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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PARA SEMPRE NO CORAÇÃO / Kay Thorpe
PARA SEMPRE NO CORAÇÃO / Kay Thorpe

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Um contrato temporário... um risco permanente!

Quando sua sobrinha ficou órfã, John Beaumont decidiu adotá-la. Só que para isso precisaria de uma esposa.

Shena Beaumont sabia melhor do que ninguém que tipo de homem era John. Seu casamento com ele fora breve, passional e difícil. Ele nunca fora um marido perfeito, mas parecia determinado a se tornar um pai perfeito. Foi esse um dos motivos que a levaram a aceitar os três meses de prazo para provarem às autoridades que ambos seriam capazes de oferecer um lar feliz a Jodie. Três meses durante os quais ela correria o risco de ter John novamente em sua cama e Jodie para sempre em seu coração.

 

 

                             

 

 

Lá estava o barulho novamente! Sentando-se na cama com um movimento rápido, Shena apurou os ouvidos, tentando identificar mais algum ruído. Não tinha dúvida de que alguém estava se movendo no andar de baixo. Só restava saber se tratava-se de uma pessoa ou de um animal.

Talvez a atitude mais sensata fosse continuar onde estava, mas, se um ladrão houvesse entrado na casa, melhor seria tentar espantá-lo enquanto ele ainda se encontrava no andar de baixo.

Ao sair da cama, sentiu o chão gélido sob seus pés. Perguntou-se o que teria feito de errado para que um ladrão decidisse invadir sua casa justamente em uma das noites mais frias do ano.

Quando chegou ao corredor, no andar de cima, apoiou-se no corrimão de madeira e avistou uma luz fraca vinda da cozinha. Então ouviu o ruído inconfundível de uma gaveta sendo aberta, seguido de um praguejamento abafado. Definitivamente humano e masculino, concluiu ela, tornando-se ainda mais apreensiva.

Um grito poderia ser suficiente para espantá-lo, mas havia o risco de o ladrão correr para o lado errado, se percebesse que ela estava sozinha na casa.

A madeira que ela usava para travar a porta de seu quarto por dentro estava encostada na parede. Não chegava a ser uma arma, mas seria melhor do que nada, se ela precisasse se defender. As aulas de defesa pessoal que tivera no ano anterior haviam abordado o combate próximo, mas ela não estava disposta a tocar no bandido com as próprias mãos.

Sem hesitar, encostou-se novamente no corrimão e bateu a madeira contra este gritando:

- Craig, há alguém lá embaixo!

Seguiu-se um ruído de madeira rachando e, em questão de segundos, ela se viu pendurada no que restara do corrimão. A altura não era muito considerável, mas, com apenas um tapete para ampará-la, a provável queda lhe pareceu algo arriscado. Se bem que, julgando-se pelo barulho de rachadura que a madeira continuou a fazer, não demoraria muito para ela cair dali.

O choque a fizera esquecer o problema anterior, mas somente até o momento em que duas mãos firmes agarraram seus tornozelos.

- Me solte! - gritou ela. - Me solte!

- Prefere que eu a deixe cair? - perguntou uma voz familiar demais para o gosto de Shena. - Relaxe, senão acabará caindo de uma vez. Solte-se do corrimão devagar que eu a pegarei.

Shena concluiu que as alternativas não eram lá das melhores. Mas John tinha razão: aquela madeira não a suportaria por muito tempo.

Respirando fundo, fez o que ele mandara e soltou as mãos devagar, fechando os olhos quando caiu diretamente nos braços dele.

John não fez menção de colocá-la no chão. Através da blusa de lã, Shena sentiu o coração dele batendo firme. Diferentemente do seu, que acelerara de um momento para outro, e não apenas por causa do incidente com o corrimão. Fazia um bom tempo que não experimentava o calor daqueles braços fortes.

- Ponha-me no chão! - bradou, tratando logo de afastar as lembranças do passado. - O que diabos está fazendo aqui?

- Procurando por você, ora - respondeu John. - E ainda bem que eu estava por perto quando decidiu brincar de Tarzan.

- Isso não teria acontecido se você não tivesse invadido minha casa - salientou Shena. - Quer, por favor, me colocar no chão?

John a obedeceu sem cerimônia. Iluminados apenas pela luz tênue vinda da cozinha, os olhos acinzentados pareciam quase negros. Contudo, mesmo com a parca iluminação, não havia como disfarçar os traços perfeitos daquele rosto másculo e daqueles lábios polpudos, que a haviam levado à loucura no passado.

O suéter branco fazia os ombros dele parecem mais largos e o fato de ela estar descalça deixou alguns bons centímetros de diferença de altura entre eles. Todos aqueles detalhes formaram uma combinação perigosa na mente de Shena.

- Só para esclarecer as coisas, eu não invadi sua casa - falou John. - Não foi preciso, já que você deixou a porta do fundo aberta. - Após uma breve pausa, ele mudou de tom ao dizer: - Seu Craig deve ter um sono bem pesado.

Shena franziu o cenho por um instante.

- Como soube a respeito... - interrompeu-se de repente, lembrando-se do que dissera antes de ficar pendurada no corrimão. - Não há mais ninguém aqui - admitiu. - Eu queria apenas fazer parecer que havia um homem na casa.

John curvou os lábios em um arremedo de sorriso.

- Há um homem na casa. E ele está morrendo de frio e de fome, se quer saber. Eu teria chegado mais cedo, se não houvesse tido de me desenterrar uma ou duas vezes.

Shena arqueou as sobrancelhas.

- Desenterrar-se de quê?

- Da neve, ora.

- Mas ela estava apenas com alguns centímetros de altura quando fui me deitar.

- E quando foi isso? - perguntou John.

- Por volta de onze horas, eu acho.

- Pois agora já passa das quatro horas da manhã e, como eu disse, ela aumentou um bocado. Tive sorte por haver encontrado o lugar. Esta casa fica um bocado longe da estrada principal.

- Foi exatamente por isso que minha tia decidiu comprá-la - explicou Shena. - Ela gosta de ficar isolada de vez em quando.

Quando o efeito da adrenalina terminou, ela sentiu um arrepio de frio e somente então se deu conta de que estava vestida apenas com uma camisola de seda. Seus dentes começariam a bater a qualquer momento, se ela não vestisse uma roupa mais quente.

- Se pretende ficar acordada, é melhor ir se vestir - declarou John, como que lendo seus pensamentos. - Mas antes me diga onde há fusíveis novos. Procurá-los à luz de vela não é nada fácil.

- Quer dizer que estamos sem energia elétrica? - perguntou Shena, sem conseguir disfarçar o tom apreensivo.

- O fusível principal queimou. Espero que haja algum por aqui para repô-lo, do contrário terei de procurar madeira do lado de fora e rezar para que a lareira tenha sido limpa recentemente.

Shena duvidava disso. Sua tia não era do tipo que se preocupava com esse tipo de coisa. Também era pouco provável que a esposa do fazendeiro vizinho, que geralmente ficava de olho na casa, houvesse se preocupado em limpar a lareira. Entretanto, não adiantaria se preocupar com isso no momento. Se a lareira tivesse de ser usada, seria usada de uma maneira ou de outra.

- Procure no armário ao lado da pia - disse a John, com uma vaga lembrança de ter visto fusíveis por lá. - Acho que vi fusíveis na segunda gaveta.

- Espero que esteja certa. Até daqui a alguns minutos, se tudo der certo - falou ele, dirigindo-se à cozinha. - E cuidado na hora da aterrissagem - acrescentou por cima do ombro.

Shena pensou em dar uma resposta malcriada, mas sabia muito bem que ironia nunca fora uma tática eficiente contra seu marido. Mesmo deixando de lado a pergunta de como ele descobrira onde ela estava, não conseguiu deixar de se perguntar o que teria acontecido de tão importante para John haver ido procurá-la naquele fim de mundo.

Pensativa, começou a subir a escada. Naquele um ano e meio, desde a separação, os dois haviam tido muito pouco contato. Talvez John houvesse chegado à conclusão de que seria melhor pedir o divórcio. Melhor para ela, concluiu, tentando ignorar a dor que o pensamento causou em seu peito. Talvez isso até a ajudasse a se decidir logo a respeito de Craig.

Ao chegar no quarto, vestiu uma calça de lã e um suéter confortável. Um par de botas de couro ajudariam a manter seus pés aquecidos. Mesmo que John encontrasse logo o fusível, demoraria um pouco até o aquecimento central se distribuir por toda a casa.

De fato, John não exagerara a respeito da neve lá fora, concluiu ela, espiando através da janela. A julgar pela quantidade de neve sobre o Range Rover estacionado do lado de fora, ele também não exagerara ao dizer que tivera de se "desenterrar" da neve em alguns trechos.

Devia ter deixado o abajur aceso antes de sair do quarto porque ele se acendeu de repente. Logo um agradável calor começou a aquecer o aposento.

Sob o efeito da luz do abajur, Shena viu-se no reflexo do vidro da janela. Seus cabelos não estavam lá muito bem penteados, mas sua aparência também não era das piores. O rosto de traços delicados mostrava um leve ar de teimosia e os lábios bem delineados se encontravam ligeiramente curvados nos cantos. Um brilho de ironia parecera surgir em seus olhos verdes. "Olhos de gato", segundo John os definira.

Na verdade, se ela houvesse prestado atenção em seu "sentido felino" quando o conhecera, teria evitado muitas angústias posteriores.

Indo até a penteadeira, pegou uma presilha e prendeu os cabelos dourados na altura da nuca. Sentiu um novo arrepio de frio. Estava precisando era de uma bebida quente. Disso e de uma boa dose de coragem.

Ao descer a escada, sentiu um aroma de café invadir suas narinas. Pelo visto, John não perdera tempo em mexer em sua despensa. Porém, mesmo àquela hora da manhã, o aroma de café lhe despertou o apetite.

- Espero que esteja preparando desjejum para dois - disse ao entrar na cozinha, decorada à moda country. - Já que tive de acordar a essa hora ingrata, que seja pelo menos em grande estilo!

- Fique tranquila. O desjejum será para dois - John respondeu. - Quer um ou dois ovos mexidos?

- Um é suficiente, obrigada,

Shena sentou-se à mesa, observando a habilidade de John ao quebrar o ovo apenas com uma mão. Se ela própria tentasse fazer aquilo, o conteúdo do ovo iria parar em qualquer outro lugar, menos na panela!

Se John não houvesse escolhido a profissão de escritor, talvez se desse bem como chef de cozinha. Seu marido era um homem de muitos talentos. Só lhe faltava mesmo um pouco mais de integridade.

Entretanto, o que mais a perturbava era o efeito que a presença dele ainda lhe causava. Se pelo menos ele não fosse tão lindo... Ao olhar para aqueles cabelos negros, teve vontade de acariciá-los, para ver se continuavam tão macios quanto antes.

Estremeceu ao se lembrar daquele corpo másculo e nu sobre o seu, daquelas mãos experientes acariciando os recantos secretos de seu corpo... Tinha a impressão de que Craig nunca lhe despertaria aquelas sensações.

- Como está Paula? - perguntou, esforçando-se para manter um tom neutro na voz.

- Não tenho a mínima ideia - respondeu ele, com ar indiferente.

Virou o ovo na frigideira sem quebrar a gema, do jeito que ela gostava. Shena conteve o fôlego por um instante, mas disfarçou a reação ao continuar:

- A perda de interesse veio de que parte?

- Foi algo mútuo.

John colocou o ovo no prato, onde já havia tiras de bacon e rodelas de tomate frito. Então pegou o prato que servira para si, antes, e sentou-se à mesa.

- Coma enquanto está quente - disse a ela. - Há café fresco na garrafa.

- Eficiente como sempre - comentou Shena. - Eletricista, cozinheiro, autor consagrado... Existe algo em que você não seja bom?

A maneira irônica como John arqueou a sobrancelha fez Shena enrubescer. Sua pergunta merecera aquela reação.

- Pelo visto, não sou tão bom assim no que diz respeito a relacionamentos - disse ele. - Parece que nunca consigo manter uma mulher a meu lado por muito tempo.

- Provavelmente porque a última coisa na qual você está interessado é em um relacionamento - replicou Shena. - Casou-se comigo porque, ao contrário das mulheres que me antecederam na sua vida, não lhe dei outra alternativa. Mas não demorou muito para mostrar seu lado verdadeiro.

Os olhos acinzentados não revelaram nenhuma emoção em particular.

- Teríamos ficado mais tempo juntos, se você não houvesse desistido.

- Eu só tomei essa decisão porque não estava disposta a dividi-lo com outra mulher! Ou devo dizer "outras mulheres"? - A indignação levou-a a cravar as unhas na palma das mãos. - O que você queria? Que eu lhe desse um tapinha nas costas e dissesse que agiu certo?

Um brilho repentino surgiu nos olhos dele e seu maxilar enrijeceu discretamente. Porém, logo voltou a relaxar e deu de ombros, antes de responder:

- Tudo isso são "águas passadas", não? Shena suspirou.

- Tem razão - admitiu, pegando o garfo e a faca. - Não há motivo para ficarmos discutindo sobre o que passou.

Ela sentiu certa dificuldade em engolir o desjejum, depois daquela alteração emocional. John, por sua vez, parecia não haver perdido nem um pouco do apetite. Mas quando fora que ele se alterara realmente por algum motivo?

Já haviam acabado de comer e estavam terminando de tomar o café quando Shena voltou a se sentir calma o suficiente para retomar a conversa.

- Como soube que eu estava aqui?

- Telefonei para sua mãe quando não consegui encontrá-la na cidade. Então ela me descreveu o caminho.

Provavelmente na esperança de que os dois se reconciliassem, pensou Shena. Sua mãe sempre adorara John. Tanto que nem tomara partido durante a separação.

- Poderia ter pelo menos me ligado antes de vir - salientou ela.

John fitou-a nos olhos.

- Não era algo a ser discutido pelo telefone. Shena hesitou.

- Está querendo tratar do divórcio?

John se manteve em silêncio por alguns segundos, sem demonstrar o que ia em seus pensamentos.

- O que a faz pensar que estou interessado no divórcio?

- Agora que Paula saiu de sua vida, é o que quer dizer? - Shena deu de ombros, fingindo uma indiferença que estava longe de sentir. - Duvido que tenha mantido uma vida celibatária desde então. De qualquer maneira, não consigo pensar em outro motivo que o tenha trazido até aqui.

- Também tenho me perguntado por que diabos você veio para cá - disse John. - Não está escrevendo no momento, portanto não se trata de estar precisando de paz e sossego.

- Como sabe que não estou escrevendo? - indagou Shena, sem querer admitir os motivos de querer ficar isolada por algum tempo.

- Perguntei à sua editora - respondeu John. - Ela disse que você havia tirado alguns dias de folga.

- Isso mesmo - Shena confirmou. - Achei que a cabana seria perfeita para umas férias de inverno.

- No verão talvez fosse perfeita, mas, no momento, eu preferiria que estivesse em sua casa.

- Apartamento - corrigiu ela. - Se bem que muito menos luxuoso do que o seu, se é que ainda o tem.

- Ainda o tenho, e também a casa. Mas é evidente que você sabe disso. Eu não poderia me desfazer deles sem sua aprovação, mesmo que quisesse.

- Está livre para fazer o que quiser com a casa - afirmou Shena. - Afinal, pagou por ela com seu dinheiro. Já deixei claro que não quero nada de você, John.

- Se está tentando me provocar, saiba que está conseguindo.

Ela arregalou os olhos, com ar de exagero.

- Oh, meu Deus!

- Pare de agir como uma de suas heroínas - retrucou ele, com secura. - A menos que esteja disposta a me ver como um de seus heróis. É isso?

- Levando-se em conta que você nunca leu nenhum de meus livros, não deve ter a mínima ideia de como são meus heróis.

- Li o suficiente para ter uma boa ideia. Garanto que nenhum deles é tedioso. Bem, mas você não teria se apaixonado por mim se eu não tivesse pelo menos algumas das características de seus heróis.

Shena teve de admitir que ele tinha razão. John fora o único homem que chegara mais próximo da descrição de seus heróis. A diferença era que ela tinha controle sobre seus personagens, ao passo que John era uma completa exceção. Por isso, qualquer tipo de provocação nunca surtia um bom efeito.

- Existe algo chamado moderação - disse a ele. - E outra coisa chamada fidelidade. Pelo visto, você pensou que poderia ter todas as vantagens do casamento sem afetar seu lado aventureiro.

Encostando-se na cadeira e cruzando as mãos atrás da cabeça, John fitou-a sem o mínimo sinal de culpa ou de arrependimento.

- Já falamos demais sobre isso. Não tenho a intenção de rever esse filme mais uma vez. Se tivermos de recomeçar terá de ser de agora em diante.

- Recomeçar?! - Shena se surpreendeu. - Se pensou, sequer por um momento, que eu aceitaria...

- Você não ouviu tudo que tenho a dizer - John a interrompeu, ainda totalmente relaxado. - Há bons motivos para nos reconciliarmos.

- Diga um!

Os olhos acinzentados observaram cada detalhe do rosto dela, antes de descerem até os seios ocultos pelo suéter de lã.

- Pensei que o principal motivo estivesse evidente - declarou ele, arqueando uma sobrancelha. - Eu ainda te quero, Shena.

- Mas eu não te quero! - retrucou ela.

Claro que aquilo era mentira. Sua pulsação acelerada e o tom enrubescido de suas faces denunciavam isso, mas mesmo assim ela não pretendia admitir a verdade.

Ficou de pé, segurando a borda da mesa com tanta força que seus dedos ficaram brancos. Lutava para manter o controle de suas emoções.

- Eu não voltaria para você nem que fôssemos as últimas pessoas que restassem no mundo!

- Se isso acontecesse, teria de me aceitar - afirmou ele, com calma. - Seria a única maneira de repopularizar o planeta.

- Pois eu preferiria recorrer a um banco de sêmen a deixá-lo tocar sequer um dedo em mim! - replicou ela, sem se importar em dizer um argumento ridículo. - Eu sempre soube que você era arrogante, John, mas desta vez as coisas não serão à sua maneira!

- Existe algo chamado "tempestade em copo d'água" - ironizou ele. - Um simples "não" teria sido mais convincente. Ainda assim...

John também ficou de pé. Shena deu um passo atrás quando ele contornou a mesa e veio em sua direção.

- Pare com isso! - ordenou ela. - Qualquer que seja a brincadeira, pare agora mesmo!

- Não é uma brincadeira - disse John. - Quando as palavras não surtem o efeito desejado, a ação é o único recurso que resta.

Reconhecendo que não adiantaria lutar contra a força daqueles braços, Shena deixou que ele a puxasse para si, mas não reagiu. Não queria demonstrar nenhum tipo de encorajamento.

Entretanto, gostaria que seu corpo houvesse mantido a mesma convicção de sua mente ao sentir o calor daquele corpo másculo. As mãos quentes de John deslizaram por suas costas, em um movimento sensual. Quando elas alcançaram suas nádegas e a puxaram mais para junto dele, colando seus quadris, Shena conteve o fôlego por um instante.

Então o rosto de John foi ficando cada vez mais próximo, até seus lábios roçarem os dela. Shena foi abrindo a guarda cada vez mais, até parar de resistir por completo. Deus, como ele beijava bem... Havia esquecido como era sentir aqueles lábios e aquela língua explorando os doces recantos de sua boca.

As mãos experientes logo encontraram a parte de baixo de suéter e foram se insinuando para dentro dele devagar. Ela não havia se preocupado em colocar sutiã e logo seus seios preencheram as mãos de John com perfeição. Seus mamilos se tornaram túrgidos, indicando que ela estava pronta para carícias mais ousadas.

Somente quando as mãos de John começaram a descer devagar, em direção a seu baixo ventre, foi que Shena recobrou um pouco do senso da realidade. Deus, não podia se deixar levar daquela maneira!

- Chega! - bradou, ofegante. - Não deixarei que vá além disso!

Os lábios de John se curvaram em um sorriso charmoso. Ele também estava ofegante.

- Tem certeza?

- Absoluta.

De algum canto de seu ser, Shena reuniu forças suficientes para levar as mãos ao peito dele e afastá-lo, colocando uma cadeira entre eles.

- Lembro-me bem de quando tentou usar essa tática comigo pela primeira vez - disse a ele.

- A diferença era que naquela ocasião você não sabia o que estava perdendo.

John não tentou tirar a cadeira do meio deles. O brilho em seus olhos era mais de divertimento do que de provocação.

- Mas não importa - continuou ele. - Há muito tempo disponível. Ficaremos presos aqui por alguns dias, a menos que ocorra um rápido degelo na região.

- Não fará nenhuma diferença - salientou Shena, recobrando o controle. - Se me tocar novamente, arruinarei sua vida!

John enfiou os polegares nos bolsos e se encostou no armário, olhando-a com interesse.

- E como faria isso?

- Descobrirá se tentar me tocar novamente. Portanto, fique longe de mim!

- Será difícil cumprir essa promessa se formos renovar nossos votos de casamento. Nunca fui dado ao celibato, como você mesma mencionou. O que você precisa...

- Preciso que você volte para o lugar de onde veio! - Shena o interrompeu.

John meneou a cabeça.

- Lamento, mas não será possível. Estamos presos aqui por causa da neve. O que posso fazer se você decidiu visitar a região mais remota de Exmoor, em pleno mês de fevereiro?

- Pelo visto, a região não é tão remota assim - ironizou Shena. - De qualquer maneira, há um vilarejo a alguns quilômetros daqui.

- Esse vilarejo pode muito bem ser na lua a essa altura dos acontecimentos.

John se moveu para o lado, surpreso ao ver Shena colocar a cadeira entre eles, como se estivesse pronta para usá-la como uma arma, se tivesse de se defender.

- Não se preocupe - tranquilizou-a -, não tenho a intenção de pressioná-la. - Seguiu-se um silêncio deliberado, antes que ele acrescentasse: - Pelo menos não da mesma maneira.

Shena afastou os cabelos do rosto com a mão trêmula. Somente então se deu conta de que a presilha havia escapado em alguma parte dos acontecimentos.

- O que está querendo dizer com isso? - perguntou a ele.

- Eu disse que havia motivos para nos reconciliarmos. Shena estreitou o olhar, desconfiada.

- Nenhum motivo será suficientemente forte, posso garantir.

- Nem mesmo a possibilidade de minha sobrinha passar o resto da infância em um orfanato?

Pega de surpresa, Shena não soube o que responder. Pela expressão de John, sabia que ele dissera a verdade. Sabia que a única irmã dele havia morrido em um acidente na Austrália alguns anos antes, deixando o marido e uma filha com três anos de idade. Sabia também que o pai da menina havia interrompido o contato com a família Beaumont, por razões que John nunca mencionara.

- Aconteceu algo com seu cunhado? - perguntou, em um tom mais brando.

- Ele morreu em um acidente de trem há poucas semanas. O carro ficou preso nos trilhos e ele não teve tempo de sair. Pelo visto, ele não tinha nenhum parente na cidade, por isso as autoridades procuraram o paradeiro de minha irmã. Como meus pais são divorciados e ambos se encontram fora do país, a única esperança para Jodie é a minha intervenção.

- Entendo. Sinto muito, claro, mas não vejo em que posso ajudar.

- Preciso de você porque pretendo adotar Jodie legalmente. Não há nenhuma maneira de um homem que vive sozinho conseguir a custódia de uma menina de nove anos de idade que não seja sua própria filha. As autoridades terão de acreditar que tenho um casamento estável.

Shena sentiu um frio no estômago. John a queria de volta não porque não podia viver sem ela, mas porque precisava dela para conseguir a custódia da sobrinha.

- Isso é chantagem - disse a ele.

- Eu sei. E não hesitarei em usá-la sempre que o futuro de Jodie estiver em jogo.

- Sem se importar com quem possa sofrer com isso? Nosso casamento acabou quando descobri sobre você e Paula Frearson. Por que espera que eu esqueça o que aconteceu assim, de um momento para o outro?

- Porque estou lhe pedindo. Tudo bem... - Ele levantou a mão. - Eu a estou coagindo. Como eu disse, não pretendo voltar a abordar esse assunto. Terá de ser um novo começo. Ainda temos em comum um fator essencial para um casamento, Shena. Acabamos de comprovar isso.

- Acha mesmo que conseguirei confiar em você novamente?

John arqueou as sobrancelhas.

- Alguma vez já confiou?

- Claro que sim! Senão eu não teria me casado com você!

- Casou-se comigo porque eu me encaixava em todos seus critérios. Não vamos fingir que teria se interessado por mim se eu fosse um homem que trabalhasse das nove da manhã às cinco da tarde, e que trouxesse um salário modesto para casa todo fim de mês. Queria um homem que a satisfizesse na cama, no que eu não me lembro de haver falhado.

- Não foi nada disso! - Shena protestou. - Eu estava apaixonada por você!

- Estava apaixonada pela ideia de estar apaixonada - corrigiu John. - Eu era seu herói personalizado. Um papel que eu estava até disposto a desempenhar, mas não pelo resto da vida. De alguma maneira, acho que poderia dizer que Paula foi meu método de escapismo.

- Então está dizendo que a culpa foi minha?! Shena teve de se conter para não esbofeteá-lo.

- Não - respondeu ele. - Boa parte da culpa foi minha, por alimentar uma fantasia. Pelo menos agora está me vendo como realmente sou.

Shena respirou fundo.

-; Nisso você está completamente certo. Por isso não acredito que você seja a pessoa ideal para adotar sua sobrinha.

John enrijeceu o maxilar.

- Posso dar a Jodie uma vida melhor do que a que ela terá no orfanato.

Shena teve de admitir que ele estava certo. John sempre fora um homem muito generoso e com certeza não faltaria nada para a menina. Nada que o dinheiro pudesse comprar. Admirava a dedicação dele à sobrinha, mas não admitia a falta de consideração que ele estava demonstrando com relação aos seus sentimentos.

- Sinto muito, mas não posso ajudá-lo - respondeu.

- Está querendo dizer que não vai ajudar.

- Estou dizendo que não posso. Eu... tenho outros planos em mente.

- E quais são eles?

- Pretendo me casar novamente. John riu com desdém.

- Anda pensando em cometer bigamia?

- Claro que não estou me referindo a uma data próxima. Craig está disposto a esperar até que eu fique livre.

- Pois ele vai ficar esperando para sempre! Shena estreitou o olhar, indignada.

- Não pode me impedir de ter o divórcio, John. Tanto quanto não pode me coagir a voltar para você. Se precisa de uma mulher em casa para conseguir a custódia de Jodie, tenho certeza de que não faltarão pretendentes. Pode ser até que consiga convencer Paula a voltar para você.

Shena não disse mais nada. Pela expressão enfurecida de John, achou melhor não provocá-lo além daquilo. Ele parecia prestes a explodir a qualquer instante.

- Se quiser um divórcio amigável, terá de lutar por isso - afirmou ele. - Virá comigo para obtermos a custódia de Jodie, e ficará conosco até que a adoção esteja garantida. Então poderá ter seu divórcio. - Balançou a cabeça negativamente quando ela fez menção de protestar. - Esta é minha oferta. Um período de três meses deverá ser suficiente.

Do jeito que as coisas estavam, três dias já seriam demais ao lado de John, pensou Shena. Fora para a cabana de sua tia para ter tempo de ficar sozinha e de pensar em seu relacionamento com Craig, mas até minutos antes não pensara em nada muito importante nem tomara nenhuma decisão.

- E o que deverei dizer a Craig enquanto isso? - perguntou a John.

- A verdade, desde que ele a mantenha para si. Se ele realmente a quiser, aceitará a espera. Ele tem de esperar! Preciso de você mais do que ele.

Se pelo menos aquela afirmação não fosse apenas pelo bem de Jodie, concluiu Shena. Se pelo menos... Ela fechou os olhos, sem querer pensar no resto.

- Se eu aceitar seguir em frente com isso, terá de ser sob a condição de que você não tocará sequer um dedo em mim - disse a ele. - Se tentar alguma coisa, eu irei embora, entendeu?

- Perfeitamente. Tudo que terá de fazer será desempenhar seu papel de esposa feliz quando for necessário. Durante o resto do tempo... - John deu de ombros. - Terá de aguentar minha presença.

Shena se deu conta de que aguentara até demais desde que ele chegara.

- Vou tomar um banho - avisou. - O quarto de hóspedes fica à esquerda, no andar de cima, se quiser descansar um pouco.

Sem esperar por uma resposta, girou sobre os calcanhares e se retirou da cozinha.

Ao chegar ao quarto, respirou aliviada. O ambiente voltara a ficar agradavelmente aquecido e a pesada porta de madeira fechada parecia uma barreira segura contra o mundo cruel lá fora.

Esquecendo-se momentaneamente do banho, deitou-se sobre o cobertor e ficou olhando para o teto em silêncio, enquanto seus pensamentos começaram a viajar para o passado...

 

Mais uma festa como todas as outras, pensou Shena, esforçando-se ao máximo para prestar atenção ao que o homem à sua frente estava dizendo. Ele podia até ser um autor de renome, mas pessoalmente era maçante demais! Como escritora, esperava nunca se considerar tão importante quanto ele se considerava para o mundo.

Não que ela tivesse muita chance de correr esse risco, pensou com certa dose de bom humor. Apesar de absorver a maior parte do mercado editorial, os romances ainda eram encarados como motivo de chacota entre a mídia e os críticos literários de um modo geral. A ideia geral que se tinha a respeito deles era a de que eram escritos por frustradas senhoras de meia-idade, sem nada melhor para fazer.

O homem com quem ela estava falando, ou melhor, que estava falando com ela, tinha uma estatura baixa e seu salto alto a deixava com a cabeça bem acima da dele. Olhando em volta, com ar despreocupado, enquanto fingia prestar atenção ao que ele dizia, deparou-se com o rosto masculino mais atraente que vira nos últimos tempos.

Embora estivesse em meio a um grupo de pessoas, ele parecia estar prestando pouca atenção ao que estava sendo dito. Somente quando a mulher ao lado dele tocou-lhe o braço foi que o desconhecido voltou a prestar atenção, não sem antes mostrar um sorriso de tirar o fôlego de qualquer pulmão feminino.

Quem seria aquele deus?, Shena se perguntou, sentindo a pulsação acelerar. E como ela conseguira não notar a presença dele antes?

Aparentava estar na casa dos trinta anos de idade, tinha mais ou menos um metro e oitenta de altura e cabelos negros como a noite. O rosto era perfeito em todos os detalhes e o corpo atlético... Bem, ele parecia a personificação do sonho romântico de toda mulher. Não era possível que não o tivesse visto! Com certeza, ele chegara minutos antes à festa.

De repente, aquele olhar penetrante se voltou em sua direção e pronto! Lá estava seu coração batendo forte mais uma vez. Se estivesse escrevendo e tivesse de descrever a sensação, chamaria aquilo de "desejo mútuo instantâneo"!

Com delicadeza, conseguiu se desvencilhar de sua enfadonha companhia, dizendo que iria ao toalete. Se aquela era a média dos ânimos no meio editorial, pensou consigo, enquanto aplicava uma nova camada de batom, seria sua primeira e última festa. Tinha mais a fazer do que ficar tomando champanhe e ouvindo exaltações de egos. Como terminar seu último romance, por exemplo. O único momento em que se sentia realmente satisfeita era quando estava escrevendo.

Olhou-se uma última vez no espelho, prendendo uma mecha dos longos cabelos loiros atrás da orelha, antes de alisar seu vestido preto. Aquela cor sempre a deixava muito elegante.

Estaria sua editora certa ao dizer que suas heroínas eram uma extensão dela mesma? Tudo bem, as três primeiras também eram loiras, mas tinham personalidades muito diferentes. De qualquer maneira, criara a última com cabelos avermelhados e com um temperamento que combinava com a cor de seus cabelos. Estava sendo interessante escrever a história. Só esperava que sua leitura também se tornasse agradável. Mas Bárbara daria a palavra final.

Ao sair do toalete, voltou a penetrar naquele mundo de ruídos e de fumaça de cigarro. Avistou um terraço mais adiante e pensou em dar uma escapadela até lá. Até mesmo a poluição da cidade seria mais bem-vinda do que aquele ar viciado. Ninguém sentiria sua falta, se ela saísse por alguns minutos.

O céu estava límpido e a temperatura daquela noite de abril se encontrava muito refrescante. Aproximou-se da balaustrada para observar o rio logo abaixo, deixando que o ar refrescasse sua pele. Naquela mesma época, no ano anterior, seu primeiro livro havia chegado às prateleiras das livrarias. Exceto pelos parentes e amigos, o interesse demonstrado por seu trabalho fora mínimo, mas as vendas logo se mostraram boas.

Estando com um contrato fechado com Newton Mansfield, podia se considerar bem estabelecida. Nada mal, para alguém com vinte e dois anos, pensou consigo, permitindo-se um momento de euforia.

Fora uma aposta, claro, abandonar sua carreira bancária para se tornar escritora em tempo integral, mas estava valendo a pena, e não apenas financeiramente. Em seus livros, tinha a liberdade de escapar da rotina do dia-a-dia. E isso era algo muito gratificante.

- Estive procurando por você - disse uma aveludada voz masculina atrás dela. - Não está com frio aqui?

Shena virou-se devagar, sabendo de alguma maneira com quem iria se deparar. De perto, ele era ainda mais estonteante, com aqueles ombros largos cobertos pelo impecável smoking. Tinha olhos acinzentados, segundo ela logo notou. Lábios polpudos e firmes, queixo quadrado, sobrancelhas espessas, mas bem delineadas... Ele parecia haver saído de sua imaginação!

- Não - respondeu, esforçando-se para parecer natural. - Nem um pouco. Está muito abafado lá dentro.

- Não é de se admirar, levando-se em conta a quantidade de egos inflamados presentes no salão - brincou ele. - Você parecia um bocado aborrecida da última vez em que a vi. O efeito que nosso Jeremy tem sobre as pessoas é realmente marcante, não?

- Está com os editores dele? - perguntou Shena, ao notar que ele dissera "nosso".

- Sim, de certo modo. - Ele se posicionou ao seu lado, também se apoiando na balaustrada. - Também edito meus livros com eles.

- Oh? E... por acaso conheço seu nome?

- Depende. - Ele pareceu se divertir com a pergunta. - Escrevo sob o pseudônimo de James Warren, mas meu sobrenome é Beaumont. Apenas John, para os amigos.

Shena arregalou os olhos verdes. Aquilo estava ficando cada vez mais interessante!

- Li tudo que você escreveu! - confessou, em um impulso. - Entrou para a lista de bestsellers com todos seus livros!

John inclinou a cabeça ligeiramente, concordando com um sorriso.

- Não pensei que meus livros fossem interessar tanto uma escritora de romances.

- Só porque escrevo romances não significa que não me interesso por outro tipo de literatura - replicou Shena, um tanto indignada. - Já mergulhei fundo até mesmo nas obras de Tolstoi, se quer saber.

- Oh, não tive intenção de depreciar seu nível intelectual. - John não pareceu nem um pouco alterado. - Apenas abordamos estilos muito diferentes, só isso.

Arrependida pela atitude defensiva, Shena decidiu que seria melhor esquecer o comentário.

- Como sabe que escrevo romances?

- Fiz uma pesquisa particular - confessou John. - Shena Holroyd, que escreve sob o pseudônimo de Sylvia Halston. Promete se tornar uma das autoras mais famosas da Newton M., pelo que estão dizendo.

Shena não conteve o sorriso.

- Ainda tenho um longo caminho a seguir.

- Provavelmente em um tempo recorde - acrescentou John, com um sorriso charmoso. - Vinte e dois anos é muito pouco para alguém que já chegou onde você está.

- Trinta e dois também é muito pouco para chegar onde você está - salientou ela. - Como é possível que eu nunca tenha visto uma foto sua?

Ele deu de ombros.

- Talvez porque não gosto de ser fotografado.

- E você não faz o que não gosta de fazer - deduziu Shena. - Isso chega muito próximo de um temperamento difícil.

- Cuidado, está ficando perigosamente próxima de descobrir quanto posso ser temperamental - declarou John, com um brilho diferente no olhar.

- Longe de mim, querer provocá-lo! Tremo só de pensar em qual poderia ser sua reação.

John riu.

- Garanto que mesmo sem fazer nada ainda consegue me provocar.

- Em que sentido? - perguntou Shena, com um ar inocente.

- Nesse...

John puxou-a para si e esmagou-lhe os lábios em um beijo ardente. Não era a primeira vez que Shena era beijada, mas ela sentiu como se fosse. Quando deu por si, viu-se perdida em um mundo de novas sensações, com o corpo como que prestes a se incendiar de desejo por aquele desconhecido. Queria, ou melhor, precisava sentir toda aquela masculinidade mais próxima de seu corpo.

A última coisa que desejava naquele momento era que ele parasse. Por isso, quando John se afastou de repente, foi como se houvesse transformado seu sonho em uma nuvem de fumaça.

- Que técnica! - exclamou. - Pelo visto, é bem treinado nisso.

Ele deslizou o dorso dos dedos pelo rosto dela, mantendo o brilho de divertimento no olhar.

- Já tive chances de treinar. Está com fome? "Não de comida", Shena quase respondeu.

- Faminta! - declarou, após uma breve hesitação.

- Então vamos sair daqui. Primeiro jantaremos, depois decidiremos nosso rumo seguinte.

Shena percebeu que John não era um homem acostumado a receber "não" como resposta. Ainda assim, não pôde deixar de se sentir lisonjeada. Ele a queria, e isso estava mais do que evidente nos olhos dele. A mulher com quem ele estivera conversando parecia muito mais sofisticada do que ela e, no entanto, John decidira ir procurá-la.

- Pensei que estivesse acompanhado - disse, tentando descobrir algo mais.

Ele franziu o cenho por um momento, antes de voltar ao normal e esclarecer:

- Está se referindo a Angela? Ela é minha agente.

- E você nunca mistura negócios com prazer, claro. Os lábios dele se curvaram nos cantos.

- Digamos que sim. Vai pegar seu casaco? "Nem tente me deter!", pensou Shena.

- Será um prazer jantar com você - respondeu. - Obrigada pelo convite.

O sorriso de John se ampliou.

- Para mim também será um prazer.

Fora assim que tudo começara. Sentada na cama e abraçada aos joelhos, Shena se perguntou que rumo sua vida teria tomado se ela houvesse se recusado a ir jantar com John naquela noite.

Teria o interesse dele sobrevivido à rejeição? Talvez devesse perguntar isso a ele, embora a resposta, qualquer que fosse ela, já não fizesse diferença.

Provavelmente tentando ganhar um pouco de crédito, John não a levara para a cama naquela primeira noite. Sua estratégia fora elaborada nos mínimos detalhes, começando com aquele beijo na festa, que a deixou querendo mais, passando por semanas de um desejo que quase a levou à loucura. Sonhava em oferecer a ele toda a paixão que descrevia em seus livros, mas que nunca compartilhara com nenhum homem.

Quando deu por si, já estava completamente apaixonada e morrendo de medo de perdê-lo quando ele conseguisse ter o que desejava dela. Porém, em nenhum momento pensou que estaria casada com John Beaumont dois meses depois.

Devido mais à fama de John do que à dela, o casamento atraiu a atenção de boa parte da mídia. Shena quase deu graças quando tudo aquilo acabou e ela pôde tirar o vestido de noiva e vestir o conjunto de calça e blusa de seda verde-água, que escolhera para viajar.

Sabia que a recepção no hotel de Brenton havia custado uma boa soma para seu pai, mas ele havia se recusado a aceitar a ajuda dela com as despesas. "Nenhuma filha de Neville Holroyd pagaria o próprio casamento", fora o que ele dissera.

Ele e John haviam se dado bem desde o primeiro instante, apesar da diferença de idade.

- Seu noivo é um bocado inteligente - dissera Neville, depois de ler os seis livros de John. - A quantidade de detalhes técnicos que ele conhece é impressionante! Eu mesmo seria capaz de pilotar um Jumbo depois de ler aquele último livro dele.

- Meu pai disse que você é incrível - disse ao marido, quando ele saiu do banho.

- E o que a filha dele acha? - perguntou John, aproximando-se e abraçando-a por trás.

- Acho que sou a mulher mais sortuda do mundo neste momento. - Olhando-o através do espelho diante deles, acrescentou: - Tenho um marido bonito e rico, uma bela moradia no interior, um apartamento luxuoso na cidade... O que mais eu poderia querer?

John sorriu com charme, cobrindo os seios dela com as mãos.

- O melhor ainda está por vir...

- E se eu me revelar um fracasso? - perguntou Shena, já sentindo uma onda de desejo pelo corpo.

John riu baixinho.

- Como poderá ser um fracasso, se parece haver nascido para amar? Quer que eu faça amor com você tanto quanto eu sempre quis, Shena.

- Teria se casado comigo se eu houvesse ido para a cama com você?

Um brilho de divertimento surgiu nos olhos dele.

- Nunca saberemos, não é?

Aquela não foi bem a resposta que Shena esperava ouvir, mas, pelo visto, era tudo que ele pretendia dizer. Declarações de amor eterno não eram do estilo de John, e ela já sabia disso. Teria de se contentar apenas com a aliança em seu dedo.

Ficariam a noite naquele hotel próximo ao aeroporto, antes de embarcarem para Bali, onde passariam a lua-de-mel.

John pediu que servissem o jantar no quarto, à luz de velas, para que os dois tivessem mais privacidade. Ao fitá-lo do outro lado da mesa, enquanto ele servia mais vinho para ambos, Shena sentiu vontade de se beliscar, para ver se tudo aquilo estava mesmo acontecendo. Parecia perfeito demais para ser verdade.

- A nós - brindou John, levantando o copo. - Que a felicidade continue a nos sorrir.

- Ela continuará - declarou Shena, com confiança. - E que não ouse fazer outra coisa!

Ele riu.

- É uma otimista por natureza.

O sorriso foi desaparecendo aos poucos, quando ele a fitou de um modo que fez Shena conter o fôlego.

- Já esperei demais, Shena - disse ele, com voz rouca.

Ela não respondeu nada. Apenas sentiu o coração batendo forte quando ele ficou de pé e a fez ficar também. O grande momento chegara afinal, e ela estava com medo. Não de fazer amor em si, mas de não satisfazê-lo da maneira como tanto queria.

Usar a imaginação em seus livros era uma coisa, mas viver a experiência na prática era bem diferente. John havia conhecido outras mulheres antes dela, mulheres que provavelmente sabiam muito bem como satisfazer um homem. Em sua inocência, como poderia competir com elas?

Entretanto, a preocupação desapareceu assim que ele começou a beijá-la, levado por uma paixão que a deixou surpresa. Retribuiu o beijo com ardor, movendo o corpo instintivamente de encontro ao dele.

Em meio às carícias, Shena começou a abrir os botões da camisa dele, revelando o peito másculo, coberto por pelos escuros. Levada por um impulso, roçou os lábios sobre eles, deliciando-se ao sentir quanto eram macios. Um brilho de suor cobria a pele de John, deixando um excitante sabor levemente salgado em seus lábios.

Levou as mãos ao zíper da calça dele, mas John segurou-as com carinho e as beijou.

- Ainda não - murmurou.

Tomando-a nos braços, como se ela não pesasse quase nada, ele levou-a para a cama, onde a deitou com delicadeza. Depois de se livrar da própria camisa, tirou a blusa de Shena e em seguida o sutiã de renda branca. Posicionando-se sobre ela, tomou cada um dos mamilos entre os lábios, acariciando-os até fazê-la gemer de prazer.

Envolvida pela paixão, Shena não teve muita certeza do que aconteceu dali em diante. Quando deu por si, já estava completamente nua, com cada centímetro de seu corpo sendo acariciado por aquelas mãos e aqueles lábios experientes.

Quando John tirou a última peça de roupa, revelando toda aquela masculinidade, ela conteve o fôlego. Já tinha visto estátuas de homens nus, mas, pelo visto, aquilo não fora suficiente para prepará-la. John lembrava um deus grego, com o corpo nu iluminado pela suave luz do abajur.

Sentindo o desejo aumentar diante daquela visão, não hesitou em tocá-lo assim que ele voltou para junto dela. Em meio a beijos e carícias sensuais, John a preparou para o momento mais importante. Com um carinho e um cuidado infinitos, ele finalmente a possuiu, abafando o gemido de dor de Shena com um beijo apaixonado.

A partir dali, nada mais pareceu importante para ela, exceto o fato de estar nos braços de um homem maravilhoso que a tomara mulher. Quando o breve incômodo cedeu lugar à deliciosa sensação de prazer, Shena se deixou levar pelos movimentos ritmados de John, até que a explosão derradeira de prazer os arrebatou quase no mesmo instante. Foi como se o mundo desaparecesse por um instante, deixando-a ciente apenas daquele intenso prazer.

Quando voltou à realidade, viu John com o rosto afundando junto a seu ombro, ainda ofegante. Um sorriso de satisfação surgiu nos lábios firmes no momento em que ele voltou a fitá-la.

;- Como está se sentindo?

- Extasiada - respondeu ela.

John moveu-se sensualmente sobre ela, revelando uma nova onda de desejo.

- De novo? - Shena perguntou. Ele arqueou uma sobrancelha.

- Isso é uma reclamação?

- Não, apenas surpresa - admitiu Shena. - Pensei que demorasse mais tempo para um homem se... recuperar.

- Depende do incentivo. Com você... - John mordiscou a orelha dela. - Isso se torna uma conclusão precipitada.

Shena sorriu, lisonjeada.

- Isso significa que valeu a pena esperar?

- Não resta dúvida que sim. Você é a mulher mais desejável e sensual que já conheci, sra. Beaumont. - Os olhos acinzentados revelaram o brilho do desejo. - E por falar nisso...

Aquelas primeiras semanas de casamento foram maravilhosas. Quando retornaram da lua-de-mel, John e Shena participaram de muitas festas, saindo praticamente todas as noites.

Shena adorava ver o ar de inveja no rosto das outras mulheres sempre que aparecia ao lado de seu marido maravilhoso. De fato, já estava até se acostumando com aquela agitada vida social quando, certa noite, surpreendeu-se com a reação de John em não querer comparecer a uma festa.

- Precisamos de algum tempo para nós dois - justificou ele. - Uma noite tranquila, ouvindo música, seria maravilhoso.

Shena torceu o nariz.

- Teremos muito tempo para isso quando estivermos velhos. Todo mundo vai estar nessa festa, John!

- Nesse caso, nem notarão nossa ausência. - Ele balançou a cabeça negativamente quando ela fez menção de protestar. - Nós não iremos, Shena. E ponto final.

- Então irei sozinha! John sorriu.

- Acha que eu deixaria? Ele levantou o queixo.

- E você acha que pode me impedir?

- Claro que sim.

Dizendo isso, ele a puxou para si e esmagou os lábios dela em um beijo punitivo. Porém, o beijo foi logo se tornando sensual, até que um gemido escapou dos lábios de Shena.

- Ainda queria estar na festa? - perguntou ele muito tempo depois, enquanto os dois se encontravam deitados diante da lareira acesa.

- Não - sussurrou ela, satisfeita demais para pensar em qualquer outra coisa. - Quero ficar assim com você para sempre.

John sorriu.

- Seu desejo é uma ordem, sra. Beaumont.

Não fora isso que ele dissera quanto a irem à festa, pensou Shena. Contudo, ao sentir a mão dele em seu seio, não conseguiu pensar em mais nada.

Infelizmente, aquele estava longe de ser o único desentendimento que surgiria entre eles. Durante os meses seguintes, Shena foi descobrindo como, às vezes, John se mostrava irredutível em algumas decisões, sem levar a opinião dela em consideração.

- John, casamento é dar e receber! - explodira ela certa vez, quando ele se recusara a passar um fim de semana navegando pelo Tâmisa. - Não tenho culpa se você não gosta dos Masterson!

- Não é uma questão de gostar ou não. Nós os conhecemos há apenas duas semanas e não quero passear no barco de pessoas que mal conheço. Além disso, vou trabalhar no fim de semana.

- Você está sempre trabalhando!

- Isso não é verdade. Estou dois meses atrasado com o início do meu próximo livro.

Shena mordeu o lábio, sabendo que ele dissera a verdade. E ele não era o único a estar com o trabalho atrasado. Ela também já deveria estar com um novo livro terminado.

- Desculpe-me - disse em um impulso. - Eu falei sem pensar. Claro que você precisa trabalhar. Sei que é por minha causa que não vai entregar seu livro no prazo.

- Não posso negar que você tem sido uma distração para mim. - John sorriu, acariciando o rosto de Shena. - Mas uma deliciosa distração.

Como sempre, bastava ele tocá-la daquela maneira para Shena sentir o amor voltar a se acender em seu peito. Amava John demais e não queria perdê-lo. Estavam no meio de outubro, e teriam muito trabalho pela frente.

Na época do Natal, os livros dos dois já haviam sido terminados e despachados para as editoras. Para celebrar o fim do trabalho e também para descansarem um pouco, os dois resolveram passar o ano novo em Barbados, lugar que John pretendia usar como cenário em seu novo livro.

John sempre reservava seis meses para pesquisa, antes de começar um novo trabalho. A pesquisa incluía viagens a lugares distantes e, às vezes, exóticos. Tendo completado outro livro nesse ínterim, Shena resolveu acompanhá-lo à Tailândia, onde ele realizaria algumas pesquisas no mês de abril. Porém, ficou arrasada quando John se recusou a levá-la.

- Irei a lugares perigosos e não será seguro que me acompanhe - explicou ele. - E eu não confiaria em deixá-la sozinha em um quarto de hotel por tantos dias, em meio a desconhecidos.

Shena nem quis acompanhá-lo até o aeroporto. Durante os dias em que ele ficou fora, ela tentou se distrair ficando na companhia de amigos. Chegou até a encontrar um ex-namorado, com quem teve uma breve conversa.

Quando John voltou de viagem, mostrou-se todo carinhoso e, como sempre, ela não resistiu ao apelo daqueles braços. Porém, quando ele ficou sabendo o que ela havia feito durante sua ausência, ficou furioso e ambos tiveram uma discussão acalorada.

Foi a partir dali que a desconfiança começou a corroer o casamento. Até chegar ao ponto de Shena desconfiar de que havia outra mulher na vida de John. A desconfiança se confirmou quando ela recebeu um bilhete de Paula Frearson, sugerindo que ela deixasse John, para que ele se casasse com a mulher com quem deveria ter se casado desde o início.

Naquele dia, quando John voltou para casa, Shena já havia feito as malas e partido para a casa dos pais. Ele foi procurá-la, mas ela nem quis ouvi-lo. Vendo que não adiantaria tentar se explicar, ele desistiu.

Infelizmente, seu casamento terminara, concluiu Shena, voltando os pensamentos ao presente. Depois que se separara de John, organizara sua vida como uma mulher solteira. Comprara um apartamento e tivera alguns poucos casos passageiros. Contudo, nunca conseguira tirar John de sua mente e de seu coração.

Quando decidiu tomar um banho e descer, já eram quase nove horas. Encontrou John deitado no sofá. Ele estava acordado, lendo um livro, e abaixou-o ao notar a presença dela.

- Mas que banho demorado - disse ele.

- Dormi um pouco, antes - Shena mentiu, entrando na sala.

- Por que não se senta e relaxa, já que não resta muito a fazer? Talvez ler um livro seja uma boa alternativa. Há uma boa seleção na estante de sua tia.

Totalmente relaxado, John voltou a se concentrar na leitura. Ao ver a capa do livro, Shena se sobressaltou. Era um dos seus!

- Me dê isso aqui! - exigiu. - Sei muito bem que você não lê romances.

John abaixou o livro e arqueou as sobrancelhas.

- Bem, já estou quase no final - disse, olhando o livro. - Fui longe para alguém que não está interessado, não acha?

- Aposto que o abriu agora nessa página, só para me provocar. Nunca leu um livro meu antes.

- Talvez eu devesse ter lido - afirmou John. - Pelo menos teria tido pistas do que a excita. Este é um dos seus primeiros, o segundo eu acho. Está bem escrito para uma principiante, embora esteja faltando um certo impacto nas cenas de sexo. Mas naquela época você ainda não tinha experiência. Já em seus livros mais recentes...

- Talvez eu devesse lhe oferecer uma porcentagem das vendas por tudo que me ensinou - ironizou Shena.

Um brilho de desafio surgiu nos olhos dele.

- Se usou mesmo tudo que lhe ensinei nos últimos livros, eles devem ter ficado excitantes.

Furiosa, Shena se adiantou e tirou o livro dele. John arqueou as sobrancelhas, não parecendo nem um pouco abalado.

- Eu não estava criticando seu trabalho. Dentro desse estilo, ele é até muito bom.

- Obrigada - ela agradeceu por entre os dentes. - Vou telefonar para a fazenda vizinha e ver se eles podem mandar algum empregado para limpar a saída até a estrada. Quanto mais cedo sairmos daqui melhor.

- Como quiser. - John deu de ombros. - Enquanto isso, vou seguir seu exemplo e tomar um banho.

Shena ficou olhando-o se retirar. Três meses ao lado de John seria uma verdadeira prova de fogo. De qualquer maneira, seria uma boa oportunidade para testar seu autocontrole. Ou se livraria do sentimento que ainda tinha por ele, ou assumiria de uma vez por todas que continuava completamente apaixonada. Só não sabia qual das duas alternativas seria a mais dolorosa.

 

Shena e John partiram naquela tarde. John foi na frente, com o Range Rover, e ela o seguiu pela estrada. O sr. Lawson mandara um empregado limpar a trilha que dava na estrada principal, onde o tráfego voltara a fluir normalmente.

Considerando os prováveis atrasos, Shena calculou que eles chegariam em casa por volta das seis horas da tarde. Ou melhor, no apartamento dela. John insistira em acompanhá-la até lá, antes de ir para seu próprio apartamento. Segundo ele, ainda teriam de discutir alguns detalhes.

Por fim, devido ao trânsito intenso, acabaram chegando às sete horas no apartamento dela. Shena morava no segundo andar de uma das grandes casas antigas com vista para Heath. Seu apartamento era um pouco grande para alguém que morava sozinha, mas ela tivera condições de pagá-lo e apreciava ter espaço dentro de casa.

- Não pensei que você fosse encontrar o prédio com tanta facilidade - comentou ela, quando os dois voltaram a se encontrar, diante do elevador.

- Tenho um casal de amigos que moram aqui perto - explicou John, observando Shena apertar o botão do segundo andar. - Aliás, eles sempre foram meu exemplo de casal feliz. Lembra-se o que é isso?

Fingindo não se alterar com a provocação, Shena manteve um tom neutro ao responder:

- Não tenho uma memória muito boa.

- Eu tenho. Ainda me lembro muito bem de nossa noite de núpcias. Mas não é de admirar, afinal, não é todo dia que um homem tem a chance de se casar com uma virgem atualmente. Quantos homens teve em sua vida depois de mim, Shena?

"Nenhum", pensou ela. Porém, duvidava que John acreditaria se ela dissesse a verdade.

- Isso não é da sua conta. Tanto quanto seus romances não são da minha conta. Vamos nos divorciar quando tudo isso terminar...

- Oh, claro. E você vai se casar com esse tal de Craig. O que ele faz na vida?

O elevador parou e Shena saiu quando a porta se abriu.

- Ele é fiscal público.

- Oh, uma profissão bastante sólida!

- Pode zombar quanto quiser. Pelo menos com ele sei exatamente onde estou.

- Pensei que também soubesse quando estava comigo. - John deu de ombros. - Mas nenhum de nós está livre de ter surpresas na vida.

Decorado em tons de azul-marinho, creme e com um carpete vermelho-escuro ressaltando os móveis, o apartamento de Shena tinha detalhes de muito bom gosto, que ela escolhera pessoalmente. A combinação de um estilo clássico com alguns toques modernos tornavam o ambiente aconchegante e suntuoso ao mesmo tempo.

- Muito bonito - elogiou John, ao entrar atrás dela.

- Fico contente que tenha gostado. - Depois de tirar o casaco pesado e pendurá-lo próximo à entrada, olhou para ele. - Tire o seu também. Vou preparar um café. A menos que queira algo mais forte?

John balançou a cabeça negativamente.

- Um café será ótimo - respondeu, tirando o casaco e jogando-o sobre uma cadeira. - Não vou ficar aqui o suficiente para precisar pendurá-lo.

Shena experimentou uma sensação de perda ao ouvir aquilo. Porém, logo tratou de deixá-la de lado. Talvez fosse melhor ficar logo sozinha. Tinha telefonemas a dar e um deles seria o mais difícil de todos: o de Craig.

- É mesmo necessário que eu esteja com você quando for buscar Jodie? - perguntou a ele. - Não basta apenas mostrar nossa certidão de casamento? Não acredito que haja maiores problemas se Jodie estiver registrada como cidadã inglesa. Seu cunhado nunca providenciou a própria naturalização, não é?

- Parece que não. Mesmo assim, terá de vir comigo. Pelo menos para o bem de Jodie. Consegue imaginar o que é, para uma criança de nove anos, perder o pai, ser colocada em um orfanato e depois ir parar na companhia de um completo estranho?

- Mas eu também serei uma estranha para ela - argumentou Shena.

- Por mais que eu deteste dizer o óbvio, você é uma mulher, Shena. Isso deve deixá-la com um pouco mais de vantagem para lidar com uma garotinha de nove anos. De qualquer maneira, as reservas no vôo já estão feitas.

Os olhos verdes de Shena escureceram de fúria.

- Arrogante como sempre! Claro que não lhe ocorreu que eu poderia me recusar a acompanhá-lo.

- Não nesse caso. Você pode até ter defeitos, mas o descaso não é um deles.

- Se quiser falar em defeitos, posso passar a noite inteira enumerando os seus!

O sorriso súbito de John a desarmou.

- Tenho certeza disso. Mas que tal preparar aquele café primeiro? Estou precisando tomar alguma coisa quente.

Reconhecendo que não adiantaria discutir, Shena respirou fundo.

- Posso lhe oferecer algo para comer também, se quiser - sugeriu, mesmo sem ter muita certeza do que restava na despensa.

- Já passei do estágio da fome - respondeu ele. - Apenas o café estará bom para mim. Se é que vou mesmo conseguir tomá-lo.

- Alguém deveria lhe dizer que o sarcasmo é a forma mais baixa de provocação!

- Você mesma acabou de dizer - falou ele, enquanto ela se dirigia à cozinha.

Como sempre, John fazia questão de ficar com a palavra final.

Quando voltou com o café, minutos depois, encontrou John cochilando no sofá. Depois de deixar a bandeja sobre a mesinha, balançou o pé dele e disse:

- O café está pronto! John abriu os olhos com relutância.

- Bem, mas se não estiver mais interessado em tomar algo quente...?

Ele se endireitou no sofá.

- O que disse mesmo sobre sarcasmo? - falou, com ar de provocação.

Shena não respondeu nada. Estava ficando cansada de trocar "alfinetadas" com John.

- Quando partiremos? - perguntou, após tomarem o primeiro gole de café.

- Na quinta-feira à noite. Chegaremos em Brisbane no sábado de manhã. Providenciei uma reunião para o sábado à tarde, na casa onde Jodie está hospedada. Isso nos dará algum tempo para nos estabelecermos na cidade.

Oh, claro, pensou Shena, com ironia. Quatro ou cinco horas depois de viajarem quase metade do mundo até a Austrália!

- Ainda não comprei as passagens de volta - avisou ele. - Não tenho ideia de quanto tempo vai demorar para providenciarem os documentos. Afinal, burocracia não é algo exclusivo da Inglaterra. - Notando que ela pretendia protestar, acrescentou: - Ligue para seu Craig agora, se quiser, e darei a explicação para você.

- Adoraria fazer isso, não? - Shena estreitou o olhar. - "Estou levando minha esposa para o outro lado do mundo e não tenho ideia de quando voltaremos". Se acha...

Shena parou de falar quando ele começou a rir.

- Sua confiança em mim é emocionante!

- Oh, vá para o inferno! - explodiu ela. - Não irei a nenhum lugar com você. Portanto, pode ir embora daqui agora mesmo!

Os traços de bom humor desapareceram do rosto dele no mesmo instante, cedendo lugar a uma expressão mais austera. Devagar, ele colocou o pires e a xícara sobre a mesa.

- Agora que já aceitou colaborar, não apenas virá comigo, mas fará o possível para convencer as autoridades de que seremos pais adequados para Jodie. Se surgir alguma dúvida, eles não hesitarão em afastá-la novamente de nós. Os interesses da menina têm de vir em primeiro lugar. Isso é algo que você deve levar em consideração.

Sem querer continuar enfrentando aqueles olhos perscrutadores, Shena abaixou a vista para as mãos unidas sobre seu colo. Mordeu o lábio, admitindo que John tinha razão. Jodie era mais importante do que quaisquer sentimentos feridos.

- Ligarei para Craig quando você for embora. Ainda tenho muitas coisas para organizar até a quinta-feira. - Ela levantou a vista novamente. - Deus, já será depois de amanhã!

- Isso mesmo. - John não demonstrou mais nenhum sinal de aborrecimento. - Precisa de um visto, portanto, teremos de ir à embaixada australiana pessoalmente. Passarei para apanhá-la às dez horas.

Enquanto falava, ele ficou de pé e pegou o casaco. Shena o acompanhou até a porta. Disse a si mesma que queria apenas trancar a porta depois que ele saísse. Porém, quando John levou a mão à curva de seu pescoço e a puxou com delicadeza para si, ela teve de confessar a si mesma que era justamente aquilo que desejara ao acompanhá-lo. Queria que John a beijasse mais uma vez.

Durante segundos que pareceram infinitos, ele ficou observando cada detalhe de seu rosto. O brilho daqueles olhos acinzentados provocou-lhe um arrepio de expectativa.

- Só mais uma coisa - disse ele. - Nunca mais me mande para o inferno.

Ele partiu antes mesmo que ela conseguisse pensar em uma resposta. Shena trancou a porta e se encostou contra ela, fechando os olhos. Fez o possível para manter a calma e lidar com as emoções turbulentas em seu peito.

O fato de John não havê-la beijado deixou-a com uma estranha sensação de vazio, como se, depois das horas que haviam passado na companhia um do outro, houvesse ficado faltando algo.

Talvez ele houvesse chegado à conclusão de que a única maneira de enfrentar aquela situação seria mantendo distância um do outro. Reconhecia o bom senso da decisão, embora seu corpo estivesse protestando.

A atração física que sentia por John continuava mais intensa do que nunca. Beijos poderiam levar, e provavelmente levariam, a outras coisas, com todas as consequentes complicações. Droga, Craig merecia um pouco mais de consideração. Ela merecia ter mais consideração consigo mesma!

Ao olhar para o relógio de parede, notou que passava alguns minutos das oito horas. Se iria dar a notícia a Craig, melhor seria contá-la de uma vez. Explicar a situação seria uma das partes mais difíceis. Tinha a impressão de que Craig não a aceitaria de imediato. Por mais que ele não lhe despertasse as mesmas sensações que John, tinha muita consideração por ele, e a última coisa que desejava fazer era magoá-lo.

Censurando-se por haver cedido mais uma vez aos desejos de John, foi até o telefone. Ao ver o sinal da secretária eletrônica indicando que havia mensagens, decidiu ouvi-las antes de telefonar. Havia apenas uma mensagem e, por coincidência, era de Craig:

- Tentei localizá-la na casa de sua tia e deduzi que você deveria ter resolvido voltar para casa por causa do mau tempo. Vou embarcar no vôo das seis e meia para Frankfurt. Surgiram alguns problemas. Espero estar de volta na sexta-feira, mas se eu tiver de ficar por lá durante o fim de semana, telefonarei para você. - Em um tom mais ameno, acrescentou: - Espero que tenha chegado às conclusões certas.

Shena ficou pensativa durante algum tempo, imaginando como lidaria com aquela nova complicação. Era tarde demais para telefonar para o escritório dele e saber onde ele ficaria em Frankfurt. De qualquer maneira, se fosse necessário, poderia entrar em contato com alguém que pudesse lhe informar esse detalhe.

A questão era: seria justo preocupar Craig com esse assunto sendo que ele teria de se concentrar no trabalho, já que haviam surgido problemas de última hora? A resposta à questão era não. Porém, isso a deixou com a dúvida de quando contar o problema a ele. Mesmo que Craig voltasse na sexta-feira, ela já teria partido com John.

Talvez deixar tudo explicado em uma carta fosse a melhor solução. Poderia escolher as palavras com muito mais cuidado se tivesse de colocá-las no papel. Seria um pouco indelicado de sua parte, mas que outra alternativa lhe restava? Não seria o mesmo que dizer a ele que não queria voltar a vê-lo, claro que não. Tudo que desejava era que Craig entendesse o problema.

Teria de recorrer a seus pais. Infelizmente, eles teriam de ser envolvidos na história. Mas não naquela noite. Não conseguiria enfrentar o desapontamento de sua mãe quando ela soubesse que a reconciliação com John seria apenas temporária. Por enquanto, bancaria a Scarlett O'Hara e "pensaria nisso depois".

John chegou pontualmente às dez horas, parecendo bem mais descansado do que Shena estava conseguindo se sentir. Ela havia passado a maior parte da noite virando-se de um lado para outro na cama, atormentada pelas emoções em seu peito.

- O que disse a seus pais? - perguntou ele, quando entraram no carro.

- Nada ainda - Shena confessou. - É uma situação difícil de ser explicada.

- Não conseguirá mantê-la em segredo por três meses. - Ele parou o carro no semáforo vermelho, voltando a acelerar quando a luz verde se acendeu. - Eles sabem sobre Craig?

- Claro que sim.

- Estou me referindo a você estar planejando se casar com ele.

Shena hesitou.

- Não ainda - respondeu em um fio de voz.

- Então foi uma decisão recente. - Os lábios dele se curvaram com ironia. - Tomada depois que eu a procurei provavelmente?

Shena levantou o queixo, indignada.

- Eu já havia tomado essa decisão muito antes de você aparecer.

- Não precisou tomar nenhuma decisão quando se casou comigo, pelo que me lembro.

Ela engoliu em seco.

- E prudente aprender com os próprios erros - respondeu.

- É mesmo? - zombou John. - Sua prudência não vai durar muito tempo, posso garantir.

- Levando-se em conta que você nem mesmo conhece Craig, sua opinião não vale nada para mim. Ele tem qualidades que você nem sequer entenderia!

- Mas aposto que ele não lhe dá o tipo de satisfação mais importante em um relacionamento.

- Você se considera o único capaz de fazer isso?

- Pelo menos sou capaz de reconhecer o olhar de desejo de uma mulher.

- Não duvido! Você é mesmo um expert com relação a mulheres!

Um brilho diferente surgiu nos olhos de John.

- Você é a única que conheço muito bem.

Shena teve de se esforçar para não demonstrar o que estava sentindo.

- Não, você não me conhece, John. Não sou mais aquela garota ingênua com quem você se casou. Admiro o que está fazendo por sua sobrinha, e ajudarei no que for possível, mas não farei muito além disso.

Ele deu de ombros.

- Como quiser.

Shena deixou que ele se concentrasse no trânsito e não disse mais nada. Por fim, conseguir o visto foi mais demorado do que eles haviam imaginado. Quando passaram por toda a burocracia, a manhã já havia praticamente terminado.

Foram almoçar no Rules, onde John reservara uma mesa com antecedência. Se pudesse escolher, Shena teria preferido um lugar onde não corressem o risco de encontrar pessoas conhecidas. No entanto, reconheceu que seria praticamente impossível manter a reconciliação em segredo.

Se a notícia se espalhasse, não facilitaria muito as coisas para Craig, pensou ela. Principalmente quando fossem retomar o relacionamento, dali a três meses. Seria mesmo um teste de fogo para os sentimentos dele.

- Onde pretende ficar quando tudo estiver acertado? - perguntou a ele, depois que fizeram os pedidos ao garçom.

- Na casa, é claro. O apartamento não é o lugar ideal para uma criança de nove anos.

Shena assentiu.

- Terá de contratar alguém para cuidar dela quando eu for embora.

John franziu o cenho.

- O que a faz pensar que isso será necessário?

- Sua vida social será prejudicada se não o fizer - avisou ela. - Uma criança de nove anos não pode ser deixada sozinha à noite, por exemplo.

- A sra. Parkin passará a noite em casa, quando for preciso.

- Pode ser - anuiu Shena. - Mas haverá outros detalhes em jogo enquanto eu estiver na casa. Como o fato de dormirmos em quartos separados, por exemplo.

Os lábios dele se curvaram em um sorriso.

- Há uma solução simples para isso. Shena olhou-o de soslaio.

- Você já sabe a resposta quanto a isso.

- Sei o que você disse - salientou John. - Que não coincide com o que você sente.

- Pare de tentar dizer o que sinto! - Shena olhou para ele, furiosa. - Você não...

A conversa foi interrompida pela chegada do garçom.

- Será que não podemos falar sobre um assunto mais neutro? - indagou Shena quando o garçom se retirou. Após uma breve pausa, falou: - Nunca me falou muito sobre sua irmã, por exemplo. Só o que sei é que ela se chamava Janine e que morreu jovem.

- Ela tinha vinte e quatro anos quando morreu. - Os olhos de John mostraram uma súbita sombra de tristeza. - Estava com vinte e um anos quando se casou com Trevor e foi morar com ele, na Austrália. Jodie nasceu sete meses depois, e não foi de parto prematuro.

- Entendo.

- Soubemos da notícia quando recebemos uma carta de Brisbane, enviada por Janine na véspera de ir visitar amigos na França.

- Você nunca se encontrou com Trevor?

- Só algumas vezes - respondeu John.

- Mas não gostava dele? John deu de ombros.

- Ele não era um homem que nós aprovaríamos para Janine.

- Ao saber da criança e tendo consciência da maneira como vocês agiam com relação a Trevor, talvez Janine tenha achado que a distância seria o ideal para todos - Shena deduziu. - Vocês não tentaram uma reaproximação?

- Sim, eu fui procurá-la.

- Só você?

- Meus pais já haviam entrado em processo de separação. Tinham outras coisas em mente. Não que a presença deles fosse fazer muita diferença. Janine estava totalmente enfeitiçada por Trevor.

- Talvez ele tivesse qualidades que você não chegou a conhecer - sugeriu Shena.

John riu com desdém.

- Se ele tinha, fez questão de mantê-las bem escondidas. Janine teria tido chance de se recuperar do vírus que a matou se Trevor a houvesse levado logo a um médico. Quando ele se dispôs a fazer isso... - John se interrompeu, contraindo o maxilar. - Não pudemos fazer muita coisa quando ele nos proibiu de ter contato com Jodie.

- E você se culpa por haver deixado a situação permanecer como estava - Shena deduziu.

- Em grande parte, sim. Eu deveria ter intercedido por ela.

- Mas está fazendo isso agora, não?

- É o mínimo que posso fazer - disse John. Shena assentiu, concentrando-se em seu próprio prato.

- Ei, vejam só quem está aqui!

Shena levantou a cabeça no mesmo instante, deparando-se com uma de suas colegas de profissão.

- Como vocês estão?

- Muito bem - respondeu John, antes que Shena pudesse se manifestar.

- Se isso significa que estão juntos novamente, fico muito feliz por vocês! Não é segredo, espero?

- Não mais. - John sorriu, apesar do chute que levou na canela, por baixo da mesa.

- Não tinha o direito de fazer isso! - protestou Shena, quando os dois voltaram a ficar sozinhos.

- Era o que ela queria ouvir - falou ele, imperturbável. - Nunca me agradou desapontar uma dama.

- Essa reconciliação é apenas temporária, John. Não pense que pode sair por aí falando mais do que isso!

Ele apenas sorriu com charme e levantou o copo, sugerindo um brinde.

- Bon appétit!

 

O vôo foi longo e cansativo. Quando chegaram ao hotel, Shena já estava cansada demais para prestar muita atenção na questão da acomodação. John alugou uma suíte com dois quartos.

- Por que não vai descansar um pouco? - sugeriu ele, quando entraram na suíte. - Vou informar às pessoas que estão cuidando de Jodie que chegamos, depois acho que também vou descansar. Teremos de chegar lá somente depois das três horas da tarde.

Do jeito que Shena estava se sentindo, três horas da tarde do dia seguinte ainda seria cedo demais. Entretanto, não sentiu ânimo nem mesmo para dizer isso a John. Tudo que fez foi se dirigir para um dos quartos e deitar com um suspiro de alívio.

Quando acordou, viu uma réstia de luz entrando pela janela. Por um instante, não conseguiu identificar onde estava. O relógio na mesinha de cabeceira indicava quinze para as duas da tarde.

Então a lembrança voltou de repente. Estava em Brisbane, na Austrália, com John. Em pouco mais de uma hora iriam se encontrar com a menina que levariam para a Inglaterra.

Esforçando-se para se levantar, observou o quarto. O hotel era cinco estrelas, como ela imaginara. John não aceitaria menos do que isso.

Ao ficar de pé, sentiu-se entontecida. Talvez um banho lhe fizesse bem. Tinha de fazer algo para não acabar dormindo em meio ao encontro com Jodie.

Ao passar diante do espelho inteiriço, do lado de fora do guarda-roupa, levou um susto. Sua roupa estava toda amassada, sua maquiagem borrada e os cabelos pareciam o de alguém que acabara de levar um susto em um desenho animado. Suas heroínas nunca acordavam com aquela aparência, quaisquer que fossem as circunstâncias!

Com cuidado para não fazer barulho, pegou um robe e uma toalha e foi para o banheiro. Se John não desse sinal de vida quando ela saísse do banho, teria de chamá-lo, para chegarem a tempo ao encontro.

Quando terminou o banho, sentindo-se quase humana novamente, vestiu o robe e apurou os ouvidos ao sair do banheiro. Não ouviu nenhum ruído vindo do outro quarto.

Com cautela, aproximou-se da porta e bateu devagar. Nenhuma resposta. Talvez John não estivesse ali. Para ter certeza, abriu a porta vagarosamente e espiou pela fresta, surpreendendo-se ao vê-lo deitado de bruços na cama.

Provavelmente estava nu, com o lençol cobrindo-o da cintura para baixo. Tinha um braço dobrado ao lado do rosto, enquanto o outro pendia ao lado da cama. Shena não estava vendo o rosto dele, apenas os cabelos ligeiramente desalinhados na altura da nuca.

O lençol fino deixava pouco para a imaginação de Shena, moldando os contornos másculos de uma maneira que a deixou sem fôlego. Quando deu por si, já estava ao lado da cama, tocando com a ponta dos dedos aquele ombro com músculos bem torneados.

Porém, sobressaltou-se quando John se virou de repente. Sem dizer nada, ele a puxou para si e beijou-a antes que Shena pudesse ter qualquer reação. Rolou para o lado, deitando o corpo parcialmente sobre o dela, com o lençol entre eles.

A parte de cima do robe de Shena abrira-se por completo e não demorou para que ela sentisse a mão de John sobre um de seus seios.

- Não - pediu, em meio a um gemido. - Não, John!

- Por que não? - perguntou ele, com voz rouca. - É o que você quer. O que ambos queremos! Por que negar o óbvio?

- Não estou negando nada. - Shena fitou-o nos olhos. - Querer é uma coisa, mas fazer é outra bem diferente. Se quiser que eu continue a ajudá-lo com essa adoção, terá de parar agora mesmo!

- Não fui eu quem começou - salientou John. - Se não queria que isso acontecesse, não devia ter me tocado. Como diabos esperava que eu reagisse?

- Pensei que estivesse adormecido.

John sorriu. Aproveitando o momento de distração, Shena se desvencilhou dele e ficou de pé, fechando o robe com firmeza.

- De agora em diante - disse a ele -, farei com que não chegue perto o suficiente para me pegar de surpresa.

- Claro que sim - ironizou ele, com um sorriso provocante. - E melhor ir se vestir, senão chegaremos atrasados.

Shena jogou os cabelos sobre o ombro, fingindo indiferença.

- Agora será impossível não chegarmos atrasados. Já são quase duas e meia da tarde.

- Nesse caso, é melhor nós dois nos apressarmos - disse John.

Ela apressou os passos em direção à porta enquanto ele se levantava. Teve de se esforçar para conter o impulso de olhar para trás.

Tocá-lo daquela maneira fora muito ingênuo de sua parte. Se quisesse sair daquela história com o que restava de seu orgulho, teria de aprender a controlar sua libido, disse a si mesma, trancando a porta do quarto. Não poderia se deixar levar pelo desejo, senão estaria perdida.

A casa se localizava na parte norte da cidade. A construção era grande e antiga, com a entrada cercada de plantas, ao lado de um jardim muito bem cuidado.

Um grupo de crianças brincava sob o sol da tarde, enquanto outras um pouco mais velhas cuidavam de algumas plantas no jardim. Shena ficou contente ao observar que nenhuma delas parecia triste ou infeliz.

Ela e John foram recebidos por uma senhora de meia-idade a quem todos chamavam de sra. Robinson. Ela os conduziu até uma sala e fez um gesto para que eles se sentassem.

- Jodie está bem? - Shena perguntou. - Quero dizer, como ela está lidando com o fato de haver perdido o pai?

A sra. Robinson suspirou.

- Extremamente bem - respondeu. Após um momento de hesitação, continuou: - Ainda está um pouco chocada, claro, mas sua recuperação está sendo ótima. Jodie pode até ter nove anos, mas age como se tivesse bem mais idade. Não é de admirar para uma criança que já passou por tantas experiências na vida.

John estreitou o olhar.

- Que tipo de experiências? A sra. Robinson suspirou.

- Para resumir a história, o pai dela era um alcoólatra que não conseguia um emprego decente havia anos. Vivia em abrigos públicos, mas passava a maior parte do tempo bebendo e em companhia de mulheres, segundo descobrimos. Jodie teve de aprender a "se virar" desde cedo, digamos assim. E parece que aprendeu muito bem. O único problema é que... - Ela se interrompeu, balançando a cabeça. - Será melhor verem por si mesmos. Aliás, ela já deveria estar aqui. Vou mandar uma das meninas ir chamá-la.

Nesse momento, a porta se abriu, revelando uma menina franzina vestida com um jeans sujo de barro e uma camisa azul, em estilo masculino, com uma das mangas rasgadas. Atrás dela, surgiu uma jovem aparentando ter quinze anos, que olhou-os com um ar impaciente.

- Jodie estava brigando novamente! - declarou ela. - Tive que arrancá-la de perto daquele bobo do Robby! Pensei que ele já houvesse aprendido a manter a boca fechada!

- Eu a fechei para ele - falou Jodie, com ar de triunfo.

- É verdade - confirmou a jovenzinha. - E também o fez chorar.

- Ele é um "molengão"!

- Chega - disse a sra. Robinson. - Tudo bem, Betty. Eu cuidarei de tudo de agora em diante.

Jodie continuou no mesmo lugar. Os cabelos negros curtos emolduravam o rostinho coberto por algumas manchas de lama, vindas provavelmente da mesma fonte que lhe sujara a calça. Tinha os olhos da mesma cor dos de John e um ar travesso que, de certa forma, também a fazia parecer com o tio.

- Você deve ser meu tio - disse a ele. John assentiu, com os lábios se curvando em um arremedo de sorriso.

- Acho que sim. Você se parece muito com sua mãe quando tinha a sua idade, inclusive pelo detalhe da lama na roupa.

Isso provocou um brilho de interesse nos olhos da menina.

- Não me lembro da minha mãe - confessou Jodie.

- Bem, pois terá de acreditar na minha palavra. Ela também vivia se metendo em confusões. Mas nunca chegou a dar uma surra em um garoto.

A menina riu.

- Mas aposto que ela conseguiria se tentasse - disse a ele.

- Talvez - John admitiu. Então indicou Shena. - Esta é sua tia.

Jodie olhou para ela, tornando-se mais séria.

- Olá.

- Olá, Jodie. A sra. Robinson se encaminhou para a porta.

- Vou deixar que vocês três se conheçam melhor. Sente-se aqui, Jodie. Seus tios já a conheceram mesmo, portanto, nem adianta tentar deixá-la mais apresentável. - Para John, ela acrescentou: - Use todo o tempo que quiser. Pedirei a alguém que sirva chá a vocês.

- Com bolinhos? - perguntou Jodie, demonstrando interesse.

- Sim, com bolinhos - anuiu a sra. Robinson.

Depois que a porta foi fechada, seguiu-se um momento de silêncio. Jodie havia dado alguns passos adiante, mas permaneceu de pé, sem fazer menção de se sentar. Tentando amenizar a atmosfera, Shena agitou a gola do vestido verde-limão e disse:

- Não sei quanto a vocês, mas eu estou morrendo de calor! Não podemos abrir uma janela?

Jodie deu de ombros.

- Acho que sim. Não temos ar-condicionado.

- Não creio que os fundos arrecadados sejam suficientes para isso - supôs John, indo abrir a janela. - Ainda assim, este é um belo lugar.

- Pode ser - falou Jodie -, mas há muitas regras aqui.

- Com tantas pessoas vivendo no mesmo lugar, é preciso haver regras - explicou Shena, com um sorriso. - De qualquer maneira, você não ficará aqui por muito tempo. Irá conosco para a Inglaterra.

- Irei? - perguntou a menina, com uma expressão indefinível.

- Claro que sim - John respondeu. - Somos sua família e as pessoas de uma família devem permanecer juntas.

Jodie pensou por um instante.

- Papai não achava isso. Ele dizia que eu era um empecilho na vida dele.

Shena se indignou. Como alguém poderia ter coragem de dizer aquilo a uma criança?

- Você não é um empecilho para nós, Jodie - declarou. - Faremos o possível para levá-la para casa conosco. - Com mais entusiasmo, prosseguiu: - Você vai adorar Holly House. Terá seu próprio quarto, com uma porção de brinquedos e...

- Não tenho mais idade para ter brinquedos - a menina a interrompeu.

- Pois terá várias outras coisas - afirmou Shena, tentando não se abalar. - Há uma ótima escola lá perto e você...

- Robby disse que eu deveria estar em um internato. Ele falou que todas as crianças inglesas têm de estudar em internatos.

- Quantos anos tem esse tal de Robby? - John quis saber.

Jodie deu de ombros mais uma vez.

- Não sei. Doze, eu acho. John conteve o riso.

- Ele deve ser baixinho para a idade dele, não?

- Não, ele é alto e gordo - respondeu a menina.

- Ah! Bem, pois ele está enganado, Jodie - continuou John. - Nem todas as crianças inglesas estudam em internatos. Eu, por exemplo, não estudei em um. Nem Shena. Você não terá de ir para um, eu prometo.

Jodie olhou de um para o outro.

- Vocês não me querem de verdade - disse ela. - Estão falando isso da boca para fora.

- Isso não é verdade! - protestou Shena. - Ambos queremos ficar com você! Que outro motivo nos teria feito viajar metade do mundo?

Antes que Jodie pudesse responder algo, o chá foi servido.

- Bolinhos! - exclamou a menina.

Uma jovem entrou na sala e serviu chá e um prato com bolinhos. Jodie contou os bolinhos sem a menor cerimônia.

- Seis - anunciou ela. - São dois para cada um. - Olhando para Shena com um ar esperançoso, continuou:

- A menos que você não queira nenhum? Aposto que está de regime. As namoradas de papai sempre estavam.

- Nem todas as mulheres precisam fazer regime - respondeu John, antes que Shena pudesse se manifestar.

- Mas pode comer os meus bolinhos se quiser.

- A sra. Robinson vai repreendê-la se comer todos sozinha - avisou a jovem que servira o chá.

- Ela não saberá se você não contar a ela - replicou Jodie. - Se contar, juro que colocarei uma aranha na sua cama. E das grandes!

- Acho melhor ficar fora disso - John aconselhou à jovem, com um ar sério.

- Ela não ousaria! - protestou a garota, não parecendo muito confiante. - De qualquer modo, aí estão os bolinhos - acrescentou, dirigindo-se à porta.

Sem disfarçar o ar de satisfação, Jodie ficou olhando ela se retirar. Então pegou o bolinho maior e mais suculento.

- Eu teria coragem de fazer aquilo - disse ao morder o bolinho. - Já fiz com uma das outras.

Shena pensou em repreendê-la por falar de boca cheia, mas se conteve. Deu de ombros discretamente ao notar o brilho de divertimento nos olhos de John. Se bolinhos conseguiam transformar Jodie em uma menina normal, então que ela os tivesse. Ensinar-lhe boas maneiras viria depois.

Serviu chá para si mesma e para John, enquanto via Jodie devorar os seis bolinhos.

- Não a alimentam bem por aqui? - Shena não conteve o impulso de perguntar.

- Como melhor aqui do que comia em casa -- afirmou ela. - Papai nunca se preocupava muito com comida.

- Sente falta dele? - indagou John.

Jodie pensou por um momento, inclinando a cabeça para o lado.

- Não muito.

- Terá muito para comer de agora em diante - declarou Shena, estremecendo só de pensar no tipo de vida que Jodie deveria ter levado. - Vamos levá-la conosco para o hotel até que os documentos sejam providenciados. Também faremos algumas compras. Só nós duas, se seu tio não quiser ir também. - Deu um sorriso de cumplicidade para a menina. - Os homens não têm muito jeito para compras.

Jodie olhou de um para o outro.

- Nunca estive em um hotel - falou, em um tom mais interessado.

- Há muitas experiências novas à sua espera, Jodie - disse Shena. - Aposto que também nunca viajou de avião?

- Não, nunca - respondeu ela, com um brilho esperançoso no olhar.

- Pois logo viajará - anunciou John. - Agora poderia ir chamar a sra. Robinson para nós?

- Está bem. Sei onde ela deve estar.

Shena esperou a porta se fechar, antes de falar:

- Já sei. Eu não deveria ter alimentado a esperança de Jodie antes de falarmos com a sra. Robinson.

- Não, não deveria. Shena suspirou.

- Está tudo errado, não? Estamos aqui sob falso pretexto.

- E que outra alternativa me restava? - questionou John. - Por mais que este lugar seja bom, continua sendo uma instituição. Jodie precisa de algo mais além disso. Tudo bem que não será fácil quando você sair de cena, mas eu darei um jeito.

A sra. Robinson apareceu na sala sozinha.

- Fiquei sabendo que querem levar Jodie para o hotel? - perguntou sem preâmbulos.

- Se for permitido, sim - John respondeu. - Sabemos que haverá formalidades a serem completadas antes que possamos levá-la para nosso país, mas seria melhor se pudéssemos passar mais tempo juntos.

- Pelo bem de todos, acho melhor que a levem. - A mulher sorriu, com um brilho de divertimento no olhar. - Acabei de examinar os lábios de Robby.

- Então podemos levá-la? - inquiriu Shena, aliviada.

- Mas isso é ótimo! Quanto tempo acha que levará até que possamos levá-la para casa?

- Creio que na segunda-feira já estará tudo resolvido. Afinal, ela não é australiana. Mandei que ela fosse tomar um banho e trocar de roupa. Não que isso vá fazer muita diferença, devo avisar. Tudo que ela tinha quando chegou aqui eram duas calças e alguns tops. Temos algumas roupas de reserva para crianças que chegam, como Jodie, mas ela nem quis saber de olhar os vestidos.

Shena riu.

- Eu também não gostava de vestidos quando era criança - confessou. - Mas acabei superando o problema. Com o tempo, Jodie também aceitará a ideia.

A sra. Robinson sorriu.

- Espero que sim. Vocês têm filhos?

- Não - Shena respondeu.

- Não ainda - salientou John.

- Boa sorte então.

Jodie apareceu à porta, vestida com outro jeans e uma camiseta desbotada.

- Por que vestiu essa roupa velha? - perguntou a sra. Robinson.

- Porque as outras não são minhas.

- Bem, pelo menos essa está limpa. Onde está sua mochila?

- No corredor. - Jodie olhou para John. - Podemos ir agora?

- Sim, claro.

Depois das despedidas, Jodie acenou para todos quando John colocou o carro em movimento. Quando a casa sumiu de vista, ela se encostou no assento e suspirou.

- Bonito carro. É seu?

- É alugado. - John olhou para ela, através do espelho retrovisor, e sorriu.

- Vocês têm um carro na Inglaterra?

- Dois - Shena respondeu. - Três, contando com o meu.

- Três carros! - exclamou a menina. - Acho que vou gostar de lá.

Minutos depois, ela acompanhou John e Shena até o elevador do luxuoso hotel como se houvesse feito aquilo a vida inteira.

- Vou morar na Inglaterra - anunciou ela aos outros ocupantes do elevador. - Em uma casa grande com três carros!

A suíte também provocou exclamações de aprovação. Jodie foi observando tudo, sem perder nenhum detalhe.

- Por que sua bagagem está em um quarto e a de tia Shena em outro? - ela perguntou a John, quando voltou para a sala. - Vocês discutiram? Por minha causa?

- Não houve nenhuma discussão, querida - Shena se apressou em tranquilizá-la. - Ficamos cansados depois da viagem e não quisemos perturbar o sono um do outro, só isso.

Jodie pareceu satisfeita com a explicação.

- Então acho que vão querer ficar com a cama grande agora, não? Vou levar suas coisas para o outro quarto, tio John.

Ela desapareceu pelo corredor antes que algum deles pudesse protestar. John impediu Shena de seguir Jodie.

- Deixe que ela faça o que quiser - disse ele. Shena apertou os lábios.

- Não vamos dividir a mesma cama!

- Que outra solução você sugere? - ele cochichou. - Quer contar a verdade a ela, depois de tudo que prometeu? Quer que ela descubra que você estava mentindo?

Shena mordeu o lábio.

- Claro que não. Mas ela terá de saber a verdade mais cedo ou mais tarde.

- Você me deu três meses de prazo - lembrou John.

- Prometi ajudar apenas com a adoção. Não prometi fazer nada além disso. Entenda de uma vez por todas que não vou dormir com você, John. Se ficarmos no mesmo quarto, você terá de dormir em uma cadeira ou no chão. Está claro?

Shena ficou surpresa quando ele riu.

- Você é quem sabe - foi tudo que John disse.

 

A volta de Jodie para a sala foi um verdadeiro alívio para Shena. - Prontinho - disse ela, antes de fitá-los com um ar de "E agora?".

- O que quer fazer durante o resto do dia? - perguntou Shena, respondendo à pergunta que ficou no ar. - A escolha é sua - acrescentou, arrependendo-se ao ver o ar de riso no rosto de John.

- Posso escolher qualquer coisa? - inquiriu Jodie.

- Dentro de um limite possível - salientou John. - Diga o que tem em mente e decidiremos o que fazer.

- Primeiro pizza, depois cinema - falou ela. Adquiriu uma expressão resignada ao olhar para ele. - Eu sabia que não iria aceitar.

- Para mim, está ótimo - disse Shena, antes que John pudesse responder algo. - Há algum filme a que você queira assistir?

Jodie balançou a cabeça negativamente e olhou para o tio, indicando que, para ela, a palavra final era a dele.

- Não precisa ser pizza exatamente - sugeriu. - Também gosto de hambúrguer.

- Sairei com ela, se você não estiver disposto - Shena interveio. - Pode jantar aqui mesmo no hotel, se preferir.

John arqueou uma sobrancelha.

- Eu não disse que não iria. Será uma boa experiência para nós três. Pizza para todos - anunciou e olhou para a sobrinha.

- Eu gostaria de tomar um banho primeiro - falou Shena. - Estou com muito calor.

- Não temos tempo - replicou John. - De qualquer maneira, voltará a sentir calor quando sairmos.

Shena desistiu de tentar argumentar. Como sempre, seria isso ou ser deixada para trás.

Felizmente, a noite se transformou em uma das mais divertidas que ela tivera nos últimos tempos. Depois da pizza, os três foram assistir ao último filme de ficção em cartaz nos cinemas. Mais uma vez, a escolha foi de Jodie, mas John também se mostrou um fã ardoroso do gênero.

Jodie voltou para o hotel pisando em nuvens. Nem protestou quando John a mandou direto para a cama. Parou apenas para perguntar se poderiam visitar o Sea World no dia seguinte.

- Parece que ela não terá nenhum problema em se acostumar à nova vida - comentou John, quando ele e Shena ficaram sozinhos. - Com tudo que ela quer fazer, será difícil encontrarmos tempo para trabalhar.

Shena afundou em uma poltrona e tirou as sandálias. O ar-condicionado parecia uma verdadeira bênção depois de todo o calor que ela sentira do lado de fora.

- De qualquer maneira está valendo a pena - disse a ele. - Nove anos de idade e essa foi a primeira vez que ela foi a um cinema!

- Essa foi a primeira visita oficial - corrigiu John. - Ela me contou que entrou escondido em um cinema com um grupo de colegas.

Sem conseguir evitar uma onda de ciúme, Shena perguntou:

- Quando ela lhe contou isso?

- Tivemos uma conversa e tanto quando você foi ao toalete. Digamos que, até o momento, Jodie não teve muitos motivos para confiar em mulheres.

- Pensei que ela também não tivesse motivo para confiar nos homens depois do pai que teve - retrucou ela.

- Eu não disse que ela confia em mim, apenas que conversou comigo - salientou John. - Levará algum tempo para conseguirmos convencê-la de que pode confiar em nós. - Ele preparou dois uísques com gelo e entregou um a ela. - Tim-tim - brindou.

Shena não queria beber. Molhou apenas os lábios com a bebida e colocou o copo sobre a mesinha.

- Acha que conseguiremos resolver tudo na segunda-feira? - perguntou a ele.

- Não vejo razão para que aconteça o contrário. Como a sra. Robinson disse, Jodie não tem naturalidade australiana. Tenho um passaporte temporário preparado para ela, portanto, não deve haver maiores problemas.

- Então poderemos partir na terça-feira.

- Isso se conseguirmos fazer reservas em algum vôo - salientou John. - Talvez tenhamos de esperar mais alguns dias, se não houver passagens disponíveis.

Alguns dias também incluíam algumas noites, pensou Shena.

- Terei de avisar Craig - falou. - Tentarei telefonar para ele amanhã.

- Não se esqueça da diferença de fuso horário.- lembrou John.

Seguiu-se um momento de silêncio.

- Estou pronto para ir dormir - anunciou ele. - Posso ir primeiro, ou você prefere...

Shena não fitou-o nos olhos. De qualquer maneira, aquela situação se tornaria embaraçosa, mas pelo menos se ela fosse primeiro poderia se certificar de ficar com a cama.

- Eu irei primeiro - respondeu. - Me dê quinze minutos, por favor. Quero tomar um banho.

- Terá dez minutos - replicou ele. - Também quero tomar um banho.

Shena saiu do banho sete minutos depois e já estava deitada quando John apareceu no quarto. Sem se importar com o fato de ela ainda estar acordada, ele começou a se despir.

Shena virou-se para o outro lado quando ele levou a mão ao cinto. John estava fazendo aquilo de propósito. Ele tinha noção de quanto conseguia excitá-la com um simples gesto. De fato, ela sentiu uma onda de calor pelo corpo ao ouvir o ruído do zíper, seguido pelo dos sapatos indo parar no chão, antes que o tecido da calça deslizasse sobre a pele de John.

Na verdade, Shena só conseguiu voltar a respirar direito quando a porta do banheiro foi fechada. Ainda assim, a imaginação continuou a atormentá-la, trazendo-lhe imagens daquele corpo perfeito, másculo e nu sob o jato de água do chuveiro. Haviam feito amor mais de uma vez sob o chuveiro no passado. Só de se lembrar do prazer que sentira nos braços de John, não pôde evitar que uma nova onda de desejo varresse seu corpo.

"Esqueça isso!", ordenou a si mesma. Porém, continuou não tendo muito êxito.

Quando John voltou para o quarto, ela conteve o fôlego. Entretanto, ao notar que ele se aproximara da cama pelo outro lado, forçou-se a virar-se para ele com ar de protesto.

- Eu lhe disse...

- Não tenho nenhuma intenção de dormir no chão - ele a interrompeu. - Se não quiser dividir a cama comigo, já sabe o que fazer.

Dizendo isso, apagou a luz do abajur e deitou-se na cama, deixando um espaço entre eles.

- Boa noite.

Shena não conseguiu responder. No íntimo, teve de admitir para si mesma que o que realmente desejava era que John desconsiderasse o que ela havia dito e fizesse amor com ela. No passado, ele teria feito exatamente isso, mas a situação havia mudado. Eles haviam mudado.

Estava nevando quando o avião aterrissou às sete horas da manhã do sábado. Ainda assim, a quantidade de neve não foi suficiente para causar maiores problemas.

Ao saírem do aeroporto, Jodie manteve o rosto colado no vidro do carro, encantada com tudo o que estava vendo.

- Igualzinho nos filmes! - exclamou ela, a certa altura do trajeto. - Poderei fazer um boneco de neve quando chegarmos em Holly House?

Shena disfarçou um bocejo.

- Na verdade, a primeira coisa que faremos será dormir e descansar.

- Mas não estou cansada - protestou a menina. No entanto, em questão de minutos, ela adormeceu, cedendo ao agradável balanço do carro.

- Seria bom se eu pudesse pegar algumas coisas em meu apartamento, antes de irmos para casa - sugeriu Shena. - Sei que atrasará um pouco nossa chegada, mas pelo menos evitará que eu tenha de voltar nele por algum tempo.

- Deixou muitas coisas lá em casa - lembrou John, sem desviar a atenção do trânsito. - O suficiente para não ter maiores problemas no momento.

Aquilo era uma questão de ponto de vista, pensou Shena. Contudo, achou que não valia a pena discutir.

- Estou surpresa que não tenha jogado tudo fora - disse apenas.

- Não vi motivo para isso. Deixei tudo em um dos quartos vazios.

- Será que não vou encontrar algum objeto de Paula no meio das minhas coisas?

John olhou-a de soslaio.

- Que diferença isso faria?

Muita!, pensou Shena. Só de pensar que aquela mulher poderia ter mexido em suas coisas, sentiu o sangue esquentar.

- Não espero que você entenda o que quero dizer - respondeu. - Aposto que a colocou em casa no mesmo dia em que saí.

- Pois perdeu a aposta. Paula nunca esteve em casa.

- Oh, e quer que eu acredite nisso? E provavelmente que ela também nunca esteve em seu apartamento?

- Acredite no que quiser - respondeu John. - Geralmente é isso mesmo que você faz.

- Bem, se sou tão egoísta como está sugerindo, o que será que estou fazendo aqui então?

- Eu disse geralmente, e não sempre - salientou John. - E fale baixo.

Shena olhou para Jodie, adormecida no banco traseiro. Afeiçoara-se à menina naqueles dias, e já estava ficando difícil imaginar o que faria quando os três meses de prazo terminassem.

- Jodie vai precisar de roupas apropriadas para o inverno - disse a John. - As que comprei para ela em Brisbane não são muito adequadas para cá.

- Pode levá-la a Tonbridge na segunda-feira e comprar mais roupas - respondeu ele. - Ela também vai precisar de um uniforme para a escola.

- Não é melhor primeiro termos certeza de que a escola vai aceitá-la? - inquiriu Shena.

- Não será preciso porque já cuidei disso.

Claro, pensou ela, no que dizia respeito a Jodie, John não pretendia deixar nada mal resolvido.

Ficou em silêncio quando ele parou o carro diante da suntuosa casa cheia de janelas e com uma imponente porta de madeira entalhada na entrada. Lembrou-se da primeira vez em que estivera ali, quando tivera a certeza de que aquela seria a casa que eles iriam comprar.

Jodie despertou quando ele desligou o motor do carro, esfregando os olhos com o dorso das mãos.

- Chegamos - Shena anunciou, demonstrando uma súbita animação.

A roupa de Jodie não era apropriada para o frio do lado de fora, mas ela nem pareceu notar isso, quando se viu diante da casa.

- É quase tão grande quanto o orfanato! - exclamou, impressionada.

Assim que passaram pela porta, Jodie saiu correndo para examinar o andar de cima, levada por sua inquieta curiosidade infantil.

Shena entrou logo atrás de John, mas parou de repente, parecendo pouco à vontade para seguir adiante. Ele colocou as malas no chão e olhou para ela.

- Por que toda essa cerimônia? A casa continua sendo tão sua quanto minha. A sra. Parkin providenciará tudo durante o fim de semana, portanto, não precisamos nos preocupar com a comida. Comeremos algo mais tarde.

- Ainda assim, talvez seja melhor eu preparar um desjejum para nós. Jodie deve estar com fome.

John arqueou uma sobrancelha.

- Um desjejum com bacon, ovos e tudo mais? Shena não conteve o sorriso.

- Será um risco que terá de correr, se aceitar.

- Que graça tem a vida se não corrermos alguns riscos? - indagou ele. Tornando-se mais sério, continuou: - Shena...

Porém, ele foi interrompido por um grito vindo do andar de cima.

- Qual será o meu quarto?

- Segunda porta à direita! - respondeu John, no mesmo tom. - E nada de pular na cama, hein? Já estava quase aprendendo a alcançar o teto lá no hotel, mas aqui terá de se comportar.

A resposta de Jodie foi uma risada marota. John se limitou a sorrir, aproveitando que a menina não o estava vendo. Então voltou-se novamente para Shena.

- Pode deixar que eu preparo o bacon e os ovos - disse a ela. - Você fica com o café.

Jodie desceu a escada com entusiasmo.

- Genial! Tudo aqui é genial! Agora posso ver o lado de fora?

- Ainda não tem roupas nem sapatos adequados para andar na neve, querida. - Tendo uma súbita ideia, Shena acrescentou: - Que tal tomarmos um desjejum primeiro e depois irmos comprar algumas roupas? Garanto que a neve continuará aqui quando voltarmos.

- Provavelmente ela vai ficar aí durante dias - confirmou John, enquanto os três se dirigiam à cozinha, decorada em estilo de fazenda.

Ao ver o tio começando a preparar o desjejum, Jodie lançou um olhar curioso para Shena.

- Você não gosta de cozinhar?

- Não muito - admitiu ela, pegando os ingredientes para o café.

- As namoradas de papai também não gostavam. Papai dizia que todas eram boas apenas para uma coisa.

Shena e John se entreolharam, boquiabertos. Shena deu graças quando a menina parou por ali mesmo e não disse mais nada.

- Se aquele meu cunhado ainda estivesse vivo, juro que eu o mataria! - desabafou John, quando a menina foi conhecer os cômodos do andar de baixo.

- Se ele ainda estivesse vivo, Jodie não estaria aqui. Pelo menos agora ela está livre da vida que levava. Nessa mesma época, no ano que vem, é provável que já tenha esquecido tudo isso.

- E onde você estará nessa época, no ano que vem? Shena gostaria de ainda estar ali, mas era evidente que não admitiria isso para ele.

- Não sei - respondeu apenas. - Tudo dependerá de quanto tempo demorar para nos divorciarmos.

- E aposto que esse tal de Craig continuará querendo tê-la.

- Mais do que você foi capaz, pode acreditar! - Arrependida pela intensidade com que dissera aquilo, voltou atrás. - John, eu não...

Mais uma vez, a aparição de Jodie interrompeu a conversa. Notando as expressões tensas no rosto de ambos, a menina perguntou:

- Vocês vão brigar?

Shena forçou um sorriso.

- Claro que não! Estávamos conversando, querida, só isso.

- Não minta para ela - John a repreendeu. Dirigindo-se a Jodie, continuou: - Às vezes os adultos ficam aborrecidos uns com os outros por motivos muito bobos, Jodie.

- Eu sei - anuiu ela, em um tom natural. - Papai brigava quase todo o tempo.

- Bem, mas nós não precisamos fazer isso, não é? - indagou John, lançando um olhar significativo para Shena.

- Não, claro que não - respondeu ela. Então dirigiu-se a Jodie. - Que tal me ajudar a arrumar a mesa?

O apetite de Jodie se mostrou voraz como sempre. Estavam quase terminando o desjejum quando a menina perguntou:

- Também virá fazer compras conosco, tio John?

- Sabendo como as mulheres fazem compras, acho que terei de ir - brincou ele. - Afinal, precisarão de alguém para carregar todas as sacolas.

Jodie olhou-o, pensativa.

- Você deve ter muito dinheiro! Ele riu.

- Acabarei não tendo nenhum, se não voltar logo ao trabalho.

Shena levantou a vista para ele.

- Está com um novo livro em andamento?

- Mais da metade já está pronto - respondeu ele. - Mudei minha rotina, depois que você foi embora. Curiosamente, algumas partes da história ocorrem na Austrália. Estive lá há poucos meses, para fazer algumas pesquisas.

Lembrando-se da presença da sobrinha, John se apressou em olhar para ela, mas Jodie estava com a atenção voltada para o lado de fora da janela.

Após o desjejum, John sugeriu que ela encontrasse alguma blusa de lã entre as próprias coisas, para Jodie vestir por baixo da jaqueta.

Shena estava prestes a perguntar se a menina queria acompanhá-la para escolher uma de suas blusas quando se lembrou de que nem ela mesma sabia em que quarto estavam suas coisas.

Fingir que continuava casada com John estava ficando cada vez mais difícil, pensou enquanto subia a escada.

Encontrou algumas roupas no quarto de hóspedes. Depois de separar uma para si mesma e uma blusinha de lã para Jodie, decidiu tomar um banho. Estava saindo do quarto quando encontrou John no corredor. Ele também havia trocado de roupa e estava vestido com um jeans escuro e uma jaqueta forrada com lã de carneiro.

- Sempre gostei desse conjunto - elogiou ele. Shena trajava o conjunto de lã composto por uma saia longa e uma blusa de mangas compridas, ambos de um bonito tom lilás. Para completar, calçara botas pretas de cano alto.

O brilho nos olhos acinzentados deixou-a embaraçada por um momento. John fez um sinal para que ela seguisse na frente, mas acompanhou-a a uma distância próxima demais para a paz de espírito de Shena.

Jodie aceitou sem nenhuma resistência a blusa que Shena lhe ofereceu. Depois de vesti-la, passou as mãos sobre a lã macia.

-: É bonita - disse. - Posso ter uma assim?

- Poderá ter várias, Jodie - prometeu John.

Shena olhou para ele, perguntando-se quando ele mencionaria o uniforme escolar. Sabia que o assunto não era da sua conta, por isso não falou nada a respeito. Jodie era muito decidida quanto ao que queria e ao que não queria, e não mencionara a escola nenhuma vez.

John não parecia ver isso como algo urgente, por isso compraram várias roupas e o uniforme não foi citado por nenhum dos dois. Talvez fosse melhor assim, concluiu Shena. Jodie já estava tendo experiências demais para lidar no presente.

Para seu espanto, estavam voltando para o estacionamento do shopping quando se encontraram com a última pessoa que ela queria ver no mundo.

Trajando um casaco inteiriço de mink, e com um chapéu combinando, Paula parecia ainda mais bonita do que antes. Ao vê-los, ela conseguiu disfarçar muito bem o que sentiu, limitando-se apenas a sorrir e dizer:

- Mas que cenário mais familiar.

John também não revelou o que ia em sua mente.

- Jodie é minha sobrinha. Você parece estar bem, Paula.

- Estou maravilhosamente bem - confirmou ela, com ar afetado. Dirigindo-se a Shena, acrescentou: - Espero que tenha melhor sorte desta vez.

Determinada a não deixar que a atitude da outra a aborrecesse, Shena respondeu:

- Obrigada. Desejo boa sorte a você também. Paula riu com desdém.

- Nunca precisei de sorte, minha cara.

Com um breve aceno, seguiu em frente. Jodie foi a primeira a quebrar o silêncio.

- Não gostei dela.

- Nem eu - falou Shena, não vendo motivo para demonstrar algo diferente só porque estava diante de John. - Ela é detestável!

Um sorriso maroto surgiu nos lábios da menina.

- Papai a chamaria de cortesã barata.

- Chega! - John as censurou. - Parem com isso vocês duas.

Shena reconheceu que não dera um bom exemplo para Jodie.

- Desculpe-me - disse a ele. - Eu não deveria ter dito isso. Seu pai também não era delicado ao chamar uma mulher dessa maneira, Jodie.

Olhou de soslaio para John. Pelo modo como ele reagira, ficou claro que ainda devia sentir algo por Paula. Não conseguiu deixar de sentir-se triste ao se dar conta disso.

 

Vivaz por natureza, Jodie estava saltitante novamente quando eles chegaram ao carro. Disse que queria voltar logo para casa e vestir as roupas novas para ir brincar na neve. Porém, não haviam chegado nem no meio do trajeto quando ela adormeceu.

- Da próxima vez que decidir desabafar, certifique-se de que Jodie não esteja por perto - disse John, em tom de censura. - Não quero que ela tenha motivo para ficar usando o vocabulário que aprendeu com o pai.

- Já me desculpei por isso - falou Shena. - Mas não que isso mude minha opinião a respeito daquela mulher.

- Isso é coisa do passado, Shena. Então vamos deixar no passado, está bem?

Ela não respondeu, mas continuou em silêncio. Lembrou-se de que teria de telefonar para Craig. Dera a si mesma várias desculpas para não ligar para ele de Brisbane, mas não poderia continuar fugindo da responsabilidade.

Seus pais também deviam estar esperando um telefonema seu. Como ela já esperava, sua mãe vira aquilo como a chance de um recomeço. Não tivera coragem de desiludi-la, mas sabia que teria de fazê-lo mais cedo ou mais tarde.

Jodie acordou quando chegaram em casa. Minutos depois já estava vestida com uma calça de lã e um casaco próprio para ser usado na neve, além de ter calçado botas. Antes de ir brincar no jardim, recebeu instruções para ficar longe do pequeno lago de água congelada.

John parou apenas para tirar o casaco e foi direto para o escritório. Quando ele trancava a porta da maneira como o fez, significava que não queria ser incomodado por nenhum motivo, exceto por uma emergência.

Aproveitando o momento de solidão, Shena reuniu coragem para dar o telefonema que vinha adiando havia dias. Ao pegar o telefone, digitou o número com certa relutância.

Craig respondeu quase imediatamente. Seu tom não deixou dúvidas sobre como ele estava se sentindo.

- Onde diabos você esteve a semana inteira? - foi a primeira coisa que ele disse assim que reconheceu a voz dela.

Shena sentiu um aperto no peito.

- Não recebeu minha carta?

- Não, não recebi. - Ele pareceu confuso. - Quando a enviou?

- Na semana passada. - Após uma breve pausa, ela continuou: - Há algo que preciso lhe dizer, mas se trata de um assunto difícil.

Seguiu-se um momento de silêncio. Craig foi o primeiro a quebrá-lo ao perguntar:

- Quer terminar nosso relacionamento, é isso?

- Não, não é isso -- ela se apressou em tranquilizá-lo, ignorando a voz no fundo de sua mente. - O problema é que...

Ela fez o possível para dar uma explicação clara e direta, mas mesmo assim foi sentindo o ar de desaprovação se tornando cada vez mais intenso do outro lado da linha.

- Será somente até terminar o processo de adoção - explicou por fim. - Poderemos continuar nos encontrando de vez em quando.

- Com você em Kent e eu aqui na cidade? - ironizou ele. - Esse seu marido deveria ser processado por metê-la nisso. Isso é criminoso!

- Não há nada criminoso em ele querer cuidar da sobrinha, Craig - Shena defendeu John. - Não faria o mesmo se estivesse no lugar dele?

- Acho que ela ficaria melhor sob os cuidados de uma boa família - respondeu ele. - Como um homem da idade dele conseguirá lidar com uma menina de nove anos? Ainda mais uma menina!

Shena também havia pensando naquilo no início, mas não iria admitir isso para Craig, claro.

- Não acredito que ele consiga se sair pior do que o pai dela se saiu - disse a ele. - E tenho certeza de que John não terá dificuldade para encontrar uma pessoa que possa ajudá-lo quando for necessário. No momento, ele precisa de mim apenas para...

- Enganar a lei - Craig terminou por ela. Shena se viu obrigada a admitir que, de certa forma, aquilo era verdade.

- Não posso ajudar de outra maneira - ela se justificou. - Jodie é tudo que resta da irmã dele, e John é a única família que restou para a menina! - Hesitou quando uma súbita ideia lhe ocorreu. - Craig, você não vai contar nada a ninguém, vai?

- Está se referindo às autoridades? - indagou ele, em um tom frio. - Acha que eu seria capaz de fazer isso?

- Não. Quero dizer, pensei... - Shena se interrompeu, passando a mão pelos cabelos. - Desculpe-me. Claro que não faria isso. Sei que é pedir muito, mas...

- Sim, é - confirmou Craig. - É pedir demais! - Ele respirou fundo. - Sabe o que sinto por você, Shena. Não posso fingir que gosto da ideia de vê-la novamente com seu marido.

- A casa é grande - afirmou ela. - Quase não nos encontraremos. Continuaremos tendo vidas separadas. Confie em mim, Craig.

- Eu confio - declarou ele. - E nele que eu não confio. Com você por aí...

- Não acontecerá nada, Craig. Estou fazendo isso apenas por Jodie.

Ele suspirou.

- Está bem. Mas somente sob a condição de nos vermos pelo menos uma vez por semana. Pode vir à cidade, não pode?

- Sim, claro. Marque o dia e eu irei vê-lo.

Os dois combinaram de almoçar juntos na quarta-feira. Ao desligar, Shena soltou um suspiro de alívio, mas logo voltou a ficar tensa. Isso era apenas o começo. As coisas não se tornariam nem um pouco mais fáceis dali em diante.

John saiu do escritório às seis horas da tarde. Encontrou Shena e Jodie no sofá da sala, assistindo a um programa de televisão.

- Aquela mulher acabou de ganhar um carro! - exclamou Jodie, com entusiasmo. - E uma porção de outras coisas!

- Deve ser o dia de sorte dela - comentou ele. - Gostou de brincar na neve?

- Oh, sim, muito! Vou fazer um boneco de neve amanhã. Você pode ajudar, se quiser - acrescentou a menina, com um ar de generosidade.

John sorriu.

- Será um prazer. Faz muito tempo que não arranjo uma desculpa para construir um boneco de neve.

Ele sentou-se em uma poltrona próxima. Esticou as pernas e cruzou-as na altura dos calcanhares. Ao ver aquele gesto, Shena experimentou uma sensação de nostalgia, lembrando-se das noites em que costumavam relaxar juntos diante da televisão. Não que houvessem tido muitas noites assim, mas as poucas haviam sido especiais.

- A sra. Parkin deixou o jantar pronto, se não estiver com disposição para sair - avisou ela. - Posso requentá-lo no micro-ondas. Acho que até mesmo eu conseguirei fazer isso - brincou.

- Eu sei cozinhar - declarou Jodie. - Mas só algumas coisas. Posso mostrar se quiserem.

- Obrigada, querida - Shena agradeceu. - Quem sabe um outro dia.

- O jantar da sra. Parkin parece uma boa sugestão - falou John. - Acho que será bom se todos nós formos dormir mais cedo. Não dormimos direito há alguns dias.

- Eu dormi bem - salientou Jodie. - Prefiro ficar acordada, assistindo à televisão.

- Irá para a cama quando nós mandarmos que vá para a cama, mocinha - disse John, fingindo um ar severo.

Em resposta, Jodie riu e deu de ombros.

- Não custa nada tentar.

Shena não conteve o riso. Jodie estava sempre de bom humor e isso era muito bom para uma criança que já havia passado por tudo que ela passara.

- Vou requentar o jantar - anunciou, ficando de pé. - Assistam ao final do programa.

No caminho para a cozinha, teve de passar perto da poltrona de John.

- Como nos velhos tempos - murmurou ele, de um modo que somente ela pudesse ouvir.

- Com algumas diferenças... - replicou Shena, apenas mexendo os lábios, sem emitir nenhum som.

- Veremos - respondeu John, da mesma maneira.

Meia hora depois do jantar, Jodie começou a cochilar, apesar das firmes tentativas de se manter acordada. Quando Shena a mandou para o quarto, ela subiu sem maiores protestos.

John não se mostrou muito interessado em conversar depois que a menina se retirou. Havia colocado lenha na lareira da sala e parecia satisfeito em estar ali, sentado diante daquele calor agradável segurando um copo de uísque.

No passado, os dois haviam feito amor várias vezes diante da lareira acesa. Shena ainda podia até ver a cena em sua mente. As chamas crepitantes iluminando seus corpos nus sobre o tapete felpudo com almofadas espalhadas aqui e acolá. O rosto bonito de John acima do seu enquanto ambos buscavam o clímax, levados pelo ritmo da paixão... Maravilhoso.

Só que um casamento não era constituído apenas pelo lado sexual, por mais que este fosse prazeroso. Fora jovem demais para John em muitos sentidos. Fantasiar a respeito de conseguir levar um homem experiente à loucura era uma coisa, mas viver com um era outra bem diferente. Não soubera como lidar com John. E o pior era que a situação não parecia haver mudado muito com o passar do tempo. Ela continuava a agir como uma adolescente tola sempre que John se encontrava por perto.

- Quando pretende falar com Jodie a respeito da escola? - perguntou, tentando quebrar aquele silêncio incômodo.

Ele deu de ombros.

- Vamos dar a ela alguns dias para se acostumar à nova situação, antes de a levarmos para o estágio seguinte. Creio que ir para a escola pode ser uma experiência traumática até mesmo para ela. Principalmente se ela voltar para um estágio inferior ao que deveria estar.

- Acha que há chance de isso acontecer?

- Sim. Jodie passou muito tempo nas ruas, em vez de haver frequentado a escola com mais assiduidade. De qualquer maneira, vou matriculá-la no Colégio Silverwood.

- Considerando o que aconteceu com Robby, você acha que ela se adaptaria a um colégio como o Silverwood?

Os olhos acinzentados fitaram Shena com um brilho indefinível.

- Está querendo dizer que ela se sentiria mais à vontade em um ambiente mais rude - declarou ele.

- Nem todas as escolas públicas são ambientes rudes, John - argumentou Shena. - Pelo menos a que temos aqui não parece ser.

- Talvez não, mas mesmo assim Jodie vai para o Silverwood. - Ele balançou a cabeça negativamente quando ela fez menção de dizer algo mais. - Já está decidido, Shena.

Ela estreitou o olhar, enfurecida com aquela postura autoritária.

- Acho melhor não usar esse tom comigo. Ainda precisa de minha ajuda, lembra-se?

- Não vai deixar de oferecê-la, não é do seu feitio voltar atrás em sua palavra.

- Há uma primeira vez para tudo! - Shena o desafiou.

- Não desta vez. - Parecendo indiferente à fúria dela, ele acrescentou: - A divisão do quarto e da cama serão como antes, creio eu?

Pega de surpresa pela súbita mudança de assunto, Shena respondeu:

- Nada disso. Você vai ficar na cama do quarto de vestir. John riu com ironia.

- Nem pensar! Não pretendo abrir mão da minha cama.

- Tudo bem - anuiu ela. - Então eu ficarei no quarto de vestir.

- Ótimo. Faça isso.

Seguiu-se uma nova onda de silêncio. Mais uma vez, John não pareceu nem um pouco incomodado com aquilo. A certa altura, Shena sentiu-se impelida a jogar algo bem pesado em cima dele, só para acabar com aquele ar imperturbável pelo menos por alguns segundos. De fato, a única coisa que a impediu de fazer isso foi a suspeita de que ela mesma seria a única a se perturbar com o fato.

- Qual é exatamente o procedimento legal para a adoção? - perguntou a ele. - Já deve ter começado a providenciar isso, não?

- Sim, já contatei os especialistas. Os detalhes mais importantes já devem ter sido feitos. O próximo passo será a visita de uma assistente social para ver a casa e decidir se somos pais adequados para Jodie. É aí que você entra.

- E se descobrirem que estamos separados?

- Não vejo motivo para descobrirem. Nossa separação nunca foi oficial. Segundo os registros, estamos casados há quase três anos. Tudo que precisamos fazer é sermos convincentes.

- Fingindo ser um casal maravilhosamente feliz! - Shena estalou os dedos. - Simples!

- Pare com as piadinhas, Shena. O assunto é muito sério. Tente agir como uma adulta pelo menos uma vez.

Ela estreitou o olhar. Não, não valeria a pena discutir.

Dali a três meses estaria livre de tudo aquilo. Não estragaria o futuro de Jodie por causa das insinuações de John. A menina não merecia isso.

Sem dizer mais nada, foi para o quarto e se acomodou na cama do quarto de hóspedes. Quando John apareceu, por volta das nove e meia, ela já havia se deitado desde algum tempo, porém, estava longe de sentir sono.

Shena só não havia se lembrado do detalhe de que para ir ao banheiro da suíte era preciso passar pelo quarto de vestir. Dessa vez, porém, recusou-se a fingir que estava dormindo. Continuou na mesma posição, apenas evitando olhar diretamente para John.

Somente quando ele chegou à porta do banheiro foi que ela se permitiu dar uma espiadela. Conteve o fôlego ao ver as nádegas firmes e as pernas musculosas cobertas de pêlos escuros. Nenhuma mulher com sangue nas veias ficaria imune àquela magnífica visão. E Shena não foi diferente.

Quando saiu do banheiro, depois do banho, ele continuava nu. Assim que notou o detalhe, Shena não ousou mais olhar para ele.

Sua tensão aumentou ainda mais quando ele se aproximou da cama. Manteve os olhos bem fechados, tentando fingir que havia adormecido.

- Pare de fingir - disse John. - Estou sentindo o calor daqui.

-Me deixe em paz! - resmungou ela, por entre os dentes. John riu.

- Não quer isso de verdade.

Shena se sobressaltou quando ele afastou o lençol e puxou-a para si. Não que houvesse muito espaço naquela cama de solteiro, mas mesmo assim John a manteve junto de si até que ela parasse de lutar contra ele. Então beijou-a com delicadeza.

Os braços que até então Shena usara para tentar afastá-lo logo se enlaçaram em torno do pescoço dele. Seus dedos se, entrelaçaram naqueles cabelos macios.

De repente, foi como se o tempo houvesse deixado de existir e ela estivesse de volta ao passado. Rendeu-se aos braços amorosos de John, demonstrando que, na verdade, nunca havia deixado de pertencer a eles.

Shena queria se livrar da camisola, mas ele não estava fazendo nenhuma menção de tirá-la dela.

- Tudo ou nada - murmurou John junto a seu ouvido.

Ele queria que ela se rendesse completamente, concluiu Shena, em um momento de lucidez. John desejava apenas mais uma conquista para inflar seu ego masculino, nada mais!

- Nada então! - bradou. - Não estou tão desesperada assim.

Ele ficou imóvel por um longo tempo, mantendo as mãos ainda nas costas dela. Shena ficou surpresa quando ele se afastou e ficou de pé. Sem se importar com a própria nudez, fitou-a com ar de cinismo.

- Logo mudará de ideia - prometeu. - Farei questão de cuidar para que isso aconteça.

- Não conte com isso! - vociferou ela, quando ele se retirou.

John não se preocupou em responder. Ela afundou novamente nos travesseiros quando a porta de comunicação se fechou atrás dele.

Acabou adormecendo de pura exaustão e teve sonhos confusos, perturbadores. Quando acordou, notou o reflexo do sol batendo na neve alva e incidindo na janela do quarto. Ouviu risos vindos de longe, e levou alguns segundos para reunir coragem suficiente para olhar o relógio de cabeceira. Onze horas da manhã!

Pegando seu relógio de pulso, confirmou o horário. E daí?, pensou consigo, resistindo ao impulso de se levantar e começar a se vestir rapidamente. Estava mesmo precisando descansar.

John, pelo visto, não descansara tanto quanto ela. Ouviu a voz dele vinda do lado de fora da casa, seguida pelo riso animado de Jodie. Deviam estar brincando na neve. Após mais alguns segundos de hesitação, decidiu se levantar.

Quando ela chegou ao andar de baixo, os dois já haviam entrado em casa.

- Precisa ir ver nosso boneco de neve! - disse Jodie, com empolgação. - Fizemos um enorme perto do lago, com botões nos olhos e uma cenoura no nariz! Tio John também encontrou um cachecol e um chapéu para ele. Agora ele só precisa de uma boca, mas ainda não conseguimos encontrar nada apropriado.

- Por que não tentam uma banana? - sugeriu Shena. - Ou então um pedaço de cartolina vermelha?

- Infelizmente, a cartolina vai molhar quando a neve derreter - salientou John.

- Mas isso ainda vai demorar algum tempo - falou ela. - Se tiver uma sugestão melhor, fique à vontade!

"Ou então vá para o inferno!", foi a frase que ficou no ar. Os dois trocaram um olhar chispante. Mas logo um sorriso se insinuou nos lábios de John.

Ciente da presença de Jodie, Shena achou melhor não prolongar a conversa. John também pareceu entender a mensagem, pois não disse mais nada para provocá-la.

Os três comeram omelete no almoço, preparada por John, claro. Como tudo que ele preparava, ela ficou perfeita. Shena se recusou a sentir-se embaraçada por sua falta de talento na cozinha. John gostava de cozinhar, mas ela não. Por que ir contra sua natureza?

Após o almoço, Shena moldou uma boca para o boneco de neve em um pacote de cereais e Jodie a recortou. Em seguida, pintaram a boca do boneco com um tipo de caneta fosforescente. Quando ela e Jodie finalmente saíram e fixaram a boca no boneco, Jodie adorou o resultado.

- Você acha que seremos felizes aqui, Jodie? - Shena perguntou em um tom casual, enquanto elas voltavam para casa. - Esse lugar é muito diferente de Brisbane.

- Não quero voltar para lá - declarou a menina, sem hesitar.

- Você não vai voltar - Shena a assegurou. - Aqui é seu lar agora. Assim que a adoção for legalizada, você será Jodie Beaumont, e não Brent.

A menina arregalou os olhos.

- Serei adotada?

- Claro que sim.

- Então terei dois pais como as outras crianças? Shena não soube como responder àquilo. Era evidente que ela se equivocara ao imaginar que Jodie simplesmente aceitaria vê-la separada de John quando o momento chegasse.

- Muitas crianças moram apenas com um dos pais, querida - disse com cautela. - As vezes, isso também dá certo.

- Só quando o pai se importa - falou a menina. - Papai não me queria. Vivia dizendo que eu custava muito para ele. - Após uma breve pausa acrescentou: - Também já fiz tio John gastar uma fortuna, não fiz?

- Tenho certeza de que seu tio está tendo o maior prazer em gastar com você, Jodie.

A menina foi interrompida por John, que apareceu para recebê-las à porta. Lançando um olhar significativo para Shena, ele disse:

- Temos visita.

Shena franziu o cenho e entrou em casa quando John ficou de lado para elas passarem. Assim que chegou à porta, ela parou de repente. Craig estava sentado no sofá da sala!

 

Mesmo sabendo que seu questionamento não faria muito sentido àquela altura dos acontecimentos, Shena olhou para John e perguntou:

- Quando ele chegou?

- Há poucos minutos. Disse que estava aqui por perto e pensou em vir visitá-la. - Curvando os lábios com um ar irônico, John acrescentou: - Talvez queira se arrumar um pouco primeiro?

Shena levantou o queixo e fitou-o bem nos olhos.

- Estou me sentindo ótima assim, obrigada. - Suavizando o tom de voz deliberadamente, falou: - Venha conhecer um amigo meu, Jodie.

Craig ficou de pé assim que a viu entrar na sala. Parecia perfeitamente à vontade, sem se importar com a presença de John.

- Pensei em vir visitá-la, já que estava por perto - explicou ele.

- Fico feliz que tenha vindo - respondeu Shena, forçando um sorriso. - Esta é Jodie. - Então olhou para a menina. -- Esse é o sr. Ramsey, querida.

A menina fitou-o com um ar de curioso, mas não emitiu nenhuma opinião.

- Oi - foi tudo que ela disse.

- Oi - respondeu ele, com um sorriso charmoso. - Tudo bem com você?

Jodie não sorriu em resposta. Apenas olhou-o com um ar contido e respondeu:

- Tudo bem. - Voltando-se para Shena, indagou: - Posso ir assistir à televisão no outro quarto?

- Sim, claro - Shena respondeu. - Que tal um drinque? - sugeriu a Craig, assim que a menina se retirou.

Ele balançou a cabeça negativamente.

- Não, obrigado. Ainda vou dirigir e prefiro não beber.

- Então aceita um café ou chá? Eu já estava mesmo pensando em preparar alguma bebida quente.

- Bem, nesse caso, aceito um café. Fraco, por favor.

- Quero o meu bem forte - disse John.

Shena assentiu e foi para a cozinha, perguntando-se o que diabos teria dado em Craig para aparecer de repente, sem avisar.

Minutos depois, quando apareceu com uma bandeja, encontrou John na mesma posição, de pé próximo à lareira e com as mãos no bolso. Craig se encontrava no sofá, parecendo um pouco menos à vontade. Após servir o café e entregar uma xícara para cada um e pegar outra para si, sentou-se no sofá e sentiu uma onda de embaraço quando nenhum deles fez menção de falar.

- Pensei que eu tivesse explicado tudo pelo telefone ontem, Craig - disse, por fim.

- E explicou - confirmou ele, dando de ombros. - Mas eu queria vê-la.

- O que está querendo dizer - John interveio -, é que desejava ver o que estava acontecendo. Em outras palavras, você não confia muito em Shena.

- Isso não é verdade - Craig protestou. - Confio totalmente em Shena. O que não posso aceitar é a maneira como você a está obrigando a participar de algo que só trará decepção. Sou solidário ao que aconteceu à criança, mas o problema é seu, John, não de Shena. Não tinha o direito de envolvê-la nisso.

Os olhos acinzentados de John se estreitaram perigosamente.

- Isso é um fato.

- Parem vocês dois! - bradou Shena. - Não sou um brinquedo para vocês ficarem disputando feito crianças! Sou capaz de tomar minhas próprias decisões! Se está achando difícil aceitar essa situação, Craig, sinto muito, mas agora tenho de ir até o fim.

- Continuo achando que você está errada, mas parece que não tenho muita escolha - disse ele. - Desde que eu não tenha de passar os próximos três meses sem poder entrar em contato com você.

- Já combinamos de nos encontrar na quarta-feira, não combinamos?

Craig olhou para John e parecia prestes a dizer algo, mas desistiu no último instante.

- Acho melhor eu ir andando - anunciou, olhando para o relógio. - Tenho de estar em Redhill às cinco horas.

Shena ficou de pé, tendo o cuidado de não olhar para John.

- Vou acompanhá-lo até a porta. - Quando estavam no corredor de saída, ela falou: - Não deveria ter vindo, Craig. Não está ajudando em nada.

- Eu precisava ver pessoalmente como as coisas estavam por aqui.

- E a que conclusão você chegou? - perguntou ela.

- Acho que seu marido fará o possível para nos separar. Shena sentiu o coração acelerar.

- E por que ele faria isso?

- Porque ele precisa de você para cuidar da menina. Mas também aposto que ele gostaria muito que vocês voltassem a ficar juntos.

- Não existe nenhuma chance de que eu aceite ficar com ele depois que a adoção for legalizada, Craig. Tenho minha própria vida e não vou abrir mão dela.

Ele assentiu.

- Continue pensando assim.

Dizendo isso, despediu-se com um beijo e partiu, deixando Shena com uma sensação de alívio e de insegurança ao mesmo tempo.

Quando voltou para a sala, recebeu um olhar irônico de John.

- Definitivamente, ele é seu tipo.

- E definitivamente não é o seu - replicou ela. - De qualquer maneira, não pretendo discutir méritos de rivais.

- Então acha que tenho as mesmas chances de Craig?

- Eu não disse isso!

- Pode ser, mas não pretendo deixar que você saia daqui, Shena. Preciso de você aqui.

- E quanto às minhas necessidades? - inquiriu ela, indignada.

- Eu cuidarei delas.

- Você sempre pensa que tudo se resume a sexo! - explodiu Shena. - Pois eu lhe garanto que isso está no fim da minha lista de prioridades!

- Não foi o que pareceu ontem à noite. Quer que eu confirme isso?

Antes que ela pudesse responder, ele puxou-a para si e beijou-a com ardor. Shena tentou se desvencilhar do abraço, mas John a manteve no mesmo lugar, beijando-a até deixá-la sem fôlego.

- Agora me diga que isso não é importante para você! - disse ele. - Diga que não sente nada quando eu a toco!

- Eu não disse que isso não significava nada para mim - respondeu ela, ofegante. - Falei que havia outras coisas mais importantes na minha vida.

- Concordo - anuiu John. - O bem-estar de Jodie, por exemplo. Farei o que for preciso para que ela receba tudo que não teve acesso durante todos esses anos.

- Poderá fazer isso sem mim.

- Não, não poderei. Jodie precisará de uma presença feminina. Ela vai precisar de apoio quando começar a passar pelas transformações que logo começarão a acontecer.

- Observando o efeito que suas palavras estavam surtindo em Shena, ele acrescentou: - Pense em como seria difícil passar por essa fase sem ter uma mãe com quem conversar.

- John, você está me pedindo para desistir de tudo que eu consegui ter ao longo de um ano e meio, incluindo Craig.

Ele apertou os lábios.

- Seria tanto sacrifício assim?

- Claro que seria!

- Está querendo dizer que está apaixonada por ele? Casar-se com esse homem seria um sacrifício, Shena. Um mês depois você já estaria cansada dele.

- Pare com isso, John! Não deixarei que faça isso comigo! Ele arqueou uma sobrancelha.

- Estou apenas dizendo aquilo que você já sabe. Não aceitou me ajudar apenas pelo bem de Jodie.

- Está querendo dizer que usei esse pretexto para me aproximar de você? - perguntou ela, indignada.

- Essa possibilidade não está totalmente fora de cogitação.

Shena riu com ironia.

- Se há algo que nunca muda é o tamanho do seu ego.

- Só que você não está negando o que eu disse - salientou ele. - E eu também não nego que a quero de volta. Poderíamos fazer com que desse certo, Shena.

- Não deu da última vez - lembrou ela.

- Porque não tentamos o suficiente. Nenhum de nós tentou.

- Pode ser, mas não fui eu quem saiu da linha!

- Não foi... - John se interrompeu, enrijecendo o maxilar. - Já disse que não vou voltar a falar disso. O que interessa é o aqui e o agora.

Após uma breve pausa, Shena falou:

- Não adianta, John. Por mais que eu lamente a situação de Jodie, eu não teria coragem de sacrificar tudo que quero na vida por ela. Terá de encontrar outra pessoa para cuidar dela durante a puberdade.

- Acabará mudando de ideia - afirmou ele. Shena não respondeu nada. Sabia que naquele jogo John tinha armas mais poderosas que as dela. Aquele olhar perscrutador, por exemplo, era uma delas.

Os três foram jantar em um restaurante que John e Shena costumavam frequentar no passado. Foram recebidos pelo proprietário, que os saudou com um amplo sorriso de boas-vindas.

- Pensei que houvessem mudado da cidade - disse ele, enquanto servia o vinho que John pedira. - Faz alguns anos que não os vejo por aqui.

- Tem razão - anuiu John, sem dar maiores explicações. - Como estão os negócios?

O homem fez uma careta.

- Não estão muito bem, mas já houve época pior. - Com um sorriso, acrescentou: - Sou um otimista por natureza e acho que logo as coisas vão melhorar por aqui.

- Espero que sim - falou John, antes que os três fizessem os pedidos para o jantar.

Já passava das nove horas quando eles voltaram para casa. Jodie protestou quando foi mandada para a cama, mas acabou obedecendo, por não ter ideia da extensão de sua liberdade na nova casa.

- Pensei que ela estivesse pensando em ir para a escola, já que amanhã é segunda-feira - disse Shena, quando a menina se retirou.

- Talvez ela tenha achado que não mencionando nada sobre a escola, nós também fôssemos esquecer - respondeu John, em um tom de bom humor. - Acho melhor nós a prepararmos para o inevitável. Temos uma entrevista marcada para a quarta-feira, no Silverwood.

- Vou almoçar com Craig na quarta-feira - avisou ela.

- Não, não vai. Shena estreitou o olhar.

- E como pretende me impedir?

- Não vou precisar impedi-la - respondeu ele, com calma. - Está com tanta vontade de se casar com Craig quanto de ir morar para sempre na Sibéria. E talvez tenha chegado o momento de dizer isso a ele. A não ser que prefira que eu mesmo diga?

- Fique longe de Craig! Não tem o direito de dizer nada a ele!

- Concordo, mas não hesitarei em dizer se for preciso. Está casada comigo e continuará assim, Shena. Arranjarei todos os obstáculos possíveis para não lhe dar o divórcio.

Ela olhou para ele com um ar de impotência, sentindo um nó na garganta.

- Precisa de mim por mais tempo?

- Mais tempo do que você imagina - disse ele, com voz rouca.

Shena não recuou quando o rosto de John foi ficando cada vez mais próximo. Nem tampouco quando aqueles lábios macios se apoderaram dos dela, em um beijo esmagador.

John devia ter apagado o abajur antes de adormecer porque quando Shena acordou estava escuro, embora uma tênue réstia de luz estivesse entrando pela cortina entreaberta.

John continuava ali, deitado a seu lado com o braço sobre sua cintura e uma perna cruzada sobre as suas. Olhou para o perfil bonito, lembrando-se da deliciosa sensação dos lábios dele sobre sua pele e do brilho de desejo nos olhos acinzentados.

Nesse aspecto, nada mudara. Continuava despertando um forte desejo físico em John. Porém, nunca conseguira mudá-lo por dentro. E talvez nunca conseguisse.

Sendo ou não um erro, não havia mais como voltar atrás em sua decisão, mesmo reconhecendo que não seria fácil dar a notícia a Craig.

John estava certo, claro. Desde o primeiro instante do reencontro, ela soubera que não conseguiria se casar com outro homem.

Quando tentou olhar para o relógio, sobre a mesinha de cabeceira de John, ele acabou acordando e abrindo os olhos. Então um sorriso charmoso se insinuou em seus lábios.

- Dormiu bem? - perguntou ele.

- Devo ter dormido - respondeu Shena, tentando parecer à vontade. - Já está claro. Se Jodie já estiver acordada, deve estar imaginando o que aconteceu conosco.

- Levando-se em conta o que ela já viu no passado, infelizmente ela já deve ter uma boa ideia da resposta - salientou John, deslizando a ponta do dedo indicador sobre os lábios dela. Ao olhar para o relógio, ele se surpreendeu. - São quinze para as nove da manhã! j

Shena teve de resistir ao impulso de acariciá-lo, quando ele sentou-se na cama, de costas para ela.

- Parece que o cansaço da viagem finalmente nos atingiu - disse, enquanto ele ficava de pé. - Talvez tenha afetado Jodie também.

- Talvez. Por que não vai ver como ela está enquanto tomo um banho? - sugeriu John.

Ele se dirigiu ao banheiro sem se importar em vestir o robe. Shena sentiu uma onda de ciúme ao imaginar que Paula também o vira assim.

Sobressaltou-se ao ouvir uma batida à porta. Surpreendeu-se ao ver a menina abrir a porta enquanto apoiava uma bandeja entre a outra mão e a cintura.

- O que é isso?

- O desjejum, ora! - respondeu Jodie. - Estou acordada há horas!

- Oh, querida, sinto muito - Shena se desculpou. - Deveria ter nos acordado.

- Tudo bem. Comi cereais e preparei um sanduíche com ovos e bacon. Também preparei um para você e outro para tio John. Onde está ele? - acrescentou, entrando no quarto e colocando a bandeja sobre uma mesinha.

- No chuveiro. - Shena olhou para os sanduíches. - Foi, muita gentileza sua, Jodie.

- É fácil demais preparar estes sanduíches - falou Jodie. - Vou levar o de tio John para ele, está bem?

Shena hesitou um instante.

- Bata na porta para avisá-lo, sim? Jodie olhou-a e balançou a cabeça.

- Vi papai sem roupa muitas vezes.

Shena não duvidou daquilo. O pai de Jodie não tinha mesmo nenhum escrúpulo.

- Com tios a situação é diferente - explicou à menina. - Pensando bem, acho melhor eu mesma ir avisá-lo. Shena fez menção de sair da cama, mas hesitou ao se lembrar de que também estava nua.

- Também é diferente com tias?

Seria ridículo sentir-se embaraçada diante da menina, pensou Shena, levantando-se da cama. Afinal, a nudez era algo natural.

- Não, não é. Voltarei em um instante - disse a Jodie. Sentiu o olhar da menina atrás de si e deu graças quando chegou ao ambiente mais privativo do quarto de vestir. Jodie era esperta demais para uma criança de nove anos. Em algum momento, ela e John teriam de ter uma conversa séria com a menina, a respeito do que ela poderia dizer ou não quando estivesse com as amiguinhas na escola.

Seu robe estava sobre o divã onde ela o havia deixado na noite anterior. Tomou o cuidado de vesti-lo antes de ir até banheiro. John riria se ela batesse à porta, em vez de entrar direto, por isso ela respirou fundo e abriu a porta.

Ele estava se barbeando, com uma toalha enrolada na cintura.

- Estou quase terminando - avisou a ela. - Jodie ainda está dormindo?

Shena balançou a cabeça negativamente, sem conseguir disfarçar o efeito que a presença máscula de John sempre lhe provocava. Leves sinais avermelhados nas costas dele indicavam as marcas que suas unhas haviam deixado nos momentos de paixão da noite anterior.

- Ela nos trouxe o desjejum na cama - respondeu. - Sanduíches de ovos com bacon.

John riu.

- Espero que estejam quentes.

- Deviam estar há cerca de meia hora, mas duvido que ainda estejam.

Ele pegou o robe.

- Então é melhor irmos comer logo, antes que congelem.

- Espere um minuto. - Shena o deteve quando ele fez menção de sair. - Desculpe-me se "exagerei" um pouco ontem à noite - disse, indicando as marcas nas costas dele.

- Quem está reclamando? - brincou John, com um sorriso charmoso.

Também sorrindo, Shena não resistiu ao impulso de ficar na ponta dos pés e roçar os lábios nos dele.

Com um leve gemido, John puxou-a para si e beijou-a com intensidade, antes de afastar-se de repente.

- Por mais que você seja tentadora, o dever vem primeiro. Diga a Jodie que estou indo.

Shena respirou fundo, recuperando-se da onda de desejo que assaltara seu corpo, naqueles breves segundos. Esquecera-se completamente de Jodie!

Sentiu-se ainda menos à vontade quando voltou para o quarto e não viu a menina mais por lá. A bandeja continuava sobre a mesinha, como que acusando-a de haver sido egoísta.

Ao entrar no quarto, já vestido com o robe, John olhou para os sanduíches com um ar de pouco entusiasmo.

- Acho que teremos de fazer um certo esforço - disse ele.

- Não sei se conseguirei - Shena confessou. - Bacon frio é horrível. Não podemos apenas fingir que o comemos?

- Talvez não seja justo depois de todo o trabalho que Jodie teve. - John mordeu um dos sanduíches. - De qualquer maneira, se tomarmos outro desjejum iremos magoá-la.

- Estou disposta a fazer alguns sacrifícios - afirmou Shena. - Cortarei o meu em pedaços por enquanto e depois me livrarei deles. Jodie não precisa saber disso.

Dizendo isso, levou o pratinho para o banheiro, deixando John ocupado em comer o dele.

Jogou os pedaços na lata de lixo, lembrando a si mesma que deveria esvaziá-lo antes que a sra. Parkin aparecesse para limpar o andar de cima. Ela costumava chegar por volta das nove e meia, o que aconteceria dentro dos minutos seguintes.

Quando voltou para o quarto, depois de tomar um banho, John já havia saído. O prato vazio continuava sobre a bandeja. Ele faria qualquer coisa para não magoar Jodie. Seria ela própria também capaz disso?

A noite anterior havia sido maravilhosa, mas havia uma grande diferença entre fazer amor e amar verdadeiramente. No momento, Jodie era a pessoa que mais importava para John.

Entretanto, talvez fosse melhor tê-lo parcialmente do que não tê-lo de maneira alguma, concluiu, forçando-se a ver o outro lado da questão. Passara os últimos meses sentindo muita falta dele, mesmo não tendo admitido isso. Qualquer coisa seria melhor do que ela continuar como estava. Qualquer coisa.

 

Shena usou o telefone do quarto para telefonar para seus pais. Não ficou surpresa quando sua mãe demonstrou um tom queixoso ao saber que era ela.

- Esperamos notícias suas durante todo o fim de semana! Deveria pelo menos ter avisado que estava bem e que havia voltado de viagem!

- Desculpe-me, mamãe - disse Shena, com um suspiro. - Admito que foi irresponsabilidade minha.

- Bem, deve estar tendo outras coisas para pensar no momento. - Houve uma breve pausa, antes que Lucy continuasse: - Como estão as Coisas por aí?

- Ótimas! - exclamou ela, em um tom mais ameno. - Jodie está adorando brincar na neve. Antes de vir para cá, ela só tinha visto neve no cinema. Ela é uma gracinha. Papai ficará apaixonado por ela.

- Estamos ansiosos para conhecê-la - falou Lucy.

- E você e John, como estão indo? Shena hesitou.

- Decidimos ficar juntos novamente e tentar mais uma vez.

- Oh, mas que boa notícia! Não imagina quanto estou feliz com isso! Sei que John não agiu corretamente, mas todo mundo tem o direito de errar. A culpa foi daquela mulher! Mulheres que aceitam sair com homens casados deveriam sentir vergonha de si mesmas!

- Mas a traição só existe se os dois aceitarem.

- Eu sei, querida, mas o homem não segue em frente se a mulher não aceita o flerte. Quando poderemos nos ver? Seu pai tirou uma semana de folga, então qualquer dia estará bem para nós. Queremos ver vocês três, claro.

- Falarei com John e os avisarei depois - Shena prometeu. - Um beijo, mamãe. E mande um beijo para o papai.

Shena colocou o telefone no gancho e ficou olhando-o em silêncio por um momento. Ainda teria de transferir suas coisas para o quarto de John, mas havia assuntos mais importantes para tratar no momento. Se os dois iriam mesmo ficar juntos, teria de decidir o que faria com seu apartamento.

Livrar-se do lugar seria tolice, mas mantê-lo vazio também não seria sensato, se ela pretendia ficar com John. E era realmente o que ela pretendia. Mais do que nunca também pelo bem de Jodie.

Vestida com uma calça de seda e um top confortável, desceu para o andar de baixo. Ouviu o ruído do aspirador de pó vindo da sala. Sempre se dera bem com a sra. Parkin no passado, mas ainda estava se sentindo um pouco constrangida com o reencontro depois de tanto tempo.

O fato de John e Paula não haverem chegado a morar juntos não significava que os dois não houvessem ficado no apartamento. Só de pensar que os dois poderiam haver compartilhado aquela mesma cama onde ela e John haviam dormido, já sentia o sangue esquentar.

Ainda pensativa, respirou fundo. O passado deveria ser deixado de lado. Com Jodie sob sua responsabilidade, John pensaria duas vezes antes de querer sair da linha novamente.

Encontrou os dois na saleta ao lado da sala principal. John estava diante da janela, com as mãos nos bolsos, mas virou-se ao notar sua chegada. Um sorriso iluminou o rosto bonito.

- Já estava pensando que você havia voltado para a cama.

- Tive de arrumar algumas coisas - respondeu Shena forçando um tom natural, furiosa consigo mesma por estar prestes a enrubescer.

Jodie estava deitada sobre o tapete, mantendo diante de si um dos livros que eles haviam comprado para ela no sábado. Do jeito que ela estava virando as páginas com rapidez, ler não parecia ser um de seus passatempos preferidos.

- Desculpe-me por termos demorado tanto tempo para comer os sanduíches - disse à menina, cruzando os dedos nas costas por causa da mentira que estava prestes a dizer. - Estavam muito bons.

- Tudo bem - respondeu Jodie. - Deduzi que deviam estar fazendo sexo.

Completamente atônita, Shena não soube o que responder. Pelo visto, deixar a filha vê-lo nu não fora o único ato condenável de Trevor Brent. Ao olhar para John, notou que ele parecia tão preocupado quanto ela.

- O que você sabe sobre sexo? - ele perguntou a Jodie.

- Tivemos lições na escola. Isso é o que os homens e as mulheres fazem para terem bebês. - Ela continuou em um tom natural: - Mas só quando querem, claro. Por isso, papai não teve nenhum outro filho depois de mim. - Jodie olhou de um para o outro, antes de prosseguir: - Vocês nunca quiseram ter um bebê?

Shena sentiu um aperto no peito.

- Somos muito ocupados, querida - respondeu. - Mas, de qualquer maneira, agora temos você.

- Não sou um bebê - Jodie protestou. - E não me importaria se vocês tivessem um. Adoro bebês.

O toque do telefone foi um alívio para Shena.

- Levaremos isso em conta - salientou John, enquanto Shena tirava o aparelho do gancho.

Achando que deveria ser sua mãe, como sempre lembrando-se de algo que ela não dissera, Shena atendeu o telefone com animação. Porém, logo percebeu que não era sua mãe. Seguiu-se um momento de silêncio, antes que a pessoa do outro lado da linha desligasse devagar.

John olhou-a com um ar indagador, enquanto ela recolocava o telefone no gancho.

- Foi engano?

- Parece que sim. Quem quer que tenha sido, não disse nada - respondeu ela.

Pelo olhar de John, Shena teve uma forte impressão de que ele sabia quem telefonara. Alguém que esperava que ele respondesse, não ela.

- Vou preparar um café - anunciou, precisando de um pretexto para sair dali.

Enquanto preparava o café, tentou manter os pensamentos em um ritmo tranquilo. Poderia haver sido mesmo um engano, claro. Por outro lado, a pessoa nem mesmo perguntara o número do telefone. Parecera haver um instante de surpresa do outro lado da linha, antes do completo silêncio. Se fosse uma mulher do outro lado da linha, ela certamente ficara espantada ao ouvir a voz de outra mulher.

Então lembrou-se que o aparelho de John fornecia o número do telefone da pessoa que ligara. Sem resistir à curiosidade, foi até a cozinha e digitou os quatros números e copiou em um papel os detalhes que apareceram no visor do aparelho.

O prefixo era de Londres, mas o número não lhe pareceu familiar. Talvez se telefonasse para lá conseguisse descobrir pelo menos se a pessoa que telefonara era homem ou mulher. Continuava pensativa, com o telefone na mão, quando a sra. Parkin apareceu na cozinha.

Perto da casa dos sessenta anos, e parecendo diferente das últimas vezes em que Shena a vira, ela balançou a cabeça e sorriu com ar de censura.

- Eu teria feito isso para você, se houvesse me telefonado - disse ela. - E muito bom tê-la de volta.

Shena retribuiu o sorriso, grata pelas boas-vindas.

- Obrigada. E bom saber que continua conosco.

- O sr. Beaumont quis que eu continuasse vindo mesmo quando ele não estava aqui - confidenciou a sra. Parkin. - Não que seja preciso fazer muita coisa quando ele está em casa. O sr. Beaumont é sempre muito organizado.

- Acho que manter a casa sem poeira já deve ser uma tarefa bastante árdua - salientou Shena.

A sra. Parkin sorriu.

- Cada qual com seu talento - disse ela. - Eu, por exemplo, não saberia por onde começar a escrever um livro! Aliás, o sr. Beaumont estava no meio de um quando soube o que havia acontecido a Jodie. Parece que ela já se adaptou bem à nova situação, não? É incrível como as crianças se adaptam rápido às mudanças. Imagine só...

Ela se interrompeu quando a campainha soou.

- Digo que você está em casa ou não? - perguntou a Shena.

- Pode dizer que eu estou - respondeu ela, após um instante de hesitação.

A sra. Parkin foi atender à porta e, depois de algumas palavras, fez um sinal para que uma mulher a acompanhasse até a sala, onde Shena já as esperava.

- Olá, sou Maxine Gregson - anunciou a mulher, estendendo a mão para Shena. - Desculpe-me por vir sem avisar, mas é que eu estava passando aqui perto e resolvi aproveitar a oportunidade. Sabia que alguém acabaria lhes fazendo uma visita, não?

Aquela devia ser a assistente social sobre a qual John falara, concluiu Shena. Eles realmente não perdiam tempo! No entanto, ela esperava ver uma pessoa mais velha, e não uma jovem na casa dos vinte anos, com roupas casuais e uma aparência nem um pouco oficial.

- Estávamos prestes a tomar um café - disse à visitante. - Aceita uma xícara?

- Oh, eu adoraria! Está bastante frio esta manhã e um café será ótimo.

- Pode deixar que eu trarei a bandeja com o café - ofereceu-se a sra. Parkin, voltando para a cozinha.

Pouco depois, Shena levou a jovem até onde John ainda estava com Jodie. Ele dizia algo à menina, mas parou quando as viu entrar.

Shena reconheceu o modo como Maxine olhou para John. Já vira aquele mesmo olhar em muitas mulheres que eram apresentadas a ele. John havia vestido uma calça preta e uma camisa azul-turquesa, e estava digno de fazer qualquer mulher suspirar.

- A srta. Gregson está aqui para nos entrevistar a respeito da adoção - disse a ele.

- Podem me chamar apenas de Maxine, por favor - pediu a moça. - Vocês são Shena e John, certo? Achamos melhor deixar as formalidades de lado desde o início.

- Sim, é melhor - anuiu John. - Dê-me seu casaco. Maxine balançou a cabeça negativamente.

- Ficarei pouco tempo desta vez - explicou.

A sra. Parkin apareceu com o café. Sem pedir permissão, Jodie se levantou e pegou uma xícara, antes de sentar-se ao lado de Shena, no sofá.

- Não esperávamos receber sua visita tão rapidamente - salientou John. - Chegamos no sábado.

- Gostamos de fazer contato o quanto antes, em nossos casos - explicou a jovem. - Sei que parece uma intrusão, mas os procedimentos têm de ser assim. Virei visitá-los várias vezes durante as próximas semanas, para ver como estão se saindo. - Sorriu para Jodie, que não sorriu em resposta.

- Temos de ter certeza de que você está sendo bem cuidada. Seguiu-se uma breve pausa, sem que ninguém se manifestasse. - Não que eu esteja antecipando algum problema - continuou a assistente social. Então dirigiu-se a John.

- Sei que viajou até a Austrália para encontrar sua sobrinha e impedir que ela fosse levada para um orfanato.

- Eu estava em um orfanato - Jodie interveio. - E não gostei de lá.

- Bem, com certeza você não vai voltar para lá - Maxine a assegurou. - Agora, se nos der licença, preciso falar em particular com seus tios por alguns minutos. Antes de eu ir embora, nós duas também conversaremos.

Quando Jodie levantou o queixo, Shena compreendeu a indignação da menina, ao ser dispensada de uma conversa que dizia respeito a seu futuro. De fato, Jodie só saiu quando recebeu um olhar significativo do tio. Assim que a porta se fechou atrás dela, ele perguntou à assistente social.

- O que precisa saber?

- Bem, os detalhes do caso nós já conhecemos. Precisamos apenas ter certeza de que vocês conhecem todos os prós e os contras de se adotar uma criança da idade de Jodie, e com a qual vocês tiveram contato há apenas alguns dias. De acordo com os antecedentes de Jodie, fornecidos pelas autoridades de Brisbane, ela foi criada em um ambiente muito diferente desse que vocês estão oferecendo a ela. Pode ter problemas para se adaptar.

- Jodie está se adaptando muito bem - falou Shena, antes que John pudesse dizer algo. - Lidou com tudo com muita naturalidade até agora.

- Tenho certeza de que sim - respondeu a jovem.

- Jodie deve estar se sentindo no céu depois de tudo que passou. Mas ainda faz poucos dias que vocês estão juntos. Nem sempre as coisas serão assim, tão fáceis. Começar em uma nova escola, por exemplo, é sempre difícil para qualquer criança.

- Lidaremos com os problemas conforme eles forem aparecendo - afirmou John.

Maxine assentiu com um sorriso.

- Vamos esperar pelo melhor - disse a ele. - Desculpe-me pela visita rápida, mas terei de falar com uma pessoa no escritório dentro de meia hora. Mas será que posso trocar algumas palavrinhas com Jodie, antes de ir embora? - Quando Shena fez menção de acompanhá-la, ela levantou a mão e disse: - Não precisa se preocupar. Apenas me diga onde fica o quarto dela.

- Logo depois da escada, a segunda porta à direita - respondeu John, já de pé. - Então, voltaremos a vê-la em breve.

-- Sim - confirmou Maxine. Enrubescendo ligeiramente, ela acrescentou: - Sou uma ávida leitora de seus livros. Eles são excelentes! Deve fazer muita pesquisa para escrevê-los.

- O suficiente - declarou John. - Shena também é escritora.

- Eu sei - anuiu a moça, olhando para Shena. - Receio não ter lido nenhum dos seus. Gosto mais de thrillers do que de romances.

Shena deu de ombros com um sorriso.

- Tudo bem. Deveria autografar um de seus últimos livros para ela, John.

- Não tenho nenhum aqui - falou ele. - Mas providenciarei um exemplar para sua próxima visita.

Ele se adiantou para abrir a porta para a jovem, fazendo-a enrubescer mais uma vez.

- É sempre bom agradar os fãs. Principalmente uma dessas - comentou Shena, assim que a moça partiu.

- Ela me pareceu inofensiva - declarou John. - Confesso que ela é muito diferente do que imaginei.

- Não é o seu tipo, segundo observei. John estreitou o olhar.

- Mesmo que ela fosse, acha que eu faria alguma coisa? "Claro que não", deveria ser a resposta, mas algo impeliu Shena a dizer:

- Quem sabe?

John respirou fundo, parecendo querer evitar uma resposta malcriada.

- Está agindo assim por causa daquele telefonema, não é? Acha que foi Paula quem ligou.

- Está dizendo que não foi ela?

- Não tenho ideia de quem telefonou!

- Aposto que também não tem a mínima ideia do que ela estava fazendo em Tonbridge no sábado.

- Ela tem amigos por lá. Não amigos em comum comigo, se é o que está pensando.

- Você disse que a separação de vocês foi de acordo mútuo. Isso foi realmente verdade?

- Que importância tem a resposta?

- Para mim é importante. John apertou os lábios.

- Já que insiste em saber, acabamos pacificamente no dia em que eu disse que não tinha intenção de me divorciar de você para me casar com ela.

Aquele seria o momento em que qualquer uma de suas heroínas se derreteria nos braços do amado, pensou Shena. Porém, essa era a vida real, e não uma ficção. O fato de John não haver querido se casar com Paula tornou sua atitude ainda mais condenável.

- De qualquer maneira, não consigo imaginá-lo sem uma companhia feminina nos últimos meses, John.

- Aposto que também não lhe faltou companhia masculina - salientou ele. - Ou terei de considerar Craig sob um aspecto diferente?

- Não dormi com Craig. Shena fingiu não se importar com o ar de dúvida no semblante dele. De fato, não podia exigir que ele acreditasse naquilo. Ninguém acreditaria.

- Está querendo dizer que ele nunca quis dormir com você?

- Eu não disse isso. Eu disse...

- Que não dormiu com ele. - John não disfarçou a ironia. - Isso sempre foi uma maneira um tanto ambígua de falar.

- Não esperava que uma romancista como eu usasse um termo mais explícito, esperava? - Shena utilizou a mesma ironia. - Quer você acredite ou não, essa é a verdade.

John olhou-a em silêncio por tanto tempo que a deixou embaraçada.

- Estava planejando se casar com o sujeito. Devia sentir algo por ele.

- Eu sentia. Quer dizer, eu sinto. - Shena se interrompeu por um momento, ao perceber a armadilha em que havia caído. - Craig é um homem gentil, e tenho muita estima por ele. Mas nunca me fez desejá-lo o suficiente para querer ir para a cama com ele.

- Talvez ele não tenha feito muito esforço pára isso.

- Ou talvez você estivesse certo quando sugeriu que é o único homem que consegue me deixar louca - falou ela, com um sorriso insinuante.

- Sem dúvida, esse é um detalhe digno de ser levado em conta. - Depois de fitá-la de alto a baixo, John falou:

- Quando pretende contar a ele?

- O mais rápido possível. Só que não por telefone. Preciso vê-lo pessoalmente.

Ele deu de ombros.

- Desde que não seja na quarta-feira. Preferindo não discutir mais, Shena decidiu mudar de assunto.

- Telefonei para minha mãe hoje cedo - disse a ele. - Ela quer que levemos Jodie para conhecê-los. Acho que ela está se vendo como uma avó em potencial.

- Provavelmente seus pais serão os únicos avós de Jodie. Sim, com o pai dele em algum lugar da América do Sul e a mãe casada pela segunda vez e morando no Canadá, era provável que John tivesse razão, pensou Shena.

- Como se sente estando prestes a ver meus pais novamente? - perguntou a ele.

- Estou conseguindo sobreviver - ironizou John. - Como estão eles?

- Bem. Mamãe está nas nuvens! Ela nunca deixou de gostar de você.

John inclinou a cabeça.

- Mas seu pai não deve ter a mesma opinião?

- Inicialmente não.

- Então teremos de convencê-lo de que estamos falando sério, certo?

- Agindo mais do que falando, você quer dizer? - perguntou Shena.

Ele deu de ombros.

- Pode ser - respondeu, pegando o jornal que estava ao lado e começando a lê-lo.

Em outras épocas, Shena iria até ele e tiraria-lhe o jornal, provocando-o até que ele fizesse amor com ela. No passado, bastava olhá-lo para desejá-lo. De fato, isso não mudara no presente.

- Deve estar ansioso para voltar a trabalhar - disse, resistindo ao impulso de tocá-lo. - Jodie e eu ficaremos bem se você quiser começar a trabalhar.

- Não valerá muito a pena se eu tiver de interromper o processo mais uma vez - falou ele, sem levantar a vista do jornal. - Assim que ela estiver na escola, ambos ficaremos mais livres para trabalhar.

Shena ainda não havia considerado aquele lado da questão. Os três livros que ela escrevera durante o tempo em que os dois haviam ficado juntos foram datilografados em uma máquina de escrever, mas atualmente ela se acostumara a usar o computador.

- Primeiro terei de trazer minhas coisas do apartamento - salientou. - Talvez seja uma boa ideia transformar aquele quartinho do fundo em um escritório para mim.

- Está abrindo mão do apartamento? - John arqueou as sobrancelhas.

- Se vou ficar aqui, não precisarei mais dele, não é? Seguiu-se um momento de silêncio que pareceu durar uma eternidade para Shena, enquanto John continuou a fitá-la nos olhos. Sentiu o coração acelerar quando ele deixou o jornal de lado e ficou de pé. Quando John puxou-a com delicadeza para os braços dele, Shena não tentou resistir. Deixou que ele a beijasse com ardor e correspondeu a cada carícia, desesperada para se convencer de que John não a estava usando.

Quando a porta se abriu de repente, os dois se afastaram, mas John não a soltou. Também não pareceu nem um pouco embaraçado ao ver Maxine à porta.

- Oh, sinto muito! - a jovem se desculpou. - Vim apenas avisar que eu e Jodie já terminamos e me despedir de vocês. Eu deveria ter batido à porta.

- Não tem problema - respondeu John. - Aposto que não é a primeira vez que vê um marido e uma esposa se beijando.

- Já vi, sim, embora eu não flagre isso com freqüência - admitiu Maxine. - Bem, de qualquer maneira, isso faz muita diferença.

Surpresa, Shena notou que o modo como a moça a olhou não demonstrou o mínimo ar de inveja.

- Até a próxima semana então - Maxine se despediu.

Shena se afastou de John devagar, tentando se convencer de que a cena não fora um mero artifício para impressionar a assistente social.

- Vou acompanhá-la até a porta - disse à moça. Quando as duas estavam no corredor, Shena perguntou como fora a conversa com Jodie.

Maxine deu de ombros com um sorriso.

- Pelo visto, ela não é muito comunicativa. As únicas coisas que consegui ouvir de Jodie é que ela detesta ir para a escola, o que não parece muito encorajador. Não sei se já tiveram tempo para pensar nisso, mas logo terão de matriculá-la em uma escola.

- Marcamos uma entrevista na Silverwood para a quarta-feira - explicou Shena, com relutância.

De fato, não ficou surpresa ao ver uma expressão de dúvida surgir no rosto da moça.

- Levando-se em conta os antecedentes de Jodie, uma rígida escola particular talvez não seja a escolha mais adequada.

Shena respirou fundo. Essa fora sua própria opinião dias antes. Por isso, viu-se forçada a admitir que a assistente social tinha razão. Não duvidava da capacidade intelectual de Jodie, mas com certeza a menina iria sentir-se fora de contexto, estudando em uma escola como Silverwood. As crianças sabiam ser cruéis quando a questão era humilhar outra que agia de um modo diferente. Só o sotaque de Jodie já seria motivo suficiente para zombaria entre as crianças.

Por outro lado, se Jodie começasse a tratar as crianças do colégio como costumava tratar Robby no orfanato, a situação se complicaria,

- Terá de conversar com meu marido sobre esse detalhe - disse a Maxine.

A assistente social franziu o cenho.

- Então vocês têm opiniões divergentes sobre esse assunto?

Shena percebeu que teria de tomar cuidado com tudo que dissesse para aquela mulher.

- Eu quis dizer apenas que seria melhor discutirmos isso juntos, também com a participação dele - emendou.

Se Maxine acreditou ou não na resposta, não deu nenhuma demonstração. Claro que aquilo constaria apenas como um detalhe no relatório dela, Shena disse a si mesma, quando Maxine foi embora. A decisão final quanto à adoção seria baseada mais em fatores pertinentes do que em uma diferença de opiniões quanto a uma escola.

Estava voltando para a sala onde deixara John quando um movimento vindo do alto da escada chamou sua atenção.

- Não vai descer? - perguntou ao notar que era Jodie. Não houve resposta. Shena hesitou por um momento, sem ter noção de qual seria o melhor método der aproximação. Então decidiu seguir a intuição e ir até Jodie, sentando-se no topo da escada.

- O que aconteceu? - indagou com gentileza, fazendo Jodie sentar-se a seu lado.

- Ela disse que levará semanas até que eu possa ser adotada.

- Isso será apenas para que tenham certeza de que você está feliz conosco, querida - Shena a tranquilizou.

- Ela também disse que eu terei de ir ao tribunal falar com o juiz.

- Todos nós iremos. Isso é apenas uma formalidade. Não precisa se preocupar, Jodie.

- Mas ela falou que eu terei de ir para a escola! - a menina protestou.

- Bem, isso é... verdade. A lei aqui é a mesma da Austrália quanto a escolas. Você não gosta de estudar?

- É muito cansativo!

- Talvez o estudo se torne mais interessante se você estiver em outra escola. Precisa aceitar que não pode deixar de estudar, Jodie.

A menina fez uma careta de desagrado.

- Eu queria ser grande, assim não teria de fazer nada que eu não quisesse!

- Os adultos também têm de fazer coisas que não gostam - salientou Shena.

- Papai nunca fez nada que não quisesse. Ele dizia que regras foram feitas para idiotas!

Shena suspirou. Pelo visto, levaria muito tempo até conseguirem consertar o estrago que aquele homem havia feito na educação de Jodie.

- Os adultos também não dizem coisas certas o tempo inteiro, querida - falou com cuidado. - Todos dizemos algumas tolices de vez em quando. - "E também fazemos", pensou ela. - De qualquer modo, nada mudará durante essa semana, portanto, vamos aproveitá-la ao máximo, está bem? Como quer se vestir para fazermos um longo passeio pela neve esta tarde? Há um ótimo pub na cidade, onde poderemos tomar chá.

O semblante da menina se iluminou um pouco.

- Tio John também vai?

- Por que não pergunta pessoalmente a ele? Enquanto isso, darei um telefonema do escritório dele. Iremos visitar meus pais amanhã. Eles estão ansiosos para conhecê-la.

Um brilho maroto surgiu nos olhos da menina.

- Quer que eu me comporte direitinho, não é? Shena riu, aliviada por Jodie haver voltado a se comportar normalmente.

- Isso mesmo - respondeu.

Feliz ao receber a notícia, a mãe de Shena sugeriu que passassem a noite com eles, para que tivessem mais tempo de relaxar e de pôr os assuntos em dia. Shena prometeu falar com John, mas duvidou que ele aceitaria a ideia.

Shena havia acabado de desligar o telefone e estava prestes a se levantar quando lembrou-se da primeira gaveta onde John mantinha as folhas impressas de seus últimos trabalhos.

Movida pela curiosidade, abriu a gaveta devagar. Qual não foi seu espanto ao ver um par de brincos sobre as folhas impressas. De quem seria? E por que estaria justo ali?

Fechou a gaveta novamente e ficou parada por alguns segundos, dizendo a si mesma que bisbilhotara a mesa de trabalho de John e que não tinha esse direito.

Ficar imaginando mil coisas por causa de um brinco encontrado em uma gaveta era tolice. Claro que era. Devia haver uma explicação razoável para aquilo.

"Sua ingênua!", gritou-lhe uma voz no fundo da mente.

 

Neville Holroyd não demonstrou muito entusiasmo ao cumprimentar o genro. No entanto, tanto ele quanto Lucy ficaram encantados com Jodie desde o primeiro instante.

- Ela é uma criança adorável! - exclamou Lucy, quando ela e Shena começaram a arrumar a mesa para o almoço. - Foi um gesto muito nobre de John aceitar criar uma menina de nove anos de idade, mesmo tratando-se da sobrinha dele. Bem, sua atitude também foi admirável, querida.

Shena continuou em silêncio, ouvindo a mãe falar.

- É impressionante como vocês duas se deram bem rapidamente. E pensar que nesse mesmo dia, no mês passado, você e John ainda estavam separados. Agora, aí estão vocês, juntos de novo, e com uma criança para cuidar! - Lucy hesitou. - Não estão pensando em ter um bebê, estão?

- Haverá muito tempo para pensarmos nisso, mamãe - respondeu Shena. - Algumas mulheres estão tendo o primeiro filho aos quarenta anos hoje em dia.

- Não tenho nada contra isso, mas espero que você decida não esperar tanto tempo. Precisa se lembrar de que John é dez anos mais velho do que você. Duvido que um homem na casa dos cinquenta anos aceite bem passar noites acordado por causa do choro de um bebê.

- Pensarei no assunto - respondeu Shena, demonstrando que não queria mais falar sobre aquilo.

Sua mãe sempre fora muito perceptiva e, felizmente, deixou o assunto de lado. Depois do almoço tranquilo, durante o qual Jodie se comportou muito bem, apesar de sua expansividade, o pai de Shena aproveitou um momento em que os dois ficaram sozinhos na sala e perguntou:

- Tem certeza do que está fazendo quanto a seu casamento? Já percebi quanto você gosta de Jodie, mas sua vida também está em jogo. Não quero vê-la magoada novamente.

- Desta vez está sendo diferente, papai. Ele sorriu.

- Está mesmo? Gosto de John, mas um homem que as mulheres consideram tão atraente tem muitas tentações diante de si.

- Bem, então terei de ser mais satisfatória do que essas tentações, certo? Talvez se eu tivesse me esforçado para ficar com ele, em vez de apenas abrir mão do relacionamento... Talvez nós nem tivéssemos nos separado.

- Durante algum tempo, você disse que não valia a pena lutar por ele.

- Eu estava tentando convencer a mim mesma de que isso era verdade. - Shena deu de ombros. - Eu estava vivendo uma fantasia quando me casei com John. Não tinha ideia de que é preciso se esforçar para manter um casamento.

- Isso acontece em alguns casos - anuiu Neville. - Mas se Jodie é a única razão pela qual vocês dois estão tentando viver juntos novamente, não dará certo, Shena.

Não, aquele não era o único motivo que a fizera retomar o casamento. Mas não podia votar a favor de John. Não depois do que ele fizera no passado. No entanto, tinha certeza de uma coisa: não desistiria tão facilmente de seu casamento como da primeira vez. Além disso, o bem-estar de Jodie também era uma prioridade.

Os três partiram da casa dos pais de Shena às quatro horas da tarde. John não quis ficar para dormir, mas teve de ouvir os insistentes pedidos de Lucy para que eles voltassem a visitá-los em breve.

- Vamos comer um lanche no caminho? - perguntou Jodie, enquanto John manobrava o carro em direção à estrada.

- Jodie! Não é possível que ainda esteja com fome depois de tudo que comeu! - Shena protestou.

- Eu estou, ora! - respondeu a menina. - Estou em fase de crescimento!

John riu.

- Crescimento para cima ou para os lados? - brincou ele. - Está bem. Pararemos em algum fast-food para comprarmos sanduíches.

Shena abriu a boca para protestar, mas acabou desistindo. Um pouco mais de calorias não faria mal a Jodie. Afinal, ela estava mesmo em "fase de crescimento".

Jodie havia acabado de comer o sanduíche quando decidiu pegar alguns chocolates antes de irem embora.

- Sua menina se dá muito bem com o pai, não? - perguntou uma mulher de meia-idade quando Shena passou primeiro pela caixa registradora.

Shena sorriu em resposta, mas não teve tempo de responder porque Jodie e John se aproximaram logo em seguida. A menina colocou três chocolates sobre o balcão.

- Um para agora e dois para mais tarde.

- Muito mais tarde - salientou John. - Essa cota de doces terá de durar a semana inteira.

A mulher da caixa pareceu surpresa ao notar a diferença de sotaque entre John e Jodie. Shena pensou em explicar a situação, mas desistiu ao concluir que John não aprovaria o gesto.

- Ela pensou que você fosse o pai de Jodie - disse a ele, quando os três deixaram a lanchonete, com Jodie correndo na frente. - Até então, eu não havia me dado conta de quanto vocês são parecidos.

- Janine e eu éramos muito parecidos - explicou John. Shena teve uma agradável surpresa quando ele passou a mão por seus ombros, puxando-a para si enquanto seguiam em direção ao carro. Era muito bom poder sentir aquele carinho mais uma vez.

Quando chegaram em casa, descobriram que a sra. Parkin havia deixado o jantar pronto. Bem, pelo menos não teriam de se preocupar em jantar fora, pensou Shena.

Durante o jantar, já não ficou tão espantada ao ver Jodie comer tudo que lhe fora oferecido e repetir o prato uma vez.

- Gostei de seus pais - disse ela a Shena, enquanto as duas colocavam os pratos e talheres na lava-louça. - Eles disseram que posso chamá-los de vovô e vovó, mas só poderei fazer isso se for realmente adotada, não é?

- Claro que não, Jodie - respondeu Shena. - Esse período de espera é apenas uma formalidade para que as autoridades se certifiquem de que estamos vivendo felizes juntos.

Jodie olhou-a com um ar pensativo.

- Você e tio John estão felizes por estarem juntos?

Shena sentiu um nó na garganta. Ao recordar os acontecimentos dos dias anteriores, não se lembrou de nada que pudesse negar o que Jodie dissera.

- Claro que sim - respondeu, fechando a lava-louça. Quando as duas foram para a sala, encontraram John assistindo à televisão.

- Quanto é setenta e um multiplicado por cento e trinta e um? - perguntou o apresentador do programa a um participante de um concurso.

- Nove mil, trezentos e um - respondeu Jodie, um segundo antes de o competidor dar a mesma resposta.

Atônita, Shena olhou para John, que também parecia espantado com o que acabara de presenciar.

- Achou fácil responder a isso? - perguntou ele. Jodie deu de ombros.

- Não foi muito difícil.

- E se tentar de novo? - sugeriu John, em um tom de voz casual. - Só para vermos quanto você é rápida nas respostas.

Os olhos acinzentados da menina mostraram um brilho de interesse.

- Está bem.

Jodie respondeu primeiro do que todos os competidores, e só hesitava um pouco quando os números envolvidos nas perguntas eram compostos por cinco algarismos.

Shena mal acreditou no que estava vendo. Jodie era uma criança de nove anos e fazia aquelas contas complexas? Aquilo era, no mínimo, curioso!

- Sua mãe também era ótima com números - falou John, quando pararam a "competição". - Ela costumava dizer que na escola as aulas de matemática nunca eram interessantes porque as outras crianças eram lentas demais para dar as respostas. Você sente isso também?

Jodie deu de ombros.

- Acho que sim.

- Bem, não creio que se sentirá cansada na nova escola - disse ele.

Jodie não respondeu nada. Depois disso, falou muito pouco até ir para a cama, às nove horas da noite, sem que ninguém precisasse mandar.

- Não é possível que ninguém tenha notado o que ela é capaz de fazer - falou Shena, assim que a menina se retirou.

- Depende se ela deixou alguém saber - salientou John. - Jodie é esperta o suficiente para se dar conta de que isso a torna diferente, e qualquer criança que se destaca acaba sendo humilhada pelas outras. Janine era como ela, e também não gostava de ser olhada de uma forma diferente pelos outros.

- Então é provável que ela também seja uma leitora muito melhor do que eu tenho suposto - deduziu Shena, pensativa. - Os livros que compramos não são adiantados o suficiente para despertar o interesse dela. Deus, é provável que tenhamos uma criança-prodígio em nossas mãos!

- Eles descobrirão isso rápido na Silverwood - declarou John. Então mudou bruscamente de assunto ao perguntar: - Já falou com Craig?

- Não pessoalmente - admitiu ela. - Deixei um recado na secretária eletrônica dele.

- Dizendo o quê?

- Disse que não poderia ir na quarta-feira, mas que poderíamos nos encontrar no mesmo lugar na quinta-feira.

- E se ele não puder ir?

- Ele já teria telefonado para me avisar. - Após uma breve pausa, Shena acrescentou: - Se está pensando em sugerir que eu fale com ele por telefone, esqueça!

- Na verdade, eu estava pensando se não seria melhor passarmos alguns dias no meu apartamento. Eu poderia ir separadamente com Jodie e encontrá-la por lá na noite de quinta-feira. Depois seria interessante levá-la para passear na sexta-feira. Como as famílias costumam fazer.

Shena sentiu-se grata por John também estar se esforçando para recuperar o casamento.

- Parece uma boa ideia - respondeu, desejando não ter de enfrentar Craig primeiro. - Poderei pegar mais algumas roupas no meu apartamento, antes de ir para o seu.

- Então está combinado. - John olhou-a de um modo diferente ao dizer: - Vem cá.

- Agora não, John. Jodie pode aparecer...

- Não estou sugerindo uma orgia. Mas tudo bem... - Ele deu de ombros, com um ar filosófico. - Se não estiver disposta a receber um beijo, terei de continuar assistindo à televisão.

Shena mordeu o lábio. Por mais que gostasse da companhia de John, às vezes se sentia meio confusa, ao imaginar quantas mulheres já não deveriam ter passado pelos braços dele.

Manteve uma certa distância até mesmo na cama, quando ambos já estavam deitados e John passou o braço sobre sua cintura, puxando-a para si.

- Continue fugindo assim e não garanto que conseguirei me controlar - sussurrou ele junto ao ouvido dela.

- Então se afaste de mim - respondeu Shena, ouvindo o riso dele logo atrás de si.

- Não quer que eu faça isso.

Era verdade, pensou ela. Fechou os olhos com um breve gemido ao sentir a mão de John sobre seu seio.

- Assim está bem melhor - murmurou ele. "Pergunte a ele sobre o par de brincos!", mandou uma voz no fundo da mente de Shena. Entretanto, seu corpo estava mais preocupado com urgências bem mais interessantes. E, para seu maior desespero, John sabia disso melhor do que ninguém.

O encontro com Craig foi realmente tão difícil quanto ela previra.

- Já deveria saber que iria fazer isso no domingo - falou ele, em tom de acusação. - Por que não me disse naquele dia?

Shena fez um gesto de impotência.

- Eu ainda estava tentando me convencer de que poderia me afastar de tudo. Sinto muito, Craig. Sinto muito mesmo.

- Sentirá mais ainda quando aquele seu marido começar a agir exatamente como antes - replicou ele, com rancor. - Ele a está usando, Shena. Se ele quisesse mesmo a reconciliação, teria tomado alguma providência antes.

Shena dissera aquilo para si mesma muitas vezes, mas a última coisa que precisava naquele momento era de alguém para lembrá-la disso. Forçou um sorriso, dando de ombros.

- Acha que não estou magoado com tudo isso? - inquiriu ele, indignado. - Eu nunca a teria pedido em casamento se não a houvesse amado!

Tempo passado, observou Shena.

- Não posso fazer nada, Craig, exceto dizer que sinto muito.

Tentou amenizar a sensação de culpa dizendo a si mesma que Craig logo encontraria outra pessoa. E foi mantendo essa ideia que se despediu dele e lhe desejou boa sorte logo em seguida, antes de partir.

Foi direto para seu apartamento pegar algumas roupas. Ao chegar lá, decidiu telefonar para uma imobiliária e deixar a venda do apartamento sob a responsabilidade deles.

Havia começado a arrumar as roupas em uma mala quando o telefone começou a tocar. Escrever andava longe de seus pensamentos naqueles últimos tempos, por isso ficou surpresa ao reconhecer a voz de sua editora.

- Estou tentando falar com você há dias! - falou Bárbara. - Tentei telefonar para a casa de John na semana passada.

- O que a fez pensar que eu estaria lá? - indagou Shena, com cautela.

- O fato de John havê-la procurado há algumas semanas. - Bárbara hesitou. - Ele a encontrou?

Ao longo dos anos, além de chefe, Bárbara também havia se tornado uma amiga de Shena. Por isso ela não viu motivo para manter segredo quanto ao que estava acontecendo.

- Ele não apenas me encontrou como me convenceu a tentarmos um recomeço - respondeu.

Bárbara manteve um tom cauteloso, como que em dúvida se deveria mesmo felicitar a amiga.

- E... como estão indo as coisas?

- Muito bem. Muito bem mesmo - declarou Shena.

- É mesmo? - indagou Bárbara, com um tom cético.

- Sim. Alguns probleminhas sempre surgem, mas estamos conseguindo resolvê-los.

- Bem... - O tom cético continuou evidente no tom da editora. - Boa sorte então. Quando pretende voltar a trabalhar?

- Voltarei em breve - prometeu Shena, apesar de não ter uma ideia de quando voltaria exatamente.

- Apenas tenha o cuidado de não demorar demais, está bem? Você sabe quanto as leitoras cobram esse tipo de coisa. - Após uma breve pausa, Bárbara indagou: - Não vai desistir do apartamento ainda, vai?

- Sim, vou.

A editora não fez nenhum comentário, embola sua opinião tenha ficado clara: o que acontecera uma vez poderia muito bem voltar a acontecer. Mas tudo bem, pensou Shena. Ela não sabia a respeito de Jodie.

- Que tal almoçarmos juntas na próxima semana? - sugeriu Bárbara. - Terei um horário livre na terça-feira.

- Ainda não sei se estarei livre - avisou Shena. - Posso lhe telefonar depois para confirmar?

- Sim, claro. Mas já vou fazer a reserva mesmo assim. Meio-dia e meia no Lockets, está bem?

- Está.

Shena se despediu em seguida e desligou, permanecendo pensativa por alguns segundos. Bárbara tinha razão. Ela precisava voltar a trabalhar, pelo menos para manter alguma independência financeira. Com Jodie na escola, isso provavelmente seria mais fácil.

Depois da entrevista com o diretor da Silverwood, no dia anterior, estava se sentindo mais confiante. Ele se mostrara uma pessoa bastante sensível e provavelmente saberia lidar com o caso de Jodie de uma maneira especial.

Quando chegou ao apartamento de John, sorriu consigo ao encontrar um bilhete dizendo que os dois haviam ido ao planetário e que voltariam às seis horas da tarde.

Deixou a bolsa sobre uma cadeira e estava pensando em preparar um café quando viu a luz da secretária eletrônica indicando que havia duas mensagens. Após um instante de hesitação, apertou o botão para ouvir os recados.

- Sempre me pergunto por que você insiste em manter um apartamento se quase nunca está nele - declarou uma voz feminina, sem preâmbulos. - Telefonei para sua casa, mas a empregada disse que você estava na cidade. - Após uma breve pausa, a mulher mudou o tom de voz. - Está confirmado, querido! Esta manhã. Sei que tem outros assuntos em mente no momento, mas precisamos lidar com isso juntos. Ficarei esperando seu retorno.

O segundo recado estava em branco. Shena permaneceu no mesmo lugar enquanto a máquina ajustava a fita de gravação. Estava aturdida demais para ter alguma reação.

Só havia uma interpretação para aquilo que ela acabara de ouvir: aquela mulher estava esperando um filho de John!

 

Já passava das seis e meia da tarde quando John e Jodie finalmente chegaram. Jodie não parava de descrever com entusiasmo o que vira no planetário.

- Desculpe-nos pela demora - disse John. - Conseguir tomar um táxi nesse horário é tão difícil quanto encontrar um lugar para estacionar. Se tivéssemos vindo a pé, talvez houvéssemos chegado mais cedo.

- Eu queria passear de metrô - Jodie interveio -, mas estava muito cheio. Tio John falou que poderemos ir ao zoológico amanhã. Você irá conosco, não é?

- Sim, claro.

Shena fez o possível para demonstrar entusiasmo, mas tudo que conseguiu foi forçar um sorriso. Sabia que por mais que se esforçasse John perceberia a diferença em seu comportamento.

- Acho que deveríamos jantar em um dos bistrôs que temos aqui por perto - sugeriu ele. - Alguma preferência?

- O que é um bistrô? - Jodie quis saber.

- É um restaurante pequeno e aconchegante - explicou Shena. - Para mim, qualquer um deles estará bom.

John deu de ombros.

- Então vou tomar um banho rápido. Aliás, gostei de seu vestido - acrescentou ele, fitando-a com admiração.

- Troquei de roupa no meu apartamento - explicou.

- Ótimo, pelo menos ganhou tempo. Me dê quinze minutos, sim? Também preciso fazer a barba.

- Não preciso tomar banho e trocar de roupa de novo, preciso? - perguntou Jodie, com ar esperançoso. - Não me sujei em nenhum lugar.

Shena examinou-a com atenção. De fato, a menina não parecia haver sujado a roupa em nenhum lugar e seu rosto também estava limpo.

- Não sei... Talvez seja melhor você tomar um banho para se refrescar.

Jodie olhou-a com atenção.

- Se estiver aborrecida porque fomos ao planetário sem você, poderemos ir de novo amanhã. Não me importo de não ir ao zoológico. Quer dizer, não me importo muito.

Shena não conteve o sorriso.

- Não estou aborrecida. De qualquer modo, já visitei o planetário e faz anos que não vou ao zoológico.

- Tudo bem então. - Jodie não disfarçou o alívio. - Nunca estive em um trem que anda debaixo do chão!

Diante de toda aquela empolgação, Shena achou melhor esperar para confrontar John quando voltassem para casa. Não queria estragar o contentamento da menina, que não tinha culpa pelas coisas que o tio fazia. Enquanto isso, iria se esforçar para fingir que estava tudo bem.

John apareceu vestido com uma calça azul-marinho e um suéter de um tom azul mais claro. Por mais que estivesse magoada com ele, Shena não conseguiu deixar de admirar aquela marcante beleza masculina.

Os dois se entreolharam por um instante, mas ela foi a primeira a desviar o olhar.

Durante o jantar, Shena observou o modo como John e Jodie se comportavam mais como pai e filha do que como tio e sobrinha. Naquele aspecto, John era um homem maravilhoso, mas em outro ele não mudara nem um pouco. Infelizmente.

Quando voltaram do jantar, não havia nenhum recado na secretária eletrônica. Depois de assistirem à televisão durante meia hora, John disse a Jodie que estava na hora de ela ir dormir. A menina protestou um pouco, mas acabou indo para o quarto.

- Quer um drinque? - ofereceu John, quando os dois ficaram sozinhos.

Shena estava prestes a recusar mas mudou de ideia. Talvez o álcool a ajudasse a relaxar um pouco.

- Aceito - respondeu. John preparou duas doses de uísque e entregou um copo a ela.

- Não vai me contar por que está aborrecida?

- O que o faz pensar que estou aborrecida?

- O fato de você mal haver falado meia dúzia de palavras durante a noite inteira, por exemplo.

Shena pensou em dizer tudo de uma vez, mas lembrou-se de Jodie e de quanto a nova vida estava sendo importante para ela.

- É que estou um pouco tensa - disse a ele, em um impulso.

Um sorriso curvou os lábios dele.

- Conheço um relaxamento ótimo para isso... Ao vê-lo se aproximar e tirar o copo de sua mão, Shena pensou em protestar, mas quando deu por si já estava nos braços de John, ansiosa para que ele a amasse mais uma vez.

No dia seguinte, os três voltaram tarde do passeio pelo zoológico e pelo metrô. Shena decidiu preparar sanduíches quentes para o jantar. Estava passando maionese nos pães quando se assustou com o súbito toque do telefone.

Se fosse mesmo quem ela imaginava ser, o assunto com John viria à tona antes do que ela imaginara. John atendeu o telefone na sala porque o aparelho parou de tocar no segundo toque.

Shena voltou a se concentrar nos sanduíches. Depois de alguns minutos, John apareceu na cozinha.

- Você apagou as mensagens da secretária eletrônica ontem? - perguntou ele.

- Sim - respondeu ela, sem olhá-lo.

- Por quê?

Shena se virou para ele.

- Eu precisava de algum tempo para aceitar. John arqueou as sobrancelhas.

- Aceitar o quê, exatamente?

- Não se finja de inocente! - ela explodiu. - Eu não queria arruinar o fim de semana de Jodie trazendo esse assunto à tona agora, mas eu deveria ter imaginado que ela voltaria a ligar.

- Do que diabos você está falando?

- Oh, por favor, John! - Ela fez um gesto de impaciência.

- Pelo menos tenha a decência de não se fazer de inocente! Aceito até que você esteja disposto a assumir a criança, mas não estou preparada para dividi-lo com a mãe!

John continuou olhando-a sem dizer nada.

- Não vai dizer nada? - Shena insistiu.

- Acho melhor você conhecê-la - ele disse apenas. - E o mais rápido possível. Ela está a poucos quilômetros daqui.

Shena ficou olhando ele sair da cozinha. Não acreditava que ele pudesse ser tão frio com um assunto tão sério. Não queria conhecer aquela mulher!

Ainda estava na cozinha quando John voltou, segurando seu casaco.

- Não precisa pegar a bolsa - avisou ele. - Voltaremos logo.

- Não vou sair com você - anunciou Shena.

- Vai sim. Jodie já foi chamar o elevador. Shena arregalou os olhos.

- Não acredito que queira levá-la também! - protestou.

- Não podemos deixá-la aqui sozinha.

Shena achou melhor desistir de lutar. Melhor seria acompanhá-lo por vontade própria do que acabar sendo carregada por ele.

Jodie os estava esperando com a porta do elevador aberta. Fitou-os com um ar de curiosidade, sentindo a atmosfera entre eles.

- Para onde iremos agora? perguntou quando o elevador começou a descer.

John respondeu.

- Vamos visitar uma amiga.

- Uma amiga muito próxima - Shena não resistiu ao impulso de acrescentar.

Poucos minutos depois, chegaram a uma espécie de condomínio. Subiram até o primeiro andar de um dos prédios. Chegaram em um local que parecia uma recepção, e Shena sentiu-se a maior das idiotas quando a recepcionista cumprimentou John com um amplo sorriso.

- Ângela deixou o champanhe no gelo durante o dia inteiro enquanto esperava por você - disse a moça. - Estamos todas ansiosas! - Sorriu para Shena e para Jodie. - Vocês também devem estar.

- Sobre o quê? - perguntou Jodie, curiosa.

- Ora, sobre o contrato do filme! - A recepcionista se dirigiu a John. - Não me diga que não contou a elas? - Ao notar a expressão dele, fez uma careta. - Eu e minha boca grande. Arruinei sua surpresa.

- Nem um pouco - John a tranqüilizou. - Shena, Jodie, essa é Gerry, apelido para Geraldine. Ângela está no escritório?

- Claro que está. Vou avisá-la de que vocês estão indo para lá.

Os três seguiram por um corredor. John olhou para Shena e arqueou uma sobrancelha.

- Já foi apresentada à minha agente, não?

- Sim.

A essa altura, Shena já estava querendo que um buraco se abrisse no chão para ela se esconder. Era nisso que dava uma mente desconfiada combinada com uma imaginação fértil demais.

- John, eu...

- Depois. - Ele indicou uma das portas. - É ali. Ângela Davis, da Davis & Blackett Enterprises, recebeu-os à porta com uma exclamação de boas-vindas.

- Parabéns mais uma vez, querido! Que bom que você também veio, Shena! E esta deve ser Jodie. Como vocês dois são parecidos! - Ela ficou de lado e fez um sinal para os três entrarem. - Deixei a garrafa para que você abrisse. Champanhe Don Perignon, claro!

Shena ficou olhando John abrir a garrafa e aceitou a taça que ele lhe ofereceu em seguida. Por mais que estivesse embaraçada pelo erro que cometera, ainda não ficara totalmente convencida da inocência de John. De quem era aquele brinco afinal?

Jodie recebeu metade da dose da bebida e não perdeu tempo em prová-la.

- Pensei que champanhe fosse algo mais gostoso - falou com sua costumeira sinceridade. - Bebem isso nos filmes!

Ângela sorriu e levantou sua taça.

- Ao sucesso dos negócios! - Depois de brindarem, ela acrescentou: - Vamos selar de uma vez esse novo empreendimento! Afinal, não é todo dia que um escritor consegue ver um de seus livros transformado em filme! Dupla Traição será um sucesso!

Quando os três chegaram no apartamento, já passava das seis e meia da tarde.

- Talvez seja melhor voltarmos para Tonbridge - sugeriu John. - Não creio que haja mais nada a ser feito por aqui.

- Não me importo em esperar mais alguns dias para ir à escola. Afinal, ainda temos de comprar meu uniforme - lembrou Jodie.

John sorriu.

- Nós daremos um jeito. Que tal pedirmos pizza?

- Eu quero! - exclamou Jodie.

- Vou preparar um café enquanto fazem o pedido - anunciou Shena, sentindo-se meio excluída.

- Você não disse que pizza quer - salientou Jodie.

- Oh, qualquer uma que tenha queijo e tomate, por favor. Enquanto estava na cozinha, Shena pensou sobre a situação e decidiu que teria de conversar com John. Se eles pretendiam mesmo retomar o casamento, não poderia continuar havendo desconfiança.

Jodie foi mandada para a cama às nove horas. Shena ficou esperando John começar a discussão com algum comentário irônico, mas ele não se manifestou. Continuou sentado no sofá, com os olhos fechados, ouvindo uma música clássica. Por fim, foi ela quem teve de começar a conversa.

- Precisamos conversar, John.

- Sobre o quê? - perguntou ele, mantendo os olhos fechados.

- Você sabe muito bem! Lamento por haver chegado à conclusão errada. Eu deveria ter imaginado que você não seria tão descuidado assim.

Ele abriu os olhos.

- Obrigado.

- Tive outros motivos para acreditar que você poderia estar envolvido com alguém.

- Que motivos?

- Aquele telefonema estranho, por exemplo - Shena respondeu. - Ficou óbvio que a pessoa que ligou não esperava ouvir a voz de uma mulher. Também encontrei um par de brincos na gaveta de sua mesa de trabalho.

- E... - John insistiu.

- É só isso - ela admitiu com relutância.

- Mas o suficiente, quando combinado com uma boa dose de desconfiança - completou ele. - Não posso dizer quem estava ao telefone naquele dia, embora eu não descarte a ideia de que possa ter sido Paula, tentando nos criar problemas novamente. Quanto aos brincos... - Um sorriso se insinuou nos lábios dele. - Estão lá como uma lembrança da garota que eu tive e perdi.

- Quem?

John não respondeu. Simplesmente ficou de pé e abraçou-a.

- Não me leve a mal, mas aqueles brincos não são meus.

- São sim.

Ele acariciou a curva sensível do rosto de Shena e fitou-a com um olhar terno.

- Encontrei-os quando estava levando suas coisas para o outro quarto. Você só usou-os uma vez, quando foi vestida de cigana a uma festa a fantasia, lembra-se?

- Vagamente - respondeu ela, com um sorriso, aliviada com a revelação. - Acho que bebi demais naquela noite, não? Agora me lembro de você me colocando debaixo do chuveiro com roupa e tudo para me despertar. - Ela riu. - Ficou furioso.

- Claro que fiquei! Flagrei-a beijando o filho do anfitrião no jardim, depois de flertar com praticamente todos os homens da festa!

- Talvez estivesse tentando deixá-lo enciumado. - Ela estreitou o olhar. - Teria me procurado se não fosse por Jodie?

John puxou-a mais para si.

- Digamos que Jodie foi a desculpa que eu precisava para fazer algo que já vinha desejando havia muito tempo. Queria tê-la de novo para mim, Shena.

- Se realmente me queria tanto assim, não precisaria ter esperado por uma desculpa.

- Você teria voltado para mim, se não tivesse Jodie como incentivo?

- Talvez.

- Você sabe que isso não é verdade.

Shena sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Tocou os lábios dele com a ponta dos dedos.

- Eu estava com medo de ser magoada. E ainda estou. Você amou Paula?

- Não. Nem mesmo dormi com ela.

- E por que não me disse, John!

- Eu tentei, mas você não me ouviu.

- Mas então...

- Ela me ofereceu um ombro amigo, só isso. Pelo menos foi o que pensei a princípio. Eu precisava de alguém com quem conversar e que explicasse o que eu estava fazendo de errado com você.

- Mas deve ter dado um motivo para Paula haver se empolgado por você.

- Garanto que não dei nenhuma razão física. Estava apaixonado demais por minha linda e tempestuosa esposa para sequer pensar em traí-la. - John segurou o rosto dela entre as mãos. - E ainda estou. Eu te amo, Shena. Preciso de você. Quero passar o resto de minha vida a seu lado.

Ela sorriu.

- Mesmo que eu não saiba cozinhar direito? John também sorriu.

- A vida não se resume apenas a comida. Ela revirou os olhos.

- Diga isso a Jodie.

Os dois caíram na risada, antes de trocarem um olhar apaixonado e um beijo cheio de promessas.

- Ele disse meu nome! - exclamou Jodie, olhando com entusiasmo para o bebê, em sua cadeirinha de refeições. - Você é muito inteligente, Daniel Beaumont!

- Deve ter puxado para a irmã mais velha - gracejou John, passando manteiga em uma torrada.

Shena sorriu, olhando para o filho que, com seis meses de idade, já parecia uma pequena cópia do pai. Aqueles dois últimos anos haviam sido simplesmente perfeitos. A adoção de Jodie transcorrera muito bem e a menina passara a frequentar a Silverwood sem maiores problemas.

- Está pensando em seu próximo romance? - John sorriu para ela.

- Não - Shena respondeu, também sorrindo. - Estava apenas distraída com meus pensamentos. Ângela já lhe mandou os resultados do segundo volume de Dupla Traição?

- As vendas parecem estar indo bem.

- Não seja modesto. Nunca imaginei que naquele dia estava presenciando o fechamento de um dos contratos mais rendosos da indústria literária.

- Posso ir com você para Hollywood da próxima vez? - Jodie perguntou a ele.

- Da próxima vez que ele for, todos nós iremos.

- Estou enganado ou notei uma ponta de ciúme no comentário? - John arqueou uma sobrancelha.

- Pode chamar de ciúme, se quiser, mas não pretendo deixá-lo ir sozinho para Hollywood, depois que o vi pela televisão ao lado daquelas duas loiras estonteantes, da última vez em que esteve lá.

Ele riu.

- Elas não eram tão estonteantes assim. Lembre-se que aquilo é Hollywood, onde tudo é meio "de mentirinha".

Shena riu, admitindo que ele tinha razão.

- Te amo - disse apenas mexendo os lábios.

- Eu também - respondeu ele do mesmo modo.   

- Se vocês dois vão começar a se derreter, vou levar Daniel para um passeio. - Dizendo isso, Jodie pegou o bebê no colo. - Venha, irmãozinho. Vamos deixar os adultos brincarem.

Quando as crianças se retiraram, John e Shena caíram na risada. Porém, não demorou muito para o riso ceder lugar a uma troca de olhares apaixonados. Como sempre acontecia antes de os dois acabarem se entregando aos braços um do outro. E dessa vez não foi diferente. Nunca seria.

 

 

                                                                  Kay Thorpe

 

 

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