Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PARIS APAIXONADA / Eloisa James
PARIS APAIXONADA / Eloisa James

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Em dezembro de 2007, minha mãe morreu de câncer; duas semanas depois, fui diagnosticada com a mesma doença.
Sempre fui uma leitora obsessiva de livros de memórias, especialmente daqueles que falam de doenças graves. Se, por um lado, observar estupefata um acidente de carro faz com que a gente se sinta envergonhada, esmiuçar um livro de memórias sobre esclerose múltipla, por exemplo, dá a sensação de virtude – como se, ao ler sobre tragédias de outras pessoas, você estivesse adquirindo conhecimento sobre seu possível futuro. Como eu tinha lido pelo menos dez livros de memórias sobre câncer antes do meu diagnóstico, eu sabia o que aconteceria em seguida.
Imediatamente comecei a antever a epifania, quando eu seria tomada pela extraordinária beleza da vida. Eu veria alegria nos olhos de meus filhos (em vez de absoluta revolta), me absteria de cafeína e simplesmente seria, de preferência fazendo yoga de frente para o pôr do sol. Meu eu melhor e menos irritável afloraria, e eu não perderia mais tempo diante do computador e pararia de criticar meu marido.
Eu estava com câncer... mas a boa notícia é que eu aprenderia a viver o momento.
Talvez não.

 


 


Quando a atitude A-Vida-É-Preciosa não apareceu prontamente, deixei a ideia de fazer da alegria o meu modus vivendi para depois, enquanto tentava encontrar um médico. Minha mãe pediu ao seu cirurgião que pelo menos lhe desse tempo para terminar o livro romântico que estava escrevendo, e ele fez sua vontade. Editores estavam a toda hora com ela, na casa de repouso. Eu não conseguia relaxar enquanto estava tentando obsessivamente encontrar o especialista em câncer de mama poderia me dar o tempo que eu queria: cerca de quarenta anos mais. Quem sabe cinquenta.

Minha irmã, Bridget, que é objetiva e capaz de lidar com questões médicas desagradáveis, me auxiliou nessa busca pelo oncologista ideal. Primeiro, visitamos uma médica impetuosa na Madison Avenue, que havia decorado seu consultório com bonecas da Mulher Maravilha. Tomei isso como um sinal de uma juvenil (mas bem-vinda) alegria de viver, porém, Bridget considerou isso autovangloriação exagerada. Dra. Mulher Maravilha estava pronta para enormes batalhas que poderiam aparecer pela frente; seus olhos brilhavam com o fervor de uma genuína devota à medida que prescrevia a remoção de várias partes do meu corpo e radioterapia em várias partes das que ficassem. Ali mesmo em seu consultório, ela me prendeu em uma pequena maca e coletou sangue para uma análise genética. “Não se preocupe com seu seguro saúde. Depois que tomarem conhecimento do seu histórico familiar, vão pagar tudo.”

Quando eu soube que eu não tinha o gene BRAC1 , o qual marca a pessoa com um grande C vermelho de Câncer, eu não consegui voltar ao seu consultório. Para portadores de BRAC, a Dra. Mulher Maravilha oferecia uma estratégia “militar” de destruição de qualquer coisa que pudesse ser útil ao inimigo, e zelo para Lutar a Boa Luta. Eu comecei a dormir melhor uma vez que decidi que a fase inicial do meu caso era como herpes, outra doença sobre a qual li e esperava evitar: desagradável, mas raramente terminal.

Finalmente, Bridget e eu encontramos um oncologista calmo e comedido que recomendou radiação e tratamento hormonal, mas também observou o fato evidente: meu seio era o responsável pelo meu estado. Eu parei de pensar em herpes. Essa era uma parte do meu corpo sem a qual eu poderia viver. Rapidamente, eu retirei aquele seio.

Ao escapar da quimioterapia e da radiação, teria eu o direito de me considerar uma sobrevivente, especialmente quando meu seio recém-reconstruído tornara-se tão volumoso e redondo? Decidi que a resposta era não, explicando a minha falta de epifania e indisposição para assistir ao pôr-do-sol na postura do cachorro olhando pra baixo. Nenhum Laço Cor-de-rosa para mim. Obviamente, meu diagnóstico não era sério o bastante para mudar minha personalidade.

Sorte minha. Eu tinha uma silhueta melhor, mas a mesma psique de antes.

Então, sem que fosse uma decisão consciente, comecei a me desfazer de meus pertences. Comecei com meus livros. Desde os meus sete anos de idade, eu colecionava compulsivamente livros românticos, catalogando-os e mantendo os meus favoritos perto da porta no caso de incêndio. A minha caixa de As Crônicas de Nárnia ostentava um aviso enorme instruindo meus pais a não esquecê-la ao carregarem meu (presumivelmente inconsciente) corpo pela porta, pouco antes de o teto desabar.

A partir de então, entretanto, comecei a desapegadamente doar livros. Meu marido, Alessandro, enfrentou minha luta contra o câncer com maior desenvoltura do que lidou com suas consequências. Na mesma medida que me desfazia de meus pertences, eu praticava o proselitismo, mas sem efeito. Alessandro estava definitivamente desinteressado, como qualquer um poderia imaginar, pelas caixas cuidadosamente etiquetadas no nosso sótão contendo todos os exames que ele tinha dado desde 1988. Algumas vezes, eu ficava preocupada achando que o chão do sótão pudesse empenar por causa das toneladas de literatura italiana armazenadas sob seu beiral. O dia no qual ele descobriu que três de seus livros tinham sido guardados por engano em uma caixa etiquetada como Caridade não será esquecido tão cedo em nosso casamento. Foi como na nossa noite de lua-de-mel, quando ele acendeu uma fogueira ornamental em nosso quarto da pousada, e forçou os hóspedes a se retirarem por causa da fumaça. Aquela fogueira está marcada em minha memória, e aqueles três livros na dele.

Entretanto, eu não parei nos livros. Fiz a mesma coisa com minhas roupas, descartando pacotes fechados de meias pretas dos anos 1980, a camisola de seda que usei na minha ardente noite de núpcias, minissaias de tamanho 40. Eu dei nossos presentes de casamento. Meus trabalhos da época do Ensino Médio foram para a lixeira, junto com os ensaios universitários e até mesmo os desenhos das crianças, que eu um dia achei infinitamente cativantes.

Por anos tínhamos falado em viver em Manhattan, com a mesma nostalgia que minha mãe costumava dizer que teria sido bailarina, se ela não tivesse engravidado de mim. Alessandro tinha crescido em um apartamento no centro de Florença; ele ansiava por estar em ruas estreitas e ouvir o barulho de caminhões de reciclagem quebrando garrafas de vidro às quatro horas da manhã. Mas eu tinha crescido em uma fazenda, e quando nos mudamos para a Costa Leste, eu insisti para que morássemos no subúrbio, apesar do fato que eu daria aulas na cidade. Achava que a paternidade implicava na necessidade de um quintal, uma árvore, e o sacrifício dos deleites urbanos.

Assim, nos instalamos em uma charmosa casa em Nova Jersey, com um quintal, uma pereira ornamental, dois escritórios e quarenta estantes de livros. Mas agora, todos estes anos depois, deitada no sofá me recuperando da minha cirurgia, eu me dei conta de que não tinha amigos íntimos perto de mim que poderiam fazer uma visita e me trazer chá. As pessoas que eu amava eram nova-iorquinas que enfrentavam a ponte e o túnel para me trazer vouchers para passar dias em SPAs – na cidade.

Encontramos um corretor de imóveis.

Olhando para fora pela janela da sala de estar, naquela pereira ornamental, também descobri um profundo desejo de surpreender a mim mesma. Em vez de viver minha vida no momento presente, eu quis viver a vida de outra pessoa – especificamente, a vida de uma pessoa que morava em Paris. Ser professor tem inúmeros inconvenientes (tais como um salário irrisório), contudo, a falta de tempo livre não é um deles. Cada um de nós poderia tirar um ano sabático; precisaríamos apenas renovar nossos passaportes. Depois que Alessandro descobriu que havia uma escola italiana em Paris onde nossos filhos, bilíngues, poderiam estudar, dei as costas para a pereira e comprei novas cortinas para as janelas. Preenchi os espaços vazios das estantes de livros com vasos cor-de-rosa. A casa foi vendida em cinco dias, durante a pior crise do mercado imobiliário em décadas. Nossos carros foram os últimos bens dos quais nos desfizemos.

Luca e Anna, os mais jovens integrantes da nossa família, eram os menos empolgados, para dizer o mínimo, com a perspectiva de transferência para a França. Eles estavam particularmente incomodados com o fato que, entre todos nós, somente Alessandro falava francês. (Embora tivessem tido boas notas durante três anos de aulas de francês, eles estavam certos: não falavam a língua). Tentei animar minhas descrentes crianças dizendo que a inabilidade para entender nossos vizinhos faria com que sua experiência fosse mais fascinante. Intimidada com a insubordinação, eu disse que também tinha detestado meus pais quando tinha a idade deles; instigar medo e revolta na própria prole é um dever dos pais.

Amigos receberam beijos de despedida, promessas foram feitas de manter contato via Facebook, brinquedos foram empacotados. Grandes quantidades de roupas com logotipos estampados foram compradas, já que um amigo mais experiente nos garantiu que uma ostentação de marcas americanas iria garantir popularidade na escola Leonardo da Vinci.

Paris esperava: um ano inteiro sem dar aulas e sem as responsabilidades do departamento, somente a vida parisiense.

Em agosto nos mudamos para um apartamento na rue du Conservatoire, formada por duas longas quadras, célebre pela música que ecoa nela em tardes quentes, vinda das janelas abertas do conservatório. Nos encontramos no 9º arrondissement, em um bairro onde moram diversos grupos de imigrantes, e estão o Folies Bergère2 e o maior número de restaurantes japoneses que eu já vi.

Fiz grandes planos para escrever quatro livros enquanto estivesse em Paris: um livro acadêmico sobre o teatro Jacobino de 1607, dois romances de ficção e um romance histórico. Mas, apesar desta enorme pretensão, eu me vi caminhando por horas. Li livros na cama enquanto a chuva batia nas janelas. Algumas vezes, eu passava duas semanas fazendo uma palavra cruzada do New York Times de domingo, me empenhando toda noite para desvendar uma pista que Will Shortz3 provavelmente levou dois segundos para resolver.

Logo, descobri um fato interessante: se um escritor não fica diante do computador durante horas todos os dias, nenhum texto é produzido. Eu sempre havia suspeitado que isso fosse verdade, mas tendo sido criada em uma família de escritores (e uma família que não tinha um aparelho de televisão), nunca tive chance de testar isso. Mesmo durante um período inglório, não acadêmico, após a faculdade, eu voltava para casa depois do trabalho e me empenhava em um romance. Lembre-se, minha mãe revisou a edição de seu livro da cama de hospital . Ócio não parecia fazer parte do meu DNA.

Ainda assim, praticamente a única escrita que eu produzi foi no Facebook, onde criei uma espécie de crônica online, espelhando-o na forma ainda mais concisa do Twitter. A cada dia que passava, meus thumbnails diminuíam na minha página do Facebook, ficando relegados a posts antigos. Meus tweets evaporavam, tão efêmeros e triviais, tão agradáveis e despreocupados, como nossos dias em Paris.

Uma coletânea destes posts – organizados, revisados, alguns elaborados em forma de pequenos ensaios – transformou-se neste livro. Na maior parte, eu mantive o formato reduzido, a pequena explosão da experiência, como a melhor forma de oferecer o sabor dos meus dias.

Aqueles dias não foram organizados com base em afazeres e em prazos de produção de livro, mas em torno de caminhadas no parque e visitas ao peixeiro. Os prazos vieram e passaram sem causar uma catástrofe na minha carreira de autora; eu relaxei em uma vida livre de alunos e de trabalhos em comitês; preguiça deixou de ser uma palavra assustadora.

Eu nunca aprendi como viver o momento, mas aprendi que momentos podem ser desperdiçados e o mundo continuará a girar em seu eixo.

Esta foi uma lição incrível.

1 N.T. A mutação do gene BRAC tem sido associado ao câncer de mama.

2 N.T. Folies Bergère é uma casa de apresentação de músicos, que teve seu auge entre os anos de 1890 e 1920, e que ainda hoje é palco de espetáculos.

3 N.T. Will Shortz é editor de palavras cruzadas do The New York Times.


Outono parisiense

Passamos o verão na Itália, então alugamos um carro e fomos para Paris. Eu imaginei este percurso como um “bom momento”, um início fascinante de um ano de liberdade criativa. Mas o que aconteceu foi que as crianças transformaram a viagem na chance de colocar em dia os programas que perderam na televisão, agora amplamente disponível, graças à internet. “Prestem atenção, crianças”, eu gritei do assento da frente. “Tem um maravilhoso castelo à direita!” A única resposta foi a risada exagerada inspirada por piadas de Family Guy sobre Ronald Reagan. Eles ainda não tinham nascido quando ele foi presidente.

ONTEM PASSAMOS A noite com amigos que têm um pomar de kiwi em Cigliano, no norte da Itália, um bosque escuro e nebuloso com árvores frutíferas, repletas de frutas, intercaladas por árvores infrutíferas. A casa da fazenda tinha ganchos sobre as camas para pendurar ervas secas e salsichas. Mostrando que não tinha qualquer respeito à tradição, Luca ficou apavorado com os “ganchos de carne” e implorou para dormir no carro. Nós conseguimos esconder dos nossos amigos sua crença de que a amada casa deles era na verdade uma casa mortuária.

* * *

De volta ao carro para a etapa final da nossa viagem para Paris, Anna passou horas colocando barulho de pum para tocar em seu iPod Touch. Tentei ignorar que a minha filha de dez anos estava agindo como se tivesse metade de sua idade, e fiquei olhando pela janela. A autoestrada francesa era delimitada por pequenos tubos verticais dos quais brotavam samambaias. As partes crespas davam a impressão de que os bonecos Troll da minha infância estavam escondidos nos tubos – talvez esperando uma chance para pedir carona, caso a família certa aparecesse.

* * *

Nosso apartamento parisiense é elegante como um casaco Chanel encontrado em um baú em um sótão: tem os arremates gastos pelo tempo, mas um design maravilhoso. A construção é dos anos 1750, e os assoalhos de madeira são todos originais. A cozinha e o banheiro ficam no fim de um longo corredor que dá para um canto do pátio do edifício – assim os cheiros (e os empregados) ficariam isolados.

* * *

Nossa guardienne, ao contrário do que esperávamos, não é francesa mas portuguesa, tem um rosto redondo e é sorridente. Alessandro desceu com ela e ficou por lá durante uma hora inteira; parece que eles discutiram preço de verduras todo o tempo. Ele contou que os donos das lojas na rue Cadet, a rua comercial duas quadras acima, são todos ladrões. Cientes disso, e seguindo obedientemente as instruções, partimos para um mercado coberto, Marché Saint-Quentin, onde as verduras são mais baratas e os vendedores são honestos. Encontramos uma variedade incrível de frutas, incluindo quatro variedades de uvas: pequenas, roxas escuras brilhantes, grandes e violetas, verdes com um adocicado selvagem, e verdes pequenas com sementes amargas.

* * *

Acabamos de passar três horas para abrir uma conta bancária. Pensei que nosso eloquente gerente não pararia de falar nunca mais. À medida que ele prosseguia, eu me sentia cada vez mais americana. Ele nos deu até um número de telefone para aconselhamento diététique. As mulheres francesas não deveriam ser universalmente conhecidas pela magreza se precisam de conselhos de dieta de seu banco.

* * *

Há um pequeno hotel do outro lado da rua do nosso edifício, e outro à nossa direita. Descendo, na metade da rua tem uma enorme igreja gótica chamada Saint-Eugène-Sainte-Cécile. Soube que Cecilia é a santa protetora da música; o conservatório fica na porta ao lado. Estar na igreja é como estar dentro de uma caixa de tesouro esmaltada na qual um artesão enlouquecido trabalhou como escravo por anos. Cada superfície – pilares, paredes, tetos – é coberta com ornamentos, a maioria em padrões diferentes. Ficamos lá boquiabertos até sermos expulsos, pois a missa estava acontecendo. Me senti um pouco humilhada por não entender sequer uma palavra, achando que a causa fosse o meu francês precário, mas, na verdade, a missa era inteiramente em latim. Como alternativa, iríamos tentar a igreja católica americana.

* * *

Em um forte ímpeto durante a preparação para o nono ano, Luca acabou de alisar seus adoráveis cachos italianos. Agora ele parece um adolescente francês de quinze anos, mas com um nariz italiano.

* * *

Hoje, participamos de um evento de patinação: milhares de parisienses estilosos deslizavam velozmente sobre uma ponte medieval enquanto o sol brilhava sobre o Sena. Até que eu trombei com um estranho e cai sentada. Um organizador da competição me disse muito educadamente com um forte sotaque que “isso é muito difficile”. Como eles dizem, era isso. Fomos descansar nas cadeiras de um café e, enquanto tomávamos Oranginas4, observávamos o movimento de Paris. Então, voltamos devagar, treinando nossas freadas.

* * *

Nesta manhã, vi uma francesa chique no metrô... usando uma boina. Como isto é possível? Eu pareceria extremamente “encantadora”, como um dos esquilos de Alvim e os Esquilos, cantando Cantando na Chuva.

* * *

Anna odeia Paris. Ela odeia a mudança, ter deixado seus amigos, a nova escola, ela odeia tudo. Eu sou a única mãe na França que arrasta pela rua uma criança com o nariz enfiado em um livro, para não correr o risco de ver nada que seja parisiense.

* * *

Nosso apartamento tem uma escadaria e vitrais que dão para o pátio interno – e um minúsculo e lento elevador construído nos anos 1960. Meu marido e eu só cabemos de lado e encolhendo nossas barrigas. Algumas vezes, as compras de supermercado também cabem. As crianças têm que subir de escadas. Geralmente quando chego lá em cima, encontro Anna deitada em um dos últimos degraus, ofegante, com uma mão estendida em direção à porta (fechada), fazendo uma ótima imitação de uma pessoa morrendo no deserto diante de uma miragem.

* * *

O açougueiro da rua começou a flertar comigo! Sinto como se estivesse em um filme. Ele também me deu um desconto de um euro nas salsichas que comprei. Na avaliação nada romântica de Alessandro, o açougueiro é um excelente comerciante. O que é verdade. Agora sou uma cliente para a vida toda.

* * *

Alessandro nasceu e cresceu em Florença, Itália, com uma paixão por aprender línguas (inglês e latim no colégio, francês, alemão, russo e grego antigo posteriormente). Quando o conheci, ele tinha um sotaque charmoso que abandonou depois de ter sido, como ele próprio diz, seduzido para a domesticidade. Atualmente, ele é professor de literatura italiana na Universidade de Rutgers, e foi condecorado pelo governo italiano por suas obscuras contribuições intelectuais para a República. De qualquer forma, Alessandro resolveu não desperdiçar a oportunidade de tornar o seu francês tão bom quanto o seu inglês, e para isso colocou um anúncio na internet oferecendo uma hora de conversação de francês em troca de uma hora de conversação de italiano. Ele está recebendo uma enxurrada de respostas, a maioria tratando o anúncio dele como a possibilidade de um encontro às escuras. A minha favorita foi a de Danielle (“mas alguns me chamam de Dasha; você escolhe”), que escreveu dizendo que tinha um ingresso extra para O Quebra-Nozes, e que eles se divertiriam muito falando francês, especialmente depois de beber muito champanhe.

* * *

Esta manhã, o restaurante tailandês no início da nossa rua explodiu, causando nuvens de fumaça branca e um cheiro terrível de borracha queimada. A guardienne veio até o quarto andar para nos dizer que achava que os proprietários estavam fazendo alguma coisa ilegal em seu porão.

* * *

A mulher que trabalha na mercearia italiana da nossa rua, no final das contas, é conterrânea de Alessandro. Descoberto este fato interessante, ela assumiu as suas compras, deixando de lado o azeite (inferior), substituindo a mozarela de búfala (por uma mais fresca do que a escolhida por ele) e cortando presunto de Parma em vez de San Daniele. Ocorreu-me que a florentina esperta extraiu alguns euros a mais da carteira de Alessandro alegando parentesco, mas sua cremosa e delicada mozarela vale cada centavo.

* * *

É noite, após um dia de chuva... as janelas estão abertas e notas de uma fabulosa ópera vindas do Conservatório espalham-se pela rua.

* * *

Como qualquer cidade grande, Paris tem moradores de rua. Mas eu nunca tinha visto antes uma mulher varrer cuidadosamente a soleira da porta onde ela, seu filho e seu marido dormem. Alguns parisienses desabrigados possuem pequenas tendas para duas pessoas, que em um simples giro se abrem; muitos têm gatos e cães bem cuidados em coleiras.

* * *

Mirabile dictu! Anna descobriu duas coisas de que gosta em Paris. A primeira é o chocolate, e a segunda é a loja do rateiro, onde tem quatro grandes ratos pendurados de cabeça para baixo em ratoeiras. Nós desviamos do nosso caminho para olhá-los estarrecidas, antes de fazer compras.

* * *

Típica cena francesa: dois meninos brincando na rua com baquetes fingindo não que elas eram espadas, como supus inicialmente, mas pênis gigantes.

* * *

Grande emoção! Acabamos de receber a visita de um limpa-chaminés desonesto, supostamente enviado pela companhia de seguros do senhorio. O homem começou a trabalhar, mas Alessandro decidiu checar informações sobre ele. Era tudo uma farsa para nos fazer pagar por uma limpeza desnecessária. O limpador de chaminés foi expulso com suas escovas, varas e tudo mais, com muitos franceses protestando e gritando, após a limpeza de duas chaminés. Pareceu muito dickensiano.

* * *

Anna acabou de me avisar sobre minha morte. Ela recriou a nossa família no jogo de computador “The Sims”, e eu morri depois de me recusar a parar de ler para me alimentar. “Da próxima vez”, disse ela, “vou fazer de você uma estrela do rock, então, você não vai se importar de sair de casa”.

* * *

No meu país, a carne vem envolta em plástico brilhante e devidamente lacrado; e a simples imagem me faz lembrar que a carne vermelha tem sido associada ao câncer. Aqui, cada carne parece mais fresca do que a outra. O açougueiro retira as últimas penas de um belo e gordo ganso ao colocá-lo na sua frente. Os primeiros pombos me lembraram de minha janela no escritório em Nova York; agora, eu vejo pequenas galinhas deliciosas. O pombo “bio” – quer dizer, totalmente natural – é particularmente tentador.

* * *

Uma plataforma de madeira está descendo silenciosamente próxima à janela do meu escritório, vinda do andar de cima e carregando uma mobília extraordinária: cadeiras incríveis, uma mesa de biblioteca, uma escrivaninha antiga. Este espetáculo é terrível para meu planejamento de escrita, já que de quinze em quinze minutos eu pulo da minha cadeira para cobiçar.

* * *

A escola italiana Leonardo da Vinci tem uma portaria discreta, mas é facilmente identificável pela aglomeração de mammas italianas em pé na calçada, reclamando da dificuldade de encontrar boa massa em Paris. Luca voltou para casa depois do seu primeiro dia de aula com uma expressão de choque. Esperam que ele curse “desenho arquitetônico” (seja lá o que isto for), tradução de latim para italiano, e um tipo de matemática que ele não sabe identificar muito bem. Achamos que deve ser geometria avançada.

* * *

A igreja Católica Americana de Paris, no final das contas, é na avenue Hoche, uma boa caminhada do nosso apartamento. A missa é como uma doce cápsula do tempo dos meus dias de acampamento de Bíblia Luterana nos anos 1970: muitos violões, mãos dadas, cantando “Só precisa de uma faísca para começar uma fogueira...”5

* * *

Entre seis e meia e sete horas da noite, quase todo mundo na rua carrega uma baguete comprida parcialmente embrulhada em um papel branco. De repente, o mundo fica repleto de pães com cascas crocantes.

* * *

Há algum tempo tínhamos um Chihuahua obeso chamado Milo, que viajava regularmente entre os Estados Unidos e a Itália, até um fatídico agosto quando a Air France o considerou gordo demais para voar em seu avião. Desde então, ele vive em Florença com a mãe de Alessandro, Marina, cuja cozinha deve ter tido um efeito ainda mais desastroso em sua silhueta. Hoje, Marina ligou para dizer que o estresse tem feito Milo ganhar mais alguns quilos (apesar de o veterinário ter antipaticamente sugerido que o ganho de peso foi o resultado de um excesso de prosciutto). A fonte de estresse de Milo é difícil de ser identificada; entre outras indulgências, ele literalmente dorme sobre uma almofada de veludo, como o gato de um imperador em um conto de fadas. Mas Marina alega que a mera presença de outros cães na rua (e, consequentemente, no mundo) é muito perturbadora para ele.

* * *

Na correria louca desta manhã, não comi nada para levar Anna para a escola a tempo. Voltando para casa, no metrô, tirei meu casaco – e somente então me dei conta de que ainda estava de pijama. Fiquei de pé no meio de passageiros bem vestidos por oito estações, morrendo de vergonha, sem espaço para colocar meu casaco de novo, fingindo não estar vestida com um pijama de flanela felpuda listrada de verde e amarelo.

* * *

Nos Estados Unidos, meus filhos frequentavam uma escola Quaker6, que era especializada em promover conversas amigáveis como forma de disciplina, mas aqui os instrutores gritam com as crianças e os fazem ficar de pé contra a parede. Pior do que isto, depois de apenas alguns dias de aula, Luca e Anna perceberam que eles estão atrasados em relação às suas respectivas séries. A família está toda com um desanimador sentimento de que escola antiga deles, tão amada, lhes ensinou a serem pessoas muito boas, mas talvez não tenha tido tanto sucesso na área acadêmica.

* * *

Onze horas da manhã de domingo: um quarteto de metais ocupou a esquina da nossa rua e tocou melodias de My Fair Lady. Todos nós fomos para a janela, e eles nos mandaram beijos e pediram que jogássemos dinheiro. As crianças deleitaram-se ao fazer exatamente o que lhes foi pedido.

* * *

Quando chegou da escola, Anna escancarou a porta do apartamento, : “Mamãe! Fui agredida hoje!” “O que aconteceu?”, perguntei. “Uma garota chamada Domitilla me deu um tapa!” Anna respondeu, com os olhos arregalados. “Ela disse que eu estava gritando em seu ouvido”. Escolhemos a antiga escola de Anna, em Nova Jersey, justamente preocupados com esse tipo de conflito: eles dedicavam grande parte do tempo para ensinar aos alunos a rejeitar a violência, estudando Mohandas Gandhi e Martin Luther King, e praticando soluções de conflitos. Esperançosamente, perguntei como Anna respondeu ao seu primeiro teste real de agressão no parquinho de diversão. “Bati nela de volta, na hora”, explicou minha filha. “Minha mão simplesmente reagiu sozinha.”

* * *

Entrei em um salão de beleza ontem e pedi que fizessem meus habituais reflexos vermelhos; o coiffeur retrucou abruptamente: “Não! Para você, dourado. Vermelho não é chique.” O bom é que nosso apartamento está equipado com lâmpadas de baixa potência e do tipo econômico, pois uma luz forte me transforma em uma calêndula.

* * *

Alessandro foi convidado a integrar o conselho da escola Leonardo da Vinci. Ele reclamou, lamentando-se de que estava em período sabático e não deveria trabalhar em nenhum comitê, mas, no final, acabou concordando em participar. Hoje houve uma reunião de boas-vindas, durante a qual a professora de italiano de Anna deu a entender que sua classe é muito indisciplinada, o que pode ser um desafio para ensiná-los. A mãe de uma aluna levantou-se e disse que sua filha – vamos chamá-la de Beatrice – queixou-se de que mandaram que ela ficasse calada. “Você não pode dizer para minha filha ficar em silêncio”, repreendeu a mãe de Beatrice. “Ela vai ficar traumatizada por a mandarem ficar calada. Eu a criei para falar livremente o que pensa”. Eu pensava que este tipo de obsessão em defender a liberdade de expressão na infância fosse uma característica americana. É bastante gratificante perceber que eu estava erroneamente difamando meu país.

* * *

Descobri pelo menos um segredo das mulheres francesas magras. Estávamos em um restaurante na noite passada, e havia uma família muito elegante sentada à mesa ao lado. O pão chegou, e uma adolescente magra estendeu a mão na direção dele. Sem perder a classe, maman pegou a cesta e guardou-a na estante ao lado da mesa. Eu comi mais do meu pão em solidariedade.

* * *

Alessandro chegou em casa vindo das compras e disse: “Eu ia lhe comprar flores por causa da discussão que tivemos ontem”. Olhei para suas mãos vazias. Ele encolheu os ombros. “Havia muitas opções”.

4 N.T. uma espécie de bebida cítrica gaseificada feita de laranja, limão, tangerina ou toranja, muito popular na Europa.

5 N.T. No original, “It only takes a spark to get a fire going...”, da canção cristã Pass it on, de Kurt Kaiser.

6 N.T. Quaker: membro da Sociedade Religiosa dos Amigos, uma seita cristã fundada pelo líder religioso inglês George Fox (1624-1691).


A Torre Eiffel

Em um dia de outubro, pegamos Anna e sua nova amiga Erica depois da escola e fomos caminhando até a Torre Eiffel. As meninas corriam na frente, zunindo pra lá e pra cá, se exibindo como pilotos de caça bêbados. Alessandro e eu tentamos imaginar por que os franceses planejaram demolir a torre após a Feira Mundial de 1889. É uma obra tão bela e robusta; destruí-la seria como pintar por cima da Mona Lisa por causa de seu longo nariz.

Pequenos bateaux mouches, ou barcos turísticos, estavam ancorados no Sena, perto da área de entrada da torre, ou pelo menos era o que dizia no meu guia. Nós passeamos sob o ferro rendilhado da torre, as meninas zanzando de um lado para outro, gritando como gaivotas. Ali embaixo, na entrada perto do Sena, compramos os ingressos mais baratos, que não davam direito a crepes e champanhe. Como tínhamos uma espera de vinte minutos, nos dirigimos para um carrossel antigo que fica junto ao rio. Uma mulher rechonchuda estava sentada encolhida em sua bilheteria, protegida dos turistas e da chuva, embora nenhum dos dois tivesse aparecido ainda.

Anna e Erica subiram no carrossel, mas o operador continuou aguardando, provavelmente na esperança de que as duas crianças atraíssem outras. As meninas sentavam-se ansiosas em seus cavalos pomposos, suas finas pernas um pouco compridas demais. Aos dez anos de idade, logo elas vão se achar crescidas demais para tais brincadeiras de crianças. Mas não ainda.

Finalmente, a música começou e os cavalos arrancaram. Um carrossel lotado em um dia ensolarado é uma mistura de sorrisos infantis e galopes. Mas quando as meninas desapareceram da nossa vista, deixando-nos assistir a cavalos sem cavaleiros subirem e descerem, percebi que um carrossel vazio, em um dia nublado, perde essa alegria frenética, a sensação de que cavalgam em direção a alguma jubilosa linha de chegada.

Esses cavalos poderiam ter feito parte dos objets trouvés descobertos entre a poeira e colocados em uso. O cavalo atrás de Anna não tinha a metade inferior da perna dianteira.

Seus pescoços foram arqueados como se fossem cavalos de batalha atravessando os Alpes em alguma cruzada militar, marcados pela luta e lúgubres. Cada pedaço lascado da tinta dourada arrancada pelos saltos dos sapatos de uma criança se destacava, bem definido e evidente.

Sem ter para onde ir, e sem nada melhor para fazer, o operador deixou as meninas darem voltas e mais voltas. Até que, finalmente, o ritmo da música foi diminuindo, as últimas poucas notas foram sumindo desarticuladamente no ar.

Cheguei à conclusão de que não há nada mais melancólico do que um carrossel francês em um dia chuvoso, e desejei ter pagado pelos crepes e champanhe.

* * *

No metrô, a caminho da escola, Anna desatou a fazer uma imitação debochada de sua furiosa professora de inglês batendo o pé: «Calém la bocá! Ssssentém-ssse! Pequenos cretinôs!” Todo o vagão do metrô estava rindo, embora Anna não percebesse de forma alguma sua cativa e cativada plateia.

* * *

Alessandro trouxe para casa um presente que fez muito sucesso, para compensar o episódio das flores que eu nunca recebi: um queijo em forma de coração, uma espécie de Camembert/Brie, tão cremoso quanto manteiga e bem mais delicioso. Nós comemos com pão crocante, uma simples salada de pimentões amarelos e kiwis de sobremesa.

* * *

Acabei de me deparar com uma lista que Luca fez em um pedaço de papel. Na parte superior da folha, ele escreveu (em letra cursiva) “Fim”. A lista é intitulada “Vários Problemas”:

– Não sei escrever em letra cursiva

– Não sei escrever em italiano

– Não acho que eu copiei a lição de casa de matemática corretamente

– Fui mal na prova escrita de italiano

– Tenho um trabalho de francês para segunda

– Preciso dos meus livros para amanhã

Eu me sinto terrível. O que fizemos, trazendo-o para cá? Eu tenho úlceras só de ler a lista.

* * *

Antes de partirmos para a França, minha irmã me contou que um parente da família da nossa mãe tinha publicado um livro de memórias sobre a vida em Paris. Eu nunca tinha ouvido falar de Claude C. Washburn, que era um dos irmãos da minha avó e morreu antes de eu nascer. Mas hoje chegou pelo correio Pages from the Book of Paris, publicado em 1910. Pelo que eu pude entender, Claude nasceu em Duluth, Minnesota, e se mudou para a Europa depois de obter seu diploma de graduação, tendo morado na França e na Itália. Em determinado momento, depois de mais ou menos um ano em Paris, casou-se com uma mulher com o incomum nome de Ivé. Não avancei muito no livro, mas até agora ele tem caracterizado o casamento como “uma instituição ignominiosa” e se vangloriado de sua “crescente exultação” em permanecer um solteiro convicto, evitando “os obstáculos matrimoniais, que cerceiam a evolução pessoal, em direção ao mar aberto de uma solteirice assumida”. Ivé deve ter sabotado o navio de Claude antes que ele pudesse afastar-se desses obstáculos.

* * *

O temporal começou enquanto estávamos jantando fora. Foi tão forte que uma névoa branca pairava sobre a calçada onde a chuva rebatia. Corremos até nossa casa, passando entre parisienses com guarda-chuvas e turistas desprevenidos usando jornais dobrados como chapéus, a água escorrendo pelos nossos pescoços, acompanhado de um grito de Anna por oito quarteirões.

* * *

Hoje fui ao meu açougueiro galanteador favorito e apontei para algumas salsichas. Ele enrolou dois metros dos embutidos e os colocou na balança, dizendo: “O homem casado com você precisa comer muita salsicha”. Um problema com o meu francês é que eu preciso de tempo para pensar antes de responder, então, acabei saindo de lá com salsichas demais e passei a hora seguinte tentando, sem sucesso, encontrar uma resposta desaforada em francês, que vou poder usar na minha próxima encarnação. Uma encarnação na qual serei poliglota, e nunca ficarei sem palavras.

* * *

Ontem, Anna teve que ficar contra a parede duas vezes durante uma de suas aulas. Perguntei-lhe o porquê e ela disse que não conseguia se lembrar, e que, de todo jeito, ela não era tão má quanto os meninos. Eu mal posso esperar pela reunião de pais e professores. “Ela é uma americana ruim” fica cruzando pela minha cabeça ao som da melodia de “She’s a very pretty girrrlll...”

* * *

Entre as muitas pontes de Paris, a minha favorita é a Pont Alexandre III, e a minha favorita de suas muitas estátuas não é uma daquelas cobertas de ouro, mas aquela de um menino sorrindo, segurando um tridente e montando um peixe. Apesar de ser apenas uma criança, ela é maior do que eu, seus enormes dedos dos pés suspensos em volta do peixe enquanto se contorce no ar. Mas ele é um menino ainda, com um sorriso inocente, flagrado em um momento em que é suficientemente grande para montar a parte de trás de um peixe, mas ainda não está familiarizado com as dores e os enganos do mundo. No extremo da Pont Alexandre III, no lado oposto ao menino do mar, está a sua irmã gêmea. Ela parece ter acabado de sair da água; segurando frondes de algas marinhas em uma mão, e uma grande concha contra sua orelha na outra. Seu rosto está compenetrado enquanto olha para longe, ouvindo atentamente. Imagino que ela está ouvindo o som caudaloso das ondas, o som de casa.

* * *

Cada Peter Pan tem seu Capitão Gancho, cada Harry Potter, seu Malfoy... A inimiga de Anna é Domitilla, a jovem que lhe deu um tapa no parquinho. Domitilla é uma italiana tagarela com propensão a monopolizar os holofotes (que Anna prefere reservar para si mesma). “Ela é diabólica”, Anna me disse muito a sério nesta manhã, no caminho para a escola.

* * *

“Gostaríamos de vinho branco”, diz Alessandro ao nosso vendedor de vinhos, Monsieur Juneau. “O que vocês vão comer?” M. Juneau pergunta. “Peixe”. “Que tipo de peixe?” “Halibute com hortelã e limão”, respondo. “E o acompanhamento?” “Batatas”. “Pequenas ou grandes?”, pergunta Monsieur. (quem diria que isso importava?) “Pequenas”. Nosso cardápio narrado em sua língua soava como a carte du jour de um restaurante com três estrelas no Guia Michelin. “O vinho para vocês”, diz ele, carinhosamente puxando uma garrafa. Em casa, o peixe é um desastre, mas o vinho, uma revelação.

* * *

Luca pegou uma virose, e declarou desconsoladamente esta manhã que havia apenas uma coisa no mundo que ele conseguiria comer: Froot Loops7. Busquei Anna na escola, e nós desviamos do caminho para ir até uma pequena loja chamada The Real McCoy, que atende expatriados americanos com saudades de casa. Na mosca! Nós compramos açúcar mascavo, marshmallows e Froot Loops. Luca comeu três tigelas .

* * *

Bailarinas lançam-se do conservatório para a nossa rua, ansiosas para fumar. Elas se aglomeram em torno dos degraus, ossos do quadril salientes. Hoje, duas delas estão resplandecentes em tutus cor de rosa, distraidamente alongando os músculos de suas coxas.

* * *

Esta tarde, trabalhei duro em O Beijo Encantado, a minha releitura de Cinderela. Minha heroína tem o peito achatado, coitadinha, e parte de sua transformação envolve um par de “amigos do peito” feitos de cera. Esses apetrechos são meticulosamente históricos, e muito divertidos escrever sobre. Eu dei a ela tantas desventuras que me senti muito feliz por ter realizado a cirurgia de reconstrução, assim, eu não tenho que andar por aí usando uma prótese de cera.

* * *

Hoje, Alessandro teve seu primeiro encontro com um francês do site de “troca de conversação”. Seu nome é Florent, e ele quer aprender italiano porque comprou um pedaço de terra em um pequeno vilarejo perto de Lucca, na Toscana, e planeja construir uma casa lá. Mas, sobretudo, porque ele está apaixonado por uma garçonete que conheceu no vilarejo. Aparentemente, ela é muito, muito tímida e reservada.

* * *

Fomos acordados esta manhã por uma camada de chuva torrencial desabando na rua com o tipo intensidade concentrada que me fez imaginar, sonolenta, que o nosso quarto pudesse estar atrás de uma cachoeira: uma caverna à meia luz e fria, e as nossas grandes janelas seriam uma vidraça de água em movimento.

* * *

Hoje Anna foi expulsa da aula de matemática e mandada para o corredor para “pensar sobre si mesma”. Perguntei o que ela pensou. Em vez de um autoreflexão, ela planejou uma nova família para o The Sims, mas admitiu que estava com medo que eu a matasse antes que ela conseguisse fazê-la.

* * *

Uma amiga preocupada acabou de me escrever da Inglaterra para me informar que a leitura de economia de seu filho incluía o fato de que 650 parisienses são hospitalizados todos os anos devido a acidentes relacionados a cocô de cachorro. Depois de morar aqui por quase dois meses, não me surpreendo com este dado. A boa notícia é que (ainda) não estamos entre os acidentados.

* * *

Eu estava voltando para casa ao anoitecer, e todos por quem eu passava estavam comendo uma baguete. A calçada estava como se centenas de crianças perdidas tivessem jogado migalhas para que pudessem encontrar o caminho de casa novamente.

* * *

A arquirrival de Anna, Domitilla, tinha acabado de voltar do funeral de sua avó, na Itália. Aparentemente, Domitilla olhou por cima do caixão e viu Jesus suspenso no ar. O comentário de Anna: “Eu fiquei bastante surpresa ao ouvir isso”. Mas outro colega, Vincenzo, entrou na conversa e disse que conhecia um rapaz sem pernas que foi à igreja e rezou, e depois de ver um homem de barba branca flutuando, levantou-se e andou. “Então isso foi melhor do que apenas ver Jesus”, apontou Anna.

* * *

Minha editora está na cidade a caminho da Feira do Livro de Frankfurt, e ela me levou para almoçar na Brasserie Lipp, onde Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre costumavam almoçar todos os dias. Eu tomei uma escura e deliciosa sopa de peixe e muito vinho; falamos de escrever sobre comida e da vida antes dos filhos.

* * *

As pessoas beijam o tempo todo aqui: romanticamente, melancolicamente, docemente, apaixonadamente, em saudação e em despedida. Eles se beijam nas margens do Sena, debaixo de pontes, nas esquinas das ruas, no metrô. Eu não tinha percebido que Anna tinha notado isso até ontem, quando sugeri que um caso de uma mãe solteira em sua sala de aula talvez pudesse ser explicado pelo divórcio. Anna não concordou. “Eles não se divorciam por aqui”, ela retrucou. “É porque eles se beijam muito.”

* * *

De manhã bem cedo, a única luz vem de padarias totalmente fechadas. As cadeiras estão de cabeça para baixo em cima das mesas, mas o cheiro de pão assando que se sente é um convite de boas-vindas.

7 N.T. Cereal Matinal da Kellogg’s.


Castigada pela Dior

Frequentei a Madison Public Elementary School usando apenas vestidos. Não importava o quanto nevasse, eu e minha irmã tirávamos as nossas calças para neve no corredor da escola, deixando meias de lã à mostra. Aos olhos de nossa mãe, éramos senhoritas, e senhoritas usavam vestidos, junto com luvas brancas para ir à igreja, chapéus na Páscoa, e longas camisolas de flanela para dormir.

Ela geralmente fazia esses vestidos a partir dos moldes da Simplicity8, cujos pacotes tinham ilustrações de meninas esguias com pernas impressionantemente longas. Esses pacotes de moldes se espalhariam pela casa, mas a vistosa faixa xadrez no quadril que combinava com a roupa nunca parecia tão boa na versão da minha mãe. Quando eu completei dez anos, estava propensa a ataques exagerados de cobiça por uma roupa. Mesmo depois de todos esses anos, ainda me lembro de algumas peças de vestuário que eu desejava em 1974. Minha colega Rachel Larson, com certeza, se esqueceu do conjunto de casaco e a calça jeans que ela usou no primeiro dia de aula na quarta série.

Eu não esqueci.

Até ingressar no ensino fundamental, eu não estava autorizada a comprar o contrabando exótico – calças, especificamente, boca de sino de cotelê cor de ferrugem. Ocorreu-me outro dia, o que talvez não seja surpreendente, que eu estou perto dos cinquenta anos e ainda uso uma versão dessas calças boca de sino.

Quando estou dando aulas, uso uma versão feminina das roupas dos homens de negócios, até os sapatos de couro com cadarços. No entanto, se não tenho que levar em conta um público, sacrifico a moda pelo conforto; colocando meus tamancos forrados de pele, minha calça de algodão, batas de seda com arremates de renda que ficam do lado de fora da gola de qualquer suéter larga que eu esteja vestindo. Adotei este estilo durante os meus vinte anos, quando uma provocante vislumbre de renda era, bem, provocante. Este estilo não é sentir sensual, tampouco remotamente na moda nos dias de hoje, mas eu sobrevivo com ele.

A maior parte das crianças da quarta série da Escola Leonardo da Vinci tem aulas de catecismo juntas, em uma igreja localizada na área comercial mais chique de Paris. Em um dia de setembro, deixei Anna em suas buscas espirituais e comecei as minhas próprias, perambulando pela avenue Montaigne, passando pelas vitrines de Dior, Fendi, Lacroix e Gaultier.

As vitrines da Dior eram particularmente fascinantes. Na verdade, eu voltei, refazendo meus passos para olhar mais uma vez para um vestido de seda roxo, com uma saia plissada evasê e amplos bordados da mesma cor em torno do pescoço. A manequim ganhou vida na minha imaginação. Eu podia imaginar uma mulher linda e elegante entrando em uma sala de estar, apesar de ela, então, ter olhado com ar de reprovação para meus sapatos surrados e o punho encardido da minha camisa branca.

Olhando para baixo, descobri que eu estava usando uma das inúmeras suéteres pretas de Alessandro, tão volumosa que eu tinha na frente uma protuberância de gravidez. Às pressas, abotoei o meu casaco. Meus sapatos eram masculinos, confortáveis para longas caminhadas. Eu estava usando uma calça boca de sino de algodão, e não tinha certeza de ter colocado alguma maquiagem.

No caminho de volta para a igreja, percebi que as ruas estavam cheias de mulheres parisienses na faixa dos quarenta e cinquenta anos que considerariam tanto deixar bordados de renda à mostra debaixo de suéteres masculinas, quanto alugar uma cópia de Flashdance. Elas passaram rapidamente por mim com suas botas pretas de salto alto, lenços amarrados com muito requinte, casacos ajustados modelando seus corpos.

De imediato, toda a cobiça frustrada que eu senti pelo conjunto maravilhoso de Rachel Larson me invadiu novamente. A elegância da manequim da Dior, sua indiferença natural, o contorno de seu queixo de plástico e a flexão do seu pulso de plástico, fazia sua alta-costura parecer tão tentadoramente indisponível.

Passei grande parte de outubro andando à toa pela avenue Montaigne, durante a hora semanal de educação religiosa de Anna, contemplando manequins vestidas em sedas de grife, mas planejei uma resolução de Ano Novo: eu quero saber o que significa elegância aos cinquenta anos de idade, um marco que vai chegar daqui a poucos anos.

Eu me recuso a chegar a minha segunda metade de século ainda usando meus sapatos peludos e suéteres de Alessandro. Eu pretendo saber exatamente o que essas francesas compram e, talvez tão importante quanto isso, como elas conseguem parecer tão imperiosamente elegantes depois de atingir “un certain âge” . É realmente uma pena que minha mãe não esteja mais viva.

Eu finalmente decidi me vestir como uma dama.

* * *

Ontem Anna contou que ela e sua babá viram uma “multidão enfurecida invadir a rua”. Eu fiz uma observação mental de que Alessandro deveria cortar as leituras noturnas de Dickens, mas depois li sobre a greve: aparentemente, para protestar contra os preços dos grãos, os agricultores jogaram fardos de feno na Champs-Élysées, e atearam fogo neles. Isto sugere um certo nível de insatisfação.

* * *

Ando pelas ruas e gosto de escutar o falatório indomável em francês com o mesmo nível de compreensão que alguém tem ao ouvir uma fileira de pardais empoleirados em um cabo telefônico. Essas pessoas estão realmente conversando, ou estão apenas cantando umas para as outras? Elas parecem elegantes e sofisticadas demais para proferir as asneiras que as pessoas dizem umas às outras em Nova York.

* * *

Frangos franceses vêm com a cabeça e os pés... meu açougueiro embala a ave como um bebê, em seguida sacode sua cabeça na direção de Anna, transformando a ave em uma versão cacarejante de “Tubarão”.

* * *

Paris está aumentando minha cintura, e, por isso, decidi que eu tenho que correr. Para ter certeza de que estava devidamente equipada para este evento, levei algumas semanas para adquirir um iPod, um par de tênis, um chapéu e um blusão de moletom. Esta manhã, sem desculpas, eu me forcei a sair para o ar fresco de outono enquanto Leonard Cohen cantava sobre despedidas nos meus fones de ouvido. Sete minutos inteiros de virtude! Minhas ambições não são enormes.

* * *

Hoje, Alessandro encontrou por acaso a professora de desenho arquitetônico de Luca e perguntou como estavam indo as aulas. Nada bem. Aparentemente, Luca não havia entregado nenhuma lição de casa desde que o semestre começou. “Ele é um garoto tão bom”, disse ela a Alessandro. “Eu sei que ele vê as outras crianças entregando a lição de casa delas, mas ele nunca entrega o dele”. Esta noite, Luca disse, com bastante sensatez, que já que ele não tinha ideia de como fazer um desenho arquitetônico, não tentava. Ele não foi tão bem sucedido ao explicar por que não havia mencionado esse fato notável para a gente.

* * *

Na noite passada, eu perguntei a Alessandro se alguma vez ele já deitou na cama e pensou sobre chocolate ? digamos, sobre a sensação de chocolate amargo em sua boca, ou como é diferente quando acrescido de casca de laranja. Ele disse que não. Então, ele disse que só pensa em comida na cama quando acorda no meio da noite e quer comer bife. Em algum ponto nessa divergência reside uma verdade profunda sobre a diferença entre os sexos.

* * *

Hoje, ao encontrar Anna depois da escola, ela informou que tinha tido um “ótimo dia”. “Uau”, comentei, “o que aconteceu?” “Eu não fui repreendida”, disse ela, orgulhosa. E em seguida: “Bem, talvez em uma aula”. Ela é magra como uma vara, com cabelos loiros esvoaçantes e uma única covinha. Ela não se parece com alguém que tem intimidade com gabinetes de diretores em dois continentes.

* * *

Andei através do crepúsculo para a Galeries Lafayette, certamente uma das lojas de departamento mais glamorosas do mundo. Muito acima dos balcões de cosméticos no piso principal, o térreo, uma cúpula de vitrais do teto brilha como um enorme caleidoscópio. Em vez de um balcão, a empresa de produtos dermatológicos La Mer tem um aquário sinuoso de quase três metros de comprimento. A Dolce & Gabbana tem seu próprio salão de beleza, com lustres feitos de vidro preto soprado em formas elegantes e um pouco sinistras.

* * *

Quelle horreur! A guardienne veio fazer a limpeza e notou que a nossa vidraria estava manchada, o que vinha me irritando. A caixa de detergente em pó estávamos usando? Sal! Parecia detergente em pó, estava debaixo da pia e eu nunca me preocupei em decifrar o rótulo. Há dois meses estamos usando somente sal na máquina de lavar louça.

* * *

Na noite passada, caminhamos até nosso restaurante Thai “gastronomique” local, o que significa que ele é um pouco mais chique do que a média e serve coquetéis de manga. Um homem e seu filho entraram, seguidos por um golden retriever, muito velho e manco. O cão decidiu deitar-se com as pernas esticadas, no meio do corredor, que atravessava o restaurante – em uma noite de sexta-feira. O garçom e todos os clientes pacientemente desviavam dele por cima e pelo lado, mais uma vez e outra e de novo... Bravo, França!

* * *

Está chovendo. Nosso vizinho sem teto não se moveu de onde se senta na calçada, ao lado da estação do Metrô, mas ele abriu um grande guarda-chuva sobre si mesmo, um menor sobre o seu cão, e um terceiro sobre os seus pertences. Os guarda-chuvas se assemelham a cogumelos selvagens coloridos brotando do chão. Do fim da rua, eles parecem florescer rasteiros e coloridos, em contraste com os edifícios cinzentos.

* * *

Alessandro e Luca sentaram-se à mesa da sala de jantar depois da escola, e pelejaram com a lição de casa de desenho arquitetônico de Luca. Depois do que pareceu ser um grande esforço, eles ostentavam um projeto com aspecto complicado, repleto de círculos e setas e linhas em todas as direções. “Como é que vocês fizeram isso?”, perguntei. “Copiamos quase tudo do livro”, Alessandro admitiu. Eu pratiquei a virtude matrimonial e não disse nada sobre a visão dos professores sobre plágio.

* * *

Uma das amigas de Alessandro na faculdade, Donatella, tem ligação com o Instituto Italiano de Cultura daqui. É seu aniversário, por isso vamos jantar no Ladurée, um restaurante no Champs-Élysées, fundado na década de 1800. Eles são famosos por sua pâtisserie, responsável pelos macarons em tons pastéis para o filme de Sofia Coppola, Marie Antoinette. Estamos planejando nos vestir com elegância e beber muito champanhe.

* * *

Anna, olhando para a minha página no Facebook: “Você pode mudar esta foto?” “Sim”, respondo. “Então por que você não me coloca aí?” “Você? Por que eu iria colocá-la aí?” “Porque eu sou a sua miniatura. Eu só preciso de óculos e ninguém saberá”. A verdade: ela acabou de fazer onze anos, é loira, e pesa menos de dois quilos. Eu tenho quarenta e sete anos, sou ruiva, e peso consideravelmente mais.

* * *

No Ladurée, comi um peixe com gengibre e erva-doce fabuloso. A única decepção, curiosamente, foi a sobremesa, escolhida em um menu de dez páginas. Lemos cada opção individualmente, e por fim escolhi um bolo de rum. Ele veio encharcado e foi servido em uma taça de plástico, de forma que tinha o aspecto de ter saído de uma máquina de venda automática embriagada. O champanhe rosé de fabricação própria da Ladurée ajudou de alguma forma a melhorar a situação.

* * *

Passamos por um grupo de adolescentes parisienses rindo ruidosamente na rua, e Alessandro comentou que nunca mais rimos assim. Nesses dias a felicidade está mais silenciosa, capturada, talvez, na risada de uma das crianças, ou na felicidade de ouvir uma música favorita quando realmente tenho tempo para tal.

* * *

As férias escolares chegaram, por isso, levei Anna e sua amiga Nicole para o Marais. Comemos um brunch no Des Gars dans la Cuisine, um pequeno restaurante chique na rue Vieille-du-Temple, com grandes janelas baixas que acomodam assentos acolchoados em tecido vermelho. As meninas comeram hambúrgueres, incrementados com um toque de nouvelle cuisine. Com muita gentileza, a garçonete trouxe para elas pequenos potes com purê de maçã. Lamentavelmente, assim que ela virou as costas, as meninas declararam com desdém que purê de maçã é coisa para bebês, então, tive que comer os dois potes para que a garçonete não se sentisse menosprezada.

* * *

Nossos filhos estão nos deixando malucos. Para fazer uma surpresa, hoje Alessandro chegou em casa com bilhetes de trem para Londres marcados para amanhã. Ao que parece, são apenas cerca de duas horas de Eurostar, através do túnel do Canal da Mancha.

* * *

A Eurostar, que opera entre Londres e Paris tem todo um processo de segurança; consequentemente, quase perdemos o trem. Nos atiramos em nossos lugares e, em seguida, passamos duas animadas horas enquanto as crianças brigavam por uma cópia de “Diário de um Banana”, apesar do fato de que ambos já o leram várias vezes. Em um momento infeliz, uma cotovelada causou um derramamento de chá quente que caiu nas calças de Alessandro, de tal jeito que a mancha dava a impressão de que ele precisava de fraldas geriátricas. Isto levou à descoberta de que ele tinha levado apenas um par de calças para os próximos três dias.

* * *

No final da tarde saímos para ir ao Big Ben. Mas era hora do rush no metrô, e, finalmente, escapamos da multidão. Ficamos perdidos em um grande parque, com um helicóptero pairando sobre nossas cabeças. Alessandro pensou ter reconhecido o Palácio de Buckingham, mas acabamos descobrindo que era a parte dos fundos de um prédio de apartamentos. Estávamos todos tirando sarro dele quando vimos um policial em uma motocicleta zunindo adiante, e depois outro. Alessandro começou a correr em direção à rua, gritando “A Rainha!”. Todos nós corremos atrás dele, rindo desesperadamente e gritando insultos. Mas ele estava certo! Sua Majestade Elizabeth II estava desfilando em um Rolls-Royce, ereta, um lenço fora de moda amarrado firmemente sob o queixo. Este foi um dos pontos altos de nossa viagem, ainda que as crianças só tenham ficado realmente impressionadas depois que um motorista de táxi nos confidenciou que em onze anos trabalhando de trabalho nunca a tinha visto antes,.

* * *

Tivemos um longo e turbulento almoço pontuado por disputas pelo único iPod Touch que estava funcionando, e, em seguida, fomos para a Harrods, onde compramos um pudim de Natal e passeamos pelas grifes de roupas femininas. Anna se apaixonou pelas peles. Puxei-a para longe, a impedindo de esfregar o rosto nos visons. “É tão macio”, disse ela, sonhadora. “Assim como o meu cabelo de manhã depois de lavar.”

* * *

A peça favorita de todos no Museu Victoria & Albert foi a Grande Cama de Ware, na qual, a princípio, dezoito pessoas podem dormir – a não ser americanos, decidimos, depois de muita discussão. Na loja de souvenirs, Luca comprou um chapéu felpudo com pequenos chifres de carneiro. Ele só quer saber de cabelo ultimamente. A vendedora disse: “Eu estava prestando atenção em vocês enquanto escolhiam... Ele tinha que ter este chapéu. É uma extensão dele.”

* * *

O melhor acontecimento de ontem: observar que as grandes caixas postais vermelhas do Royal Mail têm aberturas para dois tipos de correspondência, selada e franqueada. No passado, os nobres podiam simplesmente assinar cartas na área reservada para o selo, e elas eram enviadas de graça... Eu não acredito que este ainda seja o caso, mas foi muito emocionante ver essas aberturas.

* * *

O almoço no Gordon Ramsay’s Boxwood Café foi maravilhoso. Eu comi uma delicada torta de alho-poró e ervilha, e depois uma sublime choupa crocante, uma espécie de peixe da qual eu nunca tinha ouvido falar antes. Eu fiquei dividida entre “spotted dick”9 e “fool”10 para a sobremesa, menos por seu apelo intrínseco do que pelo de seus nomes. Alessandro rebaixou-se ao ponto de comentar que eu tinha o suficiente da primeira em casa, então me decidi pelo “fool”. (E virtuosamente me abstive da réplica óbvia.)11

* * *

A vida após o Gordon é triste. Fomos a um restaurante famoso no West End... mas nada estava à altura. Todos nós comemos pesarosamente, e Anna fez a sua própria música, cujo refrão era “Pinkberry, Blueberry, vomit12”.

* * *

Em homenagem aos meus personagens (que fizeram o mesmo), tomamos chá com bolinhos na Fortnum & Mason. Meu momento favorito foi no banheiro, onde Anna estava animadamente experimentando a loção. Uma senhora muito simpática nos explicou que “os elegantes vivem assim todos os dias... o tempo todo”.

* * *

Os britânicos são loucos por automóveis. Chegamos a essa conclusão depois de vermos duas demonstrações: a primeira, um desfile de motoqueiros tipo Hells Angels que roncavam e buzinavam protestando contra um imposto sobre o estacionamento. E, em seguida, cerca de uma hora mais tarde, um desfile de minicarros, que não protestavam contra nada, apenas curtiam o fato de serem pequenos.

* * *

Completamente exaustos por conta das atividades culturais e turísticas, nos recolhemos na livraria Waterstones. Passamos uma ou duas deliciosas horas lá. Sem discussões, sem gritos, sem choro, apenas rostos felizes inclinados sobre livros. Saímos de lá cambaleando com três sacolas de livros – e apenas um momento constrangedor, quando estávamos no caixa e verificou-se que a pilha de Anna incluía “My Dad’s in Prison” [“Meu pai está preso”]. Alessandro se opôs.

* * *

No Eurostar de volta para Paris, compilamos uma lista de comidas fabulosas: a torta de alho-poró delicada e sedutora da Gordon Ramsay para mim, e seu risoto de abóbora-cheirosa e sálvia para Anna. De um restaurante cujo nome não me lembro, uma pera escalfada em Armagnac13 e depois assada até tornar-se um delicado creme. Além disso, um pastel Cornish14, o único item nesta lista que eu acho que não consigo reproduzir.

* * *

Anna está obedientemente fazendo a lição de casa na sala ao lado ? assistindo “Les Aristochats”15. É tão engraçado ouvir os gatinhos ainda mais afrancesados, para não mencionar minha gansa favorita, Abigail, que foi transformada em Amélie.

* * *

Este apartamento veio com duas pequenas geladeiras, uma para alimentos e outra para bebidas. A de comida acabou de pifar. Eu posso enfiar uma couve-flor na segunda prateleira da geladeira de bebidas, mas isso faz a prateleira de cima entortar.

* * *

Hoje, o parceiro de conversação de Alessandro, Florent, disse que não entende as mulheres italianas, já que o objeto da afeição dele é tão reservado, que ele não tem ideia se está indo muito rápido. Se ela fosse uma mulher francesa, diz ele, que já teria tido um relacionamento completo, do primeiro beijo ao divórcio. Aparentemente, as mulheres francesas beijam primeiro e depois conversam; Alessandro disse a Florent que esse é o padrão de um homem italiano. No entanto, ele acha que Florent não entendeu o recado.

* * *

Eu me sinto mais alta a cada dia. Esta manhã, me amontoei em um trem na hora do rush para então descobrir um francês muito petit com a cabeça debaixo da minha axila. Eu tive que esticar o braço por cima dele para segurar a barra, e nós dois ficamos imóveis e constrangidos.

* * *

Eu preciso trabalhar para desenvolver uma nova personalidade, uma menos irritável. Embora eu suspeite de que quando as crianças crescerem e saírem de casa eu terei pelo menos uma cura parcial, hoje eu recorri ao abuso de substâncias. Eu fiz uma investida à La Grande Épicerie na rue de Sèvres e comprei três diferentes tipos de chocolate: oranges em robe de Zanzibar (cascas de laranjas retorcidas com uma deliciosa cobertura), Côte d’Or: citron gingembre (uma barra de chocolate escuro com gengibre e casca de limão) e Michel de Cluizel noir aux écorces d’orange (uma barra de chocolate escuro com pequenos pedaços de laranja).

Anna e eu fizemos uma degustação. O vencedor foi chocolat noir de Cluizel. É incrível: de sabor intenso e rico, que derrete suavemente na boca.

* * *

Atingimos mais um ponto baixo no quesito acadêmico: Anna trouxe para casa uma advertência de sua professora de italiano sobre seu mau comportamento. Ao invés de estar arrependida, ela estava exaltada com o fato de que um outro professor tinha batido em um aluno ainda mais indisciplinado com um livro. Somos uma família contra surras, um tanto para o desgosto de Alessandro (ele acha que a disciplina corporal de sua mãe o tornou uma pessoa melhor). A mais pura novidade de ver um adulto perder a paciência e responder de uma forma física fascinou Anna. Depois de assinar a advertência, como solicitado, eu tenho que admitir que fui tomada por uma onda de forte simpatia pelos professores que lidam com Anna, com Domitilla, e com o que soa como uma horda frenética de meninos de dez anos de idade.

* * *

Hoje corri o total de dez minutos, um novo recorde. Meu açougueiro galanteador estava descarregando caixas quando passei correndo, e ele piscou para mim, provavelmente, surpreso ao me ver usando Lycra. Ele tem costeletas longas, do tipo que você nunca vê nos Estados Unidos. Acenei para ele enquanto corria, e então penosamente me constrangi por conta da minha bunda.

* * *

Em uma galeria de arte: minúsculas, caixas-relicários ornamentadas, do tipo que guardam o osso do dedo de um santo. Mas estas contêm objets trouvés, as relíquias de santos dos quais nunca ouvimos falar ? o meu favorito é “Saint Protecteur” [“Santo Protetor”] (um preservativo em sua embalagem vistosa).

* * *

Hoje, Anna informou que o gerbo de Domitilla morreu, um evento que deveria naturalmente provocar uma centelha de compaixão em vez de gargalhadas... mas não. O gerbo caiu da sacada, e, em seguida, um vaso de flores caiu sobre ele, depois disso seu olho pulou para fora (um detalhe sangrento de particular interesse). Talvez Anna seja uma bióloga um dia. Ou uma agente funerária.

* * *

Minha janela da cozinha dá para o pátio interno do prédio, me dando uma visão do casal que mora dois andares abaixo. A mulher parece passar suas noites acariciando um pequeno cão, embora ela e seu marido possam ter uma vida ardente escondida daqueles que espreitam o pátio, espionando através suas janelas. Não se pode chamá-la exatamente de chique, mas ela é uma sessentona francesa, o que significa que seu cabelo está sempre perfeito e suas sobrancelhas são feitas com esmero.

* * *

Tivemos um jantar de família muito complicado na noite passada. Luca tem quase certeza de que ele está indo bem em suas aulas de língua e literatura inglesa (não há muito o que aplaudir aí), mas ele também está certo de que está indo mal em todos os outros cursos. Ele não compreende matemática em italiano e acredita que a matemática que eles estão aprendendo não existe nos Estados Unidos (o que nós contestamos). Ele era muito bom em tradução de inglês para latim antes de nos mudarmos para a França, mas do latim para o complicado pretérito em Italiano é outra história. As crianças que frequentam sua aula de francês têm mães francesas, o que explica por que eles estão lendo Voltaire, enquanto ele está no estágio de “As Aventuras do Capitão Cueca”. Decidimos procurar professores particulares. Para tudo. Talvez até mesmo para a criação dos nossos filhos.

* * *

Quando saio para caminhar, o céu está azul e longínquo. No momento em que deixo o mercado, nuvens de um cinza claro perolado parecem estar ao meu alcance. A calçada está salpicada de chuva, e o cachorro que pertence ao mendigo na nossa estação de metrô está totalmente escondido sob o cobertor, com apenas um pedaço de seu focinho preto aparecendo. Eu coloco um euro no copo, e espero que ele vá para a ração e não para conhaque.

* * *

Hoje, fiz biscoito de gengibre, apenas para descobrir em um ponto crucial que eu não tinha melaço. Usei um melaço de romã em vez disso, uma vez que é o único melaço que encontrei em Paris. Anna adorou, mas Luca torceu o nariz e disse: “Está faltando alguma coisa”. Talvez ele ganhe o concurso de paladar no “Hell’s Kitchen”16 algum dia.

* * *

“Sabe o gerbo da Domitilla, que foi esmagado?” Anna me perguntou, como cumprimento, depois da escola. “Bem, Domitilla simplesmente o jogou fora. Direto na lata de lixo. E você quer saber sobre o outro gerbo dela?” “Claro”, eu disse, mentindo. “Ela não podia jogá-lo fora porque ele se perdeu dentro de casa e morreu em algum lugar. Então, agora, ele vai cheirar mal. Ela realmente não é boa com animais de estimação.”

* * *

Meu escritório dá diretamente para os cinzentos telhados inclinados do outro lado da rue du Conservatoire. Eu adoro assistir a tempestade cair sobre a ardósia, criando rios escuros que descem torrencialmente pelas calhas. A gata que mora em frente, cuja dona a coloca na pequena sacada quando limpa o apartamento, não está tão entusiasmada com a chuva.

* * *

Apenas peguei sobras de sopa de couve-flor e batata, acrescentei ervilhas congeladas e um pouco de molho de coentro tailandês, joguei tudo no liquidificador, e saiu uma sopa fabulosa. Verde brilhante, para não dizer saudável, e as crianças tomaram até o fim.

* * *

Marina colocou Milo em uma dieta. Chihuahuas supostamente devem pesar cerca de três quilos, e Milo tem mais de doze. Ele se parece com uma geladeira da década de 1950: achatado, atarracado e arredondado nos cantos. Aparentemente, o veterinário sugeriu legumes, então, no jantar, Milo está comendo brócolis levemente cozido no vapor com apenas um toque de manteiga, e um pouco de ração dietética ensopada em um caldo de frango caseiro.

* * *

Anna explodiu com perguntas hoje no metrô: Você se lembra de quando seus peitos começaram a crescer? Quantos anos você tinha? Você tinha cinquenta anos? Os peitos continuam a crescer até que você morra? Eu não ousei olhar ao redor para ver quantos falantes de inglês poderiam estar no vagão com a gente.

* * *

Por volta das sete horas, a luz do outono torna-se clara e azulada, da cor do leite desnatado. Todos os garçons se encostam às portas de seus restaurantes, fumando, à espera de clientes.

8 N.T. Simplicity Pattern Co. Inc. é uma empresa mundial que projeta, produz, comercializa e distribui moldes para consumidores costurarem em casa.

9 N.T. É um pudim popular na Grã-Bretanha, feito a partir de sebo ou gordura de carneiro e cozido no vapor com frutas secas (geralmente groselhas ou passas), comumente servido com creme.

10 N.T. É uma sobremesa de origem inglesa, feita basicamente com purê de diversos tipos de frutas vermelhas e creme.

11 N.T. A tradução literal de dick é pênis, e de fool é bobo.

12 N.T. Pinkberry é uma cadeia americana de lojas de sobremesas geladas, com mais de 100 unidades franqueadas, majoritariamente na Califórnia e em Nova Iorque. Traduzido, o refrão cantado por Anna é: Pinkberry, mirtilo, vômito.

13 N.T. Uma aguardente francesa vínica de grande qualidade, semelhante ao conhaque.

14 N.T. Pastel tipicamente inglês assado com recheio de carne, batatas, cebola e nabo, cuja receita foi criada entre os séculos XVIII e XI, em Cornwall, um condado no sudoeste da Inglaterra.

15 N.T. Nos EUA, The Aristocats, no Brasil, Os Aristogatos: filme de animação da Walt Disney.

16 N.T. Um reality show de competição culinária da TV americana.


O hino do Robin

Em novembro, no período de uma semana, confundi imanente com iminente, primordial com equivalente e sabão com sopa. Referi-me ao meu amigo Philip como “Paris”, e coloquei um rolo de papel toalha na máquina de lavar louça, tendo o resgatado no último minuto.

No meio da noite, eu cheguei à dura conclusão de que o meu cérebro deve estar morrendo. Palavras são a minha moeda de troca, meu pão diário. No escuro, parecia óbvio que transformar o Philip em Paris significava que eu tinha desenvolvido uma metástase cerebral. Ou (graças a um artigo que li recentemente no The New York Times), doença de Huntington. De manhã, sucumbi ao canto de sereia do Google e digitei “Huntington”.

O site da Mayo Clinic é especializado em linguagem reconfortante; eu rapidamente concluí que a menos que e até que eu começasse a derrubar xícaras de chá, eu não corria o risco de ter este diagnóstico em particular. Então, enquanto eu estava relaxando, me deparei com esta encorajadora passagem: “A decisão de ser testado para o gene é pessoal. Para algumas pessoas, a incerteza de carregar o gene defeituoso é estressante e perturbadora. Para outras, ter o conhecimento de que irá desenvolver a doença é oneroso”.

Oneroso? Minha primeira reação foi bufar. Saber da minha morte, que espero que não seja iminente (nem imanente), é oneroso, e eu sequer tenho um gene para me dar qualquer aviso sobre este encontro. Mas, logo depois, me dei conta de que sou uma tola por questionar a definição da Mayo Clinic de um “gene defeituoso”. Assim como o restante da raça humana, eu herdei genes defeituosos, todos os quais estão programados para morrer. Tomar ciência disto é o que é complicado.

Quando eu era jovem, costumava deitar na cama decorando poesias. Nossa casa era banhada por poesia, e eu era a primogênita obediente. Memorizei a ode a uma serpente, de D.H. Lawrence, e amava o som de “arrastou devagar o ventre fulvo e mole.”17 Eu não compartilhava meus versos decorados com ninguém, principalmente não com meu pai poeta. Ele parecia ter mil poemas, talvez mais, arquivados em seu cérebro. Ele irrompia durante o jantar com um trecho de Rei Lear, seguido de duas quadras de Blake, e um verso em sueco. Minhas ambições eram secretas e modestas em comparação: eu queria alguns poucos poemas, apenas alguns. Eu queria ter a disponibilidade daquelas palavras em particular, saber que o rio Alph de Coleridge corria “Por grutas sem medida humana / E rumo a um mar sombrio” e que a floresta nevada de Frost oferecia um desafio para aqueles com “promessas que devem cumprir”.

Quando fui para a faculdade, parei de decorar poesia, acreditando que eu retomaria o hábito quando tivesse mais tempo. Mas, enquanto eu deitava no escuro pensando sobre como a sopa escorregou para sabão, me ocorreu que poderia não haver mundo nem tempo suficiente para decorar sequer o restante de um pequenino cânone. Minha avó foi diagnosticada com demência, e calou-se durante a última década de sua vida; meu pai, meu querido pai de mil poemas e mais, tomou gosto por observar as folhas caindo das árvores. Em vez de tecer estas folhas na forma de palavras, ele simplesmente as deixa cair. É um destino cruel: observar sem contar a queda da folha; lamentar sem criar nada novo; envelhecer sem o descrever.

Durante o último ano, enquanto assistia a ele digladiar-se com o tempo que lhe rouba as palavras, me ocorreu que eu deveria decorar mais poesia, como lastro contra minha provável herança daquela boa e silenciada noite. Aqui, em sua plenitude, está o poema com o qual retomei minha memorização: “Their Lonely Betters”, de W. H. Audren.

As I listened from a beach-chair in the shade

To all the noises that my garden made,

It seemed to me only proper that words

Should be withheld from vegetables and birds.

A robin with no Christian name ran through

The Robin-Anthem which was all it knew,

And rustling flowers for some third party waited

To say which pairs, if any, should get mated.

Not one of them was capable of lying,

There was not one which knew that it was dying

Or could have with a rhythm or a rhyme

Assumed responsibility for time.

Let them leave language to their lonely betters

Who count some days and long for certain letters;

We, too, make noises when we laugh or weep:

Words are for those with promises to keep.

* * *

No Métro, Anna apontou para uma minúscula joaninha laranja no vagão conosco. Nós observamos enquanto ela bravamente atravessou o teto de ponta cabeça e depois voou para a saliência acima da porta. Quando o metrô parou, derrubei ela nas minhas mãos e nós levamos a joaninha conosco um lance de escadas acima, através de um corredor, dois outros lances de escada menores acima... e, finalmente, para a manhã fresca, onde ela voou para dentro de um aglomerado de arbustos brilhantes.

* * *

Eu e Anna estamos, aos poucos, explorando as mercearias no quarteirão japonês de Paris. A minha favorita tem uma parede com diferentes molhos de soja, e uma seção no andar de cima repleta de alimentos misteriosos em embalagens exóticas. Nada é etiquetado em francês ou inglês, então, trazemos compras para casa e quebramos as nossas cabeças para descobrir o que são.

* * *

Alessandro e eu seguimos um par de pernas impecáveis hoje no metrô. Elas estavam envolvidas em meias de renda preta e sapatos vermelhos escuros. A dona das pernas vestia um casaco com cinco botões fechando a lapela preta, e luvas exatamente da mesma cor dos sapatos. Subimos a escada com certa urgência, e me virei para ver a frente do casaco, apenas para descobrir que a senhora em questão tinha pelo menos setenta anos. Ela era tanto digna quanto très chic. Velhice, à la parisienne!

* * *

Doze adolescentes da classe de Luca, o nono ano, faltaram a aula hoje porque estavam doentes; o vírus H1N1 atingiu com força o Ensino Médio Leonardo da Vinci. Por sorte, ambos meus filhos já haviam contraído o vírus nos Estados Unidos, em junho. Luca tem em seus olhos o mesmo brilho alegre que eu tinha enquanto ficava de pé em frente à janela observando os flocos de neve caírem sobre a área rural de Minnesota: será, será, será que vai nevar o suficiente para fechar a escola? O equivalente contemporâneo constitui-se de recarregar a página do Facebook a cada cinco minutos, perguntando aos amigos se estão se sentindo febris, e torcendo desesperadamente (desgraçadamente) que sim, para que a escola toda feche de uma vez.

* * *

Todos os prédios ao longo da rue du Conservatoire são construídos com mármore bege ou calcário. Quando eu saí hoje, o céu tinha um tom pálido e feroz, na iminência da chuva. Lá no topo da igreja e do conservatório, o contraste era praticamente imperceptível, como se mármore e ar dançassem de rosto colado.

* * *

Acabei de mandar Anna para a escola com um bilhete manchado, com erros ortográficos, escrito a sangue, suor e lágrimas para a sua professora, pedindo desculpas por ter ‘colado um pouquinho’ durante uma prova. Ela protestou veementemente, dizendo que a professora não se importaria, e que o que estávamos fazendo era como escrever uma carta para o Papai Noel pedindo desculpas por ter queimado a sua barba. Não consegui entender a lógica por trás da barba queimada, então insisti, dizendo, “Sua professora precisa assinar esta carta, Anna.”

* * *

Na noite passada, fomos a um restaurante com um garçom rabugento que nos serviu raia morna coberto com alcaparras salgadas. O cardápio continha uma seção de pratos à l’ancienne, de forma que escolhi um aperitivo singular: focinho de vaca. A iguaria foi servida em tiras embebidas em molho vinagrete. O sabor? Spam18! Eu conheço Spam porque meu pai esteve na 2a Guerra Mundial e ocasionalmente tinha ataques de nostalgia e comprava algumas latas. E agora eu também sei o que tem na receita do Spam também.

* * *

Em meio a um passeio em uma feira de antiguidades, nos deparamos com um pequenino café com vista para os jardins perto da Bastille e bebemos chocolat à l’ancienne – chocolate quente à moda antiga com chantilly e uma cereja embebidas. Havia amêndoas mescladas em alguma coisa ali... estava encantador. Enquanto estávamos sentados, saboreando os nossos chocolates quentes, a atmosfera transformou-se em l’heure bleue, a fresta de tempo entre a tarde e a noite, quando o céu fica lilás.

* * *

Dois dos objetos que vi na feira de antiguidades me tiraram o sono na noite passada, e tive que me lembrar diversas vezes que posses não trazem felicidade. O primeiro era um altamente improvável lustre veneziano de vidro soprado. Era decorado com miúdas frutas e flores de vidro, e provavelmente fabricado nos anos 1950, tendo tomado dois anos de vida de algum soprador de vidro desvairado. O segundo era um espelho da década de 1850, também italiano. Era emoldurado em nogueira negra, com elaborados arabescos entalhados e gravuras de cupidos alegres e encantadores.

* * *

Os franceses andam devagar. Eles passeiam pelas ruas, encontram amigos e demoram dois minutos trocando beijos, então ali ficam, conversando como se o dia tivesse sido criado para este momento. Meu marido e eu andamos como nova-iorquinos: rapidamente, desviando de obstáculos, observando vitrines, indo aos lugares. Levou alguns meses... mas agora eu penso: Onde estou indo que é tão urgente, enquanto todos os franceses discordam?

* * *

Migramos da charmosa porém superlotada igreja americana para Saint-Eugène-Sainte-Cécile bem na rue du Conservatoire. Descobrimos que eles têm missas em francês e em latim (não que isso faça diferença pra mim em termos de compreensão). O padre tem nove acólitos de diferentes idades; incenso e pequenos sinos que repicam e são balançados como fossem poções mágicas com garantia de aumentar a devoção.

* * *

Descobrimos ontem que nosso querido mercado coberto, sem mencionar a peixaria e o açougue locais, fecham às segundas-feiras, o que deixou a nossa despensa vazia. Para o almoço, comi um naco de um excelente Camembert, acompanhando batata cozida temperada com uma pitada de sal grosso, seguidos de um resto de torta de damasco. A vida é boa.

* * *

Florent, o colega de conversação de Alessandro, está indo para a Itália para uma visita, então, hoje eles praticaram expressões românticas. Florent vai tentar ir além dos comentários simpáticos. Em italiano, só se diz “Ti amo” no sentido romântico. Para qualquer outra pessoa – filhos, pais, amigos – se diz “Ti voglio bene”, que, traduzido a grosso modo, quer dizer “Te quero bem”. É muito romântico guardar “Eu te amo” apenas para assuntos do coração.

* * *

Quando chove na rue du Conservatoire, a água da chuva desce por canalizações subterrâneas que correm por debaixo da calçada. A água que escorre por estes canos transformam os ralos em pequenos chafarizes, ejetando água de chuva a alguns centímetros do chão. É como se mexilhões gigantes estivessem sinalizando que estão cavando mais fundo, embaixo das ruas do 9o arrondissement.

* * *

Ontem compramos algumas latas de ração canina para “o nosso” sem-teto, ou melhor, para o seu filhotinho de cachorro, que está crescendo bastante rápido e desenvolvendo as patas desajeitadas que prometem que ele será um cachorro de grande porte. Anna entregou a primeira lata a caminho da escola. O filhote agora nos conhece, e pula de sua caixa com um latido agudo assim que nos aproximamos. Ele é daqueles que gosta de lamber, e gosta de lamber rostos (é claro que Anna agacha-se até a altura dele), mas é muito doce, de qualquer forma.

* * *

BHV é uma loja de departamento enorme em Paris, com cinco andares com tudo desde luminárias até roupas íntimas para crianças ou batedores de ovos cor de rosa. Eu acabei de passar horas lá, terminando no departamento de materiais de arte, onde comprei um catálogo de papéis delicados de todo o mundo: papel com desenhos costurados em fios de ouro, papel japonês do tipo vegetal, papel com espirais extravagantes e elegantes flores-de-lis. Ao invés de enviar cartões de Natal com crianças sorrindo forçosamente, estou decidida a fazer nossos próprios cartões neste ano.

* * *

Anna chegou em casa com um sorriso enorme e disse que Domitilla tinha tido um momento de estresse no quadro negro durante a aula de matemática, e que o professor não só gritou, como também bateu fortemente seu punho na mesa. A verdade é que estou falhando em implantar compaixão nesta criança. Eu conversei com ela durante cinco minutos sobre paciência, bondade, generosidade e depois ela riu como uma hiena e saiu em disparada.

* * *

Eu já morei em Paris antes, durante o meu terceiro ano de faculdade. Na época, eu trabalhava como modelo, o que significava que eu fechava os olhos para qualquer tipo de tentação culinária. Por outro lado, eu salivava nas lojas de lingerie exibindo delicados sutiãs plissados e extravagantes calcinhas de seda. Agora, eu passo direto por estes estabelecimentos, só para me demorar em lojas de chocolate expondo jogos de xadrez comestíveis, ou uma maquete de Hogwarts19 feita de chocolate amargo. É bom que a vida seja longa o suficiente para nos oferecer desejos de diferentes tipos.

* * *

Esta tarde, a campainha tocou e Alessandro espiou nosso farmacêutico local parado lá embaixo, na rua. Anna tem uma doença crônica nos rins e precisa tomar quatro medicamentos por dia, então, o meu pânico instantâneo foi que tivesse havido algum tipo de engano. Mas não. Ele alegremente nos cumprimentou, e em seguida ressaltou que havia uma pequena mudança em uma de suas receitas médicas, e queria checar se sabíamos disto (e sabíamos). Ele atravessou a rua só pra certificar-se.

* * *

Alessandro acha que não está falando francês o suficiente porque seu colega de conversação, Florent, passa a maior parte do seu tempo livre na Itália seduzindo a garçonete evasiva. Sendo assim, hoje ele começou uma nova troca, desta vez com uma mulher chamada Viviane. Ela é professora universitária de cultura norte americana, o que quer dizer que eu essencialmente seria um projeto de pesquisa ambulante para ela – particularmente porque ela está escrevendo um artigo sobre o uso que os americanos fazem de redes sociais como o Facebook, e eu passo uma parte desmedida do meu tempo elaborando minhas atualizações de status.

* * *

Hoje, fizemos um passeio de barco pelo Sena, e vimos uma casa flutuante com um convés superior encantador, com um caramanchão de uvas e adoráveis vasos de plantas. Um pequeno Porsche azul marinho estava estacionado no cais.

* * *

Os degraus em frente ao banco no início da rue du Conservatoire estão sempre apinhados de homens bonitos e jovens com camisas em rosa claro; bancários franceses são um milagre a ser observado. Mas o prédio também merece ser descrito. As pedras são vermiculadas, isto é, esculpidas com desenhos rasos que parecem as complexas trilhas que se pode ver em uma criação de formigas de criança. O efeito não é bonito de perto, mas, à distância, o efeito vermiculado garante à pedra um tipo de beleza enevoada que atenua a sua grandiosidade.

* * *

Meu tio avô Claude escreve que duas “classes” de pessoas vêm à Paris: aqueles pra quem a cidade nunca será mais do que a soma de suas partes, e aqueles que compreendem “o assolador e constantemente crescente senso de personalidade da grande cidade.” Para mim, Paris parece um bufê de prazeres terrenos combinados (lingerie e museus e queijos) – as “partes”, neste caso – então, eu imagino que ele me relegaria à segunda classe. Meus antecessores (inclusive Claude) acreditam que Paris é “delicadamente elegante e gay, uma persona compreendida por aquelas sensibilidades mais discriminantes. Francamente, o que eu li até agora me leva a crer que Claude, e não Paris, era gay apesar do fato histórico de seu casamento, bem ali em preto e branco.

* * *

Fomos parar em um trecho da rue Saint-Denis que é a região das profissionais do sexo de meia idade, prostitutas que a idade visitou, mas não destruiu. Estavam todas apropriadamente equipadas com longas botas de couro, bustiês e olhos cansados. Elas recostavam-se contra as portas dos dois lados da rua, a distâncias educadas, e papeavam a esmo enquanto aguardavam a clientela que não havia sucumbido ao desejo por juventude.

* * *

Ontem comprei luvas quentinhas cor de berinjela. Semana passada comprei sapatos elegantes da mesma cor: com cadarços e bico fino. Sinto como se eu fosse a resposta a uma daquelas perguntas das revistas de moda: “Você é primavera, verão, outono ou inverno?” Eu acho que sou outono.

* * *

Tem uma padaria no fim da rua da escola de Anna, na avenue de Villars, onde sempre tem uma fila. Eles são especializados em tortinhas de frutas. A mais bonita tem fatias de figos cortadas tão finas que são translúcidas, cobertas de açúcar. A favorita de Luca parece uma pequena versão dos Alpes: pequenos morangos, cada qual posicionado em pé e coberto com uma gota de chocolate branco. Particularmente, a minha preferida tem damascos fatiados organizados em desenhos sobrepostos, como os círculos nas colheitas de um campo inglês.

* * *

Hôtel Drouot é a casa leiloeira onde muitas propriedades francesas encontram o seu destino. Pode-se entrar e perambular pelos cômodos contendo tudo desde quadros flamencos do século XIV e prata opaca até mobília bacana da década de 1960. Hoje, reviramos caixas de roupa de cama velha e medalhas do exército. Eu fiquei particularmente impressionada com um retrato de um menino e uma menina sentados no que parecia ser uma sala de estar da década de 1970. Onde estão estas crianças agora? Eles se importam que seus semblantes um tanto taciturnos estão sendo pechinchados em uma casa leiloeira – e finalmente são arrematados depois que uma gravura de pássaros japoneses é adicionada ao lote?

* * *

Anna e eu estávamos aguardando na plataforma do Métro quando um trem chegou e eu vi pela janela um adolescente magro e desgrenhado usando um moletom do Keith Haring. Luca! Conseguimos atravessar as portas abertas pouco antes que fechassem. Lá estava meu filho de 15 anos, conversando em italiano e aparentando ser descolado demais para descrever em palavras. “Querido!”, eu entoei. Eu havia me esquecido de uma das regras cardeais da vida. Adolescentes do sexo masculino não gostam de ser cumprimentados por suas mães na frente dos colegas. Ele virou a cabeça e continuou conversando. Anna e eu nos sentamos.

* * *

Acabo de descobrir De Bouche à Oreille (Boca a boca), uma loja no Marais com uma mala cheia de globos em miniatura do tamanho de uma mão. Há globos cor de marfim, pretos (com marcação em branco), ou azul esverdeado claro. Minha impressão é que você compra três ou quatro delas e as coloca em uma tigela, como se fossem frutas. Havia também um domo de vidro contendo nada além de cabeças de bonecas de porcelana antigas, bússolas antigas, e relógios interessantes embutidos em bolas de vidro, dependurados por correntes.

* * *

Alessandro acredita que o “nosso” sem-teto não é um bêbado, mas sim um surdo mudo, já que não disse uma palavra em três meses desde que o conhecemos, se assim podemos descrever o nosso relacionamento. Nós deixamos troco em seu chapéu, doamos latas de ração para cachorro e acariciamos o filhote, e ele apenas sorri um sorriso verdadeiramente doce. Ele me parece ter um rosto do Leste Europeu, um tanto arredondado e estoico, como se seus ancestrais tivessem passado muito tempo colhendo batatas no vento frio.

* * *

Nós temos sido pais bons e apoiadores quando os professores de Anna gritaram, botaram-na contra a parede, e expulsaram-na para o corredor. Ficamos quietos quando o professor de matemática bateu em uma criança com um livro e fez Domitilla tremer nas bases. Mas hoje Anna chegou em casa aos prantos depois que o professor de matemática debochou da sua divisão (ou de suas tentativas de dividir). Alessandro vai à escola amanhã armado até os dentes. Geralmente, ele é muito calmo, mas, quando pressionado, ele mostra a que veio – uma vez que ele mesmo é professor universitário e membro do conselho da escola, sem mencionar cavaleiro. É melhor o professor se cuidar.

* * *

Anna e eu tínhamos acabado de entrar no departamento masculino da Galeries Lafayette para encontrar a metade masculina de nossa família, quando Anna disse, “Mamãe! Mamãe, olha pra eles!” Automaticamente, eu comecei a responder, “Nunca aponte...” quando eu vi o que ela estava vendo e o meu queixo caiu. Cinco homens estavam andando na nossa direção usando cuecas justas e minúsculas. Permita-me esclarecer: cinco modelos deliciosamente maravilhosos e fortes vestindo apenas as menores cuecas que já vi. Eles seguiram passeando, conversando entre si, promovendo (imagino eu) suas vestimentas pequeninas. Os compradores do sexo masculino não pareciam estar nem de longe tão entretidos quanto eu estava. Na verdade, embora estes homens certamente tenham passado perto de Alessandro, ele disse não os ter visto.

* * *

Papai Urso (isto é, Alessandro) voltou triunfante da Escola Leonardo da Vinci! Promessas foram feitas no sentido de se proteger os sentimentos da Ursinha (isto é, Anna). Em contrapartida, Papai Urso prometeu que a tal Ursinha vai parar de tagarelar durante as aulas, vai parar de esquecer de levar o dever de casa, e vai parar de dizer (esta é uma citação direta) “Eu não aprendi a dividir na minha escola antiga; eles não ensinam isso nos Estados Unidos.” Foi esta última afirmação que desencadeou o riso do professor de Matemática (descrito por Anna como deboche), mas, na verdade, não se pode culpá-lo.

17 N.T Do original, “And trailed his yellow-brown slackness soft-bellied down”. A tradução utilizada acima foi extraída de: Lawrence, D.H. Gencianas Bávaras e Outros Poemas, versão de João Almeida Flor. Coleção Inverso. Editora Na Regra do Jogo, 1983.

18 N.T. Spam é uma tradicional marca norte-americana de carne pré-cozida e enlatada, consistindo basicamente em uma mistura de ombro de porco e presunto, fundada em 1937 e muito popular por sua praticidade e durabilidade em tempos de guerra.

19 N.T. A Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts é o palco principal para os primeiros sete livros da série Harry Potter, de J.K. Rowling.


Sofrimento

Acometida por um resfriado terrível, me esgueirei de volta pra cama depois que as crianças foram para a escola e mergulhei na livro de memórias de Kate Braestrup, Here if You Need Me. Ela exerce um cargo de capelania ligado ao departamento de busca e resgate do Serviço Florestal do Maine, e seu livro começa quando ela encontra-se inesperadamente viúva, com quatro filhos pequenos.

Eu comecei a chorar na hora, até avançar um pouco mais no capítulo, quando o filho dela de sete anos de idade deu a entender que seu pai já havia re-encarnado. Como um tigre. Neste momento, eu ri em alto e bom tom, o que acabou tornando-se um padrão: emocionada até chorar, aliviada pelo riso. De vez em quando, eu olhava para o céu azul acinzentado e frio de Paris, me aninhava ainda mais em minha colcha de retalhos, e puxava outro lenço de papel.

Alessandro veio checar se eu estava bem em um determinado momento, simpatizando com o meu resfriado, mas muito reprovador quando se deu conta de que a pilha de lenços encharcados era o resultado de lágrimas em vez de um vírus. “Eu nunca choro quando leio”, ele afirmou, com perfeita veracidade. Sua leitura noturna, uma biografia de Catarina, a Grande, não parecia propensa a gerar lágrimas, até de alguém suscetível ao sentimentalismo como eu. Seu livro também não parecia muito divertido, especialmente depois que perguntei sobre a única coisa que eu sabia sobre Catarina – a saber, seus supostos encontros eróticos com equinos – e ele apenas informou que a imperatriz era uma feminista mal compreendida cujo inventário sexual, ainda que copioso, era, contudo, conservador. Nenhum motivo para chorar aqui.

Eu enxotei meu marido do quarto e me voltei mais uma vez para o meu livro e meus lenços de papel. Braestrup escreve sobre um “momento chave” – o segundo quando você recebe notícias que mudam a sua vida para sempre. Eu não chorei apenas pelo seu corajoso e engraçado marido policial estadual, nem pela criança que se afogou na piscina congelante, nem pelo guarda florestal que dobrou os seus braços para demonstrar a Kate como ele retirou aquela criança do lago – mas sim pelo medo daquele momento chave na minha própria vida, e por pura gratidão e alívio de não ter passado por isso ainda.

Enquanto eu lia, silenciosamente lembrei que Anna estava muito crescida para se perder na floresta, que eu nunca fui dada a este tipo de programa, que Alessandro detestava piqueniques, que nunca perdíamos nossos filhos de vista, e que eu tinha muito medo de doença de Lyme para sequer chegar perto de uma floresta. No meio da leitura, fiz uma nota mental para ficar longe do estado do Maine como um todo. Entretanto, desde o primeiro momento em que Braestrup descreve o acidente fatal de seu marido, ela insiste que não importa o quanto ou quão cuidadosamente ou quão prudentemente amemos nossos filhos ou maridos ou cachorros, não existem garantias, e vidas podem ser arrancadas pela morte a qualquer momento. Quando ela escreve sobre sofrimento como uma “coisa farpada do tamanho de um poste telefônico” no seu peito, a farpa dela coloca em perigo todas as partes do seu coração.

Mais tarde, Alessandro me trouxe o almoço: salada, um bife pequeno, um pedaço de Camembert, uma tangerina, uma fatia de bolo de amêndoas para sobremesa. Comemos em um companheirismo silencioso, até que ele tentou tomar o livro. “Que bem faz um livro destes?” ele queria saber. “Agora você vai sonhar com gente morta.” Isso já acontece de qualquer jeito. Apenas algumas noites antes, eu acordei no meio de uma frase que usava Mãe como pontuação. Eu encarei a escuridão por algum tempo, tentando me lembrar sobre o que ela e eu falávamos. Estaríamos conversando sobre livros? Estaria ela sentada ao meu lado, me contando alguma coisa? Ou estaria eu tentando chamar sua atenção, pronunciando o seu nome?

É isto que Alessandro não entende. Um dia na cama chorando por histórias de estranhos perdidos nos dá permissão para chorar por coisas que não temos o direito de lamentar: meus filhos estão vivos e minha mãe morreu faz quase dois anos. Ainda assim, acordo pensando nela. Eu queria poder ligar para ela. Eu sempre vou querer seus braços em volta de mim. Eu ainda quero chorar por ela.

* * *

Minha irmã, Bridget, e suas filhas estão nos visitando. O jet lag triunfou e não conseguimos sair do apartamento antes das seis horas, quando já estava escuro e chovendo. Andamos pela chuva até o Centre Pompidou, o museu de arte moderna. Anna e suas primas conversavam tão concentradamente sobre o acampamento de verão que elas só perceberam que estavam em Paris quando uma barraca de crepes entrou no campo de visão delas.

* * *

Milo voltou ao veterinário para uma visita de acompanhamento. Para a tristeza de Marina, seu veterinário florentino classificou Milo como obeso, mesmo depois de seus protestos, dizendo que “ele nunca come”. Ao que parece, o olhar do veterinário repousou pensativamente sobre o físico de foca de Milo, e depois ele disse “Ele pode estar te dizendo isso, mas todos nós podemos ver que ele andou mentido.”

* * *

Nós fomos a uma farmácia para comprar vitamina C, e Bridget, ao pagar, confundiu cinquenta centavos com cinquenta euros (e, ao que parece, vitamina C com ouro em pó); ela ofereceu ao farmacêutico três notas de vinte euros. O farmacêutico arregalou os olhos: “Ooooh, là là!”, ele exclamou. Eu adoro os momentos nos quais eu sinto como se estivesse morando dentro de um filme francês.

* * *

“Nosso” sem-teto não é surdo-mudo, conforme Alessandro havia presumido. Hoje, ele falou, respondendo um “merci” quando Anna entregou um irremediavelmente feio brinquedo vermelho que chia para o cachorrinho dele. Todos os dias, ele senta-se perto do guarda-corpo que protege os degraus do metrô, muito agasalhado e com aparência miserável, com seu cão em uma caixa de papelão coberta por uma manta, e um chapéu para o dinheiro na frente da caixa.

* * *

Considero-me uma acadêmica antes de uma escritora de romances, então, eu tendo a gostar das cartas dos leitores apontando erros – especialmente se o leitor está errado. Frequentemente sou castigada por usar gírias que os leitores têm certeza de que são modernas mas que, na verdade, são historicamente precisas. Um exemplo dos meus favoritos deste tipo de palavra vem de Caleb Crain na The New York Times Magazine; ele desenterrou uma carta de Keats, jocosamente informando aos seus irmãos sobre a nova gíria para se dizer parar em uma taverna: “they call [it] ‘hanging out.’20”

* * *

Permita-me ser a primeira a admitir: meu peru de Ação de Graças não foi lá essas coisas. Na verdade, seu sabor trouxe à mente o deserto do Saara. Era um peru estranho, em primeiro lugar, porque veio chamuscado por ter sido depenado com fogo, e embrulhado em tiras de banha. O lado bom é que Bridget fez um molho delicioso, e a amiga de Alessandro, Donatella, trouxe uma imitação de torta de abóbora com uma superfície laranja brilhante. Era, na verdade, uma torta de creme inglês com um brilho lustroso: como se uma torta de abóbora tivesse ido à Chanel e se vestido apropriadamente para a ocasião.

* * *

O homem sem-teto é de Bucareste! Alessandro e Anna puxaram conversa com ele hoje no caminho para a escola. Ele fala muito pouco francês, então, Alessandro vai pesquisar algumas frases em romeno. Ao que parece, o homem disse que quer ir para casa. Eu também quereria. Paris é um lugar frio e desesperançoso se você não tem nada a fazer a não ser sentar-se e esperar a chuva cair em você.

* * *

Na Notre-Dame: “Quantas pessoas morreram construindo esta igreja?” Anna perguntou. E assim, exasperada por minhas respostas evasivas (“muitas... não, mas do que dez”), ela parou embaixo do vitral de roseta. “Bem, quantas pessoas morreram fazendo aquilo? Você nem sabe quantas pessoas morreram botando isto lá em cima?” Eu descubro, mais uma vez, que crescer é sinônimo de desilusão com os seus pais.

* * *

Eu fiquei fascinada por um padre na Notre-Dame, sentado em uma mesa do tipo executiva atrás de uma vidraça a prova de balas, oferecendo confissões em francês ou árabe. Ele parecia nada mais do que um bancário de baixo escalão, o tipo ao qual não se deveria confiar para fazer uma transferência internacional.

* * *

Aparentemente, o tempo tem estado frio e chuvoso em Florença há uma semana, o que está perturbando Marina. Milo tem que fazer uma longa caminhada por dia para ajudá-lo a perder peso. Mas ela nunca o leva para a rua quando chove, porque ela diz que ele tem uma constituição delicada e não digere bem se sentir frio. Ninguém quer saber exatamente como ela diagnosticou esta fragilidade.

* * *

Florent voltou da Itália, e ele e Alessandro encontraram-se novamente. Ele ainda está apaixonado por sua bela garçonete italiana, mas não conseguiu usar nenhuma das frases românticas que Alessandro lhe ensinou. Ele diz que acha que ela está interessada, mas não tem muita certeza, por causa da barreira da língua. Sendo assim, ele e Alessandro falaram sobre o fato de que Florent está comprando terras de um vigarista que o considera presa fácil porque ele é estrangeiro. Existe apenas uma parede de pé nas terras de Florent, mas o italiano as quer vender como se tivessem uma casa.

* * *

A estação do Metrô Varenne abriga uma enorme réplica d’O Pensador, de Rodin; em algum momento, um sujeito descortês fez um buraco na coxa da estátua, revelando que ela era completamente oca. Essa manhã, a caminho da escola, Anna e eu começamos a debater sobre a família de ratos que certamente morava ali dentro. Anna sugeriu que Mama e Babbo dormiam cada qual em um dedão d’O Pensador. Eu ressaltei que Mama e Babbo gostavam de dormir juntos, e ela consentiu que eles pudessem dividir um dedão, enquanto os filhotes teriam um dedo menor para cada.

* * *

A mais nova brincadeira da família: implicar com a Mamãe por conta do pacote de cartões de língua francesa que todo mundo na família já decorou menos moi. Vá em frente... pergunte-me como dizer sapo em francês. Eu acabei de aprender. Meu cartão favorito é la girafe.

* * *

Bridget e eu levamos as meninas para Versailles, fazendo um pequeno desvio em uma cabine de foto no metrô. Mais tarde, Anna descobriu, para seu horror, que seu amado chapéu de tricô azul havia desaparecido, o que a levou a lágrimas e ranger de dentes. No caminho de volta, as crianças voaram até a cabine, mas estava vazia. Então, minha sobrinha, Nora, gritou. Ao lado, encontrava-se enrolado um cobertor de alguma pessoa sem-teto, o chapéu pousado no topo. Mas nenhum sem-teto à vista. Então... ela o roubou de volta!

* * *

A Galeria de Espelhos no Palácio de Versailles é graciosa, elegante e linda de cair o queixo. Afastei-me para o meio sonhando que eu era membro da noblesse ancienne, minhas saias imaginárias se estendendo por um metro para cada lado. Nós todas estávamos fazendo a visita guiada com áudio; e por cima do elegante som de um homem inglês me informando sobre os detalhes arquitetônicos, escutei Anna dizer para a sua prima Zoe: “Duvido você tirar meleca na frente daquele espelho... Vai lá, eu te desafio!”

* * *

Em Versailles, eu comprei um maravilhoso e colorido livro de receitas: 100 Receitas dos Tempos de Louis XIV. Ao que parece, a corte adorava ostras e as comiam tanto com pato quanto com pernil de cordeiro. Eu vou experimentar frango com champanhe e o muito inusitado fricassê de pepino. Quase todas as receitas requerem o uso de banha – e eu não consigo imaginar onde se compra isso nos Estados Unidos.

* * *

Neste final de semana, nos deparamos com um brocante, uma fileira de pequenos estandes vendendo quinquilharias, tudo desde luminárias lascadas até LPs do Elvis. Nosso balcão preferido estava vendendo 22 tipos diferentes de salsichas. Nós compramos cinco tipos, dentre os quais estavam javali e pato curado na pimenta. Infelizmente, eu não tinha ideia de qual era qual, mas na noite passada fiz um molho para macarrão delicioso usando a de javali ou, quem sabe, a de pato ou, como sugeriu Alessandro, de rato parisiense nativo.

* * *

O sem-teto pediu que adotássemos seu filhotinho de cachorro, uma vez que ele quer voltar para Bucareste e não pode levá-lo. É impossível, lamentavelmente. Nós viajamos demais para ter um cachorro que, em breve, estará do tamanho de uma chaise longue. Anna está devastada, e se recusa a falar com qualquer um de nós dois. Alessandro achou um colega que fala romeno e conseguiu que ele traduzisse “Você gostaria que nós nos certificássemos de que seu cachorro estará seguro em um abrigo para animais?” Esta não é uma alternativa popular lá em casa.

* * *

Nós acabamos de confiscar o computador de Luca por um mês, depois de uma discussão muito dolorosa e honesta com seu professor de latim (precedida por discussões dolorosas e grosseiras com seus professores de francês e história). Todos eles disseram que ele é extremamente educado, fato do qual me orgulho. Mas também extremamente indolente. Assinado, Os Pais Mais Cruéis de Paris.

* * *

Estamos, agora, arraigados no coração de uma igreja católica profundamente conservadora – todos “santos do pau oco”, como descreveria a minha mãe. Meu momento preferido da missa é o hino final, que é frequentemente um hino à Maria chamado “Couronnée d’Étoiles,” ou “Coroada com Estrelas.” Eu adoro sua prosa floreada. Todos os domingos, nós cantarolamos quase nada melodicamente que Maria “encortina” o sol, ofusca a lua, e saúda a alvorada.

* * *

Ao sair da escola, Anna me disse que sua professora de educação física tem pedido “há muito tempo” que ela levasse roupas de treino, mas “Eu sempre esqueço.” Então, nos acotovelamos por dentro de uma loja de departamento lotada, e ela escolheu um conjunto rosa com lantejoulas bordadas com os dizeres AMOR LIVRE. “O que isso significa?” ela questionou. Eu não tive ideia do que dizer, então, ofereci, “Amor para muitas pessoas, filhotes de cachorros e de gatos também.” Ela sabiamente concordou.

* * *

Minha mãe colocou açúcar logo depois de crack na lista das substâncias mais perigosas conhecidas pela humanidade. Até hoje, minha ideia de paraíso é um punhado de pequenos marshmallows: açúcar puro e desmedido que faz mal para as pessoas, em uma forma que nunca poderia ser confundida com qualquer coisa saudável. Eu achei um fornecedor aqui em Paris, o que é equivalente a um toxicômano descobrir um campo de papoula particular.

* * *

Hoje de manhã, enquanto eu assistia Anna escolher calcinhas rosas, meias rosas e uma blusa rosa para combinar com seu conjunto de treino rosa, comecei a suspeitar e investiguei a razão para este surto conspícuo de feminilidade: ao que parece, ela havia sido confrontada no banheiro por duas mocinhas maliciosas que disseram que ela parecia um menino e deveria usar o banheiro deles. Porque a maioria das pessoas diz que Anna se parece exatamente como eu, achei este episódio particularmente insultante (e absurdo). Mas eu a mandei para a escola parecendo uma princesa atlética, vestindo uma armadura rosa contra suas inimigas de língua afiada, e depois passei a manhã refletindo sobre o acontecido. Por que meninas são tão cruéis umas com as outras?

* * *

As noites de sexta feira são reservadas para os nossos encontros a dois, o que, em New Jersey, significava ir ao cinema. Mas, aqui, significa comida. Na noite passada nós entramos em um dos corredores cobertos perto de onde moramos, a Passages des Paronamas. Lá, achamos um bistrô que tinha capacidade para servir 15 pessoas no máximo. O cardápio, escrito em um quadro negro, oferecia precisamente duas opções de entradas. Eu comi uma sopa de legumes defumados em uma pequena terrina, e depois, um intenso, delicioso boeuf bourgignon, seguido de bolo quente de chocolate. Custou aproximadamente 15 euros. Alegria!

* * *

“Nosso” sem-teto partiu. Alessandro e Anna saíram, nossa doação diária agarrada à mão de Anna, apenas para descobrir que ele havia desaparecido, supostamente para Bucareste. Alessandro repreendeu-se por não tentar usar sua frase sobre o abrigo de cães a tempo. Eu disse a uma Anna chorosa que o homem não suportava estar longe do seu cachorrinho, que agora está aprendendo Romeno. Eu espero que esta seja a verdade.

* * *

Hoje choveu granizo. O céu ficou realmente cor de pérola, e quando o granizo atingia os tetos do outro lado do meu escritório, ele visivelmente quicava. Lá no topo, o granizo quicava da cumeeira de metal ornado que desce do empena do telhado e formava pequenos arcos no ar, como se pequenos chafarizes desabrochassem dos telhados.

* * *

Esta noite, comemos em um bistrô a céu aberto. Quando o crepúsculo descortinou-se, nosso garçom ligou o aquecedor de pé. Do outro lado da rua, um homem tocava sax melancolicamente, recostado contra os corrimões de ferro da igreja. O inverno está chegando em Paris.

20 N.T. Hanging out, da expressão to hang out, é frequentemente traduzido como ‘sair’, ‘curtir’ ou ‘passar um tempo’. A expressão é frequentemente usada por jovens norte americanos.


Um inverno parisiense

A mídia americana nos avisa a cada ano que o Natal é um tempo de complacência excessiva. As revistas femininas inflam com artigos sobre como evitar a mesa do bufê, sem mencionar aqueles cinco quilos a mais. Mas, para ser honesta, o canto de sereia da tentação nunca me incomodou muito. As festas de fim de ano do Departamento de Inglês tendem a oferecer uma seleção desencorajante de vinhos baratos acompanhados de três tipos de homus. E eu queimo as calorias extras digladiando uma árvore de um metro e meio até a submissão, dando notas aos trabalhos finais dos meus alunos de Shakespeare, e lutando contra as filas dos correios para enviar presentes atrasados.

Minha imunidade foi fortalecida pelo meu humor pós-câncer. Nossa cozinha costumava ter pilhas de livros de receitas e de louça, até que eu decidi que ela deveria ser um retiro ascético de feng shui no qual eu cozinharia refeições cheias de antioxidantes. Tudo em uma só panela, porque eu dei todas as outras.

E então dezembro chegou a Paris. Da noite para o dia, o mercado de nossa vizinhança, Marché Saint-Quentin, transformou-se no set de filmagem de um musical de Dickens, com direito a guirlandas e pisca-piscas. Nossa fromagerie preferida expôs caixas de pequenos ovos de codorna e três tipos de queijo de cabra até então desconhecidos, produzidos apenas para a temporada de fim de ano. Eu fiquei embasbacada com o monte de cogumelos frescos, grandes e franzidos como chapéus para fadas idosas que frequentam a igreja. Foi só quando o marchand de fruits me perguntou se eu tinha mesmo certeza de que eu queria levar tudo aquilo que eu me dei conta de que esse fungo em particular custava tanto quanto o nosso aluguel.

Paris sempre é o playground dos materialistas, mas dezembro é uma história à parte. Um dia, entrei no departamento gourmet da Galeries Lafayette e descobri que haviam brotado mesas empilhadas com confeitos decorativos para Natal e Ano Novo: jarras de folhas de ouro comestíveis, estrelas prateadas, violetas cristalizadas. A apresentação era destinada a tentar os compradores desavisados não à gula em si – mas sim à pura beleza da comida, aos modos como pode ser decorada e polvilhada e apresentada, transformada em alguma coisa que pode nos deixar sem fôlego. Eu instantaneamente sucumbi a um desejo indomável por minicaçarolas Staub, esmaltadas em carmesim queimado e brilhante. Eu comprei oito delas, dando adeus ao sonho de uma cozinha austera. Certamente, antioxidantes são mais saborosos quando preparados em caçarolas.

Mas eu não parei nas caçarolas. Eu comprei uma batedeira elétrica manual que parecia nada mais do que um vibrador relativamente perigoso, sal rosa do Himalaia, e mostarda com infusão de lavanda em um tom instável de violeta. Parece que mulheres parisienses evitam sopa de alho-poró em dezembro, e passam seu tempo criando elaboradas refeições a partir de ingredientes dos quais poucos americanos ouviram falar. Resumidamente, me tornei vítima da versão francesa de complacência de festas de fim de ano.

Cheguei em casa com os braços doendo, sem presentes e – o que é ainda mais crucial – sem pão. Fui confrontada por um Alessandro irritado, que olhou de soslaio para o sal do Himalaia e exigiu saber como eu possivelmente poderia ter me esquecido de comprar uma baguete. Quando eu voltei da boulangerie, Anna estava perseguindo o irmão pelo apartamento com minha batedeira vibradora. Eu os ignorei e assei frango untado com mostarda violeta. A honestidade me força a admitir que o frango não foi um sucesso. As crianças o encararam com o tipo de expressão que um californiano usa para saudar um assento sanitário felpudo. Crianças francesas provavelmente saúdam frango roxo com gritinhos de felicidade em vez de demandas para que seus pais saiam às ruas em busca de KFC.

Todavia, comecei a ir para a cama pensando em comida. Os restos de um pernil de cordeiro coberto com anchovas e manteiga poderiam tornar-se um caldo bem quente, que por sua vez transformou-se em sopa de erva-doce com linguiça apimentada (uma receita emprestada de Gordon Ramsay). Eu fiz a sopa em uma panela grande. Em seguida, coloquei algumas rodelas crocantes de linguiça em cada caçarola, despejei um pouco de sopa, e derramei algumas espirais de óleo temperado por cima. Isto pareceu um tanto como uma trapaça: deveria eu usar as caçarolas apenas para servir comida feita dentro delas? Eu estava certa de que a resposta parisiense seria um sonoro sim. Mas depois me lembrei que quando meus pais eram recém casados e muito pobres, minha mãe serviu para um grupo de poetas desavisados um suave patê de carne – feito de comida para gatos. Meus crimes esmaecem nesta comparação.

Eu passei fantasiosa de uma refeição para a próxima. Usei as caçarolas para assar pequenos bolos de chocolate para um jantar entre amigos, misturando os melhor dos chocolates – de Michel Cluizel – com toques de Grand Marnier e uma caixa inteira de ovos. Sob a influência eufórica de um dezembro parisiense, dei a cada bolo um bocado generoso de crème fraîche e coloquei no topo uma estrela translúcida feita de fios caramelizados. Os bolos pareciam maravilhosos, mas depois que meus convidados os comeram, seus rostos ficaram um tanto verdes. Mais tarde percebi que a receita prometia um bolo para dez pessoas, que eu distribuí em seis panelas.

Crème fraîche começou a entrar no apartamento em baldes, desaparecendo pela goela abaixo da minha família, dos meus amigos e da minha própria. Em Nova Jérsei, as crianças costumavam comer pizza toda sexta feira à noite e clamavam para ir à lanchonete Peppercorn para comer queijo americano derretido sobre pão branco. Em Paris, eles aprenderam a sorrir para sopa de erva-doce e a lamber a colher quando terminassem.

O ascetismo foi relegado ao armário (infelizmente, minha calça jeans de quando estava magra também foi). Eu finalmente descobri o apelo da complacência – juntamente com uma recém descoberta apreciação pela luxuosidade do tempo, acontecida por conta do ano sabático, livre dos comitês, horários de escritório, e salas de aula cheias de alunos nervosamente aguardando serem testados sobre Hamlet. Eu aprendi a pensar em comida como algo bonito em vez de algo que apenas engorda ou nutre, como nós americanos estamos tão propensos a fazer. Colocar uma pizza fria no forno é fácil; comer sushi pré-embalado do mercado é ainda mais fácil. Pipoca para o jantar para que se possa trabalhar sem parar durante a refeição? Por que não?

Eu vou fazer apenas uma resolução de Ano Novo neste ano. Eu vou ignorar o óbvio: minhas roupas excessivamente justas. Em vez disto, vou levar o meu Natal parisiense comigo de volta para Nova Iorque no outono. Minhas caçarolas vão me lembrar de que comida deve ser servida aos outros, deve ser bonita, deve ser original (até cor de violeta), deve ser sonhada. Elas vão me lembrar de que a complacência não é uma virtude que devemos guardar apenas para a temporada de festas de fim de ano, e que economizar tempo – quando o assunto é comida – é mais pecaminoso do que virtuoso.

Meu dezembro parisiense contribuiu muito para consertar um buraco no meu coração causado pelas palavras “a biópsia foi positiva.” Comer como os franceses é celebrar a vida, inclusive a aproveitar de maneira complacente.

* * *

A Galeries Lafayette colocou suas luzes de Natal! O enorme prédio transformou-se em um conjunto de rosetas de vitrais brilhantes que remetem à Rússia do século XVIII, ou Versailles; um tempo no qual a exibição da beleza, seu brilho e luxuosidade, eram de suma importância. Alessandro, é claro, apontou para o fato de que estas vitrines não convidam à contemplação, mas sim ao consumo.

* * *

Minha vitrine natalina preferida na Galeries Lafayette exibe um jantar comemorativo requintado: lustres de cristal, louças fabulosas, tiaras espalhadas por entre os pratos, taças de vinho envoltas em pérolas – tudo sendo deleitado por várias marionetes de ursos. Um deles tinha uma taça de vinho em cada pata e uma tiara dependurada de uma orelha. Ele levanta as taças ebriamente, brindando a todas as crianças do outro lado da vitrine.

* * *

As ruas ficaram repentinamente repletas de homens vendendo castanhas, assadas sobre barris de óleo. Alessandro e eu compramos um bocado, que veio embrulhado em jornal. Elas abrem por conta do calor, mostrando seu interior amarelo e doce. Caminhamos devagar, embalando os embrulhos quentes em nossas mãos, comendo castanhas enfumaçadas e levemente chamuscadas.

* * *

Devido à minha aversão a decapitar galinhas, meu açougueiro as degola para mim, mas ele deixa os pés: pretos e vermelhos, pés sofridos para correr ligeiro. Galinhas parisienses são muito mais galináceas do que as do Sr Perdue21; além do mais, ovos vêm ornados com pequenas penas. Meus filhos exclamam: “Penas de bunda!” Tendo crescido em uma fazenda, gosto de lembrar do calor intenso de ovos que haviam acabado de ser botados pelas galinhas.

* * *

Anna e eu estávamos em uma loja de departamento, comparando os méritos de um pinguim de pelúcia com os de um gambá de pelúcia, quando fomos abordadas pelo Papai Noel. Este Papai Noel magro e insistente não desistia; ele queria tirar uma foto com Anna. Tendo nascido prematura, com menos de 26 semanas de gestação, ela é bem pequenina. Mas na sua cabeça, ela é uma mocinha de 11 anos, e mocinhas não sentam no colo de um Papai Noel desconhecido. “Sabe de uma coisa, mamãe?” ela disse quando ele foi finalmente banido. “Aquele homem era estranho.” E, momentos depois, “Eu aposto que os Papais Noéis franceses bebem vinho de mais.”

* * *

Aqui chove todos os dias; meu guarda-chuva é tão crucial quanto a minha carteira. Minha adaptação preferida para o clima úmido são os bebês vestindo mochilas vermelhas com quatro suportes segurando toldos vermelhos sobre suas cabeças. Eles parecem rajás indianos rechonchudos balançando por aí, em cima de seus elefantes paternais.

* * *

Anna e eu passamos por outro sem-teto e seu cachorro hoje. “É um cachorro salsicha!” disse Anna. Com um olhar, eu disse, “Não, ela é uma cadela salsicha mamãe.” Um grito incontrolável seguiu. “Mamãe! Ela tem filhotes! Pequenos filhotinhos!” Certamente... nove – nove – pequeninos, pequeninos filhotinhos estavam dentro da caixa sobre um aquecedor. Dois dias de vida, de acordo com o dono. Demos a ele todo os nossos trocados.

* * *

Esta noite, fomos com amigos ao Champs-Élysées pela primeira vez desde que as luzes de Natal foram colocadas. As árvores ao longo de toda a avenida estão acesas com pequenas luzes azuis que escorrem, como se uma chuva preguiçosa e azul estivesse caindo.

* * *

Nos Estados Unidos, tínhamos muita dificuldade para acordar as crianças a tempo de ir para a igreja, o que muitas vezes acabava em batalhas impiedosas. Aqui, empregamos o incrível poder do chocolate. Eu anuncio que, se eles levantarem-se imediatamente, nós teremos tempo para ir a um café para tomar chocolate quente e comer croissants... então andamos pela manhã gelada até um café e sentamos, os dedos enroscados nas xícaras quentes de chocolate doce, antes de correr para Saint-Eugène-Sainte-Cécile.

* * *

Nossa refeição reconfortante depois de um dia duro na escola é curry Japonês – especificamente, Golden Curry feito com cinco cebolas cozidas no micro-ondas até ficarem como pedaços de alface pálidos e translúcidos, conforme me ensinou minha cunhada japonesa, Chiemi. As crianças devoram o curry da mesma forma que um francês devora foie gras: com concentração e prazer.

* * *

Aos 15 anos, Luca abandonou o “Mamãe” e agora me chama de “Mãe,” enquanto Anna ainda berra “Mamãe!” pelo apartamento afora. Ontem me ocorreu que ainda o dia em que ninguém mais me chamará de “Mamãe” chegará, e não me darei conta disso no mesmo dia, nem no dia seguinte, assim como não tenho lembrança do último “Mamãe” de Luca. Há muitas Últimas Vezes quando se é pai ou mãe – o último livro lido em voz alta, a última amamentação, o último banho.

* * *

Temos visitas de Florença, então, alguns membros da família subiram até a parte mais alta da Notre-Dame, aproximadamente 380 degraus. Eu fiquei no andar térreo, me entoquei em um café, observando a chuva cair sobre turistas com frio. As crianças voltaram muito animadas: no topo da catedral, os primeiros flocos de neve da estação caíram sobre suas mãos, ainda que aqui embaixo não houvesse nada além de chuva.

* * *

Há alguns dias, a professora de italiano de Anna caiu em lágrimas, o que Anna atribuiu ao mau comportamento generalizado. Então, hoje Domitilla apareceu de vestido, segundo Anna, e presenteou a professora com um caderno refinado e três lápis “em nome da classe” para compensar pelo mau comportamento. Anna é muito desdenhosa em relação a este esforço.

* * *

Namorando as vitrines da Nina Ricci: sapatos de salto alto em seda cor de marfim, com saltos de cortiça de quinze centímetros, com pérolas dependuradas. Os sapatos lembravam um ornamento natalino que fiz quando era criança, com pérolas biwa e uma bola de isopor. Um produto promocional do Kmart (loja de departamento) para os muito ricos.

* * *

Eu descobri uma coisa sobre morar com um adolescente: a maioria das conversas não serão bem sucedidas, se considerarmos que esta definição implica em uma troca significativa. Se eu perco a cabeça, meu filho de 15 anos rosna pra mim em resposta. Se estou de bom humor, eu o convenço a soltar uma frase... no entanto, se eu perguntar o que aconteceu na escola, a resposta é sempre: “Nada.” Escola de Ensino Médio Leonardo da Vinci, também conhecida como o Buraco Negro de Paris.

* * *

Florent disse hoje a Alessandro que ele está preocupado que seu amor pela garçonete italiana não vá dar em nada. Em primeiro lugar, ele tem 41 anos e ela é bem mais nova, uma estudante universitária quando não está trabalhando. Eles passaram uma noite encantadora juntos na última visita de Florent. Ele falou na maior parte do tempo, mas ela pareceu receptiva. Eu não tenho um bom pressentimento sobre esta história, mas Alessandro diz que escritores de romances deveriam ser mais otimistas.

* * *

Ambulantes estão vendendo árvores de Natal com neve falsa branca – mas também em vermelho chamativo e roxo vívido. As lojas de departamento têm pilhas de ornamentos separados por cor: aqui ficam todos os ornamentos pretos, ali fica tudo de vidro transparente, ou rosa tipo Pepto Bismol. Ninguém parece oferecer um Papai Noel em tamanho real encarcerado em um grande aquário redondo que sopra neve sem parar. É claro, não há quintais de frente, mas eu tenho a sensação de que esta não é a razão...

* * *

Na noite passada, Anna e sua amiga Nicole estavam montando uma complicada casa na sala de estar, incluindo o sofá, meu colchão de yoga, uma mesa pequena, um monte de cobertores etc. Do meu escritório, eu podia ouvir Nicole falando melodiosamente com seu adóravel sotaque inglês, e de repente, “Anna, eu falo demais?” E, com a honestidade sem concessões da infância, a resposta: “Sim.”

* * *

Nós saímos para tomar chá com alguns amigos italianos que se declararam encantados pela forma como Alessandro conversava com o garçom em Francês. Ele sorriu modestamente... até que os pedidos chegaram. Meu prato de queijo (fromage do Gay Château) chegou conforme solicitado, assim como todos os outros pedidos, exceto pelo do meu marido. Ele havia pedido uma tisane du berger (uma xícara de chá), e chegou uma lasagne aux aubergines (uma lasanha de berinjela). Como os poderosos declinaram!

* * *

Alessandro está ficando amigo do jovem e muito conservador padre de Saint-Eugène-Sainte-Cécile. Acontece que a nossa igreja, esta caixa de joias, é famosa por ter sido a primeira a ser construída em metal em toda a cidade de Paris. Eu não vejo como isto pode ser verdade: as paredes são definitivamente feitas de pedra. Mas não se discute com um padre sobre detalhes arquitetônicos, não quando há tantas outras coisas interessantes, como as causas para o recente surto de pedofilia, sobre as quais se pode debater. Nosso padre fica mortificado, e não quer pensar no assunto.

* * *

Todas as noites, Anna e eu deitamos no escuro para a “hora da conversa.” Eu aprendi isso com a minha amiga Carrie, que definiu a hora da conversa como trinta minutos livres de represálias durante os quais a criança pode contar os seus segredos, como, por exemplo, se já lhe ofereceram substâncias ilegais. Anna fala de uma coisa: Domitilla. Hoje Domitilla saiu-se pior do que Anna em matemática (inconcebível, francamente)... A mãe de Domitilla é mais boazinha do que eu, porque Domitilla ganha doces e batatas fritas pro almoço... Ontem Domitilla estava usando um vestido rosa (escárnio reduzido). Nada de drogas, só vestidos cor de rosa. Tédio.

* * *

Nosso mercado local é um banquete visual. Arranjos de penas – presumivelmente doadas por ocupantes prévios – acomodam decorativamente os faisões depenados. Uvas caem dependuradas de estandes retorcidos de madeira de vinha, e rabanetes frescos ficam arrumados em uma caixa vertical e rasa, a folhagem verde pelo meio, os bulbos vermelhos brilhando como joias pelos lados. Hoje eu ignorei os belos produtos naturais e, tomada por curiosidade, trouxe rabanetes negros para casa, um horror fálico enrugado e um tanto curvo. Ao investigar pela internet, descubro que flacidez é tão ruim quando se trata de um rabanete quanto de um (ra-ran) homem.

* * *

Um enorme roda gigante, do tipo com compartimentos envidraçados e aquecidos, foi erguida em uma das extremidades do Champs-Élysées. As crianças já deram muitas voltas nela, de forma que agora apenas uma coisa realmente as interessa: a cabine VIP, que tem vidro fumê para proteger suas Pessoas Muito Importantes. Anna está convencida de que, se ela tiver muita sorte, um dia ela verá Malia e Sasha Obama girando por sobre Paris.

* * *

Na medida em que o inverno avança, parece que cada manhã emergimos em uma rua um pouco mais escura. Espiando adentro das janelas dos hotéis durante a nossa caminhada para o metrô, cada semana vemos menos hóspedes tomando café da manhã.

* * *

Hoje, minha amiga francesa, Sylvie, e eu fomos a um maravilhoso museu, o Musée Nissim de Camondo. Moïse de Camondo foi um banqueiro judeu extraordinariamente rico e colecionador de arte e mobília do século XVIII. Em 1911, ele construiu uma mansão para abrigar suas coleções, baseando seu desenho no do Petit Trianon de Versailles. Ele adquiria mobília quando grandes propriedades eram dissolvidas, comprando até painéis de madeira do apartamento do Conde de Menou, e então viveu ali por anos, em meio a um esplendor real. Considero esta obsessão fascinante e triste; ele poderia certamente decorar os cômodos com os vasos da Rainha Marie Antoinette e recriar a atmosfera da nobreza do século XVIII – mas sendo judeu e banqueiro, ele não poderia ter feito parte dela.

* * *

Hoje passei por uma oficina aberta, na frente da qual havia um homem modelando metal com uma serra. Centelhas de cor laranja brilhante escapavam de sua serra, voando em um arco alto para aterrissarem no jeans do homem atrás dele, em duas cadeiras, e noutro banco de trabalho. Elas pareciam neve brilhante, inofensiva, desaparecendo no momento do contato.

* * *

Hoje Domitilla ganhou um “bravissima” em Gramática de Italiano e Anna só ganhou um “brava.” Então, Anna prontamente se desfez em lágrimas. A pobre professora, que não tinha ideia das várias tensões na sala de aula, fez um discurso sobre o quão maravilhosa Anna é, que minha ingrata filha declarou ter sido chato e vergonhoso.

* * *

Nós compramos a árvore de Natal ontem. Em Paris, elas são vendidas com troncos reduzidos a tocos pontudos e espremidas em estandes feitos de toras. Eu aprovo, uma vez que isto evidencia a blasfêmia anual provocada por complicados estandes de árvores. Mas eu também desaprovo, porque sem água, quanto tempo esta árvore vai conservar suas folhas? Contudo, a árvore conferiu gentilmente à sala de estar seu elusivo odor de floresta densa.

* * *

Anna sofreu de amor não correspondido por dois anos, aos oito e nove, e ela está bastante orgulhosa de não ter uma paquera aqui em Paris. Um menino de sua classe nos seguiu na catraca do metrô hoje e atirou-se para mexer nos cabelos de Anna antes de sair correndo. “Aquele menino tem uma queda por você,” eu observei, declarando o óbvio. “Quatro meninos têm,” ela disse, com completa indiferença.

* * *

Há alguns dias, o amigo por correspondência que Alessandro mantinha quando era só um menino, entre 1974 e 1984, lhe escreveu um e-mail repentinamente. Depois de muita surpresa, eles viraram amigos de Facebook, e Andrej, que é da Polônia, abraçou a tarefa de investigar as fotos na página de Alessandro. Ele escreveu de volta hoje para dizer que sua esposa é leitora de Eloisa James! Ela é uma bancária polonesa, e presumivelmente tem lido as traduções para o polonês.

* * *

Hoje Paris está amargamente fria – mais do que congelante. Agasalhei-me e caminhei até uma loja de departamento para comprar presentes de Natal. Quando me aproximei das vitrines reluzentes, percebi que uma mulher estava sentada em um degrau com um cartaz simples, J’AI FAIM ou “Estou com fome.” Agarrada a seu braço estava uma criança de cinco ou seis anos, sua cabeça no ombro da mãe. Paris reveza entre ser a cidade mais bonita onde já morei – e a que mais parte o meu coração.

* * *

A escola de ensino fundamental de Anna apresentou hoje o seu concerto de Natal, então Alessandro e eu enfrentamos a neve para assisti-lo. Na noite passada, Anna revelou que sabia apenas a primeira frase de cada canção em italiano; depois ela planejava trocar para o inglês. Aparentemente, ninguém notou. Meu momento favorito foi quando toda a escola cantou, em fortes sotaques italianos, “Last Chreeestmas, I gave you my ‘eart...”22

* * *

Está nevando novamente e os telhados do outro lado da janela do meu escritório ficaram brancos. O céu está precisamente da mesma cor leitosa, de forma que onde a cumeeira preta e entalhada encontra o céu, parece que há uma linha de trem alongando-se através de uma vasta e nevada paisagem russa.

* * *

Voltando das compras de Natal ontem, Alessandro anunciou, “Eu comprei alguns suéteres para mim, você vai gostar, não são todos iguais.” Homens parisienses usam pulôveres espessos vermelhos e botas cor de ameixa. Eu abri a sacola de compras e descobri que Alessandro havia comprado quatro suéteres. Três deles eram pretos. Um distinguia-se por ser cinza com listras pretas.

* * *

Estou em um surto de fervor doméstico diretamente ligado à chegada iminente da minha sogra; Marina poderia derrotar Bobby Flay com as mãos nas costas. Minha meta é servir apenas caldos feitos em casa – não que ela vá ficar particularmente impressionada, já que ela não imaginaria nenhuma outra opção.

* * *

Eu descobri o equivalente francês para as lojas de 1,99. Eu comprei um escorredor cor de ameixa por sete euros, ornamentos de Natal que parecem abajures “mod” dos anos 1960 em miniatura por dois euros cada, e, por quatro euros, uma fabulosa forma verde para fazer pequenos bolos. Minha compra favorita foram luzes para a árvore de Natal, cada qual envolta em um ornamento de metal redondo. Alessandro me diz que estas são clássicas, idênticas às luzes de sua infância.

21 N.T. Frank Perdue (1920 – 2005) foi um empresário norte americano cujo negócio de produção e comercialização de frangos, Perdue Farms, é um dos maiores nos EUA até a presente data.

22 N.T. Aqui, a autora simula uma pessoa com sotaque italiano pronunciando a frase “Last Christmas, I gave you my heart” que significa, em Português, “No Natal passado, eu lhe dei o meu coração.”


Na igreja com Scrooge23

Não tendo conhecimento específico das minúcias do calendário litúrgico, foi agradável descobrir em um domingo de dezembro que havia uma celebração especial acontecendo para les enfants; como era de se esperar, compareceram mais bebês e crianças pequenas do que de costume. Na cadeira ao nosso lado, sentou um menino roliço e muito feliz que estava começando a aprender a andar. Ele e Anna divertiram-se tanto passando um telefone celular de brinquedo de lá pra cá que ele constantemente cuspia a chupeta e emitia gritinhos com alegria.

O animado padre começou sua homilia e continuou, e continuou. O bebê seguia dando gritinhos e gritinhos. O celular de brinquedo caiu no chão de pedra algumas vezes.

Então, de uma fileira na frente da nave, ergueu-se um esquelético e velho homem, vestido todo de preto, incluindo o sobretudo que balançava nas suas costas. Ele deu meia volta e andou, carrancudo, em nossa direção. Toda a congregação congelou, observando enquanto a ameaça com ares de Scrooge avançava. Os olhos do padre visivelmente se arregalaram. Monsieur le Scrooge virou no corredor lateral, agora obviamente vindo confrontar a maman do bebê.

Cabeças giraram concomitantemente para acompanhar seu progresso. A mãe da criança a tomou contra o seu ombro, em um gesto que me lembrava dos gestos protetores feitos por mães em filmes onde cidades eram invadidas por nazistas, ou extraterrestres. “Madame!” nós ouvimos Monsieur Scrooge dizer em uma voz grave e ultrajada, mas ela já debandava para o fundo da igreja, abandonando o celular de brinquedo no chão.

Missão cumprida, Scrooge virou-se de volta para o seu assento. O padre e os paroquianos o viram andar carrancudo pela nave. Quando já estava seguro, Anna correu atrás da mãe, balançando o celular de brinquedo. Por um momento, achei que nosso doce padre de cabelos cacheados iria dizer alguma coisa sobre este pequeno drama; era, afinal de contas, o domingo para les enfants.

Mas, em vez disso, fez-se o silêncio enquanto ele abençoava a hóstia, e depois, do outro lado da nave, muito atrás de nós, veio uma desafiadora série de grasnidos. O bebê e sua maman ainda não estavam derrotados!

Quando chegou a hora de ir à frente para a Comunhão, Scrooge levantou-se antes que o padre tivesse terminado de falar, assegurando seu lugar bem no início da fila. Ao receber a sua Comunhão, em vez de retornar ao seu assento, ele plantou-se ao lado do cotovelo do padre e virou-se como se para adorar o altar.

“Ele irá abordá-la quando ela for receber a hóstia!” Alessandro disse, com prazer óbvio e ímpio. Mas não, não seria desta vez: a jovem mãe tomou a hóstia sem incidentes. O plano de Monsieur Scrooge – qualquer que fosse – foi frustrado por uma senhora em uma cadeira de rodas que o forçou a mover-se para o lado.

O jovem padre, fazendo o melhor de uma situação ruim, colocou sua mão na cabeça redonda da criança, abençoando-a e, supostamente, todos os seus grasnidos e gritinhos.

* * *

Hoje, Alessandro e Anna viajaram de avião para uma Florença nevada, onde ficam por dois dias antes de voltarem de carro com membros idosos da família italiana e um Chihuahua obeso a reboque. Eu gostaria que parasse de nevar porque estou com medo de que o carro vá bater ao cruzar as montanhas. A biógrafa Elizabeth Stone escreveu que ter filhos é como permitir que seu coração ande por aí fora do seu corpo, e o meu vai cruzar os Alpes.

* * *

Eu comprei alguns presentes na Galeries Lafayette esta tarde, um cachecol macio lilás e uma camisa de renda para minhas colegas de quarto da faculdade. O entardecer caía quando saí da loja. Do lado de fora, na rua nevada, uma barraca estava cozinhando sopa em panelas de ferro, então eu comprei uma xícara de sopa de lentilha com temperos indianos e andei para casa, a sopa aquecendo minhas mãos, explodindo em minha boca.

* * *

Ontem, Luca e eu estávamos perambulando no entardecer quando passamos por um pequenino bar com paredes escarlates e um grande sofá. Um homem no interior inclinou-se para fumar um narguilé prata decorado. Eu prazerosamente contei para Luca que esta deveria ser uma casa de ópio, tagarelando sobre os vitorianos e seus hábitos mais questionáveis, antes que eu lembrasse de incluir um pequeno sermão sobre os perigos das drogas. Infelizmente para o meu momento de turismo exótico, a Wikipédia sugere que o homem estava fumando tabaco em um “Lounge de Narguilé.”

* * *

Decidi usar minhas amadas caçarolas para criar bolos individuais de cereja embebidas para o jantar de Natal. Aventurando-me para comprar as cerejas, sobrevivi à multidão fingindo que eu era um peixe preso na corrente do Golfo. Não faz sentido nadar contra a corrente, não é preciso usar as barbatanas; apenas esbarre levemente nos outros do seu cardume enquanto você nada, e lembre-se que respirar é desnecessário, pois você é um peixe.

* * *

Com o intuito de realizar uma pesquisa empírica, eu venho reunindo fofocas de família sobre o tio avô Claude. Foi relatado que ele tinha um relacionamento tempestuoso com Ivé, que finalmente o deixou por um alemão. Porque – e esta é uma citação direta de um dos meus tios – “ele não estava à altura da energia sexual dela.” Eu sabia! Ao que parece, minha tia avó Genevieve, uma mulher assustadora que costumava marchar por aí em uma longa capa, escreveu uma carta ao irmão dizendo para ele “agir como um homem” e parar de ser intimidado por Ivé. Em vão, pode-se presumir.

* * *

Hoje eu experimentei uma iguaria tradicionalmente francesa chamada andouillette, que é uma salsicha feita de intestinos de porco (tripas). Estou determinada a investigar todas as comidas que eu reflexivamente evitei quando era mais jovem, mas eu continuarei a evitar esta. Uma vez cortada, a salsicha desfazia-se em pedaços cujo desenho original era evidente demais. Resumidamente, a textura era revoltante. Aventuras culinárias só podem ir até certo ponto.

* * *

Ontem percebi que um apartamento alugado significa uma mesa de Natal sem ornamentos. Então, me aventurei em uma loja chique e comprei cilindros para velas votivas pretos com uma estampa de veludo preto de flor de lis. Ao chegar em casa, percebi que eles haviam sido idealizados por alguém com planos de aproveitar uma animada noite de substâncias ilegais, e não de cantar “Noite Feliz.” Eu tenho remorso de ter feito compras, que provavelmente não é tão ruim quanto remorso de tatuagem, mas ainda assim, dói.

* * *

Depois de terem sido detidos pela neve, Anna, Alessandro, e membros da família italiana chegaram às 22h30 da noite passada. Anna atravessou a casa correndo, indomável com excitação quando viu a árvore e os presentes. “Não olhe!” eu esbravejei. Ela me contou por telefone, da Itália, que agora gostava de Barbies. Eu fiquei surpresa porque ela nunca havia demonstrado interesse antes, mas, após pesquisar quarenta bonecas, escolhi uma e alguns sapatos sobressalentes, uma vez que eu sempre admirei a coleção de sapatos da Barbie.

* * *

Em sua primeira noite em Paris, parecia que Milo estava planejando dormir na cama de Luca (ele costumava ser o cachorro de Luca). Mas, para a consternação de Luca, no último minuto, Milo sacolejou-se para ir dormir em sua almofada de veludo vermelho, no chão perto da cama de Marina.

* * *

O seguinte bilhete – reproduzido abaixo sem qualquer correção – foi entregue em mãos por Anna durante a manhã, antes do café: “Querida Mamãe, eu não gosto de Barbies. É por isso que antes de você me dizer que pudia, eu olhei e sacudi o presente que você e papai me deram. Me DESCULPAAA! POR FAVOR, ME PERDOA!”

* * *

Hoje Marina disse que quer comprar uma capa de chuva de presente de Natal para Milo. Então, a família – sans Milo – foi para uma loja no Marais onde se vende apetrechos para cachorros pequenos. Anna pegou uma pequenina confecção rosa com acabamento de pedraria (eu devo adicionar que Milo é agressivamente macho, e gosta de atacar cachorros com quatro vezes o seu tamanho). Escarnecendo o estereótipo menininha, Alessandro perguntou se a capa vinha em tamanho maior. O comerciante perguntou sobre a raça de Milo para poder escolher o tamanho apropriado. “Não, não, ele não é do tamanho de um Chihuahua,” Alessandro disse a ele. “Ele está mais para o tamanho de um buldogue.” O comerciante parecia quase reprovador, e apontou para três ou quatro capas no canto: o departamento de tamanhos grandes. Destas escassas opções, escolhemos uma capa de chuva transparente com um alegre acabamento roxo.

* * *

É 23 de dezembro e me sinto taciturna. Eu não quero que a temporada de Natal acabe, porque é a única época em que posso legitimamente ceder a um vício particular: purpurina. Em que outra época se pode dispor de 14 potes de areia brilhosa, purpurina em forma de estrelas, cola com purpurina? Só em dezembro o chão em torno da mesa da cozinha brilha na luz do sol e o cabelo de uma criança reluz – não, cintila – como se pó de fadas estivesse se prendido nas mechas.

* * *

No dia de Natal, eu cozinhei duas vezes: primeiro, um enorme ganso que havia sido escaldado e secado ao ar livre por dois dias, recheado, e servido em molho madeira com chalotas; depois, tarde da noite, um risoto muito simples, do tipo que posso fazer com os olhos vendados. O ganso perdeu para o risoto, de longe, ainda que sua pele crocante tivesse sido perfeitamente acentuada pelo molho madeira, que contrabalanceou o toque selvagem conferido pela ave. Tenho dificuldades em lembrar que, só porque um prato toma seis horas na cozinha, não quer necessariamente dizer que vai agradar os meus convidados mais do que uma receita familiar bem feita.

* * *

Decidi destacar alguns momentos deste Natal e tentar, conscientemente, preservar as memórias. Aqui vai um deles: em uma cozinha cheirando a ganso assando, Alessandro me encontrou sozinha e aproveitou a chance para me beijar e me agarrar entusiasticamente.

* * *

Uma parte importante de se preservar memórias é deliberadamente deixar algumas desaparecerem. Edição cuidadosa, se você preferir. Eu planejo esquecer o momento em que minha cunhada analisou a mesa de Natal e disse, “Você esqueceu que eu não como carne?” (Isto, depois de ter comido quantidades enormes de prosciutto no almoço.) A mesma coisa pode ser dita de quando ela pegou seu prato e despejou seu purê de batata doce no prato da sua mãe, dizendo, “Eu geralmente gosto de purê, mas deste... não.”

* * *

Nesta manhã, fomos à missa na Catedral de Notre Dame, que incluía dois bispos, mais incenso do que uma festa hippie, e gloriosa música de coral. Eu confisquei a boneca Skipper de Anna (sabe? A irmã mais nova da Barbie) em um determinado momento, e percebi apenas após tomar a Comunhão que a cabeça rosa e loira da Skipper estava escapulindo da minha bolsa e balançando altar abaixo comigo.

* * *

Embora Alessandro tenha comprado três suéteres pretos antes do Natal, meu presente – um suéter preto – foi muito bem sucedido. Meu marido empregou precisamente as mesmas diretrizes que eu quando ao escolher o seu presente: ele comprou uma enorme e maravilhosamente pesada panela Staub para mim. Ele escolheu a preta.

* * *

Estamos todos horrorizados ao descobrir que a capa de chuva transparente, originalmente destinada para um buldogue francês, não cabe no amplo torso de Milo. Não é possível ajustar a capa. Marina foi forçada a concordar que talvez Milo deva voltar para a sua dieta. Constantemente apontamos os cachorros esbeltos e cheios de vida que trotam pelas nossas caminhadas matinais: pelo visto, nem as mulheres francesas, nem seus cachorros engordam.

* * *

Descobrimos uma loja de miçangas e materiais para bijuterias, Tout à Loisirs, no Marais. É distribuída em uma série de nichos; à esquerda, cada nicho é diferenciado pela cor. Apaixonei-me pelas miçangas de vidro veneziano azul com linhas pretas. À direita, os nichos representam diferentes países: por exemplo, contas indianas de todas as formas e tamanhos, incluindo pingentes brilhantes de divindades indianas sorridentes. Nós compramos pequenas borboletas com asas translúcidas, flores feitas de metal extremamente fino, e camafeus com cabeças do século XVIII.

* * *

Estou exaurida perante a pressão de cozinhar duas refeições por dia para a família agregada, então, na noite passada, minha própria família próxima juntou-se a mim na cozinha. Eu fiz risoto (agora, um pedido de todas as noites do contingente italiano da família); Anna picou; Alessandro lavou e – ta-dam! – Luca pesquisou como cozinhar costeletas de porco no Google e em seguida criou suculentas costeletas de porco empanadas. No jantar, todos nós o elogiamos e depois falamos de outras coisas. Vinte minutos depois, ele disse, “Vamos falar mais sobre as minhas costeletas de porco! Esbanjem elogios à minha pessoa!” Bem vindo ao mundo do trabalho doméstico não reconhecido, querido.

* * *

Paris apresenta dificuldades estruturais para as pessoas com necessidades especiais, como, por exemplo, calçadas estreitas e pavimentação de pedras. Contudo, estas dificuldades inevitáveis são amenizadas pela gentileza: quando empurramos a cadeira de rodas de minha cunhada em direção à porta da Notre-Dame, nos deixaram passar direto pela fila de pessoas esperando para entrar na catedral e sentamos bem abaixo do altar. Entrando na lanchonete de uma loja de departamento cheia de pessoas atropelando-se em corredores lotados para pegar assentos, fomos instantaneamente levados para uma mesa livre. Garçons de um café ao ar livre no Champs-Élysées abriram passagem e reconfiguraram elaboradas fileiras de assentos para acomodar a cadeira dela.

* * *

O teto arqueado do Marché Saint-Quentin é feito de vidro, e ontem à noite percebemos que suas fileiras de luzes de Natal azuis e brancas refletem contra o céu escuro da noite, como se os céus revelassem que ostentam rodovias movimentadas de estrelas apressadas. Anna remendou minha descrição: os céus ostentam rodovias estreladas e gasosas.

* * *

Eu cozinhei peito de pato para o jantar, o marinei primeiramente em vinho tinto e alho, e depois o selei em uma frigideira com uma pera e molho Grand Marnier. Mais tarde, Luca, que despeja ketchup em tudo desde batatas fritas até escargots, levantou seu vidro fechado de ketchup no ar e anunciou: “Você sabe o que isso quer dizer, mãe?” Sim, eu sei. Quer dizer que em algum lugar, em alguma parte remota do mundo, um porco acabou de levitar graciosamente e voou em volta de seu curral, é isto que quer dizer.

* * *

Uma fileira de mansardas elegantemente estreitas brotam do edifício do outro lado do meu escritório. Por vezes, uma mulher cadavérica com belas maçãs do rosto e lustrosos cabelos pretos abre a sua janela e debruça-se para fora, fumando e batendo as cinzas nas telhas. Hoje ela está usando um vestido vermelho e parece que ela pertence a um romance do século XVIII, do tipo em que heroínas encontram um triste fim.

* * *

Ontem foi noite de Ano Novo, então, a família bebeu champanhe e comeu ostras na concha. A mãe de Alessandro tolerou o champanhe, apesar de ter falado que a versão italiana, prosecco, é melhor para a digestão. As ostras haviam sido catadas naquela manhã, e ainda tinham reminiscências do sabor marcante do mar, como a memória de um mergulho salgado na infância. À meia noite, a Torre Eiffel explodiu em um banho de faíscas, e 2010 passou por debaixo da porta.

* * *

No final da nossa rua, há um excelente restaurante kosher, Les Ailes. Na primeira vez em que almoçamos lá, no outono, ficamos fascinados com um casal de meia idade, que rapidamente decidimos que eram amantes casados com outras pessoas. Eles reclinavam próximos um ao outro, comendo com um ar de ardor e excitação. Passado o tempo, e outros almoços, nós concluímos que Les Ailes é um parque para estripulias adúlteras; sempre conseguimos achar casais no salão que se qualificam para tal. Mas ontem, escapando de nossa casa cheia de parentes, eu percebi que Alessandro e eu provavelmente parecíamos amantes adúlteros, eufóricos com a liberdade e encantados com a comida que não havíamos cozinhado.

* * *

Na França, os escoteiros mirins são organizados por paróquia. Esta manhã, as tropas de meninos e meninas estavam sentadas na nossa frente na igreja, vestindo pequenos chapéus com cruzes azuis e bermudas longas, apesar de estarmos em uma fase fria do inverno. Nossa vizinhança é muito multicultural, mas estes escoteiros pareciam um anúncio francês da década de 1940: caucasianos, perfeitamente alinhados e comportados, usando suas boinas e cachecóis vermelhos com um ar inconsciente porém distinto. O ar retrô destes escoteiros homogêneos não é inteiramente atraente.

* * *

Após cuidadosa inspeção, esta manhã Marina decidiu que Milo havia engordado desde que chegou a Paris. Isto causou uma crise, aumentada quando Anna confessou que Milo acabara de afanar e comer um telefone celular de chocolate. Ao contrário de tudo que já havíamos escutado sobre a toxicidade de chocolate para cachorros, Milo segue bem disposto e vigoroso, sem mencionar faminto. Ele realmente ganhou meio quilinho parisiense e não será mais agraciado com o prosciutto das festividades.

* * *

Na vitrine da Emanuel Ungaro, a manequim posa de costas para os transeuntes, acenando para um colega invisível. Ela veste um rosa shock imprudente, uma longa faixa de seda que deixa a maior parte das suas costas expostas. Em vez de abertamente vender o vestido, a demonstração sutilmente nos lembra que estamos no escuro com os narizes gelados e pés cheios de neve, e, em algum lugar... onde ela vive... o ar em si exala luxo.

* * *

Anna na banheira, discutindo sobre a hora de dormir. “Por que,” ela quer saber, “Luca pode ficar acordado até as dez horas e eu não posso?” “Porque ele tem 15 anos,” eu digo, “e quando ele tinha 11 anos, ele tinha que ir para a cama às oito também.” “Como você sabe?” ela quer saber. “Porque eu sou mãe de vocês dois!” “Talvez você não seja,” ela ressalta. “Você pode ser apenas uma mãe disfarçada.”

* * *

Faz tanto frio em Paris que eu vou constantemente à cozinha e abro um pouco o aquecedor, de forma a encorajá-lo a aquecer as minhas mãos. No metrô, hoje de manhã, percebi que as mulheres estão se adaptando adicionando um cachecol extra. Uma mulher usava um de seda com flores bordadas perto do seu rosto, e outro de tricô cor de rubi, quase um xale, que ela colocou em volta dos seus ombros.

* * *

Anna tem uma posse premiada: uma minúscula borracha rosa em formato de hamster, dada de presente pelos primos de Michigan. “Veja bem,” Anna explicou, “todo mundo ama esta borracha porque não há nada igual em Paris.” Oh, estes parisienses carentes. Pelo visto, de todas as crianças, Domitilla é quem mais ama a borracha. “Ela disse, ‘Eu a amo, eu a amo, eu a adoro, por favor, posso brincar com ela?’” Anna contou. “E?” eu incitei, esperançosa. Anna me olhou com desdém.

* * *

Na noite passada, fizemos um jantar e convidamos o parceiro de conversação de Alessandro, Florent, e eu finalmente o conheci. Ele é absolutamente encantador – alto, esguio, muito bonito, e muito, muito francês. Ele tem cabelo castanho e belos olhos verdes. E ainda mais, ele ensina idiomas e literatura na para alunos do ensino fundamental e realmente gosta de adolescentes. Eu acho que ele é perfeito e poderia o apresentar a uma série de amigas solteiras nos Estados Unidos. Mas Alessandro diz que o coração dele pertence à garçonete italiana.

* * *

Dada a minha resolução de Ano Novo, que foi adquirir um nível de elegância parisiense rapidinho quanto quem rouba galinhas, achei apropriado ir às compras. Hoje é o começo das liquidações semestrais nas lojas por toda Paris. O governo francês permite apenas duas liquidações por ano, regulando as baixas de preço tanto em lojas de departamento quanto, por exemplo, nas lojas da moda (e caras) na rue du Fabourg-Saint-Honoré. Você viu o evento de vestidos de noiva da Filene’s Basement na televisão? Adicione os seguranças das liquidações de “Black Friday” do Walmart, contendo as hordas para que comerciantes inocentes não sejam literalmente pisoteados até a morte. Eu envelheci cinco anos na Galeries Lafayette, então não sei se minhas botas pretas novas vão ter muito uso.

* * *

A caminho do Marché Saint-Quentin, passamos por uma loja com caixotes de diferentes variedades de ostras arrumadas na vitrine. Três senhores calejados estão de pé atrás do balcão; eles vestem luvas grossas e abrem ostras. Isto demanda força física surpreendente: eles puxam as conchas enrugadas defensivas e abrem-nas como travessas, fazendo piadas entre si o tempo inteiro.

* * *

Precisamos devolver a pequena capa de chuva chique que não pode ser ajustada em volta do torso rotundo de Milo, mas, enquanto isso, Anna tem brincado com ela. Ela o enrolou em volta da cabeça, e o amarrou no queixo. Ela diz que é um capacete de solda e que ela é “Anna, O Agente Secreto.” Perguntei a ele o que O Agente Secreto estava fazendo, e ela disse que estava “buscando o incrível”: isto quer dizer, tentar invadir o quarto de Luca, território estritamente proibido para irmãs mais novas.

* * *

Para o Natal, minha madrasta mandou um deslumbrante chapéu para Anna: tricotado a mão em Minnesota, de lã roxa irregular com contas de madeira. No topo, há uma pequena borla com uma conta na extremidade. É uma criação adorável que me lembra dos chapéus usados por elfos noruegueses nos livros ilustrados de crianças. Eu achei emocionante, e me deu um pouco de saudade de casa, olhar para a estação de metrô lotada e ver esse pedaço de artesanato de Minnesota flutuando por Paris.

* * *

Levamos Milo para a requintada loja de vestimentas para cachorros para garantir uma capa que coubesse nele. Lamentavelmente, tivemos que fazer a concessão estética comparado ao acabamento roxo: a única capa que cabe no nosso cachorro obeso é de estampa camuflada verde, aparentemente destinada a um cachorro sendo vestido para uma operação paramilitar. Marina ficou extremamente encantada com um par de botas em cor de rosa intensa. Milo não liga muito para seu novo casaco, e eu detesto pensar em qual seria a sua reação às botas.

* * *

Luca começou a fazer aulas noturnas de francês duas vezes por semana. Porque ele é bilíngue, ele tem um sotaque lindo, mas ainda está muito atrasado em relação ao restante da sua classe do nono ano, cuja maioria dos alunos tem pelo menos um pai francês. “Como são os outros alunos?” perguntamos no jantar. “Mais velhos,” ele disse, com um sorriso malicioso, e depois recusou-se a dizer qualquer coisa além de que as vidas deles eram mais interessantes do que a dele próprio.

* * *

Ontem me aventurei novamente na Grande Liquidação. Encontrei-me em um vestiário ao lado de uma adolescente que alegremente levava sua mãe à loucura experimentando roupas sensuais. “Oh, là là!” a Maman gritou; pela sua descrição, a saia era tão curta que batia nas axilas de sua filha. O próximo visual não foi muito melhor. “Oh, là là!” a Maman exclamou. “Oooh, là là!” O meu próprio adolescente, Luca, hoje saiu com sua postura encurvada para ir à escola hoje com o cabelo parecendo uma escova de vaso sanitário; é tão bom saber que adolescentes são iguais em todo o mundo. OOOH, LÀ LÀ, de fato.

* * *

O enorme departamento de lingerie do Le Bon Marché estava cheio de mostruários com descontos, mulheres os revirando tão avidamente quanto se estivessem procurando pelos seus primeiros amores em uma caixa de fotografias velhas. Eu descobri que mulheres francesas usam calcinhas de cetim rosa plissado, renda branca requintada, e seda translúcida aperolada, mas elas não usam algodão. Eu saí da loja de mãos vazias, incapaz de desgarrar-me das minhas calcinhas Jockeys for Her por estas deliciosas confecções laváveis apenas a mão. Ainda assim, encontro-me pensando sobre os sutiãs... talvez seja a hora de dar as costas ao algodão.

* * *

Paris está despertando um dos pontos de atrito no meu casamento. Nosso apartamento foi construído no século XVIII, e as janelas são originais. Brrr. Alessandro diminui a calefação; eu a aumento novamente. Ele diz que a conta da calefação vai nos empobrecer, mas eu insisto em estar aquecida. Nós temos esta batalha há dezesseis anos. Espero que ainda a tenhamos por muitos anos a fio.

* * *

Milo é um cachorro com um paladar não discriminatório; hoje ele despedaçou – e depois ingeriu – uma mamadeira de plástico de um urso de pelúcia que ronrona. Anna tem se lançado pelo apartamento anunciando melodramaticamente que agora o seu bebê vai passar fooome.

* * *

Luca me disse que não queria fazer a sua lição de casa “porque não há razão porque em 2012 todos nós seremos pulverizados,” e ele terá jogado o seu tempo fora com a escola. Eu perguntei onde ele soube desta informação crucial e apavorante, e ele admitiu “pessoas malucas na internet. Mas,” ele adicionou, “pessoas malucas costumam estar certas.” Cruelmente, eu continuei a arruinar seu breve tempo na Terra insistindo que ele estudasse os romanos.

* * *

Ontem, o solo de canto do nosso padre durante a missa oscilou entre altos e baixos; algum tempo depois, ele repentinamente soltou uma frase sobre a importância do batismo, disse que ele estava doente, e saiu. Nos Estados Unidos, a congregação teria imediatamente começado a conversar entre si. Mas os franceses são extremamente compostos; a igreja inteira aguardou silenciosamente e, cinco minutos depois, outro padre adentrou, anunciou que estava tudo bem, e tranquilamente retomou o sermão sobre batismo.

23 N.T. O adjetivo scrooge pode ser traduzido como avarento. A autora utiliza a referência de Ebenezer Scrooge, que é o personagem principal de “Conto de Natal”, de Charles Dickens, e mais tarde serviu de inspiração para o personagem “Tio Patinhas”, por sua ganância e avareza.


Vertigem

Esta manhã, a neve estava caindo ligeira na rue du Conservatoire, inclinada de lado, transformando os telhados de ardósia cinza na cor do leite. Debrucei-me sobre a janela do meu escritório, ociosamente pensando sobre como as crianças fervorosamente amam a neve, quando percebi que estava encarando um grupo de mulheres parisienses na rua abaixo, ocupadas na veloz troca de beijos de um cumprimento invernal. Tendo crescido em uma fazenda, nós enfrentamos tempestades de neve em casacos volumosos (preferencialmente em laranja chamativo, para melhor evitar ser alvo de um caçador que tenha matado uma caixa de cervejas em vez de um animal); estas mulheres vestiam casacos escuros firmemente amarrados em torno de suas cinturas finas. Quando dobravam-se umas em direção às outras, bicando-se como pardais maníacos, seus cachecóis brilhavam em magenta, lilás, dourado esmaecido. Do meu ponto de vista, bem acima delas, pareciam habitantes de um mundo diferente, tão diferentes de mim quanto um bando de pavões é de um peru.

Certo ano, quando tínhamos ainda menos dinheiro do que o de costume, minha mãe retirou as cortinas da sala de jantar, que era estampada com barcos a vela do século XV, e fez vestido de volta às aulas para mim e para minha irmã. Mesmo que o contingente politicamente correto fosse levar mais de mais vinte anos para transformar Cristóvão Colombo de santo para demônio, eu era uma precoce adepta do clube do Ódio-ao-Conquistador, graças a ter sido forçada a usar a Niña, a Pinta, e a Santa Maria durante todo aquele ano, fizesse chuva ou fizesse sol.

Os parisiennes da minha rua nunca se vestiram em cortinas de sala de jantar. Era possível perceber. No momento em que eu permiti essa certeza fixar-se na minha cabeça, cenas infortunas dos meus anos de ensino médio acenderam em minha memória como um programa de TV horrível dos anos 1970. Minha festa de formatura aconteceu em uma cascalheira, embora eu não lembre da festa tão vividamente quanto lembro do vestido que usei – lamentavelmente, percebo que isto é verdade em muitas ocasiões. Eu consegui o dinheiro para comprá-lo trabalhando como garçonete no DeTroy’s Supper Club. O gerente nos fazia vestir saias de poliéster no modelo dirndl e blusas brancas que deixavam os ombros à mostra; parecíamos imitações de membros da família Von Trapp. Peguei dinheiro que recebi pelo trabalho de garçonete e comprei um vestido de formatura no tom exato de rosa que mais iria contrastar com o meu cabelo. Meu acompanhante me trouxe um buquê de rosas semimortas. Precisei acomodá-las na dobra do meu cotovelo, mas seus botões escorregavam do meu braço como uma mulher bêbada sendo carregada para a cama.

Ao longo dos anos, tentei explicar para Alessandro como foi crescer em uma fazenda no Centro-Oeste americano, nos arredores de uma cidade pequena de 2.242 habitantes. Ele nunca conseguiu compreender por completo. Ele cresceu em Florença, na Itália, e sua experiência nos, e com os, Estados Unidos é em grande parte limitada à Costa Leste. Ademais, ele tem um jeito irritante de tentar superar as minhas histórias. Se eu descrevo o drama de circular no ginásio com um vestido cor de salmão ao som dos melódicos acordes de “Stairway to Heaven”, ele rebate com um conto sobre uma viagem de família à Suíça.

Sendo assim, quando recebi, há alguns anos, um convite para a reunião de 25 anos de formatura do ensino médio, pareceu o momento perfeito para o apresentar ao meu passado. Chegamos em Madison e descobrimos que a população havia sido reduzida a menos da metade. Havia uma caminhonete no meio da rua principal e – não estou brincando – bolas de feno rolando em nossa direção. Encarei Alessandro para me certificar de que ele havia entendido o simbolismo, mas seu rosto estava brilhando, regozijando-se na possibilidade de que pistoleiros pudessem pular dos fundos do Shear Salon, como em filmes de spaghetti western com os quais ele crescera.

A reunião em si aconteceu no salão do VFW (sede dos Veteranos das Guerras Internacionais/fora do território dos Estados Unidos), que ficava em um porão. Convenci-me de que seria tudo diferente. Eu era uma professora universitária agora, sem mencionar autora da lista de mais vendidos do The New York Times. Eu poderia ficar de cabeça erguida; meu fracasso em entrar na equipe de torcida organizada estava para trás. Mas, infelizmente: a dolorosa camada de humilhação que me atormentou no ensino médio voltou a galope no momento em que vi os mesmos agrupamentos de pessoas, ainda conversando juntas, duas décadas e meia depois. Embora, certamente, os assuntos da conversa tivessem mudado. “Ela disparou a espingarda contra o teto”, um dos meus colegas de classe sussurrou. “Ela esperava atingir o inútil do marido dela – ele estava tendo um caso na sua cama – mas, em vez disso, ela acertou o xerife. Pegou bem no pé dele.” Eu estava abrindo a minha boca para perguntar o que o xerife estava fazendo no quarto da agressora, mas ela já havia prosseguido. “Você ouviu falar de Lindsay-Ray, não ouviu?” Balancei a cabeça em negativa. “Ela foi morar com sete ou oito homens gays em Minneapolis,” ela disse, “e então engravidou. Tipo uma gravidez milagrosa, né não?” As bebidas eram vodca com um toque de suco, e Alessandro ficou bastante alegre, periodicamente voltando para onde eu estava para me contar sobre suas conversas com um levemente ébrio Garrison Keillor. “Você conversou com a mulher que já tem seis netos? Incrível!” Ele balançou a cabeça com descrença. Mal estávamos nos recuperando do treinamento de banheiro das crianças, de forma que ele não havia notado que a procriação pode começar cedo.

Após o que pareceram outros quatro anos de sofrimento, deu-se início à programação da noite. Um integrante da classe que agora era prefeito de Madison começou a entregar prêmios. Eu honestamente não consigo lembrar por que ganhei um prêmio; assim como na formatura, um detalhe de indumentária ofuscou o evento principal. Quando cheguei na frente do salão, fui presenteada com uma cueca enorme e emporcalhada grampeada em duas ripas de madeira, com uma corda pendurada na parte de cima. Uma “Bolsa Norueguesa”, o prefeito a nomeou. Eu carreguei este objeto de volta à nossa mesa, tentando sorrir na esportiva.

Finalmente, finalmente, finalmente, eu vi na expressão de Alessandro o que deveria ter estado lá o tempo todo: puro horror. “Eles lhe deram isto porque você escreve livros românticos?” ele sussurrou. Eu não faço ideia. Na verdade, eu nem consigo lembrar o que aconteceu depois. Talvez todos no salão tenham ido embora com bolsas norueguesas; talvez o comitê da reunião tenha ficado acordado a noite inteira grampeando as roupas de baixo dos seus avôs em pedaços de madeira. Antigamente, eu sabia instintivamente que eu nunca me encaixaria ali – e eu culpara minha mãe e aqueles sacos de batatas feitos das cortinas da sala de jantar. Mas à luz da minha bolsa norueguesa, estou inclinada a perdoá-la.

Ela queria que fôssemos damas, que deixássemos Madison e criássemos nossos filhos em algum lugar onde ninguém tenha ouvido falar de uma bolsa norueguesa. Ultimamente, tenho um cachecol magenta e botas pretas de salto alto. Eu moro do outro lado do oceano que Minnesota. Eu sobrevivi ao ano que passei vestindo a cortina da sala de jantar, e vivi para contar a história.

As mulheres abaixo do meu escritório haviam parado de beijar-se e haviam, cada uma, seguido os seus respectivos caminhos. E a neve continuava caindo, daquele jeito direcionado e intenso que a neve cai em Minnesota e, ao que tudo indica, em Paris também.

* * *

Muito chocolate e pão com casca crocante... determinei que preciso subir as escadas para o nosso apartamento no quarto andar uma vez por dia. Com apenas um apartamento por andar, este tipo de invasão é novidade para o cachorrinho que vive abaixo de nós. Ele começa a rosnar quando o meu pé toca o primeiro lance da escada; no segundo andar, ele já está latindo; no terceiro, ele está alucinado. Quando abro a porta de casa, estou ofegando intensamente, e imagino que ele também esteja, exaurido por sua interpretação ensandecida de Paul Revere que ninguém escuta além de nós dois.

* * *

A neve na ardósia cinza escura do outro lado da janela do meu escritório parece pelo branco preso no teto, como se a casa estivesse cultivando um casaco protetor contra o ar gelado. Mas estou conhecendo Paris agora: à tarde, um sol frio emerge. A neve-pelo vai cair, e a água vai correr pelos bueiros embaixo da rua.

* * *

Guardando as compras e disparando comandos domésticos, eu desencaixei a forma de gelo, e cubos escorregaram por todo o chão. Alessandro abaixou para os catar, mas uma brecha no contínuo espaço-tempo interveio e ele foi transportado para a idade de 9 anos. Encontrei-me tentando lutar contra um menino insolente que enfiava gelo pelo meu pescoço abaixo.

* * *

Esta manhã, andei pela rue du Cléry, onde as frentes das pequenas lojas mostravam nada além de rolos de tecido, construindo castelos rústicos como se fossem toras de madeira. Enquanto eu caminhava, as lojas tornavam-se mais elegantes, e os tecidos mudavam de poliéster colorido para linho cor de creme e seda delicada. Não mais empilhados como toras de madeira, estes rolos ficam eretos sobre suas pontas, com um drapeado de tecido exposto ao lado para exibir fulgurantes flores vermelhas, ao lado de um rolo de tweed lilás escura próprio para um lorde escocês avançando sobre a um campo de urze.

* * *

No lado mais medíocre da rue de Cléry: uma loja de rendas com milhares de amostras emergindo de armários que cobriam suas paredes estreitas. Perto da porta estão as rendas cor de caqui e de açafrão, com minúsculos espelhos. Apertados ao lado, estão carretéis de renda preta costurada com pérolas em forma de lágrimas, babados acobreados, e acabamento de pele (supostamente) falsa de arminho, extravagante porém divertido.

* * *

Uma grande reforma começou no apartamento acima do nosso. Na cozinha, temos o que os especialistas chamam de luminária de cúpula chinesa, com formato de cone largo e raso. Acabamos de descobrir que há água escorrendo constantemente pela fiação e pela cúpula, caindo em linha reta como uma tira de festão. Alessandro correu escada acima e voltou com o mestre de obras. Ele entrou na cozinha, tomou nota da situação, e disse, “Não acenda esta luz – ela pode não funcionar”.

* * *

Pode haver destino mais cruel do que ter que fazer dieta em Paris? Não estou dizendo que me arrependo de todo aquele crème fraîche, porque eu não me arrependo. Mas a não ser que eu compre um armário inteiro novo, eu preciso praticar alguma restrição. Eu ouvi dizer que as mulheres francesas tomam muita sopa de alho poró (não do tipo cremosa) quando elas precisam perder peso. Eu simplesmente escrevo tudo que eu como. Resumidamente: emagreço por vergonha, em vez de pela dieta do caldo de alho poró.

* * *

O céu está intensamente azul e sem nuvens, no entanto, de alguma forma, pequenos flocos de neve caem por fora da minha janela. Eles flutuam indo de um lado a outro, parecendo fofos e indecisos, como se pertencessem a outra parte do mundo e estivessem caindo aqui por acidente.

* * *

Anna revelou, cinco minutos antes de ir dormir, que seu professor de música brigou com ela até que ela prometesse praticar a flauta doce. “Mas eu esqueci,” ela disse, encolhendo os ombros. “Agora ele vai brigar comigo de novo.” “Onde está a flauta doce?” perguntei. “Você pode praticar agora!” “Mamãããe,” ela disse, revirando os olhos, “está no meu escaninho, na escola, onde sempre fica. Se eu a trouxesse para casa, poderia perdê-la.” Lógica realmente impecável.

* * *

Minha desculpa para o meu francês ruim é que a minha cabeça está cheia de palavras em inglês. Eu gosto de pensar sobre as nuances delas. Tome gay24 como exemplo. É uma pena que tenha perdido o seu significado original; para mim, ela tem um tipo de alegria de festão, como dançar valsa no convés do QE225, ou a sensação da música de swing, tocada em um ritmo frenético e dançada por soldados voltando do fronte.

* * *

Milo ainda ama Luca – seu dono, originalmente – apesar de ter ficado bastante claro que Milo não é um cachorro de menino, uma vez que suas atividades preferidas são comer e dormir (nesta ordem). Luca fez uma música quando Milo era um filhote gordinho, que é mais ou menos assim, “Milo, precioso Milo, doce e suculento, macio Milo...” Ele ainda a canta, embora Milo tenha agora o tamanho de uma foca adolescente. Não se pode colocá-lo no colo, então Luca deita no chão, sua cabeça na barriga do Milo, e canta para ele durante os comerciais da televisão.

* * *

Voltando das compras para casa, tentei compensar a tortura de andar penosamente com as sacolas de compras e dedões congelados com a visualização da memória de deitar nos musgos da floresta de Minnesota, com samambaias encaracoladas balançando sobre a minha cabeça e um cheiro doce e quente do crescimento e da terra preta ao meu redor.

* * *

Como Eu Sei Que Casei Com o Homem Certo: Na noite passada, fomos ao cinema, onde assistimos a “Simplesmente Complicado”, com Meryl Streep. Tivemos que nos sentar com duas pessoas entre nós por causa de uma mulher extraordinariamente mal educada, que recusou-se a pular um assento. A princípio, fiquei irritada, mas enquanto o filme passava, eu percebi que podia ouvir Alessandro rir, quase como se ele fosse um estranho para mim. Nós rimos – histericamente – sempre nos mesmos momentos. Geralmente, eu não percebo isso, porque ele está bem ao meu lado, mas ontem à noite me dei conta de como é maravilhoso estar casada com alguém cujo senso de humor segue tão precisamente o meu.

* * *

Em Nova Jérsei, Padre Mahoney vestia uma batina preta sobre a sua barriga, adicionando, ocasionalmente, uma casula roxa. Por outro lado, nosso padre aqui é Dior com anabolizantes. Hoje ele vestia uma sobrepeliz branca com um acabamento de trinta centímetros de renda feita a mão e uma barra com acabamento arredondado. Por cima, ele vestia uma casula de brocado carmesim, adereçada com uma cruz de veludo verde escuro, adornada com bordados dourados contorcidos.

* * *

Acabamos de chegar muito perto de uma briga familiar sobre se Milo deveria ficar em Paris conosco durante a primavera para passar por ainda mais uma dieta (o que claramente não vai acontecer na Itália). Marina disse que quando o deixamos em Florença há tantos anos atrás, ele sentiu-se abandonado por nós, e é por isso que ele come demais. Ela é a Oprah dos donos de cachorros; tenho certeza de que ninguém ficará surpreso se ele for com ela para casa para mais mimos.

* * *

Ontem fui com uma amiga para o Musée Jacquemart-André, a casa de um casal do século XIX, ávidos colecionadores de arte. A coleção era espetacular; só a banheira já valia o preço do ingresso. Meu quadro favorito era de uma jovem mulher sonhadora e sensual, por Jean-Honoré Fragonard. O pintor está a sua frente, maliciosamente levantando a sua saia com sua bengala. Se você está planejando uma viagem a Paris, este museu é imperdível – o café é administrado por uma famosa pâtisserie, Stohrer. Nicolas Stohrer trabalhou em Versailles como pâtissier do Rei Luis XV; ele é famoso por ter criado o adorado baba au rhum (bolo de rum). Dieta suspensa para a ocasião, eu comi um pedaço, e acho que ele teria ficado orgulhoso.

* * *

Fui arrebatada no metrô por um casaco de chuva absolutamente fantástico vestido por uma mulher parisiense de nariz comprido na casa dos quarenta anos. Era de um preto brilhoso, com estampa de pele de cobra, e amarrado nos pulsos e na cintura, com ombreiras e bolsos grandes. Ela o usava com um lenço rendado e um chapéu de coco, angularmente posicionado no lado da sua cabeça: Emma Peel do seriado dos anos 60 “Os Vingadores,” com um toque gaulês.

* * *

Como Descobrir se Você Exagerou no Programa Politicamente Correto: Ontem à noite, Anna me disse, muito seriamente, que sua professora de italiano era racista. Aparentemente, eles assistiram e discutiram Guerra nas Estrelas (cujo valor educacional eu não consegui entender). “Você me disse que nunca devemos descrever as pessoas pelas suas raças e depois falar coisas ruins,” Anna insistiu. E o que a professora estava debatendo? As raças alienígenas na cena do bar.

* * *

Le Bon Marché é uma loja de departamento com uma maravilhosa seção de alimentos gourmet. Imagine um balcão empilhado de caixas rasas com ovos amarelos frescos transbordando pelas bordas. Em volta dos ovos, há caixas de papelão para ovos em cores similares às de ovos de Páscoa... escolha os seus ovos, escolha uma caixa de pastéis coloridos, faça um belo omelete!

* * *

Eu decidi adotar um estilo francês de dieta, sem incluir a sopa de alho-poró. Ficou claro que os pratos de jantar franceses são menores do que os americanos, e os franceses comem porções muito pequenas, evitando repetir. Alessandro tem reclamado, pois tenho pedido refeições inteiras, e deixado boa parte para ele terminar. Eu acho que comer duas colheradas de crème brûlée é infinitamente melhor do que não comer nenhuma.

* * *

Ontem, a classe de Anna riu dela quando ela cometeu um erro a fazer uma multiplicação com dois dígitos. E Luca esgueirou-se pela porta com os olhos baixos, seu teste de matemática coberto de vermelho. A escola italiana é muito mais difícil – e, portanto, mais traumática – do que a escola anterior deles em Nova Jérsei. Às vezes, não consigo dormir, pensando se fizemos a coisa certa ao vir para cá. Meus filhos herdaram a minha (falta de) habilidade em matemática, e os algarismos são duplamente mais difíceis de serem calculados enquanto se fala italiano.

* * *

Eu tendo a pensar em guarda-chuvas como algo transitório, objetos descartáveis que passam pelas minhas mãos para serem dispensados quebrados em latas de lixo, esquecidos em restaurantes, deixados em taxis, carros, aviões. Mas é claro que eles não foram sempre descartáveis: no século XIX, eles eram feitos de seda, charmosos e com babados, e eram destinados a proteger a delicada pele de uma dama do sol – e exibir seu refinado gosto. Em uma exibição de guarda-chuvas históricos, ficou claro que renda, talvez com duas camadas de folhos, eram uma tendência.

* * *

Na vitrine do Le Bon Marché, há enormes gaiolas douradas penduradas do teto. Canários falsos pousam em poleiros por fora das grades. E as gaiolas acomodam bolsas da Louis Vuitton. A gaiola maior tem uma lindíssima bolsa azul marinho, sua superfície com estampa em alto relevo e brilhosa. Um canário amarelo senta do lado de fora, cabeça empinada para encarar a bolsa, que é (presumivelmente) bonita demais para voar livremente e deve viver em um gaiola dourada, em vez disso.

* * *

Marina disse hoje que a primeira coisa que ela planeja fazer ao voltar para Florença é achar um novo veterinário. Aquele veterinário repugnante que disse que Milo está obeso, ela falou, é novo demais e não entende os problemas emocionais de Milo. Tomando a vida do cachorro em suas mãos, Alessandro ressaltou que já era o terceiro veterinário e mais recente a espalhar calúnias sobre o peso de Milo, e que o número mais importante a se manter em mente não eram os anos de vida do veterinário, mas sim os que apareciam em suas balanças.

* * *

A caminho do jantar, Alessandro e eu passamos por quatro adolescentes sentadas juntas perto de um aquecedor, cuidadosamente batendo a bituca de seus cigarros na grade do aquecedor, tentando parecer quase adultas. Mas suas vozes as traíam, subindo alto no ar como a fumaça de seus cigarros, como se aqueles canários do Le Bon Marché estivessem cantando no frio.

* * *

Ontem à noite, Alessandro e eu fomos andando para o cinema. No caminho de volta para casa, passamos por um homem sapateando, Duke Ellington escapava do seu aparelho de som. Ele usava um chapéu e tinha pernas longas e finas; seus pés batiam contra a calçada do boulevard Poissonière tão rapidamente que era como se uma aranha estivesse dançando com pequenos sapatos de sapateado.

* * *

Apaixonei-me pelas lustrosas paredes azulejadas do metrô. A maioria das estações têm seu próprio estilo distinto, desde o tempo de sua construção original, ao que parece. Na estação Madeleine, uma fileira de azulejos verde-água perolados estão esculpidos em baixo relevo, criando uma onda estilizada que corre por toda a passagem. A onda toma a forma de uma complicada estampa em “NS”, cujas iniciais representam a linha Nord-Sud, conforme foi nomeada em 1900. A estação Cité tem flores de quatro pétalas em um reluzente tom verde garrafa. A estação Concorde foi renovada há aproximadamente vinte anos, e a enorme abóboda sobre o túnel da linha 12 está completamente coberto de azulejos brancos, cada qual com uma letra preta. Lembro de quando meus filhos, ainda engatinhando, costumavam embaralhar ímãs de geladeira em formatos de letras. Eu soltava gritos de exagerada alegria se a palavra gato fosse formada; aqueles azulejos, no entanto, são infinitamente mais impressionantes: eles compõem trechos da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa.

* * *

Perguntei a Alessandro se ele poderia comprar um pouco da espetacular mousse de chocolate feita por uma confeitaria na rue Richer, que fica nas redondezas. Sua resposta: “Achei que você estivesse de dieta.” Estas seis palavras estão entre as coisas mais imprudentes que ele já me disse nos longos anos do nosso casamento.

* * *

Ontem, para o prazer de Anna, Domitilla foi expulsa de sala sem cerimônias e teve que esperar sentada em um banco até que a aula acabasse (alguns minutos). Infelizmente, hoje Anna saiu da aula de matemática para o mesmo banco. Eu salientei que talvez ela e Domitilla fossem mais parecidas do que Anna gostaria de acreditar. “Então, por que você foi expulsa da sala de aula?” perguntei. “Insubordinação” Anna respondeu de forma rabugenta. “Aquele professor não entende o meu senso de humor.”

* * *

Hoje sentei em um café e li o que Claude escreveu comparando a vida em Florença com a vida em Paris. Do seu ponto de vista, viver em Florença torna a pessoa espirituosa (“a maioria das pessoas, eu acho”). Eu fiquei duvidosa, dada a contrária evidência dos florentinos na família do meu marido. Em Paris, Claude escreve, “vive-se muito velozmente, como um rato submetido a terapia de oxigênio,” e é provável que se morra aos trinta anos. Minha irmã, a fonte de toda a sabedoria genealógica, me disse que Claude nasceu em 1884, o que quer dizer que ele tinha 24 ou 25 anos quando morou aqui, e que ele viveu apenas até os 42 anos. Talvez tenha sido por conta de todo aquele oxigênio parisiense.

* * *

Alessandro acabou de voltar de sua troca de conversação: Florent está devastado. Ele entrou no Facebook e descobriu que o objeto de sua adoração, a garçonete na Itália, trocou o seu status. Ela está “em um relacionamento”! Florent diz, tristemente, que ela fez questão de não contar para ele em pessoa, e que ele está muito magoado com seus métodos esquivos. Eu acho que, dado o seu italiano precário e o francês inexistente dela, ela talvez nunca tenha descoberto a paixão dele, quem dirá suas honráveis intenções. No final das contas, ele não empregou as frases românticas que Alessandro o ensinou.

* * *

Paris (e o nosso apartamento) está tão escura e silenciosa nesta manhã que eu sinto como se estivesse completamente sozinha. O céu está da cor de flanela cinza, a escuridão é quebrada apenas pela mansarda de outra pessoa que também madrugou. A mulher que mora naquele sótão pintou as paredes de amarelo e a luz refletida rebate como flor de açafrão na primavera. Se a luz fosse som, a sua janela estaria tocando um concerto.

* * *

Hoje passamos por uma vitrine que revelava um cômodo cheio de manequins despidos com (como Anna apontou) mamilos, sem mencionar silhuetas muito idealizadas. Eles estavam conversando em grupos, e demonstrando como eles podiam levantar um de seus braços, ou girar para o lado. Só um manequim estava vestido com um vestido de festa preto e curto, e uma peruca de cachos pendentes. Ela estava sentada, pernas cruzadas em um ângulo devasso, e de alguma forma, seu esplendor de indumentária e peruca fez com que os outros parecessem cinquenta vezes mais nus – e eróticos.

* * *

Começamos este ano como qualquer outra família americana moderna faria: com múltiplos telefones celulares. Mas eu inadvertidamente deixei o meu em uma mesa em Londres meses atrás, e ainda não o substituí. A vida sem um telefone é mais arriscada, mais solitária, mais vívida. Minha família não entende. “E se eu tiver que falar com você?” Anna choraminga. “Nós já pagamos pelo contrato”, Alessandro me repreende. Eu permaneço obstinadamente desconectada.

* * *

Deparei-me com um protesto em marcha organizado pelos sindicatos que era diferente de todos que eu já havia visto nos Estados Unidos. Os protestantes avançavam em pequenos grupos, bebericando seus cafés. Não havia um equivalente ao canto de “Um, dois, três” que os americanos usam para se manterem entusiasmados. A cada quatro ou cinco carros, um tocava música. Assim, no tempo que levei para atravessar a macha no seu sentido oposto, escutei rock, rap e, finalmente, (da associação de um hospital) Handel.

* * *

Estou tentando ensinar Anna a não brigar com a muito bonita, e muito pestilenta, “Abelha Rainha” da sua classe. (A garota que eu chamei de Beatrice.) Anna tende a revidar, o que piora as coisas. Hoje de manhã, perguntei se Domitilla era uma das cortesãs da rainha. Pelo visto, Domitilla não é uma “menina descolada”, e aquelas pequenas vespas, na verdade, mandam nela, às vezes até fisicamente. Para o horror de Anna, eu anunciei que vamos receber Domitilla aqui em casa.

* * *

Minha estátua preferida em Paris é um agrupamento alegórico, La Défense du Foyer, de Boisseau, na Esplanade des Invalides. Alessandro me disse que foyer é um lar, o que explica por que Monsieur ergue-se alto e audaz, pronto para assassinar dragões, enquanto sua esposa e filhos amontoam-se atrás dele. Ele tem um físico muito belo – e ele está nu a não ser por uma tanga de pele de animal adornada com uma pata sugestivamente posicionada. Para um olhar americano, ele parece um dos primeiros exploradores, especialmente devido ao seu mocassim singular, com a importante distinção de que ele havia mantido – e aparado – seu luxuriante bigode francês.

* * *

Anna e eu estamos de cama com gargantas inflamadas – algo cuja culpa eu atribuo ao fato de que nós trememos de frio por dois dias congelantes antes que o aquecedor fosse finalmente consertado ontem. Ela está aconchegada ao meu lado, ocasionalmente lendo em voz alta partes de um livro do Harry Potter (Anna encara a leitura como uma atividade coletiva). “‘O sol da tarde estava pendurado baixo no céu,’” ela lê, e depois, me diz, “ Eu gosto disso, porque o sol não está pendurando em nada, e então é maneiro.” Obrigada, J. K. Rowling, por ensinar pelo menos uma criança de 11 anos as alegrias da linguagem figurada!

* * *

Ontem, a arqui-inimiga de Anna, Domitilla, veio passar a tarde brincando aqui em casa. Desde que Domitilla sucumbiu ao calor do momento e estapeou Anna no início do ano, Anna a considera persona non grata. Mas eis que as duas brincaram alegremente por horas. “Ela gosta de mim”, Anna reportou mais tarde. “Eu estou pensando sobre gostar dela de volta.”

* * *

A resolução de Ano Novo de Luca era passar no novo ano. Traduzir formas verbais arcanas do latim para o italiano (que ele fala fluentemente, mas conjuga com dificuldade); criar detalhados desenhos arquitetônicos; ir a monólogos em francês... este ano está exigindo dele de formas que ele nunca imaginou possíveis. Ele seria o primeiro a lhe dizer que ele não precisava de tanta exigência. Mas hoje ele passou com ótimas notas nas provas de teatro clássico e matemática!

* * *

Ao longo dos anos de criação de filhos, eu fui forçada a abrir mão de banhos de banheira por apressados banhos de chuveiro, incapaz sequer de fazer xixi sem que houvesse alguém do lado de fora da porta choramingando. Ultimamente, assim que Anna vai para a cama, eu busco refúgio em água quente. As páginas dos romances de bolso, assim como os meus dedos das mãos e dos pés, enrugam-se como faziam quando eu tinha 15 anos; sinto o meu corpo forte, leve, sem marcas.

* * *

Esta manhã, Anna e eu andamos pela nossa rua estreita no quase escuro a caminho da escola. De repente, um enorme bando de estorninhos passou em rasante, voando por cima de nossas cabeças entre o prédio à nossa direita e o conservatório à nossa esquerda, suas asas pretas contra o céu perolado. Logo antes que a rue du Conservatoire terminasse, desembocando em uma coluna de prédios altos na rue du Richer, eles reviraram-se e voaram de volta, tão perto que escutamos o zumbido de suas asas, como se anjos houvessem descido para visitar dois quarteirões de uma rua de Paris.

* * *

Anna chegou da escola chorosa. Ela levou bronca na aula de francês por ter perdido o sua lição de casa, na de italiano por secretamente ler Harry Potter, na de matemática por ter fracassado nos seus exercícios, e ficou de castigo no recreio por ter repreendido um menino que escreveu o seu nome no quadro (não está claro porque ele se sentiu motivado a fazer tal coisa). “Houve uma aula boa,” ela disse, fungando. “Na aula de inglês, eu fui a única que soletrou ‘The orange bag is in the bedroom’ corretamente.” Perdoe-me se não fico muito entusiasmada.

* * *

Anna recebeu sua amiga Nicole para dormir em casa ontem. Elas jogaram Banco Imobiliário até que Nicole disse (em francês), “Te disse que eu era muito boa!” e Anna respondeu (em inglês), “Vamos pular na minha cama!” Esta manhã, eu fiz panquecas, que Nicole imediatamente enrolou como crepes; e Anna a imitou. Estou deslumbrada com as novidades na vida da minha filha, mas ela não está. “Quando vamos para casa?” ela acabou de perguntar. “Você disse um ano, e já estamos aqui há dois anos, facilmente.”

* * *

Alessandro e eu andamos até o mercado hoje e descobrimos que os primeiros narcisos do ano estão à venda. Eles tem aroma doce, são de um amarelo pálido com miolo alaranjados, e cheiram inegavelmente a primavera. Compramos alguns e, quando saímos, estava nevando. Minhas flores primaveris chegaram em casa polvilhadas com um pouco de inverno.

* * *

O corredor do lado direito da nossa igreja é a província dos homens idosos que buscam fácil acesso ao banheiro. Um cidadão digno de cabelo grisalho, barriga generosa e bigode de leão marinho senta-se à direita do altar. Qualquer um a caminho do banheiro faz uma pausa para apertar-lhe as mãos e trocar algumas palavras silenciosas. Monsier Le Moustache parece o prefeito de um antigo filme francês: o Prefeito do Banheiro Masculino, o Lorde do Lavatório.

* * *

Quando você sai na estação Champs-Élysées, antes de chegar na parte comercial da rua, anda-se por um longo caminho adornado com uma revoltante exibição de cultura pop apresentada em enormes cartazes. No início deste ano, elas eram ampliações de capas vintage da Vogue. Agora? Clint Eastwood. É estranho encontrar o bruto anti-herói do faroeste enfeitando a rua mais icônica de Paris.

* * *

Meu pai está se recuperando de um quadril quebrado; com a intenção de lhe dar algo bonito e útil, Alessandro e eu fomos até a Cannes Anciennes de Collection, uma loja de bengalas com variedades chinesas entalhadas com pássaros, e outras francesas de antiguidade com alegres ninfas nuas no topo. Achamos uma bengala fascinante feita para um veterinário de animais de grande porte em torno de 1900. A parte de cima se abre para revelar um bastão secreto, usado para medir a altura de um cavalo. Meu avô era fazendeiro, e meu pai ainda anseia pelo por campos abertos; isto o alegrará.

* * *

A estação de metrô Invalides cheira a torrada amanteigada às 8h30 da manhã, o que me lembra da minha mãe, espalhando manteiga em pão caseiro. Hoje, Anna disse sonhadoramente, “Eu adoro este cheiro de croissant fresquinho.” Percebi que ela está criando suas próprias memórias amanteigadas para serem lembradas daqui a décadas.

* * *

Enquanto eu andava pelas ruas, hoje, meus olhos foram fisgados pelo brilho de frutinhas laranjas penduradas de dois pequenos arbustos em vasos de cada lado da “porta” de uma barraca de acampar montada na calçada. Dentro dela estava um homem, a entrada da tenda parcialmente aberta, alimentando pardais na sua soleira. “Bonjour, Madame!” ele exclamou, com um sorriso tão contagiante que eu acenei, percebendo apenas quando estava na metade do quarteirão que ele poderia estar com fome.

* * *

Florent ainda está desconsolado. Alessandro me conta que ele esteve pensando em tirar uma licença do seu trabalho como professor de escola fundamental para morar na cidade italiana onde a garçonete sem coração vive. Eu sinto alguma compaixão no que diz respeito à decisão dela. É extremamente difícil conduzir relacionamentos entre pessoas de dois idiomas diferentes, especialmente no início. Eu não consegui descobrir como pronunciar o nome de Alessandro corretamente por pelo menos duas semanas depois de começarmos a namorar – tempo demais para perguntar a ele exatamente como soava o seu nome. Felizmente, uma amiga veio da Inglaterra para visitar e me treinou na pronúncia dos erres. De alguma forma, sobrevivemos.

* * *

A esta altura de nossa estadia em Paris, já nos deparamos com uma série de marchas em protesto amistoso. Minha parte preferida é o encerramento: no encalço do último protestante segue uma frota de quatro ou cinco caminhões de lixo verdes, os mesmos funcionários públicos cujos camaradas estão frequentemente marchando na frente. Os motoristas divertem-se dando piruetas nas avenidas vazias enquanto varrem e limpam.

* * *

Anna passou pela porta nesta tarde com a cara fechada e emburrada. Acontece que Beatrice vai fazer o que promete ser uma festa de aniversário particularmente esplêndida, que vai acontecer em um parque aquático indoor – mas nem todos da classe foram convidados, e Anna não foi uma das escolhidas para receber o precioso convite. “Logo depois disso, minha barriga começou a doer,” Anna disse. A minha também.

* * *

Boulevard des Invalides está enfileirado com castanheiras que perderam suas folhas há meses, mas não todos as cascas. As castanhas ficam alto no ar penduradas pelos encaracolados e frágeis galhos criando laços de renda preta contra o céu da manhã.

* * *

Eu, agora, passei a ser loira em vez de ter luzes bastante desagradáveis. Não foi uma mudança a qual aspirei ou que tenha recebido bem (embora se possa dizer que esta é a vingança da França por minhas terríveis habilidades com a língua). Apesar de gostar de dizer a mim mesma que não sou superficial, na verdade, eu estou mentindo. Cabelo é uma categoria que entra logo abaixo da felicidade dos meus filhos e possivelmente acima da felicidade do meu marido.

* * *

Quando nos mudamos para este apartamento, eu logo percebi as janelas porque elas têm cortinas de tafetá reluzente azul pavão do teto ao chão – muito parisiense, eu pensei. Mas, ao longo dos meses, eu percebi que ter janelas de um metro e meio de altura para ver o mundo muda tudo. Ver a neve cair do outro lado da grande vidraça faz com que pareça que a neve está caindo no próprio cômodo; uma janela normal isola a neve ao lado de fora, como se ela caísse em um set de Hollywood, muito distante.

* * *

Alessandro chegou em casa com uma expressão maliciosa em seu rosto e uma sacola de compras desconhecida em suas mãos. Dentro, o chapéu mais bonito que já vi, de veludo verde musgo, com uma flor desajeitada em um dos lados. A aba pode ser dobrada para cima como as dos chapéus das melindrosas da Era do Jazz, ou despreocupadamente virada para baixo, sobre uma orelha. Meus novos cabelos loiros (e até o presente momento, detestados) agora parecem uma decisão genial!

* * *

Eu passei pelo homem na barraca de acampar novamente. Ele construiu uma pequena soleira de madeira na frente da sua barraca para sustentar seus dois arbustos frutíferos; talvez sejam espinheiros-ardentes. Um pequeno prato discretamente convidava à assistência; quando abaixei para depositar uma moeda, vi que a entrada de sua barraca estava aberta. Ele estava do lado de dentro, sentado em posição de lótus, meditando. Voltei para casa pensando no quão feliz ele parecia, com suas frutinhas alaranjadas refletindo contra a calçada cinza, e sua casa simplória.

* * *

Na noite passada, eu e Anna cozinhamos o jantar enquanto Alessandro e Luca digladiavam-se com álgebra; haverá um teste de duas horas de duração amanhã. Quando o macarrão estava pronto, os rapazes ainda não estavam, graças à complicações aritméticas. Então, Anna e eu nos sentamos para ler trechos de Enid Blyton em voz alta com uma entrada de baguete, deliciosa manteiga doce, e um toque de sal do moedor. Comemos e lemos. E comemos. E lemos. Quando os rapazes haviam se livrado dos últimos problemas de álgebra, não havia mais pão, nem espaço para o jantar em nossos estômagos.

* * *

A vida parisiense é pequena e pacata. Eu preparo as crianças para a escola e em seguida penso mesquinhamente em quantas horas tenho antes que eles voltem para casa. Cheguei à conclusão de que silêncio e tempo são os bens mais preciosos.

* * *

Ontem, nós passamos no Hôtel Drouot, a casa de leilões, e me apaixonei por uma chaise longue etiquetada com os dizeres “Duchesse à Oreilles, Époque Régence,” estofada em brocado marfim adornado com botões de flores rosáceas inclinados. Eu imediatamente visualizei várias de minhas de heroínas graciosamente desmaiarem sobre estes sofás.

* * *

Parisienses dão passagem quando se abre a porta do trem, esperando que os passageiros saiam, em vez de empurrar a todos para entrar. Eles formam filas organizadas na mercearia. Eu pareço ser a única pessoa na cidade que atravessa fora da faixa. Mas coloque um deles atrás do volante... tudo muda. Preso no trânsito por mais de trinta segundos, um parisiense fica furioso e buzina até que os prédios no entorno tremam.

* * *

Ontem, fiquei de pé no frio por algum tempo e observei um senhor tocando seu realejo. Seu enorme gato alaranjado dormia em cima do instrumento, envolto em um pequeno pedaço de pele de carneiro. Turistas continuamente lhe davam euros para tirar fotos, o que me pareceu estranho. Tentei imaginar o a apresentação das fotos quando voltassem para casa. “E aqui temos Doris, parada ao lado do velho homem francês que tocava realejo.”

* * *

Lá nas alturas, em algum lugar do céu leitoso, a neve aglomera-se antes que suavemente caia em pequenos grãos, girando delicadamente como um cata-vento. Milhares de bolas de algodão estavam tentando se semear na rue du Conservatoire.

* * *

Anna passou a noite de ontem arrumando o seu quarto. Ela dividiu as suas prateleiras entre “livros com meninas”, “livros nos quais coisas ruins acontecem” (majoritariamente contos de fadas) e “livros para dia a dia” (Junie B. e Enid Blyton). Conferi as minhas prateleiras. Eu tenho “livros com finais felizes” e “livros que me ensinam como ser feliz.”

* * *

Passamos a tarde no Musée des Arts et Métiers, um museu de ciência peculiar e maravilhoso no 3o arrondissement, que abriga tudo desde carruagens do período da Regência até os primeiros computadores da Apple. Há uma boneca autômata admirada por Marie Antoinette (que pode tocar oito músicas!) e o primeiríssimo satélite, que transmitiu para o mundo os passos de Neil Armstrong na lua. Luca ficou completamente fascinado – se não levemente apavorado – pelos objetos como os iPods que usamos agora, mas que já encontraram os seus lugares no museu.

* * *

Durante toda a minha vida, ouvi falar do Pêndulo de Foucault, mas eu não sabia o que ele era até que vi a versão original no Musée des Arts et Métiers. O pêndulo balança sobre um plano, e enquanto a Terra gira em seu eixo, inclinando o plano imperceptivelmente, o pêndulo oscila para uma nova posição e, finalmente, derruba um pequeno bloco de metal. Nós observamos... e observamos... Quando o bloco tombou ruidosamente de lado, eu senti, por apenas um segundo, como se a Terra tivesse rapidamente inclinado sob os nossos pés.

* * *

Mariage Frères, a Maison de thé inaugurada em 1854, deixará você alegremente agitado com cafeína. Eles armazenam seus chás em enormes latas marcadas com nomes fascinantes. Eu comprei Thé des Poètes Solitaires para o meu pai (um poeta solitário), e, para mim, Earl Grey French Blue em sachês. O chá dos poetas solitários era pesado em grandes balanças de latão, e os sachês eram feitos de fina musselina.

* * *

Hoje levei Alessandro ao Musée Nissim de Camondo. Decidi que o meu retrato preferido da coleção é Bacchante, de Élisabeth-Louise Vigée-Lebrun, no escritório maior. Seu corpo resplandece, sinuoso, nu senão por uma faixa de pele de leopardo no seu colo. Moïse colocou outra mulher nua sobre a sua cama, que fica confortavelmente entocada em sua própria alcova. Dado o seu amor por pinturas de nus e sua afiliação a um clube gastronômico, Moïse parece ter sido um homem sensual – o que torna ainda mais triste o fato de sua esposa ter fugido com um adestrador de cavalos italiano. Alessandro insiste que, porque o adestrador de cavalos era um barão, sua nacionalidade e ocupação eram irrelevantes.

* * *

Alessandro e eu assistimos ao vídeo informativo sobre a história da família Camondo e do museu, e eu passei vergonha por ter chorado, embora estivesse rodeada por fileiras de franceses estoicos. Depois que a esposa de Moïse fugiu com o barão, ele parece ter criado seus filhos com o talento dos contemporâneos pais que não trabalham. No entanto, depois que seu filho, Segundo Tenente Nissim de Camondo, foi morto na Primeira Guerra Mundial, ele tornou-se recluso; ele morreu em 1935, doando sua casa ao país que adotou como seu para servir de museu público. Quando a Segunda Guerra Mundial teve início, sua única filha, Béatrice, não acreditava que ela e seus filhos estivessem em perigo; afinal de contas, seu pai havia deixado a casa para a nação, e seu irmão havia dado a própria vida defendendo a França. Contudo, Béatrice; seu marido, Léon; e seus dois filhos, Fanny e Bertrand, todos foram enviados para Auschwitz. Nenhum deles retornou. As fabulosas coleções de Moïse, suas travessas de prata comissionadas pela Imperatriz Catarina II da Rússia, sua mobília revestida de folhas de ouro, não lhe puderam comprar o mais importante bem de todos: a segurança de seus filhos. Ao escrever isto, mudei de ideia. Não houve vergonha nas minhas lágrimas.

* * *

Na luxuosa loja de departamento Printemps, eu estava na escada rolante atrás de uma mulher vestindo um casaco verde escuro com lapelas de veludo... e segurando uma bolsa. E que bolsa! Era uma bolsa de ombro do tipo sacola cor de rosa, um tipo de rosa escuro encantador. Surtiu o mesmo efeito em mim que a Barbie Twist’n Turn anos atrás: vê-la significava cobiçá-la. Eu subi um degrau, determinada a ver a etiqueta. Goyard. Aparentemente mais exclusivo do que Vuitton, no mercado desde 1853... e Reis das Bolsas tipo sacola.

* * *

Alessandro chegou em casa da conversação com Viviane e disse que eles compararam seus alunos, os de Alessandro, da Rutgers, aos de Viviane, da Université Paris-Est Marne-la-Vallée. Viviane disse que os dela já não se lembram mais da ortografia, enquanto Alessandro acha que os dele nunca aprenderam. Eu também esqueci a ortografia. Com a correção ortográfica automática a meu alcance, eu simplesmente não me importo mais.

* * *

Na noite passada, Alessandro e eu fomos a um restaurante repleto de casais cortejadores (sempre um cenário encantador), onde o champanhe tinha gosto de maçã. Deveria ter sido a noite perfeita, mas a comida não era boa. O risoto de Alessandro mais parecia sopa de arroz; meu pato não estava suficientemente temperado; o clafoutis de pera não tinha sabor e havia passado do ponto. Agora, a surpresa: isto já aconteceu muito aqui. Na verdade, posso me aventurar a dizer que uma nação de cozinheiros brilhantes tolera muitos restaurantes sofríveis – e neste não havia um turista sequer para perdoar sua mediocridade.

* * *

Luca se jogou na cama ao meu lado há algum tempo, e parece estar pensando em coisas profundas. “Dáblio é uma letra que forma algumas palavras estranhas,” ele diz, por fim. “Como chiiiirlo (waaaarble).” Ele fala o som arrastadamente. “E também imoral (wanton) e wonton26. Que soam iguais.” Refletindo, acho que wonton soa mais interessante, na verdade, embora você jamais saberia disto lendo meus livros românticos, dada a minha profusão a heroínas imorais (wanton).

* * *

Hoje fomos para um brunch dominical em um dos restaurantes de Gordon Ramsay em Versailles, o La Véranda. Os pratos principais estavam bons... mas as sobremesas! Eu provei nove tipos, determinada a descobrir por empirismo a melhor de todas. O delicioso, macio macaron de maracujá? Os marshmallows rosa shock em forma de babados, os quatro sabores de crème, a torta de figo, o delicado clafoutis? O vencedor foi um delicado bolo com cobertura crocante e saboroso recheio de creme de manga, porque era como morder um dos bolos de Alice no País das Maravilhas: dentro havia uma voluptuosa surpresa.

* * *

Em Versailles, visitamos o Musée Lambinet, que era uma curiosa, variada coleção de objetos de casa dos séculos XVIII e XIX, incluindo uma cama embutida em uma parede. Anna colocou-se no chão ao lado da cama e, com ela como referência, decidimos que não deveria medir mais do que um metro e meio. Também havia fascinantes pratos de latão usados para estampar tecido de toile. Uma das estampas, L’Art d’aimer, mostrava um jovem casal trocando carícias com um senhor rascunhado espiando através dos arbustos, nada como as imagens recatadas que aparecem em toile hoje em dia.

* * *

Meus itens preferidos no Musée Lambinet foram dois ovos de Páscoa “surpresa” dados à Princesa Victoire, filha de Louis XV. Eles são, essencialmente, Polly Pockets27 históricos, mas feitos com verdadeiros ovos de galinha. As partes de cima eram suspensas por finas correntes. Um deles representava a cena de uma pequena casa, com uma minúscula dona de casa recebendo uma visita. O outro continha uma cena de floresta. Em comparação, os ovos Fabergé (que datam de mais de cem anos depois daqueles) parecem chamativos e vulgares.

* * *

Uma mademoiselle cheia de estilo entrou no vagão do metrô atrás de mim: seu casaco vermelho cereja tinha costura preta e era ajustado na cintura com uma larga faixa elástica. Ela tinha cabelo loiro platinado e curto, usava óculos de gatinho e um lenço com estampa de leopardo amarrado na cabeça. Ela parecia uma atualização chique de Brigitte Bardot. Eu estava catalogando toda essa maravilha francesa quando me dei conta de que ela estava falando inglês! E não qualquer inglês – inglês americano! Vai, vermelho, branco e azul!

* * *

Depois da escola, Anna me encontrou com um sorriso torto que sempre significa problema. Ao que tudo indica, no almoço ela ofereceu o queijo dela para um menino. Rejeitando cheddar como um queijo inferior, ele o jogou de volta; naturalmente, ela atirou o queijo na cabeça do garoto. Ele jogou o queijo em outro menino, e dentro de segundos o ar estava repleto de queijos alados, embora o professor não tivesse visto porque estava de costas. Anna recuperou o queijo e o atirou novamente no primeiro menino, que ricocheteou no ombro dele e acertou... o professor. Naturalmente.

* * *

Esta manhã, deixei Anna na escola e atravessei o Sena em uma ponte exuberantemente dourada. O vento estava ferozmente gelado, mas o céu estava completamente azul, e a forma com a qual o sol iluminava o rio e dançava sobre todas aquelas folhas douradas abriu a porta do inverno diretamente para a primavera.

* * *

Nossa guardienne acabou de subir para entregar a correspondência. Eu estou corrigindo as provas do meu último manuscrito, então, Alessandro levou Anna para a escola de manhã, e eu não me preocupei em tirar os pijamas. Os olhos dela piscaram dos meus cabelos despenteados até minhas pernas envoltas em flanela florida, e depois subiram novamente para o meu rosto. “Bonjour!” ela disse animadamente, e eu sabia que minha escolha de indumentária seria discutida com cada um dos residentes do número 15 da rue du Conservatoire até esta mesma hora do dia seguinte.

* * *

Hoje, Luca e Alessandro estavam caminhando e viram um delicado sapato de chocolate na vitrine da Joséphine Vannier, “Chocolat Artisanal.” Eles o compraram para celebrar o término da revisão de O Beijo Encantado, minha versão de Cinderela. Cada detalhe, do calcanhar à ponta do dedão, é impressionante – e ele é recheado com maravilhosos chocolates pequeninos.

* * *

Alessandro transformou-se em um corredor de longas distâncias aqui e regularmente sai para corridas de quarenta minutos. Na noite passada, ele cutucou seu peitoral musculoso, dizendo, “Você acha que eu estou ficando magricela?” Neste mesmo momento, percebi que minha calça verde preferida não cabe mais nem nas minhas coxas, nem na minha bunda.

* * *

Hoje fui até a escola de Luca para dar uma aula sobre Shakespeare e Macbeth. Deixando de lado os detalhes amargos (embora eu não vá esquecê-los até a minha morte), permita-me apenas dizer que alunos do nono até o décimo segundo ano estavam agrupados no ginásio; que alguns deles haviam estudado apenas um semestre de inglês – ainda que todos tivessem aparelhos eletrônicos; que apenas um ano havia lido qualquer coisa de Shakespeare; e que a diretora da escola me apresentou, concluindo com uma súplica para que eles se comportassem. Na sequência, ela me passou o microfone e disse “Buona Fortuna”. Boa sorte!

* * *

Anna assumiu um novo papel: conselheira romântica para o público de 11 anos de idade. Sua ex-inimiga, atual-amiga, Domitilla aparentemente tem uma queda por um jovem fã de Guerra nas Estrelas. “Ela queria usar os cabelos em tranças sobre as orelhas, como a Princesa Leia,” Anna disse, encolhendo os ombros. “Mas eu acho que ele gosta da Nicole, então ele nem ao menos repararia. Meninos não reparam.” Na minha opinião, nada bom pode resultar de um penteado de Princesa Leia.

* * *

A receita perfeita de comida reconfortante para meninas de 11 anos com gargantas inflamadas: cozinhe batatas, descasque-as sob água fria, amasse-as com um garfo e misture-as com muito crème fraîche, em seguida tempere com um pouco de sal e aguarde os sorrisos largos. Sendo que esta criança que chiava de nojo só com a ideia de creme entrando em sua boca.

* * *

Luca acabou de partir para uma viagem de uma semana para esquiar com seus colegas de classe. Eu lhe dei um sermão de última hora – nada de drogas, nada de beber, nada de sexo e nada de pistas para esquiadores muito experientes – enquanto Anna escutava com fascínio. “Por que você está dizendo tudo isto para ele?” ela questionou, ao fim do sermão. “Ele não pode fazer aquelas coisas! Ele é PG-13, não R28.”

* * *

Um desdobramento interessante na vida de Florent! Durante a sessão de conversação de hoje, ele nem sequer mencionou a garçonete italiana de coração de pedra, mas falou por uma hora sobre uma mulher que já conhece há um ano e meio, só uma amiga. Ela ensina língua e literatura francesa na mesma escola de ensino fundamental onde Florent trabalha. Ele sempre a achou interessante, mas, obcecado pela sua garçonete, ele nunca realmente levou a possibilidade em consideração. Agora, ele leva.

* * *

Achamos uma loja de mobília no Marais que exibe arabescos: luminárias com elaborados entalhes; um armário com revestimento de ferro forjado; um sofá cujos braços giram em espiral, como a concha de um caramujo. Apaixonei-me por uma cadeira assimétrica de veludo vermelho, cujo braço formava uma voluptuosa ondulação , enquanto o outro irrompia em uma quina afiada. Ainda assim, acho difícil imaginar que tipo de pessoa gostaria de morar com esta mobília: ela teria que viver uma vida pautada pelo le chic.

24 N.T. O significado original da palavra gay, em tradução para português, pode ser feliz, jocoso ou alegre.

25 N.T. QE2 é a abreviação de Queen Elizabeth 2, um navio que operou predominantemente como cruzeiro transatlântico de 1967 até 2008.

26 N.T. Wonton é um item da culinária chinesa preparado com uma massa fina cozida ou frita, com diversos tipos de recheios: porco, peixe, legumes e outros. É frenquentemente servido como entrada, em sopas ou até em sobremesas.

27 N.T. Polly Pockets é uma linha de brinquedos norte americana, originalmente lançada pela Bluebird Toys como pequenos estojos, para caber em bolsos, que se abriam para revelar bonecos e acessórios dentro. Hoje em dia, a Mattel é a empresa por trás dos Polly Pockets, tendo alterado significativamente o formato original da Bluebird Toys.

28 N.T. De acordo com a classificação indicativa utilizada nos Estados Unidos, “PG-13” é conteúdo indicado para ser assistido por jovens a partir de 13 anos, e recomenda-se acompanhamento dos pais. “R” é relativa ao conteúdo próprio para jovens acima de 17 e, se mais novos, devem estar acompanhados dos pais.


Sopa de galinha

A trajetória da minha mãe foi da riqueza à pobreza. Ela sempre disse que nunca havia aprendido a cozinhar porque crescera em uma casa com cozinheira e diversos empregados. Porque estes fatos sobre a minha mãe vieram à tona enquanto eu crescia em uma casa de fazenda dilapidada, eu era fascinada com a ideia de que ela costumava viver como uma princesa.

Eu a importunava para me contar detalhes; minha história preferida era sobre a vez em que ela se escondeu no carrinho de bebidas enquanto estava sendo transportado para a sala de estar, rolou para fora, e vomitou no pé do meu avô. O ponto alto da história para ela foi o momento em que meu avô genialmente declarou que sua única filha estava livre para vomitar onde lhe aprouvesse. Este detalhe nunca me interessou – meus irmãos e eu não demos valor ao nosso direito de vomitar pela casa. Eu queria mesmo ouvir sobre o carrinho de bebidas: suas fileiras de copos em formato de funil, suas garrafas tilintando suavemente, o rufar do avental engomado quando a empregada servia aos meus avós os primeiros coquetéis da noite.

Não havia como negar que a fortuna da família havia se dissolvido desde aqueles tempos dourados. Em vez de casar-se com um herdeiro do universo banqueiro, minha mãe inexplicavelmente casara com um filho de fazendeiro; e mais, seu noivo era um poeta, e poesia é muito mais difícil de vender do que milho. Quando meus pais haviam acabado de casar, sua casa não tinha nem água encanada.

Segundo a história, minha mãe – lançada às adversidades e forçada a cozinhar ou falhar – aprendeu a fazê-lo usando o livro The Joy of Cooking29. Eu nunca realmente acreditei nesta história. Era indisputável que, com maestria, ela cozinhava mingau de aveia, assado, e um bolo que ela chamava de Bolo-que-Nunca-Falha (o próprio nome sugere como se encerravam muitas de nossas refeições). Mas ela passava a maior parte do tempo abarrotando meus irmãos em camisas brancas para o jantar, nos ensinando como gentilmente quebrar a casca de um ovo cozido no suporte de porcelana, e nos instruindo nos mistérios de uma mesa posta com a prata da família, que ela insistia em usar em todas as refeições. Na verdade, sua excepcional habilidade para estragar uma receita – como dar até ao Bolo-que-Nunca-Falha um gosto metálico, por exemplo – não pode ser atribuída a Irma S. Rombauer. Minha mãe ressentia o fato de ter investido tempo e energia na cozinha; por dentro, ela sentia que este era o trabalho de outra pessoa. Ela não estava tão interessada em qual era o gosto da comida.

Também eu nunca superei nosso passado perdido de sangue azul; eventualmente este fascínio tornou-se característica de Eloisa James. Se as heroínas dos meus livros românticos não nascem fantasticamente ricas, elas o serão até o final do capítulo, e – para uma mulher – elas crescem com empregadas.

Ainda assim, uma coisa que aprendi morando em Paris é que, ainda que eu esteja cercada de aventais engomados, eu nunca trocaria uma vida privilegiada pela habilidade de cozinhar. Parisienses dedicam tempo considerável à cozinha. Nos últimos seis meses, também eu comecei a dedicar tempo e energia a cozinhar; eu até li alguns livros sobre o assunto. Em uma determinada semana, adicionei cominho a tudo, de ovos a carneiro. Alguns pratos deram certo, outros não. Adicionei lavanda granulada a um bolo de chocolate (não ficou muito bom), e vodca a sopa de beterraba (muito bom). Eu não perdi tempo aprendendo a cozinhar coelho defumado em madeira de macieira com óleo de trufa. Dediquei meu tempo às coisas simples: risoto, um bom caldo, sopa reconfortante.

Então, convidamos novos amigos para jantar, incluindo, em uma noite notável, um banqueiro com um estômago como o de Falstaff (personagem de Shakespeare). Ele é o tipo de francês que, pelo menos na minha imaginação, serve-se em carrinhos de bebida e gosta de pé de porco com lentilha. Eu servi-lhe sopa de galinha.

Ele pediu para repetir.

Então... para vocês que podem querer deslumbrar homens franceses nos seus futuros, aqui vai a minha receita de sopa de galinha:

SOPA DE GALINHA com Limão Siciliano e Cevada: A primeira coisa que você deve fazer é o caldo de galinha. Aqui na França, eu não consigo achar caldo de galinha industrializado que seja aceitável, então eu o faço do zero; realmente, não é complicado. Remova a pele de quatro ou cinco coxas de galinha. Coloque-as em uma panela grande, junto com cebola cortada, uma ou duas cenouras, um pouco de aipo, sal e pimenta, e muita água. Cozinhe esta mistura muito, muito vagarosamente (com as bolhas apenas subindo) por algumas horas (pelo menos três).

Quando o caldo já estiver em andamento, faça a cevada: cozinhe uma xícara de cevada em fogo brando com quatro ou cinco xícaras de água. Quando estiver macia, coe a cevada, mas reserve a água para adicionar ao caldo.

Quando o caldo estiver pronto, escume a espuma. Em seguida, remova as coxas de frango e, quando estiverem suficientemente frias, desfie a carne dos ossos e reserve para a sopa. Coe o caldo e reserve.

Agora que você tem o caldo de galinha, é hora de fazer a sopa em si – o restante é ainda mais fácil.

Fatie um pouco de alho-poró, se você tiver, mas também pode usar cebola. Se você tiver alho-poró, ponha um pouco de manteiga na sua (agora, vazia) panela em fogo baixo; use azeite se você tiver cebolas. Enquanto o alho-poró, ou a cebola, estão refogando, pique em pedaços miúdos um pedaço de gengibre e dois ou três dentes de alho. Você também pode usar um pouco de capim limão amassado neste ponto, se tiver. Eu nunca consigo cozinhar capim limão corretamente (sempre fica duro), mas ele adiciona um sabor maravilhoso à receita. Despeje tudo junto com o alho-poró/cebola. Cozinhe até que você possa sentir o cheiro, mas cuidado para evitar que doure. Então, adicione a galinha desfiada e a cevada, e derrame o caldo. Cozinhe em fogo baixo por aproximadamente meia hora. Adicione sal a gosto.

Para o toque de limão siciliano, esperma dois deles e bata o suco com duas gemas de ovo. Tire a panela do fogo e bata a mistura com a sopa, com cuidado para os ovos não se separarem e talhem. Em seguida, coloque a panela de volta no fogo e mexa vigorosamente por um tempo, até que os ovos cozinhem.

Esta sopa é excelente para os enfermos (gengibre, limão quente e galinha; preciso dizer mais alguma coisa?) e um tônico para pessoas tristes (total reconforto). E fica melhor ainda no dia seguinte.

* * *

No Le Bon Marché: uma vitrine com lindos sapatos de grife em tons de joias. Sobre os sapatos, estavam pendurados pequenos e fofos tutus, como se dentes-de-leão brancos como a neve estivessem flutuando no céu.

* * *

Na França, o Estado fornece assistência a crianças quando as escolas estão fechadas nos feriados e férias. Então, ontem Alessandro levou Anna para o centre de loisir – centro de lazer, ou acampamento de um dia – da vizinhança. Ela segurou firme na mão dele, e disse mais tarde que podia sentir que estava ficando pálida de medo. Mas ela voltou para casa feliz, tendo feito três amigos. “Quando precisei falar francês, falei” ela me disse. “As palavras simplesmente saíram da minha boca!”

* * *

Cheguei cedo para buscar Anna no acampamento, então, li todos os avisos e uma placa do lado de fora “em memória dos alunos desta escola deportados de 1942 a 1944 porque eram judeus.” Mais de trezentas crianças do 9o arrondissement foram enviadas para campos de concentração; a placa prometia Ne les oublions jamais. Eles jamais serão esquecidos. Quando Anna saltou para o lado de fora, eu estava chorosa, mas ela não percebeu. O ar estava agradável e cheirava a primavera, então, sentamos na calçada de um café para uma taça de vinho (eu) e Orangina (ela). Anna colocou um urso polar de argila, feito naquele dia, em cima da mesa. “Seus braços e suas pernas caíram”, ela disse, cuidadosamente arrumando os pequenos pedaços ao lado do corpo, como em um rito fúnebre sacramental. “O nariz também”, ela adicionou, com bastante desânimo.

* * *

As frutinhas caíram dos arbustos do homem sem-teto; talvez isso signifique que a primavera está se aproximando? Hoje, a entrada da barraca estava parcialmente aberta, e trocamos educados Bonjours. Eu dei uma moeda diretamente para ele, em vez de colocá-la em sua tigela, o que parecia ousadamente íntimo. “Ça va?” perguntei. “Tudo bem?” “Oui,” ele disse. “Ça va bien.” Está tudo bem.

* * *

Estou trabalhando em um artigo acadêmico sobre uma peça teatral de 1607 com referências obsessivas a tafetá de seda, então, estou lendo panfletos baratos daquela época, na tentativa de detectar tendências de moda. Deparei-me com isto em um pequeno livro de “gracejos” ingleses: “A coruja e a andorinha trazem o inverno e o verão, mas o rouxinol e o cuco falam apenas de tempos felizes.” Deveríamos todos ser mais como o rouxinol, talvez; eu dispenso o cuco.

* * *

Ontem, Anna chegou em casa do acampamento com os olhos arregalados e as mãos nas cadeiras. “Mamãe! Você não deveria me mandar para este tipo de lugar: os professores são violentos!” Após maiores investigações, pareceu de fato que os professores eram vigorosos – ela reportou que um deles havia “atirado” uma cadeira. Contudo, dada a minha longa experiência com os episódios dramáticos de Anna, suspeitei que a cadeira do professor tivesse caído. “O que as outras crianças acharam?” perguntei. “Elas pareceram não perceber”, Anna reportou. A vida dela é muito mais interessante por causa das coisas que ela vê, que ninguém mais parece perceber.

* * *

Alerta de restaurante parisiense! Um novo amigo nos levou para um restaurante libanês com uma salada avinagrada e deliciosa, cordeiro bem quente, e gloriosas sobremesas que não eram doces demais: cubos de gelatina rosa shock enrolados em delicados flocos de coco, baklava que não deixou os dedos grudentos com mel. Chama-se Assanabel, e de bônus, as lojas no entorno vendem Chanel, Gaultier e Sonia Rykiel.

* * *

Meu tio-avô Claude tinha uma servente chamada Eugénie que lhe trazia água quente para barbear enquanto ele ficava de preguiça na cama. Ele também descreve como ela ficava perto dele segurando uma flor de lapela enquanto ele ajustava sua gravata. Tento imaginar uma servente fazendo o mesmo para Alessandro, e falho. Ele detestaria a intrusão. Eu, por outro lado, provavelmente conseguiria tolerar.

* * *

Receberemos convidados jovens em alguns dias, então Anna e eu fomos até uma maravilhosa mercearia japonesa chamada Kioko para comprar sua bebida preferida, adorada por todas as crianças: refrigerante azul claro com uma bola de gude na tampa. Para abri-lo, você precisa enfiar a bola de gude pelo gargalo, o que causa uma forte efervescência e, por um milagre de engenharia, fica presa, incapaz de subir ou descer, não importa o quanto a criança sacuda a garrafa. O que elas invariavelmente fazem.

* * *

Alessandro e eu acabamos de fazer uma agradável caminhada até Montmartre, o distrito da luz vermelha e lar do Moulin Rouge, o cabaré onde dançarinas de rostos impassíveis alinham-se para alavancar suas pernas bem acima das cabeças dos turistas. Ao passar por um casal de braços dados na faixa dos sessenta anos, não pude deixar de pensar em como eu acho mais cansativo arrumar-me hoje em dia, do que quando eu estava nos meus vinte anos. Mas quão mais difícil seria se você fosse um travesti de sessenta anos? Cuidadosamente empoando um nariz ossudo... base pós-barba... o puro aborrecimento do projeto como um todo.

* * *

Na noite passada, fomos ao mais antigo restaurante de ostras em Paris: Brasserie Wepler, fundado em 1892. Estava lotado de clientes em grupos familiares e encontros românticos; uma belíssima jovem que parecia ter saído de uma pintura Pré-Rafaelita chegou com seu parceiro com ares de poeta. Eles foram colocados em uma mesa perto de um senhor de idade que jantava sozinho, após terem apertado as mãos de todos os garçons. Comer aquelas ostras foi como mergulhar em ondas do mar, provar o frescor selvagem do oceano, seu sal, o leve gosto estrangeiro de águas profundas... A comida que seguiu foi, infelizmente, decididamente inferior. Mas, quem sabe, apenas pelas ostras, a viagem tenha valido a pena.

* * *

Minha colega de quarto dos tempos de faculdade, Marion, chegou para nos visitar com seu marido, Lou, e seus filhos. Durante o almoço em um pequenino bistrô aconchegante, seus dois filhos e Anna praticaram sinais de quadribol, esporte dos livros de Harry Potter. Não prestamos atenção neles até que uma repentina onda de barulho nos forçou a fazê-lo, e vimos que um jogo de polícia e ladrão havia começado. Apavorada, Marion berrou, “Nada de brincadeiras de armas – não em um restaurante francês!” Como se menininhos franceses não andassem orgulhosos por aí usando suas baguetes como armas de brinquedo.

* * *

As notas de Anna em francês foram miseravelmente baixas (em torno de 2 de 10 em um teste mediano). Mas aquela semana no acampamento francês fez toda a diferença. Ela saiu da escola dançando de felicidade. Ao olhar rapidamente o seu teste, sua professora exclamou, “Oh, minha nossa! O que aconteceu com você?!” Anna tirou nota 9 de 10, melhor do que qualquer outro aluno no seu grupo. Ela cantou até chegar em casa, e nós comemos bife e sorvete para celebrar.

* * *

Na rue du Fabourg-Montmartre, subitamente fiquei paralisada em frente a uma loja de roupas vintage com o charmoso nome de Asphodèle, que significa “narciso”. Pendurada na vitrine estava uma bolsa cor de creme perolado, toda estampada em relevo com a logo da grife YSL. Eu podia ver a mão da Jackie Kennedy vestida de luva pegando a bolsa, ou Catherine Deneuve a colocando ao lado de sua cadeira enquanto almoça no Hôtel de Crillon.

* * *

Luca voltou da viagem de esqui com um largo sorriso. A única falha foi quando ele trombou seu snowboard contra um esquiador, e depois disso, ele simultaneamente pediu desculpas em francês (para o esquiador), defendeu-se em inglês (contra um observador crítico), e queixou-se em italiano para os amigos que o aguardavam. E, só para que ele se sentisse ainda mais descolado... ele passou algum tempo com veteranos.

* * *

Na noite passada, Alessandro e eu liberamos os nossos amigos visitantes para um jantar romântico a dois enquanto pedimos comida em casa para jantar com as crianças e as colocamos para dormir. Algum tempo depois, Sadie, de seis anos, acordou em prantos, pedindo por sua mãe. Então conversamos sobre como sua mamãe estava linda em seu vestido preto sofisticado, cheia de brilho e animada por estar em Paris. Cantei canções de ninar, e coloquei seu rostinho suado e grudento de lágrimas no meu ombro, e pensei que, em um piscar de olhos, Sadie estará cantando para seus próprios filhos.

* * *

Enquanto eu caminhava pelo boulevard des Invalides, eu pude ver os arbustos do homem sem-teto pontilhados de vermelho – mas eu sabia que suas frutinhas haviam caído. Cheguei mais perto e descobri que ele havia pendurado pequenas bolas de Natal intensamente vermelhas nos arbustos. Ele apontou para suas pequenas árvores e riu: feliz por ter achado beleza descartada, ou talvez que lhe tenha sido dada.

* * *

Marion e Lou nos levaram para jantar hoje à noite. Marion estava decidida que deveríamos ir a um restaurante com pelo menos uma estrela da Michelin, então, Lou e eu pesquisamos as (muitas) possibilidades e escolhemos Stella Maris, que significa “estrela-do-mar.” O chef é japonês, contudo, a comida é francesa; nós achamos que sua estrela provavelmente foi ganhada com muito esforço. De fato, a refeição foi maravilhosa, embora tenhamos chegado à conclusão de que os amuse-bouches, dos quais havia dois ou três, estavam melhores do que as entradas. E que ninguém deveria gastar aquela quantidade de dinheiro em comida.

* * *

Pelo visto, o visual de “professor universitário distinto” está em alta demanda em Paris. Só na semana passada, um jovem encostado em uma entrada piscou e acenou para Alessandro; uma senhora solitária tomou o momento oportuno – quando eu estava paralisada por uma loja especializada em “saltos altos, de todos os tamanhos” – para aproximar-se dele. “Talvez eles achem que sou francês”, ele disse, um pouco presunçoso. “Talvez eles achem que você tem uma carteira,” eu disse, cruelmente. Seu sorriso murchou, e lembrei dos maridos que têm egos sensíveis, mesmo que eles coletem seus elogios de lugares improváveis.

* * *

Alugamos nosso apartamento parcialmente por causa de suas molduras floridas; não tínhamos ideia de que entre as atrações estava o fato de que ele ficava a dois blocos da mais antiga confiserie, ou loja de doces, em Paris: À la Mère de la Famille, fundada em 1761. É um banquete para os olhos tanto quanto para o paladar: delicadas violetas cristalizadas, ovos açucarados em tons pastéis e graciosas maçãs de marzipã, no tamanho próprio para uma festa de chá de bonecas – ou uma doce mordiscada no Jardim do Éden.

* * *

Ontem assisti enquanto Marion dava à Sadie, de seis anos, o “visual da passarela” que Sadie havia escolhido de uma grande palheta de sombras para os olhos. Marion passou o seu dedo sobre o rosa claro, e espalhou sobre a pálpebra de Sadie. “Agora, um pouco de azul esfumaçado na parte de fora,” ela murmurou, mergulhando o seu dedo no rosa novamente. Ela olhou para o cartão de instruções que Sadie havia escolhido. “Um pouco mais de azul...” Ela passou um pouco mais de rosa no canto dos olhos iluminados de Sadie. “Pronto, você está deslumbrante!” E ela estava, pronta para a passarela, sem qualquer cor em suas pálpebras. “Você é tão boa nisso, Mamãe”, Sadie disse – e eu não poderia discordar.

* * *

O homem sem-teto deve ter algum admirador que é florista! Hoje ele tem dois novos arbustos com frutinhas vermelhas como feijão.

29 N.T. Joy of Cooking ou The Joy of Cooking, um dos livros mais publicados nos EUA com mais de 18 milhões de cópias vendidas, é de autoria de Irma S. Rombauer. Após perder o marido, a autora, então mãe e dona de casa, decide escrever e publicar um livro de receitas como forma de fonte de renda, o que também a ajuda a lidar com o seu estado emocional fragilizado.


Uma primavera parisiense

A primavera chegou a Paris! O céu perante a janela do meu escritório é azul, com rastros felpudos de vapor de aviões formando padrões de renda, e o prédio do outro lado da rua está reluzente com os raios de sol. O quarteto de metais itinerante, que ocasionalmente toca no nosso quarteirão em troca de dinheiro, está na esquina suavemente tocando “Blue Moon” com grande entusiasmo, mas um pouco fora do ritmo.

* * *

Anna voltou da escola triste e com a boca cerrada. A cada dia, um aluno toca o sino do fim do período escolar, e hoje foi a vez de Anna. Então, ela apressou-se escada abaixo, tão animada que não pensou em pedir permissão; ela simplesmente tocou o sino. Ainda não estava na hora, então ela levou uma bronca e foi expulsa do escritório, e – o pior de tudo – um menino chamado Tommaso riu dela.

* * *

Ontem, vi um guarda-chuva francês por excelência na vitrine de uma loja: vermelho vivo com bolinhas e babados. Eu podia imaginar aqueles ardilosos babados dançando abaixo uma rua chuvosa. Eu o comprei para Anna, só para ser questionada (com ira): “Mamãe! Você acha que eu sou a Minnie?” Se, em um dia úmido, você vir uma Minnie por excelência andando na rue du Conservatoire, c’est moi.

* * *

Hoje, jovens rapazes estavam do lado de fora das estações do metrô vendendo ramos de pequenos narcisos, seus caules firmemente amarrados para que as flores em si explodissem em ramalhetes exuberantes. Quase todas as mulheres entregavam uns euros, de forma que a rua estava repleta de mulheres segurando flores amarelas na altura do nariz, parecendo felizes.

* * *

Na hora do almoço, Alessandro e eu fomos andando até a prévia de um dos leilões do Hôtel Drouot, apresentando alta costura vintage, isto é, roupas de grife feitas completamente a mão. Eu experimentei um casaco de ópera Chanel que deveria pesar sete quilos, graças ao primoroso e pesado bordado e aplicação de contas, ambos em ouro – milhares e milhares de pequenos pontos feitos a mão e contas que brilhavam intensamente. Por apenas um momento, senti-me como Grace Kelly.

* * *

Florent é o epítome do romântico francês. Alessandro conta que ele está perdidamente apaixonado novamente. É como se a garçonete italiana jamais tivesse existido. Agora, ele só fala sobre sua colega de trabalho, cujo nome é Pauline. Ela está aparentemente interessada, mas é evasiva. Florent tem 41 anos e quer muito um comprimisso sério; Pauline está na casa dos vinte anos e não está pronta para um relacionamento a longo prazo. Alessandro apontou que a garçonete também era bem mais nova, e Florent retrucou que seu pai tem 71 anos e é casado com uma mulher de 35. Hmm.

* * *

No Le Bon Marché, encontrei sapatos de primavera expostos em tons de amarelo claro e cor de melão. Os melhores foram um par de botas rosa claro com pequenos botões prateados, e um par de kitten heels30 de Sonia Rykiel que eram enfeitados com um cacho de uvas pretas brilhantes. Eles eram muito pouco práticos, mas muito deliciosos. Eu passei dos sapatos às roupas e parei em frente a uma saia, do tipo que é levemente elástica. Em um surto de febre primaveril, decidi experimentá-la – mas, no provador, a saia apertou meu traseiro de um jeito bastante perturbador. A expressão da jovem vendedora baixou quando pedi por um tamanho maior: “Não produzimos tamanhos maiores do que este”, ela disse. Tirei a saia, me sentindo com o traseiro grande demais para viver em Paris.

* * *

Marina me ligou de Florença para reportar que Milo havia repentinamente caído do sofá. Depois de alguma consternação de sua parte e dos vizinhos, eles determinaram que o cachorro deveria ter algum problema digestivo. Carvão foi recomendado como remédio. Na primeira tentativa de administrá-lo, através de um sistema de ingestão via prosciutto, Milo devorou o prosciutto e cuspiu o carvão que estava escondido; e de novo na segunda tentativa. A terceira oferta, no entanto, foi completamente devorada. Ele não caiu do sofá desde então. Agora você sabe o que fazer se algum dia cair do sofá.

* * *

Esta manhã, no metrô: dois adolescentes entrelaçados atrás de uma máquina de bebidas. Anna vira para bisbilhotá-los enquanto passamos. “As bocas deles estão conectadas”, ela sussurrou, “do jeito que pessoas casadas fazem.” Algum tempo depois, ela adicionou: “Romântico. Mas nojento.”

* * *

Minha amiga, Carrie, e seu filha, Charlotte, desceram do avião ontem e, antes que eu pudesse perceber, eu estava andando com elas até Montmartre, o ponto mais alto da cidade. Escalei os últimos degraus para encontrar o domo da basílica da Sacré-Coeur reluzindo na luz do sol, coberto de fileiras de conchas de romeiro que me lembravam desenhos que crianças fazem de ondas do mar: muito regulares, simplesmente fantástico.

* * *

Quando deixei os Estados Unidos, meias calças estavam fora de moda, sendo assim, estou surpresa em ver mulheres sentadas em café, suas sedosas pernas parecendo realmente fabulosas. Carrie e eu fomos até uma loja de meias e fomos informadas de que este ano mulheres estão usando meias calças “invisíveis” ou “cor de areia”. Eu acho pernas descobertas enfadonhas, então, aleluia!

* * *

Mensagem para o Dr. Freud: Eu, no café da manhã, para Alessandro: “As catacumbas parecem ser tão interessantes! Em 1741, um homem se perdeu e seu corpo só foi achado nove anos depois. Vamos levar as crianças hoje à tarde.” Momento de silêncio... e bufadas de riso. Nós vamos.

* * *

Em 1786, os franceses transferiram ossadas dos cemitérios para as catacumbas no subsolo de Paris, marcando a entrada com uma placa macabra: PARE! AQUI É O IMPÉRIO DA MORTE. Nas catacumbas, ossadas são colocados nas paredes que delimitam caminhos tortuosos, com longos ossos e caveiras arranjados em belas formas. Há, inclusive, um deleite para uma escritora de livros românticos – uma parede construída com fêmures intercalados com caveiras na forma de um coração.

* * *

As crianças adoraram as catacumbas. Com direito a guinchados quando água gotejava do teto (possivelmente esgoto francês caindo nos seus cabelos brilhosos) e estremecimentos se acidentalmente encostassem em um osso, o jazigo subterrâneo virou um deleite parisiense. Além do mais, uma acalorada discussão sobre como alguém poderia roubar um osso, se criminosamente intencionado, seguida de uma especulação sobre uma assombração vitalícia por uma fantasma vingador do século XVIII, animou a todos imensamente.

* * *

Carrie e eu encontramos um adorável grupo de franceses leitores de livros românticos que nos cobriu de presentes e em seguida nos levou para um restaurante que nunca antes havia visto um turista. Ficamos particularmente fascinadas por um quadro de uma jovem vestindo nada além de avental, meia calça, e um chapeuzinho encantador, carregando um espanador de pó provocante – foi muito interessante ver como a fantasia da serviçal francesa tem a mesma ocorrência maliciosa aqui como na psique do homem americano.

* * *

Ontem o tempo estava um pouco chuvoso, e nós estávamos praticamente sozinhos na Fontainebleau, o palácio de caça de reis franceses e Napoleão. Por um longo tempo, fiquei observando os maravilhosos aposentos privados de Marie Antoinette, com painéis de fantásticos e lustrosos arabescos... a esplêndida cama que ela solicitou, mas onde nunca dormiu, porque a revolução teve início antes que a família real voltasse ao palácio. Como Versailles é grande e remoto, ele fizera me sentir completamente como uma camponesa norueguesa. Fontainebleau, contudo, fez me querer ser uma rainha – embora, talvez, uma com longevidade maior do que a da pobre Marie.

* * *

Entramos em um restaurante em Fontainebleau ontem; com um extravagante brilho nos olhos, Luca pediu pés de porco com molho de mostarda. Um minuto depois que seu prato chegou, ele tascou o meu maravilhoso cordeiro. Então, cautelosamente comi as patas de porco, cujos tornozelos deveriam ser realmente cheios, tendo em vista a gordurosa carne presa em seus pequenos ossos. Ainda bem que tinha um excelente Bordeaux.

* * *

Fontainebleau tem um carrossel que combina com o palácio real: dois andares, com cavalos, tigre e carruagens de Cinderela decorados com arabescos em tons pastéis. Carrie e eu subimos em um ovo coberto de espirais rosas e giramos e giramos, sedativamente balançando para frente e para trás enquanto as crianças se jogaram em um ovo giratório. Inclinamos, vendo Fontainebleau passar como se acenássemos de uma carruagem real; o riso estrondoso das crianças veio carregado pelo vento.

* * *

O tema da coleção de primavera da Chanel parece ser baseado, estranhamente, em referências a celeiros. Os manequins nas vitrines da Printemps posavam na frente de fardos de palha, e eu havia acabado de passar pela loja da Chanel perto da Madeleine, onde vi manequins em saias curtas desajeitadamente segurando ancinhos. Seria esta uma resposta à recessão, uma ousada (ainda que nada convincente) afirmação de que a maior grife O-Luxo-Somos-Nós está rebaixando-se à fazenda?

* * *

Saindo do ultraluxuoso Hôtel de Crillon: uma mulher de pelo menos sessenta anos, usando botas até os joelhos (no estilo Gato com Botas, com as partes de cima dobradas), uma nesga de coxas sedosas de meia calça clara, e uma saia de costuras rústicas. Um lenço de seda com bolinhas de um intenso tom de laranja flutuava atrás do seu ombro.

* * *

Hoje, Carrie, Charlotte, Anna e eu entramos no Le Dôme, uma café na rue de Rivoli, e fomos atraídos pela música alta até o salão dos fundos, que era fascinante: uma devassa combinação de sofás de veludo e mesas baixas com lanternas de metal que emitiam sibilantes raios de luz. Era possível imaginar o glamour decadente à noite, quando jovens franceses de quadris bamboleantes, usando brincos, se estirariam nas almofadas roxas.

* * *

Carrie e eu deixamos as crianças para trás e fomos para um almoço entre mulheres perto da place de Madeleine, virando a esquina na Chanel e na Hédiard. As pessoas comendo conosco eram tão fascinantes quanto as nossas vieiras: um bebê recém nascido vestido de linho macio cor de menta; uma senhora dividindo a refeição com seu marido (ou amante?) vestida de saia de seda com pregas até os joelhos, seu suéter bordado com a mesma estampa da saia.

* * *

Anna teve dor na barriga na aula e ficou agarrada com a professora na maior parte do tempo. Eu suspeitei daquela dor de barriga, até agora Anna tem sido positivamente maquiavélica em fingir doenças para evitar estudo. Domitilla parece ter colocado sua cabeça sobre a mesa e chorado ruidosamente porque Anna não estava sentada ao seu lado. “Ela é tão dramática”, Anna reclamou, “e às vezes eu ainda penso em como ela me bateu, então, fiquei com a professora.”

* * *

Ontem viajamos de avião até Florença para passar a Páscoa com a família. Eu sabia que não estava mais em Paris quando o assunto do jantar revolveu apenas em torno de comida: salame da Sicília (é melhor do que o de Abruzzi?), os tomates comprados de um fornecedor especial, o prosciutto feito de partir de “porcos felizes” (isto é, porcos criados ao ar livre com produtos orgânicos, se é que tal coisa é possível). “Qualquer tipo de prosciutto deixa Milo feliz”, Anna destacou. Não há evidência de que sua dieta atual tenha reduzido sua cintura.

* * *

As vitrines de Florença estão repletas de ovos de Páscoa – pequeninos embalados em reluzente papel dourado, alguns tão grandes quanto um poodle pequeno, amarrados com um laço cor de rosa. Os meus preferidos são as cascas de ovos de pombos pintadas, cuidadosamente perfuradas e recheadas com chocolate fundido. Deve-se quebrar um dos lados com uma colher, como se abre um ovo cozido, e voilà, prazer em forma de chocolate.

* * *

Para o profundo desespero de Marina, quando ela gritou “Guloseima, guloseima!” (a palavra preferida de Milo) nesta manhã, Milo não apareceu. Convencida de que ele estaria morto, ela vasculhou o apartamento em busca dele – e o encontrou na sala de estar, preso atrás do sofá como uma rolha a uma garrafa. Agora o sofá está a bons 25 centímetros da parede para que a barriga de Milo não fique presa em suas corridas à cozinha.

* * *

Anna e eu saímos com a tia de Alessandro para um almoço entre mulheres hoje. Anna dançou Rivoire adentro, uma majestosa e elegante instituição aqui em Florença, vestindo lindas sapatilhas novas e um vestido com babados. O garçom trouxe guardanapos de papel e, subitamente, um senhor de idade na mesa ao lado bradou “Filippo! Traga guardanapos decentes para estas senhoras; elas são florentinas!” Filippo voltou com um pedido de desculpas e enormes guardanapos de linho rosa claro. Comemos como duquesas (florentinas).

* * *

Alessandro e eu nos aventuramos em busca de ovos de chocolate, já que o Coelhinho da Páscoa acha as crianças americanas onde quer que elas estejam. De modo geral, o Coelhinho da Páscoa pula a Itália, onde os pais dão grandes ovos de chocolate que se abrem para revelar brinquedos de surpresa. Vimos um do tamanho de um bebê de três quilos, decorado com um exuberante buquê de flores de chocolate.

* * *

Eu sempre pensei que a relutância de um menino para falar de seus sentimentos fosse uma construção cultural (criação, em vez de natureza) e criei Luca de acordo com minhas presunções. Mas ultimamente ele apenas geme quando perguntamos sobre suas emoções. “Eu posso falar sobre os meus sentimentos”, ele disse hoje, quando confrontado. “Mas” (com inconfundível repulsa) “não com a minha mãe”. Espero que a pessoa com quem ele estiver compartilhando todos estes sentimentos reconheça o esforço que eu fiz.

* * *

Milo é muito estranho quando corre. Suas pernas parecem delicados galhos costurando abaixo da sua barriga redonda e peluda. Mas ele raramente corre para qualquer lugar que seja; ele evita até andar sempre que possível. Ele parece uma almofada de apoio fazendo teste para ser cachorro.

* * *

Hoje, fomos a uma pequena feira que estava acontecendo no maior parque de Florença durante a Páscoa. Era um pequeno, esfarrapado e altamente ilegal parque de diversões: com figuras dos personagens de Walt Disney, embora as mãos mágicas e sensíveis aos seus direitos legais da corporação Walt Disney certamente jamais se aproximaram. Anna, que havia triunfado sobre a Torre do Terror na Disneylândia de Paris, ficou petrificada com a roda gigante antiga. Subimos nas alturas, sentados em uma pequena cabine com laterais vazadas e nenhum cinto de segurança, e Anna enfiou sua cabeça no colo e gemeu, “Isto não é seguro! Eu não traria a minha filha neste brinquedo!” Eu a ignorei, apreciando o sorriso de Thomas O’Malley, o Matinhos dos Aristogatos no dossel acima da minha cabeça enquanto subíamos para o céu azul, balançando suavemente.

* * *

Uma agradável memória de Páscoa registrada ontem: senhoras andando para a igreja com tigelas enroladas em panos de prato de linho com laços de tafetá na parte de cima. Dentro, havia ovos cozidos, a caminho da missa para serem abençoados pelo padre. Trouxemos os nossos para casa e os fatiamos, por tradição pascal, para fazer um caldo caseiro, o que criou uma sopa ensolarada e abençoada.

* * *

Hoje, todos estamos de ressaca de chocolate. Primeiro, o Coelhinho da Páscoa apareceu, depois a Nonna deu às crianças ovos de trinta centímetros de altura cobertos com enfeites de papel alumínio. Mais tarde, parentes começaram a chegar – também trazendo ovos. A mesa da sala de estar agora está cheia deles, como se alguém estivesse cultivando enormes rabanetes com chamativas terminações de papel alumínio.

* * *

Estamos organizando uma festa de aniversário para a querida tia de Alessandro, Giuliana, a viúva do seu tio paterno, a quem ela conheceu graças à relação familiar que tem com o pai dele – depois que o tio supracitado divorciou-se da primeira esposa. O jantar, que será em seu restaurante preferido, inclui parentes de ambos os lados da família, muitos dos quais mantém relações hostis. Acabamos de fazer o mapa de assentos, que levou várias horas e é um milagre de elegância estratégica e diplomática, na esperança de evitar fagulhas italianas.

* * *

Se você visitar a Itália, não deixe de ir em um dos mercados da cadeia Esselunga. Eles frequentemente oferecem macacões feitos pela empresa francesa Petit Bateau, com pequenas ilustrações adoráveis na frente. Eu sempre compro alguns de presente de última hora, mas só depois de morar em Paris percebi que eles, na verdade, são mais baratos na Itália do que em solo nativo.

* * *

A festa de aniversário para Giuliana aconteceu sem qualquer contratempo. As crianças tiveram todas as razões do mundo para ficarem comportadas durante o jantar, já que a minha ameaça de evisceração acompanhou uma permissão para levarem livros e iPods Touch. Por cinco horas e seis pratos, ele fizeram um trabalho bom em fingirem ser educados e obedientes. Mas quando o bolo de aniversário foi servido, Anna desapareceu de repente. Quando me dei conta, ela estava no colo de Giuliana, abrindo o seu sorriso mais charmoso enquanto uma floresta de câmeras emitia flashes e Giuliana apagava as velas no seu bolo.

* * *

Ao lado de nossa mesa, acontecia outra comemoração de aniversário. O centro das atenções era uma mulher magra feito vara e elegante com cabelo loiro oxigenado, saltos fabulosos e um curto vestido azul. Ela destacava-se dentre os membros de sua família como um poodle de exposição sentado em cima de um grupos de bassês alegres e carinhosos. Meu momento preferido foi quando alguém de sua família a presenteou com uma bolsa carteiro murcha adornada com um grande Snoopy. Ela charmosamente a pendurou no ombro – pela última vez, aposto o meu primogênito.

* * *

Saí para uma corrida com Alessandro e depois trotei 108 degraus até o sexto andar, caí porta adentro e atirei-me no tapete da sala de estar para me recuperar. Milo levantou-se da sua almofada de veludo e veio ver o que estava acontecendo. Para o prazer de todos, ele alinhou seu corpinho gordo ao lado do meu e rolou sobre as suas costas para que pudéssemos ofegar juntos.

* * *

Os momentos preferidos da vida de Anna acontecem quando Luca se digna a brincar com ela. Esta tarde, Luca era o rei, esparramado em uma cadeira, enquanto Anna dançava em volta dele, balançando a sua varinha de condão. Anna, como talvez já se tenha deduzido, é viciada em Harry Potter, enquanto Luca prefere a Idade Média. Do outro cômodo, escuto “Avada Kedavra!” (a maldição da morte), seguida pelo grito de um adolescente de quinze anos: “O que você quer dizer? Você matou o poeta da minha corte?”

* * *

Hoje, as crianças e eu fomos ao Parco Della Cascine, uma enorme propriedade residencial que agora serve de parque público, semanalmente abrigando o maior mercado ao ar livre de Florença, com estandes vendendo de tudo desde latas de lixo a cestas de vegetais a vestidos por um euro ou dois. É um lugar particularmente bom para achar longas cortinas translúcidas, bordadas com flores ou flores-de-lis, o emblema da cidade de Florença.

* * *

Graças a um cabeleireiro italiano, meus cabelos loiros ficaram laranjas. Alessandro sorriu e observou: “Está bastante diferente”. Minha autoimagem ferida foi confortada por Luca, que disse, “Uau, nenhuma mãe tem cabelos assim nos subúrbios”. Em uma demonstração de planejamento realmente lamentável, esta semana Alessandro e eu vamos para Veneza, onde eu devo lecionar uma aula para professores universitários de Shakespeare. Eu posso garantir que nenhum deles terá cabelos que Ronald McDonald invejaria.

* * *

Ontem, perambulei por Florença e fui parar em uma fabulosa loja de sorvetes, Gelateria dei Neri, na Via dei Neri, atrás da Piazza dela Signoria. Se você algum dia vier para Florença, prove o doce e levemente acastanhado sabor de ricota e figo.

* * *

Em Veneza para a conferência, a primeira coisa que fiz depois de sair do hotel foi visitar o Caffè Florian na Piazza San Marco. Quando Alessandro e eu éramos alunos de pós-graduação pobres como ratos de igreja, dividimos um pequeno bule de chá aqui por 7.000,00 liras (US$3,50 na época – uma pequena fortuna). Agora, tínhamos um bule de chá para cada um e escutávamos um quarteto de jazz tocar “And I think to myself, what a wonderful world”31 Nossa conta somou trinta euros, ou aproximadamente US$44,00, um conto furado comparado à alegria de estarmos lá juntos, com as finanças em dia e felizes.

* * *

Hoje, fizemos um passeio no quarteirão judaico de Veneza. É o gueto mais antigo no mundo (datando do início do século XVI) – uma pequena ilha onde todos os judeus eram forçados a viver, sendo assim, eles construíram casas com oito andares, sem elevadores. As sinagogas são lindas, assim como o memorial ilustrando o trem que transportava pessoas aos campos de concentração. De centenas de judeus venezianos, apenas oito voltaram. É desolador.

* * *

Veneza é como um sonho de um comprador compulsivo que dorme – as pequenas e espetaculares pontes sobem no ar e descem em mais ruas com vitrines brilhando com ouro, veludo e vidro. As ruas confundem-se e a sensação que se tem é de andar em círculos, sempre presenteado com mais o que desejar, mais o que comprar.

* * *

Hoje, deparei-me com uma grande placa rosa do Museu Fortuny. Pensei vagamente em seda e decidi investigar. Mariano Fortuny (nascido em 1871) foi um estilista de moda brilhante que trabalhava com seda finamente plissada e veludo lustroso. Não perca este museu: é um pouco sombrio por dentro, mas há um sofá de veludo para descansar as pernas e ler o catálogo do museu.

* * *

Veneza é grande, labiríntica e cheia de escadas. Seu sistema de endereços é obscuro ao ponto da impenetrabilidade, e porque não há ruas, não se pode simplesmente entrar em um táxi, que é a minha resposta para quando estou perdida em outras cidades. Hoje, me perdi mas me encontrei no Restaurante do Grand Canal, no Hotel Monaco. Eu cedi à ostentação com um exorbitante almoço no terraço, sozinha. Comi salada de polvo grelhado e sopa de peixe profumo di zafferano, ou perfume de açafrão, acompanhados de uma taça de champanhe. Meu garçom me considerou louca por tomar uma taça de champanhe sozinha enquanto lia um livro. Mas àquela altura, eu estava cansada de beleza, e um romance que se passa em um planeta alienígena protagonizado por um herói com ares de cowboy era exatamente do que eu precisava.

* * *

O momento de que menos gostei na conferência acadêmica para a qual viajei à Veneza: um ator extremamente talentoso interpretando uma cena como um charlatão, ou um golpista da Renascença. Ele sacudiu sua minúscula garrafa de “Orvalho de Vênus” na direção dos meus cabelos laranjas e disse, “Para senhoras que estão ficando grisalhas, isto trará de volta suas mechas ruivas.” Eu ri, mas pensei coisas amargas sobre o cabeleireiro italiano que prometera restaurar meus cabelos loiros de volta ao seu tom ruivo normal.

* * *

Ao voltarmos para Florença, Marina anunciou triunfante que, enquanto estávamos em Veneza, ela achara um bom veterinário, nada como aquele rapaz zombador que fez piadas sobre a cintura de Milo. Este novo veterinário alegadamente disse que não era culpa de Marina que Milo havia se tornado um Chihuahua de doze quilos – era nossa culpa porque o castramos. “Cachorros castrados são todos obesos”, Marina me informou. Em vão, protestamos que os Estados Unidos são uma nação de cachorros com peso controlado e saudáveis, ainda que lhes faltassem algumas de suas partes. Voltamos para Paris amanhã, o que provavelmente é bom em termos de harmonia familiar.

* * *

Anna chegou em casa e disse, “Domitilla e eu agora somos melhores amigas!” Isto realmente era uma notícia interessante. “Como isto aconteceu?”, eu perguntei. “Domitilla foi expulsa da aula mais uma vez e eu perguntei se poderia ir ao banheiro. Então, fui ao corredor e lhe dei meu pequeno hamster rosa, e agora” – Anna disse, confiante – “ela me ama”. Temo que lições ruins estejam sendo ensinadas pela base transacional desta nova relação, mas eu não pude achar uma forma de expressar a minha intuição sem parecer negativa.

* * *

Enquanto eu avanço no livro de memórias de Claude sobre Paris, estou começando a achar que eu provavelmente não teria gostado muito dele. Ele achava que um “senso de humor espontâneo” era raro em uma mulher. Ainda pior, ele declara que o charme feminino não é nada mais do que isca: há “molas de aço por debaixo”. Dr. Freud teria muito a dizer sobre estas “molas de aço por debaixo”.

30 N.T. Kitten heels são saltos finos e baixos, de 3.5 a 4.75cm, popularizados por Audrey Hepburn.

31 N.T. Trecho da música “What a Wonderful World”, escrita por Bob Thiele (como “George Douglas”) e George David Weiss, popularizada na interpretação de Louis Armstrong. O trecho citado acima, traduzido para Português, é: “E penso comigo mesmo, que mundo maravilhoso.”


Sobre seios e sutiãs

Homens têm um relacionamento especial com seus pênis. Eles os nomeiam, comparam, perdem tempo precioso ajustando suas calças. Eu não vi muitas mulheres transformarem seus seios em secretos melhores amigos, mesmo aquelas que ironicamente referem-se a eles como “as garotas”.

Pela maior parte de minha vida, considerei meus seios completamente satisfatórios: alimentaram meus filhos quando bebês e foram notavelmente úteis na cama. Esta abordagem cuidadosa era refletida em minha gaveta de lingerie. Quando atingi a casa dos vinte anos, ela abrigava uma variedade heterogênea, com algodão sem adornos misturado a sedosas peças de renda, destinadas para noites nas quais alguém poderia querer tirar minha lingerie com os dentes. Estes eram as fotos de Mapplethorpe da minha coleção de sutiãs: marcados com “explícito” e reservados para apresentações especiais com garantia de inspirar uma reação calorosa.

Ao longo do tempo, do casamento e – lamentavelmente – do câncer, meus montes de renda e cetim desapareceram por desgaste, gradualmente substituídos por sutiãs esportivos, de amamentação, e pelo pavoroso sutiã da “mastectomia”, que tem todos os tipos de enchimentos. Após a reconstrução mamária, fiquei obcecada com sutiãs de algodão orgânico, como se eliminar tecidos sintéticos do meu armário – assim como meu câncer havia sido eliminado – fosse fazer de mim uma pessoa mais saudável, orgânica de fora para dentro. Meus preferidos eram dois sutiãs idênticos de algodão que a princípio eram vermelhos mas, após alguns giros na máquina de lavar, desbotaram para cor de tijolo rosa. Eles murchavam, mas meus seios lindamente reconstruídos, não, de forma que a estrutura inferior não parecia importante.

Então, como se diz, Paris aconteceu. Na história da minha vida, este ano em Paris pode perfeitamente ser denominado de O Ano do Sutiã. Em um determinado momento, entrei no departamento de lingerie da Galeries Lafayette e, sem qualquer vergonha, escutei a conversa entre uma vendedora e uma cliente, muito elegante e contida, d’un certain âge, talvez 65 ou setenta anos. A madame gostou do modelo de um encantador punhado de seda cor de creme bordada com rosas pretas, mas se não fosse possível comprar calcinhas que combinassem, então claramente o sutiã não era para ela. Ocorreu-me que era inteiramente possível que um luxurioso, igualmente elegante homem parisiense, também de uma certa idade (ou mais novo!), esperasse por ela em casa, mas mais importante, sua opinião não faria a menor diferença para ela.

Ela estava se vestindo para ela mesma. E os padrões eram muito altos. Virei-me para as fileiras de sutiãs e tentei olhar para eles através de olhos franceses: como deliciosos, encantadores acessórios que fariam os meus seios parecerem peças de confeitaria – para minha própria estima e prazer. Peguei um punhado de sutiãs e os levei para o trocador. Alguns minutos mais tarde, olhei para a minha figura adornada em tule macio e seda. As alças eram enlaçadas com finos fios dourados, fazendo com que eu me sentisse como a esposa de um senador romano. Comprei este, outro de seda fúcsia plissada e um terceiro, azul marinho com babados nas alças.

Não é preciso dizer que Alessandro celebrou esta mudança; no meu aniversário, ele me deu um requintado sutiã de renda cor de cereja. Dependurado de um pequenino laço estava um medalhão gravado com espaço suficiente, ele apontou, para uma foto dele. Eu poderia guardar o meu marido perto do meu coração. (Ou entre os meus seios, como você preferir – esta pode ser uma consideração de gênero.)

Neste tempo, acumulei uma considerável coleção de sutiãs, com as calcinhas para combinar, é claro. Também acumulei cinco quilos a mais. Normalmente, este fato consternador teria me feito evitar o espelho. Mas minha lingerie parisiense afastou os meus olhos de imperfeições, e os redirecionou diretamente para curvas realçadas por renda e enchimento discretamente engenhoso. Mulheres americanas podem perder o seu tempo detestando suas cinturas e seus quadris, mas eu suspeito que mulheres francesas passem seu tempo admirando seus seios – e seus quadris – não importa qual seja o tamanho deles.

Em alguma altura deste fervoroso período de aquisição de lingerie, Anna anunciou que estava na idade adequada para ter um sutiã. Eu claramente lembro de pedir um sutiã “de treinamento”32 à minha mãe. Ela bufou, e perguntou-me exatamente como eu planejava controlar aqueles animais selvagens sem treinamento. A piada não reconhecida deu lugar a um sermão afirmando que sutiãs e seios eram “usados por homens para manter as mulheres na cozinha” – em retrospecto, uma explicação que habilmente evitava a questão da luxúria. A liberação da cozinha (e do sutiã) levou-me a ser a única menina do sexto ano a estar nua da cintura para cima durante um exame de escoliose – e, veja só, tantos anos depois, eu ainda sinto uma onda de ressentimento com esta memória. Consequentemente, eu recebi o pedido de Anna com júbilo: ela estava se tornando uma mulher e nós iríamos nos divertir muito, muito, muito comprando o seu primeiro sutiã. Ela olhou para mim. “Não é como se eu tivesse falado que estava grávida”, ela apontou.

Ignorando este comentário desanimador, saímos em busca de um sutiã de treinamento. Le Bon Marché tinha uma parede inteira deste tipo de sutiãs (com calcinhas para combinar, naturellement). Anna instantaneamente focou em um conjunto de babados e renda caracteristicamente francês. Ela o tirou do cabide e o apertou contra seu seio nascente, como uma compradora ensandecida em uma liquidação de estoque.

Pode ser que mães francesas considerem estas pequenas tiras de renda como sutiãs de treinamento. E, se consideram, o treinamento é consideravelmente diferente do que minha mãe imaginava. Do meu ponto de vista, uma menina francesa é treinada para amar a sua forma, e para ter orgulho pessoal nas suas vestimentas, mesmo que não tenham propósito de serem vistas por ninguém além da própria dona (e sua maman). Em outras palavras, estes artigos de arte não são destinados para exposições certamente ilegais em determinadas comunidades: eles não são para adolescentes selvagens, mas para glamour privado.

Em casa, Anna experimentou seu sutiã e sua calcinha, e depois – como é de costume quando ela ganha roupas novas – foi para a sala de estar desfilar para seu pai e seu irmão. Segurei no seu braço bem a tempo. “Lingerie é privada,” eu disse a ela. “Você é uma mulher agora, lembra?”

Ela franziu as sobrancelhas por um momento, registrando aquele fato, e em seguida virou-se de volta para o espelho.

* * *

Alessandro voltou para casa triunfante do mercado, com os primeiros pêssegos da estação. O meu era pequeno com um sabor instável entre doce e amargo – no entanto, cada mordida celebrava a qualidade do pêssego, um sabor que fala ao paladar sobre dias de verão tão quentes que uma neblina fica no ar, sobre chá gelado, grama volumosa e vestido branco de renda.

* * *

Tenho muito o que fazer. Revisões para um artigo acadêmico precisam ser entregues até o final do mês. Tenho uma coluna a entregar para o site Barnes & Noble Review tratando de cinco romances. Prometi ao meu editor as primeiras cem páginas do meu livro “Beauty and The Beast”, e disse para a minha universidade que eu terminaria o meu livro acadêmico até junho. Então, passei o dia trabalhando em um romance para a qual não tenho contrato, editor, nem prazo. Alessandro revirou os olhos.

* * *

O Petit Palais está oferecendo uma retrospectiva Yves Saint Laurent, então eu e minha prima, Laura, esperamos na fila para conferir. Eu não fazia ideia de que YSL havia popularizado o terninho, tendo tomado a decisão de que mulheres deveriam estar à mesma altura que homens na sala da diretoria. Ou o tal terninho (confiantemente de risca de giz e usado com uma gravata) gerou este furor. Ao que tudo indica, uma socialite, cuja entrada foi barrada em um restaurante de Nova Iorque porque estava usando calças, despiu-se das calças e entrou passeando vestida apenas com a jaqueta.

* * *

Sou particularmente fascinada pelas coleções de Yves Saint Laurent com inspirações retiradas da arte. Ele criou um vestido usando os quadriláteros coloridos de Mondrian, e uma jaqueta com as íris de Van Gogh que deve ter levado diversas semanas de aplicação de contas, lantejoulas e pequenos laços para recriar a pintura. Laura e eu concordamos que ela era primorosa, embora não soubéssemos em qual ocasião poderia ser usada. “É meu aniversário, e estou vestindo um Van Gogh”?

* * *

Minha parte preferida da exposição de Yves Saint Laurent foi uma alta parede exibindo todos os smokings que ele fez em sua longa carreira. Ele tinha 22 anos quando apresentou sua primeira coleção, em 1958, e foi interessante ver os anos 50 evoluírem para os anos 60 com suas tendências hipsters, o crescimento das ombreiras nos anos 80, o aparecimento da seda furtiva nos anos noventa. Ainda melhor: a placa na parede informando que os smokings deveriam ser “usados com pele nua”. Eu sempre achei que peles de animais ganhavam de pele nua.

* * *

Hoje, Alessandro contou que Florent está muito mais apaixonado por sua colega, Pauline, do que jamais esteve pela garçonete italiana. “Afinal de contas, eles podem falar um com o outro”, ele disse. “Isto é importante, você não acha?” Geralmente, concorda-se que a comunicação é uma parte essencial de um relacionamento, sim.

* * *

Uma fileira de pet shops ocupa um par de quarteirões ao longo do Sena. Por incrível que pareça, visitamos cada uma delas em duas ocasiões, e não vimos um poodle sequer. Na Itália esquilos são animais de estimação populares. Eles parecem (a mim) bastante sombrios, mas talvez brasileiros, ao verem papagaios em gaiolas em vez de em árvores, sintam o mesmo.

* * *

Ontem, Anna desatou a chorar na hora de dormir, dizendo que ela não tinha amigos, que ninguém ria das piadas dela, e que ela estava indo mal na escola (o boletim dela indica o contrário). Eu peguei um chaveiro da Grifinória que estava guardando para uma emergência como esta, e ela animou-se ao me contar porque ela definitivamente era da casa Grifinória, e não da Sonserina.

* * *

No apartamento acima do nosso, trabalhadores estão suspendendo as tábuas de madeira do piso original de 1760 para recolocá-las de forma que não ranjam. O dia foi ruim para nós quando cada régua ruidosamente saiu do seu lugar. Mas, em momentos mais silenciosos, eu escuto os trabalhadores cantando, às vezes, músicas portuguesas românticas e, às vezes, o chamado muçulmano à oração.

* * *

Paris está desabrochando! De manhã cedo, andei pelo boulevard des Invalides. Árvores florindo do parques Invalides dobravam-se contra as grades, a primeira com botões cor de vermelho rubi, depois outra com florescimentos fofos cor de rosa, com toques brancos, como se polvilhados com açúcar de confeiteiro.

* * *

Nesta manhã, quando entrávamos na igreja, um distinto homem francês com um enorme bigode grisalho olhou com intento para os cabelos despenteados e incontrolavelmente cacheados de Luca. Uma vez que estávamos dentro, percebi que nenhum outro pai ou mãe havia conseguido encurralar um filho com mais de oito anos para ir à igreja, e não pude evitar de pensar que o senhor bigodudo deveria vir à minha casa de manhã cedo em um dia de domingo e tentar ele mesmo tirar um adolescente de 15 anos da cama. Eu abri mão da elegância em troca da presença.

* * *

Temos amigos de Los Angeles nos visitando, dois artistas e sua filha de seis anos, Phoebe. Orgulhosos de poder nos gabar de um dia quase tão ensolarado como os da Califórnia no domingo, andamos pelos mercados, e Phoebe comprou um saco de ração francesa para porquinhos-da-Índia para levar para o mascote da sua classe, Roxie. Demonstrando ter um verdadeiro toque parisiense, a ração é colorida como um arco íris. Divertimo-nos muito no mercado de pássaros na Île-de-la-Cité falando com papagaios incrivelmente inteligentes, até um desastre: uma caixa de filhotes de coelho, pequeninos montinhos de pelo macio com doces orelhas dobradas e narizes rosados. Phoebe e Anna ambas ficaram tomadas pelo desejo. Expliquei que, sem passaportes, os coelhinhos não poderiam tornar-se cidadãos americanos. Demonstrando aptidão precoce para uma vida no crime, Anna disse que ela poderia esconder um em seu bolso. “Ou nas minhas calças,” ela adicionou.

* * *

Hoje encontramos a mãe da amiga de Anna, Nicole, que tinha consigo sua linda bebê de dois meses. Anna e eu nos encurvamos sobre o carrinho da bebê enquanto ela sorria, olhos bem abertos e sem dentes, e nos disse enfaticamente (em língua de bebê) tudo sobre a sua vida. Não pude deixar de pensar sobre a bebê Bárbara, de Mary Poppins, que promete ao pardal que jamais esquecerá a língua dos pardais e das árvores. E quando ela esquece, ele chora.

* * *

Nesta tarde, passeamos pelo mercado de pulgas de Clignancourt admirando (mas sem comprar) antiguidades da Chanel, até que nossa visitante de seis anos, Phoebe, viu um velho chapéu de palha roxo. Depois de barganhar pesadamente, ela saiu saltitando alegre. E todos nós percebemos subitamente que, em seu elegante chapéu, Phoebe agora parecia-se com uma criança francesa, rebaixando-se a andar com americanos.

* * *

Anna passou por dificuldades hoje, na escola, com a gangue de meninas más de Beatrice, que tomou posse dos colchões durante a aula de educação física e exigiu uma senha (que, é claro, elas não compartilhavam). No caminho para casa, conversamos sobre amigos e quão complicados eles são, e no metrô Anna sorriu e disse, “Eu tenho um amigo,” segurando o quinto livro da série de Harry Potter. Lembro-me bem desses dias. Eu também tinha amigos: Anne de Green Gables, Dorothy Gale e Totó, Nancy Drew.

* * *

Hoje, fomos a um teatro de marionetes no Jardim de Luxemburgo. As primeiras quatro fileiras estão reservadas para crianças, de forma que o boneco favorito delas, Guignol, pode pedir conselhos a elas. Nesta produção em particular, Guignol, com sua cabeça de lã, era servente de um aristocrata de peruca. “Qual é o problema, les enfants? O que está acontecendo?” ele perguntava. Todas as crianças gritavam de volta, avisando-o do crocodilo que colocava a cabeça para fora da panela de sopa. Estávamos sentados atrás de uma família com uma pequena menina de óculos, que dava avisos para Guignol em uma voz aguda – até que uma aranha peluda desceu da cama de Guignol e ela começou a gritar instruções. No intervalo, ela virou-se para os nossos convidados da Califórnia e perguntou muito educadamente o que eles estavam achando da peça. Eles explicaram (através de Alessandro) que eles não falavam francês. Ela pensou sobre a resposta por um momento e depois perguntou: “Por que não?”

* * *

Um amigo francês chamou a nossa atenção para um maravilhoso fato alimentício: as mercearias vendem gaspacho fresco, bem ao lado do leite. Se você vai visitar Paris e quer fazer um piquenique, compre baguete, queijo e uma caixa de gaspacho. Você pode beber a sopa diretamente em copos de plástico e, até em recipientes tão pouco refinados, irá conferir ao seu piquenique um toque gourmet.

* * *

Hoje, levamos os nossos convidados novamente ao Jardim de Luxembourgo, com planos de alugar um barco a vela de brinquedo para Phoebe e talvez um para Anna. Mas eles acabaram sendo sedutores, e acabamos alugando quatro: um navio pirata com caveira e ossos para Luca, um barco a vela com ostentando um peixe rosa para Anna, um barco da Mary Poppins para Phoebe. E o quarto? O pai de Phoebe, que tem 48 anos, retrocedeu para os seus oito anos e correu em volta do lago com um longo pedaço de madeira, cutucando o seu barco para ir mais depressa. O jardim estava cheio de todos os tipos de gente que se esperaria encontrar em um parque urbano em um dia de sol, no entanto, ninguém sentava na grama. Ninguém despia-se, ou tocava música alta ou tentava seduzir outros a perderem dinheiro. Fomos almoçar no café do parque, bebemos vinho branco sob o sol, e falamos sobre como os franceses frequentemente parecem ser as pessoas mais felizes do mundo, embora eu não tenha ideia se eles o são de fato.

* * *

Luca voltou da escola com um sorriso engraçado... dia de educação sexual, ao estilo francês! Ele fora mandado para casa com um livreto informativo em quadrinhos. Anna ficou fascinada com a página intitulada “Tudo É Normal,” que mostrava uma série de meninas de todas as formas e tamanhos. “Estes parecem com os seus seios, Mamãe. Talvez os meus sejam assim. Mas aquela menina ali, ela tem os seios da vovó – vê como eles são maiores? Talvez os meus sejam assim!” Era como uma vitrine para pré-adolescentes.

* * *

Quando se está com o cabelo laranja, graças a um cabeleireiro ruim, o único jeito de ultrapassar a crise é com um estilo agressivo. Lancei mão de um visual Victor/Victoria bastante severo. Ontem, comprei um par de óculos elegantes e estreitos, e, em seguida, impulsivamente comprei um par de óculos escuros Fendi também. Ao que tudo indica, agora pareço ser local; no caminho para casa, me pediram direções três vezes. Nenhuma das quais eu fui capaz de responder, infelizmente.

* * *

Na noite passada, Alessandro e eu perambulamos a caminho de Montmartre, e nos encontramos em uma rua especializada em duas coisas: lojas de guitarra e clubes de striptease. Como as lojas de guitarra pareciam ser frequentadas por fervorosos e jovens aspirantes a musicistas, considerações financeiras sugerem que a clientela dos dois comércios raramente coincidem. Um dos clubes de striptease, chamado Venus, era seguido de perto por outro, chamado Eve. Olhamos através da porta de vidro de um terceiro e vazio clube e vimos uma mulher esperando pelos clientes no bar. Ela estava usando uma peruca prateada tão lisa e macia que parecia uma antiga fotografia das Cataratas do Niágara pintada a mão.

* * *

Gosto muito de uma escultura gigantesca de Winston Churchill que pode ser vista na avenue levando o seu nome, inscrita com os dizeres JAMAIS NOS RENDEREMOS. O escultor, Jean Cardot, deliberadamente nunca alisou a argila (agora transformada em bronze), deixando ela irregular e gretado. É como se Cardot tivesse pegado a voz de Churchill, aquela obstinada, áspera inteligência dele, e tivesse criado um corpo a partir dela. Gosto de passar por ela e imaginariamente saudar o primeiro ministro.

Cheguei em Bochum, Alemanha, para dar uma palestra sobre a Londres renascentista na conferência da Sociedade Shakespeariana Alemã. Alessandro vai juntar-se a mim daqui a alguns dias. O trem de Paris a Colônia conduziu-me através de fazendas onde aglomerados de delicadas turbinas eólicas brancas erguiam-se como garças, conversando juntas no topo de um morro.

* * *

Antes de entrar no trem, Alessandro assegurou-me que todos – mas todos – na Alemanha falam inglês. Isto pode ser verdade em Berlim ou Hamburgo, mas definitivamente não em Bochum, uma cidade não muito grande na região Norte do Reno-Vestfália. No primeiro restaurante em que entrei, com meu amigo Steven, outro professor universitário americano, houve um pânico porque nenhum de nós sabia alemão, nem a equipe de atendimento falava inglês. Depois de algum tempo, o cozinheiro saiu da cozinha em seu avental e traduziu o cardápio. No dia seguinte, a mesma coisa aconteceu em um restaurante diferente: apenas o cozinheiro falava inglês. Talvez cozinheiros sejam particularmente adeptos a idiomas, ou talvez eles sejam mais nômades do que o residente médio de Bochum.

* * *

No sábado, tive a manhã livre, então passeei por Bochum. A cidade estava sediando um festival cultural, com estandes enfileirados nas ruas principais. Fiquei fascinada ao ver três corpulentas e altamente respeitáveis senhoras alemãs de uma certa idade em um estande de cerveja, segurando grandes canecos. Notem, eram apenas dez horas da manhã. Meus colegas alemães mais tarde disseram que elas estavam apreciando Frühschoppen, ou um “copo matutino” – reservado para ocasiões especiais. .

* * *

Os fundos do meu hotel dão vista para um parque com um adorável lago. Ontem, vi um corvo marinho bem no topo de uma árvore, posando contra o céu com suas asas completamente abertas. Observei-o por pelo menos cinco minutos enquanto ele ficou ali, imóvel, secando as asas após um mergulho na água. Ele erguia sua cabeça às alturas, como se meditasse sobre alguma coisa muito mais séria do que a população de peixes de um lago em Bochum, Alemanha.

* * *

Alessandro chegou na noite passada e, atravessando o parque perto do hotel a caminho do jantar, demos de encontro com um grupo de coelhos. Deveria haver pelo menos vinte deles brincando, ocupados demais se divertindo para prestar atenção em nós. Não pude deixar de pensar sobre a alegria incomensurável ao final de The Velveteen Rabbit, quando o coelho de brinquedo torna-se real porque o menino o amava tanto, e encontra-se na mata, sob a luz da lua, brincando com coelhos de verdade. .

* * *

Nosso hotel em Bochum tem um pequeno estande no saguão chamado Struppi’s Buffet, com comida e bebida para cachorros visitantes. Outras coisas que adorei a respeito deste hotel: as luzes do banheiro acendem-se apenas quando você insere seu cartão de hóspede em uma fenda. A eletricidade é economizada, e eu não perdi meu cartão sequer uma vez. Além do mais, no chuveiro você escolhe, através de um computador, o grau preciso da água quente que você desejar: nada de girar as torneiras infinitesimalmente para a direita ou para a esquerda, tentando chegar a uma temperatura tolerável.

* * *

Tenho escutado histórias fascinantes sobrea reunificação da Alemanha Oriental e da Ocidental do ponto de vista de shakespearianos alemães. Antes da queda do Muro de Berlim, em 1989, havia duas sociedades shakespearianas nas duas Alemanhas, com dois presidentes, duas diretorias, duas coleções de ensaios e duas conferências. Nós, acadêmicos, preocupamo-nos ferozmente com nossas hierarquias – entretanto, quando o Muro caiu, os dois feudos separados precisaram tornar-se um. Hoje em dia, os Shakespearianos reunidos têm um ar cuidadosamente otimista, como um casal que casou novamente depois de anos de separação.

* * *

Enquanto eu escutava a apresentação de artigos investigativos e reflexivos abordando o trabalho de Shakespeare, Alessandro experimentava uma piscina recomendada pelo hotel. Ao chegar, ele descobriu que o local era, na verdade, um spa “sem tecidos”, uma descrição um tanto pudica para um lugar destinado à diversão sem roupas. O spa dispunha de um número impressionante de saunas, mais de quinze, cada qual oferecendo uma experiência diferente – a “sauna Himalaia”, por exemplo, seguida da “sauna de TV”. Na minha cabeça, só o número alto de saunas já evocava atividades eróticas, mas Alessandro adentrou a “Saara” e encontrou-a já ocupada por um respeitável (ainda que nus) casal de meia idade, que estava meramente sentado, suando juntos. A piscina tinha formato de feijão e era claramente feita para relaxar, em vez de praticar natação. Ele andou pelo spa intrepidamente, segurando firmemente sua toalha, mas depois disse que teria sido mais divertido se eu estivesse lá. Ao que parece, todas as outras pessoas estavam em pares. Caso você esteja se perguntando, recusei-me a fazer uma visita.

* * *

No trem de volta a Paris, encontramo-nos atrás de um casal americano discutindo ferozmente porque, veio à tona, ele havia feito piada do andar dela. (Gostaria de adicionar, em minha defesa, que era impossível não prestar atenção na conversa deles, dada a maneira energética com a qual eles conduziam o diálogo.) Ela era roliça e triste, e compadeci-me dela, ainda que sua dependência naquela palavra com F enquanto substantivo, verbo e adjetivo fosse irritante. Eles estavam casados há três anos, aparentemente. Finalmente, ela sibilou, “Você não é tão importante na minha vida,” e partiu. E então senti muita pena dela, uma vez que ela sentia-se assim em relação ao homem com quem se casara. Alessandro é muito importante na minha vida. (Embora, a título de registro, ele jamais sonharia em zombar o meu jeito de andar. Ele tem um forte instinto de sobrevivência.)

* * *

Depois da triste experiência de ontem no trem, estive pensando sobre casamento. Não há como negar que a instituição leva aos melhores e piores momentos. Um dia destes, Alessandro olhou para mim e disse, “Você vai sair assim?” Por um momento, contemplei o homicídio. Mas, na noite passada, ele me apertou e disse, “Não emagreça, eu gosto quando você tem curvas.” Fiquei muito feliz por não tê-lo assassinei.

* * *

Alessandro e eu descobrimos uma loja maravilhosa: Heratchian Frères, na rue Lamartine, que é especializada em produits alimentaires exotiques et d’Orient. Como na caverna de algum pirata gastrônomo, há prateleiras de latas misteriosas; enormes sacas de minúsculas lentilhas alaranjadas, cevada e fubá; recipientes da altura dos meus joelhos com azeitonas em salmoura; e cinco tipos de feta. Uma seção inteira de manjar turco: sabor de rosas, de pistache, de duplo pistache. Uma prateleira que brilhava no canto provou estar repleta de potes contendo sete tipos diferentes de pastilhas prateadas, decorações comestíveis que realmente parecem ser a pilhagem de um pirata.

* * *

Decidimos tirar Anna da escola por alguns dias porque os centros de lazer estão abertos, e ela parece aprender mais francês brincando por um dia em um destes lugares do que em três meses de aulas. Entramos no espaço e a cena era de caos, com crianças zunindo em todas as direções. Anna segurava firmemente na minha mão, e em seguida um professor saiu caminhando e tocando seu violão. Todos correram até ele, ao estilo do Flautista de Hamelin. “Anna!” ele chamou com um sorriso, e a mão dela escorregou pela minha e ela partiu.

* * *

Levei amigos ao Musée Jacquemart-André hoje. Esta era a minha segunda visita, mas eu não havia notado até então uma deslumbrante peça de porcelana Destruição de Ganimedes resguardada em um nicho no alto de uma grande escada. Ganimedes foi o garoto raptado por Zeus para tornar-se seu copeiro. Considerado o mais belo menino na Terra, ele é frequentemente ilustrado com sensualidade exuberante; aqui, ele é um jovem delgado e melancólico, à beira de deixar o seu lar.

* * *

Outra descoberta: do extraordinário Paolo Uccello, São Jorge e o Dragão, na Galeria Florentina. No painel do século XV, a princesa – a quem São Jorge está no processo de resgatar – está bem atrás do dragão, que possui um rabo perfeitamente encaracolado. Ela está vestindo um vestido vermelho com pérolas costuradas em padrões florais e sapatilhas laranjas, mas sua elegância é diminuída por sua face pálida e dócil e sua postura de prece. Ela não está tentando fugir e eu não pude deixar de pensar que ela depositou muita fé nas habilidades ainda não testadas de São Jorge em assassinar répteis. Por sorte, São Jorge está, de fato, habilmente cravando o dragão.

* * *

Do outro lado da rua, oposto ao nosso apartamento, fica um pequeno hotel, Hôtel Peyris Opéra, que Anna chama de hotel do Harry Potter devido às suas iniciais. Paris está gloriosamente quente e primaveril, e hoje o restaurante do hotel colocou três pequenas mesas na entrada, com toalhas brancas, copos de vinho cor de rosa e flores rosas. Eu tive que ficar em frente ao computador, mas a única coisa que quero fazer é colocar um vestido e saltos, descer as escadas e beber vinho sob a luz do sol.

32 N.T. Nos EUA, é comum referir-se ao primeiro sutiã de uma menina como “sutiã de treinamento”.


Arroz e homens

Nos idos de 1990, arroz e amor entrelaçaram-se para sempre na minha mente. Um homem com quem eu estivera por dez anos terminou o relacionamento, e a minha resposta ao sofrimento foi aprender a fazer risoto. Alguns meses depois, fui a um encontro às escuras com Alessandro, e algum tempo depois encontrei-me em Florença, buscando a aprovação da minha futura sogra, cujo prato favorito era risoto. Arroz e amor.

Quando meu relacionamento longo fracassou, eu estava morando em um pequenino apartamento no gueto dos pós-graduandos de New Haven, Connecticut. Passei o meu tempo livre cozinhando, chorando e lendo. Meu livro de receitas favorito era Chez Panisse Cooking, de Paul Bertolli, uma coleção de ensaios fervorosos incluindo um longo artigo sobre risoto. Eu parava em frente à panela, mexendo conforme Paul instruía, lendo um livro romântico emprestado da biblioteca pública e chorando a cada vez que parecia que as heroínas tinham uma vida melhor do que a minha. Após um mês disto, eu estava fazendo risotos muito bem e havia começado a pensar em homens de uma maneira mais alegre, o que me levou ao encontro às escuras com Alessandro, então um aluno de pós-graduação em italiano com cachos pretos e o corpo de um nadador. Ele me convidou para jantar na casa dele. Eu usei um minúsculo vestido preto com botas de camurça verde acima dos joelhos. A noite foi um sucesso, então, eu retribuí. Ele adorou o meu risoto. Apenas anos depois, quando comi o risoto cremoso e delicioso de sua mãe, que entendi o quão crucial aquele pequeno detalhe fora para a nossa vida futura.

Receitas de risoto estão por toda a parte, contudo, eu recomendo a leitura do livro de Bertolli, se possível. A receita básica leva uma cebola, um alho pequeno, arroz arbório, uma xícara de vinho branco e caldo caseiro. Mas esta receita é como o amor: você deve saborear cada passo. Quando puder sentir o cheiro de que a cebola está macia e não dourada, adicione o alho. Quando sentir a explosão de perfume do alho, jogue o arroz e mexa até que adquira um brilho uniforme e encorpado. O cheiro do vinho deve saltar da panela quando você o derramar e, finalmente – Paul está certo a este respeito – o caldo é vagarosamente adicionado, concha a concha. Mexa. Hoje em dia, escuto podcasts em vez de ler livros românticos, mas é tudo a mesma coisa: uma panela cozinhando lentamente, uma mexida, outra mexida.

O risoto do Chez Panisse me veio quando eu estava com o coração partido e levou-me diretamente a um italiano apaixonado por risotos por quem me apaixonei e com quem me casei. E isto levou à sua mãe, com sua colher de pau e sua paixão por caldos, à minha filha, cujo prato favorito é risoto com abobrinha assada.

* * *

O professor de história de Luca é muito exigente e ele privilegia o método socrático. Naturalmente, assim que ele anuncia que é hora da interrogazione, todos os alunos entram em fila para ir ao banheiro. No refúgio do sanitário, Luca mandou uma mensagem de texto para um amigo – “Quem foi escolhido?” – e recebeu a resposta “Acabou de começar.” Luca: “Ele terminou?” Silêncio. Luca não poderia ficar no banheiro para sempre, então, ele finalmente voltou para a sala e encontrou seu pobre amigo lastimosamente de pé em frente à classe.

* * *

“Ele é tão francês,” Alessandro disse de Florent, ao chegar em casa de sua conversação hoje. “Ele fala e fala sobre Pauline: tão ardente, tão apaixonado. Mas ele disse alguma coisa sobre isto para ela? Não.” De acordo com o meu marido, se Florent fosse italiano em vez de francês, ele já teria reservado um hotel para a lua de mel. Relembrando o estilo de cortejo de Alessandro, eu concordaria.

* * *

Na noite passada, o ar estava tão cálido e belo que Alessandro e eu fizemos uma caminhada muito mais longa do que de costume – bem além dos aspirantes a aristocratas que bebem espumante nos jardins do Louvre, através do Palácio das Tulherias, em direção à Opéra... finalmente, desabamos no Café de la Paix, com seu telhado chamativo e dourado (mas muito adorável). Meu chocolate quente veio em dois bules de prata. Um continha o chocolate derretido, tão escuro e espesso quanto lava, o segundo continha leite quente. Paraíso!

* * *

Em uma pradaria de Minnesota, à noite o céu é iluminado somente por um punhado de estrelas. Vez ou outra, enquanto eu estava crescendo, nós podíamos até capturar um vislumbre da aurora boreal. Em Paris, por outro lado, nunca escurece. No nosso quarto, cortinas de tafetá azul pavão começam no teto e se esparramam chão. Mas, à noite, a luz do rua se embrenha pelo varão e banha o quarto; e me lembra que estou em uma cidade, cercada de pessoas. E eu amo isto.

* * *

Em 1o de Maio, é comemorado o Dia do Trabalhador francês, que, no meu país, significa que desfile. Aqui, significa um enorme protesto. Pessoas inundaram Paris, milhares delas. Cada unidade tinha sua própria música; eu estava orgulhosa porque muitos grupos trabalhistas eram representados por hip hop americano. Também havia bandas tocando música francesa tradicional ao vivo, e alguns versos que pareciam consistir basicamente de rimas como “Sarkozy – oui!”

* * *

Além de protestar, no 1o de Maio, parisienses compram lírios do vale enrolados em papel para presentear uns aos outros. Alessandro comprou um buquê para mim, e em seguida um francês extraordinariamente gentil me deu outro na rua (um momento surpreendente e encantador), de forma que agora tenho um vaso cheio de pequenos chapéus de fadas encaracolados ao meu lado, como uma amostra de floresta densa em cima da minha mesa. Aparentemente, na linguagem das flores, estes lírios do vale sinalizam o retorno da felicidade. Sinto-me mais feliz do que se elas fossem diamantes.

* * *

Após uma pesquisa extensiva, descobri o caminho das pedras para uma torta perfeita. Ela deve ser bem pequena, não muito maior que uma mordida, e ter uma massa amanteigada e esfarelada, um pouco de creme de confeiteiro e uma torre miniatura de framboesas. Uma ou duas framboesas devem ser cobertas com folhas de ouro comestíveis, para criar a ilusão de que a pessoa que a come é a própria Maria Antonieta, vestindo uma peruca feita de algodão doce, mordiscando bolos e dando conselhos de cardápio.

* * *

Apenas após meses andando por cintilantes estátuas douradas de Pégaso, cada qual pareada com uma ninfa diferente segurando uma espada – quer dizer, as quatro estátuas na Pont Alexandre III – percebi uma coisa muito interessante. Os cavalos têm ferozes ereções. Só para constar.

* * *

Levei Nicole e Anna para a loja italiana de sorvetes Amorino depois da escola. Um grande letreiro do lado de fora lista os diferentes tamanhos de porção oferecidos. Eu não estava prestando atenção e, de algum forma, permiti que as meninas pedissem duas taças tamanho “grandíssimo”. Antes de mais nada, foi exorbitantemente caro. Em segundo lugar, acabou sendo mais sorvete do que eu jamais havia visto em uma taça. Bastante irritada comigo mesma – e nada feliz com elas – falei para as meninas que elas deveriam comer tudo. Quando elas chegaram perto do fim, incluí a condição de que ninguém estava autorizado a vomitar. Anna terminou, mas Nicole relutantemente admitiu que a segunda condição havia sido mais pesada do que a primeira, e devolveu sua taça tamanho grandissimo com uma ou duas colheres de sorvete ainda dentro.

* * *

Pela terceira vez, andei pelo Musée Nissim de Camondo e escutei a visita guiada por áudio (eu mesma poderia ser guia, a esta altura). Desta vez, demorei-me na sala de jantar, olhando para o Busto de uma Negra em bronze, do início do século XIX. Aparentemente, ele faz parte de um conjunto feito para um chafariz no qual uma servente negra, esculpida em bronze escuro, derramava água sobre sua senhora branca, esculpida em mármore. Há muito o que se pensar sobre isto, e nada é muito bom.

* * *

À tarde, andei pelo pequeno parque na place de la Concorde que é repleto de castanheiros da índia em flor, cada pétala branca empertigada com um coração cor de cereja. Houvera uma tempestade de vento. Abri caminho por entre correntezas de pétalas, amontoadas e empilhadas como se fossem serragem.

* * *

Aqui vai um dos bordões de Anna: “Eu detesto peixe, a não ser que seja cherne.” Isto porque, era uma vez, há muito tempo atrás, durante um verão tranquilo, seu irmão pescou um cherne em um lago de Minnesota e ela ainda se lembra de comer o peixe com prazer. Adicione a isto a engenhosidade de uma mãe: todo peixe que eu cozinho é cherne (não importa de que o peixeiro francês queira chamá-lo).

* * *

Descobrimos uma maravilhosa creperia, Breizh Café, que faz crepes bretões de farinha escura de trigo sarraceno. O cardápio é incrivelmente variado, de salgado a doce. Comi um crepe feito com geleia amarga de laranja e Cointreau. Flambado, é claro. Sentamos ao lado de um avô e seu neto de oito ou nove anos. Cada um estava comendo um enorme crepe clássico – coberto apenas com um pouco de açúcar. Eles os comeram e, em seguida, o avô convocou o garçom: mais dois pedidos da mesma coisa! Eles falaram sobre leões, sobre o quão rápidos e ferozes eles eram. Pensei sobre um avô leão gentil, deitado sobre a sombra de uma árvore de baobá, dividindo ossos e histórias com um filhote.

* * *

As provas de matemática ainda são uma perspectiva aterrorizante para Luca. Ele tem aulas com um tutor uma vez por semana, e muitas noites ele e Alessandro estudam até tarde, decifrando sua lição de cálculo. Alguns dias atrás, ele chegou em casa desanimado; houvera um teste e, ao comparar respostas com outros depois da aula, Luca descobriu que ninguém tivera os mesmos resultados que ele. Mas hoje as notas foram entregues. Adivinhe quem teve a segunda melhor nota da classe?

* * *

Meu amado pai está perdendo a sua memória. Hoje recebi uma carta dele com o endereço correto, mas sem o meu nome, ou qualquer nome na verdade. Por sorte, nosso carteiro deduziu que uma carta dos Estados Unidos deveria ser para nós. Dentro do envelope, papai anexou uma cópia do seu adorável poema, recentemente publicado na The New Yorker: “Eu tenho filhas e eu tenho filhos.” Tenho tanto medo do dia em que não haverá mais poemas, ou cartas.

* * *

A classe de literatura italiana de Luca acabou de ler a Ilíada, de Homero, a antiga história de guerreiros tomando a cidade de Troia de assalto. Seus amigos apelidaram um dos colegas de classe de Aquiles porque ele sempre está irritado e é destrutivo; de fato, cadeiras e mesas da sala de aula já foram derrubadas por sua ira. Alessandro repentinamente lembrou-se de um menino em sua classe de ensino fundamental que fora rotulado de Aquiles Pés Velozes por conta de sua rapidez. Há algo a se dizer sobre o declínio da cultura nestes dois exemplos.

* * *

Na semana passada, escrevi sobre abrir caminho por entre uma correnteza de flores e hoje descobri que Claude teve a mesma experiência. As flores dele cobriam o chão como “espuma branca”, e seus olhos encheram-se subitamente de lágrimas em resposta à “alma irrestrita da beleza”. É possível que eu tenha que parar de ler o seu livro. A retórica exagerada de Claude faz com que eu me sinta rude e superior, uma combinação ruim. Suspeito que minha irritação irradie não do sentimentalismo, mas do fato de que ele é indiscutivelmente meu predecessor, se não o meu protótipo: estamos descrevendo as mesmas flores, embora com cem anos de distância. Não gosto de pensar sobre a minha sobrinha neta gozando da minha retórica, mas eu suspeito que isto seja inevitável.


Batalhando nas férias

Todo bom cidadão natural de Minnesota vai para “o Norte” em julho, pousando lado a lado com gansos canadenses em lagos repletos de lanchas e veranistas de descendência escandinava e pernas pastosas. Minha memória mais vívida das aventuras nortistas da minha família é a do verão em que meus pais estavam se separando. Não consigo me lembrar das brigas em si (contudo, eu estava ligeiramente ciente que finanças e infidelidade eram assuntos preocupantes); eu não estava prestando atenção. Quem tinha tempo? Eu tinha 16 anos e estava obcecada por ganhar dinheiro para comprar uma calça branca com um pequeno gancho na lateral, claramente feito para que um menino adolescente o fisgasse com seu dedo. Um bronzeado intenso teria sido o caminho mais barato para ser uma “gatinha atraente”, mas já que minha herança genética excluiu esta possibilidade, fixei-me na calça como a chave para conseguir um namorado. O esforço requerido para manter este pensamento mágico no ar significava que eu não tinha energia mental suficiente para dissecar as emoções explosivas e vergonhosas dos meus pais.

Naquele verão, meu pai estava encarregado de fazer os almoços, o que não era incomum; minha mãe adotou a divisão das tarefas de casa a partir do momento em que Betty Friedan encostou a caneta no papel. Mas o repertório de papai não era extensivo: ovos mexidos, espaguete, purê de maçã – e língua. Ele era especializado em grandes línguas cozidas. Porque a realização das compras havia sido prejudicada face às crescentes hostilidades, um pedaço de língua parecia sempre estar no balcão da cozinha, rotulado de “almoço”. Eu o encarava, em repulsa, até que eu ficasse tão faminta a ponto de banhar um pedaço em sal e o meter goela abaixo, minha própria língua contorcendo-se num esforço para evitar a textura empolada. Minha irmã, que era mais sensível e mais esguia, beirou a anorexia por puro ódio a língua. Meu apetite era mais forte do que a minha repulsa; eu não perdi um quilo sequer, mas perdi todo o respeito pelos meus pais.

Caso alguém tivesse me perguntado na época, eu teria confiantemente respondido que jamais exporia meus filhos às cenas e aos sons revoltantes do conflito matrimonial. Para nosso crédito, Alessandro e eu em grande parte nos saímos bem ao evitar a amargura; e passar ao largo da infidelidade ajuda. No entanto, assim como foi para os meus pais, as férias são o momento em que partimos para a guerra às claras – e nosso ponto de ebulição é dinheiro. Resumidamente, eu gosto de uma boa ostentação; meu marido, por outro lado, pode ser parcimonioso até demais. As férias posicionam estas diferença na frente e no centro.

Mesmo antes de decidir vir para Paris, falamos de uma visita ao Vale do Loire e seus castelos, e no fim das contas, decidimos que a viagem também deveria celebrar os 16 anos de Luca. Eu estava encarregada de achar um restaurante adequado para o jantar de aniversário; a missão de Alessandro era achar um hotel a distâncias razoáveis de muitos castelos. Em um site contendo promoções, ele encontrou um hotel oferecendo uma suíte com sala de estar e cozinha por um preço incrível. Porque o hotel era novíssimo, não tinha recomendações ainda. Isto era um pouco preocupante, mas o preço era baixo o suficiente para superarmos este medo bobo.

Nesta altura do livro, você já deve ter deduzido que eu tenho uma fraqueza pelo luxo. Quando o assunto é hotéis, lençóis com contagem de fios mais alta do que a dívida nacional fazem de mim uma mulher feliz., assim como pequenas embalagens de xampu, principalmente se rotulados no imperativo “Nutre”, por exemplo. Ou “Realça”. Na nossa primeira vista do Hotel Pão Duro, percebi que não haveria tais mimos civilizados. O GPS do carro alugado negou ter conhecimento do endereço, mas de alguma forma nos aventuramos por uma estrada de chão passando por um complexo industrial, terminando em um canteiro de obras no qual um prédio de concreto despido erguia-se da poeira. Voilà. Nosso hotel.

Tendo feito o check-in em um balcão coberto de linóleo, fomos levados para um quarto no quarto andar, de onde saímos do elevador para descobrir – da pior maneira – que os corredores eram iluminados por lâmpadas com sensores de movimento levemente atrasados. Parados na escuridão total, congelamos até que os tubos fluorescentes piscassem para acender, revelando um carpete desencorajante em tom de cinza industrial – cuja cor estendia-se até os quartos. Não que a cor do carpete da nossa suíte fosse muito evidente: os ocupantes anteriores haviam dado uma festa e tanto, a julgar pela louça suja, a pirâmide de garrafas de vinho vazias e a forma com que as cinzas de cigarro polvilhavam o carpete como caspa em um sacristão.

Na recepção, o gerente jogou as mãos para o alto e nos direcionou a outra suíte, desta vez no terceiro andar. Abrimos a porta de um quarto que, ao que tudo indicava, havia sido compartilhado por três dúzias de mochileiros, se considerarmos que a pilha de detritos do tamanho de uma duna deixada para trás fosse qualquer indicação. A esta altura, eu havia passado da consternação para revolta declarada e voltei para o térreo preparada para partir para a liberdade e para um hotel três estrelas – ou até uma. E então veio o momento da verdade: Alessandro confessou que ele já havia pagado pela semana inteira. “A terceira tentativa é a da sorte!” ele disse, tentando expressar um ar de animação. Mas ele acabou soando como um atendente de bordo oferecendo um segundo pacote de pretzels durante um atraso de cinco horas na pista. Em resposta, meu rosto assumiu o rosnado de um tigre-dentes-de -sabre. Ainda que esta fosse uma expressão a qual os atendentes de bordo estão acostumados, meus filhos não estão.

Você se surpreenderia ao descobrir que a terceira tentativa não foi a da sorte? Desta vez, largamos nossas malas no segundo andar, onde a pia da cozinha não tinha louça suja. Mas praticamente não notamos, revoltados demais com as janelas pretas de fuligem, intrincados com loucos padrões em formato de teias de aranha. Parecia que o hotel dava de fundos para a linha de trem (que, conforme descobrimos posteriormente, seguia um cronograma rigoroso), e houvera um incêndio embaixo da ponte do trem. Pode-se depreender que o incêndio teve origem na favela decrépita que fica embaixo da ponte, mas tal especulação era irrelevante. Havíamos identificado o teor da vizinhança ao fazer o check in.

“Se eu empurrar isto aqui”, Anna observou, passando o dedo pelo vidro de padrão histérico, “a janela estufa para fora. Está vendo? Maneiro, né?”

Meu coração batia de um jeito que sugeria um derrame iminente, então retirei-me para o quarto principal. A cama possuía uma impressão côncava, talvez uma pessoa houvesse relaxado para assistir televisão quando, na verdade, deveria estar limpando outros quartos, e foi gentil o suficiente para deixar a televisão ligada para que outros hóspedes pudessem desfrutar. A esta altura, eu não queria nada além de voltar às pressas para a sala de estar e gritar insultos para o meu marido enquanto jogava a mala por aquela janela em decomposição. Mas o fantasma do meu eu de 16 anos sentou-se no meu ombro, sussurrando, “Não na frente das crianças”. Eu rangi os dentes, deitei e assisti TV – que, é claro, era em francês, então eu não entendi nada. Neste ponto, eu não poderia imaginar que as coisas pudessem piorar.

Mas o dia não havia acabado.

Eu havia feito uma reserva para o jantar de aniversário de Luca em um encantador restaurante no campo, aclamado por seu cardápio tradicional. Portanto, vestimos as crianças em suas melhores roupas – embora colocar um adolescente em uma camisa de botão exija praticamente uma emenda parlamentar – e saímos. Sim, havia alguma tensão no carro enquanto nos dirigíamos para lá. Luca estava cismado com a minha indigna escolha de vestuário, e Alessandro ficara ofendido com o meu desgosto pelo hotel. Mas eu tentei respirar fundo e resgatar dentro de mim o Zen que sempre procurei cultivar. É agora ou nunca!

A fachada do restaurante tinha trepadeiras e flores; o interior tinha calmas tolhas de mesa brancas e garçons reverentes, e um grande aviso em diversas línguas especificando que TELEFONES CELULARES SÃO PROIBIDOS. Fomos levados até a nossa mesa por um garçom muito, muito francês.

Suspeito que muita gente tenha que lidar com preconceito de um jeito ou de outro. Visto que eles brilham quando anunciam que jamais teriam adivinhado que eu sou americana, acho que muitos franceses focam nos meus conterrâneos como objeto do seu desprezo. Quanto a mim? No decorrer da minha vida, desenvolvi uma profunda intolerância pelo arquétipo do garçom francês: homens arrogantes, presunçosos e enfatuados vestidos de preto. Eu particularmente detesto a forma com que estes homens intimidam seus clientes até um estado de gratidão forçada, a partir desta postura submissa os clientes imploram por conselhos – que invariavelmente são dados com um escárnio gaulês mal disfarçado.

Alessandro acaba de entrar em uma destas conversas com o nosso garçom sobre champanhe. Decidimos que um aniversário de 16 anos deveria ser celebrado com um brinde mas, porque eu estava cautelosa sobre crianças bebendo álcool (uma ideia que tanto italianos quanto franceses acham ridícula), eu estipulei mimosas (champanhe com suco de laranja). Como o representante fluente da nossa família, Alessandro foi, portanto, forçado a explicar o conceito de mimosa para o nosso cada-vez-mais-arrogante garçom.

Não é preciso dizer que aquele Monsieur fez pouco esforço para conter o desgosto pela ideia de misturar suco com vinho. Fiquei na defensiva, fui julgada e considerada sem classe; até Alessandro ficou perturbado. Neste momento, o celular tocou. A fronte do Monsieur escureceu, mas Alessandro abriu o telefone e acabou por apertar o botão errado, colocando a chamada em viva voz exatamente no momento em que um grupo de parentes italianos juntou-se para gritar “Buon compleanno” para Luca. No segundo seguinte, eles começaram a cantar parabéns.

“Desligue o telefone!” estourei com Alessandro.

“Não posso!” ele sussurrou de volta. “É a minha mãe.”

Eu estava agora nas garras da humilhação profunda. Casais sedados e decorosos a toda volta viravam suas cabeças em nossa direção. A julgar pelo clamor emitido pelo telefone, Marina estava passando o celular de mão em mão do outro lado da linha e uma mesa cheia de italianos estava desejando feliz aniversário para Luca, um por um. A esta altura, Alessandro olhou para os olhos pretos cintilantes do garçom e perguntou – humildemente – “Você estaria de acordo se pedíssemos taças de champanhe para as crianças?”

Tendo confirmação de sua convicção de que era mestre do universo, o Monsieur marchou em debandada, ombros contorcidos com escárnio e voltou com quatro taças grandes de champanhe em forma de sino. Em seguida, com um floreio esvaecido, colocou na mesa duas garrafas fechadas de suco de laranja.

Conseguimos fazer os nossos pedidos, mas meu fantasma de 16 anos já havia há muito sido esquecido, e eu perdera tanto o meu controle quanto o meu respeito por mim mesma. Não foi até que Alessandro expressou a opinião de que eu deveria me cuidar ou acabaria virando a minha mãe que eu decidi que era hora de nos retirarmos da presença dos nossos filhos.

“Mas para onde vocês estão indo?” Anna questionou.

“Diga ao garçom que fomos fumar um cigarro”, Alessandro respondeu.

“Vocês não fumam,” ela lamentou.

Alguns momentos devem ser revividos apenas entre cônjuges, então eu vou colocar um véu discreto sobre o jeito infeliz com o qual gritamos um com o outro na silenciosa rua de paralelepípedos. Quando voltamos à mesa – basicamente reconciliados à existência matrimonial – nossos pratos principais haviam chegado e o champanhe havia acabado. Luca, o convidado de honra, estava sentado com expressão de estátua, na linha do desgosto adolescente que eu instantaneamente reconheci. Seu rosto me levou direto de volta para o verão das calças brancas, da língua cozida, do divórcio iminente. Enquanto isso, Anna havia se aproveitado da nossa ausência para beber não só o seu champanhe, mas o nosso também. Ela estava rindo loucamente com uma casca de noz vazia equilibrada em sua cabeça. A noz servia-lhe de chapéu de bruxa, e ela estivera se divertindo interpretando personagens de Harry Potter um após o outro para o bem do seu irmão horrorizado. (Mencionei que este era um restaurante elegante e muito solene?)

No início do nosso ano na França, eu decidira que comeria de maneira aventureira enquanto estivesse aqui e, neste espírito, eu havia pedido uma iguaria local: tête de veau. Cabeça de vitela. Agora eu via que a tête havia sido transformada em uma pequena torta – sobre a qual uma crista de galo avermelhada e flácida servia de decoração. Monsieur le Garçom reapareceu e explicou que a crista de galo cozida era o acompanhamento perfeito para uma torta recheada de cérebro e que eles deveriam ser consumidos juntos. Foi quando Luca abandonou seu protesto silencioso e fez sua primeira contribuição para sua festa de 16 anos: um exagerado barulho de regurgitação.

Eu sequer levantei os olhos para ver o que os outros convidados ou o garçom achavam do comportamento do meu filho. Eu estava paralisada demais pela crista de galo.

A predileção do meu pai por língua cozida – assim como a ira da minha mãe por compras suntuosas que a família não poderia custear – precipitaram-se de volta para mim.

Em um dia, eu reproduzira um verão inteiro da minha infância.

A crista de galo trouxe de volta o profundo desespero que reverberou pela nossa família naquele mês de julho – como nenhum adulto percebeu que minha irmã praticamente havia parado de comer, como nenhum adulto falava calmamente um com o outro, quem dirá com civilidade. Alessandro e eu, por outro lado? Poderíamos dormir em lençóis com milhares de fios de algodão ou em lençóis feitos de aniagem de saco de grãos, mas ainda estaríamos nos falando na manhã seguinte. Sempre vamos perceber se um de nossos filhos parar de comer. Aprendemos a não guardar rancor sobre coisas como o Hotel Pão Duro e garçons franceses insultantes.

A crista de galo estava bastante boa, de sua maneira.

A torta de cérebro? Incomestível.

* * *

Château de Blois foi o cenário do assassinato do Duque de Guise em 1588 pelo Rei Henrique III e existe um ar realmente assombroso em saber que o quarto era, como Henry James coloca, “o cenário dos principais eventos do reinado depravado e dramático [de Henrique III].” Sendo as criaturas depravadas e dramáticas que crianças são, Anna e Luca brigaram para ficar no local exato onde Guise foi esfaqueado por oito atacantes.

* * *

Depois de nossa visita ao castelo de Blois, Anna e eu decidimos que as gárgulas mais pavorosos não se parecem com répteis ou dragões, com escamas, rabos e orelhas pontudas. Não, gárgulas humanas são muito mais aterrorizantes, com seus olhos vazios, desdentados, com as bocas abertas. Elas parecem as almas que Dante descreve no Inferno, bocas escancaradas em eterno uivo.

* * *

Na praça principal da cidade de Blois fica a Maison de la Magie, isto é, um museu de mágica. Seis cabeças de dragões emergem das janelas no andar superior do museu e rugem para a praça. Eles têm focinhos longos e terríveis e olhos azuis claros que parecem ainda mais ferozes por terem uma coloração tão límpida.

* * *

Meu lugar favorito em Orléans é a Chocolaterie Royale, onde compramos laranjas de chocolate, folha de chocolate ao leite com amêndoas e folha de chocolate branco com oxicoco e – o melhor – medalhões de chocolate com a estátua de Joana D’Arc no centro. Sentindo-se culpado pelo desastre do hotel, Alessandro trazia mais coisas para o caixa até que tínhamos gastado aproximadamente metade do preço do nosso quarto de hotel em uma farra de chocolate artesanal.

* * *

Para alguém como Anna – que passa os dias (a) lendo livros de Harry Potter, (b) examinando seu cabelo para ver se seus cachos já estão como os de Hermione e (c) tentando achar um galho que se pareça com uma varinha de condão – um passeio por castelos franceses é como fazer visitas repetidas à Disneylândia. Ela deu um grito no salão do Castelo de Chambord (igual a Hogwarts!), cumprimentou o brasão do Castelo de Blois (em Hogwarts, brasões são bastante tagarelas) e ficou alegremente perdida no labirinto do Château de Chenonceau (infelizmente, nenhum cálice mágico foi encontrado).

* * *

O Château de Chenonceau foi cenário de intensas disputas entre Catarina de Médicis, rainha de Henrique II, e a amante de Henrique, Diane de Poitiers, a quem ele deu posse sobre o castelo. Quando Henrique morreu, Catarina retomou o castelo. Diane encomendara um retrato no qual ela era representada como a deusa Diana, então Catarina fez o mesmo – e os dois retratos agora estão pendurados no mesmo salão. Diane é a Diana mais agradável.

* * *

Beatrice astutamente garante a sua posição como Abelha Rainha do quarto ano por meios de arbitrariamente dispensar algumas garotas e dar boas vindas a outras (embora nunca Anna). Hoje, ela sumariamente descartou uma colega de classe chamada Maria do grupo das meninas descoladas, por razões conhecidas apenas por Sua Majestade. “Maria chorou o dia todo”, Anna me contou. “Senti pena dela, mas ela acha que sou estranha, então eu não pude ajudar.”

* * *

Minha amiga, Anne, e eu exploramos o minúsculo Musée Bourdelle hoje. Antoine Bourdelle (1861-1929) foi um escultor; o museu era sua casa e ateliê. No jardim, fiquei apaixonada por Le Fruit, uma estátua de Eva com um sorriso malicioso e um giro sinuoso no quadril. Em sua mão direita, três maçãs. Na esquerda, atrás das suas costas, outra maçã. Trançadas nos seus cabelos... maçãs! E no andar de cima, encontramos uma primorosa Bacchante, uma das groupies de Baco – uma versão mais feroz de Eva, com o mesmo giro sexy nos quadris, mas com hera nos cabelos em vez de maçãs.

* * *

Luca diz que o fato de que eu e Alessandro travamos uma batalha no seu aniversário de 16 anos sem sombras de dúvidas o estarreceu para sempre e ele nunca mais sairá de férias conosco. Nesse meio tempo, ele gostaria de ter o seu computador de volta para que pudesse se comunicar com outros adolescentes cujos pais são loucos desvarridos. Estamos unidos em nossa decisão de que ele terá que sobreviver sem o tenro apoio de seus colegas até que ele passe do nono ano.

* * *

Hoje eu fiz um considerável progresso no livro de Claude, uma vez que Alessandro me deixou esperando por ele em um café e eu tinha o livro comigo. Claude alongou-se sobre “a inconsciente graciosidade do movimento, a suavidade do comportamento, a cortesia instintiva” que caracteriza as classes altas. Ele diz que a aristocracia demora-se “como um perfume sobre a própria existência.” Temo que a minha resposta tenha sido bastante hostil. Você nasceu em Dulluth, Minnesota, Claude. Quem é que você acha que está enganando?

* * *

Na noite passada Alessandro e eu caminhamos para casa enquanto o céu tomava um tom de lilás azulado, o pico do crepúsculo. No fim da rue du Conservatoire fica La Pause, um pequenino bar onde estudantes de música encontram-se no fim do dia. Dois homens estavam sentados do lado de fora tocando violões; um deles começou a assobiar e a música clara e cintilante nos seguiu rua abaixo, enchendo o ar até o céu que escurecia.

* * *

Estou obcecada por achar uma música que escutei em uma loja, uma versão francesa de “Blowin’ in the Wind”, de Bob Dylan. Na verdade, existem várias versões; a que eu estava procurando era de Richard Anthony, de 1964, “Écoute dans le vent.” (Apesar do nome anglo, ele é um francês nascido no Egito.) No vídeo que achei na internet, ele está vestindo um suéter preto, suas mãos displicentemente entocadas nos bolsos e ele canta enquanto os músicos atrás dele dedilham seus violões vestindo ternos de lapela fina e gravatas. Em 1963 e 1964, Dylan cantou a plenos pulmões esta música como um protesto contra o ideal americano de masculinidade e sua celebração da violência e da guerra; ele cantava num tempo em que nosso envolvimento militar com o Vietnã estava rapidamente aumentando. Por mais que eu adore a versão de Anthony, ele transformou uma música de protesto em uma música de discoteca... faz com que você se pergunte se ele sequer entendeu a letra original.

* * *

Hoje nós finalmente oferecemos um lance para um quadro no Hôtel Drouot, apesar de não termos ganhado. Era uma pequena madona maravilhosa do século XVII. Seguindo as instruções de amigos mais experientes, determinamos um preço máximo. Mas outra pessoa, atrás de nós, queria a nossa madona. Ele deu um lance; Alessandro deu um lance. Os valores aumentavam cada vez mais, até que chegamos ao nosso limite. Alessandro me olhou e hesitou. O leiloeiro solicitamente interveio: “A madame diz sim!” Rimos e aumentamos o lance, até que Alessandro me lançou outro olhar nervoso, e eu abanei negativamente a cabeça. “Monsieur”, o leiloeiro disse enquanto levantávamos para ir embora, “temos mais quadros para os quais a madame vai dizer sim!” Mas evitamos a tentação ganhar por ganhar e, em vez disto, fomos almoçar.

* * *

Hoje fui a Le Phare de la Baleine, que significa O Farol da Baleia, uma loja onde os locais compram aquelas fabulosas camisetas listradas – a versão autêntica, não aquelas para turistas. Eles também oferecem adoráveis roupas infantis e toalhas de praia grossas, cor de cereja salpicadas com pequenas baleias brancas. Comprei um fabuloso chapéu de palha azul claro, com quarto pontas e um laço. Agora que estou em casa, acho que o laço é muito pomposo, embora em uma madame francesa, talvez, fique retrô e irônico.

* * *

Quando cheguei na faculdade, diretamente de uma fazenda em Minnesota, fiquei aterrorizada com os jovens vestindo caxemira e linho que passaram as suas férias esquiando nos Alpes. A memória daqueles meninos – “euros”, os chamávamos, anos antes que a palavra definisse a moeda de um continente – continuava reprimida até ontem, quando levei Luca para fazer compras. Ele escolheu três coisas em cinco minutos: uma calça jeans vermelha escura, uma camiseta rosa amassada e um suéter justo de tricô fino. Ele agora se parece precisamente com os garotos que me petrificavam e intimidavam... porque ele é um deles. Eu dei à luz o inimigo.

* * *

Desenvolvi um método à prova de erros para cozinhar peixe com pele: primeiramente, corte um padrão de xadrez na pele. Em seguida, esfregue a pele com uma mistura de temperos contendo pelo menos um toque de curry (Galeries Lafayette tem uma mistura moída na hora com o nome de “couscous”). Aqueça um pouco de azeite em fogo alto e frite o peixe com a pele para baixo (se o peixe estiver inteiro, vire uma vez). Quando estiver dourado, jogue suco de limão e coloque no forno por cinco minutos se já não estiver branco e se desfazendo. Isto garantirá uma pele crocante e um sabor levemente exótico que até as crianças vão apreciar.

* * *

Estou sentada na minha mesa, logo antes das sete da manhã. O céu do lado de fora do meu escritório está com um tom azul perolado, tão pálido que parece uma sombra de azul, ou a memória de azul. Andorinhas voam sobre os telhados do outro lado da rua, riscando o céu de preto e desaparecendo de novo.

* * *

Estou tendo uma experiência nova com o livro que estou escrevendo, uma versão de A Bela e a Fera que se passa durante o período de regência de George, Príncipe de Gales (posteriormente, George IV). Geralmente, trabalho incansavelmente nas falas dos meus personagens, as reescrevendo infinitamente. Mas este livro é diferente. É como se eu estivesse descrevendo um filme que está se desenrolando bem na minha frente, o que faz com que eu me sinta estranhamente delirante.

* * *

Os meses em Paris não fizeram nada pelo meu francês sofrível. Neste domingo, na igreja, eu estava cantando alegremente com os demais, pensando pouco sobre as palavras. Tão bom, eu pensei, aqui estamos cantando que Jesus libertou os peixes: “nous libérant du péché.” ... Não, não, não pode estar certo. Talvez seja uma canção do sindicato e Jesus tenha libertado os pescadores. Alessandro me informa que o Seigneur Jésus nos libertou do pecado. Pecado, não sardinhas.

* * *

Florent e Pauline finalmente abordaram o assunto de um romance entre os dois. Infelizmente, quando ele abriu o seu coração, ela respondeu que não estava pronta para um relacionamento duradouro. Ele respondeu que ela era como uma torta de limão que ele conseguia ver em uma vitrine, mas não podia comer. Ele ganhou o meu coração com esta metáfora – embora Alessandro tenha apontado (mais uma vez) que se Florent fosse italiano, ele já estaria na confeitaria comprando a torta.

* * *

Está ficando mais quente na França e as mulheres parisienses tiraram seus shorts do armário. Elas vão para o trabalho de manhã vestindo bermudas justas na altura dos joelhos, geralmente com barras dobradas e costuradas (às vezes, inclusive, de denim). As bermudas são combinadas com respeitáveis jaquetas e saltos muito, muito altos. O resultado é – para a minha surpresa – estiloso em vez de barato.

* * *

Terminei minha versão de A Bela e a Fera! Para comemorar, fomos ao restaurante tailandês da vizinhança e discutimos títulos. Porque o meu herói é inspirado no programa de televisão House M.D., as crianças estão defendendo “The Cranky Cripple and the Bodacious Bride” (O Manco Mau Humorado e a Noiva Ousada), mas meu editor dispensou esta opção por When Beauty Tamed the Beast (Quando a Bela Domou a Fera). Eu gosto, embora temo secretamente que meu herói seja permaneça tão indomável quanto sempre foi.

* * *

Estava sentada em um café quando uma adorável criança de dois anos passou por mim vestindo meia-calça preta, vestido xadrez preto e branco e um suéter preto. E uma pregadeira de cabelo preta. Não é de se espantar que parisienses sejam sofisticados sem qualquer esforço – eles aprendem as virtudes de um vestidinho preto quando nós, americanos, ainda estamos vestindo camisetas da Disney com brilhantes cor de rosa e óculos escuros combinando.

* * *

Sempre corro na rue La Fayette para que eu possa parar na frente da Graziella, uma minúscula loja com duas ou três vestimentas, no máximo, na vitrine. Tudo que eles desenham e vendem é impressionante, com estilo e drama. As peças, especialmente um casaco com gola larga e botões fabulosos, trazem à mente um filme antigo de Katharine Hepburn.

* * *

Estamos mandando Luca e Anna para um acampamento de tênis italiano. Luca vai para mais duas semanas de acampamento de tênis francês em seguida. Ele está furioso com nossos planos para a sua vida social. Se ele pudesse escolher, dormiria o dia todo e passaria a noite inteira no Facebook (ou pior). Mas mantemos a soberania, por mais algum tempo.


Os horrores da peça
de teatro da escola

Minha mãe frequentemente dizia que suas ambições na vida eram casar com um poeta e ser dançarina de balé clássico. Tenho que supor que foi ambição frustrada que fez com que eu e minha irmã tivéssemos aulas de dança. Tenho uma memória, piedosamente vaga, de fazer parte de uma peça da escola. Eu era uma folha de outono, pulando pelo refeitório da escola fundamental com papel marrom amassado balançando na minha cintura. Senti-me desengonçada e decididamente nada como uma folha, e tornei-me desanimadoramente ciente de que um talento para a dança não havia emergido da minha combinação genética.

Meus filhos herdaram meus lamentáveis genes: somos os figurantes das produções escolares, prontos para engrossar o coro ou interpretar um criado lorde, se preciso, o Bobo da Corte – mas nada mais ambicioso. Este ano, para a produção em francês da escola italiana, Anna não atingiu sequer o nível de Bobo da Corte. Por sorte, suas aspirações são proporcionais aos seus talentos dramáticos, então ela ficou tranquila quando foi escalada para os papéis de relógio e mosca.

Na manhã da performance, ela estava vestida de preto, como cabe a uma mosca. A única camiseta preta que ela tem é estampada com a logo dos Ramones, então a instruímos a virá-la do lado avesso para entrar em cena, para certificar-se de que o público não pensaria que ela era um inseto punk. Suas responsabilidades de fala eram pequenas, mas ela teve que dizer as horas duas vezes – em francês, conforme ela apontou durante um ataque de nervos de última hora. Tic-tac!

A caminho da escola, perguntei para ela sobre o que a peça era, mas ela não parecia saber muito bem. Ela me disse, bastante incerta, que havia uma mulher idosa que morria. Soava como um conto de fadas dos irmãos Grimm para mim. Não tinha uma mulher idosa que morria ao comer uma mosca? Mas Anna me certificou de que ela não seria devorada.

Naquela tarde, Alessandro e eu chegamos cedo para a apresentação e encontramos Anna zumbindo pelo ginásio em sua roupa preta, agora completa com um bico roxo. Isto não parecia com as moscas que eu conheço e depois de algumas perguntas descobri que ela havia se confundido em relação ao seu papel – afinal de contas, ela não era uma mosca, mas um pequeno demônio que zumbe em torno da mulher moribunda como parte de um pesadelo. A trama estava começando a soar estranhamente sombria, até kafkiana. Acomodamo-nos em nossos lugares para apreciar Dora, a Morta em vez de Dora, a Aventureira.

A “idosa” de dez anos de idade era claramente reconhecível, envolta em um cobertor. Mas esta foi a última coisa que entendemos. Antes de mais nada, crianças italianas tagarelando em francês não são lá muito inteligíveis. Além disso, a trama tornou-se ainda mais obscura pela contribuição criativa das crianças nas interpretações dos seus papéis. Uma menininha um tanto descontente, por exemplo, ficava tomando longos goles de uma garrafa de vinho (vazia). Eu nunca entendi qual era a relação dela com a mulher moribunda, ou porque ela estava buscando a embriaguez, embora Anna depois tenha me informado que ela era a narradora.

A trama tornou-se ainda mais obscura quando problemas técnicos inevitáveis ocorreram. O mecanismo que fechava as cortinas emperrou e começou a fazer barulhos. Os atores olharam para cima e nervosamente continuaram a tagarelar de uma forma que sugeria que eles compreendiam aproximadamente cinquenta por cento de suas falas e realmente não se importavam se nós na plateia não compreendêssemos nada. Demônios vieram e se foram, anjos dançantes apareceram, o alarme do relógio disparou (gostamos disto), a bêbada andou pelo palco resmungando. A plateia começou a ter ataques de riso em momentos inapropriados o que atrapalhou os atores, já perplexos.

A apresentação estava lentamente se aproximando do grande momento de Anna – a declaração da hora certa pelo relógio – quando a “idosa” repentinamente morreu. Os outros atores pareceram bastante surpresos, mas eles animadamente reuniram-se enquanto ela jogava seu cobertor e dançava, em uma interpretação rítmica do paraíso.

Na verdade, a atriz ficou confusa e morreu dois atos antes da hora. Mas na altura em que seu erro foi reconhecido, já não havia mais salvação. Havia um sentimento comum de que (especialmente na plateia) assim que o personagem principal morresse, a peça estaria acabada. É hora de fechar a cortina.

Anna nunca chegou a proferir sua grande fala, então, ela a anunciou no jantar. “Il est neuf heures”. Ela a disse muito bem.

* * *

Os alunos da escola fundamental de Florent começaram a chamar Pauline de Madame Selig (o sobrenome de Florent), porque os dois passam tanto tempo juntos. Este é um desdobramento interessante. Adolescentes são observadores astutos de adultos; eles já percebem os dois como um casal. Agora, apenas Pauline precisa ser convencida.

* * *

Alessandro e eu desertamos as crianças à noite e nos levamos para jantar em um pequeno restaurante chamado Sauvers & Coïncidences, subtitulado “A Culinária dos Bons Sentidos.” Nossa garçonete era casada com o chef; ela disse que seu marido há muito sonhava em abrir um restaurante onde a comida fosse tão fresca que eles não precisariam de um refrigerador. Alguns dos pratos eram bons e outros eram medianos (homens italianos – sem citar nomes – deveriam parar de pedir risoto em outros países porque nunca chega à altura do italiano), mas a paixão era inconfundível. E enquanto a Madame falava, um menininho vestindo um avental de chef apropriado para o seu tamanho colocou a cabeça para fora da cozinha.

* * *

Fomos a uma grande loja esportiva hoje para comprar muitas roupas brancas para as crianças usarem no acampamento. Anna usou sua mesada duramente economizada para comprar uma lanterna de espeleologia rosa shock de amarrar na cabeça. “Para ler Harry Potter debaixo das cobertas,” ela me disse. Algum dia, quem sabe, ela aprenderá a não alertar o policial antes de cometer um crime.

* * *

Hoje eu fiz uma pesquisa na internet para descobrir alguns fatos sobre Claude. Pages from the Book of Paris [Páginas do livro de Paris] foi o seu primeiro livro; depois disso, ele escreveu romances e mais não ficção, incluindo um trabalho intitulado Opinions [Opiniões], que tem – tentadoramente – capítulos intitulados “Pornografia” e “Meditações sobre Mulher”. Estremeço ao pensar no que Claude achava de pornografia, sem mencionar o que ele teria pensado dos meus romances. Mas também achei uma crítica na qual seu livro de memórias de Paris foi condenado com pouco elogio por seus “esboços picantes”. Minha mãe nunca gostou dos meus livros românticos, que ela rotulou como “aquele troço sexual”. Ainda assim, meu talento obviamente ignominioso para “esboços picantes” é hereditário – e vem do lado dela da família!

* * *

Hoje fomos a um museu divertido e pequeno, o Musé de la Vie Romantique, que abriga mobília e bens que pertenciam à escritora George Sand. Francamente, a arte não é digna de nota, embora a reconstrução de sua sala de visitas seja fascinante e faça a visita valer a pena. Isto, e sentar para uma xícara de chá na pequena sala de chá no jardim. Uma vinha exuberante desabrochava com flores vermelho-alaranjado e pendurava-se sobre uma parede de tijolos às nossas costas, como se a própria Natureza estivesse zombando os artistas cujos trabalhos ela havia superado.

* * *

Florent contou para Alessandro sobre um restaurante vietnamita sensacional chamado Minh Chau, então fomos jantar lá na noite passada. Dez mesas espremiam-se no espaço e a comida vem do andar de cima, de uma escada íngreme e sinuosa. É mal cuidado, decorado com flores de plástico e um pouco claustrofóbico – mas a comida! Comi uma incrível salada de cenoura e coentro para começar, delicadamente temperada e deliciosa, seguida de frango com gengibre tão bom que quase lambemos os nossos pratos. A conta? O equivalente a 15 dólares!

* * *

Alessandro foi para a Áustria para dar uma palestra em uma universidade e trouxe uma caixa de bombons pra mim, com a cara do Mozart em cada um e um bolo de marzipã no meio. Perguntei, “Isto é bom para a minha dieta, certo?” O professor assegurou-me que eles não têm calorias e quem sou eu para discutir?

* * *

Estava cruzando a minha ponte favorita, Pont Alexandre III, nesta manhã e pausei para cumprimentar a estátua do menino tritão. Dois turistas passaram por mim, ambos segurando pequenas câmeras de vídeo na frente dos seus rostos. Eles viravam as câmeras para lá e para cá, desesperados para gravar tudo, como se a documentação fosse algo significativo por si só. Quero ter a experiência do lugar onde estou e do que estou vendo, e não ver tudo apenas através dos olhos da câmera, para visualização limitada mais tarde.

* * *

Florent veio jantar novamente e me disse que Pauline é extremamente bonita, muito inteligente e tem um diálogo fascinante. Ela tem 26 anos, o que não me parece jovem demais para um relacionamento a longo prazo. Florent certamente parece ter bem menos do que 41 anos; à primeira vista, supus que ele tivesse aproximadamente trinta anos. Ele tem um encantador e tímido charme francês. Gostaria que ele imigrasse para os Estados Unidos e casasse com uma de minhas amigas. Poderíamos servir tortas de limão no casamento.

* * *

Em nossas caminhadas noturnas, Alessandro e eu geralmente andamos pela minha rua preferida para fazer compras, rue des Martyrs, passando por Autour du Saumon – uma loja que não vende nada além de salmão. Ontem entramos e tivemos uma conversa séria sobre seis ou sete tipos diferentes de salmão defumado antes de escolher um. Devoramos o salmão (delicioso!), mas eu nunca achei um salmão defumado de que não gostasse, então talvez este processo de decisão deliberativo e tão francês tenha sido desperdiçado conosco.

* * *

O fim do ano escolar está chegando e eu imagino que os colegas da escola fundamental de Florent terão uma longa reunião e, em seguida, como é de costume aqui, sairão para um jantar ainda mais longo antes que todos separem-se para as férias. Alessandro cedeu mais conselhos românticos italianos, enfatizando em ação física direta. Florent e sua amada não fizeram nada além de falar por horas todas as vezes em que se encontraram; Alessandro acha que é hora de partir para o beijo. “O amor não é feito de palavras”, ele me disse. Um ponto de vista bastante masculino.

* * *

É o último dia de aula de Anna, e eu vou andar para casa, pela rue des Invalides, sobre a Pont Alexandre III, dizer adeus para o menino tritão sorridente e para o Sr. Churchill, pelo menos por agora, andar através do adorável parque perto da Concorde... Doces “últimas vezes” empilham-se em minha mente: a última vez que abracei a minha mãe, a última vez que sequei Luca depois de um banho (agora ele é muito mais alto do que eu), a última vez que li Goodnight Moon em voz alta... Ainda leio em voz alta para Anna, porque não consigo suportar o pensamento do último livro.

* * *

A última reunião da escola, aberta para todos os pais, foi uma ocasião angustiante. Paralisada pelo nervosismo, Anna ficou travada enquanto lia sua história em voz alta e desatou a chorar. Domitilla prontamente apareceu para lhe dar um longo abraço e, depois, como se as lágrimas fossem contagiosas, desatou descontroladamente a chorar ela mesma porque Anna estava indo embora de Paris. Como as coisas mudaram desde o outono passado, quando Domitilla era a Inimiga Número Um!

* * *

Na noite passada, um pequeno quarteirão perto da nossa casa deu uma festa, com uma banda especializada em sucessos americanos das décadas de 1970 e 1980. Deixamos as janelas do quarto abertas para aproveitar melhor o show gratuito. Uma música que ficará gravada em minha memória é a interpretação deles, com forte sotaque francês, de “Play that funky music, white boy. Wew-hewwww!” Rimos histericamente. Em certo ponto, Luca entrou no quarto gritando: “Escutem! Eles estão tentando tocar White Stripes agora!”

* * *

Viviane convidou-nos para jantar na noite passada. A refeição começou com sua versão de um aperitivo que ela recentemente comera em um restaurante com três estrelas Michelin (bárbaro!) e terminou com um bolo que ela comprou na “melhor confeitaria em Paris” – Dalloyau no boulevard Beaumarchais. O interior tinha diversas camadas: uma mousse de framboesa azeda, coberta com uma delicada camada de limão, rodeada por bolo de pistache com um desenho maravilhoso em açúcar de framboesa. A parte de cima brilhava com uma camada clara de limão e tinha um delicado arranjo de frutas vermelhas. No dia seguinte, marchamos em direção à confeitaria, compramos o mesmo bolo e o levamos para casa para ser devorado.

* * *

A única coisa que velou a minha felicidade aqui foi o meu cabelo; foi realmente o Ano do Cabelo Ruim. Primeiro, me deram luzes douradas. Depois, uma jovem espalhou tintura platinada no meu cabelo. A cabeleireira desaprovadora que deu sequência a este desastre conseguiu criar o seu próprio, transformando-me em uma laranja escandolosa com tintura vegetal. Agora a tinta havia empalidecido, a não ser perto do couro cabeludo, onde ainda pareço com uma cenoura. Uma desesperada busca na internet revelou um salão onde se fala inglês, StylePixie. O site anuncia, “Para emergências capilares, por favor, ligue para o salão”. Liguei para o salão.

* * *

Musée Carnavalet é o museu da história de Paris e isto significa que tudo que se pode imaginar está dentro dos seus aproximadamente cem cômodos. São majoritariamente cômodos autênticos, retirados dos seus locais originais e reinstalados aqui: o salon bleu de Luís XVI, a sala de visitas de Maria Antonieta, o quarto de Marcel Proust. Se tivesse a opção, tenho que admitir, eu sempre escolheria espiar quartos de gente famosa em vez de arte (sinal de uma mente superficial, obviamente).

* * *

Viva! O jantar de fim de ano escolar da Florent foi noite adentro... comendo, bebendo, fumando, celebrando. No final, ele e Pauline deixaram o restaurante juntos e andaram pela cidade. Eles passearam da Bastilha à rue du Faubourg-Saint-Antoine, e depois entraram no boulevard Voltaire até République, falando loucamente, andando até o amanhecer. Finalmente, quando o sol subia rosa sobre o Sena, Pauline olhou para ele e disse, “Você me comparou a uma torta de limão que não pode comer”. Ele concordou. Ela abriu sua bolsa e acomodada no fundo estava uma pequena torta de limão perfeita.


Um pedaço do
verão parisiense

Nesta manhã, despachei a família para a Itália; pelas próximas duas semanas, Alessandro vai ficar na Itália enquanto as crianças estarão no acampamento de tênis. Eu ficarei em Paris para escrever, escrever, escrever. Quando eu entrei novamente no apartamento, me dei conta de que nunca havia sido a pessoa a ficar para trás; geralmente, sou a pessoa que viaja. O silêncio encheu o apartamento até que batucou nos meus ouvidos. Mas agora a chuva está caindo forte nas janelas e em breve eu levarei o meu guarda-chuva de bolinhas para um passeio pelas ruas da cidade. Silêncio, com chuva, é um barulho amigável.

* * *

StylePixie Salon acabou sendo a resposta para as minhas preces. Desde o momento em que entrei e vi uma pilha de revistas femininas inglesas, fiquei feliz. E depois que Victoria, dona do salão, avaliou a horrenda situação na minha cabeça e delicadamente colocou dois ou três tons para abrandar o laranja e a máscara platinada, fui para o paraíso.

* * *

O sem teto partiu. Ele guardou sua barraca e desapareceu em meio à noite. Espero que ele tenha ido para algum lugar verde; gostaria de imaginá-lo meditando na grama em vez de no concreto. Parei onde sua barraca costumava ficar e percebi que ela estava posicionada em cima de uma poderosa ventilação de aquecedor. Não é de se admirar que ele parecesse tão confortável, mesmo no inverno rigoroso.

* * *

Estou escrevendo um livro sobre os pequenos teatros londrinos durante a época de Shakespeare e esbarrei com uma adorável referência: em 1555, um homem muito poderoso chamado Sir Thomas Cawarden, que era proprietário de grande parte da popular área de Londres chamada Blackfriars, escreveu um contrato de aluguel para uma Elizabeth Foster. O contrato concedia o direito de alojá-la “até o fim de sua vida, por aluguel anual, 3 Flores aromáticas”. Em comparação, outras pessoas pagavam mais de trinta libras esterlinas por ano, um montante enorme para a época. Meu lado de escritora de livros românticos acha este contrato intrigante e agradável.

* * *

Fui visitar uma amiga no 16o arrondissement hoje. Ela andou comigo até a estação do metrô, Porte Dauphine, e apontou para a cobertura de vidro sobre a entrada que parece um grande rabo de pavão sem cor. Aparentemente, é uma das únicas entradas de Art Nouveau originais que ainda existem na cidade. Todo aquele vidro transparente arqueando-se sobre a porta parecia quase conflitante, como se afirmando que aquela não era a porta para o Submundo; Cérbero não aguarda no subsolo.

* * *

Notas divulgadas! Temíamos que Luca pudesse ficar retido para duas semanas de cursos corretivos destinados àqueles com notas baixas. Mas não! Ele trabalhou muito duro neste ano para dominar as traduções de latim para italiano, geometria explicada em italiano e interrogazione sobre História (reclamação recorrente do professor: “os fatos estão corretos, mas suas frases não são complexas o suficiente”). Não só ele passou de ano, como também se saiu muito bem em algumas matérias! Ele parece ter um dom para análise literária.

* * *

Acordei no silêncio e saí para uma corrida. Paris é triste, fria e vazia nas primeiras horas da manhã. A caminho de casa, encontrei vendedores de frutas arrumando engenhosas montanhas de maçãs, kiwis e abacaxis, como esquilos ansiosos (mas artísticos) empilhando castanhas para um longo inverno.

* * *

Terminei o livro de memórias de Claude, que é concluído com uma entrevista imaginária bastante estranha com o escritor Anatole France. Os paralelos entre meu tio-avô e eu são impressionantes. Nós dois estudamos em Harvard (preciso reverenciar a tradição de admissões por legado aqui), moramos em Paris, escrevemos livros de memórias, ficamos emocionados com a luz da França e escrevemos romances que não foram apreciados pela instituição literária. Não só isto, como também escrevemos artigos de opinião para o The New York Times, embora a dele fosse sobre política italianae a minha sobre o termo bodice-ripper (rasgador de corpetes). E fizemos tudo isso com quase precisamente cem anos de diferença. Liguei para Alessandro na Itália para informá-lo que talvez eu esteja possuída pelo fantasma de Claude C. Washburn, mas ele meramente bufou.

* * *

Milo vai fazer uma viagem para emagrecer! Alessandro vai para as montanhas enquanto as crianças estão no acampamento e ele convenceu Marina a deixar Milo ir com ele. Marina fez as malas de Milo com sua almofada de veludo vermelho, seus potes de comida especiais, seu casaco especial, sua toalha especial e seu secador especial, e os despachou, aconselhando Alessandro a mantê-lo seco porque o veterinário diz que ele é muito, muito sensível e pode desenvolver reumatismo se não for mimado.

* * *

Passei o dia de ontem na frente do computador, ocasionalmente me inclinando para saborear pedaços do sapato de chocolate que Alessandro e Luca me deram: um toque de baunilha, uma insinuação de cacau, um gosto residual instável. Silêncio, sem adolescentes contrariados e carentes crianças de 11 anos – e um sapato inteiro para comer!

* * *

Falei com Anna, que ligou do acampamento. Ela me disse, num tom de virtude piedosa, “Todas as crianças usam palavrões em cada frase que falam. Não posso lhe dizer mais nada porque estaria caguetando”. Em seguida, com uma pausa, ela adicionou: “Sabe o que Luca anda fazendo? Ele está ensinando ao seu grupo palavrões em inglês americano – aqueles muito, muito baixos!” Meu garoto... Aproveitando cada oportunidade para expressar os aspectos mais refinados da cultura americana para os seus colegas ao redor do mundo.

* * *

Ontem encontrei uma fila na frente de uma loja que vendia roupas britânicas – com 75% de desconto. Naturalmente, eu entrei na fila. Na porta, me entregaram uma enorme sacola; no interior da loja, as pessoas enchiam suas sacolas com roupas como pombos famintos atrás de migalhas. No fim das contas, não consegui encarar a fila do caixa e, além do mais, eu havia perdido uma disputa por um casaco de chuva rosa claro com uma francesa feroz. Esgueirei-me para a saída, oferecendo um sorriso fraco para as mulheres que ainda esperavam na fila do lado de fora.

* * *

Hoje Luca ligou do acampamento. Seu grupo tem cinco meninos de 16 anos e nenhuma menina da sua idade; a menina mais velha tem 13 anos. Chegarão mais seis adolescentes amanhã: cinco meninos e uma menina; que ele espera que tenha 15 ou 16 anos. “Sou o mais alto”, Luca me disse, “e faço mais pontos do que qualquer um em handball.” Apesar destes potentes fatores, percebo que ele está incerto de ganhar A Garota. Só espero que ela esteja realmente interessada em garotos.

* * *

Depois de muito farejar, decidi qual é o meu sabonete francês preferido. É produzido por uma empresa chamada Resonances e vendido na Galeries Lafayette Maison em grandes blocos que se pode cortar ao meio. É aromatizado com verbena, que eu precisei pesquisar; é uma flor selvagem também conhecida como “erva da graça”. Este aroma me lembra limões e roupa seca ao ar livre.

* * *

Estive ansiosa para conferir a cena de lojas de roupas de segunda mão em Paris, então fui para Réciproque, que tem lojas separadas para homens, roupas femininas de festa, roupas femininas de grife e presentes. Experimentei diversos ternos da Dior (todos caros demais, mas divertidos de usar, ainda que por apenas um momento), e depois decidi que poderia comprar uma blusa de seda azul clara e florida da Dior. Pendurada no meu armário, ela parece um pavão entre uma porção de galinhas.

* * *

Andando pelo 7o arrondissement hoje de manhã, olhei para o alto para ver a Torre Eiffel no fim da rua. A cidade estava tão nublada que as nuvens cobriram completamente a parte de baixo da torre; o que estava visível acima da neblina parecia a torre de controle de um submarino complicado e muito perigoso emergindo do mar enevoado. Na verdade, quando a Torre Eiffel foi erguida, em 1889, havia uma preocupação geral sobre como ela poderia afetar o clima e trazer tempestades elétricas para a cidade. Subitamente entendo o medo.


Sobre mulheres parisienses,
e se elas engordam

Vim a Paris sabendo que tinha uma amiga implantada no local esperando por mim: a genial e engraçada banqueira chamada Sylvie, que por acaso gosta de ler os meus livros em inglês. Muito antes de nos conhecermos pessoalmente, ela me escrevia e costumava corrigir meu francês defeituoso. Finalmente, percebi que eu poderia me poupar de mais constrangimento se pedisse a ela para consertar as partes em francês antes de publicar meu livro. Isto alterou a equação autor-leitor; trocamos fotos de nossos filhos e histórias sobre os nossos casamentos. Ao longo do ano, nos encontramos ocasionalmente para almoçar ou jantar, quando eu a bombardeava com perguntas sobre a vida francesa. “Não, não somos todos adúlteros!” ela gritou comigo certa vez. Depois: “Bem, não nos subúrbios, pelo menos.” (Ela mora nos subúrbios, em apresso em acrescentar.)

Certo dia, decidimos fazer compras juntas – uma decisão casual que me conduziu a uma nova filosofia sobre fazer compras e, além disso, sobre como se vestir. Quando estou em uma loja, pego uma saia da arara, a seguro contra a minha cintura e a coloco de volta no lugar. Sylvie, em contraste, movia-se conscientemente de lá para cá, tocando as roupas delicadamente, como se elas pudessem desfazer-se em pedaços. Enchi meu braço de roupas e as levei para o trocador; ela levou um terno. Quando eu finalmente saí – tendo rejeitado todas as roupas que experimentei e vestido as minhas de volta – ela ainda estava na cabine adjacente em frente ao espelho, conduzindo uma enquete animada com vários vendedores assim como alguns clientes.

Aos meus olhos, o terno que ela estava experimentando era elegante e prático, e ficava esplêndido nela. Os ombros estavam perfeitamente sob medida e a saia abria levemente na parte de trás. Entretanto, uma inspeção minuciosa – muito minuciosa – revelara que a saia e o blazer teriam sido feitos com diferentes rolos de tecido, uma vez que eram de tons quase imperceptivelmente desiguais de azul.

Preciso adicionar que Sylvie não comprou o terno?

Embora o terno caísse como a proverbial luva, era fatalmente defeituoso. Os padrões de Sylvie para como ela se apresenta ao mundo não incluíam vestir ternos desiguais (não importa o quão levemente). De mais a mais, ela decidira que a abertura sedutora da saia, embora indiscutivelmente à la mode, não valorizava seu traseiro. A experiência inspirou-me com uma nova determinação: examinar as mulheres parisienses tão de perto quanto elas obviamente examinam elas próprias. E a decisão, juntamente com minha subsequente pesquisa empírica, conduziu a este importante anúncio: Mulheres francesas também engordam. Na verdade, elas são de todos os tamanhos, de muito esguias a muito corpulentas. Aqui vai a minha versão da mesma frase: Mulheres francesas, não importa de que tamanho sejam, se vestem para parecerem magras.

Suspeito que a maior parte das adolescentes americanas aprendam a vestir-se vendo filmes e televisão. O senso de estilo delas é demarcado em uma idade vulnerável, assim como pintinhos recém saídos dos ovos podem apegar-se a uma vassoura – com resultados igualmente desastrosos. No meu caso, foi extremamente lamentável que Grease – Nos Tempos da Brilhantina tenha sido seguido por Flashdance. Em um momento particularmente baixo, fiz um permanente no meu cabelo que espichava-se dez centímetros em torno da minha cabeça como uma auréola vermelha, embora eu fosse astuta o suficiente para entender que calças de couro justíssimas não favoreceriam minha silhueta robusta do Minnesota. No entanto, por pelo menos três ou quatro anos, suéteres constantemente caíam de um dos meus ombros friorentos, e polainas adicionavam uns bons oito centímetros às minhas canelas.

Mas, voltando a um presente mais feliz, depois de meses como uma agente secreta do vestuário – e algumas conversas chave com qualquer mulher portando um passaporte francês que concordasse em descrever o seu armário – posso lhes dizer em definitivo que jovens mulheres francesas não se voltam para Hollywood em busca de instruções sobre como se vestir. Em vez disso, elas descobrem o que valoriza sua figura e elas se agarram a isto.

Meus meses de observação podem ser resumidos em duas palavras: tempo e alfaiataria.

Tempo? No meu caso, venho fazendo compras há décadas, tenho um armário e uma cômoda cheios de roupas e ainda não tenho nada para vestir – porque, embora eu gaste tempo fazendo compras, eu nunca uso o meu tempo para descobrir como vestir as roupas que comprei. E mais: assim como os suéteres que caíam do ombro, estas roupas geralmente não caem bem. Na minha próxima vida, planejo reencarnar no tipo de corpo que fica bem em qualquer roupa; se você já é Uma Abençoada, sinta-se livre para pular o resto desta dissertação. Se não, você tem duas opções, em minha opinião: (a) destemidamente investigar se suas roupas valorizam o seu traseiro (e outras áreas) ou (b) evitar todo e qualquer espelho, vitrines de lojas e comentários femininos. A segunda opção demanda muito, incluindo paz de espírito e uma pré-disposição à alegria.

De qualquer forma, vamos voltar à primeira opção. Olhe para qualquer rua em Paris e você quase certamente verá uma placa de alfaiate. Isto acontece porque é costumeiro levar roupas novas para o alfaiate e costurá-las sob medida. Certa vez, uma acadêmica francesa me olhou como se eu estivesse louca quando confessei entrar em lojas de alfaiates apenas quando a barra das roupas se arrastavam atrás de mim como uma capa da Renascença. Enquanto ela não sonharia em vestir uma calça sem antes alterar a costura interna e o mesmo vale para as costuras cruciais em blazers, vestidos e quase qualquer coisa menos meias. Aparentemente, até lojas de lingerie rotineiramente alteram sutiãs para que eles tenham o caimento apropriado. Já que nunca superei minha convicção de que meus seios são pequenos demais para serem apreciados por mulheres (sei que isto soa estranho, mas se eu fosse lésbica, definitivamente iria atrás de mulheres com seios grandes), nunca tirei as medidas do meu sutiã. Nós todos colocamos um limite em algum ponto.

O alfaiate na esquina da rue du Conservatoire passa os seus dias dentro de um pequeno cômodo abarrotado com pilhas de tecidos e roupas descosturadas. Ao longo do ano, levei quase todo o meu armário para ele e ele alterou cada peça. Ele fez com que um vestido caísse exatamente onde deveria nos meus quadris, alterou ombros para que coubessem nos meus ombros e ajustou as costuras internas da minha calça para que me vestisse corretamente. Em suma, ele transformou roupas prontas – prêt-à-porter – em uma versão de alta costura, de roupa de luxo que é feita para as medidas específicas de um cliente.

E ele não cobra muito, também.

Não foi antes que eu passasse alguns meses examinando mulheres – nas ruas, no metrô – que percebi que eu nunca realmente havia parado para analisar qual das minhas roupas ficava bem quando combinada com outra. Por acaso, tenho muitos sapatos; sempre considerei este um dos melhores benefícios de ser casada com um homem italiano. Uma vez, para dar um exemplo lamentável, comprei saltos verdes ácidos com oito centímetros de altura em Roma. De volta aos Estados Unidos, os joguei no meu armário e usei um par de oxfords pretos dia após dia. Levou algum tempo, mas recentemente percebi que os saltos verdes só funcionam com um vestido, que é bastante curto, quase mini. Aqueles saltos verdes de oito centímetros? Foram para a Legião da Boa Vontade, vítimas do fato de que eu ocasionalmente ainda faço compras como se eu saísse para dançar. Numa casa noturna.

Isto nos leva a outro importante – e potencialmente doloroso – aviso. Uma vez que você tenha montado uma combinação sensacional, você precisa ser implacável consigo mesma em relação à sua idade real, em vez da que você sente ter. Há alguns meses, Luca investigou o meu decote e ao que tudo indica o achou muito cavado, porque ele me perguntou se eu “estava tendo um momento jovial”. Não deixe que isto aconteça com você. Precisei de algumas semanas para me recuperar.

E se algum dia você foi rainha de concurso de beleza ou uma viciada em Flashdance? Encare os fatos: estes dias se foram. Uma menina de 11 anos pode ser de grande ajuda para manter esta perspectiva; Anna, por exemplo, oferece suas opiniões nuas e cruas com muita liberdade. “Eu não acho que isto veste bem na sua bunda”, ela diz, ressaltando a palavra acho caso eu queira argumentar que meu traseiro nunca esteve melhor. “Você está igual a uma bibliotecária velha.” (Não tem uma menina de 11 anos morando com você, nem pode implorar, pedir emprestada ou roubar uma? Alugo a minha pelo preço mais baixo.)

Coloque todas as roupas que combinam com alguma coisa do lado esquerdo do seu armário e aquelas que não combinam com nada do lado direito. Doe todas as peças do lado direito para a caridade e leve todas as peças do lado esquerdo para um alfaiate. Você pode não ter muitas roupas, mas tudo bem. Combinações são como caçarolas – você só precisa saber combinar duas.

Como recompensa, vá às compras, na internet ou pessoalmente, mas apenas para comprar aqueles três itens indispensáveis que você ainda não tem: um par de botas pretas, um lenço rosado ou um cinto. Use as botas em todas as estações, exceto no verão, o lenço perto do rosto e o cinto quando você estiver se sentindo corajosa.

Acabei de reler este ensaio e cheguei à desanimadora conclusão de que você vai me encontrar na rua e me acusará por calúnia fanática porque não estou usando um cinto e minhas botas são vermelhas. Ou porque estou vestindo o meu moletom preferido, que foi rejeitado por Luca porque é estampado (bastante obscuramente) com a palavra SUPERDRY33.

E mais, você provavelmente acha que Sylvie é um modelo de elegância, vagueando pelo banco de saltos, cabelos presos em um elegante chignon. Nada disso! Sylvie é mãe de três crianças com um trabalho exaustivo que demanda longas horas. Ela não é magérrima, nem usa um lenço amarrado firmemente em volta do seu pescoço, não importa qual seja a estação. Em um determinado momento, cheguei a perguntar para ela porque ela não estava constantemente na moda. Ela riu e encolheu-se. “Esta sou eu”, ela disse. “Estou confortável.”

Veja minha nova (e emprestada) filosofia: Sylvie se veste muito como minhas amigas americanas nas profissões das áreas legal e financeira. Mas com um toque parisiense: ela sabe que seu terno a veste perfeitamente e destaca sua forma da melhor maneira possível. Seu estilo não tem nada a ver com salto alto e tudo a ver com confiança.

Outro dia encontrei esta citação de Miuccia Prada (sim, aquela Prada): “Ser elegante não é fácil. Você tem que estudar, assim como culinária e arte”. Para ser honesta, não estou tentando fazer uma dissertação nesta área. Eu (e, talvez, você também) nunca serei uma chef de couture. Não precisamos ser – não mais do que Sylvie. Tudo que temos que fazer é dar tempo suficiente ao processo e fazer uso da alfaiataria para sermos verdadeiras com as nossas silhuetas.

E então poderemos admirar (mesmo que de longe) aquelas parisiennes que conseguem um doutorado no tema.

* * *

Santa Catarina de Alexandria é a padroeira francesa das mulheres solteiras. Seu dia, 25 de novembro, costumava ser celebrado por jovens mulheres da classe operária que tiravam o dia de folga para usar chapéus refinados feitos em casa com suas melhores roupas. Supostamente, as festas que aconteciam nesta noite seriam a última chance delas para conhecerem seu Monsieur Charmant. Recentemente, corri em um parque minúsculo chamado Praça Montholon e desmoronei, arfando, sobre um banco em frente a uma estátua de cinco jovens mulheres em trajes da era eduardiana comemorando o dia de Santa Catarina. Chuva estava caindo das árvores e escorrendo por suas bochechas, e parecia que elas haviam sido pegas de surpresa por uma tempestade enquanto usavam suas melhores roupas.

* * *

O Musée de l’Armée na rue de Grenelle tem um adorável jardim francês de um dos lados, feito de caminhos delineados por topiarias com formatos de pequenos cones. Parecia o jardim da Rainha de Copas em Alice no País das Maravilhas: antiquado, cuidadosamente aparado, levemente torto e ligeiramente insano.

* * *

A nova menina (e cinco meninos) chegaram no acampamento de tênis de Luca hoje: tragicamente, ela só tem 11 anos. Não haverá um baile de encerramento, o ponto alto do ano passado. Ademais, nevou nas montanhas italianas, então eles não têm tido muita chance de jogar tênis. Os sonhos de romance e de proeza atlética foram desvastados.

* * *

Anna acabou de ligar, muito animada, para dizer que ela comprou um presente de despedida para Domitilla: porquinhos da índia de brinquedo que se mexem e guincham, com a casa e o carro dos porquinhos da índia. Alessandro diz que, por 59 euros, o presente custou metade do dinheiro que ela havia conseguido guardar de presentes e mesada que ela recebeu durante o ano anterior. Encontrei mães que falaram sobre as naturezas altruístas e generosas de seus filhos, mas nunca engrossei o coro, por razões claras. Este é o primeiro anúncio vaidoso deste tipo. Estou muito, muito orgulhosa dela.

* * *

Depois de um ano em Paris, e múltiplas experiências desencorajantes com comidas criminosamente ruins, cheguei à conclusão de que as lendárias brasseries – aquelas onde os garçons usam aventais longos e luminárias simulam utilizar gás como combustível – devem ser evitadas a todo custo. A última gota: uma amiga me levou à Brasserie Bofinger, um restaurante que parecia tão autêntico quanto a versão da Torre Eiffel do Epcot Center. (Uma grande diferença: a comida do Epcot é excelente.) Achei que meu risoto de peixe tinha um gosto duvidoso, e depois de encarar três dias de náusea, eu tenho certeza.

* * *

Acabei de comprar seis pequenos ramequins de louça, três da cor de aspargo claro e três da cor de ameixa escura, no loja de utensílios da vizinhança. Elas têm alças delicadas e foram feitas para crème brûlée, mas vou fazer tortas de limão individuais nelas e polvilhá-las com açúcar com um estêncil de flor-de-lis – que eu descobri no mesmo lugar. Lojas de utensílios oferecem lembranças bem melhores do que podem sonhar as lojas de turistas; cada vez que você usar seu batedor rosa shock, ele vai fazer você lembrar de Paris.

* * *

Na noite passada, desci a rue Richer às oito horas, quando as luzes começam a ficar douradas e os comerciantes ficam nos degraus de suas lojas, prontos para fechar. Exibindo-se na minha frente estava uma menina de três anos com um vestido de listras vermelhas, sapatos brancos com borboletas e óculos escuros cor de rosa shock equilibrados em sua cabeça. Ela parava em frente a cada comerciante dizendo “Bonsoir!” enquanto sua mãe pacientemente aguardava com o carrinho.

* * *

Com a família na Itália, ninguém me interrompe; não há brigas; não há roupa para lavar. Meu livro acadêmico cresce a cada dia e minha dieta para perder os quilos parisienses está indo bem. O problema é que eu simplesmente não consigo dormir. Meu corpo sabe que todo este silêncio e espaço vazio estão errados. A luz em volta da minha cortina nesta manhã não tinha cor, como a espuma de uma onda, como se até isso sinalizasse a ausência do que mais importa.

* * *

Hoje sucumbi a um rompante de curiosidade sobre a vida de Claude e liguei para o meu tio Malcolm em Minnesota. (Malcolm era um dos sobrinhos de Claude.) Ao que parece, Claude escrevia predominantemente ficção literária, mas ele também aventurou-se na ficção de gênero; Malcolm lembrou, por exemplo, de uma novela sobre um aparato paranormal que transformava partes de Duluth em um paraíso tropical. O pai de Claude estava convencido de que seu filho tinha um talento literário memorável e lhe garantiu um crédito que permitiu que ele pudesse desfrutar da vida intelectual em casas de campo italianas. (A comparação com minha mãe é dolorosa, mas estou me consolando com o fato de que, caso mamãe tivesse tido o dinheiro, ela certamente teria apoiado meus esforços literários, considerasse ela que eles fossem merecedores ou não.) Claude morreu durante uma viagem a Minnesota, quando foi pescar com o autor Sinclair Lewis e contraiu infecção por estafilococos. Claude, tio Malcolm concluiu, “era impotente no que se refere a atividades ao ar livre, como pescaria”. Sempre detestei pescar. Posso ter diversos paralelos com Claude, mas este último eu planejo evitar.

* * *

Esta noite, parei no número 37 da rue des Martyrs, no nomeado sem originalidade Bar le Select. Sentei do lado de fora e bebi uma excelente taça de vinho. Nos Estados Unidos, me sentiria estranha bebendo sozinha em um bar, mas aqui parece absolutamente natural. Alegremente observei poodles e parisienses desfilarem na minha frente. Estou sozinha na cidade mais encantadora do mundo e, neste momento, é como se os locais passassem por aqui apenas para o meu prazer.

* * *

O acampamento de tênis terminou ontem e as crianças estão em Florença com Marina antes de voltarem para Paris. “Perdi o campeonato, mamãe,” Anna reportou ontem à noite. Em seguida, animou-se “Mas acertei meu professor com uma bolada bem na testa!”

* * *

Hoje alcancei um marco: estou de volta ao mesmo peso que tinha antes de encontrar as vastas e deliciosas tentações de Paris. E isto é uma coisa boa porque dei de cara com o ateliê de Joséphine Vannier, a artesã do chocolate que criou o meu maravilhoso sapato de Cinderela. Ela também cria caixas feitas inteiramente de chocolate amargo, decoradas com tinta comestível. Elas são mais ou menos do tamanho de pequenas caixas de joias; comprei uma na cor ametista, com cachos dourados meticulosamente pintados na parte de cima.

* * *

Alessandro voltou de Florença depois de duas semanas nas montanhas com Milo, que não recebeu qualquer gratificação de prosciutto no ínterim, uma privação verdadeiramente cruel. Marina contou e pesou as 80 pelotas de comida dietética que Alessandro dera a ele a cada dia e anunciou que Milo passara fome, porque o veterinário prescrevera 120. Todos acalmaram-se depois que Milo foi erguido até a balança e descobriram que ele havia emagrecido... nada. Niente. Um lutador de sumô ficaria orgulhoso de ter este metabolismo.

* * *

Vou a uma grande conferência de escritores na Flórida dentro de algumas semanas e estou antecipando ficar doente, porque sei que o hotel terá o ar condicionado ligado em níveis árticos. Para preparar-me, comprei um casaco cinza carvão feito de um material amarrotado que você pode enrolar e colocar dentro de uma bolsa sem arruiná-lo. É japonês, tremendamente sofisticado – e 100 por cento poliéster. Quando eu estava crescendo, poliéster era praticamente um palavrão.

* * *

Já que estou sozinha, não estou me preocupando em cozinhar e, por sorte, a loja de comidas congeladas, Picard, vende paradisíacas refeições para esquentar e comer. Mas hoje comprei um prato principal fresco no Monoprix porque o estimado chef Joël Robuchon o havia preparado. Fora da caixa, descobri que era, na verdade, uma pequena caçarola em um adorável ramequim de porcelana.

* * *

Somos uma casa que opera um sistema sem jogos eletrônicos. Anna ligou da Itália, muito animada. “Mamãe, tive uma visão!” Perguntei sobre este evento milagroso. “Estava olhando para o nada e subitamente me vi jogando o novo jogo do Harry Potter. O portátil.” Sua visão nunca se tornará realidade, mas adoro a forma como ela reivindicou ajuda paranormal.

* * *

Fui sozinha ao Musée Jacquemart-André hoje. Nas minhas visitas anteriores, fui acompanhada por amigos e pelo guia de áudio; desta vez, no entanto, eu não tinha que agradar ninguém além de mim mesma, e perambulei em silêncio por todos os cômodos. Gosto muito de uma estátua de mármore de uma menininha muito pouco provavelmente acariciando uma pomba. Embora ela esteja completamente nua, seu cabelo está elaboradamente trançado e preso com um laço. Adoro sua barriga estufada e seus dedos do pé gordinhos.

* * *

Alessandro e as crianças voltaram da Itália. Comemos sushi na noite passada em vez de comida congelada, e eu dormi até 6h30 em vez de 5h. Anna descobriu o que ela ser quando crescer: decoradora de bolos. “Eu aaaaaamo glacê,” ela me disse. Então, ela perguntou se é preciso ir para a faculdade para decorar bolos. Você nunca ouviu falar desta matéria? Glacê para principiantes.

* * *

Os trabalhadores idiotas no andar de cima acabaram de colocar um pesado saco de cimento no nosso pequenino elevador, fazendo com que os cabos arrebentassem. Ele despencou por cinco andares até o térreo e precisa ser completamente refeito – um conserto que está programado para acontecer em agosto. Depois que partirmos. Estamos falando de três semanas de quatro lances de escadas para descer e quatro lances de escadas para subir. Carregar compras escada acima sem um elevador é uma coisa; a ideia de fazer uma mudança sem um elevador faz com que eu queira subir um lance de escadas correndo e virar uma diaba americana cuspidora de profanidades – do tipo que se vê em filmes estrangeiros e nacionais, também. O Diabo Veste Lingerie Francesa.

* * *

Está intoleravelmente quente em Paris. Meu escritório é um pequeno cômodo espremido entre nosso quarto e a sala de estar. Há grandes janelas dando vistas diretamente para o sol. Então, fechei as cortinas. Agora, o cômodo está quente e escuro, como uma versão em sauna da Bat Caverna. Acabo de tirar as minhas roupas exceto a calcinha e o sutiã, e ainda estou sentindo calor demais para escrever.

* * *

De volta à casa após o acampamento italiano de tênis, Luca está travando uma árdua batalha contra ir ao seu equivalente francês. Tudo em vão, uma vez que já está pago, mas ele não para de discutir o assunto. Sei que ele está paralisado pelo medo, mas eu olho para suas maçãs do rosto e lembro que mulheres francesas – não importa quão jovens – são conhecedoras da beleza masculina. Ele se sairá bem.

* * *

Os amigos Kim, Paul e Summer vieram de Nova Iorque para uma visita. Summer é uma menina de oito anos encantadora com queixo pontudo e a risada selvagem de um elfo da floresta – basicamente, uma sósia de Anna. Dentro de algumas horas, elas estavam de mãos dadas, lançando os braços uma em torno da outra enquanto andavam. Na hora de dormir, Anna me disse que Summer é diferente das outras meninas. “Como assim?”, perguntei. “Ela não faz o que eu mando”. Dei a entender que Summer deve ser uma companhia mais divertida para brincar porque ela tem as suas próprias ideias. Anna ainda está pensando sobre o assunto.

* * *

Há lugares no mundo que não fazem jus à própria fama; Giverny, o cenário das pinturas borradas e adoráveis de Monet, não é um deles. Acabamos de voltar para Paris encantados com lírios aquáticos com centros cor de rosa intenso, papoulas com pétalas translúcidas cor de rosa, cascatas de rosas corais. Isto pode ser uma heresia, mas acho que os jardins de Monet são mais bonitos ao vivo do que nas pinturas.

* * *

Hoje, Anna foi para o acampamento, assim, Kim e eu deixamos Summer no parque com o seu pai enquanto fazíamos compras. Quando voltamos mais tarde para buscá-los, nos deparamos com um galho em forma de garfo espetado em um monte de terra, folhas verdes batendo com o vento como pequenas velas. “Um monte fúnebre”, Summer anunciou. Olhamos respeitosamente para a sepultura que, no fim das contas, abrigava um Tic Tac morto. Descanse em paz.

* * *

Na noite passada, nossos amigos visitantes nos levaram a um restaurante com duas estralas Michelin, Carré des Feulliants. Começamos com taças de champanhe rosé e aspargos brancos. Comi um turbot desmanchando com uma fina camada de caviar. O efeito preto e branco lembrava um bolo de casamento elegante, mas tinha um sabor delicado de mar, manteiga e creme: a mesma culinária que fez Julia Child apaixonar-se pela França.

* * *

Alessandro carregou Luca, protestando a cada centímetro do caminho, até a Gare de Lyon para pegar o trem para o acampamento de tênis francês. Na área de espera dos participantes do acampamento, Alessandro ouviu outro pai falar algo em italiano para o seu filho, mas Luca não deixou que ele fizesse contato. “Acho que ele tem vergonha de mim,” Alessandro me falou de modo taciturno. Você acha?

* * *

Acabamos de visitar a oficina de joias, Commelin, que teve início confeccionando amuletos, a mão, em 1880. Apesar de não ser uma loja de varejo, eles recebem visitantes. Observamos um artesão criar quadrados laqueados que algum dia serão parte de um tabuleiro de xadrez. Sucumbi, e comecei a fazer pulseiras para Anna e minhas duas sobrinhas com miniaturas da Torre Eiffel em ouro.

* * *

Está tão quente em Paris que as paredes de gesso branco do prédio em frente ao meu escritório brilham, ligeiramente fora de foco, como se pertencessem a uma ilha no Egeu com vista para o mar. Não temos ar condicionado e, é claro, o elevador ainda está quebrado. Ontem um dos pedreiros da construção que quebrou o elevador partiu o vitral da escadaria. Pela primeira vez, posso pensar em deixar Paris sem uma pontada de tristeza.

* * *

Durante anos, a maior ambição de Anna foi ter cinco filhos e morar nos subúrbios com a minivan do ano. Sempre que ela menciona este plano, ela geralmente lança uma petição para um irmão mais novo. Temos visitas agora com três filhos – de dois, seis e oito anos de idade. Anna acabou de me dizer que ela nunca terá filhos, jamais.

* * *

Um de nossos visitantes, Damiano, é um menino de seis anos com Síndrome de Down que conquistou o coração de Alessandro. Andando pela rua, Damiano segura firme na mão de Alessandro. Sempre que há escadas para serem encaradas, ele estica os braços para cima com um sorriso cintilante, como se ele fosse um girassol e Alessandro, o sol. E meu marido derrete-se e o levanta, todas as vezes.

* * *

Luca acaba de mandar uma mensagem do acampamento nos Alpes Franceses – o Tour de France passou por lá e ele viu Lance Armstrong! Pelo menos, ele acha que viu Lance; estava todos passavam como um borrão. Parece que as bicicletas estavam zunindo montanha abaixo como vespas sendo despejadas.

* * *

O sol estava brilhando quando saí para correr hoje de manhã. Eu mal havia entrado em casa de volta da corrida quando o céu escureceu e a chuva começou a cair forte na rua. Do outro lado do meu escritório, ela escorria pelos telhados cinzentos, derramando sobre os desafortunados pedestres abaixo e ricochetando branca na rua.

* * *

Alessandro e eu ficamos de babá para Damiano e seus irmãos enquanto seus pais faziam um passeio turístico. Damiano flagrou enquanto nos abraçávamos e decidiu que queria ver mais. Com um sorriso levado, ele achava Alessandro e o puxava pela mão até onde eu estivesse para que Alessandro pudesse me abraçar e me beijar. E depois Damiano subia no meu colo para fazer o mesmo. Foi uma tarde muito abençoada.

* * *

Na noite passada, sentamos num café e assistimos em senhor de aproximadamente oitenta anos perguntar a uma jovem se ela era a farmacêutica que trabalhava do outro lado da rua. Depois, ele sacou um preservativo e perguntou quanto eles custavam na farmácia. Vendo todos ao seu redor sorrirem, ele devolveu um sorriso safado (e uma torcida de bigode figurativa) e disse, “Estas coisas estão ficando mais caras a cada dia que passa! Vou na farmácia onde ela trabalha, se eles forem tão baratos quanto ela diz.”

* * *

Luca ligou do acampamento de tênis, que aparentemente é muito, mas muito melhor do que o italiano. Para início de conversa, tem meninas lá. Meninas francesas. Este fato saliente não lhe ocorreu enquanto ele infernizava nossas vidas insistindo que ele não iria e que nós não poderíamos forçá-lo?

* * *

Hoje está chovendo, frio e ventando. O céu está num tom de cinza prateado, como as saias de seda brilhosa de uma senhora vitoriana, há muito viúva e ainda de luto.

* * *

Sentirei falta dos supermercados franceses. Coisas que eu adoro: gaspacho e sopa de pepino frescos (localizadas ao lado do suco de laranja), bouillon de galinha e bouquet garni em sachês de musselina e porções individuais de pesto, perfeitas para uma massa rápida.

* * *

Ontem fiz uma pequena festa para as minhas leitoras francesas. Bebemos champanhe rosé decorado com groselha vermelha e biscoitos cor de rosa e falamos sobre livros, filhos e Paris. E Anna conversou educadamente com meus convidados! Ela não leu, embora seu livro do Harry Potter estivesse escondido nas suas costas o tempo todo.

33 Superdry é uma popular marca japonesa de roupas.


Rose

Há alguns anos, uma amiga convidou-me para a sua casa para conhecer outra amiga dela, uma acadêmica chamada Rose, que estava passando por um tratamento contra um câncer de ovário recorrente, havia lido os meus livros românticos e queria me conhecer. Sou relativamente íntima com este tipo de fenômeno: pessoas que tem orgulho de lidar com (por exemplo) as mais de mil páginas de Infinite Jest, de David Foster Wallace, se voltam para a ficção romântica quando não suportam mais o cheiro de cloro, o pinicar do medicamento intravenoso e as notícias ruins.

Então, me cingi para um encontro pouco alegre com uma paciente de câncer macilenta e pálida. Mas, em vez disso, Rose sentou-se na cabeceira da mesa, roliça e rosada, se escangalhando de rir enquanto usava uma peruca loira platinada de Marilyn Monroe. Descobri, depois, que seu cabelo natural era preto e ela o usava curto e espichado, clareado nas pontas de forma que ela parecia um dente-de-leão depois de soprado. Mas ela gostava de usar a peruca de Marilyn de vez em quando porque, como ela mesma explicou, é impossível sentir pena de uma mulher usando cachos dos anos 50 estilizados. Pelo menos, não pelo seu estado terminal.

Apaixonei-me pela sua peruca e pela sua risada – sinais externos de notável coragem. Viramos melhores amigas, com toda a ironia que o termo implica. De vez em quando, os médicos de Rose faziam algum estardalhaço sobre como possivelmente o câncer por fim vencera a quimioterapia. Mas depois eles experimentavam um medicamento novo e, ao longo de todo o processo, ela continuou lecionando e traduzindo poesia e viajando para a América Latina para descobrir novos poetas. Certa vez, ela me ligou do topo de uma montanha peruana. Parecia que ela estava na casa ao lado. “Aqui é tão lindo”, ela disse. “Você precisa vir antes de morrer.”

Rose não tinha medo de falar isso. Ela tinha o dom de saber, muito concretamente, que seu tempo era limitado, embora ela certamente não desse boas vindas ao fim. Ela amava a República Dominicana e, certo ano, fomos para um resort, só nós duas. No ano seguinte, fomos para a ilha mais uma vez, mas para um resort diferente, um que ela achara na internet e que se chamava Paradise (Paraíso).

As afirmações do Paradise de que seria o céu na terra eram um tanto exageradas (a presença de inúmeras prostitutas de luxo adicionou uma complicação óbvia), mas nós nos divertimos muito. Nadamos com golfinhos, que estavam supremamente desinteressados em nós, mas eram extremamente cativantes, como as pessoas mais bonitas em uma festa em Nova Iorque. Fizemos massagens em um pequeno jardim cercado de árvores com flores desabrochando e andamos pela praia no entardecer. Bebemos margaritas e Rose recitou poesia em espanhol para mim, um idioma que eu não falo. Ela sempre recomendava romancistas e poetas latino americanos e eu sempre prometia que leria, mas nunca li.

Até naquela época, após anos lutando contra o câncer, ela era bonita: exuberante, carismática, cheia de charme. “Acho que aquele garçom tem uma queda por mim”, ela me disse. E ela estava certa sobre ele e sobre nosso motorista de táxi, também. Dominicanos sequer olhavam para mim – alta, magra, pálida, entediante – mas seus olhos brilhavam quando encontravam Rose. Ela esbaldava vida, espanhol e pele brilhante. Eles não faziam ideia de que ela estava morrendo.

Mas nós duas sabíamos que a viagem para Paradise seria a nossa última viagem juntas. Rose veio nos ver em Nova Jérsei logo antes de partirmos para a França, em junho. Alma amorosa que ela era, ela nunca dissera uma palavra sobre a injustiça do meu prognóstico otimista em comparação ao dela, o fato de que os médicos dispensaram o meu câncer e me deixaram livre para ir morar em Paris enquanto eles não conseguiam dominar a doença dela. Falamos sobre a estranheza pavorosa de que ambas – e minha mãe – fomos diagnosticadas com câncer. Parecia um jogo de sorte, mas o número preto aparecia com regularidade aterradora.

A esta altura, Rose decidira recusar qualquer tratamento adicional e visitava casas de repouso o mesmo interesse que ela tivera ao pesquisar resorts na República Dominicana. Eu sabia que a decisão cabia a ela, mas também me senti egoísta. Consegui me segurar para não ficar apelar a ela para reconsiderar a sua decisão, mas eu implorei para que ela nos visitasse.

Ela balançou a cabeça negativamente. “Eu ligo para você,” ela me disse, “quando você precisar vir.” Sua ligação me pedindo para voltar aconteceu antes do que eu esperava, apenas alguns meses depois que do início do outono.

Minha mãe havia sido supremamente corajosa no final, uma postura facilitada porque ela estava completamente dopada por anestésicos. Ela delirava, tão bêbada quanto um lorde: ela me disse que havia cavalos galopando nas suas cobertas e se entrelaçando em seus dedões dos pés. Certa vez, lhe entreguei o telefone para que ela pudesse falar com a minha irmã, que estava longe, em Nova Jérsei. “Por que você está em um carro estacionado no final da entrada da minha casa?” ela perguntou. Seus últimos dias foram repletos de imaginação; ela disse que um irmão amado, morto há coisa de oito anos, estava esperando por ela no corredor.

Nesta situação, chora-se por si. “Estou tendo uma boa morte”, ela anunciou, alguns dias antes de parar de falar.

Mas Rose... Rose não teve uma boa morte. No primeiro dia em que cheguei na casa de repouso ela tomou o medicamento milagroso, qualquer que seja, e me disse com uma risada que havia pequenas borboletas azuis dançando em volta da minha cabeça. Mas para ela, os efeitos colaterais acabaram sendo piores do que a dor – o que significava que não haveria mais borboletas, ou cavalos galopantes... apenas a clara consciência de que a morte estava a alguns dias ou algumas horas agonizantes de distância. A última coisa que minha mãe me disse foi que eu tinha um belo sorriso. Não tenho certeza se ela sabia exatamente quem eu era naquele momento, mas fiquei muito feliz de ter lhe dado aquele sorriso. A última coisa que Rose me disse foi adeus.

Disse a ela com tanta ferocidade quanto pude que eu esperava que ela estivesse me aguardando do outro lado de qualquer que fosse a ponte que ela estivesse prestes a cruzar. “Você está me escutando, Rose?” perguntei. Havia lágrimas escorrendo pelo seu rosto. Ela amava Anna e Luca quase tanto quanto eu e Alessandro, então, fiz com que ela prometesse que esperaria pelos meus filhos também caso, por algum golpe do destino, eles partissem antes de mim. E então não havia nada mais a ser dito. Sendo assim, chorei corredor abaixo até o meu carro alugado e voltei para o aeroporto.

Rose morreu alguns dias depois, tendo dado adeus a todos, resolvido seus assuntos e achado um lar para o seu gato.

Algum tempo depois, de volta a Paris, um pacote do tamanho de um livro chegou para mim. Era de Rose, um último toque da atenção amorosa que ela doava tão livremente. Levei algum tempo para me forçar a abrir o pacote: não conseguia suportar que esta seria a sua última carta, seu último presente. Pensei que ela havia me enviado um daqueles romances latino americanos que eu sempre prometera ler. Mas, em vez disso, era Austerlitz, de W.G. Sebald, um romance sobre sofrimento, memória, o desejo de lembrar e o desejo de esquecer.

Passei este ano em um tipo de Paradise, embora sem golfinhos ou praias ou montanhas. Pensei frequentemente em Rose – seus cachos de Marilyn, sua risada exagerada, seu jeito destemido de dizer antes de morrer – enquanto eu andava pelas ruas de Paris, e senti falta dela.

O ímpeto de mudar para Paris, de vender a casa e os carros e simplesmente embarcar em um vôo para outro lugar, veio da morte da minha mãe e da minha própria experiência com o câncer. Mas me pergunto se eu teria tomado esta atitude sem as lições que aprendi com Rose.

Então, este livro é a minha ligação – não do topo de uma montanha, nem mesmo do topo de Torre Eiffel: o “aqui” é negociável.

Aqui é tão lindo. Você precisa vir antes de morrer.

* * *

Esta manhã, Anna disse, casualmente, “Eu vou fazer meu café da manhã”. Depois ela disse ter lavado seu prato e seu copo. Quando eu perguntei se ela queria que enchesse a banheira para ela, ela disse, “Não, eu encho.” É como assistir a versão em filme de Eloise, na qual ela subitamente envelhece dez anos – agradável e assustador ao mesmo tempo. Embora, é claro, Eloise fosse aterrorizante em qualquer idade.

* * *

Ontem fomos a um mercado de pulgas enorme, Clignancourt, em busca de um objeto especial para nos lembrar de Paris. Estávamos perambulando e olhando antiguidades quando achamos uma loja de lustres do tipo faça-você-mesmo. Você escolhe a base, e adiciona frutas coloridas feitas de cristal da Bohemia. Os exemplos sugeriam que alguma contenção e sabedoria com as cores era uma boa ideia: um lustre vermelho e dourado ou, por exemplo, azul e violeta. Começamos com a base de latão e depois adicionamos peras violetas e douradas, cachos brilhantes de uvas vermelhas, maçãs cor de âmbar e fios de cristal. Ficou loucamente maravilhoso.

* * *

Luca tem um melhor amigo no acampamento, um menino que parece ser uma caricatura de um francês emotivo. “Ele tem uma queda por uma menina”, Luca contou. “E eu também. Acho que ela pode estar olhando para mim. Mas disse para ele que vou me afastar.” Nos bastidores da diplomacia, versão adolescente.

* * *

Anna está no capítulo oito do romance no qual ela está trabalhando, uma fascinante história sobre crianças sapecas e um porco fugitivo. Recentemente, ela adicionou um novo personagem, uma órfã francesa desajeitada chamada Lucille, e hoje ela propôs um capítulo que voltaria ao passado de Lucille, com a mãe dela lendo para ela. “Triste demais”, protestei. “Mamãe”, Anna disse impacientemente, “isto é um romance! É preciso ter algum choro”.

* * *

Nossa última noite em Paris... Florent sugeriu um jantar em um de seus restaurantes preferidos para comemorar o nosso ano. Aparentemente, ele e Pauline estiveram lá para um encontro de verdade, depois da torta de limão. Le Bistrot du Peintre era um antigo bistrô francês na avenue Ledru-Rollin – pequeno e com uma atmosfera de Art Nouveau – que não havia sucumbido ao negócio do turismo e estava cheio de parisienses. Comi gaspacho, seguido de uma hadoque delicada com batatas em vinagrete de mostarda sobre o qual pensei durante todo o caminho de volta para casa. Foi um jeito esplêndido de me despedir de um ano fabuloso.

* * *

Dirigindo de volta para Florença, paramos para pernoitar em Beaune, uma bela cidade cercada na região de Borgonha. Para a ceia, Luca comeu escargot, que tinham um aroma tão maravilhoso que Anna implorou e suplicou por um. Fiquei olhando para o cardápio e disse, “Anna, olhe, eles têm sorvete!” Ela choramingou, “Eu não quero sorvete; eu quero caramujos!” Pedimos mais escargots e champanhe (sem suco de laranja) para comemorar: um ano em Paris fez maravilhas para os nosso filhos.

* * *

Da noite para o dia, fomos de sublime (Beaune, França) para ridículo (Pávia, Itália). Em vez de um esplêndido hotel quatro estrelas, só conseguimos achar quartos em um hotel sujo em uma rua movimentada, com buracos nas toalhas (foi a primeira vez que vi isto!). E, em vez de caramujos, comemos na Grillandia, onde estava acontecendo uma noite espanhola, com dançarinas espanholas falsificadas atraentes e um arroz de caixinha. Até Anna admitiu que sentia falta de Paris.

* * *

Antes de deixarmos Pávia, arrastamos nossos pouco entusiasmados filhos para ver as catacumbas de Santo Agostinho, e em seguida dirigimos por três horas até Florença, de volta para Marina e Milo. Marina disse ontem no telefone, na defensiva, que nós não deveríamos esperar ver o Milo mais magro, porque está muito quente em Florença para que um cachorro faça uma dieta. Algumas coisas nunca mudam.


O fim

Quando estou escrevendo um romance, digitar “O Fim” é o melhor momento de todos, porque a esta altura já estou desesperada para acabar – geralmente com o prazo atrasado, exausta, desgrenhada e irritadiça. Contudo, reluto ao escrever a página final de Paris Apaixonada. Colocar estas últimas palavras no papel encerra uma experiência que eu detesto ver escorregar para o passado, embora já faça quase um ano que moramos em Nova Iorque enquanto escrevo este ensaio. Mas, é claro, inclusive quando estávamos morando na rue du Conservatoire, o tempo já escorregava por entre os nossos dedos. Alessandro e eu tínhamos empregos para os quais precisávamos voltar, mas não tínhamos onde morar. Havíamos vendido nossa casa e carros, com planos de comprar um apartamento... em algum momento.

Depois do Natal, nós dois percebemos com uma sacudida que a hora chegara. Dois corretores de imóveis muito gentis chamados Curtis e William agendaram uma série de visitas a apartamentos para nós dois. Para o espanto deles, decidimos dar um prazo de exatamente três dias para a nossa busca. Nosso voo chegou em uma sexta-feira de fevereiro, e às cinco da tarde estávamos inspecionando apartamentos naquele peculiar estado de ansiedade que vem com realizar uma compra no valor aproximado de uma pequena ilha na Polinésia. Talvez até uma que contenha um vilarejo ou dois. Estávamos atordoados pela diferença de horário, mas não o suficiente para ignorar o fato de que o primeiro apartamento que vimos era o único no tamanho e no preço de que precisávamos localizado na nossa vizinhança de preferência. E tinha uma comprida estante para livros embutida. No entanto, com a devida diligência, passamos o resto do final de semana lutando contra uma tempestade de neve enquanto andávamos a Broadway de cima a baixo, fazendo o nosso caminho por dentro das salas de estar de estranhos. Mas nada nos atraiu depois do primeiro; comparei cada estante de livros à primeira, e achei que elas não chegavam à altura. Na segunda-feira de manhã, encontramos nossos corretores e fizemos uma proposta. A experiência foi surreal; nossa hipoteca seria tão gigantesca que parecia dinheiro de Banco Imobiliário. E na manhã seguinte, descobrimos que nossa proposta havia sido aceita.

Mas ainda tivemos que encarar o temido processo de aprovação da cooperativa de crédito. Em Nova Iorque, a maioria das pessoas não compra seus apartamentos de fato; elas meramente compram ações em uma cooperativa. E, antes que os membros da diretoria de uma cooperativa o considerem digno de habitar dentro dos seus consagrados muros, eles têm o direito de ver todo o seu histórico financeiro (e quando eu digo todo, quero dizer desde o seu primeiro emprego no DeToy’s Supper Club), sem mencionar o fato de que você precisa passar por uma entrevista pessoal com a diretoria, assim como os seus filhos e, se você tiver um, o seu cachorro. Voltamos em maio para a entrevista com a cooperativa, sabendo que o resultado não era algo dado como certo: na verdade, Curtis e William estavam um pouco deprimidos quando chegamos, uma vez que a diretoria recusara inexplicavelmente outros clientes deles naquela manhã. Eles nos deixaram na porta com alguns conselhos finais e ansiosos sobre como não deveríamos dar qualquer informação pessoal que não fosse pedida pois quase qualquer coisa poderia causar o desgosto de alguém. Parecia óbvio que preconceito e opiniões pessoais poderiam influenciar – com impunidade. Torcemos para que não houvesse alguém no grupo que detestasse escritores de livros românticos. Ou professores universitários de Literatura. Ex-alunos de Yale! Italianos! As possibilidades eram infinitas.

(Preciso adicionar que apenas uma coisa me assustava mais do que a diretoria da cooperativa, e era a epidemia de percevejos em Nova Iorque. Até em Paris, já tínhamos escutado que a cidade estava repleta deles. Felizmente, eu não tinha mais estas preocupações com este apartamento em particular, porque ao mesmo tempo que havíamos permitido que a diretoria da cooperativa investigasse nosso passado financeiro, exigisse inúmeras recomendações pessoais e até entrevistasse nossos filhos via Skype, pedimos uma, e apenas uma coisa em troca: o direito de que nosso advogado esquadrinhasse as minutas das reuniões de diretoria da cooperativa, voltando décadas, em busca de uma palavra indutora de pânico: percevejos. E ela não constava em lugar algum.)

Durante a inquisição, uma vez que já tínhamos esclarecido algumas questões (como, por exemplo, se eu teria que devolver o adiantamento de alguma editora caso um livro fracassasse – a resposta é não), comecei a me sentir cuidadosamente otimista. Todos estavam sorrindo. Eles estavam falando sobre festas de fim de ano. Então, o presidente da diretoria da cooperativa inclinou-se e disse, “Não há nada pessoal sobre esta pergunta, mas temo que preciso perguntar se você já esteve em contato com percevejos”. Alessandro desatou a rir e explicou minha fobia profunda, o único fator que nos faria recusar um apartamento tão adorável quanto aquele. Quando um senhor de mais idade disse, “Ah, você não deveria ter tanto medo; eu tive percevejos no ano passado”. A propósito, a entrevista estava acontecendo no apartamento dele. Todas as cabeças na mesa giraram para encará-lo. Ele acenou a cabeça para a porta sobre o ombro dele. “Eles vieram dentro de uma mala que fora incorretamente enviada através da Bolívia”, ele disse alegremente. “Descobrimos isto quando um visitante hospedado em um dos quartos foi mordido, e então cuidamos deles.”

Alessandro me deu um chute forte – a versão matrimonial de não grite – mas eu estava chocada demais para reagir, de qualquer forma. Estava pensando que este apartamento ficava diretamente abaixo do que havíamos acabado de comprar. “Há quanto tempo você disse que isso aconteceu?” o presidente da diretoria perguntou, no que considerei terem sido modos admiravelmente controlados. Emergi de um ataque de pânico repugnante apenas quando percebi que o assunto da conversa já havia mudado, e agora era sobre uma pessoa morando no prédio que aparentemente não estava em dia com os seus medicamentos. A diretoria estava nos dando aviso prévio sobre seu comportamento ocasionalmente instável. “Ele pode ser muito bruto com crianças,” um dos membros disse, “e elas podem pensar que estão sendo atacadas por ele, mas ele não é realmente agressivo”. “Ele é nosso cordeiro, nosso projeto comunitário,” outra pessoa opinou. “Ele nunca atacou os meus filhos”, disse uma terceira pessoa. “Então, você tem sorte”, o primeiro integrante da diretoria retrucou.

Saímos para a neve e andamos precisamente um quarteirão antes de pararmos para ligar para os nossos corretores e tagarelar no telefone sobre percevejos e pessoas insanas que não tomam os seus remédios. Finalmente, Alessandro me afastou do telefone (a esta altura, eu já tinha conseguido que Curtis listasse empresas de controle de peste que garantiam total aniquilação) e me levou para um restaurante. Uma vez que tinha uma taça de vinho nas mãos, meu marido ressaltou que uma pessoa não se muda para Nova Iorque se na verdade quer morar em um subúrbio plácido e livre de pestes. Vamos nos mudar para a cidade justamente para nunca mais precisar ter uma conversa sobre aparadores de erva daninha ou trocas de óleo. Teríamos outros, mais eletrizantes assuntos para conversa: isto é, percevejos e esquizofrênicos.

Levou algum tempo, mas eu acabei entendendo o que ele queria dizer.

Nova Iorque seria uma aventura, enquanto Nova Jérsei (para nós) fora uma existência. No fim das contas, nosso apartamento provou de fato não ter qualquer percevejo, e acabamos conhecendo muitas, se não todas, pessoas no nosso prédio... sem jamais identificar a pessoa que pode ou não estar tomando o seu medicamento.

No ano que passou, descobri a loja de um artesão de chocolate a meio quarteirão do meu apartamento. Perguntaram-me (muito educadamente) se havia demônios do meu lado na estação de metrô. Não sobrevivi aos percevejos, mas a três diferentes infestações de piolho, piedosamente reservadas aos membros mais jovens da família. Usei minhas cocottes parisienses para fazer bolos de chocolate e usei minhas botas pretas para reuniões de departamento. Anna abraçou a cidade com alegria, e Luca (que agora diz que vai fazer faculdade na França) anuncia regularmente que ele a detesta. Embora as crianças tenham trocado os papéis, a oposição tem uma sensação confortavelmente familiar.

Paris Apaixonada é sobre um ano tremendamente feliz, do qual às vezes me lembro através de uma névoa rosada de chocolate e lingerie. Mas a felicidade não vinha apenas do chocolate. Cercada de gente falando outro idioma, nossa família começou a falar entre si. Formamos uma tribo muito pequena (população: quatro), que comia junta e brigava junta, e acima de tudo, brincava junta. Aprendemos a perder tempo – juntos.

E depois trouxemos essa lição conosco para casa.

 

 

                                                                  Eloisa James

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades