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PARIS À NOITE / Valérie Tasso
PARIS À NOITE / Valérie Tasso

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PARIS À NOITE

 

Há duas cidades de Paris.

A Paris prostituída, violada pelos olhares dos turistas estrangeiros que desfilam em bicha, um a um, para penetrar numa das cidades mais belas do mundo.

A Paris das tentações, violadora por seu turno de todos os corpos que se aventuram a conhecer a cidade autêntica e que não aparece em nenhum guia.

Há cidades no mundo que embriagam qualquer pessoa, pois não têm igual. Deixam marcas, como as marcas das unhas nas costas de um amante demasiado fogoso.

Paris é mais do que uma cidade-museu com partículas de contaminação em suspensão...

Converti-me em mais uma sombra nos passeios desta cidade, num espectro condenado a vaguear quando cai a noite, debaixo dos seus candeeiros, submetida a um ritmo nocturno. Vagueava e olhava, e a minha presença tornou-se cada vez mais assídua nas suas celebrações nocturnas. Depende de vocês fazer o mesmo!

 

         CENAS PARISIENSES

 

Pwis voici lês vacances, lês douces vacances de juillet, un enfer inédit.

Pierre Mérot, Mammifères

 

Baixei-me um pouco para voltar a pôr a tira de cabedal da minha sandália no lugar, dado que ameaçava deixar-me com metade do pé no chão. Apoiei uma mão na parede de um edifício que anunciava que o horário de visita era das 10 às 19 horas.

 

Não imaginava, nem sequer suspeitava, que podia fazer tanto calor na capital. As sandálias magoavam-me, tinha os tornozelos inchados e os pés suados; coisa que só me acontecia em cidades mediterrânicas como Barcelona, que acabara de deixar na noite anterior.

 

Pequenas feridas haviam surgido em cada pé, exactamente onde a correia das sandálias me apertava - famosa lei de Murphy -, de forma que decidi entrar numa farmácia e comprar uns pensos.

 

Sentada no passeio, com a carteira ao lado, coloquei os pensos perante o olhar escandalizado e carregado de desprezo dos transeuntes. Para os parisienses, uma pessoa sentada no chão é sem dúvida um SDF (sem domicílio fixo). Não andavam muito longe da realidade, na verdade. Acabava de chegar de Barcelona e pensava alojar-me uns dias numa pensão barata, à espera de mudar-me para casa da minha amiga Mimi, que estava fora.

 

A coxear cheguei à pensão, situada no bairro mais barato e quente de Paris. Os meus rendimentos naquela altura não permitiam que me alojasse num hotel de cinco estrelas com escadarias largas e corrimãos dourados a ouro fino. Acabava de chegar a Paris no Talgo da noite a fim de fazer um curso intensivo de japonês durante um mês.

 

Yamal, o recepcionista, deu logo mostras do seu carácter arisco, marcado por poucas palavras. Parecia admirado por ver-me chegar tão cedo. De mau humor, conduziu-me à salinha que servia de casa de jantar até que o meu quarto estivesse pronto. As suas únicas palavras foram um asséptico «bom-dia» que rapidamente foi tragado por uma garganta larga e extremamente venosa.

 

- Dá-me isso, puta de merda!

 

O desconhecido agarrou-a pelos cabelos e encostou-lhe a cara à janela do automóvel, esmagando-a como quem apaga um cigarro. O bâton da vítima esborratou o vidro todo, dando a impressão de que sangrava. O golpe fora limpo e as únicas marcas de violência eram as manchas vermelhas na janela. Rapidamente, o homem remexeu nos bolsos do impermeável da mulher, tirou qualquer coisa e, acto contínuo, atirou-a para fora do táxi, fechou a porta, limpou com a manga as marcas do delito e desapareceu do parque de estacionamento que nem um foguete. Mais um filme de guião fraco e com actores medíocres. O costume: a televisão francesa só dava lixo. Decidi desligá-la e ir dormir, ansiosa por me encontrar no dia seguinte com ele, porque ia ser a primeira vez em onze anos que nos voltávamos a ver.

 

«Sou médico», disse-me pelo telefone. «Trabalho numa famosa clínica de Paris e temos um congresso no Sheraton.» Tínhamos marcado encontro no hotel Sheraton Príncipe de Gales às oito da noite. Tínhamos ficado primeiro de nos encontrar no bar do hotel e depois, dissera, convidava-me para o cocktail que a empresa dele organizava. «Em grande, com aperitivos e gente interessantíssima.”

 

Surpreendeu-me que pusesse os aperitivos e as pessoas no mesmo plano mas não ia armar-me em difícil nesta altura do campeonato. Se lá ia, era para vê-lo, que me importava a mim o que ia comer e com quem ia encontrar-me? ;

 

Édouard era médico. Como o pai. Não estranhei que tivesse escolhido esta profissão. Sempre tinha gostado de anatomia... sobretudo feminina...

 

O cabelo, da mesma cor que o meu mas com um ou outro reflexo arruivado, parecia um trapo esfiapado com mechas rebeldes que alisava com um pouco de gel fixador todas as manhãs. Uma infinidade de sardas enfeitava-lhe as maçãs do rosto; delas se riam carinhosamente os amigos por causa do seu ar de menino de coro com aspecto punky. Chamavam-lhe CENOURA porque naquela época havia um anúncio de um queijo avermelhado que um garoto sardento, curiosamente parecido com Édouard, comia com gula.

 

Aceitava de bom humor a piada porque tinha um sentido da amizade à prova de bala e tudo quanto vinha dos amigos era sagrado e respeitável. Como aquela noite que passámos na tenda de campismo montada no jardim da casa dele.

 

Os amigos apareceram de repente com lanternas e, como mirones, tinham tentado adivinhar o que estava a fazer, o que não era muito difícil de imaginar. Ele aborreceu-se um pouco, saiu da tenda e ralhou com os amigos enquanto eu me tapava com uma manta e manchava o saco-cama com o espermicida generosamente fornecido pelo pai.

 

No dia seguinte, quando fomos ter com eles, Édouard nem sequer aludiu ao episódio.

 

Não havia meio de conciliar o sono. Levantei-me para acender um cigarro e, maquinalmente, pus-me diante da janela a espreitar o movimento da rua. O meu quarto era no primeiro andar, ao lado da estação de metro Blanche. Não podia ser mais autêntico.

 

As cortinas da janela eram quase transparentes e senti-me desprotegida por um instante. Se eu conseguia ver através delas, talvez alguém conseguisse ver-me a mim. Mais do que um primeiro andar parecia um rés-do-chão, pois somente um metro de altura separava o meu quarto do passeio. Qualquer pessoa poderia apertar-me a mão e desejar-me boa-noite.

 

Estava uma noite clara e quente. Tinha a Paris típica ao meu alcance: Pigalle, Montmartre, e os autocarros de turistas que paravam em fila indiana em frente do Moulin Rouge e dos pi-shows, cujas incansáveis empregadas dia e noite interpelavam quantos clientes podiam, prometendo-lhes um «gozo garantido», tanto para ele como para ela.

 

Não era de admirar que não conseguisse dormir. Além do nervosismo por causa do encontro do dia seguinte, havia na rua uma fauna ruidosa que fazia uma barulheira tremenda, pisando cacos de garrafas de cerveja atiradas contra a parede. Alguns magrebinos jogavam à bola com os vidros; outros transformavam-se em faquires improvisados, lutando e retorcendo-se no chão ao mesmo tempo que outros gritavam a tentar separá-los. Uns rapazes africanos sentados dentro de um carro parado, aberto de par em par e com música soul em altos berros, faziam movimentos com as mãos e a cabeça ao ritmo do saxofone. No meio daquela balbúrdia, passaram umas raparigas bonitas e altíssimas, com o cabelo cheio de gel à garçon, de pernas finas e decotes generosos ainda salpicados por uma purpurina multicolor que a transpiração da noite arrastara até ao rego do peito. Bailarinas do Moulin Rouge com pestanas postiças. Ouviram-se alguns assobios. Vinham do carro dos africanos. As raparigas, habituadas a ter que afastar os atrevidos, passaram sem fazer caso das exclamações insistentes e ordinárias daqueles machões fortemente apetrechados.

 

No meio daquela algazarra, olhei para a janela em frente. Havia uma sombra. Detive-me naquele ponto negro do segundo andar do prédio, tentando perceber um pormenor qualquer que me fornecesse uma pista. Mas nada se movia. Parecia simplesmente uma mancha negra numa cortina. Comecei a contar os andares do edifício a partir das indicações dadas por um cartaz na porta de entrada:

 

À vendre («Vende-se»), e um número de telefone.

 

Voltei a dirigir o olhar para o segundo andar, mas a mancha na cortina tinha-se desintegrado como que por artes mágicas. Ficara apenas uma luz mortiça, proveniente, decerto, de um quarto interior do mesmo andar.

 

Apaguei o cigarro quando fui acometida por um ataque de tosse repentino e abri a janela para respirar ar fresco. Naquele instante, as bailarinas atravessaram a rua e espalharam-se por vários táxis. Os magrebinos fizeram as pazes. Os africanos fecharam as portas do automóvel e eu a janela, pus umas bolas nos ouvidos, por causa das moscas, e meti-me novamente na Cama.

 

- Não se esqueça de me pagar esta noite; assim já pode recuperar o passaporte. Já lhe disse ontem. É costume pagar duas noites adiantado.

 

Os óculos escuros impediam-me de diferenciar os diferentes tons de amarelo da t-shirt de Yamal Alaui (era o nome que figurava na insígnia que tinha presa com um pequeno alfinete), mas reparei na sua pele morena. Tinha as sobrancelhas espessas e uma barba incipiente depois de ter trabalhado a noite toda.

 

- De que zona é? - perguntei, sorrindo-lhe.

 

- Esta pele queimou-se sob o sol de Orán - respondeu, levantando as mangas da t-shirt e olhando para os bíceps com orgulho.

 

Yamal tinha uma certa nostalgia nos olhos, porque provavelmente se lembrava do que o pai contara sobre aquelas terras do Norte de África, no tempo em que toda a gente bebia chá de hortelã pacificamente, quando ler um jornal em francês ainda não constituía um sacrilégio. Era demasiado jovem para ter conhecido uma Argélia sem conflitos. Yamal era um símbolo andante do rap, do tag, do taf, do SMIC ou do RMI1, nascido na Argélia, sim, mas educado à francesa e no respectivo Estado de Bem-Estar.

 

- E a senhora?

 

Hesitei um instante.

 

- Refere-se ao branco doentio da minha pele? - respondi divertida. - É branco seco brut autêntico - redargui, referindo-me à região de Champanhe onde nasci.

 

- E isso, onde é que fica?

 

Procurei na carteira o dinheiro que pedia pela noite. Pu-lo em cima do balcão da recepção, e respondi:

 

- A duzentos quilómetros daqui, mais ou menos.  

 

Guardei o passaporte que Yamal tirou de uma caixa, enquanto perguntava a si próprio, certamente, onde ficava o tal lugar a duzentos quilómetros de Paris que fabricava albinos em série. Ajustei os óculos escuros em cima do nariz e saí.

 

A luz batia com força, como milhões de raios X que picavam ligeiramente a pele dos transeuntes, fartos de tanto calor, e o passeio libertava um cheiro a alcatrão condensado que

 

1 Tag, mensagem ou desenho a cores que alguns grupos pintam nas paredes. Taf, charro. SMIC: salário mínimo de inserção profissional.

RMI: rendimento mínimo de inserção.

 

absorvia a pouca clorofila que desprendiam as árvores que se haviam atrevido a sobreviver naquela urbe gigantesca.

 

Os óculos escuros protegiam-me daquela luminosidade tão pouco habitual em Paris. Agradava-me a realidade virtual existente por detrás das lentes escuras. Era como observar a realidade de fora, metida numa moldura que delimitava a minha própria perspectiva, oferecendo-me outra dentro de mim.

 

Nunca gostei do dia. Fui sempre um animal nocturno; de certa forma, comprar estes óculos fora uma tentativa de reprodução da noite que tanto aprecio. De facto, a responsável da loja ia dando em doida, comigo a experimentar centenas de pares com ar de desagrado, argumentando que queria os óculos mais escuros jamais fabricados.

 

Andava com passo apressado. Apesar do dia alegre, que dava uma cor nova às ruas, o humor dos parisienses era o mesmo de qualquer outro dia, chovesse ou fizesse sol: pareciam sempre aborrecidos.

 

Na verdade, não eram muitos os parisienses, porque praticamente todos se iam embora em manadas no Verão, mas isso não era o pior: o terrível era, e é, que partiam para os mesmos destinos comprados nas Nouvelles Frontières, para se misturarem de novo entre si, gritar e reconstruir, desse modo, a sua própria, pequena e inseparável Paris; isso sim, num contexto exótico.

 

Os escassos sorrisos esboçados nalguns rostos eram, pois, sorrisos italianos, espanhóis, ou inclusive ingleses (sim, sim, os ingleses até sorriem... fora do país deles, é claro!).

 

Apanhei o metro na estação Blanche, linha azul, para ir para o Instituto de Línguas Orientais e tomar nota dos horários das aulas de japonês.

 

O metro de Paris é um antro que tem um cheiro pegajoso a excremento que se sente logo à entrada. Um cheiro que viola impunemente as fossas nasais brancas, negras ou amarelas que por ali passam sem discriminação, e que se instala mesmo depois de termos deixado aquele formigueiro. Mesmo assim, agradava-me mergulhar num mundo protegido da luz natural onde tudo anda depressa.

 

Faltavam poucas horas para ir ter com ele e tinha a mesma sensação de quando me enfiara na sua cama pela primeira vez: inexperiente, com o nervosismo e a ansiedade de enfrentar o desconhecido. Porque era isso: ele era, onze anos mais tarde, um perfeito desconhecido para mim. O que nunca teria imaginado é que o fosse tanto...

 

Às sete e meia da tarde, apressei-me a ir até ao hotel. Depois de passar pela recepção para perguntar onde era o bar, para lá me dirigi, instalei-me ao balcão e pus-me a examinar descaradamente cada pessoa que se aproximava ou que já estava a tomar alguma coisa, conversando com alguém. Tinha-me sentado precisamente ao balcão para poder controlar a entrada e saída das pessoas. Não me apanharia de surpresa. Tinha chegado primeiro, eram oito menos cinco e ele, como sempre, tinha dito que chegaria pontualmente ou com um ligeiro atraso. Como é costume acontecer num encontro assim. Um encontro marcado às cegas. Ou quase.

 

Não nos íamos enganar. Era um encontro importante e se bem que eu aparentasse naturalidade, sentada no banco que me deixava os pés a balançar como uma mulher baixinha que não consegue tocar no chão, estava muito, mas muito nervosa.

 

Édouard apareceu à hora prevista, com um pequeno e estranho raio de luz por trás das costas, como uma aparição fantasmagórica. Andava com passo firme, mas dirigindo-se devagar até ao balcão, como se quisesse saborear o instante, revendo as fotografias de um álbum com recordações das últimas férias. Era um filme em câmara lenta. Para mim, não era ele quem se aproximava. Eram as imagens de um tempo adolescente, quando eu me escapava de noite com a Emma, quando ainda éramos inconscientes e livres daquela responsabilidade que a vida adulta pressupõe; essas recordações estavam ali, à minha frente, junto de um copo que pedira timidamente a um empregado elegante.

 

Só tinha querido experimentar com o Édouard, sem compromissos. Tinha-me chamado a atenção o seu nariz engraçado, potente, arrebitado e um pouco torcido no meio de um rosto magro, harmonioso, e cheio de simpatia, que respirava uma certa plenitude. Mas agora, sentia uma vontade irreprimível de me pôr dali para fora.

 

Édouard aproximava-se ao mesmo tempo que eu reconhecia o seu andar elegante, o sorriso sincero; a imagem era ainda um pouco desfocada, mas os maxilares continuavam bem assentes, rigorosamente encaixados num queixo pontiagudo, as maçãs altas, a oval do rosto traçada perfeitamente por mão de artista. Continuava a ser um homem baixo, mas com o mesmo carisma que o seu rosto sempre transmitira. Na tal noite da tenda de campismo aprendi de cor os seus gestos quando estava em cima de mim; depois, lentamente, foram desaparecendo da minha cabeça e, agora, tantos anos depois, regressavam como se os tivesse observado ontem mesmo. Não era uma recordação longínqua. As sardas continuavam lá, talvez um pouco mais morenas do que quando ele era mais novo. Até as sardas envelhecem. Mas as madeixas rebeldes já se tinham acalmado, unindo-se ao resto da cabeleira que se tornara dócil com o tempo.

 

A imagem dele fez-se mais nítida. À medida que avançava, dei-me conta de que faltava qualquer coisa naquela harmonia.

 

Faltava a razão pela qual eu me tinha apaixonado. Faltava o ar divertido da cara dele, a sua impressão digital, o que o tornava único como ser humano.

 

- Não mudaste nada - disse-me em jeito de cumprimento, quando já só um metro de distância nos separava.

 

Eu não podia dizer o mesmo. Fiquei muda. Não era o mesmo Édouard. Creio que percebeu logo a minha decepção.

 

- Como vês, acabei por fazê-lo – acrescentou.

 

Era a única coisa que eu fixava.

 

- Fi-lo porque tinha imensos complexos, sabes perfeitamente - explicou-me, como se se sentisse obrigado a dar-me uma justificação. - E no mundo médico em que estou, é muito fácil encontrar um bom especialista. Por isso, não hesitei um minuto.

 

Édouard continuava a falar, dando-me uma explicação coerente para aquela mutilação imperdoável para mim. Eu continuava meio suspensa nas recordações de menina púbere, e o meu silêncio tornou-se mais do que assassino. E tinha penetrado nele, directo ao coração, perfurando-o sem piedade, como uma faca afiada que esquarteja a carne, com movimentos secos e seguros. Acabava de cortar o corpo de Édouard em dois pedaços, jorros de sangue brotavam da sua pele esbranquiçada para salpicar umas naturezas-mortas penduradas nas paredes do bar.

 

- Nunca pensei que falasses a sério - disse, depois de um longo compasso de espera e de uma respiração nasal mais sonora do que o ruído do ar condicionado.

 

As minhas palavras caíram em cima do cadáver despedaçado de Édouard como a terra numa sepultura.

 

- Pareces desiludida - ficou sério.

 

Não, nem por sombras! Estou muito contente por te ver disse, com vontade de resolver o assunto.

 

Queria dar o assunto do nariz por encerrado, mas ele estava empenhado em saber a minha opinião.

 

Não me digas que não está melhor assim - acrescentou, pondo-se de perfil para que pudesse ver a linha perfeita da cartilagem.

 

- Édouard, é o que se chama um perfil grego, sem dúvida disse, tentando agradar-lhe. - Se era isso que querias, conseguiste. Os meus parabéns ao médico!

 

Mas nunca soube mentir. O tom da minha voz era o meu pior inimigo e denunciava-me sempre.

 

A pessoa que tinha à minha frente era um perfeito desconhecido. Mas, como confessá-lo? Sempre tentei não magoar ninguém, por mais que isso suponha dizer uma mentira piedosa. Para desviar a atenção, propus-lhe que tomasse qualquer coisa.

 

- Não, obrigado. Já começou o cocktail no salão principal. Por que não vamos? - perguntou, agarrando-me no braço carinhosamente.

 

Procurava o contacto físico, creio que queria explicar-me que se o nariz era outro, os seus dedos experientes continuavam tão eficientes como dantes. As suas carícias na base da coluna, antigamente, punham-me louca de desejo.

 

- Está bem. - E terminei o meu copo de um trago, alegre por poder ver mais gente e esquecer o maldito nariz que me ia tirar o sono. - Vamos, vamos lá.

 

A sala era enorme; as mesas de trabalho tinham sido colocadas a cada canto para depositar as bandejas de aperitivos e taças de champanhe que não paravam de esvaziar-se. As cadeiras tinham sido afastadas e, no meio da sala, conversavam, de taça na mão, umas sessenta pessoas do mundo clínico.

 

Édouard parecia conhecer toda a gente. Cumprimentava algumas pessoas com um movimento do queixo, outras com um enérgico aperto de mão.

 

Eu escapuli-me para junto dos aperitivos, peguei numa taça de champanhe e, enquanto bebia, vi claramente como o destino de Édouard e o meu sucumbiam como as borbulhas na superfície daquela bebida. Apesar de tudo, estava disposta a dar-lhe uma oportunidade; talvez pretendesse despertar novamente o que me comovera aos quinze anos, aquilo que se escondia entre as suas pernas e que eu memorizara no meu estômago.

 

Segui-o. Decidi fazê-lo quando me fez sinal com o seu pequeno queixo pontiagudo para o letreiro que indicava onde se situavam as casas de banho. Sim, fui atrás dele, ao mesmo tempo que terminava rapidamente o meu segundo copo.

 

Édouard procurava de novo essa cumplicidade e acedi sem resistência, deitando apenas uma olhadela dissimulada às pessoas com as quais havíamos trocado algumas palavras, a comprovar que ninguém se iria aperceber da nossa escapadela.

 

Empurrou a porta da casa de banho dos homens, verificou que não havia ninguém lá dentro e fez-me passar com um movimento da mão dizendo-me que o caminho estava livre.

 

Dentro de mim, um «não» rotundo ressoou desde a minha caixa toráxica até às fontes, tão contundente que pensei que o tinha pronunciado.

 

Mas se lhe tivesse dado ouvidos teria rejeitado toda a minha adolescência. Porque é preciso exorcizar o passado, não negá-lo. Assim, ali estava eu com ele, sem recalcitrar.

 

Baixou a tampa da retrete para se sentar. Convidava-me a ser o seu cavaleiro pessoal, a cavalgá-lo como um cavalo selvagem e completamente desconhecido e, ao mesmo tempo que me tirava a blusa, murmurava palavras soltas para me incitar a seguir o ritmo dele. Os meus gestos, lentos e medidos, contrastavam com o movimento desenfreado das mãos dele.

 

Não conseguia olhar-lhe para a cara. Não podia, pronto. Fechei então os olhos para que não pudessem aderir, como uma pequena sanguessuga, ao centro do seu rosto. E foi então que o meu corpo começou a falar por si só. Falava e sentia melhor na obscuridade; a minha mente era capaz de «erotizar» quando não estava condicionada por imagens do exterior. Édouard já não tinha nariz. Encarreguei-me eu de apagá-lo com um silencioso pestanejar.

 

O meu desejo jamais se acalmará, pensei, e levantei-me de repente; a transpiração das minhas pernas colara a minha pele à dele. As suas coxas estavam vermelhas pelo roçar das minhas, pele marcada a ferro em brasa como um animal.

 

De pé, com as mãos apoiadas nos azulejos imaculados da casa de banho, fui separando levemente as pernas enquando os dedos dele continuavam a lacerar-me o corpo, até se aquietarem nos ossos das minhas ancas. Era urgente vir-me para abandonar a minha imagem reflectida na louça. Que se viesse também. Gosto de dar prazer às pessoas com quem estou, mesmo que não esteja a gostar. E depois? Que posso eu fazer se tenho o sexo em fogo?

 

A suave cadência da sua pélvis forçava os meus olhos a abrirem-se como as bonecas de cera de antigamente que não tinham os olhos articulados, bonecas de pestanas cosidas a pálpebras delicadas. Para me obrigar a ver, a intuir. E o rosto dele surgiu diante de mim, na parede, com a boca aberta. Tapei-o com uma mão até o asfixiar. Pareceu gostar, porque lhe senti o orgasmo daí a pouco. Percebi então que era verdade que a falta de oxigénio pode chegar a dar prazer. O que explica que os enforcados tenham erecções quando morrem.

 

Quando fugi como uma ladra, perante o olhar atónito das pessoas que procediam ao check-in na recepção, não veio atrás de mim. Abri a porta do hotel a correr e, passados uns metros, abrandei o passo para voltar a respirar normalmente, virando-me de vez em quando para ver se Édouard tinha mudado de ideias.

 

Talvez a minha atitude tenha sido infame. Tê-lo abandonado ali, na casa de banho, sem sequer lhe dizer adeus. Mas não fora somente o pobre Édouard que eu deixara para trás.

 

         PIPO

 

Pipo tinha nascido em França, de pais argelinos, oriundos de Sidi Bei Abbès, a sul de Orán, numa zona fértil, ocupada pela Legião Estrangeira francesa até 1962. Era baixo, mas com a compleição forte de um moço de fretes; e era sobretudo muito convencido. Nunca conseguia sair de casa sem o eterno perfume exótico, misto de baunilha e canela, e o cabelo impecavelmente penteado e luzidio.

 

Vivia sozinho num apartamento de três divisões num bairro problemático, a nordeste de Paris, e trabalhava como taxista de dia. A sua vida resumia-se a trabalhar, e depois, a passear por uma Paris proibida, uma Paris só para os olhos dele.

 

Pipo era um solitário. Eu também. A minha solidão pesava toneladas, aguentava-a mal. Partilhar coisas com Pipo era romper, talvez de forma ilusória, com uma solidão que já tínhamos há demasiado tempo incrustada nas nossas entranhas. Duas almas solitárias que se unem acentuam um mal, porque uma vê na outra o reflexo da sua própria realidade.

 

Quando começámos a deambular como espectros abandonados entre a vida e a morte numa Paris selvagem, o nosso destino tornou-se um caminho espinhoso; mas nenhum de nós tinha consciência disso.

 

Começou a cair uma chuva miudinha. No Verão era normal, e pus-me a chamar os táxis desesperadamente. Queria afastar-me daquele hotel e daquele bairro quanto antes.

 

O Mercedes fez uma travagem brusca. E ali o vi, quando saiu do carro com cara de querer passar por cima de quem se atrevera a impedir-lhe a passagem, com vontade de dar uma bronca monumental com os curiosos que tinham parado quando tinham ouvido o chiar dos pneus.

 

A cara de fúria era aterradora. Usava uns jeans bastante apertados, mocassins pretos, t-shirt branca; à volta do pescoço, um fio de couro prendia um trevo de quatro folhas colado a uma maçã-de-adão proeminente. Tinha o cabelo muito curto e a pele era dourada, os olhos, verdes muito claros, tão incandescentes que absorveram imediatamente os meus quando ergui a vista. Voltei a baixá-la para olhar para o trevo.

 

- Um trevo de quatro folhas! - exclamei, entusiasmada. Olhou para mim, desconcertado.

 

- Que raio é que lhe passou pela cabeça para parar um táxi no meio da rua? É doida ou quê?

 

- Perdão, desculpe - respondi. - bom, é que... olhe... vivo em Espanha e ali estou habituada a mandar parar os táxis no meio da...

 

- Aqui não estamos em Espanha, estamos em Paris - interrompeu-me com firmeza. - E em Paris, os táxis apanham-se nas praças de táxis, entendido?

 

Tentava ter um sotaque muito parisiense, mas não conseguia esconder a melodia faiscante, própria de alguém que cresceu no Sul. Ainda assim, tentava ter um ar snob ao falar, coisa que a mim não me acontecia, já que vivia há tantos anos fora da minha terra que considerava que falava um francês perfeito e puro, sem nenhum sotaque regional.

 

- Bom, desculpe – reiterei.

 

E acrescentei.

 

- Então, para apanhar um táxi, que tenho de fazer? A que praça devo dirigir-me? Diga-me você que é daqui.

 

Sem que esperasse, largou: - bom, venha daí, entre!

 

Abriu-me a porta de trás mas eu, hesitando um pouco, entrei para a frente, para o lado dele.

 

- Não vai fazer-me mal, pois não? - perguntei-lhe, quando ele arrancou com o táxi.

 

Lembrei-me de repente da cena do filme da noite anterior, quando o taxista matava uma mulher num parque de estacionamento.

 

- Que parvoíce é essa? - perguntou friamente. - Sou um argelino nascido em França, não um serial killer - acrescentou, como se esta explicação fosse convincente.

 

Olhou para mim várias vezes. Os olhos dele brilhavam de raiva. Senti-me estranha.

 

- Bom, vai dizer-me onde quer ir, ou não?

 

- Como se chama?

 

- Pipo. Mas, onde quer que a leve? Não tenho a noite toda.

 

- Trabalha de noite?

 

- Não, precisamente. Trabalho de dia e o meu dia já acabou. Bom, ou se apeia ou me diz de uma vez por todas onde quer ir.

 

- Deixe-me na praça Blanche.

 

- Chiça! Que raio de bairro! Um pouco movimentado à noite, não?

 

Colocou uma cassete do Freddie Mercury, e pôs-se a entoar a canção.

 

- Só vou ficar uns dias nesse bairro. Depois vou para casa de uma amiga.

 

- E que faz aqui? Não parece ser de Paris. Anda à procura de trabalho?

 

- Não. Vivo em Barcelona. Estou aqui para fazer um curso de japonês. Vou ficar um mês e depois volto para Espanha.

 

- Chiça, saiu-me uma intelectual! Era só o que me faltava!

 

- Não sou nenhuma intelectual. Só estudo japonês.

 

- E vem de Espanha? - começou a interessar-se. - Há uns anos, fui a Ibiza com uns amigos. Não lhe conto as festas que organizámos. Conhece Ibiza?

 

- Sim, claro. E o Pipo, conhece Espanha, fora Ibiza?

 

- Não, nem me interessa. Só estou interessado em Ibiza, para curtir.

 

- E o seu nome?

 

Parou num semáforo e olhou para mim.

 

- Que é que tem o meu nome? ; , - O seu nome não é nome. É um diminutivo, não é?         ;

 

- O meu nome é Pipo, ponto final.

 

- Um argelino chamado Pipo, esquisito, não? Emendou o tema com um «E quem é que estuda japonês?»

 

E não voltou a dizer mais nada acerca do assunto. Não parecia ter gostado lá muito do meu comentário.

 

Deixou-me na pensão, que estava mesmo em frente de La Loca, uma das discotecas mais famosas de Paris. Paguei a corrida e quando lhe ia a agradecer ter-me levado, estendeu-me um cartão.

 

- Se quiser sair uma noite destas, conheço a cidade melhor do que ninguém. Telefone-me. Estou livre a partir das nove.

 

Peguei no cartão sem grande convicção e guardei-o no bolso. Achei estranho e interroguei-me a que se deveria a repentina mudança de comportamento.

 

Como uma fugitiva cheguei à recepção da minha humilde pensão. Não soube onde ir depois de deixar Édouard e o meu passado na casa de banho. Cheguei ali num táxi que percorreu meia cidade sem que me desse conta, em busca de auxílio ou, simplesmente, de um pouco de ar. Como quem procura um lar ou um olhar límpido. Tentando reconhecer alguém para me reconhecer a mim mesma, Yamal dormitava. Ao ver-me pôs-se de pé imediatamente, firme como um militar. Pigarreou, fingindo que estava a trabalhar. Olhei para ele e tive a sensação de que queria entabular conversa comigo, quando até à data tinha sido eu a ter que sacar-lhe as palavras.

 

A noite de Paris tornava amável qualquer um.

 

Parei na escada e disse-lhe muito séria: «Acabo de matar uma pessoa, não olhe para mim assim.» O rosto dele permaneceu impassível ainda que franzisse ligeiramente o sobrolho. Eu estava decepcionada porque na realidade não tinha morto ninguém. Acabava simplesmente de suicidar a rapariguinha de quinze anos que ainda dormia dentro de mim.

 

           A MANCHA NEGRA

 

No quarto, abri as cortinas de um dos lados da janela para tentar ver o carro de Pipo afastar-se na noite parisiense. Mas já lá não estava. Atirei-me para cima da cama, peguei num livro de Yuko Mishima, e pus-me a ler.

 

Não conseguia concentrar-me. Fechei o livro e coloquei-me novamente diante da janela. E lá estava outra vez a «mancha». Uma silhueta materializada num homem com uma t-shirt com desenhos. Havia menos forrobodó nessa noite, e fixei os olhos naquela sombra; de repente, julguei perceber que tinha dado por mim.

 

Desapareceu logo e ao fim de uns minutos regressou com uma cadeira na mão, depositando-a em frente da janela e fazendo uma coisa surpreendente. Sentou-se, abriu um frasquinho que trazia na mão e a seguir deitou o líquido num algodão ou numa gaze. Baixou as calças, puxou do membro e começou a masturbar-se com aquele trapito impregnado de um líquido curioso que parecia Betadine.

 

Não queria acreditar no que estava a ver. Era evidente que me tinha descoberto.

 

Ao fim de uns minutos, um espasmo fê-lo estremecer porque flectiu levemente as pernas e as costas descaíram para trás.

 

O espasmo dele atravessou a rua e alcançou o meu, quando a excitação me surpreendeu, quando a minha respiração começou a ficar ofegante e as minhas coxas a contraírem-se. O contacto das minhas mãos com o meu sexo era um convite a rebobinar muitas imagens vividas numa única noite: uma tenda de campismo, a casa de banho de um hotel de luxo, uns olhos verdes reflectidos no retrovisor de um táxi, um árabe de olhar inquisidor na recepção de uma pensão, uma mancha negra procedente de um homem que se tinha vindo, sabendo que eu o espreitava...

 

O meu espasmo também atravessou a rua e alcançou-o.

 

           ENCONTRO MARCADO

 

No dia seguinte, desci para o pequeno-almoço rigorosamente vestida de luto para ir à minha primeira aula de japonês. Curiosa contradição para mergulhar no país do Sol Nascente, onde os enterros se celebram de branco.

 

- Ouve! - interpelou-me Yamal quando me viu. - Era a sério o que me disseste ontem à noite?

 

Não sabia a que se referia. À noite?

 

- Não mataste ninguém, pois não?

 

Tinha decidido tratar-me por tu sem pedir licença, como se ser cúmplice indirecto de um suposto homicídio lhe desse esse direito. Optei por fazer o mesmo.

 

- Era uma piada, Yamal. Ontem bebi de mais. Não te preocupes,

 

Olhou para mim, desconfiado.

 

- Raio de piada! Saíste-me uma rapariga muito esquisita... E despediu-se de mim para deixar o lugar a uma rapariga bonita, de ar febril e tímido, que era a recepcionista de dia.

 

Acabei rapidamente o café com leite e saí a toque de caixa para a minha primeira aula de japonês. Ia chegar atrasada.

 

Quando voltei no final do dia, a rapariga bonita da recepção entregou-me um papelinho dobrado. Era uma mensagem.

 

- Telefonou esta tarde um senhor de nome Pipo. Disse que voltava a telefonar. Tive dificuldade em perceber que queria falar com a senhora, porque me disse que não sabia o seu nome, mas adivinhei pela descrição que ele fez.

 

Estava realmente orgulhosa da sua eficácia profissional.

 

Não dei tempo para que Pipo voltasse a manifestar-se. Procurei o cartão e marquei o número.

 

- Sou a intelectual, a das aulas de japonês.

 

- Telefonei-lhe esta tarde. Mas como não me disse como se chamava, tive de dar alguns detalhes de que me lembrava.

 

- Também não perguntou. Chamo-me Valérie, Vai para os amigos.

 

Combinámos em frente da minha pensão às oito e meia para ir beber um aperitivo, num barzinho de uns amigos dele. Chegou pontualmente e levou-me ao bar Chez Jojo que frequentava há vários anos. Costumava ir beber um copo ali, depois do trabalho, antes de ir jantar.

 

Não me pareceu mais amável do que na véspera. Tinha o mesmo ar triste, como se lhe tivessem gravado no rosto uma máscara do Carnaval de Veneza. Quando lhe perguntei o motivo do telefonema e porque havia querido voltar a ver-me, não me deu qualquer resposta concreta. Parecia sempre evasivo, talvez porque quisesse comportar-se como teria gostado que eu me portasse com ele. Ou talvez porque tivesse qualquer coisa a esconder. Porque ele tinha um segredo.

 

Apesar de não me ter dado qualquer tipo de explicação, penso que o seu primeiro motivo para me levar a passear por Paris inteira foi quando lhe disse que era uma pessoa inquieta e que já quase nada me podia admirar. Confessei-lhe que invejava a capacidade de surpreender os outros que certas pessoas conseguem ter. E Pipo considerou isso um repto pessoal.

 

Julguei de facto que tivesse sido esse o motivo. Talvez fosse, durante uma fracção de segundo assim o pensei, mas a verdadeira razão que o impeliu a levar-me com ele a todas as suas saídas nocturnas era muito diferente.

 

Naquela noite, no Chez Jojo, quase não abri a boca. Ele falou-me longamente da ex-namorada, Isabelle.

 

Tinham-se conhecido da maneira mais estúpida e convencional. Nos copos com amigos e a dizer parvoíces às raparigas. Isabelle estava com duas amigas e o normal era que viesse a ser mais uma presa na noite de Pipo.

 

-Danças?

 

- Não.

 

Logo a seguir, vendo que as amigas iam dançar com os amigos de Pipo, rectificou:

 

- Queria dizer por que não.

 

Pipo encostou-se a ela; Isabelle respirava o seu perfume a baunilha e canela. Agarrou-a firmemente pela cintura, levantando-lhe sem querer a saia. Notara o elástico das cuequinhas de algodão e tinha-se posto a acariciá-lo com um dedo. A sua intensa respiração no ouvido de Isabelle parecia causar o efeito desejado. Uma vez terminada a música, continuaram no meio da pista e do fumo branco que um DJ de mau gosto havia lançado para anunciar a próxima canção que prometia ter mais ritmo,

 

- Queres um copo?

 

- Por que não?

 

Rapidamente Isabelle se juntou às amigas que riam infantilmente, ao mesmo tempo que Pipo tentava afastar às cotoveladas todos quantos não tinham conseguido uma mesa, como ele, e se tinham refugiado ao balcão.

 

- Podemos voltar a ver-nos?

 

- Por que não?

 

Conversaram um bocado, enquanto os amigos se atracavam literalmente às duas amigas. Ele não. Nessa altura, Pipo era mais tímido. Nessa noite tinha sido muito correcto porque tinha gostado muito de Isabelle. Além disso, não falava muito. Era perfeita.

 

No final da noite, fez de motorista das amigas de Isabelle para ficar bem visto e ao som da música dos Queen - We Are the Champions - deixou-a em casa.

 

- Posso beijar-te? – perguntou Isabelle.

 

- Por que não?

 

Arrancou depois de modo triunfal deixando Isabelle com o sabor dos lábios dele na boca.

 

Isto ocorrera cinco anos antes.

 

A princípio, cada um vivia na sua própria casa. Ela num andar, em Evry, nos arredores de Paris, com um yorkshire insuportável que não parava de ladrar sempre que o vizinho regressava bêbado a casa. E ele no apartamento de sempre. Mas em breve a química interveio e Pipo acabou por aceitar o yorkshire.

 

- E o que lhe aconteceu a ela? - perguntei, interessada na história.

 

-Já te conto.

 

Eu queria conhecer Paris toda. Além disso, nunca tinha tido oportunidade de passar muito tempo seguido na capital.

 

Queria saber o nome de cada um dos transeuntes com quem me cruzava no metro ou na rua. Tentava adivinhar os nomes que podiam ter, até mesmo a sua profissão, pela cara que tinham.

 

Por isso aceitei sair novamente com Pipo quando me voltou a telefonar.

 

Curiosamente, ele tinha sido a única pessoa a quem não tinha conseguido dar um nome. Ou talvez o tivesse feito e me tivesse enganado redondamente. Pipo, para mim, podia perfeitamente ter-se chamado Fahrid e ser, por exemplo, pedreiro.

 

- A quem raios passa pela cabeça estudar japonês? Não te vai servir para nada. A não ser que queiras ser gueixa.

 

- O que mais me fascina na sociedade japonesa é aquela arte de fazer hara-kiri. Tu não tinhas tomates para te estripares daquela forma, apesar dos teus ares de guerreiro, pois não, Pipo?

 

- Como é que sabes? A ver se é verdade que tens os tomates que dizes que tens.

 

Pipo agradava-me. com ele estava muito bem no meu papel de fêmea tonta, à espera de ser dominada por um tipo armado em machão. Já tinha perdido a mania do meu discurso reivindicativo da igualdade dos sexos e do meu carácter de mulher que dominava sempre qualquer tipo de situação. Num semáforo, Pipo pôs-se a olhar com ar divertido para um tipo que atravessava lentamente a passagem de peões. Parecia ter bebido muito e balançava perigosamente de um lado para o outro. Pipo gritou de repente:

 

- Olha-me este! Tem cara de se chamar Georges. Aposto que trabalha num escritório das oito às seis, numa estação de Correios. Solteiro e com uma vida chata. Os funcionários têm vidas sem sentido. Por isso se embebedam quando saem do trabalho. Um bocado como os teus japoneses.

 

Os meus japoneses? Não entendia o que ele queria dizer; de qualquer modo, fiquei sem fala. Os lábios dele à noite, à luz da rua, eram arroxeados, roçando o azul «forense»; eu, ao vê-los, morria de vontade de beijar aquela boca glacial.

 

-Tu também dás nomes a caras desconhecidas?

 

Não respondeu. Continuei:

 

- Sabes que eu também faço isso? É incrível, não é? Faço isso sobretudo no metro, no comboio, quando não tenho nada melhor para fazer. Desde pequena.

 

Continuou sem me responder. Em vez disso, arrancou quando o semáforo ficou verde, virando um pouco o volante para não atropelar o suposto Georges que continuava ainda no meio da passagem, erguendo os braços e insultando-nos. Pipo meteu directamente a terceira e os lábios dele ficaram de repente de um dourado de tons quentes.

 

Começou a chover. Encostei o nariz ao vidro e pus-me a olhar através das gotas de água a luz difusa dos faróis. Só se ouvia o ruído do limpa-pára-brisas que tinha uma cadência regular, como o ruído das rodas de um comboio.

 

- Onde estamos?

 

- Perto do Pont Neuf - disse.

 

A resposta dele trouxe-me à memória a actriz Juliette Binoche, a protagonista de Os Amantes do Pont Neuf com Denis Lavant. Gosto muito da Juliette Binoche. Vi todos os filmes dela, e comoveu-me imenso a trilogia de Krzystztof Kieslowski. Mas gostei particularmente do primeiro filme, Azul, porque era nesse que ela aparecia. Até comprei a banda sonora.

 

- De certeza que te lembras como eram os amantes do Pont Neuf?

 

Ficou pensativo um instante e disse, seguro de se: Eram cegos.

 

- Isso, cegos. Como eu, de noite em Paris, que me sinto cega e usufruo duplamente do ambiente desta cidade. Pipo, não quero voltar a ver nunca mais.

 

Tinha ficado subitamente muito romântica e pirosa. Pipo sentiu-se incomodado. Voltei a colar o nariz à janela. O vidro estava húmido e fresco e comecei a vislumbrar silhuetas esquisitas, como fantasmas, que se dirigiam para o Pont Neuf apesar da chuva torrencial que caía.

 

- Lá estão eles! – sussurrei.

 

Mas Pipo não tinha muita vontade nem de falar nem de ver.

 

Virou para uma pequena rua e explicou-me que acabara de ter uma ideia. Queria mostrar-me um sítio que me iria surpreender. Ali, as pessoas falavam pouco. E era difícil dar nomes às caras, entre outras coisas porque não tinham rosto.

 

- O quê?

 

- Já vais ver.

 

- Que tipo de lugar é esse? - perguntei, curiosa, e um pouco nervosa.

 

Mas, em vez de dar-me explicações, perguntou-me de forma autoritária:

 

- Apetece-te ir ou não? Não me disseste que eras uma mulher que já não se surpreendia com coisa nenhuma?

 

           GANG-BANG CONNECTION

 

No murmúrio de vozes que se concentravam à minha volta podia ouvir todas as conversas. Os meus ouvidos moviam-se a uma velocidade recorde, talvez porque era tudo tão novo para mim que queria saber tudo, entender tudo e ver tudo.

 

- Gosto do rabo que tenho nas mãos.

 

- Se gemer, é porque gosta, não?

 

- Continua assim, não pares.

 

Tive dúvidas de que estas conversas ou estes pensamentos, que não eram meus mas das pessoas à minha volta, fossem certos; mas queria entrar neles.

 

Pipo parecia estar no seu ambiente; não se tinha cortado no momento de tirar a roupa à entrada daquele sítio escuro e de pôr a mascarilha que lhe estendera a relações públicas, uma mulher com uma mini-saia preta exageradamente «mini». Era o regulamento. Nada de roupa, nada do exterior entrava, absolutamente nada, excepto nós próprios completamente em pelota, com a mascarilha posta. Ninguém se devia reconhecer.

 

Mas por mais mascarilha que uma pessoa pusesse, um traseiro era único.

 

Admito que, num primeiro momento, tive certas reticências em abrir o fecho da minha saia mas, quando vi que o Pipo se movia como peixe na água, animei-me, talvez mais para lhe agradar a ele do que a mim, e imitei-o.

 

- Olha para esta, tem as clavículas muito saídas. Isso excita-me mais do que umas boas mamas.

 

Mesmo não querendo, as frases entravam-me pelos ouvidos dentro, fazendo com que os meus sentidos se abrissem por completo.

 

No meio de uma enorme sala estava uma mesa redonda com uma toalha vermelha e uma fonte com fruta variada: uvas, maçãs, pêras e uma ou outra fruta tropical.

 

As pessoas deambulavam e de vez em quando pegavam num bago de uva que mordiam com força. A polpa suave do fruto segregava um suco doce, compacto e suave ao paladar. Eu seguia a trajectória daquele bago. Era essa a minha maneira de saborear. Mas desconhecia o prazer que aquelas pessoas sentiam. Talvez o meu «doce» fosse mais doce para elas. Talvez o azedo da polpa fosse menos ácido para aquele homem de tronco forte. E aquela senhora de peito caído e pele de laranja nas nádegas talvez não suportasse comer uvas por terem grainhas demasiado grossas para a sua garganta. A sua boquinha de cu de galinha, porém, abria-se sem dificuldade nem resistência ao pénis que se aproximava dela.

 

Não me queria separar de Pipo nem um minuto. De facto, estava literalmente colada a ele.

 

- Este sítio lembra-me as bacanais gregas, o que queres que te diga? - murmurei-lhe ao ouvido.

 

- Porquê?

 

- Por causa daquela fruta toda exposta. É um círculo privado, não é?

 

- Sim, claro.

 

- E como é que conheces este tipo de lugar?

 

- Em vinte anos de trabalho como taxista, conhece-se tudo nesta cidade.

 

As pessoas olhavam muito para mim. Sabia que não me podiam ver a cara, mas era evidente que era nova naquele lugar. Sempre considerei que tinha um rabo bonito.

 

Pipo pegou-me na mão e levou-me para outra divisão situada no final de um corredor comprido com quadros nas paredes, com buracos para mirones, ao melhor estilo de Kubrick.

 

- Anda, vou mostrar-te uma coisa.

 

No fim do corredor, a divisão tinha uma luz curiosa, com cortinas de pano branco penduradas do tecto, criando um labirinto de fibra que tínhamos que afastar com as mãos para abrir caminho.

 

- Vê como ela quer. Ela que abra mais as pernas!

 

As vozes pareciam indicar que mais qualquer coisa se estava a passar por detrás daquelas cortinas, uma coisa mais forte ainda do que eu podia imaginar. Pipo continuava a segurar-me na mão com firmeza, para evitar que nos separássemos no meio daquele puzzle de panos.

 

Quando Pipo afastou a última cortina, surgiu um grupo de pessoas a olhar para o centro do quarto. Eu não conseguia ver nada, a não ser traseiros amontoados, cabelos compridos e curtos, corpos pálidos e morenos, peludos e imberbes, carne musculosa ou peles flácidas, mãos que acariciavam os vizinhos e braços caídos ao longo do corpo. Pipo pediu licença para passar porque queria que eu participasse no que estava a acontecer naquele momento.

 

Sentia como era apalpada à medida que penetrava naquela multidão viciosa e por instinto esquivava-me como podia àquele exército de dedos.

 

De súbito, senti cócegas no estômago. Era a minha curiosidade insaciável que me empurrava para a frente; não podia fazer marcha atrás, por mais que quisesse. Não podia resistir àquela atracção.

 

- É assim todas as sextas-feiras. Como um ritual - explicava-me Pipo ao ouvido, quando comecei a entender o que se passava. - Nos outros dias, este quarto está fechado ao público.

 

Ergueu-se diante de mim uma cama redonda enorme onde jazia uma mulher com a cara totalmente tapada por uma máscara (era a única que não usava a mascarilha obrigatória), penetrada por um jovem musculoso que, com as mãos debaixo das nádegas dela, a levantava bruscamente. Atrás dele, esperavam com paciência que chegasse a sua vez, de pénis na mão, uns dez homens arquejantes. Todos tinham a cara crispada pela excitação de serem os próximos a possuir aquele corpo desumanizado por aquela máscara de látex preto.

 

Tinha os mamilos espetados, a mulher, excitada não só pelo prazer que era proporcionado pelo jovem musculoso, mas também por ver que faziam bicha para a possuírem. Tantos pénis erectos para satisfazer a sua fantasia de ser uma mulher-objecto.

 

- Gostavas de estar no lugar dela? - perguntou-me novamente Pipo ao ouvido.

 

Sentia-me esquisita. A verdade é que a cena era muito excitante. O meu instinto animal manifestava-se em silêncio, como se estivesse diante de um filme pornográfico. Apertei um pouco mais a mão de Pipo. No fundo, o que ele queria dizer é que gostaria de me ver no lugar daquela mulher-objecto.

 

- Devo entender que é um «não». Então, continua a olhar e goza. Como eu - murmurou, sem desviar os olhos da cama redonda.

 

O jovem musculoso tinha-se vindo e havia dado o lugar a um homem fracote, de estômago caído mas cuja cadência parecia mais ritmada,

 

Os lençóis brancos da cama onde jazia a Bela Adormecida versão porno estavam impregnados de suor ou sémen: naquele momento, já não se conseguia saber o que mais se tinha espargido.

 

- É um gang-bang - explicou-me Pipo de repente, a despropósito.

 

- Um quê?

 

- Um gang-bang. Uma orgia durante a qual uma única pessoa é possuída por muitos homens, que esperam a sua vez. Chama-se assim. Gang-bang. Há muitos sítios em Paris onde isto se pratica.

 

- Credo, homem! Até parece que alguém vai disparar.

 

- Pois é mais ou menos disso que se trata. E desatou a rir.

 

Não podia negar que aquela cena me excitava, mas não me sentia à vontade, talvez porque mãos desconhecidas me roçavam o corpo, umas amassando-me o traseiro sem aviso prévio, outras surpreendendo-me tocando-me nos seios. Eram mãos que não pertenciam a ninguém; os suspiros que se ouviam à minha volta pareciam sair das paredes,

 

Ao fim de algum tempo, pedi a Pipo que nos fôssemos embora; aquele espectáculo cansava-me.

 

- Bolas, pensava que gostavas!

 

- Sim, ver está bem. Mas já estou a ficar farta. Tantos falos aqui... que queres?! E o cheiro, já estou a ficar agoniada.

 

- Pois aqui - acrescentou Pipo - corre o rumor de que vem gente muito importante. Ministros e isso tudo.

 

- E então? Só o povinho é que faz sexo ou quê? A sério que isso te espanta?

 

- Não, só falei a título de anedota, mais nada. Imaginas-te a dar uma queca com um tipo e ficares logo a saber que é o ministro da Saúde? Ah, ah, ah. Desculpa, dá-me imensa vontade de rir.

 

E fomo-nos embora porque chamávamos demasiado a atenção. Pusemo-nos a andar calados até ao táxi depois de Pipo se refazer do ataque de riso. Gostava do riso dele. Era natural, espontâneo. Poucas vezes me sentira tão bem com um homem. Além disso Paris, de noite, parecia mais domesticável do que de dia, talvez por a cidade nos pertencer realmente. Não havia tanto bulício e as coisas eram menos rápidas, a vida subterrânea já não tremia freneticamente debaixo dos nossos pés.

 

A noite assentava bem a Paris e aos seus edifícios. O preto fica bem a toda a gente. A torre Eiffel deixava de ser durante umas horas um amontoado de chapa oxidada para se transformar num ponto luminoso. O Sena já não dava a ver a porcaria esverdeada à superfície; parecia antes um grande espelho que convidava a que nos víssemos nele. Os palácios de Paris - indubitavelmente de uma fabulosa beleza durante o dia - pareciam transformar-se em cenários de contos orientais.

 

Até o Beaubourg era quase aceitável, arquitectonicamente falando, enquanto La Défense impunha a sua sombra sobre os distritos limítrofes da cidade. Talvez a felicidade consistisse nisso: sentir que nos pertence uma coisa bonita e que nós pertencemos a essa coisa.

 

A torre Montparnasse, uns duzentos metros de vaidade, parecia menos pretensiosa na noite parisiense. Os seus detractores eram seguramente mais indulgentes das dez da noite em diante.

 

Mas de madrugada, as gárgulas de Notre-Dame pareciam transformar-se em qualquer coisa de diabólico. Como brincava connosco o cérebro quando a imaginação se punha a funcionar! Projectava os nossos medos mais atrozes, dando formas endiabradas a anjos inocentes, esculpidos na pedra das catedrais. Olhando-as fixamente, as gárgulas abriam as asas para dançar em cima de uma cidade, cujas pontes se transformavam de repente nos tentáculos de um polvo gigantesco que apanhava os transeuntes nocturnos. A ver se íamos todos acabar em patê de carne humana, sem conservantes nem aditivos, para gárgulas esfomeadas!

 

A ilha da Cite, apesar de tudo, continuava a flutuar tranquilamente sobre o Sena, isolada para sempre do resto da urbe.

 

Pipo interrompeu os meus pensamentos com uma frase estúpida.

 

- Imagina uma grande orgia na televisão, num programa sério, quero dizer, com um prémio no final. ,

 

- Mas, que estás tu a dizer, Pipo?

 

- Ia ser divertido, não? Um gigantesco gang-bang televisivo como o que acabámos de ver, chamado Gang-Bang Connection.

 

Desatou a rir.

 

- Sim, Gang-Bang Connection soa bem – acrescentou,

 

- Não tinha interesse nenhum. Banalizar a esse ponto o acto sexual penso que seria matar a excitação e o erotismo,

 

- Está bem, vais ver como havemos de chegar lá.

 

Em 1995 ainda não existiam nem os Loft Story na M6, nem o Grande Irmão na TV5, nem o Big Brother soava tão inglês. Para que Aldous Huxley se torcesse de gozo no túmulo.

 

- Seria muito excitante – prosseguiu.

 

- Achas? Explicitar dessa maneira é banalizar.

 

- Porquê? O que é que faltava, em tua opinião?

 

- A emoção, Pipo. A emoção. Como se pode transmitir emoção praticando sexo em grupo diante de milhões de pessoas, com a cara crispada pela ansiedade, impotentes por estarem rodeadas por dezenas de câmaras.

 

- A mim, seria isso que me faria tesão.

 

- Prefiro a literatura masturbatória. É mais criativa.

 

Fez cara de quem não entendia.

 

Tu é que és mais pervertido do que todos os perversos larguei, dando-lhe uma palmadinha nas costas,

 

Agarrou-me pelos ombros, rindo, e entrámos no táxi. Pequenas borboletas revolteavam em redor dos faróis. Também eu me sentia borboleta: por um lado, Pipo atraía-me muito; por outro, tinha medo de me queimar.

 

Quando me deixou na pensão, entrei como um foguete, sem me despedir dele. Yamal estava a falar com uma turista inglesa, que havia tirado os sapatos para ficar com um ar mais cool. Mal deu por mim, mas a turista virou-se e lançou-me um sorriso bastante estúpido. Fui para o quarto com o coração acelerado.

 

O meu quarto cheirava a humidade, sobretudo à noite. Abri a janela e procurei novamente sinais de vida do meu vizinho exibicionista. Era a minha última noite no bairro e queria saber se ia ter coragem de aparecer novamente.

 

FLAMINGOS COR-DE-ROSA EM PLENO CENTRO DE PARIS

 

Curiosamente, não tinha dado nome ao meu exibicionista da frente. Parecia um zé-ninguém, um tipo que se podia confundir com a multidão sem chamar a atenção, sem que ninguém se importasse com a sua vida miserável entre as quatro paredes de um apartamento de vinte metros quadrados. O tipo perfeito do terrorista internacional que, um dia, farto da rotina, decide pôr uma bomba na estação de Saint-Michel para logo se afastar tranquilamente, assobiando. Mas a mim aquele zé-ninguém, aquela mancha humana, importava-me.

 

Era uma e meia da manhã, e pus-me a vigiar a janela dele. Tinha apagado as luzes do quarto para que não pudesse ver que estava alguém à espreita. O meu vizinho apareceu, em tronco nu, curvado porque deslocava qualquer coisa que depositou em cima da cama ou em cima de uma mesa. De onde eu estava, não conseguia ver nada do que havia dentro do quarto dele, apesar de a janela estar completamente aberta, bem como as cortinas, e a luz acesa.

 

Vestiu de repente a eterna t-shirt de desenhos, viu-se ao espelho pendurado numa das paredes, desapareceu do quarto e, tal como na noite anterior, regressou ao fim de cinco minutos. Parou novamente em frente do espelho, passou uma mão pelo lado direito do cabelo, depois pelo esquerdo e, humedecendo previamente os dedos, arranjou umas madeixas colocando-as no lugar com a saliva porque lhe caíam para a testa. Virou-se bruscamente para a janela e pensei que voltara a descobrir-me. Começou a fitar a rua, seguramente para avaliar o calor que estava àquela hora da noite, voltou para dentro, pegou num livro e desapareceu.

 

Por curiosidade, deixei-me ficar à janela porque pensei que provavelmente fosse sair. E não me enganara. O meu masturbador compulsivo empurrou a porta principal do prédio; tinha uma t-shirt com flamingos cor-de-rosa que agora conseguia distinguir perfeitamente graças à iluminação da rua, e foi andando pelo passeio na direcção da praça de Pigalle.

 

Decidi ir atrás dele. Nunca me pareceu bem a ideia de seguir uma pessoa porque, de certa forma, é violar a sua intimidade a despropósito. Mas o meu vizinho da frente tinha-me provocado. Estava a pedi-las. Além disso, o sucedido com Pipo havia-me despertado mais os sentidos do que de costume. Mas tinha de despachar-me, porque senão ia perder-lhe o rasto na noite. Peguei na carteira e desci as escadas da pensão a correr. Yamal já não estava junto da turista inglesa; estava absorto em frente da televisão.

 

No fim do quarteirão, parei, tentando encontrar o meu vizinho no meio dos jovens ruidosos das imediações, que sonhavam passar uma noite de álcool, droga e house music, e dos clientes de uma esplanada de um bar com as mesas de frente para a rua. Não me foi difícil reconhecê-lo à noite. Caminhava tranquilo e divertido, observando à volta as luzes intermitentes das sex-shops que cegavam os transeuntes. Atravessei a rua para me aproximar mais e tê-lo sob controle, se bem que não fosse fácil adaptar-me ao passo dele de forma a não lhe passar à frente. Ando sempre muito depressa. Abrandei, quase lhe agradecendo por ter entrado enfim numa dessas lojas eróticas. Apertou com força contra o peito o livro que levava, como se tivesse medo que alguém lho arrancasse das mãos, e abriu caminho no local. Uma campainha anunciou a entrada dele e a sua silhueta desapareceu, engolida por um cortinado vermelho da entrada do Eros Centre.

 

Peguei num maço de cigarros ainda por abrir. Acendi um cigarro onde dava grandes passas que engolia com paciência, porque tinha a firme intenção de esperar por ele, demorasse ele o tempo que demorasse, ainda que isso supusesse aguentar as luzes indiscretas da sex-shop durante horas e suportando estoicamente as solicitudes de uns velhos maduros mal barbeados em busca de carne fresca. Queria ver-lhe a cara, ver-lhe os olhos, só isso. Qualquer coisa me unia àquela mancha translúcida, quanto mais não fosse uma rua entre dois espasmos desencontrados.

 

Sentei-me na esplanada de um bar em frente da sex-shop para não chamar demasiado a atenção e pedi um copo a um empregado desagradável que seguramente se chamaria Charles (tinha cara de chamar-se Charles), cravando o olhar no cortinado vermelho.

 

Entrava e saía gente de toda a espécie: pares heterossexuais, gays, quarentões, sexagenários e, de vez em quando, uma ou outra rapariga de saltos altíssimos que devia fazer parte do show em directo, que anunciava o strip-tease mais excitante do momento.

 

O meu vizinho demorava tanto que decidi ir buscá-lo e trazê-lo pelo pescoço se fosse caso disso. Também não podia resistir à tentação de entrar num lugar daqueles. Pus-me de pé, tirei umas moedas do porta-moedas, deixei-as ao lado do copo em que mal tocara e entrei na sex-shop com passos decididos, aparentando uma grande segurança.

 

Pensava que um sítio assim preservaria o anonimato da clientela, mas a luz tão clara do local provocava o efeito contrário. Quanto mais iluminado, melhor, se bem que todos quantos estavam presentes fingissem não ver ninguém. Nenhum sustentava o olhar do outro. Todos partilhavam dos mesmos gostos, mas não havia nem um toque de cumplicidade entre eles. Pelo contrário. Todos tinham o nariz colado a revistas pornográficas ou a vitrines de artigos eróticos. Nem sequer tinham dado pela minha presença; era a única mulher na loja. Do masturbador compulsivo não havia nem rasto... Dei várias voltas por ali, fingi interessar-me por um calendário com posições do Kama Sutra, até que uma silhueta magra e saltitante saiu, quase de forma súbita, de uma cabina de projecção X. Mas eu já sabia quem ele era, com o eterno livro, firmemente agarrado debaixo do braço. Era um tipo comum, não havia nada de interessante que sobressaísse nele. Vezes há que, sem sabermos explicar nem a nós próprios, fixamos e ficamos obcecados por coisas insignificantes. Fiquei desiludida. Não sabia bem porquê, no fim de contas, não tinha a menor vontade de meter conversa com ele, não tinha nada a dizer-lhe, nem sequer o físico me tinha atraído para lhe oferecer sexo em última instância. Era mais do que evidente que a cena da noite anterior nada tinha a ver com ele, mas sim com tudo quanto eu tinha vivido nas últimas horas. Tive de reconhecer que sim, que qualquer coisa tinha tido a ver, mas a excitação dissipara-se assim que a mancha humana se transformara em pessoa física. Qualquer coisa, todavia, me levava a querer partilhar uns momentos da vida dele. Excepto a visão de uns vibradores «multicolores» gigantescos que só podiam servir de adornos, nada me unia a ele. Quem é que podia introduzir tais bestialidades? Não podia partilhar nada, somente roubar-lhe fragmentos da sua existência e reconhecer que eu era, como quase toda a gente, e ainda que me custe reconhecê-lo, uma mirone, uma verdadeira voyeuse.

 

Quando o meu vizinho abandonou o local, segui-o de imediato para não lhe perder a pista. Atravessou a rua, evitando uns carros que iam a passar e eu fiz o mesmo. Houve um momento em que pensei que se tivesse apercebido da minha presença ou que pressentisse que estava a ser observado. Que diacho lhe iria eu dizer se ele desse meia volta e me perguntasse o que pretendia?

 

«Desculpe, mas ontem à noite pôs-se a masturbar-se em frente da minha janela, o que me excitou muito e também tive de masturbar-me. Por isso, decidi ver-lhe a cara depois de ter conhecido previamente o seu honorável membro.»

 

«Sayonara, senhor ninguém-san. Nunca imaginaria que com um falo assim, o senhor pudesse ter essa cara. Desculpe, foi pura curiosidade da minha parte.»

 

Enquanto pensava na frase que podia dizer, o desconhecido aproximou-se de um caixote do lixo, deitou fora o livro que o acompanhara até ali, deu meia volta e foi-se embora.

 

Por que atiraria o livro para o lixo, à noite, logo a seguir a ter saído da sex-shop? Agora, já não era o meu vizinho que me interessava, mas sim as suas leituras. Talvez, fora os nossos espasmos, e o ter-lhe visto o pénis erecto, algo me pudesse unir a ele: os livros.

 

Enfiar a mão num caixote do lixo não era precisamente o que mais me apetecia na altura, mas tinha de perceber a razão pela qual o meu vizinho anónimo se desfizera do livro. com suma delicadeza para não tocar na porcaria que outros haviam depositado, levantei a tampa de lata e, com muita dificuldade, consegui tirá-lo.

 

Era um catálogo.

 

Um catálogo de venda por correspondência, com uma página dobrada no sítio onde parara de ler.

 

Um mísero catálogo de venda de lingerie feminina a domicílio...

 

Senti-me terrivelmente defraudada. Aquele tipo masturbava-se com um catálogo de mulheres encafuadas em veneráveis cintas apertadíssimas e soutiens adaptados a peitos que ultrapassavam o tamanho cem, copa C?

 

Não era pois de espantar que eu não lhe tivesse chamado a atenção. Não era o tipo dele, nem pouco mais ou menos. Era mais lisa do que uma tábua de passar a ferro.

 

               MIMI

 

Mimi e eu conhecemo-nos na Universidade de Estrasburgo, no primeiro ano, quando todos pensávamos, convencidos pelos pais, que estudar era o melhor que podíamos fazer. Eu escolhera umas aulas de História Contemporânea como cadeira de opção, porque o professor tinha fama de ser divertido e costumava ilustrar as aulas imitando a tomada da Bastilha, em cima da secretária e gritando como um carroceiro.

 

Mimi era de Toamasina, antigamente chamada Tamatare, o porto principal de Madagáscar, na costa Leste do país, a nordeste de Antananarivo. A mãe era oriunda de Mayotte, a ilha francesa do arquipélago das Comores, terra do yling-yling e da baunilha, e mudara-se para Toamasina para trabalhar. Ali se casara com um rapaz muito trabalhador, mas de condição humilde. Do casamento tinham nascido cinco filhos, dos quais Mimi era a mais velha.

 

Se bem que andássemos em cursos diferentes, ela também frequentava as aulas de História Contemporânea. Não porque quisesse aprender muito ou por puro interesse pela história, mas por causa das excentricidades do professor. As mesmas razões que me haviam levado a frequentar as ditas aulas,

 

Era dessas raparigas que parecem sempre tristes, mas nem por isso menos bonita. Não, não era feia, pelo contrário. Era uma morenaça de cabelo compridíssimo e cintura de vespa, sempre com uns jeans desbotados. A sua misteriosa beleza contrastava com a negligência do vestuário, mas ainda assim era das raparigas que mais desejos despertava em toda a universidade. Mas Mimi estava-se nas tintas para os rapazes. Queria ser advogada. Percebi logo que não tinha namorado, não porque a ânsia de estudar a impedisse de ter tempo para sair com alguém. A razão era outra.

 

Passámos o primeiro ano quase sempre juntas, desenhando o professor a fazer mímica e a lutar com os outros professores, que não conseguiam que os alunos se concentrassem porque ele armava demasiada barraca.

 

No segundo ano, Mimi deixou o bairro mal afamado em que vivia para se mudar para um muito pior no centro de Paris.

 

Eu continuei a estudar em Estrasburgo, mas mantivemo-nos em contacto. Um dia anunciou-me que abandonara os estudos porque conseguira um trabalho que lhe ia permitir sustentar a família lá no seu país.

 

Escrevíamo-nos todos os meses e eu perguntava-lhe sempre se já tinha arranjado namorado. Paris era uma cidade grande na qual não faltavam oportunidades de arranjar par. Respondia-me sempre a mesma coisa.

 

- Sabes perfeitamente por que não tenho namorado, portanto deixa de me fazer perguntas estúpidas.

 

Eu não sabia coisa alguma, nem ela deixava entrever nada, e era pois muito difícil, quase impossível descobrir fosse o que fosse. Mimi podia ser tudo, menos isso. Não era do género, nem pouco mais ou menos. Não era essa a imagem que tinha dela, pronto. O que só prova que os preconceitos não servem para nada.

 

Enfim, a única vez que me apercebi foi quando passei um fim-de-semana em casa dela. Naquele dia soltou-se um pouco, mas perante a minha recusa voltou a meter-se na concha e nunca mais tocámos no assunto. Era mais tabu para ela do que para mim. Fartei-me de lhe perguntar se, considerando-me a sua melhor amiga, não queria falar daquilo. Sem rodeios. Talvez conseguisse que se sentisse melhor. Partilhar coisas íntimas com a pessoa com quem temos a maior confiança até podia ser muito gratificante. Mas negava-se sempre.

 

- Sabes que eu aceito tudo, Mimi.

 

- Sim, mas não és precisamente a pessoa com quem devo falar disso. Sabes perfeitamente porquê. Não insistas.

 

Mimi foi a primeira pessoa que informei da minha chegada em Julho de 1995.

 

Recebeu-me de rolos na cabeça e com uma asquerosa máscara facial verde de pepino. Atirou-me dois beijos de longe para não me sujar a cara e convidou-me a entrar no apartamento decorado com gosto, e móveis de vime.

 

Mimi trabalhava à noite, como empregada de um clube de troca de casais e preparava-se para ir trabalhar.

 

- Que tal Paris?

 

- Logo no primeiro dia conheci um rapaz.

 

- Um rapaz? - exclamou, da kitchenette onde preparava o café. - E como foi isso?

 

- Pura coincidência.

 

E contei-lhe a anedota do Édouard, cuja existência já conhecia, o encontro com Pipo e a pouca (quase nula) assistência às aulas de japonês.

 

- É um rapaz um bocado esquisito, mas há qualquer coisa nele que me atrai muito.

 

- Sim. Estou a ver. Sempre o mesmo. O típico com ar de machão. Não há nenhum homem normal, francamente? - Mexia nervosamente a colher na chávena de café.

 

- Agrada-me, mais nada. Não sei se sente alguma atracção por mim. Tem um comportamento esquisito.

 

- Foste para a cama com ele?

 

- Não, não. De maneira nenhuma.

 

- Que estranho! Os tipos costumam agir assim e fazerem-se de esquisitos depois de terem ido para a cama connosco. Normal. Já não lhes interessa, sabes? Enfim…

 

Soprou o líquido que estava demasiado quente para ser bebido.

 

- Nem sequer mo propôs.

 

Notei que estava a ficar com ciúmes. Para disfarçar enfiou dois dedos na máscara para ver se estava a endurecer.

 

- É curioso, mas tentou fazer-me descobrir todos os sítios depravados da cidade.

 

- Que queres dizer com «depravados?”

 

- Isso mesmo, leva-me a clubes desses, orgias…

 

- Mas que grande cabrão! Os homens são um nojo. Não vês que anda a usar-te? Na maior parte desses sítios, um homem sozinho não pode entrar. Tem de estar acompanhado. Estou a falar com conhecimento de causa. Estou a perceber por que te leva com ele.

 

-Talvez se sinta sozinho, não? Contou-me que tinha tido uma namorada durante quatro anos. Não sei o que aconteceu. Não quis contar-me mais nada. Mas parece não haver ninguém na vida dele.

 

- Vá lá saber-se se é verdade o que te contou!    

 

E começou com o eterno discurso que eu já sabia de cor.

 

- Para que servem os homens? A sério, pensa bem. Além de te foderem quando lhes dá na real gana e de te porem os cornos sempre que podem, para que servem?

 

Ela própria me forneceu a resposta que eu já conhecia. - Para nada! São parasitas num mundo que é e será das mulheres. São como embrulhos postais armadilhados de que temos de nos desfazer o mais depressa possível.

 

Acabou o café envolvendo a chávena na mão. Reparei que dois dos seus dedos ainda tinham restos da máscara verde. Encheu as bochechas ao sentir o líquido quente na boca, fez uma careta e acrescentou:

 

- Não servem para nada, Vai. Um dia hás-de perceber isso. Continuava a fumar cigarros finos de mentol. Pôs um entre os lábios com dificuldade, porque a máscara já lhe endurecera a pele.

 

- E se te tira o sono ser mãe, até temos a reprodução assistida. Vês como já não nos servem para nada? E além disso, em matéria sexual, nós somos muito melhores.

 

De ano para ano, o discurso contra o «sexo forte» tinha vindo a tornar-se mais duro. Mas no fundo, não era um pouco assim que gostávamos de ver os homens? Verdugos sempre dos nossos males e, a maior parte das vezes, incapazes de nos fazer gozar. Não éramos nós que tínhamos a culpa, devido à nossa educação, à nossa maneira de agir?

 

Todos, sempre erectos, ao mínimo estímulo, com o pénis ameaçador e em riste. Todos eles gostavam de furar a nossa ratinha como se fossem brocas. Era verdadeiramente uma imagem patética?

 

Mimi prosseguia no seu acalorado discurso. Os homens, quando envelheciam, tornavam-se ainda mais nojentos. Em compensação, uma velhinha, que ternura olhar para uma velhinha! Era tranquilizante. Têm sempre um instinto maternal à flor da pele. Até com oitenta anos. Uma avozinha, para os netos, é sempre uma segunda mãe experimentada. Em contrapartida, o homem, aos oitenta, só sabe babar-se asquerosamente diante das batas brancas das enfermeiras.

 

- Olha para a minha mãe. Trabalha num hospital geriátrico, coitada, e sabes? Esses velhos, quando lhes dão banho, ficam todos excitados quando os ensaboam. Sim, sim, é como te digo!

 

Tinha cada vez mais dificuldade em abrir a boca. - Deviam ser todos objecto de eutanásia a partir de certa idade. Alguma vez viste uma coisa destas numa mulher? Não, não é verdade? É só javardos!

 

- Também não exageres, Mimi! Essa da eutanásia é um bocado forte!

 

- Ora! Era um grande favor que lhes fazíamos, libertando-os desse corpo que só serve para o vício. Sofrem, sabes, eles sofrem com isso, mas não querem reconhecer. Alguma vez viste uma mulher com dores nos testículos? Não, não é verdade?

 

- Dores de ovários, sim, Mimi. No fundo, não sei o que seja melhor.

 

- Mas as nossas dores são diferentes, não têm nada a ver com a cópula. O nosso corpo ovula, e pronto. Eles querem é enfiar e ponto final. Só pensam nisso.

 

Acabou o café de um gole.

 

- Vou tirar esta porcaria. Tu, estás em tua casa. Arruma as tuas coisas no quarto. Afasta os bonecos de peluche sem problemas. Tenho centenas em cima da cama. E não esperes por mim hoje à noite, que venho tarde.

 

Mimi coleccionava bonecos de peluche em vez de homens. Tínhamos que dormir na mesma cama daquele andar minúsculo de casa de bonecas.

 

Quando me deitei, depois de a Mimi sair para o trabalho, o espaço do quarto abriu-se e converteu-se numa imensa planície escura, sem delimitações físicas, num horizonte sem linha. Não conseguia dormir. Mudar duas vezes de cama em poucos dias era chato e estava, às escuras, de olhos abertos, concentrada no tique-taque de um despertador mecânico que parecia embater nas paredes fazendo eco. Mentalmente, invadira o espaço aberto e, ao fim de algum tempo, deixei de conseguir determinar de onde partia a cadência daqueles ponteiros inexoráveis.

 

Voltei a fixar mentalmente a mesinha de cabeceira onde estava o despertador, à direita da cama. O tiquetaque transformou-se no gorjeio de uns pintarroxos a balançarem-se nos ramos de um álamo branco, ao lado de uma estrada de terra que levava a uma casinha azul, azul-marinho, azul-felicidade. Pipo e eu fazíamos amor, o rosto dele sorria-me, e eu chorava de felicidade. Dizia-me «vou fazer-te gozar outra vez, com a ponta dos dedos», e eu abria-me cada vez mais, e ele carregava um pouco com o indicador, fazendo-o girar de vez em quando, «não te mexas, mexo-me eu por ti», assim até tremer de prazer, e suspirava e dizia-lhe «agora com dois dedos» e vinha-me amplamente e encolhia-me nos braços dele e fazia-lhe festas no cabelo, os pintarroxos calavam-se e os ramos do álamo branco inclinavam-se ligeiramente perante uma aragem de suspiros e de felicidade, e segurava-lhe o sexo com a boca, e ele dizia-me «não, agora não, fazes-me cócegas», e ficava duro na minha boca, e deixava de rir e começava a gemer e eu apertava com força a base da glande com os lábios, de forma intermitente, «assim venho-me num instante», «vem-te», «não, ainda não», «quero eu», «porquê?», «porque te amo».

 

Abri os olhos húmidos, perturbada com a deslocação de ar produzida pelos lençóis ao caírem do outro lado da cama. Voltei-me e vi a nudez das costas de Mimi, fluorescente, muito branquinha. Amanhecia. Um pequeno velo escuro nascia-lhe na raiz do pescoço, mesmo onde acabava o cabelo que afastara para o lado, numa massa despenteada, achatada contra a almofada.

 

Via esse tufo suave, podia até acariciá-lo a contrapelo. Fiz uma tentativa para aproximar a minha mão do pescoço dela, não queria acordá-la. O meu braço ficou a poucos centímetros do corpo dela, a sentir a fogueira da sua pele.

 

Fechei novamente os olhos. Pipo e eu fazíamos amor diante de um público de lebres selvagens que aspiravam o odor da erva do jardim, algumas davam uns saltinhos assustados com os nossos gemidos repentinos, seguidos de longos silêncios. O céu azul estava baixo, parecia uma prensa, ameaçava esborrachar-nos como vulgares insectos cujos bocadinhos despedaçados iriam parar à erva, ao lado das lebres que mastigariam as nossas patitas esquartejadas.

 

Os bichinhos engordavam a uma velocidade recorde e devoravam possessos todas as casas que se encontravam no caminho, criando cada vez mais sombras na planície.

 

Era assim a vida. Momentos de felicidade obscurecidos por desgraças quando se estava no mais alto dos júbilos. Uma lebre gigante que nos esventra com as suas pequenas garras afiadas. Alice no país das desgraças.

 

Pus-me a pensar em Isabelle, a ex-namorada de Pipo. Tinha a sensação de que, onde quer que fosse com Pipo, por muita felicidade que pudesse viver com ele, íamos ser infelizes. Porque a infelicidade magoa ainda mais quando se é feliz. Não íamos encaixar bem os momentos terríveis. Um estado neutro era melhor. Não conhecendo a euforia da felicidade, o contraponto dos momentos de alegria não podia ser tão horrível.

 

Talvez fosse preferível ser desgraçada toda a vida. Talvez. Assim, a infelicidade não me apanhava de surpresa.

 

O corpo de Mimi e o meu estavam estendidos, separados por uns bonecos de peluche e um coelhinho cor-de-rosa que não tinha nem pouco mais ou menos o ar ameaçador das minhas deambulações imaginárias.

 

Mimi respirava com força e o seu diafragma movia suavemente, de vez em quando, as vértebras proeminentes da suas costas descarnadas e frágeis. Via-lhe a pele delicada, o cabelo sensível. Passava sempre o pente com delicadeza pela farta cabeleira.

 

Estremeceu um instante, o meu olhar era como uma carícia roubada. Provavelmente, sonhava. Mas seriam os seus sonhos serenos e plácidos? Ou sofria, como eu, do insuportável que a existência é?

 

           SEXO NA CIDADE

Lê sexe est peut-être la seule forme, pitoyable ou non, que nous avons trouvé pour dire quelque chose de l’amour.

Pierre Mérot, Mammijères

 

O ENCONTRO

 

Pipo perdeu o controle do carro a 15 de Julho, às seis da manhã, quando voltava de uma rave, celebrada por ocasião da festa nacional do 14 de Julho. Viu o camião travar de repente, as luzes vermelhas acesas como um semáforo. Viu o alcatrão mover-se em frente do nariz como num tremor de terra. E a seguir, o vazio, um tremendo vazio, a sensação de impotência e de ter recebido uma paulada. Doíam-lhe os músculos todos do corpo; a gasolina entornada e a borracha queimada, a atmosfera com o «nhique-nhique» de fundo de umas rodas que continuavam a rodar no ar. Pipo jazia no meio de um campo orvalhado de uma suave manhã de Julho. Os braços em cruz, como um Cristo horizontal, o rosto coberto de sangue. O nada continuou e depois, uma luz.

 

- Por que não me preveniste de que ia doer tanto? - perguntou.

 

Isabelle não lhe respondeu. Sorria-lhe, de bata branca, a escassos metros dele.

 

Levaram-no directamente para La Salpétrière, com o rosto ensanguentado e sem pestanas. No assento encontraram o trevo de quatro folhas que perdera quando a cara embateu no volante ao chocar com o camião-cisterna.» Telefonou-me do hospital. Não tinha, milagrosamente, nada de grave. Só as cervicais tinham sofrido um ligeiro traumatismo, mas os prejuízos eram mais materiais do que físicos. Referiu que, evidentemente, não podia comparecer ao encontro daquela noite. Disse-mo no fim da conversa, à laia de desculpa.

 

Fui ao hospital apesar de me ter assegurado que não era necessário, porque lhe iam dar alta no dia seguinte. Mas mesmo assim queria averiguar em que estado se encontrava.

 

Porque eu tinha duas opções: ser uma tonta feliz e ver-me livre dele ou tratar de ser eu própria, consciente mas desgraçada.

 

Feliz? Era tentador. Mas ser parva era um golpe tremendo no meu orgulho de mulher. Por isso, quando Pipo me telefonou do hospital não hesitei nem um segundo.

 

Entrei em sintonia com o estado anímico da estação do ano que menos me agrada; ou seja, num estado de tristeza outonal em pleno mês de Julho.

 

Suponho que tinha encontrado em Pipo a imagem do meu aventureiro ideal. Sempre desejara ter uma relação erótico-sentimental com um Indiana Jones urbano, cujas mensagens codificadas estavam em placas informativas de bronze colocadas em edifícios públicos acinzentados, ou em anúncios à entrada de locais muito pouco apropriados para almas sensíveis e puritanos extremistas.

 

Suponho que fantasiava em relação a misturar fluidos com um muçulmano, recordando a figura de Lawrence da Arábia, de que tanto gostava, se bem que este fosse tudo menos muçulmano, mas que, com aquele disfarce, cheirava à sensualidade das culturas árabes que escondem os seus desejos por trás de véus e turbantes delicados, transformados em guardiões de uma pureza, cuja descrição havia lido e imaginado em muitas das sunna do Corão.

 

Queria realmente saber se estivera de corpo presente na escuridão de uma Paris perversa por decisão própria ou se simplesmente me deixava manipular por ele.

 

Suponho que procuramos sempre sinais que nos unam a uma coisa ou a uma pessoa, dada a perspectiva aterradora de um vazio angustiante frente a um espaço no qual continuamos a colocar coisas, preenchendo buracos, onde nunca nos encontramos diante do nada. Talvez não quisesse sentir-me só, num vazio inescrutável para um espírito inquieto e indomável como o meu.

 

E quis verificar isto mesmo, olhando-o nos olhos, observando-lhe o ligeiro estrabismo que já fazia parte da sua personalidade suicida, marcado por uns pés-de-galinha curiosamente simétricos no rosto redondo. Ao fim e ao cabo, tinha estado na iminência de perdê-lo.

 

- Não és namorada dele, nem da família - censurou Mimi, que não entendia por que estava tão preocupada e com tanta vontade de vê-lo.

 

- Se me telefonou, devo significar alguma coisa para ele. Senão, não me teria avisado, não te parece? Não sei o que tens contra ele, mas parece-me injusto que o trates assim. Nem sequer o conheces e já estás a fazer juízos.

 

Mimi franziu o sobrolho e foi para a outra divisão. Segui-a, com a intenção de saber o que lhe passava pela cabeça.

 

- A sério que não te entendo. O que te deu, de repente? Que mal é que te fez o rapaz? Nem sequer o conheces!

 

Mimi não respondeu, abriu a tábua de passar e pôs-se a separar toda a roupa lavada e amarrotada que se encontrava num caixote de plástico azul. Fez uma pilha e começou a passar a ferro, deixando o caixote de plástico vazio debaixo da janela.

 

- É por causa do que te disse das minhas saídas nocturnas com ele? Não gostas dele por causa disso? - estava a ficar bastante irritada.

 

- Não quero falar do assunto - respondeu por fim Mimi.

 

- RESPONDE DE UMA VEZ! - gritei.

 

Estava exasperada com a indiferença dela. Mas não havia maneira. Mimi era uma ostra. Uma ostra fechada, com uma jóia dentro, preciosa, que jamais deixava entrever. Quando se decidia a falar, começava com o eterno discurso degolador de mulher ressentida com os homens. Gritasse ou falasse tranquilamente, tinha o dom de me irritar.

 

- E tu? O que fazes à noite, podes explicar-me? Não passas oito horas num local de depravados, a ver como é que se unem uns com os outros? Achas melhor? ACHAS DE FACTO QUE É MELHOR?

 

- É um trabalho, mais nada - redarguiu sem pestanejar, enquanto continuava a passar a ferro energicamente,

 

Não havia maneira de ter uma conversa adulta com Mimi. Pegou numas camisas que inspeccionou uma a uma, esticou as mangas, observou demoradamente os colarinhos e deitou mãos à obra.

 

As visitas a La Salpétrière eram das duas às oito da noite. Tinha mais ou menos uma hora para ver Pipo e saber do estado dele.

 

Pensava que iria cruzar-me com algum amigo dele, ou com uma pessoa de família, mas fui dar com ele sozinho em frente de um pequeno televisor em cima de uma mesa de fórmica. O vizinho de quarto tinha o corpo todo ligado e não se moveu nem quando fiz chiar os pés da cadeira ao lado da cama a fim de aproximá-la de Pipo. Ele, em compensação, tinha apenas uma coleira que lhe aprisionava o pescoço e, quando entrei, não pôde virar a cabeça.

 

- Sempre vieste! Não era preciso, Vai, saio já amanhã explicou com o comando da televisão na mão e apertando com dificuldade os botões a fim de mudar de canal.

 

- Que descobriram? - e acabei por me sentar em cima da cama, não fazendo caso da cadeira que puxara para junto do leito.

 

- Nada. As cervicais é que pagaram as favas. Mas enfim, só me dói a cabeça e nada mais. A companhia vai dar-me outro táxi e andarei com a coleira durante algum tempo. Pronto.

 

- O que aconteceu, Pipo? Tinhas bebido, adormeceste ou quê?

 

- Nada disso. O estúpido de um camião travou numa curva e reagi demasiado tarde. Mas aqui estou, que é o mais importante, não?

 

Pipo sempre conduzira depressa. Gostava de velocidade e de todas aquelas sensações fortes que o faziam brincar com a morte ou pelo menos, com o limite da vida, o que não é o mesmo. A morte já era um estado. O limite da vida podia ser um estado de coma, vegetativo, acabar tetraplégico e em recuperação em La Salpétrière, com cheiro a éter e a injecções que acabam por fazer parte do repertório de cheiros quotidianos de toda uma vida.

 

- Queres que amanhã venhamos buscar-te no carro da minha amiga Mimi? Eu não guio, mas a Mimi sim. Levamos-te a casa, se quiseres.

 

Com grande surpresa minha, não rejeitou a proposta. O argelino forte, machão e tremendamente viril, aceitava que duas mulheres o fossem buscar à saída do hospital a fim de o levarem a casa.

 

É que Pipo gostava de mulheres. Não fazia coisa alguma para esconder isso. Pelo contrário. Sempre que se cruzava com um anjo louro à esquina de um faubourg, ou com um diabo moreno, numa passagem de peões, olhava-lhe para a cara e, logo a seguir, baixava descaradamente os olhos até aos seios para depois tentar vislumbrar as ancas, prisioneiras das costuras de uns slips que se notavam por baixo da roupa. Essas costuras, tão pouco estéticas para as mulheres bonitas, eram responsáveis por despertar a imaginação libidinosa dos homens. com o tempo, eliminaram-se as costuras das cuequinhas, as quais se foram tornando cada vez mais minúsculas, o que aconteceu não por uma questão de estética, para ocultar rugas visíveis, mas sim por já se estar farto dos olhares indiscretos!

 

As estatísticas indicam que, ainda que com algumas excepções, graças aos novos tecidos e formas das calcinhas, os casos de violação desceram drasticamente. Nós, as mulheres, vamo-nos destapando a fim de melhor nos protegermos. Que contradição! É o cúmulo! Era só o que nos faltava! «Destapa-te e proteger-te-ás dos olhares impertinentes de todos os desavergonhados.» Inaudito!

 

Hoje em dia mostra-se tudo e o voyeur empedernido de toda a vida sente-se cada vez mais frustrado. Que pode ele ver sem que ninguém saiba quando já tudo está à vista de todos?

 

Quando apresentei o Pipo à Mimi tornei-me transparente. E sempre que ela estivesse connosco era assim que me sentia. Como se não existisse. Se estava no meio dos dois, fosse lá pelo que fosse, o olhar de Pipo atravessava-me para acabar, sempre, posto em cima do rabo da minha amiga.

 

Custou-me um bocado a convencê-la. Tive até de fazer chantagem e de pôr em dúvida a nossa amizade para que aceitasse acompanhar-me no carro dela ao hospital.

 

- A Mimi, o Pipo - disse, à laia de apresentação, ao mesmo tempo que ele tirava do armário as suas coisas.

 

Pipo levantou os olhos e cumprimentou-a com um «olá» acompanhado do seu sorriso aberto. Mimi respondeu com um murmúrio, fazendo gestos de impaciência, olhando para o relógio, alegando que não tinha o dia todo. Pipo despediu-se do vizinho de quarto, que não moveu nem o dedo mínimo do pé, e de todas as enfermeiras do andar, sem esquecer as mulheres da limpeza. Mimi precedia-nos abrindo caminho a quatro metros de distância para que nos despachássemos. Quando a alcancei fez-me sinal que queria vir-se embora o mais depressa possível.

 

- Mimi, por favor, vamos já. Mas vê se pões outra cara. Torna-se evidente que estás a fazer um frete.

 

- Este gajo é um engatatão, não vês? Lança o anzol a todas as enfermeiras.

 

- Pois! E então, é normal, trataram dele durante uns dias. Criou-lhes afecto.

 

- O afecto dele tem mais a ver com a lingerie preta que elas têm debaixo das batas brancas. - E pegou energicamente nas chaves do carro. - São todas umas putas!

 

Pipo sentou-se no banco da frente para lhe indicar o caminho para casa. Eu, entretanto, fazia sinalefas à minha amiga, através do retrovisor, para que fosse um pouco mais amável com ele. Os meus esforços não serviram de grande coisa.

 

- Possa! Vives cá num bairro! - atirou a Pipo quando chegámos ao prédio dele.

 

O meu amigo vivia num dos bairros mais temidos pela polícia.

 

- Não tive grandes hipóteses de escolha. Ninguém me quis alugar um andar noutro bairro, sabes porquê? - perguntou a Mimi que não despregava o nariz da calçada.

 

Mimi ergueu o queixo sem emitir qualquer som, como quem diz: «Porquê?»

 

- Por isso mesmo, porque sou argelino. Elementar, não? No fundo, os franceses são uns racistas.

 

- Se calhar tu não és francês? - perguntou Mimi, arrogante.

 

- Cresci aqui, mas os meus pais são argelinos. E tenho muito orgulho nisso.

 

Mimi suspirou com um «baf», minimizando o assunto, e parou diante da porta da casa dele.

 

- Tu também não és francesa, pois não?

 

Mimi virou-se para mim, e deu-me a entender que Pipo já lhe estava a fazer chegar a mostarda ao nariz.

 

- Não. Mas é como se fosse. E não tenho nenhuma raiva aos franceses. - O tom firme não deixava lugar a dúvidas em relação à antipatia que nutria por Pipo.

 

Tentei desanuviar a conversa, convidando-os a ambos para jantar nessa noite. A Mimi, para lhe agradecer ter levado Pipo a casa, e a ele para comemorar a saída do hospital.

 

- Esta noite não posso - respondeu Mimi, arranjando o cabelo no retrovisor. - Tenho que ficar a trabalhar. A rapariga do turno da tarde não pode vir.

 

- Em que trabalhas? - perguntou de repente Pipo.

 

- Sou empregada num bar nocturno - respondeu, sem mais explicações.

 

- Em que bar? - insistiu Pipo. - Conheço-os todos em Paris. Mimi hesitou um instante, olhou para mim, corou ligeiramente.

 

- Num bar como outro qualquer. Num bar que serve copos a gente da pesada como tu.

 

Pipo não insistiu, saiu do carro e fez-nos um aceno com a mão.

 

Durante todo o trajecto mal abri a boca. Mimi tinha sido dura com Pipo mas, por outro lado, compreendia que fosse desconfiada e não quisesse dar mais informações sobre ela. Era lógico. Pensei também que não devia sentir-se muito orgulhosa de servir bebidas a casais liberais, se bem que isso a mim não me envergonharia nada. Mas ela era muito dependente do que as pessoas pudessem dizer.

 

* No dia seguinte, Pipo estava à minha espera no Chez Jojo, com a «coleira» posta e os olhos cansados. Fiquei contente. Ainda não tinham decorrido vinte e quatro horas fora do hospital e já queria estar comigo.

 

- Apetecia-me falar com alguém - explicou. - No hospital tive tempo de pensar na Isabelle, sabes?

 

E retomou a narração onde a deixara da última vez.

 

- Podíamos viver juntos - declarou Pipo.

 

- Por que não? - respondeu Isabelle.

 

Apertou-a nos braços, aproveitando um sinal vermelho, levantou-lhe a saia e aproximou a mão do púbis avultado.

 

- Podia fazer amor contigo toda a vida e termos um monte de putos.

 

-Por que não?

 

Isabelle atirou para trás a farta cabeleira preta; Pipo deu-se conta de que o branco do pescoço dela adquiria os tons da luz vermelha do semáforo.

 

Transformara-se em vampiro de repente; sem poder resistir a tanta fragilidade, à brancura daquela pele, à sua tez transparente, foi-lhe mordendo devagar o pescoço como se estivesse a soborear uma maçã suculenta.

 

- Cozinhava para ti aos fins-de-semana e levaria o cão a passear.

 

- Por que não? - A pele de galinha alcançara os mamilos de Isabelle, que se faziam notar sob a blusa como a ponta acolchoada de dois marcadores pretos a perder tinta.

 

com um dentro do outro, Pipo acabou por lhe jurar amor eterno e ela, olhando-o nos olhos, perguntou-lhe por que não.

 

           O SEGREDO

 

Nessa noite, o meu Indiana Jones urbano, provido de uma «coleira» maior do que o pescoço, decidiu explicar-me os hieróglifos do obelisco da praça da Concórdia, trasladado de Luxor há mais de cento e sessenta anos.

 

De súbito, dando voltas em redor da praça, Pipo abrandou por altura da bifurcação para os Campos Elísios. Deu mais uma volta e diminuiu ainda mais a velocidade.

 

- O que estás a fazer? - gritei. - Se não avanças, vais provocar um acidente. Era o que nos faltava agora! Não basta teres tido já um?

 

Mas Pipo não reagia. Em vez disso, voltou a dar uma volta à praça.

 

- Vinha explicar-te o segredo dos faraós em plena Paris e o que acabo de descobrir é o segredo da tua amiga malgaxe.

- O tom de voz era intrigante. - Não é a Mimi que ali está? - perguntou, apontando com o dedo em cima do volante para me mostrar a rapariga que confundira com a minha amiga.

 

- A Mimi? Onde?

 

- Ali. com o vestido preto. Era capaz de jurar que era ela apontou agitando a mão.

 

A Mimi não podia estar ali. A Mimi estava a trabalhar, como todas as noites, no tal bar de suspiros contidos em camas redondas. Passava lá uma data de horas e voltava para casa mentalmente rebentada pelo ambiente orgásmico daquele lugar sinistro.

 

Voltei a dar uma olhadela pela praça para me certificar de que não era ela. E senti um calafrio na espinha quando percebi que Pipo tinha razão. A praça da Concórdia era um sítio por excelência de prostituição de luxo, onde as raparigas esperavam que um Mercedes ou um automóvel descapotável parasse para levar uma delas a um hotel da praça Montaigne ou da avenida Kléber. Que fazia a Mimi no meio daquela fauna nocturna que tão pouco tinha a ver com ela?

 

Senti um ódio repentino a Pipo por ter-me levado àquele lugar e descobrir com os meus próprios olhos a verdade sobre a minha ex-colega de universidade. Se só ele a tivesse visto, eu não acreditaria. Podia sempre alegar que era mentira porque Mimi antipatizava com ele, que ele estava a tentar semear a discórdia entre nós duas. Podia argumentar que a Mimi jamais iria com um homem, dado que só gostava de mulheres. E tinha provas disso. E de que maneira!

 

Não existia, portanto, nem a mais remota possibilidade de que ela ali estivesse. Tinha de ser engano ou, efectivamente, existia uma mulher com o mesmo cabelo que ela, o mesmo corpo que ela, a mesma classe que ela, num lugar público daqueles, mas não, não podia ser ela.

 

Senti-me mal. Senti como minha a dor dela, aquele desamparo que devia fazer-lhe tremer o corpo quando tinha de ir para a cama com um homem. A vontade de vomitar que tinha de conter a troco de umas notas. O nojo tremendo, o asco, por ter de acariciar com a ponta dos dedos delgados e rosados um corpo peludo.

 

- Deve ser engano, um mal-entendido. Pensamos sempre o pior. Deve ter ficado de se encontrar com alguém que a vem buscar aqui. - Tentava enganar-me a mim própria, mas a minha voz perdia força à medida que pronunciava cada palavra.

 

- Sim, claro.

 

Senti a infinita compaixão de Pipo para comigo e para com a pobre Mimi, obrigada a prostituir-se na rua em plena noite do mês de Julho. Olhou para mim com a segurança de um homem que sabia muito bem do que estava a falar.

 

- Vai, este sítio é muito famoso por isto. Não se marca encontro nenhum com ninguém num sítio destes, onde todas elas estão à espera de cliente. Além disso, não tinha de estar a estas horas a trabalhar num bar?

 

Uma mão invisível começou a sacudir-me o peito e a apertar-me o coração. Sentia-me mal por não contar com a confiança dela para me revelar aquele segredo.

 

As tentativas de Pipo para me convencer de que tinha razão já haviam produzido efeito na minha cabeça. E o que veio a seguir acabou de mo confirmar.

 

Um Jaguar metalizado parou ao lado das raparigas que estavam à espera junto de Mimi, fazendo esvoaçar, como se fossem modelos, os seus vestidos de seda e de musselina na noite ventosa; abeiraram-se duas delas da janela tranquilamente descida por um homem de fato e de pele muito escura. Aquele vidro era como um fumo espesso que se ia dissipando, tal como as minhas dúvidas em relação à presença de Mimi naquele local. Observei ao ralenti a atitude altiva da minha amiga, que não parecia alterar-se face a esta situação embaraçosa. Pelo contrário. A arrogância saía reforçada, ao não aceitar falar pessoalmente com o cliente, ao ceder essa tarefa vulgar às outras. Era esplêndida, sublime, sensual, e só ela sobressaía naquela praça gigantesca.

 

Ao fim de uns minutos, Mimi abriu a porta de trás e entrou no Jaguar com mais duas raparigas.

 

- Por que não a seguimos? - perguntei a Pipo, que seguira o desenrolar da cena tão concentrado como eu, como se se tratasse de um filme de suspense.

 

- Tens a certeza? - Olhou para mim, inquisidor. - Acho que sei onde vão.

 

- E então? Que esperas para segui-la?

 

Pipo arrancou com o táxi tentando abrir caminho por entre os carros que passavam em volta do obelisco. Era um sítio muito frequentado àquelas horas.

 

- E pode-se saber onde vão?

 

- Para o Georges V, ou para o Raphael, para qualquer hotel que seja no mínimo de cinco estrelas. com um carro destes, o gajo tem dinheiro, é mais que certo.

 

O Georges V é o hotel mais luxuoso de Paris. Devia ter um regulamento muito estrito e umas medidas de segurança extremas, já que, ao chegar, o homem do Jaguar se viu obrigado a marcar um código no interfone da entrada e a negociar durante bastante tempo com o porteiro, para poder subir com as três raparigas espampanantes que o acompanhavam sem ter problemas com a direcção do hotel. Por fim, os quatro desapareceram num elevador de estilo rococó, com portas de bronze; as marcas dos saltos altos ficaram na alcatifa púrpura do hall.

 

- E agora, o que fazemos? - perguntei a Pipo, que conseguira arrumar o carro no próprio boulevard Georges V.

 

- Já viste com os teus próprios olhos, não? Ou queres ir ao quarto do tipo ver se estão a jogar à bisca ou ao monopólio.

 

- Pronto, Pipo, está bem! Não insistas. Não sou tonta. É que me custa a imaginar a Mimi a fazer isto, mais nada. Que queres.

 

Ainda pensei em sair do carro. Por fim, lá lhe pedi que me levasse a casa. Não tinha vontade de sair, nem de ver nada, nem de falar com ninguém.

 

Não percebia bem o que se passava. Não me incomodava que a Mimi fizesse aquilo. O que me doía era a falta de confiança dela em relação a mim.

 

Sempre tive problemas de insónia. É-me difícil conciliar o sono, especialmente quando uma coisa me preocupa. Posso passar a noite às voltas, sem me dar conta de que são cinco ou seis da manhã.

 

Quando a Mimi meteu as chaves à porta não tinha dormido nem dez minutos. Tinha-me posto a imaginá-la naquele quarto de hotel, a abrir o minibar para beber qualquer coisa que pudesse desinibi-la enquanto as outras brincavam com o tipo numa banheira redonda de mármore. Provavelmente, talvez se tivesse recusado a juntar-se a eles, pois sempre fora muito «higiénica».

 

Tentara imaginar o que me iria contar acerca daquela noite, que mentira iria dizer desta vez, como é que me iria descrever os clientes fictícios de um bar inexistente.

 

Afastou os lençóis com muita delicadeza e senti como o seu corpo quente se unia ao meu. Senti uma vontade enorme de abraçá-la, de lhe dizer que estava tudo bem, que a tinha visto, que sabia onde tinha passado a noite, que o tipo do Jaguar até tinha bom aspecto e que a entendia... Concentrei-me na sua respiração entrecortada e rouca; provavelmente, fumara mais do que a conta ou talvez tivesse simulado sentir prazer durante demasiadas horas, gritando com todas as forças, como certamente o tipo lhe exigira. Desatou a tossir e o corpo, cada vez que se sacudia, desprendia ondas de calor por toda a cama. Virei-me e abri os olhos na penumbra. Cinco minutos bastaram para que a textura intuída do seu corpo e o grão fino da sua pele, que vislumbrava na obscuridade, se tornassem mais nítidos,

 

         O TESOURO

 

Naquela madrugada, Mimi e eu fizemos amor. Era a primeira vez que tinha uma relação com uma mulher e admito que talvez, naquela noite, fosse um pouco forçado da minha parte. Quando me voltei, o olhar dela cravou-se no meu rosto; tinha os olhos muito brilhantes, as marcas do rímel esborratado davam-lhe um ar de boneca triste com os lábios sem cor que haviam estampado a sua forma numa tatuagem gloss-cereja na pele do desconhecido do Georges V. Aproximei a mão do pescoço dela, queria pô-la sobre ele para sentir a nudez e a vibração das suas cordas vocais contra a palma da minha mão. Agarrou nela e pôs-se a beijar-me os dedos. Pousei a cabeça na almofada dela, abandonando o meu território e penentrando no dela, estabelecendo um código entre ambas: aceitava a proposta que uma vez rejeitara, não por falta de desejo mas pelo meu receio da transgressão.

 

Julguei que fosse perguntar porquê agora e não uns anos antes. Pensei que tivesse adivinhado o que eu havia descoberto nessa noite. Sem sequer lhe dar tempo de respirar ou de pensar apertei-a com força nos braços e beijei-a. A sua língua movia-se na minha boca febrilmente; notei que estava cansada, mas ardia de desejo por mim e não quis deixar que o cansaço a dominasse, por muito que tivesse trabalhado nessa noite. A saliva era muito espessa; suponho que tivesse bebido bastante e que o álcool começasse a fazer efeito nas suas veias. Percorri a linha azul das artérias, que se desenhavam na garganta, em relevo, e que inchavam sempre que tossia. Mimi tivera sempre as veias muito marcadas. Passei delicadamente a minha língua na junção entre o braço e o antebraço ao mesmo tempo que respirava com um pouco mais de força. Tinha o sexo rapado e os pelinhos curtos picavam a face.

 

Queria impedir que tivesse pesadelos, queria absorver toda a má disposição da noite, bem como a provável vontade de vomitar que teria tido naquele quarto luxuoso com cama de casal. Surpreendeu-me o silêncio religioso ao meter-se entre as minhas pernas, ao acariciar o meu baixo-ventre. Era uma apaixonada silenciosa. A respiração intensa cheia de álcool e o cheiro a tabaco foi-me embriagando durante as horas que permanecemos abraçadas.

 

Surpreendeu-me o cheiro dela. Era parecido com o meu. Não exactamente: era idêntico ao meu. Sentia-me estranha e muito excitada, como nunca tinha estado. Tinha a sua farta cabeleira entre as minhas coxas, sabia que era ela, não necessitava de imaginar-me com um homem para sentir um desejo desenfreado.

 

O seu corpo acabou como uma massa pesada em cima das minhas costelas, como um rochedo imenso no fundo do qual jazia uma mina de diamantes cristalinos, transparentes, puros, ainda em bruto, virgens, como ela, no fundo. Virgem do amor e da paixão que jamais iria sentir de forma voluntária nos braços de um homem.

 

Era luminosa e deslumbrante. Por fim, numa noite de Verão, com gotas de suor a deslizar pelos lençóis de algodão, havia descoberto o tesouro inviolável de Mimi.

 

Quando acordámos, na manhã seguinte, estávamos ambas dominadas pela timidez. Eu especialmente, pois desconhecia em mim essa faceta lésbica e sentia-me culpada. E envergonhada. Agradeci a naturalidade dela ao preparar o café, não falámos do que acontecera. Parecia que estava tudo na mesma, mas a serenidade e a felicidade não podiam deixar de se reflectir no rosto dela.

 

Escondi-me um bom bocado na casa de banho, onde estive a examinar-me ao espelho para tentar entender que tipo de atitude adoptar a partir de então. Enfim, eu também me sentia feliz, e essa felicidade pouco frequente em mim fazia-me sentir culpada. Quando a felicidade surge temos de sentir-nos culpados e por isso teimamos em ser infelizes?

 

Decidi encarar o problema de outra forma. Tinha de sentir-me culpada por ter descoberto a Mimi naquela praça. Ia poder repetir aquela experiência de cama com ela, mas de outro ponto de vista. Foi o que decidi fazer.

 

Após uma hora debaixo do duche, perguntei à Mimi se a noite correra bem no bar, enquanto secava o cabelo com uma toalha turca azul. Respondeu-me sem qualquer hesitação:

 

- Bem. Bom, normal. Já sabes, o costume. Tenho de aguentar atrás do balcão uns velhos gagás com os respectivos pares. E tu? O que fizeste ontem à noite?

 

Se não a tivesse visto com os meus próprios olhos, teria ficado convencida de que trabalhara no bar a noite toda.

 

- Dei umas voltas por aí com o Pipo. - Não sabia que mais dizer, e era verdade.

 

- A que sítio depravado é que te levou desta vez? - perguntou, irónica.

 

Apetecia-me dizer-lhe a verdade, explicar-lhe que a havíamos seguido até ao Georges V, mas não sabia como; receava a reacção dela e então fui eu quem decidiu mentir.

 

- Fomos beber um copo a um bar normal e banal, Mimi. Ontem à noite, nada de depravações, como tu dizes.

 

- Finalmente, esse alarve começa a portar-se decentemente contigo.

 

Os seus grandes olhos pretos não conseguiam esconder a raiva. Sempre que se referia a Pipo acontecia o mesmo.

 

Foi para a casa de banho e eu pus-me a fumar compulsivamente uns cigarros de mentol do maço de Kool. Ouvi a água a cair na banheira e imaginei as marcas masculinas a dissiparem-se pelo ralo abaixo: os canos oxidados do velho edifício engolindo sem piedade restos invisíveis de pêlos, de gotinhas imperceptíveis de sémen que haviam salpicado a pele branca daquele anjo negro para acabarem nuns canos malcheirosos, húmidos e sujos que atravessavam Paris de uma ponta à outra. Pus-me a fazer círculos de fumo de mentol com a boca para afastar as imagens que me passavam pela cabeça.

 

Quando Mimi saiu com o albornoz turco, sorriu-me.

 

- Ontem... Mimi... Ontem... eu vi-te...

 

Saiu-me, foi superior às minhas forças. Mas Mimi não prestou grande atenção, ou talvez não ouvisse o que a minha voz tentava murmurar carinhosamente, com alguma vergonha dissimulada. Dirigiu-se à cozinha e eu segui-a como um cãozinho atrás dos calcanhares do dono.

 

- Mimi, ouviste o que eu disse?

 

Deu meia-volta, aproximou-se e deu-me um beijo na cara.

 

- Desculpa, o que foi que disseste? - perguntou, sem deixar de sorrir.

 

- Ontem vi-te, sabes?

 

- Que queres dizer? - O ar inocente continuava tal e qual. Não tinha mudado de expressão.

 

- Pois, ontem... O Pipo... - suspirei. - O Pipo levou-me à praça da Concórdia e lá…

 

Nunca pensei que me fosse tão difícil pronunciar certas palavras. Respirei fundo e prossegui, enquanto Mimi mudava paulatinamente de cor.

 

- Vi-te lá... com as outras.

 

- E o que viste, Vai? - a voz firme, por fim, mudou de tom.

 

- Pois... isso. Estavas à espera, com as outras.

 

- E...?

 

- Estavas com prostitutas, não era?

 

- É uma pergunta ou uma afirmação? - disse, sarcástica.

 

- O Pipo disse-me que…

 

- Oh, já chega de Pipo! Irra... Levou-te lá só para te mostrar o que estava a fazer? Foi isso, não foi?

 

- Não, não... ele queria...

 

- Por que não se preocupa com os assuntos dele e deixa de meter-se na puta da vida dos outros de uma vez por todas?

 

Estava chateadíssima e angustiadíssima porque uma vez iniciada esta conversa queria ir até ao fundo do problema. Em vez disso, Mimi pôs-se a lavar as duas chávenas debaixo da torneira e preparou novamente café.

 

- O Pipo não se meteu na tua vida, Mimi. Passámos lá por acaso e...

 

- Que coincidência, não foi? - redarguiu enquanto deitava o café solúvel nas chávenas.

 

O ar arrogante acentuou-se, ao mesmo tempo que ouvíamos o ruído metálico das colheres. Não sabia como abordar o assunto com naturalidade.

 

- Quero que saibas que a mim tanto me faz - larguei de um jacto, exageradamente compreensiva.

 

- O que é que tanto te faz, Vai? - continuava armada em parva, talvez pretendesse até intimidar-me para acabar com a conversa. Mas se era teimosa, eu ainda era mais.

 

- Caramba, Mimi! Por favor, não tornes as coisas ainda mais difíceis.

 

Sem perder o eterno sangue frio, começou a dar-me umas satisfações nas quais nem ela acreditava.

 

- Ontem fui com umas amigas que são prostitutas. E depois? Acompanhei-as. É verdade que estava lá, mas fui apenas acompanhá-las.

 

- No bar, deixam-te sair em plena noite?

 

- Claro!

 

- E tu foste com elas no Jaguar, a fazer-lhes companhia? pespeguei-lhe, sem tirar os olhos do chão.

 

- Vai, deixemos isso. Não penses que por termos dado uma queca esta noite tens o direito de também te meteres na minha vida.

 

- Uma queca? Tu chamas àquilo dar uma queca? Foi muito mais do que isso, Mimi. Ou se calhar para ti não foi bonito?

 

Não respondeu. com a sua indiferença queria magoar-me para que de uma vez por todas deixasse de lhe fazer perguntas acerca das suas actividades nocturnas.

 

-Tu não gostas de mulheres, pois não? Portanto, o que fizeste ontem comigo foi dar uma queca. Só isso. Uma questão meramente sexual. Isso com um homem ou com uma mulher é o que menos importa. !

 

Tinha vontade de morrer. Mimi estava a ser cruel comigo e a conversa não avançava. Ela tentava orientar a conversa para outro terreno. Tinha muito jeito; de facto fugia sempre das situações difíceis como uma cobra entre as pedras. A viscosidade dialéctica dela tirava-me do sério, mas resolvi passar por cima das observações sobre a noite que acabáramos de passar. Cerrei os punhos e decidi continuar a fazer perguntas até que se cansasse. Precisava da confissão dela, queria saber por que não me tinha dito nada. !

 

- É verdade, não gosto de mulheres. Mas ontem foi maravilhoso, pelo menos para mim. E tu? Tu também não gostas de homens e no entanto vais para a cama com eles, não? Tanto discurso feminista, tanta violência verbal para com o género masculino, e vai-se a ver, vais para a cama com gajos! Mas sabes o que é pior, Mimi?

 

Olhou-me fixamente; parecia surpreendida com o meu ataque frontal. ”

 

- O pior, Mimi, é que não queiras reconhecer, quando sabes perfeitamente que te vimos ontem. Mesmo perante as evidências, negas tudo. Acho de mais.

 

A água começou a ferver na cafeteira e Mimi apagou o lume. Calei-me enquanto ela deitava o líquido nas chávenas. Uns grumos de café solúvel boiavam à superfície e pôs-se a dissolvê-los para disfarçar. Bebi o café a toda a pressa, queimando-me. Os nervos obrigavam-me a fazer coisas estúpidas. Mimi fez o mesmo, desapareceu a seguir no quarto e daí a pouco, já vestida, pegou nas chaves e saiu sem se despedir.

 

           A CONFIDÊNCIA

 

Pipo estava à minha espera na esplanada de um bar nos Campos Elísios. Cheguei atrasada ao encontro e fez-mo notar:

 

- Estou há mais de meia-hora à tua espera. À próxima vou-me embora e desenvencilhas-te sozinha.

 

Não disse nada. Ele estava de mau humor. E eu, depois da minha discussão com a Mimi, também não estava para discussões. Chamei o empregado e pedi um whisky com gelo que não fosse JB. Pipo percebeu que acontecera qualquer coisa.

 

- Já falaste com a tua amiga malgaxe? Já confessou?

 

- Por que lhe chamas «amiga malgaxe»? A minha amiga tem nome - censurei-o, procurando na carteira um maço de cigarros.

 

- A tua amiga não é de Madagáscar?

 

- É.

 

- E como se chamam os habitantes desse país?

 

- Malgaxes.

 

- Então? - disse, e lançou-me à cara o fumo do cigarro que estava a fumar.

 

Estava a tentar provocar-me, mas afastei o fumo com indiferença,

 

- Mas dizeres isso de uma pessoa que conheces é de mau gosto. É impessoal. Sei que o fazes de má-fé, Pipo.

 

- Não, até parece! Eu é que não gosto dela! Ela é que não pode comigo!

 

Apagou o cigarro com a ajuda de um filtro que já estava no cinzeiro.

 

- De facto, não sei porquê. Não percebo. Não fiz mal nenhum à tua amiga malgaxe - insistia de forma provocatória na palavra «malgaxe».

 

Pus-me a olhar para os turistas que deambulavam pelos Campos Elísios. Havia mais gente nessa noite do que nos outros dias e fiquei agoniada. Paris em Julho era quase tão insuportável como a Cote d’Azur cheia de turistas italianos. Olhando na direcção do Arco do Triunfo via-se avançar uma avalanche de gente. Podia a avenida mais famosa do mundo absorver uma multidão daquelas?

 

- Além disso, para ser sincero - continuou Pipo - com ela não me importava de...

 

- O quê...? - perguntei desesperada.

 

- Credo! Sabes ao que me refiro, não sabes? É óbvio que a tua amiga é uma boazona. Salta aos olhos.

 

- Esquece, Pipo. Ia ser muito difícil.

 

Não fazia tenções de lhe confessar, depois de ter descoberto que ela era prostituta, que era lésbica, e que além disso gostava de mim, e que ele jamais iria para a cama com ela. E que, para pôr mais achas na fogueira, tínhamos ido para a cama uma com a outra.

 

- Não queres ser a nossa madrinha, é isso? Que tens? Estás com ciúmes ou quê?      

 

- Eu, com ciúmes? - desatei a rir. - O mais possível! com ciúmes, eu? Que disparate!

 

E era verdade. Não eram ciúmes, talvez um pouco de tristeza por ver que o Pipo queria estar com a Mimi quando a mimi, até agora, nunca mo tinha proposto. Continuava a fazer tenções de não lhe revelar coisa alguma sobre a nossa noite. Sentia-me uma cobarde. Duplamente. Tanto com a Mimi como com o Pipo. Mas para quê complicar mais as coisas quando elas já eram em si mesmas bastante complicadas? Mudei de conversa e contei-lhe a discussão que tivera com ela de manhã.

 

- Por que julgas que se nega a dizer-te a verdade quando é evidente que a apanhámos? - perguntou-me, muito sério.

 

- A Mimi sempre foi uma rapariga orgulhosa. Penso que tenha vergonha. Percebo. Mas sinto-me mal porque sou amiga dela há muitos anos.

 

Enquanto bebia, Pipo deixou o mau humor de lado e teve um gesto inesperado. Pegou-me na mão com delicadeza.

 

- Ainda por cima, és uma amiga como deve ser.

 

Sorri-lhe. Há já algum tempo que esperava um gesto de ternura da parte dele. Os seus dedos acariciavam-me a palma da mão, e por instinto apertei a dele.

 

- Queres ficar no centro esta noite ou preferes que te leve a dar uma volta a um sítio muito especial, onde poderás deitar cá para fora toda a raiva que tens dentro de ti?

 

Ri. Raiva, eu? Onde queria ele levar-me desta vez?

 

- Ui! - exclamei. - Parece que andaste a pensar muito nas últimas horas e tens tudo programado. Que planeaste desta vez?

 

A mão dele apertou a minha com mais força; senti a onda de calor da avenida chocar com os nossos corpos. Pipo atraía-me. A noite estava lindíssima e ele muito romântico. As estrelas iluminavam o céu da cidade. O horizonte desenhava-se com nitidez, a linha não tinha dessas camadas cor de ferrugem produzidas pela poluição de Paris. O ar limpo do centro convidava a ficar sentado numa esplanada. Mas vi-o impaciente, com vontade de sair daquele sítio e eu, mais uma vez, empurrada por uma força invisível, quis agradar-lhe.

 

         O LOUVA-A-DEUS

 

O templo do sadomasoquismo ficava num dos bairros mais movimentados de Paris, o décimo primeiro, não muito longe do boulevard Voltaire.

 

A pedido de Pipo, eu pusera um vestido azul-eléctrico justíssimo, leve e sexy. Fazia parte do dress code, como ele dizia; sem isso, não se podia entrar. Até me tinha obrigado a voltar a casa para trocar de roupa porque estava de jeans. O vestuário fazia parte da pequena encenação, num lugar que parecia o teatro dos horrores. Ali, de facto, era muito difícil entrar se nunca nos tivessem visto. Mais do que privado, era um círculo totalmente fechado, mas não alheio a Pipo, que parecia frequentar tais locais com assiduidade. Todavia, não costumava participar. «Sou um mero observador, nada mais», frisou. «Pago para ver sofrer outros, que escolheram isso mesmo. Atenção, eu sou normal. O problema é deles.»

 

Pipo não parava de justificar a sua atitude. Para mim, observar implicava participar. Aproximar-me desse mundo era querer fazer parte dele, quanto mais não fosse por uns minutos. No fundo, Pipo era um sádico. Mas, por enquanto, não era claro se o sadismo dele era dirigido contra os outros ou contra si próprio.

 

A proprietária do lugar chamava-se Bela Raposa. com um corpete de couro apertadíssimo, recebeu-nos com escassa amabilidade - fazia parte do jogo - e perguntou-nos se tínhamos alguma preferência especial para aquela noite: se vínhamos como par sádico, se um de nós era dominante ou dominado... Na realidade, fez-nos um verdadeiro interrogatório antes da descida aos infernos. Eu mal falava, era ele que tinha a iniciativa.

 

Vínhamos apenas ver, provavelmente não participamos, estamos ainda em fase de aprendizagem, especialmente ela, explicava Pipo à Bela Raposa, apontando para mim com o dedo como se eu fosse um objecto.

 

A dominadora era uma mulher muito bem feita e, decididamente, orgulhava-se disso. Realçava com altivez o peito, erguendo a cabeça e movendo os sapatos de salto alto que pareciam verdadeiras navalhas de barbear. No pulso direito tinha preso um chicote como se fosse uma pulseira, mais uma jóia a enfeitar um corpo ameaçador enfiado numas meias pretas de rede.

 

Olhou para mim com ar aborrecido, fazendo fincapé na minha roupa: «Estritamente preto, rigorosamente couro ou látex» era o recomendado. Mesmo assim, deixou-nos entrar.

 

Pipo despachou-a rapidamente quando se propôs mostrar-nos os diferentes ambientes da casa, alegando que já lá fora uma vez e que conhecia o sítio.

 

- Sofrer é ser, no fundo, um pouco mais digno. Afinal, toda a nossa vida consiste nisso! Sabes? Eu entendo esta gente. Quanto mais o tempo passa, mais sofrem. Aqui a crueldade tem de ser consentida, obviamente - argumentou com uma certa indiferença.

 

Reduzir a existência simplesmente a isso, quando nos faltava mais de metade da vida para viver, parecia-me um bocado triste. Protestei:

 

- Se aspiras ao sofrimento, hás-de sentir-te sempre um dêsgraçado. Para se ser feliz é preciso querer sê-lo. Nem que seja um bocadinho, não achas?

 

Pipo lançou-me um olhar profundo. Tinha nos olhos uma pequena névoa húmida. Parecia ter vontade de chorar.

 

- Eu quis ser feliz com Isabelle, amei-a com todas as forças. Como eu a amava! Mas não foi possível. Fui o homem mais infeliz do planeta.

 

Escapou-lhe este comentário e quando lhe perguntei «Por que dizes isso?», não quis responder. Mudou bruscamente de assunto, puxando-me por um braço, para que me decidisse a entrar.

 

No salão, separado da entrada por um reposteiro escarlate, outra dominadora estilo sado-hard insultava um velhote que viera viver os últimos sopapos da depravação humana. Uma sessão sadomasoquista em regra, explicava-me Pipo, podia ser um bom tratamento contra o Alzheimer, dissuasor pelo menos, como um choque eléctrico. «Encara-o como coisa positiva», acrescentou quando viu a minha cara de nojo. «Ou como uma maneira de acabar por matar o pobre do homem, não te parece?», redargui.

 

Pensei que a Mimi certamente estaria de acordo comigo.

 

O lugar era selecto, parecia uma cave abobadada, quartos escondidos, jogos de toda a espécie e com a Cruz de Santo André a presidir ao santuário.

 

- Sempre me interroguei por que razão o louva-a-deus continua a copular, sabendo de sobra, por instinto, que a fêmea o vai devorar a seguir.

 

- Queres dizer que não somos a única espécie a praticar o sadismo?

 

- Pois não. Como vês, há outras.

 

- Como os louva-a-deus?

 

- Sim. O que significa que não devemos ser assim tão loucos.

 

Se não, seríamos os únicos a fazê-lo. A natureza sempre foi cruel - disse, com um ar abominavelmente indiferente.

 

- Não seremos os sucedâneos do louva-a-deus? - inquiri com ar de troça.

 

Era óbvio que Pipo me estava a testar. Ou que me provocava para ver a reacção.

 

- E das viúvas-negras - concluiu para completar a minha frase. - Repara.

 

Pegou-me no braço e apontou-me uma mulher com um véu negro na cabeça. Tentava atenuar o luto, castigando um jovem escravo sentado numa cadeira de dentista.

 

- Uma vez por mês há venda de escravos. Sabias que alguns homens de negócios vêm aqui com as secretárias e as vendem por notas de monopólio?

 

- Pára de gozar comigo, Pipo, por favor!

 

- A sério. É um jogo, claro. Ninguém obriga ninguém.    

 

- Essa é forte.

 

- É tudo quanto há de mais normal!

 

- Só se for para ti. Não vejo nada de excitante nisso. Por favor, vamos embora, Pipo, peço-te por tudo!

 

Percorridos uns metros, Pipo surpreendeu-me com um comentário inesperado.

 

- Por que lutas contra ti própria, Vai?

 

- O que queres dizer?

 

- Podias ser uma dominadora de primeira categoria, sabias?

 

- Que disparate é esse agora? - não percebia onde queria chegar.

 

- Aqui, neste lugar, vi como olhavas para toda esta gente... Dizem que a melhor defesa é o ataque.

 

- Talvez a ti te agradasse que eu fosse uma boa virago. Qual é o teu problema? Gostavas que te dominasse? Precisas de uma dominatrix na tua vida, é isso?

 

- Vês? Estás a ter um comportamento sádico. Vês como eu tinha razão? - exclamou, irónico.

 

!Na altura nem sequer me passava pela cabeça, mas uns anos mais tarde penetraria nesse mundo através de puro estímulo cerebral. Acabaria por compreender as verdadeiras motivações de um masoquista e entender que a chave deste tipo de relações reside na figura do humilhado. E que as aparências enganam sempre.

 

Ao dirigirmo-nos para o táxi, verifiquei que a cara de Pipo mudava de expressão. Olhou para o relógio e anunciou-me que tinha de se ir embora. Mais uma noite sem nenhuma proposta dele. Quando se iria declarar? Era-lhe assim tão indiferente que nem tentava flirtar comigo?

 

               SOLIDÕES

 

Quando Pipo me deixou à porta de casa, alegou que já estava muito cansado. Habitualmente insistia em não me deixar ir dormir, mas desta vez não. Despachou-me literalmente do táxi novo que a companhia lhe dera, como se fosse uma cliente, para desaparecer em seguida a toda a velocidade. Provavelmente, não lhe caíra bem o que lhe dissera naquele lugar. Talvez se tivesse apercebido de que, no fundo, ele e eu tínhamos muito pouco a partilhar, por mais curiosos que fôssemos. Sentia-me muito triste e àquelas horas não ia encontrar a Mimi. Apetecia-me falar com alguém, estava mesmo necessitada.

 

O relógio marcava cinco horas da manhã quando a Mimi acendeu a luz do quarto. Não pude evitar virar-me para lhe ver a cara. Não parecia fazer tenções de se desculpar por me ter acordado; em vez disso, observou-me com insistência, com os olhos inchados. Pensei que fosse desatar a chorar ali mesmo; de facto, a voz saiu alterada quando se dispôs a falar.

 

- Para mim não foi uma queca ontem à noite. Só disse aquilo para te magoar - declarou.

 

Sentei-me na cama enquanto ela continuava de pé diante de mim.

 

- Não foi uma queca, Vai. Foi muito bonito, - disse eu, abeirando-me dela.

 

- E... queria que soubesses. É tudo.

 

Vi-a chorar discretamente. Um minuto, nada mais; era demasiado orgulhosa para soluçar. Aproximei-me um pouco mais e apertei-a contra mim como um bebé. Não fez nenhum gesto para fugir da ratoeira que lhe haviam estendido os meus braços. Ou estendera-ma ela a mim?

 

- Como foi a noite? - perguntei para desviar o assunto e acabar com a tristeza infinita que escorria das suas pálpebras.

 

- Apetece-te apanhar um pifo comigo? - propôs de repente, passando os dedos por debaixo dos olhos para secar as lágrimas.

 

E despindo o top de um lindíssimo conjunto Príncipe de Gales de Verão, dirigiu-se imediatamente à cozinha para ir buscar a garrafa de whisky.

 

- Sim, vamos a isso! - gritei alegremente do quarto.

 

Os cubos de gelo soaram como um glaciar que se quebra quando o líquido deslizou no copo. Deitava a bebida com segurança, com uma certa cautela para não entornar nem uma gota em cima dos lençóis. Vi-a sorrir e essa imagem encheu-me de alegria. Brindámos por Paris e por nós. A Mimi não conseguiu evitar acrescentar:

 

- E que se danem todos!

 

Era superior a ela. Bebi sem dizer nada. Também não quis perguntar mais nada sobre a sua noite. Vi-a particularmente sensível.

 

Beijámo-nos. Era maravilhoso. Só o roçar delicado dos lábios dela contra os meus me criava novas sensações. E murmurei-lho. ’

 

Eu sei... - respondeu continuando a roçar a minha boca. De repente o planeta Terra converteu-se num lugar mais acolhedor para viver, de repente o meu corpo possuía terminações nervosas em cada milímetro quadrado, de repente voltava a ter curiosidade.

 

- Que me vais fazer? - perguntou, surpreendida, enquanto lhe segurava o cabelo.

 

Queria verificar uma coisa. Agarrei-lhe a farta cabeleira preta entre os meus dedos, levantei-a num rabo-de-cavalo e passei-lhe a mão por detrás da nuca. Queria sentir o pequeno velo que tanto me chamava a atenção quando me virava para ela na cama. Era como o imaginara, macio como uma pluma, dócil, até acariciando-o a contrapelo, jovem porque não deixava de crescer, agradecido porque o toque que me deixava nos dedos era cada vez mais agradável... Sentia-me numa nuvem de algodão, a milhares de quilómetros, desta vez da Terra, e não queria voltar a descer. Entretanto, a Mimi sorria como um céu aberto.

 

O álcool, sem dúvida, desinibira-me um pouco e a sua mão glacial no meu mamilo esquerdo nem me surpreendeu muito nem me assustou. Noutra ocasião, teria-lhe tirado, bruscamente, a mão ou teria ido dormir para o sofá. Mas o álcool retirava importância às coisas.

 

As nossas carícias dançavam em uníssono, na pele, ao mesmo ritmo, numa perfeita sincronia de movimentos. Parecíamos uma só pessoa que conhece o corpo de cor, imitávamo-nos uma à outra, e a nossa respiração sustida e intensa impregnava as paredes de papel do apartamento parisiense.

 

Dormi um pouco, com as nossas pernas entrelaçadas, e apesar de estar confortavelmente instalada, tive um pesadelo horrível. Acordei encharcada em suor e dirigi-me directamente ao telefone para conversar com Pipo. Precisava vê-lo para lhe contar o meu sonho.

 

- Hoje à noite? - perguntou. - Não sei, tenho de ver como vou organizar a minha vida.

 

- Tens sempre as noites livres. Que significa isso de «como vou organizar a minha vida»? Bolas, Pipo!, preciso de falar contigo.

 

Mimi passou por detrás de mim e fez-me uma festa no braço para me acalmar, dado que eu estava praticamente aos gritos.

 

- Está bem - foi a resposta de Pipo. - já te telefono, quando souber se consigo ficar livre. E desligou.

 

Não me lembro bem se foi a partir daquela noite que comecei a suspeitar de que qualquer coisa não estava bem, que Pipo andava a esconder-me coisas. Mimi tinha-me tornado ainda mais sensível do que sempre me havia considerado.

 

Pipo cumpriu a promessa e voltou a ligar para dizer que não nos podíamos ver. Tinha outros compromissos mais urgentes para resolver.

 

Naquele Verão, influenciada por Mimi, comecei a meter-me nos copos e a lidar com soníferos. O calor do whisky na garganta reconfortava-me o coração e tornava menos brancas as minhas noites solitárias. Nem ouvia o ruído do metro que começava a vibrar debaixo do nosso prédio às seis da manhã. Era todo o meu ser que vibrava como com uma descarga eléctrica, flutuava no vazio toda a minha existência, cheia de álcool, como um sonho esburacado antes de cair no estado etílico. Comecei a escrever a seguir ao telefonema de Pipo, não tinha nada para fazer. Mimi apareceu na soleira da porta e deu uma olhadela ao computador, por cima do meu ombro. Senti o calor dela na minha nuca e virei-me bruscamente carregando numa tecla para fazer desaparecer o texto. Tinha vergonha que pudesse ler uma coisa escrita por mim.

 

- Deu-te agora para a poesia? - perguntou.

 

-Que fazes aqui? - mostrei-me admirada. - Não devias estar a trabalhar?

 

- Hoje, não. - Decidi ficar em casa. Tirei uma semana de férias. E tu? Não ias sair com o Pipo?

 

Acendi um cigarro tentando ganhar tempo e dissipar a sua curiosidade. Mas Mimi continuava à espera da minha resposta.

 

- Anulou o encontro de hoje - respondi, no meio de uma nuvem de fumo azulada.

 

- Ou seja, deixou-te pendurada. Não?

 

Não sei como fazia aquilo, mas a Mimi cravava sempre o espinho onde mais doía. Porque, no fundo, talvez tivesse preferido que assim fosse. Que me tivesse deixado pendurada. Mas não: telefonara com bastante antecedência, o que indicava que, desde o princípio, nem sequer considerara a hipótese de ver-me. Deixar-me pendurada levantava a dúvida, como se quisesse ver-me mas no último minuto lhe tivesse surgido um problema e não tivesse sido possível avisar-me. Mas Pipo não me tinha deixado pendurada, mas sim coisa pior: «Tinha outros compromissos”.

 

Esperara o telefonema durante toda a tarde, transformada em pirómana, fumando compulsivamente numa varanda, de um lado para o outro, cujas grades estavam abrasadas pela minha raiva.

 

Sozinha, como sempre, tirando com as costas da mão a maquilhagem. Não valia a pena pôr-me bonita. Uma corrente de ar vinda não sei donde tinha-me transportado para um estado de melancolia. Onde estaria o Pipo, nessa noite?

 

Conversámos um bocado, enquanto beberricávamos. Por volta das onze tocou o telefone. A Mimi foi a única capaz de pôr-se de pé e de atender. Eu tinha a vista completamente turva.

 

- Ah, olá, Pipo! - disse, mudando imediatamente de expressão.

 

Fiz-lhe sinal que não energicamente com o dedo e ela assentiu com a cabeça.

 

- Lamento mas está a dormir. Não me parece que lhe apeteça sair agora. Vamos, dorme que nem um bebé – mentiu, enrolando o dedo no fio do telefone. - É melhor telefonares-lhe amanhã. E desligou.

 

Olhei para ela e pus-me a arrotar como uma louca, o que provocou um riso nervoso a Mimi.

 

- É assim mesmo - disse, dando uma gargalhada. - Bem feito! E estendeu-se em cima da cama.

 

- Que queria?

 

- Queria saber se podia ver-te esta noite.

 

- Esta noite? - Deitei-me sobre o cotovelo, com a cabeça apoiada na mão. - Se desmarcou o encontro há bocado!

 

A minha cara estava muito próxima da dela, sentia a respiração dela na minha face.

 

- Os homens não sabem o que querem, vês? Deixa lá, deve ter mudado de planos no último minuto.

 

Olhava para ela e fui invadida por uma ternura muito especial. O Pipo já não tinha tanta importância, sentia-me bem. Querida, desejada, importante para alguém. Pelo menos por uma noite.

 

Mesmo assim, dormi mal. Penso que me fazia falta ouvir a porta da entrada por volta das seis da manhã e sentir que a Mimi tinha chegado a casa, que sobrevivera uma vez mais ao inferno do luxo oferecido e do sexo comprado no cruzamento da praça da Concórdia com os Campos Elíseos. Não estava habituada a tanta paz, a dormir de um sono, nem ao silêncio quase religioso. O meu espírito começou a divagar.

 

O Pipo mudara de atitude, eu tinha dado por isso, logo a seguir ao acidente. Ou desde que lhe apresentara a Mimi? Duvidava de uma hipótese e de outra. Mas uma coisa era rigorosamente certa: os dois acontecimentos haviam ocorrido praticamente ao mesmo tempo.

 

A cara dele não deu mostras de nada de estranho quando nos encontrámos num bar dos Halles às dez da noite. Havia muito movimento. Uns miúdos de quinze anos passaram diante de nós, com um rádio e gravador de cassetes ao ombro movendo-se ao ritmo do rap.

 

- Deves estar em plena forma hoje - lançou o Pipo à laia de saudação, um pouco irónico.

 

- Que queres dizer?

 

Um empregado, com um bigodinho pintado, trouxe-nos as cervejas.

 

- Dormir tantas horas, faz-te bem. Estás com a pele mais luminosa.

 

Já sabia onde queria chegar. Mas não tencionava fazer a mínima alusão ao telefonema dele. Insistiu no assunto.

 

- A tua amiga malgaxe disse-te que telefonei ontem à noite?

 

- Sim, claro.

 

- Era cedo. Mas já estavas a dormir. Pelo menos foi o que ela disse. Ou não quiseste atender?      

 

Fiz-me de parva.

 

- Fez-me bem não sair ontem. Estava cansadíssima. Fui cedo para a cama. Mas a Mimi deu-me o recado, se é isso que te preocupa.

 

Sabia que queria fazer conversa sobre o assunto, que estava à espera que lhe fizesse perguntas acerca da noite anterior, mas não entrei no jogo.

 

- E como está ela? - perguntou, de repente.

 

- Está boa.

 

- Já confessou?

 

- Acaba com isso, Pipo, está bem? - disse tapando os ouvidos porque os miúdos no meio da rua tinham a música cada vez mais alta. Pipo não parecia prestar-lhes a mínima atenção.

 

- Não voltaram a falar no assunto? Ora, ora!

 

- Não, Pipo. Decidi não voltar a falar nisso. Se lhe apetecer falar, fala ela, espontaneamente. Mas eu não vou dizer mais nada. De qualquer forma, resolveu tirar uma semana de férias. Quer descansar, estar em casa e ler.

 

E vi nos olhos dele uma certa tristeza, que tentou disfarçar, contando-me uma anedota ordinária à qual não achei graça nenhuma.

 

- Que parva estás hoje! É o que faz teres dormido de mais. Talvez não te faça bem descansar tanto! - exclamou, bebendo a cerveja. - Vamos embora. Arrumei o carro numa ruazinha não longe daqui e vou levar-te a um sítio que te vai fazer acordar esse cérebro paralizado.

 

Pagou e saímos em silêncio. Voltávamos a entrar na rotina de Paris e nas suas habituais surpresas nocturnas. Não tinham feito falta nenhuma.

 

       O BOSQUE DE BOLONHA

 

Pipo entrou a vinte à hora no Bosque de Bolonha e logo a seguir teve de abrandar para dez. O Bosque é como uma ferida supurante, mas, diante desse buraco aberto, a rotina nocturna torna-se suavemente exótica.

 

E eis que o Verão contribuía para o desencadeamento das paixões. Conduzíamos muito devagar porque o Bosque era o lugar mais solicitado a altas horas da noite. Um verdadeiro caos. Um desfile de carros curiosos em busca de uma coisa concreta deambulava pelas alamedas sem qualquer ruído; somente uns motores que ronronavam como gatos. De vez em quando, havia umas travagens ligeiras porque uma negra impressionante com botas altas de verniz decidia atravessar de um lado para o outro, abrindo a tanga para mostrar um sexo que pendia de um corpo inchado de silicone, caso houvesse qualquer dúvida sobre o género dela, provocando os automóveis e deitando de fora a língua felina, fazendo-a girar como se fosse um pequeno moinho de vento.

 

A noite servia de cortina entre nós e o espectáculo. As janelas opacas do Mercedes protegiam-me daquela actividade sem precedentes no templo ao ar livre do vício.

 

- A maioria são travestis brasileiros - explicou-me Pipo, procurando que o pé não carregasse demasiado no acelerador.

 

Calculava minuciosamente a distância em relação ao carro da frente,

 

- Todas estas raparigas tão bonitas? Não pode ser! ! Vi como se formava uma fila de carne humana do lado direito da estrada. Cada metro quadrado gozava da presença de raparigas espectaculares, umas mais do que outras, ligeiramente vestidas ou simplesmente sem nada, todas, isso sim, com sapatos altíssimos. Forçando o olhar na direcção das árvores, avistei umas sombras.

 

- Esse é o espectáculo de fachada. Lá atrás estão os voyeurs explicou-me apontando para as árvores. - Vêm só ver, não se metem com ninguém. Também, escondidos por ali, estão os chulos a vigiar se as raparigas trabalham. Os verdadeiramente perigosos são esses.

 

Vários carros pararam obrigando-nos a fazer o mesmo. Após rápida negociação sobre o tipo de serviço e honorários, alguns fecharam os vidros seguindo o seu caminho. Outros deixaram entrar uma rapariga para desaparecerem em seguida num dos caminhos do bosque.

 

- Gosto deste sítio - confessou-me Pipo. - O travesti está preso entre dois mundos. Sofre muito, sabes? O momento mais doloroso é quando volta para casa ao amanhecer e tira a maquilhagem, se é que lhe resta alguma coisa da noite toda, e tem a visão de si próprio, completamente desprovido da sua máscara de Carnaval. O travesti é a pessoa mais triste que já conheci. Se o visses em casa, dava-te cá uma destas ternuras e uma vontade de o consolares…

 

- Que aconteceu? Viste alguma vez um assim?

 

Pipo não respondeu.

 

- E por que não se operam de uma vez e se tornam mulheres? Que tenham um pénis parece-me uma coisa ridícula. Têm um corpo tão feminino…

 

- Cortá-lo seria como cortar os bilhetes de entrada no meio. É o que os torna atraentes. Sem esquecer que muitos deles não querem ficar sem pénis porque gostam.

 

- Então, porque dizes que são pessoas tristes?

 

- Porque, apesar de gozarem da liberdade de escolha, continuam presos entre dois mundos. Quando não me sinto bem, venho até aqui.

 

Uma loura montada sobre verdadeiras andas sentou-se de repente sobre o capô do nosso carro. Pipo fez sinais de luz, ela olhou para mim, sustentou o olhar, ergueu-se com um saltinho ágil e deu meia volta, mostrando-nos o traseiro com ar depreciativo e fazendo um manguito.

 

- Tristes e agressivos, não achas? – exclamei.

 

Pipo olhou pelo retrovisor e virou à esquerda. Enveredámos por outra parte do bosque, mas o espectáculo continuava a ser o mesmo.

 

- Há muita concorrência. Por isso são agressivos. E também muita violência. Aqui, frequentemente, acabam à facada.

 

- E, por que é que te lembraste de me trazer aqui? Não tens medo que nos aconteça alguma?

 

- Não nos acontece nada se não nos metermos com ninguém, não te preocupes. Trouxe-te aqui para veres a verdadeira miséria.

 

- Que filantropo te tornaste de repente!

 

- Exactamente. Como tu comigo.

 

Enquanto reflectia na resposta dele, fomos detidos por um travesti no meio do caminho, fazendo sinais com as mãos. Era giríssimo, talvez com as pernas demasiado magras mas tinha um corpo lindíssimo e muito expressivo. Pipo abriu o vidro, sem fazer caso das minhas súplicas para que não o fizesse. Talvez quisesse roubar-nos. Mas Pipo teimava em complicar a vida quando podíamos ter atravessado o bosque tranquilamente. Fez-me sinal com a mão para que ficasse quieta.

 

- És taxista? - perguntou o travesti, sem forçar a voz feminina.

 

- Sim, porquê? Mas agora não estou a trabalhar.

 

- Preciso que me leves.

 

- Não trabalho à noite, lamento. Vim aqui com uma amiga.

- Pipo virou a cabeça para mim, enquanto eu cerrava os dentes e instintivamente apertava a carteira, com medo de ser assaltada. O travesti pousou as mãos contra o vidro meio aberto. Ficou, de repente, com um ar suplicante. Tinha o rosto afilado, muito bonito, e um princípio de barba.

 

- Por favor! Preciso que me leves daqui para fora. Prometo que não quero nada. Só que me tires daqui do bosque. - Dirigiu-se a mim. - Prometo-vos que não faço nada, a sério. Acreditem. Pago a corrida. Vejam, tenho dinheiro.

 

Pôs-se à procura nos bolsos e sacou um maço de notas que nos estendeu com as mãos a tremer. Pipo, que passava a vida a dizer que conhecia muito bem a noite, teve uma reacção surpreendente. Voltou-se para a porta de trás e destravou o fecho.

 

- Sobe - disse, com veemência.

 

- Mas, que fazes? - perguntei horrorizada.

 

O travesti não se fez esperar nem cinco segundos. Abriu a porta e murmurou um «obrigada» agradecido, ao mesmo tempo que deslizava como uma gazela no banco de trás. ,

 

- Nem sequer o conheces - insisti. - E se nos atacar?

 

- Não te preocupes - tranquilizou-me sem deixar de vigiar o travesti pelo retrovisor.

 

- Estás completamente chanfrado - acrescentei.

 

O travesti tirou rapidamente os sapatos de salto alto com cara de alívio e voltou a agradecer a Pipo. Depois, dirigiu-se a mim para me sossegar.

 

Perdoa o descaramento, a sério. Mas não tenhas medo. Chamo-me Nicole e tu? Bom... na verdade o meu nome é Philippe.

 

- Vai - resmunguei.

 

- E tu? - Perguntou Nicole/Philippe a Pipo, cravando o olhar no retrovisor.

 

- Eu sou Pipo. Onde queres que te leve?

 

- A Barbes, por favor.

 

Começou a contar-nos muito nervoso uma história que não tinha pés nem cabeça. A única coisa que percebi foi que se tinha metido no bosque para ganhar dinheiro, de forma completamente livre, e que lhe tinham tentado dar uma sova. Tinham-lhe roubado a carteira que levava. Vivia com a mãe, era órfão de pai e ela não sabia nada das actividades nocturnas dele. De dia era um rapaz normal e banal.

 

- Pensa que trabalho num espectáculo em Pigalle mas nunca me viu assim vestido. Uf! - suspirou -, não aguentava mais estes sapatos.

 

Já estávamos a chegar.

 

- Tenho de pedir-te mais um favor - fez saber a Pipo enquanto tirava o rímel com um toalhete de desmaquilhagem tirado da carteira.

 

- O que é?

 

- Que número calças?

 

- Como?

 

- Sim. Já vais ver, eu só tenho estes sapatos de salto alto.

- Levantou os pés. - A minha mãe está à minha espera como sempre, na cozinha. Se me vê com estes sapatos, dá-lhe uma coisa! Que número calças?

 

- Quarenta e dois.

 

- Devem ficar-me bons. Quanto? - e pôs-se a contar as notas.

 

- Trezentos francos - respondeu Pipo sem pensar. - E o trajecto de Boulogne até aqui incluído.

 

-Está bem.

 

Estendeu-lhe três notas de cem francos enquanto Pipo começava a desapertar os atacadores. O travesti calçou os sapatos, o rosto relaxou-se de imediato, despediu-se de nós e saiu do carro. A noite parisiense engoliu-lhe o corpo que se dirigia para um prédio de quatro andares. Sem deixar rasto, a não ser o aroma da sua recordação.

 

- E agora, que fazemos? - perguntei a Pipo que tinha ficado em peúgas sobre os pedais. - Estás ridículo.

 

- Valeu a pena. Trezentos francos por uns sapatos velhos. Consegui ganhar o que ganho num dia a trabalhar no duro.

 

;- Acontece com frequência este tipo de coisas?

 

- À noite tudo é possível, Vai. Bom, vou levar-te a casa. Assim, como deves compreender, não posso fazer mais nada. Conversámos um bocado diante do prédio da Mimi, bebendo de um cantil cheio de whisky que trazia sempre com ele. Falou-me longamente do Bosque de Bolonha. Aquele lugar era como os gavetões do espírito, bonecas russas daquelas que cada vez que as abrimos sai uma mais pequena. As raparigas a vista de todos; atrás, os chulos a vigiar; mais para dentro, os voyeurs que corriam entre os arbustos para se masturbarem; e, finalmente, nós, mais mirones que todos os outros, a apreciar passivamente o espectáculo. Nisso estávamos ambos de acordo. Falámos amplamente de todos esses desejos não expressos que guardamos nos recantos mais escondidos das nossas cabeças. Falei eu disso. Ele, em contrapartida, não quis contar-me nada.

 

Quando saí meio embriagada do táxi subi depressa a escada do prédio, cujos degraus se transformavam perigosamente em navalhas de barbear afiadas.

 

Entrei no quarto às apalpadelas, nua e em bicos de pés, com os sapatos na mão, para não fazer barulho. Os lençóis estavam afastados para um lado da cama e o corpo de Mimi surgiu no meio deles, como se estivesse sem vida.

 

As paredes do quarto moviam-se diante de mim como uma cascata de água fresca, sem forma definida. Estava completamente bêbeda.

 

Agarrei nos lençóis e puxei-os para mim, para me tapar. Tinha frio. As ondas dos lençóis cobriram-me com um sussurro de linho e de repente o corpo de Mimi liquefez-se e entrou nos poros todos da minha pele, como bichos numa maçã. Uma torrente de chuva inundou a minha boca enquanto engolia com dificuldade. Senti que me estava a afogar e comecei a virar a cabeça em todos os sentidos.

 

- Não te mexas tanto - murmurou a voz aquosa de Mimi.

 

Boiava num charco de água doce, a cabeça dela entre as minhas pernas, e aquela sensação despejou-me a cabeça da ressaca impressionante que tinha em cima. A corrente do seu corpo fazia-me sentir bem e a energia e a força dela transportavam-me até às grutas mais inexploradas do meu subconsciente.

 

- Não sei se está certo fazeres-me sentir isto. Vou desmaiar.

 

Os seus dentes brancos resplandeciam na obscuridade como a luz que emitem as pérolas, quando se abrem as conchas do mar. Mimi iluminava-me literalmente e cegava todas as minhas resistências em relação ao sexo com ela.

 

A sua boca depressa se transformou num pequeno caracol marítimo que começou a sugar com gula a minha intimidade.

 

- Gostaria de ter muitas mãos para poder absorver-te e tocar-te toda - declarou o molusco.

 

Não era preciso. Os tentáculos dela dançavam sobre a minha cabeça e perdia completamente a noção do espaço físico; os nossos corpos já não pareciam delimitados.

 

Tive medo, bastante, de perder o controle e de derrubar o meu mundo interior mais solidificado que um crustáceo agarrado a uma rocha.

 

- Odeio-te pelo que me fazes sentir - disse num sopro.    

 

- Mas gostas, não gostas? - perguntou o polvo numa voz distante.

 

Desenharam-se em mim umas marcas sem sentido que, desde então, me ficariam gravadas na pele. Se bem que invisíveis aos olhos, mesmo que se desfizessem como castelos de areia construídos com tanto esmero, iriam ficar incrustadas para sempre.

 

- É outro dos teus jogos de magia. Fazes com que me sinta uma mulher diferente daquela que sou.

 

- Não és diferente. És a mesma, a de sempre mas com outras facetas - declarou a bandeirinha do castelo de areia desmoronado.

 

Permaneci na minha bolha aquática durante um bom bocado, flutuando nesse colchão demasiado macio, enquanto Mimi conseguia o que sempre tem sido para mim um problema: o sono.

 

Mas os meus dedos começaram de novo a percorrer-lhe com delicadeza o interior da vagina; as paredes eram iguais a um tapete ligeiramente aveludado que amortecia os toques que a minha mão ia dando, sensualmente tragada por esse corpo vampiresco que queria absorver tudo apesar do cansaço,

 

És insaciável. - Gritou de prazer.

 

             CONFUSÕES

 

Há dias em que é melhor uma pessoa não sair da cama. O dia a seguir à nossa noite de amor foi um deles. Tive uma crise de angústia. Oh, nada de grave! Apenas a sensação de que ia morrer, com um medo atroz de sair à rua até que caísse a noite. A clássica crise de angústia. Mimi preparou-me um caldo quente e pôs-se a ler-me umas passagens de As Flores do Mal de Baudelaire, sentada na beira da cama, e dizia-me: «assim verás o que é a verdadeira angústia e a tua irá desaparecer».

 

Escutei durante uma hora a sua voz quente mas grave recitar com paixão aqueles versos, adquirindo o tom adequado. De vez em quando, dava-lhe vontade de chorar, parava e engolia a saliva para que lhe passasse a tristeza.

 

- Adoro, mas como hei-de dizer?... É viscoso. É isso, é viscoso - aduzi, zombando, ao fim de um bocado.

 

- Em que sentido? - Mimi fechou o livro e subiu-me os lençóis até me tapar o nariz.

 

- Pois... é que vou sair hoje à noite com o Pipo com o raio desses versos colados à pele. Vai dar nas vistas. Não parei de me sentir angustiada desde que começaste a ler.

 

- Não é a poesia de Baudelaire que te põe assim, é o teu amiguinho. Por que não ficas aqui comigo esta noite? Vê-se que não pensas noutra coisa a não ser nele. Não estás concentrada na leitura. Entram-te as palavras de vez em quando, mas não fixas o sentido. Esse gajo impede-te de ser sensível à poesia.

 

- Não é verdade, Mimi. Senão, não tinha feito amor contigo. Teria sido incapaz de me abrir para ti, vamos. Mas o Pipo atrai-me. Quero saber o que tem na cabeça. Quero entender de uma vez por todas o que se passa com aquele homem, com a sua vida e em relação a mim.

 

Mimi fez-me uma festa carinhosa no cabelo.

 

- Por que será que o Pipo nunca me propôs, nem uma única vez, que fosse para a cama com ele? Não me tocou nem com um dedo. Nem com a mão, Mimi... Ah, sim! Uma vez, mas foi um gesto fraternal...

 

- Talvez não lhe agrades, simplesmente. Eu, em compensação, gosto de ti, Vai.

 

Não respondi à última frase.

 

- Então, por que quer que saia com ele? Não faz sentido. Sabes que tenho razão, Mimi. Nenhum homem te propõe que saias com ele noite após noite se não tiver uma coisa na cabeça. São todos assim, tu própria passas a vida a repetir a mesma coisa.

 

- Porque este tipo é um tipo esquisito.

 

- E tu dizes que gostas de mim mas não confias em mim o suficiente para reconheceres que estavas na praça da Concórdia na outra noite. Que será que vos passa pela cabeça a todos? Estão combinados ou quê? Concordaram em dar-me cabo da cabeça, foi isso?

 

- Tem juízo, Vai. Acalma-te!

 

- Está bem, vou ter juízo, como tu dizes. Mas não te parece tudo um bocado suspeito?

 

- Tens é macacos no sótão.

 

- Está bem. Pronto! - concluí saltando da cama para me pôr em marcha e ir ter com o Pipo a horas. - Mas continuas a não confessar.

 

Dentro de uma cabine telefónica, Pipo cuspia a língua dele dando ideia que estava zangado. Parara o táxi de repente, explicando-me que tinha uma chamada urgente a fazer. Saí do carro para fumar um cigarro e pus-me a observá-lo, com ternura, encostada à cabine. A ele não lhe importava. Não falava em francês. Não corria o risco de ser entendido.

 

O árabe é uma língua lindíssima mas pouco apreciada por ouvidos ocidentais, que a percebem como uma sucessão de sílabas acidentadas e gargarismos exagerados. Como uma tosse cavernosa e seca nada poética. Mas eu gosto imenso.

 

Depois da chamada, Pipo ensinou-me uma palavra bonita.

 

- Habibi. Carrega mais no H, assim: RA-BI-BI

 

- Pus-me a imitar os movimentos da boca dele.

 

- Como se quisesse sair mas não pudesse. A ver se percebes melhor: como se estivesses a preparar uma escarradela enorme que quisesses lançar o mais longe possível.

 

- Credo, que nojo! - e continuei a pronunciar o H.

 

- Rrrr disse, vomitando a letra.

 

Pipo desatou a rir.

 

- É assim mesmo. És muito sexy, habibi.

 

Gostei.

 

É a primeira vez que és carinhoso comigo,

 

- Habibi, quero dizer-te uma coisa.

 

- Sim?

 

De repente, senti-me pouco à vontade; o tom de voz não me anunciava nada de Bom. Pipo tinha ficado com um ar sério de repente e as rugas que lhe marcavam a testa não anunciavam nada de bom.

 

- Não leves a mal, mas a partir da semana que vem não vou estar tão disponível como agora. Tenho assuntos a resolver e só posso fazê-lo quando não estiver a trabalhar.

 

- À noite? Que tipo de assuntos? Posso ajudar-te?

 

- Não, habibi. São pessoais. Obrigado de qualquer forma por me propores ajuda, mas só eu é que posso resolver as coisas.

 

- Então... que significa isso? Não voltamos a ver-nos?

 

- Sim, claro que voltamos. Mas não como agora.

 

Caiu-me o tecto em cima da cabeça. Não sabia se havia de desatar a chorar ou de lhe dar uma bofetada por me deixar para trás assim sem mais nem menos, sabendo que eu só ia ficar em Paris durante o Verão e que provavelmente depois nunca mais nos voltaríamos a ver. Por que tinha decidido chamar-me logo agora habibi (meu amor, em árabe) quando estava a tentar pôr-me a milhas? Não fazia sentido. Uma coisa incompreensível passou-me pela cabeça: a decisão dele de resolver assuntos coincidia com a da Mimi de voltar ao trabalho. Ele sabia de fonte segura (por mim, é claro) que ela ia regressar à rua e isso aconteceu no mesmo dia em que ele desapareceu de circulação. Habibi transformou-se numa palavra maldita, numa bomba que nos explode em plena cara.

 

Não me lembro bem se foi a partir daquela noite que comecei a elaborar uma estratégia para descobrir quem ele era na realidade. A intuição fez-me sentir uma coisa estranha, uma coisa de que suspeitara desde o primeiro momento mas em que não tinha reparado. O segredo de Pipo. O segredo de Paris e da sua noite. E a Mimi no meio.

 

O AMOR, SEMPRE (O ENIGMA DE PARIS)

 

Cor 1’amour, on peut l’espérer, est une négociation permanente entre deux puissances qui veulent se contraindre i’une l’autre...

Pierre Mérot, Mammifères

 

              PLANO A

 

Marquei o número de telefone com um dedo febril e a tremer. Tinha medo da sua reacção mas era a única pessoa que me podia ajudar em Paris. Passara toda a manhã e parte da tarde a pensar na desculpa que lhe ia dar para justificar a minha atitude. Aquele telefonema ia acertar-lhe em cheio mas, no fundo, tinha esperança que fosse capaz de entender.

 

Aproveitei a Mimi estar fora para lhe telefonar. O telefone fartou-se de tocar até que uma voz séria, inconfundível e muito familiar, respondeu. De súbito, senti o coração na boca.

 

- Édouard?

 

- Sim, sou eu. Quem fala?

 

:O tom de voz voltou a transportar-me ao bar daquele hotel onde nos encontráramos da primeira vez e onde eu cometera aquele crime horrível.

 

- Olá, Édouard. Sou eu, a Vai.

 

O silêncio que se estabeleceu no momento em que pronunciei o meu nome não me surpreendeu. Não estava à espera que lhe telefonasse, disso tinha a certeza. Depois de tê-lo deixado pendurado naquela noite estava quase convencida de que era capaz de desligar sem mais aquelas.

 

- Olá, Vai - disse, como se não tivesse acontecido nada.

 

Senti-me estúpida.

 

- Desculpa a outra noite - foi a única coisa que me ocorreu dizer-lhe.

Lamentava muito sinceramente.

 

- Não te preocupes. Eu entendo. Mas, por que não me disseste? Não era preciso saires a correr como uma ladra. Teria percebido. Quando não há química, não há e pronto! Não podemos inventá-la.

 

- Tens razão, reconheço. Portei-me como uma idiota.

 

- Não penses mais nisso. Já está esquecido. Telefonaste-me por causa disso?

 

- Não. Gostava de estar contigo. Hoje ou amanhã à noite. Quando te der mais jeito. Tenho uma coisa para te dizer. De facto... estou com um problema e preciso da tua opinião.

 

- Que tipo de problema é que tens, Vai? Grave?

 

- Não, não é grave. Não te preocupes. Explico-te melhor quando nos virmos. É que estou em casa de uma amiga que deve estar a chegar e não posso falar muito.

 

- OK. Dá-me mais jeito hoje à noite. No Buddha Bar. Sabes onde é?

 

Disse-lhe que sim.

 

- Às nove e meia. Se quiseres jantamos lá.

 

Quem conhece o Buddha Bar sabe que é o sítio fashion da cidade. E que falar, propriamente falar, não é precisamente o que fazem as pessoas que lá vão.

 

Hesitei entre vestir uma saia ou umas calças. Era como se tivesse intenções de namoriscar com ele. Suponho que queria continuar a agradar-lhe e que, como todas as mulheres, gostava de estabelecer uma relação de sedução ainda que não fosse acontecer nada. Talvez porque acreditasse que, se continuasse a seduzi-lo, ele aceitaria a proposta desonesta que tinha na cabeça já há uns dias. As mulheres usam sempre os homens, conscientemente ou não. Não há nada de maquiavélico nisso, fazemo-lo por instinto. Está dentro de nós. Há gerações e gerações. Para sobreviver. Bom, no meu caso, a minha vida não corre perigo. Emocionalmente, não estava apaixonada pelo Pipo, mas qualquer coisa tinha mexido comigo. Não queria meter-me numa relação que se anunciava desastrosa. Intuía que não estava a salvo continuando com o Pipo daquela maneira, de modo que queria cortar cerce, mas sabendo a verdade, por mais que me doesse.

 

Era a primeira vez que saía à noite em Paris num táxi que não era o Mercedes do Pipo. Tinha apanhado um Peugeot 504, que cheirava a tabaco frio, e o taxista, pouco amável, não me dirigiu a palavra. Passou o trajecto inteiro a chupar uma barra de alcaçuz e entrámos triunfalmente nos Campos Elíseos.

 

Quando lá cheguei, Édouard já estava à minha espera, sentado numa mesa cuja localização não me agradou nada. À direita, jantava um casal que não trocava nem meia palavra (pelo que ia ficar atento à nossa conversa), e do outro lado, um grupo de sete pessoas encarregava-se de nos recordar que a amizade é o mais nobre e belo dos sentimentos. Os abraços efusivos atraíam a atenção de toda a gente. Pareciam antigos alunos que se encontravam ao cabo de muitos anos a fim de contarem uns aos outros o que fizeram das suas vidas. Édouard observava-os enquanto bebia um copo de vinho branco. A noite prometia.

 

- Julgo não ter sido boa ideia virmos aqui - disse-lhe, em jeito de saudação.

 

Levantou-se para me chegar a cadeira e percebi que estava contente por voltar a ver-me.

 

- Bem, mas este local tem uma vantagem - anunciou, meio a rir. - com a pouca luz que aqui há, talvez nem chegues a lembrar-te da minha operação ao nariz.

 

Ri. Para não chorar. Ele sempre tivera sentido de humor.

 

- Lamento o que se passou, a sério - insisti tentando olhá-lo nos olhos. - Lamento o teu nariz e o ter-te deixado ali plantado. Verdade.

 

- Já disseste isso pelo telefone. Esquece. Disse a piada só para quebrar o gelo.

 

- É que me apanhaste de surpresa. Vendo bem, não te fica mal.

 

E era verdade. À luz da vela, a perspectiva do seu rosto era outra. Fiquei contente. Sentia-me mais desinibida.

 

- Obrigada por teres aceitado vir - acrescentei. !

 

O rosto de Édouard respirava satisfação. Considerava uma vitória pessoal ter-me a seu lado naquela noite. O casal ao lado continuava com as mesmas trombas de aborrecimento, e nós pedimos uma garrafa de vinho branco.

 

Chegou até mim um cheiro desagradável enquanto Édouard examinava atentamente o menu proposto. Era o rapaz do casal ao lado. Cheirava a suor. Do sítio onde eu estava conseguia senti-lo. Talvez fosse por isso que ela não falava com ele. Uma axila mal lavada pode converter-se num temível objecto de tortura. Desatei a rir inopinadamente perante o olhar atónito de Édouard.

 

- Ainda não bebemos nada. Que é que tens?

 

- Nada, nada. - Era evidente que não lhe ia dizer nada em relação ao sovaco do nosso vizinho que, entretanto, me lançava um olhar assassino.

 

E para desviar a atenção, comecei a contar-lhe o meu encontro com o Pipo, a minha relação com a Mimi, e as minhas suspeitas de que qualquer coisa não batia certo.

 

- Acho que se passa qualquer coisa com o Pipo. Estás a ver? Há uns tempos que ele deixou de estar disponível à noite.

 

- Ai, Vai! - Pegou-me na mão e espetou-me um beijo sonoro com os lábios gelados. - Lamento por ti. Não me digas que continuas a sofrer de insónias?

 

- Sim.

 

- E com a idade, não melhoraste?

 

- Como médico que és devias saber que a idade não apazigua as doenças psicossomáticas, acentua-as.

 

Deixou repousar a cabeça entre as mãos, olhando para mim como se eu lhe estivesse a ensinar uma novidade, enquanto o grupo de antigos alunos subia o tom da conversa. Ouviam-se as gargalhadas agudas, e o silêncio do par ao lado, a contrastar, fazia-se mais pesado.

 

- bom, que queres que faça para ajudar-te?

 

- Preciso de ti para duas coisas, Édouard. Primeira: pensei que se te fizesses passar por cliente e engatasses a Mimi, talvez pudesses levá-la para tua casa. Eu estaria lá à vossa espera. Quero que me veja, que seja confrontada com o facto e que confesse. Segunda: queria que seguisses o Pipo uma noite destas.

 

Era pedir muito, reconheço. Estava à espera que o Édouard dissesse que não. Passaram uns minutos antes que começasse a falar.

 

- bom. Vejo que tens ideias claras sobre a maneira de proceder para apanhares os teus amigos com a boca na botija. E agradeço que tenhas pensado em mim para levar a cabo a tua estratégia mas...

 

- Não conheço mais ninguém em Paris - repliquei sem o deixar acabar a. frase, desculpando-me. - Não quero incomodar-te, mas dou-te a minha palavra que se te telefonei a pedir uma coisa destas é porque realmente não vejo a quem mais poderia recorrer. És a única pessoa que conheço em Paris e és de confiança. Sorriu.

 

- E é por isso que te atreves a pedir-me essas coisas? Porque sou de confiança?

 

Aproximou o guardanapo dos lábios e limpou-os com ar snob.

 

- Isso mesmo – redargui.

 

- Olha, Vai. Vamos fazer uma coisa. Essa de engatar a tua amiga e de levá-la a minha casa, posso fazer. Não há problema. Mas seguir o teu amigo Pipo, lamento, mas não. Não posso andar toda a noite atrás de alguém que nem sequer conheço. Sou médico e no dia seguinte tenho de ter a cabeça em ordem, percebes? Isso não posso fazer.

 

Tinha razão. Perante o facto, não podia dizer nada.

 

- Não me tinha lembrado. Tens razão.

 

E continuei a comer.

 

- Então, no que diz respeito à minha amiga Mimi, estás de acordo?

 

- Sim. Foi o que te acabei de dizer. Mas para isso preciso de saber como é ela.

 

-Aqui a tens.

 

Édouard pegou na fotografia com uma das mãos, enquanto levava o garfo à boca com a outra, e o vizinho do lado, que estava prestes a bocejar, endireitou-se de repente com grande curiosidade.

 

- Gira, a tua amiga.

 

- Sim, mas não é para ti - apressei-me a declarar-lhe.    

 

- Além disso, é fácil de reconhecer. Tem olhos de chinesa. Não é daqui, pois não?

 

- Não. É de Madagáscar. Mas vive em França há vários anos. Costuma estar na praça da Concórdia por volta das nove. Todas as noites, mais ou menos, costuma sair de casa às oito e meia. Não creio que possas encontrá-la antes. O ideal era que lá estivesses cedinho, antes que outro cliente a engate, percebes?

 

- Pensas sempre em tudo?

 

- Tento. Não julgues que isto seja uma brincadeira, por favor. Para mim, é um caso muito sério.

 

- Diz-me uma coisa. Pura curiosidade da minha parte. Não leves a mal e não respondas se não quiseres.

 

Era toda ouvidos.

 

- Qual dos dois é que preferes? O Pipo ou a Mimi? Olhava para mim com cara de anjinho.

 

- Que raio de pergunta é essa? Não gosto de estabelecer escalas de valor nem de fazer um ranking das pessoas de quem gosto ou de quem gostei.

 

- Mas se tivesses que escolher um deles, com quem é que ficavas? - Como não respondesse, prosseguiu: - Já sei que é uma pergunta um bocado estúpida e que não vais estar nesse tipo de situação. Mas, sinceramente, diz lá, quem é que escolhias?

 

- Não te sei dizer. São completamente diferentes. Mas de certeza que ficava com a Mimi. Conheço-a há anos e considero-a como uma irmã. A irmã que nunca tive e que sempre quis ter - respondi, com um suspiro.

 

- No entanto, ela não parece considerar-te assim. Vai para a cama contigo e não te revela os segredos dela.

 

- As irmãs também têm segredos. Acontece às melhores famílias, não achas?

 

- E não sentes mais nada senão um amor fraternal em relação a ela? *

 

- Por que mo perguntas? Porque me deitei com ela? É por isso?

 

Ficou um bocado incomodado, a retorcer-se na cadeira, à procura da posição adequada. Por fim, acabou por baixar os olhos.

 

-Talvez.

 

- É um sentimento muito profundo. Mas amor, o que se chama amor, não creio que seja.

 

- Talvez ela sinta isso por ti e não te queira desiludir. Não pensaste nisso?

 

Sim, claro que tinha pensado. De facto, todos os meus pensamentos em relação à atitude dela iam nesse sentido. Mas queria que tivesse mais confiança em mim, que não tivesse problemas em confessar-me a verdade. Que sentisse que podia contar comigo fosse para o que fosse.

 

- Sim. Penso que tem medo da minha reacção; fundamentalmente, tem medo de perder-me. Por isso, não quis contar nada. E é também por causa disso que me sinto obrigada a usar este estratagema, mesmo que seja um bocado violento de mais para ela. Quando tudo estiver terminado, sentir-se-á melhor e agradecer-me-á o que fiz.

 

Édouard esvaziou de uma só vez o copo de vinho. Devia achar que eu estava loucamente apaixonada pela Mimi ou, pura e simplesmente, louca. Nunca parara para pensar que ninguém tem o direito de se meter na vida dos outros se não tiver sido chamado. E eu estava a querer forçar uma porta trancada, com violência, sem pedir licença. Não me tinha interrogado se estava bem ou mal. Mas pensava que em qualquer forma de amor, o que a um parecia bem, por mais agressivo que fosse, a outra pessoa teria, com o tempo, que acabar por entender. Estava enganada.

 

- Que fique claro que não quero ser responsável pelo que possa acontecer entre vocês duas. Ela pode levar a mal - encarregou-se de esclarecer Édouard.

 

Eu continuava na minha, convencida de que aquela maneira de proceder era a melhor que podia haver.

 

- Quando uma ostra não se abre, tens que fazer força com uma faca especial, não é?

 

- E por que é que, forçosamente, se tem de abrir uma ostra? Se calhar está muito bem como está. Fechada.

 

- E quanto ao Pipo, então? É um não definitivo?

 

- Efectivamente. Lamento.

 

Quem lamentava era eu, que me via incapaz de repegar no assunto. Segui-lo eu, era arriscado. Não era imparcial nesta história. Tinha de arranjar outra pessoa.

 

- Que te parece se tratarmos da Mimi depois de amanhã à noite?

 

Édouard não levantou problemas. Penso que no fundo queria fazê-lo quanto antes para tirar esse peso de cima.

 

- Está bem. Como fazemos?

 

- Irei a tua casa por volta das oito e meia e depois tu vais para lá. Espero por vocês na tua casa.

 

-OK.

 

Insisti para que guardasse a fotografia da Mimi.

 

- É muito importante que a reconheças, Édouard.

 

- Não te preocupes. Se estiver lá depois de amanhã, levo-a para casa. Queres mais um copo aqui?

 

Não tinha grande vontade de andar às voltas por Paris, por isso aceitei.

 

- Está bem.

 

Já que aceitara ser meu cúmplice, não podia ir-me embora assim, sem mais nem menos. Mas a minha cabeça não estava no Buddha Bar. Estava sempre a pensar em como agir no caso do Pipo, a quem recorrer, de tal modo que nem reparei que o Édouard tentava seduzir-me novamente até se encontrar com os seus lábios encostados aos meus.

 

Não o repeli. Deixei-o beijar-me como se fôssemos um parzinho de namorados normal e corriqueiro. A sua língua violadora insistia enquanto me asfixiava a pouco e pouco, na doce sensação de ser desejada.

 

”Não sei se o beijo teve alguma coisa a ver com o que me passou pela cabeça logo a seguir. Se calhar, quando o oxigénio falta no cérebro durante umas escassas fracções de segundo a mente funciona melhor. E foi assim que encontrei uma possível solução para o caso.

 

Pus-me a contar as pessoas que conhecia. Quatro ao todo. Três eram, mais ou menos, de confiança: o Pipo, a Mimi, o Édouard. E a quarta podia sê-lo.

 

Apesar de praticamente não o conhecer, tinha sido a primeira pessoa a receber-me na capital. Tínhamos trocado algumas palavras, havia até entre ambos um princípio de cumplicidade, não se podia negar. Parecia-me, além disso, uma pessoa idónea para este tipo de encargo. Era a impressão que tinha, apesar de Édouard, quando lhe participei, não estar de acordo.

 

- Não sabe nada de ti, nem tu dele! - retorquiu, encolhendo os ombros como se quisesse dissuadir-me de pensar naquela hipótese ridícula.

 

- Ainda melhor, Édouard. Pensa bem.

 

- Não sei. Como é que vais convencê-lo a fazer uma coisa dessas?

 

- Muito fácil: com dinheiro.

 

- O quê?

 

Abriu os grandes olhos verdes, incrédulo, como uma personagem de desenhos animados.

 

- Sim, claro. Não lhe vou pedir que faça isso sem lhe dar nada em troca. Tu próprio acabaste de dizê-lo: não me conhece de parte nenhuma. Andar a passear durante a noite a vigiar um desconhecido, para ficar de bem comigo: não acredito que ninguém faça isso de borla. Ouve lá! Não há nada de mal nisto, ou há? Se eu estivesse no lugar dele, aceitava. A vida aqui, em Paris, é caríssima, e não acredito que o ordenado dele seja uma maravilha.

 

- Se tu o dizes…

 

- Acho que é boa ideia, e de certeza que até me vai agradecer. Dá-me a sensação que deve conhecer esta cidade muito bem à noite.

 

Édouard ficou pensativo. Eu não queria convencê-lo de coisa alguma. Só fazê-lo participar da minha ideia. Bebia o copo calado, observando a fauna parisiense que nos rodeava.

 

- Ouve, pensaste numa coisa importante, Vai? Como vai essa pessoa trair outra da mesma nacionalidade?

 

- Não se conhecem e o dinheiro pode tudo, sabes?

 

Não quis deixar que o Édouard me acompanhasse a casa. As despedidas homem-mulher diante de uma porta acabam sempre com um «deixa-me subir dez minutos por favor». Nessa noite não me apetecia. Tinha a desculpa perfeita: se a Mimi nos visse, o depois de amanhã seria impossível de executar.

 

- Ah! E muda o teu nome por favor. Chama-te como quiseres, mas não Édouard. Falei-lhe de ti e não quero que suspeite de alguma coisa.

 

- Está bem, não te preocupes. Quando é que vais ver o outro, ao certo?

 

- Amanhã mesmo irei falar com ele. Depois conto-te. Às oito e meia em tua casa, de acordo?

 

- Combinado - disse, e mandou parar um táxi.

 

Édouard abriu-me a porta de trás e deu-me um beijo na boca muito ao de leve.    

 

Mimi não fizera a cama, como quase sempre. Quando me enfiei nos lençóis, o cheiro dela continuava presente, colado a este canto da casa como se tivesse acendido uma vela perfumada de yling-yJing umas quantas horas antes. Imaginei a Mimi abraçada entre dois homens como uma Sandwich, como se a mulher fosse uma fatia de carne entre duas fatias de pão, pronta a ser comida, inerte. Imaginei a Mimi, transpirada, de rabo empinado, a pedir aos gritos que não esperassem mais para a possuírem. Uma autêntica desfloração binária, executada segundo todas as regras, com erecções de 90 graus de pénis talhados em bisel. Uma luz macilenta invadia o quarto e ela brilhava, prisioneira de dois corpos suados, tensos e arquejantes, imortalizada no centro de uma cama, eterna. Era um deleite vê-la assim, de barriga para baixo, mordendo os lençóis para refrear o grito. A cabeleira dispersa em cima da cama como uma cascata de lã negra ondulada com ritmo, enquanto o seu corpo miudinho parecia desmembrar-se sob as arremetidas daqueles animais ululantes. Uma sandwich saqueadora de uma pureza que se ia desfazendo a pouco e pouco.

 

Apercebi-me de que estava a tentar «heterossexualizar» a Mimi, não com um, mas com dois homens, como se a sexualidade dela me metesse medo, como se ela pudesse ameaçar a minha.

 

Chegou por volta das seis da manhã. Vi as horas e ouvi-a soluçar. Tresandava a álcool e a esse desodorizante barato de patchouli que se põe em locais nocturnos para que não se cheire a suor. Nada a ver com o odor que encontrara ao chegar a casa.

 

Tentou afogar os soluços numa almofada, quando se meteu na cama, mas todo o seu corpo tremia fazendo estremecer o colchão.

 

- Se ao menos falasses comigo... - murmurei. Engoliu a saliva e tentou assoar-se. Por fim, virou-se bruscamente para mim.

 

- Não estás a dormir?

 

- Como vês, não.

 

- Estás à coca a ver a que horas acabo, não é?

 

Percebi que não estava disposta, uma vez mais, a falar calmamente comigo; e estava a começar a ser grosseira. Eu queria tentar mais uma vez, uma última vez, antes de pôr em prática o plano que tinha elaborado, mas não havia maneira.

 

- De maneira nenhuma, Mimi! Não conseguia dormir. Sabes que tenho imensa dificuldade em adormecer.

 

Pôs-se a balbuciar palavras com violência e aproximei-me dela no intuito de abraçá-la, mas repeliu-me. Começou a gritar, a insultar-me, bebera demais, todo o amor em relação a mim se transformava em crueldade. A fronteira entre o amor e a violência é, às vezes, tão estreita como ténue... Quando fazíamos amor, sentira mais de uma vez a violência dos seus gestos sublimes, nas suas carícias ansiosas, nos seus beijos ávidos. Tinha sido violenta quando na outra noite eu a repelira, mas de tanto insistir acabou impondo à força o seu corpo entre as minhas pernas. Por fim, acedi. O amor e a violência conviviam. Um beijo apaixonado era sempre um beijo feroz; e, senão, basta ver os filmes de amor dos anos cinquenta. Todavia, apesar da fúria, naquela noite Mimi repeliu-me. «Filha da puta», gritava ela, furiosa na penumbra, e eu embalava-a como a um bebé esfomeado que não pára de chorar.

 

«Filha da puta», insistia, e dava-me murros suaves contendo os gestos porque, no fundo, não queria magoar-me,

 

- Sossega... - murmurava eu.

 

A zanga cedeu e adormeceu nos meus braços. Ainda hoje recordo o sabor amargo, mas maravilhoso, da descida aos infernos da Mimi naquelas noites de embriaguez.

 

Era uma manhã de domingo.

 

Domingo de bairros que acordam ao cheiro de uns croissants amanteigados e de um café fumegante, de frangos assados e estaladiços a girar no espeto da sua gaiola de vidro.

 

Domingo chilreante de desenhos animados cuspidos pelos televisores de famílias repletas de filhos insuportáveis aos berros. Famílias à beira da catástrofe, do suicídio colectivo com gás butano.

 

Domingo de suicídios solitários. De solteiros depressivos, de morte silenciosa e subtil como pó de comprimidos desfeitos em colheres, em mesinhas de cabeceira.

 

Domingo de ressaca quando se repete o champanhe e a sopa espessa de cebola.

 

Domingo de tartes de maçã metidas no forno ou cheias de glacé por avozinhas comodamente abandonadas em apartamentos em ruínas.

 

Um domingo normal e corrente.

 

Mas Mimi não se levantava.

 

Andei um bocado, de um lado para o outro, dentro de casa, fazendo barulho de propósito para ver se ela acordava. Mas Mimi não se levantava.

 

Abri e fechei portas. Abri gavetas e armários, pouco faltou para levantar as persianas não fosse eu uma noctívaga que odiava ver que o sol desbotava as cortinas,

 

Mas Mimi não se levantava.

 

Telefonei ao Édouard para saber como estava e falei em voz alta de propósito, deixando cair um livro que estava em cima da cómoda... Mas nada... Fumei, tossi, cuspi no lavatório, limpei o esmalte com uma esponja...

 

Mas Mimi não se levantava.

 

- Mimi, estás bem? - perguntei enfim, sacudindo-a pelos ombros.

 

Fez uma tentativa para esboçar um sorriso mas em vão.

 

- Mimi, por favor, diz qualquer coisa. Tomaste comprimidos para dormir?

 

Levantou a mão com dificuldade, não conseguia articular palavra. O meu coração deu um salto e pus-me à procura, desesperada, na gaveta da mesa-de-cabeceira, da caixa de Stilnox que ela guardava sempre ali. Estava quase cheia. Não parecia um caso alarmante mas provavelmente teria misturado os soníferos com álcool.

 

- Mimi, Mimi... Quantos Stilnox tomaste?

 

Fez-me um sinal com a mão que não entendi.

 

- Que queres dizer? Quantos? Um?

 

Mexeu a cabeça de lado num gesto negativo.

 

- Dois, então? Assentiu.

 

- Vou fazer-te um café com sal para te passar a ressaca, a ver se consegues pôr-te de pé.

 

Preparei-lhe esse café asqueroso que ela bebeu sem uma palavra.

 

- Não havia por trás disto nenhuma má intenção da tua parte, pois não, Mimi?

 

- Não, nenhuma. Não devia ter misturado álcool com comprimidos para dormir, foi isso - tranquilizou-me, aclarando a garganta.

 

Sabia que não queria morrer. Queria somente chamar a minha atenção. Ao ver a sua cara cheia de ternura e de inocência, o meu sonho da Sandwich converteu-se numa recordação longínqua. Aquele episódio era também sinal de que tinha de concretizar o meu plano já, sem mais demora.

 

           PLANO B

 

Certas estações de metro parecem verdadeiros urinóis públicos sempre sujos. Nas grandes cidades, são símbolo do peso da miséria das pessoas que passam a vida a embriagar-se e depois, de bexiga cheia, se despejam como lhes dá na real gana pelos corredores. Os bêbados das pequenas cidades acabam sempre por emigrar para as grandes, não só para poderem continuar a beber sem que ninguém diga nada, mas também para poderem mijar anonimamente. Porque também têm a sua dignidade, os bêbados. ”

 

Blanche era uma dessas estações, um cruzamento entre a alegria da festa no bairro mais famoso da capital, e a tristeza dos vagabundos que pediam esmola a turistas de bermudas cor de caqui e peúgas brancas. Nunca tinha visto tanta concorrência entre vagabundos bêbados em nenhuma outra cidade. Os fins de festa estavam sempre carregados de tristeza, de maneira que, de certa forma, um mundo e outro se completavam.

 

Já era tarde e os últimos a sair do trabalhho para apanhar o metro eram os que procuravam uma promoção, executivos tímidos, futuros chefes de secção, facilmente reconhecíveis. Lêem revistas em inglês tipo Business Week e os seus rostos reflectem tudo menos humanidade.

 

Por que apanham o metro? Para disfarçar. Para se convencerem de que não perderam o contacto com a realidade. Para debitarem ao subordinado de serviço o típico discurso de que tiveram que lutar muito nesta vida para conseguirem ser o que são agora, que começaram do zero (ou desde o menos um, se apanharem o metro), que sabem o que é uma pessoa sentir-se um zé-ninguém...

 

Um vagabundo com os copos não passa, afinal, de um executivo que não saiu do metro. Devíamos prestar mais atenção aos bêbados. São o caso perfeito de ex-filhos-da-puta convertidos ao humanismo da rua. A cidade de Paris está cheia deles.

 

Dirigi-me ao meu destino em passo apressado, já que estava atrasada. Queria falar com ele antes que mudasse de turno. Talvez aceitasse beber qualquer coisa e pudéssemos conversar mais sossegados.

 

- Está tudo cheio - disse-me quando empurrei a porta da pensão.

 

- Olá, Yamal. Como estás?

 

- Bem, obrigado. Mas se vens à procura de quarto, não tenho nada livre até à semana que vem.

 

- Não vim por causa disso. Vim falar contigo, se é que podes agora.

 

Yamal viu as horas, verificou que o relógio da parede pendurado em frente da recepção estava a funcionar e sacudiu energicamente a cabeça.

 

- É que hoje estou de turno do dia e vou sair daqui a pouco - desculpou-se.

 

- Se tiveres dez minutos depois do trabalho talvez possamos tomar um café aqui perto. Há um bar aberto ali à esquina, em frente à estação de metro.

 

Pareceu reflectir e observou-me de forma esquiva.

 

- Só dez minutos? É que depois fiquei de…

 

- Sim, só dez minutos. Prometo - assegurei-lhe. - Espero por ti no bar, está bem?

 

Aceitou com ar surpreendido. Os movimentos dele eram lentos; devia perguntar a si próprio qual era a minha...

 

Saí agradecendo e dirigi-me ao tal bar, ao mesmo tempo que uns rapazes me assobiavam propondo-me que fosse com eles não sei onde.

 

Ao fim de uns vinte minutos apareceu o corpo gracioso de Yamal com um saco de plástico de supermercado na mão. Trazia um cigarro na boca, o cabelo brilhante de gel e tinha um ar desgraçado na maneira de andar.

 

- bom. Que te traz por cá? Como vão as aulas de japonês?

 

- Ah! Não te esqueceste? - disse, sorrindo. - E se te disser que não fui a nenhuma desde que aqui estou…

 

-Ah! - redarguiu, e pediu uma cerveja ao empregado ao mesmo tempo que apagava o cigarro.

 

- Olha, Yamal, tenho uma coisa a pedir-te.

 

Não olhava para mim; tinha os olhos cravados no cinzeiro.

 

- Tens carro? - perguntei-lhe à queima-roupa.

 

- Tenho. É um carro velho mas funciona. Quase não o utilizo em Paris porque é sempre um problema para uma pessoa se deslocar nele. Porquê?

 

- E conheces bem a cidade?

 

- Sim, claro.

 

- E ganhas muito dinheiro como recepcionista?

 

- E o que é que isso te interessa? - desfechou com maus modos.

 

Dada a resposta, não devia ganhar uma fortuna, senão faria alarde dela.

 

- Olha... queria pedir-te que me fizesses uma coisa. Eu pago.

 

Yamal abriu os olhos e mudou curiosamente de tom.

 

- De que se trata?

 

Tirei a agenda da carteira e comecei à procura do cartão que deixara entre as páginas do mês de Junho.

 

- Aqui tens - estendi-lhe o cartão de Pipo. - Este tipo é um taxista de dia que conheci assim que cheguei a Paris. Gostaria que o seguisses numa noite em que estejas livre,

 

- É o teu namorado? - perguntou enquanto lia o nome e o telefone indicados no cartão.

 

- bom, mais ou menos.

 

- É traficante? Tem problemas com a polícia...? Ah! Já sei! Infidelidades. É isso, não é? Põe-te os palitos com outra? - desatou a rir como um miúdo.

 

- Para te dizer a verdade, ainda não sei. Se calhar põe. É isso que gostaria de averiguar.

 

- Pipo... que nome é este?

 

Deixou o cartão em cima da mesa. Acrescentou:

 

- Por que não lhe pões os palitos a ele? Se quiseres, apresento-me como candidato…

 

Ergueu os olhos com ar de chico-esperto.

 

- Quanto?

 

- Seiscentos francos - anunciou, sem hesitar, como se tivesse pensado nisso antes.

 

Pareceu-me razoável. Estava até disposta a chegar aos mil francos se fosse preciso. Mas não aceitei logo. Talvez tivesse intenção de subir o preço.

 

- Parece-me caro, Yamal. Só te estou a pedir que o sigas durante umas horas, mais nada.

 

com os muçulmanos regatear é um jogo que não se deve nunca desperdiçar. - Vou-te dar quinhentos francos. Nem mais um cêntimo, Yamal. Mais os gastos que possa ocasionar a deslocação por Paris nesse dia.

 

- Quinhentos e cinquenta - exigiu com um ar espertalhão nos olhos. O jogo agradava-lhe e divertia-se como um garoto, porque se lhe acendera um brilho no olhar. - Vá lá, é um trabalho nocturno. As empresas pagam sempre o dobro à noite, não é verdade?

 

- Talvez haja outra maneira de resolver o assunto... insinuei, cruzando as pernas de lado de forma a que ele as visse.

 

- Tenho namorada, menina.

 

- E depois? Não acabaste de me dizer que não te importavas de te candidatar?

 

Fiquei surpreendida ao verificar como me sentia desesperada por não ter conseguido ir para a cama com o Pipo. Estava a bricar com o Yamal mas não para regatear; não tinha nada a ver com dinheiro. Queria ir para a cama com ele. Ir para a cama para me vingar do Pipo e depois ordenar a Yamal que o seguisse e, quando tudo estivesse terminado, confessar ao Pipo que aquele magrebino, que havia descoberto as suas manigâncias, era meu amante. Queria mostrar-lhe que eu também tinha segredos. Passou-me mesmo pela cabeça organizar um encontro com os dois e acabar na cama com ambos, naquela tal sandwich que oferecera à Mimi em sonhos. Empalada pelos dois. Era assim que queria ver-me. Atada a dois náufragos alienados que finalmente cediam. Êxtases matemáticos em orifícios totalmente tapados,

 

- Então, que fazemos? - inquiriu Yamal.

 

- Aceito - concedi diante do ar de gozo dele por pensar que me havia vencido.

 

Expliquei-lhe como devia proceder. Primeiro, aconselhava-o a telefonar ao Pipo para que o levasse a um sítio qualquer, como se fosse um cliente, e ver como ele era. Talvez pudessem até falar do seu país. Ao fim e ao cabo, ambos eram argelinos. De facto, Yamal fazia-me lembrar muito o Pipo, curiosamente pelo sotaque meridional e a forma exótica de gesticular. Mas, ao contrário de Pipo, não era capaz de sustentar o meu olhar. O Yamal era menos insolente.

 

Depois poderia passar pelo bar Chez Jojo, onde Pipo costumava ir beber um copo por volta das nove antes de ir jantar. Podia esperar por ele no carro e segui-lo quando ele saísse.

 

- Que te parece? - perguntei. - Simples, não?

 

- Está bem. - Estendeu-me a palma da mão. - E a massa?

 

- Dou-te metade hoje. A outra metade, quando tiver obtido a informação que te pedi.

 

Dobrei um guardanapo de papel, depositei duzentos e setenta e cinco francos dentro e anotei o meu número de telefone.

 

- Aqui tens. Mas antes de fazeres seja o que for, espera pelo meu telefonema de aviso. Dir-te-ei quando, OK?

 

Sacudiu a cabeça afirmativamente.

 

- Até quando é que trabalhas durante o dia?

 

- Toda a semana. Na próxima, trabalho à noite. Alterno uma sim e uma não. Teria que ser esta semana. Senão, só daqui a quinze dias.

 

Não se tratava de adiar mais o assunto. A minha angústia quando chegava a noite intensificava-se, crescia como o desejo que se sente em relação a um amante quando sabemos que nunca chegaremos a possuí-lo. É nesses momentos que se pensa na morte, porque se sente que essa sensação nunca mais nos vai abandonar. Há dias que passam mas que são todos iguais. Nada muda. Está-se parado e por detrás do nosso olhar de estoicismo esconde-se uma alma a sangrar. Mas eu queria acabar com essa sensação de uma vez para sempre. E o mais depressa possível.

 

-Yamal?

 

- Sim?

 

- Se mudares de ideias, em relação ao outro... já sabes... Telefona-me!

 

Riu. E despedi-me dele, prometendo pôr-me em contacto com ele durante a semana. ;

 

Quando cheguei a casa, fui encontrar uma Mimi eufórica, acabada de regressar das compras e que me havia trazido uma prenda embrulhada num papel vermelho vivo com um laço prateado. Disse-me que não conseguira resistir à tentação de comprá-la e que esperava que eu gostasse.

 

- Só faço anos em Janeiro, Mimi.

 

- Gosto de oferecer presentes fora das datas estabelecidas explicou. - Assim têm outro sentido. São mais apreciados, não achas? Vá, abre lá.

 

Fixou-me, divertida, enquanto ia arrancando com os dentes o papel de fantasia de uma caixa que dizia Making sex even better. Continha dois vibradores prateados e um par de bolas chinesas que me deixaram boquiaberta. Nunca ninguém me tinha dado uma prenda semelhante.

 

- E esta? - perguntei, incrédula.

 

- Não gostas, Vai? É para ti; bom, para nós duas, um brinquedo erótico,

 

- Pretendes prender-me a ti com jogos sexuais, Mimi? É isso?

 

Não respondeu. Era evidente que eu não tinha achado graça nenhuma à prenda. Para preencher o silêncio que se instalara entre ambas, anunciou-me que ia vestir-se para ir trabalhar. Em vez disso, fechou-se no quarto e telefonou a alguém.

 

           NO CAIS DO SENA...

 

A Mimi tinha qualquer coisa de bruxa. Decifrava as minhas emoções. Percebia as minhas intenções. Farejava as rupturas nas vidas dos outros. Pressentia o sofrimento. Adivinhava que qualquer coisa me preocupava e disfarçava os seus sentimentos sob um rosto impassível, acompanhado de um sorrizinho cansado e às vezes enfastiado.

 

Naquele dia, fechou-se no quarto e pôs-se a falar ao telefone para desabafar.

 

- Acho que o homem lhe está a fazer perder a cabeça. Não entendo. Não percebo por que se juntou com ele, nem sequer é bonito nem particularmente inteligente... Pois, pois, já sei que nunca gostei de homens, mas no caso dela, ainda menos... Sim, já sei! Mas, vê lá tu, o imbecil leva-a a todos os sítios depravados da cidade, e tu bem sabes que são muitos, não...? Não, claro, sítios destes é o que não falta em Paris... bom, até agora aguentou-se bem, até que a leve a sítios piores, sabes a que me refiro, não...? Vais ver como tenho razão... Não, olha, até me dá arrepios, que queres que te diga?... Pois, e é que tem mesmo pinta disso. Há dias, a Cécile... lembras-te da Cécile?... Pois houve um tipo que a levou aos cais das margens do Sena... É como te digo! Nunca estás a par de nada! Lembras-te do filme Noites Selvagens’?... Precisamente a mesma coisa. Entre a ponte de Bercy e a de Austerlitz, como no filme... É o que te digo!... Claro, o que é que havia de acontecer, francamente?... Só lá vão os tarados, puros e duros... Não acabaste de dizer que viste o filme?... Pois lá, no escuro, contra os pilares de betão da ponte... Não, ela só tinha ido lá com ele, ele queria que ela visse como era, em todos os sentidos... Sim, são sobretudo homens... com pinta de fascistas, de cabelo curto, com botas da tropa e isso tudo. Estás a ver o panorama, não estás? É vício puro. E tu já sabes como são os argelinos. São tarados, gostam da pesada. Foram nados e criados nos arredores onde se deixaram manipular desde pequeninos por mariconços executivos... a troco de cinco francos... Não sou racista! Não sejas idiota, racista, eu?! Não, o que quero dizer é que é a maneira que têm de vigarizar, desde pequeninos... O filme explica muito bem... Não, comigo não é a mesma coisa. Não vou com qualquer um... A única coisa que pretendo é protegê-la... Já sei! Mas não liga nenhuma... E nas caves dos prédios das cidades-dormitório?... Umas vezes consentem, outras violam-nas... O que é que a polícia há-de fazer?! Nem sequer se atrevem a pôr lá os pés!

 

Mimi falava muito alto. Penso que sabia que estava a ouvi-la. E a nitidez das palavras ditas ao(à) interlocutor(a) anónimo(a) constrangia-me.

 

- Não, ir com um tipo é de somenos... Claro!... A única coisa que quero é protegê-la... Já sei que é maior e vacinada, mas em Paris, se não conheces, estás perdida... Sim. Ali há de tudo... Claro, com certeza! E é a mim que dizes isso?! Pronto, pronto!... OK. Não te preocupes... Até depois, que tenho de ir trabalhar... Sim, um beijo.

 

Desligou. Quando abriu a porta do quarto, fingi que saía da casa de banho. Os nossos olhares cruzaram-se e apoderou-se de nós um pesado silêncio.

 

Tinha sido terrivelmente injusta com ela. Não havia nenhuma espécie de malícia naquela prenda, apenas vontade de me alegrar e de ser simpática. Creio que, no fundo, o que eu temia era que os meus sentimentos em relação a ela evoluíssem num sentido em que nunca tinha pensado. Podia ser uma das estratégias dela para que não voltasse a perguntar-lhe nada sobre as suas actividades. Já tinha pensado nisso. com um presente daqueles queria, sobretudo, desconcertar-me.

 

Com o tempo, ao recordar o episódio, percebi que se tratava de um jogo que eu não entendera e que a minha reacção de nojo em relação a tudo aquilo na altura se devia ao medo que tinha de uma única pessoa. De mim mesma.

 

             O DIA D

 

Tudo parecia organizado na perfeição. Enquanto me aproximava da casa de Édouard, revia mentalmente o que diria à Mimi quando a visse.

 

Édouard vivia num bairro perto da Ópera de Paris, num edifício com painel electrónico de códigos secretos intermináveis, amplas varandas, rampas de mármore e escadas largas. Vivia num sítio que estava em conformidade com o seu estatuto de jovem médico brilhante. Abrira a porta sem perguntar quem era porque estava à minha espera no seu apartamento de tectos altos e arabescos de estuque, com lareira na sala e chão encerado impecavelmente. Não havia nada que destoasse; a não ser, talvez, a minha cara cor de tristeza inédita.

 

- Estás pronto?

 

- Sim. Vou para lá agora. Faz como em tua casa. No frigorífico há de tudo.

 

-Tens a fotografia dela? Ah! Quando chegarem, escondo-me e só apareço quando lhe deres o dinheiro. Em flagrante. E não te esqueças de lhe dar outro nome e...

 

- Não te preocupes tanto, Vai! Já sei quem é, já conheço a cara dela. Far-me-ei passar por um tipo chamado Charles e só lhe pago quando ela estiver cá em casa. Ficas mais sossegada?

 

Pedi desculpa. Estava muito nervosa.

 

- E alegra essa cara. Já te trago a rapariga.

 

Édouard compôs o nó da gravata diante de um espelho em forma de sol e com moldura de madeira. Vestiu o casaco e tive vontade de beijá-lo. Para me dar forças enquanto esperava o regresso dele com a Mimi. Mas Édouard despediu-se de mim dando duas voltas à chave.

 

Quanto tempo se iriam demorar? Nem eu fazia ideia. Entretive-me a visitar as várias divisões do apartamento para passar o tempo. Estava decorado com muito gosto e um toque minimalista. Grandes janelas que davam para a rua inundavam de luz todo o andar, dado que as plantas que ali se encontravam transbordavam de vida.

 

Absorta na visão zen daquele local, adormeci no sofá.

 

Fora obrigada a chegar àquele extremo por a Mimi ser tão casmurra; e ali estava ela a fitar-me, desafiadora, no meio da sala, a boca vermelha como uma guloseima apetitosa e os olhos negros de raiva. Perante a infâmia das minhas palavras de censura, que cortavam o ambiente, Mimi, sem saber como, reconstruía o silêncio que se havia instalado entre esse triângulo que formávamos, ela, o Édouard e eu. Permanecia impassível. Pobre Édouard: fingia não entender bem a situação, assumindo um ar descontraído. Só lhe faltava assobiar.

 

- Repito-te que não me interessa o que fazes! O que me dói é que não tenhas querido reconhecê-lo, pelo menos perante mim que sou tua amiga. Por que me mentiste tão descaradamente?

 

Perante o seu pestanejar pensei que ia abrir a boca, mas não se dignou fazê-lo. Em vez disso, deixou-se cair no sofá, a meu lado, remexendo na carteira e extraindo o eterno maço de cigarros de mentol. Édouard, que não suportava tabaco, não se atreveu a dizer nada. Limitou-se a entreabrir uma janela. Pelo menos o barulho da rua iria atenuar o mal-estar que reinava na sala.

 

Mimi dava grandes passas no cigarro, apontando a boca para o tecto, com ar de superioridade. Parecia um preso no corredor da morte que, sabendo-se condenado, desfrutava dos últimos instantes antes da execução. Na verdade, quem se sentia condenada era eu, resignada, num ponto de não retorno, perante a imutável atitude da minha amiga.

 

Em cima da mesa de vidro permaneciam os quatro mil francos que Édouard desembolsara para fingir o pagamento a Mimi. Aquelas notas, para mim, eram um insulto, pareciam-me uma insolência tal que tive de conter-me para não as atirar pela janela fora. Também resisti a pregar um par de estalos à Mimi para que reagisse. Não existe nada pior do que a indiferença. Ela continuava a fumar, inacessível, tentando parecer calma, apesar do ritmo irregular do peito que se erguia a cada respiração, impertinente, no seu top de cetim preto. Mesmo assim parecia furiosa.

 

Decidiu, ao fim de um bocado, que já aguentara o suficiente. Apagou com violência o cigarro num prato de cristal e, decidida, pôs-se de pé. Édouard virou-se novamente para a janela para evitar ter de despedir-se dela. No fundo, envergonhava-se do que fizera, e dos três era quem, seguramente, pior se sentia. Pensei que ela ia sair pela porta fora, sem mais, mas fez-me uma pergunta inesperada.

 

- Ficas aqui ou vens comigo para casa?

 

Como se não tivesse acontecido nada. Disse-o com tanta suavidade que fui incapaz de responder de imediato. Pouco depois, dei-lhe a entender que preferia passar a noite em casa do Édouard. Não me via capaz de partilhar a cama com ela depois do sucedido. Anotei o número de telefone do meu amigo no maço de cigarros vazio e dei-lho para que pudesse contactar comigo em caso de necessidade. Pegou nele calada e, enquanto lia, disse:

 

- Não achas que a situação tem piada?

 

Percebi logo onde queria chegar. Não lhe chegavam as noites violadas? Por que se empenhava em autodestruir-se daquela maneira?

 

Despiu o top preto com tanta facilidade que pensei que a noite parisiense já havia acabado de prevertê-la por completo. Assim, rígida, no meio da sala, o olhar ágil dela pousou nas costas de Édouard que continuava abstraído à janela. Eu seguia o desenrolar dos acontecimentos com uma cara atónita. A fera que a Mimi tinha no seu interior havia despertado de modo felino.

 

Fazer as pazes na cama» é uma expressão típica francesa que é muito gráfica. Digamos que se apaziguaram as tensões quando fomos os três para a cama.

 

É que as coisas tinham de ficar arrumadas. Definitivamente. Foi a sua forma particular de confessar a verdade e de mostrar como procedia com os outros. Começava a entendê-la. As suas mãos adejaram quando me despiu. Ocorreu-me que talvez quisesse punir-se pela sua incoerência sexual. Exibicionismo? Podia ser. Voyeurismo? Pelo modo como olhava para mim, também. Aproximou o corpo do meu, sentou-se de lado e pousou a cabeça no meu peito enquanto eu lhe acariciava suavemente o cabelo. Mas os meus gestos, mais do que sexuais, eram de consolação e maternais. Édouard uniu-se a nós quando já só o silêncio se fazia ouvir. A situação podia parecer embaraçosa mas, quando o sexual se desencadeia, o círculo vicioso arrasta-nos para o seu epicentro e apaga todo o tipo de preconceitos. A ânsia sexual aguenta tudo, inclusive a timidez mais doentia.

 

A Mimi beijou-me e logo a seguir pegou no braço de Édouard para o aproximar de mim enquanto ele, incompreensivelmente, se retraía. O que ele queria era ver-nos às duas. Atrevida, Mimi voltou a insistir, desta vez com maior agressividade, e o Édouard, num acto de heroísmo, começou a fazer amor comigo. Mimi tinha dado a entender, isso sim, que não consentia ter qualquer contacto com o Édouard. Nem por sombras. Estava disposta apenas a oferecer uma parte da sua nudez. Um pequeno fragmento. O resto, o essencial, entregava-mo a mim. Sentou-se em cima da minha cara, oferecendo-me o seu sexo sedoso. Mas tinha simpatizado com o Édouard porque não se importou nada de lhe dar a ver as curvas do seu corpo. Entretanto, ele empreendera a sua tarefa como um «missionário» tímido face à vergonha que lhe provocava o estar com duas mulheres experientes. Mimi foi generosa com ele, explicava-lhe aquilo de que eu gostava e ele obedecia a todas as instruções. Deixava-me proceder sentindo o Édouard e olhando-a a ela. Mimi dominava com toda a segurança a situação e comandava-a com tanta elegância e firmeza que conseguiu que gozássemos como se estivéssemos hipnotizados.

 

- Nunca pensei que pudesses sentir-te tão solta com um homem ao lado. E muito menos tão generosa – desabafei.

 

- Tu não gostas de homens? - perguntou Mimi em jeito de resposta.

 

- Sim. Claro que sim!

 

- Pois, então... fi-lo por ti.

 

Ainda hoje me pergunto se se tratava de mais uma estratégia elaborada para ficar na dela ou se agiu assim por mim. Na verdade, não tinha importância. Aquele prazer a quatro mãos, voltá-lo-ia a sentir hoje, por mais calculado que fosse. Aquelas curvas orgásmicas voltaria a traçá-las... Mas os momentos privilegiados não se repetem. A Mimi aumentava em transgressão e eu, sem me dar conta, também. Que interesse tem a vida se não se romper com o estabelecido quando tudo é virtuosamente monótono? Reconheço que me fascina tudo quanto não consigo entender. E que naquela noite não me achava capaz de encontrar qualquer explicação para o sucedido.

 

- Que vais fazer dos dias de férias que ainda te restam? Queres vir amanhã buscar as tuas coisas?

 

Nem eu própria sabia o que queria.

 

- É melhor irmos descansar, Mimi. Amanhã falamos disto com mais calma, se quiseres. E os sapatos de salto alto deslizaram magicamente até à porta.

 

             A CONFISSÃO DE MIMI

 

A Mimi telefonou-me para casa do Édouard no dia que Yamal e eu tínhamos planeado para seguir o Pipo.

 

Ao telefone, Mimi parecia fora de si, mas sem aquele ímpeto da outra noite. Simplesmente, uma vez mais, misturara tranquilizantes com álcool e articulava com dificuldade as palavras. Disse que tinha uma coisa importante a dizer-me. Também se perguntava por que razão eu não lhe telefonara durante aqueles dois dias. Queria saber se fazia tenções de passar lá por casa a buscar as minhas coisas.

 

Édouard instalara-me num dos quartos de visitas. Tinha tentado meter-se na cama comigo mas apetecia-me tudo menos isso. Só tinha na cabeça a Mimi e o Pipo, de quem não tivera mais notícias.

 

Estranhamente, Mimi parecia disposta a confessar-me uma coisa. Talvez o Pipo tivesse telefonado quando eu não estava. Talvez a Mimi não lhe tivesse dito que eu estava fora e ainda menos que havíamos discutido. Se havia uma coisa que a caracterizava era a discrição.

 

Esperei até ao final da tarde para encontrá-la. Assim não tinha que ficar demasiado tempo a sós com ela; o bastante para pegar nas minhas coisas, meter-me num táxi rumo ao apartamento do Édouard e, depois, acorrer ao encontro com Yamal.

 

Posteriormente, pensava passar mais três dias em Paris para tentar recuperar a inscrição das aulas de japonês a que não assistira e visitar de dia uma cidade que apenas conhecia na sombra.

 

Pedi ao taxista que me esperasse. Ainda tinha as chaves, de maneira que não toquei à campainha e subi directamente. A casa estava silenciosa. Dirigi-me ao quarto e fui dar com a Mimi adormecida, de costas, com as pernas encolhidas em posição fetal. O corpo dela adivinhava-se sob os lençóis brancos que caíam suavemente, como um gesso delicado que procura a forma como molde. Um ombro nu despontava e pensei que era a coisa mais sexy que alguma vez tinha visto. Era somente um ombro, mas estava nele toda a sensualidade: numa pele brilhante e lisa com o osso proeminente da omoplata. Ainda tinha a capacidade de estremecer, mas para não me afundar de novo nas areias movediças da pele dela, resisti. Cheguei mesmo a pensar que a Mimi tivesse encenado tudo aquilo para que eu voltasse a cair rendida a seus pés.

 

Sem mudar de posição, abriu os olhos como se tivesse farejado a minha presença. Eu havia provocado uma variação atmosférica no quarto como uma corrente de ar.

 

- Pensei que não fosses aparecer - disse com um sorriso cândido.

 

- Não posso demorar-me. Tenho um encontro - expliquei, fingindo frieza, apesar do nó que se me formara na garganta.

 

- Com o Pipo?

 

- Não, com ele não.

 

- Melhor. - Desviou os olhos.

 

- Já sei que não podes com ele. De qualquer forma, há dias que o não vejo. Desapareceu literalmente do mapa.

 

- É normal.

 

- Porquê normal?

 

Parecia saber qualquer coisa a esse respeito. ”

 

- Telefonou para cá enquanto eu estava em casa do Édouard?

 

-Não.

 

Mais uma vez parecia não querer dar informações. Mas, desta vez, eu estava enganada.

 

- Não telefonou. Vi-o, pura e simplesmente.

 

- Ah, sim? Quando? Veio cá a casa? Andava à minha procura?

 

- Vi-o todas as noites, Vai. Desde que voltou a trabalhar. Não queria acreditar no que ouvia. A Mimi voltava a ser cruel comigo usando desta vez o meu ponto fraco.      

 

- Como? Não sejas má comigo. Não pensava que fosses tão rancorosa, Mimi.

 

- Desta vez estou a dizer-te a verdade! Vi-o todas as noites desde que voltou a trabalhar. Vem buscar-me à praça da Concórdia. Paga-me e leva-me para casa dele mas não fazemos nada. Tu sabes que eu não gosto de homens e dele ainda menos do que dos outros. Desde o primeiro momento. Mas começo a pensar que é verdade o que se costuma dizer: «deseja-se sempre mais o que não se pode ter». Está literalmente gamado em mim.

 

- Não é verdade, Mimi. Estás outra vez a mentir, como sempre, desde a noite em que te apanhámos.

 

- Estou a dizer-te que é verdade, Vai. Acredita! Abre os olhos. Desde que me descobriram a trabalhar ali, vem todas as noites ter comigo. ;

 

- E por que não mo disseste antes?

 

- Para não te magoar.

 

- E ele não tinha medo que mo dissesses?

 

- Acho que sabe o tipo de amizade existente entre nós. Sabia perfeitamente que não ia denunciá-lo. Não por ele, mas por ti, Vai.

 

- Mas ele continuou sempre a perguntar se tu já tinhas confessado o que fazias. Insistia e continuava a insistir...

 

- A melhor maneira de esconder uma coisa é falar dela, Vai. Revi mentalmente todos os momentos que havia partilhado com o Pipo. Sei que não lhe era indiferente. Que quando tínhamos estado naqueles locais, o olhar dele não mentia. Por que me havia levado com ele? Peguei nas minhas coisas ao mesmo tempo que Mimi parecia ficar desolada pelo que acabara de me confessar.

 

- Ele disse-me uma vez que lhe agradavas, Mimi. Devia ter imaginado. Não te preocupes comigo. Preciso apenas de ficar só e de reflectir. Talvez fale com ele. Mas não tenho nenhuma raiva contra ti. Gosto muito de ti, simplesmente.

 

Quando acabei de arrumar a minha mala, pedi-lhe para fazer uma chamada. Queria desmarcar o encontro com o Yamal. Já não precisava de executar nenhum plano. Agora sabia o que precisava saber.

 

- Yamal? A combinação fica sem efeito.

 

Yamal disse-me que se era verdade tinha de ficar com o dinheiro que eu lhe adiantara. Pelo incómodo.

 

- Sim, sim. Não te preocupes. Ouve?

 

Fez-se silêncio.

 

- Continuas a andar com a tua namorada? Não sou ciumenta, sabes?

 

Achava piada que uma mulher tentasse seduzi-lo e desatou a rir. Interroguei-me por que era eu capaz de ser tão empreendedora com o Yamal, e com o Pipo, em contrapartida, não. Por que conseguia ter tanta lata com uns e ser tão metida para dentro com outros?

 

Tinha de ver o Pipo uma última vez. Uma única vez, antes de partir.

 

         A CONFISSÃO DE PIPO

 

Sentei-me ao balcão do bar Chez Jojo. Pipo prometera que viria, se bem que um bocadinho mais tarde do que de costume. Mas eu ia esperar por ele, esperaria o tempo que fosse preciso.

 

Quando apareceu à entrada, franziu a cara violentamente, quase de maneira teatral. Sentia-me como se aquela noite fosse ser a noite da resolução de um crime, como nos livros do Simenon. De facto, era para isso que ali estava. Beijou-me na face, perguntou-me como estava e, sem que lhe tivesse pedido coisa alguma, pôs-se a contar-me mais um episódio com a Isabelle.

 

A bofetada tinha soado como um raio em cima de uma antena. Chegara sem aviso, e tinha sido mais dolorosa a sensação de surpresa do que a pancada em si.

 

- És minha, só minha! Não podes desaparecer à noite assim, porque sim. Percebeste? - gritou Pipo.

 

- Por que não? - perguntou Isabelle, agarrando o queixo com as mãos, num esgar de dor.

 

- Porque eu digo, percebeste?

 

Isabelle recostou-se no pequeno sofá da sala e pôs-se a chorar silenciosamente, cuspindo de vez em quando um fio de sangue que as gengivas doridas deixavam brotar como uma esponja demasiado porosa.

 

- Porra! Olha que o me obrigaste a fazer - censurou Pipo, muito irritado.

 

Começou a andar freneticamente de um lado para o outro por toda a casa, dando murros nas paredes. Isabelle tapava a cabeça com as almofadas, cheia de medo que ele lhe batesse mais. Pipo estava fora de si e ela queria desaparecer da superfície da Terra.

 

- Não há direito, não há direito, não há direito - repetia Pipo sem cessar.

 

Aproximara-se de Isabelle, que tremia como varas verdes, protegendo a cabeça com os braços.

 

- Estás a perceber? NÃO HÁ DIREITO QUE ME FAÇAS UMA COISA DESTAS!    

 

Pipo dirigiu-se à cozinha. Isabelle pôs-se de pé com dificuldade a fim de se estender na cama. Quando Pipo reapareceu com um saco cheio de cubos de gelo com a intenção de lho colocar na cara, ela explodiu em soluços.

 

- Juro-te que não volta a acontecer. Eu prometo - implorava Pipo, afastando a mão de Isabelle com suavidade para verificar o estado do rosto dela. - Mas, acima de tudo, tens de me prometer uma coisa.

 

- Promete-me que nunca mais voltas a sair à noite sem me prevenires.

 

- Por que nãããão! - gemeu Isabelle ao sentir o gelo na boca dorida.

 

Pipo empalidecera ao relatar aquele episódio. Eu, fiquei sem fala. Mas prosseguiu.

 

- Um dia a mão escapou-me da pior maneira,

 

- Que queres dizer? - perguntei, assustada.

 

- Um dia caiu e bateu com a nuca... Deram-me quatro anos.

 

Tinha os olhos lacrimejantes. Eu não fiz mais do que mergulhar os meus no whisky.

 

- Nunca me perdoei. Nunca. Desde então, sinto-me incapaz de voltar a ter uma relação com uma mulher. Por isso percorro Paris em busca de uma virilidade perdida. Talvez porque penso que me possa... que me possa ajudar. Não sei. Quando vi a tua amiga Mimi, tão parecida com ela, com a cabeleira negra e comprida, pensei que... talvez... talvez conseguisse arrumar o assunto.

 

Custava-lhe exprimir os sentimentos.

 

- Talvez eu te possa ajudar. Estás doente, Pipo.

 

- Sim, eu sei. Mas a minha doença é minha.

 

- Eu não queria nada de ti, Pipo. Mas, de certa forma, fizeste-me participar da tua vida... e do teu problema. - Movia os dedos em volta do copo para não denunciar a minha mão a tremer. - E, inevitavelmente, agora faço parte, ainda que em ínfima medida, dele... do teu problema. Por alguma razão recorreste a mim, não foi?

 

- Para mim, eras simplesmente um instrumento, Vai. Um martelo que, pensei, podia dar uma martelada a um cravo saído há já demasiado tempo. O acidente de automóvel, lembras-te?

 

- Como é que podia não me lembrar?! Fui ver-te ao hospital.

 

Não parecia estar a ouvir.

 

- O acidente de automóvel... foi uma tentativa para pôr termo à vida. E sabes uma coisa? Naquela madrugada, antes da ambulância chegar... pois... eu vi-a. Ela estava ali, a olhar para mim. E sorria-me. Sim, sim. Já sei que vais dizer que estou maluco!, mas asseguro-te que a vi. E a seguir apareceu a Mimi...

 

Um ligeiro sorriso sublinhou a frase e um trejeito de quem diz «lamento» ficou-lhe gravado no rosto.

 

- Apareceu a Mimi... e a partir de então só queria estar com ela. Pensei que tanta coincidência não podia ser... logo a seguir ao acidente... estás a perceber? Tinha de ser algum sinal, não vês?

 

O horizonte tingiu-se de cinza, através das janelas do bar, assinalando o fim do dia e o princípio de uma longa e tumultuosa noite. De mais uma noite mas não de uma noite qualquer.

 

Todas as noites, Pipo esperava, ardentemente, Isabelle, com as suas meias brilhantes e os saltos altíssimos, a malinha acetinada Gucci na mão e a sua eterna mudez. Via-a todas as noites na praça da Concórdia, sorrindo aos condutores que abrandavam, sem conseguir suportar que ela fosse com outro.

 

Abandonei o bar com uma enorme tristeza, com um peso infinito no corpo. A partir daquelas férias parisienses todas as pequenas infâmias suportadas durante o dia se viriam a converter em grandes agonias durante a noite.

 

Pedi-lhe que me deixasse à entrada da estação de Austerlitz e que entregasse uma carta a Mimi. Nela lhe dizia que gostava dela mas, principalmente, contava-lhe o que descobrira sobre o passado de Pipo.

 

Havia três pessoas no meu compartimento.

 

Marie, divorciada, dois filhos, enojada logo no dia seguinte ao casamento com as infidelidades do marido. Apesar disso, parecia confiar ainda no amor e lia uma Antologia do Prazer. Sentada com as costas muito direitas e levantando-se aos solavancos, de vez em quando endireitava a saia de pregas escocesa e antiquada. Tinha ar de professora de Filosofia. Os olhos cansados denunciavam o drama da ruptura recente e espelhavam ainda o adeus traumático aos filhos que haviam permanecido a cargo da mãe para que ela pudesse ir de férias até Espanha para esquecer.

 

Brigitte, francesa, casada com um espanhol, dona de casa e com família em Paris, regressava ao lar conjugal. Folheava as páginas de uma revista feminina, interessada na rubrica de maquilhagem especial de Verão. Um rímel ligeiramente azulado impregnava-lhe as pestanas. Usava uns jeans muito justos Moschino, de corte sóbrio, com a marca bem à vista. Dois anéis de ouro branco apertavam-lhe os dedos gorduchos. E pouco mais.

 

Sylvie, estudante do último ano de Medicina, farta de tantas autópsias - presença obrigatória -, consultava um guia de Barcelona, enquanto chupava a ponta da esferográfica dobrando sem piedade as páginas interessantes do livro colorido.

 

A roupa de Sylvie cheirava a formol. Um cadáver, para um futuro médico, deve ser coisa normal. É realmente possível ver a morte de forma tão familiar que esta já não nos surpreenda?

 

Levantei-me e saí do compartimento a fim de fumar um cigarro. Uma solidão insustentável apoderara-se de mim e uma sensação claustrofóbica fez-me sentir uns minutos de ansiedade. Nem Marie, nem Brigitte, nem Sylvie, com os lábios enegrecidos à Mortícia Adams, ergueram os olhos. Era invisível, como o havia sido tantas vezes durante o último mês. Pipo contagiara toda a gente.

 

Colei o nariz à janela húmida e suja. Estava fria. A paisagem pôs-se a desfilar a uma velocidade média mas suficiente para criar uma massa compacta moldada por cores escuras que esboçavam um quadro impressionista sem forma digna de nota. A vegetação de cimento dos subúrbios parisienses, e algumas fachadas de velhas fábricas atrás das estações com comboios de dois andares, imortalizaram-se na moldura da janela de um Talgo Paris-Barcelona às oito e quarenta e dois.

 

«Habibi», ouvi-me pronunciar, e pela primeira vez, soou-me bem. Procurei na memória o equivalente desta palavra em japonês mas não encontrei. A situação era sumamente cómica e desatei a rir como uma louca, enchendo a janela de saliva ao aspirar o agá. Fora para Paris para estudar japonês e voltava para casa com uma palavra árabe, uma só palavra, aprendida, essa sim, com grande esforço.

 

                                                                                Valérie Tasso  

 

                      

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