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PARAÍSO DAS TREVAS - P.2 / Tami Hoag
PARAÍSO DAS TREVAS - P.2 / Tami Hoag

                                                                                                                                               

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PARAÍSO DAS TREVAS

Segunda Parte

 

A cabeça ressoava-lhe com as possibilidades. -Nada, tanto quanto sei - disse ela, olhando de lado para o enorme xerife e pensando qual seria a reacção dele às suas teorias sobre Lucy. Nenhuma, decidiu. Parecia-lhe um homem simples, do género bife com batatas fritas, sábado à noite às escuras e... «Lee Harvey Oswald agiu sozinho»,

 

Quinn olhou para Drew e perguntou:

 

-Alguém comunicou ter ouvido ou visto alguma coisa de invulgar?

 

-Nada. Foi uma noite normal, até isto acontecer.

 

E Drew pôs um joelho em terra junto de Mari, olhando para ela, torturado pela culpa. - Tenho tanta pena, querida.

-Você não tem culpa.

 

-Vou mandar o Raoul mudar as suas coisas para uma suíte, enquanto vamos às urgências. - À porta, o encarregado da noite arrebitou-se como um cachorrinho perante a perspectiva de se mostrar importante. A expressão de Drew endureceu quando Mari abriu a boca para protestar. - Vai ver essa contusão e não se fala mais nisso. Eu levo-a de carro.

 

-Vamos procurar impressões digitais - disse Quinn, disfarçando novo bocejo. - E interrogar o resto dos hóspedes deste andar de manhã, para ver se repararam em alguma coisa. Tenho os ajudantes à procura de suspeitos, mas calculo que ele já vá longe ou esteja bem escondido. Em todo o caso, vamos manter-nos alerta.

 

Parecia precisar de palitos para segurar as pálpebras abertas. o homem estava prestes a adormecer em pé. Mari engoliu as perguntas. Podiam esperar até de manhã, pelo menos até o xerife dormir um bocado.

 

Conforme prometido, Drew levou Mari de carro até ao hospital de New Eden. Kevin admitiu sentir-se mal com sangue e agulhas e ficou na estalagem para dirigir as operações, enquanto o delegado procurava impressões digitais e Raúl dava início à mudança. Foram para o hospital no pequeno Porsche de Drew e Mari recostou-se no banco de cabedal, tentando concentrar-se em qualquer coisa para além da vontade de vomitar.

 

- É um choque enorme - observou Drew. - A pessoa não está à espera de crimes num sítio como New Eden. Faz parte da atracção, não faz? Ar puro, paisagem idílica, valores utópicos.

 

Estava a falar sozinho, tentando ultrapassar o choque com bom senso. Mari ouvia-o, compreendendo perfeitamente. o paraíso não era suposto ter um lado sinistro. Mas parecía-lhe ser o único lado que via: o universo paralelo, onde tudo estava envolto em sombras sinistras. Era como cortar ao meio uma maçã perfeita e descobri-la podre e cheia de bichos,

 

Sentiu o estômago revoltar-se com a ideia.

 

- Drew, faz alguma ideia dos negócios em que a Lucy Podia estar metida? - perguntou em voz fraca, com a pele coberta de suor.

 

-Metida? - Dirigiu o Porsche para a entrada das urgências. A luz fluorescente saía das portas do hospital como um luar artificial. - o que é que quer dizer? - perguntou ele cuidadosamente.

 

-Você disse que ela gostava de estar no centro dos acontecimentos, de agitar as coisas. E se ela espicaçou um ninho de vespas? Alguma vez pensou nisso?

 

Ele franziu a testa, com o seu ar bem-parecido apesar da sombra de barba, as sobrancelhas unidas por cima dos olhos verdes.

 

-Acho que apanhou uma bela pancada no toutiço. De momento, temos de nos concentrar nisso. Não vamos pensar na Lucy, porque já não podemos ajudá-la.

 

Começou a voltar-se para a porta, mas Mari agarrou-o pelo braço, movimento que lhe fez o jantar subir à garganta. Sentia o cérebro desligado do corpo, como se a sua psique estivesse a tentar fugir.

 

- Drew: acha que a Lucy podia estar a fazer chantagem com alguém? - perguntou, apetecendo-lhe desesperadamente deslizar novamente para a inconsciência.

 

-Acho que está a começar a delirar - respondeu ele bruscamente. - Vamos mas é lá para dentro.

 

Passou o que restava da noite no hospital. Foi examinada por um tal Dr. Larimer - que teve de ser tirado do conforto da cama para a atender - e precisou de três pontos no golpe da cabeça, mas acabou por ser declarada em boas condições.

 

- Boas condições para quê? - perguntou Drew, furioso com a descontracção do homem.

 

o médico, um homem baixo com deselegantes óculos de aros escuros e o cabelo a fugir-lhe para a testa, deitou-lhe um olhar impaciente.

 

-Seja para o que for. É apenas uma leve contusão. Nada que não visse todos os dias ao tratar empregados das quintas e vaqueiros de rodeos. Era uma região dura, cheia de gente rija. o olhar que deitou a Drew colocava-o bem fora desse ambiente.

 

- Fica cá esta noite para observação - anunciou o médico a Mari, avaliando o potencial para sarilhos daqueles forasteiros.

 

Mari mandou Drew regressar ao Alce. Só queria uma cama e uma mão-cheia de comprimidos para as dores, qualquer coisa que anulasse o latejar e as suspeitas durante umas horas. o que conseguiu foi um quarto defronte dum bebé a chorar. Ficou deitada, com o cheiro do desinfectante da fronha no nariz, pensamentos sobre Lucy uns atrás dos outros e o som do choro a pôr-lhe os nervos em franja.

 

,Ansiava por conforto e pensou em J. D. Teria sido apenas há algumas horas que tinham estado deitados um com o outro, a ouvir a chuva? A lembrança era tão real que lhe pareceu sentir o calor do corpo dele, a força do braço em volta dela, o agradável perfume masculino e do amor. E, no entanto, parecia-lhe tão irreal que pensou se não teria imaginado tudo aquilo. Não viera para o montana à procura dum vaqueiro para a cama.

 

Apesar disso, fechou os olhos e fingiu que ele estava ali naquele momento, que estava deitada com as costas para ele, de encontro ao seu corpo grande e musculoso. Fingiu que pertenciam um ao outro, fingiu que ele gostava dela. A alternativa era sentir-se só. E, numa noite em que os pensamentos sobre a amiga não a deixavam, pensamentos sobre uma morte num ermo e uma vida sem alguém para amar, só era a última coisa que queria sentir.

 

Quinn tinha melhor aspecto barbeado e com uma camisa lavada. No entanto, a sua disposição não melhorara com a luz do dia. Estava sentado à secretária, ansioso por enterrar os dentes nos biscoitos que a mulher lhe entregara à saída Para o intervalo do café, mas tinha o terrível palpite de que esse intervalo não ia ser para já.

 

Marilee Jenings estava sentada diante de si, pálida, Com olheiras e uma nódoa negra na cara, além duma expresSão que o preocupava tanto, que quase não reparava em mais uma das estranhas vestimentas dela - uma saia diáfana às flores, botifarras e um blusão de ganga de tamanho masculino por cima duma camisola de algodão com «SalVem o Planeta» escrito à frente.

 

Quinn não gostava da ideia de alguém ser atacado no Seu território. E sobretudo não gostava da ideia de esse alguém ser um forasteiro. Esse tipo de gente tinha tendência para gritar que nem porcos na matança a primeira provocação - embora apanhar uma pancada na cabeça não deixasse de ser motivo de protesto - e para arrastar advogados atrás de si como dobermans pela trela. Um caso simples podia de repente ser transformado no crime do século, con matilhas de jornalistas a farejar pela cidade à procura de sujeira como evangelistas loucos. A perspectiva pôs-lhe o estômago às voltas. Franziu a testa para a pilha de biscoitos e para o café que arrefecia na sua caneca do Super Pai.

 

A vida ali tinha sido muito mais simples A. C. - antes das celebridades.

 

-Como se sente esta manhã, Miss Jennings? - perguntou delicadamente, apoiando os cotovelos no tampo da secretária e afastando discretamente o prato dos biscoitos do seu campo de visão.

 

Ela dirigiu-lhe um sorriso com mais humor do que ele esperava.

 

-Tenho uma nova simpatia por bolas de futebol... que é exactamente como sinto a cabeça. Mas disseram-me que fico boa daqui a um dia ou dois.

 

-Não precisava de vir cá esta manhã. Isto podia esperar.

 

- Presumo que não há sinais do homem que me atacou?

 

o xerife abanou a cabeça, à espera da diatribe sobre a incompetência da Polícia nas terras pequenas, para começar. Mas Marilee Jennings limitou-se a ficar com uma expressão triste, talvez mesmo um pouco assustada.

 

- Não se preocupe mais com ele. o mais provável é ter ido para outra terra. Os gatunos têm tendência para ficar nervosos quando escapam por pouco.

 

- Se era mesmo gatuno...

 

- o que quer dizer com isso? - perguntou Quinn, inclinando a cabeça.

 

Mari respirou fundo e apertou os dedos no colo. -Não tenho a certeza de que ele tenha ido lá para me assaltar. Acho que estava à procura duma coisa em particular.

 

- Tal como?

 

-Não tenho a certeza. - o xerife parecia impaciente, e ela apressou-se a continuar, antes de perder a coragem. Sabe que a casa da Lucy MacAdam foi assaltada uns dias depois de ela morrer..

 

- Vândalos - respondeu ele, erguendo os enormes ombros. - Claro que sei. o J. D. chamou-me para ir lá ver. -E se não foram vândalos? o escritório do doutor

 

Daggrepont também foi assaltado uns dias depois, e ele era o advogado da Lucy. Não acha estranho?

 

- Nem por isso. - Deitou um olhar aos biscoitos, passando inconscientemente a língua pelo lábio inferior, e tornou a observar Mari, com um ar mais intimidante e cada vez com menos paciência. - Não é invulgar uma casa ser assaltada quando a rapaziada pensa que não anda por lá gente que possa aparecer dum momento para o outro. Não digo que seja vulgar, mas acontece. Quanto ao escritório do Daggrepont, fica numa ruazinha perto do Inferninho e é assaltado umas duas vezes por ano. Estou farto de lhe dizer que instale uma fechadura melhor, mas acho que ele prefere receber a indemnização do seguro sobre aquela tralha que afirma serem antiguidades.

 

- Mas agora o meu quarto na estalagem também foi assaltado - lembrou Mari, tentando manter a sua pouca paciência. Estava exausta e tinha a cabeça a latejar. Queria tomar dois dos comprimidos que o Dr. Latimer lhe havia receitado, enfiar-se na cama e dormir uma semana, mas pensara... esperara poder despertar primeiro os instintos policiais do xerife. Se ele visse alguma coisa nas suas suspeitas, talvez mandasse alguém verificar as coincidências e tratar o seu ataque duma maneira diferente.

 

Mas não parecia desperto.

 

- Não lhe parecem demasiadas coincidências? - insistiu. - Eu era amiga da Lucy. Ela deixou-me aquilo tudo em testamento. E se me deixou alguma coisa que alguém queria o suficiente para cometer um crime?

 

- Deixou?

 

Mari tornou a fechar os olhos de frustração e sofrimento. o homem provavelmente já a achava maluca. Se lhe resPondesse de novo «não sei», estava tramada com ele.

 

- Deixou-me uma carta para ser aberta se ela morresse... o que já por si é estranho. Mencionava um livro, um anuário de advogados chamado Martindale-Hubbell. Está a colecção lá em casa, mas falta um volume.

 

- Se falta e se acha que era o que o gatuno procurava, por que havia ele de arrombar o escritório do Daggrepont ou o seu quarto? Podia tê-lo tirado de casa de Miss MacAdam quando lá entrou.

 

- A Lucy podia tê-lo escondido e ele podia pensar que o dera ao advogado para guardar ou que eu o tinha comigo.

- E porque havia ela de esconder um anuário de advogados?

 

- Talvez haja lá qualquer coisa. -Que coisa?

 

Não sei. Duas palavras com a garantia de o irritar. Os chuis eram pensadores lineares. Gostavam de provas, de lógica e de explicações simples. Não podia dar-lhe qualquer dessas coisas. Só tinha um conjunto de feias possibilidades e palpites, com Lucy no meio. Se lhe dissesse que vira o juiz Tounsend MacDonald a fungar cocaína numa festa, o mais provável era ele pensar que ela é que estava a usá-la na altura.

 

Townsend encontrava-se acima de qualquer suspeita e ela própria não acreditaria, se não tivesse visto e se não soubesse o que se passara entre o juiz e a amiga. E Quinn também não via qualquer problema em Ben Lucas a representar Sheffild na questão da morte de Lucy. Era um advogado importante a exercer no montana, frequentava o mesmo círculo que Sheffield... Que importância tinha se conhecera Lucy em Sacramento?

 

- Não quero que me julgue doida, mas há umas coisas na morte da minha amiga que me incomodam desde o princípio. E agora acontece isto.

 

- Foi um caso linear, Miss Jenings - disse Quinn rigidamente. - Temos o responsável.

 

-Mas ele disse que não tinha visto a Lucy!

 

- Imagino que tenha mentido sobre isso. Atingiu uma mulher a tiro sem querer. Quando percebeu o que tinha feito, entrou em pânico.

 

- Ou talvez outra pessoa a tenha matado.

 

o xerife expirou com força e as sobrancelhas formaram um V profundo por cima da cana do nariz. A cicatriz na cara do homem ficou vermelha.

 

- Suponho que tenha alguma ideia de quem tenha sido? Suponho que acha que foi o homem misterioso que quer o tal livro misterioso sobre o qual na realidade nada sabe...

 

-Só estou a dizer que há outras possibilidades. E o empregado da Lucy que desapareceu depois da morte dela? o Kendall Morton. Segundo sei, era uma personagem suspeita.

 

-Isso no Montana não é contra a lei.

 

- Mas o senhor investigou-o? - insistiu Mari. - Verificou ao menos o cadastro do homem?

 

- Não posso divulgar esse género de informação - declarou Quinn, cada vez mais vermelho. - Fizemos tudo o que era necessário...

 

- Necessário? - interrompeu Mari, em tom trocista, perdendo o controlo. - Chama pequeno delito ao acto dum tipo da alta socidade e devolvem-no para Beverly Hills para tirar a gordura dos rabos das mulheres gordas. Alguma vez consideraram outros suspeitos? E o Del Rafferty? Ele deu-me um tiro ontem!

 

Quinn não pestanejou e continuou a falar como o facto de as pessoas apanharem um tiro fosse tão normal como a erva a crescer.

 

- Mas não a matou, pois não? Se o Del a quisesse morta, não estávamos aqui a ter esta conversa.

 

- Talvez ele quisesse a Lucy morta.

 

- Por querer o tal anuário de advogados, para poder encontrá-los e matá-los também?

 

- Não arme em superior comigo, xerife - explodiu Mari, inclinando-se para a frente. - o elevador do Del Rafferty pára antes de chegar ao último andar. Deu-me um tiro porque eu fui ao território dele. Podia ter achado que tinha motivos para se ver livre da Lucy.

 

Sentiu-se uma traidora ao dizer aquilo. Pensou automaticamente em J. D., na maneira como ele protegia e defendia o tio. E pensou em Del. Na verdade, pregara-lhe um susto dos diabos, mas não esquecia o seu olhar, que lhe rasgava o coração. Ele é que parecia viver com diabos.

 

Quinn olhava para ela com uma expressão de fria raiva.

- Oiça, Miss Jennings. o Del não está bom da cabeça. Toda a gente sabe isso. Mas não anda por aí a matar pessoas. E se de qualquer maneira ele a matasse acidentalmente... o que era praticamente impossível... teria confessado, Nenhum dos Raffertys que eu já conheci deixaria uma pessoa inocente ser culpada por uma coisa que ele fizesse.

 

Derrotada, Mari levantou a mão, rendendo-se. Quinn não estava disposto a dificultar a própria vida reabrindo un caso para o qual já obtivera uma condenação.

 

-Pronto, desisto. Estou a ver que não vale a pena.

- Pois é, minha senhora. Também acho. Lamento que a sua amiga tenha morrido e lamento que a senhora tenha sido atacada. Acredite-me quando lhe digo que desejava que essas coisas não tivessem acontecido. E sobretudo que não tivessem acontecido aqui - prosseguiu o xerife, erguendo-se em toda a sua altura, de queixo espetado.

 

Aquilo era a sua maneira não demasiado subtil de dizer que desejava que ela, Lucy e todos os da sua laia nunca tivessem aparecido em New Eden.

 

Mari levantou-se lentamente e olhou de frente para Quinn.

 

-Também eu, xerife. De todo o coração.

 

- o que é que estás a fazer com esse animal? - perguntou J. D.

 

Will,que fazia doze anos nesse dia, já estava em cima do cavalo. o animal tinha apenas dois anos e era completamente selvagem. Passara toda a vida a correr à solta e nunca sentira a mão dum homem até que Chaske o trouxera das colinas três semanas antes. J. D. tinha gostado logo dele. Ojovem cavalo exibia uma bela maneira de caminhar e um olhar inteligente. Era um alazão com pernas brancas, e malhas brancas nos quartos traseiros. J. D. estava a trabalhá-lo no picadeiro com a ajuda de Chaske, tentando habituá-lo às pessoas e depois à sela. Só fora montado duas vezes.

 

Quando Will lhe puxou as rédeas, o animal dançou, cOM a cabeça alta, rolando os olhos para tentar ver quem estava em cima dele.

 

- Vou montá-lo - afirmou Will, com um sorriso convencido.

 

o sentimento que irrompeu dentro de J. D. foi calma, pura e simplesmente. o cavalo era dele, que possuía um talento natural para os cavalos, e uma coisa em que o peneirento do irmão não se metia. Excepto naquele momento. Já nada era sagrado.

 

- Vais é cair sobre o teu traseiro lingrinhas, meu parvalhão. Sai já daí!

 

Will puxou ainda mais as rédeas. o cavalo começou a andar à roda, soprando pelas ventas muito abertas. Will ficou pálido, mas não mostrou outro sinal de perder a coragem.

 

- Eu posso montá-lo, se quiser, J. D., cara de parvo. Tu não és dono dele.

 

- Sou mais dono do que tu - retorquiu o irmão, trepando à vedação e estendendo a mão para o bridão. o animal recuou de lado, incapaz de confiar em quem quer que fosse. - Sai daí antes que dês cabo dele!

 

Will não fez caso, prestando atenção à voz de Sondra que se dirigia pelo pátio ao curral, com alguns amigos da cidade. Vinha a rir e a conversar, com uma voz como água a cair por um riacho da montanha. Vestia-se como uma senhora da cidade, o que J. D. detestava, mas, na realidade, ele detestava quase tudo o que dissesse respeito a Sondra e aos seus amigos convencidos. Estava tão ocupado em olhar para eles que não reparou que Will conduzia o cavalo para fora do picadeiro.

 

Pareceu acontecer tudo ao mesmo tempo. Will disse qualquer coisa para chamar a atenção da mãe, que se voltou com um sorriso radioso, e levantou a mão para lhe acenar. o cavalo partiu como um foguete. Will abriu muito os olhos e depois fechou-os com toda a força quando o cavalo saltou e baixou a cabeça entre as pernas, fazendo-o deslizar para o pescoço.

 

Nada havia a fazer, a não ser ver o desastre iminente. J. D. ficou na vedação, a apertar a madeira com toda a força. Samantha gritava. o amante foi a correr procurar ajuda, mas ninguém podia ajudar Will,que ia ser vítima da sua própria estupidez. Bem como o animal.

 

  1. D. viu o cavalo saltar e relinchar, doido de medo. o irmão saltou e caiu na terra com uma pancada impressionante. o animal deu meia volta e fugiu da multidão direito à vedação do curral. Saltou, tentando desesperadamente ultrapassá-la e embrulhando as patas nas traves.

 

Enquanto as pessoas da cidade se juntavam à volta do irmão, J. D. foi ajudar o cavalo, rezando para que não tivesse partido uma perna, falando baixinho com ele, procurando acalmá-lo enquanto ele tentava libertar-se. A pelagem do cavalo estava quase preta de suor e salpicada de espuma. Tinha sangue a escorrer das patas, no local em que se arranhara contra as traves da cerca.

 

Chaske apareceu e agarrou o animal, franzindo a testa perante os estragos físicos e mentais. Todos os pedacinhos do trabalho feito destruidos daquela maneira e com tal falta de cuidado... J. D. começou a segui-los para o celeiro, mas o velhote abanou a cabeça e deitou um olhar significativo para o grupo em volta de Will.

 

-Vê lá primeiro o teu irmão.

 

  1. D. ia protestar, mas engoliu as palavras quando Chaske olhou para ele com severidade.

 

Will,vivo e a gemer absorvia a simpatia das pessoas da cidade como uma pequena esponja, mas J. D. estava mais preocupado com o cavalo. Ser cuspido era mais ou menos vulgar e as pessoas raramente morriam. Aliás, era geralmente culpa delas. Por outro lado, o cavalo podia nunca vir a perder a desconfiança que já tinha dos seres humanos. E isso era só culpa de Will.

 

Parou a olhar para o irmão com cara de poucos amigos. Samantha, com uma expressão indignada e os olhos cheios de lágrimas, ajoelhou-se na terra, ao lado do seu bebé, amparando-lhe a cabeça no colo e acariciando-lhe a face, enquanto ele chorava baixinho e encostava um braço ao estômago.

- Como pudeste fazer uma coisa destas?

 

- Eu não tive culpa! Eu avisei o estúpido de que podia partir o pescoço! - bradou J. D., quase dando um salto para trás perante o ataque.

 

- Devias tê-lo impedido. Meu Deus, J. D., tens dezasseis anos e o Will é um garoto! Não tens o mais pequeno sentido de responsabilidade?

 

Foi pior do que tê-lo atingido com um pau. Responsabilidade? Que sabia ela de responsabilidade? Ela é que tinha abandonado a família pelas suas razões egoístas. Ela é que não sabia peva de responsabilidade. E tivera um filho à sua imagem e semelhança. J. D. sabia que o irmão ia dar a volta à história para que nenhuma culpa lhe caísse em cima. Seria toda dele, J. D. - como eram as tarefas e a casa e todos os trabalhos que o pai ignorava por estar demasiado ocupado a lamentar o afastamento duma mulher que se comportava como uma cadela com o cio. E tinha de aguentar a cara alegre, sem uma palavra, porque era um Rafferty, e essa era a maior responsabilidade de todas.

 

  1. D. voltou ao presente, sacudindo a cabeça para dissipar o nevoeiro que lhe toldava o cérebro. Não costumava olhar para o passado. o que estava feito... estava feito e já não interessava.

 

Porém, ao olhar para o irmão, sabia que isso não era verdade. Interessava, sim. E interessava muito. Mas as apostas tinham aumentado com a passagem do tempo, até chegarem àquele ponto, com o rancho no topo, baloiçando precariamente. E o irmão era o peso que podia fazê-lo cair para um lado ou para outro.

 

Não haviam trocado uma palavra desde a cena à porta do Inferninho.J. D. não confiava em si próprio. Sabia que o seu génio só tornava as coisas piores mas, mal olhava para o irmão, via tudo vermelho. Desde o princípio que fora ele a amar o rancho, mas Will podia fazer com que ficassem sem ele. Entre o jogo e as mulheres, parecia firmemente decidido a fazer exactamente isso.

 

A ideia de não controlar o seu próprio destino punha J. D. furioso e aterrorizado como nenhuma outra coisa. o futuro de todos - dele, do tio, de Tucker e de Chaske estava a deslizar para as mãos dum homem que nunca se responsabilizara por coisa alguma na sua vida.

 

Will estava encostado à parede do celeiro, curvado, a beber da mangueira. Aparecera a horas do pequeno-almoço, recusara tudo menos café, que bebera em silêncio, apoiado na bancada da cozinha. Uns óculos escuros espelhados escondiam-lhe os olhos, provavelmente raiados de sangue. Tirou-os naquele momento e molhou a cara com água.

 

Tinham passado o dia a vacinar os animais e a fazer todas as outras verificações. Como se previra, o curral era um mar de lama, pisada pelos cascos de animais de quinhentos quilos. J. D. estava coberto de lama até à cintura e sentia salpicos a secar na cara e na nuca. Afastou-se da vedação e dirigiu-se para a mangueira.

 

Will entregou-lha e afastou-se um pouco, voltando a pôr os óculos e alisando o cabelo com as mãos, de perfil para o pôr do Sol. Parecia uma estrela de cinema, banhado na luz doirada. o Tom Cruise a fazer de vaqueiro por um dia, no novo parque de diversões de Hollywood. A analogia só irritou ainda mais J. D. Serviu-se da mangueira para acalmar, deitando a água fria do poço sobre a cabeça e a cara.

 

Tucker já tinha ido para casa tratar do jantar e Chaske estava também ocupado. o dia acabava e o Sol descia para lá da cordilheira Gallatin. Os cães do gado caçavam ratos, saltando por entre as flores e a erva, fazendo abanar as folhas como metrónomos. Algures entre as árvores, um peru-selvagem fez o seu glugIu a chamar uma fêmea.

 

  1. D. fechou a água e endireitou-se lentamente, observando todas aquelas coisas e sentindo uma pontada no peito, como se as tivesse já perdido.

 

- Precisamos de falar - disse calmamente.

 

Will olhou para ele do outro lado dos óculos, sem o habitual sorriso descarado, a piada ou as covinhas nas faces. -Traduz lá isso, J. D. Queres falar comigo ou para mim?

 

- Precisamos de falar sobre a Samantha.

 

- Não quero essa conversa - respondeu Will,abanando a cabeça, voltando-se e olhando para o prado, onde os cães corriam uns atrás dos outros.

 

-Nem eu.

 

- Então, passamos - disse ele com um sorriso cortante como uma cimitarra.

 

- E fingimos que está tudo bem? Como não queres tratar do assunto, ignoramo-lo? - J. D. abanou a cabeça, tentando dominar o génio ,quando só lhe apetecia agarrar o Irmão pelo pescoço e apertar-lho até o pôr de olhos de fora.

- Fazes alguma ideia de como isto pode ser sério... ela a andar com a malta do Bryce? Alguma ideia, Will?

 

-Faço, faço ideia - troçou Will. - É minha mulher. Como é que achas que eu me sinto?

 

-Não posso imaginar. Procedes como se te estivesses nas tintas para o que ela faz. Vais todas as noites para o262
Inferninho e tentas sacar tudo o que tenha saias! Devia pensar que estás de coração destroçado?

 

- Tu não percebes as coisas - comentou Will amargamente, começando a atravessar o pátio, em direcção à carrinha.

 

  1. D. agarrou-o por um braço e obrigou-o a voltar-se. -Não me venhas com tretas! - rosnou, apontando-lhe um dedo acusador. - Tu aqui não és a vítima inocente, és culpado como o diabo! Casaste com a rapariga e depois largaste-a. E ela agora está numa posição em que pode cortar-nos a garganta, e tu resolves o assunto embebedando-te e indo dançar!

 

-E o que é que hei-de fazer?

 

- Ir buscá-la! Enfrentar as responsabilidades. Mostrares que és homem uma vez na vida!

 

- Porquê? - desafiou Will,com o génio a ferver numa mistura de sofrimento e impotência. - Porque hei-de fazer alguma coisa, quando tu és suficientemente homem para todo o estado do montana? Nunca te cheguei aos calcanhares, pela tua bitola, por mais que faça... Porque é que hei-de ralar-me?

 

-Meu Deus, então é disso que se trata? Quem é que tem o coiso maior? Uma merda duma rivalidade de irmãos? Eu estou a falar das nossas vidas, Will!

 

- A tua vida, queres tu dizer - gritou ele. - Será possível que não prestasses atenção, em vinte e oito anos?

 

  1. D. deu um passo para trás, com as mãos levantadas, como se quisesse parar a conversa.

 

- Isto é inacreditável - murmurou, mais para si próprio do que para Will. - Podemos perder o rancho e tu liMitas-te a amuar com um uísque porque foste o segundo a nascer! Deus do céu, não tens orgulho? Nem um grama de respeito por ti próprio?

 

Will olhou para ele fixamente, certo de que o irmão via para lá do seu disfarce, como sempre fizera. Ficou ali, completamente despido, o eterno falhado, que enganava toda a gente com uma piscadela de olho e um sorriso. Excepto J. D. Nunca conseguira enganá-lo. Agora, o número estava gasto e a cortina não se limitava a descer: desfazia-se. E ele estava com um medo dos diabos de que, quando tudo acabasse, não tivesse nada atrás de que se esconder nem nada para esconder.

 

- Não, não tenho - respondeu, espantado com a verdade daquilo.

 

Dessa vez, quando começou a andar em direcção à carrinha, o irmão não o impediu. Manteve-se ali, ao lado do celeiro, completamente imóvel, esgotado de tudo menos de medo. À sua volta, encontrava-se a única vida que sempre desejara. o rancho. Os montes. Os cavalos e o gado. A frescura e o sossego que vinha das árvores enquanto a luz do Sol desaparecia. o grito dum alce. o som fantasmagórico dum falcão a mergulhar sobre a presa.

 

Aquilo era tudo o que se permitira desejar, tudo o que sempre amara. Preso por um fio, a baloiçar na brisa.

Mari estava sentada na mesa com tampo de vidro, a olhar para o vale banhado nos suaves tons de veludo do crepúsculo. Ali sentada, diante do Sol que se punha, pensativa, com os dedos a moverem-se quase distraidamente sobre as cordas da guitarra.

 

o xerife não acreditava nela. Teria importância! Lucy estava morta. Morta era para sempre. Nada a traria de volta. Se alguém a matara por ela ter feito chantagem com essa pessoa, a história não terminaria ali? Acabada Lucy, acabara a chantagem. Fim do enredo. Nada sabia dos esquemas dela, nem queria saber.

 

Mas... e se Kendall Morton a tivesse assassinado? Ele continuava a monte.

 

E se tivesse sido Del? Tinha motivos, meios e oportunidade. Deus sabia que tinha temperamento para matar. o governo treinara-o para matar.

 

Ai, Del... Ai, J. D....

 

Ele adorava o tio e protegia a família, um cavaleiro rude montado num grande cavalo de trabalho. o defensor do seu reino. o último homem de honra. Tão duro, tão impenetrável. Tão vulnerável.

 

Ele é muito mais duro do que meigo, Marilee.

 

Não sabia sequer por que motivo estava a pensar nele, quando ele não a queria à sua volta; queria-a apenas na cama. Mari gostava de pensar que era demasiado evoluída Para gostar dum homem assim. Gostava de pensar que mais depressa iria para freira do que se apaixonaria por um homem assim.

 

Que choque isso seria para a mãe, uma vez que o clã Jemings era formado por membros devotos da Igreja Episcopaliana, aqueles «que apareciam todos os domingos com fatiotas de arrasar».

 

Prendeu uma madeixa de cabelo atrás da orelha e começou nova música, nova sequência de ideias.

 

Velha sequência de ideias.

 

o xerife não acreditava nela. Os diferentes pedaços de verdade e suspeita que coleccionara durante a última semana não davam qualquer resultado quando ele os examinava. Mari sentia-se como se olhasse para um quadro abstracto e só ela conseguisse ver a zebra representada pelas incongruentes pinceladas de cor. Cada vez lhe parecia mais distinta, mais forte, enquanto todos os outros viam apenas uma confusão de manchas coloridas. Outros pedaços de informação subiam constantemente das profundezas da sua memória, acrescentando pormenores e definição à zebra.

 

Contusões, escoriações, fracturas. Os apontamentos do curto relatório do médico legista brilharam repentinamente no pensamento de Mari pela centésima vez nesse dia. Tinha posto tudo aquilo de parte depois de o ler no primeiro dia, mas agora os pormenores voltavam-lhe constantemente à ideia. Cortes, escoriações, o nariz partido. Ferimentos que podiam ter sido provocados pela queda do macho, mas ela própria dera uma queda dessas e ficara apenas com uma ou duas nódoas negras.

 

Fechou os olhos e imaginou a terrível cena como devia ter acontecido - a bala a atingir Lucy nas costas, atirando-a para a frente, o macho a fugir e ela a cair de cabeça. Numa fofa almofada de erva do prado. Donde provinham então os cortes? E como teria partido o nariz? Podia ter caído em cima duma pedra, mas isso não explicava os golpes nem as unhas sujas e quebradas.

 

Depois duma curta sesta agitada por imagens perturbadoras, Mari passara grande parte da tarde à procura do médico legista para ver se ele podia responder a alguma das suas perguntas. Afinal, tratava-se dum veterinário que nunca quisera aceitar aquelas funções. Aliás, ninguém nas redondezas as queria, e eram tradicionalmente passadas à última pessoa a chegar com treino médico - o que, segundo ele lembrou, era melhor do que em outros condados, onde o seu homónimo geria uma estação de serviço ou uma loja de rações para gado. Era uma posição que ninguém queria ocupar. A sua função era observar cadáveres e preencher formulários. Não fazia autópsias. Quando parecia que era necessário, a infeliz vítima era despachada para Bozeman. No caso de Lucy, não lhe parecera que fosse. Qualquer atrasado via o que a matara.

 

Como explicava ele as contusões, escoriações e fracturas? Com a queda do macho. Ponto final. Tinha sido sexualmente molestada? Não sabia, não havia motivo para ver, e que raio de pergunta idiota era aquela, afinal? A mulher tinha morrido num acidente de caça. Fim da história. E fim da conversa.

 

Tinha-se mostrado mais interessado em castrar cavalos do que em discutir exames post mortem, e não lhe ofereceu qualquer conforto ou simpatia.

 

Mari afastou-se do local da entrevista, derrotada e agoniada, com o cheiro do sangue no nariz e, gravada a fogo no cérebro, a imagem dum pastor-alemão a correr pelo pátio da quinta levando na boca testículos de cavalo deitados fora, como quem leva um prémio. Estremeceu ao recordá-la. Não era coisa que uma estenógrafa judicial visse todos os dias. Graças a Deus. Pensar de novo na amiga morta era quase um alívio.

 

Que estaria ela a fazer nos montes, em primeiro lugar? Teria ido encontrar-se com quem?

 

  1. D.?

 

A ideia fê-la ficar com o estômago às voltas. Lucy tinha morrido na cordilheira dos Raffertys. Andava a dormir com ele. Del Rafferty via fantasmas e era capaz de acertar nos tomates dum rato a uma distância enorme.

 

Del podia considerar Lucy uma ameaça. Era forasteira e comprara um pedaço do Montana junto ao Rancho dos Confederados, mais uma das pessoas que ia tentar meter-se no seu santuário.

 

E se Del a tivesse morto? Qual a vantagem de o provar? Fechá-lo numa prisão seria uma sentença pior do que a morte e não traria Lucy de volta. Ia destruir o frágil fio que existia entre ela e J. D.

 

E que achas tu que vai sair desse fio, Marilee? Nada. Não era suficientemente forte para os ligar. E também não estava à espera disso. Quanto a ele, Deus sabia que também não.

 

E onde é que isso te deixa, Marilee?

 

Sozinha. Sempre a mais. Pairando no limbo dum sinistro paraíso.

 

Olhando para lá do vale e ouvindo o chamamento dum alce, tocou as comoventes primeiras notas duma música de Mary-Chapin Carpenter, Não é Pedir Muito. Era apenas uma canção. Uma coisa para cantar, para ocupar a mente e os dedos. Disse para consigo que aquilo não lhe vinha do coração, aquelas palavras de saudade e esperança perdida. Ela não precisava de significar alguma coisa para J. D. Rafferty. E não queria saber do passado que lhe colocara uma armadura em volta do coração. Tocou-a só porque tocar sempre lhe acalmara o espírito.

 

A sua voz elevou-se no fresco entardecer, forte, quente e honesta. Demasiado fiel a tudo o que sentia.

 

Uma neblina prateada flutuava sobre o riacho, suave como a voz dela. Do outro lado do vale, o alce chamou outra vez. Um coiote respondeu num tom apagado, A estrela da tarde continuava a piscar por cima dos montes.

 

  1. D. hesitou na sombra ao lado da casa. Parou, surpreendido, encantado pela voz dela - a ternura, o sofrimento, o cansaço, todos os tons complexos de emoção e experiência.

 

Com uma mão-cheia de notas, Mari passou da canção de amor para o retrato dum local. Uma terra de céu. Forças simples e tradições que morrem. Cavalos por entre a erva. Um alce junto a um riacho. Alpendres a cair e uma velha igreja a precisar de ser pintada. Sentimentos de inocência, sabedoria e calma. De querer agarrar-se desesperadamente a uma época que já não existia e chorar esse desaparecimento.

 

Com apenas umas frases, ela pintou exactamente o sítio onde estava. A terra dele, os sentimentos dele, os medos dele. As palavras tocaram-no como nenhuma mulher o tinha feito. Penetraram até uma parte dele, da qual não deixava ninguém aproximar-se: o coração. Durante uns momentos, encostou-se aos toros da casa e deixou-se viver nas palavras dela. Deixou-se sofrer. Deixou-se precisar de qualquer coisa que nem conseguia nomear. E quando a canção terminou e a guitarra ficou sem notas, continuou ali, a sofrer com um sentimento de perda.

 

Saiu lentamente da sombra. Mari voltou-se e olhou para ele, com os olhos enormes e escuros.

 

-Tiraste folga da tua vida social, Mary Lee? - perguntou ele, soando mais cansado do que cínico e deixando transparecer sentimentos demasiado fortes para esconder.

 

- É. Geralmente fico de fora quando tenho uma contusão - disse ela, com humor, erguendo o canto da boca. As pessoas com ferimentos na cabeça dão cabo das festas.

 

  1. D. tentou perceber se ela estava ou não a brincar. Na fraca luz que vinha de dentro de casa, conseguia ver as rugas de tensão na cara dela. Parecia emaciada, frágil, e tinha a pele branca e translúcida como uma pétala de lírio.

 

- Calculo que não apareça nos jornais antes de quinta-feira... visto que o cá da terra só sai nesse dia - disse ela, com um ar vagamente embaraçado, poisando a guitarra e descendo da mesa. Uma saia diáfana rodopiou-lhe em volta das pernas e as mangas do blusão de ganga descaíram-lhe até às pontas dos dedos. - Apanhei pancada ontem à noite. -Apanhaste o quê?

 

Deu rapidamente um passo em frente, com ar de quem precisava de lhe pegar ao colo, de   a obrigar a sentar ou de fazer qualquer coisa, mas as emoções que o impeliam eram obviamente tão novas que se limitou a olhar. Mari achou a reacção adorável, mas não se deteve muito nela.

 

- Alguém achou que tinha piada esconder-se no meu quarto na estalagem e dar-me com o telefone na cabeça quando entrei. - Disse aquilo com simplicidade, como se não tivesse ficado aterrorizada. Por dentro, o medo ainda a fazia tremer como um diapasão. - Não achei graça. -Meu Deus, Mary Lee!

 

Deu o passo que faltava para se aproximar dela e levantou as mãos para lhe segurar o rosto e voltá-lo para a luz. Mari encolheu-se quando as pontas dos dedos lhe tocaram no sítio dorido sob o cabelo.

 

Os sentimentos que o avassalavam eram desconhecidos e inesperados, mas demasiado fortes para ele se conter. Não aguentava a ideia de alguém a magoar fisicamente. Era pequena, delicada... era dele. Talvez não para sempre, mas enquanto estivesse ali. Os instintos protectores que reservava para a família e as terras ultrapassaram todas as barreiras e incluíram-na.

 

- Quem foi? - quis saber.

 

- Lamento. Talvez seja preconceito meu, mas todos esses tipos com máscaras de esqui me parecem iguais retorquiu ela, encolhendo levemente os ombros.

 

-Estás bem?

 

A preocupação na voz dele comoveu Mari num local mais sensível do que o do ferimento. A vulnerabilidade, a solidão, a necessidade de alguma coisa fora do seu alcance subiram como a maré.

 

-Não, e sabia-me bem ser abraçada um bocadinho murmurou, tentando sorrir.

 

Ele rodeou-a com os braços e apertou-a junto a si, envolvendo-a cuidadosamente na sua força. Mari enterrou a cara no ombro dele e respirou fundo. Sabonete misturado com um subtil aroma masculino. Tomara duche, e a camisa cheirava a sol. Acima de tudo, estava quente, era forte e ela encaixava perfeitamente no corpo dele. Como se fosse aquele o seu lugar.

 

Passou os braços em volta da cintura dele, absorvendo a sensação do algodão lavado e dos músculos duros pelas pontas dos dedos.

 

- Isto é bom - murmurou.

- Roubaram alguma coisa?

 

- o que é que eu tenho que valha a pena roubar? - Só o coração, que sentia a fugir-lhe.

 

- Ele não te fez mal... doutra maneira? - Deus, se algum filho da mãe a tinha violado...

 

-Não, não - disse ela baixinho, apertando-o. - NãO me parece que andasse atrás de mim, mas prefiro não falar disso agora.

 

Mari inclinou a cabeça para trás. A luz que vinha de dentro de casa era suficiente para acentuar as feições de J. D. Nenhum escultor podia captar melhor a essência daquela região do Oeste. Tudo se resumia ao que estava marcado naquela cara: o orgulho, a arrogância, a integridade, a dureza. Um par de rugas atravessava-lhe a testa como dois fios de arame farpado. o nariz era uma lâmina saliente e direita, nada de especial, um nariz normal. Acima do rochedo que era o seu maxilar, a boca formava habitualmente uma linha comprimida.

 

-Não vieste cá para conversar, pois não, Rafferty?

- Não - respondeu ele, com um leve sorriso ao canto da boca. - Vim para me deitar contigo. - o sorriso desapareceu como um fantasma, e ele tocou-lhe na face mesmo por baixo da nódoa negra provocada por Clyde. - Mas não morro se passar sem isso. Não me parece que te apeteça.

 

- Ora, não sei... Talvez seja agradável sentir-me desejada. Porque é que não me dás um beijo para veres como é?

- Tens a certeza? - perguntou ele, com tanta preocupação na voz e nos olhos que ela quase não aguentou. -Dá-me um beijo - ordenou.

 

Ele obedeceu, com o mais leve e doce dos beijos, como se pensasse que os lábios dela eram de fibra de vidro. o cuidado fez-lhe vir lágrimas aos olhos. Era tão grande, tão rude, e afinal tratava-a com tanta meiguice, mostrando-lhe uma coisa que nunca lhe diria: que se interessava por ela... pelo menos um bocadinho. Sentiu o coração bater mais depressa com a ideia e as lágrimas queimar-lhe os olhos. Estava demasiado vulnerável, demasiado frágil. De repente, o que lhe apeteceu foi paixão, paixão ardente, para fazer desaparecer aquela sensação de desamparo e desespero.

 

Pondo-se em bicos de pés, agarrou-lhe a nuca com uma mão e puxou-o para o beijo, para a sua boca. Beijou-o profundamente, esfomeada, selvática. E de imediato saltaram faíscas. J. D. puxou-a para si, curvando-a para trás com o braço, respondendo à agressão dela com agressão, abrindo-lhe mais a boca com a pressão da dele e introduzindo a língua mais fundo. Meteu uma mão entre os dois, por dentro do blusão aberto dela e encontrou-lhe o seio, apertando, massajando, acariciando através do fino tecido da camisa. Depois, os dedos prenderam-se na carcela e os botões cederam, caindo no chão como pérolas a rolar.

 

As mãos dela prenderam-se no tecido da camisa dele, Puxando-a para fora das calças e abrindo-lhe as molas para Poder tocar-lhe. o calor da pele dele. A seda áspera dos pêlos do peito. A dureza dos músculos e das costelas. Sentia-se ébria de desejo. Tonta, a flutuar. Até que percebeu vagamente que ele lhe tinha pegado ao colo.

 

Deitou-a na mesa de tampo de vidro e abriu-lhe o blusão e a camisa, descobrindo-a à luz das estrelas. Curvou-se e beijou-lhe os seios, um de cada vez, fazendo-a arquear o corpo.

 

Apertou o frágil tecido da camisa dela com as mãos e puxou-lha para a cintura. Demasiado impaciente para ser civilizado, rasgou-lhe as cuecas. Depois, impelido pelo desejo, abriu-lhe bruscamente as pernas e enterrou a cara na carne húmida daquele corpo feminino, esfomeado pelo sabor dela.

 

Quando J. D. se levantou, com o peito a arfar, Mari ergueu-se também e puxou por ele, beijando-o lenta, suave e profundamente, saboreando o gosto do amor.

 

- Quero-te - disse ele com voz rouca, beijando-lhe os lábios, as faces, o lado do pescoço.

 

- Também eu te quero - respondeu ela, com a voz sumida como num sonho.

 

  1. D. afastou-se da mesa, levantando-a ao mesmo tempo. Depois caiu numa das cadeiras sem braços, puxando-a para o colo, escarranchada nele, com as bocas unidas, os dentes a bater uns nos outros e as línguas num duelo. o cabelo dela tombou para a frente, envolvendo o rosto dos dois como um cortinado de seda amarrotada.

 

  1. D. fechou as possantes mãos nas ancas dela, levantou-a e fê-la descer na sua haste. Os dedos de Mari enterraram-se nos músculos dos ombros dele, rígida, enquanto a linha entre a dor e o prazer se desfazia. Depois, lentamente, começou a mover-se. Quando ambos se vieram, J. D. apertou-a nos braços e ela agarrou-se-lhe com firmeza.

 

No fim, deixou-se cair de encontro a ele, com os braços à volta do seu pescoço, completamente esgotada, física e mentalmente vazia de toda a energia. J. D. continuou a apertá-la, com o coração a bater com força de encontro ao peito dela. Mari sentia-se segura no círculo daqueles braços. Só desejava que a sensação durasse para sempre, mas sabia que não ia ser assim. E isso era como uma pedra em cima do seu coração.

 

- Tu estás bem? - perguntou ele num leve murmúrio.

 

-Com o risco de parecer descarada, acho que estive melhor do que bem - disse Mari, tentando esconder a sua vulnerabilidade com o humor.

 

- Hum... - fez J. D., esfregando a cara no pescoço dela. - Estás a pedir cumprimentos, Mary Lee?

 

- Se não queres gastar a tua porção diária de adjectivos, contento-me com um rebuçado de mentol.

 

Ele soltou uma risadinha, tirou um do bolso da camisa sem despegarem os olhos um do outro, e meteu-lho na boca. Mari agarrou-o pelo pulso e beijou-lhe a ponta dum dedo, metendo-a depois na boca e chupando suavemente. As narinas dele abriram-se. Continuava enterrado nela. Os olhares aqueceram e faiscaram, e o corpo de Mari apertou-se em volta dele.

 

Ela tremeu, não por causa do ar da noite, mas pelo desesperado desejo de o manter dentro de si - não por uns momentos de felicidade, mas muito mais tempo. Um tempo ao qual não poria limites nem no recanto mais afastado do seu coração. Sentia-se segura com ele, duma maneira que não era inteligente, Sentia-se completa, duma maneira que rezava para que fosse falsa. Mas, nessa noite, num momento em que se sentia tão perdida, não encontrava forças para o soltar.

 

-Fica comigo esta noite - pediu, horrorizada com o tremor de desejo da sua voz.

 

  1. D. olhou para ela, percebendo que aquele momento era mais do que se teria permitido em outra ocasião qualquer. Ela queria mais do que podia dar-lhe e ele precisava mais dela do que alguma vez admitiria.

 

Só esta noite, prometeu a si próprio. Éapenas sexo. Não deixou que a mentira lhe soasse aos ouvidos e afastou-a com uma centena de desculpas.

 

- Fica comigo esta noite - segredou Mari novamente. J. D. baixou a boca para a dela, com o coração a bater um pouco mais depressa.

 

- Tenta obrigar-me a ir embora!

 

Del viu as luzes apagarem-se no rés-do-chão e acenderem-se no quarto que dava para o pátio. Ajanela não tinha persiana. Via-os perfeitamente com a mira telescópica da sua Remington 700. Sem qualquer dificuldade. A luz ambarina iluminava também o pátio, quase até à carrinha de J. D. J. D. e a mulher loira a despirem-se um ao outro. Aos beijos. A agarrarem-se.

 

  1. D. e a mulher loira; a que falava, não a morta. Mas não estava a gostar daquilo. Nem um bocadinho. As coisas estavam a ficar demasiado confusas. As loiras andavam juntas nas suas ideias, com as feições a sobreporem-se até ficarem quase impossíveis de distinguir. As imagens multiplicavam-se até que lhe pareceu ter um enxame de pirilampos dentro da cabeça, às voltas, a acender e a apagar, distraindo-o da tarefa de manter a sanidade mental. Precisava de se concentrar, mas não era capaz. Precisava de se aguentar mentalmente, mas não conseguia equilibrar as ideias. Explodiam-lhe constantemente numa dúzia de direcções ao mesmo tempo, como se a cabeça fosse uma abóbora a rebentar devido ao impacto duma bala de ponta oca. Pum! Pudim de abóbora. A cabeça dele.

 

Respirava com força, ao baixar a arma, e os olhos toldaram-se-lhe. Comprimiu os lábios o melhor que pôde. Apesar disso, a saliva escorreu pelo botão de carne franzida do queixo e daí para a camisa. Havia uma coisa que precisava de fazer. Sabia que havia. As loiras perseguiam-no de dia e de noite. Andavam atrás de J. D. e J. D. dissera que andavam atrás do rancho.

 

Tinha de haver qualquer coisa que pudesse fazer. Fora sempre um peso morto desde o Vietname. Durante aqueles dias gloriosos teria sabido o que fazer. Durante esse tempo, a sua mente mostrara-se aguçada como uma lâmina e os instintos perfeitamente afinados. Fora um herói, uma máquina, uma arma humana com o gatilho ágil e a pontaria certeira. Presentemente, não conseguia seguir uma linha de pensamento tempo suficiente para formar as perguntas certas, quanto mais encontrar as respostas. As linhas corriam-lhe paralelas no cérebro, num emaranhado, como as linhas do caminho-de-ferro em Billings.

 

Uma loira, a outra loira, loiras mortas. Tigres na noite. Os rapazes dos cães sorrateiros por entre as árvores para fazer o seu trabalho sujo. Como podia ele contar aquelas coisas a J. D. quando não fazia a mínima ideia do que era real e do que não era? Para ele, Del, era tudo real, mas sabia que o sobrinho não via raparigas mortas de noite, nem tigres nos montes.

 

A vergonha de tudo aquilo estremeceu dentro de si como um punho apertado até que os nós dos dedos ficassem brancos. Se ao menos conseguisse fazer alguma coisa para parar aquilo tudo. Se conseguisse fazer as loiras irem-se embora. Se pudesse voltar a ser forte, com a mente sã, ao menos por um bocadinho. Não pedia muito da vida, mas se pudesse ter isso durante um bocadinho...

 

Teria suplicado, mas não havia um Deus para o ouvir, ou já lhe teria respondido anos antes.

As pessoas na sala de estar do Alce estavam nervosas e eléctricas. Falavam do assalto. Os interrogatórios do xerife e ajudantes trouxeram uma inesperada centelha de excitação às férias de vários hóspedes. Desconhecidos trocavam pormenores das entrevistas e teorias sobre o bandido desaparecido. Era um louco à espera para atacar a mulher. Um bandido local que considerava os abastados frequentadores do Alce Alegórico como alvos fáceis. Era um infame ladrão de jóias que seguira a sua vítima desde Hollywood. Infame ladrão de jóias de noite e famoso actor de dia. Era o Robin dos Bosques, o Jesse James e o Hannibal Lecter num só, e muito mais excitante por não ter sido apanhado. A gerência da estalagem garantia que o caso não se repetiria, e havia agentes de segurança extra a patrulhar os corredores, aumentando o ambiente de fronteira que as pessoas tinham ido ali procurar.

 

Samantha ouviu as histórias e as especulações, enquanto servia às mesas, um tanto preocupada em passar a noite sozinha. Já nas melhores noites, não dormia bem sozinha. Fora criada numa casa pequena a rebentar pelas costuras de gente. As noites haviam sido cheias dos sons dos irmãos e irmãs a dormir: molas a ranger, roupa a roçar, a irmã Rac a falar a dormir, o pai a ressonar, pés descalços a dirigirem-se à casa de banho no meio da noite. Em todos esses anos, teria dado qualquer coisa para dormir sozinha, numa cama sua, numa casa sua. Agora, a ideia apavorava-a. A cama estava demasiado vazia e a casa demasiado silenciosa. Na maior parte das noites, ficava acordada, de olhos abertos no escuro, voltada para o lugar ao seu lado, onde devia estar o marido. Nessa noite, ia ficar acordada a olhar para o lugar dele e a pensar se o bandido misterioso iria arrombar a porta e atacá-la- E se isso acontecesse, o marido importar-se-ia quando lho contassem?

 

Passara a noite da festa no quarto de hóspedes em casa de Bryce. Com o espírito cheio de excitação, o sono demorara a chegar. Talvez se tivesse sentido deslocada durante a festa, mas no fim revivera cada cena com entusiasmo, recordando as pessoas que conhecera e as conversas em que participara. Era como um sonho, como entrar num outro mundo, as celebridades, as belas roupas que vestira, a música, o champanhe, a piscina a brilhar no escuro que descia dos montes.

 

Um sorriso irónico pairou-lhe nos lábios enquanto servia uma cerveja e um uísque a um casal de Beverly Hills. Um conto de fadas. Sam Rafferty como Gata Borralheira e Evan Bryce como fada madrinha. Mas o relógio batera as horas, o encantamento acabara, e ali estava ela a tentar receber gorjetas no Alce, a fazer o turno da noite até poder ir-se embora para a sua pequena casa vazia e dormir sozinha.

 

A disposição sombria caiu sobre ela como um abutre e cravou-lhe as garras no estômago. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e ela piscou-os com força para não caírem, trocando uma nota e continuando a trabalhar com um sorriso. Faltava meia hora; depois, podia chorar o que lhe apetecesse e ninguém a veria, a não ser o Maroto.

 

Quando se voltou para o bar, Bryce chamou-lhe a atenÇão. Estava na mesa habitual, com uma bebida na mão. o grupo à sua volta era pequeno, apenas Sharon, Ben Lucas e outro homem que vira durante uns minutos na festa, um homem alto com ar severo, que tanto podia ser um locutor do telejornal na televisão ou um galã do tempo do Kirk Douglas. Do quarteto, só Bryce parecia estar a divertir-se. Fez-lhe um sorriso e sinal para se aproximar.

 

-Olá, beldade, a que horas sai?

 

Samantha retribuiu o sorriso, sem saber bem como devia reagir. Se não tivesse estado metida em New Eden, Montana, toda a vida, talvez se saísse com uma resposta espirituosa, mas sentia-se pouco à vontade para fingir uma descontracção que não possuía.

 

- Têm-na mantido ocupada esta noite! - comentou

Devem estar excitados com a história do assalto. Pois é - concordou Samantha, colocando o tabuleiro vazio diante do corpo e mostrando-se mais cordial. Ele esforçava-se por incluí-la, por fazê-la sentir-se mais importante do que era. Absorveu gulosamente aquela generosidade e tentou não se preocupar com o que os outros amigos dele provavelmente pensavam. - Já sabe de quem era o quarto? - perguntou, ansiosa por compartilhar o que ouvira. - Da Marilee Jenings .Também estava na sua festa.

 

Ben Lucas ergueu as sobrancelhas e deitou uma olhadela ao outro homem, Townsend.

 

-Palavra? Isso é horrível. E ela ficou ferida? - perguntou Bryce, de testa franzida e a esfregar o queixo.

 

o homem bateu-lhe na cabeça. Ouvi dizer que ficou com uma contusão cerebral, mas não está no hospital ou coisa assim. Teve sorte.

 

- É... acho que teve - comentou Bryce com uma expressão vaga no olhar, como quem faz contas de cabeça. É assustador. São coisas que não acontecem aqui, as

pessoas serem atacadas e roubadas e isso - continuou Samantha, mostrando medo com um ligeiro estremecimento. -Você está sozinha em casa. Não há perigo? - perguntou ele, com os olhos semicerrados e a testa franzida de preocupação.

 

-Não, fico bem - redarguiu ela sem grande entusiasmo. Não, não, não - contrapôs ele, abanando a cabeça. Essa ideia não me agrada. Venha lá para casa.

 

Samantha piscou os olhos perante a oferta e a tentação que se lhe seguiu imediatamente. A visão do quarto de hóspedes era como um anúncio dum hotel de luxo.

 

-Não, não posso - disse automaticamente.

 

Claro que pode! E temos muito prazer em recebê-la, não é verdade, Sharon?

 

Samantha olhou para a loira escultural e não lhe pareceu muito satisfeita. o sorriso nos lábios finos da mulher assemelhava-se mais à reacção de quem chupa alguma coisa particularmente azeda.

 

- Não, obrigada, palavra - insistiu Samantha, sentindo a auto-estima diminuir mais uma vez. Imaginou as palavras por detrás do olhar inexpressivo de Sharon Russell: Criada estúpida e parola. - Eu fico bem. Estou habituada a estar sozinha. Além disso, não tenho coisas que possam interessar um gatuno.

 

- Talvez não fosse um gatuno - declarou Sharon calmamente, passando um dedo pela borda do copo.

 

Os olhos de Samantha abriram-se muito e Bryce lançou um olhar irritado à prima.

 

- Boa, prima, metes um susto de morte à pobre rapariga!   exclamou ele.

 

Mulher prevenida... ! Uma mulher tem de considerar todas as possibilidades e agir de modo adequado. Mas se não se sente segura, Sam, venha connosco para Xanadu. Lá fica mais segura - disse ela, lambendo o dedo e encolhendo os ombros.

 

A três mesas deles, um homem pigarreou ruidosamente e levantou o copo vazio quando Samantha olhou na sua direcção. Esta ergueu a mão para mostrar que tinha percebido e voltou-se de novo para Bryce.

 

-Tenho de ir. Obrigada pela oferta, mas eu fico bem. Ele estendeu a mão e apertou a dela, olhando-a nos olhos e oferecendo-lhe uma prova dose de sinceridade e amizade paternal.

 

-Pense nisso. Ainda ficamos por aqui um bocado. Observou-a a afastar-se, com a grossa trança a baloiçar nas costas. Depois, reparou na testa franzida de Drew van Dellen no bar.

 

- Temos de conversar, Bryce - disse MacDonald Townsend em voz áspera e baixa.

 

Bryce começou a sentir a cabeça latejar por detrás dos olhos. Townsend não se calara com aquilo toda a noite e ele fora adiando a conversa só para o chatear. Não estava com disposição para as choraminguices do juiz.

 

- Já vai, Townsend - retorquiu, irritado, sem despregar os olhos de Van Dellen. Levantou-se devagar e afastou-se da mesa, sorrindo interiormente enquanto Townsend, amargo se queixava a Sharon e Ben Lucas nas suas costas.

 

Drew poisou o lápis na lista de bebidas quando Bryce se aproximou do bar, mas não se preocupou em sorrir. Mister Bryce.

 

- Drew - proferiu Bryce, com o seu sorriso à Redford, apoiando os cotovelos no bar. - Ouvi dizer que teve um pequeno aborrecimento ontem à noite.

 

- Que não voltará a acontecer, se pudermos evitar. -Como está a Marilee?

 

- Bastante bem, apesar de tudo. Apanhou um grande susto.

 

-Não há sinais do culpado?

- Nenhuns.

 

- Hum... Bom, calculo que tenha sido um assalto ao acaso. Ou alguém ouviu falar da herança dela e pensou que talvez tivesse ficado com alguma coisa de valor da nossa amiga Lucy.

 

- Não é o caso - respondeu Drew em tom neutro. Pelo menos, nada suficientemente pequeno para guardar no quarto.

 

Bryce acenou com a cabeça, como quem concede um ponto num subtil debate.

 

-Com a Lucy é impossível saber. Era uma pessoa cheia de surpresas.

 

-As pessoas são assim. E nem todas agradáveis. Deitou um olhar significativo para a mesa de Bryce e continuou: - Veja por exemplo o seu amigo juiz. Em pessoa, não parece o tipo encantador pintado pela imprensa.

 

- Pois é. Bom, ele está sob uma grande pressão de ordem pessoal - afirmou Bryce, com o seu sorriso de tubarão.

 

Drew levantou uma sobrancelha, com um ar bastante aborrecido, e Bryce estudou-o cuidadosamente durante uns momentos, tentando percebê-lo.

 

- Queria dar-lhe uma palavrinha sobre a Samantha continuou Drew, imperturbável.

 

- Sim? - A ideia parecia diverti-lo.

 

- Sim. Ela é muito nova, sabe? E não muito sofisticada em relação aos costumes de fora do montana - disse ele, esforçando-se por se manter calmo.

 

- É? Está a dizer-me que me afaste, Drew? - perguntou Bryce, abrindo as mãos e levantando as sobrancelhas, fingindo ignorância.

 

-Apenas a salientar que é uma rapariga inexperiente e casada.

 

-Ninguém diria, pela maneira como o marido a trata. -Estão com uns problemas...

 

- Ela merece melhor - interrompeu Bryce. - É uma rapariga esperta e encantadora. E eu estou apenas a deixá-la provar um bocadinho, divertir-se e sentir que lhe prestam atenção.

 

E à espera de lucrar alguma coisa com isso. Drew guardou a opinião para si próprio. Não valia a pena entrar numa espécie de competição. o homem era suficientemente importante para os prejudicar no negócio se quisesse, e a única coisa que conseguiria era alimentar-lhe o ego ainda mais.

 

- Só não quero vê-la sofrer - acrescentou Drew diplomaticamente, desviando o olhar para Samantha, que servia uma mesa de turistas da Florida, sorridente e escutando-os pensativamente enquanto lhe faziam perguntas sobre a história da estalagem. Bonita, meiga e tão inocente como as terras inexploradas. Pena ter tão pouca sorte com os homens. Pena os homens serem tão filhos da mãe. A ideia de a ver metida num confronto entre Bryce e os Raffertys cortava-lhe o coração. E saber que ela nunca confiaria nele devido às suas inclinações só lhe aumentava a tristeza e a sensação de impotência.

 

o olhar de Bryce desviou-se também para Samantha. Bela, exótica, inocente, fresca, pronta para saborear o que o mundo possuía para lhe oferecer. Era a juventude e a oportunidade. Com conselhos e vigilância, o seu potencial não tinha limites. A ideia era tão sedutora para ele como devia ser para ela.

 

- Não faço tenções de a magoar - murmurou, enquanto fazia e desfazia planos dentro da cabeça. - Arranje-me um uísque, se faz favor, Drew.

 

Levou a bebida para a mesa, onde Lucas brincava aos sedutores com Sharon e Townsend fumegava. Lucas estava fora da sua liga e não o sabia. Os olhos de Sharon brilhavam de divertimento. o juiz acabou a bebida, olhando para Bryce com ar petulante.

 

- Quanto tempo ainda é que vais fazer-me esperar? Bryce semicerrou os olhos e fez uma expressão contrariada.

 

-Diria que até te tornares demasiado chato, mas esse momento já não passa duma recordação distante!

 

- Conseguiste a gravação? - perguntou Townsend, ignorando o insulto.

 

- Não.

 

A cara do juiz cobriu-se dum fino véu de suor. Mesmo à luz da lareira, parecia anormalmente pálido, com a pele esticada sobre os ossos e uma expressão assustada, paranóica. Bryce esfregou o queixo e pensou que porção de cocaína usaria aquele figurão ultimamente. Demasiada, o idiota. Se alguma vez possuíra alguma coragem, ela tinha desaparecido, queimada por excessos que a sua fraca consciência não aguentava.

 

-Raios te partam, Bryce - rosnou ele, com a mão a tremer ao agarrar o copo vazio. - Nunca devias tê-la feito, em primeiro lugar!

 

Bryce colocou os cotovelos em cima da mesa e inclinou-se para a frente, percorrendo disfarçadamente a sala com o olhar para ver se alguém os observava, mas toda a gente parecia interessada em relatar a sua última peripécia relacionada com crimes ou em fazer nova surtida ao bar. Satisfeito, voltou-se para Townsend, com os lábios apertados e um olhar gelado.

 

-Faz parte do jogo, Excelência - disse baixinho. Sabe o que se diz: quem não tem competência... ou, neste caso, se és medroso, não sejas criminoso.

 

o corpo do juiz começou a tremer visivelmente e os olhos ficaram vermelhos. Bryce quase esperou ver uma criatura extraterrestre a saltar-lhe do peito.

 

- Se a gravação cai nas mãos erradas, estou acabado! - declarou ele num murmúrio rouco, como se estivesse a ser estrangulado por mãos invisíveis.

 

Bryce examinou as unhas, despreocupado. Nada na gravação podia ser relacionado com ele. Assegurava-se sempre disso. Era parte da sua supremacia, uma das chaves da sua força. Intimamente, considerava já o juiz uma baixa. Aliás, o homem estava a matar-se mil vezes por causa dum fantasma. Era um cobarde e os cobardes só podiam ser utilizados umas vezes, antes de nada sobejar deles.
- Devias ter pensado nisso antes de puxar o gatilho, meu amigo - disse Bryce, cruzando o olhar com Townsend.

 

- Tem a certeza de que não quer dormir lá na quinta?

- Eu fico bem - retorquiu Samantha.

 

Bryce estava ao volante do velho Camero dela, com o mesmo ar confortável com que se sentava no seu Mercedes, que seguia atrás com Sharon a conduzir. Desengatou o carro e ficou com a mão na alavanca, enquanto esperava que a luz mudasse no único semáforo de New Eden. Tinha umas mãos magras e com veias salientes. Na base do dedo médio, um anel de ônix com um brasão de oiro erguia-se como um pequeno monte e brilhava à luz do painel de instrumentos.

 

Rico. Era uma palavra que sabia a chocolate e a fazia pensar na sensação da seda contra a pele. Tirou a carteira do colo e colocou-a no chão, contando mentalmente as gorjetas. Se pusesse de lado algum desse dinheiro todos os dias, talvez pudesse comprar qualquer coisa bonita na Boutique Laço... daí a dois ou três meses.

 

- Diz que fica bem, não é? - disse ele, com um olhar cínico. - E eu? Vou manter-me acordado toda a noite, preocupado consigo.

 

Ela dirigiu-lhe um sorriso suave e sincero, com o coração confortado.

 

- Isso significa muito para mim. É agradável saber que alguém se preocupa.

 

Ainda seria mais agradável se esse alguém fosse o marido. Deitou um olhar às luzes do Inferninho.

 

-Claro que me preocupo, Samantha !- Meteu a mudança e tirou o pé do travão quando a luz mudou para verde. - Considero-a minha amiga. Quantas vezes é preciso dizer-lho para que você me acredite?

 

-Não sei - respondeu ela inocentemente. - É difícil para mim imaginar uma pessoa como você ser amiga duma pessoa como eu.

 

-Porque não havia eu de querer ser amigo duma jovem inteligente e linda?

 

- Sou empregada de mesa.

 

- Isso é o que você faz, não o que você é! Nunca confunda as duas coisas, Samantha. Essa maneira de pensar só pode limitá-la.

 

Voltaram para a Rua Jackson e ele parou o Camero diante da casa dela. o motor do carro resmungou um momento depois de ele desligar a ignição, como um estômago indisposto. Bryce não fez caso e voltou-se para olhar para ela. À pálida luz dos candeeiros da rua, a expressão dele parecia sincera. Estendeu a mão e passou levemente as pontas dos dedos na cara dela, prendendo-lhe uma madeixa de cabelo atrás da orelha.

 

- o céu devia ser o seu limite, Sam - proferiu ele baixinho. - Não deixe que alguma coisa na sua vida a faça ficar para trás.

 

o Mercedes parou atrás deles e a luz dos faróis deu a Samantha uma desculpa para desviar o olhar. Ele não compreendia a vida dela, não sabia donde ela vinha nem que espécie de obstáculos essa vida lhe criara. Era rico e poderoso. Era como um ser doutro mundo, um mundo a que ela não tinha acesso, um mundo que só podia observar e desejar nas suas fantasias mais frívolas.

 

- Uma vez, tive um emprego em que limpava gordura, lixo e baratas mortas num restaurante - disse ele. - Possuía um único par de sapatos e lavava a roupa interior no lavatório da casa de banho da pensão em que morava com drogados e,gente de passagem. Nem sempre se nasce rico, Samantha. As vezes, precisamos de ter coragem para dar um salto para a vida que desejamos.

 

Entregou-lhe a chave do carro e saiu, dando a volta para lhe abrir a porta. Samantha apeou-se, de cabeça baixa, fingindo arrumar a chave na carteira. As palavras dele rolavam-lhe na cabeça como berlindes, num conflito de sentimentos que vinham a acumular-se nos últimos dias solidão, insatisfação e desejo de mais qualquer coisa do que o que tinha. E que tinha ela, afinal? Um chaço velho, uma casa alugada que parecia desolada mesmo ao luar, um cachorro e um marido que não lhe ligava importância. Pensou na festa e nas pessoas importantes que tinham falado com ela. Na sensação de, mesmo sem pertencer ao meio, ter sido incluída em qualquer coisa de especial.

 

Bryce entrou em casa primeiro, para ver se havia algun intruso. Bastaram-lhe três minutos para revistar todo o espaço miserável e todos os armários. Samantha sentia-se corar de vergonha. Deixou a maior parte das luzes apagadas, para ele não ver a cor da cara dela nem o facto de tudo ser em segunda mão.
-Estas portas têm fechos? - perguntou ele, quando voltaram a sair.

 

Samantha assentiu com a cabeça, cruzando os braços para se defender do ar fresco e da chegada da solidão. o Maroto esfregou-se-lhe nas pernas como um gato, deixando-se depois cair no chão e começando a roer-lhe os atacadores.

 

-óptimo. Não se esqueça de os correr, nem que seja para eu dormir uma hora.

 

-Está bem. E obrigada por me trazer a casa.

 

- Tive muito prazer. Alguém devia tomar conta de si - disse ele, observando-a.

 

Que esse alguém devia ser o marido não precisava de ser dito. A censura era clara na voz de Bryce, e Samantha sentiu culpa por Will,perguntando então a si própria se ele a sentiria também. Se fosse atacada, como acontecera a Marilee Jenings, sentir-se-ia ele minimamente responsável por a ter abandonado?

 

- Telefone, se precisar de alguma coisa - salientou Bryce. - Mesmo que seja só por estar farta de brincar às valentonas.

 

- Obrigada. o senhor é um bom amigo - proferiu ela, lutando contra as lágrimas.

 

Ele anuiu com a cabeça e fez um resmungo de concordância, mas com o pensamento noutro sítio. Estava com ar de quem decidia se havia ou não de lhe contar uma coisa importante. Por fim, limitou-se a suspirar, inclinou-se para a frente e deu-lhe um beijo na cara, demorando uma mão no ombro dela e apertando-lho antes de recuar um passo.

 

- Boa noite, querida. Pense no que lhe disse.

 

o Maroto saltou da entrada e foi a correr atrás de Bryce até ao Mercedes. Samantha chamou-o, batendo com a mão na coxa, e o cachorro deu meia volta e uma corrida até à dona, que se sentou no cimo da escada. Com o cão no colo, fez-lhe festas na cabeça distraidamente, evitando a língua que queria lambê-la; inclinou a cabeça para trás e olhou Para as estrelas.

 

o céu devia ser o seu limite. Mas estava a um milhão de quilómetros de distância. Via-o mas nunca lhe tocava. TentOu imaginar como seria cortar todas as amarras que a prendiam àquele sítio na terra e subir até às estrelas. Como se sentiria livre. E especial. As únicas vezes em que se sentira especial tinham sido com Will,quando ainda acreditava que ele a amava, quando acreditava que podiam ter uma vida e uma famíliajuntos. Pequenos sonhos. Doces sonhos. Sonhos que agora pareciam tão distantes como os pontos de luz no céu. Sonhos destruidos que a prendiam a uma vida vazia.

 

Will estava sentado na carrinha a meio quarteirão da esquina da Terceira Avenida com a Rua Jackson, donde via perfeitamente a sua casa. E havia luz suficiente para distinguir Samantha sentada no cimo dos degraus da entrada, com o cão ao colo.

 

Já estava ali parado havia algum tempo. Tempo suficiente para despachar quase meia garrafa de uísque e umas cinco ou seis latas de cerveja. As latas estavam no chão e batiam umas nas outras de cada vez que ele mudava de posição. o barulho fazia-lhe lembrar os chocalhos nos touros durante os rodeos. Apropriado. Tinha pedido Sam em casamento no rodeo de Gardiner.. ou teria sido no de Big Sky? o pormenor perdia-se no nevoeiro que lhe toldava a mente.

 

Perfeitamente clara era a lembrança dela a olhar para ele depois do pedido, uma lembrança fiel como uma polaróide e dolorosamente viva. Parecia uma princesa, radiante à luz da fogueira, com os olhos escuros e exóticos arregalados e os lábios carnudos ligeiramente abertos de surpresa. o cabelo caía-lhe num ombro numa grossa trança de seda negra. Lembrava-se claramente da expressão dela: amor, excitação. Olhara para ele como uma criança pobre que encontra o Pai Natal. Como se ele fosse algum herói. Nunca se sentira tão importante na sua vida.

 

És mesmo umafraude, rapaz. E tinha-o sido sempre, um impostor, um vigarista. Príncipe Will,pretendente ao trono dos Raffertys. Herói de ninguém. Marido de ninguém. Compromissos não eram com ele. A sua especialidade era um encanto sem ssignificado. o homem sem substância. Estilo, astúcia e um bonito sorriso.

 

Tinha-se feito amar por ela, enganando-a. Casara com ela sem sombra de consciência. Magoara-a propositadamente dando-lhe desgostos uns atrás dos outros. Porque havia ela de o querer de volta? Qualquer mulher em seu pleno juízo mais depressa lhe arrancaria o coração com uma faca ferrugenta e o daria aos coiotes.

 

Ver Bryce dar-lhe um beijo quase lhe poupava o trabalho. Tinha-lhe sido infiel como um gato vadio, sem remorsos. Mas ver outro dar-lhe um beijo virara o feitiço contra o feiticeiro, espetando-lhe uma faca mesmo no meio do peito. o que é que esperavas, rapaz?

 

Pensava que ela ia esperar para sempre? Pensava que ia chorar por ele como o pai fizera com a traidora da mãe? o que é que ele pensava?

 

Que os problemas do casamento desapareciam e não tinha de tentar resolvê-los nem de aceitar a culpa e enfrentar as consequências.

 

Que rapaz inteligente e brilhante que tu és, Willie.

 

o Homem de Teflon, recusando as responsabilidades com um sorriso e um piscar de olhos.

 

Como é que te safas desta, espertalhão? Que faria o J. D. J. D., o herói. o homem dos homens. o homem de princípios. Fazer o que está certo. Fazer o mais difícil.

 

Que faria J. D. se apanhasse Evan Bryce a dar um beijo à mulher dele? Corria-o a pontapés por todo o montana. E estaria no seu direito, seria a sua obrigação segundo o código do Oeste. Não se rouba o cavalo doutro homem, não se dá pontapés no seu cão, não se toca na sua mulher.

 

Se Evan Bryce queria viver no montana, tinha de aprender umas lições.

 

Era agradável transferir a raiva. Aliás, isso era uma das coisas que fazia com a perfeição dum grande mágico. Sacudiu o peso da culpa e deitou-o para cima da cabeça de Bryce. Era tudo culpa dele. Estava a tentar roubar-lhe a mulher, estava a tentar roubar-lhe as terras. Tanto fazia se ele, Willie, afirmara não querer qualquer das duas coisas. De moMento, o que lhe interessava era um alvo para a raiva que não estivesse colocado no meio do seu peito.

 

Quando Samantha se levantou e entrou em casa, Willie ligou a ignição e acendeu os faróis. A carrinha rugiu e, com ela, a sua fúria, alimentada pelo uísque e pela cerveja.

 

Seguiu pelas ruas secundárias, evitando as artérias principais e os ajudantes do xerife que as patrulhavam. Ao voltar para a estrada no Motel Paraíso, acelerou e deixou a carrinha voar. Abriu as janelas e aumentou o som do rádio. Travis Tritt soletrou S-A-R-L-L-H-O a plenos pulmões e Will acompanhou-o aos gritos, aumentando a adrenalina e deixando-a correr à doida pelo cérebro.

 

A estrada era a direito durante uma boa distância, uma bênção para um homem cujo equilíbrio estava saturado de álcool. Concentrou-se em manter a carrinha entre as linhas brancas que marcavam as bermas do alcatrão, à procura das luzes traseiras dum Mercedes descapotável. A noite era um túnel negro em volta de si, a carrinha um foguetão a cortar o vazio, aos saltos no asfalto, até ele se sentir separado do corpo. Era um par de mãos num volante, um cérebro com olhos, aos pinotes no ar; era um par de botas no chão entre latas vazias, carregando no pedal para além do bom senso.

 

Apanhou o Mercedes tão depressa que passou por ele antes de travar. As rodas prenderam e a traseira da carrinha começou a derrapar. Will lutou por manter o controlo, com o cérebro incapaz de abranger todos os factos, de formular um plano e de o executar na ordem devida. A informação chegou demasiado depressa e as mensagens partiram da central cerebral com demasiada lentidão. o Mercedes ultrapassou-o a buzinar.

 

- Foda-se! - berrou Will. - Tu roubaste-me a minha mulher, meu filho da puta!

 

As luzes traseiras do Mercedes piscavam, trocistas, ao longe.

 

- Vou-te correr a pontapé até Hollywood, meu merdoso!

 

Com um grito rebelde para fora da janela, acelerou e começou a perseguição com um guincho de borracha queimada. A carrinha engoliu a distância e aproximou-se do carro quando a estrada começou a subir e a serpentear pelos montes, ziguezagueando dum lado ao outro do alcatrão, As latas de cerveja vazias rolavam junto aos pedais.

 

Will sentia-se como se estivesse a montar um cavalo demasiado bravio para ele. Com muitas dificuldades a agarrar-se com unhas e dentes. Tentou concentrar-se no carro, na ideia de atirar com Bryce para fora da estrada. Mas o Mercedes acelerou ainda mais e desapareceu, deixando-o num sarilho, sem esperança de outra coisa senão um desastre.

 

Entrou numa curva apertada com demasiada velocidade, virou o volante tarde de mais e depois compensou exageradamente. Então, ficou tudo a girar, como meias dentro dum secador de roupa, numa volta e outra e outra, E as latas de cerveja chocalharam no meio daquilo tudo como campainhas de alarme a tocar demasiado tarde para salvar alguém.

 

- Estás preocupado com o Townsend? - perguntou Sharon, servindo-se de uísque duma garrafa em cima do aparador mexicano e atravessando a espessa alcatifa descalça. Bryce estava à janela, a olhar lá para fora, com as mãos postas como numa oração. A única claridade na sala vinha dos focos acesos nas vitrinas de artefactos americanos nativos e das luzes dos quadros.

 

- Ele nada vale. Está acabado - disse Bryce com uma careta de repúdio.

 

- Pode tentar arrastar-nos com ele.

 

- Com quê? Mesmo que a gravação apareça, nada nos liga a ela, a não ser as acusações dum tipo desesperado cuja carreira vai desaparecer em chamas. - Abanou a cabeça e continuou: - Não, não estou preocupado com ele.

 

- E a tal?

 

-Se está com ideia de arranjar problemas, leva o seu tempo. Acho que já teria avançado, por esta altura. - Pegou no copo da prima e sorveu um golinho distraído de uísque, apertando os lábios enquanto ele lhe escorregava pela garganta como oiro líquido. Continuava voltado para a janela, mas a olhar para dentro, a ver todas as peças do quebra-cabeças sem conseguir encaixá-las. - Ela não é como a Lucy.

 

- Estás desapontado? - perguntou Sharon, com a voz cheia de ironia.

 

- Continuas com ciúmes? A Lucy morreu, querida afirmou ele, observando-a, com um sorriso ao canto dos lábios.

 

- Hurra! - disse ela, tírando-lhe o copo da mão e erguendo-o num brinde. Depois, bebeu o uísque dum trago.

 

-És tão má desportista! - queixou-se Bryce. - Eu queixo-me quando tu fodes outros homens?

 

- Só quando não vês bem o que se passa.

 

Bryce afastou-se dela, com pouca disposição para discutir. Tinha o cérebro ocupado a calcular, a seguir um novo trilho. A excitação era intoxicante. Formou-se-lhe no peito uma bolha de euforia que lhe dificultava a respiração.

 

-Continuo a pensar na Samantha - admitiu, com o seu sorriso à Redford, embora não havendo ali quem ficasse impressionado com ele. - o Drew tentou fazer com que eu me afaste dela, esta noite.

 

- Que estranho! - observou Sharon, com um olhar indignado.

 

Dirigiu-se para o aparador para voltar a encher o copo, mas parou com uma mão no gargalo da garrafa e a outra a fazer rodar a rolha.

 

- Tem tanto potencial e não se apercebe - continuou ele, espantado com tal inocência. Encantado. - Eu posso abrir-lhe portas que a conduzam ao topo do mundo.

 

A mão na garrafa crispou-se até Sharon sentir as arestas do cristal nos dedos.

 

- Ela é um meio para um fim - lembrou, não gostando do tom de voz dele.

 

Parecia encantado, quase obcecado, ideia que a pôs nervosa. o primo obcecado era uma pessoa imprevisível. E, francamente, começava a estar farta das suas crises por outras mulheres. Ela é que ficava com ele em todas as ocasiões, era a sua sócia. Tinham lutado juntos para sair da miséria e doía-lhe ver a sua lealdade e os seus sacrifícios ofuscados pelo brilho de paixonetas. Bryce desviava a atenção dela e Sharon via-se de repente despromovida para motorista, moço de recados, roda sobressalente.

 

Tinha de o distrair da fixação antes que as coisas fossem longe de mais, como acontecera com Lucy.

 

- Sim, ao princípio era, mas não estás a ver as possibilidades? - perguntou ele, com um gesto impaciente da mão. - Meu Deus, a cara dela pode aparecer em todas as revistas do país. E eu posso arranjar-lhe um contrato para o cinema...

 

- Tenho a certeza de que ela vai mesmo aceitar a oportunidade de lhe dirigires a carreira, depois de lhe teres arruinado o marido.

 

- Ele está a arruinar-se a si próprio. Assim que eu convencer a Samantha a afastar-se definitivamente dele e a ver bem o que ele é e o que tem para lhe oferecer comparado com a vida que pode ter comigo...

 

Sharon deu meia volta e atirou-lhe a garrafa de cristal. o míssil falhou a pontaria e explodiu de encontro à moldura da janela, cuspindo bebida e balas de cristal pelo vidro e para a alcatifa. Como tentativa para lhe chamar a atenção, funcionou brilhantemente. Bryce fixou-a de olhos arregalados, vendo-a atravessar a sala com passos furiosos e os olhos cerrados como estreitas fendas.

 

- Ela não passa duma miúda estúpida. É nada! - gritou, com a sua voz rouca e masculina. Parou perto dele, com o corpo rígido de fúria e as mãos apertadas aos lados do corpo. o lábio superior tremia-lhe de desprezo. - És tão idiota! Há aqui coisas tão importantes e tu a quereres fazer _de professor Higgins. A rapariga é um meio para um fim. Queres as terras do marido e podes consegui-las através dela. É esse o plano - prosseguiu ela, falando clara e pausadamente; sabia que ele tinha tendência para ouvir apenas o que queria quando começava a cair numa das suas preocupações. - Não precisas dela para outra coisa. Eu posso dar-te tudo aquilo de que precisas.

 

- Não podes dar-me a alegria de redescobrir o mundo. Não podes dar-me inocência. Nunca a tiveste - observou ele em tom cruel.

 

Aquela facada furou-lhe a ira e fê-la esvaziar-se. Sharon pareceu encolher-se diante dos seus olhos.

 

- Filho da mãe! Meu grande filho da mãe! Não vês que estou a tentar proteger-te? - disse ela com os lábios a tremer e os olhos cheios de lágrimas.

 

- Da Samantha? - perguntou ele com uma gargalhada. -De ti próprio.

 

-Não te preocupes, prima. Somos os dois iguais - retorquiu, estendendo a mão e tentando tocar-lhe na cara, sem fazer caso da preocupação dela. As suas prioridades estavam a desviar-se e já nada lhe interessava a não ser o novo objectivo.

 

Sharon desatou a chorar, com soluços que pareciam rasgar-lhe a garganta, o olhar preocupado e vidrado do primo assustava-a. Ainda zangada, meteu a cara na mão dele e mordeu-a com força, beijando a seguir as marcas dos dentes e lambendo-as com a ponta da língua.

 

- Eu faço qualquer coisa por ti e valho cem dessas raparigas estúpidas e ingénuas. E tu precisas de mim.

 

Bryce sorriu, distraído, e pegou-lhe na mão, entrelaçando os dedos nela.

 

- Somos sócios.

 

Contudo, ela via que ele tinha o espírito longe dali. Na rapariga, sem dúvida. Então, a obsessão já tinha começado. Uma vez mais. E ela nada podia fazer, a não ser esperar. o desespero punha-lhe um nó no peito. Aproximou-se e beijou-o, um beijo abertamente carnal, claro na sua mensagem. Continuava ali, disponível, desejosa de receber o que ele quisesse dar-lhe.

 

- Sócios para sempre - murmurou, dando um passo para trás. Levantou o queixo e disfarçou a mágoa com orgulho e uma expressão cínica. - Diverte-te com a tua princezinha índia. Dorme com ela, se tem de ser. Mas, se te apaixonas, arranco-te o coração.

 

- Adoro quando falas assim - afirmou Bryce com uma gargalhadinha.

 

- Tu adoras quando eu estou assim. Esta é a tua noite de sorte, primo! - Apreciava a ironia. Podia vingar-se das suas frustrações nele e ele gostava. Havia vantagens em amar um homem com uma mente retorcida. Lançou-lhe um sorriso feroz, pegou-lhe na mão e conduziu-o para a escada.

J.D. acordou às quatro, por hábito. Mary Lee estava encostada a ele como uma criaturazinha dos bosques, com o nariz enfiado entre o ombro e o pescoço. o seu braço rodeava-a duma maneira que parecia completamente natural e confortável. Se movesse a cabeça um centímetro, podia dar-lhe um beijo no cabelo. Já sabia que parecia seda artesanal e cheirava vagamente a coco e jasmim - tal como conhecia cada milímetro dela, os seus gostos e cheiros. Cada parte dela estava impressa no seu cérebro.

 

Nunca tinha pensado numa mulher como sua. Nunca quisera. Sempre se protegera ferozmente contra o risco. Como tinha aquela escapado a essa protecção, não o sabia. Devia ser imune a ela, quanto mais não fosse pela sua associação com Lucy, mas não conseguia olhá-la sem a desejar, não conseguia possuí-la sem querer mais.

 

A verdade assustava-o profundamente. o medo era como uma pedra fria no estômago. Nada podiam ter juntos, a não ser o que compartilhavam no calor da paixão. Toda a sua energia e toda a sua atenção deviam ser dedicadas à propriedade naquele momento. Precisava de proteger as terras, de preservar o Rancho dos Confederados e o estilo de vida que lhe fora confiado. Não podia permitir-se uma distracção como Mary Lee e, certo como o diabo, não podia permitir-se uma distracção cuja melhor amiga talvez tivesse sido morta pelo seu próprio tio.

 

J.D. olhou fixamente para o tecto, tentando afastar esse pensamento. À fria luz da manhã, quando era fácil raciocinar, era capaz de dizer a si próprio que o único papel de Del no drama tinha sido encontrar o corpo, que o tipo da cidade, Sheffield, a matara acidentalmente. De noite, quando o mundo era só escuridão e sombras, não conseguia deixar de pensar em todas as maluqueiras que o tio dissera.

 

Del era responsabilidade sua. o rancho era responsabilidade sua. Impedir Bryce de comprar toda a região dos Absarokas era responsabilidade sua. o diabo da sua vida era uma responsabilidade pegada, e o peso dela começava a pesar-lhe no peito.

 

Sentiu uma dor entre os olhos. Levantou o braço dos ombros de Mary Lee e viu o relógio à luz do candeeiro da mesa-de-cabeceira, que não tinham chegado a apagar. Eram horas. Mais do que horas. Nunca tinha passado uma noite com Lucy, nunca quisera. Mas Mary Lee não era Lucy. Era meiga e honesta, engraçada e leal. Ouvia o som da voz dela, grave e baixa, a cantar sobre aquelas terras, a pintar um quadro incrivelmente nítido, pegando numa mão-cheia de palavras e provocando dentro dele uma emoção profunda e sem nome.

 

Olhou para o cimo da cabeça dela, para a mãozinha fechada junto do seu peito, e um leve tremor percorreu-lhe o corpo como o início dum sismo.

 

As pestanas dela abriram-se e ela olhou para ele com os seus grandes olhos profundos.

 

- Aconteceu alguma coisa? - perguntou ela, numa voz velada.

 

-Tenho de me levantar. -No meio da noite?

 

- Já passa das quatro. - Afastou-se dela e sentou-se, passando as pernas para fora da cama e deitando a mão às cuecas. - Se não me despacho, estou a perder a luz do dia. Há muito que fazer.

 

Mari sentou-se também e espreguiçou-se, puxando depois a colcha para cima. Doía-lhe a cabeça. Ele ir-se embora doía-lhe ainda mais. Isso é mau, Marilee. Alisou o cabelo para trás das orelhas e franziu a testa.

 

- Queres café antes de saíres?

 

  1. D. enfiou as calças de ganga, abotoou-as e puxou o fecho para cima.

 

- Dorme mais um bocado. Não dormiste grande coisa esta noite.

 

-Nem tu.

 

Ela saiu da cama e começou a procurar a roupa. A cabeça latejava-lhe como um coração quando se curvou para apanhar o roupão verde que já tinha vestido uma vez, e pensou por um momento em ficar deitada mais umas oito ou nove horas, mas a sua teimosia venceu. Se Rafferty se levantava, ela levantava-se também, com os diabos.

 

Deitou-lhe um olhar, enquanto ele vestia a camisa.

 

- o que é que pensas que eu sou? Alguma menina da cidade?

 

É. É, pois... - resmungou ela, avançando para ele, de punhos nas ancas. - Sei montar um macho, já fui a uma espelunca e ainda não perdi um nascer do Sol numa semana. o que é que isso faz de mim?

 

- Uma menina da cidade a passar férias no montana.

- Credo, ainda te levam a um desses programas da televisão! - exclamou ela, levantando a mão para as molas da camisa dele.

 

- As pessoas são o que são, Mary Lee - disse ele, não parecendo divertido.

 

As mãos dela ficaram imóveis e Mari olhou fixamente para uma das molas. As pessoas são o que são. Ela era uma inadaptada. Fora-o toda a vida, uma nómada social à procura dum sítio onde pudesse encaixar-se sem comprometer a alma. Tinha pensado que podia ser ali. Mas ele dizia-lhe que seria sempre uma forasteira no montana. Ou estaria a referir-se ao coração? Seja como for. tu perdes, Marilee.

 

- Tu não me conheces, Rafferty - murmurou. - Estás demasiado ocupado a colar-me rótulos para veres quem eu sou.

 

Um músculo endureceu-lhe o maxilar, mas ele ficou calado.

 

- Vou fazer o tal café - disse ela baixinho, com a cara voltada para ele não lhe ver os olhos. - É instantâneo. Espero que não sejas esquisito.

 

- Desde que seja preto e quente... - disse ele, descendo a escada atrás dela e sentindo-se mais culpado a cada passo. Tentou livrar-se daquele sentimento, aborrecido com a intromissão e com a insinuação de que o seu julgamento não era infalível. Mais uma razão para se pôr a andar dali, pensou. Mas foi atrás dela para a cozinha, em vez de se dirigir à porta.

 

- É a minha especialidade, água suja a ferver. As outras estenógrafas costumavam encomendar-me cafeteiras cheias quando tinham de   trabalhar toda a noite.

 

- É um bom emprego, não é... estenógrafa judicial? -Claro, para    quem for rico e masoquista.

 

Pôs a água ao lume e tirou duas canecas do armário. Uma era azul com coelhos dos desenhos animados em posições sexuais e a   outra castanha com cães de desenhos animados no mesmo estilo. Lucy... sempre uma gaja com estilo.

 

- Não estou a ser justa. É um excelente emprego para as pessoas certas, mas eu não era a pessoa certa - declarou ela, suspirando e sentindo-se culpada, mas com um grande sorriso falso de desfile de rainhas de beleza.

 

  1. D. encostou-se à bancada e olhou para ela com os olhos semicerrados.

 

O que é que pensas fazer, agora que desististe?

 

- Bom, a minha mãe calcula que vou arranjar emprego num bar manhoso e acabo na rua a vender o corpo por uns trocados... Mas eu sou um bocadinho mais optimista.

 

Ele não se riu, nem sequer pigarreou. Limitou-se a esperar por uma resposta séria. Mari revirou os olhos, enquanto enchia as canecas e dissolvia o café.

 

- Calculo que estivesses fora no dia em que distribuíram o sentido de humor.

 

- A trabalhar - respondeu ele, com os cantos da boca levantados.

 

- Já devia calcular - retorquiu ela, entregando-lhe uma caneca e soprando o líquido na dela antes de se atrever a prová-lo. Sabia a óleo de máquina fervido e passado por peúgas sujas. Maravilhoso. Só lhe faltava um cigarro, um prazo impossível e um advogado a precisar urgentemente de líquido para bochechar e espreitar-lhe por cima do ombro e estava em casa. Estremeceu com a ideia.

 

- Não sei o que vou fazer agora - confessou, encostando-se também ao balcão. - Era uma das coisas em que devia pensar durante as minhas divertidas férias no Jardim do Éden.

 

Suspirou, deu um golinho no café e ficou a olhar para a fivela do cinto de J. D. - prateada, oval, debruada com uma corda cor de bronze e uma figura de vaqueiro no centro. Por cima da figura, leu: CAMPEÃO 1978. Devia ter dezasseis ou dezassete anos na altura. Pensou como seria em adolescente, em criança, mas não conseguia imaginá-lo senão duro como ferro. A ideia daqueles sombrios olhos cinzentos e da boca sem um sorriso num rapazinho fê-la sofrer. Pensou nele a perder a mãe com um cancro, o pai de desgosto e depois ir para outra mulher. Queria abraçá-lo e ficar assim um bocado. Era idiota.

 

-Não preciso de me decidir amanhã - continuou, mais para não pensar naquilo do que para fazer conversa. Tenho o suficiente para viver com a venda do meu equipamento. Meu Deus, e com o que a Lucy me deixou tenho que me chegue para viver até me caírem os dentes. - Fez uma pausa, chocada com a ideia. - Suponho que a maior parte das pessoas ficava encantada com a perspectiva. Mas eu sinto-me... não sei... suja.

 

- Sentes-te suja porque ela te deixou terras e dinheiro?

- perguntou J. D., erguendo uma sobrancelha. - A Lucy não se teria sentido culpada. Teria agarrado tudo a que pudesse deitar as garras e fugido a rir.

 

- Nós éramos colegas, não éramos parentes. o que é que eu fiz para merecer isto tudo? - perguntou Mari, com um gesto que abrangia a casa e a quinta. Franziu as sobrancelhas escuras e mordeu o lábio, deitando-lhe um olhar perturbado. - Mas o que me incomoda é pensar no que terá ela feito para o merecer.

 

-Deves saber mais do que eu. Ela era tua amiga disse J. D., encolhendo os ombros e bebendo mais um gole de ácido de bateria.

 

-Não fazes a mais pequena ideia se estava metida em alguma coisa?

 

- Em sarilhos, calculo. Era do género de gostar de espicaçar cascavéis só para se divertir.

 

- É, pois... e receio que uma delas possa tê-la morto disse Mari de testa franzida.

 

- Credo, Mary Lee, quando é que desistes? Foi um acidente. Acontece! - exclamou ele, poisando a caneca no balcão com força.

 

-E, por coincidência, assaltaram-lhe a casa, depois o escritório do advogado dela e depois o meu quarto na estalagem! - Abanou a cabeça, prendendo uma madeixa de cabelo atrás da orelha, num gesto de impaciência. - Não acredito. Acho que se passa alguma coisa e, se conseguisse encontrar mais uma ou duas peças do quebra-cabeças, descobria o que é. Não acredito que a Lucy tenha ido passear a cavalo lá em cima só por ir. Acho que foi lá por um motivo e que alguém a matou por esse motivo.

 

-   Que diferença faz isso agora? - perguntou ele bruscamente. - Morta é morta.

 

-Não posso acreditar que tenhas dito uma coisa dessas, tu, o rei dos códigos de honra, o príncipe da integridade! Que diferença faz? - troçou, gesticulando com as mãos e fazendo abanar as mangas demasiado compridas do roupão dum lado para o outro. - Há uma porra duma grande diferença entre um pequeno delito de colocar alguém em perigo por negligência e um grave delito de assassínio. Como é que podes aprovar que se deixe um tipo safar-se com uma multa, quando se pôs fim intencional à vida duma mulher?

 

  1. D. apertou o maxilar e desviou o olhar dela, com o café e a vergonha a darem-lhe volta ao estômago. Não podia deixar passar um assassínio. Só desejava poder esquecer que Lucy MacAdam alguma vez existira e mais ainda que lhe tinham acabado com essa existência. Desejava que ela nunca tivesse ido para ali, que nunca tivesse comprado as terras junto ao seu pequeno mundo, que os amigos dela não tivessem aparecido... incluindo Mary Lee. Por Cristo, especialmente Mary Lee. Ela perturbava-o, espicaçava-lhe a consciência e punha-o em frangalhos. Para que diabo precisava ele daquilo tudo?

 

-Tenho que fazer - resmungou, dirigindo-se para a porta.

 

Mari estendeu o braço para não o deixar fugir da cozinha, olhando para ele e sentindo-se doente por dentro... zangada e assustada em relação ao coração e envergonhada desse medo.

 

-Ela significava realmente tão pouco para ti que nem sequer te importas se o assassino é castigado ou não? perguntou baixinho e com esforço. E se ela signficava tão pouco para ele, o que é que achas que significas tu, Marilee?

 

  1. D. pensou no tio, que falara de Sheffield. Olhou para a lata de Mr. Peanut em cima da prateleira da chaminé do outro lado da sala, a rir-se para ele,

 

- Já foi castigado, Mary Lee. Deixa as coisas como estão e continua a tua vida.

 

- É. Pois. Claro - murmurou ela amargamente. Que importância tem um companheiro de sexo, quando vem outra para ocupar o lugar?

 

Ele baixou os olhos para ela, com um aperto no peito perante toda aquela raiva e aquele orgulho. Viu as lágrimas nos olhos dela, tornando-os maiores, semelhantes a enormes pedras preciosas líquidas, o queixo espetado, a desafiá-lo.

 

Não precisava dela. Não a queria ali. Não precisava dos sentimentos que o afligiam e o faziam sentir-se como um cavalo selvagem aprisionado.

 

-Foste tu que o disseste, não eu - resmungou. Mari ficou imóvel na cozinha. Ouviu vagamente a porta da frente a bater, a carrinha a trabalhar e a sair do pátio em direcção à subida. Pensou vagamente no facto de não a ter ouvido chegar na noite anterior. Demasiado imersa na música, supunha. Talvez tivesse conseguido proteger-se dele, se o tivesse pressentido. E daí, talvez não.

 

Fosse como fosse, aqueles pensamentos pouco lhe aliviavam o sofrimento. Tinha a atenção voltada para dentro, para o terrível nó de emoções dentro do peito, emaranhado e doloroso, um novelo de terminais nervosos, que dispensava. Como também dispensava a morte violenta de Lucy. Não queria a propriedade, nem a fortuna que a amarrava à morte dela. Não queria problemas. Não queria sofrimento. E sobretudo não queria estar a apaixonar-se por um homem tão duro e intransigente como J. D. Rafferty.

 

A apaixonar-se. Parecia impossível, uma piada de mau gosto, um sonho bizarro. Ele era arrogante, tinha mau génio e mostrava-se duro ao ponto de ser cruel. o que é que havia Para amar?

 

A vulnerabilidade naqueles cansados olhos cinzentos quando olhava para as terras que pertenciam à família havia cem anos, terras que estavam a ser-lhe tiradas pedaço a pedaço. A suavidade das suas enormes mãos calejadas quando lhe tocava. A feroz ternura com que fazia amor. A lealdade para com um tio que a maioria das pessoas teria despachado para longe da vista e do pensamento. A determinação em suportar o peso do mundo nos ombros largos, sem uma palavra para se queixar.

 

Era um homem complexo, não um vaqueiro de papelão. Era todo ângulos agudos e saliências rijas a proteger um interior que a maior parte das pessoas nunca tentaria encontrar. Não era apenas orgulho e bravata. Era um homem cujo estilo de vida estava a ser ameaçado. Era um homem habituado a controlar o seu próprio destino, e agora esse controlo estava a ser-lhe arrancado por estranhos. Era um homem que fora criado para não mostrar fraqueza, mas ela sabia que estava com medo... pelo seu lar e pelo seu sustento. E pelo coração?

 

Era perigoso esperar que sim. Perigoso e imprudente. Não tinha ido para ali à procura de amor, apenas de aceitação. Não queria amar um homem que fazia do amor uma tarefa e um desafio. Cada passo seria uma luta, e ela estava tão cansada de lutar... Lutar contra os pais, contra a sua própria natureza, lutar para ter um lugar onde não cabia. Já não queria lutar mais. Queria que a vida fosse simples e cheia de sol.

 

No entanto, a vida não era nenhuma daquelas coisas. A vida era tão complexa como J. D. Rafferty, cheia de sombras e obstáculos, e ela não podia recostar-se e deixá-la passar. Viera para o Montana como um primeiro passo no reconhecimento de si própria. E parte desse reconhecimento era ele. Parte desse reconhecimento era a lealdade para com os amigos, Uma amiga sua tinha morrido e, se não descobrisse por que motivo, ninguém descobria. Ninguém mais se importava.

 

A raiva voltou, ao pensar na atitude de J. D. Nunca escondera o que sentira por Lucy, mas não esperava que se mostrasse tão duro. Queria fingir que uma mulher con quem tinha mantido uma relação íntima nunca existira, enterrar a recordação dela e ignorar as circunstâncias da sua morte.

 

Por ser frio e insensível? Ou porque não queria que se soubesse o que tinha realmente acontecido?

 

o tio. Estaria J. D. a proteger o tio? Seria possível ele ter disparado sobre Lucy a sangue-frio? E saberia o que estava a fazer? o mundo dele era povoado de fantasmas, os dias pesadelos, e agarrava-se ao limiar da sanidade com as pontas dos dedos calejados.

 

Com a cabeça a latejar, Mari foi até à porta da varanda. Abriu-a e encostou-se à ombreira, olhando para o vale, com a primeira claridade do dia a pintar o céu de rosa. o nevoeiro cobria a terra baixa com finas tiras translúcidas que passavam por entre os troncos escuros das árvores. Parecia uma fotografia a sépia, meio apagada, como uma recordação. o ar fresco trouxe-lhe o aroma de pinheiro e cedro e da erva húmida. Lá em baixo, junto ao riacho, um alce levantou a cabeça e o seu chamamento subiu a colina.

 

As lágrimas brotaram dos cantos dos olhos de Mari e caíram-lhe pela cara. Gostava tanto de tudo aquilo. Porque não podia ser apenas o refúgio de que precisava?

 

- Porque é que tem de ser tudo tão difícil? - perguntou em voz alta, numa mistura de sofrimento e confusão. Mas ninguém lhe respondeu. Nem Deus, nem uma sabedoria interior. o vale ficou silencioso. o alce afastou-se. Estava sozinha.

Viu a guitarra junto à porta, no canto onde acabavam os armários da cozinha. Pegou-lhe, como uma criança que pega na fralda com que dorme, e abraçou-a com força, saindo para a varanda.

 

- Somos nós as duas, velha amiga - segredou, acariciando as cordas.

 

Trepou para a mesa e sentou-se de pernas cruzadas, sem se importar com o orvalho que cobria o vidro, com o roupão grande de mais a cobri-la como um cobertor. Fechou os olhos, aproximou a cabeça do instrumento e começou a tocar. A música era dolorosamente suave e terna, cheia de saudade e desejo. Não fazia perguntas, não dava opiniões. Era Simplesmente sentimento, nu e doloroso. Tudo o que o seu Coração sentia, todas as mágoas da sua alma. Quando acabou, continuou sentada, no silêncio e na dor.

 

-Isso foi muito lindo, Mary Lee!

 

Acordando da meditação com um salto, deu meia volta, com os olhos muito abertos. Encostado à esquina da casa, encontrava-se Will. Amparado a ela seria um termo mais correcto. Tinha a camisa rota, sangue na cara, o olho direito a começar a ficar negro e um corte na testa. Tentava fazer um sorriso, mas gemeu a meio.

 

- Ai, meu Deus! - exclamou Mari, descendo apressadamente da mesa. - o que é que aconteceu?

 

- Tive um pequeno acidente - respondeu ele, fazendo uma careta ao afastar-se da parede.

 

Não acrescentou que tinha sorte em estar vivo. De momento, não se sentia com sorte. Sentia-se como se todos os avançados duma equipa de basebol o tivessem atacado ao mesmo tempo. Doía-lhe a cabeça e as costelas,       tinha um joelho torcido e a velha lesão do ombro dera de si. Uma boa pancada com toda a força num tronco de árvore         resolvera esse último problema, mas ainda lhe doía     como o raio.

 

- Um pequeno acidente? - exclamou Mari,           observando-o ansiosamente da cabeça aos pés. - Parece que apanhou com um camião!

 

- Foi uma carrinha Ford - disse ele, passando a língua pelos três dentes falhados. - Parece pior do que é. Felizmente que tenho nove vidas.

 

- Pois a mim, parece-me que já gastou uma. o que é que está a fazer aqui? Você devia estar no hospital.

 

- Bom... - começou a suspirar, mas teve de desistir, tal foi a dor. - Acha que posso sentar-me enquanto explico o que aconteceu? Andei mais de um quilómetro para chegar cá.

 

-Meu Deus! Sente-se no meu carro e eu levo-o ao hospital.

 

- Não, hospital, não. Já me dói o suficiente. Acredite em mim, Mary Lee, se eu não morri durante a noite, já não morro desta. Hospital, não. Só preciso duma boleia para casa, se quiser ser tão amável.

 

Revirando os olhos e resmungando qualquer coisa muito pouco lisonjeira sobre vaqueiros, conduziu-o para dentro de casa e ajudou-o a sentar-se junto da mesa da sala. Will apercebeu-se de que se afastava para ir buscar material de primeiros socorros por entre um nevoeiro de dor. voltou com uma toalha e uma esponja, uma tigela de água morna com sabão, um frasco de álcool e uma caixa de pensos rápidos. Começou a lavar-lhe os ferimentos da cara, de testa franzida.

 

- Vomite lá, Rafferty! - disse ela, mas depois franziu também o nariz. - Meu Deus, pelo cheiro, provavelmente já vomitou.

 

- A cerveja tem esse efeito, quando as carrinhas rebolam.

- Se alguém acendesse um fósforo, podíamos iluminar a casa consigo. Que diabo se passa com você, a conduzir bêbedo? Quer morrer ou queria só matar e estropiar umas quantas vítimas inocentes?

 

- Não preciso de sermões, Mary Lee - resmungou ele. Ai! Bolas, que isso dói!

 

-Esteja quieto e pare de choramingar. Se não tivesse apanhado já tanto, quem lhe batia era eu.

 

-Não se incomode, que o J. D. vai tratar disso. Gesticulou e fez um sorriso. - Vejam o espantoso Will Rafferty a fazer merda mais uma vez! Ele encanta! Ele intriga! Ele apanha porrada e continua a funcionar!

 

- Não consigo ver que graça tem quase morrer num desastre.

 

- É subtil. Mais um género de ironia, na realidade. Feche o roupão, Mary Lee. Estou a ter um belo espectáculo de graça. Não que me importe, mas de momento não estou em condições.

 

Mari recuou, furiosa, e atou melhor o cinto em volta da cintura.

 

- Se não está em perigo iminente de morte, acho que posso ir vestir qualquer coisa. Faça um café, se for capaz de andar. Já venho.

 

- Tem aspirina? - perguntou ele, quando ela começou a subir a escada.

 

- No meu saco.

 

Will puxou o saco por cima da mesa e procurou por entre uma incrível tralha, até encontrar uma caixinha de aspirina e outra de Tylenol, com codcína. Tornou a guardar a aspirina e tomou dois comprimidos dos outros com meia lata de Pepsi que tirou do frigorífico. Ao voltar para junto da mesa, viu a sua imagem num espelho rachado numa moldura de ramos secos.

 

- Ena, estás uma maravilha, rapaz! - resmungou, franZindo a testa perante o olho negro e o corte com mau aspecto na testa.

 

É claro que podia estar morto. Como acontecera com a carrinha. Todo aquele belo metal brilhante, amarrotado e destruido. Era de partir o coração. Lembrava-se de ter chorado na altura em que deu consigo semiconsciente no meio dos destroços. Mas o que recordava melhor era ter pensado na mulher e no simbolismo dos destroços. Lembrava-se de imaginar se ela alguma vez saberia que ele morrera ao tentar bater no carro do homem que estava a afastá-la dele. Naquele momento, perguntava a si próprio daí a quanto tempo descobriria ela que o prémio do seguro tornara a aumentar.

 

Quando se divorciasse dele, já não tinha de ajudar a pagá-lo.

 

Ex-mulher, ex-mulher, ex-mulher.

 

Com um gemido, deixou-se cair na cadeira e pôs os cotovelos nos joelhos, com as mãos penduradas entre as pernas. Mari desceu a escada com umas calças de ganga justas e uma enorme camisola cor de alfazema com o emblema do Alce Alegórico em branco no peito. Se tinha passado um pente pelo cabelo, não se notava.

 

- Olhe, Will,desculpe ter falado assim consigo - disse ela com um misto de arrependimento e resignação. -- Tenho a certeza de que se sente suficientemente mal. Mas eu gosto de si e detesto ver pessoas de quem gosto a fazer coisas que podem matá-las. Acabo de perder uma amiga, e não quero perder outro.

 

- Não faz mal. - E ficou a olhar para ela, à procura de qualquer coisa num saco de mercearia. Apareceu com uma caixa de rosquinhas fritas e um pacote de guardanapos de papel. - Ninguém melhor do que eu sabe como isto foi uma estupidez. É claro que o J. D. vai dizer que sabe melhor, e depois não se cala até eu desejar que a carrinha tivesse explodido comigo lá dentro.

 

Parecia tão sombrio que Mari chegou a sentir alguma pena dele. E compreensão. Podia não ter sido tão autodestruidora, mas soubera sempre como obter a desaprovação da família. Abriu uma Pepsi para si e sentou-se à mesa junto dele, colocando a caixa de rosquinhas entre os dois.

 

Will pegou numa rosquinha de canela e fez-lhe uma saúde com a lata de Pepsi.

 

-Pequeno-almoço de campeões!

 

-Contendo as porções diárias recomendadas de aditivos químicos e conservantes. - Escolheu uma polvilhada de açúcar e deu-lhe uma dentada, provocando um mininevão em cima do guardanapo. - Mas você devia mesmo ser visto por um médico.

 

- Já me aconteceu pior por cair da cama - disse ele, fazendo uma careta.

 

- Deve ser muito divertido sair consigo.

 

- Quer descobrir como é? - perguntou, tentando agitar as sobrancelhas, mas a codeína começava a fazer efeito. As dores tornaram-se de repente suportáveis e o entorpecimento agradável. Soltou uma gargalhadinha quando Mary Lee lhe deitou um olhar reprovador. - Ah, pois é. Você anda com o chefe. Então, é sério? Vou ter de a tratar por mana?

 

- Não.

 

Mari pareceu inesperadamente interessada em apanhar migalhas da mesa, mas qualquer coisa na tensão em redor da boca dela fez soar uma campainha avisadora. Tinha os olhos vermelhos quando se voltara para ele pela primeira vez na varanda, como se tivesse estado a chorar. Boa, J. D., tão gentil com as damas! Pobre Mary Lee...

 

- Saiu-lhe um difícil, querida - disse ele baixinho, sem pensar que ela talvez não entendesse a linguagem dos rodeos, o dialecto do vaqueiro. - Ele casou com o trabalho, sabe? Com a terra. Acho que pensou que era mais seguro. Calculou que a terra nunca lhe fugiria. É claro que depois descobrimos que a terra não passa duma bela prostituta que vai para quem dá mais. E isso é como levar um rico pontapé no cu!

 

- Você importa-se?

 

-Não tanto como ele. o rancho é uma data de coisas para o J. D.: mãe, amante, dever. Para mim, foi uma coisa que prendeu a minha mãe num casamento que ela não queria. E nunca apreciei muito o dever.

 

- Mas continua cá. Porquê?

 

Porquê? Era uma pergunta que fazia regularmente a si próprio. Porque não se ia embora? Porque não cortava os laÇos e se libertava? Mas nunca encontrava uma resposta. Nunca queria cavar suficientemente fundo para a encontrar. Tinha demasiado medo do que podia descobrir. Que cobardolas, Willie!

 

Não lhe respondeu, e Mari não insistiu. Ela, mais do que alguém, respeitava a confusão que rodeava o coração humano. Porque teria ido estudar, em vez de tentar a sorte como autora de letras de canções” Porque teria ficado num emprego que detestava? Porque teria tentado impingir-se a Brad Enright, quando na realidade não o amava?

 

Porque não podia a vida ser simples e cheia de sol? Suspirou e sacudiu o açúcar das mãos.

 

Você precisa de pontos nesse golpe. Venha lá, vaqueiro - disse ela, levantando-se. - Vou levá-lo ao médico.

MacDonald Townsend andava dum lado para outro junto à janela panorâmica do escritório. A vista da beleza selvagem do montana, que incluía uma fatia espectacular do pico do Irlandês coberto de neve, custara-lhe uma considerável quantia de dinheiro. Nessa manhã, nem uma olhadela lhe deitou. Já não lhe interessava a paisagem, como não lhe interessava grande coisa na sua «cabana» de refúgio, seiscentos metros quadrados de toros de pinheiro, janelas térmicas e lareiras de pedra. Do outro lado da porta do escritório, Bruno, o seu pastor-alemão, gania e arranhava a madeira, mas, Townsend não o ouvia.

 

A sua vida estava a dar para o torto. Era tão simples coMo isso. Parou junto da pesada secretária antiga de carvalho para acender um cigarro, mas as mãos tremiam-lhe tanto que não foi capaz e desistiu, demasiado enervado para tentar de novo. Tinha cocaína na gaveta de cima do lado direito da secretária, mas lutou contra a necessidade, desesperado por se libertar dela. Tinha a cara coberta de suor e o nariz a pingar. Tirou do bolso um lenço húmido, todo amarrotado, e passou-o pelo lábio superior, retomando o passeio.

 

o coração batia-lhe como o dum coelho, o que parecia acontecer cada vez com mais frequência ultimamente. Não sabia se era da cocaína, da tensão ou de ambas. Pareciam alimentar-se uma à outra, num círculo vicioso que o levava inexoravelmente para um ponto donde não havia regresso.

 

Parou e olhou pela janela, sem ver coisa alguma. Como tinha chegado àquilo? Tivera o mundo ao seu alcance, a carreira perfeitamente no degrau que o conduziria ao Supremo Tribunal, era respeitado e admirado, tinha uma mulher que era respeitada e admirada. Não havia uma partícula de poeira na sua reputação.

 

Então, conhecera Lucy MacAdam. Para ele, o início do seu declínio para o inferno em que estava a viver datava da noite em que se tinham conhecido, como se o aparecimento dela fosse um portento enviado do inferno. Como se ela fosse parente do diabo enviado para o destruir conduzíndo-o pelos caminhos da degradação.

 

Ainda se lembrava do primeiro encontro como se tivesse acontecido na noite anterior. Tinha-a visto do outro lado da sala na elegante casa de Ben Lucas. o olhar dela atingira-o como um raio laser, Depois, o seu sorriso característico levantou-lhe os cantos da boca, cínico e convencido, como se tivesse plena consciência do seu poder maléfico sobre os homens e se deliciasse com ele. Sentira a pele esticada da cabeça para baixo, numa sensação puramente sexual. Na altura, o cabelo dela era platinado e cortado à altura do queixo, parecendo ter sido despenteado pelas mãos dum amante. Trazia um vestido simples com um brilho doirado que lhe desenhava a silhueta como uma luva e acabava no princípio das coxas. Por baixo, nada, facto que ele descobrira mais tarde nessa mesma noite, quando ela o puxou pela gravata para uma casa de banho pouco utilizada.

 

Na altura, era, se não casado e feliz, pelo menos casado e satisfeito. Irene, sua mulher de trinta anos, perdera o interesse pelo sexo, dedicando todo o tempo e energia a causas beneficentes. Lembrava-se de pensar que era um alívio, menos uma obrigação a distraí-lo dos seus planos de carreira. Seguia confortavelmente o caminho que havia de levá-lo ao Supremo Tribunal e daí mais para cima ainda.

 

Tudo mudou num instante. Assombrado, olhava para trás, para a facilidade com que se deixara tentar e para as profundezas onde a tentação o fizera cair tão rapidamente-

 

Loucura, era o que era, loucura que o contagiara e o consumia como um cancro. Primeiro, Lucy, depois a cocaína, as festas, as surtidas ao mundo de Evan Bryce e das pessoas que o procuravam. Ao princípio, sentíra-se ’ consigo próprio, lisonjeado, julgando poder controlar tUdO, manter os vícios recém-descobertos separados da sua imagem pública. Mas a tarefa começara a tornar-se cada vez mais díficil, até se sentir como quem faz jogos de mãos com de boliche e se equilibra com um pé numa cabeça de elefante. o controlo fora-se escapando pouco a pouco, e a sua vida descia numa espiral como um avião com motores a arder. Quase ouvia o vento nos ouvidos. A necessidade de cocaína estava descontrolada. Entre ela e a chantagem, o dinheiro começava a desaparecer a uma velocidade alarmante. A mulher pedira o divórcio. Só sabia o que ia acontecer quando o advogado dela começasse a exigir dinheiro e propriedades havia muito desaparecidos para financiar a sua vida secreta. Bryce tinha-o dominado e existia algures uma gravação muito comprometedora que poria termo à sua carreira pelo menos, se caísse em mãos erradas.

 

Tenho de apanhar a gravação -- murmurou.

 

A cabeça latejava-lhe de tal maneira que estava surdo e o tremor das mãos alastrara para os braços e corpo. Sentia-se prestes a explodir e o pânico sufocava-o. À beira das lágrimas, atirou-se para a cadeira de cabedal da secretária e levou a mão ao puxador da gaveta, apertando-o até ficar com os nós dos dedos brancos.

 

Tinha de parar. Tinha mesmo, ou a loucura nunca mais acabava. Durante a noite, prometera a si próprio que pararia. Prolongaria as férias numa licença de seis meses e voltaria ao bom caminho. Iria para outro estado, onde ninguém o conhecesse, e daria entrada numa clínica. Havia um sítio no Minesota de que tinha ouvido falar. Podia ir para lá e, quando voltasse, seria um homem novo, como antigamente, no caminho certo.

O plano dera-lhe uma espécie de euforia, não muito diferente da que conseguia com as drogas. Por um momento, viu o futuro através duma luz branca, como uma coisa dentro duma bolha de sabão. Deixava as drogas, dominava a indecisão, afastava-se das pessoas que o tinham arrastado para a lama. Então, o telefone diante de si tocou e a bolha rebentou.

 

Pegou no auscultador, com o coração novamente acelerado à espera de ouvir a voz de Bryce do outro lado, Townsend - disse.
- Juiz Townsend, eu era amigo duma amiga sua, a Lucy MacAdam - disse uma voz desconhecida, masculina num tom de falsa jovialidade.

 

Townsend ficou calado, com o silêncio a vibrar-lhe nos ouvidos e cem pensamentos a percorrer-lhe o cérebro, nenhum deles agradável.

 

- Está lá?

 

Tentou engolir a bílis que lhe subia à garganta, com a boca seca como pó de giz.

 

-S... sim, estou.

 

-Acontece que eu sei que o senhor e a Lucy tinham uma coisinha entre os dois, e pensei que talvez pudéssemos discutir o assunto.

 

A gravação. Deus, ele tinha a gravação! Pensou em negar, mas de que valia isso? Os nervos não lhe aguentavam um jogo de gato e rato. o melhor era acabar com aquilo.

- o que é que quer?

 

- Pelo telefone, não. Prefiro fazer negócio em pessoa. -Onde, então?

 

-Gosta de pescar, juiz? O quê? Que raio.

 

- Claro que gosta. é do tipo de apreciar a vida ao ar livre, ou não teria vindo para esta região. Há um sítio óptimo na Pequena Serpente. Vá ter comigo à estrada da mina daqui a uma hora e eu mostro-lhe o caminho. Sabe onde é? -Eu vou lá ter.

 

-Excelente. Ah! E... juiz! É melhor trazer a carteira. Atrapalhou-se a colocar o auscultador no descanso, devido à pressão que lhe aumentava dentro da cabeça. Talvez tivesse um aneurisma e morresse. Seria o fim de todos Os problemas. A pressão latejava-lhe por detrás dos olhos como dois punhos fechados.

 

o pesadelo nunca mais acabaria?

 

Se conseguisse recuperar a gravação, pensou desesperado, pagava o que fosse preciso. Vendia a casa para conseguir o dinheiro, desde que lhe garantissem que nunca mais o incomodariam. Seria o melhor, libertar-se da casa, como parte do processo de dar a volta. A situação ainda não estava desesperada. Vendia a casa, tratava de ficar limpo e reconquistava a mulher antes que os trâmites do divórcio revelassem as suas finanças decrépitas.

 

Ter um plano acalmou-o um pouco, mas continuava a tremer. Tirou novamente o lenço do bolso e limpou o nariz. Precisava de exibir uma aparência de quem controlava os acontecimentos quando fosse encontrar-se com o novo chantagista. Não seria inteligente mostrar medo.

 

Voltou a agarrar o puxador da gaveta e abriu-a. Só mais uma vez...

 

Mari entrou nas urgências com Will para ter a certeza de que ele se inscrevia, e depois deixou-o, com a promessa de voltar daí a uma hora. Ao seguir no carro pela cidade, passou pela praça para ver o andamento da escultura.

 

olleen Bentsen lá estava de maçarico na mão e uma máscara de ferro na cara. A escultura pouco mais era ainda do que pedaços de metal. Um pequeno grupo de donas de casa com bebés em carrinhos franzia a testa para o modelo, abanando a cabeça para um lado e para o outro, numa tentativa de perceber. M. E. Fralick, ao lado do pedestal, abanava os braços em gestos exagerados, tentando explicar o alcance do projecto.

 

No Alce, turistas passavam pelo corredor principal com as fatiotas pseudolocais, a caminho do pequeno-almoço dum dia ao ar livre. Mari subiu ao quarto e arrancou as calças de ganga de Lucy. Depois dum duche rápido, vestiu as velhas calças de malha justas pretas, meias grossas. Enfiou uma camisola de algodão de mangas curtas, completou o conjunto com uma camisa de ganga de trabalho com as mangas enroladas meia dúzia de vezes. Tentou atar o cabelo atrás com um grande travessão prateado, mas a juba era demasiada. o fecho deu de si e atirou o travessão pelo quarto fora como um míssil.

 

Desceu para a sala de jantar, procurando o rosto de entre as caras. Viu Kevin sozinho numa mesa perto da da cozinha, a verificar documentos e a beber café.

Aproximou-se da mesa e puxou a cadeira defronte dele. -A sua mãe nunca lhe disse que não fizesse os trabalhos de casa à mesa do pequeno-almoço? Vai dar cabo das vistas.

 

Ele levantou os olhos e sorriu, fazendo menção de se levantar, apesar de ela já estar sentada.

 

-Não, essa nunca ouvi. Lá em casa, a frase-chave era: «Não corras com o lápis na mão... »

 

- «... que ainda tiras um olho!» - disseram os dois em uníssono.

 

-Acho que a minha mãe tinha medo era do problema social de ter uma filha de pala no olho - retorquiu Mari com uma gargalhada. - Poucos estílistas a consideram um acessório aceitável.

 

- Toma o pequeno-almoço? - perguntou Kevin, fazendo sinal a um criado de que queria mais café.

 

-Não, obrigada. Já comi uma rosquinha - disse ela, pouco convincente., olhando para o muffin em que ele ainda não tocara.

 

- Coma ao menos fruta - insistiu ele, indicando uma taça com talhadas de meloa e morangos.

 

Mari escolheu uma talhada de meloa e cortou-lhe um pedaço.

 

- Como se sente? - perguntou ele, com uma expressão preocupada que lhe dava às sobrancelhas um ar de cãozinho triste.

 

- Bem.

 

- Nós ainda nos sentimos muito incomodados, sabe!

- Posso dispensar-lhes uns comprimidos para as dores

- retorquiu Mari, com um sorriso cínico.

 

- A sério! Isto é a nossa casa, e a ideia de alguém entrar cá pela força e fazer mal a um hóspede é tremenda. É uma autêntica violação.

 

O Quinn já disse alguma coisa sobre apanharem o tipo?

 

- Não me parece provável que o apanhem - observou ele, abanando a cabeça. - Se tivesse roubado alguma coisa e pudesse ser caçado a tentar vendê-la ou empenhá-la. era diferente.

 

-A minha família ia gostar de saber que estou finalmente a sofrer devido à minha falta de ganância. - Espetou um morango com o garfo e meteu-o na boca. - Só gostava de saber se ele esperava encontrar alguma coisa. A LUcY mencionava um livro na carta que me deixou, mas não o encontrei.

 

- Que espécie de livro teria valor suficiente para atacar uma pessoa?

 

Ela encolheu os ombros, não querendo falar do assunto comele. Qualquer coisa lhe dizia que Kevin nada sabia dos quemas da amiga; era demasiado bonzinho. Por outro lado, quase apostava que o sócio sabia mais do que admitia. O Drew está por aí?

 

, -Não - respondeu Kevin sucintamente, de olhos baixos, pegando no muffin, do qual saía um agradável aroma. À sua volta, a temperatura pareceu baixar dez graus, e o apetite tinha desaparecido. - Está em comunhão com a natureza. A pescar ou coisa parecida. Ainda não o vi esta manhã. - Ah - fez Mari, mordendo o lábio inferior, prestando atenção simultaneamente ao muffin e à súbita mudança de humor dele. - Aconteceu alguma coisa?

 

Não, nada. Porque é que queria falar com ele? Perguntou Kevin, suspirando e olhando vagamente para o prato.

 

-Nada de importância. Estivemos a falar da Lucy uma tarde, e eu pensei que podíamos continuar a conversa.

 

- Ah, bom, ele há-de voltar. o mais tardar às cinco, porque o trio começa a tocar no salão às sete. - Com melhor disposição, olhou para ela e perguntou: - Vai tocar con eles?

 

Não sei...

 

Então! - incitou ele. - Não me diga que está com edo do palco. Era óptimo ouvi-la cantar outra vez. -Talvez. Logo se vê.

 

Olhou para o relógio e levantou-se, debruçando-se para lhe roubar um pedacinho do muffin.

 

-Tenho de ir - disse ela, metendo o bocadinho de bolo roubado na boca. Depois fez-lhe um adeusinho com a mão e deu meia volta, deixando-o a rir.

 

A maior parte da manhã foi gasta a fazer de motorista a Rafferty. Do hospital, foram à procura dum reboque de lá à companhia de seguros para comunicar a má notícia. Disseram-lhe que o seguro seria possivelmente cancelado, devido aos antecedentes, e Will pediu a Mari que o levasse a um lote de carros usados nos arredores da cidade, onde tentou sacar um veículo emprestado ao seu bom amigo

 

«Granded Twofeathers. «Grande» Ed mandou-o dar uma volta.

 

Numa estação de serviço, Will comprou uns óculos escuros baratos para substituir os que tinha perdido no desastre. Compraram também piza e uns refrigerantes, instalando-se depois numa mesa de piquenique para almoçar, com vista para as bombas de gasóleo. Finalmente, instalaram-se de novo no Honda e dirigiram-se para o rancho.

 

Deprimido e sonolento com os comprimidos para as dores, Will adormeceu pelo caminho. Mari pôs Shawn Colvin no leitor de cassetes e deixou a mente vaguear com a música, analisando os factos, pistas e perguntas mentalmente como num jogo de solitário. A corrente do seu pensamento foi momentaneamente interrompida ao passarem pelo local do desastre de Will.

 

A carrinha tinha saído da estrada no meio duma curva difícil. Felizmente, a berma não era muito inclinada, ou ele teria certamente morrido. De qualquer maneira, pareceu-lhe um milagre não ter morrido mesmo. A carrinha parecia um brinquedo pisado por um gigante enfurecido, deitada de lado, esmagada e torcida.

 

Will acordou quando iam a entrar no portão do rancho. Sob a protecção dos novos óculos escuros espelhados, procurou rapidamente com a vista o irmão. Quanto mais tempo conseguisse adiar o confronto, melhor, Zip apareceu a correr vindo de casa e começou a ladrar. Viu Chaske junto ao celeiro, a aparar os cascos dum cavalo, mas J. D. não estava à vista.

 

- Obrigado pela boleia, Mary Lee - agradeceu ele, abrindo a porta do carro e deitando-lhe um olhar cansado e dolorido, com um sorriso. - É uma compincha!

 

- Pois sou.     Baixou os óculos escuros e disse-lhe, por cima deles:     Lembre-se disso da próxima vez que se sentar a um volante com os copos.

 

Will não prometeu que isso não voltava a acontecer. Já fizera suficientes promessas que não conseguia cumprir. Apeou-se do Honda e J. D. escolheu esse momento para

 

aparecer à porta de casa com Tucker. Os olhos do velhote esbugalharam-se perante aquela visão. Desfizera-se da camisa rota e ensanguentada no hospital e convencera uma das enfermeiras a dar-lhe a metade superior dum fato verde do bloco operatório. Mas, mesmo com os óculos escuros, não era possivel disfarçar os ferimentos, Uma fila de pontos certinhos atravessava-lhe a testa, tinha o lábio inferior inchado como o duma vedeta pornográfica, e uma nódoa negra na face esquerda num tom de pêssego podre.

 

- Ena, parece que enfiaste a cabeça num saco cheio de gatos! - comentou o velhote, descendo os degraus com esforço. - Por Judas! Nem a tua mãe te reconhecia no meio de uma data de bifes. Que diabo aconteceu? - perguntou ele, virando a cabeça para o lado e cuspindo um esguicho de suco de tabaco.

 

Will retorceu-se como um insecto ao microscópio. Tucker aproximou-se e examinou-lhe a cara, mas mais agudo era o olhar do irmão, mesmo vindo da entrada da casa. A merda estava prestes a atingir a ventoinha. Pressentia-o como se pressente a mudança antes duma tempestade.

 

- Conseguiste finalmente enrolar a carrinha no tronco duma árvore, não foi? - perguntou J. D. secamente, descendo os degraus devagar.

 

- Quase, mas não foi bem - disse Will com um sorriso forçado. - Caí por uma ribanceira. Como podes ver, sobrevivi, mas obrigado pelo teu cuidado, mano.

 

J.D. abanou a cabeça, zangado com ele, mas mais ainda consigo próprio pelo medo atrasado que sentia. Depois de todos os desaguisados entre os dois, continuavam a ter o mesmo pai. Will era tão Rafferty como ele, e quase tinha morrido. Desejou não ter de se preocupar. Doía demasiado. pela primeira vez, desejou ser filho único.

 

-Meu Deus, eu devia era acabar o trabalho! De todas Coisas estúpidas, meu merdas...

 

-Não preciso de sermões, J.D.

 

-Não? E precisas de quê, Will? Precisas duma jovenzinha que te pegue na mão e te console? Podias tentar com a tua mulher. - Aquilo ainda o irritava mais do que preocupar-se por ele... Preocupava-o o facto de o ver com Mary Lee. Os ciúmes pareciam um condutor sob tensão dentro dele, agitando-se que nem uma cobra, o que o enfureceu profundamente.

 

-Calma, J. D. - interveio Mari, apeando-se do Honda e encostando os braços ao tejadilho. - Só lhe dei boleia do hospital para casa.

 

-Que boa vizinha, Mary Lee - troçou J. D.

 

- Por Cristo, J. D., deixa-a de fora! É comigo que estás chateado - explodiu Will.

 

- Claro que estou chateado! Temos de conduzir o gado lá para cima amanhã e tu não estás em estado de montar um cavalo. Como diabo vou eu pagar a alguém, quando todos os tostões que tu não perdeste ao jogo são poucos para não perdermos o rancho? E a conta do médico e do reboque e da oficina? Por acaso alguma dessas coisas te passou pela cabeça enquanto corrias pela estrada com o depósito cheio de uísque?

 

- Não, J. D., não passou - proferiu Will amargamente, apertando as mãos em punhos junto ao corpo e inclinando-se para o irmão. - Talvez eu tenha outras coisas na cabeça sem ser o maldito rancho. Alguma vez pensaste nisso? Talvez eu esteja farto de estar preso a ele. Talvez eu me esteja cagando para o que lhe acontecer!

 

Tucker agitou-se nervosamente, mexendo os pés. Franziu a testa enrugada e disse, com ar apreensivo:

 

- Então, rapazes, não é altura...

 

-Talvez a altura já tenha passado - retorquiu J. D. num murmúrio sinistro.

 

Will sentiu que os óculos espelhados não o protegiam do olhar penetrante do irmão. Como sempre, o irmão via através deles, até ao fundo da sua fraca alma. Não conseguia. Nunca havia de conseguir chegar-lhe aos calcanhares. Não valia a pena tentar. E não valia a pena ficar ali.

 

Enfrentou o olhar do irmão, com a infância e a juventude a passarem diante de si - ele atrás do mais velho, as lutas, as pazes contrafeitas, os raros momentos de camaradagem. Eram irmãos, mas J.D. nunca lhe perdoara ter nascido e nunca lho perdoaria. Meios-irmãos. A etiqueta fazia-o sentir-se meio homem. Pareceu-lhe que uma parte de si morria. A esperança. Que sensação tão triste...

 

-Vou fazer a mala - disse ele baixinho.

 

Tucker praguejou entre dentes e tentou apanhá-lo a caminho de casa, mas Will levantou a mão para ele parar e_O velhote estacou, com um ar desamparado. Voltou-se então para J.D., barafustando:

 

- Com os diabos, tens a cabeça mais dura do que uma parede.

- Está calado, velhote.

 

- J. D. deu meia volta e afastou-se dele em direcção aos corrais, esforçando-se por não olhar para Mary Lee, mas não conseguindo. Deitou-lhe uma olhadela e viu-a encostada ao carro, a olhar directamente para ele com uma expressão de ira.

 

A contrariedade notava-se-lhe no esgar que lhe modificava o feitio da boca. Sentiu-se culpado, mas afastou o semtimento.

Para o inferno com Mary Lee Jennings. Para o Diabo com Will. Não precisava dum nem doutro.

Mari disse a si própria que devia meter-se no carro e pôr-se a andar dali, Tinha problemas suficientes para não precisar de os aumentar com uma rivalidade entre irmãos, mas não conseguia afastar-se. Will,apesar de todos os seus defeitos era um amigo, e J.D., apesar de muitas coisas, era seu amante. Não podia limitar-se a vê-los destruir uma relação de irmãos. Sabia perfeitamente como esse estrago podia ser irreparável.

Praguejou entre dentes e correu atrás de J.D.

 

- Não te metas, Mary Lee! - exclamou ele, continuando a andar com grandes passadas e obrigando-a a correr. Não tens nada com isto, que diabo!

 

-Ele podia ter morrido no desastre. -E era bem feito.

 

- Raios te partam, Rafferty, pára com isso! - explodiu ela, batendo-lhe num braço com toda a força, o que o fez parar e enfrentá-la, - Pára de fingir que nada nem ninguém te interessa para além do rancho! - é verdade!

 

Isso é mentira e sabes perfeitamente que é! Se fosses tão filho da mãe como isso, não tinhas aqui empregados com tantos anos e um tio que endoideceu há uma data de tempo!..., -É o meu dever.

 

É amor. É a mesma coisa. E também gostas do Will. Que diabo sabes tu do que eu sinto ou não sinto? Perguntou ele, furioso por ela ter acertado em cheio. – Achas que por teres ido para a cama comigo te tornou especialista?

                                                   Credo, se eu pensasse que me ias dar tantos problemas, não tinha tirado as calças!

 

Com uma expressão carrancuda, dirigiu-se aos currais, onde meia dúzia de cavalos espreitava por cima da vedação com as orelhas espetadas. Mari foi atrás dele, considerando-se uma perfeita idiota.

 

- Eu podia dizer a mesma coisa, sabes? - exclamou. Nunca hás-de ganhar um prémio de senhor encantador e eu não vim até ao montana para me ver metida no meio duma zaragata familiar!

 

- Então, põe-te a andar.

 

-É demasiado tarde para fingir que não nos conhecemos, J.D. - Gostava de lhe dizer que era demasiado tarde para fingir que não gostavam um do outro, mas sabia que isso seria uma provocação. Já sofrera o suficiente, - Eu só digo que o Will é o teu único irmão. É verdade que faz asneiras, mas não é uma causa perdida. E precisa de ajuda. Podias deixar esse papel de durão durante dez minutos e mostrar um bocadinho de compaixão.

 

- Queres compaixão? - perguntou ele em tom trocista.

- Procura um padre. Não estou a representar nenhum papel, Mary Lee. Sou tal e qual o que pareço. Nada na manga, nenhum truque de espelhos. Achas que sou durão e não gostas? Olha que porra! Arranja outro vaqueiro para fornicar. Por agora, ainda há muitos. Merda, se gostas tanto do meu irmão, talvez prefiras fodê-lo a ele!

 

Mari piscou os olhos com força e recuou como se ele lhe tivesse dado um estalo. Era como se tivesse. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, mas recusou deixá-las cair.

 

- Meu Deus, consegues ser o filho da mãe mais obtuso...

- Se não gostas, vai-te embora. Ninguém to impede, menina da cidade.

 

- Óptimo - murmurou ela, com a voz a tremer tanto que lhe custava falar. Prendeu uma madeixa de cabelo atrás da orelha com a mão a tremer violentamente. - Vou-Me embora. E não te preocupes em ir à quinta da Lucy outra vez. Eu também não preciso de ti.

 

- Ainda bem. Tenho mais que fazer. Telefona-me quando decidires vender as terras.

 

Lutando contra as lágrimas, Mari dirigiu-se ao carro, a mancha branca indistinta do outro lado do pátio, mas depois parou e voltou-se novamente para ele, a abanar a cabeça.

 

-Estás tão ocupado em proteger o que é teu que nem vêsque estás a perder tudo o que é realmente importante. Tenho pena de ti, Rafferty. Vais acabar com estas terras e animais.

 

-Nada mais me interessa - contrapôs ele, mas Mari tinha virado as costas e encaminhava-se para o carro, pisando a terra e as pedras em grandes passadas.

 

J.D. ficou ali a vê-la arrancar. Ela não podia interessar-lhe. Não podia permiti-lo. Não podia ficar na vida dele. Numa semana ou duas, fartava-se da vida rural e voltava à Califórnia, deixando-o ali, a trabalhar no rancho e a lutar para preservar o seu estilo de vida da extinção. Não podia permitir que alguma coisa se intrometesse nisso. Ao virar-se para o curral, a palavra mártir soou-lhe na cabeça e deixou-lhe um gosto amargo e metálico na boca. Cuspiu para a terra e passou por entre as traves da cerca para ir buscar um cavalo.

 

Como conseguiu descer a encosta sem chocar com uma árvore era coisa que não compreendia. Milagre. Como se tal coisa existisse. Zangada e magoada, Mari saltou do Honda e dirigíu-se ao celeiro, a passos rápidos e depois a correr. Entrou pela porta do lado, sem olhar para Clyde, que levantou a cabeça e relinchou. Atravessou o celeiro, passou pela vedação dos lamas e saiu pelo portão. Correu para a pastagem

e os joelhos começaram a ameaçar dar de si e os pulsos ficaram em fogo, caindo então sobre a erva, onde permaneceu estendida, a soluçar.

 

Nem sequer sabia bem por que motivo chorava. Por J.D. a ter magoado? Ele podia viver com isso, aquele cabeça dura. Por ter pena de Will,do que os dois irmãos estavam a perder? Pela morte da amiga? Por querer tanto um cigarro que era capaz de procurar uma beata de gatas numa sarjeta? Por tudo isso e mais ainda.

 

Ficou deitada na erva e chorou até não poder mais, mas contínuou deitada. o Sol brilhava, quente e amarelo como manteiga derretida entre nuvens de pipocas. Uma brisa agitava a erva, levando-lhe o aroma das flores e o cheiro da terra. Abrindo os olhos, viu-as curvar-se - delicadas violetas e campainhas que começavam a abrir, flores silvestres com os seus grossos caules peludos e cores vistosas. A sua beleza acalmou-a, a sua simplicidade confortou-a. Uma abelha zumbia preguiçosamente de corola em corola, ignorando o mundo humano e todas as suas agonias autofabricadas.

 

Talvez J.D. tivesse razão em entregar o coração àquela terra. Também ela era capaz de lhe entregar o seu. Sentia-se parte dela, alimentada pela sua beleza e força. Voltando-se de costas, olhou para o céu. Era realmente maior ali, um enorme lençol dum azul-eléctrico, que se estendia infinitamente. Havia momentos como aquele, em que se sentia mais em casa ali do que alguma vez se sentira noutro sítio. E essa sensação de pertencer nada tinha a ver com património hereditário, mas sim com coisas mais profundas do que circunstâncias, com questões da alma.

 

Um nariz de lama tocou-lhe na cara, pequeno e peludo, inquiridor. Sorrindo, Mari sentou-se e estendeu a mão para acariciar o pescoço do bebé. Era um animalzinho castanho dos ombros para trás, com o focinho metade branco e metade com malhas castanhas, como se Deus tivesse sido obrigado a abandonar a pintura para atender assuntos mais urgentes.

 

- Vou chamar-te Perfeito - anunciou, espantada com a rouquidão da sua voz.

 

As longas orelhas do lama moveram-se em ângulo, como pequenas bandeiras. Uma mancha castanha fazia parecer que estava a sorrir. Meia dúzia de parentes mais velhos olhava Mari a pouca distância com os seus belos olhos pestanudos e parecia cantarolar baixinho.

 

Levantando-se lentamente, com medo de assustar os animais, aproximou-se, mas eles continuaram a olhar, a mastigar a sua erva e as suas flores, com expressões meigas e sensatas. Estavam para além da mesquinha crueldade que os seres humanos infligiam uns aos outros. Não lhes interessava que ela se tivesse apaixonado por um homem que era simultaneamente herói e vilão. o alcance do seu simples mundo era muito maior. Possuíam o segredo da paz interior olhavam para ela com piedade pela sua ignorância. Oferecian consolo em forma de companhia e compreensão com a natureza calma.

 

Passou a tarde com eles, ignorando resolutamente as várias complicações em que a sua vida se embrulhara. Misturou-se aos lamas, acariciando-os, coçando-os, falando com eles sobre o grande significado da vida. Durante umas horas, nada mais teve importância. Fingiu que havia atravessado um portão para um local de calma e bom senso, deixando os animais afastar a tensão e o sol reanimar-lhe a alma. Depois, quando o Sol começou a sua descida para os montes, regressou ao mundo real das pessoas, dos problemas e mistérios da alimentação dos lamas.

 

J.D. conduziu a égua de pêlo doirado pelos terrenos acima do riacho da Pequena Serpente. o animal foi avançando com alguma dificuldade, por não estar habituado ao peso dum homem, as pequenas orelhas espetadas ora para a frente ora para trás, mordendo o freio. Automaticamente, J.D. aliviou as rédeas, o suficiente para ela ficar mais calma e recuar um pouco a cabeça.

 

Não estava a prestar grande atenção ao que fazia, nem decidira dar o passeio para benefício da égua. Selara-a apenas porque a sua ética de trabalho não lhe permitia fazer outra coisa senão uma tarefa produtiva em algum sentido. Então... e a Mary Lee?

 

o tempo passado com ela podia ter sido produtivo, se ela tivesse mostrado sinais de lhe dar uma oportunidade para comprar as terras da amiga. Mas a ideia de se prostituir também ia contra a sua ética. Era um negócio impossível de ganhar. Se ia para a cama com o fim de lucrar alguma coisa, não passava dum gigolô. Se o fazia por outro motivo, estava a pedir sarilhos que jurava não querer.

 

Mas não valia a pena pensar no assunto. Não voltava a deitar-se com ela.

 

Fez uma careta e inclinou-se para trás na sela enquanto o animal descia a encosta em direcção ao riacho. A vida em geral estava a transformar-se num jogo sem vencedores. Não avançara na tentativa de fazer uma oferta pela K Voadora. Um telefonema para o vice-presidente do First Bank do Montana obtivera apenas as condolências do homem pela onda de perdas sem precedentes de Will no Pequeno Purgatório.

 

Bryce estava provavelmente a rir às gargalhadas perante suas fúteis tentativas para manter a propriedade fora do seu alcance e aproveitando a espera para contar o dinheiro. Com Samantha do seu lado, devia pensar que já não faltava muito para se tornar proprietário do Rancho dos Confederados.

E agora, o irmão ia-se embora - já tinha mesmo partido. J. D. vira-o afastar-se do pátio na velha carrinha de Talcker. Esperara toda a vida que ele prescindisse dos direitos à propriedade da família, partindo de vez, mas, agora que isso acontecia, não sentia alívio nem triunfo, mas um desagradável vazio na boca do estômago. o reaparecimento da velha culpa, remorsos por perder uma coisa que lhe parecia nunca ter querido, em primeiro lugar.

 

Eram parentes, pelo que existia uma grande responsabilidade. Mas ele tomava esse sentido de responsabilidade como licença para ameaçar, dominar e fazer sermões, tratando Will mais como um empregado pouco cuidadoso do rancho do que como um irmão. No entanto, não podia despedi-lo por beber ou por não se apresentar ao trabalho ou ainda por jogar dinheiro das terras e entregá-las praticamente nas mãos do seu maior inimigo, como não podia fazê-lo por ele ter destruído a carrinha, o que o levava novamente ao álcool. Mary Lee achava que Will precisava de ajuda, que bebia descontroladamente. J. D. considerava aquilo um aborrecimento. Viviam numa região dura com pessoas rijas. Beber fazia parte da vida dum vaqueiro, em muitos casos ocupava mesmo uma parte grande de mais. o alcoolismo era um problema da cultura rural, para o que contribuíam a tensão, a solidão, o código masculino. Vira o irmão bêbedo mais vezes do que podia contar, e a única coisa que sabia fazer era ralhar com o garoto por estragar a carrinha ou chegar tarde ao trabalho.

 

A culpa enterrou os dentes um pouco mais e sacudiu-o. Sentia o peso da verdade, da responsabilidade. Fugira para ali para se libertar exactamente desse peso e para não ter de o examinar ao microscópio. Fugira para ali para mergulhar no seu primeiro amor - a terra.

Aquela parcela junto ao riacho era um dos seus sítios favoritos - quando não estava lá meia dúzia de idiotas da cidade com coletes cheios de bolsos e botas de borracha, a pescar à linha. Teve sorte dessa vez. Viu um carro vermelho estacionado à distância, mas nem sinal do dono. Provavelmente, alguém a passear no bosque, à procura de cogumelos. Talvez parasse e apanhasse uns quantos à volta para casa. Tucker podia fritá-los com trutas para o jantar.

 

o pequeno vale e as encostas de cada lado pertenciam ao Gabinete do Ordenamento Territorial. Outrora propriedade dos McKeevers, as pastagens tinham sido vendidas em noventa e um a um apresentador de telejornal que se limitara a criar alguns cavalos, até que as terras voltaram às mãos do Ordenamento Territorial. J. D. tentara comprá-las, mas um grupo ambiental resolvera erguer o estandarte do «Salvem a Pequena Serpente» em nome dos pescadores à linha e dos caminhantes de fim-de-semana de Bozeman e Livingstone, e ele decidira que a pequena porção de erva não valia uma luta.

 

Todavia, continuava a gostar de ir até àquele local sempre que podia. Por enquanto, mantinha-se isolado e bem conservado. o riacho da Pequena Serpente, que era na realidade um autêntico rio, corria por entre choupos-do-canadá e faias. Alimentado por águas dos montes, tinha um bom caudal naquela época do ano, frio e límpido, com algumas rochas de onde em onde. Nas margens, a erva crescia luxuriante, salpicada de flores silvestres. Para além do riacho, erguiam-se encostas arborizadas. Era vulgar ver veados a beber ali, com as caudas de ponta preta a tremer nervosamente. Também já lá vira ursos mais do que uma vez. Os Absarokas estavam cheios de ursos, pardos e pretos. A invasão humana empurrava-os cada vez mais para as zonas selvagens, mas de vez em quando ainda acontecia um ou outro encontro com animais das quintas e com turistas.

 

Conduziu a égua até à água num ponto pouco fundo e fê-la entrar. o animal arqueou o pescoço e soprou para a água que passava por ele, mas J. D. falou-lhe e animou-a a avançar exercendo pressão com as pernas. A égua levantou uma pata dianteira e chapinhou, começando finalmente a avançar cautelosamente, não muito contente com a ideia, mas confiando no cavaleiro.

 

Quando ficou metida na água até aos joelhos e suficientenente relaxada para olhar em volta, J. D. tirou do estojo tubular preso à sela os componentes da sua cana de pesca. A égua olhou para trás com curiosidade e o corpo tenso, mas quando viu que aquilo parecia o processo habitual duma linha atirada pelo seu cavaleiro, descontraiu-se de novo. O verdadeiro teste viria quando ele apanhasse uma truta.

 

  1. D. descontraiu-se também, desanuviando as ideias ao ritmo da cana de pesca. A luz do Sol brilhava, quente, nas suas costas, e a água parecia rir e assobiar na sua corrida para o rio da Pedra Amarela. o ar estava perfumado pela erva e era fresco devido à proximidade da água. As folhas das árvores tremiam com a brisa e pareciam cantar. o carreto gemeu quando ele fez o lançamento e deu estalidos quando recolheu a linha para fazer nova tentativa. Um falcão pairava

por cima da outra margem, batendo as asas azuladas de vez em quando, à espera do momento perfeito para cair sobre a sua presa.

 

o peixe não mordia. J. D. recolheu a linha e conduziu a égua para a outra margem. o animal saiu da água e caminharam uns cem metros por terra. Dessa vez, quando lhe pediú que entrasse no riacho, não hesitou. J. D. deu-lhe uma palnadinha, falou com ela e depois começou de novo a pescar. Assim passou uma hora. Quando via que não apanhava peixe em nenhum sítio, avançava para outro, atravessando de margem para margem, por vezes andando pelo riacho quando este não era muito profundo. Não tinha vontade de encontrar o dono do carro, mas os melhores sítios eram naquela direcção. Decidiu tentar a sorte até aparecer alguém, voltando então para casa. o rancho já se encontrava a uma hora dali e as sombras da tarde iam-se alongando.

 

Ao aproximar-se, reconheceu o carro. o nome de Miller ELggrepont e os títulos que tinha concedido a si próprio eram visíveis na porta do condutor, em letras doiradas:

           MiLLER DAGGREPONT

           ADVOGADO, ANTIQUÁRIO

 

o homem não era capaz de subir a um monte à procura de cogumelos, a não ser que fossem forrados a oiro. Era pescador, mas não vira sinal dele ao longo das margens.

 

Franziu a testa, mais pela intromissão nos seus pensamentos do que por preocupação pelo paradeiro do advogado.
Por associação de ideias, pensou nas terras que Mary Lee herdara e, portanto, pensou também nela. Estava tudo acabado. Nunca devia ter-se aproximado dela, para começar.

 

Deitou a linha, numa curva do riacho, onde a terra tinha formado uma pequena lagoa lodosa que só se enchia completamente na Primavera e quando chovia muito. A flora habitual de sítios como aquele era luxuriante. Mais do que um peixe dipnóico tinha sido apanhado por ali, entre a lagoa e o riacho.

 

  1. D. praguejou, quando a isca ficou presa na vegetação. A lembrança de Mary Lee tinha interferido com a sua concentração. Deu um puxão à linha, na esperança de a soltar sem grandes problemas, mas isso não aconteceu. Tentou recolhê-la lentamente com o carreto, mas só conseguiu esticá-la. o anzol estava mesmo preso. Conduziu a égua para a outra margem e apeou-se, dirigindo-se para o local e desejando que a égua estivesse suficientemente ensinada para ficar quieta.

 

Decidiu arriscar, porque tinha de soltar a maldita linha. Se tivesse de se meter no lodo, não a queria consigo. o fundo era mole e ela assustar-se-ia provavelmente ao enterrar os cascos. o medo podia estragar um cavalo jovem tão rapidamente como os maus tratos. Soltou as rédeas e recuou com uma expressão séria quando o animal fez menção de avançar. Depois deu um passo agressivo na sua direcção. A égua parou imediatamente e sacudiu a cabeça, com as orelhas espetadas, vendo-o voltar-se para a margem.

 

Recolhendo mais linha com o carreto, entrou na água até às coxas, afugentando um pequeno pato do seu esconderijo. o animalzinho voou com um grasnido irado e as asas a agitarem-se no ar como um pugilista a treinar-se sozinho. Com uma olhadela por cima do ombro, J. D. verificou que a égua não se tinha assustado, limitando-se a observá-lo com ar interessado. Manteve contacto com o olhar durante um segundo, para lhe mostrar que não estava esquecida. Ao avançar de novo, bateu inesperadamente em qualquer coisa sólida e desequilibrou-se. o pé direito escorregou no lodo e ele caiu... aterrando em cheio no corpo de Miller Daggrepont.

 

- Céus, já tirei gado de rios com mais facilidade do que isto! - disse o ajudante Doug BardwelI, metido na água até à cintura, tentando agarrar melhor o corpo. - Olha, J.D., queres ajudar-me a atá-lo com uma corda e a puxá-lo com água?

 

Quinn levantou a cabeça do seu exame das pegadas na terra macia da margem e deitou um olhar furioso ao ajudante.

 

-Peters, vai lá para dentro também e tirem o corpo pelo outro lado. Não quero mais pegadas deste lado do que temos! Olha para esta porcaria - resmungou, voltando ao trabalho. - Deus sabe quantas pessoas andaram por aqui antes das chuvas, a subir e a descer.

 

  1. D. estava agachado junto dele, a olhar para a terra, de testa franzida.

 

- Acho que há algumas, mas olha aqui. Parece-me mais pessoas à luta. E não vejo sinais como estes em mais nenhuma porção da margem.

 

Isso pouco significa - decidiu o xerífe, empurrando o chapéu para trás e coçando a cabeça por entre o cabelo de trigo. - Podiam ser duas pessoas a remexer nos iscos de anzóis, tanto quanto sabemos. Além disso, o que parece é que o velho Miller teve um ataque de coração e caíu lá dentro. Estás a ver como ele tem as mãos a agarrar o peito?

 

Aproximaram-se do outro lado da lagoa, onde Bardwell e Peters lutavam com o corpo sem vida de Daggrepont. O rigor mortis ainda não se instalara, e o enorme peso e figura rotunda do advogado tornava a sua tarefa mais ou menos tão divertida como remover uma baleia encalhada na praia,

 

- Bolas, Bardwell, não lhe puxes o braço dessa maneira

- gritou Quinn. - Mete as pernas debaixo dele e empurra!

 

Gemendo com o esforço, os ajudantes conseguiram finalmente içar o morto para a margem.

 

Livra! o meu pai sempre disse que o melhor advogado é o advogado morto. Acho que nunca teve de fazer isto exclamou Bardwell, sentando-se perto do corpo.

 

- Estás a ver? - perguntou Quinn, agachando-se junto dele apontando para a mão direita hirta sobre o esterno do morto, a agarrar a camisa de quadrados e as pontas do cordão que usava como gravata. - Isto é um espasmo cadavérico, o que significa que estava assim quando morreu. E ele tinha a máquina bastante avariada, o Miller.

 

- Não admira - comentou Peters, com a cara atrás duma máquina fotográfica com a qual fotografava o cadáver.

- Alguma vez viram o homem comer? Já tive vacas que não eram capazes de enfardar como o Miller.

 

- Até as comia a elas, se pudesse - acrescentou Bardwell, tirando as botas e despejando a água.

 

  1. D. não fez caso dos comentários. Ajoelhou ao lado do corpo, estudando todos os pormenores. Um mal-estar sinistro fora-se instalando nele enquanto esperava pelo xerife, depois de o ter chamado pelo telefone do homem. Ele fora advogado de Lucy, e Mary Lee tinha metido na cabeça que havia alguma coisa de suspeito na morte da amiga. A sua primeira ideia fora que o melhor era deixar tudo como estava. o compincha de Bryce tinha arcado com as culpas, o que era muito melhor do que elas caírem sobre o tio. Mas agora o Daggrepont estava morto e o instinto de J. D. dizia-lhe que havia ali mais do que uma máquina avariada.

 

Olhou na direcção das encostas arborizadas para lá do vale. Del conhecia aquelas colinas como a palma da mão.

- Olha aqui! - exclamou, afastando as perguntas meio formuladas e apontando para umas manchas nas pregas do pescoço gordo de Daggrepont. - A mim, parece-me que alguém o agarrou pelo pescoço.

 

- Só consigo pensar em vinte ou trinta pessoas que teriam gostado de o estrangular - comentou Bardwell. E tu, Pete?

 

-Estás a contar as velhotas ou só os homens?

 

- o rigor está a começar aqui no maxilar - resmungou o xerife, de testa franzida, voltando a cabeça do advOgado para o lado. - Não esteve ali muito tempo.

 

Apalpou a queixada do homem, notando como as manchas se mantinham quando aplicava pressão, o que indicava nódoas negras e não alguma lividez estranha. Pareceu falar sozinho, em voz baixa, como se tentasse estabelecer uma lista de possíveis suspeitos, mas afinal estava apenas a desejar que toda aquela porcaria não tivesse acontecido. o advogado de Lucy MacAdam morto em circunstâncias suspeitas. ter Marilee Jennings acampada à sua porta, tentando impingir-lhe a teoria da conspiração. Malditos forasteiros! A vida era simples com eles.

 

- Bom, vamos mandá-lo para Bozeman e eles que dêem uma olhadela - acabou por dizer, erguendo-se e limpando as mãos às calças.

 

- Cortam-no às fatias e depois aos cubos! - comentou Bardwell.

 

- Cala a boca, Bardwell, e vai buscar o saco! - ordenou Quinn, irritado. Depois, voltando-se para J. D., contínuou. - Acho que tenho de ir dar a notícia à Inez. Ficou sem patrão. Ele não tinha família, que eu soubesse. Lembras-te de alguém que precise de saber já?

 

- Lembro - respondeu J. D. com um suspiro, dirigindo-se para a égua, com a expectativa e o receio a puxarem um para cada lado dentro de si. - Eu digo-lhe.

 

o trio de Drew tocava das sete até à uma da manhã no salão do Alce, e Mari juntou-se-lhes, alternando duas canções com cada duas do grupo. Ofereceram à considerável assistência uma mistura ecléctica de jazz, música popular, country e rock. Ela preferiu baladas, como sempre reflexo da sua disposição, tocando velhas canções favoritas de Jackson Browne e Bonníe Raítt, e outras mais recentes de Rosanne Cash e Shawn Colvin, bem como algumas das suas criações. Quando os membros do trio conheciam a canção, juntavam-se a ela e tocavam o acompanhamento. Foi um daqueles belos e raros momentos em que os estilos e o instinto dos músicos se misturam imediatamente, com um resultado mágico.

 

o público, que fora para o salão para conviver entre amigos, abandonou a conversa ou passou a falar em murmúrios, cativado pela música. A pequena pista de dança nunca ficou vazia e os aplausos foram sempre entusiásticos.

 

No primeiro intervalo, Mari deslizou para o banco do piano, ao lado de Drew. Os outros dois membros do conjunto afastaram-se, à procura dos amigos e de bebidas. o nível de ruído das conversas aumentou para compensar a falta da música.

 

- Isto é fantástico! Obrigada por me ter convidado agradeceu ela, com um sorriso.

 

O prazer é nosso, querida. Tem um talento raro disse ele, pegando na água tónica com uma mão e dando um gole lento, com uma careta quando estendeu o braço para POisar o copo.

 

-Você está bem?

 

- óptimo - respondeu ele distraidamente, fazendo rodar o ombro direito. - Dei um jeito, mais nada. Fui desajeitado. - Mudando de tom, continuou: - Parece diferente esta noite. - E olhou para ela especulativamente.

 

Credo, acha que estou a deprimir as pessoas?

 

Não, não. Estão encantadas consigo. Mas há qualquer coisa de muito triste nesses lindos olhos azuis. Posso ajudar? Mari abanou a cabeça, fazendo uma careta.

 

Meti-me numa coisa em que não devia. Mas não faz mal. Já sou crescidinha e posso aguentar.

 

Ele franziu a testa e levantou a mão para lhe prender uma madeixa atrás da orelha.

 

- o que é que quer dizer com uma coisa em que não devia meter-se? Tem a ver com a Lucy?

 

.-Não, porquê? Sabe alguma coisa que eu devesse saber? - Sei que, quando havia sarilhos, ela os cheirava logo, mais nada - respondeu ele, olhando para o mar de rostos do salão e desejando ter ficado calado.

 

O género de sarilhos que podia ter-lhe provocado a morte. Eu não disse isso.

 

Mari encostou-se a ele e puxou-lhe a manga de seda da camisa com força.

 

- Bolas, Drew, se sabe alguma coisa, diga-me! Não me parece que a morte da Lucy tenha sido um acidente, mas não consigo encontrar uma alma que se importe.

 

Carrancudo, Drew voltou a sua atenção para as partituras em cima do piano, folheando-as impacientemente. -Não gosto de insinuações. A única coisa que eu sei é que ela andava metida com o Townsend e que ele não estava satisfeito com a situação.

 

-Ela andava a fazer chantagem com ele?

 

- Talvez - respondeu ele evasivamente. - É certo que ele pagava parte do estilo de vida dela, mas não podia matá-la. - Não podia?

 

Meu Deus, Mari, o homem é juiz! Os juizes não andam por aí a assassinar mulheres! - exclamou ele, deixando cair as mãos no teclado e olhando para ela.
-E os cirurgiões plásticos andam?

 

- Foi um acidente. o Sheffield não tinha qualquer motivo para a querer morta.

 

O que faz dele a pessoa indicada para acusar, não faz? - insistiu teimosamente Mari. - Sem motivo não há acusação de assassínio. Ele confessa-se culpado de fazer um dói-dói com uma arma daquelas e apanha uma repreensão. o Ben Lucas é advogado do Sheffield e o Lucas e o Townsend são velhos amigos. E andam todos por ali na quinta do Bryce...

 

- Você está a agarrar-se a isso em desespero, Mari afirmou Drew, abanando a cabeça, exasperado.

 

- Talvez sim, talvez não - disse ela, abrindo as mãos e encolhendo os ombros. - Acha então que o Townsend está acima de qualquer suspeita? Os juizes distritais também não costumam fungar cocaína, e eu vi-o a aspirar uma linha na sala de bilhar do Bryce. o que me faz pensar se não terá outros hábitos desagradáveis.

 

- Preferia que não descobrisse.

 

E voltou a atenção para a música, aparentemente sem mesmo olhar para os títulos, enquanto fingia escolher algumas, como desculpa para não cruzar o olhar com o dela. Mari ficou sentada um momento, tentando adivinhar o que lhe ia na cabeça e deduzir os segredos que guardaria. Mas os seus esforços obtiveram apenas uma expressão carrancuda e uma mente fechada como um cofre de aço.

 

- Que mais sabe você, Drew? - perguntou ela por fim. -Não posso esclarecer a morte da Lucy - disse ele, em tom impaciente. - E não sei se o faria, se pudesse. Às vezes, é melhor deixar as coisas como estão.

 

Não era o primeiro a exprimir aquele ponto de vista, mas Mari ficou mais uma vez furiosa. Sabia perfeitamente que a amiga não tinha sido uma cidadã modelo em vida mas isso significaria que não merecia justiça na morte?

 

-E essas coisas têm nomes? - perguntou num tom grave.

 

Ele soltou um longo suspiro por entre os dentes e fechou os olhos com toda a força.

 

- Marilee...

 

- Música fabulosa!

 

A voz de Bryce quebrou a tensão e levou-a para um nível diferente. Mari rodou no banco e enfrentou-o com um sorriso delicado.

 

- Obrigada.

 

Trazia um copo na mão magra e um sorriso de mil vá´tios na cara bronzeada. Mari pensou impiedosamente se aquilo não seria realmente um esgar de dor, porque tinha umas calças de ganga de tal maneira apertadas que deviam bastar para lhe elevar a pressão arterial até à zona de perigo. O braço livre estava negligentemente apoiado nos ombros de Samantha Rafferty.

 

A rapariga parecia pouco à vontade com a situação e olhava para Drew e depois para o lado, como se estivesse a pensar na hipótese de fugir dali. A censura rolava de Drew em ondas quase visíveis. Mari pensou se ela já saberia do acidente do marido e teve a pergunta na ponta da língua, mas conteve-se. Não lhe chegavam já as pancadas que apanhara por se meter nos assuntos dos Raffertys?

 

- Foi uma pena não ter levado a guitarra para a festa daquela noite lá em casa - disse Bryce, inclinando a cabeça edirigindo-lhe um olhar de censura. - o Rob Gold da Colúmbia teria adorado. Mas agora já voltou para lá. - Fica para outra altura, talvez - retorquiu Mari, encolhendo os ombros, excitada pela perspectiva de conhecer um executivo duma companhia discográfica, mas dando o desconto devido à fonte da informação.

 

Talvez, não! - declarou Bryce. - Você devia era meter-se num avião e ir ter com ele. Posso fazer uns telefonemas, se quiser.

 

E mandar-me para fóra do Montana.

 

-Obrigada, mas não me parece que seja boa altura para me precipitar.

 

- As oportunidades não surgem todos os dias. - Não, mas eu também não tenho amigas a morrer todos os dias. Gostava de algum tempo para me recompor.

Ele deitou-lhe o seu olhar paternal, baixando o pequeno queixo quase até ao tufo de pêlos que aparecia por entre a abertura da camisa.

 

- Isso é que é lealdade, querida. A Lucy está provavelmente a olhar para si e a fazer troça. Ela teria saltado a pés juntos sobre uma oportunidade destas. Nunca perdia uma coisa que pudesse trazer-lhe vantagens... pois não, Drew?

 

Os olhares dos dois homens cruzaram-se por momentos e Mari observou-os, sentindo a tensão aumentar-lhe no peito. Por fim, Drew levantou-se do piano e pegou no braço de Samantha.

 

- Posso dar-lhe uma palavrinha, minha querida?

- Eu ’ estou de folga esta noite, Mister Van Dellen disse ela, com os olhos muito abertos.

 

- Eu sei, querida - afirmou ele suavemente, afastando-a de Bryce e levando-a para a varanda.

 

Bryce deixou-a partir sem qualquer objecção. Sentou-se no banco que Drew abandonara e bebeu um grande gole do copo que segurava, com a maçã-de-adão a saltar-lhe no pescoço como uma rolha. Comprimindo os lábios e secando-os com a mão, mudou ligeiramente de posição para se voltar para Mari e fingiu-se gravemente preocupado.

 

- Como é que você está, Marilee? Ouvimos dizer que teve um encontro com um assaltante uma noite destas.

- Foi... ou qualquer outra coisa. Mas tive sorte em só ter sido atingida na cabeça. A minha cabeça é geralmente considerada tão dura que é impenetrável... - E encolheu os ombros.

 

- Isso não é brincadeira, meu anjo. Podia ter morrido disse ele, de testa franzida.

 

- Podia?

 

-Acontece. - Foi a vez de ele encolher os ombros, como quem diz que uma morte violenta era uma coisa vulgar, um inconveniente imprevisto num itinerário turístico. - Então, quando é que vai passar um dia lá no rancho? Com tudo o que aconteceu, provavelmente fazia-lhe bem um dia na piscina sem preocupações.

 

Sem preocupações excepto a que se referia a qual das víboras do ninho dele podia ser um assassino. Que cena relaxante - estendida numa espreguiçadeira, com uma bebida na mão, a examinar suspeitos por detrás dos óculos de Sol. Bryce e a sua corte de víboras: o fungador de cocaína, juiz Townsend, o grande advogado, Ben Lucas. Talvez Bryce pudesse mandar vir o atirador, Dr. Sheffield, para tornar as coisas realmente interessantes. Depois, Del Rafferty podia ser à torre do palácio rústico de Bryce e acertar em todos, um por um, com a sua arma especial. Que belo dia!

 

-Eu depois digo-lhe - respondeu, alisando as calças de ganga quando se levantou. - Acabou o intervalo. Tenho de entreter as tropas.

 

-Dê cabo deles, querida!

Dirigiu-lhe novo sorriso, sempre o monarca benevolente, antes de voltar para a sua mesa habitual, com os saltos das botas de vaqueiro dando um ângulo às ancas que encorajava um andar fanfarrão. À sua espera, estavam Lucas e a actriz Kimball, agarrada a ele como uma lapa. Não havia sinais de Townsend. Na ponta da mesa, o gigolô do costume divertia-se a mexer os músculos peitorais sob uma camisola de algodão que mais parecia pintura corporal azul. À direita da cadeira de Bryce, Sharon Russell tinha um corpete de cabedal preso na nuca e decotado à frente até abaixo do tampo da mesa, exibindo uma expressão carrancuda que seria o orgulho da John Crawford.

 

-Cuidado, Sharon, filha, a tua mãe nunca te avisou de que podias ficar com a cara assim para sempre? Acho que não - murmurou Mari, pondo a guitarra ao ombro.

 

Samantha entrou outra vez na sala à beira das lágrimas. Bryce interceptou-a e levou-a de novo lá para fora, enquanto Drew passava pelo piano a passos largos e desaparecia pela porta do escritório.

 

Aproximando-se do microfone, Mari tocou um acorde e começou a cantar uma música de Mary-Chapin Carpenter, pensando que a vida em New Eden se revelava cada vez mais curiosa.

 

J.D. ouviu a voz dela antes de entrar no salão. Velada e grave, cheia de emoção - sofrimento, confusão, saudade de alguma coisa fora do seu alcance. Entrou e ficou na sombra, junto da porta.

 

Estava sentada num banco diante do pequeno conjunto, uma luz a doirar-lhe o cabelo. Segurava uma velha guitarra que parecia fazer parte dela enquanto a tocava, movendo os dedos pelas cordas, donde tirava uma lenta melodia melancólica. Cantava um relacionamento que tinha arrefecido. Um homem que se escondia atrás dum muro de silêncio e indiferença, deixando por dizer palavras dolorosas, com um invisível peso opressivo. Uma mulher incapaz de evitar uma perda inevitável, um lamento pelo que podia ter acontecido, mas nunca aconteceria.

 

Pensou que talvez já tivesse ouvido a canção, mas nunca cantada assim - com a dor da perda quase palpável. Tentou não ouvir as palavras, tentou desligar-se do sentimento de culpa que lhe ecoava no peito com cada nota da guitarra, Tentou dizer a si próprio que não tinha motivo para sentir culpa. Não tirara muito mais do que aquilo que ela oferecera. Que diabo, não tirara assim tanto. Porém, com esse pensamento, sentiu pena e não vingança, de maneira que afastou a sensação tão depressa e cruelmente como o resto,

 

Entre versos e música, foi avançando junto à parede e acabou por se sentar numa cadeira desocupada no extremo da zona do palco, mas os olhos dela descobriram-no imediatamente na luz fraca. Pareceu-lhe que a voz se tinha modificado ligeiramente, mas os dedos não hesitaram nas cordas. Quando tocou as últimas notas, deixou pender a cabeça de encontro à velha guitarra e a cabeleira indomável escondeu-lhe o rosto. Ficou imóvel, com as pessoas a aplaudir, e depois poisou a guitarra e afastou-se, saindo pela porta lateral.

 

o trio começou a tocar uma peça dejazz. J. D. levantou-se e passou diante deles, dirigindo-se à porta por onde Mary Lee tinha saído.

 

-Qual é a tua, Rafferty? - perguntou ela, assim que ele apareceu na varanda.

 

Estava encostada ao gradeamento, com os braços cruzados; um raio de sol que ainda brilhava, prestes a desaparecer, iluminava-lhe a silhueta.

 

- Deste-me cabo da manhã e da tarde. Só ficas contente quando me estragares também a noite? - perguntou ela, de olhos semicerrados.

 

- Tentei apanhar-te na quinta, mas já tinhas saído.

- E agora queres estragar-me a noite diante de cem testemunhas. Só assim é que te sentes bem!

 

  1. D. aceitou as piadas sem se queixar. Supunha que as merecia. Fosse como fosse, era melhor assim, que ela contínuasse zangada com ele, que o atacasse em vez de se aproximar. Preferia ser um filho da mãe naquele momento do que destruido mais tarde por uma emoção que não tinha qualquer utilidade. Ou, pelo menos, era o que dizia a si próprio.

 

-Não tenho de te aturar, sabes? - continuou ela, com voz rouca e os músculos da cara a contraírem-se. Piscando os olhos, afastou-se do gradeamento e tentou passar por ele.

 

,-Nunca quis magoar-te, Mary Lee. De facto, até vim aqui para não te magoares - disse ele, apanhando-a por um braço e puxando-a para si.

 

Mari olhou para ele, furiosa, e libertou-se bruscamente.

-Esse barco já partiu há muito tempo, comandante! Tentou de novo afastar-se, sem saber muito bem para onde, sabendo apenas que não queria vê-lo quando lá chegasse. Mas o que ele disse a seguir fê-la parar imediatamente. -O Miller Daggrepont morreu.

 

o choque foi como um murro no complexo solar, fazendo-a ficar sem respiração. Voltou-se para ele, cambaleando ligeiramente.

 

O quê? o que é que disseste?

 

- o Miller Daggrepont morreu. Encontrei-o no riacho esta tarde. o Quinn acha que ele teve um ataque de coração.

- E tu, o que é que achas?

 

- A mim, parece-me que alguém o estrangulou.

 

,Mari levou automaticamente a mão ao pescoço. Dirigiu-se novamente ao ponto onde estivera antes de J. D. chegar à varanda e encostou-se ao gradeamento, a olhar para a escurÍdão cada vez maior. Mas não viu os montes a ficarem arroxeados. nem o tom alaranjado do céu, nem a parada de carrinhas a dirigir-se para o Inferninho.Viu o advogado de Lucy. com aqueles olhos esquisitos a rolar por detrás dos grossos vidros dos óculos enquanto um assassino sem rosto o estrangulava. A imagem fê-la estremecer.

 

  1. D. aproximou-se, poisando a mão no ombro dela e passando-lha pelo braço. Um ou dois centímetros separavam os corpos de ambos. Ela só tinha de se encostar um bocadinho para trás para ficar envolvida no seu calor, na sua força. Ele tomou a decisão e encurtou a distância, encostando-lhe a cara ao cabelo.

 

Foi um gesto a um tempo estranho e automático nele, natural. Não era do género de oferecer conforto facilmente, mas ela parecia tão pequena, tão perdida... E, apesar de todos os avisos que fizera a si mesmo, apesar de todas as coisas horríveis que lhe dissera, a ela, o sentimento de posse continuava ali, dentro dele, básico, primitivo, em resposta a um chamado dela. Ela estava vulnerável; ele queria ser a sua força. Ela estava assustada; ele queria ser a sua coragem. Era idiota e perigoso. Achava ele...

 

Mari não duvidava de que, no fim, ele acabaria por a afastar se se aproximasse de mais. Mas entretanto... entretanto, podia fechar os olhos por um instante e imaginar... fingir.. desejar.. esperar.. todas aquelas coisas fúteis e ingenuas.

 

Meu Deus, és tão idiota, Marilee... ficaste com um homem que não amavas e amas um homem que nunca pode ser teu... Ele tornara isso bem claro. Qualquer ternura que lhe dispensasse agora era um presente ou, pior ainda, um meio para atingir um fim. Mas, apesar de tudo, queria... e desejava... e esperava... Agarrou o gradeamento com força e ficou à espera.

 

- o Quinn vai mandar o corpo para Bozeman para ser examinado - disse ele.

 

-Porque é que estás a contar-me isso? -Porque ele era o advogado da Lucy.

 

-E então? Tu achas que a morte da Lucy foi um acidente... Não lhe dás qualquer importância, seja como for...

- Isso não é verdade.

 

- É, sim - contrapôs ela, com uma gargalhada e voltando a cabeça para ele. - Estás-te nas tintas para toda a gente, não te lembras, J.D.? És o lobo solitário a proteger o território. A terra é a única coisa que te interessa.

 

- Há provavelmente uma dúzia de pessoas que gostaria de ver o Miller morto - continuou ele, ignorando a questão dos sentimentos tão habilmente como os próprios sentimentos. - Ele tinha a pata numa data de negócios duvidosos de terras. Mas, se isto tem alguma coisa a ver com a Lucy, também pode ter a ver contigo. E eu não quero que tu morras, Mary Lee.

 

-Bom, suponho que isso é um conforto - exclamou ela sarcasticamente, voltando-se para ele, de braços cruzados e o queixo erguido em desafio. - Mas, afinal, se eu morresse, ias ter dificuldade em lixar-me para me tirares as terras da Lucy, não ias?

 

Queria magoá-lo, como ele a magoara primeiro, por issso marcou-o na integridade e no orgulho. Mas não se sentiu melhor por ver os olhos dele semicerrarem-se nem o maxilar endurecer. Só se sentiu ainda mais sozinha.

 

Ele inclinou-se para ela, grande, duro e ameaçador, apoiando as mãos no gradeamento de cada lado dela.

 

- Admito que quero as terras - disse ele, com a voz perturbada e ameaçadora. - Mas a parte de lixar foi apenasdivertimento. Vais dizer-me que não gostaste, Mary Lee!

- Filho da mãe!

 

Os olhos dele tinham uma expressão dura como granito.

- Diz lá que não querias. Estiveste-te nas tintas para o que eu queria, desde que te proporcionasse um bom bocado.

- Acho que estás a confundir-me com outra pessoa - protestou ela, indignada. - É pena ter morrido. Começo a pensar que tinham sido feitos um para o outro.

 

J.D. afastou-se um pouco e desviou o olhar, com as mãos na cintura dela. Não gostava do papel que estava a tentar representar. Odiava-se mesmo por isso. Os jogos tinham sido o forte de Lucy e não dele. Ele fora educado para rir honestamente. Isso fazia parte do código. Deus o ajudasse por ter deixado chegar àquele ponto.

Mari olhou para ele, com os grandes olhos cheios de lágrimas e reprovação, e ele sentiu o peso desse olhar a enfrentá-lo mais uma vez, a lutar por si própria,

 

-Eu preocupei-me com o que tu querias, J. D. o meu erro foi pensar que tinhas alguma coisa em ti que compensava aturar as tuas parvoíces machistas, alguma coisa de bom, alguma coisa de terno. Fui estúpida em julgar que ias deixar-me encontrar essa coisa, ou que existia sequer,

 

Deu uns passos com as botas a ressoar na madeira da varanda, com os braços em volta do corpo como se tivesse frio. Quando se voltou para ele, uma madeixa de cabelo loiro despenteado caiu-lhe para o rosto e ela atirou-a para trás.

 

- Estás sempre a confundir-me com a Lucy. Bom, vou esclarecer umas quantas coisas, vaqueiro. Eu não sou a Lucy. Não gosto de ser usada, não gosto que me façam mal e não faço jogos. Quando me interesso por alguém, é a sério... Nem sempre é inteligente ou a melhor solução, mas a sério. Se não queres, paciência. Tu é que perdes. Mas não me apareças a dizer o que devo fazer, em quem confiar ou onde é o meu lugar ou não é o meu lugar. Não podes ter as coisas à tua maneira, J. D. Não podes levar o que queres e deixar o resto.

 

  1. D. baixou a cabeça e suspirou. A pressão que sentia no peito era enorme. Não queria experimentar aquele tipo de emoção. Disse a si próprio que nunca quisera, que nunca passara noites acordado a desejá-la. Era muito mais fácil manter-se intacto sem ela. Tinha lutas a travar, um rancho para dirigir. Não podia gastar energia desnecessariamente.

 

Mari olhava para ele, contendo a respiração, à espera. A parte tola do seu coração esperava que ele lhe pedisse perdão e confessasse os seus sentimentos. Tola com T grande. Ele não era esse género de homem. A ternura que vislumbrava fora uma aberração. Crescera duro para cuspir pregos e lutar com ursos, era um homem feito para a vida que havia herdado. Mas essa dureza tinha o seu preço e não acabava magicamente fora do coração. Não podia mudar o passado dele nem alterar as regras segundo as quais vivia. o que possuíam juntos não representava aquilo de que ela precisava e não valia a pena tentar conservá-lo. o melhor era acabar com tudo depressa e afastar-se.

 

A porta lateral do salão abriu-se e Drew espreitou, fixando ora um ora outro.

 

- Está tudo bem, querida?

 

Mari susteve a respiração mais um pouco, mais uns segundos de esperança vã, de olhos pregados na cabeça inclinada de J. D. Rafferty. Mas ele não abriu a boca.

 

-Não, mas isto passa - murmurou ela.

 

Passou por Drew na porta e dirigiu-se ao lavabo das senhoras.

 

À uma e meia da manhã, só restavam os empregados no salão do Alce Alegórico. Tony, o empregado do bar, limpava garrafas e arrumava-as por baixo do espelho de moldura doirada de Madame Belle. Um empregado incrivelmente parecido com o Mickey Rooney colocou as cadeiras em cima das mesas e depois aspirou o chão. Gary e Mitch, os companheiros do trio de Drew, despediram-se e saíram juntos, a falar de música. Kevin estava na caixa registadora, atrás do balcão a conferir os recibos e a rir das anedotas de vaqueiros contadas por Tony. Mari meteu a guitarra no estojo e fechou-o.

 

-Quer falar do assunto? - perguntou Drew. Encontrava-se de pé junto do piano, a curta distância. Mari abanou a cabeça. Forçando um sorriso, levantou-se e pegou no estojo da guitarra como se fosse um parceiro de dança.

 

-Não há grande coisa para falar. Segui o coração, o coração nunca é uma coisa muito inteligente.

 

- Talvez não, mas imagine que sítio formidável seria o undo se todos ousássemos fazer isso! - disse ele, de testa franzida. - Olhe, se resolver que precisa dum ouvido ou un ombro para chorar, sabe quem deve procurar.

 

- Obrigada.

 

- Veja se dorme, querida. Parece esgotada.

 

-E... Bom... começou como um daqueles dias em que o cabelo está horrível e depois ainda piorou - proferiu Mary, encolhendo os ombros.

 

-Quanto àquela outra coisa... não pense nela, querida. Nada de bom pode vir daí e não gostava de a ver magoar-se a tentar modificar uma coisa que não pode ser modificada - disse Drew, com um sorriso, mostrando-se sério, depois.

 

Mari ficou a olhar para ele a passar por entre as mesas, recordando outra frase de Lucy: Todos os que prestam são capados ou maricas. Tinha a certeza de que Drew sabia mais acerca da vida de Lucy do que lhe contara, mas ele dissera que não podia esclarecer a morte dela e tinha de o aceitar como verdade. Era demasiado bom amigo para esconder uma coisa tão horrível.

 

Despediu-se de Tony, saiu pela porta lateral e deu a volta ao edifício, parecendo-lhe ouvir a discussão com J.D. por trás dos seus passos. Ignorou esse eco o melhor que pôde. Apesar de ter dormido pouco na véspera, estava demasiado enervada para ir direita para o quarto. Não lhe parecia que encontrasse grande consolo no sono. Tinha demasiadas coisas a fervilhar no subconsciente para poder descansar.

 

Pensou em ir até à quinta, em levar uns cobertores até ao campo para dormir sob as estrelas entre os lamas, mas visões de ursos-pardos e de loucos a vaguear afastaram essa fantasia. Miller Daggrepont tinha sido encontrado no meio dum sítio isolado. Como Lucy. E também não conseguiria adormecer no quarto de hóspedes da quinta. Para além de ter medo, o simples pensamento de passar lá a noite sozinha enchia-lhe a cabeça com o quente cheiro masculino de J. D. Rafferty. Maldito vaqueiro casmurro.

 

Ele julgava que tinha de enfrentar o mundo inteiro com uma mão atada atrás das costas e ninguém ao lado. Era o Alan Ladd no Shane, ainda maior e mais macho, o John Wayne sem o andar esquisito, o Hércules a cavalo, o Super-Homem com chapéu de vaqueiro. Cavalheiresco e cruel, Duro como granito. Vulnerável como um coração despedaçado. Não admitia que gostava de alguém, nem de Tucker nem do irmão e certamente não dela, a forasteira.

 

Outra vez com os romantismos, Marilee? Isso é mesmo teu.

 

Ele não era um herói do cinema. Era duro como pregos e só a queria para aliviar o seu desequilíbrio de testosterona e aumentar a sua propriedade. Nada havia de terrivelmente romântico em tal coisa.

 

Enquanto tentava convencer-se da sua malvadez, lembrou-se dele de pé junto do celeiro, onde pensava que ninguém o via, a olhar para aquelas terras que amava, com uma terrível máscara de desespero na cara.

 

Meio resignada e meio aborrecida, caminhou pela erva coberta de orvalho até ao seu pedregulho preferido e trepou para se sentar e observar New Eden. Rectângulos de luz doirada marcavam as janelas de quartos no Alce, onde as pessoas estavam com dificuldade em sossegar. Pensou quais daquelas luzes seriam as de Drew e Kevin e se Drew esconderia muita coisa do sócio. Pensou se alguma vez tinham o género de discussão em que um deles se afastava do outro como se tivesse o coração cheio de nódoas negras.

 

As coisas ainda não tinham acalmado no Inferninho,iluminado como uma casa a arder. o barulho atravessava as paredes, perdendo definição com a distância, de modo que Mari só distinguia as notas distorcidas duma guitarra e os sons agudos duma bateria. Pensou se Will estaria lá dentro, a beber até cair mais uma vez.

 

Sofria por ele, Will,o falhado, a ovelha negra dos Raffertys. Que sarilho... Viera para o Montana para se afastar da realidade e caíra em cheio no meio dum folhetim; os bons contra os maus, um grande proprietário contra um pequeno vaqueiro, intríga,infidelidade, e Deus sabia que mais. A estrada menos concorrida mostrava-se afinal com mais trânsito e mais árdua do que pudera imaginar.

 

Parte dela só queria afastar-se dali. Mas era uma parte pequena, uns restos da antiga Marilee. Empurrou-a e sentiu-se mais forte. Não queria deixar o Montana. Queria sentir-se bem - não apenas viver ali, mas sentir que pertencia àquele lugar. Queria pertencer tanto àquele sítio como J.D. Rafferty e os montes e o grande, imenso céu. E, para ser digna do lugar, tinha de adoptar os seus códigos: fazer o que estava certo, dar valor à integridade, à coragem e à responsabilidade. A sua primeira missão seria descobrir a verdade sobre a morte de Lucy.

 

Não era pequena tarefa e as respostas seriam dificeis. Sobretudo sem ter quem a ajudasse.

 

Inclinou a cabeça para trás e olhou para os milhões de estrelas espalhadas pelo céu nocturno, até que descobriu a estrela Polar por cima dos montes. Ficou a olhar para os pontos do feitio de diamantes e desejou apenas uma coisa, sabendo perfeitamente que não aconteceria nessa noite.

 

Will estava deitado na cama da velha carripana de Tucker a olhar para as estrelas através duma película que podia ser de lágrimas ou a névoa de demasiada bebida. Já não fazia ideia. Só era pena conseguir ainda lembrar-se. As imagens rolavam-lhe na cabeça como num filme mudo: dormia na cama da carrinha quando era miúdo, e o irmão tinha entrado e destravado o carro, fazendo-o rolar pelo pátio e pregando-lhe um cagaço. Os dois a passar a noite fora de casa, na erva para lá das cercas, onde não viam as luzes por causa do celeiro e podiam imaginar que estavam em qualquer sítio.

 

Depois, de súbito, tinha quinze anos e estava a cozer a piela nas traseiras da carrinha de Tucker, a olhar para o céu a andar às voltas e amaldiçoando Deus por lhe ter dado um filho da mãe teimoso como pai e um irmão que o fazia parecer bonzinho, em comparação. Desejando poder ser livre e ao mesmo tempo mais como o irmão. Queria ser tudo para toda a gente. Em vez disso, era nada, Não era suficientemente bom para ser um Rafferty. Não era suficientemente duro para dirigir o rancho. Era filho da sua mãe - um crime que o tornava suspeito aos olhos de todos os vaqueiros do vale, um título que fazia dele um príncipe entre o grupo com quem a mãe andava. Príncipe dos que nada faziam, dos inúteis.

 

Depois, passaram por ele mais uns anos e estava deitado nas traseiras da sua própria carrinha, com Sam a seu lado, um sorriso idiota na cara e uma sensação de calor no meio do peito. Sentindo-se nervoso, à beira de qualquer coisa nova, qualquer coisa que não sabia como se chamava.

 

E depois estava sozinho, estacionado defronte da casa que a família de Jerry Mason tinha abandonado a meio da noite por umas dificuldades com os credores de Jerry. Sozinho e bêbedo, a ouvir o trabalhar dum motor Mercedes diante da casa que costumava partilhar com a ex-mulher, ex-mulher, ex-mulher..

 

Agora ficas livre, rapaz.

 

Livre do rancho, livre de J.D., livre de Sam. Livre para ser eu mesmo.

 

o medo começou-lhe no ventre e acabou por engolfá-lo totalmente. E as estrelas dissolveram-se com as lágrimas que lhe corriam pela cara.

 

Sharon voltou a cara para um céu negro como breu e salpicado de pontinhos luminosos, tentando imaginar o calor de todas aquelas estrelas a entrar nela, a alimentá-la, a recarregá-la. Mas a luz delas era fria e branca e nada sentiu a não ser um grande vazio.

 

Estava deitada numa espreguiçadeira na varanda do quarto, nua e sozinha, com o longo corpo anguloso estendido e os seios aumentados com silicone espetados para o céu como pirâmides. Sabia que podia ser observada pelos empregados da quinta que viviam num apartamento por cima do estábulo dos cavalos, sabia que um deles estava a espreitá-la, mas não se importava. Noutra noite, talvez até representasse para ele. Noutra noite, podia até convidá-lo a juntar-se-lhe como já acontecera, porque ele partilhava do seu gosto pela brutalidade e porque a ideia desse género de luxo com um homem feio e sujo lhe parecia excitante. Mas nessa noite tinha outras coisas em que pensar.

 

Bryce ainda não tinha subido para se deitar. Estava no santuário do escritório, a reflectir.

 

Não era uma ocorrência invulgar. A mente dele era como um relógio suíço - peças de precisão a funcionar perfeitamente, ideias a passar pelo maquinismo. Aquela parte e uma ausência de consciência haviam feito dele um homem rico, coisa que ela respeitava. Mas suspeitava que essa noite ele não estava a pensar em negócios, mas sim em Samantha Rafferty, e isso era como uma faca espetada no seu peito.

 

A obsessão aumentava, como tinha acontecido com Lu cy MacAdam. Com Lucy, a atracção fora o seu estilo e a a astúcia combinados com um autoproclamado poder sobre os homens. Tinha sido um embate de vontades, uma união de serpentes. o encanto de Samantha Rafferty era o oposto em tudo: inocência, insegurança, sinceridade.

 

Sharon fechou os olhos, ignorando o céu e enchendo a cabeça com a imagem do primo e da rapariga juntos, atormentando-se com a visão. Sentiu-se percorrer pelo medo, com o coração apertado como que envolvido por um pitão. imagens inclinavam-se, modificando-se. Os parceiros mudavam, lembranças de passadas degradações, coisas que fazia por Bryce, a Bryce, a si própria. Tudo por ele.

 

A rapariga nunca seria uma parceira forte para ele e a i inocência ia acabar por o aborrecer. Os gostos dele iam repugnar-lhe, a ela. Sharon tentou acalmar-se com essa ideia. Fechou os olhos e pensou no primo, satisfazendo-se com o seu próprio toque enquanto o imaginava. Amava-o.

 

era a única pessoa do mundo que amava - incluindo ela mesma. Quando chegou ao fim e estava a pensar nele, viu estrelas por detrás das pálpebras e sentiu um calor vindo de dentro.

 

Quando abriu os olhos, porém, estava sozinha e as estrelas a um milhão de quilómetros de distância.

 

  1. D. sentara-se com as pernas penduradas no cimo dos degraus da entrada, a olhar para o céu da noite. Um céu lím_ pido, de bom tempo. Iam ter um dia perfeito para levar o gado para a pastagem superior - mas não podiam levá-lo no dia seguinte, porque lhes faltava um homem.

 

Devia estar contente com o facto de o irmão se ter ido embora e se acabarem as asneiras, as questões de lealdade ou dever, a incerteza das suas desaparições para entrar em rodeos ou para perder ao jogo dois meses de pagamentos ao banco. Acabadas as recordações da triste história dos irmãos Rafferty. Devia estar contente. Em vez disso, havia um enorme vazio dentro de si.

 

Podia atribuí-lo a uma data de coisas - não ter jantado por estar ocupado nas margens do riacho com o xerife e os seus ajudantes, o espectro dum futuro incerto que pairava sobre o rancho, os becos sem saída que encontrava nas suas tentativas de evitar que Evan Bryce comprasse a K Voadora. Mas essas respostas não eram verdadeiras e ele nunca fora mentiroso. Orgulhava-se disso e de outras coisas a que ninguém parecia ligar importância senão ele. Integridade. Responsabilidade. Coragem para fazer as coisas certas, as coisas dificeis.

 

Que importância tinham, se só lhe importavam a ele? E valeria a pena, se ele era o último da sua espécie? Tenho pena de ti, Rafferty. Vais acabar com as terras e nada mais.

 

Por Cristo, detestava ironias e detestava não ter razãO. Nunca quisera que o irmão fosse parte dele ou das terras. E agora ele fora-se embora. A relação tortuosa e cheia de conflitos rompera-se finalmente. E sentia-o. Muito.

 

Nunca quisera gostar duma mulher. E então aparecera Mary Lee, dum mundo em que não confiava e desprezava, o ser menos indicado para ele. E gostava dela. Ao encontrar o corpo de Daggrepont, sentira medo. Medo por ela.

 

Não podes ter medo por uma pessoa que não é importante para ti, pois não, J D

 

Nunca fora mentiroso. Mas aquilo era uma enorme mentira.

 

Tentou convencer-se de que não estava afectado pelas lágrimas ou pelas palavras dela na varanda do Alce Alegórico; que não fazia mal tê-la magoado ou ser o maior filho da mãe a seguir a Evan Bryce. Não serviam um para o outro. não precisava duma mulher do género dela. E para que quereria ela um homem como ele? Era uma mulher moderna, muito ínteligente, no limiar duma nova vida. Ele era uma antiguidade, com um estilo de vida obsoleto, atado a uma tradição que o arrastava para baixo como uma âncora no mar alto, com habilidades que não interessavam, um solitário autodidacta que aperfeiçoara a solidão até à perfeição e lhe chamava paz interior.

 

Nunca fora mentiroso. Uma ova, J. D.

 

- Bela noite.

 

,Chaske apareceu do nada e sentou-se ao lado de J. D. À luz das estrelas, parecia uma versão americana nativa do Willie Nelson: as longas tranças, a faixa na cabeça, as calças de ganga desbotadas e uma camisola de algodão de mangas curtas. J. D. lançou-lhe um olhar de esguelha.

 

-Também vais dizer que sou uma besta? - desafiou. o Tucker chegou primeiro.

Chaske encolheu os ombros, como quem diz que se ganha umas vezes e se perde outras, e tirou do bolso o material para enrolar um cigarro. A mortalha brilhou, branco-azulada, na escuridão.

 

-Não preciso de ouvir isso - insistiu J. D.- Hum...

o WílI é como é, e eu sou como sou. Este dia tinha de chegar.

 

Hum - tornou a fazer o velhote, abrindo o saco de algodão e deitando uma linha de tabaco no papel vincado ao meio. Atou de novo o saco, com a ajuda dos dentes, enrolou o cigarro e lambeu a orla da mortalha num movimento que aperfeiçoara ao longo de muitos anos.

 

O Will foi-se embora e vamos ter de nos habituar a isso - continuou J. D., mais para si próprio. - Amanhã faÇO uns telefonemas para arranjar um empregado. Ainda podemos levar o gado lá para cima antes de quarta-feira.

 

Chaske acendeu um fósforo de cera raspando-o no degrau e protegeu a chama com as mãos, criando uma bola de luz quente. Levou o seu tempo, concentrando-se no momento e saboreando a primeira fumaça. Por fim, exalou e disse:

 

O gado pode esperar. o pasto está melhor daqui a uma ou duas semanas, agora que já choveu.

 

  1. D. estudou o velho rosto enrugado, uma fisiOnomia impassível que nada deixava transparecer e, ao mesmo tempo, transmitia muitas verdades mais profundas do que as das suas palavras.

 

- Ele não volta, Chaske. Desta vez, não.

 

Chaske resmungou qualquer coisa, sempre a olhar para a noite. Apertando o pequeno cigarro entre o polegar e o indicador, deu outra longa fumaça e prendeu-a. Quando a deitou fora, o aroma do haxixe perfumou o ar.

 

-- o gado pode esperar. Tens muito gado. E só tens um irmão. - Deu outra fumaça, até parecer que segurava apenas uma ponta incandescente, apagou a beata no chão e atirou-a para longe. Lenta e graciosamente, levantou-se, espreguiçando-se como um gato. - Tenho de ir. Tenho um encontro.

 

- Já passa da uma da manhã - observou J. D., erguendo as sobrancelhas.

 

- Ela é do tipo mocho. Um homem tem de apreciar cada mulher pelas suas qualidades e esta tem algumas bastante boas - afirmou ele, acenando com a cabeça. o Willie Nelson a fazer de chefe Dan George, sabedoria de calças de ganga e camisola de algodão. - Essa loirinha... aposto que também tem as suas qualidades. Há qualquer coisa nela. Talvez fosse melhor tentares descobrir.

 

J.D. contraiu os maxilares, engolindo a vontade de lhe dizer que se metesse na vida dele, mas as regras normais não se aplicavam a Chaske. Ele afirmava que as suas ligações com os antigos místicos lhe permitiam viver num plano diferente. Isso, ou o que ele metia nos pequenos cigarros que fumava.

 

- Ela está só de passagem, Chaske. Seja como for, não tenho tempo. Alguém tem de manter isto a funcionar. Tanto quanto sei, foi só para isso que eu nasci, para manter o nome dos Raffertys no título de propriedade - disse ele, fazendo uma careta por deixar transparecer tanta amargura.

 

- o que é difícil, se não houver mais Raffertys depois de ti - lembrou o velhote, voltando-se de novo de perfil para olhar para a propriedade e para além dela, parecendo querer abranger todo o montana com o olhar. - o homem vem e vai, mas a terra está sempre aqui. o homem branco nunca percebeu isso. Só somos donos das nossas vidas. Tudo o que deixou por dizer exercia um peso sobre os ombros de J. D., obrigando-o a suspirar. Estava demasiado cansado para discutir filosofia, demasiado exausto para defender os princípios da tradição ou para tentar impressionar Chaske com o código de honra e responsabilidade do homem branco. Aliás, era impossível impressionar Chaske que estava acima de tudo, no seu plano com os místicos.

- Bela noite - disse o velhote, apontando para o céu com o queixo. - Olha para aquelas estrelas todas. Bela noite para os mochos - comentou depois, deitando uma olhadela a J. D. com os pequenos olhos escuros a brilhar, divertidos.

 

Levantou-se e foi-se embora, deixando J. D. com a noite e as estrelas só para si. Sozinho. Como lhe competia, disse para si. Durão. Não precisava dos outros. Nunca precisara. Meu aldrabão...

 

Townsend estava sentado à secretária, sem reparar na noite lá fora, uma faixa de veludo com lantejoulas. Tremia e sentia-se agoniado. A língua parecia uma enguia inchada dentro da boca e mal o deixava respirar sem sufocar. Tinha

o nariz a escorrer em fio, as lágrimas a caírem-lhe dos olhos, fazendo-lhe arder as pálpebras. Um resto de cocaína brilhava na madeira escura da secretária. Não sabia que porção utilizara e quanta estragara empurrada para o cesto de papéis enquanto chorava. Em cima do belo pó branco, estaum revólver.

 

Um Colt Python, de seis tiros, com um cano enorme pateticamente fálico, mas também ele era patético. Com cinquenta e dois anos, sempre a tentar mover-se no meio das figuras mundanas, engraçando com uma mulher que podia ser sua filha. Tinha comprado a arma para impressionar Lucy. Lucy, a sua obsessão, o seu demónio. Tudo acontecera por causa dela. Ela é que o levara pela estrada de tijolos amarelos até Ozedaí para o inferno.

 

Nessa mesma manhã, parecera-lhe que era capaz de sair do poço, de salvar alguma coisa da sua vida, de se libertar do lixo e de se purificar, de começar de novo. Mas não. Outra sanguessuga aparecera para se agarrar a ele. Nunca se libertaria. Agora, não. Agora, já não.

 

o advogado gordo - Daggrepont - estava morto. Não quisera matá-lo. Estavam na margem do riacho, a conversar, com os pássaros a cantar, sobrepondo-se ao som da água. o Sol brilhava sobre eles e os montes rodeavam-nos no vale de veludo verde. Toda aquela beleza... e Daggrepont, a personificação da fealdade, um saco gordo e grotesco de ganância com a avareza a brilhar-lhe nos olhos...

 

... Sabia umas coisinhas sobre Lucy e ele... que deviam valer um dólar ou dois... não era ganancioso, queria apenas o que lhe era devido por não dar com a língua nos dentes...

 

Num minuto estava ali a ouvir a música do montana enquanto aquele sapo cuspia veneno e lhe chamava «um negócio», «um acordo de cavalheiros». No minuto seguinte, tinha as mãos enterradas no monte de gordura em volta do pescoço dele. Vira a cena como se estivesse fora do corpo, como se as mãos que estrangulavam o homem pertencessem a uma terceira pessoa anónima.

 

A estrangular, a estrangular, a estrangular. Os olhos do advogado rolavam por trás das grossas lentes dos óculos e a língua saía-lhe da boca enquanto a cara grotesca ia ficando cada vez mais roxa. Ouvira gritar, um longo rugido que podia ter saído da sua própria garganta ou estar apenas dentro da cabeça. Não sabia, era incapaz de dizer.

 

Um bocadinho de sanidade chegou-lhe ao cérebro e tirou as mãos afastando-se do homem, recuando como se fosse movido a jacto. Mas ele continuou sufocado, com os olhos revirados e a língua pendurada. Tinha a cara da cor duma beringela e espuma a sair-lhe da boca. Finalmente. caiu, com os braços e as pernas a agitarem-se com violência. Townsend ficou a olhar, alucinado, parecendo-lhe que os seus braços tinham crescido e os polegares continuavam a exercer pressão na traqueia do gordo.

 

Daggrepont tentou pôr-se de pé, mas não conseguia controlar o corpo, acabando por cair na água entre a vegetação da pequena lagoa.

 

Foge. o seu primeiro pensamento tinha sido de fugirMas enquanto conduzia o Cherokee para a cabana, outros pensamentos lhe atravessavam a mente em pinceladas de cores vivas. Provas. Iam encontrar provas. Marcas de pneus.

Iam haver marcas de pneus. E pegadas. Marcas no pescoço do morto. Provas escondidas algures, ligando Lucy a Townsend e a Daggrepont. Não teria uma explicação simples para esconder a verdade dessa vez. Mesmo naquele ermo, um médico legista reconheceria as marcas dum estrangulamento. Estava tudo acabado. Não tinha salvação. Não haveria renascer. A sujidade em que a sua vida caíra nunca mais saía. Era como tinta ou óleo de lubrificar, e cada movimento seu, cada pensamento, espalhava-a sobre mais um pedaço da sua alma. Estava arruinado, graças a Evan Bryce e a Lucy. O diabo e a sua parente.

 

Não tinha volta. A verdade envolveu-o como uma fria mortalha preta, como o grande céu negro do montana. Um céu sem paraíso por cima, negro como a morte.

 

Com uma mão a tremer, tirou o auscultador do telefone e carregou no botão para marcar o número de Bryce. Com a outra, pegou no revólver.

 

As estrelas eram como promessas no céu, brilhantes e distantes, demasiado longínquas para dissipar a escuridão. Em volta dele, a noite era dum negro-mate, carregada de electricidade. Sentiu os pêlos na nuca e nos braços eriçarem-se como aparas de metal a dançar sob o magnetismo da lua... A dançar sob a Lua. Como a loira dançara a descer a encosta, indo dum lado para o outro, com o cabelo a abanar atrás dela. Uma onda de seda. o luar dava-lhe um tom prateado à pele e brilhava-lhe nos olhos e nos ferimentos. Del foi para trás da árvore e apertou os olhos com tanta força que a cor lhe explodiu por trás das pálpebras, vermelho e amarelo, como o clarão dos mísseis por cima dos arrozais. Sentiu o efeito das explosões na pele, o cheiro do napalm e o fedor pútrido e adocicado de carne humana a arder e a apodrecer.

 

Então, abriu os olhos e o Vietname desapareceu. A brisa refrescou-lhe o suor na pele e encheu-lhe a cabeça dos aromas de pinheiro e terra húmida. A guerra desapareceu.

 

Apertou a espingarda contra si como uma amante e esfregou os lábios no cano oleado, num beijo distraído, um reflexo supersticioso, como se a arma tivesse afastado os seus fantasmas.

 

Um grito agudo atravessou-lhe os tímpanos, como unhas num quadro negro. Os velhos fantasmas tinham desaparecido e novos tomavam o seu lugar. A loira dançava na noite como uma sereia a chamá-lo para cair em cima das rochas pontiagudas da loucura. o pânico subiu-lhe à garganta e adormeceu-lhe o lado da cara como novocaína. Ela estava ali para lhe roubar a mente, a terra, a família. Ela corria com tigres. Morrera e erguera-se de novo. Era uma criatura mítica.

 

Pensou que podia ser o seu destino, a sua missão, matá-la. Matá-la talvez redimisse a sua honra, banisse a sua vergonha, lhe devolvesse o lugar na ordem das coisas. Corrigisse todos os erros.

 

Rolando de encontro ao tronco da árvore, pôs a arma em posição e procurou a mulher com a mira telescópica, colocando as linhas cruzadas sobre o peito dela como uma bênção. Levantou o cano ligeiramente e o dedo beijou-lhe o gatilho.

 

Mata-a. Mata-a! Salva-te a ti próprio!

 

Ou salta para dentro da loucura.

 

E se o teste fosse de controlo, de bom senso, de paciência? E se ele falhasse?

 

As possibilidades atropelavam-se-lhe na cabeça como pedras numa avalancha. Viu-se a cair com elas, a descer a encosta ao lado da avalancha. A ser esmagado pelo seu peso brutal. Não sabia que fazer.

 

Mata-a. A loira continuou a dançar, a escarnecer dele, a convidá-lo, sem dar por ele. Rodopiando como um dervixe. A danÇa dos mortos. Uma aparição na noite.

 

Mata-a. Mata-te. Ela transformou-se numa mancha na erva, uma imagem

 

caleidoscópica que mudava diante dos olhos dele. A sua batalha interior apertava-lhe o coração como se fosse um trapo molhado, fazendo brotar lágrimas de dor. A tremer, largou o gatilho e apontou a espingarda ao céu, com as estrelas a nascer para cima dele pela mira telescópica. As luzes brilhantes da esperança. Ainda fora do alcance. Sempre fora do alcance.

Os juízes não andam por aí a matar mulheres...

 

Mari repetiu aquilo mentalmente como um cântico mágico para afastar o perigo, enquanto arrumava o Honda ao lado dum jipe Cherokee sujo de lama. Townsend é que tinha trazido Lucy para o Montana, Tinham sido amantes. Drew achava que ele lhe dava dinheiro - ou que ela lho extorquia, o que o tornava uma das chaves para a verdade sobre a morte de Lucy. Ou um dos suspeitos do crime. Tentou não pensar muito na última hipótese, ao subir os degraus para a porta da «cabana» do juiz.

 

Era uma casa de toros do mesmo género da de Lucy, mas maior e com uma vista mais opulenta. As traseiras davam para o pico do Irlandês, que brilhava com o seu cone de neve ao sol. Um extravagante refúgio das pressões dos tribunais. Aparentemente, a justiça tinha as suas compensações. Ou os Townsend passados e presentes tinham fortuna doutra procedência.

 

MacDonald Townsend era altamente considerado nos círculos legal e político. Mari encontrara-o uma vez e vira-O de longe em inúmeras ocasiões. Se algum dia fizessem um filme sobre a vida dele, escolheriam CharIton Heston para o papel principal e dir-lhe-iam que o representasse hirto como um colarinho de goma. Era difícil reconciliar a imagem pública com a imagem do homem curvado sobre uma mesa de bilhar a fungar uma linha de cocaína. É claro que também era difícil imaginar o imaculado americano homem público cuja mulher era presidente de metade das organizações de caridade de Sacramento, como o género de homem que se enfiava na cama com Lucy e incendiava os lençóis. Mas era.

 

A questão consistia em que mais seria ele?

 

Tocou à campainha e ficou à espera, tentando encontrar a estratégia para a conversa que pretendia ter. Matou a minha amiga parecia-lhe ligeiramente abrupto e disparatado.

 

Afinal, que o impediria de lhe dar um tiro e atirar o corpo por uma ravina abaixo? o que pretendia realmente era um indício, uma sensação, uma expressão que pudesse interpretar. Qualquer coisa mais a acrescentar à teoria que o xerife não estava interessado em ouvir.

 

Dentro da casa, um cão ladrava. Mari aproximou-se duma das aberturas envidraçadas ao lado da porta e, com as mãos em concha em volta dos olhos, encostou o nariz ao vidro. Viu um cão grande que saltava para uma porta e arranhava a madeira, sem parar de ladrar, parecendo frenético. Talvez fosse a porta dum quarto e o juiz estivesse a ter audições para substituir Lucy. Ou um escritório e conversasse com um amigo. Ou a pagar ao atirador por quem o Sheffield assumira a culpa. A figura do tio de J. D. Rafferty veio-lhe à ideia, mas afastou-a. o homem podia ser várias coisas, mas um Rafferty nunca seria um atirador contratado.

- Estás a começar a pensar como os que cá nasceram, Marilee - balbuciou, divertida e ligeiramente aborrecida com a sua defesa automática do clã. Sempre de olhos no cão e na porta fechada lá dentro, tornou a tocar à campainha, tendo o botão pressionado durante bastante tempo. Havia sempre o tal empregado de Lucy a considerar

 

a identificação do atirador. Kendall Morton, duvidosa e ruiva personagem. Pouco sabia a seu respeito, mas pela descrição parecia ser o tipo de homem disposto a dar cabo de alguém por pouco dinheiro e depois desaparecer. Pensou se seria possível obter o cadastro dele, telefonando para o apartamento do xerife e afirmando ser dona duma quinta e querer obter informações antes de o contratar. Doutra maneira, o xerife não lho mostraria.

 

Suspirou e tornou a carregar no botão da campainha. A porta lá dentro continuou fechada, mas o cão voltou-se para ela, aos saltos, com as orelhas espetadas e os olhos fixos nela. Levantou-se, encostou as patas à porta e lambeu o vidro por dentro, mesmo na cara de Mari. Era macho e evidentemente, não um cão de guarda assassino. Saltou de novo para o chão, correu à roda do vestíbulo, a ladrar, deu uma corrida para a porta fechada e voltou para Mari, a ganir,

 

Experimentou a porta. Talvez o velho tivesse tido um chilique durante as audiências com as possíveis amantes e estivesse estendido no chão do quarto a rezar para que o cão fosse buscar auxílio. Ou talvez o atirador contratado tivesse dado cabo dele.

 

A porta não estava fechada. Entrou no vestíbulo, sentindo-se como um gatuno, com o cão a saltar à sua volta e os seus ladridos a ecoarem nas paredes.

 

- Juiz Townsend? Está alguém em casa?

 

Após o terceiro apelo, o cão voltou a tentar que ela o seguisse até à porta fechada diante da qual ladrara. Tinha feito profundos arranhões na madeira e deixara um grande monte de caca ao lado duma planta não longe dali, junto duma janela. Estava suficientemente fresco para Mari franzir o nariz.

 

Encostada à porta, tentou ouvir vozes. Silêncio.

 

- Juiz Townsend? - chamou, batendo com os nós dos dedos no painel central da porta, o que provocou mais um ladrido do cão. Depois, novo silêncio. o cão meteu o focinho húmido na mão dela, como se pensasse que podia obrigá-la fisicamente a deitar a mão ao puxador. Com a testa franzida, Mari limpou a mão à perna das calças de ganga e decidiu-se a abrir a porta.

 

o espectáculo que descobriu era constituído por um incrível escritório de madeira escura e grandes janelas, uma floresta de cadeirões de cabedal e uma lareira de pedra. As cabeças de algumas infelizes criaturas tinham sido colocadas na parede por cima da lareira: um veado, um alce, um cabrito-montês e vários bichos semelhantes a antílopes,, que ela nunca vira fora das páginas da National Geographic. Na parede oposta, uma pele de zebra e outra de tigre esticadas. A disparidade de tamanho teria feito as zebras ficarem contentes por não viverem num país com tigres. A um canto, um urso-pardo estava de pé, petrificado para sempre nas patas traseiras, com os lábios retorcidos num esgar medonho.

 

No meio da parede das janelas, a secretária do juiz era um enorme móvel de nogueira com pormenores de latão. Caído sobre ela, com a cara para baixo, encontrava-se o juíz. Aparentemente, tinha enfiado o cano dum revólver na boca e fizera saltar o topo da cabeça.

 

Mari ficou ali parada um bom bocado, a olhar fixamente para aquilo, sorvendo todos os pormenores da cena. Queria afastar o olhar, mas não conseguia. o choque parecia tê-la paralisado. Estava encurralada, a olhar para o homem morto, com uma pequena parte do cérebro a estudar o jogo de luz do Sol no sangue e na massa encefálica espalhados nos vidros da janela atrás dele. Um vitral de sangue. o ar da sala aquecida pelo sol tresandava ao fedor da morte violenta.

 

Voltou a olhar para Townsend. o corpo era um invólucro morto, amarrotado. A essência da pessoa desaparecera para parte incerta. A mão direita segurava ainda a coronha da arma que lhe rebentara o topo da cabeça como a casca dum ovo quente.

 

o cérebro de Mari voltou de repente a funcionar e ela deu um salto para trás.

 

- Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! - murmurou, como se tivesse medo de o acordar.

 

Sentiu-se sufocar e o pequeno-almoço veio-lhe à boca. tapou-a com a mão e saiu apressadamente dali, tropeçando nos cadeirões. Não teve tempo para procurar uma casa de banho. Viu a cozinha directamente defronte da sala e conseguiu chegar ao lava-loiça antes que o espectáculo do juiz morto e o cheiro da merda de cão fizessem efeito.

 

Quando ficou sem vestígio das panquecas do Café Arcoiris no estômago, abriu a torneira e meteu a cara debaixo da água, como se pudesse lavar o que tinha visto. A tremer violentamente, pegou num pano da loiça e comprimiu a cara com ele.

 

o juiz estava morto. Primeiro, morrera Lucy. Depois foi a vez de Daggrepont e agora Townsend tinha-se suicidado. Parecia-lhe ver ainda a expressão de surpresa nos olhos dele como se tivesse visto qualquer coisa inesperada na fracção de segundo final entre a vida e a morte. Via também o sangue que lhe escorrera do canto da boca e fizera uma pequena poça no tampo da secretária, bem como a mão ainda a apertar a coronha do revólver.

 

Utilizou o telefone da cozinha para ligar para o departamento do xerife, a tremer de tal maneira que lhe custou marcar o número, o telefonista garantiu-lhe que iam mandar imediatamente um carro - assim que determinassem onde o juiz Townsend vivia exactamente.

 

Demasiado abalada para ficar sentada, Mari deambulou pela casa. Encontrou uma garrafa de Glenfiddich no armário da sala de jantar e bebeu um pouco para acalmar os nervos e o caos que reinava como um ciclone dentro da cabeça. o terrível retrato final do juiz não lhe saía do espírito, mas começou a concentrar-se em outros aspectos do quadro uma fatia de céu claramente visível pela janela, a balança da justiça no meio da secretária, com um prato em baixo sob o peso dum punhado de moedas e um livrinho de selos, o telefone preto e sofisticado sem o auscultador e uma luz encarnada acesa.

 

Sem o auscultador. Olhou pela janela, à espera da nuvem de poeira ao longe a anunciar a chegada iminente dum ajudante do xerife. Deu outro golinho no uísque e encostou o pesado copo frio à cara. Sem auscultador. Teria ele tirado auscultador para não ser interrompido enquanto decidia o seu veredicto final? Ou estaria a ligar para alguém?

 

Se o suicídio tinha alguma coisa a ver com a morte de Lucy... se tinha estado a falar com alguém pouco antes de disparar.. essa pessoa teria também alguma ligação con Lucy?

 

o cão entrou na sala de jantar a ganir e deu um encontrão nas pernas de Mari, olhando para ela com uma expressão preocupada nos olhos. Fez-lhe uma festa distraidamente e poisou o copo. o xerife estava farto das suas teorias e não ia querer ouvir mais uma. De certeza que não ia permitir que ela andasse ali a farejar a cena do crime. Seria sumariamente removida das proximidades, sem a mais pequena dúvida.

 

Com o cão sempre atrás dela, voltou à sala e olhou para a porta do escritório aberta, com o coração a bater violentamente e o uísque a ferver-lhe no estômago. Disse ao cão que ficasse e dirigiu-se ao escritório com o passo mais decidido que os joelhos a tremer permitiam. Sem olhar directamente para o juiz, deu a volta à secretária, parando junto do telefone com a sua luzinha a piscar qual olho sinistro.

 

o botão de marcar o último número estava mesmo à esquerda da cabeça destruída de Townsend. Concentrando-se nele, utilizou a ponta de borracha dum lápis para o pressionar. Ouviu a música electrónica da moderna tecnologia no auscultador caído no chão. Viu o número aparecer no mostrador por cima do atendedor de chamadas e ouviu o telefone a tocar no outro extremo da linha. Uma mulher com um sotaque da Europa de Leste respondeu ao terceiro toque:

 

- Residência de Mister Bryce. Tá lá?

 

Samantha espreguiçou-se na cadeira, com os olhos protegidos do sol por uns óculos escuros que custavam mais do que ganhava numa semana. Bryce emprestara-lhos. Na realidade, dera-lhos, mas sentia-se mais confortável considerando-os um empréstimo.

 

Telefonara para o emprego a dizer que não se sentia bem. Depois da discussão da véspera, tinha pouca vontade de se cruzar com Mr. Van Dellen. Bryce tinha-lhe dito que não se preocupasse, que ele se metera num assunto sem conhecer os factos todos. Que não compreendia a amizade entre eles, nem o que ela estava a passar com o marido. sentia-se protector para com ela - como um irmão - mas era irónico o facto de ele, Bryce, sentir exactamente o mesmo? Não valia a pena um conflito, quando os dois pretendiam essencialmente a mesma coisa.

 

As suas palavras tinham-na acalmado na véspera. Bastava o som da voz dele para a acalmar, rica e calorosa. Sorria com aquele sorriso de estrela de cinema, de olhos bondosos e sensatos, e por momentos a sua vida deixava de parecer tão ensarilhada. Mas quando acordou sozinha na cama com o sol da manhã a brilhar como um holofote no seu quarto miserável, o conforto que ele lhe dera havia desaparecido e a desaprovação de Mr. Van Dellen surgira de novo. Pense no que está afazer. Samantha! Você não é como eles - não percebe isso?

 

Percebia, sim. Aparentemente, toda a gente percebia que não passava duma miúda burra, escanzelada e mestiça a tentar ser uma coisa que não era. Toda a gente percebia, menos Bryce. Ele tratava-a como se ela fosse tão boa e tão importante como qualquer dos seus amigos ricos e famosos. Tratava-a como uma bela mulher, em vez de uma irmã mimada.Era isso que ela via: que tinha um marido que não se interessava e um homem - um amigo - que a tratava melhor do que o seu pai alguma vez a tratara, mesmo em sonhos. Bryce via possibilidades para ela, encorajava-a, quando tudo o que recebera até ali das outras pessoas fora piedade, troça ou absolutamente nada. Mais ninguém parecia perceber tal facto.

 

Por isso, tinha procurado refúgio junto do seu amigo. Podia passar o dia na sua casa da montanha, à beira da piscina, escondendo-se da realidade da sua vida. Podia deixar Sam, criada de mesa arrapazada, para trás, nas ruas de New Eden, e tornar-se a Samantha daquele grupo mundano por um dia. Podia estender-se junto da piscina com uma Kimball ao lado e um famoso advogado a trazer-lhe bebidas e a admirar-lhe as formas.

 

Na realidade, a última coisa deixava-a contrafeita, de maneira que se voltou de bruços e tapou os ombros com a longa cabeleira.

 

- Obrigada - murmurou, poisando a margarita numa mesa de tampo de vidro.

 

Ben Lucas dírigiu-lhe um enorme sorriso, como se ela tivesse dito alguma coisa terrivelmente espirituosa. Estava de pé entre ela e a piscina, com o bronzeado corpo de health-club tapado apenas com uns calções cor de laranja.

 

- Fica com um bronzeado melhor sem a blusa - disse ele.

 

Samantha olhou para ele, vendo a sua imagem nas lentes espelhadas dos óculos. Da colecção de roupa de praia no quarto de hóspedes, tinha escolhido um simples fato de banho turquesa, que preferia cobrir com a camisa branca que tirara essa manhã do roupeiro do lado do marido. Na cadeira à sua direita, Uma Kímball absorvia os raios de sol apenas com a parte inferior dum reduzido biquiní,, um pedacinho de tecido demasiado pequeno para limpar uns óculos de sol. o peito de uma era tão chato como o dum lobinho dos escuteiros e os bicos umas pedrinhas numas moedas de carne castanha.

 

- Eu tenho um bronzeado natural - disse Samantha, sentindo-se demasiado vestida e demasiado consciente do seu corpo de longos membros, em contraste directo com as pessoas à sua volta, que nunca pareciam conscientes de si mesmos, fosse em que circunstância fosse.

 

Sharon aproximou-se de Ben Lucas e fez deslizar um cubo degelo pelo seu lábio inferior, deixando-o depois cair no copo que ele tinha na mão. Era ligeiramente mais alta do qe ele, com umas sandálias doiradas de salto. o fato de banho parecia uma peça de gaze preta cruzada no peito, enrolada entre as longas pernas perfeitas e desaparecendo entre as suas firmes nádegas redondas.

 

-A Sam é modesta - disse ela, com um ar divertido mas tão gelado como o cubo que oferecera a Lucas. - Não é amoroso, Ben?

 

Uma voltou-se de lado, com os olhos vidrados brilhantes de espanto fixos em Samantha.

 

- Então você é realmente uma espécie de índia ou quê? -Em parte - murmurou Sam.

-Como em Uma Passagem para a Índia ou Danças de Lobos?

 

-Como no Montana. A minha mãe é cheiene. -A cantora? Que giro!

 

-Credo, Uma, alguma vez estás sem tomar alguma coisa? - exclamou Sharon, com um suspiro impaciente. A actriz fez deslizar os óculos da cabeça para a ponta do narisz arrebitado e deitou um olhar a Sharon, com um sorriso,,.

 

-E tu, alguma vez não és uma cabra?

 

Uma coisa parecida com vergonha pareceu rastejar pela pele de Samantha, perante a aversão manifestada pelas duas mulheres. Baixou a cabeça, escondendo-se atrás do cabelo escuro. As palavras de Mr. Van Dellen ecoavam-lhe nos ouvidos: A Samantha não é como eles...

 

- A Reisa está a preparar umas coisinhas para comermos - anunciou Bryce, surgindo alegremente no meio da situação. As tensões no ar não o perturbavam. Estava chique e descontraído como sempre, com umas calças brancas quase transparentes e uma camisa estampada com motivos da selva. Tinha o cabelo descolorado pelo sol penteado para trás no habitual rabo-de-cavalo. o seu sorriso era agradável, mostrando os dentes brancos na cara bronzeada, olhando para Sharon através das lentes dos óculos escuros. - Porque é que não metes os dentes numa coisa que não deite sangue, prima?

 

- Vem comigo - pediu ela, aguentando-lhe o olhar. Temos umas coisas a tratar.

 

- Daqui a bocadinho - respondeu ele, começando a voltar-se para Samantha.

 

- Bryce... - insistiu Sharon, tocando-lhe no braço, tentando levá-lo dali. Os negócios vinham sempre em primeiro lugar com ele... a não ser que estivesse pelo beicinho...

 

-Eu disse daqui a bocadinho - afirmou ele categoricamente.

 

Sharon mostrou-lhe os dentes e afastou-se sem sinal da mágoa ou do desconforto que fervilhavam dentro dela. Lucas seguiu-a com Uma atrás dele, um dedo preso nos calções do advogado e uma toalha sobre os ombros para tapar o seu projecto de seios.

 

-Já está com apetite... com todo este trabalho? - perguntou Bryce, sorridente.

 

Samantha torceu os lábios num pequeno sorriso e passou as suas infindáveis pernas por cima do braço da cadeira, sentando-se. A Mona Lisa do montana, pensou Bryce. Se ela alguma vez percebesse o poder que conseguia exercer sobre os homens, com aqueles sorrisos dela, seria formidável. Um desafio irresistível. É claro que já o era; só não o sabia ainda. E a ironia tornava-a mais desejável ainda.

 

- Lá donde eu venho, isto não é considerado trabalho disse ela, atirando o cabelo para trás.

 

Bryce sentou-se nos pés da espreguiçadeira e fez um sinal com a cabeça na direcção de Fabian, cujos peitorais exagerados brilhavam com óleo de bebé. o modelo masculino parecia profundamente concentrado inclinando o reflector solar de modo a dirigir o máximo de raios para a parte inferior da sua enorme queixada.

 

-Não lhe diga isso. Ele ganha um milhão a fazer um calendário, se conseguir ter um bronzeado uniforme.

 

Sem perceber bem se estava ou não a brincar, Samantha olhou para ele com uma mistura de cepticismo e confusão. Ele passou-lhe as costas da mão pela face e depois ergueu-lhe o queixo.

 

-Também podia ganhar um milhão, se quisesse,

 

- Eu? Não me parece - disse ela com uma gargalhada.

- Pode fazer qualquer coisa, querida. o limite... - insistíu ele, de testa franzida.

 

-É o céu - terminou ela. - Há imenso céu no montana.

 

- E muitas oportunidades noutros sítios. Você é uma rapariga linda, Samantha. Podia ser a preferida de L.A. ou Nova lorque. Só precisa de acreditar em si mesma.

 

- Eu não posso ir para L. A. Tenho marido.

- Não à vista - disse ele, sem se preocupar em disfarçar a desaprovação na voz, o que a fez encolher-se ligeiramente. Bryce decidiu pressioná-la, sem remorsos ou piedade. - Ele trata-a como uma pessoa de segunda classe. Não, pior do que isso. Trata-a como se você não existisse.

 

Samantha mordeu o lábio e afastou o olhar, fixando o,, azul da piscina, para ele não ver as lágrimas que lhe enchiam os olhos, Bryce passou-lhe um braço pelos ombros,, apertou-lhos ligeiramente, fazendo menção de lhe dar um beijo no cabelo.

 

- Desculpe, querida - murmurou, - Não quis aborrecê-la. Mas fico danado por ver que ele não faz caso de si. Estava ligeiramente admirado por ter aqueles sentimentos pela rapariga, quando uma semana antes ela não passava duma peça de xadrez. Ficou ali sentado com o braço em volta dos ombros dela, desejando-lhe coisas boas. Não se lembrava da última vez em que aquilo acontecera. Muito tempo. Nunca. Sempre se concentrara impiedosamente em si próprio. Agora, alargava um pouco o círculo para incluir Samantha. Podia ter tudo o que quisesse - o poder, as terras e Samantha - dando-lhe coisas também - oportunidades, fama - e vê-la desabrochar, sabendo que era ele o responsável. Era inebriante desempenhar o papel dum deus magnânímo, mas pensou que talvez começasse a gostar dela.

 

Pode ter muito mais do que o que ele lhe dá - murmurou insistindo no assunto, recordando-lhe que o marido apenas lhe dava sofrimento.

 

Samantha olhou para as mesas à sombra, do outro lado da piscina, onde Uma devorava uma montanha de fruta fresca. Defronte dela, Ben Lucas mergulhava um morango numa taça de champanhe, enfiava-o na boca e sorria. Sharon estava noutra mesa, ignorando os outros, folheando distraidamente a Cosmopolitan.

 

- Não me parece que a sua prima goste muito de mim -- disse baixinho.

 

-A Sharon? A Sharon não gosta das pessoas. É muito... territorial. E essa é uma das melhores qualidades dela - declarou Bryce, encolhendo os ombros e apertando um pouco o braço que envolvia Samantha.

 

-E o senhor não parece também gostar muito dela, Pensou naquilo um momento e suspirou, acariciando-lhe distraidamente o braço.

 

- Estou cansado da fitas dela, se calhar. Mas temos uma longa história, a Sharon e eu. E, afinal, é família.

 

A lealdade devia agradar a Samantha, pensou ele, fazendo-o parecer bondoso e boa pessoa, quando não era geralmente qualquer dessas coisas. E era mais fácil de explicar do que a verdade. A verdade chocá-la-ia, repugnar-lhe-ia. Era demasiado ingénua, levara sempre uma vida demasiado recatada naqueles montes, onde as pessoas ainda acreditavam em conceitos estranhos como a moralidade.

 

As portas envidraçadas abriram-se e Reisa, a governanta, avançou. Tinha um corpo que parecia um barril de petróleo e uma cara do feitio e com a expressão duma frigideira, mas sabia cozinhar e falava pouco inglês, duas qualidades absolutamente essenciais para o lugar. Marilee Jenings vinha atrás dela, e Bryce sentiu o interesse mudar de direcção e aumentar, como num cão de caça a apontar.

 

- Marilee! - chamou, levantando-se e erguendo Samantha consigo. Depois, conduziu-a à volta da piscina, para ir cumprimentar a visita.

 

Mari tentou exibir um sorriso, tarefa monumental depois de passar duas horas em companhia do xerife Quinn e dos seus ajudantes. o xerife também não ficara demasiado satisfeito ao encontrá-la em companhia dum cadáver,

 

Bryce não mostrava sinais de ter recebido um telefonema dum amigo em aflição. Se sabia alguma coisa sobre a morte do juiz, possuía o sangue tão frio como o dos lagartos que haviam fornecido as peles para fazer o cinto dele. Concedeu-lhe o seu radiante sorriso, e o Sol brilhou como uma bênção sobre a sua testa alta.

 

- Ainda bem que decidiu juntar-se a nós, afinal - dise. Sente-se. Vou dizer à Reisa que traga alguma coisa para você beber.

 

- Isto não é exactamente uma visita - salientou Mari, passando revista às pessoas presentes e voltando a olhar para ele. - Pensei que você devia saber.. visto ser amigo dele--- que o MacDonald Townsend morreu. Matou-se esta noite.

 

- Meu Deus, está a brincar! - exclamou Bryce, com a apropriada expressão de triste incredulidade.

- o meu sentido de humor não é tão negro como isso. Morreu.

 

Ben Lucas empurrou a cadeira para trás e levantou-se,, aproxÍmando-se de Bryce. Pôs os óculos na cabeça e olhou para Mari como se tivesse sido ela a puxar o gatilho.

 

o Townsend morreu? Meu Deus, que é que aconteceu? Mari encolheu os ombros e meteu as mãos nos bolsos das amplas calças de ganga. Uma suave brisa atirou-lhe uma espessa madeixa de cabelo para a cara e ela sacudiu-a abanando a cabeça.

- Não faço ideia. Não me parece que tenha deixado alguma coisa escrita. Passei por casa dele esta manhã porque,.., ele conhecia a Lucy e pensei que podíamos falar, percebem. E encontrei-o no escritório.

- Isso deve ter sido horrível para si - murmurou Bryce, aproximando-se dela e colocando-lhe o braço sobre os ombros, conduzindo-a a uma cadeira da mesa onde Sharon

 

continuava instalada, agora a olhar para eles com uma expressão impenetrável e os olhos semicerrados. - Sente-se. - Depois, olhou por cima do ombro e disse à governanta que tinha parado, indecisa, junto às portas envidraçadas: - Traga um conhaque para Miss Jenings ,Reisa, se faz favor.

 

- Não, obrigada - disse Mari. o uísque que bebera em casa do juiz desaparecera havia muito. Tinha as ideias dolorosamente claras e tencionava mantê-las assim enquanto estivesse naquele fosso de serpentes. - Uma Coca-Cola era óptimo.

 

Bryce franziu ligeiramente a testa, mas acenou para a mulher.

 

-A Polícia terá falado com a Irene? – perguntou Lucas, olhando para Bryce e depois para Mari, com os lábios apertados. - A mulher dele - explicou. Antes dela fazer qualquer comentário, olhou de novo para Bryce. - Eu telefono para ela. É preferível receber a notícia dum amigo.

 

- Claro. Liga do escritório - concordou Bryce, esfregando o queixo. - Aliás, vou contigo. Gostava de lhe oferecer toda a ajuda possível.

 

Os dois desapareceram dentro de casa e Mari teve de se conter para não ir atrás deles. Não sabia bem o que esperara conseguir dando-lhes a notícia. Bryce não lhe parecia o género de pessoa que se ia abaixo sob o peso duma consciência sobrecarregada e confessava. Nem ela ia confrontá-lo com as suas nebulosas suspeitas. Isso seria uma boa maneira de morrer, se fosse realmente ele o malvado da história, pelo menos uma excelente maneira dearranjar um poderoso inimigo.

 

Um silêncio constrangido desceu sobre o grupo. Samantha Rafferty sentou-se na cadeira deixada por Lucas e embrulhou-se melhor na grande camisa que tinha vestida, com os olhos escuros inseguros, desde que o dono da casa saíra do seu lado. Sharon continuava defronte de Mari, como uma estátua de gelo de biquíni. o modelo masculino voltou-se de bruços e flectiu os músculos das nádegas.

 

- MacDonald Townsend... Ele não entrava na série Dias das Nossas Vidas? - perguntou Uma, enfiando meia dúzia de pedaços de fruta ao mesmo tempo na boca, com uma expressão contraída, que tanto podia ser de concentração como da acidez da fruta.

 

Sharon revirou os olhos e o modelo não fez comentários.

 

- Achas que ela sabe do telefonema?

 

Bryce fez rodar a cadeira atrás da enorme secretária, com os cotovelos apoiados nos braços.

 

-Não faz diferença. o telefonema vai ficar registado e basta qualquer pessoa verificar a conta do Townsend para ver que foi feito. Por outro lado, ninguém pode provar que eu recebi o recado.

 

Pegou numa microcassete que estava em cima da secretária e atirou-a a Lucas.

 

-Malditos atendedores de chamadas. Estão sempre avariados.

 

-Ninguém podia esperar que atendesses uma chamada a meio da noite. E a essa hora, não tens pessoal para a atender por ti - disse Lucas, brincando com a cassete.

 

- É o diabo da máquina - proferiu Bryce, treinando a expressão. - Fazia tenções de comprar outra. Se já tivesse comprado... bom, se calhar tinha sido tarde de mais...

 

-Perfeito - aprovou Lucas, com um aceno de cabeça. - Uma pequena exibição de preocupação e pena. Muito credível.

 

- Podia ter sido actor - admitiu Bryce. - Mas isso não seria de certeza tão excitante.

 

Era evidente que seria demasiado tarde para salvar o juiz, mesmo que se tivesse esforçado. Ouvira o telefonema logo de manhã. Depois dum monólogo choroso de confissões e acusações, ouvira-se o som duma pequena explosão. Townsend deixara a sua última mensagem no atendedor, gravando em seguida a própria morte. Autodestruição na era da tecnologia.

 

-Nunca teve coragem - continuou Bryce, sem compaixão. - Detesto um homem que não é corajoso. Ainda bem que morreu. Não aguentava muito mais tempo vê-lo rastejar e choramingar.

 

- Desde que não tenha deixado alguma coisa que possa incriminar-nos - concordou Lucas, atirando a cassete ao ar e apanhando-a com a mesma mão.

 

-Não tinha provas. Queria jogar, mas não tinha força.

- Pode ter deixado uma declaração assinada - sugeriu Lucas com uma pequena ruga de preocupação entre as sobrancelhas, a mesma expressão que utilizava para colocar dúvidas na mente dos jurados. Tornou a atirar a cassete ao ar.

 

Bryce levantou-se da cadeira e apanhou-a num movimento ágil, deitando um olhar firme ao advogado.

 

- Não deixou.

 

Com um gesto do pulso, arrancou a fita da cassete, pegou-lhe fogo com um isqueiro de oiro de vinte e quatro qui lates e deixou-a cair no cinzeiro de bacará em cima da secretária.

 

Bryce persuadiu Mari a ficar. Foi o único a esforçar-se por isso. Ela recusou o empréstimo dum fato de banho, por não lhe parecer boa ideia estar seminua com aquela gente. Por um lado, não se achava com corpo para usar biquini. Já estava suficientemente traumatizada com a rejeição de J. D. para precisar duma comparação de umbigos com Sharon ou Uma Kímball. Sobretudo Sharon, cuja figura ficaria bem na montra duma das melhores lojas de Hollywood.

 

Além disso, com a possível excepção de Samantha, não confiava em qualquer deles. o advogado seguia-lhe os movimentos com aqueles olhos de tubarão. o olhar de Sharon era clinicamente frio, como o dum cientista que observa um rato num labirinto. o modelo ou gigolô, ou lá o que era, estava noutro planeta e Uma era doutro planeta, Mari sentia-se como se tivesse caído numa realidade alternativa, pejada de cadáveres e ensombrada de ameaças.

 

Bryce desempenhava o seu papel de anfitrião com ar comedido. Sentou-se com ela, à sombra, com Samantha à direita e um copo de uísque diante de si, sem lhe tocar.

 

- Ele estava perturbado com o acidente da Lucy - disse, fazendo desenhos com o dedo na condensação do copo.

- Suponho que isso foi um dos motivos.

 

-Eram assim tão íntimos? - perguntou Mari, sem desviar os olhos das magras mãos a acariciar o copo, commovimentos que lhe pareciam mais de impaciência do que por necessidade de acalmar alguma inquietação interior.

 

- Deu-lhe dinheiro para comprar a quinta. Ela não lhe contou? - perguntou Bryce, com um olhar inquiridor, embora sem mover um músculo e numa voz perfeitamente calma.

 

- Acho que, na realidade, não quis saber. Não sou grande defensora de relações ilícitas.

 

Samantha remexeu-se, pouco à vontade, baixando a cabeça, como se quisesse fazer-se pequenina e desaparecer. Tinha ido lá dentro vestir-se com evidente atenção aos pormenores, como uma garotinha que se mascara com a roupa da mãe, o que lhe dava o mesmo ar vulnerável que tinha em biquini. Mari pensou em Will e mordeu a língua para se penitenciar.

 

- Aí é que está a ironia, sabe? - disse Bryce com um suspiro, enquanto fazia tilintar os cubos de gelo no copo. Ele também não. Tinha uma obsessão por ela, mas sentia-se muito culpado por isso. Nunca deixaria a mulher por ela, apesar de ele e a Irene já não terem um grande casamento nos últimos anos. - Bebeu um gole de uísque e olhou para a piscina, - Disparate, agarrar-se a uma coisa sem significado, quando podia começar de novo.

 

- Talvez ainda amasse a mulher - sugeriu Samantha calmamente, mudando a posição da cadeira. - Talvez não fosse capaz de resistir.

 

- Podemos sempre fazer o que queremos, querida retorquiu Bryce com um olhar firme.

 

Os olhos da rapariga encheram-se de lágrimas e Mari sentiu vontade de a abraçar e dizer-lhe que o marido ainda a amava e que valia a pena ficar com ele e lutar por ele, mas não sabia se isso era verdade. Realmente não sabia. Era mais uma sensação, e as sensações já lhe tinham arranjado sarilhos com os irmãos Raffertys. Apesar disso, não podia continuar ali sentada a ver Bryce tentar atrair uma inocente para o seu rebanho. Seria o mesmo que assistir de mãos nos bolsos ao rapto duma virgem por uma seita satânica. Estava ali e tinha o sentido da responsabilidade. Entregara-se àquelas terras, num compromisso que nada tinha a ver com posse e tudo com integridade pessoal.

 

- Se as pessoas pudessem fazer sempre o que querem, a Betty Ford não tinha uma clínica. Há muito mais nos problemas das pessoas do que simples fraqueza.

 

A pequena boca de Bryce contraiu-se, mas Mary ignorou-o e olhou directamente para os olhos sofredores de Samantha, tentando comunicar-lhe por telepatia as aplicações pessoais da sua assimilação.

 

- Isso é uma ideia muito romântica... pensar que toda a gente pode ser salva ou vale a pena ser salva - disse Lucas. Achando, aparentemente, que a sua nudez era ofensiva para a memória dos mortos, vestira umas calças pretas e uma camisa de quadrados aberta, à moda de Bryce. - As taxas de reincidência nas nossas prisões desmentem a sua teoria, Marilee.

 

-Não estamos a falar de criminosos empedernidos. Estamos a falar dum homem bom que fez algumas escolhas erradas.

 

Ostensivamente referindo-se a Townsend, Bryce sabia bem que a conversa tinha ultrapassado o juiz. Mas não podia desafiá-la sem atacar de novo Will Rafferty, e era evidente que Samantha não estava pronta para isso. Suspirou e inclinou a cabeça, concedendo a vitória a Marilee e reavaliando-a como uma ameaça.

 

- Você tem uma ideia muito ingénua da humanidade afirmou Sharon, levando o copo aos lábios. Estava sentada entre os dois homens, ainda de fato de banho e uma camisa preta diáfana a cair-lhe dos ombros angulosos, não tapando grande coisa.

 

- Prefiro considerá-la optimista - retorquiu Mari com um sorriso débil.

 

- Estupidez! - continuou a outra, prestando atenção ao primo, por sua vez cativado por Samantha, que olhava para as unhas dos pés através do tampo de vidro da mesa.

- Toda a gente se move segundo os seus interesses egoístas. Os espertos passam por cima seja de quem for para chegar onde querem. Os impiedosos usam protectores nos sapatos, e os idiotas são espezinhados e abandonados à morte. É cada um por si mesmo.

 

-Bom, você deve saber mais disso do que eu. Tenho levado uma vida muito protegida - disse Mari, em tom agradável, notando que Sharon começava a ficar encarnada.

 

- Fique por cá uns tempos e vai ver como aprende depressa - respondeu Sharon, levantando-se e afastando-se da mesa.

 

Que Rapariga engraçada- comentou Mari, observando a figura esguia da loira abandonando a camisa à beira da piscina e mergulhando como uma foca a entrar na água. ’ Aposto que os tipos dos filmes negros acham-na divertidíssima.

 

- A Sharon aprendeu da pior maneira que a vida pode ser extraordinariamente cruel e teve de ficar com uma perspectiva de sobrevivente - disse Bryce.

 

- Hum - fez Mari, imaginando a prima dele com os olhos pintados de preto, fato camuflado e metralhadora nas mãos. Não precisou de grande esforço.

 

Do lado da frente da casa, chegou-lhes o ruído dum motor com o escape sem abafador, tão alto que conseguiu acordar Fabian do seu banho de sol concentrado. Olharam todos para a cancela lateral, na expectativa.

 

- Alguma entrega - resmungou Bryce, levantando-se. Pelo que levam por vir até cá, deviam poder fazer menos barulho.

 

Saiu pelo portão e voltou para trás pelos ares, um momento depois. A cancela de madeira bateu no muro de pedra com um forte encontrão e Bryce aterrou de rabo no pátio.

 

Endireitaram-se todos ao mesmo tempo, como uma manada de gruis prontos a fugir.

 

- Will! - gritou Samantha, pondo-se de pé.

 

Will entrou pela cancela aberta, de punhos em riste, direito a Bryce.

 

- Meu filho da mãe! Deixa a minha mulher em paz, maldito filho da mãe!

 

As palavras surgiam ligeiramente entarameladas e ele cambaleava, mas fez pontaria a Bryce, que tentava levantar-se no chão molhado junto à piscina. Com um amplo movimento giratório, Will pregou-lhe um murro valente no queixo, fazendo-o cair de novo, a cuspir sangue, e rolando para longe.

 

- Pára com isso, Will! - gritou Samantha, correndo para ele. Parte de si sentia-se mortificada com o comportamento do marido, chocada com o aspecto dele - com pontos na testa e um olho negro. Mas outra parte estava radiante por ele se preocupar o suficiente para ir ali fazer uma cena. Mil coisas passaram-lhe pela cabeça: ele amava-a, fora ali buscá-la, iam viver felizes Para sempre, Bryce iaodiá-la e as suas oportunidades para coisas melhores ian desaparecer.

 

o cérebro de Will abrandou lentamente e ele voltou-se para a mulher. Mas a jovem que viu era uma estranha, de cabelo solto numa cortina de seda negra, com pintura e jóias. As calças de ganga desbotadas e a camisola de algodão tinham sido substituídas por uma roupa chique cor de cobre, que a favorecia. Parecia um modelo, uma daquelas cabras convencídas das páginas da maldita Vogue. Não era a sua Sam. Demasiado boa para ele, a fugir do seu alcance, a querer mais do que aquilo que ele podia dar-lhe. A sua ex-mulher... ex-mulher... ex-mulher...

 

- o que é, Sam? Não queres que dê cabo da cara do teu amante? - perguntou ele, ostentando uma raiva que disfarçava o medo.

 

-Ele não é meu...

 

- Não te canses. Eu sei o que ele quer. - Voltou-se, não muito seguro nas pernas, e levantou os braços, num gesto que englobava os sinais visíveis da riqueza do outro, com um esgar amargo nos lábios. - Esse rico filho da mãe! Ele fica contigo, com uma fatia das nossas terras e uma gaja novinha duma vez só! - Inclinou-se para ela, exalando uma baforada a uísque. - Ganda negócio, hein, Sam?

 

Samantha sentiu-se como se ele a tivesse desequilibrado fisicamente, como se estivesse a cair para trás, com o mundo à sua volta a fugir do eixo. Atirou-se a ele, para lhe bater e para não cair, esmurrando-lhe o peito.

 

- Filho da mãe! Como é que te atreves a dizer-me uma coisa dessas? Depois de tudo o que fizeste, depois de todas as mulheres! Depois de tudo o que fizeste para me magoar! - gritou ela, sufocada pelo sofrimento e pela raiva, com as lágrimas a rolarem-lhe pela cara, borrando o rímel recentemente aplicado.

 

-Magoar-te? - perguntou Will com uma gargalhada cáustica. - Estás mesmo com ar de quem sofre, querida! Vestida como uma maldita puta de cinquenta dólares, a beber champanhe com os teus amigos famosos...

 

- Chega, Rafferty! - exclamou Bryce, dando a volta para ficar atrás de Samantha. Tinha sangue na boca, um corte por dentro do lábio inferior, e uma capa dum dente solta.

 

- o que é que vais fazer, menino rico? - troçou Will. Dizer à Sam que me dê um pontapé no cu por ti? Porque tu não consegues. Tu só lixas as pessoas com dinheiro. will... Mary Lee meteu-se-lhe no campo de visão, de testa franzida. Não esperara encontrá-la ali. Não sabia muito bem o que esperava, ao subir o monte a toda a velocidade na velha carrinha de Tucker. A névoa do uísque obscurecia-lhe tudo, actuando por impulso. A maior parte do dia era uma vaga recordação que lhe tremia no cérebro como uma       miragem: Sam estava ausente quando entrara em casa aos tropeções para a ver, para tentar dizer-lhe... o quê? Que a amava? Que tinha medo de a amar? Tanto fazia. Ela não estava lá, não estava no Alce... Bryce, o filho da mãe, a dar-lhe coisas, a fazê-la desejar coisas... Fora um milagre ter conseguido subir o monte... Devia ter batido... desejava ter batido...

 

- Will... - chamou Mari novamente, aproximando-se e pondo-lhe a mão no braço. Ele afastou-a com um safanão, fazendo menção de atacar Bryce outra vez e dando uma gargalhada quando este recuou dois passos puxando Samantha consigo.

 

-Queres a minha mulher? Fica com a minha mulher!

- berrou, completamente desesperado. - Fica com a minha mulher, Por favor! Que diabo, eu aliás nunca a quis!

 

Samantha emitiu um som sufocado, como se ele lhe tivesse dado uma facada. Soluçando, libertou-se das mãos de Bryce e desatou a correr para dentro de casa, enquanto este abanava a cabeça.

 

- És patético, Rafferty.

 

- Aiii! Atingiste-me! Tem piedade! - fez Will,levantando as mãos como se tivesse medo.

 

Bryce olhava para ele, indignado. Disposto a tudo, Will. deu um salto na sua direcção, disparando um murro que ficou a centímetros do nariz do outro.

 

- Anda lá, parvalhão, dá-me o prazer! Defende-te, menino da cidade! Mostra lá o que tens além do dinheiro! Mari reparou que Will parecia estar com dificuldade em ver bem, como se distinguisse múltiplos Bryces. Deu mais um passo para ele e levantou a mão.

 

-Então, Will,já fez os estragos suficientes.

 

É, meu rapaz, tu és o falhado. Espalhaste-te mais uma vez. É o que fazes melhor. Fúria, frustração e medo pareceram correr-lhe nas veias como fogo, e atirou-se a Bryce com um grito selvagem.

 

Bryce apanhou-o no nariz, com uma direita. o osso cedeu com um estalo e o sangue jorrou como água duma boca de incêndio. Will cambaleou para o lado, tonto e surpreendido, mas Bryce não lhe deu tempo para recuperar as faculdades que pudesse conservar. Com Samantha longe da vista, agarrou numa cadeira e brandiu-a como um taco de basebol, apanhando o adversário nas costelas com uma pancada e no lado do joelho com outra.

 

Ao primeiro contacto com a cadeira, Will dobrou-se ao meio com a dor de duas costelas partidas. A segunda pancada obrigou-lhe o joelho a ir para dentro e sentiu qualquer coisa a rasgar-se. Caiu, ensanguentado e a gemer, enquanto Bryce lhe dava ainda um pontapé na barriga como toque final, fazendo-o vomitar uma boa quantidade de uísque e restos do almoço.

 

- Sai da minha propriedade, Rafferty - ordenou Bryce friamente. Depois, voltou as costas e afastou-se.

 

Abalada pela violência do ataque, Mari ajoelhou-se ao lado de Will e poisou-lhe a mão a tremer no ombro.

 

- Consegue levantar-se?

 

-Talvez. Mas a altura não é boa, Mary Lee - disse ele, erguendo os olhos para ela e tentando sorrir por entre o sangue e o vomitado.

 

Mari franziu a testa.

 

- Vá lá, valentão, levante-se, que eu dou-lhe boleia para o hospital.

 

A governanta apareceu com dois empregados do rancho e Bryce fez-lhes sinal, indicando Will.

 

- Ponham-no daqui para fora! Morton, leva aquela porcaria a que ele chama carrinha até à cidade. Não quero lixo aqui.

 

Mari levantou a cabeça instantaneamente. Morton. Ergueu-se e deu um passo atrás com as pernas a tremer. Kendall Morton. Tinha uma camisa de quadrados enxovalhada com a fralda de fora e as mangas cortadas para mostrar uma quantidade de tatuagens nos braços fortes. A cara redonda do homem torceu-se numa feia careta com o esforço de levantar Will, deixando à mostra dentes de diversos tons de amarelo e castanho.

 

Kendall Morton não tinha desaparecido, afinal. Trabalhava para Evan Bryce. E que mais, meu Deus?

 

-Vai pregar-me um sermão, Mary Lee? - resmungou Will através do monte de lenços de papel ensopados em sangue que apertava contra o nariz. Ia sentado ao lado dela, todo dobrado e inclinado para a esquerda na vã tentativa de aliviar a dor nas costelas.

 

- Porque hei-de gastar saliva? - perguntou ela, desviando os olhos por um segundo do espelho retrovisor na direcção dele. - Está demasiado bêbedo para me ouvir e duvido que ouvisse, de qualquer maneira. Parece ter qualquer defeito de audição. Talvez fosse boa ideia os médicos examinarem as ligações entre os seus ouvidos e o cérebro.

 

Will começou a rir fracamente, mas gemeu quando uma das rodas do Honda caiu num buraco da estrada. Mari fez uma careta, com pena dele, e diminuiu a velocidade. Mas a pena estava bem atrás da raiva e do medo que sentia. Os dois sentimentos fermentavam dentro dela numa massa azeda com uma boa dose de frustração à mistura.

 

Começava a compreender por que motivo J.D. era tão duro com o irmão. A insistência de Will em repetir actos relacionados com bebedeiras, desordens e atitudes estúpidas era suficiente para lhe dar vontade de o abanar. E só o conhecia havia uns dias, enquanto J.D. tinha uma vida inteira a aturar-lhe os sarilhos em que se metia. Recordava a sua própria conversa com JD. sobre compaixão e tolerância, e agora pensava que Will talvez não merecesse compaixão. Talvez precisasse era dum pontapé no rabo. Talvez devesse arrastá-lo atrás do carro, em vez de o deixar encher-lhe os estofos de sangue.

 

Tinha a cabeça a latejar. Viu no retrovisor que Kendall Morton a seguia na carrinha em que Will chegara a casa de Bryce. Outro empregado dele fechava a pequena caravana com uma das carrinhas da quinta.

 

Que diabo estava Morton a fazer trabalhando para Bryce?

 

Ou teria estado sempre a trabalhar para ele? Mari sentia o cérebro a fervilhar de possibilidades.

 

Nas urgências, o Dr. Larimer olhou de Will para Mari de novo para ele, com uma expressão de profundo aborrecimento. Aparentemente, preferia ver uma variedade de docentes em vez das mesmas monas partidas e caras esmurradas dia sim dia não. Quando Mari lhe perguntou se tinham desconto por serem clientes assíduos, a sua única resposta foi um resmungo.

 

-Aposto que os faz morrer a rir na sala dos médicos - disse Will,tentando sorrir apesar da novocaina que o médico lhe injectara em volta do nariz partido.

 

Larimer foi chamado para um caso mais urgente, e Mari sentou-se numa cadeira e olhou para Will, sem conseguir achar-lhe graça. Ele já tinha os olhos mais claros e talvez estivesse praticamente sóbrio; mas era difícil saber.

 

-Não consigo imaginar o que lhe passou pela cabeça para aparecer assim em casa do Bryce...

 

- Passar pela ’ Refere-se a pensar? Que é isso? -... mas foi uma estupidez tão grande, que não encontro palavras para a descrever!

 

Will olhou para ela com cara de poucos amigos e os olhos cheios de lágrimas da novocaína.

 

- Will,o Bryce não brinca. Ele joga a sério. Se o chateiam, sabe-se lá do que é capaz. o tipo tem mais dinheiro do que Deus, e não me parece que estivesse presente quando distribuíram as consciências. Tem poder para destruir o Rancho dos Confederados - insistiu Mari, apoiando as mãos nos joelhos e inclinando-se para ele.

 

-Pois, mas isso é problema do J. D., não meu.

 

- Não consigo perceber qual de vocês dois tem a cabeça mais dura - disse ela, rangendo os dentes e pondo-se de pé. - Está bem, deixemos o Bryce. E a Samantha? Quando diabo é que pára de lhe fazer mal?

 

- Não é da sua conta, Mary Lee - resmungou ele, de olhos postos numa nódoa de sangue nas calças e esfregando-a com o polegar. - Deixe isso. Você não sabe coisa alguma sobre a Sam e eu.

 

- Mas sei que, se fosse sua mulher, eu andar por aí com outros homens seria a menor das suas preocupações, porque, a estas horas, já lhe teria dado com um pau!

 

-Pare com isso, Mary Lee. Já tenho problemas de sobra. Não preciso de você a moer-me a cabeça. Não preciso mesmo - protestou ele, levantando ligeiramente a cabeça, com uma expressão petulante.

 

-Pois não. Você precisa é de crescer - declarou ela, abanando a cabeça. Depois, pegou na carteira que colocara no chão e pô-la ao ombro, afastando-se em direcção à porta, cheia até acima dos Raffertys.

 

J.D. inclinou-se para a frente na sela quando o cavalo chegou à rocha azul. Por um momento, ficou parado, com uma mão apoiada na sela à sua frente, a ouvir, a observar, a esperar. o cão voltou a cabeça dum lado para o outro, num arco preguiçoso, com as orelhas a tremer por causa do canto dos pássaros.

 

Del considerava a rocha azul a fronteira inferior do seu território. Mantinha uma vigilância diligente sobre o seu espaço, patrulhando-lhe o perímetro a todas as horas do dia e da noite. Teria ficado envergonhado se o sobrinho soubesse disso, o que deixava J.D. pesaroso. Del não queria ser um peso para a família. Considerava-se um embaraço, um homem não completo devido ao estado da sua mente. Vivia ali em cima todo o ano, em parte para se esconder - o feio esqueleto no armário da família. E dirigia a pastagem de Verão para se redimir.

 

Que outra coisa podia fazer para se redimir? Recordações de pedaços de conversas redemoinhavam dentro da cabeça de J. D. - a conversa maluca do tio sobre armas, coisas que deixava escapar sobre o que julgava ver ali em cima durante a noite, a maneira como confundira Mary Lee com Lucy. E arrependeu-se profundamente das coisas que dissera sem pensar durante o último ano. Tinha-o interrogado sobre os forasteiros que rodeavam as terras dos Raffertys. Desabafara sobre Lucy mais do que uma vez. Utilizara o tio como caixa de ressonância, como se ele estivesse demasiado passado para formar as suas próprias opiniões, sem pensar uma única vez que aquilo podia ser perigoso.

 

Por Cristo, se o tio tinha percebido aquela conversa toda, podia ter achado que matar Lucy era uma causa nobre, Um acto de violência podia tê-lo empurrado da sua frágil plataforma para o vazio.

 

  1. não queria que isso fosse verdade. Só considerar a hipótese já lhe parecia uma traição, mas não conseguia evitar que as perguntas se lhe formassem na cabeça, nem as suas eventuais respostas. Como também não podia isolar o rancho do resto do mundo, por mais que quisesse protegê-lo. Era impossível fugir da sociedade e das suas ambições. Teriam de se adaptar e de lutar para sobreviver. Ele era o responsável pela propriedade e por toda a gente dentro dela, pelo seu bem-estar e pelas suas acções.

 

O responsável.

 

Lembrou-se da cara esmurrada de Will, mas o estalo dum tiro de espingarda mais para cima desfez a imagem. Com o coração angustiado, deu um toque no cavalo e continuou a subir o carreiro.

 

Não havia sinal do tio na pastagem, e os cães não saíram da cabana para o cumprimentar. Prendeu o cavalo e afrouxou-lhe a cilha, olhando para todos os lados à procura de alguma coisa que lhe dissesse que o tio tinha endoidecido de vez. Nada viu. Estava tudo imaculado como sempre, e a cobra enrolada na gaiola pregada na parede da cabana. Isso não poderia considerar-se normal, mas era o estilo do tio, normal para ele. Uma das primeiras coisas que Del tinha feito ao mudar-se para ali fora pregar a gaiola à parede e enfiar lá uma cascavel.

 

Uma parte do cérebro de J.D. insistiu em que entrasse e passasse revista à cabana, mas recusou-se terminantemente. A casa do tio era sagrada e ninguém lá entrava sem ser convidado. Sempre lhe respeitara a privacidade e não fazia tenções de ultrapassar agora esse limite.

 

Sentou-se num banco à sombra do alpendre, à espera. Se Will não tivesse partido, estariam nesse momento a mudar o gado para ali, sem tempo ou energia para pensar em questões de responsabilidade e lealdade. Mas ele partira. Tu deSte-lhe um pontapé, J. D. Ao teu próprio irmão. E agora estava ali sentado à espera do tio para lhe perguntar se estivera envolvido em duas mortes. Que espécie de lealdade era aquela? Qual das suas obrigações tinha primazia: fazer o que era legalmente certo? Moralmente certo? Certo segundo o seu ponto de vista? Se era leal para com a família, como podia ele voltar as costas ao irmão ou suspeitar do tio? Se as terras vinham primeiro, seria ele afinal melhor do que Bryce?

 

Meteu a cabeça nas mãos e expeliu o ar dos pulmões, desejando poder dar um estalo com os dedos e fazer tudo desaparecer. Era um desejo de infância, dos tempos em que o pai conhecera Sondra e em que ele era culpado pelos erros do irmão ou castigado por algum crime menor contra esse Írmão que nunca desejara.

 

Tempo perdido estupidamente, a desejar coisas. o tempo, como a maioria dos outros factores, não estava do lado dele. Um homem tinha de jogar com as cartas que a vida lhe dava, e ponto final. Sem gemidelas, descuidos ou desejos de melhores cartas.

 

Do lado das árvores, um cão ladrou excitado, e depois o cão cor de mel do tio apareceu aos saltos, com as longas orelhas a flutuar como bandeiras. J.D. deixou-se estar, a olhar para o carreiro. Segundos depois, Del saiu do arvoredo, montado no cavalo, como um demónio a sair doutra dimensão, as orelhas do animal deitadas para trás e as ventas abertas no focinho escuro. Entraram no pátio a galope, Del de pé nos estribos, apontando uma espingarda a J.D.

 

-Por amor de Deus, Del! - gritou este, saltando do banco.

 

o reconhecimento fez saltar uma terrível faísca debaixo dapesada placa metálica no cérebro de Del Rafferty, carregada duma maléfica corrente eléctrica. Baixou a arma e puxou as rédeas, até o animal parar. Maldição, quase dera um tirro em J. D. Quase deixara os monstros dentro dele obrigarem-no a puxar o gatilho.

 

Tinha as pernas flácidas como árvores novas, quando desmontou. Apertou a espingarda com força para não treMer.

 

- Que diabo... ? - J. D. engoliu as palavras prestes a sair-lhe da boca. Está doido? Perdeu a cabeça? Viu a vergonha nos olhos do tio, quando ele se voltou para prender o cavalo.

 

Tinha o coração acelerado. A adrenalina que irrompera dentro de si estava a diminuir e o corpo tremia-lhe.

 

--Desculpe. Eu devia ter avisado que vinha para cá. Del não fez comentários. Atirou as rédeas por cima da vedação, com o animal ainda a dançar de excitação. Os outros cavalos abandonaram o alazão de J.D. e aproximaram-se do companheiro, com as caudas levantadas e os olhos brilhantes. Del dedicou a sua atenção à arma, ejectando as balas para a mão como quem tira ervilhas da casca,

 

-Ouvi um tiro quando estava ao pé da rocha azul. Foi o tio?

 

-Podia ser.

 

- o que é que apanhou?

- Nada.

 

-Não é coisa sua perder um tiro! - disse J. D.

 

- Estava muito longe. Não tinha boa visibilidade prosseguiu ele, arrumando a arma na bolsa da sela.

 

O que era?

 

Del engoliu com força e esfregou a cicatriz com as pontas dos dedos. Não podia dizer que lhe parecia ter visto um tigre. Os tigres não apareciam à luz do dia. Abanou a cabeça e fez uma careta com a dor do cérebro a chocalhar de encontro aos lados do crânio. Não, maldição, J. D. não sabia dos tigres... como também não podia falar-lhe das loiras que dançavam ao luar.

 

- Del?

 

-Um gato - disse ele. - Não quero pumas por aí com o gado a chegar

 

- Hum... Bom, estamos um bocado atrasados - afirmou J. D. começando a andar ao lado do tio. Os três cães esperavam um convite, parados junto à porta. o dono rosnou-lhes e ameaçou-os com a mão, e eles afastaram-se, de rabo entre as pernas. - Uma semana, talvez.

 

Del não fez perguntas. Mas estava contente. Não queria o gado ali por enquanto. Queria que as loiras se fossem embora primeiro. As mulheres e os parentes. Queria ser capaz de decidir o que fazer com eles. Queria ter coragem para fazer alguma coisa, bom senso para saber o que estava certo.

 

A cascavel levantou a cabeça e silvou na direcção deles, mas Del nem olhou para ela. Entrou na cabana, foi direito a uma prateleira na cozinha e tirou duas latas de Dr. pepper. J. D. instalou-se numa das cadeiras junto à mesa e comeÇou a beber, enquanto o tio andava dum lado para o outro como um animal enjaulado, a esfregar a cicatriz. A cabana estava impecável, limpa como cada uma das espingardas nos suportes. o cheiro do líquido com que ele as limpava servia de desodorizante do ar.

 

- Por acaso, não esteve ontem na Pequena Serpente, não? - perguntou J. D. em tom casual.

 

Del deu um salto como se lhe tivessem dado uma chicotada.

 

- Não... não... - murmurou, com os olhos postos nas espingardas. - Não. - De repente, calou-se e olhou fixamente para J. D., com o cinzento dos olhos a brilhar como estanho à luz filtrada pelo tecido fino das cortinas. - Não trouxeste aquela mulher loira, pois não?

 

- Não - respondeu ele, disfarçando um suspiro.

 

- Não a quero aqui. Arranja sarilhos. - Sacudiu um dedo na direcção do sobrinho e rematou: - lembra-te disso, J. D.

 

J.D. não sabia se ele se referia a Lucy ou a Mary Lee, ou se as distinguia. Fosse como fosse, devia ter-lhe prestado atenção mais cedo.

 

- Deixe-a lá. Eu trato dela. Não precisa de se preocupar.

 

-Não confies nela - resmungou o velhote. - Não confio nessas loiras. Arranjam todas sarilhos.

 

-Isso é verdade - murmurou J.D. para consigo. Bebeu outro golinho de Dr. Pepper e preparou-se para o resto da conversa. - Ontem encontrei o Miller Daggrepont morto na Pequena Serpente. Acho que deve ter tido um ataque de coração. Pensei que talvez o tivesse visto à pesca.

 

Continuou a beber distraidamente de olhos postos no tio, à procura de algum sinal... possivelmente de culpa. A sua própria culpa roía-o por dentro, fervilhando com a gasosa morna contra as paredes do estômago.

 

- Viu alguma coisa? - insistiu.

 

Vi um tigre no monte. Vi os cadáveres a dançar ao luar. ,Coisas malucas. Del sentiu a garganta a querer fechar-se, como se um dos fantasmas lhe apertasse a traqueia. Tentou beber um gole de gasosa, mas metade escorreu-lhe pelo canto da boca e sujou-lhe a camisa.

 

- Vi... vi um gato... e mais nada - resmungou, limpando a mancha com um lenço. - Não quero gatos cá em cima com o gado a chegar.

 

Pensou que talvez já tivesse dito aquilo, mas não tinha a certeza. Debaixo da placa, o cérebro zumbia como um enxame de mosquitos. Não se lembrava da última vez que dormira mais de duas horas, nem de dormir sem sonhos sinistros. Agora, era importante manter-se acordado, disse para consigo. Tinha de ajudar a guardar as terras. Tinha de garantir que as loiras não as roubassem, nem os idiotas da cidade, nem os homens que mandavam nos rapazes dos cães. J.D. respirou fundo.

 

-Tenho de lhe perguntar se viu alguma coisa naquela altura em que a mulher foi atingida a tiro. - Pronunciou cuidadosamente as palavras mais diplomáticas que conseguiu encontrar. o tio tinha muitos problemas, mas também possuía o seu orgulho. - Há alguma coisa sobre esse caso que possa querer contar-me?

 

Del ficou a olhar fixamente para as espingardas, a abrir e fechar a boca como um peixe e com os olhos a brilhar com lágrimas por chorar e a luz escura de mil pesadelos. J. D. sentiu qualquer coisa a apertar-se-lhe no peito. Lealdades e obrigações lutavam umas com as outras, empurrando e voltando a empurrar, até que a pressão lhe pareceu insuportável e o fez levantar-se e atravessar a sala.

 

- Del? Tem alguma coisa a dizer sobre isso? -Não! - exclamou ele, continuando a olhar para as espingardas bem oleadas e polidas. - Não podemos ter gatos nos montes quando o gado vem cá para cima.

 

J.D. esfregou os olhos. Sabia que devia insistir. Sabia que devia perguntar-lhe directamente se tivera alguma coisa a ver com a morte de Lucy. Mas, Deus o ajudasse, não conseguia. Era complicado de qualquer das maneiras. Quinn já tinha acreditado que o tio se limitara a encontrar o corpo. se mentisse ao xerife, a sua integridade sofria. Se lhe entregasse o tio, achava que não poderia viver consigo mesmo; se o teu tio é um assassino?

 

Não podia ganhar. A resposta fugia-lhe do laço. Pendura a corda e acabou-se, vaqueiro. Apanhas um amanhã.

 

- Onde é que viu o gato? - perguntou suavemente. Talvez vá dar uma olhadela quando voltar para casa.

 

Humilhada e ferida, Samantha passou o resto do dia no quarto de hóspedes que Bryce pusera à sua disposição. Este foi ver como ela estava momentos depois da cena, mas recusou deixá-lo entrar. Ele falou através da porta, dizendo-lhe que estava tudo bem, que não devia deixá-lo de fora. Mas continuou com a cara enterrada na almofada, até que o homem acabou por se ir embora.

 

Chorou até pensar que ia ficar doente e depois, exausta, caiu num sono profundo e sem sonhos. Quando acordou, o Sol deslizara para trás dos montes e o quarto estava cheio de sombras.

 

Desorientada e tonta, sentou-se e olhou em volta. Por imstantes, pensou que estava a sonhar, que bastava sacudir-se e estaria no seu colchão aos altos e baixos na pequena casa que partilhara com o marido.

 

Will. Fechou os olhos e voltou tudo de repente. Tudo. o casamento a desfazer-se. o marido a chegar ali aos tropeções. Âmaneira como atacara Bryce. As coisas horríveis que dissera, a ela e sobre ela.

 

Fica com a minha mulher.. Que diabo, eu aliás nunca a pis!

 

Sentia os olhos a arder e a garganta apertada, mas não conseguia chorar. Tinha vertido as lágrimas todas. Mais infeliz do que alguma vez em toda a vida, encostou-se à cabeceira da cama e olhou para si própria. A elegante roupa de seda cor de cobre parecia um mapa, cheia de rugas e pregas. Estava horrível e pareceu-lhe que o tecido sofrera alguma reacção química em contacto com a sua pele, como se uma coisa tão boa tivesse sido criada para separar os que valiam muito dos que nada valiam.

 

Pobre rapariga estúpida. Pensaste que podias fingir, não foi? Sonhadora estúpida. Vê se cresces, Samantha. Cresce e vê o que és realmente.

 

A tremer da autopunição, levantou-se da cama e foi ver-se ao enorme espelho biselado por cima da cómoda. A ima gem não era bonita. Nem sequer a luz difusa conseguia es conder os efeitos da choradeira. Apintura que aplicara tão cuidadosamente havia escorrido e deixado marcas na cara inchada, o cabelo pendia, mole e desgrenhado. Tinha perdido um brinco.

 

Estava com um ar patético. E sentia-se patética.

 

Não admirava que o marido não a quisesse. Não merecia que a quisessem. Era ingénua e idiota. Os amigos de Bryce estavam provavelmente lá em baixo a rir-se dela. Pobre e pateta empregada de mesa, a fingir que encaixava entre os ricos e belos.

 

A respiração vinha-lhe em espasmos entrecortados, e voltou as costas ao espelho. Sentia-se vazia por dentro, com dores, como se todo o seu interior tivesse sido arrancado e deitado fora. Com os ombros para a frente, pareceu enrolar-se sobre si própria, andando como uma velha. Sentia-se tão feia e esquisita como um gigantesco louva-a-deus, e igualmente frágil; como se alguém pudesse agarrá-la e parti-la em dois, esmagando-lhe os longos ossos e deitando-os fora.

 

Parou junto da janela que dava para a piscina e encostou a testa ao vidro. As luzes debaixo de água estavam acesas, mas não se via sinal dos convidados de BrYce. Pensou se estariam reunidos lá em baixo e se conseguiria passar por eles sem a verem a ir-se embora.

 

Não encaixava ali. Sentia-se como se não encaixasse em sítio algum, mas ali sabia que não era o seu lugar. E aguentava a ideia de enfrentar aquela gente: Ben Lucas, Uma Kimball e Sharon. Especialmente Sharon. Só a ideia dos comentários dela a respeito daquela tarde bastava para a fazer sentir-se mal.

 

Não. o tempo da Gata Borralheira no baile tinha acabado.

 

Com soluços secos, despiu a roupa que Bryce lhe comprara e pendurou-a no roupeiro. Retirou o brinco que ainda tinha, o colar e as pulseiras, e foi à casa de banho lavar a pintura e libertar-se dos últimos vestígios de perfume. Fez a habitual trança e prendeu a ponta com um elástico que tirou da carteira. Enfiou as suas velhas calças de ganga, mas não foi capaz de vestir a camisa branca.

 

Era do marido. Esfregou o colarinho macio e gasto entre os dedos, e encostou a camisa à cara. Parecia-lhe sentir ainda o cheiro dele, o calor do seu corpo. Mas sabia que não podia ser. Ele saíra da sua vida. A camisa podia pertencer-lhe, mas ela já não lhe pertencia. Ele não a queria. Nunca a quisera.

 

Com o coração despedaçado, dobrou a camisa e meteu-a numa gaveta da cómoda, trocando-a por uma camisola de seda branca de mangas curtas - a coisa mais simples que podia levar.

 

Endireitou a colcha da cama e arrumou a casa de banho, querendo deixar o mínimo de vestígios da sua passagem ali. Ia-se embora da casa e da vida daquelas pessoas, para voltar para o que restava da sua vida. Uma casa miserável, um carro ferrugento e um cachorro.

 

Ia ter de pedir um carro emprestado. Ou talvez arranjasse boleia dum empregado...

 

- Samantha? - A voz de Bryce do outro lado da porta da sala.

 

Parou de repente, já a caminho da porta, com o coração a bater-lhe na garganta. Não queria vê-lo, não conseguia encará-lo. Talvez se não lhe respondesse...

 

- Eu sei que está acordada, Samantha. Ouvi-a andar. Abra a porta, querida. Trouxe-lhe o jantar, Vamos conversar.

- Eu... eu não sei o que hei-de dizer... - murmurou ela.

 

- Não precisa de falar - respondeu ele suavemente. Come e eu falo pelos dois. Que tal?

 

Tão amável, pensou ela, mordendo o lábio.

- Samantha?

 

-Está bem.

 

Receando o momento, abriu a porta. Bryce trazia um tabuleiro. Os únicos sinais visíveis da luta com Will eram uma nódoa negra e um golpe no queixo e a pele levantada nos nós dos dedos da mão direita. Tinha ainda o lábio inferior inchado e aberto. Observou a roupa dela e fez um som cantarolado com a boca fechada.

 

- Pensei em ir-me embora já - admitiu ela, baixando a luz do candeeiro da cómoda, deixando apenas a luz suficiente para ele ver o que fazia, mas de modo a que não lhe iluminasse os olhos vermelhos e a cara inchada.

 

Ele poisou o tabuleiro na pequena mesa redonda junto da janela, destapou o prato e deitou vinho em dois copos, Adivinhara a reacção dela. A humilhação era demasiado pesada para o frágil ego da rapariga. Will Rafferty tinha de pagar por aquilo. Lenta e dolorosamente. Tivera uma perfeita rosa-brava entre as mãos e esmagara-a com a sua falta de interesse. Merecia a ruína.

 

- Porque é que achou que devia ir, querida? - perguntou suavemente.

 

Samantha olhou para ele com a estranha sensação de ter acabado de acordar dum sonho. o tom de voz dele era calmo e imperturbável, como se nada tivesse acontecido.

 

- Bom... com o que aconteceu esta tarde e tudo... Eu pensei...

 

Bryce voltou-se para ela e dedicou-lhe o seu sorriso mais caloroso e compreensivo. Paternal, achava ele. Bondoso.

 

-Mas você não teve culpa! O Will é meu marido...

 

- o Will é um idiota. Não tinha qualquer direito de vir cá. Nem de lhe dizer aquelas coisas.

 

- Sou mulher dele - insistiu Samantha, engolindo o nó de culpa que sentia na garganta.

 

-Ele não a merece. - Inclinou a cabeça e avançou para ela, interpretando claramente as emoções nos límpidos olhos da rapariga. Tirou-lhe suavemente as mãos dos bolsos das calças e segurou-as nas suas. - Não é seu dono. Não a quer

 

Não podia ser mulher dum homem que se recusava a ser um marido. Não era uma esposa. Estava completamente sozinha.

 

Uma nova onda de lágrimas encheu-lhe os olhos e a boca começou a tremer-lhe.

 

Bryce sorriu para consigo, puxando-a para si e abraçando-a.

 

- Ele não merece as suas lágrimas, Samantha. Teve um diamante e deitou-o fora. Ele é que perde, não é você. Ela encostou-lhe a cara ao ombro e soluçou como se fosse o fim do mundo. Bryce supôs que isso era verdade, que o mundo dela se estilhaçava como um ornamento natalício barato. Como um ovo que se quebrava para a deixar sair para um mundo novo, maior e melhor. o mundo dele. Gostou da analogia. Ela era um lindo passarinho no luxuriante paraíso do mundo dele. E ele ia guiá-la e exibi-la. Ela seria mais, teria mais do que alguma vez sonhara. E seria dele.

 

- Eu... eu lamento - gaguejou Samantha, tentando afastar-se. Fora educada a não chorar diante das pessoas. Era mais uma humilhação... chorar junto de Evan Bryce pela segunda vez em escassos dias. - Eu n... ri... nunca faço isto. N... ri... nunca choro junto das p... p... pessoas.

 

Bryce deixou-a afastar-se apenas o suficiente para poder levantar a mão e limpar-lhe as lágrimas com o polegar. o sorriso meigo encurvou-lhe de novo a grande boca e prendeu o olhar no dela.

 

- Então sinto-me honrado. É porque se sente à vontade comigo, porque tem confiança em mim. Isso significa muito para mim... ser seu amigo. Só quero o melhor para si, Samantha.

 

Sam olhou para aqueles olhos brilhantes e meigos, sentindo uma coisa parecida com desespero. Ela era nada, tinha nada. E ele queria o melhor para ela. Gostava dela. Pensava nela como sua amiga.

 

-Eu preciso dum amigo - murmurou.

 

- Estou aqui. - Puxou-a lentamente para si de novo e abraçou-a, acariciando-lhe o cabelo com uma mão, enquanto a outra lhe esfregava as costas para baixo e para cima, num ritmo hipnótico. - E serei o que você quiser que eu seja acrescentou, roçando-lhe a orelha com os lábios.

 

Sam passou os braços à volta dele e deixou-se embalar numa lenta dança, cada vez mais apertada. Lá fora, o mundo desaparecera na escuridão. o tempo adquiriu uma qualidade de sonho, irreal e obscura. Deixou-se flutuar nela. Agarrou-se ao seu único amigo e deixou o espírito vaguear no nevoeiro.

 

Não tinha outra pessoa, outra coisa no mundo, excepto aquele homem bondoso, que a abraçava.

 

Sentiu-lhe os lábios na testa e na orelha.

 

Serei o que você quiser que eu seja, Samantha... Dou-lhe qualquer coisa...

 

Amo-a... Absorveu como uma esponja as palavras murmuradas, sem saber bem se ele as tinha pronunciado ou se era ela que desejava tanto ouvi-las de alguém, de qualquer pessoa. Podia estar a sonhar. Já tinha pensado que sim.

 

- Eu amo-a - segredou ele, beijando-lhe a face e o canto da boca, com uma erecção a empurrar-lhe o ventre, e Samantha sentiu o coração a bater com força e o corpo a responder.

 

- Não podemos - disse ela baixinho, mas sem se afastar. A flutuar, a flutuar no nevoeiro, como no sonho.

 

- Sim - murmurou ele. - Eu amo-a, Samantha. Deixe-me mostrar-lhe como isso é.

 

-Mas eu...

 

- Schiu... Deixe-me amá-la e fazer desaparecer o sofrimento.

 

Pensou que devia fazê-lo parar, mas as mãos dele estavam dentro da camisola dela, traçando figuras hipnóticas nas costas e nos lados, e era tão bom. Depois, ele agarrou-lhe um seio e sentiu dificuldade em respirar.

 

Tinha passado tanto tempo. Sentia-se tão solitária. Isto é só um sonho...

 

Ele fê-la deitar na cama e deitou-se com ela. A colcha era fresca em contacto com a pele nua. Desfizera-lhe a trança e o cabelo espalhou-se como seda. A boca dele prendeu-se-lhe no bico do seio, e o desejo correu-lhe pelo corpo. o desejo de ser amada, de ser tocada.

 

Os dedos dele mergulharam no novelo de caracóis negros entre as pernas dela, e ela abriu-se-lhe. Era bondoso e meigo. E queria-a. Will não. Olhou para aqueles estranhos olhos claros, quando ele se colocou por cima dela.

 

- Ama-me de verdade? - murmurou.

 

Bryce ficou imóvel. A energia pulsava-lhe pelo corpo, Sentia-se supercarregado, electrificado, à beira duma nova grandeza. De novo poder.

 

- Sim - respondeu, sabendo que era tão verdade como alguma vez o fora na sua vida.

 

-Fodeste-a, não fodeste? - acusou Sharon, escolhendo deliberadamente a palavra mais dura, mais feia, para descrever o que sabia ter acontecido.

 

Bryce não se dignou responder à acusação. Estava diante das grandes janelas da sala, a olhar para a noite. Na realidade, mal prestava atenção à prima. Sentia-se enorme, como se o poder lhe tivesse aumentado todo o corpo para conter a energia que corria por ele. Tinha o cérebro a fervilhar de ideias e planos. No centro dos seus pensamentos, Sharon já fora posta de lado.

 

Ela não aceitou de bom grado a ideia. Avançou pela sala escura como um tigre. Tinha o cabelo puxado para trás e preso num carrapito, num estilo que lhe acentuava a dureza das feições. À luz das vitrinas, os olhos brilhavam-lhe de fúria.

 

- Ela é tão doce - murmurou Bryce para o mundo em geral, maravilhado com o conceito de doçura. - Não acredito como ela é doce, como é carente.

 

A atitude maravilhada dele atingiu Sharon como uma saraivada de pedras, ferindo-lhe o ego e o coração. Não sabia ser doce. Nunca tivera uma ponta de doçura dentro de si. Carências conhecia demasiado bem. Do que precisava naquele momento era de distrair o primo da sua preocupação. Se ele ficasse demasiado obcecado na rapariga, deixava-a completamente de fora, ideia que a aterrorizava. Mas nunca lhe permitiria ver esse medo. Nunca.

 

- Somos todos carentes - disse, esfregando-se nele. Deixou-o sentir os seios cheios através do tecido fino do pijama de dia que tinha vestido. Esfregou-se nele como uma gata e deitou-lhe a mão por cima das calças de ganga, mas ele virou-lhe as costas e afastou-se, sem sombra de interesse.

 

o pânico instalou-se como um punho fechado na garganta de Sharon, e teve de se esforçar para não o deixar transparecer na voz.

 

-Se ela é tão maravilhosa, que estás a fazer cá em baixo?

 

Bryce parou junto ao aparador, pensou em beber qualquer coisa, mas desistiu. Não queria interferências na excitação que sentia. Nada que lhe abrandasse o processo de pensamento. Via-se a si próprio como um diamante - brilhante, duro, poderoso.

 

-Ela é frágil - disse. - Vai precisar de subtileza. Provavelmente vai arrepender-se. Se a esmago com a posse, foge-me. - Esfregou o queixo por um momento, a olhar lá para fora, com o rosto iluminado pelo seu próprio brilho. Subtileza, é essa a chave - prosseguiu ele, com o seu sorriso à Redford.

 

- Que tal usares essa subtileza em mim? - perguntou Sharon com um sorriso forçado, aproxímando-se novamente dele. Um ligeiro tremor de desespero modificava-lhe a voz, mas esperou que ele não notasse. Tinha uma coisa semelhante a uma mola cada vez mais apertada dentro do peito.

 

-Esta noite, não - respondeu Bryce em tom impaciente.

 

Afastou-se dela pela segunda vez, sem olhar, sem lhe tocar ou prometer o dia seguinte. A mola apertou-se mais. -Esta noite, não - explodiu ela, em voz baixa e vibrante de raiva. Deu a volta a um sofá de cabedal branco e ínterceptou-o ao pé das janelas. - Tens de te poupar para a tua preciosa princesa virgem. É isso?

 

Bryce olhou para ela inexpressivamente.

 

- Poupa-me a cena da mulher ciumenta. Exactamente neste sítio, disseste-me que me deitasse com ela.

 

- Por nós! - esclareceu. - Não por ti. Por nós, pelo plano, para obtermos o que nós queremos, não para tu poderes andar por aí num nevoeiro, maravilhado com a inocência dela.

 

- Toma um Valium e vai para a cama. Estás a irritar-me. -Como te atreves a mandar-me embora como se eu fosse uma criada?

 

É exactamente como tu te comportas.

 

Filho da mãe! - gritou ela num tom de animal, perdendo completamente o controlo. - Depois de tudo o que tenho sido para ti! Depois de tudo o que fiz por ti!

 

Quando ele tentou voltar-lhe as costas de novo, Sharon agarrou-lhe o braço e ferrou-lhe as unhas para o segurar enquanto abria a roupa com a outra mão, descobrindo os seios.

 

-Olha para mim! - rosnou. - Olha para mim, raios te partam!

 

Ele olhou. Sem desejo. Sem emoção. Ficou a olhar para ela, repugnado pelo que via: desespero, degradação, devassidão; uma meretriz gasta, a envelhecer, cuja depravação tinha poucos limites. Não lhe passou pela cabeça que estava a olhar para um espelho. Sentia-se acima e para lá de tudo. A caminho de nova glória. Renascido aos olhos duma inocente.

Fixou a prima nos olhos e comentou, sem inflexão descontrolada.

Estás a ficar

Sharon recuou, apertando a roupa, envergonhada, derrotada, atordoada com o estado a que ele a reduzira. Entorpecida com o choque.

 

-Não sou eu quem está a perder o controlo - murmurou. - Olha para ti. Tens o cérebro contagiado por essa rapariga. Só pensas nela, Há uma semana, não olhavas para ela duas vezes.

 

- Isso era há uma semana. Agora conheço-a. Agora vejo as possibilidades. Esse é um dos teus muitos defeitos, Sharon, não tens presciência.

 

- Não. Vejo perfeitamente que estás obcecado com ela. Como estiveste obcecado com a Lucy...

 

Bryce abanou a cabeça e fez o maldito sorriso à Redford, tendo o descaramento de se divertir com ela. -Não. Estás completamente enganada. Nada disso. Olhou para ele, forçando-se a ler-lhe a expressão dos olhos, a estranha euforia.

 

- Achas que te apaixonaste por ela, não achas? - perguntou baixinho, mal aguentando o som daquelas palavras. Sentia o mundo a desfazer-se à sua volta e a cabeça trabalhava em acelerado à procura duma maneira para parar os estragos. Tinha peso. Ele não podia largá-la completamente. Sabia o suficiente para ser uma aliada inestimável ou uma formidável inimiga. Podia destruí-lo, se fosse obrigada a isso.

 

Mas não podia fazer com que ele a amasse. Nunca o imaginara capaz dum amor romântico. Era um homem capaz de muitas coisas, mas o amor não estava entre elas.

 

Bryce não se voltou e encaminhou-se para a porta, apagando as luzes das vitrinas.

 

-Não acho, sei que a amo.

 

- Ela deixa-te, sabes - disse Sharon, tentando acalmar-se e agarrando-se a uma pequena réstea de orgulho e cinismo. - Descobre o que tu és na realidade, vai detestar-te e depois deixa-te.

 

- Não, eu não permito que isso aconteça - garantiu ele, sentindo-se omnipotente.

 

o sonho era de morte. Cheio de pessoas que tinham de facto morrido ou estavam metaforicamente mortas para ela. Lucy com um perfeito buraco redondo no corpo. Townsend sem crânio acima das sobrancelhas. Miller Daggrepont com um garboso lenço de seda roxo à volta do pescoço gordo. Del Rafferty sem a metade inferior da cara. E, depois, Brad com um autocolante no bolso da camisa de algodão egípcio que dizia: OLÁ, o MEU NOME É IDIOTA. E Will com um boné pateta que tinha sido modificado para segurar uma lata de cerveja de cada lado da cabeça, com tubinhos de plástico directamente para a boca.

 

Os convidados duma festa na cabana de Del Rafferty, com a família dela a um lado, perto das espingardas, recusando misturar-se, Kendall Morton com uma expressão trocista a um canto, numa nuvem de poeira provocada por ele próprio.

 

Mari entrou, com um chapéu de vaqueiro, botas, um colete e nada mais, percebendo imediatamente que estava muito pouco vestida. A mãe e as irmãs abanaram a cabeça.

 

-Marilee, tu definitivamente não és uma de nós proferiu a mãe.

 

- Claro que não é uma de nós! - corroborou Will. Começaram a andar à volta dela, aproximando-se cada vez mais, com expressões de desaprovação. Excepto LucY. Lucy ostentava o seu meio sorriso cínico. A seu lado, estava J. D.

 

- Olha, querida, trouxe-te uma coisinha para a viagem

- disse Lucy, estendendo-lhe a lata do Mr. Peanut. -Que viagem?

 

-A viagem para te encontrares a ti própria.

Nessa altura, o chão abriu-se e ela começou a cair por um buraco negro, a olhar para cima, para o círculo de rostos e meios rostos.

 

Lucy disse-lhe adeus com a mão.

 

- Não te esqueças de mandar um postal!

 

Acordou com um salto e o coração a bater violentamente, tentando perceber onde estava. Escuridão. Frio, humidade. Estava sentada na varanda da casa de Lucy.

 

Inspirando o ar da noite, pôs a mão no peito, para ver se estava realmente viva. Os olhos foram-se ajustando à falta de luz e as formas familiares começaram a aparecer: o gradeamento da varanda, os altos pinheiros, vagos contornos dos lamas na pastagem junto ao riacho.

 

Viera da cidade para lhes dar de comer, depois sentara-se na varanda por um instante, para ver o pôr do Sol. Nunca pensara adormecer ali. A sensação de estar sozinha num ermo penetrou-a como um orvalho frio.

 

Três pessoas haviam morrido violentamente naquele sinístro paraíso. Cada uma dessas mortes tinha-a tocado de alguma maneira. Sentia-as tocarem-lhe naquele momento, como dedos ossudos saídos do além, tentando agarrá-la, puxá-la, arrastá-la mais para o mal.

 

E estava a ir com eles. De boa vontade. Não era exactamente o género de viagem que tivera em mente quando empilhara a roupa de trabalho na parte de trás do Honda e abandonara Sacramento uma vida atrás.

 

Viera para ali por divertimento. Mas não o encontrara. Viera para se encontrar a si própria e, em vez disso, estava a tentar encontrar um assassino. Viera à procura de companheirismo, e estava sozinha.

 

Algures lá em baixo no vale, os coiotes começaram a cantar. Em contraste com as vozes agudas dos animais, o ar na varanda pareceu engrossar com uma electricidade que lhe pôs os pêlos dos braços em pé. Estava sozinha, mas de repente deixou de se sentir sozinha. Sentiu a intensidade dum olhar sobre si, de olhos que podiam estar em qualquer parte da escuridão.

 

A cara redonda e feia de Kendall Morton flutuou-lhe na imaginação. Tinha telefonado a um amigo que trabalhava na sala dos computadores da Patrulha Rodoviária da Califórnia e pedira-lhe a retribuição de favores de seis anos. Poderia ele contactar os bancos de dados do montana - se existissem - e arranjar-lhe o cadastro de Kendall Morton? o amigo dera um grande suspiro, dissera umas coisas sobre perder o emprego, mas prometera-lhe qualquer coisa para o dia seguinte.

 

Kendall desapareceu e Del Rafferty ocupou o seu lugar na visão. Uma aparição. Um fantasma. Outro dos mortos a andar no sonho. Um dos suspeitos. Queria ter pena dele, mas não podia pô-lo de lado. Fora um assassino pago na tropa, e a guerra nunca terminara para ele. Ou talvez tivesse trocado uma guerra por outra; o serviço do país pelo serviço da terra dos Rafferty.

 

Não estava interessada em descobri-lo da maneira mais difícil.

 

Inclinou-se para a frente na cadeira, tentando respirar lentamente e ouvir por cima das batidas do coração. -Dormes como uma rapariga da cidade.

 

  1. D. apareceu da escuridão, à esquina da casa, com as mãos nos bolsos das calças de ganga e os ombros curvados. Mari deitou-lhe um olhar indignado, levantando-se da cadeira.

 

- Que estás a fazer aqui?

 

-Um puma podia ter-te comido ao jantar.

 

- Não me parece - respondeu ela, recordando factos dos guias turísticos. - Não há memória dum puma atacar alguém nesta região.

 

-Talvez o pobre filho da mãe não tivesse podido contar a história - disse ele, de sobrancelha arqueada. Recusando-se a entrar em jogos, Mari ignorou as palavras dele e insistiu:

 

- Perguntei-te o que estavas a fazer aqui, Rafferty. Não foste convidado.

 

-Vi a luz na janela - respondeu ele, encostando-se casualmente ao gradeamento. Mas não se sentia casual. Tinha a sensação de ser como um punho fechado, experimentando pressões de todos os lados, comprimindo-o contra qualquer coisa dura e perigosa. E ela parecia macia e solta do sono. Imaginava que, se a puxasse para si, teria o corPO quente, o nariz frio e o cabelo a cheirar a pinheiro. Mas via-lhe os olhos assustados sob as sobrancelhas escuras e sabia que não se aproximaria dele de boa vontade. Ele tratara disso, empurrando-a. Por ser o melhor, Porque não queria a distracção ou o perigo duma mulher na sua vida.

 

Nunca foste mentiroso, J D. ?

 

- Foste demitido dos teus deveres de zelador - declarou Mari. - Já não és responsável por esta quinta.

 

A preocupação dele não fora com a quinta, mas nunca o admitiria. Pelo menos, não naquela altura. Era tarde demais.

- Hábito.

 

- Perde-o.

 

- o Del diz que viu um grande gato junto ao riacho das Cinco Milhas - disse ele, olhando para longe, como quem espera ver alguma coisa a vaguear por entre os vultos escuros das árvores,

 

- É, aposto que o Del vê uma data de coisas - retorquiu Mari mais rispidamente do que tencionava. Estava capaz de esfolar cobras com os dentes por um cigarro. Apertava e esticava os dedos, com o nervosismo de não ter alguma coisa que fazer com as mãos.

 

-Não, Mary Lee. o dia foi demasiado longo, para me apetecer falar sobre o Del - avisou ele, em tom cansado. Ou pensar no Del, ou lidar com o Del, ou acreditar no que Del pode ter-se tornado, a viver sob a protecção do Rancho dos Confederados.

 

-Não me digas! Eu comecei o dia encontrando um morto. Foi uma coisa que me deu logo indicação de como seria o resto, estás a ver?

 

J, D. desencostou-se e ficou a olhar para ela com os olhos muito abertos.

 

- Tu quê?!

 

-Encontrei um morto. Ontem foi o teu dia de sorte; hoje foi o meu - disse ela, com ar de quem foi alvo duma brincadeira de mau gosto.

 

- Quem?

 

- o juiz MacDonald Townsend. Estimado juiz, namoradeiro, cocainómano. Esse MacDonald Townsend. Vais gostar, é muito machista: fez saltar a tampa com um Colt Python três cinco sete.

 

- Céus! - explodiu ele, semicerrando os olhos e olhando fixamente para Mary Lee, pálida na escuridão. Sentes-te bem?

 

-Não me parece que coma miolos nos tempos mais chegados - respondeu ela, enfiando as mãos nos bolsos do blusão de ganga e erguendo o queixo, como se ele a tivesse ferido no orgulho.

 

- Céus! - resmungou ele de novo.

 

Tinha de lhe dar crédito por não se ir abaixo só por contar a história. Pensou que a maior parte das mulheres faria precisamente isso. Mas a verdade é que Mary Lee, como ela própria gostava de lhe lembrar, não era como a maioria das mulheres. Raramente era, aliás, o que ele esperava - ou desejava - que fosse. Estava ali, de queixo erguido, a desafiá-lo. Miúda rija.

 

-Onde é que o encontraste? - perguntou, a custo, dando um passo atrás.

 

Mari aclarou a garganta e prendeu o cabelo atrás da orelha, a olhar para o chão da varanda.

 

-No escritório dele. Fui lá para falar sobre a Lucy. Pensei que talvez soubesse alguma coisa. Eles estiveram envolvidos um com o outro, sabes? E eu acho que a Lucy talvez andasse a fazer chantagem com ele.

 

Deitou uma olhadela a J. D. para ver a reacção, mas ele nem pestanejou com a sugestão. Como se esperasse isso de Lucy ou achasse a chantagem um passatempo vulgar entre as pessoas com quem Lucy se dava.

 

- Townsend - proferiu J. D., com as sobrancelhas unidas, concentrado e preocupado. - É amigo do Bryce?

- Era. Passado. Porquê?

 

Ele não respondeu, Limitou-se a ficar ali, a esfregar o polegar no lábio inferior dum lado para o outro, com a cabeça a trabalhar. Viera junto ao riacho depois de deixar o tio, tanto para aclarar as ideias como para ver se descobria sinais do puma fantasma. o riacho corria por uma estreita faixa de terra dos Serviços Florestais que separava mais Ou menos as terras dos Raffertys das de Bryce. Muito arborizada, parecia crepúsculo a meio do dia - sensação que podia ser pacífica se ele não se sentisse estranhamente perturbado.

 

Não esperara encontrar grande coisa. Algumas pegadas, talvez, e nada mais. Era uma região isolada, sem acesso fácil. Não o género de sítio procurado por turistas ou caminhantes. Os Absarokas e o Dente de Urso ofereciam-lhes quilómetros de carreiros, embora tivesse visto campistas e sinais de campistas em terras dos Raffertys com mais frequência, à medida que as áreas para campismo se tornavam mais apinhadas. o que tinha encontrado no riacho não podia ser atribuído a trânsito pedestre de fim-de-semana.

 

Sinais de cavalos - vários cavalos - e de cães. A carcaça do que podia ter sido um grande e forte cão de caça, com o corpo rasgado e a apodrecer, sujando a água. Tirara-a para fora e deixara-a na margem, para a natureza se desfazer dela. o estado de putrefacção tornava difícil determinar como o animal teria morrido. Pensou na afirmação do tio sobre um grande gato. Um puma voltava-se e atacava, se fosse preciso.

 

Cavalos, cães, beatas e cápsulas de cartuchos no chão. Sinais de caçada. Mas não era época de caça de quaisquer animais. E os pumas eram protegidos - não que alguns não tivessem um triste fim todos os anos. Havia guias que prometiam grandes felinos aos caçadores, por certo preço. E a caça furtiva era um dos crimes mais vulgares e lucrativos no estado do Montana.

 

Cavalos, cães, sinais de caçada. E mesmo a norte do riacho das Cinco Milhas ficava o paraíso particular de Evan Bryce. Bryce, o desportista. Bryce, o aventureiro. Bryce, amigo do juiz morto, amante da falecida Lucy, que fora cliente do advogado morto. Daggrepont.

 

- Fui eu mesma que lhe dei a notícia e ele mostrou-se destroçado - disse Mari rolando os olhos e fazendo uma careta.

 

O que é que ele fez?

 

- Os ruídos apropriados, mas não foi sincero. Na verdade, acho que não podia ter-se ralado menos. Não lhe vi qualquer espécie de emoção, até o Will aparecer sem ser convidado. Momento desagradável. Não me parece que os manuais de boas maneiras cubram o que deve fazer-se quando um vaqueiro bêbedo ataca o anfitrião e o acusa de se deitar com a mulher dele.

 

-Meu Deus - exclamou J. D., passando a mão pela testa e pelo cabelo curto. Suspirou e tentou em vão massajar os nós do pescoço. - o que é que aconteceu?

 

- o Will deu dois murros no Bryce, disse umas coisas desagradáveis à Samantha, a Samantha fugiu para casa a correr e lavada em lágrimas, e depois o Bryce partiu uma cadeira nas costelas do Wíll. Tem muito mau génio .Não gostava de o irritar.

 

- É preferível nem te aproximares dele.

 

- Pois, como se tivesses alguma coisa com isso. Começou a afastar-se, mas J. D. puxou-a por um braço e deu um passo subtilmente agressivo na sua direcção.

 

-Estou a falar a sério, Mary Lee. Não estou a gostar do que está a acontecer.

 

- E eu não gosto que me digam o que devo fazer respondeu ela, zangada. Sentia-se como se não dormisse havia vários dias, e o isolamento do seu génio começava a pelar, camada a camada, expondo um novelo embaraçado de nervos, que ele espicaçava de cada vez que aparecia. - Tu aqui não jogas, vaqueiro, tanto quanto vejo. Tornaste isso bem claro ontem à noite. E antes disso, e antes disso. Tudo o que alguma vez quiseste da Lucy ou de mim foi sexo e estas terras. Pois agora, não apanhas uma coisa nem outra e estás chateado. Que pena! Não queres que eu investigue a morte da Lucy, não me queres ao pé do teu tio maluco, e não me queres perto do Bryce. Bom, adivinha lá, Rafferty: estou-me nas tintas para o que tu não queres. Como não me queres em termos mutuamente aceitáveis, desaparece da minha vida!

 

Soltou o braço e começou a andar em direcção à casa, sentindo-se velha e coberta de cicatrizes de guerra. Por instantes, pensou no que diriam as pessoas da sua terra se a vissem. A pequena Marilee, que quase dera cabo da vida numa tentativa falhada de agradar a toda a gente. Se alguém lhe pedisse um compromisso presentemente, parecia-lhe que levantava a mão e lhe ferrava um murro nas ventas.

 

- Sabes, tu não passas dum hipócrita, Rafferty! - insistiu ela, voltando-se de novo para ele. - Lá do cimo do teu grande cavalo, na tua preciosa montanha, pontificas sobre integridade e responsabilidade pessoal. Vê-te ao espelho! Quanto a mim, falta-te uma bela fatia de cada uma delas.

 

J.D. não respondeu. Ficou parado, a vê-la afastar-se e entrar em casa. Uns minutos depois, o Honda arrancava do outro lado da casa, com o cascalho a saltar debaixo dos pneus, e ela abandonava a quinta.

 

Samantha, estava deitada no meio da enorme cama, a olhar para o tecto e à escuta dos sons da noite. Mas nada ouviu. Não como ouvia em casa, na cidade. Nada de cães a ladrar. Nenhum trânsito dos frequentadores do Inferninhoa regressar a casa. Nenhum gemido do dinossauro do seu frigorífico a aproximar-se da extinção. Nenhum eco nos ouvídos do esforço de tentar ouvir o marido a chegar, quando sabia que isso não aconteceria.

 

Oh, Will, o que vai suceder agora?

 

A decisão já tinha sido feita, supunha ela. o marido tornara bem claros os seus sentimentos, e ela dera o primeiro passo para se afastar dele. Um passo gigantesco. Para terreno instável. Sentia o coração bater-lhe na garganta, à espera duma grande queda.

 

Bryce fizera amor com ela. Parecia um sonho, mas sabia que não era. Tinha o corpo a tinir com os efeitos posteriores.

 

Dissera que a amava.

 

E ela devia ter sentido alguma coisa. Felicidade. Alívio. Excitação. indicação. Mas sentia-se sobretudo dormente. Era uma ingénua ignorante em terreno por explorar. Não sabia o que se esperava de si ou o que esperar dos outros.

 

Ele saíra da cama enquanto ela dormia. Pensou onde estaria naquele momento, e o que estaria a pensar. Provavelmente que era inexperiente e não muito boa na cama. Se tivesse sido boa na cama, o marido nunca a teria deixado.

 

Com um suspiro e o coração pesado, sentou-se e encostou-se à cabeceira da cama. Viu um pé de bocas-de-lobo em cima da almofada onde devia estar a cabeça de Bryce. Debaixo da flor, um bilhete dobrado. Abriu-o e leu, à luz suave do candeeiro da mesa-de-cabeceira:

 

Samantha,

 

Sabia que havia de querer algum tempo para pensar Por favor não se sinta culpada. Seguimos os nossos corações, e os corações raramente se enganam.

 

Bryce

 

o coração já a tinha levado por caminhos errados mais do que uma vez. Para os braços de Will. Para o altar com um homem que nunca devia casar-se. Já não confiava nele. Susteve a respiração e tentou ouvir o que ele pudesse dizer-lhe, mas a única coisa que ouviu foi o zumbido do rádio-despertador na mesa-de-cabeceira.

 

Demasiado tensa para ficar quieta, levantou-se da cama e enfiou as calças de ganga e a camisola. Descalça, atravessou a espessa alcatifa e parou junto à janela, a olhar lá para fora. As luzes da piscina estavam apagadas, e uma fina fatia de Lua transformava a água em estanho líquido.

 

Surgiu uma lembrança, doce e dolorosa. o marido a sorrir-lhe com um brilho maroto nos olhos. Uma piscina atrás duma casa em Reno. Estavam na lua-de-mel: dois dias inteiros de constante lascívia. Tinham gasto todo o dinheiro menos três dólares e noventa e sete cêntimos nas máquinas de moedas. Will conseguira um quarto para a primeira noite no (Maior Motelzinho de Lua-de-Mel» como parte do pacote oferecido pela «Maior Capelazinha de Casamentos», mas não tinham dinheiro para uma segunda noite e o MasterCard de Will estava cancelado.

 

Sabendo que podiam passar a noite no colchão pneumático nas traseiras da carrinha, haviam procurado um estacionamento particular com boa vista. A noite estava quente. Ela desejara poder dar um mergulho numa piscina. E depois, viram-na - do feitio dum amendoim, a brilhar ao luar, atrás duma casa baixa de tijolos.

 

- Vamos ser apanhados - segredara ela, sem conseguir conter a excitação. A febre de se ter tornado a esposa de Will Rafferty entontecia-a, e a perspectiva de fazer uma coisa proibida aumentava a sensação.

 

Aos risinhos e mandando-se calar mutuamente, tinham-se despido nas sombras junto da garagem, enfiando-se cuidadosamente na água fresca. Depois de nadarem, haviam-se deitado nas traseiras da carrinha, contando as estrelas e fazendo amor, lenta e docemente.

 

Ainda o amava. Isso levava-a a sentir apenas desespero. Amava um homem que não a queria, e entregara-se a outro que não amava. Havia um nome para aquilo, mas não sabia qual. Bryce devia saber, pensou, afastando-se da janela, mas não podia perguntar-lhe.

 

Os pensamentos atropelavam-se-lhe no cérebro até ter vontade de os sacudir para fora. Que devia fazer? Que devia dizer a Bryce? Continuava como uma estúpida, à espera que o marido voltasse para ela ou dava o tal passo para um mundo novo como um adulto e começava a construir uma vida nova?

 

o quarto parecia pesar-lhe e as perguntas e recriminações giravam-lhe na cabeça. Com cuidado para não fazer barulho, percorreu o corredor e desceu lentamente a escada, saindo pelas portas de vidro do terraço. Evitou olhar para a piscina, preferindo dirigir-se para o muro baixo que rodeava aquela área. Trepou ao muro e passou as pernas para o outro lado.

 

Lá em baixo, a terra descia numa encosta íngreme, salpicada de pedras até ao vale, donde subia a neblina. o ar estava fresco e cheio de humidade, o que a fez estremecer e pôr os braços em volta do corpo. À esquerda, distinguiu a cordilheira seguinte, com neve nos picos como uma tira de renda branca ao luar.

 

Ficou ali sentada durante muito tempo, sem pensar, seM tomar decisões. Apenas sentada, a absorver a calma daquela região despovoada. A sensação de estar a ser observada chegou de trás, lentamente, tocando-lhe como pontas de dedos pela espinha até à nuca. Voltou-se tão depressa que quase caiu do muro.

 

Não viu gente no terraço. As cadeiras estavam vazias. As espreguiçadeiras onde Uma e Fabian haviam estado a apanhar banho de sol já não tinham as toalhas e alinhavam-se ’longe da piscina. Uma brisa suave brincava com as sombrinhas inclinadas por cima das mesas, mas nada mais se movia. Não viu olhos a brilhar na noite. Olhou para a casa, à espera de avistar alguém a observá-la duma das janelas. Mas asjanelas estavam vazias.

 

Devo ter imaginado. Provavelmente queria que fosse o Will. Estúpida. Ele não vai voltar para ti. E tu não devias querer que voltasse.

Desceu do muro e saiu por um portão lateral, pensando em andar até aos estábulos, mas a sensação seguiu-a, pairando sobre ela como um enxame de mosquitos. Nos altos pinheiros, um mocho emitiu uma série de pios ritmados.

o som deslizou-lhe pela pele como uma mão peganhenta. Superstições da infância vieram à tona. Os mochos davam azar. Adivinhavam desgraças, eram espíritos maus. O seu avô cheiene, que recordava apenas como um velhote magro e curvado com uma cara que parecia casca de árvore echeiro azedo a bebida no hálito, tinha-lhe dito e ao seu irmão Mike que os mochos traziam notícias de mortes.

 

Disparate. Porque havia ela de pensar em mortes? Mas a noite pareceu-lhe subitamente demasiado calma à sua volta, e o ar demasiado espesso para respirar. Os estábulos, às escuras, encontravam-se demasiado longe e as árvores rodeavam-nos completamente. o medo subiu-lhe como um rito até à garganta. Por um momento, hesitou entre a lógica e o instinto, mas depois tudo pareceu acontecer ao mesmo tempo e em câmara lenta.

 

Um vulto escuro saiu das sombras no momento em que Samantha se voltava para regressar a casa, um vulto sem feições, sem sexo, vestido de preto, com uma máscara e luvas, A aparição encheu-a de terror como se lhe espetassem uma faca no peito. Abriu a boca para gritar, mas o som ficou preso e abafado pelo saco preto que lhe desceu pela cabeça e foi atado com força em volta do pescoço. Esbracejou violentamente e deu pontapés, mas a escuridão súbita e completa tirou-lhe o equilíbrio, obrigando-a a tropeçar e a cair.

 

o cascalho feriu-lhe as mãos, os cotovelos e os joelhos. Tentou levantar-se, mas o seu atacante bateu-lhe com qualquer coisa que parecia ser um taco de basebol. As pancadas acertaram-lhe nas costas, de lado e nos braços. Tentou freneticamente rastejar para longe do taco, mas o terreno era muito inclinado e caiu de cara no chão, com as pedras a ferírem-lhe a face e o queixo através do grosso tecido do saco.

 

As perguntas sucediam-se, ali caída. Quem? Porquê? Que ia acontecer-lhe? Alguém se importaria? As lágrimas brotaram-lhe dos olhos, ensopando o saco. Queria soluçar     ’ gritar de dor e pavor, mas aquilo sufocava-a e mal conseguia inalar ar suficiente para respirar.

 

o cordão apertava-lhe o pescoço, puxando-lhe a cabeça para cima e estrangulando-a. Um sentimento de autopreservação fê-la deitar as mãos ao saco, tentando aliviar o cordão. Conseguiu erguer-se, puxando o cordão com uma mão e atacando o assaltante com a outra. Acertou em osso e ouviu um gemido de dor e surpresa.

 

Então, tentou correr e tirar o saco da cabeça ao mesmo tempo, com o mundo, a noite, inclinados à sua volta, tudo um borrão em branco e preto. As pernas movíam-se-lhe como pistões e os braços agitavam-se violentamente, mas parecia não avançar. Como num pesadelo, a casa parecia cada vez mais longe. Tinha o coração a bater, desvairado, anulando tudo menos o raspar dumas botas atrás de si.

 

Olhou por cima do ombro precisamente quando o taco caiu. A dor constituiu uma explosão em tons de vermelho e laranja dentro da sua cabeça. Depois, ficou tudo preto, como se alguma coisa se tivesse desligado, e o mundo deixou de existir com um grito do mocho.

Mari caminhava pelas ruas de New Eden na luz cinzenta que precedia a madrugada, com o nevoeiro a envolver as casas, deixando tudo numa mancha indistinta, como uma recordação meio esquecida. Os velhos edifícios pareciam mais antigos, e as velhas lojas obsoletas. Curiosas tradições querendo manter-se, mas sendo ultrapassadas pelo progresso. Bonito e triste. A Loja de Modas Lockhart exibia fatos de calças e casaco de poliéster ao lado da moderna Boutique laço. A velha Drogaria Rexall com o seu balcão de bebidas original lado a lado com a Bicicleta de Montanha e Atletismo. Rações e Leitura Monroe, uma combinação de loja de rações para animais e livraria, com as prateleiras cheias de papa ,para crias, mata-moscas, livros de Louis L’Amour e revistas de caça, além de livros de cozinha baratos impressos em papel de fotocópia pelas senhoras da Igreja Luterana, logo a seguir à Livraria New Age de M. E. Fralick com obras zen e cristais de quartzo de mil dólares.

A tristeza penetrava-lhe nos ossos e nos músculos, e ela fechou as mãos dentro dos bolsos do velho blusão de ganga. Atravessou a rua até à praça e instalou-se num banco diante da Biblioteca Carnegie. Do outro lado do parque, a escultura de Colleen Beritsen, que Mari apreciara de princípio como símbolo de cooperação, tomava forma diante do tribunal, ,uma construção de tijolos vermelhos da década de 1890. Um par de colunas dóricas sustentava o pórtico ao cimo da escada de pedra, com a tinta a cair como caspa, mas o edifício era antigo e venerável, não muito grande, mas orgulhoso ,da sua herança. Diante dele, a escultura parecia um monte de destroços duma ponte suspensa que tivesse ruído. Fora de época, fora de contexto, um insulto não intencional ao local que pretendia honrar.

 

Inquieta e aborrecida consigo mesma pela sua disposição melancólica, abandonou o parque e começou a dirigir-se de volta ao Alce. Não ia ficar lá muito tempo. Uma semana mais ou menos. Os aposentos que Drew e Kevin lhe tinham dado eram lindos, mas não eram um lar. A quinta sim, era um lar. E era dela. Estava na altura de a aceitar, de parar de questionar os motivos de Lucy em lha deixar. Podia nunca chegar a saber o que a levara a isso. Podia nunca descobrir as provas que explicassem tantas coisas. Mas nada disso mudava o facto de a quinta ser agora dela. Assim que se sentisse confortável sozinha de noite, mudava-se para lá definitivamente. Trabalharia na sua música, convivendo com os lamas e talvez começasse a fazer um jardim.

 

E lá em cima, nos montes, Rafferty vaguearia pelos limites do seu reino, olhando para ela.

 

As carrinhas juntavam-se diante do Arco-íris. Nas caixas abertas, os cães espetavam as orelhas e olhavam, ansiosos pelas vistas da cidade. Não viu uma Ford azul e cinzenta com o símbolo do Rancho dos Confederados, nem sinais de Zip. Chegou a pensar num café e num prato de bife com ovo e batatas fritas, mas sem grande convicção. Não estava com disposição para camaradagem. Talvez entrasse para comer qualquer coisa mais tarde e depois ia com Nora ouvir música e beber um copo quando ela acabasse o turno. Mas a hipótese de se encontrar com Will fê-la abandonar também essa ideia.

 

Atravessou o vestíbulo do Alce, esperando encontrar apenas Raoul àquela hora, mas viu Kevin atrás do balcão, de cenho franzido para uns documentos. Levantou os olhos para ela, numa cara abatida por falta de sono. Parecia estar a precisar urgentemente de fazer a barba e tomar um café.

 

- Olá, Kev, que aconteceu? Está no turno do cemitério? perguntou Mari, encostando-se ao balcão.

 

o sorriso agarotado fez uma aparição fugaz e desapareceu num piscar de olhos.

 

-Não é bem isso. Sabia que não ia pregar olho, Por isso dei folga ao Raoul.

 

- Insónia?

 

-Discussão com o Drew.

 

- Ah! Que pena... - disse ela, simpatizando com ele.

- Também acho - resmungou Kevin, folheando os documentos sem os ver.

 

-Foi grande, não?

 

- o suficiente. - Abanou a cabeça e olhou para o bar, os olhos da cabeça de alce pendurada por cima da lareira. - Uma pessoa pensa que conhece outra e depois, de repente, olha para ela e vê que não a conhece mesmo... O pensamento pareceu perder-se, com um suspiro de frustração e confusão. Fechou a boca e tornou a abanar a cabeça, com os olhos castanhos sem expressão.

 

- Ele está por aí? - perguntou Mari. Não queria meter-se na vida pessoal deles, mas Kevin parecia tão desamparado, e depois havia a questão do juiz. Queria saber qual sería a reacção de Drew, na esperança de lhe apanhar mais qualquer coisa. Assim, matava dois coelhos com uma cajadada.

 

-Não sei onde está. Saiu daqui furioso ontem à noite e nunca mais o vi - disse ele, de olhos fixos nos papéis. Mari ergueu as sobrancelhas. Devia ter sido uma discussão e pêras. Pensou se haveria alguma possibilidade de ter alguma coisa a ver com o que Drew sabia da vida de Lucy, mas depois acusou-se a si própria de mercenária. o pobre Kevin parecia um cachorrinho abandonado.

 

- Vocês fazem as pazes - disse ela baixinho, tocando-lhe na manga.

 

- Pois... Olhe, dá-me licença, Mari? Parece que estou a ouvir o telefone no meu gabinete - desculpou-se Kevin, com uma expressão dura, mexendo nos documentos e sem olhar para ela.

 

Voltou-lhe as costas e desapareceu pela porta onde se lia Só PESSOAL AUTORIZADO, antes de Mari poder sequer acenar com a cabeça.

 

Mari dirigiu-se ao salão vazio e passou para trás do bar. Ao lado da caixa registadora, viu o telefone com muitas linhas. Utilizando uma linha livre, marcou o número da sala de computadores de Sacramento.

 

- Patrulha Rodoviária da Califórnia.

 

-Fala Marilee Jennings. Posso falar com o Paul Kall se faz favor?

 

-Um momento.

 

Prendeu o telefone entre a orelha e o ombro e começou a depenicar as unhas. Quando já estava a pensar que a chamada tinha caído, Paul apareceu ao telefone, ofegante,

 

-Estás a dever-me uma, olhos azuis! - disse ele sem preâmbulo.

 

- Nem   pouco mais ou menos - troçou ela. - Fui ou não fui eu quem te apresentou a bela Mistress Kael? -lrrelevante! Ela é ultrapassada na lista de mulheres que me aterrorizam por uma senhora chamada Beverly Tarbon, a minha supervisora, que por um triz não me apanhou a violar mais ou menos um milhão de regras.

 

- Por um triz só serve para quando se perde ao jogo disse Mari, sem entrar no jogo dele. - Encontraste alguma coisa?

 

- Encontrei. Não andas com este gajo, não?

 

- Não me faças vomitar. É absolutamente asqueroso.

- Não precisas de mo dizer. Dei uma olhadela à folha dele. Não se pode dizer que tenha grandes capacidades sociais. Já foi acusado meia dúzia de vezes, sempre com as acusações retiradas. Mas duas mantiveram-se e passou alguns tempos na estalagem do estado.

 

- Porquê?

 

- Conduta e assédio sexual criminosos. Tens mesmo dedo pra os escolher, Marilee!

 

- É um talento - disse ela, com o estômago às voltas, Saiu pela porta lateral do bar e dirigiu-se ao parque de estacionamento, atordoada, à procura da chave do carro dentro da carteira. Os lamas precisavam de comer. Ainda havia divisões da casa que não tinham sido arrumadas.

 

Kendall Morton era um transgressor sexual. Estremeceu com a ideia e as suas implicações. O empregado de Lucy era um violador. Teria ela sabido disso? mais importante ainda, teria isso tido alguma coisa a ver com a sua morte? Mari recordou a falta de entusiasmo do médicO legista quando lhe perguntara se a amiga fora atacada sexualmente. Não se preocupara em verificar.

 

Parou na estação de serviço à saída da terra, comprou um café grande para levar, um bolo seco e uma rosquinha de chocolate, na esperança de despertar o apetite. Depois, afastou-se, ao som da agradável voz de tenor de Vince Gill lamentando o sofrimento do amor.

 

o nevoeiro foi-se dissipando pouco a pouco à medida que ia deixando o vale para trás, rasgando-se como pedaços de algodão doce e desintegrando-se. Mas o Sol recusava-se a brilhar. o enorme céu parecia um cobertor de chumbo, a ameaçar chuva sem cumprir a ameaça. Abaixo do cinzento, as manchas verdes nas colinas e no vale pareciam mais profundas e ricas. As flores silvestres escondiam-se na erva, de cabeça baixa em respeito ao vento. Os montes pareciam negros à distância, os seus picos nevados ocultos pelas barrigas de nuvens baixas.

 

o dia estava de acordo com a disposição de Mari. Sentou-se à mesa da varanda e comeu o pequeno-almoço, tentando libertar o espírito da confusão de suspeitos e motivos durante uns minutos, enquanto procurava identificar o canto de pássaro que não parava nas árvores à sua volta. Uma pega poisou no gradeamento e gritou-lhe indignadamente, abrindo a cauda dum verde metálico e agitando-se para baixo e para cima, como um janota de smoking, na sua plumagem preta e branca. Deixou-lhe o resto do bolo e saiu para dar de comer aos lamas.

 

o celeiro estava escuro como uma caverna. Acendeu a luz e desejou que houvesse mais uma dúzia de lâmpadas. Sentia os nervos à flor da pele, cheios de electricidade. A sua imaginação fazia-lhe adivinhar Kendall Morton escondido em cada canto.

 

Pegou nos baldes e inclinou-se para tirar primeiro a ração de Clyde. Havia pouca comida na lata e teve praticamente de mergulhar de cabeça para lá chegar. Tinha de voltar à cidade para comprar mais. Aproveitava e talvez comprasse a People. Meteu a concha até ao fundo e encontrou uma coisa pesada.

 

-Que diabo ... ?

 

Sentiu uma estranha apreensão formar-se-lhe no estômago, quando se endireitou. o tesouro escondido estava semicoberto pela ração. Um livro dentro dum saco de plástico. Sem o libertar totalmente, sabia qual seria o título e parte de si só desejava voltar as costas e afastar-se, fingindo que não estava ali. Sabia que não ia gostar das respostas que ele lhe daria, que não ia gostar das verdades sobre a amiga morta,

 

Se enchesse a lata com ração, quanto tempo passaria até ser confrontada de novo com as provas? Um mês? Dois? Mesmo enquanto o cérebro se lhe debatia com a questão começou a debruçar-se para a lata outra vez. Desistira definitivamente de evitar as verdades sobre si própria ou as outras pessoas, Tinha de enfrentar aquela, lidar com ela e avançar com a sua vida.

 

Pegou no saco de plástico por uma ponta e puxou. As pequenas bolas da ração rolaram para o lado e ela pôde tirar da lata o segundo volume, «Advogados da Califórnia», A-0, do Anuário Martindale-Hubbell e uma cassete de vídeo com uma etiqueta que dizia apenas «Townsend».

 

Samantha começou a recuperar a consciência como um mergulhador que sobe para a superficie vindo das profundezas do oceano. Saindo da escuridão para a luz cintilante. Mas, assim que chegou à superficie, desejou voltar lá para baixo. A luz atingiu-lhe os olhos como uma faca. A dor atingiu-lhe a nuca e explodiu-lhe pelas costas, braços e pernas, dando-lhe volta ao estômago, pelo caminho.

 

Gemeu e tentou enrolar-se numa bola, mas, ao tentar voltar-se de lado, viu que tinha os tornozelos presos aos pés da cama onde estava deitada. Os pulsos estavam igualmente presos, à cabeceira de ferro, que fez barulho quando tentou puxar os braços para baixo. o ruído atingiu-a como um feixe de postes de ferro.

 

o pânico e a náusea misturavam-se dentro dela, sufocando-a mais do que a mordaça que lhe enchia a boca. Engoliu convulsívamente, engasgando-se, ao mesmo tempo que Os olhos se lhe enchiam de lágrimas. A lembrança da noite anterior pairava algures dentro da cabeça latejante. Escuridão. Silêncio. o grito dum mocho.

 

Lembrou-se de tudo de repente. Do medo. De lutar para não morrer. Do saco a sufocá-la. Do vulto alto vestido de preto, com uma máscara. Do pau a atingi-la uma e Outra vez.

 

Não tinha ideia do que teria acontecido no tempo que estivera inconsciente, de onde estava, de quem a atacara, por que motivo ou dos planos que teria para ela. o pânico voltou como um milhar de vóltios de electricidade, fazendo-a arquear o corpo. As dores espasmódicas levaram-na a soluçar, mas não conseguia deixar de lutar. Deu pontapés e sacudiu-se até que a adrenalina se esgotou e a deixou ali prostrada, cheia de dores, a chorar baixinho, sentindo o sangue a correr-lhe dos Pulsos.

 

Lentamente, o que a rodeava começou a penetrar na pequena esfera que fora o seu mundo desde que recuperara a consciência. Toscas paredes duma cabana. Uma pequena janela donde se avistava uma claridade cinzenta. Ouvia os pássaros a cantar lá fora e os relinchos dum cavalo. Na cabana, nenhum som. Tanto quanto lhe parecia, estava sozinha.

 

- Onde diabo está ela? - perguntou Bryce, poisando violentamente o telefone sem fio na mesa de tampo de vidro. Os copos de sumo tremeram e entornaram um pouco do seu conteúdo. Ninguém atendia o telefone em casa de Samantha. Não estava na estalagem. E, mais importante, não estava na cama do seu quarto de hóspedes. Desaparecera. o que não era uma variável no seu plano.

 

Sharon salvou calmamente o croissant dum duche e limpou cuidadosamente a poça com o guardanapo.

 

- Provavelmente apanhou boleia dum dos empregados. Tu disseste que ela ia pensar duas vezes.

 

-Mas não julguei que se fosse embora!

 

Começou a andar dum lado para outro junto à mesa, de mãos nas ancas. Preparara-se meticulosamente para o pequeno-almoço, com calças de ganga, botas velhas, camisa verde e um cinto antigo de cabedal gravado com uma ponta de quinze centímetros pendurada ao longo da braguilha. Planeara levar um tabuleiro com o pequeno-almoço a Samantha, fazer amor com ela de novo e depois convidá-la a dar um passeio a cavalo - só os dois. Juntos para se conhecerem. Juntos para ele lhe fazer compreender a bela vida que podia ter com ele.

 

Sharon observou-o enquanto partia o croissant em dois e mergulhava uma metade em doce de groselha.

 

- Eu sabia que ela se ia embora - resmungou. - Só não achei que fosse tão cedo. Parece que tem pouca tolerância ao pecado.

 

-Estou farto dos teus comentários, Sharon - berrou Bryce, voltando-se para ela com os olhos brilhantes de raiva. - Já te tolerei muita coisa, mas há limites e tu estás mesmo a alcançá-los.

 

Sharon levantou-se da cadeira como uma rainha, um exterior gelado enrolado em seda branca e um miolo de sofrimento que lhe brilhava nos olhos. Tinha o cabelo preso atrás, o que realçava a sua pesada estrutura óssea facial. Olhou duramente para o primo - para baixo, visto que decidira calçar umas chinelas doiradas de salto alto, necessitando de se sentir superior a ele de alguma maneira.

 

-Não me ameaces - avisou, com a voz a tremer de emoção. - As tuas putazinhas vêm e vão, e eu estou sempre aqui. Conheço-te demasiado bem e sei muito, Posso fazer a tua vida um inferno... e não penses que não faço! Semicerrou os olhos e sorriu, um sorriso de serpente. -Não penses por um minuto que não faço, meu ingrato filho da mãe!

 

Reisa apareceu no terraço com o café e uma expressão vaga no olhar. Sharon passou por ela bruscamente e entrou em casa, arrastando atrás de si uma cauda ondulante de seda branca e uma nuvem de perfume.

 

- Café, Mister Bryce?

 

- Sai-me da frente! - berrou Bryce, desviando-se da governanta e dirigindo-se ao portão lateral e ao Mercedes.

 

Mari esperara que a cassete fosse pornográfica, resultado dum joguinho de «Apanhados» no quarto de Lucy. Uma crónica filmada das escapadelas do juiz na cama da amiga ou em outra cama qualquer ou com burros ou crianças. Como Lucy estava envolvida, esperara que o sexo também fizesse parte da gravação. Mas, sentada no escritório da amiga, com os olhos na televisão que escapara não se sabia como à destruição, não foi isso que viu.

 

A imagem de abertura fora feita por alguém a cavalo. No caminho à frente de quem filmava, via-se Townsend e um homenzinho magro com cabelo preto que parecia ter sido cosido à cabeça e cara de peixe, os dois vestidos como quem vai para um safari. Diante deles, via-se um fulano abrutalhado de grande bigode e um velho chapéu de vaqueiro puxado para cima dos olhos. Iam a falar de espingardas, miras e de outras caçadas. Townsend parecia excitado e estava corado. Alguém fora da câmara disse o nome «Graf» e o homenzinho virou-se na sela.

 

Graf. J. Grafton Sheffield. Mari ouvira Ben Lucas tratá-lo por Graf. Não parecia o género de homem capaz de pegar numa espingarda e matar alguma coisa, muito menos um ser humano.

 

Subiram um carreiro com árvores a toda a volta. Vários ruídos de cavalos e de qualquer coisa que batia. Algures à distância, cães de caça ladravam sem parar. Townsend falava de troféus, de matar um urso-pardo, dum helicóptero no Alasca. Nesse momento, o grupo chegou a uma clareira e o cavalo de Sheffield assustou-se.

 

Os cães ladravam sem parar. A câmara apanhou-os de relance, mais aos tratadores mal vestidos, ao percorrer a clareira até parar num jipe com um pequeno atrelado que transportava uma jaula possivelmente com noventa centímetros de altura e dois metros ou dois metros e meio de comprimento. Dentro da jaula, estava um tigre adulto, uma magnífica e bela criatura.

 

Os cavaleiros desmontaram e os cavalos foram conduzidos dali para fora. o vaqueiro e o juiz começaram a preparar as armas, enquanto a câmara filmava o tigre. o animal respirava pesadamente pela boca, com saliva a escorrer-lhe do queixo. Os olhos pareciam vidrados e desfocados. Um dos cães foi libertado e correu para a jaula, tentando apanhar a cauda do tigre por entre as grades. o felino soltou um rugido e quis pôr-se de pé, mas a jaula só tinha altura suficiente para o animal ficar agachado com os músculos a tremer. o cão ladrou furiosamente, saltando para a jaula e depois voltou-se para trás e incitou os outros.

 

Townsend e o vaqueiro atravessaram a clareira, com as espingardas ao ombro, enquanto outro homenzinho mal vestido trepava à jaula e abria a porta. Fez sair o animal com um aguilhão do gado. o tigre tropeçou ao descer do reboque e ficou parado, cambaleante e confuso. Nesse momento, soltaram os cães.

 

Atacaram o tigre em grupo, a ladrar que nem doidos, com os dentes à mostra. Aterrorizado, o felino saltou e tentou fugir, mas foi impedido por dois cães. Desviou-se, e um terceiro cão atacou-o de lado, enterrando-lhe os dentes no flanco, donde jorrou sangue. Berrando, o tigre virou-se e atirou o cão a três metros de distância com uma patada, desatando a correr o melhor que pôde, dirigindo-se ao bosque com o resto da matilha atrás dele. Caiu uma vez e os cães mergulharam, mordendo-o, mas conseguiu levantar-se de novo e continuar a correr.

 

A vinte metros do princípio do bosque, Townsend apontou e disparou duas vezes. o tigre caiu num monte inerte. Os cães saltaram para cima dele imediatamente, e depois os lacaios avançaram e afastaram-nos à paulada.

 

Mari, sentada no pequeno sofá, tinha as lágrimas a correrem-lhe pela cara e o estômago num nó. Viu o vaqueiro e Sheffield felicitar o juiz, que se postava segurando a cabeça do animal morto pelas orelhas, genuinamente orgulhoso do que acabava de fazer. A lembrança do gabinete de Townsend veio-lhe à memória - as cabeças e as peles nas paredes, o urso de pé com esgar feroz, a um canto. o filho da mãe matara-o dum helicóptero. Não enfrentara o animal, como a pose sugeria. Nunca o vira fazer outra coisa senão fugir. E a pele de tigre não era o resultado duma luta de morte na índia. Era o resultado duma matança, pura e simplesmente. Nada de desporto, desafio ou teste de masculinidade.

 

A gravação acabou. Carregou no botão de parar do comando e um episódio da Murphy Brown encheu o aparelho, com as gargalhadas de fundo a soarem obscenamente impróprias. Baixou o volume, atirou com o comando para o lado e levantou-se com as pernas inseguras.

 

Tudo naquela gravação, à excepção de montar a cavalo, era ilegal, para não dizer imoral. Um sopro daquilo na imprensa e a carreira do juiz ia pelo cano abaixo. Munições de sobra para um chantagista. E motivos de sobra para o assassínio dum chantagista.

 

o seu primeiro impulso foi levar a gravação ao xerife, mas que é que ela mostrava na realidade? Ninguém falava no sítio em que se encontravam. A cara atrás da câmara não era identificada. Townsend tinha morrido; que interessava agora que tivesse morto um animal em perigo de extinção numa caçada fingida? Quinn talvez reconhecesse as criaturas nojentas que dirigiam a caçada. Reconheceria Sheffield, mas não tinha grande coisa de que o acusar. Por Cristo, o homem tinha-se safado do que devia ter sido pelo menos uma acusação de homicídio não premeditado. Tinha de ser a rainha das ingénuas para pensar que o arrastavam de novo até ao Montana por se encontrar presente na caçada ilegal do juiz.

 

Ainda tinha o volume do anuário nos braços. Não o abrira, porque sabia que, quando o fizesse, não ia gostar do que lá estava. Mas a bola começara a rolar e não era possível pará-la. Tinha de seguir em frente, não havia outra coisa a fazer. Respirou fundo e abriu o livro.

 

As primeiras cem páginas tinham sido cortadas para deixar espaço para um molho de apontamentos de estenógrafa judicial, folhas do familiar papel verde com os fonogramas a vermelho. Mari encostou-se à secretária e folheou-as, com a testa franzida e o coração cada vez mais amargurado, ao ler os apontamentos de Lucy sobre as pessoas com quem fazia chantagem.

 

Townsend, que desprezava como um velho idiota e egoísta, Não tem coragem para andar com os grandes, mas cá está ele à mesma. Vai ser comido vivo e é bem feito... Kyle Collins, cujas qualidades de rapaz que mora ao lado eram cruciais a sua imagem. Se os admiradores dele soubessem do que é capaz depois dumas linhas de cocaína do Bryce... Já lhe disse que o deixo utilizar as fotografias que tirei para a sua nova campanha publicitária. o público não vai ficar admirado quando o vir de roupa interior de cabedal? Um senador do Texas que aparentemente era sequioso de sangue e apanhara vários animais ilegalmente em visitas ao pedaço de paraíso de Bryce. o lema de Mattheu, é: se mexe, dá-lhe um tiro. Credo, o Senado deve sentir-se orgulhoso dele. Mas é um passatempo caro, senador! Vejamos, o leopardo custou-lhe oito mil dólares. A minha cooperação deve valer o mesmo...

 

Explicava em pormenor como funcionava o pequeno clube de caça de Bryce, como ele arranjava os animais exóticos através duma rede do mercado negro. o preço para o caçador dependia do animal e das circunstâncias. Às vezes, oferecia a caçada de graça, se um «amigo» se mostrava relutante. o jogo dele era gravar o acontecimento numa cassete e depois guardá-la como segurança para garantir futuros favores de homens de negócios, políticos e actores de Hollywood. Não fazia logo chantagem: limitava-se a guardar a gravação. Não precisava do dinheiro deles e Lucy duvidava que precisasse da sua lealdade. o que ele queria realmente, o que ele apreciava mesmo era o poder.

 

Ojogo com o Bryce diverte-me. Ele éjogador e conhece as regras. Aprecia um jogador de talento igual e estou convencida de que não se importa que eu ganhe dinheiro com os amigos dele. Acredita na sobrevivência do maisforte. Os descuidados têm de pagar pelos seus erros. É realmente um jogo para nós. o jogo da vida. Tudo isto e sexo Fantástico - não tão bom como com o vaqueiro, mas maisaventureiro... A prima Semi-estrela não gosta de o partilhar comigo. Dízía-lhe que se fodesse, mas ela provavelmente aceitava...

 

Havia mais pormenores. Lucy contava sem sombra de consciência como conseguira arranjar uma cópia da caçada do juiz e como   o atormentara com ameaças de a enviar a uma estação de televisão. Contava as suas escapadas nas festas de Bryce, as coisas que vira e ouvira aproveitando-se depois delas, as fraquezas de que se servira, o dinheiro que obtivera.

 

Mari fechou o livro com as mãos a tremer e pô-lo de lado. A amiga, a companheira de copos, fora uma chantagista. Uma desprezível e parasítica chantagista. Milhares de dólares. Dezenas de milhares de dólares. Talvez mais. Extorquidos aos ricos, aos famosos e aos poderosos. Obrigados a pagar generosamente a ténue promessa de nunca divulgar os seus sujos segredos. Segundo os apontamentos, havia meia dúzia de homens - e várias mulheres - que veriam a morte de Lucy com bons olhos.

 

- Meu Deus, Lucy! - murmurou Marí, esfregando a cara com as mãos. Sentia-se suja e agoniada. Através das lágrimas, olhou em volta, para o escritório da bonita casa de toros que tinha herdado, e viu apenas sujidade. Estava , tudo aquilo - casa, terras, carros - comprado con1 dinheiro sujo. Apetecia-lhe fugir dali, queimar tudo e depois tomar um longo duche quente.

 

Precisas duma vida, companheira. Por isso dou-te a minha... Aquelas palavras da carta de Lucy vieram-lhe à lembrança, e tudo dentro de si rejeitou a implicação de que podia pegar no que ela deixara. Como podia Lucy pensar uma coisa dessas? A decadência da vida que levava ali tê-la-ia conduzido a ver toda a gente igualmente corrupta, ou seria a corrupção tão vulgar no mundo dela que se tornara normal?

 

Abanou a cabeça e chorou, lamentando a alma perdida da amiga morta, uma alma perdida antes da morte. Tentou aproximar a Lucy camarada e solidária da Lucy chantagista e sedutora, mas as imagens não se sobrepunham, e percebeu que pensaria sempre nelas como duas pessoas, uma que conhecera e de quem gostara e a outra que preferia nunca ter encontrado, mesmo postumamente.

 

Na televisão, Eldon, o pintor, fez uma observação divertida e o público riu como hienas enquanto a Candice Bergen parecia aborrecida. Depois, apareceu a June AIlyson para louvar as virtudes da roupa interior descartável para mulheres com problemas de controlo da bexiga.

 

Mais um dia no paraíso. Séries que pretendiam retratar a vida real e anúncios estúpidos. Chantagistas e libertinos. Belas e monstros. Mundos incompatíveis ocupando o mesmo tempo e o mesmo espaço. o surrealismo em acção.

 

- E tu foste apanhada exactamente no meio disso tudo, Marilee - murmurou.

 

Tinha o cérebro a fervilhar com todas aquelas informações, possibilidades, perguntas. Já possuía provas de muitas coisas, mas nenhuma de quem matara realmente Lucy. Tivera esperança de poder fazer com que reabrissem o caso, mas agora já não tanto. o xerife não ia concordar. Lucy estava morta, Sheffield fora castigado aos olhos do tribunal. Se o juiz fosse o assassino, que importava - também estava morto. Mas havia outros suspeitos.

 

Tudo ia dar a Bryce. Segundo os apontamentos de Lucy, era ele que organizava as caçadas, que fazia as gravações, que segurava os fios que prendiam uma dúzia de pessoas importantes. Era o titereiro. Seduzia os amigos para a caçada, virando a situação de maneira que eles é que ficavam sob a mira. Não por precisar do dinheiro deles ou dos favores que pudessem fazer-lhe, mas por gostar do jogo.

 

Bryce era quem perderia mais com o espírito empreendedor de Lucy. Talvez os riscos começassem a ultrapassar o prazer que lhe dava brincar com ela. Talvez ela tivesse passado uma linha estabelecida por ele. Talvez Bryce fosse o homem por quem Sheffield assumira a culpa. Ou talvez a morte dela nada tivesse a ver com ele. Talvez Kendall Morton tivesse agido sozinho. Ou talvez as teorias fossem todas disparatadas e Sheffield fosse realmente o assassino involuntário.

 

Marí não sabia o que fazer. Precisava de alguém que corroborasse as provas, pelo menos alguém disposto a ouvi-la enquanto tentava desembaraçar o novelo. Pensou imediatamente em Drew, mas logo a seguir sentíu-se insegura. Seria isso o que ele sabia e não dizia... o clubezinho de caça do Bryce? Se sabia, porque ficara quieto? Por ser igualmente culpado? Como um sonho indistinto, recordou vagamente a discussão entre ele e Kevin no primeiro dia que passara no Alce. Tinham discutido sobre a ética da caça, e era óbvio que não fora a primeira vez. Tanto quanto sabia, podia ser esse o assunto da nova discussão que fizera Drew sair do Alce numa fúria a noite passada.

 

Uma pessoa pensa que conhece outra e depois, de repente, olha para ela e vê que não conhece mesmo...

 

- E não é que é verdade? - resmungou.

 

Quase contra sua vontade, outros fragmentos de ideias foram surgindo. A noite em que surpreendera o intruso no quarto da estalagem. Um homem de preto. Drew, pouco depois, no mesmo quarto, com ar acossado, de preto.

 

- Estás completamente parva, Marilee. o Drew não está metido nisto. Não sejas doida! - disse ela em voz alta, afastando-se da secretária e retomando o passeio.

 

Doida. Del Rafferty era doido.

 

Não quero saber o que lhe aconteceu! Não quero saber dos tigres! Deixe-me em paz! Deixe-me em paz ou eu deixo-a para os rapazes dos cães, raios a partam!

 

Não não sei, mas sim não quero saber.

 

Pusera de lado a ideia de Del ajudar devido ao comentário sobre tigres. Parecia coisa dum doido. Confundira-a com um cadáver e pensara ter visto um tigre. Não havia tigres no Montana. E que diabo eram os rapazes dos cães? o tipo estava de tal maneira chanfrado que nunca mais se endireitava. Era o que ela tinha pensado.

 

Mas afinal, se ele não estivesse completamente doido? Se ele tivesse visto uma das caçadas de Bryce? Podia ter pensado que não estava bom da cabeça, mas também ela tinha visto agora o tigre. Podia garantir-lhe que o que vira era real. Isso dar-lhe-ia uma coisa em comum e, se o conseguisse, talvez ele lhe dissesse o que sabia sobre a morte de Lucy - se sabia alguma coisa.

 

Não quero saber o que lhe aconteceu! o que significava que sabia.

 

o xerife não ia gostar de Del como testemunha, e J. D. não ia gostar que ela fosse lá acima ao território do tio. Mas precisava de descobrir a verdade, para fechar a porta sobre aquele feio capítulo da vida da amiga. Agora mais do que nunca queria acabar com aquilo, queria o assunto morto e enterrado. Mentalmente, mandou Quinn e J. D. à fava, e dirigiu-se ao celeiro para selar o macho.

 

Observou-a através da mira telescópica, com a Remington 700 confortavelmente encostada ao ombro. Parecia a trinta centímetros de distância. Conseguia ver todos os estranhos tons do cabelo dela, a ruga de preocupação ao canto da boca, enquanto falava incessantemente com o macho. A seu lado, um dos cães ganiu. Olhou para ele zangado e o animal deitou a cabeça nas patas com um olhar infeliz.

 

Estava a segui-la desde a rocha azul. Vinha por ali fora, no macho, com ar de quem já era dona dos montes. As loíras iam tentar ficar com tudo. Ele sabia. Por isso é que apareciam de noite - para escarnecer dele, para o afastar. E agora, lá vinha ela outra vez, mas de dia. Com todo o descaramento.

 

Podia apanhá-la naquele instante. Susteve a respiração e mexeu o dedo no gatilho, mas não disparou. Não sabia bem se aquilo fazia parte do teste. E via que era a loira pequena. A que falava, não a morta, não a loira que dançava ao luar. J. D. ficaria chateado com ele, se matasse aquela. Ele tinha-lhe dito que a deixasse em paz.

 

Del largou o gatilho, mas continuou imóvel como uma rocha ou uma árvore. Talvez o sobrinho não soubesse que as loiras iam tomar conta de tudo. Estava encantado por elas, não estava? Talvez fosse esse o plano delas e lhe competisse a ele, Del, impedir que ficassem com as terras. Podia ser um herói, se as impedisse. A família podia ficar novamente orgulhosa dele, em vez de secretamente envergonhada. E ele podia orgulhar-se de si mesmo, coisa que não acontecia havia muito tempo. Desde antes de ele conseguir lembrar-se. Desde antes do Vietname.

 

Silencioso como o nada, ergueu-se e começou a subir a colina. A loira dirigia-se à cabana dele. Não podia deixá-la entrar. Mas ia chegar lá primeiro.

 

As botas de Mari levantavam a terra enquanto andava dum lado para o outro. Tirou as mãos dos bolsos de trás das calças de ganga e enfiou-as nos da frente, continuando a andar à volta do curral. Os cavalos olhavam para ela com curiosidade. Preso a um poste, Clyde fechou os grandes olhos castanhos e adormeceu.

 

Esperar não fazia parte do plano. Nunca lhe ocorrera que Del Rafferty não estivesse em casa quando lá chegasse. Na realidade, estava à espera que lhe ferrasse um tiro muito antes de ela conseguir avistar a cabana. As pernas doíam-lhe de apertar Clyde, receando que o animal se espantasse. Mas não tinha havido qualquer tiro.

 

Com pouca vontade de enfrentar o réptil do velhote, não se aproximara da porta. Dera a volta e batera no vidro duma janela, mas não conseguia ver o que se passava lá dentro, porque a janela tinha cortina. Chamou-o pelo nome e tornou a bater. A única resposta que obteve foi o sinistro som da cascavel, acordada da sesta.

 

Olhou para o relógio e suspirou. Quando Del aparecesse, era impossível saber o tempo que levaria a conseguir que ele falasse - se falasse realmente. o céu continuava pesado e cor de chumbo, a ameaçar chuva e o anoitecer para breve. Não queria ser apanhada a descer o monte depois de escurecer. Já era suficientemente escuro de dia por causa das árvores e não estava familiarizada com o carreiro nem com o macho. E existia sempre a ameaça dum encontro com algum animal selvagem. Não lera algures que os ursos-pardos eram noctívagos?

 

Encostou-se à vedação da cerca e fez um som de beijo para chamar uma égua que estava a beber água. Também tinha a garganta seca, mas não lhe ocorrera levar um cantil ou uma garrafa térmica. A pressa tinha sido demasiada. Acariciando o focinho da égua, olhou novamente para a cabana. Lá dentro, havia uma bomba de tirar água e latas de Dr. Pepper. E não havia fechadura na porta. Apenas a cascavel.

 

É claro que sabia que a cobra não era uma ameaça real, Estava numa gaiola e era demasiado grande para atravessar as duas camadas de rede, ou já o teria feito. Não podia morder-lhe, a não ser que tivesse força suficiente para rebentar a rede com o corpo, aterrando-lhe provavelmente num ombro e mordendo-lhe o pescoço.

 

Engoliu em seco e fez uma careta.

 

- o Del Rafferty passa por aquela porta todos os dias e não se preocupa em ser mordido - resmungou. - Mas o Del Rafferty é maluco.

 

Sentia a língua colar-se ao céu da boca. Um dos cavalos meteu o focinho no bebedouro e chapinhou água para todos os lados, fazendo Clyde abrir um olho do outro lado da vedação e fixá-lo com ar pouco amigável.

 

Mari verificou novamente as horas e tentou suspirar, mas a garganta não lhe obedeceu, fechando-se como se estivesse colada.

 

Enchendo-se de coragem, atravessou o pátio e aproximou-se da cabana em passos rápidos e decididos. A cascavel estava deitada como se fosse uma mangueira enrolada e levantou a cabeça, com a língua de fora, quando ela chegou a uns seis metros de distância. A quatro metros, ouviu-se o sistema de alarme, o som do chocalho. A três metros, Mari pôs-se de gatas, rezando para não estar à vista do animal e encontrar a porta aberta.

 

Gatinhou pela terra, com o coração a fazer tanto barulho como o guizo da cobra. Depois, deitou a mão ao puxador da porta.

 

o tiro veio quando empurrou a porta, e ela mergulhou instintivamente lá para dentro no momento em que a bala acertou na gaiola da cobra e se esmagou na parede. Com o fecho rebentado, a porta da gaiola abriu-se e o réptil caiu no chão a quinze centímetros do pé direito de Mari.

 

Ela gritou e atirou-se mais para a frente, tentando meter os pés debaixo do corpo. A cascavel seguiu-a, deslizando pelo chão da cabana. Mari olhou para ela, com os olhos a arder por não os piscar, com o suor a escorrer-lhe da testa para as sobrancelhas e a pingar-lhe pela cara. Podia ficar dentro duma cabana que parecia uma caixa de biscoitos com uma cobra venenosa ou correr lá para fora e apanhar um tiro dum tarado. Opções maravilhosas.

 

-Não podias ter sido advogada, pois não, Marilee? resmungou, recuando para a cozinha, com a cobra a deslizar pelo soalho de pinho, exibindo um corpo com mais de um metro de comprimento e grosso como um braço. - Nunca viste um advogado a fugir duma cascavel, pois não? Que pergunta estúpida. Todos os advogados que tu conheces são cobras.

 

Viu demasiado tarde que estava presa num canto, sem maneira de fugir da pequena cozinha sem passar por cima da cobra, que se aninhava a um par de botas de vaqueiro num tapete junto do fogão. Mari puxou uma cadeira e trepou, tentando recordar se alguma coisa que lera sobre o Montana falava na habilidade da cascavel em subir por superficies cromadas. As suas pernas tremiam visivelmente. Olhou para a cobra e viu o próprio coração a bater debaixo da camisola de algodão cor de alfazema. Sentia a língua como um animal morto dentro da boca.

 

As coisas não estavam a correr como tinha imaginado. Esperara poder aproximar-se cautelosamente de Del Rafferty, cheia de boas intenções e inspirando-lhe confiança. Começaria com uma oferta de amizade e prosseguiria com uma desculpa pela intrusão. Ele sentiria os bons sentimentos dela e contar-lhe-ia tudo.

 

Mas o homem que apareceu à porta da cabana não parecia capaz de confiar em ninguém. Trazia uma feia espingarda em riste e um boné de basebol na cabeça, posto ao contrário, possivelmente para a pala não interferir com a mira telescópica quando precisava de fazer pontaria. Os olhos eram duas fendas sob as grossas sobrancelhas, a boca com os cantos descaídos - muito mais do lado da cicatriz - e saliva a escorrer-lhe pelo lábio inferior e pelo queixo.

 

Mari levantou as mãos, rendendo-se. Tremiam como as duma pessoa que sofresse de doença de Parkinson.

 

- P.. por favor, não dispare!

 

-Não a quero aqui - rosnou ele, endireitando os ombros e levantando novamente a arma. - Pode ter enganado o J. D., mas não me engana a mim. Você é uma das loiras.

 

-S... sou, mas eu sou a loira boa - improvisou Mari.

- Lembra-se? Eu não sou a Lucy. Não sou a loira que morreu.

 

- Eu sei. Mas não a quero na minha casa. Ninguém entra na minha casa - insistiu ele, em tom defensivo, depois de a observar com os olhos cada vez mais apertados.

 

- Desculpe. A minha mãe tentou educar-me, mas tenho pouco jeito para coisas de etiqueta. Talvez eu consiga educar melhor os meus filhos... se viver o suficiente para os ter - acrescentou entre dentes.

 

No tapete junto ao fogão, a cascavel levantava a cabeça na direcção de Del, com a cauda a chocalhar perigosamente e a boca rosada a silvar. o velhote deitou-lhe uma olhadela, recuou até à lareira e voltou com a espingarda apoiada no braço direito e uma tenaz na mão esquerda. Aproximou-se o suficiente para atrair a cobra e depois pisou-lhe com dificuldade a cabeça e agarrou-a com a tenaz. Tudo como se se tratasse da tarefa caseira mais normal.

 

Mari estremeceu vendo como ele erguia a criatura a contorcer-se e a levava até à porta, onde a atirou para a gaiola, empurrando a portinhola com o cano da arma. Mari desceu da cadeira, mas continuou com as mãos no ar.

 

- Que é que quer? Que é que veio cá fazer? - perguntou Del, voltando para dentro e apontando-lhe de novo a espingarda. Para o atormentar, pensou. Para o seduzir, talvez, como tinha seduzido J. D. Então, também ele ficaria enfeitiçado e perderiam as terras. Tinha de ficar alerta, se queria redimir-se. Os dedos apertaram a coronha da arma.

 

Os olhos de Mari saltaram do cano da espingarda para a cara dele. As suspeitas no olhar do velhote eram mau sinal. Ele não falava, se não confiasse nela, e a confiança não parecia iminente.

 

- Preciso de falar consigo, Del - disse ela, o mais calmamente possível. - Preciso de falar consigo sobre os tigres.

 

Deu um salto, como se lhe tivesse espetado um aguilhão do gado. Ela sabia dos tigres.

 

-Isso é um truque?

- Não.

 

- Você costuma dançar com os rapazes dos cães?

 

- Não - disse ela baixinho, sentindo as lágrimas na garganta. - A Lucy dançava? A loira que morreu?

 

Del não respondeu. o cérebro fervilhava-lhe sob a placa de metal, latejando com tanta força que podia fazer-lhe saltar os olhos das órbitas. Olhou para a loira pequena. Tinha os olhos claros como vidro colorido e olhava para ele a direito. A maioria das pessoas não olhava assim. A maior parte das pessoas olhava para o lado deformado da cara dele ou através dele como se não tivesse cabeça.

 

- É importante, Del - insistiu ela baixinho. - Eu sei que viu os tigres e sei que são verdadeiros.

 

Limitou-se a olhar para ela.

 

É um truque. Ela vai enfeitiçar-te também.

 

Não sabia o que fazer. Deu um passo para trás e voltou-se, começando a andar a toda a largura da cabana, com a arma apontada para o chão. Andava com energia, dando voltas militares, como se os movimentos precisos e decididos lhe conseguissem ordenar os pensamentos. Não podia confiar nela. Era uma forasteira. Era loira. Tinha entrado em casa dele sem ser convidada. Viera para levar o que lhe restava da mente, com certeza. Ia distraí-lo com a conversa dos tigres e empurrá-lo para o precipício.

 

Não podia permitir uma coisa dessas. Tinha de obrigar as loiras a parar e de mandar embora os rapazes dos cães. Não podia haver tigres nos montes. Dependia dele. Podia ser um herói.

 

Resmungou algumas daquelas coisas em voz alta, sem perceber que falava, sem pensar que a mulher podia ouvi-lo.

- Eu também vi o tigre - disse ela. - E sei que o mataram... o grupo do Bryce. Acho que um deles pode ter disparado também sobre a Lucy.

 

- Essa é a morta. Você não é a morta; você é a faladora. Pare de falar! - ordenou Del, com um olhar duro, mas sem parar de andar dum lado para o outro.

 

-Mas nós precisamos de falar, Del. Tem de me dizer..

- Pare de falar! - berrou ele. Voltou-se de repente, levantou a espingarda e atacou-a, gritando:’- Pare de falar! Pare! Já lhe disse que pare!

 

Mari recuou aos tropeções e embateu no aparador, atingindo a prateleira com a cabeça e fazendo cair três latas do Dr Pepper. Não tinha por onde fugir. Estava o mais para trás possível, com o tampo do aparador a magoar-lhe as costas e o cano da feia arma de Del Rafferty encostado à cara.

 

Na outra ponta da arma, o velhote tremia como se estivesse no epicentro dum tremor de terra e exibia os olhos desvairados, de pupilas muito abertas como um borrão de tinta. os músculos da cara dele puxavam-lhe a pele contra os ossos e a boca estava aberta, como se o lado mutilado tivesse sido apanhado por um anzol invisível.

 

o rosto da morte. De certa maneira, sempre esperara que a morte fosse calma e racional, como se houvesse alguma lógica no esquema. Pensou se sentiria a bala e se teria a mesma revelação que o juiz no instante da morte. Mas não queria descobri-lo. A vontade de viver latejava dentro dela, e a sua mente girava, à procura dum plano, duma escapatória.

 

Credo, Marilee, se sobreviveres, o JD. mata-te.

 

- Não faça isso, Del - pediu suavemente. A atmosfera carregada pareceu aumentar o som cem vezes. o velhote emitiu um ruído animalesco com a garganta e os músculos do antebraço contraíram-se, ao preparar-se para puxar o gatilho. Mari lutou contra a vontade de fechar os olhos. Os lábios mal se moveram e as palavras saíram como um suspiro:

- Um herói não fazia isso.

 

Herói. A palavra penetrou-lhe no cérebro latejante como uma lança. Podia ser um herói. Fazer a família orgulhar-se dele. Redimir-se. Se puxasse o gatilho? Ou se não? As perguntas lutavam dentro de si, ecoando-lhe na mente dolorida. As mãos tremiam-lhe na espingarda e tinha as palmas das mãos suadas. Podia acabar com aquilo. Podia matá-la. Mas isso não seria o fim. Os mortos não se iam embora. Ele sabia. Ela ia persegui-lo e ele teria de fingir que não lhe aparecia ou o J. D. teria vergonha dele.

 

Mari assistia à batalha que se travava dentro dele, via-lhe a testa franzida, a humidade nos olhos e a tremura da boca. Sentiu um imenso dó. Mesmo com a arma dele encostada à cara, sentiu um imenso dó. A mente dele estava destroçada. Queria tanto fazer o que estava certo e não sabia o que isso era.

 

-Pode ser um herói, Del - murmurou Mari, lutando contra as próprias lágrimas. - Ajude-me, Del. o J.D. vai ficar tão orgulhoso de si!

 

Ela oferecia-lhe tudo o que ele queria. Coisas insignificantes para a maioria dos homens, mas coisas pequenas eram tudo o que ele se atrevia a pedir. Fazer o que estava certo. Fazer com que J. D. se orgulhasse dele. Não pedia a cura. Não pedia o género de vida que os outros homens tinham. Só ser uma ajuda e não um peso. Ser um herói para a família, não o mundo. Não parecia demasiado como pedido, mas todas as suas preces tinham ficado sem resposta.

 

- Faça o que está certo, Del - murmurou ela. - Baixe a arma.

 

Ela olhava-o nos olhos, sem piscar, sem o condenar, sem o ridicularizar. Não era como a outra. Ele sabia isso. Queria que ele ajudasse. Também queria que ele fosse um herói. o azul dos olhos dela era como um lago sob um céu de Outono, calmo e profundo. Olhos de anjo. Qualquer coisa neles tocou-o num sítio onde ninguém tentava entrar havia tanto tempo...

 

- Se isto é um truque, minha senhora, mato-a depois disse ele baixinho, dando um passo para trás e baixando a espingarda.

 

o barulho dos cães tirou Samantha das profundezas da inconsciência, através de camadas de sonhos e recordações. Havia sempre cães em casa do avô. Rafeiros escanzelados. o velhote contava histórias de comer cães. Ao jantar, costumava segredar-lhe que estavam a comer guisado de cachorrinho, e ria-se quando ela só comia pão. Pensou no Maroto e se estaria preocupado com ela. Sentiu-se culpada por lhe prestar pouca atenção. A culpa fê-la sentir-se cansada e voltou para o vazio.

 

Um ladrído que acabou numa espécie de uivo agiu como interruptor e os olhos abriram-se-lhe. Ainda estava na cabana, atada à cama. Ainda era dia - ou já era dia outra vez. Não fazia ideia do tempo que estivera inconsciente. As mesmas dores continuavam a latejar-lhe pelo corpo e na nuca. As mãos, presas à cama, estavam dormentes. o cheiro de urina e a humidade dos lençóis disseram-lhe que a bexiga tinha cedido enquanto estivera inconsciente.

 

Ouviu vozes indistintas do lado de fora e tentou gritar, mas a mordaça era como uma rolha, e não conseguia tirá-la. com alguma esperança de que as vozes fossem de caninhantes que pudessem entrar e salvá-la, pensou também em caçadores - por causa dos cães. Mas não era época de caça.

 

A esperança diminuiu, imaginando que uma das vozes podia ser do seu captor,

 

Uma porta abriu-se algures atrás de si, mas não podia virar o pescoço o suficiente para ver. Ninguém falou. Os minutos prolongaram-se, esticando-lhe os nervos até os sentir como fios delgados como cabelos. A cabeça continuava a latejar. Pensou vagamente se a porta a abrir-se seria uma alucinação, ou o som de botas no chão. Como podia ouvir alguma coisa com as batidas dentro da cabeça? Como podia aquilo ser real? Quem quereria raptá-la? Ela não tinha qualquer valor.

 

Ouviu novamente as botas no chão de madeira, cada vez mais perto, mesmo atrás de si. Tentou virar a cabeça, mas continuava sem ver o dono das botas, e a dor do movimento era terrível.

 

Então, sentiu uma respiração quente na testa e um par de mãos enluvadas deslizou por entre os varões da cama, de cada lado do seu corpo, e ela lutou com força contra o que a prendia, aterrorizada. As mãos apanharam-lhe a cara, com os polegares a acariciarem-lhe as faces e os cantos da boca até ao pescoço. o cabedal preto estava fresco e fragrante e o toque era ousado e estranhamente sensual.

 

- Como está a minha princezinha índia? - A voz era quase masculina, cheia de sarcasmo e divertimento secreto. Sharon.

 

Samantha sentiu um arrepio, um medo sem nome que se lhe introduziu nos ossos. Não fazia ideia do que aquela mulher fosse capaz de fazer. Apesar de ingénua, sentira desde o princípio que aquela mulher tinha visto e experimentado coisas que ela nem sequer imaginava. Coisas sinistras. Cheia de dores, inclinou a cabeça para trás, tentando ver a sua atormentadora. Sharon encostou a cara às grades da cama e sorriu.

 

- Somos só nós, princesa, sem homens por quem lutar - disse ela, com os polegares na base do pescoço de Samantha, experimentando carregar, sufocando-a por momentos, e depois deixando escorregar as mãos para os seios dela. - Só nós, raparigas.

 

Levantou-se lentamente e deu a volta à cama, com as botas a bater na madeira gasta do chão. Trazia um macaco colado ao corpo, preto, com um blusão de caça castanho-escuro por cima. Tinha o cabelo puxado para trás e a boca de lábios grossos pintada de vermelho cor de sangue. Dum fundo bolso do blusão, retirou uma longa faca de aspecto mortífero, um punhal que brilhou quando o voltou dum lado e do outro, admirando a lâmina.

 

Samantha abriu muito os olhos e sentiu o corpo cobrir-se-lhe de suor.

 

A boca de Sharon curvou-se, divertida.

 

- oh, sim, princezinha, isto é para ti! - Sentou-se na borda da cama e rolou o cabo da faca entre as palmas, torcendo a lâmina. - Não posso consentir que dês a volta à cabeça do Bryce. Não me importava de compartilhar, mas não te deixo tirares-mo. Não deixei a Lucy ficar com ele e também não vou permitir que mo tires. Ele foi sempre meu e não vou consentir que a obsessão que tem por ti modifique as coisas.

 

Com uma mão, agarrou uma ponta da camisola de seda de Samantha e com a outra baixou rapidamente a faca. Deu uma gargalhada quando Sam se agitou e tentou gritar por detrás da mordaça.

 

- Ainda não. - Deixou a ponta da faca picar a seda e rasgou o tecido do decote até à orla inferior, poisando os olhos frios e elíptícos como os duma cobra nos de Samantha. - Ainda não tive a minha brincadeira - segredou, afastando as metades da camisola para destapar os seios de Sam. Eram pequenos e bonitos. Pareciam macios e tinham centros castanhos. Os seios duma rapariguinha. Naturais e sem embelezamentos. Pensou em cortar-lhos. - Queria que o Bryce te partilhasse comigo, mas ele não quis, Achou que eras demasiado pura. Sem mácula - troçou, com a boca torcida. - A sua virgenzinha. Não serás imaculada, quando eu acabar contigo. Não vais morrer sem mácula.

 

Poisando a faca, levantou-se da cama e despiu-se.

 

As lágrimas corriam pela cara de Samantha enquanto a prima de Bryce a acariciava. Tentou não chorar, porque a mordaça a sufocava e porque isso só fazia com que a cabeça latejasse ainda mais, mas não conseguia. Estava presa num pesadelo por sua própria culpa. Se não tivesse ido atrás do grupo dele... se se tivesse lembrado do seu lugar.. Pense no que está a fazer, Samantha! Você não é como eles.

 

Pensara que podia fingir por uns tempos, fazer parte da boa vida, viver como se fosse uma pessoa especial. Mas não era a Gata Borralheira e a vida não era um conto de fadas, Nem sequer queria um conto de fadas, pensou, de coração despedaçado pela revelação. Tudo o que sempre quisera fora o marido, uma casa e uma família. Chorava tanto por esses sonhos desfeitos como pela degradação a que Sharon Russell a obrigava. A violação do seu corpo parecia um incidente na destruição do seu espírito e de todas as suas esperanças.

 

Nunca teria Will. Nunca teria uma família. Ia morrer ali às mãos duma louca, para pagar o pecado da sua própria estupidez. Era por tudo isso que chorava, não pelas mãos que lhe tocavam ou pela boca que a violava ou por qualquer dos actos vis que a prima de Bryce cometia com um perverso prazer hedonista.

 

- Estás manchada agora, virgenzinha - disse Sharon, escarranchada sobre as ancas de Sam. Tinha uns ombros tão largos como os dum homem, e os seios espetados, dois cones de plástico cobertos de carne. Não havia gordura debaixo da pele, apenas músculo. Estendeu a mão para a faca na mesa ao lado da cama. - Estás manchada e vais ficar feia também!

 

Levantou o punhal e encostou-lhe a ponta mesmo sob o olho direito, empurrando, empurrando lentamente. Samantha mordeu o pano dentro da boca com toda a força e tentou em vão impedir o corpo de tremer. Via a mão de Sharon no cabo do punhal e grande parte da lâmina, que ela fazia subir e descer, a brincar. A ponta entrou na carne tenra e Samantha esforçou-se por se enterrar mais no colchão, cheia dum terror primitivo, com o suor a escorrer-lhe pela cara. Sentia o cheiro do medo, do seu próprio medo, azedo e forte por cima do fedor a amoníaco da urina e do cheiro enjoativo de Sharon.

 

A sua atormentadora soltou uma gargalhada profunda.

- Ficavas feia se eu te arrancasse os olhos, não ficavas? E o Bryce já não te queria. Ele só quer coisas bonitas, belas, como tu, com esse lindo cabelo preto de seda.

 

Abruptamente, levantou a faca e agarrou a trança de Samantha, com uma expressão grotesca de ódio. Puxou-lha para cima e enrolou-a no pulso. Samantha apertou os olhos de dor, com a cabeça puxada para um lado. Parecia que Sharon ia arrancar-lhe o cabelo, com escalpe e tudo, mas em vez disso começou a cortar-lho de qualquer maneira junto ao crânio.

 

Foi um alívio quando a última madeixa deu de si contra a lâmina e a pressão desapareceu com ela. Tentou não pensar que o cabelo fora sempre uma das poucas coisas de que se orgulhava ou na maneira como o marido costumava brincar com ele quando estavam na cama, mexendo-lhe e cobrindo a pele de ambos com ele. Tentou não pensar no marido, Tentou não pensar. Se conseguisse deixar de pensar, talvez deixasse também de existir. Podia tornar-se invisível, e a prima de Bryce com o brilho de loucura no olhar perderia o interesse e sairia dali.

 

Rezou desesperadamente para que isso acontecesse. Rezou pela libertação daquele pesadelo. Rezou por um milagre.

 

Não obteve resposta.

 

Sharon inclinou-se e murmurou-lhe ao ouvido:

 

- Acabou-se o cabelo bonito, princezinha. E acabou-se a cara bonita. - Encostou a lâmina da faca à face direita de Samantha.

 

Orvis Slokum estava sentado dentro da sua velha carrinha Chevy, passando por aquilo que para ele era uma rara experiência: uma crise de consciência.

 

A grande maioria das   coisas que tinham acontecido na sua vida podia dizer que   eram por culpa de outra pessoa qualquer. Não acabara o liceu porque os professores não gostavam dele por ser um Slokum e o irmão, Clete que o precedera, deixando um rasto   de problemas. Nunca conseguira manter um emprego decente porque todos os patrões que tivera eram filhos da mãe que esperavam muito e pagavam pouco, sem compreender a necessidade de latitude dum homem. Realmente, atrasava-se de vez em quando. Mas não tinha culpa. A culpa era do despertador, da mãe, duma mulher, da carrinha, do tempo, do empregado da estação de serviço. E também não tinha culpa de ter ido parar à prisão, Isso fora culpa do sócio, dos chuis, do defensor público, do juiz, do acusador - todos sem qualquer respeito por ele por ser um Slokum - o que também não era culpa sua.

 

Lamentava muitas coisas - sobretudo o facto de ter nascido um Slokum -, mas um dos poucos desgostos que tinha em relação a empregos conseguidos e perdidos residia no facto de as coisas não terem corrido bem no Rancho dos Confederados. Os Raffertys eram boa gente. Will sabia divertir-se e era sempre amistoso - nunca o olhara de cima por ele ser um Slokum. J. D. era um filho da mãe, duro, mas era justo e o género de homem que os outros homens podiam admirar. Andara três anos à frente dele na escola, e Orvis ainda olhava para ele com respeito. J. D. sempre tivera uma -aura à sua volta, como se fosse mais forte, sensato e lúcido do que o homem médio. Parecia saber sempre o que estava certo, o que constituía um verdadeiro mistério para Orvis, que parecia fazer constantemente o que estava errado, fossem quais fossem as suas intenções.

 

Sim, senhor, lamentava que J. D. o fizesse trabalhar de mais e depois o tivesse despedido por dar cabo das represas de irrigação - o que não fora culpa sua. Não se ralara tanto ,por perder o emprego quando Mr. Bryce o contratou saído da penitenciária. mr, Bryce pagava muito bem e não havia grande coisa para fazer, o que dava a um homem a importante latitude. Orvis considerara-se bastante esperto, na altura. Saído da choça, a arranjar emprego na maior propriedade das redondezas para fazer quase nada por duas vezes o que !ganharia noutro sítio qualquer. Isso fazia dele um tipo bastante esperto, ou não?

 

Mas as coisas não estavam a correr como ele esperara. As pessoas lá do rancho tratavam-no como se ele fosse merda de cão Os fazendeiros e o pessoal de New Eden odiavam Evan Bryce e alargavam esse ódio a quem trabalhasse para ele. E havia alguns trabalhos que não gostava muito de fazer. Trabalhos que lhe deixavam o estômago às voltas por vezes.

 

Os cães de caça eram parte do seu trabalho: dar-lhes de comer, mantê-los em forma, cuidar deles durante a caçada. Parecia coisa simples, mas depressa descobriu que o patrão e os peneirentos dos amigos não eram desportistas e que os animais que caçavam nunca tinham época no Montana. Leões, leopardos e toda a espécie de animais exóticos que nunca vira senão no Reino Animal na televisão.

 

o patrão comprava-os a um intermediário duvidoso, que os adquiria como excedentes aos jardins zoológicos. Eram trazidos por estradas secundárias em plena noite e ficavam às vezes dias seguidos dentro de jaulas que não eram muito maiores do que eles. E os animais não tinham grandes hipóteses durante a caçada. Muitas vezes estavam drogados e mal conseguiam sair da jaula antes de os cães lhes caírem em cima ou um dos convidados lhes ferrar um tiro para os mandar empalhar e exibir em casa, de modo a poderem mentir aos amigos sobre o perigoso safari e como tinham arriscado a vida para matar o tigre, a pantera ou outra coisa qualquer.

 

Orvis dizia para si que não tinha importância, que os animais não eram diferentes do gado. Mas não conseguia que essa desculpa lhe assentasse bem no estômago quando via aquela gente a rir entusiasticamente depois de matar um pobre animal drogado ou quando o obrigavam a prepará-lo.

 

Cada vez com mais frequência dava consigo a pensar no que J. D. lhe dissera um dia no Rancho dos Confederados. Há coisas mais importantes neste mundo do que o dinheiro, Orvis.

 

É triste que tenhas chegado a este ponto, Orvis. Também ele se sentia um pouco triste.

 

Não gostava do grupo de Mr. Bryce, sobretudo da prima, que parecia disfarçada de mulher. Como de vez em quando dava uma espreitadela por uma janela, vira-a fazer coisas que lhe embrulhavam realmente o estômago. Sexo com outras mulheres. Sexo com dois ou três homens ao mesmo tempo. Coisas que não eram naturais e que o tinham envergonhado, só de olhar.

 

Também fizera umas coisas anormais com Kendall Morton. Sabia, porque Morton lhe tinha contado, com risinhos de troça. Orvis não conseguia imaginar uma mulher com Morton. Só o cheiro devia mantê-las afastadas. Mas não duvidava que fosse verdade. Miss Russell tinha aparecido à procura de Morton para aquele trabalho, mas ele fora ao Inferninho na véspera e ainda não voltara. Então, Miss Russell dissera a Orvis que levasse dois cães para uma cabana de caça do outro lado do riacho das Cinco Milhas e que os deixasse lá, e dera-lhe cem dólares para ficar de boca calada. Devia desaparecer e voltar de manhã, sem abrir o bico sobretudo para Mr. Bryce. Fazia com que o despedissem, se fizesse asneira, e, se não tivesse emprego, perdia a liberdade condicional. Dissera-lhe que havia organizado uma pequena caçada para si própria e que não queria intrusos.

 

Orvís cumprira as ordens. Que lhe interessava que Sharon Russell quisesse caçar sozinha? Se tivessem todos sorte, talvez fosse comida por um urso-pardo. Mas tinha um palpite de que não estava sozinha. Só para recordar o motivo da sua aversão por ela, arrumou a carrinha fora da vista no antigo caminho dos madeireiros e foi até lá por entre as árvores para uma rápida espreitadela pela janela da cabana.

 

Os cães, um par de grandes mastins com um nome africano, ladraram-lhe, mas estavam presos a uma árvore e nunca paravam de ladrar, fosse como fosse, por isso não serviam de alarido. Não tinha medo de, ser apanhado quando se aproximou da janela.

 

Claro, lá estava ela com uma mulher. Via mal a cama, e a janela estava tão suja que era como olhar através dum copo de leite, mas percebeu algumas coisas sem grande díficuldade - estavam as duas em pêlo e a outra atada à cama. Esquisito como o diabo. Doentio mesmo, pensou, conseguindo apesar disso separar a consciência do corpo, quando a excitação lhe agitou o coiso dentro das calças Wrangler. Via cabelo preto e pele morena na mulher a quem Sharon estava a fazer coisas. Não lhe via a cara, mas a única mulher ultimamente no grupo do patrão que correspondia àquela descrição era Sam Rafferty, a mulher de Will.

 

Naquele momento, sentado dentro da carrinha, Orvis pensava no que devia fazer. Palpitava-lhe que Will não sabia que a mulher tinha dado em lésbica. Nem ele próprio conseguia aceitar a ideia. Sam era boa rapariga. Ele conhecia todos os miúdos Neill e, à excepção de Ryder, que andava quase sempre bêbedo e não prestava, eram boa gente. Não percebia o que Sam andava a fazer com aquela gente, para começar. E ainda menos que se interessasse pela mulher com ar de dragão.

 

As cordas também o preocupavam, embora soubesse que havia gente que gostava desse género de coisas. Esfregou o queixo e chupou os dentes tortos, com a cara de furão franzida de concentração e agitando-se como se estivesse com vontade de mijar. Não queria fazer a coisa errada. Não quería ir à procura de Will Rafferty e contar-lhe que a mulher estava nua com outra mulher, para apanhar um murro nas ventas. Por outro lado, se estava ali a passar-se alguma coisa estranha...

 

É triste que tenhas chegado a este ponto, Orvis...

 

o dilema esbracejou dentro dele como um par de gatos selvagens dentro dum saco. Pôs o motor a trabalhar e começou a descer a encosta em silêncio.

 

Gostava de saber automaticamente qual era a coisa certa a fazer, como J.D. sabia sempre.

 

E tinha pena de fazer geralmente a coisa errada... embora não por culpa sua.

e então perguntei ao Harry Rex, porque é que havia de querê-la? Ela tem tantas rugas que deve atarraxar o chapéu na cabeça para ir à missa. - Tucker abanou a cabeça, enojado, inclinou-se para a esquerda na sela e cuspiu um jacto de suco de tabaco que fez uma marmota fugir. Bom, então o Harry Rex deu uma gargalhada, como asno que é. Garanto-te, ele parece um cão a ladrar para um buraco da madeira. Se os miolos fossem tinta, nem um borrão fazia.

 

  1. D. deixou o velhote falar sozinho, sem prestar atenção ao que dizia. Tucker e Harry Rex Monroe da Rações e Leituras Monroe eram compinchas desde a infância de Deus. Implicavam um com o outro como um par de velhas galinhas. Lembrava-se de fazerem, quando era pequeno, combates de polegar- de- ferro, pulso-de-ferro, braço-de-ferro, cuspir tabaco, cuspir pevides de melancia e cuspir caroços de cereja. Passavam dum desafio a outro, nenhum deles querendo que o outro fosse o vencedor final. A história que Tucker contava era familiar e sem importância. Os pensamentos de J.D. estavam noutro sítio.

 

Lá em baixo, para ser preciso. Em Mary Lee. Ela tinha realmente dito das boas. Duas vezes. Pelo menos. Sentia-se como um toiro que precisasse de apanhar na cabeça até perceber que devia parar de empurrar a vedação. Durante tanto tempo, estivera concentrado nas terras... o rancho era tudo. o rancho levava tudo: energia, dinheiro, coração, alma, integridade. Não gostava de pensar naquilo em que se transformara sob a capa da sua dedicação ao Rancho dos Confederados


Um mártir. Um hipócrita. Um mercenário. Um mentiroso. Passara anos a criar a imagem do nobre fazendeiro, para afinal descobrir que a única coisa que havia por detrás dela era medo. Medo de perder a propriedade. Medo de deixar alguém aproximar-se demasiado. Medo de se perder a si próprio. A ironia era que não havia grande coisa a perder; dera tudo... ao rancho.

 

Por Cristo, detestava ironias.

 

Cavalgava ao lado de Tucker, espantado pelo facto de o velhote conseguir falar sobre absolutamente nada, como se não reparasse que o mundo se desfazia à sua volta. Espantado pela falta de sinais visíveis - o céu a rasgar-se como um lençol de seda azul, a terra a estalar e a separar-se enquanto as diversas facções que lutavam por ela a destruíam. Parecia tudo perfeitamente normal. A erva estava verde. o ar cheirava bem com a promessa de chuva. Os edifícios do rancho, ao longe, tinham o aspecto de sempre, velhos mas cuidados, um ou dois a precisar de pintura. Na pastagem que atravessavam, vitelos saltavam e brincavam uns com os outros. A maioria das vacas estava deitada - mais um sinal de chuva. Tudo normal.

 

Pensou no que Chaske lhe tinha dito sobre possuir a terra, e percebeu que, se os Raffertys deixassem de existir no dia seguinte, a terra continuaria ali. A posse não era o mais importante. A administração, sim. A tradição, sim. Reduzíra a sua vida ao ponto de a tradição ser praticamente a única coisa que possuía, e podia perdê-la num segundo, no tempo que um banqueiro levava a assinar um papel.

 

Sentia o coração como uma bola de chumbo dentro do peito.

 

-... J.D.? Usas isso que tens dos lados da cabeça para alguma coisa sem ser para pendurar os óculos de sol? perguntou Tucker, inclinado para a frente, o suco de tabaco formando como que uma bola de golfe dentro da bochecha.

 

-Quê? - fez J. D., sacudindo a cabeça e franzindo a testa para disfarçar o embaraço.

 

- Estava a perguntar se já resolveste o problema da água. Se vamos mudar a manada para a semana, quem é que trata da água?

 

Os problemas habituais. Na Primavera e no Verão, era preciso fazer tudo ao mesmo tempo. Durante o longo e frio Inverno, mal havia que fazer. Era altura de começar a irrigar. o sistema no Rancho dos Confederados era antigo, com valas e represas, para garantir que toda a terra fosse irrigada. Sem Will, tinham adiado a mudança da manada para as pastagens altas, e agora a mudança colidia com a irrigação. Com as duas tarefas a acontecer ao mesmo tempo, tinham dois homens a menos numa propriedade que funcionava com uma equipa já de si reduzida.

 

-Vou ver se consigo que os rapazes do Lyle possam ajudar a levar o gado. E tu tens de tratar da água. Não posso confiar num garoto para isso. - o que era verdade. Uma coisa chata como tudo mas que precisava de experiência. E também era fisicamente bastante menos cansativa do que conduzir uma manada de gado pelo monte acima.

 

Tucker digeriu aquilo com um aceno de cabeça. Cuspiu e manteve o olhar em frente, tentando demasiado mostrar-se indiferente.

 

-É claro que, se o Will voltar.. -Não me parece, Tucker.

 

- Bom, não sei. Se aquilo não é a minha carrinha velha estacionada ali no pátio, tenho de dar os pêsames a algum pobre idiota por ter uma igualzinha.

 

  1. D. olhou para lá. A carrinha era inconfundível, um grande bloco de metal enferrujado. Estava alguém empoleirado na caixa aberta, a atirar um Frisbee a Zip. o cão saltava do chão como um foguetão, fazia meia volta no ar e aterrava com o disco amarelo na boca.

 

Uma cena normal. Como se nada de especial se passasse. Como se o irmão não fosse um alcoólico que se entretinha a arranjar chatices com grandes proprietários. Como se a situação entre os dois não fosse suficientemente má.

 

- Então, J. D., tem calma com o rapaz - começou Tucker.

 

J.D. incitou o cavalo e deixou o velhote para trás. Zip brincava com o Frisbee, correndo para Will e depois agachando-se e fugindo quando ele estendia a mão para o brinquedo, com um olhar sádico que fez Will pensar que sabia perfeitamente que lhe doiam as costas quando fazia o gesto. Doíam-lhe as costelas como se tivesse ficado esmagado entre dois combóios, e, quando se baixava, o nariz partido latejava-lhe como um coração a bater.

 

Cada dor era vivamente clara e separada da seguinte, insensível a comprimidos ou ao álcool. A colossal estupidez do que tinha feito em casa de Bryce surgira nítida pouco tempo depois de Mary Lee o deixar e o Dr. Larimer lhe endíreitar o nariz com um puxão e lhe envolver as costelas com vinte metros de ligaduras suficientemente apertadas para lhe impedirem a expansão dos pulmões. Coxeara para fora das urgências para dar com a carrinha de Tucker à sua espera no parque de estacionamento. Mandada por Bryce, sem dúvida. Não devia querer a porcaria a atravancar-lhe a entrada e a estragar a exposição de Mercedes e Jaguares. E muita sorte não a ter atirado por um precipício.

 

Ainda enfurecido, Will sentou-se ao volante com toda a intenção de ir direito ao Inferninho para deitar algum combustível na fogueira, mas, ao atravessar a cidade deu consigo a virar na Jackson e a parar diante da casita com ar abandonado que partilhara com a mulher.

 

Ex-mulher, ex-mulher, ex-mulher.

 

Ficava a um canto dum pátio com tufos de ervas daninhas e clareiras onde o cão fizera o seu serviço. Tinha um aspecto realmente triste e abandonado. A vizinha do lado apareceu à porta com as mãos nas ancas escanzeladas e ficou a vê-lo aproximar-se. Fez-lhe um aceno com a mão, pelo caminho, mas ela limitou-se a franzir a testa e voltou para dentro.

 

Onde tu chegaste, para as pessoas dum sítio como este te virarem as costas, rapaz.

 

Abriu a porta e entrou, dando uma volta pela sala e pela cozinha, e depois dirigiu-se ao quarto que não via há semanas. A cama estava feita, com a colcha remendada cuidadosamente entalada debaixo das almofadas. Sam era boa dona de casa, apesar de nunca ter tido grande casa. Mas também nunca pedira uma. Sabia que ela sonhava com um sítio mais bonito, com arbustos e flores no pátio e uma cozinha suficientemente grande para não precisar de ir para a divisão seguinte para mudar de ideias. Mas nunca lho tinha pedido, como nunca lhe pedira boas roupas., jóias caras ou um carro janota.

 

Nunca lhe pedira senão que a amasse.

 

Só uma coisa, e conseguiste dar cabo dela, não foi, rapaz?

 

Parou diante da cómoda e passou as pontas dos dedos pela colecção de colares baratos e cosméticos de drogaria, recordando a cara dela quando dissera que nunca tinha querido uma esposa.

 

Meufilho da mãe desgraçado, tiveste a coragem de lhe despedaçar o coração diante de Deus e daqueles milionários. Porreiro, meu!

 

Olhou para o espelho e viu uma autêntica porcaria de homem. Excomungado pela família, uma causa perdida para os amigos, um vaqueiro derrotado e alcoolizado que deitara fora a única coisa boa da sua vida.

 

Querias liberdade. Pois já a tens, filho.

 

Mas não parecia liberdade. Parecia um exílio. E sofria com a perda das coisas que nunca quisera. o rancho e a mulher.

 

Sentou-se na cama e chorou como um bebé, com a cabeça a estoirar, a cara a arder como se lhe tivessem espetado tachas e as costelas rachadas a incomodá-lo como facas, a cada inspiração. o Sol pôs-se e a Lua apareceu e ele continuou ali sentado, sozinho, a ouvir os sons distantes do trânsito e das portas dos vizinhos a bater. o Maroto gania lá fora. Samantha não apareceu. Ninguém apareceu, para o salvar, redimir ou fazer as pazes. As palavras de despedida de Mary Lee martelavam-lhe o cérebro: Cresce.

 

Já lá fora, parou de brincar com o cão, que saltava diante dele com o Frisbee na boca. o cavalo do irmão vinha a trote, e J.D. ostentava uma expressão neutra debaixo da aba do chapéu, mas apeou-se perto da carrinha, e Will pensou que era bom sinal. Um gesto, uma cortesia. Melhor do que um coice.

 

J.D. olhou para a cara esmurrada e a posição dolorida do írmão e engoliu a descompostura automática. Demasiadas palavras amargas tinham já existido entre os dois. Não era altura para acusações e ele era tão culpado como Will, apenas dum conjunto diferente de pecados.

 

-Não estás com grande aspecto - comentou, tirando o chapéu e limpando o suor da testa com a manga da camisa.

 

-Um rapaz da cidade límpou-me o relógio. Foi uma desgraça - disse Will, com a cabeça de lado e tentando sorrir, mas o resultado foi muito diferente do habitual.

 

- Deve ter sido. Mas parece que não morres desta e podes voltar a andar à pancada - retorquiu J. D., instalando-se também na caixa aberta da velha carrinha de Tucker, com as rédeas penduradas entre as pernas. o cavalo baixou a cabeça, esfregou o focinho numa pata dianteira e adormeceu imediatamente.

 

-Não morro, mas não me parece que volte a andar à pancada com o tipo. Já dei cabo de tudo - respondeu Will, voltando a sentar-se na outra ponta. Zip aproximou-se com o Frisbee e apresentou-o com toda a cerimónia, colocando-o na terra e olhando para ele contrito e esperançoso, mas sem recompensa.

 

-A Samantha?

 

- Se voltar, é para me apresentar os papéis do divórcio ou para me espetar uma faca. E não posso dizer que a condeno, duma maneira ou doutra.

 

J.D. não comentou. Olhou para a casa onde tinham passado a infância e tentou imaginar estranhos a viver nela. A ideia feriu-o como se se tivesse cortado num pedaço de vidro.

 

-E tu com a Mary Lee? - perguntou depois Wil].

- Não vai dar resultado - disse J. D., encolhendo os ombros, tentando minimizar a questão e desviar a atenção do irmão.

 

-Por seres um filho da mãe teimoso?

- Em parte.

 

- Isso é uma fraca desculpa para perderes uma coisa boa. Olha que eu sei - suspirou Will,arrancando um pedacinho de ferrugem da carrinha.

 

  1. D. não respondeu. Achava que o irmão não era pessoa para dar conselhos sobre aquele assunto, mas não o disse. Não dava pontapés num homem caído. Além disso, se visse bem, havia provavelmente demasiada verdade nas palavras do irmão, e o melhor era deixar aquela coisa entre ele e Mary Lee morrer de morte natural. Daí a uma semana OU duas, ela estaria de volta à Califórnia e a vida continuaria.

 

- Pensei que podia entregar-te a minha parte do rancho

- disse Will. - Mantê-la fora do processo de divórcio. Eu vendo-ta já, se queres uma coisa permanente. Temos de arranjar um advogado, calculo eu. Um tipo não pode cagar neste país sem chamar um advogado para ver o que fez.

 

J.D. continuou calado. Era o que sempre quisera, não era? Ter as terras só para si. Era ele que vivia para elas. Era ele que as amava. Sentado ao lado dum irmão que afirmava nunca ter desejado, tudo isso soava bastante doentio. Apoiou as mãos nos joelhos, como para compensar o estremeção do seu mundo.

 

- Que é que vais fazer? Rodeos? - Ouviu-se a perguntar aquilo e quase olhou em volta para ver quem se juntara à conversa. Pelo canto do olho, viu Tucker, a cinquenta metros, apeando-se do cavalo junto ao celeiro.

 

-Ná! Não dá grande coisa, a não ser que se seja uma estrela, e eu não sou suficientemente bom para ser uma estrela - declarou Will, sem autocomiseração. - Chegou a altura de deixar de brincar. - Olhou de lado para o irmão e fez-lhe o seu sorriso, desbotado e gasto. - Nunca pensaste ouvir-me dizer isto, pois não?

 

Suspirou e espantou-se com a dor que sentiu nas costas e nos ombros. Depois, continuou:

 

- Pensei em ir até Kalispell e arranjar emprego. Tenho lá um compincha que está a ficar rico a vender barcos a motor a estrelas de cinema no lago. Calculo que, se lamber as botas a bastantes celebridades, possa recuperar os seis mil e quinhentos dólares que devo no Inferninho.

 

-Não percebes peva de barcos a motor - comentou J. D., deitando-lhe um olhar cínico.

 

- E desde quando é que eu deixo que a minha ignorância geral me impeça de fazer seja o que for? Além disso, sou capaz de vender bosta de vaca numa feira e de os ter de volta por mais - disse Will, dessa vez com o seu sorriso normal.

 

J.D. desmanchou-se a rir e abanou a cabeça. -Estás muito seguro de ti.

 

- Não, não estou, mas já é tempo de crescer. Já passou mesmo o tempo - declarou ele, despido de todas as artimanhas, com ar vulnerável.

 

Ficaram sentados em silêncio, ambos incapazes de pÔr os sentimentos em palavras. J. D. sentia o peso do arrependimento nos ombros como duas mãos a exercer pressão, comprimindo-lhe as emoções num nó dentro de si. Arrependimento por uma relação entre irmãos manchada desde antes do nascimento de Will. E pena da barreira que os pais tinham elevado entre eles pelos seus motivos egoístas. Lamentava também não ter visto o valor do que podiam ter tido antes de ser tarde de mais. Pensou nas suas prioridades e percebeu que aquela podia ser a sua última oportunidade para alterar uma delas. Kalispell ficava muito longe do rancho.

 

Olhou para os montes, negros sob as nuvens. Um falcão-de-cauda-vermelha pairou lá no alto, como se estivesse pregado ao céu cinzento-ardósia. Pensou na canção que Mary Lee cantara sobre orgulho, tradição e costumes antigos, desespero, perda e sonhos por realizar. E pareceu-lhe ouvir o fraco eco de risos de garotos e ver os fantasmas da ínfância a correr pela erva alta. Nem todas as recordações eram más.

 

- Tens lugar aqui, se quiseres - afirmou calmamente.

- Algumas coisas teriam de mudar, mas o facto de sermos irmãos, não.

 

Will acenou lentamente com a cabeça, estudando os nós dos dedos com um interesse desmedido.

 

-Talvez daqui a um tempo - disse, por fim, com a voz ligeiramente alterada. - Mas acho que é preferível ir-me embora agora. Para me aguentar sozinho, percebes? Ver quem sou sem me encostar a ti ou apanhar porrada de ti.

 

o silêncio desceu sobre os dois irmãos, que ficaram ali a absorvê-lo e a sentir os respectivos caminhos a afastar-se um do outro, sabendo que se tratava dum momento significativo, dum ponto de viragem, duma encruzilhada, mas sem palavras ou desejo de chamar a atenção para isso. Não era o género.

 

- Se puderes esperar um dia ou dois, ajudo-te a levar a manada lá para cima - propôs Will.

 

- Está bem - murmurou J. D., com os olhos postos na velha carrinha Chevy que saía das árvores e se arrastava pela subida, com o motor a assobiar, as mudanças a ranger e Orvis Slokum ao volante.

 

Ouvia os cães a uivar à distância, e os trovões mais longe ainda, para lá dos montes e a aproximar-se do vale do Eden, num aviso demasiado tardio.

 

Samantha pensou que devia ter visto um sinal, qualquer coisa que lhe fizesse prever aquilo, apesar de a parte mais lógica do cérebro saber que nenhuma pessoa normal podia imaginar a espécie de loucura que contagiava Sharon Russell. Ainda se culpava por ser ingénua e estúpida. Mas isso de nada servia e não tinha tempo a perder.

 

Correu por entre as árvores, com as dores a aumentar a cada passo, nas costelas e nas costas, da tareia que apanhara na noite anterior. Sentia cãibras nos músculos dos ombros da posição contrafeita em que estivera presa, e as mãos latejavam-lhe impiedosamente, agora que a circulação fora restabelecida. Estavam inchadas e negras, fazendo-a pensar em amputação quando olhava para elas, mas isso era mesmo estúpido, porque o mais certo era morrer.

 

Aliás, tanto fazia - as mãos, o cabelo escortinhado, a facada numa linha sangrenta da maçã do rosto até ao queixo do outro lado. Pouco interessava o seu aspecto depois de morta. Pouco interessava se os cães caíssem sobre ela e a desfizessem. Teria deixado de existir.

 

Pensou se alguém choraria o seu desaparecimento. Era uma ideia espantosa, impossível de compreender. Tinha demasiada vida à sua frente para morrer naquela altura. o pensamento fê-la manter os pés em movimento, o coração a bater e os pulmões a funcionar. o instinto e a adrenalina faziam-na correr, e correu sem pensar em poupar-se, atirando-se por entre as árvores e os arbustos que lhe feriam a pele das pernas em centenas de pequenos golpes e lhe rasgavam o resto da camisa de seda branca que lhe pendia em farrapos do pescoço. Sem sapatos, os dedos dos pés prendiam-se nas raizes expostas e arranhava as solas nos ramos secos e picos, mas continuou a correr. A cabeça parecia prestes a explodir e os pulmões ardiam-lhe até parecerem sacos de sangue dentro do peito, mas continuou a correr.

 

Para baixo. Não sabia onde estava, mas calculou que ainda estivesse na propriedade de Bryce. Se corresse para a direita, embrenhava-se ainda mais na parte selvagem dos Absarokas. Para cima, ia cair de novo nas mãos de Sharon. Para baixo. Para as terras dos Raffertys. Não fazia ideia a que distância estaria ou até onde Sharon a deixaria correr. Não queria pensar nisso. Decidiu apagar todos os pensamentos e concentrar-se apenas em colocar um pé à frente do outro. Chegou a uma vasta clareira e atravessou-a rapidamente, pensando tarde de mais que devia manter-se no abrigo das árvores. Mas que importância tinha, na realidade? Os cães podiam segui-la pelo faro. o melhor era continuar pelo caminho mais rápido e não pelo mais protegido. Não era?

 

Ouvia os cães a ganir através das árvores. o ar estava pesado e calmo, denso com a proximidade da tempestade. Os sons atravessavam-no e ecoavam de tal maneira que não percebia donde vinham realmente. Ainda estariam atrás de si? Ou teria Sharon metido por outro caminho, dando uma volta para lhe cortar a fuga? Parou um instante para ouvir e orientar-se, caindo com força de encontro ao tronco dum pinheiro.

 

A escuridão começava a subir do solo e a descer do céu, criando um crepúsculo de pesadelo. Samantha olhou em volta, tentando decidir por onde seguir. Estava fraca de exaustão, medo e fome. o cérebro parecia andar à roda, o que lhe dificultava a orientação e mesmo a leitura dos pensamentos mais simples. o suor gelado fê-la estremecer e ameaçou levá-la a adoecer ou entrar em pânico. Tinha um nó na garganta e as lágrimas tiraram-lhe a visão e escorreram-lhe pelas faces, pela sujidade e pelo sangue. Tentou limpá-las com as costas da mão e gritou com a dor nos dedos e na cara cortada.

 

Vais morrer aqui, Samantha, Nua, espancada e com um tiro na cabeça disparado por uma louca. Estúpida. Estúpida sonhadora. o sonho acabou.

 

Estúpida rapariga. Estúpida virgem idiota.

 

Sharon observava a presa através duma mira nocturna instalada numa espingarda Browning. Podia matar-te agora, minha cadela. Mas ainda não estava disposta a dar a caçada por finda. Tinha-lhe dado um avanço de um quarto de hora, antes de sair a cavalo atrás dela. Os cães apanharam-lhe o cheiro de seguida, o cheiro do medo e do sangue, perfume que cada vez apreciava mais. Lucy MacAdam, fora a primeira matança humana. Pensou que a excitação devia ser viciante e a ideia excitou-a.

 

A sua vítima estava talvez a uns trezentos e cinquenta metros, encostada a uma árvore, pouco protegida pelo bosque. Podia ter mandado os cães atacá-la ao atravessar a clareira, mas ainda era cedo. Queria perseguir, caçar. Queria que o medo da rapariga fosse tal que pudesse saboreá-lo no ar.

 

Não ia ser difícil de matar. o divertimento estava no jogo de gato e rato e na consciência de ter o poder de inspirar terror como um relâmpago na alma da sua presa. Durante uma parte demasiado grande da sua vida, esse poder pertencera a outros. Agora era dela, e apreciava-o mais do que dinheiro, mais do que o sexo, mais do que qualquer droga. Poder. Controlo. o poder de fazer de Deus. Um deus sinistro. Um sinistro vingador, recuperando o que era seu e castigando os que se atreviam a meter-se-lhe no caminho.

 

Era o seu jogo particular, que ninguém descobriria. Tinha sido um erro deixar o corpo de Lucy, presumindo que não seria encontrado. Não cometeria o mesmo erro com Samantha Rafferty. A rapariga ia desaparecer da face da terra, sem deixar vestígios. E a vida continuaria.

 

Sharon pensou como reagiria o primo ao desaparecimento da rapariga. Estaria suficientemente apaixonado para sofrer? Alguma vez se interrogaria, desconfiaria?

 

Vai olhar para os meus olhos e perceber? E se isso acontecer. que é que faz?

 

Matei por ti, meu filho da mãe. Duas vezes.

 

Tinha-o salvo das suas obsessões, protegendo o seu próprio lugar à direita dele. Sabia demasiado, era demasiado valiosa para ele para ser posta de lado por um objecto de simples lascívia.

 

Que faria Bryce, se soubesse que tinha matado por ele? Fugiria dela ou serviria isso de afrodisíaco? Quereria assistir da próxima vez que ela participasse numa caçada e fazer amor com ela a seguir, quando o sangue ainda estivesse fresco nas suas mãos? A imagem fez uma onda de calor percorrer-lhe o corpo.

 

Os cães ladravam, ansiosos por começarem a correr. o maior fez uma tentativa, mas Sharon mandou-o voltar para trás e apontou-lhe um comando que lhe deu um choque através dum dispositivo na coleira, o animal latiu de dor e voltou-se para trás como se o tivessem puxado com uma trela.

 

Levantou uma vez mais a espingarda e sorriu, olhando pela mira. A princezinha índia do primo estava outra vez a correr. A correr para a segurança que nunca alcançaria.

 

Colocou a arma ao ombro, pegou nas rédeas e esporeou o cavalo para um trote controlado para baixo e para a esquerda.

 

Clyde avançava pelo carreiro como se soubesse para onde ia, mas Mari desconfiava de que fosse a fingir. Tinha praticamente a certeza de estarem a fazer «zigue» quando deviam fazer «zague», e a escuridão descia dos montes por entre as árvores, dificultando-lhe o reconhecimento dos vagos pontos que a tinham guiado até ali. E não lhe parecia a altura ideal Para se perder nos bosques. Havia perigos naquele sítio que faziam os ursos parecer inofensivos em comparação.

 

Não conseguira persuadir Del a descer o monte com ela. A ideia de ir a New Eden para falar com o xerife tinha-o perturbado ao ponto de o pôr a gaguejar. Nem quis acompanhá-la a casa. Agitado com tudo o que estava a acontecer e por lhe ter contado o que vira, tinha insistido em ficar. Precisava de manter a vigilância. Tinha de proteger o rancho.

 

Mari não discutiu com ele. Via-o num estado de espírito demasiado frágil, um homem à beira dum precipício. Não queria ser responsável pela queda dele. J. D. nunca lhe perdoaria.

 

- J. D. Como se ele ainda pertencesse ao quadro geral, Marilee - resmungou. - Não sabes mesmo quando deves parar, pois não?

 

Depois da atitude dele, devia ser o homem mais longe do seu pensamento, mas não conseguia deixar de pensar nele de costas para a parede, tentando proteger o que lhe pertencia: terra, tio, coração. Culpava-o de se ter enganado no caminho daquele maldito carreiro.

 

Deus sabia que tinha coisas mais importantes a considerar. Precisava de levar a gravação e os apontamentos de Lucy ao xerife e de lhe comunicar tudo o que Del lhe contara. Estava ligeiramente preocupada com a credibilidade do velhote junto de Quinn mas, afinal de contas, tratava-se dum Rafferty, o que era um argumento de peso a seu favor, e a gravação corroborava as suas histórias de caçadas.

 

Tinha sido difícil ouvi-lo tentar destrinçar factos de ficção na sua história de tigres e rapazes dos cães, e mais dificil ainda ouvi-lo a tentar contar a morte de Lucy. Narrara a história em fragmentos, com muitas peças a menos e algumas tiradas de pesadelos, mas Mari estava convencida de que tinha visto Lucy a correr para não morrer, que ouvira os cães a persegui-la e visto o assassino disparar o tiro final.

 

A outra loira. A loira que dançava com os rapazes dos cães.

 

Sharon Russell.

 

Mari só podia deitar-se a adivinhar o motivo. Talvez Lucy tivesse tentado tirar sangue da pedra errada. Talvez soubesse alguma coisa sobre Sharon que ameaçasse a sua posição junto do primo. Ou talvez Bryce e Sharon decidissem em conjunto que estavam fartos dela a aproveitar os restos dos seus patos-bravos. Fosse qual,fosse a razão, Sharon Russell tinha caçado Lucy como um animal na calada da noite, matara-a e abandonara o corpo, continuando a sua vida como se nada tivesse acontecido.

 

A ideia deu-lhe volta ao estômago.

 

Puxou as rédeas e olhou em volta, à procura de alguma coisa vagamente familiar. Árvores. Cada uma era parecida com a outra. Rapariga da cidade. o macho agitou-se e Mari ouviu o trovão a ribombar no céu como uma barriga vazia. Porreiro. A tempestade ia acabar com a pouca luz que ainda havia e ela estava perdida na encosta dum monte onde milionários matavam animais em perigo de extinção por desporto.

 

-Em perigo de extinção ficas tu se te apanham aqui, Mari.

 

Estava mesmo a ver a expressão horrorizada da mãe, quando os chuis fossem dizer-lhe que a filha rebelde tinha sido morta a tiro ao passear por uma região selvagem do Montana montada num macho.

 

Algures para a direita, pareceu-lhe ouvir cães a ladrar, e ficou tensa na sela. Clyde abanou a cabeça, zangado, tentando fazê-la perder o controlo das rédeas e começou a dançar. Uma faísca estalou como um chicote por cima das árvores, e o animal sentou-se.

 

o coração de Mari desatou a bater com toda a força e as mãos apertaram as rédeas. Cães. Cenas de gravação atravessaram-lhe a memória. o guia com os olhos de tubarão. Os sujos rapazes dos cães. Os cães de caça musculosos, a puxar pelas trelas, com os dentes à mostra e as beiças contraídas em esgares ferozes.

 

Novo trovão fez o macho dar um salto para a frente, a tremer de energia nervosa. Desafiando a pressão exercida pelo freio, mordeu-o e avançou, escorregando pela encosta. Mari lutou por manter o controlo, tentando voltá-lo para a direita. A enorme cabeça virou-se para trás até ela quase poder olhá-la nos olhos, mas o animal continuava a avançar encosta abaixo,

 

Mais trovões cruzaram o céu, em brancos desenhos surrealistas. o mundo ficou inclinado e Clyde parecia decidido a atirá-los por ali abaixo de cabeça. Então, os arbustos à direita abriram-se e uma mulher nua e a sangrar irrompeu da escuridão, com os olhos e a boca abertos de terror. o grito dela foi engolido por outro trovão, Com as mãos estendidas em desespero, atirou-se ao macho.

 

Como num sonho, a cena parecia desenrolar-se em câmara lenta. A mulher a atirar-se a eles. Clyde a saltar para o lado com tanta força que Mari sentiu-se sair da sela. Puxou as rédeas, percebendo, uma fracção de segundo tarde de mais, que só segurava a da direita e que, ao puxá-la, determinara a sua sorte.

 

Completamente desequilibrado, Clyde caiu pesadamente pela encosta abaixo. Já meio fora da sela, Mari foi cuspida para longe da confusão de pernas e cascos agitado no ar. Bateu no chão com força e rebolou como uma boneca de trapos, até que parou no tronco seco dum pinheiro quebrado. Confusa, ficou estendida sobre as folhas secas e as agulhas de pinheiro, com os ouvidos a tinir, os olhos desfocados e sentindo dores no corpo todo.

 

A mulher avançou para ela a correr, num trio de imagens ensanguentadas.

 

- Ajude-me! Meu Deus, ajude-me! Por favor! - Histericamente, atirou-se para o chão de joelhos e começou a puxar Mari pelos braços.

 

Mari conseguiu sentar-se, defendendo-se com os braços das mãos frenéticas da mulher.

 

- Esteja quieta! - gritou, tentando meter os pés debaixo do corpo, apesar de estar tonta. o terror parecia apertar-lhe a garganta e fazia-a tremer incontrolavelmente. Não conseguia pensar senão no momento, nem ver outra coisa para além da mulher com cabelo preto escortinhado, olhos apavorados e cara cortada e daquelas mãos inchadas e negras que a agarravam. Queria empurrá-la e fugir. Mas depois o reconhecimento chegou com novo relâmpago que iluminou o céu.

 

-Meu Deus! Samantha? Ai, meu Deus! Samantha! exclamou, incrédula, conseguindo agarrar a rapariga pelos braços e abaná-la com força, como se quisesse libertá-la do pânico daquela maneira. - o que foi que aconteceu? Quem é que lhe fez isto?

 

Um ruído terrível saiu da garganta da rapariga e as lágrimas brotaram-lhe escaldantes dos olhos e deslizaram-lhe pela cara.

 

- Corra! Temos de correr! Ela mata-nos!

- Quem?!

 

-A Sharon! Ela mata-nos! Ela matou a outra mulher e mmata-nos também! - gritou Samantha, a soluçar de dor e medo.

 

Sharon.

- Merda! - resmungou Mari, sentindo um arrepio nas costas e depois nos braços e nas pernas, deixando-a com pele de galinha. Olhava para Samantha em choque e sem poder acreditar. o belo cabelo preto tinha sido cortado selvaticamente. A cara estava imunda e com riscos de lágrimas, com um corte aberto em diagonal desde um olho até ao queixo do outro lado. Nua, excepto um trapo que fora em tempos uma camisa de mangas curtas, tinha os braços e as pernas cobertos de pequenos cortes, terra e pedaços de folhas e casca de árvore.

 

- Foi a Sharon que lhe fez isto? - perguntou Mari, tirando o blusão de ganga e tentando cobrir a rapariga com ele, mas Samantha ou não conseguia agarrá-lo com as mãos roxas ou estava de tal maneira aterrorizada que não sabia para que servia. Mari teve de lhe pegar nos braços e metê-los desajeitadamente nas mangas,

 

-Ela é louca! Temos de fugir! - gritou Samantha. Tentou agarrar Mari pelo braço e arrastá-la pelo carreiro abaixo, atrás do macho, mas os dedos inchados como salsichas estavam dormentes e não lhe obedeciam. Os cães a ganir à distância provocaram-lhe nova necessidade de gritar, mas o ruído que lhe saiu dos dentes com bolhas de cuspo mais parecia um miado.

 

- Depressa! - implorou.

 

Mari olhou em volta, vendo apenas os troncos escuros das árvores. Parecia-lhe que o barulho dos cães vinha da base da colina, mas não fazia ideia do local onde ela e Samantha se encontravam. A uma bela distância de casa, apostava. A única coisa que sabia de certeza era que lá em cima Del Rafferty possuía uma cabana e um arsenal de armas suficiente para rechaçar um exército.

 

- Por aqui - ordenou, agarrando Samantha por uma manga do blusão e começando a subir o caminho por onde tinha descido.

 

-Lá para cima? Está doida? Ela apanha-nos num instante!

 

- Se formos para cima, ela também tem de ir para cima

- disse Mari, começando a trepar.

 

-Mas ela está a cavalo!

 

- Meu Deus! - Deitou um olhar desesperado lá para baixo. Clyde desaparecera completamente. Só podiam contar com elas mesmas. E tinham uma matilha de cães atrás delas. E uma psicopata assassina.
Voltou-se para Samantha e tentou explicar:

 

- Olhe, Sam, não temos escolha. A cabana do Del Rafferty fica nesta direcção. Se chegarmos lá, estamos seguras.

- Retomou a subida, acrescentando entre dentes: - Desde que ele não nos dê um tiro.

 

Subiram a encosta íngreme sob os grossos pingos que entretanto começavam a cair e atravessavam as copas das árvores. Mari rezou por uma chuvada a sério, mas ninguém a ouviu. As nuvens mantiveram-se por cima dos montes, a trovejar, mas guardando a água. Entre cada trovão, o ruído dos cães ia-se aproximando.

 

Fora aquilo que acontecera a Lucy: perseguida por cães como um coelho e assassinada por desporto. Mari sentia Sharon Russell atrás delas, pressentia a sua presença tão agoirenta como as nuvens de tempestade no céu, e o terror apertou-lhe a garganta e disparou luzes vivas dentro da sua cabeça. Teve de lutar para se manter lúcida. Precisava de pensar. o cérebro era a sua única arma.

 

Sharon estava a cavalo. Tinha cães. Já podia tê-las apanhado, se quisesse. Aquilo era uma espécie de jogo doentio. Mari pensou se a loucura teria impelido Sharon àquilo ou se a decadência do seu estilo de vida a teria atraído para a depravação - como acontecera com Lucy, até que a chantagem lhe parecera uma profissão aceitável. Mas Lucy constituíra uma ameaça, enquanto Samantha não passava duma garota que nada sabia do mundo de Bryce. Que podia ela ter feito para merecer uma coisa daquelas?

 

E que podiam elas fazer para fugir?

 

Estavam demasiado longe da cabana de Del. Sabia isso, mas continuou a colocar um pé diante do outro e a subir o carreiro.

 

Samantha corria atrás de si, para além da exaustão, sufocada de medo, a soluçar entrecortadamente. As pernas pareciam-lhe de borracha e só lhe apetecia enrolar-se numa bola e acabar com aquele pesadelo, mas ele continuava impiedosamente. Queria que a abraçassem e confortassem. Queria o marido. Era uma estupidez pensar nele naquela altura. E era uma estupidez desejá-lo quando ele não a queria.

 

Saíram do bosque para a orla dum prado. Mari parou e ficou dobrada para a frente, com as mãos nos joelhos e os pulmões a funcionar como dois fortes. Levantara-se vento e a erva alta ondulava, alternando tons de verde a cada movimento, como acontece com o veludo quando se lhe passa a mão por cima. A chuva aumentou também ligeiramente. Reconheceu o sítio com uma sensação de desgraça inevitável. Fora ali que Lucy encontrara o seu fim. Sentiu um arrepio na nuca.

 

Estavam as duas praticamente mortas. Sharon vinha atrás de Samantha por razões muito suas numa mente de louca, mas Mari sabia que não ia fazer discriminações na distribuição de balas. Não ia deixar uma testemunha.

 

Sam deixou-se cair na erva, com as mãos nos olhos, a chorar silenciosamente. Mari sentiu o coração despedaçado de olhar para ela. Pobre miúda. Bryce tinha-a sugado para o seu mundo com os seus objectivos e ela deixara-se ir, sem dúvida encantada pelas belas coisas, a excitação e as celebridades. E a gente dele tinha-a recebido, usado e abusado dela, sem se importar com a sua inocência.

 

Maldito fosse. Malditos fossem todos. Como se atreviam a vir para ali envenenar tudo? A raiva que brotou dentro dela era territorial, de proprietária. Não a questionou. Não havia tempo para isso.

 

o ruído dos cães, agora mais perto, fê-la endireitar-se. -Anda lá, miúda, toca a andar!

 

- Não posso - soluçou Samantha, caída com a cara no chão. Já parecia um cadáver, ensanguentada e suja, com os membros dobrados numa posição anormal.

 

Mari teve vontade de se deitar ao lado dela e de a confortar, mas o conforto só conseguiria matá-las mais cedo; agarrou a rapariga pela gola do blusão e obrigou-a a levantar-se.

 

- Podes, sim, com os diabos! - gritou. A cabana do Del ainda ficava longe e a subida era difícil. A única hipótese que tinham de lá chegar era mantendo-se em movimento para que Sharon prolongasse a caçada.

 

o som dum tiro de espingarda dissipou a segunda parte da hipótese.

 

A bala esborrachou-se no mesmo tronco de árvore que Del atingira da primeira vez que Mari chegara ali. A madeira podre saltou para todos os lados. Sam deu um grito, dobrando-se para a frente, como se a bala a tivesse atravessado. Tapou os ouvidos com as mãos e gritou sem parar. Mari empurrou-a sem cerimónia para as árvores:

 

- Vai, vai, vai! - incitou, empurrando-a para cima. Uma gargalhada sinistra soou, vinda das árvores atrás delas, e Mari sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias.

 

Deus as ajudasse. Era como se já estivessem mortas.

 

Eu mato-a!

 

Will ia agarrado com uma mão ao painel de instrumentos e a outra à porta, ao lado do irmão na carrinha dele. A dor surgia como explosão a cada sacudidela enquanto subiam o antigo caminho dos madeireiros. o fogo nas costelas e na cabeça só servia para transformar a raiva numa coisa rígida e aguçada como uma lâmina de aço. Imagens da história que Orvis contara apareciam continuamente diante dos seus olhos. A mulher atada a uma cama. A cadela da prima de Bryce a mexer-lhe. A visão ficou vermelha. Sentia-se como se tivesse um animal selvagem dentro do peito, a lutar por se libertar.

 

- Eu mato-a! - rosnou pela décima vez. - Se ela faz mal à Sam, juro que mato o estupor!

 

- Não há hipótese de a Sam ter lá ido de livre vontade?

- perguntou J. D. cuidadosamente, deitando-lhe uma olhadela e sentindo um gosto desagradável na boca por dizer aquelas palavras.

 

Will olhou para ele, de boca aberta, com ar de doido. -Se não fosses a guiar, dava-te uma tareia por essa boca! Por amor de Deus, J. D., tu conheces a Sam melhor do que isso!

 

- Mas sei que te deixou para andar com a malta do Bryce.

 

- o Bryce seduziu-a, o filho da mãe! Devia matá-lo a ele também! - bradou Will, fechando os olhos com uma careta quando a carrinha saltou por cima dumas raizes expostas.

 

  1. D. forçou o motor e a velha Ford gemeu na encosta, com os faróis a romper a escuridão do fim do dia. Por cima deles, o céu estava dum cinzento metálico cruzado     por faíscas e clarões de relâmpagos. Rezou para chegarem       à cabana do tio antes do dilúvio. o antigo caminho era cada vez mais íngreme à medida que subiam, e a chuva na terra ali era o mesmo que óleo.

 

Tinham concordado em que o caminho melhor e mais rápido para a cabana de Bryce abaixo do riacho das Cinco Milhas era pela pastagem de Verão e depois com cavalos até à bacia do Urso Vermelho e pelas terras dos Serviços Florestais. J. D. achava que o irmão não estava em estado de montar, mas não queria perder tempo indo pelo caminho mais longo, visto Sam correr perigo.

 

Olhou para Will pelo canto do olho e teve pena dele. Ali estava Will, o pinga-amor, o vaqueiro das paródias despreocupado e folgazão, desvairado de preocupação e destroçado pela culpa. Não interessava que Sam quisesse o divórcio. Amava-a. Isso era claro como água. E amava-a o suficiente para arrancar membro a membro a quem quisesse fazer-lhe mal. J. D. nunca pensara que o irmão fosse capaz de sentimentos tão profundos, tão desinteressados.

 

E tu, J D.?

 

Fez uma curva com um precipício terrível e reparou que o ponteiro estava quase na zona vermelha de velocidade. o motor fazia imenso barulho e uma luz acendeu-se no painel ao mesmo tempo que um cheiro quente saía pelas fendas do ar condicionado. o caminho desaparecia novamente numa lomba. Susteve a respiração e acelerou.

 

A carrinha pareceu dar um salto em frente. Nesse mesmo instante, o macho de Mary Lee apareceu na lomba. Não havia tempo para qualquer reacção. o macho vinha a voar, com as longas orelhas para trás e as rédeas penduradas como serpentinas de Carnaval. Deu um salto no ar, tentando evitar a carrinha, mas era tarde de mais. Chocaram com uma terrível pancada e os cascos dianteiros do animal escorregaram na capota do motor. A protecção dianteira apanhou-o nas costelas e o corpo de Clyde bateu no pára-brisa, ameaçando partir o vidro. Mas escorregou pelo lado do condutor, debatendo-se, com os olhos a exibir grande quantidade de branco na sua feia cabeça.

 

  1. D. praguejou e travou a fundo. Depois, saltou da carrinha, com o corpo todo a tremer e correu para o animal, Clyde tombara de lado, com força, de encontro a um tronco caído, e agitava-se, tentando pôr-se de pé. J. D. agarrou uma rédea, precisamente quando ele conseguiu erguer-se.

 

-Pronto, pronto, tem calma - disse J. D. baixinho, mas sem disfarçar a aflição que sentia. Clyde rolou os olhos e começou a dançar. Tinha a pelagem coberta de espuma de suor e os músculos estremeciam-lhe como se estivessem a ser atravessados por uma corrente eléctrica, mas tinha as pernas intactas. Via-se apenas um corte feito pela protecção do gado no flanco direito, feio mas não mortal.

 

- Ele está bem? - perguntou Will,tentando caminhar, com uma corda que tirara do suporte das armas. Tinha os nós dos dedos brancos da força com que apertava a corda.

 

- Parece que não há fracturas - resmungou J. D., prestando menos atenção ao macho do que ao facto de ele trazer a sela vazia.

 

- Donde raio vem ele? - perguntou Will, passando-lhe um laço pela cabeça.

 

-É da Mary Lee.

 

- Então, ela deve ter sido cuspida. Vamos embora. Se a encontrarmos pelo caminho, pode ir connosco. Anda! - incitou Will enquanto atava a corda a uma árvore.

 

E dirigiu-se à carrinha, demasiado preocupado com a mulher para pensar noutra coisa. Mas J. D. ficou parado, a olhar para a sela vazia, com o medo a pôr-lhe um nó no estômago. A menina da cidade que se armava em valente, com aquelas suspeitas todas e determinada a descobrir a verdade. Pensou nos sinais que encontrara no riacho das Cinco Milhas, sinais de caçadores. Pensou em Samantha, que fora vista atada a uma cama, e em Lucy atravessada por uma bala.

 

Por cima das árvores, os trovões atravessavam as espessas nuvens, e uma sensação de tragédia desceu sobre ele como uma mortalha.

 

Continuaram a trepar a encosta, com Mari a arrastar e a empurrar Samantha, obrigando-a a prosseguir muito para além dos seus limites. As árvores ali eram mais densas o que lhes dava alguma segurança. Um tiro teria de ser disparado de perto.

 

Escorregou e caiu violentamente, batendo com um joelho numa pedra escondida pela vegetação. A gravidade e o peso de Sam pendurada no seu braço esquerdo quase a puxaram para trás, mas esbracejou até conseguir agarrar-se a um arbusto.

 

Estamos mortas. Estamos mortas. As palavras latejavam-lhe no cérebro, e a expressão no rosto de Sam parecia confirmá-las. Viu-lhe os olhos opacos, como se nada houvesse por detrás deles, como se a sua alma já tivesse partido, e a boca aberta. Devia estar em estado de choque, pensou Mari, com os sistemas a parar um por um, até que a única coisa que restasse para matar seria um corpo a funcionar em piloto automático, o plano tinha certa atracção. Ali sentada na lama, cheia de dores, não podia deixar-se sucumbir. Mas a vontade falhava-lhe e a energia desaparecera. A cabana de Del continuava a não passar dum sonho distante.

 

Estamos mortas. Estamos mortas!

 

Era absolutamente impossível safarem-se. Não conseguia arrastar-se mais, e muito menos puxar ainda por Samantha. o som dos cães a ganir ressoava-lhe nos ouvidos.

 

Estamos mortas, pensou de novo. o ar a entrar e sair dos pulmões era como a lâmina dum serrote. Um milhão de coisas fervilhava-lhe na cabeça: preces, desejos, arrependimentos, imagens da família, pensamentos nebulosos dos filhos que nunca teria e de J. D. Maldito vaqueiro de cabeça dura. Demasiado teimoso para reconhecer uma coisa boa quando a tinha diante dos olhos,

 

Bolas, Marilee, não é altura!

 

De algum profundo poço dentro de si, sacou forças que nunca imaginara possuir e pôs-se de pé. Equilibrou Samantha de encontro a uma árvore e tentou descortinar a perseguidora, Avistou os cães a atravessar a extensão de erva alta que tinham rodeado, e Sharon a cavalo logo a seguir, com uma espingarda à tiracolo. Vinham depressa, aproximando-se. Aparentemente, Sharon não achava muita graça a uma caça ao homem à chuva. Provavelmente, decidira dar cabo delas e pronto. Ir para casa meter-se nojacuzzi e reviver os seus momentos de glória com uma taça de champanhe.

 

A chuva era cada vez mais forte, atravessando as copas das árvores e colando-lhes a roupa ao corpo.

 

-Não quero morrer - murmurou Samantha, dirigindo-se ao mundo em geral e olhando em frente como uma cega.

- Então, tem de fazer o que eu disser - bradou Mari

 

imediatamente. Pegou-lhe nos ombros e vírou-a para si. Está a perceber o que lhe digo, Sam? Tem de me ouvir! Olhou em volta, tentando avaliar as possibilidades, enquanto fazia um plano apressado. Não era grande coisa, mas era melhor do que ser apanhada e apanhar um tiro nas costas. Explicou o plano a Samantha o mais rápida e concisamente que pôde, rezando para que a rapariga não estivesse num estado de choque tão profundo que não entendesse. Depois, empurrou-a para a frente e trepou pelos ramos dum pinheiro.

 

Não havia sinal de Del na cabana. J. D. enfiou uma capa para a chuva e selou dois cavalos fortes, de pernas altas, enquanto Will entrava em casa e ia buscar duas espingardas.

 

Também não tinham visto sinal de Mary Lee no trilho. J. D. não conseguia deixar de pensar nela. Estaria caída em algum sítio, ferida? Estaria morta? o desaparecimento dela estaria de algum modo ligado à sua procura da verdade?

 

E onde diabo entrava o tio naquele terrível quadro? Deus, nunca se perdoaria se ele tivesse feito mal a Mary Lee. Deixara o tio ali em cima, a cozer a sua própria loucura! Se ele tivesse enlouquecido de vez, a responsabilidade seria dele, J. D. E se o tio tivesse dado o tiro em Lucy? se tivesse estrangulado o advogado? Não queria acreditar que fosse possível, mas o que ele queria acreditar e o que era verdade pareciam cada vez mais duas coisas muito diferentes.

 

Tentou sem êxito sacudir aquilo tudo do espírito, enquanto montavam e começavam a dirigir-se para baixo.

 

Sharon parou no sopé de mais uma colina, abrigada por alguns velhos pinheiros. A chuva estava a deixá-la mal disposta. Planeara continuar a cavalo até a rapariga se voltar e pedir-lhe clemência. Mas a cadela estava a mostrar-se visívelmente resistente e a chuva ameaçava estragar tudo.

 

Levantou a espingarda e espreitou pela mira nocturna. A sua presa estava caída no chão a cerca de cem metros na encosta da colina. Não viu sinal da tal Jenings e presumiu que tivesse continuado a fugir depois de a rapariga desfalecer. Não havia outra hipótese para ela. Estava desarmada e não podia esperar manter os cães afastados. Não tinha maneira de se proteger da espingarda, a não ser continuando a fugir depois da queda da rapariga e esperando que Sharon se contentasse com o alvo original.

 

Os cães corriam à volta do cavalo, desvairados pela ordem de atacar, mas ela não a deu. Ainda não. Queria um momento para saborear o final. Sorriu matreiramente, desejando que o primo pudesse assistir. Queria que ele visse o que ela podia ser obrigada a fazer. Queria que ele soubesse até onde conseguia ir. Só de imaginar o choque dele sentiu-se de novo poderosa. Ele não avaliava a força dela. Não compreendia que era a força dele. Sem ela, ele não era nada. Sem ela, sucumbira aos tépidos prazeres duma rapariga como Samantha Rafferty ou duma pequena criminosa como Lucy MacAdam e todo o seu poder diminuiria e morreria. E ela nunca deixaria que isso acontecesse.

 

Incitou o cavalo a prosseguir.

 

Mari olhou para ela lá em baixo, do seu esconderijo entre os ramos do pinheiro, com cem complicações imprevistas a passarem-lhe pela cabeça. E se falhasse? Se caísse atrás do cavalo ou em cima dum dos cães? Se os cães lhe sentissem o cheiro? Tudo o que Sharon tinha de fazer era virar o cano da espingarda para cima e disparar.

 

Respirou fundo e susteve a respiração, à espera. Os cães faziam uma barulheira que rivalizava com a tempestade, a correr encosta acima e depois voltando para baixo. Recordou a maneira como haviam atacado o tigre na gravação. Samantha tinha suportado horrores suficientes sem ser feita em bocados por uma matilha de cães desvairados mas, se não fossem afastados rapidamente, atacavam-na de certeza.

 

o cavalo foi avançando. Mari acocorou-se no ramo, desejando ter uma arma qualquer. Mas não tinha, e os desejos não lhe salvavam a pele.

 

Sem outro pensamento, saltou do ramo e atirou-se para cima de Sharon Russell. Apanhou-a pelos ombros e atirou-a para trás. A espingarda disparou-se com estrondo.

 

Espantado, o cavalo saltou para o lado, fugindo de Mari e projectando a perna de Sharon contra uma árvore. A mulher berrou de raiva e brandiu a arma na direcção de Mari, mas ela conseguiu pôr-se de pé e atirou-se para a frente, tentando apanhar a espingarda. Conseguiu agarrar a parte dianteira da coronha e empurrou para o lado, mesmo quando Sharon puxou o gatilho.

 

A bala atingiu a camada de folhas e ramos que cobria o chão e Mari continuou agarrada à arma com toda a força enquanto o cavalo saltava de novo, com os olhos a rolar nas órbitas e as patas a tentar agarrar-se à terra. Sharon tinha de escolher entre a arma e o cavalo. Saltou da sela a gritar de fúria.

 

o movimento atirou Mari para trás na encosta íngreme, fazendo-a cair e largar a espingarda, para não rolar por ali abaixo. Escorregou, tentando agarrar um ramo com quase noventa centímetros de comprimento e mais grosso do que um taco de basebol. Conseguiu, lutando para se pôr novamente de pé, sempre de olhos postos na prima de Bryce.

 

Sharon avançou para ela com uma expressão de loucura no rosto e terríveis gritos inumanos a saírem-lhe da garganta. Mari levantou-se, brandindo o ramo e atirando de novo a espingarda para um lado. Sem perder um segundo, aproximou-se um pouco mais e tornou a brandir o ramo com toda a força, apanhando a mulher em cheio no braço para a fazer deixar cair a arma.

 

A espingarda tombou e caiu pela encosta abaixo, aos saltos. As duas mulheres começaram a persegui-la empurrando-se uma à outra, até que caíram numa confusão de braços e pernas.

 

Samantha assistia lá de cima, pensando que devia fazer qualquer coisa, mas não sabia o quê. Sentia o cérebro dormente. A chuva que não parava de cair dava à cena um aspecto de sonho, como se estivesse a olhar por uma janela e pudesse ver mas não passar para o outro lado. Sentia mesmo a consciência fugir-lhe. Queria fazer parar aquilo tudo, cair num vazio escuro onde não sofresse e não tivesse de existir naquele pesadelo. Mas uma vozinha estridente dentro de si gritava-lhe que aguentasse, que se levantasse, que fizesse alguma coisa.

 

Levantou-se com dificuldade e começou a descer a colina. Nessa altura, os cães voltaram-se para ela com os olhos a brilhar e os dentes à mostra.

 

Mari lutou para se libertar de Sharon. Tinham parado finalmente numa plataforma de terreno sem árvores por cima da encosta. A espingarda estava a meio metro delas, mais perto da borda. Tentou alcançá-la e chegou a tocar-lhe, mas Sharon caiu-lhe em cima. A espingarda fugiu-lhe dos dedos. Voltou-se de costas e tentou libertar-se da sua atacante, mas as mãos dela apertaram-se-lhe em volta do pescoço. Eram umas mãos fortes e grandes, tão masculinas como as suas feições, naquele momento contorcidas de raiva e loucura numa máscara grotesca. As feições foram-se tornando indistintas e a visão de Mari escurecendo.

 

Não parou de lutar debaixo do peso da mulher maior do que ela, arranhando-lhe os braços, mas sem êxito. Procurou à volta qualquer coisa que pudesse servir-lhe de arma e fechou a mão sobre um pedaço de tronco aos bicos. Levantou o braço com toda a força que conseguiu arranjar e espetou-o no bíceps de Sharon.

 

A mulher soltou um grito, torceu-se para agarrar a faca improvisada, o que a fez desequilibrar-se. Mari aproveitou, erguendo as ancas e atirando a outra para o lado, o que lhe permitiu pôr-se de pé, apesar de se sentir tonta e de as pernas lhe pesarem. Sharon mergulhou em direcção à espingarda e conseguiu agarrar a correia. Puxou-a, antes que desaparecesse pela beira da plataforma. Desesperada, Mari atirou-se a ela, fazendo-a soltar a arma, que caiu finalmente pela encosta abaixo.

 

Lutaram as duas, aos pontapés e às unhadas, atirando uma chuva de pedras atrás da arma. Mari sentia as forças desaparecerem, depois daquela subida da adrenalina. Correra uma enorme distância, e a outra estava fresca. Fresca, em forma e louca. E, quando conseguiram pôr-se as duas de pé, descobriu outra coisa muito importante: Sharon tinha uma faca.

 

Quando ouviram os tiros de espingarda, Will pÔs o cavalo a galope, sem se preocupar com o terreno, o animal ou a própria vida.

 

J.D. seguiu na sua peugada, com o pensamento em Mary Lee. Inclinou-se para trás quando o cavalo começou a escorregar no trilho inclinado, coberto de lama e vegetação morta. Atravessaram arbustos, saltaram por cima de troncos caídos, desviaram-se das árvores e pedregulhos, tropeçaram em raizes. A chuva atravessava a copa das árvores com um ruído que parecia de pregos num telhado de zinco, escorrendo-lhes pelas abas dos chapéus e dificultando-lhes a visão. Mas continuaram, sem dar por isso.

 

Del mantinha a sua posição, observando o que se passava por uma mira 36x Unerd, que acompanhava praticamente quase todo o comprimento duma automática de assalto Heekler e Koch.. completamente negra, a sua arma mais feroz, mais feia e mais mortífera. Levava um carregador curvo de sessenta tiros. Era a sua arma de cerco, a que utilizaria para proteger a família e as suas terras de todos os que viessem.

 

Tinha chegado o momento de a utilizar. Sentia-o. Os nervos estremeciam-lhe como se estivessem carregados de electricidade sob a pele. Parecia-lhe que tinha um enxame a zumbir dentro da cabeça e que, se pudesse desaparafusar o montinho de carne que tinha no cocuruto, as abelhas sairiam de lá às centenas. Desejou poder fazer isso para aclarar as ideias. Desejou uma data de coisas. Desejou que a loirita a faladora - nunca tivesse vindo a casa dele. Dizia que também tinha visto os tigres, mas não estava seguro de não ser uma tentativa para o enganar. As loiras eram assim. Outra tinha atraído o J. D., a morta, a mesma que lhe aparecia nas longas noites. Não eram de confiança.

 

Seguira a faladora até certa distância de casa. Não muito longe, porque não gostava de deixar a cabana, depois da sua inviolabilidade ter sido quebrada. E depois escolhera um esconderijo e ficara à espera. Havia qualquer coisa no ar, qualquer coisa semelhante à tempestade que se preparava lá em cima. Deitado no esconderijo, à espera.

 

Imaginara ver os rapazes dos cães e os caçadores, mas o que viu através da mira telescópica foram as loiras. Duas, à lluta no chão. Deviam estar a uns quinhentos metros dele, na encosta, numa plataforma que as pessoas chamavam Ponta Careca. A ausência de árvores na Ponta Careca dava-lhe uma vista decente, mas tinha a visão obscurecida pela chuva, e já quase não havia claridade. As loiras moviam-se em conjunto, como bailarinas, como parceiras sexuais, a contorcer-se, com os corpos a fundirem-se numa mutação grotesca da forma humana.

 

Os dedos de Del agitavam-se na arma e a ponta do dedo do gatilho parecia zumbir de energia enquanto acariciava o arco de aço. Tinha o coração a trabalhar como um gerador dentro do peito e não conseguia abrandar-lhe as batidas. Os pulmões estavam prestes a explodir e a garganta apertava-se-lhe de pânico. Sentia o cheiro dos nervos como fios eléctricos a arder. A imobilidade abandonara-o. Ouviu os trovões lá em cima e pensou no fogo de morteiros e na estática dos rádios entre a placa e o cérebro.

 

Não sabia o que fazer. Teriam vindo para ocupar as terras? Para o atormentar? Para o enlouquecer? Para se matarem uma à outra? Não compreendia. Não conseguia acalmar-se o suficiente para pensar. o tempo parecia avançar a uma velocidade tremenda e ele nada podia fazer para parar um momento sequer.

 

Mata-as! Mas sabia que não devia.

 

Protege as terras. Torna afamília orgulhosa. Sê um herói. Herói.

 

Lembrou-se da loirita a olhar para ele. Pode ser um herói, Del... o J D. vai ficar tão orgulhoso de si...

 

As loiras continuaram a lutar, com as feições a fundirem-se e a distorcerem-se à chuva, até ele não conseguir distinguir uma da outra.

 

Tinha de fazer alguma coisa. De fazer a coisa certa. A coisa mais difícil. Salvar o dia. Salvar as terras. Salvar-se a si próprio.

 

Encostou a automática ao ombro e expirou com força.

 

Samantha enfrentou os cães, imóvel como uma estátua, pensando que, se ficasse suficientemente imóvel, talvez se tornasse invisível para eles. Mas já a tinham visto e haviam passado a maior parte do dia a seguir-lhe o cheiro. Deram um passo para ela e depois outro. Ela recuou um passo, e então puseram-se todos em movimento ao mesmo tempo os cães saltando para ela e Samantha voltando-se e tentando correr pela encosta acima.

 

Apanhavam-na num instante. Procurou um refúgio uma pedra para onde pudesse subir, uma árvore a que pudesse trepar. o cérebro não parava de lhe ordenar que corresse! Mas já correra demasiado e as pernas moviam-se-lhe como se estivesse enterrada na lama até à cintura. Parecia não avançar. Sentiu dentes a morderem-lhe a barriga das pernas, e gritou precisamente no momento em que um cavalo apareceu dos arbustos à sua frente e pareceu voar pela encosta abaixo.

 

- Will!

 

o som do grito dela passou por ele como uma faca. Não teve tempo para registar os estragos da cara ou do cabelo dela. A única coisa que conseguiu ver foi o terror, os braços estendidos na sua direcção e os cães a atirarem-se-lhe às pernas enquanto ela tentava correr para ele.

 

Nem sequer puxou as rédeas do cavalo, limitando-se a inclinar-se, apanhá-la com um braço em volta das costelas e puxá-la desajeitadamente para cima da sela à sua frente, insensível às dores que lhe atravessavam o corpo.

 

  1. D. passou por eles como um furacão, quase chocando com um cavalo solto. Via perfeitamente a Ponta Careca, perfeitamente a prima de Bryce, que puxava duma faca e a levantava bem alto, perfeitamente quando a espetou em Mary Lee, que tentava desviar-se.

 

Nesse instante, sentiu o coração parar-lhe no peito. Não conseguia chegar lá a tempo. Não havia tempo para a espingarda sair do suporte. Viu-a cair para trás, com os braços para o lado e o sangue a jorrar da parte da frente da camisa. Sharon caiu com ela, de joelhos, e começou a levantar de novo a faca.

 

Estava a quinze metros delas e prestes a assistir à morte da única mulher que alguma vez amara.

 

Era uma terrível epifania. Uma terrível ironia.

 

Gritou o nome dela e puxou pela espingarda, presa no suporte de cabedal, o arco da faca atingiu o seu ponto mais alto. Um relâmpago iluminou o céu por cima delas. Então, soou o funesto ruído dum tiro de espingarda e, por um segundo, esse foi o único som no universo. o mundo pareceu ficar parado, enquanto o tiro ecoava de pico para pico.

 

A força da bala atirou o corpo de Sharon para o lado e ela caiu no solo inerte, atingida na cabeça. A faca saltou na borda da Ponta Careca e desapareceu.

 

  1. D. puxou ferozmente as rédeas do cavalo e desmontou, começando imediatamente a correr, aos tropeções, até cair de joelhos ao pé de Mary Lee. Ela levantou os olhos vidrados, piscando-os lentamente contra a chuva que lhe caía na cara.

 

- Ai, meu Deus! Ai, meu Deus, querida, aguenta-te exclamou ele ofegando. Arrancou o impermeável e cobriu-lhe a parte inferior do corpo com ele, tirou um lenço do bolso das calças e comprimiu-o com força contra o buraco sangrento na cova do ombro esquerdo dela. - Aguenta, querida, aguenta.

 

Mari ficou a olhar para ele, sentindo-se agradavelmente quente e estranhamente separada do próprio corpo, como se não tivesse braços e pernas. Também não sentia o ombro, só a pressão que ele lhe aplicara.

 

  1. D. é que parecia estar com dores. A cara era uma máscara de angústia, pálida e esticada, com os olhos cinzentos debruados a vermelho. A boca tremia-lhe, enquanto tentava instalá-la confortavelmente, enfiando-lhe o chapéu debaixo da cabeça a fazer de almofada.

 

-Fica comigo, querida. Ai, meu Deus, querida, por favor, fica comigo! - murmurava ele, debruçado sobre Mari, acariciando-lhe o rebelde cabelo molhado e afastando-lho da cara,

 

Queria perguntar-lhe se isso valia para depois, mas não conseguia formar as palavras, e o humor não parecia apropriado àquele momento. Voltou ligeiramente a cabeça e viu Sharon Russell morta a pouca distância, com os olhos e a boca abertos e sem a parte de trás da cabeça,

 

- Quem disparou? - perguntou ela em voz fraca.

 

- Não sei - murmurou J. D. - o Del, provavelmente. Não tentes falar, querida. Fica quietinha.

 

-Deixa de me dar ordens, Raferty - respondeu ela com um sorriso, voltando de novo o rosto para ele.

 

- Dar-te ordens? Eu devia era dar-te umas boas palmadas por andares a meter o nariz por aqui! - resmungou ele.

- Sádico - proferiu Mari entre dentes, com a primeira guinada de dor, que ele sentiu também. - Digo-te já que não sou dessas coisas, vaqueiro.

 

o lenço debaixo da mão dele estava ensopado e o sangue escorria-lhe pelos dedos sempre que ajustava a posição e pressionava com mais força.

 

- Bolas, Mary Lee, está calada uma vez na vida! - ordenou, apavorado por sentir a vida dela a fugir-lhe entre os dedos.

 

Por uma vez, obedeceu-lhe, consciente da fraqueza que a invadia e da dificuldade em respirar. J. D. inclinou-se mais, protegendo-a da chuva, murmurando palavras de conforto, acariciando-lhe a testa e as faces, mostrando-lhe coisas que talvez nunca dissesse.

 

Amava-o. Naquele momento, quando sabia que a vida podia fugir-lhe, tudo o mais se tornou simples e claro. Amava J. D. Rafferty. Naquele momento, tudo o mais era inconsequente: as divergências, as discussões, o muro que ele construíra em volta do próprio coração. Nada disso tinha importância.

 

Atrasada um dia e com um dólar a menos, Marilee, Não é mesmo coisa tua?

 

Tinha um verdadeiro talento para dar cabo das coisas. Pena isso não ter qualquer valor. Que orgulhosa teria ficado a família!

 

Olhou novamente para Sharon, perguntando a si própria que pensaria a família dela. Saberia Bryce que a prima era uma assassina? Seria assim tão depravado?

 

- J. D. - murmurou. - Há uma gravação numa cassete. Na minha casa. E um livro com apontamentos. Entrega-os ao Quinn.

 

- Está calada - disse ele com enorme esforço, tocando-lhe no rosto com os dedos a tremer. - Entregas-lhos tu.

- A voz saía-lhe rouca e sumida, só de pensar que isso talvez não acontecesse.

 

- Pelo sim, pelo não. - Fechou os olhos um momento, concentrando-se no fogo que parecia espalhar-se-lhe pelo lado esquerdo, a arder, e depois mais suave. Com um suspiro de alívio, tornou a dizer: - J. D.

 

O que é? - perguntou ele, desistindo de a mandar calar. Queria ouvir-lhe a voz. Queria ouvi-la todos os dias para o resto da vida, e o medo de não ter essa sorte era como uma bola dentro do peito. As lágrimas ameaçavam saltar a todo o momento.

 

- o Del é um herói. Diz-lhe que fui eu que disse. Mostra-te orgulhoso dele, J. D.

 

Depois, fechou os olhos e o mundo ficou escuro.

- Eu amo-te - murmurou.

 

  1. D. olhava para ela com os olhos muito abertos, sentindo-se invadir pelo pânico.

 

- Mary Lee! Mary Lee! - gritou o nome dela com toda a força, enquanto a chuva caía sobre os dois. - Mary Lee!

 

Não se mexia. Não abria aqueles enormes olhos azuis. Estava inerte e calada, com o sangue quente a molhar-lhe a mão. E J. D. inclinou-se para ela, para a proteger da chuva, com as lágrimas a escorrerem-lhe pela cara. Encostou-lhe os lábios à testa e segredou:

 

- Eu amo-te. Por favor, não morras. Eu amo-te

 

Bryce andava dum lado para o outro junto às janelas da sala, deslocando-se graciosa e silenciosamente por cima da espessa alcatifa. Lá fora, a chuva que começara a cair na véspera continuava, dando um tom acinzentado aos montes. Mas ele não prestava atenção ao tempo. Tinha coisas mais prementes na cabeça. Ainda não sabia onde estava Samantha. Ela não voltara à sua casa de New Eden, nem ao Alce Alegórico. Tinha desaparecido, pura e simplesmente.

 

Não estava a gostar da situação, nem um       bocadinho. Esperara que ela pensasse duas vezes depois de terem feito amor, mas não que fugisse do estado. Para além de se preocupar com o bem-estar dela, estava aborrecido.     Havia planos. o primeiro dos seus planos para ela entrar no mundo de rompante. Enquanto ele andava ali dum lado para o outro, Brandon Black, o fotógrafo de moda, vinha num avião a caminho de Bozeman. Mas não podiam pôr as coisas a funcionar para o êxito de Samantha sem ela.

 

Franziu a testa, carrancudo, e continuou para lá e para cá, esforçando-se por conter o mau génio .Interferências nos seus planos eram coisa que nunca tolerava. o desaparecimento da prima só lhe aumentava a impaciência. Ela sabia perfeitamente que não podia desaparecer sem o consultar.

 

Estava a castigá-lo, claro. Os ciúmes dela começavam a tornar-se imprevisíveis e impossíveis de controlar. No decorrer do seu envolvimento com Lucy, as fúrias dela tinham sido irritantes. Mas a atitude que adoptara para com Samantha era intolerável.

 

o facto de terem desaparecido as duas ao mesmo tempo, deixava-o vagamente inquieto.

 

Olhou para o relógio, tornou a meter as mãos nos bolsos das calças de linho e retomou a marcha. Ben Lucas estava sentado num dos sofás de cabedal, a beberricar uísque e a observá-lo com uma expressão divertida que lhe enrugava os cantos dos olhos.

 

Estás mesmo caído por essa rapariga, não estás? É tão difícil de acreditar? - perguntou Bryce. Claro que não. Ela é uma brasa. Mas tu tens certos...

 

gostos... que uma garota duma terra pequena pode achar chocantes.

 

Bryce fez-lhe o seu sorriso à Redford, mas com um ligeiro ar de aviso.

 

- o que ela não sabe não lhe faz mal. É inocente. Suponho que isso seja parte do que a torna atraente. Tenho toda a intenção de a proteger, de a ensinar a entender o mundo real em pequenas doses.

 

-E esperas que te agradeça? O plano é esse.

 

o advogado ergueu as sobrancelhas e o copo.

 

Bryce julgou perceber uma mudança subtil na expressão do seu convidado.

 

-Achas que não consigo?

 

- Eu não disse isso. Há muito tempo que aprendi a não te subestimar, amigo. Faço tenções de assistir ao espectáculo! - retorquiu Lucas, espreguiçando-se e cruzando as pernas.

 

- Vai ser um espanto! - exclamou Bryce, sorridente, mas de repente o sorriso extinguiu-se.       Desde que ela apareça.

 

- Talvez tenha fugido com a Sharon       sugeriu Lucas, disfarçando um sorriso. - Uma variedade do velho triângulo.

 

- Isso não tem a mais pequena graça - declarou Bryce. - A Sharon tem estado completamente imprevisível. E não vou deixá-la continuar assim por muito tempo. Se descubro que tocou na Samantha com um dedo, mato-a!

 

o advogado fez um sorriso maldoso e perguntou, em tom sardónico:

 

- Posso assistir?

 

Nesse momento, a campainha da porta soou à distância.

 

- Se calhar, podia vender bilhetes - resmungou Bryce.

- A minha querida prima já fez inimigos suficientes para encher um estádio,

 

A governanta apareceu, a limpar as mãos ao avental, com ar preocupado.

 

-Mister Bryce...

 

- Eu disse que não recebo hoje ninguém, Reisa - interrompeu ele. - Estou muito ocupado.

 

Acho que nos recebe, Mister Bryce - disse o xerife Quinn, entrando na sala atrás da governanta, diminuta ao pé dele. Os ombros do xerífe enchiam quase metade do arco de entrada na sala, sendo o resto do espaço preenchido pelos homens a seu lado. - Sou o xerife Dan Quírin. Este é o agente Paul Lamm, dos Serviços Nacionais de Pesca e Vida Selvagem, e este é o agente Bob Ware, da Vida Selvagem no montana. E isto - continuou, apresentando um molho de documentos - são mandados.

 

- Mandados? - repetiu Ben Lucas, levantando-se do sofá, com o copo na mão.

 

Mandados de busca, mandados de prisão, coisas desse género - explicou Quinn em tom indolente. Dentro da farda, suava como um cavalo. Estava prestes a prender um dos homens mais poderosos do estado, um homem que, segundo as provas descobertas por Marilee Jenings ,era culpado de inúmeros crimes. - Mister Evan Bryce - prosseguiu ele, avançando decidido com os dois agentes -, está preso por suspeita de violações da Lei Lacey e duma data de outros regulamentos estaduais e federais da vida selvagem. Está igualmente preso por conspiração e participação dum assassínio, respeitante à morte de Miss Lucy MacAdam-

 

Isto é um abuso! - exclamou Bryce, sentindo o estÔmago cair-lhe aos pés.

 

-Não senhor, é um facto. Tem o direito de ficar calado. Tem direito a um advogado... - começou Quinn, inclinando a cabeça e coçando o cabelo amarelo.

 

- Eu sou o advogado dele - interrompeu Lucas.

 

- Muito bem, então vamos ao que interessa e toca a andar - disse Quimn, acenando com a cabeça.

 

  1. D. atravessou os corredores do Hospital Comunitário de New Eden de chapéu na mão, com os saltos das botas a bater no chão polido e detestando chamar a atenção sobre si. Odiava aquele sítio, o cheiro, o aspecto de fraqueza e desespero. Era como um cobertor a tapar-lhe a cabeça até lhe parecer que sufocava. Parou junto à porta do quarto número 102, encheu os pulmões de ar, empurrou-a e entrou.

 

Mary Lee tinha a cama levantada. Estava a soro, mas já não se via o saco de sangue que na véspera fizera par com o soro. Não estava ligada a máquinas que apitassem ou piscassem, recordação que ainda o perseguia desde os últimos dias da mãe. Estava pálida, excepto debaixo dos olhos enfeitados com duas olheiras roxas, mas fazia um sorriso cansado para Nora Davis, empoleirada num banco a seu lado. Viam uma série na televisão colocada num suporte de parede. Nora parou no meio duma frase quando J. D. entrou.

 

- Eu volto mais tarde, querida - disse ela, dando uma palmadinha na perna de Mari por cima do lençol branco, descendo do banco. - Vou ver se consigo trazer-lhe um bocadinho de bolo de chocolate!

 

- Obrigada, Nora - murmurou Mari.

 

Nora deu a volta aos pés da cama e desligou a televisão.

- Olá, J. D. - disse ela ao passar por ele.

 

Ele fez-lhe um aceno com a cabeça, mas tinha os olhos postos em Mari, que lhos piscou, sonolenta.

 

-Olá, vaqueiro, que tal vai isso? -Vim ver como é que estás.

 

- Então, entra e vê. As facadas não são contagiosas. Deslocou-se da porta para os pés da cama e parou, a olhar para ela. Parecia cansado e preocupado sob o bronzeado, com os ombros curvados como se suportassem todo o peso do mundo. E parecia receoso, como se esperasse que ela lhe aumentasse o peso. Não era exactamente assim que sonhara vê-lo.

 

Na luz pálida da madrugada, flutuando entre recordações e desejos, tinha-o visto debruçado sobre ela, embalando-a, protegendo-a da chuva e acariciando-lhe o cabelo. Ouvira palavras de ternura e percebeu que estava a sonhar, porque ele não era homem de palavras de ternura.

 

Tens mesmo jeito para os escolher, Marilee!

- Como está a Samantha? - perguntou.

 

-Bastante abalada. Vai precisar de algum tempo Para recuperar, suponho eu. o médico diz que fica com uma cicatriz na cara, mas o golpe não foi suficientemente profundo para cortar nervos, e isso já é bom. Vai ficar boa, com o tempo.

 

Excepto quanto às cicatrizes que ninguém vê, pensou Mari, sofrendo por ela.

 

- o Will está com ela?

 

- Está. Também está muito abalado. Apanhou o maior susto da vida dele. Jura que nunca mais bebe nem anda atrás de mulheres, que não vai aos bares e deixa o jogo de vez!

- Achas que cumpre?

 

-Acho que desta vez... pode acontecer - disse J. D. depois de pensar no assunto um momento, recordando a conversa que tivera com o irmão, antes da chegada de Orvis Slokum.

 

-Espero que sim.

 

Ficaram os dois calados um bocado, com o fantasma dum recomeço entre eles, a tentar mas incapaz de penetrar na espessa camada do breve passado comum.

 

- Como te sentes, Mary Lee? - perguntou por fim J.D.

- Como se me tivessem montado muito tempo e me tivessem guardado molhada - retorquiu ela, com o seu sorriso cínico.

 

- o Larimer diz que ficas boa - disse ele calmamente.

- Pois. Não atiro o dardo nos tempos mais chegados, mas é uma ferida superficial, como dizem nos filmes. o Larimer é uma boa encomenda. Acho que uma pessoa podia ser atropelada por um autocarro e ele dizia-lhe que parasse de choramingar e começasse a andar. - Depois, mais séria, com a seriedade da situação a puxar-lhe os cantos da boca para baixo, afirmou: - Eu tive muita sorte. Estava morrta, se não fosse o Del.

 

-É um grande atirador.

 

-E estava morta, se não fosses tu - continuou Mari. Como esperava, J. D. encolheu os ombros, querendo   o seu papel no drama, parecendo pouco à vontade Perante a gratidão dela. Mari suspirou e deixou o assunto.

 

O Del está bem?

 

- Não, não está. Não está bem há trinta anos. E eu devia ter encarado isso há muito tempo - respondeu ele, olhando lá para fora pela janela, com os músculos da cara contraídos.

 

O que é que vais fazer? Não sei.

 

A tensão na voz dele fez-lhe vir lágrimas aos olhos. Sabia como ele se preocupava com o tio, como era forte o seu sentido das responsabilidades e como se orgulhava em cuidar do que era seu. Achava que tinha falhado e a luta para lidar com a auto-recriminação era visível na cara dele. Mari queria confortá-lo, mas sabia que ele não o desejava, e isso magoava-a.

 

Também desejava poder fazer alguma coisa pelo tio. Del merecia uma medalha por ter conseguido ultrapassar os seus medos e demónios mentais para a ajudar. Merecia uma caixa cheia de medalhas. Avistou de relance uma caixa exactamente dessas na sua memória, mas estava cansada e não conseguia concentrar-se.

 

- o Quinn prendeu o Bryce ontem - disse J. D., dirigindo a atenção de novo para ela. - o tribunal está a estudar as provas... o que a Lucy deixou e o que apanharam em casa dele. Afinal, tinha gravações de duas dúzias de caçadas ou mais, Há gente bastante importante que vai dar um grande tombo. o Quinn acha que têm material para encher um carro de mão. Ah, e pede desculpa de não ter acreditado em ti mais cedo.

 

-Pois é, isso aconteceu por aí. Não posso acusá-lo de escolher o caminho mais fácil. Na minha vida anterior, provavelmente tinha feito o mesmo. Puxa uma cadeira, Rafferty! - disse ela depois, acenando para o banco que Nora desocupara.

 

o cabelo dela era o emaranhado habitual e caiu-lhe para o rosto com o aceno. Afastou-o para trás com a mão direita. Por baixo da camisa do hospital, J. D. viu as ligaduras no ombro esquerdo e à volta do tronco. Sentiu-se doente ao recordar o aspecto dela deitada na terra, com o sangue a escorrer por entre os dedos dele.

 

- Eu também devia ter-te ouvido - admitiu, sentando-se no banco.

 

- Tinha a impressão de que os vaqueiros eram anatomicamente incapazes de ouvir as mulheres. Que funcionavam noutro comprimento de onda ou coisa parecida - comentou Mari, com o seu ar cínico.

 

Ele não sorriu. Ficou a olhar para as botas e Suspirou.

- Bom, J. D., tu não tinhas motivos para suspeitar do que se passava. Ninguém podia adivinhar.

 

- Eu sabia que a Lucy estava metida em qualquer coisa - admitiu ele. - Ela fazia constantemente comentários e ficava a olhar para mim, como se estivesse à espera de que eu percebesse do que falava. Ignorei-a porque não queria acreditar que o mundo dela tivesse alguma coisa a ver com o meu. E depois, quando a mataram, continuei a pensar que talvez o Del... Se tivesse sido ele, que havia eu de fazer? Como é que podia entregá-lo? - A questão ainda o atormentava. Olhava em frente, tentando encontrar respostas para as perguntas dentro de si, com os músculos da cara contraídos. - Depois de tudo o que dizia sobre os forasteiros, era tanto o meu dedo como o dele no gatilho. E o que é que isso fazia de mim?

 

- Pára de bateres em ti próprio, vaqueiro. Ninguém pode culpar-te por quereres proteger o que é teu.

 

Mari estendeu a mão e fez-lhe uma festa nas costas da mão com que apertava a coxa. Uma mão forte, marcada pelo trabalho e pelo ar livre. Ele voltou-a lentamente e entrelaçou os dedos nos dela, apertando-os com força. Era possivelmente o gesto mais íntimo que compartilhavam.

 

A emoção encheu-lhe o peito e fez-lhe vir as lágrimas aos olhos. Amo-te. As palavras eram um misto de doce e amargo na ponta da língua. Mas não ia pronunciá-las. Ele não as queria, como também não queria a compaixão dela. Era pena, porque se sentia de novo viva, depois de existir num estado semiadormecido durante tanto tempo. Viva, cheia de vida e de sentimentos. Precisava de dar, de alguém que quisesse o seu amor. Estava farta de meia vida, de meio amor. Estava farta de se agarrar às coisas erradas por motivos errados.

 

  1. D. olhou para a mão pálida entrelaçada na sua e sentiu-se indigno. Ao princípio, pretendera usá-la. Magoara-a uma dúzia de vezes. Tudo em nome dum objectivo mais alto, um disfarce do seu próprio medo. Acusara-a de muito e dera-lhe pouco, e o culpado era ele. Apregoava um código de honra, mas Mary Lee é que vivia segundo ele. Arriscar a vida pela verdade, por uma amiga. Enfrentara-o e impusera-se, por ela e pela justiça. E agora, estava ali numa cama de hospital, fugitiva da morte, e queria oferecer-lhe conforto. Nunca se tinha sentido tão envergonhado.

 

Tanto tempo a dizer a si próprio que não queria o amor duma mulher, que era um peso e uma maldição, uma coisa perniciosa que se alimentava das fraquezas dum homem e o deixava menos do que inteiro... Quando a verdade era que não o merecia. Passara tanto tempo a enfurecer-se contra ele que não sabia como aceitá-lo, se ela lho oferecesse. Por isso, deixou o momento e a oportunidade escaparem e disse para consigo que era preferível para ambos.

 

- Bom, tenho que fazer - disse ele, daí a um bom bocado.

 

Olhou para Mary Lee com o coração apertado. Tinha adormecido, o rosto voltado para ele e lágrimas nas faces. Suavemente, meteu-lhe a mão debaixo da roupa, baixou-se e beijou-a. Depois, saiu da vida dela.

 

Acha-se com forças, querida? - perguntou Drew pela décima vez, arrumando a guitarra de Mari cuidadosamente no banco de trás do carro cedido pelo Alce Alegórico e olhando para ela com um dos seus olhares de irmão preocupado.

 

Apesar da tensão existente entre os dois, Kevin associou-se a Drew nos seus esforços, com os olhos castanhos esperançados como os dum cãozínho.

 

- Palavra, Mari, pode ficar cá todo o tempo que precisar. Detestamos a ideia de você sozinha lá na quinta. Num gesto simbólico, Mari fechou a porta do carro e dirigiu-lhes um olhar cínico.

 

- Então, têm de ir lá visitar-me, meninos. São só quinze quilómetros. Além disso, não estou sozinha. Tenho o Spike comigo.

 

Ao ouvir o seu nome, o peludo cão preto e branco que Mari adoptara na Clínica Veterinária do Vale do Eden saltou da sombra do carro e desatou a uivar com tanta força que Drew e Kevin se encolheram. Mari sorriu-lhe e elogiou-o, baixando-se para lhe fazer uma festa com a mão boa. Ainda tinha o braço esquerdo imobilizado, embora fosse fazer fisioterapia daí a dias para reabilitar os músculos.

 

Haviam passado duas semanas desde aquele dia terrívl nos montes. Nesse espaço de tempo, fora visitada e apaparicada pelos novos amigos e intimidada pelo Dr. Lariner. Falara longamente com juizes e advogados, bem como cOm o xerife Quinn, que lhe levou um prato cheio de biscoitos de caramelo feitos pela mulher, à laia de pedido de desculpas.

 

Recusara entrevistas com nada menos do que uma dúzia de jornais e gente de televisão.

 

Encontrara-se por diversas vezes com Will e Samantha, que se esforçavam por refazer o seu jovem casamento. Samantha estava longe de recuperada, emocional e fisicamente, e Will tinha um problema bicudo a resolver com o seu gosto pela bebida, mas no fundo o seu amor era real e doce. Mari acreditava neles. Na sua opinião, um amor verdadeiro precisava de toda a ajuda que conseguisse arranjar, Grande parte do que passava por amor não era real e grande parte do que era morria antes de desabrochar. E muita gente nunca tinha a sorte de descobrir uma coisa ou a outra.

 

Nunca mais vira J. D. desde o dia em que haviam estado de mãos dadas no hospital.

 

Tucker aparecera para a cumprimentar, com Chaske, que lhe oferecera um saco cheio de pele de cascavel em pó, que supostamente lhe daria força. Explicou-lhe que era uma receita dada por um feiticeiro sioux, afirmação que fez Tucker revirar os olhos. Os dois tinham-na divertido durante quase duas horas, a implicar um com o outro e a contar histórias. Referiram-lhe pequenos episódios de J. D. em rapaz, na adolescência e como jovem a encarregar-se de dirigir a propriedade depois da morte do pai.

 

Mari conseguia imaginar os acontecimentos que tinham feito dele o homem que era, e sentia que o conhecia um pouco melhor do que anteriormente, mas não percebia como esse conhecimento podia ajudá-la. Ele não aparecia nem telefonava. E ela também não foi ter com ele. Por mais que ansiasse vê-lo, tocar-lhe, ser abraçada por ele, não tinha a certeza se não era preferível ficarem separados. Precisava de começar uma nova vida, e ele tinha um estilo de vida antigo, a mudar de tal maneira que o deixava em terreno desconhecido.

 

Talvez com o tempo... ou não. Devia lembrar a si própria que J. D. Rafferty não era o motivo da sua mudança para o Montana.

 

Fora para ali para uma nova oportunidade. Para aclarar as ideias. Para encontrar a própria alma. E tencionava fazer precisamente isso. Não ia voltar para a Califórnia. Não ia continuar a viver no Alce Alegórico, no limbo. Sentia que a Marilee Jennings que um dia empilhara a roupa citadina no banco de trás do Honda e partira de Sacramento já não existia. A falsa concha dessa mulher caíra e a verdadeira Mary Lee começava a aparecer. Era uma sensação maravilhosa. Ligeiramente assustadora e dolorosa, mas perfeitamente certa.

 

Kevin deu-lhe um beijo na cara e apertou-lhe a mão direita.

 

- Prometa que vem cá jantar na quarta-feira.

- Palavra de escuteiro!

 

Trepou para o lugar do passageiro no banco da frente do carro e Spike saltou-lhe imediatamente para o colo e apoiou as mãos no painel dos instrumentos, pronto para a aventura.

 

- Tem a certeza de que... - começou Drew, pondo o cinto atrás do volante.

 

- Tenho, Drew - interrompeu ela, num tom paciente e superior ao mesmo tempo, como se estivesse a responder a uma criança de dois anos. - Consigo perfeitamente fazer as coisas com um braço, Malabarismo, não digo, mas as coisas do dia-a-dia, claro! É canja.

 

Ele franziu a testa e emitiu um ruído de dúvida. Atravessaram a cidade a velocidade de cruzeiro. A habitual onda de turistas, engrossada pelas hostes dos morbidamente curiosos que tinham visto a terra noticiada em todos os canais televisivos, enchia os passeios. Não havia lugares para estacionar e o trânsito era suficiente para obrigar os locais a utilizar estradas secundárias. Os cães de trabalho ficavam nas traseiras das carrinhas, guardando o território e deixando os passeios para os forasteiros.

 

Os negócios prosperavam. Apesar disso, Mari perguntava a si própria que pensaria J.D. daquilo. Quase conseguia ouvir o seu resmungo desdenhoso, quando passaram pela Rações e Leituras Monroe, donde os turistas saíam a lamber chupa-chupas e carregados de estranhas recordações: pacotes de sementes, frascos de alimento para cavalos e pilhas de romances do velho Oeste e receitas das senhoras da Igreja Luterana. Forasteiros. Os forasteiros estavam a tornar-se a essência da vida da sua terra natal, com ou sem permissão de J.D. Rafferty. A terra ia mudar ou morrer, e RaffertY continuaria nos seus montes até Deus ou o banco o fazer descer de lá.

 

Teimoso, intransigente. E não se tratava de elogios, mas ela conseguia imaginar o brilho orgulhoso dos seus olhos cinzentos quando essas palavras lhe eram aplicadas.

 

Diante do tribunal, Colleen Bentsen tinha um público à volta enquanto trabalhava na sua pilha de metal retorcido. M. E. Fralick dava uma representação a solo de Evita à sombra do coreto, cantando Don’t Cry for Me Argentina» em discordância com a música de Joe Diffie vinda dum altifalante do outro lado do parque.

 

Continuaram e passaram pelo Motel Paraíso em silêncio. Desde o incidente nos montes, Drew falara muito pouco sobre a revelação da reserva de caça particular de Bryce, mantendo a conversa em Mari, preocupado com o seu bem-estar e estado de espírito. Era óbvio que pretendia desviar as atenções do outro assunto, mas ela tinha-lho permitido, demasiado cansada e com tudo muito recente para querer falar mais do que o necessário. As perguntas surgiam-lhe, mas não as fez, limitando-se a coçar as orelhas de Spike.

 

Drew olhou para ela de lado, por duas vezes, tentando encontrar as palavras. Por fim, aferrou-se, como um penitente no confessionário:

 

- Eu sabia das caçadas do Bryce. Juntei bocadinhos de conversas daqui e dali, rumores, esse género de coisas, e também insinuações da Lucy. Ela era especialista em deixar rastos de migalhas e depois ficar a ver quem os seguia e o que faziam. E eu não fiz porra alguma - terminou ele, com a voz cheia de ódio por si mesmo,

 

- Porquê? - limitou-se Mari a perguntar.

 

- Medo, para minha vergonha. Ao princípio, foi o medo do que o Bryce podia fazer aos nossos negócios se nos metêssemos nos dele. Depois, pensei que o que tinha acontecido à Lucy podia acontecer a qualquer pessoa.

 

- Era um medo razoável - respondeu Mari, tentando convencer-se a si própria tanto como a ele. Estava desapontada e sentia-se traída.

 

-Pois sim, mas nem por isso me sinto melhor. Talvez que, se eu tivesse falado, você e a Samantha pudessem ter sido poupadas e talvez a Lucy ainda estivesse viva.

 

-A Sharon matou a Lucy por ciúmes e atacou a Samantha pela mesma razão. Não queria outra mulher perto do primo.

 

- Mesmo assim, se as actividades dele tivessem sido reveladas mais cedo, talvez ela não chegasse a ter oportunidade de fazer o que fez.

 

- Isso ninguém sabe.

 

- Não, e é uma coisa que vai ensombrar-me a vida para sempre. Tenho muita pena, querida - disse ele, tirando os olhos da estrada o tempo suficiente para lhe oferecer a mais sincera expressão de desculpas.

 

- Era por isso que discutia com o Kevin, não era? perguntou Mari.

 

- Era - admitiu ele, suspirando. - Ele queria que eu fosse ao xerife, mas eu recusei. E acusou-me de aprovar o que o Bryce fazia. De certo modo, era o que eu fazia. Mas também estava a tentar que os meus amigos não sofressem. Não ouvir, não ver, essa coisa toda...

 

-Vão fazer as pazes?

 

-Não sei - disse ele baixinho, a olhar para a estrada. Depois, deitou-lhe outra olhadela. - E nós dois?

 

Mari ficou calada um momento, pensando no valor da amizade e do perdão. Quase perdera a vida, mas ele pretendera salvá-la.

 

-Deixemo-nos de arrependimentos - murmurou, decidida. - Vamos começar de novo. Afinal, foi para isso que eu vim para cá.

 

Drew ajudou-a a levar as malas para dentro e voltou para a cidade. Mari não o convidou a ficar. Depois de duas semanas de loucura com os meios de comunicação, queria passar algum tempo sozinha, tempo longe de Drew para deixar esbater a sensação desagradável. Depois, podiam começar de novo uma amizade, daí a uns dias.

 

A casa estava exactamente como a deixara - meio arrumada, meio cenário de desastre. Passou por aquilo tudo, fazendo uma lista mental das coisas a tratar, das modificações que achava necessárias para tornar a casa realmente sua. Tudo o que fora de Lucy era para desaparecer. Não conseguia olhar para uma cadeira ou um quadro sem pensar que segredos teriam servido para os comprar. Queria procurar coisas a seu gosto em antiquários e feiras de velharias. As peças de arte caras desapareceriam também, substituídas por obras de artistas locais. Já tinha combinado com um canalizador e um carpinteiro o conserto das coisas estragadas pelos empregados de Bryce durante a busca que passara por vandalismo. Os carros seriam vendidos e o dinheiro, juntamente com o que a amiga deixara, seria para pagar o imposto sucessório.

 

Depois disso tudo, ficava com uma casa vazia e uma conta bancária a zero, mas com uma nova vida sem máculas da anterior.

 

Na sala, deu com os olhos na lata de Mr. Peanut na prateleira da lareira, a olhar para ela com um ar cínico e sabido, como se tivesse previsto tudo o que acontecera e estivesse divertido com a reacção dela. Com o coração pesado, pegou na caixa e meteu-a num invólucro de cartão.

 

Vais-te embora, Luce - murmurou, contendo as lágrimas.

 

Com o cão a farejar à sua frente, foi até ao celeiro com a caixa debaixo do braço inutilizado, para ver como estava Clyde. o macho mostrou-se impávido com o seu regresso e continuou a comer. o ferimento no flanco estava a cicatrizar perfeitamente. o veterinário achava que ia ficar bom antes de ela poder montá-lo.

 

Pegou numa pá e dirigiu-se à pastagem dos lamas. Os animais estavam todos junto ao riacho à sombra das árvores. Assim que os viu, Spike deu o alarme, que os fez erguer as cabeças, e correu para eles, pronto a lutar. Mari chamou-o e explicou-lhe que os lamas eram fixes e ele não precisava de se preocupar com eles. o cãozito pôs a cabeça de lado e escutou-a de orelhas espetadas. Quando a lição terminou, escolheu um sítio à sombra e deitou-se para ver cavar a sepultura de Lucy.

 

A tarefa foi difícil e morosa devido à sua incapacidade temporária, mas não desistiu, empurrando a pá para dentro da terra com o pé e levantando-a com o braço bom. o sítio que escolheu era longe da casa, numa pequena plataforma sobre o riacho, à sombra dum pequeno grupo de choupos. Uma espécie de exílio, mas tranquilo.

 

Enterrou a caixa de cartão com a lata de Mr. Peanut lá dentro e transplantou algumas plantas com flores cor-de-rosa para a sepultura. Quando acabou, afastou-se para trás, encostada à pá e ficou a olhar para as flores. Eram bonitas, de cor viva e tinham raízes duras. Como Lucy.

 

Sentiu-se invadida por pensamentos que constituíam uma mistura de perda e mágoa, desapontamento e gratidão. Ansiava por pegar na guitarra e tentar desfazer o emaranhado com a varinha mágica da sua música, mas não podia tocar com uma mão só. Então, guardou os sentimentos no coração, à espera de poder revê-los noutro dia, quando o tempo lhe tivesse dado alguma perspectiva.

 

Voltou-se para a casa e olhou para os montes, perguntando a si própria se o tempo já teria dado alguma a J.D. Sentia saudades dele. Maldito vaqueiro. Saudades da dureza dele e da meiguice que ele escondia. Saudades das suas opiniões feitas e da vulnerabilidade por trás delas. Saudades da sua arrogância e dos raros lampejos de humor que a suavizavam. Saudades do toque dele. E saudades dos seus beijos.

 

- Então, o que é que vais fazer, Marilee? - perguntou, em voz alta.

 

Na sua vida anterior, a única coisa que faria seria arranjar desculpas. Não eram bons um para o outro. Não tinha de ser. Naquela mesma manhã, dissera a si própria que o melhor era ficar quieta. Aceitar. Acomodar-se.

 

Uma ova!

 

- Anda lá, Spike! - chamou ela, começando a andar em direcção aos edifícios da quinta. - Precisamos dum plano.

 

J.D. bateu com a corda nos safões de cabedal e enxotou os dois vitelos que queriam voltar para junto das mães. Os pequenos animais desataram a correr para a manada com as caudas lingrinhas no ar. o cavalo passou do trote ao passo.

 

Tinha levado a manada para a pastagem de Verão três dias depois do «incidente na Ponta Careca», como lhe chamavam os jornais, e resolvera ficar lá. Precisava de algum tempo com o tio, para decidir o que fazer com ele. Além disso, precisava de tempo para decidir o que fazer consigo próprio. Muitas coisas se tinham voltado contra ele e cedido nas últimas semanas - perspectivas, filosofias, opiniões de longa data. Era necessário tempo para deixar que tudo aquilo se encaixasse.

 

Precisava daquilo. - longos dias a cavalo, a andar atrás das vacas e dos vitelos, dias nos montes e nos prados com bastante tempo para pensar e reflectir. Era um luxo que raramente concedia a si próprio, demasiado ocupado com os trabalhos do rancho e a protegê-lo de forasteiros. Mas não era o único a lutar e não era o único capaz de fazer o trabalho, nem sequer era só responsabilidade sua. Eram terras dos Raffertys e Will também era um Rafferty.

 

J.D. tinha-lhe deixado o encargo. Havia que tratar da irrigação e da ceifa. A primeira preocupação de Will era a recuperação da mulher, mas aceitara as tarefas sem se queixar. Segundo Tucker, estava a aplicar-se com uma seriedade até aí completamente desconhecida. Samantha ia melhorando, e os dois pareciam muito apaixonados.

 

Eram boas notícias, coisa que estivera ausente durante muito tempo. Porque seria, então, que a última parte o deixava vazio?

 

Afastou o pensamento da questão e virou o cavalo para baixo. o dia estava a acabar. Era sexta-feira, dezassete dias desde a última vez que vira Mary Lee. Evitou também esse assunto e concentrou-se na lasanha que ia comer ao jantar. Tucker trazia géneros e lasanha às sextas-feiras.

 

Encontrou o tio à beira da lagoa e subiram em direcção à Ponta Careca em silêncio. Quando passaram, Del fixou os olhos na parte da frente da sela, com os músculos da cara a tremer de tensão.

 

- Temos de falar nisso, Del - disse J.D., com um terrível peso no coração. Fizera mais do que uma tentativa desde que o gado ficara instalado, mas o tio fugira sempre, e ele não o pressionara. Custava-lhe ver a preocupação e a vergonha nos olhos do tio.

 

Del parou de repente e virou o cavalo para poder olhar para lá da ponta, para o grande prado florido onde o gado pastava, e mais além para os montes, com as formas indistintas com o Sol a desaparecer atrás deles. Ficou parado, a olhar como se pretendesse decorar todos os pormenores.

 

Não queria falar do que tinha acontecido. Nem sequer queria lembrar-se, embora a recordação estivesse sempre presente como um nevoeiro logo abaixo da placa na cabeça. Descia à noite e atormentava-o, com as feições das loiras a fundirem-se até não conseguir distinguir uma da outra...

 

Só quisera fazer o que estava certo, ajudar a salvar as terras, dar a J. D. motivos de orgulho. Mas via o olhar do sobrinho quando pensava que ele não estava a prestar atenção, e era um olhar cheio de pena, vergonha e arrependimento.

 

- Não era melhor voltares, J. D.? - perguntou, esperando infrutiferamente que ele dissesse que sim e se fosse embora, deixando-o como se nada tivesse acontecido.

 

- Del... - começou J. D. suspirando.

 

-Não vais mandar-me embora, pois não, J. D.? - interrompeu Del imediatamente, e depois ficou calado, a tremer por dentro, à espera da resposta.

 

Continuou de olhos pregados na paisagem, com medo de os desviar e aquilo desaparecer tudo. Sem dar por isso, levou a mão à cicatriz da cara e esfregou-a como quem esfrega uma moeda da sorte. Queria dizer ao sobrinho como fora a sua estada no hospital de veteranos de guerra, esse período negro em que nunca vira o pôr do Sol senão por uma janela com rede embutida no vidro, em que nunca vira o céu ou os montes. Queria explicar como não podia suportar a falta de espaço e como os outros doentes o abafavam e não o deixavam coordenar as ideias nem concentrar-se em cada momento, aquilo de que ele precisava para ele se manter lúcído. Queria dizer-lhe o que significava para ele ter aquele sítio e as suas tarefas no rancho. Mas, quando abriu a boca, só conseguiu dizer:

 

- Eu morro.

 

  1. D. apertou os maxilares perante o sofrimento do velho combatente sentado a seu lado. Tanta coisa lhe fora tirada: juventude, perspectivas, o rosto e o espírito. Tudo o que lhe restava era o trabalho e aquele lugar na terra e um pequeno núcleo de orgulho por ser capaz de arcar com essas simples responsabilidades.

 

Deus me ajude, mas não posso tirar-lhe isso também. No entanto, havia dado um tiro numa mulher e provado que o que restava da sua mente não era de confiar num clima de tensão. Que aconteceria se encontrasse caçadores legítimos e os considerasse uma ameaça?

 

Cada vez com menos coragem, Del tornou a virar o cavalo e começou a trepar o monte.

 

-Há tarefas para fazer.

 

  1. D. seguiu-o lentamente, esmagado pela responsabilidade.

 

A carrinha encontrava-se no pátio quando chegaram à cabana, mas não era Tucker quem atirava um Frisbee aos cães, sentado na caixa aberta. o coração de J. D. deu-lhe um salto no peito quando ela levantou a cabeça e olhou para ele a direito.

 

Mary Lee... - resmungou.

 

Trazia o braço esquerdo ao peito e parecia mais magra. As maçãs do rosto estavam mais salientes e as covas abaixo delas mais profundas, os olhos azuis enormes sob as sobrancelhas escuras. Tinha umas perneiras pretas, botas grossas e uma velha camisa de ganga que devia servir-lhe a ele. Saltou da carrinha e empurrou para trás uma grossa madeixa de cabelo loiro.

- Não te assustes! o Tucker e a lasanha estão lá dentro disse ela, com um sorriso irónico.

 

- o que estás a fazer aqui? - perguntou ele, percebendo tarde de mais que as palavras soavam mal.

 

- Vim ver o Del - respondeu ela, erguendo ligeiramente o queixo.

 

Del voltou-se de repente do poste onde estava a prender o cavalo, com os olhos muito abertos e a boca repuxada numa careta de choque.

 

Mari dirigiu-lhe o seu sorriso mais caloroso.

- Olá, Del, vim agradecer-lhe.

 

-Não há necessidade - respondeu ele, olhando-a de lado sem parar de mexer nas rédeas.

 

-Há, sim. Salvou-me a vida - insistiu ela.

 

Del olhou para as botas e esfregou o queixo, desejando que ela não tivesse voltado. Desejando que se fossem todos embora e o deixassem com a sua vergonha e não falassem no que acontecera. Não lhe apetecia falar do assunto. Se falasse, J. D. seria obrigado a interná-lo de certeza. Mas também não podia ficar com créditos alheios. Não estava certo.

- Não, senhora - disse ele baixinho.

 

A atenção de J. D. passou de Mary Lee para o tio. Desmontou e ficou muito quieto, a olhar para o tio, à espera.

- Salvou, sim, Del - disse novamente Mari, com as sobrancelhas unidas. - Matou a mulher que estava a tentar matar-me. Matava-me, a mim, e depois a Samantha. o senhor salvou-nos, às duas!

 

o velhote abanou a cabeça dum lado para o outro, sem a encarar. Sentia as mãos nervosas. Meteu-as no cós das calças, deixou-as cair, cruzou-as, limpou o cuspo que lhe escorria pelo queixo.

 

- Não, senhora - insistiu, com a respiração alterada como se tivesse ido e voltado do inferno a correr. - o facto é que eu não percebi. Vi loiras e sabia que não eram as mesmas, mas depois eram e não percebi.

 

Interrompeu-se, olhando para o pátio e vendo tudo de novo na sua mente destroçada, imagem sobre imagem. A loira e a loira, entrelaçadas e depois separadas, com as feições trocadas. Quisera fazer alguma coisa. Precisava de fazer a coisa certa. Não se lembrava do momento em que puxara o gatilho. Esse segundo desaparecera do seu cérebro como se nunca tivesse existido.

 

Mari aproximou-se dele sem hesitar e pegou-lhe numa das mãos, apertando-lha com força.

 

- Não, o Del sabia. No seu coração, sabia. Salvou-me a vida! E nunca pense o contrário! - declarou ela firmemente, vendo-o a mirá-la com os olhos atormentados.

 

Del ficou a olhar para ela, querendo acreditar, desejando poder acreditar. Agora sabia quem ela era. Era a faladora. A loira boa. A que lhe tinha dito que ele podia ser um herói. E estava ali a garantir que era. Teria sabido? Naquela última fracção de segundo, teria sabido? Talvez. Desejava-o, mas desejar não o tornava verdade.

 

Mari largou-lhe a mão e meteu os dedos no bolso da camisa, donde tirou uma pequena estrela de latão pendurada numa fita de riscas vermelhas. Tinha ido ao escritório de Miller Daggrepont e pescado a medalha numa das muitas caixas de «colecções» pagando um dólar por ela a Inez a secretária do advogado morto. Parecia muito pouco pelo que significava.

 

- Tenho isto para si - murmurou ela, encostando-lha ao peito. - Encontrei-a num antiquário. Não sei bem donde é ou para que foi criada, mas quero que a use porque é o meu herói!

 

Del olhou para a pequena medalha que ela segurava de encontro a ele com a mão pálida. Tinha algumas da guerra, mas guardava-as numa caixa com as outras recordações dessa época, porque as pessoas não gostavam dessa guerra e faziam-no ficar envergonhado por ter participado nela. Só quisera fazer o que estava certo, mas parecia que nem sempre sabia o que isso era, mesmo nessa altura.

 

- Portou-se muito bem, Del - segredou-lhe a loirita. Acredite, por favor. - Tinha os olhos cheios de lágrimas. Pôs-se em bicos de pés e deu-lhe um beijo na cara. Corando, pegou na estrela e prendeu-a à camisa.

 

- Obrigado, minha senhora. Uso-a com muito orgulho. Tocou na aba do chapéu e, sem outra palavra, foi tratar do cavalo.

 

Mari ficou a vê-lo afastar-se com o animal, sentindo o olhar de J. D. sobre si, mas sem se voltar para lho retribuir. Estava demasiado emocionada e não confiava em si própria. Tinha medo de dizer de repente que o amava ou de fazer qualquer outra revelação fora de propósito. Precisava de manter algum orgulho. o orgulho era apreciado naquela região, e ela agora pertencia àquela região.

 

- Isso foi uma das coisas mais bonitas que alguma vez vi alguém fazer, Mary Lee - afirmou J. D. em voz baixa.

- Bom, não sei bem se ele merece ou não, mas precisava disto. Mesmo que me tenha salvado a vida por acaso, queria dar-lhe qualquer coisa em troca - disse ela, com a voz abafada.

 

  1. D. levantou-lhe o rosto com a mão. Os olhos brilhavam-lhe como safiras líquidas e as lágrimas tinham-lhe deixado riscos na cara, visíveis à luz do Sol que desaparecia. Era provável que tivesse conhecido mulheres mais bonitas na sua vida mas, naquele momento, não se lembrava doutra mais bela.

 

-És uma maravilha, Mary Lee. Nunca fazes o que eu espero de ti.

 

-Talvez eu não seja quem tu pensas que sou - disse ela.

 

- Não. Acho que és alguém mais - murmurou ele. Melhor, mais verdadeira, mais honesta, mais forte, mais valente. Era tudo o que em tempo se considerara, ele próprio.

 

Por Cristo, detestava ironias. E já não tinha a certeza de ser alguma dessas coisas.

 

- Gostavas de descobrir? - perguntou Mari, com o coração a bater na garganta, a palpitar como uma borboleta apanhada numa rede. Via-lhe nos olhos qual seria a sua resposta e, mesmo suavizada com pena, doía-lhe. - Não te arriscas com uma rapariga da cidade, hein? - perguntou, com um sorriso trémulo.

 

-Não é isso - respondeu ele, deixando cair a mão. Voltou-se para o sítio onde o céu parecia em chamas e os montes umas meras silhuetas. - É a altura errada e talvez eu seja o homem errado. Talvez também eu não seja quem tu queres pensar que sou. Já nem sei.

 

- Sei eu - afirmou ela, colocando-se ao seu lado. Sei exactamente quem tu és. Sei que és orgulhoso e teimoso, que fazes seja o que for pelas pessoas de quem gostas. Sei que podes ser pomposo e arrogante e sei que não existe outra pessoa neste planeta mais dura consigo própria. Sei que dás valor à integridade, à honestidade e à correcção e sei que achas que violaste o teu código de honra. Sei que és um chauvinista e que provavelmente nunca dirás as coisas que uma mulher gostaria de ouvir da tua boca. Sei exactamente quem tu és, Rafferty. E consegui apaixonar-me por ti, apesar disso.

 

A palavra atingiu-o como uma martelada entre os olhos. Apaixonar-se. o que ele evitara tão cuidadosamente como os forasteiros. A emoção que levara o pai a uma morte prematura. Crescera convencido de que essa emoção não era de confiança. Ou desaparecia ou dava cabo dum homem. Nunca a quisera...

 

Mentiroso. Aquela emoção... Passara noites acordado a desejá-la, a sofrer por ela, sem se atrever a dar-lhe nome. Metia-lhe un medo dos diabos. E metia-lhe um medo dos diabos querê-la naquele instante, querê-la daquela maneira. Ela não pertencia ao mundo dele, um mundo que se desintegrava diante dos seus olhos. Só podia oferecer-lhe dívidas e uma vida dura, o que não parecia suficientemente atraente para a fazer ficar. Já vira que não tornava uma mulher feliz. Imaginava já a insatisfação dela no futuro e depois recordou o pai a enfraquecer à medida que Sondra lhe esgotava todo o orgulho que alguma vez possuíra. Fizera uma jura a si próprio de que nunca passaria por tal coisa, por ninguém. Tinha obrigações e responsabilidades. Tinha as terras.

 

Mártir

- Estou a ver que estás radiante - observou Mary Lee, disfarçando a mágoa com sarcasmo. - Estás com cara de quem preferia uma camada de sarna. Obrigada, Rafferty, és mesmo um parvalhão. E eu continuo a gostar de ti... Isto é que é masoquismo, hein?

 

Desgostosa, voltou-lhe as costas e dirigiu-se para a carrinha. J. D. estendeu a mão e agarrou-a pelo ombro. -Não dá resultado, Mary Lee. Não vês que não? -Porquê? - desafiou ela.

 

- Somos demasiado diferentes. Não queremos as mesmas coisas...

 

- Como te atreves a dizer o que eu quero? - perguntou ela, zangada. - Tu não sabes! Não sabes o que eu quero ou quem eu sou, porque estás tão preocupado em enfiar-me num dos teus pequenos cacifos... Forasteira, sedutora, encrenqueira. Bom, pois aqui vai uma notícia de última hora para ti, Rafferty: sou mais do que a soma dos teus estúpidos rótulos! Sou uma mulher e amo-te e, quando decidires que aguentas isso, sabes onde eu estou!

 

Começou de novo a dirigir-se para a carrinha, com o andar pesado e o coração apertado, quando a voz de J. D. a fez parar.

 

-Ficas cá?

 

Mari olhou para ele e suspirou ao ver a expressão duvidosa nos olhos dele.

 

-Fico. De vez. Para sempre. Sei que não sou de cá, mas isso não quer dizer que não possa encaixar-me. Podes não gostar, mas foi assim que esta terra se desenvolveu. Os Raffertys que vieram da Jeórgia para cá também não eram nativos. Mas acabaram por conseguir encaixar-se. E eu vou fazer o mesmo, à minha maneira.

 

Meteu-se na carrinha e fechou a porta com força. Nesse momento, abriu-se a porta da cabana e Tucker apareceu. o velho vaqueiro olhou para ela, dela para J. D., cuspiu um jacto de suco de tabaco para o chão e abanou a cabeça.

 

Aliara-se de boa vontade à conspiração de Mary Lee, mas estava à espera dum resultado melhor do que aquele.

 

- Não fazem aço mais duro do que a tua cachola resmungou ele, irritado, atravessando o pátio.

 

-Não te metas, Tuck! - exclamou J. D. com cara de poucos amigos.

 

-Meto, sim! - protestou Tucker, - Fiquei calado a ver o teu pai fazer alguns grandes disparates pelos quais tu e o Wili ainda hoje estão a pagar. Raios me partam se vou fazer isso outra vez!

 

-Estou precisamente a evitar os mesmos erros. -Não! o erro do teu pai foi olhar para a Sondra e ver só o que quis ver, e o que ele queria ver eram coisas boas. Tu queres ver problemas. o teu pai escolheu um caminho difícil porque amou duma   forma insensata. Mas tu preferes escolher o caminho fácil e evitar completamente o amor.

 

- Fácil?! - exclamou J. D., ferido no orgulho pela acusação.

 

Tucker nem piscou os olhos perante a indignação dele.

- Podes amar a terra tanto quanto quiseres, J. D., e quando morreres enterram-te nela. Mas não te dá conforto, nem filhos, nem fica do teu lado quando estás a ser um filho da mãe casmurro com mau feitio. Não pode dar-te ternura nem amor, e olha que eu sei, porque lhe dediquei toda a minha vida e não tenho a ponta dum corno, a mão ser reumatismo. Sempre esperei que tivesses mais juizo do que eu.

 

Voltou-lhe as costas e afastou-se com as suas pernitas tortas, resmungando a cada passo que dava. Subiu para a carrinha e pôs o motor a trabalhar. J. D. olhou novamente para longe e recusou-se a virar a cabeça enquanto saíam do pátio.

 

Tinha perdido o apetite. Inquieto, montou o Sorja e desceu até à Ponta Careca, onde se sentou para ouvir os coiotes cantar à Lua que aparecia por cima dos Absarokas.

 

Naquele sítio, estivera de joelhos amparando Mary Lee, sabendo que a amava, e que ela podia morrer-lhe nos braços. Agora, ela oferecia-lhe o seu amor e ele recusava-o.

 

Porque era o melhor. Porque era a atitude mais inteligente.

 

Porque é mais fácil e és um maldito cobarde.

 

Costumava pensar que sabia quem era e o que valia, em que acreditava e em que não acreditava. Costumava orgulhar-se de fazer o que estava certo, não o que era mais fácil.

 

Estaria certo enclausurar-se ali nos montes? Seria mais fácil aguentar a solidão do seu auto-exílio do que arriscar o coração que protegia tão ciosamente desde a adolescência?

 

Pensou em Mary Lee a arriscar a vida para descobrir a verdade por pensar que era a coisa certa a fazer, a enfrentá-lo por pensar que ele estava errado. Ela tivera a coragem de abandonar a vida que conhecia para tentar alcançar os seus sonhos. E ele nem sequer admitia que os tinha.

 

Mas tinha. Quando as noites eram longas e solitárias e os dias se seguiam na sua infindável monotonia de dever e trabalho, lá muito no fundo, onde ninguém podia vê-los, tocar-lhes ou destruí-los... Os sonhos sempre tinham estado lá, tão secretos que pouco mais eram do que sombras, até para ele próprio. Mas nunca lhes tocava nem discutia ou sequer pensava neles à luz do dia.

 

Agora, Mary Lee apresentava-lhe um. Um sonho. Uma dádiva. o coração dela. o amor dela. E ele dava um passo para trás e ficava à espera que lho tirasse do alcance.

 

Que tens tu sem ela, J D. A terra.

 

Olhou para ela, prateada pelo luar e envolta em sombras, bela e selvagem, dura e frágil. o seu primeiro amor. Toda a sua vida.

 

Toda a sua vida vazia e solitária.

Os dias encontraram um ritmo agradável e monótono. Mari olhava para o romper do Sol e comia bolachas salgadas para combater o enjoo. Trabalhou na casa, reduzindo-a ao estritamente necessário e fazendo desaparecer todos os vestígios da sua anterior proprietária. Passava as tardes na varanda, a trabalhar em novas canções e a absorver a beleza do que a rodeava. Dormia sestas no cadeirão e passava a maior parte dos serões no Alce, a cantar no salão.

 

Uma vez por semana, falava com o xerife Quinn ou com um dos advogados que batalhavam para levar Bryce a tribunal. Não conseguiam acusá-lo de alguma coisa relacionada com a morte de Lucy, mas estavam ansiosos por fazer dele um exemplo com as acusações respeitantes à vida selvagem vinte e nove delas. Ben Lucas tentava obter um acordo que o condenasse apenas a multas e serviço comunitário. o procurador-geral falava de multas mais elevadas, de pena suspensa e de lhe confiscarem a propriedade. Bryce, entretanto, mudara-se para a sua casa de L. A., numa mostra de desdém pelas acusações. o maior desejo de Mari era que atirassem com ele para a prisão para o resto da sua vida miserável, mas sabia que isso nunca aconteceria. As rodas da justiça raramente passavam por cima de homens como Evan Bryce.

 

Passou um mês desde o seu desafio a J. D. para vir ter com ela quando estivesse pronto, mas ele ainda não o aceitara. Pensava-dez vezes por dia quando e como devia dizer-lhe que, apesar de não terem conseguido fazer com que a relação resultasse, haviam conseguido fazer um bebé. Foi adiando, pensando que talvez ele aparecesse no dia seguinte e lhe dissesse que a amava.

 

Era uma esperança idiota, mas sempre era melhor do que não ter qualquer esperança. Melhor do que pensar no que aconteceria se ele nunca voltasse. Teria de ir ter com ele, porque tinha o direito de saber, mas o que via na sua imaginação depois do anúncio era a maior discussão do século. Ele havia de insistir em «fazer o que estava certo», porque era assim que pensava, e ela mandava-o fazer uma coisa anatomicamente impossível, por não estar disposta a contentar-se com um casamento por obrigação.

 

-Cá está mais um belo sarilho em que te meteste, Marilee - resmungou, com um grande suspiro cansado. Esfregou o ventre, distraída, num gesto que estava rapidamente a transformar-se num hábito. A vida dentro dela ainda era demasiado pequena para a sentir, mas o facto de estar lá fazia-a sentir-se menos só. Fechava muitas vezes os olhos e imaginava o filho deles - um rapazinho de cabelo escuro e o queixo teimoso   do pai ou uma rapariguinha com uma cabeleira indomável. Depois, pensava em criar essa criança sozinha e o coração doía-lhe até a fazer chorar. E pensava em J. D. com a sua vida de celibato emocional, a sua vida dedicada às terras e o coração a ninguém por ter medo que lho despedaçassem.

 

Era o que imaginava. Outra vez com pensamentos românticos, Marílee?

 

- Bom, pelo menos, faço uma canção com eles - murmurou, apontando duas linhas no bloco de estenógrafa. Estava sentada no cadeirão, a olhar para a magnífica beleza à sua volta, a fingir que fumava com pedaços de palhinhas de plástico. Os movimentos eram calmantes e a respiração compassada descontraía-a. A beleza daquele sítio dava-lhe uma espécie de conforto que lhe apaziguava o coração. Como música de fundo, Mary-Chapin Carpenter cantava baixinho, uma voz tão familiar, baixa e rouca como a sua.

Ao longe, os montes eram dum azul profundo sob o céu, o grande céu do montana, azul-cobalto àquela hora do dia, riscado por nuvens esfarrapadas. Uma brisa suave varria o vale, fazendo ondular a erva de vários tons de verde e as flores silvestres de cores claras. Lá em cima, uma águia desenhou círculos lentos durante um bom bocado. Um par de antílopes saiu da sombra duns choupos e desceu até ao riacho para beber, deitando olhares curiosos aos lamas.

 

Mari absorveu tudo aquilo, transformando as imagens em palavras e registando a melodia que lhe chegava, trazida pelo vento. Escreveu algumas linhas no seu bloco com uma caneta de bico de feltro que deitava tinta. A tarde foi passando com a lenta descida do Sol. De vez em quando, ouvia Spike ladrar, e depois ele aparecia para ver como ela estava a mostrar-lhe que tinha tudo sob controlo. Quando se fartou das suas missões de reconhecimento, enroscou-se debaixo da cadeira e adormeceu.

 

E assim perdeu a sua oportunidade de provar que era um cão de guarda, acordando apenas quando as pesadas botas soaram na entrada. Saiu disparado e desatou a ladrar com toda a força, debruçado na varanda.

 

Rafferty deu a volta à casa, pôs as mãos no cós das calças de ganga e franziu a testa para o animal.

 

-Que diabo é isso?

 

- o Spike. o meu cão - anunciou Mari, com alguma indignação.

 

Levantou-se da cadeira e alisou as calças amarrotadas e a grande camisola roxa, invulgarmente contrafeita. o coração dera umas quantas pancadas a mais. Viu nos vidros das portas que tinha o cabelo numa desgraça. o teu cabelo está sempre uma desgraça, Marilee. Pôs algumas madeixas atrás das orelhas.

 

  1. D. fez um ruído de troça, como se não considerasse uma coisa tão pequena como Spike um verdadeiro cão. Spike olhou para ele, nada disposto a recuar. Um bocadinho como a dona, pensou ele, rindo para consigo. Lentamente, baixou-se e deu a mão a cheirar ao cãozito. No momento seguinte, estava a mexer-lhe nas orelhas e a coçar-lhe o pescoço.

 

- o que lhe falta em tamanho é compensado pelo volume da voz - disse Mari.

 

- Sai a ti.

 

- Que gracinha! Que estás aqui a fazer, Rafferty? perguntou Mari, de testa franzida, incomodada com o ton, defensivo da própria voz. Num mundo perfeito, estaria calma, mas o mundo não era perfeito, e ela sabia isso melhor do que a maioria das pessoas.

 

  1. D. endireitou-se e enfiou as mãos nos bolsos. -Vim ver os animais - respondeu ele, impávido.

- Mais ou menos com um mês de atraso - disse ela, acenando com a cabeça e sem acreditar numa palavra.

- Tinha muito em que pensar.

 

- Como está o Del? - perguntou ela, sem ter a certeza de querer ouvir em que estivera ele a pensar. Nada garantia que fosse alguma coisa boa.

 

- Vai a um psicólogo em Livingstone uma vez por semana. Um tipo que esteve no Vietname. Vão à pesca e conversam. Está bem.

 

- Fico muito contente.

 

Apertou ligeiramente os olhos e observou-o da cabeça aos pés. Trazia uma camisa azul-clara recentemente engomada, calças de ganga escuras e botas ainda ligeiramente brilhantes. Sem chapéu. A cara barbeada de fresco e o cabelo penteado, excepto uma pequena madeixa caída para a testa. Apeteceu-lhe estender a mão e afastá-la para o lado.

 

- Não estás propriamente vestido para trabalhos rurais. Tens algum encontro romântico na cidade?

 

- Bom... isso ainda está para se saber.

 

o coração de Mari deu-lhe um salto no peito. Levantou uma sobrancelha e esforçou-se por não parecer encorajada.

- Estou a ver - comentou.

 

- E tu, como estás, Mary Lee? - perguntou ele baixinho, olhando-a firmemente nos olhos. Queria aproximar-se, tocar-lhe no rosto e mergulhar os dedos no cabelo dela. Queria encostar os lábios aos dela e beijá-la durante um ano. Queria deitá-la num sítio macio e fazer amor com ela para sempre, mas havia coisas que tinham de resolver primeiro.

 

Sinto-me só. Tenho saudades tuas. Estou grávida.

 

- Estou óptima. - Levantou as mãos para lhe mostrar que já tinha os dois braços operacionais. - Os meus dias de monoplégica terminaram.

 

- Sentes-te feliz aqui? Sem ti, não.

 

- Muito. -Vais ficar? -Para sempre.

 

Digeriu a informação durante um momento e depois fez um lento aceno com a cabeça.

 

-Não me dizes que o meu lugar não é aqui? - atreveu-se ela a perguntar.

 

- Não, senhora.

 

- Nem vais Praguejar e chamar-me forasteira?

- Não.

 

- Não vais tentar correr comigo?

 

  1. D. comprimiu os lábios e abanou a cabeça. Ela deu uma gargalhada.

 

- Isso é que eu detesto em ti, vaqueiro. Nunca te calas! -Tu falas o suficiente pelos dois - retorquiu J. D., com um sorriso nos lábios.

 

- Touchée - disse Mari, inclinando a cabeça, tentando esconder o sorriso que ameaçava aparecer.

 

Encostou-se ao gradeamento da varanda, com os tornozelos cruzados como se estivesse completamente descontraída. Se houvesse um maço de cigarros em cima da mesa, sentir-se-ia tentada a acender meia dúzia ao mesmo tempo, mas só tinha as palhinhas cortadas em pedacinhos e a caneta que deitava tinta. Sentia os nervos esticados como cordas de piano, mas conseguiu resistir à tentação de esfregar a barriga.

 

- Então, vieste ver os lamas - comentou, espetando as unhas no parapeito da varanda.

 

- Vim ver-te a ti - afirmou J. D., olhando directamente para ela.

 

- Para quê? - perguntou ela, preparando-se para uma resposta que não queria ouvir. Que queria dizer-lhe que estava tudo oficialmente acabado entre eles, e que não aceitava a oferta dela. Que continuava a querer comprar-lhe a propriedade. Se dissesse uma palavra sequer sobre as terras...

 

  1. D. olhou para a mesa e fez rolar um pedaço duma palhinha de plástico entre os dedos. Viu umas linhas escritas num bloco de apontamentos. Letra de alguma canção, calculou. A letra dela era tão desmazelada como o cabelo. Adiou o momento, espantado com a quantidade de coragem que necessitava de arranjar para ter aquela conversa. Havia um mês que a armazenava e perdia, argumentando consigo próprio sobre o seu futuro e os seus motivos. Tinha ensaiado o que ia dizer-lhe a caminho de casa dela, e agora estava ali, sem abrir a boca.

 

Mary-Chapin Carpenter cantava baixinho como música de fundo, poupando-os a um silêncio opressivo.

 

Por fim, suspirou e enfrentou-a.

 

-Bom, o Will e a Sam estão a recomeçar tudo. Tu vieste para cá para recomeçar. Então, pensei que tu e eu podíamos também recomeçar.

 

- Porquê? - perguntou Mari, respirando com dificuldade.

 

-Tenho pensado muito nestas semanas - disse ele baixinho. - Estava enganado, a respeito duma data de coisas.

 

-E eu sou uma delas?

 

- Toda a vida estive sozinho, Mary Lee - murmurou ele.

 

Mari percebeu imediatamente o que ele queria dizer. Que fora emocionalmente abandonado quando era criança. Que se protegera desde essa altura, e que estava agora a baixar a guarda por ela.

 

- Acho que pensei que era mais seguro, mais fácil prosseguiu J. D. - Mas é só solitário e começo a ficar cansado.

 

Também ela se sentia sozinha. Sozinha dentro de si própria, enquanto fazia o necessário para se encaixar num mundo que não era o seu. Conhecia bem a incrível dor desse tipo de solidão.

 

- Que dizes, Mary Lee? - perguntou ele, abrindo as mãos, com o coração a bater-lhe na garganta. - Queres dar uma segunda oportunidade a um vaqueiro casmurro?

 

Mari olhou para ele, ali diante dela com a sua roupa melhor, barbeado e penteado, e sentiu o coração transbordar. És incorrigível, Marilee. Casmurro era pouco para o descrever. Era teimoso como um burro e tinham opiniões completamente diferentes sobre grande parte das coisas. Era fechado e opinioso... e bom e honesto e forte e valente, e ela amava-o. Não havia dúvida de que o amava.

 

J, D. sentiu o ar fugir-lhe dos pulmões ao ver o sorriso dela.

 

- Isso quer dizer que queres sair comigo? - perguntou ela em tom desconfiado.

 

-Jantar e dançar!

 

- Dançar? Tu não sabes dançar! - disse Mari, fungando, desdenhosa, e com os olhos a brilhar, divertidos.

 

  1. D. deu um passo para ela, endireitando os ombros perante o desafio.

 

-Sei, pois!

- Não sabes.

 

- Anda cá dizer-me isso, menina da cidade! - desafiou ele, sorrindo.

 

- Mostra lá! - respondeu ela, aproximando-se com as mãos nas ancas e de olhos postos nos dele.

  1. D. tomou-a cuidadosamente nos braços e dançou uns passos lentos à volta da varanda, em perfeita harmonia com uma bonita canção sobre o cometa Halley, a inocência e simples alegrias. Spike observava-os da almofada em cima da cadeira, Moviam-se com graça e confiança, J. D. a conduzi-la duma maneira que a fazia sentir-se segura, protegida, pequena e feminina. Por cima deles, o céu ia ficando roxo e a Lua erguia-se como uma enorme bolacha branca por cima dos picos dos Absarokas. Lá em baixo no vale, os coiotes começavam a chamar.

 

Mari não despregava os olhos dos dele, à procura duma verdade que não esperava ouvir-lhe pronunciar. Que lhe entregava o coração. Que podia confiar-lhe o dela. Que os anos de desconfiança não o tinham deixado permanentemente isolado.

 

Sentiu o vago aroma da loção de barbear e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, fazendo-a apertá-lo nos braços e encostar-lhe a cabeça ao peito, até ficarem praticamente parados. Era um homem quase tão duro e inflexível como a terra que o criara, e talvez ela tivesse de passar os cinquenta anos seguintes a arrancar os cabelos por causa da sua casmurrice, mas não trocava um segundo deles por todo o oiro da Califórnia.

 

Pronunciou as palavras sem som contra o algodão macio da camisa dele, como um segredo precioso, como uma oração. Amo-te.

 

  1. D. apertou-a mais e deu-lhe um beijo no macio emaranhado do cabelo, com o coração enorme e terno. Olhando para o vale e para os montes, sentiu-se velho e novo ao mesmo tempo, forte e vulnerável. Sentiu que eram as duas únicas pessoas na Terra, que estavam sozinhos no paraíso, a começar de novo. Prometeu fazer tudo bem, dessa vez, sem mentira, sem jogos, com as cartas na mesa e nada escondido.

 

A música tornou-se mais lenta, a doce harmonia de violinos foi-se sumindo e as últimas notas tocadas numa guitarra. Os pés de ambos pararam.

 

Os corações continuaram a bater. Mari susteve a respiração.

 

E J. D. Rafferty inclinou-lhe o queixo para trás, olhou para aqueles olhos azuis e segredou:

 

- Amo-te.

 

                                                                                Tami Hoag  

 

                      

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