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É, junto com John Steinbeck, Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald e John dos Passos, um dos nomes responsáveis pela renovação da ficção norte-americana neste século. Prêmio Nobelde 1949, ele é reconhecidamente o intérprete mais profundo e trágico da situação cultural específica do Sul dos Estados Unidos. Gabriel Garcia Marques referiu-se, certa vez, a Faulkner, como (o mestre, sem cujas lições escritas talvez não tivesse aprendido os melhores truques da profissão). Com a publicação de O som e a fúria (1929), momento radical do seu empenho criador, Faulkner sagrou-se um dos revolucionários da técnica do romance. A este seguiu-se Luz em agosto (1932), Absalão, Absalão! (1936) e A fábula (1955), todos já editados pela Nova Fronteira. Palmeiras selvagens foi publicado em 1939.
Existem duas histórias neste romance: Palmeiras Selvagens e O Velho.
Faulkner apenas intercalou os capítulos. Um dia lhe perguntaram sobre esse procedimento, e ele respondeu que qualquer uma delas era curta demais para publicação em série. Em outra ocasião Porém, confessou que elas exemplificavam "dois diferentes tipos de amor". Em Palmeiras selvagens Faulkner nos mostra o drama de um médico e sua amante.
Incompetente, desempregado, ele vive algum tempo às custas dela, e acaba por matá-la provocando-lhe um aborto. Aqui, a protagonista, por amor do amor, recusa a maternidade. A ação transcorre por volta de 1938. Segundo o poeta Jorge de Sena, (trata-se de um dos mais belos e audaciosos romances de amor que jamais se escreveram". O velho é uma pequena epopéia, onde o rio é também personagem. Aqui a natureza subjuga o homem. A mulher de O velho, salva pelo forçado, é a maternidade por excelência. A novela refere-se à grande cheia do Mississípi, que foi uma catástrofe sem precedentes, desalojando milhares de pessoas e afogando centenas. Para a maioria da crítica as duas narrativas versam sobre dois tipos de dedicação e, encaradas em conjunto, versam sobre a natureza da liberdade. Palmeiras selvagens é um livro denso, onde o mundo do grotesco e do lírico convivem, onde a paixão muitas vezes soterra a dignidade, e os personagens são carregados por uma energia tão poderosa quanto primitiva. Palmeiras selvagens, de William Faulkner, é o romance da fúria, do ódio incontido, da denúncia contra uma sociedade massificante que tenta de todas as formas (econômica, política e socialmente) aniquilar os indivíduos. Através de duas histórias intercaladas (a que dá nome ao volume e O velho), o romancista do Sul dos Estados Unidos busca sintetizar sua visão do que há de errado num sistema de vida que não acredita mais no amor. Em Palmeiras selvagens, William Faulkner se torna o porta-voz trágico de um mundo de miséria e hipocrisia.
PRIMEIRO LIVRO
PALMEIRAS BRAVAS / William Faulkner
A batida soou outra vez, ao mesmo tempo discreta e peremptória, enquanto
o médico descia as escadas, o facho de luz lançando-se à sua frente pela
escada manchada de marrom, iluminando o lambri macho e fêmea, manchado
de marrom, do vestíbulo. Era uma casa de praia, embora tivesse dois
andares, iluminada por lâmpadas de querosene — ou por uma lâmpada de
querosene, que sua mulher tinha levado para cima quando eles subiram
depois do jantar. E o médico usava um camisolão de dormir, e não um
pijama, pela mesma razão por que fumava cachimbo, coisa de que nunca
conseguira e, sabia, nunca conseguiria gostar, entremeado pelos charutos
ocasionais que os pacientes lhe presenteavam entre um domingo e outro,
quando fumava os três charutos que achava que podia comprar, embora
fosse proprietário da casa da praia como também da casa vizinha e da
outra, a moradia com eletricidade e paredes revestidas de gesso, no
povoado, a quatro milhas de distância. Porque ele agora estava com
quarenta e oito anos e tinha dezesseis e dezoito e vinte na época em que
seu pai lhe dizia (e ele acreditava) que cigarros e pijamas eram coisas
de maricas e mulheres. Passava da meia-noite, mas não muito. Ele sabia
disso, mesmo que não fosse pelo vento, pelo sabor e cheiro e sensação do
vento, mesmo aqui atrás das portas e venezianas fechadas e trancadas.
Porque tinha nascido aqui, nesta costa, embora não nesta casa, mas na
outra, a residência na cidade, e vivido aqui toda a sua vida,
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incluindo os quatro anos na Escola de Medicina da Universidade Estadual
e os dois anos como interno em Nova Orleans onde (um homem gordo mesmo
quando jovem, de mãos femininas, gordas e macias, que nunca deveria ter
sido médico, que mesmo depois de aproximadamente seis anos de metrópole
encarava com espanto provinciano e insular seus colegas e companheiros:
os jovens magros se pavoneando nos jalecos de trabalho, os quais —
segundo ele — usavam as miríades de rostos anônimos das enfermeiras com
uma fanfarronice indômita e confiante como condecorações, como troféus
floridos) ele sentira tanta saudade da casa. Assim ele se formou, mais
próximo dos últimos da classe do que dos primeiros, embora não se
encaixando em nenhuma destas categorias, e voltou para casa e no mesmo
ano se casou com a mulher que o pai escolhera para ele e dentro de
quatro anos se tornou proprietário da casa que o pai havia construído e
herdou a clientela que o pai havia criado, nada perdendo dela mas nada
acrescentando também, e dentro de dez anos se tornou proprietário não só
da casa da praia, onde ele e a esposa passavam seus verões sem crianças,
mas da casa vizinha também, que ele alugava a veranistas ou mesmo a
grupos -— para piqueniques ou pescarias. Na noite do casamento ele e a
esposa foram para Nova Orleans e passaram dois dias num quarto de hotel,
embora nunca tenham tido uma lua-de-mel, E embora dormissem na mesma
cama já há vinte e três anos, ainda não tinham filhos. Mas mesmo sem o
vento ele ainda era capaz de dizer a hora aproximada pelo cheiro azedado
da sopa de quiabo agora fria na enorme panela de barro sobre o fogão
apagado além da tênue parede da cozinha — a grande panela que a esposa
tinha preparado aquela manhã para mandar um pouco a alguns vizinhos e
aos locatários da casa ao lado: o homem e a mulher que há quatro dias
haviam alugado a casa, e que provavelmente nem sabiam que os doadores da
sopa não eram apenas vizinhos, mas seus senhorios também — a mulher de
cabelos escuros, implacáveis e estranhos olhos amarelos, uma face cuja
pele se tornava mais fina sobre as maçãs do rosto proeminentes e sobre o
queixo pesado
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(que o doutor a princípio julgou taciturno, mas depois
achou amedrontado), jovem, que passava o dia inteiro sentada numa
espreguiçadeira nova e barata de frente para o mar, numa suéter gasta e
um par de jeans desbotados e sapatos de lona, sem ler, sem fazer nada,
somente sentada ali naquela completa imobilidade que o médico (ou o
médico no Médico) não necessitava da corroboração da qualidade macilenta
da pele e da inversa e oca fixidez dos olhos, aparentemente opacos, para
reconhecer imediatamente — aquela completa abstração imóvel da qual até
a dor e o terror estão ausentes, na qual uma criatura viva parece ouvir
e até observar num dos seus próprios órgãos debilitados, o coração por
exemplo, o secreto e irreparável correr do sangue; e o homem também
jovem, metido num par de indecentes calções cáquis e uma camiseta de
jérsei sem mangas, e sem chapéu numa região onde até os jovens acreditam
que o sol de verão seja fatal, geralmente visto a andar descalço pela
praia à beira-mar, voltando com um feixe de paus que encontrara na água,
amarrados com um cinto, passando pela mulher imóvel na espreguiçadeira
sem que ela reagisse, fizesse um movimento com a cabeça ou talvez mesmo
com os olhos. Mas não era o coração, disse o médico a si mesmo. Ele
decidira isto no primeiro dia de onde, sem querer ouvir, observara a
mulher através da cortina de espirradeiras que separava os dois
terrenos. Porém a própria enunciação do que não era parecia ao médico
conter o segredo, a resposta. Era como se ele já vislumbrasse a verdade,
a indefinida forma sombria da verdade, como se estivesse separado da
verdade apenas por um véu assim como estava separado da mulher viva pela
cortina de folhas da espirradeira. Ele não estava espreitando, nem
espionando; talvez pensasse terei muito tempo para saber que órgão ela
está escutando agora; eles pagaram o aluguel por duas semanas (talvez
naquele momento também o médico no Médico soubesse que não seriam
necessárias semanas, mas apenas dias), pensando que se ela precisasse de
assistência seria uma sorte que ele, o senhorio, também fosse médico até
que lhe ocorreu que como eles provavelmente nem soubessem que ele era o
senhorio, provavelmente também não saberiam que era médico.
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O corretor
de imóveis lhe falara ao telefone sobre o aluguel da casa. — Ela usa
calças — disse ele. - Não essas calças de mulher, mas calças de homem
mesmo! Sabe como é, justas demais para ela, bem naqueles lugares em que
qualquer homem gostaria de vê-las justas, mas que as mulheres, a não ser
que as estejam usando, acham que é demais. Para mim, Miss Martha não vai
achar muita graça! — Não vai haver problema para ela se pagarem o
aluguel em dia — disse o médico. — Quanto a isso, não precisa se
preocupar — retrucou o agente, — Já providenciei. Não é à toa que estou
neste negócio há tanto tempo. Eu falei logo: vai ter que ser adiantado,
e ele disse: — Está bem. Está bem. Quanto?, como se fosse um Vanderbilt
ou um graudão enfiado naquelas calças imundas de pescador, só de
camiseta debaixo do paletó, puxando um rolo de notas e uma das notas era
de dez e da outra lhe dei o troco e não havia mais que duas pra começar
e eu disse: — É claro que se alugam a casa tal como está, com estes
móveis, podem conseguir um aluguel bem barato, ao que ele respondeu: —
Está bem, está bem, Quanto? E eu acho que podia ter pedido mais, aqui
entre nós, porque se quer minha opinião, ele não quer saber de móveis e
sim de quatro paredes onde se enfiar e uma porta para fechar em seguida.
Ela nem saiu do táxi. Ficou sentada, esperando, metida nas calças que
lhe apertavam nos lugares certos. — A voz se calou, a cabeça do médico
foi tomada pelo zumbido do telefone, pela crescente inflexão de um
silêncio propenso ao riso, de maneira que retrucou, quase incisivo: —
Bem, e daí? Eles querem ou não querem os móveis? Não" há nada na casa a
não ser uma cama e o colchão em cima dela, não. —- Não, não eles não
querem mais nada. Eu disse a eles que a casa tinha uma cama e um fogão e
eles trouxeram no táxi uma cadeira, uma dessas espreguiçadeiras de lona
dobraveis, junto com a mala. Portanto não precisam de mais nada.
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O riso silencioso do telefone voltou a encher a cabeça do médico outra
vez. — Bem — disse o médico —, o que é? O que aconteceu com você? —
embora já parecesse saber, antes de o outro falar, o que a voz
responderia. — Acho que Miss Martha vai ter que engolir uma coisa mais
difícil do que as calças da mulher. Acho que eles não são casados. Ah,
ele disse que são e acho que não está mentindo em relação a ela e
talvez nem esteja mentindo em relação a si mesmo. O problema é que eles
não são casados um com o outro, ela não é casada com ele. Eu sei
farejar um marido. Me mostre uma mulher que eu nunca tenha visto antes
nas ruas de Mobile ou de Nova Orleans e eu sei farejar se... Na mesma
tarde eles ocuparam o chalé, o barraco, que continha uma cama cujas
molas e o colchão não estavam em bom estado, e o fogão com uma
frigideira empelotada por gerações de peixes cozidos e a cafeteira e a
parca coleção de colheres, garfos e facas de ferro desiguais, xícaras e
pires rachados e copos que tinham sido recipientes de geléia e marmelada
comprada e da espreguiçadeira nova na qual a mulher passava o dia
inteiro aparentemente observando as copas das palmeiras se debatendo num
selvagem e seco som amargo contra o brilho faiscante da água, enquanto o
homem carregava lenha para a cozinha. Duas manhãs atrás, o caminhão de
leite que fazia o percurso pela praia parou ali e a esposa do médico viu
o homem voltando pela praia do pequeno armazém de um ex-pescador
português, carregando um pão e um volumoso saco de compras. E ela
contou ao médico que observara o homem limpando (ou tentando limpar) uma
sujeirada de peixe nos degraus da escada, contou ao médico com
convicção amarga e insultada — uma mulher sem forma embora não gorda,
de jeito algum tão rechonchuda quanto o médico, que tinha começado a
grisalhar toda há uns dez anos, como se tanto o cabelo quanto a pele
estivessem sendo sutilmente alterados, ao mesmo tempo que a cor dos
olhos,
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pela cor dos vestidos caseiros que ela aparentemente escolhia
para combinar com o conjunto. — E precisava ver a sujeira que ele estava
fazendo! — gritava ela. -— Uma sujeira do lado de fora da cozinha e uma
sujeira provavelmente no fogão também! — Talvez ela saiba cozinhar —
disse o médico apaziguador. — Onde? Como? Sentada do lado de fora, no
pátio? Com ele carregando o fogão e tudo o mais para ela? — Mas nem isso
era o verdadeiro ultraje, embora ela não o dissesse. Ela não disse: —
Eles não são casados! — embora isto estivesse na mente de ambos. Os dois
sabiam que se isto fosse dito em voz alta entre eles, o médico teria que
expulsar os locatários. Portanto ambos se recusavam a enunciar o fato,
ainda mais porque quando ele os expulsasse sabiam que por uma questão de
consciência teriam que devolver o dinheiro do aluguel; mais do que isto
no que dizia respeito ao médico, que pensava "eles só tinham vinte
dólares e isso três dias atrás. E alguma coisa não vai bem com ela". O
médico falava agora mais alto do que o protestante provinciano, que o
batista nato, E alguma coisa (talvez o médico também) falava mais alto
que a batista provinciana nela também, porque esta manhã acordou o
médico chamando-o da janela onde estava, disforme dentro da camisola de
algodão feito uma mortalha, com o cabelo grisalho enrolado em
papelotes,. para lhe mostrar o homem vindo da praia ao raiar do dia com
o feixe de lenha atado por um cinto. E quando ele (o médico) chegou a
casa ao meio-dia, ela já tinha preparado a sopa de quiabo, uma
quantidade enorme, o suficiente para uma dúzia de pessoas, feita com a
turva diligência samaritana das mulheres boas, como se tivesse um prazer
turvo e vingativo e masoquista no fato de que a obra samaritana
deveria ser desempenhada à custa dos restos que ficariam invisíveis e
inesgotáveis no fogão, enquanto os dias se acumulavam e passavam, para
ser esquentada e requentada e requentada de novo até ser consumida por
duas pessoas que nem gostavam de sopa, que nascidos e criados diante do
mar tinham, em relação ao peixe, uma predileção pelo atum, o salmão,
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as sardinhas em lata, imoladas e embalsamadas a três mil milhas de
distância no óleo das máquinas e do comércio. Ele próprio levou a
vasilha — um homem baixo, gorducho e desarrumado, as roupas íntimas não
muito limpas, deslizando desajeitado pela sebe de espirradeira com a
vasilha coberta por um ainda vincado (e ainda não lavado por ser novo)
guardanapo de linho que dava um ar de acanhada bondade até àquele
símbolo que ele levava do inflexível ato cristão desempenhado não com
sinceridade ou piedade mas sim por dever — e depositada (a mulher não se
tinha levantado da cadeira, nem se mexido, a não ser os frios olhos de
gato) como se a vasilha contivesse nitroglicerina, a máscara gorducha
ainda por barbear sorrindo tolamente, mas atrás da máscara os olhos do
médico dentro do Médico, perscrutadores, sem perder coisa alguma,
examinando sem sorrir e sem timidez o rosto da mulher que não era magro
e sim macerado, pensando. Sim. Trinta e oito, trinta e nove. Talvez
quarenta. Mas não o coração para logo acordar inquieto, encontrando os
opacos olhos ferais encarando-o, ele tinha certeza que mal o tinham
visto antes, com profundo e ilimitado ódio. Era bem impessoal, como uma
pessoa na qual já existe a alegria que olha para um poste ou para uma
árvore com prazer e felicidade. Ele (o médico) não se envaideceu; o
ódio não lhe era dirigido: É por toda a raça humana, pensou ele. Ou não.
Espere, espere — o véu estava por se dilacerar, a engrenagem da dedução
por se harmonizar — Não a toda a raça humana e sim a raça dos homens, a
raça masculina. Mas por que? Por quê? Sua esposa teria notado a leve
marca da ausência da aliança de casamento, mas ele, o médico, viu mais
do que isto: Ela teve filhos, pensou. Pelo menos, um. Nisto aposto até
meu diploma. E se Cofer (que era o corretor) tem razão em dizer que ele
não é o marido — e ele deve ter, deve ser capaz de saber, farejar como
ele diz, uma vez que aparentemente está no ramo de aluguel de casas de
praia pela mesma razão ou seguindo a mesma compulsão, necessidade
substituta, que leva algumas pessoas nas cidades a montar e fornecer
quartos para nomes clandestinos e fictícios...
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Digamos que ela acabou
odiando a raça dos homens o suficiente para abandonar o marido e os
filhos; muito bem. Porém ter abandonado o marido e os filhos por outro
homem e aparentemente pela pobreza e além do mais doente, realmente
doente. Ou abandonou marido e filhos por outro homem e pela pobreza e
depois ter que — ter que — ter... Ele podia sentir e ouvir: as
engrenagens tilintando, acelerando a marcha; sentia a necessidade de uma
pressa terrível para não perder o compasso, uma premonição de que a
última peça estava por se encaixar e o sino da compreensão soaria e ele
não estaria suficientemente perto para ver e ouvir: Sim, sim. O que é
que o homem como gênero pode ter-lhe feito que a faça olhar para mim
que nada mais sou do que um mero exemplar da raça, a mim a quem nunca
viu antes e a quem não olharia duas vezes se me tivesse visto, com o
mesmo ódio que ele tem que suportar cada vez que vem da praia com uma
braçada de lenha para cozinhar a própria comida que ela come? Ela
sequer se ofereceu para apanhar a vasilha. — Não é bem sopa, é quiabo —
disse ele —, a minha mulher que fez. Ela — nós... — Ela não se mexeu,
olhando para ele que se inclinava obesamente sobre as roupas enrugadas
por cima da cuidadosa bandeja; nem sequer ouviu o homem até que falou
com ele. — Obrigada — disse. —. Leve para dentro, Harry. — Agora já nem
olhava para o médico. — Agradeça a sua esposa — disse. Ele pensava nos
dois inquilinos enquanto descia a escada seguindo a espasmódica linha de
luz, mergulhando no azedo aroma de quiabo do vestíbulo, em direção à
porta, às batidas. Não era por nenhum pressentimento ou premonição de
que as batidas eram desferidas pelo homem chamado Harry. Era porque ele
não pensava em outra coisa há quatro dias — este rabugento homem de
meia-idade, metido numa arcaica roupa de dormir que atualmente se
tornara um dos baluartes nacionais da comédia pastelão, arrancado do
sono na cama azeda ao lado da mulher estéril e já pensando no (talvez
tivesse sonhado) profundo e distraído fulgor do ódio sem objetivo dos
olhos da forasteira; e ele novamente com aquela sensação de iminência,
de estar pouco além de um véu, de caminhar às escuras sem o véu a
ponto de quase tocar,
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de quase ver, mas não o suficiente, a forma da
verdade, de maneira que sem se dar conta parou nas escadas calçado nos
antiquados chinelos de listras, pensando com rapidez: Sim. Sim. Algo que
toda a raça dos homens, os machos, lhe fizeram ou ela acredita que
tenham feito. A batida soou novamente, como se o visitante se desse
conta de que o outro tinha parado, por causa da mudança no facho de luz
visto por baixo da porta e recomeçasse a bater com aquela insistência
hesitante dos estranhos que procuram socorro tarde da noite, e o médico
caminhou novamente, não em resposta £ volta das batidas, da qual não
tivera nenhum pressentimento, mas como se o recomeço das batidas tivesse
meramente coincidido com o periódico, acre e antigo impasse dos quatro
dias de estupefação e tateamento, capitulando e recapitulando; como se
o instinto talvez o impulsionasse outra vez, o corpo capaz de se mover e
não o intelecto, acreditando que o avanço físico poderia levá-lo mais
perto do véu, no momento em que este se abrisse e revelasse num
inviolável isolamento aquela verdade que ele quase tocava. Portanto foi
sem premonição que ele abriu a porta e olhou para fora, iluminando com a
luz da tocha o rosto do visitante. Era o homem chamado Harry. Estava
parado no escuro, sob o forte e contínuo vento do mar permeado pelo
seco estalar das invisíveis copas das palmeiras, como o médico sempre o
vira, as calças manchadas e a camiseta sem mangas, murmurando as
cortesias convencionais a respeito da hora e das necessidades, pedindo
para usar o telefone enquanto o médico, o camisolão ondeando em torno
das flácidas canelas, examinava o visitante, pensando num feroz impulso
de triunfo: Agora vou descobrir o que é. — Sim — disse ele, — você não
vai precisar de telefone. Eu sou médico. — Ah — disse o outro. — Pode
vir imediatamente? — Sim. Deixe-me enfiar as calças. O que houve? Para
eu levar o que for preciso. Por um instante o outro hesitou;
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isto
também era familiar ao médico que já passara por isto antes e acreditava
saber sua origem: aquele instinto inato e inextirpável da humanidade em
tentar esconder uma parte da verdade até de um médico ou de um advogado
por cuja experiência e conhecimento estão pagando. — Ela está sangrando
— disse ele. — Quanto o senhor vai cobrar? Mas o médico não deu
atenção à pergunta. Falava consigo mesmo: — Ah! Sim. Por que eu não...
pulmões, é claro. Por que não pensei nisso? — Sim — disse. — Quer
esperar aí? Ou talvez aqui dentro? Não demoro um minuto. — Espero aqui
— disse o outro. Mas o médico não ouviu isto também. Já estava correndo
escada acima; entrou no dormitório onde a esposa se levantou sobre um
cotovelo, na cama, e o observou lutando com as calças, a sombra dele
projetada pela lamparina do criado-mudo ao lado da cama, grotesca na
parede, a sombra dela também monstruosa, gorgônea por causa dos
rolinhos de cabelos cinzentos em rijos papelotes em volta do rosto
cinzento sobre a camisola de colo alto que também parecia cinzenta,
como se cada roupa que ela possuía tivesse adquirido aquela triste cor
férrea da sua implacável e invencível moralidade que, o médico viria a
saber disso mais tarde, era quase onisciente. — Sim — disse ele —,
sangrando. Provavelmente uma hemorragia. Pulmões. E por que
cargas d'água eu não pensei... — Provavelmente ele a cortou ou deu um
tiro nela — disse a esposa baixo, numa voz fria e amarga. — Se bem que
pela expressão nos olhos dela, quando a vi de perto, eu dissesse que ela
é que cortaria ou daria tiros em alguém. — Bobagem — disse ele,
levantando os suspensórios. — Bobagem. — Porque ele também não estava
falando com ela agora. — Sim. O louco. Trazê-la aqui, para este lugar, A
nível do mar! Para a costa do Mississípi — quer que eu apague a luz? —
Sim. Você talvez demore por lá, se vai esperar até que lhe paguem. — Ele
soprou a candeia e desceu as escadas de novo, atrás da lamparina. A
maleta preta estava pousada na mesa do vestíbulo ao lado do chapéu. O
homem chamado Harry ainda estava parado perto da porta de entrada.
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Talvez o senhor devesse pegar
isto já — disse ele. — O quê? — perguntou o médico, hesitando, olhando,
trazendo a lamparina para iluminar uma única nota que a mão do homem lhe
estendia. Mesmo que ele não tenha gastado nada, deve estar com apenas
quinze dólares agora, pensou o médico. — Não, depois — disse. — Talvez
seja melhor a gente se apressar. — O médico se precipitou para fora,
seguindo o facho de luz dançante, correndo a passos miúdos enquanto o
outro andava, atravessando o próprio pátio meio fechado, passando pela
cerca divisória de espirradeira, de encontro com o total arrebatamento
do vento marinho desimpedido que açoitava, em meio às palmeiras
invisíveis, e sibilava na agreste grama salgada do terreno vazio do
lado; agora ele podia divisar uma tênue luz na outra casa. — Sangrando,
hein? — disse. O tempo estava encoberto: o vento invisível soprava forte
e constante entre as palmeiras invisíveis, vindo do mar invisível — um
som áspero e contínuo, cheio do murmúrio da arrebentação sobre a
barreira de ilhas distantes, as restingas e dunas defendidas por
raquíticos pinheiros estremecidos. —- Hemorragia? — O quê? — disse o
outro. — Hemorragia? — Não? — disse o médico. — Ela então só está
cuspindo um pouco de sangue? Ela cospe um pouco de sangue quando tosse?
— Cuspindo? — disse o outro. Era o tom, não as palavras. Não era
dirigido ao médico e estava além do riso, como se aquilo a que era
dirigido fosse impenetrável ao riso; não foi o médico quem parou, o
médico continuava correndo sobre as pernas curtas e sedentárias atrás do
sacolejante facho de luz, em direção à fraca luz que os aguardava, foi o
batista, o provinciano que pareceu parar enquanto o homem, não o médico
agora, pensava, não chocado mas numa espécie de desacorçoado espanto:
Será que vou viver a vida inteira atrás de uma barricada de perene
inocência como uma galinha num galinheiro? Falou alto, com cuidado; o
véu agora parecia sumir, dissolvendo-se agora, parecia prestes a se
abrir agora e agora ele não queria ver o que estava por detrás dele;
sabia que não ousava por causa de sua paz de espírito doravante,
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sabia que agora
era tarde demais e que "não podia evitar; ouviu a própria voz fazer a
pergunta que ele não queria formular e obter a resposta que não queria
ouvir: — Você disse que ela está sangrando? Onde ela está sangrando? —
Onde as mulheres sangram? — disse, gritou o outro, numa voz alta e
exasperada, sem parar. — Não sou médico. Se fosse, acha que ia
desperdiçar cinco dólares com o senhor? O médico também não ouviu isto.
— Ah, sim — disse. Entendo. Sim. — Parou desta vez. Não notou que o
movimento cessara, uma vez que o contínuo vento escuro ainda o açoitava.
Porque eu estou na idade errada para este tipo de história, pensou. Se
tivesse vinte e cinco anos poderia dizer, Graças a Deus não sou ele
porque eu saberia que só teria escapado hoje por sorte e que talvez
amanhã ou no próximo ano fosse eu, de forma que não preciso invejá-lo.
E se eu estivesse com sessenta e cinco anos, poderia dizer, Graças a
Deus não sou ele porque então eu saberia que estava velho demais para
isto ser possível, de forma que em nada me adiantaria invejá-lo, porque
ele tem prova no corpo, do amor e da paixão e da vida, de que não está
morto. Mas agora estou com quarenta e oito anos e não pensei que
merecesse isto. — Espere — disse —, espere. — O outro parou; os dois
ficaram de frente um para o outro, inclinando-se um pouco no vento
escuro permeado pelo ruído selvagem e seco das palmeiras. — Eu lhe
ofereci dinheiro — disse o outro. — Cinco não chegam? Se não chegam, o
senhor poderia me dar o nome de alguém que viesse por este preço e me
deixaria dar um telefonema? — Espere — disse o médico. Então Cofer tinha
razão, pensou, Vocês não são casados. Mas por que precisava me contar? É
claro que ele não disse isto, disse: — Você não está... você não é...
o que você é? O outro, mais alto, inclinado no vento forte, olhou de
cima para o médico com impaciência, num fervilhante controle. No vento
negro, a casa, a cabana, era invisível, a tênue luz moldada não por uma
porta ou janela, mas sim por uma faixa desolada de fazenda desbotada,
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rigidamente imóvel ao vento, -— Como, o que eu sou? — disse. — Estou
tentando ser pintor. É isto que quer saber? - Pintor? Mas não existem
mais prédios, empreendimentos por aqui. Isso já acabou há nove anos.
Quer dizer que veio para cá sem nenhuma oferta de emprego, nenhum
contrato? - Eu pinto quadros — disse o outro. — Pelo menos acho que
pinto. Posso ou não usar seu telefone? — Você pinta quadros — disse o
médico, naquele tom de surpresa tranqüila que trinta minutos depois e
amanhã e amanhã vacilaria entre o ultraje e a raiva e o desespero. —
Bem, provavelmente ela ainda está sangrando. Vamos. — Os dois
continuaram. Ele entrou na casa primeiro; mesmo , naquele momento ele
percebeu que havia precedido o outro, não como um hóspede, nem mesmo
como um proprietário, mas porque acreditava agora que somente ele, entre
os dois, tinha qualquer direito de entrar enquanto a mulher estivesse
ali dentro. O vento agora não os envolvia. Somente se apoiava, negro,
imponderável e firme contra a porta que o homem chamado Harry havia
fechado atrás deles: e imediatamente o médico aspirou o cheiro da sopa
de quiabo azeda e fria. Sabia até onde encontrá-la; quase podia vê-la
intacta (Eles nem provaram, pensou. Mas por que deveriam? Em nome de
Deus por que deveriam?) sobre o fogão frio, já que conhecia bem a
cozinha — o fogão quebrado, as vasilhas sobressalentes da cozinha, a
parca coleção de facas, garfos e colheres quebrados, os recipientes de
beber que um dia contiveram, escandalosamente etiquetadas e feitas a
máquina, conservas e geléias. Ele conhecia toda a casa muito bem, ela
lhe pertencia, ele a havia construído — as paredes finas (não eram
sequer de madeira macho e fêmea como na casa em que vivia, mas de
tábuas cujas dobradiças sintéticas envelhecidas e deformadas pelo úmido
ar salgado escorriam toda a intimidade como acontece com as meias e as
calças rasgadas) murmurando com os fantasmas de mil dias e noites de
aluguel a que ele (não a sua esposa) havia fechado os olhos, insistindo
somente para que sempre houvesse um número ímpar em qualquer grupo
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misto que passasse a noite no lugar, a não ser que o casal fosse de
estranhos que anunciassem formalmente serem marido e mulher, como agora,
embora ele não se enganasse e soubesse que a esposa não se enganava. Por
isso o sentimento, esta raiva e ultraje que alternaria com o desespero
amanhã e amanhã: Por que você precisou me contar?, pensou. Os outros
não me contaram, não me perturbaram, não trouxeram para cá o que você
trouxe, embora eu não saiba o que podem ter levado. Imediatamente viu a
fraca luz da lâmpada além da porta aberta. Mas ele não se teria enganado
de porta mesmo se não houvesse luz para orientá-lo; a porta além da
qual estaria a cama, a cama na qual sua esposa dissera que não pediria a
uma empregada negra que dormisse; podia ouvir o outro atrás dele e
percebeu pela primeira vez que o homem chamado Harry ainda estava
descalço e que ele estava prestes a passar e entrar no quarto em
primeiro lugar, pensando (o médico) em como ele, que realmente entre os
dois era quem tinha uma pequena parcela de direito de entrar, devia
ceder, sentindo uma enorme vontade de rir ao pensar: Sabe, não conheço a
etiqueta nestes casos pois quando eu era jovem e vivia nas cidades onde
aparentemente estas coisas ocorrem, acho que eu tinha medo, medo demais,
e se deteve porque o outro parou: de forma que pareceu ao médico, num
contínuo olhar silente que ele nunca chegaria a saber que era autêntica
clarividência, que ambos se detiveram como que para deixar o fantasma,
a sombra, do ultrajado e ausente marido legítimo precedê-los. Foi um
ruído de dentro do próprio quarto que os colocou em movimento — o som
de uma garrafa de encontro a um copo. — Um momento — disse o homem
chamado Harry. Entrou no quarto rapidamente; o médico viu, atirados
sobre a espreguiçadeira, os jeans desbotados que eram justos demais para
ela, exatamente nos lugares certos. Mas não se mexeu. Apenas ouviu o
rápido caminhar dos pés descalços sobre o assoalho e em seguida a voz do
homem, tensa, baixa, tranqüila, muito suave: de forma que imediatamente
o doutor pensou saber por que não havia dor nem pânico no rosto da
mulher:
20
o homem carregava também esse fardo, como carregava a lenha e
(sem dúvida) cozinhava com ela a comida que ela comia. — Não, Charlotte
— disse ele —, você não deve. Não pode. Volte para a cama agora. — Por
que não posso? — disse a voz da mulher. — Por que diabos não posso? — e
agora o médico podia ouvi-los brigando. — Me solte, seu panaca moleirão
— (era 'rato' a palavra que o médico pensou ouvir). — Você prometeu,
seu rato. Foi tudo o que pedi e você prometeu. Porque ouça, seu rato — o
médico podia ouvir a voz agora melíflua e secreta: — Não foi ele, sabe.
Não aquele paspalhão do Wilbourne. Eu o atingi, como atingi você. Foi o
outro. De qualquer maneira, você não pode. Se me perguntarem eu vou
repetir o que estou dizendo agora. Além do mais, ninguém jamais sabe a
verdade sobre uma puta para condenar alguém. — O médico podia ouvi-los,
dois pares de pés, como se estivessem dançando furiosos e
infinitesimais e sem sapatos. O barulho cessou e a voz não era mais
secreta nem insinuante. Mas onde está o desespero, pensou o médico.
Onde está o terror? — Meu Deus, outra vez. Harry! Harry! Você prometeu.
— Agarrei você. Está tudo bem. Volte para a cama. — Me dê uma bebida. —
Não. Já disse que chega. E já disse por quê. Está doendo muito? — Sei
lá. Não sei dizer. Me dê uma bebida, Harry. Talvez faça começar outra
vez. — Não. Agora não pode. Tarde demais para isso. Além do mais o
médico já está aqui. Ele vai fazer recomeçar. Vou lhe pôr a camisola
para ele poder entrar. — E ensangüentar a única camisola que eu tenho? —
Para isso mesmo serve a camisola. Talvez esteja precisando disso para
recomeçar tudo. Vamos. — Então para que o médico? Para que os cinco
dólares? Ah, seu moleirão de uma figa — não, não, não, não. Depressa.
Começou de novo. Me segura, depressa. Não posso evitar. Ah, diabo do
inferno — ela começou a rir um riso duro, mas não alto, parecido com
ânsia de vômito ou tosse. — Pronto! É isso aí! Parecem dados. Dá sete.
Dá onze. 21 Talvez se eu puder continuar contando... — Ele (o médico)
podia ouvi-los, os dois pares de pés descalços sobre o assoalho, seguido
do queixume enferrujado das molas da cama, a mulher ainda rindo, não
alto, apenas com aquele desespero abstrato e furioso que ele percebera
nos seus olhos diante da vasilha de sopa, ao meio-dia. Ficou imóvel,
segurando a útil maleta preta de couro gasto, olhando para os jeans
desbotados entre a confusa montoeira de outras roupas sobre a
espreguiçadeira; viu o homem chamado Harry reaparecer e selecionar
entre elas uma camisola e desaparecer novamente. O médico olhou para a
espreguiçadeira. Sim, pensou ele, exatamente como a lenha. O homem
chamado Harry estava parado na porta. — Pode entrar agora — disse ele.
22
PALMEIRAS SELVAGENS
Quando o homem chamado Harry conheceu Charlotte Rittenmeyer, era um
acadêmico de medicina num hospital de Nova Orleans. Era o caçula de três
filhos, nascido da segunda mulher do pai quando este já era velho; havia
uma diferença de dezesseis anos entre ele e a mais jovem das suas duas
meias-irmãs. Ficou órfão com dois anos e foi criado pela irmã mais
velha. O pai também tinha sido médico. Ele (o pai) tinha iniciado e
terminado o curso de medicina numa época em que o diploma de médico
açambarcava tudo, desde a farmacologia passando por diagnóstico indo até
à cirurgia, e numa época em que o ensino podia ser pago em espécie ou
com trabalho; o velho Wilbourne tinha sido zelador do dormitório e
também servido mesas e completou o curso de quatro anos despendendo um
total de duzentos dólares. Assim quando abriram o testamento dele,
lia-se no último parágrafo: Ao meu filho, Henry Wilbourne, percebendo
que as condições, assim como o valor intrínseco do dinheiro, mudaram, e
portanto não se pode esperar que ele obtenha o diploma em cirurgia e
medicina pela mesma quantia que obtive o meu, eu, por meio desta, lego e
disponho que a quantia de dois mil dólares seja empregada para
completar o curso universitário e a aquisição do diploma e licença para
a prática de cirurgia e medicina, acreditando que a soma supracitada
seja amplamente suficiente para o fim a que se destina.
31
O testamento
datava de dois dias após o nascimento de Henry em 1910, e o pai morreu dois
anos após de intoxicação por haver chupado uma mordida de cobra da mão
de uma criança numa cabana do interior, sendo adotado pela meia-irmã que
tinha filhos e era casada com um homem que morreu ainda caixeiro de um
armazém numa pequena cidade de Oklahoma, de forma que na época em que
Harry estava apto a entrar na faculdade de medicina, aqueles dois mil
dólares que deveriam ser esticados durante quatro anos, mesmo na
modesta, embora bem conceituada escola que ele escolhera, não eram muito
mais do que tinham sido os duzentos dólares do pai. Eram menos, pois
agora existia calefação a vapor nos dormitórios e a faculdade possuía
uma lanchonete que prescindia de garçons e a única forma de um jovem
ganhar algum dinheiro na escola agora era carregando uma bola de
futebol, ou interceptando o homem que a carregava. A irmã o ajudava —
uma ordem de pagamento ocasional de um ou dois dólares ou até alguns
cupons cuidadosamente dobrados dentro de uma carta que o ajudavam a
comprar cigarros e quando parou de fumar, durante um ano, economizou
dinheiro suficiente para pagar suas despesas no alojamento escolar. Não
sobrava nada para sair com as moças (a faculdade era mista) e na verdade
ele nem tinha tempo para isso; sob a aparente serenidade da sua vida
monástica ele encetava uma perene batalha tão desalmada quanto a de
qualquer arranha-céu de Wall Street, tentando equilibrar a minguante
conta bancária com as páginas lidas dos livros de estudo. Mas conseguiu
e até lhe sobrou um saldo dos dois mil dólares e a possibilidade de
voltar ao vilarejo em Oklahoma e apresentar o diploma de pele de
carneiro à irmã ou ir diretamente para Nova Orleans trabalhar como
acadêmico, mas não o bastante para realizar as duas coisas. Optou por
Nova Orleans. Ou melhor, não houve opção; escreveu à irmã e ao marido
dela numa carta de gratidão e agradecimentos com um recibo assinado pela
quantia total de cupons e ordens de pagamento, com juros (ele também
enviou o diploma com seus latinismos e suas saudações em relevos
aracnídeos e as intricadas assinaturas dos professores,
32
dos quais a irmã e o cunhado só conseguiram decifrar seu nome) e os
despachou e comprou um bilhete e viajou quatorze horas no trem diurno.
Chegou a Nova Orleans com uma maleta e um dólar e trinta e seis
centavos. Ele já estava no hospital há uns dois anos. Morava no
alojamento dos acadêmicos, com os colegas que, como ele, não tinham
recursos; agora só fumava uma vez por semana; um maço de cigarros
durante o fim de semana, sempre pagando à meia-irmã a dívida que havia
contraído, as ordens de pagamento de um ou dois dólares que desta forma
retornavam à sua origem; a única maleta ainda contendo tudo o que
possuía, inclusive os uniformes brancos — os vinte e seis anos, os dois
mil dólares, o bilhete de trem para Nova Orleans, ou um dólar e trinta e
seis centavos, a única valise num canto do quarto como uma caserna
mobiliada com camas de campanha de ferro; na manhã do seu vigésimo
sétimo aniversário despertou e vendo os pés numa perspectiva de cima
para baixo pareceu-lhe ver vinte e sete irrevogáveis anos diminuídos e
em perspectiva atrás dos pés, como se sua vida devesse transcorrer
passiva às suas costas, como se ele flutuasse sem esforço e sem vontade
sobre um rio que não voltaria mais. Parecia vê-los: os anos vazios nos
quais sua juventude tinha evaporado — os anos para semear tempestades e
cometer arroubos, para os trágicos e efêmeros amores apaixonados da
adolescência, para a brancura da moça e do rapaz, para a selvagem e
importuna carne torpe, que não fizeram parte da sua vida; deitado,
pensando, não exatamente com orgulho e certamente não com a resignação
que supunha ter, mas sim com aquela paz com a qual um eunuco de
meia-idade poderia rememorar o tempo morto que precedera sua alteração,
nas formas apagadas e (por fim) que ora viviam apenas na memória e não
na carne: repudiei o dinheiro e conseqüentemente o amor. Não o abjurei,
repudiei. Não preciso dele; o ano que vem, ou daqui a dois ou cinco anos
saberei que é verdade o que agora acredito ser verdade: nem sequer
precisarei desejá-lo. Naquela noite se atrasou um pouco em largar o
plantão; quando passou pelo refeitório já ouviu o tilintar dos talheres
e das vozes.
33
Os alojamentos dos internos estavam vazios a não ser por
um homem chamado Flint que de calças e camisa a rigor estava dando um
laço na gravata preta diante do espelho e que se virou ao ver Wilbourne
entrar e apontou para um telegrama sobre o travesseiro de Wilbourne.
Tinha sido aberto. — Estava sobre minha cama — disse Flint. — Estava com
pressa em me vestir de maneira que não me dei o trabalho de ler o nome
direito. Peguei e abri. Desculpe, — Não tem importância — disse
Wilbourne. — Um telegrama passa por muita gente para que se considere
algo de muito particular. — Abriu a dobra amarela do envelope, Estava
enfeitado com símbolos — guirlandas e espirais; era da irmã: uma dessas
mensagens de congratulações que a companhia telegráfica envia para
qualquer distância dentro das fronteiras dos Estados Unidos por vinte e
cinco centavos. Ele percebeu que Flint ainda o estava observando. —
Então é seu aniversário? — disse Flint. — Comemorando? — Não — disse
Wilbourne. — Acho que não. - O quê? Ouça. Vou a uma festa no bairro
francês, Por que não vem também? — Não —- disse Wilbourne. — Obrigado,
hein? — Ele ainda não tinha começado a se perguntar por que não? — Não
fui convidado. — Isso não tem importância. Não é esse tipo de festa. É
num estúdio. Um pintor qualquer. Uma montoeira de gente sentada no chão,
uns sobre os outros, bebericando, Venha. Você não vai querer ficar aqui
no seu aniversário, — Agora ele começou a pensar, por que não? Afinal
por que não? e agora quase podia ver o guardião da velha e disciplinada
paz e resignação empunhando armas, o taciturno Moisés, destemido,
indiferente ao perigo, mas fanaticamente proibitivo, Não. Você não irá.
Deixe as coisas como estão. Já conseguiu a paz; não quer mais nada. —
Além do mais não tenho traje a rigor. - Não vai precisar. O dono da casa
na certa vai estar de roupão. Você tem um terno escuro, não tem?
34
Mas, eu não — Está bem — disse Flint. — De Montigny tem um smoking.
Ele tem quase seu corpo. Vou apanhá-lo. — Flint foi ao armário que eles
dividiam. — Mas, eu não — — Tudo bem — disse Flint, colocando o segundo
traje de noite sobre a cama e abaixando os suspensórios e começando a
tirar as calças. — Eu vou usar a roupa do Montigny e você usa a minha.
Nós três temos as mesmas medidas. Uma hora depois, numa roupa
emprestada, seu primeiro traje a rigor, ele e Flint pararam numa
daquelas ruelas de mão única, estreitas, escuras, cheias de varandas
entre a Jackson Square e a Royal Street, no Vieux Garre — um muro de
tijolos silentes sobre o qual explodia, em farrapos, uma palmeira e além
da qual vinha um forte aroma de jasmim que parecia pairar visível sobre
o rico ar estagnado já prenhe do odor de açúcar e bananas e maconha do
porto com tufos inertes de neblina ou de pintura. Um portão de madeira
ligeiramente aberto ao lado de uma campainha de cordão que sob os dedos
de Flint balbuciou um doce e remoto tilintar. Eles ouviram um piano,
alguma melodia de Gershwin. — Está vendo — disse Flint —, não precisa
ficar nervoso com a festa. Daqui já se pode sentir o cheiro de gim feito
em casa. Gershwin talvez tenha até pintado os quadros dele. Só que
aposto que Gershwin poderia pintar o que Crowe costuma chamar de seus
quadros, melhor do que Crowe poderia tocar o que Gershwin chama de sua
música. Flint puxou o cordão outra vez, mas novamente nada aconteceu. —
Não está trancada — disse Wilbourne. Era verdade; eles entraram: um
pátio calçado com o mesmo tijolo silencioso e suavemente apodrecido.
Havia um tanque estagnado com uma estatueta de terracota, um maço de
açucenas, a palmeira solitária, as grossas e fortes folhas e as pesadas
estrelas brancas do jasmineiro onde caía a luz vinda através das portas
abertas da varanda, a varanda interna — de paredes com os mesmos tijolos
reforçados,
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elevando uma muralha partida e desnivelada contra o
fulgor da cidade, sob o baixo céu eternamente nublado, e acima de tudo,
frágil, desafinada e efêmera, a sofisticação espúria do piano como
símbolos rabiscados por adolescentes sobre um antigo sepulcro decadente
carcomido pelos ratos. Atravessaram o pátio e adentraram pelas portas
abertas e pelo barulho — do piano, das vozes — uma sala comprida, de
soalho desigual, as paredes completamente cobertas por quadros sem
moldura que naquele momento impressionaram Wilbourne com aquele efeito
emaranhado e sem detalhe de um enorme cartaz circense de repente visto
de perto, visão esta de que as próprias pupilas pareceram se contrair
violentamente como que consternadas. Não havia móveis a não ser um piano
ao qual se via um homem de boné e roupão. Talvez uma dúzia de outras
pessoas estivessem de pé ou sentadas pelo chão, com copos nas mãos; uma
mulher vestida numa toga de linho sem mangas gritou: — Meu Deus, onde
foi o enterro? — vindo beijar Flint, sempre com o copo na mão. — Rapazes
e garotas, este aqui é o Dr. Wilbourne — disse Flint. — Cuidado com
ele. Traz um talão de cheques em branco no bolso e um bisturi na manga.
— O dono da casa nem voltou a cabeça, mas a mulher logo lhe ofereceu uma
bebida. Embora não lhe tivessem dito, ela era a dona da casa; ficou
falando com ele uns momentos, ou falando para ele, pois Wilbourne não a
estava ouvindo preocupado em examinar os quadros da parede; em seguida
ficou sozinho, ainda segurando o copo, diante da própria parede. Ele
havia visto fotografias e reproduções de quadros em revistas, aos quais
examinara completamente sem curiosidade por não acreditar neles, como um
matuto examinaria o desenho de um dinossauro; porém, agora o matuto
estava olhando para o próprio monstro e Wilbourne ficou parado diante
dos quadros em total absorção. Não era o que eles representavam, a
técnica e o colorido, que não significavam, para ele, coisa alguma, e
sim um espanto, sem calor nem Inveja, diante das circunstâncias que
podem dar a um homem o lazer óbvio e os meios de passar os dias
36
pintando coisas como estas, e as noites tocando piano e servindo bebidas
a pessoas a quem ignorava e (pelo menos no seu caso) cujos nomes nem se
preocupava em saber. Ele ainda estava parado no mesmo lugar quando
alguém, às suas costas, disse: — Aí estão o Rato e Charley! — Ele ainda
estava parado no mesmo lugar quando Charlotte disse, ao seu lado: — O
que acha disto, senhor? — Ele se voltou e viu uma jovem bastante mais
baixa do que ele e. por um momento a julgou gorda até perceber que não
era gordura mas simplesmente aquela grande, simples, profundamente
delicada e feminina conformação das éguas árabes — uma mulher com menos
de vinte e cinco anos, um vestido estampado de algodão, um rosto que não
pretendia sequer ser bonito, sem pintura exceto na boca carnuda, com uma
leve cicatriz do tamanho de um polegar numa das faces que ele reconheceu
como uma velha queimadura, sem dúvida proveniente da infância. — Você
ainda não se decidiu, não é? — Não — disse ele. — Não sei. — Não sabe o
que acha ou se deveria decidir ou não? — Sim. Talvez isto. O que você
acha? — Creme de chantilly com rabanetes silvestres — disse ela
prontamente. — Eu também pinto — acrescentou. - Por isso posso falar.
Também posso falar que pinto melhor. Como é seu nome e para que se
vestiu assim? Para nos esnobar? Para que a gente soubesse que está nos
esnobando? Ele lhe explicou e agora ela o encarou e ele viu que os olhos
dela não eram cor de avelã, mas amarelos, como os de um gato,
examinando-o com aquela sobriedade especulativa tão comum aos homens,
profunda além da mera audácia, especulativa além da observação. — Este
smoking é emprestado. É a primeira vez na vida que me visto a rigor. Em
seguida contou, sem querer contar, sem mesmo saber que iria contar, pois
parecia que se afogava, a vontade e o desejo naquele olho amarelo: —- É
meu aniversário. Faço vinte e sete anos. — Ah! — disse ela. Virou-se,
pegou-o pelo pulso, um aperto simples, implacável e firme, arrastando-o
atrás de si.
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— Venha. - Ele a seguiu, desajeitadamente, procurando
não pisar-lhe nos calcanhares, e ela o soltou, seguiu em frente,
atravessando a sala até onde três homens e duas mulheres estavam parados
em volta de uma mesa onde descansavam garrafas e copos. Ela parou,
agarrou-o pelo pulso outra vez e o levou para um homem mais ou menos da
idade dele, vestido num jaquetão escuro, cabelos louros ondulados,
começando a rarear, um rosto não exatamente bonito e razoavelmente
insensível, e, mais astuto do que inteligente, embora no todo mais
para gentil, educado e bem-sucedido, - Este é o Rato — disse ela, — É
o decano dos ex-calouros da Universidade do Alabama. Por isso ainda o
chamamos de Rato. Você também pode chamá-lo de Rato. Às vezes é o que
ele é! Mais tarde —- passava da meia-noite e Flint e a mulher que o
beijara já tinham ido embora — ficaram parados no pátio ao lado do
jasmineiro. — Tenho dois filhos, duas meninas — disse ela. — É estranho
porque toda a minha família era de irmãos, a não ser eu. Eu gostava mais
do meu irmão mais velho, mas não se pode dormir com o próprio irmão, e
ele e o Rato moravam juntos na universidade, de maneira que casei com o
Rato e agora tenho duas filhas, e quando tinha sete anos caí na lareira,
meu irmão e eu estávamos brigando, e daí a cicatriz. Tenho marcas no
ombro, nas costas e na coxa e tenho mania de falar isto para as pessoas
antes que elas tenham tempo de não perguntar e ainda faço isto mesmo
quando já não tem importância, -você conta para todo mundo isto assim?
Logo? - Sobre meus irmãos ou sobre a cicatriz? - As duas coisas.
Talvez a cicatriz, -Não. Estranho também, Tinha esquecido, Não conto
isto para ninguém há anos. Cinco anos. -Mas me contou. - Sim e isto é
duas vezes estranho. Não, agora três vezes! Ouça. Menti para você. Eu
não pinto. Trabalho com barro ou com bronze e uma vez com um pedaço de
pedra com um cinzel e marreta. Sinta. — Ela pegou na mão dele e fê-lo
esfregar as pontas dos dedos na palma da mão — a larga,
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direta, forte mão de dedos finos com unhas cortadas tão rentes como se
ela as tivesse roído, a cutícula e as juntas dos dedos não exatamente
calosas mas suavemente endurecidas e resistentes como a pele de um
calcanhar. — É o que faço: algo que se possa tocar, pegar, algo que pese
na mão que se possa olhar pelo lado de trás, que desloque o ar e
desloque a água e quando se deixa cair é seu pé que se quebra e não o
objeto. Nada de cutucar um pedaço de tela com uma faca ou um pincel como
se estivesse tentando reconstruir um quebra-cabeça com uma vara podre
através das grades de uma jaula. Foi por isso que eu disse que sabia
pintar melhor — disse ela, sem se mexer, sem sequer mostrar com um
gesto da cabeça a sala que estava atrás deles. — Não uma coisa qualquer
para aguçar o paladar e em seguida ser tragada e que talvez nem grude
nas entranhas e seja totalmente evacuada e descarregada na maldita
cloaca, junto com o que poderia não ter sido. Você quer vir jantar
amanhã à noite? — Não posso. Estou de plantão amanhã. — Na noite
seguinte então? Ou quando? — E você não tem compromissos? — Vou receber
umas pessoas depois de amanhã à noite, mas elas não vão perturbá-lo. —
Olhou para ele. — Está bem, se você não quiser estar com muita gente eu
desmarco. Depois de amanhã à noite? Às sete? Quer que eu vá ao hospital
apanhá-lo de carro? — Não. Não faça isto! — Não custa nada. — Eu sei —
disse ele. — Eu sei. Ouça. — Vamos entrar — disse ela. — Vou para casa.
E não use estas roupas. Use suas próprias roupas. Quero ver. Duas noites
depois ele foi ao jantar. Encontrou um apartamento modesto, mas
confortável, situado numa zona irrepreensível perto do Parque Audubon,
uma criada negra, duas crianças nada excepcionais de dois e quatro
anos, com os mesmos cabelos dela, mas de resto parecidas com o pai (que
vestia outro jaquetão escuro, obviamente caro, e preparou um coquetel
também nada excepcional e insistiu para que Wilbourne o chamasse de
Rato)
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e ela, numa vestimenta que ele sabia tinha sido comprada para
ocasiões semiformais e que portava com a mesma indiferença implacável
com que usara o vestido com o qual ele a vira pela primeira vez, como se
fosse um macacão. Após a refeição, que foi bastante melhor que os
coquetéis, ela se retirou com a criança mais velha que havia jantado
com eles, mas logo voltou para se deitar no sofá e fumar enquanto
Rittenmeyer continuava a interrogar Wilbourne sobre a profissão,
perguntas como um presidente de um centro estudantil poderia fazer a um
acadêmico da Escola de Medicina. Às dez horas, Wilbourne disse que tinha
que ir. — Não — disse ela —, ainda não. — Por isso ele ficou; às dez e
meia Rittenmeyer disse que precisava trabalhar no dia seguinte e foi
para a cama, deixando-os sozinhos. Ela então amassou o cigarro,
levantou-se e foi até onde ele se encontrava, diante da lareira apagada,
e parou, observando-o. — O que — costumam chamar você de Harry? Que
vamos fazer, Harry? — Não sei. Nunca estive apaixonado antes. — Eu já.
Mas também não sei. Quer que eu chame um táxi para você? — Não. —
Voltou-se. Ela atravessou a sala se colocando ao seu lado. — Vou a pé. —
Você é tão pobre assim? Deixe-me pagar o táxi. Você não pode ir a pé
para o hospital. São três milhas daqui. — Não é tão longe. — Não é do
dinheiro dele, se isto o incomoda, Eu tenho algumas economias. Venho
guardando para alguma coisa que não sei o que é. — Entregou-lhe o
chapéu e ficou parada com a mão na maçaneta da porta. — Três milhas não
é longe. Eu vou a pé. — Está bem — disse ela. Abriu a porta e se
entreolharam. Em seguida a porta se fechou entre eles. Estava pintada
de branco. Não se apertaram as mãos. Durante as próximas seis semanas
encontraram-se mais cinco vezes. Tinha que ser durante o horário de
almoço, na cidade, porque ele não queria mais entrar na casa do marido
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e seu destino ou sorte (ou má sorte, pois de outro modo ele poderia
ter descoberto que o amor não existe mais do que a luz do dia num único
lugar e num único instante e num corpo fora de toda a terra, de todo o
tempo e de toda a viva humanidade), não lhe trouxe mais convites por
tabela para ir a festas. Sempre pelos arredores do Vieux Carré onde
podiam almoçar com os dois dólares semanais que ele costumava mandar
para a irmã como saldo da dívida. No terceiro encontro, ela abruptamente
disse, sem qualquer razão: — Contei ao Rato. — Contou para ele? — Sobre
os almoços. Que venho encontrando você. Depois disso ela não falou mais
sobre o marido, No quinto encontro não foram almoçar. Foram para um
hotel como haviam planejado um dia antes. Ele descobriu que não sabia
quase nada sobre o procedimento adequado, a não ser por suposições e
imaginação; por causa da sua ignorância, acreditava que havia um segredo
para o desempenho bem sucedido daquela coisa, não uma fórmula secreta
a ser seguida e sim uma espécie de magia branca: uma palavra ou algum
movimento infinitesimal e trivial com a mão como quando se abre uma
gaveta secreta ou um painel. Pensou uma vez em perguntar a ela como
deveria proceder pois tinha certeza de que ela saberia a resposta, assim
como estava convicto de que ela nunca se atrapalharia no desempenho de
qualquer função que desejasse executar, não só por causa da absoluta
coordenação que possuía, mas porque mesmo nesse curto tempo ele pudera
perceber aquela infalível e intuitiva habilidade de todas as mulheres
na prática dos assuntos do amor. Mas não lhe perguntou porque disse a si
mesmo que quando ela lhe dissesse o que fazer, pois tinha certeza
disso, e seria a fórmula acertada, ele poderia, mais tarde, acreditar
que ela já havia feito isto antes e que mesmo que assim fosse, ele
preferia não sabê-lo. Por isso consultou Flint. — Puxa — disse Flint
— você realmente aprendeu depressa! Eu nem sabia que você conhecia a
moça. Wilbourne quase conseguia ver Flint pensando rapidamente,
recapitulando os acontecimentos.
41
— Foi naquela bagunça da casa do
Crowe naquela noite? Bem, afinal não é da minha conta. É fácil. Pegue
uma mala com uns tijolos embrulhados numa toalha, para não fazer barulho
e vá em frente. Eu não escolheria o Saint Charles ou o Roosevelt, é
claro. Escolha um hotel menor, mas não pequeno demais, é claro. Talvez
aquele lá embaixo, perto da estação. Embrulhe os tijolos separadamente
e depois faça um embrulho só. E não esqueça de levar um casaco ou uma
capa de chuva. — Sei. Acha que devo dizer a ela para levar um casaco
também? Flint riu, uma sílaba breve, não muito alta. — Acho que não.
Acho que ela não vai precisar de nenhuma orientação, nem minha, nem sua.
Ei, espere aí — acrescentou rapidamente —, calma! Eu nem a conheço. Não
estou falando mal dela. Estou falando das mulheres em geral. Ela pode
aparecer de mala, casaco, véu, bilhete de trem de primeira classe
espetado do lado de fora da bolsa e mesmo assim isso não quer dizer que
ela já tenha feito isto antes. As mulheres são assim. Nem Don Juan nem
Salomão poderiam dar instruções sobre isso a uma garotinha de quatorze
anos, recém-saída dos cueiros. — Não tem importância — disse ele —, ela
talvez nem venha. — Percebeu que realmente acreditava nisso. Ainda
acreditava mesmo quando o táxi encostou na guia onde ele a aguardava de
mala na mão. Ela trazia um casaco mas estava sem mala nem véu. Saltou
com rapidez do táxi quando ele abriu a porta, o rosto duro, sóbrio, os
olhos extraordinariamente amarelos, a voz áspera: — Bem? Onde? Ele
disse. — Não fica longe. Podemos — Ela se voltou, entrando outra vez no
táxi. — Podemos andar. — Maldito pobretão — disse ela. — Entre.
Depressa. —- Ele entrou. O táxi rodou. O hotel não ficava longe. Um
carregador negro pegou a mala. Então pareceu a Wilbourne que nunca em
sua vida estivera, e nunca estaria outra vez, tão consciente dela como
neste momento em que ela se mantinha parada no centro do saguão escuro
entremeado de noites de sábado de caixeiros-viajantes e de pequenos
parasitas de pistas de corridas, enquanto ele assinava os dois nomes
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fictícios no registro e entregava ao porteiro os sextos dois dólares que
deveriam ter ido para a irmã, esperando por ele, não fazendo qualquer
esforço para se tornar menos visível, tranqüila, reservada e um ar
profundamente trágico que ele sabia (pois estava aprendendo depressa)
não lhe era peculiar, mas sim um atributo de todas as mulheres naquele
momento de suas vidas, que as investia com uma dignidade, quase uma
modéstia, que perdurava e as protegia mesmo assumindo a posição
horizontal, levemente cômica, da rendição final. Ele a seguiu pelo
corredor e, entrando pela porta que o carregador abriu, despachou-o e
fechou a porta alugada atrás de si e a observou atravessar o quarto em
direção da única e sombria janela e, ainda de chapéu e casaco, voltar-se
sem se deter e exatamente como uma criança brincando de pegador tornar
a ele, os olhos amarelos, o rosto todo que ele já considerava bonito,
duros e fixos. — Ah, céus Harry! — disse ela, batendo com os punhos
cerrados no peito dele. — Não assim, meu Deus, não desse jeito! — Está
bem — disse ele. — Agora, calma. — Tomou-a pelos pulsos e os segurou,
ainda cerrados em punhos contra seu peito enquanto ela tentava se
desvencilhar para golpeá-lo novamente. Sim, pensou ele, não deste
jeito, nunca deste jeito. — Calma, agora. — Não assim, Harry. Pelos
cantos. Eu sempre disse que não importa o que me acontecesse, o que eu
fizesse, tudo, tudo menos andar às escondidas. Se fosse só tesão,
alguém com um físico que eu desejasse de repente e em quem eu não
pensasse duas vezes. Mas nós não, Harry. Não com você. Não com você. —-
Calma — disse ele. — Está tudo bem. — Levou-a para a beira da cama e se
inclinou sobre ela ainda lhe segurando os pulsos. — Já disse como gosto
de fazer as coisas, pegar um metal duro, limpo e bom ou um bloco e
cortá-lo, não importa quão duro seja, quanto tempo leve, e cortá-lo em
algo bonito, que se tenha orgulho em mostrar, que se possa tocar,
segurar, ver pelo lado de trás e sentir o peso firme e sólido,
43
de forma
que quando se deixa cair não seria o objeto que se quebraria e sim o
pé sobre o qual caiu o objeto, exceto que é o coração que se parte e não
o pé se é que eu tenho coração. Mas, Harry, pelo amor de Deus como me
degradei por você. — Estendeu a mão e quando ele percebeu o que ela
estava prestes a fazer, desviou os quadris antes que o tocasse. — Estou
bem — disse ele. — Não deve se preocupar comigo. Quer um cigarro? — Por
favor. — Deu-lhe um cigarro, observando-lhe a linha inclinada do nariz e
da mandíbula, enquanto acendia o fósforo, atirando-o longe em seguida. —
Bom — disse ela. — O negócio é o seguinte. Não vai haver divórcio. — Não
vai haver divórcio? — Rato é católico. Não vai me conceder o divórcio. —
Quer dizer que ele — — Eu contei para ele. Não que eu vinha encontrar
você no hotel. Só contei, suponhamos que eu tenha dito, e mesmo assim
ele disse não. — E você não pode pedir o divórcio? — Com que
justificativa? Ele o contestaria. E teria que ser feito aqui, com um
juiz católico. Só nos resta outra solução, mas acho que isto eu não
posso. — Sim — disse ele —, suas filhas. Por um instante ela o encarou,
fumando. — Eu não estava pensando nelas. Quero dizer eu já pensei sobre
elas. De forma que agora não preciso mais pensar nelas, pois para isso
tenho uma resposta e sei que não posso encontrar outra e acho que não
posso me modificar porque a segunda vez que encontrei com você, entendi
o que tinha lido nos livros, mas nunca tinha realmente acreditado: que
amor e sofrimento são a mesma coisa e que o valor do amor é a quantia
que você tem que pagar por ele, e sempre que o obtiver por pouco você
terá trapaceado consigo mesmo. De forma que não preciso pensar nas
crianças. Isso eu já resolvi há muito tempo. Estava pensando em
dinheiro. Meu irmão me envia vinte e cinco dólares todo Natal e venho
economizando este dinheiro nos últimos cinco anos. Eu lhe disse aquela
noite que não sabia por que o estava economizando.
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Talvez fosse para
isto e talvez nisto resida a maior piada: eu economizei durante cinco
anos e são só cento e vinte e cinco dólares, o que mal dá para duas
pessoas irem para Chicago. E você não tem nada. —- Inclinou-se para a
mesa colocada na cabeceira da cama e amassou o cigarro com infinito e
vagaroso cuidado, e se levantou. — É assim. Isto é tudo. — Não — disse
ele. — Não! Pois sim que é assim. — Você quer continuar deste jeito
esperando por mim com um halo em volta da cabeça? — Pegou a capa da
cadeira, jogou-a sobre o braço e ficou parada esperando. — Não quer ir
na frente? — disse ele. — Eu espero uns trinta minutos e então eu — — E
deixar você atravessar sozinho o saguão carregando essa mala para o
porteiro e o negro se divertirem por me verem sair antes que eu tivesse
tempo sequer de tirar a roupa, quanto mais de me vestir outra vez? —
Foi até a porta e pôs a mão na chave. Ele pegou a mala e a seguiu, mas
ela não abriu a porta imediatamente. — Ouça, diga de novo que não tem
dinheiro algum. Diga. Diga para que meus ouvidos ouçam algo que faça
sentido, que eu não compreenda coisa alguma. Alguma razão que eu — que
eu possa aceitar como uma razão decisiva, irrefutável, mesmo que eu não
possa acreditar ou compreender que seja só isso, só dinheiro, nada mais
a não ser o dinheiro. Vamos. Diga. — Eu não tenho dinheiro. -, Está
bem. Isto faz sentido. Deve fazer sentido. Terá que fazer sentido. — Ela
começou a se sacudir, não tremer, mas se sacudir como acometida de um
violento ataque de malária; os próprios ossos pareciam tremelicar
rígidos e silenciosos dentro da carne. —
Terá que fazer. —, Charlotte —
disse ele. Depôs a mala no chão e caminhou para ela. — Charlotte — — Não
me toque! — ela sussurrou numa fúria tensa. — Não me toque! — Mesmo
assim por um instante ele pensou que ela estivesse se aproximando dele;
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pareceu oscilar para a frente, voltou o rosto e olhou em direção da
cama com uma expressão preocupada e desconsolada. Neste momento a chave
girou, a porta se abriu, e ela estava fora do quarto. Separaram-se
assim que ele conseguiu um táxi para ela. Estava prestes a subir no
carro e ir com ela até o centro, ao estacionamento onde ela havia
deixado o carro. Então pela primeira das duas vezes na vida de ambos,
ele a viu chorar, sentada, o rosto duro e contorcido e selvagem sob as
lágrimas vertendo como suor. — Ah, seu pobretão! Seu maldito pobretão!
Seu grandessíssimo idiota! Outra vez o dinheiro. Depois de pagar o hotel
com os dois dólares que devia ter mandado para sua irmã, sem ter
conseguido nada, agora quer pagar o táxi com o dinheiro que guardou para
mandar sua outra camisa para a lavadeira e também não conseguir nada a
não ser transportar minha maldita carcaça que à última hora se recusou,
que se recusará sempre. — Inclinou-se em direção ao motorista. — Vamos!
— disse selvagemente. — Vá em frente. Para a cidade! O táxi se afastou
com rapidez; desapareceu quase imediatamente, embora ele não estivesse
olhando o carro. Depois de algum tempo disse, sereno, em voz alta, para
ninguém em especial: —- Pelo menos não há necessidade de carregar os
tijolos também. — Caminhou até uma lata de lixo na beira da calçada e,
enquanto os transeuntes o observavam com curiosidade, ou rapidez ou o
ignoravam, abriu a mala e tirou os tijolos enrolados na toalha e os
jogou na lata. Continha uma massa de jornais velhos e cascas de frutas,
os restos anônimos e casuais dos anônimos que por ali passaram durante
as últimas doze horas como os dejetos dos pássaros em vôo. Os tijolos
atingiram os papéis sem fazer barulho; não houve qualquer zumbido
premonitório, as beiradas dos jornais somente se abriram e produziram de
entre si, com a precipitação mágica com que o pequeno torpedo de metal
contendo o troco de uma compra emerge de seu tubo nas lojas, uma
carteira de couro. Ela continha os canhotos de cinco bilhetes para o
Washington Park, a cédula de identificação de um cliente de um
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cartel nacional de gasolina, outra de uma seguradora em Longview, Texas,
e mil duzentos e setenta e oito dólares em notas. Contudo ele descobriu
a quantia exata somente depois de chegar ao hospital, seu primeiro
pensamento foi apenas eu devia ficar com um dólar como recompensa
enquanto caminhava para a agência do correio, depois (o correio não
ficava apenas a seis quadras de distância e sim na direção oposta ao
hospital) eu podia até ficar com o dinheiro para o táxi e ele não devia
se importar. Não que eu queira andar de táxi mas é que eu tenho que
aproveitar, aproveitar tudo para que não haja quaisquer brechas entre
agora e as seis horas quando poderei me esconder atrás do meu jaleco
branco novamente, puxando minha velha rotina sobre a cabeça e o rosto
como jazem os negros com o cobertor quando vão para a cama. Em seguida
ficou parado diante das fechadas portas de sábado à tarde do correio,
pois tinha esquecido isso também, pensando, enquanto abotoava a
carteira no bolso de trás, como ao acordar o nome deste dia tinha sido
escrito em letras de fogo e não com palavras saídas de uma canção de
ninar ou de um calendário, caminhando, carregando a mala leve, pelas
doze quadras agora inúteis e tão fora do seu caminho, pensando: já
consegui vencer mais esta; já me poupei pelo menos quarenta e cinco
minutos do tempo que de outra maneira teriam sido preenchidos com lazer.
O dormitório estava vazio. Guardou a mala e procurou e encontrou uma
caixa achatada de papelão decorada com ramos de agárico na qual a irmã
lhe enviara um lenço bordado no último Natal; encontrou a tesoura e um
vidro de cola e fez um meticuloso embrulho de cirurgião, copiando o
endereço com clareza de uma das carteiras de identidade e colocando-o
cuidadosamente sob as roupas da gaveta; agora isso também estava feito.
Talvez eu consiga ler, pensou. Em seguida, praguejou pensando: aí está.
Tudo acontece de trás para diante. Deveriam ser os livros, as pessoas
nos livros inventando e lendo sobre nós — os fulanos e os sicranos, e
os Wilbournes e os Smiths — machos e fêmeas porém sem paus ou conas.
47
Entrou de plantão às seis. Às sete foi substituído por tempo suficiente
para jantar. Enquanto comia, uma das enfermeiras entrou e lhe informou
que o estavam chamando ao telefone. Devia ser a irmã a quem ele não
escrevia desde que enviara a última ordem de dois dólares, há cinco
semanas, e agora ela estava ao telefone, gastaria dois dólares, mas não
para repreendê-lo (ela tem razão, pensou ele, não se referindo à irmã. É
cômico. É mais que cômico. É de arrebentar de rir. Fracassei com a
mulher que amo e sou um fracasso para a mulher que me ama) mas para
saber se tudo estava bem. Portanto quando a voz no aparelho disse —
Wilbourne? — ele achou que fosse o cunhado, até que Rittenmeyer falou
outra vez: — Charlotte quer falar com você. — Harry? — disse ela, a voz
rápida porém calma. — Eu falei com o Rato sobre hoje e que foi um
fracasso. Agora é a vez dele. Ele me deu uma oportunidade e eu não a
aproveitei, por isso nada mais justo que eu lhe dar outra oportunidade.
Como também é justo lhe dizer em que ponto estamos, só que justo é uma
palavra péssima de empregar entre eu e você. — Charlotte — disse ele. —
Ouça Charlotte. — De forma que é adeus, Harry. E boa sorte. E um bom vá
prá — — Ouça, Charlotte. Está me ouvindo? — Sim. O quê? O que é? — Ouça.
É tão estranho. Esperei a tarde inteira por seu telefonema, só que eu
não sabia até há bem pouco. Eu até sei agora que eu sabia então que era
sábado o tempo todo que eu estava indo para o correio — você está me
ouvindo? Charlotte? — Sim? Sim? — Tenho mil, duzentos e setenta e oito
dólares, Charlotte. Às quatro horas da manhã seguinte, no laboratório
vazio, ele cortou a carteira e os cartões de identidade com uma navalha
e queimou as tiras de papel e de couro, e atirou as cinzas na descarga
do banheiro. No dia seguinte, ao meio-dia, com as duas passagens para
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Chicago e o resto mil, duzentos e setenta e oito dólares abotoados no
bolso e uma mala só sobre o assento à sua frente, ele olhou pela janela
enquanto o trem diminuía a velocidade na estação da Carrollton Avenue.
Os dois estavam lá, o marido e a mulher, ele no terno escuro tradicional
e falsamente modesto, o rosto de professor universitário nada revelando,
emprestando um ar de honestidade impecável e formal ao ato paradoxal de
confiar a esposa ao amante quase como o murmúrio convencional de pai e
noiva num casamento na igreja, ela ao seu lado num vestido escuro sob o
casaco aberto, observando as lentas janelas do trem, intensamente,
embora sem dúvidas nem nervosismos, de modo que Wilbourne novamente
refletiu sobre a instintiva habilidade na mecânica da co-habitação que
até as mulheres inocentes e inexperientes possuem — aquela calma
confiança em seus destinos amorosos, como a que os pássaros têm nas
asas — aquela tranqüila fé implacável numa merecida e iminente
felicidade que as impele aladas e rápidas a largarem o porto de
respeitabilidade para o espaço desconhecido e sem apoio onde não há
terra à vista (Pecado não, ele pensou. Não acredito em pecado. Está fora
de compasso. A gente nasce submerso numa marcha anônima com as
pululantes miríades anônimas do seu tempo e geração; basta perder um
passo, fazer um erro e se é pisoteado até morrer) e isto sem terror ou
alarme e logo não inferindo coragem nem força: apenas uma total e
completa fé nas aéreas, frágeis e novas asas — asas, os símbolos aéreos
e frágeis do amor que já lhes tinham falhado uma vez, pois por consenso
e aceitação universal eles haviam-se aberto para a mesma cerimônia que;
ao alçar vôo, repudiavam. Eles passaram e desapareceram, e Wilbourne
viu o marido se agachar e erguer uma mala enquanto desapareciam; o ar
siflou entre os freios e ele ficou sentado pensando, ele vai vir com
ela, vai ter que fazer isso e não vai querer fazê-lo, assim como eu
(ela?) também não quer que ele faça, embora ele tenha que fazer essas
coisas, como tem que usar esses ternos escuros que eu também não
acredito que ele queira usar, como ele também tivera que ficar na festa
aquela noite e beber tanto quanto qualquer outro homem embora não tenha
49
sentado uma única vez no chão com a esposa (a própria ou a de
qualquer outro) debruçada sobre os joelhos. Quando ergueu os olhos lá
estavam os dois, de pé, ao lado do seu assento; ele também se levantou e
agora os três ficaram em pé, interrompendo a passagem enquanto os
outros passageiros passavam ou aguardavam que eles saíssem dali;
Rittenmeyer carregando a mala — aquele homem que de forma alguma
carregaria uma mala para um trem na frente de um carregador, como não
apanharia um copo de água num restaurante; olhando para o rosto
congelado e impecável sobre a impecável camisa e gravata, Wilbourne
pensou com espanto: Imagine, ele está sofrendo, ele está realmente
sofrendo, e pensou que talvez não soframos com o coração, nem também com
a Sensibilidade e sim com nossa capacidade de dor, ou vaidade ou
auto-engano ou talvez até por mero masoquismo. — Vamos — disse
Rittenmeyer — saiam da passagem. — A voz soou dura, a mão quase brutal
ao empurrá-la para o assento e depositar a mala ao lado da outra. —-
Lembre-se bem. Se eu não tiver notícias até o dia 10 de cada mês, vou
avisar o detetive. E nada de mentiras, ouviu? Nada de mentiras. —
Voltou-se, nem olhou para Wilbourne, somente sacudiu a cabeça em direção
ao final do vagão. — Quero falar com você — disse, naquela fervilhante
voz. reprimida. — Vamos. — Quando estavam no meio do vagão, o trem
começou a andar e Wilbourne julgou que o outro fosse correr para a
porta, e pensou outra vez: Ele está sofrendo; até as circunstâncias, um
mero horário de trens, estão transformando em comédia esta tragédia que
ele precisa representar até o amargo fim ou deixar de respirar. Porém o
outro nem se apressou. Continuou sua marcha e, empurrando de lado a
cortina do vagão de fumantes, aguardou a entrada de Wilbourne. Pareceu
ler a temporária surpresa no rosto de Wilbourne. — Comprei um bilhete
até Hammond - disse, asperamente. — Não se preocupe comigo. — A
pergunta não-formulada pareceu irritá-lo; Wilbourne podia quase vê-lo
lutando fisicamente para manter a voz baixa. — Preocupe-se com você,
está bem? Com você. Ou por Deus. — Agora ele controlou a voz outra vez,
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prendendo-a numa espécie de cabresto como se fosse um cavalo, mas
forçando-o a avançar; tirou uma carteira do bolso. — Se você — disse ele
—, se você se atrever... Ele não consegue dizer, pensou Wilbourne. Não
suporta nem dizê-lo. — Se eu não for bom com ela, gentil... é isto que
quer dizer? — Eu saberei — disse Rittenmeyer. — Se eu não tiver notícias
dela até o dia 10 de cada mês, vou dar ordens ao detetive para ir em
frente. E saberei das mentiras também, ouviu? Ouviu? — Ele tremia, o
rosto impecável congestionado sob o penteado impecável que lembrava uma
peruca. — Ela tem cento e vinte cinco dólares e não quis levar mais. Mas
que importa, ela não os usaria mesmo assim. E não os terá quando vier e
precisar deles o suficiente para gastá-los. Por isso, aqui está. —
Tirou um cheque da carteira e o entregou a Wilbourne. Era um cheque ao
portador de trezentos dólares, pagável a Pullman Company of America e
endossado num canto em letra vermelha: Para um bilhete ferroviário até
Nova Orleans, Louisiana. — Eu ia fazer isto com um pouco do meu dinheiro
— disse Wilbourne. — Para o inferno também — disse o outro —, e é para o
bilhete. Se for descontado ou devolvido ao banco e não usado para
comprar um bilhete eu o mando prender por fraude. Ouviu? Eu saberei. —
Então quer que ela volte? Vai aceitá-la de volta? — Mas não precisou
olhar para o rosto do outro e disse rapidamente: — Desculpe. Retiro o
que disse. É mais do que um homem É capaz de responder. — Meu Deus —
disse o outro. — Meu Deus. Eu devia esmurrá-lo! — e acrescentou num tom
de incrédulo espanto: — E por que não o faço? Pode me dizer? Um médico,
qualquer médico não deveria ser uma autoridade em glândulas humanas?
Então, de repente Wilbourne ouviu a própria voz falando, emanando de uma
espantosa e calma incredulidade; parecia-lhe que os dois estavam
alinhados, prontos para a batalha e condenados e perdidos diante do
total princípio feminino: — Não sei. Talvez o fizesse se sentir
melhor.
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— Mas o momento passou. Rittenmeyer se voltou e tirou um cigarro
do casaco e desajeitadamente tentou acender um fósforo da caixa presa à
parede. Wilbourne observava-o — as costas elegantes; e pegou-se a ponto
de perguntar se o outro queria que ele lhe fizesse companhia até
chegarem a Hammond. Porém, outra vez, Rittenmeyer pareceu adivinhar-lhe
os pensamentos. — Vá indo — disse ele. — Saia daqui e me deixe sozinho.
— Wilbourne o deixou em pé diante da janela e voltou ao seu lugar.
Charlotte não levantou os olhos. Sentada imóvel, olhando para fora, um
cigarro apagado entre os dedos. Agora corriam ao lado do lago maior,
logo começariam a cruzar o viaduto entre Maurepas e Pontchartrain.
Agora o apito da locomotiva voltava para trás, o trem se acalmava e
debaixo do som vinha a oca reverberação do viaduto. A água se estendia
agora pelos dois lados entre pântanos, sem horizonte, limitada por
embarcadouros de madeira podre onde estavam amarradas pequenas canoas
esquálidas. — Eu amo a água — disse ela. — É o lugar para se morrer. Não
no ar quente, sobre o chão fervilhante, esperando horas até que seu
sangue esfrie o suficiente para que você possa dormir e até semanas
para que o cabelo pare de crescer. A água, o frio, para nos esfriar
depressa para que possamos dormir, para lavar tudo do nosso cérebro,
dos nossos olhos, e do nosso sangue, tudo que vimos e pensamos e
sentimos e desejamos e negamos. Ele está no vagão dos fumantes, não
está? Posso ir até lá falar com ele um minuto? — Se você pode — —
Hammond é a próxima estação. Ora, ele é seu marido: ele estava prestes a
dizer mas se conteve. — Está no compartimento dos homens — disse. —
Talvez fosse melhor eu — mas ela já havia se levantado e passado por
ele; ele pensou se ela parar e voltar o olhar para mim isto significará
que ela está pensando "Mais tarde sempre saberei que pelo menos eu lhe
disse adeus e foi o que ela fez e eles se entreolharam e ela seguiu
em frente. Agora a água ficara ao longe, o som do viaduto cessara,
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a máquina apitou outra vez e o trem adquiriu velocidade e quase ao mesmo
tempo eles corriam pelos arredores de casebres que deviam ser Hammond e
ele parou de olhar pela janela enquanto o trem parou, deteve-se e
voltou a andar novamente; ele nem teve tempo de se levantar quando ela
passou deslizando por ele e ocupou seu lugar. — Então você voltou —
disse ele. — Você não pensava que eu voltaria. Nem eu. — Mas você
voltou. — Só que não está acabado. Se ele voltasse para o trem com uma
passagem para Slidell — ela se voltou, olhando para ele mas sem o
tocar. — Não está acabado. Terá que ser cortado. — Cortado? — "Se teus
olhos te ofendem, arranca-os, mancebo, e sê inteiro." É isto. Inteiro.
Inteiramente perdido: já é alguma coisa. Eu tenho que cortá-lo. A cabina
dos fundos estava vazia. Ache o fiscal e alugue-a até Jackson. — Cabina?
Isto vai custar... — Seu idiota — disse ela. Ela não me ama agora,
pensou ele. Ela não ama mais nada agora. Ela falou num sussurro tenso,
batendo-lhe no joelho com o punho. — Seu idiota! — Levantou-se. —
Espere — disse ele, segurando-a pelo pulso. — Eu vou. — Encontrou o
chefe do trem no vestíbulo no fundo do vagão; não demorou. — Está bem —
disse ele. Ela se levantou imediatamente, pegando a mala e o casaco. —
O carregador virá buscar — disse ele. Ela não parou. — Me dê aqui —
disse ele, tirando-lhe a mala da mão e pegando a sua e seguindo-a pelo
corredor. Mais tarde ele deveria se lembrar daquela interminável
caminhada entre os assentos ocupados onde as pessoas estavam sentadas
sem ter o que fazer a não ser observá-los passar e parecia-lhe que
todos no vagão deveriam estar sabendo de tudo, que eles deviam
disseminar uma aura de impureza e desastre como um aroma. Entraram na
cabina.
53
— Tranque a porta — disse ela. Ele colocou as malas no chão e
trancou a porta. Nunca estivera numa cabina particular antes, de forma
que demorou algum tempo remexendo a fechadura. Quando se voltou ela
havia tirado o vestido: caía num espesso círculo aos pés dela, parada
ali nas diminutas roupas de baixo de 1937, as mãos sobre o rosto. Em
seguida tirou as mãos e ele sabia que não era por vergonha nem
modéstia, ele não esperava por isso, e ele viu que não eram lágrimas.
Ela pulou sobre o vestido e se aproximou e começou a lhe desatar a
gravata, afastando para o lado os dedos dele subitamente desajeitados.
54
PALMEIRAS SELVAGENS
Na segunda manhã no hotel de Chicago, Wilbourne acordou e descobriu que
Charlotte tinha se vestido e saído, de chapéu, capa e bolsa, deixando um
bilhete para ele numa letra grande, esparramada e destreinada que se
associava à primeira vista com um homem até se perceber, um instante
depois, que era profundamente feminina: "De volta ao meio-dia. C." Em
seguida, abaixo da inicial: "ou talvez mais tarde". Ela voltou antes do
meio-dia, ele tinha adormecido de novo; ela se sentou na beira da cama,
a mão nos cabelos dele, rodando-lhe a cabeça sobre o travesseiro,
sacudindo-o para acordá-lo, ainda vestida no casaco aberto e o chapéu
empurrado da testa para trás, olhando para ele com aquela sóbria
profundidade amarela, e ele pensou naquela eficiência das mulheres para
a mecânica, a eficácia da coabitação. Não na economia, nem na boa
administração mas em algo muito superior a isto que (toda a raça delas)
empregavam com instinto infalível, numa relação de todo inconsciente
para o tipo e natureza do parceiro masculino e da situação, a fria
avareza da famosa fazendeira nortista ou a extravagância fantástica da
amante corista da Broadway, conforme o caso, sem ligar absolutamente
para o valor intrínseco do dinheiro que economizam ou esbanjam e com
pouco mais atenção ou pena pela jóia fantasia que compram ou que lhes
falta, usando tanto a presença quanto a falta da jóia ou da conta
bancária como peões de um jogo de xadrez cujo prêmio não era de forma
alguma a segurança, mas a respeitabilidade dentro do meio no qual
vivem, submetendo até o ninho de amor clandestino a uma regra e um
esquema;
71
ele pensou: Não é o romance do amor ilícito que as atrai, nem a
idéia apaixonada de um casal amaldiçoado e condenado e isolado para
sempre do mundo e de Deus e o irrevogável que atrai os homens; é porque
a idéia do amor ilícito é um desafio para elas, porque possuem um desejo
irresistível de (e uma inabalável confiança em que podem, como todas
crêem que são capazes de administrar com sucesso uma pensão) tornar
respeitável o amor ilícito, legitimando-o, tornar o próprio Don Juan,
cortando seus incorrigíveis cachos de solteiro, que as seduziu, para
dar-lhe o aparente decoro do cozido das segundas-feiras e dos trens
suburbanos — Eu descobri — disse ela. — Descobriu o quê? — Um
apartamento. Um studio. Onde posso trabalhar também. — Também? Ela
segurou outra vez a cabeça dele com aquela inconsciência frenética, na
verdade machucou-o um pouco; ele pensou novamente: Existe uma coisa nela
que não ama ninguém, nada; e em seguida, num profundo e silencioso
relâmpago — um clarão branco — raciocínio, instinto, ele não saberia
dizer: Ela está só. Não solitária, só. Teve um pai e em seguida quatro
irmãos exatamente como ele e então se casou com um homem exatamente como
os quatro irmãos de forma que ela talvez nunca tenha tido um quarto só
dela durante toda a vida e por isso viveu sempre em total solidão e nem
sabe disso como uma criança que nunca provou um bolo e não sabe o sabor
que ele tem. — Sim, também. Acha que mil e duzentos dólares vão durar
para sempre? Você vive em pecado; não se pode viver às custas dele. — Eu
sei. Pensei nisso antes de lhe falar ao telefone aquela noite que eu
tinha mil e duzentos dólares. Mas estamos em lua-de-mel; mais tarde
será... — Sei disso também. — Agarrou-O pelo cabelo, machucando-o
novamente embora agora ele soubesse que ela sabia que o estava
machucando.
72
— Ouça, tem que ser sempre lua-de-mel. Sempre, até que
um de nós dois morra. Não pode ser outra coisa. Ou céu ou inferno: nada
de um confortável e pacífico purgatório intermediário onde eu e você
esperaríamos até que o bom comportamento ou a abstinência ou a vergonha
ou o remorso viessem nos dominar. — Então não é em mim que você
acredita, em quem você confia; é no amor. — Ela o olhou. — Não só em
mim; qualquer homem. — Sim, no amor. Dizem que o amor morre entre duas
pessoas. É mentira. Não morre. Simplesmente abandona você, vai embora se
você não é bastante bom ou digno. Não morre, quem morre é a gente. E
como o oceano: se você não presta, se começa a empesteá-lo, ele a cospe
fora em alguma parte onde você morre. A gente morre de qualquer
maneira, mas prefiro me afogar no oceano a ser vomitada numa faixa de
praia perdida e ser ressecada pelo sol até me tornar uma mancha suja sem
nome, com apenas: Isto foi como epitáfio. Levante-se. Eu disse ao homem
que mudaríamos hoje. Em menos de uma hora deixaram o hotel, de táxi,
levando as malas; subiram três lances de escada. Ela até tinha a chave;
abriu a porta para ele entrar; ele sabia que ela estava olhando para
ele e não para o quarto. — Bem — disse ela. — Você gosta? Era um grande
quarto oblongo com uma clarabóia na parede norte, talvez trabalho manual
de um fotógrafo morto ou arruinado, ou talvez de um antigo inquilino
escultor ou pintor, com dois cubículos para a cozinha e o banheiro. Ela
alugou aquela clarabóia, disse ele para si mesmo calmamente, pensando em
como via de regra as mulheres alugam basicamente o banheiro. E apenas
por acaso que há um lugar para dormir e cozinhar. Ela escolheu um lugar
não para nos abrigar e sim para abrigar o nosso amor; não passou
simplesmente de um homem para outro; não quis somente trocar um
pedaço de argila com que moldou um busto por outro. — Andou então e
pensou: talvez eu não a esteja abraçando, mas me agarrando a ela porque
há algo em mim que não admite que não saiba nadar ou que não crê que
possa fazê-lo. — É ótimo. Nada pode nos segurar agora.
73
Durante os
próximos seis dias ele rodou pelos hospitais entrevistando (ou sendo
entrevistado por) residentes o diretores. Eram entrevistas curtas. Ele
não era muito exigente e tinha algo a oferecer — o diploma de uma boa
escola de Medicina., os vinte meses como interno num hospital conhecido,
porém, sempre após os primeiros três ou quatro minutos alguma coisa
começava a acontecer. Ele sabia o que era, embora se dissesse o
contrário (sentado após a quinta entrevista num ensolarado banco de um
parque entre os vagabundos, jardineiros municipais, babás e crianças): é
porque eu realmente não me esforço o bastante, não me convenço da
necessidade de tentar porque aceitei completamente as idéias dela sobre
o amor; encaro o amor com a mesma fé ilimitada em que ele irá me vestir
e alimentar, como os camponeses do Mississípi ou da Louisiana,
convertidos na semana passada por um pregador unitarista, encaram a
religião, sabendo que essa não era a razão, que eram os vinte meses como
interno e não vinte e quatro, pensando eu fui amaldiçoado pelos
números, achando como era aparentemente mais apropriado morrer no odor
da mediocridade do que ser salvo por um apóstata do convencionalismo.
Por fim arrumou um emprego. Não era grande coisa; trabalho de
laboratório num hospital de caridade no bairro favelado dos negros, para
onde as vítimas do álcool ou dos ferimentos de revólver ou faca eram
levadas, geralmente pela polícia, e o trabalho dele consistia em fazer
testes de sífilis rotineiros. — Não se precisa de microscópio ou de uma
fórmula Wassermann — contou a ela, naquela noite. — Só se precisa é de
luz suficiente para saber a que raça eles pertencem. — Ela havia
montado duas tábuas sobre cavaletes, sob a clarabóia, a que ela chamou
de banca de trabalho e sobre a qual, já há algum tempo, vinha mexendo
num pacote de massa comprada num bazar, embora ele tivesse prestado
pouca atenção ao que ela estava fazendo, Ela agora se debruçou sobre
essa mesa com um pedaço de papel e um lápis enquanto ele observava a
flexível mão áspera, riscando números rápidos, grandes e esparramados,
74
— Você vai receber isto por mês — disse ela. — E custa tudo isto para
nós vivermos um mês. E temos isto de onde sacar para perfazer a
diferença. — Os números eram frios, irrefutáveis, até as próprias
marcas do lápis tinham um ar inexpugnável e de desprezo; além disso, ela
fazia questão de que ele não só enviasse as remessas semanais para a
irmã, como também a soma equivalente dos almoços e do hotel frustrado
das seis semanas em Nova Orleans. Então ela escreveu uma data ao lado
do último número; seria no princípio de setembro. — Neste dia não
teremos mais dinheiro. Então ele repetiu algo em que havia pensado
enquanto estava no banco do parque aquela tarde: — Não tem importância.
Eu tenho que me acostumar com o amor. Nunca tentei antes, entende,
estou atrasado pelo menos uns dez anos. Ainda não estou treinado. Mas
não vai demorar muito. — Sim — disse ela. Então amassou o papel e o
colocou de lado, voltando-se. — Mas isto não tem importância. É como se
fosse um bife ou um hambúrguer. E aqui não há fome — bateu na barriga
dele com as costas da mão. — São só suas entranhas roncando. A fome é
aqui. — Tocou no peito dele. — Nunca se esqueça disso. — Não
esquecerei. — Mas poderá esquecer. Você já sentiu fome nas entranhas, de
forma que está com medo. Porque a gente sempre tem medo daquilo que
suportou. Se você já se tivesse apaixonado antes não estaria naquele
trem aquela tarde. Não é mesmo? — Sim — disse ele. — Sim. Sim. — Então é
mais do que apenas treinar o cérebro para se lembrar de que a fome não é
na barriga. Sua barriga, suas entranhas têm que acreditar também. Será
que vão acreditar? — Sim — disse ele. Mas ela não tem tanta certeza
disso, disse consigo, porque três dias depois quando voltou do hospital
encontrou a bancada de trabalho coberta de pedacinhos torcidos de arame
e garrafas de verniz e cola e aparas, alguns tubos de tinta e uma
vasilha com um monte de lenços de papel empapado em água, que duas
tardes depois se tornou uma coleção de figurinhas — cervos e cães e
lobos e cavalos e homens e mulheres, finos, epicenos, sofisticados ô
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bizarros, com uma aura de fantástico e perverso; uma tarde depois disso,
quando ele voltou, ela e as figuras tinham desaparecido, Ela chegou uma
hora depois, os olhos amarelos como os de um gato no escuro, sem triunfo
ou exultação, mas sim afirmação feroz e uma nota de dez dólares. —
Ficaram com tudo — disse ela, citando o nome de uma loja importante. —
Daí ele me deixou decorar uma das vitrinas. Tenho um pedido para mais de
cem dólares — figuras históricas de Chicago, desta parte do oeste. Você
sabe — a Sra. O'Leary com o rosto de Nero e a vaca tocando um uquelele,
Kit Carson com as pernas de Nijinsky, mas sem rosto, só dois olhos e
uma testa abaulada para lhe dar sombra, búfalas com cabeça e ancas de
éguas árabes. E todas as outras lojas da Michigan Avenue. Aí está.
Pegue. Ele recusou. — São seus. Você os ganhou. — Ela olhou para ele — o
fixo olhar amarelo no qual ele parecia vacilar e tatear como uma
mariposa, um coelho apanhado no clarão de uma lanterna; um envolvimento
quase líquido, um precipitado químico no qual todo o refugo das pequenas
mentiras e do sentimentalismo se dissolvia. — Eu não... — Você não
gosta da idéia da sua mulher ajudando a sustentá-lo, é isso? Ouça. Você
não gosta do que temos? — Você sabe que sim. — Então que importa o que
nos custa, quanto pagamos e como? Você roubou o dinheiro que nós temos
agora; você não o roubaria outra vez? Não valeu a pena mesmo que amanhã
acabe e que nós tenhamos que passar o resto da vida pagando os juros? —
Sim. Só que não vai acabar amanhã. Nem no mês que vem. Nem no ano que
vem... — Não. Não enquanto formos dignos de mantê-lo. Enquanto formos
bons. Fortes. Dignos de poder guardá-lo, de obter o que quisermos da
forma mais decente possível e então guardá-lo. Guarde-o. — Aproximou-se
e colocou os braços em volta dele, com força, batendo o corpo contra o
dele com força, não numa carícia mas exatamente como o agarraria
76
pelos cabelos para acordá-lo. — É isso que vou fazer. Tentar fazer.
Gosto de putarias e de fazer coisas com as mãos. Não acho que seja coisa
demais de que se possa gostar, querer, ter e guardar. Ela ganhou
aqueles cem dólares, trabalhando de noite, depois de ele ter ido para a
cama e às vezes dormido; nas cinco semanas seguintes ela ganhou mais
vinte e oito dólares, e em seguida recebeu uma encomenda de cinqüenta
dólares. Então os pedidos cessaram; não conseguiu mais nada. Mesmo assim
continuou a trabalhar, sempre à noite agora, uma vez que saía com as
amostras, as figurinhas acabadas o dia inteiro e agora trabalhava
geralmente com uma platéia, pois o apartamento se tinha tornado uma
espécie de clube noturno. Começou com um jornalista chamado McCord que
havia trabalhado num jornal de Nova Orleans durante o breve período em
que o irmão caçula de Charlotte (de uma maneira diletante e ineficaz,
imaginava Wilbourne) trabalhara lá como repórter. Ela o encontrou na
rua; ele veio jantar uma noite e os levou para jantar em outras três
noites depois apareceu no apartamento com três homens e duas mulheres e
quatro garrafas de uísque e depois disso Wilbourne nunca sabia quem
encontraria ao chegar em casa, exceto que não seria Charlotte sozinha e,
não importando quem lá estivesse, desocupada pois mesmo depois de a
época de vendas escassas ter-se estendido por semanas e depois por um
mês e pelo verão que já estava quase chegando, ainda trabalhou metida
num macacão barato já imundo como o de qualquer pintor de paredes e um
copo de uísque com água entre as torceduras do arame e dos potes de
cola e tinta e massa que se transformavam contínua e infinitamente, sob
as ágeis mãos incansáveis, em efígies elegantes, bizarras, fantásticas e
perversas. Então ela fez uma última venda pequena, e assunto encerrado.
A coisa acabou tão abrupta e inexplicavelmente como havia começado. A
temporada de verão tinha chegado, diziam-lhe nas lojas, e os turistas e
os citadinos também estavam abandonando a cidade para escapar do calor.
— Mas é mentira — disse ela; — Chegaram ao ponto de. saturação — disse
a ele e a todos:
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era de noite, ela havia voltado tarde com a caixa
de papelão contendo as figurinhas recusadas, de maneira que as visitas
noturnas já haviam chegado. — Mas eu já esperava por isso. Porque não
passam de um divertimento, — Tirara as efígies da caixa e as colocara
sobre a bancada de trabalho novamente. — Como alguma coisa criada para
viver apenas no escuro, sem ar, como num cofre de banco ou talvez num
pântano venenoso, não no ar nutritivo, rico e normal expelido por
entranhas cheias de legumes de Oak Park e de Evanston. Chegamos ao ponto
final. E agora não sou mais artista e estou cansada e com fome e vou me
enrolar na cama com um bom livro e um pão dormido. Portanto vamos cada
um até a bancada e escolher para si uma lembrança, uma recordação deste
momento antes de dar o fora. — Ainda podemos comer o pão — disse-lhe
ele. Além do mais ela não está vencida, pensou ele. Ainda não desistiu.
E nunca desistirá, pensando como havia pensado antes que existia algo
nela que ninguém, nem ele, nem Rittenmeyer tinham jamais tocado, que nem
sequer amava o amor. Em menos de um mês ele acreditou ter uma prova
disso; voltou e a encontrou na bancada outra vez, numa profunda
excitação como nunca a vira antes — uma excitação sem entusiasmo, mas
com certo impulso implacável e mortal enquanto falava com ele. Era um
dos homens que McCord havia trazido, um fotógrafo. Ela deveria
confeccionar bonecos, marionetes e ele os fotografaria para capas de
revista e anúncios; talvez mais tarde usassem os verdadeiros bonecos em
charadas, quadros — um salão alugado, um estábulo alugado, alguma coisa,
qualquer coisa. — E meu dinheiro — disse ela. — Os cento e vinte e
cinco dólares que nunca consegui que você aceitasse. Trabalhou com fúria
tensa e concentrada. Estava na bancada quando ele ia dormir, ele
acordava às duas e às três horas e encontrava a indômita luz de trabalho
ainda brilhando, Agora quando voltava (primeiro do hospital, depois do
parque do jardim onde passava os dias após ter perdido o emprego, saindo
e voltando para casa nas horas de costume para que ela não desconfiasse
de nada) e via as figuras verdadeiras quase tão grandes quanto pequenas
crianças — um Dom Quixote com um rosto macilento louco sonhador e
descoordenado,
78
um Falstaff com o rosto cansado de um barbeiro
sifilítico e cheio de carnes (uma única figura, embora quando ele a
olhava lhe parecesse dupla: o homem e a carne espessa como um enorme
urso e seu frágil guardião tuberculoso; parecia-lhe poder realmente ver
o homem lutando com a montanha de entranhas como o guardião poderia
lutar com o urso, não para dominá-lo mas para ultrapassá-lo, fugir dele,
como se faz com as bestas atávicas nos pesadelos), Roxane de cachinhos
em caracol e um maço de chicletes como uma pianista de demonstração de
loja, Cyrano com o rosto de um judeu de pantomima, o alargamento
monstruoso, cujas narinas terminavam exatamente no momento de se
transformarem em moluscos, um pedaço de queijo numa mão e um talão de
cheques na outra — acumulando-se no apartamento, enchendo todos os
espaços vazios do chão e das paredes, frágeis, perversos e
perturbadores, com incrível rapidez; começado, continuado e completado
num único fluxo contínuo de atividade furiosa — um espaço de tempo
quebrado não em sucessivos dias e noites, mas um único intervalo
interrompido apenas para comer e dormir. Então ela terminou o último e
agora ela passava o dia inteiro e metade da noite fora; ele voltava à
tarde e encontrava um bilhete rabiscado num pedaço de papel ou na
margem arrancada de um jornal ou mesmo da lista telefônica: não espere
por mim. Saia e jante, o que ele fazia e voltava e ia para a cama e às
vezes dormia até que ela deslizasse nua (ela nunca usava roupa de
dormir, dissera-lhe que nunca tivera uma camisola) na cama, acordando-o,
animando-o a escutar com um áspero movimento de luta, segurando-o nos
braços fortes enquanto falava numa voz sombria, baixa e rápida, não
sobre dinheiro ou a sua falta, não sobre detalhes a respeito dos
progressos diários das fotografias e sim da vida e situação atual de
ambos, como se fosse um todo sem passado nem futuro no qual eles mesmos
como indivíduos, a necessidade de dinheiro, as figuras que ela
confeccionava fossem partes componentes como peças de um tabuleiro ou de
um quebra-cabeça, todos da mesma importância; deitado, quieto e
relaxado no escuro enquanto ela o segurava, sem mesmo se incomodar
79
se os olhos estivessem abertos ou não, ele parecia ver aquela vida em
comum como um globo frágil, uma bolha que ela mantinha equilibrada e
intacta sobre o desastre como uma foca amestrada faz com sua bola. Ela
está pior que eu, pensava, nem sabe o que é ter esperança. Aí o negócio
de bonecos acabou tão abrupta e completamente quanto as decorações de
vitrinas. Ele voltou uma noite e ela estava em casa, lendo. O macacão
imundo onde ela vivera semanas (era agosto agora) tinha sumido e então
ele viu que a bancada de trabalho não só estava limpa dos restos de
arames e tintas, mas tinha sido empurrada para o centro da sala e se
transformado numa mesa coberta com uma faixa de chintz e pilhas de
revistas e livros que antes descansavam sobre o chão e nas cadeiras
desocupadas e, o que era mais surpreendente, um jarro de flores. —
Trouxe umas coisas — disse ela. — Vamos comer em casa para variar.
Trouxera costeletas e coisas assim, preparou a refeição num avental
curiosamente frívolo, novo também, como o chintz, sobre a mesa; ele
pensou em como o fracasso, agindo sobre ela como num homem,
investindo-a de uma espécie de humildade digna, tinha também inserido
nela uma virtude que ele nunca vira antes, uma virtude não só de fêmea,
mas profundamente feminina. Comeram, em seguida tirou a mesa. Ele se
ofereceu para ajudar mas ela recusou. De maneira que ele se sentou com
um livro ao lado da lâmpada, ouviu-a na cozinha durante certo tempo,
vendo-a, em seguida, sair e entrar no quarto. Não a ouviu quando ela
saiu do quarto, uma vez que seus pés descalços não faziam ruído sobre o
chão; apenas levantou os olhos e a viu parada ao seu lado — a retidão
compactamente simples das linhas do corpo, a intensa sobriedade do
olhar amarelo. Ela tirou o livro das mãos dele e o colocou sobre a mesa
transformada. — Tire as roupas — disse ela. — Que vá tudo para o
inferno. Eu ainda sei trepar. Porém ele não falou sobre o emprego a não
ser nas duas semanas seguintes. O motivo não era mais a preocupação de
que a notícia poderia destruir a tranqüilidade do trabalho em que ela
vinha concentrando-se, uma vez que isto já não era mais válido agora, se
é que o fora alguma vez,
80
e não era mais a possibilidade de ele
encontrar alguma outra coisa antes que ela precisasse tomar
conhecimento, já que isto também agora não era mais válido, pois ele
havia tentado e fracassado, nem era a fé estilo perdulário dos inertes
em relação ao amanhã; talvez fosse em parte por saber que quanto mais
tarde melhor, mas principalmente (ele não tentava se enganar) era uma
profunda fé que depositava nela. Não neles, nela. Deus não vai deixá-la
morrer de fome, pensava. Ela é valiosa demais. Ele caprichou demais
nela. Mesmo Ele, que criou todas as coisas, deve gostar de algumas o
bastante para querer guardá-las. Portanto, todos os dias saía do
apartamento na hora de costume e se sentava no banco do parque até a
hora de voltar para casa. E uma vez por dia abria a carteira e tirava um
pedaço de papel onde mantinha um registro do dinheiro minguante como se
cada vez esperasse descobrir que a quantia tinha mudado ou que ele
contara errado no dia anterior, descobrindo todas as vezes nem uma
coisa, nem outra — os números certos, os $182.00 menos $5.00 ou $10.00
com a data de cada subtração; no dia de pagar não haveria o suficiente
para saldar o aluguel trimestral do apartamento, em 1 de setembro. E
às vezes ele tirava outro papel, o cheque rosa ao portador com as letras
perfuradas Apenas Trezentos Dólares. Havia algo de quase cerimonial
nisso, como a preparação formal do viciado diante do cachimbo de ópio, e
então durante um tempo ele renunciava tão completamente à realidade
quanto o fumante de ópio enquanto inventava cem maneiras de gastá-lo,
trocando os vários componentes da soma e as compras equivalentes de um
lado para outro como um quebra-cabeça, sabendo que isto era uma forma
de masturbação (pensando porque eu ainda estou e provavelmente sempre
estarei na puberdade do dinheiro), que se fosse realmente possível
descontar o cheque e usar o dinheiro ele nem se atreveria a brincar com
a idéia. Então voltou para casa uma tarde e a encontrou novamente na
bancada de trabalho. Ainda era a mesa, ainda no centro da sala; ela
apenas tinha virado o chintz e empurrado os livros e revistas para um
canto, e usava o avental não o macacão e trabalhava agora numa espécie
de ócio divertido como alguém que passa o tempo com um maço de
cartas.
81
A figura não media três polegadas de altura — um velhinho sem
forma com um desorganizado rosto abobalhado, rosto de um inofensivo
palhaço idiota. — É o Mau Cheiro — disse ela. Então ele compreendeu. — É
tudo que é, apenas um mau cheiro. Não um lobo na porta. Os lobos são
Coisas, Violentos e implacáveis. Fortes, mesmo quando são covardes, Mas
isto aqui é apenas um mau cheiro porque a fome não está aqui —
novamente bateu com as costas da mão na barriga dele <—, a fome fica
aqui. Não tem esta cara. Parece com um foguete ou um fogo de artifício
ou pelo menos uma destas chuvas de prata das crianças que rebrilham até
se tornarem uma brasa viva que não teme morrer. Mas isto. — Olhou para
ele. Então ele percebeu o que estava para vir. — Quanto dinheiro temos?
— Cento e quarenta e oito dólares. Mas está tudo bem. Eu... — Ah, então
você já pagou o aluguel do próximo trimestre. — Aí está, agora era tarde
demais. Meu problema é que toda vez que digo a verdade ou uma mentira
parece que antes tenho que me convencer da idéia. — Olhe para mim. Quer
dizer que não vai ao hospital há dois meses? — Foi o detetive. Você
estava ocupada na época, foi o mês que você esqueceu de escrever para
Nova Orleans. Ele não queria me pré — me despedir. Ele simplesmente não
tinha notícias suas e estava preocupado. Estava tentando descobrir se
você estava bem. Não foi ele, foi o detetive que estragou tudo. Por isso
me despediram. Foi cômico. Fui despedido de um trabalho que existe por
causa da torpeza moral, por motivos de torpeza moral. Só que não foi por
causa disso, é claro. O emprego mixou, o que eu já sabia iria
acontecer... — Bem — disse ela —, e nós não temos nada o que beber em
casa. Vá até a venda e traga uma garrafa enquanto eu — não, espere.
Vamos nós dois sair e comer e beber. Além do mais temos que achar um
cão.
82
— Um cão? — Do lugar onde estava podia vê-la na cozinha, tirando
da geladeira as duas costeletas para o jantar, embrulhando-as outra vez.
— Mas é claro, amigo — disse ela. — Apanhe o chapéu. Era noite, o agosto
quente, a luz neon piscava e ardia alternativamente tornando os rostos
na rua cadavéricos ou infernais, como os deles também, ela ainda
carregando as duas costeletas envoltas no grosso e pegajoso papel de
embrulho do açougue. Naquele quarteirão encontraram McCord. — Perdemos
nosso emprego — disse-lhe ela. —- Por isso estamos procurando um
cachorro. Logo começou a parecer para Wilbourne que o cachorro invisível
estava entre eles. Estavam num bar agora, aquele que freqüentavam,
encontrando talvez duas vezes por semana, por acaso ou deliberadamente,
o grupo que McCord havia trazido para suas vidas. Havia quatro deles (—
Perdemos nosso emprego — informou-lhes McCord. — E agora estamos
esperando um cachorro) presentes agora, os sete sentados em volta de uma
mesa de oito, uma cadeira vazia, um espaço vazio, as duas costeletas
desembrulhadas agora e um prato ao lado de um copo de uísque puro entre
os uísques com água. Eles ainda não haviam comido; por duas vezes
Wilbourne debruçou-se sobre ela. — Não seria melhor comermos alguma
coisa? Não tem problema, eu posso... — Sim, não tem problema. Está bem.
—- Ela não estava falando com ele. — Temos quarenta e oito dólares de
sobra, pense nisto. Nem um armador tem quarenta e oito dólares
sobrando. Bebam, ó filhos de armadores. Acompanhem o cachorro. — Isso
mesmo — disse McCord. — Andem, filhos de armadores, pelos caminhos Dos
Passos. O neon relampejou e brilhou, as luzes do tráfego piscaram
passando de verde para vermelho, voltando para o verde outra vez sobre
os enrouquecidos táxis e as limusines semelhantes a papa-defuntos. Eles
não tinham comido ainda, embora tivessem perdido dois membros do grupo,
eram seis no táxi, uns sentados sobre os joelhos dos outros, enquanto
Charlotte segurava as costeletas (já tinham perdido o papel) e McCord
83
segurava o cachorro invisível; que agora se chamava Além do Mais
parafraseando a Bíblia, a mesa de jantar do pobre. — Mas ouçam — disse
McCord. — Ouçam só um minuto, Doe e Gillespie e eu somos os donos.
Gillespie está lá agora, mas vai ter que voltar para a cidade no dia
primeiro e vai ficar vazia. Vocês podiam pegar os cem dólares... — Você
não é prático — disse Charlotte. — Está falando de segurança. Não tem
alma? Quanto dinheiro temos agora, Harry? Ele olhou para o taxímetro. —
Cento e vinte e dois dólares, — Mas ouçam — disse McCord. — Está bem —
disse ela —, mas agora não é hora de falar. Fez a fama, deite na cama. E
puxe as cobertas sobre a cabeça. — Estavam em Evanston agora; tinham
parado numa lojinha e agora tinham uma lanterna, o táxi se arrastando
por um meio-fio opulento e suburbano enquanto Charlotte, debruçada sobre
McCord, brincava com a luz da lanterna sobre os relvados passantes da
meia-noite. — Lá está um — disse ela. — Não estou vendo — disse McCord.
— Olhe para aquela grade. Já ouviu falar numa grade de ferro com uma
guirlanda de amores-perfeitos em cada mourão que não possuísse um
cachorro de ferro por dentro? A casa tem também uma água-furtada. — Não
vejo casa nenhuma — disse McCord. — Nem eu. Mas olhe para aquela grade.
O táxi parou, desceram. O facho de luz brincou sobre a grade de ferro
com os mourões terminando em pontas de lança presos no concreto; havia
até um poste em forma de negrinho ao lado do portãozinho em espiral. —
Tem razão — disse McCord —, deve haver um por aqui. — Eles agora não
usavam a luz, mas mesmo sob a tênue luminosidade das estrelas podiam
ver perfeitamente — o são-bernardo de ferro com a cara do Imperador
Francisco José misturada com a de um banqueiro do Maine em 1859.
Charlotte colocou as costeletas sobre o frontão de ferro, entre seus
pés de ferro; voltaram para o táxi. — Ouçam — disse McCord. — Está
totalmente equipada: três quartos e cozinha, roupa de cama, utensílios
de cozinha, lenha em abundância, podem até nadar se quiserem.
84
E todas
as outras cabanas estão vazias depois de 1 de setembro e ninguém para
chatear vocês e com direito ao lago, ainda podem pescar durante uns
tempos e com os cem dólares de comida e o frio que não chegará até
outubro, nem talvez até novembro, vocês podiam ficar lá até o Natal ou
até depois disso se não se incomodarem com o frio. McCord os levou de
carro para o lago no sábado à noite antes do Dia do Trabalho, os cem
dólares de comida — as latas, o feijão e arroz e café e sal e açúcar e
farinha — no porta-malas do carro. Wilbourne contemplava o equivalente
ao seu último dólar com certa apreensão. — A gente não se dá conta da
flexibilidade do dinheiro até trocá-lo por alguma coisa — disse. —
Talvez seja isto que os economistas entendem por rendimentos normais
decrescentes. — Você não quer dizer flexível — disse McCord. — Quer
dizer volátil. É isso que o Congresso quer dizer com uma circulação
fluida. Se chover sobre nós antes de colocarmos estas compras sob um
teto você vai entender. Estes feijões e arroz e mercadorias nos vão
fazer pular fora do carro como três fósforos num barril de pólvora. —
Tinham uma garrafa de uísque e McCord e Wilbourne se revezavam ao
volante enquanto Charlotte dormia. Chegaram à cabana um pouco depois do
alvorecer — uns cem acres de água, rodeados por uma plantação de
abetos, quatro clareiras, cada uma com uma cabana (de uma, a chaminé
fumegava. — É Bradley — disse McCord. — Achei que a esta altura já
tivesse saído) e um pequeno cais à beira d'água. Havia um estreito dedo
de praia onde estava parado um gamo, róseo à alvorada domingueira, a
cabeça ereta, observando-os por um momento antes de rodopiar, a cauda
branca arqueando em longos saltos enquanto Charlotte saltando do carro,
o rosto inchado de dormir, corria para a beira d'água, gritando: — Era o
que. eu estava tentando fazer! — gritou. — Não os animais, os cachorros
e cervos e cavalos: o movimento, a velocidade. — Sei — disse McCord. —
Vamos comer. Esvaziaram o carro e carregaram as coisas para dentro e
fizeram um fogo no fogareiro e enquanto Charlotte preparava o
lanche,
85
Wilbourne e McCord levaram a garrafa para a beira d'água onde se
agacharam. Beberam da garrafa, brindando um ao outro, deixando uma dose
apenas. — Para Charlotte — disse McCord. — Ela pode beber à Lei Seca, à
grande seca. — Agora estou feliz — disse Wilbourne. — Sei exatamente o
caminho que seguirei. É inteiramente reto, entre duas fileiras de latas
e sacolas, valendo cinqüenta dólares de cada lado. Não há rua, e sim
casas e pessoas. Isto é uma solidão. E em seguida a água, a solidão
ondulando devagar enquanto se fica deitado, olhando-a. — Agachando-se e
ainda segurando a garrafa quase vazia pôs a outra mão na água, calma,
líquida, cheirando a alba, com a temperatura de água gelada sintética
dos quartos de hotel, as ondinhas se enfunando vagarosas em torno do
pulso. McCord olhou para ele. — E aí vai chegar o outono, os primeiros
frios, as primeiras folhas vermelhas e amarelas tombando, as folhas
duplas, o reflexo se erguendo para encontrar a folha que tomba até se
tocarem, se balançarem um pouco, quase sem se encontrar. E aí você
poderia abrir os olhos um instante, se quisesse, se lembrasse de
fazê-lo, e observaria a sombra das folhas balouçantes no peito ao seu
lado. — Em nome de Jesus, Schoppenhauer — disse McCord. — Que tipo de
literatura de décima quinta categoria é essa? Você ainda não fez nem
metade da sua dieta de fome. Ainda não fez um curso completo de
indigência. Se não tomar cuidado vai repetir essa baboseira para um cara
que vai acreditar em você, vai lhe pôr um revólver na mão e ver se você
sabe usar. Pare de pensar em si mesmo e pense em Charlotte um pouco. — É
dela que estou falando. Mas de qualquer maneira eu não usaria um
revólver. Porque comecei tarde demais. Eu ainda acredito no amor. (Então
contou a McCord sobre o cheque cor-de-rosa.) — Se eu não acreditasse
nele daria o cheque para você e a mandaria de volta com você hoje à
noite. — E se você acreditasse no amor tanto quanto diz acreditar já
teria rasgado esse cheque há muito tempo. — Se eu o rasgasse,
86
ninguém
ia ficar com o dinheiro. Nem ele ia conseguir recebê-lo de volta do
banco. — Ao diabo com ele. Você não lhe deve nada. Já não tirou a mulher
das mãos dele? É, você é um sujeito e tanto! Não tem nem a coragem de
assumir suas fornicações, não é? — McCord se levantou. — Vamos. Estou
sentindo cheiro de café. Wilbourne não se mexeu, a mão ainda na água. —
Eu não a magoei. — Então disse: — Sim, magoei. Se eu não a tivesse
marcado a esta altura, eu... — O quê? — Eu me recusaria a acreditar.
Por um minuto inteiro McCord ficou parado olhando para o homem agachado,
a garrafa numa mão e a outra imersa na água até o pulso. — Merda —
disse. Então Charlotte os chamou da porta. Wilbourne se levantou. — Eu
não usaria o revólver — disse. — Ainda escolheria isto. Charlotte não
quis beber. Pegou a garrafa e a colocou sobre a lareira. — Para nos
lembrar da nossa civilização perdida quando os cabelos começarem a
crescer — disse. Comeram. Havia duas camas de ferro de campanha em cada
um dos dois quartos, outras duas no alpendre telado. Enquanto Wilbourne
lavava os pratos, Charlotte e McCord arrumaram as camas no terraço com
os lençóis do armário: quando Wilbourne apareceu McCord estava deitado
numa delas, sem sapatos, fumando. — Vamos — disse ele —, deite-se. —
Charlotte disse que não quer mais dormir. — Ela apareceu nesse momento,
carregando um bloco de papel, uma caneca de lata, uma nova caixa de
tintas envernizada. — Tínhamos um dólar e meio, mesmo depois de termos
comprado o uísque — disse. — Talvez aquele gamo apareça outra vez. —
Leve um pouco de sal para tacar no rabo dele — disse McCord. — Talvez
fique parado e pose para você. — Não quero que ele pose. É exatamente
o que não quero.
87
Não quero copiar um gamo. Isso qualquer um pode fazer.
— Saiu batendo a porta de tela do alpendre. Wilbourne não olhou para
ela. Ficou fumando também, as mãos sob a nuca. — Ouça — disse McCord —,
você tem um bocado de comida, aqui tem muita lenha e cobertas para
quando esfriar e quando as coisas recomeçarem a funcionar na cidade
talvez eu possa vender essas besteiras que ela fabrica, conseguir uns
pedidos... — Não estou preocupado. Eu disse que estava feliz. Nada
poderá tirar de mim o que já recebi. — Mas que coisa mais bonita! Ouça,
por que não me dá esse maldito cheque e a manda de volta comigo e você
fica aqui comendo os seus cem dólares e depois se muda pro mato e fica
brincando de Santo Antônio numa árvore, e no Natal pega uma concha de
mexilhão e se presenteia com suas próprias ostras? Eu vou dormir. —
Virou-se de lado e pareceu adormecer imediatamente e logo Wilbourne
adormeceu também. Acordou uma vez e viu pelo sol que já passava do
meio-dia e que ela não estava em casa. Mas não ficou preocupado;
deitado e desperto por um momento não olhava para os vinte e sete anos
de esterilidade e ela não devia estar longe, o caminho reto e vazio e
silencioso entre as duas fileiras de cinqüenta dólares de latas e
sacolas, ela esperaria por ele. Se tiver que ser, ela vai esperar,
pensou. Se tivermos que ficar deitados assim, será juntos na ondulante
solidão apesar de Mac e sua literatura de décima quinta categoria pois
ele parece se lembrar de uma montoeira de coisas que as pessoas lêem,
debaixo da corrente vermelha e a amarela do ano estrebuchante, debaixo
dos inúmeros beijos das folhas repetidas. O sol estava bem acima das
árvores quando ela voltou. A primeira página do bloco ainda estava
vazia, embora as tintas tivessem sido usadas. — Eram tão ruins assim? —
disse McCord, ocupado no fogão com feijão e arroz e abricós secos — uma
dessas secretas especialidades culinárias que todos os solteirões
parecem possuir, alguns deles até que obtêm bons resultados, embora à
primeira vista, se dissesse: não McCord.
88
- Talvez um passarinho
tenha contado a ela o que você estava fazendo com cinqüenta centavos das
nossas provisões e ela teve que correr — disse Wilbourne. Por fim a
comida ficou pronta. Não estava muito ruim, segundo Wilbourne. — Só que
não sei se não está ruim ou se é por uma questão de instinto — o que eu
estou comendo não é nada disso mas os quarenta ou cinqüenta centavos que
representa, talvez eu tenha uma glândula de covardia no palato ou no
estômago. — Ele e Charlotte lavaram os pratos, McCord saiu e voltou com
uma braçada de lenha e fez um fogo. — Não vamos precisar disso esta
noite — disse Wilbourne. — Não vai lhe custar nada além da lenha — disse
McCord. — E você tem daqui até a fronteira canadense para apanhar mais.
Pode fazer todo o norte de Wisconsin passar por esta chaminé se tiver
vontade. — Então se sentaram em frente ao fogo, fumando e não
conversando muito, até a hora de McCord partir. Ele não queria ficar,
mesmo sabendo que o dia seguinte seria feriado. Wilbourne o acompanhou
até o carro, onde ele subiu, olhando para Charlotte, na porta, a
silhueta recortada contra o fogo. — Sim — disse ele —, você não precisa
se preocupar, não mais do que uma velha levada pela rua por um policial
ou um escoteiro. Porque quando o maldito e selvagem carro bêbado
atropelar alguém, não será a velha e sim o guarda ou o escoteiro que
vão ser arrebentados. Cuide-se. — Cuidar-me? — É. Não se pode nem ter
medo todo o tempo sem se fazer alguma força. Wilbourne voltou para a
casa. Era tarde e mesmo assim ela ainda não tinha começado a se despir;
novamente ele pensou, não na adaptabilidade das mulheres às
circunstâncias, mas na habilidade delas em adaptar o ilícito, até o
criminoso, a um nível burguês de respeitabilidade enquanto a observava
andar descalça, pelo quarto, fazendo aquelas sutis alterações nos
objetos daquele domicílio temporário, como elas fazem até nos quartos de
hotel alugados apenas por uma noite; tirando de uma das caixas que ele
acreditava só contivessem louças, objetos do apartamento deles em
Chicago que ele não só não sabia que ela ainda guardava,
89
mas também
havia esquecido que jamais tivera — os livros que eles compraram, uma
vasilha de cobre, até a cobertura de chintz da antiga mesa de trabalho,
e de um pacote de cigarros que ela convertera num pequeno recipiente
semelhante a um caixão, a figurinha do velho, o Mau Cheiro; observou-a
colocando-o sobre a cornija e ficar parada durante um certo tempo,
também a cismar e então apanhar a garrafa com o trago que eles lhe
haviam reservado e, com a ritualística sobriedade de uma criança
brincando, despejar o conteúdo na lareira. — Aos lares e penates —
disse. — Não sei latim mas eles entenderão o que quero dizer. Dormiram
nas duas camas do alpendre, mas quando ficou frio pouco antes de
alvorecer, os pés descalços da mulher andando rápidos sobre as tábuas, o
dum mergulho do cotovelo e das cadeiras o despertando quando ela se
enfiou debaixo dos cobertores, cheirando a toucinho e a bálsamo. Havia
uma luz cinza no lago e quando ele ouviu a harpia soube imediatamente
do que se tratava, ele até soube o aspecto do bicho, ouvindo sua voz
rouca e idiota, pensando como só os homens dentre todas as criaturas
deliberadamente atrofiam os sentidos naturais e isso sempre em
detrimento dos outros sentidos: como os animais de quatro pés obtêm
todas as informações através do faro e da visão e da audição e
desconfiam de tudo o mais, enquanto os bípedes só acreditam naquilo que
lêem. O fogo os aqueceu bem pela manhã. Enquanto ela lavava os pratos do
café, ele cortou mais lenha atrás da cabana, tirando então o suéter, o
sol decididamente forte então, embora ele não se deixasse enganar,
pensando como naquelas latitudes o Dia do Trabalho e não o equinócio
marcava a expiração do verão, o enorme suspiro em direção ao outono e
ao frio, quando ela o chamou da casa. Ele entrou; no meio da sala estava
um estranho carregando, equilibrada no ombro, uma grande caixa de
cartolina, um homem não mais velho do que ele, descalço, metido numas
calças cáquis desbotadas e uma camiseta sem mangas, bronzeado de sol,
olhos azuis e claros cílios queimados de sol e cachos simétricos de
cabelo cor de palha — a perfeita coiffure, pensativa — olhando
90
tranqüilamente para a efígie sobre a lareira. Através da porta aberta
atrás dele, Wilbourne viu uma canoa atracada. — Este é... — disse
Charlotte. — Como é mesmo o seu nome? — Bradley — disse o estranho.
Olhou para Wilbourne, os olhos quase brancos contra a pele como um
negativo da Kodak, equilibrando a caixa sobre o ombro, enquanto
estendia a outra mão. — Wilbourne — disse Charlotte. — Bradley é o
vizinho. Vai partir hoje. Trouxe para nós a comida que sobrou. — Não
vale a pena carregá-la de novo — disse Bradley. — Sua mulher me disse
que vocês vão ficar ainda um tempo, de maneira que achei —
cumprimentou-o com um curto duro violento e inadequado aperto de mão de
partir os ossos — um aperto de mão de um ex-universitário que trabalhava
em corretagem. — Muito amável de sua parte. Aceitamos com prazer. Deixe
que eu — mas o outro já havia colocado no chão a caixa cheia de
mantimentos. Estava bem cheia. Charlotte e Wilbourne cuidadosamente
evitaram olhá-la. — Muito obrigado. Quanto mais tivermos em casa, mais
difícil vai ser para o lobo entrar. — Ou para nos pôr para fora quando
entrar — disse Charlotte. Bradley olhou para ela. Riu, mas somente com
os dentes. Os olhos não riram, os olhos confiantes e predatórios do
ainda bem-sucedido líder universitário. — Nada mal — disse. — Vocês...
— Obrigada — disse Charlotte. — Quer um café? — Obrigado, já comi.
Acordamos de madrugada. Preciso estar na cidade à noite. (Ele olhava
agora novamente para a efígie sobre a cornija.) — Posso? — disse,
aproximando-se da lareira. — Eu conheço? Me parece... — Espero que
não —> disse Charlotte. Bradley voltou-se para ela. — Esperamos que
ainda não, é o que ela quer dizer — disse Wilbourne. Porém Bradley
continuava olhando para Charlotte, as sobrancelhas claras gentilmente
interrogatórias sobre os olhos predadores que não sorriam quando a boca
o fazia.
91
— É o Mau Cheiro — disse Charlotte. Ah, entendo! — Olhou
para a efígie. — Foi você quem fez. Vi você desenhando ontem. Do outro
lado do lago. — Eu sei que viu. — Touché — disse ele. — Posso me
desculpar? Não estava espionando. — Eu não estava me escondendo. —
Bradley olhou para ela e agora Wilbourne pela primeira vez viu as
sobrancelhas e a boca concordarem zombeteiras, sardônicas, implacáveis,
o homem como um todo emanando uma espécie de grosseira e insolente
segurança. — Tem certeza? — O bastante — disse Charlotte. Foi até a
cornija e pegou a efígie. — Pena que tenham que partir antes de podermos
retribuir a visita à sua esposa. Mas talvez aceite esta lembrança como
uma recordação pela sua perspicácia. — Não, de jeito algum. — Pegue —
disse Charlotte amável. —. Deve precisar dele muito mais do que nós. —
Bem, obrigado. — Pegou a efígie. — Obrigado. Temos que estar de volta à
noite, mas talvez possamos dar uma passadinha antes de partir. A Sra.
Bradley. . . — Por favor — disse Charlotte. — Obrigado — disse ele.
Voltou-se da porta. — Obrigado outra vez. — Obrigada outra vez, também —
disse Charlotte. Ele saiu; Wilbourne o observou empurrar a canoa e
entrar nela. Então Wilbourne se voltou e se debruçou sobre a caixa. — O
que vai fazer? — disse Charlotte. — Vou levá-la de volta e jogar na
porta dele. — Ah, não seja idiota! — disse ela, chegando perto dele. —
Fique em pé. Nós vamos comer isto. Fique em pé como um homem. — Ele se
levantou, ela colocou os duros braços em torno dele, lutando com ele
com uma selvagem impaciência contida. — Por que não fica adulto, seu
maldito escoteiro destruidor de lares? Não sabe ainda que não parecemos
casados, graças a Deus, nem mesmo para os filisteus? — Segurou-o firme
contra ela, reclinando-se quadris contra quadris
92
e movendo-se ligeiramente enquanto o encarava, o olhar amarelo
impenetrável e irônico e com aquela qualidade que ele aprendera a
reconhecer — aquela implacável e quase insuportável honestidade. — Como
um homem, eu disse — segurando-o firme e zombeteira contra seus móveis
quadris, embora isto não fosse necessário. Ela não precisa me tocar,
ele pensou. Nem o som da sua voz, nem sequer o cheiro, basta um chinelo,
uma destas frágeis instigações para o amor atiradas ao chão. — Vamos,
isto mesmo. Assim! Está bem agora — Soltou uma das mãos e começou a lhe
desabotoar a camisa. — Só que dizem que isto dá azar antes do meio-dia.
Ou não? — Sim — disse ele — sim. — Ela começou a lhe desafrouxar o
cinto. — Ou é apenas sua maneira de mitigar os insultos que me dirigem?
Ou você vai para a cama comigo apenas porque alguém por acaso se lembrou
que eu tenho uma racha na barriga? — Sim — disse ele —, sim. Mais
tarde, ainda de manhã, ouviram o carro de Bradley partir. De bruços e
quase a metade sobre ele (ela tinha adormecido, o corpo pesado e
relaxado, a cabeça debaixo do queixo dele, a respiração vagarosa e
total) ela se retesou, um cotovelo sobre o estômago do homem e o
cobertor escorregando dos ombros, enquanto o som do carro morria a
distância. — Muito bem, Adão -— disse ela. — Mas eles sempre estiveram a
sós — disse-lhe ele. — Desde aquela primeira noite. Aquele quadro. Não
podíamos estar mais sozinhos, não importa quem aparecesse. — Eu sei.
Acho que vou nadar agora. — Ela escorregou para fora do cobertor. Ele a
observou, o corpo sóbrio e simples um pouco mais largo, um pouco mais
sólido do que os anúncios hollywoodianos de óleo de fígado de bacalhau,
os pés descalços sobre as tábuas ásperas em direção da porta telada. —
Tem maiôs no armário — disse ele. Ela não retrucou. A porta telada
bateu. Agora ele não podia mais vê-la ou teria que erguer a cabeça para
fazê-lo. Ela nadava todas as manhãs, os três maiôs intactos dentro do
armário.
93
Ele se levantava para o café e voltava para o alpendre e se
deitava na cama e logo ouvia os pés descalços cruzarem a sala e em
seguida o alpendre: talvez ele olhasse o contínuo e macio corpo
bronzeado cruzando o alpendre. Então dormia outra vez (isto pouco
depois de uma hora após ter despertado, um hábito que adquirira nos
primeiros seis dias) para acordar mais tarde e olhar para fora e vê-la
deitada no cais de bruços ou de frente, os braços sobre ou sob o rosto;
às vezes ele ainda estava no mesmo lugar, sem dormir então e nem mesmo
pensando, mas apenas existindo num estado sonolento e fetal, passivo e
quase insensível no útero da solidão e da paz, quando ela voltava,
movendo-se então só o bastante para que os lábios dele tocassem os seus
quadris encravados de sol, enquanto ela parava ao lado da cama,
saboreando o sol encravado. Então um dia aconteceu uma coisa com ele.
Setembro se fora, as noites e manhãs se tornaram definitivamente frias;
ela passara a nadar não após o café, mas após o almoço e eles estavam
conversando sobre quando teriam que mudar as camas do alpendre para a
sala da lareira. Porém os dias em si eram imutáveis — a mesma
recapitulação estacionaria do intervalo dourado entre a alvorada e o
crepúsculo, os enormes dias tranqüilos e idênticos, a imaculada
hierarquia monótona dos meios-dias plenos do mel quente do sol, através
do qual o ano moribundo rolava nas retrocedentes folhas
vermelhas e amarelas das faias errantes, indo para lugar algum. Todos os
dias, após nadar e tomar sol, ela saía com o bloco e a caixa de tintas,
deixando-o vagar pela casa vazia embora ao mesmo tempo trovejante pelo
forte impacto da presença da mulher — as poucas roupas que ela possuía,
o sussurro dos pés descalços sobre as tábuas — enquanto ele acreditava
estar se preocupando, não acerca do dia inevitável no qual a comida
acabaria, mas com o fato de não parecer estar preocupado com isso; um
curioso estado que ele havia experimentado uma vez antes, quando o
marido da irmã o tinha repreendido, num verão, por ele ter-se recusado
a exercer o seu direito ao voto. Lembrou-se da exasperação quase se
tornando raiva com que tentou apresentar seus motivos para o cunhado,
percebendo por fim que estava falando mais e mais depressa não para
94
convencer o oponente, mas para justificar a própria raiva como num. leve
pesadelo em que estivesse tentando agarrar as calças caídas; que não
era com o cunhado que ele estava falando, mas consigo mesmo. Tornou-se
uma obsessão para ele; percebeu com calma que se tornara secreta,
tranqüila e decentemente um pouco louco; pensava agora sempre na
decrescente fileira de latas e sacolas contra as quais ia emparelhando
numa proporção inversa os dias crescentes, embora não fosse até o
armário olhá-las, contá-las. Dizia a si mesmo como fazia quando fugia
para o banco do parque, tirava a carteira e dela extraía a tira de papel
e subtraía os números, enquanto agora tudo o que tinha a fazer era
olhar de relance as fileiras de latas na prateleira; podia contar as
latas e saber exatamente quantos dias mais lhes restavam, podia pegar
um lápis e marcar na própria prateleira os dias e nem teria que contar
as latas, podia olhar a prateleira e ler de imediato a situação, como
num termômetro. Mas ele nem sequer examinava a despensa. Sabia que
durante essas horas era louco e às vezes lutava contra isso, acreditando
ter dominado a loucura, pois no minuto seguinte as latas, exceto pela
trágica certeza de que elas nem tinham qualquer importância,
desapareciam completamente do seu pensamento como se nunca tivessem
existido, e ele corria os olhos pelo ambiente familiar com uma
sensação de profundo desalento, nem mesmo sabendo que agora estava
preocupado, tão terrivelmente preocupado, que sequer tinha consciência
disso; olhava em volta numa espécie de surpresa consternada para a
solidão plena de sol, da qual ela havia saído temporariamente embora
ainda permanecesse e para a qual logo voltaria, reentrando na aura que
ficara para trás exatamente como ela poderia reentrar numa roupa e
encontrá-lo estirado sobre a cama, não dormindo agora e nem mesmo
lendo, pois perdera esse hábito junto com o hábito de dormir, dizendo
tranqüilamente para si mesmo: Estou entediado. Morto de tédio. Não há
nada aqui que precise de mim. Nem ela precisa de mim. Já cortei lenha
suficiente para durar até o Natal e não há mais nada para fazer..
95
Um dia pediu a ela que dividisse com ele as aquarelas e o bloco. Ela o fez
e descobriu que ele era daltônico e nem sabia. Então todos os dias ele
se deitava de bruços numa pequena clareira ensolarada que descobrira,
cercado pelo feroz aroma adstringente de bálsamo, fumando um cachimbo
vagabundo (a única provisão que fizera antes de deixar Chicago para
enfrentar o dia que não tivessem mais comida e dinheiro), a metade do
bloco de desenhos e a lata de sardinhas transformada em caixa de tintas
intacta e primitiva ao seu lado. Então um dia resolveu fazer um
calendário, uma idéia inocentemente concebida não pela mente, pelo
desejo de ter um calendário, mas pelo total enfado muscular, e
realizado com o tranqüilo e límpido prazer sensorial de um homem
talhando uma caixa num caroço de pêssego ou o padre-nosso numa cabeça
de alfinete; desenhou um calendário com cuidado no bloco, numerando os
dias, planejando usar diversas cores apropriadas para os domingos e
feriados. Logo descobriu que tinha perdido a conta dos dias, mas isto
só aumentou a antecipação, prolongando o trabalho, tornando o prazer
mais envolvente; duas caixas de pêssegos, o padre-nosso em código.
Portanto voltou para aquela primeira manhã em que McCord e ele se
agacharam junto da água, cujo nome e data sabia e contou para diante,
reconstruindo de cabeça as sonolentas demarcações entre uma madrugada e
outra, desenvolvendo uma por uma (áspera como vinho e silenciosa como
mel) a urdidura imóvel da solidão sem marés das terças e sextas e
domingos perdidos; quando de repente lhe ocorreu que podia comprovar os
números, estabelecer a verdade matemática do ensolarado e intemporal
vazio, no qual os dias individuais haviam desvanecido, pelas datas dos e
intervalos entre os períodos menstruais de Charlotte e se sentiu como um
velho contemplativo apoiado num cajado numa antiga colina flutuada de
ovelhas deve ter-se sentido após tropeçar sem querer em alguma forma
alexandrina que provava as verdades estelares que ele havia observado
noturnamente toda a vida e sabia serem verdadeiras embora não soubesse
como, nem por quê.
96
Foi quando a coisa lhe aconteceu. Sentado, olhando
o que tinha feito num alegre e espantado prazer da própria astúcia em
arquitetar para Deus, para a Natureza, a não-matemática, superfecunda
natureza, essa natureza perdulária, primitiva, desordenada e ilógica e
sem método, para provar para si mesmo seu problema matemático, quando
percebeu que havia atribuído seis semanas ao mês de outubro e que o dia
de hoje era 12 de novembro. Pareceu-lhe poder ver o próprio numeral,
incontroverso e solitário, na idêntica e anônima hierarquia dos dias
perdidos; pareceu-lhe ver as fileiras de latas na prateleira se
estendendo por meia milha, as dinâmicas formas sólidas como torpedos
que até então haviam tombado uma a uma, silenciosamente e sem peso,
naquele tempo estagnado que não progredia e que de algum modo
encontraria alimento para suas duas vítimas assim como lhe dava alento,
agora em tempo inverso, agora o tempo propulsor, avançando vagaroso e
irresistível, maculando as latas uma a uma numa progressão contínua
como o faz a sombra de uma nuvem passageira. Sim, pensou. É o veranico
de outono o culpado. Fui seduzido a um paraíso imbecil por uma puta
velha; fui sufocado e exaurido de força e volição pela velha e cansada
Lilith bíblica anual. Queimou o calendário e voltou para a cabana. Ela
ainda não havia voltado. Foi até a despensa e contou as latas. Faltavam
ainda duas horas para o crepúsculo; quando olhou em direção ao lago viu
que não havia sol e que uma massa de nuvens como algodão sujo havia
cruzado do leste para o norte e oeste e que a sensação e o sabor do ar
também tinham mudado. Sim, pensou, a puta velha. Já me traiu e agora não
precisa mais fingir. Por fim viu Charlotte se aproximando, volteando o
lago, num par de calças dele e num velho suéter que tinham descoberto
no armário junto com os cobertores. Foi ao seu encontro. — Deus do céu —
disse ela —, nunca tinha visto você tão feliz. Pintou um quadro ou
descobriu por fim que a raça humana, na verdade, nem sequer precisa
tentar produzir arte... Ele caminhava mais depressa do que imaginava;
quando colocou os braços em volta dela o contacto físico a assustou,
detendo-a;
97
afastando-se para trás, ela o encarou, agora com espanto
verdadeiro e não mais simulado. — Sim — disse ele. — Que tal namorar um
pouco? — Por que não, amigo — disse ela imediatamente, em seguida se
inclinando para trás para poder vê-lo. — O que é isso? O que está
acontecendo? — Você vai ter medo de ficar aqui sozinha esta noite? Agora
ela começou a se desvencilhar. — Me solte. Não consigo ver você. — Ele a
soltou, embora conseguisse encontrar o fixo olhar amarelo que ainda
nunca tinha conseguido enganar. — Esta noite? — Hoje são 12 de
novembro. — Muito bem. E daí? — Ela olhou para ele. — Vamos. Vamos
entrar e apurar esta história direitinho. — Voltaram para a casa;
novamente ela parou e olhou-o de frente. — Agora diga tudo. — Acabei de
contar as latas. Medi-as. — Ela o encarou com aquela dura, quase sombria
impessoalidade. — Temos comida para mais uns seis dias. — Muito bem. E
daí? — Foi a boa temperatura. Como se o tempo tivesse parado e nós com
ele, como dois galhos na borda de um lago. Por isso" não pensei em me
preocupar, em vigiar. Por isso vou a pé até a cidade. Só são doze
milhas. Posso estar de volta amanhã ao meio-dia. — Ela olhou para ele. —
Uma carta. De Mac. Pode estar esperando. — Você sonhou que essa carta
estaria lá ou descobriu isto no bule de café quando estava medindo as
provisões? — Vai estar lá. — Está bem. Mas espere até amanhã. Não pode
andar doze milhas antes do anoitecer. — Comeram e foram para a cama.
Desta vez ela foi direta se metendo na cama com ele, sem se importar
com o duro e doloroso cotovelo que o machucava como o faria, pelo seu
lado, se as posições fossem invertidas, assim como não se importava com
a mão dolorida que agarrava o cabelo dele, sacudindo-lhe a cabeça
98
com selvagem impaciência. — Meu Deus nunca na vida vi alguém tentar
tanto ser um marido como você. Ouça, seu burro. Se tudo que eu quisesse
fosse um marido bem-sucedido e comida e uma cama por que cargas d'água
acha que estaria aqui em vez de estar lá, onde tinha tudo isso? — A
gente tem que dormir e comer. — Claro que tem. Mas para que se preocupar
com isto? É como se preocupar em tomar banho só porque a água do
banheiro vai ser cortada. — Em seguida ela saiu da cama com a mesma
abrupta violência; ele a observou cruzar em direção à. porta, abri-la e
olhar para fora. Podia sentir o cheiro de neve antes de ela abrir a
boca. — Está nevando. — Eu sei. Soube esta tarde que ela percebeu que
tudo estava perdido. — Ela? — Charlotte fechou a porta. Desta vez foi
para a outra cama onde se deitou. — Tente dormir. Vai ser um dia duro
amanhã se nevar muito. — Vai estar lá. — Sim — disse ela, bocejando de
costas para ele. — Provavelmente está lá há uma ou duas semanas. Ele
saiu da cabana um pouco depois do raiar do dia. A neve havia cessado e
fazia bastante frio. Chegou à cidadezinha em quatro horas e encontrou a
carta de McCord. Continha um cheque de vinte e cinco dólares; havia
vendido um dos bonecos e obtivera a promessa de um emprego para
Charlotte numa loja durante as férias de Natal. Já estava bem escuro
quando ele voltou para casa. — Pode pôr tudo na panela — disse ele. —
Temos vinte e cinco dólares. E Mac arranjou um emprego para você. Ele
vai chegar de carro sábado à noite. — Sábado à noite? V— Eu telegrafei
para ele. Esperei pela resposta. Por isto voltei tão tarde. — Comeram e
desta vez ela foi tranqüilamente para a cama com ele e desta vez até se
aninhou nele, que nunca a vira fazer isso antes em momento algum. — Vou
sentir saudades daqui. — É mesmo? — disse ele tranqüilo, calmo, deitado
de costas,
99
os braços cruzados sobre o peito como uma efígie de pedra
num sepulcro do décimo século. — Você na certa vai ficar contente em
voltar quando estiver lá. Gente para visitar, McCord e os outros de
quem você gosta, Natal e tudo o mais. Poderá lavar a cabeça de novo e
tratar das unhas, - Desta vez ela não se mexeu, ela que tinha o hábito
de atacá-lo com aquela selvageria fria e desrespeitosa, sacudindo-o e
empurrando-o não só quando falava, mas até para dar certa ênfase ao que
dizia. Desta vez ficou perfeitamente imóvel, sem sequer respirar, a voz
plena não com um suspiro, mas com absoluta e total incredulidade: — Você
na certa... Você gosta... Você pode... Harry o que quer dizer com
isso? — Que telegrafei para Mac vir buscar você. Você vai ter um emprego
que a manterá até depois do Natal. Eu pensei em ficar com a metade dos
vinte e cinco dólares e ficar aqui. Talvez Mac me consiga alguma coisa
também, qualquer trabalho serve. Aí volto para a cidade e talvez
possamos... — Não — gritou ela. — Não! Não! Meu Deus, não! Me abrace,
Harry, me abrace bem forte, Harry! B para isso, tudo foi para isso, é
isso que estamos pagando: para que possamos estar juntos, dormir juntos
toda a noite: não só para comer e evacuar e dormir agasalhados para nos
levantarmos e comermos e evacuarmos para dormirmos agasalhados outra
vez! Me abrace! Me abrace forte! Forte! — Ele a abraçou, os braços
rígidos, o rosto ainda voltado para o alto, os lábios separados dos
dentes cerrados. Deus, pensou ele. Deus a proteja! Deus a proteja!
Deixaram a neve no lago, embora antes de chegarem a Chicago alcançassem
um final de veranico de outono que se dirigia para o sul. Mas não durou
e logo também era inverno em Chicago; o vento canadense formava gelo no
lago e soprava nas gargantas de pedra germinadas de azevinho do Natal
que se aproximava, crispando e regelando os rostos dos policiais e
funcionários e mendigos e do pessoal da Cruz Vermelha e do Exército da
Salvação fantasiado de Papai Noel, os dias moribundos falecendo em gás
neon sobre os rostos de pétala, emoldurados em peles, das esposas e
filhas dos milionários de gado e madeira e das amantes dos políticos
100
de volta da Europa e das fazendas para passar os feriados nos
apartamentos vertiginosos e opulentos sobre o lago férreo e a rica
cidade esparramada antes de partir para a Flórida, e os filhos dos
corretores londrinos e dos aristocratas improvisados e dos senadores
sul-africanos que vinham visitar Chicago por terem lido Whitman e
Masters e Sandburg em Oxford ou Cambridge — membros daquela raça que sem
vocação para as explorações e armados de carteiras de notas e máquinas
fotográficas e sacolas impermeáveis escolhem passar os feriados
cristãos nas escuras e entranhadas matas de selvagens. O emprego de
Charlotte era numa loja que tinha sido uma das primeiras compradoras
das primeiras figuras que ela confeccionara. Incluía a decoração de
vitrinas e mostruários, de forma que seu dia começava quando a loja
fechava de tarde e o dia dos outros empregados terminava. Assim
Wilbourne e às vezes McCord esperavam por ela num bar da esquina onde
jantavam mais cedo. Logo McCord ia embora para começar seu dia inverso
no jornal e Charlotte e Wilbourne voltavam para a loja, que agora
adquiria uma espécie de bizarra e infernal vida inversa — a caverna de
vidro cromado e mármore sintético que durante oito horas estivera cheia
do voraz murmúrio implacável das compradoras metidas em peles e os
regimentados esgares fixos das vendedoras robotizadas em cetim, agora
sem o tumulto, reluzente e tranqüila e ecoando em cavernoso silêncio,
diminuta, repleta então de uma sombria fúria tensa como uma clínica
vazia à meia-noite onde um punhado de cirurgiões e enfermeiras anões
lutam num decoroso semitom por uma vida obscura e anônima; na qual
Charlotte também desvanecia (não desaparecia: ele a podia ver de vez em
quando, consultando alguém em pantomima sobre algum objeto que um deles
segurava, ou entrando ou saindo de uma vitrina) assim que eles entravam.
Ele trazia um jornal vespertino e então nas próximas duas ou três horas
sentado em cadeiras frágeis cercado de figuras desmembradas com suaves
corpos sem órgãos e rostos quase absurdamente serenos, por brecados
drapeados e cetins ou pelo brilho dos vidrilhos, enquanto faxineiras
101
surgiam de joelhos empurrando baldes diante delas como se fossem
de outra espécie, toupeiras recem-saídas de algum túnel ou buraco,
nascidas das entranhas da própria terra e servindo alguma obscura
norma sanitária, não para o brilho silencioso para o qual nem olhavam,
mas para a região subterrânea para onde se arrastariam de volta antes
do alvorecer. Então às onze ou à meia-noite e, à medida que o Natal se
aproximava, até mais tarde, eles iam para casa, para o apartamento que
não tinha banca de trabalho nem clarabóia mas que era novo e limpo e
situado num bairro novo e limpo perto do parque (em direção do qual,
perto das dez da manhã enquanto ficava na cama entre a primeira e a
segunda dormida do dia, ele podia ouvir as vozes das crianças
perseguidas pelas babás) onde Charlotte iria para a cama e ele se
sentaria outra vez na máquina de escrever onde passava a maior parte do
dia, instrumento emprestado primeiro por McCord, depois alugado de uma
agência, depois por fim comprado entre armas de fogo sem pente e
violões e dentes de ouro obturados numa loja de penhores, na qual
escrevia e vendia para revistas femininas, histórias que começavam: "Eu
tinha o corpo e os desejos de uma mulher porém em conhecimento e
experiência do mundo ainda sou uma criança" ou "Se eu ao menos tivesse o
amor de uma mãe para me proteger naquele dia fatal" — histórias que ele
escrevia inteiras da primeira maiúscula até a última frase num único
suspenso e frenético agonizante jorro como o meio-de-campo
universitário agarra a pelota (o Albatroz, o Velho do Mar que é seu
verdadeiro inimigo e não o time contrário, não as irrefutáveis marcas
de giz profundamente aterrorizantes e sem significado como num pesadelo
de um imbecil) e corre até completar a jogada — vencido ou sobre a linha
do gol, não importa qual — indo então para a cama com a madrugada já
além da janela do frio cubículo de dormir, para se enfiar na cama ao
lado de Charlotte que sem despertar às vezes se voltava para ele,
murmurando algo úmido e ininteligível vindo do sono, e deitar novamente
ao lado dela abraçando-a como naquela última noite no lago, ele próprio
acordado,
102
esperando exalar o aroma e o eco da sua última fornada de
literatice para os imbecis. Portanto ele ficava acordado a maior parte
do tempo enquanto ela dormia e vice-versa. Ela se levantava e fechava a
janela e se vestia e fazia café (a refeição que quando eram pobres,
quando não sabiam ao certo de onde viria a próxima medida de pó de café
para pôr no bule, preparavam e comiam juntos, com os pratos que lavariam
e secariam juntos, lado a lado na pia) e saía e ele não tomava
conhecimento. Então ele, por sua vez, acordava e ouvia as crianças
passando enquanto requentava o café e o bebia e se sentava à máquina de
escrever, entrando sem esforço e sem qualquer arrependimento na
anestesia da sua monótona criação. No começo, ele fazia uma espécie de
ritual do almoço solitário, escolhendo as latas e fatias de carne na
noite anterior, como um garotinho numa roupa nova de Daniel Boone
soltando fogos numa floresta improvisada num armário de vassouras. Mas
ultimamente, uma vez que havia comprado a máquina de escrever (havia
voluntariamente desistido da categoria de amador, disse a si mesmo
então; já não tinha sequer que fingir para si mesmo que era uma
brincadeira), passou a abrir mão do almoço, com o aborrecimento de ter
que comer, escrevendo em vez disso continuamente, só parando para
descansar os dedos, um cigarro queimando lentamente a borda da mesa
alugada, olhando sem ver as duas ou três linhas correntes visíveis e da
sua última ficção rudimentar para os imbecis, sua goma de mascar sexual,
em seguida se lembrando do cigarro e erguendo-o para inutilmente
esfregar a nova queimadura antes de voltar a escrever. Logo chegava a
hora e com a tinta às vezes quase úmida sobre o envelope selado e
endereçado com remetente, contendo a última história que dizia: "Aos
dezesseis anos fui mãe solteira", ele saía do apartamento e andava
pelas ruas cheias, as claudicantes tardes minguantes do ano moribundo,
até o bar onde ele e Charlotte e McCord se encontravam. Havia Natal no
bar também, azevinhos e agáricos entre a reluzente pirâmide de copos,
repetida pelo espelho, este arremedando os estranhos uniformes dos
garçons,
103
as fumegantes poncheiras sazonais de rum quente e uísque
para os freqüentadores verem e recomendarem uns aos outros, enquanto
seguravam nas mãos os mesmos coquetéis e drinques gelados que tinham
bebido durante todo o verão. Então McCord, na mesa de costume, com o que
ele chamava de café da manhã — um litro de cerveja e quase um quilo de
torradas ou amendoins salgados ou o que houvesse à disposição, e
Wilbourne bebia o único trago que se permitia antes de Charlotte chegar
Posso me dar ao luxo de ser abstêmio — dizia a McCord. — Posso
pagar rodada por rodada sem limites e tudo pelo privilégio de recusar) e
eles esperavam a hora que as lojas esvaziavam, as portas de vidro
brilhando para fora expelindo no tenro olhar gelado do gás neon os
rostos, entre peles e azevinho, os desfiladeiros esculpidos de ar
alegres e crispados com as vozes brilhantes desejando bons votos e boa
vontade no vapor intransigente, as escadas dos empregados descarregando
também, em seguida, os arregimentados cetins negros, os pés inchados de
tanto ficar de pé, os rostos doendo na preservação das rígidas caretas.
Então Charlotte aparecia, eles paravam de falar e a observavam se
aproximando desviando-se e esgueirando-se entre o amontoado de gente do
bar e entre os garçons e as mesas repletas, o casaco aberto sobre o
uniforme, o chapéu de lado, segundo a moda, atirado ainda mais para
trás como se ela o tivesse empurrado com o antebraço num gesto feminino
imemorial, advindo do imemorial cansaço feminino aproximando-se da
mesa, o rosto pálido e cansado também, embora ela se movimentasse com o
mesmo vigor e certeza de sempre, os olhos sérios e incorrigivelmente
honestos de sempre sobre o forte nariz grosseiro, a grossa e pálida boca
sem sutileza. — Rum, rapazes — ela dizia então afundando-se numa das
cadeiras que um deles havia puxado para ela: — Bem, papai. — Então, eles
comiam, na hora errada, na hora que o resto do mundo começava a se
preparar para comer (— Sinto como se fôssemos três ursos numa jaula
numa tarde de domingo — dizia ela), comendo uma comida que nenhum deles
queria e em seguida se dispersando, McCord para o jornal, Charlotte e
Wilbourne de volta para a loja.
104
Dois dias antes do Natal quando
entrou no bar ela carregava um embrulho. Eram presentes de Natal para as
crianças, suas duas filhas. Eles agora não tinham mais bancada de
trabalho e nem clarabóia. Ela desembrulhou e os embrulhou de novo sobre
a cama, a imemorial — a bancada de trabalho para criar meninos agora
transformados em altar para o Menino, ela sentada na beirada da cama
cercada de papel estampado de azevinho e o frágil e pretensioso cordão
vermelho e verde e as etiquetas gomadas, os dois presentes que ela
havia escolhido, razoavelmente caros mas banais; ela os examinava nas
mãos com uma espécie de sombrio divertimento, ela que em quase todos os
atos humanos era direta e rápida. — Nem me ensinaram como fazer
embrulhos — disse ela. — Crianças — disse. — Na verdade não é uma festa
para crianças. E para adultos: uma semana de indulto para se voltar à
infância, para dar algo que não se quer para si próprio a alguém que
também não o quer e exigir um agradecimento por isso. E as crianças
fazem uma troca com a gente. Abandonam a puerilidade e aceitam o papel
que você não desempenha mais, não porque tenham qualquer vontade
específica de serem adultos, mas somente por causa da indômita
pirataria das crianças de aproveitar qualquer coisa — fraude ou sigilo
ou representação — para obter qualquer coisa. Qualquer coisa, qualquer
bugiganga serve. Os presentes não significam nada para elas até se
tornarem bastante grandes para calcularem o preço que provavelmente
custaram. Por isso as meninas são mais interessadas em presentes do que
os meninos. Por isso aceitam o que você lhes dá não porque aceitariam
até isso em vez de nada, mas porque é tudo que esperavam dos estúpidos
bois entre os quais por alguma razão são obrigadas a conviver. — Eles me
ofereceram continuar na loja. — O quê? — disse ele que não a estava
ouvindo. Estava escutando, mas não ouvindo, olhando para as mãos
bruscas entre os restos de ouropel. Agora é a hora de eu dizer: Vá para
casa. Esteja com elas amanhã de noite. — O quê? — Eles querem continuar
comigo até o verão na loja, Desta vez ele a ouviu;
105
viveu a mesma
experiência de quando reconheceu o número no calendário que
confeccionara, agora sabia qual tinha sido o problema que o vinha
preocupando constantemente, por que ficava deitado rígida e
cuidadosamente ao lado dela na madrugada, acreditando que a razão pela
qual não dormia era a espera de que o aroma de sua alcoviteirice
imbecil se esvaísse: por que ficava sentado diante de uma página
inacabada na máquina de escrever, acreditando estar pensando em nada,
acreditando que pensava somente no dinheiro; como todas as vezes sempre
se enganavam em relação à quantia certa e que agiam em relação ao
dinheiro como alguns infelizes agem em relação ao álcool: ou nada ou
demais. Era na cidade que eu estava pensando, pensou ele. A cidade e o
inverno juntos, uma combinação ainda forte demais para nós, pelo menos
por enquanto — o inverno que arrebanha as pessoas dentro das paredes
seja lá onde estiverem, mas o inverno junto com a cidade, uma masmorra;
a rotina até de pecar, uma absolvição até para o adultério. — Não —
disse ele. — Porque nós vamos embora de Chicago. — Embora de Chicago? —
Sim. Para sempre. Você não vai trabalhar mais só pelo dinheiro. Espere —
disse, rapidamente. — Sei que acabamos por viver como se fôssemos
casados há cinco anos, mas eu não vou dar uma de marido machão em cima
de você. Sei que me apanho pensando: Quero que minha mulher tenha o
melhor, mas ainda não estou dizendo: Sou contra mulher minha
trabalhando. Não é isso. É a conseqüência desse trabalho, é por termos
nos acostumado a trabalhar antes de saber para quê, quase esperamos
demais antes de perceber tudo. Lembra-se do que você disse., lá no lago,
quando sugeri que você desse o fora enquanto era tempo e você respondeu:
E o que compramos e o que estamos pagando: para que possamos estar
juntos e comer juntos e dormir juntos? Olhe para nós agora! Quando
estamos juntos é num bar ou num bonde ou andando numa rua cheia e
quando comemos juntos é num restaurante cheio na hora de folga que eles
lhe dão na loja para que você possa comer e se manter forte para que
106
eles não percam o dinheiro que lhe pagam todo o sábado e nós não
dormimos mais juntos, mas nos revezamos vigiando o sono um do outro;
quando eu toco em você sei que está cansada demais para pensar em me
tocar. Três semanas depois, com um endereço rabiscado na margem rasgada
de um jornal dobrado no bolsinho do paletó, ele entrou num prédio
comercial do centro . e ascendeu vinte andares até uma porta de vidro
opaca que dizia: "Minas Callaghan" e entrou e passou com certa
dificuldade por uma secretária cinzelada em cromo e encarou por fim,
através do tampo de uma mesa inteiramente nua a não ser por um telefone
e um baralho de cartas distribuídas por Canfield, um homem de uns
cinqüenta anos de rosto vermelho e olhos frios com a cabeça de um
bandoleiro e o corpo de cento e dez quilos de um jogador de futebol
universitário que engordara, enfiado num terno caro de tweed, que de
qualquer maneira lhe assentava como se ele o tivesse tirado de um saldo
a mão armada, a quem Wilbourne tentou fazer um resumo das suas
qualificações e experiências médicas. — Isso não tem importância —
interrompeu o outro. — O senhor sabe cuidar dos ferimentos naturais que
ocorrem aos homens que trabalham num poço de mina? — Eu estava tentando
lhe dizer... — Eu ouvi. Perguntei-lhe outra coisa. Eu disse: Tomar
conta deles. — Wilbourne olhou para o homem. — Eu não acho que eu... —
começou. — Tomar conta da mina. Das pessoas que a possuem. Que colocaram
dinheiro nela. Que estarão lhe pagando um salário enquanto fizer jus a
ele. Não dou a mínima pelo muito ou pouco de cirurgia ou farmacologia
que conheça ou quantos títulos possui e onde os arranjou. Ninguém lá se
importará com isso; não vai haver fiscais estaduais para lhe pedir seu
diploma. Quero saber se podemos confiar no senhor para proteger a mina,
a companhia. Contra explosões. Contra processos de gringos, tchecos e
chineses quando lhes passar pela cabeça trocar uma mão ou um pé por uma
pensão ou uma viagem de volta para Cantão ou Hong Kong.
107
- Ah - disse
Wilbourne. — Entendo. Sim. Posso fazer isso. — Muito bem. Receberá
transporte para a mina imediatamente. Seu pagamento será. . . —
mencionou uma quantia. — Não é muito — disse Wilbourne. O outro olhou
para ele, os olhos frios acolchoados nas gorduras em volta das
pálpebras. Wilbourne também o encarou. — Tenho um diploma de uma boa
universidade, uma escola de Medicina reconhecida. Só me faltaram umas
semanas para terminar meu internato no hospital que possui uma. . . —
Então não quer este emprego. Este trabalho não está nem de longe de
acordo com suas qualificações e, se me permite, seus méritos. Bom dia. —
Os olhos frios o encararam; ele não se mexeu. — Eu disse bom dia. —
Precisarei de transporte para minha mulher — disse Wilbourne. Duas
manhãs depois partiram de trem às três horas. Aguardaram McCord no
apartamento onde viveram dois meses e não deixaram qualquer outra marca
a não ser as manchas de cigarro sobre a mesa. -— Nem de amor — disse
ele. — Nem a doce e célere música dos pés descalços que na penumbra se
apressam em direção da cama, colchas que não se desdobram com a pressa
necessária. Apenas o gemido seminal das molas, o desafogo prostrado
pré-prandial dos casados há mais de dez anos. Vivíamos muito ocupados;
tivemos que alugar e sustentar um quarto para acomodar dois robôs. —
McCord chegou e eles carregaram a bagagem para baixo, as duas malas com
que tinham saído de Nova Orleans e a máquina de escrever. O gerente
apertou as mãos dos três e manifestou pesar pela dissolução dos
mutuamente prazerosos liames domésticos. — Só nos dois — disse
Wilbourne. — Nenhum de nós é andrógino. — O gerente piscou os olhos, mas
só uma vez. — Ah — disse ele. — Boa viagem. Têm um táxi? — Eles estavam
com o carro de McCord; saíram para apanhá-lo sob um fraco reluzir de
prata menor, o derradeiro gás neon e o estrondo e retinir dos
semáforos;
108
o carregador entregou as duas malas e a máquina de
escrever ao cabineiro no vestíbulo do vagão pullman. — Temos tempo para
um trago — disse McCord. — Vá você com Harry — disse Charlotte. — Eu vou
para a cama. — Ela se acercou e pôs os braços em volta de McCord,
erguendo o rosto. — Boa noite, Mac. — Então McCord se adiantou e a
beijou. Ela deu um passo para trás, voltando-se; eles a viram entrar no
vestíbulo e desaparecer. Então Wilbourne também soube que McCord sabia
que não a veria outra vez. — E que tal aquele trago? — disse McCord. Os
dois foram para o bar da estação e encontraram uma mesa e então estavam
sentados outra vez como o faziam em tantas tardes enquanto esperavam por
Charlotte — os mesmos rostos bebendo, os mesmos uniformes brancos dos
garçons e barmen, os mesmos luzidios copos empilhados, apenas as
poncheiras fumegantes e o azevinho (O Natal, McCord tinha dito, a
apoteose da burguesia, a estação em que segundo uma fábula brilhante o
Céu e a Natureza, por uma vez de acordo, editam e postulam todos nós
impressionados, maridos e pais, quando diante de um altar em forma de
uma bica folheada a ouro o homem possa com impunidade se prostrar numa
orgia desenfreada de obediência sentimental diante do conto de fadas
que conquistou o mundo ocidental, quando durante sete dias anistiados os
ricos ficam mais ricos e os pobres mais pobres: a caiação de uma semana
estipulada deixando novamente a página branca e pristina para comentar a
nova e eqüina vingança [— Aí está o cavalo — disse McCord] e ódio.)
agora ausentes, o garçom vindo como de costume — a mesma manga branca,
as anônimas feições dos garçons cujo rosto nunca se vê. — Cerveja —
disse McCord. — E você? — Uma água tônica. — O quê? — Não estou
bebendo. — Desde quando? — Desde ontem à noite. Não posso mais me dar ao
luxo de beber.
109
— McCord olhou para ele. — Caramba — disse McCord. —
Me traga um uísque duplo então. — O garçom saiu. McCord ainda olhava
para Wilbourne. — Parece lhe fazer bem — disse ele selvagem. — Ouça,
sei que não tenho nada com isso, mas gostaria de saber o que aconteceu.
Vocês aqui estavam ganhando um bom dinheiro e Charlotte tinha um bom
emprego, um bom lugar para morar. E de repente você desiste de tudo,
faz Charlotte largar o emprego para irem, em fevereiro, viver numa mina
em Utah num lugar sem estrada de ferro, sem telefone, sem sequer uma
privada decente por um salário de... — E exatamente por isso. E a
razão. Eu me tornei... — calou-se. O garçom pôs as bebidas na mesa e
se retirou. Wilbourne ergueu sua água tônica. — À liberdade. — Vai
precisar — grunhiu McCord. — Provavelmente você vai ter que beber
bastante até vê-la outra vez. E com água também, nem sequer com sifão. E
talvez num lugar mais apertado do que este aqui. Porque aquele sujeito
é venenoso. Eu o conheço. É um pilantra. Se escrevessem a verdade sobre
ele numa tumba não seria um epitáfio e sim uma folha policial. — Está
bem — disse Wilbourne. — Ao amor, então. — Havia um relógio acima da
porta de entrada — a ubíqua e sincronizada face, oracular, admonitória e
insensível; ainda lhes restavam vinte minutos. Vai levar só dois
minutos para eu dizer a McCord o que me levou dois meses para descobrir,
pensou ele. — Eu tinha me transformado num marido — disse. — E tudo.
Eu nem sabia disso até que ela me contou que a loja lhe tinha proposto
continuar trabalhando. No começo eu tinha que me cuidar, ensaiar
sozinho comigo mesmo todas as vezes para me certificar de que diria
"minha mulher" ou "Sra. Wilbourne", quando descobri que vinha me
policiando há meses para não dizê-lo; até me surpreendi duas vezes,
desde que voltamos do lago, pensando "Quero que minha mulher tenha o que
há de melhor" exatamente como qualquer marido com seu envelope de
pagamento aos sábados e a casinha no subúrbio repleta de aparelhos
elétricos de poupar esposas e o gramado imaculado para regar no domingo
de manhã do qual se tornará proprietário contanto que
110
não seja
despedido ou atropelado por um carro nos próximos dez anos — o verme
condenado, cego a todas as paixões e morto para todas as esperanças e
que nem sabe disso, indiferente e desprevenido diante da escuridão
total, do desconhecimento total, do latente Escárnio Total que aguarda o
momento de fulminá-lo. Eu havia até deixado de ter vergonha da maneira
pela qual ganhava dinheiro, me desculpando até para mim mesmo pelas
histórias que escrevia, não me envergonhava mais delas do que um
funcionário público sanitário (que compra sua casinha a prestação para
que a esposa possa usufruir do que há de melhor) se envergonha do seu
distintivo de identificação e do seu desentupidor de borracha para
latrinas entupidas que tem que carregar sempre consigo. Na verdade eu
acabei até gostando de escrevê-las, mesmo sem pensar no dinheiro, como
o menino que nunca vira gelo antes e se torna um aficionado ao aprender
a patinar. Além do mais, depois que comecei a escrevê-las descobri que
não tinha idéia das profundezas da depravação da qual é capaz a
inventiva humana, o que é sempre interessante... — Capaz, não, você
quer dizer se regozijar — disse McCord. — É. Está bem —
Respeitabilidade. Foi isso que nos decidiu. Descobri há uns tempos que é
o ócio que cria todas as virtudes, nossas qualidades mais suportáveis —
a contemplação, a equanimidade, a preguiça, deixar os outros em paz; boa
digestão mental e física; a sabedoria em se concentrar nos prazeres da
carne — comer e evacuar e fornicar e se sentar ao sol — dos quais nada
é melhor, nada se compara, nada mais em todo este mundo do que
simplesmente viver durante o curto espaço em que nos emprestam alento,
estar vivo e saber disso — oh, sim, ela me ensinou isso; ela também me
marcou para sempre — nada, nada. Mas foi só recentemente que vi com
clareza, seguindo a conclusão lógica, que é uma das que chamamos
virtudes primordiais — economia, diligência, independência — que gera
todos os vícios — fanatismo, complacência, interferência, medo e pior
do que tudo, respeitabilidade. Nós, por exemplo.
111
Porque pela
primeira vez estamos com dinheiro, sabíamos com certeza de onde viria a
comida do dia seguinte (o maldito dinheiro, em demasia; à noite
ficávamos acordados e planejávamos como gastá-lo; por volta da
primavera já estaríamos com prospectos de vapores em nossos bolsos) e eu
havia me tornado tão inteiramente subserviente e escravo da
respeitabilidade quanto qualquer... — Mas ela não — disse McCord. —
Não. Mas ela é mais homem do que eu. Você mesmo já disse isso — como
qualquer homem por bebida ou ópio. Eu me transformara no Perfeito
Dono-de-Casa. Só me faltava a sanção oficial sob a forma de um número
registrado na Previdência Social como chefe de família. Vivíamos num
apartamento que não era boêmio, nem sequer um ninho de amor pecaminoso,
não ficava nem mesmo naquela zona da cidade, mas numa vizinhança
dedicada tanto pelas posturas municipais quanto pela arquitetura para o
segundo ano dos casais na faixa dos cinco mil dólares anuais. Eu era
acordado de manhã pelas crianças passando na rua e quando chegasse a
primavera e as janelas tivessem que permanecer abertas eu teria que
ficar ouvindo o dia todo os gritos impacientes, vindos do parque, das
amas suecas e quando o vento virasse, aspirar o cheiro de urina
infantil e fogos de artifício. Eu me referia àquilo como casa, havia um
canto que nós dois chamávamos de meu estúdio; eu até tinha comprado
afinal a maldita máquina de escrever — algo de que eu havia prescindido
durante vinte e oito anos, e tão bem que nem me dera conta — que é
pesada e desajeitada demais para se carregar e da qual eu não abriria
mão mais do que — — Você ainda está com ela segundo percebi — disse
McCord. — do que — Sim. Uma boa parcela de coragem é uma descrença
sincera no azar. De outra forma não é coragem — do que arriscaria perder
meus cílios. Me atei de pés e mãos numa fitinha de escrever, me
observando diariamente mais e mais enredado nela como uma barata numa
teia de aranha; todas as manhãs, para que minha mulher pudesse sair em
tempo para o trabalho,
112
eu lavava o bule de café e a pia e duas vezes
por semana (pela mesma razão) eu comprava do mesmo açougueiro as compras
necessárias e as costeletas que fritaríamos aos domingos; com um pouco
mais de tempo estaríamos nos vestindo e despindo sem tirar o roupão na
presença um do outro e apagando a luz antes de fazer amor. É isto. Não
são as circunstâncias que elegem nossas vocações, é a respeitabilidade
que nos torna quiropráticos e funcionários e pregadores de cartaz e
motoristas e escritores de novelões. — Havia um alto-falante no bar
também, sincronizado também; nesse momento uma voz cavernosa e
impessoal rugiu deliberadamente uma frase na qual se entendia uma ou
outra palavra — "trem", depois outras que a mente dois ou três segundos
depois reconheceu serem os nomes de cidades espalhadas pelo continente,
cidades vistas em vez de nomes ouvidos, como se o ouvinte (tão
formidável era a voz) estivesse suspenso no espaço, observando o globo
terrestre, girando lentamente fora dos aconchegantes farrapos de nuvens
em relances fragmentados, as estranhas divisões evocativas da esfera,
girando-as dentro da neblina e das nuvens outra vez antes que a visão e
o entendimento as pudessem perceber inteiramente. Ele olhou novamente
para o relógio; ainda tinha quatorze minutos Quatorze minutos para
tentar dizer o que eu já disse em cinco palavras, pensou ele. — E olhe
que eu gostava. Nunca neguei isso. Eu gostava. Gostava do dinheiro que
ganhava. Eu até gostava do jeito como ganhava, daquilo que fazia, como
já disse. Não foi por causa disso que um dia me surpreendi pensado
"Minha mulher precisa ter o melhor Foi porque descobri ao mesmo tempo
que ainda estava com medo, não importando o que eu faça, mas sempre
terei medo enquanto ela ou eu tivermos vida. — Você ainda está com medo
agora? — Sim. E não é por causa do dinheiro. Maldito dinheiro. Posso
ganhar todo o dinheiro de que precisamos; certamente parece não haver
limites ao que eu posso inventar usando como tema os problemas sexuais
femininos. Não é isso que quero dizer e não é Utah também. Nós
eliminamos isso.
113
Levamos certo tempo mas o homem é engenhoso e
limitado na inventiva também, de forma que conseguimos finalmente nos
ver livres do amor, por fim conseguimos nos ver livres de Cristo, Temos
um rádio no lugar da voz de Deus e em vez de ter que economizar moeda
emocional durante meses e anos para merecer uma oportunidade de gastar
tudo com o amor, nós agora podemos subdividi-lo em níqueis e nos excitar
em qualquer banca de jornal como quem extrai goma de mascar ou chocolate
das máquinas automáticas. Se Jesus retornasse hoje, nós teríamos que
crucificá-lo depressa em defesa própria para justificar e preservar a
civilização que trabalhamos e sofremos e morremos, estertorando e
amaldiçoando com raiva e impotência e terror, há dois mil anos para nos
criar e aperfeiçoar segundo a própria imagem do homem; se Vênus
retornasse ela seria um homem sujo num lavatório de metrô com uma mão
cheia de cartões-postais franceses — McCord se virou na cadeira e chamou
o garçom num único gesto de violência contida. O garçom apareceu,
McCord apontou para o copo. Logo a mão do garçom encheu o copo sobre a
mesa e se retirou. — Muito bem — disse McCord. — E daí? — Eu estava em
eclipse. Começou na noite em Nova Orleans quando contei a ela que tinha
mil e duzentos dólares e durou até aquela noite em que ela me disse que
a loja pretendia mantê-la. Eu estava fora do tempo. Ainda estava ligado
a ele, apoiado por ele no espaço, como você está desde quando havia um
não você que se tornasse você e o será até que haja um fim para o
não você graças ao qual você pôde existir um dia — isso é a imortalidade
— apoiado por ele mas é tudo, apenas nele, não condutivo, como a
andorinha isolada pelos próprios pés duros, não condutivos e mortos do
fio de alta tensão, a corrente do tempo que corre pela lembrança, que
existe apenas em relação ao pouco de realidade (aprendi isso também) que
conhecemos, ou então não existe essa coisa que chamamos tempo. Você
sabe: Eu não era. Então eu sou, e o tempo começa, retroativo, é, era e
será. Então eu era e portanto não sou e assim o tempo nunca existiu. Era
como aquele momento de virgindade, era o momento de virgindade:
114
aquela condição, fato, que na verdade não existe exceto no instante em
que você sabe que a está perdendo; durou tanto assim porque eu era
velho demais, esperei demais; vinte e sete anos é tempo demais para
esperar que saia do seu sistema aquilo que você já deveria ter eliminado
sozinho aos quatorze ou quinze anos ou talvez até mais cedo — o
selvagem e desconexo tatear apressado de dois amadores arfantes sob os
degraus da escada ou num celeiro à tarde. Você se lembra: o precipício,
o precipício escuro; toda a espécie humana antes de você desceu por ele
e todos depois de você farão o mesmo, mas isso não significa nada para
você porque eles não podem lhe relatar, preveni-lo do que se deve fazer
a fim de sobreviver. É a solidão, compreende? Tem que ser feito na
solidão e você pode suportar toda esta solidão e ainda viver, como a
eletricidade. E por esses um ou dois segundos você estará absolutamente
só, não antes de você ser e não depois de não ser, porque então você
nunca está sozinho; em qualquer dos casos você está seguro e acompanhado
num anonimato infindo e inextricável: num, do pó para o pó; no outro,
dos vermes fervilhantes para os vermes fervilhantes. Mas agora você vai
ficar só, precisa, sabe disso, tem que ser, então que seja; conduz a
besta que você carregou por toda a vida, o velho, conhecido e
alquebrado pangaré até a beira do precipício. — Aí vem você com o
maldito cavalo — disse McCord. — Estava esperando por ele. Daqui a dez
minutos vamos parecer um daqueles artigos da revista "Rédeas e Esporas".
Não conversamos, mas pregamos a moral um para o outro como dois
pastores itinerantes que perfazem o mesmo circuito no interior. — Talvez
você sempre tenha achado que chegado o momento podia puxar a rédea e
salvar alguma coisa, talvez não, o momento chega e você sabe que não
pode, sabe que sempre soube que não podia e não pode; você é uma única
afirmação abnegada, um único Sim fluente emanado do terror no qual você
entrega a volição, a esperança, tudo — a escuridão, a queda, o trovoar
da solidão, o choque, a morte, o momento quando, fisicamente detido
pelo barro ponderável você sente ainda toda a vida esvair de você
115
na imemorial, saturada, cega matriz repetitiva, o fundamento fluido,
cego e quente — túmulo-útero ou útero-túmulo, é uma coisa só. Mas você
volta; talvez soubesse disso o tempo todo, mas volta, talvez até viva
para completar seus setenta anos ou o que for mas para sempre depois
disso você saberá que por muito mais tempo você perdeu alguma coisa, que
durante aquele segundo ou dois você esteve presente no espaço, mas não
no tempo, que você não tem os setenta anos que lhe creditaram e que
terá que reembolsá-los um dia para equilibrar o balanço e sim sessenta e
nove anos e trezentos e sessenta e quatro dias e vinte e três horas e
cinqüenta e oito - Pelo sangue de Cristo — disse McCord — e seus
doces querubins. Se eu tiver o azar de ter um filho vou levá-lo
pessoalmente a um bom puteiro quando ele completar dez anos. —• Foi
isso que aconteceu comigo — disse Wilbourne. — Esperei demais. O que
teriam sido dois segundos aos quatorze ou quinze anos foram oito meses
aos vinte e sete. Eu estava em eclipse e quase atingimos o fundo
naquele lago nevado em Wisconsin com nove dólares e vinte centavos de
comida entre nós e a fome. Eu venci isso, pensei que tinha vencido.
Acreditei ter acordado em tempo e vencido isso; voltamos para cá e
pensei que estávamos indo muito bem até aquela noite antes do Natal
quando ela me falou sobre a loja e eu percebi onde tínhamos nos metido,
que a fome não era nada, que ela não poderia nos ter feito outra coisa
senão nos matar, enquanto isto era pior do que a morte ou a separação:
era o mausoléu do amor, era o cadafalço fedorento do cadáver morto
levado entre as formas ambulantes, e sem olfato das divindades
insensíveis clamando por carnes antigas. — O alto-falante falou outra
vez; eles fizeram um gesto como se fossem se levantar ao mesmo tempo;
nesse momento o garçom se materializou e McCord lhe deu dinheiro. —
Portanto, tenho medo — disse Wilbourne. — Não tinha medo então porque eu
estava em eclipse mas agora estou acordado e posso ter medo agora,
graças a Deus.
116
Porque neste Anno Domini de 1938 não existe lugar para o
amor. Usaram o dinheiro contra mim enquanto eu dormia porque eu era
vulnerável ao dinheiro. Então despertei e retifiquei o dinheiro e pensei
tê-los vencido até aquela noite quando descobri que Eles me atacaram com
a respeitabilidade e isso era mais árduo de combater do que o dinheiro.
Portanto agora não sou mais vulnerável ao dinheiro ou à respeitabilidade
e desta forma Eles vão ter que descobrir algo mais para nos forçar a
aceitar o padrão de vida humana que agora evoluiu para prescindir do
amor — a aceitar ou morrer. — Entraram na plataforma — na obscuridade
cavernosa onde a perene eletricidade que não distingue o dia da noite
ardia tenuemente em direção à férrea alba invernal entre os tufos de
vapor, entre os quais a comprida fila imóvel de vagões escuros parecia
estar fundida à altura dos joelhos, deitada e para sempre fixada no
concreto. Passaram pelas paredes saturadas de fuligem, os apertados
cubículos repletos de roncos, até o vestíbulo aberto. — Portanto tenho
medo. Porque Eles são espertos, astutos. Precisam ser; se Eles nos
deixassem vencê-los seria como permitir um roubo ou um assassinato sem
punição. É claro que não podemos vencê-los; é claro que estamos
condenados; por isso tenho medo. E não por mim: lembra-se daquela noite
no lago em que você disse que eu era uma velha sendo levada pela rua por
um polícia ou um escoteiro e que quando o carro bêbado viesse não seria
a velha, seria — — Mas para que ir a Utah em fevereiro para vencê-los?
E se não pode vencê-los por que diabo ir para Utah? — Porque eu — Vapor
e ar sibilaram atrás deles num longo suspiro; o cabineiro apareceu de
repente não se sabe de onde, como havia feito o garçom. — Muito bem
senhores —, disse ele. — Vamos partir. Wilbourne e McCord apertaram-se
as mãos. — Talvez eu lhe escreva — disse Wilbourne. — Charlotte
provavelmente o fará de qualquer maneira. Ela também é mais cavalheiro
do que eu.
117
— Entrou no vestíbulo e voltou-se, o cabineiro às suas
costas, a mão na maçaneta, esperando; ele e McCord se olharam, entre
eles o silêncio das coisas não ditas e que cada um deles sabia nunca
seriam ditas: Nunca mais o verei e Não. Você nunca mais nos verá. —
Porque os corvos e as andorinhas são mortos nas árvores ou afogados nas
inundações ou mortos pelos furacões e incêndios, mas não os falcões. E
talvez eu possa ser o consorte de um falcão embora eu seja uma
andorinha. — O trem se alinhou; O início, o começo do movimento, da
partida veio de volta, vagão por vagão e passou sob seus pés. — E alguma
coisa eu me disse lá no lago — disse ele. — Que existe algo em mim de
que ela não é a amante e sim a mãe. Bem, dei um passo adiante. O trem
andou, ele se debruçou para fora, McCord andando também para
acompanhá-lo. — Que existe algo em mim que você e ela geraram, de que
você é o pai. Me dê sua bênção. — Receba minha maldição — disse McCord.
118
PALMEIRAS SELVAGENS
Nem o administrador da mina nem sua esposa foram recebê-los — um casal
até mais jovem, embora consideravelmente mais severo, pelo menos de
aspecto, do que Charlotte e Wilbourne. Chamavam-se Buckner e entre si
de Buck e Bill. — Só que o nome é Billie — informou a Sra. Buckner no
seu forte sotaque do oeste. — Sou do Colorado (pronunciava o a como o
é de réplica). Buck é de Wyoming. — É o nome perfeito pra uma puta, não
é? — disse Charlotte afável. — E o que quer dizer com isso? — Nada. Não
quis ofender. Deveria ser uma boa puta. Pelo menos é o que eu tentaria
ser. A Sra. Buckner olhou para ela. (Isto ocorreu enquanto Buckner e
Wilbourne estavam no armazém pegando cobertores e casacos de couro de
ovelha e roupas de baixo de lã e meias.) — Você e ele não são casados,
são? — O que a faz pensar isso? — Sei lá. A gente percebe. . . — Não,
não somos. Espero que não se importe, já que vamos morar na mesma casa.
— Por que me importaria? Eu e Buck não nos casamos logo, mas agora
está tudo acertado — disse ela num tom satisfeito e não triunfante. — E
eu guardei, bem guardado. Nem Buck sabe onde. Se bem que isto não faça'
grande diferença. Buck é um bom sujeito, mas é sempre bom uma mulher
andar prevenida. — .O que você guardou?
147
— O documento. A certidão. — Mais tarde (ela estava então
cozinhando o jantar e Wilbourne e Buck ainda estavam visitando a mina)
ela disse: — Faça que ele case com você, — Talvez faça — disse
Charlotte. — Faça sim. É melhor. Especialmente quando se briga. — Vocês
estão brigados? — Sim. Há quase um mês. Na verdade quando o trem de
minério — uma falsa locomotiva sem começo nem fim, composta de três
vagões e de um cubículo onde só cabia um fogão — chegou à estação
atulhada de neve, não havia ninguém a não ser um gigante encardido a
quem a chegada deles constituíra aparentemente uma total surpresa,
metido num casaco debruado de pele de ovelha encardido, os olhos claros
que davam a impressão de que ele não dormira muito ultimamente, o rosto
encardido que obviamente não havia sido barbeado como também, sem
dúvida, não via água e sabão há muito tempo — um polonês de ar
orgulhoso, feroz e selvagem e um pouco histérico que não falava inglês,
tagarelando ininteligivelmente, gesticulando com violência em direção à
muralha oposta, ao desfiladeiro onde estavam dependuradas meia dúzia de
casas construídas em sua maioria de chapas de zinco com janelas cheias
de neve. O desfiladeiro não era extenso, mais parecendo uma vala, uma
cloaca que se elevava num precipício; a neve pristina, marcada e
maculada, diminuía a entrada da mina, o monte de lixo e algumas casas;
além das bordas do desfiladeiro elevavam-se os róseos picos
inatingíveis, envoltos por nuvens de algum vento fantástico, sob um céu
imundo. — Vai ser lindo na primavera — disse Charlotte. — É bom que seja
— disse Wilbourne. — Vai ser. Já é. Mas vamos a algum lugar. Vou
congelar num minuto. Novamente Wilbourne se dirigiu ao polonês. —
Administrador —- disse ele —, que casa? — Sim, patrão — disse o polonês.
Jogou a mão outra vez em direção à muralha do desfiladeiro em frente,
movendo-se com incrível rapidez, apesar de sua estatura e, como
Charlotte escorregava um pouco para trás, antes de se equilibrar,
148
ele apontou para os finos sapatos dela enfiados até os calcanhares na
neve e agarrando as duas lapelas de seu casaco com as mãos encardidas,
puxou-a à altura do seu pescoço e do seu rosto com uma gentileza quase
feminina, os olhos claros se inclinando sobre ela com uma expressão ao
mesmo tempo feroz, selvagem e terna; empurrou-a para a frente, dando-lhe
um tapinha nas costas e em seguida uma forte palmada nas nádegas. —
Corram — disse ele —, corram. Então viram e entraram no caminho que
cortava o estreito vale. Isto é, não era bem um caminho sem neve, ou de
neve trazida pelas pisadas, apenas naquele lugar o nível de neve era
mais baixo, tinha largura de um só homem entre dois bancos de neve e
portanto protegido de certa forma do vento. — Talvez ele more na mina e
só venha para casa nos fins de semana — disse Charlotte. — Mas me
disseram que ele era casado. Como ela faz? — Talvez o trem de minério só
venha uma vez por semana também. — Você não deve ter visto o
maquinista. — Nós não vimos a mulher dele também — disse ela, emitindo
um som de nojo. — Não teve a menor graça! Desculpe, Wilbourne. —
Desculpo. — Desculpem, desfiladeiros. Desculpe, neve. Acho que vou ficar
congelada. — De qualquer maneira ela não estava lá de manhã — disse
Wilbourne. Assim como o administrador da mina não estava. Escolheram uma
casa, não aleatoriamente e também não por ser a maior, o que não era o
caso, e nem mesmo porque tivesse um termômetro (que registrava quatorze
graus abaixo de zero) ao lado da porta, mas simplesmente porque foi a
primeira casa que encontraram e porque já se haviam tornado profunda e
indelevelmente íntimos do frio, pela primeira vez na vida, um frio que
deixava uma marca indestrutível e inesquecível em alguma parte da alma
e da memória como a primeira experiência sexual ou a experiência de
tirar uma vida humana. Wilbourne bateu uma vez naquela porta com a
149
mão que nem mais sentia a madeira e não esperou resposta, abrindo-a e
empurrando Charlotte à sua frente para dentro de um único quarto onde um
homem e uma mulher sentados, com camisas de lã idênticas e calças jeans
e meias de lã sem sapatos, um em frente do outro, um maço gordurento de
cartas distribuído sobre uma tábua em cima de um barril, num jogo
qualquer, olharam para eles com espanto. — Quer dizer que te mandou para
cá? O próprio Callaghan? — disse Buckner. — Foi — disse Wilbourne que
podia ouvir Charlotte e a Sra. Buckner de onde Charlotte estava perto do
fogareiro a uns dez pés de distância (o fogareiro era a gasolina;
quando lhe atiravam um fósforo, o que só acontecia quando o apagavam
para encher o tanque, caso contrário ele ardia o tempo todo, dia e
noite, acendia com um estampido e um clarão, com que depois de um certo
tempo até Wilbourne se acostumou, não mais apertando os dentes, sentindo
o coração lhe saltar pela boca) conversando: — Essa é toda a roupa que
trouxeram para cá? Vão morrer de frio. Buck vai ter que ir ao armazém —
— Sim — disse Wilbourne. — Por quê? Quem mais me mandaria para cá? —
Você — ah — você não trouxe nada? Uma carta ou coisa parecida? — Não.
Ele disse que não — — Ah, estou entendendo. Você é que pagou a passagem
de trem. — Não. Ele pagou. — Caramba — disse Buckner, virando a cabeça
para a mulher. — Ouviu essa, Bill?! — Por quê? — disse Wilbourne. — O
que há? — Não tem mais importância — disse Buckner. — Vamos até o
armazém arrumar umas coisas pra vocês dormirem e umas roupas mais
quentes do que essas. Ele nem ao menos disse pra vocês comprarem um
casaco de pele de ovelha na Sears, não é?
150
- Não - disse
Wilbourne. — Mas primeiro deixa eu me esquentar. — Você nunca vai se
esquentar por aqui — disse Buckner. — Se sentar perto do fogareiro pra
isso nem vai chegar a se mexer. Vai morrer de fome sem se levantar para
encher o fogareiro quando ele apagar. O negócio é se convencer que
sempre vai estar com um pouco de frio mesmo na cama. De maneira que é
melhor ir fazendo o que tem pra fazer e depois de um certo tempo se
acostumar com o frio, esquecer que ele existe e então nem vai perceber
que está com frio porque já esqueceu como é que a gente se sente quando
está quente. Por isso, vamos logo. Pode botar meu casaco. — E você? —
Não é longe. Tenho um suéter e carregar as coisas vai acabar nos
esquentando. O armazém era uma sala única de zinco repleto do frio
férreo e iluminado pelo resplendor de ferro silencioso da neve através
de uma única janela. O frio ali dentro era um frio mortal. Parecia uma
gelatina, quase intransponível, dentro da qual o corpo se rebelava, e
com razão, como se fosse demais exigir que ele se esquentasse e
vivesse. Dos dois lados erguiam-se prateleiras róseas de madeira,
tristonhas e vazias, exceto na parte de baixo, como se esta fosse também
um termômetro não para medir o frio, mas a moribundidade, um
incontroverso centígrado (deveríamos ter trazido o Mau Cheiro, já
pensava Wilbourne), um falso mercúrio de mentira que nem sequer era
grandioso. Desceram os cobertores, os casacos de ovelhas, as lãs e as
galochas; pareciam ao tato como de gelo, como de ferro, endurecidos;
carregando-os de volta para a cabana os pulmões de Wilbourne (ele havia
esquecido a altitude) lutavam com o ar rígido que os penetrava como se
fosse de fogo. — Então é médico — disse Buckner. — Sou o médico — disse
Wilbourne. Estavam na rua agora. Buckner trancou a porta novamente.
Wilbourne olhou para os desfiladeiros, em direção ao paredão em frente,
para a minúscula cicatriz morta da entrada da mina e o monte de
lixo.
151
— O que houve aqui? — Já vou lhe dizer. Você é um médico? Desta
vez Wilbourne olhou para ele. — Já disse que sou. O que quer dizer com
isso? — Então acho que vou precisar de uma prova disso. Um diploma: não
é assim que se chama? Wilbourne olhou para o homem. — Aonde quer chegar?
Sou responsável perante você pelas minhas habilitações ou perante o
homem que paga meu salário? — Salário? — Buckner riu com aspereza. Em
seguida se calou. — Acho que estou enganado. Não quis chatear você.
Quando um homem chega na minha terra e você lhe oferece um emprego e
ele diz que sabe andar a cavalo, nós pedimos uma prova e ele não se
chateia com isso. Nós até lhe damos um cavalo pra ele fazer a
demonstração, só que não é o melhor cavalo que a gente tem, mas se a
gente só tiver um cavalo e ele for bom, aí então a gente não empresta.
De forma que se não tivermos um cavalo para ele fazer a demonstração a
gente tem que perguntar ao sujeito. É o que estou fazendo. — Olhou para
Wilbourne, sóbrio e intenso, com olhos de avelã num rosto esquálido
como um músculo de carne crua. — Ah — disse Wilbourne —, entendo. Tenho
um diploma de uma faculdade bastante boa. Quase terminei meu curso
prático num hospital bem conhecido. Depois eu seria — teria sido, de
qualquer maneira, reconhecido publicamente por eles, atestando que sei o
que todo médico sabe e talvez até mais. Ou pelo menos é o que eu acho.
Está satisfeito? — Sim — disse Buckner. — Está bem. — Ele se voltou e
prosseguiu: — Você quer saber o que há de errado aqui? Vamos deixar
estas coisas na cabana e vamos até a mina que eu lhe mostro, — Deixaram
os cobertores e as lãs na cabana e cruzaram o desfiladeiro, o caminho
que não era caminho; assim como o armazém não era um armazém, mas uma
espécie de indicador (impenetrável) como uma palavra de código colocada
ao lado da estrada.
152
— O trem de minério em que viemos — disse
Wilbourne —, o que carregava quando desceu o vale? — Ah, estava
carregado — disse Buckner. — Tem que descer carregado. Sai carregado
daqui de qualquer maneira. Eu providencio isso. Não quero que me cortem
a garganta antes do tempo, — Carregado de quê? —- Ah — disse Buckner.
— A mina não era um poço, era uma galeria que penetrava diretamente até
as entranhas da pedra — um tubo redondo como o cano de um obus, escorado
com toras e repleto da moribunda claridade da neve, à medida que os dois
avançavam e o mesmo frio letal gelatinoso que havia no armazém,
delimitado por dois trilhos de bitola estreita de onde vinha, quando
eles entraram (os dois rapidamente se afastaram ou teriam sido
atropelados), um vagonete cheio de minério, empurrado por um homem
correndo a quem Wilbourne também reconheceu ser polonês, embora mais
baixo, mais forte e mais gordo do que o outro (ele veio a perceber mais
tarde que nenhum deles era os gigantes que imaginara, que a ilusão de
tamanho era uma aura, emanação daquela selvagem inocência e credulidade
infantil que eles possuíam em comum), os mesmos olhos claros, o mesmo
rosto encardido e barbado sobre o mesmo imundo casaco debruado de pele
de ovelha. — Pensei — começou a dizer Wilbourne. Mas calou-se. Os dois
seguiram em frente; o último fulgor da neve desapareceu e então entraram
numa cena como algo de um Eisenstein Dante. A galeria se tornara um
pequeno anfiteatro, ramificada em galerias menores como dedos da mão
espalhados, iluminada por uma incrível extravagância de eletricidade
como que para um festival — uma extravagância de lâmpadas sujas que
tinha, embora no sentido inverso, o mesmo ar de mentira e agonia do
grande, quase estéril prédio identificado como armazém em formidáveis
letras novas — e nessa luz outros homens, parecendo gigantes,
encardidos em casacos de ovelha e olhos que não haviam dormido
ultimamente, trabalhavam com picaretas e pás com o mesmo frenesi do
homem correndo atrás do vagonete carregado,
153
com gritos e ejaculações numa língua que Wilbourne não podia
entender, quase como um time universitário de beisebol, animando uns aos
outros, enquanto das galerias menores onde eles ainda não haviam
entrado e onde ainda mais lâmpadas elétricas brilhavam, entre a poeira e
o ar gelado, de onde vinham também ecos ou gritos de outros homens
ainda, insensatos e perturbadores, enchendo o ar pesado como pássaros
cegos e desorientados. — Ele me disse que vocês tinham chineses e
italianos também — disse Wilbourne. — É — disse Buckner. — Mas foram
embora. Os chineses foram em outubro. Acordei uma manhã e eles tinham
sumido. Todos. Foram a pé, acho, com as camisas pra fora das calças e
os sapatos de palha. Mas também não havia muita neve em outubro. Pelo
menos não até lá embaixo. Eles sentiram o cheiro — — O cheiro? — Não tem
havido pagamento aqui desde setembro. — Ah — disse Wilbourne. — Entendo
agora. Então sentiram o cheiro como os negros. — Não sei. Nunca tive
crioulos por aqui. Os carcamanos fizeram mais barulho. Entraram em
greve, tudo formalizado. Atiraram fora as picaretas e as pás e saíram.
Houve uma — como é que se chama? delegação? que veio falar comigo. Muita
conversa, tudo muito berrado, uma porção de mãos se erguendo, as
mulheres paradas do lado de fora na neve, levantando os bebês para eu
ver. Então abri o armazém e dei pra cada um uma camisa de lã, homens,
mulheres e crianças (você precisava ver, os meninos em camisas de
homem, aqueles que já podiam andar quero dizer. Usavam do lado de fora
como se fossem capotes) e uma lata de feijão para cada um e os mandei
de volta no trem de minério. Ainda havia muitas mãos erguidas, punhos
agora, e eu pude ouvi-los por muito tempo depois que o trem desapareceu.
Hogben pra descer (é ele quem guia o trem; é pago pela ferrovia) só usa
a máquina pra frear, por isso não faz muito barulho. Não tanto quanto o
pessoal.
154
Mas os polacos ficaram. — Por quê? Não perceberam — Que
tudo estava acabado? Eles não entendem as coisas. Verdade que ouvem; os
carcamanos sabiam falar com eles: um dos carcamanos servia de intérprete
para eles. Mas é gente estranha; não compreendem a desonestidade. Acho
que quando os carcamanos tentaram explicar, a coisa não fez sentido pra
eles, que um homem podia manter o pessoal trabalhando sem ter intenção
de pagar. Portanto eles agora pensam que estão trabalhando hora extra.
Fazendo todo o trabalho. Não são mecânicos, nem mineiros, são
dinamitadores. Não sei por que os polacos parecem gostar de dinamite.
Talvez por causa do barulho. Agora estão fazendo de tudo. Queriam até
botar as mulheres também. Entendi isto depois de um tempo e dei uma
brecada. Por isso não dormem muito. Acham que quando o dinheiro chegar
amanhã vão receber tudo. Acham talvez que você o tenha trazido e que
sábado à noite vão receber uns mil dólares por cabeça. São como
crianças. Acreditam em qualquer coisa. Por isso quando descobrirem que
você os enganou, vão matá-lo. Oh, não com uma faca nas costas, nem mesmo
com uma faca, mas indo de encontro a você com uma banana de dinamite e
enfiam a dinamite no seu bolso, seguram você com uma mão enquanto
acendem um fósforo no pavio com a outra. — Você não lhes contou? — Como?
Não sei falar com eles; o intérprete era um dos carcamanos. Além do mais
o chefe tem que manter a mina em funcionamento e essa é a minha tarefa.
Pra ele continuar vendendo ações. Por isso você está aqui — um médico.
Quando ele disse a você que não ia haver nenhuma inspeção médica por
aqui pra aporrinhar você com diplomas, falou a verdade. Mas existem
inspetores de minas por aqui, leis e normas para o funcionamento das
minas que exigem que a gente tenha um médico. Por isso ele pagou a
passagem de você e sua mulher pra cá. E além disso o dinheiro pode
aparecer. Quando vi você hoje de manhã, também achei que você tinha
trazido. Bem? Já viu o bastante? — Sim — disse Wilbourne. Voltaram em
direção à entrada; mais uma vez rapidamente deram passagem para um vagão
repleto de minério empurrado às pressas por outro encardido e
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frenético polonês. Emergiram no frio vivo da neve imaculada, no dia
moribundo. — Não acredito — disse Wilbourne. — Você viu, não viu? —
Quero dizer a razão por que você ainda está aqui. Você não estava
esperando dinheiro nenhum. — Talvez esteja esperando uma brecha pra
escapulir, mas esses putos não dormem nem à noite de modo que fica meio
difícil. Diabos — disse ele, —, isto também é uma mentira. Fiquei por
aqui porque estamos no inverno e tanto faz estar aqui como em qualquer
lugar, contanto que se tenha o bastante pra comer no armazém e eu tenha
onde me esquentar. E porque eu sabia que ele tinha que mandar logo outro
médico ou vir ele mesmo pra dizer pra mim e prós putos selvagens que a
mina está fechada. — Bom, estou aqui — disse Wilbourne. — Ele mandou
outro médico. O que você quer de um médico? Durante algum tempo, Buckner
olhou para ele — os inflexíveis olhinhos que deviam servir bem para
avaliar e comandar um tipo, uma classe, uma espécie de homens senão ele
não estaria onde estava agora; os inflexíveis olhos que talvez nunca
antes, disse Wilbourne consigo, tivessem tido ocasião de deparar com a
necessidade de avaliar um homem que apenas pretextava ser médico: —
Ouça — disse ele —, tenho um bom emprego, só que não recebo desde
setembro. Economizamos cerca de trezentos dólares para sairmos daqui
quando este troco estourar, o que vai dar pra gente viver até eu
arranjar outra coisa. Mas agora Bill está com uma barriga de um mês e
não temos condição de ter um filho. Você se diz médico e eu acredito. E
então? — Não — disse Wilbourne. — Eu assumo o risco. Me responsabilizo.
— Não — disse Wilbourne. — Você não sabe fazer isso? — Sei. É muito
simples. Um dos médicos do hospital fez uma demonstração — um caso de
emergência —, talvez para nos mostrar o que não se deve fazer. Ele não
precisava ter me mostrado.
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— Eu lhe pago cem dólares. — Eu tenho
cem dólares — disse Wilbourne. - Cento e cinqüenta dólares então. A
metade do que tenho. Mais que isso não posso. - Eu também tenho cento e
cinqüenta dólares. Tenho cento e oitenta e cinco dólares. E mesmo que
só tivesse dez dólares — Buckner lhe deu as costas: — Você é um homem
de sorte. Vamos comer. Ele contou a Charlotte o ocorrido. Não na cama,
onde costumavam conversar, porque dormiam todos no mesmo quarto - a
cabana só tinha um aposento com uma meia-água para as necessidades mais
íntimas —, mas do lado de fora da cabana, com neve até os joelhos e, de
galochas, vendo a muralha montanhosa em frente e os denteados picos
emaranhados de nuvens além, onde, indômita, Charlotte repetiu: — Vai ser
lindo na primavera. - E você disse não — ela mesma disse. — Por quê?
Por causa dos cem dólares? — Você me conhece. Aliás, eram cento e
cinqüenta. — Posso ser baixo, mas não tão baixo? — Não. Foi porque eu —
— Você tem medo? — Não. Não é nada. Facílimo. Um toque com um bisturi
para deixar entrar o ar. É porque eu — — Há mulheres que morrem por
causa disso. — Quando o cirurgião faz barbeiragem. Talvez um em dez
mil. É claro que não existem estatísticas. É porque eu - Tudo bem. Não
foi por que o preço fosse baixo demais ou porque você tivesse medo. Era
tudo o que eu queria saber. Você não precisava fazer, ninguém pode
obrigá-lo. Me beija. Nós não podemos nem nos beijar lá dentro, quanto
mais — Os quatro (Charlotte dormia então de ceroulas de lã como os
outros) dormiam no único aposento, não em camas, mas em colchões no chão
(Fica mais quente desse jeito — explicou Buckner. — O frio vem por
baixo.) e o fogareiro de gasolina ardia o tempo todo. Ocupavam cantos
opostos,
157
mas mesmo assim os colchões não ficavam a quatro metros de
distância, de forma que Wilbourne e Charlotte nem podiam falar, apenas
sussurrar. Isto não parecia incomodar os Buckner porém, embora fossem
de poucas conversas e sussurros preliminares; às vezes, mal passavam
cinco minutos após apagarem a lamparina, Wilbourne e Charlotte ouviam o
abrupto oscilar de garanhão na outra cama, o violento movimento abafado
pelos cobertores que cessava com os gemidos arfantes da mulher e às
vezes com uma série de simples gritos acavalados, embora para eles as
coisas não fossem assim. Então um dia o termômetro caiu de quatorze para
quarenta e um e eles colocaram os colchões juntos e dormiram, como uma
unidade, as duas mulheres no meio, e ainda às vezes mal tinham apagado a
luz (ou talvez fossem acordados por isso) advinha o choque brutal do
garanhão sem troca de palavras, como se eles tivessem sido atraídos um
para o outro, selvagem e violentamente como o aço e o ímã, feroz
respiração, os gemidos femininos arfantes e trêmulos enquanto Charlotte
dizia: — Não dá para fazerem isso sem puxar as cobertas? — embora para
eles as coisas não fossem assim. Estavam lá há um mês, era quase março
então, e a primavera que Charlotte aguardava já se aproximando, quando
uma tarde Wilbourne voltou da mina onde os sujos e insones poloneses
ainda trabalhavam com aquela ilusória ferocidade frenética e as cegas
vozes em atritos incompreensíveis ainda iam e vinham entre as
extravagantes lâmpadas poeirentas, e encontrou Charlotte e a Sra.
Buckner olhando para a porta da cabana enquanto ele entrava. E ele sabia
o que o esperava e talvez até soubesse que estava perdido. — Ouça,
Harry — disse ela —, eles vão embora. Têm que ir. Aqui não há mais o que
se fazer e eles só têm trezentos dólares para chegar aonde querem ir e
para viver até que ele encontre outro emprego. De forma que eles têm que
dar um jeito antes que seja tarde demais. — Nós também — disse ele. — E
nem temos trezentos dólares. - Não temos um bebê também.
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Não tivemos esse azar. Você disse que era fácil, que só uma em dez mil
morre, que você sabe fazer, que não tem medo. E eles estão dispostos a
se arriscar. — Você quer tanto cem dólares? - Eu? Já lhe falei de
dinheiro a não ser daqueles meus cento e vinte e cinco dólares que você
nem aceitou? Você me conhece. Como eu sei que você não vai querer o
dinheiro deles. - Desculpe. Não quis dizer isso. É porque eu —
porque eles estão num aperto. E se fosse conosco? Sei que vai ter que
abrir mão de alguma coisa. Mas nós abrimos mão de muita coisa por amor e
não estamos arrependidos. - Não — disse ele. — Não estamos e jamais
estaremos. — Isto é por amor também. Talvez não seja o nosso, mas mesmo
assim é amor. — Ela se dirigiu para a prateleira onde guardavam os
objetos de uso pessoal e puxou uma surrada maleta de instrumentos com a
qual ele tinha se equipado antes de deixar Chicago, juntamente com os
dois bilhetes de trem. — Seria bom ele saber disso se pudesse: que a
única vez que você a usou foi para amputar o gerente da mina dele. De
que mais precisa? Buckner se juntou a Wilbourne: — Tudo bem? — disse. —
Eu não tenho medo nem ela. Você é legal. Não é à toa que o observo há um
mês. Talvez se você tivesse concordado logo de cara, naquele primeiro
dia eu tivesse dado pra trás, tivesse medo. Mas agora não. Assumo o
risco e me lembrarei da promessa: você não vai ter complicações. E não
é cem, e sim cento e cinqüenta. Ele tentou dizer Não, tentou realmente.
Sim, pensou calmamente. Abri mão de muita coisa, mas pelo jeito disto
não. Honestidade sobre dinheiro, segurança, diploma e então por um
momento terrível pensou talvez eu tivesse aberto mão do amor em primeiro
lugar, mas se controlou a tempo e disse: - Seu dinheiro não basta,
mesmo que você se chamasse Callaghan. Eu assumo todos os riscos.
159
Três dias depois, eles, que não foram apanhados na chegada, acompanharam
os Buckner cruzando o desfiladeiro até o trem de minério que os
aguardava. Wilbourne recusara continuamente até os cem dólares
aceitando por fim e no lugar de dinheiro um recibo de cem dólares sobre
o pagamento atrasado de Buckner que os dois sabiam nunca seria pago,
para gastar o equivalente em comida no armazém, cuja chave Buckner lhe
entregara: — Pra mim parece besteira — disse Buckner. — O armazém é seu
de qualquer maneira. — Isso vai manter os livros em ordem — disse
Wilbourne. — Seguiram o caminho que não era caminho até o trem, a
máquina sem começo nem fim, os três vagões de minério, o vagonete de
brinquedo. Buckner olhou para a mina, o orifício arreganhado, o monte de
lixo manchando a imaculada neve. O tempo estava claro, o sol baixo e
tênue sobre os denteados picos róseos, num incrível céu azul. — O que
eles vão pensar quando descobrirem que vocês foram embora? — Talvez
achem que fui buscar o dinheiro pessoalmente. Pelo menos é o que desejo
por sua segurança. — Depois disse: — Eles estão melhor aqui. Não se
preocupam com aluguéis, etc.; ficam bêbados depois sóbrios de novo, têm
bastante comida pra todos até a primavera. E têm o que fazer, têm os
dias ocupados e as noites pra ficar na cama contando as horas extras.
Um homem pode ir longe só pensando no que tem pra receber. E ele ainda
pode mandar algum dinheiro. — Você acredita nisso? — Não — disse Buckner
—, e você também não deve acreditar. — Acho que nunca acreditei — disse
Wilbourne. — Nem naquele dia no escritório dele. Talvez até menos então
do que em qualquer outro momento. Os dois estavam parados um pouco
distantes das duas mulheres. — Ouça, quando chegarem e tiverem tempo
faça com que ela veja um médico. Um bom médico e lhe diga a verdade. —
Pra quê? — disse Buckner. — Eu acharia melhor. Me sentiria melhor. — Não
— disse o outro. — Ela está bem. Você foi ótimo. Se eu não pensasse isso
acha que ia deixar você fazer? — Chegou o momento de partir;
160
a locomotiva silvou um agudo apito, os Buckner entraram no vagonete e o
trem começou a andar. Charlotte e Wilbourne o olharam por apenas um
momento, e logo Charlotte se voltou e começou a correr. O poente estava
quase por chegar, os picos inefáveis e suaves, o céu âmbar e azul; por
um momento Wilbourne ouviu vozes vindas da mina, selvagens, distantes e
incompreensíveis. — Céus — disse Charlotte. —- Nem vamos comer hoje.
Depressa. Corra. — Ela correu, parou e se voltou, o rosto largo
grosseiro rosado sob o reflexo róseo, os olhos agora verdes com o
reflexo, acima da disforme gola de carneiro do casaco disforme. — Não —
disse ela —, vá correndo na frente para que eu possa me despir na neve.
Mas corra. — Mas ele não tomou a dianteira, nem sequer correu, andou de
forma que podia vê-la, diminuindo à sua frente pelo caminho que não
era caminho, subindo em seguida pelo outro muro em direção à cabana, ela
que, só porque trajava calças com a mesma inconsciência abrupta com que
usava vestidos, senão nunca deveria usá-las, e ele entrou na cabana e a
encontrou se despindo até das ceroulas de lã. — Depressa — disse ela —,
depressa. Seis semanas. Até já esqueci como é. Não — prosseguiu —; nunca
vou esquecer isto. A gente nunca esquece, graças a Deus. — Em seguida
ela falou, segurando-o com seus fortes braços e coxas: —- Acho que sou
muito fricoteira com. o amor. Nunca consegui mesmo só com uma pessoa na
cama conosco. Não se levantaram para preparar ou comer o jantar. Depois
de certo tempo, dormiram; Wilbourne acordou no meio da noite rígida e
descobriu que o fogareiro tinha apagado e o quarto estava absolutamente
gelado. Pensou no lugar onde Charlotte havia atirado as roupas de baixo,
das quais precisaria e que deveria estar usando. Mas deveriam estar de
um frio férreo e ele pensou, por um momento, em se levantar, trazê-las
para a cama e derretê-las,. esquentando-as sob seu corpo até que ela
pudesse vesti-las e por fim conseguir força de vontade para começar a
se mexer, mas ela logo o agarrou. — Aonde vai? — Ele explicou. Ela o
agarrou com mais força. — Quando eu ficar gelada, você pode me cobrir.
161
Diariamente ele visitava a mina onde prosseguia o frenético e
constante trabalho. Na primeira visita os homens o encararam sem
curiosidade ou surpresa, mas com interrogação, obviamente procurando
por Buckner também. Mas não houve nada e ele percebeu que talvez nem
soubessem que ele era apenas o médico oficial da mina, que apenas o
reconheciam como outro americano (ele quase disse homem branco), outro
representante daquele remoto, dourado, indesafiável Poder no qual eles
depositavam uma fé e confiança cegas. Ele e Charlotte passaram a
discutir o problema de explicar, de tentar falar com os homens. — Só
que, para que ia servir? — disse ele. — Buckner tinha razão. Para onde
iriam e o que fariam se fossem embora? Existe bastante comida aqui para
atravessarem o inverno e eles provavelmente não economizaram nada
(admitindo-se que eles estivessem em dia com o armazém, mesmo quando
lhes pagavam salários suficientes para economizar) e como Buckner disse,
pode-se viver muito feliz por muito tempo na ilusão. Talvez só assim é
que se seja feliz. Quero dizer se você é um polaco que nunca aprendeu
nada a não ser calcular o tempo que leva uma mecha de dinamite para
estourar quinhentos pés abaixo da terra. E outra coisa. Ainda temos três
quartos dos cem dólares de comida e se todos fossem embora daqui, alguém
saberia disso e talvez até mandassem um sujeito para buscar as outras
latas de feijão. — E tem mais também — disse Charlotte. — Agora não
podem sair. Não podem andar com esta neve. Você não percebeu? —
Percebeu o quê? — Aquele vagonete de brinquedo não voltou desde que
levou os Buckner. Isto foi há duas semanas. Ele não havia percebido, não
sabia se o vagonete voltaria, de forma que concordaram que a próxima vez
que este aparecesse eles não esperariam mais e contariam (ou tentariam
contar) tudo aos homens da mina. Então duas semanas depois o trem
voltou. Eles cruzaram o desfiladeiro até o lugar onde selvagens
tagarelas e imundos já começavam a encher os carros.
162
- E agora? - disse Wilbourne. —" Não posso falar com eles. — Pode. De algum modo vai
poder. Eles acham que você é o patrão agora e ninguém até hoje deixou de
entender o sujeito que se acredita seja o patrão. Tente reuni-los no
armazém. Wilbourne andou para a frente, perto da calha de carregamento
na qual o primeiro vagão de minério já chacoalhava e ergueu a mão: -—
Esperem — disse bem alto. Os homens pararam, olhando para ele com os
claros olhos cravados nos rostos macerados, —- Armazém — gritou ele. —
Loja! — balançando o braço em direção à muralha montanhosa em frente;
então se lembrou da palavra que o primeiro homem, aquele que puxara o
casaco de Charlotte naquele primeiro dia, havia empregado; — Corram —
disse ele. — Corram. — Eles o encararam por mais um instante,
silenciosos, os olhos redondos sob os brutais e apavorantes arcos das
sobrancelhas claras, com expressões ansiosas, espantadas e selvagens.
Em seguida se entreolharam, se agruparam, tagarelando naquela áspera
língua incompreensível, e então caminharam em direção a Wilbourne como
uma unidade. — Não, não — disse ele, — Todos — fez um gesto em direção à
mina. — Todos vocês. — Alguém entendeu logo desta vez, quase em seguida
o baixinho que Wilbourne vira atrás do galopante vagão de minério
quando da primeira visita à mina se destacou do grupo e subiu na escarpa
nevada com suas curtas e fortes pernas grossas como um pistom e
desapareceu no buraco e reapareceu seguido pelos demais membros do
infinito plantão, Estes se mesclaram com o primeiro grupo tagarelando e
gesticulando. Por fim todos se calaram e obedientes e submissos olharam
para Wilbourne. — Olhe só pra cara deles — disse ele. — Céus, eu detesto
ter sobrado pra fazer isto, Maldito Buckner. — Ande — disse Charlotte.
— Acabe logo com isso. — Cruzaram o vale seguidos dos mineiros
incrivelmente sujos contra a neve — os rostos, caras pretas mal
pintadas e famintas como as de um bando de saltimbancos — em direção ao
armazém.
163
Wilbourne destrancou a porta e viu então no final do
cortejo um grupo de cinco mulheres. Ele e Charlotte não as tinham visto
antes e pareciam com seus xales terem brotado da própria terra; duas
delas carregavam bebês, um deles não deveria ter mais do que um mês. —
Meu Deus — disse Wilbourne. — Eles nem sabem que sou médico. Não sabem
sequer que deveriam ter um médico e que isso é uma exigência legal. —
Ele e Charlotte entraram. No escuro, depois do fulgor da neve, os
rostos desapareceram e do nada apenas os olhos o observavam submissos,
pacientes, obedientes, confiantes e selvagens. — E agora? — disse ele
outra vez, passando então a olhar para Charlotte e então todos a
observaram, as cinco mulheres inclinadas para a frente para vê-la
também, enquanto ela pregava com quatro tachinhas, tiradas de algum
lugar, uma folha de papel de embrulho a uma ponta da estante, sobre a
qual incidia a luz vinda da única janela, e passou a desenhar
rapidamente com um dos tocos de carvão que trouxera de Chicago — uma
parede com uma janela de grades que era sem dúvida um guichê de
pagamento indubitavelmente fechado, de um lado dele várias pessoas sem
dúvida mineiros (ela até incluíra a mulher com o bebê); do outro lado do
guichê um homem imenso (ela nunca vira Callaghan, ele só o havia
descrito a ela, mas era Callaghan) sentado atrás de uma mesa repleta de
moedas brilhantes que o homem entulhava num saco com uma enorme mão
onde brilhava um diamante do tamanho de uma bola de pingue-pongue. Então
ela deu um passo para o lado. Durante algum tempo não se ouviu sequer
um ruído e então um grito indescritível se elevou, feroz mas não alto,
apenas as vozes estridentes das mulheres um pouco mais fortes que um
sussurro, os frenéticos e selvagens olhos claros encarando Wilbourne ao
mesmo tempo com incrédula ferocidade e profunda reprovação. — Esperem! —
gritou Charlotte. — Esperem! — Eles se detiveram; observaram-na mais
uma vez enquanto o carvão se movia e então, no final da fila que
esperava do lado de fora do guichê fechado, Wilbourne viu seu próprio
rosto emergindo sob o giz que voava; qualquer um o reconheceria: eles o
fizeram imediatamente. O murmúrio cessou, olharam para Wilbourne
164
entreolhando-se em seguida perplexos. Então olharam para Charlotte outra
vez enquanto esta arrancava o papel da parede e prendia outra folha;
desta vez um dos mineiros deu um passo à frente para ajudá-la, enquanto
Wilbourne observava também o carvão voar novamente. Desta vez era ele
mesmo, indubitavelmente ele mesmo e indubitavelmente um médico,
qualquer um saberia logo — os óculos de tartaruga, o jaleco do hospital
que todos os pacientes pobres, todos os polacos eviscerados por um
estilhaço de pedra ou de aço ou por uma dinamite prematura e chegando
aos postos de emergência da companhia já haviam visto, uma garrafa que
indubitavelmente era de remédio, numa mão, uma colherada que ele estava
oferecendo a um homem que era um composto de todos eles, de todos os
homens que jamais trabalharam nas entranhas da terra — mesma aparência
barbuda e selvagem, até a gola de pele de ovelha, e atrás do médico a
mesma mão enorme com o enorme diamante no gesto de retirar do bolso do
médico uma carteira de notas fina como papel. Novamente os olhos se
voltaram para Wilbourne, agora sem reprovação, restando somente a
ferocidade que não lhe era mais dirigida. Ele fez um gesto em direção
às restantes prateleiras cheias. Depois conseguiu alcançar Charlotte em
meio ao pandemônio e pegá-la pelo braço. — Vamos — disse ele. — Vamos
dar o fora daqui. Mais tarde (ele voltou ao trem de minério onde Hogben,
que era toda a tripulação, estava sentado no fogareiro vermelho de calor
do vagonete que não era maior do que um armário de vassouras. — Você
estará de volta em trinta dias então — disse Wilbourne. — Tenho que
fazer esta viagem cada trinta dias para podermos manter a franquia —»
disse Hogben, —• É melhor tirar sua mulher daí agora. — Nós vamos
esperar — disse Wilbourne. — Então voltou para a cabana com Charlotte
e ficaram parados à porta e observaram a multidão saindo do armazém,
carregando o mísero espólio, cruzando depois o desfiladeiro e embarcando
no trem de minério, lotando os três vagões abertos. A temperatura já
não era de quarenta graus abaixo, mas não subira a quatorze. O trem
se moveu;
165
eles podiam ver os rostos minúsculos olhando para a entrada da
mina, o monturo de lixo, com incrível espanto numa tristeza chocada e
descrente; quando o trem andou um clamor de vozes invadiu o
desfiladeiro chegando até eles, tênue por causa da distância, patético,
lamuriento e selvagem) ele disse para Charlotte: — Graças a Deus
separamos nossa comida antes. — Talvez não fosse nossa — disse ela
sobriamente. — De Buckner, então. Também não lhe pagaram. — Mas ele
fugiu. Eles não. Estava-se tão perto da primavera; na época em que o
trem fizesse a próxima ritualística e vazia visita talvez eles vissem o
começo da primavera montanhesa que nenhum deles havia ainda visto e
ignoravam que não apareceria até a época que para eles seria o princípio
do verão. Falavam sobre isso à noite então, com o termômetro novamente,
às vezes, a quarenta e um graus abaixo de zero. Mas pelo menos agora
podiam falar na cama, no escuro onde, sob as cobertas Charlotte, após
uma série de selvagens puxões e contorções (também estes ritualísticos)
emergia das roupas de baixo de lã para dormir nua como costumava. Ela
não as atirava longe, mas as mantinha sob as cobertas, uma massa
acolchoada sob e sobre e em volta das quais eles dormiam, conservando-as
desta forma quentes para de manhã. Uma noite ela disse: — Você ainda
não teve notícias de Buckner. Mas é claro que não. Aliás como seria
possível? — Não — disse ele, de repente sério. — E gostaria de receber.
Eu lhe disse para levá-la a um médico logo que chegassem. Mas ele
provavelmente — ele prometeu me escrever. — Eu queria que você o
fizesse também. — Talvez venha uma carta quando o trem de minério vier
nos buscar. — Se é que vai voltar. Mas ele não desconfiava de coisa
alguma, embora ultimamente lhe parecesse incrível não ter tido notícias,
embora ao mesmo tempo não pudesse dizer por quê. Nem por que razão. A
verdade é que não desconfiava. Então, um dia, cerca de uma semana antes
da data fixada para o trem de minério voltar, bateram à porta e ele
166
abrindo encontrou um homem com rosto de montanhês com um fardo e um par
de botas penduradas ao ombro. — Você é Wilbourne? — disse ele. — Trago
uma carta para você. — Entregou-a — um envelope rabiscado a lápis,
encardido pelo manuseio e pelas três semanas de viagem. — Obrigado —
disse Wilbourne. — Entre e coma. Mas o outro declinou. — Um desses
aeroplanos caiu por aquelas bandas de lá, antes do Natal. Ouviu ou viu
alguma coisa por essa época? — Eu ainda não estava aqui — disse
Wilbourne. — É melhor comer uma coisa antes. — Tem uma recompensa. Acho
melhor ir andando. A carta era de Buckner. Dizia. "Tudo OK. Buck."
Charlotte a pegou e ficou parada examinando-a. — Foi o que você disse.
Disse que era simples, não disse? Agora você se sente melhor. — Sim —-
disse Wilbourne. — Estou aliviado. Charlotte olhou para a carta, as
quatro palavras, contando o O e o K como duas. — Apenas uma em dez mil.
Tudo que se tem que fazer é tomar certo cuidado, não é? Ferver os
instrumentos e etc. e tal. É importante para você a pessoa em quem você
faz? — Tem que estar — Ele se calou. Olhou para ela e pensou
rapidamente. Alguma coisa está para me acontecer. Espere. Espere. — Em
quem eu faço? Ela olhou para a carta. — Foi uma besteira, não foi?
Talvez eu tenha confundido com incesto. — Então aconteceu. Ele começou
a tremer e continuou assim mesmo antes de agarrá-la pelos ombros e
sacudi-la, fazendo com que ela o encarasse. — Em quem eu faço? Ela olhou
para ele, ainda segurando a folha de papel barato com os grossos
rabiscos — o sóbrio e intenso olhar com aquele tom esverdeado que a neve
emprestava aos seus olhos. Falou em frases curtas e brutais como
recitando uma cartilha. — Aquela noite. Aquela primeira noite
sozinhos.
167
Quando não tivemos tempo de cozinhar o jantar. Quando o
fogareiro apagou, a minha sacola com a ducha estava pendurada nele.
Congelou e quando reacendemos o fogo esqueci e ela estourou. — E desde
então todas as vezes você não — — Eu devia ter tido mais cuidado. Sempre
fui muito relapsa. Relapsa demais. Lembro-me de alguém dizer uma vez, eu
era mocinha então, que quando as pessoas se amavam muito, quando
realmente se amavam não tinham filhos pois a seiva se extinguia com o
amor, com a paixão. Talvez eu acreditasse nisso. Quisesse acreditar
nisso porque não tinha mais minha sacola. Ou talvez eu estivesse me
iludindo. De qualquer maneira agora é tarde. — Quando? — disse ele,
sacudindo-a tremendo. — Quanto tempo desde que não vem? Tem certeza? —
Certeza de que não veio? Sim. Dezesseis dias. — Mas não tem certeza —
disse ele rapidamente, sabendo que estava falando apenas consigo mesmo.
— Ainda não se pode ter certeza. Às vezes acontece com qualquer mulher.
Não se pode ter certeza até dois — — Você acredita nisso? disse ela
tranqüilamente. — Isso é quando se deseja um filho. E eu não posso e
você não quer porque não podemos. Eu posso passar fome e você pode
passar fome, mas isto não. E o que temos que fazer, Harry. — Não! —
gritou ele. — Não! — Você disse que era fácil. Nós temos a prova de que
não é nada, que é como cortar uma unha encravada. Sou forte e saudável
como ela. Não acredita? — Ah — gritou ele —, por isso você experimentou
antes com ela. Foi por isso. Você queria ver se ela ia morrer ou não.
Por isso estava tão interessada em me convencer quando eu já havia dito
não — — O fogareiro apagou na noite em que eles embarcaram, Harry. Mas é
claro que eu queria ter notícias dela. Ela teria feito o mesmo se eu
tivesse sido a primeira. Eu ia querer que ela fizesse assim. Ia querer
que ela vivesse quer eu me salvasse ou não, assim como ela ia querer
168
que eu vivesse quer ela se salvasse ou não. Assim como quero viver! —
Sim — disse ele —, eu sei. Não foi isso que eu quis dizer. Mas você —
você — — Então está tudo bem. É simples. Você agora já sabe disso por
experiência própria- — Não! Não! — Está bem! — disse ela tranqüilamente.
— Talvez a gente consiga arranjar um médico para fazer isso quando
formos embora na semana que vem. — Não — gritou ele, berrando,
agarrando-a pelos ombros, sacudindo-a. — Não me ouviu? — Quer dizer que
ninguém o fará e você também não? — Sim! Foi o que eu disse. Foi
exatamente o que eu disse. — Você está com tanto medo assim? — Sim —
disse ele. — Sim. A semana seguinte passou. Ele deu para andar, lutando
e mergulhando nas nevascas até a cintura para não vê-la pois não consigo
respirar lá dentro, ele se dizia; uma vez chegou a ir até a mina, a
escura galeria deserta agora, sem as extravagantes e desnecessárias
lâmpadas, embora ainda lhe parecesse ouvir as vozes, os pássaros cegos,
os ecos daquele frenético, ininteligível vozerio humano que ainda
permanecera, pendurado como morcegos e talvez de cabeça para baixo sobre
os corredores mortos até que sua presença os assustasse, fazendo-os
voar, Mas cedo ou tarde o frio — alguma coisa — o fazia voltar à cabana
e não brigavam simplesmente porque ela se recusava a entrar em qualquer
discussão e ele novamente pensava Ela não é só mais homem e mais
cavalheiro do que eu, ela é melhor em tudo do que eu jamais serei.
Comiam juntos, cumpriam a rotina diária, dormiam juntos para não se
enregelar; uma vez ou outra ele a possuía (e ela o aceitava) numa
espécie de frenética imolação, dizendo, gritando: Pelo menos não tem
mais importância agora; pelo menos você não vai ter que se levantar
neste frio. Em seguida era dia outra vez; ele enchia o tanque quando o
fogareiro apagava, carregava e jogava fora na neve as latas que haviam
aberto durante a última refeição e não havia mais nada para fazer,
169
absolutamente mais nada. Por isso andava (havia um par de sapatos de
neve na cabana, mas ele nunca tentou usá-los) em meio, mas
principalmente dentro das nevascas que ainda não aprendera a detectar
em tempo de evitar, chafurdando e mergulhando, pensando, falando sozinho
em voz alta, considerando mil soluções: Um tipo de pílula, pensava ele,
que era um médico formado, que as putas usam pois precisam trabalhar,
têm que trabalhar, deve existir; não pode ser muito difícil, nem custar
muito caro, sem acreditar, sabendo que nunca seria capaz de acreditar,
pensando e este é o preço dos vinte e seis anos, dos dois mil dólares
que eu estiquei por quatro anos, não fumando, me mantendo virgem até
quase com prejuízo pessoal, o dólar e os dois dólares por semana ou por
mês que minha irmã nem podia enviar: para que eu pudesse me privar para
sempre de toda a esperança da anestesia seja das pílulas ou dos
panfletos. E agora tudo o mais se acabou. — Então existe só uma coisa
—- disse em voz alta com a serenidade que sucede à limpeza deliberada do
estômago provocada pela náusea. — Só uma coisa. Vamos para um lugar
quente, onde a vida não seja muito cara, onde eu possa arranjar
trabalho e a gente possa sustentar um bebê e se não arranjar trabalho,
asilos, orfanatos, degraus. Não, não, nada de orfanatos ou de degraus.
Nós podemos trabalhar, temos que trabalhar. Eu encontrarei alguma coisa,
qualquer coisa. Sim! — pensou, gritou alto na imaculada desolação com
áspera e terrível ironia —, abro um consultório de aborteiro
profissional. — Então voltava à cabana e nem brigavam, simplesmente
porque ela se recusava, não por alguma indulgência real ou fingida e
nem porque ela mesma se tivesse tornado submissa ou amedrontada, mas
simplesmente porque (e ele sabia disso também e se amaldiçoava, na
neve, por causa disso também) ela sabia que um deles tinha que manter a
cabeça fria e de antemão sabia que não seria ele. Então o trem de
minério chegou. Eles empacotara numa caixa as provisões que restavam dos
cem dólares teóricos de Buckner, junto com as duas malas com que saíram
de Nova Orleans quase um ano antes e embarcaram no vagonete de
brinquedo.
170
No cruzamento da linha principal ele vendeu as latas de
feijão e salmão e toucinho, os sacos de açúcar e café e farinha a um
pequeno merceeiro por vinte dólares. Viajaram duas noites e um dia em
vagões simples e deixaram a neve para trás e tomaram ônibus, mais
baratos, a cabeça da mulher inclinada para trás contra os protetores de
encosto de pano, dormindo ou acordando, ele não saberia dizer, o rosto
de perfil contra a fugidia paisagem escura sem neve e as pequenas
cidades perdidas, o gás neon, as lanchonetes com robustas moças do
Oeste vestidas como nas revistas de Hollywood (Hollywood que não é mais
Hollywood, mas sim uma tatuagem de bilhões de metros de ardentes gases
coloridos sobre a face do solo americano) para ficarem parecidas com
Joan Crawford, dormindo ou acordada ele não poderia dizer. Chegaram a
San Antônio, no Texas, com cento e cinqüenta e dois dólares e alguns
centavos. Estava quente, quase como em Nova Orleans, as pimenteiras
tinham estado verdes durante todo o inverno e as espirradeiras e as
acácias e as verbenas já estavam floridas e as giestas explodiam
esfarrapadamente no ar temperado como na Louisiana. Alugaram um só
quarto, com um decrépito bico de gás, cuja entrada dava para um corredor
externo de uma dilapidada casa de madeira. E então eles brigaram. —
Não percebe? — disse ela. — Minhas regras deveriam chegar hoje, amanhã.
Agora é a hora, o momento exato. Como você fez com ela — como é mesmo o
nome da mulher? aquele nome de puta? Bill, isto é, Billie, Você não
devia ter me ensinado tanto. Eu não ia saber a hora de chatear você com
isso. — Pelo jeito você aprendeu bem sem precisar de ajuda minha — disse
ele, tentando se conter, mas amaldiçoando-se: Seu puto, é ela quem está
em apuros, não você. — Eu decidi. Disse que não. Você é que
controlou-se para não falar. — Ouça. Existe uma pílula pôr aí. Você toma
quando as regras estão pra chegar. Vou tentar arranjar umas para você.
— Vai tentar, onde? — Onde podia ser? Quem é que iria precisar disso?
Num bordel. Oh, Deus. Charlotte! Charlotte! — Eu sei — disse ela.
171
Não há nada que possamos fazer. Não somos nós agora. É por isso, você
não percebe? Quero que sejamos só nós dois outra vez, e logo, logo!
Temos tão pouco tempo. Daqui a vinte anos não poderei mais e daqui a
cinqüenta nós dois estaremos mortos. Por isso corra, corra. Ele nunca
estivera num bordel na vida pois nunca sentira tal necessidade. Então
descobriu o mesmo que muitas outras pessoas: como são difíceis de
encontrar; como se mora num dúplex durante dez anos antes de se
descobrir que as moças da porta ao lado que dormem até tarde não são
telefonistas do plantão noturno. Por fim lhe ocorreu o que o maior
caipira do mundo parece herdar com a respiração: perguntou a um chofer
de táxi e logo se viu diante de uma casa bastante parecida com aquela
em que morava e apertou a campainha que não pareceu tocar, embora em
seguida uma cortina da estreita janela, ao lado da porta, se cerrasse um
segundo antes de ele poder jurar que alguém o havia visto. Então a
porta se abriu, uma criada negra o levou por uma entrada escura até uma
sala onde havia uma mesa de jantar descoberta, contendo uma poncheira
imitando cristal e marcada por aros brancos dos fundos dos copos
molhados, uma pianola movida a moedas e doze cadeiras enfileiradas
pelas quatro paredes numa seqüência ordenada como túmulos num cemitério
militar, onde a criada o deixou sentado, encarando duas litografias de
um cachorro são-bernardo salvando uma criança da neve, e outra do
presidente Roosevelt, até que entrou uma mulher de queixo duplo sem
idade definida, acima dos quarenta, cabelos alourados e um vestido de
cetim lilás não muito asseado. — Boa noite — disse ela. — Novo aqui nas
bandas? — Sim — disse ele. — Falei com o chofer de táxi e ele — — Não
peça desculpas — disse ela. — Os choferes são todos meus amigos por
aqui. Ele se lembrou do conselho final do chofer: <— A primeira pessoa
branca que aparecer, ofereça uma cerveja a ela que será atendido.
172
— Aceita uma cerveja? — disse", ele. — É claro que sim — disse a
mulher. — Pode até nos refrescar. — Imediatamente (ela não havia tocado
nenhum sino perceptível a Wilbourne) entrou a criada. — Duas cervejas,
Louisa — disse a mulher. — A criada se retirou. A mulher se sentou
também. — Então não conhecia San Antônio. Bem algumas das melhores
amizades que eu já vi foram feitas numa só noite ou mesmo após um
encontro entre duas pessoas que nunca se tinham visto uma hora antes.
Aqui tenho moças americanas ou espanholas (os de fora gostam das
espanholas, pelo menos para experimentar. Eu digo sempre que deve ser a
influência do cinema) e uma italianinha que mal — A criada entrou com
duas canecas de cerveja que não deviam estar muito longe do lugar onde
ela estava quando a mulher de lilás tocou a campainha invisível para
Wilbourne. A criada saiu. — Não — disse ele. —- Eu não quero — eu vim
aqui — eu — A mulher o observava; tinha começado a erguer a caneca mas
colocou-a de volta sobre a mesa, examinando Harry. — Estou em apuros —
disse ele tranqüilamente. — Espero que possa me ajudar. Então a mulher
até tirou a mão da caneca e ele então viu que seus olhos, embora não
fossem menos embaçados também não eram menos frios do que o enorme
diamante que ela trazia ao peito. — E Q que fez você pensar que eu
podia ou ia ajudar você seja lá qual for o seu problema? O chofer lhe
disse isso também? Como era a cara dele? Você pegou o número da placa?
— Não — disse Wilbourne. — Eu — — Não tem importância agora. Qual é o
seu problema? — Ele contou, simples e tranqüilamente, enquanto ela o
observava. — Hum — disse ela. — E então você, um forasteiro, encontrou
um chofer de táxi que o trouxe diretamente a mim para encontrar um
médico para resolver seu problema. Sei, sei. — Então tocou a campainha,
não violenta mas asperamente. -— Não, não, eu não — Ela até mantêm um
médico de plantão, pensou ele. — Eu não — Sem dúvida — disse a
mulher
173
—, foi tudo um engano. Quando voltar ao hotel ou seja lá onde
estiver vai descobrir que sonhou que sua mulher estava grávida ou até
que tem uma mulher. — Antes fosse — disse Wilbourne —, mas eu — A porta
se abriu e um homem entrou, um sujeito grandalhão, bastante jovem, a
roupa um pouco apertada, que fixou sobre Wilbourne um olhar cálido,
acambarçante e quase amoroso com seus olhos marrons e quentes repousados
num leito de carne debaixo do cabelo liso dividido ao meio
inocentemente como o de um garotinho e assim permaneceu daquele momento
em diante. Tinha a nuca raspada. — Thatim? — disse ele olhando de lado
para a mulher de lilás numa voz rouca pelo prolongado e prematuro hábito
de beber, mas que mesmo assim soava alegre, feliz e até jubilosa. Nem
esperou uma resposta e veio direto até Wilbourne e antes que este
pudesse se mexer, arrancou-o da cadeira com uma mão pesada como um
presunto. — Que que há filho da puta. Vem pra cá uma casa de respeito e
se comporta como um filho da puta? Hein? —- disse ele, encarando
Wilbourne com satisfação. — Fora? — É —- disse a mulher de lilás. —
Depois quero que ache o chofer. — Wilbourne começou a se debater.
Imediatamente o jovem se voltou para ele com uma alegria amorosa,
radiante. —- Não aqui — disse a mulher asperamente. — Lá fora como eu
disse, seu gorila. — Eu vou — disse Wilbourne. — Pode me soltar. — É
claro, filho da puta — disse o jovem. — Alguém ajudou você a entrar não
foi? Eu ajudo a sair. Por aqui. — Estavam novamente na entrada onde
encontraram um moreno, pequeno e magro de cabelos pretos, calças sujas e
uma camisa azul sem gravata: um empregado mexicano qualquer. Foram até
a porta, as costas do paletó de Wilbourne amarfanhadas na enorme mão do
jovem que com a outra mão abriu a porta. O monstro vai ter que me
bater, pensou Wilbourne, senão arrebenta, sufoca. Que seja; que seja! —
174
Talvez você pudesse me dizer — disse ele —, tudo que quero é — Tá
bem, tá bem — disse o jovem. — Talvez tenha que dar um murro nele. Que
acha, Pete? — Vá em frente — disse o mexicano. Ele nem sentiu o punho.
Sentiu o umbral lhe bater nas costas, em seguida a grama já úmida de
orvalho, antes de começar a sentir o rosto novamente. — Talvez você
pudesse me dizer — disse ele. — Tá bem, tá bem — disse o jovem na sua
alegre e rouca voz. — Vai perguntando. — A porta bateu. Após certo tempo
Wilbourne se levantou. Então sentiu o olho, todo o lado do rosto, toda
a cabeça, o lento e doloroso latejar do sangue embora, em seguida, no
espelho da drogaria (ficava na primeira esquina que encontrou e foi
entrando logo; realmente estava aprendendo depressa as coisas que
deveria ter sabido antes de completar dezenove anos), ainda não pudesse
ver a equimose. Mas a marca devia ser aparente, alguma coisa se via
porque o caixeiro perguntou: — O que houve com seu rosto? — Briga —
disse ele. — Eu engravidei minha garota. Quero resolver esse assunto.
Por um momento o caixeiro o encarou duramente. Então disse: — Vai lhe
custar cinco dólares. — Você garante? — Não. — Está bem. Aceito. Era uma
caixinha de latão sem nome. Continha cinco objetos que poderiam ser
grãos de café. — Ele disse que uísque ajudaria e também se movimentar.
Ele disse que era para tomar duas à noite e ir a algum lugar dançar. —
Ela tomou as cinco pílulas, saíram e compraram dois litros de uísque e
encontraram um dancing cheio de luminárias coloridas baratas e
uniformes cáquis e parceiros e dançarinas de aluguel. — Beba um pouco
também — disse ela. — Seu rosto está doendo muito? — Não — disse ele. —
Beba. Beba o mais que puder. — Puxa — disse ela. — Você não sabe dançar,
sabe? — Não — disse ele. — Sim. Sim. Sei dançar. — Eles se moveram pelo
salão,
175
atropelados e sacudidos, atropelando e sacudindo, como
sonâmbulos, às vezes no compasso, durante cada curta fase da música
histérica. Pelas onze horas ela havia bebido quase a metade de uma das
garrafas, mas isso só lhe causou enjôo. Ele aguardou que ela saísse do
banheiro, o rosto macerado, os olhos indômitos e amarelos. — Vomitou as
pílulas também — disse ele. — Só duas. Tive medo de perdê-las de maneira
que usei o lavatório, lavei-as e engoli de novo. Onde está a garrafa?
Tiveram que sair para ela beber e em seguida voltaram. Pela meia-noite
ela havia quase terminado a primeira garrafa e as luzes se apagaram
exceto um refletor que brincava sobre um globo giratório de vidro
colorido, de forma que os dançarinos se moviam com rostos de cadáveres
numa roda de átomos coloridos semelhante a um pesadelo marinho. Havia
um homem com um megafone; era uma maratona de danças e eles nem o
sabiam; a música eclodia e parava; as luzes brilhavam, o ar estava pleno
da berraria do megafone e o casal vitorioso subiu ao palco. — Estou
enjoada de novo — disse ela. — Ele esperou por ela outra vez — o rosto
inchado, os olhos indômitos. — Vomitei-as de novo — disse. — Mas não
agüento mais beber. Vamos. Eles fecham à uma hora. Talvez fossem grãos
de café porque três dias depois nada acontecera e após cinco dias até
ele concordou que tinha passado da época. Então brigaram, ele se
amaldiçoando pelo ocorrido enquanto sentava nos bancos do parque lendo
as colunas de precisa-se de empregados dos jornais imundos retirados das
latas de lixo enquanto aguardava o olho preto, seu arroxeado,
desaparecesse para que pudesse se apresentar decentemente para conseguir
um emprego, maldizendo-se por ela ter agüentado tanto tempo e
continuaria assim se ele não a tivesse exaurido, sabendo que a havia
exaurido por fim, sabendo que tinha feito isso, jurando mudar e não mais
fazê-lo. Mas quando voltava para o quarto (ela agora estava mais magra
e havia algo em seus olhos; tudo o que as pílulas e o uísque tinham
causado fora colocar nos olhos dela algo que antes não existia) era
como se suas promessas nunca tivessem sido feitas, ela agora o
176
amaldiçoando e batendo nele com os punhos duros, em seguida se
controlando, agarrando-se a ele, chorando: — Oh, Deus! Harry faça
parar. Faça com que eu me cale! Me arrebenta a alma! — Depois se
deitavam abraçados, completamente vestidos agora, numa paz momentânea. —
Vai dar tudo certo — disse ele. — Muita gente tem que fazer isso hoje em
dia. As creches de caridade não são más. Depois encontraremos alguém
para tomar conta do menino até que eu possa — . — Não. Não vai dar,
Harry. Não vai dar. —- Sei que a princípio parece horrível. Caridade.
Mas a caridade não é — — Pró inferno com a caridade. Já me importei de
onde vem o dinheiro, onde é como moramos, tivemos que morar? Não é isso,
É que machucam demais. — Sei disso também. Mas as mulheres vêm tendo
filhos. Você mesma já pariu dois — — Pró inferno com a dor também. Eu
agüento, sou dura pra parir, estou acostumada, não me importo. Mas eles
machucam demais, demais da conta. — Então ele compreendeu, soube o que
ela queria dizer; ele pensou calmamente, como havia pensado antes, que
ela já havia, mal o conhecendo, desistido de muito mais do que ele
jamais possuiria para ceder, lembrando das antigas, provadas,
verdadeiras e incontestáveis palavras; Osso do meu osso, sangue e carne
e até memória do meu sangue e carne e memória. Isto ninguém supera.
Isto não se supera com facilidade. Ele ia dizer, "Mas este será nosso"
quando percebeu que este era o problema, exatamente este, Mas não podia
dizer sim, não podia dizer "está bem". Podia dizer isto a si mesmo nos
bancos do parque, estender a mão sem que ela tremesse. Mas não podia
proferir a palavra; ficava deitado ao lado dela, abraçando-a enquanto
ela dormia, vendo desaparecer em si mesmo seu último resquício de
coragem e hombridade. — Isto mesmo — sussurrava para si próprio. —
Protele. Protele. Logo ela estará no quarto mês e então eu posso me
dizer que sei que é tarde demais para arriscar; mesmo ela acreditará
177
nisso então! — Então ela despertava e tudo recomeçava — as argumentações
que não levavam a nada se transformando em brigas e em seguida as
imprecações até que ela se dominasse e apertando-se contra ele, chorasse
num desespero frenético. — Harry! Harry! Que estamos fazendo? Nós, nós,
nós dois! Me faça calar! Me arrebente! Me apague! — (Esta última vez
ele a abraçou até que ela se acalmasse.) — Harry quer fazer um pacto
comigo? — Sim — disse ele cansado. — Qualquer coisa. — Um pacto. E então
até terminar nós nunca mais falaremos em gravidez de novo. — Ela disse a
data do seu próximo período; faltavam treze dias. — é a melhor época e
depois disso vão faltar quatro meses e será tarde demais para
arriscarmos. De forma que de agora até o prazo nós nem vamos falar no
assunto; tentarei tornar as coisas o mais fáceis possível enquanto você
procura um emprego, um bom emprego para sustentar a nós três — — Não —
disse ele. — Não! Não! — Espere, disse ela —, você prometeu. Então se
você não tiver arranjado um emprego até lá, você o fará, você o tirará
de mim. — Não — ele gritou. — Eu não! Nunca! — Mas você prometeu — disse
ela tranqüila, gentil e lentamente como se ele fosse uma criança
aprendendo a falar. — Não vê que não há outra saída? — Eu prometi, sim.
Mas não queria — — Já lhe disse uma vez como acredito que não é o amor
que morre, é o homem e a mulher, algo no homem e na mulher que morre,
que não merecem mais a oportunidade de amar. E olhe para nós agora.
Temos a criança, só que nós dois sabemos que não podemos tê-la, não
temos meios de sustentá-la. E eles machucam demais, Harry. Demais da
conta. Vou lhe cobrar esta promessa, Harry. De maneira que de hoje em
diante até chegar o dia, não vamos sequer tocar no assunto ou pensar
nele. Me beija. — Após um momento ele se inclinou sobre ela. Sem se
tocar de outra forma, se beijaram como o fariam um irmão e uma irmã.
178
Então foi como em Chicago outras vezes, aquelas primeiras semanas
enquanto ele ia de hospital em hospital, as entrevistas que pareciam
morrer, começar a murchar e evanescer tranqüilamente em dado instante
idêntico, ele já prevendo e esperando por isso e recebendo com decência
as exéquias. Mas não agora, não desta vez. Em Chicago ele pensava
imagino que vou fracassar e era o que acontecia; agora ele sabia que ia
fracassar e se recusava a acreditar nisso, recusava-se a aceitar um não
como resposta até ser quase ameaçado de violência física. Não estava só
procurando hospitais e sim qualquer pessoa, qualquer coisa. Dizia
mentiras, qualquer mentira; enfrentava as entrevistas com uma
determinação frenética, fria e maníaca inerente à própria negação;
prometia a qualquer um que podia e faria qualquer coisa; andando por
uma rua, uma tarde, olhou para cima, por acaso, e viu uma placa de
médico e entrou e se ofereceu para executar quaisquer abortos que
houvesse pela metade do preço, declarou sua experiência no assunto e
(percebeu mais tarde quando recobrou parcialmente a lucidez) que só sua
expulsão à força o impediu de mostrar a carta de Buckner como
testemunho da sua habilitação para o cargo. Então um dia voltou para
casa no meio da tarde. Ficou parado do lado de fora da porta um bom
tempo, antes de abri-la, E mesmo então não entrou, mas ficou parado no
umbral, na cabeça um surrado e barato boné branco de bicos com uma faixa
amarela — a solitária insígnia de um zelador de colégio — e com o
coração frio e imóvel com uma dor e um desespero quase sereno disse: —
Recebo dez dólares por semana. — Ah, seu burro! — disse ela e então pela
última vez na vida a viu chorar. — Seu miserável! Seu maldito miserável!
Pra poder estuprar meninas no parque aos sábados à tarde! — Ela
caminhou para ele e arrancou-lhe o boné da cabeça, atirando-o na lareira
(uma grade partida pendurada de um lado e cheia de papel picotado
descolorido que tinha sido um dia vermelho ou roxo) e se agarrou nele,
chorando muito, as lágrimas amargas brotando e escorrendo. — Seu merda,
seu merda de uma figa, seu maldito, maldito, maldito — Ela mesma
179
ferveu a água e apanhou os poucos instrumentos que haviam fornecido a
ele em Chicago e que ele usara só uma vez e se deitou em seguida na cama
e olhou para ele: — Está tudo bem. É fácil. Você sabe disso, já fez
antes. — Sim — disse ele. — É fácil. Basta deixar o ar entrar. Tudo que
se tem a fazer é deixar o ar entrar. — Então ele começou a tremer de
novo. — Charlotte. Charlotte. — É tudo. Um toque. Então o ar entra e
amanhã estará tudo acabado e estarei boa e seremos nós dois outra vez
para todo o sempre. — Sim. Para sempre. Mas terei que esperar um minuto
até que minha mão — Olhe. Não quer parar. Não posso fazê-la parar. —
Está bem. Vamos esperar um pouco. É simples. É engraçado. Quero dizer,
diferente. Já fizemos isto de muitas maneiras, mas não com facas, não
foi? Isto. Agora sua mão está firme. — Charlotte — disse ele. —
Charlotte. — Está tudo bem. Nós sabemos como fazer. O que foi que você
me falou que as negras dizem? Me libera, Harry. E agora, sentado no seu
banco no luxuriante verde do Parque Aubon, claro com o verão da
Louisiana já totalmente na plenitude embora não fosse ainda junho e
repleto dos gritos das crianças e do som das rodas dos carros de bebês
como acontecia no apartamento em Chicago, ele via entre as pálpebras o
táxi (que dissera para esperar) parando diante da porta correta e
comum, embora absolutamente inexpugnável, e ela saltando do carro no
vestido escuro com mais de um ano de uso que havia percorrido mais de
três mil milhas, com a maleta da última primavera e subindo os degraus.
Tocou a campainha e talvez a mesma criada negra: — Ora, senhorita! — e
em seguida nada, lembrando-se de quem lhe pagava o salário, embora
provavelmente não, uma vez que os negros deixam um emprego após uma
morte ou um divórcio. Em seguida a sala como ele vira na primeira vez,
a sala na qual ela dissera: Harry — chamam você de Harry? — que vamos
fazer?— (Bem, eu fiz, pensou ele, ela vai ter que
reconhecer isso.)
180
Ele podia vê-los, aos dois, Rittenmeyer no terno jaquetão
(poderia ser de flanela agora, mas certamente de uma flanela escura,
impondo suavemente seu discreto corte e valor); os quatro, Charlotte
aqui e os outros três mais distantes, as duas crianças que eram comuns,
as filhas, uma com os cabelos da mãe e nada mais e a outra, a caçula,
com nada mais, sentada talvez no joelho do pai, a mais velha debruçada
sobre ele; os três rostos, um impecável, os outros dois invencíveis e
irrevogáveis, o segundo frio e fixo, o terceiro apenas fixo; ele os
podia ver, podia ouvir! — Vá falar com sua mãe, Charlotte. Leve Ann com
você. — Não quero. —• Vá. Pegue na mão de Ann. — Ele os podia ver e
ouvir: Rittenmeyer colocando a menor no chão, a maior pegando na mão da
irmã e se aproximando. E agora ela colocará a caçula no colo que vai
olhá-la ainda com aquele desligamento intenso e absolutamente opaco das
crianças, a mais velha se inclinará para ela, obediente, fria,
suportando os carinhos, já recuando antes de o beijo ser completado e
voltando para o pai; um minuto depois Charlotte a surpreende chamando,
gesticulando numa violenta pantomima sub-reptícia para a caçula. Então
Charlotte coloca a menina no chão outra vez e ela volta para o pai,
voltando-se contra o joelho do pai, já erguendo a nádega em direção ao
colo paterno como costumam fazer as crianças, ainda olhando fixamente
para Charlotte com aquele desligamento vazio até de curiosidade. —
Solte-as — diz Charlotte. — Quer que elas saiam? — Sim. É o que elas
querem. As crianças saem, E então ele a escuta; não é Charlotte; ele
sabe disso embora Rittenmeyer nunca o saiba: — Então foi isso que você
lhes ensinou? — Eu? Ensinei a elas? Eu não ensinei nada a elas! — grita
ele. —. Nada! Não fui eu quem — Eu sei. Sinto muito. Não quis dizer
isso. Eu não tenho — elas têm passado bem? — Sim. Como lhe escrevi. Se
você se lembra, durante meses fiquei sem seu endereço. As cartas
voltaram.
181
Você poderá tê-las quando e se quiser. Você não está
com bom aspecto. Por isso voltou para casa? Ou será que voltou mesmo? —
Para ver as crianças. E dar isto a você. — Ela retira o cheque endossado
e perfurado para evitar falsificações, a tira de papel de mais de um
ano, amassada e intacta e apenas um pouco gasta. — Você voltou com o
dinheiro dele então. Isto quer dizer que o cheque é dele. — Não. É seu.
— Recuso-me a aceitar. — Ele também. — Então queime-o. Destrua-o. — Por
quê? Por que quer se magoar? Por que gosta de sofrer quando se tem tanto
para fazer, tanto? Dê às crianças. Uma herança. Se não for da minha
parte, de Ralph então. Ele ainda é tio delas. Ele não o magoou. — Uma
herança? — diz ele. Então ela explica. Oh, sim, diz Wilbourne consigo,
ela vai lhe explicar; ele podia ver, ouvir — as duas pessoas entre as
quais deveria ter existido algo como o amor — um dia, ou que pelo menos
conheceram juntos o esforço físico com que a carne pode tentar capturar
o pouco que ela jamais saberá do amor. Ah, ela lhe explicará; ele podia
vê-la e ouvi-la, enquanto coloca o cheque sobre a mesa ao lado da mão e
diz: — Faz um mês. Foi tudo bem só que eu "continuava a perder sangue e
parecia grave. Então de repente dois dias atrás o sangue parou, de forma
que há algo de errado que talvez seja ainda mais grave —- como é o
nome? toxemia, septicemia? — não importa — que estamos observando.
Aguardando. Os homens que passavam pelo banco onde ele estava sentado
usavam ternos de linho e então ele começou a reparar num êxodo geral no
parque — as babás negras que conseguiam emprestar uma qualidade bizarra
e brilhante mesmo aos seus engomados uniformes azuis com cruzes brancas,
as crianças se movendo em agudos gritos numa vivacidade brilhante como
pétalas sopradas sobre o verde. Era perto do meio-dia; Charlotte devia
estar na casa há mais de meia hora.
182
Porque vai levar muito tempo, ele os viu e ouviu em pensamento.
Ele está tentando convencê-la a ir para um hospital imediatamente, ao
melhor, aos melhores médicos; ele vai assumir toda a culpa, dizer todas
as mentiras; ele insiste, calmo, nada importuno e não aceitando recusa.
— Não. H... conhece um lugar. Na costa do Mississípi. Nós vamos para lá.
Arranjaremos um médico se for preciso. — A costa do Mississípi? Por que
diabos a costa do Mississípi? Um médico do interior numa aldeiazinha
perdida no Mississípi, quando em Nova Orleans estão os melhores — —
Talvez não vá ser preciso um médico afinal. E podemos viver mais em
conta lá, até termos certeza. — Vocês tem dinheiro para veranear na
costa então. — Nós temos dinheiro. Era pleno meio-dia então; o ar caía
morto, as sombras pontilhadas imóveis sobre seu colo, sobre as seis
notas em sua mão, as duas de vinte, as de cinco, as três de um,
ouvindo-os, vendo-os: — Pegue o cheque de volta. Não é meu. — Nem meu.
Deixe-me seguir meu caminho, Francis. Há um ano você me deixou escolher
e eu escolhi. Mantenho minha parte Não quero que você se retrate,
quebre a promessa que fez a si mesmo. Mas quero lhe pedir uma coisa. —
A mim? Um favor? — Se quiser. Não espero uma promessa. Talvez o que eu
esteja tentando expressar seja apenas um desejo. Não uma esperança, um
desejo. Se alguma coisa acontecer comigo. — Se alguma coisa acontecer
com você. O que devo fazer? — Nada. — Nada» — Sim, Contra ele. Não peço
isto por mim, nem por ele. Peço por, por — nem sei o que estou tentando
dizer. Por todos os homens e mulheres que já viveram e erraram, mas com
a melhor das intenções e por todos que viverão e errarão mas com a
melhor das intenções. Por você talvez, já que está sofrendo também — se
é que existe realmente sofrimento, se é que um de nós sofreu, se é que
algum de nós nasceu forte e bom o suficiente para ser digno de amar ou
de sofrer. Talvez o que eu esteja querendo dizer é justiça.
183
Justiça? E então pôde ouvir Rittenmeyer rindo, um homem que não ria já
que o riso é um desconforto supérfluo, uma negligência das emoções. —
Justiça? Pedir isto a mim? Justiça. Agora ela se levanta; ele também:
os dois se encaram. — Não pedi uma promessa — diz ela. — Seria pedir
demais. — De mim. — De qualquer pessoa. Qualquer homem ou mulher. Não só
de você. — Mas sou eu que não lhe prometo nada. Lembre-se. Lembre-se.
Eu disse que você podia voltar para casa quando quisesse e que pelo
menos eu a receberia na minha casa. Mas você pode esperar isso outra
vez? de qualquer homem? Diga-me; você falou uma vez em justiça; responda
isso. — Eu não espero nada. Eu lhe disse antes que talvez o que eu
estava tentando dizer fosse esperança. — Ela agora se voltara,
aproximando-se, disse ele para si mesmo, da porta e eles ficarão
parados se entreolhando e talvez seja como foi entre mim e McCord na
estação em Chicago naquela noite no — Ele parou. Ia dizer "ano passado"
e parou e ficou sentado absolutamente quieto e disse alto num tranqüilo
espanto: — Aquela noite foi há menos de cinco meses. — E os dois saberão
que nunca mais se encontrarão e nenhum deles vai falar nisso. — Até
logo, Rato — diz ela. E ele não responderá, pensou ele. Não, ele não
responderá pois é um homem de ultimatos sobre quem o resto da vida
recairá a necessidade de decretos que ele sabe de antemão não poderá
tolerar, que negaria a promessa não pedida por ela embora executasse o
ato e ela sabe disso, bem, bem demais — esse rosto impecável e
invencível sobre o qual toda a luz existente na sala parecia se reunir
como numa bênção, em uma afirmação não de honestidade mas de retidão,
tendo sido coerente e incontroversamente correto; e além disso trágico
também, uma vez que em estar correto não pode haver consolo ou paz.
Agora devia estar na hora. Ele se levantou do banco e seguiu a curva
descolorida das conchas de ostras entre o compacto florir das
184
espirradeiras e jasmins e laranjas em direção à saída e a rua, sob o
meio-dia. O táxi se aproximou, diminuindo a marcha no meio-fio; o chofer
abriu a porta. — Para a estação — disse Wilbourne. — A Union? — Não, a
de Mobile. Para a costa. — Ele entrou. A porta se fechou, o táxi seguiu;
os troncos ascendentes das palmeiras começaram a passar voando. — Elas
estavam bem? — disse ele, — Ouça — disse ela —, se vamos apanhá-lo.
— Apanhá-lo? — Você saberá na hora, não é? — Não vamos apanhar nada.
Eu vou te abraçar. Não te abracei até agora? — Não seja idiota, agora.
Não há mais tempo. Você saberá a hora, E fuja, ouviu? — Fugir? — Me
prometa, Você não sabe o que eles farão com você? Você não sabe mentir,
nem que queira. E você não poderia me ajudar, Mas você saberá a hora.
Telefone para uma ambulância ou para a polícia ou coisa parecida e
telegrafe para o Rato e fuja logo, Me prometa. — Vou abraçá-la -— disse
ele. — É isso que vou prometer. Elas estavam bem? — Sim — disse ela. Os
troncos ascendentes das palmeiras passavam voando continuamente. — Elas
estavam bem.
185
PALMEIRAS SELVAGENS
Desta vez o médico e o homem chamado Harry saíram juntos pela porta, até
o escuro pórtico, para o vento escuro ainda cheio do eclodir das
palmeiras invisíveis. O médico carregava o uísque — a meia garrafa
cheia; talvez nem soubesse que a tinha na mão, talvez fosse só a mão e
não a garrafa que ele brandia no rosto invisível do homem parado acima
dele, A voz era fria, precisa e convincente — o puritano de quem se
dizia estar prestes a fazer o que devia fazer porque era um puritano e
que talvez até acreditasse que deveria fazê-lo para proteger a ética e a
santidade da profissão escolhida, mas que na verdade o faria porque,
embora ainda não fosse velho, acreditava ser velho demais para essas
coisas, velho demais para ser acordado à meia-noite e arrastado, içado,
desprevenido e ainda embotado de sono, nesta coisa, nesta brilhante e
selvagem paixão que não o havia atingido quando ainda era jovem, ainda
merecedor e com cuja perda ele acreditava não só estar conformado, como
ter tido sorte e razão de ter sido eleito para perdê-la. — Você a
assassinou — disse ele, — Sim — disso o outro, quase impaciente; nisto o
médico reparou então e só nisto, — O hospital. O senhor telefona ou —
Sim, você assassinou! Quem fez isso? — Eu. Não fique aí parado
falando, O senhor vai telef — Quem fez isso, eu perguntei? Quem
operou?
227
Exijo saber. — Fui eu, já disse. Eu. próprio. Em nome de
Deus, homem! — Agarrou o braço do médico, apertou-o, o médico o sentiu,
sentia a mão, ele (o médico) ouviu a própria voz, também: — O quê? —
disse. — Você? Você fez isso? Você mesmo? Mas eu pensei que você fosse o
— Eu pensei que você fosse o amante, era o que queria dizer. Eu pensei
que fosse você quem — porque o que ele estava pensando era Isto é
demais. Existem regras! Limites! Para fornicação, adultério, aborto,
crime e o que ele queria dizer era para a parte de amor e de paixão e
de tragédia a que estão reduzidos todos os homens para que não sejam
como Deus que sofreu desta forma tudo que Satanás poderia saber! Ele
até disse alguma coisa nesse sentido, por fim, empurrando com violência
a mão do outro, não exatamente como se fosse uma aranha ou um réptil ou
uma mancha de sujeira, mas sim como se tivesse encontrado pendurado na
manga um artigo ateu ou uma propaganda comunista — algo que não violasse
tanto quanto afrontasse aquele espírito dessecado, profundo e agora
imortal que havia conseguido se aposentar na pura moralidade. — Isto é
demais — gritou ele. — Fique aqui! Não tente fugir! Não há lugar pra se
esconder onde a gente não possa achá-lo. — Fugir? — disse o outro. —
Fugir? Quer telefonar para uma ambulância pelo amor de Deus? — Eu vou
telefonar, não se preocupe! — gritou o médico. Estava no piso sob o
alpendre então, no frio vento negro já se afastando, começando a correr
de repente, pesadamente sobre as grossas pernas sedentárias. — Não se
atreva a tentar — gritou voltando-se. — Não se atreva! -— Ele ainda
tinha a lanterna; Wilbourne observou o facho tropeçando em direção à
sede da espirradeira como se o pequeno facho fútil de vaga-lume
estivesse lutando também contra o peso constante do impiedoso vento
negro. Ele não se esqueceu disso, pensou Wilbourne, observando a luz.
Mas provavelmente ele nunca se esqueceu de coisa alguma na vida exceto
que já esteve, vivo uma vez, que deve ter nascido vivo, pelo menos.
228
Então, com esta palavra, tomou conhecimento do seu coração como se
todo o terror profundo estivesse apenas aguardando até que ele desse um
sinal. Podia sentir também o duro vento negro enquanto piscava,
procurando a luz estrebuchante até que esta atravessasse a sebe e
desaparecesse; ele piscou continuamente contra o vento negro, sem poder
parar. Meus canais lacrimais estão funcionando, pensou, ouvindo o rugir
do coração descompassado. Como se eu estivesse bombeando areia e não
sangue, algo não líquido, pensou. Tentando bombear. Deve ser este vento
que acho que não posso respirar, não propriamente como se não pudesse
respirar, mas encontrar algo em alguma parte para respirar porque
aparentemente o coração pode suportar qualquer coisa, qualquer coisa,
qualquer coisa. Ele se voltou e atravessou o alpendre. Desta vez, como
antes, ele e o constante vento negro eram como duas criaturas tentando
passar por uma única entrada. Só que ele não quer realmente entrar,
pensou, Não precisa. Não tem necessidade. Só está me atrapalhando para
se divertir, ocupar. Podia senti-lo na porta ao tocar a maçaneta,
depois podia ouvi-lo também, sibilando, murmurando. Ele ria, quase à
socapa, apoiando seu peso à porta junto com o peso do homem, facilitando
a entrada, facilitando demais, sub-reptício, fazendo sentir seu peso
somente quando o homem chegou a fechar a porta e desta vez com muita
facilidade por ser tão firme, apenas brincalhão e sorridente e porque
não queria realmente entrar. Ela fechou a porta e observou a tênue luz
que descia sobre a entrada, vinda do quarto, diminuir, tremelicar e se
recuperar como se o pouco vento que tivesse podido permanecer na casa,
caso o quisesse, tivesse sido preso ao se fechar a porta, rechaçado
tranqüilamente para fora com o último estalido de fechamento, risonho
e constante, não indo embora de todo e se voltando para escutar e
Wilbourne inclinou um pouco a cabeça em direção ao dormitório para
ouvir melhor. Mas nenhum ruído veio de lá, nenhum ruído na entrada a não
ser o vento murmurando contra a porta da estéril entrada alugada onde
ficou parado, imóvel para escutar, pensando tranqüilamente: Adivinhei
errado. É incrível não que eu tenha tido que adivinhar mas que tivesse
229
adivinhado tão mal não se referindo ao doutor, não pensando no
doutor então (com uma parte do pensamento que não estava usando agora
ele podia ver: a outra entrada limpa, arrumada, manchada de marrom, à
prova de vento, de madeira macho e fêmea, a lanterna ainda brilhando
sobre a mesa, ao lado da apressada maleta, as grossas canelas
intumescidas de varizes plantadas, como ele as havia visto sob o
camisolão, de uma. forma ultrajada e convencida e implacável por
qualquer outra coisa que não era isto; ele até podia ouvir a voz não se
elevando, mas já elevada, um tanto estridente, irreconciliável também,
ao telefone: — E um policial. Um policial. Dois se necessário. Ouviu
bem? — Ele irá acordá-la também, pensou ele, vendo isto também: o quarto
de cima, a mulher gorgônea na camisola cinza de colo alto erguida sobre
o cotovelo na insossa cama cinza, a cabeça de lado para ouvir e sem se
surpreender pois só ouviria o que há quatro dias vinha esperando ouvir.
Ela voltará com ele — se é que ele vai voltar, pensou. Se ele não
ficar sentado do lado de fora com um revólver para guardar as saídas.
E talvez ela esteja com ele também). Porque isto não tinha importância,
era como colocar uma carta no correio; não importava qual caixa, só que
ele tivesse esperado até tão tarde para despachar a carta, ele, após
quatro anos e em seguida, os vinte meses, os quase dois anos mais e
então estaria formado, livre. Estraguei até essa parte da minha vida que
joguei fora, pensou ele, imóvel sob o murmúrio risonho do vento que
aguardava sem pressa, a cabeça ligeiramente voltada para a porta do
dormitório, ouvindo, pensando com aquela camada trivial da sua mente
que não precisava usar. Portanto não é só o vento que eu não posso
respirar, portanto talvez para sempre eu tenha adquirido, ganhando um
pouco de asfixia, começando a respirar não mais depressa, porém mais
profundamente, sem poder parar, cada aspirada mais e mais superficial e
mais e mais dificultosa e mais próxima do vértice dos pulmões até que
logo escaparia deles inteiramente e então não haveria jamais qualquer
alento para eles, piscando contínua e dolorosamente sob a repentina
granulação das pálpebras como se a areia preta obstruída para sempre
230
de toda a umidade que o forte coração escavava e extraía estivesse a
ponto de estourar para fora através de todos os dutos e poros como dizem
que acontece com o suor da agonia, pensando: Calma, agora. Cuidado.
Quando ela voltar desta vez ela terá que começar a se agüentar. Cruzou o
vestíbulo em direção à porta do quarto, Ainda não havia outro ruído
senão o do vento (havia uma janela cujo caixilho estava solto; o vento
negro sussurrava e murmurava contra ela, mas sem entrar por não querer,
por não precisar). Ela estava deitada de braços, os olhos fechados, a
camisola (a vestimenta que nunca possuíra, nunca usara) torcida à sua
volta bem sob os braços, o corpo não espalhado, não largado, mas ao
contrário até um pouco tenso. O sussurro do vento negro encheu o quarto
mas vindo do nada, de forma que logo pareceu a ele que o ruído fosse
então o murmúrio da própria lamparina colocada sobre uma mala, em pé, ao
lado da cama, o roçar e murmurar da fraca luz sobre a carne da mulher
— a cintura ainda mais fina do que ele imaginava, antecipara, as coxas
apenas largas uma vez que eram achatadas também, o elegante e nítido
corte do ventre entre a dobra achatada do umbigo e o rente cálice de
pelos púbicos e nada mais, nenhuma sombra solapada de inextirpável
negrume, nenhuma forma de morte corneando-o; nada para ver, e mesmo
assim ali estava, não podendo observar a própria corneação mas apenas
olhar para baixo para a invisível gravidez da própria corneação. E
então ele não conseguiu mais respirar e começou a se afastar da porta,
mas era tarde demais pois ela estava deitada na cama olhando para elie.
Ele não se mexeu. Não podia ajudar a própria respiração, mas não se
moveu, uma mão na soleira da porta, o pé já erguido para o primeiro
passo para trás, os olhos totalmente abertos voltados para ele, embora
ainda profundamente vazios de sensibilidade. Então ele viu começar: o
Eu. Era como observar um peixe se elevando da água — um ponto, uma
sardinha e ainda se elevando; em um segundo não haveria mais água mas só
sensibilidade. Cruzou até a cama em três passadas, rápido porém
silencioso;
231
pôs a mão espalmada sobre o peito da mulher, a voz
tranqüila, segura, insistente: — Não, Charlotte. Ainda não. Você pode me
ouvir. Volte. Volte, agora. Está tudo bem, agora — num tom tranqüilo e
urgente e contido por sua necessidade como se a partida só seguisse o
adeus, e até logo não fosse algo que precedesse a despedida — uma vez
que houvesse tempo para isto. — Isto mesmo — disse ele. — Volte. Ainda
não está na hora. Eu aviso quando chegar a hora. — E ela o ouviu de
alguma parte porque imediatamente o peixe se transformou numa sardinha
outra vez e em seguida num ponto; um segundo depois os olhos se
tornariam vazios e opacos outra vez. Só que a perdeu. Ele observou: o
ponto crescendo depressa demais desta vez, não mais uma plácida
sardinha mas um vórtice da pupila consciente no olhar amarelo rodeando o
negrume enquanto ele observava, a sombra escura, não na barriga, mas
nos olhos. Os dentes de Charlotte prenderam o lábio inferior, ela rodou
a cabeça e tentou se erguer, lutando contra a mão espalmada de Harry
sobre seu peito. — Está doendo. Meu Deus, onde está ele? Aonde foi? Diga
pra me dar uma coisa. Depressa. — Não — disse ele. —- Ele não pode. Tem
que doer. Por isto tem que agüentar. — Agora devia estar rindo; não
podia ser outra coisa. Ela se deitou e começou a se sacudir de um lado
para outro e ainda se sacudia enquanto ele endireitava a camisola e a
cobria. — Eu pensei que você tivesse dito que você é que ia ter que
agüentar. — E estou agüentando. Mas você precisa agüentar também. Você
tem que fazer o maior esforço durante certo tempo. Só por um tempo. A
ambulância logo estará aqui, mas você tem que agüentar e sofrer um
pouco. Ouviu? Não dá para voltar agora. — Então pegue a faca e corte-a
fora. Tudo. Lá no fundo. De forma que não fique coisa alguma a não ser
uma concha para prender o ar frio, frio — os dentes de Charlotte
brilhando à luz da lamparina prenderam novamente o lábio inferior; um
fio de sangue surgiu num canto da boca. Ele tirou um lenço sujo do bolso
traseiro das calças e se inclinou sobre ela, que virou o rosto, —
232
Muito bem — disse ela —, estou me agüentando, Você disse que a
ambulância estava vindo? — Sim, Daqui a um minuto vamos escutá-la.
Deixe — Ela novamente voltou o rosto ante o contacto com o lenço. —
Muito bem, Agora dê o fora daqui. Você prometeu. — Não, Se eu for embora
você não agüentará. E você tem que agüentar, — Eu estou agüentando.
Estou agüentando para que você possa ir embora, sair antes que eles
cheguem. Você me prometeu isto. Quero ver você ir embora. Quero ver. —
Está bem, Mas não quer me dizer adeus antes? — Está bom, Mas por Deus
não me toque. É como fogo, Harry. Não dói, É como fogo. Só não pode me
tocar. — Então ele se ajoelhou à beira da cama; ela parou de sacudir a
cabeça; os lábios um instante parados sob os dele, sentindo-os quentes e
secos, com um leve gosto adocicado de sangue, Em seguida ela empurrou o
rosto dele com a mão, também quente e seca, ele ouvindo o coração da
mulher ainda, mesmo agora, um pouco rápido demais, um pouco forte
demais, — Meu Deus, nos divertimos muito, não foi? Com as putarias,
fazendo coisas? No frio, na neve. É nisso que estou pensando, É o que me
faz agüentar agora; a neve, o frio, o frio. Mas não dói, é só como
fogo; é só — agora vá. Suma daqui. Rápido. — Ela recomeçou a sacudir a
cabeça. Ele se ergueu do chão, — Está bom, Eu vou, Mas você precisa
agüentar. Vai ter que agüentar por muito tempo, Acha que pode? — Sim,
Mas vá. Vá depressa, Temos dinheiro bastante para você chegar até
Mobile, Lá você pode sumir com facilidade; lá eles não vão poder te
achar. Mas vá. Saia daqui depressa pelo amor de Deus, — Desta vez
quando os dentes morderam o lábio o fino sangue brilhante correu até o
queixo, Ele não se mexeu imediatamente. Estava tentando se lembrar de
algo que lera num livro de Owen Wister, anos atrás, sobre uma puta num
vestido de baile rosa que bebera láudano e dos vaqueiros que se
revezavam andando com ela de um lado para outro, mantendo-a de pé,
conservando-a viva, lembrando-se e se esquecendo disso no mesmo
momento,
233
uma vez que isso de nada lhe servia. Começou a andar em direção
à porta. — Muito bem — disse. — Estou indo agora. Mas lembre-se, vai ter
que agüentar sozinha. Ouviu? Charlotte? — Os olhos amarelos estavam
cravados nele, ela soltou o lábio mordido enquanto ele deu um pulo em
direção à cama, ouvindo por cima do murmúrio risonho do vento as duas
vozes na porta da frente, no alpendre — a alta, quase estridente voz do
doutor de canelas grossas e a da mulher gorgônea cinzenta, fria e
modulada, num registro de barítono, muito mais masculina que a voz de
um homem, as duas vozes desorientadas por causa do vento como as vozes
de dois fantasmas brigando sem razão, ele (Wilbourne) as ouvindo e as
perdendo também no mesmo momento enquanto se debruçava sobre o enorme
olhar amarelo na cabeça que cessara de se mover, sobre o relaxado lábio
sangrento. — Charlotte! — disse ele. — Você não pode ir embora agora.
Está doendo. Está doendo. Isto te impede de ir embora. Você pode me
ouvir. — Esbofeteou-a rápido, com dois movimentos com a mesma mão. —
Está doendo, Charlotte. — Sim — disse ela. — Você e os seus melhores
médicos de Nova Orleans. Quando qualquer um com um estetoscópio enviado
pelo correio podia ter me dado um remédio. Anda, Rato. Onde estão eles?
— Estão vindo, mas você precisa sentir dor. Está doendo agora. — Está
bem. Estou agüentando. Mas vocês não devem prendê-lo. Foi tudo eu que
pedi. Não foi ele. Ouça, Francis — está vendo eu te chamei de Francis.
Se eu estivesse mentindo pra você acha que te chamaria de Francis em vez
de Rato? Ouça, Francis. Foi o outro. Não o puto do Wilbourne. Acha que
eu deixaria aquele maldito puto desajeitado que nem terminou o curso me
cutucar com uma faca — A voz se calou; não havia nada em seus olhos
então, embora ainda estivessem abertos — não uma sardinha, nem sequer
um ponto — nada. Mas o coração, ele pensou. O coração.
234
E encostou o ouvido contra o peito dela, caçando a pulsação com uma mão; podia
ouvi-lo antes de o ouvido tocá-la, lento ainda, forte o bastante mas
onde cada batida fazia uma curiosa reverberação oca como se o próprio
coração se tivesse retraído, vendo no mesmo instante (o rosto dele
estava voltado para a porta) o médico entrar, ainda carregando a
arranhada maleta numa mão, tendo na outra um vagabundo revólver
niquelado, destes que se encontra em qualquer loja de penhores e que, no
que se refere à serventia, ainda lá deveria estar, seguido da mulher
Medusa de rosto cinza, envolta num xale. Wilbourne se levantou, já
caminhando em direção ao médico, a mão estendida para apanhar a maleta.
— Desta vez vai demorar — disse ele —, mas o coração. Aqui, Me dê a
maleta, O que traz nela? Estricnina? — Ele observou a maleta voar,
arrancada para trás das pernas grossas, a outra mão que ele nem olhou
enquanto se erguia, mas só no Instante seguinte viu a pistola ordinária
apontada para o nada e sendo sacudida em seu rosto como já o fora a
garrafa de uísque, — Não se mexa! — gritou o médico. — Abaixe isso! —
gritou a mulher naquele mesmo tom de barítono, — Eu disse pra não trazer
essa porcaria. Dê a maleta pra ele já que ele quer e sabe o que fazer
com ela. — Não — gritou o médico — Eu sou o médico, Ele não. Ele não é
nem um assassino bem-sucedido, — Então a esposa cinzenta falou com
Wilbourne tão abruptamente que por um momento ele nem percebeu que lhe
dirigiam a palavra. — Há alguma coisa nesta maleta que poderia curá-la?
— Curá-la? — Sim. Colocar ela de pé e fazer vocês dois saírem desta
casa. — O médico se virou para a esposa então, inflando aquela voz
estridente quase a ponto de estourar! — Não entende que essa mulher
está morrendo? — Que morra. Que morram os dois. Mas não nesta casa.
Não" nesta cidade. Faça com que eles saiam daqui e deixe que se cortem
e morram como quiserem.
235
— Então Wilbourne viu o médico brandindo o
revólver no rosto da esposa como fizera com ele. — Eu não vou admitir
interferência! — gritou o médico. —- Essa mulher está morrendo e este
homem deverá pagar por isso. — Pagar uma ova! — disse a esposa. — Você
está furioso porque ele usou o bisturi sem ter um diploma. Ou fez
qualquer coisa que a Associação de Medicina acha que ele não deveria
ter feito, Abaixe esse troço e dê qualquer coisa para ela poder sair
dessa cama. Depois lhes dê dinheiro e chame um táxi, não uma
ambulância. Dê do meu dinheiro se você não quiser gastar o seu. — Está
louca? — gritou o médico. — Está louca? — A esposa o encarou friamente
com seu rosto cinzento sob as rosquinhas de cabelo cinza. — Então você o
apoiará e auxiliará até o fim? Não me surpreende. Ainda estou pra ver um
homem deixar de ajudar outro contanto que queira fazer alguma bobagem.
— Novamente ela se voltou não para, mas sobre Wilbourne com aquela fria
brutalidade que por um momento nem o deixou perceber que se dirigia a
ele: — Imagino que não tenha comido nada. Vou esquentar um café. Vai
precisar até que ele e os outros terminem com você. — Obrigado — disse
Wilbourne. — Não posso... — Mas ela já havia saído. Ele se surpreendeu
prestes a dizer: Espere, vou lhe mostrar — e esqueceu disso em seguida
sem mesmo pensar que ela deveria conhecer a cozinha melhor do que ele,
uma vez que era a proprietária, dando passagem enquanto o médico se
dirigia à cama, ele o seguindo, observando-o colocar a maleta no chão e
parecendo então perceber o revólver na mão e olhar em volta procurando
um lugar para colocá-lo antes de se lembrar, em seguida se lembrando e
voltando sobre o ombro o rosto descomposto. — Não se mexa! — gritou ele.
— Não se atreva a mexer-se! — Pegue o estetoscópio — disse Wilbourne. —
Pensei numa coisa agora, mas talvez fosse melhor esperar.
236
Porque ela
vai sair disso outra vez, não é? Vai-se reanimar outra vez, É claro que
sim. Vamos. Tire-o. — Você devia ter pensado nisso antes! — O médico
ainda encarava Wilbourne com raiva, ainda segurando o revólver enquanto
mexia na maleta aberta e extraía o estetoscópio; então ainda empunhando
o revólver agachou-se nos tubos garfados e se debruçou sobre a cama, a
mão ainda a retendo mas sem tomar conhecimento da arma, apenas apoiando
o peso inclinado, porque havia paz no quarto então, uma vez que a fúria
se retirara; Wilbourne podia então ouvir a esposa cinzenta no fogão da
cozinha e também o vento negro outra vez, risonho, caçoador, constante,
desatento e até lhe pareceu poder distinguir o selvagem farfalhar seco
das palmeiras. Então ouviu a ambulância, o primeiro tênue gemido
crescendo, ainda longínquo, na auto-estrada da aldeia e quase
imediatamente, a mulher entrando carregando uma xícara. — Aí vem sua
carona — disse ela. — Nem chegou a esquentar. Mas pelo menos é alguma
coisa no estômago. — Eu agradeço — disse Wilbourne. — Agradeço
sinceramente, mas não vou conseguir engolir, — Besteira. Beba. — Eu
agradeço. — A ambulância gemia mais alto, vindo depressa, agora bem
próxima, o gemido se transformando num resmungo com a diminuição da
marcha, para em seguida desencadear numa nova lamentação. Parecia estar
à porta da casa, alta e peremptória e dando uma ilusão de velocidade e
pressa embora Wilbourne soubesse que por esta altura estava apenas se
arrastando na íngreme e sulcada alameda asfixiada de capim que saía da
estrada até a casa; desta vez ao desabar num ronco realmente estava à
porta da casa, o som possuindo agora um tom de resmungo perplexo quase
como a voz de um animal grande, atônito, talvez até ferido. — Eu
agradeço Imensamente. Sei que existe sempre certo volume de limpeza
Inevitável quando se desocupa uma casa. Seria uma bobagem se ainda a
sujássemos mais. — Então ouviu os passos sobre o alpendre, escutando-os
acima do coração, o profundo, forte, Incessante e raso repuxo de ar, a
respiração ao ponto de quase escapar totalmente dos pulmões;
237
então (não bateram na porta) estavam no vestíbulo; o tropel; três homens
entraram, vestidos à paisana — um jovem de cabelos encaracolados,
cortados rentes, numa camiseta e sem meias, um asseado homem nervoso,
sem idade definida, e totalmente vestido até o par de óculos tartaruga,
empurrando uma maca de rodinhas e atrás deles um terceiro homem com a
indelével marca de dez mil subxerifes sulinos, urbanos ou suburbanos — a
aba do chapéu chapada, os olhos sádicos; o casaco ligeira e
inconfundivelmente estufado, o ar não propriamente de jactância mas de
uma brutalidade formalmente pré-absolvida. Os dois homens colocaram a
maca ao lado da cama com gestos profissionais; foi ao policial que o
médico se dirigiu, mostrando Wilbourne com a mão e foi então que
Wilbourne percebeu que o outro havia realmente esquecido que ainda
empunhava um revólver. — Este é seu preso — disse o médico. — Vou fazer
queixa formal contra ele, assim que chegarmos à cidade. Assim que puder.
— Ouça aqui, doutor. Boa noite, D. Martha — disse o policial. — Abaixe
esse negócio. Pode disparar sem querer. O cara de quem o senhor pegou o
revólver pode ter destravado a arma antes de ter dado pro senhor! — O
médico olhou para o revólver e então Wilbourne pareceu lembrar-se dele
guardando a arma metodicamente na maleta gasta junto com o
estetoscópio; ele parecia acabar de se lembrar disso pois havia seguido
a maca até a cama. — Cuidado — disse ele. — Não a acordem. Ela não — —
Eu tomo conta disto — disse o médico naquela voz cansada que por fim se
tinha acalmado quase como se tivesse se esgotado, mas que se elevaria
novamente se preciso, como já tinha se elevado, caso o ultraje se
renovasse. — Este caso me foi entregue, lembra-se? Eu não pedi nada. —
Aproximou-se da cama (foi então que Wilbourne pareceu se lembrar do
médico colocando a arma na maleta) e levantou o pulso de Charlotte. —
Por favor com o máximo cuidado. Mas depressa. O doutor Richardson
estará lá e eu os seguirei de carro. Os dois homens suspenderam
238
Charlotte até a maca de pneus de borracha que foi empurrada pelo jovem
sem chapéu, parecendo cruzar o quarto e desaparecer no vestíbulo com
incrível rapidez como se tivesse sido sugada e não empurrada (as
próprias rodas fazendo um barulho de sucção no assoalho) por qualquer
agente humano e sim talvez pelo tempo, por alguma chaminé de ventilação
através da qual voassem se amontoando segundos irrevogáveis e até a
própria noite. — Muito bem — disse o policial. — Qual é seu nome?
Wilson? — É — disse Wilbourne, Também passou pelo vestíbulo daquela
forma, sugado até o lugar onde o homem nervoso esperava com uma lanterna
acesa; o irrisório vento escuro cacarejava e murmurava na porta aberta,
inclinando seu peso contra ele como uma negra mão tateante (o homem por
sua vez se apoiando no e sobre o vento). Havia o alpendre e os degraus
além. — Ela é leve — disse Wilbourne numa fina voz ansiosa. — Perdeu
muito peso ultimamente, Eu poderia carregá-la se eles — — Eles também
podem — disse o policial. — Além do mais são pagos para isso.
Acalme-se, — Eu sei, Mas aquele baixote, aquele menorzinho com a
lanterna — — Ele guarda a força pra isso, Gosta disso, Você não vai
querer ofendê-lo, vai? Acalme-se, — Ouça — disse Wilbourne tenuemente,
murmurando. — Por que não me algema? Por quê? — Você quer? — disse o
policial, E então a maca sem parar passou sugada pelo alpendre até o
espaço, ainda no mesmo plano paralelo como se pudesse se deslocar
talvez, mas não pelo peso; nem parou, a camisa branca e as calças do
jovem pareciam apenas andar atrás da maca à medida que esta se movia
atrás da lanterna, em direção ao canto da casa, em direção ao que o
homem de quem ele alugara a casa chamava de "a estrada". Agora ouvia o
debulhar das palmeiras invisíveis e , seu seco som selvagem.
239
O hospital era um prédio baixo, vagamente espanhol (ou de Los
Angeles) de estuque, quase escondido por uma luxuriante massa de
espirradeiras. Havia mais palmeiras desenxabidas também, a ambulância
ganhava velocidade, o gemido da sirene morrendo num grunhido de queda de
animal, os pneus secos e sibilantes sobre conchas de ostras; quando
saiu da ambulância pôde ouvir as palmeiras farfalhando e assoviando
novamente como se tivessem sido tangidas por um assoprador de areia e
ele ainda podia aspirar o mar, ainda o mesmo vento negro, mas não tão
forte já que o mar ficava a quatro milhas de distância, a maca saindo
apressada e correndo macia de novo como se sugada para fora, os pés dos
quatro homens estalando sobre as frágeis conchas secas; e então no
corredor ele começou a piscar outra vez por causa das pálpebras
areentas, doendo sob a luz elétrica, a maca sugando, as rodas
sussurrantes sobre o linóleo, de forma que foi entre duas piscadas que
ele viu que a maca estava agora sendo empurrada por duas enfermeiras
uniformizadas, uma alta, outra baixa, ele pensando que não deveria
existir um conjunto emparelhado de puxadores de maca, como
aparentemente todas as macas do mundo devem ser empurradas não por dois
corpos físicos em harmonia e sim por dois desejos emparelhados que
querem estar presentes e ver o que está acontecendo. Então viu uma
porta aberta reverberando de luz, tendo ao lado um cirurgião já na
túnica de operador, a maca entrando sugada através da porta, o
cirurgião olhando-o uma vez, não com curiosidade, mas como se gravasse
uma fisionomia, voltando-se e seguindo a maca e quando Wilbourne ia
falar com ele, a porta (soando como se tivesse pneus de borracha
também) se fechando sem ruído no seu rosto, quase o esbofeteando, o
policial ao seu cotovelo, dizendo: — Acalme-se. Então apareceu outra
enfermeira; ele não a ouvira antes, ela não olhou para ele, falando
sucintamente com o policial. — Muito bem — disse o policial, tocando no
cotovelo de Wilbourne. — Siga em frente. E acalme-se. — Mas deixe eu —
240
— Claro. Acalme-se, — Era outra porta, a enfermeira se voltando e
dando passagem, as saias estalando e sibilando também como as conchas
de ostras; ela sequer olhou para ele, Entraram num escritório, uma
escrivaninha, outro homem de gorro esterilizado e túnica sentado à mesa
diante de um formulário branco e uma caneta-tinteiro. Era mais velho
que o primeiro e ele também não olhou para Wilbourne. — Nome? —
Charlotte Rittenmeyer. — Senhorita? — Senhora, — O homem à escrivaninha
anotava num bloco. — Marido? — Sim. — Nome? — Francis Rittenmeyer, — Em
seguida deu o endereço também, A caneta fluía, macia e estalante. Agora
é a caneta que me impede de respirar, pensou Wilbourne. — Posso — —
Ele será notificado, — Então o homem à escrivaninha olhou para ele.
Usava óculos, as pupilas atrás das lentes ligeiramente distorcidas e
perfeitamente impessoais, — Como explica o fato? Os instrumentos não
estavam limpos? — Estavam limpos. — O senhor acha, — Tenho certeza, — É
a primeira tentativa? — Não. A segunda. — A outra deu certo? Mas talvez
não saiba. — Sei. A outra deu certo. — Então como explica este erro? —
Ele poderia responder que: Eu a amava. Ele poderia dizer: Um avaro
provavelmente erraria ao explodir o próprio cofre. Deveria ter chamado
um profissional, um abridor de cofres que não se importasse, não
amassasse os próprios flancos de ferro que guardavam o dinheiro.
Portanto, não disse nada e depois de um tempo o homem à escrivaninha
olhou para baixo e escreveu outra vez, a caneta viajando macia sobre a
página e disse, ainda escrevendo, sem levantar os olhos: — Espere lá
fora.
241
— Não vou levar ele já? — disse o policial. - Não - disse o
homem à escrivaninha ainda de olhos baixos. - Eu não poderia... — disse
Wilbourne. — Será que eu... — A caneta parou, mas durante algum tempo
o homem à escrivaninha olhou para o papel, talvez lendo o que .
escrevera. Então olhou para Wilbourne. - Por quê? Ela não o
reconheceria. - Mas pode voltar a si. Acordar outra vez. Assim eu
poderia... poderíamos... — O outro o encarou. Os olhos frios mas não
impacientes, embora não fossem palpavelmente pacientes. Apenas
aguardavam até a voz de Wilbourne se calar. Então o homem à mesa falou:
- Acha que ela vai... doutor? — Por um instante Wilbourne pestanejou
dolorosamente vendo o límpido formulário rabiscado sob a lâmpada de mesa
colorida, a asseada mão do médico segurando ao lado a caneta destampada.
- Não — disse maquinalmente. O homem à mesa olhou outra vez para baixo
e para o formulário também, uma vez que a mão que segurava a caneta
recomeçara a se mover e a escrever. - Você será notificado. — Depois ou
com o policial, ainda sem olhar para o alto, sem parar de escrever: — É
só. — É melhor eu tirar ele daqui antes que o marido estoure por aqui,
armado ou coisa parecida, não é, doutor? — perguntou o policial. -
Você será notificado. — Depois falou com o policial, sem olhar para
cima. - Muito bem, Jack — disse o policial. Havia um banco arranhado e
duro, como um daqueles dos bondes antigos, de onde ele podia ver a porta
forrada de borracha, lisa; com ar definitivo e inexpugnável como um
rastilho de ferro de ponte levadiça; ele viu com alguma perplexidade
que mesmo daquele ângulo ela parecia pendurada ao umbral apenas por um
lado, ligeiramente, de forma que espalhava luz por três quartos da sua
circunferência.
242
Mas ela poderia, ele pensou. Ela poderia. — Meu Deus
— disse o policial, com um cigarra apagado na mão agora (Wilbourne
sentira o movimento contra o cotovelo), — Meu Deus, você pintou — como
é mesmo seu nome? Webster? — É — disse Wilbourne, Eu poderia chegar lá.
Poderia derrubá-lo se necessário e chegar até lá. Porque eu saberia. Eu
sei. Eles certamente não. — Você pintou e bordou, hein? Usando uma
faca. Eu sou meio antiquado; a velha fórmula ainda me serve. Não quero
novidades, — Sim — disse Wilbourne. Não havia vento algum naquele lugar,
nenhum ruído embora lhe parecesse poder aspirar, senão o mar, pelo menos
o seco e teimoso resíduo dele nas conchas de ostras da estrada; e então
de repente o corredor se encheu de ruídos, as miríades de vozinhas do
medo e do trabalho humano que ele conhecia, lembrava — os corredores
desinfetados de linóleo e solas de borracha como úteros pelos quais
seres humanos disparavam antes de algum sofrimento mas principalmente
de terror, para render em pequenas celas monásticas todo o peso da
luxúria e desejo e orgulho, até de independência funcional, para se
tomarem como embriões por certo tempo mas retendo um pouco da antiga e
incorrigível corrupção terrestre — o sono leve a qualquer hora, o tédio,
o despertante e irrequieto tilintar de sininhos entre as horas que vão
da meia-noite até a aproximação lenta da alvorada (encontrando talvez
pelo menos este bom emprego para o vil dinheiro com o qual o mundo é
hoje abarrotado e atravancado); isto durante certo tempo, então nascer
outra vez, emergir renovado para suportar o fardo do mundo por mais um
tempo enquanto perdurar a coragem. Ele os podia ouvir de um lado para
o outro do corredor — o tilintar dos sinos, a imediata sibilação dos
calcanhares de borracha e das salas engomadas, o querelante murmúrio de
vozes em torno do nada, Ele os conhecia bem; e então outra enfermeira
desceu até a entrada, já o encarando totalmente, diminuindo o passo ao
passar, olhando para ele, a cabeça se voltando enquanto caminhava como
uma coruja, os olhos bem abertos e cheios de algo além da mera
curiosidade,
243
sem o menor recuo ou horror, apenas andando. O policial
corria a língua pela face interna dos dentes como se procurasse restos
de comida; possivelmente estivera comendo em algum lugar, quando chegou
o chamado. Ainda segurava o cigarro apagado. — Esses médicos e
enfermeiras — disse ele. — As coisas que um sujeito ouve sobre os
hospitais. Será que trepam tanto quanto se diz por aí? — Não — disse
Wilbourne. — Nunca há lugar. — É mesmo? Mas quando se pensa num lugar
como um hospital cheio de camas pra qualquer lugar onde se olhe. E todos
aqueles caras deitados de barriga pra cima sem poder chatear ninguém.
Afinal de contas todos os médicos e enfermeiras não passam de homens e
mulheres e bem espertinhos pra cuidar das suas vidas ou então não
seriam médicos e enfermeiras. Você sabe como é. O que acha? — Nada —
disse Wilbourne. — Você já disse tudo. Porque além de tudo, pensou, eles
são cavalheiros. Têm que ser. São mais fortes do que nós. Acima de tudo
isto. Acima das palhaçadas. Não precisam ser outra coisa a não ser
cavalheiros. E então o segundo médico ou cirurgião — aquele da caneta —
saiu do escritório e desceu pelo corredor, as abas do jaleco sugando e
batendo às suas costas. Nem olhou para Wilbourne, mesmo quando este
olhando para ele, ergueu-se enquanto ele passava e deu um passo para a
frente, como se fosse falar, o policial se levantando apressadamente,
intrometendo-se. Mas o médico apenas parou o tempo suficiente para
voltar a olhar o policial com uma rápida, fria e irascível mirada
através dos óculos. — Você não é responsável por este homem? — disse
ele. — Claro, doutor — disse o policial. — Qual é o problema, então? —
Ora, Watson — disse o policial. — Vamos com calma. — O médico se voltou,
embora mal tivesse parado. — Que tal um cigarro, doutor? — O médico nem
respondeu. Seguiu em frente, o jaleco adejando. — Você, venha cá —
disse o policial. — Sente-se antes de se meter noutra confusão!
244
Novamente a porta se abriu para dentro, sobre as bordas de borracha
e voltou, batendo silenciosamente com aquela determinação férrea e
aquela ilusão de inexpugnabilidade do ferro tão falsa, uma vez que mesmo
de onde estava ele podia ver como ela balançava no seu eixo apenas por
um lado, de forma que uma criança, um sopro, poderia abri-la, Ouça
— disse o policial. — Tenha calma, Eles vão dar um jeito nela. Aquele
ali era o próprio Dr, Richardson! Uns três anos atrás trouxeram pra cá
um negro de uma serraria, Tinham aberto as tripas dele com uma navalha
durante um jogo de dados, Bem, o que faz o Dr. Richardson? Abre o homem,
corta fora as tripas inúteis, junta os dois pedaços como se vulcaniza um
tubo interno e o negro está hoje de volta ao trabalho, É claro que ficou
sem um pedaço da tripa e como o que sobrou não é muito grande tem que
correr pró mato assim que acaba de mastigar. Mas está bem. O doutor vai
dar um jeito nela também, Não é melhor do que nada? Hein? — É — disse
Wilbourne. — É, Será que a gente podia ir lá pra fora um pouco? — O
policial se levantou rapidamente, o cigarro ainda apagado na mão, — É
uma idéia, A gente podia dar uma fumadinha. — Mas Wilbourne não podia
se mover, — Vá você. Eu fico aqui, Não vou fugir. Você sabe disso. —
Bem, sei lá, Talvez eu pudesse ficar do outro lado da porta pra fumar. —
É. Pode me vigiar de lá — disse ele, olhando as portas de um lado para
o outro do corredor. — Sabe aonde posso ir se me sentir mal? — Sentir
mal? — Ter que vomitar, — Vou chamar uma enfermeira pra perguntar. —
Não. Não se preocupe. Não vou precisar. Acho que não tenho mais nada a
perder que valha a pena. Vou ficar aqui até que me chamem. — O policial
desceu o corredor, passou pela porta presa pelos três cortes ferozes de
luz, em direção à entrada de onde tinham vindo, Wilbourne observou o
fósforo estalar sob o polegar e acender contra o rosto do policial, sob
a aba do chapéu, rosto e chapéu inclinados diante do fósforo (não era
propriamente um rosto desagradável, apenas o rosto de um menino de
245
quatorze anos que tinha que usar a navalha, que havia começado cedo
demais a portar uma arma oficial, há muito tempo), a porta da entrada
aparentemente ainda aberta por causa da fumaça., a primeira baforada se
evolando de volta pelo corredor, desaparecendo: de forma que Wilbourne
podia realmente aspirar o mar, o negro, raso e dorminhoco ruído sem
onda que o vento negro havia dispersado. Corredor acima, à distância de
um cotovelo, ele podia ouvir as vozes de duas enfermeiras, duas
enfermeiras e não duas pacientes, duas fêmeas mas não necessariamente
mulheres, quando além do mesmo cotovelo um dos sininhos tilintou,
nervoso, peremptório, as duas vozes sempre murmurando, em seguida
rindo, duas enfermeiras rindo, não duas mulheres, o pequeno sino
querelante se tornando irascível e frenético, o riso continuando por
mais meio minuto sobre o tilintar, seguido pelas solas de borracha sobre
o linóleo, sibilando tênues e rápidas: o sino parou. Era o mar que ele
aspirava; havia o gosto da negra praia sobre a qual o vento soprou em
seus pulmões, próximo ao vértice dos pulmões, sentindo novamente tudo
aquilo, mas que já era esperado por ele, cada alento rápido e forte se
tornando mais e mais raso como se seu coração tivesse por fim encontrado
um receptáculo, um entulho, para a areia negra que havia dragado e
bombeado; e então ele se levantou também, sem ir a lugar algum; apenas
se ergueu sem querer, o policial à entrada se voltando imediatamente,
atirando o cigarro para trás. Mas Wilbourne não fez outro movimento e o
policial diminuiu o passo até parar na porta cortada de luz e achatar a
aba do chapéu contra ela, contra a fenda por um momento. Em seguida,
avançou. Avançou porque Wilbourne o viu; viu o policial como se vê um
poste que acontece estar entre você e a rua porque a porta de borracha
havia-se aberto novamente, desta vez para o lado de fora (as luzes se
apagaram, pensou. Apagaram. Estão apagadas agora) e os dois médicos
emergiram, a porta batendo silenciosamente atrás deles e oscilando com
força uma vez, mas se abrindo novamente antes de fechar, reentrar na
imobilidade, para apresentar duas enfermeiras embora ele as visse
246
apenas com aquela parte da visão com a qual ainda via o policial, porque
estava observando o rosto dos dois médicos vindo pelo corredor e falando
entre si com vozes entrecortadas através das máscaras, os jalecos
adejando como as saias das duas mulheres, passando por ele sem vê-lo e
ele se sentando outra vez porque o policial ao seu lado disse: -— Isso
mesmo, Vamos com calma —, e ele percebeu que estava se sentando, os dois
médicos seguindo em frente, as cinturas apertadas como duas senhoras,
as abas dos jalecos batendo às costas, e em seguida uma das enfermeiras
passou também, de máscara também, não olhando para ele também, as saias
engomadas farfalhando, ele (Wilbourne) sentado no banco duro, ouvindo:
de forma que por um momento seu coração o abandonou, batendo forte e
lento e contínuo mas remoto, deixando-o numa esfera de silêncio, num
vácuo circular onde apenas o vento lembrado murmurava, ouvindo o sibilo
das solas de borracha, a enfermeira por fim ao lado do banco e então
ele olhando para cima, — Pode entrar agora — disse ela, — Está bem —
disse ele, Mas não se mexeu logo. É a mesma que não olhou para mim,
pensou, Ela não está olhando para mim agora. Só que agora está olhando
para mim. Então se pôs em pé; isto agora era permitido, o policial
também se levantou, a enfermeira olhando para ele, — Quer que entre com
você? — Está bem, — E estava bem, Talvez bastasse um sopro, porém ao
colocar a mão na porta descobriu que todo o seu peso não o faria, Isto
é, ele não parecia poder colocar peso algum nela, a porta que na
verdade parecia uma placa de ferro fixa à parede exceto quando se abriu
de repente diante dele sobre as rodas de borracha e ele viu a mão e o
braço da enfermeira e a mesa de operação, o contorno do corpo de
Charlotte apenas Indicado e curiosamente achatado sob o lençol. As luzes
estavam apagadas, os aparelhos empilhados a um canto e apenas uma única
luz central brilhava e havia outra enfermeira — ele não se lembrava de
que eram quatro — secando as mãos na pia, Porém nesse momento ela jogou
a toalha num cesto e passou por ele, isto é, entrou e saiu do campo
247
visual de Wilbourne, desaparecendo. Sentia-se também um sopro, um
ventilador funcionando em alguma parte próxima do teto, também invisível
ou pelo menos escondido, camuflado e quando ele chegou perto da mesa, a
mão da enfermeira apareceu e dobrou a ponta do lençol e após um instante
ele a acompanhou com o olhar, piscando as dolorosas pálpebras secas,
até a porta onde estava o policial. — Está tudo bem agora — disse ele.
— Ele já pode fumar, não? — Não — disse a enfermeira. — Não importa —
disse ele. — É coisa rápida. Então você — — Venha — disse a enfermeira.
— Tem apenas um minuto. — Só que não era um vento fresco soprando dentro
do quarto mas sim um vento quente sendo expelido para fora, de forma
que não havia qualquer cheiro da areia negra anteriormente soprada.
Porém era um vento contínuo, ele o sentia e via, uma mecha do escuro
cabelo selvagemente curto sendo agitado por ele (o vento) pesadamente,
pois o cabelo ainda estava molhado, ainda úmido, entre os olhos fechados
e o imaculado nó de cirurgião na gaze que sustentava o maxilar inferior
de Charlotte. Só que era mais do que isto, mais do que apenas um
relaxamento de juntas e músculos, era um colapso do corpo inteiro como
um desabamento de água não represada, segura por um instante para que
ele pudesse ver, mas ainda procurando aquele nível profundo e primevo,
mais baixo do que estar de pé ou andar, mais baixo que o nível
horizontal da pequena morte chamada sono, mais baixo ainda que a fina
sola que rejeita a terra; a própria terra achatada e mesmo esta não
bastante baixa, esparramada, desaparecendo, devagar no começo,
aumentando em seguida, por fim com incrível rapidez: desaparecida,
sumida, sem deixar rastro sobre a poeira insaciável. A enfermeira tocou
o braço de Wilbourne. — Venha — disse. — Espere — disse ele. — Espere. —
Mas teve que dar um passo para trás pois veio tão rápida quanto antes, a
mesma maca sobre os pneus de borracha, também o homem nervoso sem
chapéu,
248
o cabelo molhado, cuidadosamente dividido, escovado para a
frente e encurvado para trás como os barmen antigos, a lanterna no bolso
traseiro das calças, prendendo a ponta do jaleco, a maca rolando
rapidamente até o lado da mesa enquanto a enfermeira novamente
suspendia o lençol, — Não vou precisar ajudar estes dois, vou? — disse
ele. — Não — disse a enfermeira. Não havia qualquer forma especial sob o
lençol então e ela foi colocada na maca como se não pesasse coisa
alguma. A maca sussurrou ao se mover outra vez, rolando sibilante,
sendo sugada através da porta outra vez onde estava parado o policial
com o chapéu na mão. Em seguida desapareceu. Ele a ouviu ainda por mais
um momento, Em seguida, silêncio. A enfermeira esticou a mão até a
parede, acionou um botão, cessando o ruído do ventilador que foi
interrompido como se se tivesse chocado contra uma parede, apagado por
um tremendo silêncio que rugiu sobre Wilbourne como uma vaga, um mar,
onde não havia em que se agarrar, agarrando-o, atirando-o, fazendo-o
rodopiar e ainda rugindo, deixando-o a pestanejar contínua e
dolorosamente com as suas pálpebras granuladas. — Venha — disse a
enfermeira, — O Dr, Richardson disse que você pode tomar uma bebida, —
Claro, Morrison — disse o policial, pondo o chapéu na cabeça, — Não se
apressem, — A cadeia era de certa forma como o hospital exceto que
possuía dois andares, quadrada e sem espirradeiras, Mas a palmeira
estava lá, bem do lado de fora da janela de Wilbourne, maior e mais
desenxabida; quando ele e o policial passaram sob ela para entrar, sem
que soprasse qualquer vento, ela iniciou um frenético e repentino
chacoalhar como se eles a tivessem assustado, e duas vezes mais durante
a noite enquanto ele parado, mudando as mãos de quando em vez daquelas
partes das grades que ao aperto se tornavam mornas e faziam suar as
palmas das mãos, ela chacoalhou novamente com aquela curta, repentina e
inexplicável agitação. Então a maré começou a baixar no rio o ele podia
aspirar isto também — o acre aroma das baixadas de sal onde apodreciam
conchas de ostra e cabeças de camarão, cânhamo e velhas estacas. A
alvorada surgiu
249
(havia pouco tinha ouvido os barcos de camarão zarpar) e ele pôde
ver a ponte giratória sobre a qual cruzavam os trilhos de trem vindos de
Nova Orleans, e parando de repente contra um céu esmaecido, ouviu o
trem de Nova Orleans e observou a fumaça se aproximando, seguida do
próprio trem se arrastando pela ponte, alto como um brinquedo, róseo
como algo bizarro com que se enfeitam os bolos, sob o sol achatado que
já estava quente. Logo desapareceu o trem, a fumaça rósea. A palmeira
além da janela começou a murmurar, seca e contínua, e ele sentiu a
fresca brisa matinal vinda do mar, contínua e plena de sal, limpa e
iodada na cela sobre o cheiro de creolina e cuspe de fumo e antigos
vômitos; o aroma azedo das baixadas desapareceu e então se viu o brilho
da água recortada pela maré, os peixes-agulha turvando lentamente
primeiro para cima, depois para baixo por entre o monturo flutuante.
Então ouviu passos na escada e o carcereiro entrou com uma caneca de
lata com café e um pedaço de bolo de café industrializado. — Quer mais
alguma coisa? — disse ele. — Carne? — Obrigado — disse Wilbourne. — Só
café. Ou se puder me arranjar uns cigarros. Não fumo desde ontem. — Vou
lhe deixar estes até sair pra comprar outros — disse o carcereiro.,
tirando um saquinho de fumo de pano e papéis para cigarro da camisa. —
Sabe enrolar? — Não sei — disse Wilbourne. — Sim. Obrigado. Já está
ótimo. — Não conseguiu enrolá-los direito. O café era fraco, muito doce
e quente, quente demais para se beber ou mesmo segurar na mão,
possuindo aparentemente uma inesgotável, inerente e dinâmica qualidade
de calor renovável e impermeável até à própria radiação feroz. De forma
que ele colocou a caneca sobre o banquinho e se sentou à beira do catre;
sem perceber, assumira a atitude imemorial de toda a miséria,
encurvado, pairando não na dor mas na total concentração visceral sobre
restos de comida, um osso que necessitaria de proteção não contra
qualquer coisa que andasse em pé, mas contra as criaturas que se movem
no mesmo plano paralelo do protetor e do protegido e que latiriam e
rosnariam com o protetor para defendê-lo na poeira.
250
verteu do saco de pano para o papel vincado como pôde, sem ser capaz de se
lembrar de forma alguma quando e onde vira aquele processo, como deveria
ser executado, observando com ligeiro alarme o fumo se espalhar para
fora do papel, soprado pelo leve vento que vinha da janela, voltando o
corpo para proteger o papel, percebendo que a mão estava começando a
tremer embora isto ainda não o preocupasse, colocando o saquinho
cuidadosa e cegamente de lado, observando o fumo como se estivesse
segurando os grãos no papel pelo peso dos olhos, colocando a outra mão
no papel e verificando que ambas tremiam agora, o papel se partindo de
repente entre as mãos com uma descarga quase imperceptível. As mãos
agora tremiam muito; encheu o segundo papelote com uma terrível
concentração de vontade, não pelo desejo de fumar mas apenas para
confeccionar um cigarro; deliberadamente ergueu os cotovelos dos
joelhos e segurou o papel cheio diante da face tranqüila, barbeada,
ligeiramente encovada até que o tremor parasse. Mas assim que as
relaxou para enrolar o fumo no papel começaram a tremer novamente mas
dessa vez ele nem parou, colocando o fumo cuidadosamente no papel, o
fumo chovendo leve e continuamente pelas duas aberturas enquanto enchia
o papel. Teve que segurá-lo com as duas mãos para lambê-lo e então assim
que a língua tocou o papel sua cabeça pareceu pegar com o contacto o
mesmo ligeiro sacudir incontrolável, e ele ficou sentado por um momento,
olhando para o que tinha realizado — o tubo achatado e enredado já
quase vazio de fumo e quase úmido demais para ser aceso, Precisou das
duas mãos para levar o fósforo até o cigarro também, e não se
esfumaçar a não ser por um único fino lancear de calor, de fogo mesmo,
que lhe desceu pela garganta, Contudo, o cigarro na mão direita e a
mão esquerda apertando o pulso direito, deu mais duas tragadas antes que a
brasa corresse demais pelo lado seco do papel para poder dar outra
baforada e jogá-lo fora, quase pondo o pé sobre o mesmo quando se
lembrou, percebeu, que ainda estava descalço e desta forma deixou-o
queimar enquanto, sentado, olhava para a caneca de café com certo
desespero,
251
que não havia demonstrado antes, e talvez nem tivesse
ainda começado a sentir; então pegando a caneca, segurando-a como
segurara o cigarro, punho na mão, levou-a à boca, concentrando-se não
no café mas no fato de bebê-lo de forma que talvez esquecesse de se
lembrar que o café estava quente demais para ser ingerido, fazendo
contacto entre a borda da caneca e o contínuo e leve sacolejar da
cabeça, engolindo o líquido ainda escaldante, sendo rechaçado todas as
vezes pelo calor, piscando, engolindo outra vez., piscando, uma
colherada de café escapulindo da caneca e caindo ao chão, salpicando
seus pés e os tornozelos como um punhado de agulhas caindo ou talvez
partículas de gelo, percebendo que começara a piscar novamente também e
depositando a caneca cuidadosamente — precisou das duas mãos para poder
agarrar o banquinho também — sobre o banco e se sentando de novo um
pouco encurvado e piscando continuamente por causa da granulação das
pálpebras, ouvindo os dois pares de pés nas escadas embora desta feita
ele nem tenha olhado em direção à porta até ouvi-la se abrindo e
batendo novamente, olhando então em volta e para cima para o casaco
jaquetão (um panamá cinzento agora), o rosto recém-barbeado mas que
também não dormira, pensando (Wilbourne) ele teve tantas coisas mais
que fazer. Eu só tive que esperar. Teve que sair às pressas e encontrar
alguém para ficar com as crianças. Rittenmeyer carregava a valise — a
mesma que saíra debaixo da cama nos alojamentos acadêmicos o ano passado
e havia viajado de Chicago a Wisconsin e de Chicago para Utah e para
San Antônio e para Nova Orleans outra vez e agora para a cadeia — e
entrou e a colocou ao lado do catre. Porém a mão que saía da macia manga
cinzenta não tremia, a mão que agora se enfiava no paletó. — Aqui estão
suas roupas — disse ele. — Paguei sua fiança. Vão soltá-lo hoje de
manhã. — A mão emergiu e atirou sobre o catre um maço de cédulas
dobradas ao meio. — São os mesmos trezentos dólares. Você já os carregou
por tanto tempo, que adquiriu usucapião. Devem lhe servir por muito
tempo.
252
Vá para bem longe de qualquer maneira. Eu lhe aconselharia
o México, mas talvez possa ficar em qualquer parte escondido se não
bobear. Mas não vai ter mais. Compreendeu isto? Isto foi tudo! — Fugir —
disse Wilbourne. — Fugir do julgamento? — É — disse Rittenmeyer
violentamente. — Saia já daqui. Vou comprar uma passagem de trem e lhe
enviar — — Desculpe — disse Wilbourne. — Nova Orleans; talvez de lá você
possa apanhar um navio — — Desculpe — disse Wilbourne. Rittenmeyer se
calou. Não estava olhando para Wilbourne; não estava olhando para coisa
alguma, Após uma pausa, disse tranqüilamente: — Pense nela, — Gostaria
de não pensar. Gostaria de ser capaz. Não, não posso, Talvez seja isso.
Talvez seja essa a razão. — E talvez fosse. Era a primeira vez que quase
a alcançava; mas não ainda; e isto também não tinha importância; ele a
buscaria, a guardaria quando chegasse o momento. — Então pense em mim —
disse Rittenmeyer. Gostaria de poder impedir isto também. Eu acho — —
Eu não! — disse o outro de repente violento, outra vez. — Não tenha pena
de mim. Entendeu? Entendeu? — E havia algo mais mas ele não disse pois
não podia ou não queria, Começou a tremer dentro do terno limpo, sóbrio
e bonito, murmurando: — Jesus, Jesus, Jesus. — Talvez eu sinta porque
você não pode fazer coisa alguma, E sei por que não pode. Qualquer
pessoa saberia por que você não pode, Mas isto não serve pra nada. E eu
poderia fazê-lo e talvez adiantasse alguma coisa, não muito talvez, mas
um pouco, Só que também não posso. E sei por que não posso também. Acho
que sei. Só que eu não tenho — Também se calou e disse tranqüilamente: —
Desculpe. — O outro parou de tremer, falou tão tranqüilamente quanto
Wilbourne: — Quer dizer que não quer ir. — Talvez, se pudesse me dizer
por quê — disse Wilbourne. Mas o outro não respondeu. Tirou um imaculado
lenço do bolso do paletó e enxugou cuidadosamente o rosto e Wilbourne
253
reparou também que a brisa matinal, vinda do mar, havia
desaparecido, seguido em frente como se a brilhante redoma ainda rodeada
de nuvens do céu e da terra fosse um globo vazio, um vácuo, e o pouco
vento que havia não fosse suficiente para enchê-lo, mas apenas corresse
de um lado para outro, dentro dele, sem horário; obedecendo a nenhuma
lei, incerto e vindo e indo para lugar algum, como uma manada de cavalos
soltos numa planície deserta. Rittenmeyer foi até a porta e a sacudiu,
sem olhar para trás. O carcereiro apareceu e abriu a porta. Ele não ia
mais olhar para trás. — Você esqueceu o dinheiro — disse Wilbourne. O
outro se voltou e foi até o catre apanhar as notas dobradas. Após um
instante olhou para Wilbourne. — Quer dizer que não o fará — disse. —
Não fará. — Desculpe — disse Wilbourne. Se ao menos ele tivesse me dito
por que, pensou Wilbourne, talvez eu fizesse. Só que sabia que não o
teria feito. Mesmo assim continuou acreditando uma ou outra vez
enquanto terminavam os últimos dias daquele junho e quando veio julho —
as alvoradas enquanto ouvia o forte pulsar dos motores dos pesqueiros
ancorados rio abaixo em direção ao Som, a fresca e fugidia hora matinal
enquanto o sol ainda lhe batia nas costas, o extenso fulgor das tardes
brônzeas enquanto o sol impregnado de salitre se inclinava total e
ferozmente na sua janela, imprimindo-lhe no rosto e tronco as grades nas
quais ele se agarrava — e onde até havia aprendido outra vez a dormir,
descobrindo às vezes que havia adormecido entre duas trocas de mãos nas
barras suadas. Então parou de pensar nisto. Não sabia quando; sequer se
lembrava de que a visita de Rittenmeyer já havia se apagado da sua
memória. Um dia — perto do crepúsculo, sem saber como não o havia visto,
uma vez que lá estava há vinte anos — ele viu, além da margem achatada
do rio, do outro lado, e em direção ao mar, o casco de cimento de um
barco de socorro inacabado, construído em 1918, a casca, o casco;
imóvel, a madeira apodrecida há muitos anos, deixando-o pousado sobre
um lamaçal ao lado do brilho refulgente da embocadura do rio com uma
fina linha de roupas estendidas sobre o convés.
254
O sol estava se
deitando então atrás do barco e ele não podia ver bem, mas na manhã
seguinte divisou a saliência inclinada de um cano de chaminé exalando
fumaça e pôde ver a cor das roupas agitadas pelo vento do mar e
observar depois uma pequena figura que ele sabia ser de uma mulher
tirando a roupa do varal, acreditando discernir o gesto com o qual ela
colocava os pregadores um por um na boca e pensou se nós soubéssemos
disso provavelmente teríamos morado lá os quatro dias e economizado dez
dólares, pensando, quatro dias. Não era possível que tivessem sido só
quatro dias, Não era possível] e observando uma noite viu o bote atracar
e o homem subir o escaler com uma comprida rede entrelaçada cascateando
ombro abaixo, frágil e feérica, e viu o homem remendar a rede sob o sol
matinal, sentado no tombadilho, a rede estendida sobre os joelhos, o
sol sobre o labiríntico tecido prateado e dourado. E uma lua subia e
crescia noturnamente e ele parado ali na luz moribunda enquanto noite
após noite a lua minguava; e uma tarde viu as bandeiras, uma sobre a
outra, rígidas e flamejantes do esbelto mastro sobre a estação
governamental na desembocadura do rio, contra um límpido céu acerado e
por toda aquela noite uma bóia rio afora gemia e urrava e a palmeira
além da janela se debatendo e colidindo e um pouco antes da alvorada,
numa brusca rajada, a cauda de um furacão eclodiu, Não o furacão que
galopava em alguma parte do golfo, apenas sua cauda, um relampejo de
crina passando, levantando na costa dez pés de maré turva e amarela que
não caiu durante vinte horas e correu ferozmente por entre a frenética
palmeira selvagem que ainda ressoava seca pelo teto da cela, de forma
que durante toda aquela segunda noite ele pôde ouvir o rugir dos mares
contra o quebra-mar na estrondosa escuridão e contra a bóia também,
gorgolejando então em meio aos urros; até achou que ouvia o rugir da
água jorrando ao se insurgir novamente a cada grito estrangulado, a
chuva desabando na próxima alvorada, mas então com menor fúria pela
planície frente ao vento oeste. Ela se aquietaria ainda mais terra
adentro, tornando-se apenas um brilhante murmúrio argênteo de verão
entre as árvores dignas e pesadas sobre a relva aparada; devia ser
aparada,
255
ele podia visualizar, bastante parecida com o parque onde ele
esperava, talvez até às vezes com crianças e babás, o melhor, o que
havia de melhor; haveria também, em breve, uma lápide na época adequada,
estipulada pela dignidade e pela terra restaurada, sem nada dizer;
seria aparada e verde e tranqüila, o corpo sem formato sob o lençol
estendido, achatado e pequeno, movido pelos braços dos dois homens,
como sem peso, embora não fosse assim, mas de qualquer maneira
tranqüilo e paciente debaixo do peso férreo da terra. Só que isto não
pode ser tudo, pensou. Não pode ser. O desperdício. Não de carne, pois
sempre há muita carne. Eles descobriram isto há vinte anos, preservando
nações e justificando lemas — se é que as nações que a carne preservou
mereçam ser mantidas sem a carne. Mas a memória. Certamente a memória
existe independente da carne. Mas isto estava errado também. Porque não
saberia que era memória, ele pensou. Ela não saberia o que recordar. Por
isso tem que existir a velha carne, a velha e frágil carne exterminável
para ser excitada pela memória. Esta foi a segunda vez que ele quase a
alcançou. Mas lhe escapou outra vez. Mas ele ainda não estava se
esforçando; ainda estava tudo bem, ele não estava preocupado; pois
voltaria na época adequada e até estaria ao seu lado. Então uma noite
lhe permitiram tomar banho e um barbeiro (haviam-lhe tirado as lâminas
de barbear) chegou cedo na manhã seguinte e o barbeou, e numa camisa
nova e manietado a um policial por um lado, tendo ao outro o advogado
nomeado pelo tribunal, ele andou sob o sol, ainda matinal, por uma rua
onde as pessoas — homens consumidos pela malária das serrarias
pantanosas
e pescadores profissionais devorados pelo vento e pelo sol — se
voltavam para observá-lo, desde o tribunal até o balcão no qual um
meirinho já estava gritando. O tribunal por sua vez era como a cadeia,
dois andares, o mesmo reboco, o mesmo cheiro de creolina e cusparadas
de fumo, mas não de vômito, localizado num terreno árido com meia dúzia
de palmeiras e espirradeiras que também floresciam róseas e brancas
sobre uma pequena massa espessa de açucenas.
256
Em seguida uma entrada ainda plena, por um tempo ainda, de
sombra e frescor de adega, o fumo mais forte, o ar permeado pelo
contínuo rumor humano, não exatamente de palavras mas daquele sussurro
zunidor que poderia muito bem ser o constante e autêntico murmúrio
insone dos poros em funcionamento. Subiram escadas, uma porta; ele
caminhou até uma passagem entre os bancos repletos enquanto as cabeças
se voltavam e a voz do meirinho vinda do balcão ainda entoava, e se
sentou a uma mesa entre o advogado e o policial, levantando-se em
seguida logo após e se colocando em pé novamente enquanto o juiz sem
toga, metido num terno de linho e com botinas pretas próprias dos
velhos, entrou com pequenos passos decididos e abriu a sessão. Não levou
muito tempo, foi rápido, profissional, uns vinte minutos para se reunir
um júri, o advogado nomeado (um jovem com rosto de lua cheia e olhos
míopes atrás dos óculos, num amassado terno de linho) contestando
monotonamente apesar de só ter levado vinte minutos, o juiz no alto,
atrás de uma bancada de pinho granulado e manchado para parecer mogno,
com seu rosto que não se parecia de forma alguma com o de um advogado e
sim de um superintendente de escola metodista dominical que nos dias de
semana era banqueiro e talvez um bom banqueiro, magro, o bigode e o
cabelo bem aparados, os antiquados óculos de aros de ouro. — Qual é a
acusação? — disse ele. — O escrevente leu, a voz zunindo, quase
sonolenta sob a verborragia redundante: "... contrária à paz e à
dignidade do Estado do Mississípi... homicídio não premeditado..." Um
homem se ergueu na outra ponta da mesa. Usava um terno amarfanhado,
quase puído, de linho listrado. Bastante gordo, este sim com cara de
advogado, um belo rosto, quase nobre, feito para as luzes da ribalta
forense, sagaz e ágil: o promotor. — Acreditamos poder comprovar
assassinato, Meritíssimo. — Este homem não está sendo acusado de
assassinato, Sr. Gower. O senhor deveria saber disto. O acusado que se
pronuncie. — Então o jovem advogado gorducho se ergueu. Não possuía o
estômago nem o rosto do advogado mais velho, pelo menos por enquanto.
257
— disse ele. E então Wilbourne ouviu, vinda por detrás dele a longa
exalação, o suspiro. O acusado está tentando se colocar à mercê
desta corte? — disse o juiz. — Só me declaro culpado, Meritíssimo —
disse Wilbourne. Ouviu outra vez o Som por detrás dele, mais alto, mas
já o juiz martelava categoricamente com seu bastão infantil de croqué.
— O senhor não pode falar daí! — disse ele, — O acusado deseja se
colocar à mercê desta corte? — Sim, Meritíssimo — disse o jovem
advogado. — Neste caso não há necessidade de formular um sumário, Sr.
Gower. Vou instruir o júri. — Desta vez não se ouviu o suspiro.
Wilbourne ouviu a respiração suspensa seguida de quase um rugido, não
tão forte é claro, não ainda, o pequeno bastão de madeira furioso sobre
o pinho e o meirinho gritando alguma coisa também, e houve um
movimento, um ruído insurgente misturado com pés também; uma voz gritou:
— Isso mesmo! Vão em frente! Matem ele! — e Wilbourne viu — o casaco
jaquetão cinzento (o mesmo) se movendo continuamente em direção à
bancada, o rosto, o rosto ultrajado; o homem que sem qualquer
advertência tivera que suportar um outro tipo de sofrimento, o único
sofrimento para o qual não estava capacitado, que mesmo naquele instante
deveria estar dizendo para si mesmo: mas por que eu? Por quê? Que fiz?
Que diabo fiz na vida? caminhando firme, em seguida parando e começando
a falar, interrompendo o rugido ao abrir a boca. — Meritíssimo, se a
corte desejar — — Quem é este? — disse o juiz. — Sou Francis Rittenmeyer
— disse Rittenmeyer. Então houve um rugido novamente, o martelo
funcionando outra vez, o próprio juiz gritando então, silenciando o
rugido com seu grito! — Ordem! Ordem! Mais uma manifestação destas e
mando evacuar a sala! Desarmem este homem! — Não estou armado — disse
Rittenmeyer. — Só quero — Mas já o meirinho e dois outros homens estavam
sobre ele,
258
as macias mangas cinzentas aprisionadas enquanto lhe apalpavam os bolsos
e os lados, — Ele não está armado, Meritíssimo — disse o meirinho. O
juiz se voltou para o Promotor Público, tremendo por ser um homem muito
metódico, velho demais para este tipo de comoções. — Qual o motivo
desta palhaçada, Sr. Gower? — Não sei, Meritíssimo. Eu não —
- O senhor não o convocou? — Não me pareceu necessário. Por consideração à
sua — Se a corte permitir — disse Rittenmeyer. — Eu só gostaria de —
O juiz ergueu a mão; Rittenmeyer se calou. Ficou parado imóvel, o rosto
calmo como esculpido, com algo dos rostos esculpidos das catedrais
góticas, os olhos claros possuindo algo semelhante à opacidade dos
mármores sem pupilas,
o juiz encarou o Promotor Público que assumiu agora o rosto completo de
um advogado, totalmente perscrutador, totalmente alerta, os pensamentos
voando por trás dele, rápidos e secretos, O juiz olhou duramente para o
jovem advogado, o gorducho, Em seguida voltou o olhar para Rittenmeyer.
— O caso está encerrado — disse ele —, mas se ainda desejar fazer
alguma declaração, pode fazê-la, -— Agora não se ouviu ruído algum, nem
mesmo o respirar que Wilbourne ouvira, exceto o seu próprio e do jovem
advogado ao seu lado, enquanto Rittenmeyer se dirigia ao banco das
testemunhas. — Rato caso está encerrado — disse o juiz, — O acusado está
aguardando a sentença. Faça sua declaração daí. — Rittenmeyer se deteve,
Não estava olhando para o juiz, não estava olhando para coisa alguma, o
rosto calmo, impecável, ultrajado. — Quero fazer uma súplica — disse
ele. Por um instante o juiz não se moveu, encarando Rittenmeyer, o
martelo ainda agarrado ao punho como um sabre, para em seguida se
inclinar lentamente para a frente, sempre encarando Rittenmeyer; e
Wilbourne ouviu principiar o enorme inalar, a formação do espanto e da
incredulidade. — O senhor o quê? — disse o juiz. — O quê? Uma súplica?
259
Para este homem que intencional e deliberadamente executou uma
operação na sua esposa que ele sabia poderia ter-lhe causado a morte,
como o fez? — E então o rugir em ondas, renovadas: ele pôde ouvir o
pisotear no som e as destacadas vozes gritantes, os policiais do
tribunal marchando contra a onda como uma equipe de futebol americano:
um vórtice de fúria e torvelinho rodopiando em volta do tranqüilo,
imóvel e ultrajado rosto sobre o macio casaco belíssimamente bem
cortado: — Enforquem os dois! Enforquem eles! Ponham os dois juntos na
cadeia! Deixem o filho da puta operar ele com a faca! — ainda rugindo
acima do estrépito e da gritaria, morrendo por fim, mas ainda não
cessando, elevando-se outra vez do lado de fora do prédio, o juiz agora
de pé, os braços escorados pela bancada, ainda agarrando o martelo, a
cabeça se contorcendo e tremendo, a cabeça, na verdade, de um homem
muito velho. Em seguida se afundou mais na cadeira, a cabeça se
contorcendo como fazem as cabeças dos velhos, porém a voz bastante
calma, fria: — Dê a este homem proteção até sair da cidade. Providencie
que ele saia daqui imediatamente. — Não acho que ele deve tentar sair do
prédio agora, Meritíssimo — disse o meirinho. — Ouça só lá fora! — Mas
ninguém precisava ouvir para escutá-los, nada histéricos então, só
ultrajados e raivosos. — Não estão com aquela raiva de enforcar, só
aquela de tacar piche e cobrir de penas. Mas de qualquer maneira — —
Muito bem — disse o juiz. — Leve-o para o meu gabinete. Mantenha-o lá
até anoitecer. Depois faça-o sair da cidade. Senhores do júri, os
senhores considerarão o prisioneiro culpado das acusações e darão seu
veredicto que encerra uma sentença de trabalhos forçados na
Penitenciária Estadual de Parchman por um período não menor do que
cinqüenta anos. Podem se retirar. — Não creio que seja necessário,
Meritíssimo — disse o presidente do júri. — Acho que nós todos — O juiz
se voltou para ele na aguda e trêmula voz dos velhos. -— Os senhores se
retirarão! Querem ser detidos por desrespeito à corte? — Ausentaram-se
por menos de dois minutos,
260
mal o tempo do meirinho abrir e fechar a porta. Do lado de fora o ruído
prosseguia, subindo e descendo. Naquela tarde choveu outra vez, uma
brilhante cortina prateada rugindo não se sabe de onde, antes de o sol
poder ser escondido, galopando como um potro solto, indo para o nada,
voltando em seguida, trinta minutos depois, rugindo, brilhante e
inofensiva nas suas próprias pegadas fumegantes. Porém logo após
escurecer, quando ele foi recambiado à cela, o céu estava inebriante e
imaculado sobre o derradeiro verde do crepúsculo, arqueando a estrela
vespertina, a palmeira apenas murmurando além das grades, estas ainda
frias nas suas mãos por causa da água da chuva há muito evaporada. Então
entendeu o que Rittenmeyer quis dizer. E entendeu por quê, Ouviu dois
pares de pés outra vez mas não se voltou da janela até que a porta
tivesse sido aberta e ressoasse e se chocasse e Rittenmeyer tivesse
entrado e ficado parado, por um momento, encarando-o, Em seguida,
Rittenmeyer tirou algo do bolso e atravessou a cela, a mão estendida. —
Tome — disse ele. Era uma caixinha de remédio sem nome. Continha um
tablete branco, Por um instante, Wilbourne examinou-a imbecilmente,
embora isto fosse só por um instante. Em seguida disse tranquilamente:
— Cianureto, — Sim — disse Rittenmeyer. Voltou-se, já estava se
retirando: o rosto tranqüilo, ultrajado e consistente, o homem que
sempre estivera certo e nunca encontrara a paz nisso, — Mas eu não —
disse Wilbourne. — Como o fato de eu estar morto poderá ajudar. — Então
pensou entender. E disse: — Espere. — Rittenmeyer chegou à porta e pôs a
mão sobre ela. Mesmo assim parou, olhando para trás. — É porque me
perdi. Não penso direito. Rápido. — O outro o encarou, esperando. — Eu
agradeço. Eu realmente agradeço. Gostaria de ter certeza de que faria o
mesmo por você se fosse o caso. — Então Rittenmeyer sacudiu a porta uma
vez e olhou novamente para Wilbourne, o rosto consistente e seguro e
para sempre amaldiçoado. O carcereiro apareceu e abriu a porta.
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Não estou fazendo isso por você — disse Rittenmeyer. — Tire essa maldita
idéia da cabeça. — E saiu, a porta bateu; e não foi um lampejo de
compreensão, isso seria tranqüilo demais, foi simplesmente o encaixar
de um desenho enredado. É claro, pensou Wilbourne. Aquele último dia em
Nova Orleans. Ele prometeu a ela. Ela disse: não este infeliz trapalhão
do Wilbourne e ele prometeu a ela. Foi isto. Foi tudo. Encaixou no
desenho tranqüilo e assim permaneceu, o tempo suficiente para que ele o
visse, fluindo em seguida, evanescendo, esvaindo-se de toda a lembrança
para sempre e somente restando a memória eterna e inescapável, enquanto
houvesse a carne para ser excitada. E agora ele estava por alcançá-la,
pensá-la em palavras, de forma que então estava bem e se voltou para a
janela e, segurando a caixa aberta cuidadosamente por baixo e
espremendo o tablete num papel de cigarro dobrado entre o polegar e o
indicador, esfregou cuidadosamente o tablete até transformá-lo em pó,
numa das grades inferiores, colocando a última poeira para dentro da
caixa e limpando a grade com o papel de cigarro e esvaziou a caixa no
chão e com a sola do sapato misturou-a com o pó, as antigas disparadas
e restos de creolina até que tivesse desaparecido completamente e
queimou o papel de cigarro e voltou para a janela. Lá o estavam
esperando realmente e lhe dariam a mão quando chegasse o momento. Agora
pôde ver a luz no casco de concreto, na vigia do tombadilho que ele
vinha chamando de cozinha há semanas, como se vivesse lá; e então com
um murmúrio preliminar na palmeira se iniciou uma leve brisa da costa,
trazendo com ela o cheiro dos pântanos e do jasmim silvestre, soprando
sempre sob o oeste moribundo e a estrela brilhante; era noite. Portanto,
não era só memória. Memória era apenas uma parte disso, não era o
bastante. Mas deve estar em alguma parte, pensou. Eis aí o desperdício.
Não apenas meu. Pelo menos penso que não quero dizer apenas meu. Espero
que eu não queira dizer apenas meu. Que seja de todos, pensando,
lembrando do corpo, das coxas largas e das mãos que gostavam de putaria
e de fazer coisas. Parecia tão pouco, tão pouco para se querer, para se
pedir.
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Com todo o arrastar para o túmulo, com toda a velha,
enrugada, murcha e derrotada adesão nem sequer a derrota senão a um
antigo hábito; aceitando a derrota até para que fosse permitido se
agarrar ao hábito — os pulmões asmáticos, as doloridas entranhas
incapazes de prazer. Mas apesar de tudo a memória poderia viver nas
velhas entranhas arquejantes: e agora a tinha nas mãos incontroversa e
clara, serena, a palmeira batendo e murmurando seca e selvagem e fraca e
na noite, mas ele a podia enfrentar, pensando: Não é que possa, é que
quero viver. Portanto é a velha carne afinal das contas, não importa
quão velha seja. Porque se a memória existe fora da carne, não será
memória pois não saberá do que se lembra de forma que e quando ela veio
a não ser uma parte da memória veio a não ser e se eu vier a não ser
toda a memória deixará de existir. — Sim, pensou, entre a dor e o
nada, escolherei a dor.
William Faulkner
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