Chicago, Denver, até Salt Lake City. Era uma viagem interminável naquela época. Quando finalmente chegamos lá, em abril de 1916, era como se tivéssemos passado um ano viajando. Em Salt Lake, encontramos um homem para nos servir de guia. Mas, acredite, naquela mesma tarde, ele acabou queimando a perna numa ferraria, e tivemos de contratar outro. Foi um mau presságio; só que na hora nunca se pensa nisso. Vamos em frente e fazemos o que precisamos fazer. O homem que contratamos chamava-se Jack Scoresby, ex-soldado de Cavalaria, de uns quarenta e oito, cinquenta anos. Um velho naquelas paragens, mas as pessoas disseram que ele conhecia bem o território, tão bem quanto qualquer outro que pudéssemos contratar. Tive de me fiar nisso. Mas era uma gente estranha que me poderia responder o que bem entendesse. Eles pouco se importavam. Eu era apenas um jovem rico e inexperiente vindo do Leste; por que então haveriam de se importar comigo? Foi assim, Fogg. Eu não tinha escolha. Era mergulhar de cabeça, às cegas, e torcer para que tudo desse certo.

"Logo de início desconfiei de Scoresby, mas estava muito ansioso para partir e não queria perder tempo. Ele era um tipinho sujo, de riso maldoso, que usava suíças e gordura de búfalo nos cabelos. Mas tinha uma boa conversa, isso sim. Prometeu levar-nos a lugares que poucos homens haviam visitado, mostraria coisas que apenas Deus e os índios tinham visto. Descontando as bobagens que falava, era difícil não se empolgar. Abrimos um mapa numa mesa do hotel e traçamos a rota a ser seguida. Scoresby parecia saber do que estava falando, fazia comentários incidentais e apartes para exibir seu conhecimento: quantos cavalos e burros seriam necessários, como nos comportarmos com os mórmons, como lidar com a escassez de água mais para o sul. Era evidente que ele nos julgava idiotas. A ideia de fazermos uma viagem daquelas apenas para, abobalhados, contemplarmos a paisagem não fazia o menor sentido para ele. Quando lhe contei que era pintor, ele fez de tudo para não rir na minha cara. Mesmo assim, com apertos de mão, fechamos os três um acordo que parecia bem razoável. Esperava que tudo se acertasse quando passássemos a nos conhecer melhor.

"Na noite anterior à partida, Byrne e eu ficamos conversando. Eu estava empolgado; tudo parecia se encaixar num novo arranjo. Byrne me mostrou seu equipamento topográfico e explicou-me que não é possível saber a localização exata de uma pessoa na superfície da Terra sem se estabelecer um ponto de referência no céu. Algo a ver com triangulação, a técnica de medição, não me lembro bem dos detalhes. Achei aquele negócio muito complicado, mas, desde então, não mais me saiu da cabeça a ideia de que o homem não pode se localizar na Terra a não ser que se posicione em relação à Lua ou a outro corpo celeste. A astronomia vem antes; os mapas terrestres se orientam por ela. O contrário do que seria de esperar. Se pensarmos bem nisso, viramos a cabeça do avesso. O aqui existe apenas em relação ao ali; a recíproca, porém, não é verdadeira. Se não olharmos para cima, o que está embaixo não pode ser conhecido. Pense nisso, rapaz. Para nos localizarmos, precisamos olhar para onde não estamos. Não é possível pormos os pés no chão antes de tocarmos o céu.

"Comecei trabalhando bem. Saímos da cidade em direção ao oeste, passamos um dia ou dois acampados à beira do lago e depois seguimos para o deserto Great Salt. Eu nunca vira nada semelhante. O lugar mais plano e desolado do planeta, um cemitério de esquecimento. Viaja-se dia após dia sem se ver nada, absolutamente nada. Nenhuma árvore, nenhum arbusto, nenhuma folha de grama. Nada além de brancura, terra esturricada para todos os lados. Do chão vem um gosto de sal, e, no horizonte, uma enorme cadeia de montanhas se ergue a oscilar sob a luz. Tem-se a impressão de haver água por perto. Mas não, é um mundo morto e, ao avançarmos, encontramos sempre a mesma coisa. Deus sabe quantos pioneiros se aventuraram por ali e acabaram morrendo. Era possível ver seus ossos despontando do chão. Veja o que aconteceu à expedição Donner. Os homens ficaram atolados no sal e, quando conseguiram chegar aos montes Sierra, na Califórnia, a neve lhes bloqueou o caminho. Acabaram por se devorar uns aos outros na tentativa de sobreviver. Todo mundo sabe disso, faz parte do folclore americano, mas não deixa de ser verdade, um fato incontestável. Rodas de carroça, crânios, cartuchos vazios de bala, vi tudo isso por lá. E em 1916. Aquilo era um cemitério gigante, uma página em branco deixada pela morte.

"Desenhei feito louco nas primeiras duas semanas. Estranho! Nunca tinha feito nada parecido. Não suspeitava que a escala pudesse fazer tanta diferença, mas fazia; não havia outro modo de lidar com o tamanho das coisas. Os esboços no bloco foram se tornando cada vez menores, a ponto de quase desaparecerem. Era como se minha mão tivesse vida própria. Apenas desenhe, eu dizia a mim mesmo. Apenas desenhe. Não se preocupe; deixe para pensar depois. Paramos um pouco em Wendover para tomar banho e vestir roupa limpa. Em seguida, cortamos Nevada e fomos para o sul, ao longo da cordilheira Confusion. De novo aconteceram coisas para as quais eu não estava preparado. As montanhas, a neve no alto das montanhas, as nuvens pairando acima da neve. Depois de algum tempo, tudo começou a fundir-se numa brancura só. Era branco e mais branco. Como desenhar uma paisagem assim, toda igual? Entende o que estou dizendo, não é mesmo? Deixei de me sentir humano. O vento soprava com tanta força que não dava para ouvirmos os próprios pensamentos. De repente, parava, e o ar ficava tão imobilizado que nos perguntávamos se não teríamos ensurdecido. Um silêncio de outro mundo, Fogg. Ouvíamos apenas o coração a bater no peito e o sangue a circular no cérebro.

"Scoresby não colaborava conosco. Fazia o seu trabalho, eu acho, guiava-nos, acendia fogueiras, caçava, mas nunca deixava de demonstrar desprezo por nós. Irradiava tamanha má vontade que contaminava o ar. Fechava a cara, cuspia, resmungava baixinho, zombava de nós com sua rabugice. Byrne foi ficando tão receoso que preferia não falar quando ele estava por perto. Scoresby saía para caçar, e, enquanto isso, fazíamos nosso trabalho: o jovem Teddy escalava o terreno por entre as rochas, fazia suas medições, e eu me instalava em algum ponto saliente com tintas e carvões. À noite, porém, nos juntávamos ao redor do fogo para cozinhar. Certa vez, numa tentativa de tornar o ambiente mais leve, ofereci-me para jogar cartas com Scoresby. Pareceu-me que ele gostou da ideia. No entanto, assim como a maioria das pessoas estúpidas, Scoresby superestimava a própria inteligência. Devia ter pensado que ia me derrotar, ganhar muito dinheiro. Derrotar não apenas nas cartas, mas em todos os aspectos, mostrando ali quem era o bom. Jogamos vinte e um. Só que as cartas boas vinham todas para mim, e ele perdeu seis ou sete jogadas seguidas. Com a autoconfiança abalada, ele passou a jogar mal. Lançou apostas absurdas, tentou blefar, fez tudo o que não devia. Nessa noite, eu ganhei uns cinquenta, sessenta dólares, uma fortuna para um sujeito simplório daqueles. Quando vi como ele ficou transtornado, tentei reparar meu erro e perdoei-lhe a dívida. Que me importava o dinheiro? ‘Não se preocupe’, eu lhe disse. ‘Foi apenas sorte minha. Esqueça. Tudo bem.’ Algo do gênero. Foi talvez a pior coisa que eu poderia ter dito. Scoresby pensou que eu estava sendo condescendente, que queria humilhá-lo. Sentiu-se com o orgulho ferido, duplamente ferido. A partir de então, passou a haver animosidade entre nós, e estava além do meu alcance acabar com ela. Eu próprio era teimoso como uma mula, como você deve ter notado. Desisti de tentar apaziguá-lo. Se ele queria se comportar como um burro, que zurrasse à vontade. Lá estávamos nós naquela vastidão, com quilômetros de espaço livre, deserto, a nossa volta, e era como dividir uma cela de prisão com um homem que não para de olhar para o companheiro e espera o momento de enfiar-lhe uma faca nas costas.

"O problema era esse. A terra ali é tão vasta que, a certa altura, passa a nos engolir. Cheguei ao ponto de não suportá-la mais. Todo aquele maldito vazio e silêncio. A gente tenta se adaptar, mas as dimensões ali são grandes demais, tão monstruosas que, como dizer?, chega o momento em que tudo parece deixar de existir. Não há mais mundo, mais terra, mais nada. É o que acontece, Fogg. Acabamos achando que é tudo imaginário, que existimos apenas na nossa cabeça.

"Atravessamos o centro do Estado e depois seguimos para a região dos desfiladeiros, no sudeste, um lugar chamado Four Corners, os Quatro Cantos, onde os Estados de Utah, Arizona, Colorado e Novo México se encontram. É o lugar mais estranho que existe, um mundo de sonho, só terra vermelha e rochedos contorcidos. Estruturas enormes se erguem do chão e lá permanecem como ruínas de alguma cidade perdida, construída por gigantes. Obeliscos, minaretes, palácios: tudo ao mesmo tempo reconhecível e desconhecido. Ao vê-las, não se pode deixar de identificar formas familiares, mesmo sabendo que tudo é acaso: o escarro petrificado de geleiras e erosões, um milhão de anos sob a ação do vento e das condições climáticas. Polegares, órbitas de globo ocular, pênis, cogumelos, seres humanos, chapéus. É como associar figuras às formas das nuvens. Todo mundo hoje sabe como são aqueles lugares; você mesmo já os deve ter visto centenas de vezes. Glen Canyon, Monument Valley, Valley of the Gods. É lá onde rodam esses filmes de cowboys e índios, onde galopa o maldito homem da Marlboro que se vê todas as noites na televisão. Mas os filmes não conseguem mostrar nada do que aquilo é de fato, Fogg. Lá tudo é volumoso demais para ser pintado ou sonhado; nem mesmo a fotografia consegue captar aquela atmosfera. Tudo é tão distorcido, é como tentar reproduzir as distâncias do espaço sideral: quanto mais se vê, menos o lápis é capaz de reproduzir. Ver aquilo é fazer com que desapareça."

Depois de uma nova pausa, Effing prosseguiu:

- Andamos por aqueles desfiladeiros durante várias semanas. Às vezes passávamos a noite em ruínas indígenas, antigas habitações dos anasazis escavadas nos penhascos. Essas tribos desapareceram há mil anos, e ninguém sabe o que aconteceu com elas. Tribos que deixaram para trás suas cidades de pedra, seus ideogramas, seus restos de cerâmica, mas cujos membros simplesmente desapareceram. Já era então final de julho ou começo de agosto, e a hostilidade de Scoresby havia aumentado. Sentia-se que mais cedo ou mais tarde algo haveria de estourar. A região era desolada e seca, arbustos desérticos por todo lado, não se via nenhuma árvore. As temperaturas eram insuportavelmente elevadas, e tínhamos de racionar água, o que nos deixava muito irritados. Certo dia, precisamos sacrificar um burro, sobrecarregando os outros dois. Os cavalos começavam a definhar. Estávamos a uns cinco ou seis dias da cidade de Bluff, e eu achava que deveríamos chegar lá o mais rápido possível, para nos recompor.

"Scoresby então falou de um atalho que nos pouparia um dia ou dois de viagem. Assim, seguimos por essa trilha, com o sol a castigar-nos o rosto. Era um caminho agreste, mais difícil do que qualquer outro que já tínhamos percorrido. Depois de algum tempo, porém, desconfiei de que Scoresby estivesse nos conduzindo a alguma armadilha. Byrne e eu não andávamos tão bem a cavalo quanto ele e tínhamos dificuldades em lidar com o terreno. Scoresby ia à frente, Byrne no meio e eu atrás. Subimos penosamente, passo a passo, várias encostas íngremes até que passamos a cavalgar no alto de um penhasco, bem na beirada. O caminho era muito estreito, cheio de pedras e pedregulhos. Uma luz ofuscante refletia-se em nossos olhos. Àquela altura já não dava para voltar, mas tampouco me parecia possível prosseguir muito mais. De repente, o cavalo de Byrne tropeçou. Estava a mais ou menos três metros na minha frente, e lembro-me de ter ouvido um frenético rolar de pedras e o relincho do animal que lutava para se manter em pé. O terreno, porém, continuou cedendo, e, antes que eu tivesse tempo de reagir, Byrne soltou um grito e foi rolando pelas encosta com cavalo e tudo. Rolaram por mais de sessenta metros, num lugar onde, de cima abaixo, nada havia além de rochas pontiagudas. Saltei do cavalo, peguei a maleta de primeiros socorros e desci para ver o que podia ser feito. De início pensei que Byrne estivesse morto, mas consegui sentir-lhe o pulso. Fora isso, pouco havia para dar-me esperança. Seu rosto estava coberto de sangue, perna e braço esquerdos visivelmente fraturados. Virei-o de costas para o chão e vi um grande corte logo abaixo das costelas, uma ferida feia, pulsante, de pelo menos uns quinze centímetros.

"Era horrível vê-lo todo dilacerado. Estava para abrir a maleta de socorros quando ouvi um tiro atrás de mim. Voltei-me e vi Scoresby olhando para o cavalo de Byrne com um revólver fumegante na mão direita. ‘Perna quebrada’, disse ele secamente. ‘Nada mais a fazer.’ Byrne estava em péssimo estado, eu lhe disse, e precisava de ajuda imediata. Quando, porém, Scoresby se aproximou de mim e de Byrne, lançou um olhar de desprezo e disse que não devíamos perder tempo com aquele lá, que o único remédio seria o mesmo que ele tinha dado ao cavalo. Scoresby ergueu o revólver, apontou-o para a cabeça de Byrne, e eu então empurrei o braço dele para o lado. Não sabia se ele tinha mesmo a intenção de puxar o gatilho, mas não quis arriscar. Scoresby olhou-me com muita maldade quando eu lhe empurrei o braço e alertou-me para que não pusesse as mãos nele. ‘Farei isso quando você parar de apontar armas para pessoas indefesas’, respondi. Scoresby então apontou o revólver para mim e revidou: ‘Aponto para quem eu quiser’. De repente, ele abriu um enorme sorriso de idiota, saboreando o poder que exercia sobre mim. ‘Indefeso’, ele repetiu. ‘Isso é o que você é, senhor Pintor. Esse monte de ossos!’ Pensei que ele fosse atirar em mim. Enquanto esperava que Scoresby puxasse o gatilho, perguntei-me em quanto tempo eu morreria depois que a bala entrasse em meu coração. Pensei: este é meu último pensamento. Aquilo pareceu durar uma eternidade. Eu esperava que ele fosse em frente; nós dois nos olhávamos fixamente nos olhos. Scoresby, porém, começou a rir. Estava profundamente satisfeito consigo mesmo, como se tivesse alcançado uma tremenda vitória. Em seguida, enfiou o revólver no coldre e cuspiu no chão. Era como se já me tivesse matado, como se eu já estivesse morto."

Effing contou como Scoresby foi novamente até o cavalo e começou a tirar-lhe a sela e os alforjes. E continuou:

- Eu ainda estava abalado com o negócio do revólver, mas agachei-me ao lado de Byrne e fiz o que pude para limpar e tratar seus ferimentos. Dois minutos depois, Scoresby se aproximava, anunciando que estava pronto para partir. "Mas como?", perguntei. "Do que você está falando? Não podemos levar o rapaz conosco, ele não está em condições de ser removido." "Então deixe-o", respondeu Scoresby. "Ele já está praticamente morto, e imagine se vou ficar sentado nesta porra de desfiladeiro, esperando sabe Deus quanto tempo até que ele pare de respirar. Não vale a pena." Respondi-lhe para fazer o que quisesse. "Não vou deixar Byrne enquanto ele estiver vivo." E Scoresby grunhiu: "Você fala como um herói de alguma droga de livro. Talvez leve uma semana para ele finalmente bater as botas. E para quê?" Respondi: "Ele é responsabilidade minha. É isso. Não vou deixá-lo".

"Antes de Scoresby partir, arranquei uma folha de meu bloco de esboços e escrevi uma carta para minha mulher. Não me lembro do que dizia. Algo melodramático, com certeza. ‘Esta deve ser a última vez que você tem notícias minhas’; acho que escrevi isso mesmo. A ideia era que Scoresby pusesse a carta no Correio quando chegasse à cidade. Em todo caso, foi o que combinamos. Eu sabia, porém, que ele não faria o combinado. Isso o envolveria no meu desaparecimento, e por que ele haveria de correr o risco de ser interrogado mais tarde? O melhor para ele seria simplesmente ir embora e esquecer tudo. Foi exatamente o que aconteceu. Ao menos é o que presumo. Muito depois, quando li artigos de jornal e obituários, não encontrei uma referência sequer a Scoresby, embora eu tivesse feito questão de mencionar seu nome na carta.

"Ele falou em organizar um grupo de busca, caso eu não aparecesse em uma semana, mas eu sabia que ele também não faria isso. Disse isso na cara dele, mas, em vez de negar, Scoresby abriu um daqueles sorrisos insolentes. ‘Última chance, senhor Pintor’, ele disse. ‘Vem comigo ou não?’ Eu apenas sacudi a cabeça, zangado demais para acrescentar alguma coisa. Scoresby levou a ponta dos dedos à aba do chapéu, despedindo-se, e começou a subir a encosta para pegar seu cavalo e seguir seu caminho. Assim mesmo, sem dizer mais nada. Levou alguns minutos para chegar lá em cima, e durante esse tempo não tirei os olhos dele. Não queria me arriscar. Achava que ele tentaria me matar antes de partir. Isso me parecia inevitável. Eliminar a prova, certificar-se de que eu não contaria a ninguém o que ele tinha feito: deixado um rapaz morrer daquele jeito num lugar deserto. Scoresby, porém, não se voltou para trás. Mas não foi por bondade, posso lhe garantir. Deve ter achado desnecessário. É a explicação que encontro. Ele não precisava me matar porque achava que eu não conseguiria sobreviver.

"Scoresby partiu. Em uma hora eu já começava a sentir que ele nunca tinha existido. Difícil dizer como era estranha essa sensação. Era como se eu tivesse decidido não pensar nele. Mal conseguia lembrar-me daquele sujeito. Sua fisionomia, sua voz, nada disso me vinha à mente. É o que o silêncio faz conosco, Fogg. Bloqueia tudo. Scoresby tinha sido apagado da minha lembrança, e, depois disso, sempre que eu tentava pensar nele, era como tentar lembrar-me de alguém visto em sonho, como procurar por uma pessoa com quem eu nunca havia estado.

"Byrne morreu três ou quatro dias depois. Acho que foi até bom para mim que tivesse demorado tanto. Eu me mantive ocupado e, assim, não tive tempo para sentir medo. O medo só veio a aparecer mais tarde, depois que o enterrei e fiquei só. No primeiro dia, devo ter subido a encosta umas dez vezes para buscar comida e equipamentos que estavam no burro. Desmontei meu cavalete e usei a madeira para fazer talas para o braço e a perna de Byrne. Com um cobertor e um tripé, fiz uma proteção para o sol não lhe bater no rosto. Cuidei do cavalo e do burro. Fiz novos curativos, usando tiras de pano. Acendi o fogo. Cozinhei. Fiz o que precisava ser feito. Era movido pelo sentimento de culpa. Impossível não me responsabilizar pelo que tinha acontecido. Mas esse sentimento até que me reconfortava. Era um sentimento humano, um indício de que eu ainda estava ligado ao mundo dos homens. Quando Byrne morresse, não haveria mais nada em que pensar. E eu tinha medo desse vazio, morria de medo.

"Eu sabia desde o primeiro momento que não havia esperança, mas continuei me iludindo com a ideia de que Byrne pudesse sobreviver. Ele não chegou a recobrar a consciência, mas de vez em quando começava a balbuciar, como quem fala durante o sono. Era um delírio de palavras incompreensíveis, sons que nem propriamente formavam palavras. Sempre, porém, que isso acontecia, eu pensava que ele talvez estivesse voltando a si. Byrne parecia separado de mim por um fino véu, por uma membrana invisível que o mantinha do outro lado deste mundo. Eu tentava estimulá-lo com o som da minha voz, falava sempre com ele, cantava, rezava para que ele me ouvisse e finalmente acordasse. Nada disso adiantou. Ele continuava piorando. Eu não conseguia fazê-lo ingerir nenhum alimento. No máximo, passava em seus lábios um pano molhado, mas isso não era suficiente, não o alimentava. Pouco a pouco, vi suas forças se esvaírem. O ferimento da barriga tinha parado de sangrar, mas não cicatrizava direito. Estava amarelo-esverdeado e soltava pus. Formigas viviam passando por cima do curativo. Não havia como sobreviver àquilo.

"Eu o enterrei ao pé da encosta. Poupo-lhe os detalhes. Abrir a cova, arrastar o corpo, empurrá-lo para dentro e senti-lo cair. Acho que nessa altura eu já estava ficando louco. Quase não consegui encher a cova. Cobri-lo, jogar terra em seu rosto; era demais para mim. Fiz isso de olhos fechados. Foi como resolvi o problema: joguei terra sem olhar. Não fiz cruz nenhuma nem rezei. Que se foda Deus, disse a mim mesmo, que se foda, não vou lhe dar essa satisfação. Enfiei um pedaço de pau no chão e nele preguei um papel. Edward Byrne, escrevi, 1898-1916. Enterrado por seu amigo Julian Barber. Em seguida, comecei a gritar. Foi assim, Fogg. Você é a primeira pessoa a quem conto isso. Comecei a gritar e, depois, deixei-me enlouquecer."


5

FOI ATÉ ONDE CHEGAMOS naquele dia. Assim que Effing proferiu a última frase, a sra. Hume entrou anunciando a hora do almoço. Depois das coisas terríveis que ele havia contado, pensei que lhe seria difícil recompor-se. A interrupção, no entanto, não parecia tê-lo afetado.

- Ótimo - disse ele, batendo palmas. - Hora do almoço. Estou faminto.

Espantou-me ver sua capacidade de mudar tão rapidamente de estado de espírito. Momentos antes, sua voz estivera embargada de emoção. Eu pensava que ele fosse desmoronar, mas, de repente, lá estava Effing cheio de entusiasmo e vivacidade.

- Estamos progredindo, rapaz - ele comentou, enquanto eu o conduzia à sala de jantar. - Esse é apenas o começo; o prólogo, digamos assim. Espere só para ver as coisas esquentarem. Você ainda não ouviu nada.

Logo que nos sentamos à mesa, não houve mais menção alguma ao obituário. O almoço transcorreu normalmente, com as sucções ruidosas e os desaforos de costume - nem mais nem menos do que em qualquer outro dia. Era como se Effing já tivesse esquecido que passara as três horas anteriores na outra sala, expondo as entranhas para mim. Mantivemos a costumeira conversa trivial e, lá para o fim da refeição, comentamos as condições do tempo, preparando-nos para o passeio da tarde. Assim foi durante as três ou quatro semanas seguintes. De manhã, trabalhávamos no obituário; à tarde, passeávamos. Enchi mais de doze cadernos com as histórias de Effing, a um ritmo de vinte, trinta páginas por dia. Eu tinha de escrever muito depressa para acompanhá-lo, e minha transcrição às vezes se tornava quase ilegível. A certa altura, perguntei-lhe se poderíamos mudar para um gravador, mas Effing não quis. Nada de eletricidade, disse ele, nada de aparelhos.

- Odeio o barulho dessas coisas infernais - ele acrescentou. - Todo aquele zumbido e chiado acabam dando enjoo. O único som que quero ouvir é o da sua caneta deslizando no papel.

Expliquei-lhe que não era secretário profissional.

- Não sei taquigrafia nem é sempre fácil ler o que escrevi.

- Então, datilografe quando eu não estiver por perto - ele respondeu. - Dou-lhe a máquina de Pavel. É um objeto lindo, antigo. Eu o comprei quando chegamos ao país, em 39. Uma Underwood. Já não fazem outras iguais a essa. Deve pesar umas três toneladas e meia.

Naquela mesma noite, desenterrei a máquina de escrever do fundo do armário de meu quarto e instalei-a numa mesinha. Daí por diante, dei de passar várias horas, todas as noites, transcrevendo o que anotara de manhã. Era um trabalho tedioso, mas, como as palavras de Effing ainda estivessem na minha cabeça, eu não perdia muitas.

Depois da morte de Byrne, contou-me Effing, ele desistiu de ter esperanças. Fez uma precária tentativa de sair do desfiladeiro, mas logo se perdeu num labirinto de obstáculos: penhascos, gargantas, montes inescaláveis. Seu cavalo sucumbiu no segundo dia e, na falta de lenha, a carne do animal lhe seria quase inútil. O arbusto do deserto não produzia fogo, apenas soltava fumaça e estralava. Assim, para matar a fome, Effing tirou algumas fatias de carne da carcaça e, usando fósforos, assou-as um pouco. Deu para uma refeição, mas, como os fósforos tivessem acabado, ele deixou o animal para trás. Não queria comer carne crua. Nessa altura, Effing já estava convencido de que chegara ao fim. Continuou vagando em meio aos rochedos, levando consigo o último burro. Cada passo, no entanto, servia para atormentá-lo com a ideia de estar se afastando cada vez mais da possibilidade de ser salvo. O material de pintura permanecia intacto; água e comida seriam suficientes só para dois dias mais. Isso, porém, deixara de ter importância. Effing percebeu que tudo acabara para ele, ainda que sobrevivesse. A morte de Byrne se encarregara disso. Ele não poderia voltar para casa. Não suportaria a vergonha, as perguntas, as recriminações, o descrédito. Melhor que o julgassem morto também. Assim, ao menos sua honra seria preservada, e ninguém ficaria sabendo quão fraco e irresponsável ele fora. Foi nesse momento que Julian Barber deixou de existir. Ali no deserto, em meio aos rochedos e à luz ofuscante, ele simplesmente riscou-se do mapa. Na hora, não lhe pareceu uma decisão tão drástica. Ele com certeza iria morrer, e, ainda que não, daria na mesma. Ninguém haveria de saber coisa alguma a respeito do que lhe acontecera.

Effing contou-me que enlouquecera, mas eu não sabia se devia tomá-lo literalmente. Depois da morte de Byrne, disse ele, chorou aos uivos quase sem parar durante três dias, lambuzando o rosto com o sangue que lhe pingava das mãos laceradas pelas rochas. Diante das circunstâncias, todavia, tal comportamento não me causava estranheza. Eu também abrira o berreiro durante a tempestade no Central Park, e minha situação era bem menos desesperadora que a dele. Quando alguém sente que chegou ao fim da linha, é natural que queira chorar. O ar se acumula nos pulmões, e não é possível respirar a menos que seja empurrado para fora com toda força. De outro modo, a respiração fica paralisada, e até o céu parece nos sufocar.

Na manhã do quarto dia, já sem comida e com menos de uma caneca de água no cantil, Effing avistou algo que parecia uma caverna no alto de um penhasco próximo. Seria um bom lugar para morrer, ele pensou. Abrigado do sol e fora do alcance dos abutres, um lugar tão escondido que ninguém nunca o haveria de encontrar. Juntando coragem, ele começou a árdua subida. Levou quase duas horas para chegar lá em cima e, ao chegar, estava no fim das forças, mal conseguindo ficar em pé. A caverna era bem maior do que parecia de lá de baixo, e foi uma surpresa para Effing não ter de se agachar para entrar. Ele afastou os galhos e gravetos que bloqueavam a entrada e foi em frente. Ao contrário do que esperava, a caverna não estava vazia. Seguia uns seis metros no interior do rochedo e continha várias peças de mobília: uma mesa, quatro cadeiras, um armário e um fogão a lenha caindo aos pedaços. Para todos os efeitos, era uma casa. Os objetos pareciam bem cuidados, e tudo ali estava em ordem, uma ordem doméstica, rústica e confortável. Effing acendeu a vela que se encontrava sobre a mesa e levou-a ao fundo, explorando os cantos escuros onde a luz não chegava. Ao longo da parede esquerda havia uma cama; e nesta, um homem deitado. Effing pensou que ele dormia, mas, depois de limpar a garganta, anunciar sua presença e não ouvir resposta, debruçou-se, segurando a vela acima do rosto do estranho. Foi quando viu que o homem estava morto. Fora assassinado. No lugar do olho direito, existia um enorme buraco de bala. O olho esquerdo fixava-se perdido na escuridão, e, no travesseiro sob a cabeça do morto, havia sangue espalhado.

Afastando-se do cadáver, Effing foi até o armário e encontrou-o cheio de comida. Enlatados, carnes salgadas, farinha e mantimentos de cozinha - o suficiente para uma pessoa passar um ano. Effing logo tratou de preparar algo para comer. Consumiu meio pão e duas latas de feijão. Saciada a fome, cuidou de desvencilhar-se do morto. Já tinha elaborado um plano; era só executá-lo. O morto podia ser algum eremita que vivia ali em cima do penhasco, concluiu Effing, e, nesse caso, pouca gente saberia dele. Tudo indicava - a carne ainda não decomposta, a ausência de forte mau cheiro, o pão ainda fresco - que o assassinato fora cometido pouco antes, talvez algumas horas, e isso significava que o único a saber da morte do ermitão era o próprio assassino. Nada o impedia de tomar o lugar do ermitão, pensou Effing. Eram ambos mais ou menos da mesma idade, mais ou menos do mesmo tamanho, ambos tinham cabelos castanho-claros. Não seria nada difícil deixar a barba crescer e passar a vestir as roupas do morto. Ele assumiria a vida do outro e seguiria com ela, agindo como se a alma do ermitão agora lhe pertencesse. Se surgisse alguma visita, Effing simplesmente fingiria ser outra pessoa. Talvez desse certo. Tinha um rifle para se defender caso algo falhasse, mas achou que a situação lhe favorecia, já que não era de esperar que um ermitão recebesse muitas visitas.

Depois de despir o morto, Effing arrastou-o para fora da caverna e levou-o para o outro lado do penhasco. Lá, teve a maior surpresa: um pequeno oásis a pouco mais de dez metros abaixo do nível da caverna, uma área de vegetação viçosa, com dois altos choupos-do-canadá, um riacho e vários arbustos cujos nomes ignorava. Era um minúsculo reduto de vida em meio à devastadora aridez. Ao enterrar o ermitão em terra fofa, perto do riacho, Effing se deu conta de que tudo lhe seria possível naquele lugar. Ele tinha comida, água, casa. Encontrara uma nova identidade; uma outra vida, completamente inesperada. A reviravolta era-lhe quase incompreensível. Uma hora antes, estava preparado para morrer. Agora, tremia de felicidade, incapaz de parar de rir enquanto atirava na cara do morto sucessivas pazadas de terra.

Passaram-se meses. No início, Effing se encontrava abalado demais com sua boa sorte para prestar muita atenção às coisas a sua volta. Comia e dormia. Ao sol ameno, sentava-se nas rochas do lado de fora da caverna e ficava observando os lagartos multicoloridos e brilhantes que passavam correndo aos seus pés. A vista do alto do penhasco era imensa, estendia-se por incontáveis quilômetros, mas ele não a contemplava com muita frequência. Em vez disso, confinava seus pensamentos a coisas mais próximas: o riacho aonde ia de balde em punho; a lenha que recolhia; o interior da caverna. Já vira tantas paisagens que agora se comprazia em ignorá-las. De repente, porém, abandonou-o a sensação de calma, e ele entrou num período de solidão quase intolerável. O horror dos últimos meses passou a dominá-lo e, durante umas duas semanas, Effing chegou perigosamente perto de se matar. Com a mente povoada de medos e alucinações, mais de uma vez chegou a pensar que estava morto, que tinha morrido ao entrar na caverna, que se encontrava num demoníaco pós-vida. Certo dia, num acesso de loucura, pegou o rifle do eremita e atirou no burro, pensando que o animal se transformara no morto, num espectro de ódio que viera para assombrá-lo com seus zurros insidiosos. O burro sabia tudo a seu respeito, e assim Effing não tinha outra alternativa senão eliminar a testemunha de sua grande fraude. Depois disso, ficou obcecado com a ideia de descobrir a identidade do morto e começou a vasculhar o interior da caverna à procura de pistas, de algum diário, cartas, alguma primeira página de livro que trouxesse o nome do eremita. A busca deu em nada; ele nunca encontrou a menor informação.

Depois de duas semanas, começou a voltar lentamente a si, até chegar a algo parecido com paz de espírito. Aquilo não podia durar para sempre, disse a si mesmo, e só essa ideia já era um conforto, que lhe dava coragem para prosseguir. Em algum momento a provisão de comida chegaria ao fim, e ele teria de sair dali. Calculou que haveria o suficiente para cerca de um ano, um pouco mais se tomasse cuidado. Nessa altura, todo mundo teria deixado de ter esperança de que ele e Byrne voltassem. Effing duvidava que Scoresby fosse algum dia colocar sua carta no Correio, mas, mesmo que o tivesse feito, os resultados seriam basicamente os mesmos. Enviariam um grupo de busca, financiado por Elizabeth e pelo pai de Byrne, e, durante semanas, esse grupo haveria de percorrer o deserto, tentando diligentemente encontrar os desaparecidos. Por certo ofereceriam recompensa. Os esforços, no entanto, dariam em nada. No máximo, talvez descobrissem a sepultura de Byrne, coisa pouco provável. Mesmo que deparassem com ela, isso não os levaria para mais perto de seu companheiro. Julian Barber deixara de existir; ninguém o encontraria. Tudo era uma questão de esperar que parassem com a busca. Os obituários seriam publicados nos jornais de Nova York, haveriam de realizar uma cerimônia religiosa, e esse seria o fim. Quando isso tivesse acontecido, ele poderia ir aonde quisesse; poderia tornar-se quem bem entendesse.

Mas mesmo então seria vantajoso não se arriscar. Quanto mais tempo permanecesse escondido, mais segura a partida. Assim, pôs-se a organizar a vida do modo mais rigoroso possível, fazendo de tudo para prolongar sua permanência ali. Seria preciso limitar-se a uma refeição por dia, juntar bastante lenha para o inverno, conservar-se em boa condição física. Fez tabelas e cronogramas. Todas as noites, antes de ir para a cama, anotava meticulosamente tudo o que consumira durante o dia, obrigando-se a uma severa disciplina. No começo, encontrou dificuldade em alcançar a meta estabelecida. Sempre cedia ao desejo de comer mais um pedaço de pão ou mais um prato de carne enlatada. Mas o esforço em si já parecia valer a pena, ajudava-o a manter-se alerta. Era uma maneira de colocar-se à prova diante de suas fraquezas, e, à medida que o ideal se aproximava da realidade, ele ia encarando o fato como uma vitória pessoal. Sabia que isso não passava de um jogo, mas para jogá-lo era preciso uma devoção fanática. Era justamente esse excesso de concentração o que o impedia de entregar-se ao desânimo.

Depois de mais duas, três semanas dessa vida nova, disciplinada, ele começou a sentir uma grande necessidade de voltar a pintar. Certa noite, sentado com o lápis na mão, a escrever o breve relatório das atividades do dia, começou de repente a esboçar na página ao lado um pequeno desenho de montanha. Antes mesmo de perceber o que fazia, o desenho estava acabado. Não levou mais de um minuto para concluí-lo, mas, nesse gesto abrupto, inconsciente, ele encontrou a força que faltava em seus trabalhos anteriores. Naquela mesma noite, ele desembrulhou o material de pintura e, até que as tintas chegassem ao fim, não parou de pintar. Saía da caverna ao amanhecer e passava o dia todo fora. Isso durou dois meses e meio e, nesse meio-tempo, conseguiu terminar quase quarenta telas. Sem dúvida alguma, disse-me ele, esse foi o período mais feliz de sua vida.

Ele trabalhava sob restrição dupla, mas cada uma delas o ajudava de um modo diferente. Primeiro, havia o fato de que ninguém nunca veria seus quadros. Tal conclusão havia sido tirada desde o início, mas, em vez de atormentar Effing com a sensação de futilidade, parecia liberá-lo. Ele estava trabalhando para si próprio, não mais pressionado pela ameaça da opinião dos outros. Só isso bastava para provocar uma mudança fundamental em sua abordagem da arte. Pela primeira vez na vida, deixava de se preocupar com resultados, e termos como "sucesso" e "fracasso" deixavam de fazer sentido para ele. O verdadeiro objetivo da arte não era criar objetos bonitos, ele descobriu. Era um método de compreensão, um modo de penetrar no mundo e de nele encontrarmos nosso lugar. As qualidades estéticas de uma tela isolada, quaisquer que elas fossem, eram portanto quase um subproduto fortuito do esforço de engajamento pessoal nessa luta, do esforço de entrar no essencial das coisas.

Effing desaprendeu as regras que assimilara, confiando na paisagem, tratando-a como companheira, de igual para igual, abandonando voluntariamente suas intenções à força das singularidades, às investidas do acaso e da espontaneidade. Não mais temia o vazio ao redor. A tentativa de transpô-lo para a tela de algum modo o internalizara. Agora era capaz de sentir a indiferença desse vazio como algo que lhe pertencia, assim como ele pertencia ao poderoso silêncio daqueles espaços vastíssimos. Realizou pinturas em bruto, ele disse, cheias de cores violentas e ondas de estranha e espontânea energia - um remoinho de formas e de luz. Não sabia se eram feias ou bonitas, mas isso nem vinha ao caso. Eram suas e não se pareciam com nenhuma outra que tivesse visto antes. Cinquenta anos depois, ele comentou, ainda conseguia lembrar-se de cada uma delas.

A segunda restrição era mais sutil. Apesar disso, exercia sobre ele uma influência ainda mais forte: o material de pintura chegaria ao fim. Havia um certo número de tubos e de telas que, em determinado momento, teriam sido usados. Desde o início, portanto, o fim já estava previsto. Até lhe parecia, enquanto pintava, que a paisagem ia sumindo diante dos seus olhos. Isso conferiu uma singular pungência a tudo o que ele fez durante aqueles meses. A cada vez que concluía uma tela, encolhiam as dimensões do seu futuro, o que o fazia se aproximar do momento em que não haveria futuro algum. Depois de um mês e meio de trabalho constante, ele afinal chegou à última tela. No entanto, ainda lhe restava mais de dez tubos de tinta. Quase sem perder o ritmo, ele virou os quadros de costas e começou a pintar uma nova série no verso das telas. Foi extraordinário poder contar com essa prorrogação, disse ele. Durante as três semanas seguintes, sentiu-se como que renascido. Trabalhou nesse segundo ciclo de paisagens com ainda mais intensidade que no primeiro, e, quando finalmente ficaram preenchidas as costas de todas as telas, começou a pintar a mobília da caverna, lançando pinceladas frenéticas no armário de louça, na mesa, nas cadeiras de madeira. Depois que essas superfícies todas ficaram também pintadas, ele espremeu o último restinho de tinta dos tubos amassados e passou a trabalhar na parede do lado sul, traçando o esboço de um mural. Teria sido sua obra-prima, disse Effing, se as tintas não tivessem acabado.

Depois veio o inverno. Ele ainda tinha vários cadernos e caixas de lápis, mas, em vez de trocar a pintura pelo desenho, sentou-se e passou o tempo escrevendo. Num dos cadernos, Effing registrou seus pensamentos e observações, tentando realizar em palavras o que estivera fazendo em imagens. Noutro, continuou a anotar sua rotina diária, fazendo um relatório preciso de seu consumo: quanto de comida se fora, quanto restava; quantas velas queimadas, quantas intactas. Em janeiro, nevou durante uma semana inteira, e ele se comprazia em ver o contraste daquela brancura com o vermelho das rochas e a transformação da paisagem que já lhe era tão familiar. À tarde o sol saía e derretia a neve de modo irregular, criando um belo efeito mosqueado. Quando soprava o vento, erguiam-se no ar partículas brancas que rodopiavam em danças breves e agitadas. Effing passava horas a fio a admirar tudo isso; parecia nunca se cansar. Sua vida tomara um ritmo tão lento que as mínimas transformações eram-lhe muito nítidas. Depois que as tintas se acabaram, ele passara por um angustiado período de inadaptação, mas acabou descobrindo que escrever era um bom substituto para a pintura. Em meados de fevereiro, no entanto, já não lhe restava nenhum caderno, nenhuma página onde escrever. Mas, ao contrário do que esperava, não se deixou abater. Já mergulhara tão fundo na solidão que não mais precisava de distrações. Pouco a pouco, o mundo passara a lhe bastar, o que para ele era quase inacreditável.

No final de março, recebeu enfim a primeira visita. Effing estava do lado de fora, sentado na rocha que cobria sua caverna, quando viu uma diminuta figura ao pé da encosta. Assim, pôde acompanhar, durante quase uma hora, a árdua subida do estranho. Quando o homem chegou no topo, Effing o esperava de rifle em punho. Já imaginara essa cena centenas de vezes, mas, ao vê-la acontecer de fato, o medo que sentia deixou-o chocado. Não demoraria mais de trinta segundos para que a situação se esclarecesse: se o homem conhecia ou não o eremita, e, se conhecia, se o disfarce funcionava. Se aquele homem fosse o assassino do eremita, então a questão do disfarce seria irrelevante. Do mesmo modo, se ele fosse membro do grupo de busca, uma última alma penada a sonhar com a recompensa. Em poucos minutos, haveria resposta para tudo isso, mas até lá Effing só podia esperar pelo pior. Deu-se conta de que, além de outros pecados cometidos, havia uma boa possibilidade de tornar-se também assassino.

A primeira coisa que notou no homem foi que era corpulento, e, em seguida, que se vestia de modo estranho. Suas roupas pareciam feitas de uma variedade aleatória de retalhos - aqui um quadrado vermelho-vivo, ali um retângulo em xadrez azul e branco; um pedaço de lã num lugar, noutro um de brim. A roupa lhe dava um aspecto de palhaço, como se ele tivesse acabado de sair de um circo itinerante. Em vez do chapéu de aba larga, típico do Oeste, usava um chapéu-coco surrado, com uma pena branca espetada na tarja. Os cabelos pretos e lisos caíam-lhe até os ombros. A certa altura, Effing viu que havia uma deformidade no lado esquerdo do seu rosto, repuxado por uma larga cicatriz que ia do malar ao lábio inferior. Effing concluiu que o homem era um índio, mas já então pouco importava quem ele era. Tratava-se de uma aparição, de um bufão de pesadelo que se materializara ali em meio às rochas. O homem resfolegava de cansaço ao alçar-se para a plataforma do alto da encosta, depois ergueu-se e sorriu para Effing. Estava a uns três metros de distância. Effing então ergueu o rifle e apontou-o, mas o homem pareceu-lhe mais intrigado do que temeroso.

- Oi, Tom - ele saudou baixinho, com voz de bocó. - Não se lembra de mim? Seu velho amigo George. Não é preciso agir assim comigo.

Effing hesitou um pouco e, em seguida, abaixou o rifle, mas por precaução conservou o dedo no gatilho.

- George - murmurou Effing, num tom quase inaudível para que a voz não o traísse.

- Estive trancado durante todo o inverno - disse o homem. - Por isso não apareci.

Ele continuou a se aproximar de Effing e só parou ao chegar à distância suficiente para um aperto de mãos. Effing passou o rifle para a mão esquerda e cumprimentou-o com a direita. O índio olhou-o inquiridoramente nos olhos, mas o perigo logo passou.

- Você me parece muito bem, Tom - disse ele. - Bem mesmo.

- Obrigado - respondeu Effing. - Você também.

O homem desatou a rir, tomado por um prazer imbecil, e Effing então percebeu que haveria de sair-se bem. Era como se ele tivesse acabado de contar a piada mais engraçada do século, e, se tão pouco podia produzir tamanho resultado, não deveria ser difícil sustentar a farsa. Era de fato surpreendente como tudo transcorria bem. Apesar da vaga semelhança entre Effing e o eremita, o poder de sugestão parecia ser forte o bastante para alterar a percepção da aparência física. O índio viera à caverna para encontrar Tom, o eremita, e, como lhe fosse inconcebível que alguém que não Tom respondesse ao nome, modificara rapidamente os fatos para ajustá-los a suas expectativas. Quaisquer discrepâncias entre os dois Tom ele devia atribuir a sua memória falha. É claro que o homem era um simplório. Ou então sabia, desde o início, que Effing não era o verdadeiro Tom. Ele subira até a caverna para ter algumas horas de companhia, e, desde que encontrasse o que estava buscando, não importava quem lá estivesse. Enfim, talvez lhe fosse completamente indiferente encontrar o verdadeiro Tom ou não.

Passaram a tarde juntos, sentados dentro da caverna, fumando cigarros, George trouxera uma bolsinha de tabaco, seu presente habitual para o eremita. Effing fumou um atrás do outro, num transe de prazer. Achava esquisito estar com um estranho depois de tantos meses de isolamento, tanto que, no início, lhe foi difícil articular as palavras. Perdera o hábito de falar, e sua língua já não obedecia tão bem. Parecia-lhe desajeitada, uma serpente que dava o bote e se contorcia. Felizmente, o Tom verdadeiro não era de falar muito, e o índio não devia mesmo esperar de Effing mais que uma discreta reação. George estava visivelmente se divertindo: a cada três ou quatro frases, jogava a cabeça para trás e soltava o riso. Sempre que ria, perdia o fio do pensamento e mudava de assunto. Assim ficava difícil para Effing acompanhá-lo. Uma história sobre a reserva Navajo transformava-se de repente numa de briga de bêbados num saloon, que, por sua vez, ia dar num empolgado relato de assalto a trem.

Segundo o que Effing pôde entender, seu companheiro chamava-se George Ugly Mouth, isto é, George Boca Feia. Ao menos era conhecido assim. Ele parecia não se incomodar com isso. Ao contrário, dava a impressão de estar satisfeito com o fato de o mundo lhe ter dado um nome que era dele e de mais ninguém, como uma marca de distinção. Effing nunca conhecera ninguém que combinasse em si tanta doçura e imbecilidade. Fez o possível para ouvi-lo atentamente, para acenar com a cabeça nos momentos certos. Uma ou duas vezes, sentiu-se tentado a perguntar a George se ele ouvira falar algo a respeito de um grupo de busca, mas conseguiu conter-se.

No transcorrer da tarde, Effing foi juntando algumas informações a respeito do verdadeiro Tom. A narrativa tortuosa, truncada, de George Ugly Mouth ia se entrelaçando, compondo uma estrutura maior, uma história mais homogênea. Alguns incidentes se repetiam, passagens importantes eram deixadas de lado, fatos do começo só eram revelados no final, mas foi o suficiente para Effing concluir que o eremita estivera envolvido em atividades criminosas com um grupo de bandidos conhecido como os Irmãos Gresham. Não era possível saber se o eremita fora um participante ativo ou simplesmente permitira que o bando usasse a caverna como esconderijo. De um modo ou de outro, no entanto, era fácil associar seu envolvimento ao assassinato cometido. Sem falar na abundância de comida que Effing encontrara ao chegar lá.

Receoso de revelar seu desconhecimento, Effing não pressionou George para obter mais detalhes, mas, diante do que dissera o índio, parecia provável que os Gresham não tardariam a voltar; talvez no final da primavera. George, desligado demais para lembrar-se de onde se encontravam os Gresham naquele momento, não parava de se levantar da cadeira para ir ver os quadros, diante dos quais abanava a cabeça, admirado. Não sabia que Tom pintava, dizia ele; observação que repetiu dezenas de vezes ao longo da tarde. Eram as coisas "mais para lá de bonitas" que ele tinha visto. Talvez algum dia, ele disse, Tom lhe pudesse ensinar a fazer aquilo. Effing olhou-o bem nos olhos e respondeu que sim, um dia, que sabe. Lamentava o fato de alguém ter visto seus quadros, mas, ao mesmo tempo, agradava-lhe aquela reação entusiástica. Talvez eles não mais fossem provocar reação alguma.

Depois da visita de George Ugly Mouth, nada voltou a ser como antes para Effing. Ao longo dos sete meses anteriores, ele trabalhara sua solidão, lutara para transformá-la em algo substancial, num refúgio seguro que delimitasse as fronteiras de sua vida. Mas, agora que alguém o visitara na caverna, ele percebia o artificialismo da situação. Havia quem soubesse onde encontrá-lo, e era de esperar que surgissem outras visitas. Ele precisava ficar atento, num alerta constante contra intrusos, e essa vigilância tinha seu preço a ponto de finalmente romper-se a harmonia instaurada em seu mundo. Quanto a isso, nada podia fazer. Tinha de passar os dias vigiando e aguardando. Precisava preparar-se para o que haveria de acontecer. Primeiro, Effing ficou esperando que George voltasse, mas, passadas semanas, começou a dirigir a atenção para os Irmãos Gresham. Teria sido lógico dar tudo por encerrado, juntar as coisas e ir embora de vez, mas algo nele se recusava a ceder tão facilmente diante da ameaça. Sabia que seria loucura ficar; um gesto sem sentido que poderia muito bem conduzi-lo à morte - isso era quase certo. A caverna, porém, era tudo o que tinha para defender no momento, e ele não conseguia se persuadir a abandoná-la.

O fundamental era não permitir que fosse pego de surpresa. Caso viessem quando ele estivesse dormindo, não haveria como reagir. Seria morto antes de poder levantar-se da cama. Já haviam feito isso uma vez, e não lhes seria difícil voltar a fazê-lo. Por outro lado, se inventasse algum tipo de alarme que o avisasse da aproximação de alguém, poderia ganhar algum tempo, talvez o bastante para levantar-se e agarrar o rifle. Se, porém, todos os três irmãos viessem ao mesmo tempo, Effing continuaria em desvantagem. Poderia ganhar ainda mais tempo construindo uma barricada na boca da caverna, bloqueando-a com pedras e galhos. Mas, nesse caso, estaria abrindo mão da única vantagem que teria sobre os inimigos: o fato de não saberem que ele estava lá. Assim que vissem a barricada, perceberiam que alguém estava morando na caverna e, por certo, atacariam.

Effing passava quase todas as horas de vigília pensando nesses problemas, estudando as várias estratégias possíveis, tentando conceber um plano que não fosse suicida. Por fim, parou de dormir na caverna e instalou seus cobertores e travesseiro numa plataforma situada no meio da encosta, do lado oposto. George Ugly Mouth mencionara que os Irmãos Gresham gostavam de uísque. Assim, pensou ele, seria perfeitamente plausível que começassem a beber quando se acomodassem na caverna. O deserto devia entediá-los demais, e, portanto, nada mais natural que se embebedassem. Nesse caso, Effing teria no álcool seu melhor aliado. Para eliminar os vestígios de sua presença, levou cadernos e quadros a um canto escuro, no fundo da caverna, e deixou de usar o fogão. Quanto às pinturas na mobília e na parede, não havia o que fazer, mas, se ao menos o fogão não estivesse quente, os Gresham haveriam de concluir que o autor delas já fora embora. Não era possível afiançar que fossem pensar assim, mas Effing não via outro modo de resolver o impasse. Inevitável saberem que alguém havia estado lá depois da última visita à caverna, no verão anterior. Senão como se explicaria o desaparecimento do corpo do eremita? Os Gresham ficariam intrigados com isso, mas, quando notassem que alguém estivera morando lá dentro, talvez deixassem de pensar no assunto. Ao menos era o que Effing esperava. Diante da miríade de imponderáveis da situação, ele não podia se permitir ter muita esperança.

Passou mais um mês infernal, e eles finalmente chegaram. Era meado de maio, pouco mais de um ano desde que saíra de Nova York com Byrne. Os Gresham chegaram a cavalo, ao anoitecer, anunciando a presença com um estrépito que ecoava entre as rochas: vozes altas, risos, alguma cantoria rouca. Effing tivera bastante tempo para se preparar para esse momento, mas mesmo assim seu coração disparou. Apesar das advertências que fizera a si próprio para se manter calmo, compreendeu que precisava dar um fim naquela história toda, naquela mesma noite. Não seria possível suportar a situação por mais tempo.

Agachou-se na estreita saliência rochosa atrás da caverna e ficou à espera do momento de agir. A escuridão aumentava ao seu redor. Ouviu os Gresham se aproximarem, alguns comentários esparsos que não soube a que se referiam e, em seguida, um deles dizer:

- Acho que vamos ter de arejar a caverna depois de nos livrarmos do velho Tom.

Os outros dois riram e, logo depois, as vozes se calaram. Isso significava que tinham entrado na caverna. Meia hora mais tarde, começou a sair fumaça da chaminé de flandres que se erguia acima da caverna, e ele sentiu cheiro de carne cozida. Nas duas horas seguintes, nada aconteceu. Effing ouviu os cavalos bufarem e baterem com os cascos no chão, numa pequena plataforma abaixo da caverna. Pouco a pouco, o azul-escuro da noite ia enegrecendo. Não havia lua, e o céu reluzia de estrelas. De vez em quando, ele ouvia um resto abafado de riso, mas só isso. Depois, de tempo em tempo, os Gresham começaram a sair da caverna para urinar nas rochas. Effing esperava que eles estivessem jogando cartas e se embriagando, mas era impossível ter certeza de alguma coisa.

Decidiu esperar que o último deles tivesse esvaziado a bexiga e dar mais uma hora, uma hora e meia. Nessa altura, já deveriam estar dormindo e não o ouviriam entrar na caverna. Nesse meio tempo, ficou pensando em como usar o rifle com uma só mão. Se as luzes estivessem apagadas dentro da caverna, ele teria de levar uma vela para poder enxergar os alvos. Nunca, porém, atirara com uma mão só. Estava com um rifle Winchester de repetição, mas a arma precisava ser engatilhada a cada tiro, o que sempre fizera com a mão esquerda. Poderia, é claro, levar a vela presa à boca, mas seria perigoso ficar com o fogo tão perto dos olhos - isso para não falar da possibilidade de a chama atingir-lhe a barba. Teria de levar a vela como se fosse um charuto, concluiu, prendendo-a entre o indicador e o dedo médio da mão esquerda, na esperança de que, ao mesmo tempo, os outros três dedos conseguissem agarrar o cano. Caso apoiasse a coronha do rifle na barriga, em vez de fazê-lo no ombro, talvez conseguisse engatilhar a arma com rapidez suficiente, com a mão direita, depois de puxar o gatilho. Novamente não tinha certeza de nada. À espera, aflito diante de tanta coisa em que pensar de última hora, ali sentado no escuro, ele amaldiçoou sua negligência, espantado com o tamanho da própria estupidez.

Effing acabou descobrindo que a luz não seria problema. Depois de sair do esconderijo e arrastar-se até a entrada da caverna, viu que lá dentro uma vela ainda queimava. Parou ao lado da entrada e prendeu a respiração, atento a possíveis ruídos, pronto para voltar depressa ao esconderijo caso os Gresham não estivessem dormindo. Pouco depois, ouviu algo que lhe pareceu um ronco, seguido, porém, de vários outros sons que talvez viessem de perto da mesa: um suspiro, silêncio, depois um pequeno baque, como se tivessem acabado de pousar um copo. Ao menos um deles ainda estava acordado, pensou Effing, mas como poderia ter certeza de que era o único? Em seguida, ouviu um ruído de cartas sendo embaralhadas, sete pancadas curtas na mesa e uma breve pausa. Depois, seis pancadas e mais uma pausa. Depois cinco pancadas. Depois quatro, três, duas, uma. Paciência, pensou Effing. Está jogando paciência, sem a menor dúvida. Um deles fazia vigília, enquanto os outros dois dormiam. Tinha de ser isso, de outro modo o jogador estaria falando com alguém. Como ele não falasse, isso só podia significar que não havia interlocutor disponível.

Effing engatilhou o rifle, colocou-o em posição de atirar e foi até a boca da caverna. Descobriu que não era difícil segurar a vela com a mão esquerda: entrara em pânico à toa. Assim que Effing apareceu, o homem à mesa ergueu bruscamente a cabeça e olhou-o, horrorizado.

- Meu Deus! - ele sussurrou. - Porra, você devia estar morto!

- Acho que está trocando as bolas - retrucou Effing. - Quem está morto é você.

Puxou o gatilho e o homem caiu para trás na cadeira, gritando ao sentir a bala entrar-lhe no peito. Em seguida, silêncio. Effing voltou a engatilhar o rifle e apontou-o para o segundo irmão, que rapidamente tentava sair do colchão, estendido no chão. Effing matou-o também com um só tiro, atingindo-o bem no rosto. A bala foi sair por trás da cabeça, fazendo voar pedaços de cérebro e ossos. Com o terceiro irmão, no entanto, já não foi tão fácil. Ele estava deitado na cama, no fundo da caverna, e, no momento em que o segundo acabava de ser eliminado, já tinha agarrado a arma e se preparava para atirar. A bala passou perto da cabeça de Effing e ricocheteou atrás dele, no fogão de ferro. Effing voltou a engatilhar o rifle, pulou para trás da mesa, a sua esquerda, para se proteger, e ao fazer isso apagou sem querer as duas velas. A caverna ficou escura como breu, e o homem ao fundo começou a soluçar histericamente, a berrar um monte de bobagens a respeito do eremita morto e a atirar feito louco na direção de Effing. Effing conhecia de cor os contornos da caverna e, mesmo no escuro, sabia a exata localização do homem. Contou seis tiros, concluindo que o esbravejante terceiro irmão acharia impossível recarregar a arma sem enxergar nada. Depois levantou-se e foi na direção da cama. Puxou o gatilho, ouviu o guincho do homem no instante em que a bala entrou-lhe no corpo, voltou a engatilhar o rifle e atirou novamente. Silêncio total na caverna. Effing sentiu o cheiro de pólvora no ar e, de repente, começou a tremer. Seguiu cambaleante, fazendo o possível para sair dali, e, lá fora, caiu de joelhos e vomitou.

Dormiu ali mesmo na boca da caverna. Na manhã seguinte, ao acordar, foi logo se livrar dos corpos. Estava surpreso com a constatação de que não sentia remorsos, que podia olhar para os homens que tinha matado sem o menor peso na consciência. Arrastou um a um para fora da caverna e encosta abaixo, pelo lado de trás, e enterrou-os perto do eremita, sob o choupo-do-canadá. Já era começo de tarde quando terminou de enterrar o último cadáver. Exausto, voltou à caverna para comer alguma coisa. Foi então que, ao sentar-se e começar a despejar no copo o uísque dos Irmãos Gresham, reparou nos alforjes que estavam sob a cama.

Segundo Effing, foi nesse exato momento que tudo em sua vida mudou novamente. Havia ao todo seis grandes alforjes, e ele viu que, ao despejar sobre a mesa o conteúdo do primeiro, chegara ao fim o seu tempo na caverna - assim mesmo, com a rapidez e a força de um livro que se fecha de repente. Havia dinheiro sobre a mesa, e, a cada alforje esvaziado, a pilha crescia. Quando terminou de contar, constatou que, só em dinheiro vivo, eram mais de vinte mil dólares. Junto do dinheiro, encontrou também vários relógios, pulseiras, colares e, no último saco, três maços bem amarrados de títulos ao portador, equivalentes a dez mil dólares em investimentos em companhias como a Colorado Silver Mine, a Westinghouse e a Ford Motors. Naquela época, tratava-se de uma quantia espantosa, observou Effing, uma verdadeira fortuna. Bem administrado, o dinheiro haveria de durar para o resto da vida.

Estava fora de questão devolver o dinheiro roubado, disse ele. Nada de procurar as autoridades e relatar-lhes o acontecido. Não que temesse ser descoberto ao contar sua história. Simplesmente queria o dinheiro para si. Era um desejo tão forte que nem se deu ao trabalho de analisar o que fazia. Pegou o dinheiro porque ele estava ali na sua frente; porque, de uma certa forma, sentia que já era dele. Foi isso. O certo e o errado não vinham ao caso. Matara três homens a sangue-frio, e isso o levara para além de considerações desse tipo. Em todo caso, duvidava que alguém fosse lamentar a morte dos Irmãos Gresham. Eles haviam desaparecido, e o mundo não tardaria a se acostumar ao fato. Do mesmo modo como se acostumara à ausência de Julian Barber.

Effing passou todo o dia seguinte preparando-se para partir. Pôs a mobília em ordem, lavou as manchas de sangue, guardou os cadernos no armário de louça. Lamentou ter que se separar das pinturas, mas quanto a isso nada podia fazer. Assim, ajeitou-as com cuidado ao pé da cama, apoiando-as na parede. Não levou mais de duas horas para fazer tudo isso, mas passou o resto da manhã e a tarde inteira sob o sol quente, juntando pedras e galhos para bloquear a entrada da caverna. Duvidava que um dia fosse voltar, mas, mesmo assim, quis escondê-la. Era um monumento particular, a tumba em que enterrava seu passado. Sempre que, no futuro, pensasse naquele lugar, queria sabê-lo ali, exatamente como o deixara. Assim, continuaria servindo para ele de refúgio mental, ainda que jamais voltasse a pôr os pés na caverna.

Dormiu ao ar livre naquela noite e, na manhã seguinte, preparou-se para a viagem. Encheu os alforjes, pegou comida, água, e prendeu tudo aos três cavalos deixados pelos Irmãos Gresham. Depois partiu, tentando imaginar o que viria a seguir.

LEVAMOS MAIS DE DUAS semanas para chegar a esse ponto. Havia muito que o Natal viera e se fora. Uma semana depois, terminava a década. Effing, porém, deu pouca atenção a essas datas. Seus pensamentos fixavam-se nos velhos tempos, e ele dedicava extremo cuidado a sua história, não deixando nada escapar, descendo aos menores detalhes, demorando-se em ligeiras nuanças, num esforço de recapturar seu passado. Após algum tempo, deixei de me perguntar se ele estaria ou não dizendo a verdade. Nessa altura, sua narrativa adquirira um tom fantasmagórico, e havia momentos em que ele parecia não tanto estar recordando fatos de sua vida quanto inventando uma parábola que lhes explicasse o sentido interno. A caverna do eremita, os alforjes cheios de dinheiro, o tiroteio no Oeste selvagem, tudo isso era tão implausível! E, no entanto, o que havia de mais absurdo na história talvez fosse seu elemento mais convincente. Não parecia possível que alguém a tivesse inventado, e Effing a contava tão bem, com tanta e tão palpável sinceridade, que eu simplesmente me deixei envolver, recusando-me a questionar se tudo aquilo havia de fato acontecido. Eu ouvia e anotava suas palavras sem interrompê-lo. Apesar da repulsa que ele às vezes me inspirava, eu não podia deixar de encontrar em Effing afinidades e semelhanças. Talvez tivesse começado a perceber isso quando chegamos ao episódio da caverna. Afinal de contas, eu próprio tinha tido minhas experiências numa caverna e, quando ele me descreveu a solidão que sentira, dei-me conta de ter passado por algo parecido. Minha história era tão absurda quanto a de Effing, mas sei perfeitamente que, caso a contasse, ele teria acreditado em todas as minhas palavras.

Com o passar dos dias, a atmosfera na casa tornou-se cada vez mais claustrofóbica. O tempo lá fora estava inóspito - chuvas geladas, ruas cobertas de gelo, ventos que nos atravessavam. Assim, tivemos de suspender temporariamente nossos passeios vespertinos. Effing passou a dobrar o tempo das sessões de obituário. Dormia um pouco depois do almoço, e às duas e meia, três horas, voltava a falar desembestadamente por horas seguidas. Não sei onde ele encontrava energia para prosseguir naquele ritmo. Além da pausa entre as frases, mais longa que de costume, nada em sua voz denotava cansaço. Passei a viver dentro daquela voz como se estivesse num quarto, um quarto sem janelas que, dia após dia, ia encolhendo. Como Effing agora quase sempre usasse a venda negra nos olhos, eu não tinha como me enganar pensando que existisse algum contato entre nós. Ele estava sozinho na história que se passava em sua cabeça, e eu sozinho nas palavras que vinham de sua boca. Tais palavras preenchiam todo o ar ao meu redor, e, no fim, eu já não podia nem respirar. Não fosse Kitty, ficaria sufocado. Depois do trabalho com Effing, em geral eu dava um jeito de ir vê-la e ficava com ela, à noite, o maior número possível de horas. Mais de uma vez, voltei para casa na manhã seguinte. A sra. Hume sabia o que eu estava fazendo, e Effing, se sabia, nunca fez o menor comentário. O importante era que, às oito horas, eu estivesse à mesa do café da manhã, e nunca deixei de ser pontual.

Depois de abandonar a caverna, contou Effing, ele passou vários dias a percorrer o deserto, até alcançar a cidade de Bluff. Daí para a frente, tudo lhe foi mais fácil. De cidade em cidade, seguiu lentamente para o norte, chegando no final de junho a Salt Lake City, onde encontrou a estrada de ferro e comprou passagem para San Francisco. Foi na Califórnia que inventou o novo nome, tornando-se Thomas Effing ao assinar a ficha de entrada no hotel. Thomas referia-se a Moran, explicou ele, e foi somente ao pousar a caneta que se deu conta de que Tom também havia sido o nome do eremita, o nome que secretamente lhe pertencera por mais de um ano. Tomou a coincidência por bom presságio, como se isso lhe reforçasse a escolha, transformando-a em algo inevitável. Quanto ao sobrenome, disse ele, não haveria maior necessidade de explicação. Ele já me dissera que Effing era um trocadilho. Talvez eu muito me enganasse, mas julgava saber qual fosse. Ao escrever a palavra Thomas, provavelmente ele se lembrara da expressão doubting Thomas, isto é, "indeciso Thomas". Doubting fora imediatamente substituído por fucking, que quer dizer "fodido". Por razões de bom-tom, fucking reduzira-se a f-ing: Effing. Ele era Thomas Effing, o homem que fodera com a própria vida. Dado seu gosto por piadas cruéis, não me foi difícil imaginar quão satisfeito ele devia ter ficado consigo mesmo.

Quase desde o início eu vinha esperando que ele me falasse de suas pernas. As rochas de Utah pareciam-me um lugar onde poderia ter acontecido um acidente que as tivesse paralisado, mas sua narrativa avançava dia a dia e ele continuava não revelando como fora parar na cadeira de rodas. A perigosa viagem com Scoresby e Byrne, o encontro com George Ugly Mouth, o tiroteio com os Gresham - de tudo isso ele saíra ileso. Depois de me falar de sua chegada a San Francisco, comecei a duvidar que me revelaria o que o deixara paralítico. Ele passou mais de uma semana escrevendo o que fizera com o dinheiro, enumerou seus investimentos, os negócios que fechara, os grandes riscos que correra no mercado de ações. Em nove meses estava novamente rico, quase tão rico quanto antes: possuía uma casa com muitos criados em Russian Hill, tinha companhia feminina sempre que quisesse, frequentava os círculos mais elegantes da sociedade. Poderia ter-se instalado permanentemente nesse modo de vida (aliás, a mesma vida que conhecera quando mais jovem), não fosse um incidente ocorrido cerca de um ano após sua chegada. Certa vez, num jantar com outros vinte convidados, deparou de repente com um rosto do passado, um homem que fora colega do pai, em Nova York, durante mais de dez anos. Alonzo Riddle já era então um velho, mas, ao ser apresentado a Effing e apertar-lhe a mão, certamente o reconheceu. Perplexo, Riddle chegou até mesmo a dizer que Effing era a imagem perfeita de alguém que ele havia conhecido. Effing fingiu não dar importância ao que acabara de ouvir, brincando simpaticamente com o que se diz a respeito de existir em algum lugar uma pessoa idêntica a nós. Riddle, porém, estava impressionado demais para deixar tudo por isso mesmo e, assim, começou a contar a Effing e a outros convidados a história do desaparecimento de Julian Barber. Foi um momento terrível para Effing, que passou o resto da noite a se contorcer de pânico, incapaz de livrar-se da inquirição e da suspeita presentes nos olhos de Riddle.

Depois disso, percebeu a precariedade da situação em que se encontrava. Mais cedo ou mais tarde, talvez encontrasse outra sombra do passado, e nada havia para lhe garantir que teria tanta sorte quanto com Riddle. Esse outro conhecido poderia ser mais seguro de si, mais enérgico em suas acusações, e, antes mesmo que Effing percebesse, tudo poderia desmoronar sobre sua cabeça. Assim, por medida de precaução, parou subitamente de dar festas e de aceitar convites, embora soubesse que, a longo prazo, isso não ia adiantar. As pessoas acabariam notando que ele se afastara, ficariam curiosas, fariam fofocas, o que só lhe poderia trazer problemas. Era novembro de 1918. O armistício acabara de ser assinado, e Effing sabia que seus dias na América estavam contados. Apesar dessa certeza, sentiu-se incapaz de tomar alguma providência. Caiu na inércia, não conseguia fazer planos nem pensar nas possibilidades que tinha pela frente. Arrasado pelo sentimento de culpa, pelo horror do que fizera com sua vida, entregou-se a fantasias inconsequentes de voltar para Long Island com alguma estrondosa mentira a respeito do que havia acontecido. Estava fora de questão, mas ele se agarrou a isso como quem recorre a um sonho redentor, buscando obstinadamente uma falsa saída atrás da outra, sem nunca chegar a agir.

Passou vários meses isolado do mundo, dormindo durante o dia e, à noite, aventurando-se por Chinatown. Não que quisesse ir lá; apenas não tinha forças para deixar de ir. Contra a vontade, passou a frequentar bordéis, casas de ópio e salas de jogo, escondidos no labirinto de ruas estreitas. Procurava o esquecimento, disse ele, mergulhando numa degradação condizente com o horror que tinha de si. Suas noites tornaram-se um miasma de ruídos de roleta e fumaça, mulheres chinesas desdentadas e de rosto bexiguento, de salas abafadas e de náusea. Perdia de modo tão extravagante que, em agosto, já havia esbanjado quase um terço da fortuna nessa vida de dissipação. Teria prosseguido desse jeito até o fim, disse ele, até que acabasse morrendo ou ficando sem dinheiro, não fosse o destino surpreendê-lo, quebrando-o ao meio. O que aconteceu não poderia ter sido mais repentino e violento, mas, apesar do infortúnio, a verdade era que fora salvo por nada menos danoso que um desastre.

Chovia naquela noite, disse Effing. Ele acabara de passar várias horas em Chinatown e voltava para casa, drogado, cambaleante, mal consciente de onde estava. Eram três, quatro horas da manhã quando ele começou a subir uma ladeira íngreme que conduzia ao bairro onde morava, parando em quase todos os postes para apoiar-se e tomar fôlego. A certa altura, no início da caminhada, perdera o guarda-chuva e, assim, ao chegar a essa última subida, já estava ensopado até os ossos. Com o barulho da chuva e a cabeça flutuando num torpor de ópio, não notou que um estranho se aproximava por trás. Num certo momento estava a se arrastar pela rua, no seguinte era como se um prédio desabasse sobre sua cabeça. Não tinha ideia do que fosse - um porrete, um tijolo, a coronha de um revólver, podia ser qualquer coisa. Tudo o que sentiu foi a força do golpe, uma tremenda pancada na nuca que o fez cair imediatamente ao chão. Devia ter ficado inconsciente por apenas alguns segundos, pois lembrou-se de ter em seguida sentido um jato de água no rosto. A enxurrada o carregava ladeira abaixo de modo incontrolável: de cabeça para a frente, de barriga, braços e pernas a se debaterem na luta que ele travava para se agarrar a alguma coisa e interromper a violenta queda. Por mais que tentasse, no entanto, não conseguiu parar, não conseguiu se erguer, apenas movia-se a esmo como um inseto ferido. A certa altura, devia ter torcido o corpo de tal modo que passou a descer meio obliquamente pela calçada. De repente, viu que iria voar por cima do meio-fio e cair na rua. Encolheu-se para se proteger do baque, mas, ao chegar bem à beira da calçada, girou uns noventa graus e foi de encontro a um poste de ferro, batendo a espinha com toda força. Nesse instante, ele ouviu um estalo, seguido de uma dor que nunca sentira, uma dor tão forte e grotesca que pensou que o corpo havia explodido.

Ele nunca me forneceu os dados clínicos precisos de sua lesão. O que importava era o prognóstico, e os médicos não tardaram a chegar a um veredicto unânime. Suas pernas haviam ficado paralisadas, e, por mais que ele se submetesse a fisioterapia, nunca voltaria a andar. Por estranho que pareça, disse ele, a sensação que teve ao receber a notícia foi quase de alívio. Ele fora punido, terrivelmente punido, e assim não mais se julgava obrigado a punir-se. Ele pagara por seu crime e, de repente, voltava a se sentir vazio: sem sentimento de culpa, sem medo de ser apanhado, sem temor algum. Fosse um acidente de outra natureza, talvez tivesse sido outro o efeito produzido sobre ele. Como, porém, não tivesse visto quem o atacara, como, antes de mais nada, nem sequer compreendesse por que fora atacado, só conseguia interpretar aquilo como punição cósmica. A mais pura forma de justiça havia sido feita; um golpe violento, anônimo, viera dos céus, e ele fora esmagado, sumária e impiedosamente. Não tivera tempo para se defender nem para justificar-se. Antes mesmo de saber o que se passava, o julgamento terminara, a sentença fora proferida, o juiz saíra da sala.

Levou nove meses para se recuperar (na medida do possível) e, em seguida, começou a preparar-se para deixar o país. Vendeu a casa, transferiu o dinheiro que tinha para uma conta numerada na Suíça, comprou de um anarcossindicalista um passaporte falso com o nome de Thomas Effing. Era o auge das agitações sociais no país. Sacco e Vanzetti haviam sido presos, e a maior parte dos membros dos grupos radicais tinham entrado para a clandestinidade. O homem que lhe arranjara o passaporte era um imigrante húngaro que trabalhava numa sala de porão entulhada, e Effing pagou caro pelo documento. O homem estava à beira de um colapso nervoso, disse ele. Suspeitava que Effing fosse um policial disfarçado que o quisesse prender quando o serviço estivesse pronto. Assim, adiou por várias semanas a entrega do passaporte, apresentando desculpas implausíveis a cada vez que o prazo expirava. O preço, por sua vez, subia. Como, porém, nessa altura, o dinheiro fosse a última das suas preocupações, Effing saiu do círculo vicioso oferecendo ao homem o dobro do último preço combinado, caso o passaporte lhe fosse entregue no dia seguinte, às nove da manhã. Era uma oferta suficientemente tentadora para que o húngaro se dispusesse a correr riscos: mais de oitocentos dólares. Quando, na manhã seguinte, Effing entregou-lhe o dinheiro e não o prendeu, o anarquista se descontrolou e começou a chorar, beijando-lhe histericamente a mão, agradecido. Foi o último americano com quem esteve ao longo dos vinte anos seguintes, e a lembrança daquele homem perturbado nunca o haveria de abandonar. O país todo já tinha ido para o inferno, pensou ele, e Effing conseguiu dizer-lhe adeus sem nada a lamentar.

Em setembro de 1920, ele embarcava no S.S. Descartes e seguia para a França pelo canal do Panamá. Nenhuma razão especial para escolher a França, mas tampouco tinha por que não ir. Durante algum tempo considerara a possibilidade de viajar para alguma colônia distante de tudo - América Central, talvez, ou alguma ilha no Pacífico -, mas a ideia de passar a vida numa selva, mesmo como uma espécie de rei adorado pelos ingênuos nativos, não o entusiasmava. Não estava à procura de um paraíso; apenas de um país onde não se aborrecesse. A Inglaterra estava fora de cogitação (achava o país desprezível) e, embora não considerasse os franceses muito melhores, tinha boas lembranças do ano que passara em Paris quando jovem. A Itália também o atraía, mas o fato de o francês ser a única língua estrangeira que conseguia falar com certa fluência levou-o a optar pela França. Lá ao menos iria comer bem e beber bons vinhos. Por outro lado, era em Paris onde haveria mais probabilidade de Effing encontrar velhos amigos artistas de Nova York, mas a perspectiva desses encontros não mais o assustava. O acidente mudara tudo. Julian Barber morrera. Ele não era mais artista; não era ninguém. Era Thomas Effing, um expatriado, um inválido confinado à cadeira de rodas. Se alguém duvidasse abertamente de sua identidade, ele o mandaria para o inferno e pronto. Já não se importava com o que pensassem os outros. Se de vez em quando fosse preciso mentir a respeito de si próprio, que assim fosse, ele mentiria. Tudo aquilo já era mesmo um embuste; não faria diferença o que viesse depois.

A narrativa de Effing prosseguiu por mais duas ou três semanas, mas não me prendeu a atenção como antes. O essencial já fora dito; não havia mais verdades obscuras nem segredos a revelar. Todos os momentos decisivos da vida de Effing aconteceram nos Estados Unidos, nos anos compreendidos entre a partida para Utah e o acidente em San Francisco. Assim que ele chegou à Europa, sua história tornou-se uma história qualquer, uma cronologia de fatos e acontecimentos, uma história do passar do tempo. Senti que ele estava consciente disso. Não que tivesse feito algum comentário a esse respeito. Simplesmente foi ocorrendo uma mudança em seu modo de narrar, uma perda da precisão e seriedade dos episódios anteriores. Effing passou a divagar mais livremente, parecia perder o fio do pensamento com maior frequência. Chegava mesmo a cair em evidentes contradições. Num dia, por exemplo, ele dizia ter vivido na ociosidade em seus tempos de Europa; apenas lia, jogava xadrez, ficava sentado em bistrôs de esquina. Noutro, falava de negócios arriscados, de uma livraria que lhe pertencera, de quadros que pintara e em seguida destruíra. Dizia ainda que fora agente secreto e que ajudara a arrecadar fundos para o exército republicano da Espanha. Mentia, sem dúvida. Notei, porém, que fazia isso mais por hábito do que por intenção de me enganar. Lá para o fim, falou de um modo comovente de sua amizade com Pavel Shum, contou-me em detalhes como continuara a fazer sexo apesar da condição física e, várias vezes, deu de arengar a respeito de suas teorias sobre o universo: a eletricidade dos pensamentos, a interligação da matéria, a transmigração das almas. No último dia, contou-me como ele e Pavel fugiram de Paris antes da ocupação alemã, voltou a falar do encontro com Tesla no Bryant Park e, em seguida, bruscamente, deu o relato por encerrado.

- Já basta - disse ele. - Paramos por aqui.

- Mas ainda falta uma hora para o almoço - retruquei, olhando para o relógio na cornija da lareira. - Há tempo bastante para começarmos o próximo episódio.

- Não me contradiga, rapaz. Quando digo basta, basta.

- Mas chegamos só até 1939. Ainda temos trinta anos pela frente.

- Esse período não é importante. Pode ser resumido em duas frases. "Depois de deixar a Europa, no começo da Segunda Guerra Mundial, o senhor Effing voltou para Nova York, onde passou os últimos trinta anos de sua vida." Ou algo parecido. Não deve ser difícil.

- Quer dizer que não está falando apenas de hoje. A história acabou, é isso?

- Pensei que tivesse sido claro.

- Não importa. Agora compreendo. Ainda acho que não faz sentido, mas compreendo.

- Nosso tempo está se esgotando, seu bobo, é isso. Se não começarmos a escrever o maldito obituário agora, não ficará pronto.

PASSEI TODAS AS MANHÃS dos vinte dias seguintes em meu quarto, datilografando na velha Underwood diferentes versões da vida de Effing. Havia uma versão resumida, para ser enviada aos jornais, com umas quinhentas palavras insípidas que apenas tocavam os fatos mais superficiais. Havia outra intitulada A Vida Misteriosa de Julian Barber, que acabou resultando num relato um tanto quanto sensacionalista de umas três mil palavras. Effing queria que, depois de sua morte, eu a submetesse à apreciação de uma revista de arte. Por fim, havia a versão completa da história contada pelo próprio Effing. Chegava a mais de cem páginas e foi a que me deu mais trabalho: eliminei repetições e construções vulgares, lapidei frases, esforcei-me para que a linguagem oral, ao ser transposta para o papel, não perdesse a força. Foi um processo difícil, cheio de complicações. Precisei muitas vezes refazer passagens inteiras para permanecer fiel ao sentido original. Não sabia o que Effing planejava fazer com sua autobiografia (no sentido estrito, pois deixara de ser um obituário), mas era óbvio o seu interesse por um bom resultado. Mostrava-se exigente nas revisões; gritava e me repreendia ao ouvir uma frase que não lhe agradasse. Discutíamos acertadamente todas as tardes nessas sessões de finalização de texto, arengávamos acerca das questões estilísticas mais insignificantes. Foi para nós uma experiência exaustiva (dois obstinados a travar um combate mortal), mas aos poucos fomos chegando a um acordo quanto às diferentes versões. No começo de março, o trabalho estava concluído.

No dia seguinte, encontrei três livros sobre a minha cama, todos escritos por um tal Solomon Barber. Embora Effing não lhes tivesse feito a mínima referência durante o café da manhã, julguei ter sido ele quem os pusera lá. Era bem próprio de Effing fazer uma coisa dessas: algo dissimulado, obscuro, aparentemente sem propósito algum. Eu, porém, já o conhecia o bastante para compreender que esse era seu modo de me pedir que os lesse. Dado o nome do autor, pareceu-me bem certo que não se tratava de um pedido feito ao acaso. Vários meses antes, o velho usara a palavra "consequências", e, ao lembrar-me disso, perguntei-me se ele não estaria se preparando para falar delas.

Eram livros sobre História americana, cada qual publicado por uma editora universitária diferente: O Bispo Berkeley e os Índios (1947), A Colônia Perdida de Roanoke (1955) e O Agreste Americano (1963). Havia umas vagas notas biográficas na sobrecapa, mas, juntando algumas informações, soube que Solomon Barber recebera o grau de doutor em História em 1944, colaborara com vários artigos para publicações universitárias e lecionara em várias faculdades do Meio-Oeste. A referência a 1944 era crucial. Se Effing engravidara a mulher bem pouco antes de abandoná-la, em 1916, então seu filho teria nascido no ano seguinte e, em 1944, estaria com vinte e sete anos - uma idade razoável para alguém se tornar doutor. Tudo parecia se encaixar, mas seria prudente não tirar nenhuma conclusão definitiva. Precisei esperar três dias para que Effing tocasse no assunto e somente então confirmei minhas suspeitas.

- Não creio que você tenha sequer folheado os livros que eu deixei em seu quarto na terça-feira - disse ele calmamente, como quem pedisse que lhe passassem o açúcar para o chá.

- Folheei sim - respondi. - Cheguei até mesmo a lê-los.

- Mas que surpresa, rapaz! Levando em conta sua idade, começo a pensar que talvez haja esperança para você.

- Há esperança para todo mundo, senhor Effing. É isso o que faz o mundo girar.

- Poupe-me dos aforismos, Fogg. O que achou dos livros?

- Admiráveis. Bem escritos, bem fundamentados, cheios de informações novas para mim.

- Por exemplo...

- Por exemplo, nunca soube que Berkeley tinha planos de educar os índios das Bermudas. Também nada sabia a respeito dos anos que ele passou em Rhode Island. Tudo isso foi uma surpresa para mim, mas o melhor do livro é o modo como Barber relaciona as experiências de Berkeley a seus trabalhos filosóficos sobre a percepção. Ele foi muito habilidoso nisso, muito original, muito profundo.

- E quanto aos outros livros?

- O mesmo. Eu também ignorava muita coisa a respeito de Roanoke. Acho que Barber esclarece bem o mistério e estou inclinado a concordar com ele quando diz que os pioneiros que se perderam só conseguiram sobreviver aliando-se aos índios croatans. Também gostei do material de fundo sobre Raleigh e Thomas Harriot. Sabia que Harriot foi o primeiro homem a observar a Lua pelo telescópio? Sempre pensei que fosse Galileu, mas Harriot fez isso vários meses antes dele.

- Sim, rapaz. Eu sabia disso. Não precisa me dar lições.

- Estava apenas respondendo a sua pergunta. O senhor me perguntou o que aprendi, e eu lhe contei.

- Não revide. Sou eu quem faz as perguntas aqui, compreendeu?

- Compreendi. Faça-me as perguntas que quiser, senhor Effing, mas não vejo necessidade de rodeios.

- O que quer dizer com isso?

- Que não precisamos perder mais tempo. O senhor deixou aqueles livros no meu quarto porque queria me dizer alguma coisa. Então, por que não diz logo?

- Hum! Estamos bem espertos hoje, não é mesmo?

- Não é difícil chegar a essa conclusão.

- Não, não creio que seja. De certo modo já lhe contei, não foi?

- Solomon Barber é seu filho.

Effing fez uma longa pausa, como se ainda resistisse a admitir que estávamos tendo aquela conversa. Ficou com o olhar perdido no espaço, tirou os óculos escuros, poliu as lentes com o lenço - gesto inútil, implausível num cego - e, em seguida, grunhiu das profundezas da garganta:

- Solomon - disse ele. - Nome horroroso! Não tive nada a ver com isso, é claro. Não é possível dar nome a alguém cuja existência desconhecemos, não é mesmo?

- Chegou a vê-lo alguma vez?

- Nunca. Não o conheci. Nem ele me conheceu. Na cabeça dele, o pai tinha morrido em Utah, em 1916.

- Quando soube que ele existia?

- Em 1947. Por causa de Pavel Shum. Foi ele quem me levou a descobrir. Certo dia, ele apareceu com um exemplar do livro sobre o bispo Berkeley. Pavel lia muito, já devo lhe ter dito isso, e, quando começou a falar de um jovem historiador chamado Barber, agucei os ouvidos. Pavel nada sabia da minha vida anterior; então fingi estar interessado no livro para saber mais a respeito do autor. Naquela altura, eu ainda não tinha certeza de nada. Barber não é um nome tão incomum, afinal de contas, e não havia motivo para pensar que esse tal Solomon tivesse algum parentesco comigo. Mesmo assim, tive uma intuição. Se alguma coisa aprendi nesta minha longa e estúpida vida foi dar ouvidos a minhas intuições. Assim, para saber o que queria, inventei um pretexto, embora talvez isso fosse dispensável. Pavel teria feito qualquer coisa por mim. Se eu lhe pedisse que fosse ao polo norte, na mesma hora ele iria. Eu só precisava de uma pequena informação, mas achei muito arriscado pedi-la abertamente. Então, contei-lhe que estava pensando em criar uma fundação que concedesse um prêmio anual a algum jovem escritor de mérito. "Esse Barber me parece promissor", eu disse. "Por que não procuramos saber mais a seu respeito e ver se ele não precisa de mais dinheiro para o seu trabalho?" Pavel ficou entusiasmado. Na opinião dele, não havia nada melhor no mundo do que promover a atividade intelectual.

- Mas, e a sua mulher? - perguntei. - Nunca soube o que aconteceu com ela? Não seria muito difícil descobrir se ela tinha tido um filho ou não. Devia haver centenas de modos diferentes para se conseguir esse tipo de informação.

- Sem dúvida. Mas tinha prometido a mim mesmo não fazer nenhuma investigação a respeito de Elizabeth. Fiquei curioso, é claro. Impossível não ficar. Mas ao mesmo tempo não queria remexer num velho baú de problemas. O passado era o passado, e para mim estava completamente enterrado. Se ela estava viva ou morta, se tinha ou não se casado de novo, de que serviria saber? Esforcei-me para continuar não sabendo. Havia uma forte tensão nessa atitude que me ajudava a saber quem eu era, a permanecer atento ao fato de que tinha me transformado numa outra pessoa. Nada de voltar atrás, o importante era isso. Nada de arrependimento, de pena, de sentimentalismo. Recusando-me a saber de Elizabeth, eu me mantinha forte.

- Mas queria saber de seu filho - retruquei.

- Isso era diferente. Queria saber se tinha sido responsável por trazer uma pessoa ao mundo; era meu direito. Queria apenas esclarecer isso, mais nada.

- E Pavel demorou a conseguir a informação?

- Não. Localizou Solomon Barber e descobriu que ele estava lecionando numa faculdade ordinária do Meio-Oeste. Em Iowa ou Nebraska, não me lembro direito. Pavel lhe escreveu uma carta falando do livro, uma carta de admirador, digamos assim. Tudo ficou fácil depois disso. Barber lhe mandou uma resposta simpática e em seguida Pavel lhe escreveu novamente, perguntando se seria possível marcarem um encontro, já que ele estaria mesmo de passagem por Iowa ou Nebraska. Uma simples coincidência. Ah! Ah! Como se isso existisse! Barber respondeu que adoraria encontrar-se com ele, e assim foi. Pavel tomou um trem para Iowa ou Nebraska e passaram juntos algumas horas, de noite. Quando Pavel voltou, trouxe todas as informações de que eu precisava.

- Quais eram?

- Que Solomon Barber tinha nascido em Shoreham, Long Island, em 1917. Que seu pai tinha sido pintor e morrera em Utah havia muito tempo. Que sua mãe tinha morrido em 1939.

- No ano em que o senhor voltou para a América.

- Parece que sim.

- E depois?

- Depois o quê?

- O que aconteceu em seguida?

- Nada. Disse a Pavel que tinha desistido da ideia da fundação e pronto.

- Nunca teve o desejo de vê-lo? É difícil de acreditar que tenha deixado tudo por isso mesmo.

- Tinha meus motivos, rapaz. Não pense que foi fácil. Em todo caso, com todos os prós e contras, aguentei firme.

- Muito nobre da sua parte.

- Sim, muito nobre. Sou um verdadeiro príncipe.

- E agora?

- Apesar de tudo, sempre consegui saber por onde ele andava. Pavel continuou a se corresponder com ele e me manteve informado ao longo dos anos a respeito do que Barber fazia. Por isso estou lhe contando isso agora. Há algo que quero que faça depois da minha morte. Os advogados poderiam cuidar disso, mas prefiro que seja você. Você faria o trabalho melhor que eles.

- Quais são os seus planos?

- Vou deixar meu dinheiro para ele. A senhora Hume vai ter sua parte, é claro, mas o resto é para o meu filho. O coitado fez muita tolice na vida, e o dinheiro talvez possa ajudá-lo. Ele é gordo, sem filhos, solteiro, um destroço, um desastre ambulante. Apesar da inteligência e do talento, sua carreira tem sido um fracasso. Perdeu o primeiro emprego, em meados dos anos 40, por causa de algum escândalo. Andou enrabando uns alunos, parece. Depois, quando já estava se reerguendo, foi perseguido pelo macarthismo e afundou novamente. Tem vivido nos lugares mais obscuros possíveis, lecionando em faculdades de que ninguém ouviu falar.

- Patético, parece.

- Parece não. É realmente patético. Cem por cento patético.

- Mas onde é que eu entro nisso? O dinheiro fica para ele em testamento, e os advogados entregam. Tudo muito simples.

- Quero que você lhe envie meu autorretrato. Por que acha que trabalhamos tanto nisso? Não era apenas para passar o tempo, rapaz, havia um objetivo. Lembre-se de que há sempre um objetivo naquilo que eu faço. Assim que eu morrer, quero que o mande para ele, junto de uma carta em que explico como veio a ser escrito. Está claro?

- Não muito. Se fez questão de manter-se afastado dele desde 1947, não vejo por que, de repente, essa ânsia de entrar em contato. Não faz sentido.

- Todo mundo tem o direito de conhecer o próprio passado. Não posso fazer muito por ele, mas ao menos isso eu posso.

- Mesmo que talvez ele não queira?

- Exatamente. Mesmo que talvez ele não queira.

- Não parece justo.

- Mas quem está falando em justiça? Não tem nada a ver com isso. Eu me mantive afastado dele enquanto estava vivo, mas, depois de morto, chega o momento de a história vir à tona.

- Não me parece que o senhor esteja morto.

- Está perto disso, posso lhe garantir. Está bem perto.

- Há meses que vem dizendo isso, mas continua saudável como sempre.

- Que dia é hoje?

- Doze de março.

- Isso significa que tenho mais dois meses de vida. Vou morrer em doze de maio, daqui a exatamente dois meses.

- Ninguém pode saber isso. É impossível.

- Mas eu posso, Fogg. Escreva o que digo. Vou morrer daqui a dois meses.

DEPOIS DESSA ESTRANHA conversa, voltamos à rotina de sempre. De manhã, eu lia para ele e, à tarde, saíamos a passeio. A agenda era a mesma, mas eu sentia que algo havia mudado. Antes, os livros eram escolhidos de acordo com um programa elaborado por Effing. Agora, porém, a escolha me parecia aleatória, sem a menor coerência. Num dia ele me mandava ler histórias do Decameron ou das Mil e Uma Noites; noutro, A Comédia dos Erros; noutro ainda, ele dispensava os livros e pedia que eu lesse as notícias dos treinos de beisebol que se realizavam na Flórida. Talvez, a título de despedida, tivesse decidido visitar assuntos diversos, repassar rapidamente várias obras, como se com isso também se despedisse do mundo. Durante três ou quatro dias, Effing me fez ler romances pornográficos (escondidos num armário sob a estante), mas nem mesmo esses livros pareciam infundir-lhe ânimo. Pôs-se a rir uma ou duas vezes, soltando um cacarejo de quem se diverte, mas também chegou a dormir em meio a uma das passagens mais picantes. Continuei a ler enquanto ele dormia, e, quando acordou, meia hora depois, disse-me que estivera exercitando a situação de estar morto.

- Quero morrer com sexo na cabeça - ele murmurou. - Não há modo melhor que esse.

Eu, que nunca tinha lido pornografia, achei os livros absurdos, mas excitantes. Certo dia, decorei alguns dos melhores parágrafos e, à noite, citei-os para Kitty. Pareceu-me terem produzido o mesmo efeito sobre ela. Kitty riu, mas ao mesmo tempo teve vontade de despir-se e correr para a cama.

Quanto aos passeios, também houve mudanças. Effing já não se mostrava tão entusiasmado com eles e, em vez de me pedir insistentemente que lhe descrevesse as coisas que encontrávamos pelo caminho, ficava calado, pensativo, voltado para si mesmo. Por força do hábito, continuei fazendo meus comentários, mas ele mal parecia ouvir. Sem as críticas e observações maldosas às quais responder, comecei a sentir meu ânimo arrefecer também. Pela primeira vez desde que eu o tinha conhecido, Effing mostrava um ar desligado das coisas que o cercavam, ausente, quase tranquilo. Comentei tais mudanças com a sra. Hume, e ela confessou que também começava a se preocupar. No entanto, do ponto de vista físico, nenhum de nós conseguia notar nele alguma grande transformação. Comia tanto ou tão pouco quanto sempre o fizera; seus intestinos funcionavam normalmente; não se queixava de dores nem mal-estar. Esse estranho período de letargia durou cerca de três semanas, mas, de repente, quando eu já começava a pensar que Effing estivesse seriamente em declínio, ele chegou certa vez à mesa do café da manhã com a disposição de antes, cheio de bom humor, feliz como eu o sempre vira.

- Decidido! - ele anunciou, batendo com o punho cerrado na mesa. A pancada foi tão forte que fez saltar os talheres. - Há algum tempo que, dia após dia, venho tentando elaborar na minha mente o plano perfeito. Mas, depois de muito trabalho, alegra-me comunicar que está pronto. Pronto! É a melhor ideia que já tive na vida, meu Deus! Uma obra-prima, uma verdadeira obra-prima. Está preparado para se divertir, rapaz?

- Claro - respondi, achando melhor apoiá-lo. - Estou sempre pronto para me divertir.

- Ótimo! A ideia é mesmo essa - disse ele, esfregando as mãos. - Prometo a vocês, crianças, que vai ser um lindo canto do cisne, com um grandioso final. Como está o tempo lá fora?

- Claro, frio e seco - respondeu a sra. Hume. - Disseram no rádio que à tarde a temperatura pode chegar perto dos doze graus.

- Claro, frio e seco - ele repetiu. - Perto dos doze graus. Não podia ser melhor. E a data, Fogg? Que dia é hoje?

- Primeiro de abril. Estamos começando o mês.

- Primeiro de abril! O dia da mentira, dia de pregar peças. Na França diziam que era o dia do peixe. Pois arranjaremos bastante peixe para os outros, não é mesmo, Fogg? Um cesto cheio.

- Com certeza - concordei. - Vamos fazer o serviço completo.

Animado, Effing continuou a tagarelar durante todo o café da manhã, mal parando para levar à boca as colheradas de mingau de aveia. A sra. Hume parecia preocupada, mas eu até que gostei daquela aloprada manifestação de energia. Tudo o que porventura resultasse daquele comportamento só poderia ser melhor do que as semanas sombrias que tínhamos acabado de passar. Effing não se ajustava ao papel de velho taciturno, e eu preferia que ele morresse de entusiasmo a vê-lo mergulhado em melancólico silêncio.

Depois do café da manhã, ele mandou-nos pegar suas coisas e arrumá-lo para sair. Foi embrulhado no equipamento de costume: manta, cachecol, casaco, chapéu, luvas. Em seguida, pediu-me que abrisse o armário e trouxesse a maleta xadrez que se encontrava sob uma pilha de botas e galochas.

- O que acha, Fogg? - ele perguntou. - De bom tamanho?

- Depende do que vai ser colocado dentro.

- Dinheiro. Vinte mil dólares em dinheiro vivo.

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, a sra. Hume interveio.

- Não vai fazer nada disso, senhor Thomas - ela o admoestou. - Não vou permitir. Um cego andando pelas ruas com vinte mil dólares em dinheiro. Pode ir tirando da cabeça fazer uma bobagem dessas.

- Cale a boca, sua vaca - ele retrucou. - Cale a boca ou acabo com você. O dinheiro é meu e faço com ele o que bem entender. Tenho um bom guarda-costas para me proteger, e não vai acontecer nada. Mesmo que acontecesse, isso não seria da sua conta. Está compreendendo, sua gorda? Mais um pio e a despacho para longe daqui.

- A senhora Hume está apenas fazendo o trabalho dela - disse eu, tentando defendê-la daquele ataque maluco. - Não há por que se alterar.

- Isso serve para você também, seu intrometido - gritou Effing. - Faça o que lhe digo ou pode ir procurando outro emprego. Um, dois, três, quero ver. Experimente só!

- Dane-se - respondeu a sra. Hume. - Você não passa de um peido de velho, Thomas Effing. Espero que perca cada centavo desse dinheiro. Que a maleta se abra e as notas saiam voando.

- Ah! - retrucou Effing. - Ah! E o que acha que estou pensando fazer com isso, sua tonta? Gastar? Acha que Thomas Effing se prestaria a uma banalidade dessas? Tenho grandes planos para esse dinheiro, planos fantásticos que ninguém nunca sequer sonhou.

- Por mim, tanto faz - revidou a sra. Hume. - Pode sair e gastar até um milhão de dólares que estou pouco me lixando. Não me faz a menor diferença. Lavo minhas mãos, de você e de todos os seus caprichos.

- Ora, ora - disse Effing, lançando de repente um charme melífluo. - Não precisa fazer beicinho, querida. - Ele a pegou pela mão e beijou-lhe o braço várias vezes, subindo e descendo. Até parecia estar sendo sincero. - Fogg tomará conta de mim. Ele é um rapaz forte e não vai deixar que nada de mau aconteça conosco. Confie em mim. Planejei tudo nos mínimos detalhes.

- O senhor não me engana. - Ela retirou a mão, zangada. - Vai fazer alguma bobagem, eu sei. Mas lembre-se de que eu o preveni. Depois não venha a mim chorando a pedindo desculpas. Tarde demais para isso. Uma vez tolo, sempre tolo. É o que minha mãe costumava me dizer, e ela estava certa.

- Eu lhe explicaria tudo agora, se pudesse - disse Effing. - Mas não temos tempo. Além do mais, se Fogg não me levar logo para fora, vou cozinhar debaixo desses agasalhos todos.

- Então, vá - respondeu a sra. Hume. - Não me interessa.

Effing sorriu, ergueu o tronco e virou-se para mim.

- Está pronto, rapaz? - ele perguntou, bradando como um capitão de navio.

- Saímos assim que o senhor quiser - respondi.

- Muito bem, então vamos.

Nossa primeira parada foi na Broadway, no Chase Manhattan Bank, de onde Effing sacou o dinheiro. Por causa da soma elevada, a operação toda levou quase uma hora, pois era necessária autorização superior. Além disso, os caixas tiveram que providenciar um número suficiente de notas de cinquenta dólares para atender à exigência de Effing. Ele era um velho cliente do banco, um "cliente importante", como mais de uma vez lembrou ao gerente. Este, por sua vez, prevendo a possibilidade de uma cena desagradável, fez de tudo para o satisfazer. Effing continuou fazendo jogo dissimulado. Não me deixou ajudá-lo e, quando tirou do bolso a caderneta com seu saldo bancário, fez questão de escondê-la de mim, como se temesse que eu visse quanto dinheiro ele tinha na conta. Havia muito que atitudes desse tipo, vindas de Effing, não me ofendiam mais, mas a verdade era que eu não tinha mesmo o menor interesse em saber o seu saldo. Quando finalmente conseguiram reunir todo o dinheiro, um dos caixas o contou duas vezes, e Effing, por precaução, ainda me mandou conferi-lo. Eu nunca tinha visto tantas notas juntas, mas, ao terminar de contá-las, o encanto estava desfeito e o dinheiro voltava a ser o que era: quatrocentas tiras de papel verde. Effing sorriu, satisfeito, quando eu lhe disse que nada faltava e, em seguida, mandou-me guardar o dinheiro na maleta, onde afinal coube tudo. Fechei a maleta, pousei-a com cuidado no colo de Effing e conduzi-o para fora do banco. Ele foi brandindo a bengala até chegar à porta, fazendo o maior estardalhaço, como se o mundo estivesse por acabar.

Lá fora, Effing me fez levá-lo a uma das ilhas para pedestres no meio da Broadway. Era um local barulhento, com carros e caminhões passando atabalhoadamente a nosso lado, nos dois sentidos. Ele, porém, parecia ignorar aquele tumulto. Perguntou-me se havia alguém sentado ali e respondi-lhe que não. Mandou-me então sentar no banco da ilha. De óculos escuros e maleta agarrada contra o peito, Effing parecia ainda menos humano que de costume - um enorme beija-flor vindo do espaço sideral.

- Antes de começarmos, gostaria de repassar meu plano - disse ele. - Dentro da agência, não dava para tocar no assunto; em casa, não queria aquela bisbilhoteira ouvindo nossa conversa. Você talvez já tenha feito a si próprio muitas perguntas, e, como vai mesmo participar, vou-lhe abrir o jogo.

- Eu já imaginava que, mais cedo ou mais tarde, o senhor faria isso.

- É o seguinte, rapaz. Meu tempo está quase se esgotando; por isso passei os últimos meses cuidando de negócios. Fiz o testamento, escrevi meu obituário, amarrei as pontas soltas. Há só uma coisa que ainda me incomoda. Uma dívida pendente, pode-se dizer. Passei duas semanas pensando no assunto e, finalmente, cheguei a uma conclusão. Lembra-se de que cinquenta e dois anos atrás encontrei um saco de dinheiro? Pois é, eu o usei e com ele ganhei ainda mais dinheiro. Assim me mantive até hoje. Mas, agora que cheguei ao fim, não preciso mais desse saco. Então, o que devo fazer com ele? Devolvê-lo, não é mesmo? É a única coisa que faz sentido.

- Devolver? Mas a quem? Os Gresham morreram, e o dinheiro ainda por cima nem deles era. Pertencia a pessoas que o senhor nem conheceu, pessoas anônimas. Mesmo que o senhor descobrisse quem eram elas, não iria adiantar nada. Provavelmente já estão todas mortas.

- Sim, todas mortas. E não seria possível encontrar os herdeiros, não é mesmo?

- Foi o que eu quis dizer.

- Você disse também que o dinheiro pertencia a pessoas anônimas. Então, pense um pouco: Se algo existe em abundância nesta cidade esquecida por Deus são pessoas anônimas, gente desconhecida. Basta olhar de lado para encontrá-las. Há milhões delas ao nosso redor.

- O senhor não pode estar falando a sério.

- Claro que estou. Sempre falo a sério. Você já deveria saber disso.

- Está querendo me dizer que vamos andar pelas ruas distribuindo notas de cinquenta dólares a estranhos? Vai haver o maior tumulto. As pessoas vão enlouquecer, nos rasgar em pedaços.

- Não, se fizermos as coisas direito. É tudo questão de planejarmos bem. Confie em mim, Fogg. Vai ser o meu maior feito, a realização que vai coroar minha vida!

O plano de Effing era bastante simples. Em vez de andarmos pelas ruas em plena luz do dia, distribuindo dinheiro aos passantes (o que haveria de atrair uma multidão incontrolável), faríamos uma série de incursões rápidas, relampejantes, em pontos da cidade cuidadosamente escolhidos. A operação toda se estenderia por dez dias e, a cada saída, apenas quarenta pessoas receberiam dinheiro, o que reduziria drasticamente as possibilidades de confusão. Eu levaria as notas nos bolsos e, caso alguém nos roubasse, não tomaria mais que dois mil dólares. O resto ficaria em casa, guardado na maleta, em segurança. Agiríamos em pontos bem espalhados pela cidade, propôs Effing, nunca em bairros vizinhos em dias consecutivos. Um dia, no norte de Manhattan; outro, no sul. East Side, na segunda-feira; West Side, na terça. Para que ninguém notasse o que estávamos fazendo, nunca permaneceríamos num lugar durante muito tempo. Nosso próprio bairro seria deixado para o final. Assim, a distribuição pareceria ter ocorrido uma única vez, e tudo estaria acabado antes que alguém viesse nos abordar.

Compreendi imediatamente que nada podia fazer para detê-lo. Effing se mostrava decidido. Então, em vez de tentar dissuadi-lo de seu projeto, esforcei-me para torná-lo o mais seguro possível. Era um plano razoável, observei, mas tudo dependia da hora que escolhêssemos para nossas saídas. As tardes, por exemplo, não seriam muito recomendáveis. Nesse horário haveria muita gente nas ruas, e o importante era entregarmos o dinheiro à pessoa sem que ninguém mais notasse o que acontecia. Desse modo, seriam mínimos os riscos de provocarmos algum tumulto.

- Hum - disse Effing, acompanhando minhas palavras com grande atenção. - Que hora então você sugere, rapaz?

- À noite. Depois do horário comercial, mas não tão tarde a ponto de nos encontrarmos de repente numa rua deserta. Digamos entre sete e meia e dez.

- Em outras palavras, depois do jantar. Uma excursão pós-prandial.

- Exatamente.

- Está bem, Fogg. Faremos nossa ronda depois do anoitecer. Seremos dois Robin Hood prontos a oferecer nossa generosidade às pessoas de sorte que cruzarem nosso caminho.

- É bom também pensarmos em como nos locomover. A cidade é grande, e alguns lugares aonde vamos distam quilômetros daqui. Se fizermos tudo a pé, em algumas noites ficaremos na rua até muito tarde e, caso precisemos de repente sair correndo, vamos ter problemas.

- Isso é conversa de maricas, Fogg. Não vai acontecer nada conosco. Se você se cansar, pegaremos um táxi. Se estiver com disposição para caminhar, ficaremos a pé.

- Não estava pensando em mim mesmo. Quero apenas ter certeza de que o senhor sabe o que está fazendo. Por acaso pensou em alugar um automóvel? Poderíamos voltar para casa rapidamente. Só teríamos de entrar no carro e pedir que o motorista nos trouxesse.

- Motorista! Mas que ideia mais absurda! Isso estragaria tudo.

- Não vejo como. A ideia não é distribuir o dinheiro? Isso não significa que o senhor tenha de se cansar percorrendo a cidade no frio da primavera. Seria uma estupidez ficar doente porque está querendo ser generoso.

- Quero estar à solta, sentir as coisas no momento em que acontecem. Não é possível fazer isso dentro de um carro. O interessante é estar nas ruas, respirando o mesmo ar que todo mundo.

- Foi apenas uma sugestão.

- Guarde suas sugestões para você mesmo. Não tenho medo de nada, Fogg. Estou velho demais para isso. E quanto menos você se preocupar comigo, melhor. Acho ótimo que me acompanhe, mas quero que fique calado. Vamos fazer tudo ao meu modo, haja o que houver.

NOS PRIMEIROS OITO dias tudo correu bem. Ambos concordamos que devia haver uma hierarquia de valores, e eu tinha carta branca para tomar decisões. A ideia não era simplesmente dar dinheiro a qualquer um, mas procurar diligentemente aqueles que mais merecessem, detectar os que mais precisavam. Assim, os pobres seriam mais favorecidos. Os deficientes e os loucos também teriam precedência. Estabelecemos essas regras no início e, dada a natureza das ruas de Nova York, não foi muito difícil segui-las.

Algumas pessoas se descontrolavam e choravam quando eu lhes dava dinheiro; outras desatavam a rir; outras ainda não diziam nada. Era impossível prever suas reações, e logo deixei de esperar que fizessem o que eu achava que fossem fazer. Havia os desconfiados que se julgavam alvo de alguma brincadeira. Um homem chegou a rasgar o dinheiro e vários outros nos acusaram de falsários. Havia também os gananciosos que achavam pouco cinquenta dólares; os sem amigos que não queriam se afastar de nós; os bem-humorados que se ofereciam para nos pagar bebida; os tristes que queriam nos contar suas vidas; os artistas que cantavam e dançavam em sinal de gratidão. Para meu espanto, ninguém tentou nos roubar; o que talvez pudesse ser atribuído à pura sorte, embora agíssemos com rapidez e nunca permanecêssemos num lugar durante muito tempo. Na maioria das vezes, eu entregava o dinheiro nas ruas, mas houve várias incursões por bares dos bas-fonds - Blarney Stones, Bickfords, Chock Full o’ Nuts -, onde deixei uma nota de cinquenta dólares diante de cada um ao balcão.

- Espalhem um pouco de alegria! - eu gritava, desfazendo-me do dinheiro com a maior rapidez possível.

Antes mesmo que os perplexos clientes se dessem conta do que estava acontecendo, eu já corria para a rua. Dei dinheiro para mendigas e putas, bêbados e vagabundos, hippies e crianças abandonadas, pedintes e aleijados - toda essa ralé que enche as ruas depois do anoitecer. Havia quarenta presentes para serem distribuídos em cada noite, e nunca levávamos mais de uma hora e meia para terminar o trabalho.

Na nona noite choveu e a sra. Hume e eu conseguimos convencer Effing a ficar em casa. Choveu também na noite seguinte, mas já nada o detinha. Ele não se importava com o risco de pegar pneumonia, segundo afirmou. Havia trabalho a ser feito, e ele iria fazê-lo. E se eu saísse sozinho?, perguntei. Faria um relatório completo quando voltasse, e isso seria quase o mesmo que ele ir comigo. Não, era impossível; ele tinha de estar presente em carne e osso. Além do mais, como é que ele podia ter certeza de que eu não embolsaria o dinheiro? Eu talvez desse umas voltas e depois lhe contasse uma história inventada. Ele não tinha meios de saber se eu dizia a verdade.

- Se é o que pensa - revidei, louco de raiva -, pegue o seu dinheiro e enfie no cu. Estou indo embora.

Pela primeira vez desde que o tinha conhecido, seis meses antes, Effing se abalou e pediu desculpas. Foi um momento dramático em que ele despejou palavras de pesar e arrependimento. Quase tive pena dele. Seu corpo tremia, os lábios ficaram espumantes de saliva, parecia que ele estava por se desintegrar. Sabia que eu tinha falado a sério e não suportava a ideia de que eu fosse embora. Implorou-me perdão, disse que eu era um bom rapaz, o melhor que ele tinha conhecido, e que, enquanto vivesse, nunca mais me trataria de modo rude.

- Vou lhe compensar - disse ele. - Prometo.

Em seguida, ele pegou desesperadamente a maleta, tirou um punhado de notas de cinquenta dólares e ergueu-as no ar.

- Aqui está, Fogg. Isto é seu. Quero que fique com este dinheiro extra. Deus sabe o quanto você merece!

- Não precisa me subornar, senhor Effing. Já ganho o suficiente.

- Não, por favor. Quero que fique com o dinheiro. Pense nisso como uma gratificação. Uma recompensa por bons serviços.

- Guarde o dinheiro, senhor Effing. Prefiro dá-lo a pessoas que realmente necessitem.

- Então você fica?

- Sim, fico. Aceito suas desculpas. Mas nunca mais me diga uma coisa daquelas.

Por motivos óbvios, não saímos naquela noite. Na noite seguinte, o tempo limpou e, às oito horas, seguimos para Times Square, onde terminamos o trabalho num recorde de vinte e cinco ou trinta minutos. Como ainda fosse muito cedo e estivéssemos mais perto de casa que de costume, Effing insistiu para voltarmos a pé. Isso em si seria um detalhe banal que eu nem mencionaria, não fosse algo curioso que aconteceu pelo caminho. Pouco ao sul de Columbus Circle, vi um jovem negro da minha idade mais ou menos a seguir paralelamente a nós na outra calçada. Pelas aparências, nada havia nele de incomum. Usava roupas decentes, não parecia que estivesse bêbado ou fosse louco. Lá, porém, estava ele naquela noite de primavera, sem nuvens no céu, a caminhar pela rua de guarda-chuva aberto. Eu já achava aquilo bastante estranho, quando, de repente, notei também que o guarda-chuva estava sem o pano, deixando à mostra as varetas inutilmente estendidas. Parecia uma enorme e implausível flor metálica. Não pude deixar de rir. Quando descrevi a Effing o que estava vendo, ele riu também, mas mais alto do que eu, chamando a atenção do jovem, lá no outro lado da rua. Então, o rapaz, com um grande sorriso, fez um gesto para que nos juntássemos todos debaixo do guarda-chuva.

- Não fique aí na chuva - disse ele, alegremente. - Venham cá para não se molharem.

Havia algo de tão original e sincero naquele convite que teria sido rude não aceitá-lo. Assim, atravessamos a rua e andamos trinta quarteirões da Broadway sob aquele guarda-chuva sem pano. Fiquei satisfeito em ver a naturalidade com que Effing entrou no espírito da brincadeira. Não fez perguntas. Compreendia intuitivamente que uma coisa absurda daquelas só poderia prosseguir se fingíssemos acreditar nela. Nosso anfitrião chamava-se Orlando, um comediante de talento que contornava nas pontas dos pés poças d’água imaginárias; protegia-nos dos pingos, inclinando o guarda-chuva em diferentes ângulos; e disparava em seu monólogo de associações livres e trocadilhos ridículos. Era a forma mais pura de imaginação: o ato de dar vida a coisas inexistentes, de persuadir os outros a aceitar um mundo que não estava ali. O fato de aquilo acontecer bem naquela noite harmonizava-se com o espírito do que eu e Effing tínhamos acabado de fazer na Rua 42. Um espírito lunático tomara conta da cidade. Distribuíam-se notas de cinquenta dólares; chovia e não chovia ao mesmo tempo; não nos atingia nenhum pingo de água por sobre nosso guarda-chuva sem pano.

Na esquina da Broadway com a Rua 84, despedimo-nos de Orlando com apertos de mão e promessas de ficarmos amigos para sempre. Num pequeno prolongamento do nosso encontro, ele estendeu a mão para verificar como estava o tempo e, depois de uma breve pausa, anunciou que a chuva tinha parado. Sem mais delongas, fechou o guarda-chuva e o ofereceu de lembrança.

- Levem isto - disse ele. - Melhor que fiquem com o guarda-chuva. Talvez volte a chover, e não quero que vocês se molhem. O tempo é assim mesmo, está sempre mudando. Quando não estamos preparados para tudo, não estamos preparados para coisa alguma.

- É como dinheiro no banco - observou Effing.

- É isso mesmo, Tom - disse Orlando. - Guarde dinheiro debaixo do colchão para usá-lo num dia de chuva.

Despediu-se mais uma vez de nós, erguendo o punho numa saudação black power, e foi embora, desaparecendo entre a multidão quando chegava à outra esquina.

Foi um pequeno e estranho episódio, mas coisas desse tipo acontecem em Nova York com maior frequência do que se imagina, principalmente quando se está aberto para elas. O que para mim tornou esse encontro especial não foi tanto a leveza com que se deu, mas o modo misterioso com que pareceu influenciar os acontecimentos seguintes. Foi quase como se o encontro com Orlando tivesse sido premonitório, um presságio quanto ao destino de Effing. Uma nova série de imagens nos tinha sido imposta e, daí por diante, ficamos submetidos a sua força mágica. Estou propriamente pensando em tempestades e guarda-chuvas, porém, mais que isso, também em mudanças: em como tudo pode mudar a qualquer momento, de repente e para sempre.

A noite seguinte era a última. Effing passou o dia ainda mais inquieto que de costume: não quis dormir, não quis que eu lesse para ele, recusou todas as distrações que tentei lhe arranjar. Fomos ao parque no começo da tarde, mas consegui levá-lo para casa mais cedo do que o previsto, pois o tempo estava enevoado e ameaçador. À noite, uma densa neblina cobria a cidade. O mundo ficara cinzento. As luzes dos prédios brilhavam em meio à umidade, como que envoltas em gaze. As condições climáticas não eram animadoras, mas, como não estivesse chovendo, parecia-me inútil tentar convencer Effing a adiar nossa última expedição. Achei que seria possível terminar o trabalho rapidamente, logo trazer o velho para casa e assim evitar que algum mal lhe acontecesse. A sra. Hume não gostou nada da ideia, mas acabou cedendo diante da minha promessa de que Effing levaria um guarda-chuva. Effing aceitou prontamente essa condição, e tudo me pareceu sob controle quando, às oito horas, saí com ele pela porta da frente.

O que eu não sabia, no entanto, era que Effing trocara o seu guarda-chuva por aquele que Orlando nos dera na noite anterior. Quando descobri isso, já estávamos a cinco ou seis quarteirões de casa. Rindo baixinho com algum obscuro prazer infantil, Effing puxou o guarda-chuva sem pano de sob a manta e abriu-o. Como o cabo fosse idêntico ao do guarda-chuva deixado em casa, pensei que se tratasse de um engano. Quando, porém, lhe chamei a atenção para o que ocorria, ele vociferou que eu cuidasse apenas daquilo que me dizia respeito.

- Não seja obtuso - disse ele. - Fiz isso de propósito. Qualquer tolo pode ver que este é um guarda-chuva mágico. Quando o abrimos, ficamos invencíveis.

Eu estava para lhe dar uma resposta, mas me contive. Melhor não. Não estava chovendo, afinal de contas, e eu não queria me enredar numa discussão com Effing. Queria apenas fazer o serviço, e, desde que não chovesse, não havia motivo para que ele não levasse aberto aquele ridículo objeto. Fui em frente mais alguns quarteirões, distribuindo dinheiro àqueles que, ao serem vistos, me pareciam prováveis candidatos. Quando o volume de notas chegou à metade, atravessei para a outra calçada e tomei o caminho de volta para casa. Foi então que começou a chover - como se isso fosse inevitável, como se Effing tivesse provocado a chuva com a força do pensamento. Os pingos vieram fracos no começo, quase invisíveis em meio à névoa ao redor, mas no quarteirão seguinte o chuvisco se transformou em pancada forte. Levei Effing para uma entrada de prédio, com a ideia de esperar que o pior passasse, mas, assim que paramos, o velho começou a reclamar.

- O que está fazendo? - ele perguntou. - Não é hora de intervalo para descanso. Ainda temos dinheiro para distribuir. Vamos vamos, vamos. É uma ordem!

- Caso não tenha notado - retruquei -, está chovendo. E não é uma chuvinha de primavera. Está chovendo forte. Os pingos parecem pedregulhos e saltam meio metro depois de baterem no chão.

- Chuva? - disse ele. - Que chuva? Não estou vendo.

Em seguida, com um empurrão brusco nas rodas da cadeira, Effing soltou-se de mim e deslizou pela calçada. Pegou novamente o guarda-chuva, ergueu-o com as duas mãos bem acima da cabeça e começou a gritar:

- Que chuva que nada - ele trovejava.

E a chuva pegava-o no rosto, pegava-o por todos os lados, encharcava-lhe as roupas.

- Talvez esteja chovendo em você, rapaz, mas em mim não! Estou seco como um osso! Estou com meu guarda-chuva de confiança, e tudo vai bem com o mundo. Ah, ah! Podem me jogar no chão e me deixar roxo de pancada, mas que não sinto chover em mim, não sinto!

Compreendi então que Effing queria morrer. Ele planejara aquela pequena farsa para ficar doente, e se entregava à cena com tamanha alegria e sem-cerimônia que me espantava. Ele agitava o guarda-chuva de um lado para o outro, desafiando o aguaceiro com o seu riso. Apesar do desgosto que senti naquele momento, não pude deixar de admirar sua coragem. Ele era como um Lear anão reencarnado no corpo de Gloucester. Aquela era sua última noite, e ele queria vivê-la com arrebatamento, atrair para si, num gesto final e glorioso, a própria morte. Meu primeiro impulso foi de tirá-lo da calçada, deixá-lo em lugar seguro, mas logo percebi que já era tarde demais. Ele já estava ensopado até os ossos e, em se tratando de alguém frágil como Effing, isso provavelmente significava que o estrago já tinha sido feito. Ele ficaria gripado, a gripe se transformaria em pneumonia, e a morte não tardaria a chegar. Isso tudo me pareceu de repente tão certo que desisti de lutar para que não acontecesse. Eu estava olhando para um cadáver, disse comigo mesmo, e tudo o que fizesse seria inútil. Desde então não houve um dia sequer em que eu não tivesse lamentado a decisão que tomei naquela noite. Na hora, porém, tal decisão pareceu-me acertada, como se fosse um erro do ponto de vista moral obstruir o caminho de Effing. Já que ele estava morto, que direito tinha eu de estragar-lhe o prazer? Effing estava firmemente determinado a se destruir, e, envolvido no torvelinho da sua loucura, não ergui sequer um dedo para detê-lo. Fiquei ali parado, observando-o, cúmplice voluntário do seu suicídio.

De repente, saí de onde estava e agarrei a cadeira de Effing. A chuva fazia-me semicerrar os olhos.

- Tem razão - concordei. - Parece que a chuva também não me molha.

Quando eu disse isso, um raio serpenteou no céu, seguido de um estrondoso trovejar. A chuva nos atingia sem piedade, atacando nossos corpos expostos com uma carga de balas líquidas. Uma lufada de vento acabou levando os óculos de Effing, mas tudo o que ele fez foi rir, deliciado com a violência da tempestade.

- Incrível, não é mesmo? - ele gritou em meio ao barulho. - Há cheiro de chuva, ruído de chuva e até um gosto de chuva, mas estamos completamente secos. É a mente controlando a matéria, Fogg. Enfim conseguimos! Descobrimos o segredo do universo.

Era como se eu tivesse atravessado alguma misteriosa fronteira no interior de mim mesmo e passado por um alçapão que conduzia às câmaras mais profundas do coração de Effing. Não se tratava simplesmente de eu ter cedido à grotesca artimanha daquele homem; eu fizera o gesto que validara definitivamente sua liberdade e, com isso, ganhara sua total confiança. O velho ia morrer, mas, enquanto vivesse, ele me amaria.

Percorremos mais uns sete ou oito quarteirões, e Effing, durante todo o trajeto, não parou de uivar de êxtase.

- É um milagre! - ele berrava. - Um maldito milagre! Dinheiro vindo do céu! Aproveitem enquanto é tempo. Dinheiro de graça! Dinheiro para todos!

Ninguém o ouviu, é claro, pois as ruas estavam desertas. Éramos naquele momento os únicos loucos que não tinham procurado abrigo. Para me livrar do resto das notas, fiz várias incursões rápidas por bares e cafés ao longo do caminho. Eu deixava Effing à porta e entrava para distribuir dinheiro. Seu riso ecoava nos meus ouvidos: era o insano acompanhamento musical do nosso último número circense. Nessa altura, tudo já se encontrava fora de controle. Nós nos tornáramos uma catástrofe natural, um tufão que ia engolindo pelo caminho as vítimas inocentes.

- Dinheiro! - eu gritava, rindo e chorando ao mesmo tempo. - Notas de cinquenta para todo mundo.

Eu estava tão encharcado que ia deixando poças pelo caminho, espirrava água nas pessoas, escorria como uma lágrima do tamanho do meu corpo. Foi sorte termos chegado ao fim. Se tivéssemos prosseguido muito mais, provavelmente teríamos sido presos por conduta arriscada e irresponsável.

O último lugar em que estivemos foi um café da rede Child’s - buraco sórdido, enfumaçado, com fortes lâmpadas fluorescentes. Havia uns doze, quinze clientes debruçados sobre o balcão, cada um aparentemente mais solitário e infeliz que o outro. Como só me restassem umas cinco ou seis notas no bolso, vi-me de repente sem saber como enfrentar a situação. Não conseguia mais pensar nem tomar decisão alguma. Na falta de ideia melhor, amassei as notas com a mão e joguei-as para cima.

- É de quem pegar - gritei.

Saí dali correndo e voltei a empurrar Effing debaixo da chuva.

DEPOIS DESSA NOITE, ele nunca mais saiu de casa. A tosse começou cedo, no dia seguinte, e, no final da semana, o catarro já tinha descido dos brônquios para os pulmões. Chamamos o médico, e ele confirmou o diagnóstico de pneumonia. Effing precisava ir imediatamente para o hospital, ele acrescentou. O velho, porém, não quis. Disse que tinha o direito de morrer na própria cama e que se suicidaria caso alguém tentasse tirá-lo do apartamento.

- Corto meu pescoço com uma navalha - ele ameaçou -, e depois vocês vão ter de carregar esse peso na consciência.

O médico, que antes cuidara de Effing, foi bastante esperto para já ter trazido consigo uma lista de locais que prestavam serviços particulares de enfermagem. A sra. Hume e eu tomamos as providências necessárias e passamos a semana seguinte às voltas com assuntos de ordem prática: advogados, contas bancárias, procurações e assim por diante. Houve ainda numerosos telefonemas, papéis para assinar, mas não creio que valha a pena falar disso agora. O importante foi que a sra. Hume acabou fazendo as pazes comigo. Quando, na noite da tempestade, cheguei com Effing ao apartamento, ela ficou tão furiosa que passou dois dias sem me dirigir a palavra. Ela me julgava responsável pelo adoecimento de Effing, e, como minha opinião fosse basicamente a mesma, não tentei me defender. Era-me doloroso estar de relações cortadas com ela, mas, quando já pensava que tal situação fosse definitiva, houve uma reviravolta. Não soube como aconteceu, mas presumo que ela tivesse feito com Effing algum comentário a tal respeito e ele a tivesse convencido a não me levar a mal. Depois, assim que me viu, ela me abraçou e pediu desculpas, emocionada, contendo as lágrimas.

- A hora dele chegou - disse ela solenemente. - Ele pode partir a qualquer momento, e não há nada que possamos fazer.

As enfermeiras trabalhavam em turnos de oito horas. Administravam os remédios, trocavam a comadre, verificavam o soro aplicado ao braço de Effing. Com poucas exceções, eu as achava bruscas e frias, mas nem é preciso dizer que Effing queria saber delas o mínimo possível. Foi assim até os últimos dias, quando ele já se encontrava fraco demais para notar que estavam presentes. A menos que elas tivessem que executar alguma tarefa específica, ele fazia questão de que permanecessem fora do quarto. Assim, costumavam ser vistas no sofá da sala, amuadas, em silêncio, com ar de desprezo, a fumar e a folhear revistas. Uma ou duas abandonaram o serviço e outras duas foram despedidas. Mas, afora o tratamento duro com as enfermeiras, Effing mostrava-se excepcionalmente gentil. Era como se sua personalidade tivesse se transformado a partir do momento em que caiu de cama, como se a gradual aproximação da morte o tivesse purgado do seu veneno. Não creio que ele sentisse muita dor, e, embora houvesse dias melhores e piores (a certa altura, aliás, chegou a parecer que ele se recuperara completamente, mas, setenta e duas horas depois, sofreu uma recaída), o avanço da doença se processou numa lenta e inexorável perda de forças, até que seu coração parou de bater.

Eu passava os dias todos no quarto, sentado a seu lado, como ele queria. Depois da noite da tempestade, nosso relacionamento tinha mudado tanto que ele parecia gostar de mim como se eu fosse do seu próprio sangue. Ele pegava minha mão e dizia estar feliz, confortado por ter-me ali. No começo, desconfiei dessas manifestações de sentimentalismo, mas, com a crescente evidência de seu afeto, acabei por reconhecê-lo. Quando ele ainda tinha forças para conversar, fez-me perguntas a respeito de minha vida, e eu lhe contei histórias de minha mãe, de tio Victor, dos tempos de faculdade, do desastroso período que me conduziu ao colapso até ser salvo por Kitty Wu. Effing me confessou estar preocupado com o que seria de mim depois que ele esticasse as canelas (expressão dele), mas tentei convencê-lo de que era capaz de cuidar de mim mesmo.

- Você é um rapaz sonhador - disse ele. - Tem a cabeça na lua e, pelo jeito, vai ser sempre assim. Não tem ambições, não liga para dinheiro e é filósofo demais para ter propensão artística. O que vou fazer com você? Precisa haver alguém que tome conta de você, que se preocupe em saber se você tem comida no estômago e um pouco de dinheiro no bolso. Assim que eu me for, você volta à mesma situação de antes.

- Tenho planos - menti, na esperança de que ele mudasse de assunto. - Candidatei-me no inverno passado ao curso de biblioteconomia da Colúmbia e fui aceito. Pensei que já tivesse lhe contado isso. As aulas começam no outono.

- E como vai fazer para pagar o curso?

- Deram-me uma bolsa de estudos integral, mais algum para cobrir as despesas de subsistência. Foi um grande negócio, uma tremenda oportunidade. O curso dura dois anos, e depois disso não vou ter problema para ganhar a vida.

- É difícil vê-lo como bibliotecário, Fogg.

- Reconheço que é estranho, mas acredito que possa me dar bem. As bibliotecas, afinal de contas, são um mundo diferente daquele lá fora, são lugares à parte, santuários de puro pensamento. Assim, vou poder continuar vivendo na lua para o resto da vida.

Vi que Effing não acreditou no que eu disse, mas, em nome da harmonia, fingiu que sim. Não quis perturbar a tranquilidade que se instalara entre nós. Tal atitude era bem típica do comportamento de Effing em suas últimas semanas. Creio que ele estivesse orgulhoso de si próprio por ser capaz de morrer desse modo, como se a ternura que começava a demonstrar por mim provasse que ele ainda podia conseguir tudo o que quisesse. Apesar da gradual perda de forças, Effing continuava a acreditar que tinha o controle de seu destino, e essa ilusão permaneceu até o fim: a ideia de que havia dominado a própria mente, de que tudo acontecia conforme planejara. Ele havia anunciado que morreria em 12 de maio, e manter a palavra parecia agora ser a única coisa que lhe interessava. Effing se entregava de braços abertos à morte e, ao mesmo tempo, rejeitava-a, lutando com o que ainda lhe restava de energia para subjugá-la, adiá-la, permitir que viesse apenas no dia por ele determinado. Mesmo quando já mal podia falar, quando o menor som vindo de sua garganta lhe exigia tremendo esforço, a primeira coisa que perguntava a cada manhã, assim que eu entrava no quarto, era em que dia estávamos. Como já não conservasse a noção do tempo, a pergunta era repetida várias vezes ao longo do dia. Em 3 ou 4 de maio, ele entrou de repente em dramático declínio. Parecia improvável que fosse resistir até o dia 12. Para tranquilizá-lo, passei então a mentir a respeito da data, adiantando o calendário sempre que ele me fazia a pergunta. Numa tarde especialmente difícil, cheguei a avançar três dias no espaço de poucas horas. É o dia 7, eu lhe disse, o dia 8, o dia 9; e tão longe ele estava em seu estado de ausência que nem notou a discrepância. Quando, na semana seguinte, seu quadro clínico voltou a se estabilizar, eu ainda estava adiantado em relação à data. Só pude então continuar dizendo que era dia 9. Achava que era o mínimo que podia fazer por ele - dar-lhe a satisfação de pensar que vencera a prova de força de vontade. Não importava o dia em que ele morresse, eu iria sempre dizer que era o dia 12.

O som da minha voz o acalmava, dizia Effing, e, mesmo quando ele já estava fraco demais para enunciar seu pensamento, queria que eu continuasse falando. Indiferente ao conteúdo do que eu dizia, bastava-lhe ouvir minha voz e sentir-me presente. Eu tagarelava o mais que podia, passando de um assunto a outro conforme o estado de espírito. Nem sempre era fácil sustentar um monólogo desses, e, toda vez que me faltava inspiração, eu me servia de vários recursos para poder prosseguir: aproveitava enredos de filmes e romances, recitava poemas de cor - Effing gostava especialmente de Sir Thomas Wyatt e Fulke Greville - ou mencionava notícias do jornal do dia.

Por estranho que pareça, ainda me lembro muito bem de algumas dessas histórias, e sempre que as evoco (o alastramento da guerra no Camboja, a morte de quatro manifestantes na Universidade Kent State), vejo-me no quarto de Effing. Vejo-o na cama, de boca aberta, sem dentes; ouço arfarem seus pulmões obstruídos; vejo seus olhos cegos, aquosos, fixados no teto; suas mãos crispadas, em forma de aranha, agarradas ao cobertor; a espantosa palidez de sua pele enrugada. A associação é inevitável. Por meio de algum obscuro e involuntário reflexo, tais acontecimentos passaram a se circunscrever nos contornos do rosto de Effing, e é-me impossível lembrar deles sem enxergá-lo diante de mim.

Às vezes eu nada fazia além de descrever o quarto em que estávamos. Empregando o mesmo método utilizado em nossos passeios, escolhia um objeto e começava a falar dele. O padrão da colcha; a escrivaninha do canto; o mapa emoldurado de Paris pendurado na parede da janela. Embora Effing não acompanhasse tudo o que eu dizia, tais inventários pareciam trazer-lhe enorme prazer. Com tantas coisas a lhe escaparem, a presença física, imediata, dos objetos surgia-lhe na fronteira da consciência como uma espécie de paraíso, um reino inatingível de milagres triviais: o tátil, o visível, o campo perceptivo que rodeia a vida. Ao colocar em palavras tais coisas, eu proporcionava a Effing a oportunidade de experimentá-las de novo, como se o simples fato de alguém ocupar seu lugar no mundo dos objetos fosse o bem mais precioso. Num certo sentido, meu trabalho no quarto foi mais duro que os anteriores. Ative-me aos mais ínfimos detalhes e materiais - lã e algodão, prata e estanho, diferentes texturas de madeira, ornatos de estuque -, descrevi cada reentrância, falei de cores e formas, explorei microscópicas geometrias de tudo o que se encontrava à vista.

À medida que Effing enfraquecia, mais eu me empenhava, redobrando esforços para cobrir a crescente distância entre nós. Já perto do fim, eu me exigia tamanha precisão que levava horas só para descrever o quarto. Avançava por extensões ínfimas, milimétricas, sem permitir que nada me escapasse, nem mesmo as partículas de poeira que pairavam no ar. Minei os limites daquele espaço até que ele se tornou inesgotável, uma plenitude de palavras dentro de palavras. A certa altura, dei-me conta de que talvez estivesse falando para o vazio, mas continuei falando assim mesmo, hipnotizado com a ideia de que minha voz mantinha Effing vivo. Não fazia a menor diferença, é claro. Ele estava se esvaindo, e, nos dois últimos dias que passei a seu lado, não creio que ouvisse uma palavra sequer do que eu dizia.

Eu não estava presente quando ele morreu. Depois de ter-lhe feito companhia até as oito horas do dia 11, a sra. Hume apareceu para me permitir descansar. Ela insistiu em que eu tirasse o resto da noite de folga.

- Não há nada que possamos fazer por ele agora - afirmou ela. - Você está aqui desde manhã e é hora de sair para respirar um pouco. Se ele aguentar ainda esta noite, ao menos você estará bem disposto amanhã.

- Não creio que vá haver amanhã para ele - respondi.

- Talvez não. Mas dissemos a mesma coisa ontem, e ele continua aí.

Saí com Kitty e fomos jantar no Moon Palace. Depois, pegamos uma sessão dupla no Cine Thalia (um dos filmes era Cinzas e Diamantes, mas talvez me engane). Normalmente teria levado Kitty para casa depois do cinema, mas, como eu tivesse um mau pressentimento, seguimos pela West End Avenue, na direção do apartamento, para perguntar à sra. Hume como passava Effing. Já era quase uma hora quando chegamos lá. Rita estava em lágrimas ao abrir a porta, e não era preciso falar nada para eu saber o que tinha acontecido. Effing morrera havia menos de uma hora. Quando perguntei à enfermeira a hora exata da morte, ela respondeu: "Meia-noite e dois minutos". Effing conseguira afinal chegar ao dia 12. Pareceu-me tão absurdo que nem soube como reagir. Senti uma estranha cócega na cabeça, como se de repente houvesse um curto-circuito em meu cérebro. Achei que estava a ponto de chorar. Corri a um canto da sala e cobri o rosto com as mãos. Fiquei esperando as lágrimas, mas elas não vieram. Pouco depois, alguns sons espasmódicos saíram da minha garganta. Dei-me conta logo em seguida de que estava rindo.

DE ACORDO COM AS instruções deixadas por Effing, seu corpo devia ser cremado. Não haveria serviço fúnebre, nem enterro, nem a presença de representante de nenhuma religião no momento em que fosse dado um destino final a seus restos. A cerimônia seria bastante simples: a sra. Hume e eu tomaríamos a balsa para Staten Island e, quando chegássemos à metade do caminho (com a Estátua da Liberdade bem visível à nossa direita), espalharíamos as cinzas pelas águas do porto de Nova York.

Tentei comunicar-me com Solomon Barber em Northfield, Minnesota, achando que lhe deveria ser dada a oportunidade de estar presente. Telefonei várias vezes para sua casa, mas ninguém atendeu. Depois, liguei para o Departamento de História do Magnus College e disseram-me que o professor Barber estava ausente naquela primavera. A secretária parecia relutante em me fornecer mais informações, mas, depois que lhe expliquei o motivo do meu telefonema, ela cedeu um pouco e acrescentou que o professor partira para a Inglaterra em viagem de pesquisa. Como poderia entrar em contato com ele?, perguntei. Isso seria um problema, ela respondeu, pois ele não tinha deixado nenhum endereço. Mas e a correspondência dele?, prossegui. Devia estar sendo enviada para algum lugar. Não, foi a resposta, não estava. Ele tinha pedido que fosse guardada para quando chegasse. E quando ele voltaria? Só em agosto, disse ela, pedindo desculpas por não me poder ajudar em mais nada. Algo em sua voz me fez crer que ela dizia a verdade. Mais tarde, naquele mesmo dia, escrevi uma longa carta a Barber em que tentava lhe expor a situação do melhor modo possível. Foi uma tarefa difícil, que me ocupou duas ou três horas. Assim que terminei a carta, datilografei-a e enviei-a junto da transcrição revista da autobiografia de Effing. Ao que me parecia, ali se encerrava minha responsabilidade quanto ao assunto. Tinha feito o que Effing me pedira, e dali por diante tudo ficaria nas mãos dos advogados, que não tardariam a entrar em contato com Barber.

Dois dias depois, a sra. Hume e eu pegamos as cinzas no crematório. Estavam numa urna de metal cinzento não maior do que um filão de pão. Era-me difícil imaginar que Effing estivesse de fato ali. Tanto dele desaparecera que estranhei ter restado alguma coisa. Até a sra. Hume, que sem dúvida tinha um senso de realidade mais forte que o meu, pareceu-me espantada com a urna, pois, ao levá-la para casa, segurava-a com os braços esticados para a frente, como se contivesse alguma substância venenosa ou radiativa. Ambos concordamos em tomar a balsa no dia seguinte, chovesse ou fizesse sol. Era, porém, seu dia de visita ao irmão, no hospital psiquiátrico. Assim, em vez de cancelar a visita, ela decidiu levá-lo conosco. Enquanto falava, ocorreu-lhe que talvez Kitty também pudesse nos acompanhar. Não me pareceu necessário, mas, quando transmiti o recado, Kitty disse que queria ir. Era um acontecimento importante, ela acrescentou, e gostava demais da sra. Hume para deixar de dar-lhe apoio moral. Fomos, então, os quatro, em vez de dois. Duvido que Nova York tenha jamais visto um cortejo fúnebre mais exótico.

A sra. Hume saiu de casa cedo na manhã seguinte para ir buscar o irmão. Nesse meio tempo, Kitty chegou com uma minúscula minissaia azul e sapatos de salto alto que combinavam à perfeição com suas pernas lisas, cor de cobre. Expliquei-lhe que, como se dizia, o irmão da sra. Hume não era muito bom da cabeça, embora, nunca o tendo visto, não soubesse muito bem o que isso significava. Acabei encontrando um homem de seus cinquenta anos, corpulento, rosto redondo, cabelos ralos, avermelhados, olhos atentos e penetrantes. Ao chegar com a irmã, tinha um certo ar distraído e febril (era a primeira vez em mais de um ano que deixava o hospital). Nos primeiros minutos não fez mais que sorrir e nos apertar a mão. Usava um blusão azul, impermeável, fechado até o pescoço, calça cáqui bem passada, sapatos pretos reluzentes e meias brancas. Do bolso do blusão, saía o fio espiralado do fone de ouvido de um rádio transistorizado. Ele ficou o tempo todo de fone na orelha e, a cada um ou dois minutos, enfiava a mão no bolso para mexer no botão de sintonia. Sempre que fazia isso, fechava os olhos e se concentrava, como se estivesse ouvindo mensagens de outra galáxia. Quando perguntei qual era sua estação preferida, ele me respondeu que eram todas iguais.

- Não ouço rádio para me divertir - ele acrescentou. - Esse é o meu trabalho. Se não o fizer direito, não posso saber o que acontece com as bombas poderosas que ficam no subsolo da cidade.

- Bombas poderosas?

- As bombas H. Existem mais de dez delas em túneis subterrâneos, e são sempre levadas de um lugar para outro para que os russos não descubram onde estão. Deve haver uma centena de lugares diferentes bem no fundo da cidade, abaixo do metrô.

- E o que isso tem a ver com o rádio?

- A informação é transmitida em código. Sempre há transmissão direta em alguma estação, isso significa que estão transportando as bombas. Os jogos de beisebol são os melhores indicadores. Se o Mets ganha por cinco a dois, isso quer dizer que estão colocando as bombas na posição cinquenta e dois. Se perderem por seis a um, quer dizer posição dezesseis. Fica tudo muito simples quando se pega o jeito.

- E se for o Yankees?

- O resultado que se leva em conta é o do time que joga em Nova York. Nunca jogam no mesmo dia, na mesma cidade. Quando o Mets joga em Nova York, o Yankees está viajando e vice-versa.

- Mas de que nos serve saber onde estão as bombas?

- Para podermos nos proteger. Não sei o que acha disso, mas a ideia de uma explosão não me deixa muito feliz. Alguém precisa acompanhar o que está acontecendo. Se ninguém mais faz isso, acho que sou eu quem tem de fazer.

A sra. Hume trocava de roupa enquanto eu tinha essa conversa com seu irmão. Assim que ela ficou pronta, saímos todos e pegamos um táxi até o local da balsa, no extremo sul de Manhattan. O dia estava lindo. Céu claro; vento seco, frio, a zumbir. Lembro-me de estar sentado no banco de trás, com a urna no colo, ouvindo Charlie falar de Effing enquanto seguíamos pela West Side Highway. Ao que deduzi, eles se encontraram várias vezes, e, depois de esgotado o assunto sobre o que possuíram em comum - o Estado de Utah -, Charlie prosseguiu com um relato tortuoso, fragmentado, da experiência que ele próprio lá tivera. Durante a guerra, fizera o treinamento de piloto de bombardeiro em Wendover, disse ele, bem no meio do deserto, onde destruía cidades de sal em miniatura. Esteve numas trinta ou quarenta missões na Alemanha e, já no fim da guerra, mandaram-no de volta a Utah para participar do programa da bomba atômica.

- Não era para sabermos do que se tratava - ele explicou -, mas acabei descobrindo. Quando existe alguma informação para se descobrir, pode estar certo de que Charlie Bacon a descobre. Primeiro foi a Big Boy, a que jogaram sobre Hiroxima, com o coronel Tibbets. Eu estava escalado para a tripulação do avião seguinte, o que dali a três dias seguiu para Nagasaki. Ah, mas não havia como me obrigarem a fazer isso! Tamanha destruição, só mesmo com Deus. Os homens não têm o direito de fazer uma coisa dessas. Enganei-os fingindo estar louco. Certa tarde, simplesmente saí para o deserto e segui em frente, naquele tremendo calor. Podiam atirar em mim, mas não liguei para isso. Eles não iriam me transformar num agente da destruição. Minha experiência na Alemanha já tinha sido bastante má. Não, preferia ficar louco a ter esse peso na consciência! Na minha opinião, não teriam feito aquilo se os japoneses fossem brancos. Não dão a mínima para os amarelos. Sem ofensa - ele acrescentou de repente, voltando-se para Kitty - mas, para eles, os amarelos são como cachorros. O que acha que estamos fazendo agora no sudeste asiático? A mesma coisa, matando os amarelos que aparecem na frente. Também foi assim com os índios. Agora temos bombas de hidrogênio em vez de atômicas, e os generais continuam a produzir novas armas em Utah, longe de tudo, onde ninguém os vê. Lembram-se daqueles carneiros que morreram no ano passado? Seis mil carneiros. Lançaram no ar um novo gás venenoso, e tudo morreu num raio de quilômetros. Não, eu não vou ser responsável por uma carnificina dessas. Amarelos, brancos, qual é a diferença? Somos todos iguais, não é mesmo? Não, não vão forçar Charlie Bacon a fazer esse trabalho sujo! Prefiro ser louco a me envolver com essas bombas.

O monólogo de Charlie foi interrompido por nossa chegada, e o resto do dia ele passou em retiro, dedicado aos arcanos do seu transistor. No entanto, o fato de estar no barco parecia agradar-lhe, e apesar de tudo meu estado de espírito também era bom. A estranheza de nossa missão de algum modo afastava os pensamentos sombrios, e até mesmo a sra. Hume conseguiu fazer a viagem sem derramar uma lágrima. Lembro-me, acima de tudo, de como Kitty estava bonita naquela roupa minúscula, com o vento a agitar-lhe os longos cabelos negros, e de sua mão, pequena e delicada, na minha. O barco não ia lotado àquela hora, e havia mais gaivotas que passageiros a nos fazer companhia no convés. Assim que avistamos a Estátua da Liberdade, abri a urna e soltei as cinzas ao vento - uma mescla de branco, cinzento e negro que desapareceu em questão de segundos. Charlie estava a minha direita e Kitty à esquerda, de braço dado com a sra. Hume. Todos acompanhamos o voo breve e agitado das cinzas, até que nada mais houvesse para ver. Em seguida, Charlie voltou-se para a irmã e disse:

- Quero que faça o mesmo comigo, Rita. Quando eu morrer, quero ser cremado e que minhas cinzas sejam lançadas ao vento. É uma visão gloriosa sair dançando em todas as direções ao mesmo tempo, a visão mais gloriosa do mundo.

Quando a balsa atracou na doca de Staten Island, demos a volta e tomamos o barco seguinte para Manhattan. A sra. Hume havia preparado um bom jantar para nós, e, em menos de uma hora depois de chegarmos ao apartamento, já estávamos à mesa, começando a comer. Estava tudo acabado. Eu já tinha feito a mala e, logo depois do jantar, eu deixaria para sempre a casa de Effing. A sra. Hume pretendia ficar até que estivesse encerrado o processo de herança. Afirmou que se tudo corresse bem (referia-se à parte que esperava receber), iria com Charlie de mudança para a Flórida, onde começaria vida nova. Pela quinquagésima vez, disse-me que eu poderia ficar no apartamento por quanto tempo quisesse, e, pela quinquagésima vez, respondi-lhe que tinha onde morar, que iria para a casa de um dos amigos de Kitty. Quais eram os meus planos?, ela quis saber. O que eu iria fazer da vida? Naquela altura, já não era preciso mentir.

- Não estou bem certo - respondi. - Preciso pensar. Mas logo chego a uma decisão.

Houve lágrimas e abraços afetuosos ao nos despedirmos. Prometemos manter contato um com outro, mas, é claro, isso não aconteceu. Foi a última vez que a vi.

- Você é um jovem muito simpático, um cavalheiro - ela me disse à porta. - Nunca vou me esquecer do quanto foi bom para o senhor Thomas. Muitas vezes ele não mereceu tanta bondade.

- Todo mundo merece bondade - disse eu. - Não importa quem seja.

Kitty e eu já tínhamos saído quando a sra. Hume saiu correndo desajeitadamente pelo corredor, atrás de nós.

- Quase esqueci - disse ela. - Tenho algo para lhe entregar.

Voltamos para dentro. A sra. Hume abriu o armário do hall e, da prateleira de cima, tirou um saco marrom de supermercado, todo amassado.

- O senhor Thomas deixou isto comigo no mês passado - ela explicou. - Queria que eu lhe entregasse quando você partisse.

Eu estava para enfiar o saco debaixo do braço e ir-me embora quando Kitty me interrompeu:

- Não está curioso para ver o que há dentro?

- Eu ia abrir lá fora - respondi. - Pode ser uma bomba.

A sra. Hume riu do que eu falei.

- Seria mesmo bem possível que o velhaco tivesse feito isso - ela observou.

- Exatamente. A última peça que ele prega, e do outro lado da sepultura.

- Bem, posso abrir se você preferir - Kitty se ofereceu. - Talvez seja uma coisa boa.

- Está vendo como ela é otimista? - eu disse à sra. Hume. - Sempre esperando pelo melhor!

- Deixe-a abrir - sugeriu Charlie, metendo-se ansioso na conversa. - Aposto que há um presente valioso aí dentro.

- Está bem - concordei, passando o saco a Kitty. - Já que fui vencido, a honra fica com você.

Com inimitável delicadeza, Kitty abriu a boca do saco e espiou. Quando ergueu o rosto e olhou para nós, ficou um instante calada, confusa, para em seguida exibir um sorriso largo e triunfante. Sem dizer palavra, ela virou o saco de cabeça para baixo e despejou o conteúdo no chão. Foi uma enxurrada de dinheiro, velhas notas amarrotadas que vinham abaixo. Em silêncio, vimos cair aos nossos pés notas de dez, vinte, cinquenta. Ao todo, eram mais de sete mil dólares.


6

DEPOIS DISSO, HOUVE um período extraordinário. Ao longo dos oito ou nove meses seguintes, vivi de um modo que até então não me fora possível. Foi quando mais perto estive, acredito, do paraíso terrestre em toda a minha existência neste planeta. Não apenas pelo dinheiro (embora isso não possa ser subestimado), mas pela rapidez com que minha vida deu uma reviravolta. A morte de Effing me libertara do vínculo de servidão com ele, mas, ao mesmo tempo, Effing me libertara da servidão ao mundo. E como eu fosse jovem, como ainda soubesse tão pouco a respeito da vida, não compreendia que essa fase de felicidade pudesse um dia acabar. Eu estivera perdido no deserto e, de repente, encontrara minha Canaã, minha terra prometida. Eu só podia então exultar, cair de joelhos em agradecimento e beijar o chão que pisava. Era ainda cedo demais para pensar que tudo isso podia ser destruído, cedo demais para imaginar que tinha pela frente o exílio.

O ano letivo de Kitty terminou uma semana depois de eu receber o dinheiro, e em meados de junho já tínhamos nossa casa. Por menos de trezentos dólares por mês, fomos morar num sótão grande e poeirento da East Broadway, não longe de Chatham Square e da ponte de Manhattan. Era o coração de Chinatown. Foi Kitty quem fez todos os arranjos. Usou os contatos que tinha com chineses para negociar com o proprietário e acabou fechando um contrato de cinco anos, que previa descontos no aluguel por quaisquer benfeitorias que fizéssemos. Corria o ano de 1970 e, afora alguns pintores e escultores que já haviam transformado sótãos em estúdios, a ideia de morar em lofts, nos velhos edifícios comerciais, apenas começava a se difundir em Nova York. Kitty queria espaço para sua dança (havia mais de cento e oitenta e cinco metros quadrados), e eu estava encantado com a perspectiva de morar num antigo prédio comercial, com canos expostos e tetos de metal enferrujado.

Compramos um fogão e uma geladeira de segunda mão no Lower East Side e ainda mandamos instalar um chuveiro rudimentar e um aquecedor de água no banheiro. Depois de vasculhar as ruas à procura de móveis usados, levamos uma mesa, uma estante, quatro cadeiras e uma escrivaninha verde que já perdera a firmeza. Compramos também um colchão de espuma e alguns utensílio de cozinha. A mobília desaparecia naquele espaço todo, mas, como tivéssemos aversão a atulhamento, ficamos satisfeitos com o minimalismo tosco da decoração e não pusemos mais nada. Em vez de fazermos excessivos gastos com a casa - eu já tinha gastado quase mil dólares -, saímos em expedição para comprar roupas novas. Encontrei tudo de que precisava em menos de uma hora e passamos o resto do dia de loja em loja à procura do vestido perfeito para Kitty. Somente quando já voltávamos para Chinatown foi que o encontramos: um chipao de seda, índigo brilhante, com bordados em vermelho e preto. Era o traje ideal para a Mulher-Dragão. Tinha uma abertura lateral embaixo e um ajuste perfeito nos quadris e no peito. Por causa do absurdo do preço, precisei torcer o braço de Kitty para que ela me deixasse comprá-lo. Para mim, no entanto, foi um dinheiro bem empregado, pois nunca me cansei de vê-la com aquela roupa. Quando acontecia de ficar muito tempo pendurada no armário, eu arranjava uma desculpa e íamos a um bom restaurante apenas para eu ter o prazer de admirá-la no chipao. Kitty era muito sensível aos meus pensamentos libidinosos e, uma vez tendo compreendido a profundidade da minha paixão por aquele vestido, passou a usá-lo certas noites em casa mesmo. Discretamente ela o vestia sobre o corpo nu, num prelúdio para a sedução.

Chinatown era para mim um outro país. Sempre que andava pela rua, sentia-me fortemente deslocado e confuso. Eu estava na América, mas não compreendia o que as pessoas diziam, não conseguia penetrar no sentido das coisas que via. Mesmo depois de ter conhecido alguns comerciantes da vizinhança, nossos contatos limitavam-se a pouco mais que sorrisos de gentileza e gestos frenéticos, uma linguagem gestual desprovida de verdadeiro conteúdo. Eu não conseguia transpor a superfície muda das coisas, e, às vezes, essa exclusão fazia-me sentir num mundo de sonhos, em que me movia entre uma multidão de espectros, todos de máscara no rosto. Ao contrário do que poderia ter esperado, não me importei com o fato de ser estrangeiro. Foi uma experiência estranha e revigorante que, a longo prazo, parecia reforçar a novidade de tudo o que estava acontecendo comigo. Eu não tinha a sensação de ter mudado de bairro, mas de ter viajado meio mundo para chegar aonde estava. Nada, portanto, me era familiar, nem eu para mim mesmo.

Assim que nos instalamos no sótão, Kitty arranjou trabalho para o resto do verão. Tentei convencê-la a não fazer isso. Preferia dar-lhe dinheiro e poupá-la do esforço, mas ela se recusou. Queria que estivéssemos quites, disse ela, e não gostava da ideia de ser sustentada por mim. A questão toda era fazer o dinheiro durar, gastar o mínimo possível. Kitty era com certeza mais prudente que eu nesses assuntos, e assim, diante da superioridade de sua lógica, acabei cedendo. Ela se inscrevera para secretária numa agência de trabalho temporário e, três dias depois, arranjavam-lhe emprego no edifício McGraw-Hill, na Sexta Avenida, numa revista especializada. Tantas vezes nós rimos do título da revista que eu não poderia esquecê-lo. Ainda hoje não me é possível citá-lo sem sorrir: Plástico Moderno: A Revista Totalmente Envolvida com Plástico. Kitty trabalhava todos os dias das nove às cinco. Ia e voltava de metrô, assim como milhões de passageiros que precisavam suportar o calor do verão. Não devia ser fácil, mas Kitty não era de se queixar de tais coisas. À noite, fazia seus exercícios de dança em casa, durante duas ou três horas, e, na manhã seguinte, já estava toda lépida, a correr para mais um dia de trabalho no escritório. Enquanto ela estava fora, eu fazia compras e o trabalho doméstico. Nunca a deixava sem jantar. Era a primeira vez que experimentava uma vida caseira. Entrei nela naturalmente, sem maiores elucubrações. Nenhum de nós falava a respeito do futuro, mas, a certa altura, talvez dois ou três meses depois de estarmos morando juntos, ambos começamos, creio eu, a suspeitar que estivéssemos caminhando para o casamento.

Enviei o obituário de Effing ao Times, mas não obtive resposta, nem mesmo um comunicado de rejeição. Talvez minha carta tivesse se extraviado, ou talvez tivessem pensado que fora escrita por algum doido. A versão mais longa, que diligentemente submeti à apreciação da Art World Monthly, de acordo com o pedido de Effing, foi recusada, mas achei perfeitamente cabível tal precaução. Conforme me explicou o editor na carta que me escreveu, ninguém na revista ouvira falar de Julian Barber, e, a menos que eu pudesse lhes apresentar slides de sua obra, seria um risco muito grande publicarem algum artigo a seu respeito. "Tampouco o conheço, senhor Fogg", prosseguia a carta, "mas me parece que o senhor nos está querendo pregar uma peça muito bem concebida. Isso não quer dizer que sua história não seja atraente. Talvez, caso deixe a brincadeira de lado, o senhor encontre quem queira publicá-la como obra de ficção."

Sentia que, em nome de Effing, eu devia ao menos fazer mais algum esforço. Assim, no dia seguinte ao recebimento da carta da Art World Monthly, fui até a biblioteca, tirei uma cópia do obituário de Julian Barber publicado em 1917 e o enviei ao editor, junto de uma pequena carta explicativa. "Leve-se em conta que Barber era um artista jovem e obscuro na época de seu desaparecimento", escrevi, "mas ele de fato existiu. Espero que este obituário do New York Sun lhe prove que agi de boa-fé." Na mesma semana recebi pelo Correio um pedido de desculpas, que não passava, porém, de um prefácio de outra rejeição. "Posso admitir que existiu um pintor americano com o nome de Julian Barber", escreveu o editor, "mas isso não prova que Thomas Effing e Julian Barber fossem a mesma pessoa. Mesmo que fossem, sem nenhuma reprodução do trabalho de Barber, é impossível julgarmos que espécie de pintor era ele. Devido a sua obscuridade, seria lógico presumir que não se trata de um artista de grande talento. Nesse caso, não faria sentido lhe dedicarmos espaço nesta revista. Disse em minha carta anterior que, na minha opinião, o senhor dispunha de excelente material para um romance. Volto atrás nisso. O que o senhor tem em mãos é um caso psicológico anormal, que, em si, pode ser interessante, mas nada tem a ver com arte."

Depois disso, desisti. Creio que, se quisesse, poderia ter procurado alguma reprodução da obra de Barber, mas, na verdade, preferia não saber como eram suas pinturas. O fato de ter ouvido Effing falar ao longo de tantos meses me levara a compor lentamente seus quadros na minha imaginação. Acabei então percebendo que resistia à ideia de que algo viesse a perturbar os lindos fantasmas que eu criara. A publicação do artigo teria significado a destruição dessas imagens, e isso não me parecia valer a pena. Por mais talentoso que tivesse sido Julian Barber, seus quadros jamais poderia igualar aqueles que Thomas Effing me oferecera. Eu os sonhara a partir de suas palavras, e, enquanto sonhos, eram perfeitos, infinitos, mais exatos na representação do real do que a própria realidade. Desde que eu não abrisse os olhos, poderia sempre continuar a imaginá-los.

Eu passava os dias em esplêndida indolência. Afora as simples tarefas domésticas, não tinha responsabilidades. Sete mil dólares representavam uma quantia substancial naquela época, e eu não sofria nenhuma pressão imediata para elaborar planos. Voltei a fumar. Lia, passeava pelas ruas do sul de Manhattan, escrevia um diário. Meus rabiscos vieram a dar em vários ensaios, pequenas explosões em prosa que eu costumava ler a Kitty assim que as concluía. Ela estava convencida de que eu me tornaria escritor desde o nosso primeiro encontro, quando se impressionara com minha arenga sobre Cyrano. Agora então que me sentava todos os dias para escrever, era como se sua profecia estivesse cumprida. Entre todos os escritores que eu tinha lido, o que mais me inspirava era Montaigne. Assim como ele, eu tentava usar minhas próprias experiências como base para meus escritos. Mesmo quando o assunto me levava a regiões distantes e abstratas, eu sentia que estava menos imerso nas questões abordadas do que numa versão subterrânea da história da minha vida. Não me lembro de tudo o que escrevi, mas, quando faço algum esforço de evocação, certos trabalhos me vêm à mente: uma meditação sobre o dinheiro, por exemplo; outra sobre vestuário; um ensaio sobre órfãos; e um trabalho mais longo sobre o suicídio - em grande parte uma discussão de Jacques Rigaut, francês dadaísta menor que, aos dezenove anos, se deu mais dez anos de vida e, ao completar vinte e nove, manteve a palavra, suicidando-se com um tiro no dia previsto. Lembro-me também de ter feito alguma pesquisa a respeito de Tesla, como parte de um projeto para discutir a questão das máquinas em oposição ao mundo da natureza. Certo dia, eu escarafunchava um sebo da Quarta Avenida quando, de repente, dei com um exemplar da autobiografia de Tesla, Minhas Invenções, publicada originalmente em 1919 na revista The Electrical Engineer. Levei o pequeno volume para casa e comecei a lê-lo. Lidas já várias páginas, deparei com a mesma frase que encontrara no biscoito da sorte do Moon Palace, quase um ano antes: "O Sol é o passado, a Terra o presente, a Lua o futuro". Eu ainda levava na carteira o pedacinho de papel. Espantou-me a descoberta de que tais palavras fossem de Tesla, o homem que fora tão importante para Effing. A sincronização desses dois acontecimentos pareceu-me plena de significado, mas achava difícil captar exatamente qual. Era como se ouvisse o destino a chamar por mim, mas, ao aguçar os ouvidos, dava-me conta de que aquela língua eu não compreendia. Algum funcionário da fábrica de biscoitos chineses teria por acaso lido o livro de Tesla? Achei implausível, mas, mesmo que tivesse, por que justamente eu naquela mesa fora pegar tal mensagem? Não pude deixar de me sentir inquieto. Aquilo era um nó de impenetrabilidade, explicável apenas, parecia-me, por algo de excêntrico: estranhas conspirações da matéria, sinais precognitivos, premonições, uma visão de mundo semelhante à de Charlie Bacon. Abandonei meu ensaio sobre Tesla e comecei a explorar a questão das coincidências, mas não avancei muito nisso. Achei o assunto demasiado difícil de se tratar e acabei por deixá-lo de lado, dizendo a mim mesmo que o retomaria mais tarde, o que, afinal, não aconteceu.

Em meados de setembro, começaram as aulas de Kitty na Juilliard, e poucos dias depois tive finalmente notícias de Solomon Barber. Havia transcorrido quase quatro meses desde a morte de Effing, e eu já não esperava que ele escrevesse. Não era importante. Diante das várias reações que uma pessoa na sua situação poderia ter - choque, ressentimento, felicidade, espanto -, eu não o levaria a mal caso ele não entrasse em contato. Passar os primeiros cinquenta anos de vida pensando que o pai estava morto e descobrir que ele estivera vivo esse tempo todo, ao ter a notícia de sua verdadeira morte, era algo tão desconcertante que eu não conseguia prever a reação de ninguém diante de tal terremoto. O fato, porém, é que acabei encontrando a carta de Barber na caixa do Correio: carta simpática em que pedia desculpas e agradecia efusivamente tudo o que eu tinha feito pelo pai nos seus últimos meses de vida. Acolheria bem a oportunidade de conversar comigo, dizia ele, e, se não fosse pedir muito, perguntava se não poderia vir a Nova York num fim de semana daquele mesmo outono. O tom da carta era tão educado e cheio de tato que nem sequer me ocorreu dizer não. Assim que terminei de lê-la, fui escrever a resposta: que viesse quando achasse melhor, que ficaria satisfeito em me encontrar com ele.

Não muito depois, Barber tomava um avião para Nova York. Era uma tarde de sexta-feira, início de outubro, e o tempo começava a mudar. Assim que se instalou no Warwick, hotel da região central de Manhattan, ele me telefonou para comunicar sua chegada. Ficamos de nos encontrar dali a pouco, o tempo suficiente para eu lá chegar. Quando lhe perguntei como o reconheceria, ele riu de leve ao telefone.

- Eu serei a maior pessoa que você vir ali - ele respondeu. - Não há como não me notar. Mas, caso haja outro do meu tamanho, eu serei o calvo, sem um único fio de cabelo.

Assim que o vi, dei-me conta de que o adjetivo "grande" ainda não lhe fazia justiça. O filho de Effing era enorme, de uma corpulência monumental, um monte de carne sobre carne. Eu nunca conhecera ninguém com aquelas dimensões, tanto que hesitei em me aproximar dele ao avistá-lo no sofá do saguão do hotel. Ele era um desses gordos monstruosos que às vezes encontramos na rua e de quem, embasbacados, não conseguimos desviar o olhar. Diante de sua obesidade titânica, de sua proeminente rotundidade, era impossível não termos a sensação de encolhimento. Era como se sua tridimensionalidade fosse mais pronunciada que a dos outros mortais. Ele não apenas ocupava mais espaço como também parecia transbordar, ocupando áreas onde não estava. Ali sentado, em repouso, com a vastidão calva da cabeça a erguer-se das dobras do maciço pescoço, ele tinha um quê de lendário, algo ao mesmo tempo trágico e obsceno. Não era possível que o parco e diminuto Effing tivesse dado origem a um filho daqueles. Tratava-se de um acidente genético, de uma semente renegada que germinara e se desenvolvera descontroladamente. Estive a ponto de me convencer de que ele era uma alucinação, mas, em seguida, nossos olhares se cruzaram e seu rosto se iluminou num sorriso. Ele usava um terno verde de tweed e sapatos castanho-claros. O charuto longo e fino já meio fumado que ele prendia entre os dedos da mão esquerda não parecia maior que um alfinete.

- Solomon Barber? - perguntei.

- Eu mesmo - ele respondeu. - E você deve ser Fogg. Prazer em conhecê-lo.

Sua voz cheia e ressonante trovejava um pouco com a fumaça de charuto retida em seus pulmões. Apertei a enorme mão que ele estendeu e sentamo-nos no sofá. Durante uns instantes nenhum de nós disse mais nada. O sorriso desfez-se lentamente no rosto de Barber, e ele foi assumindo uma expressão perturbada, distante. Ele me analisava com cuidado, mas ao mesmo tempo parecia perdido em pensamentos, como se alguma ideia importante lhe tivesse ocorrido. Em seguida, inexplicavelmente, fechou os olhos e respirou fundo.

- Certa vez conheci uma pessoa com o nome de Fogg - ele enfim falou. - Há muito tempo.

- Não é um nome muito comum - respondi. - Mas existem alguns por aí.

- Fui professor dessa pessoa nos anos 40. Naquela época eu estava começando a dar aulas.

- Lembra-se do primeiro nome?

- Lembro-me, sim. Era uma mulher, uma jovem. Emily Fogg. Ela era caloura no meu curso de História da América.

- Sabe de onde ela era?

- Chicago. Acho que era de Chicago.

- Minha mãe se chamava Emily. E era de Chicago. Seria possível que houvesse duas pessoas com o mesmo nome, estudando na mesma faculdade e vindas do mesmo lugar?

- É possível, mas pouco provável. A semelhança é muito grande. Eu a reconheci no momento em que você chegou.

- Uma coincidência atrás da outra - observei. - O mundo parece estar cheio delas.

- É, às vezes isto se torna bastante intrigante - comentou Barber, voltando a abandonar-se em pensamentos. Segundos depois, fez um visível esforço para se controlar e prosseguiu: - Espero que não se ofenda com minha pergunta, mas como foi que ficou com o nome de solteira de sua mãe?

- Meu pai morreu antes de eu nascer, e minha mãe voltou a usar o nome de Fogg.

- Desculpe, não quis bisbilhotar.

- Tudo bem. Não conheci meu pai, e minha mãe já morreu há muitos anos.

- É, eu soube disso pouco depois que aconteceu. Um acidente de trânsito, parece. Não estou bem certo. Uma grande tragédia! Deve ter sido terrível para você.

- Ela foi atropelada por um ônibus em Boston. Eu era apenas um menino na época.

- Uma grande tragédia! - repetiu Barber, fechando de novo os olhos. - Sua mãe era uma moça bonita e inteligente. Lembro-me bem dela.

DEZ MESES DEPOIS, COM a coluna fraturada, morrendo num hospital de Chicago, Barber contou-me que começara a suspeitar da verdade logo naquela primeira conversa, no saguão do hotel. O único motivo pelo qual então nada me dissera fora o receio de que eu fugisse, espantado. Como ele ainda não me conhecesse, não tinha como prever de que modo eu reagiria diante de uma notícia tão súbita e catastrófica. Bastava-lhe imaginar a cena para compreender a importância de conter a língua. Um desconhecido de quase cento e sessenta quilos convida-me para uma conversa no hotel, aperta-me a mão e, em seguida, em vez de tratar do assunto combinado, olha-me bem nos olhos e diz que é o pai que eu nunca conhecera. Por maior que fosse a tentação, eu não lhe daria crédito. Muito provavelmente teria pensado que ele era um louco e não mais iria querer falar com aquele sujeito. Já que teríamos bastante tempo para nos conhecermos, ele não queria destruir suas chances ao criar uma situação difícil no momento errado. Assim como muitas coisas da história que estou tentando contar, isso acabou por se revelar um equívoco. Ao contrário do que imaginara Barber, não havia muito tempo para nós. Ele contava com o futuro para a solução do problema, mas esse futuro não chegou. Não foi culpa dele, mas Barber pagou por isso assim mesmo. E eu também. Não vejo, contudo, como ele poderia agir de outro modo. Ninguém podia saber o que tínhamos pela frente; ninguém podia prever as coisas terríveis, sombrias, que nos estavam reservadas.

Ainda hoje, não consigo me lembrar de Barber sem me sentir tomado de piedade. Se eu nunca tivesse chegado a saber quem era meu pai, ao menos saberia que esse pai tinha existido. Afinal, uma criança provém necessariamente de algum lugar, e o homem que dá origem a essa criança, quer queira quer não, é chamado de pai. Barber, no entanto, não sabia de nada. Dormira com minha mãe somente uma vez (numa noite úmida, sem estrelas, na primavera de 1946), e, no dia seguinte, ela já sumira para sempre de sua vida. Ele não sabia que ela engravidara, não sabia que tinha um filho, não tinha ideia daquilo que provocara. Diante do desastre que se seguiu, parece justo que lhe viesse algum consolo, nem que fosse apenas o conhecimento de tudo o que tinha feito. A mulher da limpeza entrara no quarto mais cedo naquela manhã, sem bater à porta, e, como não tivesse contido o grito, toda a pensão lhe foi em socorro antes mesmo que o casal tivesse tempo de se vestir. Fosse somente a mulher da limpeza, eles poderiam ter inventado uma história, talvez até resolvido o problema ali mesmo, mas o caso é que havia muitas testemunhas. Uma estudante de dezenove anos fora encontrada na cama com o professor de História. Havia regras condenando coisas desse tipo, e somente um boçal se deixaria surpreender nessa situação, principalmente num lugar como Oldburn, Ohio. Ele foi demitido, Emily voltou para Chicago, e fim. Depois desse revés, a carreira de Barber nunca mais se reergueu, mas pior ainda foi o tormento de ter perdido Emily. Ele carregou esse sofrimento pelo resto da vida, e não houve sequer um mês (ele me contou no hospital) em que deixasse de reviver a crueldade da rejeição, o horror que viu estampado no rosto de Emily ao pedi-la em casamento.

- Você me destruiu - disse ela. - Maldita seja eu se permitir que me veja novamente.

E, de fato, ele nunca voltou a vê-la. Quando, treze anos depois, conseguiu saber do paradeiro de Emily, ela estava morta e enterrada.

Segundo o que posso concluir, minha mãe nunca comentou com ninguém o que se passou. Seus pais já tinham morrido e tio Victor viajava pelo país com a Cleveland Orchestra. Não havia, portanto, ninguém com quem se sentisse obrigada a falar do escândalo. Para todos os efeitos, ela simplesmente abandonara a faculdade, e isso para uma jovem, em 1946, não era nada extraordinário. O mistério foi que, depois de saber que estava grávida, ela se recusou a revelar o nome do pai. Ao longo dos anos em que morei com meu tio, várias vezes perguntei-lhe quem era, mas ele sabia tanto quanto eu. "Era o segredo de Emily", ele respondia. "Insisti para que me contasse, mais do que gosto de me lembrar, mas ela nunca me deu a menor pista."

Dar à luz um filho ilegítimo exigia naquela época muita coragem e determinação, mas aparentemente minha mãe nunca vacilou. Sou-lhe grato por isso, e por outras coisas também. Uma mulher com menos força de vontade teria me entregado em adoção ou, pior ainda, feito aborto. Não é um pensamento agradável, mas, não fosse minha mãe quem ela era, eu não teria vindo ao mundo. Se tivesse sido sensata, eu teria morrido antes mesmo de nascer, teria sido um feto de três meses jogado à lata de lixo num beco qualquer.

Apesar da mágoa, Barber não se surpreendeu com o fato de ter sido rejeitado por minha mãe e, com o passar dos anos, foi achando difícil levá-la a mal. Antes de tudo, o que o espantava era o fato de que ela tivesse sentido atração por ele. Barber já tinha vinte e nove anos em 1946, e Emily fora a primeira mulher que levara para a cama sem ter de pagar. No entanto, até mesmo os encontros pagos eram poucos e esparsos. O risco era demasiado grande e, tendo aprendido que a humilhação podia destruir o prazer, ele raramente ousava uma tentativa. Barber não tinha ilusões quanto a si mesmo. Compreendia o que as pessoas viam quando olhavam para ele, sabia que tinham motivo para sentir o que sentiam. Emily fora sua única chance, e a perdera. Embora difícil de aceitar, a verdade era que ele não podia deixar de crer que tinha o que merecia.

Seu corpo era a prisão a que fora condenado para o resto da vida, e ele o prisioneiro esquecido que não podia apelar, nem ter esperança de redução de pena ou da misericórdia de ser executado. Chegara à altura definitiva - quase um metro e noventa - por volta dos quinze anos. A partir de então, não parou de engordar. Durante a adolescência, tentou manter-se abaixo dos cento e quinze quilos, mas as comilanças a que se entregava tarde da noite não ajudavam, e suas dietas pareciam não surtir o mínimo efeito. Fugia de espelhos e ficava sozinho o maior tempo possível. O mundo para ele era uma corrida de obstáculos, feito de olhares perplexos e dedos apontados. Ele próprio constituía um espetáculo ambulante; era o rapaz-balão que seguia desajeitadamente por entre corredores de riso e de pessoas que paravam para observá-lo. Os livros logo passaram a ser seu refúgio, o lugar onde não só se escondia dos outros como também dos próprios pensamentos. Barber nunca teve dúvidas quanto a quem fosse o responsável por ele ser daquele jeito. Assim, ao mergulhar nas palavras do livro, ele esquecia o corpo, e isso, mais que qualquer outra coisa, ajudava-o a deixar de lado as autorrecriminações. Os livros ofereciam-lhe a oportunidade de flutuar, de ver-se mentalmente suspenso, e, ao dedicar-lhes total atenção, conseguia iludir-se com a ideia de que se libertara das correntes que o prendiam a suas grotescas masmorras.

Obteve a primeira colocação na formatura do colégio, com notas que causaram espanto a todos na pequena cidade de Shoreham, Long Island. Em junho daquele ano, proferiu um discurso de despedida bastante sincero - senão um tanto tortuoso - em defesa do movimento pacifista, da república espanhola e de um segundo mandato para Roosevelt. Era 1936, e o público, em meio ao calor do auditório, aplaudiu-o com entusiasmo no final, embora não concordasse com suas posições políticas. Depois, assim como fez o filho desconhecido vinte e nove anos mais tarde, foi para Nova York, onde passou quatro anos a estudar na Colúmbia. No fim desse período, seu peso se fixara num patamar de cento e trinta quilos. Veio em seguida a pós-graduação em História e a rejeição por parte do Exército quando ele tentou se alistar.

- Não admitimos obesos - disse o sargento com um sorriso de desprezo.

Barber então permaneceu no país entre os civis, bem como os paraplégicos, os deficientes mentais, os muito jovens ou muito velhos. Passou os anos da guerra no Departamento de História da Universidade de Colúmbia, cercado de mulheres, um anômalo fardo de carne masculina, introspectivo, entre estantes de livros. Ninguém, no entanto, negava a qualidade do seu trabalho. Sua tese a respeito do bispo Berkeley e os índios ganhou o Prêmio de Estudos Americanos de 1944. Depois disso, foram-lhe oferecidos vários cargos em faculdades do Leste, mas, por motivos que nunca chegou a questionar, optou por Ohio.

Tudo correu razoavelmente bem durante o primeiro ano. Revelou-se um professor que agradava a todos, entrou para o coral da faculdade como barítono e escreveu os três primeiros capítulos de um livro de narrativas de cativeiro indígena. Na primavera, a guerra na Europa finalmente acabou, e em agosto, quando lançaram as duas bombas atômicas sobre o Japão, tentou consolar-se com a ideia de que isso não poderia acontecer de novo. Contra todas as expectativas, o ano seguinte começou de forma brilhante. Entre setembro e janeiro, conseguira reduzir o peso para menos de cento e quarenta quilos e, pela primeira vez na vida, passou a olhar o futuro com algum otimismo. O semestre da primavera trouxe Emily Fogg para a classe de primeiro ano de História. Era uma jovem charmosa e que, de modo inesperado, se encantou por ele. Bom demais para ser verdade. Embora Barber tivesse feito o possível para agir com cautela, aos poucos foi-lhe ficando claro que tudo era possível, até mesmo aquilo que nunca ousara imaginar. Mas depois veio a pensão, a mulher da limpeza a irromper no quarto, o desastre. A rapidez com que se deu o incidente deixou-o paralisado, perplexo demais para reagir. Tanto que mais tarde, naquele mesmo dia, quando foi chamado ao gabinete do reitor, nem lhe ocorreu protestar contra a demissão. Ele simplesmente voltou ao quarto, fez as malas e foi embora sem se despedir de ninguém.

O trem noturno levou-o a Cleveland, onde se instalou num quarto da Associação Cristã de Moços. A primeira coisa que tinha em mente era atirar-se pela janela, mas, depois de três dias a esperar pelo momento certo, admitiu que não tinha coragem. Depois disso, convenceu-se a desistir, a abandonar a luta de uma vez por todas. Já que não tinha coragem para se matar, disse consigo mesmo, então iria viver como homem livre. Ah, com certeza! Não mais iria se esconder de si mesmo, não mais permitiria que os outros determinassem quem ele era. Ao longo dos quatro meses seguintes, comeu a ponto de chegar ao limite da inconsciência. Refestelou-se com rosquinhas, doces, batatas na manteiga e assados encharcados de molho, panquecas, frango frito, gordas tigelas de ensopado. Encerrada a fase da comilança, ele havia engordado dezessete quilos, mas os números já não importavam. Tinha parado de olhar para eles e, portanto, haviam deixado de existir.

Quanto mais o corpo crescia, mais Barber se enterrava nele. Seu objetivo era isolar-se do mundo, tornar-se invisível atrás do volume de carne. Passou esses meses em Cleveland aprendendo a ignorar o que os outros pensavam dele, imunizando-se contra a dor de ser visto. Ele se punha à prova todas as manhãs, passeando pela Euclid Avenue na hora de maior movimento. Aos sábados e domingos, fazia questão de desperdiçar as tardes no Weye Park, expondo-se ao maior número possível de pessoas, fingindo não ouvir o que diziam os transeuntes embasbacados, levando-os a desviar o olhar. Estava só, completamente afastado de todos. Era uma mônada bulbosa, em forma de ovo, arrastando-se em meio às ruínas da sua consciência. O esforço, no entanto, valeu a pena; não mais temia o isolamento. Ao mergulhar no caos que o habitava, finalmente tornara-se Solomon Barber, uma personagem, alguém, um mundo que criara para si próprio.

O coroamento desse processo deu-se anos mais tarde, quando ele começou a perder os cabelos. No começo, parecia uma piada de mau gosto: um homem calvo com o nome de Barber, barbeiro em inglês. Como, porém, perucas e apliques estivessem fora de questão, ele teria de conviver com a calvície. O lindo jardim que tinha na cabeça foi aos poucos desaparecendo. O que antes era coberto de cachos ruivos tornou-se uma superfície nua, estéril. Barber não gostou da mudança em sua aparência, mas ainda mais inquietante era o fato de que isso estivesse absolutamente fora de controle. A transformação forçava-o a uma atitude passiva diante de si próprio, exatamente o que ele não podia mais tolerar. Assim, certo dia, quando já tinha perdido mais ou menos metade dos cabelos (ainda havia dos lados e atrás, mas nenhum em cima), ele calmamente pegou o navalha e raspou o que restava. O resultado de tal experiência impressionou-o muito mais do que ele esperava. Descobriu que tinha uma cabeça enorme, mitológica. Pareceu-lhe, ali diante do espelho, perfeitamente cabível que o vasto globo do seu corpo tivesse também sua lua. A partir de então, tratou desse orbe com extremo cuidado. Passava-lhe cremes e óleos todas as manhãs, para manter devidamente o brilho e a maciez; mimava-o com massagens elétricas; zelava para que estivesse sempre protegido dos elementos.

Começou a usar chapéus de todos os tipos, e, pouco a pouco, eles se tornaram o distintivo de sua excentricidade, o signo máximo de representação de sua pessoa. Não era mais o obeso Solomon Barber, era o "Homem que Usava Chapéus". Havia uma certa ousadia no que ele fez, mas já então Barber aprendera a ter prazer em cultivar sua esquisitice, adquirindo uma variada parafernália que lhe reforçava o talento para deixar os outros perplexos. Usava chapéus-coco, barretes turcos, bonés de beisebol, chapéus macios de feltro, capacetes, chapelões de cowboy, qualquer um que lhe despertasse a imaginação, sem levar em conta estilo ou convenções. Em 1957, sua coleção crescera tanto que certa vez chegou a passar vinte e três dias sem repetir o mesmo chapéu.

Depois da crucificação de Ohio (como ele mais tarde se referiu ao fato), Barber encontrou trabalho em várias faculdades pequenas e obscuras do Oeste e do Meio-Oeste. O que no início lhe parecia um exílio temporário estendeu-se por mais vinte anos, ao fim dos quais o mapa de suas feridas já chegava a todos os cantos do interior do país: Indiana, Texas, Nebraska, Oklahoma, Dakota do Sul, Kansas, Idaho e Minnesota. Nunca permaneceu em lugar nenhum por mais de dois ou três anos. Se, por um lado, todas as escolas se assemelhavam, por outro o movimento constante poupava-o do tédio. Barber tinha grande capacidade de trabalho e, na calma poeirenta desses retiros, raramente fazia outra coisa. Escrevia regularmente artigos e livros, ia a conferências, dava palestras, dedicava tantas horas aos alunos e aos cursos que sempre se tornava o professor mais querido do campus. Suas habilidades acadêmicas não eram questionadas, mas, mesmo depois que o escândalo de Ohio começou a se diluir, as grandes escolas continuaram a rejeitá-lo. Effing havia mencionado McCarthy, mas a única incursão de Barber na política de esquerda fora o apoio ao movimento pacifista da Colúmbia, nos anos 30. Ele não entrara em nenhuma lista negra propriamente dita. Para os seus detratores era, no entanto, conveniente associar seu nome a atividades esquerdistas, como se isso lhes fornecesse uma desculpa melhor para o rejeitarem. Ninguém nunca dizia nada às claras, mas a impressão generalizada era a de que Barber simplesmente não se encaixava. Ele era grande demais, contestador demais, impenitente demais. Imaginem só um titã de quase cento e sessenta quilos, com um enorme chapéu na cabeça, a obstruir os pátios de Yale. Inconcebível. Ele não tinha vergonha, nenhum senso de decoro. Sua simples presença subverteria a ordem das coisas. Então, por que procurar problemas se havia tantos candidatos?

Talvez tivesse sido melhor assim. Permanecendo na periferia, Barber podia ser ele mesmo. As pequenas faculdades ficavam satisfeitas em tê-lo, e, como ele fosse o professor mais gordo jamais visto e também o "Homem que Usava Chapéus", escapava misericordiosamente das mesquinharias e intrigas que infestam a vida provinciana. Tudo nele era tão extraordinário, tão extravagante, tão visivelmente fora das normas, que ninguém ousava julgá-lo. Ele costumava chegar no fim do verão, coberto de poeira da estrada, com um trailer atrás do surrado carro que tossia pelo escapamento. Se houvesse alunos por perto, ele os contratava imediatamente para transportar a bagagem, pagando-lhes o trabalho com uma quantia exorbitante e depois levando-os todos para almoçar. Isso sempre ajudava a estabelecer o tom do relacionamento. Os alunos veriam sua espantosa coleção de livros, os incontáveis chapéus e a escrivaninha especial que mandara fazer em Topeka - a escrivaninha de São Tomás de Aquino, segundo ele -, com o tampo serrado em semicírculo para acomodar-lhe a barriga. Dificilmente alguém deixava de ficar fascinado ao vê-lo ofegante, carregando com lentidão aquele corpo todo de um lugar para outro, sempre fumando charutos longos que lhe deixavam a roupa coberta de cinzas. Os alunos troçavam dele pelas costas, mas eram-lhe também dedicados, pois, para esses filhos e filhas de fazendeiros, comerciantes e pastores religiosos, ele era a pessoa mais brilhante de quem poderiam se aproximar. Inevitável que houvesse alunas cujos corações batessem por ele (provando que a mente podia de fato ser mais poderosa que o corpo), mas Barber já tinha aprendido a lição e nunca mais caiu nessa armadilha. Ele adorava em segredo que as jovens o rodeassem, mas fingia não perceber o que se passava, representando o papel de acadêmico compenetrado, de jovial eunuco que, de tanto comer, superara o desejo. Era uma atitude dolorosa, que o condenava à solidão, mas também um modo de proteger-se, e, se nem sempre isso funcionava, ao menos ele aprendera a importância de deixar as cortinas fechadas e de trancar a porta. Ao longo dos anos em que peregrinou, ninguém jamais conseguiu lhe apontar uma falta. Todos ficavam pasmos diante da sua singularidade, e, antes que se cansassem dele, já estava de partida, fazendo suas despedidas e sumindo ao pôr do sol.

De acordo com o que Barber me contou, ele e tio Victor certa vez cruzaram caminhos. Ao considerar, porém, certos detalhes de suas vidas, creio que se viram pelo menos três vezes. O primeiro encontro teria ocorrido na Feira Mundial de Nova York, em 1939. Os dois com certeza estiveram lá e, apesar da remota possibilidade, talvez no mesmo dia. Gosto de imaginá-los diante de algum estande - o Carro do Futuro, por exemplo, ou a Cozinha de Amanhã - para, em seguida, trombarem-se acidentalmente e levarem a ponta dos dedos ao chapéu, num simultâneo pedido de desculpas. Os dois no auge da juventude, um gordo e outro magro, a representar uma comédia-fantasma na sala de projeção do meu cérebro. Effing também esteve na feira, é claro, recém-chegado da Europa. Às vezes também o incluo na cena, sentado numa antiga cadeira de rodas de palhinha, empurrado por Pavel Shum. Talvez Barber e tio Victor estivessem bem próximos quando Effing passava. Talvez, nesse momento, Effing estivesse gritando seus desaforos ao companheiro russo. Barber e tio Victor então, espantados com a grosseria, sorririam um para o outro e, tristemente, abanariam a cabeça. Nunca lhes ocorreria, é claro, que aquele homem era o pai de um deles e futuro avô do sobrinho do outro. As possibilidades para tais cenas são ilimitadas, mas, em geral, procuro imaginá-las do modo mais simples possível, como breves e silenciosas interações: um sorriso, a ponta dos dedos levada ao chapéu, um sussurrado pedido de desculpas. Acho-as mais sugestivas assim, como se, pelo fato de não ousar muito, de ater-me só a pequenos e efêmeros detalhes, me fosse possível acreditar que tudo isso tivesse sido real.

O segundo encontro teria acontecido em Cleveland, em 1946. Talvez seja ainda mais hipotético que o primeiro, mas lembro-me muito bem de um fato. Certa vez, eu e tio Victor passeávamos no Lincoln Park, em Chicago, quando a certa altura vimos um homem gigantesco sentado na grama, comendo um sanduíche. O homem fez tio Victor lembrar-se de outro gordo que encontrara em Cleveland ("no tempo em que ainda tocava na orquestra"). Embora eu não tenha prova definitiva, gosto de pensar que era Barber o homem que tanto impressionou meu tio. Ao menos as datas se ajustam perfeitamente. Tio Victor tocou em Cleveland de 1945 a 1948, e Barber mudou-se para a Associação Cristã de Moços na primavera de 1946. Segundo tio Victor, ele comia uma torta de queijo na Lansky’s Delicatessen, lugar enorme e barulhento, a três quarteirões do Severence Hall. A orquestra acabara de executar um programa só com obras de Beethoven, e meu tio saíra àquela hora da noite para comer alguma coisa na companhia de outros três instrumentistas de sopro. Do fundo do restaurante, onde estava sentado, ele pôde ver claramente um homem obeso, sozinho à mesa, junto da parede lateral. Incapaz de desviar os olhos daquela figura enorme e solitária, tio Victor o viu devorar duas tigelas de sopa, uma travessa de repolho recheado, um prato de panquecas, três saladas de nabo, um cesto de pão e seis ou sete picles que saíram, espetados, do pote de conservas. Ficou tão perplexo diante daquela exibição de gula que nunca mais a esqueceu. Era o perfeito retrato da infelicidade humana.

- Quem come daquele jeito só pode estar querendo se matar - comentou tio Victor. - É o mesmo que ver alguém fazer greve de fome.

A última vez em eles que se encontraram foi em 1959, época em que eu e meu tio morávamos em Saint Paul, Minnesota. Barber então lecionava no Macalester College e, certa noite, quando lia os anúncios de carros usados nas últimas páginas do Pioneer Press, deu com um anúncio de aulas de clarineta ministradas por um tal Victor Fogg, "ex-integrante da Cleveland Orchestra". O nome atingiu-lhe a memória como uma lança, trazendo de volta a imagem de Emily com uma intensidade e frescor que desde muito não via. Era como se de repente ela tivesse voltado para dentro dele, revivido com o aparecimento do seu sobrenome. Ao longo daquela semana, não conseguiu tirá-la da cabeça, pensando no que lhe teria acontecido, nos vários modos de vida que ela poderia ter. Via-a com uma clareza que o chocava. Era bem provável que o professor de música não tivesse nenhum parentesco com ela, mas Barber não encontrava mal nenhum em verificar se não tinha mesmo.

Seu primeiro impulso foi telefonar para tio Victor, mas, depois de ensaiar diversas vezes o que iria dizer, desistiu da ideia. Não queria parecer tolo ao contar sua história, gaguejando incoerências a um estranho que o ouvisse, aborrecido, do outro lado da linha. Assim, preferiu mandar uma carta. Escreveu sete ou oito versões até ficar satisfeito e, numa crise de angústia, enviou-a, lamentando o que acabara de fazer no instante em que a caixa do Correio engoliu o envelope. A resposta veio dez dias depois, em letra apertada, escrita às pressas e obliquamente numa folha de papel amarelo. Dizia o seguinte: "Caro senhor, Emily Fogg era de fato minha irmã, mas devo com tristeza informá-lo de que ela morreu oito meses atrás num acidente de trânsito. Lamento muitíssimo. Sinceramente, Victor Fogg."

Para todos os efeitos, a carta não revelou nada que ele já não soubesse. Tio Victor comunicara um fato, mas havia muito que tal fato era do conhecimento de Barber: ele nunca voltaria a ver Emily. A morte não mudara nada. Apenas confirmava o que para ele já era uma certeza, reiterava a perda que por anos e anos estava presente em sua vida. Nem por isso foi-lhe menos doloroso ler a carta, mas, assim que parou de chorar, viu-se ansioso por mais informações. O que havia acontecido com ela? Por onde andara? O que tinha feito? Casara-se? Tivera filhos? Alguém a amara? Barber queria fatos. Queria preencher lacunas, construir uma vida para ela, algo tangível que pudesse carregar consigo: retratos, por exemplo, algo como um álbum de fotografias que pudesse abrir em pensamento e olhar à vontade.

No dia seguinte, mandou outra carta a tio Victor. Depois das sinceras condolências e da tristeza que expressou no primeiro parágrafo, Barber passou a explicar, com delicadeza, que lhe seria muito importante saber certas coisas. Esperou pacientemente a resposta, mas, passadas duas semanas, nada chegava. Por fim, achando que sua carta se extraviara, telefonou a tio Victor. O aparelho tocou umas três, quatro vezes, mas quem atendeu foi a telefonista, informando que aquele número fora desligado. Embora achando o fato intrigante, Barber não desanimou (o homem podia ser pobre, afinal de contas, duro demais para ter como pagar a conta do telefone). Assim, pegou seu Dodge 51 e foi até o apartamento de tio Victor, na Linwood Avenue, 1025. Não encontrando o sobrenome Fogg à entrada do prédio, tocou a campainha do zelador. Algum tempo depois, um homem pequeno, num suéter verde e amarelo, apareceu arrastando os pés. O sr. Fogg tinha partido, ouviu então Barber.

- Ele e o menino pegaram seus pertences e foram embora há mais ou menos dez dias - contou-lhe o zelador.

Foi um golpe inesperado, uma decepção para Barber, que em nenhum momento parou para considerar quem seria o tal menino. Em todo caso, isso não faria diferença alguma. Ele teria simplesmente pensado que se tratava do filho do clarinetista.

Anos mais tarde, quando Barber me falou da carta que recebera de tio Victor, compreendi finalmente por que meu tio e eu tínhamos saído tão de repente de Saint Paul, em 1959. A cena toda passava então a ter sentido: a pressa em fazer as malas tarde da noite, a viagem sem paradas de volta a Chicago, as duas semanas que passei num hotel sem ir à escola. Victor não sabia quem era Barber, mas temia descobrir. Em algum lugar havia um pai, e aquele homem fazia muitas perguntas sobre Emily. Nesse caso, por que se arriscar? Se o pior acontecesse, quem podia garantir que ele não lutaria pela guarda do menino? Fora simples não mencionar minha existência na resposta à primeira carta. Viera, no entanto, uma segunda, com várias outras perguntas. Victor se deu conta de que estava numa enrascada. Ignorar a carta apenas adiaria o problema, pois, se o desconhecido fosse mesmo tão curioso quanto demonstrava ser, acabaria por nos procurar. E daí, como seria? Victor só encontrou uma solução: fugir, pegar-me no meio da noite e desaparecer numa nuvem de fumaça.

Esta história, uma das últimas que Barber me contou, foi de doer o coração. Compreendi o que tio Victor fizera e, ao reconhecer-me alvo de tamanha dedicação, fui invadido por uma onda de sentimento. Voltei a lamentar a morte do meu tio, senti uma profunda saudade. Ao mesmo tempo, fiquei frustrado e triste por saber de tantos anos perdidos. Se, em vez de fugir, Victor tivesse respondido à segunda carta de Barber, já em 1959 eu teria descoberto quem era meu pai. Não foi culpa de ninguém, mas isso não ajuda a aceitar o que aconteceu. Foi tudo uma questão de perda de contato, de tentativas cegas, de desencontros. Estávamos sempre no lugar certo no momento errado, no lugar errado no momento certo, sempre perdendo a ocasião propícia, sempre deixando de descobrir tudo por um triz. A história toda se resume nisso, creio eu, numa série de oportunidades perdidas. Tínhamos desde o início todas as peças do quebra-cabeça. Ninguém, no entanto, soube juntá-las.

CLARO QUE NADA DISSO veio à tona no primeiro encontro. Já que Barber decidira não revelar suas suspeitas, o único assunto em pauta era o pai dele, de quem falamos exaustivamente durante aqueles dias que passou em Nova York. Na primeira noite, Barber levou-me para jantar no Gallagher’s, na Rua 52; na segunda, fomos com Kitty a um restaurante em Chinatown; no terceiro dia, um domingo, tomamos o café da manhã no hotel, antes que ele pegasse o avião de volta a Minnesota. O charme e a inteligência de Barber logo faziam todos esquecerem sua aparência infeliz. Quanto mais tempo eu passava com ele, mais à vontade me sentia. Conversamos sem embaraços quase desde o início, trocamos ideias e piadas, contamos histórias um para o outro. Como ele não fosse o tipo de pessoa que temesse a verdade, pude falar de seu pai sem me censurar. Assim, revelei-lhe tudo a respeito dos meses em que estive com Effing, tanto o bom quanto o mau.

Barber nunca soubera grande coisa. Contaram-lhe que o pai morrera no Oeste alguns meses antes de ele nascer, e isso lhe parecia convincente. As paredes da casa estavam cobertas de quadros; todo mundo vivia a falar que o pai fora pintor, um especialista em paisagens que viajara muito em razão da sua arte. Sua última viagem fora para os desertos de Utah, disseram-lhe, lugar esquecido por Deus, se é que Deus havia. Lá o pai tinha morrido. As circunstâncias da morte, porém, nunca lhe foram esclarecidas. Quando Barber completava sete anos, uma tia lhe contou que o pai caíra de um penhasco. Três anos depois, um tio lhe explicava que o pai fora capturado pelos índios. Passados mais seis meses, uma certa Molly Sharp anunciava que tudo fora obra do demônio. Era ela - uma irlandesa de rosto vivo, avermelhado, e dentes espaçados - quem fazia os pudins com que Barber se deliciava depois da escola, e ele nunca soubera de nenhuma mentira que Molly tivesse pregado. No entanto, fosse qual fosse a causa, à morte do pai era atribuído o fato de a mãe viver retirada no quarto. Assim a família explicava a condição em que ela se encontrava. Às vezes, porém, ela saía, especialmente nas noites quentes de verão. Vagava então pelos corredores ou chegava a ir até a praia, onde se sentava a ouvir o braço de mar quebrar-se perto dela num leve marulho.

Barber não via a mãe com muita frequência, e até mesmo em seus melhores dias ela tinha dificuldade em lembrar-se do nome do filho. Chamava-o de Teddy, Malcolm ou Rob; com a máxima convicção, a olhar-lhe bem nos olhos. Ou então empregava estranhos epítetos que para Barber não faziam sentido: Bally-Ball, Pooh-Bah e Mr. Jinks. Ele nunca tentava corrigi-la. As horas que passava na companhia da mãe eram tão poucas que não queria desperdiçá-las. A experiência lhe ensinara que bastava a menor contrariedade para abalar-lhe o humor. Os outros em casa o chamavam de Solly. Não se queixava do apelido, pois com ele seu nome permanecia de certo modo intacto, como se fosse um segredo só seu: Solomon, o sábio rei dos hebreus, tão justo em seus julgamentos que até ameaçara cortar um bebê ao meio. Mais tarde, o apelido encolheu, transformando-se em Sol. Os poetas elizabetanos ensinaram-lhe que essa era uma palavra antiga, que designava o astro que nos ilumina. Pouco tempo depois, descobriu que também significava "solo" em francês. Intrigava-o o fato de que pudesse ser ao mesmo tempo o Sol e a Terra. Assim, durante muitos anos, entendeu que o sentido disso era o de ser ele capaz de abranger todas as contradições do universo.

A mãe vivia no quarto andar e passava longos períodos sem descer. Tinha companheiras e ajudantes. Era um reino isolado lá em cima. Havia uma cozinha recém-construída numa extremidade do corredor e, na outra, um grande cômodo de nove paredes. O pai costumava pintar nesse cômodo, diziam, e ali as janelas estavam dispostas de tal modo que, quando se olhava por qualquer uma delas, só se via água. Barber descobriu que, quando ficava um certo tempo com o rosto encostado ao vidro dessas janelas, tinha a sensação de flutuar no céu. Nem sempre lhe era permitido ir lá em cima, mas do seu quarto, no andar de baixo, ele às vezes ouvia a mãe andar de um lado para outro durante a noite (o soalho rangia sob o tapete) e, de vez em quando, chegava a distinguir vozes: conversas, risos, trechos de canções, gemidos e soluços. Suas visitas ao quarto andar eram determinadas pelas enfermeiras, cada qual com um conjunto diferente de regras. A srta. Forrest reservava-lhe uma hora todas as quintas-feiras; a srta. Caxton examinava-lhe as unhas antes de deixá-lo entrar; a srta. Flower era decididamente a favor de passeios rápidos na praia; a srta. Buxley servia-lhe chocolate quente; e a srta. Gunderson falava num tom de voz tão baixo que ele mal conseguia ouvir o que ela dizia. Certa vez, na companhia da mãe, Barber brincou uma tarde inteira com as roupas dela. Noutra ocasião, ambos ficaram até o anoitecer à beira do lago, ocupados com um barco à vela de brinquedo.

Foram essas as visitas que mais lhe ficaram gravadas na memória. Anos depois, ele constataria que, dos momentos passados com a mãe, esses deviam ter sido os mais felizes. A mãe sempre lhe parecera velha; ao menos era assim que se lembrava dela: cabelos grisalhos, olhos de um azul aquoso, cantos da boca voltados para baixo, manchas senis nas costas das mãos. Havia um ligeiro e constante tremor em seus movimentos, o que provavelmente a fazia parecer mais frágil do que de fato era - nervos à flor da pele, uma mulher sempre à beira do colapso. Contudo, ele não a julgava louca (infeliz era a palavra que costumava lhe ocorrer). Até mesmo quando ela fazia coisas que deixavam todos alarmados, Barber achava que era apenas fingimento. Houve numerosas crises ao longo dos anos (uma tremenda gritaria quando uma das enfermeiras foi despedida, uma tentativa de suicídio, um período de vários meses em que se recusou a vestir qualquer peça de roupa). A certa altura, mandaram-na à Suíça para uma longa temporada de repouso, conforme se dizia. Bem mais tarde, Barber haveria de descobrir que a Suíça era simplesmente um modo delicado de se referirem a um asilo para doentes mentais em Hartford, Connecticut.

Foi uma infância sombria, mas não totalmente desprovida de prazeres. E bem menos solitária do que poderia ter sido. Os avós maternos estavam presentes a maior parte do tempo. A avó era extremamente atenciosa com ele, apesar do interesse por certas modas malucas e passageiras - as comédias de John Fletcher, os livros de Charles Fort. O avô também: contava-lhe histórias sobre a guerra civil, ensinou-o a colecionar flores silvestres. Mais tarde tio Binkey e tia Clara também vieram morar com ele, e durante muitos anos todos viveram em tensa harmonia. A crise de 1929 não os arruinou, mas a partir de então passaram a fazer algumas economias. Dispensaram o Pierce Arrow e o motorista; desistiram do apartamento alugado em Nova York; Barber não foi para o colégio interno, ao contrário do que planejavam. Em 1931 venderam algumas obras da coleção do pai - os desenhos de Delacroix, o quadro de Samuel French Morse e o pequeno Turner que ficava na parede da sala de visitas. Mesmo assim, ainda ficou muita coisa. Barber gostava especialmente dos dois Blakelock da sala de jantar (uma cena de luar na parede leste e um acampamento indígena na parede sul). Havia ainda por todo canto numerosas pinturas do pai: marinhas de Long Island, paisagens da costa do Maine, estudos do rio Hudson, e uma sala cheia de paisagens trazidas de uma viagem a Catskills - casas abandonadas de fazenda, montanhas de outro mundo, enormes campos de luz. Barber passou centenas de horas a contemplar tais obras. Quando estava no último ano do colégio, chegou a organizar uma exposição na câmara municipal, onde um ensaio sobre a obra do pai foi distribuído a todos os que compareceram à abertura.

No ano seguinte, Barber passou as noites a escrever um romance baseado no desaparecimento do pai. Estava então com dezessete anos. Às voltas com os tormentos da adolescência, passou a criar fantasias quanto a ser artista, a imaginar-se o futuro gênio que salvaria a alma ao passar para o papel toda a sua angústia. Depois de voltar para Minnesota, ele me mandou uma cópia do original; não para exibir seus talentos juvenis, conforme me explicou, com pedidos de desculpa, em carta anexa (o livro fora rejeitado por vinte e um editores), mas para me dar uma ideia de como a ausência do pai influíra na sua imaginação. O livro se chamava O Sangue de Kepler, escrito no estilo sensacionalista dos folhetins da década de 30. Em parte western, em parte ficção científica, a história seguia de uma improbabilidade para outra, levando adiante o implacável impulso do sonho. Havia trechos horríveis, mas, mesmo assim, vi-me profundamente interessado. Quando cheguei ao final, achei que tinha uma ideia mais clara a respeito de quem era Barber, que compreendia alguma coisa do que havia sido sua formação.

A história do livro recuava cerca de quarenta anos, isto é, os primeiros acontecimentos se situavam na década de 1870. Afora isso, atinha-se quase fielmente às poucas coisas que Barber conseguira descobrir a respeito do pai. John Kepler, um artista de trinta e cinco anos, despede-se da mulher e do filho pequeno e parte de Long Island para uma viagem de seis meses por Utah e pelo Arizona, na esperança de "descobrir uma terra de maravilhas, um mundo de beleza selvagem e cores ferozes, um domínio de proporções tão monumentais que até mesmo a pedra mais insignificante traria a marca do infinito", segundo as palavras do autor de dezessete anos. Tudo vai bem nos primeiros meses, até que Kepler sofre um acidente semelhante ao que julgavam ter sofrido Julian Barber: ele cai de um penhasco, fratura vários ossos e fica inconsciente. Ao voltar a si na manhã seguinte, descobre que não consegue se movimentar e, sem acesso aos mantimentos, resigna-se a morrer de fome no deserto. No terceiro dia, no entanto, quando já estava a ponto de entregar a alma, Kepler é salvo por um grupo de índios - o que remete a uma das histórias que Barber ouvira na infância. O homem agonizante é levado à aldeia indígena, num vale pedregoso cercado de penhascos, e ali, em meio aos odores da iúca e do junípero, os índios cuidam dele até o restabelecimento. Nessa comunidade vivem umas trinta, quarenta pessoas; homens, mulheres e crianças que, no tórrido calor do verão, pouco ou nada levam sobre o corpo. Quase sem falar com ninguém, os índios prestam-lhe assistência, levam-lhe água à boca, dão-lhe comidas de aspecto estranho que ele nunca antes tinha provado. As forças de Kepler vão voltando pouco a pouco. Quando sua mente começa a clarear, ele nota que aquelas pessoas não se parecem com os índios de nenhuma das tribos locais - os utes, os navajos, os paiutes, os shoshones. Parecem-lhe mais primitivos, mais isolados, mais delicados quanto aos modos. Observando melhor, constata que muitos deles não têm sequer traços de índio. Alguns têm olhos azuis, outros um tom avermelhado de cabelo, e vários homens têm pelos no peito. Em vez de aceitar o que vê, Kepler começa a crer que continua à beira da morte e que sua recuperação é apenas um delírio provocado pelo coma e pela dor. Isso, porém, não dura muito. Ele continua aos poucos melhorando e, a certa altura, é forçado a admitir que está vivo e que tudo é real ao seu redor.

"Eles se chamavam de Os Humanos", escreve Barber, "de O Povo, de Os que Vieram de Longe. Há muito tempo, de acordo com a lenda, os ancestrais desses homens tinham vivido na Lua. Uma grande seca acabou, porém, com a água, e todos Os Humanos morreram, com exceção de Pog e Ooma, o Pai e a Mãe originais. Durante vinte e nove dias e vinte e nove noites, Pog e Ooma caminharam pelo deserto até que, ao chegarem à Montanha dos Milagres, subiram ao topo e agarraram-se a uma nuvem. A nuvem-espírito carregou-os pelo espaço durante sete anos, ao fim dos quais eles desceram suavemente para a Terra, onde descobriram a Floresta das Primeiras Coisas e recomeçaram o mundo. Pog e Ooma tiveram mais de duzentos filhos, e Os Humanos viveram felizes por muitos anos, construindo suas casas entre as árvores, plantando milho, caçando o veado encantado, tirando peixe das águas. Os Outros também viviam na Floresta das Primeiras Coisas e, como se dispusessem a ensinar o que sabiam, Os Humanos aprenderam o Grande Conhecimento de plantas e animais, o que os ajudou a se sentirem em casa na Terra. Os Humanos retribuíram com presentes a bondade dos Outros, e ao longo de gerações os dois reinos viveram em harmonia. Vieram, porém, Os Homens Selvagens, do outro lado do mundo. Certa manhã eles chegaram em seus enormes barcos de madeira. Durante um tempo Os Barbudos mostraram-se amigáveis, mas depois entraram na Floresta das Primeiras Coisas e cortaram muitas árvores. Quando Os Humanos e Os Outros lhes pediram que parassem, Os Homens Selvagens pegaram suas armas de trovão e relâmpago e mataram muitos deles. Os Humanos compreenderam que não tinham condições de enfrentar o poder daquelas armas, mas Os Outros decidiram ficar e combater. Houve então a Terrível Despedida. Alguns Humanos juntaram-se aos Outros, alguns dos Outros juntaram-se aos Humanos, e as duas famílias se separaram. Os Humanos deixaram suas casas e foram a caminho da Escuridão, seguindo pela Floresta das Primeiras Coisas até se sentirem fora do alcance dos Homens Selvagens. Isso aconteceu muitas vezes ao longo dos anos, pois, assim que começavam a se achar em casa, instalados numa nova área da floresta, logo apareciam Os Homens Selvagens. Os Barbudos sempre agiam como amigos no início, mas fatalmente passavam a cortar árvores e a matar Os Humanos, invocando o seu deus, suas leis sagradas, e proclamando sua força invencível. Assim, Os Humanos continuaram a se deslocar, sempre para o Oeste, na tentativa de escapar dos Homens Selvagens. Ao chegar ao fim da Floresta das Primeiras Coisas, descobriram o Mundo Plano, com seus invernos intermináveis e verões breves, escaldantes. Dali seguiram para a Terra do Céu, onde permaneceram até que seu tempo nesse lugar se esgotasse. Depois desceram para a Terra da Pouca Água, local tão seco e desolado que nem Os Homens Selvagens queriam viver nele. Eles às vezes apareciam, mas de passagem. Tão poucos eram os que ficavam e construíam casas que não chegavam a representar grande transtorno para Os Humanos. Ali então viviam Os Humanos desde o início do Novo Tempo, época tão remota que já nem mais se lembravam de como era antes."

No começo sua língua é incompreensível para Kepler, mas depois de várias semanas ele já a domina o suficiente para manter uma conversa simples. Começa a aprendê-la pelos substantivos, pelo nome dos objetos circundantes. Seu discurso então não é mais sofisticado que o de uma criança. Mulher é crenepos. Mantoac são deuses. Okeepenauk refere-se a uma raiz comestível, e tapisco significa pedra. Com tanta coisa para assimilar ao mesmo tempo, Kepler não consegue captar a coerência estrutural da língua. Parece-lhe, por exemplo, que os pronomes não são independentes, mas parte de um sistema de terminações verbais que variam de acordo com a idade e o sexo de quem fala. Certas palavras de uso constante têm dois sentidos diametralmente opostos - em cima e embaixo, meio-dia e meia-noite, infância e velhice. Há ainda muitos casos em que o sentido da palavra é alterado pela expressão facial. Em dois ou três meses, Kepler torna-se mais habilitado a reproduzir os estranhos sons daquela língua, e o caos de sílabas indiferenciadas começa a separar-se em unidades menores e mais definidas de sentido. Seu ouvido se aguça, mais sensível às nuanças e entonações. Por estranho que pareça, passa a encontrar vestígios de inglês na fala dos Humanos, ele crê. Não propriamente do inglês que conhece. O que identifica são partes de palavras inglesas, uma espécie de inglês metamorfoseado que de algum modo tivesse caído nas frestas dessa outra língua. Por exemplo, a designação Land of Little Water - isto é, Terra da Pouca Água - torna-se uma única palavra: Lano-li-wa. Wild Men - Homens Selvagens - torna-se Wi-me, e Flat World - Mundo Plano - transforma-se em algo parecido com flow. No início, Kepler tende a julgar tais paralelismos simples coincidências e não permite que a imaginação o transporte longe demais. Afinal de contas, muitos sons são comuns a várias línguas. Por outro lado, uma em cada sete ou oito palavras da língua dos Humanos parece seguir esse mesmo padrão. Quando Kepler enfim resolve testar sua teoria, construindo palavras e as empregando (palavras que não lhe ensinaram, formadas pelo mesmo método de corte e decomposição aplicado às anteriores), descobre que Os Humanos reconhecem muitas delas. Encorajado pelo sucesso, começa a elaborar teorias a respeito da origem daquela estranha tribo.

Não obstante o que diz a lenda sobre a Lua, Kepler acha que aquele povo deve provir de algum antigo cruzamento de ingleses e índios. Seguindo o argumento de Kepler, escreve Barber: "Cercados pelas imensas florestas do Novo Mundo, talvez ameaçados de extinção, um grupo de antigos colonizadores bem poderia ter pedido consentimento para integrar-se a alguma tribo indígena, com o objetivo de assegurar a sobrevivência diante das forças hostis da natureza. Talvez esses índios tivessem sido ‘Os Outros’, citados nas lendas que lhe foram contadas, pensou Kepler. Nesse caso, talvez o grupo de colonizadores tivesse se separado do núcleo principal e seguido para o Oeste, instalando-se em Utah. Levando adiante esta hipótese, ele concluiu que a história da origem daqueles índios talvez tivesse surgido depois da chegada a Utah desse grupo de colonizadores, que a teriam elaborado para extrair conforto espiritual da decisão de viver em local tão desolado. Além disso, pensou Kepler, em nenhum outro lugar a Terra se parece tanto com a Lua".

Só depois de aprender fluentemente a língua dos índios é que Kepler compreende por que o salvaram. Os Humanos decrescem em número, explicam-lhe, e, a menos que a população volte a crescer, toda a nação desaparecerá. Pensamento Silencioso, líder e homem sábio que abandonara a tribo no inverno anterior para viver sozinho no deserto e rezar pela salvação de todos, viu num sonho que surgiria um homem morto para resgatá-los. Ele seria encontrado entre os penhascos que rodeiam a aldeia, disse ele, e se o tratassem com o remédio apropriado, o corpo voltaria à vida. Tudo isso acaba acontecendo conforme o sonho de Pensamento Silencioso. Encontram Kepler, ressuscitam-no, e agora ele deve dar início a uma nova geração. Ele é O Grande Pai caído da Lua, O Criador de Almas Humanas, O Homem Espírito vindo para salvar O Povo do esquecimento.

Nessa altura, a narrativa de Barber começa a claudicar. Sem o mínimo questionamento, Kepler torna-se nativo e decide permanecer com Os Humanos, renunciando à ideia de voltar para a mulher e o filho. Abandonando o tom preciso e intelectual das primeiras trinta páginas, Barber se lança a longas e floreadas passagens em que descreve lascivas fantasias sexuais, delírios masturbatórios de adolescente. Em vez de índias norte-americanas, as mulheres mais parecem brinquedos sexuais da Polinésia. São lindas virgens de seios à mostra que se entregam a Kepler em risonho e feliz abandono. É puro faz de conta: uma sociedade de primordial inocência, povoada de nobres selvagens que vivem em completa harmonia uns com os outros e com o mundo. Kepler não demora a concluir que aquele modo de vida é imensamente superior ao seu. Livra-se das armadilhas da civilização do século 19 e entra para a Idade da Pedra, juntando-se com satisfação aos Humanos.

O primeiro capítulo termina com o nascimento do primeiro filho Humano de Kepler, e, no início do capítulo seguinte, quinze anos já haviam transcorrido. Voltamos a Long Island e assistimos ao funeral da mulher americana de Kepler pelos olhos de John Kepler Jr., então com dezoito anos. Disposto a passar o resto da vida na tentativa de desvendar o mistério do desaparecimento do pai, o jovem parte na manhã seguinte, com ânimo verdadeiramente épico. Vai para Utah e, ao longo de um ano e meio, vagueia pelo deserto em busca de pistas. Num milagroso golpe de sorte (nada plausível da forma como Barber o apresenta), encontra de repente, em meio aos rochedos, a aldeia dos Humanos. Nunca lhe tinha ocorrido que o pai pudesse estar vivo, mas, quando lhe apresentam o chefe barbado e salvador da pequena tribo, reconhece John Kepler. Tomado de estupefação, vai logo revelando que é o seu filho há muito abandonado. Calmo e impassível, Kepler finge não compreendê-lo: "Eu sou o Homem Espírito vindo da Lua", responde Kepler. "Este povo é a única família que tenho. Teremos satisfação em dar-lhe comida e pouso por esta noite, mas amanhã de manhã você deve seguir viagem."

Arrasado pela rejeição, o filho passa a alimentar ideias de vingança. Assim, levanta-se no meio da noite, vai de mansinho até onde dorme Kepler e crava-lhe uma faca no coração. Antes que soe o alarme, ele foge e desaparece na escuridão.

Há apenas uma testemunha do crime: Jocomin (Olhos Selvagens), de doze anos, o filho predileto de Kepler entre Os Humanos. Jocomin passa três dias e três noites em busca do assassino, mas não o encontra. Na manhã do quarto dia, sobe numa plataforma escarpada para ter uma visão melhor dos arredores e, quando já tinha perdido a esperança, depara com ninguém menos que Pensamento Silencioso, o velho curandeiro que deixara a tribo anos atrás para viver como eremita no deserto. Pensamento Silencioso adota Jocomin e começa a iniciá-lo nos mistérios da sua arte. Jocomin passa longos e difíceis anos até adquirir os poderes mágicos das Doze Transformações. É discípulo sagaz e dedicado. Aprende a curar os doentes, a comunicar-se com os deuses e, depois de sete anos de trabalho constante, enfim penetra no segredo da Primeira Transformação: domina o corpo e a mente de tal modo que é capaz de transformar-se num lagarto. As outras transformações vêm em rápida sucessão: torna-se andorinha, falcão, abutre. Em seguida, pedra e cacto. Depois toupeira, coelho, gafanhoto, borboleta e cobra. Finalmente, a mais difícil: transforma-se em coiote. Nessa altura, Jocomin já vive há nove anos com Pensamento Silencioso. Tendo ensinado ao filho adotivo tudo o que sabe, o velho anuncia que chegou sua hora de morrer. Sem proferir mais uma palavra, ele põe os trajes rituais e jejua por três dias, ao fim dos quais seu espírito se desprende do corpo e voa para a Lua, morada dos Humanos após a morte.

Jocomin volta para a aldeia e lá vive muitos anos como chefe. Tempos difíceis, porém, haviam chegado. A seca dá lugar à peste, e a peste à discórdia. Jocomin tem então um sonho que lhe diz que a felicidade só retornará à tribo caso a morte do pai seja devidamente vingada. Assim, no dia seguinte, depois de consultar o conselho de anciãos, Jocomin deixa Os Humanos e parte para o Leste, para o mundo dos Homens Selvagens, em busca de John Kepler Jr. Adota o nome de Jack Moon e atravessa o país até chegar a Nova York, onde arranja trabalho numa firma especializada na construção de arranha-céus. Entra para a equipe que trabalha no topo do Edifício Woolworth, maravilha arquitetônica que durante quase vinte anos haveria de ser a mais alta estrutura do mundo. Jack Moon é excelente trabalhador, não se deixa impressionar pelas tremendas alturas e ganha rapidamente o respeito de seus colegas. Nas horas de folga, no entanto, mantém-se isolado, não faz amigos. Durante seu tempo livre, dedica-se exclusivamente à procura do meio-irmão. Leva quase dois anos para encontrá-lo. John Kepler Jr. tornara-se um próspero homem de negócios. Vive numa mansão na Rua Pierrepont, em Brooklyn Heights, junto da mulher, do filho de seis anos, e sai todas as manhãs para o trabalho num carro preto e comprido, com chofer e tudo. Jack Moon vigia a casa durante várias semanas. No início, seu plano é pura e simplesmente matar Kepler, mas depois ocorre-lhe a ideia de uma vingança mais apropriada: raptar o filho de Kepler e levá-lo para a terra dos Humanos. Faz isso sem ser notado, tirando o menino da companhia da babá em plena luz do dia. Aí termina o quarto capítulo do livro de Barber.

De volta a Utah com o menino (que se apega profundamente a ele), Jocomin descobre que tudo mudou. Os Humanos desapareceram, e em suas casas não se vê nenhum sinal de vida. Procura-os por toda parte durante os seis meses seguintes. Reconhecendo que o sonho o enganara, acaba por aceitar o fato de que seu povo inteiro morreu. Em todo caso, com muita dor no coração, decide ficar ali mesmo e esperar por um milagre regenerador. Dá outro nome ao menino, Numa (Homem Novo), e tenta não se deixar abater. Passam-se sete anos. Jocomin transmite ao filho adotivo os segredos que Pensamento Silencioso lhe ensinara e, após três anos de trabalho constante, consegue realizar a décima terceira transformação: torna-se uma mulher jovem e fértil que seduz o jovem de dezesseis anos. Nove meses depois, nascem gêmeos - um menino e uma menina - a partir dos quais Os Humanos repovoarão o território.

A ação volta para Nova York, onde encontramos Kepler desesperado, em busca do filho perdido. As pistas o conduzem a nada, mas de repente, por puro acaso - tudo no livro de Barber acontece por acaso -, encontra o rastro de Jack Moon e vai aos poucos juntando as peças do quebra-cabeça, até descobrir que o rapto do filho está relacionado ao que ele fizera ao pai. Só lhe resta voltar a Utah. Kepler tem agora quarenta anos, e já não lhe é tão fácil enfrentar a dura jornada pelo deserto. Além disso, causa-lhe horror a ideia de retornar ao local onde vinte anos antes assassinara o pai. Segue em frente, porém, obstinado, sabendo que é lá que o filho se encontra. Na última cena, uma lua cheia paira no céu, dramaticamente. Kepler está no território dos Humanos, acampado num penhasco para passar a noite. De rifle em punho, espia se há alguma movimentação. A uns quinze metros de distância, num aglomerado de rochas, vê de repente a silhueta de um coiote recortada contra a Lua. Com medo de tudo naquele lugar remoto e desolado, Kepler impulsivamente aponta a arma para o animal e puxa o gatilho. O coiote morre com um único tiro. Kepler consegue se orgulhar da precisão de sua pontaria. Só não sabe, é claro, que acaba de matar o próprio filho. No entanto, antes mesmo de erguer-se para ir até o animal abatido, três outros coiotes vindos da escuridão saltam sobre ele. Incapaz de se defender do ataque, é devorado em poucos minutos.

Assim termina O Sangue de Kepler, primeira e única tentativa de Barber no campo da ficção. Devido à idade que tinha ao escrevê-lo, seria injusto fazer um julgamento muito severo do livro. Apesar das falhas e dos excessos, valeu a pena eu tê-lo lido. Trata-se de um documento que, mais do que qualquer outro, demonstra como Barber trabalhou os dramas interiores da sua juventude. Ele não aceita a morte do pai (daí Kepler ser salvo pelos Humanos), mas, se o pai está vivo, não há desculpa para o fato de não ter retornado à família (daí a faca que Kepler Jr. lhe crava no coração). A ideia do assassinato é, no entanto, terrível demais para não inspirar revolta. Quem alimenta tal pensamento deve ser punido, e é exatamente isso o que acontece a Kepler Jr., cujo destino é pior que o das demais personagens do livro. No conjunto, a história é um complexo entrelaçamento de desejo e sentimento de culpa. O desejo transforma-se em culpa, e a culpa, por ser intolerável, transforma-se em desejo de expiação, de submeter-se a uma forma cruel e inexorável de justiça. Não foi por acaso, creio eu, que as obras posteriores de Barber tenham explorado as mesmas questões presentes em O Sangue de Kepler. Os colonizadores perdidos de Roanoke, os relatos de homens brancos que viveram entre os índios, a mitologia do Oeste norte-americano - esses foram os assuntos com que Barber se ocupou enquanto historiador. Por mais que ele os tenha tratado de modo profissional e escrupuloso, houve sempre um motivo de ordem pessoal por trás do seu trabalho, uma secreta convicção de estar de certa forma vasculhando os mistérios de sua própria vida.

Na primavera de 1939, Barber teve uma última oportunidade de saber mais coisas a respeito do pai. Nada, porém, descobriu. Estava então nos primeiros anos da Colúmbia e, em meados de maio, apenas uma semana depois do hipotético encontro com tio Victor na Feira Mundial, tia Clara lhe telefonou, avisando que a mãe morrera dormindo. Ele pegou o primeiro trem da manhã para Long Island e, lá chegando, passou a tratar de várias questões penosas relacionadas ao falecimento: providências para o funeral, leitura do testamento, torturantes conversas com advogados e contabilistas. Pagou as despesas da instituição onde a mãe vivera nos últimos seis meses, assinou papéis e chorou intermitentemente, mesmo contra a vontade. Depois do enterro, voltou à velha casa para passar a noite, pensando que talvez fosse a última em que fazia isso. Tia Clara era a única pessoa da família que ali restava, sem condições de ficar até tarde da noite acordada para conversar. Assim, pela última vez naquele dia, ele executou o ritual de explicar-lhe que ela poderia continuar na casa por quanto tempo quisesse. Novamente ela lhe agradeceu a generosidade, pondo-se na ponta dos pés para beijar-lhe o rosto, e retornou à garrafa de xerez que deixava escondida no quarto. O número de criadas, que chegou a sete na época do nascimento de Barber, reduzira-se a apenas uma. Ficara apenas Hattie Newcombe, uma negra manca que cozinhava para tia Clara e, de vez em quando, fazia a limpeza. Já havia alguns anos que a casa desmoronava ao redor das duas. O jardim não era cuidado desde a morte do avô, em 1934, e o que antes fora uma profusão de flores e grama tornara-se um sinistro emaranhado de mato que chegava à altura do peito. Teias de aranha pendiam do teto de quase todos os cômodos; não era possível mexer nas cadeiras sem levantar uma nuvem de pó; ratos passavam em desabalada carreira; e Clara, sempre a sorrir, meio tonta de álcool, nada notava. Já havia tanto tempo que era tudo assim, que Barber nem se importava mais. Sabia que nunca teria coragem de voltar a viver naquela casa. Portanto, não faria diferença alguma que, depois da morte de Clara - por causa do alcoolismo, a mesma morte que levara o marido, Binkey -, o teto desabasse ou não.

Na manhã seguinte, ele encontrou tia Clara sentada na sala de visitas. Ainda não tinha chegado a hora do primeiro copo de xerez (em geral, só depois do almoço Clara abria a garrafa). Assim, se quisesse conversar com ela, concluiu Barber, teria de ser naquele momento. A uma mesa no canto da sala, cabecinha de pardal debruçada sobre um jogo de paciência, ela cantarolava baixinho, com volteios na voz, desafinadamente. "O Homem do Trapézio Voador", pensou ele ao se aproximar. Depois, por trás dela, pôs a mão em seu ombro. Sob o xale, o corpo de Clara era só ossos.

- Três vermelho em cima do quatro preto - disse ele, apontando as cartas.

Ela estalou a língua ao constatar a própria estupidez, juntou dois montes de cartas e virou uma. Era um rei vermelho.

- Obrigada, Sol. Hoje não estou conseguindo me concentrar. Perco as boas jogadas e acabo fazendo outras que não devo. - Ela soltou um risinho abafado e voltou a cantarolar.

Barber sentou-se numa cadeira diante de tia Clara, tentando encontrar um jeito de puxar conversa. Duvidava que ela tivesse muita coisa a lhe dizer, mas não havia ninguém mais. Durante algum tempo ficou apenas a examinar-lhe o rosto, a intrincada rede de rugas, a espessa camada de pó branco nas bochechas e o ridículo batom vermelho. Achou-a patética, teve pena dela. Não lhe devia ter sido fácil entrar para aquela família, pensou ele; tampouco viver com tio Binkey sem ter um único filho. Galanteador debiloide e bondoso, Binkey casara-se em 1880, menos de uma semana depois de tê-la visto no palco do Galileo Theatre, em Providence, onde ela atuava como assistente nos números de ilusionismo do Mestre Rudolfo. Barber tinha sempre gostado de ouvi-la contar suas histórias malucas dos tempos de vaudeville, e agora parecia-lhe estranho que fossem eles os únicos sobreviventes da família. O último Barber e a última Wheeler. A moça vinda da classe baixa, como costumava dizer a avó de Barber, a mulherzinha vulgar e burra que perdera os encantos havia mais de trinta anos, e o Senhor Rotundo em pessoa, o rapaz-maravilha que não parava de se avolumar, filho de uma doida e de um fantasma. Ele nunca antes sentira tanta ternura por tia Clara.

- Volto para Nova York hoje à noite - ele anunciou.

- Não precisa se preocupar comigo - respondeu tia Clara, sem erguer os olhos das cartas. - Ficarei bem aqui, sozinha. Estou acostumada.

- Volto hoje à noite - ele repetiu - e nunca mais ponho os pés nesta casa.

Tia Clara descartou um seis vermelho em cima de um sete preto, examinou a mesa à procura de um lugar para uma dama preta, suspirou de desapontamento e, em seguida, olhou para Barber.

- Oh, Sol! Não precisa ser tão dramático.

- Não estou sendo dramático. É que talvez esta seja a última vez que nos vemos.

- Sei que está triste com o fato de ter perdido sua mãe - observou tia Clara, ainda sem compreender. - Mas não sofra tanto assim. Na verdade, foi uma bênção o que aconteceu. A vida de Elizabeth era um tormento, e agora ela está finalmente em paz. - Titia fez uma breve pausa, em busca das palavras apropriadas para dizer. - Não fique com ideias tolas nessa sua cabeça.

- Mas não se trata da minha cabeça, tia Clara, mas da casa. Acho que não vou suportar aparecer por aqui novamente.

- A casa agora é sua. Você é o dono. Tudo aqui lhe pertence.

- Isso não significa que eu tenha de ficar com ela. Posso me livrar da casa no momento que bem entender.

- Mas Solly... Ontem você disse que não ia vendê-la. Você prometeu.

- Eu não vou vendê-la. Mas não há nada que me impeça de doá-la, não é mesmo?

- Dá na mesma. O dono então seria outro, e eu teria de partir para morrer num quarto qualquer na companhia de outras velhas.

- Não se eu lhe der a casa. Você pode ficar aqui mesmo.

- Pare de falar bobagens. Senão vou ter um ataque do coração.

- Não é problema algum transferir a escritura. Posso chamar o advogado hoje mesmo para que ele tome as providências.

- Mas Solly...

- Devo levar alguns quadros comigo, mas o resto fica todo com você.

- Está errado. Não sei por que, mas não acho certo você ficar dizendo essas coisas.

- Há só uma coisa que gostaria que fizesse por mim - prosseguiu ele, sem dar ouvidos ao comentário da tia. - Quero que faça um testamento deixando a casa para Hattie Newcombe.

- A nossa Hattie Newcombe?

- É, a nossa Hattie Newcombe.

- Mas Sol, acha que isso está certo? Hattie... você sabe, Hattie é...

- É o quê, tia Clara?

- É uma negra. Hattie é uma negra.

- Se a própria Hattie não se importa, não vejo por que você deveria se incomodar.

- Mas o que as pessoas vão dizer? Uma negra morando na Cliff House. Você sabe tão bem quanto eu que os únicos negros nesta cidade são apenas criados.

- Isso não muda o fato de Hattie ser nossa melhor amiga. Ao que eu saiba, ela é sua única amiga. E por que deveríamos dar importância ao que os outros digam? Não há nada mais importante neste mundo do que sermos bons com nossos amigos.

Quando tia Clara percebeu que o sobrinho falava a sério, começou a rir baixinho. Todo um sistema de pensamento ruía de repente com as palavras que acabara de ouvir, e excitava-a o fato de saber que aquilo era possível.

- Só lamento ter de morrer antes de Hattie se tornar a dona da casa - disse ela. - Gostaria de ver isso com meus próprios olhos.

- Se o céu for como dizem ser, então você verá.

- Juro que sou incapaz de compreender por que está fazendo isso.

- Não precisa compreender. Tenho meus motivos. Não se preocupe com eles. Agora gostaria de conversar sobre certas coisas e, depois, podemos dar o assunto por encerrado.

- Quais coisas?

- Velhas coisas. Coisas do passado.

- O Galileo Theatre?

- Não. Não estava pensando nisso.

- Não? - Tia Clara ficou um momento confusa. - É que você sempre gostou de me ouvir falar de Rudolfo. Do modo como ele me punha naquele caixão e me serrava ao meio. Era um grande número, o melhor da nossa apresentação. Lembra-se?

- É claro que me lembro. Mas não é disso que estou querendo falar agora.

- Como quiser. Afinal, há muito o que se dizer a respeito dos velhos tempos. Principalmente quando se tem a minha idade.

- Estava pensando no meu pai.

- Ah, seu pai. Sim, isso também já faz muito tempo. Há coisas mais antigas, mas essa também é velha.

- Sei que você e Binkey só se mudaram para cá depois de ele ter desaparecido, mas gostaria de também saber se você se lembra de alguma coisa sobre a equipe que organizaram para ir atrás dele.

- Foi seu avô quem tomou todas as providências, junto com o senhor... como é mesmo o nome?

- Senhor Byrne.

- Isso mesmo. Senhor Byrne, pai do rapaz. Procuraram durante seis meses, mas nada encontraram. Binkey também esteve lá por algum tempo. Voltou contando muitas histórias esquisitas. Era ele quem pensava que os dois tinham sido mortos pelos índios.

- Mas isso era só uma suposição, não era mesmo?

- Binkey gostava de inventar histórias. Não havia um pingo de verdade em tudo o que ele dizia.

- E minha mãe? Ela também foi para o Oeste?

- Sua mãe? Não, não. Ela ficou aqui o tempo todo. Ela mal... como diria... mal podia viajar.

- Por que estava grávida?

- Bem, em parte sim.

- Por qual outro motivo?

- Saúde mental. Ela não estava lá muito boa.

- Já tinha ficado louca?

- Elizabeth sempre foi muito instável, digamos assim. Em certo momento estava mal-humorada, mas, no seguinte, já ria e cantava. Já era assim quando eu a conheci. Nervosa era a palavra que usávamos naquela época.

- Quando foi que ela piorou?

- Depois que seu pai deixou de aparecer.

- Ela foi piorando aos poucos ou aconteceu tudo de uma vez?

- Foi de repente, Sol. Foi terrível.

- Você viu?

- Com meus próprios olhos. Vi tudo. Nunca vou me esquecer.

- Quando aconteceu?

- Na noite em que você... quero dizer, certa noite... Não me lembro bem. Certa noite de inverno.

- Que noite foi essa, tia Clara?

- Uma noite em que nevava. Fazia muito frio lá fora. Havia uma tempestade. Lembro-me disso porque foi difícil para o médico chegar aqui.

- Foi numa noite de janeiro, não foi?

- Talvez. Costuma nevar em janeiro. Mas não me lembro que mês era aquele.

- Era onze de janeiro, não era mesmo? A noite em que nasci.

- Não me devia fazer essas perguntas, Sol. Isso aconteceu há tanto tempo. Não importa mais.

- A mim importa, tia Clara. E você é a única que pode me falar disso. Compreende? Não me resta mais ninguém.

- Não precisa gritar. Posso ouvi-lo perfeitamente bem, Solomon. Não me pressione, não me maltrate.

- Mas eu não a estou maltratando. Estou só fazendo perguntas.

- Você já sabe a resposta. Saiu da minha boca agora há pouco, sem eu querer. E lamento que o tenha feito.

- Não precisa lamentar. O importante é que me diga a verdade. Não há nada mais importante que isso.

- É que tudo foi tão... tão... Não quero que pense que estou inventando. Eu estava com ela no quarto naquela noite. Eu e Molly Sharp. Esperávamos a chegada do médico. Elizabeth gritava e se debatia tanto que pensei que a casa fosse cair.

- O que ela gritava?

- Coisas horríveis. Passo mal só de pensar nelas.

- Conte-me, tia Clara.

- "Ele quer me matar", ela gritava. "Ele quer me matar. Não podemos deixá-lo sair."

- Ela estava falando de mim?

- É, da criança. Não me pergunte como ela sabia que era um menino, mas foi isso mesmo. Estava chegando a hora, e o médico não aparecia. Molly e eu tentamos fazê-la deitar-se na cama, convencê-la a ficar na posição adequada, mas ela não cooperava. "Abra as pernas", eu lhe dizia, "isso alivia a dor". Mas Elizabeth não abria. Sabe Deus onde ela arranjava forças. Ela se soltava de nós e corria até a porta, gritando de novo aquelas coisas terríveis. "Ele quer me matar. Não podemos deixá-lo sair." Finalmente conseguimos deitá-la à força. Ou melhor, Molly conseguiu, com a minha ajuda. Molly Sharp era um touro. Mas, mesmo na cama, ela continuou de pernas fechadas. "Não vou deixá-lo sair", ela gritava. "Vou sufocá-lo aí dentro. Menino-monstro, menino-monstro. Não vou deixá-lo sair enquanto estiver vivo." Tentamos forçá-la a abrir as pernas, mas Elizabeth se debatia, se contorcia toda. Molly então passou a estapeá-la no rosto. E dá-lhe tapa e mais tapa. Para valer. Elizabeth ficou furiosa, mas depois disso tudo o que conseguiu fazer foi gritar, como se fosse ela o bebê, rosto todo vermelho. Ela guinchava e berrava a ponto de levantar os mortos.

- Meu Deus!

- Foi a pior coisa que vi na vida. Por isso não queria lhe contar.

- Mesmo assim, eu consegui sair, não foi?

- Você era o bebê maior e mais forte jamais visto. Pesava mais de cinco quilos, disse o médico. Chego a acreditar, Sol, que, se não fosse tão grande, não teria nascido. Lembre-se sempre disso. O que o fez vir ao mundo foi seu tamanho.

- Mas, e minha mãe?

- O médico acabou chegando. Era o doutor Bowles, aquele que morreu num acidente de automóvel seis ou sete anos atrás. Ele aplicou uma injeção em Elizabeth, e ela dormiu. Só foi acordar no dia seguinte, e então já tinha esquecido tudo. Não estou falando apenas da noite anterior, mas de tudo. Ela tinha esquecido tudo da vida dela nos últimos vinte anos. Quando Molly e eu entramos no quarto para mostrá-lo, ela pensou que você fosse um irmãozinho. Foi tão estranho, Sol. Ela tinha voltado a ser uma menina, não sabia mais quem era.

Barber estava para lhe fazer mais uma pergunta quando, no corredor, o relógio do avô começou a tocar. Tia Clara inclinou a cabeça para o lado e ficou ouvindo as badaladas, contando as horas nos dedos. Foram doze toques, o que a deixou com uma expressão ansiosa, quase de quem implora.

- Parece que é meio-dia - ela anunciou. - Não seria delicado fazer Hattie esperar.

- Já é hora do almoço?

- Creio que sim - ela respondeu, erguendo-se da cadeira. - Hora de nos fortalecermos com uma boa refeição.

- Vá indo, tia Clara. Apareço num instante.

Ao ver tia Clara saindo da sala, Barber percebeu que a conversa estava encerrada. Pior que isso, compreendeu que nunca mais a retomaria. Jogara tudo num lance só, e não havia mais casas com que a seduzir, nenhum outro truque que a fizesse falar.

Juntou as cartas que estavam na mesa, embaralhou-as e começou a jogar paciência. Solly Tear[1], disse ele, brincando com o próprio nome. Resolveu jogar até que ganhasse e, assim, passou mais de uma hora ali sentado. O almoço já tinha então terminado, mas isso não lhe pareceu muito importante. Pela primeira vez na vida não sentia fome.

TOMÁVAMOS CAFÉ DA MANHÃ no salão do hotel quando Barber me contou essa cena. Era o domingo de sua partida, e quase não tivemos tempo de terminar a conversa. Bebemos mais uma xícara de café e subimos para pegar a bagagem. Foi no elevador que ele me relatou o final da história. Tia Clara tinha morrido em 1943, disse. Hattie Newcombe tornou-se então a proprietária da Cliff House e lá viveu em decadente esplendor até o final da década, reinando sobre uma multidão de filhos e netos que ocupavam os quartos da mansão. Depois da sua morte, em 1951, Fred Robinson, o genro, vendeu a velha casa à Cavalcante Development Company, que a demoliu logo em seguida. Em dezoito meses a propriedade estava dividida em vinte lotes de dois mil metros quadrados, e em cada lote havia um sobrado idêntico a todos os outros.

- Se soubesse o que iria acontecer - perguntei -, teria doado a casa?

- Sem dúvida - ele respondeu, levando um fósforo ao charuto apagado e soltando uma baforada no ar. - Não hesitaria. É raro termos a oportunidade de fazer coisas tão extravagantes, e fico satisfeito por não tê-la perdido. Pensando bem, ter dado a casa para Hattie Newcombe foi a melhor coisa que fiz.

Nesse momento estávamos diante do hotel, esperando que o porteiro chamasse um táxi. Quando chegou a hora da despedida, Barber se encontrava inexplicavelmente à beira das lágrimas. Supus que se tratasse de uma reação retardada, que aquele fim de semana tivesse sido demais para ele. É claro que eu não tinha ideia do que ele estava vivendo, não podia imaginar o mínimo que fosse. Ele estava se despedindo do filho, e eu apenas de um novo amigo, de alguém que tinha conhecido dois dias antes. O táxi parou diante dele, e, enquanto o taxímetro marcava freneticamente o ritmo, o porteiro levava a bagagem até o porta-malas. Barber se aproximou para me abraçar, mas mudou de ideia no último instante e, desajeitado, pegou-me nos ombros, apertando-os com força.

- Você é a primeira pessoa a quem conto essas histórias - disse ele. - Obrigado por tê-las ouvido com tanta atenção. Sinto que... como dizer... Sinto que agora há um vínculo entre nós.

- Foi um fim de semana inesquecível - respondi.

- Foi mesmo. Inesquecível. Um grande fim de semana.

Em seguida, Barber encaixou o corpanzil no banco traseiro do táxi, fez-me sinal com o polegar erguido e desapareceu no meio do trânsito. Pensei naquele momento que não voltaria a vê-lo. Havíamos tratado do que tínhamos a tratar, esgotado o assunto. Parecia-me então tudo encerrado. Tanto que, na semana seguinte, quando recebi pelo Correio o original de O Sangue de Kepler, não interpretei o fato como continuação de algo que tínhamos começado, mas como conclusão, um último desdobramento do nosso encontro. Como Barber houvesse prometido enviá-lo, pensei que ele estivesse apenas sendo gentil. No dia seguinte, escrevi-lhe uma carta de agradecimento, voltando a falar do quanto tinha gostado de vê-lo, e, depois, perdi contato com ele. Supostamente para sempre.

MEU PARAÍSO EM CHINATOWN continuava existindo. Kitty dançava e estudava; eu escrevia e saía a passear. Passou o Dia de Colombo, o de Ação de Graças, o Natal e o Ano-Novo. Certa manhã, em meados de janeiro, o telefone tocou. Era Barber. Perguntei-lhe de onde estava ligando, e ele respondeu que de Nova York. Notei o tom de excitação e felicidade que havia em sua voz.

- Caso tenha algum tempo livre - sugeri -, seria bom nos revermos.

- Também gostaria muito - ele respondeu. - Mas não altere seus planos por minha causa. Vou ficar algum tempo por aqui.

- Sua faculdade deve dar um longo período de férias entre os semestres.

- Na verdade, estou de licença. Só volto em setembro. Até lá, achei que seria bom viver em Nova York. Subloquei um apartamento na Rua 10, entre a Quinta e a Sexta Avenida.

- Ótimo ponto. Já passeei muito por aí.

- É um lugar charmoso e acolhedor, como diz o anúncio. Eu me mudei ontem à noite e estou muito satisfeito. Você e Kitty precisam vir me visitar.

- Eu adoraria. Vamos, sim. É só dizer quando.

- Ótimo. Volto a ligar ainda nesta semana, assim que estiver bem instalado. Há um projeto que quero discutir com você. Prepare-se para pôr a cabeça a funcionar.

- Não estou certo de que ela funcione muito bem, mas aproveite o que for possível.

Três ou quatro dias depois, Kitty e eu fomos jantar no apartamento de Barber. Passamos a vê-lo com frequência. Foi Barber quem começou a amizade, e, se havia nisso alguma segunda intenção, nem eu nem Kitty percebemos. Ele nos levava a restaurantes, ao cinema, a concertos e, no domingo, a passeios de carro até o campo. Como fosse todo bom humor e afeição, não podíamos resistir. Sempre com seus chapéus estranhos, aonde quer que fôssemos, sempre a contar piadas, sempre indiferente à comoção que causava nos lugares públicos, Barber nos levava sob suas asas, como se quisesse nos adotar. E, como eu e Kitty fôssemos órfãos, todos pareciam tirar proveito da situação.

Na primeira noite em que o vimos, Barber contou-nos que já tinha recebido a herança de Effing. Era muito dinheiro, disse ele, e, pela primeira vez, não dependia do seu trabalho para viver. Se tudo saísse do modo como esperava, não voltaria a dar aulas antes de dois ou três anos.

- É a minha chance de aproveitar a vida - disse ele. - E farei isso o melhor que puder.

- Com todo o dinheiro que Effing tinha - respondi -, achava que você poderia se aposentar de vez.

- Não tive tanta sorte. Havia impostos sobre a herança, impostos sobre os bens, honorários de advogados, despesas de que eu nunca tinha ouvido falar. Isso engoliu uma boa parte. Assim, recebi bem menos do que esperava.

- Quer dizer que não havia milhões?

- Não. Só milhares. Ao fim de tudo, a senhora Hume e eu ficamos com cerca de quarenta e seis mil dólares cada um.

- Isso não deveria me surpreender. Mas ele falava como se fosse o homem mais rico de Nova York.

- É, acho que ele devia ter propensão para o exagero. Mas longe de mim levá-lo a mal por isso. Afinal, herdei quarenta e seis mil dólares de um homem que nem conhecia. Nunca tive tanto dinheiro na vida. Foi um tremendo golpe de sorte, um presente inimaginável.

Barber contou-nos que havia três anos estava trabalhando num livro sobre Thomas Harriot. Normalmente, esperaria concluir o trabalho em mais dois anos, mas, já que não tinha outras obrigações, talvez pudesse terminá-lo em meados do verão, dali a uns seis, sete meses. Aí entrava o projeto de que ele me falara ao telefone. Estivera apenas brincando com a ideia nas últimas duas semanas, disse ele, e queria minha opinião antes de considerar seriamente o assunto. Seria algo para depois de concluído o livro sobre Harriot, mas, caso decidisse levar o projeto adiante, seria necessário um bom planejamento.

- Creio que tudo se resume numa só questão - ele acrescentou. - Não espero que me dê uma resposta conclusiva sobre o assunto, mas, diante das circunstâncias, só com a sua opinião é que posso contar.

Nessa altura, tínhamos acabado de jantar e estávamos os três à mesa, bebendo conhaque e fumando charutos cubanos que Barber trouxera de contrabando de uma recente viagem ao Canadá. Estávamos todos um pouco altos, e, no espírito do momento, até Kitty aceitou o enorme Churchill que ele lhe oferecera. Divertia-me vê-la a soltar baforadas, vestida em seu chipao, mas, igualmente engraçado estava Barber, que, para a ocasião, pusera um smoking cor de vinho e um barrete turco.

- Se sou o único - respondi -, então isso deve ter algo a ver com seu pai.

- Exatamente. Isso mesmo. - Para pontuar a resposta, Barber inclinou a cabeça para trás e soltou no ar um perfeito anel de fumaça. Kitty e eu olhamos, admirados, para aquele "O" que passou tremulante por nós e aos poucos foi perdendo a forma. Depois de uma breve pausa, Barber abaixou a voz uma oitava inteira e disse: - Estive pensando a respeito da caverna.

- Ah, a caverna - repeti. - A enigmática caverna no deserto.

- Não consigo parar de pensar nisso. É como uma velha canção que não sai da cabeça.

- Uma velha canção. Uma velha história. Não há como se livrar disso. Mas como poderemos saber se essa caverna de fato existiu?

- É justamente o que eu ia lhe perguntar. Foi você quem ouviu a história. O que me diz, M. S.? Ele estava dizendo a verdade ou não?

Antes que eu pudesse pensar para responder, Kitty inclinou-se para a frente, apoiando-se nos cotovelos, olhou à esquerda para mim, olhou à direita para Barber, e resumiu o complicado problema em poucas palavras:

- É claro que ele estava dizendo a verdade. Alguns fatos podem não ser corretos, mas ele estava dizendo a verdade.

- Uma resposta profunda - observou Barber. - Sem dúvida, a única que faz sentido.

- Creio que sim - concordei. - Mesmo que a caverna não tenha de fato existido, houve uma experiência da caverna. Tudo depende de quão literalmente tomemos as palavras de Effing.

- Nesse caso - prosseguiu Barber -, deixe-me reformular a questão. Diante da incerteza, em que medida acha que vale a pena o risco?

- Qual risco? - perguntei.

- O risco de perder tempo - respondeu Kitty.

- Ainda não compreendo.

- Ele quer procurar a caverna - ela me explicou. - Não é isso mesmo, Sol? Você quer ir até lá para ver se a encontra.

- Você é muito perspicaz, minha querida - observou Barber. - É exatamente isso o que estou pensando. E a tentação é muito grande. Se há possibilidade de que a caverna exista, estou disposto a fazer de tudo para encontrá-la.

- Há possibilidade - disse eu. - Talvez não muita, mas não vejo nisso motivo de impedimento.

- Ele não pode fazer isso sozinho - observou Kitty. - Seria muito perigoso.

- É verdade - concordei. - Ninguém devia escalar montanhas sozinho.

- Principalmente os gordos - acrescentou Barber. - Mas esses são detalhes que podemos discutir mais tarde. O importante é que vocês acham que eu devo ir, não é mesmo?

- Poderíamos ir todos juntos - sugeriu Kitty. - M. S. e eu poderíamos ser seus batedores.

- É claro - disse eu, vendo-me de repente em roupa de couro, montado a cavalo e esquadrinhando o horizonte. - Encontraremos essa maldita caverna, nem que seja a última coisa que façamos.

Para ser bem franco, não levei nada disso a sério. Achei que se tratava de uma dessas conversas de bêbados em fim de noite, esquecidas logo na manhã seguinte. Embora tivéssemos continuado a falar da "expedição" sempre que nos víamos, eu não a considerava mais do que uma brincadeira. Era agradável estudar mapas e fotografias, discutir itinerários, falar das condições climáticas, mas brincar com o projeto não significava acreditar nele. Utah ficava tão longe e as chances de organizarmos a viagem eram tão remotas que, mesmo com todo o empenho de Barber, eu não conseguia crer na sua viabilidade. Meu ceticismo aumentou certa tarde de domingo, em fevereiro, quando vi Barber caminhar pelo bosque de Berkshire County. Seu peso era tão excessivo, os pés tão desajeitados, o fôlego tão desanimadoramente curto, que ele não aguentava mais de dez minutos de caminhada sem ter de parar para um descanso. Com o rosto afogueado do esforço, ele soltava o corpo sobre o primeiro toco de árvore e ali ficava durante tanto tempo quanto tinha caminhado, arfando desesperadamente, o suor escorrendo de sob a boina escocesa, como se sua cabeça fosse um bloco de gelo a derreter. Se as suaves colinas de Massachusetts já o deixavam nesse estado, pensei, o que não lhe aconteceria nos desfiladeiros de Utah? Não, a expedição era uma farsa, uma absurda fantasia tomada por realidade. Enquanto permanecesse no âmbito da conversa, não haveria com que se preocupar. Mas se Barber tomasse alguma atitude concreta para partir, Kitty e eu nos sentiríamos no dever de dissuadi-lo da ideia.

DIANTE DA RESISTÊNCIA que demonstrei no início, não deixa de ser irônico que tenha sido eu quem acabou indo à procura da caverna. Apenas oito meses haviam transcorrido desde a primeira vez em que falamos da expedição, mas tantas coisas ocorreram nesse meio-tempo, tantas coisas foram esmagadas e destruídas, que meus sentimentos iniciais já não tinham mais importância. Fui porque não tinha escolha. Não que eu quisesse ir; as circunstâncias simplesmente me impediram de não fazê-lo.

No começo de março, Kitty descobriu que estava grávida, e, no começo de junho, eu já a tinha perdido. Nossa vida desmoronou em questão de semanas. Quando enfim compreendi que o dano era irreparável, senti que meu coração fora arrancado do peito. Até então, Kitty e eu tínhamos vivido juntos numa harmonia sobrenatural, e, quanto mais o tempo passava, menos provável nos parecia que algo pudesse nos separar. Se tivéssemos sido mais combativos no nosso relacionamento, se tivéssemos passado o tempo todo a discutir e a atirar pratos um no outro, talvez estivéssemos mais bem preparados para enfrentar a crise. A gravidez caiu como um tiro de canhão no nosso pequeno lago de águas calmas, e, antes que pudéssemos reagir ao impacto, o barco já tinha virado e nadávamos para salvar nossas preciosas vidas.

Não foi porque não mais nos amássemos. Mesmo quando nossas batalhas eram mais intensas e dolorosas, nunca nos desmentimos, nunca negamos os fatos, nunca fingimos que nossos sentimentos haviam mudado. Simplesmente já não falávamos a mesma língua. Para Kitty, o amor significava nós dois, mais ninguém. Um filho não cabia aí de modo algum. Assim, qualquer decisão que tomássemos dependeria exclusivamente daquilo que quiséssemos para nós mesmos. Embora fosse Kitty quem estivesse grávida, a criança não passava de uma abstração para ela, de uma hipotética vida futura, em vez de uma vida em formação. Antes de nascer, não existiria. Do meu ponto de vista, no entanto, o bebê tinha começado a existir no momento em que eu soube que ela o carregava no ventre. Mesmo que não fosse maior que um polegar, tratava-se de uma pessoa, de uma realidade inegável. Caso providenciássemos um aborto, isso para mim seria o mesmo que cometer um assassinato.

Kitty tinha todas as razões do seu lado. Eu sabia disso, mas, mesmo assim, não dava importância ao fato. Tranquei-me numa obstinada irracionalidade, cada vez mais chocado com a minha própria veemência e, contudo, impotente para rejeitá-la. Ela era jovem demais para ser mãe, dizia Kitty, e, embora eu concordasse com isso, não estava disposto a ceder. Nossas mães não eram mais velhas do que você é hoje, eu respondia, inflexivelmente, associando duas situações que nada tinham a ver entre si. Então, chegávamos ao nó da questão. Tudo bem quanto a nossas mães, retrucava Kitty, mas como ela poderia continuar dançando com um bebê para cuidar? A isso eu respondia, com ares de quem soubesse o que estava falando, que eu cuidaria da criança. Impossível, ela rebatia, não se pode privar um bebê do contato com a mãe. Ter um filho é uma tremenda responsabilidade, Kitty acrescentava, é algo que precisa ser levado a sério. Algum dia, disse ela, haveria de querer um filho nosso, mas aquele não era o momento certo, ainda não estava preparada para isso. Mas o momento já chegou, eu tentava convencê-la. Quer você queira ou não, já fizemos uma criança, e agora temos de encarar o fato. Nessa altura, exasperada com a estupidez de meus argumentos, Kitty começava inevitavelmente a chorar.

Eu detestava vê-la em lágrimas, mas mesmo assim não cedia. Olhava para Kitty e dizia a mim mesmo que não fosse intransigente, que a abraçasse e aceitasse o que ela queria. No entanto, quanto mais tentava abrandar os meus sentimentos, mais implacável me tornava. Eu queria ser pai e não suportava a ideia de perder a oportunidade que se apresentava bem diante de mim. Ter um filho era a possibilidade de desfazer a solidão da minha infância, de ter uma família, de pertencer a algo além de mim mesmo. E, como até então eu não tivesse consciência desse desejo, ele irrompeu em enormes e inarticulados surtos de desespero. Se minha mãe tivesse sido sensata, eu gritava para Kitty, eu não teria nascido. E, sem dar-lhe tempo para responder, acrescentava:

- Se você matar nosso filho, vai me matar também.

O tempo estava contra nós. Tínhamos poucas semanas para tomar uma decisão, e a cada dia a pressão aumentava. Não falávamos de outra coisa, discutíamos até tarde da noite e víamos nossa felicidade se dissolver num oceano de palavras, em exaustivas acusações de traição. Apesar das longas discussões, em nenhum momento modificamos nossa posição original. Era Kitty quem estava grávida; cabia a mim, portanto, persuadi-la, e não o contrário. Quando finalmente compreendi que não havia outro jeito, disse-lhe que fosse em frente e fizesse o que queria. Eu não mais desejava puni-la. Quase no mesmo fôlego, acrescentei que pagaria a intervenção.

As leis eram outras naquela época, e o único modo de uma mulher conseguir um aborto legal era por meio de atestado médico em que se declarava que o filho punha em risco a vida da mãe. No Estado de Nova York, as interpretações da lei eram suficientemente flexíveis para incluir "risco à saúde mental" (a mãe poderia tentar o suicídio depois do nascimento da criança), e assim o parecer do psiquiatra era considerado tão válido quanto o do obstetra. Como a saúde de Kitty fosse perfeita e eu não quisesse um aborto ilegal - o que me inspirava muito medo -, seria necessário encontrar um psiquiatra disposto a fornecer o atestado de que ela precisava. Ela encontrou um, mas não saiu nada barato. Com isso, mais a conta do St. Luke’s Hospital, acabei gastando alguns milhares de dólares para destruir meu próprio filho. Voltei a ficar quase sem dinheiro. Quando me sentei ao lado da cama de Kitty, no hospital, e vi no seu rosto a fraqueza e o sofrimento, não pude deixar de sentir que estava tudo acabado, que minha vida me fora retirada.

Voltamos para Chinatown na manhã seguinte, mas nada mais era como antes. Tínhamos conseguido nos convencer de que esqueceríamos o assunto, mas, quando tentamos retomar a vida anterior, descobrimos que ela deixara de existir. Depois daquelas semanas infelizes de brigas e discussões, caímos no silêncio, como se tivéssemos medo de olhar um para o outro. O aborto fora mais difícil do que Kitty julgara, e, apesar da convicção de ter tomado a atitude certa, não conseguia deixar de sentir que agira mal. Deprimida, prostrada pelo que tinha passado, vivia de um lado para o outro dentro de casa, calada, como se guardasse luto. Compreendi que deveria confortá-la, mas era incapaz de juntar forças para vencer minha própria mágoa. Não fazia nada além de vê-la sofrer, até que finalmente percebi que sentia prazer nisso. Queria que ela pagasse pelo que tinha feito. Foi o pior momento, creio eu. Voltei-me contra mim mesmo, chocado com o horror e a crueldade que eu guardava por dentro. Não podia continuar assim, não podia mais suportar quem eu era. Sempre que olhava para Kitty, nada via além da minha desprezível fraqueza, o reflexo do monstro que me tornara.

Disse-lhe que eu precisava ficar afastado por uns tempos para pôr a cabeça em ordem, mas isso porque não tinha coragem de lhe contar a verdade. Kitty, porém, compreendia. Não precisava de palavras para saber o que estava acontecendo. Quando, na manhã seguinte, ela me viu fazendo as malas e me preparando para partir, implorou-me que ficasse. Chegou a ficar de joelhos. Tinha o rosto contorcido e banhado de lágrimas. Eu, no entanto, havia me transformado num bloco de pedra; nada haveria de me impedir. Deixei meus últimos mil dólares sobre a mesa e disse-lhe que usasse o dinheiro durante minha ausência. Saí em seguida. Ao chegar à rua, rompi em prantos.


7

BARBER ACOLHEU-ME EM seu apartamento até o fim da primavera. Não me deixou dividir o aluguel, e, com meu dinheiro quase a zero, logo tive de arranjar emprego. Eu dormia no sofá da sala de estar, acordava às seis e meia da manhã e passava os dias carregando móveis escada acima e abaixo para um amigo que dirigia uma pequena transportadora. Eu detestava o trabalho, mas era suficientemente exaustivo para amortecer-me as ideias, ao menos no começo. Mais tarde, quando meu corpo já estava mais acostumado à rotina, descobri que não conseguia dormir sem antes cair num torpor alcoólico. Barber e eu ficávamos conversando até por volta da meia-noite, depois eu ficava sozinho na sala diante de duas opções: ficar olhando para o teto até o amanhecer ou embebedar-me. Geralmente eu tinha de beber uma garrafa inteira de vinho para conseguir pregar os olhos.

Barber não podia ter-me tratado melhor, não podia ter sido mais atencioso e simpático, mas eu estava num estado tão lamentável que mal notava sua presença. Apenas Kitty era real para mim, e, diante da tangibilidade da sua ausência, tão poderosa, tão insistente, eu não era capaz de pensar em mais nada. Todas as noites começavam com a mesma dor no meu corpo, com a mesma necessidade ávida, latejante, de que ela me tocasse. Antes mesmo de eu compreender o que acontecia, tal sensação já me invadira por sob a pele, como se os tecidos que me circundavam estivessem para explodir. Era a privação na forma mais repentina e absoluta. O corpo de Kitty fazia parte do meu, e, sem tê-lo a meu lado, era como se eu deixasse de ser quem eu era. Eu me sentia mutilado.

Depois da dor, imagens surgiam na minha cabeça. Eu via Kitty a estender os braços para me tocar, via suas costas e ombros nus, a curva de suas nádegas, sua barriga macia a dobrar-se quando ela se sentava na beira da cama para vestir a calcinha. Era impossível afastar tais imagens. Mal uma delas se apresentava, logo vinha outra, a reviver os menores e mais íntimos detalhes da nossa convivência. Eu não conseguia me lembrar da nossa felicidade sem sentir dor. Eu buscava, no entanto, essa dor, desconsiderando o mal que ela me causava. Todas as noites eu dizia a mim mesmo que pegasse o telefone e ligasse para ela. E todas as noites eu combatia a tentação, juntando todo o ódio que tinha por mim. Depois de duas semanas a me torturar desse jeito, comecei a sentir que estava me consumindo em fogo.

Barber mostrou-se desolado. Sabia que algo horrível tinha acontecido, mas nem eu nem Kitty lhe contávamos o que era. No começo ele se dispôs a fazer o papel de intermediário, falando com cada um de nós e, depois, relatando a conversa ao outro. Não conseguiu, porém, nenhum bom resultado, apesar de todas as idas e vindas. Sempre que tentava extrair de nós o segredo, dávamos-lhe a mesma resposta: não posso contar, pergunte ao outro. Barber não tinha dúvidas quanto a que eu e Kitty ainda estivéssemos apaixonados, e ficava terrivelmente confuso e frustrado com a nossa recusa em tentarmos nos aproximar. Kitty quer que você volte, ele me dizia, mas não acredita que isso vá acontecer. Não posso voltar, eu respondia. É o que mais quero, mas não posso. Como última estratégia, Barber chegou a nos convidar para jantar ao mesmo tempo (sem mencionar que o outro também estaria presente), mas o plano fracassou quando Kitty me viu ao entrar no restaurante. Se ela tivesse virado na nossa direção dois minutos depois, o esquema poderia ter funcionado. Mas não, ela conseguiu se livrar da armadilha e, em vez de se aproximar, deu-nos as costas e foi embora. Quando, na manhã seguinte, Barber lhe perguntou o que tinha acontecido, ela lhe respondeu que não acreditava em truques.

- Cabe a M. S. tomar a iniciativa - ela acrescentou. - Fiz algo que lhe cortou o coração, e não o culpo se ele não quiser mais voltar para mim. Ele sabe que não foi de propósito o que fiz, mas isso não significa que ele seja obrigado a me perdoar.

Depois disso, Barber recuou. Parou de transmitir recados entre nós e deixou que os acontecimentos seguissem seu curso natural e desanimador. A última declaração que Kitty lhe fez era bem típica da coragem e generosidade que eu sempre encontrara nela, e durante meses, até mesmo anos, não me foi possível lembrar suas palavras sem me sentir envergonhado. Se alguém tinha sofrido era Kitty, e, no entanto, era ela quem assumia a responsabilidade pelo ocorrido. Se eu possuísse uma ínfima parte da sua bondade, teria ido correndo procurá-la, para prostrar-me aos seus pés e implorar-lhe que me perdoasse. Não fiz, porém, nada disso. Os dias passavam, e eu não conseguia tomar nenhuma atitude. Como um animal ferido, eu me encolhia para dentro da dor e não me mexia. Talvez eu ainda estivesse lá, mas já não era possível que minha presença fosse levada em conta.

Barber tinha falhado no papel de cupido, mas continuava a fazer tudo o que podia para me salvar. Tentou que eu me interessasse novamente por escrever, comentava livros, convencia-me a ir com ele ao cinema, a bares, restaurantes, conferências, concertos. Nada disso fez muita diferença, mas não deixei de apreciar seu esforço. Ele se empenhava tanto em me ajudar que, a certa altura, eu me perguntei por que se dava a esse trabalho todo. Barber tocava a todo vapor seu livro sobre Thomas Harriot, cumpria jornadas de seis ou sete horas seguidas debruçado sobre a máquina de escrever, mas, assim que eu chegava em casa, ele se mostrava disposto a deixar tudo de lado, como se achasse minha companhia mais interessante que o seu trabalho. Isso me intrigava, pois eu sabia estar sendo péssima companhia. Não conseguia entender como alguém poderia gostar. Na falta de outras ideias, passei a me perguntar se ele era homossexual, supondo que talvez ficasse excitado demais com a minha presença para poder se concentrar em outra coisa. Era uma suposição lógica, mas nada além disso, apenas outro tiro no escuro. Ele não tentava me abordar, e, pelo modo como olhava para as mulheres na rua, eu poderia dizer que todos os seus desejos se voltavam para o sexo oposto. Então, qual seria a resposta? Talvez solidão, pensei, solidão pura e simples. Ele não tinha outros amigos em Nova York e, até que arranjasse mais algum, estava disposto a me aceitar como eu era.

Certa noite, no final de junho, saímos para beber cerveja na White Horse Tavern. Era uma noite quente, pegajosa, e, quando nos sentamos a uma mesa dos fundos (a mesma que eu e Zimmer costumávamos ocupar no outono de 1969), rios de suor começaram a escorrer do rosto de Barber. Secando-se com um enorme lenço axadrezado, ele bebeu a segunda cerveja em um ou dois goles e, de repente, bateu com o punho cerrado na mesa.

- Faz um calor infernal nesta cidade - ele se queixou. - Depois de vinte e cinco anos longe daqui, tinha esquecido o que era verão.

- Espere para ver como é em julho e agosto - respondi. - Isto ainda não é nada.

- Para mim é o suficiente. Se ficar mais tempo por aqui, vou ter que andar enrolado em toalhas. Todos os lugares são uma sauna.

- Você poderia tirar férias. Muita gente viaja durante a época de calor. Poderia ir para as montanhas, para a praia, para onde quisesse.

- Só há um lugar que me interessa. E acho que você sabe qual é.

- Mas, e o seu livro? Pensei que queria terminá-lo primeiro.

- Eu queria, mas agora mudei de ideia.

- Não deve ser só por causa do clima.

- Não, preciso de um descanso. E você também, parece.

- Eu estou bem, Sol. Estou mesmo.

- Uma mudança de cenário lhe faria bem. Não há mais nada que o prenda aqui. E quanto mais tempo ficar, pior. Não sou cego.

- Vou me recuperar. Logo tudo vai começar a dar certo.

- Aposto que não. Você está amarrado, M. S. Está se consumindo. O único jeito é você sair daqui.

- Não posso largar meu trabalho.

- Por que não?

- Preciso de dinheiro, antes de mais nada. Além disso, Stan está contando comigo. Não seria justo largá-lo desse modo.

- Avise-o com algumas semanas de antecedência. Ele pode arranjar outra pessoa.

- Assim sem mais nem menos?

- Isso mesmo. Sei que você é jovem, forte, um bom amigo, mas não o vejo carregando móveis para o resto da vida.

- Não estava pensando em fazer carreira nisso. É uma situação temporária, digamos assim.

- Bem, ofereço-lhe outra situação temporária. Você poderia ser meu assistente, meu batedor, meu braço direito. A proposta inclui alojamento e comida, demais suprimentos e ainda o dinheiro que achar necessário. Caso julgue que não está bem assim, estou disposto a negociar. O que me diz?

- É verão. Se você já acha mau estar em Nova York, o que não vai achar do deserto? Nós vamos torrar sob o sol.

- Não é o Saara. Compramos um carro com ar condicionado e viajamos confortavelmente.

- Mas para onde? Não temos a menor ideia de por onde começar.

- Claro que temos. Não digo que vamos encontrar o que procuramos, mas sabemos qual é a região. O sudeste de Utah, a começar pela cidade de Bluff. Não vai nos fazer mal tentar.

A conversa se estendeu por várias horas mais, e Barber foi aos poucos vencendo minha resistência. Ele rebatia cada argumento que eu lhe apresentava; a cada aspecto negativo que eu levantava, ele contrapunha dois ou três positivos. No fim, não sei como, ele tinha conseguido me fazer quase feliz por eu ter cedido. Talvez o que me atraísse fosse o simples fato de o empreendimento estar fadado ao fracasso. Duvido que eu tivesse ido, caso achasse possível, ainda que improvável, encontrarmos a caverna, mas a ideia de uma busca inútil, de uma jornada em vão, ajustava-se muito bem a minha sensibilidade naquele momento. Procuraríamos, mas não encontraríamos nada. Apenas ir era o que importava, e no final haveria somente a futilidade das nossas ambições. Essa era uma metáfora com a qual eu sabia viver, o salto no vazio com que eu sempre sonhara. Então, apertei a mão de Barber e disse-lhe que contasse comigo.

PASSAMOS AS DUAS SEMANAS seguintes a aperfeiçoar nosso plano. Em vez de seguirmos diretamente para a região da caverna, decidimos fazer um desvio sentimental. Iríamos primeiro a Chicago, depois para o norte, até Minnesota, e só então pegaríamos a estrada para Utah. A viagem ficaria uns mil e seiscentos quilômetros mais longa, mas não vimos nisso problema algum. Não tínhamos pressa, e, quando eu disse a Barber que gostaria de ir ao cemitério onde minha mãe e meu tio estavam enterrados, ele não fez objeções. Já que íamos para Chicago, disse ele, por que não sairmos um pouco mais da rota e passarmos uns dois dias em Northfield? Ele tinha lá alguns assuntos pendentes a tratar e ainda poderia mostrar-me, no sótão da casa, a coleção de pinturas e desenhos do pai. Não me dei ao trabalho de lhe explicar que já me recusara a ver esses quadros. No espírito da viagem que estávamos por empreender, eu dizia sim a tudo.

Três dias depois, Barber comprava de um sujeito de Queens um carro com ar condicionado. Era um Pontiac Bonneville vermelho, 1965, com apenas setenta e cinco mil quilômetros rodados. Ele se apaixonou tanto pelo espalhafato e pela velocidade do carro que nem pechinchou muito.

- O que acha? - ele não parava de me perguntar enquanto examinávamos o veículo. - Um belo carro, não é mesmo?

Tínhamos de trocar o escapamento e os pneus, o carburador precisava de uns ajustes, e havia um amassado na parte de trás. Barber, porém, estava decidido, e eu não via motivo algum para tentar dissuadi-lo. Apesar dos defeitos, o carro era uma boa máquina, disse ele, e, na minha opinião, serviria tão bem quanto qualquer outro. Fomos dar uma volta para experimentá-lo, e, enquanto percorríamos de um lado para o outro as ruas de Flushing, Barber discorreu entusiasticamente sobre a revolta de Pontiac contra Lord Amherst. Não devíamos esquecer, disse ele, que o nome do carro tinha vindo de um grande chefe indígena, o que acrescentava uma nova dimensão a nossa jornada. Ao viajarmos com ele para o Oeste estaríamos prestando homenagem aos mortos, celebrando os valentes guerreiros que lutaram para defender a terra que lhes tínhamos roubado.

Compramos mapas rodoviários, óculos de sol, mochilas, cantis, binóculos, sacos de dormir e uma barraca. Depois de trabalhar mais uma semana e meia na transportadora de meu amigo Stan, altura em que já podia deixar o emprego com a consciência tranquila, um primo dele que viera passar o verão na cidade concordou em me substituir. Barber e eu então saímos para jantar. Era a última vez que fazíamos isso em Nova York (comemos sanduíches de carne no Stage Deli), e, lá pelas nove horas, já estávamos de volta ao apartamento. Queríamos dormir cedo para poder partir logo ao amanhecer. Era o começo de julho de 1971. Eu tinha vinte e quatro anos e sentia que minha vida chegara a um beco sem saída. Já deitado no sofá em meio à escuridão da sala, ouvi Barber ir na ponta dos pés até a cozinha e telefonar para Kitty. Não consegui ouvir muito bem o que ele disse, mas parecia que estava falando da viagem.

- Não há certeza de nada - ele sussurrou -, mas talvez isso lhe faça bem. Quem sabe, quando voltarmos, ele já esteja preparado para vê-la.

Não me foi difícil adivinhar a quem ele se referia. Depois que Barber voltou ao quarto, acendi a luz e abri outra garrafa de vinho, mas parecia que o álcool já não produzia efeito em mim. Quando, às seis da manhã, Barber entrou na sala para me acordar, eu não devia ter dormido mais que vinte ou trinta minutos.

Às quinze para as sete estávamos na estrada. Barber dirigia, e eu ia sentado no banco do capanga, bebendo café de uma garrafa térmica. Nas duas primeiras horas estive apenas meio consciente, mas, assim que chegamos ao interior da Pensilvânia, sob céu aberto, comecei a emergir lentamente do torpor. Dali até Chicago conversamos sem parar, revezando-nos na direção enquanto atravessávamos o oeste da Pensilvânia, Ohio e Indiana. Se esqueci grande parte da conversa, talvez seja porque estivéssemos sempre mudando de assunto, quase em consonância com a paisagem que cortávamos. Falamos um pouco sobre carros, eu me recordo, e sobre as transformações que eles haviam trazido aos Estados Unidos da América. Falamos de Effing e da torre de Tesla, em Long Island. Ainda posso ouvir Barber limpando a garganta, no momento em que saíamos de Ohio para entrar em Indiana. Ele se preparava para discorrer longamente sobre o espírito de Tecumseh, mas, por mais esforço que eu faça, não me vem à memória uma frase sequer desse discurso. Mais tarde, quando o sol começou a baixar, passamos mais de uma hora enumerando nossas preferências em vários campos: os romances, as comidas e os jogadores de nossa predileção, por exemplo. Devíamos ter falado de mais de cem categorias, um índice completo de gostos pessoais. Eu disse Roberto Clemente; Barber, Al Kaline. Eu disse Dom Quixote; Barber, Tom Jones. Ambos preferíamos Schubert a Schumann, mas Barber tinha um fraco por Brahms, e eu não. Por outro lado, ele achava Couperin um chato, enquanto eu não me cansava de Les Barricades Mystérieuses. Ele disse Tolstói, eu disse Dostoiévski. Ele disse A Casa Desolada, eu disse Nosso Amigo Mútuo[2]. Dentre todas as frutas, ambos concordávamos que eram os limões as que tinham melhor aroma.

Dormimos num motel nos arredores de Chicago. No dia seguinte, depois do café da manhã, saímos para procurar uma floricultura. Comprei dois ramalhetes iguais, um para minha mãe, outro para tio Victor. Barber estava estranhamente quieto no carro, mas não dei muita atenção ao fato, atribuindo-o ao cansaço da véspera. Tivemos alguma dificuldade para encontrar o Cemitério Westlawn (enganamo-nos duas vezes e tomamos um caminho que nos levou na direção oposta). Quando transpusemos o portão, já eram quase onze horas. Levamos mais vinte minutos para encontrar os túmulos. Ao descermos do carro para o tórrido calor do verão, nenhum de nós pronunciou uma palavra. Um grupo de quatro homens tinha acabado de cavar uma sepultura alguns túmulos abaixo dos de minha mãe e de meu tio. Em silêncio, ficamos ao lado do carro por minutos, observando os coveiros, até que eles jogaram suas pás na traseira de uma caminhonete verde e foram embora. A presença deles era um intromissão. Barber e eu tínhamos tacitamente concordado que deveríamos aguardar que eles se afastassem, compreendendo que somente se estivéssemos sozinhos poderíamos fazer aquilo que motivara nossa visita ao cemitério.

Tudo aconteceu muito depressa, depois disso. Atravessamos o caminho, e precisei conter as lágrimas quando de repente vi os nomes de minha mãe e de meu tio gravados nas pequenas lápides. Assim que me dei conta de que os dois estavam ali sob meus pés, não consegui parar de tremer. Eu não esperava ter uma reação tão violenta. Passaram-se vários minutos, creio eu, mas isso é mera suposição. Não consigo enxergar mais que um borrão, uns poucos gestos isolados em meio à névoa da lembrança. Recordo-me de ter colocado uma pedra sobre cada lápide. De vez em quando, também consigo vislumbrar-me agachado, arrancando freneticamente ervas daninhas do mato que cobria os túmulos. Barber não está presente nessas imagens. Isso sugere que eu devia estar atribulado demais para notá-lo, que por algum tempo eu me esquecera dele. O fato é que, digamos, a história tinha começado sem mim, e, quando entrei nela, a ação já ia longe, tudo saía fora de controle.

De algum modo, voltei para perto de Barber. Estávamos os dois lado a lado diante do túmulo de minha mãe, e, quando olhei para ele, vi lágrimas a lhe escorrerem pelo rosto. Ele soluçava. Foi então que compreendi que os ruídos tristes e abafados que dele vinham já estavam presentes havia tempo. Creio que nesse momento eu disse uma coisa qualquer. O que foi, por que está chorando - não me lembro exatamente das palavras. Barber, porém, não me ouviu. Continuou olhando fixamente para o túmulo de minha mãe, chorando sob o imenso céu azul, como se fosse o último ser humano que restara no universo.

- Emily... - disse ele finalmente. - Minha querida Emily... Veja como está você agora... Se não tivesse fugido... Se tivesse permitido que eu a amasse... Minha querida, minha doce e pequena Emily... Que tamanho desperdício! Que abominável desperdício!

As palavras saíam-lhe num espasmo de sufocamento, num ímpeto de dor que se rompia em estilhaços assim que vinha para fora. Eu o ouvi como se a terra tivesse falado comigo, como se os mortos tivessem pronunciado aquelas palavras de dentro dos túmulos. Barber tinha amado minha mãe. A partir desse único e incontestável fato, tudo começou a se mover, a tremer, a ruir - o mundo todo começava a se reorganizar bem diante dos meus olhos. Ele nada me havia contado, mas de repente eu soube. Soube quem ele era, soube de tudo.

Nos primeiros momentos senti apenas raiva, um acesso demoníaco de nojo e náusea.

- Do que está falando? - perguntei.

Como Barber não olhasse para mim, empurrei-o com as duas mãos, fazendo seu braço mexer-se com a força e a agressividade do golpe.

- Do que está falando? - repeti. - Diga alguma coisa, seu monte de banha. Diga alguma coisa ou lhe dou um murro nas fuças.

Barber então voltou-se para mim, mas nada fazia além de sacudir a cabeça de um lado para o outro, como se tentasse dizer que era inútil falar o que fosse.

- Meu Deus, Marco, por que me trouxe aqui? - disse ele finalmente. - Não sabia que isso ia acontecer?

- Sabia? - gritei. - Como é que eu ia saber? Você nunca me contou nada, seu mentiroso. Você me enganou e agora quer me inspirar pena. E eu? Como é que eu fico? Hipopótamo de merda!

Soltei minha raiva como se fosse um louco, berrando com toda a força dos pulmões para o ar quente do verão. Momentos depois, Barber começou a recuar, trôpego, afastando-se do meu ataque, como se não pudesse mais suportá-lo. Ele ainda chorava. Mãos a esconder o rosto, sem nada enxergar, seguiu cambaleante pela fileira de túmulos, uivando e soluçando, enquanto eu continuava a gritar. O sol já estava no alto do céu, e o cemitério tremulava com um brilho estranho e pulsante, como se a luz fosse forte demais para ser real. Barber deu mais uns passos e, quando chegou à beira da cova aberta naquela manhã, começou a perder o equilíbrio. Deve ter tropeçado numa pedra ou numa depressão do terreno. De repente, suas pernas cederam. Tudo aconteceu muito depressa. Seus braços foram para o alto, começaram a bater desesperadamente como asas, mas ele não conseguiu se reerguer. No instante seguinte, desaparecia. Tinha caído de costas para dentro da cova. Antes mesmo que eu pudesse correr para ele, ouvi seu corpo chegar ao fundo com um forte baque.

POR FIM FOI PRECISO um guindaste para tirá-lo dali. Logo que olhei para dentro da cova, não soube se ele estava vivo ou morto, e, sem nada em que me agarrar, julguei arriscado demais tentar descer. Eu poderia cair em cima dele. Barber estava de costas, com os olhos fechados, absolutamente imóvel. Às pressas, peguei o carro, fui até a portaria e pedi ao vigia que telefonasse chamando socorro. Em dez minutos chegava uma equipe de emergência, mas ela logo se viu diante do mesmo dilema que eu enfrentara. Depois de alguma indecisão, todos demos as mãos para que um dos enfermeiros pudesse descer. Ele anunciou que Barber estava vivo, mas as outras notícias não eram boas. Concussão, disse ele, possível fratura do crânio.

- Talvez também tenha quebrado a coluna - acrescentou depois de uma breve pausa. - Precisamos tirá-lo daí com muito cuidado.

Eram seis horas quando Barber finalmente chegou ao pronto-socorro do Cook County Hospital. Continuava inconsciente e, nos quatro dias seguintes, não deu sinal de estar voltando à vida. Os médicos operaram-lhe as costas, puseram-no em aparelho de tração e mandaram-me fazer figa. Fiquei quarenta e oito horas sem sair do hospital, mas, quando tive certeza de que a espera seria muito mais longa, usei o cartão de crédito de Barber para me instalar num motel das proximidades, o Eden Rock. Era um lugar asqueroso, de última categoria, com paredes manchadas e cama cheia de ondulações, mas ali eu não fazia nada além de dormir. Assim que Barber voltou do estado de coma, passei a ficar no hospital dezoito ou dezenove horas por dia, e essa foi minha vida ao longo dos dois meses seguintes. Estive a seu lado até ele morrer.

No primeiro mês, ninguém podia supor que tudo acabasse tão mal. Todo envolto em gesso e suspenso por roldanas, Barber pairava no ar como se desafiasse a lei da gravidade. Estava a tal ponto imobilizado que não podia virar a cabeça, nem comer exceto através de tubos. Contudo, ele melhorava, parecia recuperar-se. Acima de tudo, disse ele, estava satisfeito com o fato de a verdade ter vindo à tona. Achava que valia a pena ficar engessado por alguns meses, se tal fosse o preço a pagar.

- Pode ser que meus ossos estejam quebrados - ele me disse certa tarde -, mas meu coração está enfim convalescendo.

Foi nesses dias que ele me contou tudo, e, como só pudesse mesmo falar, acabou por fazer-me um relato exaustivo, meticuloso, de toda a sua vida. Eu soube em detalhes do seu romance com minha mãe, ouvi a deprimente saga do tempo em que esteve na Associação Cristã de Moços de Cleveland e a história de suas sucessivas viagens pelo interior do país. Desnecessário dizer que meu acesso de ira tinha passado, mas o que acontecia comigo deixava pouca margem para dúvidas: algo em mim hesitava em aceitá-lo como pai. Sim, era certo que Barber dormira com minha mãe certa noite em 1946. Também era certo que meu nascimento se dera nove meses depois. Mas como eu poderia ter certeza de que minha mãe não tivera outro homem? Era muito pouco provável, mesmo assim ela poderia ter tido dois homens ao mesmo tempo. Nesse caso, talvez fosse o outro quem a tivesse engravidado. Essa era minha única defesa contra a crença total, e eu relutava em abandoná-la. Enquanto eu conservasse algum ceticismo, não teria de admitir coisa alguma. Foi uma reação inesperada, mas, olhando em retrospecto, vejo hoje que fazia sentido. Eu vivera vinte e quatro anos com uma pergunta sem resposta, e, pouco a pouco, esse enigma se tornara um elemento central em mim mesmo. Minha viagem era um mistério, e eu nunca saberia de onde tinha vindo. Isso me definia. Eu me acostumara a esse aspecto obscuro da minha vida, considerava-o uma fonte de conhecimento e amor-próprio, uma necessidade ontológica. Por mais que tivesse desejado encontrar meu pai, nunca acreditara que isso fosse possível. Assim, depois de tê-lo encontrado, tão grande era minha desestruturação interna que meu primeiro impulso foi não aceitar o fato. Barber não era o motivo da minha recusa, mas a situação em si. Era o meu melhor amigo, eu o amava. Se eu pudesse ter escolhido um pai, seria ele. Mas não. Eu havia levado um choque que me abalara por completo e não sabia assimilá-lo.

Passaram-se semanas, e por fim não pude mais fechar os olhos diante dos fatos. Completamente imobilizado pelo gesso, Barber não podia comer nada de sólido e, assim, logo começou a perder peso. Como estivesse acostumado a ingerir milhares de calorias por dia, os efeitos da mudança brusca de dieta foram visíveis e imediatos. Manter uma montanha de gordura é algo que exige muito empenho, e, quando se reduz drasticamente o trabalho de consumir, os quilos se vão bem depressa. Barber queixou-se muito disso no início, chegou a chorar de fome várias vezes, mas depois passou a encarar o regime alimentar forçado como uma bênção disfarçada.

- É a oportunidade de realizar algo que eu nunca tinha conseguido - ele comentou. - Pense bem, M. S., se eu continuar emagrecendo neste ritmo, vou ter perdido uns cinquenta quilos quando sair daqui. Talvez mais. Vou ser outra pessoa. Vou mudar de aparência.

O cabelo dos lados voltou a crescer (uma mistura de grisalho com castanho-avermelhado), e o contraste dessas cores com a cor dos olhos (azul-escuro, metálico) parecia realçar-lhe a cabeça com uma nova claridade e definição, como se ela gradualmente emergisse do espaço indiferenciado ao redor. Depois de uns dez, doze dias de hospital, a pele de Barber tornou-se de uma palidez mortal, mas junto dessa palidez veio também uma magreza que o seu rosto desconhecia. À medida que diminuíam a gordura e o volume de carne, um outro Barber ia emergindo, um "eu" secreto que estivera soterrado durante anos. Era uma transformação espantosa, que, num estágio mais avançado, desencadeou uma série de efeitos colaterais.

Eu nada notei no início, mas, certa manhã, mais ou menos três semanas após a internação de Barber, olhei para ele e vi algo familiar. Foi apenas um rápido vislumbre que desapareceu antes mesmo que eu o pudesse identificar. Dias depois, aconteceu algo semelhante, mas dessa vez tive tempo de perceber que se localizava ao redor dos olhos, talvez nos próprios olhos, aquilo que eu reconhecia. Perguntei-me se não seria algum traço fisionômico de Effing, se algo no modo como ele me olhou naquele momento não teria feito eu me lembrar do seu pai. Aquilo, no entanto, por mais breve que fosse, me perturbou e, pelo resto do dia, não me saiu do pensamento. Assombrava-me como um fragmento de sonho de que não conseguimos lembrar, um lampejo de ininteligibilidade que se ergue das profundezas do inconsciente. Na manhã seguinte, porém, compreendi finalmente o que tinha visto. Entrei no quarto de Barber para minha visita diária e, tão logo ele abriu os olhos e sorriu para mim, rosto lânguido dos analgésicos que tinha no sangue, vi-me analisando o contorno das sua pálpebras, o espaço entre as sobrancelhas e os cílios. Então, de repente, dei-me conta de que estava olhando para mim mesmo. Barber tinha os mesmos olhos que eu. Éramos parecidos; e a semelhança, inequívoca. Ao tomar consciência disso, lançada a verdade contra o meu rosto, não tive como negá-la. Eu era filho de Barber, e não mais havia em mim uma sombra de dúvida.

Tudo pareceu correr bem nas duas semanas seguintes. Os médicos estavam otimistas, e passamos a ansiar pelo dia em que retirariam o gesso. No entanto, no início de agosto, Barber sofreu uma súbita recaída. Pegou uma infecção qualquer, e o remédio que lhe deram provocou uma reação alérgica, o que por sua vez elevou a pressão arterial a níveis críticos. Exames posteriores revelaram um diabetes nunca diagnosticado, e, à medida que os médicos procuravam detectar outros distúrbios orgânicos, novas doenças e problemas se acrescentavam à lista: angina, um princípio de gota, problemas circulatórios, sabe Deus mais o quê. Seu corpo parecia não suportar mais, passara por muito, e agora o maquinismo estava deixando de funcionar. Suas defesas haviam se enfraquecido com a enorme perda de peso, os glóbulos sanguíneos não contra-atacavam, não havia mais nada com que lutar. Em 20 de agosto ele me disse que sabia que ia morrer, mas não lhe dei ouvidos.

- Paciência, vamos! - respondi. - Você vai sair daqui antes do primeiro jogo do campeonato.

Já não sabia mais quais eram os meus sentimentos. A tensão de vê-lo sucumbir deixava-me insensível, e, lá pela terceira semana de agosto, tinha entrado em estado de transe. A única coisa que me importava naquele momento era manter uma expressão impassível. Nada de lágrimas, ataques de desespero, quebra de vontade. Eu emanava esperança, mostrava-me confiante, mas por dentro devia saber que a situação era irreversível. No entanto, só bem no fim é que fui tomar consciência disso, e do modo mais tortuoso. Era tarde da noite, e eu tinha saído para comer algo. Na lanchonete, um dos pratos recomendados era empada de galinha, prato que não comia desde pequeno, talvez desde os tempos em que ainda vivia com minha mãe. Assim que li o cardápio, soube que não ia querer outra coisa. Fiz o pedido à garçonete e passei uns três ou quatro minutos evocando o apartamento onde eu e minha mãe morávamos em Boston. Revi, pela primeira vez em anos, a pequena mesa da cozinha à qual nos sentávamos para as refeições. Depois, a garçonete chegou e disse que não havia mais empada de galinha. Isso não tinha importância alguma, é claro. Num contexto amplo, tratava-se de algo insignificante, de uma partícula infinitesimal de antimatéria. Senti, no entanto, que o teto desabava sobre mim. Não havia mais empada de galinha! Se alguém me dissesse naquele momento que um terremoto acabara de matar vinte mil pessoas na Califórnia, eu não ficaria mais transtornado. Meus olhos se encheram de lágrimas, e então percebi, ali naquela lanchonete, lutando contra a minha decepção, quão frágil meu mundo se tornara. O ovo escorregava da minha mão e, mais cedo ou mais tarde, iria cair.

Barber morreu em 4 de setembro, três dias depois do incidente na lanchonete. Pesava então apenas noventa e cinco quilos, e era como se metade dele tivesse desaparecido, como se, uma vez iniciado o processo, o resto tivesse também de desaparecer, inevitavelmente. Quis falar com alguém, mas só consegui pensar em Kitty. Eram cinco da manhã quando lhe telefonei, e, antes mesmo de ela atender, tive certeza de que não estava ligando somente para lhe dar a notícia. Eu precisava saber se ela me aceitava de volta.

- Sei que está com sono - eu disse -, mas não desligue antes de ouvir o que tenho a lhe dizer.

- M. S.? - A voz de Kitty estava abafada, vacilante, confusa. - É você, M. S.?

- Estou em Chicago. Sol morreu há uma hora, e não havia mais ninguém com quem eu pudesse falar.

Levei algum tempo a contar-lhe a história. No início, ela não acreditou em mim, e, à medida que eu lhe dava os detalhes, ia compreendendo quão improvável soava aquilo tudo. Sim, ele tinha caído num túmulo aberto e quebrado a espinha. Ele era de fato meu pai. Era verdade que tinha morrido naquela noite. Sim, estava ligando de um telefone público no hospital. Houve uma breve interrupção em que a telefonista me pediu para depositar mais moedas. Depois de refeita a ligação, ouvi os soluços de Kitty do outro lado da linha.

- Pobre Sol! - ela lamentou. - Pobre M. S. Pobres todos nós.

- Sinto muito ter-lhe dado essa notícia. Mas eu não me sentiria bem se não avisasse.

- Não, foi bom ter telefonado. Mas é tão difícil aceitar. Meu Deus, M. S., se você soubesse quanto esperei ter notícias suas!

- Eu confundi tudo, não foi mesmo?

- Não foi culpa sua. Você não tem culpa de sentir o que sente, ninguém tem.

- Não esperava mais ter notícias minhas, não é?

- Não mais. Nos primeiros meses, não pensei em outra coisa. Mas não se pode viver assim, é impossível. Pouco a pouco, fui deixando de ter esperança.

- Continuei a amá-la, a cada minuto. Sabe disso, não sabe?

Fez-se novamente silêncio do outro lado da linha e, em seguida, voltei a ouvi-la soluçar. Soluços dolorosos, dilacerantes, que pareciam deixá-la sem fôlego.

- Meu Deus, M. S., o que está tentando fazer comigo? Não tenho notícias suas desde junho. De repente você me liga de Chicago às cinco da manhã, me deixa arrasada com o que aconteceu com Sol e em seguida vem falar de amor! Não é justo. Você não tem o direito de fazer isso. Agora não mais.

- Não posso mais ficar sem você. Tentei fazer isso, mas não consegui.

- Bem, eu também tentei. E consegui.

- Não acredito.

- Foi duro demais para mim, M. S. Só pude sobreviver endurecendo por dentro.

- O que está querendo me dizer?

- Que é tarde demais. Que não posso mais me abrir para você. Você quase me matou, e não posso mais me arriscar desse jeito.

- Você está com outro, não está?

- Passaram-se meses. O que queria que eu fizesse enquanto você viajava pelo país tentando mudar de ideia?

- Você está agora na cama com ele, não é mesmo?

- Isso não é da sua conta.

- Mas está, não é? Diga-me.

- Não, não estou. Mas isso não significa que tenha o direito de perguntar.

- Não me importa quem seja. Não me faz diferença alguma.

- Chega, M. S. Não suporto mais. Não aguento ouvir mais uma palavra.

- Estou lhe implorando, Kitty. Deixe-me voltar.

- Adeus, Marco. Cuide bem de si próprio. Cuide bem de si, por favor.

Em seguida, ela desligou.

ENTERREI BARBER AO LADO de minha mãe. Deu-me um certo trabalho sepultá-lo - gentio solitário num mar de judeus russos e alemães - no Cemitério Westlawn. Como, porém, ainda houvesse espaço para mais um no túmulo da família Fogg e eu fosse, tecnicamente, o chefe da família - portanto, dono daquele pedaço de terra -, acabei por conseguir o que queria. Na verdade, enterrei meu pai no lugar que me estava destinado. Levando em conta tudo o que acontecera nos últimos meses, achei que era o mínimo que eu podia fazer por ele.

Depois da conversa com Kitty, precisei lançar mão de tudo o que me desviasse de meus pensamentos, e, durante quatro dias, as providências para o funeral até que me foram úteis nesse sentido. Duas semanas antes de morrer, Barber juntara suas últimas forças para transferir seus bens para o meu nome, e assim eu dispunha de bastante dinheiro para o que fosse necessário. Os testamentos eram complicados demais, dissera ele, e, já que queria mesmo deixar tudo para mim, por que não fazer uma doação? Tentei dissuadi-lo, sabendo que aceitar a proposta significaria reconhecer a derrota. Não quis, porém, pressioná-lo muito. Barber já mal se aguentava, e não seria justo opor-lhe obstáculos.

Paguei a conta do hospital, paguei o serviço funerário, paguei adiantado a lápide do túmulo. Para o serviço religioso no enterro, chamei o rabino que onze anos antes presidira ao meu bar mitzvah. Ele já estava velho, com mais de setenta anos, creio eu, e não se lembrava de mim. Eu me aposentei, disse ele, por que não chama outro? Não, respondi, tem de ser o senhor, rabino Green, não quero mais ninguém. Deu-me trabalho persuadi-lo, mas, depois de oferecer-lhe pagamento em dobro, acabei conseguindo. Isso é muito incomum, disse ele. Não há casos corriqueiros, respondi. Cada morte é única, singular.

O rabino Green e eu éramos os únicos presentes ao enterro. Pensei em comunicar a morte de Barber ao Magnum College, pois talvez alguns de seus colegas quisessem comparecer, mas depois mudei de ideia. Não estava disposto a passar o dia com estranhos, não queria falar com ninguém. O rabino concordou com o meu pedido de que não fosse feito um panegírico em inglês, mas apenas recitadas as orações hebraicas tradicionais. Eu então me esquecera de quase todo o hebraico que tinha aprendido e gostei de não compreender o que foi dito. Assim pude ficar só com meus pensamentos, justamente o que desejava. O rabino Green julgou-me um louco e, ao longo das horas que passamos juntos, manteve de mim a maior distância possível. Tive pena dele, mas não o suficiente para fazer alguma coisa quanto a isso. Ao todo, creio não lhe ter dirigido mais que cinco ou seis palavras. Quando a limusine o deixou diante de casa, depois de ele ter sofrido todo aquele castigo, o rabino me estendeu a mão e afagou-me os dedos com a palma da mão esquerda. Era um gesto de consolo que lhe devia ser tão natural quanto assinar o nome, pois mal se dava conta do que fazia.

- Você é um rapaz muito perturbado - disse ele. - Se quer um conselho, acho que deve ir ao médico.

Pedi ao motorista que me deixasse no Eden Rock Motel. Não queria passar nem uma noite mais naquele lugar e, assim, comecei imediatamente a recolher minhas coisas. Não levei mais de dez minutos nisso. Fechei a mala, apertei bem as correias, sentei-me um pouco na cama e dei uma última olhada ao redor. Se no inferno houvesse quartos, disse comigo mesmo, deviam ser iguais àquele. Sem motivo aparente - ao menos de que eu tivesse consciência no momento -, cerrei o punho, levantei-me e dei com toda força um murro na parede. O frágil revestimento de madeira cedeu facilmente, partindo-se com um estalo. Perguntei-me se a mobília também seria tão ordinária e resolvi fazer o teste com uma cadeira. Bati-a contra a cômoda, e foi uma felicidade vê-la aos pedaços. Para completar o teste, peguei uma das pernas da cadeira e, com esse taco improvisado, passei a golpear sucessivamente os objetos do quarto: abajures, espelhos, televisão, o que estivesse pela frente. Em poucos minutos estava tudo destruído, mas senti-me absolutamente melhor, como se enfim tivesse feito algo lógico, algo de fato apropriado para a ocasião. Não fiquei ali para admirar o meu trabalho. Ainda ofegante do esforço, peguei a bagagem, corri para fora e fui embora no Pontiac vermelho.

NAS DOZE HORAS SEGUINTES, não parei de dirigir. A noite caiu quando entrei em Iowa, e, pouco a pouco, o mundo foi se reduzindo a uma imensidão de estrelas. Estava hipnotizado com minha própria solidão, sem querer parar até que meus olhos não mais pudessem permanecer abertos, atentos à faixa branca de estrada, como se fosse esse o último elo a me prender à Terra. Já estava na região central de Nebraska quando finalmente resolvi entrar num motel para dormir. Lembro-me do ruído contínuo dos grilos em meio à escuridão, do leve baque de mariposas contra a janela, de um cão latindo ao longe na noite.

De manhã, compreendi que o acaso me levara na direção certa. Sem pensar, eu tomara o caminho do Oeste. Senti-me de repente mais calmo, com um controle maior de mim mesmo. Decidi que iria fazer aquilo que Barber e eu nos havíamos proposto e, sabendo que eu não fugia de nada - ao contrário, que ia ao encontro de alguma coisa -, reuni coragem para admitir a mim mesmo que, na verdade, não queria morrer.

Não tinha esperanças de encontrar a caverna (nunca tivera), e assim foi até o final, mas achava que a busca em si já me seria suficiente, que tal ação me dispensaria de qualquer outra. Levava na mala mais de treze mil dólares, e, portanto, nada havia que me detivesse: eu poderia esgotar todas as possibilidades. Fui até o fim das planícies, passei a noite em Denver, depois segui para Mesa Verde, onde fiquei uns três, quatro dias a escalar as maciças ruínas de uma civilização morta, relutante em me afastar dali. Nunca imaginara que algo na América pudesse ser tão antigo. Quando entrei em Utah, senti que começava a compreender algumas das coisas de que me falara Effing. Não era tanto a geografia que me impressionava (todo mundo se impressiona com ela), mas o fato de que tamanho vazio e imensidão começassem a afetar minha noção de tempo. O presente já não parecia ter as mesmas implicações. Minutos e horas eram curtos demais para ser medidos naquele lugar. Assim que alguém abrisse os olhos para todo aquele panorama, via-se forçado a pensar em termos de séculos, a compreender que mil anos não representavam mais que um único tique-taque no relógio. Pela primeira vez na vida, senti que a Terra era de fato um planeta que girava pelos céus do infinito, pequena, quase microscópica - não existia nada tão pequeno no universo.

Instalei-me num quarto do Comb Ridge Motel, na cidade de Bluff, e passei um mês a explorar durante o dia a paisagem ao redor. Escalei rochedos, superei os escarpados interstícios dos desfiladeiros, percorri centenas de quilômetros com o carro. Nesse meio-tempo, descobri muitas cavernas, mas nenhuma delas com sinais de ter sido habitada. Mesmo assim, senti-me feliz nessas semanas, quase a levitar na minha solidão. Para poupar-me situações desagradáveis com as pessoas de Bluff, passei a usar cabelos curtos e dizia-me estudante de geologia, o que aparentemente eliminava as suspeitas que pudessem ter de mim.

Sem planos que não fossem prosseguir a minha busca, eu teria sido capaz de permanecer muitos meses naquela vida: tomando café da manhã no Sally’s Kitchen e explorando o deserto até o anoitecer. Certo dia, no entanto, afastei-me muito mais do que costumava, chegando ao entreposto navajo de Oljeto, depois do Monument Valley. Oljeto significava "lua na água", o que já era o bastante para me atrair. Além disso, alguém em Bluff me dissera que uns tais sr. e sra. Smith, casal que dirigia o entreposto, conheciam muito bem a história da região. A sra. Smith era neta ou bisneta de Kit Carson, e a casa em que morava com o marido estava cheia de mantas e cerâmica navajos, uma coleção de artesanato indígena bem própria de um museu. Passei umas duas horas na companhia do casal, tomando chá no ambiente fresco e escuro da sala de estar, até que, a certa altura, encontrei a oportunidade de lhes perguntar se alguma vez tiveram conhecimento de um sujeito chamado George Ugly Mouth. Eles sacudiram a cabeça e disseram que não. E dos Irmãos Gresham?, perguntei em seguida. Tinham ouvido falar deles? Ah, claro, respondeu o sr. Smith. Eram uns bandidos que desapareceram uns cinquenta anos antes. Bert, Frank e Harlan, os últimos assaltantes de trens do Velho Oeste, ele acrescentou. Eles não tinham nenhum esconderijo?, perguntei, tentando disfarçar minha excitação. Alguém certa vez me falou de uma caverna onde moravam, nas montanhas, creio eu. Acho que tem razão, disse o sr. Smith, certa vez ouvi falarem a esse respeito. Devia ser nos arredores de Rainbow Bridge. Acha que seria possível encontrá-la?, perguntei. Algum tempo antes, talvez, murmurou o sr. Smith, agora não mais. Por quê?, perguntei. Por causa do lago Powell, foi a resposta. Toda aquela região está submersa. Foi inundada há uns dois anos. A não ser que se use equipamento de mergulho, não é possível encontrar muita coisa por ali.

Depois disso, desisti. No momento em que o sr. Smith proferiu essas palavras, vi que não tinha sentido prosseguir. Eu já esperava que em algum momento seria necessário abandonar a minha busca, mas não tinha imaginado um desfecho assim tão repentino, tão devastador. Eu mal começara, estava ainda me aquecendo para entrar em ação, quando, de repente, já não havia mais nada a fazer.

Voltei para Bluff, dormi uma última noite no motel e parti na manhã seguinte. Dali fui até o lago Powell, pois queria ver com meus próprios olhos as águas que haviam destruído meus belos planos. Era difícil, porém, sentir raiva de um lago. Aluguei um barco a motor e passei o dia todo a singrar aquelas águas, tentando decidir o que fazer em seguida. Tratava-se de um velho problema, mas meu senso de derrota era tão grande que não me ocorria coisa alguma. Depois de eu devolver o barco ao ancoradouro e começar a procurar meu carro, a decisão foi, no entanto, subitamente retirada de mim.

Não vi o Pontiac em lugar nenhum. Procurei-o por todo canto, mas, assim que me certifiquei de que não estava mesmo onde eu o deixara, concluí que fora roubado. Eu tinha comigo a mochila e mil e quinhentos dólares em cheques de viagem, mas o resto do dinheiro ficara no porta-malas - mais de dez mil dólares em dinheiro, minha herança toda, tudo o que eu tinha no mundo.

Fui até a estrada, na esperança de pegar carona, mas os carros não paravam para mim. Eu praguejava, gritava obscenidades ao vê-los seguir adiante. Escurecia, e, como a má sorte não me largasse, não havia outro jeito senão me enfiar pelos arbustos à procura de um lugar onde passar a noite. Estava tão transtornado com o desaparecimento do carro que nem pensei em dar queixa à polícia. Ao acordar na manhã seguinte, tremendo de frio, ocorreu-me que o roubo não fora praticado por homens. Era uma peça que os deuses me pregavam, um ato de divina ironia cujo único objetivo era me esmagar.

Foi então que me pus em marcha. Estava com tanta raiva, sentia-me tão injuriado que não me dei ao trabalho de erguer o dedo para pedir carona. Passei o dia todo caminhando, do nascer do sol ao cair da noite, caminhando como se quisesse castigar o chão sob os meus pés. No dia seguinte, fiz a mesma coisa. No outro também. E no outro ainda. Caminhei durante três meses, lentamente, na direção do Oeste. Parava um dia ou dois em alguma cidadezinha e depois prosseguia. Dormia ao relento, em cavernas, em valas à beira da estrada. Nas primeiras duas semanas, era como se um raio me houvesse atingido. Eu trovejava por dentro, chorava, uivava como louco. A raiva, porém, foi aos poucos cedendo e acabou por ajustar-se ao ritmo dos meus passos. Consumi sucessivos pares de botas. Ao final do primeiro mês, fui voltando a falar com as pessoas. Alguns dias depois, comprei uma caixa de charutos e, a partir de então, todas as noites fumava um em memória do meu pai. Em Valentine, Arizona, uma garçonete gorducha seduziu-me num restaurante vazio à saída da cidade e acabei passando uns dez, doze dias com ela. Em Needles, Califórnia, torci o tornozelo esquerdo e fiquei uma semana sem poder andar. Afora isso, andei sem interrupções, na direção do Pacífico, sustentado por uma crescente sensação de felicidade. Sentia que, tão logo eu chegasse ao extremo do continente, uma questão importante seria resolvida. Não fazia a menor ideia do que se tratava, mas a resposta já vinha sendo preparada pelos meus pés. Eu precisava apenas continuar andando para descobrir que me deixara para trás, que não mais era quem havia sido.

Comprei meu quinto par de botas num lugar chamado Lake Elsinore. Era 3 de janeiro de 1972. Três dias depois, arrasado pelo cansaço, subi as colinas que davam para a cidade de Laguna Beach, com quatrocentos e treze dólares no bolso. Do alto do promontório já pude ver o oceano, mas prossegui caminhando até chegar à água. Eram quatro horas da tarde quando tirei as botas e senti a areia sob a planta dos pés. Eu tinha chegado ao fim do mundo. Dali para a frente havia só ar e ondas, um vazio que se estendia até a costa da China. É aqui que eu começo, disse comigo mesmo, aqui começa a minha vida.

Fiquei muito tempo na praia, à espera de que a luz do sol fosse embora sem deixar o menor vestígio. Atrás de mim, a cidade seguia o seu ritmo, produzindo os ruídos familiares do final do século nos Estados Unidos. Ao olhar para o recorte curvo da costa, vi as luzes das casas se acendendo uma a uma. A lua surgiu por trás das colinas. Era lua cheia, redonda e amarela como pedra incandescente. Contemplei-a a erguer-se no céu da noite e só desviei o olhar depois de ela ter encontrado seu lugar na escuridão.

 

 

 


[1] Solly Tear: trocadilho com o jogo de paciência (solitaire, em inglês); significa "lágrima do Solly" e também "lágrima solitária". (N. do T.)

[2] Obras de Dickens, respectivamente The Bleak House (1852) e Our Mutual Friend. (1864). (N. do E.)

 

 

                                                                  Paul Auster

 

 

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