Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
PARAÍSO SELVAGEM
O navio estava totalmente reservado, disse o balconista. Um dos mais ricos passageiros, Mijnheer van Helden, tinha uma cama de sobra na cabine, mas...
O rapaz encolheu os ombros sorrindo de maneira pesarosa. Temple compreendeu que, sendo ela uma mulher solteira, não seria conveniente tentar persuadir Mijnheer van Helden a compartilhar a cabine com ela.
— Eu... Eu preciso partir hoje — disse ela distraidamente. — Levará um mês até o navio voltar para Lumbaya.
O balconista estendeu as mãos. Não havia mais nada que pudesse fazer e, pegando a mala, Temple deixou o balcão de recepção do pequeno hotel, onde passara todo o mês, em estado quase precário.
Um mês... Vinte e oito dias... Tempo muito curto para aprender a suportar a dor de uma desilusão e a angústia de um sonho destruído.
Entrou na sala miserável daquele hotelzinho, cheia de remos dentro de barris e ventiladores chiando preguiçosamente no teto e pediu um refresco. As sombras dos ventiladores moviam-se sobre as paredes de um branco imundo, enquanto Temple sentava-se, protegendo seu copo de suco de abacaxi. Inevitavelmente suas lembranças foram ao encontro — o primeiro depois de cinco anos — com o homem pelo qual fizera todo o caminho até Lumbaya para se casar.
Mesmo agora, mal podia acreditar que Nick deixara de ser, tão inesperadamente, o rapaz fascinante que conhecera na Inglaterra, tão cheio de ambições e de promessas.
Tão logo eu consiga a chefia do escritório, escrevera ele, você pode vir para cá e aí iremos juntos ouvir o repicar dos sinos na igreja. A Companhia prefere funcionários casados e estáveis e sei que você vai adorar os trópicos. Tudo será encantador e de acordo com sua imaginação romântica.
Temple tremeu apesar do calor pegajoso da sala de estar do hotel. Durante cinco longos anos ela trabalhara, economizara e esperara o dia em que poderia encontrar-se com Nick e juntar-se a ele sob o sol brilhante e as árvores tropicais... Tudo tão colorido e diferente de Alford e da casa onde se sentia uma intrusa.
Morara com tia Myra e suas primas, para economizar um pouco de dinheiro cada semana. Suportara com calma infinita os resmungos da tia e a afetação das primas, tudo por nada.
Por nada!
Sentiu outro calafrio percorrendo o corpo. Deixaria Nick, mas nunca, mesmo dali a cem anos, voltaria a pôr os pés em Alford e naquela casa cheia de desunião, onde somente ela ajudava nos trabalhos domésticos, onde era apenas a prima órfã que tinha obrigação de se sentir grata pela acolhida das parentas. Quando se via em desespero, lembrava da vida que teria com Nick em Lumbaya, e tudo parecia então mais fácil de suportar.
Agora, o sonho tinha chegado ao fim. O Nick que ela encontrara na Inglaterra, enquanto se protegia da chuva num abrigo de ônibus, tornara-se um estranho para ela. Um homem sem caráter suficientemente forte para levar adiante as dificuldades da vida.
Os dias nos trópicos são quentes. As noites, exóticas e solitárias para um homem sem mulher.
Temple ainda estava muito chocada com o susto que levara quando, entrando no bangalô de Nick, encontrou uma jovem alta e morena recostada no divã de junco. Com uma fruta nas mãos, olhando Temple com olhos imperturbáveis enquanto ela perguntava envergonhada se aquela era a casa de tuan Hallam.
— Nick saiu — dissera num inglês muito ruim. — Problema com o patrão. Nick pode ser despedido do emprego.
A garota riu e parou de rir quando Nick Hallam entrou com pressa no cômodo desarrumado. — Fora! Vá embora! — gritara para ela. E, com um levantar de ombros e um longo olhar para Temple, a moça vestida de sarongue desaparecera entre as palmeiras e árvores brilhantes.
Por que você está aqui? — perguntou Nick.
Porque pensei que precisasse de mim. — Temple olhou-o profundamente e tentou ver, em sua figura degenerada, o rapaz que lhe prometera tanta felicidade. Temple Lane era sensível, idealista, enfim, tudo o que uma garota que fica só desde a infância não pode deixar de ser.
— Fique! — implorara Nick. — Prometo que vou mudar.
Ela alugara um quarto no hotel. Tentou acreditar que Nick pudesse endireitar. Limpou o bangalô dele, conheceu e conversou com o administrador da grande empresa onde Nick trabalhava e conseguiu que ele desse mais uma oportunidade ao seu noivo, não o mandando embora.
Tudo parecia estar melhorando, até ontem, quando ela foi até o bangalô para fazer o almoço de Nick e encontrou-o com outra. A garota morena, envolta num xale vermelho, estava encolhida nos braços de seu noivo.
Temple acabou de beber o suco de abacaxi e colocou o copo sobre a mesa de maneira decidida. O hotel estava tranqüilo àquela hora. Só se ouvia o barulho dos ventiladores e o baixo canto das cigarras, perturbando o pesado silêncio.
O navio sairia dali a poucas horas; ia para Bangpalem quando o dia começasse a esfriar. Temple apertou as mãos junto ao colo e o anel na mão direita foi o único brilho naquela insípida sala de hotel. Era o anel de noivado de sua mãe, de pérola cercada por rubis; o único vínculo que possuía com os pais, que perdera quando ainda era muito pequena.
Tio Charles era vivo, então, e a vida em Alford não era tão ruim, mas...
Suspirou e compreendeu que não podia voltar para a casa da tia, nem à monotonia daquela cidade, nem ao seu emprego na biblioteca.
Bangpalem era a solução. O patrão de Nick tinha dito que lá existiam grandes companhias de petróleo, que secretárias inglesas sempre conseguiam emprego. Temple poderia datilografar e anotar cartas; poderia arquivar, e estava estranhamente ansiosa por continuar nos trópicos. O perfume forte, as folhagens viçosas e o sol quente a atraíam. Alford, em comparação, parecia morta.
Queria ir para Bangpalem o mais rápido possível, antes que Nick viesse e derrubasse todas as suas defesas com pedidos e promessas.
Levantou-se, magra e abatida em seu leve vestido azul. Pegou a bagagem e foi ao toalete, enquanto o salão do hotel continuava deserto com seu grande espelho na parede. Temple olhou-se no espelho e seu coração começou a bater mais depressa.
Seus cabelos lisos e escuros estavam bem curtos, mas a franja crescera até o centro da testa, acima de seus grandes olhos castanhos. O pescoço e o resto do corpo eram magros como os de um rapaz; as pernas, longas e esbeltas, com tornozelos finos. Suas mãos estavam um pouco agitadas enquanto abria a bolsa de ráfia e tirava os óculos que precisava usar para ler. Colocou-os e imediatamente eles ocultaram seus longos cílios, fazendo com que se assemelhasse ainda mais a uma adolescente.
Ficou parada por longos momentos até que seu coração bateu ainda mais violentamente. Com uma jaqueta e as calças folgadas, à noite, ela certamente passaria por um garoto. Não possuía um corpo cheio de curvas para traí-la, apenas o anel de pérola e rubis no dedo. Tirou-o e colocou-o com muito cuidado na carteira.
Sua decisão estava se tornando mais clara. Ela ia se vestir como um rapaz e tentar conseguir passagem no navio. O balconista disse que havia um leito de sobra... Com o que tinha em mente, não teria problemas para consegui-lo.
Sentiu-se desesperada. Destrancou a mala e tirou dela uma calça de tecido fino e a jaqueta estilo marinheiro com botões em forma de âncora de ambos os lados. Não havendo ninguém no toalete, não levou mais de dez minutos para trocar de roupa. Vestiu uma camisa branca, deixando o colarinho aberto, de um jeito bem masculino, e em seguida a jaqueta que abotoou para o lado direito.
Novamente estudou sua imagem e percebeu o quanto estava pálida e tensa. Mas, sem dúvida, parecia um garoto. Sim. Temple Lane — o jovem rapaz — viajando para Bangpalem para arrumar emprego na Sumica Oil Company.
Colocou a bolsa de ráfia dentro da mala e então sentiu-se em pânico. E se examinassem sua bagagem no cais? Nossa! O que fariam se abrissem sua mala e encontrassem roupas de baixo, anáguas? Parou, mordendo os lábios. Não havia campo de aviação em Lumbaya; portanto, viagem de avião não era possível. Ou esperava mais um mês até que o navio voltasse... ou tentava passar pelos oficiais subalternos do cais sem que revistassem sua bagagem.
Trancou a mala e colocou a chave no bolso com a carteira, visto de saída, o passaporte e saiu do toalete. Apressou-se em direção à porta giratória. Havia uma agência de navegação naquela rua, para onde o balconista telefonara logo cedo. Foi o funcionário da agência quem disse que o único jeito possível era o da cabine, bastante grande, de Mijnheer van Helden.
Temple sentiu-se desfalecer quando, chegando à rua, viu Nick Hallan saindo de uma trisha em frente ao hotel. Ficou petrificada enquanto ele pagava o menino e virava em sua direção. Vestia um terno de tropical branco, estava barbeado e com os cabelos bem penteados. Veio a passos largos, sobrancelhas franzidas, distraído e quase esbarrou nela.
— Desculpe, rapaz. — Sumiu através da porta giratória sem ter lançado um segundo olhar e, um instante depois, Temple corria pela rua empurrando as pessoas que saíam de suas casas depois da sesta. Um cheiro de tempero espalhava-se, vindo das portas abertas dos bares.
Temple fugia de Nick, de seu momento de fraqueza traiçoeira. Ela quase o chamara, esteve próxima de deixar-se levar pela emoção e ter mais desilusões, mais cenas como a que presenciara ontem no bangalô do noivo.
Nick fora ao hotel para desculpar-se com ela e Temple teve que fugir antes que seus velhos sentimentos por ele abalassem sua resolução.
Entrou na agência de viagem com o coração saltando, a respiração presa na garganta. O balconista, um javanês magro com os olhos imperturbáveis dos orientais, levantou os olhos e fixou-os nela.
— Posso ser útil a tuan? — perguntou ele.
Temple, com a face pálida, aproximou-se lentamente do balcão que os separava.
O cais estava cheio de trabalhadores de arroz. O ar repleto do barulho dos rebocadores, das barcaças, dos diversos idiomas falados ao mesmo tempo. As pessoas chocavam-se umas com as outras, e os fardos, presos por grossas correntes aos imensos guindastes, giravam em torno de Temple, que caminhava para o grupo de trabalhadores das pranchas que subiam em direção ao convés do navio.
O fiscal da alfândega olhou rapidamente seu passaporte. Por um terrível momento, sua mão pairou sobre a mala de Temple e então sua atenção voltou-se para uma chinesa que acabara de deixar cair a cesta que levava e se abriu, esparramando sementes de arroz por todo o barracão da alfândega. Temple continuou seu caminho enquanto o oficial se divertia, amedrontando a fazendeira de arroz.
As águas estavam agitadas sob a prancha de embarque e uma gaivota voava em direção à água, quando Temple foi para bordo do Egret. O sol se escondia no horizonte, baixando rapidamente até tingir o mar e o cais de um vermelho-brilhante. A prancha de embarque foi içada e, ao estremecer da máquina, o navio moveu-se, distanciando-se pouco a pouco do cais.
Estavam a caminho!
Temple apoiou-se na grade do convés e sentiu uma leve brisa nos cabelos. Ah, a brisa fê-la sentir-se melhor após aquele dia quente e de muita tensão... Não que tudo estivesse certo, agora que estava a bordo. Havia ainda seu companheiro de viagem para enfrentar.
Olhou o convés, onde grupos de pessoas estavam se sentando para comer arroz e peixe, embalados em folhas de bananeiras. Esta noite muitos deles dormiriam no convés. Estenderiam suas esteiras, nas quais seus poucos objetos estavam embrulhados, e ficariam olhando para as estrelas que logo apareceriam no céu. Deixou-se ficar ali, meditando sobre o futuro, enquanto o sol mergulhava nas águas profundas do oceano.
Temple sentia sobre ela aqueles olhares misteriosos dos asiáticos. Não se acostumara ainda àquela expressão sombria e enigmática que aquele povo tinha nos olhos. Era uma introspecção muito diferente da dos ingleses...
Resolvendo não perder mais tempo, decidiu apresentar-se imediatamente a Mijnheer van Helden, persistindo no seu disfarce de garoto.
Seria ele ainda jovem, ou já teria certa idade? Seria gentil para com ela, ou estaria irritado por ter que compartilhar sua cabine com um rapazola estranho? Temple desejava ardentemente que ele não fizesse objeção alguma em lhe prestar este favor. A garota apenas tinha certeza que ele era holandês — um holandês muito respeitado, segundo lhe dissera o balconista da agência — e que não devia saber falar inglês. Olhou o rasto de espuma borrifando a popa, e estava perto do fim do convés quando o navio jogou um pouco mais forte para a direita ao deslizar entre duas ondas. Apoiou-se firmemente ao gradil para não cair e, como já temia, começou a sentir-se mal. A embarcação parecia estar navegando sobre um mar não muito calmo e Temple nunca tinha sido propriamente uma boa marinheira, mesmo em criança, quando seu tio Charles levava a família para passear de barco.
Suspirou profundamente, pedindo a Deus que aquele enjôo súbito passasse logo, e desceu a escotilha a caminho da cabine. O corredor era sombrio e estreito. Teve um estranho pressentimento ao perceber que a cabine que procurava era a última. Bateu. Não obtendo resposta, entrou timidamente, acendendo o interruptor ao lado da porta.
Como em quase todos os navios, pensou Temple, a cabine era bastante confortável, mas não muito grande. Nada no pequeno compartimento faria supor que alguém o ocupava, a não ser uma mala de couro de porco sobre a cama de baixo do beliche, e um penetrante cheiro de tabaco que impregnava todo o ambiente.
Acomodou-se com alguma dificuldade na cama de cima. Cruzou os braços sob a cabeça e, olhando o teto, tentou desesperadamente espantar aquela náusea incômoda. De repente, a cabine subiu e desceu, e ela fechou os olhos com raiva, odiando Nick Hallam naquele momento. Se não fosse por causa dele, não teria que sofrer toda essa experiência estafante tendo que se fazer passar por um rapaz, num velho navio a vapor, em algum lugar perdido nos mares de Java.
Temple cochilou por alguns minutos, sendo acordada por um clarão que iluminou toda a cabine. Logo em seguida escureceu novamente. Teve a impressão de que alguém entrara na cabine e que, ao sair, apagara a luz.
Outro clarão lúgubre entrou pela vigia, fazendo com que pulasse na cama, em pânico.
O navio devia estar no meio de uma tempestade, uma dessas tempestades elétricas brancas e azuis, sem chuva. O mar estava muito agitado, e sua fúria a deixava ainda mais tensa.
Guiando-se pelos clarões, conseguiu achar os degraus de madeira ao lado de seu leito e chegar ao assoalho da cabine. Sentiu uma necessidade desesperada de ar e saiu para o corredor. Logo em seguida, subia os degraus de ferro para o convés. As pessoas estavam reunidas em grupos, olhando espantadas as ondas que lambiam o gradil e as encharcavam por inteiro.
Temple encostou-se no gradil e, em poucos segundos, seus cabelos e todo seu corpo estavam encharcados.
Uma forte onda fez com que o navio levantasse, jogando-a contra a parede. A água, que não parava de jorrar, a impedia de ver e gritar. Sentia-se morrer, e umas poucas lágrimas miseráveis misturavam-se à água jogada pelo mar. Muitas vezes na vida Temple sentira-se só, sem qualquer pessoa a quem pudesse apelar, mas nunca esse sentimento tinha sido tão forte quanto naquele momento.
O navio estava sendo impiedosamente sacudido pelas vagas, e Temple não ouviu que alguém se aproximava dela. Subitamente, ouviu a voz rouca que se dirigia a ela:
— Niet lekker, marrnetje?
Uma pergunta, era tudo o que sabia. Olhou para cima e, neste momento, um clarão iluminou a face do homem e Temple teve certeza de que ele fazia parte da tripulação do navio. Usava uma venda no olho esquerdo como um pirata... Um pirata dos mares de Java.
Você não está nada bem — gritou o homem, agora num inglês cheio de sotaque. — Você não devia ficar por aqui com esta tempestade, rapaz! Acho que é melhor descer se quiser ficar a salvo!
Eu... Eu prefiro ficar aqui — engasgou, pois não estava certa de que suas pernas agüentariam descer a escotilha para a cabine. — Eu, eu ficarei bem aqui.
Não acho! — Levantou-a pelos braços e impeliu-a ao longo do convés escorregadio. E quando, atordoada pela queda tropeçou, o grande marinheiro tomou-a nos braços e a carregou até a cabine de Mijnheer. Empurrou a porta com os pés, abrindo o compartimento, e com o cotovelo acendeu a luz. Temple então pôde sentir a presença estranhamente calma de um olho cinza. O homem atravessou a cabine e deixou-a na cama de baixo do beliche.
Não — disse ela quase desfalecendo —, este não é o meu leito.
Fique quieto, mannetje.
Angustiada e exausta, não se sentiu capaz de discutir com aquele estranho marinheiro que agora abria sem cerimônia a mala de couro de porco de Mijnheer, tirando dela um frasco de prata. Destampou-o e forçou um pouco de conhaque por entre os lábios de Temple, tomando também um gole logo em seguida.
Você não devia ter feito isso — disse o "rapaz", com dificuldade.
Não devia ter feito o quê? — Aquele olho cinza estava singularmente inquieto agora, ao lado da venda preta. Um olho cor de prata, numa face talhada em bronze.
Mexer na mala de Mijnheer van Helden... E ainda por cima tomar o conhaque... — Temple estava com novo ânimo na voz, graças ao efeito da bebida, mas suas pálpebras estavam pesadas e prestes a cair de sono.
Ele a observou, fixando em sua face pálida aquele único olho cinza, enquanto suavemente tocava seus cabelos úmidos. Era muito alto, o corpo atlético e bem-feito. Foram os relâmpagos que deram a impressão de que seus cabelos eram grisalhos. Aqui, sob a luz da cabine, eram louros, bastante queimados devido ao sol. Seu nariz saliente era o daquelas pessoas de grande personalidade.
De súbito, seu olho mudou levemente de tom e então ele inclinou a cabeça numa saudação estranha, e disse de maneira arrogante: — Ryk van Helden, a seu dispor. O conhaque me pertence, assim como o leito em que você está deitado. Com certeza você é o jovem inglês que divide a cabine comigo. Ora, seus olhos estão se fechando... Logo estará dormindo. Fique calmo e procure descansar.
Mijnheer... — disse Temple, tentando levantar-se, mas uma grande mão contra seu ombro a impediu. Sentiu em seu corpo a grande força daquele homem.
Sem dúvida você não é um rapaz muito forte. — O sorriso em seus lábios era irônico.
Ela viu seu rosto através de uma densa névoa de fadiga, um rosto forte e viril, um pouco sinistro por causa da venda: Ryk van Helden, com quem ela teria que compartilhar a cabine nesta noite de tormenta.
— Estou certo, meneer — disse ela com certo humor —, que não são os músculos que fazem o homem, o senhor não pensa assim também?
O holandês levantou subitamente sua sobrancelha tapada, mas permaneceu onde estava, sem nada responder. A última cena que ficou na lembrança da moça foi a figura dele lhe tirando o paletó para que ficasse mais confortável. Então, tudo foi perdendo o contorno e ela adormeceu.
A tempestade passara e, sob a luz radiosa da manhã, o oceano parecia estar imóvel.
Temple abriu os olhos suavemente. Um raio de sol viera acordá-la. Espreguiçou-se sonolenta, suspirando leve... E então sentou-se na cama, olhando surpreendida toda a cabine.
Agora lembrava-se, estava a bordo do Egret, um velho navio a vapor que singrava Lumbaya em direção às ilhas espalhadas como pedras preciosas no misterioso mar de Java.
Olhou para seu corpo casualmente e sentiu-se desfalecer ao notar o grande paletó de pijama que a envolvia. Era de seda e, com certeza, pertencia a um homem.
Apalpou as grandes mangas e lembrou-se do incidente da noite passada: fora ele quem tirara suas roupas úmidas, pensando que estivesse despindo um rapaz... Mordeu os lábios e sentiu-se corar. Deve ter sido um choque para ele também quando percebeu que não estava exatamente despindo outro homem... Os holandeses não diziam ser um tanto puritanos?
Neste momento bateram à porta e, sem esperar resposta, Ryk van Helden entrou decididamente. Temple não sabia onde esconder o rosto. Agarrou o lençol e encolheu-se contra a parede, enquanto o sol incidia sobre os cabelos do homem e sobre a camisa branca que vestia, sob a qual seus ombros vigorosos, soberbamente másculos, se estendiam.
— Goede morgen — disse ele em sua língua natal. — Dormiu bem?
Acenou com a cabeça tentando ler a expressão de seu rosto, mas quem poderia adivinhar o que se passava dentro de um homem que possuía um único olho cinza, enquanto o outro permanecia vedado por uma capa preta?
Ele colocou a bandeja que trazia sobre o colo dela. Havia um bule de café, pãezinhos redondos, manteiga e frutas. — Achei que você apreciaria algo leve para o café da manhã.
Obrigado. — Enquanto colocava o café numa xícara que mais parecia uma pequena tigela, ponderou sobre o tratamento que ele lhe dirigira. — Já tomou o seu café da manhã?
Há uma hora. — Ele sentou numa cadeira de vime sem deixar de observá-la, enquanto Temple servia o café. Sentia que ele a analisava, tirando conclusões a seu respeito.
Coma um broodje — disse-lhe o homem com sua voz profunda e cheia de sotaque. — Você me parece bastante pálida.
Su... Suponho que você esteja esperando uma explicação! — Ela sentiu seu coração bater nervosamente.
Sim, queria saber por que você se vestiu como um rapaz. Você deve ter percebido que tirei suas roupas porque achei que estavam muito molhadas. O clima dos trópicos pode fazer muito mal, se não tomar o cuidado necessário.
Só havia lugar no navio para mais um passageiro. — Seus olhos castanhos encontraram o olhar indagador e brilhante do jovem senhor. — O balconista da agência marítima disse que você compartilharia sua cabine, mas como eu era uma mulher... Então, como eu tinha necessidade de viajar, resolvi me vestir de homem.
Você acha que eu não a aceitaria como companheira de viagem? — pronunciou lentamente. Observou sua pele jovem e pálida em seu pijama de seda. — Como você é ingênua! Somente uma pessoa muito ingênua podia se valer de uma loucura como essa. Estava fugindo de um homem?
Sim — admitiu ela. — Eu tinha que sair de Lumbaya. Não podia ficar lá mais um mês.
Entendi. Agora você vai comer alguma coisa. — Era uma ordem e ela obedeceu de olhos baixos, enquanto passava manteiga no pão. Ouviu o estalido de um fósforo e então sentiu o cheiro forte do cigarro de cravo-da-índia. Ele se levantou e foi olhar para fora pela vigia.
O dia será muito agradável depois da tempestade — disse. — Se eu entendi bem, você está viajando para Hangpalem, não é verdade?
Sim. — Mordeu uma fatia de mamão e, como sempre, o tom amarelado da fruta surpreendeu-a com sua doçura. — Um negociante de madeiras em Lumbaya me disse que eu conseguiria um emprego como secretária na Sumica Oil Company.
Ah, você é secretária? — Ryk van Helden deu meia volta para olhá-la. — Isso é muito interessante...
É mesmo? — O sorriso dela era cético. — Tenho certeza de que você conhece tudo sobre esta parte do Oriente. Acha que eu arranjaria facilmente um trabalho em Bangpalem?
Só não conseguirá, se pretender continuar com seu disfarce. Tem seus perigos, como você já percebeu.
Ela sentiu a seda do paletó contra a pele e um forte rubor na face. Nunca na vida se sentira mais consciente de ser mulher, pois nunca antes encontrara um homem como Ryk van Helden. A pele queimada, o olhar irônico faziam-no parecer um misterioso animal das selvas... Um tigre.
— O que você está olhando? Está intrigada com meu defeito? — Ele levantou o cigarro e tragou. — Isto me faz parecer um pirata do alto-mar? — Bateu as cinzas do cigarro com seu dedo longo, e um sorriso realçou as linhas de seu rosto que o sol tropical havia queimado. — Eu administro as plantações do príncipe de Java. Chá, tabaco e madeira. Estou voltando para casa, para Bayanura, depois de uma viagem de negócios que, no meu ponto de vista, foi um tanto insatisfatória.
Van Helden dirigiu-se à porta e então falou sobre os ombros:
— Nós nos encontraremos no convés dentro de uma hora. Por favor, vista-se como um rapaz durante o resto da viagem, a menos que deseje chegar em Bangpalem com sua reputação abalada.
A porta fechou-se atrás dele, mas o aroma de tabaco permaneceu junto com o comentário que fez ao sair. Temple meditou sobre isso e chegou à conclusão de que ninguém em Bangpalem provavelmente acreditaria que Ryk van Helden compartilharia inocentemente uma cabine de navio com uma moça. Com aquele ar de arrogância, aqueles ombros enormes e aquela venda no olho, obviamente era considerado um grande conquistador.
Temple saiu apressadamente da cama. Mijnheer van Helden tem um gosto pelo exótico, pensou ela, enquanto pegava seu paletó da cama de cima e respirava o leve aroma do tabaco de cravo.
O navio continuava seu deslizar tranqüilo sobre as águas claras daquele mar tão calmo, agora. No céu, o sol queimava a terra, acrescentando um tom dourado em tudo o que tocava.
— Aqui nas índias, nós ocidentais parecemos peixes reluzindo na rede — disse uma voz grave sobre a cabeça de Temple.
Ela virou para olhar o holandês e não se sentiu tão em desvantagem, agora que estava vestida como um rapaz. Usava os óculos de aro de chifre, e seus cabelos balançavam jovialmente ao sabor da leve brisa. Um sorriso transpassou-lhe a boca. — Acredito que o senhor deva ser um grande peixe aqui das índias. Sinceramente falando, nunca encontrei na minha vida um homem que trabalhasse para um príncipe oriental. Parece muito exótico.
O homem encostou-se no gradil, com suas costas largas e fortes voltadas para o mar. Seus cabelos refletiam o sol como fios de ouro... Ainda que os cabelos fossem muito claros, a pele era bronzeada como as folhas queimadas pelo outono. A pequena reentrância em seu queixo parecia ter sido esculpida por um artista de grande talento e precisão, tão bem ficava instalada naquele rosto anguloso. Todo seu físico transpirava um forte ar de domínio, tornando sua presença ainda mais máscula.
Sou o tuambesar da ilha, isto é, simplesmente governo a ilha para o príncipe — disse ele. — Vivo no kraton.
O que é kraton! — perguntou ela curiosa.
Um palácio. — Por seu olho cinza passou um vislumbre de sarcasmo. — Um palácio povoado de pavões, cheios de elegância e presunção com seu harém de pavoas.
E você? — disse ela com um sorriso encantadoramente brincalhão. — Como senhor de uma ilha, deve possuir um harém, não?
Isto não é da sua conta — respondeu friamente o holandês, tornando-se sério de repente, não percebendo que a garota apenas queria ser agradável.
Conte-me sobre a ilha, então. — Temple notara a mudança repentina de seu interlocutor. Talvez tivesse sido um pouco leviana ao tocar num assunto tão íntimo.
Houve uma época em que a ilha era uma possessão dos holandeses. As índias Orientais foram território dos Países Baixos. Um antepassado meu chamava a ilha de paraíso tropical, mas isso foi na época em que os holandeses eram os donos de tudo por aqui, quando havia muita riqueza a ser conquistada. — Olhou pensativo para Temple. — Então os japoneses invadiram o território e uma escuridão desceu sobre a ilha. Depois da guerra, houve uma rebelião e os holandeses deixaram de ser os reis destes mares.
Mas como você ainda está aqui?
— Naquela época eu era ainda um bebê. Quando meus pais foram aprisionados, um velho empregado javanês, muito dedicado a eles, me levou para viver entre seu povo. Tingiram-me os cabelos, alimentaram-me e cuidaram de mim. Cresci numa casa de sapê, e lá aprendi, em resumo, a amar os habitantes da ilha.
Houve uma pausa na conversa, onde os dois refletiram silenciosamente sobre as últimas palavras ditas por ele, e então Temple perguntou gentilmente: — E seus pais, o que aconteceu com eles?
— Eles foram separados, mandados para lugares diferentes. Meu pai, junto com centenas de outros colonos holandeses, foi para a Manchúria, onde morreu. Quando a guerra acabou, minha mãe e eu nos encontramos, mas não por muito tempo. A vida no campo de concentração onde viveu tirou-lhe por demais as forças, e ela logo veio a falecer durante a revolta que varreu as índias. Foram os ventos da mudança. Eles me levaram para Leyden, para a casa da família de minha mãe, mas nunca consegui esquecer as índias e as ilhas douradas pelo sol.
Seu anel, com um estranho brasão, refletiu o sol quando ele fechou a mão sobre a grade, onde estavam encostados, lado a lado.
— Encontrei o príncipe Chai na universidade, em Amsterdã. Quando ele soube do meu interesse pelas ilhas e meu amor de criança pelo seu povo, sugeriu-me que administrasse suas plantações em Bayamura. Isso já faz quinze anos. Nenhum de nós se arrependeu da proposta.
Temple se sentia agitada pela história que acabara de ouvir, e pelo amor às índias que o homem declarara ser tão grande. Esta beleza também a estava seduzindo, e ela era apenas uma recém-chegada. Um mundo estranho e exótico, com um céu sempre azul. Um lugar cheio de aves raras e recantos tranqüilos, mas que continha sempre uma ameaça oculta atrás de uma árvore, por entre as folhagens. Uma região repleta de templos e kampongs misteriosos. Sentia-se fascinada por tudo aquilo, apesar da ameaça constante que sentia naquela parte do mundo, tão diferente de onde estava acostumada a viver.
— E você é secretária — disse ele lentamente.
— Na realidade sou bibliotecária, mas estou acostumada a datilografar e a arquivar. — Ela encarou-o, perplexa pela maneira como a olhava.
— Você deseja ganhar muito para trabalhar na Sumica Oil Company?
— Preciso de um emprego. O dinheiro que economizei para vir para cá está acabando... — Temple interrompeu e mordeu os lábios. — Disseram-me que a Sumica emprega secretárias européias, e acho que gostaria de trabalhar nos trópicos por algum tempo.
— Você trabalharia por uns dois meses, por exemplo?
Observou-o e começou a se sentir estranhamente excitada.
— Claro! Em dois meses mais ou menos já terei economizado o suficiente para voltar para a Inglaterra, se eu ainda quiser voltar. Talvez também me apaixone por esta região e não queira mais sair daqui... Quem sabe...
— O que você diria — fez uma pausa e virou-se para observar um falcão em movimento sobre o mar — se eu convidasse você para trabalhar para mim durante dois meses?
Temple olhou-o não conseguindo imaginar que tipo de trabalho tinha em mente para lhe oferecer. Se é que era mesmo trabalho o que ele tinha em mente?
— Li seus pensamentos. — Havia uma expressão quase sarcástica nos lábios Dele enquanto a fitava. — Eu sei o que você pode estar imaginando, mas asseguro que tudo o que preciso é de uma secretária eficiente. Não tenho nenhum plano para tentar abalar sua reputação, fique certa.
Ela enrubesceu e pensou no quanto ele conseguia ser cruel quando sentia necessidade.
Desculpe.
Há um velho ditado que diz que quem vê cara não vê coração. Ou então devo imaginar que você está me confundindo com o homem que a deixou. Você trabalhava para ele?
Temple empertigou-se, sentindo-se fortemente inclinada a dizer para Mijnheer van Helden que se preocupasse com a própria vida. Este impulso logo morreu.
Desejava casar com ele — disse ela friamente. — Ao invés disso, percebi que me havia apaixonado pela pessoa errada. O meu maravilhoso príncipe encantado não passava de um homem sem caráter, sem força de vontade. Isto abalou minha confiança nas pessoas.
Você ainda é muito jovem. Tem muito tempo pela frente, para recordar tudo isso como um sonho não realizado. — Falou a palavra sonho desdenhosamente, fazendo com que a garota arregalasse os olhos, deixando os lábios tremerem sensivelmente.
— Uma coisa ficou clara para mim — disse ela. — Nunca devemos amar o suficiente para sermos magoados.
Ele não respondeu. Em vez disso, fitou a expressão gélida dos olhos da moça. — Você é impulsiva, e é preciso ser cuidadosa para não se apaixonar impetuosamente. Agora, sobre o trabalho que desejo que seja feito: você acredita que pode datilografar vários diários manuscritos que pertenceram a uma antepassada minha?
Mas eu não conheço a língua holandesa!
Os diários estão em inglês — explicou ele. — Polyana van Helden era uma jovem inglesa que entrou num casamento por procuração... Com Laurens van Helden. Você fuma?
Ela negou com a cabeça.
— Conte mais sobre esse casamento. Foi um casamento feliz?
Ele soprou a fumaça perfumada e examinou o rosto dela levantado para ele.
A história do casamento está nos diários, pois Polyana tinha talento para a palavra, e escreveu muito em seus quarenta anos com Laurens van Helden. Muitos casamentos por procuração eram feitos naquele tempo, quando os jovens aventureiros deixavam os Países Baixos para viver e trabalhar nas índias. Um jovem e amável holandês podia licitar, por intermédio da Companhia das índias, uma noiva, para quem mandava uma luva enfeitada com jóias, perfumada de canela e cravo-da-índia. Ela viajava até ele trazendo com ela a luva que usara durante o casamento por procuração.
Mas um homem que ela nunca havia visto! — Temple tirou os óculos distraidamente, e seus olhos pareciam maiores e bastante surpresos.
Polyana era uma criatura jovem e cheia de vida. Foi enteada de um mercador que temia que ela brilhasse mais que suas próprias filhas. A pobre garota era muito infeliz em casa, na Inglaterra. Possuía um espírito aventureiro, e por isso concordou em casar-se com um homem que nunca havia visto antes.
Um casamento que durou quarenta anos... — murmurou Temple. — Então não pode ter sido um casamento infeliz, principalmente porque Polyana desejou escrever sobre sua história. A história de sua vida com o marido e com a família que viria a formar com ele.
Os diários são muito interessantes de ler, e embora pudesse mandá-los para algum lugar a fim de que fossem datilografados, eles são muito valiosos para mim, e gostaria que o trabalho fosse realizado em Bayanura, nos arredores conhecidos e amados por Polyana.
— Eles serão publicados?
— Sim. Esta também é uma das razões porque quero que o trabalho se realize em Bayanura, assim poderei acompanhar seu desenvolvimento. Cheguei a entrevistar uma secretária em Lumbaya, que trabalhava numa companhia de madeiras, mas percebi que os conhecimentos da moça sobre a língua inglesa não eram suficientes para a tarefa. Ela era asiática, compreende?
— Você acha, Mijnheer van Helden, que eu seria capaz de fazer o serviço? — A idéia alarmava Temple, ainda que se sentisse excitada com a possibilidade de viver e trabalhar por dois meses numa ilha tropical.
Ele observou-a através da fumaça de seu cigarro. Possuía o porte de um descendente de navegadores audaciosos que singraram os mares em grandes navios, e que descobriram ilhas exóticas, onde foram os dominadores, numa época cruel e dourada.
Sinto que você, como uma inglesa solitária nos trópicos, saberá compreender Polyana e os dilemas pelos quais passou ao encontrar-se num ambiente diferente do que estava acostumada, e, ainda por cima, casada com um homem que nunca havia visto antes.
Eu... Eu gosto muito da idéia — admitiu ela.
Então por que hesita? — Ele bateu a cinza do cigarro e o pesado anel em seu dedo refletia a luz do sol. — Você se arriscou muito fazendo-se passar por um rapaz para conseguir passagem no navio. Seria preciso mais coragem para aceitar minha proposta e trabalhar neste serviço que você mesma diz estar interessada?
Existe algo que devo considerar com muito cuidado — disse ela.
Você tem apenas algumas horas para decidir — replicou ele com um tom de impaciência na voz. — Hoje à tarde, um barco vindo da ilha vem me pegar aqui no navio. Bayanura está fora da direção da rota para Bangpalem.
Então, caso eu aceite trabalhar lá, não será fácil para mim ir embora, se por acaso eu desejar? — Ela recolocou os óculos, pois se sentia mais segura com eles, uma pessoa mais prática e decidida e não uma garota tentada a dar um salto no escuro, mas ainda com um pouco de medo...
Havia um sorriso quase cruel nos lábios dele enquanto respondia.
— Escute aqui, se você está hesitando porque teme que eu perca a cabeça quando estiver sozinho com você, então deixe-me colocar seus temores por terra. Em primeiro lugar, você não é o meu tipo; em segundo, você terá sua própria casa para morar. Além disso, um médico americano vai de avião uma vez por semana para a ilha para clinicar em nosso pequeno hospital de bambu. Em qualquer momento que você sinta vontade de fugir novamente, tenho certeza de que Kinraid terá muito prazer em tê-la como passageira. Bem — ele jogou o cigarro no mar — agora minha proposta toma um aspecto diferente?
— Sim, está muito mais clara agora — disse Temple com a voz áspera. — E quanto você me pagaria?
Ele disse e, embora ela não fosse ambiciosa, seria uma ingenuidade não aceitar um salário tão compensador por um trabalho que a interessava muito.
— Por que o Dr. Kinraid não lhe trouxe uma secretária de Bengpalem? Contaram-me que existem muitas européias que trabalham lá.
Sei, algumas européias trabalham em Bangpalem e são um bando de bisbilhoteiras criadoras de casos e se acham muito insinuantes... Prefiro empregar alguém que não seja vulgar como a maioria daquelas moças, alguém que fará a datilografia dos diários com interesse e respeito.
Eu poderia estar fugindo de um caso. Talvez o senhor esteja fazendo uma imagem muito benevolente de minha pessoa.
Ele riu e passou a mão sobre os cabelos que brilhavam ao sol. Com suas calças brancas de linho grosso e sua camisa aberta no peito, parecia um homem de muito vigor, um tigre emboscado sob aquela pele dourada pelo sol.
Você não é do tipo de mulher que tem casos. Você quer casar, ter segurança e amar eternamente seu marido.
Você fala de maneira cínica. Como alguém que não acreditasse no amor.
Muito pelo contrário — empertigou-se ele em toda a sua altura. — Sei que o amor existe, mas sei também que, uma vez perdido, raramente o encontramos de novo. Agora, permita-me contar-lhe um pouco mais sobre o nosso modo de vida em Bayanura.
Temple ouvia, embora seus pensamentos estivessem voltados para o mistério que envolvia aquele homem. Um tipo forte, seguro, ainda que tivesse sido magoado — para surpresa dela — pela promessa ou pela perda de um amor.
Ela ouvia a voz profunda e acentuada de Ryk van Helden e, ao mesmo tempo, sentia que se formava dentro dela uma certeza inabalável de que não voltaria mais para Nick, de que não iria para Bangpalem. Agora tinha muita vontade de ir para Bayanura e trabalhar nos diários de Polyana van Helden — a noiva de um homem que devia ter sido muito parecido com aquele que estava com ela no navio.
— Há uma quadra de tênis nos jardins do palácio — estava dizendo Ryk, e então interrompeu-se quando repentinamente rompeu uma briga entre alguns asiáticos que jogavam cartas um pouco mais adiante do lugar onde estavam, no convés. Uma mulher deu um grito de horror, quando uma faca surgiu na mão de um dos homens. Com passos largos, Ryk atravessou o convés e Temple assistiu fascinada como ele pegou e segurou o homem que empunhava a faca, torcendo seu braço, até que este soltasse a arma. O asiático, gemendo, massageou o pulso dolorido ao ouvir a voz forte de Ryk, que, no dialeto daquelas pessoas, mandava que se acalmassem antes que o imediato do navio aparecesse.
Ryk van Helden voltou calmamente até o lugar em que Temple ficara, como se nada tivesse ocorrido. Uma mão suja marcara suas calças brancas, isto era tudo, e ele ajustava distraidamente a venda em seu lugar adequado.
Você me parece pálida. As emoções são facilmente provocadas nos trópicos, e elas têm que ser tratadas com rapidez.
E com crueldade, eu percebi. — Ela virou-se em direção ao mar. Estava inquieta, pois percebera que a atitude rápida e fria de Ryk assemelhava-se à de um tigre. — Você quase quebrou o pulso daquele pobre homem.
Para ele, é melhor o pulso torcido do que o pescoço. — Levantou os ombros largos em sinal de indiferença. — Você é recém-chegada às índias. Não se pode exigir que perceba que sempre existe uma ameaça muda no ar dos trópicos. Talvez ainda seja muito cedo para que tome consciência deste problema... Olhe para este mar! Parece de seda, ainda que sob as ondas existam as forças de uma tormenta que pode começar a qualquer momento e nos destruir. Se estas coisas amedrontam você, então é melhor voltar para a Inglaterra. Se você não tem dinheiro, pagarei sua passagem, fique tranqüila.
Não! — Esta negativa não foi por não querer aceitar dinheiro de um estranho, mas por que ele havia desafiado seu espírito de aventura. — Não! Gostaria muito de aceitar sua oferta de emprego. Estou acostumada a tratar com livros, e a história de Polyana me interessa.
Por quê? — Ele levantou uma das sobrancelhas. — Pelo fato de ela ter-se casado com um homem que não conhecia?
Penso que sim. — Temple observou o rasto cremoso deixado pelo navio, e as batidas de seu coração se aceleraram. Fizera sua escolha. No final da tarde deixaria o navio na companhia daquele homem que conhecera havia menos de um dia.
Não se preocupe. — Aquele tom irônico estava de volta na voz de Ryk van Helden. — Ao contrário de Laurens, eu preciso de uma secretária, mas não tenho nenhuma necessidade de uma esposa.
Temple fitou aquele rosto queimado pelo sol, com feições decididas, e esta visão, inconscientemente, a impediu de responder. Se não fosse isso teria dito que, depois de Nick Hallam, não tinha intenção de se apaixonar novamente... Acima de tudo por um homem que parecia ter conhecido alguém que não era capaz de esquecer. Não, aquela região distante de sua terra natal já lhe havia pregado uma cilada e ela não estava disposta a sofrer outra.
— Venha. — Os dedos magros e duros do holandês a seguraram pelo cotovelo. — Vamos almoçar. Certamente a refeição do navio não é tão boa quanto a que você vai comer em Bayanura, mas servirá para matar a fome.
Temple estava perplexa.
Aquela hora o mar parecia feito de ouro. A proa do pequeno barco elevava-se, enquanto os remos, num compasso, borrifavam água nos tripulantes da pequena embarcação.
Bayanura, ilha pagã de infinita beleza, cercada de arrecifes, onde peixes de todas as cores eram vistos em constante movimento. A constância do mar havia aberto fendas profundas naqueles rochedos e, conforme chegava mais perto daquele lugar encantador, Temple via com maior nitidez a praia de areias brancas e as inúmeras árvores, estranhas para ela, cujos galhos varriam o chão, como se a estivessem reverenciando.
Aglomerados na praia e nas árvores, inúmeros habitantes da ilha esperavam o governador para saudá-lo após sua longa ausência. Temple sentiu os olhares curiosos daquelas pessoas, quando Ryk segurou suas mãos para ajudá-la a sair do barco.
Suas mãos são ásperas e os dedos fortes, pensou Temple quando o homem apertou as suas para tranqüilizá-la, como para dizer que não se assustasse. Ryk logo em seguida voltou sua atenção para os auxiliares que o haviam substituído durante a viagem e para a mulher que se dirigiu a ele com graciosa reverência.
Ele apresentou Temple àquelas pessoas. A nonya que tinha vindo para ajudá-lo no trabalho que queria realizar sobre a história da ilha, do seu povo, a família da qual era descendente, baseado nos diários de Polyana van Helden.
— Ah! — Todos então olharam para ela em sinal de muito respeito e admiração. Uma senhorita que se dedicava a pesquisas, embora se parecesse mais com um rapazinho!
Ela sorriu e caminhou entre eles, acompanhada de Ryk. Uma procissão cerimoniosa que percorria a praia entre as árvores muito altas, carregadas de trepadeiras e flores vermelhas. As mulheres vestiam longos xales em volta de suas saias coloridas. Usavam também túnicas de seda brancas e muitos colares e pulseiras. Tinham-se vestido com o maior rigor para recepcionar Ryk, que para eles era a pessoa mais importante que conheciam, elevando-se além da figura do príncipe Chai.
Os últimos raios do sol deixaram a terra e a noite já havia estendido seu manto sobre a bela ilha quando eles chegaram à imponente entrada do palácio dos pavões. Temple e o jovem senhor foram escoltados pela multidão até o grande pátio, e então os habitantes da ilha foram se retirando aos poucos, deixando a garota temerosa ao perceber-se a sós com aquele homem que já estava acostumado a viver entre aquelas arcadas enormes e solenes, naquelas inúmeras dependências que deviam ser frias e solitárias.
Súbito, do interior daquele silêncio que os envolvia, ouviu-se um estalo e Temple tocou nervosa o braço de Ryk.
O que foi isso?
Um dos pavões. — A luz de sua lanterna fazia seu rosto parecer estranho; aquela venda triangular, àquela hora, deixava-a ainda mais amedrontada. — Bonitas aves — disse ela tentando disfarçar seu mal-estar —, mas deviam ter sido feitas apenas para serem admiradas, ao contrário dos rouxinóis.
No amplo salão de azulejos, foram saudados por um casal de criados vestidos de branco. Temple sentia-se agora como se tivesse penetrado num território de sonhos: o ar estava ligeiramente saturado de perfume de flores e de vários tipos de incenso. Notou em um canto, entre vasos repletos de flores exóticas, uma escultura que lhe pareceu ser a representação de uma deusa pagã. Os olhos daquela deusa de pedra eram de jade, e toda a figura possuía uma expressão contemplativa.
Kwan Yin, a deusa da bondade — disse-lhe o dono do palácio, tocando o ídolo com as mãos tensas. Temple sentiu que ele não devia ter ainda se acostumado à idéia de hospedar uma ocidental em sua casa tão exótica.
E muito grande — pensou ela em voz alta, olhando ao redor com timidez e fascinação, enquanto os empregados preparavam a mesa baixa e circular, situada numa reentrância de uma das paredes, que formava uma pequena alcova. Bacias de prata foram trazidas, assim Temple e seu anfitrião puderam lavar as mãos, que foram enxugadas pelos criados em toalhas ricamente bordadas. Temple encontrou o olho são de Ryk que a observava com a já costumeira expressão divertida e um tanto irônica.
— Por favor, sente-se à minha mesa, Temple — disse ele formal. — Tenho um cozinheiro excelente, e você achará a refeição muito saborosa.
Sentaram-se em cadeiras baixas. Na travessa principal estava uma galinha cozida com folhas de trevo, aromatizada com ervas nativas da ilha. Era recheada de castanhas e disposta em quatro partes, rodeadas de pequenas porções de arroz, simples ou condimentadas, decoradas com vegetais e molhos.
Mijnheer cortou a galinha macia, e Temple serviu-se de arroz.
Você costuma jantar sempre com tamanho requinte? — perguntou ela, segurando uma longa taça onde o criado depositara um vinho de tons dourados.
Para um agricultor que trabalha arduamente, é permitida uma indulgência uma vez ou outra. Mmm, está deliciosa a galinha!
Comia com apetite e encorajava Temple a fazer o mesmo. Ao terminarem a refeição, levou-a para uma pequena sala, onde se encontravam os escritos de Polyana van Helden.
— Ela iniciou os diários durante a viagem da Inglaterra para cá — disse ele destrancando uma velha caixa onde se encontravam os diários, todos eles encadernados de couro e com o brasão dos Van Helden estampados na capa.
Um cheiro de coisa antiga misturou-se à fumaça do cigarro de Ryk enquanto ele abria o primeiro volume, onde Polyana recordava suas apreensões e suas esperanças de moça durante longos dias de viagem no navio que desafiava as perigosas águas que, para sua grande aflição, estavam repletas de navios piratas prontos a atacar.
— Ele irá me amar algum dia? — Ryk leu com sua voz profunda e acentuada. — Como todas as pessoas, carrego em meu coração todo o amor que estou disposta a entregar. Recebi um retrato de Laurens — só de escrever seu nome, todo meu ser se agita —, mas não posso dizer, só pelo fato de olhar seu rosto moreno, seus cabelos e olhos claros, que é o homem por quem eu gostaria de me apaixonar para sempre. Seus olhos são como o mar, mas nem todos os mares são agradáveis nos trópicos; alguns são frios e tempestuosos. Cada vez que pego o retrato para observar o rosto de meu marido. — que palavra tão íntima para me referir a um homem que nunca vi! — fico um pouco deprimida pela sua expressão reservada e arrogante... Ele comprou uma noiva no mercado de casamentos, e só espero que não se arrependa da sua escolha quando finalmente nos encontrarmos. Carrego comigo a luva que ele me enviou para que eu usasse durante a cerimônia. É adornada com rubis e pérolas e nossas iniciais bordadas em prata...
Ryk fechou o diário e olhou profundamente nos olhos da garota que se encontrava envolvida com a narração.
— Você gosta de ouvir Polyana, não é? — Foi até um armário decorado com pinturas de árvores e animais e, de uma das gavetas, retirou uma pequena caixa.
Com o cigarro preso entre os dentes e soltando espirais de fumaça, abriu a caixa e tirou dela dois retratos pequenos: um com a moldura e o suporte de prata, o outro, de ouro e pérolas. Estendeu-os a Temple.
— O retrato de Laurens que Polyana carregava consigo na viagem, e o de Polyana, pintado quando já estava casada havia dois anos.
Temple segurou os retratos e examinou-os sob uma das lâmpadas. Sim, sua intuição foi confirmada. Laurens parecia-se muito com Ryk. Polyana parecia uma jovem mulher cheia de vida, com olhos azuis, cabelos castanhos e o sorriso de alguém que era muito amado.
Mal posso esperar para iniciar o trabalho. — Temple fitou Ryk e notou que ele desembrulhava algo envolto em seda. Ficou muda de espanto ao contemplar maravilhada a luva de veludo, enfeitada de pedras preciosas, que Laurens mandara para Polyana, e que ela usara para se casar com ele por procuração. O punho era incrustado de rubis e pérolas verdadeiras, que não tinham perdido muito do brilho através dos anos. O "L" e o "P" estavam bordados em prata, um ao lado do outro.
Posso... posso experimentá-la? — perguntou Temple quase em êxtase.Aquele único olho voltou-se para os seus bruscamente. — Existe uma crença de que, se uma moça solteira vestir a luva, permanecerá solteira para o resto da vida — preveniu-a.
Estou bem preparada, caso isso venha a acontecer comigo — disse Temple com mais frieza do que sentia. — O amor pode desiludir demais.
Não só o amor, minha cara. — Um sorriso tocou os lábios dele. — Ponha a luva sobre sua mão, é mais prudente. Ah, você tem a mão pequena! Sem dúvida, a mão de Polyana ficava perdida dentro dela.
É maravilhosa. — Temple passou delicadamente os dedos sobre as iniciais de prata. — Suponho que naquele tempo o fato de não casar devia ser terrível para as mulheres.
— Mas você não pensa o mesmo, não é?
Ela fitou-o e, com aquela preciosidade sobre sua mão, sentiu-se menos tensa, menos dominada pela forte personalidade daquele homem. A luz da sala suavizava os traços fortes que marcavam as feições dele. Sob a venda preta, saía a ponta de uma misteriosa cicatriz. Como e quando ele perdera aquele olho?
Aquele homem em Lumbaya magoou muito você?
Sim. Talvez eu tenha esperado muito dele. Porém, se ele não me amava realmente, não devia ter continuado a me escrever. Eu construí um lindo castelo para mim, mas só depois percebi que tinha usado apenas areia.
E sua família na Inglaterra? — Ryk encostou-se na mesa sobre a qual havia uma máquina de escrever portátil. — Não ficará preocupada, agora que você abandonou aquele homem e ainda permanece por aqui?
A garota não pôde conter o riso, divertida ao lembrar de sua vida na Inglaterra.
Sou outra Polyana. Morava com uma tia e algumas primas, que apenas me suportavam, pois eu fazia os serviços da casa. Nunca recebi da parte delas nenhum tipo de afeto, nenhuma compreensão.
Entendo — disse ele enquanto dava mais uma tragada em seu cigarro. — Ou você continuava a viver com essa família que não a amava, ou então se casava com o homem de Lumbaya. Mas, ao contrário de Polyana, você não teve sorte na escolha de seu noivo. Foi por causa de bebida, ou outra mulher tirou-lhe o lugar?
As duas coisas — disse ela, enquanto se dirigia à mesa para examinar a máquina de escrever. Era uma máquina bem nova, com uma pilha de papéis ao lado. — Ficarei trabalhando neste cômodo?
Sim. O sol ilumina esta sala durante toda a manhã e, da janela, é possível contemplar o pequeno jardim, onde você tomará seu breken. Há livros aqui — indicou-os com o cigarro — você terá que recorrer a eles. Nosso passado holandês foi esplêndido, talvez cruel, mas profundamente interessante.
Se bem me lembro, os holandeses e ingleses eram ferozes inimigos naquele tempo. — Temple fitou-o com ar de desafio, como se quisesse deixar claro que não era como aquelas graciosas e submissas mulheres da ilha, que faziam reverência a ele como se estivessem frente a um deus. Se para aquelas mulheres ele representava o inatingível tuanbesar, para ela, ele não passava de seu patrão a quem devia respeitar, mas só isso.
Ele fez uma reverência sarcástica, como se divertidamente admirasse a audácia da jovem inglesa.
Não me intrometerei em seu trabalho. Estou fora do kraton a maior parte do dia, pois sempre há muita coisa a ser supervisionada. Plantações de chá, tabaco, madeiras de lei. Sem mencionar as grandes extensões de arrozais e pomares. Estou sempre muito ocupado.
O príncipe Chai deve ser um homem muito rico — disse ela. — Ele nunca vem a Bayanura para visitar suas riquezas?
De vez em quando ele pilota seu próprio avião, e nos surpreende com sua visita. Você acharia interessante conhecê-lo?
Muito. Afinal de contas, ele é um príncipe oriental, e na biblioteca onde trabalhei pude ler muitas novelas românticas. — Sorriu e relembrou os momentos agradáveis que havia passado em Alford. — Não sou exatamente uma heroína típica dessas novelas, mas não posso me queixar do cenário onde viverei por alguns meses: é tudo muito exótico e romântico por aqui, também não pensa assim?
Nesta ilha você estará entre um povo que adora sonhar. — Inclinou-se sobre a mesa, pegou uma campainha de metal e a fez soar. — Vamos brindar a sua visita, ao trabalho que realizará aqui em Bayanura, e então eu a levarei para seu huisje.
Um de seus silenciosos empregados entrou e Ryk disse-lhe algo no suave e sibilante dialeto da ilha. Ranji retirou-se em seguida e, então, Temple olhou-o curiosa, querendo saber o que significava aquela palavra.
Uma casa pequena. — Foi até o armário envernizado e guardou a caixa onde ficavam os retratos e a luva. — E uma casa de chá que foi transformada num bangalô para hóspedes. Fica nos jardins do palácio. Estou certo que você ficará encantada com ele; terá também uma criada.
Uma casa de chá! — A imaginação de Temple acelerou-se, ante a idéia de viver numa casa que havia sido ponto de encontro dos moradores do palácio, onde se reuniam para o chá e para trocarem idéias. Deveria ser muito elegante e simpática, toda cercada de plantas tropicais.
Ranji trouxe uma bandeja contendo uma garrafa pequena e grossa e dois cálices. Depositou a bandeja na mesa, fez uma profunda reverência e saiu. Temple observou o reflexo da luz sobre a face de Ryk, enquanto este servia o licor.
— A sua felicidade na ilha — Ryk estendeu para ela um dos cálices e levantou o seu. — Que o palácio dos pavões possa lhe restituir algumas das ilusões perdidas!
Muito obrigada! — O licor era forte e possuía um gosto estranhamente bom. Inúmeras frutas nativas compunham aquele tom dourado do líquido que logo a deixou um pouco tonta.
Venha comigo. — Saíram da sala para o jardim, e ele pegou uma das tochas da parede e conduziu-a por um caminho feito de pedras, em uma densa vegetação, para a casa de chá.
Temple caminhava ao lado de Ryk como se estivesse sonhando. De repente, um cipó rasteiro apanhou-a pelas pernas, deixando-a quase morta de susto. Ajudando-a a se livrar das raízes, ele a tocou com a ponta dos dedos e ela, sem atinar, sob efeito do perfume das inúmeras flores que a rodeavam e do licor que acabara de beber, desejou abaixar-se também, e tocar o rosto forte de Ryk van Helden. Acariciar seus ombros largos, sua boca bem desenhada... Ao ouvir sua voz, voltou rapidamente à razão, afastando aqueles pensamentos...
— Este lugar se parece com uma pequena floresta, não é? Algo vivo que sabe que você é uma estranha. — Empurrou para o lado as trepadeiras que floresciam, e lá estava a casa, iluminada por lanternas ao longo de sua grande varanda.
Temple endireitou os ombros magros, e dirigiu-se a casa em que moraria enquanto trabalhasse para Ryk van Helden. Ouviu um tilintar suave ao aproximar-se dos degraus da varanda, e então pôde ver os sinos que brilhavam com a luz e balançavam com o vento, suspensos por correntes presas no beiral do teto do pagode.
Uma figura que não conhecia saiu suavemente da casa. Era uma garota vestida com calças e túnica chinesas, que, ao chegar na frente deles, saudou com um gesto muito característico dos orientais, primeiro o tuan, depois sua acompanhante.
Ryk falou com ela em holandês. A garota sorriu, balançou a cabeça e entrou de novo na casa.
— Mei é de Cingapura — explicou ele. — Fala holandês e possui até algumas noções de inglês, porém é muito tímida. Ela era ainda uma menina e já trabalhava, sem ter sequer um lugar para morar, quando a encontrei. Ela cozinha e costura, e servirá você silenciosamente e com muito prazer. Mei Flor, é como se fosse mesmo uma flor, você também não acha?
Temple respirou fundo aqueles aromas misturados.
— Há um perfume, que me parece mais forte — disse ela. — Vem daquele canto.
— É uma figueira-do-inferno. Os nativos acreditam que ela possua poderes mágicos. O povo daqui sabe fazer poções de amor com o pólen das flores dessa figueira.
Temple sorriu ironicamente, pensando na garota da ilha que havia colocado flores no cabelo para encantar Nick Hallam. — Não me preocupo com as peculiaridades da vegetação oriental. E com as pessoas daqui que tenho que tomar cuidado.
As pessoas, de um modo geral, nem sempre são fáceis de conhecer. — Ryk encostou-se contra o peitoril da varanda: uma figura alta sob a luz sombria das lanternas. — E, você sabe, esse conhecimento nunca se consegue sem conflitos.
Você acredita que terá atritos comigo? — Temple arrancou uma folha de uma árvore de cânfora, esmagando-a entre os dedos. O aroma forte da folha predominou por alguns instantes sobre os outros perfumes. Aquele cenário combinava com o dono daquele lugar, com sua presença forte, seu ar envolto em mistérios...
O choque de idéias e opiniões é inevitável — disse ele de maneira serena. — Você é mulher... eu sou homem.
Mas eu consegui enganá-lo durante algum tempo! — Começou a rir, mas logo em seguida interrompeu-se, ao ver que ele se voltava para ela, repentinamente, com um vislumbre de perversidade nos lábios.
O que você diria, se eu lhe confessasse agora que fui enganado por você apenas por um momento?
Ela suspendeu a respiração. — Você só foi descobrir que eu não era um rapaz quando me despiu para me colocar seu paletó de pijama?
— Percebi que você não era um rapaz quando a tomei nos braços, para levá-la à cabine. As aparências enganam apenas enquanto são aparências, não quando se toca nelas.
O rosto dela flamejou à meia-luz. — Você não tinha o direito de me despir!
— Claro! Devia tê-la deixado dormir toda molhada para apanhar uma febre, ou coisa pior. — Levantou-se. — Mas o que importa isso? Fique certa de que um homem de trinta e oito anos não se desespera com o simples fato de ver um corpo nu de mulher.
Temple viu desaparecer a figura atlética do homem, entre as árvores do jardim. Ficou por um momento na varanda apreciando a beleza do lugar... uma casa de chá num jardim tropical. Sons e perfumes misteriosos, cheios de sentimentos e de paixões veladas.
Ela acordou com o bater de asas de uma ave na veneziana de bambu. O sol brilhante entrava em seu quarto, lançando faixas selvagens de luz sobre os tapetes que cobriam o chão.
Empurrou o véu para o lado e observou melhor o quarto, pois na noite anterior se sentia muito cansada para poder examiná-lo com cuidado. Enquanto olhava fascinada ao seu redor, atrás do biombo que separava o quarto do resto da casa algo se moveu. E Mei entrou, carregando uma bandeja com um copo de suco de frutas. Vestia um cheongsan esta manhã, com a gola alta, detalhe que lhe emprestava uma dignidade contrastante com a figura desarrumada de Temple, naquela enorme cama.
Você dorme bom, mem? — Mei estendeu o copo com suco. — Eu cozinho ovos para mem comer na varanda.
Obrigada! — Temple achou o suco azedo e muito gelado, e tentava perceber sinais de afabilidade nos olhos de Mei Flor enquanto o tomava. A garota olhou também, e devido à expressão enigmática de seu olhar, Temple se perguntou se ela não estaria ressentida. Afinal, a casa era como se fosse sua própria casa, e agora ela teria uma patroa para servir e cuidar.
Toma banho, mem?
A sala de banho ficava nos fundos da casa de chá, não muito luxuosa com a grande banheira de madeira. Quando a água tépida foi jogada dos grandes jarros, Temple sentiu-se feliz em espalhar água para os lados e lavar-se delicadamente com o último de seus sabonetes de lanolina. Devia haver alguma loja na ilha onde se pudesse comprar sabonetes, pasta de dentes e alguns outros materiais indispensáveis a uma vida civilizada.
Saiu do banho refrescada e ansiosa por começar seu primeiro dia de trabalho na ilha. Com um confortável roupão, e deixando os cabelos secarem ao sol, ela olhava ao redor, apreciando a variedade incrível de plantas que cercavam a casa. Pássaros esvoaçavam entre elas, bicando as flores e os grandes cachos de jasmins.
Cigarras gritavam asperamente, escondidas entre o rico verde da vegetação. Um camaleão saltou sobre o pé de Temple, assustando-a. Notou quando Mei saiu na varanda, olhando com aquele ar de insolência, velada por uma polidez estudada.
Você quer makan agora? — perguntou.
Quando estiver vestida. — Temple apressou-se para dentro do quarto, sentindo as rápidas batidas do pulso. Não queria acreditar que Mei pudesse ter algum ressentimento em relação a ela, e, enquanto alisava o vestido azul sobre seu quadril esbelto, perguntava-se se a garota a tomava como uma possível rival.
Seu café da manhã, com pequenos ovos fritos, pães redondos e manteiga, foi servido numa mesa de junco sob os cachos de jasmins. Havia um bule de porcelana com o chá mais delicioso que Temple já experimentara, e Mei apontou em direção ao verde coração da ilha. — Do vale de chá do tuanka — balbuciou ela, com olhos discretos atrás dos cílios sedosos.
Temple serviu-se de uma segunda xícara da bebida dourada, e não tinha dúvidas quanto a quem Mei se referira. O senhor... o proprietário... Ryk van Helden.
Mei saiu silenciosamente, e ela terminou a refeição matinal, imersa em pensamentos. A luz do sol formava desenhos no chão ao passar por entre as folhas das árvores. Os sinos estavam silenciosos, e nada agitava o penetrante aroma dos jasmins. Esticou a mão para tocar um dos cachos e, enquanto fazia isso, uma coisa preta movimentou-se por entre as folhas brancas e pulou no seu braço, antes que ela pudesse fazer qualquer tentativa para impedir.
— Ugh! — ela rapidamente jogou ao chão aquele animal horrível. O bicho caiu, e, num instante, correu desajeitado para as plantas... uma aranha de patas curvas, coberta de pêlos negros.
Temple voltou-se para o gradil da varanda e desceu correndo os degraus. Atravessou o pátio, esfregando o braço, ainda sentindo o contato daquelas oito patas. Podia ser venenosa, mas ela a sacudiu rápido, não deu tempo de ser picada.
Apressou-se pela laan sombreada, que levava ao palácio. Tentou não acreditar que Mei tivesse posto a mesa ao lado dos jasmins, justamente por saber que a aranha ficava lá.
Temple não era nervosa. Era um tipo ingênuo, porém o incidente abalou-a. Por todo o caminho até o palácio sentiu coisas rastejando em seu vestido e ficou aliviada quando entrou na sala limpa e bem mobiliada onde ia trabalhar.
Sentou-se à mesa para recuperar o fôlego e viu que o primeiro diário de Polyana já estava sobre ela. Pegou o diário e abriu-o ao acaso. Um sorriso tocou seus lábios quando leu o que Polyana escrevera sobre o café da manhã de uma segunda-feira, muito tempo atrás:
"Hoje meu querido Laurens me disse uma coisa que jamais esquecerei. O paraíso, disse ele, é possuir uma esposa sorridente".
Temple ficou absorvida no diário. Não era de se espantar que Ryk van Helden desejasse que as revelações de seus ancestrais fossem publicadas em livros. As passagens domésticas eram fervorosas e humanas. E, em outras páginas, uma descrição minuciosa mostrava os incidentes passados pelos colonizadores holandeses no lugar.
Polyana sabia fazer bom uso de sua pena, e as pessoas sobre quem escrevera e descrevera tomaram lugar em sua imaginação. Especialmente Laurens, que combinava a perspicácia insensível dos negociantes das índias com um coração romântico, bem escondido do resto do mundo até que Polyana o descobriu. Mas não de pronto! Ela escrevera que, ao encontrar o marido pela primeira vez, esperava que a beijasse. Mas, em vez disso, ele a recebeu com uma reverência polida e frívola.
"Seja bem-vinda. Mevrow", disse ele como se fosse para uma hóspede. "Espero que as índias agradem você e que ache minha casa confortável".
"Aqui estou eu, nas índias", escrevia Polyana, "longe da Holanda, da Inglaterra, onde vivi desde criança. Eu era a noiva, a esposa tão frágil, ao lado de Laurens, mais alto do que qualquer outro homem que eu já tenha visto, com olhos que mudam do azul quase negro, para o cinzento luminoso. Laurens, meu marido, que comanda o povo da grande ilha e uma frota de navios mercantes, e que se casou", assim pensava eu em minha ingenuidade infantil, "para ter uma governanta para sua casa imensa no alto do vale onde se planta chá..."
"Fui educada de maneira diferente", continuava Polyana. "Esta educação severa me ajudou a reprimir minhas lágrimas até o dia em que compreendi que havia encontrado um homem capaz de se apaixonar por mim, e fazer-me feliz".
Temple puxou a máquina de escrever para a frente e colocou um carbono entre duas folhas de papel. Acertou-as na máquina e começou a datilografar a história de Polyana van Helden... Cada pedra preciosa sobre a luva era um incidente, um fato ocorrido, uma dor e freqüentemente um beijo...
Nunca uma manhã passou tão rápida e tão agradável. Temple encostou-se na cadeira, esticou os braços e, então, levantou-se para almoçar no jardim.
Ranji colocara a refeição numa mesinha embaixo de uma árvore florida, para Temple sentar ao lado do tanque cheio de lírios-d'água. Ela descascou uma manga, gelada e suculenta. Depois comeu peixe assado e batatas-doces, seguidas por um pedaço de pudim com calda.
Temple retomou seu trabalho. 0 palácio estava calmo, e não se ouvia nenhum barulho a não ser o da máquina de escrever. Era hora da sesta, quando o calor fazia com que as pessoas ficassem inertes demais para o trabalho. Elas deitavam-se numa rede ou embaixo de uma árvore e dormiam até sentir que o ar já refrescara.
Ela também sentia calor. A sala, há pouco tão fresca, estava cheia de ar quente e abafado. Os dedos começaram a colar nas teclas da máquina, e o vestido a grudar no corpo; resolveu levantar e dar um passeio para melhorar a disposição.
Colocou uma pequena escultura sobre o capítulo que havia datilografado, bebeu uma limonada e saiu para o pátio do palácio. Tinha altas colunas pintadas e arcos que se sucediam uns aos outros, decorados, com motivos gregos... silenciosamente antigos.
Examinou diversos cômodos, todos limpos como a sala onde trabalhava, mas bastante impessoais. Subiu uma escada dupla de largos degraus que dava num imenso terraço em forma de ferradura. Estava andando distraída quando, do vão de uma porta, algo vermelho-dourado saltou das sombras e atacou seus pés.
— Oh! — Olhou para baixo e viu que o agressor era um filhote de tigre, animalzinho brincalhão que ronronava de maneira espalhafatosa.
— Que graça! — Temple adorava animais e abaixou-se impulsivamente para acariciá-lo. O animalzinho forçou a cabeça redonda contra sua mão e, brincando, mordeu seus dedos. Devia ser um animal de estimação, pois usava uma coleira enfeitada com pequenas pedras. — Então, quem é você? — Temple afagou a barriga do animalzinho que rolou no chão com as patas para cima, agitado com o prazer, um instinto peculiar dos animais, que nunca erram sobre as pessoas.
Perto dali ficava a porta de madeira entalhada de uma das dependências do andar superior. Olhou para a porta sentindo o silêncio em volta, quebrado pelo ronronar do bichinho. Quase sem se dar conta, tocou a maçaneta, que se abriu suavemente. O pequeno animal pulou para dentro do aposento e, num instante, arremessou-se sobre a cama.
— Nossa! — Ela correu para tirá-lo da cama, antes que ele rasgasse a linda colcha de seda. Ele rosnou, imitando os parentes selvagens, quando Temple tomou-o nos braços, sem poder deixar de admirar a beleza daquele quarto.
Havia um tapete de pele em cima do assoalho de madeira encerada. Cortinas de seda dourada estendiam-se até o chão, e uma imensa pena de pavão estava magnificamente presa numa das paredes. A mobília era delicadamente entalhada, e as mesinhas tinham tampo de vidro com vasos de flores sobre eles.
Sobre a penteadeira havia caixas de toalete filigranadas e lâmpadas cobertas por delicados lenços de seda. Os pentes e as escovas, com as costas esmaltadas de preto, estavam sobre toalhinhas de renda... não eram objetos de um homem, mas de uma mulher... uma mulher cuja beleza combinaria com seu quarto de dormir.
De repente, teve a impressão de sentir uma ameaça pairando na penumbra daquele aposento. O animalzinho pulou de seus braços correndo para fora daquele lugar suntuoso, como se tivesse também percebido algo estranho no ar. Temple não o seguiu. Sentia-se presa de uma terrível vontade de explorar o quarto, como se cada objeto ali existente a chamasse.
Assustou-se com seus próprios olhos indagadores no espelho da penteadeira; sentiu-se como se estivesse sendo observada, jovem e ingênua, com um corpo gracioso e um coração batendo muito depressa, enquanto abria uma caixinha de prata colocada a sua frente. Na caixinha estava guardado um único brinco de jade todo trabalhado e, quando o segurava junto à orelha para colocá-lo, pôde ver através do espelho uma figura alta surgindo atrás dela.
Virou com um imenso sentimento de culpa, deixando o brinco cair. Ryk van Helden abaixou-se para pegá-lo. Recolocou-o na caixinha de prata sem dizer uma palavra. Sua expressão dura e fria falou por ele: tinha uma curva perigosa no canto da boca.
Eu... desculpe! — disse nervosa. — A porta não estava trancada, você sabe...
Não há desculpas para uma coisa dessas! — Sua voz, seu corpo todo estava carregado de uma cólera fria e cortante. — Aquela sala é seu território, srta. Lane. Eu a contratei para trabalhar lá, não para passear pelos meus aposentos particulares quando estou ausente do kraton. Foi isso que ficou fazendo o dia todo? Intrometendo-se em coisas que não são da sua conta?
Ela enrubesceu e odiou aquele homem. Odiou tudo naquele momento humilhante... sua arrogância, o sarcasmo brutal!
— Se a dona deste quarto fugiu de você, não consigo culpá-la! — disse Temple.
Seguiu-se um silêncio pesado e ela sentiu as batidas amedrontadas de seu coração enquanto uma palidez de raiva se espalhava pela pele bronzeada do governador da ilha. Suas mãos se fecharam; seu corpo cheio de força parecia tenso de desejo de cometer uma violência.
— Este quarto nunca pertenceu a ninguém e nunca pertencerá — disse ele asperamente. — Aquele brinco que você encontrou foi tudo o que guardei e que pertencia à mulher com quem ia me casar. Seu nome era Marta e o avião em que vinha de Leyden bateu nas montanhas de Sumatra, três anos atrás. Eu estava em Sumatra, onde íamos nos casar. Subi com a equipe de salvamento, mas não havia ninguém para ser salvo. Somente pelo brinco, somente pelos cabelos louros pude identificá-la. Eu mandara os brincos de presente... nem mesmo a morte foi capaz de tirar o brilho de seus cabelos.
Olhou pensativo para o quarto em que colocara os objetos que mais representavam seu amor pela moça com quem ia casar.
Temple afastou-se e encostou na penteadeira, sentindo como se a vida fugisse de seu próprio corpo. Uma brisa suave balançou as belas cortinas... em algum dos pátios, um pavão gritou.
E... eu não tinha idéia — disse ela. — Pensei...
Pensou o óbvio, e por que não? — disse agressivo. — Agricultores e negociantes de madeira têm mulheres da vida para aliviar a solidão, como seu namorado em Lumbaya.
Não, por favor! — Lágrimas surgiram nos olhos dela.
Provoque-me, e terá o troco! — Uma expressão de cansaço tomou conta do rosto dele, aprofundando as linhas, em contraste com os cabelos despenteados e vibrantes. — Sabia que qualquer pessoa poderia entrar neste aposento e acho que foi isso que me irritou, quando surpreendi você aqui. — Seus lábios se retorceram cinicamente. — Não pretendi fazer deste quarto um santuário. E o que você deve estar imaginando agora, não é?
É um quarto muito bonito. — Temple compreendeu a dor daquele homem.
Conheci Marta quando era um garoto de dezesseis anos e ela uma menininha de oito, com longas tranças. Seus pais eram vizinhos de meus avós em Leyden, onde vivíamos num velho castelo. Marta adorava brincar em casa, de princesa prisioneira, sabe? — Sorriu brevemente e, por um momento passageiro, Temple percebeu ternura naquele homem que mais parecia um tigre.
Ele suspirou asperamente e olhou para Temple. — Venha! Vou lhe mostrar o resto do palácio! Gostaria de ir ao telhado? De lá se vê o vulcão, a cidadezinha e o vale de chá. Venha!
Temple ficou extasiada ao contemplar o panorama. Assustou-se com as mãos enormes que a seguraram pela cintura enquanto estavam perto da borda do terraço.
Não sabia que a ilha era tão grande! — A voz de Temple saiu um pouco rouca. Ela estava muito atenta ao homem a seu lado.
Vamos esperar e assistir ao pôr-do-sol, — Ele levantou o filhote de tigre, acomodando-o nos ombros como uma estola ver-melho-dourada de olhos verdes cintilantes e parecendo agradecido. — Um presente do príncipe Chai — disse Ryk. — Dei-lhe o nome de Palhação, pois ele adora ficar fazendo gracinhas e brincar com as pessoas.
Temple sorriu achando o nome um tanto rude, enquanto o animalzinho se aninhava no pescoço do dono. Parecia lógico que Ryk possuísse um filhote de tigre como animal de estimação. Havia um perfeito entrosamento entre eles.
O vulcão nunca entra em erupção? — perguntou.
De vez em quando ele troveja. Os nativos dizem que quando os deuses estão irritados com alguém da ilha fazem o vulcão tremer em sinal de advertência.
Espero que, enquanto eu esteja aqui, os habitantes da ilha não irritem os deuses... — Sorriu, porém seus olhos estavam pensativos observando demoradamente as nuvens que rodeavam o pico do vulcão. O sol parecia, agora, um grande topázio. O oeste estava inflamado, tingido por um violeta profundo. Ouviu, distante, o grito de um pavão. Respirou profundamente o ar puro.
— Já vi muitos crepúsculos, mas aqui eles têm uma beleza especial. — A voz de Ryk tinha um tom profundo e nostálgico, e Temple adivinhou para onde iam seus pensamentos. — Venha! — Desceram para a sala, onde ele inspecionou o dia de trabalho dela, enquanto Ranji trazia algumas bebidas.
— Você é uma datilografa excelente. — Ryk acendera um cigarro e a fumaça, com o cheiro delicioso de cravo, flutuou sobre ela.
Você achou o trabalho interessante? — perguntou Ryk.
Você deve ter pensado que achei o trabalho cansativo e, por isso... — as mãos de Temple apertaram-se no longo copo — mas senti calor, minhas mãos transpiravam nas teclas da máquina...
Esqueça isso.
Obrigada. — Ela voltou a olhar para o jardim mais uma vez, mas não conseguiria esquecer tão cedo aquele encontro no quarto belíssimo que fora reservado para sua noiva. Ela lembraria de cada detalhe... as cores frias douradas, o brinco de jade, a colcha de seda chinesa...
Quando Ryk estava sozinho no palácio, com certeza entrava naquele quarto, com o coração cheio de tristeza e de sonhos desfeitos, que o faziam descartar todos os outros sonhos.
Ele não pediu que ela ficasse para o jantar. Bayu, um de seus criados, acompanhou-a até a casa de chá.
Temple, com o correr dos dias, foi aos poucos se adaptando ao trabalho, à história belíssima de Polyana van Helden, e a sua nova vida nos trópicos.
Os dias começavam sempre com o sol dourado elevando-se do vale de chá e, depois do café da manhã na varanda, a alguma distância dos jasmins, Temple ia para o palácio. Ryk parecia começar a trabalhar ao romper da alvorada e Ranji lhe contou que o tuan ia nadar logo que acordava.
Temple pensou em Mei, seus cabelos escuros molhados todas as manhãs quando servia o café, um rubor na pele, um ar de segredo nos olhos... Temple nadava muito bem, e podia aproveitar a oportunidade para exercitar-se. Mas tinha mudado de atitude com Ryk, estava mais impessoal e não queria voltar atrás. Queria manter sua posição de datilografa sem mudar as relações estritamente profissionais.
Foi numa tarde de sexta-feira que Temple ouviu um aeroplano circundando a ilha. Tinha terminado sua tarefa e estava no terraço, quando o aeroplano começou a sobrevoar a cidadezinha, onde uma pista era mantida limpa para o príncipe e para o "doutor voador" da ilha.
Temple esfregou os olhos com a mão e olhou o avião desaparecer atrás das palmeiras e do bambuzal oscilante; o ruído do aeroplano parou e Temple sentiu uma curiosidade atroz. Ryk dissera que o dr. Kinraid vinha para a ilha uma vez por semana e ela estava prestes a conhecê-lo.
Qual seria a reação dele ao encontrar uma inglesa na ilha holandesa?
Um pouco mais tarde, Temple foi embora sem esperar que Ryk aparecesse para o aperitivo costumeiro e para as poucas palavras habituais sobre o progresso do manuscrito. Deixou o serviço pronto para que ele examinasse e foi para a praia, levando o sarongue de banho e a toalha que trouxera de manhã para o palácio.
Queria nadar sozinha no frescor da tarde, sem importunar Ryk com sua presença. Era difícil ficar solitária durante o dia. Quando acabava o serviço, sentia-se como uma máquina desligada ao terminar o expediente.
Encontrou a praia, de um branco deslumbrante que continuava até se perder de vista. Os barcos dos pescadores estavam ancorados no outro lado da ilha, onde havia menos pedras, que deixavam esta parte da praia isolada e exatamente ao gosto de Temple, que queria estar só. Despiu-se em uma das pequenas cavernas que existiam por ali e vestiu o sarongue As palmeiras sussurravam e a brisa batia fria em seu corpo, enquanto corria para as ondas. Elas envolveram-se em suas pernas, levantando-a e carregando-a para o fundo, aos poucos.
Seus pensamentos voltaram-se para Nick, e ela se perguntou qual seria a reação dele quando percebesse que ela tinha ido embora. Estaria sentindo sua falta e querendo saber onde estava? Ou já a teria esquecido nos braços de outra mulher?
As ondas pareciam querer brincar e passavam sob ela, o que ajudou a reprimir a dor repentina que assaltara seu peito. Essa dor devia significar que ela ainda amava Nick ou que se apegara ao sonho que vivera cinco anos? Um sonho desfeito doía muito... mesmo um homem forte e áspero como Ryk van Helden não era invulnerável quando se tratava de sonhos.
Seus pensamentos seguiam esse curso quando um grito abafado escapou-lhe. O sarongue tinha saído de seu corpo, indo se perder na água deixando-a nua. Começou a nadar rapidamente em direção à praia. Ainda bem que estava sozinha e podia dar uma corrida entre as palmeiras até a caverna onde deixara a roupa.
Estava para se levantar, quando alguém apareceu entre as palmeiras. Uma pessoa vestida de branco, foi só o que conseguiu perceber num primeiro instante.
Dizer que estava desconcertada não seria suficiente. Mesmo pela luz das estrelas, pôde reconhecer a altura e os ombros largos de seu patrão. O fim do seu cigarro brilhou e então escureceu como se fosse seu olho perspicaz, reconhecendo-a... ou pelo menos percebendo que havia alguma coisa viva dentro da água.
— Mei, é você? — Ele começou a caminhar em direção à beira do mar e Temple manteve-se abaixada na água, mordendo os lábios com embaraço e com um sentimento muito próximo ao ódio. Mei estava no pensamento dele, evidentemente. Mei, a pequena garota dourada.
— Mei? — disse ele novamente.
— Sou eu! — respondeu Temple. Srta. Lane! — Um tom de alívio transpareceu em sua voz.
— Por favor, não quero atrapalhar sua saída da água.
Receio que esteja atrapalhando. — Ela não podia de maneira alguma sair da água com Ryk van Helden olhando.
Sério, senhorita, por que estou atrapalhando?
Por estar aí. Por favor, você se importaria de ir embora?
Sim, me importo. — Os grãos de areia foram esmagados ruidosamente sob seus passos e as ondas espumaram sobre as sandálias e nos botões de sua calça comprida. — Venha, eu ajudo você a sair daí...
Não! Fique onde está! — Ela nadou para trás. — Eu, eu perdi meu sarongue. E não posso sair da água com você aí.
Mas... — ele estava rindo — como pode se sentir embaraçada comigo? Lembra-se do navio?
Sim, eu me lembro! — Temple tinha quase certeza de que o odiava. Ele era tão sarcástico e fazia questão de impor suas vontades, não respeitando ninguém. — Por favor, vá embora e pare de me atormentar.
Ah, é isso que estou fazendo? — Ainda estava rindo, enquanto virava de costas e tirava a camisa. — Saia e vista isto — ordenou ele.
Ela hesitou e então, apressadamente, obedeceu àquela figura alta e branca sob a luz das estrelas. Agarrou a camisa aquecida pelo corpo dele e a fez deslizar pela cabeça. Ela envolveu-a até as coxas e, enquanto se apressava em abotoá-la, seu rosto queimava.
Vo... você me faz sentir uma imbecil — murmurou ela.
Já se vestiu?
Sim. — Os punhos ficavam dependurados de suas mãos e seu corpo esbelto estava todo oculto, menos as pernas magras.
Ryk voltou-se para olhá-la, a fumaça do cigarro saindo de seus lábios.
— Se algum dia você precisar de outro emprego, deve tentar um de modelo para lançamento de moda "rapaz" — caçoou ele. — Existe algo de estranho — seria um feitiço? — numa garota vestida com uma camisa de homem.
Temple afastou-se dele instintivamente. As estrelas deixavam reflexos na água do mar e na branca areia da praia. Ryk encostou-se em uma palmeira. Alguma coisa caiu entre eles fazendo barulho, e ela disse com um calafrio que a noite estava ficando fria e que achava melhor vestir-se.
Ela fugiu dele, sabia disso. Na obscuridade da caverna, ouviu o barulho do mar e visualizou-o por entre as palmeiras, enquanto se enxugava e vestia suas roupas. Pegou a camisa dele que tinha um aroma de tabaco, e perguntou-se por que não podiam se tornar amigos. Ele se divertira às suas custas, mas viera para ajudá-la.
Pressionou a camisa dele entre as mãos, porém o pano não amassou. Era fino, bastante sedoso... como a pele da garota de olhos secretos e oblíquos.
Temple juntou-se a ele novamente e devolveu-lhe a camisa. Ele vestiu-a, deixando-a desabotoada na altura da garganta.
— Pensei que você tivesse voltado para a casa de chá. Mas vejo que preferiu tomar um banho de mar nua.
Ela se sentia um pouco mais composta agora, e pôde até sorrir ao se lembrar do pânico, quando o viu aparecer entre as árvores.
Eu estava de sarongue, mas ele sumiu dentro da água. Tomarei mais cuidado para que nada tão desagradável e constrangedor aconteça comigo novamente.
Desagradável e constrangedor? — Ele estalou os dedos. — É uma coisa tão chocante para uma inglesa perder seu traje de banho?
Você pode achar uma grande piada — disse ela asperamente. — Mas tenho certeza que é uma situação que uma garota da ilha, como Mei, não gostaria de enfrentar — a menos que desejasse isso.
— E o que você diria se eu lhe dissesse que estava muito sedutora na água? — disse ele lentamente. — As estrelas brilham entre as palmeiras, o mar sussurra, e nós estamos completamente sozinhos: duas pessoas que amaram e perderam seus amores.
Seria um consolo vazio, mesmo se eu acreditasse por um minuto que você esteja falando sério.
O que a faz ter tanta certeza de que não estou falando sério?
Eu sou uma datilografa eficiente, uma parte do equipamento do escritório. Você não sonharia em abraçar um arquivo do gabinete.
Ele riu e, enquanto Temple ouvia sua gargalhada divertida, chutou um pedregulho. O barulho das ondas e a espuma branca que deixavam sobre as rochas tornaram seu riso zombeteiro e cruel, mas real para Temple.
Ouvi um avião chegar — disse ela. — Era o dr. Kinraid?
Sim, era o "doutor voador" — ainda aquela nota zombeteira enroscada em suas palavras. — Você precisa conhecê-lo, srta. Lane. Ele janta comigo esta noite e você pode juntar-se a nós.
Eu tenho que vestir algo um pouco mais formal.
Como quiser — ele disse isso como se o dr. Kinraid fosse realmente se preocupar com sua roupa. Sem falar, seguiram através das árvores para a casa de chá. As venezianas de bambu fino das janelas eram como biombos de sombra, e a figura magra de Mei podia ser vista movendo-se lá dentro, na cadeira de balanço. Ryk parou ao lado de Temple diante do pequeno portão do recinto.
Enquanto ele abria o portão, seu olhar observava a sombra que se movimentava levemente para trás e para frente, para trás e para frente, com a graça esbelta de um louva-a-deus.
Você fez amizade com Mei? — perguntou ele.
Ela é calada e eficiente — replicou Temple, e a brisa da noite, tocando os jasmins, a fez lembrar que não podia confiar inteiramente naquela garota.
Você fala com uma certa reserva. — Seu olhar caiu sobre Temple. — Ela faz você lembrar daquela outra moça, aquela de Lumbaya?
Suponho que sim.
Para você, essas moças são todas iguais? — Ele empurrou o portão e Temple entrou. As árvores de cravo sussurravam e suas flores espalhavam no ar um cheiro almiscarado que grudava na garganta. Temple olhou para Ryk, para quem a face florida de Mei não tinha segredos... escuros segredos que podiam atrair um homem para o caminho estreito daquela negra floresta. Nick. O nome dele subiu como um soluço em sua garganta e ela disse secamente:
Não espere por mim. Encontro você no palácio.
Você não vai ficar com medo de ir sozinha?
Não. Estou me acostumando a andar só à noite. — Ela sorriu, com uma torção nos lábios. Aprendera a ficar sozinha, mas não apenas para caminhar até o palácio. — Mei me contou sobre o fantasma — completou, forçando uma risada. — A yogini, a princesa que costuma escapar do palácio para encontrar seu bem-amado, sob as árvores de cravo da casa de chá.
Mas as inglesas não têm medo de fantasmas, só de embaraços menores — olhou-a enigmático. — Verei você no palácio?
Sim. Eu não mudei de idéia quanto a querer conhecer o "doutor que voa".
Você não acha romântico um médico que voa de ilha em ilha para cuidar de doentes?
Muito romântico — concordou ela, com uma inclinação do queixo. — O dr. Kinraid é jovem?
Tem mais ou menos a minha idade. — Alguma coisa não inteiramente cômica puxou os lábios de Ryk. — Porém você o achará muito mais novo, uns dez anos mais novo que eu. Talvez por ser americano. Talvez por outras razões... — Uma reverência fria de cortesia, e então Ryk foi embora entre as árvores e suas sombras.
Mei a olhou com seus olhos inescrutáveis, prestando atenção nos seus cabelos emaranhados pelo mar e nas pregas de sua camisa de algodão e da calça xadrez.
O tuanka convidou você jantar sozinha com ele? — perguntou a criada com a voz tão inexpressiva quanto seus olhos.
Lógico que não. — Temple perguntou-se friamente por que se preocupava em se explicar para a garota. — O dr. Kinraid chegou para o fim de semana e Mijnheer van Helden deseja que eu o conheça.
Os cílios escuros e sedosos de Mei desceram sobre seus olhos. — A nonya deseja que eu ajude vestir?
— Não, eu me arranjo. — Temple sentiu aquele olhar dissimulado enquanto se virava e passava através do chik para o corredor que levava ao seu quarto. Entrou, acendeu a lâmpada e, à medida que desembaraçava os cabelos, sentia o cheiro do mar e do vento da praia escura. Virou-se para o guarda-roupa e abriu-o. Depois de um momento de indecisão tirou um caftan branco bordado que havia comprado para agradar Nick e que ainda não tinha vestido. Era de xantungue e sem mangas, e o bordado era admirável.
Sim, ela o usaria aquela noite. Quando alisava o tecido, percebeu que o anel de pedras vermelhas não estava mais em sua mão. Ela o usava dia e noite é só o tirara uma vez, a bordo do navio, quando se disfarçou de rapaz. O anel de sua mãe, que certamente estava usando quando cobriu a máquina de escrever depois de terminar o trabalho! Ela lembrava de ter batido o anel num dos lados da máquina e de endireitá-lo com um sorriso carinhoso. Não estava alarmada pelo valor, mas porque ele significava muito para ela...
Devia tê-lo perdido na praia. Na caverna, ou na água. No dia seguinte iria até lá procurá-lo. No momento, tinha que se vestir para o jantar no palácio.
Ela parecia flexível e muito menina no seu caftan branco. Os cabelo pretos, com a franja no centro de sua testa, pareciam uma touca medieval e seu pescoço jovem levantava-se esguio do decote em "V" do vestido.
Mei não estava na cadeira de balanço quando Temple saiu da casa de chá; mas, quando chegou ao portão e olhou para trás, viu a figura calma e silenciosa no fim da varanda. Os sinos de vento tilintaram e embora Temple soubesse que era a brisa que tocava seus braços, parecia a ela que eram dedos frios.
Entrou no palácio por uma arcada e atravessou o bonito saguão de azulejos para abrir a porta de madeira grossa da sala, de onde vinha o som de vozes masculinas. Um dos homens ria... e não era Ryk.
Temple parou no vão da porta sem ser percebida, e ficou olhando para Ryk e seu convidado. Os dois vestiam paletó branco e calça de tecido grosso, escura. Ambos estavam muito bem, com um bronzeado que parecia mais surpreendente, em contraste com o paletó branco. Robustos, hábeis, e um tanto quanto já partes integrantes da ilha, como o sol, o vento, o oceano e as montanhas vulcânicas.
De súbito, Ryk percebeu-a e ela ficou tensa, enquanto seu olho cinzento penetrante examinava-a da cabeça aos pés. O dr. Kinraid seguiu o olhar dele e estudou a garota magra emoldurada pela porta de madeira, que era decorada com madrepérola. Ele sorriu, seus olhos azuis marcados por linhas de bom humor e tolerância.
— Esta é Temple Lane — disse Ryk. — A jovem desamparada que encontrei no navio. Temple, apresento-lhe Alan Kinraid.
O médico estendeu a mão morena, de dedos finos, e Temple apertou-a.
Estou muito contente por conhecê-lo, dr. Kinraid. Já ouvi falar muito de médicos que viajam de avião de uma ilha para outra e o trabalho maravilhoso que fazem, mas é a primeira vez que sou apresentada a um deles.
Esta é a primeira vez que conheço uma garota desamparada que ao mesmo tempo é uma jovem muito encantadora. — Seus olhos azuis pararam nos cabelos pretos com franjas, e Temple estava ciente de que Ryk assistia ao encontro com aquele costumeiro ar de sarcasmo no olhar.
Vocês querem beber alguma coisa, antes do jantar? — perguntou ele.
Um pouco de xerez, por favor — disse ela.
Você está se envolvendo com Polyana e suas aventuras? — perguntou Alan. — Ryk me deixou ler um ou dois dos diários e certamente eles são merecedores de publicação.
Estou gostando imensamente do serviço. Polyana é tão vivaz, e traz à vida todas as pessoas que conheceu e amou — Temple sorriu timidamente. — As mulheres vão adorar o livro quando for publicado. Acho até que deveria ser lançado em série.
Ryk, esta é a jovem desamparada mais eficiente que já vi. — Alan lançou-lhe um olhar que tinha um pouco de curiosidade. — Espero que você a aprecie e que não a sobrecarregue de trabalho.
Estou ciente, Alan, de que os plantadores holandeses possuíam escravos no passado — disse Ryk secamente —, porém a srta. Lane é inglesa e nunca se submeteria a ser escravizada.
Eu espero — disse ela — que os dias em que os homens esperavam que as mulheres fizessem reverências ao comando deles estejam muito longe.
Você agora está nas índias — disse ele lentamente —, onde as mulheres ainda são muito fascinantes, porque não esqueceram que, sem a palmeira macho, não existem os cocos, e não há flores de figueira-do-inferno sem o pólen.
Você gosta que as mulheres sejam dependentes dos homens?
Os homens e as mulheres dependem uns dos outros.
Mas você prefere uma mulher que apenas alcance os ombros do homem, do que aquela que fica junto à cabeça dele?
Ryk vive há muito tempo no Oriente, para apreciar as mudanças que estão tomando lugar na Europa e na América — Alan deu um sorriso um tanto retorcido. — Talvez eu mesmo esteja aqui porque as mulheres do meu país, nestes tempos, dependem muito mais do intelecto do que do instinto. Elas dirigem suas próprias emoções, sem deixar que suas emoções as dirijam.
Uma mulher devia ser como um bambu: flexível, graciosa e forte, mesmo parecendo frágil. — Ryk fez uma reverência zombeteira para Temple. — Assim dizem os habitantes da ilha, e estou bastante inclinado a concordar com o ponto de vista deles.
Você precisa visitar meu hospital na cidadezinha — disse Alan a Temple. — Ele é feito de bambu e é muito pequeno também. Mas temos muito orgulho dele... Sabe, Ryk, que, se você não tivesse contratado Temple para sua secretária, eu pediria a ela que trabalhasse comigo?
— A srta. Lane estará livre para trabalhar onde quiser quando o serviço dos diários estiver completo. — Havia um leve toque de arrogância na voz dele, acentuado pelo som do gongo no saguão.
— Vamos — disse Ryk —, nosso jantar está servido.
Alan ofereceu o braço a Temple. Quando atravessaram o saguão, passaram pela estátua de bronze de Kwan Yin.
— A deusa — disse Alan — que deixou o paraíso esperando, enquanto confortava uma criança que chorava.
E que — sorriu Temple — é a definição da verdadeira mulher.
Mas não foi, na realidade — murmurou ele. — Deixou o paraíso esperando muito tempo.
O cômodo em que eles jantaram era decorado com muitos ornamentos. As cadeiras eram envernizadas de preto e dourado e as grandes cortinas que cobriam as janelas, bordadas com pavões e lótus. A mesa redonda estava iluminada por velas em candelabros de bronze e, no centro, um vaso de prata cheio de flores completava a decoração do ambiente com muito bom gosto.
Que flores estranhas e bonitas! — Temple tocou o interior de uma das flores, atraída pela cor misteriosa que se vislumbrava entre as pétalas.
Estas são flores que ocultam sua real beleza, como certas mulheres. — Alan olhava para Temple enquanto falava, mas ela pousou seus olhos na travessa com sopa de tartaruga. Era fácil para um homem ser galanteador quando estava apenas de passagem, e Temple não confiava mais em galãnteios desde que Nick a magoara tanto.
Esta sopa está deliciosa! — disse.
Se você estiver aqui quando os moradores da ilha fizerem sua Festa da Lua, então verá os homens trazendo as tartarugas para a festa. — A luz das velas iludia e fez Ryk parecer suave. — Eles as amarram, ainda na água, e montam nelas como um vaqueiro.
O vinho era velho e de cor suave. Com ele foram servidas lagostas assadas e arroz cozido em cilindros de bambu. Quando o bambu era descascado, o arroz emergia decididamente saboroso.
Ranji, solene em seu traje de cerimônia, com capuz de veludo preto, preparava uma sobremesa que Temple nunca havia experimentado. Ela assistia com olhos fascinados, inconsciente de que os dois homens a observavam. Alan inclinou-se para a frente.
— Você é uma criança — riu alto. Ryk parecia sarcástico à luz das velas enquanto girava a haste do cálice entre os dedos.
— Veja, nonya. — Ranji lançou seu sorriso dourado para Temple no instante seguinte, chamas azuis iluminaram a mesa. Jogou o conhaque sobre a fruta e o creme e, com mão ágil, serviu a sobremesa, enquanto ainda estava em chamas.
— Isto me parece uma festa de Natal! — Temple percebeu o olhar de Ryk e então, confusa, abaixou os olhos para o prato. Sentiu a rápida pulsação da garganta dele e percebeu que deveria estar imaginando que ela estava fazendo o papel de uma menininha sem muita experiência. De uma certa maneira, Ryk tinha razão de pensar assim. Nick Hallam não ensinara nada a Temple, a não ser a grande desilusão de ter amado um homem sem muito caráter.
Voltaram para a sala e tomaram café. O filhote de tigre estava deitado confortavelmente numa das almofadas indianas e seu ronronar acompanhava o barulho compassado e suave dos grilos. Ao longe, ouvia-se o tocar suave de uma flauta de bambu.
O que você fará com este sujeito quando ele ficar grande o suficiente para mostrar os dentes? — Alan indicou o animal, que levantou a cabeça preguiçosamente e piscou os olhos verdes para ele.
Espero que continue manso. — Ryk estava acendendo um cigarro, e o acender e apagar da chama do isqueiro brincaram nos contornos fortes de seu rosto.
Alan pediu uma tragada. Tinha parado de fumar havia pouco.
— Você pode amansar um tigre? — disse lentamente, e Temple, de sua poltrona acolchoada, ficou observando os olhos azuis do médico, que estavam fixos no holandês, como se ele também percebesse que dentro daquele corpo forte existia um tigre oculto.
Ryk esticou-se na grande poltrona e, enquanto esticava suas pernas, o animalzinho mudou sua posição e deitou-se nos joelhos dele.
Sou amigo dos animais, portanto devo ter uma chance nos instintos selvagens deles. Até mesmo as pessoas — a fumaça velava o rosto dourado pelo sol — precisamos saber como tratar, mas nunca devemos esquecer que é impossível enxergar o que se passa atrás de um sorriso e que os dentes mais bonitos também sabem morder.
E assim a vida? — riu Alan. — Gosto de sentir um pouco de incerteza quanto às pessoas. É preferível do que saber exatamente como elas vão reagir em cada ocasião. A vida é um jogo, não uma peça de teatro, com diálogos estabelecidos e emoções determinadas.
Então você não acredita no destino? — Ryk voltou-se subitamente para Alan. — Você vive e trabalha no Oriente e ainda continua a pensar e a sentir como um americano, um homem com olhos mais para o futuro do que para o passado?
Ninguém pode viver no passado, Ryk. — Alan mudou de posição em sua poltrona e uma leve expressão carrancuda substituiu seu sorriso. — O passado nos fornece trabalhos de arte e implanta determinadas predileções em nosso sangue mas ninguém caminha para trás, ou acorda ontem em vez de amanhã. Amanhã é nossa expectativa, Ryk; ontem foi freqüentemente um desgosto, e proteger os desgostos faz com que nos tornemos cada vez mais sós.
A solidão torna-se amada, o isolamento um pecado querido — Ryk bateu as cinzas do cigarro. — Vocês, americanos agitados, nunca conseguirão apreciar a solidão.
Se você quer dizer que eu não conseguiria viver num velho palácio, cheio de ecos, então você está terrivelmente certo. — O sorriso de Alan voltara, enquanto olhava para Temple. — 0 que você acha do museu de Ryk? — perguntou ele.
Sou recém-chegada à ilha, portanto tudo tem significado para mim, além de uma certa beleza. — Estava consciente de que se referia também a Ryk, naquela grande poltrona holandesa, ao filhote de tigre que se espreguiçava naquele momento e à grande mariposa que zumbia no globo da lâmpada.
Estou aqui há uma semana, porém ainda não vi, nem por um instante, os pavões — disse ela. — Eu os ouvi no pátio e ontem encontrei uma pena com reflexos dourados. Onde eles costumam ficar?
Quando estão namorando, eles se escondem — disse Ryk. — Eu sei onde eles se ocultam e você deve me lembrar de lhe mostrar a dança de namoro deles. Nunca o macho fica tão orgulhoso e elegante do que quando se empertiga para maravilhar a pavoa que escolheu.
Foi indelicadeza da natureza, fazer a pavoa tão simples em comparação ao seu senhor e dono. — Alan encostou-se indolentemente em sua poltrona acolchoada, e Temple sentiu o olhar dele sobre ela. Um leve sorriso tocou seus lábios. Ela crescera entre duas primas vistosas e sustentara poucas ilusões a respeito de seus próprios encantos. Talvez por isso tivesse se apegado tanto a Nick, naquela época.
— Algumas vezes acho que as fêmeas simples são mais sedutoras que aquelas que brilham muito. — Alan falou pensativamente e seu olhar cobriu a pele pálida do pescoço e dos braços de Temple, descendo sobre seu corpo magro, sob o caftan de seda bordado. Ela ficou tensa ao sentir o rumo dos pensamentos dele. Ryk a trouxera para Bayanura... o que ele pensava dela como uma mulher?
Levantou-se.
— Já vou. Senão, amanhã chegarei tarde para trabalhar.
Alan riu enquanto se mexia em sua poltrona.
— Assim falam as eternas secretárias inglesas, com as pontas dos dedos eficientes e fiéis às suas tradições. Eu levarei você para casa, Temple!
Ela hesitou e, pensando nos ruídos que a tinham seguido até o palácio, preferiu aceitar o convite.
Alan percebeu sua hesitação e isso pareceu magoá-lo. Ryk tirou Palhação dos joelhos e levantou-se. O olhar que lançou sobre os braços e pescoço nus de Temple era frio como o mar.
Você trouxe agasalho? — perguntou. — O ar da noite é sempre mais frio, a temperatura costuma cair.
Eu... — Ela mordeu os lábios. — Como o tempo estava agradável, só trouxe uma écharpe de seda.
Você não pensou que pudesse esfriar mais tarde! Mulheres... — ele olhou para Alan e encolheu os ombros largos. — Espere um instante, srta. Lane.
Ryk saiu da sala a passos largos, deixando Temple olhando para onde ele tinha ido, de uma maneira levemente surpresa.
Estranho, esse Ryk — disse Alan. — Ainda muito controlado à maneira holandesa, apesar de seus anos nas índias. Está gostando de trabalhar para ele?
Estou gostando do meu trabalho. — Não havia respondido exatamente à pergunta, e sentiu uma vez mais o movimento brusco e mordaz dos olhos de Alan. — Mijnheer está fora do palácio a maior parte do dia e eu fico mais ou menos por minha própria conta.
Mais ou menos — disse Alan lentamente — Ryk é uma pessoa difícil de se conhecer, mas é por causa de alguns dos sofrimentos que enfrentou durante a vida. Ele era apenas um bebê aqui quando os japoneses invadiram a ilha, durante a rebelião que se seguiu à guerra. — Alan segurou um dragão de jade e uma repentina melancolia desceu em seu rosto. — A mãe de Ryk morreu nessa época. A velha casa holandesa, perto das plantações de chá em que eles moravam, foi queimada. Mevrow van Helden ficou presa no andar de cima. Ryk, um simples garoto, tentou tirá-la de lá e ficou muito queimado. Quando o levaram para Leyden, um cirurgião plástico operou-o, mas não conseguiu salvar o olho esquerdo...
O coração de Temple contraiu-se. Três vezes a terra dos tigres tirou aqueles a quem amava, e ele ainda vivia aqui, fascinado pelo lugar que lhe tinha proporcionado tantas desgraças.
— Você está se perguntando como ele consegue viver aqui? — perguntou Alan.
Ela assentiu.
Há um ditado nesta parte do mundo, Temple, que diz que, se você monta no tigre, não consegue mais desmontar. Amar uma pessoa, ou um lugar, é montar um tigre.
Isto soa tão selvagem, colocado desta maneira! — Seus olhos castanhos fixaram-se grandes e angustiados no rosto de Alan, e desta vez ele deu um passo em sua direção. Estavam bastante próximos, quando Ryk voltou para a sala. Algo brilhava no braço dele e Temple afastou-se apressadamente, como se estivesse receosa de que Ryk pudesse pensar que eles estavam íntimos demais...
Isto a salvará de pegar um resfriado, srta. Lane. — Ryk jogou a peça deslumbrante sobre os ombros dela, um xale de seda italiano, da cor das tulipas vermelhas. Ele passou a mão pelas franjas do xale e encarou Temple, como se estivesse curioso, como se o fato de ter visto um homem e uma mulher quase num abraço tivesse despertado algo dentro de seu coração.
Você parece a amante favorita de um sultão sob esta seda vermelha — Alan sorriu.
A seda acariciava seus braços nus, e um perfume desprendia-se dela, evasivo, levemente almiscarado.
Obrigada, trarei de volta para você amanhã.
Fique com ele — falou Ryk com uma indiferença negligente. — O príncipe Chai esteve aqui com uma garota, há não muito tempo, e ela esqueceu isso. Tenho certeza de que ela possui vários xales de seda, e não se preocupará.
Temple mordeu os lábios, envergonhada por pensar que o xale era de uma das suas amantes. Parecia mesmo ter pertencido a uma favorita de seu príncipe do Oriente. Conseguia visualizar uma linda oriental languidamente envolta naquele lindo xale.
— Boa noite! — ela dirigiu a Ryk o olhar mais frio que foi capaz e imaginou-o como um garotinho muito bonito, com seu par de olhos cinza, e ao mesmo tempo nas coisas que o tinham tornado tão inflexível. Ajustou o xale, fazendo com que a seda vermelha resplandecesse mais contra a cor pálida do seu pescoço. — Gostaria de ver os pavões, quando você tiver tempo para me mostrar.
Ele fez uma reverência, frio e reservado, e ficou no pátio, enquanto ela e Alan caminhavam em direção ao laan. O médico carregava uma tocha, e a sensação de Temple era de que eles haviam recuado séculos. A mão dele que estava livre segurava o cotovelo dela, sob as franjas do xale. O lugar estava quase totalmente em silêncio, a não ser pelo coro distante dos grilos nas plantações de arroz.
Ele é um homem solitário — disse Alan. — A pessoa mais solitária que já vi. Ele amou uma garota, você sabia?
Sim, sabia.
Ele não consegue esquecer o desastre em que ela morreu. Sente-se culpado pela morte de Marta, mas ainda cavalga o tigre e não pode desmontá-lo, pois isto significaria arrancá-la de sua vida.
É! — a voz dela era como um sussurro no escuro, que a tocha quebrava com pedaços de luz misteriosa. Vaga-lumes brilhavam brevemente entre as árvores.
Você é uma dessas pessoas que sentem as dores dos outros, não, Temple? — Alan parou de caminhar, uma figura alta no escuro. Uma nuvem pálida de flores-da-lua cobria o atalho. "Flores-da-lua... trazem de volta um amor infiel." Temple parou e seus olhos iluminados pela tocha encontraram os de Alan.
Sim, eu sou uma tola sensível. — disse ela. — Um homem em Lumbaya conseguiu me ferir profundamente; assim, eu lamento pelos outros que foram feridos também.
Só lamenta? — Alan virou-se para ela. — Ryk van Helden é um homem muito interessante, é um tuan besar com muito poder para impressionar uma mulher. Você pode se magoar novamente. Tome cuidado...
Não diga isso! — Temple afastou-se rapidamente e bateu as costas contra uma árvore. Alan tirou vantagem disso muito depressa, e, antes que ela pudesse evitar, ele beijou a franja dos cabelos, logo acima de seus olhos.
Não tenha medo — murmurou — Não sou do tipo que gosta de magoar as pessoas.
Que isso nunca volte a acontecer! — Ela tentou afastar-se, mas ele forçou-a gentilmente a permanecer onde estava.
Aquele rapaz de Lumbaya magoou muito você, Temple? Ou simplesmente a desiludiu?
Ela suspirou e relaxou contra a árvore, pois ficar sozinha com o médico realmente não a alarmava. Ela gostara dele. Gostara dos seus olhos azuis excêntricos, e do modo como conseguiam conversar sem tensões. O vento da noite sussurrava nas árvores e, enquanto as folhas movimentavam-se e faziam barulho, ela via através delas as estrelas vislumbrantes.
Cada estrela é um espírito ou uma alma brilhando — disse Alan seguindo seu olhar. — Tudo no Oriente está imbuído de simbolismo e aqui nos sentimos mais perto dos valores fundamentais que regem a vida humana. Aqui temos mais intimidade com a natureza, apesar de ela sempre nos proporcionar surpresas desagradáveis, como uma tempestade repentina, um animal feroz que pode atacar sem que se espere... Aqui, a vida é muito dramática e intensa.
E disto você sentiria falta, na América — sorriu ela.
Eu me sentiria sufocado.
E sua família?
Minha mãe acredita que cada um deve viver a sua vida, graças a Deus. Minhas irmãs são casadas e me fizeram ser tio diversas vezes.
Você não pretende casar? — perguntou, e não lhe ocorreu que podia parecer uma insinuação...
Aí está algo que considero básico — disse ele —, algo que muitos de nós acham que fica perto da necessidade. Mas achar o parceiro certo não é tão fácil. Você chacoalha a macieira quando é jovem, e devora os frutos que caem por terra. Mas, quando fica mais velho, começa a perceber que todas as maçãs que estão presas nos galhos são as mais doces.
Os olhos dele fixaram Temple, que se agarrou ao tronco da árvore envolta no xale vermelho e com o olhar pensativo.
Existe mel em você, Temple Lane. Mas também um quê de gata arisca.
Acho que avançaria em alguém, se tentasse tirar a segurança que encontrei estando sem amor — replicou ela.
— Minha querida menina! — riu ele. — Você realmente pensa no que diz? A vida sem amor é muito solitária! Você viu Ryk, que provavelmente nunca se casará, mas que viverá seu sonho até o fim amargo.
Temple teve um calafrio e pensou em Ryk vagando pelos cômodos vazios e enormes do palácio, relembrando-se de quando ele e Marta conversavam em Leyden, os planos que faziam, a felicidade de que tinham tanta certeza. Ele entraria no quarto azul e dourado e cada rangido de uma cadeira, cada movimento de uma cortina seria para ele a presença de um fantasma.
— Estou com frio — disse Temple. — Vamos embora?
Logo chegaram à casa de chá. O pequeno bangalô estava entre sombras, e seu telhado de curvas dava-lhe um ar encantador. — Um lugar romântico para se viver — observou Alan. — Você não está sozinha aqui, não é?
Não, não estou só. Tenho uma criada chamada Mei.
Mei Flor? — Uma estranha nota insinuou-se na voz do médico? — Você gosta dela? Quero dizer, você acha fácil conviver com ela?
Ela é agradável, mas não é fácil conversar com ela — admitiu Temple.
Sim, ela é agradável... como jasmins dóceis. — Alan estudou a casa de chá com sua varanda sombreada. — Logo que Ryk a trouxe para a ilha — ele tem verdadeira paixão em colecionar desamparados e perdidos, hem? — pensei que ela gostaria de ajudar no hospital. Sugeri isto a ela, porém respondeu-me que não gostaria de ficar entre pessoas doentes. Concordo que existam certas pessoas que não apreciam trabalhar em hospitais. Mas Mei disse isso de uma forma que não gostei muito. Logicamente, na frente de Ryk, ela é a essência da gratidão.
Ela mantém a casa de chá impecável — disse Temple —, e as coisas que achei perturbadoras podem ser pura imaginação de minha parte.
Que coisas? — perguntou Alan.
Ah, coisas que não preocupariam um homem! Um ninho de aranha nos jasmins, que ela não mencionou, e a sensação de que me espreitou esta noite até o palácio. Acho que, em sua cabeça, eu sou uma espécie de... rival.
Você acha que ela tem ciúme? — Alan olhou Temple fixamente, com uma ruga de preocupação na testa clara. — Se quiser, posso pedir a Ryk que lhe forneça outra criada.
Não, por favor! — Temple tocou o braço dele. — Mei tem um pouco de ressentimento quanto a mim, agora; mas logo perceberá que eu não significo nada para o sr. van Helden.
Senhor? — Alan imitou-a calmamente. — Você acha difícil chamá-lo pelo nome?
— Impossível.
Você acharia igualmente impossível chamar-me de Alan?
Pensarei nisso. — Ela afastou-se dele e subiu os degraus da varanda.
Venha ao hospital amanhã, conhecer alguns de meus pacientes! — cochichou ele. — Lontah, a esposa do chefe da cidadezinha, está esperando seu primeiro filho e gostaria de uma visita sua. Há também Tofan, um garoto que operei recentemente. Você irá nos visitar, Temple?
Com muito prazer. — Temple abriu a porta de entrada da casa de chá. — Irei à tarde. Tenho um serviço que quero acabar pela manhã.
Ryk teve sorte em encontrar você. Disse-me que estava fugindo de uma situação infeliz e que encontrou você a bordo do Egret. Estou feliz. Agora, quando eu vier a Bayanura, tenho algo mais para olhar.
Alan...
Eu gosto do jeito de você dizer meu nome.
Vocês, americanos, são incorrigíveis.
Vocês, inglesas, são tão frias! — Ele fez uma reverência e seus dentes apareceram num sorriso. — Vejo você amanhã. Talvez a leve para passear na minha máquina voadora. As ilhas do mar de Java tomam formas estranhas vistas de cima. Você viria ou ficaria nervosa demais?
Só se a sua máquina tiver controles automáticos.
Vocês, inglesas, são tão... provocantes?
Boa noite, dr. Kinraid — disse ela firmemente.
Boa noite, Temple Lane.
Ela entrou na casa de chá e ficou ao lado da porta de entrada, ouvindo os passos de Alan até que sumissem no campo. Ele era uma pessoa muito atraente, pensou, enquanto deixava o xale vermelho escorregar lentamente de seus ombros.
O bangalô do hospital ficava situado no kampong onde as pessoas da vila tinham suas casas, feitas de bambu e palmeiras, com telhados de sapê amarelo-queimado.
Circundando o hospital, havia uma varanda sustentada por postes de madeira, onde os diversos pacientes do dr. Kinraid ficavam em poltronas acolchoadas. Eles olhavam com curiosidade para Temple, enquanto ela subia os degraus, sorrindo. Um menininho numa das poltronas deu um grito, quando a cabeça de um tigre de brinquedo soltou-se do corpo e caiu no chão. Com raiva, atirou o resto do brinquedo, que foi cair aos pés de Temple. Ela abaixou-se e pegou-o, levando-o para a criança. Lágrimas de raiva e frustração escorriam em sua face, como pérolas de vidro. Ele fixou Temple com olhos castanhos úmidos.
— Você é Tofan? — Ela sorriu para ele e pegou a cabeça do tigre. — Ele precisa de um curativo para sua pobre cabeça. — Ela tocou gentilmente o curativo da cabeça do menino — um chumaço de algodão de lã tampava a orelha direita dele — e indicou que ela ataria a cabeça de seu brinquedo. Apontou para a porta do hospital.
— Tigre precisa obat.
— Obat — repetiu o menino. "Medicina". Subitamente, como um raio de sol, um sorriso tomou conta de sua face. — Tofan nakalt — gargalhou ele.
— Sim, Tofan desobediente. — Ela sorriu e apertou levemente a maçã do rosto do menino. — Eu levarei o harimau itu para ver o doutor.
Tofan piscou com seus longos cílios, deu uma risadinha e, num acesso de timidez, escondeu o rosto no travesseiro. Temple sorriu, enquanto entrava na sala simples do hospital de bambu; um cômodo branco, muito limpo, mobiliado com camas cobertas de tecido grosso, pequenos baús e ventiladores de teto. Alguns pacientes estavam adormecidos na cama, e Temple caminhou em silêncio para a porta giratória no fim da sala.
Chegou a um corredor que cheirava a éter e sabonete carbólico. Havia uma porta na qual estava escrito "TEATRO" e outra ostentando a palavra "DISPENSÁRIO".
Bateu na porta do dispensário.
— Silakan masuk! — respondeu uma voz.
Temple abriu a porta e uma figura magra, com paletó branco, virou-se por trás de uma mesa em que estavam diversas garrafas, uma balança pequena e um bico de Bunsen. Nas paredes com prateleiras, havia mais garrafas, todas elas com rótulos.
O rapaz sorriu e fez uma reverência. Apresentou-se como Khun Lan, enfermeiro e distribuidor de medicamentos no hospital. Falava inglês quase perfeitamente e informou que o doutor tinha ido ver o chefe da aldeia, mas que voltaria logo.
A nangsau gostaria de tomar um pouco de chá?
Gostaria muito! — sorriu ela. — Mas antes você poderia me arrumar um curativo para que eu conserte o tigre de Tofan?
Talvez eu possa consertá-lo. — Khun Lan pegou o brinquedo e examinou-o. Então, com mãos morenas e ágeis, deu uma pancadinha na cabeça para encaixá-la no corpo listrado, lançando em seguida um sorriso brilhante para Temple, enquanto terminava a operação, colocando uma faixa de gaze no pescoço do animalzinho.
Tofan está convalescendo e está se tornando muito inquieto — disse ele. — O doutor operou-o por causa de um problema no osso temporal, e nós estamos fortemente inclinados a estragá-lo demais com mimos. Agora seu brinquedo está parecendo que foi operado também.
Obrigado, Khun Lan, você fez um bom serviço.
Vai tomar o chá na varanda?
Por favor. — Temple olhou ao redor do dispensário, que estava tão limpo e ordenado como o jovem siamês que trabalhava entre as pílulas, pós e remédios. — Você é da Tailândia, não é, Khun Lan?
Tenho esta honra. — Ele fez uma reverência mais uma vez.
— Fui informado de que está trabalhando no diário de tuan van Helden.
Sim. Existem mais ou menos duas dúzias deles e estou datilografando para Mijnheer van Helden. Eles foram compilados por uma ancestral dele, Polyana, que viveu aqui há muitos anos.
Quando as índias eram o pote de ouro dos holandeses.
Bem, suponho que você não possa dizer dessa maneira. — Ela encontrou os. olhos pretos de Khun Lan e detectou neles uma centelha de animosidade. Não tinha acontecido isto até que Ryk foi introduzido na conversa! — Foi uma época muito interessante, Khan Lan, e devo admitir que estou gostando muito de trabalhar nos diários.
Viver aqui nas índias deve ser uma grande mudança para você, não é, nona Lane?
Sem dúvida é muito excitante. — Ser tratada como nona era muito simpático; uma palavra muito mais encantadora do que senhorita. — Lamentarei muito o dia em que tiver que deixar este lugar, quando terminar meu serviço. O cenário é tão exótico e eu adoro o cheiro dos vales de chá quando o orvalho da noite começa a cair. O cheiro vem direto através das janelas da casa de chá.
Ah, sim, a casa de chá. — Os olhos de Khun Lan ficaram subitamente velados. — E agora devo arrumar o bule de chá. Levarei para a varanda com uns bolinhos de arroz.
Obrigada!
Khun Lan sorriu e fez uma mesura para que ela saísse do dispensário. Enquanto caminhava para a varanda do hospital, ela refletia sobre a mudança nas maneiras de Khun Lan quando mencionara a casa de chá. O que havia com o lugar que o fizera fechar as pálpebras oblíquas de modo tão misterioso?
Tofan perdeu sua timidez quando viu o curativo no seu tigre. Riu e segurou o brinquedo acima da cabeça, para que os outros que estavam na varanda vissem e admirassem seu brinquedo restaurado.
O tigre está mesmo muito engraçado — completou Temple, sentando-se aos pés de Tofan, na poltrona comprida. Neste momento, Alan Kinraid veio subindo os degraus da varanda, bronzeado e muito elegante no seu avental branco.
Olá! — Ele caminhava pela varanda com um sorriso satisfeito, e Temple estava ciente dos olhos pretos sobre eles, enquanto o médico pegava a mão dela e dava um aperto de boas-vindas. — Desculpe não estar aqui para mostrar o hospital, mas tive que conversar um pouco com o chefe da vila. A esposa dele tem quase quarenta anos, sabe, e este vai ser o primeiro filho deles. Ela está bastante calma, mas ele está tão aflito que dá a impressão que é ele quem vai dar à luz.
Prova de que a ama. — Temple sorriu e pensou no quanto eram azuis os olhos do médico.
O garoto mostrou seu tigre inválido para Alan.
Trocaram algumas palavras no dialeto local e Alan sorriu para Temple. — Ele diz que você é bonita — disse satiricamente.
— Bem, esta é a coisa mais bela que um rapazinho já disse para mim. Tofan, você vai ser um grande galanteador quando crescer!
Ele assentiu, concordando, e então colocou a mão na sua orelha com curativo e deu uma esfregada nela.
— Ele sente muita coceira na orelha — disse Alan para Temple, que olhou consternada. — Mas logo poderei mandar este jovem para sua família. Ah! Aí vem Khun Lan com nosso chá. Você já conheceu meu braço direito, Temple?
Ela sorriu e assentiu, enquanto Khun Lan transportava o carrinho de chá para a varanda. Além da bebida, havia bolinhos de arroz, e logo Temple tinha sido apresentada para a maioria dos pacientes. Eles obviamente pensavam no mundo do seu médico; e, em meio desta festa de chá, Temple pensava em Ryk van Helden. O sol estava se transformando de um disco dourado para uma bola de fogo, e Ryk devia estar voltando para o palácio para tomar seu aperitivo sozinho.
"A solidão torna-se amada; o isolamento, um pecado querido", ele afirmara isto na noite passada, e era como se tivesse crescido invulnerável, não precisando nem do entusiasmo, nem do amor que existia no coração dos habitantes da ilha. Permanecia à parte da vida daquelas pessoas. Era respeitado como o tuan besar. mas não era admirado, e não se fazia amar pelas pessoas, como Alan.
Ela acenou em despedida aos pacientes de Alan, e ele subiu com ela o caminho íngreme que levava à casa de chá. O sol estava desaparecendo no rápido crepúsculo tropical e, enquanto atravessavam a margem do vale, ficaram olhando a cidadezinha embaixo, onde as fogueiras para fazer comida começaram a brilhar entre as sombras.
Temos que fazer nosso passeio sobre as ilhas antes do filho de Lontah nascer. — Alan acendeu um cigarro. — Os moradores da ilha são pessoas muito boas, não são? Acreditam que a felicidade vem de dentro deles e que somente os insensatos tentam buscá-la em outro lugar.
Eles têm a capacidade de amar e de dar, e não têm inveja de seus vizinhos — disse Temple calmamente. — Qualquer pessoa, acredito, gostaria de viver aqui em Bayanura.
Tem toda razão — disse Alan. — O importante é que se viva cada dia como ele vem. Saboreie como se estivesse sugando uma vagem de lótus, assim nenhuma gota de sua felicidade será perdida. Você ficou feliz em conhecer meus pacientes?
Sim, especialmente Tofan. Receio ter uma fraqueza por meninos impertinentes.
É bom ser chamada de bonita — caçoou Alan.
Ela riu e jogou a cabeça para trás, respirando o perfume do vale de chá. A brisa balançava as folhas longas das palmeiras e das figueiras-de-bengala, fazendo com que elas se movimentassem em todas as direções, como se estivessem cumprimentando as pessoas que passavam. A ilha parecia um ser vivo, cheio de graça e delicadeza, sempre acompanhada, porém, de atitudes imprevisíveis e muitas vezes nefastas.
O que diria minha tia se me visse agora? E Dora e Cherye, minhas duas primas? Para elas eu não passava de uma empregadinha.
Cinderela? — murmurou ele.
Cujo príncipe não era tão encantador quanto elas imaginavam.
Esqueça-o — advertiu Alan. — Se ele amasse você, estaria com ele agora. O que há de fundamental na mulher que existe dentro de você, Temple, ainda não foi despertado. Você está esperando por isso?
Ofegante! — zombou ela. — Ouça! Que barulho estranho é esse?Era um lamento que vinha do vale, como algo que prediz a morte de alguém.
É para mim. — Alan jogou o cigarro no chão e pisou-o. — Um membro da família do chefe da vila está soprando uma corneta para que eu saiba que precisam de mim. Ou Lontah está para dar à luz ou seu marido está tendo outro ataque nervoso pela espera do filho.
Boa sorte, Alan.
Sim, vamos esperar que seja o bebê. Você estará bem, sozinha?
Lógico.
Você é muito inocente. — Ele tocou o ombro dela e deslizou a mão morna pelo braço dela. — Inocência alarma um homem, desarma-o e logo depois o fascina.
E então voltamos para o mesmo quadrado — disse ela alegremente. — Primeiro alarmado. Depois, durante pouquíssimo tempo, fascinado. E então, em seguida, o homem tenta atacar a pobre inocente, não é assim?
No momento — a corneta emitia outro lamento —, não tenho tempo para tentar atacar você, Temple. Tomaria um banho de mar amanhã? Estarei livre para encontrar você na praia, pois temo que Lontah vai ter este bebê mais tarde.
O pobre marido morrerá de tão nervoso.
Humm. — Alan colocou a mão dela entre as suas, e pareceu desfrutar por um momento a enganosa fragilidade da mão de uma mulher. — As mulheres me assombram. Elas têm tanta calma diante de grandes decisões! Mas, deixe um rato mostrar os bigodes... sobem numa cadeira gritando como se o teto estivesse vindo abaixo.
E esta dualidade não agrada ao ego masculino?
Mulheres! — Ele levou a mão dela até seus lábios e beijou-a levemente. — Encontro você na praia amanhã de manhã, certo?
Certo.
Sem estar ofegante? -— Os dedos dele estavam sobre o pulso dela. — Espero que esteja completamente serena.
Já lhe disse, doutor, que sou uma moça protegida com armaduras.
Não as use amanhã. Um desses sarongues é mais conveniente para um banho de mar.
Acho que um maio será mais seguro — replicou Temple, sentindo-se corar enquanto pensava na noite anterior, quando perdera seu sarongue na água e Ryk van Valden viera e testemunhara seu apuro.
Tome cuidado, Temple! — falou Alan, rindo. — A garota que foge sempre desperta o caçador que existe em todos os homens.
Aquele pobre homem da vila perderá o juízo em alguns minutos. — Ela tirou a mão dentre as dele. — Boa noite, Alan.
Ele acenou e desceu a colina saltando e com um sorriso. Temple virou-se, e continuou caminhando para a casa de chá.
O crepúsculo tropical descia lentamente como um manto preto, e Temple estava envolta pelas sombras. Seus nervos ficaram atentos para os assobios e os movimentos misteriosos que vinham dos arvoredos e das moitas. O cair da noite estava repleto do zunir das cigarras, que cantariam até que caíssem em súbito silêncio.
Ela desejou ter sua lanterna de mão com ela... e então, ouviu um movimento entre as árvores. Olhou ao redor rapidamente, e as árvores tomaram formas misteriosas em volta dela. Podia ser sua imaginação lhe pregando peças, mas por que sentia tanto frio e estava com tanta certeza de que havia alguém por perto que não tinha a menor simpatia por ela?
— Quem está aí? — gritou assustada.
Tudo em silêncio, exceto as cigarras. Silêncio que era mais furtivo do que o ruído de passos que ela ouvira. Silêncio que respirava.
Começou a correr, tropeçando nas árvores que agarravam em seu corpo, esbarrando nos ramos de folhas e nos cipós que se enrolavam em armadilhas. Repentinamente, algo agarrou-se em seu tornozelo e ela caiu antes que pudesse evitar.
Viu estrelas... literalmente, viu estrelas enquanto sua cabeça batia no tronco de uma árvore. Ouviu um grito e percebeu que fora ela mesma que gritara. Depois, tudo foi escurecendo...
Alguma coisa ardeu em suas narinas e ela ofegou enquanto o amoníaco a trazia de volta. Encontrava-se estirada sobre um sofá. Piscou, e esse simples movimento foi o suficiente para que sua cabeça doesse.
Ai, minha cabeça.
Você levou um grande tombo. — Um braço forte deslizou sob seus ombros, forçando-a a sentar-se e a beber algo que lhe queimou a garganta. Seus olhos estavam se desanuviando e a face do homem entrou em foco. Uma cabeleira amarelo-queimada, uma venda preta triangular sobre um olho, um queixo duro com uma covinha. — Ah, você?
Não fui eu quem bateu em sua cabeça, deixando-a inconsciente — ele parecia sarcástico enquanto examinava o ferimento acima de sua testa. — Isto precisa de uma lavagem. Deite-se nas almofadas enquanto apanho permanganato com água para limpar este machucado.
Ela deitou como ele mandara e observou-o sair do cômodo. De qualquer maneira, não a surpreendia que Ryk a tivesse achado nocauteada nas suas propriedades. Ele parecia destinado a ser o seu paladino indefinidamente.
Até um leve sorriso fazia sua cabeça doer e tinha os olhos fechados quando Ryk voltou para o aposento. Ele banhou sua testa com cuidado e com poucas palavras. Mas Temple notou aquele olho cinzento penetrante sobre ela, e percebeu que ele estava lhe dando tempo para recuperar-se totalmente.
— Está se sentindo melhor, agora? — perguntou ele. Ryk sentou-se ao lado da bacia e ficou encarando-a com as mãos apertadas nos bolsos das calças de trabalho. Sua camisa branca estava quase totalmente aberta no tórax bronzeado. Em seu estado de fraqueza, Temple teve de admitir para si mesma que ele era um homem perigosamente excitante. Apesar de toda a frieza, toda reserva com que se comportava, era impossível não perceber, atrás daquele olho cor de prata azulada, labaredas em turbilhão de desejos.
— Sim, bem melhor! Muito obrigada.
— Ainda bem. E, agora, gostaria de uma explicação: como você foi parar sozinha e; inconsciente no meio da floresta?
— Eu, eu estava voltando para casa! Tomei chá com o dr. Kinraid no hospital, veja, ele estava me levando para casa quando foi chamado de volta para a vila. — Ela umedeceu seus lábios e desviou os olhos do olhar desconcertante de Ryk. — Tropecei num cipó, acho, e bati a cabeça numa árvore.
— Você estava com muita pressa de chegar em casa?
— Sim. Estava escuro e... e pensei ter ouvido um barulho esquisito. — Seus olhos voltaram-se para encará-lo fazendo com que estremecesse de dor por causa do movimento rápido da cabeça. — Foi você quem eu ouvi?
— Você está pensando agora que fui eu quem lhe deu o susto? — ele franziu as sobrancelhas. — O filhote de tigre fugiu para a floresta e saí para procurá-lo. Encontrei-o lambendo seu rosto e, para ser sincero, posso dizer que foi você que me assustou!
— Verdade? Desculpe! — disse ela irônica.
Ele não riu da brincadeira, e pareceu um tanto ameaçador com a luz da lâmpada sobre as linhas ásperas de seu rosto, deixando seu queixo entalhado pelas sombras.
— Todos ouvem estranhos ruídos à noite — disse ele secamente. — Não há ninguém na ilha que queira prejudicá-la, e você não deve permitir que sua imaginação a domine.
— Tentarei não deixar — disse ela, meiga, mas durante todo o tempo não conseguia parar de pensar em Mei. Mei, com seu rosto pequeno como uma máscara dourada. Pálida, com seus olhos que seguiam a todos sob seus longos cílios sedosos. Mei, que desejava, sabia ela, aquele tigre em forma de homem.
— De-devo voltar para a casa de chá — disse, e estava para levantar das almofadas do sofá quando Ryk abaixou-se sobre ela e empurrou-a de volta à maciez do estofado, de maneira gentil. Os olhos profundamente castanhos de Temple encontraram os dele. Seus cabelos pretos estavam em desordem como sua camisa e calças. Sentia-se magra e desajeitada como um rapaz e, ao mesmo tempo, desamparada e solitária como uma garotinha, ao sentir o toque dos dedos de Ryk sobre seus ombros.
— Eu trarei seu jantar aqui — disse ele. — E, quando estiver alimentada e a vertigem tiver passado completamente, levarei você para casa.
Ela não conseguiu replicar, estava ciente demais daquela mão queimada pelo sol tão perto dela. Nunca estivera tão consciente de uma mão masculina antes, forte, marcada pelo trabalho, e ainda capaz de ser carinhosa.
Você não quer ficar aqui? — perguntou ele rapidamente.
E eu tenho escolha? — voltou-se vacilante para ele.
Lógico. — Ele olhou diretamente nos olhos dela, com uma curva súbita nos lábios.
Então eu fico.
Os ingleses nunca são forçados a nada não é? — O sorriso aprofundou as linhas de ironia no canto de sua boca. — Eu me pergunto se você está preparada para enfrentar o demônio que dorme em cada holandês. Ele demora para despertar, mas depois que desperta é muito difícil enfrentá-lo.
E o que realmente acontece quando ele desperta? — Temple sentia o coração bater mais depressa, pois não entendia muito bem o que ele estava querendo dizer...
Nós temos nossa maneira própria de tratar as mulheres que não sabem respeitar nossa opinião.
Acredito! Você pensa viver ainda na época de seu antepassado, Laurens van Halden.
Talvez — ele inclinou a cabeça loura. — E você, ainda vive na época em que se realizavam os casamentos por procuração?
Sei que passei por uma experiência semelhante à de Polyana. — Olhou para Ryk e não conseguiu por muito tempo lembrar-se do noivo com toda clareza. — Eu também viajei para o Oriente por causa de um noivado.
E, ao invés de casar-se, tornou-se a secretária de um holandês com um temperamento não muito estável, não é? — Ele riu, zombeteiro, enquanto se levantava. — Vou avisar Ranji que você fica para o jantar.Temple deitou-se, ouvindo batidas estranhas de tambores. O som vinha do lado de fora das janelas e ela percebeu, de súbito, que o que ouvia era uma tempestade tropical. Martelando as lajes dos pátios do palácio, espalhando-se sobre os telhados enfileirados, inundando as plantações de arroz, a tempestade tornava-se, por alguns minutos, a senhora da ilha.
As chuvas tropicais que podiam afogar um homem... chuvas que algumas vezes continuavam por dias... e aqui estava ela, a sós no palácio com Ryk van Helden.
A chuva pesada continuou durante toda a refeição. Ryk colocou uma mesa em frente ao sofá, e lá eles tomaram sopa, comeram galinha assada em pedaços e batatas-doces douradas.
A cabeça de Temple ainda doía e o som contínuo da chuva afetou um pouco seus nervos, mas a comida estava bastante saborosa e ela com muita fome.
A chuva está pesada. — Lançou um olhar nervoso para as janelas. — E provável que continue durante toda a noite?
Mais que provável. — Ele estava tirando a casca aveludada de um figo e ela percebeu um brilho em seu olho, enquanto cortava a fruta e estendia-lhe um pedaço. — O palácio está cheio de quartos vazios, portanto você não terá problemas em passar a noite aqui.
Mas...
E não será a primeira vez que você dormirá com meus pijamas. — Ele mordeu seu pedaço de fruta, e Temple viu o brilho de seus dentes perfeitos. — Ou está com medo de que comecem a falar mal de você por passar a noite na casa de um solteirão?
Se a chuva continuar neste ritmo, não terei outra escolha.
Você já dormiu na minha cabine uma vez. Ah, mas no navio, estou me esquecendo, todos pensavam que você fosse um rapaz.
Eu espero...
O que você espera? — Ele se sentou numa poltrona de encosto largo e tirou um charuto da caixa, acendendo-o. Observou-a através da chama do isqueiro. — Você acredita realmente que as pessoas vão se importar com o fato de você dormir aqui ou não?
Certamente seria impossível, até mesmo um pouco cruel, esperar que as pessoas sejam perfeitas — argumentou ela.
Mas você esperava que o rapaz de Lumbaya assim o fosse, não é?
— Não, não esperava. — Os olhos dela brilharam de raiva. — Eu esperava que Nick cumprisse a promessa que fez, só isso. Eu o teria perdoado por causa da outra garota.
— Tem certeza? — Ryk falou bem lentamente. — Algumas mulheres acham que a coisa mais difícil de perdoar é um homem que consegue amar duas ao mesmo tempo.
— Amar? — repetiu ela. — Eu dificilmente chamaria aquilo de amor!
Necessidade, solidão, pode ser uma forma de amor.
A mulher precisa de um amor romântico! — esbravejou ela. — Nós gostamos de tocar as estrelas, mesmo sabendo que nossos pés continuam na terra.
Como você é jovem! — Subitamente seu rosto estava um tanto severo. Levantou-se da poltrona e dirigiu-se ao armário em que ficavam as bebidas e os copos. Segurou dois copos trabalhados e colocou um vinho escuro neles. Trouxe-os para o sofá, e Temple sentiu a mão um pouco insegura quando pegou um dos copos.
Ia me esquecendo: achei uma coisa de Polyana que deve interessar a você. — Abriu o armário com as portas pintadas de pavões e flores e tirou uma caixa retangular de lá. Trouxe-a para Temple. Havia cenas pintadas na caixa, desbotadas, mas ainda dava para ver que eram cenas de casamento.
É uma velha caixinha de casamento holandesa. — Com uma pequena chave bastante delicada, Ryk deu corda na tampa da caixa e, assim que ela foi aberta, uma melodia suave ressoou. — Uma caixinha de música!
Temple segurou-a e, ansiosa, examinou-a por dentro.
— Polyana menciona esta caixinha em seus diários — disse com grande respeito. — Ela a mantinha ao lado da cama e nunca se separava dela, chegando mesmo a levá-la nas viagens com Laureens, em algum dos navios à vela. Olhe! Há alguma coisa enrolada num pedaço de seda!
Ele pegou o pequeno pacote e desembrulhou-o. Um objeto brilhou do alaranjado ao esmeralda entre os dedos dele, e Temple viu que era um colar de pedras preciosas ovais incrustadas numa corrente de prata. De estilo clássico, absolutamente encantador, uma jóia pequena que há muito tempo tinha adornado o pescoço de Polyana van Helden.
Os dedos de Ryk brincavam com o colar enquanto a caixinha espalhava sua música pela sala.
— Pedras da lua, azul-esbranquiçadas — disse ele. — Pedras preciosas feitas para fascinar. Como algumas mulheres.
Temple não se atrevia a desviar sua atenção do colar para o rosto dele, pois estava certa que veria uma expressão de ironia, de dor, de raiva, por estar mostrando aquelas coisas para ela, ao invés de mostrar para a garota com quem se teria casado.
— Gostaria de experimentá-lo? — perguntou Ryk.
Temple encarou-o, desafiando o ar de mofa que esperava encontrar em seu rosto. Mas, se na realidade ele olhava com ironia, mudou a expressão quando foi encarado por ela. Dirigiu-se até o divã, abaixou-se sobre ela e fechou a presilha do colar em seu pescoço. As pedras, ainda mornas pelo toque das mãos dele, brilharam em contraste com a pele clara de Temple.
— Venha — ele a pegou pela mão, levantando-a do sofá e num instante ela se viu à frente de um imenso espelho de parede, com Ryk refletido atrás, com um olhar bastante crítico e cheio de cinismo.
— Você gostaria de ficar com o colar? — perguntou ele ao acaso.
Temple olhou fixamente a imagem dele no espelho, tímida e confusa.
Eu... eu não poderia aceitá-lo! — ela tocava o colar à procura do fecho e Ryk agarrou sua mão, virando-a de frente para ele. Enquanto esforçava-se para se livrar, percebeu algo no rosto dele que a deixou um pouco temerosa. Sentindo a compressão ameaçadora de seus dedos, compreendeu que, vivendo só numa ilha perdida nos mares tropicais, Ryk já tinha adquirido toda a rudeza que seu trabalho exigia.
Você considera um presente um primeiro passo para uma posterior sedução? — disse ele pronunciando devagar cada palavra.
O colar é uma jóia de família — disse ela desesperada — Você o está dando a qualquer pessoa, porque acredita que nunca se casará!
Tarde demais para se arrepender do que acabara de dizer. Viu o rosto dele se fechar, cheio de uma ira repentina. Ele começou a sacudi-la dolorosamente.
— Pare! — disse Temple com dificuldade.
— Não! — ele se recusou com escárnio. — Quem vai me fazer parar? Esta é minha casa e, a não ser pelos criados, estamos sozinhos aqui. Uma chuva forte cai lá fora e ninguém ouviria seus gritos se eu beijasse você.
Temple não se sentia capaz, nem mesmo de sussurrar, quando, fazendo um círculo com um braço, ele a abraçou. Ela se sentia desfalecer, ante o simples pensamento de vir a sentir os lábios sarcásticos de Ryk contra os seus.
Ele a prendera firmemente entre os braços. Temple era incapaz de desviar-se da visão perturbadora de seus cabelos louros emaranhados acima do rosto que a fitava e da venda triangular, atrás da qual um olho cinza-esverdeado não mais enxergava. Então, subitamente, com um riso malévolo, ele a largou.
— Tire essa expressão de temor dos olhos — ordenou ele. — Sei muito bem que o tampão me faz parecer sinistro para uma jovem.
Virou-se e pegou outro charuto. Seu isqueiro estalava impacientemente, demorando para acendê-lo. — Queria que você ficasse com o colar porque está fazendo um bom trabalho com os diários.
A fumaça saiu de suas narinas. — Eu não posso usá-lo, e realmente acho que você devia aceitá-lo quando eu o deixar limpo e polido.
Ela percebeu uma nota de orgulho em sua voz.
Se pareço mal-agradecida, talvez seja porque não estou acostumada a... a receber presentes. Especialmente um presente como este colar.
Pobre orfãzinha! — Ele tragou o charuto, e a fumaça envolveu sua cabeça loura. — Você sente falta de carinho, não é? Você se parece com um gatinho que vira as costas para um pires de leite, com medo de receber um pontapé.
Ela sentou-se, pois se sentia um tanto trêmula. A chuva batia forte nas janelas e um carrilhão tocou suavemente. Distraída, ela contou as batidas e encostou-se na grande cadeira holandesa de Ryk. O colar estava frio, agora, contra sua pele. Sentia lágrimas queimando, atrás dos longos cílios.
Obrigada pelo colar. Ele me fará lembrar sempre de Bayanura.
Você fala como se fosse partir amanhã — disse ele secamente. — Amedrontei você a tal ponto?
Era impossível colocar um nome nos sentimentos que ele despertara. Fascinação? Medo? Ou uma mistura dos dois?
— Você me acha arrogante? — Franziu subitamente uma sobrancelha loura e ficou parado, alto e forte, na frente dela. Um homem que arrancara de si todos os sentimentos de carinho e amor e deixou que só florescessem dentro dele a frieza, a arrogância, a ironia... tudo para proteger-se.
— Os chineses não dizem que existe um tigre em todo homem? — murmurou ela.
— Um tigre, um asno e um rouxinol. — Deu um sorriso cruel. — Foi preparada uma cama para você realmente parece estar precisando de uma boa noite de repouso.
Ela olhou em direção às janelas e ouviu a chuva forte. A noite afogava-se na chuva, as árvores eram sacudidas por um vento frio e de repente ela estremeceu.
— A chuva não vai parar até amanhã de manhã, e eu não tenciono sair novamente. — Ele apagou seu charuto. — Por favor, venha comigo.
Temple cambaleou... No momento seguinte, a sala começou a girar, e ela teria caído, caso seus braços fortes não a tivessem segurado.
Estava tonta, amparada pelos braços de Ryk. Encostada em seu peito bronzeado, perto daqueles lábios que pareciam não ter compaixão...
— Eu... eu estou bem. — Não tinha certeza se era sua cabeça ou seu coração que estava latejando tanto.
Ele não lhe deu ouvidos e carregou-a tão facilmente pelo corredor, como se não pesasse mais do que uma pluma.
— Se amanhã ainda estiver sentindo os efeitos do tombo, Alan Kinraid precisa examinar você. — Ryk estava agora carregando-a por um corredor frio, com assoalho de mármore.
Ele a segurou com um único braço e abriu a porta do quarto com a mão que estava livre. Carregou-a para dentro, e deitou-a numa cama enorme, toda entalhada, com um finíssimo véu que acentuava o aspecto majestoso.
Por um breve momento, as mãos de Ryk demoraram-se sobre os ombros dela e Temple sentiu sob seu corpo a maciez da cama.
— Você tem aí um pijama e uma escova de dentes. — Ryk virou-se em direção à porta. — O banheiro é logo na frente do corredor.
— Obrigada. — Ela sentou-se, magra e perdida, no centro daquela cama imensa.
Ryk parou no vão da porta, com as mãos nos bolsos das calças, a pele parecendo escura contra o branco da camisa. — Durma bem, criança!
Ela sorriu e acenou com a cabeça, parecendo estar prestes a cair no sono. Ele inclinou a cabeça, em resposta, saiu e fechou a porta.
Tudo estava calmo quando Temple acordou. A chuva havia passado, porém os pássaros não tinham tido disposição para sair e cantar. O brilho do sol estava fraco, refletindo levemente as arcadas no chão e ela sentiu a cabeça leve e pesada ao mesmo tempo.
Bateram à porta. Ranji abriu-a e entrou. Carregava uma bandeja de chá e veio colocá-la suavemente na mesinha de cabeceira.
Mem toma chá aqui? — perguntou ele.
Não, lá fora, ao sol.
Com o tuan? — Ranji encarou-a com olhos pretos inocentes.
Sim. — Ela abaixou o rosto, e não voltou a levantá-lo até que o pequeno oriental se retirasse em silêncio.
Ela saiu da cama e ficou descalça, com o enorme paletó de seda do pijama que tinha dragões nos bolsos. Pôde ver-se no espelho da penteadeira, uma figura de garoto travesso, as mangas do paletó caindo de suas mãos e um ferimento de tombo na testa.
Achou as sandálias e foi para o banheiro. A porta abriu antes que ela a tocasse, e uma figura alta emergiu do vapor do chuveiro. Ryk, molhado do banho e barbeado, vestia um roupão grosso sobre o dorso dourado, e calças pretas de seda chinesa.
Bom dia! — ele estava bastante tranqüilo, mas Temple teve de se esforçar para aparentar calma.
Bom dia!
Ele olhou para seu corpo magro, de pernas nuas, no paletó de pijama.
Nós formamos um casal econômico — caçoou ele. —- Eu durmo com a parte de cima do pijama e você, evidentemente, não dorme com a de baixo.
Não — disse ela, e seus dedos trêmulos e magros apertaram a bainha do paletó.
Como esta se sentindo esta manhã? Sua cabeça ainda dói muito? — Examinou o ferimento de sua testa. — Lave o machucado com água fria, que ajuda a sarar.
Em seguida Ryk saiu, deixando-a entrar no banheiro e encostar firmemente na porta para recuperar o fôlego. Sentiu o perfume do sabonete e da loção de barba. Havia largas pegadas úmidas no chão de azulejos e a banheira era de mármore manchado, bastante funda, grande o suficiente para que algumas pessoas nadassem nela.
Boiou na grande banheira de mármore de Ryk van Helden, um dos confortos que gozava por ser o braço direito de um príncipe javanês... e como era bom não ser a prima órfã que fazia as tarefas de casa, em troco de um mínimo de caridade. Ela era como um gatinho, dissera Ryk van Helden, que se assustava com um pires de leite por sentir medo do pontapé que viria depois.
Enxugou-se e, enrolada na grande toalha colorida, voltou para o quarto. Uma surpresa a aguardava na forma de um linda jaqueta enfeitada com botões de pérola e uma saia longa, amarelo-âmbar, tal como as mulheres da ilha usavam. Havia também um par de Sandálias pintadas.
Desde que chegara ao Oriente, Temple desejava usar aquelas roupas. E não hesitou, nem por um instante, para vestir a longa saia de seda e dobrá-la na frente como tinha visto Mei fazer com as dela. Colocou a jaqueta sedosa e fria, e seus dedos tremiam um pouco, enquanto a abotoava. Então calçou as sandálias e foi se ver no espelho.
Bateram à porta e ela virou nervosamente, enquanto abria a porta. Ranji apareceu, e ela viu pelo sorriso dele que a admirava naquelas vestimentas javanesas. — Tuan diz que o desjejum está pronto e que deve vir. Gosta de roupa javanesa?
Sim, Ranji, gosto muito.
Então, por favor, siga-me. — Ranji inclinou-se para que ela saísse, e escoltou-a pela escada de mármore em espiral até fora, através da arcada do terraço ao sol, que tinha a vista de todo o vale.
Ryk estava encostado no parapeito e virou-se ao ouvir o tamborilar das sandálias de Temple. O sol batia em seus cabelos, tornando-os avermelhados. Vestia um terno branco tropical, ajustado perfeitamente aos ombros largos.
— Então você o vestiu! — Seu sorriso era enigmático: — Estava curioso para saber se você se atreveria.
Ela atravessou o terraço, para juntar-se a ele no parapeito, segura e ciente de que a saia longa de seda a fazia caminhar com graça.
Você gosta de me provocar, não gosta? — ela observou atenciosamente os declives verdes e enevoados do vale.
Aos domingos pela manhã eu sempre tomo meu chá no terraço. — Ryk estava ao seu lado. — Daqui pode-se ver tudo, não apenas o vale, mas o cone do vulcão. E logo atrás do nevoeiro, está vendo? Azul como uma safira.
É fascinante! — sua mão apertou o parapeito, branca, ao lado da mão dele, queimada pelo sol. — A neblina sobre as plantações de arroz faz com que elas pareçam prateadas.
Sempre há neblina depois de uma noite de chuva. Normalmente o tempo fica limpo ao meio-dia, quando o sol está no seu auge.
Espero que o nevoeiro se dissipe. Prometi a Alan, ao dr. Kinraid, que ia tomar um banho de mar com ele. — Sentiu-se ruborizar enquanto Ryk se virava rapidamente para encará-la. — Os habitantes da vila são muito afeiçoados ao doutor, não são?
Alan não é um homem difícil de se gostar, ou de se entender. Venha! — Sentiu os dedos fortes de Ryk, quando segurou seu cotovelo. — Nosso café da manhã está servido.
Uma mesa para duas pessoas estava posta no terraço, e Temple atirou-se com apetite à refeição matinal.
Seu apetite é saudável. — Ryk colocava açúcar na sua terceira xícara de café preto. — Há uma semana atrás, você comia como um passarinho.
É o ar mágico de Bayanura. — Ela estendeu uma mão preguiçosa e puxou uma flor da laranjeira que estava no vaso ao seu lado. — Poderia me mostrar os pavões?
Você tem um encontro marcado com o agradável dr. Kinraid para o banho de mar. — Um toque de mofa penetrou o olho cinzento de Ryk. — Vai de sarongue?
Não me faça lembrar daquele incidente horrível! — Ela puxava as pétalas da flor de laranjeira e não conseguia encarar aquele olhar constrangedor. — Você prometeu me mostrar os pavões, e só vou me encontrar com Alan daqui a uma hora ou um pouco mais.
Ele me trouxe alguns jornais do continente e eu estava pensando em ficar lendo sossegado ao sol.
Neste caso, deixarei você em paz. — Levantou-se apressada e, neste exato momento, um repentino clarão colorido surpreendeu-a, fazendo com que desse um passo para trás, sem saber que os degraus do terraço estavam logo atrás dela. Teria caído, se Ryk não tivesse se movido com a rapidez de um tigre, segurando-a.
Que criatura impulsiva você é! — Os dedos dele apertavam-na e machucavam-na. — Aquilo era apenas um beija-flor, não um monstro voador que dá ferroadas.
A ferroada veio de você — replicou ela, por ele sacudida. — Por favor, deixe-me! Está me machucando.
Você é como uma criança que está sempre correndo para o perigo. Um segundo tombo, pelas escadas abaixo, poderia ter conseqüências fatais.
Não creio que isto tenha preocupado você — disse ela, irritada e despojada da dignidade que sentira logo cedo, quando vestira os trajes locais.
Isto, no mínimo, causaria o transtorno de ser privado de uma secretária, justamente quando o trabalho dos diários está indo tão bem — retrucou ele mordaz. — Por que você está tão curiosa para ver os pavões?
Por... porque eu quero me lembrar deles quando chegar o dia de ir embora da ilha. — Ela desviou o rosto, querendo que ele não visse o quanto seus lábios tremiam. — Isto não importa agora. Entendo que você queira ler os jornais sem preocupações.
Não. — Ele barrou a passagem dela através da escada que dava para o jardim. — Se você deseja tanto ver os pavões, eu a levarei até eles. Mas deixe-me dizer-lhe uma coisa: as coisas bonitas da ilha estarão aqui daqui a cem anos, a menos que o vulcão se enfureça e nos destrua a todos. É por ser jovem demais que você tem sede de conhecer logo tudo? Ou a vida tem-lhe ensinado que os arco-íris não duram por muito tempo?
Mas não duram mesmo, senhor. — Ela o encarou e viu as linhas de profundo sofrimento estampadas em sua boca firme. — Eu... eu não quero arrancá-lo de seus jornais.
Ah, mas você já me fez mudar de planos. Vamos ver o arco-íris que o pavão faz quando estende as penas de sua cauda. Vamos vê-los! Você deve ficar muito quieta ou as aves ficarão assustadas e você não verá a dança do namoro deles.
Pétalas com tons dourados e brilhantes jaziam sobre o atalho que eles seguiram. Folhas de palmeiras tinham sido quebradas pela chuva da noite passada e os pássaros alegres gorjeavam nos esconderijos, enquanto as cigarras agitavam-se em atividade nas árvores mais altas.
As profundezas do jardim tinham os sons e a obscuridade de uma selva, porém Temple não estava nervosa da maneira que ficara na noite anterior. O bambuzal começara a fechar-se em volta deles e, de repente, ela se sobressaltou com um grito agudo vindo do jardim. Era um grito de pavão, e Temple percebeu que estavam próximos das aves encantadoras que cortejavam suas fêmeas.
Ryk voltou-se e colocou um dedo sobre os lábios. Então prosseguiu com cautela, segurando para um lado as folhas, que pareciam grandes orelhas peludas de elefante. Acenou para que Temple se juntasse a ele na barreira e sombra de um arvoredo carregado de flores. Flores de figueira-do-inferno, despejando pólen sobre os ombros dele. A garota removeu-o e então afastou-se delicadamente, enquanto ele se virava para olhá-la.
— Venha mais para perto — sussurrou ele.
Ela hesitou e então deixou que ele a puxasse para perto de si. Ryk, cuidadosamente, levantou para o lado o galho que os separava das aves, e Temple avistou, fascinada, um pavão orgulhoso no meio de um harém de pavoas. Sua plumagem reluzia como pedras preciosas. Deu um daqueles gritos agudos e sua cauda repentinamente abriu-se, e foi como o surgir rápido de um arco-íris no centro da clareira. O pavão andou pomposamente para a frente e para trás, exibindo para uma pequena pavoa amedrontada, com orgulho, suas penas verde-douradas e os grandes olhos que sobressaíam claramente da cauda deslumbrante. Ele inclinou a cabeça, virou-se ao redor e sacudiu a cauda. Era uma ave tão esplêndida, perante a pequena pavoa, modesta e acanhada, que Temple não conseguiu segurar o riso.
Uma mão pressionou sua cintura, prevenindo-a. O olhar dela, velado pelos cílios, vagou pelos ombros largos, o queixo com covinha, até os cabelos louros de Ryk. Tão alto, e com uma imobilidade que transmitia mais poder e energia do que qualquer outro homem, por mais que gesticulasse e agisse.
Como será, perguntou-se ela, ter a certeza de ser amada até a loucura por um homem como este?
Assim que esse pensamento atravessou sua mente, ela se afastou do contato dele. Fora essa proximidade o que colocara tais pensamentos em sua cabeça! As figueiras-do-inferno pesadas, o galanteio dos pavões, até mesmo a seda que cobria seu corpo fizeram-na sentir-se levemente desamparada de repente.
Quisera vir e, agora, o que mais desejava era ir embora daquele lugar.
— Está ficando tarde — disse em voz baixa. — Eu... eu não quero deixar Alan esperando.
Ryk fitou-a e uma repentina faísca gelada pareceu surgir em seu olho.
Eu não tive desejo de fazê-la se atrasar em seu encontro com ele — replicou friamente. — Mas deixe-me lembrá-la...
Eu sei. — O sorriso dela era nervoso, pois, quando Ryk falava daquela maneira, ele era realmente temível. — Os pavões são fascinantes, mas é uma grande caminhada até o palácio e ainda tenho que ir até a casa de chá para pegar minhas roupas de banho.
Ele a observou profundamente por um longo momento, sua boca inflexível, e então virou-se abruptamente sobre os calcanhares e andou a passos largos à frente dela. Temple o seguia tão rápido quanto sua saia longa de seda o permitia e, depois de uma longa caminhada, saíram da obscuridade verde e ondulante para a luz do sol. Temple encostou-se numa árvore do pátio para recuperar o fôlego, enquanto Ryk mostrava desagrado ante as poças de água que estavam entre as lajes irregulares.
Ryk não dissera nada durante o trajeto, e sua austeridade impôs silêncio a Temple. Como contar a ele que no bosque ela se sentira tão fascinada por sua presença que tivera medo? Como lhe dizer que, na sua vida, nenhum homem a perturbara tanto quanto ele?
A única forma de defender-se da ânsia, chocante e terrível, de beijar aquele rosto tão arrogante era fugir para bem longe!
Subitamente ele a fitou. Temple sentiu o coração bater mais rápido, ao ver a pequena curva cruel dos lábios dele.
Você estava com medo de que eu perdesse a cabeça por estar a sós com você? Pensei que tivesse afastado seus temores a noite passada.
Nunca imaginei que algum homem pudesse perder a cabeça por minha causa — replicou ela. — Nick Hallam me quis somente porque viu em mim uma boa governanta e talvez um amparo. Nunca mais me permitirei envolver-me com alguém que possa vir a magoar-me, não se preocupe.
Eles se encararam através da luz do sol. A garota, vestida de seda, contra o tronco franzido da palmeira, o homem, com o olhar feroz e vibrante sobre ela. De repente ouviu-se um esvoaçar, e alguma coisa brilhou na luz do sol ardente enquanto pousava sobre o ombro de Ryk. Uma grande borboleta de asas douradas... uma mensagem do céu.
Ryk permaneceu muito calmo e Temple ficou a ver, sob efeito de uma força mágica, a borboleta pairar indecisa sobre aquele ombro vestido de branco, para então, um instante depois, voar e sumir entre as árvores.
Levantou os olhos para o rosto de Ryk e compreendeu a palidez de sua pele bronzeada. Ele também sabia muito bem da superstição sobre o fato de as borboletas serem espíritos da beleza... e da morte.
— Estranho — disse ele, parecendo não enxergar Temple — hoje é aniversário de Marta.
Temple não conseguiu dizer nada. Ficou olhando, enquanto ele, a passos largos, sumia de vista sob uma das arcadas do palácio. As cigarras continuavam a cantar e o jardim quente estava cheio de som emitido por elas. Temple se sentia incapaz de esquecer que Ryk acabara de dizer aquelas palavras, como se ela não existisse.
Mexeu-se e sentiu a seda de sua roupa grudar na palmeira. Desejava tirar imediatamente a jaqueta e a saia longa. Mas suas roupas estavam no palácio, e era incapaz de voltar para lá, pelo menos nesse dia. Queria estar com Alan Kinraid, que a considerava uma pessoa, não alguém para zombar ou ditar normas.
Sentiu-se mais segura quando chegou ao portão da casa de chá. Atravessou rapidamente a varanda e, enquanto começava a subir os degraus, sentiu-se observada. Sabia que era Mei e não havia nada que pudesse fazer, a não ser entrar e tirar aquelas roupas, as quais tinha sido tão engraçado vestir, uma eternidade atrás.
Mei olhou-a com olhos inescrutáveis, porém Temple percebeu a hostilidade e o desprezo que ela sentia.
— Dokter mandou mensagem por menino.Temple virou-se para Mei, que lhe entregou um envelope fechado. Pegou-o e abriu-o rapidamente. Seu coração apertou-se, enquanto lia o bilhete:
Desculpe-me, Temple, um comerciante de madeiras sofreu um acidente sério, e seu chefe pediu auxílio pelo rádio. Vou de avião operá-lo; vejo você logo!
Alan.
Então era isso! Alan não viria para o banho de mar combinado.
— Você ficará aqui para o almoço, mem?
Temple levantou os olhos distraidamente do bilhete de Alan.
— Almoço? Oh, sim! Sim, por favor, Mei!
Temple percebeu no olhar de Mei uma súbita perversidade veemente, uma animosidade que não podia ser dissimulada. Ela sabia que Temple estivera com Ryk e, por estar apaixonada por ele, só podia pensar uma coisa, que sufocaria toda a consciência de uma mulher: que ela estivera nos braços dele.
— Um almoço simples estará bem para mim, Mei. — Temple quis falar com um tom normal de voz e ignorar a tensão que vibrava entre ela e Mei. — Tomarei um banho de mar quando o sol estiver um pouco mais fraco.
Mei juntou suas mãos fracas e inclinou-se sobre elas mais uma vez. Tão misteriosa como um ídolo de ouro pálido. Virou-se, e apenas a cortina, no outro lado do sofá, fez barulho, quando Mei passou As tiras de bambu gradualmente aquietaram-se, e ouvia-se apenas, agora, o som dos ventiladores de teto. Temple fitava absorta, com os olhos muito abertos, os ramos de jasmins num vaso, sobre a mesa de bambu.
Sim, ela iria sozinha para a praia e procuraria o anel que perdera outra noite, o anel de pérola e rubis de sua mãe, que devia ter escorregado de seu dedo na caverna onde fora vestir o sarongue.
Gaivotas gritavam através da névoa que se apegava aos picos dos recifes de coral. As ondas quebravam-se sobre os rochedos, perto da praia, e faziam um tumulto sedoso. Caranguejos corriam entre as folhas de palmeiras que a chuva derrubara na noite anterior.
Naquele momento, Alan estaria cuidando de seu paciente. Ryk van Helden estaria na biblioteca, no palácio, perdido na fumaça de mais um charuto e nas lembranças da moça que faria aniversário nesse dia, se não tivesse morrido tão tragicamente naquele desastre.
Temple sentiu-se muito só, de repente. Uma mulher inútil, que não fazia outra coisa senão sonhar e viver as emoções medíocres que a vida lhe preparava... Uma mulher jovem, mas sem muitas perspectivas... Se pelo menos fosse uma enfermeira, para ajudar Alan em sua missão tão bonita de salvar vidas humanas...
Levantou-se, com pressa, e fugiu de seus pensamentos, correndo para a cavidade que se abria nos penhascos, sobre as inclinações da praia. Estava escuro e frio, dentro da caverna, depois do resplandecer das areias quentes e da luz do sol sobre o mar verde-pálido. Vestiu-se rapidamente, começando a procurar pelo anel de sua mãe.
Empenhou-se tanto em achá-lo que se esqueceu do tempo. A maré subia ao redor do cabo, e Temple estava bastante concentrada em sua tarefa para perceber que agora as aves marinhas não gritavam mais e que massas de névoa estavam se amontoando diante da entrada da caverna.
Seu anel tinha que estar em algum lugar. Atrás de uma pedra, sob a leve camada de areia que cobria todo o chão da caverna... Caso não estivesse ali, então teria perdido irremediavelmente o anel e, junto com ele, o único elo tangível que a ligava aos falecidos Pais.
Afinal sentou-se sobre os calcanhares e esfregou um pouco as costas. Estava começando a acreditar que havia perdido para sempre a jóia que tanto amava. Olhou na direção da abertura da caverna. Em vez de ver o mar, o céu e as ondas jogando a espuma franca sobre as rochas, uma claridade branca... como se o céu tivesse vindo abaixo, engolindo a praia!
Temple levantou-se e correu para a abertura da caverna. Não era nenhuma ilusão de ótica! A névoa acumulara-se repentinamente, encobrindo por completo a praia. Estava impenetrável, na boca da caverna, como a impedir Temple de sair. Uma nuvem úmida, misteriosa, na qual se perderia, caso se atrevesse a sair. Se tentasse, poderia cair entre uma rocha e outra, ou dirigir-se direto para o mar!
Temple recuou instintivamente para dentro da caverna, que agora se tornara seu único refúgio, sua única proteção. A maré não chegaria até ali, até que a luz do dia sumisse e, até lá, a névoa ter-se-ia levantado o suficiente para que ela achasse o caminho de volta. Até lá ficaria só. E sentiu-se muito abandonada.
Seu desejo por uma xícara de chá, quente e doce, era quase insuportável. Para se acalmar, começou a andar de um lado para o outro, também num esforço de manter a circulação em constante atividade. Um filete de inquietação insistia em apertar seu coração. Sozinha, separada de todos por aquela misteriosa nuvem, vestida com roupas de verão, teria muita sorte se conseguisse sobreviver àquela noite que se aproximaria a qualquer instante.
E foi nesse exato momento, com as sombras se aprofundando e o espírito cada vez mais inquieto, que ela, olhando para baixo, percebeu um brilho leve perto de um de seus sapatos. Abaixou-se impulsivamente e um pequeno grito de alegria lhe escapou. Era o anel que pertencera a sua mãe!
A jóia ficou sobre a palma de sua mão, pequena e levemente embaçada, e então seus dedos a apertaram.
— Seja meu talismã — sussurrou ela bastante emocionada. — Faça com que o nevoeiro se dissipe, assim não vou ter que ficar aqui... tão só!
O mar rugiu e a caverna captou o som como através de uma concha gigante. As ondas aumentavam e quebravam raivosas sobre as rochas e a neblina era empurrada para dentro da caverna pelo vento que vinha de longe, cada vez mais forte.
Ela tentou não ouvir, enquanto polia o anel em suas calças e colocava-o no dedo. A pérola com o círculo de rubis brilhava agora como um lágrima... Diziam que as pérolas traziam má sorte, mas isso era só um lenda antiga e não tinha nada relacionado com sua situação presente. Durante toda a manhã houvera neblina sobre o mar. E ainda permanecia suspensa enquanto nadara; portanto, ela não tinha ninguém para responsabilizar a não ser ela mesma, por demorar-se, em vez de voltar logo para a casa.
Somente Mei sabia que ela saíra para nadar sozinha, e Temple sentiu um frio nos ossos, ao lembrar-se da maneira com que olhava para ela quando voltara do palácio de Ryk. Mei não contaria a ninguém que ela estava perdida... muito menos a ele!...
Pareceu ter passado um longo tempo. A caverna estava mergulhada na sombra e o mar, bravo como um animal preso na rede, dentro do nevoeiro. Subitamente, ela ouviu vozes. Vozes reais, de homens gritando seu nome! — Tem-pel! Nona Lane... Tem-pel!
Luzes de lanterna tremularam no nevoeiro, chamas vivas arre-messando-se nas sombras.
Temple! — Aquela voz ressoante levantou-se sobre as outras. — Temple, você está aí dentro? Temple, responda!
Ryk! — O nome dele irrompeu de sua garganta. Saiu correndo da caverna, para a luz enevoada das lanternas acesas. Mãos enormes a apanharam com violência. Seu alívio, ao ver seres humanos outra vez, foi tão intenso, que tudo o que conseguiu fazer foi afundar o rosto no grosso colete de lã sob um tórax largo e tremer como uma folha... algo que ela havia jurado nunca fazer na presença de Ryk van Helden.
Pensamos que você pudesse ter caminhado para dentro do mar! — Sua voz estava tão áspera quanto suas mãos. O cheiro da névoa estava nele. E, quando ela levantou o rosto para fitá-lo, estava tão pálida à luz das lanternas que sua boca parecia ter sido modelada em cera. Olhou ao redor e viu que ele trouxera por volta de meia dúzia de homens da aldeia para ajudá-lo. Viu o brilho dos dentes daquelas pessoas. As mãos amáveis deles a tocaram de leve. Somente as mãos de Ryk estavam raivosas, apertando-a.
Ele a sacudiu.
Que coisa mais insensata para fazer, demorou-se aqui na praia com um nevoeiro vindo do mar para a ilha! O bom senso não lhe advertiu que ele se tornaria espesso com o passar do tempo?
Na... não há necessidade de me repreender. — Seus dentes tremiam, meio de frio, meio pela reação de seus nervos, e do alívio abençoado de ter sido encontrada. — E... estou com fri... frio...
Ryk disse alguma coisa a um de seus homens, e num instante ela estava envolta num cobertor de lã. Depois, colocou algo que soltava fumaça no copo de um cantil. — Beba! — Ela pegou o copo e oebeu o chá com uísque, quente e doce, em goles sedentos.
Obrigada. — Tentou um sorriso trêmulo enquanto se aninhava no cobertor. — Estava criando coragem para passar a noite na caverna. O que fez você... quero dizer, como você soube que fiquei presa no nevoeiro?
Ocorreu-me que você podia ter ido nadar sozinha, e as informações que tive na casa de chá confirmaram minhas suspeitas. Você é realmente um tipo muito irresponsável e não me causaria surpresa alguma se tivesse se aventurado a sair no nevoeiro e estivesse agora morta! Afogada, por exemplo?
Ti... tive um pouco mais de juízo — protestou ela, e pôde acreditar, pelo tom de voz dele, que não se sentira ansioso por sua causa. Será que ele pensou bem e resolveu fazer alguma coisa para não correr o risco de perder sua eficiente secretária?
Venha!
Ficou indignada quando Ryk a tomou nos braços.
Posso caminhar! — protestou.
Num cobertor, com as pernas meio entorpecidas! Imagine que sou um confortável travesseiro holandês! — disse ele de maneira cínica.
Ele parecia um pirata, vestido de preto, com o tapão do olho contornado na luz trêmula e difusa. Um pirata carregando-a para fora da praia, cercado pela tripulação de seu navio!
Estremeceu ao ouvir o barulho do mar, agora mais opressivo na sua agitação. Seu movimento fez com que Ryk a atraísse mais para a concavidade de seus ombros. A estranha procissão, à luz das lanternas, ia devagar, de maneira cuidadosa, através do nevoeiro que parecia encobrir toda a Terra. Temple sentia as batidas de seu coração confundir-se com as de Ryk. Momentos depois, uma observação acompanhada de risos foi levada até ela pelo vento que não parava de soprar, frio e úmido.
— O chefe é corajoso... — Ele tinha que ser, pois estava subindo e descendo perigosos rochedos com ela em seus braços!
Sua cabeça comprimiu-se com súbita estreiteza contra o grosso pulôver, ouvindo as normais, as duras batidas vivas de um coração de homem. Muitas coisas o tinham magoado, e não era fácil para ele ser terno. Apesar disso, juntara um grupo de busca e ele e seus homens tinham desafiado os riscos dos penhascos na neblina para encontrá-la. Não a teria deixado passar a noite na caverna sozinha. Temple sentia-se agradecida. Queria dizer isso. Olhou para cima, mas as palavras dele impediram-na.
— Coloque seus braços ao redor de meu pescoço e segure firme — ordenou ele.
Ela fez o que lhe foi mandado, e era como se fosse um sonho. Sentia-se carregada pelo atalho, por entre as rochas. Sua cabeça estava confortavelmente instalada contra os ombros dele. Nada mais era real, a não ser a deliciosa sensação de torpor que a invadiu por inteiro...
Acordou com um sobressalto, enquanto luzes brilhavam em volta dela. Sentiu-se ofuscada, e os braços fortes que a seguravam estavam colocando seu corpo sobre um sofá.
Sim, tuan. — Pôde ver aproximando-se dela uma face morena com dois olhos pretos e misteriosos. — Vou colocá-la na cama e ver uma bebida quente.
Não! — Temple tentou sentar-se, mas dedos fortes lhe impediram o gesto. — Você ficará bem com Mei. — A voz profunda chegava até ela como se viesse sobre ondas. — Você está fora da caverna, Temple. Está salva, na casa de chá.
Salva? Ela sabia que correra perigo há pouco, que algo de terrível poderia ter acontecido, caso saísse daquela caverna. "Mas não estarei salva aqui tampouco, Ryk", ela queria dizer. "Cada vez que você fala comigo, que olha para mim, que me toca, que me arranca de um perigo qualquer, você coloca um pouco mais de ódio nos olhos de Mei. Você não vê? Oh, você não consegue perceber isso, Ryk?"
Na... não quero ficar aqui — foi o que pôde dizer.
Então você deve pedir a Alan que a leve embora. — A voz estava distante, fria. — Ele logo voltará para a ilha.
Temple esforçou-se para abrir os olhos, mas Ryk já tinha ido embora, e era tarde demais para dizer que não era a ilha que ela desejaria deixar. A cortina tiniu, e ela fechou os olhos novamente, para que Mei não visse as lágrimas que teimavam em sair deles.
Na semana seguinte Temple visitou o hospital de bambu sempre que lhe sobrou algum tempo, pois tinha criado um afeto muito sincero por Tofan, o garotinho.
Soube por Khun Lan que a esposa do chefe da aldeia ainda não dera à luz seu filho e que o doutor esperava retornar a tempo para o parto. Seria um grande acontecimento na vila, ouviu Khun Lan dizer, com seu sorriso um tanto sério. Se a criança fosse um menino, então as lanternas de festa seriam trazidas ao ar livre, e os habitantes da ilha celebrariam o nascimento com festejos acompanhados de muita dança.
— Se o nascimento coincidir com a Festa da Lua Cheia — Khun Lan esfregou suas mãos magras —, então você assistirá a um espetáculo de que se lembrará enquanto viver.
Khun Lan inclinou-se sobre o bule para servir uma segunda xícara de chá para Temple. Ela não conseguiu distinguir a expressão dos olhos dele quando prosseguiu dizendo que haveria também a dança das garotas da aldeia. Disse que elas eram treinadas na arte desde pequenas e que conhecia uma que era tão graciosa que fazia a mais linda flor parecer desajeitada.
Temple tomou seu chá e comeu o bolinho de arroz, perguntando-se quem seria a garota tão encantadora que Khun Lan admirava. Gostaria de perguntar se ele se referira a Madu, que significava "mel", a garota mais bonita que trabalhava como enfermeira no hospital, porém ele mudou de assunto abruptamente.
Haveria um teatro de sombras na noite seguinte e ele queria saber se Temple gostaria de assistir.
— Muito! — sorriu ela.
Ela voltou pela vila, pois queria comprar algumas coisas. O amarelo-queimado e o rosado do céu aprofundavam-se quando ela saiu de uma loja, com um pequeno pacote nas mãos. Uma mulher passava carregando um bebê amarrado nos quadris. Ela sorriu e cumprimentou Temple, que se sentiu confortada e quase parte daquele lugar. Passava pelas casas com suas plataformas levantadas, asperamente cobertas de sapê, e com suas laterais abertas para deixar entrar a brisa fria da noite.
Permaneceu tranqüila quando percebeu uma figura alta e solitária, encostada numa mangueira. As cigarras cantavam e uma grande mariposa esvoaçou por ali, e ela sentiu logo a proximidade das plantações de chá, onde os arbustos se dispunham em filas compactas e enchiam o ar com o aroma de suas folhas grandes. Alguns trabalhadores, mais ao longe, cantavam, enquanto se dirigiam para casa, seguindo o caminho oposto ao dela.
Temple começou a sentir-se tensa, como se estivesse indo na direção de um tigre.
Ele descansava preguiçosamente contra a árvore, parecendo calmo e saudavelmente cansado. Sua camiseta caqui agarrava-se aos músculos de seu tórax. Não era de maneira nenhuma o tipo de homem que pudesse se sentir bem, vestindo todo o tempo terno e gravata.
Lançou um olhar para seu vestido creme, sem mangas, e para seu chiffon vermelho esvoaçante, envolvendo o pescoço.
— Você está muito elegante! Como se tivesse acabado de sair de uma vitrina.
Ela não conseguiu responder, Foi como se ele tivesse insinuado que ela estivesse todo o tempo preocupada com futilidades, enquanto ele trabalhava.
— Foi um dia muito quente — disse ele, desencostando-se da árvore. — Pensei em nadar, você gostaria de me acompanhar?
De novo Temple não conseguiu dizer nada.
— Não haverá nevoeiro, esta noite, somente a lua nova. Você já nadou ao luar?
— Te... tenho que ir até a casa de chá pegar minhas roupas de banho.
— Peça emprestado um sarongue a uma das mulheres da vila — disse ele, apontando em direção à fileira de casas lá perto. — Venha!
Temple entendeu, pela troca de palavras feita no dialeto da ilha, que o tuan era recebido com alegria sincera naquelas casas modestas. Um sorriso furtivo dirigido a Temple e quase de repente um sarongue surgiu.
A mulher inclinou-se, numa graciosa atitude de prece. Seus olhos brilhavam e Temple sabia que ela ficara na varanda observando enquanto eles saíam do pequeno vilarejo. Ryk parou ao lado de uma mangueira e enquanto ele apanhava sua mochila de couro, presa num galho, lançou um sorriso meio travesso para Temple.
— Uma garrafa de vinho, uma porção de queijo e meu calção "de banho — disse ele lentamente.
— Tudo arranjado, estou vendo - retrucou ela.
— Tudo, a não ser a companheira.
Ela acreditou, pois não conseguia imaginá-lo procurando por ela para lhe fazer um convite.
— Até mesmo eu sou capaz de dar chances às minhas vontades repentinas - disse ele, enquanto pendurava a mochila nos ombro. Você me pareceu um pouco solitária e não resisti a vontade de convidá-la para nadar comigo.
— Sempre achei você reservado demais, com um autocontrole tão desenvolvido que me surpreende vê-lo deixar-se levar por um impulso.
Um periquito gritou de cima de um galho, enquanto caminhavam através da mata sombria, em direção aos penhascos e a praia, lá em baixo.
Chegaram sobre os rochedos e pararam para ouvir as ondas quebrando e o vento leve do mar que soava ininterrupto. Daquele íugar, podiam contar as estrelas que brilhavam no ceu tropical, violeta-escuro.
— É inacreditável! — murmurou ela. - Você vive em contato com tudo isso há tantos anos, mas essa magia ainda deve impressioná-lo muito, não?
— Sensações mágicas só existem para garotas jovens e românticas, com estrelas nos olhos - disse ele ríspido.
Temple fitou-o e em seus grandes olhos resplandecia uma estrela.
— Você acha que eu sou muito jovem, não acha?
— Você é muito jovem! Venha, ou a maré vai começar a subir, e terei que vir em seu socorro novamente.
Uma brisa leve tocou-lhe a nuca, e ela disse a si mesma que esta tinha sido a causa do pequeno calafrio que correra por todo seu corpo. Caminhavam nas areias e as ondas quebravam-se solenes nas pedras. Palmeiras balançavam-se ao longo da beira-mar.
— Lá está sua caverna - apontou Ryk. - O que você estava fazendo lá, no domingo? Você não me contou.
Procurava meu anel. — Os rubis brilharam misteriosamente, enquanto ela o mostrava em sua mão. — Tinha caído do meu dedo e eu... eu não podia suportar a idéia de perdê-lo.
Sei. — Sua sacola de couro caiu nas areias. — Vá e vista seu sarongue. Tire o anel e coloque-o em sua carteira. Não queira ter uma segunda chance de perdê-lo!
Temple saiu de seu vestiário improvisado, dessa vez preparada para os possíveis comentários cínicos de Ryk a respeito de seus ombros e pernas magras, ou então da possível deselegância de seu corpo dentro do sarongue curto. Sentou-se presa de estranha sensação, ao localizar o corpo alto e forte de Ryk, iluminado por um raio de luar que atravessava as folhas de uma palmeira, enquanto ele se dirigia, calmo e cheio de uma singular elegância, para o mar. Seu corpo másculo sumiu repentinamente por entre as ondas para surgir segundos depois, a brilhar sob a luz da lua, uns metros mais adiante.
Percebeu-a caminhando para o mar e olhou-a, vestida com o sarongue.
— Ele vai cair novamente, se o usar dessa maneira. — Seus dentes brilhavam num meio sorriso. — Prenda-o no ombro esquerdo. Olhe, espere que vou mostrar!
Ela sentiu o toque da mão de Ryk e não conseguiu evitar um passo para trás.
Você parece ter muito medo de que as pessoas a toquem, não é?
Não. — Ela respirou o ar leve e salgado. — Não, absolutamente, é que...
Sabe o que eu acho, Temple Lane? Que você precisa ser profundamente beijada. Isto a ajudaria a ser menos tímida. — Ele lhe segurou firme os ombros nus e ela estremeceu, fraca, com um medo terrível do que poderia acontecer. Sentiu-o inclinando-se sobre ela, mas tudo o que ele fez, com a face tão impassível quanto uma estátua de pedra, foi desamarrar o sarongue e amarrá-lo sobre o ombro dela.
Agora pode ficar sossegada. — O olhar de Ryk, de costumeira irreverência, estava cheio de desprezo e ironia. — Você pode até passar por uma garota nativa, se bem que possua os pés muito mais bonitos.
Obrigada! — Ela escapou dele e correu para o mar, a areia entre os dedos dos pés, as ondas quebrando alto para recolhê-la em seu abraço. Amáveis, tremulantes, escondendo-a de Ryk! Mergulhou, boiou sobre as ondas como um navio florido. Divertido, perigoso, Ryk nadou através das ondas, a mão dele sobre seu pé, sua perna, sua cintura.
Ela riu, escapando dele, e, na luz pagã da lua, nadaram até perder o fôlego. Então Ryk segurou-a de forma que ela não pudesse escapar e a fez nadar de volta para a praia com ele. Continuou a segurar a mão de Temple quando correu para longe das ondas que teimavam em persegui-los.
Ela se ajoelhou e observou a maré subindo, com cada polegada de seu corpo tremendo de frio.
— Toalha! — Ryk jogou-a para Temple e o braço úmido dele brilhou como cobre polido, ao luar. Ela começou a enxugar os braços e as pernas, vendo-o caminhar pela praia, recolhendo pedaços de madeira flutuantes de cima da beira da maré. Ele ia fazer uma fogueira! Eles iriam beber o vinho e comer o queijo ao lado das chamas azuis e enfumaçadas de uma fogueira!
Temple sentou-se, observando as espirais de fumaça levantando-se da fogueira e sentindo o calor do fogo em suas pernas. Ela e Ryk haviam-se vestido e ele parecia um pouco menos bravo. Uma mecha de cabelos atravessava sua testa e a luz da lua abrandava, naquele momento, suas feições severas.
Estendeu-lhe a caneca em que colocara um pouco do vinho tinto.
— Beba — disse, entregando-lhe a bebida, enquanto levava a garrafa para seus lábios. Ela sorveu o vinho e comeu um pedaço de queijo. O gosto foi bom, depois daquele banho entorpecedor.
A lua flutuava solene em sua meia concha, e as folhagens das palmeiras rangiam conforme a brisa soprava através delas.
— A lua, dizem os malaios, é mulher. Ela está presa por uma corrente e seu senhor está sempre puxando.
Temple olhou para Ryk por sobre a borda da caneca.
Os homens gostam de pensar que mantêm a mulher presa na extremidade da corrente, não é?
Gostam? — Seus dentes estalaram numa risada. — No meu modo de pensar, as mulheres são tão facilmente dirigidas quanto a lua o é na realidade. E são os homens que são puxados pela corrente, procurando sempre estar perto o mais possível de suas donas.
Ela olhou para o fogo e pensou na maneira como Nick se prendera aos encantos daquela mulher. Ryk, por sua vez, continuava amarrado à lembrança trágica de sua namorada de infância.
— A vida pode fazer alguém sentir medo — disse ela, pensativa. — Existem tantos erros que podemos cometer... e existem certos erros que, por mais que queiramos, não podem ser corrigidos.
— Que erros você estaria lastimando, agora? — O olhar dele fixou-se na figura magra de Temple, na luz da fogueira, e demorou-se na mão que usava novamente o anel de pérola e rubis. — Você está querendo acreditar que na verdade não deveria ter deixado seu noivo?
— Nós todos, por pensar que somos as figuras mais importantes do mundo, achamos que ninguém pode ter tido um romance mais triste e mais trágico do que o nosso — disse ela, como se o chicoteasse. — Você por exemplo, insiste na eterna veneração do relicário que fez daquele quarto azul e dourado do palácio...
Um silêncio inquietante seguiu-se. Um silêncio ameaçador, coberto pelo estrondo das ondas. Ela queria levantar-se e fugir correndo, pois algo amedrontador invadiu a expressão de Ryk e Temple percebeu que tinha ido longe demais.
Ele colocou a garrafa de vinho na areia e, vagarosamente, levantou-se com passos largos para o lado dela, perto do fogo, e rapidamente segurou a sua mão, quase esmagando seus dedos, quase furando a carne de sua mão com os rubis e a pérola do anel. Ele a puxou para si, e as estrelas se perderam, e a lua foi arrancada para fora de vista, e não havia nada, nada no mundo, a não ser a boca de Ryk sobre a dela, os braços dele segurando-a, apertando-a contra seu peito forte e másculo.
Cruelmente, ele forçava a cabeça dela e a beijava com violência, respirando forte entre os beijos longos, duros. Com seus lábios, percorria-lhe todo o rosto, seu jovem pescoço macio, que parecia pulsar como um frágil pássaro que desejasse escapar de uma armadilha.
— Não, Ryk! — implorava ela, cega de medo, contra seus maxilares duros. Porém, despreocupado, sem dar importância aos gritos da moça, encontrou com seus lábios ásperos, e estranhamente gelados, a suave cavidade dos ombros de Temple.
Então, com uma indelicadeza que foi igualmente dolorosa, ele a soltou. Seu tórax subia e descia, ofegante, seu queixo estava dividido pela sombra, e ela desejava chorar, porque não conseguiu entender como ele conseguia agir assim, tão cruelmente.
— Você pediu isso! — disse ele. — E para aprender a não ser presunçosa. Precisa tomar mais cuidado, garota! Não é por ser jovem que você pode dizer o que lhe vem à cabeça, sem medir nada.
— Vo... você não gosta da verdade! — Virou-se de costas para ele. — E sua própria presunção é algo de se admirar! Você acha que ninguém nunca amou antes, ou que ninguém seja capaz de passar a noite em claro desejando a companhia de alguém? Você certamente pensa que sou muito imatura para ter esta espécie de sentimento! Deve me achar muito criança para sentir a desilusão que senti...
Estava virada para o mar e admirava-o enquanto este subia. Temple sentia-se tão abalada que o chão parecia ter-se levantado, sob seus pés. Precisou fazer um esforço incrível para se controlar. Ela ouviu um chiado, enquanto ele apagava o fogo com a sobra do vinho. Este era, sem dúvida, um gesto significativo.
— Venha!
Seguiu-o, obedecendo àquela ordem que já lhe era familiar. E continuou a segui-lo enquanto caminhava em direção ao atalho que os levaria de volta à casa. Ele parecia conhecer o caminho como a palma de sua mão.
Subitamente, alguma coisa de asas largas e pretas desceu, parecendo voar direto em direção a Temple. Seus nervos já estavam à flor da pele; e, quando a criatura alada voou próxima a ela, Temple emitiu um pequeno grito, ficando petrificada, com as mãos sobre o rosto. Ela nunca ficara tão assustada em sua vida. Tremia, quando as asas passaram por seus cabelos e sumiram tão repentinamente quanto ao aparecerem. As mãos dele a tocaram e uma voz lhe disse, brutalmente, que era apenas um tipo maior de mariposa.
Não me toque! — as palavras saíram através das mãos que ela pressionava contra o rosto.
Não seja boba...
Não posso deixar de ser o que sou! Jovem, tola e sem a sua grande experiência de vida! — Ela estava à beira das lágrimas: — Eu... se aquilo era uma mariposa, então que tamanho têm os morcegos daqui?
Vamos, pare de tremer!
Ela tirou as mãos do rosto e olhou para ele com olhos marejados, e odiando-se por isso.
— Você nunca tem medo, não é? De nenhum bicho da floresta, mesmo de tigres, suponho. Mas você sabe por quê? É porque não tem mais sentimentos, sabe? Por nada e por ninguém!
Passou rapidamente por ele e apressou o passo. As lanternas da casa de chá brilharam na varanda e Temple não olhou para trás enquanto atravessava o portão e subia as escadas.
O teatro de sombras seria encenado no pátio do templo da vila e, quando sentou diante da máquina de escrever, no dia seguinte, Temple desejava que o dia passasse rápido, pois estava ansiosa para assistir ao espetáculo.
Ia muito bem no seu trabalho e agora datilografava o trecho em que Polyana escrevera sobre o nascimento de seu filho: "Uma criança de olhos imensos e espertos. Laurens parecia muito orgulhoso quando me viu e presenteou-me com um alfinete de jade belíssimo para usar nos cabelos, justamente como as mulheres do Oriente, para proclamar orgulhosamente a todos que tiveram um filho.
"Mas", continuava o diário "meu querido Laurens e eu sofremos um golpe terrível quando Jan tinha dois anos de idade. Ele foi mordido por um escorpião e, apesar de tudo o que fizemos, nos deixou como chegou a nós, parecendo um pequeno anjo, lindo..."
Temple suspirou e perguntou-se por que a vida reservava tantas provas de coragem para as pessoas. Pobre Polyana!
Pensou na mulher da pequena aldeia, Lontah, que estava para ter seu filho a qualquer momento. Era uma experiência maravilhosa, ainda que solitária, uma prova de fogo na vida de uma mulher. Para o homem, o ponto culminante dos desejos de realização pessoal.
O carrilhão soou sobre o armário envernizado e Temple viu que era hora de seu breken, como Ryk van Helden o chamava. Levantou-se da escrivaninha e caminhou até o pátio, onde sentou num banco morno pelo sol, ao lado do tanque de lírios-d'água. Observou as bonitas flores orientais, cor de pérola, que flutuavam sobre suas grandes folhas, que pareciam pratos.
Ranji trouxe-lhe uma bandeja com uma xícara de café, diversos pedaços de bolo de coco e fatias deliciosas de manga gelada.
— A nonya gosta de manga, então eu trouxe. — Dirigiu-lhe aquele sorriso de ouro e arrumou a bandeja ao lado dela, sobre o banco.
Uma ave azul, de rara beleza, pousou num galho próximo, mexendo sua cabeça graciosa com um penacho que lembrava uma coroa. Ela avistara os bolos de coco e parecia meditar sobre se devia ou não se atrever a saltar para um pouco mais perto. Ela esmigalhou um pedaço de bolo, rápida, ao perceber a tentação do pássaro. — Bom menino — disse ela. — Diga bom menino, bom menino.
Ranji sacudiu a cabeça para a inglesa, que, além de alimentar os pássaros, ainda conversava com eles. Pela idade dela, já devia ter um homem para cuidar, não uma máquina para nela bater suas mãos delicadas e pássaros para incomodá-la, enquanto fazia suas refeições.
— Você não me aprova, Ranji? — Riu para ele, e seu rosto parecia imbuído de uma espécie de encanto infeliz, que os óculos de aros de chifre, de alguma maneira, intensificaram mais ainda. — Esta é a forma que a figueira que não dá frutos arranjou para se distrair um pouco.
Ela sabia que, quando se referiam às mulheres solteiras, usavam esta expressão. Mas, para os homens da aldeia, ela, que já passara dos vinte anos, devia ser como uma árvore de galhos secos.
— A nonya está brincando — disse Ranji, com certa solenidade na voz. — Uma garota de Bayanura choraria, se não tivesse nenhum homem a quem pudesse dedicar sua vida.
Arrastando sobre as pedras do pátio os pés calçados com chinelos de palha trançada, a criatura desapareceu dentro do palácio. Temple bebia seu café e alimentava o pássaro insolente com migalhas de bolo. Outros da mesma espécie, porém menos atrevidos, gritavam das árvores, e o bailado suave das flores de lótus era encantador sob a luz brilhante do sol.
Cor de pérola e pálidas, com tantos segredos e mistérios quanto uma mulher apaixonada... Pensava nessas coisas, quando teve a nítida sensação de estar sendo observada. Presa de um temor que lhe percorreu todo o corpo, olhou ao redor, mas não havia ninguém perto da árvore de flores-da-lua. Fora imaginação sua pensar que alguém estivesse lá, observando-a por entre os movimentos naturais daquelas árvores e arbustos que compunham o jardim.
Seus nervos ainda estavam à flor da pele. Temia encontrar Ryk depois do que acontecera a noite passada, porque sentia-se incapaz de encará-lo sem lembrar-se de seu corpo envolvido dolorosamente naqueles braços bronzeados; sem lembrar-se da compressão violenta daquela boca e da respiração ofegante que tivera tão perto de si.
Temple levantou-se num salto, assustando a ave. O pássaro deu um grito agudo e voou. A garota voltou apressada para dentro do palácio, pretendendo concentrar-se naquele diário de um fantasma. Talvez Polyana tivesse voltado, devido à reabertura das páginas de sua vida, e agora vagasse pelo palácio e pelo jardim. Temple não temia esse ancestral de Ryk. Talvez pelo fato de também ser inglesa, com maneiras e sentimentos estranhos às pessoas entre as quais viera morar.
Temple logo foi absorvida pelo trabalho e, quando Ranji apareceu, com um envelope lacrado sobre uma pequena bandeja de prata, o entardecer já estava próximo. Um garoto da vila acabara de entregar o bilhete ao criado.
Ela examinou a letra delicada no envelope e não o abriu até que a porta se fechasse, quase em silêncio, atrás de Ranji. De qualquer maneira, era bastante provável que o velho empregado tivesse perguntado ao mensageiro de quem era. Estas pessoas do Oriente, pensou Temple, são tão inocentes e curiosas quando criancinhas.
Rasgou o envelope com uma pequena faca filigranada que Ryk tinha sobre a grande mesa, e abriu o papel dobrado em que estava escrito o recado. Era de Khun Lan. Pedia muitas desculpas para a nangsau, mas não podia cumprir a promessa de levá-la para assistir ao teatro. Acontecera um problema particular e esperava que ela não pensasse muito mal dele.
Sentiu-se desapontada e, então, brincando com a faca, ocorreu-lhe que nada a impedia de ir sozinha. Já havia travado conhecimento com algumas poucas pessoas da vila que não se importariam, caso se unisse a elas no pátio do templo para assistir a um de seus velhos teatros de sombras.
É, iria sozinha. Esperara ansiosa durante o dia todo e a perspectiva de uma noite solitária na casa de chá não lhe agradava. Mei desapareceria assim que servisse a refeição noturna e, embora Temple não se importasse com isso, era perturbador ficar sozinha com seus pensamentos e com os barulhos misteriosos que cercavam a casa de chá à noite.
Quando, ao término de seu dia de trabalho, Temple estava cobrindo a máquina de escrever, aquela costumeira figura alta surgiu na entrada de uma das arcadas. Ficou toda tensa e teve a sensação de que a ponta de um chicote tivesse açoitado todos os seus nervos. Foi um momento desconcertante para ela, pois desejava evitar encontrar-se com Ryk.
Não podia ficar indefinidamente com o olhar baixo, como se fosse uma escrava. Tinha que levantar a cabeça e enfrentar o olhar daquele homem que estava entrando na sala. Conforme Ryk se aproximava da escrivaninha, Temple ia-se afastando, até que se encostou no tampo da grande mesa. Um corpo, na defensiva, com um vestido azul de colarinho branco que emoldurava a pele clara de seu pescoço. Sem refletir sobre o que fazia, seus dedos se fecharam sobre a faca, que tinha a lâmina bastante afiada e brilhante.
Não precisa me atacar — disse ele, sarcástico.
Oh... — Ela olhou para a faca e largou-a como se o objeto a machucasse. — Eu... eu estou sempre brincando com isto.
Também acho que parece um brinquedo inofensivo, mas acredito que possa matar uma pessoa. — Seus dedos bronzeados percorreram as páginas datilografadas, prontas para serem inspecionadas. — Você tem trabalhado muito?
Acho o trabalho absorvente.
Neste passo, os diários logo estarão datilografados e prontos para os editores. Você está com muita pressa de ir embora da ilha?
Temple encontrou aquele olho cinzento que a interrogava.
Não tenho pressa alguma, mas aqui é calmo durante todo o dia e sou uma datilografa bastante rápida. Atem disso, a Polyana faz tal uso das palavras que me provoca curiosidade. Portanto, executo o trabalho com prazer e não me sinto entediada.
No domingo você falou algo sobre ir embora. Imaginei que estivesse sentindo saudade da vida da cidade. Teatros, lojas e os costumes de seu país.
Eu acabei de sair de uma experiência um tanto perturbadora. — Ela forçou uma risada, mas não podia mencionar os estranhos temores que sentia quando voltava à casa de chá. Se lhe contasse que desejava ficar em qualquer outro lugar, ele entenderia que ela se referia ao palácio. Não havia qualquer outro lugar em que pudesse ficar. Todas as casas da vila estavam ocupadas e Khun Lan tinha um quarto no bangalô ao lado do hospital. O bangalô de Alan?
Você e seus homens tinham acabado de me resgatar de uma caverna selvagem na praia.
— Não me esqueci. — Ryk foi até o armário envernizado em oue Ceavam as bebidas. — Você me acompanha num aperitivo?
Temple quis recusar, mas poderia parecer nervosa por ficar a sós com ele, naquele cômodo que refletia o colorido do pôr-do-sol.
— Aceito, mas bem pouco! — disse ela.
Ele a olhou com excentricidade, então pegou duas canecas baixas de uma prateleira do armário e misturou alguns ingredientes a uma aguardente local. O aroma forte de canela espalhou-se pelo ambiente, acompanhado do limão que ele cortara e espremera nas bebidas. Guardou as coisas que acabara de usar, fechou a porta do armário e virou-se para ela com as canecas em suas mãos.
— Um dia de trabalho duro merece um gole de aguardente. — Veio até ela e estendeu-lhe uma das canecas.
Temple sorveu a bebida forte, enquanto o sol se escondia rápido no vale e o perfume dos jasmins entrava despercebido através das janelas da sala. Um grande ramalhete de jasmins rebentara em flores, cobrindo grande parte de uma das arcadas e, agora que o crepúsculo já se fazia sentir, as flores se abriam para o toque aveludado da noite. Ryk acendeu uma lâmpada e a obscuridade foi substituída por sombras douradas. A luminosidade espalhou-se pelo rosto dele, de feições marcantes, que mostravam vigor, ousadia e um quê de desumanidade.
Embora percebendo tudo isso, Temple compreendeu que ele também tivera seus ideais. A morte trágica de Marta, sozinha, conseguira arrancá-los de seu coração.
As mãos dele pegaram um par de tamancos vermelhos que sempre ficava sobre o peitoril de uma das janelas. Estavam gastos e lisos como seda, pois eram bastante antigos.
Você já esteve tentada a calçá-los? — perguntou Ryk.
Algumas vezes — admitiu ela.
Você tem os pés pequenos. Eles caberiam em você.
Você está querendo sugerir que eu os calce?
Isso me divertiria muito.
Fitou-o, passando os dedos sobre a borda da caneca, e o bom humor dele deixou-a perplexa. Teria esquecido aqueles beijos lá na praia? Não o magoara, nem mesmo um pouquinho, ser chamado de insensível?
— Calce-os. — Ele lhe estendeu os tamancos e seu sorriso era levemente cínico. — Esses seus pés de boneca devem caber neles com bastante facilidade.
Gostaria de saber o que fazia para se entreter, quando eu não estava aqui para diverti-lo. — Os olhos castanhos de Temple refletiram a luz, quando o olhou e pegou os tamancos de suas mãos.
Eu também gostaria muito de saber — ele riu.
Temple abaixou-se, tirou as sandálias dos pés e calçou os tamancos vermelhos. Palhação entrara furtivo na sala, como uma sombra amarelada. Veio aos pulos, alegre, para Temple, que riu divertida quando sentiu a língua do animalzinho fazendo cócegas no dorso de seu pé.
Levantou-se e tentou caminhar com os tamancos. Tropeçou e teve que se agarrar em alguma coisa para se apoiar — o braço esquerdo de Ryk, musculoso e ainda morno pela ação do sol.
— Para uma longa caminhada, eles devem ferir muito os pés — resmungou ela.
Há alguns lugares na Holanda em que as mulheres ainda usam esse tipo de tamancos para andar pelos quintais de suas chácaras — comentou ele. — Você tem os pés mal-acostumados como todos os que vivem na cidade.
Alford não é uma grande cidade — replicou ela. — Tem três cinemas, um teatro, um restaurante chinês e dois supermercados. Ah, sim, já ia me esquecendo: e uma lavanderia!
A gargalhada dele ecoou macia e perigosa sobre a cabeça de Temple.
Você faz alguns comentários muito divertidos.
Mas estou falando sério. — Tentou caminhar novamente com os tamancos e, ao ouvir o tamborilar contra o assoalho, o filhote de tigre veio pulando e, querendo brincar, mordeu seus tornozelos. Ela quase caiu e, mais uma vez, Ryk estava pronto para segurá-la.
— Você é obstinada. — As mãos dele lhe pressionaram a cintura. — E muito britânica.
E você, muito holandês — retrucou ela. — Como um muro de pedras.
Você acha mesmo? — Ryk puxou-a de encontro a si, e Temple sentiu que morreria se ele agora resolvesse que tinha o direito de beijá-la todas as vezes que se sentisse aborrecido ou que não tivesse mais o que fazer nas plantações que administrava.
Deixe-me! — Ela levantou a mão direita e empurrou precipitadamente o queixo dele: — Não sou uma de suas pequenas distrações, uma de suas escravas que aparecem correndo, ao estalo de seus dedos!
Outra vez, foi como se a luminosidade brincasse em volta deles: como se uma tempestade tivesse entrado através das arcadas e preenchido o ar com sua eletricidade.
O que você quer dizer com isso? — Ryk falou aparentando calma. Mas por trás disso havia algo duro como aço, e aqueles dedos também pareciam do mesmo metal, quando Ryk apertou a cintura dela. Podia quebrá-la ao meio e jogar os pedaços para o lado... Assim parecia?
Vo... você sabe o que eu quero dizer. — O queixo do homem parecia de pedra, em sua mão, e as batidas do seu coração confundiam-se com as dele. — Não sou nenhuma criança que não sabe. Aprendi muito bem, em Lumbaya, que os homens têm uma atitude diferente para... com o amor.
Amor? Você tem concepções de uma criança de uma semana de idade, a respeito do que se sente quando se ama alguém. — O rosto dele parecia perigoso e áspero. — Você fugiu daquele rapaz, em Lumbaya, porque ele feriu seu orgulho. Você fugirá sempre que sentir a ameaça de que seu coração está se apaixonando. Para você é mais fácil fugir do que entregar seu coração a alguém.
Sem dúvida — disse ela, defendendo-se. — Se esse alguém não o quer na realidade.
O animalzinho ronronou com feliz indiferença e passava seu corpo roliço entre as pernas deles. Ryk soltou-a e Temple continuou sentindo a pressão das mãos dele em sua cintura, enquanto tirava os tamancos e calçava suas sandálias.
— Preciso ir embora para a casa de chá — disse ela. Não mencionou o teatro nem disse que tencionava ir vê-lo. Pegou a bolsa e certificou-se de que sua lanterna de mão estava lá dentro. — Isto é tudo?
Ele riu e bebeu o resto de seu aperitivo.
— Boa noite, então! — Ela atravessou a arcada com rapidez, roçando os ombros nos ramalhetes de jasmins, que deixaram seu perfume em seu vestido.
O atalho estava escuro, com as sombras das árvores; a lua estava oculta por suas folhas e a luz da lanterna, movendo-se à sua frente, parecia um olho perspicaz. A noite tropical estava repleta de coaxos, estrilos e vôos de pássaros agitados. Porém, ela estava pouco preocupada com os ruídos. Não era da noite, com seus segredos, que ela fugia...
O clarão dos lampiões dava um aspecto irreal ao pátio do templo, deuses de pedra e miniaturas de dragão haviam sido colocados de emboscada entre os cipós rasteiros e as árvores de chuva. Arvores muito estranhas, cujas folhas enrolavam-se para cima e, no decorrer da noite, juntavam umidade que soltavam em forma de chuva, tão logo o sol da manhã tocava as folhas e as abria.
Meio oculta por uma palmeira, Temple assistia à narrativa de ilusão e magia que os habitantes da ilha conseguiam com o uso de marionetes. O xale vermelho de seda indiana estava colocado levemente sobre ela e o lamento estranho das flautas, a concentração de cada pessoa que assistia à sombra da princesa sendo cortejada pelo demônio disfarçado de herói eram excitantes e pareciam pertencer a uma tradição muito antiga.
Temple fora notada pelos membros do auditório, quando chegara furtivamente e se juntara a eles. Aqueles olhos pretos, cheios de mistério, tinham-na observado com atenção, mas, como sempre, as pálpebras dos asiáticos, que eram como véus, baixaram e nenhum deles se dirigiu a ela. Supôs que era porque estava sem uma companhia masculina.
Os teatros de sombra eram interessantes e prendiam a atenção. Apesar de cada apresentação ser bastante longa, tanto as pessoas do auditório quanto as que mexiam cornos fantoches não davam mostras de cansaço ou de que o espetáculo estivesse no final. Temple não tinha intenção de ficar até o fim. A lua estava alta e ela tinha sua lanterna de mão, mas, ainda assim, seria uma longa caminhada, sozinha, para casa.
Tentou sair despercebida para não atrapalhar, enquanto pratos de metal tiniam e uma batalha se desenrolava atrás do biombo de sombras. O resto da vila estava bastante tranqüila e poucas luzes brilhavam atrás das venezianas de bambu que tinham sido fechadas por causa da noite. Ouviu o grunhido de um porco sob a plataforma de uma das casas e estava passando pelo hospital de bambu quando uma pessoa, ao descer rapidamente as escadas, deu de encontro a ela, quase atirando-a ao chão.
Temple acendeu a luz de sua lanterna muito apreensiva e o facho de luz iluminou um rosto angustiado, fazendo com que ela reconhecesse o rapaz, Guntur, o bonito cunhado do chefe da vila. Ele também era um dos contramestres de Ryk e a garota lembrou-se de que tinha um conhecimento superficial de inglês.
Guntur, o que aconteceu?
Nona Lane! — Ele hesitou, pois estava prestes a sair correndo _ Procuro por Khun Lan, mas não consigo encontrá-lo. Minha irmã vai morrer, sem um dokter.
E Madu, onde está? — Temple mencionou a enfermeira do hospital. — Uma criança está muito doente... — Mesmo sob a luz da lanterna, Temple percebeu que os olhos de Guntur estavam cheios de sofrimento e o rapaz estava para correr de volta para a casa do chefe da vila. Temple agarrou-lhe o braço.
Será que posso ajudar? — As palavras saíram antes de que pensasse realmente nelas. O que, afinal de contas, ela sabia quanto a auxiliar uma mulher com dores de parto, péssimas dores de parto, pelo olhar de medo nos olhos de Guntur?
Você é enfermeira? — perguntou ele, ansioso.
Não, mas sou uma mulher e posso ajudar.
Então venha! — puxou-a pela mão e precipitaram-se juntos em direção à casa do chefe da aldeia. Degraus de madeira levavam à varanda da residência de telhado de sapê. A luz dos lampiões a querosene brilhava atrás da cortina divisória de bambu, que Guntur levantou para que Temple pudesse entrar no cômodo enorme em que a família morava.
Um homem e uma mulher de idade avançada viraram-se da beira da cama baixa, e seus olhares inquiridores tiveram o efeito de uma chicotada sobre Temple. Guntur deu uma explicação rápida. A garota não tinha idéia do que ele dissera, porém o marido de Lontah evidentemente acreditou que ela era tão hábil quanto Khun Lan, pois cedeu-lhe o lugar à beira da cama e lançou-lhe um olhar suplicante para que livrasse sua mulher de tanto sofrimento.
O suor escorria abundante pelo rosto de Lontah; grudava-se em seus cílios e acumulava-se em gotas entre seus lábios. Ela estava deitada sobre uma esteira de bambu e sua cabeça tinha um único travesseiro. Nos momentos em que a dor aumentava, arranhava o bambu, que estava marcado por suas unhas. E, agora, olhava Temple com os olhos arregalados de uma corça angustiada.
Seu marido falou com ela. Ela lhe retribuiu as palavras de carinho, dando-lhe uma imitação de sorriso, pois, em seguida, outro espasmo percorreu seu corpo e ela começou a gritar incoerentemente.
Lágrimas transbordavam dos olhos e desceram pelo rosto do chefe da aldeia, que olhou para Temple de uma maneira que ela nunca mais esqueceria. Lontah era sua esposa amada e, se ele a perdesse, o dia passaria a ser tão negro quanto a noite. Parecia que a dor que sua esposa sentia era superior àquela que toda mulher sente até dar à luz. Temple precisava fazer algo!
Entendeu instintivamente que o parto não estava indo muito bem. Alan Kinraid dissera que Lontah passaria por momentos difíceis e desejou que uma oração pudesse trazê-lo naquele minuto, calmo, seguro e equipado com o conhecimento necessário para ajudar Lontah ao máximo.
Lontah estava cansada, e isso era um mau sinal. Tinha que lutar e necessitava de alguém que tivesse vigor suficiente para ajudá-la e encorajá-la a lutar.
Temple virou-se para Guntur.
— Você deve buscar tuan van Helden — disse com firmeza. — Vá rapidamente, muito, muito rapidamente.
A divisão de bambu chacoalhou quando o rapaz a atravessou correndo, e Temple fez a avó entender que precisava de uma tigela com água fria e um pano para banhar o rosto de Lontah. O chefe da cidadezinha parecia incapaz de fazer qualquer coisa a não ser ficar ajoelhado ao lado da cama, observando a face da esposa, deformada por aqueles espasmos que enchiam os olhos dela de um desespero incontrolável.
Lontah tinha quase quarenta anos. Dar ao marido um filho em sua maturidade seria a coroação de sua vida. Porém, a dor terrível a estava esgotando, tirando toda sua força, e só não a abatia mais porque não podia acreditar que não possuía um físico capaz de trazer à luz seu filho desejado.
Temple banhou o rosto de Lontah, tirando-lhe o suor, e a velhinha começou a resmungar baixinho, de maneira monótona. Dizia uma oração para o nascimento e o lampião iluminou-a como se fosse um ídolo enrugado: as mãos velhas, apertadas uma contra a outra. A fumaça do querosene se misturava ao cheiro do suor e ao sofrimento de Lontah.
Temple também orava, mas não tinha muita consciência disso. Pedia que Ryk chegasse logo e trouxesse com ele a energia que estava fugindo de Lontah.
Finalmente escutou passos pesados nos degraus de madeira do lado de fora. Sentiu que traziam força e decisão. A cortina de bambu foi empurrada para um lado e, gradualmente, uma sombra alta foi aparecendo, refletida pela luz dos lampiões em todas as paredes do aposento.
Você agora é parteira? — Ryk parecia raivoso, exasperado, até mesmo um pouco aflito. Temple virou-se para olhá-lo e sentiu um aperto forte dos dedos de Lontah em sua mão, quando a dor voltou a torturar, e dilacerar e arquear aquele corpo em que uma criança fora gerada.
Ajude-a! — implorou Temple. — Não há mais ninguém com a sua determinação! Trata-se da vida de uma mulher e de um bebê, e você disse que tinha que fazer as vezes do médico, quando Alan Kinraid não estivesse aqui.
Calma! — Ele pousou a mão sobre o ombro dela, enquanto se voltava para falar com o chefe da aldeia, e então olhou de maneira longa e penetrante para Lontah. — Deve ser um garoto preguiçoso. — Um breve sorriso tocou sua boca. — Um jovem elefante, hein?
Nos olhos da mulher que sofria tanto apareceu a sombra de um sorriso compreensivo, enquanto fitava Ryk.
Um bebê elefante! Temple emocionou-se e sentiu um nó preso na garganta. Teve vontade de sair gritando de felicidade e de alívio, ante o sentimento de esperança e de força que Ryk trouxera para a casa. Não havia ninguém, ninguém no mundo como ele.
— Temple — os dedos dele apertaram gentilmente seu ombro —, vou carregar Lontah para o hospital, onde ela pode ser colocada numa cama apropriada. Guntur me contou que Khun Lan não foi localizado e a enfermeira está ocupada com uma criança muito doente, não é? Então nós devemos fazer, tudo o que pudermos para ajudar e que o bom Tuhan nos ajude, se deitarmos isto a perder.
Temple olhou para ele, não compreendendo absolutamente nada do que queria dizer.
Nós estamos quebrando um tabu — disse ele, parecendo muito apreensivo. — Se Lontah morrer, e com ela a criança, a culpa recairá toda sobre nós e os deuses estarão com as faces viradas.
Ryk... —Agora ela percebia o que fizera. Tinha colocado sobre ele um encargo que mesmo Alan Kinraid, com toda sua prática médica, talvez não assumisse. Naquele caso, seria aceito que um dokter fizesse tudo o que podia por sua paciente, mas Ryk não era um médico!
Venha, temos muito trabalho a fazer! — Ele se virou para Guntur e disse-lhe que corresse até o hospital e pegasse um cobertor. — Você vai com ele. Vá arrumando uma cama apropriada para Lontah.
A noite estava fria. Um vento roçava as folhas das palmeiras e as pessoas estavam em suas varandas de bambu entrelaçado, observando silenciosamente o movimento, quando ela e Guntur foram da casa do chefe da aldeia para o hospital. Elas tinham pressentido o que estava acontecendo e, em algum lugar, um tambor de couro estava sendo batido, rítmica e suavemente. O instrumento ecoava as batidas do coração da jovem inglesa, intensificando sua consciência de que a ilha e seu povo eram essencialmente pagãos.
Houve um tamborilar como se chovesse, enquanto as folhas das árvores-de-chuva desenrolavam-se ao primeiro toque do sol da manhã.
Subitamente, ouviu-se o soluço de uma criança que viera ao mundo quase sem vida, e Temple pôde sentir presa a sua própria respiração, quando Ryk respirava mais uma vez dentro da pequena boca do bebê. Desta vez o bebê movimentou-se e, então, o pequeno tórax começou a ofegar e tomar o ritmo da respiração normal.
— Chore, pequeno! — Ryk sussurrou suavemente, sua grande mão movendo os pequenos membros e acariciando as costas e o peito aveludados. — Vamos, um choro forte para que sua mãe possa ouvi-lo.
Temple abaixou-se sobre Lontah, que estava deitada, muito tranqüila, com os longos cílios imóveis em sua face dolorida. Parecia estar muito longe dali para ouvir qualquer coisa, mesmo seu filhinho.
E então, certamente o som mais agradável, mais primitivo do mundo, o primeiro choro saiu do filho de Lontah. Seu marido retesou-se como se sentisse um golpe no coração e, como o bebê começasse a chorar com mais força, a mãe começou a abrir os olhos, cujas pálpebras estavam pesadas. Eram grandes olhos negros, que se encheram de maravilha enquanto raios de sol entravam no cubículo e resplandeciam nos cabelos do homem que segurava seu filho.
Ryk colocou com muito cuidado a criança na cama ao lado da mãe que, embora esgotada, tentou enrolar o filho com um braço. Lontah sorriu e olhou com eloqüência para seu marido, que apenas acenou com a cabeça, pois a emoção lhe travava as palavras na garganta. Sua velha mãe — que observara com olhos ameaçadores enquanto Ryk dava ao bebê o beijo da vida — agora pegara em sua mão direita e esfregava-a em sua testa, com grande respeito.
O olhar de Ryk fixou-se em Temple. Fez um leve movimento com a mão e ela o seguiu, silenciosamente, em direção à porta de saída.
Caminharam através do pátio e pararam sob uma palmeira. Ryk encostou-se na árvore, acendeu um charuto e soltou uma luxuriante nuvem de fumaça. Temple esticou-se preguiçosamente e sentiu o calor do sol sobre a pele. Tudo estava tão vivo esta manhã, as cores, a atmosfera, o ar que ela respirava.
— Lontah tem um belo bebê — murmurou ela, com a voz rouca. — Obrigada!
Ele examinou-a através da fumaça, e sua barba, curta, dourada, brilhou num raio de sol. Os cabelos dele estavam umedecidos e despenteados, ainda assim havia um esplendor sobre o homem, uma afinidade com a natureza, um instinto para tentar resolver problemas em que outros homens teriam vacilado. Ela pensou nele e em Lontah, e viu os ferimentos pequenos e profundos nas mãos dele, onde a mulher havia agarrado... e foi então que a criança tinha se virado novamente e, num espasmo final de dor, nascera. O bebê parecia morto ao nascer e até mesmo enquanto a avó tinha caído em prantos, Ryk o pegara, limpara-o e insuflara a vida para dentro do pequenino corpo.
Não cometa enganos. — Ryk falou um tanto severamente. — Não sou médico, e o drama da noite passada não gostaria de experimentar novamente. Khun Lan teria sido útil na ausência de Alan.
Ele não estava de plantão. — Ela puxou uma pequena orquídea silvestre, deixando uma fenda no tronco da palmeira. — Ele me convidou para assistir ao teatro com ele, então mandou-me um bilhete dizendo que um problema pessoal acontecera e que não poderia levar-me.
Você foi ao teatro sozinha, hein?
E gostei muito...
Não acredito que tenha entendido metade do espetáculo.
O suficiente para ficar fascinada. Era um pouco tarde quando estava indo embora e foi então que dei de encontro com Guntur e me ofereci. Bem, achei que podia fazer alguma coisa para ajudar.
O sol não estaria brilhando tanto, nem os pássaros seriam tão arrebatadores para você se... se as coisas tivessem saído erradas — Ele jogou a ponta do charuto no chão e a trituração do salto do seu sapato sobre ela foi significativa.
Temple sentiu um aperto no coração, enquanto olhava para Ryk. Nenhuma vez, até aquele momento, ele evidenciara qualquer sinal de nervosismo. Mas ela não podia esquecer que ele estava acostumado a tratar de acidentes na feitoria de chá, algumas vezes mordidas de cobra no vale, ou algum outro infortúnio, mas a noite passada fora a primeira vez em que ele tinha lidado com um trabalho de parto demorado e o necessário socorro ao recém-nascido. Agora, Temple entendia porque ele parecia cansado e um tanto nervoso.
— Preciso de uma ducha fria, uma barbeada e um suculento café da manhã — disse ele. — Espere, que vou trocar umas palavras com a enfermeira, e depois voltaremos ao palácio.
Enquanto ele permanecia no hospital, Temple brincava ociosamente com a orquídea silvestre e observava as pessoas em suas tarefas matinais. Uma mulher sacudia as esteiras de dormir da família, enrolando-as depois, primorosamente. Outras saíam para o córrego com trouxas de roupas para lavar na cabeça, e uma garota cantava enquanto ensaboava a filha pequena e a colocava num balde para tirar a espuma.
Havia uma atmosfera de alegria no ar. As pessoas sabiam, cada uma delas sabia, que o chefe da aldeia tivera um filho — esquecidas estavam as suspeitas da noite anterior. Elas mostravam os dentes em sorrisos quanto Ryk acompanhava Temple para fora da aldeia e, subitamente, uma das mulheres atravessou correndo e estendeu-lhe uma cesta de frutas.
— Obrigada! — Temple esqueceu as palavras locais em sua confusão. — Muito obrigada.
A mulher fez uma reverência e recolheu-se com graça num xale de muitas cores.
Ela diz que você traz sorte para a vila — traduziu Ryk.
Trago? — Temple segurava a cesta como se contivesse ovos de ouro. — De qualquer maneira, me alegra saber que pensam isso de mim.
Ryk pegou uma das bananas douradas, descascou-a e comeu a fruta com apetite.
Você se importa?
Você a merece! Pegue outra.
Ele aceitou a oferta, enquanto ela descascava outra para si.
Passaram-se alguns dias e tudo ia bem com Lontah e seu filho. Quando o ruído de um aeroplano roncou sobre a ilha, no fim de semana, Temple olhou para cima e um sorriso tocou seus lábios. Alan estava circulando a pista de aterrissagem e, com sorte, sua visita seria relaxante, agora com Lontah fora de perigo e com a criança, que passara tão mal no hospital, já em convalescença. Já havia feito sua refeição da noite e estava deitada com um livro, quando passos soaram na varanda da casa de chá. Ela sentou-se e arrumou os cabelos, ficando pronta com um sorriso de boas-vindas, para quando Alan empurrasse a porta divisória e entrasse na sala. Ele vestia calças brancas e uma camisa com estampado alegre, e seu sorriso era bom de se ver.
Olá! — Levantou-a da poltrona de junco e ficou olhando para ela. — Como vai a obstetra?
Então você já soube? — Ela riu e era divertido sentir menos acanhamento com este homem do que com Ryk van Helden. — Lontah e meneer fizeram a maior parte do serviço. Eu fiquei por perto e apenas ofereci coragem.
Tenho certeza que você foi de uma grande ajuda. — Ele sorriu de modo afetado e olhou-a. — Você está parecendo muito bem, Temple. Um toque de sol fica bom em você.
Nunca consegui ficar bronzeada na Inglaterra, nem mesmo quando tínhamos um bom verão. — Ela livrou suas mãos das dele.
— Posso oferecer-lhe uma bebida, doutor?
— Nós combinamos que devíamos nos tratar pelo primeiro nome — repreendeu-a. Aceito uma bebida fraca e gelada.
Ela percebeu a nota de segundas intenções na voz dele, e foi rapidamente para o lado da mesa na qual estavam diversas bebidas. Ranji trouxera do palácio outro dia, com os cumprimentos de meneer: Lima e gim, uísque e soda limonada, rum e limão.
— Vamos precisar de gelo — disse para Alan e deixou-o à vontade, indo à cozinha pegar algumas pedras de gelo do pequeno refrigerador que funcionava a querosene. Mei estava acabando de entrar pela porta dos fundos e, por um momento, a cozinha encheu-se dos barulhos de fora. Mei nunca dissera aonde ia e quem era o homem com quem se encontrava, e Temple nunca tivera coragem de perguntar...
Ela sentiu a outra seguindo-a com os olhos, quando foi da caixa de gelo para a mesa, e abriu uma lata de biscoitos de queijo. — Convidei o dr. Kinraid para beber algo em minha companhia — disse Temple.
— Mem gostaria que eu levasse mais comida?
Não. — Temple pôs os biscoitos redondos dentro de um prato. — Espero que ele tenha jantado no palácio.
Oh, sim! — disse Mei. E, quando Temple olhou em sua direção, a pequena boca vermelha sorria um pouco divertida e um pesado bracelete de prata, com fivelas, brilhava de maneira selvagem no braço bem torneado da jovem asiática. Temple não vira aquele adorno antes com Mei. Sem dúvida acabara de ganhá-lo de alguém.
Mem e o dokter vão querer café mais tarde?
Temple negou com a cabeça e saiu depressa da cozinha. Na sala seu sorriso para Alan foi mais do que simplesmente agradável. Foi de alívio, por ver uma pessoa amiga, sem complicações e sem segredos no olhar.
Espero que tenha jantado no palácio — disse.
E como! — Alan estendeu as pernas sobre o carpete feito de tecidos vegetais. — Ryk é um verdadeiro holandês, adora estar diante de uma boa refeição, sempre que pode.
Ele mandou estas bebidas, portanto posso ser uma anfitriã adequada. — Temple desviou os olhos da mesa de bebidas. — Os americanos gostam de uísque, não gostam?
Os americanos gostam de tudo que tem uma dose de espírito dentro. — Mais uma vez, o sorriso dele era significativo. — Uísque, limão e gelo, mel.
Não tenho mel — disse ela maliciosa, entendendo a insinuação do médico, e misturou a bebida. Seu copo estava com mais suco de limão do que qualquer outra coisa, e ela evitou o sofá de junco para sentar-se em uma cadeira de tecido vegetal e iniciar a conversa que deveria correr tranqüila e sem incidentes.
Aqui estamos nós, mostrando que nossos países mantêm boas relações. — Ele levantou o copo e tomou um gole satisfatório. — Como está indo o trabalho nos diários?
Sem empecilhos, até agora. — Ela afagou o copo e estudou a cabeça bonita dele contra a almofada azul, de seda. Na companhia de Ryk, ele parecia ter cabelos castanhos. — Espero que aquele acidente, no domingo passado, não tenha tido conseqüências muito sérias.
Lamentei muito ter que partir daquela maneira, Temple. — Uma ruga atravessou sua testa. — Foi um caso de amputação, e eu odeio estas coisas, especialmente quando se trata de um homem forte e vigoroso. Foi um caso muito delicado, e demorou alguns dias, esta foi a razão por que só pude voltar hoje. De qualquer maneira, dei uma olhada em Lontah e no menino dela, e ambos estão bem. Ela me contou que seu filho se chamará Dahan Ryk!?
— Sim. — Temple sorriu com os olhos voltados para o copo. — Meneer é um homem enigmático. Pensei que fosse completamente insensível, você sabe, porque não mostrou nem um pouco de compaixão por mim, devido à minha experiência horrível de Lumbaya. Eu nunca encontrara um homem completamente adulto, antes, mas agora sei que ele reserva compaixão para as coisas grandes e não as desperdiça com namoricos de moças românticas.
Alan riu indulgentemente.
Você parece um pouco diferente, Temple. Ainda de olhos arregalados, mas como se tivesse visto coisas maiores do que tinha visto antes.
Eu me sinto... privilegiada! — Ela fitou-o, a lâmpada refletida em seus olhos castanhos. — Você deve se sentir assim freqüentemente... salva vidas e bebês todo o tempo.
Este é o meu emprego. Posso me servir de outra bebida?
Lógico!
Quer que a sirva?
Ela negou com a cabeça e, enquanto ele se ocupava com as garrafas e o gelo, Temple assistia ao jogo de sombra de uma mariposa sob o abajur. Seu zumbido tinha um som baixo e desvairado. Não poderia resistir por muito tempo dentro daquela redoma iluminada.
Alan, com a bebida nas mãos, olhou ao redor da sala.
— Você tornou este lugar muito agradável. Cortinas e almofadas novas, hein? Flores nos vasos e alguns ornamentos. Isto faz toda a diferença... Diga-me, Mei Flor ainda está com você?
Sim. — Temple apontou o prato de biscoitos. — Por favor, Alan, sirva-se.
Obrigado. — Ele mordeu um biscoito e lançou um olhar para a cortina de bambu. Tudo estava calmo do outro lado. — Ela certamente é muito discreta.
Mei entra e sai como uma sombra. — Temple sorriu com o nervosismo que sempre sentia quando pensava na criada, nas maneiras enigmáticas dela. — Você vai ficar para o fim de semana, Alan?
Ele concordou. — Tudo está indo bem. Você vem comigo em meu avião, quero dizer amanhã?
Seria divertido, uma nova experiência para mim.
Você gosta de experiências novas? — Ele estava mexendo com os botões do pequeno rádio que algumas vezes funcionava e deixava a música fluir sem gastar muita eletricidade. Captou uma estação de Bangpalem, e a música que começou a tocar era suave e romântica. Uma melodia para dançar, bem velha, flutuou dentro da sala. Alan cantarolou guturalmente uns poucos compassos.
Sinta-se feliz — disse ele — por não termos encontrado uma música daqueles grupos que batem sem piedade numa bateria e arranham uma ou duas guitarras, como se fossem banjos, gemendo para as garotinhas apaixonadas que acompanham esses conjuntos.
Temple riu, e assustou-se quando Alan tirou o copo da mão dela e puxou-a da cadeira para seus braços. A sala era bastante grande e, sendo tropical, não estava atulhada de móveis. Era um cômodo ideal para se dançar.
É uma vergonha desperdiçar boa música — murmurou ele.
E eu não sou boa dançarina, desculpe-me — enquanto ela tropeçava nos pés do médico, o braço dele apertava-se em volta de sua cintura.
Relaxe, doçura. Enquanto você estiver tensa deste jeito nunca conseguirá entrar no ritmo da música. Qual é o problema? — Ele inclinou a cabeça junto à orelha dela. — Você está nervosa por minha causa?
Por que eu deveria estar nervosa? — defendeu-se ela.
Nós estamos a sós e tenho você em meus braços. Estava certo de que ficaria desta maneira, fria e envergonhada, assim que eu a tomasse em meus braços...
Não, Alan! — Ela virou a cabeça para o lado, rapidamente, e os lábios do médico tocaram o lado de seu pescoço.
Você é atraente, Temple — disse ele com a voz rouca. — Eu pensei muito em você durante a semana passada e ansiei muito por nosso encontro.
Você queria me ver ou tirar vantagem do fato de eu estar sempre sozinha aqui? — Tentou livrar-se de seus braços, mas as mãos dele estavam entrelaçadas por trás de sua cintura e seus esforços somente o trouxeram para mais perto. Alan sorriu, com uma mecha de cabelos na testa.
Você já leu Swinburne? — caçoou. — Ele devia ter uma garota como você em mente quando escreveu "Pele suave e morena. Um pescoço feito para morder!" Você não pode ter uma pele de mel tão linda, os olhos amendoados e não esperar que um homem resista a isso. — Seus lábios encontraram o pescoço de Temple e ela sentiu seu respirar ritmado. Alan estreitou-a ainda mais em seus braços. O médico tinha o corpo colado ao seu, beijava seus cabelos e Temple não conseguiu sentir a mesma sensação de desamparo, a mesma ansiedade que sentira quando estivera na praia... em outros braços.
Você foi muito magoada, Temple — suspirou Alan em seu ouvido. — Nós todos passamos por isto até aprender a não levar a vida tão a sério. A vida precisa ser desfrutada, e eu conheço o lado cruel dela para saber muito bem do que estou falando.
O que você quer dizer com desfrutar? — reclamou ela. — Para mim, isto significa nadar com alguém ou ouvir música, ou caminhar. Ser sociável, e não ficar envolvida em um caso somente para obscurecer o lado horrível da vida. Para onde isto tudo pode conduzir?
Você acha que é isso que eu tenho em mente, Temple? Um caso?
Ficaria surpresa se não fosse. É porque estou aqui, porque você pensa que eu estou disponível...
Isto não é verdade, menina precipitada. — Ele riu, e fez uma careta divertida. — Quando você começou a ter a idéia de que não é digna de ser amada? Foi na sua casa na Inglaterra? Ou quando chegou em Lumbaya e viu seu noivo, que não fez um jogo limpo?
Você é um clínico geral, Alan, não um psicólogo.
Sei o suficiente sobre o assunto para reconhecer algum sintomas. Você acredita seriamente que um homem só iria querer você como um passatempo, hein? Quando não houvesse ninguém por perto?
Aprendi, há muito tempo, que os homens preferem os ornamentos às utilidades — retrucou ela. — Sempre fui capaz de fazer uma boa xícara de chá, doutor, até mesmo assar um bolo, para os outros comerem até saírem, de repente, para um baile ou para o teatro. Sempre fui tímida, você sabe. E isso não só por não ser ousada, não ter curvas arrebatadoras, ou não ser loira. Sempre fui muito tímida, e ninguém, até mesmo Nick, se preocupou em saber se eu podia ser uma garota interessante ou agradável.
Essa época já passou, Temple — Alan falou firmemente. — você se encontrou e, acredite-me, não precisa ser ousada, ou ter curvas arrebatadoras, ou ser loira, para ser uma garota que entra no pensamento de um homem e fica lá. Além disso — ele sorriu — nunca gostei de champanhe, porém sempre apreciei uma bebida que vá direto ao coração, e não à cabeça.
Ele conseguia ser muito persuasivo, pensou ela, e deu-lhe um pequeno sorriso. Ele retribuiu, e Temple ficou desarmada. Alan Kinraid verdadeiramente gostava dela por ela mesma. Não estava ali somente falando estas coisas porque sentia solidão.
Você encantaria até o cuco de um relógio — disse ela, suavemente. — E falando em relógios...
É hora de eu ir embora? — Ele pegou-a pelos ombros e examinou o rosto que olhava para ele. — Ninguém consegue não se envolver com ninguém por aqui, Temple, mas estou começando a acreditar que você sim...
Você não me conhece bem, Alan. — Afastou-se dele, e seus cílios velaram seus olhos. Caminhou para a porta divisória e ele a seguiu para fora, até a varanda. A lua em breve estaria cheia e os tambores da festa ecoariam por todo o vale. O Rei Dragão seria homenageado e o nascimento do filho do chefe da aldeia seria celebrado.
Nunca imaginei que as estrelas pudessem ser tão grandes e brilhantes — disse ela.
Alan tocou o rosto dela muito levemente. — Você tem uma saliência muito atraente nos ossos de sua face, Temple.
Mais terapia, doutor? — Ela deu um sorriso brincalhão e inclinou-se contra o gradil da varanda. — Você vai ficar aqui para a Festa da Lua?
Se você realmente quisesse que eu estivesse aqui para a festa, e se tudo estiver bem com meu rebanho disperso...
O que eles fariam sem você? — perguntou ela, sinceramente.
Eu me faço útil, porém a espinha dorsal destas ilhas é feita de homens como Ryk, e o rapaz que perdeu a perna. Sem eles, Temple, as ilhas se transformariam em selva de novo. As pessoas que vivem nas ilhas lutariam pela sobrevivência, pois sempre há palmeiras, as frutas e as batatas-doces, e peixes no mar. Mas homens foram feitos para ser mais do que os macacos, dizem.
Mijnheer van Helden certamente é capaz de competir com sucesso, em muitas situações. — Ela não conseguiu disfarçar o constrangimento na voz, pois desde aquela manhã do nascimento do filho de Lontah, quando ela e Ryk tinham caminhado para casa juntos, dividindo o presente de frutas entre eles, ele tinha estado frio e indiferente para com ela. Como se estivesse arrependido de ter passado com ela aquela experiência. Como se a tivesse excluído novamente de sua vida particular e a houvesse lembrado, com seu comportamento distante, que ela era somente sua secretária e nunca seria uma parte integrante de seu mundo na ilha.
Você não acha muito fácil conviver com Ryk, não é, Temple? Alan chegou mais perto. — Estou um pouco contente com isso. Certamente ele possui um ar de capitão pirata, que a teria feito se apaixonar, caso ele desse oportunidade.
Você me considera uma criança, Alan?
Você deve imaginar como eu a considero. — Ele colocou as mãos na cintura fina da garota. — Você não quer voar comigo, Temple?
Amanhã à tarde, doutor! — sorriu maliciosa.
Sua inglesinha esperta! — Ele inclinou a cabeça em direção a ela. — Não vai me beijar, nem para ser agradável?
Ela sorriu e deu-lhe um beijo leve no rosto.
Doce garota — disse Alan, e os olhos dele demoraram-se nos lábios de Temple antes que a deixasse ir. — Nós dois temos um monte de vida para viver, e nenhum de nós quer fazer isso sozinho. Você me entendeu?
Como se tivesse lido em um livro, dr. Kinraid.
Ele gargalhou, enquanto descia a escada da varanda para o pátio. — Vejo você amanhã depois do almoço. Acredito que vá trabalhar toda a manhã, não é?
Como você.
Que criaturas respeitosas nós somos! Amanhã tenho que extrair um dente.
Pobre Alan?
Eu espero que minha mão não trema na hora, pois certamente estarei pensando em nosso passeio de avião.
Coitado do homem que vai extrair o dente.
Boa noite, wanita. — Havia uma nota melancólica na voz dele. — Durma bem.
Durma bem, doutor, dentista e conselheiro.
Ele estava rindo enquanto vagueava através do pátio para o pequeno portão
. Abriu-o e saiu, e Temple respondeu ao aceno dele, observando-o até que desaparecesse entre as grandes árvores.
Ela inclinou-se por uns poucos minutos sobre o gradil da varana e pensou o quanto ele era amável. Sorriu. Não era um homem que quisesse aproveitar-se dela simplesmente para vangloriar-se mais tarde. Ele esperava que aquele encontro deixasse uma impressão; que ele tivesse despertado nela algo mais que uma boa amizade.
Então retesou-se assim que ouviu distintamente o ruído de algo rastejando. Sua pele arrepiou-se enquanto se afastava. Chegou à porta divisória e correu para dentro da casa, batendo a porta.
Sob a beleza da noite, na ilha, havia seres estranhos que podiam amedrontar e ferir. Ela sentiu um calafrio e foi para a cozinha fazer uma xícara de café.
Enquanto acendia o fogão e colocava a chaleira para esquentar, percebeu um perfume penetrante. Olhou ao redor e viu um buquê de flores amarelas num vaso chinês. Jasmins, ainda completamente frescos, como se arrancados essa noite do jardim do palácio. Eles cresciam em profusão ao lado da arcada de fora da sala em que trabalhava e, quando o crepúsculo caía, seu aroma era forte.
Lembrava agora que, quando Mei entrara na cozinha, mais ou menos uma hora atrás, os jasmins estavam arranjados em seus cabelos pretos. Jasmins amarelos e perfumados, do jardim de Ryk van Helden...
Temple tomou seu café e foi dormir. Talvez tenha sido o café que forçou aquele meio sonho, meio pesadelo, que a fez acordar assustada. Sonhou que um escorpião enorme rastejava em seu quarto.
Sentou-se, sentindo calor e tirando as cobertas. Alcançou a lâmpada e suas mãos tremiam quando a acendeu. A luz dissipou alguns de seus temores e começou a arrumar as cobertas da cama, para deitar-se novamente. Instintivamente olhou para cima, para a argola que prendia o véu que formava uma tenda sobre sua cama e viu claramente o contorno de algo, preto, grudado no véu de cor clara, logo acima de sua cabeça.
Por alguns momentos, não conseguiu respirar, tão assustada estava. E, durante este tempo, pensou como faria para sair, sem mexer muito no véu. Com cuidado, Temple saiu da cama, os olhos fixos no pano transparente. Sim, havia alguma coisa grudada no lado de fora do véu; estava agarrada ali, misteriosamente, porém parecia estar sonolenta, imóvel, mais tranqüila do que ela, parada no meio do quarto, com os punhos fechados.
O que devia fazer?
Encolheu-se ao pensar em gritar para Mei, que sorriria com aquela insolência mal dissimulada, que fazia Temple querer agarrar em seu pescoço e sacudi-la.
Temple sentiu-se com muita raiva, pois não podia fazer nada, apenas ficar ali, como uma gelatina a tremer. Sentia-se tão inútil e covarde... Mijnheer, calmamente, sacudiria aquela coisa horrível do véu, e a mataria com o salto do sapato e voltaria, calmo, para o sono!
Juntou toda a sua coragem, aproximando-se do véu, pelo outro lado da cama, e o sacudiu. Nada aconteceu; o que era de se esperar. Outra vez, sacudiu o pano, menos timidamente, e então pulou para trás, com um grito reprimido na garganta, quando a coisa misteriosa caiu do véu sobre o tapete ao lado da cama, onde permaneceu imóvel.
Temple não conseguia se mover. Alguns segundos se passaram e então, com um sapato na mão, aproximou-se do tapete cuidadosamente e observou com muita atenção o monstro que a assustara tanto.
Era uma orquídea!
Uma orquídea pequena, roxa, bem escura, com garrinhas que se curvavam como pernas, e pétalas espessas que pareciam asas de um inseto listrado. Assustada, havia pensado que fosse uma aranha venenosa da selva... só que a flor havia sido colocada naquele lugar, deliberadamente, para dar esta impressão! Alguém procurara lhe causar um susto, consciente de que ela era medrosa.
Teve que se obrigar a pegar a orquídea — uma espécie da mata, que causava desagradável impressão — e depositou-a no jarro. Sentiu o corpo gelar, todo trêmulo, e então virou rápido o rosto para a porta de venezianas, que dava para a varanda.
Alguma coisa tinha se movimentado lá fora, ela tinha certeza. As venezianas revelavam que seu abajur estava aceso, e cada célula de seu corpo tinha certeza de que uma figura magra, de olhos pretos, estava parada lá fora, na noite, sorrindo sob os cílios sedosos.
Como a orquídea roxa, Mei era uma criatura da selva. Para alguns, ela podia parecer encantadora como uma flor... mas, para Temple, ela era tão sinistra quanto o embuste que lhe fizera com a orquídea.
Com decisão nervosa, Temple dirigiu-se para a porta, abrindo-a abruptamente. A luz da lua brilhava ao longo da varanda, e as árvores do pátio tomavam contornos estranhos. O ar estava vivo, repleto de mariposas e de sons agudos e graves das criaturas da noite.
Se alguém esteve parado do lado de fora da porta de seu quarto, arranhando-a com longas unhas para acordá-la, este alguém tinha sumido silenciosamente, deixando Temple a se perguntar se não sonhara!
Fechou a porta com um suspiro e compreendeu que devia pedir a Ryk que substituísse Mei... ou então encontrasse outra secretária para trabalhar com ele nos diários. A orquídea tinha sido assustadora, e Mei podia, na próxima vez, usar algo mais mortal para amedrontá-la e fazer com que fosse embora.
O pequeno aeroplano deslizava tão leve quanto um pássaro por entre as nuvens e, logo depois, baixando um pouco de altitude, deixou que admirassem o oceano resplandecente e as ilhas esparramadas pelos mares de Java.
Qual delas é Bayanura? — perguntou Temple a Alan. — Não, deixe-me adivinhar! Aquela que tem curvas como um dragão e é verde como jade.
O que fez você pensar em um dragão? — Alan virou-se, com um sorriso indolente.
São aqueles contornos. Veja, aquela parte ali, à esquerda, não lembra uma cauda de dragão?
Estou inclinado a perguntar se você tinha uma certa pessoa em mente. Durante o almoço, no palácio, você esteve muito quieta e pensativa. Ryk disse ou fez alguma coisa que a aborreceu?
Não! Ele não ficou no palácio durante a manhã inteira. Eu tinha algo para pedir a ele, bem, mas isto pode esperar.
Algo importante? — O olhar de Alan era penetrante.
Algo que me pareceu importante na hora. — Ela mordeu os lábios, pois as sombras e os sustos por que passara na noite anterior pareciam reais por completo aqui, na cabine brilhante do aeroplano.
Quando a deixei, ontem à noite, você estava bastante tranqüila, fiquei muito bem-humorado por causa disto. O que aconteceu, Temple?
Oh, Mei tem umas brincadeiras que mais parecem torturas. Ela me pregou uma peça, talvez para se divertir. Entretanto, à noite, com os ruídos da mata ao redor da casa, meu senso de humor não é dos melhores.
Aquela garota!... O que ela fez?
A expressão de Alan mostrava uma preocupação real pelo que lhe acontecera e Temple se sentiu reconfortada e protegida por ele. .- Colocou uma orquídea silvestre, peluda e horrível, sobre o véu da minha cama. Parece ridículo, não é? — Temple forçou uma risada. — Porém, à luz do abajur, parecia outra coisa.
Uma aranha, não é?
Sim. Eu sou facilmente impressionável com este tipo de coisas, senão não teria caído como um patinho.
Gosto de você com estes óculos de aro de chifre. — Alan sorriu. Eles lhe dão um ar grave de menininha que quer parecer uma executiva.
Ela já os estava usando no almoço e, com aquele comentário, Alan explicou o toque de divertimento que apareceu em seu rosto quando a tinha visto. — Espero que me façam parecer austera e não apavorada? — disse ela.
Mei terá de ir embora, Temple, ou ela ainda lhe trará maiores dores de cabeça. Quer que eu converse com Ryk por você?
Não, eu criarei coragem.
Criar coragem! — Alan exclamou com uma risada. — Tudo o que você tem a dizer é que quer outra criada. Conte a ele que Mei causa arrepios.
Ah, não é tão fácil, assim!
Por que não?
Vocês homens, vocês são tão cegos! — Da janela observou as cachoeiras e os desfiladeiros muito longe, abaixo deles, e as densas áreas de floresta. — Eu nunca pensei que a ilha tivesse partes tão selvagens. Espero que você não queira voar até acabar o combustível!
Você se importaria de passar uma noite comigo na floresta? — perguntou Alan, brincando. — Ou se sentiria comprometida por passar a noite sozinha com um homem?
Temple estava prestes a retrucar a brincadeira, quando seu rosto corou subitamente ao lembrar-se da noite que passara no navio com Ryk, com o paletó de pijama que lhe vestira depois de tirar suas roupas molhadas. Seu rubor não passou despercebido a Alan, que a examinava com um brilho de curiosidade nos olhos.
Você enrubesceu ao pensar numa noite sozinha comigo? — perguntou ele.
Não sou uma garota cheia de pudores, nem você um homem assim tão perigoso! — replicou ela divertida.
Tem tanta certeza assim? — Ele colocou o avião num súbito mergulho e Temple prendeu a respiração, enquanto desciam vertiginosamente em direção à selva verde. Pareciam varrer o topo das árvores gigantes, e uma nota de medo pairava no riso dela.
— O que a fez corar, Temple? — gritou, por causa do barulho do motor. — Quem é o homem em que pensou?
— Meu ex-noivo — disse Temple, também gritando. — Quem mais podia ser?
Mas, antes que ele pudesse responder, o avião deu um forte solavanco e, no momento seguinte, parecia uma máquina louca nas mãos de Alan. Dirigia-se com toda sua potência descontrolada para baixo, e desta vez Alan não estava compreendendo nada. Lutava para levantá-lo do mergulho e gritava para que ela colocasse a cabeça para baixo, apertada entre os braços.
Temple fez o que lhe fora mandado e sentiu o ímpeto louco do ar em volta das asas do aeroplano. Parecia estar se afogando, e um caleidoscópio de cenas e lembranças surgiu em seus pensamentos. O dia em que telegrafara para Nick em Lumbaya e subira a bordo do jato com o espírito tão otimista. O dia em que saíra de Lumbaya e subira no navio vestida de homem...
Ela parecia sentir novamente o balanço do convés na tempestade, o som das ondas, a voz profunda sobre sua cabeça...
— Con... consegui tirá-lo da direção das árvores. — Alan engasgou. — A praia está logo abaixo de nós...
O aeroplano sacudia loucamente, aconteceu uma pancada surda, e tudo pareceu escurecer na frente da cabine. Era areia rodopiando para cima e cobrindo as janelas. O avião pendia para um ângulo doído e perigoso, e Temple foi jogada para os lados enquanto sentia uma dor terrível em seu braço. O aparelho chocou-se, com o motor fundido, nas areias brancas da praia. Alguma coisa pareceu rasgar no trem de aterrisagem do pequeno avião, causando um cheiro bastante forte de óleo.
Temos que sair daqui rapidamente! — Alan estava puxando violentamente a porta ao lado dele e, de súbito, o ar entrou impetuosamente na cabine, e quando ele pegava em Temple para empurrá-la para fora, ela deu um grito de dor.
Sinto muito, Temple, mas tive que machucar você. — Conseguiu tirá-la do avião meio arrastada, meio carregada. Temple sentiu-se jogada ao chão, Alan com metade do seu corpo sobre ela, protegendo-a, enquanto, com um estrondo, o aeroplano explodia em chamas. Uma grande língua de fogo varreu o ar perto deles e, mais uma vez, ela foi forçada a se arrastar pelas areias, até que ficassem longe do lugar onde o avião queimava.
Meio atordoada, sentiu que o médico a empurrava até o tronco de uma árvore e, logo depois, rasgava sua camisa em pedaços e amarrava-os em torno de seu braço esquerdo. Observou, num semi-desfalecimento, que uma faixa fora amarrada tão apertada sobre seu cotovelo, que seu braço estava entorpecido. E havia sangue! Este se espalhara sobre sua blusa e a atadura provisória brilhava com o líquido vermelho que fluía sem parecer que iria esgotar-se.
E um corte profundo, Temple — disse Alan, tenso. — Vai precisar de alguns pontos, e tenho que levar você para o hospital.
Vo... você está bem? — perguntou ela tremendo.
Estou muito bravo comigo, querendo bancar o espirituoso e ter como resultado o seu braço com um corte profundo e o meu avião arrasado.
A garota olhou para onde o aeroplano ainda queimava, soltando uma nuvem de fumaça preta de óleo.
No... nós temos sorte de ter escapado vivos do desastre, Alan!
Sorte mesmo! — Ele empurrou os cabelos da testa dela. — Como se sente, querida?
Terrivelmente dolorida. — Ela tentou um sorriso abatido. — Não cheguei a quebrar nenhum osso, acho. Será que quebrei?
Ele negou com a cabeça.
E um ferimento profundo e apliquei um torniquete para estancar o sangramento.
Então ele interrompeu-se e olhou para os penhascos, no outro lado da praia. Alguns homens vinham na direção deles. Tinham ouvido o estrondo e visto a fumaça, e se apressavam para o local da queda. Temple voltou a sentir a tontura, vagamente consciente de que Alan se levantara e que outro homem destacava-se das névoas acumuladas ao redor de seus olhos amedrontados e trêmulos.
Vi o avião perder o controle — exclamou uma voz profunda. — Agradeça aos céus ter conseguido conduzi-lo para a praia!
Então ela sentiu um toque em seus ombros, e reconheceu a figura que se inclinava para ela. -Ryk!
— Você podia estar morta! — sua voz tinha o tom áspero costumeiro, e seu rosto era selvagem e ameaçador. Temple começou a chorar, pois numa hora como esta ele devia ter um pouco mais de sentimento. Ele não tinha o direito de ficar furioso com ela se sentindo tão mal.
Temple não está em condições de subir os rochedos caminhando — disse Alan, com sua voz simpática. — Ela está fraca pelo choque e pela perda de sangue. E possível improvisar uma maça?
Não é necessário maça nenhuma, Alan. — Ele falava como se ainda controlasse uma explosão de alguma espécie, mas seus braços, quando a levantaram, eram fortes e cuidadosos.
Machuquei você?... — murmurou Ryk.
Não, ele não a machucara. Seu braço estava absolutamente amortecido, e ela desejava que o resto de seu corpo também estivesse. Deixou a cabeça repousar, cheia de fraqueza, no ombro de Ryk, e sua consciência ia e vinha em ondas, enquanto ela era carregada pelos rochedos acima. Isto, pensou ela obscuramente, já estava se tornando um hábito, e deixou o rosto afundar no ombro de Ryk. A última coisa de que se lembraria mais tarde, sobre o desastre, seria o cheiro forte de fumo, grudado na camisa de Ryk.
Temple foi voltando lentamente da inconsciência do sono vinda de um torpor que a envolvera como as ondas do mar. Vagarosamente foi percebendo a maciez deliciosa de um colchão, o azul translúcido do véu de uma cama, o brilho do sol passando através das venezianas das janelas e iluminando com uma tepidez dourada a mobília do quarto enorme e maravilhoso.
Um quarto azul e dourado, uma grande pena da cauda de um pavão delineada na parede e um toque de seda sob o braço direito de Temple. O esquerdo estava com curativo do cotovelo até o antebraço, e pulsava quando era movimentado.
O desastre voltou à sua mente, mas o mais surpreendente era estar na cama daquele quarto azul e dourado. Já o vira uma vez. Era o quarto que Ryk preparara para Marta!
Quando percebeu realmente onde estava, os lábios de Temple secaram. Ao virar a cabeça, viu na mesinha de cabeceira uma garrafa de água, com um copo sobre o gargalo. Sentou-se cuidadosamente, retraindo-se, enquanto movia o braço para alcançar a garrafa. Colocou meio copo de água e sorveu-a com calma. Seus olhos pareciam os de um corça amedrontada, a olhar o esplendor do quarto onde fora instalada.
Temple não conseguia compreender por que fôra colocada no quarto de Marta, mas ainda se sentia muito fraca para tentar desvendar o mistério. Deitou-se de encontro às almofadas da cama e deixou-se desfrutar a imensa tranqüilidade que envolvia o aposento requintado. Podia ouvir os pássaros no belo jardim do palácio mas como não havia relógio no quarto, não tinha certeza da hora, nem mesmo do dia. Seria domingo?
Na Inglaterra, os sinos das igrejas estariam repicando. Mas, ali na ilha, reinava a paz de todos os dias.
Examinou o braço ferido, que estava cheio de curativos e pensou como poderia usar a máquina de escrever para fazer seu trabalho nos diários. O corte devia ter sido bastante profundo, pois espirrara sangue sobre sua blusa inteira. Sua roupa tinha sido removida, e agora vestia um pijama de seda que era bem grande para ela. Não pôde reprimir uma risadinha — talvez ainda estivesse um pouco tonta — e gostaria de saber o que Ryk pensava desses empréstimos constantes de suas vestes noturnas.
A seda que vestia era negra com detalhes em prata; uma fraqueza secreta de um homem que em outros aspectos era tão seguro de si. E, então, lembrou-se da crueldade de sua expressão na praia... o desastre do avião devia ter-lhe lembrado aquele, mais trágico, nos picos da floresta de Sumatra. O acontecimento devia ter-lhe trazido de volta vestígios da dor e da angústia daquele choque terrível.
Temple fechou os olhos... e num instante cochilou, sob efeito do cansaço que ainda a dominava. O abrir da porta despertou-a, e ela sentiu uma pressão em seus pulsos. Ficou tensa, mas relaxou em seguida, quando, com um sorriso, reconheceu Alan Kinraid, que começara a examiná-la.
Olá, querida! — Chegou-se mais perto de Temple e beijou seu rosto, num comportamento não muito profissional. — Como vai minha paciente favorita?
Feliz por ver seu médico predileto em perfeito estado.
Você consegue dizer isso, depois que este bobo aqui fez com que você quase morresse?
Foi um acidente, Alan. — Seus olhos demoraram-se no rosto do médico, enquanto ele a segurava pelo pulso e checava sua pulsação. — Viverei?
Sim, claro que sim. Mas isso você não deve agradecer ao seu médico predileto, e sim à sua boa estrela.
Estava cochilando quando você chegou, Alan. O que vai acontecer com seu trabalho, agora que o avião foi destruído pelo incêndio?
— O príncipe Chai, generosamente, providenciará outro. Ryk já conversou com ele pelo rádio-transmissor. — Alan sentou-se na beira da cama. — O príncipe Chai faria mais do que providenciar outro aeroplano para manter Ryk aqui como seu tuan besar. Ele sabe muito bem que não há outro administrador como ele, no arquipélago inteiro.
Então Alan franziu as sobrancelhas e olhou para o pulso da moça que ainda se encontrava entre os dedos dele.
Você está nervosa, Temple. Reação do desastre?
Acho que sim. Quanto tempo meu braço levará para cicatrizar? Meu trabalho, você sabe...
Não se preocupe com isso. Ryk sabe que você não está em condições de usar o braço por uma semana ou duas.
Mas eu quero acabar logo os manuscritos.
Você quer dizer que quer ir embora de Bayanura. — Ele inclinou-se na direção dela e examinou seus olhos. — Você falou sobre aquele seu noivo enquanto estávamos no aeroplano. Temple, você está planejando voltar para ele?
Eu cresci um pouco desde que fugi de Nick. — Ela ouviu suas próprias palavras e percebeu o quanto eram verdadeiras. — Sei agora como uma pessoa pode sentir-se solitária nessas ilhas. Especialmente um homem.
Você, sua pequena idiota, que se atreva a fazer qualquer coisa! — Alan parecia subitamente raivoso. — Não vou deixá-la fazer isto. Não deixarei você voltar para aquele rapaz que não a merece, esteja certa?
Você não o conhece...
Mas conheço o tipo — disse Alan com desdém. — Esses homens são atraídos para a vida nos trópicos porque pensam que podem ficar deitados sob o sol durante todo o dia, e ter uma meia dúzia de criados para atender a seus acenos de cabeça ou aos seus gritos. Eles bebem muito e vão para as prostitutas locais, pensando serem os homens mais fabulosos do planeta. Mas não possuem nem a metade das qualificações para o serem na realidade. Você já viu Ryk van Helden estirado numa espreguiçadeira metade do dia, com uma garrafa de uísque na mão e ao lado uma boneca de sarongue?
Temple meneou a cabeça e sorriu levemente ante a imagem formada. Ryk nunca negligenciaria suas tarefas mas, como os outros homens, necessitava amenizar sua solidão no fim do dia, quando o crepúsculo caía sobre a ilha e as estrelas despontavam quando o perfume dos jasmins tornava-se forte...
— Nem todos podem ser tão dotados de força de vontade quanto o meneer — disse ela. — Foram alguns infortúnios que o fizeram forte. Seu trabalho toma o lugar da devoção que teria dado a Marta. Este seria o quarto dela. É muito bonito, não acha?
Alan observou Temple na cama enorme.
— Você parece perdida — disse o médico. — Como uma garotinha que precisa de alguém que tome conta dela. Nick não está preparado para isto, mas eu estaria.
— Alan...
— Gosto da maneira que você diz meu nome :— sorriu ele, tocando a face da moça. — E do seu jeito gracioso em pijama masculino.
— Enquanto ele dizia isto, a porta abriu-se e Ryk ficou parado na entrada do quarto. — Bati duas vezes — disse ele num tom seco — mas vocês dois estavam perdidos demais na conversa para ouvir.
Temple olhou para ele e teve certeza que ouvira a observação de Alan. Ryk vestia uma camisa azul e calças grossas de trabalho, e a venda de seu olho era preta sob seus belos cabelos dourados. Um homem que possuía um vigor inabalável... Se ele ontem parecera selvagemente chocado pelo acidente, era porque não conseguia se esquecer de Marta e da forma como a perdera.
— Tenho uma mensagem do príncipe Chai — disse. — Outro aeroplano chegará à ilha dentro de um ou dois dias. Ele manda lembranças, Alan, e espera que você tenha em mente que o nobre bolso dele não é sem fundo.
Alan deu uma risada. — Ryk, você conseguiria espremer óleo de uma pedra!
Ryk não correspondeu à risada do amigo, e parecia um tanto ríspido enquanto vinha da porta para a cama, sobre a qual Temple estava confortavelmente instalada. — Você parece melhor.
— Sim, sinto-me bem melhor, obrigada.
— Muito bom. — Deu aquele seu breve sorriso costumeiro. — Nós queremos você restabelecida a tempo para a Festa da Lua. Hoje à noite os homens da aldeia sairão para pegar as tartarugas e as moças começarão a preparar seus trajes para as danças. Este é o grande acontecimento da ilha, exceto quando acontece um casamento popular.
Alan olhou para ela, e Temple encolheu um pouco mais seu corpo contra a cama. Ryk fez aquela reverência formal e estava para sair do quarto. Ela o chamou.
Quero agradecer por deixar-me ficar aqui.
— Aqui? — Ele olhou vagarosamente ao redor do lindo quarto.
— Este aposento é bastante fresco e possui uma bela vista para o jardim. Acredito que isto a ajudará a esquecer a fumaça e as chamas do desastre.
Ela percebeu uma nota impessoal na sua voz e um calafrio percorreu-lhe o corpo por um instante.
— Foi bondade sua. Obrigada.
Ele inclinou a cabeça, tão indiferente quanto uma estátua de pedra com um olho velado. Fechou a porta, e um breve silêncio permaneceu entre Temple e o médico.
Você conseguirá uma bela dor de cabeça, se tentar compreender Ryk — disse Alan com um sorriso leve. — È o tipo do homem que não se sente bem quando uma pessoa lhe agradece um favor.
Quando eu terei condições de voltar para a casa de chá? — perguntou ela com brevidade.
Alan observou-a com as sobrancelhas enrugadas.
Você não gosta de ficar aqui? Este é o quarto mais bonito do palácio.
E... eu não faço parte disso. — Temple olhou a imensa pluma de pavão a tremular levemente sob o efeito de uma brisa suave.
— Marta é a dona deste quarto.
Temple, não fale assim.
É verdade, Alan. — Ela pegou subitamente na mão dele e apertou-a com carinho, tentando ficar mais calma. — Quando poderei me levantar e sair daqui?
Ele olhou para baixo, para a mão dela que segurava a sua.
Seu aperto de mão está bastante forte — disse ele com a voz um tanto seca. — Pode voltar para a casa de chá daqui a uns dois dias e, neste meio tempo, querida, pare com todo esse absurdo sobre fantasmas. Marta morreu há muito tempo. Ela nunca chegou a usar este quarto.
Eu sei — disse Temple calmamente. Alan não entendia que Marta estava ali da mesma maneira. Ela habitava em Ryk e neste quarto e em todos os lugares que ele adoraria ter mostrado para a noiva. Os penhascos, a praia. As partes secretas do jardim, onde os pavões cortejavam as fêmeas. O tanque de lírios-d'água e o banco de pedra, onde Temple tomava sua refeição quando estava sozinha durante o dia.
Uma batida na porta não passou despercebida desta vez. Ranji entrou carregando uma bandeja com diversas travessas cobertas. Trouxera comida para a moça e uma mensagem para o dokter.
Do hospital? — Alan levantou-se.
Sim, tuan. Um trabalhador de chá está muito doente com tum-tum...
Ah, aquele caso de hérnia com que Khun Lan estava preocupado. Bem, Temple, receio que este caso necessite de uma visita obrigatória.
Ela sorriu para ele.
Você também não gosta que uma pessoa lhe agradeça, por estar sendo tão gentil, doutor?
Você sabe que não ligo — disse ele significativamente. — Mas vamos adiar o agradecimento até a Festa da Lua. Gostarei que agradeça ao som dos tambores e à luz pagã da Lua.
Depois que ele saiu e que Ranji já havia fechado a porta, para deixá-la com o jantar saboroso que preparara especialmente para ela, Temple sentiu o silêncio do quarto pesando em seu espírito não muito tranqüilo.
Esforçou-se para comer porque queria recuperar suas forças o mais rápido possível. Ranji lhe trouxe algumas revistas e um livro quando veio buscar a bandeja. Ele sorriu e mostrou os dentes de ouro, quando viu que ela comera tão bem.
Nonya logo vai ficar boa — disse o criado, contente. — Comeu quase tudo!
A comida estava muito gostosa, Ranji.
Ele fitou-a com um brilho afeiçoado nos olhos negros. — Ranji está muito feliz que nonya não morreu, como a outra.
Seu coração paralisou-se por um instante, e logo o criado fez uma reverência e saiu. Temple abriu uma revista, rapidamente, decidida a não dar vazão aos absurdos sobre fantasmas como Alan dissera. A revista era americana e cheia de propagandas, assim ela resolveu pegar o livro.
Não se ouvia qualquer ruído no jardim. Os pássaros tinham ido para dentro de seus abrigos e o sol já havia desaparecido. Até mesmo as cigarras repousavam suas asas agitadas. Tudo estava calmo, tudo, a não ser as batidas do coração de Temple e a pulsação de seu braço ferido.
Depois de algum tempo, a jovem enfermeira, Madu, veio do hospital, para ajudar Temple no banho e trocar o curativo de seu braço. Madu tinha a pele de mel e a voz suave. Seu nome combinava mujto bem com ela e Temple perguntou-se, mais uma vez, se seria a garota a quem Khun Lan se referia como sendo mais graciosa que uma flor.
— Você vai dançar na Festa da Lua? — perguntou Temple. Madu aprendera a falar inglês com Alan e possuía um leve sotaque americano.
Asiáticas são ótimas nas danças tradicionais — sorriu a enfermeira — mas eu tenho muitas ocupações. O hospital de Bayanura mantém uma enfermeira muito ocupada.
Você sente falta do barulho e do alvoroço da vida da cidade, Madu?
Madu correu a mão demoradamente sobre a colcha de seda sobre a cama. — Não existe nenhum lugar como Bayanura — respondeu suavemente. — Este é o palácio dos pavões e aqueles que partem sempre têm de voltar.
E, como se completasse o significado de suas palavras, um pavão gritou em alguma parte escondida do jardim do palácio.
Temple ajustou o cinto vermelho do vestido de linho que lhe fora trazido da casa de chá. Alisou as pregas da saia e observou sua imagem no espelho da parede. Ainda parecia um tanto pálida, mas sentia-se forte e seu braço já não doía tanto quando o movia.
Deixaria agora o palácio.
Queria ir agora mesmo, enquanto tudo estava quieto e Ryk estava no vale. Dobrou o pijama dele e colocou-o sobre uma cadeira. Empilhou as revistas e colocou o livro de poemas sobre elas. Olhou ao redor do bonito quarto e viu que ele já possuía uma aparência de abandono.
Um estranho ar de solidão impregnava o palácio, quando ela caminhava pelo corredor para a escada de mármore. No meio do caminho parou e sentiu um tremor nas pernas. Isto acontecia porque fora ferida e passara alguns dias na cama. A sensação passaria e, junto com ela, o desespero que tocara sua garganta.
Olhou para fora da janela, ao lado da escadaria, e viu os pavilhões azulejados do palácio aberto para o sol dourado com suas velhas esculturas e chafarizes. Pássaros estavam parados, inertes, pelos beirais do telhado de arestas altas, e as sombras das árvores gravadas contra os azulejos.
Subitamente, algo moveu-se, inclinando sua sombra ao longo do pátio de azulejos. O coração de Temple acelerou-se, enquanto uma figura esguia de homem atravessava o jardim e parou entre as árvores, como se tivesse percebido que estava sendo observada.
Temple afastou-se da janela. Permaneceu muito calma e desejou que ele não entrasse no palácio, porém quando olhou para o saguão de baixo a figura entrou por uma das arcadas.
Veio até o pé da escadaria e olhou-a. — Você consegue descer o resto dos degraus, ou devo subir e trazê-la para baixo? — disse Ryk secamente, deixando-a perceber, em seu comportamento sutil, que sabia de suas pernas fracas, que queriam correr mas ainda não estavam forte o suficiente.
Temple esforçou-se para descer, com a mão apertando a grade de ferro. Conforme ela chegava perto do homem, ia percebendo um certo cansaço sob o sorriso melancólico que Ryk lhe ofertava. — Então, você agora se sente bem para voltar para a casa de chá, hein?
— Alan disse que eu podia...
— Ele é o médico. — Ryk a observava enquanto Temple parava perto dele, no terceiro degrau. — Sei que você odeia estar inativa, e que considera o palácio grande demais, muito cheio de ecos e solitário para sentir-se bem nele. Porém, eu cresci aqui e me acostumei a ele.
E a ficar sozinho, pensou ela. Ele não desejava mais as corridas e risadas de crianças pelos corredores trazendo vida para os aposentos, que praticamente mofavam atrás das venezianas fechadas. O coração permaneceria para sempre fechado, como aqueles cômodos.
— Antes de ir embora, tenho uma coisa para você. E um presente de Lontah e do marido para mostrar gratidão. Acreditam cegamente que você trouxe sorte à casa deles.
— Eu... eu nunca esperei nada. — Ela apertou o lábio inferior com os dentes, e lutou contra as lágrimas que tentavam escapar.
— São as coisas inesperadas que trazem maior prazer. Venha. — Ele colocou a mão sob seu cotovelo ferido e levou-a através do corredor para aquela sala, que era seu escritório e sala de fumar, ao mesmo tempo. Temple entrou na frente dele e o aroma do fumo despertou diversas recordações que ela tentara duramente esquecer nos últimos dias.
Exótico, penetrante, relembrando-a da cabule balançando na tempestade; do choro vigoroso de um bebê que ele ajudara a viver; de sua face recostada no ombro dele, enquanto a carregava para longe dos destroços fumacentos do aeroplano de Alan.
— Eu sempre pensei que você gostasse de ser presenteada. — A voz dele era brincalhona e, quando Temple ergueu o olhar para Ryk, uma súbita raiva inundou seu coração.
— Como você se dá o direito de fazer algum juízo sobre o que eu gosto ou deixo de gostar, Mijnheer van Helden? Você nunca pensou em mim como uma pessoa, somente como a auxiliar eficiente de sua máquina de escrever.
Ryk riu para ela e Temple sentiu como se tivesse sido golpeada.
A máquina de escrever você é muito capaz. Mas, longe dela, é como uma criança à caça de problemas.
Sem dúvida, você se sentirá completamente aliviado, quando eu estiver fora de sua visão. Eu mal consigo esperar o dia de ir embora deste lugar e do seu palácio frio e cheio de fantasmas!
As palavras ficaram suspensas entre eles e, no silêncio, uma lagartixa na parede estalou a boca, pegando uma borboleta de asas douradas que se debatia, enquanto o inseto começava a sacudi-la contra a parede.
"Oh, pare!", Temple sentiu vontade de gritar. Virou a cabeça, odiando a lagartixa verde e os trópicos azuis onde coisas muito cruéis aconteciam.
— Você ainda está sob os efeitos do acidente. — Ryk atravessou a sala em direção ao armário envernizado e abriu um das portas.
— Seus nervos estão à flor da pele, e isto é bom para você se acalmar. Ele estendeu-lhe um pacote, que ela abriu com as mãos trêmulas. Sentiu-se desfalecer quando viu o brocado deslumbrante que Lontah e o marido tinham mandado para ela. Uma peça inteira, suficiente para fazer um vestido longo, e tão macia e sedosa que escorregava entre suas mãos.
— Lontah achou que você gostaria de fazer um vestido para a festa. — Ele pegou uma ponta do tecido e colocou em volta dela.
— Açafrão, a cor do arrebatamento.
Temple virou-se, rapidamente, para um espelho na parede, e examinou o efeito da seda rebordada contra sua pele pálida e seus cabelos pretos. Ryk estava refletido atrás dela, mas não leu nada de significativo na expressão de sua face, enquanto ele mirava seu rosto de pele clara e seus cabelos, seu pescoço magro que se elevava daquela seda maravilhosa.
Isto é deslumbrante! — disse. — Nunca fiz nada, em toda minha vida, para merecê-lo.
Lontah ficará desapontada se você não fizer um vestido. Ela tem uma máquina de costura, e ficará muito contente em ajudá-la a fazê-lo.
É mais apropriado para uma noiva. — Temple interrompeu-se e mordeu us lábios, como que para engolir as palavras, mas ele não riu e nem mudou a expressão, deixando-a cínica ou irônica.
— É extravagante o suficiente — disse ele —, é o uso que comumente se faz do brocado açafrão: vestidos de noiva. A felicidade e a dignidade são simbolizadas por ele, pois a dignidade é um bem muito delicado que não se deve deixar rasgar.
— Espero que ninguém me confunda com uma noiva. — Temple falou suavemente, enquanto dobrava a seda. — É muita gentileza de Lontah, presentear-me com este tecido. Espero que Dahan Ryk ainda esteja bem sadio.
— Como um arbusto forte. — Ryk parecia enigmático, enquanto acendia um cigarro e soltava uma fumaça com cheiro forte. — Você toma um chá, antes de voltar para seu lar?
Lar? Ela pensava na casa de chá, aninhada entre os pés de tamarindos e as árvores floridas, mas não conseguia pensar nela como sendo seu lar. Foi para escapar do fantasma de Marta que ela decidira voltar, e desejava conseguir coragem para pedir a Ryk que substituísse Mei por outra criada.
— Chá? — Ryk colocou um dedo sob o queixo dela e virou seu rosto para ele. — Ninguém, nascido na Inglaterra, jamais hesitou ante o convite para uma xícara de chá — zombou ele.
Neste momento, ela avistou um ramalhete de jasmins num vaso. Não podia confidenciar a ele seus temores a respeito de Mei. Ele chegaria à conclusão de que ela estava com ciúme.
— Estou com calor — disse ela, afastando-se. — Não podíamos tomar o chá ao lado do tanque de lírios-d'água?
Ranji trouxe chá e um bolo de amêndoas para eles. Temple observava os bonitos lírios flutuando sobre seus pratos verdes e pensou na festa que iria acontecer dali a dois dias, quando a lua cheia resplandeceria por sobre toda a ilha.
Um tremor de excitação percorreu-lhe o corpo. Faria o vestido de brocado açafrão e se divertiria na Festa da Lua. Esta seria a única a que assistiria. Devia, então, aproveitá-la ao máximo.
O nascer da Lua. O grito de um pavão. Pétalas fechando-se e amontoando-se no chão, repleto de inúmeras flores arrancadas para as coroas que iriam enfeitar os cabelos pretos das dançarinas.
Temple abriu seu guarda-roupa para tirar o vestido açafrão que Lontah e ela tinham costurado. Tinham decidido fazê-lo bastante simples, apenas a bainha com um leve drapeado e um corpinho com decote gentilmente cavado.
Vou usar o colar de pedras com o vestido — murmurou Temple, e, ao desenrolar o linho branco em que ele estava envolto, para mantê-lo fora do alcance das mariposas, soltou um grito de horror. O vestido estava em tiras. Tinha sido dilacerado, totalmente arruinado. Não contente em usar uma faca para destruí-lo, o vândalo tinha esparramado um líquido marrom sobre ele.
Temple ficou branca como papel, pois um odor de café emanava das manchas marrons. Café solúvel, que Mei comprava na loja da vila.
Temple colocou o vestido estragado sobre a cama e, dirigindo-se para a cozinha, atravessou a cortina, que chacoalhou, quando esbarrou os ombros nela. A cozinha estava vazia e também a sala de estar. Ela parou do lado de fora e sentia seu coração batendo depressa, de tanta raiva. — Mei, você está aí? — Sua voz tremia, e suas unhas apertavam-se nas palmas das mãos. Queria pegar a criada e sacudi-la até que dissesse a verdade.
Empurrou a cortina para o lado e olhou para dentro do quarto. Estava vazio e tudo tão limpo e arrumado, como se o cômodo nunca tivesse sido ocupado. Um aroma penetrante espalhava-se pelo ambiente e a mão de Temple apertou a cortina. Era o perfume de jasmim.
Voltou para o quarto e ficou parada por um longo momento, fitando as sobras de seu vestido brocado. Sentia frio, embora estivesse uma noite quente e perfumada, com o som dos tambores e das flautas já flutuando pelo vale acima. Alan a chamaria a qualquer minuto e procurou apressadamente, entre seu pequeno lote de roupas, algo para vestir. Teria que usar o vestido azul. Colocaria o xale indiano sobre os ombros e as franjas vermelhas dariam uma aparência um pouco mais festiva.
Mei devia ter cortado o vestido açafrão quando Temple fora ao hospital nessa tarde para trocar o curativo do braço. Podia imaginar vivamente o sorriso na boca vermelha da criada, enquanto rasgava o vestido, abrindo as costuras, e cortava a seda brilhante. Temple estremeceu e olhou ao redor, bastante nervosa.
A casa de chá estava muito quieta... um silêncio que era intensificado pelas cigarras que cantavam na noite e pelo tufar dos tambores. Acabou de se vestir e apressou-se em sair para a varanda, arrumando o xale indiano em volta de si, enquanto esperava por Alan.
Tinha vontade de ir encontrá-lo no meio do caminho, mas os arbustos pareciam pessoas agachadas ao luar e ela estava tão nervosa que cada pequeno ruído cada movimento leve, parecia ameaçador.
Afinal, avistou uma jaqueta branca entre as árvores e desceu correndo os degraus da varanda, atravessando o pátio até o portão e caiu nos braços que estavam prontos para recebê-la.
Ela tremeu contra ele e afastou-se. — Eu... eu pensei que você fosse Alan.
Sinto muito desapontá-la. — O tom de voz de Ryk tornou-se frio e desinteressado. — Ele se atrasará para a festa por causa de uma operação de emergência em um dos trabalhadores de chá.
Ah, sim. — Temple lembrou-se que Alan comentara aquele caso. — No hospital, hoje à tarde, Alan estava muito preocupado com um determinado paciente.
Você parece um tanto trêmula. — Ao dizer isto, Ryk iluminou o rosto dela e seu vestido, com o facho da lanterna, e ela o ouviu suspirar de susto. — Você não está usando o brocado. Posso perguntar por quê?
Temple hesitou e olhou para trás, em direção à casa de chá, com os telhados que se curvavam como chifres, à luz da lua.
— Meneer, você vem comigo até lá dentro? Eu... eu quero lhe mostrar uma coisa.
Ryk seguiu-a pelo pátio, sem fazer perguntas, e subiu as escadas da varanda da casa de chá.
— Por favor, espere um instante. — Deu um olhar rápido e então, atravessou a cortina e em poucos segundos voltava com o vestido em trapos.
Mostrou-o em silêncio.
Estava assim quando fui vesti-lo — disse em voz baixa.
Nossa! — exclamou ele e pegou o pano, examinando-o de perto. Temple fitou o homem, percebendo uma curva inflexível em sua boca. — Quem faria uma coisa dessas?
Eu acho que foi Mei — as palavras saíram a custo dos seus lábios ressequidos.
Ryk levantou a cabeça com rapidez. — Mei?
Por mais estranho que isso possa parecer, meneer — a voz de Temple começou a tremer. — Esta não é a primeira vez que Mei faz alguma coisa para... para me aborrecer.
Por que nunca me contou? — indagou ele.
Contei a Alan.
Percebo! Você confidenciou estas coisas para ele, que é mais importante para você, hein? Mas por que a garota faria coisas como para aborrecer você?
Ela não gosta de mim...
E por quê?
Porque é apaixonada por você. — As mãos de Temple apertaram as franjas do xale escarlate. — A paixão ou o amor têm uma maneira esquisita de distorcer a visão das pessoas. Ela acha que... ah, você não consegue imaginar o que ela pensa?
Quero saber o que você pensa. — Inquiriu ele. — Que aquela garota é minha amante?
Temple não conseguiu responder. A casa de chá parecia perfumada de jasmim e, de repente, ela queria ir embora dali para a festa, para a afabilidade dos habitantes da ilha e para as danças que a ajudariam a esquecer-se de tudo, pelo menos por algumas horas.
— Vamos — disse ela. — Você é o convidado de honra e eles não começarão a festa enquanto você não estiver presente.
Ela saiu da casa de chá na frente de Ryk e logo estavam entre as árvores, com a lua oculta pelas massas de cipós e pelas folhas e galhos. A noite estava repleta de aromas silvestres e de uma estranha tensão pagã. Temple sentia a proximidade de Ryk na escuridão perfumada e quente, quebrada somente pelo facho de luz da lanterna abrindo caminho na frente deles e pelos vagalumes que, piscando, completavam o mistério dessa noite do Rei Dragão.
Eles iam pelo atalho que descia o vale, e, por alguns instantes, pararam, um ao lado do outro, para admirar as fogueiras e o brilho das lanternas festivas. O rufar dos tambores subia furtivamente até eles e a cena pagã fez Temple sentir-se presa de um leve temor primitivo.
— Venha. — Ryk pegou em sua mão e conduziu-a pelo atalho. O luar refletia nos cabelos dele, dando a aparência de um capacete de aço. E, quando chegaram ao fim do atalho, as pessoas vieram correndo para recebê-los e levá-los para o lado da fogueira do chefe da aldeia.
As chamas saltavam e delineavam os sarongues floridos, os cabelos pretos adornados com flores, os brincos e as pulseiras e os olhos risonhos.
Lontah estava muito bonita, vestida com uma longa túnica branca de seda, com botões de topázio, que batia na altura dos tornozelos e tinha a bainha enfeitada com seda de várias cores. Ostentava com orgulho um alfinete de ouro e jade nos cabelos. Ela abaixou-se num cumprimento cerimonioso, e seu marido convidou-os a tomar lugar nas esteiras de honra que estavam estendidas sobre o chão, ornamentadas com flores e ervas.
Assim que se instalaram com conforto, o chefe da aldeia bateu palmas e este era o sinal para que a festa começasse.
Garotas serviam refeições bastante condimentadas, cozidas e embrulhadas em folhas, e estendiam ao redor grandes bandejas com batatas-doces e abóboras assadas, arroz colocado em conchas de ostra e peixes defumados. Os pratos para os convidados eram de madeira de palmeira polida, mas os instrumentos para comer eram os dedos, e Temple aceitou a sugestão de Ryk para enrolar o arroz em pedaços de carne e depois colocá-los na boca. Ela evitou os condimentos banhados em molho forte depois de ter experimentado um deles, e percebeu o sorriso de Ryk, que enrolava uma bola de arroz com habilidade e a embebia em um dos molhos.
Todos riam e conversavam enquanto comiam e, depois de algum tempo, Lontah dirigiu-se a Temple com uma pergunta. A garota olhou para Ryk, que respondeu por ela. Lontah passou as mãos pelos cabelos de Temple, demonstrando muita afeição. E, alcançando uma grande cesta de flores, tirou uma, tão grande quanto uma peônia, com um coração de ouro.
Colocou-a nos cabelos de Temple, com gestos de carinho, e voltou a comer com um sorriso. Temple olhou para Ryk com a expressão um pouco intrigada.
— Lontah perguntou sobre o vestido, não foi? O que você disse a ela?
Ele fitava a flor em seus cabelos.
— Respondi, apenas, que você não está acostumada a comer com as mãos e, por ter gostado tanto do vestido teve medo de estragá-lo, deixando cair comida ou molho sobre ele.
— Entendi. — Temple baixou os olhos para o prato de madeira em seu colo. — Estou contente que não lhe tenha contado a verdade.
— Esta noite esquecemos a realidade e desfrutamos a fantasia que tudo isto possui. Coma! A comida está muito saborosa.
Ela sorriu e mordiscou uma batata assada, respirou a fumaça, o cheiro forte dos temperos e o perfume forte das flores. Um vinho de arroz foi servido em canecas feitas com a metade de cascas de coco, polidas, e a bebida a fez sentir-se com a cabeça um pouco leve e o corpo relaxado.
Ryk conversava com o chefe da aldeia e Temple começou a procurar por Alan no meio de toda aquela gente. Não havia nem sinal dele. Nem de Mei, embora seu instinto a advertisse que estava em algum lugar, bastante próximo, oculta na multidão, espreitando com aqueles olhos negros e longos cílios sedosos o homem que estava sentado ao seu lado, com o brilho da fogueira brincando nos cabelos dele e nos seus ombros largos.
Temple procurou imaginar o que Ryk diria para Mei. Ter-se-ia chocado com o fato de que aquela garota, que parecia uma flor, fosse capaz de sentir tanto ciúme e paixão? Estaria perturbado de qualquer maneira?
Observou-o, na claridade dos reflexos avermelhados da fogueira, e tentou ler seu rosto, mas a face do olho cego estava em sua direção. Ryk parecia não estar preocupado com nada, a não ser em saborear a comida, aproveitar a companhia das pessoas da aldeia e o entretenimento da festa.
Durante todo o tempo, os músicos tinham tocado, animando o ambiente de festa. Mas, agora, os tambores começavam a soar com uma batida diferente. Fora deixado um espaço limpo, como um corredor, até um círculo de fogueiras, no centro. De súbito, alguns homens vieram correndo por ele, carregando uma plataforma de madeira em que estava um pagode, quase do tamanho natural, todo pintado com dragões nas portas, com olhos incandescentes pela tinta vermelha fosforescente.
Os homens colocaram o pagode no chão e retiraram-se. O tinido de uma música bárbara começou a tomar o lugar das batidas dos tambores. Ninguém se mexia. Todos os olhos estavam fixos no Pagode do Dragão... Subitamente, a porta abriu-se, e um dançarino deslumbrante em seus trajes verdes saiu.
Ele representava o Rei Dragão e usava uma máscara que o tornava tão horrível, que fez com que as garotas da assistência suspirassem de terror. Temple deve ter feito o mesmo sem perceber, pois Ryk virou-se para ela com um olhar, divertido.
— Esta é a dança dupla — murmurou: — Daqui a pouco uma dançarina se unirá a ele... Ela vai representar o sacrifício à divindade.
— É excitante! — sussurrou ela. — Nunca sonhei que pudesse assistir a algo assim.
O bailarino possuía uma flexibilidade maravilhosa no corpo; com movimentos intricados de cabeça, ele dava a impressão de ser uma serpente que tudo via, que podia destruir tudo o que estivesse em seu caminho, caso não fosse agraciado.
Algumas garotas correram para o círculo de fogueiras, carregando cestas de frutas e de peixes e as colocaram lá. Trouxeram coroas de flores para o Rei Dragão, mas ele não ficou satisfeito e ainda dava botes e parecia prestes a soltar fogo pelas narinas, pois mostrava-se bastante impaciente.
De repente, ouviu-se o som de castanholas e o estalar de pratos de metal e, novamente, as figuras masculinas bronzeadas correram para o círculo de fogueiras, carregando, desta vez, uma garota magra sobre outra plataforma de madeira. Colocaram-na no chão e ela continuou em pé, parada, tão imóvel quanto uma estátua de pedra, com seus trajes que brilhavam como água ao sol e pequenas estrelas tremeluzindo na coroa que usava nos cabelos, frágil como o galho de uma flor.
Temple não conseguiu tirar os olhos da bailarina. Aquela graça de um louva-a-deus não podia pertencer a ninguém que não fosse Mei, tampouco aquele balanço delicado de seu corpo, quando começou a mover os braços e as mãos. Longas unhas de metal refletiam as fogueiras e brilhavam, e era como se um ídolo asiático tivesse subitamente despertado para a vida.
Não se ouvia qualquer som a não ser o da música, e os únicos movimentos vinham dos dois dançarinos. A lua cheia brilhava como prata, parecendo orgulhosa da festa que tinha seu nome.
A pulsação batia tão depressa na garganta de Temple e o perfume das flores era tão forte, que ela se sentia como se estivesse amarrada. Seus olhos seguiam cada movimento das unhas mortais, podia senti-las rasgando o brocado açafrão, e compreendeu que Mei Flor as usara para destruir o vestido.
E agora, mesmo dançando, Mei encarava Temple, porém ninguém mais parecia compreender que era ódio que lampejava em seus olhos. E nas pontas de suas unhas. Todos assistiam extasiados à dança e esperavam pelo momento em que o Dragão fosse finalmente dominado pela Beleza e se deixasse desmascarar.
Os dois bailarinos, como ídolos num templo, se encaravam, enquanto os estalos das castanholas e a batida dos tambores e o som das flautas aumentavam de intensidade. Repentinamente, as unhas resplandescentes avançaram em direção à máscara do Dragão e arrancaram-na.
Temple sentiu um baque em seu coração, quando o rosto bonito de Khun Lan foi revelado... brilhando de suor, como se fosse uma máscara de bronze escuro, entre os reflexos das fogueiras. Agora, ele alcançava Mei, pois este seria o momento culminante em que garota, por sua vez, seria dominada. Com estranhos movimentos de um louva-a-deus, ela afastou-se dele, mas ele novamente avançou alguns passos. Agora, apenas os tambores ressoavam. O dançarino avançou ainda mais e, no instante seguinte, a figura magra, agitada, foi apanhada e presa.
A cena desenrolou-se a poucos metros do lugar onde Temple e Ryk estavam sentados, e a inglesa percebeu o ar de triunfo nos olhos de Lan que ainda se sentia como o Dragão. Mas, paralelo a isto, Mei já se livrava dos braços dele e virava-se rapidamente de frente para Temple. Por uma fração de segundos, a bailarina ficou parada, encarando-a. E, então, como se voasse, arremessou-se em direção ao rosto de Temple. O brilho das fogueiras refletiu-se nas cruéis unhas de metal. Elas estavam dispostas a perfurar, a arranhar, a rasgar, como as garras de um tigre...
Como num pesadelo, Temple não conseguiu se mexer, nem sequer para se proteger... Foi Ryk que, num movimento rápido, cobriu-a com seu próprio corpo, enquanto as unhas, reluzindo mais uma vez, rasgavam o tecido grosso de sua jaqueta.
No tumulto que se seguiu, Temple conseguiu escapar e saiu correndo pela noite afora. Como se estivesse num sonho mau, que de repente tivesse momentos de calma, encontrou-se na praia sozinha com a lua e o mar sussurrante.
Ficou parada olhando para o mar com reflexos prateados e toda a tensão que sentia passou, devagar, a deixar seu corpo. Começou a caminhar, afundando os pés nas areias brancas, fazendo uma imagem magra e solitária, envolta num xale vermelho.
Estranha e bela Bayanura, onde as paixões ardiam com todo o brilho das estrelas. Temple não conseguiu odiar Mei, pelo que tentara fazer. Tinha pena dela e, mais ainda, de Khun Lan, que pensava que ela fosse mais graciosa que uma flor.
As folhas das palmeiras e do bambuzal balançavam-se ao sabor de uma brisa suave e acariciante, e Temple parou sob uma palmeira e recostou-se no tronco curvo da árvore. O murmúrio do mar estava tão próximo que ela não ouvia nada além dele... Foi quase que por instinto que se virou subitamente e avistou aquela figura alta, familiar, que se aproximava dela, caminhando pela praia.
Talvez tivesse sido o instinto que a fizera ir para aquele lugar e aguardar a vinda de Ryk... Aguardar sob o luar de prata, que a ajudaria a conseguir coragem para o encontro.
Como sabia onde me encontrar? — perguntou, quando chegou mais perto dela.
Apenas intuí. — Ele permaneceu parado, fitando-a. — Você está bem?
Sim. — Ela observava o mar e o movimento das ondas que competiam com as batidas de seu coração. — O que você vai fazer com Mei?
Vou mandá-la embora.
Pobre garota!
Você consegue dizer isso depois do que ela quase fez com você? Mei tentou desfigurá-la!
Onde ela está agora?
Com Alan.
E por isso que você está aqui? Por que Mei está sendo atendida pelo doutor?
Alan me disse que não era sua vez de vir. — As mãos dele pousaram sobre os ombros dela, gentilmente, mas como se contivessem uma ameaça, uma promessa de que apertariam e machucariam se tentasse fugir novamente. — Ele me disse que você tem planos de voltar para Lumbaya, isto é verdade?
Sim, não...
Qual das respostas é a verdadeira?
Temple levantou os olhos para Ryk, e a luz da Lua iluminava o rosto dos dois, sozinhos na praia.
— Não me atormente. Já fui atormentada o suficiente por esta noite. E, além do mais, se quiser ir embora, irei. Por que você se importaria?
Ele puxou-a de encontro a si, com força, e todos os sons, a não ser as batidas de seu coração, estavam mudos, distantes. Temple sentiu a compressão em seus ombros e, sentindo-se também muito fraca, com os olhos fechados deixou que Ryk a puxasse para a frente. Deixe-o ser brutal! O que importa isto? Estava para ir embora e nada mais poderia magoá-la.
Você sabe o que os habitantes da ilha dizem?
Ryk, por favor...
Dizem que, se uma mágoa deixa de machucar ao fim de três anos, é porque o coração está curado. Se você for embora, levarei rnais de trinta e três anos para conseguir que meu coração pare de sofrer.
Por mim? — murmurou ela. — Seu coração sofreria por mim?
Por você, meu amor.
Seu amor... Dentro dela também havia muito amor, que alimentara durante o tempo todo uma felicidade de amar, que fora bastante dolorosa.
Eu... eu pensei tantas coisas! Mas nunca sonhei com algo assim, Ryk — ela tocava o rosto bronzeado dele, seus cabelos emaranhados, seus ombros que a tinham amparado. — Como podia saber que você me amava, se parecia querer me mandar embora? Como podia me atrever a amá-lo, se você parecia querer somente o que tinha perdido?
Quando o aeroplano de Alan sofreu o acidente, revivi todo o sofrimento por que passei, e muito mais, meisje, porque você já tinha para mim uma importância tão grande, que excedia o brilho das recordações de Marta. Ela teria sido uma pessoa frágil e agradável para se dedicar à estima... mas nunca teria sido uma companheira disposta e afetuosa; não teria dado suas mãos para serem apertadas e arranhadas por uma mulher em trabalho de parto difícil; nem teria a imaginação doida o suficiente para se disfarçar de rapaz e atrever-se a dividir uma cabine de navio com um holandês estranho.
Meisje — zombou ele —, o que você teria feito caso eu tivesse me comportado mesmo como um pirata?
Eu... eu não consigo pensar. — Temple soltou uma risada divertida e encostou seu rosto contra o ombro dele, respirando aquele cheiro, já querido, da fumaça do tabaco. — Estou me sentindo tão feliz, Ryk! Será que logo não vou acordar e perceber que tudo isto foi um sonho bom?
Isto se parece com um sonho, coração? — Suas mãos a trouxeram para perto, e seus braços mornos, envolvendo-a, eram agradáveis demais, maravilhosamente reais, para fazer parte de um sonho. Os lábios dele sobre os seus completaram aquela certeza de que tudo era realidade...
A flor amarrotada caiu dos cabelos de Temple sobre uma onda e foi carregada para o fundo do mar. Com a flor, todas as dúvidas que Mei tentara despertar quanto a ela e Ryk, usando, inclusive um jasmim que arrancara do jardim do palácio e colocara em seus cabelos. Sua paixão por Ryk nunca tinha sido correspondida, e com isso, a criada chegara a odiar Temple, sentindo talvez que ele despertaria novamente para o amor.
Temple suspirou de felicidade e repousou seu rosto contra o ombro de Ryk. Assim, ficaram parados, juntos, na praia de Bayanura... a ilha de onde não iria embora nunca mais, onde ficaria pra compartilhar o prazer e o sofrimento com seu amado tuan besar.
Violet Winspear
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