Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
PARIS É UMA FESTA
Ernest começou a escrever este livro em Cuba, no outono de 1957; trabalhou nele em Ketchum, Idaho, no inverno de 1958-1959; levou os originais para a Espanha, quando lá estivemos em abril de 1959; trouxe-os de volta para Cuba e mais tarde, no fim do outono daquele ano, de novo para Ketchum. Terminou de escrevê-lo na primavera de 1960, em Cuba, depois de ter interrompido o trabalho para cuidar de outro livro, The Dangerous Summer, sobre a violenta rivalidade entre Antonio Ordoñez e Luis Miguel Dominguin nas praças de touros da Espanha, no ano de 1959. Algumas revisões finais foram feitas em Ketchum, no outono de 1960. Esta obra cobre o período de 1921 a 1926, em Paris.
Um Bom Café na "Place Saint-Michel"
Estava na época do mau tempo. Chegaria a qualquer momento, no fim do outono. Teríamos de fechar as janelas à noite, por causa da chuva, e o vento frio arrancaria as folhas das árvores da Place Contrescarpe. As folhas ficariam no chão, encharcadas, o vento atiraria a chuva contra os grandes onibus verdes no ponto terminal, e o Café des Amateurs ficaria cheio de gente e suas janelas embaçadas pelo calor e pela fumaça lá de dentro. Era um café triste e mal administrado o Amateurs, onde os beberrões do bairro se apinhavam e do qual eu me mantinha afastado por causa do cheiro de corpos sujos e do azêdo da embriaguez. Os homens e mulheres que o frequentavam viviam bêbedos todo o tempo ou pelo menos, sempre que tinham dinheiro para isso, gastando seus recursos principalmente em vinho, que compravam aos meios litros ou aos litros. Havia anúncios de muitos aperitivos com nomes estranhos, mas poucos clientes se dignavam tomá-los, exceto como preparação para os copos e copos de vinho com que se embebedariam. As mulheres que se embriagavam eram chamadas poivrottes.
O Café des Amateurs era a cloaca da Rue Mouffetard, essa maravilhosa ruela comercial, sempre coalhada de gente, que desemboca na Place Contrescarpe. Os sanitários antigos das velhas casas de apartamentos, um em cada andar, ao lado das escadas, com duas elevações de cimento estriado, em forma de sapato, para evitar que algum locataire escorregasse, davam para fossas que, à noite, eram esvaziadas por meio de uma bomba em carros-tanques puxados por cavalos. No verão com todas as janelas abertas, podíamos ouvir o ruído da bomba, e o mau cheiro era muito forte. Os carros-tanques eram pintados de marrom e amarelo-açafrão; quando trabalhavam na rue Cardinal Lemoire, ao luar, aqueles cilindros com rodas, puxados pelos cavalos, traziam-nos à lembrança alguns quadros de Braque. Nenhum carro-tanque, porém, esvaziava o sanitário do Amateurs, e o cartaz amarelado que anunciava os termos e as penalidades da lei contra a embriaguez pública era tão desprezado e estava tão sujo das moscas quanto os fregueses eram assíduos e malcheirosos.
Toda a tristeza da cidade chegava de repente, com as primeiras chuvas frias do inverno; não se conseguia mais ver os cimos das casas altas e brancas e o cenário, agora, era limitado pela escuridão molhada da rua, as portas fechadas das pequenas lojas dos vendedores de ervas, das papelarias, dos quiosques de jornais, a tabuleta da parteira de segunda classe e o hotel onde Verlaine morreu, em cujo último andar havia um quarto que então me servia de gabinete de trabalho.
Eram seis ou oito lances de escada até o último andar. Fazia um frio terrivel e eu sabia quanto me custariam um feixe de gravetos, três amarrados de lascas de pinho, cortadas no tamanho de meio lápis cada uma para pegar fogo nos gravetos e, finalmente, o feixe de madeira dura e meio seca que teria que comprar se quisesse aquecer o quarto.
Atravessei então a rua, avançando até um ponto de onde me fosse possível observar os telhados batidos pela chuva, a fim de verificar se as chaminés estavam funcionando bem e a fumaça era levada pelo vento. Não vi fumaça alguma e concluí que a chaminé, estando fria, não teria boa tiragem; meu quarto se encheria de fumaça, o combustível seria desperdiçado e, com ele, meu dinheiro. Preferi continuar caminhando, sob a chuva. Ultrapassei o Lycée Henri IV, a velha igreja de Saint Etienne du Mont e a Place du Panthéon, varrida pelo vento; cortei à direita, à procura de abrigo, chegando finalmente ao lado mais protegido do Boulevard Saint-Michel.
Continuei a descer, passei pelo Cluny e o Boulevard Saint-Germain, até que cheguei a um bom café que eu conhecia, na Place Saint-Michel.
Era um café agradável, quente, limpo e acolhedor. Pendurei minha velha capa no cabide, para secar, coloquei meu surrado e desbotado chapéu de fêltro na prateleira que ficava por cima dos bancos e pedi um café au lait. O garçom trouxe-o e eu tirei do bolso do paletó o caderno de notas e um lápis e comecei a escrever. Estava escrevendo um conto que se passava em Michigan e, como o dia estava péssimo, frio e ventoso, coloquei em minha história um dia exatamente assim. Eu já conhecia muitos fins de outono, da minha infância, da adolescência e dos primeiros anos da idade adulta, e sabia que há lugares em que se pode escrever melhor sobre essa época do ano do que em outros. É o que se chama de transplantação, pensei, e isso podia ser tão necessário às pessoas como a outras espécies de coisas que crescem. No meu conto os rapazes estavam bebendo, e isso me deu sede: pedi um rum Saint James. Caiu-me bem, naquele dia frio, e continuei a escrever, sentindo-me aquecido, no corpo e no espírito, por aquele esplendido rum da Martinica.
Uma moça entrou no café e sentou-se perto da janela.
Era muito bonita, com um rosto fresco como moeda acabada de cunhar, se é que se possa cunhar moedas em carne tão macia, coberta de pele umedecida pela chuva. Seus cabelos eram negros como a asa de um corvo, cortados rente e em diagonal à face.
Olhei para ela, senti-me perturbado e numa grande excitação. Desejei colocá-la no meu conto, ou noutra parte qualquer, mas a moça se colocara de maneira a poder acompanhar o movimento da rua e da entrada do café, e compreendi que estava à espera de alguém. Por isso, continuei a escrever.
O conto escrevia-se por si próprio, e eu tinha dificuldade em conduzi-lo. Pedi outro rum Saint James, observando a moça todas as vezes que levantava os olhos ou quando fazia a ponta do lápis, com um apontador, deixando as raspas encaracoladas no pires que tinha sob o cálice.
- Eu te vi, oh beleza, tu me pertences agora, seja quem fôr que estejas esperando e mesmo que nunca te veja mais em toda a minha vida - pensei. Tu me pertences, toda Paris me pertence e eu pertenço a este caderno e a este lápis.
Voltei a escrever, entrei a fundo na história e me perdi nela. Agora quem a escrevia era eu; o conto não se escrevia mais a si próprio, de modo que não tornei a levantar a cabeça. Esqueci-me do tempo, do lugar em que me encontrava e nem sequer mandei vir outro rum Saint James. Cansara-me dele sem pensar nisso. Terminei o conto, afinal, sentindo-me realmente cansado. Reli o último parágrafo e, quando levantei os olhos à procura da moça, não a encontrei mais. Tomara que tenha ido com um homem decente, pensei. Mas sentia-me triste.
Fechei o caderno, coloquei-o no bolso de dentro, pedi ao garçom uma dúzia de portugaises e meia garrafa do vinho branco seco da casa. Depois de escrever um conto sentia-me sempre vazio e simultaneamente triste e feliz, como se tivesse acabado de me entregar ao amor físico: estava seguro de que este conto que acabara de escrever era muito bom, embora não soubesse quanto o era antes de lê-lo de ponta a ponta, no dia seguinte.
Comi as ostras, que possuíam forte gosto de mar e um leve travo metálico que o vinho branco gelado lavava, deixando somente o gosto de mar e a suculenta textura; à medida que ia sorvendo o líquido frio de cada concha e o fazia descer acompanhado do estimulante sabor do vinho, o sentimento do vazio me foi abandonando e me vi de novo feliz, cheio de planos.
Agora que o mau tempo tinha chegado, poderíamos deixar Paris por algumas semanas e ir para qualquer lugar onde, em vez de chuva houvesse neve caindo sobre os pinheiros, cobrindo as estradas e as encostas das altas montanhas, e a uma altitude que nos permitisse ouvi-la ranger sob nossos pés quando à noite voltássemos para casa. Abaixo de Les Avants havia um chalé onde a pensão era esplêndida e onde poderíamos estar juntos, ler nossos livros e de noite, aquecidos na cama, deixaríamos as janelas abertas para ver as estrelas brilhando no céu. Para lá é que iríamos. A viagem de trem, em terceira classe, não custaria muito. Com a pensão, gastaríamos pouco mais do que em Paris.
Desocuparia o quarto de hotel onde trabalhava e teria que pagar somente o aluguel do número 74 da rue Cardinal Lemoire, que não era exagerado. Tinha escrito alguns artigos para um jornal de Toronto e receberia a qualquer momento o cheque correspondente. Poderia continuar a escrevê-los em qualquer lugar e em quaisquer circunstâncias e, assim, disporíamos de dinheiro para a viagem.
Talvez me fosse possível escrever sobre Paris longe de Paris, assim como em Paris conseguia escrever sobre Michigan. Ignorava que ainda era cedo demais para isso, pois não conhecia Paris suficientemente bem. Mas tudo acabaria dando certo. De qualquer maneira, iríamos viajar se minha mulher quisesse ir. Acabei com as ostras e o vinho, paguei a conta e regressei ao nosso apartamento no alto da colina pelo caminho mais curto, a Montagne Sainte Généviève, ainda sob a chuva, que, agora, via apenas como uma condição atmosférica local e não como algo capaz de modificar nossa vida.
- Acho que será maravilhoso, Tatie - disse minha mulher. Em seu rosto delicadamente modelado, os olhos e o sorriso se iluminavam diante de qualquer decisão, como se se tratasse de um rico presente. - Quando partiremos?
- Quando você quiser.
- Ah, quero ir imediatamente. Você não está vendo?
- Quando regressarmos o tempo talvez esteja lindo e claro. Há dias belíssimos quando o tempo está claro e frio.
- Tenho certeza de que estará - disse ela. - Foi ótimo você ter pensado nisso.
Miss Stein Pontifica
Quando regressámos a Paris fazia um tempo claro, frio e adorável. A cidade já se acomodara ao inverno, havia boa lenha à venda nas carvoarias de nossa rua e braseiros eram colocados na parte externa de muitos dos bons cafés, de modo que até mesmo nas terraces se estava aquecido.
Nosso próprio apartamento se mantinha quente e alegre.
Queimávamos boulets no fogo de lenha - boulets eram bolos de poeira de carvão moldados em forma de ovo - e, nas ruas, a luz do inverno era linda. Já nos havíamos habituado, a essa altura, com a nudez das árvores sobre o fundo do céu, e passeávamos sob claro vento cortante pelas alamedas ensaibradas dos jardins do Luxembourg que a chuva acabara de lavar. As árvores desfolhadas - quando a gente se reconciliava com elas - eram como esculturas; os ventos do inverno batiam a superfície dos lagos ornamentais, as fontes jorravam na claridade luminosa do dia. Depois da temporada nas montanhas, todas as distâncias nos pareciam curtas.
Devido à mudança de altitude, nem reparava no declive das ladeiras, a não ser com satisfação, e a escalada ao último andar do hotel onde trabalhava, num quarto que dava para todos os telhados e chaminés da alta colina do bairro, era também um prazer. A lareira no meu quarto funcionava com boa tiragem, e era agradável trabalhar assim, num ambiente bem aquecido. Levava para o quarto, em sacos de papel, laranjas-cravo e castanhas assadas; descascava e comia as laranjas, pequenas como tangerinas, atirando suas cascas e sementes ao fogo; comia também as castanhas assadas quando tinha fome. E eu sempre tinha fome, estimulado pelas caminhadas, pelo frio e pelo trabalho. Guardara no quarto uma garrafa de kirsch que havíamos trazido das montanhas e tomava um gole sempre que chegava ao fim de um conto ou de mais um dia de trabalho. Quando me dispunha a encerrar o expediente, guardava, na gaveta da mesa o caderno de notas ou o papel e botava no bolso as laranjas-cravo que tivessem sobrado. Elas congelariam se fossem deixadas no quarto durante a noite.
Era maravilhoso descer os longos lances de escada sabendo que meu trabalho correra bem. Eu sempre trabalhava até que tivesse alguma coisa acabada e parava quando sabia o que ia acontecer depois. Desse modo podia ter a certeza de continuar no dia seguinte. Mas, às vezes, quando iniciava um novo conto e não achava jeito de continuá-lo, sentava-me junto ao fogo, espremia nas chamas as cascas das pequenas laranjas-cravo e espiava as fagulhas azuis que elas faziam. Levantava-me, punha-me a contemplar os telhados de Paris e pensava: "Não te aborreças. Sempre escreveste antes e hás-de escrever agora. Tudo o que tens a fazer é escrever uma frase verdadeira. Escreve a frase mais verdadeira que souberes. Assim, finalmente conseguia escrever uma frase verdadeira e avançava a partir daí. A coisa não era tão difícil, nessa época, porque havia sempre uma frase verdadeira que eu conhecIa, tinha lido ou ouvido alguém dizer. Se começasse a escrever rebuscadamente, ou como se estivesse defendendo ou apresentando alguma coisa, achava logo que podia cortar esses floreados ou ornamentos, jogá-los fora, e começar com a primeira proposição afirmativa, verdadeira e simples que tivesse escrito. Foi lá naquele quarto que decidi escrever um conto a respeito de cada coisa que conhecesse realmente bem. Era o que me esforçava por fazer sempre e esse método constituía uma boa e severa disciplina.
Foi naquele quarto, também, que aprendi a não pensar mais sobre o que estivesse escrevendo, desde o momento em que parasse até começar de novo, no dia seguinte. Desse modo, esperava eu, o subconsciente ficaria trabalhando no assunto e ao mesmo tempo, eu daria ouvidos às outras pessoas e perceberia o mundo em torno de mim; estaria aprendendo, esperava eu: poderia ler muitos livros, a fim de não me obcecar com meu próprio trabalho e tornar-me impotente para fazê-lo. Descer as escadas quando tinha trabalhado bem - o que requeria tanto de sorte quanto de disciplina - era uma sensação maravilhosa e só então me julgava livre para andar a esmo em Paris.
Se me encaminhava, à tarde, por qualquer rua, ao Jardin du Luxembourg, podia passear pelos jardins e depois ir ao Musée du Luxembourg, onde se encontravam os grandes quadros que, em sua maioria, hoje estão no Louvre e no Jeu de Paume. Ia lá quase todos os dias por causa dos Cézannes e para ver os Manets, os Monets e os outros impressionistas de que tinha tomado conhecimento pela primeira vez no Instituto de Arte de Chicago. Estava aprendendo com a pintura de Cézanne algo que tornava as frases simples e verdadeiras que eu escrevia em algo muito aquém das dimensões que tentava dar a meus contos. Estava aprendendo muito com ele, mas não conseguia clareza suficiente para comunicá-lo a quem quer que fosse. Além disso era como que um segredo entre nós dois. Quando já não havia luz no Luxembourg, podia voltar pelos jardins e dar um pulo ao apartamento-estúdio onde Gertrude Stein morava, na rue de Fleurus, 27.
Minha mulher e eu já nos havíamos apresentado a Miss Stein, e tanto ela como a amiga com quem vivia tinham sido muito cordiais e amistosas connosco; ficámos apaixonados pelo estúdio e seus quadros maravilhosos. Era como uma das melhores salas do mais belo museu, com a vantagem de haver uma enorme lareira que nos proporcionava calor e conforto e delas nos oferecerem boas coisas para comer, além de chá e licores de destilação natural, feitos de ameixas escuras, ameixas amarelas ou amoras silvestres. Eram bebidas alcoólicas fragrantes, incolores, guardadas em garrafas de cristal lapidado e servidas em cálices; fossem de quetsche, micabelle ou framboise todas tinham o sabor das frutas de que eram feitas e, convertidas em fogo brando ao tocar nossas línguas, aqueciam-nos e nos tornavam comunicativos.
Miss Stein era uma pessoa grande mas não alta, e corpulenta como uma camponesa. Tinha belos olhos e um vigoroso rosto germano-judaico, que também poderia caracterizar alguém de Friuli, pois ela me lembrava uma camponesa do norte da Itália, com suas roupas, sua face móvel e seus grossos e brilhantes cabelos de imigrante, que ela usava penteados para cima, no mesmo estilo que provavelmente adotara desde os tempos do colégio. Falava sem parar e, a princípio, a respeito de pessoas e de lugares.
Sua companheira tinha uma voz muito agradável, era pequena, muito morena, com os cabelos cortados como os de Joana d'Arc nas ilustrações de Boutet de Monvel e tinha um nariz muito adunco. Estava fazendo um bordado quando pela primeira vez as encontramos: sem largar o trabalho, cuidava dos comes e bebes e conversava com minha mulher.
Mantinha sua conversa e ao mesmo tempo ouvia a que eu estava tendo com Miss Stein, interrompendo-nos a cada passo. Explicou-me posteriormente que uma de suas funções era a de conversar com as esposas. As esposas, minha mulher e eu percebemos logo, eram apenas toleradas naquela casa. Mas gostamos de Miss Stein e de sua amiga, embora esta fosse algo atemorizante. Os quadros, os bolos e a eau-de-vie eram realmente maravilhosos. Elas pareceram gostar de nós, também, e trataram-nos como se fossemos boas crianças, bem educadas e prometedoras; senti que nos perdoavam por nos amarmos e sermos casados - o tempo haveria de terminar isto - e quando minha mulher as convidou a tomar chá conosco um dia, aceitaram logo.
Quando vieram ao nosso apartamento pareceram gostar de nós ainda mais; mas talvez isso fosse porque o lugar era tão pequeno que éramos obrigados a ficar muito mais próximos uns dos outros. Miss Stein sentou-se na cama, que era um colchão sem estrado, e pediu para ver os contos que eu tinha escrito e disse que gostava deles todos, exceto de um: Lá em Michigan.
- É bom - disse ela. - Isso não se discute. Mas é inaccrochable. Significa que é como um quadro que um pintor pinta e depois não tem coragem de pendurar quando faz sua exposição. E ninguém o comprará porque não poderá pendurá-lo também.
- Mas, por quê, se não é pornográfico e eu apenas me esforcei por usar palavras que as pessoas realmente usam?
Essas palavras são as únicas que podem dar autenticidade ao conto, e é necessário usá-las. Não se deve ignorá-las.
- Creio que você não me entende - disse ela. – Não deve escrever qualquer coisa que seja inaccrochable. Não há sentido algum nisso. É errado e tolo.
Ela própria desejava ter seus trabalhos publicados. Na Atlantic Monthly, disse-me, e haveria de tê-los. Disse-me também que eu não era um escritor bastante bom para ser publicado naquela revista ou na The Saturday Evening Post; podia ser que eu fosse uma nova espécie de escritor à minha moda, mas a primeira coisa de que me devia lembrar era de não escrever contos que fossem inaccrochables. Preferi não discutir a respeito disso, nem procurei explicar outra vez o que estava procurando fazer sobre diálogos. Era um problema pessoal e, no momento, estava muito mais interessado em escutar. Nessa tarde, explicou-nos também como comprar quadros.
- Ou você compra roupas ou compra quadros – disse ela. - Isto é simples. Ninguém, a não ser que muito rico, pode fazer as duas coisas. Não se preocupem com suas roupas e muito menos com a moda; comprem-nas tendo em vista o conforto e, a durabilidade, e terão dinheiro para comprar quadros.
- Mas mesmo que jamais comprássemos novas roupas - disse eu – não teríamos dinheiro bastante para comprar os Picassos que eu desejo.
- Evidente! Ele está fora do seu alcance. Você tem de comprar gente da sua própria idade - de sua própria classe de serviço militar. Você os conhecerá. Você os encontrará andando aí pelo bairro. Há sempre bons e sérios novos pintores. Mas não é você que não deve comprar tanta roupa. Refiro-me à sua mulher. As roupas das mulheres é que são caras.
Vi minha mulher esforçando-se por não olhar para o vestido grotesco e vagabundo que Miss Stein usava, e conseguindo-o. Quando elas foram embora, entendi que ainda éramos populares, pois fomos convidados a voltar à rue de Fleurus, 27.
Foi mais tarde que recebi convite aberto para ir ao estúdio, a qualquer momento depois das cinco, no inverno.
Encontrara Miss Stein nos jardins do Luxembourg. Não me lembro se ela estava passeando com o cachorro ou não, nem se ela tinha um cachorro então. Só sei que eu estava passeando a mim mesmo, pois não nos podíamos permitir ter um cachorro ou um gato nessa época, e os únicos gatos que eu conhecia moravam nos cafés ou pequenos restaurantes ou eram os grandes gatos que eu admirava nas janelas das concierges. Mais tarde, muitas vezes encontrei Miss Stein com seu cachorro nos jardins do Luxembourg, mas penso que essa vez foi antes de ela ter um.
Mas, com cachorro ou sem cachorro, aceitei o seu convite e me habituei a ir parar no estúdio, onde ela sempre me dava eau-de-vie natural insistindo para que enchesse de novo o copo enquanto eu olhava os quadros e batíamos nossos papos. Os quadros eram empolgantes e a conversa muito boa. Era ela quem falava quase todo o tempo, contando-me coisas sobre os quadros modernos e sobre pintores – mais a respeito deles enquanto pessoas do que enquanto pintores - e discorrendo sobre sua própria obra. Mostrava-me os numerosos volumes de manuscritos que tinha escrito e que sua companheira datilografava cada dia. Escrever todos os dias tornava-a feliz, mas, à medida que eu ia conhecendo-a melhor, descobri que para ela conservar-se feliz era necessário que aquela produção constante, variável em função de sua energia, fosse publicada e ela recebesse aplausos.
O problema ainda não se tornara agudo quando a conheci, pois Miss Stein tinha publicado três contos que eram inteligíveis a qualquer um. Um deles, Melanctha, era muito bom, e boas amostras de seus trabalhos experimentais tinham sido reunidas em livro e merecido louvores dos críticos que a tinham encontrado ou conhecido. A personalidade de Miss Stein era tal que não encontrava resistência quando desejava conquistar alguém para o seu lado; os críticos que se haviam encontrado com ela e visto seus quadros tornavam-se logo paladinos de obras que não podiam compreender, tão grande era o entusiasmo que tinham por ela como pessoa e tal a confiança que depositavam no seu julgamento. Miss Stein descobrira muitas verdades sobre ritmos e repetição de palavras que eram válidas e valiosas e sabia expô-las muito bem.
Mas detestava a maçada das revisões e a obrigação de tornar os seus escritos inteligíveis, embora necessitasse de editor e da aceitação oficial, sobretudo para um livro incrivelmente longo, que intitulara The Making of Americans.
Esse livro começava magnificamente prosseguia muito bem durante vários capítulos, com grandes trechos de raro brilho, e depois continuava em repetições sem fim, que um escritor mais consciencioso e menos displicente teria jogado na cesta de papéis.
Vim a saber disso muito bem quando consegui persuadir – forçar talvez seja a palavra adequada - que Ford Madox Ford o publicasse em folhetim na The Transatlantic Revue mesmo sabendo de antemão que ele ultrapassaria a vida da revista. Tive de corrigir as provas para ela, pois este era um trabalho que não lhe dava felicidade.
Naquela tarde fria, quando passei pela saleta da concierge e emergi do pátio gelado para o aquecimento do estúdio, tudo isto estava ainda anos adiante. Miss Stein tirara aquele dia para me instruir a respeito de sexo. Por essa época gostávamos muito um do outro, e eu já concluíra que tudo o que eu não entendia tinha provavelmente algo de errado em si mesmo. Miss Stein achava que eu era muito ignorante a respeito de sexo; devo admitir que tinha de fato certos preconceitos contra a homossexualidade, pois conhecia seus aspectos mais primitivos. Sabia que era por isso que se carrega uma faca, para usá-la, como o fiz quando andei na companhia de vagabundos, rapazote ainda; era nos dias em que lôbo, como termo de gíria, não designava ainda os homens obcecados pela caça às mulheres. Conhecia muitos termos e frases inaccrochables, dos meus dias de Kansas City, bem como certos estranhos costumes de diferentes partes daquela cidade, de Chicago e dos barcos que navegam no lago. Submetido a interrogatório, procurei dizer a Miss Stein que quando se é rapaz e se anda em companhia de homens feitos, tem-se de estar preparado para matar um, saber como fazê-lo e realmente ter certeza de que se chegaria a fazê-lo para que não se metessem na sua vida. Usei esse verbo, que era accrochable, para não chocá-la. Se você soubesse que era capaz de matar, os outros sentiriam isso rapidamente, e você seria deixado em paz; mas havia certas situações em que não se poderia ser envolvido, nem apanhado. Eu me poderia ter exprimido mais realisticamente, usando uma frase inaccrochable que os lôbos usavam nos barcos do lago: Em matéria de buracos, primeiro o teu, depois o meu. Mas fui sempre muito cuidadoso com minha linguagem na presença de Miss Stein, mesmo quando frases verdadeiras pudessem ter esclarecido ou exprimido melhor um preconceito.
- Sim, sim, Hemingway - disse ela - mas você estava vivendo no meio de criminosos e pervertidos.
Não quis argumentar, embora achasse que vivera num mundo que era como era, onde havia gente de toda especíe, que eu procurara entender, embora de algumas dessas pessoas não gostasse e a algumas eu até aquele momento odiasse.
- Mas que dizer do velho com belas maneiras e um nome ilustre, que veio ao hospital, na Itália, e me trouxe uma garrafa de Marsala ou Campari, comportando-se perfeitamente até o dia em que tive de recomendar à enfermeira que nunca mais o deixasse entrar no meu quarto? - perguntei.
- São doentes, não têm culpa disso, e você deveria ter pena deles.
- Devo ter pena de Fulano? - perguntei. Disse o nome dele, mas ele se delicia tanto em identificar-se que não vejo necessidade de fazê-lo aqui. '
- Não. Ele é depravado. É um corruptor, um tipo verdadeiramente depravado.
- Mas admite-se que seja um bom escritor.
- Não é - disse ela. - É apenas um exibicionista, que corrompe pelo prazer da corrupção e arrasta as pessoas a outras práticas viciosas também. Drogas, por exemplo.
- Mas em Milão, o homem de quem devo ter pena não estava procurando me corromper no hospital?
- Não seja idiota. Como poderia ele esperar corromper você? Corromper um rapaz como você, que está acostumado ao álcool, com uma pobre garrafa de Marsala? Não, ele era um velho lastimável que não podia evitar o que fazia. Era um doente, não tinha culpa disso, e você deveria ter pena dele.
Naquele tempo, tive. - disse eu - mas fiquei chocado porque suas maneiras eram tão elegantes. Tomei outro gole de eau-de-vie, lastimei a doença do pobre velho e olhei para o nu de Picasso, a moça com uma cesta de flores. Não fora eu quem começara aquela conversa e achei que se tinha tornado um pouco perigosa. Numa conversa com Miss Stein nâo havia quase pausas, mas tínhamos feito uma agora e, como senti que havia alguma coisa que ela desejava me dizer, voltei a encher meu copo.
- Você realmente não sabe nada a respeito disso, Hemingway - disse ela. - Você se deu com criminosos, pessoas doentes e depravadas. A questão principal é que o ato que os homossexuais masculinos cometem é feio e repugnante, tanto que depois têm nojo de si mesmos. Bebem e tomam drogas para aliviar isto, mas têm repugnancia do ato em si, mudam sempre de parceiros e não podem ser realmente felizes.
- Compreendo.
- Com as mulheres é o oposto. Nada fazem de que tenham nojo e nada que seja repulsivo; satisfazem-se e podem levar uma vida feliz juntas.
- Compreendo - disse eu. - Mas o que me diz de Fulana?
- Trata-se de uma depravada ~ disse Miss Stein. - Uma verdadeira depravada, e por isso não pode ser jamais feliz exceto com novas companhias a cada instante. Ela corrompe as pessoas.
- Compreendo .
- Tem certeza de que compreende?
Havia tantas coisas para compreender naqueles dias, que fiquei satisfeito quando mudamos de assunto. O parque estava fechado e por isso tive de caminhar ao longo dele, pela rue de Vaugirard, contornando-o pela sua extremidade inferior. Era triste quando o parque estava fechado e trancado, e eu ficava também triste caminhando em redor dele em vez de atravessá-lo para chegar rapidamente à nossa casa na rue Cardinal Lemoine. Aquele dia tinha começado brilhantemente para mim. Teria de trabalhar duro amanhã. O trabalho podia curar quase tudo, era o que eu pensava então e é no que acredito ainda agora. Naqueles tempos, tudo aquilo de que eu precisava ser curado - compreendi que Miss Stein sentira isso - era da juventude e de amar minha mulher. Não estava de modo algum triste quando cheguei à rue Cardinal Lemoine e contei à minha mulher os conhecimentos recentemente adquiridos. À noite, sentimo-nos felizes com os conhecimentos que já tinhamos e com alguns conhecimentos novos, que havíamos adquirido nas montanhas.
Une Génération Perdue
Foi Fácil adquirir o hábito de parar na rue de Fleurus, 27, ao fim da tarde, em busca de aquecimento, dos grandes quadros e do bate-papo. Frequentemente Miss Stein não tinha visitas, mostrava-se muito amiga e durante muito tempo foi até afetuosa. Quando eu voltava das viagens que fazia para a cobertura de diversas conferências políticas, reportagens no Oriente Próximo ou na Alemanha, por conta do jornal canadense ou da agência de notícias para os quais trabalhava, ela queria que Ihe contasse todos os detalhes divertidos. Sempre havia coisas engraçadas a contar e ela gostava de ouvi-las, apreciando também aquilo que os alemães chamam de histórias de humor negro. Miss Stein queria conhecer o lado alegre do que se passava pelo mundo; nunca o lado real, nunca a lado mau.
Eu era jovem e nada sombrio e, como sempre havia coisas estranhas e cómicas acontecendo nos piores momentos, Miss Stein gostava de ouvi-las. Das outras coisas eu não falava: preferia escrever sobre elas.
Quando não tinha voltado de viagem alguma e ia até à rue de Fleurus para um bate-papo depois do trabalho procurava às vezes conseguir que Miss Stein falasse sobre livros.
Quando eu estava escrevendo, tinha necessidade de ler qualquer coisa nos momentos de descanso. Se ficasse pensando no trabalho, perderia meu texto antes de poder continuá-lo no dia seguinte.
Tinha que fazer exercício, cansar o corpo e era ótimo fazer amor com quem se amava. Isso era melhor do que qualquer outra coisa. Mas, depois, quando me sentia vazio, era preciso ler para não pensar no trabalho, nem me aborrecer com ele até poder retomá-lo. Já tinha aprendido a nunca esvaziar completamente meu poço literário, deixando que, à noite, as fontes que o alimentavam tornassem a enchê-lo.
Para manter o espírito afastado do que escrevia, às vezes, depois de ter trabalhado, lia escritores que estavam em plena atividade naquele tempo, tais como Aldous Huxley, D. H. Lawrence ou quaisquer outros, cujos livros eu pudesse obter na biblioteca de Sylvia Beach ou comprar nos sebos ao longo do cais.
- Huxley é um homem morto - disse Miss Stein. - Por que você quer ler um homem morto? Você não vê que ele está morto?
Não podia ver, então, que ele fosse um homem morto, e respondi que seus livros me divertiam e me esvaziavam a cabeça.
- Você devia ler somente o que é verdadeiramente bom ou o que é francamente mau.
- Estive lendo livros verdadeiramente bons todos os invernos, como fiz no último e como farei no próximo. Para dizer a verdade, não gosto de livros francamente maus.
- Por quê, então, lê essa droga? É uma droga empolada, Hemingway. Escrita por um morto.
- Gosto de ver o que estão escrevendo – disse eu - E descanso o espírito enquanto faço isso.
- Quem mais você está lendo agora?
- D. H. Lawrence - disse. - Ele escreveu alguns contos muitos bons, como O Oficial Prussiano.
- Tentei ler os romances dele. Ele é impossível. É patético e absurdo. Escreve como se fosse um doente.
- Gostei de Filhos e Amantes e de Pavão Branco, disse. Talvez deste não tanto. Não consegui ler Mulheres Apaixonadas.
- Se não quer ler o que é mau e deseja alguma coisa que prenderá o seu interesse e é maravilhosa, à sua maneira, deveria ler Marie Belloc Lowndes.
Nunca tinha ouvido falar dela, e Miss Stein emprestou-me O Inquilino, essa maravilhosa história de Jack, o Estripador, bem como outro livro sobre um assassínio, num lugar afastado de Paris que só podia ser Enghien les Bains. Eram ambos livros esplêndidos para depois do trabalho, os personagens dignos de crédito, o enredo e o terror nunca soando falso. Eram mesmo perfeitos como leitura para depois do trabalho, e li tudo que havia de Mrs. Belloc Lowndes. Eram poucos livros, nenhum tão bom como os dois primeiros, e nada foi tão bom como eles para as horas vagas do dia ou da noite até surgirem os primeiros belos livros de Simenon.
Penso que Miss Stein teria gostado dos bons Simenons - o primeiro que li foi ou L'Écluse Numéro 1 ou La Maison du Canal - mas não tenho certeza, porque, quando conheci Miss Stein, ela não gostava de ler francês embora adorasse falá-lo. Jane Flanner deu-me os primeiros dois Simenons que li. Ela adorava ler francês e já lia Simenon desde quando ele era repórter policial.
Durante três ou quatro anos em que fomos bons amigos, não consigo lembrar-me de ter ouvido Gertrude Stein falar bem de qualquer escritor que não tivesse escrito favoravelmente sobre sua obra ou feito alguma coisa para promover sua carreira, com exceção de Ronald Firbank e, mais tarde, de Scott Fitzgerald. Quando a encontrei pela primeira vez, ela não se referiu a Sherwood Anderson como escritor, mas falou ardentemente dele como homem, dos seus grandes olhos italianos, belos e quentes, da sua bondade e do seu encanto.
Pouco me importava com os grandes olhos italianos, belos e quentes, de Sherwood Anderson, mas gostava muito de alguns de seus contos. Eram escritos de modo simples e às vezes com elegância de estilo; ele conhecia as pessoas a respeito de quem escrevia e se interessava profundamente por elas. Miss Stein não quis falar de seus contos, mas somente dele como pessoa.
- O que acha dos romances dele? perguntei. Mas foi em vão; negava-se a falar das obras de Anderson como também das de Joyce. Se alguém se referisse duas vezes a Joyce não seria convidado a voltar. Era como fazer referências elogiosas a um general na presença de outro general. Você aprende a não fazer isso na primeira vez que comete o erro. Pode-se contudo mencionar o nome de um general desde que tenha sido derrotado pelo general com quem se está falando. O general com quem se está falando elogiará bastante o general derrotado, e entrará gostosamente em detalhes sobre o modo como o derrotou.
Os contos de Anderson eram bons demais para tornar amena a conversa. Eu estava disposto a dizer a Miss Stein o quanto me pareciam estranhamente pobres os romances
dele, mas isto teria sido mau também, porque seria criticar um dos seus mais leais defensores. Quando finalmente ele escreveu Dark Laughter, um romance tão terrivelmente fraco, vazio e afetado que não pude deixar de criticá-lo numa paródia,* Miss Stein ficou muito aborrecida. Eu havia atacado alguém que era parte de sua equipagem. Mas não se zangaria tanto assim, tempos atrás. Ela própria começou a elogiar Sherwood com entusiasmo somente depois dele ter decaído como escritor.
Ela se zangara um dia com Ezra Pound porque ele se sentou bruscamente numa pequena cadeira frágil e sem dúvida desconfortável, que talvez lhe tivesse oferecido de propósito, desconjuntando-a ou quebrando-a. O fato de ele ser um grande poeta, um homem gentil e generoso, que teria podido acomodar-se numa cadeira de tamanho normal, não foi levado em consideração. As razões de sua antipatia por Ezra, hábil e maliciosamente expostas, foram inventadas anos mais tarde.
Foi quando minha mulher e eu regressamos do Canadá e passámos a morar na rue Notre-Dame-des-Champs, sendo Miss Stein e eu bons amigos ainda, que me fez a observação sobre a geração perdida. Tinha tido algum contratempo com o arranque do velho Ford modelo T, que dirigia então; o rapaz que trabalhava na oficina mecânica e tinha combatido no último ano da guerra não se mostrara competente no tal conserto do Ford de Miss Stein, ou talvez não lhe tivesse dado prioridade sobre outros veículos. Seja como fôr, ele não tinha sido sérieux e fora severamente repreendido pelo patron da
* The Torrents of Spring.
garagem, diante do protesto de Miss Stein. O patron lhe dissera: - Vocês todos são uma génération perdue.
- É isso mesmo o que vocês são. É isso o que vocês são - disse Miss Stein - Todos vocês, essa rapaziada que serviu na guerra. Vocês são uma geração perdida.
- Você acha? - perguntei.
- São - insistiu ela: - Vocês não têm respeito por coisa alguma. Vocês bebem até morrer...
- O tal mecánico estava bêbedo? - perguntei.
- Evidentemente não.
- Já me viu bêbedo alguma vez?
- Não. Mas seus amigos são bêbedos.
- Tenho ficado bêbedo algumas vezes – disse- Mas jamais estive aqui nesse estado.
- Evidentemente não. Não disse isso.
- O patron do rapaz é que estava provavelmente bêbedo às onze horas da manhã - disse eu. - É por isso que diz frases tão encantadoras.
- Não discuta comigo, Hemingway - disse Miss Stein. - Não adianta nada. Vocês todos são uma geração perdida, exatamente como o dono da garagem disse.
Mais tarde, quando escrevi meu primeiro romance, procurei contrabalançar a citação que Miss Stein fizera do dono da garagem com outra do Eclesiastes. Naquela noite, caminhando de volta para casa, pensei no rapaz da garagem e me perguntei se ele teria sido transportado alguma vez num daqueles veículos, convertido em ambulância. Lembrei-me de como costumavam queimar seus freios descendo estradas de montanha com uma carga completa de feridos, engrenados em primeira e, finalmente, até mesmo na marcha à ré; e de como os últimos modelos T foram jogados despenhadeiro abaixo, quando substituídos por grandes Fiats com boas caixas de mudança e freios de metal. Pensei em Miss Stein e em Sherwood Anderson, em egoísmo e preguiça mental versus disciplina, e pensei também: "veja só quem chama os outros de geração perdida!" E então, quando me aproximei do Closerie des Lilas, os refletores iluminando meu velho amigo - a estátua do Marechal Ney com a sua espada desembainhada - as sombras das árvores batendo no bronze e ele sózinho ali; sem ninguém atrás dele, lembrei-me de seu fiasco em Waterloo e concluí que todas as gerações eram perdidas por alguma coisa, sempre tinham sido e sempre haveriam de ser. Parei no Lilas para fazer companhia à estátua e beber uma cerveja gelada antes de ir para casa, para o apartamento sobre a serraria. Mas, sentado ali com a cerveja, contemplando a estátua e lembrando-me dos muitos dias que Ney tinha combatido pessoalmente com a retaguarda, na retirada de Moscou, quando Napoleão já tinha ido embora de carruagem, com Caulaincourt, pensei na cálida e afeiçoada amiga que Miss Stein tinha sido e nas belas coisas que dissera de Apollinaire e de sua morte no dia do Armistício de 1918, com a multidão gritando à bas Gillaume e Apollinaire, no delírio, pensando que estavam gritando contra ele. Prometi-me fazer tudo para servir a Miss Stein e ajudá-la a obter reconhecimento pela boa obra que fêz, enquanto eu pudesse, com as graças de Deus e de meu amigo Ney. Mas que fossem para o inferno sua conversa mole sobre a tal geração perdida e todos os rótulos sujos e fáceis. Quando cheguei a minha casa, atravessando o pátio e subindo as escadas, e vi minha mulher, meu filho e o gato F. Puss, todos felizes, ao pé da lareira, disse à minha mulher:
- Você sabe que Gertrude é boa, apesar de tudo?
- Sem dúvida, Tatie.
- Mas diz muita besteira de vez em quando.
- Nunca me dirige a palavra - disse Hadley. – Sou apenas uma esposa. Quem conversa comigo é a sua companheira.
Shakespeare & Companhia
Naquele tempo não havia dinheiro para comprar livros. Eu os obtinha no departamento de aluguel da Shakespeare and Company, que era ao mesmo tempo a biblioteca e a livraria de Sylvia Beach, na rue de l'Odéon nº 12. Nessa rua fria, varrida pelo vento, a Shakespeare and Company era um lugar acolhedor e alegre, com um grande fogão aceso no inverno, mesas e estantes de livros, novidades na vitrina e, nas paredes, fotografias de famosos escritores vivos e mortos.
Todas as fotografias pareciam instantâneos, e até mesmo os escritores mortos tinham um ar muito vivo. O rosto de Sylvia era animado, de linhas marcantes, com olhos castanhos tão vivos como os de um pequeno animal e tão alegres como os de uma menina; seus cabelos, castanhos e ondulados, ela os usava penteados para trás da sua bela testa e cortados abaixo das orelhas, na altura da gola do blusão de veludo castanho que costumava usar. Tinha lindas pernas, era amável, alegre e participante, e gostava de fazer brincadeiras e contar mexericos. Jamais conheci alguém que tenha sido mais gentil comigo.
Eu era muito tímido quando entrei na livraria pela primeira vez, não tendo dinheiro sequer para me inscrever na biblioteca de aluguel. Sylvia me disse que eu podia pagar o depósito quando tivesse dinheiro, preparou o meu cartão e encorajou-me a levar quantos livros quisesse.
Não havia motivo para que ela confiasse em mim dessa maneira. Não me conhecia, e o endereço que lhe dei, rue Cardinal Lemoine, nº 74, não podia ser mais pobre. Mas ela
foi cordial, encantadora e amabilíssima; atrás dela, em toda a altura da parede e estendendo-se para a sala dos fundos, que dava para o pátio interior do edifício, havia estantes e mais estantes carregadas do tesouro da biblioteca.
Comecei com Turguenev e tomei os dois volumes de A Sportsman's Sketches e um dos primeiros livros de D. H. Lawrence, creio que Filhos e Amantes; Sylvia disse-me que levasse mais livros, se eu quisesse. Escolhi a edição de Guerra e Paz preparada por Constance Garnett, e O Jogador e Outros Contos, de Dostoievsky.
- Você não voltará tão cedo se fôr ler tudo isso - disse Sylvia.
- Voltarei para pagar - respondi. - Tenho algum dinheiro no meu apartamento.
- Não me referia a isso - disse ela. - Você pagará quando lhe for conveniente.
- Quando é que Joyce costuma vir aqui? - perguntei.
- Quando vem, é em geral ao fim da tarde – disse ela. - Você não o conhece pessoalmente?
- Já o vimos no Michaud, comendo com a família - disse eu. - Mas não é delicado olhar as pessoas quando elas estão comendo e, além disso, o Michaud é caro.
- Você costuma comer em casa?
- Agora quase sempre - disse eu. - Temos uma boa cozinheira.
- Não há restaurantes perto de onde você mora, não é?
- Não. Como é que sabe disso? - perguntei:
- Larbaud viveu por ali - disse ela. - Gostava muito do bairro, exceto por isso.
- O lugar mais próximo, onde se pode comer bem e barato, fica além do Panthéon.
- Não conheço esse bairro. Nós também comemos em casa. Você e sua mulher devem aparecer uma noite dessas.
- Espere até ver se eu Ihe pago - disse eu. – Mas muito obrigado pelo convite.
- Não leia depressa demais - disse ela.
Nosso apartamento na rue Cardinal Lemoine era de dois quartos, não tinha água quente nem sanitário próprio, exceto um receptáculo antisséptico, não de todo desconfortável para alguém que, como eu, estava habituado a uma privada fora de casa, em Michigan. Com uma linda vista, um bom colchão de molas no chão, como leito confortável, e nas paredes os quadros de que gostávamos, era um apartamento alegre, acolhedor. Quando cheguei Iá, com os livros, contei à minha mulher sobre o lugar maravilhoso que tinha descoberto.
- Mas, Tatie, você tem que voltar lá esta tarde e pagar o que deve - disse ela.
- Sem dúvida - disse eu. - Iremos juntos. E passearemos ao longo do rio, andando pelo cais.
- Desçemos então a rue de Seine, para olhar todas as galerias e as vitrines das lojas.
- Isso mesmo! Podemos andar por onde nos apeteça e parar em algum café novo onde não conheçamos ninguém e ninguém nos conheça e beber um trago.
- Podemos até beber dois tragos.
- E depois jantaremos em algum lugar simpático.
- Não. Não se esqueça de que temos a dívida com a biblioteca.
- Voltaremos então para casa, comeremos aqui mesmo, teremos um jantarzinho delicioso, beberemos o Beaume da cooperativa que podemos ver daqui da janela, pelo preço indicado na vitrina. Depois leremos um pouco e, mais tarde, iremos para a cama fazer um amorzinho gostoso.
- E nunca amaremos a qualquer pessoa tanto quanto amamos um ao outro.
- Não. Nunca.
- Que tarde adorável! Mas agora é melhor almoçarmos.
- Estou com muita fome - disse eu. - Enquanto trabalhei no café, esta manhã, só tomei um café creme.
- E como vai o trabalho, Tatie?
- Penso que muito bem. Acho que vai dar certo. Mas o que é que temos para o almoço?
- Salada de rabanetes, um bom foie de veau com puré de batatas e uma salada de chicória. Torta de maçã.
- E vamos ter todos os livros do mundo para ler e quando viajarmos poderemos levá-los conosco.
- Você acha que isso seria correto?
- Claro que sim!
- Será que ela também tem livros de Henry James?
- Certamente.
- Nossa! - exclamou ela. - Que sorte você ter descoberto esse lugar!
- Sempre temos sorte - disse eu, sem me dar ao cuidado de bater em madeira, como deveria ter feito. E madeira para bater era o que não faltava naquele apartamento.
Gente do Sena
Havia muitas maneiras de chegar até o rio, partindo do alto da rue Cardinal Lemoine. A mais curta consistia em descer a rua até o fim, mas era íngreme e levava-nos, depois de se ter atingido a parte plana e cruzado o tráfego intenso do começo do Boulevard Saint-Germain, a um lugar triste, ocupado por desolado trecho da margem do rio, batido pelo vento, com o Halle aux Vins à direita. Este mercado não se parecia com qualquer outro de Paris; era uma especíe de armazém onde o vinho ficava guardado mediante o pagamento de uma taxa e era tão inexpressivo, visto do lado de fora, quanto um depósito militar ou um campo de prisioneiros.
Do outro lado desse braço do Sena ficava a Ile St. Louis, com suas ruas estreitas e as velhas e belas casas altas. Podia-se atravessar até lá ou virar à esquerda e passear ao longo do cais, tendo-se à frente a Ile St. Louis, depois Notre-Dame e a Ile de la Cité.
Nos balcões de livros de segunda mão, ao longo do cais, podia-se achar às vezes livros americanos recentemente publicados, à venda por preços muito baratos. O restaurante Tour d'Argent tinha alguns quartos no andar acima do salão, que ainda se alugava naquela época, dando às pessoas que os ocupavam um desconto no restaurante; quando os hóspedes partiam, esquecendo ou deixando algum livro, havia ali perto uma barraca do cais onde o valet de chambre o vendia.
Podia-se comprá-lo da proprietária por alguns francos. Ela não confiava em livros escritos em inglês, pagava uma ninharia por eles e vendia-os com pequeno e rápido lucro.
- São bons? – perguntava-me, depois de nos termos tornado amigos.
- Às vezes encontra-se alguma coisa boa neles.
- Como é que se pode saber?
- Posso saber quando os leio.
- Mas ainda assim é uma forma de jogo. E quantas pessoas sabem ler inglês?
- Guarde-os para mim sempre que os tiver, e deixe-me dar uma olhada neles.
~ Não. Não posso retê-los. O senhor não passa regularmente por aqui. Às vezes fica muito tempo sem aparecer. Tenho de vendê-los o mais depressa que puder. Não tenho meios de dizer se eles têm valor ou não. Se acontece não valerem nada, nunca mais os venderei.
- E como é que a senhora sabe se um livro francês tem valor?
- Em primeiro lugar, há as gravuras. Depois, verifico a qualidade das gravuras. Depois, há a encadernação. Se um livro é bom, o dono quer tê-lo bem encadernado. Todos os livros em inglês são encadernados, mas mal encadernados. Não há meio de avaliá-los.
Depois desse quiosque de livros perto do Tour d'Argent, não havia outros que vendessem livros americanos ou ingleses até o Quai des Grands Augustins. Havia vários a partir daí até além do Quai Voltaire que vendiam livros comprados de empregados dos hotéis da margem esquerda, especialmente do Hotel Voltaire, que tinha uma clientela mais endinheirada do que a maioria. Um dia perguntei a outra livreira, que era amiga minha, se os próprios donos dos livros alguma vez os vendiam.
- Não - disse ela. - São todos jogados fora. É por isso que se sabe que não têm valor.
- São livros que os amigos Ihes dão, para lerem a bordo durante a travessia.
- Sem dúvida - disse ela. - Devem deixar muitos nos navios.
- Deixam - disse eu. - A companhia guarda-os, encaderna-os e os incorpora à biblioteca dos navios.
- Isso é inteligente - disse ela. - Pois só assim ficam devidamente encadernados. Um livro, tratado assim, passa a ter valor.
Eu tinha o hábito de passear ao longo do cais quando largava o trabalho ou procurava meditar nalguma coisa. Tornava-se mais fácil pensar quando caminhava e fazia alguma coisa, ou simplesmente observava pessoas entregues a ocupações de sua competência. A ponta da Ile de la Cité, abaixo do Pont Neuf, onde se encontra a estátua de Henri Quatre, formava como que uma aguda proa de navio e havia ali um pequeno parque à beira d'água, com belos castanheiros, enormes e copados. Nas correntezas e redemoinhos do Sena havia excelentes lugares para pescar. Descia-se por uma escadaria até o parque e observava-se os pescadores que estavam por lá e debaixo da grande ponte. Os bons pesqueiros mudavam com a altura do rio e os pescadores usavam longos caniços articulados, mas pescavam com linhas finas, chumbo leve e flutuadores. Além disso, sabiam qual o tipo de isca mais adequado àquelas águas.
Sempre apanhavam algum peixe e muitas vezes faziam excelentes pescarias de um peixinho da família das carpas, chamado goujon. Eram deliciosos quando fritados inteiros e eu podia comer um prato cheio deles. Eram rechonchudos e de carne macia, com sabor ainda melhor do que o de sardinhas frescas; não eram de modo algum oleosos e nós os comíamos com espinhas e tudo.
Um dos melhores lugares para comê-los era um restaurante ao ar livre construído à beira do rio, em Bas Meudon, onde costumávamos ir quando tinhamos dinheiro para uma excursão longe do nosso bairro. Chamava-se La Péche Miraculeuse e servia um esplêndido vinho branco, uma espécie de Muscadet. Era um lugar que se poderia considerar como saído de um conto de Maupassant, e com uma vista para o rio como Sisley a teria pintado. Mas não se precisava ir tão longe para comer goujon. Podia-se ter uma friture muito boa ali mesmo, na Ile St. Louis.
Cheguei a conhecer vários dos homens que pescavam nas partes férteis do Sena, entre a Ile St. Louis e a Place du Vert-Galant e, às vezes, quando o dia era claro, eu comprava um litro de vinho, pão e linguiça e sentava-me ao sol, para ler um dos livros que tinha comprado e olhar a pescaria.
Os escritores de livros de viagem escrevem a respeito dos homens que pescam no Sena como se eles fossem loucos e nunca apanhassem coisa alguma; mas era uma pesca séria e produtiva. Muitos dos pescadores eram aposentados que recebiam pequenas pensões, ignorando que seu dinheiro se desvalorizaria com a inflação; outros eram pescadores apaixonados que pescavam nos seus dias ou meios dias de folga. Havia melhor pesca em Charenton, onde o Marne se lança no Sena, e em qualquer dos limites da capital, mas também se pescava ali mesmo, no coração de Paris. Eu não pescava porque não tinha os apetrechos e preferia poupar o dinheiro para pescar na Espanha. E também nunca sabia quando é que acabava meu trabalho, nem quando teria de ausentar-me de Paris e não desejava envolver-me em pescarias, que todas têm os seus bons momentos e os seus momentos chatos. Mas acompanhava-as de perto e era interessante e bom saber tudo sobre elas. Sempre me deu felicidade ver aqueles homens pescando ali mesmo na cidade, levando a sério sua pescaria e levando para casa algumas fritures.
Com os pescadores e a vida no rio, as belas barcaças, com sua boa vida a bordo, os rebocadores com as chaminés que se dobravam para trás para passar debaixo das pontes, rebocando barcaças, os grandes olmos nas barrancas de pedra do rio, os plátanos e em alguns lugares os choupos, jamais me senti solitário nas margens do Sena. Com tantas árvores na cidade podia-se ver a primavera chegando dia a dia, até que uma noite de vento quente a traria de repente na manhã seguinte. Pesadas chuvas frias poderiam retardá-la às vezes e temíamos que nunca mais chegasse, fazendo-nos perder, assim, uma estação em nossa vida. Esse era o único tempo realmente triste em Paris porque era fora do natural. A gente já espera ficar triste no outono. Uma parte da gente morre cada ano, quando as folhas caem das árvores e seus galhos ficam nus batidos pelo vento e a luz fria, invernal.
Mas sabíamos que haveria sempre outra primavera, assim como sabíamos que o rio fluiria de novo depois de ter estado congelado. Quando as chuvas frias continuavam durante longo tempo e acabavam matando a primavera, era como se um jovem tivesse morrido à toa. Naqueles dias, porém, a primavera sempre triunfava, mas dava-nos um frio na espinha pensar que faltara pouco para que ela tivesse falhado.
Uma Falsa Primavera
Quando a Primavera chegava, mesmo que se tratasse de uma falsa primavera, nossos problemas desapareciam, exceto o de saber onde se poderia ser mais feliz. A única coisa capaz de nos estragar um dia eram pessoas, mas se se pudesse evitar encontros, os dias não tinham limites.
As pessoas eram sempre limitadoras da felicidade, exceto aquelas poucas que eram tão boas quanto a própria primavera.
Nas manhãs de primavera eu começava a escrever bem cedo, enquanto minha mulher ainda dormia. Escancarava as janelas e via os paralelepípedos das ruas secando depois das chuvas. O sol ia secando também as fachadas das casas que se erguiam à frente de nosso apartamento. As lojas ainda estavam fechadas. O pastor de cabras subia a rua tocando sua gaita de foles, e uma mulher que morava no andar acima do nosso saía para a calçada com um grande jarro. O cabreiro escolhia uma das cabras pretas, de tetas pojadas, e a ordenhava no jarro, enquanto seu cachorro empurrava as outras para a calçada. As cabras olhavam ao redor de si, dobrando os pescoços como se fossem turistas. O cabreiro recebia o dinheiro da mulher, agradecia-lhe e continuava rua acima tocando a gaita, enquanto o cachorro pastoreava as cabras para a frente, com seus chifres oscilantes. Eu voltava a escrever e a mulher subia as escadas com o leite de cabra. Calçava sapatos de solas de fêltro, que usava nos trabalhos domésticos, e eu podia ouvir sua respiração quando ela fazia uma breve parada do lado de fora da nossa porta e, depois, a batida da sua, quando entrava em casa. Ela era a única freguesa do leite de cabra no nosso edifício.
Decidi descer e comprar a edição matutina dum jornal do turfe. Não havia bairro, por mais pobre que fosse, que não tivesse no mínimo um exemplar de um jornal de corridas, mas tinha-se de comprá-lo cedo num dia como aquele. Encontrei um na rue Descartes, na esquina da Place Contrescarpe. As cabras desciam a rue Descartes, enchi os pulmões com o ar puro e voltei rápido, para subir as escadas e entregar-me de novo ao trabalho. Confesso que senti a tentação de ficar lá fora e acompanhar as cabras pelas ruas matinais. Mas, antes de recomeçar o trabalho, passei os olhos no jornal. Havia corridas em Enghien, essa pequena, bela e fraudulenta pista que era o paraíso dos forasteiros.
Assim, naquele dia, decidi que depois de ter acabado o trabalho iríamos às corridas. Tinha chegado algum dinheiro do jornal de Toronto no qual colaborava e desejávamos ganhar muito mais, se pudéssemos encontrar uma barbada. Minha mulher tinha apostado num cavalo em Auteuil, certa vez, chamado Chèvre d'Or, que estava cotado cento e vinte a um e vinha levando vantagem de vinte corpos quando caiu no último salto, jogando por terra um dinheiro que daria para manter-nos seis meses. Fazíamos força para nunca pensar nisso. Estávamos em maré de sorte aquele ano, até que se deu o fiasco do Chèvre d'Or.
- Teremos dinheiro bastante para apostar, Tatie? - perguntou minha mulher.
- Não. Calcularemos gastar apenas o que pudermos levar. Há alguma outra coisa em que você preferisse gastar esse dinheiro?
- Bem . . - disse ela.
- Eu sei. A vida está difícil e eu tenho sido terrivelmente pão-duro e mesquinho em questão de dinheiro.
- Não é isso - disse ela, - mas..
Eu sabia quanto tinha sido prudente e como as coisas haviam corrido mal apesar disso. Quem se dedica a seu trabalho e nele encontra satisfação não é afetado pela pobreza. Mas sempre pensava nas banheiras, chuveiros e vasos sanitários com descarga que gente inferior a nós possuía e que gostávamos de usar quando viajávamos, coisa que fazíamos com frequência. É verdade que tínhamos os banhos públicos no fim da nossa rua, perto do rio. Minha mulher nunca se tinha queixado uma só vez dessas coisas, assim como não tinha chorado por Chèvre d'Or quando ele caiu.
Ela tinha chorado sim, lembro-me agora, mas pelo cavalo e não pelo dinheiro. Eu tinha sido estúpido quando ela necessitando de um casaco de lã cinza, ficou feliz quando o comprou. Eu tinha sido estúpido por outros motivos, também. Mas tudo isto era parte da luta contra a pobreza, que nunca se vence exceto não gastando. Especialmente se compramos quadros em vez de roupas. Mas, naquele tempo, não nos considerávamos pobres. Não admitíamos isso. Pensavamos que éramos superiores, e as outras pessoas, que olhávamos de cima e de quem com razão desconfiávamos, eram ricas. Nunca me tinha parecido estranho usar camisetas de algodão como roupa de baixo, para conservar o calor. Isso só parecia estranho aos ricos. Comíamos bem e barato, bebíamos bem e barato, dormíamos bem, aquecendo~nos e nos amando um ao outro.
- Penso que devemos ir - disse minha mulher. – Há muito tempo que não vamos às corridas. Levaremos um lanche e um pouco de vinho. Farei bons sanduíches.
- Iremos de trem, que é mais barato. Mas, se você acha que não devemos ir, não iremos. Tudo o que fizermos hoje será ótimo. Está um dia maravilhoso.
- Acho que devemos ir.
- Está certa de que não gostaria de gastar o dinheiro de outra maneira?
- Não - disse ela arrogantemente. - Tinha as maçãs do rosto adoravelmente altas, boas para demonstrar arrogancia. - Afinal de contas, o que é que nós somos?
Dito isto, partimos de trem da Gare du Nord atravessando a parte mais suja e mais triste da cidade. E caminhamos a pé da linha do trem até o oásis da raia. Era cedo ainda e sentamo-nos sobre minha capa de chuva, colocada na grama recém-podada; comemos nosso almoço e bebemos a garrafa de vinho contemplando a velha tribuna principal, as escuras barracas de madeira onde se faziam apostas, o verde da pista, o verde mais escuro das cercas vivas, o brilho pardacento dos regos d água na linha dos obstáculos, as caiadas paredes de pedra, as grades e postes brancos, o picadeiro debaixo das árvores recentemente cobertas de folhas novas e os primeiros cavalos entrando nele. Bebemos mais vinho e estudamos no jornal o programa das corridas; minha mulher deitou-se sobre a capa para dormir, com o sol batendo-lhe na face. Fui dar uma volta e encontrei alguém que eu conhecia dos velhos dias do hipódromo de San Ciro, em Milão. Indicou-me dois cavalos.
- Veja bem, não são nenhum investimento. Mas não deixe que o rateio o assuste.
Ganhámos o primeiro páreo com metade do dinheiro que tínhamos para gastar, e o vencedor pagou 12 por 1, transpondo admiravelmente os obstáculos, tomando a dianteira logo no início da pista e chegando quatro corpos na frente.
Poupamos metade do dinheiro, que botamos de lado, e apostamos a outra metade no segundo cavalo, que se lançou na frente, saltou com bravura os obstáculos e, em campo raso, mal chegou ao final, com o favorito ganhando terreno a cada salto.
Fomos tomar uma taça de champanhe no bar que ficava debaixo da tribuna e esperamos que os rateios fossem estabelecidos.
- Meu Deus, essas corridas angustiam a gente - disse minha mulher. - Você viu como aquele cavalo vinha atrás dele?
- Puxa! Ainda estou sentindo tudo dentro de mim.
- O que será que ele pagará?
- A cotação era 18 para 1. Mas podem ter apostado mais nele, à última hora.
Os cavalos passaram perto, o nosso vinha molhado de suor, com as narinas dilatadas para respirar, o jóquei acariciando-o.
- Coitado dele - disse minha mulher. - Nós apenas apostamos. Ficamos olhando a passagem dos animais, tomamos outra taça de champanhe até que o prémio foi indicado: 85. Ele pagava 85 francos por 10 de aposta.
- Devem ter apostado um dinheirão nele, ao final - comentei.
Mas havíamos ganho uma bolada - era, para nós, pelo menos, dinheiro grosso, e agora tínhamos a primavera e dinheiro também. Tive certeza de que isto era tudo o que queríamos. Um dia como aquele, se rachássemos os lucros de modo que a quarta parte ficasse para cada um gastar, deixava a metade como capital para apostar nas corridas. Guardei secretamente esse capital, das corridas, separado do resto do dinheiro.
Tempos depois, naquele mesmo ano, quando regressávamos de uma de nossas viagens e novamente havíamos tido sorte nas corridas, parámos em Pruniers, a caminho de casa,
indo sentar-nos no bar depois de olhar todas as maravilhas da vitrina, com seus preços claramente marcados. Comemos ostras e crabe Mexicaine, e tomamos alguns copos de Sancerre. Caminhamos de volta pelas Tuiteries, no escuro, e paramos para contemplar os jardins escuros através do Arc du Carrousel, com a Concorde brilhando atrás da escuridão solene e, além, a longa extensão das luzes em direção ao Arc de Triomphe. Depois voltamos nossas cabeças para o escuro do Louvre e eu perguntei: - Você acha que os três arcos estão realmente em linha reta? Estes dois e o Sermione em Milão?
- Não sei, Tatie. Quem afirma isso deve saber o que diz. Você se lembra de quando encontramos a primavera no lado italiano do São Bernardo, depois da escalada na neve, e de como você, o Chink e eu caminhamos todo esse dia de primavera até Aosta?
- Claro! Chink chamou esse feito de "a travessia do São Bernardo com sapatos de passeio". Você se lembra dos seus sapatos?
- Meus pobres sapatos! E você se lembra de termos tomado uma taça de salada de frutas no Biffi, na Galleria, com Capri, pêssegos frescos e morangos silvestres, tudo servido com gelo num jarro alto de vidro?
- A recordação daquele bom tempo é que me fez pensar a respeito dos três arcos.
- Eu me lembro do Sermione. É parecido com este arco.
- Você se lembra do hotel em Aigle, onde você e Chink sentaram no jardim naquele dia e leram enquanto eu pescava?
- Sim, Tatie.
Lembrava-me do Ródano, estreito e cinzento, transbordando com a água do degelo, com suas duas correntes de trutas de cada lado, o Stockalper e o Canal do Ródano. O Stockalper estava realmente claro naquele dia, ao passo que o Canal do Ródano estava ainda bastante turvo.
- Você se lembra de quando os castanheiros da Índia estavam em flor e de como eu procurava me lembrar de uma história que Jim Gamble, creio eu, tinha me contado a respeito de uma trepadeira de glicínias e não conseguia?
- Sim, Tátie, como me lembro também de você e Chink viverem conversando sobre a melhor maneira de escrever, preferindo retratar a realidade com palavras do que descrevê-la. Sim, lembro-me de tudo. Às vezes ele tinha razão, e às vezes era você quem tinha razão. Lembro-me das luzes, das texturas e das formas sobre as quais vocês discutiam.
A essa altura já tínhamos saído pelo portão e atravessado o Louvre; cruzamos a rua e paramos na ponte, apoiando-nos na amurada de pedra, e ficamos olhando o rio.
- Nós três vivíamos discutindo a respeito de tudo, mas sempre de coisas específicas e fazíamos troça uns dos outros.
Lembro-me de tudo que fizemos e de tudo que dissemos durante toda a viagem - disse Hadley. - Realmente, me lembro. De tudo. Quando você e Chink discutiam, eu não me sentia excluída. Não era como ser apenas uma esposa na casa de Miss Stein.
- Eu bem que gostaria de me lembrar da tal história da trepadeira de glicínias.
- Não era importante. As glicínias é que eram importantes, Tatie. - Você se lembra de que eu comprei vinho em Aigle para levá-lo ao chalé? Comprámo-lo na pousada. Disseram-nos que combinava bem com as trutas. Levamos o vinho embrulhado em exemplares de La Gazette de Lucerne, creio eu.
- O vinho de Sion era ainda melhor. Você se lembra de como a Srª Gangeswisch cozinhou as trutas au bleu, quando voltamos para o chalé? Que trutas maravilhosas, Tatie! Bebemos o vinho de Sion e comemos no alpendre, vendo as encostas das montanhas que desciam a pique e; além do lago, o Dent du Midi coberto de neve até a metade, as árvores na embocadura do Ródano, onde ele deságua no lago.
- Sempre sentimos, falta de Chink, no inverno e na primavera.
- Sempre. E sinto também agora, que a primavera já passou. Chink era um oficial, e tinha vindo de Sandhurst até Mons. Conhecera-o na Itália, onde foi o meu melhor amigo e, depois, nosso melhor amigo por longo tempo. Naquela época ele sempre passava seus períodos de licença conosco.
- Chink está procurando obter uma licença na próxima primavera. Escreveu-me de Colónia na semana passada.
- Eu sei. Mas devemos gozar estes dias e aproveitar todos os minutos deles.
- Agora, por exemplo, estamos contemplando a água, vendo como ela bate nos contrafortes. Veja quanta beleza podemos enxergar quando olhamos rio acima.
Olhamos e lá estava tudo: nosso rio, nossa cidade e a ilha de nossa cidade.
- Estamos com sorte demais - disse ela. – Talvez Chink possa vir. Ele toma conta da gente:
- Ele não pensa assim.
- Claro que não.
- Ele pensa que juntos descobrimos tudo.
- É verdade. - Mas depende daquilo que se descobre.
Atravessamos a ponte e chegamos à nossa própria margem do rio.
Perguntei - Você não está de novo com fome? Andamos e conversamos um bocado!
- Claro que estou, Tatie. E você, não está também?
- Vamos então a um lugar maravilhoso, para um jantar verdadeiramente esplendido.
- Onde?
- Ao Michaud.
- Ótimo! E é tão perto.
Tomada a decisão, subimos a rue des Saints Pères até a esquina da rue Jacob, parando de quando em quando para olhar quadros e móveis nas vitrinas. Chegando à entrada do restaurante Michaud, lemos o cardápio afixado. Estava repleto, e tivemos de esperar que alguns fregueses saíssem, ficando de olho nas mesas onde as pessoas já estavam tomando café.
Estávamos com fome de novo, de tanto andar, e o Michaud era um restaurante de primeira, muito caro para nós.
Era onde Joyce costumava comer então com a família, ele e a mulher junto da parede, Joyce examinando o cardápio através dos seus óculos de lentes grossas, segurando-o numa das mãos; podia lembrar-me de Nora junto dele; comendo delicadamente mas com bom apetite; Giorgio, de costas, magro, afetado, os cabelos brilhantes; Lúcia com grossos cabelos encaracolados, uma menina ainda não de todo crescida; todos falando italiano.
Enquanto estava ali, em pé, perguntava a mim mesmo quanto daquilo que tínhamos sentido na ponte era apenas fome. Perguntei à minha mulher e ela disse: ·
- Não sei, Tatie. Há tantas espécies de fome. Na primavera há muitas, mas isso agora já passou. Ter boas recordações é uma maneira de ter fome.
Talvez estivesse sendo estúpido, mas o fato é que, olhando através da vidraça e vendo dois tournedos serem servidos, compreendi que estava com fome num sentido mais simples.
- Você disse que estávamos com sorte hoje. É claro que estamos. Mas não se esqueça de que recebemos bons conselhos e informações.
Hadley riu-se.
- Não me referia às corridas. Você toma tudo ao pé da letra. Eu queria dizer sorte em outro sentido.
- Não creio que o Chink se interesse por corridas - disse eu, tentando consertar minha estupidez.
- Nem eu. Ele só se interessaria por corridas se fosse ele quem montasse.
- Você não quer ir mais às corridas?
- É claro que quero. E agora podemos ir sempre que quisermos.
- Mas você quer realmente ir?
- Sem dúvida. E você não quer, também?
Foi uma refeição maravilhosa a que fizemos no Michaud, quando conseguimos entrar. Mas quando terminamos e já não sentíamos mais a fome, a sensação que nos parecera fome, quando estávamos na ponte, ainda continuava dentro de nós quando tomamos o onibus para casa. Continuava quando chegamos ao quarto e, depois de termos ido para a cama e feito amor no escuro, ainda estava lá. Quando acordei, com as janelas abertas e o luar nos telhados das casas altas, ainda estava lá. Afastei o rosto para a sombra, mas não podia dormir e fiquei acordado, pensando nisso. Tínhamos ambos acordado duas vezes, nessa noite, e agora minha mulher dormia docemente, com o luar no rosto. Tinha de me esforçar para compreender o que se passava conosco, mas sentia-me demasiadamente estúpido. A vida me tinha parecido tão simples naquela manhã, quando despertei, encontrei a falsa primavera, ouvi a gaita de foles do homem das cabras e saí para comprar o jornal de corridas.
Mas Paris era uma cidade muito antiga, nós éramos jovens e nada ali era simples, nem mesmo a pobreza, nem o dinheiro súbito, nem o luar, nem o bem e o mal, nem a respiração de alguém que, deitada ao nosso lado, dormisse ao luar.
O Fim de um Passatempo
Fomos juntos às corridas muitas vezes mais, naquele ano como em outros, depois de meu trabalho matinal; Hadley divertia-se com isso e, às vezes, chegava até a adorar. Mas não era como a escalada das campinas nas altas montanhas que se erguiam acima da última floresta. Nem como as noites quando regressávamos ao chalé, nem como alcançar com Chink, nosso melhor amigo, um alto passo entre os desfiladeiros, descobrindo novas paisagens. Na realidade, não se tratava das corridas, propriamente. O que fazíamos era jogar nos cavalos. Mas chamávamos isso de corridas.
Elas nunca se colocaram entre nós; somente as pessoas é que podiam conseguir isso. Mas por muito tempo estiveram ligadas a nós como um amigo exigente. Eis uma forma generosa de analisá-las. Eu, que era tão severo a respeito de pessoas e de sua capacidade de destruição tolerava precisamente este amigo, que era o mais falso, e mais belo, o mais excitante, vicioso e exigente, porque podia ser fonte de lucros.
Torná-las lucrativas exigia mais ocupação do que trabalho em tempo integral, e eu não tinha tempo para isso. Mas eu as justificava perante mim mesmo porque as usava em meus contos, mesmo que, no final de contas, quando perdi tudo o que tinha escrito, sobrasse apenas um conto sobre corridas, que se salvou porque tinha sido remetido pelo correio.
Eu estava cada vez mais indo sozinho às corridas e me deixava dominar por elas. Na temporada, quando podia, frequentava dois prados de corridas, Auteuil e Enghien. Era
trabalho em regime de tempo integral, pois procurava apostar com inteligência, e não é assim que se ganha dinheiro. Essa maneira era apenas teórica e, se funcionasse, bastaria comprar um jornal.
Na prática, era necessário assistir uma corrida de obstáculos do alto das tribunas, em Auteuil, subir rapidamente as escadas para ver como se comportava cada cavalo, estudar o cavalo que podia ter ganho e não ganhou, descobrir por que não fizera o que poderia ou deveria ter feito. Era preciso observar as cotações e as variações dos handicaps todas as vezes que um cavalo em que se estava apostando iniciava uma corrida; era importante saber como se comportara nos treinos e, finalmente, quando é que seu proprietário exigiria tudo dele. Era sempre possível que fosse derrotado mesmo nessa ocasião, mas quem estivesse por dentro deveria saber precisamente quais eram suas chances. Dava uma trabalheira danada, mas era bonito assistir, toda vez que havia programa em Auteuil, as corridas honestas dos grandes cavalos; com o tempo, acabava-se conhecendo as raias tão bem como qualquer outro lugar que nos fosse extremamente familiar. Por fim, conhecia-se também muita gente, jóqueis, treinadores e proprietários, cavalos demais e outras coisas também demais.
Em princípio, eu só apostava quando tinha um cavalo que justificasse a aposta, mas, às vezes, descobria cavalos nos quais ninguém acreditava exceto seus treinadores e jóqueis, cavalos que ganhavam corrida após corrida, enquanto eu ia apostando neles. Parei de jogar, finalmente, porque me tomava tempo demais e eu estava ficando totalmente envolvido; sabia de tudo o que se passava em Enghien e também nas pistas de corrida ‘sem obstáculos’.
Quando decidi abandonar os hipódromos, fiquei a um só tempo alegre e com uma sensação de vazio. Já sabia, então, que qualquer coisa - boa ou má - deixa um vazio quando acaba. Se era má, o vazio se enche por si mesmo. Se era boa, só se poderia enchê-lo encontrando alguma coisa melhor.
Devolvi o capital das corridas à conta dos fundos gerais e senti-me aliviado e de bem com minha consciência.
No dia em que renunciei às corridas, atravessei para o outro lado do rio e encontrei meu amigo Mike Ward, à sua mesa no departamento de viagens do Guarany Trust que fi-
cava então na esquina da rue des Italiens com o Boulevard des Italiens. Depositei o capital das corridas mas não revelei esse fato a ninguém. Não anotei a entrada no livro de cheques, embora a conservasse de cabeça.
- Você quer almoçar comigo? - perguntei a Mike.
- Claro, garoto! Mas o que é que há com você? Não vai ao prado hoje?
- Não .
Almoçámos na Square Louvois, num bistro muito bom, modesto, servindo maravilhoso vinho branco. Do outro lado da praça ficava a Bibliothèque Nationale.
- Você não tem ido muito às corridas, não é, Mike? - disse eu.
- Não. Faz tempo que não vou.
- Por que é que você se afastou delas?
- Não sei - disse Mike. - Isto é, creio que sei. Tudo aquilo em que se precisa apostar para ter emoções não vale a pena de se ver.
- E você nunca mais foi até lá?
- Às vezes vou, quando há uma grande corrida para ver. Uma corrida com grandes cavalos.
Espalhámos paté no bom pão do bistro e bebemos o vinho branco.
- Mas você não perdia uma, não é Mike?
- Oh, eu era fanático pelas corridas.
- O que é que você conhece que seja melhor do que elas?
- Corridas de bicicleta.
- No duro?
- E não tem de: apostar nelas. Você verá.
- Os hipódromos tomam um bocado de tempo da gente.
- Tempo demais. Tomam todo o nosso tempo. E não gosto daquela gente.
- Pois eu estava muito interessado.
- Sei disso. Saiu liso?
- Não. Pelo contrário, estava até ganhando.
- Boa coisa parar nessa hora - disse Mike.
- Foi exatamente o que fiz.
- Sei que é duro. Mas aguente firme, meu caro. Um dia destes iremos às corridas de bicicletas.
Era algo de novo e lindo, que eu mal conhecia. Mas a revelação não se deu imediatamente. Isso aconteceu mais tarde e se transformou numa parte importante de nossas vidas, quando conquistámos a primeira parte de Paris.
Mas, por muito tempo ainda, bastava-nos voltar à nossa parte de Paris, longe dos prados, apostando em nossa própria vida, no nosso trabalho e nos pintores que conhecíamos, sem tentar a sorte no jogo, embora lhe dessemos outro nome qualquer. Principiei muitos contos sobre corridas de bicicleta, mas jamais escrevi um que fosse tão bom quanto as próprias corridas, tanto as realizadas em pistas cobertas quanto nas externas ou nas estradas: Mas um dia irei ao Vélodrome d'Hiver e conseguirei captar sua luz enfumaçada das tardes, sua inclinada pista de madeira, o som sibilante que os pneus faziam quando os corredores passavam, o esforço e a tática com que eles subiam e mergulhavam, todos integrados fìsicamente nas suas máquinas; retratarei a magia do demi-fond, o barulho das motocicletas pilotadas pelos entraîneurs, que usavam pesados capacetes de proteção e se inclinavam para trás em suas volumosas roupas de couro, rebocando os cilindros que controlavam as partidas, e abrigavam os corredores que os seguiam da resistência do ar; os próprios corredores, com seus capacetes de proteção mais leves, curvados sobre os guidons, as pernas pedalando as enormes engrenagens traseiras e as pequenas rodas dianteiras quase tocando o cilindro atrás da máquina que lhes dava abrigo; os desafios, que eram mais excitantes do que qualquer outra coisa, o rugido das motocicletas e os corredores cotovelo a cotovelo e roda a roda, para cima, para baixo, em torno da pista, numa velocidade mortal, até que um, não aguentando a marcha, caísse do pelotão e se chocasse contra a sólida muralha de ar de que tinha sido protegido até então.
Havia muitas espécies de corridas. As competições simples, em provas individuais, os desafios em que dois corredores equilibravam-se em suas bicicletas durante longos segundos, buscando levar o adversário à dianteira e, então, partindo das voltas lentas chegavam ao mergulho final no puro ímpeto da velocidade. Havia programas de grupos, com duas horas de duração, com uma série eliminatória para encher a tarde, as provas de velocidade pura, com um só homem correndo durante uma hora rigorosamente cronometrada, as corridas de cem quilómetros, terrivelmente perigosas e belas, realizadas na inclinadíssima pista de madeira de quinhentos metros, no Stade Buffalo, o velódromo ao ar livre de Montrouge, onde corriam atrás de grandes motocicletas. Lembro-me de Linart, o grande campeão belga, que era chamado Le Sioux por causa de seu perfil, abaixando a cabeça para sugar cherry-brandy por um tubo de borracha ligado a uma bolsa de água quente que trazia escondida debaixo da camisa, pois precisava de "combustível" perto do fim da corrida, quando aumentava sua velocidade selvagem. Lembro-me dos campeonatos de França, travados na pista de cimento de seiscentos e sessenta metros do Parc du Prince, perto de Auteuil, a mais traiçoeira de todas, onde vimos cair o grande corredor Ganay e ouvimos seu crânio quebrar-se dentro do capacete de proteção, como um ovo cozido que alguém estalasse contra uma pedra, num piquenique.
Um dia escreverei sobre o estranho mundo das maratonas de seis dias e as maravilhas das corridas de estrada nas montanhas. O francês é a única língua em que essas coisas têm sido escritas adequadamente, pois os termos técnicos são todos franceses e isso é que torna difícil escrever sobre elas.
Mike tinha razão, não é necessário apostar. Mas tudo isso pertence a outros tempos, em Paris.
A Fome como Boa Disciplina
Se você não se alimentava bem em Paris, tinha sempre uma fome danada, pois todas as padarias exibiam coisas maravilhosas em suas vitrinas e muitas pessoas comiam ao ar livre, em mesas na calçada, de modo que por toda a parte via comida ou sentia o seu cheiro. Se você abandonou o jornalismo e ninguém nos Estados Unidos se interessa em publicar o que está escrevendo, se é obrigado a mentir em casa, explicando que já almoçara com alguém, o melhor que tem a fazer é passear nos jardins do Luxembourg, onde não via nem cheirava comida, desde a Place de l'Observatoire até a rue de Vaugirard. Poderá sempre entrar no Musée du Luxembourg, onde todos os quadros ficam mais vivos, mais claros e mais belos quando se está com a barriga vazia, roído de fome.
Aprendi a compreender Cézanne muito melhor, a entender realmente como é que pintava suas paisagens quando estava faminto. Costumava perguntar a mim mesmo se ele também tinha passado fome quando pintava, mas imaginava que talvez apenas se tivesse esquecido de comer. Era um daqueles pensamentos doentios mas brilhantes que nos ocorrem quando estamos com falta de sono ou de comida. Mais tarde, bem mais tarde, concluí que Cézanne provavelmente passara fome, mas de maneira diferente.
Depois de ter saído do Luxembourg, você poderia andar pela estreita rue Férou até a Place St. Sulpice sem ver restaurante algum, somente a praça silenciosa, com seus bancos e suas árvores. Havia uma fonte com leões, e pombos andavam nas calçadas ou pousavam nas estátuas dos bispos.
No lado norte da praça ficavam a igreja e lojas que vendiam objetos religiosos e paramentos.
Para além da praça é que não podia prosseguir em direção ao rio sem passar por lojas que vendiam frutas, legumes, vinhos, ou por padarias e pastelarias. Mas, escolhendo cuidadosamente o caminho, conseguiria avançar pela direita, ao redor da igreja de pedra, cinzenta e branca, chegar à rue de l'Odéon e virar de novo à direita em direção à livraria de Sylvia Beach, sem encontrar muitos lugares onde se vendessem coisas de comer. A rue de l'Odéon era desprovida de restaurantes até chegar à praça, onde havia três.
Quando chegasse à rue de l'Odéon, nº 12, a fome estaria contida mas por outro lado, todos os seus sentidos estariam aguçados. As fotografias lhe pareceriam diferentes e descobriria livros que nunca tinha visto antes.
- Você está magro demais, Hemingway - diria Sylvia. - Você anda comendo o suficiente?
- Claro que sim!
- O que é que comeu no almoço?
Apesar das cólicas, eu diria: - Ainda não almocei. Agora é que estou indo para casa.
- Ás três da tarde?
- Não sabia que era tão tarde assim.
- Adrienne disse outro dia que gostaria que você e Hadley fossem jantar com ela. Convidaremos Fargue também. Você gosta do Fargue, não gosta? Ou Larbaud. Você gosta dele. Sei que você gosta dele. Ou qualquer outro de quem você realmente goste. Você falará com Hadley?
- Sei que ela adorará aceitar esse convite.
- Eu lhe enviarei uma carta pneumática para combinar tudo. Quanto a você, Hemingway, não trabalhe tanto, pois não está se alimentando adequadamente.
- Cuidarei disso.
- Vá logo para casa, antes que seja tarde demais para o almoço.
- Guardam o almoço para mim.
- Comida fria também faz mal. Coma um bom almoço quente.
- Chegou alguma carta para mim?
- Acho que não. Mas deixe-me ver.
Foi ver e encontrou um recado. Levantou os olhos, satisfeita, e depois abriu uma porta da sua escrivaninha, que estava fechada a chave.
- Isto chegou enquanto eu estava fora - disse ela.
Era uma carta e dava a impressão de conter dinheiro.
- Wedderkop - disse Sylvia.
- Deve vir do Der Querschnitt - disse eu. – Você esteve com Wedderkop?
- Não. Mas ele passou por aqui, com o George. Ele falará com você, não se preocupe. Talvez quisesse primeiro pagar o que lhe deve.
- São estes seiscentos francos. E diz que receberei mais.
- Foi ótimo você me ter lembrado da correspondência!
Meus parabéns, Dr. Sabe-Tudo.
- É realmente muito engraçado que a Alemanha seja o único lugar onde posso vender alguma coisa. A Wedderkop e ao Frankfurter Zeitung.
- É mesmo! Mas não se aborreça. Você pode vender alguns contos ao Ford - disse ela para me provocar.
- A trinta francos a página! Faça os cálculos: um conto, cada três meses, no The Transatlantic. Um conto de cinco páginas dá cento e cinquenta francos por trimestre. São seiscentos francos por ano.
- Mas, Hemingway, não se preocupe com o que lhe rendem agora. O essencial é você poder escrevê-los.
- Sei. Posso escrevê-los. Mas ninguém os comprará. Não tem entrado dinheiro algum desde que abandonei o jornalismo.
- Estou certa de que conseguirá colocá-los. Você não acaba de receber esse dinheiro?
- Desculpe-me, Sylvia. Perdoe-me por falar nos meus problemas.
- Desculpá-lo de quê? Fale sempre disso ou do assunto que quiser. Você não sabe que todos os escritores sempre falam de suas dificuldades? Mas prometa~me que não se preocupará demais e comerá bastante.
- Prometo.
- Então vá para casa agora e almoce.
Lá fora, na rue de l'Odéon, fiquei desgostoso comigo mesmo por ter-me queixado. Estava levando a vida que escolhera de minha livre vontade e acabara de proceder estupidamente. Deveria ter comprado e comido um bom pedaço de pão em vez de ter pulado uma refeição. Podia sentir na boca o gosto adorável da casca torrada. Mas fica-se com a garganta seca se não se tem alguma coisa para beber.
'Seu poltrão de uma figa! Seu santarrão, seu falso mártir!" disse para mim mesmo. "Você abandonou o jornalismo por sua própria decisão. Você tem crédito e Sylvia lhe teria emprestado algum dinheiro. Ela já o fez tantas vezes!" Mas eu mesmo me respondia: "Não há dúvida, comece a fraquejar agora que num instante você se entrega por um nada qualquer. Ter fome é uma coisa sadia e os quadros até parecem melhores quando você está faminto. Por outro lado, comer é maravilhoso também, e você sabe onde é que vai comer agora mesmo. Pois é no Lipp's que você vai comer e beber também"
Foi uma rápida marcha até o Lipp's e cada lugar que meu estômago notava, com a mesma rapidez com que meus olhos ou meu nariz, acrescentava redobrado prazer a meus passos. Havia poucas pessoas na brasserie e, quando me sentei no banco junto à parede, com o espelho atrás de mim e uma mesa em frente e o garçom perguntou se queria cerveja, pedi logo um distingué a grande caneca de um litro, acompanhado de salada de batata.
A cerveja estava geladíssima e maravilhosa. As pommes à l'huile estavam frescas, temperadas, com molho divino e azeite delicioso. Pulverizei pimenta do reino sobre as batatas e molhei o pão no azeite. Depois do primeiro grande gole de cerveja, bebi e comi muito lentamente. Quando acabei de comer as pommes à l'huile pedi outro prato ao garçom e cervelas. Eram salsichas parecidas com uma grossa e larga frankfurter, cortadas em duas e cobertas com molho de mostarda especial.
Enxuguei com o pão todo o azeite e todo o molho e bebi a cerveja lentamente até ela começar a aquecer-se, depois acabei-a e pedi um demi, que vi retirarem do barril. Parecia mais gelada que o distingué e bebi metade dela.
Não, eu ainda não me havia preocupado seriamente, pensei. Sabia que meus contos eram bons e alguém os publicaria finalmente, nos Estados Unidos. Quando abandonei o trabalho jornalístico tinha certeza de que os contos seriam publicados. Mas todos que enviava eram devolvidos. O que me tornara tão confiante foi Edward O'Brien ter incluído o conto “Meu Velho” na antologia “Os Melhores Contos” e ter dedicado o volume daquele ano a mim. Ri-me disso e bebi mais cerveja. O conto não havia sido publicado em revista alguma e O'Brien rompera todas as normas incluindo-o no livro.
Ri outra vez e o garçom olhou para mim. Tinha graça porque, além do mais, ele escrevera meu nome errado. Era um dos dois contos que me haviam sobrado quando tudo o que tinha escrito até então foi roubado na maleta de Hadley, em plena Gare de Lyon, quando ela embarcava para Lausanne levando-me como surpresa todos os meus manuscritos, a fim de que eu pudesse trabalhar neles em nossas férias nas montanhas. Hadley colocara na maleta os originais, as cópias datilografadas e os carbonos, tudo em pastas de papel.
O único motivo de eu ainda ter esse conto em meu poder, foi Lincoln Steffens tê-lo enviado a um editor, que o devolveu. Estava em trânsito quando tudo o mais foi roubado. O outro conto que me restava intitulava-se Lá em Michigan, escrito antes de Miss Stein ter vindo ao nosso apartamento. Nunca me dera ao trabalho de enviá-lo porque ela o considerara inaccrochable. Tinha ficado esquecido numa gaveta qualquer.
Assim, depois que deixamos Lausanne e descemos para a Itália, só pude mostrar a O'Brien o conto sobre corridas.
Ele era um homem gentil, tímido; pálido, com pálidos olhos azuis e ralos cabelos lisos, que ele mesmo cortava; nessa época, morava como pensionista num mosteiro acima de Rapallo. Foram dias difíceis, pois eu não acreditava que pudesse escrever mais nada; mostrei-Ihe o conto como uma curiosidade, assim como quem mostrasse a bússola de um
navio que tivesse perdido de maneira inconcebível, ou como quem apanhasse seu próprio pé, ainda calçado, e feito alguma brincadeira a respeito dele ter sido amputado num desastre.
Quando O'Brien leu o conto, vi que ele ficou ainda mais arrasado que eu. Nunca tinha visto alguém tão infeliz por outro motivo que não fosse a morte ou um sofrimento insuportável, exceto Hadley quando me contou o que lhe acontecera. Ela chorava, chorava, e nem podia falar. Disse-lhe que fosse qual fosse a coisa terrível que lhe tivesse acontecido, nada poderia ser tão ruim assim, e que, fosse o que fosse, não tinha importância. Não queria que se aborrecesse. Daría-mos um jeito. Por fim, acabou me contando. Não acreditei que ela tivesse trazido os carbonos também: arranjei alguém para me substituir no trabalho jornalístico, que me dava então bom dinheiro, e tomei o trem para Paris. Infelizmente, tudo era verdade mesmo, e me lembro do que fiz naquela noite, depois de entrar no apartamento e verificar que era verdade. Mas isso já pertencia ao passado. Chink me ensinara a não cultivar as tragédias; disse a O'Brien, portanto, que não se incomodasse. Talvez tivesse sido bom para mim perder os primeiros trabalhos. Disse-Ihe todas aquelas mentiras que se usa para levantar o moral das tropas. Começaria a escrever outros contos, afirmei-Ihe, e ao dizer isso, mentindo para que ele não se sentisse tão desolado, senti que era mesmo verdade.
Sentado ali no Lipp's, comecei a pensar na primeira vez em que fui de novo capaz de escrever um conto, após ter perdido tudo. Foi em Cortina d'Ampezzo, quando voltei para junto de Hadley, depois de ter interrompido a esquiagem de primavera para ir, por ordem do jornal, ao vale do Reno e ao Ruhr. Era um conto muito simples, intitulado Fora da Temporada, e eu omitira seu final lógico, que seria o suicídio do velho, por enforcamento. Fizera isso com base na minha nova teoria de que sempre se pode omitir qualquer coisa de um conto, desde que se saiba por que se omitiu e a parte omitida reforce a narrativa, fazendo com que os leitores sintam alguma coisa além daquilo que entenderam.
"Pois bem", pensei comigo, "agora eu os escrevo de tal maneira que os leitores já não os entendem. Não podia haver muita dúvida a esse respeito. Não admira, pois, que ninguém os queira comprar. Mas acabarão por entender, do mesmo modo como aceitam as novas escolas de pintura . É uma questão de tempo, e exige autoconfiança.
É preciso que uma pessoa se cuide melhor quando tem de cortar na comida, para que não fique pensando demasiado nisso. A fome é uma boa disciplina e você aprende com ela. E enquanto os outros não compreenderem isso, você está na frente deles. "Não há dúvida", pensava eu, "estou adiante deles agora que nem me posso permitir comer regularmente. Mas até que não seria mau se me compreendessem um pouquinho."
Sabia que tinha de escrever um romance. Mas parecia-me uma tarefa impossível àquela altura, pois era com grande dificuldade que escrevia parágrafos que, no máximo, seriam a essência daquilo que constitui um romance. Era necessário escrever contos mais longos agora, como treinamento para corridas de fundo. Na experiência inicial, uma novela que sumiu com a mala roubada na Gare de Lyon, eu ainda possuía a lírica facilidade da infância, que era tão perecível e enganosa quanto a da mocidade. Foi provavelmente bom que eu a tivesse perdido, mas sentia a obrigação de escrever um romance. Eu resistiria o quanto pudesse, até chegar o momento inevitável. Estaria perdido se tivesse de escrevê-lo apenas para que pudéssemos comer regularmente. Quando chegasse o momento de escrevê~lo, seria então a única tarefa a executar e não haveria alternativa. Que a pressão fosse subindo. Enquanto isso, eu escreveria um conto longo sobre a coisa que conhecesse melhor.
A essa altura de meus pensamentos, já tinha pago a conta, saído do Lipp's, virado à direita e cruzado a rue de Rennes, evitando passar pelo Deux Magots para tomar um café, e subia a rue Bonaparte o mais curto caminho para casa.
Qual o assunto que eu conhecia melhor, a cujo respeito já não tivesse escrito (e perdido) um conto? O que é que eu conhecia realmente e que mais me interessava? Não me ocorria qualquer escolha. Apenas a escolha das ruas que me levassem o mais rapidamente ao local onde trabalhava. Avancei pela Bonaparte até a Guynemer, entrei depois na rue d'Assas e segui pela rue Notre-Dame-des-Champs até chegar ao Closerie des Lilas.
Sentei-me a um canto, com a luz da tarde dando-me sobre o ombro e passei a escrever no caderno de notas. O garçom trouxe-me um café-crème, bebi metade dele quando esfriou um pouco, e esqueci-o na mesa enquanto escrevia. Quando parei de escrever, não quis afastar-me da lembrança do rio, onde podia ver trutas, no remanso das águas, cuja superfície intumescia contra a resistência dos pilares de madeira das pontes. O conto era a respeito do após-guerra, mas a guerra não entrava nele.
Mas, na manhã seguinte, o rio estaria lá à minha espera assim como os campos e tudo o que iria acontecer. Tinha a vida pela frente, para ir fazendo isto cada dia. Nada mais me importava. Tinha no bolso o dinheiro vindo da Alemanha, de maneira que não havia problemas. Quando acabasse, outro dinheiro viria.
Tudo o que tinha de fazer, agora, era aguentar firme e estar bom da cabeça até a manhã, quando recomeçaria a trabalhar.
Ford Madox Ford e o Discípulo do Diabo
Dos bons cafés, o Closerie des Lilas era o mais próximo de nosso apartamento, quando morávamos sobre a serraria, no nº 113 da rue Notre-Dame-des-Champs. Um dos melhores cafés de Paris, sem a menor dúvida, seu interior era bem aquecido e, na primavera e no outono, era muito agradável ficar-se na parte externa, tanto nas mesas à sombra das árvores que davam para a estátua do Marechal Ney, como nas outras, quadradas, bem distribuídas sob o grande toldo ao longo do boulevard. Dois dos garçons eram bons amigos nossos. Frequentadores do Dôme e do Rotonde nunca vinham ao Lilas. Não havia por lá conhecidos seus, e ninguém lhes teria dado maior importãncia se viessem. Naqueles dias, muita gente ia aos cafés da esquina do Boulevard Montparnasse com o Boulevard Raspail para ser vista em público e, de certo modo, aqueles lugares anteciparam-se aos colunistas sociais como os substitutos diários da imortalidade.
O Closerie des Lilas tinha sido em outros tempos um café onde os poetas se encontravam mais ou menos regularmente, e o último poeta importante a frequentá-lo fora Paul Fort, que eu nunca tinha lido. Mas o único poeta que alguma vez vi lá foi Blaise Cendrars, com sua cara quebrada de boxeador e a manga vazia do paletó voltada para cima e presa com alfinetes, enrolando um cigarro com a mão que lhe sobrava. Era uma companhia agradável enquanto não bebesse demais e, ainda assim, quando começava a mentir, era mais interessante do que muitos homens contando histórias verdadeiras. Mas era o único poeta que ainda ia ao Lilas, embora eu o tenha visto uma só vez. A maioria dos fregueses era de homens barbados, idosos, de roupas muito surradas, que iam com as esposas ou as amantes, do tipo dos que usam na lapela a fitinha vermelha da Legião de Honra. Supunhamos generosamente que fossem cientistas ou savants, mas faziam render seu aperitivo tanto quanto os homens de roupas ainda mais puídas, sentados com as mulheres ou amantes, faziam render seus café-crème ostentando nas lapela a fita cor de púrpura das Palmas da Academia, que nada tinha a ver com a Académia Francesa, e indicava, pensávamos nós, serem catedráticos ou livres-docentes.
Gente como essa tornava confortável o café, visto que estavam todos interessados uns nos outros, nas suas bebidas, cafés ou infusões nos jornais e revistas presos a uma vara; ninguém estava ali para se exibir.
Havia outros fregueses também, gente que morava no quarteirão e ia ao Lilas, alguns deles usando fitas da Croix de Guerre nas lapelas, outros a fita verde-amarela da Médaille Militaire, e eu admirava a eficiência com que superavam a perda de membros apreciava a qualidade de seus olhos artificiais e o grau de habilidade com que seus rostos tinham sido reconstituídos. Havia sempre um brilho estranho nessas faces consideravelmente reconstruídas, como o de uma pista de esquiação bem compactada, e respeitávamos esses fregueses mais do que os savants ou os professores, ainda que eles, embora sem sofrer mutilações, talvez tenham servido sua Pátria também com bravura.
Naqueles dias não confiávamos em quem não tivesse lutado na guerra ( em verdade não confiávamos completamente em quem quer que fosse), mas achávamos que Cendrars podia ser um pouco menos ostensivo quanto a seu braço perdido. Fiquei satisfeito ao saber que ele estivera no Lilas no começo da tarde, antes que chegassem os fregueses regulares.
Nessa tarde, encontrava-me numa mesa do lado de fora do Lilas, contemplando a diminuição da luz sobre as árvores e os edifícios e a passagem dos grandes e lentos cavalos nos boulevards exteriores, quando a porta do café se abriu atrás de mim, à minha direita; e um homem saiu, encaminhando-se para a minha mesa.
- Ó, você por aqui? - disse ele.
Era Ford Madox Ford, como então se chamava a si mesmo, e respirava pesadamente através do bigode denso, manchado de fumo, erguendo-se diante de mim como se fosse um barril bem vestido e bem acabado.
- Posso sentar-me com você? - peguntou, sentando-se antes que eu respondesse; seus olhos, que eram de um azul desbotado sob pálpebras e sobrancelhas incolores, olhavam para o boulevard.
- Gastei bons anos de minha vida para que esses animais pudessem ser abatidos humanamente - disse ele.
- Você já me contou - disse eu.
- Penso que não.
- Tenho certeza.
- É curioso... Jamais contei isso a quem quer que fosse, em toda a minha vida.
- Quer tomar uma bebida?
O garçom apareceu e Ford disse-lhe que tomaria um Chambéry Cassis. O garçom, que era um homem alto, magro, calvo no topo da cabeça, o que dissimulava com o cabelo esticado, e usava espesso bigode no velho estilo dos dragões de cavalaria, repetiu o pedido.
- Não. Traga um fine-à-l’eau - disse Ford.
- Um fine-à-l’eau para Monsieur - confirmou o garçom.
Sempre evitava olhar para Ford quando podia fazê-lo e sempre prendia a respiração quando o tinha a meu lado num aposento fechado, mas agora estávamos ao ar livre e as folhas caídas eram levadas pelo vento ao longo da calçada, do meu lado da mesa para além dele, de modo que pude olhar bem para seu rosto, mas arrependi-me imediatamente e virei a cabeça para o lado de lá do boulevard. A luz tinha mudado de novo e eu perdera a mudança. Tomei um gole para ver se a chegada dele teria estragado a bebida, mas ainda tinha bom gosto.
- Você está muito enfezado - disse ele.
- Não estou, não.
- Está, sim. Vocé precisa sair mais. Passei aqui para ver se você quer aparecer nas pequenas reuniões noturnas que estamos dando naquele divertido Bal Musette perto da Place Contrescarpe, na rue Cardinal Lemoine.
- Sei onde é - disse eu. - Morei dois anos num apartamento bem em cima dele, antes desta sua nova temporada em Paris.
- Que coisa estranha! Tem certeza disso?
- Sim - disse - tenho certeza. O dono tinha um táxi e sempre que eu devia pegar um avião era ele quem me levava ao campo. Parávamos no bar de zinco do Bal e bebíamos, no escuro, um copo de vinho branco, antes de partir-mos para o campo de aviação.
- Nunca me interessei por aviões - disse Ford. - Você e sua mulher façam força para vir ao Bal Musette sábado à noite. É muito alegre. Vou lhe desenhar um mapa para que possa encontrá-lo. Descobri-o inteiramente por acaso.
- É no andar térreo do número 74, da rue Cardinal Lemoine - disse eu. - Morei no terceiro andar.
- Não tem número - disse Ford. - Mas você será capaz de encontrá-lo se puder achar a Place Contrescarpe.
Tomei outro longo trago. O garçom trouxe o que Ford lhe pedira, mas ele começou a reclamar: - Não era brandy e soda, disse ele, com ar de condescendência e severidade ao mesmo tempo. Pedi um vermute Chambéry e Cassis.
- Está bem, Jean - disse eu. - Tomarei o fine. Traga para Monsieur o que ele pede agora.
- O que eu já havia pedido ~ corrigiu Ford.
Naquele momento um homem bastante magro, vestindo capa, passou na calçada. Estava com uma mulher alta, olhou casualmente para a nossa mesa e depois para o lado, continuando seu caminho pelo boulevard.
- Você me viu fingir que não o conhecia? – disse Ford. - Você me viu fingir que não o conhecia?
- Não. Quem é que você fingiu não conhecer?
- Belloc - disse Ford. - Eu fingi não vê-lo!
- Não reparei - disse eu. - Por que é que você fingiu não vê-lo?
- Por todas as razões do mundo - disse Ford. Mas fingi mesmo não vê-lo!
Ele estava inteira e completamente feliz. Eu jamais tinha visto Belloc antes, mas duvido que ele tenha dado por nós. Parecia um homem entregue a seus pensamentos e tinha olhado quase automaticamente para nós. Não gostei, porém, de Ford ter sido rude com ele, porque, estando eu no começo de minha carreira, tinha alto respeito por Belloc como escritor mais velho. Está claro que isto não seria compreensível agora, mas, naqueles dias, era coisa muito natural.
Imaginei que teria sido até agradável se Belloc parasse junto da mesa e eu pudesse conhecê-lo de perto. A tarde fora estragada pelo meu encontro com Ford, e Belloc poderia tê-la melhorado.
- Por que razão você está tomando conhaque? - perguntou-me Ford. - Não sabe que começar a beber conhaque é fatal para um jovem escritor?
- Não é sempre que eu bebo - disse eu. Esforçava-me por me lembrar das coisas que Ezra Pound me tinha dito sobre Ford: que nunca devia ser rude com ele; que devia lembrar-me de que só mentia quando estava muito cansado: que era realmente bom escritor; que tinha vivido graves problemas domésticos. Esforcei-me vivamente por pensar nestas coisas, mas a presença penosa, ofegante e ignóbil de Ford, a alguns palmos de mim, tornava isso difícil. Mas esforcei-me o mais que pude.
- Diga-me por que é que uma pessoa finge não ver outra - perguntei. Até então, pensava que tal atitude só acontecesse nos romances de Ouida. Nunca tinha sido capaz de ler qualquer um deles, nem mesmo em certo lugar de esquiagem, na Suíça, quando lera tudo o que havia para ler, soprava o úmido vento sul e restavam apenas volumes das edições Tauchnitz de antes da guerra, esquecidos pelos hóspedes. Mas tinha a certeza, por algum sexto sentido, de que nos romances escritos por ela as pessoas fingiam não se conhecerem.
- Um cavalheiro - explicou Ford, - sempre se desvia de tipos grosseiros.
Tomei rápido um trago de conhaque.
- Desvia-se de um cafajeste? - perguntei.
- Seria impossível para um cavalheiro conhecer um cafajeste.
- Logo, você só poderá desviar-se de alguém que tenha conhecido em termos de igualdade, não é? - insisti.
- Naturalmente.
- Como poderia , então, entrar em contacto com tipos grosseiros?
- Você pode ignorar que o sejam, e só mais tarde reconhecê-los como tal.
- Mas o que são, afinal, esses tipos grosseiros? - perguntei. - Não são pessoas que a gente tem de riscar da nossa vida, como quem separa o joio do trigo?
- Não necessariamente - disse Ford.
- Não acha que Ezra é um cavalheiro? - perguntei.
- Evidentemente não - disse Ford. - É um americano. .
- Um americano não poderá ser cavalheiro?
- Talvez John Quinn - explicou Ford. E alguns dos seus embaixadores.
- Myron T. Herrick?
- Possivelmente.
- Henry James era um cavalheiro?
- Quase.
- E você se considera um cavalheiro?
- Claro que sim. Fui comissionado por Sua Majestade.
- É muito complicado - disse eu. - E eu, por acaso, sou um cavalheiro?
- De modo algum - disse Ford.
- Então, por que você está bebendo comigo?
- Estou bebendo com você porque o considero jovem e talentoso escritor. Aceito-o como colega, e está dito tudo.
- Bondade sua - disse eu.
- Você poderia ser considerado cavalheiro na Itália - disse Ford magnanimemente.
- Quer dizer que não sou um sujeito completamente sem educação.
- De modo algum, meu caro. Quem foi que disse isso?
- Posso vir a ser - acrescentei tristemente. - Bebendo conhaque e tudo o mais. Foi o que liquidou com Lord Harry Hotspur, no livro de Trollope. Diga-me, Trollope era um cavalheiro?
- Claro que não.
- Tem certeza?
- Pode haver duas opiniões a respeito. Mas eu não tenho dúvida.
- E que me diz de Fielding? Ele era juiz.
- Tecnicamente talvez fosse.
- E de Marlowe?
- Claro que não.
- E de John Donne?
- Era um tipo clerical.
- É um estudo fascinante - disse eu.
- Fico satisfeito em vê-lo interessado - disse Ford. Acompanharei você num conhaque com água antes de ir embora.
Quando Ford me deixou, já estava escuro. Dei um pulo até o quiosque e comprei um Paris-Sport Complet a edição final do vespertino de turfe com os resultados de Auteuil e o programa dos páreos do dia seguinte, em Enghien. O garçom Émile, que tinha substituído Jean no serviço, chegou-se à mesa para ver os resultados da última corrida em Auteuil. Um grande amigo meu, que raramente vinha ao Lilas, aproximou-se da mesa, sentou-se, e justamente quando pedia uma bebida a Émile - o homem magro, de capa, com a mulher alta, passou outra vez por nós na calçada. Seu olhar vagou em direção à mesa e depois para fora.
- Aquele é Hilaire Belloc - expliquei a meu amigo. - Ford estava aqui esta tarde e fingiu não vê-lo.
- Não seja besta - disse meu amigo. - Aquele é Aleister Crowley, o satanista. Acredita-se que ele seja o homem mais safado deste mundo.
- Desculpe-me - disse eu.
O Nascimento de uma Nova Escola
Os cadernos de capa azul, os dois lápis, o apontador de lápis (com o canivete desperdiçaria muito) , as mesas com seus tampos de mármore, o perfume das primeiras horas da manhã, apagar aqui, corrigir ali, mais um bocado de sorte - eis tudo o que era necessário. Para ter sorte, levava no bôlso direito uma castanha da India e um pé de coelho. O pé de coelho já perdera o pelo há muito tempo e seus ossos e tendões estavam polidos pelo uso. As unhas arranhavam o forro do bôlso, indicando que a sorte ainda estava ali.
Em certos dias tudo corria tão bem e a natureza era recriada com tal nitidez, em meus cadernos, que eu me sentia atravessando o bosque, chegar à clareira, subir uma colina e de lá ver as montanhas que se erguiam para além do braço do lago. Ás vezes, a ponta do lápis se quebrava no cone do apontador e então me valia da pequena lâmina do canivete para desobstruí-lo ou aparar cuidadosamente o lápis; feito isto, passava um braço pelo couro salgado de suor das correias de minha mochila, para levantá-la de novo, passava o outro braço e sentia o peso bem apoiado nas costas. As agulhas de pinheiro rangiam sob meus mocassins quando começava a descer rumo ao Iago.
Era nesses momentos que um intruso poderia estragar tudo:
- Olá, Hem! Mas que negócio é esse? Agora deu para escrever em cafés?
Lá se ia embora a minha sorte e o melhor era fechar o caderno. Nada pior do que isso. Se conseguisse manter a calma, ainda bem, mas naquele tempo eu não tinha a capacidade de me conter e estourava logo:
- Seu grandessíssimo filho da puta! O que é que lhe deu de vir parar aqui, longe do seu esgoto?
- Ora, não me insulte apenas porque gosta de bancar o excêntrico.
- Feche essa latrina e dê o fora daqui.
- Este é um lugar público. Tenho tanto direito de frequentá-lo quanto você.
- Por que não vai para o Petite Chaumière, que é o seu ambiente?
- Oh, meu caro, não seja chato.
Em circunstâncias como essa ainda se podia dar o fora e esperar que o encontro não tivesse passado de acidente, que o importuno entrara ali por acaso aquela vez e não infestaria mais o local com sua presença. Havia outros cafés onde também seria bom trabalhar, mas ficavam Ionge e este era o café do meu coração. Era o diabo ser expulso do Closerie des Lilas. Mas eu teria que resistir ou mudar-me. O melhor, como já disse, era entregar os pontos; a raiva me dominou, porém, e decidi topar a parada:
- Escute aqui: um calhorda como você tem uma infinidade de lugares onde ir. Por que é que escolheu logo este; vindo emporcalhar um café decente?
- Entrei só para tomar uma bebidinha. Que mal há nisso?
- Se fôsse na nossa terra, quebrariam o copo em que você bebesse.
- Nossa terra? Onde fica? Deve ser um lugar encantador.
O chato ocupava uma mesa próxima da minha. Era um rapaz alto e gordo, que usava óculos. Tinha pedido uma cerveja. Decidi ignorá-lo e tentar escrever de novo. Assim, ig-
norei-o e escrevi duas frases.
- Tudo o que fiz foi dirigir-lhe a palavra.
Não lhe dei atenção e escrevi outra frase. Isso é possível quando se está realmente embalado e concentrado no trabalho.
- Suponho que você ficou tão importante que ninguém pode lhe falar.
Escrevi outra frase, terminando um parágrafo, e reli-a. Pareceu-me que estava bem, e escrevi a primeira frase do seguinte.
- Você nunca pensa nas outras pessoas, nem acha que elas também possam ter problemas?
Tinha ouvido queixas durante toda a minha vida. Achei que podia continuar escrevendo e que a conversa do chato não era pior que outros ruídos; era certamente melhor do que Ezra aprendendo a tocar fagote.
- Suponha que você desejasse ser escritor, sentisse isso em cada parte do corpo e a coisa simplesmente não viesse?
Continuei escrevendo e vi que não apenas a sorte, mas a inspiração também havia regressado.
- Suponha que isso lhe tenha vindo uma vez como torrente irresistível e depois o tenha deixado mudo e silencioso.
Melhor do que mudo e, barulhento, pensei, continuando a escrever. Ele estava agora a todo pano, e as frases incríveis eram tão calmantes como o ruido de uma tábua sendo violada na serraria.
- Fomos à Grécia - ouvi-o dizer mais tarde. Não o tinha escutado por algum tempo, a não ser como ruído. Estava adiantado agora, podia deixar o trabalho para amanhã.
- Nota-se que você gosta da comida grega.
- Não seja vulgar - disse ele. - Não quer que lhe conte o resto?
- Não - disse eu. Fechei o caderno e botei-o no bolso.
- Você não se interessa em saber como aconteceu?
- Não.
- Não se interessa pela vida e pelo sofrimento de seu semelhante?
- Não, quando se trata de você.
- Você é horrível.
- Sou mesmo.
- Pensei que pudesse me ajudar, Hem.
- Ficaria satisfeito se lhe desse um tiro.
- Seria capaz disso?
- Não. Há uma lei que me impede.
- Pois eu faria tudo por você.
- Faria, mesmo?
- Faria, sem dúvida.
- Então dê o fora deste café. Agora mesmo. Comece por aí.
Levantei-me o garçom aproximou-se e paguei a conta.
- Posso acompanhá-lo até a serraria, Hem?
- Não.
- Bem, então o verei noutra ocasião qualquer.
- Desde que não seja aqui.
- Perfeitamente - disse ele. - Prometido.
- O que é que você está escrevendo? - cometi o erro de perguntar.
- Estou escrevendo o melhor que posso. O mesmo que você faz. Mas é tão terrivelmente difícil.
- Não deveria escrever, se não consegue fazê-lo. Por que motivo há de se preocupar por isso? Volte para casa. Arranje um trabalho. Enforque-se. Apenas não fale nisso. Nunca poderá escrever.
- Por que me diz isso?
- Você já se ouviu alguma vez, quando fala?
- Mas é de escrever que estou falando.
- Então cale-se.
- Você é cruel - disse ele. - Todo mundo me dizia que você era cruel, sem coração e presunçoso. Sempre o defendi. Mas agora não o farei mais.
- Ótimo!
- Como pode ser tão cruel para com o seu semelhante?
- Não sei - disse. - Olhe, se você não pode escrever, por que não se dedica à crítica?
- Acha que daria certo?
- Creio que sim - disse~lhe. - Você teria sempre o que escrever. Não precisaria incomodar-se pela tal coisa não vir, nem por ficar mudo e silencioso. As pessoas leriam e respeitariam o que escrevesse.
- Pensa que eu poderia ser um bom crítico?
- Não sei até que ponto seria bom. Mas seria um crítico. Haverá sempre pessoas que o ajudarão e você poderá ajudar a sua gente.
- O que entende por minha gente?
- Essa fauna com que você anda.
- Oh, eles. Eles já têm os seus críticos.
- Você não precisa criticar apenas livros - disse eu.
- Há quadros peças, balé, cinema.
- Você faz a coisa parecer fascinante, Hem. Muito obrigado. É tão estimulante. E é também um trabalho criador.
- Esse negócio de criação é provavelmente exagerado. Afinal de contas, Deus fez o mundo em apenas seis dias e descansou no sétimo.
- Bem, não há nada que me impeça de fazer um trabalho literário de criação.
- Não há coisa nenhuma. A não ser que você se imponha padrões excessivamente altos, devido a seu espírito crítico.
- Serão altos. Pode contar com isso.
- Estou certo de que serão.
Ele já se transformara num crítico e sendo assim, perguntei-lhe se gostaria de tomar uma bebida e ele aceitou.
- Hem - disse ele, e vi que já era mesmo um crítico: esses tipos, numa conversa, botam nosso nome no começo da frase em vez de no fim .- tenho de lhe dizer que acho sua obra um pouquinho seca.
- Que pena! - disse eu.
- Hem, é demasiado despida, demasiado magra.
- Falta de sorte.
- Hem, sêca demais, despida demais, magra demais, demasiadamente dura.
Apalpei o pé de coelho no meu bolso. - Vou me esforçar por engordá~la um pouco.
- Mas veja lá, não desejo que fique obesa.
- Hal - disse eu, praticando falar como um crítico evitarei isso enquanto puder.
- Ainda bem que estamos perfeitamente afinados - disse ele com firmeza.
- Lembrar-se-á de não vir aqui, quando eu estiver trabalhando?
- Naturalmente, Hem. Sem dúvida. Terei agora meu próprio café.
- Você é muito gentil.
- Faço força para sê-lo - disse ele.
Teria sido interessante e instrutivo se o rapaz se tivesse tornado mesmo um crítico famoso, mas não se tornou, embora por algum tempo eu tivesse grandes esperanças disso.
Estava seguro de que ele não voltaria no dia seguinte, mas não quis arriscar e decidi dar um dia de descanso ao Closerie. Assim, na manhã seguinte, acordei cedo, fervi os bicos de borracha e as mamadeiras, fiz a fórmula, acabei o engarrafamento, dei a Mr. Bumby uma mamadeira e trabalhei na mesa da sala de jantar antes que qualquer pessoa, exceto ele, F. Puss, o gato, e eu estivéssemos acordados. Os dois eram uma boa e tranquila companhia e trabalhei melhor do que jamais tinha feito. Naqueles dias realmente não necessitava de nada, nem mesmo do pé de coelho, mas era bom senti-lo no bolso.
Com Pascin no Dôme
Era uma tarde encantadora e eu tinha trabalhado intensamente todo o dia. Saí do apartamento que ficava por cima da serraria, cruzei o pátio onde havia madeira empilhada, fechei a porta, atravessei a rua, entrei pela porta dos fundos da padaria que dava frente para o Boulevard Montparnasse e, envolvido pelo bom cheiro de pão que saía dos fornos, cheguei à rua. As luzes já estavam acesas no interior da padaria e lá fora o dia chegava ao fim; segui pelo Boulevard naquele início de crepúsculo e fui parar em frente do terraço ao ar livre do restaurante Nègre de Toulouse, onde nossos guardanapos de xadrez vermelho e branco eram metidos em argolas de madeira no armário, em sua prateleira própria, esperando que chegássemos para jantar. Li o cardápio mimeografado em tinta violeta e vi que o plat du jour
era cassoulet. Senti apetite só de ler o nome.
Monsieur Lavigne, o proprietário, perguntou~me como tinha corrido meu trabalho e eu lhe respondi que tinha ido muito bem. Explicou que me tinha visto trabalhando no terraço do Closerie des Lilas de manhã cedo, mas que não falara comigo porque eu parecia muito ocupado.
- Tinha o ar de um homem sózinho no meio de uma floresta - disse ele.
- Sou como um porco cego quando trabalho.
- Mas não se sentia numa floresta, Monsieur?
- Creio que num bosque - respondi.
Continuei meu passeio, olhando as vitrinas, feliz com aquele entardecer de primavera e com o movimento da rua. Nos três cafés principais vi pessoas que conhecia de vista e outras que conhecia de falar. Mas à noite, quando as luzes se acendiam, havia sempre pessoas muito mais simpáticas que eu não conhecia, correndo pelas ruas em busca de algum lugar onde pudessem beber e comer juntas para depois fazerem o amor. Os frequentadores dos cafés principais poderiam estar fazendo a mesma coisa ou, então, bebendo, conversando e amando para serem vistos pelos outros. As pessoas de quem eu gostava, mas que não conhecia, iam aos grandes cafés porque se podiam perder neles; ninguém as notava e, assim, podiam estar sós e ao mesmo tempo acompanhadas. Além disso, os grandes cafés eram baratos então tinham boa cerveja e apéritifs a preços razoáveis, claramente marcados nos pires que os acompanhavam.
Nessa noite, vinham-me à cabeça estes pensamentos salutares mas não originais, e eu me sentia extraordinariamente virtuoso porque tinha trabalhado bem e com afinco num dia em que desejara mandar tudo às favas e ir às corridas. Mas, nesse tempo, não me podia permitir o luxo de ir às corridas, mesmo sabendo que podia ganhar algum dinheiro
nelas se realmente me empenhasse nisso. Não estavam ainda na moda os testes de saliva e outros processos para se descobrir quais os cavalos artificialmente estimulados; a dopagem era, por isso, aplicada em larga escala. Mas jogar certo nos animais dopados, depois de verificar os sintomas no paddock e agir de acordo com nossas percepções, que às vezes confinavam com o extra-sensorial, cobrindo-as com dinheiro muito contadinho, não era exatamente o que deveria fazer um homem com mulher e filho para sustentar e uma carreira de escritor a que se desejava dedicar.
De qualquer maneira, éramos ainda muito pobres e eu vivia obrigado a enganar minha mulher, inventando que recebera convites para almoçar fora. Passava duas horas andando pelos jardins do Luxembourg e, depois, voltava para contar-Ihe maravilhas dos tais almoços. A economia era pequena, mas quando se tem vinte e cinco anos e a compleição de um pêso-pesado, a falta de uma refeição sólida nos dá uma fome tremenda. Mas, em contrapartida, nosso sentido de percepção se aguça, e eu descobri que muitos dos meus personagens tinham apetite formidável, uma grande paixão pelas corridas e viviam procurando oportunidade para tomar uma bebida.
No Nègre de Toulouse bebia-se o bom vinho de Cahors em quartos, meias garrafas e garrafas inteiras, geralmente diluindo-o em um terço de água. Em minha casa, por cima da padaria, bebíamos um vinho da Córsega que tinha duas qualidades: era forte e barato. Era um vinho tão genuinamente corso que, mesmo misturado com água em partes iguais, ainda conseguia dar conta do recado. Em Paris, por essa época, ainda era possível viver bem gastando muito pouco: suprimindo-se uma refeição aqui e ali, e jamais comprando roupas novas, era até possível guardar algum dinheirinho para coisas de puro luxo. Cheguei até The Select, de onde me desviei rapidamente ao vislumbrar a figura de Harold Stearns. Se me agarrasse iria começar logo uma conversa sobre cavalos de corrida, e eu no momento queria distância desses bons animais, para manter intacta a minha virtude. Foi com essa mesma virtude que passei incólume pelos frequentadores do Rotonde e, desprezando o vício e o instinto gregário, atravessei o Boulevard, em direção ao Dôme. O Dôme também estava cheio, mas alguns dos frequentadores eram pessoas que tinham trabalhado como eu.
Havia por lá modelos profissionais, pintores que tinham trabalhado até escurecer e escritores que haviam terminado, bem ou mal, suas tarefas cotidianas. É certo que também lá se encontravam bebedores puramente esportivos, bem como uns conhecidos meus e outras pessoas que não passavam de figuras decorativas.
Entrei e sentei-me à mesa de Pascin, que estava acompanhado de dois modelos, que eram irmãs Pascin acenara-me com a mão ao me ver parado na rue Delambre, indeciso entre tomar ou não um drink. Pascin era um pintor excelente e estava bêbedo: deliberadamente bêbedo, mas ainda bastante lúcido. As duas irmãs eram jovens e belas. Uma era muito morena, baixa, bem feita de corpo, com um ar suavemente depravado. A outra tinha um aspecto infantil, meio boboca, embora também bonita, dessa beleza infantil que logo se acaba. Não tinha o corpo tão bem feito quanto sua irmã, mas naquela primavera os corpos bonitos andavam um tanto escassos.
- Boazinha e a chatinha - disse Pascin. – Estou com algum dinheiro. Que é que você vai tomar?
- Uma demi-blonde - disse eu ao garçom.
- Beba um uísque. Já lhe disse que tenho dinheiro.
- Obrigado, prefiro uma cerveja.
- Ora, deixe de besteira. Se você realmente quisesse cerveja não estaria aqui e sim no Lipp. Suponho que esteve trabalhando.
- Estive, sim.
- E como vai indo a coisa?
- Vai indo.
- Otimo! Fico satisfeito com isso. E quanto ao resto, tudo em ordem?
- Tudo em ordem.
- Quantos anos tem você?
- Vinte e cinco.
- Não quer dar uma voltinha com ela? - perguntou Pascin, olhando com um sorriso para a irmã morena. - Ela bem que gostaria disso.
- Não exagere. Você já deve ter cuidado dela por hoje. A morena sorriu para mim, com os lábios entreabertos.
- Ele é um safado - disse ela - mas é bonzinho.
- Você pode levá-la para o estúdio, se quiser.
- Vamos deixar de safadeza - disse a loura.
- Quem é que pediu sua opinião? - perguntou Pascin.
- Ninguém. Mas eu digo o que quero.
- Está bem, está bem - disse Pascin. - Não vamos discutir por isso. Aqui estamos nós, o jovem escritor sério, o velho pintor experiente e duas belas meninas, todos com a vida que Deus lhes deu.
Ficámos por ali; as meninas bebericando, Pascin pedindo outro fine-à-l’eau e eu bebendo uma cerveja. Ninguém parecia à vontade, exceto Pascin. A morena estava impaciente, virava a cabeça para lá e para cá, colocando-se de perfil de modo a que a luz Ihe realçasse a superfície côncava do rosto e eu pudesse ver o contorno dos seios sob a blusa de malha preta. Seus cabelos cortados rente eram lisos e escuros como os de uma oriental.
- Você já pousou o dia inteiro - disse-lhe Pascin. - Precisa exibir o corpo também aqui?
- Faço o que me apetece - respondeu-Ihe a morena.
- Você me lembra um brinquedo javanês - insistiu ele.
- Não quanto aos olhos - disse ela. - Os olhos deles são mais complicados.
- Uma pobre bonequinha pervertida.
- Talvez - disse ela - mas estou viva, muito mais do que você.
- Daqui a pouco vamos tirar a prova disso.
- Ótimo! - disse ela. - Gosto de provas.
- Você não se contenta com as provas que já teve hoje?
- Provas? Hoje? - disse ela colocando-se de perfil a fim de que o último raio de luz da tarde incidisse sobre seu rosto. - Você estava era excitado pelo seu trabalho. - Voltou-se para mim e explicou: - Ele está apaixonado pelas telas. Há qualquer coisa de pervertido nisso.
- Você quer que eu pinte seu retrato, que lhe pague bom dinheiro por isso, que trepe com você para espairecer e que, ainda por cima, me apaixone - disse Pascin. - Pobre bonequinha...
- O Monsieur aqui gosta de mim, não gosta? - perguntou-me ela.
- Muitíssimo.
- Mas é muito alto - continuou ela com ar tristonho.
- Na cama somos todos da mesma altura.
- Isso não é verdade - disse a loura. - E querem saber de uma coisa? Já estou cheia dessa conversa mole.
- Escute - disse Pascin - se você acha que estou apaixonado pelas telas amanhã faço o seu retrato em aquarela.
- Quando é que vamos comer? - perguntou a irmã. - E onde?
- Jantará conosco? - perguntou-me a morena.
- Não. Vou jantar com a minha légitime. Naquela época era assim que se dizia. Hoje a expressão seria "minha regulière".
- Que pena! Tem mesmo que ir?
- Tenho e quero.
- Então vá - disse Pascin. - E não se apaixone pela máquina de escrever.
- Se isso acontecer, escreverei a lápis.
- Pois é, amanhã vai ser na base da aquarela – disse Pascin. Voltou-se para as meninas e prometeu: - Tomarei mais um e depois levarei vocês para jantar onde quiserem.
- Chez Viking! - sugeriu a morena.
- Topo! - disse a loura.
- Muito bem - disse Pascin. - Boa noite, jeune homme. Durma bem.
- Desejo-lhe o mesmo.
- Elas não me deixam descansar - disse ele. – Não durmo nunca.
- Durma hoje.
- Depois de Chez Les Vikings? Fez uma careta, com o chapéu escorregando para trás. Parecia mais um tipo da Broadway no fim do século do que o excelente pintor que era. Tempo depois, quando se enforcou, não me saía dos olhos essa imagem de Pascin, quando estivemos juntos no Dôme. Dizem que as sementes do que seremos um dia nascem conosco, mas sempre me pareceu que aqueles que não levam a vida totalmente a sério têm as sementes cobertas por um solo generoso e bem adubado.
Ezra Pound e o Seu Bel Esprit
Ezra Pound foi sempre um amigo generoso, e vivia procurando ajudar a todo mundo. O estúdio em que morava com Dorothy, sua mulher, na rue Notre-Dame-des-Champs, era tão pobre quanto o de Gertrude Stein era rico. Mas possuía ótima luz, tinha uma boa estufa para aquecê-lo, e nas paredes havia quadros de pintores japonêses, que Ezra apreciava. Creio que esses artistas eram todos nobres, lá em sua terra, e usavam cabelos compridos. Compridos e de um negro brilhante, cabelos que se derramavam para a frente quando os japonêses se curvavam em suas mesuras; confesso que esses orientais me impressionavam muito mais do que suas pinturas. Eu não as entendia bem, mas não tinham qualquer mistério; quando acabei por compreendê-las, verifiquei que não me diziam coisa alguma. Não gostei de chegar a essa conclusão, mas era assim mesmo e não tinha remédio.
Os quadros que Dorothy pintava já me agradavam bastante: além disso, era uma mulher bonita e tinha um corpo perfeito. No estúdio havia ainda uma cabeça de Ezra, modelada por Gaudier-Brzeska, que eu apreciava, assim como gostava das fotografias de outras obras desse escultor, que ilustravam o livro que Ezra escrevera sobre ele. O poeta gostava também da pintura de Picabia, mas eu naquela época a considerava destituída de qualquer valor. O mesmo acontecia com relação aos quadros de Wyndham Lewis, que Ezra amava tanto. Mas a verdade é que ele gostava de tudo o que seus amigos fizessem; a lealdade, porém, sendo um belo sentimento humano, pode levar a julgamentos críticos desastrosos. Ezra e eu jamais discutíamos a respeito dessas coisas porque eu me calava sobre aquilo de que não gostasse. Se um homem gosta da literatura ou da pintura que seus amigos fazem, pensava eu, era como certas pessoas que gostam de suas famílias. Não seria delicado falar mal delas. Ás vezes é preciso um tempo enorme de sofrimento para que se possa analisar criticamente as famílias, tanto a nossa própria como a que formamos pelo casamento, mas o mesmo não se dá quanto aos maus pintores: eles não nos fazem tanto mal, nem criam tragédias íntimas como ocorre com as famílias. Aos maus pintores basta-nos ignorá-los, mas mesmo quando aprendemos a ignorar as famílias, a não ouvir seus reclamos, a não dar resposta às suas cartas, ainda assim dispõem de muitas formas de nos afligir.
Ezra era muito melhor e demonstrava ter mais caridade cristã com as pessoas do que eu. Seus próprios escritos, quando ele acertava a mão, eram tão perfeitos e ele se mostrava tão sincero em seus equívocos, tão enamorado de seus erros, e tão gentil com seus semelhantes, que eu sempre o considerei uma espécie de santo. Por vezes chegava a ser dominado pela cólera, mas qual um santo que jamais a conheceu?
Ezra quis um dia que eu o ensinasse a lutar boxe. Foi quando estávamos treinando em seu estúdio, ao fim de uma tarde, que vi Wyndham Lewis pela primeira vez. Ezra estava
ainda muito verde na arte de boxear e eu me senti envergonhado por ele, a exibir-se assim na presença de um conhecido. Esforcei-me para que se mostrasse tão eficiente quanto possível, mas sem muito resultado. Ezra tinha uma certa prática da esgrima, e eu tentava treiná-lo no sentido de trabalhar com a mão esquerda e de mover o pé esquerdo para a frente, colocando o direito, logo a seguir, numa posição paralela a ele. Eram movimentos básicos, elementares, mas jamais consegui ensiná~lo a desfechar um gancho de esquerda e a encolher a direita.
Wyndham Lewis usava um chapéu preto de abas Iargas, que lhe dava o aspecto de uma figura típica do bairro, e vestia-se como uma personagem de La Bohème. Seu rosto me lembrava uma rã, não uma rã grande, mas uma rã vulgar, e Paris devia ser como que um charco gigantesco para ele. Nessa época de nossas vidas, acreditávamos que tanto os escritores como pintores deviam usar as roupas que tivessem, pois não havia uniforme especial para artistas, mas Lewis usava ainda o figurino dos artistas de antes da guerra. Era embaraçoso vê-lo trajado de maneira tão ridícula, mas ele é que parecia olhar nosso treino com ar irónico, vendo-me esquivar dos golpes de esquerda de Ezra ou bloqueá~los com a luva direita aberta.
Quis interromper o treino, mas Lewis insistiu para que continuássemos e percebi que ele, embora não tivesse a menor idéia do que estávamos fazendo, esperava que Ezra acabasse levando um sôco. Nada disso aconteceu. Sem nunca contra-atacar, eu mantinha Ezra dançando em torno de mim, provocando-me com a esquerda estendida e atirando leves jabs de direita. Quando nos cansámos, por fim, lavámo-nos com um balde d'água, enxugamo-nos vigorosamente com uma toalha e tratei logo de vestir minha camiseta de algodão.
Tomamos uma bebida qualquer e me pus a ouvir a conversa dos dois sobre seus conhecidos de Londres e de Paris. Sem dar impressão disso, eu não tirava os olhos de Lewis, como se faz quando se luta boxe, e acabei por concluir que jamais conhecera um sujeito tão antipático quanto aquele. Algumas pessoas têm a maldade na cara, assim como um cavalo de corridas mostra logo sua classe. Têm a dignidade de um cancro venéreo. Lewis não mostrava maldade: era todo antipatia.
A caminho de casa tentei descobrir o que é que ele realmente me fazia lembrar, e eram várias coisas, todas de caráter médico, exceto uma, que se resume numa palavra de baixo calão. Tentei dissecar sua face e analisá-la minuciosamente, mas somente seus olhos sobressaíam. Quando os vi pela primeira vez, sob as abas largas de seu chapéu preto, eles me pareceram os olhos de um estuprador frustrado.
- Conheci hoje o homem mais antipático que já vi - disse à minha mulher.
- Nesse caso, Tatie, não me conte nada. Não me conte nada porque já vamos jantar.
Uma semana mais tarde encontrei-me com Miss Stein, contei-Ihe que conhecera Wyndham Lewis e perguntei-lhe se já estivera com ele alguma vez.
- Claro que sim, eu o apelidei de verme medidor. Ele chega de Londres, vê um bom quadro numa exposição, puxa logo um lápis do bolso e é engraçadíssimo vê-lo tirar a perspectiva com o polegar deslizando sobre o lápis. Mede pr’a cá, mede pr'a lá, procura descobrir como é que o quadro foi pintado. Depois, volta para Londres, procura reproduzi-lo mas não dá certo. Não dá certo porque ele não entendeu coisa alguma.
E foi assim que eu adotei o apelido que Miss Stein aplicara a Lewis: verme medidor. Era por certo designação mais suave e mais cristã do que a imagem que eu criara dele.
Mais tarde, confesso que fiz força para gostar dele e tratá-lo com a cordialidade que usava com quase todos os amigos de Ezra quando ele os traduzia para mim. Mas a primeira lembrança é que conta e foi exatamente assim que ele me pareceu, quando o vi pela primeira vez no estúdio de Ezra: o homem mais antipático do mundo.
Ezra foi o mais generoso e desinteressado dos escritores que já conheci. Vivia ajudando a poetas, pintores escultores e novelistas em cujo valor acreditasse, mas ajudaria igualmente àqueles cuja obra nada lhe inspirasse, desde que estivessem em dificuldades. Preocupava-se com todas as pessoas e, quando me tornei seu amigo, suas preocupações mais sérias envolviam a pessoa de T. S. Eliot que, segundo Ezra me contou, tinha de trabalhar num banco em Londres e, por isso, pouco tempo lhe restava para realizar sua missão de poeta.
Ezra havia fundado com Miss Natalie Barney, uma americana muito rica e patronesse das artes, algo que se chamava Bel Esprit. Miss Barney fôra amiga de Rémy de Gourmont, um vulto da geração anterior à minha, e mantinha em sua casa um salão literário que se reunia periodicamente. Além disso, tinha um pequeno templo grego no jardim. Muitas senhoras americanas e francesas; com dinheiro sobrando, mantinham salões literários como esse, e eu cheguei logo à conclusão de que eram lugares excelentes para eu me manter afastado deles. Mas o Salon de Miss Barney, ao que eu saiba, era o único a possuir um templo grego no jardim.
Ezra mostrou-me o prospecto que mandara fazer a respeito do Bel Esprit. Na capa, com a devida autorização de Miss Barney, a fotografia do tal templo. A idéia geral do Bel Esprit era a de que todos contribuíssem com uma pequena parcela do que ganhassem para constituir um fundo para o resgate de Mr. Eliot do banco em que trabalhava, a fim de que ele pudesse dedicar-se exclusivamente à poesia, sem preocupações de ordem financeira. A idéia me pareceu boa e quando conseguimos arrancar Eliot do seu banco, Ezra achou que deveríamos continuar nossa cruzada e arrumar a vida de todo o mundo.
Lembro~me de que causei um certo mal-estar na ocasião, referindo-me sempre a Eliot como Major Eliot, fingindo confundi-lo com o Major Douglas, economista cujas idéias Ezra apoiava com o maior entusiasmo. Mas Ezra sempre soube que o meu coração estava no lugar certo e que eu havia absorvido bem a idéia do Bel Esprit, mesmo que lhe desagradasse o fato de eu solicitar contribuições financeiras de meus amigos para retirar o Major Eliot do banco. Ninguém entendia o que é que um major tinha a ver com um banco e, caso estivesse na reserva, porque não lhe davam uma pensão ou, pelo menos, um soldo qualquer.
Quando me perguntavam a respeito, eu recomendava a meus amigos que não se preocupassem. O importante era ter ou não ter o Bel Esprit. Se tivessem, deviam contribuir para tirar o major do banco. Se não tivessem, azar deles. Não entendiam o significado do pequeno templo grego? Era o que eu pensava. "Não faz mal, meu caro, conserve o seu dinheiro, não poderíamos aceitá-lo nessas condições."
Na minha qualidade de membro do Bel Esprit, trabalhei com o maior empenho, e meus sonhos mais felizes desse tempo eram os de ver o major sair do banco como um homem livre. Não me lembro bem como é que a cruzada terminou, mas parece-me que foi depois da publicação de The Waste Land e do prémio Dial que o major recebeu com esse poema. Uma senhora da nobreza britânica decidiu financiar uma revista dirigida por Eliot, The Criterion, de modo que Ezra e eu não precisávamos preocupar-nos mais com ele.
O pequeno templo grego de Miss Barney deve continuar em seu jardim, creio eu. Foi uma pena que não tivéssemos conseguido tirar o major do banco apenas com os esforços do Bel Esprit, pois eu sempre sonhara vé-lo chegar ao templo, para ali viver, e nos imaginava - a Ezra e a mim - colocando em sua cabeça uma coroa de louros. Eu até já sabia onde conseguir os melhores ramos de louro e iria apanhá-los em minha bicicleta para coroá-ló, em companhia de Ezra, sempre que o major se sentisse abandonado ou quando Ezra tivesse terminado a leitura dos originais ou das provas tipográficas de outro poema tão importante quanto The Waste Land. ·
O episódio terminou mal para mim, no terreno moral - como tantos outros episódios, aliás - pois gastei em Enghien, em corridas de cavalos dopados, o dinheiro que pusera de
lado para tirar o major do banco. Em dois páreos os cavalos em que eu apostara ultrapassaram seus competidores não dopados, ou dopados insuficientemente, mas num terceiro o animal em que eu pusera minhas esperanças foi estimulado de tal maneira que, antes do start, derrubou seu jóquei e fez sózinho a pista completa, ultrapassando todos os obstáculos em saltos divinos, como só nos sonhos podemos ver.
Apanhado finalmente e remontado, começou a corrida de acordo com as normas oficiais, mas apenas conseguiu uma presença honrosa - como se costuma dizer nos hipódromos franceses ~ e levou todo o meu dinheiro.
É claro que eu teria preferido destinar o total da aposta ao Bel Esprit, que a essa altura não mais existia. Mas consolei-me com a idéia de que, pelas apostas ganhas nos páreos anteriores, eu poderia ter contribuído muito mais substancialmente para a realização dos projetos do Bel Esprit do que a princípio fora minha intenção.
Um Final Bastante Estranho
O modo pelo qual minhas relações com Gertrude Stein chegaram a seu fim é bastante estranho. Nós nos havíamos tornado grandes amigos, eu vivia prestando-lhe uma série de favores práticos, tais como conseguir com Ford Madox Ford a publicação em fascículos de seu longo livro, ajudar a bater à máquina os originais, rever as provas tipográficas; tudo indicava, portanto, que seríamos cada vez mais amigos, mais do que eu pudesse imaginar. Reconheço, porém, que não há muito futuro nessas amizades entre homens e mulheres famosas, embora possam até ser agradáveis antes de se encaminharem para melhor ou pior; sei agora que há menos futuro ainda quando se trate de escritoras verdadeiramente ambiciosas. Quando um dia lhe expliquei minha ausência temporária da rue de Fleurus, 27, com a desculpa algo esfarrapada de não saber se ela tinha estado em casa ou não, Miss Stein me disse: Mas, Hemingway, você é dono desta casa, não sabe disso? Meu convite foi sincero. Venha aqui quando quiser, e a empregada (ela mencionou seu nome, mas já me esqueci dele) cuidará de você e tudo fará para que se sinta como em sua própria casa até que eu chegue.
Nunca abusei, apesar disso, mas de quando em quando dava um pulo até lá e, se Miss Stein não se encontrasse em casa, a empregada sempre me oferecia um drink e eu ficava examinando os quadros. Se, depois de algum tempo, Miss Stein não voltava, deixava-lhe minhas saudações com a empregada e dava o fora. Lembro-me mais vivamente do dia em que Miss Stein se preparava para uma viagem ao sul, que faria em seu carro, com uma amiga, e me convidou para ir lá na parte da manhã, para que nos despedíssemos. Fôra gentilíssima, quando me convidara, dizendo que Hadley e eu nessa época estávamos morando num hotel – poderíamos ficar hospedados em sua casa enquanto ela estivesse fora.
Hadley e eu, porém, tínhamos outros planos e desejávamos cuidar de nós à nossa maneira. É claro que não dei essa explicação a Miss Stein, mas aceitar aquele convite, por mais amável que fosse, tornaria impossível realizar nossos projetos particulares. Eu sabia mais ou menos como me livrar dessas coisas, e precisava aprender mais. Conversando com Picasso, muito tempo depois, ele me disse que sempre aceitava os convites que os grã-finos lhe faziam, porque isso os tornava muito felizes, mas que sempre arranjava uma boa desculpa para não aparecer. Preciso esclarecer que ele não se referia a Miss Stein quando me contou isso.
Mas, voltando ao que eu contava, era um belo dia de primavera aquele, e caminhei até a casa de Miss Stein, vindo da Place de I'Observatoire através dos jardins do pequeno
Luxembourg. Os castanheiros da Índia estavam floridos, havia muitas crianças brincando nos arruamentos cobertos de saibro, suas babás se espalhavam pelos bancos do parque, vi pombos silvestres nas árvores e ouvi o canto daqueles que a folhagem escondia.
A empregada abriu a porta antes que eu tivesse tocado a campainha, fêz-me entrar e pediu-me que esperasse um pouco, pois Miss Stein desceria em seguida. Ainda não era meio-dia, mas a criada serviu-me um copo de eau-de-vie e deu um sorriso matreiro. O álcool incolor produziu uma sensação agradável em minha língua e eu nem tinha tomado um gole inteiro, ainda quando vi a voz de alguém, que conversava com Miss Stein num tom que eu jamais ouvira usado entre duas pessoas, fosse qual fosse o lugar, fosse qual fosse o tempo.
Ouvi depois a voz da própria Miss Stein, chorosa e implorante, dizendo: - Não, gatinha. Não, por favor, não. Farei o Que você quiser, gatinha, mas não faça isso. Não, por favor... Não, gatinha!
Engoli a bebida de uma só vez, coloquei o copo na mesa e dirigi-me para a porta. A empregada sacudiu o dedo para mim, dizendo-me baixinho: - Não vá embora, ela desce já, já.
- Sinto muito, mas preciso sair imediatamente. Esforcei-me por não ouvir mais uma só palavra daquela conversa, mas o diálogo continuava e o único meio de não tomar conhecimento dele era mesmo dar o fora quanto antes. Se o tom em que falava a desconhecida era desagradável, as respostas de Miss Stein eram ainda mais constrangedoras.
No pátio à saída, recomendei à criada: - Diga a Miss Stein que eu vim até aqui, mas não passei do pátio porque um amigo está muito doente e tenho que cuidar dele. Deixo-lhe o meu bon voyage e lhe escreverei depois.
- C'est entendu, Monsieur. É uma pena que o Sr. não possa esperar.
- É verdade. Uma pena - disse eu.
Foi assim que terminou nossa amizade, dessa forma estúpida, pelo menos no que me diz respeito. É verdade que continuei a desincumbir-me das tarefas práticas a que já me referi, a aparecer de quando em quando, a trazer-lhe as pessoas que ela desejava ver, a esperar que mais cedo ou mais tarde eu fosse despedido, como a maioria de seus amigos
masculinos, para dar lugar às novas amizades que ela iria fazer. Era lastimável ver que ao lado dos grandes mestres da pintura moderna, nas paredes de sua casa, começavam a aparecer novos quadros, medíocres em sua maioria, mas isso já não tinha importância. Pelo menos para mim. Miss Stein vivia discutindo, agora, com quase todos nós, seus velhos amigos, menos com Juan Gris. Bem, com Juan ela não podia discutir mesmo, porque ele já havia morrido. E além do mais, se estivesse vivo, talvez nem se importasse com isso, porque há muito deixara de dar importância às coisas, como sua pintura demonstrava.
Finalmente, ela iniciava discussões até mesmo com as novas amizades, mas já não podíamos acompanhar isso. Miss Stein começou a ficar parecida com um imperador romano, o que não tem nada de mais se a gente não se incomoda com o fato de nossas amigas ficarem parecidas com imperadores romanos. Mas eu me lembrava do tempo em
que Picasso fez o seu retrato, da época em que ela nos lembrava uma robusta camponesa de Friuli.
Mas o coração é fraco, e seus velhos amigos de novo se aproximaram dela. Ninguém gosta de ser metido a besta ou á moralista. Eu também não gosto. Mas já não era a mesma coisa, nem em meu coração, nem em meu espírito. Quando uma antiga amizade não se refaz por completo, é na cabeça que a gente sente mais. Mas de que servem estas palavras? A coisa era muito mais complicada do que isso, e jamais conseguirei explicá-la direito.
O Homem que Estava Marcado para Morrer
Na tarde em que conheci o poeta Ernest Walsh, no estúdio de Ezra, ele estava acompanhado de duas moças que usavam casacos de vison; à frente do pátio de Ezra estacionara um automóvel enorme e brilhante, alugado no Claridge, com chofer uniformizado e tudo. As duas moças eram louras, e tinham feito a travessia do Atlântico no mesmo navio em que Walsh viera. Haviam chegado na véspera, e ele fizera questão de levá-las ao estúdio de Ezra.
Ernest Walsh era moreno, agitado, impecavelmente irlandês, tinha ar poético e estava tão marcado para morrer como certos tipos que a gente vê no cinema. Enquanto ele conversava com Ezra eu batia um papo com as louras, que desejavam saber se eu já lera os poemas de Mr. Walsh. Nunca os tinha lido, e uma delas exibiu logo um exemplar de Poetry - A Magazine of Verse - dirigida por Harriet Monroe, mostrando-me alguns trabalhos dele.
- Sabe que ele recebe mil e duzentos dólares por poema publicado? - perguntou ela.
- Por poema! - frisou a outra.
Ora, ao que me lembrava eu recebia apenas doze dólares, se tanto, por página dessa mesma revista. - Ele deve ser um grande poeta - disse eu.
- Ganha mais do que Eddie Guest - explicou-me a primeira.
- Mais, também, do que aquele outro. . . Como é mesmo o nome dele? - disse a outra.
- Kipling - informou a amiga.
- Vocês pretendem passar uma temporada em Paris? - perguntei-lhes.
- Bem, não sei, creio que não. Estamos com uma turma de amigos.
- Chegámos nesse navio, você sabe - disse a outra - mas não havia ninguém realmente interessante a bordo, a não ser Mr. Walsh.
- Ele não joga cartas? - perguntei.
Recebi um olhar cheio de desapontamento, mas também de tolerância.
- Não. Nem precisa jogar, enquanto puder escrever poemas tão belos como os que faz.
- Em que navio pretendem voltar?
- Bem, depende do navio, e de uma série de outras coisas. Você vai voltar também?
- Não pretendo. Estou me arrumando muito bem por aqui.
- Diga~me uma coisa: este bairro não é um dos mais pobres de Paris?
- É. Mas é muito bom. Faço a ronda dos cafés e depois me divirto nas corridas de cavalo.
- Mas você pode ir às corridas com esses trajes?
- Não. Esta é a roupa de fazer a ronda dos cafés.
- Que engraçado! - disse uma delas. - Eu bem que gostaria de dar uma volta por esses cafés. Você não gostaria também, querida?
- Claro - respondeu a outra.
Anotei o nome delas no meu caderninho e prometi visitá-las lá no Claridge. Eram boas meninas. Despedi-me delas, de Walsh e de Ezra. Walsh continuava sua longa conversa com Ezra, na mesma agitação inicial.
- Não se esqueça, veja lá - disse a mais alta.
- Como poderia eu? - respondi. E apertei novamente as mãos das duas.
A próxima notícia que tive de Walsh foi ainda por intermédio de Ezra: um grupo de senhoras, amantes da poesia e protetoras de jovens poetas marcados para morrer, tivera que safá-lo do Claridge, onde ele estava com as contas atrasadas. Tempos depois ouvi contar que ele conseguira financiamento numa outra fonte, e iria publicar uma nova revista em nosso bairro, da qual seria codiretor.
Por essa época, se não me engano, Dial - a revista literária norte~americana dirigida por Scofield Thayer - concedia um prémio anual de mil dólares, àquele de seus colaboradores que mais se tivesse distinguido no campo das letras. Mil dólares, naqueles tempos, era uma soma formidável para quem vivesse exclusivamente de sua carreira de escritor e, além disso, havia o prestígio decorrente da premiação. Várias pessoas já o tinham ganho, todas elas merecidamente, creio eu. Para se ter uma idéia de como era a coisa, basta dizer que um casal podia viver confortavelmente na Europa com cinco dólares diários e, ainda por cima, fazer de quando em quando umas viagens.
Seguindo o exemplo de Dial, dizia-se, a nova revista de que Walsh seria um dos diretores resolvera dar também um prémio vultoso ao seu colaborado - cujo trabalho fosse considerado o melhor, ao fim dos quatro primeiros números.
Não me recordo como é que esse rumor começou a circular, se por indiscrição de alguém ou se por confidência dos próprios diretores. Esperemos e acreditemos que a coisa tenha sido completamente correta em todos os sentidos, porque jamais foi possivel imputar e muito menos provar qualquer coisa menos digna quanto à colega de Walsh na direção da revista.
Pouco depois do boato me ter chegado aos ouvidos, Walsh me convidou um dia para almoçar com ele num restaurante que era o melhor e o mais caro das vizinhanças do Boulevard St-Michel; logo após as ostras, que, eram também das mais caras - marennes alongadas, de cor ligeiramente acobreada, em lugar das comuns e côncavas portugaises - e de uma garrafa de Pouilly Fuisé, Walsh começou a conduzir a conversa, delicadamente, para o tal prémio. Tive logo a impressão de que me queria levar no bico, como fizera com as duas bobocas que conhecera no navio - admitindo-se que elas fossem de fato bobocas e que ele as tivesse levado na conversa. Perguntou-me se eu queria um pouco mais daquelas ostras alongadas, pois era assim que se referia a elas, e eu disse que sim, pois estavam ótimas. Notei que não se esforçava por me apresentar aquele ar de marcado para morrer, o que já era um alívio. Eu sabia - e ele não ignorava isso - que Walsh estava carunchado no pulmão, e que a coisa não era de brincadeira, era caruncho no duro do tipo que naquela época botava um sujeito na cova. Por isso, também, não fez força para tossir, coisa que muito me agradou porque estávamos na mesa . Perguntei-me se ele comia as tais ostras alongadas pelo mesmo motivo que as prostitutas de Kansas City, quando estavam marcadas para morrer ou para o que desse e viesse, sempre engoliam esperma como o melhor remédio para a tuberculose, mas achei que não seria delicado investigar esse ponto. Ataquei minha segunda duzia de ostras tirando-as uma a uma de seu leito de gelo moído sobre bandeja de prata e notando que seus contornos, de um castanho incrivelmente delicado, se contraíam quando eu espremia limão sobre elas e as destacava de sua casca, para comê-las também delicadamente.
- Ezra é um grande, um genial poeta - disse Walsh, olhando-me com seus olhos escuros de poeta.
- Sem dúvida - concordei. - E, além disso, um ótimo sujeito.
- Um caráter nobre - insistiu Walsh - Verdadeiramente nobre.
Comemos e bebemos em silêncio durante alguns momentos, em homenagem à nobreza de Ezra. Senti que ele não estivesse conosco, pois as marennes também estavam fora de
seu gabarito financeiro.
- Joyce é excelente. - disse Walsh. - Grande escritor, verdadeiramente grande.
- Verdadeiramente! - repeti. - E um bom amigo.
Eu era de fato amigo de Joyce, tendo-me aproximado dele naquela fase magnífica por que passou, depois de terminado o Ulysses*, e antes de iniciar o livro a que durante muito tempo se referiu apenas como Trabalho em Execução. A menção de seu nome me trouxe à lembrança uma série de coisas a seu respeito.
- Gostaria que ele estivesse melhor da vista - continuou Walsh.
- Eu também - disse eu.
- É a tragédia do nosso tempo - afirmou Walsh.
- Não há quem não tenha qualquer coisa fora dos eixos - respondi, querendo animar um pouco o almoço.
- Você não me parece ter coisa alguma. - Jogou sobre mim todo o seu charme, mas fez logo a cara de quem está marcado para morrer.
- Você quer dizer que eu não estou marcado para morrer? - perguntei, não tendo podido conter minha maldade.
- Exatamente! Você está marcado para Viver! - Senti que ele disse Viver com V maiúsculo.
- Tudo chegará a seu tempo - disse eu.
Walsh quis comer depois uma carne mal passada e encomendei dois tournedós com sauce Béarnaise, certo de que a manteiga lhe faria bem.
- Que tal bebermos um bom vinho tinto? – perguntou-me. Fiz sinal ao sommelier e encomendei um Châteauneuf du Pape. Depois do almoço andaria um pouco para neutralizar~lhe o efeito. Walsh poderia dormir ou fazer o que melhor lhe parecesse, pensei eu, porque só cuidarei de mim e de mais ninguém.
As negaças terminaram quando chegávamos ao fim dos tournedós e das batatas fritas, tendo bebido já uns dois terços do Châteauneuf du Pape, que, a propósito, não é um vinho adequado para almoço.
- Não adianta esconder o jogo - disse Walsh. - Você já deve ter percebido que o prémio será seu, não é?
- Meu? - respondi. - Por quê meu?
- Porque sim. - Desandou a falar sobre meus trabalhos, mas desliguei completamente.
* Publicado em português por esta mesma Editora, na excelente tradução de António Houaiss.
Constrangia-me ouvir comentários sobre minha obra literária e olhei para ele, com a sua cara de homem marcado para morrer, pensando: "Lá vem você, seu carunchado, querendo levar-me na conversa com caruncho e tudo. Já vi um batalhão de soldados comendo poeira numa estrada e um terço deles, pelo menos, sabia que a morte estava próxima, mas ninguém fazia essa cara, ao passo que você, que está marcado para morrer, vive cavando a vida à custa da morte. Pensa que vai me levar no bico agora, não é? Não tapeie, para não ser tapeado." Mas a morte não estava brincando com Walsh. Ela o pegaria para valer, mais cedo ou mais tarde.
- Não creio que o mereça, Ernest - disse eu, gostando de usar meu próprio nome, que eu detestava, ao me dirigir a ele. - Além disso, Ernest, não ficaria bem, Ernest.
- É curioso que tenhamos o mesmo nome, não lhe parece? - perguntou-me ele.
- De fato, Ernest. Devemos estar à altura do nosso nome. Você compreende o que quero dizer, não compreende, Ernest?
- Sim, Ernest - disse ele. Deu-me sua infinita e triste compreensão irlandesa e fez de novo o seu charme.
A partir desse dia fui sempre muito amável com ele e a revista, tanto assim que acabei tomando conta de sua produção, já que os tipógrafos não conheciam inglês, quando as hemoptises começaram e Walsh teve que deixar Paris. Fui testemunha de uma das hemoptises e posso assegurar que era legítima, tão legítima e honesta Que a morte dessa vez não falharia. Agradou-me ter sido amável com ele, sobretudo porque aquela era uma das épocas mais dificeis de minha vida, da mesma forma que me agradara tê-lo chamado pelo nome Ernest. Aprendi a gostar de sua colega de direção, na
revista. Ela jamais me prometeu prémio algum; tudo o que queria era lançar uma boa revista e pagar bem aos seus colaboradores.
Um dia, muito tempo depois, encontrei-me com Joyce no Boulevard St. Germain, quando ele regressava de uma matinée teatral. Joyce gostava de ouvir os atores, já que não mais podia vé-los representar. Convidou-me a tomar um drink com ele, e fomos ao Deux Magots beber um xerez seco, embora circule por aí a lenda de que ele somente bebia vinhos brancos suíços.
- Que notícias tem de Walsh? - perguntou-me Joyce.
- Quem vive como ele - respondi - está sempre mais ou menos morto.
- Ele chegou a lhe prometer o tal prémio? - perguntou Joyce.
- Sim.
- É o que eu pensava...
- Também lhe prometeu?
- Também - disse Joyce. Depois de alguns momentos em silêncio, perguntou: - Teria prometido a Pound também?
- Sei lá - respondi.
- É melhor nem lhe perguntar - disse Joyce - Não tocamos mais no assunto. Contei-lhe como conhecera Walsh; no estúdio de Ezra, acompanhado das louras em seus casacos de vison, e ele se divertiu muito com a história.
Evan Shipman no Lilas
A partir do dia em que descobri a biblioteca de aluguel de Sylvia Beach, li todo o Turgueniev, tudo o que havia de Gogol em inglâs, as traduções de Tolstoi feitas por Constance Garnett e as traduções de Tchékhov publicadas na Inglaterra. Em Toronto, muito antes de virmos para Paris, haviam-me dito que Katherine Mansfield era uma boa contista, talvez mesmo uma grande contista; o diabo é tentar lê-la depois de Tchékhov: é como comparar as histórias bem arrumadinhas de um solteirona com os contos de um clínico que fosse também bom escritor e tivesse estilo simples e direto. Antes beber água do que tomar a cerveja choca de Mansfield. Não quero dizer, com isso, que Tchékhov fosse como água, a não ser pela clareza. Se alguns de seus contos têm muito de jornalístico, outros há que são obras-primas.
Na obra de Dostoievsky também há disso: coisas verossímeis e outras nem tanto, mas algumas de suas páginas são de tal maneira realistas que nos modificam à sua simples leitura; fraqueza e loucura, crime e santidade, a insensatez do jogo, tudo está lá, descrito com a minúcia com que Turgueniev retrata paisagens e caminhos e Tolstoi nos apresenta movimentos de tropas, terrenos de operações, soldados, oficiais, batalhas. Perto da obra de Tolstoi, o trabalho de Stephen Crane sobre a Guerra Civil nos Estados Unidos reduz-se a meros esforços de uma brilhante imaginação, páginas de um jovem doentio que jamais vira uma guerra de perto, conhecendo-a apenas da leitura de relatórios e do exame das fotografias de Brady, material esse que eu também tivera ao meu alcance, na casa de meus avós. Até ler A Cartuxa de Parma, de Stendhal, nunca vira a guerra descrita em termos tão convincentes quanto em Tolstoi, mas devo dizer que as páginas fascinantes de Stendhal sobre Waterloo são mero acidente num livro que é tedioso em sua maior parte. Ter descoberto esses novos mundos da literatura, com tempo de sobra para percorrê-los e morando numa cidade como Paris, onde havia possibilidades de trabalhar e viver como eu queria, independentemente de ter ou não dinheiro, era como ter recebido um grande tesouro. E um tesouro que eu poderia levar comigo para onde fosse: nas montanhas da Suíça e da Itália, onde passávamos as férias antes de conhecer Schruns, no planalto austríaco de Vorarlberg, havia sempre livros em torno de nós. Vivíamos encantados nesses mundos novos recém-descobertos: a neve e as florestas, as geleiras e seus problemas de inverno, nosso abrigo durante o dia no Hotel Taube e, à noite, as viagens pelos horizontes maravilhosos que os escritores russos abriam diante de nós. A princípio apenas os russos, depois todos os outros. Mas os russos, por muito tempo, foram os nossos guias.
Lembro-me de que um dia, quando voltávamos de nossa partida de ténis no Boulevard Arago e ele me convidara para tomar um drink em seu estúdio, perguntei a Ezra o que achava de Dostoievsky.
- Para Ihe ser franco, Hem - disse ele - nunca li os rússos.
Era uma resposta honesta, como todas as respostas de Ezra, mas confesso que fiquei desapontado; ele era o amigo em quem eu mais confiava como crítico, o homem que acreditava no mot juste - a palavra, a única palavra adequada e correta -, que me ensinara a desconfiar de adjetivos como eu mais tarde iria desconfiar de certas pessoas em certas situações. Gostaria que ele me tivesse dado sua opinião sobre um escritor que quase nunca usara o mot juste e, no entanto, dera vida a algumas de suas personagens como pouquíssimos de seus colegas o tinham conseguido.
- Mantenha-se em contato com os franceses – disse Ezra. - Você tem muito que aprender com eles.
- Sei disso - concordei. - Tenho muito a aprender com todos os bons escritores.
Saí do estúdio de Ezra e tomei o caminho de casa, percorrendo a rua inclinada ao fim da qual, atrás das árvores, podia vislumbrar a fachada lateral do Bal Bullier ocupando toda a largura do Boulevard St.-Michel; chegando ao pátio, que estava cheio de tábuas serradas de fresco, abri o portão, atravessei-o e deixei minha raqueta em seu cabide ao pé da escada que conduzia ao nosso apartamento. Chamei minha mulher, mas ninguém respondeu.
- Madame saiu com a babá e o garoto - informou-me a mulher do dono da serraria. Era uma mulher muito gorda, um pouco agressiva, de cabelos espetados, e eu lhe agradeci a informação.
- Um jovem esteve aqui à sua procura -, continuou ela, usando a expressão jeune homme em lugar de Monsieur.
- Como o senhor não estava, disse que iria aguardá-lo no Lilas.
- Muito obrigado - disse eu. - Se Madame voltar logo, diga-lhe que dei um pulo até o Lilas.
- Ela saiu com alguns amigos - completou a mulher do serrador, apanhando a saia do peignoir encarnado e marchando resolutamente, com saltos altos, para dentro de seu domaine, cuja porta deixou aberta.
Desci à rua, segui por entre as casas altas e esbranquiçadas cuja pintura apresentava manchas e riscas, virei à direita na esquina banhada de sol, e entrei na penumbra raiada de luz do Lilas.
Não vendo nenhuma cara conhecida, dirigi-me ao terraço e lá estava a figura de Evan Shipman, esperando por mim. Evan era um bom poeta e um homem apaixonado por cavalos, literatura e artes plásticas. Levantou-se ao me ver, alto, pálido, magro, a camisa branca bem encardida e rota no colarinho, o nó de gravata bem dado, o terno cinza todo amassado e bem surrado, os dedos com manchas mais escuras do que seus cabelos, as unhas sujas, o sorriso encantador mas algo irónico, que ele conseguia dar com os lábios cerrados, para não mostrar os maus dentes.
- Que prazer vê-lo de novo, Hem - exclamou ele.
- Como vai você, Evan - perguntei com afeto.
- Um pouco por baixo - disse ele. - Creio que já liquidei o Mazeppa, porém. E você? Como vai?
- Vou bem, felizmente. Estava jogando ténis com Ezra quando você passou pela minha casa.
- Ezra vai bem?
- Muito!
- Estou contente de tê-lo aqui, Hem. Aquela bruxa da serraria parece que não vai com a minha cara. Imagine que não permitiu que eu subisse ao seu apartamento, para esperá-lo lá.
- Vou dar-lhe uma chamada - prometi.
- Não perca tempo com isso. Posso esperar sempre aqui. É muito agradável com um sol destes, não é?
- Não está tão quente assim - respondi. - E não creio que você esteja com a roupa adequada. Afinal de contas, estamos no outono.
- Só faz frio à noite - disse Evan - e aí visto o sobretudo.
- Ah, então já localizou o sobretudo?
- Bem, ainda não. . . Mas deve estar guardado em algum lugar.
- Como é que você sabe disso?
- Porque deixei o poema num dos bolsos. Riu-se animadamente, mas cobrindo sempre os dentes com os lábios.
- Tome um uísque comigo, Hem.
- Boa pedida!
- Jeán! - Evan levantou-se e chamou o garçom. - Dois uísques, por favor trouxe a garrafa, os copos, o sifão e os dois pires de dez francos. Não usou qualquer medida e botou uísque nos copos enchendo-os até três quartos de sua capacidade. Jean adorava o Evan, pois ele às vezes o acompanhava até sua casinha em Montrouge, além da porta d'Orléans, para ajudá-lo a cuidar do jardim nos dias de folga no Lilas. Não precisa exagerar disse Evan ao garçom velho e alto.
- Não pediu dois uísques? Isso é o que entendo por dois uísques.
Botámos um pouco de soda e Evan me disse: - Tome o primeiro gole devagarinho, Hem. Com jeito a gente consegue um efeito prolongado.
- Você tem cuidado da saúde, Evan?
- Direitinho, Hem. Mas vamos falar de outro assunto, bem?
Estávamos só nós dois no terraço, e o uísque começou a aquecer-nos, embora eu estivesse melhor agasalhado e ele para a temperatura do outono, com uma camiseta de algodão, uma camisa e, por cima de tudo, uma suéter bem grossa como a que os marinheiros franceses usam.
- Tenho meditado muito sobre Dostoievsky ultimamente - disse eu. - Como é possível alguém escrever tão mal, incrivelmente mal, e ainda assim comunicar tanta emoção a quem o lê?
- Não creio que seja culpa da tradutora – respondeu Evan. - Constance Garnett nos dá um Tolstoi bem escrito de verdade. Tentei ler Guerra e Paz não sei quantas vezes até Garnett Constance me abrir o caminho.
- Há quem diga que ainda poderia ser melhor – disse - e acredito que sim, embora não conheça russo. Mas nós dois conhecemos muito negócio de traduções, e não há dúvida de que ela a fez direitinho. É um romance fenomenal, talvez o melhor de todos os romances, penso eu. Tão bom que é possivel lê-Io uma vez depois da outra.
- Exatamente - disse eu. - Mas ninguém consegue ler Dostoievsky nesse ritmo. Numa de minhas férias em Schruns li todos os livros que levara e então descobri num canto o Crime e Castigo. Fiz força, mas foi impossível relê-lo. Passei a ler jornais austríacos e a estudar alemão, até que fui salvo por algumas obras de Trollopes, em edição Tauchnitz.
- Que Deus abençoe as edições Tauchnitz – disse Evan.
O uísque já perdera sua qualidade estimulante do início, e agora quando se lhe acrescentava um pouco de soda, estava apenas forte.
- Dostoievsky era um merda, Hem - continuou Evan.
- Os melhores heróis de sua literatura são os santos e uns merdas como ele. Não há dúvida que conseguiu criar uns santos admiráveis. É pena que a gente não consiga reler seus livros.
- Tentarei reler Os Irmãos uma vez mais. Talvez a culpa seja minha.
- É claro que se consegue reler algumas partes. Uma boa parte aliás. Mas logo começa a irritar-nos, apesar de sua qualidade.
- Bem, tivemos sorte de poder lê-lo pelo menos uma vez. Quem sabe se um dia haverá traduções melhores?
- Não se deixe tentar pela idéia, Hem.
- Não se preocupe. A coisa virá no seu momento oportuno, sem que eu me esforce demais. E ler, é reler, e um dia acabarei descobrindo tudo o que ele quis dizer.
- Então persista, meu caro, que eu lhe darei apoio com o uísque de Jean.
- Jean ainda se dará mal, protegendo-nos assim - disse eu.
- Ele já está encrencado, o pobre
- Como assim?
- A direção do Lilas, você sabe, já não é mais aquela.
Os novos donos querem uma freguesia diferente, que gaste mais do que os velhos habitués. Ouvi dizer que pretendem até instalar um Bar Americano. Os garçons serão obrigados a usar jaquetas brancas, Hem, e receberam ordem de raspar os bigodes.
- Mas que loucura! Eles não podem cometer esse crime contra o André e o Jean.
- Não podem, mas vão.
- Jean usou esse bigode toda a sua vida. É um bigode militar. Do regimento dos Dragões de Cavalaria.
- Dragão ou não, vai ter que raspar o bigode.
Bebi o resto do uísque.
- Outro uísque, Monsieur? - perguntou Jean. - Outro uísque, Monsieur Shipman? Seu bigode espêsso e caído fazia parte do rosto magro e gentil, e sua careca brilhava sob os poucos fios de cabelo que a cobriam.
- Não permita essa violência contra você, Jean - disse eu. - Não lhes dê esse gosto.
- Não há remédio, Monsieur - respondeu discretamente. - Há uma confusão geral, muitos estão indo embora. Entendu, Messieurs, disse numa voz alta, para os donos ouvirem. Entrou no café e voltou com a garrafa de uísque, dois copos grandes, dois pires de dez francos, com as bordas douradas, e a garrafa de soda.
- Não faça isso, Jean - disse eu uma vez mais.
Colocou os copos nos pires, encheu-os até quase as bordas, levando de volta a garrafa quase vazia. Evan e eu botamos um jato de soda em cada copo.
- Foi bom que Dostoievsky não tivesse conhecido o Jean - disse Evan. - Poderia ter morrido de tanto beber.
- E nós, o que vamos fazer com estas doses brutais?
- Bebê-las. É uma forma de protesto. Ação direta.
No dia seguinte voltei ao Lilas pela manhã, para trabalhar. André serviu-me um bovril, que é um copo de caldo de carne diluído em água. André era baixo e louro; onde antes se via seu bigode espetado estava o lábio nu, nu como o lábio de um padre. E ele usava a jaqueta branca de barman americano.
- Onde está o Jean?
- Hoje é seu dia de folga. Voltará só amanhã.
- Como é que ele se sente, com a operação?
- Ainda não se acostumou bem. Como o senhor sabe, ele serviu num regimento de cavalaria pesada durante toda a guerra. Foi condecorado com a Croix de Guerre e a Médaille Militaire.
- Nunca soube que ele tivesse sido ferido tão gravemente assim.
- Não foi por isso. Claro que foi ferido, mas as medalhas são para premiar atos de bravura em combate.
- Diga-lhe que perguntei por ele.
- Pois não - disse André. - Espero que ele não leve muito tempo para conformar-se.
- Diga-lhe que Monsieur Shipman também perguntou por ele.
- Não será necessário. Monsieur Shipman está em companhia dele neste momento. Cuidam do jardim, lá em Montrouge.
Um Agente do Mal
A ultima coisa que Ezra me disse, antes de deixar a rue Notre-Dame-des-Champs rumo a Rapallo, foi precisamente isto: - Hem, guarde este pote de ópio e só o entregue a Dunning, quando ele estiver precisando.
Era um grande pote de creme facial, mas verifiquei que seu conteúdo era escuro e pegajoso, tendo o odor forte de ópio em bruto. Ezra o havia adquirido de um pele-vermelha, na Avenue de l'Opéra perto do Boulevard des Italiens, segundo me contou, pagando bom preço por ele. O mais provável, pensei, é que tenha vindo do Hole in the Wall, um velho bar que se tornara notório como ponto de reunião de desertores e traficantes de tóxicos, durante e logo depois da Primeira Grande Guerra. O Hole in the Wall não era mais do que um estreito corredor, com uma fachada vermelha, na rue des Italiens. Durante algum tempo chegou a ter uma saída pelos fundos, que dava para os esgotos de Paris e de onde se chegava, pelo que diziam, às catacumbas. Dunning - Ralph Cheever Dunning - era um poeta que fumava ópio e se esquecia de comer. Quando fumava demais não conseguia engolir coisa alguma, a não ser leite, e escrevia seus ver-sos em terza riruce, o que o tornava encantador aos olhos de Ezra, grande apreciador de sua poesia. Dunning morava no mesmo pátio onde Ezra tinha seu estúdio; eu estivera lá a pedido de Ezra, para ajudá-lo quando Dunning agonizava, semanas atrás.
"Dunning está morrendo", informava o recado de Ezra. "Venha imediatamente."
Dunning parecia um cadáver quando o vi estirado em seu colchão, e certamente teria morrido de subnutrição - se eu não tivesse conseguido convencer a Ezra de que poucas pessoas morrem fazendo frases tão bonitas; de que jamais vira um agonizante falando em terza riruce e duvidava que até mesmo Dante conseguisse fazê-lo. Ezra corrigiu-me logo, esclarecendo que ele não estava falando em terza riruce, ao que eu respondi que se me parecia terza riruce é porque ainda estava meio tonto, tendo sido acordado naquele instante para vir auxiliá-lo. Finalmente, depois de uma noite toda ao lado de Dunning, esperando que a morte viesse buscá-lo, o caso foi confiado a um médico e o poeta transportado para uma clínica particular, a fim de ser desintoxicado. Ezra se responsabilizou pelas despesas e mobilizou não sei quantos amantes de poesia para o salvamento de Dunning. A mim coube apenas a tarefa de guardar o pote de ópio, para as emergências futuras. Era uma incumbéncia sagrada, partindo de Ezra, e esperei estar à altura da missão, principalmente para saber identificar um real estado de emergência. Esse estado chegou mais cedo do que eu esperava, na pessoa da concierge de Ezra, que me foi procurar na serraria, um domingo pela manhã, gritando para a janela aberta, ao pé da qual eu estudava com afinco o programa das corridas de cavalo:
- Monsieur Dunning est monté sur le toit et refuse catégoriquement de descendre.
Dunning ter subido ao teto do estúdio e se recusar categoricamente a descer pareceu-me um estado de emergência perfeitamente caracterizado. Apanhei correndo o pote de ópio e acompanhei a concierge, uma mulher de pequena estatura, que se mostrava nervosíssima com aquela situação.
- Monsieur trouxe o que é necessário? – perguntou-me aflita.
- Claro - disse eu. - Resolveremos o problema num instante.
- Monsieur Pound pensa em tudo - disse ela. - É a bondade personificada.
- É isso mesmo - disse eu. - E sinto falta dele to dos os dias.
- Vamos esperar que Monsieur Dunning não complique as coisas ainda mais.
- Não há perigo. Tenho aqui o remédio que simplificará tudo - garanti.
Quando chegamos ao pátio, a concierge exclamou: - Veja só! Ele já desceu!
- Deve ter pressentido minha chegada - expliquei. Galguei a escada externa, que conduzia ao estúdio de Dunning, e bati à porta. Ele a entreabriu, pálido, parecendo mais alto do que era.
- Ezra pediu-me que lhe trouxesse isto - disse eu, entregando~lhe o pote. - Você já deve saber de que se trata.
Dunning apanhou o pote; examinou-o por instantes, depois o atirou contra mim, em fúria. O pote alcançou-me no peito e rolou escada abaixo.
- Seu filho da puta! - disse ele. - Filho da puta! - repetiu.
- Ezra me disse que você talvez precisasse disso - tentei explicar. Sua resposta foi atirar-me uma garrafa de leite.
- Tem certeza de que não necessita do pote? - insisti.
Atirou-me outra garrafa de leite. Recuei, e ele me atirou ainda uma terceira, que me atingiu nas costas. E fechou a porta.
Apanhei o pote, que estava apenas trincado apesar da queda, e o coloquei no bolso.
- Parece que ele não quer o presente de Monsieur Pound - informei à concierge.
- Quem sabe se já se acalmou? - respondeu ela.
- É... Talvez se tenha arranjado de outra maneira - disse eu .
- Pobre Monsieur Dunning - exclamou.
Os amantes de poesia mobilizados por Ezra acabaram cuidando de Dunning, finalmente. Minha intervenção, secundado pela concierge, fora mal sucedida. Embrulhei o pote em papel parafinado, e o guardei, cuidadosamente amarrado, numa de minhas botas de montaria. Alguns anos mais tarde, quando Evan Shipman me ajudáva a empacotar alguns objetos, pois eu estava mudando de apartamento, encontrei as botas no mesmo lugar - mas o pote desaparecera. Até hoje não sei por que é que Dunning me atirou as garrafas de leite; talvez se recordasse de minha falta de credulidade na noite de sua primeira agonia, talvez, ainda, porque me tivesse detestado à primeira vista. Lembro-me, porém, que a frase “Monsieur Dunning est monté sur le toit et refuse catégoriquement de descendre“ causou grande satisfação a Evan Shipman. Parece-me que descobriu nela um sentido simbólico. Sei lá! É possível que Dunning me tenha tomado por um agente do mal, ou da polícia. O que sei, ao certo, é que Ezra fêz força para ajudar a Dunning de resto, vivia tentando ajudar a todas as pessoas. Sempre desejei que Dunning fosse tão bom poeta quanto Ezra dizia que ele era. Não posso testemunhar sobre isso, mas garanto que, como poeta, tinha pontaria certeira quando atirava garrafas. Por outro lado, Ezra - um poeta excepcional ~ não deixava de ser bom jogador de ténis.
Evan Shipman outro bom poeta embora displicente quanto à publicação de seus versos, achou melhor que essas indagações permanecessem envoltas em mistério.
- Necessitamos de um pouco mais de mistério em nossas vidas, Hem - disse-me ele certa vez. - O escritor completamente desambicioso e o bom poema inédito, eis duas coisas que muita falta nos fazem hoje em dia. Mas o problema da subsistência é de uma realidade desgraçada. . .
Scott Fitzgerald
Seu talento era tão espontâneo como o desenho que o pó faz nas asas de uma borboleta. Houve uma época em que ele tinha tanta consciência disso, quanto a borboleta, não ligando para o fato de que seu talento podia apagar-se ou desaparecer de todo. Mais tarde começou a preocupar-se com as asas feridas e sua estrutura; aprendeu a refletir, mas já não conseguia voar porque o amor ao vôo o abandonara. Restava-Ihe apenas a lembrança dos dias em que voar fôra um ato natural.
Uma coisa muito estranha aconteceu quando travei conhecimento com Scott Fitzgerald. Muitas coisas estranhas aconteciam com Scott, mas jamais me poderia esquecer daquela primeira. Ele entrara no Dingo, um bar na rue Delambre, onde eu bebericava com alguns tipos totalmente inexpressivos, apresentou-se e apresentou-nos a um sujeito alto e simpático que o acompanhava, informando que ele era Dunc Chaplin, o grande craque de beisebol. Eu jamais acompanhara o beisebol de Princeton, mas ele era extraordinariamente simpático, calmo, despreocupado e simples, o que de pronto me levou a gostar mais dele do que de Scott.
Scott era nessa época um homem de aspecto juvenil, com um rosto entre simpático e bonito. Seus cabelos eram claros e ondulados, a testa era alta, erguendo-se acima de olhos matreiros e cordiais e de uma boca de lábios tão delicados e longos como os de um irlandês; se fossem de moça, seriam os lábios da própria beleza. O queixo era bem construído, as orelhas eram perfeitas e o nariz, de linhas finas, era quase elegante. Tudo isso não bastaria para compor um rosto bonito, mas a impressão de beleza era acentuada pelos cabelos muito claros e pela boca delicada. Tão delicada que nos intrigava enquanto não o conhecíamos e, então, nos intrigava ainda mais.
Há muito que desejava conhecer Scott, e tive muita satisfação de o encontrar ali, depois de um duro dia de trabalho, acompanhado logo de quem, do grande Dunc Chaplin de quem jamais ouvira falar - mas que já ficara meu amigo. Scott estava com a língua solta e, como eu ficasse embaraçado pelo que ele dizia - elogios rasgados à minha obra literária - aproveitei para analisá-lo bem em lugar de prestar maior atenção às suas palavras. Nessa época ainda não havia o hábito de lançar elogios assim na cara dos outros, e a coisa se tornava mais e mais desagradável. Scott pedira champanhe, que ele, Dunc e eu bebíamos, com a cooperação, creio, de alguns dos tipos inexpressivos com quem me encontrava quando eles chegaram. Dunc e eu não prestávamos muita atenção ao discurso - era de fato um longo discurso - e eu continuava a analisar Scott com todo o cuidado. Não era gordo, mas seu rosto me deu a impressão de estar um pouco inchado. Vestia-se bem, num terno da casa Brooks Brothers, sua camisa era branca, com as pontas do colarinho abotoadas, e usava uma gravata com as cores características de um regimento de guardas do exército britânico. Desejei falar com ele sobre a gravata, porque havia muitos ingleses em Paris e algum poderia entrar no Dingo - já estavam lá uns dois - mas abandonei a idéia em tempo, porque não tinha nada com isso, e fiquei a estudá-lo um pouco mais. Vim saber, mais tarde, que ele comprara a tal gravata em Roma.
Mas a verdade é que eu não conseguia fazer um retrato claro de Scott apenas com esse exame superficial, embora notasse que suas mãos eram elegantes e decididas, não muito pequenas; quando ele se sentou num dos tamboretes do bar, observei que tinha as pernas bastante curtas. Com pernas de tamanho adequado, ele seria uns oito centímetros mais alto. Acabamos a primeira garrafa de champanhe, abrimos a segunda, e o discurso, felizmente, diminuiu um pouco de intensidade.
Tanto Dunc como eu já nos sentíamos ainda melhor do que antes do champanhe, e era ótimo que a conversa começasse a escorregar mais lentamente. Eu imaginava, até então, que ninguém mais, além de minha mulher e de mim mesmo, soubesse que eu era de fato um grande escritor. Isso era um segredo que guardávamos cuidadosamente entre nós, entre nós e as pessoas de quem ambos gostávamos. Agradava-me que Scott tivesse chegado também a essa feliz conclusão, mas agradava-me ainda mais que ele tivesse perdido o folego. Engano meu! Depois do longo discurso começou o interrogatório, e as perguntas eram mais difíceis de evitar do que o discurso. Vim saber mais tarde, que Scott era um desses romancistas que acreditavam descobrir dados interessantes por meio de perguntas diretas a seus amigos e conhecidos. O interrogatório a que me submeteu foi diretíssimo.
- Ernest... - começou ele. - Você não se incomoda se eu o chamar assim, não é?
- Pergunte ao Dunc - disse eu.
- Ora, deixe de brincadeira. Isto é uma coisa séria. Diga-me uma coisa: você e sua mulher já dormiam juntos antes de se casarem?
- Não sei.
- Como não sabe?
- Não me recordo.
- E incrível! Como é que não se recorda de algo tão importante?
- Sei lá! Não é uma coisa estranha?
- É pior do que estranho - disse Scott. - Faça força para se lembrar.
- Não consigo. E uma coisa danada, não é mesmo?
- Não banque o débil mental. Isto é uma coisa séria, já lhe disse. Faça força para se lembrar.
- Não adianta - disse eu. - Não consigo.
- É uma pena. . . Você bem que podia fazer um esforço.
Que conversa chata, pensei eu. Será que ele faz essa pergunta a todo mundo? Mas achei logo que não, porque ele transpirara um pouco ao me interrogar. Gotinhas de suor tinham aparecido em seu elegante lábio irlandês superior e eu pudera notá-las num relance, quando desviara os olhos de seu rosto para examinar-lhe as pernas curtas, parecendo ainda mais encolhidas com ele sentado no tamborete do bar.
Foi quando voltei a encará-lo que aconteceu a coisa estranha a que me referi no começo.
Sentado ali no tamborete, segurando a taça de champanhe, a pele de seu rosto pareceu esticar-se, de tal modo que todo o inchaço desapareceu. Segundos depois ele parecia a própria máscara da morte. Os olhos afundaram e perderam todo o brilho, os lábios ficaram cerrados, as cores abandonaram sua face, que ficou desse branco opaco das velas de cera. Não, não podia ser imaginação minha. Seu rosto era agora uma verdadeira máscara mortuária, quase uma face cadavérica diante dos meus olhos estupefatos.
- Scott - chamei. - Você está bem?
Não me deu qualquer resposta, e seu rosto ficou ainda mais contraído.
- Creio que devemos levá-lo com urgência a um hospital de pronto-socorro - disse eu a Dunc Chaplin.
- Não é preciso. Ele está bem.
- Bem? Parece agonizante.
- Não é nada. Isso acontece frequentemente.
Colocamos Scott num táxi e eu continuei muito preocupado, mas Dunc insistia em afirmar que não era nada. - É bem provável que já esteja em forma quando chegar a sua casa - disse ele.
Deve ter sido assim, porque dias depois eu me encontrei com ele no Closerie des Lilas, e estava todo lampeiro. Disse-lhe que sentia muito o que acontecera no Dingo, que talvez tivéssemos bebido depressa demais, enquanto conversávamos.
- Sente muito, por quê? Não me aconteceu coisa alguma. Você está maluco, Ernest?
- Você não se lembra de que passou mal, lá no Dingo?
- Mal? Mas do que é que você está falando? O que houve é que eu me chateei com aqueles ingleses que estavam com você e fui para casa.
- Mas que ingleses? Não havia inglês algum comigo. A não ser que você esteja pensando no bartender.
- Já vem você com os seus mistérios. Você bem sabe a que ingleses me refiro...
- Ah... - exclamei. E pensei comigo mesmo: "ele deve ter voltado ao Dingo mais tarde. Ou, quem sabe, num outro dia." Bem, agora me lembrava, havia de fato dois ingleses lá no bar. E eu até os conhecia de vista. Scott tinha razão em parte.
- Sim, agora me lembro deles.
- E havia também aquela moça bancando a aristocrata, que foi tão indelicada comigo. Ela e aquele bêbedo cretino que a acompanhava. Dois amigos seus, segundo me informaram.
- Sim, são de fato amigos meus. E ela costuma ser indelicada de quando em quando.
- Está vendo só? Por que fazer tanto mistério, apenas porque tomou uns copos de vinho a mais. Você precisa abandonar essa mania de fazer mistério. Nunca imaginei que fosse capaz disso.
- Está bem - disse eu, querendo mudar de assunto. Mas algo me veio à cabeça, e continuei: - Eles foram indelicados por causa de sua gravata?
- Não. E por que o seriam? Eu estava com uma gravata perfeitamente comum, preta, de tricot. Combina bem com uma camisa branca, de colarinho redondo.
Não dava pé. Fugi da discussão. Aí ele me perguntou por que é que eu frequentava o Lilas e eu lhe contei algumas histórias dos bons tempos. Scott se interessou, e ficamos por ali batendo um papo, eu gostando do Lilas e ele tentando gostar. Fez-me muitas perguntas, contou-me uma série de casos a respeito de escritores, de editores, de agentes e de críticos literários, de George Horace Lorimer, ao mesmo tempo em que me explicava alguns truques profissionais e me dava lições sobre como deve proceder um escritor de sucesso. Foi cínico e encantador, divertido e simpático, mesmo levando em conta uma certa desconfiança que eu tenho de pessoas assim encantadoras e cínicas. Falou em desprezo, mas sem irritação, sobre tudo o que havia escrito até o momento, e
senti logo que seu novo livro deveria ser muito bom, para que pudesse referir-se com tanta isenção crítica aos trabalhos anteriores. Demonstrou interesse em ter minha opinião sobre esse novo livro – tratava-se de O Grande Gatsby* e prometeu que me emprestaria o último e único exemplar que possuía, tão logo fosse devolvido por uma pessoa a quem o emprestara. Ouvindo-o falar assim tão displicentemente de O Grande Gatsby, ninguém pensaria que se tratasse de um romance tão bom, a não ser que estivesse familiarizado com essa maneira que os escritores de verdade têm, de se
* Publicado no Brasil por esta mesma Editora.
referirem com certa vergonha a seus melhores trabalhos. Assegurei-lhe que leria O Grande Gatsby com o maior interesse, assim que ele me conseguisse o exemplar.
Scott me contou que Maxwell Perkins lhe escrevera para dizer que o livro não estava tendo grande sucesso de venda, a despeito das críticas excelentes. Não me lembro se foi naquele dia, ou muito tempo depois, que ele me mostrou um recorte da crítica de Gilbert Seldes. Não podia ser melhor. Isto é, seria melhor se Gilbert Seldes fôsse também melhor crítico. Scott estava um pouco desapontado com a vendagem fraca de seu livro, mas, como já contei antes, não havia qualquer irritação em suas palavras, e ele até se mostrava entre envergonhado e feliz com a qualidade do romance.
Nesse dia, enquanto nos deixamos ficar ali no terraço do Lilas, à espera da noite, vendo a multidão passeando pelas calçadas e sentindo a gradual transformação da luz cinzenta da tarde, não houve qualquer modificação de natureza química em sua personalidade, mesmo depois dos uísques com soda que tomamos. Eu estava preparado para o que desse e viesse, mas, felizmente, não houve coisa alguma, nem ele me fez perguntas embaraçosas, ou discursos como naquela noite; agiu como uma pessoa normal, inteligente e encantadora.
Contou-me que ele e Zelda, sua mulher, tinham sido obrigados a abandonar o automóvel deles, um Renault pequenino, em Lyon, devido ao mau tempo. Convidou-me a fazer uma viagem de trem até lá, para trazermos o carro de volta a Paris. Os Fitzgerald tinham alugado um apartamento mobiliado na rue de Tilsitt, 14, próximo à Étoile. Estávamos no fim da primavera e pensei logo que seria a melhor época para uma viagem pelo interior da França. Scott bebera dois uísques bem servidos e nada lhe acontecera: era como se aquela noite no Dingo não tivesse passado de um pesadelo. Em face disso, aceitei o convite, perguntando-lhe apenas quando tencionava partir.
Marcamos encontro no dia seguinte e compramos as passagens para Lyon no expresso que partiria na outra manhã, num horário conveniente. Era um trem muito rápido, e faria uma única parada, creio que em Dijon. Nosso plano era chegar a Lyon, mandar fazer um exame completo no carro, abastece-lo e, depois de um jantar excelente, partir de madrugada rumo a Paris.
Eu estava cheio de entusiasmo com essa excursão. Além da viagem em si e dos seus encantos. Eu teria a companhia de um escritor mais velho e muito melhor sucedido do que eu, com tempo bastante, nas estradas da França, para que ele me ensinasse uma série de coisas que eu queria saber. Noto agora como é estranho eu me referir a Scott como um escritor mais velho do que eu, mas naquela época, antes de ter lido O Grande Gatsby, eu o julgava de fato um escritor muito mais velho, em todos os sentidos. Havia lido apenas alguns contos seus, na Saturday Evening Post, que me pareceram passáveis há uns três anos, mas que não me faziam julgá-lo um escritor sério, importante. Ele me contara no Closerie des Lilas que, quando escrevia contos que julgava bons, talvez bons demais para a Post, fazia modificações neles, piorando-os para que se tornassem comerciais e pudessem ser aceitos pela revista. Escandalizei-me quando ouvi isso e lhe disse francamente que me parecia uma forma de prostituição. Não há dúvida que é prostituição, concordara ele, mas é assim que consigo o dinheiro que me permite a tran-
quilidade necessária para escrever bons livros. Insisti, dizendo que não acreditava ser possível a um escritor realizar sua obra a não ser de uma única maneira: a melhor que pudesse. De outra forma estaria malbaratando o seu talento. Scott não aceitou meus argumentos: se escrevia o conto da melhor forma, inicialmente, não haveria prejuízo algum em modificá-lo para pior depois de pronto. Quis convencé-lo a abandonar essa prática, que me parecia abominável, mas somente teria base se lhe pudesse mostrar um romance meu onde tivesse dado o melhor de mim, e áquela altura eu ainda não o havia escrito. Como eu vinha de há algum tempo tentando despojar minha literatura, libertando-a de toda e qualquer concessão, procurando antes construir do que descrever, o trabalho literário me fascinava. Mas era uma tarefa difícil e penosa, e eu não sabia quando é que me sentiria encorajado a tentar uma obra tão longa como um romance. Ás vezes, escrever um só parágrafo tomava-me uma manhã inteira.
Hadley, minha mulher, ficou muito satisfeita com a idéia da viagem, embora também não levasse a sério a literatura de Scott Fitzgerald, pelo que já lera dele. Seu modelo de bom escritor era Henry James. Mas achou que seria ótimo eu abandonar o trabalho intenso e espairecer um pouco, embora o ideal seria que tivéssemos dinheiro sobrando para comprar um carrinho e fazermos a viagem nós dois. Esse ideal, no entanto, era algo com que eu nem podia sonhar naqueles tempos. Os editores Boni and Liveright me tinham pago um adiantamento de duzentos dólares pelo meu primeiro livro de contos, que publicariam dentro de alguns meses nos Estados Unidos, e eu conseguia de quando em quando colocar alguns contos no Frankfurter Zeitung, no Der Querschnitt, de Berlim, e nas revistas This Quarter e The Transatlantic Review, que se publicavam em Paris. Vivíamos na base da maior economia, gastando o mínimo possível, guardando algum dinheirinho para uma viagem que faríamos no verão à
féria de Pamplona, seguindo depois para Madrid e visitando a féria de Valência também.
Na manhã da viagem para Lyon, cheguei à estação com bastante antecedência e fiquei à espera de Scott na porta da plataforma, pois as passagens estavam com ele. O tempo foi correndo e, quase na hora do trem partir, comprei um ingresso e entrei na gare, para ver se ele já não estava em algum vagão. Não o consegui descobrir e, quando a longa composição já se punha em marcha, entrei num dos carros e percorri o trem de ponta a ponta, procurando Scott. Era um trem danado de comprido, e Scott não estava mesmo nele. Expliquei a situação ao chefe-do-trem, comprei uma passagem de segunda classe (não havia terceira) . . . e pedi-lhe que me indicasse um bom hotel em Lyon. Não havia nada mais a fazer; quando parássemos em Dijon eu telegrafaria a Scott indicando-lhe o hotel e pedindo que me fosse procurar lá. Era quase certo que o telegrama chegaria depois dele ter partido, mas sua mulher daria um jeito qualquer de se comunicar com ele. Nunca tinha visto, até então, um barbado perder um trem, mas a verdade é que iria descobrir muita coisa nova nessa viagem.
Meu gênio era bastante explosivo naquela época, mas quando atingimos Montereau eu já estava mais calmo, tão bela era a paisagem vista do trem. Ao meio-dia almocei no carro-restaurante e tomei uma garrafa de St.-Émilion, pensando que bem merecia aquela lição, pois aceitara estupidamente o convite para uma viagem que ia ser paga por outrem e ali estava, gastando o precioso dinheirinho que reservava para minha mulher e eu irmos a Espanha. A verdade é que eu jamais aceitara antes um convite assim, com tudo pago; geralmente rachávamos as despesas, e eu insistira em vão com Scott para que fosse assim também nesta; pelo menos com as contas de hotel e de refeições. Mas a esta altura eu já começava a duvidar de que Fitzgerald aparecesse. Durante meu acesso de mau humor eu o rebaixara de Scott para Fitzgerald. Mas foi ótimo que minha raiva se gastasse logo no começo, porque aquela viagem, como eu iria verificar na prática, não seria adequada a quem tivesse mau humor constante.
Em Lyon consegui saber que Scott deixara Paris rumo àquela cidade, embora não tivesse dado qualquer indicação do local onde poderia ser encontrado. Confirmei o enderêço dado no telegrama, mas a empregada me informou que só poderia comunicar-se com ele se Scott telefonasse para casa. Não, não poderia chamar a Madame porque ela passara mal à noite e ainda estava dormindo. Que remédio! . .
Telefonei para todos os bons hotéis de Lyon e deixei um recado, no caso dele aparecer. Nada de Scott! Saí para dar uma volta e entrei num café, para tomar um aperitivo e ler os jornais. Encontrei lá um sujeito que era engoIidor de fogo profissional e entortava moedas com as gengivas, nas quais não havia um só dente sobrando. Estavam inflamadas, mas pareciam mesmo firmes, a um exame ligeiro, quando ele abriu a boca e as exibiu, dizendo que, afinal de contas, não era um mau métier. Convidei-o a tomar um trago comigo, o que ele aceitou gostosamente. Seu rosto moreno, de feições marcantes, brilhava quando ele engolia fogo. Batendo um papo comigo, disse-me que em Lyon, já não havia muito futuro para um engolidor de fogo e entortador de moedas com as gengivas. A cidade tinha sido invadida por falsos engolidores de fogo, esclareceu, e o negócio estava desacreditado. Se não tomassem providências, acabaria por ser desacreditado em toda a França. Contou-me que engolira fogo a tarde inteira e que não tinha conseguido dinheiro que desse para engolir jantar. Convidei-o a tomar mais um trago, para tirar da boca o gosto de querosene, e disse que ele poderia jantar comigo, se me indicasse um restaurante onde pudéssemos jantar bem e barato.
Comemos de fato muito bem e barato num restaurante argelino para onde me conduziu. A comida era saborosa e o vinho perfeitamente bebível. O engolidor de fogo mostrou-se companhia bastante agradável e eu achei interessante vê-lo mastigar tão bem com as gengivas como a maioria das pessoas consegue com seus dentes. Lá pelas tantas ele me perguntou o que é que eu fazia para viver, e eu lhe disse que estava iniciando minha carreira de escritor. Quis saber que tipo de coisas eu escrevia contos - informei. Ótimo, disse ele: poderia contar-me histórias sensacionais, mais incríveis e horripilantes, do que qualquer outra jamais publicada. E me propôs um trato: ele contaria as histórias, eu Ihes daria forma literária e, se conseguisse algum dinheiro com elas, eu lhe daria a parte que me parecesse justa. Melhor ainda, ele poderia ir comigo à Africa do Norte e me conduziria aos domínios do Sultão Azul, onde colheria histórias que homem algum jamais ouvira.
Perguntei-lhe que histórias seriam essas, e ele me deu uma pequena idéia: batalhas, torturas, estupros, costumes estranhos, práticas indescritíveis, orgias colossais, tudo o que eu quisesse em suma. Mas estava chegando a hora de regressar ao hotel e reiniciar a procura de Scott, de modo que paguei a conta do restaurante e lhe disse que esperava encontrar-me de novo com ele, um dia desses, para combinarmos nossas viagens no norte da Africa. O engolidor de fogo informou~me que estava seguindo para Marselha, para ver se o mercado de engolidores de fogo estava bom por lá. Despedi-me dele, dizendo que tinha sido um prazer jantar em sua companhia e que mais cedo ou mais tarde nos encontraríamos outra vez. Deixei-o no restaurante, desentortando moedas e empilhando-as sobre a mesa, e voltei para o hotel.
Lyon não era propriamente uma cidade de vida noturna alegre. Grande, pesadona, rica, seria talvez boa para quem tivesse dinheiro sólido e soubesse gostar daquele tipo de cidade. Há muitos anos que ouvira falar no célebre frango à moda de Lyon, mas naquela noite comi carneiro no restaurante argelino. Excelente carneiro, posso garantir.
Na portaria do hotel não havia qualquer recado de Scott. Subi para o quarto, estranhando um pouco o contraste daquele luxo todo com a modéstia de meu apartamento em Paris, e comecei a ler o primeiro volume das Histórias de um Caçador, de Turguiêniev, que tomara de aluguel à biblioteca de Sylvia Beach. Há três anos que não experimentava o conforto de um grande hotel: escancarei as janelas, acomodei os travesseiros sob os ombros e a cabeça e deliciei-me em companhia de Turguiêniev, na Rússia, até dormir com o livro no colo. Estava fazendo a barba pela manhã, antes de descer para o café, quando me telefonam da portaria, informando que um senhor estava lá, à minha espera.
- Peça-lhe que suba - disse eu, e continuei a me barbear, escutando os ruídos da cidade, que já despertara de todo áquela hora.
Scott não subiu. Encontrei-me com ele lá embaixo, minutos depois.
- Mil desculpas por esta trapalhada, meu caro, mas se tivesse sabido logo em que hotel você estava hospedado a coisa seria muito mais simples.
- Não há de quê - disse eu. Lembrei-me de que íamos fazer uma longa viagem juntos e me decidi pela paz incondicional. - Mas em que trem veio você, afinal? - perguntei.
- Num que saiu logo depois do seu. Muito confortável.
- Bem podíamos ter vindo juntos.
- Já tomou seu breakfast?
- Ainda não. Rodei a cidade toda à sua procura.
- Sinto muito. Mas não lhe disseram em sua casa onde eu estava? Telefonei para lá.
- Não. Zelda não está passando bem e eu até me arrependo de ter vindo. Esta viagem começou meio azarada, meu caro.
- Bem, então vamos tomar o breakfast, localizar o carro e dar o fora o quanto antes.
- Perfeito! Mas por que não tomamos o breakfast aqui mesmo?
- Num café será mais rápido.
- Mas aqui será bem melhor.
- Está bem. Não vamos discutir por isso.
Foi de fato um excelente breakfast à americana, com ovos e presunto. Mas gastámos quase uma hora do momento em que pedimos até pagar a conta. E foi só quando o garçom trouxe a nota que Scott se lembrou de que seria bom encomendar ao hotel um lanche para a nossa viagem. Tentei dissuadi-lo, pois estava seguro de que poderíamos comprar uma boa garrafa em Mácon e mandar fazer uns sanduíches em qualquer charcuterie. Ainda que não encontrássemos alguma loja aberta, sempre haveria muitos restaurantes ao longo da estrada. Mas Scott fincou pé, dizendo que eu mesmo lhe contara maravilhas sobre o tal frango à moda de Lyon e não ficaria bem partirmos sem levar um conosco. O hotel nos preparou o tal lanche, a um preço que deve ter sido apenas quatro ou cinco vezes maior do que se o tivéssemos arranjado nós mesmos.
A cara de Scott indicava que ele tinha bebido umas e outras antes de se encontrar comigo, e o seu jeito era de quem tomaria mais um gole. Perguntei-lhe, então se não queria dar um pulo até o bar, para uma saideira. Respondeu-me em tom solene que não tinha o hábito de beber pela manhã, e ainda perguntou se eu o fazia. Disse-lhe que dependia de como eu me sentisse, ou do que tivesse de fazer.
- Bem, não precisa ficar constrangido. Se quer tomar um gole agora, vamos lá, que eu lhe farei companhia. É muito chato beber sózinho - disse-me ele com a maior candura. Fomos ao bar e tomamos uísque com água Perrier, enquanto esperávamos que nosso lanche ficasse pronto. Bebemos, e nos sentimos muito melhor.
Paguei a conta do hotel e do bar, embora Scott me dissesse que a despesa era dele. Desde o começo da viagem, aliás, eu me sentia um pouco embaraçado com esse capítulo, e achei que me sentiria melhor se pagasse o máximo possível. Estaria gastando o dinheiro reservado para a Espanha, mas Sylvia Beach me daria crédito e eu mais tarde a reembolsaria do que estivesse jogando fora nessa aventura com Scott.
Chegamos finalmente à garagem onde Scott deixara o carro. Fiquei estupefato ao verificar que o pequeno Renault não tinha capota. Parece que se danificara no desembarque, em Marselha, e Zelda mandara cortá-la de uma vez, recusando-se a colocar outra. Sua mulher detestava capotas de automóvel, informou-me Scott, e de Marselha a Lyon tinham vindo assim, parando ali apenas por causa da chuva. Fora isso, porém o carro estava em ordem e Scott pagou a conta depois de discutir item por item: lubrificação, lavagem, dois litros de óleo. O mecânico me explicou que o carro precisava
mudar os anéis de pistão, pois tudo indicava que ele fora conduzido sem água nem óleo suficientes. Fez questão de abrir o capot e mostrar-me um ponto, no bloco, onde o aquecimento fora tanto que a pintura se queimara. Disse-me que se eu conseguisse convencer Monsieur a trocar os anéis em Paris, o carrinho - que era muito bom - poderia dar seu rendimento ideal. Monsieur não quis que eu colocasse uma capota nova disse-me ele.
- Não quis?
- Não. E um carrinho como esse pede bom tratamento.
- Não tem dúvida - disse eu.
- Os senhores não trouxeram seus impermeáveis?
- Não disse eu. - Ninguém me disse que o carro não tinha capota.
- Faça força para Monsieur levar as coisas a sério implorou. - Pelo menos no que se refere ao carrinho.
- Conte comigo - respondi.
Uma hora depois, ao norte de Lyon, a chuva interrompia nossa viagem. Fomos obrigados a parar umas dez vezes, só naquele dia, por causa da chuva. Eram pancadas rápidas, mas algumas não tão rápidas assim. Se tivéssemos trazido nossos impermeáveis até que seria agradável viajar refrescados pelas chuvas leves da primavera. Como estávamos sem eles, porém, procurávamos abrigo sob as árvores ou corríamos para o primeiro café de beira de estrada que encontrássemos. Comemos nosso lanche, preparado no hotel de Lyon, que estava mesmo sensacional: frango assado, com recheio de trufas, pão delicioso e uma admirável garrafa de Mácon branco.
Scott estava no melhor dos humores, e começamos a tomar o generoso Máconnais cada vez que parávamos. Quando chegamos à cidade que tem o nome do vinho, compramos mais quatro garrafas, para que não nos faltasse combustível na viagem.
Não creio que Scott jamais tivesse bebido vinho do gargalo de uma garrafa, e isso lhe dava um prazer imenso, do tipo que os grã-finos sentem quando vão dançar numa gafieira, ou que uma garota, quando toma seu primeiro banho de mar nua em pêlo. Ao entardecer, porém, Scott começou a preocupar-se com a saúde. Dois amigos seus, contou-me, tinham morrido recentemente de congestão pulmonar. Foi na Itália, e isso o abalara muitíssimo.
Comentei que congestão pulmonar era o nome que antigamente se dava à pneumonia, o que o irritou bastante, pois respondeu que eu não entendia coisa alguma desse assunto.
Congestão pulmonar, esclareceu ele em tom didático, era uma doença típica da Europa, e eu nada poderia saber sobre ela mesmo que tivesse lido todos os livros médicos de meu pai, pois só tratavam de doenças americanas. Expliquei-Ihe que meu pai também estudara na Europa, mas Scott não se deu por achado, informando que a congestão pulmonar surgira na Europa muito recentemente, e que meu pai não podia conhecê-la, portanto. E além disso, continuou, há doenças que ocorrem de modo diverso conforme a região dos Estados Unidos: se meu pai tivesse clinicado em Nova Iorque, por exemplo, não poderia estar familiarizado com as doenças dos Estados centrais, tal era a gama de diferenças entre elas. Juro que Scott usou mesmo a palavra gama.
Como queria dar corda, concordei com ele quanto a esse ponto, dizendo que certas doenças, efetivamente, ocorrem mais em certos pontos dos Estados Unidos do que em outros. E dei como exemplo o caso da lepra, que era marcante em Nova Orleans e, quase inexistente em Chicago. Mas não nos devíamos esquecer, acrescentei, do fato de que os médicos trocavam informações entre si. A propósito, lembrava~me de ter lido um artigo muito esclarecedor sobre congestão pulmonar na Europa, publicado no Journal of the American Medical Association. Um artigo tão preciso e erudito, que traçava a história da congestão pulmonar até os tempos do próprio Hipócrates. O tom sério com que eu falava fez com que ele perdesse a segurança disso me aproveitei logo para recomendar-Ihe outro gole de Mácon, informando que por ser um vinho branco de bom corpo, mas de baixo teor alcoólico, era um santo remédio para a doença.
Esse gole lhe deu vida nova por mais alguns instantes, mas caiu de novo em depressão e me perguntou se chegaría-mos logo a alguma cidade grande, antes que a febre e o delírio (que eu lhe informara serem sintomas infalíveis da verdadeira congestão pulmonar, do tipo europeu) tomassem conta dele. Essa informação, disse-lhe eu, fora colhida num artigo publicado numa revista médica francesa que eu traduzira para o inglês enquanto estivera internado num hospital em Neuilly, à espera de que me cauterizassem a garganta.
Á palavra cauterizassem produziu salutar e confortador efeito em Scott, mas voltou a perguntar-me quando é que chegaríamos a uma cidade grande. Dentro de vinte e cinco minutos a uma hora, se puxarmos bem, respondi. Scott me perguntou, então, se eu tinha medo de morrer e lhe respondi que havia momentos em que tinha mais medo do que em outros.
Começou a chover pesadamente e procuramos refúgio num café, na primeira aldeia que encontramos. Não me recordo bem de todos os pormenores daquela tarde, mas o fato é que chegamos finalmente a um hotel, numa cidade que talvez fosse Châlon-sur-Saône. Mas era tão tarde que todas as farmácias estavam fechadas. Scott tirou a roupa e caiu na cama assim que entramos no hotel. Morrer de congestão pulmonar não era nada, informou-me. O doloroso era perguntar-se quem iria tomar conta de Zelda e da pequena Scotty. Não sei o que me deu, porque já tinha o tempo inteiramente ocupado com a minha própria mulher, Hadley e meu filho Bumby, mas prometi que faria o possível para que eles não ficassem abandonados. Scott me agradeceu muito, recomendando que eu não deixasse Zelda beber muito e que arranjasse uma governanta inglêsa para Scotty.
Mandamos secar nossas roupas e ficamos de pijamas. Lá fora chovia ainda, mas dentro do quarto estava bastante agradável, com as luzes acesas. Scott permanecia na cama, a fim de conservar as forças e resistir melhor em sua batalha contra a doença. Tomei-lhe o pulso, que estava a setenta e duas, e coloquei a mão em sua testa, que estava fresca.
Auscultei-lhe o peito pedi que respirasse profundamente, e tudo me pareceu normal.
- Ouça, Scott: você está em perfeita forma. Se quiser evitar um resfriado, que é o máximo que lhe pode acontecer, fique na cama e eu pedirei para nós um uísque e uma limonada. Beba isso, tome uma aspirina, e amanhã cedo estará pronto para outra.
- Isso é mezinha de comadres - disse Scott.
- Mas você não tem febre alguma. Pelos infernos, como é que alguém pode ter congestão pulmonar sem febre?
- Não precisa praguejar comigo - disse Scott. – E quem é que lhe disse que não estou com febre?
- Seu pulso está normal e sua testa está fresca.
- Ora, deixe disso. Só acredito num termómetro. Se você é mesmo meu amigo, arranje-me um termómetro.
- Não posso sair agora. Estou de pijama.
- Mande buscar numa farmácia.
Toquei a campainha, chamando o camareiro. Nada! Toquei de novo e, afinal, acabei saindo pelo corredor, à procura dele. Scott ficou prostrado na cama, com os olhos cerrados, respirando devagar, com cuidado. Aquele rosto pálido, aquelas belas feições, aquela postura, tudo me trouxe a imagem de um jovem cruzado em seu leito de morte. A coisa toda começava a me aborrecer, porém: se isto era a tal vida literária, para as favas com a vida literária! Preferia ter ficado no meu canto, trabalhando, em lugar de estar sentindo aquele vazio mortal que se sente depois de um dia completamente perdido. Estava cansado de Scott e daquela comédia idiota, mas consegui encontrar o camareiro e lhe dei dinheiro para comprar um termómetro e um tubo de aspirina, encomendando ao mesmo tempo dois uísques duplos e dois citrons pressés. Achei melhor comprar logo uma garrafa de uísque, mas eles somente serviam doses.
Voltei ao quarto. Scott lá estava, deitado como se estivesse em seu túmulo, ou esculpido como um monumento a si próprio, olhos fechados, respirando com dignidade exemplar.
Ouvindo-me entrar, perguntou em voz baixa: - Conseguiu o termómetro?
Dirigi-me até ele, coloquei-lhe de novo a mão na testa. Não estava fria como a de um morto em seu túmulo, mas continuava fresca e seca.
- Ainda não - respondi.
- Pensei que você o tivesse trazido.
- Mandei o camareiro comprar um na farmácia.
- Não é a mesma coisa.
- Claro que não é.
Era tão insensato zangar-me com Scott quanto irritar-me com um louco, mas estava ficando danado da vida comigo mesmo, por me ter envolvido naquela xaropada. Scott, no entanto, tinha um certo quê de razão para estar assim apreensivo: muitos bêbedos morriam de pneumonia naqueles tempos, embora hoje a doença praticamente não exista. Mas, por outro lado, não seria justo considerá-lo um bêbedo, pois uma pequena dose de álcool já o colocava fora de si.
Naquela minha temporada europeia, todo o mundo considerava o álcool tão normal e sadio como qualquer bom alimento, além de grande fonte de alegria e bem-estar. Beber vinho, por exemplo, não era forma de esnobismo ou sinal de sofisticação, nem uma espécie de culto. Era tão normal como comer e, para mim, tão necessário. Jamais me ocorrera fazer uma refeição sem tomar vinho, cidra ou cerveja. E eu gostava de todos os vinhos, exceto dos que eram doces ou encorpados, e não podia imaginar que o simples fato de Scott ter tomado comigo algumas garrafas daquele esplêndido Mácon branco, suave e sêco pudesse produzir nele alterações químicas que o transformassem num imbecil. É verdade que tínhamos tomado aquêle uísque com água Perrier pela manhã, mas minha grande ignorância em matéria alcoólica não me permitia supor, então, que pudesse fazer mal a quem dirigia um carro sem capota, na chuva. O álcool devia ter-se oxidado em pouco tempo.
Enquanto esperava que o camareiro trouxesse o que lhe pedira, fiquei lendo um jornal e acabei com uma das garrafas de Mácon que havíamos aberto em nossa última parada. Há sempre uns crimes esplêndidos nos jornais franceses, crimes que se pode acompanhar por dias, como se fossem foIhetins. O único problema é que se a gente perde o primeiro capítulo fica um pouco no ar, porque os jornais franceses não têm o hábito, como os americanos, de dar sempre um resumo da ópera. Mas, afinal de contas, mesmo nos Estados Unidos, os folhetins perdem todo o sabor para quem não leu o primeiro capítulo. Quem está em viagem peio interior da França, como nós dois estávamos, perde assim a continuidade dos diferentes crimes, affaires ou scandales que constituem a delícia de quem está habituado a segui-los, lendo os jornais com toda calma em seu café preferido Eu bem que gostaria de estar em Paris naquela noite, lendo as edições matutinas, vendo o povo passar e tomando algo mais substancioso do que um Mácon antes do jantar. Mas estava acorrentado a Scott e procurei distrair-me como pudesse.
Quando o camareiro chegou com os dois copos de suco de limão, gêlo, os uísques e a garrafa de água Perrier, foi logo informando que a farmácia estava fechada e ele não conseguira comprar um termómetro. Mas alguém lhe emprestara umas aspirinas. Pedi-lhe que visse se alguém lhe emprestava também um termómetro. Scott abriu os olhos e lançou um funesto olhar irlandês na direção do camareiro.
- Você já lhe disse que o meu caso é grave? - perguntou-me.
- Creio que ele já sabe disso.
- Dê-lhe todos os detalhes.
Procurei fazer isso, e o camareiro disse: Vou ver o que posso arranjar.
- Será que você Ihe deu a gorjeta adequada? - perguntou Scott. - Essa gente só trabalha por isso.
- Eu não sabia disso - respondi. - Pensei que o hotel lhes pagasse um extraordinário pelo trabalho fora de hora.
- O que quero dizer é que eles só se mexem, mesmo, se a gente Ihes der uma boa gorjeta. A maior parte deles não presta para nada.
Lembrei-me de Evan Shipman, lembrei-me também do garçom do Closerie des Lilas, que fora obrigado a raspar o bigode quando instalaram o American Bar lembrei-me de que Evan ia ajudá-lo em seu jardim de Montrouge muito antes de eu ter conhecido Scott, de que todos éramos amigos e felizes frequentadores do Lilas, de que tínhamos uma porção de coisas em comum, tanto boas quanto más. Pensei em contar essa história do Lilas a Scott, embora creia que já Ihe tivesse contado antes, mas vi que seria inútil: ele não se dignava ocupar-se de garçons e seus problemas, nem acreditava que pudessem ter sentimentos e grandes amizades. Scott atravessáva uma fase de ódio aos franceses e, como os únicos franceses com quem mantinha contacto eram garçons, motoristas de táxi, empregados de garagem e proprietários de apartamentos, não perdia oportunidade para desancá-los.
É verdade que detestava os italianos ainda mais do que os franceses, e não podia falar deles em tom calmo mesmo quando estivesse sóbrio. Aos ingleses odiava também, embora ocasionalmente os tolerasse e até mesmo os admirasse. Não sei o que pensava dos alemães e dos austríacos. Talvez não tivesse conhecido algum até então, e nenhum suíço também.
Era surpreendente que Scott estivesse tão calmo essa noite. Misturei a limonada e o uísque, fiz com que ele tomasse duas aspirinas. Engoliu-as sem protestar, bebericando o "remédio" que eu Ihe preparara. Seus olhos estavam abertos, agora, mas o olhar vagava, distante. Eu continuava lendo le crime e sentia um certo contentamento interior. Certo, não. Um grande contentamento, talvez até exagerado.
- Você é um tipo bastante frio, não é? – perguntou Scott. Olhando para ele vi que meu tratamento tinha dado errado: o uísque começava a agir contra nós.
- O que quer dizer com isso, Scott?
- Que você pode ficar aí, lendo esse pasquim francês, enquanto eu agonizo nesta cama.
- Você quer que eu chame um médico?
- Imagine só! Então você acha que me deixaria examinar por um curandeiro do interior?
- Que é que você quer que eu faça, então?
- Que arranje logo um termómetro, para ver se estou com febre e que mande secar imediatamente nossas roupas. Que providencie passagens no primeiro trem expresso para Paris, onde me internarei no Hospital Americano, em Neuilly.
- Não é possível, meu caro. Nossas roupas não estarão secas antes da manhã, e não há trens expressos a esta hora. Porque não descansa um pouco mais e janta na cama?
- Quero um termómetro, e já!
A lenga-lenga continuou por algum tempo, até que o camareiro trouxe afinal o termómetro.
- Foi apenas este o que você conseguiu? - perguntei-lhe. Scott tinha fechado os olhos pouco antes e parecia tão sucumbido quanto Camille. Nunca vi um homem perder as cores tão rapidamente como ele.
- É o único que há em todo o hotel - disse-me o camareiro entregando o termómetro. Era um termómetro de banho, com cabo de madeira e longo o bastante para ser mergulhado em água. Tomei um gole rápido de uísque e abri a janela, para ver se ainda estava chovendo. Quando me voltei, Scott tinha os olhos fixados em mim.
Sacudi o termómetro, com ar profissional, e lhe disse:
- Você tem sorte de não ser um termómetro para uso anoretal.
- E onde o colocarei?
- Debaixo do braço - respondi, e o coloquei debaixo do meu, para mostrar-lhe como se fazia.
- Cuidado - disse Scott. - Assim você vai atrapalhar o exame.
Sacudi novamente o termómetro, com bastante vigor, abri seu paletó de pijama e coloquei o termómetro. Pus de novo a mão em sua testa e tomei-lhe o pulso: setenta e duas outra vez. Os olhos de Scott estavam imobilizados num ponto distante. Mantive o termómetro uns quatro minutos sob seu braço.
- Sempre pensei que bastava um minuto - disse Scott.
- É porque este termómetro é maior - expliquei.- Multiplica-se o tempo pelo quadrado do tamanho do aparelho. E, além do mais, é na escala centígrada.
Retirei o termómetro, finalmente, e o levei para perto da luz.
- Qual é a temperatura?
- Trinta e sete e seis décimos.
- Qual é a normal?
- Essa mesma.
- Tem certeza?
- Absoluta.
- Meça a sua temperatura. Quero ver se é essa também.
Sacudi novamente o termómetro, abri meu pijama e o coloquei debaixo do braço, marcando o tempo no relógio.
- Então? Qual a sua temperatura?
- Exatamente a mesma.
- E como é que você se sente?
- Não podia estar melhor ~ respondi, embora me perguntasse a mim mesmo se trinta e sete e seis décimos era realmente normal ou não. Mas a pergunta era ociosa, pois aquele termómetro, fossem quais fossem as condições, não saía de trinta graus.
Scott ainda se mostrava um pouco desconfiado, de modo que lhe perguntei se queria outro teste.
- Não é necessário - respondeu. - Podemos nos dar por felizes que a coisa tenha acabado tão rápidamente. Sempre tive um grande poder de recuperação, sabe disso?
- É formidável - disse eu. - Mas, de qualquer maneira, creio que será bom você ficar na cama e fazer uma refeição leve, para que possamos partir amanhã bem cedo. Eu tinha a idéia de comprar dois impermeáveis para nós, mas precisaria pedir dinheiro emprestado a Scott e não desejava iniciar outra discussão.
Scott não quis ficar na cama. Insistia em vestir-se, descer e telefonar à sua mulher, para informar que tudo corria bem.
- Mas por que é que ela poderia pensar o contrário? - perguntei.
- Desde que nos casamos, esta é a primeira noite que passo longe dela, por isso preciso telefonar-lhe. Será que você não entende o que isso significa para nós dois?
Entender eu enfendia, embora não conseguisse imaginar como é que eles poderiam ter dormido juntos a noite anterior. Mas as coisas com Scott eram sempre fora do comum, de modo que nem valia a pena perguntar-lhe sobre isso. Scott bebeu o resto do uísque puro com grande rapidez e quis tomar outro. Chamei o camareiro, devolvi-lhe o termómetro e perguntei se nossas roupas já estavam secas. Talvez dentro de uma hora, mais ou menos, informou ele. - Pois bem: mande passá-las mesmo que não estejam completamente sêcas. Assim ficarão prontas mais depressa.
Dai a momentos trouxe-nos os dois drinks contra resfriados; provei o meu e recomendei a Scott que bebesse aos pequenos goles, pois daria mais resultado assim. Preocupava-me agora que ele apanhasse uma constipação pois uma coisa assim seria motivo bastante para que ele se hospitalizasse imediatamente: Mas a bebida lhe deu melhor ânimo por pouco, e ele estava até alegre com o fato de ser essa a primeira noite que passava longe de Zelda, depois de seu casamento. Essa lembrança foi-lhe dando nos nervos, até que não aguentou mais. Pôs um roupão e desceu para pedir uma ligação interurbana com Paris.
A telefonista informou que demoraria um pouco completar a chamada, e Scott voltou para o quarto, seguido logo depois pelo camareiro, com mais dois uísques puros duplos: Notei que ele estava bebendo como nunca o vira beber antes, mas o efeito era excelente: ele se animava, soltava a língua e começou a fazer confidências sobre sua vida com Zelda. Conhecera~a durante a guerra, depois a perdera de vista, depois a conquistara de uma vez, pelo casamento. Contou-me que no ano anterior tinha havido um problema sério entre eles, quando passaram as férias em Saint-Raphael. Zelda teve um caso com um aviador-naval francês, uma coisa muito triste e dramática. Bem, triste e dramática nessa primeira versão. Com o correr do tempo foi-me contando outras versões, embora nenhuma tão triste e convincente quanto a primeira. Todas poderiam ser verdadeiras e, a rigor, eram cada vez melhor contadas, como se ele burilasse um trecho de romance. Mas impacto, mesmo, só a primeira me causou.
Scott era um homem eloquente, e ninguém contava uma história como ele. Não vacilava na escolha das palavras, nem emprestava ênfase desnecessária às frases, sensação que nos ocorreria se lêssemos seus originais antes de revistos. Foram necessários dois anos de convivência para que ele aprendesse a escrever corretamente meu nome, mas reconheço que meu nome é um tanto quanto longo e complicado para escrever corretamente todo o tempo, de modo que passei a admirá-lo ainda mais quando o conseguiu. Mas havia coisas muito mais importantes que ele sabia escrever sem erro e muitas outras coisas sobre as quais tentava pensar de modo objetivo.
Nessa noite, porém, ele quis que eu soubesse, compreendesse e apreciasse bem o que se passara em Saint-Raphael. Sua descriçâo dos incidentes foi tão viva, que eu até podia ver o hidroplano de um só lugar a fazer vôos rasantes sobre o pontão em que Scott e Zelda se achavam, boiando em pleno mar azul lançando-lhes sobre as peles queimadas de sol, a sombra de seus flutuadores, a pele bronzeada de Zelda, a pele bronzeada de Scott, os cabelos louro-escuros da mulher, os cabelos louro-claros do marido, o rosto bem moreno do piloto que estava apaixonado por Zelda. Apesar de todos os pormenores minuciosos, havia uma pergunta que eu gostaria de fazer, mas que não fiz: se tudo aquilo foi verdade, como é que Scott e Zelda podiam ter dormido juntos todas as noites? Mas talvez a resposta a essa pergunta não feita e a dúvida não esclarecida fossem precisamente aquilo que tornava a história contada por Scott mais triste do que qualquer outra que eu tivesse ouvido antes. E era provável que ele nem se lembrasse desse detalhe, como já se esquecera por completo da noite anterior.
Nossas roupas foram devolvidas antes que se completasse a ligação telefónica de Scott, de modo que nos vestimos e descemos para jantar no salão do hotel. Scott estava ligeiramente instável, de tanto que bebêra e olhava provocadoramente para as pessoas, com o canto dos olhos. Comemos uns escargots geniais e tomamos uma garrafa de Fleury, para começar. Estávamos na metade quando se completou a ligação pedida por Scott. Ele demorou quase uma hora, que aproveitei para comer os escargots do seu prato, molhando pedacinhos de pão no molho delicioso de manteiga, alho e salsa..
Quando ele voltou ia pedir mais para ele, mas não quis. Desejava qualquer coisa simples, informou, desde que não fosse bife, fígado, presunto defumado ou omelete. Preferia um bom frango. Já tínhamos comido frango ao longo da viagem, mas, como ainda estávamos numa região da França que era famosa pelas suas galinhas, pedi como ele uma poularde de Bresse e, para acompanhá-la uma garrafa de Montagny, um vinho branco, muito leve, das redondezas. Scott comeu pouquíssimo, e tomou um gole de vinho, mas de um momento para outro, desmaiou, a cabeça entre as mãos. Desta vez não era teatro: desmaiara mesmo, mas parece que com o cuidado de não derramar ou quebrar coisa alguma. O garçom e eu o levamos para o quarto, despimo-lo, colocamo-lo na cama, penduramos suas roupas, cobrimos seu corpo com a colcha. Abri uma janela e, como o tempo estava bom, deixei-a aberta.
Voltei ao restaurante e acabei meu jantar, pensando em Scott. Era óbvio que ele não tinha condições para beber coisa alguma, e eu não cuidara bem dele. Qualquer gota de álcool que engolisse parecia estimulá-lo, inicialmente, mas depois o envenenava. Em face disso, decidi que limitaria ao máximo nossos drinks no dia seguinte, para que ele se controlasse. Arranjaria a desculpa de que estávamos prestes a chegar a Paris e de que eu necessitaria estar em forma para retomar meu trabalho. Isso não era exatamente a verdade: estar em forma, para mim, significava não beber depois do jantar, nem antes de escrever. Enquanto escrevia, então, nem falar! Voltei ao quarto, abri as outras janelas, despi-me e adormeci quase que instantaneamente.
No dia seguinte prosseguimos viagem rumo a Paris, num dia belíssimo, percorrendo a maravilhosa paisagem da Côte d'Or e refrescados pela brisa suave que varria as colinas e as vinhas recém-plantadas. Scott estava perfeito, saudável, e se deu ao cuidado de me contar o enrêdo de cada um dos livros de Michael Arlen. Michael Arlen, recomendou-me, era um escritor a ser estudado com atenção, pois tanto ele como eu poderíamos aprender muito com a sua obra. Respondi que não tinha tempo para ler esses livros, mas Scott me disse que não seria necessário: daria um resumo de cada um e analisaria suas personagens principais. E passou a fazer uma verdadeira defesa de tese sobre a literatura de Michael Arlen.
Aproveitando uma pausa, perguntei se tinha sido perfeita a ligação de ontem à noite, com Zelda. Disse que sim, e que bateram um longo papo, pois tinham muito o que dizer um ao outro. Nas refeições daquele dia fiz questão de tomar o vinho mais leve que encontrasse, pedindo a Scott, ao mesmo tempo, que me controlasse a bebida, pois eu queria chegar a Paris em forma. Em nenhuma hipótese, deveria beber mais do que meia garrafa. Scott cooperou admiravelmente e, quando me viu olhando com tristeza para o fim de uma garrafa foi generoso ao ponto de me dar um pouco da parte que lhe cabia.
Deixei-o finalmente à porta de sua casa, tomei um táxi rumo à serraria, foi maravilhoso encontrar minha mulher e sair correndo com ela, para tomarmos uma bebidinha qualquer no Closerie des Lilas. Estávamos felizes como crianças que se reencontram depois de estarem separadas durante algum tempo, e eu lhe contei algumas particularidades de nossa viagem.
- Então quer dizer que não foi muito divertida, nem lhe foi útil para coisa alguma, Tatie?
- Até que foi útil meu bem. Aprenderia um bocado a respeito de Michael Arlen se tivesse prestado atenção à conferência de Scott, mas também fiquei sabendo uma série de outras coisas, que ainda preciso classificar.
- Você não acha que Scott é um homem infeliz?
- Talvez...
- Coitado!
- Ah, uma coisa eu aprendi bem.
- O quê?
- Que nunca se deve viajar com uma pessoa a quem não se ame.
- E não é bom ter descoberto isso, Tatie?
- Claro que é. E iremos à Espanha, nós dois.
- Ótimo. Faltam apenas seis semanas para partirmos.
E ninguém nos atrapalhará este ano, não é?
- Ninguém. Depois de Pamplona iremos para Madrid e, de lá, para Valência.
- Um-um-um - ronronou ela.
- Pobre Scott - disse eu.
- Pobre todo mundo - disse Hadley. - Pobres tipos cheios de si e de vento.
- Nós é que somos felizes, meu bem.
- Vamos fazer força para continuar assim.
Batemos em madeira, na mesa do café, e o garçom veio ver o que é que nós queríamos. Mas o que realmente queríamos, nem ele, nem ninguém, nem bater em madeira ou em mármore (o tampo da mesa, em verdade, era de mármore) poderia trazer-nos. Não sabíamos exatamente o que era, naquela noite, mas estávamos felizes, muito felizes.
Um dia ou dois depois de nossa volta, Scott trouxe-me seu livro. Tinha uma capa extravagante, que me embaraçou pela sua violência, pelo mau gosto e a vulgaridade. Seria a capa adequada a um mau livro de ficção-científica. Scott pediu-me que não me deixasse assustar por ela; o desenho reproduzia um cartaz que vira numa estrada, a caminho de Long Island, e era importante dentro do contexto do romance. Confessou-me, porém, que se no início gostara dela, agora não a suportava. A primeira coisa que fiz, antes de ler o livro, foi retirar-Ihe a capa.
Quando terminei a leitura, compreendi logo que as extravagâncias e impertinências de Scott eram como que uma doença, e que eu deveria fazer o possível para ajudá-lo e procurar ser seu amigo. Scott tinha mais e melhores amigos do que qualquer outra pessoa que eu conhecia, mas ainda assim decidi incorporar-me a essa tropa, pudesse ou não ser de alguma utilidade para ele. Quem escreveu um livro tão bom como O Grande Gatsby seria capaz de escrever outros, melhores até. Como eu não conhecera Zelda ainda, não podia imaginar com que dificuldades terríveis teria de lutar. Mas em breve teríamos contacto com elas.
Os Falcões Não Partilham sua Prêsa
Scott Fitzgerald convidou-nos para almoçar com sua mulher, Zelda, e sua filhinha no apartamento mobiliado que alugara no prédio número quatorze da rue Tilsitt. Não me recordo bem dos detalhes desse apartamento, mas sei que era sombrio e abafado, nada havendo nele que tivesse qualquer afinidade com seus inquilinos, a não ser os primeiros livros de Scott, encadernados em couro azul-claro, com os títulos em dourado. Scott mostrou-nos também uma grande agenda onde anotara ao longo do tempo todos os contos que havia publicado, indicando o pagamento que recebera em cada caso, assim como os direitos autorais dos livros e dos roteiros cinematográficos que escrevera. Os registros eram precisos como anotações num livro de bordo e Scott os exibia com o orgulho impessoal de um conservador de museu. Scott estava nervoso, embora amável, apresentando-nos aquela contabilidade toda como quem mostra o panorama visto da casa. Só que não havia panorama algum.
Zelda estava com uma ressaca terrível. Na noite anterior tinham ficado até tarde em Montmartre, e discutido muito porque Scott não quis embriagar-se. Decidira trabalhar com afinco - explicou-me - e Zelda reagira como se ele fosse um chato, um desmancha-prazeres. Eram, estes os qualificativos com que ela costumava tratá-lo. Scott ficara magoado, mas Zelda não admitia tê-los dito:
- Não disse semelhante coisa. Não disse nada disso. Não é verdade, Scott. - Mas seus olhos brilhavam de quando em quando, como se se lembrasse de algo, e punha-se a rir alegremente.
Todas as pessoas têm seus dias melhores, mas aquele não era o melhor dia para Zelda. Seus belos cabelos, de um louro escuro, tinham sido prejudicados por uma permanente mal feita, em Lyon, quando a chuva os obrigara a abandonar o carro. Tinha os olhos fatigados e o rosto tenso e franzido. Zelda mostrou-se cerimoniosamente amável com Hadley e comigo, embora sentíssemos logo que seu pensamento estava muito distante de nós, talvez, permanecendo ainda na noitada da véspera. Tanto ela quanto Scott pareciam supor que eu me divertira imensamente na viagem que fizera com ele de Lyon a Paris e Zelda não escondia sua inveja.
- Você pode sair por aí com o Hemingway, numa farra danada e não acha justo que eu me divirta um pouquinho, aqui em Paris, com nossos amigos? - perguntou ela a Scott.
Scott fazia tudo para ser um anfitrião perfeito, mas o almoço estava tão medíocre que somente o vinho conseguiu melhorá-lo um pouco. A filhinha deles era loura, bochechuda, tinha aspecto sadio e falava inglês com um forte sotaque londrino. Scott explicou-me que contratara uma babá inglesa porque desejava que a filha falasse como uma lady quando crescesse.
Zelda tinha olhos de falcão, lábios finos, maneiras e sotaque característicos do sul dos Estádos Unidos. Observando-a, podíamos notar quando seu pensamento se afastava da mesa e se dirigia para a noitada da véspera, o que lhe trazia aos lábios, um rápido e quase imperceptível sorriso, embora os olhos continuassem impassíveis como os de um gato. Scott procurava animar o almoço com sua conversa jovial, e Zelda sorria com os olhos e os lábios quando o via beber outro copo de vinho. Com o tempo aprendi a conhecer o sentido daquele sorriso: ela sabia que, abusando do álcool, Scott não iria es-crever coisa alguma.
Zelda tinha ciúmes do trabalho de Scott e à medida que os conhecíamos melhor as crises se desenvolviam numa sequência regular: Scott decidia deixar de lado as noitadas em que se embriagava, a fim de começar um programa de vida sadia e produtiva. Começava de fato a dedicar-se ao trabalho, mas Zelda imediatamente se declarava infeliz e paulificada, lastimando~se tanto que acabava por arrastá-lo a mais uma noite de dissipação. No dia seguinte brigariam como cão e gato; fariam as pazes depois; Scott (tendo eliminado o álcool em longas caminhadas comigo) novamente se dispunha a trabalhar de verdade. Daí a dias tudo ia por água abaixo e o ciclo recomeçava, exatamente igual ao anterior.
Scott estava apaixonado por sua mulher e tinha grande ciúme dela. Durante nossas caminhadas, falou-me muitas vezes do tal romance que ela tivera com o piloto naval francês mas, depois desse caso, parece que ela jamais tivera outro. Naquela primavera, porém, o problema existia em relação a outras mulheres. Nas noitadas em Montmartre Scott receava ficar inconsciente e tinha horror de que isso acontecesse com ela também. No entanto, tornarem-se inconscientes pela bebida sempre fora o mecanismo de defesa que ambos usavam. Embora a quantidade de uísque ou de champanhe que ingeriam fosse inócua para qualquer pessoa acostumada a beber, era o bastante para derrubá-los e eles dormirem como crianças. Muitas vezes eu os vi inconscientes, parecendo antes anestesiados do que bêbedos, e seus amigos - ou por vezes um motorista de táxi - tinha que botá-los na cama.
Quando despertavam, no dia seguinte, sentiam-se felizes e descansados, pois a dose de álcool que os derrubava não era suficientemente grande para afetar seus organismos.
Mas, àquela altura, essa defesa natural já não funcionava mais. Zelda estava bebendo muito mais agora do que Scott, e ele temia que ela ficasse inconsciente depois dele, na companhia das pessoas com quem andavam e nos lugares aonde iam. Scott detestava tanto as pessoas quanto os lugares e, ainda mais, o fato de ter que engolir quantidade crescente de álcool para suportar a uns e a outros, tendo que manter-se firme. Mas foi bebendo sempre mais e mais, já agora para ficar acordado depois de doses que habitualmente o teriam derrubado há muito tempo. Finalmente, eram cada vez mais raros os momentos que podia dedicar ao trabalho.
E Scott queria trabalhar. Tentava todos os dias, e todos os dias falhava. Atribuía a culpa a Paris, o que é uma injustiça, pois não há cidade que ofereça melhores condições a um escritor, e vivia sonhando com um lugar qualquer onde ele e Zelda pudessem outra vez levar uma vida normal. Pensou na Riviera - que ainda não tinha sido totalmente invadida, como hoje - com seu mar azul, as belas praias de areia, os bosques de pinheiros, as montanhas do litoral avançando mar a dentro. Lembrava-se da Riviera tal como a conhecera em companhia de Zelda, bem antes dos veranistas a terem conquistado.
Scott disse maravilhas da Riviera. Insistiu para que minha mulher e eu fossemos passar o verão lá: ele nos arranjaria acomodações boas e baratas, nós dois trabalharíamos bastante todos os dias, nadaríamos, bronzearíamos nossas peles, tomaríamos um, apenas um aperitivo antes do almoço e outro antes do jantar. Zelda se sentiria muito feliz lá na Riviera, garantiu-me ele. Ela gostava de nadar, mergulhava muito bem, adorava esse tipo de vida e o estimularia a trabalhar, a botar as coisas nos eixos. Estava decidido: ele, Zelda e a filhinha passariam lá o verão seguinte.
Eu insistia muito para que ele escrevesse seus contos tão bem como podia e sabia fazê-lo, pedindo-lhe que não os fabricasse de acordo com uma fórmula, como me confessara um dia .
- Você já escreveu um bom romance. - Não pode mais escrever essas drogas.
- Mas o romance não está tendo sucesso - argumentou ele. - Preciso escrever contos, e devem ser contos que eu possa vender.
- Então escreva bons contos, escreva-os tão honestamente como puder.
- Farei isso - prometeu ele.
Mas, no pé em que as coisas estavam já era um milagre ele poder terminar qualquer trabalho. Zelda dizia não encorajar os homens que andavam atrás dela, assegurando que
não os levava a sério. Divertia-se com eles, porém, e provocava ciúmes em Scott, obrigando-o a seguir com ela para todas as reuniões. Seu trabalho levava a pior, e nada provocava mais ciúme em Zelda do que o trabalho de Scott.
Durante o fim daquela primavera e o princípio do verão, Scott lutou para prosseguir seu trabalho, mas só conseguia fazê-lo de quando em quando. Nos nossos encontros, procurava mostrar-se alegre e otimista, desesperadamente otimista contava boas anedotas e era um excelente companheiro. Quando os problemas que o afligiam eram muito sérios, e ele não podia esconder sua preocupação, eu procurava aconselhá-lo, dizendo-lhe que se fizesse força para controlar-se acabaria escrevendo tão bem como poderia fazê-lo e assegurando que só a morte é irremediável. Scott caía em si, recuperava seu sense of humour e eu concluía que enquanto ele fosse capaz disso estaria salvo. Nesse período de crise conseguiu escrever um bom conto, The Rich Boy e eu tinha certeza de que poderia escrever coisas ainda melhores, como realmente veio a fazer mais tarde.
Com a chegada do verão, fui com Hadley para a Espanha, onde comecei o primeiro esboço de um romance que acabei em setembro, ao regressar a Paris. Scott e Zelda tinham passado as férias em Cap d'Antibes e, quando voltei a encontrar-me com ele, no outono, achei-o bastante mudado. Não havia conseguido libertar-se do álcool na Riviera, como pretendia, e estava bebendo mais do que nunca, tanto de dia como de noite. O respeito pelo trabalho - seu ou dos outros - desaparecera, e ele costumava chegar de um momento para outro ao meu apartamento no número cento e treze da rue Notre-Dame-des-Champs, sempre que estivesse bêbedo. Seu bom humor também desaparecera, e ele se mostrava bastante grosseiro para com os inferiores ou qualquer pessoa que ele considerasse como tal.
Numa dessas visitas inesperadas, entrou pelo portão da serraria acompanhado de sua filhinha - era o dia de folga da babá inglesa - e, antes de subir a escada, a menina lhe disse que queria ir ao banheiro. Scott começou a tirar as calcinhas ali mesmo e, nesse instante o senhorio, que morava no andar logo abaixo do nosso, apareceu e disse-Ihe:
- Monsieur, há um cabinet de toilette bem à sua frente à esquerda da escada.
- Sei disso, mas se você der mais um pio lhe meto a cabeça lá dentro - respondeu Scott.
Ele estava verdadeiramente impossivel naquele outono, mas conseguira iniciar um romance nos raros momentos de sobriedade. Tão raros, que eu mal o via neste estado; quando sóbrio, porém, ele ainda se mostrava o velho Scott gentil e alegre, capaz de contar piadas a respeito dos outros e de si próprio. Bastava beber, no entanto, para que me viesse procurar, dando-me a impressão de que tinha tanto prazer em perturbar meu trabalho quanto Zelda em perturbar o dele próprio. Esse estado de coisas se arrastou por vários anos, mas nesse período poucos amigos meus foram tão leais quanto Scott -isto é, quanto Scott nos seus momentos de lucidez.
Uma de suas irritações naquele outono de 1925 era causada pela minha recusa de lhe mostrar os originais incompletos de The Sun Also Rises.* Expliquei~lhe que o manuscrito não significava nada enquanto eu não o revisse completamente; antes disso não desejava discuti-lo nem mostrá-lo a quem quer que fosse. Assim que as primeiras neves caíssem eu iria com minha mulher para Schruns, na região austríaca do Vorarlberg, para terminar o trabalho.
E foi lá, de fato, que reescrevi a primeira metade do romance, trabalho que terminei em janeiro, se me lembro bem. Levei-o nesse estado para Nova Iorque e o submeti a Max Perkins, da Editora Scribner's. Regressando a Schruns, completei o livro. Scott só foi ler o romance quando os originais definitivos totalmente reescritos, já haviam sido en- caminhados à Editora, lá pelo fim de abril. Brinquei com ele a respeito do fato e me recordo de sua preocupação: queria auxiliar-me com seus conselhos e sugestões agora que a missão estava cumprida. Mas eu havia mesmo feito tudo para que ele não me auxiliasse enquanto eu retrabalhava meus originais. Durante nossa permanência em Vorarlberg quando o romance ainda não estava terminado, Scott, Zelda e a menina
* Publicado em português, por esta mesma Editora, sob o título O Sol Também se Levanta.
haviam deixado Paris rumo a uma estação de águas nos Baixos Pirineus. Zelda estava doente, com aquela complicação intestinal que o abuso de champanhe provoca e que na época se diagnosticava como colite. Scott estava num dos seus períodos de seca, recomeçara a trabalhar e queria que fossemos ter com eles em Juan-les-Pins, no mês de junho. Providenciaria uma boa casa para nós e, desta vez, seria rigorosamente observado um compromisso de abstinência. Como nos bons tempos levaríamos vida saudável, nadando, tomando banhos de sol, bebendo apenas um aperitivo antes do almoço e outro antes do jantar. Zelda já estava curada, os dois se sentiam muito bem e seu romance ia de vento em pôpa. Além disso, tinham dinheiro também: a adaptação para teatro de O Grande Gatsby estava indo muito bem e ele esperava negociar também os direitos cinematográficos. O horizonte estava limpo de preocupações: Zelda estava tranquila e tudo entraria nos eixos.
Eu tinha ido sózinho a Madrid, no mês de maio, onde trabalhara num projeto literário. Tomei um trem de Bayonne a Juan-les-Pins, viajando em terceira classe pois havia gasto
estupidamente todo o dinheiro que levara. Minha última refeição foi feita em Hendaye, na fronteira franco-espanhola, de modo que cheguei faminto. A vivenda que Scott arranjara para nós era bem agradável, perto da bela casa que ele havia alugado. Fiquei satisfeitíssimo com tudo, alegre com minha mulher, que cuidara tão bem de nossa casa enquanto eu viajava, alegre com meus amigos, alegre com o tal aperitivo antes do almoço, tão bom que tomamos vários, apesar do compromisso de honra. Nessa noite houve uma festa no cassino para comemorar minha chegada; éramos um grupo pequeno, os MacLeish, os Murphy, os Fitzgerald e nós dois. Champanhe foi a bebida mais forte que se tomou. O clima geral era de alegria e tudo indicava que Juan-les-Pins seria um excelente lugar para quem quisesse escrever. Havia ali todas as condições ideais para um escritor produzir, exceto o isolamento.
Zelda estava encantadora, queimada de sol, os cabelos louros um pouco mais escuros, resplandecente de alegria e afeto. Seus olhos de falcão estavam claros e calmos. Tive a
impressão de que tudo se arranjara maravilhosamente bem entre eles e que as coisas continuariam assim, quando ela, inclinando-se para o meu lado, perguntou-me num tom de segredo:
- Ernest, você não acha que Al Jolson é mais importante do que jesus?
Não dei muita importância a essa pergunta, naquele momento. Era apenas um segredo que Zelda partilhara comigo, como a presa que um falcão partilhasse com um homem. Mas os falcões jamais partilham sua presa. Scott Fitzgerald não escreveu coisa alguma de real valor até descobrir, um dia, que Zelda estava Iouca.
Uma Questão de Medidas
Bem mais tarde, depois de Zelda ter tido o que então se chamou de seu primeiro esgotamento nervoso, estando todos nós outra vez em Paris, Scott convidou-me um dia para almoçar com ele no Michaud, restaurante que ficava na esquina da rue Jacob rom a des Saints Pères. Disse que desejava fazer-me uma pergunta importantíssima, sobre assunto que era mais sério para ele do que qualquer outro, e esperava que eu fosse absolutamente honesto na resposta. Prometi-lhe que seria o mais honesto possível, mas fiquei logo arrependido, pois toda vez que Scott me pedia respostas absolutamente honestas e francas - o que já é coisa bastante difícil ele se irritava com o que ouvia, não necessariamente quando o ouvia, mas depois, às vezes muito depois, após ter meditado sobre a resposta. Minhas palavras se transformavam então em algo que precisava ser destruído e se possível, eu com elas.
Scott bebeu vinho no almoço, mas não se mostrou afetado por ele, pois não se preparara para o encontro bebendo antes.
Conversamos animadamente sobre nosso trabalho e pessoas de nossas relações, e me perguntou por alguns amigos que há tempo não víamos. Eu sabia que ele estava escrevendo algo de muito bom e que, por vários motivos, enfrentava grandes dificuldades para fazê-lo, mas vi logo que o assunto a ser discutido comigo não era esse. Esperei pacientemente que Scott o revelasse e me fizesse a tal pergunta a que eu deveria responder com absoluta honestidade e franqueza, mas ele negaceava, e somente o abordaria no fim da refeição, como se estivéssemos tendo um almoço de negócios.
Já estávamos comendo a torta de cerejas e bebíamos a última garrafa de vinho, quando sem mais esta nem aquela ele me disse:
- Você sabe que jamais dormi com outra mulher, além de Zelda?
- Não, não sabia.
- Pensei que lhe tivesse dito.
- Não. Você me contou muitas coisas, mas isso nunca.
- Pois é sobre isso que eu Ihe quero perguntar.
- Está bem. Então pergunte.
- Zelda me diz que um homem como eu jamais poderá fazer a felicidade de mulher alguma e que era essa, precisamente, a causa dos seus problemas. É uma questão de medidas, segundo ela. A coisa me abalou muito e nunca mais fui o mesmo depois disso. Quero que você me esclareça objetivamente.
- Passemos então ao consultório - disse eu.
- Que consultório?
- O water - disse eu.
Fiz o exame e voltamos para nossa mesa.
- Você é perfeitamente normal - declarei. – Tudo OK. Não há nada errado com você. Olhando-se de cima para baixo você tem a impressão errada de que suas medidas são pequenas.. Dê um pulo ao Louvre e examine as estátuas. Depois vá para casa e olhe-se num espelho, de perfil.
- Bem, mas as estátuas podem não ter as proporções exatas.
- Não creio. Muita gente chega a invejá-las.
- Nesse caso, por que é que Zelda diria uma coisa dessas?
- Só para perturbá-lo. Essa é uma das formas mais antigas que se conhece para perturbar um homem. Scott, você me pediu que lhe dissesse a verdade e eu poderia inventar uma porção de histórias, mas para mim a verdade é essa mesmo, nem mais nem menos. Mas você poderia ter consultado um médico.
- Nada de médicos. Queria apenas que você me dissesse a verdade.
- Quer dizer que concorda comigo?
- Não sei - respondeu ele.
- Está bem. Então vamos dar um pulo até o Louvre. Agora. É só descer a rua e cruzar o rio.
Fomos ao Louvre e examinamos várias estátuas, mas notei que ele ainda não se convencera.
- O problema não é exatamente o tamanho no estado de repouso - disse-lhe eu. - A questão toda é o tamanho que depois adquire. E é, também, um problema de ângulo de
técnica. - Expliquei-lhe a conveniência de usar um travesseiro e indiquei outros recursos úteis de quando em quando.
- Conheço uma pequena - começou ele - que tem sido muito boazinha comigo. Mas, depois do que Zelda disse. . .
- Ora que bobagem! Esqueça-se do que ela disse. Zelda está é louca. Não há nada de errado com você. Tenha confiança em si mesmo e faça a felicidade dessa tal pequena. Zelda quer destruir você.
- Você não tem a menor idéia a respeito de Zelda.
- Está bem - disse eu. - Pode ser que tenha razão. Mas você veio almoçar comigo para me fazer uma pergunta e tentei dar-Ihe uma resposta honesta.
Scott, porém, continuava na dúvida.
- Já que estamos aqui - sugeri - por que não vamos ver alguns quadros? Você sabe que há muito o que ver além da Mona Lisa?
- Não estou com disposição para ver quadros. Além disso, prometi encontrar-me com alguns amigos no bar do Ritz.
Muitos anos mais tarde, no mesmo bar do Ritz, bem depois do fim da Segunda Guerra Mundial, Georges – que é atualmente o barman-chefe, mas era apenas chasseur quando Scott vivia em Paris - perguntou-me:
- Papá, quem foi esse Monsieur Fitzgerald de quem tanta gente hoje me pergunta?
- Você não o conheceu pessoalmente?
- Não. Lembro-me de toda a gente que vinha aqui naquele tempo. Mas atualmente só me perguntam sobre ele.
- E o que você responde?
- Invento algo interessante, que possa agradar aos curiosos. Mas, fora de brincadeira, quem foi ele?
- Foi um escritor americano da década de vinte e de um pouco mais tarde, que viveu algum tempo em Paris e no estrangeiro.
- É estranho que não me lembre dele. Era um bom escritor?
- Tem dois livros realmente muito bons e um terceiro, incompleto, que seria ótimo na opinião dos que conheciam de perto seu trabalho. Escreveu também uns contos excelentes.
- Frequentava muito este bar?
- Creio que sim.
- Mas, Papá, você não aparecia por aqui na década de vinte. Lembro-me de que era pobre e morava noutro bairro.
- Quando tinha dinheiro, ia ao Crillon.
- Sei disso. Recordo-me bem do dia em que nos vimos pela primeira vez.
- Eu também.
- Mas é curioso que eu não tenha a menor idéia dele - disse Georges.
- Toda aquela gente já morreu.
- É verdade mas ninguém se esquece das pessoas só porque morreram. E todo dia me fazem perguntas sobre ele.
- Precisa me dar outras informações, para quando eu escrever minhas memórias.
- Pois não.
- Lembro-me da noite em que você e o Barão von Blixen vieram até aqui... Em que ano foi isso? - Sorriu.
- Esse também já se foi.
- É mesmo. Mas não me esqueço dele, está vendo?
- A primeira mulher de von Blixen escrevia admiravelmente - disse eu. - Seu livro sobre a África é dos meIhores que conheço, excluindo o trabalho de Sir Samuel Baker sobre os afluentes do Nilo na Abissínia. Convém botar isso nas suas memórias, já que está tão interessado em escritores.
- Ótimo - disse Georges. - O Barão era um tipo inesquecível. Qual é o título do livro?
- Out of Africa - respondi. - Blickie tinha grande orgulho do trabalho de sua primeira mulher. Mas nós nos tornamos amigos muito antes dela tê-lo escrito.
- Mas diga alguma coisa sobre Monsieur Fitzgerald, de quem tanto me perguntam.
- Ele foi do tempo em que Frank era o barman.
- Sim. Mas eu era apenas chasseur nessa época. E você sabe como são os chasseurs.
- Vou botar tudo o que me lembro dele num livro que pretendo escrever sobre meus primeiros tempos aqui em Paris. Prometi a mim mesmo que o faria.
- Muito bem - disse Georges.
- Irei descrever com precisão meu primeiro encontro com ele.
- Ótimo - disse Georges. - Depois que você fizer isso, poderei dar algumas informações aos curiosos. Se ele vinha aqui, lembrar-me-ei dele. No fim de contas, a gente nunca se esquece assim das pessoas.
- A não ser que sejam turistas, não é?
- Claro! Mas você tem certeza mesmo de que ele frequentava este bar?
- Tenho. Vir aqui era muito importante para ele.
- Então escreva as recordações que tem dele e assim, se ele tinha o hábito de vir aqui, conseguirei lembrar-me dele.
- É o que quero ver - respondi.
Paris Continua Dentro de Nós
Já que éramos três agora, e não mais apenas dois, o frio e o mau tempo acabavam por nos expulsar de Paris, durante o inverno. Quando se está só, e disposto a tudo, não há problema que não se resolva. Eu podia dirigir-me a um café, para escrever, e trabalhar a manhã inteira diante de um café-créme enquanto os garçons limpavam e varriam o salão, que pouco a pouco se aquecia. Minha mulher podia ir às suas aulas de piano, num lugar frio, desde que estivesse bem agasalhada para sentir-se confortável enquanto tocasse, até chegar a hora de voltar para casa e cuidar do Bumby. Mas é evidente que eu não poderia levar um bebézinho aos cafés, em pleno inverno, mesmo que se tratasse de Bumby, um bebé que não chorava nunca, que se entretinha com tudo o que se passasse ao seu redor e jamais se aborrecia com coisa alguma.
Não podíamos contratar amas-sêcas naquele tempo, e Bumby ficava sózinho em seu berço de grades altas, isto é, acompanhado apenas de seu amigo, nosso grande e manso gato F.Puss. Muitas pessoas nos diziam que era perigoso deixar uma criança sózinha com um gato. As mais ignorantes e preconceituosas informavam que os gatos lhe chupariam a respiração, matando-a. Outras, alertavam-nos para o perigo do gato deitar-se em cima do bebê, esmagando-o. Mas F. Puss não nos causava qualquer receio: deitava-se na caminha, ao lado de Bumby, e ficava vigiando a porta com seus grandes olhos amarelados, não deixando que alguém se aproximasse enquanto eu e minha mulher estivéssemos fora e Marie, a femme de ménage, fôsse fazer alguma compra. Não podíamos ter uma ama-sêca, mas era absolutamente desnecessário: F. Puss exercia essa função.
Quando se é pobre, e éramos realmente muito pobres naquela época (eu renunciara ao jornalismo quando regressamos do Canadá e ainda não conseguira publicar meus contos em revista alguma), o inverno em Paris é um problema muito sério para quem tem uma criancinha de berço. Aos três meses de idade, o senhor Bumby tinha feito a travessia do Atlântico Norte num pequeno navio da Cunard que levara doze dias, vindo de Nova Iorque via Halifax. Não chorou uma só vez durante a viagem e ria alegremente quando o barricávamos em seu beliche para que não caísse quando o mar estivesse agitado. Mas Paris, a nossa Paris, era fria demais para ele durante o inverno.
Íamos então para Schruns, na região austríaca do Vorarlberg. Atravessávamos a Suíça e chegávamos à fronteira da Austria, em Feldkirch. O trem cruzava o Liechtenstein e fazia uma parada em Bludenz, onde tomávamos um ramalzinho que seguia ao longo dum rio pedregoso e cheio de trutas, atravessando um vale cheio de fazendas e bosques até chegar a Schruns que era uma pequena povoação ensolarada, com seu mercado, serrarias, lojas, hospedarias e o bom hotel Taube; aberto o ano inteiro, onde ficávamos.
Os quartos do Taube eram amplos e confortáveis, com boas lareiras, grandes janelas e grandes camas, com bons cobertores e acolchoados de penas. As refeições eram simples
e excelentes; o salão de jantar e o bar público, com lambris de madeira, eram aquecidos e acolhedores. O vale que se estendia à nossa frente era aberto e desimpedido, de modo que quase sempre tínhamos bom sol. A diária no Taube era de aproximadamente dois dólares para nós trés e, como a inflação desvalorizava a moeda austríaca, cada dia pagávamos menos pelos quartos e a comida. Não se tratava de uma inflação galopante e desoladora como a que se abateu sobre a Alemanha pois o schilling tinha seus altos e baixos. Mas na maioria das vezes, sua tendencia era cair.
Não havia em Schruns o conforto de funiculares ou ascensores para os que quisessem esquiar, mas havia trilhas para transporte de madeira, ou as que o gado abria, conduzindo-nos dos vales até a parte mais alta das montanhas. A escalada se fazia mais fácil quando protegíamos a base dos esquis com couro de foca. No topo dos planaltos havia grandes cabanas do Clube Alpino, destinadas aos montanhistas que vinham no verão, onde sempre podíamos dormir, pagando apenas a lenha que se tivesse consumido. Nalgumas delas enfeixávamos e carregávamos a madeira para as nossas excursões. Noutras, quando nos preparávamos para ir mais Ionge, aos picos das montanhas ou às geleiras, podíamos contratar alguém para preparar os feixes de lenha e carregá-los, com os mantimentos, até o ponto onde estabelecéssemos nossa base. As mais famosas dessas cabanas eram a Lindauer-Hütte, a Madlener-Haus e a Wiesbadener-Hutte.
Aos fundos do Taube encontrava-se uma espécie de rampa para treinamento na qual esquiávamos por entre pomares e campos. Outra boa pista era a que se achava atrás de Tchagguns, do outro lado do vale, onde havia uma bonita pensão, ostentando nas paredes do bar uma excelente coleção de troféus de cabritos monteses. Era por detrás da aldeia de Tchagguns, um centro madeireiro situado no ponto extremo do vale, que as boas pistas de esqui se estendiam até além das montanhas, penetrando na área de Klosters depois de passar por Silvretta.
Schruns era uma região saudável para Bumby, e podíamos confiá-lo a uma linda ama-sêca de cabelos escuros que o levava a passear ao sol no seu trenózinho enquanto nos dedicávamos, Hadley e eu, à descoberta de novas terras, novas aldeias, sempre recebidos com a maior cordialidade pelos habitantes. Herr Walther Lent, um pioneiro do esqui em montanhas e, em seu tempo, companheiro de Hannes Schneider, o famoso campeão de Arlberg, fabricava agora uma cêra especial para dar maior aderência aos esquis, nas escaladas, e acabara de abrir uma escola de esquiagem alpina, na qual logo nos inscrevemos. O sistema de Walther Lent consistia em tirar seus alunos das rampas de treinamento o mais rápidamente possível, colocando-os na prática de excursões às altas montanhas.
Naquele tempo, o esqui não se praticava com a sofisticação de hoje e raramente se ouvia falar nas fraturas em espiral, comuníssimas agora. Quebrar uma perna era coisa muito séria, pois não havia qualquer patrulha de socorro. Para deslizar do alto das montanhas para baixo era necessário escalá-las antes, e a duras penas. Mas isso constituía excelente exercício que nos dava firmeza e rigidez às pernas.
Walther Lent achava que uma das maiores delícias do esporte era precisamente alcançar os planaltos mais elevados, onde não se encontraria quase ninguém e a neve, por isso mesmo estaria em condições ideais, marchando de uma cabana do Clube Alpino até outra, através dos desfiladeiros e das geleiras altíssimas. Não amarrávamos os esquis aos nossos pés, pois isso é que produz fraturas de perna. Os esquis ficavam praticamente soltos, e escapavam ao mais leve tombo. A grande paixão de Walther era esquiar livremente nas geleiras, sem estarmos presos por corda uns aos outros, mas somente era possível fazermos isso na primavera, quando as fendas se enchiam de neve.
Hadley e eu tínhamos ficado loucos pelo esqui desde o dia em que o praticamos pela primeira vez, na Suíça e, mais tarde, em Cortina d'Ampezzo na região dos Dolomitas, quando ela estava esperando o Bumby. Seu médico, em Milão, lhe dera licença para continuar, desde que eu assumisse o compromisso solene de não deixá-la cair. Para cumpri-lo, eu me via obrigado a escolher cuidadosamente o terreno e as rampas, para controlar as descidas, mas Hadley tinha pernas bem fortes e sabia dominar perfeitamente os esquis, de modo que jamais levou um tombo. Depois de algum tempo aprendemos a conhecer bem todos os tipos de neve e sabíamos até deslizar em camadas profundas de neve esfarelada.
Adoramos Vorarlberg e adoramos Schruns também. Costumávamos ir para lá por volta do Dia de Ação de Graças e ficávamos até a Páscoa. Esquiava-se em qualquer época, embora a altitude relativamente baixa de Schruns não lhe conferisse renome de centro de esportes de inverno a não ser quando a estação fosse rigorosa e houvesse grandes nevarias. Escalar as montanhas era muito divertido, e ninguém se queixava de falta de comodidade naquele tempo. O segredo era não dar muita velocidade à ascensão; não nos cansávamos muito, a batida do coração pouco se alterava e sentíamos um certo orgulho com o pêso da mochila que carregávamos. Até Madlener-Haus o caminho era bastante íngreme e difícil, mas, à segunda escalada, já o sentíamos mais fácil e, com o tempo, conseguíamos percorrê-lo carregando o dobro do pêso transportado inicialmente.
Essa movimentação toda nos abria o apetite, e celebrávamos as horas de refeição como se fossem acontecimentos especiais. Bebíamos cerveja clara ou escura, vinho novo e, às vêzes, vinho de um ano. Os vinhos brancos eram os melhores. Outras bebidas que apreciávamos eram o kirsch que distilavam no vale e o schnapps preparado com a genciana das montanhas. Quando nos serviam ao jantar lebre recheada, em molho de vinho tinto, ou carne de gamo com molho de castanhas, bebíamos sempre vinho tinto, embora fosse mais caro do que o branco. O melhor deles nos custava vinte centavos de dólar o litro. Mas o vinho da casa, muito mais barato, era também bebível, e com ele enchíamos barriletes que transportávamos para Madlener-Haus.
Levávamos para ler nas férias uma batelada de livros que Sylvia Beach nos emprestava, e também passávamos o tempo jogando boliche com a gente da terra, na cancha que dava para o jardim de verão de nosso hotel.. Uma ou duas vezes por semana havia uma rodada de póquer no salão de jantar, as portas trancadas e janelas fechadas, pois o jogo era então proibido na Austria. Meus parceiros eram Herr Nels, gerente do hotel, Herr Lent, o professor de esqui alpino, um banqueiro da cidade, o promotor público e um capitão de policia. O jogo era para valer, e todos jogavam bem, embora Herr Lent fosse um tanto ou quanto arrojado, pois sua escola de esqui não estava dando lucro. O capitão de polícia tocava a orelha com os dedos quando ouvia os passos dos dois guardas aproximando-se da porta, em sua ronda noturna. Ficávamos todos num silêncio tumular até que eles se afastassem.
Mas nascia a manhã, a camareira entrava em nosso quarto, fechava as janelas, acendia o fogo na lareira de porcelana. O quarto se aquecia num instante e tomávamos nossa primeira refeição, que consistia de pão fresco ou torradas, uma deliciosa compota de frutas, tigelas de café, ovos quentes e presunto, caso o desejássemos. Um cachorro chamado Schnautz dormia ao pé de nossa cama e adorava acompanhar-nos em nossas excursões alpinas, viajando montado em minhas costas quando eu deslizava rampa abaixo. Era muito amigo de Mr. Bumby e ia passear com ele e a ama-seca, nunca se afastando do trenózinho.
Schruns era também um excelente lugar de trabalho. Afirmo isso porque foi precisamente lá que executei a mais difícil tarefa Iiterária de minha vida, que foi reescrever - no inverno de 1925 para 1926 - os originais de O Sol Também se Levanta. Preparara o rascunho em seis semanas, e ali o transformara num romance.. Não me lembro bem dos contos que lá escrevi. Sei que foram muitos, e alguns me pareceram bons.
Lembro-me da neve rangendo, no caminho que levava à aldeia, quando regressávamos a pé nas noites frias, carregando nos ombros nossos esquis e tacos de esquiar; avistávamos as luzes ao longe, depois perecebíamos os edifícios. Todas as pessoas com quem cruzávamos na estrada nos diziam: Gruss Gott. No Weinstube havia sempre aldeões com seus sapatos ferrados e roupas de montanha; lembro-me até hoje da atmosfera enfumaçada e do assoalho arranhado pelos grampos das botas. Muitos dos rapazes tinham servido nos regimentos alpinos do exército austríaco e um deles, o Hans, que trabalhava na serraria, era um caçador emérito. Tornamo-nos bons amigos porque havíamos estado, durante a guerra, na mesma área dos Alpes italianos. Bebíamos juntos e cantávamos em côro as canções típicas da região.
Lembro-me também das trilhas que atravessavam os pomares e campos das fazendolas localizadas nas encostas dos morros, acima da aldeia, das casas bem aquecidas pelas suas grandes lareiras, das enormes pilhas de lenha cobertas de neve. As mulheres trabalhavam na cozinha, desbastando e fiando lã em grandes rolos cinzentos e pretos. As rocas trabalhavam acionadas por pedais e a lã não era tingida. Os novelos pretos provinham de lã de ovelhas negras. Era lã natural, sem qualquer beneficiamento, mantendo ainda sua própria gordura. Por isso mesmo os gorros, suéteres e cachecóis que Hadley fazia com ela nunca se umedeciam sob a neve.
Num dos Natais que passamos lá, houve a representação de uma peça de Hans Sachs, dirigida pelo mestre-escola. Era uma boa peça e escrevi para o jornal da região uma crítica que o gerente do hotel traduziu para o alemão. Noutro ano, um oficial da marinha de guerra alemã, com a cabeça completamente raspada e cheio de cicatrizes, nos fêz uma palestra sobre a batalha naval da Jutlândia. Com o auxílio de um projetor de lâminas demonstrou-nos os movimentos das duas esquadras, usando um taco de bilhar para a indicação das "manobras covardes" de Jellicoe. Irritava-se tanto, nessa passagem, que até perdia a voz. O mestre-escola receou que o oficial, em sua exaltação, perfurasse a tela com o taco. Terminada a palestra, o homem continuou nervoso, constrangendo todo mundo ali no Weinstube. Apenas o promotor público e o banqueiro se atreveram a tomar vinho com ele e, ainda assim, numa mesa à parte. Herr Lent, que era da Renânia, não quis assistir à palestra. Estava lá, na mesma noite, um casal chegado de Viena, que viera para esquiar mas não queria escalar as altas montanhas. Os dois partiram logo para Zurs, onde - ouvi dizer depois - morreram numa avalancha . O marido comentou que tipos desagradáveis como o conferencista é que haviam sido responsáveis pela derrota da Alemanha, e voltariam a sê-lo dentro de mais vinte anos. Sua mulher disse-lhe em francês que calasse a boca, pois numa região pequena como aquela nunca se sabia o que poderia acontecer.
Muita gente, por sinal, morreu em avalancha naquele ano. A primeira grande tragédia se deu nas montanhas próximas de nós, além do vale, em Lech, no Vorarlberg. Um grupo de alemães desejava vir esquiar com Herr Lent nas férias de Natal. A neve tardara a cair naquela temporada, e as encostas estavam ainda aquecidas pelo sol quando desabou a primeira nevasca, depositando-se em camadas permeáveis de grande espessura, que não aderiam firmemente ao solo. Não há condições piores do que essa para os esportes de inverno, e Herr Lent achou melhor telegrafar aos berlinenses recomendando que cancelassem a viagem. Mas férias são férias, e os alemães vieram de qualquer maneira, ignorantes e cheios de bravata. Herr Lent recusou-se a conduzi-los quando eles chegaram a Lech. Um dos excursionistas chamou-o de covarde e disse que iriam esquiar assim mesmo. Lent acabou cedendo, mas levou-os à rampa mais segura que pôde encontrar. Mal a atravessara quando se deu o colapso. Toneladas de neve deslizaram velozmente, cobrindo os escursionistas como se fosse enorme onda bravia. Conseguiram desenterrar treze deles, mas nove morreram. Se, antes da tragédia, a escola alpina não fora jamais muito próspera, depois dela éramos praticamente seus únicos alunos. Mas fizemos curso completo de avalanchas, aprendendo a conhecer seus diferentes tipos, a evitá-las, e a maneira de proceder quando apanhados numa delas. Foi em pleno período de avalanchas que escrevi a maior parte do que produzi nesse ano.
A pior lembrança que guardo daquele inverno catastrófico é a de um homem sendo desenterrado. Estava de cócoras e fizera com os braços uma proteção à frente da cabeça, como nos haviam ensinado, para que houvesse ar respirável quando a neve nos cobrisse. Fora uma avalancha tremenda e levou bastante tempo para que se conseguisse retirar todos os que haviam sido soterrados. O tal homem foi o último a ser encontrado. Havia morrido há pouco, e seu pescoço fôra lanhado de tal maneira que os tendões e os ossos estavam à mostra. Devia ter feito movimentos frenéticos com ele, sob a pressão que o esmagava. Por certo havia blocos de neve mais sólidos, misturados com a neve recente e leve que deslizara e eles o haviam cortado como navalha. Não pudemos descobrir se o homem apressara a morte deliberadamente, ou se perdera o controle. Só sei que o padre da localidade não quis que fosse enterrado com o ritual da Igreja, mesmo porque ninguém pode provar que a vítima fosse católica.
Nessas temporadas em Schruns, costumávamos fazer grandes caminhadas pelo vale até chegar à estalagem, onde dormíamos antes de iniciar a escalada à Madlener-Haus. Era uma bela e velha casa em estilo alpino e suas paredes cobertas de Iambris de madeira estavam sedosas depois de tantos e tantos anos de continuado polimento. O mesmo se dava com a mesa e as cadeiras. Dormíamos agarrados na grande cama, cobertos pelo edredom abrindo antes a janela para ficarmos vendo as estrelas brilhantes, próximas de nós. Acordávamos bem cedo e, logo depois do pequeno-almoço, botávamos às costas nossas mochilas e começávamos a escalada ainda antes do sol raiar, sob as mesmas estrelas, levando nos ombros os nossos esquis. Os carregadores usavam esquis menores do que os nossos, e transportavam cargas pesadas. Na verdade, havia como que uma competição entre nós, os esportistas, para ver quem conseguia completar a escalada com maior pêso às costas, mas os carregadores não entravam nisso. Homens atarracados, taciturnos, camponeses que falavam apenas o dialeto de Montafon, eram capazes de subir continuamente como bestas de carga até chegar ao tope, onde se encontrava a cabana do Clube Alpino, construída num plateau da geleira coberta de neve; ali descarregavam seus fardos ao longo da parede de pedra, e pediam sempre mais dinheiro do que fôra combinado antes. Quando se estabelecia um meio-têrmo, botavam nos pés os pequenos esquis e desapareciam encosta abaixo como se fossem anõezinhos.
Fazia parte de nosso grupo uma jovem alemã que sempre esquiava conosco. Era uma grande esquiadora de montanha, de pequena estatura mas muito bem feita de corpo, capaz de carregar uma mochila tão pesada quanto a minha por mais tempo do que eu.
- Os carregadores sempre nos olham como quem está so pensando o cadaver que terá de carregar lá para baixo – dizia-me ela. - Combinam um preço antes de subir e nunca deixam de pedir mais aqui em cima.
Durante as temporadas de inverno em Schruns eu sempre deixava crescer a barba para me proteger da intensa reverberação do sol na neve das montanhas e não me dava ao trabalho de cortar os cabelos. Ao entardecer de um dia de férias, quando descíamos em esquis pelos caminhos calçados com toras de madeira, Herr Lent contou-me que os camponeses da região me haviam apelidado de Cristo Negro. Outros, frequentadores do Weinstube, me chamavam também de Cristo Negro bebedor de Kirsch. Mas, para os camponeses dos pontos mais altos e isolados do Montafon, onde contratávamos carregadores para nos acompanharem até Madlener-Haus, não passávamos todos de uns diabos estrangeiros que perturbavam as altas montanhas precisamente quando deveriam manter-se afastados delas. Que nos puséssemos em marcha de madrugada, a fim de evitar os locais de avalanchas antes que o sol os tornasse realmente perigosos, não era levado em conta. Apenas demonstrava uma vez mais que éramos sabidos como todos os diabos estrangeiros.
Lembro-me do cheiro bom dos pinheirais, das noites que passamos em cabanas de lenhadores, dormindo em colchões de folhas de faia; lembro-me de como esquiávamos pelos bosques, seguindo as pegadas de lebres ou de raposas. Uma vez, depois de seguir uma dessas pistas no alto das montanhas, cheguei a descobrir uma raposa. Fiquei a observá-la de certa distância, vendo-a erguer uma das patas dianteiras, depois andar cautelosamente, parar e dar um bote. Por pouco não pega uma galinha silvestre, que mal conseguiu saltar por entre a neve, branca como ela, para alçar võo e escapar do perigo.
Lembro-me bem dos vários tipos de neve que o vento podia produzir e do comportamento traiçoeiro de cada um deles sob nossos esquis. E também das violentas nevadas que às vezes nos apanhavam nas cabanas do Clube Alpino, mudando de tal maneira o aspecto da região que devíamos procurar as trilhas com o maior cuidado, como se nunca tivéssemos estado por ali antes disso. E era, de fato, como se fosse a descoberta de um mundo novo. Finalmente, com a aproximação da primavera, chegava a época de esquiar nas geleiras, lisas e firmes, estendendo-se à nossa frente enquanto as pernas aguentassem. Deslizávamos com os pés bem juntos, agachados, inclinando o corpo para a frente a fim de oferecer menos resistência ao vento; com a velocidade aumentando a cada instante, nossos esquis produziam na neve bem seca um silvo abafado. Era uma sensação deliciosa, melhor do que a de voar, do que qualquer outra, conseguida com a prática e o bom exercício preparatório representado pelas escaladas ao cimo das montanhas, carregando pesadas mochilas. Naquele tempo não havia as facilidades de hoje, quando se pode pagar um bilhete para que nos conduzam ao topo. Mas o prazer, conseguido a duras penas, depois de todo um inverno de preparação física, era um prémio admirável.
No último ano que passamos nas montanhas, novas pessoas se envolveram profundamente em nossas vidas e as coisas jamais foram como haviam sido. Comparado com o inverno seguinte - um período de pesadelo mascarado pelo divertimento - e com o verão odioso que vivemos depois, aquele inverno das avalanchas fora como que uma inocente e amena brincadeira de crianças. Nesse último ano, de que falo agora, os ricos acabaram com a nossa paz.
Os ricos são sempre precedidos por uma espécie de peixe-piloto, alguém que seja um pouco surdo e um pouco cego para as realidades alheias, conquanto se mostre afável e um pouco indeciso antes deles chegarem. Esses peixes-pilotos sempre se exprimem maneirosamente, em termos como estes:
- "Bem, não sei . . . Francamente, não sei nada disso . Mas gosto deles. De ambos. Palavra de honra, Hem! Gosto mesmo deles. Compreendo suas reservas, mas o fato é que os adoro, e há qualquer coisa de sensacional no jeito dela. (Geralmente diz o nome dela, num tom cheio de encantos.) Ora, Hem! Deixe de bobagens e não banque o difícil. Juro que gosto deles. De ambos! Você acabará gostando dele (geralmente dá-nos seu apelido) quando o conhecer bem. Os dois são maravilhosos!"
Aí chegam os tais ricos, e as coisas nunca mais voltam a ser o que eram. O peixe-piloto desaparece, vai agir em outras paragens (está sempre indo para algum lugar ou vindo de algum lugar), pois nunca se fixa num determinado local. Entra e sai da política, ou do teatro, da mesma maneira como entra e sai de um país ou de nossas vidas, quando ainda é novo no ofício. Nunca se deixa apanhar, nem mesmo pelos ricos cujos nomes costuma citar a três por dois. Nada consegue envolvê~lo, mas aqueles que Ihe dão confiança acabam sempre apanhados e destruídos. O peixe-pilôto tem o treinamen-
to básico de um canalha e, embora negue isso, um amor latente pelo dinheiro. E acaba enriquecendo mais cedo ou mais tarde, pois avança sempre nessa direção, dólar após dólar.
Esses ricos de que falo apreciavam o tal peixe-pilôto e Ihe tinham confiança porque ele era tímido, engraçado, escorregadio, experimentado em seu ofício e perfeito em seus desígnios.
Quando duas pessoas se amam, são felizes e alegres, e estão empenhadas, juntas ou individualmente, numa tarefa construtiva, os outros se sentem tão atraídos por elas como as aves migradoras são atraídas à noite pela faixa de luz de um farol poderoso. Se as duas pessoas que se amam fossem tão sólidas como um farol, nada sofreriam, pois a perda seria das aves. Mas o fato é que aqueles que atraem os outros com sua felicidade são geralmente pessoas despreparadas. Não sabem como evitar que as arruínem, nem como se livrarem a tempo do perigo. Raramente conseguem conhecer as artimanhas dos ricos, que são bons, atraentes encantadores, comunicativos, generosos, compreensivos, perfeitos e dão a cada dia o movimento de um festival, até que conseguem sugar toda a seiva de que se alimentam e partem, deixando tudo mais morto do que as raízes da relva esmagada pelas patas dos cavalos de Atila.
Os ricos vieram na esteira de seu peixe-pilôto . Se fosse um ano antes talvez não tivessem vindo. Meu trabalho era da mesma qualidade e minha felicidade pessoal era maior, mas não havia escrito ainda o primeiro romance de modo que os ricos não podiam ter certeza quanto à minha pessoa. Os ricos jamais perdem tempo ou gastam simpatia com coisas incertas. E por que o fariam? Picasso era uma coisa certa e seguramente já o era antes deles terem ouvido falar nele tinham muita certeza também, quanto a outro pintor. A vários outros pintores. Mas, naquele ano, já tinham certeza de meu futuro, graças às informações recebidas de seu peixe-pilôto, que os acompanhou até o momento do encontro para que não se sentissem constrangidos e eu não bancasse o dificil. Nosso peixe-pilôto, naturalmente, era "grande amigo".
Mas a verdade é que eu confiava mesmo nele, naquela época, como quem confia num boletim do departamento hidrográfico sobre as condições de navegação no Mediterrâneo, ou, digamos, nas tabelas náuticas do Almanaque Brown. Dominado pelo encanto desses ricos como um cão de fila que segue automaticamente qualquer caçador com uma espingarda nas mãos, ou como um urso amestrado que descobre alguém que o aprecie pelos seus próprios méritos, eu vivia deslumbrado por aquêle clima de festa contínua. Cheguei mesmo a ler em voz alta o trecho já revisto de meu romance, o que é imperdoável a um escritor que se preze, e muito mais perigoso, para ele, do que esquiar numa geleira, sem estar preso por cordas antes das fortes nevadas de inverno lhe cobrirem as fendas.
Quando exclamavam: "Está ótimo, Hem! Excelente! Você nem calcula a força que ele tem!", eu me punha a abanar o rabo, de tanta felicidade, e me entregava à sua vida de prazeres, como se fosse apanhar uma vara que tivessem atirado para seu cachorro buscar, em vez de refletir: "Se estes cretinos gostaram do que escrevi, devo ter cometido um erro qualquer." Bem, isto é o que eu teria pensado se agisse como um profissional, mas a verdade é que um profissional jamais teria lido para eles um trecho de seu livro.
Antes da chegada desses ricos, Hadley e eu já havíamos sido contaminados por outra pessoa igualmente rica, que lançara mão de um dos truques mais batidos que se conhece: uma garota solteira tornar-se amiga de outra garota casada, passar a viver na companhia do casal e começar, talvez sem o saber, inocentemente, mas com perseverança, a conquista do marido.
Quando acontece que o marido é um escritor que leva a sério o difícil trabalho a que se dedica e não tem tempo para fazer companhia à sua mulher durante boa parte do dia, esse arranjo tem certas vantagens até que descubra seu verdadeiro sentido. O marido tem duas garotas bonitas a seu lado quando acaba de trabalhar. Uma delas é nova e desconhecida e, se ele não tiver sorte, acabará amando as duas.
Então, em vez de um casal jovem com um filho, passam a ser três. A princípio, a novidade é interessante e até mesmo divertida, prolongando a satisfação durante algum tempo. A inocência é a mãe dos piores pecados. Vive-se o dia-a-dia, aproveitando o máximo, sem qualquer preocupação. Mas a mentira começa a afetar nossas vidas, você se irrita com isso e se sente destruído aos poucos, num perigo constante como o que se vive no dia-a-dia de uma guerra. Tive que me afastar de Schruns por algum tempo e ir a Nova Iorque, a fim de providenciar outro editor para meu livro. Cuidei de meus negócios lá e, ao regressar a Paris, deveria ter tomado o primeiro trem que me levasse à Austria, saindo da Gare de l'Est. Mas a pequena por quem me apaixonara estava também em Paris, de modo que não tomei o primeiro trem, nem o segundo, nem mesmo o terceiro.
Quando voltei a ver minha mulher, ela me esperava na estação de Schruns, depois da pilha de madeira; preferi ter morrido antes de me interessar por alguém mais além dela. Hadley estava sorridente, o sol batia-lhe no rosto moreno e bem proporcionado, seus cabelos dourados, que haviam crescido de maneira estranha mas bela durante o inverno, brilhavam na luz viva. Mr. Bumby estava a seu lado, de pé, louro e forte, as maçãs do rosto coradas como as de um garoto do Vorarlberg .
- Oh, Tatie - disse ela quando a apertei em meus braços - que bom você estar de volta, e ainda por cima bem sucedido em sua viagem! Gosto tanto de você! Sentimos bastante a sua falta!
Amei-a profundamente naquele instante, seguro de que não poderia gostar de ninguém mais. Depois, quando ficamos sózinhos, passamos momentos de mágico enlêvo. Voltei a trabalhar com afinco, fazíamos belas excursões e acreditei que estávamos invulneráveis outra vez. Mas bastou largarmos as montanhas e regressarmos a Paris, no fim da primavera, para que a outra coisa recomeçasse.
Assim terminou a primeira parte de minha vida em Paris...
Paris nunca mais seria a mesma para mim, embora continuasse sendo a Paris de sempre, e mudássemos de acordo com as modificações que nela se estavam operando. Jamais voltamos às montanhas do Vorarlberg, nem os tais ricos o fizeram.
Paris não tem fim, e as recordações das pessoas que lá tenham vivido são próprias, distintas umas das outras. Mais cedo ou mais tarde, não importa quem sejamos, não importa como o façamos, não importa que mudanças se tenham operado em nós ou na cidade, a ela acabamos regressando. Paris vale sempre a pena, e retribui tudo aquilo que você lhe dê. Mas, neste livro, eu quis retratar a Paris dos meus primeiros tempos, quando éramos muito pobres e muito felizes.
Ernest Hemingway
O melhor da literatura para todos os gostos e idades