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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PÂNTANO DE SANGUE / Pedro Bandeira
PÂNTANO DE SANGUE / Pedro Bandeira

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PÂNTANO DE SANGUE

 

          O crime ronda o Pantanal

Miguel, Crânio, Calu, Magri e Chumbinho, a turma dos Karas de A Droga da Obediência, envolvem-se com o crime organizado que está agindo no Pantanal de Mato Grosso, liderado pelo implacável Ente. Em um enredo fascinante, repleto de suspense do começo ao fim, discute-se a dramática destruição dos jacarés, dos índios e da natureza em um dos últimos lugares do mundo que ainda poderia ser chamado de Paraíso Terrestre.

 

 

                   Um crime brutal

Tinha sido um professor. Um ser humano. Dos me­lhores.

Agora nem parecia um homem. Era apenas um cadáver brutalmente massacrado. Uma massa de sangue, retorcida e pisoteada, jogada na calçada como um fardo de roupa suja.

Naquela manhã de junho, as aulas no Colégio Elite começavam de modo trágico demais.

Alguém lembrou-se de cobrir o corpo com jornais. As manchetes falavam da violência urbana.

Amparada por um colega, uma estudante vomitou.

Do grupo de curiosos, um rapazinho afastou-se. Pouco depois, de dentro do colégio, ouviu-se o som triste de uma gaita.

 

A bordo do Boeing que cortava o ar em direção ao misterioso Pantanal Mato-grossense, Miguel tirou do bolso a pequena gaita prateada. A gaitinha. A marca registrada de Crânio, o companheiro desaparecido. A gaitinha. Agora completamente muda, longe do sopro do amigo. Longe de Crânio, o gênio dos Karas.

Os Karas! O avesso dos coroas, o contrário dos caretas! Aquele grupo secreto de alunos do Colégio Elite reunido por Miguel só pela farra, pela aventura, mas que logo aca­baria se envolvendo em perigos reais. Perigos que nem mes­mo ele, Miguel, o líder dos Karas, poderia ter imaginado. Como aquele que os cinco adolescentes haviam enfrentado na luta contra o sinistro Doutor Q.I. e sua Droga da Obe­diência. Os cinco Karas: Miguel, Calu, Chumbinho, Magri e... e Crânio!

Miguel falou baixinho, como um desabafo, para Magri, sentada na poltrona a seu lado:

— Ele pode estar morto. A esta hora, Crânio pode estar morto...

A garota apertou a mão do amigo.

— Ele está vivo, Miguel. Tenho certeza.

O calor da menina trouxe uma sensação gostosa que percorreu todo o corpo do rapazinho. Um conforto especial de que ele precisava. Um conforto que só poderia ser ofere­cido por Magri, a única garota do grupo dos Karas.

— A culpa é toda minha, Magri. Eu estava errado. Não quis acreditar no que Crânio dizia. Ele ficou sozinho. Eu o abandonei...

— Não se culpe, Miguel. As idéias de Crânio pareciam malucas mesmo. Eu também não acreditei nas teorias dele sobre o assassinato do professor Elias. Chega de fossa. Tenha confiança. Nós vamos encontrá-lo!

Miguel cerrou os dentes, tentando disfarçar o pessi­mismo. Ele não se perdoaria se os outros percebessem seu momento de fraqueza.

Os "outros" eram Calu e Chumbinho, e ocupavam as duas poltronas atrás de Miguel e Magri. Examinavam um mapa do Mato Grosso do Sul, e Chumbinho apontava para fora, tentando localizar pequenas vilas em meio ao cerrado.

— Sabe, Calu, meu pai importou um novo simulador de vôo para o meu computador. É um programa de treina­mento para os pilotos da NASA. Já estou dominando per­feitamente. Passar por cima de uma serrinha como esta, por exemplo, seria uma moleza. Um cálculo fácil. Era só subir os flaps suavemente, sem que.,.

— Ora, Chumbinho, você só pensa em computador e vídeo game!

Na poltrona à frente de Miguel havia mais um "outro", do qual só se podia ver a careca e ouvir o ronco de seu sono agitado. O detetive Andrade, aquele amigo dedicado, per­sistente, sempre suando quando tinha sobre os ombros al­gum problema dos grandes. Um problema como aquele. Por isso o detetive estava suando, mesmo durante o sono.

Miguel apertou a gaitinha prateada entre as mãos, como se assim pudesse abraçar o dono dela. E lembrou-se da úl­tima vez que ouvira o som da gaitinha, no forro do imenso vestiário do Colégio Elite, o esconderijo secreto dos Karas.

 

Tirando uma melodia preguiçosa da gaita, meio na sombra, meio iluminado pela luz do entardecer que entrava pelas poucas telhas de vidro do forro do vestiário, Crânio confundia-se com a sombra de Calu, o colega e ator inigua­lável, e com a elegância de Magri. Ao lado da garota, Miguel sentia-se envolvido por aquele perfume que sempre o fazia sonhar. Entrando pelo alçapão, a figura menor de Chumbi­nho, o último dos Karas, veio juntar-se ao grupo, com aque­le sorriso maroto.

— Emergência máxima, Karas? O que houve? O Dou­tor Q.I. fugiu da cadeia?

— Espero que não, Chumbinho — respondeu Calu, demonstrando que uma emergência máxima dos Karas não era ocasião para piadas. — Vamos ouvir por que Crânio nos convocou.

À frente do gênio dos Karas havia uma misteriosa caixa de metal.

Crânio parou de soprar a gaitinha quando percebeu que toda a atenção estava concentrada nele e no que ele tinha a dizer. Bateu a gaitinha na coxa para enxugá-la e falou, sem olhar diretamente para ninguém:

— A polícia está errada. Andrade está errado. O as­sassinato do professor Elias é um trabalho para os Karas.

Num relance, todas as tensões da luta contra a Droga da Obediência voltaram à memória de Miguel. Todas as tensões vividas pelos cinco Karas ao lado do detetive An­drade. Todos os sustos. Todos os riscos. Agora, depois de tanta dedicação, depois de tanta eficiência provada pelo gordo detetive, ele e toda a polícia estariam errados a res­peito do assassinato do professor Elias!

— Todo mundo está errado, não é, Crânio? E o que você sabe que a polícia não descobriu?

— Por enquanto não sei de nada, Miguel. Mas tenho certeza que não encontraremos pistas aqui em São Paulo. A resposta está em Mato Grosso do Sul. Está no Pantanal.

— Onde?! — riu Chumbinho. — Crânio, você ficou maluco?

 

Miguel voltou a cabeça para olhar pela vigia do Boeing e, nesse movimento, seu rosto encontrou os cabelos de Magri, que descansava a cabeça em seu ombro. Miguel desejou que ela estivesse dormindo, para não sair daquela posição.

 

— Ora, Crânio — reclamou Calu, do meio das som­bras do forro do vestiário — você convocou uma emergên­cia máxima dos Karas para vir com essa história? Pode explicar o que tem a ver o Pantanal de Mato Grosso com um professor de matemática? O que tem a ver um professor de São Paulo com os jacarés e as piranhas do Pantanal? O que tem a ver um assassinato em pleno asfalto paulista com aquela natureza fantástica? Pode explicar?

Crânio não respondeu, esperando que a avalanche de objeções terminasse. Mas, por dentro, sorriu, seguro de sua inteligência. Como sempre.

— Você era o aluno predileto do professor Elias — argumentou Miguel — mas isso não o obriga a ser o dete­tive que vai solucionar esse bárbaro assassinato. Nós esta­mos chocados, mas a verdade é uma só: nosso professor é mais uma vítima dessa brutalidade toda. Foi mais um latro­cínio nojento, sem razão, sem explicação...

— Ele foi assassinado por causa de alguns trocados que trazia no bolso — acrescentou Magri. — Nem era dia de pagamento. Isso é São Paulo...

Crânio lembrava-se da genialidade do professor Elias, aquele homem magro, mal vestido, sempre de sandálias, que vivia a contar tostões em troca de educar os jovens das famílias mais ricas da cidade. Lembrava-se da originalidade do professor e de sua estranha teoria: para o professor Elias, a matemática era a única ciência verdadeiramente humana. Como? Para ele, isso era claro: a natureza cria seus fenô­menos físicos, químicos, biológicos e geográficos indepen­dentemente da ação do homem, mas a natureza não cria teoremas, equações, nem logaritmos. Isso são criações hu­manas. A natureza produz laranjas, por exemplo, mas não soma ou subtrai laranjas. Isso é uma abstração da inteligên­cia humana. Portanto, a matemática é a única ciência inven­tada pelo homem. Então por que a maioria dos estudantes tem problemas com a matemática? Bem, talvez isso ocorra com a maioria, mas nunca com os alunos do professor Elias. Para eles, a matemática era uma ciência fascinante e o professor Elias um verdadeiro ídolo.

— Eu me sinto na obrigação de descobrir o assassino do professor Elias, recomeçou Crânio. — Foi como se tives­sem trucidado alguém da minha família.

— Mas o que o Pantanal tem a...

— Em primeiro lugar, Chumbinho, por que tanta bru­talidade no assassinato do professor? Por que surrá-lo da­quela maneira para roubar alguns trocados? Ele não teria reagido. Não era um homem de briga. Por isso eu acho que ele não foi morto perto do colégio, onde o corpo foi encon­trado. Ele foi levado para algum lugar distante e torturado.

— Torturado? Mas que bobagem! Por que alguém torturaria um professor de matemática? Para descobrir o quê? As respostas da próxima prova?

— É o que precisamos descobrir, Calu. O professor Elias devia saber alguma coisa, alguma coisa muito impor­tante. Por isso foi torturado e morto. Depois abandonaram seu corpo na calçada do Colégio Elite, para dar a impressão de um crime comum, cometido por um assaltante qualquer.

— Um assalto comum, seguido de morte. Essa foi a conclusão da polícia, Crânio. Foi o que nos disse o Andrade. Não há outra explicação.

— Há mais uma coisa, Miguel: a malinha do profes­sor estava abandonada ao lado do corpo. Fui visitar a viúva dele, ontem à tarde. Ela me recebeu muito bem, procurando parecer conformada, mas...

Crânio pegou a caixa de metal, procurando concentrar-se na questão principal.

— Vocês sabem que o Elias trabalhava de vez em quando como fotógrafo para ganhar algum dinheiro extra, não sabem? A viúva me deixou examinar a malinha dele. Tudo parecia em ordem, como verificou a polícia. Junto com outras coisas havia esta caixa de slides. São fotos do Pantanal feitas pelo professor durante os feriados da semana santa. Ele estava tentando vendê-las para alguma revista.

O rapazinho levantou a tampa da caixa. Era um classificador especial para slides, onde eles ficavam em ordem, com uma fenda para cada um.

— O professor Elias era muito organizado. A ordem era para ele uma verdadeira mania. Examinei cuidadosa­mente todos os slides. Eles estão arquivados na seqüência em que foram fotografados, seguindo um roteiro de viagem. Há somente uma exceção: estes três slides que mostram passageiros descendo a escada de desembarque de um avião, no aeroporto de Cumbica, em São Paulo. Pela lógica deve­riam estar no fim, mas estão bem no meio da série.

— Estamos vendo. E daí?

— Eu só posso chegar a uma conclusão, Miguel. Aqui havia três fotos que comprometiam alguém. As fotos foram retiradas apressadamente e, em seu lugar, foram colocadas as três últimas. Alguém matou Elias para roubar as fotos, depois de torturá-lo para descobrir se ele sabia mais alguma coisa. Só que esse alguém não queria que a polícia desco­brisse qualquer ligação entre os slides e o crime. Por isso o criminoso substituiu os slides. Pode haver outra explica­ção?

— Pode haver dezenas delas, Crânio. E a sua me parece a mais forçada.

— É apenas a mais lógica, Magri. O professor Elias fotografou alguma coisa suspeita. Algo tão grave que ele não poderia continuar vivo...

— Está bem, Crânio! — concordou Miguel. — Vamos supor que você tenha razão. Mas, se os slides roubados são a única pista, como vamos segui-la? Como vamos descobrir o que o professor Elias fotografou?

— Seguindo a mania de ordem dele. Se os slides estão em seqüência, não será difícil ver o que o professor foto­grafou.

— Ver?! Como?

— Se as fotos estão classificadas pela ordem em que foram tiradas; é só percorrer o mesmo roteiro que o profes­sor fez. É só ir visitando os mesmos lugares que ele visitou e localizar aqueles que fotografou antes e depois das três que foram roubadas. Desse modo, talvez dê para descobrir pelo menos onde teriam sido fotografados os três slides que faltam!

Miguel sorriu, divertido, como se estivesse falando com uma criança, e não com o mais brilhante dos alunos do Colégio Elite.

— Parece lógico, Crânio. Mas de uma lógica total­mente maluca. Vamos supor que as três fotos sejam de um barco, no meio de um rio. Mesmo que você descubra o tal rio, como vai ficar sabendo que havia um barco passando por ali naquele momento? E, depois, como vai descobrir o que estava acontecendo naquele barco? E se as fotos forem da cara de alguém? Você até poderia descobrir o cenário, mas nunca quem foi fotografado à frente dele.

— Pode ser, Miguel. Mas os slides são nossa única pista. Foram feitos no Pantanal e é lá que temos de conse­guir a resposta. Tenho uma tia que é fazendeira no Mato Grosso do Sul, mais ou menos na mesma região que o pro­fessor visitou, às margens da rodovia Transpantaneira. É a tia Matilde, uma parente distante que eu nunca conheci. Ela viveu muito tempo nos Estados Unidos e casou-se por lá. Depois que o marido morreu, voltou para o Brasil e insta­lou-se na região do Pantanal. Já telegrafei pra ela dizendo que nós...

— Um momento, Crânio — interrompeu Miguel. — Nós não vamos para o Pantanal seguir uma pista sem pé nem cabeça. Deixe que a polícia...

— A polícia está atrás de algum assaltante desconhe­cido. Nunca vai chegar a conclusão nenhuma!

— Também estou arrasado com o assassinato do pro­fessor Elias, Crânio. Mas esse não é um trabalho para os Karas, é um trabalho para a polícia.

Crânio olhou um a um os quatro companheiros durante o silêncio que se seguiu à decisão de Miguel. Os olhares que recebeu de volta aconselhavam a desistir. Levantou-se e encolheu os ombros, reconhecendo a derrota.

— Então tenho de ir sozinho. É só conseguir uma autorização do meu pai para viajar, e acho que dá para embarcar logo.

— Mas as férias ainda não começaram. Você vai per­der os exames finais do primeiro semestre!

— Já fechei todas as médias, Chumbinho.

— Só que ganhará um zero em cada prova, não é? E, pela primeira vez, você vai perder o primeiro lugar no Colégio Elite.

— Valerá a pena se eu descobrir o assassino do Elias!

— Então, boa viagem, Crânio — encerrou Miguel, sorrindo. — Deixe o número da caixa postal de sua tia. Telegrafaremos quando a polícia solucionar o crime. Boas férias. Dizem que o Pantanal é lindo, ainda mais agora, no meio do ano...


                   O ouro da Máfia

Miguel e o detetive Andrade conheciam um ao outro como se fossem a mesma pessoa. E confiavam um no outro como se fossem um só. Tinham se tornado amigos na luta, na tremenda aventura da Droga da Obediência. Mas não era comum Miguel encontrar-se com o detetive Andrade sorrindo e à sua espera na saída do Colégio Elite.

Apenas metade do sorriso era de verdade. Miguel sen­tiu que o detetive tinha real prazer em revê-lo, como um pai à espera do filho na estação. Mas Andrade suava muito, enxugando a testa com um lenço, apesar do friozinho de junho. E isso queria dizer que alguma coisa ia muito mal.

— Olá, Miguel!

Os dois tinham vontade de abraçar-se, mas ambos sa­biam que aquele não era apenas um encontro social. Nem se apertaram as mãos.

— O que houve, Andrade? O detetive fez-se de surpreso.

— O que houve? Ora, nada de especial. Eu só esta­va...

—... passando por aqui justo na hora da saída do Colégio Elite? E resolveu dar uma paradinha para saber como vão seus jovens amigos no último dia de aula do semestre? Está certo, Andrade, vou lhe dizer como nós estamos passando. Eu, por exemplo, estou morrendo... morrendo de curiosidade para descobrir por que o meu ami­go detetive está suando...

Andrade balançou levemente a cabeça e sorriu.

— Está bem, Miguel. Aceita uma carona pra casa?

Andrade não estava com carro oficial. Tinha estacio­nado seu velho fusquinha em local proibido. Naturalmente, havia um papel amarelo preso ao limpador de pára-brisa.

— Inferno! Uma multa! Com o salário miserável que a gente ganha do governo e ainda por cima uma multa para pagar!

Andrade amarrotou a multa, enfiando-a no bolso, e voltou-se para o garoto.

— Vejo que você está muito bem, Miguel. E o Crânio, como vai?

— Por que pergunta justamente pelo Crânio?

— Você não respondeu à minha pergunta...

— Crânio foi para a fazenda de uma tia dele, no Pantanal de Mato Grosso.

— Foi o que os pais dele me disseram. Pensei que você pudesse me dar outra pista...

— Outra pista? Como assim, Andrade? O que acon­teceu?

Andrade atrapalhou-se todo.

— Calma, Miguel. Na verdade não há nada para... quero dizer... Bem... É que um piloto chamado Bezerra apareceu morto no Pantanal. Devia ser um viciado em dro­gas, pois seus braços mostravam horríveis marcas de injeção e a autópsia revelou uma boa quantidade de heroína no organismo. Foi encontrado numa canoa, com uma bala nas costas e a mão mutilada pelas piranhas...

— Nossa! Mas o que isso tem a ver com o Crânio? Andrade tirou alguma coisa de dentro do paletó.

— Encontramos isto no bolso do piloto!

Na mão do detetive, Miguel viu uma gaitinha prateada.

 

No Parque do Ibirapuera, onde a extensão dos grama­dos era uma garantia de isolamento, Miguel, Magri, Calu e Chumbinho começaram levando uma bronca de Andrade.

— Quer dizer que Crânio foi para o Pantanal na pista do assassino do professor Elias? Por que vocês não me avisaram? Inferno! Não somos amigos? Não há mais con­fiança entre nós?

— Não é isso, Andrade — explicou Calu. — Apenas achamos que não havia nada para contar a você. Pensamos que ele não descobriria nada. Que só passaria alguns mo­mentos agradáveis com a tia, lá no Pantanal. A teoria de Crânio sobre o assassinato do professor Elias era absurda...

— Ê claro que era absurda! O Pantanal não tem nada a ver com a morte do seu professor! — explodiu Andrade. — Mas, do jeito que vocês metem o nariz em tudo que não são chamados, Crânio deve ter se envolvido com problemas muito maiores do que o assassinato do professor. E proble­mas dos grandes é o que não falta lá no Pantanal...

Magri tentou mostrar um pouco de otimismo:

— Espere aí, Andrade. É muito cedo para dizer que Crânio desapareceu no Pantanal. Na certa, ele está fazendo uma linda excursão, desligado do mundo. Logo ele aparece, cheio de aventuras para contar. Só porque o tal piloto es­tava com a gaita de Crânio no bolso, isso não quer dizer que...

— Quer dizer muito, Magri. Aqui está o "bolso" onde encontramos a gaitinha...

De dentro de um saco de papel pardo, Andrade tirou uma jaqueta ensangüentada, com um buraco de bala nas costas!

— A jaqueta de Crânio!

— Como sabe que é dele, Magri? É uma jaqueta co­mum. Todo mundo tem uma dessas...

— É dele, Calu. Está vendo este adesivo? Fui eu que colei...

Por um instante, a revelação da garota gelou todos os ânimos.

— Então o pobre piloto baleado estava vestindo a jaqueta de Crânio? - - raciocinou Chumbinho. — Mas isso não quer dizer nada. Crânio pode ter dado a jaqueta para ele, só isso.

Miguel falou, pela primeira vez:

— Crânio daria a jaqueta a alguém sem antes tirar do bolso a gaitinha? Vocês acham que ele se separaria da gaitinha?

— Claro que não. Mas, e se a jaqueta foi roubada? E se...

— Só o piloto assassinado poderia responder a essa pergunta, Chumbinho — cortou Miguel. — Mas os mortos não falam.

— Ele falou antes de morrer, Miguel.

Os quatro Karas olharam para o gordo detetive. An­drade enxugou a careca mais uma vez e continuou:

— O pescador que o encontrou, no rio Taquari, repe­tiu palavra por palavra o que disse o tal Bezerra, antes de morrer.

— Que palavras foram essas?

Andrade tirou a cadernetinha de anotações do bolso.

— Estão aqui... deixa ver... O piloto disse: "Crâ­nio..."

— Como?!

— É isso mesmo, Magri. Ele disse: "Crânio... encon­trem... o Ente... Formigas-paradas... Mike Sierrabrava... é o Ente... é Mike Sierrabrava... eu descobri... é ouro... é ouro puro... Crânio... pelo amor de Deus..."

Os Karas se entreolharam. Um piloto tinha sido assas­sinado no Pantanal e morrera falando no gênio dos Karas!

— O que quer dizer tudo isso, Andrade? — pergun­tou Miguel. — Quem é Mike Sierrabrava? Que "Ente" é esse? E que história é essa de ouro e de formigas?

Andrade suspirou profundamente. Ele adorava aqueles jovens. Eram brilhantes, geniais! Mais corajosos que a maio­ria dos seus colegas da polícia. Mas eram apenas adolescen­tes. Na idade de estudar, ir a festas e deixar os grandes problemas para os mais velhos. Só que um deles poderia estar em grande perigo, poderia até estar... Não! Andrade nem podia admitir isso. Talvez aqueles garotos pudessem ajudá-lo a... Talvez se lembrassem de alguma coisa que... Não tinha jeito. O jeito era abrir o jogo.

— A história é longa e macabra, meus queridos. Natu­ralmente vocês já ouviram falar da situação do Pantanal...

— O último refúgio da natureza selvagem — discur­sou Calu, como se fosse um político de província. — A maior reserva pura da fauna e da flora tropical. Mas, e daí?

— E daí que a selvageria não tem nada a ver com a natureza, lá por aqueles lados. O Pantanal está dominado por contrabandistas, traficantes de tóxicos e assassinos de jacarés. E o que é ruim sempre dá um jeito de piorar: o crime organizado internacional descobriu o Pantanal!

— Oh, oh! Quer dizer que o negócio de sapatos e bolsas de couro de jacaré é tão bom que está interessando até aos grandes criminosos? Até à Máfia?

— O morticínio dos jacarés é uma barbaridade. Mas há outras. Quando se fala de crime internacional, fala-se principalmente do tráfico de drogas. Esse sim é um negócio impressionante. O dinheiro nele movimentado é maior que todo o dinheiro mundial gasto com alimentação, saúde e educação. Suas redes de distribuição fariam inveja à orga­nização da Coca-Cola. A indústria da droga é a que mais cresce no mundo. Por ano, os criminosos arrecadam meio trilhão de dólares, isto é, três vezes mais do que todos os dólares em circulação no mundo todo. Um império econô­mico e militar que só perde para os Estados Unidos e para a União Soviética...

A voz de Andrade calou-se para um instante de fôlego e, durante um breve mas profundo respirar, passou-lhe pela cabeça que aquela não deveria ser uma simples questão policial. Era uma ameaça tão séria que as forças armadas deveriam enfrentá-la como uma operação de guerra.

— Vencer essa guerra só será possível com a união de todos. Mas às vezes penso que o consumo de drogas pelos jovens é muito bem-visto pelos poderosos. É fácil manipular um drogado. É fácil controlar um jovem com a cabeça cheia de fumaça ou as veias cheias de veneno. Difícil é controlar os anseios e as esperanças de uma juventude de cabeça limpa e nariz em pé. Por isso, para os donos do poder, é uma saída perfeita manter seus privilégios dissolvendo, a poder de fumaça e cocaína, as idéias rebeldes dos cérebros dos jovens.

Cérebros como os daqueles quatro queridos garotos, que ouviam seu desabafo com respeito. Mais uma vez, An­drade quis colocar todos no colo, de uma só vez, como se eles fossem os filhos que nunca teve.

— O crime organizado se enriqueceu com os tóxicos a tal ponto que a repressão não consegue mais nada. A única forma eficiente de combatê-lo seria abalar suas finanças. Mas os fantásticos lucros dos criminosos sempre estiveram muito bem protegidos em depósitos secretos nos bancos suíços e do Caribe.

— Que absurdo! Então não é crime guardar dinheiro obtido com a venda de drogas? — revoltou-se Miguel.

— É... parece que os maiores crimes estão a salvo da lei... — concordou o detetive. — Por isso uma nova tática tornou-se necessária: esses banqueiros estão sendo pressionados a consentir que as contas secretas sejam aber­tas à investigação. Assim, as fortunas desses criminosos seriam descobertas e bloqueadas, e o crime internacional fi­caria enfraquecido.

— Se não é possível acabar com o crime, a solução é levar os criminosos à falência, não é?

— Em teoria era isso, mas acontece que o sigilo dessas pressões sobre os banqueiros foi quebrado, e os comandan­tes do crime organizado tomaram outras providências. Como a proteção do dinheiro depositado não seria mais segura, há indícios de que os criminosos começaram a transformá-lo em ouro.

— E o que seria feito com o ouro?

— Certamente guardado em lugar seguro, até que as coisas esfriassem. Um lugar sem lei, onde o ouro pudesse ficar escondido por algum tempo. E que melhor refúgio do que o Pantanal!

— Então era desse ouro que o piloto falava? Quer dizer que ele descobriu onde está escondido o ouro da Máfia?

— Talvez, Magri. Só que esse Bezerra, o piloto, nunca mais poderá contar onde está o tal ouro...

— Ele falou também em um certo "Ente". Esse Ente faz parte da conspiração?

— O Ente é a própria conspiração, Miguel. Descobriu-se que ele é uma espécie de tesoureiro do crime organizado. Mas ninguém descobriu quem é ele. Certamente alguém poderoso e influente no Pantanal. Alguém acima de qual­quer suspeita, para o ouro da Máfia não correr nenhum risco.

— Conforme as palavras de Bezerra, o Ente chama-se Mike Sierrabrava — lembrou Chumbinho, que nunca esque­cia qualquer palavra que ouvisse, mesmo que fosse uma única vez. — E esse Mike Sierrabrava é um sujeito in­fluente?

— Não foi encontrado ninguém com esse nome, Chum­binho.

— Você falou com os pais de Crânio? Contou-lhes tudo?

— Não, Magri. Inventei uma desculpa qualquer para telefonar procurando por ele. Não lhes contei nada. Não quis alarmá-los. De que adiantaria? Temos tão pouca coisa...

Miguel encarou o detetive e raciocinou:

— Tudo o que temos são as palavras do piloto. Não sabemos como descobrir o tal Mike Sierrabrava. É claro que, como tesoureiro do crime, ele está usando uma identi­dade secreta. E a outra pista do piloto: "Formigas-paradas"? O que será isso?

— Parece que é uma história meio maluca. Os pantaneiros falam em espíritos malignos que assombram a região. Nem sei por que são chamados Formigas-paradas...

— Não sabe, Andrade? — sorriu Calu, triunfante. — Mas é tão simples! Espíritos do mal, um grupo de miste­riosos assassinos, Formigas-paradas, o Ente... Você não vê uma ligação nisso tudo?

— Que ligação você está vendo, Calu?

— "Ente" é a pronúncia de ant, que significa "formi­ga", em inglês!

— Quer dizer que...

— Quero dizer que os Formigas-paradas formam o grupo de bandidos encarregados de guardar o ouro. E o Ente é o formigão maior, o líder!

Andrade olhou com orgulho para o garoto.

— Ouça, Calu. Eu sou apenas um detetive da polícia estadual. Não posso me envolver oficialmente com investi­gações fora da minha área. Foi a gaitinha no bolso do piloto que me chamou a atenção. Descobri por conta própria tudo o que estou contando. Mas eu quero que vocês fiquem de fora e deixem todas as investigações e as teorias por minha conta.

— Mas você não disse que não pode se envolver com um crime ocorrido fora do Estado de São Paulo?

— Eu tenho de me envolver, pois se trata de Crânio. Vou investigar por conta própria, como um cidadão comum. Tirei uma licença e estou de partida para o Pantanal.

Miguel olhou rapidamente para os outros três e foi como se tivessem feito uma assembléia relâmpago através de simples olhares.

— Nós também vamos, Andrade.

— Vocês?! De jeito nenhum! Só por cima de meu cadáver!

 

                   O inferno começa no paraíso

A visão do cerrado mato-grossense e a sucessão monó­tona das grandes áreas desmaiadas não conseguiam desviar-lhe a atenção. Crânio olhava sem nenhum interesse pela vigia, enquanto o avião perdia altitude, preparando-se para o pouso em Campo Grande.

Seu objetivo era encontrar uma resposta, por pequena que fosse, para aliviar o peso que lhe trazia a lembrança do professor Elias. Do pobre professor massacrado.

O alto-falante do avião avisou que o rapazinho estava sendo esperado no aeroporto, no balcão da companhia aérea.

 

Para alguém como tia Matilde, que vivera tantos anos nos Estados Unidos, o domínio da língua portuguesa conti­nuava perfeito. Crânio releu o bilhete que recebera no bal­cão e guardou-o carinhosamente no bolso da jaqueta. Tia Matilde se atrasaria e ele deveria esperar ali mesmo, no saguão do aeroporto.

Esperar... O gênio dos Karas aproximou-se das por­tas envidraçadas que davam acesso às pistas. Do outro lado dos vidros, um empregado puxava um carrinho de bagagens sobre o qual havia uma jaula, desembarcada no mesmo avião em que Crânio viajara. Dentro, a sombra de um cão negro.

A surpresa de uma sirene desviou a curiosidade de Crânio. Um grupo de funcionários corria para a pista. Uma ambulância e um carro de bombeiros lideravam a corrida, a toda velocidade.

No saguão, uma mocinha, ao lado de Crânio, olhava na mesma direção. Parecia uma índia. Bem jovem, morena, de cabelos lisos e negros, carregando um bebê envolto em uma manta colorida, apesar do calor.

Crânio sorriu para a mocinha. Ela não respondeu ao cumprimento.

O empregado que trouxera o carrinho abriu a jaula. O cão negro, preso por uma coleira, foi entregue a um ho­mem de bigode.

Nesse momento, os olhares do jovem gênio dos Karas, da mocinha índia e do homem de bigode voltaram-se para um só ponto. Na cabeceira da pista, um C-47, velho bimotor cargueiro da 2.a Guerra, aproximava-se para pouso. Mesmo daquela distância, Crânio notou que uma das hélices estava imóvel.

A tragédia parecia estar próxima, mas ainda assim o rapaz não pôde deixar de sorrir: o enorme avião estava pin­tado de rosa-choque!

Perseguido pela ambulância e pelo carro de bombeiros, o avião rosa-choque tocou a pista e ricocheteou pesadamen­te, como uma bola cheia de água. Os freios começaram a detê-lo, mas o outro motor, ainda em funcionamento, fez o avião girar, arremetendo perigosamente contra a ambulân­cia, que também fez meia-volta. Por um momento, aquilo pareceu uma perseguição de comédia. A ambulância e o C-47 pareciam querer evitar a colisão, mas quase sempre desviavam para o mesmo lado. Pelo jeito, o piloto deveria ser um motorista de fim de semana.

A ambulância jogou-se sobre os canteiros gramados e o avião passou pesadamente, guinchando os pneus. Quase no fim do asfalto, guinou violentamente, agora com a velo­cidade sob controle.

Quando o avião imobilizou-se, o grupo de funcionários já estava a postos, encostando a escadinha de desembarque. Desviando a atenção do rapaz, que estava curioso para ver quem desceria do avião rosa-choque, a porta envidraçada foi aberta e o homem de bigode, com o cão negro se­guro pela coleira, entrou no saguão.

O gênio dos Karas afastou-se para dar passagem aos dois.

O cão olhou para o lado do garoto e rosnou. Agarrada pelo homem de bigode, a correia esticou-se ao máximo e o latido furioso ecoou como um som dos infernos.

Crânio recuou, surpreso, e sentiu o corpo da mocinha índia que se protegia atrás dele.

Dava para ler um brilho estranho no olhar do homem de bigode. Antes que acontecesse, o rapaz percebeu que a correia ia ser solta.

Por quê?

O cão negro, num salto, investiu contra ele. Crânio desviou-se e girou no ar a maletinha que trazia, atingindo o animal em cheio. O cão rolou de lado, recompôs-se e saltou novamente. Não queria nada com Crânio. Era a mocinha índia que o animal queria. Mas, a essa altura, o rapaz já agarrara a correia. Susteve o primeiro tranco do salto do cão em direção à mocinha, puxou-o e conseguiu prender a correia na maçaneta da porta.

Com o coração aos pulos, tonto pela luta, pelas vozes excitadas e pelo latido histérico que o envolviam, Crânio voltou-se para a mocinha.

— Você está bem?

O homem de bigode aproximava-se. A mocinha, olhos arregalados de medo, deu dois passos em direção ao rapaz e, inesperadamente, jogou o bebê em seu colo.

— O quê...?

Sem uma palavra, a mocinha abriu passagem por entre o grupo de curiosos que já os cercava, e desapareceu. O homem de bigode empurrou o rapaz e enfiou-se por entre as pessoas, perseguindo a fugitiva.

— Pega! Não deixa fugir!

Sem entender nada, Crânio olhou para o bebê. Ele não acordara com todo aquele barulho.

O rapaz abriu delicadamente a manta e viu uma carinha de olhos fechados, azulada. Quase que com medo tocou o rostinho do bebê. Apesar de todo o calor do centro-oeste, o bebê estava gelado.

— Meu Deus! O bebê está...

— Pega esse rapaz aí! É um deles!

Era a voz do homem de bigode que, de revólver em punho, avançou em direção ao garoto. Instintivamente, Crânio recuou, como que protegendo o bebê.

— Ei, espere um pouco!

A mão armada ergueu-se e socou a cabeça do rapaz com a coronha do revólver. Uma bola de fogo espalhou-se por dentro de sua cabeça. Agarrando o bebê, Crânio escor­regou suavemente para o chão. Tentou arregalar os olhos, tentou entender, mas sentiu-se entorpecido, enfraquecido, sentiu-se morrer.

 

Não chegou a perder completamente os sentidos. Mas tudo, à sua volta, passava-se como um pesadelo, superpovoado de vultos disformes, com o burburinho de vozes misturadas, com a sensação de mãos que o apalpavam, que o revistavam. A cabeça doía e parecia crescer por dentro, parecia querer explodir.

— Abram caminho... é o Senador...

Um vulto maior que todos os outros debruçou-se sobre o garoto. Os homens que o revistavam afastaram-se um pouco, respeitosamente. Mãos enormes ergueram-lhe suave­mente a cabeça, sustendo-o pela nuca.

O homem de bigode estava de volta e ajoelhou-se tam­bém, ao lado de Crânio.

— Ele está limpo, tenente — adiantou-se uma voz. — Não encontramos nada. Só se a coisa estiver com a ga­rota, mas ela fugiu.

Os latidos do cão negro continuavam, agora numa histeria monótona.

O tenente de bigode falou, excitado:

— O cão ainda está latindo. A coisa ainda está por aqui.

— Não pode estar, tenente. Desculpe, mas não há nada com o garoto, nem na maleta. Deve estar com a moci­nha. Ela jogou o bebê no colo desse aí e fugiu. Talvez ainda seja possível pegá-la...

Em meio a uma névoa vermelha, que lhe prejudicava a visão, Crânio viu o tenente de bigode tomar o bebê de seus braços, levantar-se e aproximar-se do cão. Os latidos aumentaram, furiosos.

A voz firme, de barítono, do grandalhão a quem cha­mavam Senador, fez-se ouvir pela primeira vez:

— Há algum médico por aí? Precisamos de um mé­dico!

O tenente afastou a manta e olhou o bebê. Sua ex­pressão foi de nojo.

— Alguém chamou um médico? — ofereceu-se al­guém. — Eu sou médico!

A voz do tenente comandou, agressivamente:

— O senhor é médico? Examine este bebê.

— Examine o rapaz primeiro, doutor. Ninguém se opôs à voz grossa do Senador.

O médico ajoelhou-se ao lado do garoto. Crânio não conseguia articular palavra. Mal sentia as mãos que o exa­minavam. A pequena surpresa de uma agulhada no braço fez com que ele abrisse um pouco os olhos. Viu depois o médico levantar-se e examinar o pacotinho que estava nos braços do tenente. A dor aumentava. Aos poucos, uma es­pécie de entorpecimento crescia também, como um alívio. Antes que a névoa vermelha escurecesse por completo, con­seguiu ouvir a voz do médico:

— Barbaridade! Como alguém pôde fazer uma coisa destas?

As vozes, os latidos e toda a excitação desapareceram repentinamente dos sentidos de Crânio, como se alguém tivesse desligado um rádio.

 

                   A voz grossa do Pantanal

Aquela voz grossa era segura, confortadora. E a figura do Senador, meio debruçado sobre o leito do hospital, trouxe a Crânio um tranqüilo despertar.

— Muito bem! Nosso corajoso garotão já está de volta ao mundo dos vivos. Pelo menos ao mundo dos acordados!

— Eu... eu estive desmaiado todo esse... ?

— Não. Você dormiu devido a um calmante que o médico lhe aplicou. A pancada não pegou de jeito. O mé­dico disse que está tudo bem, Crânio. Tia Matilde contou que é assim que o chamam. Crânio! Se você for tão inteli­gente quanto tia Matilde é engraçada, você deve ser um gênio!

Crânio sorriu meio sem jeito, sem responder.

— Acha estranho que eu também chame sua tia Ma­tilde de tia? Ela também é a tia de todo o Pantanal. Uma tia muito querida, muito querida mesmo. É assim que todos a chamamos: tia Matilde!

O rapaz sentou-se na cama e apalpou um pequeno cura­tivo ao lado da orelha.

— O senhor é um senador? Desculpe, mas eu nunca... O grandalhão fez um gesto evasivo e sentou-se ao lado de Crânio.

— Não. Eu não sou um senador, mas todos aqui me chamam de Senador. É uma espécie de respeito. E respeito nunca é demais.

O rapaz estranhou a lógica daquele lugar, onde cha­mavam de senador qualquer político poderoso, e de tia qualquer velhinha engraçada.

— Todos lhe devemos muitas desculpas, garotão. Acre­dite, não costumamos receber nossas visitas a coronhadas. Aquele cão que você dominou é treinado para farejar tóxi­cos. Quando ele latiu em sua direção, estava na pista certa, mas o tenente não devia tê-lo soltado em cima de você. Pior ainda foi a coronhada. Mas o tenente só podia pensar que a cocaína estava...

— Cocaína? Que história é essa?

— Você não sabe de nada, não é? É claro que não sabe. Esta é uma das muitas histórias tristes que estão trans­formando este paraíso em um enredo sinistro. Não fossem os mosquitos, qualquer um diria que Adão e Eva foram expulsos do Pantanal e não do Éden. Este é o pedaço mais lindo do planeta, mas do jeito que vão as coisas o paraíso está se transformando em verdadeiro inferno. Acho que já é um purgatório para muita gente...

— Mas o senhor disse que a cocaína...

— A cocaína é apenas um dos ingredientes do panelão infernal que está sendo cozido por aqui. As drogas, o contrabando, o desmatamento, a destruição dos índios, ò brutal extermínio dos jacarés e de tudo quanto é único no Pantanal misturam-se como uma receita dos demônios. Não sei se vai ser possível encontrar um antídoto para todo esse envenenamento.

O Senador foi interrompido pela entrada do médico. Era o mesmo que atendera o jovem no aeroporto. Junto com ele, entrou outro homem, que Crânio imediatamente reconheceu: o tenente de bigode que o atingira!

— Oh, oh! — gozou o Senador. — Chegou alguém que realmente deve desculpas!

— Com licença, Senador — gaguejou o tenente, ago­ra bem menos à vontade do que na batalha do aeroporto. — É que eu queria falar com o garoto antes de ele ir embora. Olhe, eu não sabia que tia Matilde era sua tia de verdade. Na hora, eu pensei que...

— Deixa pra lá — acalmou-o Crânio. — Eu não estou zangado com você.

— Nesse caso... — continuou o tenente, com uma timidez que contrastava com a agressividade exibida no aeroporto —...nesse caso, o senhor talvez possa dizer à tia Matilde que eu não...

— Onde está tia Matilde, Senador? — interrompeu Crânio, incomodado com o jeito servil do tenente. — Não conheço minha tia, sabe? Esta seria a primeira vez que nos encontraríamos.

O Senador gargalhou alto, perturbando certamente me­tade do hospital:

— Ah, a velha tia Matilde estava chegando naquele avião rosa-choque, justo no momento de toda aquela confu­são. Ficou aflitíssima quando viu seu sobrinho desmaiado e providenciou tudo para que você tivesse o melhor atendi­mento aqui no hospital. Depois voltou para o aeroporto e brigou com todo mundo, como se o pessoal de terra fosse responsável pela falta de pressão de óleo nos motores da­quela velha relíquia da 2.a Guerra Mundial. Não deixou que nenhum mecânico tocasse no avião rosa-choque. Mandou trancá-lo em um hangar e colocou a tripulação de guarda, como se alguém pudesse se interessar por aquela velharia... Depois alugou um jatinho e foi-se com Pepino, seu piloto ítalo-americano, em busca de seu próprio mecânico, dizendo que não confia "nos incompetentes brasileirinhos"! Ah, você precisava conhecer o mecânico de tia Matilde: é outro ítalo-americano, tão velho quanto o C-47 que...

Crânio ouviu, divertido. Mesmo sem conhecer a pró­pria tia, ele já podia fazer uma idéia de como seria aquela figura...

— A pancada na cabeça foi menor que o susto, meu rapaz — diagnosticou o médico, depois de um rápido exa­me. — Teve sorte. Está pronto pra outra.

Disse a velha piada de todos os médicos, rabiscou uma ordem de alta hospitalar e retirou-se.

— Também já estou indo, garotão — trovejou o Se­nador. — O que pretende fazer? Posso levá-lo a um hotel enquanto espera tia Matilde consertar aquele paquiderme cor-de-rosa...

A lembrança do avião avariado deixou Crânio inquieto. Esperar não estava nos seus planos.

— O conserto do avião vai demorar, não vai?

— Talvez uns dois dias. Por quê? Está muito ansioso para iniciar suas férias no Pantanal?

— Ansioso? Oh! não... é que... é que eu vim por causa de um professor amigo meu. Ele me falou de tanta coisa fascinante que fiquei curioso demais. Mal dá para esperar. Gostaria de fazer o mesmo roteiro que ele fez.

O Senador voltou-se para Crânio logo que ouviu a pa­lavra "professor". Parecia interessado.

— Seu professor esteve aqui? Professor de geografia, ou de biologia, suponho.

— Não. Professor de matemática. E fotógrafo amador. Professor Elias...

O Senador e o tenente trocaram um rápido olhar que não escapou à atenção de Crânio. O rapaz disfarçou, ajei­tando a pequena bandagem e dando a impressão de que nada tinha percebido.

— O professor Elias esteve aqui na semana santa. Tal­vez o senhor o tenha conhecido, Senador. Ele andou pelo oeste da rodovia Transpantaneira...

— A oeste da Transpantaneira? — cortou o grandalhão —Vai ver foi lá pelos lados das minhas terras e da fazenda da tia Matilde. Bem, é fácil ter sido pelos lados da fazenda da tia Matilde. Ela está por todos os lados!

— É para esses lados que eu gostaria de ir, Senador.

Gostaria de ver o que o professor Elias viu.

Sem olhar para o garoto, subitamente interessado nas dobras do lençol, o Senador perguntou:

— Você se encontrou com o seu professor antes de vir para cá?

Crânio resolveu mentir. Não saberia explicar por quê, mas resolveu não falar da morte do professor Elias.

— Não... Há duas semanas eu não o vejo. Antecipei minhas férias e, antes de embarcar para cá, fui cuidar de uns cursos extras que pretendo fazer...

O Senador olhou com estranheza para Crânio, como se custasse a compreender o que ouvia. De repente, como se despertasse, gargalhou alto e deu um estrepitoso tapa nas costas do garoto, decidido.

— Então está feito. Deixamos um recado para tia Matilde e partimos para o Pantanal hoje mesmo. A Fazenda Rosa-Pink é o meu vizinho. Você fica nas minhas terras até...

— Fazenda Rosa-Pink!?

— A fazenda de tia Matilde. Tudo é pink, tudo é rosa para ela. Você vai ver. Aceita o convite?

— Aceito!

Subitamente apressado, o Senador encaminhou-se para a porta.

— Apronte-se. Daqui a uma hora passo para buscá-lo. Vamos para o Pantanal, garotão!

Saiu espalhafatosamente.

O tenente de bigode ia sair também, quando foi detido pela voz de Crânio:

— E a cocaína, tenente? Onde estava? Nas roupas do bebê?

Uma expressão de cristal gelado passou, por um ins­tante, pelos olhos do tenente. Crânio percebeu que ele se sentia mais seguro lidando com desgraças do que pedindo desculpas.

— Não, a cocaína não estava nas roupas do bebê, senhor sobrinho de tia Matilde. Estava no bebê. O corpo dele estava costurado do pescoço à virilha. Os malditos es­vaziaram as entranhas de um pobre cadaverzinho e o enche­ram com drogas!

 

                   Três vezes destruição

O caminho que Crânio e o Senador tinham de fazer através da pista do aeroporto até o Tucano que os levaria ao Pantanal passava pelo hangar onde se via aquele estranho avião rosa-choque à espera do mecânico.

Bojudo como um hipopótamo, lá estava o fantástico C-47, com o prefixo PT-MSB pintado em preto. Um carguei­ro pesadão, que prestava serviço há mais de cinqüenta anos. E muitas horas de vôo o C-47 ainda teria pela frente: a fortuna de tia Matilde era suficiente para manter o avião sempre novo, como se tivesse sido construído no mês passado.

— Esse calhambeque aéreo é um animalzinho de esti­mação para tia Matilde. É o "xerimbabo" dela, como dizem por aqui — explicou a voz grossa do Senador. — Sua tia não olha despesas para conservá-lo. Acho até que, aos pou­cos o avião foi totalmente reconstruído. É como se fosse novo mesmo. Do jeito que saiu da fábrica. Com exceção da cor, é claro!

Crânio achou mais graça na gargalhada do que na brincadeira do Senador.

— Não seria mais prático e mais barato trocá-lo por um avião novo? Mais moderno?

— Claro que seria. Mas ninguém gosta de se desfazer do seu xerimbabo...

Aos poucos, o perfil de tia Matilde ia se tornando mais nítido na mente do sobrinho. Uma pessoa rara, com quem Crânio gostaria de conviver em uma temporada de férias mais descontraída do que imaginava que seria aquela. Desta vez sua preocupação era descobrir uma pista do assassino do professor Elias.

O Senador pareceu adivinhar o pensamento do garoto:

— Andei perguntando por aí e descobri alguém que esteve com o seu professor. Ele andou pelo Taquari, foto­grafando tudo o que via. Se você quer conhecer o Pantanal pelas mesmas trilhas do professor, eu já sei o jeito. É só usar o mesmo guia que ele empregou, um índio chamado Robson. Está em Nhecolândia. Mandei passar um rádio para lá di­zendo que eu preciso do tal Robson. Ele estará nos espe­rando na minha fazendinha.

O Tucano podia não ser tão espalhafatoso quanto o C-47, mas discreto é que não era. Tinha uma cor amarelo-gema e duas faixas verdes que o decoravam de ponta a ponta. Crânio embarcou, espantado com o poder daquele fazendeiro grandalhão. Em pouco mais de uma hora, o Se­nador seria capaz de descobrir qualquer coisa e mandar quem quisesse para o lugar que bem entendesse!

 

O Tucano amarelo voava baixo sobre o Pantanal, em direção ao aeroporto particular da "fazendinha" do Sena­dor.

— Minhas terras ficam bem próximas da Fazenda Rosa-Pink, a sede do reinado de tia Matilde. Ah, são terras que não acabam mais! Sua tia está sempre comprando novas fazendas e aumentando sempre mais as terras da Rosa-Pink. Certa vez alguém perguntou a ela se pretendia comprar todo o Pantanal. Sabe o que ela respondeu? Que não queria todas as terras, só as do vizinho!

A gargalhada do Senador sobrepôs-se ao ronco do avião. Aos poucos a alegria foi morrendo, e o grandalhão ficou sério, olhando fixamente pela vigia.

— Olhe para baixo, Crânio. Veja o paraíso. Aqui a natureza se protegeu cercada pela cordilheira dos Andes, a leste, e pelas serras de Mato Grosso, a oeste. Você vai co­nhecer a mais linda reserva natural do mundo. Mas, se você olhar direito, é capaz de chorar. A estupidez, a miséria e a ganância estão acabando com o Pantanal. Ou talvez só a ganância, porque a miséria é resultado da ganância. E a estupidez é sua única explicação.

A fala daquele homem estava emocionada. Cada frase dele era um discurso.

— Imagine se você visitasse o mais completo museu do mundo e notasse o desaparecimento de uma tela de Van Gogh, descobrisse um quadro de Modigliani todo furado com a brasa de cigarros e um Picasso cortado a gilete...

Fez uma pausa, para deixar fazer efeito a horripilante comparação.

— Veja os índios, por exemplo. Você os encontra. Mas serão eles ainda índios? Será que podemos chamar índios esses seres sem espaço para caçar como sempre fizeram seus antepassados? Essas pessoas que já trocaram seus nomes tri­bais por Terezinha e Sebastião? Esses homens e mulheres cada vez mais atraídos pelas bugigangas dos homens bran­cos? Cada vez mais contaminados pelas doenças que estamos trazendo para cá? Este é o nosso Van Gogh. Está desapare­cendo.

Crânio propôs uma esperança:

— Alguma coisa ainda pode ser feita, Senador. O go­verno pode proteger as terras indígenas. Pode garantir que cada tribo viva em paz, sem a invasão dos brancos. Os índios também são brasileiros. Merecem a proteção do governo.

O Senador olhou para o rapaz com carinho. Mas com aquele carinho de adulto, que age como se os jovens não entendessem nada do mundo e das pessoas.

— É fácil falar. A identidade cultural de um povo depende de sua atividade econômica. Nossos índios conhe­cem muito bem a agricultura e cuidam muito bem de suas roças há séculos. Para competir com os agricultores brancos, eles precisam de tratores, de transporte, de mercado para seus produtos. Mas, para continuar como índios, eles preci­sam caçar, pescar e colher o que a natureza oferece. Sem a atividade do "achá-matá-cumê", como eles próprios dizem, eles não serão mais índios. Mas, para isso, são necessárias grandes extensões de floresta virgem. Perseguindo a caça, o índio anda o dia inteiro, percorre quilômetros de mata. Mas como o governo irá reservar quilômetros de mata para uma tribo de duzentos ou trezentos indivíduos apenas, quan­do há milhares de outros brasileiros sem terra, sem ter onde trabalhar, sem ter como se sustentar?

Crânio não estava tão mal informado quanto o Senador parecia julgar.

— A verdade, Senador, é que no final das contas a terra acaba sendo tomada do índio por algum grande fazen­deiro, que derruba a mata, planta capim e deixa algumas reses pastando, sem dar sequer empregos para esses brasi­leiros sem terra.

O Senador sorriu, como se não achasse graça no as­sunto.

— É isso mesmo, Crânio. O problema do índio faz parte do grande problema que é a concentração de terras nas mãos de poucos. E o resultado é a miséria da maioria. Ai, como pode funcionar um país em que quando se nasce todas as terras já pertencem a alguém?

Por um momento somente o ronco dos motores do tucano respondeu à pergunta do fazendeiro grandalhão, que culpava os fazendeiros pela miséria do Brasil.

— A miséria... Você sabe, Crânio, que atualmente um lavrador brasileiro consome um décimo das proteínas que consumia um escravo cem anos atrás? É... antes os fazendeiros cuidavam melhor dos seus escravos do que os fazendeiros da atualidade cuidam dos trabalhadores livres...

Crânio ficou imaginando que tipo de liberdade era essa.

— O que espanta — continuou o Senador — é notar a que ponto chegou a chamada "civilização": no mesmo lugar em que um camponês passa necessidades, é subnutrido, doente e desdentado, os índios vivem fortes e saudáveis. Dá pra entender?

— Parece que bastaria ensinar os brancos a viver como os índios, em comunhão com a natureza, e ensinar aos índios as coisas boas da civilização dos brancos.

O Senador pousou a mão nos cabelos do garoto como um pai.

— E todo mundo viveria de mãos dadas, não é? Você tem toda a razão. Todas as razões do seu coração de meni­no. Mas o que você está propondo é impossível. É lindo, mas é impossível. O nosso sistema exige que um lavrador produza muito, cada vez mais, sem preservar a natureza. O que nós chamamos "progresso" não existe nas sociedades indígenas. Eles não precisam de progresso. Vivem do mesmo modo há gerações, utilizando os mesmos conhecimentos dos seus antepassados. Qualquer "progresso" desorganizaria seu modo de vida. Não existe progresso com ordem, por mais que escrevam isso em todas as bandeiras. Progredir significa desorganizar tudo o que está em ordem, propondo um novo tipo de organização. Levar o progresso ao índio é o mesmo que destruí-lo. Significa quebrar o equilíbrio harmonioso do índio com a natureza. Significa matá-lo.

Crânio sentia-se confuso. Aquilo tudo era demais para ele. Como aceitar que o progresso pudesse ser mau?

— Ah, Crânio, o progresso! — suspirou o Senador. — Quem pode deter essa praga que chamam progresso? Aqui no Pantanal, o índio já está deixando de fazer parte do meio que ele controlava há gerações sem alterá-lo em nada. Hoje, o índio pantaneiro mata jacarés para comprar radinho de pilha e óculos escuros. Em troca de uma paga ridícula, dizima a natureza para plantar o capim que engor­dará o gado das grandes fazendas. E o pagamento servirá, por exemplo, para comprar açúcar refinado. Nossos índios já esqueceram que foram eles mesmos que descobriram as folhas de stevia, um adoçante trezentas vezes mais doce que o açúcar dos brancos. Nossos índios estão desaparecendo e sendo levados a contribuir para o próprio fim...

O Tucano voava baixo e Crânio olhou ansioso as cores do Pantanal, como se fosse possível ajudar os últimos índios antes que eles desaparecessem.

— Esta beleza está acabando, Crânio. É o quadro de Modigliani furado com brasa de cigarro. A derrubada e a queimada das árvores vão levar o Pantanal à extinção em algumas décadas. Já não há lugar para pássaros, capivaras, onças e quatis. Derruba-se a natureza, queima-se a natureza, para criar pastagens. Depois, quando os arbustos novos co­meçam a aparecer, mostrando o esforço de recuperação do Pantanal, os biocidas são pulverizados periodicamente para matar esses arbustos e manter "limpas" as pastagens... O vento leva esses venenos para todos os lados, envenenando e matando animais e vegetação. Aqui, o povo chama esses produtos químicos de "mata-mato". Só que isso está matan­do muito mais do que o povo pode suspeitar...

Sacudiu a cabeça violentamente, como que espantando um pesadelo.

— Ah, o progresso! Ah, a civilização! Você não se sente orgulhoso de tudo isso? Mas deixe só eu falar do nosso Picasso, o quadro cortado a gilete deste museu. Você verá essa barbaridade no Pantanal. Em nenhum lugar do mundo, o equilíbrio da natureza é tão perfeito e tão fantástico como aqui. Esse equilíbrio depende de uma corrente onde um elo apóia o outro. Tanto no entrelaçamento da vida quanto no entrelaçamento da morte. Aqui, a morte é vida. Cada ser que desaparece ressurge garantindo a sobrevivência de outro. Mas há pessoas que acham muito elegante andar com sapatos e bolsas feitos de couro de jacaré. Para satisfazer essa vaidade, dois milhões de jacarés são mortos todos os anos por aqui. E o jacaré é responsável por não haver esquistossomose no Pantanal, você sabia? Ele é também o elo da corrente que mantém a população de piranhas em equilíbrio. Sem eles, as piranhas estão se reproduzindo aos milhões e dizimando os peixes menores. Neste museu, no lugar da tela de Picasso, daqui a pouco estará um quadro cinza e negro, retratando um pântano nojento, povoado somente pelas piranhas... E todos que aqui vêm parecem felizes em participar desse festim de destruição. Ao longo da rodo­via Transpantaneira divertem-se atirando em pássaros só pelo prazer de vê-los cair. Boiando nos corixos, nos pe­queninos rios, o que se encontra são latas de cerveja e frascos plásticos...

Um tripulante apareceu pedindo que atassem os cintos de segurança. O Tucano preparava-se para pousar. O Sena­dor recostou-se na poltrona.

— Aqui tudo depende do modo de olhar o Pantanal, Crânio. Você pode conhecer o paraíso, mas o inferno está próximo, está bem aí, para quem quiser ver...

 

O Tucano pousara em uma pista aberta há pouco tem­po, um rasgão na mata, feito a trator, como uma estrada que vem de nenhum lugar e vai para lugar algum.

Como a dar as boas-vindas ao seu parente amarelo, um bando de tucanos passou voando, inclinados para a frente pelo peso dos bicos.

À distância de um grito do pequeno aeroporto, a casa da fazenda espalhava-se por uma imensa clareira. O movi­mento de empregados era intenso, como seria de se esperar de uma fazenda de um grandalhão com uma voz como aquela. Era a perfeita imagem de qualquer latifúndio brasi­leiro. Tudo parecia muito normal. Somente um detalhe não escapou a Crânio: entre os empregados não havia uma mulher.

— O tal guia ainda não apareceu, garotão — o Sena­dor deixara Crânio na varanda da casa da fazenda e agora voltava com a informação. — Mas não deve demorar. Estará aqui amanhã de manhã, quando você acordar.

Em lugar de cães e gatos, uma meia dúzia de sagüis e um macaco-prego eram os animais de estimação naquela fazenda. Formavam um grupo amigável e barulhento, sem­pre à roda do visitante e à espera de alguma fruta ou algum carinho. O mais animado era Cabo Malandro, o macaco-prego, que gostou do colo de Crânio. Tinha o tamanho de um bebê e uma curiosidade equivalente. Cutucava os bolsos do garoto como se ali fosse um armazém de amendoins.

Estava úmido, abafado. O calor era forte, apesar de já haver escurecido há mais de uma hora. Crânio cocou a ca­beça do macaquinho, que se enrolou de prazer.

O rapaz sentia-se mole. Havia comido um pacu rechea­do, e o Senador o havia feito experimentar um cálice de licor de pequi. Agora, o cansaço daquele dia de surpresas começava a abatê-lo.

— Você deve estar exausto — observou o Senador. — O seu dia não foi fácil. Bem, o meu também não foi. Acho que o certo é terminá-lo por aqui. Amanhã será um dia melhor. Sem aviões, sem cachorros ferozes e sem sustos. Você vai adorar o Pantanal.

— Será que ainda resta alguma coisa para se ver no museu do Pantanal?

— Resta muito, garotão. Muito! Esqueça o que eu lhe disse no avião. Deslumbre-se! O guia que irá com você é um dos melhores. Será fácil encontrar a pista que você está procurando.

— Pista? Que pista, Senador?

— Eu disse "pista"? É um modo de dizer "seguir a trilha". Não é isso o que você pretende? Seguir a trilha do seu professor?

Antes que Crânio pudesse responder, um ruído de gente veio da escuridão. Os dois estavam na varanda da casa, e demorou um pouco até que as vozes se transformas­sem em um grupo de empregados sob a luz de lampiões.

Carregavam um corpo imóvel.

— Veja, Senador. Nós...

Pareceram desconcertados ao notar que o Senador não estava sozinho. Depois de um momento de hesitação, um deles falou:

— Acabamos de encontrar. Este nunca mais vai matar jacarés.

O corpo foi colocado no chão da varanda, aos pés do Senador. Era um homem magro, mal vestido. De sua boca aberta, atochada com terra, saíam formigas enormes, car­nívoras, que se espalhavam pelo rosto e entravam pelas narinas.

Cabo Malandro veio espiar de perto, assustado.

O empregado explicou, com o olhar inseguro, pulando de Crânio para o Senador, como se temesse falar algo que não devia:

— O infeliz estava à beira do Taquari, pendurado numa árvore como um papagaio. Acho... acho que foram os Formigas-paradas...

O Senador interrompeu, autoritário:

— Esqueçam essa bobagem de espíritos malignos. Não há nada de espiritual num assassinato. Isso foi feito por gente! Lavem o corpo e tirem essa sujeira da boca dele. Amanhã vamos levá-lo para Nhecolândia.

Enquanto os homens desapareciam na escuridão, le­vando o cadáver, o olhar de Crânio procurou o Senador, pedindo uma explicação.

— É um "coureiro", garotão. Um desses que vivem nos corixos, pelas madrugadas, matando jacarés.

— Mas como ele foi morto? Por quê? E por que as formigas?

O Senador sorriu tristemente. Olhou para a escuridão como se procurasse uma ameaça à espreita nas sombras.

— Isso é besteira! O povo ignorante fala dos Formi­gas-paradas, assombrações que atacam os coureiros solitá­rios. Mas ninguém ainda viu nenhum desses fantasmas. Bes­teira!

 

Antes de deitar-se, Crânio examinou a caixa de slides, amassada porque estava na malinha com que ele havia golpeado o cão negro, farejador de cocaína. Tudo em or­dem. Ele haveria de encontrar o lugar onde tinham sido fotografados os slides roubados,

— Formigas-paradas... Assombrações... Quem ma­taria um homem e depois lhe encheria a boca com um bolo de terra e formigas? Parece um aviso, ou uma espécie de vingança macabra!

O sono avançava depressa e Crânio adormeceu pen­sando naquele enorme fazendeiro que o trouxera a um lugar como aquele, onde vivia aparentemente sem família, sem mulher e sem filhos, e onde só trabalhavam homens. Uma fazenda de solteirões? Em pleno Pantanal?

 

                   E se chamava Robson

Crânio foi acordado em meio à mais linda madrugada que poderia ter sonhado. Do negror absoluto, as cores iam surgindo, separando-se e definindo-se sem pressa, em dire­ção a luzes mais diversas que as cores do arco-íris. Com o colorido, amanheciam também os sons, numa sinfonia que começa com delicadeza e cresce lenta, misturando os acor­des, até todos os instrumentos tocarem juntos, levando o ouvinte a sentir-se parte daquele grande espetáculo cha­mado "vida".

O Senador não estava à vista. Crânio lembrou-se de ter ouvido vagamente um ruído de motores em meio ao seu sono pesado. Deveria ser o Tucano amarelo levando o cadáver do coureiro.

Ainda estava inebriado por tudo o que via, quando lhe apresentaram o "quebra-torto", o café da manhã de todo mundo naquele lugar. Um angu de farinha com peixe, àquela hora da madrugada!

— Coma, garoto. Isso é a sustança do Pantanal.

— Estou sem fome...

Por sorte, havia um tipo de pão pesado, ainda quente, e leite à vontade, cheiroso e espumante. Crânio comeu va­lentemente e distribuiu pão molhado em leite para o Cabo Malandro e para os outros macaquinhos.

Um empregado veio informar-lhe uma mensagem de rádio de tia Matilde. O conserto do avião rosa-choque corria bem e, dentro de um ou dois dias, os dois finalmente se encontrariam.

Iluminado pelas cores do amanhecer, o guia índio es­perava pelo garoto ao pé da varanda.

Um índio! Aquilo era um índio? Tinha um porte altivo e um físico de dar inveja a qualquer atleta. Mas, pelo jeito, estava disfarçado de branco. Cabelos penteados e fixados à força de gomalina, óculos escuros e uma camiseta nova, onde se lia o nome de uma universidade americana. Pendu­rado na cintura, um radinho a pilha berrava um rock de sucesso, quase impedindo a conversação.

Aquilo era um índio. E se chamava Robson!

Poucas palavras Crânio havia ouvido dos empregados daquela fazenda. Pareciam todos sérios demais, calados de­mais. Mas aquele índio era diferente. Trazia um sorriso deslumbrado no rosto que não se apagava nunca, e falava sem parar, sempre alto, disputando com o volume do radi­nho a pilha.

— É melhor ir pela água, moço novo — propôs o guia, sem tocar no preço dos seus serviços, que pelo jeito tinha sido acertado pelo Senador. — Já tem uma chalana preparada. Hoje a gente corre os corixos até o ninhal da praia vermelha. Depois...

Antes de partir, p gênio dos Karas voltou para o quarto em busca da caixa de slides. A malinha estava aberta, jo­gada na cama, e suas coisas estavam espalhadas por todos os lados.

A caixa de slides tinha desaparecido!

 

O índio Robson fazia a chalana navegar livremente. Os remos apenas relavam a superfície das águas, deixando a correnteza conduzir a embarcação suavemente.

Crânio começou a entender o que o Senador queria dizer ao comparar o Pantanal ao paraíso. Estavam num corixo que ia dar no rio Taquari, cercados pelo roxo dos ipês, no auge da floração, e pelo amarelo das flores dos cambarás. As árvores formavam enormes ramalhetes sepa­rados de quando em quando pelas salinas, lagoas coloridas de água salgada, lembrança do lendário mar dos Xaraés, que há milhares de anos dera origem ao Pantanal. Em volta dessas lagoas, o sal não deixava crescer nenhuma vegetação.

As águas do corixo eram tranqüilas, e Crânio podia ver peixes coloridos, como em um aquário.

— Pena que você não quis pescar, moço novo. Se quiser, Robson pode mostrar as melhores grotas para des­cobrir dourado, pacu, pintado e até jaú!

— Obrigado, Robson. Prefiro olhar, só.

— Bonito o nome Robson, não é mesmo? Conheci um moço branco e rico com esse nome. Pedi e ele me deu o nome. Agora é meu, Robson!

— Ele lhe deu seu nome? — brincou o rapaz. — E ficou sem nome nenhum?

— Não. Eu dei outro nome pra ele. Dei o nome de Sariruá.

— E ele?

— Ele riu. Deve ter ficado contente! Crânio não disse nada.

— Robson é o melhor guia do Pantanal, moço novo — gabou-se o índio, falando de si como se fosse outra pessoa. — Robson estudou, sabe ler. Conhece tudo e por isso cobra caro. Não é como esses índios que andam por aí. Não sabem nada e aceitam trabalhar pelo dinheiro de duas pingas. Por isso acabam devendo tanto nos armazéns dos contrabandistas de peles que o jeito é matar jacarés à noite para cobrir as dívidas!

Robson denunciava uma das táticas infalíveis dos con­trabandistas, que faziam de cada índio miserável do Pan­tanal um assassino de jacarés. Um destruidor do próprio meio, cuja destruição o tornara miserável.

— Teve um turista que disse a Robson que o nome Pantanal está errado. Que pantanal é o mesmo que pânta­no, e que pântano é um lugar escuro, com árvores mortas. Robson nunca viu esse tal de pântano e nem quer ver. O que Robson sabe é que o Pantanal nunca foi escuro e nunca deu medo a ninguém. O único pântano que tem por aqui é esse pântano de sangue. Do sangue dos jacarés...

O índio sorriu, mostrando dentes perfeitos.

— De Pantanal Robson entende. Robson é o melhor guia do Pantanal! Por isso Robson cobrou caro do tal tu­rista. Ah, se cobrou!

Entusiasmado por ter alguém a ouvi-lo, Robson não calava a boca. Aos poucos, Crânio foi se desligando daquela tagarelice, só tendo olhos e atenção para o objetivo que o trouxera ao Pantanal. Alguém lhe roubara os slides, mas Crânio não precisava deles. Cada foto daquela seqüência estava registrada em sua memória prodigiosa. Se aquele fosse mesmo o roteiro do professor, ele o reconheceria na hora. Até aquele momento, porém, nada lhe parecia fami­liar.

Mas tudo parecia sem limites, como quando se sonha acordado.

Robson identificava cada ruído para o visitante. Aque­le pio agourento era da inhuma, e aquele bando estridente que passava voando eram araras vermelhas. Nas baías, periquitos, maritacas e tuins disputavam coquinhos nas pal­meiras de pequi.

De repente, um som fortíssimo e assustador sobrepôs-se aos demais.

— É o macho guariba. O macacão está marcando o seu território, moço novo. Outro macho que quiser entrar lá vai ter de brigar! Dizem que é o som animal mais forte do mundo. Robson não conhece o mundo todo, mas esse é o barulho mais forte do mundo pantaneiro. E o Pantanal Robson conhece. Por isso cobra caro.

O sol já estava alto quando a chalana entrou num corixo mais largo.

O maior habitante daquelas águas reinava absoluto por todos os lados, nas águas, nas baías e nas praias, como um imperador preguiçoso.

O jacaré!

— Veja, moço novo. A maior riqueza do Pantanal. O "colete" dele vale muito. Mas não valia nada quando o pai do avô de Robson pescava livre nesses rios. O que valia era o jacaré. Não valia dinheiro, mas valia muito. O pai do avô de Robson contava que isso aqui estava cheio de jacarés.

— E o que eu estou vendo é pouco?

— Tinha muito mais, moço novo. Muito mais! Isso não é nada perto do que tinha antes. Mas o preço do colete do jacaré está acabando com ele. Por isso tem tanta pira­nha...

Crânio olhou assustado para as águas.

— Aqui não tem piranha, moço novo. Fique sosse­gado.

Na margem, uma capivara bebia à vontade, quase ao lado de um jacaré-açu, que nem parecia ligar para a pre­sença de um almoço tão fácil.

— O jacaré não ataca assim, sem mais nem menos. Dá até para chegar perto...

Um pássaro enorme, de papo vermelho, pôs-se a correr desengonçado, como se não conseguisse voar. Batia as asas, abertas numa envergadura de mais de dois metros, fazendo o barulho de um trapalhão. Por fim alçou um vôo elegante, Poderoso, dominando os ares como um rei que sabe de sua importância.

Era o tuiuiú, ou jaburu, a ave-rei do Pantanal. O sím­bolo daquele zoológico de sonhos.

Robson manobrou, fazendo a chalana costear a mar­gem, quase roçando um jacaré. À frente, um capão de ár­vores parecia ser o destino daquela manobra. Os sons eram algo que Crânio nem podia imaginar. Tinham chegado à praia Vermelha. Aquilo era um ninhal.

O coração do rapaz disparou. Imediatamente reconhe­ceu o capão de árvores. Estavam na pista certa. O professor Elias estivera ali!

— O pai do avô de Robson contava que antes não tinha disso por aqui. Ninguém sabe dizer por que de uma hora para outra os pássaros resolveram viver juntos, nesses ninhais. Robson acha que isso só começou depois que os homens brancos apareceram. Vai ver os pássaros têm medo dos homens brancos. Nunca fizeram isso enquanto só havia homens índios.

Era um espetáculo de cobrar ingresso dobrado. Cen­tenas de pássaros de todos os tipos, marrequinhas, biguás, curicis, socos, garças, emas, baguaris, cabeças-secas e até colhereiros coabitavam o capão de árvores, formando uma comunidade interprotetora, superpovoada, barulhenta. Ni­nhos de todos os tamanhos espalhavam-se pelos galhos, e filhotes famintos faziam uma gritaria infernal. Em volta e embaixo, gaviões, jacarés e sucuris aguardavam paciente­mente por um descuido que lhes valesse o almoço. Mas nenhum se aproximava, temeroso das conseqüências de um ataque das aves enfurecidas.

— Não faça barulho, moço novo. Se os pássaros se assustarem, podem fugir tão depressa que acabarão derru­bando os filhotes dos ninhos. E aí vai ser a festa dos jacarés e das sucuris...

A chalana seguiu silenciosamente, passando por baixo do ninhal. Crânio imaginou que em nenhum lugar do mun­do encontraria uma concentração de vida colorida e baru­lhenta como aquela. Teria sido o medo do homem branco destruidor que reunira tanta beleza?

 

                   Cemitério para milhares

À medida que os sons do ninhal eram deixados para trás, um fedor nauseante tomava conta do ar.

— Ah! Vamos voltar daqui!

— Que fedor é este, Robson? Como este paraíso pode feder assim?

— O paraíso só tem perfume, moço novo. Isto é o fedor dos infernos!

Estavam se aproximando de um cemitério de jacarés. De uma obra dos coureiros. De uma obra do homem branco.

Crânio reconheceu três grandes árvores de jenipapo, formando um triângulo, ladeadas por palmeiras baixas. Era mais uma das fotos. E estava na seqüência. Sua teoria ma­luca começava a confirmar-se!

— Vamos continuar, Robson. Quero ver isto.

O índio de óculos escuros acariciou a água com o remo de um lado só e a chalana embicou para a terra.

— Pode descer. Garanto que aqui não tem piranha. Crânio pulou na água, que mal chegava a seus joelhos.

— Cuidado com aquele banco de areia, moço novo. Pode ter arraia. O espinho dela tem um veneno que faz doer até amanhã.

Não foi preciso avançar mais que alguns metros terra adentro para Crânio assistir ao espetáculo mais nojento de sua vida. Ossos branqueavam-se ao sol, misturados às car­nes putrefeitas de milhares de jacarés. O cheiro era insu­portável, mas a visão daquela barbaridade era pior. Cada uma das cabeças daqueles animais, que já habitavam a terra milhões de anos antes de o homem aparecer, tinha dois buracos. Um da bala que o abatera, e outro do pino de aroeira que lhe fora cravado a martelo para completar o serviço. Em volta da chacina, um sem-número de urubus abatidos a tiros completava o absurdo.

— Os coureiros matam os urubus que são atraídos pela carne podre — explicou o índio. — A revoada deles iria mostrar para todo mundo o lugar onde os contraban­distas reúnem os jacarés mortos para tirar-lhes o colete e salgá-los...

Aquele matadouro devia estar ali há muito tempo. O rapaz lembrava-se de uma foto dali feita pelo professor, embora na ocasião Crânio não tivesse entendido o que po­deria ser aquela mancha branca brilhando ao sol, no meio do mato. Estava na pista certa. E na seqüência certa dos slides.

— Ei! Veja isto. Que coisa mais sem jeito! — Robson apontava para uma pilha de couros de jacaré ao lado de sacos de sal. — Parece que esses coureiros tiveram de sair correndo. Até deixaram tudo isso para trás...

Um pouco adiante, meio oculta por folhas de palmei­ra, havia uma canoa comprida, uma chalana semelhante àquela em que viajavam. Estava furada e meio submersa.

— E fugiram a pé. Ou a nado — observou Crânio. — A chalana deles ainda está aqui.

O ruído de um motor aproximava-se. Mesmo com a visão ofuscada pelo sol, Crânio pôde ver um Cessna voando baixo, preparando-se para pousar. O avião sumiu atrás das copas das árvores, a cerca de um quilômetro dali.

— Meu Deus! O que é isso?

Crânio piscou, não acreditando no que descobrira ao erguer a cabeça para olhar o avião.

Pendurados no alto das árvores, doze corpos balança­vam-se ao vento!

A visão de mais aquele horror doeu como um soco no peito, e Crânio recuou, apavorado, até tropeçar com os calcanhares e cair sobre aquele monte de ossos fedorentos.

Levantou-se, limpando-se, enojado, e olhou em volta.

— Robson! índio Robson! Onde está você? Nenhuma resposta.

Em pânico, correu em volta das carcaças, atabalhoa­damente.

Tudo inútil. O guia desaparecera, como se uma fada maligna estivesse atuando no Pantanal!

Quase sem pensar, procurando um refúgio como uma criança procuraria o colo da mãe, Crânio correu para a chalana.

— O que é isto?

Alguém havia furado a chalana e o barco afundava lentamente!

O coração de Crânio batia descompassadamente. Doze homens haviam sido assassinados ali e pendurados nas ár­vores, como acontecera com o coureiro lá perto da fazenda do Senador. Como se tudo estivesse fotografado em sua mente, o rapaz lembrou-se de ter visto bocas negras, escan­caradas, em cada um daqueles cadáveres. Suas bocas deve­riam estar atochadas de terra com formigas carnívoras...

Os Formigas-paradas!

E agora? Como poderia Robson ter desaparecido as­sim, como se o Pantanal o tragasse?

Não podia agir sob pânico nem com raiva toldando-lhe os sentidos. Contou pausadamente até seu coração voltar ao ritmo normal. Lembrou-se da seqüência das fotos do professor. Elas vinham sendo feitas a bordo de um barco até o cemitério de jacarés. Depois passaram a ser feitas em terra, no meio de árvores. O local dos três slides desapa­recidos estava próximo!

Pensou também no avião que acabara de ver. Certa­mente haveria uma fazenda por ali. Haveria gente. Um lugar onde ele poderia buscar abrigo e auxílio.

Olhou cuidadosamente à volta. Nada à vista. Só a beleza do Pantanal, com aquela nódoa branca das ossadas. Correu, procurando o refúgio da mata. Meteu-se por entre as árvores, tentando orientar-se na direção onde vira o Cessna. Aos poucos, o fedor do cemitério dos jacarés foi diminuindo e substituído por um perfume forte de jenipapos maduros.

O canto selvagem dos pássaros, quase ausente no local da chacina de homens e jacarés, voltou ao normal. Em meio àquela algaravia, Crânio ouviu o som distante de um motor, certamente do Cessna, que se mantinha ligado. É! Parece que ele estava no caminho certo.

O aeroporto não estaria tão longe como ele estava calculando. Em um quarto de hora, avistou um descam­pado. Aproximou-se com cautela. O Cessna girava seus motores na extremidade de uma pista de terra. Não havia nenhuma casa. Apenas um grupo de barracas de lona.

Um grupo de homens descarregava caixas e recarre­gava o avião com pilhas de peles de jacaré amarradas.

Contrabandistas! Coureiros! Onde viera ele buscar re­fúgio?

Um homem moreno e magro desembarcara. Parecia ser o chefe e, mesmo àquela distância, dava para Crânio entender uma fala autoritária, rústica, espanholada.

— El Ente... quiere saber porque Ia demora... Está muy nerbioso... El Ente no perdona...

E Crânio compreendeu tudo. As três fotos roubadas eram daquele aeroporto clandestino! O professor Elias o descobrira. E por isso fora assassinado! Ele precisava fugir. Recuou silenciosamente e enfiou-se entre as árvores. Ás suas costas, o motor do Cessna foi desligado.

Crânio sentiu-se confuso. Sem o ruído do avião para orientá-lo, todas as árvores pareciam iguais, todos os cami­nhos pareciam o mesmo. Andou sem rumo, procurando ape­nas livrar distância do perigo. O medo ocupou-lhe todos os sentidos e o rapaz correu, chocando-se nos galhos baixos, arranhando-se, desorientando-se cada vez mais.

Tropeçou numa raiz saliente e caiu, de cara na terra.

— Inferno!

Tinha corrido como um idiota, fazendo um círculo! Um ruído leve, atrás de si. Crânio saltou, como se uma pintada lhe tivesse bafejado a nuca.

Era pior do que uma pintada. O cano de uma Browning de quinze tiros estava apontado para ele. Atrás do cano, um rosto muito magro, moreno, mostrava um sorriso desdentado com hálito imundo.

— Buenas tardes, muchacho...

 

Rapazes da idade de Crânio já eram adultos no Pan­tanal. Por isso Crânio foi tratado como um adulto. Como um adulto inimigo. Como um inimigo perigoso, que deve ser amarrado aos trancos e conduzido a pontapés.

— Já está bem amarradinho, Centurião — declarou um dos bandidos que cercavam Crânio.

O líder, sorridente, bafejou de novo aquele hálito dos infernos.

— Muchacho... Que quieres acá? Como te llamas? Crânio manteve a cabeça altivamente levantada e olhou para o Centurião como num desafio. Não disse uma palavra, porém.

— No hablas? Quieres morir calado?

— Ele não é daqui, Centurião. É um garoto muito bem tratado para ser daqui.

— Quien eres, muchacho? A mi no me gusta matar alguno sin saber su nombre...

— Pode deixar, Centurião — ofereceu-se um sujeito pequeno como um menino, com uma faca que brilhava ao sol. — Eu faço o serviço.

— No... El muchacho es muy arrumadito. Puede ter qualquiera de importância por detrás. Devemos preguntar ai Ente. El Ente sabrá o que hacer. Levem ei muchacho para la casita!

 

O rosto e as mãos de Crânio sangravam, depois de ter sido arrastado com brutalidade por entre galhos e espinhos de volta ao aeroporto dos contrabandistas.

Do Cessna, os bandidos descarregavam pesadas caixas com inscrições em inglês. Crânio pensou que eram video­cassetes, whisky e outros artigos de contrabando, até que um dos bandidos tropeçou, deixando cair uma caixa. A caixa se abriu, esparramando um grande número de saqui­nhos plásticos cheios de pó branco.

Cocaína!

Crânio não baixou a cabeça, esperando o pior destino nas mãos daqueles criminosos. Viesse o que viesse. Ele um Kara!

Sem uma palavra, Crânio foi arrastado para "la casita”. Era uma choupana coberta com folhas de palmeira secas e gradeada com bambus em toda a volta. Apesar do material simples, era uma construção sólida, uma prisão perfeita.

O jovem prisioneiro foi desamarrado e jogado dentro da casita. A entrada foi tapada com uma prancha de bam­bus grossos e trançados, e acorrentada, para completar a segurança. O teto era baixo demais, impedindo que o pri­sioneiro ficasse de pé.

— Acorda, piloto! — gozou o bandido que acorren­tara a entrada. — Um companheiro para você!

O homem estirado no fundo da casita não demonstrou sinal de vida. O contrabandista foi embora, rindo, e Crânio rastejou até o prisioneiro. Devia ter uns trinta anos e seus braços estavam cobertos de picadas de injeção.

Um viciado em heroína!

O prisioneiro não abriu os olhos, mas Crânio percebeu um leve movimento em seus lábios. Aproximou-se e encos­tou o ouvido em sua boca.

— Meu nome é Bezerra... ainda estou vivo... ainda estou vivo...

 

A noite caiu sem que alguém trouxesse comida ou água para os prisioneiros. Crânio não comia desde o "quebra-torto" daquela manhã e a sede era torturante sob aque­le calor infernal.

Os sons do Pantanal eram muito diferentes, à noite.

Não havia ninguém para identificá-los para o garoto, e todos lhe pareceram assustadores. Talvez aquele pio que lhe gelava a espinha fosse de uma coruja, ou talvez aquele som rouco fosse o esturro de uma onça, ou talvez... E se uma cobra se esgueirasse por entre os bambus durante a noite?

Sentado ou deitado sobre a terra quente, Crânio não sabia o que esperar. Tirou a gaita do bolso da jaqueta e soprou-a baixinho, tentando afastar o medo. Suas mãos estavam esfoladas e arranhadas. Começavam a latejar. A infecção começava a instalar-se.

Aos poucos, a fome, a sede, a escuridão e a companhia patética daquele pobre homem adormecido foram amolecendo seu ânimo, e o sono chegou, em meio à saudade de casa e de seus queridos companheiros.

— Tia Matilde... acho que nunca vou conhecer você... Miguel... Calu... Chumbinho... Magri... meu amor... onde estão vocês, Karas? Por que me deixaram sozinho?

 

                   Veneno nas veias

A madrugada tinha esfriado a terra sob seu corpo, e o frio foi sua primeira sensação, quando um murmúrio o acordou.

— Eu me chamo Bezerra. Sou um piloto. Quem é você?

O prisioneiro parecia ansioso.

— Alguém sabe que eu estou aqui? Você faz parte de algum grupo de resgate?

— Me chamam de Crânio...

O piloto enterrou o rosto nas mãos quando ouviu que as respostas de Crânio não traziam nenhuma esperança.

— Calma, amigo. Pelo menos agora você não está sozinho. Daremos um jeito de fugir daqui.

— Fugir? Impossível. Você vai ver quando começa­rem o "tratamento" com você...

— Tratamento? Que tratamento?

— Veja! — Bezerra estendeu os braços, como se Crâ­nio pudesse ver alguma coisa naquela escuridão. — É isso o que vão fazer com você. Vão lhe injetar cocaína e heroína à força, até você esquecer seu próprio nome e desejar a morte, como se deseja uma mulher! Veja! Eu, que nem bebo, estou todo furado pela maior porcaria do mundo. Esse veneno já está em meu cérebro e meu sangue já não pode circular sem ele. Eles conseguiram que eu desejasse a droga. Eles me viciaram, Crânio!

O rapaz abraçou o pobre companheiro, como se con­sola uma criança que caiu e esfolou o joelho.

— É claro que eles já poderiam ter me matado há muitos dias. Mas o assassinato puro e simples de um piloto conhecido atrairia atenções indesejáveis. Já descobri o que pretendem fazer, esses malditos. Quando eles me considera­rem "no ponto", vão me devolver ao quarto do hotelzinho onde eu estava hospedado e me aplicar uma superdose, uma dose assassina. Quando meu corpo for encontrado, todo mundo vai pensar que me viciei em tóxicos e morri devido à superdose que teria aplicado em mim mesmo...

O efeito da última aplicação da droga tinha diminuído e Bezerra podia falar quase claramente.

— Maldita a hora que decidi vir de São Paulo para cá! Achei que valia a pena ganhar o triplo para pilotar aviões carregados de peles de jacaré na ida e de caixas de contrabando na volta. Mas acabei descobrindo que o buraco em que me meti era muito mais fundo. Era o buraco dos tóxicos, dos mais tremendos crimes, Crânio. Acabei desco­brindo que aqui há muito mais que ameaças à ecologia e extermínio de jacarés. Aqui, a humanidade inteira está ameaçada... Tentei sair, Crânio, tentei sair, mas ninguém sai deste buraco depois de ter se afundado nele como eu me afundei... Agora eu sei demais e eles não podem me deixar escapar vivo com tudo o que sei... Perderam a con­fiança em mim, e a minha vida já não vale mais nada. Ninguém escapa do crime organizado internacional... Crânio espantou-se.

— O crime organizado?! Agindo aqui? No Pantanal?

— O Pantanal sempre foi o paraíso dos fora-da-lei. Um lugar onde se está destruindo o verdadeiro paraíso, arrasando-se a natureza impunemente em troca do enri­quecimento rápido. Uma rota perfeita para a passagem do contrabando e dos tóxicos. O Pantanal foi escolhido como a sede ideal do crime organizado. É uma operação gigante, Crânio. Estão transportando para cá uma grande quantida­de de ouro, para proteger a fortuna incalculável conseguida pelas mais diversas e bárbaras atividades criminosas. O líder dessa operação é o Ente que...

— Ouvi o Centurião falar desse tal Ente. Quem é ele?

— Não sei. É o segredo mais bem guardado do Pan­tanal. O Ente centraliza todo o poder. É uma espécie de tesoureiro do crime internacional. O guardião de toneladas de ouro que devem estar escondidas aqui, em alguma parte. Por isso bandidinhos sem importância como eu era não podem saber quem é o Ente. Nós sempre recebíamos as ordens por mensagens de rádio, sem nunca falar direta­mente com o grande líder. Só os chefes de grupo, como o Centurião, devem saber quem é o Ente,

— Mas o que a polícia...

— Nem adianta esperar a ação da polícia. Aqui, de vez em quando, são presos alguns contrabandistas. Mas de que adianta isso, se os grandes receptadores de peles con­tinuam impunes, em suas mansões da Bolívia, do Brasil ou do Paraguai? E o que esperar agora quando quem está agindo é o crime organizado internacional?

— Eu não vim para cá por causa do crime interna­cional, Bezerra. Vim atrás de um crime único. O professor Elias...

— Professor Elias? Ele foi assassinado, não foi?

— Como você sabe? Você conhecia o meu professor?

— Eu o conheci rapidamente, em Aquidauana, quan­do ele me mostrou uma série de fotos que tinha feito aqui, no Pantanal.

— Mas como soube que ele foi assassinado?

— Aqui os bandidos falam tudo sem ligar se eu estou ouvindo ou não. Não lhes importa o que eu saiba. Eu vou morrer mesmo, não vou? Parece que o professor Elias des­cobriu alguma coisa muito comprometedora. Algum segredo muito importante. O Centurião desapareceu daqui por uns dias. Quando voltou, ouvi que tinha estado em São Paulo e que o "serviço" estava feito... que o tal professor Elias não tinha mais nada pra mostrar a ninguém... e que nunca mais fotografaria qualquer coisa...

Crânio escondeu a cabeça entre os joelhos. O Centu­rião fora mandado a São Paulo especialmente para torturar e matar seu querido professor! Pobre Elias! Nem suspeitava da importância de suas fotos, mas o Centurião torturou-o do mesmo modo, só para ter certeza. Maldito Centurião! Mal­dito Ente! Malditos!

Crânio tinha descoberto o que tinha vindo descobrir. Mas de que lhe adiantava isso agora? Estava engaiolado como um animal, à espera da morte...

— O professor Elias não desconfiava de nada, Be­zerra. Não tinha consciência de ter descoberto nada. Tudo o que ele pretendia era vender os slides que fez no Pantanal para algum jornal ou revista.

— E acabou mostrando os slides para algum infor­mante do crime organizado. Malditos! Esses criminosos estão por toda parte!

Crânio suspirou.

— O que o Elias descobriu de importante estava em três daqueles slides.

— Tem certeza? Você viu os slides?

— Não. Quem matou Elias sumiu com eles. Mas te­nho certeza que eles foram fotografados aqui, neste aero­porto clandestino. Devia estar acontecendo alguma coisa muito importante por aqui para que o Centurião se desse o trabalho de ir até São Paulo atrás das fotos, assassinando o Elias.

Era preciso pensar. Era preciso agir. Era preciso ousar. Era preciso ser um Kara, naquele momento.

— Bezerra, você examinou todos os slides. Você viu as fotos roubadas. Você sabe o que havia nelas!

— Eu examinei as fotos, mas...

— Uma por uma?

— Sim. Mas como vou me lembrar delas?

— Tente, Bezerra.

— É impossível...

Crânio aproximou-se mais do piloto. Recordava-se do sucesso que tivera no Colégio Elite ao hipnotizar a servente e fazê-la lembrar-se da mensagem que Chumbinho deixara para guiar os Karas na pista da Droga da Obediência.

— Eu posso fazer você se lembrar, Bezerra. Eu co­nheço hipnose. Posso penetrar no seu subconsciente e fazê-lo recordar as fotos. Você concorda em submeter-se à hip­nose?

— Agora? Por que não?

Crânio fez Bezerra recostar-se nas grades de bambu.

— Feche os olhos e não tema nada. Você está rela­xado e se sente bem. Quando eu contar até cinco...

Crânio caprichou o mais que pôde. Do sucesso daquela sessão de hipnose dependia mais do que a descoberta de uma pista. Dependia a própria vida dos dois!

— Agora você está de volta a Aquidauana, Bezerra. Procure lembrar-se. O professor Elias está mostrando os slides para você. Diga o que está vendo.

— Porcos selvagens...

— Agora olhe o próximo.

— Árvores floridas... vermelhas... jacarés.

— Ótimo! Passe para outro.

— Um veado... bebendo... beira da água.

— O próximo, Bezerra.

Crânio deixou que o piloto descrevesse os slides um a um, como se os estivesse examinando naquele momento. A seqüência era aquela, e Crânio foi se entusiasmando à medida que se aproximava o ponto dos três slides fatí­dicos.

— Cemitério de jacarés... carcaças ao sol...

— Continue.

— Entre as árvores... descampado... mancha bri­lhando à distância...

— Que mancha é essa, Bezerra?

— Brilhante... sol refletindo... sol amarelo... sol vermelho... entre as árvores... não dá para ver...

— Passe para o próximo.

— Descampado... avião brilhando ao sol... sol amarelo...

A terceira foto era igual. O professor Elias tinha foto­grafado apenas o avião dos contrabandistas, sob as cores do sol, no aeroporto clandestino. E isso bastou para que o matassem!

— Canalhas! — praguejou Crânio para si mesmo. — Temos de fugir daqui. Essa gente tem de ser punida pelo que fez!

Os acontecimentos daquele dia terrível revolviam sua mente, embrulhavam seu estômago vazio, faziam-no esque­cer a própria sede. O Ente! Dono da vida e da morte. Os coureiros, pendurados no alto das árvores, com as bocas cheias de formigas carnívoras, provavelmente mortos pelos homens do Centurião. O crime organizado não admitia cri­minosos autônomos no Pantanal. Os Formigas-paradas!

Repentinamente, o quadro iluminou-se em seu cére­bro:

— Os homens do Centurião são os Formigas-paradas! Os assassinos misteriosos do Pantanal! Não tem nada de folclore nem de crendice popular nisso tudo. É isso! Des­cobri! Os Formigas-paradas! O Ente! Ente tem a mesma pronúncia que ant, que quer dizer "formiga", em inglês. O Ente é o líder dos Formigas-paradas! Os Formigas-para­das são os criminosos que protegem o ouro da Máfia! Tone­ladas de ouro! Escondidas aqui por perto!

Separados por centenas de quilômetros, dois Karas tinham chegado à mesma conclusão.

Agora, mais que nunca, era preciso fugir dali e denun­ciar aqueles assassinos. Voltou-se para o piloto hipnotizado:

— Bezerra, você agora se sente bem, está relaxado, e ouve apenas a minha voz. Apenas a minha voz... Quando os bandidos vierem e aplicarem a injeção de heroína, você se fingirá de morto. Fingirá tão bem que ninguém vai des­confiar. Você só acordará com água. Lembre-se. Somente com água. Entendeu?

— Sim...

Sorriu, satisfeito com sua idéia. Sempre lavam os ca­dáveres antes de enterrá-los. O empregado da funerária te­ria uma bela surpresa!

— Agora você acordará e não se lembrará de nada. Você vai se sentir muito bem, confiante. Quando eu contar até três, você acordará. Um... dois... três. Acorde, Be­zerra!

O piloto abriu os olhos. Olhou para Crânio e sorriu.

— Como é? Deu certo?

— Deu. Os slides eram mesmo do aeroporto clandes­tino. O professor Elias fotografou um avião, sob o sol.

— O que foi que eu descrevi?

— Você falou: "mancha brilhando ao sol... sol re­fletindo,.. avião brilhando... sol amarelo... sol verme­lho... " Esses bandidos mataram o professor Elias só por­que ele descobriu onde as muambas são embarcadas e de­sembarcadas...

— Canalhas...

— Preste atenção, Bezerra. Não posso lhe explicar agora, mas você vai fugir daqui.

— Eu?! Como?

— Não importa. Preste bastante atenção: o crime or­ganizado está agindo no Pantanal acobertado pela supers­tição popular que fala em espíritos assassinos, os Formigas-paradas. Mas os Formigas-paradas não são fantasmas. São os criminosos comandados pelo Ente. O grupo do Centu­rião faz parte deles. Eu mesmo vi do que eles são capazes. Há doze corpos pendurados lá no cemitério de jacarés!

— Meu Deus!

— O ouro deve estar escondido por aqui, por esta região. Provavelmente eles estão assassinando os coureiros, e quem mais aparecer por aqui, para reforçar a superstição e manter todo mundo bem longe do esconderijo principal. Entendeu direito? Não se esqueça de nada. As autoridades precisam ser avisadas.

— Está bem. Só não entendo como eu vou fugir daqui...

 

                     Bancando o Montecristo

As primeiras luzes da aurora trouxeram o Centurião e dois do seu bando. O desdentado vinha sorrindo e ajoe­lhou-se, emitindo um bafo fedorento para dentro da casita.

— Crânio... Entonces te llaman Crânio, no es? Bueno, muchacho, no deverias ter aparecido por acá. Eres un gran problema, un grandíssimo problema, muchacho. El Ente te quiere vivo. Vivo e entero. Tienes suerte. Mucha suerte, muchacho...

Um dos bandidos enfiou duas tigelas dentro da jaula. Água e comida. Um outro trazia uma seringa.

— Vamos, piloto. Es Ia hora dei breakfast... Nada como una espetadita a esta hora de la mañana, no?

Bezerra recuou para o canto mais distante da jaula.

— Não! Não quero!

— Oh, oh! Es claro que lo quieres, piloto. Estás acostumbrado ya. No puedes pasar sin tu espetadita, verdad?

— Não!

O homem que tinha trazido a comida deu a volta na jaula e cutucou as costas de Bezerra com uma faca. O piloto saltou para diante e, como o espaço fosse muito res­trito, foi chocar-se com a frente da jaula, onde o outro ban­dido segurou-lhe o braço, puxando-o para fora das grades de bambu. Fez um torniquete com um tubo de borracha apropriado e, em um segundo, a veia de Bezerra estava espetada e o líquido maldito começou a circular por seu corpo. O comando pós-hipnótico fez efeito. Bezerra revirou os olhos, como um agonizante, e sua cabeça tombou de lado. O corpo amoleceu e o bandido teve de retirar apres­sadamente a agulha de seu braço.

— O que houve?

O Centurião tomou o pulso inerte do piloto. Era um ignorante, especialista apenas em assassinatos, e não con­seguiu encontrar a batida fraca do pulso de Bezerra.

— Está muerto. La dose era muy fuerte mismo para ei, que ya se acostumbrara. Bueno! Podemos livrar-nos de este. Levem-no para o hotelzito donde lo encontraron. Pongan la droga y unas seringas a su lado, como planeamos.

— Mas como vamos andar com um cadáver assim, sem mais nem menos, pela cidade, Centurião?

— Pongan ei hombre num saco, estúpido! Façam creer que están carregando qualquier entrega para ei hotel. El dono es nuestro cumpadre, no se preócupen.

Crânio fez cara de revolta e protestou contra aquela "morte".

— Assassinos!

— Ah, ah! No reclames, muchacho. Tienes mucha suerte. El Ente no quiere que te toquem.

— O que vão fazer comigo?

— No sê. El Ente es quien Io sabe. Coma e agradeça. No fueran las ordenes dei Ente, ya estaria con mi cuchillo en tus tripas. Nadie me llama asesino e sigue respirando...

— Pero eres lo que eres, Centurião! Un asesino co­varde!

— Oh! Hablas castellano! Que culto que eres!

Foi embora com os companheiros. Crânio bebeu toda a água, mas foi impossível provar aquela gororoba tão no­jenta. Parecia conter carne podre de jacaré. Sentia-se en­joado. As feridas latejavam e ele começou a sentir frio, batendo os dentes.

Dois bandidos voltaram e entraram na casita. Meio espremidos, enfiaram Bezerra dentro do saco e fecharam o pacote com uma corda. Foram embora. Não voltariam antes de comer o quebra-torto.

Pronto. O plano do gênio dos Karas estava dando certo. Bezerra sairia livre dali, e a polícia acabaria por salvar a ele, Crânio. Seria o fim dos Formigas-paradas. O fim do tal Ente. Ele deduzira tudo direitinho. Formigas-paradas. Ente. É assim que se pronuncia "formiga", em inglês. Ant! Era isso!

Mas parecia muito pouco. O ouro deveria estar por perto, mas onde? O Ente era o formigão maior, mas e daí? Quem era o Ente? Sob que disfarce se escondia?

Crânio era prisioneiro de alguém sem nome e sem rosto. O rapaz revolvia o cérebro privilegiado, mas as per­guntas mais importantes não tinham resposta.

— Engraçado... Por que o Ente ordenou que não fizessem nada comigo? Será que ele me conhece? Será que o formigão...

De repente, o sangue fugiu-lhe das faces.

— Que estúpido sou eu!! Como não descobri isso antes?

Pulou sobre o piloto, esquecendo-se do comando pós-hipnótico.

— Bezerra! Acorde! Preciso contar a você quem é o Ente! Eu descobri tudo! Acorde!

O piloto não se moveu.

— Água. Preciso de água!

A febre aumentava-lhe a ansiedade. Procurou a tigela, mas a sede tinha feito com que ele não deixasse nem uma gota!

— Preciso pensar... pensar! Já sei! Eu e o piloto somos mais ou menos do mesmo tamanho. É arriscado, mas pode dar certo. Pelo menos deu certo com o Conde de Montecristo!

Abriu o saco e tirou-o de Bezerra. Despiu a própria jaqueta e vestiu-a no piloto. Rolou o corpo inerte para o canto mais tapado por bambus e deitou-o de bruços, enco­lhido, como se estivesse dormindo. Enfiou-se no saco e com dificuldade encaixou, pelo lado de dentro, a argola de corda meio mal-e-mal, fechando-se no saco. Pronto. Agora bas­tava esperar que aquilo não se transformasse em sua pró­pria mortalha. Não demorou a ouvir os passos dos bandi­dos, que voltavam depois do quebra-torto.

— Vamos lá. Pegue deste lado. É pesadinho, o des­graçado!

— Veja como dorme este aqui. Com um cadáver do lado e o moleque ainda consegue dormir!

Crânio foi carregado para fora. Sentiu quando o co­locaram no fundo de um barco, que se balançava suave­mente sobre as águas. Ouviu o ruído do motor sendo ligado. O barco começou a vibrar.

— Ei, você amarrou muito mal este saco!

— Pois amarre melhor, ora!

 

A "voadeira" avançava velozmente, na certa por um afluente dú Taquari, em direção à vila de São Francisco. Crânio sentia-se sufocar dentro do saco, mas não movia um músculo, embora tivesse sido colocado de mau jeito pelos bandidos.

O som da conversa dos dois bandidos chegava abafa­do aos ouvidos do rapazinho, até que um alerta desespera­do invadiu-lhe claramente os ouvidos.

— Cuidado! Uma árvore caída!

— É uma cilada! Aaaai!

— Hein? O que foi? Aaaaah!

Algo inevitável acontecia fora do saco que aprisionava Crânio. Algo inevitável como a morte.

O barco sacudiu-se violentamente e Crânio foi jogado de um lado para o outro. Um corpo pesado caiu sobre ele, e o barco virou. Sentiu o baque na água.

Crânio lutou desesperadamente para sair. Inútil. O bandido tinha amarrado fortemente a boca do saco! A água começou a entrar, ocupando todos os espaços. Enquanto o saco afundava rapidamente, Crânio sentiu o frescor das águas limpas do Pantanal.

 

                   O sangue banha o Taquari

O Centurião afastou-se furioso da casita.

— Aquellos asinos! Llevaran ei hombre errado!

— E agora, Centurião?

— No sê. Como ellos no perceberan que ei muchacho no estava muerto? Como ensacaran ei muchacho en lugar dei otro? Acá hay algo que no entiendo...

— E agora, Centurião? — repetiu o bandido, que não conseguia dizer outra coisa.

— Ahora ei Ente acabará con nosotros se algo acon­tecer con ei muchacho. Se aquellos dos asinos no volveren con ei tal Crânio, no sê... no sê....

— E o que faremos com este cadáver?

— Vamos a seguir ei plán. Usted y usted! — ordenou o Centurião para o baixinho com a faca e para o palerma perguntador. — Carreguem con ei cadáver dei piloto para el hotelzito. No se olviden de Ia droga. Tenemos cumpadres dentro de Ia policia, pero ellos precisam de Ia coca como prova, para que façam una investigación como nosotros queremos que façam!

— Mas os outros levaram a voadeira. Como vamos até a vila sem um barco a motor?

— A los remos, preguiçosos! A los remos!

 

O palerma remava com afinco, mas o baixinho parecia muito disposto.

— Você não vai remar direito, baixinho?

— Sou muito melhor com uma faca do que com um remo nas mãos...

O palerma engoliu em seco, e acabou remando dos dois lados, para que a chalana não andasse em círculos. Era melhor não reclamar da preguiça do baixinho.

— Assim não vamos chegar nunca a São Francisco...

— É que os outros levaram a voadeira e...

— Eu sei que os outros idiotas levaram a voadeira com o cadáver errado, idiota! E nós é que temos de nos acabar aqui, pendurados nestes remos!

O palerma ficou calado. Mas sua vontade era pergun­tar quem estava mesmo se acabando em cima dos remos...

— E tudo isso pra quê? Para levar um morto idiota até sua caminha...

— São as ordens do Centurião...

— O Centurião! O Centurião! Estou cheio de ser man­dado por aquele desdentado! Um dia ainda vou mostrar a ele o fio da minha faca...

Ficaram um momento em silêncio. O baixinho olhou para o corpo inerte de Bezerra, jogado no fundo da canoa.

— Sabe o que mais? Acho que a gente devia era dei­xar as piranhas fazerem o serviço pra gente...

— Como assim? Piranha sabe remar?

— Mas você é mesmo cretino! Estou falando de jo­gar este cadáver na água e dar um pouco de comida fresca para as pobres piranhas. Elas devem estar famintas a esta hora do dia!

— Não podemos fazer isso. O Centurião disse que...

— Para o inferno com o Centurião. Vamos até a mar­gem conversar melhor.

O palerma deu duas remadas de um lado só e deixou que a correnteza levasse a chalana até embicá-la de proa na margem.

— Vamos descer — convidou o baixinho. — Eu trou­xe uma garrafa com uma pinga das boas. Assim a gente descansa um pouco.

Os dois desembarcaram e amarraram a chalana em um toco. O baixinho desarrolhou a garrafa e bebeu no gargalo, fartamente. Passou a garrafa para o companheiro e voltou para o barco. Agarrou o corpo de Bezerra pelas roupas e jogou-o no rio.

O palerma tentou uma reação, pálido diante daquele ato de insubordinação que jamais lhe passaria pela cabeça. Mas deparou com a carranca do baixinho, que já tinha desembainhado a faca.

— Beba. Beba e descanse, idiota. Deixe que eu pense nas coisas. Se o Centurião quer que esse cadáver chegue à vila, que venha recolher os ossos que as piranhas tiverem enjeitado...

O palerma percebeu o brilho de prata da faca ao sol e entornou o mais que podia a garrafa, sem saber o que pensar. O baixinho veio até ele e os dois se sentaram, para beber, abrigados na sombra.

Nenhum dos dois se preocupou mais com o "cadáver" de Bezerra. Nenhum deles percebeu que, ao cair na água, o morto voltara à vida.

Bezerra foi levado alguns metros pela correnteza, até enredar-se em um galho da margem, antes mesmo que a surpresa o levasse a debater-se. Agarrou-se no galho, sa­cudiu a cabeça e procurou pensar. Lembrava-se da casita, de Crânio e da figura macabra do Centurião, ao lado do bandido que lhe espetava as veias. Agora estava dentro de uni rio. Custou a entender que estava livre.

Livre! Era isso que Crânio tinha prometido. Que ele escaparia. E tinha cumprido a promessa. Sorriu ao perceber que estava vestido com a jaqueta do amigo. Só não pôde entender por quê.

A menos de trinta metros, o piloto viu os dois bandi­dos, recostados nas árvores, bebendo e conversando pre­guiçosamente. Viu também a chalana, mal amarrada na margem. Nadou silenciosamente, lutando contra a tonteira que ainda restava da última aplicação de heroína. Meteu-se entre a margem e o barco e esticou o braço, dando um leve puxão na corda. A chalana soltou-se e começou a ser levada lentamente pela correnteza. Bezerra agarrou-se na borda e deixou-se levar também.

— Ei! O que está havendo?

O baixinho correu para a margem. Lá ia a chalana, distanciando-se deles, e tendo o "cadáver" agarrado à borda!

— Pela Santa Virgem do Pantanal! — persignou-se o palerma. — O morto ressuscitou!

— Pois não vai ficar ressuscitado por muito tempo! — decidiu o baixinho, sacando sua pistola.

O primeiro tiro furou o casco da chalana, logo abaixo da linha d'água. O bandido tinha boa pontaria. O segundo tiro acertou em cheio as costas de Bezerra, como um soco.

 

A capivara bebia tranqüilamente, sem perceber que, a alguns metros, uma sucuri saía da água, arrastando-se oculta pelo mato rasteiro. Quando a vítima ergueu a cabeça, aler­ta para o perigo, era tarde demais. A sucuri já vinha em meio ao bote. O berro quase humano da capivara chegou até a chalana.

Bezerra agarrava-se com ambas as mãos, procurando desesperadamente alçar o corpo para dentro da canoa. Qua­se fez com que ela virasse. Não sentia dor, mas o frio da água misturava-se com o calor do sangue que lhe escorria pelas costas.

Não sabia onde fora atingido. Talvez em um rim. Ten­tou descansar um minuto no fundo do barco, mas a água que entrava pelo buraco da bala, abaixo da linha d'água, subia e obrigava-o a uma providência urgente.

O piloto tateou no meio palmo d'água que já invadira a chalana e localizou o buraco. Não podia afundar. Agora não! Talvez não sobrevivesse, mas era preciso continuar vivo e lúcido até ser encontrado por alguém. A vida de Crânio dependia disso. Muitas vidas no Pantanal dependiam disso. Sem outra alternativa, meteu o dedo no buraco de bala, tapando a entrada de água.

Um turbilhão no rio despertou-o para a tragédia. O seu ferimento fizera uma trilha de sangue na água, atraindo as mais terríveis feras da água doce.

Piranhas!

Não foi exatamente dor o que sentiu. Foi como um beliscão no dedo. E, na mesma hora, Bezerra percebeu que seu dedo não estava mais ali. Apertou os dentes e apertou com força o que lhe restava do toco arrolhando o buraco, o sangue continuava a correr, mas a água não haveria de entrar.

Enlouquecidas pelo sangue que tingia o Taquari, as piranhas turbilhonavam sob a chalana, mordendo desesperadamente a madeira do barco, exigindo mais sangue, ansian­do por dilacerar a carne que teimava em se esconder dentro daquela canoa...

 

O arranhar da chalana por baixo parecia já distante, como o sussurro de uma canção de ninar. Bezerra lutou contra o sono, que ele sabia muito bem não ser sono, mas o desfalecimento que se aproximava e que o faria soltar o toco de dedo do buraco de bala. Procurava manter a cabe­ça levantada. Se desmaiasse, havia dentro da canoa água suficiente para afogá-lo.

Aos poucos, as piranhas conseguiam roer a madeira do casco em volta do buraco. Aos poucos, conseguiam abo­canhar mais algum pedaço da mão de Bezerra.

Ele tinha de resistir. Tinha de lutar contra a morte!

Um ruído de motor chegou a seus ouvidos como um coro de anjos. Talvez fosse uma lancha. Talvez ele fosse encontrado. Talvez houvesse ainda uma esperança...

Mas o motor roncava acima de sua cabeça. Inferno! Era apenas um avião!

O sol queimava suas costas molhadas e ofuscou-lhe a vista quando girou a cabeça para olhar o avião.

Naquele momento, lutando para se manter consciente, Bezerra lembrou-se perfeitamente dos slides que só havia descrito sob hipnose. Naquele momento, percebeu claramen­te que as fotos do professor Elias revelavam muito mais do que Crânio pensara ter observado ao descobrir o aeroporto clandestino.

O avião passou voando baixo, por sobre o Taquari, por sobre o piloto moribundo, refletindo o sol com seus brilhos róseos e dourados. Se ele ainda tivesse forças, teria sacudido o Pantanal com uma gargalhada.

— É isso! Descobri! Avião brilhando ao sol... sol amarelo... sol vermelho... Descobri! Meu Deus! Eu te­nho de viver... tenho de viver... Só mais um pouco, só mais um pouco, meu Deus...

 

O pescador insistia com o policial:

— Eu tenho boa memória. Muito boa memória mes­mo. Encontrei o homem, o pobre homem, ensangüentado e com a mão estraçalhada, quase desmaiado. Estava naquela chalana, cercado de piranhas. Não sei como conseguiu!

— Repita — insistiu o policial. O que ele disse?

— Ele falou muito claro mesmo. E eu escutei direitinho, como estou escutando o senhor. Não sou homem de ouvir e esquecer, nem sou homem de dizer o que não ouviu. Também ninguém pode me acusar de aumentar o que al­guém disse, nem de diminuir o que...

— Chega de história, homem! — cortou o policial. — O delegado quer que você repita o que ouviu, palavra por palavra. O que disse o pobre coitado?

— Ele falou bem assim: "Crânio... encontrem... o Ente... Formigas-paradas... Mike Sierrabrava... é o Ente... Mike Sierrabrava... eu descobri... é ouro... é ouro puro... Crânio... pelo amor de Deus..."

— E depois?

— Depois nada. O coitado morreu nos meus braços!

 

                   O formigueiro do crime

Andrade desistira de tentar impedir que os quatro Karas viessem para o Pantanal, em busca de Crânio. Eles teriam vindo de qualquer modo, com ou sem a companhia do detetive. Assim, o jeito fora trazê-los junto. Que remé­dio? Pelo menos, desse modo, ele poderia ficar de olho neles e proteger aqueles capetinhas que se metiam em tudo!

— Sua idéia de nos inscrevermos nessa excursão para o Pantanal foi ótima, Chumbinho — cumprimentou Andra­de. — Só assim os pais de vocês concordaram com esta viagem de "férias". Ainda mais que a agência de turismo pertence a um tio da Magri...

— Não é só isso, Andrade — raciocinou Chumbinho.

— Misturados a um grupo barulhento de turistas, não des­pertaremos a atenção do maldito Ente. Os homens dele devem estar espalhados por todos os lados!

— Ele deve ser um formigão mesmo — acrescentou Miguel. — Uma espécie de formiga-rainha desse formiguei­ro do crime no comando de centenas de formigas-soldados, que cumprem fanaticamente suas ordens...

— Um formigueiro de criminosos que protegem tone­ladas de ouro como as formigas defendem o fungo com que se alimentam... — comparou Miguel. — Onde estará es­condido esse ouro? Debaixo da terra, como em um formi­gueiro?

— Que se dane o ouro! — explodiu Andrade. — Eu quero é encontrar o Crânio!

Para o gordo detetive, Crânio valia mais que todo o ouro do mundo.

 

Depois de uma baldeação em Campo Grande, o grupo de turistas embarcou em outro vôo para Corumbá. Agora, os excursionistas desciam o rio Paraguai em um barco gran­de e confortável, em direção às desembocaduras dos rios Taquari e Capivari.

Os turistas vibravam com cada detalhe.

— Have a look, Cindy Lou darlin'! Had ya ever dream with a view like that?

— Oh, Norman! I'm afraid of the alligators...

— Don't worry! I'm here, ain't I? I’11 kill some alli­gators with my bare hands and make a purse for ya!

E o turista, branquelo e obeso, de camisa florida, deu um berro de Tarzan, para tranqüilizar a sua gorducha Cindy Lou.

Todos riram da piada do americano, até mesmo aque­les brasileiros que não entendiam uma palavra de inglês.

Estava na hora de a turma ver-se livre daquelas piadas sem graça. Magri fingiu-se de doente, e os cinco abando­naram a excursão quando o barco passou pela cidade de Nhecolândia.

Andrade decidiu que o hotelzinho onde se hospedaram seria a base das operações.

— Precisamos saber o que a polícia local descobriu sobre o assassinato do piloto e o que estão fazendo para localizar o Crânio. Vou ver se arranjo algum barqueiro que me leve rio acima, pelo Taquari, até a vila de São Francis­co. O cadáver do piloto foi levado pra lá. É lá que devem estar investigando.

Miguel olhou rapidamente para cada um dos outros três Karas. Só o olhar para Calu baixou duas vezes até o chão. Os três entenderam as ordens.

— Quero ir com você, Andrade — convidou-se Chumbinho.

— Eu também — juntou-se Magri.

— Então vamos todos — propôs Andrade. — Estare­mos de volta no fim da tarde. O passeio deve ser uma be­leza.

— Eu fico — recusou Miguel. — Dou uma volta pela cidade e espero por vocês.

Calu entrou no jogo de Miguel:

— É, não adianta ir todo mundo. Eu espero também, com Miguel.

Andrade olhou para os dois rapazes e enxugou a care­ca com o lenço. Não haveria mal algum em deixá-los no hotel, por algumas horas. Mesmo que aqueles capetinhas ti­vessem algum plano maluco, nada poderia lhes acontecer de mau numa cidadezinha como aquela.

 

Assim que os três amigos saíram, Miguel voltou-se para Calu:

— Kara, vai ser perda de tempo correr todo o Panta­nal atrás do tal Ente. Andrade é o tipo do sujeito que acre­dita nas providências oficiais. Por aí não vamos chegar a lugar nenhum. Esse Mike Sierrabrava, como chefão do cri­me organizado, está mais bem protegido que o Papa. Se nem a polícia internacional conseguiu qualquer pista sobre ele, não seremos nós que vamos descobrir.

— E o que faremos, então? — protestou Calu. — Va­mos ficar tomando laranjada no hotel esperando que Crânio se vire sozinho?

Miguel tinha um plano e não aceitou a provocação.

— Se não podemos encontrar Mike Sierrabrava, Kara, vamos fazer com que Mike Sierrabrava nos encontre!

— Você quer atrair os bandidos? Como?

— Eles devem estar por toda parte, Calu. Devem ter informantes por todos os lados. Meu plano é o seguinte: vou espalhar recados para Mike Sierrabrava em todos os bares, padarias e pontos de táxi. O recado há de chegar aos ouvidos de Mike Sierrabrava, pode ter certeza.

Calu não gostou da idéia.

— Bela maneira de fazer a gente desaparecer do mes­mo jeito que sumiu o Crânio!

— Você trouxe a malinha de maquiagem, como eu falei?

— Trouxe.

— Então vamos mostrar a esse Mike Sierrabrava quem são os Karas! Você vai criar um bom disfarce para mim, Calu. Espalharei os recados disfarçado. Assim, por mais que os bandidos procurem depois por mim, nunca desconfiarão que um jovem turista hospedado no hotel é o sujeito que anda espalhando os recados.

Calu cocou a cabeça.

— Não estou entendendo, Miguel. Você vai espalhar os recados sob disfarce para que os bandidos não nos lo­calizem. Mas nós queremos que eles nos localizem! Senão, para que os recados?

— Se nós dois cairmos nas mãos deles, tudo irá por água abaixo, Calu. Apenas um de nós deverá sacrificar-se para que o outro possa descobrir a pista dos bandidos. O disfarce vai impedir que os bandidos botem a mão em mim na hora que quiserem, Quero que eles me descubram quan­do eu quiser,

— Que história é essa?

— Nos recados, eu pedirei um encontro com Mike Sierrabrava em algum lugar, onde irei com o disfarce. Você estará vigiando e poderá me seguir, caso eles tentem qual­quer coisa.

— Muito arriscado...

— É o único jeito, Calu. A idéia é apresentar-me a eles como alguém que quer trabalhar com drogas. Vou ban­car o pequeno traficante de São Paulo que resolveu "subir" na vida do crime!

— Eles podem não acreditar.

— De qualquer jeito vão perder algum tempo inves­tigando o que eu disser. É o tempo de que você precisa.

— Essa gente é muito perigosa, Miguel. Você pode ser morto...

— Morrer não fará muita diferença se eu não puder encontrar o Crânio...

— Está bem, então. Eu topo. Mas quem vai deixar os recados sou eu.

Miguel olhou para o amigo. Não adiantava discutir com a coragem de um Kara como Calu.

— Vamos tirar na sorte. Par ou ímpar?

— Impar!

Deu três. Calu ganhou. Ele seria a isca.

 

— Eita, barbudinho perguntador! — comentou o do­no do boteco para o magrelo que queria saber quem era aquele sujeito de barbas que acabara de sair.

— E que gente estranha é essa que ele quer encon­trar?

— Sei lá... um tal Serrabraba... Aqui não tem nin­guém com esse nome, não. Foi o que eu disse pra ele. O barbudinho quer encontrar o tal Serrabraba na igreja e ele quer que eu dê o recado. Mas como vou dar um recado pra alguém que eu nunca vi?

— Mike Sierrabrava? Não conheço ninguém com esse nome, não senhor — estranhou o açougueiro.

— Eu gostaria de me encontrar com ele na igreja, às seis horas. Se aparecer alguém com esse nome, por favor, dê o recado — pediu o barbudinho.

— É incrível! — o detetive estava espantadíssimo, en­xugando a careca suada pela preocupação e pelo calor, na­quela vila chamada São Francisco. — Não há nenhuma ocorrência registrada sobre o desaparecimento de Crânio. O inquérito sobre a morte de Bezerra foi arquivado como de autoria desconhecida, e o que ele disse antes de morrer foi encarado como delírio de um moribundo!

— E as palavras? — perguntou Magri. — Foram aquelas mesmo?

— Isso é o mais estranho! A anotação das últimas pa­lavras do Bezerra desapareceu da pasta do inquérito!

Magri suspirou, desolada:

— Pelos caminhos oficiais só vamos encontrar as pro­vidências de Mike Sierrabrava, Andrade. Temos de investi­gar sem o auxílio da polícia. Vamos nos reunir novamente a Miguel e Calu. Talvez eles tenham descoberto alguma coisa.

 

O motorzinho da lancha roncava ao longo do Taquari quando Andrade, Magri e Chumbinho encontraram aquele barco grande, com três homens que acenavam para eles, pedindo que se aproximassem.

O sol já se escondia por trás de um bálsamo que espa­lhava seu perfume pelo ar e parecia perfumar até as aves, que se levantavam em revoada como um protesto contra o ruído do motor que perturbava o equilíbrio sonoro do pa­raíso.

Em meio a tanta beleza, Andrade não podia esperar o cano de três fuzis Browning de repetição apontados para eles, de cima do barco.

 

— O barbudinho anda deixando recados malucos em tudo que é canto — informou o magrelo.

— Mas recados para quem?

— Para Mike Sierrabrava...

— O quê!? — o vozeirão daquele homem enorme fez tremer a magreza do informante.

 

— Quietos! — um dos homens deu uma ordem com um movimento de cabeça para seus comparsas. Tragam os três. O barqueiro pode ir embora.

Os outros dois bandidos praticamente arrancaram An­drade da lancha, enquanto o que dera a ordem mantinha seu fuzil apontado.

Chumbinho saltou para o barco grande, agarrou-se à camisa de Andrade e começou a fazer escândalo.

— Papai! Larguem o papai!

O homem que dava as ordens baixou o fuzil e agarrou Chumbinho.

— Fique quieto, menino!

— Papai! Quero papai! Quero ir pra casa!

Magri aproveitou o momento de distração que Chum­binho tinha provocado. Usando o Código Vermelho dos Karas, rabiscou rapidamente um papel e enfiou-o no bolso do barqueiro. Foi o tempo certo. Um dos bandidos agarrou-a pelo braço e puxou-a da lancha.

 

Calu saiu desiludido do mercado de Nhecolândia. Pa­recia que ninguém tinha ouvido falar em Mike Sierrabrava. Parecia que tudo não passara de um delírio do piloto mo­ribundo.

Procurava um local isolado onde pudesse retirar o dis­farce, quando sentiu alguém agarrando-lhe o braço.

— Por favor, quer me acompanhar?

— O que é isso? Me largue!

 

— Desculpe trazê-lo pra cá desse jeito — falou o grandalhão, educadamente. — Mas preciso fazer-lhe algu­mas perguntas.

— Recuso-me a falar sob pressão! — bronqueou Calu, acobertado pelo disfarce. — Tenho meus direitos! Isso é uma violência! Ou é uma brincadeira!

— Uma brincadeira? — sorriu o grandalhão, aproxi­mando-se. — Se alguém está brincando não sou eu!

Com um movimento rápido, o grandalhão arrancou a barba postiça de Calu.

— Eu não dizia? Afinal, você é bem jovem. Como é seu nome, garotão? Por que anda por todos os lados, com esse disfarce, fazendo perguntas sobre Mike Sierrabrava?

O plano não tinha dado certo. Calu fora apanhado longe da vigilância de Miguel. Não abriria a boca. Ele era um Kara!

— Vamos, garotão. Você pode confiar em mim!

A voz do homem era educada, mas era grossa demais, como a de um barítono de ópera.

 

                   0 hálito do demônio

Na hora do desembarque, Magri tinha conseguido enganchar um lenço vermelho em um galho.

Sob a mira dos fuzis, Andrade, Magri e Chumbinho foram obrigados a entrar em um jipe descoberto. Depois de uma boa meia hora de solavancos de uma viagem pelo meio das árvores, o jipe passou pela guarda de dois homens for­temente armados, entrando em um acampamento à beira de um aeroporto rasgado no meio da mata.

À espera dos prisioneiros, um homem magro sorria, mostrando cacos de dentes amarelos.

— Aqui estão os três perguntadores de São Francisco, Centurião. O barqueiro entregou direitinho a encomenda.

Então era isso! Enquanto percorriam a pequena vila em busca de pistas de Crânio, o barqueiro os havia traído, comunicando-se com aqueles bandidos!

"Isso, pelo menos, tem uma vantagem" — pensava Andrade, enxugando a careca. "Se nos prenderam porque fizemos perguntas sobre Crânio, isto quer dizer que estes bandidos são os responsáveis pelo desaparecimento dele. Só não vejo o que adianta saber isso agora. Ninguém em São Paulo tem idéia do que eu vim fazer aqui. Para todos os efeitos, eu estou de licença. Não posso contar com a ajuda de ninguém. E agora?"

— Mira que bela chica este barquero há entregáo! O desdentado olhava para a blusa rasgada de Magri.

Pedaços daquele tecido tinham ficado ao longo do caminho.

Mas aquele olhar não perturbou a menina. Magri esta­va furiosa pensando no barqueiro que nunca levaria o bi­lhete a Miguel e Calu. Ao contrário: sua idéia só serviria para entregar seus dois amigos aos bandidos!

Estavam sozinhos.

— Que violência é essa? — protestou Andrade, indig­nado. — Eu e meus filhos viemos aqui para...

— Tu e tus hijos? — cortou o Centurião, aproximan­do-se de Andrade. — Pelo que sê, tu eres ei detetive Andra­de, de São Paulo, y no tienes hijos. Solo no sê por que essos dos chicos vieram contigo...

— Como sabe de tudo isso?

Novamente aquele sorriso pavoroso.

— Soy um hombre dei Ente. Y ei Ente sabe de tudo, detetive Andrade...

O Ente! Andrade sentiu-se gelar, apesar do forte calor. Tinham caído na pior arapuca criminosa do universo!

— Ente? — disfarçou o detetive. — De que o senhor está falando? Somos turistas, não sabemos de nada. Está­vamos indo para...

— Quero ir pra casa da tia Matilde, papai... — cho­ramingou Chumbinho, oferecendo uma idéia ao detetive.

— Est... estávamos indo para a fazenda de dona Ma­tilde. Não temos nada com...

O Centurião soltou uma gargalhada sinistra, bafejan­do um fedor dos demônios sobre o detetive.

— Dona Matilde? Quieres decir tia Matilde?

— Qual é a graça? — enfureceu-se Andrade. — A fazenda de dona Matilde deve ficar perto daqui. Exijo que nos levem para lá! Senão eu juro que...

— Lo juras? No estás em condiciones de jurar nada, detetive. Después que yo receba Ias ordenes dei Ente, ya no estarás en condiciones de hacer nada. Solo de divertir-se con la compania de las minhocas, bajo la tierra! Por ahora, ustedes van a passar la noche en la casita... Le­vem-nos!

Chumbinho e Andrade foram empurrados para dentro de uma gaiola de bambu. O desdentado aproximou-se de Magri.

— Que bela chica! Es una pena quedarse en la casi­ta...

Andrade jogou-se contra as barras de bambu e sacudiu violentamente a jaula, que acabara de ser trancada a ca­deado.

— Maldito! Largue a menina!

O Centurião riu-se, antegozando o prazer que aquela linda menina poderia lhe trazer e saboreando a raiva do detetive.

— Cale a boca, gordalhón! Quieres que Ia chica pegue um resfriado en la casita? Ela ficará mucho mais confortable en la barraca dei Centurião! Ahora tienes un namorado, chiquita!

— Magri!... Não! Solte a menina!... Não!

Enquanto o Centurião arrastava Magri para longe, An­drade começou a chorar, desesperado.

 

Entardecia.

Os homens que levaram Calu até o casarão não agiam com brutalidade, mas também não admitiam diálogo. Nem resistência. O casarão, já um tanto malhado pelo tempo, era cercado por um muro muito alto, como uma prisão.

Calu olhava pela janela, atrás do homem grande, cuja figura recortava-se em silhueta à sua frente, como o demô­nio principal do inferno. De um inferno do qual o ator dos Karas planejava escapar, na primeira oportunidade. O problema era descobrir como, pois a janela era gradeada e os dois homens que o trouxeram montavam guarda além da porta.

— Quem é você, garotão?

A voz do grandalhão trovejava, mas não parecia agres­siva. Havia, porém, uma enorme pressa e ansiedade em suas perguntas. O homem não queria perder tempo.

— O que você sabe sobre Mike Sierrabrava? Por que perguntar por ele sob disfarce? De quem você está se escon­dendo? Por que veio de São Paulo até aqui para...

— Como sabe que eu vim de São Paulo?

— Não é difícil adivinhar. Com esse sotaque...

Calu tentava raciocinar depressa. Ele estava sendo tra­tado sem agressividade, até com uma certa gentileza. Quem seriam então aquelas pessoas que o haviam capturado por­que ele perguntara sobre Mike Sierrabrava? Calu lembrou-se do que tinha dito Miguel: "Uma espécie de formiga-rainha desse formigueiro do crime...". A formiga-rainha! O grande formigão! Grande como...

— Você não quer falar, não é, garotão? Nem o seu nome? Bem, então deixe que eu me apresente. Todo mundo me conhece como Senador, aqui no Pantanal. Estou no comando de uma grande operação que deveria ser secreta, mas cada dia fica mais difícil manter o segredo. Aposto que você já sabe o que estamos fazendo aqui, não sabe? Senão por que estaria metendo o nariz num negócio que não é da sua conta? Senão por que estaria calado agora?

O rapaz resolveu seguir com o jogo que Miguel tinha planejado. O silêncio não o levaria a nada.

— E se eu soubesse mesmo de tudo isso? E se eu quisesse me juntar a essa operação?

O grandalhão soltou uma gargalhada, num volume alto demais para quem pretende se manter secreto:

— Você está me pedindo emprego, garotão?

— Vamos supor que sim, Senador. Ou devo chamá-lo de "O Ente"?

O homem parou subitamente de rir e olhou com estra­nheza para o prisioneiro.

— Como disse?

— Eu disse "O Ente"...

O Senador ficou subitamente ansioso:

— O que sabe sobre o Ente? O que sabe sobre Mike Sierrabrava? Vamos, diga logo! Eu preciso saber. O que sabe de Crânio?

O nome do amigo soou como uma sirene de alerta aos ouvidos de Calu. Aquele homem poderia ser o responsável pelo desaparecimento de Crânio. Seria um risco Calu admi­tir qualquer ligação entre os dois.

— Crânio? Nunca ouvi falar...

O Senador levantou-se e quase colou o seu rosto ao de Calu.

— Acho que você sabe. Você também é de São Paulo. Tem a mesma idade. É tão enxerido quanto ele. O que você está escondendo?

Nesse momento, o telefone soou. O Senador atendeu, sem desviar os olhos de Calu.

— Sim, sou eu... Como? A entrevista no rádio? Ti­nha esquecido... Já estou indo. Precisamos de toda a pu­blicidade que pudermos conseguir...

Desligou e voltou-se para o prisioneiro.

— Vou ter de sair. Há livros e uma lata de bolachas ali, sobre o móvel, garotão. Pode ficar à vontade. Só não aconselho tentar sair desta sala. Talvez eu demore um pou­co. Depois retomaremos nossa alegre conversação.

Abriu a porta e saiu.

O ator dos Karas tinha ganho algum tempo. Estaria aí uma oportunidade. Era preciso fugir dali, sem demora. Era preciso encontrar Miguel. Juntos poderiam tentar algu­ma coisa, comunicar-se com Andrade, tentar a ajuda da polícia, qualquer coisa!

Mas como fugir do casarão? Como passar pelos dois bandidos na porta? Como saltar aquele muro alto? Mas havia um jeito. Ah, sim, havia uma saída! Só o Senador o vira sem barba, sem o disfarce. Nenhum dos bandidos que o guardavam tinha visto seu rosto, ou sequer suspeitava que havia um rapazinho naquela sala. O Senador saíra apressa­do. Talvez não tivesse tido tempo de contar que o homem barbado que ali entrara era falso. Ele talvez tivesse uma chance!

Teria de representar. Era sua especialidade. Vasculhou toda a sala à procura de uma idéia salvadora. Havia um banheiro anexo. Calu tirou o paletó, todo com enchimen­tos, que o fazia parecer mais velho e mais gordo. Sujou a camisa e a calça com terra de um vaso com um antúrio já murcho. Ajoelhou-se sob a pia e começou pacientemente a desatarraxar os canos e o sifão.

 

O barqueiro já estava quase chegando a Nhecolândia quando descobriu o bilhete no bolso, ao procurar fumo para fazer um cigarro. Não sabia ler, mas sabia que aquele bi­lhete deveria ser entregue sem demora ao Ente, ou sua vida não valeria um tostão.

O barqueiro saiu sem receber um tostão como gorjeta pelo serviço, enquanto o intermediário do terrível Ente desdobrava o papelzinho.

— "Fombermombers caisptufterraisdombers nomber rinisomber. Sinisgaism Penterquenternomber Pomberlentergaisr. Entregar para Miguel, em Nhecolândia, no hotel...". Que língua mais estranha! Como é que eu vou... Bom, o jeito é perguntar ao Ente.

Ligou um sofisticado aparelhamento de rádio.

— O Ente está em Nhecolândia — informou a voz que o atendera. — Use a freqüência daí mesmo.

Mais alguns minutos e o intermediário estava falando pelo rádio com outro agente da quadrilha.

— Quer dizer que o bilhete foi entregue pela menina que está conosco lá no acampamento do Centurião?... Ê?... Um momento...

Depois de algum tempo, a voz se fez ouvir nova­mente.

— O Ente diz que esse detetive deve fazer parte de algum plano maior. Senão não estariam usando códigos, como espiões. O Ente diz que não vai adiantar nada cap­turar o tal Miguel agora. Precisamos saber quais são as outras ligações dessa turma. Deixem a mensagem no hotel, como a espiãzinha pediu, e não façam mais nada. Nosso grupo vai ficar de olho e seguir esse Miguel. Ele deve ser apenas um agentezinho sem importância. Precisamos saber quais os peixões que estão por trás dele. Entendido?

A porta do escritório do Senador se abriu, e um jo­vem, com a roupa toda suja, carregando um sifão e alguns pedaços de cano, saiu e foi logo falando:

— Já terminei o serviço. O banheiro está desentupido. Agora quero meu dinheiro!

— Como? — perguntou um dos vigias, meio confuso.

— Como o quê? Meu serviço está pronto. Agora quero o combinado. São cinco pacotes!

— Tudo isso? Mas eu não sabia...

O rapaz ficou enfurecido:

— Não sabia?! Que história é essa? Vão querer me enrolar, é?

Pela porta atrás do "encanador" via-se uma poltrona de costas e o cotovelo de um paletó. Fumaça de cigarro subia do outro lado da poltrona, como que mostrando que o prisioneiro não estava interessado nem um pouco naquela discussão.

O "encanador" não desistia.

— Quero meu dinheiro! Daqui não saio sem o meu dinheiro!

— Veja como fala, rapaz! — advertiu um dos ho­mens. — Se o Senador combinou esse conserto, eu não sei de nada. É melhor você voltar amanhã e falar com ele.

— O quê?! Voltar amanhã? Uma vírgula! Vocês pen­sam que podem me enrolar? Quero minhas cinco notas! Quero agora, ou daqui não saio, daqui ninguém me tira!

Os homens foram se irritando com a malcriação do "encanador".

— Seu moleque sem educação! Vamos mostrar se vo­cê sai ou não sai daqui!

— Não saio! Nem por bem, nem por mal! Sem o meu dinheiro, vou ficar aqui até...

O "encanador" foi agarrado pelo colarinho e expulso do casarão com maus modos.

— Mas que garoto atrevido! — ouviu-se uma voz atrás do portão maciço, que acabara de fechar-se às costas de Calu.

O ator dos Karas escondeu o sifão e os canos numa touceira e correu para o hotel, em busca de Miguel, sorrin­do com a antevisão da cara que fariam aqueles dois bandi­dos quando encontrassem o paletó do "barbudinho" re­cheado com bolos de papel e cuidadosamente montado na poltrona, onde ele tinha deixado um cigarro aceso no cin­zeiro... O que diria Mike Sierrabrava? Bem, aquela era apenas a primeira das surpresas desagradáveis que Calu estava disposto a aprontar para o Ente!

 

                   Nos dentes da morte

Os pulmões de Crânio retorciam-se à procura de oxi­gênio quando o garoto se sentiu agarrado em seu mergulho para a morte. Deveriam ser piranhas, ou jacarés, que vi­nham transformar seu afogamento em uma morte mais rá­pida.

Crânio apertou os olhos, preparando-se para o que não podia ser evitado. Era um jacaré, na certa, que abocanhara o saco e agora o arrastava pela correnteza. Parecia puxá-lo para cima, à tona.

Subitamente, uma lufada de ar entrou pela boca do saco, enchendo-lhe os pulmões, trazendo-lhe mais alguns se­gundos de vida.

Por que o jacaré não mordia logo, para acabar de uma vez com aquela agonia?

Sentiu um baque. Um choque contra alguma coisa dura. E um dente comprido cortou o saco.

Pelo rasgão, o ar e a luz invadiram.

A luz fez o "dente" brilhar.

Era uma faca!

Crânio entendeu que a morte era aquilo, e que o de­mônio que viera buscá-lo era um velho "jacaré", de faca na mão, olhando fixamente para ele. Desligou-se daquela morte, fechando os olhos e mergulhando profundamente em um rio mais calmo, feito de febre e exaustão.

 

Crânio não se lembrava de sonhos. Sua última lem­brança era a imagem assustadora da morte, que agora se misturava a uma frase muito estranha impressa em uma camiseta, à sua frente: "South Dakota University"!

Aos poucos, acima da frase, um rosto sorridente, de óculos escuros, parecia feliz em olhar para o rapazinho, como se admira um bebê que acaba de nascer.

— Robson! índio Robson!

— Moço novo! Resolveu acordar para a vida? Rob­son está contente!

— Então eu não estou...

— Morto? Quase. Por oito dias esteve quase... Crânio olhou as próprias mãos. Eram duas trouxas amarradas com trapos que seguravam camadas de folhas gordurosas.

— O cemitério de jacarés... você desapareceu... vo­cê... me tirou do rio...

— Não. Foi Pacaman.

— Quem?

— Você está na aldeia dos Taí-pitá, moço novo. Os dois brancos que o carregavam estão no fundo do rio. Pa­caman não erra uma flecha.

— Oh, Robson, o que é tudo isso? Você precisa me expli...

— Agora não, moço novo. Descanse. A infecção foi muito grande. Teve uma semana de canto e pajelança pra tirar você da morte. Agora durma. Desta vez você escapou.

A palhoça era escura e Crânio adormeceu novamente, lembrando-se que aquela era a segunda vez que ele sobre­vivia ao Pantanal.

Parecia entardecer quando Crânio abriu novamente os olhos. Ergueu-se da rede, com dificuldade. Estava numa palhoça. Sob seus pés, uma esteira cheia de pedras redon­das, uma sacola de lona, gamelas com ungüentos estranhos, penas, cachimbos e uma moringa d'água.

Bebeu quase toda a água. Sentou-se sobre as pernas e sentiu saudades de sua gaitinha. O que teria acontecido com Bezerra? O que teria feito o Centurião ao descobrir a troca de "cadáveres"? Bezerra teria conseguido salvar-se? Teria falado com a polícia?

Abriu a sacola de lona. Uma lanterna, um facão, uma bússola, fósforos e uma infinidade de analgésicos, antitérmicos e antibióticos. Ergueu a pontinha da trouxa de trapos de uma das mãos. Por baixo das folhas e dos ungüentos, havia um curativo perfeito de gaze e esparadrapo!

— Robson já ajudou na enfermaria da Funai, moço novo — a figura do índio de óculos escuros recortava-se contra a entrada da palhoça. — Os Taí-pitá foram buscar a sacola lá na chalana afundada. Robson achou que a penicilina podia dar uma ajuda aos cantos e à pajelança...

Crânio sorriu. Pensava nunca mais tornar a ver aquele índio. E agora devia sua vida a ele.

— Quem são esses Taí-pitá?

— Veja por você mesmo, moço novo. Você já está melhor. Venha comigo. Peorê mandou buscá-lo.

— Peorê? Quem é Peorê?

 

No centro de um círculo formado pelas palhoças da aldeia, um pequeno grupo de índios esperava pelo garoto.

Crânio esfregou os olhos. A claridade era pouca para ofuscar-lhe a visão. Mas o que ele via ofuscava por com­pleto as idéias que sempre fizera sobre os índios do Brasil.

Era um grupo de velhos. O mais novo deles, um gigan­te, aparentava uns sessenta anos. Mas parecia forte como um jovem. Todos cobriam-se parcialmente com peles de ja­caré em tiras, e a cabeça do animal, como um capacete, emoldurava-lhes os rostos, que apareciam encaixados na bo­carra escancarada dos jacarés. Pinturas de urucum e jenipa­po cobriam-lhes os corpos. Estavam paramentados para alguma guerra. Contra quem?

Ao lado do garoto, Robson cochichou:

— Estes são os Taí-pitá, moço novo. Uma tribo de velhos. Talvez nem seja uma tribo, pois cada um vem de um povo diferente. São terenas, caidiveus, guaranis, guatós, paiaguás, guaicurus... Só estão juntos por causa de Peorê.

O olhar de Crânio focalizou o centro do grupo. Não era preciso apontar quem era Peorê.

Poderia ter cem anos. Ou mais. Ninguém saberia defi­nir. Mas ninguém podia negar a autoridade que emanava aquela figura impressionante. A figura de um líder. Daque­les que quando dizem "vamos!" todos vão, sem perguntar aonde nem por quê.

— Como você veio parar aqui, Robson? — perguntou Crânio, bem baixinho.

— Peorê mandou buscar Robson. Afundaram nossa chalana. Agarraram Robson e deixaram o moço novo sozi­nho.

— Por quê? O que os Taí-pitá queriam com você?

— Peorê é o pai do avô de Robson...

— Seu bisavô?

— Peorê é um guaicuru, como Robson. Os guaicurus foram índios cavaleiros no passado. Peorê é um dos pou­cos que restam. Um dos poucos que não andam bêbados, pelas vilas, pedindo esmolas...

— Onde estão os moços, Robson? Onde estão as crian­ças da tribo?

— Não há crianças. Não há jovens. Os Taí-pitá estão desaparecendo. Como os jacarés. Como o Pantanal, que eles defendem...

O grupo de velhos índios estava estático, como em um quadro. Crânio e Robson cochichavam entre si como se esti­vessem num museu, observando aquele quadro. O rapaz lembrou-se do Senador e da comparação que fez dos índios pantaneiros com um quadro de Van Gogh que estaria de­saparecendo do mais completo museu do mundo.

Como se o quadro falasse, a voz do índio centenário quebrou aquela expectativa.

— Araguaçu!

Era um chamado. Uma ordem. Robson avançou, vaci­lante, e postou-se ao lado de Peorê.

Então o verdadeiro nome de Robson era Araguaçu? Então aquele guia alegre, de óculos escuros, radinho de pilha e camiseta impressa com o nome de uma universidade americana era bisneto de um rei da cultura pantaneira, qua­se em extinção? Então aquele índio fantasiado de branco era um príncipe? Araguaçu tinha virado Robson? Seria este o destino dos índios do Brasil?

Peorê falou. Mas não era possível compreender as pa­lavras. Tudo o que Crânio pôde entender foi a segurança e a decisão de seu discurso. O gigante falou também. Sua fala era arrogante, agressiva, dura. Entre os dois, assustado, Robson parecia um recém-formado advogado que defendia sua primeira causa, mas já sentia o gosto da derrota.

— O moço novo é gente boa. Não é um coureiro.

A fala do gigante, que Crânio logo percebeu ser Pacaman, voltou agressiva, discordante, agora já uma ameaça. E o gênio dos Karas entendeu contra quem era aquela ameaça.

— Fale português, Pacaman, para o moço novo enten­der — pediu Robson.

Quem falou foi Peorê.

— Índio que esquece a própria língua fica mudo!

— Mas todos aqui sabem português — argumentou o guia índio. — Todos já viveram nas cidades. Por que então...

— Porque índio na cidade dos brancos deixa de ser índio e não consegue virar branco, Araguaçu! — cortou Peorê. — Você é neto do filho de Peorê. Você é um guai­curu. Não virou branco tentando viver como um branco. E deixou de ser índio. O que você é agora, Araguaçu? Você não é mais nada!

Robson tentou falar. Mas seus argumentos travaram-se   na garganta.

— Por que tapa o sol com vidros negros, Araguaçu? De que se esconde, Araguaçu? Da luz? A luz sabe que você é um guaicuru. Você tem vergonha de ser um guaicuru?

A luz não tem vergonha de ser luz, mesmo quando ela tem de desaparecer, à noite. A luz sabe que o dia voltará, e ela será luz novamente. Saia dessa noite, Araguaçu. Seja luz novamente!

O guia índio estava nervoso, mas não baixava a cabe­ça. Não sabia mais como tratar a si mesmo. Se Robson ou Araguaçu. Resolveu ficar no meio. Pela primeira vez, tra­tou a si mesmo como "eu".

— Peorê viveu a vida toda junto com os brancos, co­mo eu. Foi guia no Pantanal, como eu. Aprendeu tudo do mundo dos brancos, como eu. Por que tenho de me enver­gonhar por fazer as mesmas coisas que Peorê?

— Peorê ensinou Araguaçu a ser guia no Pantanal — falou o velho índio, pausadamente. — Araguaçu aprendeu muito bem. Agora, Peorê mandou Taí-pitá pegar Araguaçu no cemitério dos jacarés porque tem coisas mais importan­tes para ensinar. Mas Araguaçu tem de mudar. Peorê quer que Araguaçu volte a ser gente. Quer que Araguaçu volte a ser um guaicuru. Que volte a ser um índio. Peorê quer que Araguaçu seja o novo guardião do segredo Taí-pitá!

O gigante Pacaman trovejou, em protesto.

— O novo guardião do segredo Taí-pitá deve ser Pa­caman!

Peorê sacudiu a cabeça.

— Pacaman é violento. A guarda do segredo Taí-pitá não pode ser feita com sangue!

— Derramar o sangue dos brancos é a única maneira de impedir que seque o sangue dos índios!

— Não é matando que se vive, Pacaman. É sobrevi­vendo que se vive!

Peorê estava imóvel, como uma estátua falante. Mas Pacaman usava o corpo todo para argumentar. Batia com a lança no chão, curvava-se, agitava os braços. A expressão de seu rosto encaixado entre os dentes do jacaré era negra e vermelha, de tinta e de raiva.

— O Pantanal ensinou Pacaman a ser um índio. Mas Pacaman viveu muito tempo servindo os brancos. Pacaman aprendeu muito com os brancos. Aprendeu até a ser um índio melhor. O índio tem de ser como o homem branco e tem de ser como a onça. Para avançar silenciosamente, tem de ser a onça. Para matar, tem de ser o homem branco e saber usar a zagaia. Pacaman aprendeu que tem de ser a fera silenciosa da natureza e a fera assassina da civilização dos brancos. Para sobreviver, tem de matar!

Peorê falou, como uma sentença definitiva:

— O segredo Taí-pitá não é um segredo de morte. É um segredo de vida. É a única saída para a sobrevivência dos índios. Peorê recebeu esse segredo das mãos do avô. Peorê guarda esse segredo toda a vida, mas agora está na hora de passar a guarda para outro.

A voz do gigante respondeu, ameaçadora:

— Para Pacaman! Pacaman saberá guardar o segredo Taí-pitá, como sabe guardar a vida dos jacarés. Os coureiros estão destruindo os jacarés. Pacaman destrói os coureiros e enche a boca deles com formigas, para que os outros aprendam o que lhes acontecerá!

Os coureiros mortos no cemitério de jacarés! O coureiro magro, com formigas carnívoras na boca, morto perto da fazenda do Senador! Fora Pacaman! Então... os Formigas-paradas! Aqueles eram os Formigas-paradas! Taí-pitá queria dizer Formigas-paradas! Crânio estava em poder dos espíritos assassinos do Pantanal!

— Pacaman já andou demais pelos caminhos da morte!

Por um instante, Crânio sentiu uma ponta de frustra­ção. Ele deduzira errado. Os Formigas-paradas não tinham nada a ver com o Ente. Os coureiros não estavam sendo mortos pelos bandidos do Centurião. Aqueles velhos índios nada tinham a ver com o crime organizado. Eles eram as vítimas que tentavam se organizar para morrer com dig­nidade...

Crânio passara uma pista falsa ao piloto Bezerra. "Mas isso não tem importância!" — pensou. — "O que importa é que eu sei quem é o Ente! Ah, isso eu sei!"

Peorê desafiava o gigante.

— Pacaman pode matar todos os homens brancos?

— Pacaman pode morrer tentando!

Crânio sabia que ele era o centro daquela discussão, embora ninguém olhasse para ele. Sabia que sua vida esta­va em jogo. Peorê e Pacaman discutiam um com o outro, mas não pretendiam, com seus argumentos, convencer um ao outro. Era o grupo inteiro que eles pretendiam conven­cer, como se aquele grupo de índios velhos fosse o corpo de jurados de um julgamento e o garoto o réu!

Quase imperceptivelmente, o grupo se movia. Em pou­co tempo, Crânio foi cercado pelos Taí-pitá. Ficou no cen­tro do círculo, com sua vida nas mãos de Peorê. Ou de Pacaman...

A lança curta de Pacaman zunia em volta de Crânio, perigosamente manipulada em círculos pelo velho gigante, que girava em volta do garoto com uma expressão incendia­da pelo urucum.

— Pacaman tirou o menino coureiro do rio. Pacaman cantou, Pacaman dançou, Pacaman fez pajelança e os espí­ritos do rio não levaram a vida do menino coureiro. Agora, a vida do menino coureiro é de Pacaman!

A ponta da lança foi encostada na garganta de Crânio. Imóvel, Pacaman tinha terminado seu discurso. A palavra agora era de Peorê.

O índio centenário estava de pé. Sua figura encarquilhada tinha a imponência de um deus. Sua voz firme tinha a segurança de um sábio que tudo aprendeu da vida, e chegou ao fim dela com todas as dúvidas.

— O homem branco está matando os jacarés. O ho­mem branco está matando o Pantanal. O homem branco está expulsando o índio e cercando a liberdade das terras. Por isso Peorê voltou para a aldeia. Por isso Peorê reuniu os Taí-pitá.

Com o braço estendido, o velho índio apontou por to­da a sua volta, como que incluindo a natureza em sua argumentação.

— Mas de que adiantou reunir essa nova tribo? Os Taí-pitá são velhos e poucos como os jacarés. Peorê apren­deu a falar a língua dos jacarés. Mas Peorê não fala mais a língua guaicuru. Nenhum índio mais fala a língua guaicuru.

Talvez as últimas palavras do meu povo estejam perdidas entre as árvores, sendo repetidas pelos papagaios. Mas os papagaios não sabem o que falam. Não podem transmitir a sabedoria guaicuru para as crianças. Não podem manter unida nossa tribo.

Crânio permanecia imóvel. Olhos nos olhos de Paca­man, não conseguia ler seu destino. Só podia esperar.

— Peorê reuniu índios como ele só para que todos morram juntos como morrem as velhas árvores que não deixaram sementes? Não. Peorê chamou todos os índios que não aceitaram o mundo dos brancos. Todos que queriam voltar a ser índios. E a esses Peorê ofereceu uma esperança. A esperança do segredo Taí-pitá!

O que seria o segredo Taí-pitá? O que seria o segredo dos Formigas-paradas? A ponta da lança na garganta e o medo impediam Crânio de engolir, mas não o impediam de pensar.

De dentro do manto de tiras de pele de jacaré, Peorê tirou um pacote. Um pacote embrulhado também em couro de jacaré escurecido pelo tempo.

— Durante todos esses anos, até mesmo durante o tempo em que viveu entre os brancos, Peorê guardou o se­gredo Taí-pitá. A esperança Taí-pitá. O feitiço que o avô de Peorê deixou antes de morrer. Peorê não conhece o se­gredo, mas sabe que aqui está o feitiço que impedirá que o índio desapareça. Aqui está o segredo que fará com que o índio volte a ser forte, volte a ser muitos, volte a caçar li­vremente pelo Pantanal!

A voz do velho índio alteou-se.

— Este é o feitiço da vida, Pacaman! Não o feitiço da morte. Enfrentar o branco é o mesmo que justificar o assassinato do índio. Morrer lutando não é tentar viver. Vi­ver tentando é resistir. Pacaman tirou duas vezes este me­nino do espírito da morte. Então Pacaman sabe dar a vida. A vida do menino é de Pacaman. Pacaman deve devolver a vida ao menino!

A lança tremeu apoiada no pescoço de Crânio quando aquele discurso foi interrompido pela invasão de mais al­guém, que chegava falando excitadamente.

Pacaman voltou-se para a voz recém-chegada, retiran­do a lança. Crânio quase desfaleceu nos braços de Robson, que correu a ampará-lo.

Quem falava agora era uma índia, tão velha quanto os outros.

Abraçando o prisioneiro, Robson traduziu:

— A mulher diz que tem mais gente presa no lugar de onde você fugiu. Menino pequeno, menina bonita, ho­mem gordo, sem cabelos... Homem gordo chora, enxuga careca com pano...

Crânio afastou-se do abraço de Robson e cambaleou, tonto pela fraqueza e pela revelação. Eram seus amigos! Só podiam ser seus amigos! Tinham vindo salvá-lo e caíram nas garras do Centurião!

— São meus amigos, Robson! Me ajude a salvá-los! Me leve até lá!

Fez-se silêncio na mesma hora. Era a primeira vez que os Taí-pitá ouviam a voz de Crânio. A todos pareceu estra­nho que o prisioneiro não implorasse pela própria vida, mas pedisse ajuda para socorrer outros condenados.

Crânio voltou-se para o centenário líder dos Formigas-paradas.

— Peorê falou em vida. Me ajude! Me ajude a salvar a vida dos meus amigos!

A febre parecia voltar. Sua excitação não era normal. Agarrou a lança de Pacaman e enfrentou o olhar gelado do velho gigante.

— Minha vida é sua, Pacaman. Seja então dono de mais três vidas! Depois faça o que quiser com a minha!

A noite já tinha caído completamente sobre a aldeia, e os olhos de Pacaman ressaltavam-se como duas luas no negro-rubro de seu rosto.

— Pacaman vai!

O guia índio amparou novamente o rapaz.

— Robson vai, moço novo!

A voz calma de Peorê coroou a decisão.

— Os Taí-pitá vão!

 

                   Ninguém escapa do grandalhão

Miguel olhou mais uma vez para o relógio. Seis ho­ras! Àquela altura, Calu já deveria ter voltado ao hotel pa­ra que os dois fossem à igreja encontrar-se com Mike Sierrabrava. O que teria acontecido com o ator dos Karas?

O telefone do quarto tocou. Era da portaria do hotel.

— Tem um recado aqui para o senhor Miguel...

— Um recado? Já vou aí!

O rapaz nem se preocupou em disfarçar a ansiedade. Em um minuto estava na portaria, com o bilhete nas mãos.

A letra de Magri! O Código Vermelho!

"Fombermombers caisptufterraisdombers nomber rinisomber. Sinisgaism Penterquenternomber Pomberlentergaisr". Miguel traduziu na hora. Era só substituir "ais" por "a", "enter" por "e", "inis" por "i", "omber" por "o" e "ufter" por "u"..

"Tenho de procurar ajuda" — pensou o garoto. — "Andrade disse que a polícia do mundo inteiro está atrás do ouro da Máfia. Será que devo procurar a polícia?"

Miguel não era de confiar nos adultos, e muito menos na polícia. Se o crime organizado estava agindo com tanta força no Pantanal, não seria de esperar que houvesse ban­didos infiltrados dentro da própria polícia?

E agora? O que poderia fazer o líder dos Karas? Como procurar, sozinho, seus três amigos por todo o Pantanal?

Sentado na poltrona semidestruída do saguão do hotelzinho, Miguel ouvia vagamente uma música sertaneja que vinha do radinho da portaria. Em seguida, o locutor anun­ciou alguém muito importante que estava nos estúdios para uma entrevista. Aos poucos, Miguel começou a interessar-se por aquilo que ouvia.

— Interesses externos estão destruindo o paraíso onde vivemos — declarava uma voz mais grave e mais bonita que a do locutor. — O Pantanal está sendo destruído para garantir o fantástico enriquecimento de uns poucos que, fora de nosso país, controlam o comércio de peles de jacaré, de contrabando de carros roubados e de drogas!

— Mas o que estão fazendo as autoridades, Senador, para combater essa situação? — perguntou o repórter.

— Este não é um problema apenas das autoridades. Ê um problema de todo o povo pantaneiro. Ê um problema de todo o Brasil. Ê um problema de todo o mundo — res­pondeu a voz grossa. — Precisamos estar unidos nesta hora porque um crime maior está dirigindo sua ganância sobre o Pantanal. Estou colocando meu poder, meu dinheiro e minha influência nesta luta. Peço a confiança da população. Qualquer informação pode nos ajudar nesta cruzada contra a destruição e contra o crime. Ou o Pantanal volta a ser o paraíso que a natureza criou, ou eu morro junto com ele!

Ali estava alguém que falava a mesma língua de Mi­guel. Alguém que pedia confiança. Alguém que poderia ajudá-lo!

O líder dos Karas conseguiu o número do telefone da estação de rádio e discou.

 

— Alô?... Quem?... Um estudante de São Paulo quer falar com o Senador?... Sim) ele ainda está no estú­dio... Um momentinho...

A voz grossa e envolvente não se fez esperar. Miguel resolveu falar pouco.

— Senador? Ouvi sua entrevista. Tenho informações sobre o Ente...

A voz trovejou do outro lado.

— Quem?! O Ente? Onde você está? No hotel? Chego aí em um minuto!

 

Aquele homem ocupava boa parte do quarto de Mi­guel. Falava afavelmente. Sua voz era mais impressionante ao vivo do que pelo rádio.

— Acalme-se, garotão. Nós vamos ajudá-lo. E você vai nos ajudar, se tiver alguma pista sobre o Ente...

— É uma longa história, Senador. Lá em São Paulo, um professor de matemática, do colégio onde eu estudo, foi assassinado há quase duas semanas...

— Professor Elias, não é?

— Sim. É ele. Como sabe?

— Sabemos de muita coisa, garotão. Mas fale você primeiro.

— Um colega nosso inventou uma ligação maluca en­tre o assassinato desse professor e o Pantanal. Decidiu vir para cá, sozinho, para provar sua teoria.

— Meu Deus! — exclamou o Senador. — Não me diga que esse colega é o Crânio!

— Sim! É o Crânio! O senhor o conhece? Onde está ele?

— Estamos vasculhando todo o Pantanal atrás do seu amigo Crânio, garotão...

Tentar localizar Crânio tinha sido o motivo da viagem de Andrade e os Karas para o Pantanal. Agora, a isso se somava a captura de Andrade, Magri e Chumbinho. E ainda havia Calu, que não voltara ao hotel. O líder dos Karas resolveu não falar de Calu para o Senador, nem do seu plano de entregar o amigo disfarçado nas mãos do Mike Sierrabrava e segui-lo depois para descobrir o covil do ter­rível Ente. De nada adiantaria vasculhar a cidadezinha em busca de um Kara como Calu, que, até indícios em contrá­rio, sabia se virar sozinho. Calu era um ator de grande talento e o rapaz mais bonito do Colégio Elite. Mas não era de posar como um filhinho de papai. Em ação era um gato selvagem.

— Ainda não encontramos Crânio, mas não vamos de­sistir, garotão — prometeu o Senador. — Confie em mim. Não sou um simples fazendeiro. Estou no comando da úni­ca organização que pode ajudá-lo neste momento.

O grandalhão transmitia segurança. Inspirava tranqüi­lidade. Era alguém que se encontra com alívio num mo­mento difícil como aquele. Miguel tinha de colocar-se nas mãos do Senador. Era preciso arrancar seus amigos das garras do supercriminoso que chamavam de O Ente.

— Parece que o Ente apanhou o detetive Andrade, Magri e Chumbinho, Senador. Eles desceram o rio Taquari, em um barco, até a vila de São Francisco, para descobrir como estão indo as investigações sobre a morte do piloto Bezerra e o desaparecimento de Crânio. E, agora, alguém entregou este bilhete no hotel. Foi escrito por Magri. Veja.

O Senador não entendeu coisa nenhuma.

— Está em código, Senador. Uma brincadeira que in­ventamos no colégio. Achamos que a brincadeira poderia servir, em circunstâncias como estas...

Naturalmente Miguel não revelaria a existência dos Karas como um grupo organizado. Era melhor fazerem-se passar por uma turminha de estudantes inocentes.

— Mas o que está escrito aí?

— "Fomos capturados no rio. Sigam Pequeno Polegar."

— Que história é essa de Pequeno Polegar? Como vamos...

— É fácil, Senador. O Pequeno Polegar, para não se perder na floresta, foi espalhando pedrinhas coloridas pelo caminho. Magri deve ter pensado em algo assim. Deve ter deixado pistas para serem seguidas. O Senador suspirou, desanimado.

— Histórias de crianças! Pode até ser fácil seguir a pista. O problema é descobrir onde essa pista começa!

— Eles foram capturados no rio Taquari, Senador — argumentou Miguel. — Isso deve ter acontecido, na ida ou na volta, em algum ponto entre a vila de São Francisco e Otília, de onde o barco partiu e para onde deveria voltar.

— De Otília a São Francisco? São mais de 70 quilô­metros de rio...

— É nossa única chance, Senador... O grandalhão levantou-se, decidido.

— Certo! Vou organizar uma expedição e vamos en­contrar seus amigos. É melhor você passar a noite no meu casarão. Sairemos lá pelas três da manhã. Devemos chegar antes do amanhecer em Otília. Vamos vasculhar as margens do Taquari, começando de madrugada!

 

Era noite fechada quando Calu voltou para o hotel.

Ainda estava a uns cem passos quando o que viu ge­lou-lhe o sangue nas veias: Miguel saía do hotel ao lado de um homem muito grande que lhe segurava o braço. Os dois entraram num Opala, que arrancou velozmente, levantan­do a poeira das ruas esburacadas de Nhecolândia.

O Senador! O grandalhão tinha perdido um peixe, mas logo em seguida tinha agarrado outro nas malhas de sua rede! E Andrade? E Magri? E Chumbinho? Já deveriam estar de volta. O que teria acontecido com eles?

Qualquer um perderia a cabeça naquele momento. Mas pânico não era a palavra que poderia definir um Kara em ação. Calu controlou a ansiedade e procurou raciocinar. Não podia subir para o quarto. Certamente os bandidos estavam de tocaia.

O ruído de motor fez com que ele se escondesse rapi­damente. Um espalhafatoso e antigo Cadillac rosa-choque encostava em frente ao hotel. O empregado da portaria apareceu, pressuroso, cheio de sorrisos, e abriu a porta do automóvel.

— Tia Matilde! Que honra receber a senhora em nos­so hotel!

Uma mulher alta e magra, vestida de cor-de-rosa, acei­tou a mão que o empregado lhe estendia para ajudá-la a sair do carro. Deveria ter uns sessenta anos, mas a ajuda era inútil, pois a mulher parecia em melhor forma física do que o empregado.

— Esta espelunca é a única disponível, não é? Tem algum apartamento decente?

— Para a senhora, temos o melhor!

— Ah, ah! não se envergonhe, meu querido. Eu não sou de luxos. Sou tia Matilde, faço parte do Pantanal! Não se esqueça!

Mesmo de longe dava para perceber a pele de seu rosto esticada por boas operações plásticas. Tia Matilde fazia questão de manter como nova sua velha pele, como manti­nha novo o velho Cadillac.

Tia Matilde! A tia de Crânio. Era isso! Uma fazendei­ra riquíssima e poderosa. Ela poderia ajudá-lo. Talvez fos­se a única pessoa, em todo o Pantanal, que poderia ajudar Calu naquele momento.

 

Uma janela estava entreaberta. Calu espiou. Era um quarto vazio. Saltou rapidamente a janela, fechou-a por den­tro e foi até a porta. Abriu uma fresta mínima.

Tia Matilde surgia no começo do corredor e estendia uma gorjeta para o empregado que carregara sua valise cor-de-rosa.

Calu contou mentalmente 30 segundos, para dar tempo de o empregado afastar-se. Atravessou o corredor e bateu levemente na porta do melhor apartamento daquele hotelzinho.

Empurrou a porta logo que ouviu a chave girar do outro lado e entrou, sem pedir licença.

— Por favor, tia Matilde! Não grite. Não se assuste. Sou amigo de Crânio!

Sentada na cama, tia Matilde ouviu atentamente. Ti­nha passado a última semana empregando todo o seu po­der para descobrir o sobrinho desaparecido. Estava infor­mada de tudo. Sabia da morte de Bezerra e de suas últimas palavras. Só não tinha nenhuma pista de Crânio.

— Ele está vivo, tia Matilde. Acredite! Crânio está vivo, em algum lugar do Pantanal!

Tia Matilde voltou-se para o rapaz e beijou-o carinho­samente no rosto.

— Nós vamos encontrá-lo, meu querido!

— É claro, tia Matilde. Posso chamá-la de tia?

— Per que não? Todos chamam...

— Há um caminho a seguir, tia Matilde. Esse cami­nho é o do Senador. Precisamos descobrir o que ele preten­de fazer com Miguel. Tenho certeza que todas as respostas estão com o Senador. Através dele chegaremos ao Crânio. Acho que através dele teremos respostas a todas as nossas perguntas...

Tia Matilde levantou-se. Parecia disposta como nunca. Era aquela mulher cuja alegria e excentricidade tinham fei­to fama no Pantanal.

— É isso, meu querido. Vamos à luta! Para que serve o dinheiro?

Pediu uma linha à portaria e pôs-se a dar ordens por telefone.

 

Uma hora depois, um telefonema trouxe as informa­ções que os dois esperavam. Miguel estava "hospedado" no casarão do Senador e uma expedição deveria subir o rio Taquari naquela madrugada. Miguel iria junto.

Calu entendeu o poder que tinha aquela grande fazen­deira. Ninguém nem coisa alguma eram mistérios para tia Matilde. A mulher tinha seus jeitos de conseguir o que que­ria. Todos os jeitos que o dinheiro pode comprar.

— O que faremos, tia Matilde?

— Vamos seguir essa expedição, meu querido. Não vamos perder o seu amigo de vista. Nem o Senador...

— Segui-los? Mas como?

— Pelo ar, meu querido. Meu aviãozinho está aqui, em Nhecolândia. Vamos voar atrás deles!

 

                   Na trilha do Pequeno Polegar

Crânio só conseguia ver, de relance, sombras passagei­ras como flashes fotográficos cada vez que um dos velhos Taí-pitá passava por uma réstia do luar que se infiltrava por entre as árvores. Eram sombras medonhas, cobertas por assustadoras peles de jacaré, com as bocarras escancaradas. Um grupo de demônios. Um pequeno exército de fantasmas silenciosos, determinados. Guiavam-se na escuridão, por en­tre as árvores, como se fosse dia.

A sombra mais velha avançava à frente, como um jo­vem guerreiro. Robson, com uma zagaia curta nas mãos, seguia quase colado ao bisavô.

O gênio dos Karas tropeçava, chocava-se contra os ra­mos mais baixos, enredava-se nos cipós. Mas sua determina­ção não diminuía.

"Magri! Me espere. Já estou indo! Já estou indo!"

Um trompaço maior, e uma queda. Ao seu lado, um braço forte ergueu-o.

Sob a fraca luz da lua, a alvura de dois olhos, arrega­lados pelo ódio e pela antevisão do sangue de brancos a derramar, fixou-se por um momento naquele garoto para quem a floresta era uma ameaça e não uma salvação. No meio da noite era o rosto de um demônio que parecia estar sendo vomitado por um sáurio infernal.

Pacaman empurrou-o, e Crânio seguiu na trilha da­queles fantasmas de pesadelo.

 

O antigo, mas reluzente Cadillac cor-de-rosa entrou na pista do pequeno aeroporto particular guinchando os pneus e estacionou ao lado do avião. Calu esfregou os olhos. Era um enorme avião cor-de-rosa! Um par perfeito para o Ca­dillac.

O rapaz estranhou a cor e estranhou ver ali, em pleno Pantanal, um C-47, uma relíquia da 2.a Guerra. A pintura rosa-choque era novinha, como parecia ser o C-47, tão bem conservado, com seu prefixo PT-MSB pintado em preto.

— Gostou do aviãozinho, meu querido? — sorriu tia Matilde. — Isso sim é que é avião! Não é como essas latinhas de hoje em dia, que mais parecem brinquedos. Na­quele tempo, sim, é que se faziam máquinas para durar. Você vai ver lá em cima. Você vai ver do que o meu avião­zinho é capaz! Não é, Pepino?

Só neste momento Calu reparou no piloto. Pepino. Um sobrevivente da própria guerra, como o avião, e que trazia em cada ruga uma lembrança do tempo "em que se faziam máquinas para durar". Um ítalo-americano caladão, sempre de olhos baixos, metido num blusão de couro tão desgasta­do pelo uso quanto sua cara.

Embarcaram.

Se a preocupação não fosse tanta, Calu não poderia deixar de rir. Todo o interior do C-47 estava decorado em rosa, com veludos, cetins, tafetás, cortinas, móveis antigos, vasos floridos e um fofíssimo diva da cor das flores. Tudo era cor-de-rosa, tudo era fofo, como o quarto de uma madame do século 19. E a tal "madame" estava ao seu lado.

Calu sentiu-se em uma sala de visitas da avó de alguém e não a bordo de um avião que, no passado, devia ter sol­tado toneladas de bombas na Europa e no Pacífico.

Ainda não amanhecera quando as hélices começaram a girar.

 

Andrade não conseguia impedir que as lágrimas cor­ressem fartas por suas bochechas. Na escuridão, espremido na casita de bambu, deixou-se consolar por Chumbinho, como se fosse uma criança grande, gorda e careca.

— Nunca! Eu nunca deveria ter permitido que vocês viessem para cá! Magri! Minha filhinha! Se o Centurião tocar em um só fio do cabelo de Magri, eu juro... Ah! eu juro que vou arrancar o fígado daquele canalha, nem que seja a última coisa que...

Chumbinho apertou fortemente a mão do amigo.

— Controle-se, Andrade, por favor! Você não conhe­ce direito a Magri...

— Eu adoro aquela menina!

— Mas não conhece direito. Pode deixar que ela mes­ma arranca o fígado do Centurião. Ele não tem idéia do problema em que se meteu!

— Magri... Crânio! Onde está você, menino? Por que se meteu nesta história de horror?

Chumbinho abraçou o amigo. Juntos, naquela gaiola escura, os dois estavam abandonados à própria sorte.

 

Em Otília, balançando-se nas águas calmas do rio Taquari, havia nada menos que dez voadeiras, todas iguais, à espera do Senador e de Miguel. Mais de quarenta homens, com armas modernas, mochilas e um aparelhamento portá­til de rádio.

— Vamos subir o rio, devagar — comandou o Sena­dor. — Todo mundo de olho nas margens. Procurem por qualquer marca ou objeto que possa ter sido deixado por alguém, como um sinal. Nada deve ser desprezado.

De pé, na proa, a figura imensa do Senador parecia desequilibrar a primeira lancha. Miguel ocupou a proa da voadeira seguinte, e o homem que estava no leme mano­brou-a para a esquerda, de modo que, lado a lado, as duas embarcações liderassem a expedição.

Dez motores de 25 Hp roncaram ao mesmo tempo. O líder dos Karas estava em ação. Havia uma esperança.

"Chumbinho... Andrade... Magri... Eu vou encon­trar as suas pistas, minha querida Pequeno Polegar... Eu vou salvar você, meu amor..."

Na primeira curva, porém, duas outras voadeiras, atra­vessadas no rio, impediam a passagem da expedição. Na proa da primeira, um homem de bigode sorria.

 

O Centurião empurrou-a brutalmente para dentro da barraca. Magri rolou, chocando-se com a armação e fazen­do balançar o lampião a gás pendurado em um dos ferros.

— Que bela chica! Fuiste um regalo que los cielos me han entregáo. Creo que los dioses están preocupados com la solitud dei Centurión...

O bandido pegou uma corda de náilon e abaixou-se ao lado da garota. Habilmente amarrou-lhe as mãos às costas.

— Para que no penses em fugir. De nada adiantaria, verdad? Adonde iria una chiquita como tu, no meio de Ia noche, en ei Pantanal? Tienes miedo de Ias cobras, chi­quita? No Ias tiemas. El Centurión está acá, para prote­ger-te...

Como se fosse capaz de um carinho, a mão amarela de sarro de cigarro do Centurião tocou a face delicada de Magri...

 

— Bom dia, Senador! Saindo para pescar?

Ainda estava escuro, mas as primeiras luzes do dia já podiam ser percebidas. Era como se a luz tivesse cheiro, ao amanhecer. Para Miguel, as sensações confundiam-se. Tudo parecia impregnado do perfume de Magri.

— Bom dia, tenente — respondeu o Senador. — Pa­rece um bom dia para pescar. Acho que vai dar para pegar peixe grande hoje...

O rio sobe para um lado só, não é, Senador? Por isso acho que vamos para o mesmo lado...

— O rio é público, tenente...

As duas chalanas manobraram e juntaram-se ao grupo, uma de cada lado. Mais dez homens. Todos fortemente armados.

O Senador não parecia muito feliz com aquela com­panhia.

 

O C-47 voava alto.

— Como vamos localizar Miguel desta altura, tia Ma­tilde?

— Não se preocupe, meu querido. O importante é que eles, lá debaixo, não nos localizem. O que haveria de pen­sar o Senador se visse meu aviãozinho sobrevoando o rio o tempo todo? Nada disso. Temos um aparelhinho aqui que vai resolver o problema.

Tia Matilde abaixou-se e fez correr uma tampa no chão do aparelho. Uma vigia de vidro blindado mostrava o Pantanal na glória do amanhecer. Encaixada na borda da abertura, uma aparelhagem sofisticada, unindo máquina fo­tográfica e luneta eletrônica.

A tia de Crânio colou um olho à luneta e ajustou o aparelho.

— Veja, meu querido. É como se estivéssemos a ape­nas cem metros de altura.

Calu ocupou o lugar da tia. A luneta estava focalizada sobre o rio Taquari, sobre um grupo de lanchas. Era quase possível reconhecer os ocupantes.

— Viu? Nós podemos seguir até uma mosca! Mas eles, lá embaixo, nem vão desconfiar. É um brinquedo ado­rável, do tempo da guerra.

— Puxa! já existiam aparelhos como este na 2.a Guer­ra?

— 2.a Guerra? Que nada! Esse aparelhinho é da guer­ra do Vietnã!

 

— Mais devagar — pediu Miguel ao homem do leme. — O que é aquilo?

O homem manobrou a lancha e aproximou-se ainda mais da margem. O líder dos Karas pulou rapidamente para terra e correu em direção a algo que só ele percebera. Algo vermelho, balançando ao sabor da brisa.

— Senador! Encontrei! é o lenço de Magri!

 

O C-47 voava em círculos e o sol projetava para den­tro o reflexo rosa-choque da fuselagem. Tinham muito tem­po. Lá embaixo, a expedição arrastava-se pelo rio.

— Bebe alguma coisa, meu querido?

Tia Matilde abriu a geladeira cor-de-rosa. Calu acertou a limonada que ela lhe oferecia. Para si mesma serviu-se de uma farta dose de whisky, com muito gelo.

— Ah, esse calor do Pantanal! Já estava desacostuma­da ao calor brasileiro...

— A senhora é americana, não é?

— Nada! Sou brasileira da gema, meu querido. Vivi muito tempo nos Estados Unidos, quando estava casada com Vitório. Pobre Vitório! Me deixou à maior rede de res­taurantes de comida italiana. Uma herança de macarrão! O melhor macarrão do mundo! Ah, ah! É graças a essa macarronada toda que eu pude voltar para o Brasil e criar gado aqui neste paraíso de sonhos. Agora, Nova Iorque só de visita!

Calu deixou a tia falar de suas saudades e de seu su­cesso como fazendeira no Pantanal. Aos poucos, embalada pelo whisky, tia Matilde lembrou-se do sobrinho desapare­cido.

— Pobre menino! Eu estava tão contente em recebê-lo... Só o vi desmaiadinho, coitado...

— Desmaiado?! Como assim?

— Bem, meu querido, eu não queria contar. Mas, na­quele dia, meu sobrinho foi confundido com algum trafi­cante de cocaína e acabou ferido. Levemente, mas precisou ficar no hospital, enquanto eu saía em um desses jatinhos modernos em busca do meu mecânico, porque este valente C-47 cismou de encrencar. E, na minha ausência, o Senador foi mais esperto...

Tia Matilde entornou o fim do copo de whisky e con­tinuou.

— A responsabilidade pelo desaparecimento do meu sobrinho é do Senador. Ah, isso é! Levou Crânio para a fazenda dele e, depois disso, só ouvimos falar dele nas últi­mas palavras do pobre piloto comido pelas piranhas...

O Senador tivera Crânio nas mãos. Depois, fora a vez de Calu. Agora era Miguel quem estava em seu poder. Calu teve vontade de dizer que a responsabilidade por tudo de ruim que estava acontecendo no Pantanal era daquele gran­dalhão. Mas de que adiantava falar? Aquela era a hora de agir...

Tia Matilde recostou-se na ampla poltrona cor-de-rosa.

— Por isso fiz questão de organizar eu mesma as buscas do meu sobrinho. Aqui, a polícia é muito desapare­lhada, meu querido. Tive de botar todos os meus emprega­dos, todos os meus amigos, nessa procura. Ninguém deu um passo sem minha ordem. Mas, até agora, nada... Coitado do meu menino! Coitadinho...

O cansaço de uma semana de buscas, a noite mal dormida e o whisky, àquela hora da manhã, fizeram seu efeito. Tia Matilde soltou o copo no chão acarpetado do avião e adormeceu.

 

O sofisticado aparelhamento de rádio estava sintoniza­do em um programa sertanejo. Magri estranhou que, entre uma música e outra, entre um anúncio e outro, o locutor viesse com uma fala que parecia totalmente deslocada:

— Atenção, pessoal! O Taquari tá cheio de piranhas!

O Centurião soltou uma gargalhada que encheu toda a barraca com seu hálito fétido.

— Ah, essos coureiros se defendem! Sabes o que oiste? Es um código. El locutor está avisando a sus cumpadres que la policia anda por ei Taquari. Acá es asi. Todos sabem se defender, chiquita!

Pegou uma garrafa de pinga em uma sacola.

— Pero devemos olvidar los problemas dei Pantanal por ahora, chiquita. Haremos una fiesta! Una fiestita antesl Ah, ah!

Colou o gargalo à boca, tomando um grande gole e deixando a cachaça escorrer pelo queixo. Olhos vermelhos, arrotou e estendeu a garrafa para a menina.

— Quieres um golito? Bebes, chiquita?

 

Coruja não pia ao amanhecer. Isso Chumbinho sabia. E não precisou de muito tempo para entender o que a "co­ruja" queria dizer com aqueles piados.

— Um longo, um curto, um longo... um curto, um longo... um curto, um longo, um curto... um curto, um longo... três curtos! Karas! Mas quem será que...

Na escuridão da casita, Andrade não entendeu o que estava acontecendo.

— O que você está falando, Chumbinho? Ficou ma­luco?

— Fique quieto, Andrade! Deixe eu ouvir a coruja!

— Coruja!? Mas...

— Quieto! Espere... um longo, um curto, um longo, um curto... um curto, um longo, um curto... um curto, um longo... um longo, um curto... dois curtos... três longos... Crânio!! Crânio está vivo!

— Chumbinho, você está delirando?

— Andrade, Crânio está vivo! Está lá fora! Esses pios de coruja estão em Código Morse!

— Morse? Como eu não percebi?

— Lá estão os piados de novo. Ouça! Um longo... um curto... um longo, um curto... quatro curtos... três longos...

No fim da mensagem, Andrade traduziu:

— "Tenho gente comigo. Vamos libertar vocês..." Chumbinho abraçou, feliz, o amigo detetive.

— Crânio! E a gente que pretendia salvá-lo. Agora ele é que aparece para nos libertar!

 

Magri teve de se conter para não chorar de alegria.

Um novo código sobrepunha-se ao código dos bandi­dos, do programa de rádio. E foi como um coro de anjos. A coruja piava em Morse! Crânio estava vivo! E viera li­bertá-la!

Não estava em condições de responder, mas nem pre­cisava. Ouviu o pio de outra "coruja". Era Chumbinho. Crânio estava sendo informado de tudo o que acontecia no acampamento dos bandidos.

Resolveu usar todo o charme de que era capaz.

— Vai beber sozinho, Centurião? Não estou convida­da para a festa?

O bandido olhou divertido para a menina.

— La fiesta? Pero tu eres la fiesta! Ah, ah, ah!

— Mas como vou participar, amarrada assim?

— Amarrada asi, estoy más tranqüilo...

Magri exibiu um daqueles seus sorrisos de derreter bronze.

— Só que, desamarrada, posso fazer coisas que vão deixar você de boca aberta...

O Centurião arreganhou a boca, exibindo seus cacos de dentes. Sacou a faca e aproximou-se de Magri. Nesse ins­tante, o moderno aparelhamento de rádio interrompeu auto­maticamente a programação sertaneja e passou a emitir uma mensagem.

— Alô, alô... Chamando Centurião... O Ente, cha­mando Centurião... Ê urgente... responda ao chamado... Capito?... Urgentíssimo,..

O Centurião guardou novamente a faca e ajoelhou-se ao lado do aparelho de rádio.

— Um segundito, chiquita. Nuestra fiesta começará em um segundo, no más...

Passou a chave do aparelho para a posição de trans­mitir, e falou:

— Alô... Centurión hablando... Estoy en Ia escuta...

 

— Veja, Senador! Outro pedaço da blusa de Magri!

Miguel seguia à frente apressado, mas com todos os sentidos ligados em busca de cada marca que a única me­nina dos Karas havia deixado para guiá-lo.

Duas ordens, do Senador e do tenente de bigode, fa­ziam aqueles homens avançarem em silêncio, carregando suas armas e o rádio de campanha.

"Já estou chegando, Magri! Minha querida! Meu Pe­queno Polegar! Me espere. Já estou chegando!"

 

                   A batalha do Pantanal

Tia Matilde dormia. Para que acordá-la? Estava exaus­ta, e a expedição do Senador avançava tão lentamente em relação ao C-47, que um cochilo não alteraria em nada a perseguição.

Calu olhou novamente pela luneta eletrônica. A expe­dição desembarcara e agora tornava-se um pouco mais difí­cil segui-los. Difícil mas não impossível. De vez em quando, aquela longa fila de homens deixava-se ver em meio às árvores.

Resolveu fazer uma visita à cabine. Deveria ser diver­tido acompanhar aquele velho piloto em ação.

Pepino falava ao microfone quando Calu abriu a porta da cabine.

— Alô... responda, Centurião... Capito?... Ê ur­gentíssimo...

Não foi possível ouvir a resposta do tal Centurião, fos­se lá quem fosse, pois ela passava diretamente para os fones de ouvido de Pepino.

— Estamos em apuros! Capito? O Ente está indo para aí com um garoto metido a esperto... Hein? Não. O Ente não pode se expor. Tem de agir com a maior naturalidade.

Qualquer descuido e o Ente será desmascarado... Ouça o que o Ente planejou: vamos libertar os prisioneiros que estão em seu poder... Fique calado, estúpido! Será uma libertação simulada. Eu vou sobrevoar o acampamento e metralhá-lo. Em seguida vou pousar e sair atirando. Vocês devem simular alguma resistência, sem dar na vista, a mais real possível. Aí eu liberto os prisioneiros e levantamos vôo. Com todos eles juntos, o Ente não correrá mais perigo... Como? Vou direto para o mar, e os garotinhos mais o gor­do detetive vão dar um belo mergulho... E daí? Daí vo­cês abandonam o acampamento e se dispersam...

Branco como um lençol, Calu fechou silenciosamente a porta da cabine. Até o piloto de tia Matilde era um ho­mem do maldito Ente!

Pepino havia falado nos "garotinhos e no gordo dete­tive"... Magri, Chumbinho e Andrade! Só poderiam ser eles! Então eles tinham sido aprisionados pelos bandidos? E agora? O Ente não podia expor-se a ser desmascarado numa ação aberta, da qual poderia sobrar alguém que que­braria o segredo de sua identidade. Sua ação teria de ser segura... e fulminante! Se o plano desse certo, ele próprio, Miguel, Chumbinho, Magri e Andrade estariam presos no avião. E, aí, nada mais haveria a fazer... Um mergulho no mar! A mil metros de altura, e sem pára-quedas!

Calu controlou-se. Sentou-se calmamente na poltrona e tomou uma decisão. Tinha um plano. Era arriscado, mas a única chance. Muitas vidas, incluindo a sua, estavam nas mãos dele.

Nada poderia ser feito naquele momento. A hora de agir chegaria. Esperá-la era como se espera nos bastidores o momento de entrar em cena em uma estréia de teatro. E, nessas horas, Calu sabia controlar os nervos como ninguém.

Na outra poltrona, tia Matilde começou a roncar.

 

Magri não conseguira saber o que o Centurião tinha ouvido pelo rádio, pois o bandido pusera os fones de ouvi­do, ficando com o som só para si.

Agora o bandido desligava o aparelho e parecia preo­cupado. Passou a mão vigorosamente pelo cabelo imundo, como se pretendesse livrar-se da preocupação.

— Bueno. Si ei Ente dice que vá a dar cierto, es que vá a dar cierto.

Quando olhou novamente para a garota, trazia um sorriso macabro.

— Tenemos tiempo para una fiestita rápida, chica... Una fiesta de despedida...

Com um golpe da faca cortou a corda de náilon. Magri sorriu tentadoramente.

— E a bebida? Não vai oferecer? O Centurião estendeu-lhe a garrafa.

— Quieres?

— Você primeiro...

No momento em que o Centurião foi beber, Magri, com um golpe violento no fundo da garrafa, enfiou-lhe o gargalo violentamente garganta adentro. Ao mesmo tempo, um chute certeiro no meio das pernas fez o bandido curvar-se de dor.

— Aaaagh... — gemeu o engasgado, enquanto a pin­ga descia-lhe pela goela.

A menina amarrou o bandido com a corda de náilon. Pegou a chave da casita e espiou cautelosamente pra fora da barraca. Ninguém à vista. Pelo jeito, os bandidos dor­miam. Saiu silenciosa como uma gata.

Correndo abaixada como um soldado em combate, Ma­gri chegou à casita. Enquanto a menina destrancava o ca­deado, Chumbinho sorriu triunfante, olhando para a expres­são feliz, mas apalermada do detetive. O pobre amigo ainda não sabia do que os Karas eram capazes...

Como previra Chumbinho, Magri tinha "arrancado o fígado" do Centurião.

 

Pepino acionou o piloto automático e apareceu na porta da cabine.

— Tia Matilde... Desculpe, mas acabei de receber uma mensagem pelo rádio...

"Isso é verdade" — pensou Calu.

A velha senhora acordou imediatamente.

— Hein? O que foi?

— Recebi uma mensagem de nossos amigos, tia Ma­tilde. Eles descobriram para onde vai o grupo do Senador com o garoto. Parece que vão para um acampamento de contrabandistas e coureiros, capito? Nesse acampamento há três prisioneiros já. Uma garota, um menino e um homem gordo...

"Isso também é verdade..." — pensou Calu, rindo por dentro por ter conhecimento da trama. Dela, ele só não tinha o controle.

Tia Matilde arregalou os olhos para Calu.

— Uma garota, um... mas podem ser seus amigos, meu querido!

Representar era com Calu. Naquele momento, sua ex­pressão de espanto e revolta deveria ter sido fotografada.

— São eles, tia Matilde! Só podem ser eles!

— My God! — exclamou a senhora, esquecendo-se do português. O que vamos fazer agora?

Pepino propôs o plano do terrível Ente:

— Posso sugerir um ataque aéreo, tia Matilde? A velha quase pulou na poltrona.

— Um ataque aéreo? Você andou bebendo, Pepino?

— Scusi, signora, mas eu fui um piloto de guerra, lembra-se?

— Isso foi há quarenta anos! E este também não é mais um avião de guerra há quarenta anos! É um avião civil, desarmado!

— Scusi ancora, mas não é. Sempre mantenho as me­tralhadoras carregadas e em perfeitas condições. Sabe? Io no posso dimenticare la guerra...

A tia pensou um pouco. As novidades, de repente, pa­reciam demais até para uma pessoa como ela.

— Mas nós só somos três! Como vamos pousar, en­frentar os contrabandistas e ainda libertar os prisioneiros?

— Também temos armas de mão a bordo, tia Matil­de... Scusi, é que as minhas lembranças da guerra...

— Esqueça essa guerra! — comandou a velha, que pa­recia ter tomado uma decisão. — Temos uma outra pela frente. Mostre as tais armas!

Pepino abriu um painel disfarçado no forro cor-de-rosa que cobria o interior do avião. Várias armas modernas estavam enfileiradas e presas à fuselagem.

— Está bem. É uma loucura, mas eu sempre fui de topar todas as loucuras!

Tia Matilde pegou um fuzil-metralhadora M-16.

— Me diga como se usa isso, Pepino.

 

— Veja, tenente! — apontou um dos homens que tinham se incorporado à expedição do Senador. — O avião de tia Matilde!

Do alto, o enorme pássaro rosa-choque parecia des­pencar dos céus.

Passou rasante sobre eles e seguiu em frente.

Miguel acompanhou o avião e viu-o sumir sobre as árvores. Olhou para o Senador. Ia dizer qualquer coisa, mas desistiu. Falou para si mesmo: "Mike Sierrabrava...."

Nesse momento, todos ouviram o matraquear brutal das metralhadoras.

 

Acordados por aquele pássaro rosa-choque a vomitar-lhes fogo em cima, os homens do Centurião saíram atirando pra valer. O chefe, amarrado por Magri, não pudera trans­mitir-lhes as ordens da farsa combinada com Pepino. Mas nem Pepino nem Calu sabiam disso. A resistência devia apenas estar sendo bem simulada, para não dar na vista.

Com a habilidade de um ás da aviação, o velho piloto pousou o C-47.

— Magri! Chumbinho! Andrade! — gritou Calu, ten­tando suplantar o matraquear das metralhadoras. — Sou eu, Calu! Onde estão vocês?

Agachada na porta do avião, tia Matilde tentava con­trolar o M-16, que pulava de sua mão a cada tiro. Pepino tinha desembarcado e atirava do chão, a esmo, fazendo saltar pequenos galhos das árvores acima das barracas.

Dois bandidos correram para a barraca do Centurião, em busca de alguma ordem que os orientasse. Lá estava ele, amarrado, dobrado de dor, com a boca machucada.

— Estúpidos! Por que demoraram tanto?

— Centurião! Estamos sendo ataca...

— Es claro que estamos sendo atacados, idiotas! No atirem!

— Como!?

— Quiero decir... atirem! Pero no acertem!

— Não estamos entendendo...

— Errem los tiros! Errar ustedes sabem mucho bién! Vamos!

 

Deitado no chão, ao lado de Magri e Chumbinho, Andrade viu que era possível correr sob a proteção da vegetação baixa que ladeava a pista até o avião.

— Crânio! — gritou Chumbinho. — Vamos para o avião!

Mesmo com o peso das banhas, Andrade corria quase tanto quanto os garotos. As balas passavam zunindo por sobre o C-47 quando os três chegaram. O rosto de Calu, sorrindo e com a mão estendida para ajudá-los a subir, era a visão mais linda do mundo!

Mas o coração do detetive pulou mesmo de alegria quando uma outra figura destacou-se do mato e correu para eles.

— Crânio!

Tia Matilde, com o cano do M-16 apoiado na fusela­gem, atirava incompetentemente, para "dar cobertura", en­quanto o detetive e os três meninos subiam, ajudados por Calu.

— Suba, Pepino! — berrou a tia, quando as dificul­dades de Andrade foram superadas e o gordo detetive con­seguiu embarcar.

Era o momento de Calu. Ele afastou a tia e trancou a porta do avião.

— Querido, o que está fazendo? Pepino ainda não...

— Desculpe, tia Matilde — explicou Calu, com o rosto afogueado pela excitação. — Pepino é um dos bandidos. É um traidor. Eu ouvi uma conversa dele pelo rádio com o tal Centurião.

— Era com esse piloto que o Centurião estava falan­do? — perguntou Magri. — Eu ouvi a conversa!

— Foi esse canalha que matou o professor Elias... — revelou Crânio.

Magri olhou para o gênio dos Karas, como se dissesse: "Você estava certo, como sempre, meu querido..."

— Os assassinos combinaram sair daqui com todos nós, antes que o Ente chegasse — continuou Calu. — íamos ser jogados no mar!

Tia Matilde perdeu a fala. Aquela velhinha valente deixou que o cansaço daquilo tudo a dominasse. Parecia frágil, e abraçou o sobrinho.

— Meu querido! Por que tanta confusão, justo quando você resolveu visitar sua velha tia?

Lá fora, os tiros cessaram. Os bandidos não atirariam mais. Isso de nada adiantaria porque as vigias eram de vidro blindado.

Um breve silêncio dentro do avião. Todos olhavam para Crânio, abraçado à tia, como se nenhum deles acre­ditasse que aquele encontro fosse possível. A primeira a quebrar a tensão foi Magri.

— Crânio!

— Magri!

Crânio trocou o abraço de tia Matilde pelo de Magri. Abraçaram-se com o coração apertado de saudade, de dedi­cação, de amor. Chumbinho e Calu juntaram-se ao abraço, e Andrade tentou envolver a todos, chorando de alegria, sem nenhuma vergonha. Estavam todos reunidos! Ele tinha aqueles meninos queridos novamente junto de si!

— E Miguel?

Calu levantou a cabeça. A alegria do reencontro tinha desaparecido.

— Não há nada que possamos fazer agora. Miguel está nas mãos do maldito Ente!

— O Ente? — espantou-se Chumbinho. — Você des­cobriu quem é o Ente?

— Eu já sei quem ele é...

— Eu também... — juntou Crânio. — Mas isso de nada nos adianta, agora!

"Miguel!" — choramingou Magri, para si mesma. — "Meu amor... O que vão fazer com você?"

Estavam protegidos dentro do avião, mas o C-47 se tornava também uma prisão. Pelas vigias dava para ver Pepino, falando excitadamente com o Centurião.

— O que vamos fazer? — lembrou Andrade. — Como vamos sair daqui?

Os Karas se entreolharam. Era uma idéia maluca. E foi Calu quem fez a proposta.

— Estamos num avião, não estamos? Então vamos sair voando!

Tia Matilde riu alto.

— Ora, isso é impossível, meu querido! Eu não sei pilotar...

— Nem eu... — lamentou Andrade.

— Mas Chumbinho sabe...

Aquela velha era bem ousada, mas não conseguia en­tender a maluquice daqueles garotos.

— O quê!? Este garotinho?

Calu colocou as duas mãos nos ombros de Chumbinho.

— Você não disse que já estava dominando perfeita­mente os programas de computador feitos para treinamento dos pilotos da NASA, Chumbinho?

— Nunca perdi um vôo, Calu.

Pelas vigias viram dois bandidos carregando uma cai­xa. Nela estava escrito "dinamite".

— E então, Chumbinho? — insistiu Calu. — É capaz de tirar essa banheira do chão?

— Como se fosse um jogo eletrônico?

— Como se fosse um jogo.

— Nunca perdi nenhum, pessoal. Vamos lá!

Os dois adultos olharam um para o outro, completa­mente perdidos. Como impedir as loucuras daqueles cape-tinhas? Por outro lado, de que adiantava ficarem ali, espe­rando que o Centurião e Pepino explodissem o avião?

Chumbinho parecia minúsculo sentado à frente dos controles. Examinou rapidamente o painel.

— Isto até parece brincadeira! Estou mais acostumado a pilotar um F-4 Phanton II...

Andrade quase engasgou.

— A pilotar o quê?!

— Ahn... quer dizer... a pilotar o simulador de vôo do Phanton...

As duas hélices começaram a girar, e os bandidos per­deram o rumo. Com uma banana de dinamite em cada mão, Pepino discutia com o Centurião. De repente, pareceu que tinham tomado alguma decisão. O Centurião deu uma ordem, e os bandidos com a caixa de dinamite correram para a cabeceira da pista.

— Eles vão dinamitar a pista! — alertou Magri. — Vão abrir uma cratera, e nós não vamos poder decolar!

— Ande com isso, Chumbinho! — apressou Crânio.

— Ainda não dá. Ainda não temos pressão suficiente! Era uma corrida de vida e morte. Na cabeceira da pista, o Centurião amarrava as bananas de dinamite e Pe­pino estendia um fio até o detonador. Do outro lado, os motores do C-47 roncavam, ganhando força, acelerados por um menino.

— Vamos lá, pessoal! — gritou Chumbinho, alegre­mente, como se fossem iniciar uma louca viagem na mon­tanha russa de um parque de diversões.

Mão esquerda no manche, Chumbinho empurrou len­tamente o acelerador com a direita, sem tirar os olhos da pista, de onde os bandidos corriam, protegendo-se atrás dos arbustos.

— Não vai dar! — esgoelou-se tia Matilde. — Eles vão explodir a dinamite quando estivermos passando. Vão nos mandar pelos ares!

O C-47 avançou suavemente. Chumbinho checou o painel. Ainda não havia condições para arremeter.

— Mais alguns segundos e talvez...

— Vamos lá, Chumbinho!

— Grite com o avião! Não grite comigo, Magri. Sei o que estou fazendo!

— Ei! O que está havendo lá?

Somente Crânio conhecia os atores da tragédia que começava a se desenrolar lá fora diante deles.

Com o grito de um demônio, uma figura alta e negra, meio coberta por couros de jacaré, correu para cima do Centurião, que estava com as duas mãos no detonador.

Atrás do gigante, um grupo endoidecido de velhos ín­dios avançava gritando, liderado pelo mais velho deles e por um índio de calça, camiseta e óculos escuros.

O Centurião largou o detonador e levantou a cabeça.

O mostrador, no painel, indicou que tudo estava pron­to para a decolagem. Chumbinho acelerou ao máximo, em direção à batalha.

O gigante ergueu a lança a cinco passos do Centurião, mas a metralhadora já estava apontada. A rajada pegou Pacaman no peito, jogando-o para trás, praticamente cor­tado em dois.

O velho Peorê correu. Agarrou o fio do detonador e arrancou-o.

O Centurião girou o corpo e mandou fogo em direção ao velho. Peorê caiu.

Ouviu-se o grito de um louco! O índio de óculos es­curos jogou-se sobre o Centurião e arrancou-lhe a metra­lhadora. Por um segundo, os dois se encararam. O Centu­rião sacou a faca e jogou-se sobre o índio.

O C-47 levantou os pneus do chão, passando por cima daquele espetáculo no momento em que Robson aparava a investida do Centurião com a zagaia, como se apara o bote de uma onça.

Do alto, dava para ver a ponta da zagaia saindo rubra de sangue pelas costas do Centurião. Robson vingara o professor Elias. Era o melhor guia do Pantanal. E não pretendia cobrar caro pelo serviço.

 

                   Morte pantaneira

As armas de todos aqueles homens já não eram neces­sárias quando Miguel chegou ao aeroporto clandestino, nem cinco minutos depois que viram o avião rosa-choque dis­tanciar-se. Não havia mais nenhum bandido vivo. Varados por flechas e lanças, corpos espalhavam-se por todos os lados.

O Senador e o tenente juntaram-se ao líder dos Karas.

— índios! — espantou-se o tenente.

— Mas não foram índios que fugiram naquele avião! — disse Miguel. — Meus amigos devem estar lá. Alguém os levou!

— Inferno! — praguejou o tenente. — Vamos demo­rar um tempão para voltar às lanchas!

— Ei, você! — chamou o Senador. — Venha aqui com o rádio!

O Senador abaixou-se ao lado do aparelho.

— Deixei um helicóptero de sobreaviso. Estará aqui num instante!

 

— Chumbinho, você é grande! — e Magri deu um beijo estalado na bochecha do pequeno piloto.

— Vivaaa! Viva Chumbinho! — gritaram Crânio e Calu.

— Você... — gaguejou Andrade, enxugando a care­ca com o lenço —... você sabe mesmo pilotar essa coisa?

— Até aqui tudo bem, não é, Andrade?

— Foi isso o que disse o sujeito que caiu do vigésimo andar, ao passar pelo terceiro...

— Confie no Chumbinho, Andrade! — animou Calu. — Ele fez o avião decolar, não fez?

— É, mas acontece que eu sempre tive medo de voar... Mesmo com pilotos profissionais... Será que o Chumbinho vai saber pousar esta coisa?

— O pouso é capaz de dar certo — prometeu Chum­binho. — Eu não sei é pra que lado devo levar o avião...

Aquele era mesmo um problema grave. Como guiar-se em direção a algum aeroporto?

— O rádio! — sugeriu Magri. — Vamos tentar algum contato. De terra, alguém pode nos guiar!

— Ei, vejam! — apontou Crânio. — Lá fora! Um pequenino ponto negro destacava-se no céu.

— Um helicóptero!

Magri começou a mexer nos controles do rádio de bordo.

— Alô! Alô! Alguém nos escuta? Estamos num avião, perdidos no céu do Pantanal... Chumbinho, o que se diz nessas horas?

— Não sei. Nunca falei com um computador...

— Nos filmes, eles falam S.O.S., ou "may-day"...

— Isso não vai adiantar nada...

Magri continuava mexendo no rádio. De repente, uma voz invadiu o alto-falante da cabine.

— "Alô... Por favor, respondam.

A voz vinha do rádio no helicóptero. Era a voz de Miguel.

 

No meio da mata, os Taí-pitá carregavam o corpo ferido de Peorê.

— Araguaçu!

O chamado de Peorê era desnecessário. O bisneto es­tava a seu lado.

— Araguaçu, chegou a minha hora de conhecer o Morena, onde tudo começou. Vou ao encontro de Maira. Vou falar dos Taí-pitá a Mavutsinín. Passei minha vida ao lado dos brancos, mas agora não quero morrer por feri­mento de homem branco. Leve Peorê para o corixo...

Nenhum dos Taí-pitá discutiu o pedido de Peorê.

O velho pareceu sentir o cheiro da água. Recusou qualquer ajuda e se pôs de pé. De dentro dos couros tirou a bolsa que carregara a vida toda consigo.

— Aqui está, Araguaçu. O segredo Taí-pitá. O segredo das Formigas-paradas. Aqui está o feitiço que vai fazer com que nosso povo não desapareça. Com que nosso povo volte a caçar livre no Pantanal. O feitiço que vai derrotar os brancos. A guarda do segredo Taí-pitá agora é sua, como foi de Peorê. Adeus. Parto para o Morena.

O velho índio caminhou sozinho para o corixo e en­trou lentamente nas águas, até elas lhe cobrirem metade do peito. Seu ferimento já não sangrava mais. Tirou uma faca da cintura e ergueu os dois braços acima da cabeça.

Na margem, os Taí-pitá assistiam, sem um movimento.

Peorê, com um golpe brusco, fez um corte profundo no braço. O sangue correu-lhe pelo rosto, desceu pelo pescoço, pelo peito e foi pingar na água. Devagar, olhando para o Morena, o índio centenário mergulhou o braço no corixo.

Ninguém desviou a vista quando as águas começaram a se revolver. Atraídas pelo sangue, as piranhas vinham buscar o que restava de carne em Peorê. O velho tinha escolhido uma morte pantaneira. A pior delas. Sem um grito, seu corpo se convulsionou, sacudido pelo turbilhão de piranhas que o devoravam...

Do helicóptero, Miguel passava as instruções do piloto do helicóptero a Chumbinho.

— Não se preocupe com os comandos, Miguel. Isso aqui é fácil demais. Meu problema é a navegação. Quero saber pra onde ir!

— Você está indo muito bem, Kara! Por sorte tomou o rumo oeste. Vai dar para pousar em Corumbá.

Ao lado do líder dos Karas, o Senador e o tenente não partilhavam do otimismo de Miguel.

A bordo do C-47, Andrade tentava lembrar-se de al­guma oração que servisse para um momento como aquele.

 

As águas do corixo já estavam calmas novamente, Peorê só continuaria existindo na lembrança daqueles ve­lhos, em extinção como os jacarés. Os velhos cercaram Robson, cobrando-lhe uma atitude com a eloqüência de seu silêncio.

Robson tomou uma decisão. Arrancou os óculos escuros, a camiseta, e jogou-os no corixo. Diante dos velhos índios desaparecia Robson e surgia Araguaçu.

Num ritual, Araguaçu começou a abrir a velha bolsa, desenrolando os couros de jacaré, camada por camada. Um objeto grosso, de forma retangular, amarelecido pelo tempo, revelou-se à vista de todos.

Um livro! Um livro, o símbolo da cultura dos brancos, ali surgia como o símbolo da esperança de eternidade para a cultura indígena, que nunca fora escrita! Um livro!

O guia índio tremia, ao voltar-se para os seus:

— Taí-pitá! Aqui está o segredo de Peorê. Este é o segredo das Formigas-paradas!

Levantou o livro acima da cabeça. Ele sabia ler. Na velha capa, semidestruída, ainda se podia decifrar: "O en­genhoso fidalgo Dom Quixote de Ia Mancha".

Lágrimas correram pelo rosto do índio, que tudo com­preendia, enquanto explicava:

— Aqui estão as Formigas-paradas! Estão todas aqui. Elas nunca se movem. Nunca se moverão. Mas os brancos movem o mundo com elas. Com elas, os brancos conquistam a terra do índio. Os brancos vencem o índio. Os brancos esmagam o índio. O antepassado de Peorê acreditou que o índio poderia dominar um dia essa tremenda arma das Formigas-paradas. Acreditou que esse feitiço dos brancos poderia ser empregado pelo índio. Acreditou que as Formi­gas-paradas poderiam libertar o índio!

Araguaçu não falava somente para os velhos Taí-pitá. Falava para todo o Pantanal, para os papagaios e para as onças, para as piranhas e para os jacarés.

— Os brancos usam o feitiço das Formigas-paradas para escrever a história do índio. Assim, a história do índio passa a pertencer aos brancos. Eles roubam os espíritos de nossos antepassados como roubam nossa terra. Porque o índio não acredita na propriedade dos espíritos, não acre­dita na propriedade das terras. Para o índio, a terra é de todos. Para os brancos, tudo é só deles...

Araguaçu estava preparado para destruir uma esperan­ça no coração dos Taí-pitá. Mas estava disposto a oferecer-lhes outra.

— Se o índio quiser dominar o segredo das Formigas-paradas, como os brancos, vai deixar de ser índio. E não vai conseguir virar branco. "índio que esquece a própria língua fica mudo!" Isso dizia Peorê. E Araguaçu diz que índio que esquece o espírito de seus antepassados desapa­rece. O feitiço das Formigas-paradas não serve para o índio. Então o índio não tem esperança? O índio vai desaparecer? Vai desaparecer porque não tem poder, não tem armas, não tem escrita e não acredita na propriedade? Vai desaparecer do Pantanal? De toda parte?

Olhou um a um aqueles velhos. Eles, talvez, não esti­vessem entendendo. Mas haveriam de entender, com o tem­po. Araguaçu passaria o resto da vida com eles, explicando a sua esperança. Araguaçu era o melhor guia do Pantanal, mas já estava cansado de guiar turistas brancos. Daquele momento em diante seria o guia do seu próprio povo.

— Não! Araguaçu conhece outro segredo. Outro fei­tiço, mais poderoso ainda. Esse segredo é a vida! Continuar vivos, vivendo como índios, é nossa melhor forma de lutar.

Vivendo é que se resiste. Se resistirmos, nossas idéias não se perderão. Serão roubadas pelo branco, mas farão parte das idéias dos brancos. Modificarão as idéias dos brancos. Nós sobreviveremos dentro dos brancos! Os brancos não conseguirão nos destruir porque, mortos, faremos parte de­les. Os brancos ficarão grávidos de nós, para sempre! Essa será a nossa vitória!

Com os braços para o alto, Araguaçu invocava o tes­temunho dos papagaios, guardiões das últimas palavras da língua de seus antepassados.

Talvez "currupaco" seja uma palavra guaicuru, quem sabe?

 

                   Uma canção morre no mar

O operador da torre do aeroporto de Corumbá não acreditava no que via. Um velho C-47 rosa-choque aproxi­mava-se para o pouso, numa rota perfeita. E estava sendo pilotado por um garoto!

Carros de bombeiros, ambulâncias e todo o pessoal disponível estavam na pista, preparando-se para um grande acidente.

Com os flaps abaixados no ângulo exato, o trem de aterrissagem do C-47 tocou o asfalto. Foi um pouso perfei­to. Os freios foram acionados na hora certa, e o bojudo avião taxiou normalmente, como se aquele pequeno piloto nunca tivesse feito outra coisa na vida!

O detetive respirou aliviado. Já ia levantar-se quando Calu cochichou alguma coisa em seus ouvidos. Andrade pegou o fuzil M-16 e postou-se em último lugar para o desembarque.

O helicóptero pousou na grama, ao lado do avião.

Quando a porta do C-47 foi aberta, Miguel já estava à espera. Atrás dele, o Senador e o tenente, seguidos pelo pessoal de socorro, que cercava o avião.

Os empregados do aeroporto encostaram a escada de desembarque. Quando a carinha marota de Chumbinho apontou, a pequena multidão hesitou por um instante. De­pois prorrompeu em aplausos, como se o menino fosse um astro de música popular.

Uma euforia descontrolada espalhava-se pela pista, quando Andrade interrompeu a alegria. Levantou o fuzil e apontou-o para o grandalhão.

— Senador, o senhor está preso!

Como se tivesse havido uma combinação, o motor do helicóptero foi cortado naquele momento. Todos silencia­ram, sem compreender o absurdo de um desconhecido apon­tar uma arma para o homem mais respeitado do Pantanal.

A expressão do Senador não foi de surpresa. Nem tão pouco de culpa. O Senador parecia mesmo era ofendido.

O tenente de bigode deu uma gargalhada:

— Ora... O senhor é o detetive Andrade, de São Paulo, não é? Mas que idéia é essa de vir aqui, dar voz de prisão logo ao Senador, o cidadão mais conhecido de todo o Estado? Temos as nossas diferenças, mas o Senador é... bem, o Senador é o Senador!

Calu e Crânio ladeavam Andrade. Crânio falou pri­meiro.

— Não. O Senador é também O Ente!

— E seu verdadeiro nome é Mike Sierrabrava! — acrescentou Calu.

O Senador nada disse. Não esboçou a menor defesa. Estava lívido, como um cavaleiro medieval que tivesse sido esbofeteado pela luva de um desafiante.

— Mike Sierrabrava? — espantou-se o tenente. — Que história é essa? O Senador é o comandante das forças federais que combatem o crime aqui no Pantanal! Eu sou da polícia do Estado, pobre e mal aparelhada. Temos diver­gido, mas é porque cada um de nossos grupos quer chegar primeiro nessa corrida contra o crime. Eu e ele sabemos que nosso principal inimigo, por aqui, é o Ente. Por isso é um absurdo pensar que...

Crânio voltou-se para Calu:

— Como descobriu esse nome? Mike Sierrabrava?

— O piloto baleado que falou em você, Ele disse tam­bém que o Ente é Mike Sierrabrava...

Magri, Chumbinho, Miguel e tia Matilde a tudo assis­tiam sem interferir. Um clima de tensão tomava conta de todos.

— Alguém quer me explicar o que está acontecendo? — o tenente estava perdendo o bom humor. — Detetive Andrade! Explique-se ou baixe essa arma!

— Não tenho nada a explicar. Se Crânio diz que o Senador é o Ente, ele deve estar certo!

— Deixe que eu explico! — apresentou-se Calu. — O Ente se esconde sob o mais perfeito disfarce, aqui no Pantanal. E que disfarce mais perfeito do que a pele do cidadão mais respeitável do Estado, no comando de uma operação montada para descobrir ele mesmo?

— Uma operação sediada em uma fazenda onde não há mulheres nem crianças! — acrescentou Crânio. — Só homens. Jovens e treinados. Uma comunidade de bandidos do crime organizado!

— Nada disso, garoto! — replicou, o tenente. — Uma comunidade de soldados. De policiais!

— Descobrimos a verdadeira significação do nome do chefão — cortou Calu. — Ente. É a pronúncia de ant, que quer dizer "formiga", em inglês. O crime organizado age acobertado pela lenda dos Formigas-paradas que...

Crânio impediu o amigo de continuar.

— Não, Calu. O Ente nada tem a ver com os Formigas-paradas. Eu estive com eles. Eles são aquele grupo de velhos índios que nos salvaram no acampamento do Centurião. Mas quanto ao resto você está...

— Errado!

O grito pegou todos de surpresa, principalmente os acusadores.

Era Miguel.

O líder dos Karas avançou para o centro da roda, ficando entre o cano do fuzil empunhado por Andrade e o Senador.

— Sinto muito, Calu. Sinto muito, Crânio. Mas vocês estão errados.

— Errados? Mas como, Miguel? O Senador me pren­deu, deu um jeito para afastar Crânio das investigações...

— Foi na fazenda do Senador que a caixa de slides do professor Elias desapareceu. Ele sabia que eu estava na pista certa!

— Nada disso tem a menor importância. Nada disso prova nada. No Pantanal, o Ente é sinônimo do ouro da Máfia. Nada poderemos provar enquanto não mostrarmos onde está esse ouro.

— Isso todos nós queremos saber, garoto!

— Certo, tenente. Mas isso eu sei!

— Como?! — até Andrade se espantou. — Desde quando você sabe?

— Acabei de encontrar a última peça do quebra-ca­beça, nesta manhã, quando este avião colorido passou por cima de nossas cabeças. Temos de raciocinar sobre as pa­lavras do piloto assassinado.

Crânio estava queimando por dentro. Não podia admi­tir ser acusado de um raciocínio errado na frente de todo mundo.

— Bezerra viu os slides do professor Elias. Eu o fiz descrevê-los, sob hipnose. Elias fotografou um avião dos contrabandistas, lá naquele aeroporto clandestino, provavel­mente sendo carregado com muambas. Ele falou do avião, brilhando ao sol... sol vermelho... sol amarelo... Nin­guém percebe que avião é esse? É o Tucano amarelo do

Senador! Elias fotografou o avião do Senador, no aeroporto clandestino, carregando as muambas da Máfia!

Miguel sorriu de leve. Sua teoria se confirmava.

— Ele falou em Mike Sierrabrava lá no acampamento dos bandidos?

— Não. Ele não falou nada disso.

— Então podemos supor que esta foi uma nova infor­mação que o piloto obteve depois que se separou de você. Certamente durante o tempo em que flutuava naquele bar­co, esperando a morte. Ele viu alguma coisa. E eu sei o que ele viu.

Andrade estava sendo contagiado pela impaciência rei­nante.

— Fale logo, Miguel. Isso já está indo longe demais...

Miguel prosseguiu, sem se apressar.

— Todos estão se esquecendo de um detalhe muito importante. Bezerra era um piloto.

— E daí?

— E daí que existe uma linguagem internacional en­tre os pilotos, na hora de citar iniciais, para que não haja confusão nos contatos pelo rádio. Eles não dizem "a", dizem "alfa". Não dizem "z", dizem "zulu". Não dizem "h", dizem "hotel". Não dizem "m", dizem "mike"!

Todos olharam o avião rosa-choque. Pintado em preto sobre o rosa da fuselagem, o prefixo PT-MSB!

— Aí está! — Miguel mostrava-se triunfante. — Papa-tango-mike-sierra-bravo, e não Mike Sierrabrava! O piloto Bezerra reconheceu este avião em sua última viagem pelo rio Taquari. Era o mesmo avião que o professor Elias foto­grafou! Não era o avião amarelo, era o avião cor-de-rosa!

— O meu avião? — protestou tia Matilde. — O que o meu avião tem a ver com tudo isso?

— Seu avião estava lá, na semana santa, no aeroporto clandestino, brilhando ao sol! Sol amarelo... sol verme­lho... Sol rosa-choque!

— Que besteira, rapaz! — interferiu o tenente. — Não force a barra, bancando o detetivezinho nas horas va­gas! O que a cor do avião tem a ver com isso! Como disse o Crânio, poderia até ser o avião do Senador. Um Tucano

amarelo como gema de ovo, Poderia ser qualquer avião!

— Não! Só poderia ser este avião! Só este tem o prefixo mike-sierra-bravo!

Tia Matilde ficou aflita.

— Quer dizer que... que alguém andou fazendo con­trabando com meu aviãozinho? Pepino! Aquele bandido! Só pode ter sido ele!

— O problema é maior que somente contrabando, tia Matilde. Bem maior que as peles dos jacarés assassinados aos milhões. Sol amarelo... sol vermelho... Vejam!

Miguel tomou o fuzil das mãos de Andrade e arranhou com força a fuselagem do avião, fazendo o barulho irritante do riscar de um giz na lousa.

Sob a camada de tinta cor-de-rosa, um brilho amarelo surgiu.

— Aí está! O ouro da Máfia!

Miguel arranhou mais a pintura, aumentando a certeza e a surpresa de todos.

— O avião é todo de ouro! Toneladas de ouro voando pelo Pantanal, todo esse tempo! Quem desconfiaria? Que melhor esconderijo do que esse para a riqueza do crime organizado? As placas de aço originais foram substituídas por placas de ouro puro! Foi isso que o professor Elias fotografou: um avião todo de ouro enquanto estava sendo pintado de rosa-choque! Sol amarelo: o ouro! Sol vermelho: o rosa sendo pintado!

Tia Matilde tremia da cabeça aos pés.

— Pepino! Desgraçado! Como pôde fazer tudo isso? Miguel calou-se. Ele e Crânio entreolharam-se. O gênio dos Karas percebeu o erro em que incorrera. Agora com­preendia tudo. O que tinha de ser dito a seguir era mais duro. E cabia a Crânio a parte mais difícil. Não erraria mais.

— Entendi, Miguel. Deixe o resto comigo.

— Meu sobrinho! Viu o que fizeram com sua tia? Crânio aproximou-se de tia Matilde. Passou o braço por seus ombros, consolando-a.

— Pepino era mesmo um assassino, tia. Magri me contou tudo, lá no avião. Se não fosse Calu, estaríamos todos no fundo do mar a esta hora. Mas Pepino não agia por sua própria cabeça. Era um empregado deste Ente, que deve ser varrido do Pantanal. Pelo rádio, ao falar com o Centurião, Pepino disse que o Ente estava com um garoto metido e corria o risco de ser desmascarado. Calu supôs, na hora, que Pepino falava de Miguel, que palmilhava o Pantanal junto com o Senador, seguindo as pistas deixadas por Magri. Quando Magri me contou essa conversa, minhas suspeitas contra o Senador se reforçaram. Mas Pepino não se referia a Miguel, referia-se a Calu! Era Calu o garoto metido que estava indo para o acampamento junto com o Ente. Ele estava indo de avião!

— O que você está dizendo, meu sobrinho?

— Por que o Centurião e Pepino pretendiam impedir a decolagem abrindo uma cratera na cabeceira da pista? Por que não colocaram logo a dinamite debaixo do avião? É tudo muito claro! Eles não podiam mandar o Ente pelos ares!

Crânio afastou-se alguns passos de tia Matilde e en­carou-a.

— Tia Matilde! Tia! "Ente" não é apenas a pronúncia de ant, que quer dizer "formiga", em inglês. "Ente" é tam­bém a pronúncia de aunt, que quer dizer "tia", em inglês! Tia! Tia Matilde, a tia de todo o Pantanal! Tia Matilde: o Ente! O tesoureiro do crime organizado internacional! Pode prendê-la, Andrade!

O rapaz estendeu o fuzil M-16 para o detetive, mas tia Matilde foi mais rápida. Com uma agilidade inesperada para seus sessenta anos, saltou como um tigre entre os dois.

— Quietos, meus queridos! Esta arma já fez muito estrago no Vietnã. Não quero que agora ela seja obrigada a fazer a mesma coisa no Pantanal...

Agilmente subiu para o C-47. Da porta empurrou a escada com o pé.

Como se estivesse achando tudo aquilo muito diver­tido, Crânio perguntou alto, sorrindo abertamente:

— É claro que a senhora sabe pilotar, não é, tia Ma­tilde?

— É claro, sobrinho! Não falei isso antes para dar um dia de glória ao seu amigo! Afinal, nunca haverá dois garotos que possam se gabar de ter pilotado um avião de ouro maciço, não é? Adeus, meu querido. Pena que você tenha passado tão pouco tempo com sua tia nestas férias. Da próxima vez, quem sabe? Lembranças em casa!

A porta fechou-se. Em um minuto, os motores do C-47 estavam em funcionamento. O Senador correu para o rádio do helicóptero e sintonizou a freqüência do C-47.

— Tia Matilde! Tia Matilde! Entregue-se! Não adian­ta tentar fugir. Não haverá lugar no mundo em que a se­nhora possa pousar sem ser presa na mesma hora. Entregue-se, tia Matilde!

Crânio estava de cabeça erguida. Estivera errado todo o tempo e, no final, coubera a ele mesmo desmascarar a própria tia.

— Minha teoria estava errada. Mas eu não tinha todos os dados, né?

A seu lado, Miguel sorria e estendia-lhe alguma coisa na palma da mão.

— Encontramos isso por aí. Por acaso não é sua? Uma gaitinha de boca brilhava ao sol.

O gênio dos Karas abraçou-se ao amigo, amigo, longamente...

 

O C-47 foi chamado pelo rádio durante quase duas horas. Tia Matilde sobrevoara a cordilheira dos Andes, e continuava para oeste, em direção ao oceano Pacífico.

O combustível já devia estar no fim, quando pela pri­meira vez se ouviu uma resposta às chamadas de rádio. A estática de transmissão entrou pelos alto-falantes do ae­roporto de Corumbá e todos puderam ouvir, claramente: Somewhere over the rainbow, way up high... way up high there's a land that I heard once in a lullaby...

Cantando, tia Matilde levava o ouro da Máfia para o fundo do Pacífico... Em algum lugar, além do arco-íris...

 

Esperavam a chamada para o embarque de volta a São Paulo. Embora sob o calor de Mato Grosso, Andrade não suava nem um pouquinho. Em volta da mesa da lan­chonete, cercado pelos cinco Karas, ouvia o Senador co­mentar as últimas informações da Interpol, recebidas por telex:

— Tia Matilde era tia de todo mundo e não era tia de ninguém. Dizem que foi uma jovem lindíssima. Já estava viúva de um irmão do avô de Crânio quando foi para os Estados Unidos casar-se com Don Vitório, um dos mais poderosos capomafiosos do mundo!

— Herança de macarrão! — gozou Magri. — Tia Matilde herdou foi a fortuna criminosa do marido e todo o seu poder. A tia-fazendeira do Pantanal! Alegre, espalha­fatosa e toda envolvida em sua cor preferida. Que disfarce melhor para o Ente? Quem haveria de desconfiar dela?

"Só mesmo estes meus queridos garotos!" — pensou Andrade, orgulhoso como um pai.

— Bem, o importante é que desbaratamos o crime organizado, pelo menos por ora — continuou o Senador. — Meus homens invadiram a fazenda Rosa-Pink, por terra e pelo ar, e conseguimos prender a turma toda.

— No fim das contas — avaliou Crânio — acabei não conhecendo a famosa fazenda de tia Matilde, Senador.

— A Fortaleza Cor-de-rosa do Crime! — apelidou Chumbinho. — Melhor mesmo não conhecer...

Crânio olhou para os curativos das mãos, já quase curadas, e sentiu-se na obrigação de pedir desculpas ao

Senador.

— E eu, que julguei aquele seu discurso, no avião amarelo, como mais uma forma de encobrir o disfarce do tal Ente... Me enganei redondamente, Senador. Estou en­vergonhado...

— Não há razão para isso, garotão. Afinal, vocês re­solveram todo o caso, apesar de as acusações terem come­çado pelo lado errado. Acho que a minha cara não inspira muita confiança. Todos vocês desconfiaram de mim...

— Miguel não desconfiou! — Magri olhava com cari­nho para o líder dos Karas.

— De todo esse mistério — Miguel mudou de assunto meio sem jeito — vai restar sempre uma dúvida. Como desapareceu a caixa de slides do professor Elias lá na sua fazenda, Senador? — perguntou Miguel.

— Se os slides foram roubados por algum agente da Máfia infiltrado na fazenda - supôs Magri - certamente oram entregues à tia Matilde, A esta hora devem estar no fundo do Pacifico, junto com o ouro.

— Mas que velha danada! — riu Chumbinho. — Quem poderia desconfiar dela? Quando Crânio foi captu­rado ela fez questão de liderar as buscas, para afastar todo mundo do acampamento do Centurião.

— E, no avião rosa-choque, ela representou melhor do que eu! — lembrou Calu. - Quando Pepino veio propor o falso ataque ao acampamento do Centurião, a velha re­presentou como uma profissional. Nem eu desconfiei!

— A conta é minha! — exigiu o Senador, com aquela voz impressionante, arrancando a conta da lanchonete das mãos do detetive. - Mas vocês têm de me explicar por que temos de esconder da imprensa, de todo mundo a atuação brilhante de vocês nesse caso!

— Para todos os efeitos, Senador, eu estou de férias — explicou Andrade — E os garotos não gostam de publi­cidade. Queremos que essa vitória seja toda sua!

— Eu não preciso de gloria, detetive Andrade. Eu preciso do Pantanal. Eu preciso deste paraíso, vivo, cheio de jacarés, e com os índios caçando livremente por entre as arvores. A gloria não vai me devolver os ninhais destruídos não vai salvar a cultura indígena, não vai combater as piranhas e repor os jacarés assassinados.

 

No alto da árvore, Cabo Malandro estava aborrecido. Aquela caixa não continha amendoins, nem biscoitos. Aque­las porcarias quadradinhas eram duras e tinham um gosto horrível!

Chateado, o macaquinho começou a jogar os slides no rio, um a um.

 

                                                                                Pedro Bandeira  

 

                      

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