Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
P A L O M A R
As férias de Palomar
Palomar na praia
Leitura de uma onda
O mar está levemente encrespado e pequenas ondas vêm bater na costa arenosa. O senhor Palomar encontra-se na praia, de pé, e observa uma onda. Não se pode dizer que esteja absorto na contemplação das ondas. Não está absorto, porque sabe muito bem aquilo que faz: pretende observar uma onda e observa-a. Não está contemplando, porque para a contemplação é necessário um temperamento adequado, um estado de espírito adequado e um conjunto de circunstâncias externas adequadas: e apesar do senhor Palomar não ter qualquer questão de princípio contra a contemplação., nenhuma destas três condições se verifica no seu caso. Finalmente, não são as "ondas" que ele pretende observar, mas uma única onda e basta: querendo evitar as sensações vagas, estabelece para cada um dos seus actos um objectivo limitado e bem definido.
O senhor Palomar vê despontar uma onda lá ao longe, vê-a crescer, aproximar-se, mudar de forma e de cor, enrolar-se sobre si própria, quebrar-se, desvanecer, refluir. Chegado a este ponto, poderia convencer-se de ter levado a cabo a operação que tinha decidido efectuar e poderia ir-se embora. Mas isolar uma onda, separando-a da onda que imediatamente se lhe segue e que parece empurrá-la, e que por vezes a alcança e a arrasta consigo, é muito difícil; assim como separá-la da onda que a precede e que parece arrastá-la atrás de si em direcção à costa, salvo quando depois, eventualmente, se volta contra ela, como que para a deter.
Se além disso se considerar cada vaga no sentido do comprimento, paralelamente à costa, é difícil estabelecer até onde a frente que avança se estende com continuidade e onde se separa e se segmenta em ondas individualizadas, distinguíveis pela velocidade, forma, força, direcção.
Em resumo, não se pode observar uma onda sem ter em conta os aspectos complexos que concorrem para a sua formação e aqueles outros, igualmente complexos, a que essa mesma onda dá lugar. Estes aspectos variam continuamente, pelo que uma onda é sempre diferente de uma outra onda; mas também é verdade que cada onda é igual a uma outra onda, mesmo que não seja aquela que lhe é imediatamente contígua ou sucessiva; em resumo, existem formas e sequências que se repetem, ainda que irregularmente distribuídas no espaço e no tempo. Como aquilo que o senhor Palomar pretende fazer neste momento é simplesmente ver uma onda, ou seja, colher todas as suas componentes sem descurar nenhuma delas, o seu olhar deter-se-á no movimento da água que bate na costa, até poder registar aspectos ainda não recolhidos anteriormente; assim que se aperceber de que as imagens se repetem, saberá que viu tudo o que queria ver e então poderá parar.
Homem nervoso, vivendo num mundo frenético e congestionado, o senhor Palomar tende a reduzir as suas relações pessoais com o mundo exterior e para se defender da neurastenia generalizada, procura, tanto quanto possível, manter as suas sensações sob controlo.
A crista da onda que avança levanta-se num ponto determinado, mais do que nos outros, e é ali que começa a franjar-se de branco. Se isso acontece a uma certa distância da costa, a espuma tem tempo de se enrolar sobre si própria e de desaparecer de novo, como que engolida, para no mesmo momento tornar a envolver tudo, mas desta vez despontando de baixo, como um tapete branco que trepa pela praia acima para acolher a onda que está para chegar. Mas, quando se espera que a onda role sobre o tapete, verifica-se que já não há onda, mas somente o tapete, e mesmo este desaparece rapidamente, tornando-se uma cintilação de areia molhada que se retira veloz, como se fosse empurrada pela areia enxuta e opaca que faz avançar o seu limite ondulado.
Ao mesmo tempo, torna-se necessário considerar as reentrâncias da linha frontal, onde a onda se divide em duas alas, uma que tende para a costa da direita para a esquerda e outra da esquerda para a direita, e o ponto de partida ou de chegada desse seu divergir ou convergir é esta extremidade em negativo, que segue o avançar das ondas mas que é sempre mantida mais atrás do que elas, sujeita ao seu alternado sobrepor-se, até ser alcançada por uma outra vaga mais forte, a qual enfrenta por sua vez o mesmo problema de divergência/convergência, e em seguida por uma outra ainda mais forte, que desfaz o redemoinho, rebentando com ele.
Tomando como modelo o desenho das ondas, a praia insinua na água algumas línguas de areia mal delineadas, que se prolongam em bancos submersos, daqueles que as marés fazem e desfazem a cada maré. Foi uma destas baixas línguas de areia que o senhor Palomar escolheu como ponto de observação, porque as ondas batem nela obliquamente de um lado e do outro, e ao cavalgarem a superfície semi-Submersa encontram-se com as que chegam do outro lado. Assim, para compreender como é feita uma onda, há que ter em conta estes impulsos em direcções opostas, que em certa medida se contrabalançam e em certa medida se vão somando, produzindo uma rebentação generalizada de todos os impulsos e contra-impulsos no rotineiro alastrar da espuma.
O senhor Palomar procura agora limitar o seu campo de observação; se ele considerar um quadrado, digamos, de dez metros de mar, pode fazer um inventário completo de todos os movimentos de ondas que ali se repitam com variadas frequências, num dado intervalo de tempo. A dificuldade consiste em fixar os limites desse quadrado, porque se ele considerar, por exemplo, como o lado mais distante de si a linha mais proeminente de uma onda que avança, esta linha, ao aproximar-se dele e ao elevar-se, esconde aos seus olhos tudo aquilo que está por detrás dela; e eis que o espaço tomado em consideração se inverte e se reduz ao mesmo tempo.
De qualquer modo, o senhor Palomar não desanima e pensa, em cada momento, que viu tudo aquilo que podia ver a partir do seu ponto de observação; mas acaba por aparecer sempre qualquer coisa que ele não tinha tomado em consideração. Não fora esta sua impaciência por alcançar um resultado completo e definitivo através da sua operação visual, o observar das ondas seria para ele um exercício muito repousante e poderia salvá-lo da neurose, do enfarte e da úlcera gástrica. E talvez pudesse ser essa a chave para dominar a complexidade do mundo, reduzindo-a ao seu mecanismo elementar.
Mas cada uma das tentativas para definir este modelo tem de se haver com uma onda longa, que sobrevém numa direcção perpendicular à rebentação e paralela à costa, fazendo deslizar uma crista contínua que mal aflora à superfície. Os saltos das ondas, que se vão emaranhando em direcção à costa, não perturbam o impulso uniforme dessa crista compacta, que as corta em ângulo recto e que não se sabe para onde vai nem de onde venha. Talvez seja uma brisa de levante que faz mover a superfície do mar perpendicularmente ao impulso profundo que chega das massas de água situadas ao largo, mas esta onda que nasce do mar, recolhe também, ao passar, os impulsos oblíquos que nascem da água, desvia-os e fá-los tomar a sua direcção, e leva-os consigo. Continua assim a crescer e a ganhar força, até que o choque com as ondas contrárias a extingue aos poucos, fazendo-a desaparecer, ou então a torce, fazendo-a confundir-se com uma dessas muitas dinastias de ondas oblíquas, atirada à costa com elas. E Fixar a atenção sobre um pormenor fá-lo saltar para o primeiro plano e invadir o quadrado, como no caso de certos desenhos em que basta fechar os olhos e reabri-los para que a perspectiva tenha mudado. Agora, neste cruzamento de cristas de variada orientação, o desenho global aparece fragmentado em painéis que emergem e se desvanecem. Acrescente-se ainda que o reflexo de cada uma das ondas tem ele próprio a sua força, que contraria as ondas que se lhe seguem. E se se concentrar a atenção sobre estes impulsos para trás, parece que o verdadeiro movimento é aquele que parte da costa e vai em direcção ao largo.
Será que o verdadeiro resultado a que o senhor Palomar está a chegar é o de fazer correr as ondas em sentido oposto, o de inverter o tempo, o de apreender a verdadeira substância do mundo, para lá dos hábitos Sensoriais e mentais? Não, ele chega apenas até ao ponto em que se experimenta um ligeiro sentimento de vertigem, nada mais. A obstinação que impele as ondas em direcção à costa acaba por vencer: de facto, as ondas cresceram enormemente. Será o vento que está a mudar? Que desgraça seria se a imagem que o senhor Palomar conseguiu minuciosamente construir se baralhasse e se quebrasse e se dispersasse. Só se conseguir lembrar-se do conjunto de todos os aspectos é que poderá iniciar a segunda fase da operação: estender este conhecimento ao universo inteiro.
Bastaria não perder a paciência, o que não tarda a acontecer. O senhor Palomar afasta-se pela praia fora, com os nervos tão tensos como quando chegara, e ainda mais inseguro acerca de tudo.
O seio nu
O senhor Palomar caminha ao longo de uma praia solitária. Encontra poucos banhistas. Uma mulher jovem está estendida na areia, apanhando sol com os seios descobertos. Palomar, homem discreto, volve o seu olhar para o horizonte marinho. Sabe que em semelhantes circunstâncias, quando um desconhecido se aproxima, as mulheres, geralmente, apressam-se a cobrir-se, e isso não lhe parece bem: porque é aborrecido para a banhista que apanha sol tranquilamente; porque o homem que passa sente que importuna; porque o tabu da nudez fica implicitamente confirmado; porque as convenções não inteiramente respeitadas propagam a insegurança e a incoerência no comportamento, em vez da liberdade é da franqueza.
Por isso, assim que vê aparecer à distância a nuvem brônzeo-rósea de um torso nu feminino, apressa-se a colocar a cabeça de molde a que a trajectória do seu olhar permaneça suspensa no vazio, como garante do seu respeito cívico pela fronteira invisível que circunda as pessoas.
No entanto - pensa ele continuando a caminhar e, mal o horizonte se encontra desocupado, retomando o livre movimento do globo ocular - eu, assim fazendo, ostento uma recusa de ver, eu próprio acabo por reforçar a convenção que considera ilícita a vista do seio, ou seja, instituo uma espécie de soutien mental, suspenso entre os meus olhos e aquele peito, o qual, a julgar pelo reflexo que dele chegou aos confins do meu campo visual, me pareceu fresco e agradável à vista. Em suma, o meu não olhar pressupõe que estou a pensar naquela nudez, que me preocupo com ela, o que no fundo é ainda uma atitude indiscreta e retrógrada.
Regressando do seu passeio, Palomar volta a passar diante daquela banhista e desta vez mantém o olhar fixo à sua frente, de modo a que este aflore com uma imparcial uniformidade a espuma das ondas que recuam, os cascos dos barcos postos em seco, a toalha turca estendida na areia, a pródiga lua cheia de pele mais clara com a auréola castanha do mamilo, o perfil da costa na bruma que contrasta, cinzenta, contra o céu.
Aí está - reflecte ele satisfeito consigo próprio, prosseguindo a sua caminhada - consegui fazer com que o seio fosse completamente absorvido pela paisagem e com que o meu olhar não tivesse mais peso do que o olhar de uma gaivota ou de um badejo.
Mas será verdadeiramente justo proceder assim? - reflecte ainda Palomar. - Ou não será isso rebaixar a pessoa humana ao nível das coisas, considerá-la um objecto e, o que é ainda pior, considerar como um objecto aquilo que na pessoa é específico do sexo feminino? Não estarei eu talvez a perpetuar o velho hábito da supremacia masculina, enquistada através dos tempos numa insolência rotineira?
Volta-se e regressa sobre os seus próprios passos. Agora, ao obrigar o seu olhar a percorrer a praia com imparcial objectividade, procede de modo a que, mal o peito da mulher entre no seu campo visual, se note uma descontinuidade, um desvio, quase um sobressalto. O olhar avança até aflorar a pele tensa, recua, como que avaliando com um ligeiro arrepio a consistência diferente da visão e o valor especial que ela adquire, e fica por um momento a pairar no ar, descrevendo uma curva que acompanha o relevo do seio a uma certa distância, de uma forma evasiva mas simultaneamente protectora, para depois retomar o seu curso, como se nada se tivesse passado.
Creio que assim a minha posição resulta bem clara - pensa Palomar - sem qualquer possibilidade de haver mal-entendidos. E, no entanto, este sobrevoar do olhar não poderia acabar por ser entendido como uma atitude de superioridade, um subestimar daquilo que um seio é e daquilo que ele significa, colocando-o, de algum modo, à parte, à margem, ou entre parêntesis? Lá estou eu outra vez a relegar o seio para a penumbra em que foi mantido por séculos de pudicícia sexo-maníaca e de pecado de concupiscência...
Semelhante interpretação vai contra as melhores intenções de Palomar que, apesar de pertencer a uma geração madura, para a qual a nudez do peito feminino era associada à ideia de intimidade amorosa, aplaude no entanto esta mudança nos usos e costumes, quer pelo que ela significa como reflexo de uma mentalidade mais aberta, quer porque uma tal visão lhe é particularmente grata, E esse apoio desinteressado que ele gostaria de conseguir exprimir no seu olhar.
Faz meia-volta. Com passos decididos, encaminha-se uma vez mais na direcção da mulher estendida ao sol. Desta vez o seu olhar, lambendo voluptuosamente a paisagem, deter-se-á sobre os seios com especial atenção, mas apressar-se-á a considerá-los como parte de um arrebatamento de benevolência e de gratidão pelo todo, pelo sol e pelo céu, pelos pinheiros inclinados, pela duna e a areia e os escolhos e as nuvens e as algas, pelo cosmos que gira em torno daqueles cumes aureolados.
Tanto deveria bastar para tranquilizar definitivamente a banhista solitária e para desembaraçar o ambiente de ilações deslocadas. Mas assim que ele volta a aproximar-se, hei-la que se levanta de repente, cobrindo-se e bufando aborrecida, afastando-se e encolhendo enfastiadamente os ombros, como se estivesse a fugir às molestas insistências de um sátiro.
O peso-morto de uma tradição de maus costumes não permite que se apreciem com a devida justiça as intenções mais iluminadas, conclui amargamente o senhor Palomar.
A espada do sol
O reflexo aparece no mar quando o sol desce: uma mancha ofuscante estende-se a partir do horizonte até à costa, feita de miríades de cintilações ondulantes; entre uma cintilação e outra, o azul opaco do mar ensombra a sua rede. Os barcos, brancos em contraluz, tornam-se negros, perdem consistência e encolhem, como se tivessem sido consumidos por todas aquelas salpicadelas resplandecentes.
É a essa hora que o senhor Palomar, homem de hábitos nocturnos, dá as suas braçadas crepusculares. Entra na água, afasta-se da costa, e o reflexo do sol transforma-se numa espada cintilante, que se estende pelo mar, do horizonte até ele. O senhor Palomar nada nessa espada, ou melhor dizendo, a espada permanece sempre diante de si, retrai-se a cada uma das suas braçadas e nunca se deixa alcançar. Por onde quer que estenda os braços, o mar retoma a sua opaca cor crepuscular, que se estende por detrás dele até à costa.
Enquanto o sol desce em direcção ao ocaso, o reflexo branco e incandescente vai-se tingindo de ouro e de cobre. E, para onde quer que o senhor Palomar se desloque, é sempre ele o vértice daquele triângulo dourado; a espada segue-o, apontando-o como um ponteiro de relógio que tem' por centro o sol.
"É uma homenagem pessoal que o sol me faz a mim pessoalmente", sente-se tentado a pensar o senhor Palomar, ou antes, o eu egocêntrico e megalómeno que nele habita. Mas o eu depressivo, ou masoquista, que coexiste com o outro no mesmo invólucro, objecta: "Todos aqueles que têm olhos podem ver este reflexo que os segue; a ilusão dos sentidos e da mente mantém-nos sempre a todos prisioneiros". Intervém então um terceiro inquilino, um eu mais imparcial: "De qualquer modo, quer dizer que eu pertenço ao grupo dos sujeitos sensíveis e pensantes, capazes de estabelecerem uma relação com os raios solares e de interpretarem e avaliarem as percepções e as ilusões".
Todos os banhistas que nadam a esta hora em direcção ao poente podem ver essa tira de luz que se dirige em direcção a eles, para se apagar um pouco mais além do ponto que as suas braçadas conseguem alcançar; cada um deles possui um reflexo seu, que só para si tem aquela direcção, e que se desloca com ele. De ambos os lados do reflexo, o azul da água é mais escuro. "Será esse o único dado não ilusório, comum a todos, a escuridão?" pergunta a si mesmo o senhor Palomar. Mas a espada impõe-se igualmente ao olhar de cada um, não existe maneira de lhe fugir. "O que temos em comum é precisamente aquilo que é dado a cada um como exclusivamente seu?"
As pranchas de wind surf deslizam na água, cortando com rotas oblíquas o vento de terra que se levanta a esta hora. Figuras erectas seguram o aro da vela com os braços esticados como se fossem archeiros, sustendo o ar que bate com violência no pano. Quando atravessam o reflexo, as cores da vela ficam atenuadas, no meio do ouro que as envolve, e a silhueta dos corpos opacos parece entrar na noite.
" Tudo isto não acontece no mar, nem no sol - pensa o nadador Palomar - mas sim dentro da minha cabeça, nos circuitos entre os olhos e o cérebro. Estou a nadar na minha mente; só dentro dela é que a espada de luz existe; e é exactamente isso que me atrai. E este o meu elemento, o único que, de alguma forma, eu posso conhecer".
Mas pensa também: "Não a posso alcançar, está sempre ali à minha frente, não pode, ao mesmo tempo, estar dentro de mim e ser alguma coisa na qual eu nado, se a vejo é porque estou fora dela e ela fica fora de mim".
As suas braçadas tornam-se pesadas e incertas: dir-se-ia que todo o seu raciocínio, em vez de lhe aumentar o prazer de nadar naquele reflexo, o está a estragar, como se lhe fizesse sentir uma limitação, ou uma culpa, ou uma condenação. E até uma responsabilidade à qual não pode escapar: a espada só existe porque ele está ali; se ele se fosse embora, se todos os banhistas e nadadores voltassem para a praia, ou, mesmo, se se limitassem a voltar as costas ao sol, onde iria parar a espada? Num mundo que se vai desfazendo, a coisa que ele gostaria de salvar é a mais frágil: aquela ponte marinha entre os seus olhos e o sol poente. O senhor Palomar perdeu a vontade de nadar; sente frio. Mas continua: agora será obrigado a permanecer na água até que o sol desapareça.
E então pensa: "Se eu vejo e penso e nado o reflexo, é porque na outra ponta está o sol que lança os seus raios. Só interessa a origem daquilo que é: algo que o meu olhar não pode suster senão de uma forma atenuada, como neste pôr-de-sol. Tudo o resto é reflectido entre os reflexos, incluindo eu próprio".
Passa o fantasma de uma vela; a sombra de um homem-mastro desliza entre as escamas luminosas. (Sem o vento, esta caranguejola, este amontoado articulado de plástico, ossos e tendões humanos, escotas de nylon, não se aguentaria de pé; é o vento que faz dela uma embarcação aparentemente dotada de uma específica finalidade e intenção; só o vento sabe para onde vai o surf e o surfista), pensa ele. Que alívio sentiria se pudesse anular o seu eu parcial e cheio de dúvidas na certeza de um princípio do qual tudo derivasse! Um princípio único e absoluto, onde actos e formas encontrassem a sua origem? Ou então um certo número de princípios distintos, linhas de força cuja intersecção desse uma forma ao mundo, tal qual ele aparece, único, instante a instante?
"... o vento" também, é evidente, o mar, a massa de água que o sustém, os sólidos que andam a boiar e que flutuam, como eu e como a prancha", pensa o senhor Palomar boiando de costas.
O seu olhar invertido contempla agora as nuvens errantes e as colinas nebulosas dos bosques. Também o seu eu está deitado sobre os elementos: o fogo celeste, o ar em movimento, a água-berço e a terra-apoio. Será esta a natureza? Mas nada do que ele vê existe na natureza; o sol põe-se, o mar não tem aquela cor, as formas são aquelas que a luz projecta na retina. Executando com os seus membros movimentos que não são naturais, Palomar flutua por entre espectros; silhuetas humanas, em posições que não são naturais, ao deslocarem os seus pesos, não aproveitam o vento, mas antes uma abstracção geométrica de um ângulo entre o vento e a inclinação de um instrumento artificial, e é assim que deslizam sobre a pele lisa do mar. A natureza não existe?
O eu nadador do senhor Palomar encontra-se imerso num mundo incorpóreo, intersecções de campos de forças, gráficos vectoriais, feixes de redes que convergem, divergem, que se refractam. Mas dentro dele permanece um ponto no qual tudo existe de uma outra forma, como um nó, como um coágulo, como um entupimento: a sensação de que estamos aqui, mas poderíamos não estar, num mundo que poderia não estar aqui, mas está.
Uma onda intrusa perturba a lisura do mar; um gasolina surge de repente e afasta-se veloz, espalhando nafta e saltando aos chapões sobre o seu casco. A película de reflexos gordurosos e de cores cambiantes da nafta vai alastrando pela água; aquela consistência material que falta ao esplendor do sol não pode ser posta em dúvida no caso deste rasto da presença física do homem, que dissemina a sua esteira de restos de carburante, detritos de combustão, resíduos não assimiláveis, misturando e multiplicando a vida e a morte à sua volta.
"Este é o meu habitat - pensa Palomar - e não se trata de o aceitar ou de o excluir, porque só aqui neste meio posso existir". Mas se o destino da vida na terra já estivesse escrito? Se a corrida para a morte se tornasse mais forte do que qualquer possibilidade de recuperação?
A vaga vai rolando, qual cavalão solitário, até que se abate sobre a costa; e onde parecia nada haver para além de areia, cascalho, algas e pequeníssimas conchas, a água que se retira deixa agora ver uma faixa de praia constelada de latas, de caroços, de preservativos, de peixes mortos, de garrafas de plástico, de socas partidas, de seringas, de veios negros de massa lubrificante.
O senhor Palomar, que também foi empurrado pela vaga provocada pelo gasolina, arrastado pela maré de escórias, sente-se repentinamente como um destroço por entre destroços, cadáver arrastado sobre as praias-caixotes-de-lixo de continentes-cemitérios. Se, para além dos olhos vidrados dos mortos, nenhum outro olho voltasse a abrir-se sobre a face do globo aquoterrestre, a espada não voltaria a brilhar.
Pensando bem, uma tal situação já não é nova: durante milhões de séculos, os raios do sol poisavam sobre a água, antes de existirem olhos capazes de os recolher.
O senhor Palomar nada debaixo de água; reemerge; lá está a espada! Um dia, um olho saíu do mar, e a espada, que já estava lá à sua espera, pôde por fim exibir-se em toda a elegância da sua ponta aguda e do seu cintilante esplendor. Tinham sido feitos um para o outro, o olho e a espada: e talvez não tenha sido o nascimento do olho que fez nascer a espada, mas antes o inverso, já que a espada não podia prescindir de um olho que a olhasse do seu vértice.
O senhor Palomar interroga-se sobre o que seria o mundo sem ele: o mundo ilimitado de antes do seu nascimento, e o outro, bem mais sombrio, de depois da sua morte; tenta imaginar o mundo de antes dos olhos, de antes de qualquer olho; e um mundo que amanhã se tornasse cego na sequência de uma catástrofe ou de uma lenta corrosão. Que acontece (aconteceu, acontecerá) nesse mundo? Um dardo de luz parte do sol, pontual, reflecte-se no mar calmo, cintila no tremor da água, e eis que a matéria se torna receptiva em relação à luz, que se diferencia transformando-se em tecidos vivos, e que, num abrir e fechar de olhos, uma multidão de olhos floresce, ou refloresce...
Agora todas as pranchas de surf recolheram à praia e até mesmo o último banhista. arrepiado - um banhista chamado Palomar - sai da água. Está convencido de que a espada existirá mesmo sem ele: finalmente, enxuga-se com uma toalha turca e regressa a casa.
Palomar no jardim
Os amores das tartarugas
Há duas tartarugas no quintal: macho e fêmea. Claque! Claque! As carapaças batem uma na outra. É a estação dos amores. O senhor Palomar, sem ser visto, espreita.
O macho empurra a fêmea de lado, ao longo do degrau do passeio. Parece que a fêmea resiste, ou pelo menos opõe uma imobilidade um tanto ou quanto inerte. O macho é mais pequeno e activo, dir-se-ia mais jovem. Tenta montá-la várias vezes, por detrás, mas o dorso da carapaça é inclinado e ele escorrega.
Parece agora ter encontrado a posição ideal. Ataca com solavancos ritmados, entremeados por pausas; a cada solavanco emite um suspiro, quase um grito. A fêmea tem as patas dianteiras espalmadas no chão, o que a leva a soerguer a parte traseira. O macho raspa com as patas anteriores a carapaça da fêmea, estendendo o pescoço para a frente, esticando-se de boca aberta. O problema que existe com estas carapaças é que não há onde agarrar e de resto as patas não conseguem agarrar nada.
Agora ela foge dele e ele persegue-a. Não que seja muito rápida, nem que esteja muito decidida a fugir-lhe: para a reter, ele dá-lhe pequenas dentadas numa pata, sempre a mesma. Ela não se rebela. O macho, cada vez que ela pára, tenta montá-la, mas ela dá um pequeno passo em frente e ele escorrega e bate com o membro no chão. É um membro bastante comprido, em forma de gancho, com o qual se diria que ele a consegue alcançar, mau grado a espessura das carapaças que os separam e a postura desajeitada. Assim, não é possível dizer quantos destes assaltos são bem sucedidos, quantos falham, quantos são apenas jogo, teatro.
É Verão, o quintal está despido, com excepção de uma planta de jasmim verde existente a um canto. A corte consiste em dar uma série de voltas ao pequeno prado, com perseguições e fugas e escaramuças, não das patas mas sim das carapaças, que chocam uma com a outra com um tique-taque surdo. E por entre os caules do jasmim que a fêmea procura enfiar-se; pensa - ou quer dar a entender que o faz para se esconder; mas de facto, aquela é a maneira mais segura de ficar bloqueada pelo macho, imobilizada, sem possibilidade de fuga. Agora é provável que ele tenha conseguido introduzir o membro como deve ser; mas desta vez permanecem ambos muito quietos, silenciosos.
Quais possam ser as sensações de duas tartarugas que acasalam é coisa que o senhor Palomar não consegue imaginar. Observa-as com uma atenção fria, como se de duas máquinas se tratasse; duas tartarugas electrónicas, programadas para acasalarem. O que será o eros quando no lugar da pele existem placas de osso e escamas córneas? Mas mesmo aquilo a que nós chamamos eros não será talvez um programa das nossas máquinas corpóreas, mais complicado, apenas porque a memória recolhe as mensagens de cada célula cutânea, de cada molécula dos nossos tecidos, e as multiplica, combinando-as com os impulsos transmitidos pela vista e com os que são suscitados pela imaginação? A diferença reside unicamente no número de circuitos envolvidos no processo: dos nossos receptores partem biliões de fios, ligados ao computador dos sentimentos, dos condicionamentos, dos laços de pessoa a pessoa... O cros é um programa que se desenrola nos meandros electrónicos da mente, mas a mente é também pele: pele tocada, vista, recordada. E as tartarugas, fechadas no seu estojo insensível? A penúria de estímulos Sensoriais obriga-as talvez a uma vida mental concentrada, intensa, leva-as a um conhecimento interior cristalino... Talvez o eros das tartarugas siga leis espirituais absolutas, enquanto nós estamos prisioneiros de um maquinismo que não sabemos como funciona, sujeito a entupir-se, a encravarse, a desencadear automatismos sem controlo...
Compreender-se-ão melhor a si mesmas as tartarugas? Após uma dezena de minutos de acasalamento, as duas carapaças separam-se. Ela à frente, ele atrás, recomeçam a girar à volta do prado. Agora o macho parece mais indiferente, de vez em quando aparenta uma certa agitação, dando uma patada na carapaça da fêmea, põe-se por um momento em cima dela, mas sem muita convicção. Voltam para debaixo do jasmim. Ele morde-lhe ligeiramente uma pata, sempre no mesmo ponto.
O assobio do melro
O senhor Palomar tem sorte numa coisa: passa o Verão num sítio onde cantam muitos pássaros. Enquanto se encontra estendido numa cadeira de repouso e "trabalha" (de facto, tem ainda sorte numa outra coisa: poder dizer que trabalha em lugares e posições que se diriam do mais absoluto repouso; ou melhor dizendo, tem esta cruz: sentir-se obrigado a não parar nunca de trabalhar, mesmo quando está estendido sob as árvores, numa manhã de Agosto) os pássaros, invisíveis entre os ramos, espalham à volta dele um repertório das mais variadas expressões sonoras, envolvem-no num espaço acústico irregular, descontínuo e requebrado, mas dentro do qual se estabelece um equilíbrio entre os vários sons, nenhum dos quais se eleva acima dos outros em intensidade ou frequência, e todos se entrelaçam num enredo homogéneo, que não é interligado pela harmonia, mas antes pela leveza e transparência. Até ao momento em que, na hora de maior calor, a feroz multidão dos insectos acaba por impor o seu domínio absoluto sobre as vibrações do ar, ocupando sistematicamente as dimensões do tempo e do espaço com o martelar ensurdecedor e ininterrupto das cigarras.
O canto dos pássaros ocupa um espaço variável na atenção auditiva do senhor Palomar: ora o afasta como sendo uma das componentes do silêncio de fundo, ora o concentra para distinguir cada canto, agrupando-os em categorias de crescente complexidade - chilros agudos, trilos de duas notas, urna breve e uma curta, chilreios breves e vibrados, assobios, cascatas de notas que se precipitam vertiginosamente e depois param de repente, encaracoladas modulações que se
enrolam sobre si próprias, e assim de seguida até aos gorjeios.
O senhor Palomar não consegue chegar a uma classificação menos genérica: não é uma daquelas pessoas que ao ouvir um canto sabem reconhecer a que pássaro pertence. Vive esta sua ignorância como se fora uma culpa. O novo saber que o género humano vai adquirindo não compensa o saber que se propaga apenas pela transmissão oral directa, o qual, uma vez perdido, nunca mais se pode readquirir e retransmitir: nenhum livro pode ensinar aquilo que apenas se pode aprender na influencia, se se entrega o ouvido e o olho atentos ao canto e ao voo dos pássaros e se se encontra então alguém que pontualmente lhes saiba dar um nome. Ao culto da precisão nomenclativa e classificativa, Palomar tinha preferido a demanda contínua de uma precisão insegura no definir a modulação, o cambiante, o heterogéneo: ou seja, o indefinível. Hoje faria a escolha oposta; e, seguindo o fio dos pensamentos despertados pelo canto dos pássaros, a sua vida surge-lhe como uma sucessão de ocasiões falhadas.
Entre todos os cantos dos pássaros, destaca-se o assobio do melro, que não se confunde com nenhum outro. Os melros chegam ao fim da tarde: são dois, por certo um casal, talvez o mesmo do ano passado, de todos os anos por esta época. Todas as tardes, ao ouvir um assobio de chamada, em duas notas, como se fosse uma pessoa que quer assinalar a sua chegada, o senhor Palomar levanta a cabeça para ver quem é que o está a chamar; depois lembra-se de que é a hora dos melros. Não tarda a entrevê-los: caminham sobre o prado, como se a sua verdadeira vocação fosse a de bípedes terrestres e se divertissem a estabelecer analogias com o homem.
O assobio dos melros tem isso mesmo de especial: é idêntico a um assobio humano, de alguém que não seja particularmente hábil a assobiar, mas a quem aconteça, de quando em quando, ter um bom motivo para assobiar, e que o faça uma única vez, sem intenção de continuar, e num tom decidido, mas modesto e afável, de modo a granjear-lhe a benevolência de quem o escuta.
Pouco depois, o assobio é repetido - pelo mesmo melro ou pelo seu cônjuge - mas sempre como se fosse a primeira vez que lhe passasse pela mente assobiar; se é um diálogo, então cada deixa chega após uma longa reflexão. Mas será um diálogo ou será que cada melro assobia para si próprio e não para o outro? E, em qualquer dos casos, trata-se de perguntas e respostas (ao outro ou a si próprio) ou trata-se de confirmar alguma coisa (a sua presença, a pertença à espécie, ao sexo, ao território)? Talvez que o valor daquela única palavra resida no facto de ser repetida por um outro bico assobiante, no facto de não ser esquecida durante o intervalo de silêncio.
Ou, então, todo o diálogo consiste em dizer ao outro "eu estou aqui", e o comprimento das pausas junta à frase um significado de "ainda", como que a dizer: "eu ainda estou aqui, continuo a ser eu". E se estivesse na pausa e não no assobio o significado da mensagem? Se fosse no silêncio que os melros falam uns com os outros? (O assobio seria neste caso um mero sinal de pontuação, uma fórmula como "terminado"). Um silêncio aparentemente igual ao urro silêncio poderia exprimir cem intenções diferentes; também um assobio, por outro lado; falar-se, calando-se ou assobiando, é sempre possível; o problema é entender-se. Ou então ninguém pode entender ninguém: cada melro pensa ter posto no assobio um significado fundamental para si, mas que só ele próprio entende; o outro responde qualquer coisa que não tem nenhuma relação com aquilo que ele disse; é um diálogo entre surdos, uma conversa sem pés nem cabeça.
Mas os diálogos humanos serão porventura algo de diferente? A senhora Palomar encontra-se igualmente no jardim, a regar as verónicas. Diz: - Hei-los - enunciação pleonástica (subentende-se que o marido já está a observar os melros) ou então (se ele não os tiver visto) incompreensível, mas que é destinada, de qualquer modo, a estabelecer a sua própria prioridade na observação dos melros (porque efectivamente foi ela a primeira a descobri-los e a assinalar os seus hábitos ao marido) e a sublinhar a infalibilidade das'suas aparições, que foram já registadas por ela inúmeras vezes.
- Psiu! - faz o senhor Palomar, aparentemente para impedir que a sua mulher os assuste falando em voz alta (recomendação inútil, porque os melros marido e mulher estão já habituados à presença dos senhores Palomar marido e mulher) mas na realidade para contestar a vantagem da mulher, demonstrando uma atenção pelos melros muito maior do que a dela.
Então a senhora Palomar diz: - Desde ontem que está novamente seca - referindo-se à terra do canteiro que está a regar, comunicação em si mesma supérflua, mas que é destinada a demonstrar, ao continuar a falar e a mudar de assunto, uma confiança com os melros muito maior e mais desenvolvida do que a do marido. O senhor Palomar, de qualquer modo, extrai desta troca de frases um quadro geral de tranquilidade, e fica grato à mulher por esse facto, porque se ela lhe confirma que de momento não existe nada de mais grave com que se preocupar, ele pode ficar absorvido no seu trabalho (ou pseudotrabalho, ou hipertrabalho). Deixa passar um minuto e tenta por sua vez enviar uma mensagem reconfortante, para informar a mulher de que o seu trabalho (ou infratrabalho ou ultratrabalho) prossegue como de costume; com este fim, imite uma série de sopros e resmungos: - ... correu mal... com tudo o que... do princípio... sim, com o caraças... - enunciações que no seu conjunto transmitem também a mensagem "estou muito ocupado", para o caso de a última observação da mulher conter também uma velada censura do tipo: "tu também poderias pensar em regar o jardim de vez em quando".
O pressuposto destas trocas verbais é a ideia de que um perfeito entendimento entre cônjuges permite compreender-se sem estar a especificar tudo tintim-por-tintim; mas este princípio é posto em prática por cada um deles de modos muito diferentes: a senhora Palomar exprime-se com frases inteiras, mas que são frequentemente alusivas ou sibilinas, destinadas a pôr à prova a rapidez das associações mentais do marido e a sintonia dos pensamentos dele com os dela (coisa que nem sempre funciona); o senhor Palomar, pelo contrário, deixa que das brumas do seu monólogo interior emirjam vagos sons articulados, esperando que deles possa resultar, se não a evidência de um sentido completo, pelo menos a penumbra de um estado de alma.
Pelo seu lado, a senhora Palomar recusa-se a receber estes resmungos como uma conversa e para sublinhar a sua não participação diz em voz baixa: - Psiuuuu! Vais assustá-los... - devolvendo ao marido o silêncio que ele se tinha julgado no direito de lhe contrapor e reconfirmando a sua própria primazia em relação à atenção aos melros.
Tendo marcado este ponto a seu favor, a senhora Palomar afasta-se. Os melros debicam no prado e por certo consideram o diálogo dos cônjuges Palomar como o equivalente dos seus assobios. Mais valia que nos limitássemos a assobiar, pensa ele.' Abre-se aqui uma perspectiva de pensamentos muito prometedora para o senhor Palomar, o qual vive a discrepância existente entre o comportamento humano e o resto do universo como uma constante fonte de angústia. E eis que o assobio igual, do homem e do melro, lhe surge como uma ponte lançada sobre o abismo.
Se o homem investisse no assobio tudo aquilo que normalmente confia à palavra e se o melro modulasse no seu assobio todo o não dito da sua condição de ser natural, estaria dado o primeiro Passo para preencher a distância entre... entre o quê e o quê? Natureza e cultura? Silêncio e palavra? O senhor Palomar espera sempre que o silêncio contenha alguma coisa mais do que aquilo que a linguagem pode dizer. Mas se a linguagem fosse realmente o ponto de chegada para que tende tudo aquilo que existe? Ou se tudo aquilo que existe fosse linguagem, logo desde o início dos tempos? Nesta altura o senhor Palomar volta a ser assaltado pela angústia.
Após ter ouvido atentamente o assobio do melro, experimenta repeti-lo, o mais fielmente que consegue. Segue-se' um silêncio perplexo, tal como se a sua mensagem exigisse um atento exame; a seguir ecoa um assobio igual, que o senhor Palomar não sabe se é uma resposta ou a prova de que o seu assobio é tão diferente que os melros não são minimamente perturbados por ele e retomam o diálogo entre si como se nada fosse.
Continuam a assobiar e a interrogar-se perplexos, ele e os melros.
O prado infinito
Em redor da casa do senhor Palomar existe um prado. Não se trata de um sítio onde, naturalmente, devesse haver um prado: logo, o prado é um objecto artificial, composto por objectos naturais, isto é, ervas. O prado tem por fim representar a natureza e esta representação faz-se substituindo a natureza própria daquele lugar por uma natureza que é em si mesma natural, mas que é artificial em relação àquele lugar, Em suma: custa. O prado exige despesa e fadigas sem fim: para ser semeado, regado, estrumado, desinfestado, cortado.
O prado é constituído por luzema, joio e trevo. Esta é a mistura, em partes iguais, que foi espalhada sobre o terreno no momento da semeadura. A luzerna, anã e rastejante, cedo levou a melhor sobre as outras; o seu tapete de folhinhas redondas e macias vai alastrando, agradável ao pé e à vista. Mas a espessura do prado é dada pelas lanças afiadas do joio, se não forem demasiado ralas e se não se deixarem crescer demasiado sem se lhes dar uma aparadela.
O trevo desponta irregularmente, aqui dois tufos, acolá nada, mais além um ror; cresce viçoso até que sucumbe, porque a hélice da folha pesa demasiado sobre o caule tenro e acaba por o vergar. O corta-relva procede à tonsura com uma trepidação ensurdecedora; um suave odor de feno fresco inebria o ar; a erva nivelada reencontra a sua eriçada infância, mas a mordedura das lâminas revela descontinuidades, clareiras peladas, manchas amarelas.
Para fazer boa figura, o prado deve ser uma extensão de terreno verde e uniforme: resultado não-natural, que naturalmente alcançam os prados desejados pela natureza. Aqui, observando ponto por ponto, descobrem-se os sítios onde o repuxo de molinete do regador não chega, onde ele bate em jacto contínuo e onde acabam por ser as ervas daninhas que se aproveitam de uma rega adequada.
O senhor Palomar está a arrancar as ervas daninhas, acocorado sobre o prado. Um dente-de-leão adere ao terreno com uma base de folhas dentadas densamente sobrepostas; se se puxa pelo caule, fica-se com ele na mão, enquanto as raízes permanecem enterradas na terra. É necessário apoderar-se de toda a planta com um movimento ondulante da mão e desenfiar delicadamente os filamentos da terra, arrastando eventualmente torrões de terra e fios definhados da erva do prado, meio sufocados pelo vizinho invasor. Depois é preciso deitar o intruso num lugar onde não possa voltar a deitar raízes nem espalhar sementes. Quando se começa a arrancar uma erva-daninha, imediatamente se vê despontar uma outra mais além, e uma outra, e uma outra ainda. Em poucas palavras, aquela nesga de tapete herbáceo que parecia exigir apenas alguns retoques revela-se afinal uma selva sem lei.
Restam apenas ervas daninhas? Pior ainda: as ervas daninhas estão de tal maneira emaranhadas nas boas que não se consegue enfiar as mãos no meio para puxar. Dir-se-ia que se criou um pacto de cumplicidade entre as ervas de semeadura e as ervas selvagens, um afrouxamento das barreiras impostas pelas desigualdades de nascimento, uma tolerância resignada em relação à degradação. Algumas ervas espontâneas, por si só, não têm de modo algum um aspecto maléfico ou insidioso. Porque não admiti-las no número das que pertencem ao prado de pleno direito, integrando-as na comunidade das que foram cultivadas? É este o caminho que leva a abdicar do "prado à inglesa" e a contentar-se com o "prado rústico", abandonado a si próprio. "Mais tarde ou mais cedo será necessário optar por esta decisão", pensa o senhor Palomar, mas sente que estaria a ceder numa questão de princípio. Uma chicória, uma borragem, entram repentinamente no seu campo de visão. Arranca-as.
É claro que arrancar uma erva daninha aqui e ali não resolve nada. Seria necessário proceder assim - pensa ele tomar um quadrado de prado de um metro por um metro e limpá-lo até não ficar a mais ínfima presença que não fosse trevo, joio ou luzerna. Em seguida, passar a um outro quadrado. Ou então não, deter-se sobre um quadrado tipo. Contar quantos fios de erva existem, de que espécies são, quanto são densos e como estão distribuídos. Na base deste cálculo, chegar-se-á a um conhecimento estatístico do prado, estabelecido o qual... Mas contar fios de erva é inútil, não se chegará nunca a saber o seu número. Um prado não tem limites bem definidos; surge uma orla onde a erva cessa de crescer mas há ainda fios espalhados que despontam mais além, depois aparece um tufo verde e espesso, depois uma faixa mais rala: fazem ainda parte do prado ou não? Noutro lado, o mato penetra no prado: não se pode dizer o que é prado e o que é moita. Mas até nos sítios onde não há mais nada além da erva, nunca se sabe em que ponto se pode parar de contar: entre plantinha e plantinha há sempre um rebento de folhinha que mal aflora a terra e que tem por raiz um pelo branco que quase não se vê; um minuto antes podia-se desprezá-la, mas dentro em breve teremos que a contar como às outras. Entretanto, dois outros fios de erva que ainda há pouco pareciam apenas um tanto ou quanto amarelecidos, estão agora definitivamente fanados e deveriam ser eliminados da contagem. Depois existem as fracções de fios de erva, cortados ao meio, ou rentes ao solo, ou rasgados ao longo das nervuras, as folhinhas que perderam um dos lobos... Os decimais somados não fazem um número inteiro, continuam a ser uma diminuta devastação herbácea, em parte ainda viva, em parte já espapaçada, alimento de outras plantas, húmus...
O prado é um conjunto de ervas - assim se deve colocar o problema - que inclui um subconjunto de ervas espontâneas, ditas daninhas; uma intersecção dos dois subconjuntos é constituída pelas ervas nascidas espontaneamente mas que são pertencentes às espécies cultivadas, logo, indistinguíveis destas últimas. Os dois subconjuntos, por sua vez, incluem as várias espécies, cada uma das quais é um subconjunto ou, melhor dizendo, é um conjunto que inclui o subconjunto dos seus próprios elementos que pertencem igualmente ao prado e o subconjunto dos que são exteriores ao prado. Sopra o vento, voam as sementes e os pólens, as relações entre os conjuntos subvertem-se...
Palomar passou já a uma nova linha de pensamentos; será "o prado" aquilo que nós vemos ou será que vemos uma erva, mais uma erva, mais uma erva... ? Aquilo a que chamamos "ver o prado" não é mais do que um efeito dos nossos sentidos aproximativos e grosseiros; um conjunto existe apenas quando é formado por elementos diferenciados. Não vale a pena contá-los, o número não interessa; o que interessa é alcançar, com uma única olhadela, cada uma das plantinhas, individualmente, nas suas peculiaridades e diferenças. E não basta vê-las: é necessário pensá-las. Em vez de pensar "prado", pensar aquele caule com duas folhas de trevo, aquela folha lanceolada um tanto ou quanto amarrecada, aquele corimbo fininho...
Palomar está distraído, deixou de arrancar as ervas daninhas, já não está a pensar no prado: pensa no universo. está a tentar aplicar ao universo tudo aquilo que pensou a propósito do prado. O universo como cosmos regular e ordenado ou como proliferação caótica. O universo que talvez seja finito, mas que é inumerável, instável nos seus confins, que se abre dentro de si a outros universos. O universo, conjunto de corpos celestes, nebulosas, poeiras, campos de força, intersecções de campos, conjunto de conjuntos...
Palomar observa o céu
Lua da tarde
Ninguém olha a lua da tarde, e é exactamente naquele momento que ela teria maior necessidade do nosso interesse, dado que a sua existência não está ainda assegurada. É uma sombra esbranquiçada que desponta do azul intenso de um céu carregado de luz solar; quem nos garante que conseguirá, uma vez mais, tomar forma e ganhar brilho? É tão frágil e pálida e franzina; só um dos seus lados começa agora a conquistar um contorno, claro como um arco de foice, o resto permanece ainda embebido de azul celeste. É como uma hóstia transparente, ou como uma pastilha semi-dissolvida; só que aqui o círculo branco não se está a dissolver, mas sim a concentrar-se, agregando-se à custa de manchas e sombras cinzento-azuladas, que não se percebe se pertencem à superfície lunar ou se são restos de baba do céu, que todavia impregnam o satélite, poroso como uma esponja.
Nesta fase o céu, é ainda qualquer coisa de muito compacto e concreto, e não podemos estar seguros se é da sua superfície tensa e ininterrupta que se vai destacando aquela forma redonda e esbranquiçada, com uma consistência pouco mais sólida do que a das nuvens, ou se, pelo contrário, se trata de uma corrosão do pano de fundo, uma malha caída da cúpula, uma brecha que se abre sobre o nada que se queda por detrás. A incerteza é acentuada pela irregularidade da figura, que por um lado vai adquirindo relevo (onde têm maior incidência os raios do sol declinante) e pelo outro se mantém numa espécie de penumbra. E, dado que o limite entre as duas zonas não é bem definido, o efeito resultante não é o de um sólido visto em perspectiva, mas antes o de uma daquelas figurinhas que representam a lua nos calendários, onde um perfil branco aparece destacado dentro de um pequeno círculo escuro. Nada haveria a objectar a tudo isto, se se tratasse de uma lua no primeiro quarto e não de uma lua cheia, ou quase. Mas é exactamente sob esta última forma que ela se está revelando, à medida que o seu contraste em relação ao céu se vai tornando mais forte e que a sua circunferência se vai desenhando com maior clareza, ostentando apenas algumas amolgadelas no bordo de levante. . É preciso dizer que o azul do céu se foi sucessivamente tingindo de roxo, de violeta (os raios do sol tornaram-se vermelhos) em seguida de cinzento e de pardo e, a cada mudança de cor, a brancura da lua recebeu um empurrão para sobressair mais decidida, enquanto dentro dela a parte luminosa ganhou extensão, até acabar por cobrir todo o disco. É como se as fases que a lua atravessa num mês fossem percorridas no interior desta lua cheia, nas horas que decorrem entre o seu nascimento e o seu desaparecimento, com a diferença de que a forma redonda fica mais ou menos toda ela à vista. As manchas continuam no meio do círculo, aliás, os seus claros-escuros tornam-se mais contrastados em relação à luminosidade do resto, mas agora não há dúvida de que é a lua que os traz consigo, como livores ou equimoses, e já não se pode pensar que eles são transparências sobre o pano de fundo celeste, rasgões no manto de um fantasma de lua sem corpo.
Aliás, o que permanece agora incerto é se este ganhar em evidência e (digamo-lo) em esplendor se deve ao lento recuar do céu, que quanto mais se afasta mais mergulha na obscuridade, ou se pelo contrário é a lua que está a avançar, recolhendo a luz precedentemente dispersa à sua volta e privando dela o céu, concentrando-a toda na redonda boca do seu funil.
E sobretudo estas mutações não devem fazer esquecer que o satélite, entretanto, se foi movendo no céu, prosseguindo para poente e para o alto. A lua é o mais mutável dos corpos do universo visível e o mais regular nos seus
complicados hábitos: nunca falta aos seus encontros e pode-se sempre esperá-la no caminho; mas se a deixas num sítio encontraria noutro e se te lembras da sua cara virada para um lado, hei-la que já mudou de pose, por pouco ou muito que seja. De qualquer forma, se a seguirmos passo a passo, não nos apercebemos de que ela nos vai imperceptivelmente fugindo. Só as nuvens contribuem para criar a ilusão de uma corrida ou de metamorfoses rápidas, ou melhor, para dar uma vistosa evidência àquilo que de outro modo se furtaria ao olhar.
Corre a nuvem, de cinzenta que em passou a ser leitosa e brilhante, o céu atrás dela tornou-se negro, é noite, as estrelas acenderam-se, a lua é um grande espelho resplandecente que voa. Quem reconheceria agora nela a lua de algumas horas atrás? Agora é um lago de luminosidade, que espalha raios de luz,à sua volta, entornando no escuro um halo de fria prata e inundando de branca luz o caminho dos noctívagos.
Não restam dúvidas de que aquela que agora começa é uma esplêndida noite de plenilúnio de inverno.. Nesta altura, tendo-se assegurado de que a lua já não necessita dele, o senhor Palomar regressa a casa.
O olho e os planetas
O senhor Palomar, tendo sabido que este ano durante todo o mês de Abril os planetas "exteriores", visíveis a olho nu (mesmo para um míope e astigmático como ele) se encontram os três "em oposição", logo, visíveis ao mesmo tempo durante toda a noite, apressa-se a sair para o terraço.
O céu está claro, devido à lua cheia. Marte, apesar de estar perto do grande espelho lunar inundado de luz branca, avança imperiosamente, com o seu fulgor obstinado, com o seu amarelo concentrado e denso, diferente de todos os outros amarelos do firmamento, ao ponto de se acabar por se decidir chamar-lhe vermelho e, nos momentos mais inspirados, acaba-se mesmo por o ver vermelho.
Fazendo descer o olhar, prolongando em direcção ao levante um arco imaginário que deveria unir Regulus a Spica (mas Spica quase não se vê), distingue-se muito bem Saturno, com a sua luz branca e fria, e mais abaixo ainda, Júpiter, no momento do seu máximo esplendor, com uma luminosidade "de um amarelo vigoroso que tende para o verde. As estrelas existentes à sua volta empalideceram todas, com excepção de Arcturus, que brilha com ar de desafio um pouco mais alto, na direcção do oriente.
Para aproveitar o melhor possível a tripla oposição planetária, é indispensável munir-se de um telescópio.
O senhor Palomar, talvez porque tem o mesmo nome que um famoso observatório, goza de algumas amizades entre os astrónomos, e é-lhe assim permitido aproximar o nariz de um telescópio de 15 cm, ou seja, um telescópio bastante pequeno para fazer uma pesquisa de tipo científico, mas que, comparado com os seus óculos, representa já uma notável diferença.
Marte, por exemplo, visto ao telescópio, revela-se como um planeta bem mais complexo do que parece ser a olho nu: aparenta ter muitas coisas a comunicar, das quais apenas se consegue focalizar uma pequena parte, tal como num discurso gaguejado e entremeado pela tosse. Um halo escarlate emerge em redor da sua orla; pode-se procurar eliminá-lo regulando um parafuso, para fazer aparecer a pequena crosta de gelo do pólo inferior; há manchas que aparecem e desaparecem sobre a superfície do planeta, como se fossem nuvens ou aberturas entre nuvens; uma delas estabiliza-se sob a forma e na posição da Austrália e o senhor Palomar convence-se de que quanto mais distinta se vê essa Austrália mais a objectiva está focada; mas ao mesmo tempo apercebe-se de que está a perder outras sombras de coisas que lhe parecia ver ou que se sentia impelido a ver.
Em suma, parece-lhe que se Marte é aquele planeta sobre o qual, a partir de Schiapparelli, se disse tanta coisa, causando alternadamente ilusões e desilusões, isso coincide com a dificuldade em estabelecer uma relação com ele, tal como com uma pessoa de carácter difícil. (A não ser que a dificuldade de carácter não esteja toda do lado do senhor Palomar; é em vão que ele tenta reagir à subjectividade procurando refúgio entre corpos celestes).
Bem diferente é a relação que se estabelece com Saturno, o planeta que mais emoções dá a quem o observa através de um telescópio: hei-lo nitidíssimo, branquíssimo, exactos os contornos da esfera e do anel; uma série de ligeiros sulcos paralelos listra a esfera; uma circunferência mais escura separa a borda do anel; este telescópio quase não capta outros detalhes, acentuando assim a abstracção geométrica do objecto; a sensação de uma lonjura extrema, em vez de se atenuar, acentua-se ainda mais do que a olho nu.
Que exista a girar no céu um objecto tão diferente de todos os outros, uma forma que atinge o máximo da estranheza com o máximo de simplicidade e da regularidade e da harmonia, é um facto que alegra a vida e o pensamento.
" Se o tivessem podido ver como eu o vejo agora - pensa o senhor Palomar - os antigos teriam pensado que tinham estendido o seu olhar até ao céu das ideias de Platão, ou até ao espaço imaterial dos postulados de Euclides; em vez disso, sabe-se lá porque extravio, esta imagem chega até mim, a mim que temo que ela seja demasiado bela para ser verdadeira, demasiado aceite pelo meu universo imaginário para poder pertencer ao mundo real. Mas talvez seja exactamente esta desconfiança em relação aos nossos sentimentos que nos impede de nos sentirmos à vontade no universo. Talvez que a primeira regra que me devo impor seja esta: ater-me ao que vejo."
Agora parece-lhe que o anel oscila ligeiramente, ou então o planeta dentro do anel e que ambos rodam sobre si próprios: na realidade, é a cabeça do senhor Palomar que oscila, já que ele se vê obrigado a torcer o pescoço para enfiar o olhar na ocular do telescópio; mas não lhe passa pela cabeça desmentir perante si mesmo esta ilusão, que coincide com a sua expectativa tal como coincide com a verdade natural.
Saturno é realmente assim. Depois da expedição do "Voyager 2", o senhor Palomar tem seguido tudo aquilo que se escreveu sobre os anéis: que são feitos de partículas microscópicas; que são feitos de blocos de gelo separados por abismos; que as divisões entre os anéis são sulcos em que giram os satélites, varrendo a matéria e concentrando-a aos lados, tal como cães pastores que correm à volta de um rebanho para o manter compacto; seguiu a descoberta dos anéis entrelaçados, que depois se revelaram serem círculos simples muito mais finos; e a descoberta de estrias opacas, dispostas como os raios de uma roda, mais tarde identificadas como nuvens geladas. Mas as novas descobertas não desmentem esta figura essencial, que não é diferente daquela que foi vista em primeiro lugar por Gian Domenico Cassini em 1676, descobrindo a divisão existente entre os anéis, a qual tomou o seu nome.
Naquelas circunstâncias, é natural que uma pessoa diligente, como é o senhor Palomar, se tenha documentado através de enciclopédias e manuais. Agora Saturno, objecto sempre novo, apresenta-se ao seu olhar, renovando a primeira descoberta, e faz pena pensar que Galileu, com a sua desfocada luneta, não tenha chegado a fazer dele mais do que uma ideia confusa, de corpo tríplice ou de esfera com duas asas, e que quando se encontrava prestes a perceber como ele era de facto feito, lhe tivesse faltado a vista e tudo se tivesse afundado na escuridão.
Fixar durante demasiado tempo um corpo luminoso cansa a vista; o senhor Palomar fecha os olhos; passa a Júpiter.
Na sua mole majestosa, sem ter um ar pesado, Júpiter ostenta duas faixas equatoriais, como um xaile guarnecido de bordados entrelaçados, de um verde celeste. Os efeitos de gigantescas tempestades atmosféricas traduzem-se por um
desenho ordenado e calmo de elaborada sobriedade. Mas a verdadeira magnificência deste luminoso planeta, são os seus cintilantes satélites, que se encontram agora os quatro à vista, ao longo de uma linha oblíqua, como um ceptro resplandecente de jóias.
Descobertos por Galileu e por ele apelidados de Medicea sidera, "astros dos Médícis", rebatizados pouco mais tarde com nomes ovidianos - lo, Europa, Ganimedes, Calisto por um astrónomo holandês, os pequenos planetas de Júpiter parecem irradiar um último fulgor do Renascimento neoplatónico, como se ignorassem que a ordem impassível das esferas celestes se desfez, exactamente graças ao seu descobridor.
Um sopro de classicismo envolve Júpiter; fixando-o no telescópio, o senhor Palomar fica à espera de uma transfiguração olímpica. Mas não consegue manter nítida a imagem; tem que fechar as pálpebras por um momento, deixar que a pupila encandeada reencontre a sua percepção exacta dos contornos, das cores, das sombras, mas também tem de permitir à sua imaginação que se dispa das roupagens que não são as suas, que renuncie a exibir um saber livresco.
Se é justo que a imaginação venha em socorro da fraqueza da vista, ela deve ser instantânea e directa como o olhar que a acende. Qual era a primeira semelhança que lhe tinha ocorrido e que tinha posto de lado por incongruente? Tinha visto o planeta ondular com os satélites em fila, como bolhinhas de ar que se desprendem das guelras de um redondo peixe dos abismos, luminescente e listrado...
Na noite seguinte, o senhor Palomar volta ao terraço, para rever os planetas a olho nu: a grande diferença é que agora é obrigado a ter em conta as proporções entre o planeta, o resto do firmamento espalhado por todos os lados no espaço escuro e ele que olha, coisa que não acontece se a relação é entre o objecto separado, planeta focado pela lente, e ele sujeito, num ilusório frente a frente. Ao mesmo tempo, recorda de cada planeta a imagem detalhada vista na noite anterior e procura inseri-la naquela minúscula mancha de luz que perfura o céu. Espera assim ter-se apropriado verdadeiramente do planeta, ou pelo menos da parte de um planeta que pode entrar dentro de um olho.
A contemplação das estrelas
Quando está uma bela noite estrelada, o senhor Palomar diz: - Tenho que ir observar as estrelas. - Diz exactamente: - Tenho que - porque odeia os desperdícios e pensa que não é justo desperdiçar toda aquela quantidade de estrelas que é posta à sua disposição. Também diz "Tenho que" porque não tem muita prática de como se observam as estrelas, e este simples acto custa-lhe sempre um certo esforço. A primeira dificuldade é a de encontrar um local a partir do qual o seu olhar possa dilatar-se por toda a cúpula celeste, sem obstáculos e sem a invasão da luz eléctrica; por exemplo, uma praia solitária numa costa muito baixa.
Outra condição necessária é a de levar consigo um mapa astronómico, sem o qual não saberia o que está a observar; no entanto, entre uma observação e a seguinte, esquece-se de como se faz para orientar esse mapa e por isso tem de voltar a estudá-lo, antes de começar, durante uma boa meia hora. Para decifrar o mapa às escuras tem também que levar consigo uma lanterna de bolso. Os frequentes confrontos entre o céu e o mapa obrigam-no a acender e a apagar a luzinha, e nestas passagens da luz à escuridão ele fica quase cego e tem de readaptar a vista inúmeras vezes.
Se o senhor Palomar fizesse uso de um telescópio, as coisas seriam mais complicadas sob certos aspectos e simplificadas sob outros; mas, neste momento, a experiência do céu que lhe interessa, é a experiência do olho nu, como a dos antigos viajantes e a dos pastores errantes. Olho nu, para ele que é míope, significa óculos; e como para ler o mapa tem de tirar os óculos as operações complicam-se com
este levantar e baixar dos óculos sobre a fronte e comportam a espera de alguns segundos até que o seu cristalino consiga focar as estrelas verdadeiras ou as escritas. No mapa, os nomes das estrelas estão escritos a preto sobre fundo azul, e é preciso encostar a lanterna acesa mesmo em cima da folha para os distinguir. Quando se levanta o olhar para o céu, vemo-lo negro, semeado de vagos clarões; só a pouco e pouco as estrelas se fixam e se dispõem em desenhos precisos, e quanto mais se olha, mais se vêem despontar.
Acrescente-se que os mapas celestes que ele necessita de consultar são dois, aliás, quatro: um mapa muito sintético do céu naquele mês, que apresenta separadamente o hemisfério norte e o hemisfério sul; e um outro do firmamento, muito mais detalhado, que mostra numa longa faixa as constelações de todo o ano para a parte média do céu, em torno do horizonte, ao passo que as da calote que circunda a Estrela Polar estão incluídas num mapa circular anexo. Em resumo, o acto de localizar uma estrela implica uma comparação entre os vários mapas e a abóbada celeste, com todos os actos correlativos: o tirar e pôr dos óculos, o acender e apagar a lanterna, o desdobrar e voltar a dobrar o mapa grande, o perder e voltar a encontrar os pontos de referência.
Desde a última vez que o senhor Palomar observou as estrelas, passaram-se semanas ou mesmo meses; o céu modificou-se completamente; a Ursa Maior (estamos em Agosto) estende-se quase até ao ponto de se acocorar sobre a copa das árvores a noroeste; Arcturos cai a pico sobre o perfil da colina, arrastando consigo o papagaio de Bootes; exactamente a oeste está Vega, alta e solitária; se Vega é aquela, esta que está sobre o mar é Altair e aquela que está lá em cima é Deneb, emitindo um raio gelado a partir do zénite.
Esta noite o céu parece estar muito mais concorrido do que qualquer mapa; as configurações esquemáticas apresentam-se muito mais complicadas e menos definidas na realidade; cada cacho de estrelas poderia conter aquele triângulo ou aquela linha quebrada de que estamos à procura; e cada vez que se volta a erguer o olhar para uma constelação, ela parece ligeiramente diferente.
Para reconhecer uma constelação, a prova decisiva é ver como ela responde quando a chamamos. Mais concludente do que a correspondência das distâncias e das configurações no espaço com aquelas que estão marcadas no mapa é a resposta que o ponto luminoso dá ao nome por que foi chamado, a sua presteza em identificar-se com aquele som, tornando-se por ele uma única coisa. Os nomes das estrelas, para nós órfãos de toda e qualquer mitologia, parecem incongruentes e arbitrários; e, no entanto, nunca poderíamos considerá-los intercambiáveis. Quando o nome que o senhor Palomar encontra é o nome justo, ele dá imediatamente por isso, porque este transmite de imediato à estrela respectiva uma necessidade e uma evidência que antes não tinha; se, ao contrário, é um nome errado, a estrela perde-o poucos segundos depois, como se o sacudisse de cima de si, e não mais se sabe onde estava e qual era.
Por mais de uma vez, o senhor Palomar decide que a Cabeleira de Berenice (constelação que muito ama) é este ou aquele enxame luminoso, lá para as bandas de Ophiuchus: mas não sente aquela palpitação que experimentara das outras vezes ao reconhecer, aquele objecto, tão sumptuoso e ao mesmo tempo tão ligeiro. Só mais tarde se apercebe de que se não a encontra é porque a Cabeleira de Berenice, nesta estação, não se vê. .O céu é atravessado numa grande extensão por listas e manchas claras; a Via Láctea toma em Agosto uma consistência mais densa e dir-se-ia que transborda do seu leito; o claro e o escuro estão tão misturados que impedem o efeito de perspectiva do abismo negro, sobre cuja esvaziada distância sobressai o relevo das estrelas; tudo fica no mesmo plano: cintilação e nuvens prateadas e trevas.
Será esta a exacta simetria dos espaços siderais, à qual o senhor Palomar sentiu por tantas vezes a necessidade de se dirigir, para se afastar da Terra, lugar de complicações supérfluas e de aproximações confusas? Ao confrontar-se fisicamente com a presença do céu estrelado, tudo lhe parece fugir. Até mesmo aquilo que se considerava mais sensível, a pequenez do nosso mundo em relação às distâncias ilimitadas, não surge de uma forma imediata. O firmamento é qualquer coisa que está lá em cima, que se vê que está lá, mas de onde não se consegue extrair qualquer ideia de dimensão ou distância.
Se os corpos luminosos estão carregados de incerteza, nada mais resta do que depositar as esperanças na escuridão, nas regiões desérticas do céu. O que pode existir de mais estável do que o nada? E no entanto, também acerca do nada não se pode estar certo a cem por cento. Palomar, onde quer que veja uma clareira no firmamento, uma brecha vazia e negra, fixa aí o olhar, como que projectando-se nela; e eis que também ali no meio toma forma um qualquer pequeno grão mais claro, ou uma pequena mancha, ou apenas um sinalzinho; mas Palomar não chega a ficar seguro acerca de se se trata efectivamente de alguma coisa que lá esteja ou se apenas lhe parece vê-la. Talvez seja um lampejo desses que se vêem andar à roda mantendo os olhos fechados (o céu escuro é como o reverso das pálpebras sulcado por fosfenos; pode ser um reflexo dos seus olhos; mas poderia também ser uma estrela desconhecida, emergindo das profundezas mais remotas.
Esta observação das estrelas transmite um conhecimento instável e contraditório - pensa Palomar - exactamente o contrário do que sabiam extrair dele os antigos. Será porque a sua relação com o céu é intermitente e agitada, em vez de ser um hábito sereno? Se se obrigasse a contemplar as constelações noite após noite, ano após ano, e a seguir-lhes os cursos e recursos ao longo das curvas linhas férreas da abóbada obscura, talvez no fim também ele conquistasse a noção de um tempo contínuo e imutável, separado pelo tempo fugaz e fragmentário dos acontecimentos terrestres. Mas bastaria a atenção às revoluções celestes para imprimir nele esta noção? Ou não seria sobretudo necessária uma revolução interior, a qual ele apenas consegue imaginar em teoria, sem conseguir prever os efeitos que efectivamente teria sobre as suas emoções e sobre os seus ritmos mentais
Do conhecimento mítico dos astros, consegue apenas captar um fatigado reflexo, um entre tantos; do conhecimento científico, os ecos divulgados nos jornais; daquilo que sabe, desconfia; o que ignora, mantém o seu espírito suspenso. Subjugado, inseguro, enerva-se com os mapas celestes, como se fossem horários ferroviários, febrilmente folheados em busca de uma correspondência.
Uma flecha resplandecente sulca repentinamente o céu. Um meteoro? É nestas noites que se torna mais frequente distinguir as estrelas cadentes. Apesar disso, poderia muito bem tratar-se de um avião de carreira iluminado. O olhar do senhor Palomar mantém-se vigilante, disponível, livre de toda e qualquer certeza.
Está há meia hora na praia escura, sentado numa cadeira de repouso, contorcendo-se para o sul e para o norte, acendendo a luzinha e aproximando do seu nariz os mapas que mantém abertos sobre os joelhos; em seguida, de pescoço inclinado para trás, recomeça a sua exploração a partir da Estrela Polar.
Sombras silenciosas movem-se na areia; um casal de namorados separa-se da duna, um pescador nocturno, um guarda-fiscal, um barqueiro. O senhor Palomar ouve um sussurro. Olha à sua volta: a poucos passos de si, formou-se uma pequena multidão, vigiando os seus movimentos como se fossem as convulsões de um demente.
Palomar na cidade
Palomar no terraço
Do terraço
- Xó! Xó! - O senhor Palomar corre ao terraço para afugentar os pombos que comem as folhas da gazânia, crivam de bicadas os cactos, fincam as patas na trepadeira de campainhas, depenicam as amoras, debicam folha a folha a salsa plantada no caixote que está ao pé da cozinha, escavam
e esgravatam nos vasos, entornando a terra e pondo a nu as raízes, como se a única finalidade dos seus voos fosse a devastação. Aqueles pombos cujo voo alegrava noutros tempos as praças, sucedeu-se uma progénie degenerada e imunda e infecta que não é doméstica nem selvagem, mas que está integrada nas instituições públicas e, como tal, é inextinguível. O céu da cidade de Roma desde há muito que ficou à mercê da sobrepopulação deste lumpen-penudo, que torna a vida difícil a todas as outras espécies de pássaros existentes à sua volta e oprime o reino do ar, outrora livre e variado, com as suas monótonas e depenadas librés cinzento-chumbo.
Apertada entre as hordas subterrâneas de ratos e o pesado voo dos pombos, a antiga cidade deixa-se corroer por cima e por baixo, sem opor maior resistência do que aquela que em tempos opunha às invasões dos bárbaros, como se reconhecesse neles não o assalto de inimigos externos, mas os impulsos mais obscuros e congénitos da sua própria existência interior.
A cidade tem também uma outra alma - uma entre tantas - que vive de um acordo celebrado entre pedras velhas e vegetação sempre nova para a divisão dos favores do sol. Segundo esta boa disposição ambiental ou genius loci, o terraço da família Palomar, ilha secreta sobre os tectos, sonha concentrar sob o seu caramanchão o luxuriar dos jardins da Babilónia.
A exuberância do terraço corresponde ao desejo de cada membro da família, mas ao passo que para a senhora Palomar surgiu como um facto natural a transferência da sua habitual atenção pelas coisas tomadas individualmente', escolhidas e feitas suas por identificação interior, passando assim a compor um conjunto de múltiplas variações, uma colecção emblemática, esta dimensão do espírito falta aos outros membros da família; à filha, porque a juventude não pode nem deve fixar-se sobre o aqui, mas apenas sobre o acolá; ao marido, porque só demasiado tarde logrou libertar-se das impaciencias juvenis e percebeu que a única salvação reside no aplicar-se às coisas que existem.
As preocupações do agricultor, para o qual o que conta é aquela dada planta, aquele dado pedaço de terreno exposto ao sol da hora tal à hora tal, aquela dada doença das folhas que deve ser combatida a tempo com aquele dado tratamento, são estranhas à sua mente modelada sobre princípios da indústria, ou seja, levada a decidir com base nos pressupostos legais e nos protótipos. Quando Palomar se tinha apercebido do quanto eram aproximativos e votados ao erro os critérios daquele mesmo mundo onde pensava encontrar precisão e norma universal, tinha voltado - lentamente a construir uma relação com o mundo, limitando-a à observação das formas visíveis; mas nessa altura ele já era aquilo que era: a sua adesão às coisas permanecia aquela adesão intermitente e fugaz das pessoas que parecem estar sempre absortas por outra coisa, mas essa outra coisa não existe. A sua contribuição para a prosperidade do terraço consiste em correr de vez em quando a espantar os pombos - Xó! Xó! - despertando em si próprio o sentimento atávico da defesa do território.
Quando pousam no terraço pássaros diferentes dos pombos, o senhor Palomar, em vez de correr com eles, dá-lhes as boas vindas, fecha os olhos aos eventuais estragos produzidos pelos seus bicos, considera-os mensageiros de divindades amigas. Mas estas aparições são raras: uma patrulha de corvos aproxima-se por vezes, pontilhando o céu de manchas negras e propagando (até a linguagem dos deuses muda com os séculos) um sentimento de vida e de alegria. Às vezes um banal melro, gentil e arguto; uma vez foi um pintarroxo; e os pardais, no seu habitual papel de transeuntes anónimos. As outras presenças de penugentos que se verificam sobre a cidade apenas se vêem ao longe: as esquadrilhas dos migradores, no Outono, e as acrobacias dos gaviões e andorinhas no Verão. De vez em quando, brancas gaivotas, remando no ar com as suas longas asas, aventuram-se por cima do mar enxuto das telhas, provavelmente perdidas, ao subirem da foz a enseada do rio, talvez absorvidas num rito nupcial, e o seu grito marinho ecoa estridente, por entre os rumores citadinos.
O terraço tem dois níveis: um mirante ou belvedere domina a barafunda dos tectos, sobre os quais o senhor Palomar faz correr um olhar de pássaro. Procura pensar no mundo tal como é visto pelos voláteis; ao contrário dele, os pássaros têm o vazio que se abre sob eles, mas talvez nunca olhem para baixo, vêem só para os lados, planando obliquamente sobre as asas, e o olhar deles, tal como o seu, onde quer que se dirija, não encontra mais do que tectos, mais altos ou mais baixos, construções mais ou menos elevadas mas tão densas que não lhes permitem descer muito. Que lá em baixo, encaixadas, existam ruas e praças, que o verdadeiro chão seja aquele que está ao nível do chão, é uma coisa que ele sabe com base noutras experiências: neste momento, a julgar por aquilo que vê cá de cima, não poderia suspeitá-lo.
A forma verdadeira da cidade está nestes altos e baixos de tectos, telhas velhas e novas, redondas e chatas, chaminés finas ou grossas, alpendres de palha ou telheiros de lusalite ondulada, parapeitos, balaustradas, pilares, suportes que sustentam vasos, reservatórios de água feitos de chapa, sótãos, clarabóias de vidro, e sobre tudo isto ergue-se a floresta das antenas de televisão, direitas ou tortas, cromadas ou ferrugentas, em modelos de gerações sucessivas, variadamente ramificadas e cornudas e em armadura, mas todas magras como esqueletos e inquietantes como totens. Separados por golfos irregulares e recortados de vazio, terraços proletários enfrentam-se uns aos outros, com cordas para pendurar roupa e tomates plantados em alguidares de zinco; terraços de luxo, com latadas de trepadeiras agarradas a armações de madeira, móveis de jardim em ferro forjado pintado de branco, toldos de enrolar; torres de campanários com campanários em forma de campânula; frontões de edifícios públicos de frente e de perfil; casas de luxo construídas em terraços e sobreterraços, andares sobreelevados abusivos e impunes; andaimes em tubo metálico de construções em curso ou interrompidas a meio; janelões com cortinados e janelinhas de casa-de-banho; paredes ocres e terra de siena; paredes cor-de-mofo de cujas fendas tufos de erva deixam pender a sua folhagem; casas de elevadores; torres com janelas geminadas e janelas trilobadas; pináculos com Nossas Senhoras; estátuas de cavalos e quadrigas; mansões decadentes e tugúrios, tugúrios recuperados para garçonnières; e cúpulas que arredondam sobre o céu em todas as direcções e a todas as distâncias, como que a confirmar a essência feminina, junónica, da cidade: cúpulas brancas ou rosadas ou violetas, de acordo com a hora e a luz, sulcadas por nervuras, culminando em zimbórios encimados por outras cúpulas mais pequenas.
Nada de tudo isto pode ser visto por quem move os seus pés ou as suas rodas sobre as calçadas da cidade. E inversamente, cá de cima tem-se a impressão de que a verdadeira crosta terrestre é esta, desigual mas compacta, mesmo se é sulcada por fracturas que não se sabe quão profundas são, ravinas ou poços ou crateras, cujas orlas em perspectiva parecem estar próximas umas das outras como escamas de uma pinha, e não nos ocorre nem sequer perguntar que coisa escondem lá no fundo, porque já tanta e tão rica e variada é a vista que se tem em superfície, que chega e que sobra para saturar a mente de informações e de significados.
Assim, pensam os pássaros, ou pelo menos assim pensa o Senhor Palomar. "só depois de ter conhecido a superfície das coisas - conclui - nos podemos aventurar a procurar o que está por baixo. Mas a superfície das coisas é inesgotável".
A barriga da osga
O terraço, como vem acontecendo em cada Verão, volta a registar a presença da osga. Um excepcional ponto de observação permite ao senhor Palomar observá-la vista debaixo, do lado da barriga, em vez de vista de cima, como desde sempre nos habituámos a ver as osgas, os sardões e os lagartos. Na sala de estar da casa da família Palomar existe uma pequena janela que dá para o terraço e que serve também de escaparate; nas prateleiras desse escaparate encontra-se alinhada uma colecção de jarras arte-nova,à noite, uma lâmpada de 75 watts ilumina os objectos expostos; uma planta de plumbago deixa cair do terraço os seus ramos azul-celeste sobre a vidraça exterior; todas as noites, assim que se acende a luz, a osga que vive naquela parede sob as folhas da planta passa para a vidraça, coloca-se no sítio mais iluminado pela lâmpada, e permanece imóvel como um lagarto deitado ao sol. Igualmente atraídos pela luz, os mosquitos aparecem a voar nas redondezas; quando um mosquito passa ao alcance do réptil é imediatamente engolido.
Todas as noites o senhor Palomar e a senhora Palomar acabam por afastar os cadeirões da televisão, colocando-os ao pé do escaparate; sentados no interior da sala, ficam a contemplar a silhueta esbranquiçada do réptil sobre o fundo escuro. A opção entre a televisão e a osga nem sempre é feita sem incertezas; cada um dos espectáculos fornece informações que o outro não dá: a televisão move-se pelos continentes, recolhendo impulsos luminosos que descrevem a face visível das coisas; a osga, por sua vez, representa a concentração imóvel e os aspectos escondidos, o outro lado daquilo que aparece à vista.
A coisa mais extraordinária são as patas, autênticas mãos, providas de dedos macios, todas feitas de polpa de dedos, as quais, uma vez premidas contra o vidro, aderem à sua superfície com minúsculas ventosas: os cinco dedos alargam-se como pétalas de florzinhas num desenho infantil e, quando uma pata se move, recolhem-se como uma flor que se fecha, para voltarem depois a distender-se e a espalmar-se contra o vidro, fazendo aparecer pequeníssimas estrias, semelhantes às das impressões digitais. Ao mesmo tempo delicadas e fortes, estas mãos parecem conter uma inteligência potencial, uma inteligência tal que bastaria que elas se pudessem libertar da tarefa de ficarem ali pegadas à superfície vertical para adquirirem os dotes de mãos humanas, das quais se diz que se tornaram hábeis desde que deixaram de ter de se pendurar nos ramos ou de premir o solo.
Mais do que qualquer joelho, mais do que qualquer cotovelo, as patas dobradas parecem ter molas destinadas a soerguer o corpo. A cauda adere ao vidro unicamente através de uma faixa central, onde têm origem os anéis que a circundam de um lado ao outro e que fazem dela um instrumento robusto e bem defendido`, a maior parte do tempo permanece pousada, entorpecida e indolente, parecendo não ter outro talento ou ambição que não sejam o de constituir um apoio subsidiário (nada tem a ver com a agilidade caligráfica das caudas dos lagartos); mas de vez em quando mostra ter reacções e ser bem articulada e até mesmo expressiva.
As partes visíveis da cabeça são a garganta larga e vibrante e, aos lados, os olhos salientes e sem pálpebras. A garganta é a superfície de um saco mole que se estende da ponta do queixo, dura e toda ela recoberta de escamas como a pele de um caimão, até ao ventre branco, o qual, nos sítios onde se comprime contra o vidro, apresenta igualmente um sarapintado granuloso, sendo também provavelmente adesivo.
Quando um mosquito passa perto da goela da osga, a língua salta e engole, fulmínea e dúctil e preênsil, privada de forma e capaz de assumir todas as formas. De qualquer modo, Palomar nunca tem a certeza se a viu ou se não a viu; aquilo que certamente vê, agora, é o mosquito dentro da garganta do réptil: o ventre premido contra o vidro iluminado é transparente como no raio X; pode-se seguir a sombra da presa no seu trajecto através das vísceras que a absorvem.
Se toda a matéria fosse transparente, o solo que nos sustém, o invólucro que enfaixa os nossos corpos, as coisas não apareceriam como um esvoaçar de véus impalpáveis, mas sim como um inferno de triturações e ingestões. Pode ser que neste momento um deus dos infernos, situado no centro da terra, nos esteja a ver com o seu olho que atravessa o granito, espreitando-nos do lado de baixo, seguindo o cicio do viver e do morrer, as vítimas dilaceradas que se desfazem. nos ventres dos devoradores, até que por sua vez
um outro ventre os engole a eles.
A osga permanece imóvel durante horas a fio; de vez em quando, com uma chicotada da língua, engole uma melga ou um mosquito; e, no entanto, parece não registar sequer a presença de outros insectos, idênticos aos primeiros, que poisam ignaros a poucos milímetros da sua boca. Será a pupila vertical dos seus olhos divergentes, colocados um em
cada lado da cabeça, que não os vê? Ou terá ela razões de escolha e de recusa que nós desconhecemos? Ou será que age apenas movida pelo acaso ou pelo capricho?
A segmentação das patas e da cauda em anéis, o sarapintado das diminutas e granulosas escamas da cabeça e do ventre, dão à osga uma aparência de dispositivo mecanico; uma elaboradíssima máquina, 'estudada em todos os seus microscópicos detalhes, ao ponto de nos apetecer perguntar se uma tal perfeição não será mal empregada, dadas as limitadas operações que executa. Ou será talvez esse o seu segredo: satisfeita de ser, reduz ao mínimo o fazer? Será esta a sua lição, o oposto da moral que o senhor Palomar tinha querido fazer sua durante a juventude: tentar fazer sempre alguma coisa que estivesse um pouco mais além dos seus próprios meios.
Surge agora ao seu alcance uma perdida borboleta nocturna. Não lhe irá ligar? Não fará caso? Ignorá-la-á? Não, também a apanha. A língua transforma-se em rede para borboletas e arrasta-a para dentro da boca. Caberá toda? Cuspi-la-á? Rebenta? Não, a borboleta está ali, na sua garganta: palpita maltratada, mas é ainda ela própria, intocada pela injúria de dentes mastigadores, hei-la que supera as angústias das fauces, é uma sombra que inicia a viagem, lenta e combatida, por um inchado esófago abaixo.
A osga, abandonando a sua impassibilidade, arqueja, agita a garganta convulsivamente, vacila sobre as pernas e a cauda, contorce o ventre submetido a dura prova. Terá que lhe chegue para esta noite? Ir-se-á ela embora? Seria este o culminar dos desejos que esperava satisfazer? Era esta a prova, dentro dos limites do possível, com que pretendia medir-se? Não; fica. Talvez tenha adormecido. Como será o sono para quem tem olhos sem pálpebras?
O senhor Palomar também não consegue afastar-se dali. Continua a fixar a osga. Não existe qualquer trégua com a qual se possa contar. Mesmo reacendendo a televisão, nada mais se faz do que alargar a contemplação dos massacres. A borboleta, frágil Eurídice, precipita-se no seu Hades. Surge agora um mosquito, está para pousar na vidraça. E a língua da osga salta.
A invasão dos estorninhos
Há uma coisa extraordinária para ver em Roma neste fim de Outono: é o céu apinhado de pássaros. O terraço do senhor Palomar é um bom ponto de observação, a partir do qual o olhar se pode estender sobre os tectos, abrangendo um amplo arco do horizonte. Sobre estes pássaros, o senhor Palomar sabe apenas aquilo que ouviu dizer à sua volta: são estorninhos que se reúnem às centenas de milhares, provenientes do Norte, à espera de partirem todos juntos para as costas de África. De noite dormem nas árvores da cidade, e quem arrumar o carro na avenida marginal ao longo do rio Tibre será obrigado a lavá-lo de cima a baixo pela manhã.
Para onde vão durante o dia, que função tenha esta prolongada paragem numa cidade na estratégia da migração, o que signifiquem para eles estas intensas reuniões ao fim da tarde, estes carroceis aéreos que fazem lembrar um. a grande manobra ou uma parada são coisas que o senhor Palomar ainda não conseguiu entender. As explicações que se dão são todas um pouco duvidosas, condicionadas por hipóteses, oscilando entre várias alternativas; e é natural que assim seja, tratando-se de boatos que passam de boca em boca; mas fica-se com a impressão de que a própria ciência, que deveria confirmar ou desmentir estes boatos, é afinal incerta, aproximativa. Assim sendo, o senhor Palomar decidiu limitar-se a observar, a fixar nos mínimos detalhes o pouco que consegue ver, limitando-se às ideias imediatas que aquilo que vê lhe vai sugerindo.
Na atmosfera violeta do pôr-do-sol, o senhor Palomar vê despontar numa extremidade do céu uma finíssima poeira, uma nuvem de asas que voam. Apercebe-se de que são milhares e milhares: a abóbada celeste está invadida por elas. Aquela imensidão, que até aqui lhe tinha parecido tranquila e vazia, revela-se toda ela percorrida por rapidíssimas e leves presenças.
Tranquilizadora visão, a passagem dos pássaros migradores, associada na nossa memória ancestral ao harmonioso suceder das estações; e no entanto o senhor Palomar experimenta como que um sentimento de apreensão. Será porque este céu apinhado nos lembra que o equilíbrio da natureza está perdido? Ou será porque o nosso sentimento de insegurança projecta ameaças de catástrofes sobre todas as coisas?
Quando se pensa nos pássaros migradores, é costume imaginar-se uma formação de voo muito ordenada e compacta, que sulca os céus numa longa fileira ou falange em ângulo agudo, quase como uma forma de pássaro composta por uma infinidade de pássaros. Esta imagem não é válida para os estorninhos, ou pelo menos não é válida para estes estorninhos outonais, nos céus de Roma: trata-se de uma multidão aérea, que parece estar constantemente a ponto de se rarefazer e de se dispersar, como os grãos de poeira em suspensão num líquido, mas que, ao contrário, se torna cada vez mais densa, como se o caudal de partículas em suspensão continuasse a fluir de uma conduta invisível, sem nunca chegar a saturar a solução.
A nuvem dilata-se, tornando-se negra de asas que se desenham mais nítidas no céu, sinal de que se estão a aproximar. O senhor Palomar já consegue distinguir uma perspectiva no interior do bando de pássaros, devido ao facto de avistar agora alguns voláteis muito próximos, quase sobre a sua cabeça, outros ao longe, outros mais longe ainda, e continua a descobri-los, cada vez mais minúsculos, pontinhos que, dir-se-ia, se estendem por quilómetros e quilómetros, atribuindo às distâncias entre um e outro uma medida quase igual. Mas esta ilusão de regularidade é enganadora, porque nada é mais difícil de avaliar do que a densidade de distribuição dos voláteis em voo: quando o compacto bando de pássaros parece estar prestes a obscurecer o céu, voragens de vazio aparecem repentinamente entre os pássaros.
Quando se detém durante alguns minutos na observação da disposição de cada um dos pássaros em relação aos outros, o senhor Palomar sente-se preso a uma trama cuja continuidade se estende uniformemente e sem apresentar brechas, tal como se ele também fizesse parte desse corpo em movimento, um corpo composto por centenas e centenas de corpos separados, cujo conjunto no entanto um objecto unitário, como se fosse uma nuvem, ou uma coluna de fumo, ou um repuxo, ou seja, como se fosse qualquer coisa que, apesar da fluidez da sua substância, alcançasse na forma uma solidez que lhe é própria. Mas basta que ele se ponha a seguir com o olhar um pássaro, tomado individualmente, para que a dissociação dos elementos prevaleça e a corrente pela qual se sentia transportado, a corrente pela qual se sentia suspenso, se dissolva; o efeito é o de uma vertigem, que o atinge na boca do estômago.
Tal acontece, por exemplo, quando o senhor Palomar, depois de se ter convencido de que o bando de pássaros está a voar na sua direcção, pousa o olhar sobre um pássaro que, pelo contrário, se está a afastar, e deste para um outro que também se está a afastar, mas numa direcção diferente, e em breve se apercebe de que todos os voláteis que lhe pareciam estar a aproximar-se estão na realidade a fugir em todas as direcções, como se ele se encontrasse no centro de uma explosão. Mas basta que dirija os olhos para uma outra zona do céu e hei-los que se concentram lá no fundo, num redemoinho cada vez mais denso e compacto, como quando um íman escondido sob uma folha de papel atrai a limalha de ferro, compondo desenhos que se tornam ora mais escuros ora mais claros e que acabam por se desfazer, deixando sobre a folha branca um sarapintado de fragmentos dispersos.
Uma forma emerge finalmente do confuso bater de asas, avança tornando-se mais densa: é uma forma circular, como uma esfera, uma bolha, o balão de uma banda desenhada em que alguém está a pensar num céu de pássaros, uma avalancha de asas que gira no ar e que implica no seu voltear todos os pássaros que voam à sua volta. Esta esfera constitui, no espaço um território especial, um volume em movimento enorme, e, um no interior dos seus limites - que no entanto se contraem e dilatam como uma superfície elástica -, os estorninhos podem continuar a voar, cada um na sua própria direcção, desde que não alterem a forma circular do conjunto.
A um dado momento o senhor Palomar apercebeu-se de que o número de seres que volteiam no interior do globo está a aumentar rapidamente, como se uma concorrente velocíssima despejasse nele uma nova população, com a mesma rapidez da areia que escorre numa clepsidra. É uma nova rajada de estorninhos que também toma uma forma esférica, dilatando-se no interior da forma precedente. Mas dir-se-ia que a coesão do bando não resiste para além de certas dimensões: de facto, o senhor Palomar está já a observar uma dispersão dos voláteis sobre os bordos do globo, aliás, são autênticos rombos que se abrem e vão esvaziando a esfera. Mal teve tempo de dar por isso e já a figura se dissolveu.
As observações dos pássaros sucedem-se e multiplicam-se a um ritmo tal que para as reordenar na sua memória o senhor Palomar sente a necessidade de as comunicar aos amigos. Também os amigos têm qualquer coisa a dizer sobre o assunto, porque a todos eles já aconteceu interessarem-se pelo fenómeno, ou porque o seu interesse lhes foi despertado por ele. É um assunto que nunca se pode considerar esgotado e, quando um dos amigos pensa ter visto alguma coisa de novo ou ter de rectificar uma impressão precedente, sente-se na obrigação de telefonar imediatamente aos outros. É deste modo que um vaivém de mensagens escorre através da rede telefónica, enquanto o céu é sulcado por exércitos de voláteis.
- Viste como conseguem sempre evitar-se uns aos outros, mesmo quando voam mais cerrados, mesmo quando os seus percursos se cruzam? Parece que têm radar!
- Não é verdade. Encontrei na calçada pássaros feridos, agonizantes ou mortos. São as vítimas dos choques em voo, inevitáveis quando a densidade é demasiado grande.
- já percebi porque é que ao fim da tarde continuam a sobrevoar todos juntos esta zona da cidade. São como os aviões que andam às voltas sobre os aeroportos à espera de receberem o sinal de "pista livre" para aterrarem. É por isso que os vemos a voar em círculos durante tanto tempo; estão à espera do seu turno, para poisarem sobre as árvores onde vão passar a noite.
- Eu vi como fazem quando descem a pique sobre as árvores. Andam às voltas no céu, em espiral, e depois, um a um, precipitam-se velozmente para a árvore que escolheram, travam bruscamente e poisam sobre o ramo.
- Não, os engarrafamentos do tráfego aéreo não podem ser um problema. Cada pássaro tem uma árvore sua, um ramo e um lugar sobre o ramo. Distingue-o lá de cima e vem por ali abaixo.
- Têm assim a vista tão apurada?
- Sei lá... Nunca são telefonemas longos, até porque o senhor Palomar está sempre impaciente por voltar ao terraço, como se tivesse medo de perder alguma fase decisiva.
Dir-se-ia agora que os pássaros ocupam apenas aquela porção de céu que ainda é iluminada pelos raios do sol poente. E, no entanto, olhando melhor, apercebemo-nos de que o adensar e o rarefazer dos voláteis se desdobra como uma longa fita, ondulando ao vento em ziguezague. Onde esta fita se curva, o bando de pássaros parece mais denso, como se fosse'um enxame de abelhas; onde se alonga sem se torcer, existe apenas um pontilhado de voos dispersos.
Uma maré de escuridão sobe do fundo das ruas, submergindo o arquipélago de telhas e cúpulas e terraços e casas em terraços e mirantes e campanários, até que o último clarão desaparece do céu; e a suspensão de asas negras dos invasores celestes precipita até se confundir com o pesado voo dos néscios e cagantes pombos citadinos.
Palomar vai às compras
Um quilo e meio de banha de ganso
A banha de ganso apresenta-se em frascos de vidro, cada um dos quais, segundo reza uma etiqueta escrita à mão, contém "dois membros de ganso gordo (uma pata e uma asa), banha de ganso, sal e pimenta. Peso líquido: um quilo e quinhentos". Na espessa e macia brancura que enche os frascos, aplaca-se o estridor do mundo: uma sombra escura nasce do fundo do recipiente e, como no nevoeiro da recordação, deixa transparecer os membros desirmanados do ganso, diluídos na sua banha.
O senhor Palomar está na bicha de uma charcuteria de Paris. É época de festas, mas aqui o tropel dos clientes é habitual, mesmo em épocas menos canónicas, porque esta é uma das melhores lojas gastronómicas da capital, que sobrevive miraculosamente num bairro onde o nivelamento do comércio de massa, os impostos, o baixo rendimento dos consumidores e agora a crise desmantelaram uma a uma as velhas lojas, substituindo-as por anónimos supermercados.
Enquanto espera na bicha, o senhor Palomar contempla os frascos. Tenta encontrar um lugar nas suas recordações para o cassoulet, um denso estufado de carnes e feijão, do qual a banha de ganso é um dos ingredientes essenciais; mas nem a memória do paladar nem a memória cultural vêm em seu auxílio. E no entanto o nome, a visão, a ideia, atraem- -no, redespertam nele uma instantânea fantasia, não tanto na boca quanto no eros: do meio de uma montanha de banha de ganso surge uma figura feminina que unta de branco a pele cor-de-rosa, e já ele se imagina a si próprio a abrir caminho em direcção a ela por entre aquelas densas avalanchas e a abraçá-la e a afundar-se com ela.
Expulsa aquele incongruente pensamento da sua cabeça, ergue o olhar até ao tecto recoberto de salsichões, que pendem de grinaldas natalícias como frutos dos ramos do país da abundância. À sua volta, por toda a parte, sobre prateleiras de mármore, a abundância triunfa nas formas elaboradas da civilização e da arte. As corridas e os voos da charneca fixam-se para sempre nas fatias de pâté de caça, sublimando-se numa tapeçaria de sabores. As galantinas de faisão entendem-se em cilindros cinzento-rosa, os quais para autentificar a sua origem, são encabeçados por duas patas passarinhescas, como garras que se estendem para fora de um brasão heráldico ou de uma peça de mobiliário do Renascimento.
Através dos invólucros de gelatina sobressaem as grandes pintas de trufa negra, postas em fila como botões sobre o fato de um Pierrot, como notas de uma partitura, constelando os róseos e variados canteiros dos pâtés de fote gras, dos salames, das terrines, as galantinas, os leques de salmão, as alcachofras guarnecidas como troféus. O fio condutor dos pequenos discos de trufa unifica a variedade das substâncias, como o negro dos fatos de soirée num baile de máscaras e assinala o traje a rigor dos alimentos.
Cinzenta e opaca e sisuda é, pelo contrário, a gente que abre caminho por entre os balcões, filtrada por empregadas vestidas de branco, mais ou menos velhas, de brusca eficiência. O esplendor dos acepipes de salmão, resplandecentes de maionese, desaparece engolido pelos obscuros sacos de compras dos clientes. Não há dúvida de que cada um destes ou destas sabe exactamente aquilo que quer, vai direito ao seu objectivo com uma determinação despida de incertezas e rapidamente arrasa montanhas de vol-au-vent, de pudins brancos, de chouriços.
O senhor Palomar gostaria de colher nos seus olhares um reflexo do fascínio daqueles tesouros, mas as caras e os gestos são apenas impacientes e fugidios, gestos de pessoas concentradas em si próprias, de nervos tensos, preocupadas com aquilo que há e aquilo que não há. Nenhum deles lhe parece digno da glória pantagruélica que se estende ao longo das vitrinas e sobre os balcões. A sua motivação assenta numa avidez sem alegria nem juventude: e, no entanto, uma ligação profunda, atávica, existe entre eles e aquelas comidas, consubstanciais a eles, carne da sua carne.
Apercebe-se de que está a experimentar um sentimento muito parecido com o ciúme: desejaria que, dos seus tabuleiros, os pâtés de pato e de lebre demonstrassem que o preferem a ele em vez dos outros, que reconhecessem nele o único que merece os seus dons, aqueles dons que a natureza e a cultura transmitem por herança através de milénios e que não devem cair em mãos profanas! O sacro entusiasmo pelo qual se sente invadido não será talvez o sinal de que ele e só ele é o eleito, o que foi tocado pela graça, o único que merece o manancial dos bens que transbordem da cornucópia do mundo?
Olha à sua volta, esperando sentir vibrar toda uma orquestra de sabores. Não, não há nada que vibre. Todas aquelas iguarias despertam em si recordações aproximativas e pouco distintas, a sua imaginação não consegue associar de um modo instintivo os sabores às imagens e aos nomes. Pergunta a si próprio se a sua gula não será sobretudo mental, estética, simbólica. Provavelmente, conquanto ele ame com sinceridade as gelatinas, as gelatinas não o amam. Sente que o seu olhar transforma todas aquelas vitualhas num documento da história da civilização, num objecto de museu.
O senhor Palomar gostaria que a bicha avançasse mais depressa. Sabe que, se passar ainda mais alguns minutos naquela loja, acabará por se convencer de que é ele o profano, o estrangeiro, que é ele o excluído.
O museu dos queijos
O senhor Palomar está na bicha de uma loja de queijos, em Paris. Pretende comprar certos queijinhos de cabra que se conservam em óleo, dentro de pequenos recipientes transparentes, temperados com especiarias várias e com certas ervas. A bicha de clientes prossegue ao longo de um balcão onde se encontram expostos exemplares das especialidades mais insólitas e mais diversas. É uma loja cujo sortido parece querer documentar todas as formas de lacticínios que se possa imaginar; a tabuleta "Spécialités froumagères", com aquele raro adjectivo, arcaico ou Yernáculo, previne desde logo que aqui se guarda a herança de um saber acumulado por uma civilização, através de toda a sua história e geografia.
Três ou quatro raparigas de bata cor-de-rosa atendem os clientes. Assim que uma delas está livre, toma à sua conta o primeiro da bicha e convida-o a exprimir os seus desejos: o cliente declara o seu pedido e, mais frequentemente, aponta o que quer, deslocando-se pela loja fora em direcção ao objecto dos seus apetites, precisos e competentes.
Naquele momento, toda a bicha avança um passo em frente; e quem até agora tinha estado parado ao lado do "Bleu d'Auvergne" raiado de verde, passa a estar à altura do "Brian d'amour", cuja alvura retém colados fios de palha secos; quem contemplava uma bola envolvida em folhas, pode concentrar-se num cubo coberto de cinza. Há quem encontre nestas fortuitas etapas inspiração para novos estímulos e novos desejos; muda de ideia sobre o que estava para pedir ou junta algum item à sua lista; e há quem não se deixe distrair, nem sequer por um instante, do seu objectivo e, para esses, toda e qualquer sugestão diferente com que venham a confrontar-se serve apenas para delimitar, por exclusão de partes, o campo daquilo que teimosamente querem.
O espírito de Palomar oscila entre dois impulsos contrastantes: aquele que tende para um conhecimento completo, exaustivo, e que apenas poderia ser satisfeito experimentando todas as qualidades de queijos; e o que tende para uma escolha absoluta, para a identificação do queijo que é o seu, um queijo que certamente existe, mesmo que ele ainda o não saiba reconhecer (não saiba reconhecer-se nele).
Ou então, talvez não se trate de escolher o seu próprio queijo, mas sim de ser escolhido. Existe uma relação recíproca entre queijo e cliente: cada queijo espera o seu cliente, toma a atitude mais indicada para o atrair, com uma firmeza ou granulosidade um tanto ou quanto altivas. Ou, ao contrário, derretendo-se num abandono de quem se rende.
Uma sombra de cumplicidade viciosa paira sobre o ambiente: o requinte gustativo e sobretudo o requinte olfactivo conhecem os seus momentos de abandono, de fácil sedução, nos quais, os queijos, sobre os seus tabuleiros, parecem oferecer-se como se estivessem sobre os divãs de um lupanar. Um esgar perverso aflora no regozijo com que se avilta o objecto da gula, atribuindo-lhe epítetos infamantes: crotti.n, boule de mione, bouton de culotte.
Não é este o tipo de conhecimento que o senhor Palomar é mais dado a aprofundar: no seu caso, bastar-lhe-ia estabelecer a simplicidade de uma relação física directa entre homem e queijo. Mas se ele em lugar dos queijos vê nomes de queijos, conceitos de queijos, significados de queijos, histórias de queijos, contextos de queijos, psicologias de queijos, se ele- mais do que saber - pressente que atrás de cada queijo existe tudo isto, sucede que a sua relação se torna muito complicada.
A casa dos queijos representa para Palomar o mesmo que uma enciclopédia para um autodidacta; poderia memorizar todos os nomes, tentar uma classificação de acordo com as formas - forma de sabonete, de cilindro, de cúpula, de bola - de acordo com a consistência - seco, amanteigado, cremoso, em estratos, compacto - de acordo com as matérias estranhas misturadas com a casca ou com a pasta - passas, pimenta, nozes, gergelim, ervas, bolores - mas isto não o aproximaria um só passo do verdadeiro conhecimento, que reside na experiência dos sabores, feita de memória e de imaginação em conjunto, e só na base dessa experiência poderia estabelecer uma escala de gostos e preferências e curiosidades e exclusões.
Por trás de cada queijo está um prado de um distinto verde sob um distinto céu: prados incrustados pelo sal que as marés da Normandia depositam em cada entardecer; prados perfumados por aromas, ao sol ventoso da Provença; estão distintos rebanhos, com as respectivas estabulações e transumâncias; estão segredos de preparação transmitidos através dos séculos. Esta loja é um museu: ao visitá-la, o senhor Palomar sente, tal como no Louvre, que por detrás de cada um dos objectos expostos está a presença da civilização que lhe deu forma e que dele toma forma.
Esta loja é um dicionário; a língua é o sistema dos queijos no seu conjunto: uma língua cuja morfologia regista declinações e conjugações com inumeráveis variantes e cujo léxico apresenta uma riqueza inesgotável de sinónimos, usos idiomáticos, conotações e cambiantes de significado, como todas as línguas alimentares pela contribuição de cem dialectos. E uma língua feita de coisas; a nomenclatura é em relação a ela um aspecto exterior, instrumental; mas para o senhor Palomar, aprender um pouco de nomenclatura é sempre a primeira medida a tomar quando pretende imobilizar por um momento as coisas que deslizam diante dos seus olhos. Tira da algibeira um bloco-de-notas, uma caneta, começa a escrever nomes, a assinalar ao lado de cada nome uma qualificação qualquer que lhe permita trazer a imagem à memória; experimenta também desenhar um esboço sintético da forma. Escreve pavé dAirvault, anota <bolores verdes", desenha um paralelepípedo achatado e sobre um dos lados anota "cerca de 4 cm"; escreve St-Maure, anota "cilindro cinzento granuloso com um patizinho dentro" e desenha-o, medindo a olho "20 cm"; depois escreve Chabicholi e desenha um pequeno cilindro.
- Monsteur! Houhou! Monsieur! - Uma jovem vendedora de queijo encontra-se à sua frente, e ele continua absorvido pelo seu bloco-de-notas. Chegou a sua vez, e na bicha que se estende para trás dele todos observam o seu comportamento incongruente, abanando a cabeça com aquele ar, meio irónico, meio impaciente, com o qual os habitantes das grandes cidades consideram o número sempre crescente de débeis mentais que se passeiam pelas ruas.
O pedido elaborado e guloso que tinha a intenção de fazer escapa-se-lhe da memória; balbuceia; refugia-se no mais óbvio, no mais banal, no mais publicitado, como se os automatismos da civilização de massas não esperassem mais do que aquele seu momento de incerteza para o terem de novo sob o seu poder.
O mármore e o sangue
As reflexões que o talho inspira a quem lá entra com o seu saco das compras implicam noções transmitidas ao longo dos séculos em vários ramos do saber: a idoneidade das carnes e dos talhos, a melhor maneira de cozinhar cada pedaço, os rituais que nos permitem aplacar o remorso de pôr fim a outras vidas a fim de nutrir a nossa. A sapiência do talhe e a sapiência culinária pertencem às ciências exactas, verificáveis com base na experiência, tendo em conta costumes e técnicas que variam de país para país; à sapiência sacrificiâ, pelo contrário, é dominada pela incerteza, tendo além disso caído no esquecimento há muitos séculos, mas pesa nas consciências, obscuramente, como uma exigência não expressa. Uma devoção reverente por tudo aquilo que diz respeito à carne guia o senhor Palomar, que se prepara para comprar três bifes. Rodeado pelos mármores do talho, permanece como se estivesse num templo, consciente de que a sua existência individual e a cultura a que pertence estão condicionadas por aquele lugar.
A bicha dos clientes desliza lentamente ao longo do alto balcão de mármore, ao longo das prateleiras e das bandeiras onde se alinham as peças de carne, cada uma delas com um cartão enfiado, onde se lê o seu preço e o seu nome.
Sucedem-se assim o vermelho vivo da vaca, o cor-de-rosa claro da vitela, o vermelho pálido do borrego, o vermelho escuro do porco. Flamejam vastas costeletas, redondos tornedós cuja espessura se apresenta forrada por uma tira de toucinho, bifes do lombo, ágeis e esbeltos, costeletas de pé, armadas com o seu punho de osso, chambões compactos e sem um fio de gordura, pedaços de carne de cozer com estratos magros e gordos, peças de carne para assar que esperam pelo cordel que as vai obrigar a concentrarem-se sobre si próprias; e depois as cores atenuam-se: escalopes de vitela, lombinhos, pedaços da pá e do peito, cartilagens; e eis-nos entrados no reino das pernas de borrego; mais à frente a alvura de uma dobrada, a mancha negra de um fígado...
Atrás do balcão, os homens do talho, vestidos de branco, brandem os machados de lâmina trapezoidal, os cutelos destinados a cortar a carne e os que servem para esfolar, os serrotes para cortar os ossos, os martelos de carne com que empurram os coleantes caracóis cor-de-rosa no funil da máquina de picar carne. Dos ganchos pendem corpos esquartejados, recordando que cada garfada faz parte de um
ser a cuja integridade vivente foi arbitrariamente arrancada.
Num painel pendurado na parede, o perfil de um boi apresenta-se como uma carta geográfica percorrida por linhas fronteiriças que delimitam as áreas de interesse comestível, que compreendem a inteira anatomia do animal, com a exclusão dos cornos e dos cascos. O mapa do habitat humano é este, e não o é menos do que o planisfério do planeta, sendo ambos protocolos que deveriam sancionar os direitos, que o homem se atribuiu, de posse, partilha e devoração sem resíduos dos continentes terrestres e dos lombos do corpo animal.
Convém dizer que a simbiose homem-boi alcançou através dos séculos um equilíbrio próprio (permitindo às duas espécies continuarem a multiplicar-se) ainda que esse equilíbrio seja assimétrico (é verdade que o homem provê à nutrição do boi, mas não é obrigado a entregar-se-lhe como alimento) e garantiu o florescer da civilização dita humana, a qual, pelo menos no que diz respeito a uma das suas partes, deveria dizer-se humano-bovina (coincidente em parte com a humano-ovina e ainda mais parcialmente com a humano-suína, de acordo com as alternativas de uma complicada geografia de proibições religiosas). O senhor Palomar participa nesta simbiose com uma lúcida consciência e uma plena aquiescência: apesar de reconhecer na carcaça pendurada do boi a pessoa do seu próprio irmão esquartejado, mesmo reconhecendo no corte do lombo a ferida que mutila a sua própria carne, sabe que é um carnívoro, condicionado pela sua tradição alimentar a recolher num talho a promessa da sua felicidade gustativa, a imaginar, observando estas fatias avermelhadas, as estrias que a chama deixará nos bifes na grelha e o prazer do dente ao cortar a fibra tostada.
Um sentimento não exclui o outro: o estado de alma de Palomar na bicha do talho é simultaneamente de alegria contida e de temor, de desejo e de respeito, de preocupação egoísta e de compaixão universal, o estado de alma que outros talvez exprimam na oração.
Palomar no jardim zoológico
A corrida das girafas
O senhor Palomar, de visita ao jardim zoológico de Vincennes, pára em frente do recinto das girafas. De vez em quando as girafas adultas põem-se a correr, seguidas pelas girafas crianças, lançam-se à carga correndo quase até à rede do recinto, giram sobre si próprias, repetem o percurso em grande correria umas duas vezes, e depois param. O senhor Palomar não se cansa de observar a corrida das girafas, fascinado pela desarmonia dos seus movimentos. Não consegue decidir se elas galopam ou se trotam, porque o passo das patas posteriores não tem nada a ver com o das anteriores. As patas anteriores, desengonçadas, curvam-se até ao peito e desdobram-se até ao chão, como se estivessem indecisas sobre quais das tantas articulações que possuem devessem dobrar naquele determinado instante. As patas posteriores, muito mais curtas e rígidas, seguem-nas aos saltos, um tanto ou quanto enviesadas, como se fossem pernas de pau, ou muletas claudicantes, mas assim como se estivessem a brincar, como se soubessem que são burlescas. Entretanto o pescoço estendido para a frente balança para cima e para baixo, como' se fosse o braço de uma grua, sem que se consiga estabelecer uma relação entre os movimentos das patas e este outro movimento do pescoço. Há depois também um solavanco da garupa, mas este não passa do movimento do pescoço que faz alavanca sobre o resto da coluna vertebral.
A girafa parece ser um mecanismo construído através da união de grandes pedaços provenientes de máquinas heterogéneas mas que apesar disso funciona perfeitamente. O senhor Palomar, continuando a observar as girafas na sua corrida, apercebe-se de que existe uma complicada harmonia que comanda aquela pateada desarmónica, que há uma proporção interna que liga entre si as mais vistosas desproporções anatómicas, que uma graça natural acaba por sobressair daqueles movimentos desajeitados. O elemento unificador é dado pelas manchas do pêlo, dispostas em figuras irregulares, mas homogéneas, com contornos definidos e angulosos; estas manchas conciliam-se entre si como um exacto equivalente gráfico dos movimentos segmentados do animal. Mais do que de manchas, dever-se-ia falar de um manto negro, cuja uniformidade é cortada por estrias claras, que se abrem seguindo um desenho em forma de losangos: uma descontinuidade de pigmentação que anuncia já a descontinuidade dos movimentos.
Nesta altura, a filha do senhor Palomar, que já há bastante tempo se cansou de observar as girafas, arrasta-o em direcção à gruta dos pinguins. O senhor Palomar, a quem os pinguins provocam angústia, segue-a de má vontade, perguntando-se a si mesmo o porquê do seu interesse pelas girafas. Talvez porque o mundo que existe à sua volta se move de uma forma desarmónica e ele continua a esperar descobrir nele um desígnio, uma constante. Talvez porque ele próprio sente que avança levado por impulsos não coordenados da mente, que parecem não ter nada que ver uns com os outros e que são cada vez mais difíceis de fazer enquadrar num qualquer modelo de harmonia interior.
O gorila albino
No jardim zoológico de Barcelona existe o único exemplar que se conhece no mundo de gorila albino, um gorila da América Equatorial. O senhor Palomar abre caminho por entre a multidão que se aglomera no seu pavilhão. Por detrás de uma vidraça, "Copito de Nieve" ("Floco de Neve", assim lhe chamam) é uma montanha de carne e de pêlo branco. Sentado contra uma parede, o gorila está a apanhar sol. A máscara facial é de um cor-de-rosa humano, sulcada de rugas; também o peito mostra uma pele sem pêlos e rosada, como a dos homens de raça branca. Aquela cara de feições enormes, de gigante triste, volta-se de vez em quando para a multidão dos visitantes que estão para lá do vidro, a menos de um metro de distância; um lento olhar carregado de desolação e de paciência e de tédio, um olhar que exprime toda a desolação de ser como se é, único exemplar no mundo de uma forma não escolhida, não amada, todo o cansaço de se carregar sobre os.ombros a sua própria singularidade, todo o desgosto de ocupar o espaço e o tempo com a sua própria presença, tão embaraçante e tão vistosa.
A vidraça permite ver um recinto circundado por altas paredes de alvenaria que lhe dão um aspecto de pátio de prisão mas que é, na realidade, o "jardim" da casa-jaula do gorila, do solo do qual se eleva uma árvore baixa sem folhas e uma escada de ferro como as que existem nos ginásios. Mais para o fundo do pequeno pátio, está a fêmea, uma grande gorila negra com um bebé, igualmente negro, nos braços: a brancura do pêlo não se herda. "Copito de Nieve" continua a ser o único albino entre todos os gorilas.
Encanecido e imóvel, o gorila evoca na mente do senhor Palomar uma antiguidade imemorial, como as montanhas ou as pirâmides. Na realidade, é um animal ainda jovem e é apenas o contraste entre o vulto cor-de-rosa e o pelo curto e alvo que lhe serve de moldura, e sobretudo as rugas em redor dos olhos, que lhe conferem uma aparência de velho. Quanto ao resto, "Copito de Nieve" apresenta menos semelhanças em relação ao homem do que outros Primatas: em lugar do nariz, as narinas escavam um duplo abismo; as mãos, peludas e - dir-se-ia - pouco articuladas, na extremidade de braços muito longos e rígidos, são ainda na realidade duas patas e como tais o gorila as usa quando caminha, apoiando-se no solo como um quadrúpede.
Agora estes braços-patas apertam contra o peito um pneu de automóvel. No enorme vazio das suas horas, "Copito de Nieve" não abandona nunca aquele pneu. O que será este objecto para ele? Um brinquedo? Um fétiche? Um talismã? A Palomar parece-lhe compreender perfeitamente o gorila, a sua necessidade de ter uma coisa que possa segurar contra si enquanto tudo lhe foge, uma coisa com a qual possa aplacar a angústia do isolamento, da diferença, da condenação de ser sempre considerado um fenómeno vivo, tanto pelas suas fêmeas e pelos seus filhos como pelos visitantes do jardim zoológico.
A fêmea' também possui um pneu de automóvel, mas este é para ela um objecto de uso, com o qual mantém uma relação prática e sem problemas: está sentada dentro dele como se fosse uma poltrona, tomando sol enquanto vai catando o seu filhote. Para "Copito, de Nieve", pelo contrário, o contacto com o pneu parece ter qualquer coisa de afectivo, de possessivo, duma forma que é de algum modo simbólica. Aquele contacto pode abrir-lhe um caminho na direcção daquilo que é para o homem a procura de uma saída para o pavor de viver: o investir-se a si próprio nas coisas, o reconhecer-se nos sinais, o transformar o mundo num conjunto de símbolos; quase como um primeiro alvorecer da cultura na longa noite biológica. Para isso, o gorila albino dispõe apenas de um pneu de automóvel, um artefacto de produção humana, estranho a si próprio, privado de qualquer potencialidade simbólica, despido de significados abstractos. Ninguém, ao contemplá-lo, diria que se pudesse extrair dele grande coisa. E, no entanto, que coisa melhor do que um círculo vazio poderá assumir todos os significados que se lhe queiram atribuir? Talvez que ao identificar-se nele o gorila esteja à beira de atingir no fundo do silêncio as nascentes de onde emana a linguagem, de estabelecer um fluxo de relações entre os seus pensamentos e a irredutível e surda evidência dos factos que determinam a sua vida...
Uma vez saído do jardim zoológico, o senhor Palomar não consegue afastar da sua mente a imagem do gorila albino. Experimenta falar sobre ele com as pessoas que vai encontrando, mas não consegue fazer-se escutar por ninguém. À noite, quer nas horas de insónia quer durante os breves sonhos, o gorila continua a aparecer-lhe. "Tal como o gorila tem o seu pneumático que lhe serve de suporte tangível para um delirante discurso sem palavras pensa ele - também eu tenho esta imagem de um gorila branco. Todos fazemos girar entre as nossas mãos um velho pneu vazio, através do qual pretenderíamos alcançar aquele sentimento último a que as palavras não chegam."
A ordem dos escamíferos
O senhor Palomar gostaria de entender porque é que as iguarias o atraem; quando está em Paris, vai de vez em quando visitar o pavilhão dos répteis do jardim das Plantas; nunca fica decepcionado; aquilo que a visão de uma iguaria tem para si de extraordinário, aliás, de único, é para ele bem claro; mas sente que há qualquer coisa mais e não sabe dizer o que é.
A Iguana é recoberta por uma pele verde que se diria tecida de pequeníssimas escamas sarapintadas. Esta pele é excessiva: no pescoço, nas patas, forma pregas, bolsas, balões, como um vestido que deveria ser aderente e que acaba por pender por todos os lados. Ao longo da espinha dorsal surge uma crista dentada, que se prolonga até à cauda, a cauda é igualmente verde, até um certo ponto, e depois, à medida que se vai alongando, vai perdendo cada vez mais a cor, segmentando-se em anéis de tons alternados: castanho-claro e castanho-escuro. O olho abre e fecha, num focinho coberto de escamas verdes, e é este olho "evoluído", dotado de olhar, de atenção, de tristeza, que dá a ideia de que um outro ser está escondido sob aquela aparência de dragão: um animal mais parecido com aqueles com os quais temos alguma familiaridade, uma presença viva, menos distante de nós do que nos possa parecer...
Depois, outras cristas espinhosas sob o queixo, duas placas brancas e redondas no pescoço, como se pertencessem a um aparelho acústico: uma quantidade enorme de acessórios e bugigangas, aperfeiçoamentos e guarnições defensivas, um mostruário de formas disponíveis no reino animal e provavelmente também noutros reinos, demasiadas coisas para se encontrarem todas em cima de um único bicho; afinal, para que serve tudo isto? servirá para mascarar alguém que nos observa de dentro?
As patas anteriores, com cinco dedos, fariam pensar mais em garras do que em mãos, se não estivessem implantadas em autênticos braços, musculados e bem modelados; já não se pode dizer o mesmo das patas posteriores, largas e moles, com dedos que parecem ramificações vegetais. Mas o animal, no seu conjunto, mesmo do fundo do seu resignado torpor, transmite apesar de tudo uma imagem de força.
O senhor Palomar só parou na vitrina do Iguana iguana após ter contemplado uma outra que tinha dez pequenas iguanas agarradas umas às outras, trocando continuamente de posição entre si com ágeis movimentos de cotovelos e de joelhos, todas esticadas no sentido do comprimento: a pele é de um verde brilhante, com um pequeno ponto brilhante no lugar das guelras, uma barba branca serrilhada, olhos claros, abertos em tomo da pupila negra. Em seguida, o Varano das savanas, que se esconde na areia da sua própria cor; o Teku ou Tupinambis, negro-amarelado, quase um caimão; o Cordilo, gigante africano de escamas pontiagudas e densas como pêlo ou folhas, cor do deserto, tão concentrado no seu propósito de se auto-excluir do mundo que se enrola em círculo, comprimindo a cauda contra a cabeça. A carapaça, verde-cinzenta por cima e branca por baixo, de uma tartaruga imersa na água de um aquário transparente, parece mole, carnosa; o focinho aguçado aparece a espreitar, como se saísse de um colarinho engomado.
A vida no pavilhão dos répteis parece ser um desperdício de formas sem estilo, sem planificação, onde tudo é possível, e onde bichos e plantas e rochas trocam entre si escamas, acúleos, concreções, e onde, entre as infinitas combinações possíveis, apenas algumas - talvez exactamente as mais incríveis -, se fixam, resistem ao fluxo que as desfaz e as volta a misturar e a modelar; e logo cada uma destas formas se torna o centro de um mundo, separada para sempre das outras, tal como aqui, na fila das aulas-vitrinas do jardim zoológico; e neste número finito de modos de ser, cada um delesidentificado numa sua monstruosidade, e necessidade, e beleza, consiste a única ordem que se pode reconhecer no mundo. A sala das iguarias no jardim das Plantas, com as suas vitrinas iluminadas onde répteis semidespertos se escondem entre ramos e rochas e areia da sua floresta originária ou do deserto, espelha a ordem do mundo, seja essa o reflexo do céu das ideias na terra ou a manifestação exterior do segredo da natureza das coisas, da norma escondida no fundo daquilo que existe.
Será este ambiente, mais do que os répteis, aquilo que obscuramente atrai o senhor Palomar? Um calor húmido e mole impregna a atmosfera como uma esponja; um cheiro acre, pesado, nauseabundo, obriga a suster a respiração; a sombra e a luz estagnam, numa mistura imóvel de dias e de noites: serão estas as sensações de quem se debruça para fora do humano? Para lá do vidro de cada jaula está o mundo de antes do homem ou de depois do homem, demonstrando que o mundo do homem não é eterno e não é o único. Será para se dar conta disso com os seus próprios olhos que o senhor Palomar passa em revista estes estábulos em que dormem pitões, boas, cascáveis dos bambus, serpentes arborícolas das Bermudas?
Mas cada vitrina é apenas uma amostra mínima dos mundos de que o homem está excluído, arrancada a uma continuidade natural que poderia até nunca ter existido, poucos metros cúbicos de atmosfera,.que elaborados mecanismos mantêm a um certo grau de temperatura e humidade. Portanto, cada exemplar deste bestiário antediluviano é mantido com vida, artificialmente, quase como se fosse uma hipótese da mente, um produto da imaginação, uma construção da linguagem, uma argumentação paradoxal, visando demonstrar que o único mundo verdadeiro é o nosso...
O senhor Palomar sente repentinamente o desejo de sair para o ar livre, como se só agora o cheiro dos répteis se tivesse tornado insuportável. Tem de atravessar a grande sala dos crocodilos, onde se alinha uma fila de tanques separados por barreiras. Na parte seca que fica ao lado de cada tanque, jazem os crocodilos, sozinhos ou aos casais, de cor baça, atarracados, horrendos, pesadamente estendidos, espalmados contra o pavimento ao longo de toda a extensão dos seus focinhos cruéis, dos frios ventres, das grandes caudas. Parecem estar todos adormecidos, mesmo aqueles que mantêm os olhos abertos, ou talvez todos com insónias, numa desolação atónita, mesmo com os olhos fechados 'De vez em quando, um deles oscila ligeiramente, ergue-se um tudo nada sobre as curtas patas, escorrega sobre a borda de um tanque, deixa-se cair com um baque surdo levantando uma onda, flutua semi-imerso na água, imóvel, tal como antes. Será uma desmesurada paciência, a deles, ou um desespero sem fim? O que será que esperam, ou o que é que deixaram de esperar? Em que tempo estão submersos? No tempo da espécie, roubado à corrida das horas que se precipitam desde o nascimento até à morte do indivíduo? Ou no tempo das eras geológicas, que desloca os continentes e consolida a crosta das terras emersas? Ou no lento arrefecer dos raios do sol? O pensamento de um tempo fora da nossa experiência é insuportável. Palomar apressa-se a sair do pavilhão dos répteis, que apenas se pode frequentar de vez em quando e de fugida.
Os silêncios de Palomar
As viagens de Palomar
O canteiro de areia
Um pequeno pátio recoberto por uma areia branca de grão grosso, quase cascalho, sulcada por linhas paralelas e círculos concêntricos, desenhados a ancinho em torno de cinco grupos irregulares de pedras ou de rochedos baixos. Trata-se de um dos monumentos mais famosos da civilização japonesa, o jardim de rochas e areia do templo Ryoanj1 de Kyoto, a típica imagem da contemplação do absoluto que se alcança com os meios mais simples e sem recorrer a conceitos exprimíveis por palavras, segundo os ensinamentos dos monges Zen, a seita mais espiritual do budismo.
O recinto rectangular de areia incolor é rodeado, em três dos seus lados, por paredes encimadas por telhas, para além das quais se vêem árvores verdejantes. ao longo do quarto lado está um estrado de madeira com degraus onde o público pode passar e parar e sentar-se. "Se o nosso olhar interior permanecer absorto na visão deste jardim explica o prospecto que é oferecido aos visitantes 'em japonês e em inglês, assinado pelo abade do templo - sentir-nos-emos despidos da relatividade do nosso eu individual, ao mesmo tempo que a intuição do Eu absoluto nos encherá de serena surpresa, purificando as nossas mentes ofuscadas. "
O senhor Palomar está disposto a seguir estes conselhos com confiança e senta-se nos degraus, observa as rochas uma por uma, segue as ondulações sobre a areia branca, deixa que a harmonia indefinível que liga os elementos do quadro o vá invadindo a pouco e pouco.
Ou seja: procura imaginar todas estas coisas tal como as sentirá alguém que pudesse concentrar-se na contemplação do jardim Zen em solidão e silêncio. Porque - tinhamo-nos esquecido de o dizer - o senhor Palomar está comprimido sobre o estrado, no meio de centenas de visitantes que o empurram de todos os lados, objectivas de câmaras fotográficas e de máquinas de filmar que abrem caminho por entre cotovelos, joelhos e orelhas da multidão, enquadrando as rochas e a areia de todos os ângulos possíveis, iluminados pela luz natural ou pelos flash. Multidões de pés calçados com meias de lã saltam por cima dele (os sapatos, como sempre acontece no Japão, são deixados à entrada), proles numerosas são empurradas para a primeira fila por pais com espírito pedagógico, bandos de estudantes, em uniforme, empurram-se, ansiosos por digerir o mais depressa possível a visita escolástica ao monumento famoso; visitantes diligentes verificam, com o vaivém rítmico da cabeça, se tudo aquilo que está escrito no guia turístico corresponde à realidade e se tudo aquilo que se vê na realidade está escrito no guia.
"Podemos ver o jardim de areia como um arquipélago de ilhas rochosas na imensidade do oceano, ou então como cumes de altas montanhas que emergem de um mar de nuvens. Podemos vê-lo como um quadro emoldurado pelas paredes do templo, ou esquecermo-nos da moldura e convencermo-nos de que o mar de areia se expande sem limites e cobre o mundo inteiro".
Estas "instruções de utilização" estão contidas no prospecto e parecem ao senhor Palomar perfeitamente plausíveis e imediatamente aplicáveis, sem esforço, desde que se esteja deveras seguro de ter uma individualidade que se possa despir e de estar a olhar o mundo do interior de um eu que se possa dissolver, tornando-se apenas olhar. Mas é exactamente este ponto de partida que exige um esforço de imaginação suplementar, dificílimo de efectuar quando o nosso próprio eu é aglutinado por uma multidão compacta, que olha através do seus mil olhos e percorre sobre os seus mil pés o itinerário obrigatório da visita turística.
Conclui-se portanto que as técnicas mentais Zen, destinadas a alcançar o limite extremo da humildade, a distanciação em relação a qualquer forma de posse e orgulho, têm necessariamente como base o privilégio aristocrático, pressupondo o individualismo, com muito espaço e muito tempo à volta de cada um, e os horizontes de uma solidão sem ânsia.
Mas esta conclusão, que conduz ao habitual lamento pelo paraíso perdido, submergido pelo alastrar da civilização de massa, parece demasiado fácil ao senhor Palomar. Prefere enveredar por uma via mais difícil, procurar apanhar aquilo que o jardim Zen lhe pode dar e olhá-lo na única situação em que ele pode ser olhado hoje, ou seja, estendendo o seu pescoço por entre outros pescoços.
E que vê ele? Vê a espécie humana na era dos grandes números, que se estende numa multidão nivelada mas, no entanto, feita de individualidades distintas, tal como este mar de grãos de areia que submerge a superfície do mundo... Vê o mundo, apesar disso, continuar a mostrar as costas rochosas da sua natureza, indiferente ao destino da humanidade, a sua dura substância, irredutível a qualquer assimilação humana... Vê as formas em que a areia humana se agrega tenderem para uma disposição segundo linhas de movimento, desenhos que combinam regularidade e fluidez com as marcas rectilíneas ou circulares de um ancinho... E entre humanidade-areia e mundo-rochedo, intui-se uma harmonia possível, como entre duas harmonias não homogéneas: a do não humano, num equilíbrio de forças que parece não corresponder a qualquer desígnio; a das estruturas humanas, que aspira a uma racionalidade de composição geométrica ou musical, nunca definitiva...
Serpentes e caveiras
Em viagem pelo México, o senhor Palomar visita as ruínas de Tula, antiga capital dos Toltecas. É acompanhado por um amigo mexicano, conhecedor apaixonado e eloquente das civilizações pré-colombianas, que lhe vai contando as belíssimas lendas de Quetzalcoatl.
Antes de se tornar um deus, Quetzalcoatl foi um rei 9-.ie teve em Tula a sua corte; dela restam ainda uma série de colunas truncadas, em torno de um implúvio, um pouco à moda dos palácios da Roma antiga.
O templo da Estrela da Manhã é uma pirâmide em degraus. No alto elevam-se quatro cariátides cilíndricas, ditas "atlantes", que representam o deus QuetzalcoatI como Estrela da Manhã (por causa de uma borboleta que trazem nas costas, símbolo da estrela) e quatro colunas esculpidas, que representam a Serpente Emplumada, ou seja, sempre o mesmo deus, sob a forma de animal.
Tudo isto deve ser tido por verdadeiro sem quaisquer provas; por outro lado, seria difícil demonstrar o contrário. Na arqueologia mexicana, cada estátua, cada objecto, cada baixo-relevo, significam alguma coisa que significa alguma coisa que por sua vez significa alguma coisa. Um animal o, um deus que significa uma estrela que significa um elemento ou uma qualidade humana e assim sucessivamente. Estamos no mundo da escrita pictográfica, os antigos Mexicanos, para escreverem, desenhavam figuras e, mesmo quando desenhavam, era como se escrevessem: cada figura apresenta-se como um enigma a decifrar. Até mesmo os frisos mais abstractos e geométricos que se encontrem na parede de um templo podem ser interpretados como setas se neles se puder ver um motivo de linhas partidas, ou como uma sucessão numérica, de acordo com a maneira como esses mesmos frisos se sucedem. Aqui em Tula os baixos-relevos repetem figuras animais estilizadas: jaguares, coiotes. O amigo mexicano detém-se em cada pedra, transformando-a em relato cósmico, em alegoria, em reflexão moral.
Uma turma de estudantes desfila entre as ruínas: rapazotes com feições de índio, provavelmente descendentes dos construtores daqueles templos, vestidos com uma simples farda branca tipo boy-scout, com lenços azuis. Os rapazes são guiados por um professor que não é muito mais alto do que eles e pouco mais adulto, que apresenta a mesma cara morena, redonda e imóvel. Sobem os altos degraus da pirâmide, detêm-se sob as colunas, o professor diz a que civilização pertencem, a que século, em que pedra estão esculpidas e em seguida conclui: "Não se sabe o que querem dizer" e o grupo de alunos desce atrás dele. Ao pé de cada estátua, ao pé de cada figura esculpida sobre um baixo-relevo ou sobre uma coluna, o professor fornece alguns dados factuais e acrescenta invariavelmente: "Não se' sabe o que querem dizer."
Encontram agora um chac-mool, tipo de estátua bastante comum: uma figura humana semiprostrada segura um tabuleiro; era sobre aquele tabuleiro, dizem unânimes os peritos, que eram apresentados os corações ensanguentados das vítimas dos sacrifícios humanos. Estas estátuas, por si só, poderiam igualmente ser vistas como bonacheirões e atarracados bonecos; mas o senhor Palomar, cada vez que vê uma delas, não consegue deixar de sentir calafrios.
Passa a fila dos estudantes. E oProfessor: Esto es um chac-mool. No se sabe lo que qu@ere decir. E passa à frente.
O senhor Palomar, apesar de seguir as explicações do amigo que o gula, acaba sempre por se cruzar com os estudantes e ouvir as palavras do professor. Fica fascinado pela riqueza das referências mitológicas do amigo: o jogo do interpretar, a leitura alegórica, sempre lhe pareceu um soberano exercício da mente. Mas sente-se igualmente atraído pela atitude oposta do mestre-escola: aquilo que lhe parecera no início uma expedita falta de interesse vai-se revelando aos seus olhos como uma postura científica e pedagógica, uma opção metodológica deste jovem grave e consciencioso, uma regra a que não quer renunciar. Uma pedra, uma figura, um sinal, uma palavra, que nos chegam isolados do seu contexto, são apenas aquela pedra, aquela figura, aquele sinal ou palavra: podemos tentar defini-los, descrevê-los enquanto tais, e basta; se, para além da face que nos apresentam, têm também uma face escondida, não nos é dado sabê-lo. A recusa de conceber mais do que aquilo que estas pedras nos mostram é talvez o único modo possível de demonstrar respeito pelo seu segredo; tentar adivinhar é presunção, uma traição àquele autêntico significado perdido.
Atrás da pirâmide passa um corredor, uma espécie de trincheira de ligação entre dois muros, um de terra batida, outro de pedra esculpida: o Muro das Serpentes. É talvez a mais bela peça de Tula: no friso em relevo sucedem-se as serpentes, cada uma das quais tem uma caveira nas mandíbulas abertas, como se estivesse para a devorar.
Passam os rapazes. E o professor: "Este é o muro das serpentes. Cada serpente tem na boca uma caveira. Não se sabe o que significam."
O amigo de Palomar não se contém: "Al isso é que sabe! É a continuidade da vida e da morte, as serpentes são a vida, as caveiras são a morte; a vida que é vida porque traz consigo a morte e a morte que é morte, porque sem morte não há vida... "
Os rapazotes ouvem de boca aberta, os olhos negros brilham atónitos. O senhor Palomar pensa que toda a tradução requer uma outra tradução e assim sucessivamente. Pergunta a si mesmo: "Que significava morte, vida, continuidade, passagem, para os antigos Toltecas? E que pode querer dizer para estes jovens? E para mim?" E no entanto sabe que nunca poderá sufocar em si a vontade de traduzir, de passar de uma linguagem para outra, de figuras concretas para palavras abstractas, de símbolos abstractos para experiências concretas, de tecer e retecer uma rede de analogias. Não interpretar é impossível, tal como é impossível impedir-se de pensar.
Assim que os estudantes desaparecem atrás de uma esquina, a voz obstinada do pequeno professor faz-se ouvir de novo: "No es verdad, não é verdade aquilo que vos disse aquele señor. Não se sabe o que significam."
A pantufa desirmanada
Em viagem por um país do Oriente, o senhor Palomar comprou num bazar um par de pantufas. De volta a casa, experimenta calçá-las: descobre que uma pantufa é mais larga do que a outra e que lhe cai do pé. Recorda o velho vendedor sentado sobre os calcanhares num nicho do bazar, diante de um monte de pantufas de várias dimensões, todas misturadas; revê-o enquanto revolve a pilha de pantufas até encontrar uma que sirva no seu pé, fazendo-lha experimentar, voltando a revolver o monte e entregando-lhe a suposta companheira da primeira, que ele aceita sem experimentar.
"Talvez agora - pensa o senhor Palomar - um outro homem esteja caminhando por aquele país com duas pantufas desirmanadas. " E vê uma sombra franzina que percorre o deserto coxeando, com uma pantufa que lhe foge do pé a cada passo, ou então que lhe fica demasiado apertada, prendendo-lhe um pé todo torcido. "Talvez ele também esteja a pensar em mim neste momento, esperando encontrar-me para proceder à troca. A relação que nos liga é mais concreta e clara do que grande parte das relações que se estabelecem entre os seres humanos. E no entanto nunca nos encontraremos." Decide continuar a usar aquelas pantufas desirmanadas por solidariedade com o seu ignoto companheiro de desventura, para manter viva esta complementaridade Tão preciosa, este reflexo de passos claudicantes que vai de um continente ao outro.
Detém-se sobre esta imagem, mas sabe que ela não corresponde à verdade. Uma avalancha de pantufas cosidas em série vem periodicamente reabastecer o monte do velho mercador daquele bazar. No fundo do monte permanecerão sempre duas pantufas desirmanadas, mas até que o velho mercador esgote as suas provisões (e talvez nunca as esgote e, uma vez morto, a loja com todas as suas mercadorias passará aos seus herdeiros e aos herdeiros dos herdeiros) bastará procurar no monte e encontrar-se-á sempre uma pantufa para emparelhar com outra pantufa. Só com um comprador distraído como ele se pode verificar um erro, mas podem passar séculos antes que as consequências deste erro se repercutam sobre um outro frequentador deste antigo bazar. Todo o processo de desagregação da ordem do mundo é irreversível, mas os efeitos são escondidos e atrasados pela poeira dos grandes números, a qual contém possibilidades praticamente ilimitadas de novas simetrias, combinações, emparelhamentos.
Mas se o seu erro não tivesse feito mais do que cancelar um erro precedente? Se a sua distracção tivesse sido portadora não da desordem mas sim da ordem? "Talvez o mercador soubesse muito bem aquilo que fazia - pensa o senhor Palomar. - Ao dar-me aquela pantufa desirmanada, pôs termo a uma disparidade que desde há séculos se escondia naquele monte de pantufas, transmitida naquele bazar há várias gerações. "
O desconhecido companheiro talvez tivesse coxeado noutra época, a simetria dos passos de ambos verifica-se não só de um continente para o outro mas igualmente através de uma distância de séculos. Este facto não torna o senhor Palomar menos solidário com esse companheiro. Continua a chinelar penosamente para dar alívio à sua sombra.
Palomar na sociedade
Acerca do morder a língua
Numa época e num país no qual todos se pelam por proclamar opiniões ou juízos, o senhor Palomar ganhou o hábito de morder a língua três vezes antes de fazer qualquer afirmação. Se, à terceira dentada na língua, ainda está convencido daquilo que estava para dizer, di-lo; se não, fica calado. Com efeito, passa semanas e meses inteiros em silêncio.
Boas ocasiões para ficar calado nunca faltam, mas também acontece que o senhor Palomar lamente não ter dito alguma coisa que teria podido dizer no momento oportuno. Apercebe-se de que os factos confirmaram aquilo que ele pensava e que, se então tivesse expresso o seu pensamento, talvez tivesse tido uma influência positiva qualquer, ainda que mínima, sobre o que aconteceu. Nestes casos o seu espírito divide-se entre a satisfação de ter visto com acerto e um sentimento de culpa pela sua excessiva reserva. Sentimentos ambos tão fortes que é tentado a traduzi-los por palavras; mas após ter mordido a língua três vezes, aliás, seis, convence-se de que não tem nenhum motivo de orgulho ou de remorso.
O ter visto com acerto não é mérito algum: estatisticamente, é quase inevitável que, entre as muitas ideias disparatadas, confusas ou banais que lhe surgem na mente, exista alguma que seja perspícua ou mesmo genial; e como esta ideia lhe veio à mente a ele, pode estar certo de que terá surgido igualmente no espírito de outra pessoa qualquer.
Mais controverso é o juízo que faz sobre o não ter manifestado o seu pensamento. Em tempo de silêncio geral, o conformar-se com o calar da maioria é certamente uma culpa. Em tempos em que todos dizem demasiado, o importante não é tanto o dizer a coisa certa, que de qualquer modo se perderia na enxurrada de palavras, quanto dizê-la partindo de premissas e implicando consequências que dêem à coisa dita o seu máximo valor. Mas então, se o valor de uma afirmação singular está na continuidade e coerência do discurso em que encontra lugar, a escolha possível é apenas entre o falar continuamente e o não falar nunca. No primeiro caso, o senhor Palomar revelaria que o seu pensamento não procede em linha recta, mas sim em ziguezague, através de oscilações, desmentidos, correcções, no meio dos quais a correcção daquela sua afirmação se perderia. Quanto à segunda alternativa, ela implica uma arte do calar-se mais difícil ainda do que a arte do dizer.
De facto, o silêncio também pode ser considerado um discurso, enquanto recusa do uso que outros fazem da palavra; mas o sentido deste silêncio discurso está nas suas interrupções, ou seja, naquilo que de vez em quando se diz e que dá sentido àquilo que se cala.
Ou antes: um silêncio pode servir para excluir certas palavras ou então para as manter de reserva, para que possam ser usadas em melhor ocasião. Assim como uma palavra dita agora pode fazer poupar cem, amanhã, ou, então, obrigar a dizer outras mil. "De cada vez que mordo a língua - conclui mentalmente Palomar - tenho que pensar não só naquilo que estou para dizer ou não dizer, mas também em tudo aquilo que se eu digo ou não digo será dito ou não dito por mim ou pelos outros. " Tendo formulado este pensamento, o senhor Palomar morde a língua e permanece em silêncio.
Acerca dos jovens
Numa época em que a intolerância dos mais velhos em relação aos jovens e dos jovens em relação aos mais velhos chegou ao cúmulo, em que os mais velhos não fazem outra coisa senão acumular argumentos para dizerem finalmente aos jovens aquilo que eles merecem, e os jovens não esperam mais do que estas ocasiões para demonstrarem que os mais velhos não percebem nada, o senhor Palomar não consegue articular uma palavra. Se, por vezes, tenta intervir, apercebe-se de que todos estão demasiado acalorados com as teses que estão a defender para ligarem àquilo que ele está a tentar esclarecer a si próprio.
O facto é que ele, mais do que afirmar uma sua verdade, desejaria fazer algumas perguntas, e percebe que ninguém quer sair dos binários do seu próprio discurso para responder a perguntas que, sendo provenientes de um outro discurso, obrigariam a repensar as mesmas coisas Com outras palavras, e até mesmo a encontrar-se em territórios desconhecidos, longe dos percursos seguros. Ou então desejaria que as perguntas as fizessem os outros a ele; mas a ele também lhe agradariam apenas algumas perguntas e não outras: aquelas a que responderia, dizendo as coisas que sente que pode dizer, mas que apenas poderia dizer, se alguém lhe pedisse para as dizer. De qualquer modo, ninguém sonha sequer perguntar-lhe seja o que for.
Estando as coisas neste pé, o senhor Palomar limita-se a ruminar em silêncio sobre a dificuldade de falar aos jovens.
Pensa: "As dificuldades provêm do facto de, entre nós e eles, existir um fosso inultrapassável. Alguma coisa aconteceu entre a nossa geração e a deles, uma continuidade de experiências foi quebrada: já não temos pontos de referência em comum. "
Depois pensa: "Não, a dificuldade provém do facto de, cada vez que estou para lhes dirigir uma censura ou uma Crítica ou uma exortação ou um conselho, pensar que também eu, quando era jovem, atraía sobre mim censuras, críticas, exortações, conselhos do mesmo género, e que não me detinha a ouvi-los. Os tempos eram outros e havia muitas diferenças no comportamento, na linguagem, nos costumes, mas os meus mecanismos mentais de então não eram muito diferentes dos que eles têm hoje. Logo, não tenho qualquer autoridade para falar. "
O senhor Palomar oscila longamente entre estes dois modos de considerar a questão. Depois decide:, "Não há contradição entre as duas posições. A solução de continuidade entre as gerações depende da impossibilidade de transmitir a experiência, de fazer evitar aos outros os erros já cometidos por nós. A verdadeira distância entre duas gerações é dada pelos elementos que têm em comum e que obrigam à repetição cíclica das mesmas experiências, como nos comportamentos das espécies animais transmitidos como herança biológica; ao passo que os elementos da verdadeira diversidade existente entre nós e eles são, pelo contrário, o resultado das modificações irreversíveis que cada época traz consigo, ou seja, dependem da herança histórica que nós lhes transmitimos, a verdadeira herança de que somos responsáveis, mesmo que por vezes o sejamos de forma inconsciente. Por isso não temos nada a ensinar: sobre aquilo que mais se parece com a nossa experiência não podemos influir; naquilo que traz o nosso cunho, não sabemos reconhecer-nos. "
O modelo dos modelos
Na vida do senhor Palomar houve uma época em que a regra era esta: primeiro, construir na sua mente um modelo, o mais perfeito, lógico, geométrico possível; segundo, verificar se o modelo se adaptava aos casos práticos observáveis na experiência; terceiro, introduzir as correcções necessárias para que o modelo e a realidade coincidissem. Este processo, elaborado pelos físicos e pelos astrónomos que investigam a estrutura da matéria e do universo, parecia a Palomar o único que lhe permitiria enfrentar os mais emaranhados problemas humanos e, em primeiro lugar, os da sociedade e da melhor maneira de a governar. Era necessário conseguir ter presente, por um lado, a realidade informe e insensata da convivência humana que não faz mais do que gerar monstros e desastres e, por outro lado, um modelo de organismo social perfeito, desenhado com linhas claramente traçadas, rectas e círculos e elipses, paralelogramos de formas, gráficos com abcissas e ordenadas.
Para construir um modelo - Palomar sabia-o - é necessário partir de alguma coisa, ou seja, é preciso ter princípios a partir dos quais se faça derivar por dedução o nosso próprio raciocínio. Estes princípios - ditos também axiomas ou postulados - uma pessoa não os escolhe, mas tem-nos já, porque se não os tivesse não poderia sequer pôr-se a pensar. Portanto, também Palomar os tinha, mas - não sendo nem um matemático nem um lógico - não se preocupava com a sua definição. Deduzir era de qualquer modo uma das suas actividades preferidas, porque podia dedicar-se a ela sozinho e em silêncio, sem quaisquer apetrechos, em qualquer lugar e em qualquer momento, sentado numa poltrona ou enquanto passeava. Em relação à indução, pelo contrário, sentia uma certa desconfiança, talvez porque as suas experiências lhe pareciam aproximativas e parciais. A construção de um modelo era portanto para ele um milagre de equilíbrio entre os princípios (deixados na sombra) e a experiência (imperceptível), mas o resultado tinha de ter uma consistência muito mais sólida do que aqueles e do que esta. Num modelo bem construído, de facto, cada detalhe deve ser condicionado pelos outros, pelo que tudo se mantém com absoluta coerência, tal como num mecanismo onde, se uma das engrenagens pára, todo o conjunto pára. O modelo é por definição aquilo em que não há nada a mudar, aquilo que funciona na perfeição; ao passo que, em relação à realidade, podemos facilmente verificar que ela não funciona, que se espapaça por todos os lados; portanto, nada mais resta do que obrigá-la a tomar a forma do modelo, a bem ou a mal.
Durante muito tempo, o senhor Palomar esforçou-se por alcançar uma impassibilidade e uma distanciação tais que fizessem com que aquilo que contasse fosse apenas a serena harmonia das linhas do desenho: todas as lacerações e contorções e compressões que a realidade humana tem de sofrer para se identificar com o modelo deviam ser consideradas acidentes momentâneos e irrelevantes. Mas quando, momentaneamente, deixava de fixar a harmoniosa figura geométrica desenhada no céu dos modelos ideais, saltava-lhe à vista uma paisagem humana em que as monstruosidades e os desastres não tinham de modo algum desaparecido e as linhas do desenho apareciam deformadas e distorcidas.
O que em preciso, então, em um subtil trabalho de ajustamento que trouxesse graduais correcções ao modelo, para o aproximar de uma possível realidade, e à realidade, para a aproximar do modelo. De facto, o grau de ductibilidade da natureza humana não é limitado como ele pensava num primeiro momento; e, em compensação, até mesmo o modelo mais rígido pode dar provas de uma qualquer elasticidade inesperada. Em suma, se o modelo não consegue transformar a realidade, a realidade deveria conseguir transformar o modelo.
A regra do senhor Palomar tinha vindo a mudar a pouco e pouco: agora, necessitava de uma grande variedade de modelos, talvez até de modelos transformáveis uns nos outros, segundo um processo combinatório, para encontrar o que assentasse melhor sobre uma realidade que, por sua vez, era sempre feita de tantas realidades diferentes, quer no tempo quer no espaço.
Em todo este processo, Palomar não elaborava os seus próprios modelos, nem tão pouco se esforçava por aplicar modelos já elaborados: limitava-se a imaginar um justo uso de justos modelos para ultrapassar o abismo que via abrir-se cada vez mais entre a realidade e os princípios. Em suma, o modo pelo qual os modelos podiam ser manobrados e geridos não entrava nas suas competências nem nas suas possibilidades de intervenção. Destas coisas ocupam-se habitualmente pessoas muito diferentes dele, que julgam a sua funcionalidade segundo outros critérios: como instrumentos de poder, sobretudo, mais do que segundo os princípios ou as consequências que possam ter na vida das pessoas. Coisa esta bastante natural, dado que o que os modelos tentam modelar é sempre de qualquer modo um sistema de poder; mas se a eficácia do sistema se mede pela sua invulnerabilidade e capacidade de durar, o modelo torna-se uma espécie de fortaleza, cujas espessas muralhas escondem aquilo que está de fora. Palomar, que dos poderes e contrapoderes espera sempre o pior, acabou por se convencer de que o que conta verdadeiramente é aquilo que acontece apesar deles: a forma que a sociedade vai lentamente adquirindo, silenciosamente, anonimamente, nos hábitos, na maneira de pensar e de fazer, na escala de valores. Nesta conformidade, o modelo dos modelos almejado por Palomar deverá servir para obter modelos transparentes, diáfanos, subtis como teias-de-aranha; talvez mesmo para dissolver os modelos, aliás, para se dissolver.
Nesta altura não restava a Palomar mais do que eliminar da sua mente os modelos e os modelos dos modelos. Concluído também mais este passo, Palomar encontra-se cara a cara com a realidade pouco controlável e não homogeneizável, a formular os seus "sim", os seus "não", os seus "mas". Para fazer isto, é melhor que a mente permaneça vazia, mobilada apenas pela memória de fragmentos de experiência e de princípios subentendidos e não demonstráveis. Não é uma linha de conduta de que possa retirar satisfações especiais, mas é a única que lhe parece ser praticável.
Enquanto se trata apenas de reprovar as falhas da sociedade e os abusos de quem abusa, ele não tem hesitações (senão enquanto teme que ao falar de mais acerca disso as coisas mais justas possam também soar como repetitivas, óbvias, cansadas). Mais difícil lhe parece pronunciar-se sobre os remédios, porque, primeiro, gostaria de estar seguro de que não provocam falhas e abusos maiores e que, se ajuizadamente predispostos por reformadores iluminados, poderão mais tarde vir a ser postos em prática sem danos pelos seus sucessores: provavelmente incapazes, provavelmente prevaricadores, provavelmente incapazes e prevaricadores ao mesmo tempo.
Falta-lhe apenas expor estes belos pensamentos de forma sistemática, mas um escrúpulo impede-o de o fazer. e se resultasse daí um modelo? Assim, prefere manter as suas convicções no estado fluido, verificá-las caso a caso e fazer delas a regra implícita do seu próprio comportamento quotídiário, no fazer e no não fazer, no escolher e excluir, no falar e no calar-se.
As meditações de Palomar
O mundo observa o mundo
Na sequência de uma série de desventuras intelectuais que não merecem ser recordadas, o senhor Palomar decidiu que a sua principal actividade será observar as coisas do lado de fora. Um tanto ou quanto míope, distraído, introvertido, não parece caber por temperamento naquele tipo humano que é normalmente definido como um observador. E no entanto sempre lhe sucedeu que certas coisas - um muro de pedras, uma concha vazia, uma folha, um bule - se lhe apresentassem como que pedindo uma atenção minuciosa e prolongada: põe-se a observá-las quase sem dar por isso e o seu olhar começa a percorrer todos os detalhes e não consegue mais afastar-se delas. O senhor Palomar decidiu que daqui para a frente redobrará as suas atenções: em primeiro lugar, para não deixar fugir os apelos que lhe chegam das coisas; em segundo lugar, para atribuir à operação de observar a importância que ela merece.
Nesta altura sobrevém um primeiro momento de crise: seguro de que a partir de agora o mundo lhe revelará uma riqueza infinita de coisas para olhar, o senhor Palomar experimenta fixar tudo aquilo que lhe vem à mão: não obtém nisso qualquer prazer e deixa de o fazer. Segue-se uma segunda fase na qual está convencido de que as coisas a observar são apenas algumas e não outras e que deve ir à procura delas; para isso, tem de enfrentar problemas de escolha, exclusões, hierarquias de preferências; cedo se apercebe de que está a estragar tudo, como sempre acontece quando põe de permeio o seu próprio eu e todos os problemas que tem com o seu próprio eu.
Mas como se faz para observar alguma coisa deixando de lado o eu? De quem são os olhos que olham? Normalmente, pensa-se que o eu é uma pessoa debruçada para fora dos seus próprios olhos como se estivesse no parapeito de uma janela e que observa o mundo que se estende em toda a sua vastidão, ali, diante de si. Portanto: há uma janela que dá para o mundo. Do lado de lá está o mundo; e do lado de cá? Sempre o mundo: que outra coisa queriam que estivesse? Com um pequeno esforço de concentração, Palomar consegue deslocar o mundo que está ali à frente e coloca-o debruçado no parapeito. E então, fora da janela, o que é que fica? Ainda e sempre o mundo, que nesta ocasião se desdobrou em mundo que olha e mundo que é olhado. E ele, dito também "eu", ou seja, o senhor Palomar? Não será ele também um pedaço de mundo que está olhando ou outro pedaço de mundo? Ou então, dado que há mundo do lado de cá e mundo do lado de lá da janela talvez o eu não seja mais do que a janela através da qual o mundo olha o mundo. Para se olhar a si próprio o mundo tem necessidade dos olhos (e dos óculos) do senhor Palomar.
Portanto, daqui em diante, Palomar olhará as coisas do lado de fora e não do lado de dentro; mas isto não basta: olhá-las-á com um olhar que vem de fora, não de dentro de si. Procura fazer a experiência - agora não é ele a olhar, mas sim o mundo de fora que olha para fora. Uma vez estabelecido isto, volta a olhar à sua volta, à espera de uma transfiguração generalizada. Qual quê! Continua rodeado pelo habitual cinzento quotidiano. É preciso reestudar tudo desde o princípio. Que seja o fora a olhar para fora não basta: é da coisa olhada que deve partir a trajectória que a liga à coisa que olha. . Da muda extensão das coisas deve partir um sinal, um apelo, uma piscadela de olho: uma coisa sobressai por entre as outras com a intenção de significar alguma coisa... que coisa? Ela mesma; uma coisa está contente por ser olhada pelas outras coisas apenas quando está convencida de que se significa a si própria e a nada mais, no meio das coisas que se significam a si próprias e nada mais.
As ocasiões deste género não são certamente frequentes, mas mais tarde ou mais cedo deverão com certeza apresentar-se: basta esperar que se verifique uma daquelas felizes coincidências em que o mundo quer olhar e ser olhado no mesmíssimo instante e o senhor Palomar se encontre a passar ali por perto. Ou se, ah, o senhor Palomar não deve sequer esperar, porque estas coisas acontecem apenas quando menos se espera.
O universo como espelho
O senhor Palomar sofre muito por causa das suas dificuldades nas relações com o próximo. Inveja as pessoas que têm o dom de encontrar sempre a coisa certa para dizer, o modo certo de se dirigir a cada um; que estão à vontade com quem quer que se encontrem e que põem os outros à vontade; que, movendo-se com ligeireza entre as pessoas, compreendem imediatamente quando se devem defender e tomar as suas distâncias e quando devem ganhar a simpatia e a confiança dos outros; que dão o melhor de si próprias na relação com os outros e que levam os outros a dar o seu melhor; que sabem logo quando podem contar com uma pessoa, em relação a si próprios e em termos absolutos.
"Estes dotes - pensa Palomar com o desgosto de quem não os tem - são coisas concedidas a quem vive em harmonia com o mundo. A esses sucede estabelecer naturalmente um acordo, não só com as pessoas mas também com as coisas, com os lugares, as situações e as ocasiões, com o deslizar das constelações no firmamento, com o agregar dos átomos nas moléculas. Aquela avalancha de acontecimentos simultâneos a que chamamos universo não derruba quem tem a sorte de saber escapar através dos interstícios mais finos, por entre as infinitas combinações, permutações e cadeias de consequências, evitando as trajectórias dos mortíferos meteoritos e interceptando em voo os raios benéficos. Para quem é amigo do universo, o universo é amigo. Pudesse alguma vez - suspira Palomar - ser eu também assim."
Decide-se a experimentar imitá-los. Todos os seus esforços, de agora em diante, irão no sentido de alcançar uma harmonia, quer com o género humano que lhe está próximo, quer com a espiral mais longínqua do sistema das galáxias. Para começar, dado que com o seu próximo tem demasiados problemas, Palomar procurará melhorar as suas relações com o universo. Afasta e reduz ao mínimo a convivência com os seus semelhantes; habitua-se a criar o vazio na sua mente, expelindo para fora dela todas as presenças indiscretas; observa o céu nas noites de estrelas; lê livros de astronomia, familiariza-se com a ideia dos espaços siderais, até que esta ideia se torna um ornamento permanente da sua decoração mental. Em seguida procura fazer com que os seus pensamentos tenham em conta contemporaneamente as coisas mais próximas e as mais longínquas; quando acende o cachimbo, a atenção pela chama do amorfo que na próxima puxada deveria deixar-se aspirar até ao fundo do fornilho, dando início à lenta transformação em brasa dos fios de tabaco, não o deve fazer esquecer, nem sequer por um instante, a explosão de uma supernova, que se está a produzir na Grande Nuvem de Magalhães, nesse mesmo momento, ou seja, há alguns milhões de anos. A ideia de que tudo no universo se liga e se corresponde nunca o abandona: uma variação de luminosidade na Nebulosa do Caranguejo ou o adensar de uma acumulação globular em Andrómeda não podem deixar de ter uma influência qualquer no funcionamento do seu gira-discos ou sobre a frescura das folhas de agrião no seu prato de salada.
Quando se convence de ter delimitado exactamente o seu próprio lugar no meio da muda extensão das coisas que vogam no vazio, entre a poeira dos acontecimentos actuais ou possíveis que paira no espaço e no tempo, Palomar decide que chegou o momento de aplicar esta sabedoria cósmica à sua relação com os seus semelhantes. Apressa-se a regressar à vida social, reata conhecimentos, amizades, relações de negócios, submete a um minucioso exame de consciência as suas ligações e os seus afectos. Espera ver estender-se diante de si uma paisagem humana finalmente nítida e clara, sem nevoeiros, na qual ele poderá mover-se com gestos precisos e seguros. Será assim? Nada disso. Começa a embrenhar-se numa embrulhada de mal-entendidos, vacilações, compromissos, actos falhados; as questões mais fúteis tornam-se angustiantes, as mais graves tornam-se banais, perdem importância; tudo aquilo que ele diz ou faz revela-se desastrado, descabido, irresoluto. O que será que não funciona?
Isto: contemplando os astros, ele habituou-se a considerar-se como um ponto anónimo e incorpóreo, quase se esquecendo de que existe; agora, para lidar com os seres humanos, não pode deixar de se pôr em causa a si próprio, e o seu si próprio já ele não sabe onde se encontra. Face a cada pessoa, dever-se-ia saber como se situar em relação a ela, estar-se seguro da reacção que inspira em nós a presença do outro aversão ou atracção, ascendente recebido ou imposto, curiosidade ou indiferença, domínio ou sujeição, atitude de discípulo ou de mestre, espectáculo como actor ou como espectador - e, na base destas reacções e das contra-reacções do outro, estabelecer as regras que se devem aplicar no jogo, os movimentos e contramovimentos a fazer. Por tudo isto, antes mesmo de nos pormos a observar os outros, deveríamos saber bem quem somos nós. O conhecimento do próximo implica esta especificidade: passa necessariamente através do conhecimento de nós próprios; e é exactamente isto que falta a Palomar. Não é só o conhecimento que é necessário, mas também a compreensão, o acordo com os nossos próprios meios e fins e pulsões, o que significa a possibilidade de exercer um domínio sobre as nossas próprias inclinações e acções, que as controle e dirija, mas que não as limite nem as sufoque. As pessoas em quem ele admira a correcção e naturalidade de cada palavra e de cada gesto, antes mesmo de estarem em paz com o universo, estão em paz consigo próprias. Palomar, ao não se amar, tem sempre procedido de maneira a não se encontrar consigo próprio cara-a-cara; é por isso que preferiu refugiar-se entre as galáxias; percebe agora que era pelo encontrar de uma paz interior que devia ter começado. O universo pode talvez estar tranquilo por sua conta; ele certamente não.
O caminho que lhe resta aberto é este: dedicar-se-á, a partir de agora, ao conhecimento de si próprio, explorará a sua própria geografia interior, traçará o gráfico dos movimentos do seu estado de espírito, extrairá dele as fórmulas e os teoremas, apontará o seu telescópio para as órbitas traçadas pelo curso da sua vida, em vez de o apontar para as constelações. "Não podemos conhecer nada que nos seja exterior passando por cima de nós próprios - pensa ele agora - o universo é o espelho no qual podemos contemplar apenas aquilo que aprendemos a conhecer em nós próprios. "
E agora, também esta nova fase do seu itinerário em busca da sabedoria acaba por se realizar. Finalmente, ele poderá abraçar com o seu olhar tudo o que está dentro de si. Que poderá ver? Parecer-lhe-á o seu mundo interior como o calmo e imenso rodar de uma espiral luminosa? Verá navegar em silêncio estrelas e planetas sobre as pálpebras e as elipses que determinam o carácter e o destino? Contemplará uma esfera de circunferência infinita que tem o eu por centro e o centro em cada ponto?
Abre os olhos. O que surge diante do seu olhar parece-lhe algo que viu já todos os dias: ruas cheias de pessoas que têm pressa e que abrem caminho à cotovelada, sem se olharem na cara umas das outras, por entre altas paredes cheias de arestas e de gretas. Ao fundo, o céu cheio de estrelas envia clarões intermitentes, como se fosse um mecanismo encravado, que estremece e range em todas as suas juntas mal oleadas, postos avançados de um universo periclitante, torcido, sem descanso tal como ele.
Como aprender a estar morto
O senhor Palomar decide que, de agora em diante, fará como se estivesse morto, para ver como corre o mundo sem ele. Há já algum tempo que se apercebeu de que entre ele e o mundo as coisas já não correm como antigamente; se antes lhe parecia que esperavam ambos alguma coisa um do outro, ele e o mundo, agora já não se lembra do que havia a esperar, de mal ou de bem, nem porque é que este esperar o mantinha numa perpétua agitação ansiosa.
Portanto, agora, o senhor Palomar deveria experimentar uma sensação de alívio, não tendo que continuar a perguntar-se que coisa lhe prepara o mundo, e deveria igualmente sentir o alívio do mundo, o qual já não tem que se preocupar com ele. Mas é exactamente a expectativa de saborear esta calma que torna ansioso o senhor Palomar.
Em suma, estar morto é menos fácil do que perecer. Em primeiro lugar, não se deve confundir o estar morto com o não estar, condição que ocupa também a interminável extensão de tempo que antecede o nascimento, aparentemente simétrica da outra, igualmente ilimitada, que se segue à morte. De facto, antes de nascer fazemos parte das infinitas possibilidades às quais acontecerá, ou não acontecerá, realizarem-se, ao passo que, uma vez mortos, não podemos realizar-nos, nem no passado (ao qual pertencemos agora inteiramente mas sobre o qual já não podemos influir) nem no futuro que, apesar de ser influenciado por nós, nos permanece vedado. O caso do senhor Palomar é uma realidade mais simples, porquanto a sua capacidade de influir sobre alguma coisa ou sobre alguém foi sempre desprezível; o mundo pode muito bem passar sem ele e ele pode considerar-se morto com toda a tranquilidade, sem sequer alterar os seus hábitos. O problema é a modificação, não aquilo que ele faz, mas sim aquilo que ele é, e mais exactamente aquilo que ele é em relação ao mundo. Dantes, por mundo, ele entendia o mundo mais ele; agora, trata-se dele mais o mundo menos ele.
O mundo menos ele quererá dizer o fim da ansiedade? Um mundo no qual as coisas aconteçam independentemente da sua presença e das suas reacções, seguindo uma sua lei, ou necessidade, ou razão, que não lhe diz respeito? Bate a onda no escolho e escava a rocha, aparece uma outra onda, uma outra, ainda uma outra; quer ele esteja em acção quer não, tudo continua a acontecer. O alívio por estar morto deveria ser este: eliminada aquela mancha de inquietação que é a nossa presença, a única coisa que conta é o desenrolar e o suceder-se das coisas sob o sol, na sua serenidade impassível. Tudo é calma e tende para a calma, até mesmo os furacões os terramotos, a erupção dos vulcões. Mas não era o mundo já assim quando ele lá estava? Quando cada tempestade trazia em si mesma a paz do depois preparava o momento em que todas as vagas se teriam abatido contra a costa e em que o vento teria esgotado a sua força? Talvez que o estar morto seja passar para o oceano das ondas que permanecem ondas para sempre, sendo portanto inútil esperar que o mar se acalme.
O olhar dos mortos é sempre um tanto ou quanto deprecatório. Lugares, situações, ocasiões são grosso modo aquelas que uma pessoa já conhecia e reconhecê-los traz sempre uma certa satisfação, mas ao mesmo tempo notam-se muitas variações, pequenas ou grandes, as quais, por si só, se poderiam aceitar, se correspondessem a um desenvolvimento lógico e coerente, mas que, muito pelo contrário, surgem como arbitrárias e irregulares, e isto incomoda, sobretudo porque uma pessoa é sempre tentada a intervir, para introduzir aquela correcção que lhe parece necessária, e não o pode fazer porque está morta. Donde uma atitude de relutância, quase de embaraço, mas ao mesmo tempo de suficiência, como a de alguém que sabe que o que conta é a sua própria experiência passada e que a tudo o mais não vale a pena atribuir demasiado peso. Um sentimento dominante não tarda a apresentar-se em seguida, impondo-se sobre todo e qualquer outro pensamento: e é o alívio por se saber que todos os problemas são problemas dos outros, que é tudo lá com eles. Aos mortos já não deveria interessar mais nada, porque já não lhes diz respeito pensar em nada disso; e mesmo que isso possa parecer imoral, é nesta irresponsabilidade que os mortos encontram a sua alegria.
Quanto mais o estado de ânimo do senhor Palomar se aproxima daquele que foi aqui descrito, tanto mais a ideia de estar morto se lhe apresenta como uma ideia natural. É verdade que não encontrou ainda a sublime distanciação que pensava fosse apanágio dos mortos, nem uma razão que vá além de toda e qualquer explicação, nem a saída para fora dos seus próprios limites, como se sai de um túnel que desemboca noutras dimensões. Há momentos em que tem a ilusão de se ter libertado, pelo menos, da impaciência que toda a vida o acompanhou, quando vê os outros errarem em todas as coisas que fazem e quando pensa que, no lugar deles, também teria errado não menos do que eles, mas que apesar de tudo teria dado por isso. Mas, afinal, de modo algum se conseguiu libertar; e percebe que a impaciência motivada pelos seus erros e pelos erros dos outros se perpetuará juntamente com os próprios erros, que nenhuma morte pode cancelar. Mais vale portanto habituar-se à ideia: para Palomar, estar morto, significa habituar-se à desilusão de se sentir igual a si próprio, num estado definitivo que já não pode esperar modificar.
Palomar não subavalia as vantagens que a condição do vivo pode ter sobre a condição do morto, não no sentido do futuro, onde os riscos são sempre muito fortes e os benefícios podem ser de curta duração, mas sim no sentido da possibilidade de melhorar a forma do nosso próprio passado.
(A não ser que uma pessoa esteja já plenamente satisfeita com o seu próprio passado, caso esse que é demasiadamente pouco interessante para que mereça a pena ocuparmo-nos dele.) A vida de uma pessoa consiste num conjunto de acontecimentos no qual o último poderia mesmo mudar o sentido de todo o conjunto, não porque conte mais do que os precedentes mas porque, uma vez incluídos na vida, os acontecimentos dispõem-se segundo uma ordem que não é cronológica mas que corresponde a uma arquitectura interna. Uma pessoa, por exemplo, lê na idade madura um livro importante para ela, que a faz dizer: "Como podia viver sem o ter lido!" e ainda: "Que pena não o ter lido quando em jovem!". Pois bem, estas afirmações não fazem muito sentido, sobretudo a segunda, porque a partir do momento em que ela leu aquele livro, a sua vida torna-se a vida de uma pessoa que leu aquele livro, e pouco importa que o tenha lido cedo ou tarde, porque até a vida que precede a leitura assume agora uma forma marcada por aquela leitura.
Este é o passo mais difícil para quem aprende a estar morto: convencer-se de que a sua própria vida é um conjunto fechado, todo no passado, ao qual não se pode juntar nada, nem introduzir modificações de perspectiva na relação entre os vários elementos. É certo que os que continuam a viver podem, com base nas modificações por eles vividas, introduzir modificações inclusive na vida dos mortos, dando forma àquilo que a não tinha ou que parecia ter uma forma diferente: reconhecendo por exemplo um justo rebelde naquele que tinha sido vituperado pelos seus actos contra a lei, celebrando um poeta ou um profeta naquele que se tinha visto condenar à neurose ou ao delírio. Mas são modificações que contam sobretudo para os vivos. Eles, os mortos, dificilmente tiram delas qualquer proveito. Cada um é feito daquilo que viveu e do modo como o viveu, e isto ninguém lho pode tirar. Quem viveu sofrendo, fica feito pelo seu sofrimento; se pretenderem tirar-lho, deixa de ser ele.
Por isso, Palomar prepara-se para se tornar um morto mal-humorado, que suporta mal ser condenado a ficar assim como está, mas que não está disposto a renunciar a nada que seja seu, nem sequer àquilo que lhe pesa.
E certo que se pode também apostar em dispositivos que assegurem a sobrevivência de, pelo menos, uma parte de si próprio na posteridade, dispositivos esses que são classificáveis sobretudo em duas categorias: o dispositivo biológico, que permite transmitir aos descendentes aquela parte de nós próprios a que chamamos património genético, e o dispositivo histórico, que permite transmitir, na memória e na linguagem de quem continua a viver, aquele muito ou pouco de experiência que até o homem mais desprevenido recolhe e acumula. Estes dispositivos podem também ser
vistos como um só, pressupondo o suceder-se das gerações como as fases da vida de uma única pessoa, que continua durante séculos e milénios; mas assim, não se faz mais do que adiar o problema da nossa própria morte individual até à extinção do género humano, por mais tarde que esta venha a verificar-se.
Palomar, pensando na sua própria morte, pensa já na morte dos últimos sobreviventes da espécie humana ou dos seus derivados ou herdeiros: no globo terrestre, devastado e deserto, desembarcam os exploradores de um outro planeta, decifram os traços registados nos hieróglifos das pirâmides e nas fichas perfuradas dos calculadores electrónicos; a memória do género humano renasce das suas cinzas e espalha-se pelas zonas habitadas do universo.
E assim, de adiamento em adiamento, chega-se ao momento em que será o tempo a gastar-se e a extinguir-se num céu vazio, quando o último suporte material da memória do viver se tiver degradado numa labareda de calor, ou tiver cristalizado os seus átomos no gelo de uma ordem imóvel.
"Se o tempo tem de se acabar, podemos descrevê-lo, instante a instante - pensa Palomar - e cada instante, ao ser descrito, dilata-se tanto que deixa de se lhe ver o fim. " Decide que se vai pôr a descrever cada instante da sua vida e que, enquanto não os tiver descrito a todos, deixará de pensar que está morto. Naquele momento morre.
Italo Calvino
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