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PÂNICO A BORDO / Heinz Konsalik
PÂNICO A BORDO / Heinz Konsalik

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PÂNICO A BORDO

 

Bali ficava para trás, essa eterna ilha de sonho com as suas centenas de templos, a beleza das suas gentes, as danças de culto ancestrais, o odor das flores de frangipana, as suas máscaras pintadas, representativas de demónios, bizarras, assustadoras, os fantásticos desenhos em seda e os seus altares particulares dedicados a divindades propiciatórias um mundo fantástico repleto de beleza e alegria de viver, que em tudo correspondia às expectativas dos estrangeiros que o visitavam. Que terra magnífica, que felicidade a daquelas pessoas, pensou, ao mesmo tempo que, a partir da balaustrada do navio, observava a ilha a desaparecer lentamente. E essa magia, rutilante, era-lhe proporcionada para que mais tarde pudesse afirmar: Bali... um sonho, é o que vos digo! Uma realidade difícil de descrever, que tem de ser vista, vivida! Aquela gente sempre tão amável, feliz...

 

O navio, um cruzeiro de luxo dos modernos, deslizava agora lentamente, afastando-se do porto ao encontro de um pôr do Sol resplandecente e, navegando entre Bali e Lombok, seguia pelo estreito de Lombok rumo ao mar da Indonésia. O céu imenso adquirira uma tonalidade flamejante, entre o amarelo e o vermelho, onde as nuvens pareciam estar em chamas. Um pôr do Sol no oceano Índico é algo que nunca mais se esquece.

 

Muitas aventuras esperavam ainda os passageiros. O navio viajaria pelo mar de Java, era esse o nome que havia sido dado àquela zona marítima, entre Java e Bornéu, e passaria por Samatra, rumo a Singapura - essa cidade-ilha cujas ruas eram as mais encantadoras de toda a Ásia -, evoluindo, depois, para o golfo da Tailândia, para ancorar em frente a Pattaya; é esse o porto, a partir do qual se alcança Banguecoque.

 

Como despedida desse mundo encantado que é o de Bali, o responsável pelo cruzeiro, encarregado do entretenimento dos passageiros, havia organizado um serão festivo, para o qual convidara a estrela de opereta Lydia Borodin, após o que teria lugar um baile pela noite dentro. A banda de bordo, composta por seis temperamentais músicos de Colónia, acompanhara discretamente Lydia Borodin; mas agora, terminada a noite de gala, acelerara o ritmo, tocando boogies, rocks, tangos e blues. Um desafio para a maioria dos passageiros mais idosos, desta forma convidados a ostentar a agilidade de que, apesar da idade, ainda gozavam.

 

Lá fora, no convés, a tranquilidade era apenas perturbada pelo murmurar das ondas quebradas pela quilha do navio e pelo bater de asas de alguns pássaros de grandes dimensões que ainda voavam à frente ou ao lado da embarcação e que, mais tarde, quando o Sol sangrento se tivesse afogado no mar, regressariam para terra, antes mesmo que se vislumbrasse o céu estrelado.

 

Pouco antes da meia-noite, abriu-se uma das pesadas portas envidraçadas que davam para o convés; seguidos pelo entoar distante de música de dança, Peter e Lotte Ahlers penetraram na noite calma. Traziam as faces coradas pela dança. com um suspiro, Peter Ahlers encostou-se à parede e procurou refrescar-se agitando um lenço. Lotte Ahlers prosseguiu a sua marcha até à amurada do navio, abriu os braços e respirou fundo. Trazia um vestido de noite sem ombros, com um xaile de seda que tirou e se agitava agora ao vento como uma bandeira.

 

”Que bela!”, pensou Peter Ahlers, e sentiu-se feliz por ser seu marido. ”Adivinha-se-lhe os quarenta e cinco anos? Nunca! Dentro de dois anos, festejamos as bodas de prata.”

 

”Incrível, dirá qualquer um que nos veja. E ainda mais incrível é que tenhamos já filhos adultos: Horst, de vinte e três anos e estudante de Farmácia em Munique; Júlia, de vinte e um, estuda Medicina em Heidelberg. E obteve dezoito valores no exame final de liceu! Não, tudo isto não se adivinha na Lotte!”

 

Vendo-a ali, junto da amurada do navio, elegante, dócil, com a pele lisa e bronzeada, a brisa do mar a aflorar-lhe os cabelos castanhos, parecia-lhe efectivamente incrível que ainda fossem tão felizes como há vinte e quatro anos atrás. Observou-a enquanto tirava o xaile e aproximou-se dela. Lotte apoiara os braços no talabardão de madeira e olhava fixamente o vasto e limpo céu estrelado.

 

- Ah! Ar! - exclamou e respirou fundo. - Ar fresco. Que bem que faz... É como um bálsamo para a pele. - Encostou-lhe a cabeça ao ombro e ele sentiu a carícia da sua respiração. - A verdade é que dançaste como se pretendesses conquistar um prémio.

 

- É do iodo que se respira com o ar do mar. Rejuvenesce-nos! - Peter Ahlers levou a mão ao bolso do smoking, de onde tirou novamente o lenço, limpando, ao de leve, o suor do rosto. Com uma gargalhada, Lotte arrancou-lho da mão e passou-lho pela cara.

 

- Vê-se! - riu. - Pois é, não há nada a fazer, Peter. Já não temos idade para andar aos pulos.

 

- Mas ainda estamos em condições de competir com quem quer que seja! Pelo menos com o nosso filho, não tenho qualquer dúvida; após dez minutos de ténis, já os joelhos lhe vacilam... Lotte, ainda te lembras de quando éramos capazes de jogar durante uma hora inteira?

 

- Foi há quinze anos atrás, Peter. Aconchegou-se e ele pôs-lhe o braço por cima do ombro, puxando-a para si.

 

- Que bonito...

 

- O quê? A recordação?

 

- Não. - Apontou, com a cabeça, para longe. - Que céu celestial!

 

- Céu celestial... - Peter beijou Lotte. - Essa nunca tinha ouvido.

 

- É um céu que em tudo corresponde ao que imaginamos quando dizemos celestial. As inúmeras estrelas, o brilho! Quanto mais as observamos, mais parecem multiplicar-se. Cada vez mais luzes...

 

Fechou momentaneamente os olhos, como se repetisse as palavras para si. ”A partir de hoje, faremos isto todos os anos”, pensou Peter Ahlers. ”Uma grande viagem marítima como esta. Modifica-nos, rejuvenesce-nos. é como ficar suspenso. Nunca compreendi quando me diziam: o mar vicia. Agora percebo. Navegar por sobre os mares significa abranger uma pequena parte do infinito. Ser capaz de apreender a beleza do mundo em que vivemos. Poder, no final dos nossos dias, afirmar: este planeta é o mais fascinante de todo o universo.”

 

- Se pensares - disse, acariciando-lhe o ombro nu e macio - que a luz das estrelas que agora vês precisa de milhares de anos para chegar até nós... quão infinito é este céu e, comparativamente, quão insignificante o ser humano... e acha-se tão importante!

 

Lotte acenou afirmativamente com a cabeça e, tocando-Lhe com o indicador nos lábios, voltou a olhar o céu.

 

- Psst! Não digas nada, fica quieto. Olha apenas para este infinito... O que sentes?

 

- A ti, sinto-te apenas a ti.

 

- Palerma!

 

- É como te digo: o estimulante conteúdo iodífero do ar marítimo...

 

Lotte voltou a rir, afastou-se e encolheu ligeiramente os ombros.

 

- Traz-me, por favor, o xaile, Peter. É melhor voltar a pô-lo, antes que me constipe. Meu Deus, dançámos como uns selvagens.

 

Peter Ahlers virou-se, dirigiu-se para o banco e, tendo dado apenas um passo, imobilizou-se. O banco estava vazio.

 

- Onde é que ele está? - perguntou.

 

- Quem?

 

- O xaile.

 

- À tua frente, em cima do banco.

 

- Não está aqui nenhum xaile, Lotte.

 

- Mas Peter... vê lá melhor.

 

Peter Ahlers olhou novamente para o banco vazio, abanou a cabeça e regressou para junto de Lotte, que permanecera perto da amurada.

 

- Apesar de ofuscado pela beleza das estrelas - disse -, ainda não estou cego. Não está ali nenhum xaile.

 

- Ora, querido! - Lotte Ahlers virou-se com o intuito de apontar para o xaile, mas o seu braço quedou-se suspenso a meio da trajectória. Estupefacta, fixou o banco vazio, aproximou-se e passou a mão pela sua superfície envernizada. - Aqui, pousei-o exactamente aqui. Percebes? Desapareceu.

 

Peter Ahlers não pôde deixar de sorrir. Como sempre, pensou. ”Pousa a mala na sala dos pequenos-almoços e grita: ”Peter, podes trazer-me a mala... está no quarto.” Ou então procura as luvas, tem a certeza de que as deixou no sobretudo axadrezado e acaba por encontrá-las, após uma longa busca, dentro do cesto das compras. Na verdade, sempre que procura alguma coisa, é num local totalmente oposto que, por fim, a encontra.”

 

- O vento deve tê-lo levado - disse ele, bem-disposto. O vento, o vento, essa criança divina. É um xaile tão leve...

 

- Tenho a certeza de o ter pousado aqui, em cima do banco! - gritou, obstinada, como sempre fazia quando procurava algo. - Além disso, não está vento nenhum, Peter. Está calmaria!

 

- Tens razão. - Peter Ahlers passou o polegar pela língua e ergueu-o, um método antigo e comprovado, destinado a detectar correntes de ar.

 

- Efectivamente. Quase nem se sente. Nestas circunstâncias, é difícil que o que quer que seja tenha voado.

 

- É o que te estou a dizer. Mas o xaile desapareceu.

 

- Estranho.

 

- Mais do que estranho, Peter.

 

Olharam-se, perplexos, não encontrando, naquele momento, qualquer explicação. ”Recapitulemos”, pensou Ahlers. ”Raciocinemos de forma analítica; enquanto químico, estou, nesse domínio, perfeitamente à vontade. Depois do baile, sentimos necessidade de respirar ar fresco. Vamos para o convés. Abro a porta, deixo que seja a Lotte a primeira a sair, sigo-a e observo-a enquanto tira o xaile do ombro e o atira para o lado: tê-lo-á feito para cima do banco. Depois, aproxima-se novamente da amurada, para admirar as estrelas. Junto-me a ela, abraço-a, e ela diz: ”Ah! Ar! Ar fresco!”

 

Foi exactamente assim que tudo se passou: ela atira o xaile para o lado, para o seu lado esquerdo... e à sua esquerda, imediatamente junto da porta, está o banco. E agora o banco está vazio. Resultado: alguma coisa não está a bater certo!”

 

- Só pode ter voado! - insistiu Ahlers, determinado. Outra coisa não é possível. Estamos completamente sós no convés. Lotte, verás que encontraremos o desertor.

 

Olhou em todas as direcções, percorreu o convés, inclinou-se junto de cada um dos bancos, no fundo apenas por descargo de consciência; de facto, num navio e à noite, o convés é, de todos os compartimentos, o que maior visibilidade proporciona.

 

- Nada! - gritou, ao regressar, permanecendo parado debaixo de uma escada recolhida que pertencia ao equipamento de salvação. - O oceano engoliu-o. Amanhã compras outro.

 

Olhou para cima, por puro acaso, e começou a bater palmas. O xaile tinha-se enredado num dos braços giratórios, por cima dele, aos quais estavam suspensos os barcos salva-vidas.

 

- O que foi? - perguntou-lhe Lotte. - Porque estás a bater palmas?

 

- Saúdo o nosso fugitivo! Ei-lo. Ali em cima, junto do salva-vidas. Afinal, sempre foi o vento.

 

Esperou que Lotte se aproximasse e apontou, depois, para cima, em direcção aos turcos.

 

- De facto. É ele - disse Lotte. Havia alguma hesitação na sua voz. Percorreu com os olhos a distância entre o banco e os barcos salva-vidas e abanou a cabeça. - Não percebo. Sinceramente, não compreendo.

 

- É o que te digo. - Ahlers voltou a pôr-lhe o braço por cima do ombro. - A criança divina, o vento. Hoje, tudo parece remeter para o céu, querida...

 

- E agora, Peter? - Lotte Ahlers começou a sentir frio. A brisa da noite havia-se tornado mais fresca, o navio abria caminho pelo mar de Bali, navegando a dezanove nós, praticamente a sua velocidade máxima. - Estou a ficar com frio. Vamos lá para dentro.

 

- Já vamos. Vou buscá-lo.

- O xaile? - perguntou, horrorizada.

 

- O que é que havia de ser?

 

- Ali em cima?

 

- Claro. Antes que acabe por voar para fora de bordo.

 

- Mas, por cima dos guindastes dos barcos salva-vidas, não é possível...

 

- Chamam-se turcos, querida.

 

- Pouco me importa como se chamam. Não te podes arrastar, por cima deles, até ao xaile. Tem de ser um marinheiro a fazê-lo. Vamos imediatamente avisar o chefe de pessoal, para que resolva o problema.

 

- No exame final de liceu, tive vinte a Ginástica.

 

- Isso foi há vinte e oito anos, Peter.

 

- Na universidade, era um ás do desporto.

 

- E agora és o meu marido, pai de dois filhos, pesas noventa e um quilos e não vais trepar aos salva-vidas!

 

- Ai isso é que vou! - Peter Ahlers sentiu subitamente menosprezadas e subestimadas as suas capacidades masculinas. Afastou a mão de Lotte que o segurava pela manga do smoking, olhou mais uma vez para o turco no qual estava pendurado o xaile e subiu as escadas estreitas que conduziam ao portaló, onde, suspensa numa corrente, se podia ver uma placa: POR FAVOR, NÃO TRANSPOR. Apenas à tripulação era permitida a utilização daquelas escadas. Conduziam a uma passagem estreita ao longo da fachada do barco, por detrás da qual se encontravam as cabinas dos oficiais. Não havia luz nas janelas e estas estavam tapadas; enquanto alguns oficiais dançavam ainda na sala de baile ou no bar, aqueles a quem cabia, logo pela manhã, render os oficiais de serviço durante a noite já dormiam.

 

- Volta, Peter! - gritou Lotte e seguiu-o. - Não consegues!

 

Nunca se deve dizer a um homem que não é capaz de alguma coisa: fá-lo-á certamente. Bem ou mal, não importa. Essencial é que se prove que se é capaz. No entanto, este é o tipo de coisa que as esposas nunca aprendem, mesmo após vinte e quatro anos de casamento. Peter Ahlers transpôs a corrente com a placa de segurança; pouco tempo permanecera no quarto degrau da escada íngreme, quando Lotte o chamou:

 

- Volta, Peter... se não, grito!

 

- Queres provocar um escândalo? Estás a ser ridícula. Dentro de cinco minutos terás de volta o xaile de que tanto gostas.

 

- Desisto dele! Pode voar à vontade.

 

- Não voa, não, pelo menos enquanto eu estiver de olho nele.

 

Depois daquele momento de romantismo, em que, juntos, se haviam entregue à contemplação das estrelas, tinham voltado a adoptar um tom de intimidade próprio de um casamento de vinte e quatro anos. Teimoso, Ahlers subiu as escadas, percorreu, tacteando, a estreita passagem que dava acesso ao turco e, por duas vezes, olhou para baixo. No convés, Lotte seguia-o, parando sempre que ele se imobilizava. Observava-o, de olhos esbugalhados. ”Está terrivelmente assustada”, pensou ele, e isso deu-lhe forças e coragem. ”Mas não te preocupes, querida, na universidade ninguém me igualava na área do desporto. É algo que não se perde, mesmo que, entretanto, se tenha passado a pesar noventa e três quilos. Lotte não sabe ainda deste último acréscimo de peso, pensa que conservo ainda os noventa e um. Mas catorze dias num navio de luxo, cinco refeições, cerveja à discrição, os melhores vinhos isentos de direitos aduaneiros, uma cozinha como a de um grande hotel... O corpo transforma-se numa esponja que tudo absorve.”

 

E ali estava o xaile. No turco que sustentava o sexto barco. Na extremidade de fora, ali, onde estavam as amarras e as roldanas, o que significava que teria de se arrastar ao longo do turco. ”Peter Ahlers, isto, para ti, é uma brincadeira.”

 

- Volta, Peter! - gritou Lotte do convés, pela última vez. - Querido, não avances mais. Imploro-te... estupor do xaile... pensa nas crianças... ouve o que te digo...

 

As mulheres também nunca aprendem o seguinte: pedir a um homem que lhes dê ouvidos é um erro. Ele fará, conscientemente, o contrário. Não é apenas a mente feminina que é complicada, mas também a masculina.

 

Muito cuidadosamente, Peter Ahlers começou a arrastar-se ao longo do turco. Alcançou o xaile, puxou-o, mas este não se soltou.

 

- Merda! - exclamou Ahlers baixinho, segurando-se com as pernas. - Mas o que é isto?!

 

Estupefacto, compreendeu que o xaile não estava pendurado no turco, mas antes preso à roldana com um nó. ”É incrível”, pensou Ahlers. ”Absolutamente incrível. Um nó!”

 

Segurando o turco com uma mão e desfazendo o nó com a outra, conseguiu, com alguma dificuldade, apoderar-se do lenço. Triunfante, agitou-o ao vento, deixando-o depois flutuar até Lotte que o apanhou e usou para cobrir os ombros nus. Angustiada, levou as mãos à boca, ao mesmo tempo que Peter retrocedia com cuidado, arrastando-se, para finalmente voltar a sentir chão firme. Sentia-se feliz por se encontrar de novo naquela passagem estreita e respirou fundo.

 

”É que uma pessoa já não tem vinte anos”, pensou. Para além disso, os pneus, ao nível da cintura, eram também um sinal evidente da vida sedentária que levava. ”Mais exercício, rapaz, e menos cervejola! A questão do xaile, pelo menos, fomos capazes de resolver.”

 

Cá em baixo, Lotte esperava-o junto da escada cuja passagem se encontrava vedada. Assim que Peter galgou a corrente, em cuja placa se podia ler POR FAVOR, NÃO TRANSPOR, saltou-lhe para o pescoço e abraçou-o com força.

 

- Não voltas a repetir isto, ouviste? - disse-lhe, ainda mal refeita do susto. - Nunca mais! Tive tanto medo que... mal conseguia respirar. Se, de repente, o barco tivesse balouçado...

 

- Mas não balouçou.

 

Beijou-a e, enquanto o fazia, pensou: ”Vinte e quatro anos de casamento e, subitamente, tudo volta a ser como dantes. Abraçamo-nos como se cada um pretendesse puxar o outro para dentro de si. Bendito xaile; devíamos conservá-lo como relíquia.”

 

- Há apenas uma coisa que não percebo - disse ele, afastando uma madeixa de cabelo da testa da esposa. - Algo completamente incrível.

 

- O que, meu querido?

 

- O xaile estava preso ao turco com um nó. Compreendes isso? com um nó!

 

- Como... com um nó?

 

- É precisamente essa a questão. Nem o vento mais forte é capaz de fazer um nó. Isto por um lado. Por outro: nem sequer se pode dizer que esteja vento. Mas o teu xaile estava preso ao turco com um nó.

 

Olhou mais uma vez para cima, na direcção do salva-vidas, e abanou a cabeça. Era, de facto, incompreensível. Lotte pegou-lhe na mão e apertou-a.

 

- É... realmente muito estranho, Peter - observou com voz trémula. - É... é sinistro. Anda, vamos... vamos depressa. Estou com medo.

 

Peter deixou-se levar pela mão dela. Não, nunca fora cobarde, e também desta vez teria preferido ficar no convés para esclarecer aquele fenómeno, mas Lotte puxou-o de tal maneira que teve de segui-la. Apressada, alcançou a porta, abriu-a impetuosamente e correu para a escadaria.

 

Por detrás da porta de vidro, Ahlers permaneceu imóvel, olhando, mais uma vez, para o lado de fora. Ali, à sua frente, iluminado por um luar francamente kitsch, estava o convés vazio, pontualmente obscurecido pela sombra dos barcos salva-vidas suspensos mais acima. Lá atrás, o mar calmo e o vasto céu estrelado. Um lugar propício ao sonho.

 

Mas como é que, num xaile levado pelo vento, aparece um nó?

 

Aquela era já a nona viagem que Thekla Freifrau von Sahlfelden - geralmente conhecida por ”senhora baronesa”, fazia naquele navio de luxo. Não havia nenhum recanto do mundo que não conhecesse; quase nenhum porto em que não houvesse desembarcado, no de Singapura ou no de Xangai, no de Lahaina, em Maui, ou no de Papeete, no Taiti. A ilha da Páscoa era-lhe tão familiar como as Tonga ou Fiji, e a baronesa de Sahlfelden já estivera em todo o lado, quer na Nova Zelândia, quer em Mombaça, em Adem ou em Ushuaia na Terra do Fogo, La Guaíra ou Guaiaquil. Tinha agora setenta e dois anos e o vigor de uma senhora de cinquenta, robusta, sempre à cabeça dos grupos de turistas aquando das excursões em terra, temida pelas suas observações críticas, admirada e invejada pelas restantes senhoras que, com a mesma idade, se refugiavam nos autocarros e resmungavam pelo facto de o programa ser demasiado cansativo, enquanto que para ”a baronesa”, armada de uma câmara e de binóculo, nada era nunca suficiente.

 

Ninguém sabia ao certo porque voltava a fotografar tudo aquilo que já vira quatro ou cinco vezes, e o que fazia com as fotografias. E a quem, discretamente, lho perguntasse, respondia:

 

- Envio-as a todos os meus parentes, para que se enfureçam ao ver-me esbanjar a herança por que tanto anseiam. Que prazer!

 

Importa, no entanto, referir que era praticamente impossível que a baronesa von Sahlfelden conseguisse esbanjar a enorme herança que o seu marido lhe deixara. Este detinha, e tudo isso era agora seu, quotas em fábricas de conservas e de papel americanas, e a sua fortuna fora avaliada em cerca de 32 milhões de dólares, sem contabilizar outras participações, das quais os próprios familiares, que aguardavam pela herança, não tinham ainda uma ideia muito clara. Desde a morte do barão, Thekla vivia a maior parte do tempo na Alemanha; deixara de se sentir bem na América no dia em que, no Texas, um cowboy lhe cuspira na cara. Este inestético episódio fora por ela como que associado aos Americanos em geral, povo que considerava essencialmente grosseiro. Sempre que um navio ancorava num porto americano, optava por ficar a bordo, abdicando das excursões em terra. Permanecia, então, sentada no convés da piscina, observava os arranha-céus - não havia uma cidade americana que não os tivesse -, bebia cocktails ou um bom vinho e recordava, mais uma vez, o cowboy que lhe cuspira na cara.

 

Quando a baronesa de Sahlfelden odiava, era para a vida.

 

Era-lhe importante que existisse, nos navios que frequentava, um local, no convés da piscina, à sombra e protegido do vento, onde pudesse repousar na sua cadeira longa, sem perder de vista o resto do convés, a piscina e o bar. As hospedeiras haviam recebido instruções claras no sentido de lhe reservarem aquele lugar e de terem a sua cadeira sempre pronta, juntamente com um colchão de espuma e duas pequenas toalhas turcas. Embora não fosse permitido reservar cadeiras, a administração do navio fechava os olhos, no caso da baronesa, e era o próprio chefe de pessoal, Victor, quem pessoalmente supervisionava os preparativos.

 

Importa que se saiba tudo isto para que se compreendam melhor os factos extraordinários que viriam a acontecer ao longo desta viagem.

 

Naquela manhã, a baronesa estava, como era costume, deitada na sua cadeira, e lia um livro. Trazia vestido um fato de banho inteiro, de padrão discreto, que provocava uma tremenda inveja nas restantes senhoras. com os seus setenta e dois anos, Thekla mantinha ainda uma figura muito apresentável: pele lisa, sem rugas nem manchas de velhice, as pernas bem constituídas, o ventre liso e as coxas musculadas. Pelo peito, percebia-se que o barão se mantivera activo até à avançada idade de oitenta e três anos, altura em que falecera vítima de uma bronquite idiota, uma morte que, durante muito tempo, Thekla não fora capaz de compreender.

 

Era assim que, naquele navio como noutros, era conhecida: distante, altiva, uma nadadora entusiástica, cultivada até ao verniz das unhas dos pés e das mãos, orgulhosa quando, no convés, vencia um qualquer jogo de tabuleiro, ou invadida por uma felicidade quase infantil quando ganhava vinte marcos no bingo.

 

É certo que o que lia na sua cadeira nem sempre se coadunava com a vida cultural que levava. Romances policiais. Ou Konsalik. O Konsalik irritava-a particularmente, por escrever, por vezes, numa linguagem um pouco rude. Mas, precisamente porque a irritava, lia tudo quanto de seu lhe chegasse às mãos. Naquele dia, lia um romance cuja acção se desenrolava numa zona montanhosa do México e no qual um padre, a dada altura, gritava: ”Merda!” Aí estava algo que, se por um lado merecia todo o seu repúdio, não deixava de nela despertar, simultaneamente, um fervoroso interesse.

Era um belíssimo domingo e, por volta das dez da manhã, o calor já se fazia sentir com bastante intensidade. O mar assemelhava-se a um espelho, azul-escuro, praticamente imóvel, algo que, naquela região, era bastante raro. Os passageiros movimentavam-se no convés, jogavam shuffelboard, pingue-pongue, nadavam na piscina, deleitavam-se ao sol, ou bebiam, no bar, sumos de fruta, cafés ou cocktails. Bebia-se, também, cerveja... eram sempre os mesmos, os senhores que se debruçavam sobre o balcão e que nunca dispensavam umas quantas cervejas logo pela manhã.

 

A baronesa consultou o relógio de pulso, pousou-o, depois, ao seu lado, levantou-se da cadeira, pôs o roupão de banho turco com motivos índios da América do Sul por cima dos ombros e dirigiu-se para a piscina. Dez horas. Doze voltas. Aquelas doze piscinas faziam parte das tarefas diárias de que não prescindia.

 

com passos breves e firmes, alcançou a zona balnear, pousou o roupão, tomou um duche e entrou na piscina. Aí, a oscilação do navio era mais evidente: a superfície da água. movia-se para lá e para cá. Deliciada, a baronesa deixou-se flutuar.

 

Doze piscinas, não mais. Quem pretende viver muito tempo, tem de ser rigoroso. Os impacientes, esses, morrem cedo.

 

Refrescada, a baronesa saiu da piscina, desfez-se da sua singela touca branca, sacudiu, à semelhança do que fazem normalmente as jovens raparigas, o cabelo ainda alourado e dirigiu-se para a sua cadeira de recosto.

 

Mas a cadeira já lá não estava.

 

Não era, efectivamente, nenhuma tragédia, uma vez que, a qualquer momento, o empregado do convés lhe podia trazer outra. No entanto, em todas as viagens que Thekla von Sahlfelden fizera, nunca lhe haviam roubado a cadeira de recosto, juntamente com as toalhas, o relógio e o livro. Faltavam ainda uns óculos de sol e um saco de praia de plástico. Consternada com tanta má educação, a baronesa olhou à sua volta. Não teve de procurar muito: a sua cadeira encontrava-se, fechada, num canto do convés, mesmo ao lado de uma porta onde se podia ler ”Entrada Reservada à Tripulação”, que conduzia às traseiras do bar. Um canto que mal se avistava a partir do convés. Não havia dúvida de que alguém a guardara muito bem.

 

A baronesa olhou, perplexa, para todos os lados, recuperou a cadeira, a toalha, o relógio, os óculos de sol, o saco de praia e o romance do Konsalik; em seguida, abriu de novo a cadeira e deitou-se.

 

”Que grande idiota”, pensou. ”Deve, com certeza, ter reparado que a cadeira não estava livre.” Observou Jean, o empregado de convés, de cima a baixo. Este andava ocupado a servir cafés, avançando, em equilíbrio periclitante, entre as cadeiras de recosto, com uma bandeja nas mãos. ”Não, não poderia ter sido ele”, pensou. Reparara nele, enquanto nadava. Andara sempre de um lado para o outro, distribuindo bebidas. Quem, então, se havia apoderado da sua cadeira? Eis um problema com o qual o romance de Konsalik não podia rivalizar. A baronesa levantou-se, pousou o livro no chão, observou o bufete, no convés, onde serviam cafés, e decidiu ir buscar um também para si. Pôs-se na fila, tirou da mesa uma chávena, um pires e uma colher, esperou que Willy a servisse e regressou ao seu lugar.

 

A cadeira desaparecera novamente!

 

Furiosa, a baronesa pousou a chávena de café no chão e, olhando em redor, rapidamente detectou a sua cadeira por detrás de uma arca metálica de grandes dimensões, na qual eram armazenadas as toalhas turcas pertencentes ao navio.

 

- Que insolência! - afirmou em voz alta, embora não houvesse ninguém nas imediações a quem se pudesse dirigir. - Que ousadia!

 

Foi buscar a cadeira atrás da arca e voltou a arrastá-la para o seu local de origem, mas estava de tal modo furiosa que lhe foi difícil, desta vez, abri-la. Atrapalhava-se e a cadeira acabava sempre por se estatelar no chão. Quem já se tiver digladiado com uma dessas peças de mobiliário, sabe bem quão infame uma cadeira de recosto pode ser. E quanto mais impaciente uma pessoa se revela, menos a cadeira parece querer colaborar. Mas toda aquela irritação deu lugar a um tremendo susto quando, aparecendo-lhe por trás, o empregado lhe perguntou cordialmente:

 

- Posso ajudá-la, senhora baronesa?

 

- E de que maneira! - Thekla afastou-se de todo aquele emaranhado de madeira e de lona e, apontando-lhe o dedo acusador, disse:

 

- Devo ser demasiado estúpida para isto.

O empregado de bordo fingiu não ouvir. Montou a caldeira e voltou a colocá-la no seu devido lugar.

- Faça favor, senhora baronesa!      

- É muito gentil da sua parte. Obrigada, Jean. - A baronesa permaneceu de pé, como se a cadeira representasse para ela uma ameaça silenciosa. - Estas cadeiras têm alguma coisa de particular, Jean?

 

- Não. Porquê? - Jean olhava, perplexo, para a baronesa. Fizera já, na sua companhia, pelo menos quatro viagens, e a baronesa ocupara sempre o mesmo lugar à sombra, protegido do vento, sem que as cadeiras tivessem alguma vez sido substituídas. - São cadeiras perfeitamente normais... como as que sempre teve ao seu dispor, senhora baronesa. Existem, a bordo, centenas como essa.

 

- Perfeitamente normal... esta cadeira já não é com certeza! - Apontou para o objecto, como que não ousando voltar a sentar-se nele. - Esta aqui é uma excepção. Tem vida própria.

 

Jean olhou para a cadeira e, depois, novamente para a baronesa. O que responder numa situação destas? Ter paciência e permanecer calado parecia ser o mais sensato.

 

- Não... não compreendo, senhora baronesa - limitou-se a responder, um pouco confuso. - Vida própria... como assim?

 

- Esta cadeira desapareceu, sem que lhe tocasse, já por duas vezes. Fechou-se e refugiou-se além, naquele canto. Quiçá terá, para este fenómeno, alguma explicação?

 

Um empregado de bordo, num navio de luxo, está acostumado a todo o tipo de situações. Aí, como em nenhum outro lado, conhece-se pessoas. Mas, sobretudo, aprende-se a dar-se ares de desentendido. É, sem dúvida, a melhor defesa contra o comportamento invulgar de alguns passageiros. Ninguém exige soluções a quem se mostra perplexo. Também Jean, o empregado, se refugiava, agora, num aparente embaraço. ”É verdade que a baronesa já não é nova”, pensou. ”É natural que já não esteja em posse de todas as suas faculdades.”

 

- Não - respondeu ele, hesitante. - Disse que se refugiou por iniciativa própria naquele canto...?

 

- Por duas vezes!

 

- Que coisa...

 

- E fechada!

 

- Fantástico...

 

- Acha fantástico, Jean? - A voz da baronesa elevou-se perigosamente.

 

- O que eu acho é que é absolutamente incrível que alguém se tenha permitido pregar-lhe uma partida. Tudo isso não passa, certamente, de uma brincadeira. Uma cadeira não pode, simplesmente, desaparecer sozinha.

 

- E fechar-se, Jean.

 

- E fechar-se, ainda menos. Tenha, apesar de tudo, uma manhã agradável, senhora baronesa!

 

Jean fez uma vénia e sentiu-se feliz por se ver, finalmente, livre da baronesa, com a qual um desconhecido andava, pelos vistos, a gozar. Foi até ao balcão, pegou noutro tabuleiro com cafés e voltou a desaparecer por entre as filas de cadeiras de recosto estendidas ao sol.

 

- É incrível que existam pessoas tão infames! - disse a baronesa, em voz alta, de modo a que a ouvissem na zona mais soalheira do convés. Ninguém reparou, no entanto, no meio da algazarra, uma vez que a banda de bordo havia, entretanto, iniciado a sua actuação, a qual iria entreter os passageiros com melodias dos anos vinte até, aproximadamente, às 11 horas. Ainda assim, soubera-lhe bem gritá-lo.

 

A baronesa arrastou a cadeira para junto do canto envidraçado do convés, circundou-a, observando-a, e não detectou nada de anormal. Depois, sentou-se cuidadosamente e, abanando a cabeça, pegou na chávena que estava no chão e bebeu o café ainda quente.

 

- É impressionante... as coisas que nos acontecem afirmou depois do primeiro gole. - Nunca fiz mal a ninguém. A clientela destes navios está a tornar-se cada vez mais deselegante.

 

Só por volta da hora do almoço é que a baronesa conseguiu reencontrar alguma tranquilidade.

 

Quem conhecia Eduard Hallinsky tudo fazia para o evitar. Para ele, só existiam dois tipos de pessoas: aquelas a quem se podia dar uma palmadinha nas costas para, simultaneamente, se lhes arruinar a vida, e aquelas a que chamava idiotas. Estas últimas eram os intelectuais, capazes de perceber os seus truques e oferecer-lhe resistência.

 

Eduard Hallinsky era aquilo que, normalmente, se designa por consultor de investimentos. Uma profissão magnífica: proporciona-se participações em empresas de construção naval, investimentos em companhias petrolíferas no Texas ou na Colômbia, acções em novas estâncias termais, tudo isto com rendimentos consideráveis e com significativos benefícios fiscais. E quando algo corria mal - havia sempre algo que corria mal -, Eduard Hallinsky levava as mãos à cabeça e alegava não ter sido mais do que um simples intermediário, tão decepcionado, agora, quanto os infelizes investidores. E não se falava da elevada comissão entretanto cobrada: afinal de contas, todo o trabalho tem o seu valor. Além disso, em todos os contratos podia ler-se, em letras pequenas, mas muito claramente: «A Empresa Finanças Discretas desempenha apenas as funções de intermediária e não se responsabiliza pelos bens transaccionados.» Mas quem é que dá importância a esta frase, quando se lhe garante ser possível declarar, nas finanças, um prejuízo na ordem dos duzentos e vinte e quatro por cento?

 

Esta profissão proporcionava um verdadeiro prazer a Eduard Hallinsky. Na sua cidade, em Dortmund, possuía, no bairro residencial de Kirchhõrde, uma casa enorme com piscina e estufas, conduzia um Jaguar de doze cilindros, dava emprego a seis secretárias, de entre as quais quatro eram suas amantes, continuava a ser, apesar da sua reputação, um membro respeitado do clube de golfe, devido às generosas despesas que aí fazia, e financiava uma equipa de ciclismo. Acompanhava sempre a sua equipa aquando da corrida de seis dias que se realizava, todos os anos, em Dortmund. Sim, e tinha ainda uma mulher e dois filhos. Não lhes daremos aqui maior importância, uma vez que estes raramente eram notados. Faziam, de certa forma, parte da mobília.

 

No entanto, uma vez por ano, Eduard Hallinsky afastava-se do trabalho e das obrigações, e sobretudo das suas quatro secretárias preferidas: fazia uma viagem de barco para recuperar energias.

 

E era precisamente por esse motivo que se encontrava agora naquele navio. Valente, resistia aos avanços de todas as senhoras que viajavam sozinhas. Fazia parte do grupo de homens que, naquele barco, podiam ser encontrados onde quer que uma cerveja tivesse sido aberta, limitando-se a vaguear o resto do tempo e tomando de assalto, quando o barco atracava, os sítios onde se vendesse essa bebida.

 

- O que é que me interessam, a mim, os templos de Simsalabim? - dizia, quando alguém se lhes referia. - De nada adianta que os visite. E vendê-los também não posso. No entanto, sei bem a que sabe a cerveja no Havai ou em Hong Kong. Esse sim, é um verdadeiro capital espiritual.

 

Eduard Hallinsky era, por todos estes motivos, muito apreciado pelos empregados de bordo. Não era barulhento, dava boas gorjetas e, como bebia muito, era fácil ganharem, durante uma destas viagens, uma quantia bastante apreciável. Estava sempre satisfeito. Apenas num domínio não devia nunca ser contrariado por quem não pretendesse entrar em conflito com ele: para ele, a melhor cerveja do mundo era a de Dortmund.

 

- Tem algum termo de comparação?! - gritou uma vez a um sujeito que teimava em contestá-lo. - Mas, afinal, que cervejas é que o senhor conhece? Dez cervejas diferentes? Lamentável. Conhece o sabor da cerveja de Tonga? Ou o das ilhas Cook? Ou ainda o de Kota Kinabalu?

 

Claro que não! A qualidade da cerveja de Dortmund não conhece rival! Se, na Roma antiga, já existisse a cerveja de Dortmund, era nela que Agripina se teria banhado, e não em leite de burra.

 

- Foi Popeia - respondeu-lhe, orgulhoso, o obstinado adversário.

 

- Quem? - gritou Hallinsky.

 

- Popeia Sabina, a segunda esposa do imperador Nero, que viria a falecer em sessenta e cinco depois de Cristo.

 

- Porque não bebeu cerveja de Dortmund!

 

Era impossível discutir-se com Eduard Hallinski acerca da cerveja de Dortmund. Apesar de tudo, bebia corajosamente a cerveja que lhe era servida no navio, uma cerveja fabricada em Hamburgo, ainda que comentando:

 

- À falta de pão, até migalhas vão.

 

Hallinsky trazia sempre consigo, nas suas viagens, uma pasta de pele de crocodilo, na qual guardava os documentos com as suas maravilhosas propostas de investimento, impressas num luxuoso papel brilhante, repletas de fascinantes cálculos relativos a poupanças

fiscais, gráficos, projectos arquitectónicos, relatórios de peritagem levados a cabo por economistas e aprovações antecipadas por parte de grandes instituições bancárias.

 

Convencia, desta forma, todos quantos considerava merecedores de serem seus clientes.

 

No final destas viagens de quatro semanas, Hallinsky trazia consigo para Dortmund tantos contratos que a sua comissão daria para financiar dez viagens à volta do mundo. Chamava-lhe um ”efeito secundário vantajoso”, cujo único aspecto negativo tinha que ver com o facto de, ocasionalmente, se cruzar, nas viagens que fazia, com antigos clientes, os quais, ou o ignoravam totalmente, ou o sobrecarregavam com reclamações. Hallinsky não contava, entre os seus investidores, nenhum que lhe tivesse ficado reconhecido. Verdade seja dita: ser-se investidor é uma actividade difícil. Um osso duro de roer, por muito rentável que seja.

 

No entanto, naquele dia em que um desconhecido teimava, com alguma crueldade, em provocar a baronesa Von Sahlfelden, também Hallinsky estava deitado numa cadeira de recosto, exactamente na outra extremidade do convés, com uma pequena mesa a seu lado, onde, numa caneca de vidro de meio litro, repousava uma deliciosa cerveja. Tal como a baronesa, também Hallinsky privilegiava um certo isolamento, sobretudo naquela viagem, durante a qual havia já encontrado três antigos clientes seus, que se lhe haviam dirigido em termos pouco agradáveis. Era, por isso, inteligente que se mantivesse afastado e considerasse a possibilidade de organizar as próximas viagens de outra forma, quiçá reunindo um pequeno grupo e optando, antes, por se deslocar de avião. Existiam, a esse nível, belíssimos passeios. Mas, afinal, haverá algo que se compare a um cruzeiro? Algumas semanas no mar funcionam como um verdadeiro elixir de juventude.

 

Hallinsky bebeu um grande gole de cerveja, voltou a pousar na mesinha a caneca, agora semicheia, levantou-se da cadeira de recosto e olhou para a piscina. ”Refrescar-me far-me-á certamente bem”, pensou. ”Uma cerveja gelada e o oceano pela frente... isto é que é viver.”

 

Embora alimentasse a ideia de que era um desportista, nunca praticara, na verdade, qualquer modalidade. Caminhou, ágil, em direcção ao duche, passou o corpo por água e mergulhou na piscina. Escusado será dizer que sofria de excesso de peso, que a barriga se lhe sobrepunha ao fato de banho e que a sua perna esquerda exibia já varizes. Essa é uma questão que não é para aqui chamada. Importa, no entanto, referir que nadava como uma morsa, ofegante, e que os restantes passageiros tinham de se afastar para o deixar passar.

 

Passados dez minutos, se tanto, Hallinsky regressava ao convés, esboçando ainda, no rebordo da piscina, uma encantadora flexão de joelhos, dirigindo-se depois, em passo acelerado, para a sua cadeira no canto do convés.

 

Não, não se trata do que poderão estar a pensar: a cadeira ainda se encontrava no mesmo sítio. Mas quando Hallinsky, sem olhar, pegou na cerveja e a levou aos lábios, o copo estava vazio.

 

Irritado, pousou a caneca de vidro, sentou-se no rebordo da cadeira e fez um sinal a Jean. O empregado acenou afirmativamente, serviu ainda um casal, na segunda fila, e aproximou-se depois de Hallinsky.

 

- Hoje está calor, não está? - perguntou Hallinsky. Jean acenou com a cabeça.

 

- Sim... este é um dia particularmente quente, senhor Hallinsky.

 

- Tão quente que uma cerveja se possa evaporar?

 

”Parece que está de bom humor”, pensou Jean, satisfeito. ”Está com disposição para gracinhas.” Lição número 3: adaptar-se ao humor dos passageiros. A passageiros satisfeitos correspondem sempre carteiras bem abertas.

 

- Não, senhor Hallinsky - respondeu Jean -, a não ser que se evaporasse na garganta. Mais uma cerveja...?

 

Hallinsky sorriu, acenando afirmativamente.

 

- E ainda pergunta?

 

Enquanto se enxugava com uma toalha de banho grande, Jean pediu outra cerveja no bar do convés e regressou com uma caneca de vidro. O rosto de Hallinsky encheu-se de brilho. Não há nada que possa substituir uma cerveja acabada de sair do barril, coberta por uma belíssima camada de espuma; qualquer um lho dirá, sem que para tal tenha de ser de Dortmund.

 

- Perante uma visão destas, a mais bela das mulheres não significa nada! - comentou Hallinsky. Tirou o copo a Jean, fez-lhe um brinde e bebeu um grande gole. - Ah! Não há palerma a quem se não tenha erguido um monumento, enquanto que ao tipo que inventou a cerveja, nada feito...

 

- Tanto quanto sei, já os antigos Egípcios conheciam a cerveja.

 

- É verdade, Jean. - Hallinsky voltou a erguer o seu copo. - Tinham as pirâmides, a Cleópatra e a cerveja... benditos Egípcios!

 

Faziam-lhe agora sinais, noutras cadeiras, pelo que Jean teve de abandonar rapidamente o bem-disposto Hallinsky. E enquanto se afastava, pensou em como a cerveja deste último se evaporara. Eis uma expressão que importava reter.

 

Dizem que a cerveja é diurética e, talvez por isso, Hallinsky pôs-se a caminho da casa de banho, abandonando a toalha sobre a cadeira e desaparecendo por detrás da porta.

 

Pouco tempo depois, voltou a aparecer. Dirigiu-se, sempre com o mesmo estilo desportista, para o seu lugar mas, repentinamente, como se tivesse embatido contra um muro, imobilizou-se. Perplexo, fixou a sua caneca de cerveja.

 

O recipiente estava vazio.

 

”Não é possível!”, disse para consigo mesmo, ainda que em voz alta, fazendo depois sinal a Jean, tenha gritado: Jean, venha cá!

 

Algumas cabeças viraram-se e observaram-no com um ar reprovador. A verdade é que uma pessoa de Dortmund a quem desapareça uma cerveja não se preocupa com esse tipo de protesto.

 

- O que é que se passa aqui, Jean? - disse Hallinsky furioso, quando o empregado se aproximou. - Está novamente vazia...

 

”Ah! Continua a brincadeira”, pensou Jean. ”Alinhemos.”

 

- Este sol, senhor Hallinsky - disse-lhe, sorridente -, ninguém imagina a sede que provoca.

 

Porém, o sentido de humor de Hallinsky dissipara-se.

 

- Não diga idiotices, homem! - gritou-lhe, com o rosto congestionado. - Não fui eu quem bebeu a cerveja! Estavam ainda três quartos da cerveja no copo quando me ausentei para ir à casa de banho. Três quartos... por aqui...!

 

Ergueu o copo e mostrou a Jean, apontando com o dedo para o nível de cerveja que deixara. Estava tão enervado que o copo lhe estremecia na mão.

 

- E agora, regresso da casa de banho e o copo está vazio. Outra vez vazio! Como há pouco! O que é que me diz a isto, Jean?

 

”Primeiro a baronesa, agora o Hallinsky”, pensou Jean, exibindo, cortês, uma expressão de perplexidade. ”Deve andar algo no ar. Nunca tinha reparado o quanto o mar de Bali afecta o estado de espírito das pessoas.”

 

- O que dizer - respondeu Jean. - Alguém deve ter...

 

- Sim, alguém deve ter-me roubado a cerveja! - A voz de Hallinsky ressoava, agora, em todo o convés e, mais uma vez, algumas pessoas se viraram com olhares reprovadores. Três senhores levantaram-se mesmo, reagindo instintivamente à palavra cerveja. - Que condições vêm a ser estas? - gritou Hallinsky, inamovível. - Que tipo de pessoas temos, afinal, a bordo? Abandona-se uma cerveja durante dois minutos, e sugam-na logo! - Olhou para o convés, para todos aqueles rostos apáticos, e achou por bem aproveitar a ocasião para desabafar. - Seria de presumir que quem empreende um cruzeiro destes também teria dinheiro para pagar uma cerveja. Uma cerveja! Mas não... roubam-na...! Afinal, onde é que estamos?

 

A situação era desagradável, sem dúvida. Os restantes passageiros voltaram a deitar-se nas suas cadeiras, deixando-se bronzear ao sol, bebericando ou lendo livros de bolso. Não havia ali ninguém que se compadecesse da situação de Hallinsky, ninguém capaz de se lhe dirigir e dar-lhe um aperto de mão.

 

- Talvez tenha sofrido uma ligeira insolação - sussurrou mesmo uma senhora ao seu esposo. - Afinal, quem é que, aqui, seria capaz de roubar uma cerveja...

 

Hallinsky arrebatou o roupão de banho que se encontrava pousado sobre a cadeira e lançou violentamente a toalha para trás do ombro. Jean observava-o com um misto de perplexidade e embaraço.

 

- Mais uma cerveja, senhor Hallinsky? - perguntou.

 

- Não! Aqui, no convés, nunca mais! Não estou para ter de vigiar a minha cerveja.

 

com passos ruidosos, abandonou o convés, seguido por inúmeros olhares, manifestamente deleitados com a sua desgraça. O infeliz Jean levantou a caneca de cerveja da mesa e preparava-se para a levar, quando de súbito se imobilizou. Observou atentamente o copo. No rebordo, colado à espuma da cerveja entretanto ressequida, podia ver-se um cabelo. Um longo cabelo negro.

 

Estupefacto, Jean observou Hallinsky desaparecer pela porta do bar: Eduard Hallinsky tinha cabelos cinzentos, quase brancos...

 

- Ora esta... - disse Jean, em voz baixa, e pensou se devia comunicar a descoberta que fizera ao seu superior. Trata-se, de facto, de um fenómeno...

 

Num navio de luxo, um fiel de armazém é uma pessoa da maior importância. Sem ele, nada funciona na cozinha, na padaria, ou no departamento de assistência técnica. Como um anjo à entrada do paraíso, também ele ocupa o seu trono, numa divisão de vidro, no Convés B, nas entranhas do navio, diante das inúmeras portas do armazém, por detrás das quais se amontoam toneladas de víveres, batatas, conservas de frutas, barris de cerveja, vinho, espumante, champanhe, espirituosos, ovos, carne e gorduras, já para não falar dos produtos frescos, adquiridos nos grandes portos. Uma das portas, espessa como a de um cofre, possui duas grandes fechaduras e é particularmente vigiada: a câmara frigorífica, onde são guardados o caviar, o salmão e outras iguarias.

 

Rudi Faster andava no mar há já dezanove anos e, tendo começado como ajudante de cozinha, fizera-se, é importante dizê-lo, por mérito próprio, fiel de armazém. Havia algo nele que se percebia logo: a sua correcção, o rigor com que mantinha os registos e a sua honestidade. Não saía nada do seu armazém sem que, em troca, exigisse um comprovativo de levantamento da mercadoria. Sem uma assinatura na lista de saídas, nada feito. Se o restaurante quisesse queijo: assinatura! Se pretendesse farinha para os pãezinhos diários, cinco tipos de pão, para os bolos e as tortas, para tudo quanto era cozinhado na padaria do navio: só contra assinatura! Laranjas, bananas, melões, mangas, maçãs, pêras, uvas, pêssegos, quivis ou papaias... confirma, jovem, e assina.

 

Tinha agora quarenta e seis anos. Era um homem de barba negra, com uma voz que lembrava o entoar de uma sirena de nevoeiro. Estava satisfeito com o seu reino no Convés B, satisfeito com a vida que levava a bordo, pois aquele navio era, para todos os efeitos, a sua casa, bem mais do que o seu apartamento em Bremerhaven, onde, durante as férias, no final de grandes travessias, se sentia profundamente só. Quando regressava a bordo e voltava a ocupar o eu escritório envidraçado no armazém, mostrava-se simultaneamente feliz e furioso, pois o fiel de armazém que o substituía era, a seu ver, um desleixado, e deixava tudo desorganizado. Passava, depois, noites a fio em volta do inventário, verificando o conteúdo das várias câmaras frigoríficas, uma a uma.

 

- Rouba-se descaradamente! - gritou através do armazém. - Mas agora estou de volta! Comigo conta-se até as ameixas!

 

Naquele dia, Rudi estava, como era costume, sentado no seu escritório de vidro e observava os dois ajudantes de cozinha que percorriam o longo corredor em direcção a ele. A cozinha havia encomendado bananas, as quais estavam já guardadas em caixas de cartão junto da porta da sala onde se armazenava a fruta e os legumes, prontas para serem levadas. Três cachos de bananas, distribuídos por duas caixas.

 

Pegou no seu bloco de recibos e saiu do escritório. Os dois ajudantes de cozinha haviam-se imobilizado junto das caixas de cartão e um deles inclinava-se já para lhes pegar. Theo Hanf, uma espécie de cabo na hierarquia da cozinha, virou-se para Faster, ao ouvir os seus passos pesados.

 

- Está tudo confirmado - disse Faster, agitando o bloco de recibos. - Venha aqui e assine...

 

Theo Hanf reteve o seu colega, que se preparava já para levar uma das caixas ao ombro, e abanou a cabeça. O colega era novo a bordo, sendo aquela a sua primeira viagem num navio de luxo.

 

- Não toco numa banana que seja - disse Hanf em voz alta. - Isso é que era bom, Rudi! Falta aqui um cacho inteiro de bananas.

 

- Não digas tolices! Isto não é para se ficar a olhar de olhos esbugalhados, é para se ver! - Faster aproximou-se, parando junto dos caixotes. - Eu próprio tirei as bananas da câmara. Tudo quanto é entregue por mim corresponde à encomenda até à mais pequena migalha... Mais alguma observação idiota?

 

- Não. - Theo Hanf apontou, com a mão estendida, para as bananas. - Quanto a migalhas, talvez tenhas razão, mas, no que diz respeito às bananas, falta aqui um cacho. Não sou nem cego, nem parvo.

 

- Relativamente à parvoíce, a questão é discutível. Faster inclinou-se sobre a segunda caixa e ficou, nesse momento, petrificado. Permaneceu naquela posição, como se lhe houvessem quebrado a espinha. - Não pode ser... murmurou, apático. - Não é possível...

 

- Não é para olhar com cara de parvo... é para ver troçou Hanf, insolente. - Em que é que ficamos?

 

O misterioso desaparecimento atingira Rudi como um relâmpago. Este ergueu-se, respirou fundo (crescendo, desta forma, não apenas em largura, mas ainda em altura) e fez ecoar a sua potente voz através do armazém:

 

- Alguém anda a roubar aqui em baixo! Alguém da tripulação anda a roubar bananas! E digo-vos: hei-de apanhar o sujeito. Doze bananas! Mas eu apanho o estafermo, e enfio-lhe as doze bananas pelo cu acima!

 

Abriu a porta que dava acesso à câmara dos frutos e legumes, tirou doze bananas e atirou-as a Theo Hanf, que as apanhou, sorridente, e as introduziu na caixa.

 

- Agora está tudo certo, guardião de todos os alimentos

- declarou Hanf, apoiando a caixa no ombro e dirigindo-se para o monta-cargas. O seu colega seguiu-o com a outra caixa. De olhos semicerrados, Faster observou-os enquanto se afastavam, fechou a porta e voltou, com passos ruidosos, para o seu escritório de vidro. Só aí reparou que, com tanta irritação, se tinha esquecido de registar o levantamento das bananas. Era o que mais lhe faltava!

 

Pesado, deixou-se cair na cadeira, juntou os punhos cerrados e permaneceu, assim, olhando para a frente. Fora a primeira vez, em dez anos, que um roubo tivera lugar no seu armazém, mesmo diante dos seus olhos. Isso era o mais humilhante: tinha estado sentado ali, diante daquele enorme vidro, a partir de onde se podia observar todas as portas, todos os corredores, enfim, todo o armazém. Ele próprio retirara e contara as bananas, e enquanto ali estivera sentado, tinham-nas roubado, sem que ele desse por nada. Rudi Faster, sentia-se agora nu, exposto ao olhar e à chacota dos outros.

 

Passado um quarto de hora de meditação silenciosa, Faster decidira participar o roubo das doze bananas ao tesoureiro do navio, seu superior imediato. Sabia, de antemão, o que Herbert Losse lhe diria:

 

- Ora essa, Faster, não faça de doze insignificantes bananas um drama!

 

E ele, Faster, responder-lhe-ia:

 

- Senhor Losse, hoje foram bananas, amanhã será queijo, depois de amanhã, um lombo de porco e, para a semana, caviar. E eu, apenas eu, sou responsável pelo armazém. Não é à companhia que estão a roubar, mas a mim! Preciso de mais um homem, senhor Losse. Se todas as secções vierem fazer levantamentos, os que lá tenho não são suficientes.

 

- Mas, neste caso concreto, não havia no local qualquer movimento. Estava sozinho, não estava?

 

Sim, era exactamente assim que a conversa decorreria e o tesoureiro Losse teria razão: estivera sozinho e não se apercebera de nada...

 

”É absolutamente incompreensível”, pensou Faster, enquanto vestia o seu casaco para se apresentar dignamente diante de Losse. ”Inexplicável.”

 

Antes de subir para o convés principal, passou ainda todas as portas em revista. Estavam todas fechadas. Dali, ninguém tiraria mais nada.

 

Enquanto o elevador subia, Faster sentiu como se a sua vida se tivesse modificado de um momento para o outro.

 

A bordo de um navio de luxo, a padaria e a pastelaria constituem uma instituição, onde, no domínio da doçaria, são criadas verdadeiras obras de arte. Quem já tiver presenciado um bufete de gala a bordo de um navio, com as suas tortas, os seus petits fours, as suas esculturas de maçapão, as suas reproduções em chocolate, as suas fantasias de pastelaria, propostas de sobremesa absolutamente despretensiosas, confirmará que são obra de verdadeiros artistas, capazes de transformar simples ingredientes como farinha, água, frutos, chocolate, gordura e maçapão, em verdadeiros regalos para os olhos e o estômago.

 

Quando se entra numa dessas pastelarias, é difícil acreditar que se esteja no alto mar, nas imediações do equador. Aí, encadeiam-se máquinas de amassar e, em enormes fornos, cozinha-se pão de vários tamanhos e feitios (todos os dias 4000 pães), molda-se e adorna-se tortas, depois dispostas em fila, às centenas, e, sobre um tabuleiro metálico, arrefecem biscoitos e outros artigos de pastelaria. Finalmente, de tudo isto emana um aroma a pão fresco, que faz crescer água na boca.

 

É assim que, ao visitar o navio, o passageiro curioso vê a pastelaria de bordo. É, sem dúvida, um paraíso gastronómico.

 

Para Kristof Basziniowsky, a quem há já oito anos a tripulação se acostumara, por uma questão prática, a chamar simplesmente Bumski, a pastelaria tinha, no entanto, um significado totalmente diferente. Tal como os restantes, também ele se acostumara à forma como pronunciava o alemão. Há doze anos que vivia na Alemanha e, com a queda para as línguas própria de um polaco, havia rapidamente aprendido a língua do seu país de acolhimento, mas afigurava-se-lhe impossível abandonar a pronúncia do Leste. Para quê, afinal? Ser chamado Bumski não era assim tão grave; bem pior fora quando, chegado ao Ocidente, o haviam tratado por ”polcas”. Isso sim, magoara-o particularmente, mas, naquele tempo, era apenas um pobre diabo sem perspectivas de futuro e limitara-se a baixar a cabeça.

 

Agora as coisas eram bem diferentes. O pasteleiro Basziniowsky encontrara um emprego em Hamburgo, onde trabalhava das três da manhã às cinco da tarde e onde chegara mesmo a ganhar, com uma torta que ele próprio criara, o primeiro lugar num concurso de pastelaria. Chamara-lhe ”Primavera de ginja”, uma combinação de massa folhada, creme, ginjas, trufas de chocolate, geleia de fruta e uma suave aguardente de cereja duplamente destilada. Só a descrição abre o apetite.

 

com tal conquista, Bumski chamou a atenção do tesoureiro Losse, que o convidou a embarcar no cruzeiro de luxo. Aí criava, há já oito anos, aqueles fabulosos bolos e era, aquando de cada bufete de gala, o criador das tão aplaudidas rosas esculpidas em maçapão. Tal como o fiel de armazém Rudi Faster, sentia-se em casa naquele navio. A pastelaria, a cabina número 619 no Convés C, e o vasto mundo pelo qual viajava, haviam-se tornado a sua pátria. De São Francisco a Xangai, da Cidade do Cabo à Terra do Fogo, de Singapura a Sydney. Que mais teria a vida para oferecer?

 

Naquele dia, Bumski (adoptemos, também nós, este nome) estava de pé, junto ao balcão da pastelaria de bordo, e tirava, de uma prateleira, o tabuleiro metálico onde arrefeciam pequenos bolinhos de fruta, para o pousar em cima do balcão. Como todos os dias, iniciar-se-ia dentro de meia hora, no salão e nos conveses, o período de café. É incrível a quantidade de comida que os passageiros conseguem ingerir a bordo de um navio: o pequeno-almoço, um segundo pequeno-almoço no convés, o almoço, o lanche, o jantar, e o bufete ao serão. É de espantar que, no final de um cruzeiro como este, os fatos e vestidos ainda sirvam e que os passageiros não abandonem o navio com as roupas nos braços.

 

Bumski não se irritava facilmente. Compreende-se, portanto, que estremecessem todos na cozinha ao ouvirem-no gritar:

 

- Quem roubou as tortas? Quem comeu as tortas? Merrda! Faltam tortas no tabuleiro... Seis tortas!

 

Obteve, como resposta, uma imensa gargalhada, que o deixou ainda mais irritado. Apoiou-se no balcão e voltou a contar, apontando com o indicador para os espaços deixados vazios no tabuleiro. Francois Dupret, o mestre pasteleiro, que naquele momento decorava cinco tortas de chocolate com cerejas, pegou na sua bisnaga de natas e pousou-a sobre a mesa, como se de uma pistola se tratasse.

 

- Mãos ao ar! - gritou. - Abram a boca. Expirem! Os que cheirarem a torta encostam-se àquela parede. O padre vem já a caminho para ouvir a última confissão. E, depois: Pum! Pum!

 

- Seis tortas de fruta - bradava Bumski, fora de si.

- com natas... - com um olhar selvagem, olhou em redor, rangendo os dentes, e não compreendeu porque tremiam de riso os seus colegas. - Devolver as tortas! - gritou, batendo com a mão no balcão. - É uma piada vossa sem graça! Se as tortas não são imediatamente devolvidas, eu mijar nos vossos pãezinhos...

 

- Uma sugestão, Bumski! - exclamou Dupret. - Prega as tortas à parede. São suficientemente rijas!

 

- Acorrenta-as! - uivou o cozinheiro Hans Platschke, que se encontrava junto do fogão.

 

- Melhor ainda - ripostou Dupret. - Designa um marinheiro para que as vigie com uma metralhadora...

 

Basziniowski esperou que a boa disposição generalizada acalmasse. Era um fenómeno contra o qual não valia a pena lutar. Conhecia-o bem, de resto: quanto mais se irritava e, instintivamente, praguejava em polaco, mais os seus colegas se divertiam. Isso provocava-o ainda mais, e os insultos em polaco, mesmo quando não se compreende o seu significado, são, quanto mais não seja, devido à sua sonoridade, bastante persuasivos.

 

Conforme previsto, a boa disposição acabou depressa por se dissipar, o trabalho prosseguiu, retirando-se do terceiro forno o pão integral, enquanto, no interior do primeiro, as carcaças estavam já prontas.

 

- Comigo não - protestou Bumski, teimoso. - Estão muito enganados... Podem fazer o que quiser, mas roubar a mim, não! Eu faço queixo ao tesoureiro.

 

- É, vai chorar para o ombro dele! - gritou Platschke, por cima das carcaças. - Nenhum de nós tocou nas tuas malditas tortas de ebonite.

 

Bumski afastou o gorro branco que trazia, tirou o avental e retirou do armário outro casaco branco, esse passado a ferro. Era o seu casaco para as ocasiões especiais, o casaco que usava nos serões que antecediam as mudanças de passageiros, quando, integrado no coro da tripulação, cantava, no palco do salão, cantigas de marinheiro. Tinha uma agradável voz de barítono, mas algo soava estranho, é certo, quando cantava, por exemplo: ”Estávamos ancorados diante de Madagáscar e havia peste a bordo...” E isto, ainda por cima, cantado com um fervor tal que o companheiro que cantava ao lado dele mal conseguia disfarçar a vontade de rir.

 

- Eu vou! - disse Bumski, já perto da porta. - Última vez: ninguém roubou?

 

- Desaparece! - Platschke levou o indicador à testa. Deves ser maluco! Qual de nós é que come bolos?

 

- Espaços vazios são prova suficiente! Seis espaços vazios... no tabuleiro... Seis tortas desapareceram...

 

Furioso, Bumski bateu a porta atrás de si e, utilizando o elevador de carga, tomou o caminho do convés principal, para aí relatar o sucedido a Herbert Losse.

 

O comandante de um cruzeiro não tem apenas como missão a de fazer chegar ao porto seguinte, sãos e salvos, seiscentos passageiros e trezentos e cinquenta membros da tripulação, através dos oceanos; e isto com uma precisão tal que, se houver uma chegada a Nuku-Alofa marcada para as sete horas da manhã, o barco lance, efectivamente, a âncora às sete horas em ponto. É também responsável por tudo quanto sucede a bordo, pois, aí, um comandante é senhor de todas as coisas.

 

Trata-se, frequentemente, de uma tarefa muito ingrata. É que para se manter uma rota, existem os oficiais de navegação e os mais modernos aparelhos, entre os quais os sistemas de navegação por satélite ou o piloto automático que, uma vez programado, mantém obstinadamente a rota definida. Ainda assim, esta continua a ser calculada e verificada segundo o método antigo, recorrendo-se, portanto, às cartas de navegação. com o radar varre-se as imediações e está-se em permanente contacto, via rádio, com os portos de destino. O que significa, para resumir, que o grande problema do comandante não é tanto a viagem em si.

 

Bem mais complicado é aquilo que se designa por representação. O dever de convidar oito pessoas para a sua mesa, na maioria dos casos, quatro casais, o que, todos os dias e durante três, quatro ou mais semanas consecutivas, pode revelar-se extremamente cansativo. Muitas vezes, as pessoas em questão não são sequer as mais conversadoras e quando, ainda por cima, tem de partilhar a sua mesa com membros da direcção da companhia de navegação e respectivas esposas, é caso para se felicitar o comandante pela paciência com que o faz.

 

Normalmente, e desde que informado, o comandante está sempre ao corrente do que vai acontecendo a bordo do seu navio. Conhece as preocupações do seu tesoureiro, também designado por director de cruzeiro; sabe o que se passa lá em baixo, junto das máquinas, onde o oficial superior de máquinas, a quem, normalmente, chamam apenas chefe, vigia a alma do navio, os motores. Está a par dos problemas que afligem os chineses que trabalham na lavandaria de bordo, lá em baixo, no Convés C, que têm a sua própria cozinha chinesa e não são nunca vistos pelos passageiros, por não virem nunca ao convés. E é obrigado a intervir sempre que lhe chegam demasiadas queixas por parte dos passageiros, como, por exemplo: ”Existe um indivíduo a bordo que, bêbedo, teima em incomodar as nossas esposas!” Ou, então, tem de fazer uma advertência a um empregado que, tendo perdido o navio numa escala, viu-se obrigado a ser transportado num barco piloto. Ou, ainda, se um passageiro parte uma perna a jogar shuffleboard, um acidente idiota, cabe-lhe redigir um relatório à companhia de navegação, uma vez que é esta quem assume as despesas com o hospital de bordo.

 

Ou... ou... ou...

 

Não se pense que ser-se comandante de um navio de luxo constitui pêra doce. Há comandantes que, para descansarem deste tipo de hotel flutuante, navegam, através dos oceanos, num navio de carga. O convívio diário com cerca de mil pessoas, num espaço extremamente limitado, exige que se tenha uma grande capacidade de resistência. De resto, a necessidade de se ser constantemente agradável para com os passageiros é um pressuposto da profissão de comandante. Este não pode, em circunstância alguma, responder com sinceridade a um passageiro: ”Deixe-me mas é em paz com essas tretas!” Pelo contrário: tem de ser paciente e prometer debruçar-se sobre o assunto.

 

Claro que, a bordo, também existem muitos motivos de alegria para um comandante. O clássico jantar em sua homenagem, o bufete de gala, os serões musicais, o incontornável baile de máscaras e o serão, curiosamente o mais apreciado, assim como, aquando da travessia do equador, o baptismo do equador. No entanto, é quando está só, em casa, liberto de tudo aquilo que se entende por representação, que se sente melhor.

 

Naquele dia, o comandante deliciava-se justamente com um desses serões. O jantar era já coisa do passado e, com a correcção e a simpatia do costume, o comandante escutara, ao longo da refeição, a conversa das pessoas que, nessa noite, haviam sido convidadas para a sua mesa. Falara-se de tudo um pouco, de uma criada que engravidara e da evolução das acções na bolsa. Desculpou-se, depois, por já não poder assistir à actuação do cantor Jimmy Hay. Aproximavam-se águas difíceis, explicou. Bancos de areia, escolhos, correntes, tudo normal no mar de Bali, sobretudo nas imediações de Bornéu, local por onde, desde há muito, se atravessava o mar de Java, rumo a Singapura. Eram, no entanto, aspectos de que apenas se apercebiam os navegadores experientes, que traziam em mente as cartas de navegação e as inúmeras milhas já percorridas.

 

Hellersen instalara-se confortavelmente no seu sofá de couro, num dos cantos da grande sala de estar, e fumava um charuto, enquanto lia uma revista alemã que fora trazida para bordo aquando da passagem por Bali. Na aparelhagem, uma cassete com uma sinfonia de Mozart; um serão agradável e calmo.

 

Não foi, por isso, com agrado que o comandante Hellersen ouviu tocar à porta. Como não respondera imediatamente, o toque voltou a fazer-se ouvir, desta vez com maior intensidade. Era a prova de que se não tratava do seu camareiro, mas antes de alguém do corpo de oficiais. Não se podia tratar de um passageiro, uma vez que nenhum destes sabia onde ficava a cabina do comandante. Estava localizada por detrás da ponte de comando e tinha, do lado do vão de escada, uma porta secreta.

 

- Sim? - respondeu Hellersen, com alguma má vontade. - Quem é?

 

Baixou o volume da sinfonia de Mozart, pousou o charuto no cinzeiro e levantou-se. Teve o pressentimento de que podia esquecer a perspectiva de um serão agradável.

 

com expressões de seriedade estampadas nos rostos ”«eu bem digo”, pensou Hellersen), Losse e o imediato Jens Hartmann entraram na cabina do comandante, tiraram os bonés e permaneceram imóveis. Espantado, Hellersen olhou para um e depois para o outro.

 

- O imediato e o director de cruzeiro juntos - afirmou com algum sarcasmo. - Eis algo que não é comum. O que é que se passa, meus senhores? Um motim a bordo? Devo dizer-lhes desde já que, comigo, as coisas não se passarão como a bordo da Bounty.

 

Não notou, porém, nos rostos daqueles homens qualquer alteração de disposição. Permaneceram impávidos. Hellersen sentiu claramente que o problema que aí vinha era muito sério.

 

- Vamos naufragar? - perguntou, mantendo a serenidade. - Não sinto, ainda, qualquer inclinação.

 

Jens Hartmann, o imediato e, como tal, substituto do comandante, prendeu o boné de oficial debaixo do braço esquerdo.

 

- Consideramos ser nossa obrigação, senhor comandante, informá-lo relativamente a algumas anomalias que se têm registado a bordo.

 

- E é verdade que não são poucas, Hartmann. Diga lá, homem! O que é que se passa?

 

Losse pigarreou; afigurava-se-lhe particularmente difícil dar início ao seu relatório. Fê-lo com precaução.

 

- Têm-se registado queixas tanto por parte dos passageiros, como do armazém e da pastelaria...

 

Hellersen olhou perplexo para o seu tesoureiro.

 

- Não lhe deveria ser difícil resolver o problema. De entre seiscentos passageiros, há sempre vinte que se queixam. Nada a que não estejamos acostumados. Quanto ao armazém e à pastelaria... são da sua responsabilidade!

 

O primeiro-oficial acudiu, visivelmente incomodado, em defesa do tesoureiro:

 

- É possível que se trate, apesar de tudo, de um problema susceptível de lhe ser apresentado, senhor comandante.

 

- Meu Deus, que secretismo! - Hellersen tirou o charuto do cinzeiro, inspirou profundamente o fumo e expeliu-o em direcção ao tecto. O facto de o seu imediato se lhe dirigir com um problema que nada tinha que ver com a navegação era inédito. Algo de muito terrível, e que ele desconhecia, devia ter acontecido a bordo.

 

- Secretismo, sim. É caso para dizê-lo, senhor comandante. - Herbert Losse não estava nada à vontade. Pigarreou várias vezes, antes de iniciar a narrativa. - A uma passageira, desapareceu, no convés, o xaile, tendo este sido, posteriormente, encontrado atado a um turco. A uma outra passageira foi, por duas vezes, usurpada a cadeira de recosto, tendo esta sido, mais tarde, encontrada, dobrada e encostada a um canto do convés. A um terceiro passageiro, e logo ao senhor Hallinsky, esvaziaram a caneca de cerveja...

 

”Só me faltava essa!”, pensou Hellersen.

 

-... no armazém, desapareceu um cacho inteiro de bananas e, finalmente, da pastelaria, foram roubados seis bolinhos de frutos.

 

- Convirá que não é normal, senhor comandante! acrescentou Hartmann, em voz alta. - Uma tal acumulação de episódios invulgares.

 

Losse respirou fundo.

 

- E tudo isto no espaço de dois dias, desde que zarpámos de Bali.

 

Durante alguns segundos, fez-se silêncio na cabina do comandante. Hellersen voltou a pousar o charuto no cinzeiro, olhou, perplexo, para o seu imediato e para o tesoureiro, e passou a mão pela cara. ”Que se não confirmem as minhas suspeitas, é tudo o que peço!”, pensou.

 

- Desaparecem bananas, bolinhos de fruta, alguém anda a beber as cervejas dos clientes e um xaile é misteriosamente roubado... O que é que lhe parece, Hartmann? Em que está a pensar... no mesmo que eu?

 

- Temos um passageiro clandestino a bordo.

 

- Também me parece que sim! Um passageiro furtivo que não pagou e se esconde algures a bordo! - Hellersen iniciou um vaivém no interior da cabina, o que não era, de todo, bom sinal. Conhecendo-o como o conheciam, há anos, Losse e Hartmann, era de prever uma explosão. E foi, efectivamente, o que aconteceu. Manifestamente nervoso, Hellersen imobilizou-se diante dos dois homens e a sua voz assumiu, rapidamente, um tom de comando.

 

- Um belo sarilho, meus senhores! O homem tem fome e sede e não hesita em servir-se. Vamos, portanto, ao que mais importa: os passageiros não se podem aperceber de nada. Nem uma palavra! À tripulação pede-se que se mantenha permanentemente alerta, ainda que discretamente, sobretudo nas áreas reservadas ao pessoal e ao abastecimento. Todos aqueles que, neste navio, estejam, de alguma forma, ligados à alimentação deverão prestar redobrada atenção. Os membros da tripulação que, actualmente, se encontrem de folga iniciarão imediatamente uma busca, mas com toda a discrição, meus senhores! Se existe um passageiro clandestino a bordo, fá-lo-emos passar fome. Em última análise, é possível ficar-se sem comer até Singapura, mas o nosso passageiro clandestino terá necessariamente de beber. De momento, nada mais há a fazer. O mais importante é que sejamos tão discretos quanto possível e que mantenhamos os olhos bem abertos. Têm alguma proposta a fazer, meus senhores?

 

- Não, senhor comandante. - Losse engoliu em seco, nervoso. - Mas como terá ele conseguido embarcar em Bali?

 

- Isso é algo que ele próprio nos irá certamente contar dentro de muito pouco tempo. - Hellersen bateu com os punhos um no outro, gesto que nem Hartmann nem Losse o haviam alguma vez visto fazer. - Um passageiro clandestino... e logo a nós tinha isto de acontecer... Iniciem imediatamente a busca.

 

Uma vez dispensados, e ainda no corredor que conduzia ao camarote do comandante, Losse imobilizou-se repentinamente, segurando Hartmann pela manga do casaco do seu uniforme.

 

- Há aqui algo que não bate certo - disse, pensativo.

 

- O quê? - perguntou Losse.

 

- Que tenham desaparecido alguns artigos alimentares... ainda vá que não vá! Mas para que quererá um passageiro clandestino um xaile de seda de senhora e porque terá dobrado e arrumado, por duas ocasiões, a cadeira de recosto da baronesa? Que estupidez! Quem pretende permanecer escondido não toma este tipo de atitude. Em condições normais, um passageiro clandestino faria tudo para se manter invisível. Herbert, alguma coisa não bate nada certo nesta história. Nada disto faz sentido.

 

- Pode tratar-se de um passageiro clandestino louco.

 

- Nesse caso, não tardaremos a apanhá-lo.

 

- Esperemos - disse Losse com pouca convicção. A nossa esperança é, efectivamente, que a sede o leve a cometer um erro.

 

Rapidamente se percebeu que todo aquele cepticismo se justificava plenamente. O passageiro clandestino não foi, efectivamente, encontrado, embora a sua presença se fizesse sentir um pouco por todo o lado.

 

No dia seguinte, o céu estava azul, não se avistavam quaisquer nuvens, o mar estava sereno, o sol abrasador e o vento calmo.

 

Os passageiros, uns deitados, outros sentados nos bares, saboreavam bebidas frescas. Na varanda envidraçada, haviam-se constituído grupos de trabalho que, sob a orientação de algumas hospedeiras, se dedicavam a actividades artesanais, fazendo pinturas, gravações em vidro e bonecos de pano. Formara-se, ainda, um clube de brídege, que jogava, silencioso, em torno de mesas colocadas para o efeito. Às quatro horas da tarde, fizeram-se ouvir estalidos a bordo: eram os atiradores ao alvo que competiam agora entre si por uma garrafa de champanhe. Mais adiante, tinha, entretanto, lugar um concurso de mergulho, no qual se pretendia dos concorrentes que recuperassem colheres de metal do fundo da piscina. As mesas de pingue-pongue estavam todas ocupadas, os senhores amontoavam-se em torno do bar onde se serviam as cervejas e falavam de política, dos sindicatos e dos salários.

 

O tempo continuava belíssimo.

 

Eduard Hallinsky voltara a ocupar a sua cadeira. A seu lado, em cima de uma mesinha, estava pousada uma cerveja. Para evitar qualquer tipo de surpresa, concebera um esquema muito especial. Em torno da pega da caneca, fizera passar um cordel, o qual, na outra extremidade, prendera ao pulso com um nó. Eliminara, assim, qualquer possibilidade de alguém, que não ele próprio, beber a sua cerveja enquanto, ao sol, passava pelas brasas.

 

Na piscina, o concurso de mergulho terminara, e o vencedor, um homem de pequena estatura e cabelos brancos a quem, na vida privada, tratavam por ”senhor cônsul”, recebia, agora, a sua garrafa de espumante. Ninguém o acreditara capaz de recuperar uma colher que fosse. A hospedeira principal, Beatrice, que organizara o concurso, dirigiu-se para a porta do convés. Pelo caminho, passou por Hallinsky, onde se imobilizou, não podendo impedir-se de esboçar um sorriso.

 

- Mas que bonita pulseira, senhor Hallinsky. É a mais recente criação de Carder?

 

Hallinsky retribuiu o sorriso. A presença de Beatrice provocava sempre, nos homens, uma sensação de bem-estar.

 

- A mim, ninguém volta a roubar-me uma cerveja!

 

- Ah! Então foi ao senhor? - Beatrice baixou-se para puxar pelo cordel, permitindo, dessa forma, que Hallinsky tivesse uma perspectiva do seu decote. Um segundo apenas. O suficiente, no entanto, para que Hallinsky se apercebesse de que Beatrice não trazia soutien.

 

- Não permitirei que volte a acontecer.

 

O lábio inferior de Hallinsky descaiu, enquanto pensava nas suas quatro secretárias. Levou a cerveja aos lábios, bebeu um gole e apoiou a caneca na barriga.

 

- O que é que se passa, Beatrice? - perguntou. - Pelo que me tenho apercebido, têm vindo a acontecer inúmeras coisas estranhas a bordo...

 

- Não faço a mínima ideia - disse Beatrice, com um olhar inocente. - A que coisas se refere?

 

- Circula o boato de que um passageiro clandestino se comporta, a bordo, como se de um fantasma se tratasse. A curiosidade entre as senhoras deu já origem a uma certa agitação. - Hallinsky observou a sua caneca. - De resto, também a mim, esse senhor já esvaziou uma cerveja.

 

”A verdade já veio, portanto, ao de cima”, pensou Beatrice. ”Não é possível, a bordo de um navio, esconder-se o que quer que seja.” O comandante revelara-se, de resto, demasiado optimista, ao pretender manter toda aquela situação em segredo. Há sempre alguém que acaba por se descair, e basta uma pessoa para que a notícia alastre como uma praga.

 

- Permita-me que o sossegue - disse Beatrice, num tom de voz que inspirava confiança. - Relativamente à suspeita da existência de um passageiro clandestino a bordo, posso garantir-lhe que é totalmente infundada. Quanto à teoria segundo a qual se têm vindo a verificar, a bordo, episódios sobrenaturais, é provável que tenha razão.

 

Hallinsky, que ia acariciando a caneca de cerveja, poisou-a sobre a mesinha e levantou-se.

 

- Como disse, Beatrice? - perguntou ele. Beatrice conduzia, agora, uma situação delicada. Em

tom jocoso, dissera a Hallinsky, piscando-lhe o olho, algo que iria alterar totalmente o dia-a-dia a bordo daquele navio. É certo que não passara de uma brincadeira, mas, em situações como aquela, uma brincadeira equivalia como que ao desvendar de um terrível segredo.

 

- Não é sem lhe pedir que guarde sigilo que lho confidencio - disse-lhe, em voz baixa. - A administração do navio concluiu tratar-se, neste caso, da actuação do Klabautermann.

 

- Do quê? - Hallisnky olhou, perplexo, para Beatrice.

- Do Klabautermann?

 

- O próprio. Conhece, certamente, a velha lenda marítima do Klabautermann. Trata-se de um duende cuja ocupação é pregar partidas a bordo dos navios.

 

- Um duende! - O rosto de Hallinsky encheu-se de brilho. - Mas isso é fantástico! - Com um gesto de mão, varreu todo o convés. - Eis algo que vai dar que falar às nossas senhoras.

 

- Um Klabautermann nunca prejudica os passageiros... apenas a tripulação. Trata-se de um velho litígio entre ambos.

 

- A mim, roubou-me uma cerveja. Duas cervejas, aliás. Se o apanho, Beatrice...

 

- Um Klabautermann é invisível... trata-se de um fantasma, em última análise; consoante o seu estado de espírito, pode ser bom ou mau. - ”Basta”, pensou Beatrice, ”não vá a piada degenerar.” Levou o dedo aos lábios e piscou, mais uma vez, o olho a Hallinsky. - Por favor... não conte a ninguém...

 

Hallinsky observou-a desaparecer por detrás da porta de ferro, examinando atentamente as suas pernas delgadas, a forma como, andando, fazia balouçar as ancas, o vaivém do seu cabelo, e suspirou profundamente. Levantou-se, vestiu o roupão e, voltando a atar o cordel em torno do punho, pegou na caneca de cerveja e dirigiu-se para a outra extremidade do convés onde, no local do costume, a baronesa von Sahlfelden se deitara, lendo um livro, desta vez da autoria de Simmel.

 

Pelo caminho, passou pelos Ahlers, imobilizando-se diante do casal no momento em que Peter Ahlers o interpelou, particularmente bem-disposto:

 

- Vejo que descobriu uma solução! Dar um nó em tudo é certamente o que de mais acertado há a fazer! A minha esposa também já não perde nada de vista. - Ahlers soltou nova gargalhada. - O cordel fica-lhe bem.

 

Hallinsky considerou aquela observação totalmente inconveniente. Não via, por princípio, nenhum mal numa piada, mas o acto de fazer troça de outras pessoas, sobretudo quando ele próprio era o visado, afigurava-se-lhe simplesmente repugnante. Foi, por isso, com uma expressão grave estampada no rosto, que lhe respondeu:

 

- Conhece o Klabautermann?

 

- Não pessoalmente. - Hallinsky sentiu a felicidade de Ahlers como uma clara provocação. - Mas deve ser um fulano bem-disposto. Dizem que um navio em que haja um Klabautermann não pode naufragar. Hoje em dia, os Klabautermánner são substituídos por comportas estanques... Já não existe poesia.

 

- Acabei de falar com a Beatrice. - Hallinsky olhou para Lotte Ahlers que, trazendo vestido um biquini e usando uns óculos enormes, usufruía do sol tropical. Esta escutava-o atentamente. - Confidenciou-me que a administração do navio está convencida da existência de um Klabautermann a bordo.

 

Foi como se uma bomba houvesse explodido. Lotte Ahlers levantou-se, emitindo um som indefinido, algo muito próximo de um ”ah!”. Ahlers lançou um olhar repreensivo a Hallinsky e pousou a mão na coxa de Lotte, procurando tranquilizá-la.

 

- Querida - disse-lhe -, sabes bem que o Klabautermann não passa de um mito... de um conto... enfim, algo do género...

 

- Isso é fácil de se dizer. - Hallinsky fingiu não reparar nos sinais de olhos que, dissimuladamente, Ahlers lhe fazia. ”É para não fazeres troça de mim e da minha cerveja”, pensou. No entanto, Hallinsky deixou-se levar pelo seu próprio raciocínio, pelo que, pouco depois, também ele acreditava já no que dizia.

 

- Pense bem: parece-lhe plausível que o vento consiga dar um nó num xaile? Que o vento me tenha bebido duas cervejas? Quem levou, afinal, por duas vezes, a cadeira da baronesa? E mais, algo de que ninguém aqui tem ainda conhecimento: ontem à noite, um senhor que, vindo do bar, regressava ao seu camarote, levou um pontapé no traseiro. E que pontapé! Estava, no entanto, sozinho; não havia ninguém atrás dele quando, ultrapassado o choque inicial, se virou para enfrentar o seu agressor. O médico de bordo confirmou hoje ter o senhor uma nódoa negra no traseiro. Hallinsky respirou fundo; o efeito do seu discurso sobre Lotte fora evidente. Esta tinha tirado os óculos e observava-o perplexa. - Convenhamos que não é norma) - acrescentou ainda Hallinsky em tom de remate. - Disso ninguém me convence...

 

- Não existe nenhum Klabautermann! - Peter Ahlers reparou que Lotte começara a tremer ligeiramente, e amaldiçoou-se por ter tido a leviandade de interpelar Hallinsky. Importava, no entanto, agora, restabelecer o equilíbrio psicológico de Lotte. - Essa personagem teve origem em crenças populares seculares, num tempo em que se navegava os mares em veleiros construídos em madeira. Esse tal duende acompanhava os navios nas viagens de longo curso e advertia a tripulação, batendo no casco de madeira do navio, para a necessidade de o vedar, betumando-o. Tinha ainda a particularidade de anunciar o naufrágio dos navios. Acariciou a coxa de Lotte, procurando tranquilizá-la, e levantou ligeiramente a voz: - Os cascos dos navios já não são de madeira e, na realidade, este tipo de navio não pode sequer naufragar. Não tenhas, por isso, medo, querida! Não passa tudo de um conto, como o de Hãnsel e Gretei...

 

Peter Ahlers não conhecia Hallinsky. Um Hallinsky nunca desistia: era esse o seu principal trunfo enquanto consultor de investimentos. Quanto mais objecções se lhe levantava, tanto mais o seu poder de argumentação se aguçava.

 

- Isso diz o senhor! - gritou, fazendo estremecer Lotte. - Mas quando se pensa em tudo o que tem acontecido a bordo... no que já lhe aconteceu, a si...

 

- Basta! - Ahlers levantou-se, assumindo uma postura ameaçadora. - Peço-lhe que não perturbe a minha esposa com essa conversa sem fundamento. Um Klabautermann! Isso não passa de uma brincadeira da Beatrice. Se acredita nisso, o problema é seu.

 

- Como queira. - Hallinsky curvou-se diante de Lotte que, silenciosa, o observava de olhos bem abertos. - Veremos... veremos...

 

- Que homem desagradável! - observou Peter Ahlers, enquanto Hallinsky se afastava. - Esquece, querida, tudo o que ele disse. Que disparate!

 

- Mas... e o nó no xaile, Peter. Lá em cima, junto dos salva-vidas... - Respirou fundo, não escondendo que a existência de um Klabautermann era, a seus olhos, uma possibilidade muito real. - Também tu não tens qualquer explicação para o sucedido.

 

- Era capaz de dar um safanão àquele fulano! - resmungou Ahlers. - Um momento, querida.

 

Levantou-se e dirigiu-se ao imediato que acabara de dar entrada no convés e se preparava para, no bar, encomendar uma cerveja. Não era costume fazê-lo, mas, naquele momento, o comandante estava longe, algures na ponte de comando, e não o podia ver.

 

- Tenho uma pergunta a fazer-lhe - disse Ahlers, que se fora colocar ao lado de Hartmann, fazendo simultaneamente sinal ao empregado do bar para que lhe servisse, também a ele, uma cerveja. - Existe algum Klabautermann?

 

Hartmann ficou ligeiramente perplexo. Sorriu; depois, ergueu a sua caneca.

 

- Claro que não. Porquê?

 

- Diz-se que a administração do navio estará convencida da existência de um Klabautermann a bordo.

 

- Quem, exactamente, é que o diz?

 

- O boato circula entre os passageiros...

 

- Sabe o que é um rebuliço?

 

- bom, o termo é-me familiar. - Ahlers permaneceu sério e o rosto sorridente do oficial irritava-o agora particularmente. - De resto, a Beatrice confirmou-o.

 

- A Beatrice? A nossa chefe das hospedeiras?

 

- Exactamente! Quem mais poderia ter-nos informado relativamente a um assunto que a própria administração do navio teima em manter em segredo dos passageiros?

 

- Mas isso é um disparate! E o senhor e todos os restantes acreditam mesmo nisso? - Hartmann soltou uma gargalhada. - Se me permite que lhe pergunte: ainda acredita no coelhinho da Páscoa?

 

- Obrigado. - Ahlers voltou a pousar a sua cerveja, ainda por beber, em cima do balcão. - Acredito ser seu dever, enquanto oficial, não permitir que qualquer tipo de inquietação se instale a bordo. A minha esposa anda amedrontada e peço-lhe que tenha isso em consideração. Obviamente que, para mim, esse Klabautermann não existe. No entanto, explique-me, se puder, como é que um xaile vai ao encontro de um turco e, aí, se ata com um nó!

 

Sem dar tempo a Hartmann para que este lhe respondesse, Ahlers regressou à sua cadeira, beijou Lotte na testa e disse, num tom ligeiramente paternalista:

 

- Minha querida, o imediato confirma tudo o que já te disse: trata-se de um disparate absolutamente risível...

 

Pôde, no entanto, ver nos olhos dela que não acreditara. Alguém devia mesmo dar uma sapatada valente àquele Hallinsky!

 

Perante o aparecimento de um objecto de grandes dimensões e o simultâneo e repentino escurecer da luz, mesmo o mais fatigado dos leitores ergue os olhos. Foi assim que, surpreendida, à baronesa se lhe deparou um homem gordo diante da sua cadeira de recosto, tão perto que lhe pareceu cheirar-lhe a cerveja. Só à segunda tentativa foi capaz de perceber que a pessoa em questão trazia uma caneca de cerveja na mão, cuja asa estava presa ao pulso por meio de um cordel.

 

Antes mesmo que conseguisse perguntar o que o senhor desejava, Hallinsky antecipou-se:

 

- Senhora baronesa, deveríamos partilhar tanto as nossas alegrias como as nossas desgraças.

 

- Jovem, eu podia ser sua mãe - respondeu a baronesa.

 

As vítimas de insolação devem ser tratadas como se de loucos se tratassem. Mas o próprio Hallinsky ficou de tal forma surpreendido com aquela reacção que acabou por responder.

 

- Perdoe-me, mas eu tenho cinquenta anos.

 

- E eu, setenta e dois. com vinte e dois anos poderia, perfeitamente, ter sido sua mãe.

 

- Bem, mas não é disso que aqui se trata, senhora baronesa. - Hallinsky observava-a, perplexo. ”Devo ser o primeiro a reparar. A senhora está senil. Quem é que a quer como mãe? Tem de se lhe explicar tudo com muito cuidado, sob pena de não perceber nada.” - Devíamo-nos ocupar conjuntamente do nosso pequeno e simpático duende.

 

A baronesa sobressaltou-se, ergueu-se, mantendo a distância, e lançou um olhar mortífero a Hallinsky.

 

- Não lhe admito esse tipo de obscenidade! - respondeu, friamente. - Faça o favor de se afastar, caro senhor.

 

- Hallinsky. Eduard Hallinsky.

 

- O seu nome não me interessa. Se não se for embora, imediatamente ver-me-ei obrigada a chamar o Jean.

 

- Deve ter havido, entre nós, um lamentável mal-entendido - disse Hallinsky, imperturbável. O seu tremendo talento para convencer os outros veio novamente ao de cima. - A si, roubaram-lhe duas vezes a cadeira e, a mim, beberam-me, por duas ocasiões, a cerveja. Pode dizer-se que fomos, de certa forma, unidos por um acontecimento desagradável comum.

 

- Eis uma forma bastante interessante de colocar a questão - respondeu-lhe, friamente, a baronesa.

 

- Até há bem pouco tempo, nem a senhora nem eu fazíamos a mínima ideia de como tal seria possível,

 

- O que quer dizer com ”até há bem pouco tempo”? Sabe agora mais do que anteriormente?

 

- Exactamente, senhora baronesa. Tem vindo a fazer-se luz sobre todo este enigma.

 

- E de onde vem toda essa luz?

 

- Vai rir-se de mim, mas deram-me, agora mesmo, uma pista. Temos um Klabautermann a bordo.

 

É possível que a baronesa nunca tivesse ouvido falar de um Klabautermann; mas mais provável é que não visse em Hallinsky senão um bêbedo. Não manifestou nenhuma surpresa ou agitação. Limitou-se a pestanejar, mas, disso, Hallinsky não se apercebeu.

 

- Que agradável! - exclamou, após uma longa hesitação.

 

- Considera agradável o que lhe acabei de dizer?

 

- E não são engraçados os Klabautermánner que bebem cerveja?

 

- Se a cerveja for minha, não, senhora baronesa. E quanto à sua cadeira de recosto?

 

- Agora que sei que não foi senão obra de um pequeno duende, perdoo-lhe. - ”Os bêbedos devem ser tratados com precaução”, pensou, ao mesmo tempo que ensaiava um sorriso doce. ”Nunca se sabe como poderão reagir. Existem três tipos de homens: os que se enchem de boa disposição e se põem a cantar, os que se transformam em criaturas grosseiras e os que simplesmente se estupidificam. Este Hallinsky deve pertencer à segunda categoria. Cuidado, portanto.”

- Quem descobriu o Klabautermann?

 

- A administração do barco.

 

- Ah!

 

A baronesa foi assaltada pela dúvida. Se Hallinsky tivesse dito: ”Eu!”, não haveria qualquer tipo de dúvida. Mas, em vez disso, o que ele disse foi: ”A administração do navio.” E, dessa forma, do ridículo passaram para o domínio dos factos. Um homem como o comandante Hellersen estava acima de qualquer suspeita.

 

- Falou com o comandante? - perguntou a baronesa, visivelmente mais simpática.

 

- com a Beatrice. Mas é importante que nada disto seja divulgado.

 

- E o senhor conta-o a toda a gente...

 

- Só a si, enquanto co-vítima. Conto absolutamente com a sua discrição.

 

- Pode contar comigo.

 

- Obrigado, senhora baronesa.

 

Hallinsky olhou à sua volta. Não havia, nas imediações, nenhuma cadeira vazia. Parecia-lhe mal sentar-se diante da baronesa, no chão. O rebordo da sua cadeira também não era, certamente, o lugar ideal. No entanto, por debaixo do alpendre do convés, ainda havia, em torno de umas mesas, algumas cadeiras desocupadas. Aí encontravam-se sentados os passageiros que não eram adeptos dessa actividade que é o ”torrar ao sol” ou que se haviam já fartado de andar de um lado para o outro, transportando consigo cafés, bolos e bebidas, sempre em equilíbrio precário.

 

- Permite-me que a convide para um café e um bolinho?

 

- Excepcionalmente.

 

- A baronesa levantou-se, cobriu os ombros com uma manta comprida com papoilas estampadas e seguiu Hallinsky até uma das mesas. No momento em que se sentava, apercebeu-se de como este lhe era, agora, já menos antipático. Não se encontrava bêbedo, estava agora disso convencida. Achou mesmo que aquele cordel em torno da asa da caneca e do pulso de Hallinsky era sinal de alguma infantilidade.

 

- Fale-me um pouco mais desse Klabautermann, senhor Hallinsky.

 

- Mais? Não há mais nada a dizer. Apenas que está a bordo. Nada mais podemos fazer, a não ser aguardar pelos próximos acontecimentos.

 

- Acabará por ser apanhado, espero?

 

- Dificilmente. É que é invisível... um fantasma...

 

- Mas os fantasmas não movimentam cadeiras, nem bebem cerveja.

 

- Estamos no domínio da parapsicologia, na quarta dimensão. Lembre-se dos fantasmas que assombram os castelos, principalmente em Inglaterra. Aí, caem regularmente quadros, abrem-se portas, ecoam sons de correntes, aparecem cortinas rasgadas e, por detrás das paredes, ouvem-se gemidos.

 

- Nunca ouvi falar de um fantasma de castelo que bebesse cerveja.

 

- A isso, precisamente, se deve a minha perplexidade.

- Hallinsky esperou que Jean servisse o café e os bolos, e retomou depois a conversa. - Deve ser-lhe possível materializar-se. Tem alguma ideia, se existe algum estudo sobre Klabautermànner?

 

- Não faço a mínima ideia. - A baronesa bebeu um pouco de café, comeu um minúsculo pedaço de bolo e lançou um olhar penetrante a Hallinsky. - Diga-me: acredita mesmo neste disparate?

 

- Até há meia hora atrás, não.

 

- E agora?

 

- A dúvida instala-se, baronesa. O que me dirá se a sua cadeira estiver, mais uma vez, dobrada e encostada a um canto?

 

- Nesse caso, abandonaria o navio na próxima escala!

 

- Em Singapura, portanto. Até lá, ainda faltam alguns dias. Durante esse tempo, muita coisa pode acontecer.

 

- Meu Deus! Ainda vai acabar por me convencer da existência desse Klabautermann. - A baronesa bebeu mais um pouco de café. - Estou mais inclinada para a hipótese de um desconhecido nos andar a pregar partidas de mau gosto. Verá que a partir de agora, tudo acabará. Nada mais acontecerá.

 

Mas a baronesa estava enganada.

 

Naquela mesma noite, o Klabautermann voltaria a provocar distúrbios.

 

Friedhelm von Sollner era uma pessoa respeitável. Não por ser um nobre (muitos outros o são), mas sobretudo porque era membro de sete conselhos fiscais, cônsul honorário de um estado africano e porque montara um negócio de exportação que vendia em todo o mundo aquilo que, na Alemanha, não interessava a ninguém: locomotivas fora de circulação, camiões, veículos especiais, tais como escavadoras, e ainda prensas, distribuidoras automáticas, gruas e máquinas industriais. Tudo! Na opinião dos entendidos, até armas. Mas ninguém fora ainda capaz de o provar e quem o sabia de fonte segura optava, naturalmente, por se manter calado. Fazia a maioria dos seus negócios por telefone, muitas vezes sem nunca ter visto a mercadoria. Se a companhia dos caminhos-de-ferro pretendesse desfazer-se de dez locomotivas eléctricas, Sollner comprava-as, telefonava para a África do Sul e, dez minutos depois, estavam vendidas. Não se pronunciava nunca sobre o lucro que fazia nesses dez minutos. Essa era uma realidade que apenas o seu contabilista conhecia. Não será, por isso, de estranhar que o presidente do conselho fiscal fosse frequentemente seu convidado, tanto mais que este desempenhava igualmente as funções de tesoureiro de um partido importante.

 

Duas vezes por ano, Sollner empreendia um cruzeiro. Fazia parte dos repetentes, dos clientes habituais, de cuja afeição os tripulantes de um navio de luxo dependem em grande medida, uma vez que nada é mais importante para um cruzeiro do que a publicidade feita por quem já o frequentou e o constante retorno de clientes antigos e conhecidos. Existem cruzeiros, através do Sul do Pacífico ou com o Alasca como destino, nos quais pelo menos um terço dos passageiros é reincidente. Ao fim de algum tempo, as pessoas já se reconhecem,

 

A bordo dos navios, von Sollner conseguia finalmente repousar, abandonando a sua condição de cônsul e limitando-se a viver como um ser humano entre outros (se é que, a bordo de um navio repleto de passageiros de luxo, tal coisa era possível). Mantinha-se, de resto, em permanente contacto com a sua central em Essen, era diariamente informado relativamente à evolução da bolsa, comprava e vendia, distribuía orientações e ganhava, desta forma, também a bordo, somas inestimáveis. Por telex, mantinha o seu escritório a funcionar. Mas isso só era possível durante um período de dez minutos, todos os dias. O resto do tempo, passava-o no convívio com pessoas que, como ele, se haviam afastado do dia-a-dia por um período de duas semanas e gozava o facto de, pelo menos ali, ninguém o reconhecer.

 

Do contacto estabelecido com a sua central, agora tão distante, resultara um importante negócio. Uma pequena companhia de cargueiros, supostamente sedeada na zona costeira, tinha colocado à venda três dos seus navios menos rentáveis, e von Sollner interviera imediatamente enquanto mediador do negócio que tivera lugar com um qualquer estado africano. Lucro. Não falemos nisso.

 

Quem retira prazer deste tipo de desenlace, merece festejar o êxito com uma bebida. Friedhelm von Sollner não tinha por hábito beber. Em casa, durante as suas negociações, não tocava numa gota. ”O álcool”, afirmara ele, uma vez, ”torna as pessoas eufóricas ou idiotas; ambas são prejudiciais para o negócio.” Mas, a bordo daquele navio e a caminho de Singapura, já não enquanto cônsul mas como simples mortal que se passeava de fato de banho e não de fato completo, sentia-se livre de festejar tranquilamente aquele grande negócio.

 

Não será, por isso, de estranhar que, depois de dois copos de mai tai, duas vodcas e de meia garrafa de champanhe, Sollner sentisse uma tremenda necessidade de apanhar ar e respirar fundo. Ainda via tudo nítido, reconhecia as pessoas no bar, compreendia as suas conversas e, embora com alguma dificuldade, participava nelas. Mas estava consciente de que atingira o seu limite e de que respirar um pouco de ar fresco era o melhor que tinha a fazer.

 

A caminho do seu camarote (virado, naturalmente, para o convés onde, de dia, os passageiros se deliciavam ao sol; de todos, aqueles eram os mais caros), mandou parar o elevador ao nível da ponte de passeio, empurrou a porta de vidro e cambaleou até ao exterior. Aí, agarrou-se ao talabardão, inalou profundamente o ar fresco da noite, olhou à sua volta, verificou que estava só e afastou os braços, como que tentando abraçar o céu estrelado. Nessa posição, inalou todo o ar que pôde, sentiu-se visivelmente melhor e resistiu corajosamente à tentação de regressar ao bar e de aí prosseguir calmamente a sua comemoração.

 

As atitudes de uma pessoa alcoolizada revelam-se frequentemente enigmáticas e difíceis de explicar com o recurso à lógica. Também von Sollner acabou por agir contrariamente à vontade que manifestara em regressar ao seu camarote: subiu as escadas, situadas numa das extremidades da ponte de passeio e que conduziam à ponte panorâmica onde, numa plataforma ligeiramente elevada, estava assinalado o local de aterragem para um helicóptero. Nesse sítio, o vento fazia-se sentir com maior intensidade; ali, era fácil aperceber-se de que o navio cruzava o oceano a uma velocidade de cerca de dezanove nós. Os seus cabelos esvoaçavam ao vento e estava bastante mais frio do que nessa área resguardada que é a da ponte de passeio. Von Sollner voltou a abrir os braços e a respirar fundo. Tudo se tornou ainda mais claro. Interrogou-se relativamente à razão que o levara a subir até à ponte panorâmica, numa altura em que o vento se fazia sentir com aquela intensidade. Não devia ter bebido aquela meia garrafa de champanhe, devia ter-se ficado pelo mai tai, era o que era. Agora, mais lúcido, a imagem do colchão de penas que o esperava no seu camarote impelia-o novamente a descer.

 

Afastou-se da amurada e, ao fazê-lo, olhou fortuitamente para o farol de posição. Aí, os enormes radares giravam, silenciosos, iluminados por uns quantos projectores de elevada potência. Era uma visão imponente, a daqueles monstros, a partir da ponte.

 

Todavia, Friedhelm von Sollner acreditou ver algo de bem diferente. Subitamente petrificado, os olhos vidraram-se-lhe e um arrepio atravessou-lhe todo o corpo. Correu, depois, em direcção das escadas, como se estivesse a ser perseguido por um qualquer animal selvagem.

 

Deslizou pelos degraus abaixo, indo aterrar no patamar da escada, por detrás do lais, saltou a corrente que lhe impedia a passagem e entrou de rompante na câmara de navegação.

 

O oficial de vigia Hartmut Lúders e o timoneiro, os únicos, àquela hora, de serviço na ponte, olharam, estupefactos, para o intruso. O passageiro comportava-se como um louco e Sollner teve, efectivamente, de recuperar por duas vezes o fôlego antes que conseguisse dizer:

 

-... Acabei de ver... vi... lá em cima...

 

- bom dia! - disse o vigia, atencioso. Eram duas horas e dezanove minutos. - Permita-me, no entanto, que lhe relembre que os passageiros não estão autorizados a circular na ponte.

 

- Lá em cima... - balbuciou Sollner, erguendo ambos os braços. - Lá em cima... no mastro com o farol de posição... juro-lhe... vi claramente... o Klabautermann!

 

- Não me diga. - Lúders esboçou um sorriso polido. ”Que valente bebedeira”, pensou. - E pode descrever-mo?

 

- Escuro... preto... sim, preto. - Von Sollner engoliu várias vezes em seco. A agitação provocara-lhe como que uma crispação na garganta. - Um corpo de grandes dimensões, uma sombra enorme... movimenta-se em torno do mastro de sinalização... Está... está a dançar! O Klabautermann está a dançar.

 

O responsável pela vigia abanou novamente a cabeça. A seu lado, o timoneiro sorria.

 

- É a especialidade dele - disse Lúders, procurando acalmá-lo. - Quando está bem-disposto, dança em cima do mastro de sinalização. Nós já nem damos importância.

 

- Mas eu vi-o nitidamente! - gritou Sollner. Estava agora lúcido e sentia-se injustamente gozado. - Um corpo enorme. Ou será que está simplesmente convencido de que estou bêbedo ao ponto de já não dizer coisa com coisa? Estou absolutamente lúcido e o meu nome é von Sollner. O comandante dir-lhe-á quem sou. Tenho o direito de, numa situação como esta, ser levado a sério.

 

Para Hartmut Líiders, a situação tornava-se agora mais delicada. Um bêbedo responde sempre que não o está, se se lhe perguntar, e nada o irrita mais do que ser tratado como tal. Quanto ao nome do senhor, Meier ou Sollner, era-lhe absolutamente indiferente.

 

- Logo pela manhã, eu próprio notificarei o comandante, senhor von Sollner - respondeu Líiders, esperando, dessa forma, tranquilizar o seu interlocutor. - Entretanto, volte para o seu camarote e deite-se. E durma bem.

 

- Era o Klabautermann - insistiu von Sollner, teimoso. - Porque não empreende algo desde já?

 

- O Klabautermann é especialidade dos comandantes

- disse Lúders, sem alterar, em nada, a sua expressão. Já o timoneiro teve de desviar o olhar, fixando, para o efeito, o ecrã do radar. - Levaremos as suas observações muito a sério, senhor von Sollner...

 

- Obrigado. - Von Sollner abandonou a ponte, parou junto do lais e olhou, mais uma vez, para o mastro de sinalização. Apenas os galhardetes balouçavam ao vento, os radares giravam sobre si e, acima destes, estendia-se o céu nocturno. Onde estava agora aquele vulto sinistro?

 

Afastou-se do lais, desceu, cambaleante, as escadas, e abandonou rapidamente a ponte de passeio.

 

Quando, num navio, o oficial superior de máquinas percorre, exaltado, os corredores de um navio, é de admitir uma de duas coisas: que se está na iminência de um naufrágio ou que as máquinas explodiram. É que o oficial superior de máquinas é a pessoa mais importante a bordo de um navio; sem ele, nada funciona. Quando as máquinas falham, um navio de luxo não passa de uma simples caixa de metal. Um navio que não navega... não é um navio.

 

O oficial superior de máquinas Tõlle raramente perdia a ”calma. A seu ver, nem mesmo uma ruptura de hélice constituía motivo para pânico. É para isso que existem sempre duas hélices de substituição a bordo. No entanto, com alguma regularidade, Fritz Tõlle abandonava radicalmente o estado de impassibilidade que o caracterizava. Essas ocasiões coincidiam com os bailes a bordo, nos quais os oficiais tinham direito a ”serviço de mesa” e, mais importante do que isso, eram incumbidos de fazer companhia às senhoras que viajavam sós. Tõlle era um exímio bailarino, que dançava tão bem ao som de uma valsa como de um swing, de um rock ou de um foxtrot, e construíra, desta forma, entre as senhoras, uma sólida reputação de galã. De tal forma, que algumas senhoras chegaram mesmo a sussurrar-lhe ao ouvido os números das portas das suas cabinas, os quais Tõlle, na maioria dos casos, uma vez encerrada a pista de dança e as pessoas transferidas, em grupos, para os bares, fizera por esquecer. Na maioria dos casos, repita-se... é que, por vezes, também Tõlle fraquejava, mas sempre com um desprendimento notável, pelo que, no dia seguinte, no convés, cumprimentava as pessoas em questão com a mesma distinção de sempre, dirigindo-se-lhes na terceira pessoa do singular.

 

Em todos aqueles anos, não constara nunca que o oficial superior de máquinas se tivesse, de alguma forma, envolvido num escândalo ou numa qualquer cena de ciúmes. Em torno de Tõlle, reinava sempre uma espécie de tranquilidade.

 

Também por isso se estranhou particularmente que passasse, a correr e claramente perturbado, no sentido da coberta principal, acabando aí por colidir com o comandante, que saía do gabinete do tesoureiro. Trazia a cabeça descoberta e o seu cabelo estava ligeiramente despenteado.

 

Estupefacto, Hellersen permaneceu diante da porta.

 

- Ora, ora, um oficial sem boné. E logo o Tõlle? É, no seu caso, uma situação inédita.

 

Aos olhos do comandante, aquele era um assunto que não estava aberto a discussão: um oficial de serviço tinha de usar constantemente o seu boné. E um oficial que se encontre a bordo está sempre de serviço!

 

- Nervoso, chefe? - disse Hellersen, circunspecto. É assim tão grave que se tenha esquecido do seu boné?

 

Tõlle parou abruptamente e gritou, manifestamente exaltado:

 

- Procurei-o por todo o lado, senhor comandante. E era precisamente consigo que pretendia falar... Roubaram-me o boné.

 

- O que disse, homem? - perguntou Hellersen, incrédulo.

 

- O meu boné branco. Levaram-mo da cabina... - O oficial superior de máquinas respirava com dificuldade, como um peixe fora de água. - Costumava estar pendurado no cabide, por detrás da porta... e agora desapareceu, simplesmente... Regressado das máquinas, a caminho do convés, levei a mão ao cabide e o boné já lá não estava. É absurdo, comandante! Quem é que rouba o boné de um oficial? E para quê?

 

- E pergunta-mo a mim? - Hellersen olhava agora para Tólle com um misto de prazer e de contemplação. - Talvez um coleccionador de lembranças. Ou, então, alguma senhora que, apaixonada por si... deve haver, certamente, a bordo, alguém nessas circunstâncias... se apoderou do seu boné como fetiche. Sei lá... com os estragos que faz entre as senhoras!

 

- Nunca me aconteceu tal coisa. - Tõlle passou ambas as mãos pelos cabelos, como que procurando, dessa forma, reaver o seu boné desaparecido. - Quem, afinal, tem conhecimento da localização da minha cabina?

 

- Há sempre uma primeira vez para tudo. Mas o senhor deverá ter, certamente, na cabina, um segundo boné branco.

 

- Três, senhor comandante. E todos azuis. Mas quem...

 

- Todos nós nos interrogamos, senhor oficial superior de máquinas, relativamente a tudo o que tem acontecido com o navio durante esta travessia. - Hellersen abanou a cabeça. - Desconfiamos que haja um passageiro clandestino a bordo.

 

- Isso sei eu. Mas para que quer um passageiro clandestino o meu boné de oficial?

 

- Esse dado não vem senão reforçar a suspeita de que se tratará, provavelmente, de um louco. Dispomos de vários indícios que apontam nesse sentido. O roubo do seu boné encaixa-se perfeitamente nesse quadro. Mas havemos de apanhar o safado antes da nossa chegada a Singapura. Não permitirei que nenhum canto do navio fique por revistar. E agora, oficial superior de máquinas, vá beber um uísque e veja lá se não espalha a notícia do seu infeliz destino por esse navio fora.

 

Abandonando Tõlle, que experimentava ainda alguma dificuldade em respirar, Hellersen virou-se e entrou novamente no gabinete do tesoureiro.

 

Herbert Losse estava, nesse momento, ocupado a introduzir os dados da contabilidade dos bares no computador e levantou o olhar, assustado, quando Hellersen entrou. Percebera, pela forma como o comandante fechara a porta atrás de si, que estava de muito mau humor.

 

- Esqueceu-se de alguma coisa, senhor comandante? perguntou, preocupado.

 

- Acabei de me encontrar com o oficial superior de máquinas, que corria, já sem fôlego, pelo navio fora. E não será exagero dizer que trazia um desejo de vingança estampado no rosto.

 

Reparando que Hellersen esboçara um sorriso, Losse arriscou um comentário mais brejeiro.

 

- Problemas com as senhoras?

 

- Se assim fosse, tudo faria para que se não soubesse. Não! Alguém lhe roubou o boné. Segundo diz, do interior da cabina. Do cabide, mais exactamente. Um absurdo completo. - Hellersen sentou-se no rebordo da secretária e, tocando, ao de leve, com o indicador, num monte de facturas, prosseguiu: - O senhor está sempre a par de tudo, Losse. O que é que aconteceu, ontem à noite, nos bares? Quem sabe se o boné não está por lá, esquecido num canto ou escondido atrás de uma cadeira.

 

- Nesse caso, teria já sido encontrado, quando se procedeu à arrumação e à limpeza. - Losse observava o comandante com seriedade. - Mais um desses casos, comandante. E na linha dos anteriores.

 

- Sim e não, Losse. Um boné...?

 

--Primeiro, foi o xaile, depois a cadeira de recosto e, agora, o boné do oficial superior de máquinas... Custa-me a crer que um passageiro clandestino possa ser tão idiota. Losse interrompeu o seu discurso para recuperar o fôlego.

- Tenho uma coisa para lhe dizer, comandante.

 

- Diga.

 

- Tanto a tripulação, como os passageiros, estão convencidos da presença de um Klabautermann a bordo...

 

Durante alguns segundos, fez-se na sala silêncio total. Mas, quando Hellersen levou a mão ao queixo, Losse compreendeu que era findo o tempo para brincadeiras.

 

- Um Klabautermann... - respondeu Hellersen. Muito bem... e diz-me isso com a maior das convicções. O senhor, Losse, um marinheiro experimentado! Quem inventou essa enormidade? Um Klabautermann!

 

- Preferia... não me pronunciar a esse respeito, senhor comandante. - Losse mostrou-se hesitante e fixou o monitor do seu computador. ”Devia ter ficado calado”, pensou, furioso consigo mesmo.

 

- Losse! - Hellersen inclinara-se sobre o seu interlocutor. - Há quanto tempo navegamos juntos? E agora, de um momento para o outro, pretende começar a fazer-se de sonso? Quem espalhou esse boato do Klabautermann?

 

- A Beatrice, comandante. Mas certamente que no intuito de...

 

- A Beatrice que venha imediatamente. Que se dirija à cabina do comandante. Imediatamente!

 

Aquele era o tom de voz que, a bordo, todos temiam. Aquele discurso áspero e incoerente, que não tolerava qualquer tipo de discussão. Em silêncio, Losse acenou com a cabeça, pegou no telefone e transmitiu a ordem ao chefe de pessoal.

 

- A Beatrice que se apresente imediatamente perante o comandante.

 

Estremeceu no momento em que Hellersen abandonou o escritório e, particularmente furioso, bateu com a porta atrás de si. Como castigo, devia morder a língua.

 

Quando se é chamado ao comandante, e ainda por cima com aquela premência, sabe-se que não se vai receber um louvor. Uma convocação, com carácter de urgência, por parte do comandante tem sempre que ver com algum tipo de contrariedade, para usar uma expressão mais suave. Aquele ”imediatamente” significava, na realidade: ”Prepara-te, porque vais sair da cabina do comandante a rastejar que nem um réptil.”

 

Também Beatrice olhou perplexa para Victor, o seu superior hierárquico imediato, quando este desligou o telefone e, com alguma irreverência, lhe disse:

 

- Tens de te apresentar imediatamente no camarote do velho. Tal como estás. Dá-te por feliz por não estares a tomar duche... Vá, depressa!

 

- Que me quer ele? - perguntou Beatrice, permanecendo ali, de pé.

 

- Como queres que saiba? Talvez tenha finalmente percebido que és uma mulher.

 

- Idiota!

 

- Desaparece. Não deixes o velho à espera. Olha que ele é como o leite: a cada minuto que passa, torna-se mais azedo. - Victor riu-se, ainda que dissimuladamente. A voz de Losse ecoava ainda nos seus ouvidos. Parecera-lhe comprometido. - Pensa bem, antes de entrares na jaula do leão: o que poderás ter feito de que te possam acusar?

 

- Não tenho consciência de alguma vez ter procedido incorrectamente. - Beatrice fixou o vidro espelhado da porta e passou ambas as mãos pelos cabelos. Estavam pouco soltos... provavelmente devido à água do mar... ao sal... havia que penteá-los. - Está bem assim?

 

- Muito bem, Beatrice! - Victor esboçou um sorriso irónico. - Não seria aconselhável abrires pelo menos mais dois botões da blusa?

 

- Principiante! bom... e se não tens uma estratégia alternativa a propor-me... com um sorriso nos lábios, saiu e atravessou o átrio. No entanto, já no elevador, foi invadida por uma angústia sufocante. Procurou, mais uma vez, recordar-se de tudo o que fizera ao longo daquele dia e do anterior, mas de nada se lembrou que pudesse ter levado o comandante a exigir a sua presença.

 

”Far-me-ei de inocente”, pensou, assumindo, no momento em que a porta do elevador se abriu, uma postura mais altiva. A porta que conduzia à cabina dos oficiais não tinha qualquer indicação e ficava no lado esquerdo do pequeno átrio. Ao fundo do corredor, a seguir a uma ligeira curva e por detrás da ponte de comando, situavam-se as instalações do comandante.

 

Hellersen lançou um olhar penetrante a Beatrice quando, pouco depois de ter batido à porta, esta deu entrada na sala. «Arre!», pensou ela, logo. ”Tem o boné posto, e isto apesar de estar no seu próprio camarote. Toda esta formalidade me diz que o problema tem a ver com o meu trabalho.”

 

- Presente, senhor comandante - disse, em tom ligeiramente jocoso, fazendo, mesmo, continência, como se de um soldado se tratasse. - Olha-me como se eu tivesse seduzido algum passageiro.

 

- Esse não seria motivo suficiente para a convocar, Beatrice.

 

”Que ousadia!”, pensou Beatrice. ”Que quer ele dizer com isto. Bolas, nesse domínio, não tem, certamente, nada a apontar-me. Nada!”

 

- Algum passageiro se queixou de mim, senhor comandante?

 

- Ainda não! - A voz de Hellersen não agoirava nada de bom. - Mas é bem possível que, dentro de muito pouco tempo, toda a gente neste navio se esteja a comportar como louca! Foi a senhora quem espalhou a ideia absurda da existência de um Klabautermann?

 

- Eu não diria propriamente ”espalhar”. Mas referi o assunto, sim, e...

 

- Beatrice! Será que perdeu o juízo? - Hellersen levantou ainda mais a voz. - Mas, afinal, em que estava a pensar quando fez uma coisa dessas? Ou será que não pensou?

 

- Pensei, senhor comandante.

 

- Aí vem a parte mais interessante. O quê?

 

- Foi uma brincadeira. - Beatrice manteve-se firme, apesar de o seu coração bater com tal intensidade que até o pescoço lhe latejava.

 

- Uma brincadeira? Ah! Apenas uma brincadeira? E... hipótese absurda!... talvez até mesmo uma brincadeira idiota? - Hellersen mostrava-se indignado, tinha de se mostrar indignado, embora, no fundo, partilhasse da mesma dúvida que Beatrice: como podiam pessoas com uma tão vasta experiência de vida acreditar num absurdo daqueles e levá-lo a sério? - A sua maldita brincadeira deixou o navio inteiro em pânico! Ontem à noite um dos passageiros chegou mesmo a ver o Klabautermann. Estava a fazer ginástica no mastro de sinalização.

 

Beatrice observava agora Hellersen com genuína perplexidade. ”Não imaginava que uma coisa destas fosse possível”, pensou. ”A bordo, viajam seiscentos adultos, e não seiscentas crianças.”

 

- E não apenas entre os passageiros, Beatrice. O Losse e o Hartmann também já começam a ter as suas dúvidas. O mesmo se poderá dizer do oficial superior de máquinas.

 

- Não... não é possível...

 

- É, é! E a última novidade: alguém roubou o boné do oficial superior de máquinas da sua cabina.

 

- O boné? - Beatrice olhou, apavorada, para o comandante. - O Klabau...

 

- Beatrice! - Hellersen acabou finalmente por sorrir e ergueu, ameaçador, o dedo.

 

- Não voltarei a falar nele, senhor comandante. - Beatrice retribuiu o sorriso.

 

- Será sua missão, de agora em diante, tranquilizar os passageiros! - declarou Hellersen, novamente formal. Quem sabe, com outra brincadeira.

 

- Vou tentar, comandante. - A tensão dissipou-se e, consequentemente, a postura rígida que assumira até então caiu por terra. Inconscientemente, Beatrice voltou a passar as mãos pelos cabelos. - Mas... que devo eu fazer, caso continuem a acontecer episódios inexplicáveis a bordo? Que devo, nesse caso, dizer aos passageiros? Está visto que as brincadeiras não surtem o efeito desejado.

 

- Não me faça perguntas difíceis, Beatrice. - Hellersen encolheu os ombros. - Em todo o caso, não diga o que eu penso a respeito de tudo isto.

 

- E... se me permite, comandante, o que pensa, exactamente, sobre o que tem vindo a acontecer?

 

- Que este navio não está assombrado por um Klabautermann, mas antes por um louco.

 

- Mas isso é terrível...

 

- Precisamente. - Inclinando ligeiramente a cabeça, Hellersen observou Beatrice. - Se pensarmos nestes termos, o seu Klabautermann nem sequer é assim tão mau. A presença de um louco a bordo provocaria um pânico bem maior. Só agora me apercebo disso. À falta de uma explicação para tudo quanto tem sucedido, talvez a brincadeira do Klabautermann constitua, na realidade, um disfarce eficaz, por detrás do qual possamos ocultar a verdade, independentemente do que possa ainda vir a acontecer. Pelo menos, até termos descoberto esse louco. Parece-me que, afinal, sempre tinha razão, Beatrice. Combater o verdadeiro perigo através do humor. Vou pensar calmamente no assunto. Pode retirar-se, Beatrice.

 

- Obrigada, senhor comandante.

 

- Obrigada?

 

- Por não se ter abatido sobre mim como um trovão. Beatrice acenou, discretamente, com a cabeça, rodopiou, como um soldado, sobre si mesma e abandonou os aposentos do comandante. Hellersen acompanhou-a com o olhar e tirou, depois, o boné. Recuperara a sua privacidade e já podia, por isso, abandonar a sua postura de patrão.

 

- Por não se ter abatido sobre mim como um trovão repetiu Hellersen, em voz alta. - Será que sou, meus amigos, alguma espécie de monstro? Que imagem têm vocês, afinal, de mim? - Voltou depois a pôr o boné e saiu pela porta de comunicação que dava acesso à ponte de comando.

 

O imediato Jens Hartmann estava de pé diante da carta hidrográfica e assinalava a rota que acabara de confirmar via satélite. O navio avançava, envolto num silêncio quase total e vacilando apenas ligeiramente, através de um mar de Java azul-escuro.

 

- Algo de novo? - perguntou Hellersen, sentindo, ao mesmo tempo, uma estranha sensação de segurança. A ponte era, para ele, como que uma segunda casa; a primeira, deixara-a para trás, na Alemanha, totalmente envolta, naquela altura do ano, em nevoeiro.

 

- Nada, senhor comandante.

 

- Finalmente uma boa notícia. - Hellersen aproximou-se do timoneiro e, através da enorme vidraça, observou a proa do navio e o mar.

 

Que dia! Um sol como aquele não se via nem nos catálogos de viagens. A fusão entre o céu e o mar desenhava um horizonte verdadeiramente cintilante. Um aglomerado de corvos-marinhos esvoaçava em torno do navio, um sinal de que haviam passado, há já algum tempo, entre duas ilhas, agora desaparecidas no nevoeiro. Só o radar ainda as mostrava. Uma cena que enchia o coração e trazia felicidade à alma.

 

Hellersen fez um sinal ao timoneiro, empurrou a porta que dava acesso ao lais e saiu para o exterior. O calor envolveu-o com redobrada intensidade, uma vez que acabara de sair de uma sala climatizada.

 

com passos largos, Hellersen dirigiu-se para a amurada do navio. Subitamente, o chão fugiu-lhe debaixo dos pés, como se tivesse escorregado em sabão, o boné saltou-lhe da cabeça, e, antes mesmo que Hartmann pudesse acudir e ampará-lo, Hellersen deu por si no chão, deitado sobre as costas. A seu lado, totalmente esmagada, uma casca de banana.

 

Um marinheiro deitado no chão é, efectivamente, algo de absurdo. Sobretudo um comandante, de quem se espera que não se deixe derrubar, nem mesmo por um furacão. Escorregar numa casca de banana constitui, por isso, uma clara humilhação.

 

com uma agilidade que, tendo em conta os seus cinquenta anos, dificilmente alguém lhe teria imaginado, Hellersen levantou-se logo. Por isso, também o seu primeiro-imediato não chegou a tempo de o auxiliar, limitando-se a perguntar:

 

- Posso ajudá-lo, senhor comandante? Aleijou-se...? Aquela pergunta, algo condescendente, funcionou como a famosa gota que faz transbordar o copo. Hellersen corou, baixou-se e apanhou a casca de banana do chão.

 

- Quem é que anda a comer bananas na ponte? - gritou ao mesmo tempo que agitava a casca. - Quem é que anda a atirar cascas de banana para o chão? Hartmann, faça a pergunta a todos os que, nas últimas horas, tenham estado de serviço na ponte. Se a minha tripulação não for constituída exclusivamente por maricas, que o responsável se me apresente imediatamente!

 

- Sim, senhor comandante. - Hartmann recebeu a casca de banana das mãos do comandante e atirou-a pela borda fora. Perplexo, Hellersen observou-a desaparecer entre as ondas.

 

- O que está a fazer, Hartmann? - gritou. - Preciso dela como prova! Não pode atirar as provas pela borda fora! Que condições são estas que reinam, actualmente, a bordo deste navio...

 

Jens Hartmann e Hellersen navegavam juntos há já largos anos e formavam, enquanto comandante e primeiro-imediato, uma equipa quase lendária. com uma piada, Hartmann tentou salvar aquela desagradável situação.

 

- Tudo isto é culpa do Klabautermann - disse, esboçando um sorriso.

 

Num contexto como aquele, a brincadeira revelou-se absolutamente inoportuna. E Hartmann percebeu-o imediatamente, ao ver o rosto de Hellersen. No entanto, antes mesmo de conseguir desculpar-se perante o comandante, já a tempestade se havia abatido sobre si.

 

- Agora também o senhor me vem com essa idiotice!

- exclamou Hellersen, furioso. - Uma porcaria é o que isto é, e nada mais! Uma tremenda porcaria! O que me parece é que todos, incluindo os oficiais, estão a precisar de uma simulação de emergência. Estou certo de que vos fará muito bem!

 

- Mas, comandante, isso irá assustar os passageiros. Por precaução, Hartmann assumiu uma postura mais rígida.

- Se o conjunto da tripulação ocupar os seus postos estratégicos e, activado o alarme, os salva-vidas forem soltos... em que medida deverá isso tranquilizar os nossos hóspedes...?

 

- Azar! - Furioso, Hellersen olhou para a proa, onde o oficial de segurança, Helmut Dornburg, conversava com um marinheiro. Estavam junto do cabrestante esquerdo, verificando algo. Dornburg deu uma palmada no ombro do marinheiro e afastou-se. No entanto, daria apenas dois passos... Ao terceiro, escorregaria, agitaria descoordenadamente os braços e acabaria por aterrar sobre as costas. Precisaria de bastante mais tempo que Hellersen para se levantar. Baixou-se, depois, e apanhou algo do chão. Hellersen inclinou-se sobre o lais.

 

- O que aconteceu, Dornburg? - gritou ele para a proa. - Uma casca de banana...?!

 

- Exactamente, senhor comandante. - Dornburg segurava, agora, a casca, agitando-a no ar. - Uma casca... com um impulso, Hellersen virou-se para Hartmann. O primeiro-imediato contraiu os lábios. Não era difícil adivinhar o que aí vinha.

 

- É ou não é uma porcaria? - gritou Hellersen. - Anda para aí alguém a arrastar-se pelo navio e a espalhar cascas de banana! Ao pé do cabrestante... é a prova inequívoca de que se trata de alguém da tripulação, pois que ninguém mais está autorizado a pisar a coberta da proa. - Hellersen recuperou o fôlego e olhou para o seu imediato, inclinando ligeiramente a cabeça. - E não me venha outra vez com o seu Klabautermann... Agora não! Sei perfeitamente o que me vai dizer, Hartmann!

 

- Não, senhor comandante. Não estou a pensar no Klabau... Desculpe, senhor comandante. - Hartmann interrompera o seu discurso no momento em que, olhando para o oficial de segurança, vira este atirar a casca de banana para o mar. - Estou a pensar em algo bem diferente: se ainda tivermos um passageiro clandestino a bordo... tudo isto faz sentido. O indivíduo poder-se-ia, por exemplo, esconder, de noite, na coberta da proa. Existem, num navio, milhares de recantos onde uma pessoa sozinha se pode esconder.

 

- E a casca de banana encontrada aqui, no lais? - Hellersen apontara para o local onde escorregara. - Não acredita, sinceramente, ser possível que um passageiro clandestino venha para aqui, à noite, apreciar o céu estrelado e comer bananas. E que nenhum dos vigias o veja!

 

- Tudo é possível, senhor comandante - disse Hartmann, hesitante.

 

- Lá nisso tem o senhor razão. - O rancor e a cólera haviam transformado a voz de Hellersen, agora mais forte e grave.

 

Sem esperar por uma resposta, Hellersen dirigiu-se para a ponte e, através da porta de ligação, para o seu camarote. Hartmann esperou que ele desaparecesse e entrou, depois, na sala de comando. O timoneiro e o oficial de guarda olharam-no perplexos.

 

- Estava muito nervoso - comentou o oficial. Era novo a bordo, por isso, a sua primeira viagem com Hellersen.

- O velho é sempre assim?

 

- Só quando escorrega em cascas de banana. - Hartmann desfez-se do boné. Transpirava abundantemente. Eu também não aceitaria facilmente uma situação destas.

 

A frase tinha algo de profético. Era o que se viria a verificar na noite seguinte.

 

Terminara mais uma das festas de bordo, desta vez animada pela cantora de opereta Lydia de Santos, e o baile arrastara-se até de manhã. Jens Hartmann ocupara-se intensivamente de uma solteira: era assim que a tripulação se referia às senhoras que viajavam sozinhas e pretendiam ser entretidas. Desde que do sexo feminino e que ainda em idade de se entregar a umas aventuras, as senhoras em questão eram entretidas sobretudo pelos oficiais e pelo médico de bordo. Depois de uma série de danças, Hartmann pediu desculpa por se ter de ausentar durante alguns minutos e fora para a ponte de passeio, para aí respirar algum ar fresco. Parou junto da balaustrada, expôs a face quente ao vento provocado pelo avançar do navio e pousou o olhar no mar que, reflectindo a Lua, se cobrira de brilho. Que bela noite tropical! Como sempre, aquele imenso céu estrelado, o mar negro com as suas listras prateadas e toda aquela espuma azulada por debaixo da proa. No horizonte, as estrelas pareciam precipitar-se sobre o mar. E ainda o murmúrio sereno resultante do embate da quilha nas ondas. Se não, apenas o silêncio, uma solidão imensa, um estar só com a eternidade.

 

Hartmann afastou-se da balaustrada, passou ambas as mãos pelos cabelos e iniciou um vaivém por debaixo dos salva-vidas, percorrendo a ponte de passeio, primeiro num sentido, depois no outro, à semelhança do que, sob o lema ”anda um quilómetro”, os passageiros faziam, todas as manhãs, acompanhados por uma hospedeira. Ao fazê-lo, Hartmann respirava intensamente aquele ar fresco e pensava em como teria de voltar para o salão de festas para cumprir com o seu dever de cavalheiro e entreter Anita Borghardt, uma trintona bem proporcionada. E isso implicava dançar até à exaustão, pois, mal a orquestra de bordo, composta por sete músicos, dava início a mais uma ronda, Anita dispunha os lábios em bico e fazia estalar os dedos.

 

Depois de ter percorrido três vezes a ponte de passeio, e quando se encontrava sensivelmente a meio desta, mais exactamente por debaixo do salva-vidas número seis, Jens Hartmann recebeu, subitamente, uma violenta pancada na cabeça. Atordoado, foi imediatamente parar ao chão. Sentiu o peso e volume de um objecto no corpo e na cabeça, empurrou-o, ainda confuso, para longe de si, rebolou para um dos lados e levantou-se, apoiado na balaustrada. Cambaleante, agarrou-se ao corrimão, abanou a cabeça e olhou para o objecto que o derrubara. Tratava-se de uma enorme roldana, que até então estivera pendurada entre os salva-vidas e que fora pensada para uma situação de emergência. Era impossível que se tivesse soltado por si só, sobretudo estando o mar tão calmo.

 

Hartmann afastou-se da balaustrada e deu um salto até ao costado. A partir de aí, tinha-se uma boa perspectiva dos turcos e da passagem estreita que dava acesso às cabinas dos oficiais.

 

Mas aí não havia nada... Hartmann estava absolutamente só na ponte de passeio, só e com a cabeça a zumbir.

 

Uma raiva crescente invadiu-o. Compreendia, agora, melhor Hellersen. Cerrou os punhos.

 

- Agora é que isto começa mesmo a cheirar mal! gritou no sentido dos botes de salvamento. - Já vais ver, amigo! Acabaremos por te apanhar! Vou revirar o navio do avesso. E é já!

 

Bateu com os punhos um no outro e abandonou, algo cambaleante, a ponte de passeio, ainda com um peso na cabeça.

 

Teve, nesse momento, a sensação de ouvir um riso de escárnio.

 

O médico de um navio é muitas vezes invejado, normalmente por quem não tem muita experiência de mar. E isto porque visita os mais belos locais do mundo, conhece todos os portos, veste, nos trópicos, uma farda de oficial branca com três galões dourados, quebra o coração de inúmeras senhoras a bordo, é, por assim dizer, o playboy da tripulação e não tem, no seu hospital, nada para fazer, pois, afinal, quem quer adoecer algures num maravilhoso arquipélago no Pacífico? E, ainda por cima, é pago. Uma profissão de sonho!

 

O Dr. Lutz Schmitz, o médico a bordo daquele navio de luxo, tinha, no entanto, a esse respeito, uma perspectiva totalmente diferente. E quem já tivesse trabalhado, ainda que apenas durante uma semana, num hospital de bordo, dar-lhe-ia certamente razão. Aí, o vaivém é constante, pois que os seiscentos passageiros e os trezentos e cinquenta membros da tripulação nunca se sentem tão saudáveis quando desejariam, impedindo, deste modo, que o médico seja o responsável pelo serviço mais calmo a bordo. Desde treçoIhos até problemas de circulação, desde tornozelos torcidos a crises de diabetes, desde abcessos dentários a gripes tropicais, todo o tipo de pequenas mazelas serve de pretexto para que senhoras cheias de iniciativa arruinem os nervos do médico de bordo.

 

- Quando regressar a terra - dissera uma vez o Dr. Schmitz -, preciso, antes de mais, de seis semanas de repouso. Depois, vou para as montanhas. E ai de quem me falar de água ou do mar. Nem do Reno me aproximo.

 

O que ele queria dizer com isto, só alguém que, como ele, seja de Colónia, o poderá compreender.

 

Respirou, por isso, fundo, quando a banda de bordo acabou de tocar o último número e depôs os instrumentos. Dispensou a sessão de cantigas, junto do bar, escusou-se com a mentira inofensiva de que teria, internados, no hospital, dois doentes cardíacos que importava ainda observar, e refugiou-se nos seus aposentos contíguos ao hospital.

 

com verdadeiro prazer, tomou um duche e, deixando-se cair na cama, espreguiçou-se, dando graças ao desconhecido que inventara o colchão. Um sono profundo e sereno apoderou-se rapidamente dele.

 

Algo, no entanto, o levou a acordar novamente... um ruído, uma algazarra, portas a bater. Schmitz saltou da cama, vestiu o roupão e precipitou-se para a antecâmara do hospital. Aí já se encontrava a enfermeira Emmi, uma pessoa resoluta, em acesa discussão com o oficial de segurança Hellmut Dornburg e um marinheiro. Pareceu-lhe aliviada quando o viu entrar.

 

- O que se passa aqui? - gritou o Dr. Schmitz, indignado, não dando sequer tempo aos presentes para responderem. - O que fazem no meu hospital? A meio da noite? Estão bêbedos?

 

A pergunta era legítima, pois que se, a bordo, alguma instituição estava associada a um tabu, essa instituição era o hospital. O que mais irritava Schmitz era a presença de Dornburg, do qual era amigo.

 

O marinheiro, que acabara de dizer à enfermeira Emmi: ”Vá lá, não te enerves, seringueira!”, foi o primeiro a intervir. com um sorriso de lado a lado, comunicou:

 

- Senhor Doutor, procuramos o Klabautermann.

 

- Fora! - respondeu-lhe rudemente o Dr. Schmitz. Fora, seus idiotas!

 

- Acalma-te um pouco e ouve o que temos para dizer.

- Dornburg deu um passo no sentido de Schmitz. - A nossa presença aqui deve-se a ordens do Hartmann... revistar todos os cantos do navio... e o hospital faz parte do navio. Lutz, não há nada que eu possa fazer. Podemos dar uma vista de olhos nos quartos?

 

- Não!

 

A resposta fora clara e sucinta. E para melhor a sublinhar, a enfermeira Emmi acrescentou ainda e no mesmo tom:

 

- Não!

 

- E porque não? - perguntou Domburg, surpreendido.

 

- Se andam à procura do vosso passageiro clandestino, essa construção da vossa imaginação, posso garantir-vos que não está aqui. Não tenho dúvidas de que não há nada nem ninguém no meu hospital!

 

- E se o Klabautermann estiver debaixo da sua cama, senhor doutor? - perguntou o marinheiro, a sorrir.

 

- Só cá faltava mais essa! - Ameaçador, o Dr. Schmitz ergueu a voz. - Já se viu uma idiotice destas? Fora do meu hospital, já disse... imediatamente!

 

- Lutz... - Dornburg tentou novamente, desta vez com mais delicadeza. - Não posso simplesmente comunicar ao comandante que o doutor Schmitz se recusa a colaborar com a revista do navio. Já estivemos em todo o lado. Só faltas tu e o teu hospital. As cabinas da tripulação, as pontes, a carvoeira, a quilha, a cozinha, a pastelaria, os armazéns, a tipografia, o estúdio de fotografia, a alfaiataria, a carpintaria, a serralharia, a sala das máquinas, os depósitos... já passámos tudo em revista.

 

- Os aposentos dos oficiais também?

 

- Esses foram os primeiros. Temos cinquenta homens a bordo. Não excluímos nenhuma possibilidade. Tu e o teu hospital são, efectivamente, os últimos.

 

- E não encontraram nada.

 

- Não. Nada. Absolutamente nada.

 

- E nas cabinas dos passageiros?

 

- Não temos nenhuma cabina livre, pelo que não é possível que um passageiro tenha ocupado uma.

 

- E acreditam, por isso, que esteja aqui? - perguntou o Dr. Schmitz, ofendido.

 

- Claro que não. Mas a correcção obriga-nos a verificar também o hospital. Compreendes isso, não é, Lutz?

 

- Não compreendo, mas façam favor! - O Dr. Schmitz fez um movimento amplo com a mão. - Passem todas as divisões do hospital a pente fino, para que se satisfaça, de uma vez por todas, essa vossa teimosia.

 

Passados uns escassos dez minutos, as salas reservadas aos doentes, as duas salas de consulta, a enfermaria, a farmácia e o pequeno laboratório haviam sido revistados. O Dr. Schmitz lançou um olhar ligeiramente sarcástico ao seu amigo Dornburg.

 

- Satisfeito, Hellmut? Mas espera! Existe ainda, neste hospital, um esconderijo onde um passageiro clandestino se poderia perfeitamente esconder: o contentor do lixo.

 

Carrancudo, Dornburg fez sinal aos seus acompanhantes para saírem.

 

- Deixa estar! Vai-te deitar, não te incomodes mais e ’: tenta dormir! Para problemas, já basta o nosso. Nem uma pista... Bolas, que o fulano é requintado...

 

- E se não se tratar de um passageiro clandestino, Hellmut?

 

- Quem mais?

 

- O Klabautermann - interveio o marinheiro, sorrindo, mais uma vez, com alguma impertinência.

 

Pensativo, o Dr. Schmitz lançou-lhe um olhar condescendente.

 

- Um passageiro.

 

- Porque haveria um passageiro...

 

- Um passageiro louco. - O Dr. Schmitz encolheu os ombros. - Quem sabe? Quem sabe o que vai na alma das pessoas? Por fora, pode assemelhar-se a qualquer um de nós, normal, amigável, apenas mais um passageiro entre seiscentos... só que, de um momento para o outro, a loucura apodera-se dele e, sem qualquer critério, ataca algures no navio. É perfeitamente possível.

 

- Lutz, isso seria terrível. Um louco a bordo do navio. Imaginas o que poderia acontecer? Como se comportariam os restantes passageiros, sobretudo as senhoras? Um navio repleto de pessoas histéricas seria um inferno.

 

- E que diz o comandante?

 

- Cospe fogo que nem um dragão. Quer, a todo o custo, encontrar o passageiro clandestino.

 

- E, amanhã de manhã, terão de se apresentar perante ele e comunicar-lhe: a revista do navio não surtiu qualquer efeito. Não se encontrou nada.

 

- Será mais um dia quente... o de amanhã... pelo menos tu, Lutz, dorme bem.

 

- Obrigado, Hellmut.

 

O Dr. Schmitz esperou que Dornburg e o marinheiro abandonassem o hospital. Depois, fez algo que nunca tinha feito e que não era costume: fechou a porta de entrada à chave. A enfermeira Emmi observou-o, aliviada.

 

- Satisfeita? - perguntou ele, sorrindo.

 

- Sim... porquê...

 

- Vejo-o nos seus olhos, Emmi: está com medo.

 

- E... é verdade, doutor.

 

- De um passageiro louco?

 

- Não... do Klabautermann...

 

- Oh, meu Deus! Também a senhora? - O Dr. Schmitz bateu palmas. - Deve tratar-se de uma epidemia infecciosa! Qual será o remédio para isso? Rezar...?

 

Sem dizer uma palavra, profundamente ofendida, a enfermeira Emmi abandonou o Dr. Schmitz e voltou para o seu quarto. Pelo bater da porta, era fácil perceber quão enervada estava. Haja vinte anos que trabalhava em hospitais de bordo, nos mais variados navios (naquele navegava há cinco), mas nunca ninguém a havia ainda visto tão furiosa.

 

- Ora esta! - disse o Dr. Schmitz e regressou à sua cabina de oficial, atirou o roupão para cima de uma cadeira e voltou a deitar-se.

 

No entanto, por mais que se esforçasse por adormecer... não conseguia. A ideia de que um passageiro louco pudesse seguir a bordo manteve-o acordado. E a pergunta: o que estará ainda para acontecer a bordo?

 

Não eram pensamentos agradáveis.

 

Eduard Hallinsky possuía uma característica pela qual os seus empregados o haviam já frequentemente amaldiçoado: era um madrugador.

 

Independentemente da hora a que se deitasse, quer fossem vinte e duas horas ou três da manhã, às seis e meia em ponto acordava, bocejava intensamente, coçava o ventre, rastejava para fora da cama, arrastava-se até à casa de banho, permanecia aí durante uns dez minutos, de cócoras, tomava um duche, vestia-se, bebia três chávenas de café com natas e sacarina, comia uma fatia de pão integral com chouriço de sangue e, uma hora antes de qualquer um dos seus empregados, sentava-se à sua secretária. Todas as manhãs, quer no Verão quer no Inverno, fizesse sol ou chuva. Às oito percorria todos os escritórios para se certificar de que todos estavam já a trabalhar. Às nove, bebia um conhaque. Às dez, convocava uma das suas quatro queridas secretárias e permanecia incontactável durante uma hora.

 

Todos os dias! Impressionante!

 

Hallinsky considerava que apenas isso o mantinha jovem, e quem observasse aquele homem de cinquenta anos teria de lhe dar razão. Conservava ainda muita da sua elasticidade. Só a barriga lhe prejudicava um pouco a imagem.

 

A sua esposa dormia, na maioria dos casos, até às oito, e as crianças (se é que se podia chamar crianças a um rapaz de vinte e três anos e a uma rapariga de dezanove, ambos estudantes) gozavam o seu tempo de repouso em função das circunstâncias diárias. Em suma: quando, ao fim do dia, Hallinsky regressava a casa, a família via-se, nesse dia, pela primeira vez.

 

Podia, então, acontecer que Hallinsky se limitasse a afirmar: ”Mais sete contratos!”, com o que pretendia significar sete novos potenciais investidores, os quais tinha convencido a comprar palacetes ou interesses em companhias de navegação. Dos contratos conseguidos pelos seus colaboradores raramente falava. Quem investe milhões que lhe não pertencem em projectos de amortização de impostos (nas palavras de Hallinsky, oportunidades sempre únicas) não refere, no seio da família, senão os aspectos mais gerais. Acontecia, também, por vezes, Hallinsky oferecer um ramo de flores à esposa. Da pulseira que a secretária Moni recebera, ninguém sabia. A Empresa Finanças Discretas era, efectivamente, discreta.

 

Quer em casa, quer de férias, a bordo de um navio, nada se alterava no que dizia respeito ao madrugar. Hallinsky acordava automaticamente às seis e meia, tomava o seu café e o seu pão integral e iniciava, então, uma corrida solitária em torno da piscina do navio. Seis voltas, com os braços em ângulo recto e a cabeça bem erguida, fazendo, com as suas pernas atarracadas no chão, um barulho infernal. Foi assim que deu início a mais um dia no oceano, no mar de Java, a caminho de Singapura. O único que, àquela hora, já estava de serviço era Jean, o empregado do convés. Mal via Hallinsky passar a trote, encarregava-se de encher a cafeteira.

 

Naquela manhã, no entanto, uma manhã tropical com um sol ainda pálido, mas já muito quente, e um mar azul resplandecente, Hallinsky ia já na quarta volta à piscina quando olhou para cima, no sentido da chaminé e dos cabos onde, pendurados, se podia ver os faróis de posição e uma série de bandeirolas coloridas. Para usar uma expressão naval, o navio seguia ”embandeirado nos topes”.

 

Hallinsky imobilizou-se subitamente e, com a respiração ainda pesada da corrida, permaneceu ali, a olhar para as bandeiras. Do outro lado da piscina, Jean começara já a alinhar as cadeiras. Dentro de poucos minutos, os primeiros passageiros tomariam o convés de assalto, tentando reservar, com óculos, toalhas ou livros, os melhores lugares, e só depois desceriam para tomar os seus pequenos-almoços. Embora fosse absolutamente interdito fazê-lo e o programa de bordo, distribuído diariamente, chamasse a atenção de todos para esse aspecto, não havia, na realidade, como proibir o que quer que fosse a hóspedes que pagavam aproximadamente seiscentos e sessenta marcos por dia.

 

A gargalhada de Hallinsky surgiu como uma explosão, que fez estremecer Jean. Perdido de riso, Hallinsky estava dobrado sobre si mesmo, agarrado à barriga com ambas as mãos.

 

- Fantástico! - gritou. - Finalmente, uma bandeira adequada a um navio como este!

 

Depois, com um movimento brusco, pôs-se em sentido e, como que procedendo a uma saudação militar, levou a mão direita à testa.

 

- Taratata! Içar bandeira! Cantemos todos juntos: ”Assim vivemos, assim vivemos todos os dias...”

 

Jean olhava para Hallinsky, estupefacto. Uma insolação, já? Ou será que ainda estava bêbedo? Decidiu-se pela segunda alternativa e seguiu, com o olhar, a mão direita de Hallinsky, que apontava no sentido da chaminé.

 

Foi aí que também Jean ficou paralisado, o queixo descaído. Precisou de algum tempo para perceber o que acabara de ver.

 

Na adriça, onde normalmente seguiam, ”embandeiradas nos topes”, um sem-número de bandeirolas coloridas, flutuava, agora, ao vento, um soutien! Um soutien rosa-vivo. Muito sexy. E muito decorativo. Devia ser do tamanho 5, copa C... já não era mau! Mas como raio fora uma bandeira tão original parar à adriça? Jean abandonou o convés a correr. Tinha de comunicar o sucedido. Aquela ”bandeira” tinha de desaparecer antes que o convés se enchesse! E isso implicava muito trabalho: a adriça tinha de ser totalmente recolhida.

 

Hallinsky continuava a rir. Tinha alguma dificuldade em acalmar-se. E quando o vento soprou no interior das duas copas e estas se insuflaram como se estivessem recheadas, chegou mesmo a bater palmas.

 

- Os vestígios que uma noite de baile deixa! - gritou, tremendamente feliz. - Meus senhores, vamos a mais uma cantiga... três... quatro... ”Estávamos ao largo de Madagáscar e havia peste a bordo...” - No entanto, ao pronunciar a palavra ”peste”, calou-se e limpou o rosto. - A bordo... disse, em voz baixa. - Bolas, será que existe mesmo um Klabautermann?

 

Interrompeu a sua corrida matinal em torno da piscina e sentou-se numa cadeira de recosto, observando o soutien que flutuava ao sabor do vento.

 

Não conseguia explicar porquê: mas, de um momento para o outro, aquela invulgar bandeira revestira-se, aos seus olhos, de um carácter absolutamente sinistro.

 

Só muito raramente, na realidade quase nunca, todos os oficiais, o tesoureiro, os hospedeiros e as hospedeiras se reúnem na cabina do comandante. com Hellersen, tal só tinha acontecido uma vez, em que a companhia de navegação precisara de fotografias para um folheto publicitário. Mas uma reunião com o comandante para tratar de questões estritamente relacionadas com o serviço? Isso era totalmente inédito.

 

Bastante apertados, que a cabina do comandante não é assim tão vasta, os homens de Hellersen esforçavam-se por se mostrar despreocupados. Seguravam, todos eles, os respectivos bonés debaixo do braço. Os corpos estavam tensos. Na sala, reinava uma atmosfera militar, que se havia naturalmente instalado, pois cada vez que alguém entrava e olhava para Hellersen, logo se colocava em sentido: a disposição do comandante prometia uma meia hora bastante difícil. Todos tinham consciência do carácter excepcional daquela reunião.

 

A presença, em cima da secretária de Hellersen, de um soutien rosa-vivo fez com que a tensão entre os presentes aumentasse ainda mais. Uma vez que nenhum deles se conseguia lembrar de, na noite anterior, ter estado em contacto com uma peça de vestuário tão delicada, a tensão foi subindo a cada minuto que passava.

 

Caminhando, em silêncio, de um lado para o outro, Hellersen aguardou que todos os elementos convocados comparecessem. O último a chegar foi o Dr. Schmitz, que tivera de interromper uma consulta para ali poder estar. Foi o único que, ao chegar, disse alguma coisa:

 

- O que se passa aqui? Tenho nove doentes à minha espera no hospital. Não tenho tempo.

 

- Para isto tem, senhor doutor Schmitz - rosnou Hellersen. Franziu as sobrancelhas e olhou, irritado, para o médico de bordo. - Não foi para ensaiarmos um cântico que o mandei chamar!

 

- Devo dizer-lhe que ainda bem, uma vez que não tenho jeito nenhum para a música... - O Dr. Schmitz, que também era de Colónia, fazia questão de ter sempre a última palavra. Quem é que já viu uma pessoa de Colónia que não tivesse resposta para tudo? Hellersen respirou fundo. ”Agora”, pensou o primeiro-imediato, em pé numa das extremidades da sala, ”agora é que ele dá cabo do médico! Nunca aconteceu mas, conhecendo o Schmitz, isto vai dar origem a uma discussão que até as paredes tremem.”

 

Hellersen, porém, não reagiu. Pelo contrário, permaneceu onde estava e, lançando a todos os presentes um olhar particularmente fulminante, disse:

 

- Serão os oficiais que me acompanham através do Pacífico apenas preguiçosos ou será a sua preparação insuficiente? - disse com uma mordacidade pouco habitual. Aquele ”insuficiente” constituíra, por si só, uma ofensa aos oficiais.

 

”É importante não reagir”, pensaram os presentes, numa sintonia pouco habitual. ”Sobretudo não reagir...» Apenas a sua postura se tornou ainda mais hirta.

 

- Exijo-lhes uma explicação, meus senhores! - prosseguiu Hellersen no mesmo tom. - Como foi este soutien parar à adriça? Porque ninguém se apercebeu de que foi içado... de como foi içado... temos um soutien a meio da adriça! A meio! Têm consciência do que isso significa? Alguém recolheu a adriça do mastro e lhe prendeu um soutien e ninguém... ninguém!... se apercebeu do que quer que seja! Hellersen recuperou o fôlego e proferiu depois algo que ofenderia profundamente todos os presentes: - Oficiais cegos de nada me servem...

 

Durante alguns segundos, fez-se silêncio na sala, como se esta se tivesse subitamente esvaziado. Foi aí que Hartmann arriscou uma pequena intervenção:

 

- Senhor comandante... - disse, cauteloso. Hellersen, furioso, fez-lhe sinal para que não prosseguisse.

 

- Se me vem outra vez com o seu Klabautermann, eu perco a cabeça! - Levantara mais uma vez a voz. - É coisa que nunca viram, meus senhores! Quando eu me enervo...

 

- Um comprimido de Valium talvez ajudasse - disse o Dr. Schmitz em voz baixa, mas, no silêncio da sala, suficientemente alto para que todos o ouvissem.

 

Surpreendentemente, Hellersen ignorou aquele comentário. Não fazia sentido discutir com o Dr. Schmitz. Era o melhor médico de bordo que conhecia e, no seu navio, absolutamente indispensável. E era óbvio que o Dr. Schmitz também o sabia.

 

Numa tentativa de desanuviar a atmosfera que se instalara, Hartmann anunciou, num tom marcial:

 

- Pretendia apenas comunicar-lhe, senhor comandante, que a busca levada ontem a cabo a bordo do navio não deu em nada.

 

- Isso já eu sei. - Hellersen fez uma expressão de desalento. - O que a mim me consola é que o senhor tenha apanhado com aquela roldana na cabeça... - Esperou que Hartmann se defendesse, mas o imediato soube ser suficientemente esperto para engolir aquela provocação. - Uma coisa é certa. - Hellersen falava agora novamente mais alto. - Temos alguém a bordo que nos anda a pregar partidas e que, recorrendo a uma ideia absurda mas muito bem posta em prática, pretende lançar o pânico a bordo deste navio. E quase que o conseguiu. Quase! Mas comigo não, que eu sou a calma em pessoa! - E provou o que acabara de afirmar, acrescentando: - A calma em pessoa! Eu nunca me enervo! Nunca! - Hellersen calou-se de um momento para o outro, respirou fundo e prosseguiu num tom de voz normal: - Meus senhores, a partir deste momento, a vigilância deverá ser redobrada. Quer no convés, no interior do navio, na sala das máquinas, ou nos depósitos: em todo o lado, a maior vigilância. Quero patrulhas nocturnas, não apenas nos postos de vigilância, mas ainda no interior dos vários compartimentos! - Hellersen deixou o seu olhar percorrer todos os presentes, fazendo, deste modo, com que cada um deles se sentisse visado. - Deve, com certeza, ser possível apanhar esse tipo! Vivemos todos num espaço limitado. Duzentos metros de comprimento e vinte e oito de largura... Irra, não é pedir muito que se vigie uma área como esta! É vergonhoso que estejamos todos aqui impotentes!

 

- A teoria do louco não é de desdenhar. - Fora, naturalmente, o Dr. Schmitz quem proferira estas últimas palavras, uma vez que os restantes já só pensavam em abandonar a cabina do comandante, felizes por poderem alcançar ilesos a porta de saída.

 

- Continua, portanto, convencido disso: de que estamos a lidar com um louco e não com um passageiro clandestino?

 

- Parece-me lógico, senhor comandante. Um passageiro clandestino faz tudo para não dar nas vistas. Enquanto que, neste caso, o que é que tem vindo a acontecer? Um golpe atrás do outro.

 

Hellersen encolheu os ombros, em sinal de impotência. Para aquele tipo de pergunta, não havia resposta possível.

 

- E em que é que reconhece um louco? - perguntou.

 

- Certamente que não à primeira vista. - O Dr. Schmitz verbalizara daquela forma um dos maiores receios de Hellersen. - Só capturando a pessoa em questão e submetendo-a a um interrogatório, se poderá determinar a patologia de que sofre. Mas assim... - Schmitz esboçara um gesto de perplexidade. - É totalmente impossível analisar seiscentos passageiros e trezentos e cinquenta membros da tripulação.

 

- Um, pelo menos, podemos desde já excluir, doutor! - interveio Hartmann, ensaiando um sorriso. - Eu...

 

- Não me diga! - Schmitz retribuiu-lhe o sorriso. Para me certificar, seria necessário observá-lo.

 

- Parece-lhe plausível que eu próprio me tivesse atingido com a roldana?

 

- com um louco, tudo é possível.

 

- Obrigado, doutor - respondeu Hartmann, desagradado.

 

- Não tem de quê. - Schmitz olhou para o comandante e depois, sem grandes rodeios, para o relógio. - Já me posso ir embora? Devo ter, entretanto, uns vinte pacientes à minha espera no hospital.

 

Hellersen acenou com a cabeça.

 

- Obrigado, meus senhores. Alguém tem mais alguma pergunta a fazer?

 

Ninguém respondeu. Claro que não. Tudo menos uma pergunta! Antes abandonar, quanto antes, aquela atmosfera carregada. Deram todos meia volta e precipitaram-se para a saída. No entanto, quando se preparava já para atravessar aporta, o imediato foi retido por uma voz.

 

- Hartmann, fique, por favor!

 

com um suspiro, Hartmann voltou para a cabina do comandante.

 

- Senhor comandante...?

 

Hellersen esperou até que a última pessoa a sair, o Dr. Schmitz, tivesse fechado a porta. Depois, ofereceu uma cigarrilha a Hartmann e observou-o enquanto este, apressadamente, dava algumas passas. ”É verdade”, pensou. ”Andamos todos com os nervos à flor da pele.”

 

- Tenho andado a cismar - disse, pensativo. - Como é que o soutien foi parar à adriça? Se analisarmos bem a questão, nenhum passageiro tem noção de como se recolhe um cabo como aquele, ou de como se volta a içá-lo. E, mais importante que tudo isto, não possui a chave que dá acesso ao cabrestante. A caixa de segurança dos comandos está intacta, pelo que não terá sido violada. E, ainda assim, o soutien foi lá parar. Mesmo no meio! Entre as bandeirolas! Gostaria que me explicassem um fenómeno destes.

 

- Está a pensar que alguém da tripulação...? - Hartmann deixara escapar um silvo entre os dentes.

 

- Acha a possibilidade assim tão descabida?

 

- Mas porquê, senhor comandante?

 

- Para lhe responder retomando as palavras do doutor: porque enlouqueceu.

 

- Assim? Sem mais nem menos?

 

- É precisamente de um momento para o outro que a loucura se apodera das pessoas. Deitam-se e, no dia seguinte, acordam loucas! E não há muitas explicações para o fenómeno: pode ficar a dever-se a um vírus, a um trauma, a uma esclerose...

 

- Não temos ninguém, na tripulação, que sofra de esclerose, comandante. São tudo rapazes saudáveis, para além de que já os conhecemos de outras viagens. Considero essa possibilidade absolutamente impossível.

 

- Considera impossível que algum deles enlouqueça...?

 

- Só com uma considerável dose de álcool. E, ainda asim, no dia seguinte volta tudo ao normal. Neste caso, os acontecimentos têm vindo a suceder-se... e acontecimentos completamente absurdos...

 

- É precisamente o que lhe digo. E, até à data, não se tratou senão de brincadeiras inofensivas. Salvo uma excepção: a sua. O seu caso constitui a primeira agressão. É também por isso que não acredito na teoria de um único autor. Parece-me que passámos, recentemente, a lidar com mais uma pessoa, uma espécie de imitador. O soutien e as restantes partidas são uma coisa, a sua roldana é outra... É assim que vejo as coisas.

 

- Meu Deus! Haverá então duas pessoas envolvidas nisto? - Hartmann continuava a fumar nervosamente a sua cigarrilha. - Isso vem complicar substancialmente a situação.

 

- Pelo contrário, Hartmann.

 

- Confesso que não estou a compreender, comandante.

 

- Pense bem. Imagine que é o Jerry Cotton ou um outro qualquer superdetective. Hartmann, o senhor, como eu, leu certamente livros policiais, e saberá que, aí, são muitas vezes descritos raciocínios que podem ser aplicados à nossa vida real.

 

Hellersen aproximou-se de um armário de parede e retirou de lá uma garrafa de uísque, dois copos e um balde de gelo. Encheu os copos e ofereceu um deles a Hartmann. Depois de um brinde em silêncio, ambos beberam um gole. E que bem lhes soube!

 

- Temos, portanto, um agente que, sabe-se lá porquê, pretende lançar o pânico a bordo - prosseguiu Hellersen com o seu raciocínio. - Acontece que, a dada altura, este se apercebe de que uma segunda personagem procura apoderar-se da sua criação, e isto em seu próprio proveito. E o que fará ele? Procurará neutralizar o seu imitador. E é aqui que reside a nossa única esperança: é possível que, no calor do combate com o seu rival, ele se denuncie. Pode ser que se descuide. Não há nada mais perigoso para um larápio do que a insegurança.

 

- Vejo que leu, efectivamente, muitos policiais, senhor comandante - observou Hartmann com um misto de admiração e alguma ironia. - Se as coisas se passassem como nos romances...

 

- Já lhe disse que muito do que acontece nos policiais poderia acontecer de facto. E se, neste momento, está a pensar: ”Hartmann, o velho está a perder o juízo”, fique sabendo que é perfeitamente plausível que uma pessoa que se sinta imitada, tome medidas de retaliação. Sendo que, para tal, tem necessariamente de abdicar da sua condição de fantasma e, consequentemente, da sua invisibilidade. - Hellersen bebeu o resto do copo. A sua própria teoria deixara-o visivelmente excitado. - Não acha tudo isto lógico, Hartmann?

 

- Mas, comandante, tudo isso significa mais agitação a bordo. Mais acontecimentos tão emocionantes quanto misteriosos. - Também Hartmann esvaziara o seu copo. - Já comunicou tudo isto à companhia?

 

- Ainda não. Que poderei eu esperar de Hamburgo? Apenas perguntas idiotas e uma indicação no sentido de pôr imediatamente termo a tudo isto. Nada que já não saiba. Não preciso, para isso, dos conselhos da companhia. Quando toda esta algazarra estiver resolvida, faremos uma comunicação.

 

- Desde que nenhum passageiro tome a iniciativa de lhes enviar um telex.

 

- Se assim for, o posto de rádio transmitir-mo-á imediatamente e eu próprio chegarei a um acordo com o passageiro. Hartmann, não nos ajoelharemos perante um louco... ou um passageiro clandestino!

 

Quanto a isso, estavam de acordo. No entanto, os dias seguintes seriam, para eles, um pesadelo. Onde, como e quando voltaria o desconhecido a atacar? Era esta a pergunta que perseguiria constantemente a administração do navio. E como tranquilizar os passageiros, quando se voltassem a produzir acontecimentos espectaculares? E se havia sido possível manter em segredo o facto de uma roldana se ter precipitado sobre a cabeça de Hartmann, o soutien, esse, tinha sido visto por demasiadas pessoas, antes que o conseguissem recolher. Desde essa manhã, os mexericos tinham-se multiplicado e os boatos circulavam agora a uma velocidade espantosa. Sobretudo Hallinsky encarregara-se de narrar a toda a gente a sua experiência matinal, pondo aqueles que se haviam levantado mais tarde ao corrente do episódio. Um animado sussurrar tomara conta do navio. ”Quem terá, ontem à noite, considerado o seu soutien demasiado incómodo... e quem o içou como se de uma bandeira se tratasse, também deve ser um ponto. Parece-lhes coisa de um Klabautermann...?”

 

- Nada podemos fazer, de momento, para além de estarmos constantemente atentos - disse Hellersen, ao dispensar Hartmann. - Quero que, durante a noite, haja vigias nas pontes, assim como em todos os acessos e escadas, incluindo nas áreas reservadas à tripulação. Organize isso juntamente com o Dornburg.

 

- Sim, senhor comandante.

 

- Boa sorte, Hartmann.

 

Hellersen acompanhou o seu primeiro-imediato até à porta, fechou-a depois atrás dele e voltou para junto da garrafa de uísque. Ao mesmo tempo que voltava a encher o copo, desabafou:

 

- Que grande merda!

 

Existia, a bordo do navio, uma divisão à qual se dera o nome de ”escritório especial”. Fora construído no átrio principal, a estibordo, aproveitando-se o nicho formado pelas casas de banho do restaurante. Era uma sala com muita luz, paredes de vidro e uma porta de vidro que dava acesso ao átrio. Três enormes janelas davam para o mar. Um balcão comprido, no canto da direita, separava o escritório do espaço reservado ao público.

 

Nesse escritório, ao lado de um arquivo de ficheiros, havia uma caixa por onde todas as despesas menos importantes dos passageiros passavam e eram guardadas. É que era frequente no restaurante, nos bares, no convés ou em qualquer outro sítio, os passageiros não pagarem em dinheiro, limitando-se, em vez disso, a assinar as contas, nas quais constavam os seus nomes e números de cabinas, podendo assim liquidá-las só no fim da viagem, ou em qualquer outro momento, no ”escritório especial”. O que, para além de ser mais seguro, facilitava muito a vida aos empregados de bordo. De qualquer forma, ninguém podia fugir e também não era provável que alguém decidisse ficar em terra, aproveitando uma das muitas excursões, por causa de uma despesa de duzentos e cinquenta e quatro ou mesmo de mil marcos, consoante se acompanhava a refeição com água ou com champanhe.

 

Era também ali que, no momento do embarque, se tratava do excesso de bagagem, que se formulava os pedidos de envio de correio, despachados, posteriormente, por ar ou por mar. A maior afluência de passageiros registava-se, normalmente, nos últimos dias da viagem, altura em que, durante dois ou três dias, aquele espaço funcionava como uma segunda casa para Victor ou um seu qualquer substituto.

 

O mais importante era que o ”escritório especial” constituía um espaço único de armazenamento de informações. Não havia nada a bordo daquele navio de que o ”escritório especial” não tivesse conhecimento. Para ali confluíam todas as informações, todas as observações, todas as confidências, por mais pequenas e secretas que fossem, e quer tivessem sido proferidas no convés ou nas cabinas. Ali sabia-se, simplesmente, tudo, sorria-se e calava-se. Quando, de manhã, o Sr. Planner abandonava furtivamente a cabina da menina Heinrich, o episódio era discretamente registado no ”escritório especial”. Quando, às duas da manhã e no bar, os casais Vierack e Bonnerhan combinavam uma troca de parceiros e, mais tarde, a levavam efectivamente a cabo, sorria-se, no ”escritório especial” e pensava-se: ora vejam só, quem teriam imaginado? com aquela idade! Mas o ar que se respira no mar, o iodo contido no sal... Depressa se esquece a idade que consta do bilhete de identidade.

 

Nada passava despercebido ao ”escritório especial”.

 

O canto esquerdo dessa sala servia de depósito para os perdidos e achados. Aí podia ver-se uma mesa de grandes dimensões, com um tampo de vidro, sobre a qual era disposto tudo quanto, durante a viagem, os passageiros haviam abandonado e esquecido algures. Era sobretudo depois dos bailes que os funcionários da limpeza encontravam mais coisas e as entregavam quer ao chefe de pessoal, quer ao segundo-tesoureiro.

 

É difícil imaginar tudo o que se encontra a bordo de um navio. Óculos de sol, cremes, meias, toalhas, livros de bolso (e, entre estes, frequentemente obras do Konsalik, das quais não se sabe se foram esquecidas ou simplesmente deitadas fora), xailes, fitas, atacadores, pentes ou mesmo botões. Mas quem comenta este tipo de coisa? Já o mesmo não acontece quando alguém entrega umas calcinhas de senhora, encontradas num qualquer recanto perdido do navio. Nesses casos, aguarda-se ansiosamente que alguém as venha buscar. Só que é raro que este tipo de objecto seja reclamado, o que se compreende.

 

Naquela viagem, a mesa dos objectos perdidos estava particularmente vazia. Junto de um velho canivete com a lâmina amolgada que já ali estava há mais de dez dias e que o proprietário tinha, pelos vistos, vergonha de vir levantar, sobressaía claramente um outro objecto curioso, uma dentadura. Tratava-se de uma prótese superior com nove dentes. Um empregado tinha-a encontrado no convés dos desportos, por detrás de uma mesa de pingue-pongue.

 

- Confesso que agora estou curioso por ver quem a virá levantar! - disse Victor. - Não acredito que não se tenha apercebido de que esta coisa lhe caiu da boca.

 

Mas ninguém veio buscar a dentadura. Ficou ali pousada em cima do tampo de vidro, sorridente.

 

Ao terceiro dia, Victor mostrou a dentadura ao Dr. Schmitz. Este observou-a atentamente e voltou a pousá-la em cima da mesa.

 

- Consegue perceber isto, doutor? - perguntou Victor. - Ninguém vem levantar a dentadura. Devia-se perguntar no restaurante se há alguém que ande a comer papas há três dias.

 

- Trata-se de uma senhora... na realidade. Essa é uma prótese de senhora. - O Dr. Schmitz apontou para o objecto encontrado. - Repare no tamanho do palato artificial e nos dentes, igualmente pequenos.

 

- É tanto mais surpreendente, nesse caso, que a senhora não a venha levantar. Logo uma senhora...

 

- Justamente por ser uma senhora! - O Dr. Schmitz não viu razão nenhuma para não esboçar um sorriso. Quem sabe durante que tipo de esforço é que essa coisa lhe caiu da boca. Seja como for, está provado que tem consigo uma prótese de substituição. O que é que acontece às coisas que não são levantadas?

 

--Ao fim de um ano, são entregues em Bremerhaven ou em Hamburgo. Aí, são leiloadas e o lucro revertido a favor de organizações de beneficência.

 

- Da prótese não se vêem vocês, tão cedo, livres. A não ser que a senhora a reclame, mais tarde, por escrito, pedindo que lha enviem por correio e evitando, dessa forma, a desagradável situação de a vir aqui levantar. - O Dr. Schmitz fez um sinal em direcção da dentadura: - Vão deixar isso aí em cima da mesa durante a viagem toda?

 

- com certeza, doutor!

 

- Não é um objecto propriamente estético.

 

- Mas é decorativo. - Victor riu-se. Por vezes parecia uma criança a rir. - Uma coisa destas atrai muita gente. Não imagina as piadas que, durante os últimos dias, temos ouvido por estes lados... É absolutamente hilariante.

 

A boa disposição ainda se tornou mais evidente quando, regressado da reunião na cabina do comandante, o imediato Jens Hartmann passou pelo ”escritório especial” para depositar o soutien cor-de-rosa. Nesse momento, Beatrice estava sentada atrás do balcão e lia o programa de actividades para essa manhã. Apontou para a mesa dos objectos encontrados.

 

- Ah! A nossa nova bandeira! - disse, feliz. - Quem a içou deve ter um belo sentido de humor.

 

- Sim, mas o velho está pior do que estragado! E com razão. Anda alguém a fazer de nós gato-sapato e a situação está a tornar-se insustentável. - Hartmann pousou o soutien ao lado da dentadura e apoiou-se no balcão. - Ouve lá, Beatrice, és capaz de descobrir a quem pertence o soutien!

 

- Ora, Lutz! - riu Beatrice, compassiva, e abanou a cabeça. - Se a senhora não se apresentar por iniciativa própria, é impossível descobrir-se a quem pertence. Sê sincero: se fosses uma senhora, virias reclamá-lo? Eu não vinha de certeza!

 

- Então já temos, agora, dois objectos não reclamáveis em cima da mesa. - Hartmann afastou o soutien da dentadura. - Cuidado, que ele ainda te morde...

 

- Não te preocupes. - O riso de Beatrice era de tal forma contagioso que até Hartmann se deixou envolver por aquela atmosfera de boa disposição. - É uma dentadura feminina.

 

- bom, nesse caso... - Hartmann voltou a empurrar a dentadura, colocando-a de forma a que parecesse morder o soutien. - Divirtam-se, minhas senhoras!

 

Embora a boa disposição de Hartmann fosse claramente partilhada tanto por Victor como por Losse, o mesmo já não se podia dizer do comandante Hellersen.

 

Ao fazer, duas horas mais tarde, uma ronda através do navio, Hellersen imobilizou-se diante da parede de vidro do ”escritório especial”, observando, com as sobrancelhas franzidas, a mesa dos objectos perdidos. Por detrás do balcão, estava sentado Victor, que logo se apercebeu da expressão que o comandante fizera. ”Vem aí mais uma descompostura”, pensou, ”tão certo como eu ir, logo a seguir, beber um conhaque.”

 

Hellersen abriu a porta de vidro, mas não entrou. Victor saltou da cadeira. Mesmo quando só a cabeça do comandante podia ser avistada... não havia dúvida de que estava na sala.

 

- Acha graça a isso, Victor? - perguntou Hellersen, tranquilamente. Tanta tranquilidade não se coadunava, de resto, com a expressão que trazia no rosto.

 

- A quê, senhor comandante?

 

- Não se faça de parvo, Victor! À dentadura em cima do soutien!

 

- Ah, sim. Uma coincidência, senhor comandante...

 

- Certamente que não por falta de espaço. A mesa é suficientemente grande e há muito espaço livre.

 

- Sim, senhor comandante.

 

- Gostaria de saber o que vos deu a todos, nesta viagem. Comportam-se como acéfalos. Como está o ambiente entre os passageiros?

 

- Descontraído.

 

- Que quer dizer com isso?

 

- O medo do Klabautermann...

 

- Victor! - bradou Hellersen, austero.

 

-... Mas é verdade, comandante. Desde que o soutien foi visto a flutuar na adriça, todos esperam, sobretudo os homens, que esse tipo de partida se repita. Já não se fala de medo. É um progresso, comandante.

 

- Tenho as minhas dúvidas.

 

- Estamos todos muito satisfeitos por praticamente já não se falar de um passageiro clandestino ou mesmo de um louco. Os passageiros abraçaram a ideia do Klabautermann. Até o senhor Hallinsky abandonou o cordel que o prendia à sua cerveja. Está ansioso por surpreender o Klabautermann no momento em que, furtivamente, este lhe vier beber a cerveja.

 

- Tudo, neste mundo, por muito louco que seja, é susceptível de arrastar uma multidão. Victor, a situação pode inverter-se de um momento para o outro, mal o desconhecido volte a atacar.

 

- É precisamente esse assunto que gostaríamos de discutir consigo. O senhor Hartmann, o senhor Losse, o senhor Tõlle e eu. Temos uma sugestão a fazer-lhe.

 

- Uma sugestão sensata? Se não, é melhor que a não partilhem comigo!

 

- Acho que sim! - Victor recuperou o fôlego. - Pensámos em fazermo-nos passar pelo Klabautermann.

 

- O que é que pensaram? - inquiriu Hellersen, estupefacto.

 

- O raciocínio é simples: se contribuirmos para que continuem a aparecer, a bordo, coisas tão inócuas quanto o soutien na adriça, isso levantará o moral entre os passageiros e poderá desviar a sua atenção de um eventual ataque do desconhecido. Quanto mais séria a situação se tornar, mais importante será que insistamos na figura divertida do Klabautermann. Já imaginou como, mais tarde, os passageiros recordarão os momentos de diversão passados a bordo do navio?

 

- E a companhia ficará absolutamente furiosa. - Hellersen acabou, finalmente, por entrar no ”escritório especial” e encostar-se ao balcão. - E em que objectos estavam a pensar, Victor? Imagino que em coisas arrepiantes.

 

- Inofensivas, comandante. - Victor respirava de alívio. O velho até era, apesar de tudo o que já acontecera, bastante acessível. - Algo do género do soutien.

 

- Seguem-se, portanto, umas calcinhas, não é? A voz de Hellersen era de troça. - Que outra coisa alegrará os homens?

 

- Pensámos, inicialmente, numa peruca, num capachinho, que poderia ser colocado em cima do mastro do segundo aviso. É importante que também as senhoras sejam entretidas.

 

- Muito bem pensado, Victor. - Hellersen não conseguiu impedir-se de esboçar um sorriso. - E onde irá buscar o dito capachinho?

 

- Ao cabeleireiro, onde, num armário, a Manuela guarda uma série deles, resquícios do último Carnaval. Ficarão, assim, mais ocupados, procurando descobrir a identidade daquele que usa capachinho.

 

- O que poderá ter consequências desagradáveis.

 

- Sim, mas desvia a atenção dos passageiros de eventuais novos ataques.

 

- O seu raciocínio não é assim tão descabido, Victor retorquiu Hellersen, pensativo.

 

- Obrigado, comandante.

 

- Sabe que a sua proposta é em muito semelhante à que o Hartmann também me fez? Era, segundo ele, importante que atraíssemos o desconhecido para fora do seu esconderijo, levando a cabo acções semelhantes às que ele pratica. Conseguir-se-ia, assim, não apenas fazê-lo sentir-se inseguro, como ainda levá-lo a cometer uma imprudência.

 

- A... a ideia original foi precisamente do imediato disse Victor, cabisbaixo. - Desenvolvemo-la, depois, em conjunto.

 

- Vejo que andam a conspirar sem o meu conhecimento. Bonito, bonito!

 

- Pretendíamos, antes de mais, amadurecer a ideia, comandante, e só depois solicitar-lhe autorização. A sua queda, provocada por uma casca de banana, mereceu um aplauso generalizado.

 

- Pois isso deixa-me muito satisfeito! - A voz de Hellersen elevara-se mais uma vez. - Eu fico com uma nódoa negra no traseiro, e os senhores acham graça. Também eu me entusiasmarei quando o desconhecido o eleger como o seu próximo alvo, Victor. Há-de perguntar ao Hartmann o que se sente, quando se apanha com uma roldana na cabeça. Essa foi, de resto, a primeira agressão física da autoria desse fantasma. O tipo está a tornar-se cada vez mais perigoso e isso preocupa-me.

 

Hellersen dirigiu-se para a porta, mas acabou, mais uma vez, por se virar.

 

- Quando pensam submeter-me as vossas propostas?

 

- Talvez ainda esta noite, senhor comandante.

 

- E se alguém vos vê a pôr o capachinho em cima do aviso?

 

- Impossível. Também ninguém viu o desconhecido.

 

- Mas esse não pode servir de exemplo. Não é possível ver-se um Klabautermann. Bolas! - Hellersen olhou para Victor e não foi capaz, ao ver a sua expressão de perplexidade, de disfarçar o sorriso.

 

- Escapou-me. Essa vossa palermice acaba por se contagiar.

 

Hellersen abandonou, algo apressado, a sala. Dirigiu-se para ao estúdio de bordo, onde o pivô do telejornal, um conhecido locutor de televisão que seguia a bordo como convidado de honra, preparava o seu programa com base em informações que recebera via rádio. Levantou a cabeça, quando Hellersen entrou, e ergueu-se da cadeira.

 

Peter Hallau era uma das pessoas mais conhecidas da Alemanha. Quem, todos os dias, entra na casa de milhares de pessoas para lhes relatar os mais recentes acontecimentos ocorridos em todo o mundo tem, inevitavelmente, uma imagem indissociável da vida familiar dos seus compatriotas. As pessoas não saberiam o que pensar se, chegadas as vinte horas, o seu sorriso não aparecesse nos seus pequenos ecrãs. E a gripe que, segundo se especularia, o teria debilitado, passaria a ser uma das principais preocupações de toda a nação.

 

Naquele dia, Hallau parecia particularmente abatido. Mas isso nada tinha que ver com o baile que tivera lugar na noite anterior. Os seus motivos eram bem mais graves.

 

- Boas notícias? - perguntou Hellersen, afável, ao entrar no estúdio. - Já se pode saber alguma coisa, senhor Hallau?

 

- Sim, comandante. - Hallau mostrou o seu manuscrito a Hellersen. Fora novamente invadido por um sentimento de revolta que lhe congestionara o rosto. - Veja-me só isto! Os meus resumos noticiosos... esfacelados. Tenho de rescrever tudo.

 

- Mas como é que isso aconteceu? - perguntou Hellersen, perplexo. - Foi aqui, no estúdio?

 

- Não, na minha cabina. Acabei o manuscrito, pousei-o em cima da mesa e fui dar umas braçadas na piscina. Quando regressei, encontrei os pedaços de papel. E aqui, veja bem, comandante: tudo indica que as folhas foram dilaceradas com os dentes. Aqui... aqui pode ver-se nitidamente uma marca deixada pelos dentes... Compreende isto? Eu não!

 

”Agora já não restam dúvidas”, pensou Hellersen. ”Se ainda precisávamos de uma prova, aqui está ela. Incontestável. Temos um louco a bordo! O doutor Schmitz tinha razão.”

 

- Pode ceder-me o manuscrito, senhor Hallau? A voz de Hellersen soou um pouco áspera. - Já transcreveu o texto?

 

- Acabei agora mesmo. - Hallau entregou o manuscrito rasgado a Hellersen. - Aí, na terceira folha... uma impressão nítida deixada pelos dentes... está a ver?

 

Hellersen fez sinal que sim com a cabeça. Era inquestionável que aquilo parecia uma marca deixada por uma dentadura. O desconhecido tinha desfeito o manuscrito com os dentes. Só um louco faria uma coisa dessas.

 

- Confesso que não sei que dizer... - observou Hellersen. - Se isto são efectivamente marcas de dentes, o caso ultrapassa a minha compreensão...

 

- E são, senhor comandante!

 

- Vou mostrar as folhas ao nosso médico de bordo. Tem alguma ideia do que poderá ter acontecido?

 

- Não. Dilacerar um manuscrito com os dentes é um acto completamente absurdo. Não vejo explicação para o fenómeno. É algo que entra no domínio da perversidade.

 

- É caso para dizê-lo. - com todo o cuidado, Hellersen guardou os papéis rasgados no bolso do casaco do seu uniforme. - Vamos analisar este caso com a maior minúcia. Pedir-lhe-ia, no entanto, ainda uma última coisa: que não falasse disto às outras pessoas. Alguém mais está a par do sucedido?

 

- Só o senhor Losse. Mostrei-lhe imediatamente as folhas.

 

- Quando?

 

- Há cerca de dez minutos. Saiu com o propósito de o informar quanto antes.

 

- Então, estará na ponte. Obrigado, senhor Hallau. Posso contar com a sua discrição?

 

- Dou-lhe a minha palavra de honra, comandante.

 

- E eu prometo-lhe que toda esta algazarra a bordo será brevemente resolvida.

 

Losse esperava, efectivamente, na ponte, pelo comandante. Mal o avistou, precipitou-se ao seu encontro. Também Hartmann saiu da sala de navegação.

 

- Comandante! - gritou Losse. - Aconteceu uma coisa incrível.

 

- Já sei. Estive, agora mesmo, com o senhor Hallau. Hellersen bateu no bolso do casaco. - Tenho os papéis rasgados comigo. Meus senhores, façam o favor de me acompanhar até ao hospital. Estou extremamente curioso por saber o que o doutor Schmitz será capaz de determinar com a ajuda do seu microscópio.

 

Hoje, nenhum médico, biólogo, técnico, ou homem da ciência em geral, pode dispensar essa belíssima invenção que é o microscópio. Este revelou-se, de resto, com o passar do tempo, um valiosíssimo instrumento de investigação para quem trabalha no domínio da criminologia. A lista de crimes resolvidos na platina de um microscópio é já considerável: basta, por vezes, um cabelo, uma fibra de tecido, uma amostra de solo, uma lasca de tinta, ou simplesmente um pouco de saliva. O microscópio é objectivo e não sucumbe ao erro humano: aquilo que ali se vê, aumentado cem vezes, não pode ser contestado.

 

E no caso da marca deixada pela dentadura?

O Dr. Schmitz não anteviu nada de bom quando Hellersen, Hartmann e Losse, com os rostos carregados, lhe apareceram no hospital, fora do horário reservado às consultas.

 

- Valha-me Deus! - afirmou, sarcástico. - Declarou-se alguma epidemia? Uma mania da perseguição infecciosa? Em que lhes pode a medicina ser útil? Quem quer ser o primeiro a despir-se e a deitar-se na mesa?

 

- Só alguém de Colónia para, numa situação como a que vivemos actualmente, continuar com esse sentido de humor! - disse Hellersen, tirando, cuidadosamente, do bolso do casaco, os pedaços de folha desagregados. Pousou-os em cima da estreita mesa de operações e olhou, inquiridor, para o Dr. Schmitz. - Trago-lhe aqui algo verdadeiramente absurdo.

 

- Estou a ver. - Schmitz inclinou-se sobre os papéis.

- Foi um acidente, quanto a isso não há dúvidas. Fractura dos ossos, lesões internas, perda de sangue. O doente está manifestamente pálido. Proceda-se, imediatamente, a uma transfusão sanguínea e suture-se as feridas expostas.

 

- Se está à espera que desate agora a rir, está redondamente enganado. - Hellersen contornou a mesa de operações. - Sabe o que isto é, doutor?

 

- Um conjunto de folhas rasgadas. - Schmitz aproximou-se um pouco mais. - O ministro dos Negócios Estrangeiros reiterou hoje, por ocasião da sua visita... o local foi rasgado... a importância das negociações bilaterais como ponto de partida para... novamente rasgado... - Schmitz levantou-se e fez um sinal com a cabeça. - O diagnóstico é indiscutível: trata-se de um dos textos noticiosos do Hallau. Só não compreendo o que faz no meu hospital.

 

- Não lhe ocorre nada, doutor? - perguntou Hartmann.

 

- Os papéis estão rasgados nas extremidades. E...?

 

- Acha a situação normal? - gritou Hellersen.

 

- O que é que eu tenho a ver com o assunto? Esse é um problema do Hallau. O texto não lhe deve ter agradado e voltou a escrevê-lo. Mas, afinal, o que é que há de errado com essas folhas?

 

- O manuscrito foi rasgado com os dentes - respondeu-lhe Hellersen. - Dilacerado com os dentes! Acha normal, doutor?

 

- Dificilmente. Mas é possível que o Hallau se entregue, na intimidade, a comportamentos histéricos. No mundo da televisão, tudo é possível. Devo dizer, aliás, que sempre achei esse Hallau um pouco estranho. E agora está à vista: o homem dilacera os seus próprios manuscritos com os dentes. Algo, diga-se de passagem, que se devia sugerir a alguns autores, pois que nada se perderia.

 

- O Hallau está absolutamente destroçado - interveio Losse, que naquela situação não se sentia muito receptivo às piadas de Schmitz. - Encontrou o manuscrito rasgado na cabina, ao regressar da piscina.

 

- E agora, doutor, queria pedir-lhe - prosseguiu Hellersen com os esclarecimentos - que fizesse o favor de analisar ao microscópio as marcas de dentes deixadas nas folhas.

 

- com certeza, comandante. - Schmitz voltou a inclinar-se sobre os papéis. - Uma coisa: posso garantir desde já que a culpada não é a dentadura dos perdidos e achados.

 

Também aquela piada não vingou. Aquele que, aos olhos de Hellersen, era já um dado adquirido, o facto de um louco andar a aterrorizar o navio, atormentava bem mais os presentes do que estes gostariam de admitir.

 

- Será que pode esquecer, durante cerca de meia hora, que, em Colónia, é membro de uma organização de Carnaval? - perguntou Hellersen, ao mesmo tempo que se sentava num dos bancos que por ali estavam. - Até há bem pouco tempo, todos nós estaríamos dispostos a atribuir algum sentido de humor ao nosso desconhecido, mas a verdade é que, ultimamente, tem vindo a desenvolver uma faceta mais agressiva. Dito por outras palavras: o sujeito começa a ser perigoso. E, pela primeira vez, dispomos de uma pista: esta marca deixada, no papel, pelos seus dentes. Para um criminologista, isto tem o mesmo valor que uma impressão digital.

 

- Devo chamar a sua atenção - disse o Dr. Schmitz com alguma formalidade - para o facto de eu não ser criminologista, mas cirurgião, actualmente médico de bordo de um navio que parece ter sido amaldiçoado por Deus.

 

- bom, a situação também não é assim tão grave. Hartmann deu uma palmada nas costas do médico. - Bolas, Lutz, senta-te lá ao microscópio e analisa-me essas impressões.

 

- E a que conclusões se pretende, exactamente, chegar?

 

- Antes de mais: estamos a lidar com um homem ou com uma mulher? - disparou Hellersen. - Quando soubermos isso, teremos reduzido substancialmente as possibilidades. Em segundo lugar: a mordedura indica que a pessoa tem dentes irregulares? Na terceira folha dispomos, num sítio em que o papel não chegou a ser rasgado, de uma belíssima marca do conjunto da dentadura. Aí, estaremos em condições de excluir mais umas quantas possibilidades.

 

- E o que acontecerá depois? Pretende dispor todos os passageiros em fila e pedir-lhes que lhe mostrem os dentes?

 

- Consegue fazer-me um molde de gesso da dentadura?

 

- A partir do papel... não.

 

- A polícia criminal fá-lo-ia com certeza.

 

- Repito-lhe, comandante: a minha especialidade não é a criminologia, mas...

 

- Já sei, já sei! - Hellersen fez-lhe um sinal com a mão. - Pensei apenas que uma pessoa que coloca ligaduras de gesso saberia também fazer moldes...

 

- São coisas completamente distintas... um dentista saberá, eventualmente, fazê-lo. Pela minha parte, apenas lhe posso dispensar o gesso de que disponho em armazém. Quanto a dentistas, deve haver pelo menos vinte a bordo deste navio. É uma questão de partilhar o segredo com um deles.

 

- Não me parece uma má ideia - interveio Losse, em tom elogioso.

 

- As minhas ideias nunca são más, senhor Losse...

 

- Mas primeiro o microscópio, doutor! - Hellersen apontou um aparelho coberto por uma capa hermética. Qual é a capacidade de ampliação dele?

 

- Até quinhentas vezes.

 

- E chega?

 

- Chega para ver as bactérias que traz nos intestinos, comandante.

 

O Dr. Schmitz deslocou-se até à bancada do laboratório, afastou a cobertura de plástico e, puxando um banco, sentou-se diante do microscópio. com todo o cuidado, Dornburg entregou-lhe os pedaços de papel rasgado, como se estes fossem feitos do mais delicado cristal. Schmitz pegou na terceira página, segurou-a junto da lâmpada e ligou o sistema de iluminação direccionada do microscópio.

 

- Isto não passa de uma parvoíce - opinou, mal-humorado. - A única coisa que posso fazer com o microscópio é analisar cada uma das fibras e dizer-vos se o papel foi, ou não, feito com celulose. Seria muito mais eficaz tirarem uma fotografia da impressão no laboratório de fotografia, e mandarem-na ampliar dez vezes.

 

- Mais uma vez, é capaz de ter razão - disse Hartmann.

 

- Mas a verdade é que eu não sou assim. - O médico pousou uma das impressões deixadas no papel na platina do microscópio. - Não me importo de fazer o que me pediram.

 

Fez depois rodar a ocular, olhou através desta última e procurou obter uma imagem focada. Optou, finalmente, por ampliar a imagem vinte vezes e observou-a durante algum tempo. Na sala, reinava um silêncio absoluto... Hellersen, Hartmann, Losse e Dornburg quase que sustinham a respiração.

 

- Ah! - disse finalmente Schmitz.

 

Hellersen inclinou-se para ver melhor. A expectativa era imensa.

 

- O que é que encontrou, doutor?

 

- Nada.

 

- Então, a que se ficou a dever esse ”Ah!”?

 

- ”Ah!” significa: ”Não sei como não pensei nisto antes.” De qualquer forma, uma coisa é certa: o nosso mordedor desconhecido possui uma dentadura forte com uma ligeira infra-oclusão.

 

- Bravo! - Hellersen saltou do banco. - Já é alguma coisa. Trata-se portanto de um homem?

 

- Eu diria que sim. Uma senhora com uma dentadura como esta teria de ser descendente da Eleanore Roosevelt...

- Schmitz levantou os olhos do microscópio. - Uma senhora com estas características não passaria despercebida no navio.

 

- Um homem, portanto! Disso temos agora a certeza.

 

- Há muito que o poderíamos ter concluído! Não temos sido muito perspicazes, meus senhores. Ou será que alguém acredita que uma senhora seria capaz de atirar uma roldana tão pesada à cabeça do nosso imediato?

 

- Os loucos podem desenvolver uma força tremenda. O senhor, como médico, sabe-o perfeitamente, doutor.

 

- Ainda assim, uma senhora nunca içaria um soutien como se de uma bandeira se tratasse. - Schmitz voltou a pousar o manuscrito rasgado em cima da mesa de operações, desligou a luz direccionada do microscópio e voltou a cobrir o aparelho com o plástico hermético. - Proponho que ampliem a imagem no laboratório de fotografia, que consultem um dentista e lhe peçam uma opinião. Ficaremos assim a saber muito mais, nomeadamente se o desconhecido ainda tem os dentes todos. Será que isso lhe chega?

 

Hellersen nunca fora muito receptivo em relação ao cinismo. E, naquelas circunstâncias, ainda menos. Em silêncio, pegou nas folhas que estavam em cima da mesa de operações, voltou a guardá-las no bolso do seu uniforme e pôs-se a caminho da porta.

 

- Vamos, meus senhores! - proferiu, com uma voz trémula. - Se não for para tratar de algum caso de gonorreia tropical, o médico de bordo de nada nos pode valer. Obrigado, doutor.

 

Abandonou o hospital e os oficiais seguiram-no, todos em silêncio. Schmitz acompanhou-os com o olhar e abanou a cabeça. Depois foi para a sua secretária, abriu o livro de relatórios diários e escreveu:

 

”Observação microscópica de uma impressão dentária num pedaço de papel: uma dentadura grande e forte. Pergunta: Que tipo de dentadura terá o Klabautermann?”

 

Que loucura, pensou, ao reler o que acabara de escrever. Que loucura! Riscou a última frase e substituiu-a pela seguinte: ”A suspeita de que se trata de um paranóico parece cada vez mais evidente.”

 

Fechou o livro dos relatórios, encostou-se para trás e disse à enfermeira Emmi, que acabara de enfiar a cabeça pela porta da sala:

 

- Emmi, minha fadazita... traga-me depressa uma cerveja grande e uma aguardente quádrupla.

 

Era como se um novo bacilo chamado criminologia se tivesse manifestado a bordo daquele navio. Ainda desconhecido dos passageiros, alastrara no seio da tripulação. Victor e Beatrice, mais do que os restantes, haviam sido contaminados.

 

Embora não soubessem da história do manuscrito rasgado do locutor de televisão Hallau, ocupavam-se ambos, intensamente, do problema do soutien. É que surgira, entretanto, um elemento totalmente novo: Beatrice descobrira um monograma, bordado, na presilha do meio, com fio de seda cor-de-rosa.

 

  1. M.

 

Quem era W. M.?

 

- Isso descobre-se em dez minutos! - disse Victor, vitorioso. - Basta analisarmos a lista de passageiros. Depois, passamos todos os Ms a pente fino.

 

Seguiam, a bordo daquele navio, exactamente dezassete pessoas cujo nome começava com um M. Desde Mabner até Myllermann. Dois, no entanto, eram de excluir, uma vez que eram homens e solteiros. Sobravam, portanto, quinze: doze casais e três senhoras solteiras.

 

Victor telefonou imediatamente ao comandante e comunicou-lhe a descoberta de Beatrice.

 

- Entre as quinze senhoras em questão, deve ser possível descobrir a proprietária do soutien - disse Victor, orgulhoso.

 

- E o que é que ganhamos com isso? - perguntou Hellersen, menos entusiasmado do que Victor previra.

 

- Poder-se-ia, assim, determinar em que circunstâncias o soutien foi parar à adriça, isto é, onde é que a senhora o ”perdeu”.

 

Aquele ”perdeu” fora dito num tom claramente malicioso.

 

- E acredita que a senhora em questão lho dirá, Victor?

 

- A mim certamente que não, mas à Beatrice.

 

- E como pretende reconhecer a senhora certa, entre as quinze que me referiu?

 

- Também isso ficará a cargo da Beatrice. Os tamanhos do soutien e da copa constam da etiqueta; só precisamos, agora, do olhar feminino e treinado da Beatrice, para que possamos dizer: deve ser aquela. O soutien serve-lhe perfeitamente... Número cinco, copa C! Não é qualquer uma! É muito espaço...

 

- Não pretendo ouvir os seus conhecimentos nesse domínio, Victor, mas antes sugestões sensatas. - Embora Hellersen falasse num tom de voz manifestamente crítico, era, por vezes, possível ouvir um concomitante riso abafado. Victor tinha a certeza de que, do outro lado, Hellersen ria.

- E o que é que fará se a senhora apontada pela Beatrice negar tudo? Se esta garantir que não lhe desapareceu nenhum soutien!

 

- O monograma W. M., comandante.

 

- Esse aplica-se, como já teve a gentileza de me explicar, a quinze senhoras.

 

- com M, senhor comandante. O W que o precede é que faz toda a diferença. As quinze senhoras não têm, seguramente, todas um W no nome.

 

- Parece-me evidente. Mas e se W. não usar o tamanho cinco, copa C?

 

- Senhor comandante, agora está a querer complicar as coisas. Isso é impossível. Se a senhora Wera Mederer...

 

- O nome Wera escreve-se com um V, Victor. Como o seu. com um V!

 

- Senhora Wera Mederer escreve-se com um W, comandante. É assim que consta da lista de passageiros.

 

- Então já a encontraram, pelo menos em teoria?

 

- Não. - A julgar pelo tom de voz, Victor parecia agora já menos animado. - Existe, ainda, uma senhora WiIhelmine Mõller...

 

- Parabéns! - Desta vez, Hellersen teve mesmo de soltar uma gargalhada. - com a escolha que tem... Pois agora escolha, Victor.

 

- A senhora Wilhelmine Mõller tem sessenta e seis anos, senhor comandante.

 

- Conhece, certamente, o provérbio popular: quem envelhece, arrefece...

 

- A senhora Wera Mederer tem trinta e nove anos.

 

- E é nessa Wera com um W que aposta, naturalmente.

 

- Se me guiar pela lógica e pela minha experiência de vida, senhor comandante...

 

- A sua experiência de vida, Victor!

 

- Exactamente! - Victor pigarreou. O seu charme era, a bordo daquele navio, tão invejado quanto famigerado; e, no final de cada viagem, lá voltava ele a repetir com alguma desolação: ”Que culpa tenho eu se as senhoras não me largam... Nada faço para que assim seja. Limito-me a estar e a observar. E sou atencioso.” Mas da forma como olhava para as mulheres e como as seduzia, tirando proveito da sua cortesia, não falava.

 

- Qual é, então, o vosso plano? - perguntou Hellersen. Estava impaciente, pois ainda não lhe chegara às mãos a ampliação que mandara fazer no estúdio de fotografia. Losse, entretanto, procurava pôr o Dr. Schwengler, um dentista de Wuppertal, ao corrente dos mais recentes acontecimentos. Naturalmente que com um pedido muito especial, no sentido de que respeitasse o segredo profissional. A administração do navio havia-se decidido pelo Dr. Schwengler, não apenas por este ser uma referência no domínio da cirurgia maxilar, mas ainda porque, com os seus setenta e dois anos, podia também contribuir com a sua vasta experiência de vida.

 

- A Beatrice procurará, antes de mais, conquistar a simpatia da senhora Wera Mederer e dar uma vista de olhos num dos seus soutiens.

 

- Se o problema não fosse tão sério, desataria já a rir!

- disse Hellersen, com algum desespero na voz. - Victor, não é um soutien que aqui está em questão... temos um louco a bordo! Esse é um facto relativamente ao qual temos, desde há algumas horas, certeza absoluta!

 

- Quem sabe se o senhor Mederer não é louco?

 

- E se continuarmos assim, também nós perderemos o juízo! - gritou Hellersen, desligando o telefone.

 

Victor olhou para o auscultador, encolheu os ombros e estendeu-o a Beatrice, que o pousou no descanso.

 

- Que foi que te disse? - perguntou.

 

- Gritou que, não tarda, estaremos todos loucos...

 

- E olha que é capaz de ter razão. - Beatrice dobrou o soutien e guardou-o num saco de plástico colorido, no qual se podia ver a imagem de um navio. - Se eu fosse a Wera ou a Wilhelmine, não diria absolutamente nada, nem que me ameaçassem cortar-me aos bocados!

 

O Dr. Hans-Jakob Schwengler, que se encontrava hospedado na cabina 143, disponibilizou-se imediatamente para dar a sua opinião relativamente às marcas de dentes encontradas no manuscrito de Hallau. Ficara visivelmente melindrado por Losse, ainda que discretamente, lhe ter chamado a atenção para o seu dever, enquanto médico, de guardar segredo profissional relativamente a todo aquele assunto.

 

- É evidente - disse -, esse é um problema que nem se coloca. Dispõem, portanto, numa folha de papel, de uma impressão dentária bem visível, e estão convencidos de que se poderá tratar de uma marca deixada pelos dentes do Klabautermann...

 

- De um desconhecido, doutor, o qual, por sua vez, está provavelmente na origem de toda esta agitação gerada a bordo. Essa coisa do Klabautermann não passou de uma brincadeira da Beatrice. Os duendes não têm dentes.

 

- Então como é que comem?

 

Losse preferiu não responder. Não tinha a certeza se, apesar da seriedade com que o fizera, o Dr. Schwengler pretendera apenas dizer uma graça, ou se efectivamente acreditava no que dissera. É preciso ter-se muito cuidado com os médicos, que o seu sentido de humor confunde-se muitas vezes com cinismo.

 

- Onde está o corpus delicti? - perguntou o Dr. Schwengler.

 

- com o comandante?

 

- E onde está o comandante?

 

- Nos seus aposentos.

 

- Sugerir-lhe-ia, então, que seguíssemos directamente para lá, para ver se ainda me despacho a horas da próxima refeição. - Vestiu o seu casaco azul-escuro, confirmou, ao espelho, se a discreta gravata listada que trazia estava bem posta e olhou para o relógio. Temos meia hora.

 

Selma, a sua esposa, estava no cabeleireiro, algo que fazia, de resto, dia sim, dia não: lavava os cabelos com uma solução nutritiva, secava-os e, se necessário, aparava as pontas. Depois, quando Selma Schwengler regressava, acontecia invariavelmente a mesma coisa: irritava-se porque o seu marido, Hans-Jakob Schwengler, nem sequer lhe dizia: ”Hoje, os teus cabelos estão muito bonitos.” Mas o Dr. Schwengler não a levava, normalmente, a sério. Quando confrontado naqueles termos, limitava-se a resmungar: ”Eu sou dentista, não estilista.”

 

Quando se está casado com a mesma pessoa há já quarenta e quatro anos, aprende-se a aceitar este tipo de resposta.

 

Visivelmente expectante, o comandante Hellersen fez questão de receber o Dr. Schwengler à porta da sua cabina. O laboratório de fotografia acabara de trazer as ampliações. Eram fotografias espantosas, nas quais se conseguia ver, com toda a nitidez, as marcas da dentadura. O fotógrafo acrescentara-lhes alguma cor, dando, dessa forma, algum relevo à mordedura. Hellersen elogiara-o, e o jovem fora-se embora cheio de orgulho.

 

- Fico muito satisfeito por nos querer ajudar - cumprimentou Hellersen o Dr. Schwengler. - O senhor Losse já lhe terá, certamente, falado do nosso problema.

 

- Sei apenas que alguém rasgou o manuscrito do senhor Hallau com os dentes.

 

- O que, convirá, não é muito normal.

 

- Acha? - O Dr. Schwengler encolheu os ombros, como que insinuando não partilhar da opinião do comandante.

 

- Se eu tivesse um temperamento um pouco mais colérico, provavelmente também dilaceraria o que esse senhor Hallau nos impinge todas as noites. Acontece que alguém terá perdido a paciência.

 

- Dilacerar, ainda lho concedo. Mas com os dentes...

 

- Hellersen abanou a cabeça. - O indivíduo deve ser louco.

 

- Não necessariamente. Um ataque de nervos pode manifestar-se das mais variadas formas. Há quem, pura e simplesmente, se afaste e há quem se ponha a morder tudo o que o rodeia.

 

Hellersen lançou um olhar a Losse no qual transparecia a dúvida relativamente à competência do Dr. Schwengler. Permaneceu, no entanto, calado. Dirigiu-se para a sua secreI tária, pegou na terceira folha do manuscrito de Hallau e na ampliação e pousou-as em cima da mesa da sala de estar, à frente do Dr. Schwengler.

- Confesso-me curioso.

 

Schwengler pegou na folha de papel, segurou-a em contraluz e observou-a, em silêncio, durante algum tempo. Pegou, depois, na ampliação, analisou-a durante breves segundos e fez um sinal com a cabeça.

-Bolas... - limitou-se a dizer.

Hellersen passou a mão pelo rosto.

- Isso não me soa nada bem.

-Porquê?

 

- O seu colega, o médico de bordo, depois da observação que fez, disse: ”Ah!” Rendeu-se, depois, sugerindo que consultássemos um dentista.

 

- Um bom conselho.

 

- Agora, é o dentista quem diz: ”Bolas”.

 

- E que mais poderei acrescentar? Sem medições ou comparações mais aprofundadas, o homem precisa de se sujeitar, com a maior urgência, a um tratamento. Esta dentadura é simplesmente deplorável. - Segurando a ampliação com uma das mãos, o Dr. Schwengler apontava para a fotografia, ao mesmo tempo que explicava: - Veja aqui. Os dentes, na maxila inferior. Completamente irregulares e, em parte, inclinados. Os dentes da maxila superior, esses, estão numa miséria: comprimentos diferentes, alguns são anormalmente largos... Meu Deus, aqui está uma pessoa que eu não me importava de ver. A menos que tenha um rosto arredondado, com tudo isto somado, deve ter um aspecto completamente deformado. - Schwengler atirou a ampliação para cima da mesa. - Tratar deste doente deve ser, para qualquer dentista, um verdadeiro desafio! Tem algum passageiro a bordo que tenha a cara deformada, comandante?

 

Hellersen olhou para o seu tesoureiro.

 

- Losse, temos?

 

- Sim... - respondeu Losse, hesitante.

 

- Sim? - exclamou Hellersen, quase que gritando. E é só agora, Losse, que mo comunica?

 

- Nunca se tinha falado; até agora, de qualquer deformação, senhor comandante.

 

- Como é que se olha para uma dentadura como esta e não se pensa nessa possibilidade?! - Hellersen não se lembrou de que também ele não tinha nunca chegado a essa conclusão.

 

- Quem é?

 

- Um senhor acima de toda e qualquer suspeita, comandante?

 

- Quem?

 

- O cônsul-geral Hardwig Fehrenwaldt...

 

- Os títulos e os estatutos sociais não têm, quando se lida com um louco, qualquer importância! - interrompeu o Dr. Schwengler.

 

- O senhor cônsul Fehrenwaldt trouxe da guerra um ferimento no rosto. - Losse sentia-se visivelmente ultrajado.

- Contou-mo pessoalmente. Foram necessárias trinta e quatro operações, para lhe reconstituir o rosto. Ainda se nota um pouco, mas ele disfarça-o, usando óculos grandes. Além disso, o cônsul é um cliente habitual, tendo já viajado connosco mais do que uma vez.

 

- Bom, mas isso não significa nada. - O Dr. Schwengler abanara a cabeça em sinal de discordância. - Um ferimento no rosto... provavelmente em consequência da explosão de uma granada. Vi muitos casos desses no hospital de Minsk. Todos os dias davam entrada inúmeros feridos. Enquanto cirurgião maxilar, recebia muitos deles na minha divisão. Homens verdadeiramente lamentáveis. Tinham, todos eles, pela frente, vários anos de operações, pois que esse tipo de tratamento tem várias fases. Cada um daqueles rostos tinha de ser reconstituído. Esses eram, de resto, a meu ver, os piores ferimentos. É perfeitamente possível viver-se sem um perna. Ou um braço. Os ferimentos no corpo, por sua vez, deixam cicatrizes que podem facilmente ser dissimuladas por baixo das roupas. Mas um rosto desfeito... é terrível! Nesses casos, é sobretudo fundamental que se tenha muita força interior. - O Dr. Schwengler fez, nesta altura, uma pausa maior, que Hellersen e Losse aproveitaram para acender os seus cigarros. - Raciocinemos friamente: suponhamos que o senhor Fehrenwaldt passou, recentemente, a sofrer de efeitos secundários relacionados com o seu ferimento. Não seria um caso inédito. Devido a um estímulo qualquer, o álcool, ou, pura e simplesmente, a stress psicológico, algo se altera no seu cérebro. Talvez até já tivesse sofrido uma lesão cerebral, não sabemos. E nesse estado do desdobramento da personalidade, comete-se frequentemente actos de que, no dia seguinte, não se faz ideia nenhuma. Absolutamente nenhuma. Poderia dar-lhe alguns exemplos retirados da minha experiência pessoal enquanto médico. Há uns tempos atrás, acabara de tirar um dente infectado a um paciente, o quinto superior esquerdo, quando, ao sair, o rapaz se pôs a delirar de tal forma que foram necessários quatro homens para o segurar e amarrar. Mais tarde viríamos a saber que, durante a guerra, tendo-se refugiado num abrigo subterrâneo, fora atingido na cabeça por uma das vigas da estrutura. A extracção do dente despertara nele o pânico e o medo da morte. - O Dr. Schwengler acenou várias vezes com a cabeça. - O homem é a criatura mais complexa que existe ao cimo da terra.

 

- E o senhor acha que... - Hellersen puxou, nervoso, mais um cigarro. - Acha que o cônsul Fehrenwaldt pode...

 

- Nada é impossível, comandante.

 

- Mas seria terrível!

 

- Acho que é completamente impossível! - Losse abanava, decidido, a cabeça. - A teoria é, a meu ver, completamente descabida.

 

- Estou apenas a formular hipóteses! - disse Schwengler, que se ofendera mais uma vez. - Não posso afirmar nada de definitivo, sem antes observar a dentição do cônsul. Se for compatível com a mordedura encontrada... Meus senhores, na criminologia existem fundamentalmente duas provas essências: a impressão digital e a dentição. com ambas é possível determinar a culpabilidade ou inocência de qualquer um. - Levantou-se de repente do sofá. - Precisa do meu conselho relativamente a mais alguma questão?

 

- Sim. - Hellersen apagou o cigarro no cinzeiro de vidro. - Como é que consegue que o senhor Fehrenwaldt lhe mostre a dentição?

 

- Parece-me que esse é um problema seu, comandante. Eu, pela minha parte, já lhe sugeri a pista do trauma de guerra.

 

- Nesse caso, estamos conversados. - Hellersen estendeu a mão ao Dr. Schwengler. - Estou-lhe muito grato, doutor.

 

- Gostaria de poder ajudá-lo um pouco mais, comandante, se o problema não fosse tão complicado e desprovido de sentido. Admitindo que esse cônsul Fehrenwaldt dilacerou, efectivamente, o relatório de Hallau... dever-se-ia, nesse caso, congratulá-lo por isso... dificilmente se poderá afirmar,

da mesma forma, ter sido ele quem bebeu a cerveja do senhor Hallinsky, quem roubou, na pastelaria, os bolinhos de

fruta, ou quem fazia ginástica no topo do mastro de sinalização.

 

- Subsiste, no entanto, a pergunta: porque não haveria um esquizofrénico, durante um dos seus ataques, de beber as cervejas dos outros, arramar cadeiras de repouso, roubar bolinhos ou atar um xaile a um turco? - Essa seria, mais uma vez, uma actividade desportiva para a qual o senhor cônsul já não teria capacidade - interveio Losse. - Dificilmente lhe poderíamos atribuir um feito desses.

 

- E, com isto, somos mais uma vez remetidos para uma teoria que tanto o doutor Schmitz, como o Hartmann, sempre defenderam: lidamos com dois autores! - Hellersen recuperou o fôlego. Era agora inevitável reconhecê-lo claramente. - E é precisamente ao segundo indivíduo que deverá ser atribuído o içar do soutien, pois que tal também não se coaduna com a figura do nosso cônsul.

 

- Aí é que a inocência do cônsul já não me parece assim tão evidente. - O Dr. Schwengler sorriu, com algum atrevimento. Quando os homens falam deste tipo de coisa, os seus rostos iluminam-se sempre de alegria. É que a pergunta essencial que surgia era a seguinte: onde é que o autor

da proeza tinha arranjado o soutien!

 

- A Beatrice já está no terreno. Procura actualmente esclarecer esse enigma.

 

- Um empreendimento votado ao fracasso.

 

-Nem por isso. Dispomos agora de indícios absoluta mente indesmentíveis.

 

- Ora vejam! - O Dr. Schwengler fez um sinal de aprovação a Hellersen. - Parece que o puzzle começa a ganhar forma.

 

- Parece que sim. - Hellersen olhou para o relógio de bordo pendurado na parede, uma prenda oferecida pelos colegas comandantes da EUROPA, que, como ele, haviam estado, na mesma altura, ancorados em São Francisco.

 

- Tem de se despachar, doutor, dentro de dez minutos tem início a segunda refeição. A sua esposa estará já impaciente e interrogar-se-á provavelmente onde o poderá encontrar.

 

- Dir-lhe-ei que houve uma emergência. Uma pulpite. E que o médico de bordo solicitou a minha ajuda. Parece-me plausível. - O Dr. Schwengler esboçou uma ligeira vénia. - Se voltarem a precisar de mim, saibam que me encontro à vossa disposição.

 

Hellersen esperou que Losse acompanhasse o Dr. Schwengler até à escadaria principal. Andava, irrequieto, para lá e para cá e estava novamente a fumar. Dessa vez uma das suas queridas cigarrilhas.

 

- Que lhe parece, Losse? - perguntou, quando este regressou.

 

- Sinto-me tentado a excluir o cônsul Fehrenwaldt do nosso raciocínio, senhor comandante.

 

- Mas e se a sua dentadura coincidir com a encontrada na folha de papel?

 

- Isso terá, antes de mais, que ser provado.

 

- Mais ninguém a bordo tem uma dentição com estas características...

 

- O Klabau...

 

- Losse!

 

- Perdoe-me, comandante. - Losse aceitou o copo de uísque que o comandante lhe oferecera e bebeu um longo gole. - Ainda assim, mesmo que excluamos o cônsul da nossa lista de suspeitos, resta-nos ainda o segundo autor. O desconhecido que atingiu a cabeça do Hartmann com a roldana. Que bebe cerveja, anda a roubar no armazém e na pastelaria e que, à noite, se arrasta pelo navio e espalha cascas de banana.

 

- E esse, era capaz de apostar, é um passageiro clandestino! - disse Hellersen, seguro de si. - Só alguém que tem fome e sede se comporta dessa maneira. Bolas, temos de ser capazes de encontrar um passageiro clandestino. Não existe a bordo nenhum recanto que não conheçamos.

 

- Deve estar a utilizar o velho truque que consiste em mudar diariamente de poiso. Dorme, uma vez, num dos barcos de salvação, outra vez na proa, depois nas câmaras que, no convés, albergam os suportes das cadeiras de recosto e as toalhas. Até as casas de banho dos conveses constituem um bom esconderijo, tendo em conta que, durante a noite, ninguém as utiliza... Existem muitos sítios, comandante.

 

- Então, há que vigiar esses sítios todas as noites, e desde já! Para que tenho eu uma tripulação de trezentos e cinquenta homens a bordo?

 

Losse achou que não valia a pena explicar a Hellersen o trabalho que aquelas trezentas e cinquenta pessoas tinham durante uma daquelas viagens de luxo, de sol a sol, isto é, vinte e quatro horas por dia. É verdade que se organizavam por turnos, mas mesmo assim... cuidar de seiscentos passageiros é, por si só, um trabalho extremamente cansativo. Representa suportar inúmeros insultos, muitas vezes incríveis, e permanecer sempre correcto, sempre atencioso, sempre sorridente. As gorjetas, normalmente vistosas, eram bem merecidas. Não podia, por isso, pedir-lhes que, para além disso, vigiassem ainda o navio durante a noite. Isso implicava que trabalhassem fora dos seus horários, sem receber mais, e era consequentemente uma questão que tinha de ser discutida em conselho. Afinal o sindicato estava representado a bordo e este, por princípio, opor-se-ia imediatamente. Um sindicato que aprova um acréscimo de trabalho, só no país das maravilhas...

 

- Vamos providenciar o patrulhamento, comandante disse Losse, procurando pôr um termo àquela conversa. Espero, no entanto, que toda esta confusão acabe com a nossa chegada a Singapura. O mais certo é o passageiro clandestino abandonar o navio.

 

As investigações de Schwengler e de Beatrice seguiam rumos totalmente distintos.

 

Enquanto que o dentista, entretanto contaminado pela febre da caça, aproveitava o jantar do restaurante para se aproximar do cônsul Fehrenwaldt, Beatrice fazia aquilo que uma hospedeira estava absolutamente proibida de fazer e que lhe podia valer um despedimento imediato, caso fosse apanhada: decidira aproveitar o facto de as senhoras estarem sentadas à mesa, para inspeccionar as cabinas de Wera e de Wilhelmine. Os camareiros então de serviço, obedecendo ao lema ”nada ver, nada ouvir”, reagiram ambos de forma cooperativa. Os dois funcionários evitavam, durante o período combinado, aproximar-se das cabinas revistadas por Beatrice, continuando a fazer camas, a dispor, de forma artística, os pijamas e as camisas de noite sobre os edredões dobrados, enchendo os baldes de gelo, colocando fruta fresca no cabaz, esvaziando os cestos do lixo e, se solicitado, colocando champanhe no frigorífico e um bombom de chocolate sobre cada uma das almofadas.

 

A possibilidade de Beatrice ser surpreendida estava totalmente posta de lado. O jantar, a bordo de um navio, constitui uma espécie de culto profano: quem quer que se encontre já sentado à mesa, com a espantosa ementa do dia à sua frente, sempre inovadora e surpreendente, um passageiro a quem tenha sido prontamente servido o vinho, sempre à temperatura ideal (o branco seco, frio, e o tinto maduro, à temperatura ambiente), dificilmente se lembrará de abandonar a mesa e regressar à sua cabina. Só um motivo da maior importância os afastaria da ementa.

 

Assim, àquela hora e em todos os andares, os acessos às cabinas estavam desertos, calmos... Beatrice não corria, por isso, qualquer tipo de risco.

 

Começou pela cabina de Wera Mederer. Uma cabina bastante caótica. Havia peças de roupa pousadas um pouco por todo o lado, vestidos e vestuário de noite pendurados em cabides e nas chaves dos armários, sapatos espalhados pelo chão e ainda collants amarrotados atirados para cima de uma poltrona que havia ao lado da janela.

 

Mas porque as mulheres sabem todas muito bem onde se guarda um soutien, Beatrice não perdeu muito tempo a revistar os armários, abrindo, em vez disso e antes de mais, a gaveta de cima da cómoda. O palpite estava certo: semelhantes a soldados em formatura e, portanto, em claro contraste com o caos reinante no resto da cabina, podia ver-se, ali, perfeitamente alinhados, soutiens de todas as cores. Ao lado, organizadas em pequenas pilhas, as cuecas.

 

Beatrice tirou um soutien da fila, olhou para a etiqueta e voltou a pousá-lo. Tamanho 5, copa C... em cheio. Não encontrara, no entanto, o monograma W. M. O que é que isso provava: Wera podia ter mandado bordar, a título excepcional, apenas aquele soutien rosa-vivo.

 

Abandonou rapidamente a cabina do casal Mederer, comunicou ao camareiro Eduard que já estava tudo resolvido e subiu para o andar de cima, onde ficava o quarto dos Mõller.

 

Também aí não foi preciso procurar muito: gaveta de cima da cómoda, fila de soutiens ao lado das cuecas. Por uma razão qualquer, as senhoras parecem ter, no que diz respeito aos seus hábitos, muita coisa em comum.

 

Conforme previsto, Beatrice encontrou a mesma coisa que no quarto de Wera. Tamanho 5, copa C. No entanto...

 

Cada um dos soutiens tinha bordado o monograma W. M.

 

Beatrice tirou o soutien cor-de-rosa do saco e comparou os bordados. Não havia dúvida: a letra era a mesma, o bordado também... ligeiramente floreado, romântico, irreflectido...

 

Wilhelmine Mõller, portanto! Beatrice sentou-se na poltrona, ao lado da janela. Apeteceu-lhe um licor de framboesa. Contrariamente à cabina dos Mederer, esta encontrava-se meticulosamente arrumada. Não se via nada espalhado ou pendurado nas paredes. Até os inúmeros prospectos coloridos trazidos dos portos entretanto visitados estavam dobrados em cima da mesinha-de-cabeceira.

 

Wilhelmine Mõller, sessenta e um anos, esposa do arquitecto paisagístico Julius Mõller de Ulm. Uma senhora que aparentava ter menos de sessenta e um anos, inteligente, sedutora e discreta, sempre elegantemente vestida, espectadora atenta dos frequentes concertos organizados a bordo, a única que, na biblioteca de bordo, requisitava Kafka ou Dos Passos e, contrariamente à maioria dos restantes leitores, desprezava Konsalik (sinal de que dispunha de uma elevada formação cultural). E era esta senhora que usava o soutien que, de manhã, fora visto adejar, preso à adriça?

 

Beatrice tinha dificuldade em estabelecer aquela relação.

 

No caso de Wera, ter-lhe-ia sido mais fácil aceitar o facto. O aspecto caótico do seu quarto, só por si, convenceria qualquer um que Wera pudesse ter perdido o soutien ou simplesmente, e não interessa em que circunstâncias, o pudesse ter pousado nalgum sítio e acabado por esquecer. O facto de uma senhora perder o soutien, não está necessariamente relacionado com uma qualquer aventura de carácter erótico: era, por exemplo, possível que tivesse ido dar umas braçadas na piscina, à noite, e que, ao regressar à cabina, agasalhando-se com um roupão, tivesse esquecido o soutien. Quando, mais tarde, tivesse dado pela falta deste, há muito que flutuaria ao vento, entre as bandeirolas.

 

Mas, então, quem é que tinha içado o soutien?

 

Beatrice voltou a fechar a gaveta e abandonou a cabina. Riccardo, um camareiro italiano, saiu da cabina do lado, onde permanecera, entretanto, vigilante.

 

- O soutien é da senhora Mõller? - perguntou.

 

- Pareces ter uma estranha noção dos tamanhos, Ricco.

- Beatrice tocou-lhe com o indicador no nariz. - De resto, é um segredo policial.

 

- Eu sei tudo! - disse Riccardo, esboçando um enorme sorriso. - Mais do que vocês...

 

Beatrice ficou desconfiada. O que saberia Riccardo de facto?

 

Um camareiro ouve, vê e cala muita coisa. Alguém que conseguisse entrevistar um desses profissionais experimentados ficaria certamente chocado com o que este teria para lhe contar. Uma viagem daquelas vista pelos olhos de um camareiro é coisa para transtornar qualquer um... Foi também por saber tudo isso que Beatrice aguçou o ouvido quando Riccardo afirmou saber mais do que os outros.

 

- O que é que tu sabes, Ricco? - perguntou, ao mesmo tempo que o empurrava para o interior da cabina e fechava a porta atrás de si. - Vá, toca a falar!

 

- É segredo policial - sorriu Riccardo. - Tal como o teu.

 

- Não queres dizer-me?

 

- Não. O Riccardo é um computador mudo. - O camareiro tocava agora com o indicador na testa. - Está tudo aqui dentro. Ninguém tem acesso.

 

- Posso sempre chamar o Victor.

 

- Não adianta.

 

- O senhor Losse...

 

- Não adianta.

 

- O comandante, Riccardo!

 

- Não virá falar comigo por causa de uma estupidez.

 

- Estás enganado, Riccardo. Se notificado, o velho viria imediatamente. É que aquilo que tu supostamente sabes, também lhe diz respeito. Portanto, vamos lá: o que tens a dizer?

 

- Só diante do comandante...

 

- Muito bem.

 

Beatrice levantou o auscultador do telefone, mas, antes que conseguisse marcar o número do comandante, Riccardo interrompeu-a, carregando no descanso. Compreendera, assustado, que Beatrice estava a falar a sério.

 

- Não quero ter problemas, Beatrice... - disse ele. Não quero ser despedido pela companhia.

 

- Então, abre a boca. O que é que se passa com os Mõller?

 

- Ele, o Signore Mõller, é muito gordo.

 

- Isso não é nenhum segredo, Riccardo.

 

- Quando o Signore Mõller volta do restaurante, depois de ter comido bem, sente-se sempre cansado. Não lhe apetece, por isso, assistir aos concertos, ou mesmo ir dançar. Prefere ir para a cama, ler ou assistir à emissão de bordo.

 

- E a senhora Mõller?

 

- Assiste aos concertos, dança e senta-se no bar. O colega do serviço nocturno diz que passa frequentemente das três da manhã quando finalmente regressa à cabina. Por vezes, acompanhada por um cavalheiro.

 

- Quem?

 

- Nunca é o mesmo... Por vezes, despedem-se com um beijo... foi o que viu o colega...

 

- E depois?

 

- Entra na cabina e fecha a porta. Nessa altura, já há muito que o Signore Mõller dorme, não se apercebendo, por isso, de nada.

 

- E isso, todas as noites?

 

- Quase todas as noites. No serão de gala, o signore aguentou-se até ao bufete da meia-noite e ainda esteve a cantar na cabina: ”No bosque e no prado, procuro um amigo, encontro a Erika deitada na relva, com o traseiro todo molhado.” O colega até apontou num papel.

 

- Obrigado, Riccardo. Essas informações são muito elucidativas. - Beatrice afastou-se da frente da porta, abriu-a e saiu para o corredor. Riccardo seguiu-a, apressado.

 

- Vais contar ao comandante?

 

- Não. Mas agora já sei o que tenho a fazer. - Olhou para o relógio. - A que horas é que o senhor Mõller regressa do restaurante?

 

- Entre as dez e as onze horas da noite. Normalmente, ainda encomenda ao colega do serviço nocturno duas garrafas de cerveja e, depois, deita-se.

 

- E a senhora Mõller fica lá em cima?

 

- Fica onde houver acção.

 

- Riccardo, não fazes ideia do valor das tuas observações. Quando toda esta confusão estiver resolvida, podes pedir-me um desejo.

 

- A sério?

 

- Sim.

- E será satisfeito?

 

- Se possível... O prometido é devido...

 

- É perfeitamente possível. - Riccardo sorriu, atrevido. - Gostaria de ir para a cama contigo, Beatrice, mia cara...

 

- Pois, isso não é possível. - Beatrice riu, muito longe de se sentir ofendida. Riccardo navegava há já dez anos a bordo daquele navio. Quem é que o não conhecia!

 

- Escolhe outro desejo.

 

Dirigiu-se para o átrio e entrou no ”escritório especial”. O imediato estava sentado atrás do balcão e olhou para ela com uma expressão de tristeza.

 

- Alguma novidade? - perguntou. - O velho está cá com uma telha.

 

- E que novidade! - respondeu Beatrice, satisfeita. Agitava o soutien como se fazia por vezes aos lenços, chegado o momento da despedida. - Esta noite ainda daremos um passo em frente.

 

- É a nossa nova bandeira? - Hartmann sorriu com dificuldade.

 

- Junta-o aos restantes objectos achados. A situação alterou-se.

 

- Porquê?

 

- Dás-me a tua palavra de honra de que nada dirás? Hartmann assentiu com a cabeça.

 

- Se me deres a chave da tua cabina, comprometo-me a nada dizer.

 

- Mas porque é que os homens só pensam nesse tipo de negócio?

 

- É algo que tem a ver com a aparência e o charme do interlocutor... - Hartmann sentou-se atrás do balcão e tirou o soutien das mãos de Beatrice. - Imagino que tenhas descoberto a quem pertence.

 

- com uma margem de erro de um por cento.

 

- E de que é que isso te adianta?

 

- Quando souber onde e em que circunstância o soutien foi perdido, talvez disponhamos de uma pista. Na situação em que nos encontramos, devemos ficar gratos por qualquer nova informação. - Beatrice fez beicinho. - Mas se vocês sabem mais...

 

- Por muita vontade que tenha, não to posso contar.

 

- O Victor sabe?

 

- Não

 

- Ah. Apenas as mais altas instâncias! Muito bem, procuremos o criminoso separadamente.

 

- Se te sentes assim tão ofendida, porque é que não falas com o velho...?

 

- E é o que farei! Sobretudo se, hoje à noite, for bem sucedida com a minha investigação.

 

- Desejo-te muita sorte. - Hartmann pousou o soutien em cima do balcão. - Temos agora uma série de suspeitas, mas, na realidade, temos tantas certezas quanto anteriormente. A menos que sejamos capazes de apanhar esse tipo em flagrante delito, continuaremos a andar às voltas. Esta é a minha opinião. Nada parece fazer sentido. Se não estivesse farto de saber que não existe nenhum Klabautermann, sentir-me-ia tentado a dizer que todas estas partidas são típicas de um desses duendes. O que é, naturalmente, uma loucura.

 

Beatrice esperou até que o concerto para piano agendado para aquela noite terminasse. Havia escolhido um lugar a partir do qual lhe era perfeitamente possível observar o casal Mõller. Julius Mõller aborrecia-se, sentado na sua cadeira, e ficou visivelmente satisfeito quando, após o segundo bis, chegou a hora do aplauso final. Levantou-se, disse qualquer coisa à sua esposa Wilhelmine, uma mulher ainda muito atractiva (que trazia um vestido de noite azul, de seda tailandesa, que realçava particularmente o seu peito), e abandonou a sala.

 

Tal como Riccardo havia relatado, Mõller voltou para a cabina. Estender-se-ia na sua querida cama, mandaria vir duas cervejas e ligaria a televisão de bordo. Estava previsto, para aquela noite, um filme de James Bond, Dr. No. O programa era-lhe bastante mais simpático do que todos os pulos ou vaivéns que pudesse levar a cabo na pequena pista de dança. Faltava, portanto, saber quem se ocuparia da sua belíssima esposa durante o resto do serão. Ninguém imaginava que pudesse ter já sessenta e um anos. Avaliando pela sua aparência e postura, dir-se-ia que estaria, na pior das hipóteses, no final dos seus quarenta.

 

Beatrice permaneceu ali sentada, ansiosa, na expectativa do que poderia ainda vir a acontecer. Também o comandante, que normalmente se ausentava uma vez cumprido o seu dever de dançar pelo menos com três senhoras, prolongara, desta vez, a sua presença à mesa, na companhia dos seus convidados.

 

Wilhelmine Mõller, sentada sozinha numa das mesas, não fora convidada para dançar por nenhum dos presentes, pois que só casais haviam ficado por ali depois do concerto. E qual é o marido que, na presença da esposa, convida outra mulher para dançar! com toda a calma, Wilhelmine bebeu o seu copo de champanhe, levantou-se, depois, exibindo-se em toda a sua abundância e proporção (que os entendidos designavam por maturidade) e, com passos simplesmente majestosos, abandonou a sala.

 

Beatrice seguiu-a, teve de acelerar o passo, no átrio, e alcançou o elevador ao mesmo tempo que a senhora. Wilhelmine sorriu-lhe.

 

- Para onde deseja ir? - perguntou, aproximando o dedo dos botões do elevador.

 

- Para o mesmo sítio que a senhora.

 

- Para o bar nocturno?

 

- Sim...

 

A Sra. Mõller carregou no último botão. Silencioso

o elevador iniciou a sua descida.

 

-Está de folga, Beatrice? - perguntou.

 

- Sim. Mas amanhã às sete horas retomo o serviço.

Não posso, por isso, deitar-me muito tarde.

 

- Imagino a profissão de hospedeira de bordo de um navio como sendo extremamente cansativa. Ter de ser sempre amável, não mostrar nunca má disposição, mas ter de suportar, sem reclamar, a má disposição dos passageiros; ter de apresentar sempre novas ideias, organizar campeonatos com homens gordos e lidar com senhoras exaltadas... Por vezes, é incrível observar do que os passageiros são capazes. Não sente, por vezes, uma tremenda vontade de explodir, Beatrice?

 

- De vez em quando, sim, mas de que serviria? Só daria origem a problemas novos e mais graves. Em média, cada passageiro paga, aqui, seiscentos marcos por dia. Por isso, quando afirma que os espinafres que tem no prato não

lhe parecem verdes mas castanhos, é-lhe servida uma belíssima couve-flor branca. Que outra coisa poderíamos fazer? Será que compensa argumentar? Discussões intermináveis por causa de uma insignificância?

 

- Estou em crer que, após alguns tempos a bordo de um navio, se aprende a conhecer as pessoas e a lidar com elas. - O elevador parou e a porta abriu-se, fazendo um ligeiro ruído. A entrada do bar nocturno ficava logo defronte. A música que saía daquela porta invadia o átrio.

 

- Gostaria de poder conversar um pouco mais consigo, Beatrice.

 

- com todo o prazer, senhora Mõller. Agora...?

 

- Se tiver tempo.

 

- Eu tenho tempo. Mas a senhora...

 

- Como vê, o problema nem se põe. O meu marido já está deitado, com um livro, uma cerveja e a televisão. É essa a sua ideia de repouso, e eu concedo-lho.

 

A Sra. Mõller adiantou-se ligeiramente, abriu a porta do bar e um empregado veio imediatamente ao seu encontro. Ficou surpreendido por ver Beatrice e conduziu-as até uma mesa, num dos cantos do bar, onde se podia ler ”Reservado”. Era provavelmente a sua mesa habitual.

 

- É aqui que me sento sempre - disse a Sra. Mõller, mais uma vez sem rodeios. - A partir daqui, tenho uma perspectiva de conjunto do bar, observo as pessoas e chego às minhas próprias conclusões acerca do ser humano. É impressionante verificar quantos de entre eles usam uma máscara e como a deixam cair quando o álcool faz efeito. O seu verdadeiro rosto é, então, verdadeiramente assustador ou simplesmente miserável. Sentemo-nos, Beatrice.

 

Mal se sentaram, o empregado veio servir-lhes duas bebidas.

 

- Tomei a liberdade de trazer a mesma coisa para a Beatrice - disse. - bom proveito.

 

Ao dizer aquilo, piscara os olhos e, quando se preparava para se ir embora, Beatrice reteve-o.

 

- O que é isto, Karl?

 

- Uma mistura especial para a senhora Mõller.

- Uma receita que eu trouxe da Martinica. - Wilhelmine Mõller remexia a bebida acastanhada com a ajuda da palhinha de plástico. - O Franco conseguiu reproduzi-la na perfeição. A base é rum escuro e mais não lhe direi. Na Martinica chamam-lhe Gota do Diabo. Mas não é tão infernal quanto isso e acabamos mesmo por nos habituar... como

a uma droga.

 

Pegou no copo, bebeu através da palhinha e percebeu-se, pela sua expressão, que lhe apetecera soltar um ”ah” de prazer. Beatrice bebeu um gole, com todo o cuidado, e ainda bem que assim foi, pois que a bebida mais parecia, efectivamente, fogo do inferno. Se tivesse bebido mais depressa, ter-lhe-ia faltado o ar. Em vez disso, tossira apenas ligeiramente.

 

- O diabo da Martinica vem mesmo do inferno! - observou, algo enrouquecida, e voltou a pousar o copo.

 

- É apenas uma questão de hábito, Beatrice. Ao fim de três copos, estará viciada.

 

- Não me parece. Não creio que sobrevivesse a um terceiro copo.

 

Desataram as duas a rir, sacudindo as cabeças numa espécie de sintonia. Nesse momento, dois homens levantaram-se dos seus bancos para ir ao seu encontro. Haviam dado apenas dois passos quando deram meia volta e voltaram a sentar-se.

 

- Simpatizo consigo, Beatrice - disse Wilhelmine Mõller.

 

- A sério? - Beatrice encheu-se de coragem. - Posso, nesse caso, perguntar-lhe uma coisa...?

 

- O que quiser.

 

- Quer que lhe vá levar o soutien à cabina?

 

Durante um breve instante, os cantos dos olhos de Wilhelmine Mõller tremeram. Mas logo recuperou a compostura. Uma mulher inverosímil, pensou Beatrice. Tão feminina e, no entanto, tão fria. Ninguém a conseguia atrapalhar.

 

- Que soutien? - perguntou. O seu espanto parecia genuíno.

 

- A mais recente bandeirola na adriça.

 

- Como pode pensar que me pertence?

 

- Porque tem um monograma bordado na presilha do meio: W. M.

 

- Mas, Beatrice! Presumo que haja outras senhoras a bordo com W. M. no nome.

 

- Uma, apenas. Wera Mederer.

 

- Então...

 

- A senhora Mederer não possui soutiens com monograma.

 

- Como sabe?

 

- Perguntei-lhe - respondeu Beatrice, mentindo tão bem quanto a Sra. Mõller se fingira surpreendida.

 

- Pode ter-lhe mentido, Beatrice - argumentou WiIhelmine Mõller e bebeu mais um gole do seu Gota do Diabo. - Quando se trata de coisas tão íntimas, as senhoras mentem por princípio. Eu também o faria.

 

- E é o que está a fazer, senhora Mõller.

 

- Beatrice... porque haveria eu de içar o meu soutien como se de uma bandeira se tratasse? - Riu com dificuldade. Sempre estava, afinal, por dentro, algo inquieta. - Já não tenho idade para essas brincadeiras.

 

- Nunca coloquei a hipótese de ter sido a senhora a içar o soutien. Alguém o encontrou e decidiu fazer uma brincadeira. Mas onde é que ele foi encontrado?

 

- E procura uma resposta para essa pergunta?

 

- Sim.

 

- Da minha parte.

 

- É a si que pertence o...

 

- Contesto mais uma vez. - Wilhelmine Mõller encostou-se para trás e, divertida, examinou-a. - Mas joguemos esse seu jogo, que sempre se passa o tempo. O que me diria se eu afirmasse: sim, o soutien é meu? Naquela noite, como noutras, encontrava-me no convés. Estava um tempo maravilhoso. Eram três da manhã. Toda a gente dormia profundamente, não havia ninguém nas redondezas. Ninguém me podia, portanto, observar. E isso excitou-me. Despi-me e dei algumas braçadas na piscina. No entanto, quando saí da água, o meu soutien já não estava entre as minhas coisas. Ter-me-iam visto, afinal? Apoderei-me da minha roupa e corri até à minha cabina. Então, não acha a história bonita? Adianta-lhe alguma coisa, Beatrice?

 

- Se foi, efectivamente, assim que tudo se passou... sim! Porque, nesse caso, alguém a observou, de facto, e lhe roubou o soutien para a assustar. E foi, de resto, bem sucedido: a senhora fugiu em pânico.

 

- E ainda correu atrás de mim, com um riso sarcástico...

 

Aquela última frase atingira Beatrice como uma descarga eléctrica.

 

- Fez o quê?

 

A sua voz tremeu.

 

- Soltou um riso sarcástico. Sim, verdadeiramente sarcástico. Até fiquei com pele de galinha no corpo inteiro.

 

- E... e não comunicou imediatamente o sucedido?

 

- Queria que, nua e molhada, gritasse por ajuda. Ou que subisse para a ponte? Que mulher faria isso? Vai ter com o oficial de vigia e grita: acabaram de me roubar o soutien! Onde e em que circunstâncias? Estava a nadar nua e alguém me deve ter observado enquanto o fazia... Não, tive tanta vergonha. E na manhã seguinte, quando o meu soutien apareceu a flutuar, preso à adriça? Que mulher teria, nessa altura, comunicado o que sucedera? Tê-lo-ia feito, Beatrice?

 

- Não, eu não.

 

- E com isto o nosso jogo terminou. - Voltou a beber um gole da Gota do Diabo e encostou-se para trás. - Podia contar-lhe uma coisa deste género.

 

- O soutien é, portanto, seu?

 

- Não foi o que eu disse. Estávamos apenas a jogar um jogo. Se o levar a sério, o problema é seu. Quanto ao estúpido monograma, nada significa. Pode tratar-se apenas da marca. Uma referência ao sítio onde foi comprado. Beatrice, porque é que não bebe? Isto tem de ser bebido gelado, que quente é verdadeiramente infernal.

 

Às duas horas da manhã abandonaram o bar. Beatrice, que acabara finalmente por beber mais dois copos daquela bebida diabólica, tinha agora de se apoiar na Sra. Mõller. As suas pernas tremiam e os sons pareciam ter de atravessar uma camada de algodão para chegar até ela. Reconheceu Karl, o empregado do bar, muito tremido, e, ao vê-lo sorrir, apeteceu-lhe bater-lhe. Mas uma senhora não faz essas coisas.

 

Devagarinho e com alguma dificuldade, conseguiram chegar ao átrio. Aí, a Sra. Mõller encostou cuidadosamente Beatrice à parede e amparou-a.

 

- Para onde quer que a leve, minha menina? - perguntou.

 

- A apanhar ar... - balbuciou Beatrice. - Ar fresco... apenas ar...

 

- Vamos, então, até à ponte de passeio.

 

A Sra. Mõller empurrou Beatrice para dentro do elevador, carregou no botão e, antes da saída para a ponte, segurou-a com força pelo braço, arrastando-a para o exterior.

 

Estava uma noite deliciosa. Sentia-se uma ligeira aragem, o céu estrelado era, como sempre, de uma beleza inconcebível e o mar estendia-se, tranquilo, perante os seus olhos. Só a proa provocava alguma ondulação.

 

- Oh! - exclamou Beatrice, ainda com alguma dificuldade em articular. - O ar também se bebe...

 

Apoiou-se na amurada do navio, abriu a boca e deixou o ar invadir-lhe os pulmões. A Sra. Mõller manteve-se por detrás dela, segurando-a pelo vestido, para que não se inclinasse demasiado para a frente e perdesse o equilíbrio.

 

- E agora, Beatrice? - perguntou, ao reparar que o ar fresco lhe refrescara também o espírito. - Para onde?

 

- Para o convés da piscina.

 

- Mas, querida, que queres tu daquele sítio?

 

- Nadar... nadar nua... quero ver se também a mim roubarn o soutien...

 

A Sra. Mõller não teve tempo para responder.

 

De um momento para o outro ficaram ambas sóbrias, as suas peles franziram-se de medo. Caíram nos braços uma da outra e seguraram-se- com força.

 

Algures por cima delas, no escuro, ouviu-se um riso assustador. Uma voz aguda e dissonante, um som cada vez mais estridente, que lhes atingia a medula. Um riso que espalhava o terror.

 

Mal deixou de se ouvir, também o medo que as paralisara se dissipou. A Sra. Mõller e Beatrice correram para a porta da ponte de passeio e, atravessando o átrio, precipitaram-se para o elevador. A porta ainda estava aberta, pois que àquela hora já quase ninguém andava pelo navio.

 

- Era ele... - disse a Sra. Mõller, com uma voz surpreendentemente segura. - Foi exactamente assim! Exactamente assim que se riu... e o meu soutien tinha desaparecido.

 

Beatrice puxou a Sra. Mõller para dentro do elevador, carregou para a coberta principal e, mal a porta se abriu, correu até à vigia, onde um guarda lia, tranquilamente, um livro.

 

- Dá o alarme, Erich! - gritou Beatrice, já sem fôlego.

- Telefona para a ponte! O passageiro clandestino está no convés. Ouvimo-lo. Riu-se... um riso assustador...

 

- Também eu teria rido! - disse o vigilante nocturno, bonacheirão. - Uma Beatrice bêbeda não é coisa que se veja todos os dias!

 

- Idiota! - Beatrice estava fora de si. Esticou-se por cima do balcão e, antes que Erich o pudesse evitar, marcou o número da ponte. - No convés dos desportos, a meio, a estibordo! - gritou. - Sim, daqui fala a Beatrice. Eu ouvi-o... despachem-se... depressa... ainda deve estar no convés... Não façam tantas perguntas... despachem-se! Foi horrível. Só um louco ri daquela maneira...

 

Cinco minutos depois, um grupo de marinheiros revistava todos os conveses. Cada canto, cada salva-vidas, cada compartimento.

 

Não encontraram nada.

 

Antes de iniciar a sua tentativa de aproximação ao cônsul Fehrenwald, o Dr. Schwengler teve uma pequena discussão com a sua esposa Selma.

 

Enquanto mudavam de roupa para irem jantar, o Dr. Schwengler dissera, calmamente, à sua esposa:

 

- Hoje comemos separados. Procurarei um lugar noutra mesa.

 

Que mulher, numa situação como esta, não ficaria surpreendida, para não dizer pior? Assim, também Selma, numa primeira fase, reagiu com perplexidade, não sabendo o que dizer. Até que veio a pergunta:

 

- O que é que queres?

 

- Comer sozinho...

 

- Bateste com a cabeça nalgum lado? - Esta segunda pergunta fora já feita num tom mais cáustico. - Que parvoíce vem a ser essa?

 

- Não é uma parvoíce, mas antes um assunto da maior importância. Sentar-me-ei na mesa B Catorze, para duas pessoas, que está livre.

 

- Se a nossa mesa já não te agrada... muito bem, mudamo-nos para a mesa B Catorze. Como queiras.

 

- Eu disse: sozinho.

 

- Disseste: uma mesa para dois...

 

- Nenhum navio tem mesas individuais. - O nó da gravata do Dr. Schwengler estava perfeito. - Sentar-me-ei sozinho na mesa B Catorze.

 

- E eu?

 

- No sítio do costume...

 

- Explica-me isso, por favor. É uma loucura! - Selma Schwengler, ainda quente por ter estado a secar o cabelo no cabeleireiro, começava agora a arder. - Tu sentas-te ali e eu sento-me acolá: que irão as pessoas pensar? E porquê, afinal?

 

- As pessoas estão-se nas tintas - disse o Dr. Schwengler com modos tipicamente masculinos. - Quanto ao motivo, esse, é de carácter profissional.

 

- Só porque és dentista tens, de um momento para o outro, de te sentar sozinho a uma mesa?

 

- Sozinho, numa mesa de dois.

 

- Meu Deus, sim! Sentes-te doente, Hans-Jakob?

 

O Dr. Schwengler vestiu o seu casaco azul-escuro e olhou-se, mais uma vez, no enorme espelho de parede. Atrás de si, viu Selma sentada no canto da cama, com um olhar de preocupação, mas também de raiva.

 

- Gostaria de poder explicar-te tudo... mas não estou autorizado.

 

- Ah! O doutor Schwengler está sob coacção! - Esta última frase fora mais do que irónica, o início de um ataque.

 

- Não. Mas dei a minha palavra de honra. Dir-te-ei, apenas, que a questão tem a ver com o Klabautermann.

 

- Que sofre de dores de dentes e se vai sentar na mesa B Catorze.

 

- Selma, pára com a maldita brincadeira!. - Schwengler olhou para o relógio. - São horas de irmos comer.

 

- Então, vai! Vai para a tua mesa B Catorze. Achas que me vou sentar sozinha no nosso lugar, para que os outros fiquem a olhar para mim? O que é que se passa? Porque será que o doutor Schwengler se terá sentado sozinho? Será que se separaram? Que terá acontecido? Ah, não. Prefiro mandar entregar o jantar no quarto. Sentas-te na mesa B Catorze e não me dás qualquer explicação. Apresentas-me uma desculpa idiota relacionada com o Klabautermann e esperas de mim que a engula, simplesmente? A quem é que deste a tua palavra de honra? O teu comportamento é...

 

- Dei a minha palavra de honra ao comandante. Satisfeita?

 

- Ao comandante...? - repetiu Selma. Começava a ter dúvidas. - E é por isso que tens de te sentar sozinho na mesa B Catorze?

 

- Não tenho, quero! Aceitei uma missão. Meu Deus, será que o que já te disse não te chega? Deves ser, com certeza, capaz de comer uma noite sozinha.

 

- Só uma noite... Ah! Pensei que... - respondeu-lhe ela, cabisbaixa.

 

- O que é que pensaste?

 

- Que, de hoje em diante...

 

- Mas será que me tomas por um louco?

 

Fora sensato não responder honestamente àquela pergunta. Sim, poderia ter dito: até há pouco, pensei que algo já não estivesse bem com a tua cabeça. com setenta e dois anos, são coisas que podem acontecer. De um momento para o outro, o cérebro deixa de ser totalmente irrigado e algumas funções começam a falhar. As pessoas chamam-lhe, normalmente, esclerose.

 

Em vez disso respondeu:

 

- Podias ter-me explicado tudo isso desde o início, em vez de dizer apenas: hoje como sozinho...

 

- Hoje! É precisamente isso que está em questão. Hoje!

 

- Sempre o mesmo verbalismo. - Era bom, para Selma, poder agora refugiar-se naquele seu papel de ofendida. Assim, não teria de pedir desculpa.

 

Entraram juntos no restaurante, separando-se depois. Insegura, evitando os olhares à sua volta, Selma sentou-se no lugar do costume, enquanto que o Dr. Schwengler, decidido, se dirigiu para a mesa B Catorze. O empregado de serviço havia já sido informado e cumprimentou-o como a um cliente habitual.

 

Satisfeito, o Dr. Schwengler sentou-se e saudou, com um movimento de cabeça, os ocupantes da mesa B Quinze.

 

Era a mesa do lado. Aí estava sentado o casal Fehrenwaldt. O director-geral e cônsul Fehrenwaldt, por cuja dentição Schwengler nutria um interesse muito especial.

 

Fehrenwaldt retribuiu a saudação e voltou, com um prazer evidente, à sua lista de vinhos. Pertencia ao tipo de pessoa que se preocupa muito pouco com os seus concidadãos e contemporâneos. Nem reparava, na maior parte dos casos, em quem havia à sua volta. Assim, também o Dr. Schwengler era, para ele, um estranho como tantos outros, e isto apesar de viajarem no mesmo navio há já quase três semanas.

 

Enquanto Fehrenwaldt analisava a fantástica lista dos vinhos, sempre renovada e enriquecida com novos aromas, o Dr. Schwengler examinava-lhe, entretanto, o rosto. Via-o de perfil, uma posição muito boa.

 

Uma operação espantosa, concluiu o Dr. Schwengler. A clínica onde fora levada a cabo devia pertencer às mais reputadas da Alemanha. Talvez Munique ou Dusseldorf, podia também tratar-se de Zurique ou de Paris, caso tivesse optado pelo estrangeiro. A avaliar pela reconstituição levada a cabo, o rosto devia ter sido atravessado por estilhaços provenientes do rebentamento de uma granada, ficando parcialmente danificado. Mas disso só se via, actualmente, algumas pequenas cicatrizes. Era caso para dar os parabéns aos seus colegas de profissão.

 

Enquanto pensava numa forma de estabelecer contacto com Fehrenwaldt, uma pergunta feita pelo cônsul à esposa chamou-lhe a atenção:

 

- Querida, preferes que peça um sancerre ou um chablis para acompanhar o peixe?

 

Fehrenwaldt dissera-o de tal forma alto que o Dr. Schwengler não podia ter deixado de ouvir, o que lhe permitiu olhar para a mesa do lado sem, por isso, passar por indelicado. A Sra. Fehrenwaldt parecia indecisa.

 

- Não sei... - respondeu. - Preferia que não fosse um vinho muito ácido...

 

O Dr. Schwengler achou que aquele era o momento ideal para intervir

 

- Perdoe-me - disse, com a delicadeza e o distanciamento devidos. - Se me permite que lhe dê uma sugestão, minha senhora: o vinho que melhor lhe convirá é, na minha perspectiva, o Montrachet. Aromático, seco e com uma acidez agradável que não compromete, de maneira alguma, o estômago.

 

- Ah, muito obrigada! - A Sra. Fehrenwaldt olhava, agora, reconhecida para o Dr. Schwengler. - Disse Montrachet, não foi?

 

- Sim, é de entre todos os vinhos que aqui se serve, o que me proporciona maior prazer. Sou, também, extremamente sensível à acidez. Fico, imediatamente, com pirose.

 

- Presumo que queira dizer azia - disse o cônsul. Vejo que é um conhecedor de vinhos...

 

- O meu nome é Schwengler.

 

- Fehrenwaldt.

 

O contacto havia sido estabelecido com sucesso. Desenvolvê-lo era, agora, relativamente fácil.

 

- Conhecedor de vinhos? - O Dr. Schwengler encolheu os ombros. - Talvez seja um exagero. Sou um apreciador de bons vinhos, digamos assim. E, enquanto médico...

 

- Ah! O senhor é médico? - A Sra. Fehrenwaldt interrompera imediatamente Schwengler. Tal como a maioria das mulheres, também ela cultivava uma doença lapidar, para dela poder falar em todo o lado e a toda a hora. Esse era, de resto, um tema que se não esgotava nunca, por exemplo durante a décima quarta edição das ”tardes femininas” realizada na vivenda dos Fehrenwaldt. Aí, havia-se discutido cerca de dezasseis doenças diferentes, o que abrira caminho a um sem-número de narrativas e conjecturas. - O senhor é médico de clínica geral?

 

- Não, minha senhora. Dentista e especialista em cirurgia maxilar. Possuo uma clínica privada em Wuppertal.

 

- Extremamente interessante! - O cônsul Fehrenwaldt encomendou uma garrafa de Montrachet e voltou-se novamente para o Dr. Schwengler: - Como disse que se chamava?

 

- Schwengler...

 

- Ah, sim. Doutor Schwengler. - Fehrenwaldt começou a interessar-se por aquele estranho. - Sempre tive a mais elevada consideração pela medicina, sobretudo pelos cirurgiões. Cirurgião maxilar. A minha maxila, do lado inferior esquerdo, foi parcialmente reconstituída.

 

- Só um especialista se poderá aperceber. Foi extremamente bem feita, senhor Fehrenwaldt. Posso perguntar-lhe onde?

 

- No Rio de Janeiro... Ficou surpreendido? Na Alemanha ninguém queria arriscar uma operação. E não há nada pior do que um cirurgião receoso! No Rio, em contrapartida, havia um médico que encarava este tipo de operação com uma tal disponibilidade que, enquanto doente, se ficava um pouco receoso. Foi há trinta e sete anos atrás... Nunca me arrependi de ter sido ele a operar-me.

 

- O doutor Delhano? - perguntou Schwengler. O nome era conhecido e tinha má reputação entre os especialistas. Anos antes, haviam-no acusado de fazer experiências com seres humanos, como ossos artificiais e implantes de plástico. Fora, no entanto, sempre bem sucedido, não tendo nunca morrido ou emudecido nenhum doente seu, pelo que passara, naturalmente, a ser alvo do ódio dos colegas de profissão. Essa é uma estranha especificidade do carácter dos médicos: um estranho bem sucedido deve ser combatido com todos os meios.

 

- O senhor conhece o doutor Delhano? - perguntou, imediatamente, a Sra. Fehrenwaldt.

 

- Fui seu assistente durante seis meses, há trinta anos atrás - mentiu Schwengler com elegância.

 

- Mas que coincidência! - O cônsul apontou para a cadeira vazia que estava ao seu lado. Embora fossem apenas dois, a sua mesa era de quatro. - Posso convidá-lo para a nossa mesa?

 

- Não gostaria de incomodar - disse Schwengler, desempenhando o seu papel à perfeição.

 

- Ora essa, faço questão! Ainda para mais com um conhecimento comum com o doutor Delhano...

 

O Dr. Schwengler mudou de mesa e sentou-se ao lado da Sra. Fehrenwaldt. Sabia que a sua mulher observava, à distância, cada um dos seus movimentos. A segunda etapa tinha sido vencida... Havia, ainda, alguns pequenos passos a percorrer, antes que o Dr. Schwengler pudesse dar uma vista de olhos à boca do cônsul. Ainda assim, pelo que pudera observar até então, sentia-se tentado a afirmar que a impressão deixada no manuscrito de Hallau não era a dos dentes de Fehrenwaldt.

 

A estrutura maxilar e a disposição dos dentes eram diferentes.

 

Para que o tema não esmorecesse, o Dr. Schwengler optou por continuar a falar de medicina. Percebera que Fehrenwaldt, contrariamente a muitos outros, não se importava de falar acerca da reconstituição de que o seu rosto fora alvo.

 

- E, depois da operação, nunca mais voltou a sentir dores? - perguntou.

 

- E de que maneira! Durante mais de dez anos! Cada vez que o tempo mudava, a minha cabeça parecia querer rebentar. Quer trovejasse ou fizesse sol, quer chovesse ou caísse granizo, quer nevasse ou fizesse calor, eu sabia-o sempre de antemão. E a coisa foi tão longe que cheguei a cansar-me da vida. Até que se descobriu que havia dois tipos de metal na minha boca que desencadeavam o chamado efeito magnético. Portanto, mais uma série de operações... mas desde então tenho descanso.

 

- A sua prótese é de plástico ou de osso? - perguntou o Dr. Schwengler.

 

- É de osso. Tirado da anca.

 

- Eu sei que pode parecer-lhe um atrevimento... mas acha que, um dia destes, ma poderia mostrar?

 

- Porque não? - Fehrenwaldt era bastante mais acessível do que Schwengler previra. - Onde? No hospital? Amanhã de manhã, por volta das dez horas? Convém-lhe, doutor?

 

- É a melhor hora. Fiquemos, então, assim combinados: amanhã, às dez da manhã. E aí vem o seu Montrachet, minha senhora. bom proveito.

 

- Tenho todo o gosto em convidá-lo a partilhá-lo connosco, doutor! - afirmou o cônsul. - Conte-me a sua experiência junto do doutor Delhano. Mais tarde... já depois do meu tempo... viria a ser seriamente hostilizado.

 

- E de que maneira! - O Dr. Schwengler sentia-se à vontade com o tema, pois, na altura, havia seguido atentamente o combate que opusera os seus colegas ao Dr. Delhano. Não lhe fora perguntado se fora assistente de Delhano em Wuppertal ou no Rio, pelo que importava contar a coisa como se tivesse estado, nessa altura, em Brasília. - Sentimo-nos frequentemente chocados com todos aqueles ataques infundados. Por outro lado, há efectivamente que reconhecer que algumas das operações do doutor Delhano eram bastante extravagantes.

 

- Mas eficazes!

 

- E era precisamente isso que mais irritava os seus opositores. Um caso de morte apenas, e tê-lo-iam destruído. Os colegas comportavam-se como caçadores.

 

- Exactamente. - A Sra. Fehrenwaldt irritara-se com a recordação e respirava agora ofegante. - Será que os génios têm de ser sempre perseguidos?

 

- Pelos vistos... se não, não seriam génios.

 

- Uma resposta excelente. - Fehrenwaldt ergueu o seu copo e fez um brinde com o Dr. Schwengler. - Como o mundo é pequeno. Anda uma pessoa a passear num navio e quem é que também segue a bordo? Um assistente do Delhano! Viaja sozinho?

 

- Não. A minha esposa encontra-se igualmente a bordo.

- E onde está ela? Doente?

 

- De forma alguma! Convidou algumas pessoas conhecidas para a nossa mesa, pelo que me vi obrigado a mudar-me. - Era espantoso como Schwengler conseguia mentir de forma tão credível. - Um homem no meio de cinco senhoras: não creio que os meus nervos ainda aguentassem uma prova como essa.

 

Riram em conjunto, beberam mais um pouco de vinho e acharam-se, mutuamente, extremamente simpáticos.

 

- Gostaria de lhe fazer uma proposta - disse o cônsul

- e teria muito prazer em que aceitasse: gostaria de convidar o senhor e a sua querida esposa para nos fazer companhia à mesa durante o resto da viagem. Combinado, doutor?

 

- com todo o prazer. - ”Querida esposa”, pensou Schwengler. ”Ainda não a conhecem. Selma é, em sociedade, um verdadeiro anjo. Mas quando voltamos para a cabina... quando está sozinha comigo! Quantas vezes não alimentei o desejo secreto de lhe coser os lábios.”

 

- A começar desde o almoço de amanhã... Havia-se instalado uma extrema boa disposição.

 

O Dr. Schwengler observava Fehrenwaldt, a forma como mastigava e o aspecto da sua dentadura quando abria a boca para comer ou beber. Aquela não podia ser a dentadura que havia ficado impressa na folha de papel, pensou. Os dentes estavam dispostos de outra forma e eram, também, mais pequenos. ”Mas, amanhã de manhã, às dez horas, teremos a certeza absoluta: pedir-lhe-ei que morda uma folha de contacto. Dessa forma, obteremos uma impressão perfeita e o Fehrenwaldt ficará acima de qualquer suspeita.”

 

Depois da refeição, despediram-se como velhos amigos. Enquanto que o cônsul e a sua esposa saíram do restaurante, Schwengler voltou para a sua antiga mesa. Aí estava sentada a sua ”querida esposa” Selma, com um olhar furioso. Só quando ele se sentou, e após alguns segundos de um silêncio quase funesto, é que lhe disse:

 

- O que é que tens a ver com a esposa do cônsul, essa perua empertigada?

 

- Nada.

 

- Não me negues aquilo que vi com os meus próprios olhos. É essa a tua missão de carácter profissional?

 

- Faz parte. - Schwengler inclinou-se para a frente, para não ter de falar tão alto. - Devo dizer-te que a tua conversa e o teu comportamento me repugnam.

 

- Obrigada! - Levantou-se abruptamente. - Vens comigo para o salão?

 

- O que é que se passa lá?

 

- Um concerto de piano.

 

- Valha-me Deus!

 

- Não passas de um ignorante. Vai tocar-se Chopin, Rachmaninov, Liszt e Bartok.

 

- E tenho mesmo que ir?

 

- As pessoas repararam, com alguma perplexidade, que hoje comeste noutro sítio. Se, ainda por cima, faltas ao concerto, vão começar os boatos. Colocas-me numa situação vulnerável!

 

- Porquê eu? Foi a tua costureira quem, com o teu consentimento, te fez esse decote.

 

- Deixa-te de gracinhas! - Esperou que Hans-Jakob se levantasse, com um suspiro, da cadeira onde teria preferido ficar a beber mais uma cerveja fresca, acabadinha de tirar.

- E vê se fazes uma cara mais simpática, se não, as pessoas pensam que tivemos mesmo uma discussão.

 

- Sim, minha querida esposa.

 

Selma parou e lançou-lhe mais um dos seus olhares penetrantes.

 

- Alguma coisa não está bem contigo, Hans-Jakob!

 

- O ”querida esposa” veio da conversa com o cônsul Fehrenwaldt. Convidou-nos para lhe fazermos companhia à mesa até ao final da viagem.

 

- E tu aceitaste? Estou mesmo a ver que aceitaste.

 

- Claro.

 

- Ainda por cima, tenho de me sentar ao lado daquela presunçosa?

 

- Nem sequer a conheces.

 

- Basta vê-la andar... Ela não anda, passeia-se... Sua Majestade...

 

- Ou se tem classe, ou não se tem. Isso é coisa que não se aprende. Por isso, não te esforces, também tu, por te passeares.

 

Quando passaram ao lado da mesa do comandante, os olhares de Schwengler e de Hellersen cruzaram-se durante breves segundos. Schwengler encolheu ligeiramente os braços, e Hellersen compreendeu-o: não havia ainda nada de definitivo.

 

Quatro horas depois, encontrar-se-iam no escritório do tesoureiro.

 

Logo à entrada, Schwengler sentiu uma enorme tensão dentro da sala. Hellmut Dornburg, o oficial de segurança, fumava, nervoso, um cigarro. Losse bebia um triplo uísque. Também o comandante segurava um copo de uísque na mão.

 

- O que conseguiu, doutor? - perguntou Hellersen, mal Schwengler fechou a porta atrás de si.

 

- Vou sentar-me, até ao final da viagem, à mesa do cônsul Fehrenwaldt.

 

- Só isso?

 

- Não é pouco. E amanhã de manhã, às dez horas, no hospital, analisarei o maxilar e os dentes do Fehrenwaldt.

 

- Parabéns! - Hellersen apontou para a garrafa de uísque. - Também bebe um copo, doutor?

 

- Não, obrigado. Não sou grande apreciador de uísque.

 

- Quanto tempo esteve, afinal, na companhia do senhor cônsul?

 

- Durante a refeição e no concerto, ao qual assistiu três filas atrás de mim.

 

- E depois?

 

- Depois do concerto, foram-se embora, como a maioria das pessoas.

 

- Portanto, depois do concerto, deixou de ter qualquer controlo sobre ele? - perguntou Dornburg.

 

- Permita-me que o corrija! - com um gesto de constrangimento, prosseguiu: - Não estou aqui para ”controlar” ninguém. Propus-me analisar uma dentadura e é o que farei amanhã de manhã. Eu sou médico, não detective.

 

- De qualquer forma é possível que, depois do concerto, o cônsul não tenha ido imediatamente para a sua cabina.

 

- Claro que é possível. Eu próprio ainda estive sentado, durante algum tempo, no bar da piscina. Até o senhor me mandar chamar, comandante.

 

- Temos aqui informações de todos os bares - disse Losse, teimoso. - O cônsul Fehrenwaldt não esteve, depois do concerto, em nenhum destes sítios. Nem no bar da piscina, nem no bar do salão, e muito menos no bar da discoteca.

 

- Terá certamente ido deitar-se.

 

- Gostaríamos de admitir que sim. - Dornburg esmagou, nervoso, o seu cigarro. - Há cerca de vinte minutos atrás, a Beatrice e a senhora Mõller ouviram o nosso desconhecido na ponte de passeio...

 

- Ouviram? - O Dr. Schwengler olhava, irritado, à sua volta. - Ouviram como?

 

- Ele riu. Riu de uma forma assustadora. Um riso de louco.

 

- E não foi possível ver absolutamente nada?

 

- Numa primeira fase, as senhoras ficaram demasiado assustadas, e depois fugiram. - Losse pigarreou. - A Beatrice estava, há que admiti-lo, eu não diria bêbeda, mas enfim... O seu testemunho deve, por isso, ser considerado com a maior das reservas. Mas a senhora Mõller, essa, estava completamente lúcida. ”Foi tão horrível”, disse-nos ela, ”que o corpo se me enregelou. Nunca tinha ouvido um riso como aquele.” - Losse levantou ambos os braços e voltou a deixá-los cair contra o corpo. - Já não sabemos o que fazer. A busca que de imediato empreendemos não deu em absolutamente nada.

 

- E atribuem os senhores a culpa ao cônsul Fehrenwaldt? - perguntou o Dr. Schwengler, perturbado.

 

- O Fehrenwaldt está hospedado na cabina O Catorze, situada imediatamente ao lado da porta das traseiras que dá acesso à ponte de passeio. Estava, portanto, em condições de desaparecer muito depressa depois desse ataque de riso.

 

- E toda essa desconfiança tem a ver com o facto de o senhor Fehrenwaldt, devido a um ferimento facial, ter uma prótese dentária, cuja forma particular poderá eventualmente coincidir com a impressão deixada no manuscrito do Hallau.

 

Eventualmente! Considero toda esta situação assaz revoltante! - Schwengler respirava depressa, a sua irritação era genuína. - Amanhã de manhã, fornecer-lhes-ei uma prova da inocência ou culpabilidade do senhor Fehrenwaldt. Depois disso, não quero voltar a ser importunado com esta questão. Uma coisa lhes adianto, no entanto, desde já: o senhor Fehrenwaldt não é o vosso mordedor de papel!

 

- Nesse caso, esgotaram-se-nos todas as possibilidades. O comandante Hellersen acabou de beber o seu copo de uísque.

 

- Tem alguma outra explicação para todos estes acontecimentos, doutor?

 

- O Klabautermann...

 

- A pouco e pouco, também eu começo a acreditar nisso - disse, sarcástico. - Se até Singapura este enigma não estiver resolvido, meus senhores, não passaremos de uns simples falhados!

 

A bordo do navio, deixou de se falar de coisas tão insignificantes como da falta, verificada na pastelaria, de dez bolinhos de requeijão, do roubo de nove quivis, do desaparecimento de um pão com passas, de quatro laranjas, de uma caixa de figos... e apesar de o fiel de armazém Rudi Faster rogar as mais inauditas pragas e de o pasteleiro Francois Dupret chegar mesmo a ameaçar o patife com a pena de morte, não foram levados a cabo mais nenhuns inquéritos.

 

Sempre que mais uma notificação chegava às mãos de Losse, este arquivava-a, com um suspiro, numa pasta recém-criada para o efeito. Dizia-se, agora, que era de esperar. Que um passageiro clandestino também tinha, afinal de contas, de viver e, como tal, de comer. O que se lhe não perdoavam era a rudeza do seu comportamento, pois que por todo o lado espalhava cascas de laranja e de quivi, como que pretendendo dizer, em tom de provocação: ”Vejam, seus idiotas, movimento-me entre vós e ninguém me vê! Posso fazer o que bem me apetecer que ninguém mo impede. Andam entretidos a reunir as pistas que Vou deixando, e ainda se têm de baixar para apanhar as cascas que Vou espalhando.

 

E eu estou escondido, algures, e observo-vos, morto de riso.”

 

- O pior é este sentimento de impotência! - disse o comandante, quando o navio atracou no porto de Telukbetung, em Samatra, para mais uma excursão em terra, e dez autocarros vieram buscar a quase totalidade dos passageiros para uma ausência de aproximadamente sete horas. Estava de pé, na ponte, acompanhado do seu imediato Hartmann, e observava o cais e os autocarros de partida. - Devíamos rezar para que também o passageiro clandestino abandone o navio e não volte a subir a bordo.

- Seria demasiado bom, comandante. Mas duvido.

- E porquê?

 

- O passageiro clandestino quer ir para Singapura. Que faria ele em Samatra? Singapura é uma porta para o mundo, para uma vida mais feliz, é o local pelo qual anseiam todos os infortunados.

 

- Bolas, Hartmann, que lírico! - Hellersen soltou uma pequena gargalhada. - Continuo a não perceber como é que, apesar de todo o controlo, não somos capazes de apanhar o tipo.

 

- Recorre a todo o tipo de truques. Deve ser um tipo esperto. Para ser totalmente honesto: por vezes anseio pela sua próxima manifestação. Que terá ele tramado desta vez? De que forma nos deixará, mais uma vez, de mãos a abanar? Que terá ele magicado?

 

- É preciso ter coragem, Hartmann. - Hellersen olhava, agora, de lado para o seu imediato. - Depois de tudo isto, ainda admira o safado?

 

- Pelo menos proporciona-nos uma experiência nova. Nunca tinha vivido uma situação como esta.

 

- Eu também não, Hartmann, mas tê-la-ia dispensado de bom grado. Mil vezes um furacão a sério! com vento de dez nós sei, pelo menos, com o que posso contar, enquanto que neste caso, não. E isso deixa-me profundamente irritado.

 

Antes da chegada a Singapura ainda aconteceria algo, que iria irritar bastante mais o comandante Hellersen.

 

Telukbetung, em Samatra, não é um porto muito conhecido. Não é hábito aparecerem aí embarcações de grandes dimensões. Por isso, quando um navio verdadeiramente grande como era aquele cruzeiro de luxo deslizava até ao porto e passava amarras ao cais, o acontecimento era motivo de grande sensação na cidade.

 

O prospecto turístico da companhia de navegação tinha, também por essa razão, prometido o seguinte: uma vida rural não adulterada, uma terra virgem no que diz respeito ao turismo, aventura (sob supervisão), visita a templos ainda inviolados e belezas naturais. Algo de muito especial, portanto. Quem quisesse participar na expedição não devia esperar qualquer tipo de luxo, nada de autocarros climatizados, nada de ruas cuidadas. Seria apenas servida uma simples refeição no campo, engolir-se-ia, provavelmente, muito pó e andar-se-ia, grande parte do tempo, aos solavancos. Em contrapartida, existia a possibilidade de eternizar, com as suas máquinas fotográficas, alguns motivos realmente únicos. A quem receasse aquele tipo de esforço, pedia-se que permanecesse a bordo.

 

O apelo teve grande aceitação: mais de quatrocentos passageiros abandonaram o navio para viver a maior aventura das suas vidas, quatrocentos descobridores, quatrocentos Vascos da Gama.

 

Sete horas depois, regressaram nos autocarros, cambaleando pela ponte de embarque acima, ansiosos por um enorme copo de cerveja. Friedhelm von Sollner, que avistara o Klabautermann a fazer ginástica no mastro de posição, resumiu as impressões de viagem numa frase apenas: ”Cansativa... mas valeu a pena... Uma quebreira... Nunca mais... Merda...!

 

Mas mais uma vez, durante aquela excursão a locais até então desconhecidos, se voltou a verificar um pequeno prodígio: os mais resistentes, sempre na dianteira do grupo, foram precisamente os mais idosos dos passageiros, entre os quais três senhoras de oitenta e dois anos, professoras reformadas de Bochum e, evidentemente, a baronesa Thekla von Sahlfelden.

 

Eduard Hallinsky, pelo contrário, que se lhe havia juntado, estava absolutamente esgotado e sonhou, durante o regresso de autocarro, com um barril de cerveja. Quando chegou a bordo, em vez de ir para a cabina, precipitou-se, tal como estava, suado e coberto de pó, para o balcão do bar da piscina e gritou com voz rouca:

 

- Uma tina de cerveja! Depressa! Estou a sentir-me como uma ameixa seca...

 

Hellersen tinha reforçado a vigilância na ponte de acesso. Lá em baixo, no cais, estavam quatro marinheiros que controlavam os vistos de embarque. Cá em cima, à entrada do Convés A, o contramestre inspeccionava as pessoas que iam chegando, assistido por Victor e um representante do hospedeiro principal.

 

Beatrice, que havia participado na expedição, foi a última a subir a bordo. Não era, por isso possível, que um desconhecido tivesse furado a segurança.

 

- Todos a bordo! - comunicou o contramestre, por rádio, à ponte. Aí estava o comandante Hellersen, para dirigir pessoalmente a partida. - Nenhuma cara desconhecida.

 

- Não me atrevera a esperar tanta sorte - gritou Hartmann lá para baixo. - Seria, é verdade, o cúmulo do descaramento. Tudo pronto para partir.

 

Meia hora depois, navegavam de novo através do estreito de Sunda, que separa Samatra de Java, rumo ao mar alto. Nas cabinas, tomava-se banho, duche, fazia-se a barba ou secava-se os cabelos. Depois da refeição em terra, pedaços de frango agridoce com arroz e um legume desconhecido dos europeus, todos aguardavam com expectativa o momento de reencontrar a ementa de bordo, com os seus contos de fadas culinários.

 

Rudi Faster, o gerente de armazém, já não se irritava com nada. Pegou no telefone, no interior do seu escritório de vidro, telefonou para a ponte e disse ao primeiro-imediato:

 

- Para que não se preocupem: faltam-me, de há meia hora para cá, três alfaces e um molho de cenouras. E manteiga também. Uma boa noite a todos.

 

- Mas isso não faz sentido nenhum! - gritou Hartmann, através do telefone.

 

- Porquê? O tipo é apreciador de petiscos e encontrou, provavelmente, um sítio a bordo onde pode cozinhar. Cenourinhas salteadas em manteiga, acompanhadas por uma salada bem fresca...

 

- Não gozes comigo, Rudi!

 

- Está a fazer de nós idiotas! Mas eu não me enervo. A minha tensão arterial é-me bem mais importante. Agora limito-me a comunicar. O resto é problema da gerência.

 

Também o comandante Hellersen partilhava dessa opinião.

 

- Pelos vistos não tivemos sorte - disse ele a todos os seus oficiais reunidos na ponte. - O passageiro clandestino permaneceu a bordo e abasteceu-se com vitaminas. O que eu ainda não percebi é como é que ele faz para satisfazer a sede. Desde o roubo da cerveja do senhor Hallinsky, não voltaram a ser comunicados novos incidentes. No entanto, terá necessariamente de beber. Quem come, também tem sede. Nalgum sítio deve, portanto, arranjar algo que se beba.

 

- Pode fazê-lo em qualquer lado. - Losse afastou os braços como o faria um pregador. - Não é difícil encontrar uma torneira neste navio. Existem centenas, que lhe basta abrir. Abre-a, coloca a boca por baixo e volta a fechá-la... Só com muita sorte alguém o surpreenderá durante a operação.

 

- Tens razão, Fritz - disse Hartmann. - Não será, certamente, a beber que o caçaremos. Sobretudo se o fizer durante a noite.

 

- Por outras palavras: a algazarra continua. - Hellersen encolheu os ombros em sinal de resignação. - Somos todos figuras tremendamente ridículas, meus senhores. Evitem, pelo menos, contar, um dia mais tarde, o que aqui se tem passado. Não estariam a revelar nenhuma página gloriosa da navegação. Hartmann?

 

- Comandante?

 

- Substitua-me hoje na mesa do capitão e peça desculpa da minha parte. Diga que tive de permanecer em contacto com a companhia de navegação e que aguardo uma comunicação via rádio. E o senhor, Losse, peça ao doutor Schwengler que venha ter comigo ao meu camarote. O Schwengler foi a terra?

 

- Sim, comandante.

 

- E o cônsul Fehrenwaldt?

 

- Apenas a esposa.

 

- Ficou a bordo? - Hellersen franziu ligeiramente as sobrancelhas. ”O que eu estou a pensar é absurdo”, disse para consigo mesmo. ”Mas não é tudo possível, na vida, até mesmo o mais absurdo? Ficou a bordo. Onde terá ele sido visto, a bordo? Alguém roubou salada, cenouras frescas e manteiga. A bordo de um navio, tudo é possível. Uma vez tivemos um passageiro que foi apanhado na sala de engomar, a fritar ovos num dos ferros. Quando se transporta seiscentos passageiros, é preciso contar com tudo.” - Agradeço-lhes, meus senhores - disse Hellersen, formal. E tenham um serão agradável.

 

- Obrigado, senhor comandante - responderam os oficiais em coro.

 

O Dr. Schwengler, ainda um pouco cansado da expedição a Samatra, mas apesar de tudo revigorado pelo duche que entretanto tomara, fez um pequeno desvio pelo bar da piscina, antes de seguir para a cabina do comandante. Para ele, a cerveja era, naquele dia, a melhor invenção que alguma vez fora feita.

 

O exame à prótese de Fehrenwaldt correra, nessa manhã, exactamente como previra. Às dez em ponto, o cônsul Fehrenwaldt apareceu no hospital, foi saudado pelo médico de bordo e, depois, entregue ao colega dentista. Fehrenwaldt ficou surpreendido, quando entrou na enorme sala de tratamento.

 

- Mas isto é grandioso - comentou. - Têm tudo aqui. Mesa de operações, equipamento de anestesia, cadeira de dentista, ondas curtas, electrocardiograma... Aqui pode-se adoecer descansado... - Riu animado, da sua própria piada, instalou-se confortavelmente na cadeira de dentista e pestanejou um tudo-nada quando Schwengler aproximou o projector e acendeu a luz.

 

- Estão bem equipados para casos de emergência. Schwengler abriu a gaveta com os instrumentos e pegou no espelho. - Aqui pode ser-se engessado, ligado, encanado e fazer tratamentos de radioterapia. Existe também um aparelho de raios X e já aqui foram feitas operações a apendicites agudas. Têm, também, um aparelho de microondas e equipamento de inalação. E agora, senhor Fehrenwaldt, abra a boca, por favor.

 

- O senhor só pretende dar uma vista de olhos, doutor...

 

- Claro.

 

- Então, para que abriu a gaveta dos instrumentos? O Dr. Schwengler não pôde impedir-se de rir. Crianças

 

ou cônsules: na cadeira do dentista, são todos iguais. De todos os médicos, o dentista é o mais temido e o mais antipático. E porquê, afinal? Já lá vai o tempo em que se tratava os dentes com brocas infernais.

 

- Precisava, pelo menos, do espelho.

 

- E os restantes instrumentos de tortura?

 

- Ficam na gaveta. Palavra de honra. Não me Vou pôr a mexer na sua prótese sem a sua autorização. Por favor, senhor cônsul, abra a boca!

 

- Não me chame cônsul, peço-lhe. - Fehrenwaldt pousou a cabeça no apoio da cadeira, abriu bem a boca e, à semelhança do que fazia a maioria dos doentes nas mesmas circunstâncias, fechou os olhos. Quem se senta numa cadeira de dentista, conforma-se com o seu destino.

 

Schwengler inclinou-se para a frente e deu uma vista de olhos na maxila reconstituída e nos dentes. Percebeu logo estar perante um trabalho extraordinário. O seu colega era um virtuoso. Mas Schwengler verificou também muito depressa que, entre a impressão na folha de papel de Hallau e aquela dentadura, não havia qualquer semelhança. Não fora certamente Fehrenwaldt quem mordera e dilacerara com os dentes aquele manuscrito. Nem sequer era necessário proceder a medições comparativas. Não restavam dúvidas.

 

Schwengler voltou a endireitar-se e Fehrenwaldt abriu os olhos.

 

- Então? - perguntou ele.

 

- Extraordinário!

 

- Foi o que eu sempre disse.

 

- E quando é que tudo isto foi feito?

 

- A operação plástica, há trinta e oito anos. A dentadura que acabou de observar é de mil novecentos e setenta e oito. A dentadura que usara até então teve de ser substituída, porque o material que, naquele tempo, se havia utilizado, já estava ultrapassado. Dois tipos de metais, o que provocava tensões constantes.

 

- Agora tem uma liga de cromo. São praticamente eternas. - O Dr. Schwengler poisou o espelho. - Tem aí uma pequena formação de tártaro. Convinha retirá-la.

 

- Não me toque, doutor! - Fehrenwaldt dissera-o em tom de brincadeira, mas estava a falar a sério. - A remoção de tártaro é uma operação extremamente desagradável. Aquele raspar e o polir...

 

- Ora essa, não tem propriamente uma pedreira na boca!

 

- No momento do polimento, cheira intensamente a ferraria.

 

- Quando eu era miúdo, e eu cresci no campo, a ferraria era o meu sítio preferido.

 

- Por isso é que se tornou dentista.

 

- Não sentirá nem cheirará nada. Aspira-se isso tudo!

- disse Schwengler. - E verá que depois até assobia por entre os dentes.

 

- Mas para quê? Até aqui, sempre assobiei com os dedos.

 

O Dr. Schwengler fechou a gaveta dos instrumentos.

 

- Como quiser, senhor Fehrenwaldt. Nesse caso a consulta terminou.

 

- Não seja tão teimoso, doutor. Tenho sido um paciente bem-comportado. Eu abro a boca. E despache-se lá com isso, seu cabeçudo. Mas fique sabendo que não lhe pago honorários...

 

A remoção do tártaro decorreu sem protestos da parte de Fehrenwaldt. Schwengler era um médico excepcional, trabalhava depressa, de forma indolor, e fazia acompanhar a sua arte por comentários como este:

 

- Ah! Aqui temos uma magnífica rocha. Antigamente, usava-se isto para cobrir as sepulturas dos heróis germânicos. E o que é isto? Uma concorrente da pedreira de mármore de Carrara. E agora, retiremos este belíssimo obelisco...

 

- O senhor é um sádico, doutor - disse Fehrenwaldt já libertado, quando tudo acabara. - Não, não senti nada, a não ser um constante martelar no cérebro. Mas o seu comentário relativamente às sepulturas germânicas foi uma maldade. Tinha mesmo todas aquelas coisas na boca?

 

- Em miniatura... Nada de que valha a pena falar. Schwengler sorriu. - É que para o distrair, tive de estimular a sua fantasia.

 

- E foi muito bem sucedido

 

A partir daquela consulta, tornaram-se como que amigos. Os homens são assim. As mulheres nunca compreenderão.

 

Mais tarde, Schwengler contaria tudo isto ao comandante Hellersen em termos mais sóbrios.

 

- Depois, quando fui a terra, ele fez-me sinal a partir da ponte de passeio - acrescentou ainda. - Não quis participar na excursão. Deve ter imaginado como iria ser cansativa. Três horas depois, invejei-o.

 

- E enquanto o navio permaneceu quase vazio, foram roubadas laranjas, artigos de pastelaria, cenouras, manteiga e outras coisas. Mais tarde, encontraríamos as cascas de laranja espalhadas pelo convés. E quatro cascas de quivi vazias.

 

- Não está, certamente, a insinuar, que o cônsul Fehrenwaldt... Mas isso é um absurdo, comandante! - indignou-se o Dr. Schwengler.

 

- Absurdo é tudo o que temos vivido nos últimos dias! - Hellersen foi até ao armário de parede, de onde retirou um prato de vidro, que mostrou a Schwengler. Dentro do prato encontravam-se duas cascas de quivi. - Dê uma vista de olhos nisto, doutor. O doutor Schmitz achou que lhe poderia interessar.

 

- Quivis descascados? - Schwengler inclinou-se sobre o prato de vidro. - Mais uma gracinha de Colónia?

 

- Não repara em nada, doutor? - perguntou Hellersen, insistente.

 

- Não...

 

- Como é que o senhor come os seus quivis?

- com uma colher.

- E antes?

- Antes disso, corto-os, naturalmente, ao meio.

- Corta-os. E no caso destes quivis, doutor?

O Dr. Schwengler voltou a examinar as cascas. Foi então que, admirado, percebeu ao que se referia o comandante.

 

- Não tinha reparado nisso. Os quivis foram abertos com os dentes. Trespassados por dentes.

 

- E o doutor Schmitz é da opinião que essas marcas coincidem com as encontradas no manuscrito do Hallau. O que é que acha?

 

- Para o determinar com toda a certeza, teria de levar a cabo algumas medições comparativas. - O Dr. Schwengler voltou a pousar o prato em cima da mesa. - Mas repito: é absurdo pensar-se que o senhor cônsul Fehrenwaldt possa andar por aí a morder papéis e quivis. E o facto de ter estado sozinho a bordo, isto é, sem a sua esposa, não prova absolutamente nada. Pelo contrário, considero a hipótese totalmente absurda. O Fehrenwaldt não é de todo louco. Diria mesmo que é uma pessoa extremamente inteligente. E se está a pensar que possa ser esquizofrénico... está completamente enganado, comandante. Não existe o mais pequeno indício nesse sentido. Gostaria mesmo de acrescentar o seguinte: dispomos agora de uma prova irrefutável de que existe um passageiro clandestino a bordo. Não tendo uma faca consigo, que alternativa lhe resta? Cortar com os dentes tudo aquilo que, em circunstâncias normais, cortaria com uma faca.

 

- Tem toda a razão - respondeu-lhe Hellersen, acenando com a cabeça. - Mas nada há mais fácil, a bordo de um navio, que roubar uma faca. Em todo o lado há uma mesa posta. Facas, garfos, colheres não deveriam constituir um problema. E para quem consegue beber a cerveja de um passageiro ou roubar bolinhos na pastelaria, o roubo de uma faca não deverá, certamente, constituir uma missão impossível.

 

- Talvez o nosso raciocínio seja bastante mais linear do que o do desconhecido que por aqui se mantém escondido.

 

- Quem dá nós em xailes e iça soutiens, não pensa de forma linear! - Hellersen sentou-se no canto da sua secretária e sentiu-se, mais uma vez, absolutamente impotente. Risquemos, portanto, o cônsul Fehrenwaldt da nossa lista. Não tem passado de uma obsessão da qual não temos sabido desistir. Resta-nos, assim, a velha tese do doutor Schmitz: o passageiro clandestino, que rouba comida, e o fantasma, que desaparece com bonés, anda para aí a atirar roldanas, a içar soutiens, a esfacelar manuscritos e a aterrorizar senhoras com risos horripilantes. Parece-me que já basta.

 

- Parece-me, a mim, que não vamos conseguir encontrar os dois elementos em questão. O primeiro abandonará o barco em Singapura, o outro em Hong Kong, no final da viagem. Não é possível encontrar um esquizofrénico no meio de seiscentos passageiros, a menos que este tenha um acesso em público.

 

- Uma coisa é certa. A partir de Singapura, saberemos com certeza se estamos a lidar com duas pessoas distintas. Caso o passageiro clandestino abandone o navio, os roubos deverão acabar, mas as partidas, essas, deverão prosseguir até Hong Kong.

 

- Parece-me lógico, sim.

 

- Belas perspectivas. - Hellersen pôs-se a andar de um lado para o outro da enorme sala. - Em que é que se reconhece um esquizofrénico?

 

- Eu sou especialista em cirurgia maxilar, não psiquiatra, comandante. O que tem o colega Schmitz a dizer a esse respeito?

 

- Que a menos que este tenha um comportamento verdadeiramente estranho... não há nada a fazer. Um esquizofrénico pode comportar-se, durante todo o dia, como a mais normal das pessoas, mas à noite, dizem, transforma-se num verdadeiro pesadelo. - O Dr. Schmitz chegara mesmo a compará-los aos vampiros. - Quando é que um vampiro o de facto? Só à noite. Durante o dia pode comportar-se como um homem honrado.

 

- A história do vampiro é tão irreal quanto a do Klabautermann. Admitamos, antes, que o desconhecido é verdadeiramente perverso. E esse é o tipo de coisa que não se percebe ao olhar-se para uma pessoa.

 

O comandante Hellersen imobilizou-se diante de Schwengler.

 

- O que faria, se estivesse no meu lugar, doutor? O senhor é um homem de raciocínio claro e eu estou já demasiado envolvido para ainda ser capaz de raciocinar objectivamente. O que é que faria?

 

- Nada

 

- Tanta coisa!

 

- Estou a falar a sério, comandante. Não faria mesmo nada... Por um lado, não procuraria evitar que o passageiro clandestino roubasse comida, uma vez que é previsível que tudo isso acabe em Singapura. Por outro, e no que diz respeito ao louco, esperaria confortavelmente que ele próprio acabasse por se denunciar. Para além de que também esse problema acabará por se resolver o mais tardar em Hong Kong. Não passa, afinal, de um louco inofensivo.

 

- Até à data, doutor! - O rosto de Hellersen estava coberto de rugas, fruto de toda aquela preocupação. O episódio da roldana constituiu já uma agressão física. Também a destruição do manuscrito do Hallau não me parece tão desprovida de importância quanto isso, uma vez que se tratou de um acto tresloucado. Que acontecerá a seguir? Fará sentido que eu aguarde, impávido e sereno, que tenha lugar a bordo, por exemplo, um assassínio? Considera a hipótese de um assassínio completamente impossível?

 

- Quem ousaria um prognóstico num contexto como este? - retorquiu o Dr. Schwengler, cauteloso. - Quando se lida com doentes mentais, deve sempre contar-se com a possibilidade de actos violentos.

 

- Está a ver? E sugere-me que cruze os braços e não faça nada? Eu sou o comandante deste navio e, enquanto tal, responsável pelo bem-estar de seiscentos passageiros e de trezentos e cinquenta membros da tripulação. Se, entre eles, houver um assassino...

 

- Ainda não chegámos a esse ponto, senhor comandante.

 

- Temo, no entanto, que um dia destes se nos depare um cadáver. É de realçar, no comportamento do desconhecido, um certo crescendo: numa primeira fase, limitava-se a dobrar cadeiras de encosto. Agora já chegou ao ponto de quase matar o meu imediato com uma roldana. Não deixa de ser alarmante!

 

- E nós... nada podemos fazer senão esperar.

 

- Esta situação ainda me leva a correr contra uma parede de cabeça para a frente!

 

- Não faça isso, comandante. Seria, dessa forma, a primeira vítima. Esperemos que as expectativas do colega Schmitz se venham a verificar: que o passageiro clandestino se enerve com a presença do louco e vice-versa. Tentarão, nesse caso, eliminar-se reciprocamente. Existe, no entanto, uma pequena falha nessa teoria, que a vota inevitavelmente ao insucesso.

 

- Qual?

 

- Um esquizofrénico nunca consegue lembrar-se do que fez durante um desdobramento de consciência. Daí, de resto, o nome que se deu ao fenómeno: desdobramento de consciência. Este experimenta, assim, alternadamente, duas personalidades que não se conhecem entre si. Pelo contrário, indignar-se-á ou divertir-se-á como os restantes, sempre que novas partidas forem levadas a cabo. Segundo o entendimento da medicina, não é, por isso, possível que o esquizofrénico... admitindo que se trata efectivamente de um esquizofrénico... e o passageiro clandestino venham alguma vez a enfrentar-se. O colega Schmitz não terá, certamente, pensado neste aspecto.

 

- Ou, então, calou-o propositadamente, com o propósito de não nos preocupar. - Hellersen levantou ambos os braços. - Andamos completamente às voltas, doutor Schwengler. E chegamos sempre à mesma conclusão, a da nossa impotência. E o tempo passa...

 

- Felizmente! Em Hong Kong poderá respirar fundo.

 

- Até lá ainda faltam dez dias. - Hellersen passou as mãos pelos cabelos. - As coisas que ainda poderão acontecer!

 

- Esperemos que poucas. Sempre é uma esperança realista.

 

Hellersen fez um sinal de resignação com a cabeça, e o Dr. Schwengler voltou para a cabina, a fim de levar a sua ”querida esposa” a jantar.

 

Esta estava, mais uma vez, ofendidíssima, porque não sabia onde o marido estivera e de onde acabara de chegar.

 

Não lhe dirigiu uma única palavra. Schwengler sentiu o facto como um alívio. Só quando, já no restaurante e passando ao lado da sua mesa, ele seguiu caminho, é que ela, que o seguia de muito perto, finalmente perguntou:

 

- Para onde é que está a ir?

 

- Para a mesa do cônsul Fehrenwaldt. Ele deseja conhecer a minha ”querida esposa”. Esqueceste-te de que, de hoje em diante, nos sentaríamos na mesa B Quinze?

 

- E isso até Hong Kong?

 

- Acabarás por te habituar à ideia.

 

- Nessa altura terei perdido uns sete quilos! Na presença daquele estafermo de mulher, a comida não me sabe a nada.

 

- Óptimo! Será a melhor dieta que alguma vez terás feito. Um pequeno êxito, nesse domínio, não te fará mal nenhum.

 

Aquela fora uma observação mortal. A tendência de Selma para engordar constituíra, nos últimos anos, a sua principal preocupação. Todos os anos fazia uma dieta nova, emagrecia dez quilos e, todos os anos, passados alguns meses, recuperava os dez quilos.

 

- Não existe pessoa mais repugnante do que tu! - cochichou-lhe ela ao ouvido. - Para que fiques a saber: acabaste de me estragar a viagem toda.

 

Depois, foi para o lado de Schwengler, deu-lhe o braço e colocou no rosto um maravilhoso sorriso. Foi assim, formando um magnífico casal, que caminharam em direcção à mesa do cônsul Fehrenwaldt.

 

Um dos maiores enigmas associados à natureza psíquica dos passageiros de cruzeiros tem a ver com o facto de, após uma excursão em terra, e apesar de exaustos, estes renascerem normalmente depois de um duche e de se maquilharem e frequentarem, como se nada fosse, tanto o restaurante como a pista do salão de baile, até perto da meia-noite.

 

Os especialistas em climatologia acreditam que o fenómeno tenha a ver com o clima marítimo, o ar salgado e o iodo contido na água do mar, um afrodisíaco potentíssimo, bastante mais eficaz do que as ostras ou o caviar, a ioimbina ou a estricnina, a vitamina E ou o corno de rinoceronte. Mas ninguém sabe ao certo. Apenas se sabe que o efeito, esse, é bem visível. Já aconteceu, e existem documentos para o comprovar, que, durante viagens como estas, velhotes que haviam embarcado cambaleantes e apoiados nas suas bengalas fossem vistos, ao fim de oito dias, a dançar o tango. Mais tarde, de regresso às suas casas, agarravam-se novamente às bengalas.

 

Já muito se escreveu acerca deste fenómeno, sem nunca se chegar a uma conclusão verdadeiramente elucidativa.

 

Da baronesa von Sahlfelden não se podia propriamente dizer que, aos setenta e dois anos, tivesse repentinamente rejuvenescido. Mas a verdade é que, desde que descobrira que Eduard Hallinsky também vivera, com o Klabautermann, uma experiência semelhante à sua, passara a ser vista quase sempre na sua companhia. Deitavam-se, um ao lado do outro, nas cadeiras de recosto, tinham feito mutuamente companhia um ao outro, no autocarro, durante a excursão a Samatra, ocupavam uma mesa em comum no salão de festas, almoçavam juntos no convés e frequentavam juntos o bar da piscina.

 

Hallinsky tinha jeito para contar histórias, e esse era um dos seus maiores trunfos enquanto consultor de investimentos. Qualquer que fosse a mentira que contasse, tinha o dom de a tornar verosímil. Quando falou da sua experiência na Terra do Fogo, onde nunca estivera, tudo parecia fazer sentido, e a baronesa que, essa sim, já lá tinha ido, contribuiu também com algumas experiências pessoais. E quando chegou a altura de contar a sua visita ao Kilimanjaro, Hallinsky discursou com agilidade, embora nunca tivesse passado de Mombaça, pois adormecera no dia da excursão à estepe de Masai, em consequência de uma bebedeira que apanhara na noite anterior. A baronesa, pelo contrário, tinha sobrevoado aquela belíssima montanha num pequeníssimo avião de apenas seis lugares.

 

Bom... e depois Portugal. O Algarve. Essa terra de sonho por muitos ainda desprezada. As pessoas precipitavam-se, normalmente, para as praias italianas de Adria e da Riviera, assim como para a costa mediterrânica espanhola, ignorando que, logo ali ao virar da esquina, para usar uma expressão metafórica, existia aquela região de uma beleza tão invulgar.

 

Era, aliás, neste contexto que devia ser entendida a súbita empatia que ligara Hallinsky à baronesa: da sua carteira de ofertas constava, entre outras, uma proposta para um investimento absolutamente seguro em Portugal, cinco mil metros quadrados de terra para construir, frente ao mar. Embora se tratasse de uma área virgem, o abastecimento em água e electricidade não constituiriam, supostamente, qualquer tipo de problema. Quem ouvisse Hallinsky, nunca havia problemas. Esses só apareciam quando já se tinha assinado os contratos e se era proprietário de um novo imóvel. O problema é que, nessa altura, já não era possível responsabilizar Hallinsky. Afinal de contas, que culpa tinha ele se, por exemplo, os serviços municipais locais se comportavam, inesperadamente, como loucos!

 

A baronesa de Sahlfelden, uma apaixonada pelo Algarve, manifestou grande interesse pela proposta de Hallinsky. As fotografias coloridas contribuíram também para que se convencesse de que a planta geral era realmente única, uma pérola, segundo as palavras de Hallinsky.

 

- Esse sim, seria um belo poiso para eu gozar a minha velhice - disse a baronesa. - Calor durante todo o ano, nada de reumatismos, sossego total e um ambiente magnífico, com o mar logo ali...

 

-... com uma escada que a levasse directamente da porta de casa até à piscina - acrescentou Hallinsky, exaltado. - Protegida do vento... uma pequena baía... um pedaço de mar só para si...

 

- Mas o preço, senhor Hallinsky!

 

- Quem falou de preços, baronesa?

 

- Eu.

 

- Desde que fomos expulsos do paraíso original, os paraísos passaram a custar dinheiro. E é a Adão, o primeiro vegetariano, que o ficamos a dever... - Hallisnky riu energicamente com aquela piada já antiga. - Só que aqui, os sonhos não são feitos de espuma, são realidades palpáveis. Terra na qual se pode pegar. Mar rumorejante. Sol durante trezentos e sessenta e cinco dias. Não, estou a mentir: trezentos e sessenta e três. Todos os anos, durante dois dias, o sol é limpo...

 

Os discursos de venda de Hallinsky eram absolutamente arrebatadores. Ouvi-lo era, por si só, uma delícia. Só não se podia acreditar em nada do que dizia. Em nada. Mas disso as pessoas só se apercebiam tarde de mais.

 

- O senhor disse duzentos marcos por quilómetro quadrado?

 

- Exactamente.

 

- Mas isso significaria que os cinco mil metros quadrados em questão me custariam exactamente um milhão de marcos.

 

- O que não é nada, baronesa. Para o ano que vem, custará um milhão e meio. O Algarve está em alta, toda a gente o diz. Os jogadores de golfe já reviram os olhos só de ouvir falar dos campos de golfe existentes no Sul de Portugal. E o golfe está a tornar-se num desporto cada vez mais popular na Alemanha.

 

- Eu não jogo golfe, senhor Hallinsky.

 

- Mas os jogadores de golfe admirarão a sua propriedade e oferecer-lhe-ão o dobro por ela. Quanto mais não seja por essa razão, o investimento é já inestimável. Em que outras circunstâncias se consegue, em tão pouco tempo, um lucro de cem por cento. Eu sei, eu sei, baronesa, nunca pensaria em voltar a vender um paraíso como este... mas só a ideia: este pedacinho de terra, que me pertence, no qual vivo, valoriza dia após dia. É uma certeza que alegra o coração.

 

- Um milhão... não tenho essa quantia de dinheiro disponível - afirmou a baronesa.

 

- E quem é que tem? - Hallinsky fez um gesto com a mão, como que desfazendo-se de alguma coisa. - Tenho clientes que são multimilionários conhecidos de todos nós. Mas dinheiro efectivo... nada feito! Têm tudo investido em acções. É para esses casos que existem os financiamentos concedidos pelos bancos. Por que outra razão se chamariam instituições de crédito? Contraímos, simplesmente, um empréstimo sobre o terreno, e depois terá muito tempo para o pagar com toda a calma. É a nova mobilidade. Quem não vive do crédito, não compreende a economia mundial. E o que é, afinal, para si, um milhão, baronesa? A valorização do seu terreno no Algarve é dez vezes superior aos juros que terá de pagar pelo crédito... Só assim se consegue o que se quer.

 

- Então, porque não é a maioria das pessoas grande proprietária de terrenos?

 

- Porque não conhecem um Hallinsky... Ah! Ah! Ah!

 

- Hallinsky estava extremamente bem-disposto. - Permite-me que lhe traga mais uma limonada, baronesa?

 

- Não, obrigada. Dentro de pouco tempo, vamos jantar.

 

- A baronesa endireitou-se na sua cadeira. - Não é possível dividir o terreno em dois ou mesmo em três?

 

- Possível é, baronesa.

 

- Mil e quinhentos metros quadrados ser-me-iam mais do que suficientes. E, sobretudo, estaria em condições de os pagar.

 

- E estaria, dessa forma, a oferecer uma fortuna no valor de milhões. Se comprar agora a totalidade do terreno e, mais tarde, vender os dois terços, o terreno não lhe terá custado, com a subida de preços que se avizinha, praticamente nada. É assim que se tem de fazer as contas, baronesa. com os olhos postos no futuro. Só muito poucos sabem pensar nestes termos. Tem que se analisar as tendências e saber antecipar-se.

 

É assim que se transforma um milhão em dois ou mais. A arte está toda em não se ter medo... O risco associado à tranquilidade origina riqueza. A maioria das pessoas não compreende este teorema.

 

- Eu também não...

 

- Mas a senhora tem o Hallinsky a seu lado, pelo que a situação muda de figura. Baronesa, sugiro que repensemos toda esta situação, tendo em conta todos os riscos, mas também todas as tendências para o futuro. Tenho a certeza absoluta de que acabará por aderir à ideia com o maior entusiasmo.

 

O fenómeno retórico Hallinsky acabara por envolver também a baronesa von Sahlfelden. Decidira, desde o início, que não compraria o terreno no Algarve. Queria apenas deixar Hallinsky falar. Agora, estava como que enfeitiçada, hipnotizada pelas suas palavras. Os clientes de Hallinsky que mais tarde o haviam posto em tribunal relatavam o mesmo fenómeno: ”Ludibriou-nos. Embriagou-nos com palavras. Não sabíamos, no final, o que tínhamos assinado.” Só que, em tribunal, estes argumentos de pouco valiam, e a maioria dos processos acabaria por ser decidida a favor de Hallinsky.

 

Também relativamente à baronesa, Hallinsky tinha um bom pressentimento. Acabaria por comprar. Tinha adquirido o terreno a um camponês pelo equivalente a duzentos mil marcos. Para o camponês, aquilo representara uma fortuna, que quase o levara à loucura. É que o objecto tinha alguns defeitos graves. Tratava-se de um terreno essencialmente rochoso e tudo o que se pretendesse construir ali, teria de ser literalmente cravado na pedra; cada alicerce, já para não pensar na cave. Em segundo lugar, não havia nem água, nem electricidade; seria necessário, por isso, mandar instalar a canalização até um distribuidor que se encontrava a mais de quinhentos metros do terreno e assumir pessoalmente os custos da obra. E terceiro: não havia ainda autorização para construir, porque a Marinha portuguesa não queria ver habitada aquela faixa costeira.

 

Mas quem é que faz referência a essas limitações sem importancia... - sabendo que pode ganhar oitocentos mil marcos?

 

Para Hallinsky, a questão nem se punha.

 

Tinha, portanto, todos os motivos para subir ao convés dos desportos, agora que os restantes passageiros desapareciam na coberta, para mudar de roupa para o jantar. Naquele navio, à noite, era obrigatório usar fato e gravata. Entre as senhoras o lema era: passear as jóias. Mostrar o que se tem. Hallinsky tinha tempo; subiu as escadas, deu por si sozinho no convés e inspirou profundamente o ar do mar. Os corvos marinhos escoltavam o navio, baloiçando ao sabor dos ventos ascendentes, sobrevoando com elegância o navio ou flutuando, como que desprovidos de qualquer peso. A ponta sul de Samatra ainda devia estar bastante próxima.

 

Hallinsky congratulou-se pelo lucro, quase certo, de oitocentos mil marcos; tinha já em mente um banco que estaria disposto a conceder o empréstimo e calculou a sua comissão no negócio. Pensou para consigo mesmo que, naquela noite, faria sentido abrir uma garrafa de champanhe. E da melhor qualidade. Fora bem merecida.

 

Todos nós já sentimos, pelo menos uma vez, a estranha sensação de estarmos sozinhos e de não o estarmos ao mesmo tempo; a sensação de que alguém, atrás de nós, nos fixa o pescoço. Também Hallinsky, naquele momento, teve essa sensação; virou-se repentinamente, mas não havia ninguém atrás dele. No convés de baixo, um empregado reunia as cadeiras de encosto e arrumava as suas bases.

 

”Estou mesmo a precisar de um copo de champanhe”, pensou Hallinsky. ”Os êxitos mexem sempre com os meus nervos. Uma pessoa também não é de ferro.”

 

Atravessou devagar o convés em direcção à porta. Foi nessa altura que se apercebeu da presença, no chão, junto à parede, de uma laranja. Parou, aproximou-se dela, baixou-se e apanhou-a. Quis apanhá-la, porque, na realidade, já não foi capaz.

 

Um murro semelhante a uma martelada atingiu-o na cabeça, fazendo-o perder a consciência. No entanto, já caído no chão, uma imagem nebulosa gravou-se-lhe ainda na memória: dois olhos imóveis, flamejantes e hostis, por debaixo de densas sobrancelhas, observavam-no.

 

Depois perdeu os sentidos.

 

Quando Hallinsky acordou, estava deitado numa cama feita de branco. À sua volta encontravam-se o Dr. Schmitz, o comandante Hellersen, o imediato Hartmann e o oficial de segurança Dornburg. Todos olhavam para ele com expectativa.

 

- Está a voltar a si - ouviu o Dr. Schmitz dizer. Senhor Hallinsky... consegue ouvir-me? Meu Deus, que grande pancada que você levou...

 

Hallinsky contraiu os músculos, quis endireitar-se, mas o Dr. Schmitz impediu-o de o fazer, empurrando-o para baixo.

 

- Não se arme em forte, por favor! - disse-lhe, procurando acalmá-lo. - Se visse o galo que tem na cabeça, faria um buraco no boné.

 

- O que é que aconteceu? - perguntou Hallinsky, ainda bastante confuso. - Estou no hospital. Como é que cá vim parar?

 

- Apanhou o elevador até ao Convés C. Hallinsky gemeu baixinho.

 

- Porque é que logo o médico deste navio tinha de ser de Colónia? Senhor comandante... o que é que aconteceu?

 

- Por um motivo qualquer, talvez fraqueza, o senhor caiu e bateu com a cabeça. Um empregado encontrou-o desmaiado junto da parede.

 

- A laranja... - disse Hallinsky, ainda fraco.

 

Os presentes olharam, perplexos, uns para os outros. Ainda estava a delirar. Ou com alucinações. Um traumatismo cerebral grave... Para Hallinsky, a viagem terminara daquela forma.

 

- A culpa foi da laranja - disse, em voz baixa. Quis apanhá-la, e alguém me bateu por trás.

 

- Como disse? - Hellersen levantou-se como um relâmpago. - Alguém o agrediu?

 

- Sim. com um punho que mais parecia um martelo.

 

- E... e ainda conseguiu ver alguma coisa? - perguntou Dornburg ofegante.

 

- Vi o tipo.

- Óptimo.

 

- Para si... porque para mim, não. - Hallinsky já se sentia melhor e procurou reconstituir o que tinha acontecido numa fracção de segundos apenas. - Ele tinha olhos escuros e penetrantes, com sobrancelhas grossas e uma cor de pele acastanhada...

 

- E mais...? - gritou Hartmann, excitado.

 

- Mais? Experimente o senhor levar uma pancada como esta. Perdi imediatamente os sentidos. Só sei uma coisa: aqueles olhos eram de assassino, cintilantes e impiedosos.

 

- Ora, cá está! - Hellersen passou a mão pela cara. O meu pressentimento. Ainda há-de acontecer uma desgraça a bordo deste navio. A bordo do meu navio. E ninguém pode fazer nada para o evitar.

 

- Que história é essa da laranja? - perguntou Dornburg, hesitante. - O senhor referiu, a dada altura, uma laranja.

 

Hallinsky acenou com a cabeça. Ao fazê-lo, sentiu uma dor no local onde fora atingido. Quase ao mesmo tempo sobressaltou-se, pois o Dr. Schmitz acabara de lhe aplicar um saco de gelo na cabeça.

 

- É um galo grande? - perguntou Hallinsky.

 

- Quase com a forma do monte Cervino.

 

- Tem muita graça, doutor. Sim, a laranja. Estava pousada no chão, junto da parede. Quis inclinar-me para a apanhar, e foi nessa altura que o tipo me atingiu - repetiu Hallinsky.

 

- Porque a laranja era dele - disse Hartmann.

 

- Há outras maneiras de reclamar o que nos pertence.

 

- Para este tipo não.

 

- Porque é o Klabautermann? - perguntou Hallinsky claramente. O saco de gelo estava a saber-lhe muito bem.

 

- Não, porque se trata de um passageiro clandestino, que rouba a comida que come. E a laranja, provavelmente, fazia parte desta. O senhor quis apoderar-se dela e foi por isso que o agrediu.

 

- Meu Deus, eu nem sequer a queria. Estava ali à mão de semear. Ter-lha-ia dado.

 

- Sim, mas nesse caso tê-lo-ia visto. E era precisamente isso que ele não queria e tinha de evitar. - O comandante bateu com a mão na coxa. - Já dispomos de mais algumas informações: conhecemos-lhe a parte dos olhos. Sobrancelhas carregadas, olhar penetrante e, sobretudo, pele acastanhada! Deduzo daí que se tratará de um nativo de Bali. Tal como suspeitávamos. Quer chegar a Singapura, para aí tentar a sorte. Portanto, sempre é um homem! Um tipo particularmente violento. Nada o assusta.

 

- E pendura um soutien na adriça? - perguntou o Dr. Schmitz, irónico. - E anda para aí a morder manuscritos? Como é que tudo isto se encaixa?

 

- De maneira nenhuma - disse Hartmann. - E porque haveria ele de prender um xaile a um turco com um nó? Os passageiros clandestinos só têm um objectivo: permanecer invisíveis até ao porto sonhado. Era, pelo menos, assim, até há bem pouco tempo.

 

Hellersen inclinou-se novamente por cima de Hallinsky, aliviado pela frescura que o saco de gelo lhe proporcionava.

 

- Também acha que se trata de um nativo?

 

- Eu não acho nada, comandante. Mal consegui ver o patife. Pode também tratar-se de um branco bronzeado. Já aqueles olhos, aquele olhar, aquele ódio, não os esquecerei jamais... Por causa de uma estúpida laranja... De que mais será ainda capaz aquela criatura! - Hallinsky olhou para o Dr. Schmitz. - O que é que acha, doutor?

 

- Tive, uma vez, um paciente do qual teria certamente fugido, se o tivesse encontrado no escuro. No entanto, contou-me que o seu caniche tinha morrido no dia anterior e pôs-se a chorar como uma criança.

 

- Mas não lhe deu, logo a seguir, uma martelada na cabeça.

 

- Não. Tinha o quarto dente inferior esquerdo infectado e, quando assim é, é-se particularmente pacífico.

 

- Não faz sentido discutir com a gente de Colónia disse Hallinsky, resignado. - Quanto tempo é que ainda aqui tenho de ficar deitado? Estou cheio de fome. Para além disso, tenho um encontro marcado com a baronesa Von Sahlfelden. Sinto-me de perfeita saúde. Quero ir-me embora.

 

- com um traumatismo desses terá de permanecer deitado. - Schmitz fez um gesto com a mão, com o qual quis significar: ”Quietinho! Sossego total.”

 

- Não tenho nenhum traumatismo - disse Hallinsky, furioso. - Como é que chegou a essa conclusão?

 

O Dr. Schmitz deu dois passos para trás, afastando-se, deste modo, da cama.

 

- Como é que me vê? - perguntou.

 

- Demasiado bem.

- Não me vê em duplicado?

- Meu Deus, tudo menos isso. Preferia, confesso, vê-lo cortado ao meio.

O Dr. Schmitz levantou o polegar.

 

- E o que é que vê agora?

 

- Uma potencial impressão digital num ficheiro intitulado: ”Salvem-se do Médico!” - Hallinsky sorriu para o comandante Hellersen. - Foi boa, não lhe parece?

 

- Pode ir-se embora. - Schmitz enfiou as mãos nos bolsos da sua bata branca. - Sente-se indisposto?

 

- Sim...

 

- Ah!

 

- Indisposto pela ânsia. Ânsia por uma cerveja. Se me mantiverem retido aqui por muito mais tempo, pesar-vos-á na consciência um sequestro com consequências fatais.

 

- Porquê fatais?

 

- Porque, entretanto, morrerei de sede. - Hallinsky arrastou-se para fora da cama, só então reparando que não tinha as calças vestidas e estivera todo aquele tempo deitado apenas com umas cuecas. - Quem é que me despiu as calças? Será que, agora, os traumatismos cerebrais são diagnosticados com base na observação do traseiro. Ou tratar-se-á, antes, de uma nova descoberta da Escola de Colónia. Diagnóstico rectal em casos de perturbações cerebrais...

 

- Havia o risco, senhor Hallinsky - disse o Dr. Schmitz, aparentemente com toda a seriedade -, de o senhor, em consequência do traumatismo, não estar em posse de todas as suas funções corporais e poder, consequentemente, defecar na cama.

 

Hallinsky respirou fundo; olhou depois para Hellersen e espetou o queixo.

 

- Tenho que me sujeitar a isto, senhor comandante? perguntou, desanimado.

 

- Não tenho qualquer influência no departamento médico. - Hellersen e os presentes riram-se, divertidos. A bordo deste navio, existe uma separação de funções extremamente rígida. Eu mando na ponte, o doutor Schmitz no hospital. Se um de nós interferisse no domínio do outro, dar-se-ia uma catástrofe. Mas está dispensado, senhor Hallinsky. Quanto a cerveja, é coisa que não falta a bordo. Ninguém nos deixará dessecados.

 

- Os quatro Ds. - acrescentou o Dr. Schmitz.

 

- Porquê quatro? - Hallinsky contou pelos dedos das mãos. - Dois...

 

- Dinguém dos deixará dessecados... - Schmitz sorriu.

- É assim que soa ao fim da décima quinta cerveja.

 

- Depressa! Tenho de sair imediatamente daqui! Hallinsky saltou da cama. - O homem está a tentar matar-me com jogos de palavras. Posso finalmente reaver as minhas calças?

 

À semelhança de um actor que, em palco, reagisse a uma deixa, a enfermeira Emmi trouxe-lhas imediatamente. Uma boa enfermeira ouve e vê tudo, e Emmi era uma excelente enfermeira. Via e ouvia muito mais do que se imaginava. Hallinsky enfiou as calças, apertou o cinto com força e levou, pela primeira vez, a mão ao galo que tinha na cabeça. Era, efectivamente, enorme.

 

- O tipo tinha um punho de ferro - disse, num tom quase elogioso.

 

- Não poderá ter-lhe acertado com um objecto qualquer? - perguntou Dornburg.

 

- Dificilmente. Nesse caso estaria morto.

 

- Aí tem toda a razão. - O Dr. Schmitz pegou no saco de gelo pousado na almofada e atirou-o para cima da mesinha-de-cabeceira. - A estranha cabeça do senhor Hallinsky não será, apesar de tudo, assim tão sólida.

 

Todos esperaram, curiosos, por uma resposta. Mas Hallinsky surpreendeu-os. Em vez disso, perguntou, benevolente:

 

- Tem algum programa para hoje à noite, doutor?

 

- Não.

 

- Posso convidá-lo para um copo? Uma pequena celebração por me ter safado apenas com um galo.

 

- Convite aceite. - O Dr. Schmitz estendeu a mão a Hallinsky. Ao fazê-lo, sentiu-lhe o pulso. - Parece-me que o seu pulso está um pouco acelerado.

 

- E acha estranho? Qualquer pessoa, ao vê-lo, fica inevitavelmente com o pulso descontrolado.

 

- A que horas e onde?

 

- Digamos às vinte e duas horas, no bar da discoteca?

 

- Lá estarei.

 

Hellersen, Hartmann e Dornburg acompanharam Hallinsky até ao elevador e subiram com ele até ao convés principal. Mas só quando as portas dos elevadores se haviam já fechado é que Hallinsky esfregou as mãos e disse, com um sorriso nos lábios:

 

- Hoje à noite farei com que o doutor Schmitz apanhe uma valente bebedeira. Uma bebedeira como nunca terá experimentado. Só espero que nenhum caso súbito de doença venha estragar-me a festa!

 

Um desejo perfeitamente vão. Naquela viagem, nunca se estava livre de surpresas.

 

O casal Falkenhausen tinha todos os motivos para gozar alegremente aqueles dias no alto mar, a viagem de sonho ao arquipélago indonésio, a Singapura e a Hong Kong: festejavam as suas bodas de prata.

 

Vinte e cinco anos de casamento pode não ser, para alguns, nada de especial, mas, no caso dos Falkenhausen, era extraordinário que tivessem chegado até ali.

 

Arno Falkenhausen era dono de uma fábrica de calçado em Pirmasens e a sua marca, Donatella, era apreciada por toda a gente. Soava a italiano, e toda a gente sabe que os sapatos mais elegantes vêm, precisamente, de Itália. Diga-se, no entanto, em abono da verdade: quem comprava ”Calzatura Donatella” ficava extremamente bem servido e esquecia rapidamente o logro inicial de que fora vítima, relativo à origem do artigo. De resto, era coisa que só se notava se não se desse uma vista de olhos por debaixo da palmilha, onde em vez de made in Italy, se podia ler made in Germany.

 

Arno Falkenhausen era um daqueles fabricantes que percebem de publicidade. Não se limitava a mandar os seus representantes a todo o lado, a colocar anúncios nos jornais mais lidos pelas senhoras, a mandar imprimir folhetos ou uma voz suave dizer, na rádio: ”com os meus Donatella, sinto-me como se tivesse asas.” Não, isso não lhe bastava. Para além disso organizava ainda passagens de modelos, nas quais raparigas extremamente belas, com pernas encantadoras, percorriam a passerelle calçando as mais recentes criações Donatella.

 

Compreende-se, portanto, que a sua esposa, Erna Falkenhausen, vivesse há pelo menos vinte anos com a desconfiança de que o seu Amo não olhava apenas para os pés das manequins. Havia, na maioria dos casos, mais acima, aspectos bem mais interessantes.

 

E isso desgasta. Vai-se formando uma pirâmide de suspeitas, sobretudo quando já se tem três filhos e, consequentemente, já se não exibe a mesma figura de outrora. E, o que irrita mais uma mulher ciumenta: não se podia apontar o dedo a Arno Falkenhausen! A sua relação com os seus manequins, pela qual todos os homens o invejavam, era, na realidade, estritamente profissional. Sim, a maioria das raparigas não as conhecia senão de fotografias, pois que os desfiles eram da competência do departamento de publicidade. O seu director, Friedhelm Drummer, esse, pelo sim pelo não, não se casara. O que dele se dizia e os comportamentos que lhe atribuíam não comprometiam, portanto, nenhum casamento, se bem que provocassem um sentimento de inveja generalizado. Erna Falkenhausen, em todo o caso, não compreendia como nunca surpreendera o seu Arno numa aventura extraconjugal. Continuava, por isso, a tê-lo na conta do marido mais manhoso e traiçoeiro à face da terra.

 

E quanto mais este dava provas da sua abstinência, tanto mais desconfiada se tornava.

 

Haviam decidido celebrar as bodas de prata longe de casa, fugindo dessa forma a grandes reuniões familiares. Nada era mais desagradável do que terem de representar o papel do casal felicíssimo ou, ainda, de se ouvir reciprocamente falar da coragem necessária para se aguentar vinte e cinco anos de casamento.

 

Um navio parecera-lhes o local ideal para se refugiarem. Nenhum dos restantes passageiros sabia das bodas de prata, não havia, nas redondezas, ninguém que os conhecesse, não tinham de se passear com um sorriso à Hollywood e podiam festejar aquele dia histórico com toda a tranquilidade. Erna estava ansiosa por ver o presente que o marido tinha para lhe dar, pois que acreditava poder, com base no valor da prenda, avaliar do peso que trazia na consciência.

 

O dia das bodas de prata decorrera de forma extremamente cansativa. Na cabina, um pequeno-almoço acompanhado com champanhe. Depois, o presente: uma pulseira com brilhantes e esmeraldas, as pedras preferidas de Erna. Uma prenda deslumbrante. Arno devia ter dormido com todas as suas manequins!

 

Erna Falkenhausen deu-lhe um beijo de agradecimento, esboçando um sorriso ligeiramente forçado, e ofereceu ao marido um alfinete de gravata com a forma de um jogador de golfe adornado de brilhantes. Arno era um exímio jogador de golfe, com um handicap de 18, uma prestação digna já de um profissional. Mas também no campo de golfe, Erna não lhe surpreendera nenhum flirt, apesar de aí se reunirem frequentemente algumas senhoras bastante atraentes. Todas elas, naturalmente, clientes Donatella.

 

Seguiu-se, então, a excursão a Samatra, a qual deixou Erna muito fatigada, e ao jantar serviu-se novamente champanhe e um semifrio que Arno encomendara especialmente ao chefe cozinheiro. Foi trazido para a mesa, coberto de rum em chamas.

 

Até aqui, tudo bem... pena foi que não tivessem desistido de ir acabar o dia a ouvir música e a dançar, no salão de baile. Fosse como fosse, Erna não depositava grandes esperanças naquela noite. Desde o seu quinquagésimo aniversário, Arno entregara-se a uma espécie de indolência conjugal, sem pensar, ao fazê-lo, que uma mulher de quarenta e cinco anos, neste caso a sua mulher, ainda estaria em idade de ter desejos íntimos. E também isso contribuía para a sua desconfiança: quem se apazigua com manequins não procura, no leito conjugal, senão sossego. O casal Falkenhausen chegou já bastante tarde ao salão de baile, demasiado tarde para ainda arranjar uma mesa livre. Sentara-se, por isso, ao lado de duas senhoras que viajavam sozinhas. Duas irmãs de Nõrdlingen, mas que tinham nascido e vivido, até aos catorze anos, na Saxónia, em Glauchau. O resultado era uma interessante mistura linguística entre o bávaro e o saxónio.

 

Erna Falkenhausen sentiu, mal se sentou, que aquela não era a mesa mais adequada. As duas irmãs lançaram um olhar reluzente em direcção do bem-parecido Arno (absolutamente inoportuno, segundo Erna), aproximaram ligeiramente as suas cadeiras e, ao fazê-lo, os seus seios baloiçaram por debaixo das blusas finas que traziam vestidas. Repugnada, Erna verificou que não usavam soutien. As suas pernas eram longas e esbeltas, usavam meias de renda, sapatos de verniz italianos, os cabelos pelos ombros e tinham caras de boneca... exactamente o tipo de mulheres atrás das quais Arno andava sempre.

 

Falkenhausen reagiu exactamente como seria de esperar de um homem, ou seja, sem grande perspicácia. Em vez de, na presença da sua esposa, ignorar as outras belezas, fez um qualquer comentário idiota, dando a entender sentir-se encantado por poder sentar-se naquele local e apresentou-se às duas senhoras, que, em resposta, disseram chamar-se respectivamente Lilo e Evelyn, revelando desta forma, pela primeira vez, o seu irresistível sotaque. Erna Falkenhausen acenou friamente com a cabeça, sentou-se e levou a mal.

 

Intensas nuvens de tempestade ameaçavam agora o dia das suas bodas de prata.

 

E tornaram-se ainda mais carregadas quando Arno Falkenhausen teve a coragem de oferecer duas danças a cada uma das senhoras. com Lilo, dançou uma valsa e um blue e, com Evelyn, abanou-se e contorceu-se ao som de um rock e de um boogie, fazendo-lhe voar a saia e baloiçar os seios. Aquela era uma faceta artística que Erna lhe não conhecia. Onde aprendera Arno a dançar daquela forma? Onde é que praticava? A resposta estava à sua frente: a vida dupla de Arno era agora uma evidência aos olhos de Erna. No dia das bodas de prata! A indelicadeza atingira o cúmulo...

 

- Estou cansada - disse quando Arno regressou, todo suado, da pista de dança. - A excursão... Sugiro que partamos...

 

Obediente, Falkenhausen pagou a conta, despediu-se das duas irmãs Ploschke com um beijo de mão superficial, e seguiu Erna até ao átrio.

 

- Vou até à ponte de passeio - disse ela, venenosa. Preciso de ar fresco. Aquelas mulheres cheiravam pior do que um bordel todo junto.

 

- Essa é uma questão relativamente à qual não poderei pronunciar-me. - Arno carregou no botão do elevador. Não frequento esse tipo de estabelecimento. De onde é que conheces o cheiro?

 

- Essa pergunta não é senão mais uma das tuas maldades! - O elevador imobilizou-se e a porta abriu-se. - Vens comigo?

 

- Como vês.

 

Subiram em silêncio, abandonaram o elevador e, através da enorme porta de vidro, saíram para a ponte de passeio. Aí, só um casal estava ainda junto da balaustrada, que acabou, pouco tempo depois, por sair pela outra porta. Erna respirou fundo, olhou para o mar, onde a Lua se reflectia, e para o imenso céu estrelado. Era uma daquelas noites que nos transmitem um entusiasmo mudo. com passos furiosos, Erna aproximou-se da balaustrada e, com uma voz estridente, rompeu o silêncio da noite.

 

- É escandaloso! - afirmou e agarrou-se ao talabardão. - Escandaloso! A forma como cortejaste aquela mulher... justamente aquela mulher...

 

- Que mulher?

 

A Evelyn! Essa descarada! Uma desavergonhada, digo-te, uma desavergonhada!

 

Arno Falkenhausen não tinha consciência da sua culpa: confiante, como a maioria dos homens surpreendidos pelos ataques das suas esposas, encolheu os ombros.

 

- Mas, querida! - disse ele, procurando acalmá-la. -- Apenas lhe disse que o vestido lhe ficava bem.

 

- Claro! Claro! - Erna falava num tom de voz sibilante. - Tinha metade das mamas à vista! E isso naturalmente agrada-te! Até reviras os olhos! Dancem um rock, para vermos essas coisas a voar! Que ordinance! A rapariga é absolutamente ordinária... mas é precisamente disso que os homens gostam, parecem gatos com o cio. - Erna pôs-se a andar de um lado para o outro, com os olhos esbugalhados; pela primeira vez, tinha agora uma oportunidade de descarregar toda a frustração acumulada ao longo de vinte anos.

- E depois tu... logo tu... com a tua idade... é nojento... absolutamente nojento... A revirar os olhos diante daquela prostituta!

 

- Porque há-de uma mulher ser uma prostituta, só porque tem um peito bonito? - atirou Arno, com razão, é certo, mas revelando naquelas circunstâncias alguma idiotice.

 

Um inocente age sempre desastradamente. Só quem tem alguma coisa a esconder, usa de retórica mais subtil.

 

- Também tu tinhas um bonito peito...

 

Será possível que se seja tão imbecil? A forma do passado utilizada foi, por Erna, interpretada como uma ofensa. ”Tinhas...”. O que significava que já não tinha. Três crianças acabam por deixar as suas marcas.

 

Respirou fundo e lançou-lhe um olhar carregado de ódio.

 

- Será que não te apercebes da figura que fazes? As pessoas riem-se de ti, quando andas aos pulos como um macaco. Quase morri de vergonha por ti. Andas a fazer uma figura ridícula. E tudo só porque tens duas mamas a abanar à tua frente.

 

- Ridículos são os teus ciúmes infundados - respondeu-lhe Falkenhausen, agora já um pouco exaltado.

 

- Infundados, dizes tu... quando te vi lamber as mãos das tipas...?

 

- Basta que eu aperte a mão de uma senhora... para que te atires ao ar.

 

- Porque sei no que pensas, quando o fazes! Em estar a sós com elas, é o que pensas, com todas as mulheres. Como será ela nua... como será ela na cama...

 

- Erna, por favor! - A voz de Falkenhausen era, agora, mais áspera. - Hoje festejamos as nossas bodas de prata.

 

- Só pensamentos sujos... sujos... sujos... - prosseguiu ela, venenosa. - Bodas de prata! Desde o primeiro dia que me tens vindo a enganar! E sempre com prostitutas daquelas! Basta-me ver os teus olhares, para ficar a saber tudo. E logo a baba te escorre da boca! Ah, como eu te odeio...

 

Arno Falkenhausen já não via qualquer possibilidade de conter aquele rio de palavras. Qualquer resposta não faria senão irritá-la ainda mais. Voltou a encolher os ombros, deu o esforço no sentido de salvar as suas bodas de prata por terminado e fez um gesto de desespero.

 

- Já não é possível manter uma conversa razoável contigo - disse-lhe. - Os teus ciúmes são já do foro patológico. Procura acalmar-te aqui fora, que eu Vou para a cabina. Estou farto. Quanto ao champanhe que lá temos, bem posso deitá-lo pela pia abaixo.

 

- Bebe-o com as tuas prostitutas! - gritou ela, furiosa.

- As camas são suficientemente largas para três.

 

- Pode-se sempre experimentar - disse ele, sarcástico, o que fora, naturalmente e mais uma vez, uma grande estupidez, pois que uma mulher transtornada pelos ciúmes não aceita facilmente a ironia. Afastou-se da balaustrada e abandonou a ponte de passeio com um sentimento de profunda impotência perante tanta injustiça.

 

Os olhos de Erna seguiram-no e, quando ele passou a porta, ainda lhe gritou:

 

- E não te ridicularizes diante dessas mulheres! Olha que elas estão acostumadas a bem melhor do que a um cinquentão já cansado.

 

com os punhos cerrados, procurou, em vão, outra injúria com que lhe pudesse atirar. Como lhe não ocorria nenhuma, alcançou o talabardão, envolveu-o com as mãos e fitou, furiosa, o mar iluminado pela Lua.

 

Bodas de prata. No mar de Java. A caminho de Singapura... Aquele era um sonho que só muito poucos podiam realizar. Haviam-no tornado realidade, depois de vinte e cinco anos de trabalho árduo, de altos e baixos no negócio, de luta constante com a concorrência, até que os sapatos Donatella se impusessem. E agora, depois desses vinte e cinco anos de vida em comum, uma ”celebração” daquelas?

 

A cólera começou a esmorecer e Erna acalmou-se. Os seus ciúmes, isso ela sabia-o, não faziam sentido, eram injustos e ofensivos para Arno. Havia algumas amigas suas cujos maridos tinham amantes... Só Arno é que não. E isso não lhe cabia na cabeça. Essas amigas reagiam à infidelidade dos seus maridos, entregando-se, também elas, nos braços de outros homens. Mas isso... Erna não fora nunca capaz de fazer. A sua vida era de uma tal normalidade que, nos círculos que frequentava, havia quem a considerasse anormal.

 

”Vou pedir desculpa ao Arno”, pensou, ”e beber a garrafa de champanhe com ele. Acabará ainda por ser uma noite agradável, mesmo que não façamos senão dormir. Dormir um ao lado do outro. Saber que o outro ali está. Ouvir a sua respiração, os seus movimentos, ouvi-lo ressonar. Um dia tudo isso terá desaparecido, estar-se-á sozinho e não se terá, a seu lado, senão uma cama vazia. Só a ideia provoca um aperto no coração.”

 

Preparava-se para se afastar da balaustrada quando ouviu um ruído. Foi o tempo de pestanejar, tentou virar-se, mas foi violentamente atingida por um golpe nas costas.

 

com um grito retumbante, Erna Falkenhausen vacilou para a frente, caiu sobre os joelhos, virou a cabeça para o lado, ouviu um riso penetrante e perdeu os sentidos.

 

Dois marinheiros de vigia encontrá-la-iam cinco minutos depois, deitada na ponte de passeio. O fecho de trás do seu vestido estava totalmente aberto... Tudo indicava que o criminoso havia sido surpreendido numa tentativa de violação.

 

No calor da competição, o Dr. Schmitz, tal como Halinsky, tinha já bebido a sua nona cerveja quando o vieram chamar.

 

- Imediatamente ao hospital! Ordens do comandante.

 

- Este navio parece um manicómio - disse Hallinsky e juntou às nove cervejas já bebidas uma aguardente dupla.

- Nem sequer se consegue levar uma aposta até ao fim. Amanhã recomeçamos, doutor?

 

- Prometido... Acabarei por derrotá-lo, senhor Hallinsky...

 

No hospital, esperava-o, mais uma vez, a velha assembleia: o comandante Hellersen, o imediato Hartmann e o oficial de segurança Dornburg. Só que desta vez, em cima da cama, não estava deitado um homem, mas uma mulher inconsciente. A seu lado encontrava-se um senhor, presumivelmente o marido, que lhe acariciava o rosto e lhe dizia baixinho:

 

- Erna... Erna, consegues ouvir-me?... Erna... minha querida... acorda lá... eu estou aqui, ao teu lado...

 

- Mas, afinal, o que é que se passa aqui - perguntou o Dr. Schmitz ao entrar na sala.

 

- Uma tentativa de violação - disse Dornburg, com uma voz rouca.

 

- Oh, não! - Schmitz levou as mãos à cabeça. Onde?

 

- Na ponte de passeio.

 

- Logo aí! Alguém deve ter tido uma súbita subida de pressão.

 

- Poupe-nos às suas malditas observações, doutor! gritou Falkenhausen, fora de si. - Faça alguma coisa! A minha mulher pode morrer em consequência do choque.

 

Schmitz fungou, deselegante, e aproximou-se da cama. Hellersen segurou-o discretamente pelo braço.

 

- O senhor está bêbedo, doutor! - segredou-lhe.

 

- Mas a minha visão, a minha audição e o meu olfacto estão intactos... Quando esses três estão em condições, pode dar-se início ao diagnóstico. Ora, então, vejamos! Schmitz inclinou-se sobre Erna Falkenhausen, percorreu-lhe o corpo com o olhar e perguntou em voz alta: - Porque é que a senhora foi violada? Voltaram a vesti-la, a seguir?

 

- Foi uma tentativa de viol... - Falkenhausen pigarreou. Aquela horrível palavra ficava-lhe encravada na garganta.

 

- O monstro foi surpreendido - disse Hellersen. Mas ainda conseguiu abrir o fecho de trás do vestido.

 

- E quem é que o surpreendeu?

 

- A patrulha.

 

- E que viu ela?

 

- Nada, naturalmente! - disse o imediato. - Os dois já foram proibidos, como castigo, de descer a terra em Singapura.

 

- Faça finalmente qualquer coisa, doutor! - gritou Falkehausen, indignado. - Todas essas perguntas não têm, neste momento, qualquer importância.

 

A enfermeira Emmi, como excelente enfermeira que era, já tinha preparado uma injecção contra o choque e estendia-a, agora, ao Dr. Schmitz. Este, no entanto, afastou a sua mão, tirou a tampa da garrafa de água-de-colónia que ali estava pousada e segurou-a por debaixo do nariz de Erna Falkenhausen.

 

- Tal como na Idade Média - comentou Arno, irritado. - Vou queixar-me à companhia de navegação.

 

Quer porque a água-de-colónia fosse, efectivamente, um remédio milagroso, quer porque o desmaio passasse por si só, Erna abriu os olhos, fixou o seu marido e disse, muito baixinho:

 

- O... Klabautermann!

 

- Erna, minha querida... - balbuciou Falkenhausen. Recupera os sentidos. Já passou. Agora estás segura... comigo...

 

- Era o Klabautermann! - repetiu, ofegante. - Eu vi-o... e ouvi-o... deu-me uma pancada nas costas... meu Deus...

 

Falkenhausen estava à beira do desespero. Envolveu a cabeça de Erna, beijou-lhe o rosto e tentou abraçá-la.

 

- Acalma-te, meu amor... - balbuciou. - Acalma-te, vá, não aconteceu nada. - Depois, levantou a cabeça e, olhando para o Dr. Schmitz, acrescentou: -Está a delirar. Não pode fazer nada para a ajudar? Ela está a delirar... meu Deus, e a isto chamam cuidados médicos!

 

- Não estou a delirar. - Erna Falkenhausen recuperara totalmente os sentidos. Retribuiu o beijo que o marido lhe dera e, com a sua ajuda, sentou-se na cama. Foi só então que se apercebeu de que o fecho do seu vestido estava aberto. Não compreendendo o que se passava, olhou para o comandante e, depois, para o Dr. Schmitz. - Foi exactamente assim que tudo se passou... O que é que aconteceu com o meu vestido?

 

- É o que iremos procurar esclarecer com toda a calma.

- O Dr. Schmitz deu-lhe um copo de água com um comprimido diluído, que a enfermeira Emmi lhe estendera. Erna bebeu-o e encostou-se ao marido.

 

- Descreva-nos, por favor, o seu agressor - disse Dornburg, em voz baixa.

 

- Não... não o vi assim tão bem... - Erna Falkenhausen engoliu várias vezes em seco. - Perdi imediatamente os sentidos. Só sei que foi horrível... horrível... o rosto parecia uma careta... a sério, uma verdadeira careta... olhos penetrantes... e, depois, riu-se para mim... riu... estremeci... e mais não sei. Foi assustador... assustador!

 

- Já chega! - O Dr. Schmitz levantou a mão. - Minha senhora, agora vai deitar-se um bocadinho aqui ao lado e dormir. A enfermeira Emmi ficará ao seu lado e ocupar-se-á de si. Acabei de lhe dar um comprimido que a vai ajudar a dormir mais descansada. E amanhã de manhã, bem cedinho, começa um novo dia.

 

- Amanhã... - Erna começou a chorar, baixinho. Hoje festejamos as nossas bodas de prata.

 

- Recuperaremos o tempo perdido, querida... todo... disse Falkenhausen. Amparou a mulher enquanto esta descia da maca e levou-a, juntamente com a enfermeira Emmi, para um dos quartos do hospital, ali ao lado. Os outros aguardaram que a porta se fechasse.

 

- Que situação! - exclamou o Dr. Schmitz, estupefacto. - O que é que acham de tudo isto?

 

- Tivemos... isto é, a senhora Falkenhausen teve muita sorte. - Hellersen bateu com os punhos um no outro. Imagine-se se o violador tivesse sido bem sucedido! Que escândalo!

 

O Dr. Schmitz desistiu da resposta que lhe ia dar. Falkenhausen voltou a entrar na sala de cuidados médicos.

 

- Já está a dormir - disse num tom rude. - Que providências tencionam agora tomar, meus senhores?

 

- Uma coisa é certa... - Hartmann tentava encontrar as palavras mais adequadas. - A sua esposa viveu, efectivamente, toda esta situação. Não está, de forma alguma, a delirar. Sabemos que alguém anda a lançar a confusão a bordo deste navio.

 

- Mas o Klabautermann não existe! - disse Falkenhausen.

 

- Obviamente que não. - O comandante ficou imensamente reconhecido à enfermeira Emmi, que acabara de trazer uma garrafa de conhaque e dispunha vários copos em cima de um tabuleiro. - Mas existem duas explicações: por um lado, temos um passageiro clandestino a bordo, que em todo o lado rouba alimentos e já chegou a agredir um dos nossos hóspedes, porque lhe queria levar uma laranja. Por outro, dever-se-á tratar de um passageiro que, usando uma máscara aterradora, pretende assustar os restantes hóspedes, coisa que até agora tem conseguido fazer.

 

- E para quê? - Falkenhausen estava consternado. Para quê, afinal? Que ganha ele com isso?

 

- Os seres humanos são um enigma. - Schmitz distribuiu o conhaque e esperou que todos bebessem um gole. Não acreditaria nas anormalidades que existem. Fetichistas, sádicos... pederastas... Entre nós, eles abundam. Só que ninguém se apercebe.

 

- E o senhor acha, doutor, que a minha mulher tenha sido vítima de um... - Falkenhausen hesitou, e o seu olhar mergulhou subitamente no enorme abismo dos comportamentos humanos.

 

- Tenho quase a certeza de que se trata, neste caso, de um sádico. Tudo aponta nesse sentido: o soutien pendurado na adriça, cadeiras deslocadas, a roldana na cabeça do nosso ilustríssimo imediato... - Schmitz fez uma vénia a Hartmann, que, aborrecido, esboçou um sorriso. - Houve ainda aquele riso que fez estremecer a própria Beatrice e, agora, o golpe nas costas da sua esposa, acompanhado igualmente de um riso asqueroso... Trata-se de um sádico, que retira prazer da aflição e do medo que desperta nos seus semelhantes. Quer provocar o pânico.

 

- Mas se já sabem tudo isso, meus senhores - disse Falkenhausen -, porque não tomam nenhuma medida?

 

- Tem alguma proposta razoável a fazer, senhor Falkenhausen? - Mais uma vez, Hellersen sentiu vergonha da sua impotência. - Dia e noite, várias patrulhas percorrem o navio. Nada mais podemos fazer. Temos de o surpreender... procurar não faz sentido...

 

- Mas ele tentou violar a minha esposa! - disse Falkenhausen.

 

- Talvez...

 

- O que quer dizer com ”talvez”? O fecho, na parte de trás do vestido, não se abre sozinho. Estava aberto até ao cóccix. E isso nunca poderia ter resultado da queda.

 

- Toda esta história não faz sentido nenhum! - Domburg abanou a cabeça. - Quem é que faz uma tentativa de violação no meio da ponte de passeio, um local onde, a qualquer momento, podem aparecer passageiros?

 

- Um louco é capaz de tudo! - disse Falkenhausen.

 

- Sim. Mas, por outro lado, terá fugido da patrulha, ou de outra coisa qualquer, o que também não corresponde ao comportamento típico de um louco em plena acção - observou o Dr. Schmitz.

 

- Quem o ouvisse falar assim, doutor - gritou Falkenhausen, revoltado -, quase seria levado a crer que lamenta que a minha esposa tenha tido a sorte que teve. Meu Deus, que mundo é este em que vivemos? Em terra, já não se pode atravessar um parque sem se ser assaltado; e agora, também a bordo dos navios, estas coisas começam a acontecer! Teremos, dentro de dois anos, de andar todos armados? Terão as mulheres, cada vez que quiserem dar um passeio, de se fazer acompanhar por um guarda-costas? Chegámos a um ponto em que as próprias vítimas são tão culpadas quanto os criminosos. ”A vítima, com o seu andar provocador, incitou o arguido”: era o que constava entre as circunstâncias atenuantes de uma decisão de tribunal. Esta democracia, com o seu conceito humanista de liberalismo, mete nojo.

 

- A frase é boa para se proferir num comício, mas, neste contexto, de nada nos adianta. - O comandante Hellersen acabou de beber o resto de conhaque que ainda tinha no copo. - Aqui entre nós, meus senhores, serei totalmente honesto: já não sei o que fazer. Já só temo que se dê um assassínio.

 

- Deus nos livre! Não me ande para aí a pintar o diabo pelas paredes! - gritou Falkenhausen.

 

- Se o pudesse pintar, já o teria apanhado.

 

- E se arranjasse maneira de, em Singapura, a Polícia subir a bordo?

 

- Como quer que uma polícia estrangeira descubra algo mais do que nós, que conhecemos todos os cantos ao navio? É um verdadeiro enigma, a questão de se saber onde o passageiro clandestino se esconde. Quanto ao esquizofrénico, nunca o apanharemos.

 

- Mas que perspectivas tão animadoras.

 

- Até Hong Kong. Depois, toda esta confusão acabará seguramente.

 

- Mas ainda faltam dez dias!

 

- Exactamente. E, até lá, temos de nos aguentar da melhor maneira, a não ser que um acaso nos seja favorável. Cinco minutos mais cedo, e os nossos marinheiros teriam apanhado o tipo. Mas cinco minutos são, muitas vezes, uma eternidade.

 

- E dez dias, então! - Falkenhausen estendeu o seu copo e, obediente, a enfermeira Emmi serviu-lhe mais um conhaque. - Acredita ser capaz de manter a calma entre os passageiros?

 

- O senhor Hallinsky comprometeu-se comigo a guardar silêncio. Gostaria de lhe pedir que procedesse da mesma forma. Tudo o resto está sob controlo. A brincadeira da Beatrice com o Klabautermann foi a melhor coisa que nos poderia ter acontecido. Os passageiros estão convencidos de que um par de engraçadinhos se envolveu numa competição de partidas inofensivas, sob a égide do Klabautermann. O soutien que apareceu içado na adriça veio levantar e fortalecer o moral a bordo. Não pode, por isso, ficar a saber-se nada dos ataques que efectivamente têm acontecido.

 

- Não será fácil convencer a minha mulher desse facto.

- Falkenhausen acabou o seu conhaque e olhou para o Dr. Schmitz. - Posso ir para o lado dela, doutor?

 

- Sim, claro. Porque não?

 

- Gostaria de poder fazer-lhe companhia durante a noite. - Falkenhausen engoliu várias vezes em seco e depois acrescentou, baixinho: - Hoje, são as nossas bodas de prata...

 

- A sua esposa não acordará antes de amanhã de manhã.

 

- Não faz mal. Sentar-me-ei a seu lado, beberei o champanhe e far-lhe-ei um brinde. Quando casámos, não fizemos nenhuma viagem de lua-de-mel, pois nessa altura eu andava desesperado, tentando salvar da falência a fábrica do meu pai. Queríamos, por isso, que a celebração das bodas de prata fosse verdadeiramente especial. - Falava num tom de voz amargurado. - E foi. Inesquecível...

 

- Às vezes, apetece-nos amaldiçoar o destino! - disse o Dr. Schmitz, tirando a garrafa de conhaque das mãos da enfermeira Emmi. - As bodas de ouro decorrerão certamente melhor, senhor Falkenhausen.

 

- Vou apontar no meu bloco-notas, doutor: no ano dois mil e um, nada de cruzeiros. Nessa altura, talvez as festejemos num hotel de luxo, na Lua.

 

- E se um louco também para lá vai e deixa uma comporta aberta?

 

- Tem razão. Nesse caso, no ano dois mil e um, cá estaremos, mais uma vez! - Falkenhausen devolveu o copo à enfermeira Emmi, saudou os presentes com um sinal de cabeça e foi para o quarto do hospital, onde tranquilamente Erna dormia. Sentou-se na cama, segurou-lhe as mãos e disse baixinho: - Erna, minha querida... sou tão feliz, por te ter... Hoje, mais do que nunca, tenho consciência disso.

 

Um quarto de hora depois, um empregado trouxe-lhe um balde de gelo com uma garrafa de champanhe.

 

Hallinsky era agora o herói do dia, pelo menos aos olhos da baronesa von Sahlfelden. Esta fora, de resto, a única pessoa a quem ele contara o episódio da agressão, pois que havia prometido guardar, a esse respeito, segredo absoluto; também ela jurou não contar nada a ninguém. Era, por isso, um enigma que, duas horas depois, todo o navio estivesse já a par.

 

Surpreendentemente, nenhum dos outros hóspedes do navio manifestou qualquer tipo de compaixão para com Hallinsky. Limitavam-se, em vez disso, a sorrir quando o avistavam no convés, como se há muito lhe desejassem aquele galo e alguém tivesse finalmente levado a cabo algo que, eles próprios, deveriam já ter feito há muito tempo.

 

- É apenas inveja - consolou-o a baronesa. - Em cada homem, dorme uma besta... Não sei, ao certo, que filósofo o disse, mas tinha toda a razão. Imagine o alarido que não teriam feito, se tivessem sido eles a encontrar-se com o Klabautermann.

 

- Continua, portanto, convencida de que se trata do Klabautermann, baronesa?

 

- Absolutamente!

 

- Mas se não passa de uma personagem mítica - disse Hallinsky, ousando levantar uma objecção.

 

- Tretas! Também se diz por aí que não passa de um mito o facto de os ratos abandonarem um navio antes do naufrágio... e a verdade é que o fazem. Porque não haveria de existir um duende como esse? Que sabemos nós acerca do sobrenatural? Acerca do fantástico, do invisível que nos rodeia? Acerca da vida após a morte? Da reencarnação em outros seres? Os segredos que nos envolvem são imensos e incompreensíveis... Que sabe o senhor acerca do Klabautermann?

 

- Nada, baronesa.

 

- Mas sei eu! Uma velha mareante como eu não podia deixar de se ocupar de um assunto como o desse nosso duende. Li inúmeros relatos... feitos, ao longo de centenas de anos, por marinheiros que, nos seus veleiros, caravelas e navios de três cobertas, navegaram pelos quatro cantos do mundo, descobrindo ilhas e terras, caminhos marítimos e canais, novos povos e animais... e de que falam todos eles? Todos, senhor Hallinsky? De um fantasma, benévolo ou malévolo, o Klabautermann. Deve haver alguma verdade em tudo isso.

 

- Não sei! - Hallinsky olhava, perplexo, para a baronesa. Teria preferido que a conversa fosse sobre Portugal e a costa algarvia. Tinha mais algumas informações disponíveis, relativamente à vizinhança do terreno. Nas redondezas, viviam um príncipe e um conde, um membro da realeza espanhola e o inventor de um detergente biológico que, de há uns tempos para cá, não fazia outra coisa senão contar a sua fortuna. É evidente que nada disto correspondia à verdade, mas Hallinsky não tencionava, de qualquer forma, voltar a ver a baronesa von Sahlfelden, uma vez concluído o negócio. Não podia, por isso, voltar a frequentar aquele navio, do qual a baronesa era uma das hóspedes mais fiéis, pois que essa seria, certamente, a última viagem que faria.

 

- Um duende não tem tanta força. O soco que levei foi tremendo. Uma pequena criatura como ele não tem um punch desses.

 

- O que é um punch?

 

- Como explicar? Potência de golpe. - Hallinsky passou, cuidadosamente, a palma da mão pelo galo. - Para além disso, eu vi-o. Pelo canto do olho, ao cair, completamente desfocado... e os fantasmas, esses, não se vêem.

 

- Materializou-se, certamente, no momento da agressão. É um fenómeno bem conhecido no espiritismo.

 

Hallinsky tinha uma capacidade invulgar de se adaptar às pessoas e, dessa forma, causar a melhor impressão. Os interesses comuns tendem a unir, e o desespero também. Se um potencial cliente, olhando para um prado, afirmasse: «Não acha este campo de um cor de laranja encantador...?», Hallinsky responderia, imediatamente: «Tal qual um pôr do Sol. É verdade! Uma laranja incandescente...» Era, portanto, compreensível que a ideia de não assinar um contrato com Hallinsky lhes despedaçasse, simplesmente, o coração. Sentiam-se como que libertos, ao permitir que os defraudasse.

 

- Já alguma vez assistiu a uma sessão espírita, baronesa? - perguntou ele, desta vez sem demora.

 

- Ah!, já presenciei sessões de um dramatismo absolutamente extraordinário. Aparições de pessoas já falecidas. Vozes vindas do Além... A uma amiga minha, apareceu uma vez o terceiro marido. Desmaiou, pois que, na realidade, era o seu segundo marido que pretendia ver. O terceiro tinha morrido em circunstâncias ainda não esclarecidas e contava agora que lhe haviam dado estricnina. A minha pobre amiga acabou num manicómio... Ah! Tive efectivamente algumas experiências...!

 

- Formidável! - gritou Hallinsky.

 

- O que há de formidável no que acabei de lhe contar?

- perguntou a baronesa, algo chocada.

 

- A cerca de duzentos metros do terreno do Algarve, uma certa senhora Loretta Dubensteiner mandou, recentemente, construir uma casa. Viúva do famoso conselheiro comercial Dubensteiner, a quem pertenciam as fábricas de cerâmica de Sintra, Loretta Dubensteiner reúne aí, todas as sextas-feiras, um grupo restrito de senhoras para uma sessão de espiritismo. Há pouco tempo, falaram com Napoleão Primeiro. Contou-lhes, também ele, que havia sido envenenado. Em Santa Helena, com arsénio e pelo seu mordomo, que havia sido corrompido pelos Ingleses. E uma vez apareceu-lhe o Casanova... e aí é que foi! Contaram-mo, que eu não assisti, mas as senhoras andaram perturbadas durante dias.

 

- Mas isso é extraordinário! - A baronesa olhava fixamente para Hallinsky. - E só agora me conta uma coisa dessas?

 

- Tive medo que se assustasse com a ideia e desistisse de comprar o terreno do lado.

 

- Pelo contrário!

 

- Quer isso dizer, baronesa, que o compra? - perguntou Hallinsky com o coração aos pulos.

 

- Um milhão é um preço excessivo.

 

- Mais uma vez, reitero a minha proposta: os bancos dar-se-ão por satisfeitos por poder emprestar-lhe o dinheiro. E dentro de três anos, conforme já calculado, regista um lucro de pelo menos cinquenta por cento! Dentro de cinco ou seis anos, cem por cento! Basta que haja coragem para se correr o risco. Quem não arrisca, não petisca... Ah! Ah! Ah!

 

- E que farei eu, depois, com o dinheiro? Hallinsky nunca ouvira, em toda a sua vida, uma frase como aquela. Ficou, por isso, de tal forma perplexo que não lhe ocorreu nenhuma resposta. Até então, as pessoas com que lidara não pensavam noutra coisa senão em engordar as suas contas bancárias. Nunca tinham de mais. E agora tinha à sua frente uma senhora que lhe perguntava, com toda a seriedade: ”Que farei eu com o dinheiro?” Fenomenal!

 

- Não tem herdeiros, baronesa? - perguntou Hallinsky, ainda ligeiramente perplexo.

 

- Tenho! Uma prima e três sobrinhos.

 

- Então!

 

- Nada feito, senhor Hallinsky. Tenho vindo a dissipar a minha fortuna, precisamente para não lhes deixar nada.

 

- Baronesa, nesse caso, encontrou o homem certo! gritou Hallinsky, dizendo, pela primeira vez, a verdade.

- Dissipe-a em Portugal!

 

- Porquê? Segundo as suas previsões, multiplicarei dessa forma a minha fortuna...

 

- Sim, mas terá muito mais dinheiro para gastar! Não é fantástico? - replicou rapidamente Hallinsky. - A senhora tem vindo a gastar o seu dinheiro em viagens e jóias... Pergunta: quem é que as vai herdar? E acalenta, simultaneamente, o desejo de ajudar os menos favorecidos. O milhão investido em Portugal, uma vez duplicado, não poderá servir para isso mesmo? Para fundar instituições de caridade que abriguem raparigas grávidas, mulheres violentadas, e contribua para causas do tipo ”Salvem a Floresta”? Existem inúmeras causas que podem ser apoiadas através dessas instituições. Poder-se-iam construir abrigos para os animais, por esse mundo fora. O nome von Sahlfelden seria gravado num sem-número de monumentos e viria referido nas enciclopédias e no livro de recordes!

 

- Já escolhi duas instituições que deverão herdar, depois da minha morte, o que tiver sobrado da minha fortuna

- respondeu a baronesa, extremamente séria. - Uma para a investigação da leucemia nas crianças e a outra para a investigação da doença de Alzheimer.

 

- Nunca é de mais o dinheiro doado para essas causas. Em Portugal, poderia incrementar substancialmente o montante da sua doação, através da especulação... Baronesa, confesso que me surpreendeu: ainda tem uma importante tarefa diante de si, e eu Vou ajudá-la...

 

Hallinsky interrompeu o seu entusiástico discurso no momento em que o Sr. Falkenhausen se aproximou e apontou para uma cadeira vazia na sua mesa.

 

- Está livre? Posso sentar-me? - perguntou e sentou-se, antes mesmo que a baronesa pudesse dar o seu consentimento. Hallinsky olhou-o com alguma reserva. Fora travado no momento de maior entusiasmo.

 

- Agrediram-no - disse ele, expedito, a Hallinsky. Não abane a cabeça, todo o navio o sabe. Qual era o aspecto do tipo?

 

- Isso não lhe diz respeito... - Hallinsky fazia-se, agora, de arrogante.

 

- Teria razão, se eu não fosse também um dos lesados.

 

- Ah! Também o agrediram? Por causa de uma laranja?

 

- Porquê uma laranja?

 

- Dizem que existe um passageiro clandestino a bordo. Quando quis apanhar do chão uma das laranjas que ele roubara, atingiu-me com um golpe. Satisfeito?

 

- Não. A minha mulher... - Arno Falkenhausen interrompeu a frase. Tinha ainda muita dificuldade em falar do assunto. Qualquer marido compreenderá o que sentia. Ontem à noite, alguém tentou... violar a minha mulher...

 

- Aqui? - perguntou a baronesa, chocada.

 

- Não, na ponte de passeio. E agora, pretendo saber se o patife que o agrediu é também o porco que atacou a minha esposa.

 

- Em que posso ajudá-lo? - perguntou Hallinsky, mostrando-se agora mais interessado.

 

- Qual era o aspecto do homem?

 

- Vi-o apenas durante uma fracção de segundos. Olhos grandes e penetrantes...

 

- É o que me diz também a minha mulher.

 

- Pele morena... e depois perdi os sentidos. Não lhe saberia, por isso, dizer mais nada.

 

- Era ele! Era ele! Pele morena... foi exactamente nesses termos que a minha mulher o descreveu. No seu caso, também se riu? Um riso assustador? Diabólico, lacerante...?

 

- É possível que sim, mas eu já tinha desmaiado, não tendo por isso ouvido nada. A sua mulher também ficou, como eu, com um galo na cabeça?

 

- Não. Infelizmente, não. Teria preferido um galo ao estado de choque em que se encontra. Continua sob sedativos. - Falkenhausen limpou, com a mão, o suor que lhe escorria pela cara. - Não é vergonhoso que não sejam capazes de apanhar esse tipo?

 

- Um navio é como uma pequena cidade. Lá, como aqui, existem centenas de esconderijos. - A baronesa inclinou-se para a frente, com um brilho nos olhos. - A sua esposa foi violada? Efectivamente violada?

 

- Não... tentaram-no...

- Há... tentaram apenas...

 

- Por favor, não falemos mais do assunto! Prometi ao comandante que, no interesse de todos os passageiros, não diria uma palavra do que aconteceu. Tive, no entanto, de falar consigo, senhor Hallinsky... Aproveito, de resto, para me apresentar: o meu nome é Falkenhausen... Uma vez que passou por uma experiência muito semelhante...

 

- Sim, mas sem a violação! - exclamou Hallinsky, com um certo humor negro. - Era o que mais me faltava...

 

- Senhor Hallinsky! - repreendeu-o a baronesa, fingindo-se consternada.

 

- Peço desculpa, baronesa. - Hallinsky esboçou um sorriso insolente.

 

- Às vezes diz-se destas coisas... - Virou-se novamente para Arno Falkenhausen e observou-o. Parecia endinheirado, o homem. Não era daqueles que haviam passado uma vida inteira a poupar, para poderem um dia fazer um cruzeiro de luxo, como forma de coroar todas as suas conquistas.

 

- Viaja muito, senhor Falkenhausen? - perguntou ele, aparentemente inofensivo.

 

- De vez em quando. Esperávamos, no entanto, que esta viagem fosse particularmente especial: são as nossas bodas de prata.

 

- Parabéns! Eu ainda não cheguei lá, é só para daqui a dois anos... Vinte e cinco anos de uma guerra de trincheira, sob constante fogo cerrado do inimigo. Somos tipos resistentes, não lhe parece, senhor Falkenhausen?

 

Hallinsky soltou uma gargalhada, Falkenhausen fez um sorriso ligeiramente forçado e a baronesa fingiu-se indignada. Hallinsky estava de novo no seu elemento: falava sem que o interrompessem. E encaminhava a sua conversa num sentido muito específico.

 

- com a nossa idade, deveríamos abrandar um pouco o ritmo - prosseguiu. - Este stress, provocado pelo trabalho... não sente o mesmo?

 

- Está-se constantemente em pé de guerra. Se soubesse as preocupações com que a indústria de calçado alemã se tem de debater neste momento! Contra a esmagadora concorrência italiana. Essa sim, é a nossa preocupação.

 

- O senhor tem uma fábrica de calçado? - Hallinsky voltou a sentir uma espécie de descarga eléctrica. ”Um fabricante de sapatos... bendito seja este dia!”

 

- Sim, em Pirmasens. Os sapatos Donatella.

 

- Conhecidos, conhecidos. E modelos lindíssimos... Não quero estar aqui a fazer-lhe elogios baratos, mas os sapatos Donatella são, efectivamente, os melhores da Alemanha.

 

Arno Falkenhausen não respondeu, esboçando apenas um sorriso, desta vez mais amigável. Que fabricante não gostaria de ouvir um elogio como aquele? Começou a achar Hallinsky mais simpático, e até o seu comportamento se lhe afigurava agora como a expressão de uma certa originalidade. As pessoas são todas diferentes umas das outras e é isso que as torna tão interessantes.

 

- É o resultado de muito trabalho - acabou por dizer.

 

- Mais uma razão para começar a saborear os aspectos mais agradáveis da vida. O sossego, o repouso. Viver num clima que, só por si, nos dá mais dez anos de vida... O rosto de Hallinsky resplandecia de entusiasmo. - Estou a pensar nas Baamas.

 

- Já lá passei dois dias. Em serviço.

 

- Um paraíso, não é verdade?

 

- Fiquei encantado.

 

- Uma terra onde uma pessoa se pode deitar na areia branca, por debaixo de uma palmeira, e dizer: ”Conseguiste. Agora, goza os próximos anos. Vive toda esta beleza e despreocupação. Saboreia este pedacinho de paraíso.” - Hallinsky respirou fundo. - Eu tenho um pedaço de paraíso nas Baamas. Um bangaló à beira da praia, rodeado por um parque com centenas de palmeiras. Uma praia privativa. Piscina com água do mar. Flores com um aroma encantador.

 

- Parabéns, seu felizardo! - gritou Falkenhausen, imprudente.

 

- Estou disposto a vendê-lo - acrescentou ainda Hallinsky, como quem não quer a coisa. - Se estiver interessado nesta casa de sonho...

 

- Por que razão a quer vender?

 

- Porque sou uma pessoa irrequieta, senhor Falkenhausen. Sou do signo de Gémeos. Preciso sempre de algo novo, de mudar de poiso, e sou infeliz se não me transformar regularmente. Neste momento, estou a pensar adquirir um iate e navegar pelos mares do mundo inteiro. Para que preciso, nesse caso, de uma casa nas Baamas. Esta é a única razão.

 

- Se ao menos o caminho até lá não fosse tão longo!

 

- Longo? De avião, é apenas um saltinho! Se pensar no tempo que se leva, de carro, de Pirmasens até à Riviera, ou mesmo a Saint-Tropez, há muito que se estaria nas Baamas! Em vez de se enfiar em estradas apinhadas, rodeado do fumo dos automóveis, até Saint-Tropez, põe-se, num instantinho, na sua própria praia, para gozar o sol debaixo de um conjunto de palmeiras... e respirar um ar puro e mareiro...

 

- Mareiro! - A baronesa interferiu na conversa. É essa a palavra. Há muito que andava à procura de um termo que qualificasse esse ar que se respira no mar. Mareiro, é isso! O senhor é um especialista na arte de manusear as palavras, senhor Hallinsky.

 

Hallinsky era da mesma opinião. Sempre que tinha de discutir um grande negócio, superava-se e saía-se com neologismos, com os quais ele próprio ficava espantado. Também o termo ”mareiro” lhe havia ocorrido naquele momento, vindo do nada, e agora poderia utilizá-lo sempre que o entendesse.

 

- Quanto custa a casa? - perguntou Falkenhausen, de repente.

 

Hallinsky, já muito perto do êxito, precisava agora de tempo. Não era possível conversar sobre preços na presença da baronesa. De resto, fazia parte dos seus princípios nunca fechar esse tipo de negócios na presença de testemunhas. Numa situação de emergência (e estas aconteciam, no caso de Hallinsky, com alguma frequência), poderia sempre alegar não ter afirmado isto ou aquilo ou que o que dissera não fora correctamente entendido. Aí, era a palavra dele contra a de outrem, e o problema acabava por se resolver. Agora, com as Baamas, o problema era exactamente o mesmo. Embora existissem fotografias deslumbrantes e a cores da propriedade de sonho, planos pormenorizados da casa e do parque, mapas da zona, fotografias da praia privativa... havia um diminuto senão: o pequeno paraíso não pertencia a Hallinsky. Tinha ficado com o material pertencente a um corretor americano, há três anos atrás, e a casa fora, entretanto, vendida. Mas esse tipo de pormenores, Hallinsky evitava-os com elegância.

 

- Falaremos disso noutra altura, com mais calma, senhor Falkenhausen - disse. - Ainda temos nove dias de viagem pela frente, temos tempo suficiente. Mas uma coisa lhe adianto desde já: está perfeitamente ao seu alcance. Agora que o dólar caiu desta maneira e continuará, provavelmente, a cair... Nunca voltará a ter uma oportunidade de comprar por tão barato. Nunca! É que o dólar vai voltar a subir, sei-o de fontes bancárias americanas. Aquilo é que é manipular, digo-lhe eu! Comprar agora para mais tarde lucrar.

 

- Como em Portugal - acrescentou a baronesa.

 

- Exactamente - arriscou Hallinsky. - A senhora baronesa, senhor Falkenhausen, comprou-me um belíssimo terreno no Algarve que, nos próximos cinco anos, valorizará até cem por cento! Só temos de apanhar o dinheiro do chão, que é para quem o vê que ele lá está... E nós vemo-lo! Ah! Ah! Ah!

 

No caso de Hallinsky, talvez fosse verdade.

 

Antes do almoço, Falkenhausen visitou novamente a sua esposa Erna no hospital. O Dr. Schmitz tinha-lhe ordenado que, durante aquele dia, repousasse na cama.

 

Antes de Arno entrar no quarto, o Dr. Schmitz pediu-lhe que o acompanhasse até ao seu consultório. Assustado, Arno seguiu-o com as pernas a tremer.

 

- Alguma... alguma complicação, doutor? - perguntou, hesitante.

 

- Não! Porquê?

 

- Por me ter chamado aqui, com todo esse secretismo...

 

- Queria dar-lhe, pelo contrário, uma boa notícia.

 

- Fico mais descansado. A Erna está bem?

 

- Digamos que, tendo em conta as circunstâncias, sim. A sua esposa precisa de repouso e distracção, para que possa recalcar a experiência que viveu e, mais tarde, esquecê-la. Afinal, tudo isto foi relativamente inofensivo.

 

- Inofensivo? Acha inofensivo, doutor, o facto de alguém ter tentado violar a minha mulher?

 

- Era precisamente sobre isso que lhe queria falar, senhor Falkenhausen. Examinei a sua esposa, com a sua autorização. Nada, mas absolutamente nada indicia que tenha sido violada ou que tenha havido uma tentativa de violação. Não há arranhadelas, pisaduras, nenhum sinal de violência. Só nas costas, no local onde levou a pancada que a derrubou, está agora a formar-se uma pequena nódoa negra, um hematoma. E é tudo.

 

- E o vestido aberto? - perguntou Arno Falkenhausen, a quem haviam tirado um enorme peso do coração. A minha mulher estava nua até às ancas. O que terá acontecido?

 

- Certamente que não uma tentativa de despir a sua esposa. No caso de uma violação, o autor não se teria limitado a abrir o fecho do vestido. Tudo teria de acontecer muito depressa e um violador dispõe de muitas outras possibilidades, que não necessariamente a de tirar correctamente a roupa a uma mulher. - Schmitz encolheu os ombros, como tantas outras vezes ao longo dos últimos dias. - Temos andado todos a pensar no que isto poderá significar. A abertura do fecho do vestido não faz sentido. Não existe um motivo. A sua própria esposa não sabe explicar o fenómeno.

 

- Mas aconteceu - disse Falkenhausen, em voz alta.

- E nada acontece sem razão.

 

- Acabaremos por desvendar também este mistério.

 

- Que outros mistérios já desvendaram, doutor? - perguntou Falkenhausen, provocador.

 

- Sabemos, finalmente, que existe um passageiro clandestino a bordo.

 

- Que descoberta extraordinária e surpreendente! disse Falkenhausen, irónico.

 

- E é, efectivamente. - Schmitz permaneceu imperturbável. - Esse intruso não é apenas um simples passageiro que viaja sem bilhete, é também um psicopata. E essa é uma grande preocupação que nos acompanhará até Singapura. Aí... pelo menos é o que todos esperamos... abandonará o navio.

 

- Esperam...

 

- Esperar é agora a nossa grande especialidade. Não existe, em todo o mundo, um navio que se possa proteger dos passageiros clandestinos. É sempre possível embarcar, recorrendo a uma série de truques. Só que, no nosso caso, o problema reveste-se de contornos inéditos: o nosso passageiro clandestino não se mantém quieto até ao fim da viagem, preferindo lançar o caos a bordo do navio. Não é normal que isto aconteça e é por isso que estamos convencidos de que se trata de um psicopata.

 

- Ainda faltam dois dias até Singapura.

 

- Nem tanto. Amanhã ao fim do dia, mais exactamente às dezoito horas, atracaremos no porto.

 

- Até lá pode acontecer tanta coisa.

 

- É também essa a nossa preocupação. - O Dr. Schmitz bebeu um gole de água mineral. Desde o duelo com Hallinsky que não fora ainda capaz de beber outra coisa que não água. - Hoje, tem lugar o jantar do comandante. Estamos a pensar se devemos transformar o navio numa fortaleza disse, sarcástico. - Numa fortaleza sitiada, bem entendido.

 

- Nesse caso: À nossa!

 

- Por favor, não pronuncie essa expressão: ”À nossa!”. O Dr. Schmitz fizera um gesto de repulsa. - Fico logo com azia. Tenho ainda de lhe pedir desculpas por ontem à noite. Tinha bebido um pouco.

 

- Esqueça, doutor. - Falkenhausen sorriu e apertou-lhe a mão. - Posso agora ir ter com a minha mulher?

 

- Sempre. E amanhã de manhã, poderá levá-la de volta para a cabina.

 

- Obrigado, doutor.

 

- Uma esposa com vinte e cinco anos de prática e de experiência não pode deixar de se sentir desconfiada, quando a doença a impede de manter o marido debaixo de olho, sobretudo num navio onde se passeia uma série de mulheres bonitas.

 

Assim, Erna deixou que Arno a beijasse, que a tratasse por querida e esperou que ele se sentasse no rebordo da cama. Fez-lhe um sorriso enigmático e as suas primeiras palavras assemelharam-se a um oráculo.

 

- Tiveste uma noite agradável? - perguntou-lhe. A pergunta mais pareceu uma constatação. - Estás com um ar tão bem-disposto.

 

- No entanto, quase não dormi.

 

- Foi o que eu pensei. - O sorriso desapareceu-lhe do rosto. - Onde é que estiveste?

 

- Aqui.

 

- E depois.

 

- Depois de quê?

 

- Depois de eu tomar a injecção e adormecer? Ficaste com a noite livre.

 

- Estive aqui sentado, ao teu lado, e bebi uma garrafa de champanhe em honra das nossas bodas de prata.

 

- Aqui? Ao meu lado?

 

- Haverá alguma outra mulher com a qual esteja casado há vinte e cinco anos?

 

- Oh, Arno! - Estendeu o braço na sua direcção e beijou-o, quando ele se inclinou na sua direcção. - Os anos passam e eu continuo a comportar-me como uma pateta, não é?

 

- Isso vai acabar, minha querida. O doutor diz que amanhã já podes abandonar o hospital. Ao fim do dia chegamos a Singapura. Aí, vamos jantar ao Mandarim e recuperar o tempo perdido no dia das nossas bodas de prata. Combinado?

 

- Combinado, seu monstro. - Riu-se e aconchegou-se a ele. - E ficamos lá até de manhã. Sempre sonhei com uma celebração das bodas de prata no Mandarim.

 

- Talvez outros sonhos venham também a realizar-se

- disse Falkenhausen, enigmático. - Sonhos de uma ilha. De uma praia com palmeiras. De um bangaló à beira-mar, no paraíso...

 

- Isso soa-me a um sonho atlântico.

 

- Um sonho das Baamas, minha querida. - Falkenhausen sentiu-se como uma criança a quem se tivesse satisfeito um desejo secreto. - Tens quarenta e cinco anos e eu cinquenta. Trabalhámos ambos, toda a vida, sem nunca descansar. Se tivéssemos respeitado as trinta horas semanais, já há muito que teríamos falido. Trabalhámos cinquenta e sessenta horas, e com isso construímos algo. A nossa fábrica, a Donatella! Agora, sou da opinião que recuperemos o tempo perdido e gozemos, na velhice, o fruto do nosso trabalho. Inclinou-se por cima dela e beijou-lhe os olhos. - O que é que achas de um bangaló junto ao mar? Nas Baamas?

 

- Não estás a falar a sério, Arno...

 

- Deitarmo-nos debaixo das palmeiras, com o vento quente no corpo. Nadar no mar sempre morno. Longe dos nossos políticos e dos grandes problemas, pelos quais, do outro lado do mundo, ninguém se interessa. Longe das mesquinhices da política alemã. Sem lixos atómicos, sem desordeiros de esquerda, sem greves, sem patrões de sindicatos irrealistas, sem bases de foguetÕes, sem fábricas de energia nuclear, sem o medo da guerra atómica... apenas sol, vento e mar!

 

- E tão longe...

 

- Justamente. Tão longe de toda a confusão... Estamos em plena meia-idade e a velhice aproxima-se a passos largos. Devemos interpretar as palavras ”bodas de prata” como um sinal.

 

- E como é que chegaste precisamente à ideia das Baamas?

 

- O senhor Hallinsky, que foi agredido pelo mesmo patife e no mesmo dia que tu, quer vender uma propriedade que tem nas Baamas, para se dedicar à navegação. Uma pena, segundo as suas próprias palavras... mas quer vender.

 

- E quanto deverá custar?

 

- Esse assunto ainda não foi discutido. Amanhã de manhã já poderás deslocar-te até ao convés. Nessa altura, negociaremos com o senhor Hallinsky.

 

- Não achas demasiado rápido? - perguntou ela, insegura.

 

- Oportunidades como esta não aparecem todos os dias, minha querida. Se hesitarmos, ficamos para trás. É uma questão que temos de resolver ainda a bordo.

 

- Não estás, certamente, a querer comprar a casa sem a ver primeiro?

 

- Claro que não. Mas Vou tentar negociar um adiantamento como sinal.

 

- Um sinal é já um compromisso... Falkenhausen encolheu os ombros. Erna tinha razão,

 

mas as palavras de Hallinsky haviam-no deixado enfeitiçado.

 

- É por isso mesmo que estou tão feliz por poderes acompanhar-me. Bem sei como és terrível a negociar.

 

- O que nos foi sempre muito útil e favorável.

 

- És uma querida...

 

Mandaram entregar o almoço no hospital e comeram na companhia do Dr. Schmitz e da enfermeira Emmi. Schmitz aproveitou para contar algumas anedotas de Colónia que, de tão atrevidas, fizeram corar a enfermeira, obrigando-a a repreendê-lo umas quantas vezes: ”Doutor!”

 

Quem conhece contadores de anedotas sabe que isso, mais do que qualquer outra coisa, lhes dá vontade de continuar.

 

O almoço decorreu numa atmosfera de boa disposição.

 

Eduard Hallinsky debatia-se, entretanto, e ao mesmo tempo que mudava de roupa para o almoço, com um complexo raciocínio. Estava fora de questão que Falkenhausen visitasse o bangaló nas Baamas antes de assinar o contrato. Por outro lado, ninguém assina um contrato sem antes saber exactamente o que está a comprar. Isso, no entanto, não era possível. Assim, Hallinsky chegou à mesma conclusão que Falkenhausen: não havia alternativa senão um sinal, dado como adiantamento que, no momento da compra, seria abatido no preço. Caso a compra não se realizasse, ou o prazo do sinal fosse ultrapassado, o dinheiro não seria reembolsado.

 

Hallinsky tinha consciência de estar a envolver-se num dos jogos mais ousados que alguma vez levara a cabo durante toda a sua carreira. Numa emergência, poderia sempre alegar que um seu sócio americano, agora na posse do dinheiro, teria entretanto já vendido a propriedade sem o seu conhecimento. Ele que tentasse instaurar-lhe um processo nos Estados Unidos... imagina-se o calvário. Sobretudo não sendo possível encontrar o agente imobiliário americano em questão. O que não seria, efectivamente, fácil, tendo em conta que não existia. Falkenhausen teria portanto perdido o seu dinheiro e Hallinsky poderia, ainda, representar o papel de co-lesado desiludido.

 

Quantos negócios conhecem um fim tão trágico...

 

Satisfeito com as suas conclusões, Hallinsky dirigiu-se para a sala de refeições. Fixara a quantia do adiantamento em quatrocentos mil marcos.

 

”Que viagem fabulosa”, pensou ele. ”Uma viagem dourada... e é assim mesmo que tem de ser com o Hallinsky.

 

Dá-se quarenta mil marcos e, graças a Falkenhausen e à baronesa, recebe-se um milhão de volta... Eduard, vais acompanhar o almoço com o melhor chablis que tiverem na lista dos vinhos.”

 

A manhã de Beatrice fora extremamente cansativa: uma corrida de um quilómetro na ponte de passeio. Um concurso de mergulhos e recuperação de colheres, no convés do sol. Um campeonato de schuffleboard, com uma garrafa de espumante como prémio. E o supervisionamento de um jogo de xadrez, com peças grandes, no convés dos desportos...

 

Agora, à hora de almoço, sentia-se feliz por poder dispor de três horas de tempo livre. Estava ansiosa por se deitar na cama, na sua cabina. Deitar-se, espreguiçar-se, fechar os olhos, dormitar, relaxar (para usar um termo moderno) e depois beber um sumo de laranja com um pouco de vodca, trincar umas bolachas (nada de almoços, por causa da linha!) e não pensar em nada.

 

Aquelas eram as poucas horas do dia em que podia estar sozinha, sendo-lhe permitido pôr de lado toda a simpatia que, cá fora, os outros lhe exigiam. Ali podia dar-se ao devaneio de insultar as paredes e, por vezes mesmo, dizer ”merda”. Lidar diariamente com seiscentos passageiros é uma tarefa que exige nervos de ferro. Mas o céu, o sol e o mar acabam sempre por compensar tudo isso. O que são todos os problemas, ao lado da infinita beleza do mundo? E essa beleza pode ser absorvida como uma bebida que entorpeça ou vivifique.

 

Beatrice descera até à zona reservada à tripulação, utilizando o elevador interno, frequentado essencialmente pelo pessoal do navio. Percorreu depois, a assobiar e com o casaco displicentemente atirado para trás das costas, o corredor que conduzia à sua cabina. Na porta, uma pequena placa aludia à pessoa que ali vivia: ”Hospedeira Principal”.

 

Como de costume, a porta não estava trancada, pois que entre a tripulação existia total confiança. Beatrice abriu-a, entrou na cabina e atirou o seu casaco branco para cima do cabide que tinha no pequeno vestíbulo de entrada. Avançou depois para o quarto, e foi aí que, ao olhar para a cama, se imobilizou, de olhos esbugalhados, levantou os dois braços e quis gritar, mas a voz não lhe obedeceu. Subitamente, tudo mudou. O pavor deu, de um momento para o outro, origem a um sorriso que a desfigurou, depois a um divertido piscar de olhos e, finalmente, a uma gargalhada solta. Afastou-se da parede, aproximou-se lentamente da cama e disse com uma voz carinhosa:

 

- bom dia, meu caro Klabautermann. Não, por favor, deixe-se estar deitado. Se a minha cama lhe agrada, fique à vontade. Não quero, de forma alguma, incomodá-lo. Vou só refrescar-me um pouco, para que possamos depois conversar. Acho encantador que tenha vindo ter precisamente comigo!

 

com à-vontade, tirou a blusa diante da inesperada visita, deixou cair a saia, despiu a roupa interior e dirigiu-se, nua, para debaixo do duche.

 

O Klabautermann emitiu alguns estalidos com a língua e bateu palmas. Quando Beatrice regressou da casa de banho, envolta numa toalha de banho comprida, estava sentado na sua cama. com os seus olhos castanhos, olhava-a com um carinho tal que Beatrice sentiu um calor invadir-lhe o coração. Sentou-se na poltrona, ao pé da vigia (ali, nos aposentos da tripulação, contrariamente ao que acontecia nas cabinas dos passageiros, as janelas não eram muito grandes), cruzou as pernas, tapou as coxas com a toalha que, com o movimento, se abrira e puxou de um cigarro.

 

- Então, conte-me lá de onde vem - disse, bem-disposta - e para onde pretende ir. Sabe que lançou uma bela confusão a bordo deste navio, motivando, de resto, as mais incríveis teorias. Que havia um passageiro clandestino a bordo, compreendemo-lo muito cedo, mas foi muito hábil na forma como, apesar de todas as atrocidades, se soube manter invisível.

 

O passageiro clandestino não lhe respondeu. Limitou-se a soltar um riso, um som gutural como o que por vezes se emite quando nasce uma criança em África, no Pacífico ou ali, na região indonésia.

 

- Imagino que esteja com fome - disse-lhe Beatrice, retribuindo-lhe o riso. - Vou fazer-lhe qualquer coisa para comer, algo bem delicioso.

 

Ao que o passageiro clandestino respondeu, aplaudindo energicamente.

 

Depois do almoço, o comandante convocara os seus oficiais para uma conversa na ponte. O navio avançava, calmamente, por sobre um oceano sereno, o mar e o céu uniam-se num tom de azul resplandecente. Aquele dia era uma dádiva de Deus.

 

Essa não era, no entanto, a percepção que dele tinham os oficiais, muito pelo contrário: quando o velho os reunia, o ar tornava-se sempre denso. E, por muito bom tempo que estivesse lá fora, este dificilmente influenciava o ambiente que se viveria lá dentro.

 

Todos os oficiais à ponte. A ordem fazia adivinhar uma hora animada.

 

Hellersen, correcto como sempre, com o seu boné branco (o qual exigia, igualmente, aos seus oficiais), saiu do seu camarote para a ponte e saudou os oficiais aí dispostos em semicírculo, com um movimento discreto de cabeça. Dirigiu-se para o enorme painel de controlo, onde todas as funções do navio estavam reunidas, apoiou-se nele e começou a bater com as pontas dos dedos naquela superfície metálica. Todos compreenderam aquele sinal sonoro e prepararam-se para o pior.

 

- Meus senhores! - disse Hellersen num tom extremamente formal. - Como todos sabem, realiza-se esta noite, mais uma vez, um jantar à luz das velas. Uma vez que tanto os meus oficiais, como a minha tripulação, parecem não ser capazes de encontrar um passageiro clandestino que está em todo o lado, aterroriza o navio e vai deixando para trás pistas evidentes, gostaria de me certificar de que pelo menos o jantar decorrerá sem incidentes. Fiz-me entender?

 

- Sim, senhor comandante - respondeu o imediato Hartmann.

 

Hellersen observou, um a um, os seus oficiais. Apenas viu rostos imóveis.

 

- O que têm a sugerir-me?

 

Foi novamente Hartmann quem, enquanto porta-voz dos seus colegas, lhe respondeu:

 

- Mandaremos vigiar particularmente a sala de jantar, os seus vários acessos e as portas que dão para os conveses. Serão igualmente montadas patrulhas em todos os conveses. Haverá marinheiros em todas as saídas de elevador. Os acessos às cabinas serão vigiados... Acha que devemos avisar os passageiros para que frequentem as pontes?

 

- Deus nos livre! - Hellersen ergueu ambas as mãos, em sinal de protesto. - Isso daria origem a um caos tremendo! - A tempestade levantara-se, finalmente. A voz de Hellersen abateu-se sobre eles: - Parto do princípio de que a minha tripulação é capaz de proteger os passageiros. Será que estou a pedir-lhes demasiado?

 

Nesse momento, Beatrice entrou na ponte. Feliz. Sorridente, como sempre. Uma visão extremamente agradável. Hellersen e Hartmann olharam-na mal-humorados.

 

- Parece ser a única pessoa da tripulação que ainda tem razões para estar feliz - disse Hellersen, mordaz.

 

Sem se deixar impressionar, Beatrice aproximou-se do comandante e imobilizou-se, direita, à sua frente.

 

- Tenho a comunicar-lhe, senhor comandante, que o Klabautermann está sentado na minha cabina!

 

- Beatrice, não estou com disposição para esse tipo de brincadeira. - Hellersen levantara outra vez a voz. - Tem algo de importante a comunicar-me?

 

- Sim, senhor comandante. - Beatrice mantinha-se direita, à frente do comandante. - Repito a comunicação: o Klabautermann está sentado na minha cabina.

 

- Beatrice!

 

- Está deitado na minha cama e sente-se bem. Pediu-me que apresentasse os seus cumprimentos.

 

Hellersen berrava agora.

 

- Perdeu completamente o juízo? A brincadeira já foi longe de mais!

 

- Juro-lhe, senhor comandante: está deitado na minha cama.

 

- O passageiro clandestino?

 

- Sim, o passageiro clandestino. Não tem como sair de lá. Fechei a porta da cabina à chave.

 

- Beatrice! Se for verdade...

 

- É verdade, senhor comandante.

 

- Quero vê-lo imediatamente. Hartmann, o senhor vem comigo. - Hellersen levantou-se e esticou os braços. Meus senhores, a conversa está terminada. Serão brevemente informados acerca da situação. Ah! O tipo já vai ver! Faço-o em picadinho...

 

O jantar à luz das velas é um dos maiores acontecimentos sociais que têm lugar num cruzeiro. Os senhores, vestindo, na maioria dos casos, smoking branco, acompanham até às mesas as suas esposas, orgulhosas das jóias que trazem postas. As jóias funcionam, nestes ambientes, como um cartão-de-visita: quem anda com coisas tão valiosas ao pescoço (coisas que uma pessoa normal não poderia comprar com o trabalho de uma vida inteira) conquistou, certamente, um lugar entre os cinquenta mais ricos do mundo. À luz das velas, dispostas em cima de cada uma das mesas, as pedras preciosas brilham com ainda maior intensidade... Trata-se de um jantar que decorre com maior tranquilidade do que é costume, como se os brilhantes, as esmeraldas, as safiras e os rubis não suportassem bem o ruído. Instala-se como que um ambiente de meditação. A leitura da ementa de gala é celebrada como se se apreciasse uma récita de um salmo.

 

No entanto, não havia, surpreendentemente, nenhuma vigilância à entrada da sala de jantar, nenhuma das saídas dos elevadores estava a ser controlada, não havia patrulhas nos acessos às cabinas, nem nos conveses, e o oficial de segurança não estava em permanente contacto, via rádio, com o resto da tripulação. Em vez disso, Helmut Dornburg estava sentado numa mesa de oito, onde representava, enquanto oficial, a tripulação do navio.

 

E porque haveriam, afinal, de manter a vigilância? O passageiro clandestino tinha sido apanhado e, segundo a informação que Hellersen lhes fizera chegar, já confessara.

 

Tudo. Cada um dos seus crimes. E havia-se mostrado profundamente arrependido. Estava disposto a apresentar as suas desculpas a todos os que tivesse prejudicado.

 

O comandante reorganizara a sua mesa especialmente para aquela ocasião. Tinha convidado todos os ”lesados” e reunira-os à sua volta. Em torno da grande mesa redonda, estavam agora sentados, num ambiente de grande expectativa: o casal Lotte e Peter Ahlers, a baronesa von Sahlfelden, Eduard Hallinsky, Friedhelm von Sollner, Erna e Arno Falkenhausen, Peter Hallau, o Dr. Hans-Jakob Schwengler e a Sra. Selma, o cônsul Fehrenwaldt com a sua esposa, Wilhelmine Mõller e o seu marido Julius e Fritz Tõlle. Ninguém lhes dissera porque haviam sido convidados para a mesa grande, mas, de certa forma, todos eles tinham o pressentimento de que algo de muito importante acontecera a bordo daquele navio. Algo que dizia a todos directamente respeito.

 

- Apanharam-no... - segredou Hallinsky à baronesa.

- Aposto que o apanharam! Exigirei que no-lo entreguem.

 

Mais estranho ainda era o facto de a banda de bordo se ter instalado ao lado do comandante, e ainda por cima vestindo, não o habitual smoking, mas antes um tipo de disfarce carnavalesco. Nenhum cliente habitual se lembrava de alguma vez ter visto a banda num jantar à luz das velas. Velas em castiçais de prata e uma banda... duas coisas que não condiziam nada uma com a outra. Além disso, havia diante do comandante um microfone! A que propósito?

 

A tensão aumentava.

 

Um toque de clarim, que repentinamente ecoou na sala, apanhou quase todos desprevenidos. As cabeças viraram-se para a mesa do comandante.

 

- Minhas senhoras e meus senhores! - disse Hellersen. Graças ao microfone, a sua voz fazia-se ouvir até ao último recanto da sala. - Terão reparado que, hoje, se procedeu a algumas modificações, relativamente àquilo a que estamos todos habituados. Existe, no entanto, uma razão para que assim seja. Aconteceram, nos últimos dias, muitas coisas estranhas a bordo deste nosso belíssimo navio. Foram bebidas cervejas, um xaile voou, acabando por aparecer atado a um turco, desapareceram alimentos do armazém e da pastelaria, roubaram um assado da cozinha, uma senhora foi atacada no convés e o fecho do seu vestido totalmente aberto, um outro passageiro foi agredido, o nosso imediato apanhou com uma roldana na cabeça, um soutien apareceu içado na adriça, como se de uma bandeira se tratasse, o boné do senhor Losse foi-lhe levado do cabide, do interior da cabina, um passageiro viu algo a girar em torno do mastro do radar e a Beatrice, normalmente tão corajosa, foi afugentada do convés por um riso assustador... e tudo isto não é senão uma pequena amostra de tudo o que experimentámos. A primeira reacção do comando deste navio foi: devemos ter um passageiro clandestino a bordo. Mas tratava-se, havia que admiti-lo, de um passageiro clandestino muito especial, que não se mantinha escondido, como seria de esperar, até ao próximo porto. Antes pelo contrário: onde quer que fosse, procurava chamar a atenção. Não era uma atitude previsível e deixou-nos, por isso, a todos, intrigados.

 

Hellersen recuperou o fôlego e olhou para a sala. Todos o observavam em silêncio.

 

- Tenho hoje todo o prazer de lhes comunicar - prosseguiu - que a nossa Beatrice desmascarou, finalmente, o passageiro clandestino...

 

Um aplauso irrompeu na sala. Batiam-se palmas e gritava-se mesmo ”bravo”. O que gritava mais alto era, ainda assim, Hallinsky.

 

- Vou obrigá-lo a pagar-me as minhas duas cervejas!,

- berrou. - E o galo também lho devolvo!

 

- Certamente que não... - Hellersen esboçou um enorme sorriso. - Acontece que não tem um único tostão consigo. Subiu clandestinamente a bordo em Bali e voltará a abandonar o nosso navio em Singapura. Aí, entregá-lo-emos às autoridades locais. Pôde até ser identificado: trata-se de um homem decente, excêntrico por natureza e muito dado ao desporto, como se pôde verificar pelo episódio do soutien na adriça e da sessão de ginástica no mastro do radar. Peço, por isso, a todos os passageiros, incluindo os mais directamente lesados, que lhe perdoem os ”crimes” que cometeu.

 

- Hellersen ergueu a voz. - Ele faz questão de se lhes apresentar.

 

A excitação na sala atingira o seu máximo. A maioria dos passageiros abandonou as suas mesas e acotovelou-se, na tentativa de chegar o mais perto possível da mesa do comandante. Também os ”lesados” se levantaram e fixaram a porta de entrada.

 

- Por causa de uma brincadeira da Beatrice, todos nós voltámos a acreditar um pouco no Klabautermann - prosseguiu Hellersen -, e, ainda que não passe de um mito de marinheiros, falou-se muito dele ao longo destes últimos dias. Na verdade, a Beatrice não estava assim tão longe da verdade. O nosso passageiro clandestino é, efectivamente, uma espécie de duende, quanto a isso não há dúvidas. Hellersen voltou a erguer a voz. - Façam favor, meus senhores!

 

A banda sobrepôs-se à vozearia generalizada. Tocou a já bem conhecida - Leva-me contigo, comandante, nessa viagem... - o que se adequava perfeitamente à situação. Dois marinheiros abriram a porta e seiscentos passageiros sustiveram a respiração em simultâneo.

 

E depois apareceu o passageiro clandestino, agarrado, de um lado, pelo imediato Hartmann e, do outro, por Beatrice. Trazia o boné que roubara a Losse e proporcionava a todos, na realidade, uma visão encantadora.

 

- Não é possível... - balbuciou Losse. - Isto é de deixar qualquer um abananado...

 

Durante alguns segundos, fez-se silêncio na sala; depois, irrompeu uma enorme alegria entre os passageiros, aplausos, gargalhadas e, pelo meio, alguns gritos incompreensíveis.

 

Beatrice e Hartmann abandonaram o passageiro clandestino na mesa do comandante. Este esticou-se, saudou o comandante, pousando-lhe a mão no boné, e soltou o riso que tanto pânico espalhara.

 

- Esta é boa! - Hallisnky estava encantado. - Faço questão de beber uma rodada de cerveja com o nosso amigo!

 

- Permitam-me que lhes apresente... - gritou Hellersen através do microfone. - O senhor Coco, do Jardim Zoológico de Bali. Um chimpanzé com nove anos de idade, adulto, particularmente forte, dócil, inteligente e corajoso. Segundo informações que nos chegaram de Bali, trata-se do orgulho do jardim zoológico. Mas a vida é assim mesmo: o Coco sentiu saudades de casa... e pede, agora, desculpa...

 

Um novo toque de clarim pôs termo à apresentação do passageiro clandestino. Bem ensaiados, entraram então todos os empregados de mesa, que começaram a servir a entrada. Os passageiros regressaram às suas mesas. A tranquilidade que normalmente caracterizava estes jantares à luz das velas havia-se irremediavelmente perdido. Coco, o chimpanzé, era o tema de todas as conversas.

 

E ele sabia-o perfeitamente e comportava-se como tal. Trepou para cima da cadeira livre (reservada para ele) ao lado do comandante, sentou-se, bateu palmas e olhou à sua volta. ”Serviço, por favor...” À volta do pescoço, trazia uma corrente com uma chapa de identificação.

 

Três empregados e uma empregada de mesa vieram servir-lhes as entradas, atentamente observados por Coco, que, provocador, lhes arreganhou os dentes. Hallinsky, que estava sentado ao lado dele, apontou para o seu galo.

 

- Isto não era necessário, meu jovem - disse ele.

 

- Ele pensou que lhe queria tirar a laranja - interveio Beatrice, saindo, desta forma em defesa de Coco. Estava sentada do seu outro lado. - Quanto ao fecho do seu vestido, senhora Falkenhausen, foi ele quem, naturalmente, lho abriu. ”O que é isto”, terá pensado, puxou e riu-se, divertido.

 

- E, ainda por cima, gosta de cerveja, o que aos meus olhos o torna duplamente simpático! - afirmou Hallinsky.

- Posso convidá-lo para uma cervejinha, ou isso é violentar o animal?

 

- Um copo de limonada é capaz de ser melhor.

 

Coco voltou a bater com as mãos uma na outra. Um empregado destinado apenas a ele serviu-lhe, num prato de estanho, três bananas maduras descascadas, pomposamente enfeitadas com rodelas de quivi e metades de morangos.

 

- Estou a ver... - disse o Dr. Schwengler, bem-disposto.

 

- Estou a ver que o senhor Coco é um apreciador de petiscos. Só o melhor, o mais doce...

 

- Exactamente! - acrescentou o imediato. - Por isso mesmo foi encontrado deitado na cama da Beatrice...

 

A mesa do comandante rejubilou e Coco pegou na primeira banana. Era encantador verificar que Beatrice ainda corava daquela maneira.

 

Às dezoito horas em ponto, o navio ancorou no cais de Singapura. Os barcos dos bombeiros fizeram ecoar as sirenas de nevoeiro. Embandeirado nos topes e enfeitado com grinaldas luminosas, o navio saudou aquela belíssima cidade. A cidade com mais magia de toda a Ásia.

 

Na ponte de passeio, a estibordo, os passageiros apoiavam-se na balaustrada do navio e observavam o cais lá em baixo. Aí esperava uma pequena carrinha de caixa fechada, com a inscrição ”Jardim Zoológico de Singapura”. Dois tratadores, vestidos com batas brancas, estavam apoiados na capota do veículo e acenavam aos passageiros. Todos os conveses estavam agora repletos de pessoas que observavam a formatura de dois cabos em uniforme de parada e o aparecimento do imediato, que foi o primeiro a pisar o chão de Singapura. Dirigiu-se, depois, para os dois tratadores, falou com eles, regressou à ponte de embarque e os tratadores abriram a porta da pequena furgoneta. Na ponte de passeio, esperava também a banda de bordo. Imediatamente ao seu lado, estava Victor, em contacto permanente, via rádio, com o convés principal.

 

- Agora! - disse ele, fazendo um sinal com a cabeça. Disse-o muito sério e com uma profunda tristeza estampada no rosto.

 

Levado pela mão de Beatrice, Coco apareceu no cimo da ponte de embarque. A banda de bordo emitiu um rufo de tambor.

 

Hallinsky, entre a baronesa e Falkenhausen, levou a mão aos olhos.

 

- Tenho vontade de chorar - disse, com a voz trémula. - Agora, vão voltar a pô-lo atrás das grades. Passei o dia a fazer telefonemas e a mandar telegramas, mas não há nada a fazer, não me deixam levá-lo comigo. Estou capaz de chorar!

 

Devagar, Coco desceu a ponte de embarque, agarrando-se à mão de Beatrice. Lá em baixo, no cais, os cabos saudaram-no como se de um rei se tratasse. O imediato substituiu Beatrice, levando Coco pela mão até ao veículo que o esperava.

 

Em todos os conveses batiam agora palmas.

 

- Coco - gritavam em coro: - Coco! Coco! - Directores-gerais, cônsules, médicos e membros de conselhos directivos, fabricantes e independentes de várias profissões, milionários ou não, velhos e novos.

 

- Coco... Coco...

 

O comandante Hellersen estava na ponte e bateu continência. Disse, baixinho, para consigo mesmo:

 

- Adeus, Coco. Passa bem... Da próxima vez que vier a Singapura, Vou visitar-te.

 

Coco sabia que tinha chegado a hora da despedida. Antes de entrar para a carrinha, virou-se mais uma vez, tirou o chapéu de Losse, que lhe havia entretanto sido oferecido, e agitou-o no ar. Em troca, recebeu uma ovação. Só Hallinsky se apoiou na baronesa e disse, choroso:

 

- Agora é que eu Vou mesmo chorar. Perdoe-me, baronesa... mas não consigo evitar.

 

E a baronesa respondeu-lhe:

 

- Vejo agora que é um homem bom. Vou comprar o terreno no Algarve.

 

Ao ouvir estas palavras, Hallinsky não pôde evitar que as lágrimas lhe viessem aos olhos.

 

Coco acenou mais uma vez, abraçou o primeiro-imediato, subiu para a carrinha e olhou para cima, para o enorme navio. Depois, as portas fecharam-se. Muitos acharam a cena brutal. Mas a vida é mesmo assim. As despedidas são sempre terríveis.

 

Lentamente, a carrinha do Jardim Zoológico de Singapura afastou-se do cais. Como que abandonado, esquecido, o primeiro-imediato permaneceu de pé, no cais ainda vazio, e acenou em direcção à carrinha. Na ponte de embarque, Beatrice acenava também.

 

”Meu querido Coco... não nos esqueças. Iremos visitar-te, todos nós... Que tenhas uma vida feliz, uma vida longa... Todos nós pensaremos sempre em ti.” Virou-se e subiu lentamente, pela ponte de embarque, até ao navio. E chorou.

 

                                                                                 Heinz Konsalik  

 

                      

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