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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PARIS JÁ ESTÁ A ARDER - P.2 / Dominique Lapierre
PARIS JÁ ESTÁ A ARDER - P.2 / Dominique Lapierre

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                                         Capitulo vigésimo terceiro

Philippe Leclerc, o general que os americanos tinham cognominado The impatient lion, andava impacientemente para trás e para diante no campo de aterragem do estado-maior da E.A.G.L.E.T.A.C. Nervoso, decepava com a bengala as altas ervas da pista. Atrás dele, a uma distância respeitosa, seguia Roger Gallois. O general Bradley não regressara ainda da sua conferência com Eisenhower. Dentro de poucos minutos, com os últimos clarões do dia, Leclerc

teria de levantar voo e regressar de Piper-Cub ao P. C. da sua divisão Minutos antes, Gallois tivera oportunidade de dirigir algumas palavras ao general francês. Mas apenas conseguira obter como resposta uma única frase, Frase essa que Leclerc continuava a repetir como uma litania: "É necessário que a ordem de marcha chegue hoje à noite."

  

 

 

 

 

Subitamente ouviu-se um ronco no céu. Ao ouvir esse barulho, Leclerc imobilizou-se e levantou a cabeça. Um Piper-Cub descia sobre o terreno. O general precipitou-se para o aparelho, cuja hélice ainda girava. Abriu-se a porta e         surgiu o general Siebert. Este exclamou para o "leão impaciente" : "O senhor       venceu. Mandam-no seguir para Paris."

Vinte minutos antes, perto da vila bretã de Grandchamps, na tenda do Grande Quartel-General, o general Siebert transmitira a Eisenhower e a Bradley

as informações que nessa mesma manhã recebera de Roger Gallois. Ao oubir Siebert, Eisenhower franzira as suas espessas sobrancelhas. Depois, suspirara e dissera a Bradley. "É aborrecido, Brad. Mas parece-me que vai ser necessário irmos. Diga a Leclerc que parta."

 

O Piper-Cub de Bradley aterrou por sua vez na pista da E.A.G.L.E.T.A.C.

Ao descer do avião, o fleumático general do Missuri chamou Leclerc e Gallois:

"A decisão de avançar sobre Paris está tomada - declarou. - A responsabilidade cabe a nós três. A mim, porque dou a ordem. A si, general Leclerc, porque vai executá-la, e a si, comandante Gallois, porque foram as suas informações que nos levaram a tomar esta decisão."

Em seguida, Bradley voltou-se para Leclerc e, na sua voz arrastada do Médio Oeste, disse: "Lembre-se apenas duma coisa: não quero que haja combates no interior de Paris. É a única restrição que faço à ordem para se apoderar de Paris. Por preço nenhum deverá travar-se uma batalha de ruas na cidade.’’ ’

Ornar Bradley presenciara um dia o terrível espectáculo de Saint-Lo arrasada pelas bombas. E jurara a si próprio impedir que semelhantes destruições se verificassem nessa Paris que ele tanto amava, sem que jamais a tivesse visto.

Leclerc precipitou-se para o Piper-Cub, mas Bradley chamou por ele e gritou-lhe : ” Vá buscar a ordem de operações ao chefe do seu corpo de exército.’’2

Quando Leclerc chegou ao estado-maior da sua divisão já era noite. Saltou do avião e correu para o seu chefe de operações, o capitão André Gribius, que o aguardava na pequena pista. Então, uma ordem que ruminara durante quatro anos jorrou da sua garganta: ”Gribius -gritou numa voz triunfante - , acção imediata sobre Paris!”

Nenhuma das unidades que combatiam sob o comando de Dwight Eisenhower era tão heterogénea como esta 2.a Divisão Blindada francesa que a ordem de um ardente chefe punha agora em movimento. Nas suas fileiras havia franceses que tinham abandonado sem uma palavra os seus lares, atravessado, na neve, os Pirenéus, caminhando centenas de quilómetros e, frequentes vezes, passado meses nas prisões espanholas, tudo isto apenas pelo único ideal de servirem sob a sua própria bandeira; jovens que tinham enfrentado os perigos da Mancha a bordo de frágeis embarcações a remos, ou em barcos de pesca roubados; antigos prisioneiros de 1940, evadidos dos seus stalags e que, através da Rússia, da Finlândia ou da Noruega tinham conseguido atingir a África ou a Inglaterra, ao cabo de odisseias prodigiosas; homens cujas famílias ignoravam se eles estavam vivos ou mortos, e homens cujas famílias desejavam que eles estivessem mortos por terem atraiçoado o que elas supunham ser a honra duma outra França, a de Vichy. Nas suas fileiras havia franceses que jamais tinham posto o pé no solo da França; árabes, que mal falavam francês; pretos das selvas do Chade ou dos Camarões; tuaregues, do Sara; antigos soldados dos exércitos republicanos espanhóis; libaneses, mexicanos, chilenos, acorridos dos seus distantes países porque jamais tinham podido resolver-se a aceitar a derrota da França. Havia até, nas suas fileiras, franceses que já tinham combatido entre si, em nome de Charles de Gaulle e de Philippe Pétain. Para todos esses homens, esta guerra na Europa era uma verdadeira cruzada. No fim daquela poeirenta estrada da Normandia estava a Jerusalém de que falava a ordem do seu chefe: Paris. Muitos jamais a tinham visto e muitos daqueles que conheciam Paris apenas conservavam a recordação duma capital que já não lhes pertencia. Mas, nas areias de Líbia, nas

 

1 Esta restrição foi repetida na ordem n.° 21 de Bradley ao 12.° Grupo de Exércitos: ’ ’Insisto no facto - dizia ela de que a tomada de Paris deve ser realizada sem combates importantes. Evitem, na medida do possível, os bombardeamentos ou tiros de artilharia na cidade.”

2 No momento em que Leclerc entrava no seu Piper-Cub, o coronel americano John Hill, do estado-maior do 1.º Exército, redigia já as ordens de operações respeitantes à tomada de Paris. Para escorar a 2.a D. B., essas ordens previam a intervenção da 4.a Divisão U.S. de Infantaria. Esta devia apoiar a Divisão Leclerc ao sul de Paris e transpor o Sena na região de Melun. Hill nem sequer tinha acabado de escrever quando o general Courtney Hodges, comandante do 1.º Exército, entrou na tenda. Este mandou acrescentar uma última frase. ’ Hill - disse ele-, mande retirar a essas divisões os respectivos dois grupos de artilharia. Não quero que os nossos tenham a tentação de disparar os obuses sobre Paris, de cada vez que se lhes deparar na frente um ninho de metralhadoras.’’

 

montanhas do Atlas, nos prados da Inglaterra, todos eles tinham interminavelmente sonhado com Paris. Agora, a notícia de que Paris seria o seu próximo destino espalhava-se com a velocidade do som, com a rapidez das suas vozes que, na penumbra dos campos normandos, gritavam, de eco em eco, o nome mágico da capital da França.

Para o tripulante de tanques Jean-René Champion, um francês da América que jamais vivera em França, a ideia de libertar Paris era ”um sonho perfeito demais num mundo imperfeito”. Mas, nessa noite, junto do seu carro ”Mort-Homme” que tinha o nome duma batalha da guerra de 14, soube que o seu sonho se ia tornar finalmente realidade. O capitão Raymond Dronne, do regimento de marcha do Chade, ao ter conhecimento da notícia, deu calmamente aos seus homens as ordens de partida. Depois, desmontou o espelho retrovisor do seu command-car e prendeu-o ao ramo duma macieira. E aplicou-se em desbastar a sua florescente barba ruiva. Queria estar apresentável para as Parisienses, à chegada. Dentro de 48 horas, sujo de óleo e coberto de pó, alagado em suor, extenuado, Dronne veria essas Parisienses. Para muitas delas, ele seria o mais belo homem que alguma vez tinham visto. Seria o primeiro soldado francês a entrar em Paris.

Para a tripulação do ”Simoun”, um tanque-destroyer do 4.º esquadrão do Regimento Blindado de Fuzileiros Navais, esse 22 de Agosto era já uma noite de festa. Festejavam o 36.º aniversário do seu chefe, o segundo-cabo marinheiro Paul Quinion. Preparava-se, por esse motivo, um festim invulgar: um pato de que o municiador, o marinheiro-torpedeiro Guy Robin, conseguira apoderar-se numa fazenda vizinha. Depenada, estripada e lavada, a ave preparava-se para ser enfiada num espeto quando apareceu um oficial, ofegante: ”Rapazes! gritou- suspendam tudo. Vamos aparelhar! E o rumo, desta vez, é Paname!”
O 1.º cabo de marinheiros Robert Mady, canhoneiro do ”Simoun”, lembra-se de que, primeiro, fez-se silêncio entre a tripulação. Depois, uma exclamação, uníssona: ”Merda! E o pato?...”

Certos homens tiveram nessa noite pressentimentos estranhos. O capitão Emmanuel Dupont, do Regimento do Chade, participou ao seu camarada, o capelão Roger Fouqer, depois de se ter confessado: ”Padre, tenho medo de não chegar a Paris.” O capelão ergueu um olhar surpreendido para o rosto fino e delicado do oficial, que lhe pareceu distante, como se sonhasse, e ouviu-o acrescentar, numa voz melancólica: Não há redenção sem efusão de sangue. Porque há-de ser outro qualquer, e não eu?”

Quando ouviu gritar o nome de Paris, o capitão Charles d’Orgeix, do 12. Regimento de Couraceiros, sentiu as lágrimas invadirem-lhe os olhos. Quatro anos, dois meses e nove dias antes, sobre uma motocicleta, Charles d’Orgeix tinha sido um dos últimos defensores de Paris. Em frente da cidade, sós e impotentes, ele e os seus homens tinham visto os Panzer da Wehrmacht submergi-los e arrancarem em direcção à capital. Agora Charles d’Orgeix iria poder vingar-se desses Panzer. Mas, desta vez, não combateria de cima duma motocicleta, mas sim, a bordo dum Sherman completamente novo, cujo vulto imponente contemplava à luz do crepúsculo. O nome deste estava pintado em letras brancas na torrinha. Chamava-se ”Paris”.

O exército dos correspondentes de guerra, tão impaciente como Leclerc e os seus homens, preparava-se também para se lançar sobre Paris. Dentre todos os homens que representavam na Normandia a Imprensa do mundo livre, apenas um, presume-se, não se dirigia nesse dia para Paris. De facto, Larry Leseur, correspondente da cadeia de rádio americana C.B.S., tinha o seu destino num lado oposto. Dirigia-se para Inglaterra. E, no entanto, havia uma razão particularmente forte para levar Leseur a não perder o momento da libertação de Paris. Ele tinha sido o último radiorrepórter americano a abandonar a capital, em 10 de Junho de 1940. E jurara ser o primeiro a anunciar nas ondas da rádio a libertação de Paris.

Infelizmente, três dias antes, sofrera um ligeiro contratempo, mas, para ele, grave. Ao trincar uma barra de chocolate, Leseur partira um dente incisivo. Este incidente que, para outro qualquer, não teria sido mais do que um desgosto sem importância de maior, tomava Leseur num autêntico inválido. Ao falar, assobiava. Já experimentara tudo: tapara o buraco com pastilha elástica, com o dedo, com a língua, até com uma bola de farinha, mas esta derretera-se assim que ele fechara a boca. Nada pudera evitar o terrível assobio. O que, para um radiorrepórter, era verdadeiramente insuportável.

Apenas lhe restava uma solução: ir a Londres, a um dentista. Enquanto voava sobre a Mancha, apenas um pensamento podia consolá-lo. A ideia de que, ao perguntar, antes de finalmente se ter decidido a partir, nessa terça-feira à tarde, ao general Courtney Hodges, comandante do 1.º Exército americano, quando, na sua opinião Paris seria libertada, este lhe respondera categórico: ”Nunca antes de quinze dias.”

 

No momento em que Leseur regressava a Londres, o seu concorrente mais perigoso, Charlie Collingwood, o outro correspondente da C.B.S., efectuava já a sua primeira gravação sobre a libertação de Paris. Logo após a partida de Leseur, Collingwood encontrara o general Bradley no estado-maior do 12.º Grupo de Exércitos e este dera-lhe uma informação que ele considerava preciosa. Bradley dissera-lhe: ”Os Parisienses revoltaram-se. Parece que a 2.a Divisão Blindada vai libertar Paris.”

Então, num magnetofone, Collingwood começou imediatamente a gravar uma reportagem imaginária acerca da libertação de Paris. Assim que fosse recebida a primeira mensagem anunciando que Paris tinha sido libertada, o americano sabia que, acontecesse o que acontecesse, mesmo que ele estivesse a 100 quilómetros dum posto emissor, teria em Londres, ”fresca”, uma emocionante, mesmo patética, reportagem, pronta a ser transmitida por toda a América. Esta era, pensava o cauteloso Collingwood, a mais prudente das precauções.

”A 2.a Divisão francesa entrou hoje em Paris - declarou ao seu microfone-, depois de os heróicos Parisienses se terem sublevado em massa para esmagar as aterrorizadas tropas da guarnição alemã...”

Quando Collingwood terminou a sua gravação, ouviu o que tinha dito e disse para consigo que não poderia estar melhor. Depois, embrulhou-a e expediu-a aos serviços de censura do S. H. A.E. F. Ele iria ser, estava certo, o primeiro radiorrepórter a anunciar à América o maior acontecimento histórico daquela guerra: a libertação de Paris.

O general Von Choltitz teve um estremecimento imperceptível. O seu chefe do estado-maior, o impassível coronel Von Unger, acabava de anunciar-lhe que quatro oficiais S.S. desejavam vê-lo. ”Meu Deus - pensou -, vêm prender-me.” De facto, o comandante do Gross Paris tinha motivos de sobra para estar inquieto. Berlim e Rastenburgo, já ao corrente das suas negociações com os insurrectos, pensava ele, acabavam de saber que ele enviara uma missão junto do inimigo.

Os quatro homens entraram, bateram com os tacões, estenderam em frente o braço direito e gritaram: Heil Hitler! Em seguida, um deles, um gigante magro com uma grande cicatriz na cara, avançou, com aspecto feroz, em direcção à secretária do general. Nas platinas tinha os galões de tenente-coronel e, nas mangas, Choltitz reconheceu as insígnias duma das mais célebres unidades do exército alemão, a divisão blindada S.S. ”Juventude Hitleriana”. Numa voz seca, o oficial declarou que recebera pela rádio, no seu command-car blindado, quando se encontrava a 80 quilómetros a leste de Paris, uma ordem pessoal de Heinriche Himmler.

Para o governador de Paris, a evocação do nome do chefe da Gestapo e das S.S. confirmava em definitivo os seus receios. O oficial encontrava-se no seu gabinete para o prender. O tenente-coronel disse então que Himmler o mandara seguir imediatamente para Paris, a fim de tomar posse dum objecto de arte guardado no museu do Louvre, uma certa tapeçaria que tinha sido retirada do museu da cidade normanda de Bayeux. Essa obra de arte, precisou, não deveria em caso algum cair nas mãos dos Aliados. Tinha a ordem formal de a transportar para a Alemanha, onde seria posta em lugar seguro. Ao ouvir estas palavras, Choltitz sentiu repentinamente o sangue voltar às suas faces. ”Kinder! - exclamou -, é maravilhoso! Vieram então para salvar uma obra de arte da destruição? É realmente maravilhoso!’’ Num tom paternal e irónico, o general acrescentou que o oficial deveria, também aproveitar a missão de que fora encarregado para pôr a salvo, na mesma ocasião, outras obras-primas, tais como a ”Gioconda”, por exemplo, ou a ”Vénus de Milo”, ou ainda a ”Vitória de Samotrácia”... Mas o oficial abanou a cabeça. Apenas a tapeçaria de Bayeux, declarou, interessava a Himmler e ao Fiihrer.

Aliviado o general conduziu então os visitantes à varanda. Erguendo um braço para a noite, apontou a extensa fachada mergulhada nas sombras que barrava, à esquerda, o vazio das Tulherias. ”É ali o Louvre”, disse. Precisamente nesse momento, recorda Choltitz, uma prolongada rajada de metralhadora, sem dúvida disparada duma janela do próprio Louvre, rasgou o silêncio da noite. ”Os terroristas ocupam o edifício”, comentou calmamente o general. ”Sim, é o que parece”, disse o oficial, numa voz vagamente inquieta. ”Mas isso pouca importância tem - continuou o governador de Paris-, as S.S. são as melhores tropas do Mundo e não será um bando de terroristas esfarrapados que lhes fará medo. Não é verdade, coronel?”

O oficial conservou-se em silêncio largos momentos. Depois, perguntou ao general se ele não achava que os franceses já teriam retirado a famosa tapeçaria. Não, não - respondeu o general -, por que razão haviam de o ter feito ?’’ Para ter a confirmação, mandou chamar um oficial que desempenhava talvez as funções mais estranhas do seu estado-maior. Este estava encarregado da ”protecção dos monumentos franceses e das obras de arte”. Ao apresentar-se, confirmou solenemente que a tapeçaria continuava no Louvre. O tiroteio estalava agora, furiosamente, em redor do célebre museu. Choltitz e o oficial S.S. podiam ver, em muitas janelas, as chamas avermelhadas saindo dos canos das metralhadoras e das espingardas semiautomáticas, disparando sobre inimigos invisíveis. Consciente das dificuldades que a operação apresentava, Choltitz propôs amavelmente aos seus visitantes pôr à disposição deles um veículo blindado e uma secção de soldados. Estes poderiam proteger o ”comando S. S. enquanto este se apoderava da tapeçaria. O oficial S. S. parecia perplexo. Por fim, anunciou que, dadas as circunstâncias preferia pedir por rádio novas instruções a Berlim. Participou ao general que estaria de volta dentro de uma hora, gritou Heil Hitler! e saiu da sala.

Dietrich von Choltitz jamais voltaria a ver os seus misteriosos visitantes. A preciosa tapeçaria que eles tinham ordem para subtrair aos Aliados, e que representava um acontecimento único na História, continuou no museu ocupado pelos insurrectos. Nos setenta metros do seu tecido, as damas da corte de Guilherme o ”Conquistador” tinham bordado, em Bayeux, nove séculos antes, uma cena que os operadores cinematográficos de Adolf Hitler jamais tinham podido filmar: a conquista de Inglaterra.

 

                                      Capítulo vigésimo quarto

Mais uma noite caíra sobre os campos que cercavam a pequena vila normanda de Écouché. Mas, nessa noite, em redor das tendas dissimuladas sob as árvores já não havia silêncio nem conspiradores. Sobre os degraus do seu atrelado de comando, donde, quarenta e quatro horas antes, vira partir para Paris Jacques de Guillebon, o general Leclerc escutava o matraquear das máquinas de escrever copiando a ordem de operações, em oito parágrafos, que acabara de ditar. Dentro de seis horas e trinta minutos exactamente, Philippe Leclerc começaria a percorrer os últimos 200 quilómetros da longa viagem a Paris que iniciara quatro anos antes, de piroga, nos Camarões.

Leclerc releu a folha dactilografada que um secretário lhe trouxe: Para este movimento, que deverá conduzir a divisão à libertação da capital, peço um esforço que tenho a certeza obterei de todos.” Leclerc olhou para o relógio, depois assinou e datou a ordem. Era precisamente meia-noite.

À mesma hora, a 1900 quilómetros para leste, sob as árvores quatro vezes mais altas que as macieiras do pomar de Écouché, no coração da floresta de abetos de Rastenburgo, a conferência estratégica de Adolf Hitler tinha o seu início. A volta da secretária, rodeando o Fúhrer, cuja mão direita, recorda Warlimont, tremia ligeiramente, estavam o Feldmarcball Keitel, os generais Burgdorf, Buhle Fedolein e o ajudante-de-campo S. S. de Hitler, o Hauptsturmfíihrer Gunsche. Num silêncio recolhido, todos eles escutavam o general Jodl, que, de mãos apoiadas sobre o mapa, expunha o relatório da situação na frente Oeste. Uma vez mais, Hitler ordenara que esse relatório precedesse o da frente
Leste.

Quando Jodl terminou, Hitler ergueu subitamente a cabeça. Com brusquidão, perguntou onde se encontrava o ’morteiro”. Desta vez, o general Buhle estava em situação de poder responder. O famoso morteiro ”Karl” e o seu comboio especial de munições tinham alcançado a região de Soissons, a menos de 100 quilómetros de Paris. Dentro de 24 horas, o ”Karl” chegaria a Paris. A ideia de que esse terrível engenho chegaria em breve ao seu destino, Hitler deixou escapar um ronco de satisfação. Em seguida, disse: ”Jodl, escreva.” Febril e ofegante, tão rápida era a torrente de palavras que então saiu da sua boca, que o digno Jodl só a custo a pôde seguir.

A defesa da testa de ponte de Paris - declarou Hitler - é duma importância capital no plano militar e político. A perda da cidade provocaria a ruptura de toda a frente do litoral ao norte do Sena, e privar-nos-ia das nossas rampas de lançamento para o combate remoto contra a Inglaterra,

Na História - acrescentou Hitler batendo com o punho fechado sobre a secretária -, a perda de Paris arrastou sempre consigo, até hoje, a perda de toda a França,

O Fúhrer lembrou então ao comandante-chefe a Oeste, a quem esta mensagem era dirigida, que destacara duas divisões Panzer S. S. para defenderem a cidade. Ordenou-lhe que se servisse em Paris, aos primeiros sintomas de rebelião, ”dos mais enérgicos meios, tais como a destruição de quarteirões”, trabalho que a chegada de ”Karl” iria facilitar, e ”a execução pública dos cabecilhas”. Hitler, ao proferir estas palavras, entrara em autêntico transe. A saliva escorria-lhe dos beiços. Paris - disse por fim -, não deve cair nas mãos do inimigo, ou então ao inimigo não deverá deparar-se-lhe aí senão um campo de ruínas.

Quando Hitler se calou, fez-se um grande silêncio no fortim subterrâneo. Warlimont lembra-se de que só se ouvia o ronronar monótono do aparelho de ventilação e o arranhar frenético do lápis de Jodl, esforçando-se por anotar as últimas palavras do senhor do III Reich.

Em Metz, mergulhada na escuridão, a 50 quilómetros da fronteira franco-alemã, as sombras inquietantes dos Panzer esmagavam o pavimento da estrada que três gerações de invasores alemães tinham tomado em menos de um século. Nos seus pesados veículos, extenuados pela sua longa viagem desde a península da Jutlândia, os soldados avançavam como autómatos. Essas tropas, cuja chegada nem sequer fora comunicada a Choltitz, constituíam os reforços que iriam forçar o comandante do Gross Paris a combater. Representavam os primeiros elementos da 26.a Divisão Panzer S.S., recém-chegados a França. Tal como os homens da 2.a D.B., nos seus pomares da Normandia, também os soldados da 26.a Panzer se encontravam a menos de 300 quilómetros de Paris. E também eles tomavam agora, a toda a potência dos seus motores, a estrada de Paris.

 

                                         Capitulo vigésimo quinto

O homenzinho de feições cortadas a direito contemplava, numa espécie de êxtase, a coroa de degraus que subia até aos vitrais. Chamava-se Jean Houcke, e era sueco. Houcke era um homem feliz. A gigantesca operação comercial que montara estava prestes a dar os seus frutos. Dentro de alguns dias Paris seria libertada. E o único grande espectáculo que 3 milhões e meio de parisienses em delírio encontrariam para se distrair na sua capital libertada seria o seu. Para instalar o seu circo sob a maior cúpula de Paris, a do Grand Palais, Houcke investira até ao seu último ”kronner”. Ali, entre a avenida triunfal dos Campos Elíseos e a imensa esplanada dos Inválidos, sob os vitrais dum monumento que durante mais de meio século abrigara as mais célebres exposições e as manifestações parisienses mais grandiosas, o sueco Jean Houcke receberia por sua vez as multidões da cidade-luz. O seu circo era o último grande circo da Europa que ainda existia após cinco anos de guerra. Nessa Paris esfomeada, as jaulas da sua colecção de animais estavam cheias de leões, de tigres, de panteras. Também lá se encontravam elefantes, cavalos e focas. O seu grupo de acrobatas e de trapezistas apenas se podia comparar ao do Barnum. E os seus clowns tinham feito chorar e rir toda a Europa em guerra, da Noruega à Espanha e do Danúbio ao Atlântico. Na previsão da Libertação, ” Auguste’’ e ”Charlie’’ tinham até preparado, a pedido do sueco, um número especial: uma imitação de Hitler. Numa palavra, a fortuna inteira e todas as esperanças de Jean Houcke concentravam-se, nessa manhã, na imensa construção, onde um insólito cheiro a serradura e a feras reinava. Sonhando em frente das bancadas vazias, que já via curvadas sob o peso da multidão entusiástica, Houcke estava convencido de que a Libertação de Paris seria, também, a sua própria apoteose.

Sob a serradura da pista, numa das caves que abrigavam o comissariado de policia do 8.º arrondissement, o agente de polícia André Salmon viu diversos camiões alemães pararem diante das árvores da avenida. Vinte minutos antes, os agentes do Comissariado tinham efectuado um assalto de surpresa a um veículo da Wehrmacht que descia os Campos Elíseos. Os três ocupantes tinham sido mortos. ”Os boches vêm vingar-se’’, pensou Salmon. De repente, viu destacar-se um pequeno engenho com lagartas, que começou a avançar em direcção à fachada do edifício. Salmon achou que o veículo fazia lembrar um grande sapo. Voltou-se para o prisioneiro que tinha à sua guarda, o capitão Von Zigesar-Beines, e empurrou-o para junto da pequena anela-respiradouro. ”Que maquineta é aquela?”, perguntou Salmon com uma curiosidade feita de inquitação. O oficial colocou com dignidade o monóculo, e observou o engenho. Depois, numa voz calma, respondeu ao seu carcereiro. ’É um tanque telecomandado. Está cheio de explosivos. Se não sairmos daqui imediatamente, iremos pelos ares, juntamente com ele.”

Três milhões e meio de parisienses ouviram a explosão do Circo Houcke. Agora, viam das suas janelas e varandas subir para o céu de Verão uma gigantesca coluna de fumo negro, coroada por enorme cogumelo. No interior do edifício, sufocados pelo fumo áspero, homens e feras em pânico gritavam e rugiam. A fim de completar a obra de ”Golias’’, o pequeno engenho telecomandado, dois carros Tigres tinham começado a disparar obuses incendiários. Os rugidos das feras aterrorizadas eram tais que, por vezes, se sobrepunham ao fragor das explosões. Os cavalos tinham-se soltado e galopavam, loucos de medo, através do edifício em chamas. No subsolo, nas instalações do Comissariado, os polícias escancaravam precipitadamente as portas das celas, donde fugiam aterradas e aos gritos as prostitutas que, na véspera, tinham sido detidas no decorrer duma rusga. Um cavalo conseguiu escapar-se e disparou, num galope desenfreado, através das balas que cruzavam a avenida dos Campos Elíseos. Pouco depois foi atingido pelos projécteis, caiu e rolou na poeira. Viu-se então um espectáculo extraordinário: de todos os prédios vizinhos, de faca e um prato na mão, precipitaram-se parisienses que, imediatamente, se entregaram à tarefa de retalhar a carne ainda quente do belo animal, já arreado e ornamentado com as rosetas azuis, brancas e encarnadas da Libertação.

Responsável pela defesa passiva do bairro dos Campos Elíseos, o montador de instalações de aquecimento central Pierre Andreoti perguntava a si próprio se não estaria a ser vítima de uma alucinação. Havia quatro anos que era chefe de sector, e jamais tivera outro problema a resolver além de ter de fazer respeitar o black-out durante os alarmes aéreos. Mas agora, ao telefone, uma voz pedia socorro: ”Depressa... faça qualquer coisa - gritava a voz -, os leões estão a fugir das jaulas.”

Cercados pelos alemães, pelas feras e pelas chamas, quase sem munições, os polícias do Grand Palais decidiram render-se. Pediram ao seu único prisioneiro, o altivo barão Von Zigesar-Beines, com o qual na véspera tinham partilhado os seus nabos secos, que aceitasse a sua rendição. Zigesar-Beines pegou num longo chicote do domador do Circo Houcke, atou a uma extremidade o seu lenço e avançou, num passo digno e solene, através da nuvem de fumo e poeira, a fim de apresentar aos seus compatriotas a rendição dos seus carcereiros.

Encostado a uma coluna de pedra, coberto de pó e de suor, um homem chorava convulsivamente. ”Tudo perdido... tudo perdido...”, repetia ele sem cessar, por entre os soluços. Um bombeiro aproximou-se de Jean Houcke, segurando uma agulheta, e tentou consolá-lo: ”Não chore assim, tiozinho - dizia o bombeiro com o seu sotaque de garoto das ruas parisienses. - Dentro de alguns dias os americanos estarão aí e então, vai ver, tudo terá passado.” O infeliz proprietário do Circo Houcke fitou o bombeiro com uma raiva muda. Depois, virando-lhe bruscamente as costas, recomeçou a soluçar1.

As nuvens de fumo do Grand Palais escureciam o céu como que de sombrios presságios. À vista dessa grande nuvem negra, começou rapidamente a espalhar-se um boato por toda a cidade: os alemães
tinham largado fogo a Paris, como represália pela insurreição. Mas, logo depois, os Parisienses ficaram estupefactos ao saberem que um único tanque telecomandado e alguns obuses incendiários tinham bastado para pôr em chamas uma construção das dimensões do Grand Palais. E então pensaram que apenas seriam precisas algumas horas para Paris se tornar numa nova Varsóvia.

Nunca até então os combates nas ruas da cidade tinham sido tão violentos, nem as perdas de ambos os lados tão pesadas. Compensando a sua inferioridade numérica com um armamento muito superior, os soldados do governador de Paris respondiam na mesma medida em que eram atacados. O coronel Paul Massebiau que, no sábado anterior, se tinha apoderado da Maine do 1.º Bairro, foi obrigado a realizar nesse dia uma tarefa bem mais custosa que essa. Mandou a sua filha buscar, a uma fábrica de Aubervilliers, um carregamento de caixas de madeira para embalagens. Tinham falta delas para a construção de caixões.

 

1 O desafortunado Jean Houcke tudo perdera, com efeito, incluindo o dinheiro que guardara numa mala do seu atrelado. Alguns dias depois da Libertação, Houcke, completamente arruinado, foi repatriado para a Suécia, graças à intervenção do cônsul Nordling. Aí viveu, num hospício, até ao fim dos seus dias.

 

Na noite dessa sangrenta quarta-feira, cairia, então, morto, numa rua da sua capital em rebelião, o 500.º parisiense - uma parisiense -, enquanto numerosos alemães eram, também, ceifados pelas rajadas mortíferas dos homens do coronel Rol.

No seu gabinete do Hotel Meurice, o Unteroffizier Otto Vogel, da 650.a Companhia de Transmissões, ouviu subitamente uma voz alemã gritar através da linha telefónica: ’’ Atenção, Hipnose, socorro...” Vogel sabia que Hipnose era o novo nome em cifra do Hotel Meurice. ”Estamos a ser atacados pelos terroristas... Venham depressa...” Vogel ouviu então no aparelho o som duma rajada de tiros. ”Estão a atravessar o pátio...” Seguiram-se várias detonações. Depois, um grito seguido dum estertor. Vogel ouviu ainda, entre os gemidos: ”Mutter, Mutter... hilf...” (Mãe, Mãe, acuda...). E, de repente, ressoou no auscultador o som duma voz francesa. Depois, o silêncio. Otto Vogel conservou o auscultador durante uns momentos junto ao ouvido. Em seguida, desligou. Jamais saberia donde telefonara nessa manhã o soldado alemão. De dentes cerrados, a cabeça entre as mãos, Vogel manteve-se imóvel durante largo tempo. Pela primeira vez, as lágrimas corriam pela face do pequeno sargento.

De ambos os lados, a batalha tomava, por vezes, o aspecto dum assassínio colectivo. No posto de socorros da Escola Saint-Vincent-de-Paul, na Rua da Harpe, uma enfermeira caridosa, a Sr.a André Koch, obrigada, por falta de espaço, a recusar a admissão dum soldado alemão ferido, ouviu um F.F.I, declarar: ”Não tem importância, nós matamo-los todos!” Segundos depois, a Sr.a Koch ouviu uma detonação. Na Praça de Ternes, um capitão alemão saltou duma viatura e, num ataque de loucura, caiu sobre um inofensivo transeunte que tranquilamente lia um jornal da Libertação. Abateu-o com um tiro de revólver e, depois, esmagou-lhe a cara a pontapés. A pobre vendedeira de jornais, que tinha acabado de lhe vender o periódico, deve apenas à sua presença de espírito ter escapado ao mesmo fim: jurou ao alemão que não sabia ler.

Mas, como em todas as batalhas, também o bom caminhava ao lado do péssimo. Na parada da Escola Militar, outro capitão alemão, chamado Otto Wagner, salvara do pelotão de execução, no último segundo, sete agentes de polícia. Concedera aos condenados uma maravilhosa prorrogação: duas horas, durante as quais um deles poderia ir buscar sete prisioneiros alemães, por quem eles seriam trocados. O jovem Roger Cadet viu partir um dos seus camaradas e arranjou maneira de lhe sussurrar: ’’ Vai ter com o meu pai.”

Mas as duas horas estavam já quase no fim. Na cave onde estava encerrado, Roger Cadet viu desfilarem na sua frente as imagens mais representativas da sua vida, ainda curta. Dez dias antes, praticara o irremediável gesto que o tinha conduzido ali. À luz duma vela, juntamente com o pai, polícia também, quebrara os selos da placa de cimento do esconderijo onde os dois armazenavam as armas da sua rede de resistência.

Roger Cadet olhou para o relógio. Faltavam apenas dez minutos. Dali a pouco, viu a porta abrir-se, e convenceu-se de que ia morrer. O alto vulto do capitão Wagner surgiu no limiar da porta. Cadet, ao ver o ar sombrio do oficial, compreendeu que não tinham trazido os prisioneiros alemães. Levantou-se e, com os seus companheiros, dirigiu-se para a porta. Atrás dele, alguém rezava ”Ave Maria...” De repente, por detrás do oficial, Roger Cadet viu o pai, transpirando na sua farda abotoada até ao pescoço. Tinha acabado de chegar e trazia, na velha e arfante camioneta do Comissariado, os sete prisioneiros alemães.

Os raros parisienses que momentos depois passaram defronte da Escola Militar puderam observar uma cena insólita. Enquanto o tiroteio estalava por todo o bairro, dois policias franceses, diante da porta de armas, ostentando no braço a braçadeira F. F. I., conversavam tranquilamente com um capitão da Wehrmacht. Eram o jovem Cadet, o pai deste e o oficial alemão que salvara a vida dos sete franceses.

No mesmo instante, numa sala do Hospital Principal, para onde os maqueiros F.F.I, o tinham levado, o Sonderfuhrer berlinense Alfred Schlenker, intérprete do Tribunal Militar que diariamente condenara à morte vários franceses, viu surgir sobre a sua cabeça o rosto preocupado de um civil. Schlenker, incorporado no Batalhão de Alerta n.º 1, tinha sido ferido momentos antes, numa perna, na Praça de Saint-Michel. Estava certo de que os ”terroristas” iam acabar com ele. O alemão viu o homem enfiar a mão numa algibeira. ”Vai puxar pelo revólver”, pensou. E cerrou os olhos. Quando, um ou dois segundos depois, voltou a abri-los, ao alemão deparou-se-lhe uma mão estendida para o seu rosto. Na extremidade dessa mão, ele jamais o esqueceria, estava um cigarro. Então, ouviu o civil dizer simplesmente: ”Tens sorte, Fritz... Para ti a guerra acabou.”

Nesse quarto dia de insurreição, dentre todas as ameaças que pairavam sobre o povo de Paris, uma havia que, de hora a hora, se tornava mais angustiante. De tal forma que, se não recebessem socorros imediatos, os insurrectos em breve seriam esmagados: já quase não dispunham de munições. Na Prefecture apenas podiam contar com mais algumas horas de fogo. No fundo do seu P.C. da ”Duroc”, o coronel Rol ouvia os apelos desesperados dos seus homens. Ele não ignorava, de modo algum, que, dentro em pouco, contra as metralhadoras alemãs, as suas tropas, à míngua de cartuchos, apenas poderiam combater com facas e navalhas. Rol estava convencido de que os gaullistas não tinham transmitido a Londres os seus imperiosos apelos para um lançamento maciço em pára-quedas sobre Paris de armas e munições. No entanto, nessa manhã, o chefe comunista não tinha razão em atribuir semelhantes desígnios aos seus rivais. Pelo contrário, o general Koenig estava firmemente decidido a que nenhuma razão política pudesse adiar por mais tempo o lançamento de pára-quedas que, na véspera, suspendera por 24 horas. Os 130 aviões da esquadrilha dos Carpet-Baggers, recheados de pistolas-metralhadoras, de granadas, de carregadores, de fitas de cartuchos para metralhadoras, estavam prontos a descolar para Paris. Mas um inimigo mais implacável que qualquer adversário político retinha-os presos ao solo. Um nevoeiro espesso, impenetrável, o autêntico ”fog” inglês, envolvia desde a madrugada o campo de Harrington. Olhando para os farrapos cinzentos que pairavam junto ao solo, o coronel Chuck Hefflin perguntava de si para si se chegaria alguma vez a cumprir aquela enguiçada missão. Nesse instante, a campainha-contínua do telefone secreto, sobre a sua secretária, começou a tocar. Em Londres, o Q.-G. do general Koenig acabava de ter conhecimento de que a 2.a D. B. tinha começado a deslocar-se de madrugada e avançava em socorro de Paris. A partir desse momento, no espírito dos chefes de Londres, o lançamento de armas em pára-quedas deixava de ter justificação. Poucos minutos depois, sob o olhar consternado do seu chefe, os homens do coronel Hefflin começariam a descarregar os aparelhos ’.

De momento, os gaullistas podiam sentir-se aliviados. Umas horas de ”fogo” britânico tinham milagrosamente pregado ao solo 200 toneladas de armas, 200 toneladas das espingardas e metralhadoras que, com razão, eles receavam ver, num dia próximo, apontadas para si.

 

                                 Capítulo vigésimo sexto

Jamais houvera almoço tão lúgubre. Com as mãos sujas de óleo usado, ar triste e desapontado, o cabo Serge Geoffrey do 1.° Regimento de ”Spahis” marroquinos e os seus companheiros esvaziaram, sem proferir uma palavra, as suas latas de feijões em conserva. Um pesado silêncio envolvia agora os campos normandos. A divisão partira. E apenas Geoffroy e os seus camaradas tinham ficado. Havia dois dias que o ”Marie Jill”, o tanque lança-obuses que eles tinham baptizado com os nomes de duas enfermeiras inglesas, estava avariado.

Quando acabou de comer, o cabo Geoffroy levantou-se e disse numa voz grave aos seus companheiros: ”Não se preocupem, rapazes. Não faltaremos à libertação de Paris. Conheço um caminho mais curto, chegaremos antes deles.” Geoffroy cumpriria a sua palavra.

Desde a madrugada que os 200 veículos da divisão avançavam sobre Paris, a toda a força dos seus motores. Nunca as estradas estreitas e sinuosas da Normandia tinham visto semelhante avalanche de carros. A divisão desenhava sobre os campos uma interminável serpente, composta de duas colunas de 20 quilómetros cada uma. Deslizando em silêncio sobre as suas seis rodas de borracha, as autometralhadoras dos ”spahis”, de bivaques vermelhos, os ”cães de caça” da divisão, abriam a marcha. Atrás deles, espreitando das torrinhas abertas dos enormes tanques-destroyers, viam-se as rosetas encarnadas dos fuzileiros navais. Envoltos nas nuvens de fumo azulado expelidas pelos seus motores Diesel, seguiam depois os carros ligeiros dos pelotões de protecção e, por fim, retalhando o pavimento com o peso das suas 34 toneladas, surgiam os Sherman dos regimentos das boinas pretas e dos bivaques azuis.

De tempos a tempos, as colunas eram obrigadas a afrouxar a marcha, praticamente assaltadas pela multidão que se agarrava aos veículos, atirava flores, beijava as viaturas e aplaudia com loucura. Lindas normandas gritavam com orgulho os nomes dos carros. Os Sherman, ostentando a Cruz da Lorena, evocavam, ao passarem por elas, dois séculos de vitórias francesas. Chamavam-se ”Friedland’’, ”La Marne”, ”Bir-Hakeim”... Na torrinha de um dos carros estava instalado um pequeno gabinete de trabalho, com uma secretária, uma cadeira e uma lâmpada de cabeceira. O canhão era fictício. Era a chaminé dum fogão de aquecimento pintada de verde. Philippe Leclerc, o tronco emergindo da torrinha, de rosto reluzente pela chuva, binóculo colado aos olhos,

 

1 Três dias depois, a esquadrilha dos Carpet-Baggers voará finalmente para Paris. Dessa vez, sacos de carvão e de farinha terão substituído nos ventres dos aviões as granadas e as metralhadoras destinadas ao coronel Rol.

 

um microfone instalado em frente do bigode, era o chefe de orquestra que conduzia, como numa parada, aquele extraordinário carrocei. O seu carro tinha o nome da propriedade da Picardia onde, havia quatro anos, a mulher e os seus seis filhos esperavam por ele. Chamava-se ”Tailly”. À retaguarda dos Sherman, com os seus canhões ameaçadores apontando para o céu, roncavam as enormes automotoras de 105- Mais atrás, deslizando sobre lagartas como desajeitados escaravelhos, vinham as filas de half-tracks, recheados de infantes. Seguiam depois os Dodge, com a cruz vermelha das enfermeiras ”Rochambelles”, os G.M.C, de aprovisionamento, esmagados sob o peso dos bidões de gasolina, os carros-oficina com as suas gruas, as suas correntes, os seus cadernais, e os gigantescos camiões Pacific com os respectivos reboques para o transporte de carros. Motocicletas, jipes sujos de lama, command-cars crivados de antenas, iam e vinham sem parar ao longo das colunas. Com as mãos em concha, junto à boca, os oficiais espetavam as cabeças e gritavam: ”Mais depressa! ”ou, com gestos, faziam sinal para acelerar a marcha. Meio cegos pela chuva que caía incessantemente, com os olhos queimados pelos gases dos tubos de escape dos veículos que seguiam na frente, sentindo de momento a momento o mastodonte que os transportava escorregar no pavimento molhado, ás tripulações desse exército, lançado para a frente a toda a velocidade, sentiam as suas forças duplicadas. No interior de todos os carros, os homens não interrompiam a sua vigília angustiosa sobre o comportamento dos motores. Oxalá - pediam eles a mecânica aguente até Paris!” Os olhos de Jean-René Champion fixavam-se no indicador de óleo do seu painel de bordo. Champion sabia que se a agulha branca passasse para lá do sinal vermelho, o ”sonho perfeito” de libertar Paris que acalentava teria acabado. Seria então obrigado a parar. E, como todos os homens da divisão, Champion, nessa quarta-feira, apenas tinha receio duma coisa: ser forçado a abandonar a coluna. No seu half-track, o tenente Henri Karcher, do Regimento do Chade, olhava para a pequena fotografia, partida e gasta, que tinha introduzido num canto do pára-brisas. Essa fotografia atravessara a Europa inteira antes de lhe chegar às mãos. Era o retrato duma criança de dois anos, que ele jamais vira. O seu filho Jean-Louis, nascido no dia 13 de Junho de 1940, morava no extremo daquela estrada, perto de Paris. Ao lado do tenente, cego pela chuva, pela lama e pelo fumo do half-track que o precedia, o motorista Léon Zybolski, um
húngaro, repetia como uma ladainha: ”Meu tenente, vamos malhar na valeta.” No seu jipe chamado ”Mata-Hari”, o oficial de informações Alfred Betz estremeceu. Na sua semi-sonolência, distinguira numa placa o nome duma localidade. ”La Loupe - repetiu. - Meu Deus, estamos em La Loupe.” O tenente Alfred Betz recordava-se de que tinha passado por La Loupe quatro anos e dois meses antes, numa manhã de chuva como aquela, mas na direcção inversa, juntamente com o estado-maior do 9.º Corpo de Exército, em plena derrota. O motorista do seu jipe o soldado de 2.a classe Francois Mutcheler, também estivera em La Loupe. Mas tinha sido apenas oito dias antes e envergando o uniforme dum Feldwebel das Waffen S. S. Incorporado à força na Wehrmacht, o alsaciano Mutcheler tinha desertado. Agora, ia libertar a cidade que um mês antes ocupava sob o uniforme feldgrau.

Rapidamente, como as quilhas de mil navios, os tanques atingiram e rasgaram as vastas superfícies planas da Beauce. De repente, o cabo-artilheiro Robert Mady viu surgir ”no meio do oceano amarelo das espigas de trigo” as flechas da Catedral de Chartres. Passada, a primeira emoção, Mady admirou-se que a ceifa ainda não tivesse começado’.

Quando o capitão Alain de Boissieu, de 30 anos, comandante do esquadrão de protecção do general Leclerc, descobriu também a silhueta maciça da catedral no meio dos trigos, disse para consigo: Cheguei a casa.” Cinco anos antes, por detrás daquelas agulhas apontadas para o céu, à beira do Eure, na pequena mas elegante vivenda em que moravam, Alain de Boissieu beijara os seus pais pela última vez. O oficial carregou no acelerador do seu jipe ultrapassou a coluna e prosseguiu velozmente a sua marcha. Pouco depois, entrou na cidade, contornou a catedral e subiu o boulevard Charles-Peguy. Boissieu parou junto de uma ponte cujo tabuleiro, como que decepado por gigantesca machadada, jazia partido em dois, no leito do rio. Na margem oposta, quase diante da ponte, viu, como se contemplasse um cenário de cinema, uma casa com a fachada destruída, sem tecto e de paredes escalavradas. Petrificado, Boissieu quedou-se onde estava, pregado ao solo. Aquela era a sua casa. O oficial dirigiu-se a uma velhota, que nesse momento surgiu no princípio da rua. Por ela soube que os alemães tinham feito explodir todas as pontes do Eure, antes da retirada. Todas as casas tinham sido evacuadas, incluindo a de seus pais. Sobre a ponte em frente da casa, o comandante alemão tinha mandado colocar 6 torpedos suplementares ”para que a senhora de Boissieu - dissera - saiba o que custa ter um filho ao lado de De Gaulle”. Contemplando as ruínas que o rodeavam, o oficial teve subitamente um pensamento sinistro: Meu Deus - pensou -, se os boches fazem o mesmo em Paris... que tragédia não se nos deparará amanhã?”

O portador da única mensagem verbal que poderia talvez poupar Paris à sorte que preocupava Alain de Boissieu encontrava-se num estado da maior exasperação. Havia doze horas que Rolf Nordling, o irmão do cônsul da Suécia, estava a ser submetido a uma série de interrogatórios tão minuciosos como esgotantes. Agora, na mesma pista de aterragem em que, na véspera, o general Ornar Bradley dera a Leclerc a ”luz verde” para arrancar sobre Paris, Rolf Nordling revelava ao general americano o objectivo da sua missão. Com o capacete atirado para trás, Bradley escutara em silêncio o sueco. O general alemão que comandava Paris, revelou Nordling, recebera ”ordens formais” para proceder a todas as destruições importantes que fosse possível realizar na cidade. Ele ainda não começara a executar essas ordens. Mas se a situação actual se prolongasse, não haveria escolha possível. Inclusivamente, advertiu Nordling, o general alemão sentia-se já pessoalmente ameaçado de ser afastado do seu comando. O que ele parecia desejar, era a entrada das forças aliadas em Paris, antes
que recebesse os reforços ou fosse obrigado a executar as ordens de destruição.

Bradley reagiu imediatamente. A operação que autorizara na véspera tomava repentinamente, aos seus olhos, um carácter de urgência desesperada. Tão bem como Eisenhower, Bradley sabia que as 26.a e 27.a S. S. Panzer, e muitas outras unidades, estavam em movimento no Norte e no Leste da França. Algumas dessas unidades, pensava Bradley, dirigiam-se certamente para Paris. Se os Aliados

 

1 Os homens da 2.a D.B. ignoravam que a Resistência, cumprindo uma ordem de Londres, pedira aos camponeses que não fizessem a ceifa, nem batessem o trigo, na região parisiense, a fim de impedir que os alemães se apoderassem do cereal.

 

não chegassem antes delas, a cidade corria o risco de se tornar num terrível campo de batalha. Mas, acima de tudo, o que inquietava o americano era o próprio general Von Choltitz. ”Nós não nos podemos arriscar a correr o perigo de esse tipo mudar de ideias”, disse para consigo. Bradley voltou-se então para o general Siebert. ”Ed -ordenou ele - , diga a Hodge para prevenir a divisão francesa de que deve forçar o andamento.” Depois, lembrando-se repentinamente do longo caminho que a 2.a D. B. tinha de percorrer, Bradley acrescentou: ”Diga igualmente a Hodge que tenha também a 4.a Divisão pronta a arrancar. Não nos podemos de forma alguma arriscar a que esse reles general mude de tenção e rebente com Paris.”

 

                                      Capítulo vigésimo sétimo

Dietrich von Choltitz estendeu a folha de papel azul ao homenzinho de monóculo que tinha na frente, sem proferir palavra. Havia 20 anos que Choltitz conhecia o coronel Hans Jay. Ainda jovens, tinham em tempos servido como oficiais no mesmo regimento. E, dois anos antes, no Hotel Adlon, em Berlim, Choltitz celebrara com Jay a imposição das suas novas dragonas de general. Enquanto o coronel, impassível, lia o telegrama, Choltitz contemplava da sua janela, uma vez mais, a perspectiva das Tulherias. Mas não havia, nessa manhã, qualquer gargalhada de crianças ou uma vela branca nas águas límpidas dos lagos a animarem o jardim. Em redor dos pequeninos bosques e dos maciços de vegetação, desenhados dois séculos e meio antes por Lê Nôtre, o general alemão apenas podia ver as silhuetas escuras e ameaçadoras dos seus soldados.

 

Quando Jay terminou a leitura do telegrama, dobrou o papel e devolveu-o ao general. Choltitz tentou em vão distinguir no rosto fino e distinto que tinha na sua frente um sinal de emoção. Esperava uma palavra de compreensão, um gesto de amizade, um sinal qualquer que lhe revelasse que ele não estava só. Porque naquele telegrama estava escrita a ordem mais brutal que Choltitz jamais recebera em toda a sua vida, a inconcebível ordem de um louco que, na noite anterior, Hitler ditara a Jodl e que ordenava a Choltitz que tornasse a cidade que se espraiava em
frente dos seus olhos num ”campo de ruínas”.

Mas Jay contentou-se em soltar um suspiro e murmurar: ’É uma desgraça, mas você não tem por onde escolher.” Dez minutos antes, o governador de Paris ouvira a mesma observação do único homem a quem igualmente mostrara o telegrama, o frio e distante chefe do seu estado-maior, o coronel Hans von Unger.

 

1 Vinte anos mais tarde, na Irlanda, onde veio instalar-se, o coronel Jay revelaria aos autores deste livro que não tivera coragem, nessa manhã de Agosto, de pronunciar as palavras que os seus lábios desejavam proferir após a leitura do telegrama: ”Resistência passiva, a única resposta possível a uma ordem tão insensata é oferecer uma resistência passiva”, pensara Jay. Mas, desde o seu último almoço com o general no Hotel Adlon, Jay ignorava o que se tinha passado no espírito do duro e brilhante herói de Sebastopol. Teve receio de se comprometer. Desde o dia 20 de Julho que os oficiais da Wehrmacht tinham tomado o hábito de guardar para si próprios os seus sentimentos mais íntimos.

 

Em resposta àquelas palavras, Dietrich von Choltitz deixou cair a sua pesada mão sobre o telefone e levantou o auscultador, num movimento brusco. ”Ligue-me^ao Grupo de Exércitos B”, ordenou.

A luz artificial da sua casamata subterrânea de Margival, 90 quilómetros ao norte de Paris, da qual não saía havia cinco dias, o chefe de estado-maior do Grupo de Exércitos B tinha adquirido uma cor doentia, de cera. Agora, ao ouvir a voz brutal, imperiosa, carregada de sarcasmos, que ressoava no aparelho, o general Hans Speidel parecia ainda mais pálido.

”Suponho que gostará de saber -disse Choltitz -que o Grand Palais está em chamas.” Em seguida, o comandante do Gross Paris exprimiu a sua gratidão pela ’bela ordem’’ que o Grupo de Exércitos lhe enviara.

”Que ordem?”, perguntou Speidel.

”Mas, a ordem de reduzir Paris a um monte de escombros!”, respondeu Choltitz. ”O Grupo de Exércitos - protestou Speidel - nada mais fez que transmitir essa ordem. E ela provém directamente do Filhrer.’’ Desprezando os protestos do chefe de estado-maior, Choltitz avisou então Speidel que fazia questão em lhe dar a conhecer as disposições que tomara, tendo em vista a sua execução. Já tinha mandado colocar, disse, uma tonelada de explosivos na Câmara dos Deputados, duas toneladas no subsolo dos Inválidos e três toneladas na cripta da catedral de Notre-Dame.

”Creio, Herr General - disse Choltitz -, que sem dúvida está de acordo com estas medidas.” Após estas palavras, fez-se um longo silêncio. Speidel ergueu os olhos para as torres de Notre-Dame e a perspectiva das Tulherias, que decoravam, numa frágil moldura, as paredes de aço e betão do seu bunker. Depois, com voz quase imperceptível, respondeu: ”Claro, sem dúvida... Herr General... estou de acordo.” Choltitz avisou então o chefe de estado-maior que estava também pronto ”a fazer explodir, duma só vez, a Madeleine e a Ópera”. Declarou igualmente que se preparava para dinamitar o Arco do Triunfo, a fim de desimpedir o eixo de tiro dos Campos Elíseos, e ainda a Torre Eiffel.

Speidel, no fundo da sua casamata, perguntava a si próprio se o comandante do Gross Paris estava a brincar com ele ou se perdera a razão. Mas Choltitz falava a sério. E não estava louco. Aterrado com a ordem que o Grupo de Exércitos lhe transmitira, tentara ’fazer compreender a Speidel a terrível situação dum soldado que recebe uma ordem como aquela, e que deve obediência aos seus chefes’’.

Na margem oposta do Sena, na central de transmissões quase vazia da Rua Saint-Amand, as machadadas desferidas pelo Feldwebel Blache ressoavam como tiros. Blache, o sargento cujos homens tinham sido assados ”como chouriços” em frente da Prefecture, quatro dias antes, destruía um a um os 232 telescritores. O seu camarada, o Feldwebel Max Cheider, desenrolava os 400 metros de fio detonador, ligado às 200 cargas explosivas que se encontravam distribuídas pelos três andares subterrâneos da Central. Rapidamente, o fio deu a volta ao quarteirão e alcançou o Peugeot 202 donde o chefe do Comando de Destruição, o Oberleutnant Von Berlipsch, devia comandar a explosão. Blache fez voar em estilhas os últimos telescritores e os seis homens do Comando saíram a correr do edifício. Atrás deles, ouviam-se os acordes duma valsa saindo duma janela: na sua pressa, tinham-se esquecido de destruir o posto de rádio.

No fim da rua, à retaguarda dos Feldgendarmes, Blache podia ver as expressões ansiosas dos habitantes do quarteirão e dos prédios vizinhos que precipitadamente tinham evacuado as suas residências. Com um gesto brusco da mão, o Oberleutnant Von Verlipsch baixou a alavanca do detonador. Um segundo depois, a Central de Transmissões, que durante quatro anos recebera e distribuíra todas as mensagens dos exércitos alemães da frente Oeste, da Normandia à Espanha, desaparecia numa nuvem de poeira e de fumo. Eram 11 horas e 51. Uma ínfima parcela do vasto programa de destruição que Adolf Hitler impusera para o território do Gross Paris acabava de ser executada.

No subsolo dos Inválidos, outro oficial, o Oberleutnant Ottfried Daub, do 112.º Regimento de Transmissões, vigiava a colocação dos fios detonadores ligados às cargas colocadas sob a central telefónica. Além dos explosivos, os homens do ”Spreng Kommando” do Oberleutnant Daub tinham igualmente colocado nas galerias garrafas de oxigénio comprimido a 180 atmosferas. No momento da explosão, essas garrafas teriam a acção destrutiva de dezenas de bombas incendiárias e provocariam um incêndio gigantesco. Assim, seriam também provavelmente reduzidos a cinzas pelas chamas, além da Central, as construções quatro vezes centenárias dos Inválidos, o Museu do Exército, o palácio e até o zimbório de ouro sob o qual repousava, no seu sarcófago de mármore, outro conquistador da Europa, Napoleão Bonaparte.

No Palácio do Luxemburgo, apesar das trinta e cinco horas de falta de energia eléctrica provocada pelo corajoso electricista Marcel Dalby, os trabalhadores da Organização Todt estavam prestes a terminar a escavação das câmaras de minas. Nessa altura, já os soldados de Choltitz tinham acumulado nas caves do palácio 7 toneladas de explosivo, o suficiente para fazer chover sobre metade de Paris os destroços da cúpula de oito faces do palácio e reduzir a confetti os frescos de Delacroix.

Na Praça da Concórdia, para lá das colunas corintias do Palácio de Gabriel, sobre o qual drapejava havia quatro anos a insígnia branca e preta da Kriegsmarine, os marinheiros do Korvet Kapitãn berlinense Harry Leithol acumulavam nas suas caves para cima de cinco toneladas de ’tellerminen’’ e munições, o bastante para ”estoirar com o edifício e com todos os prédios das vizinhanças”, assegurara aquele oficial aos seus superiores.

No lado oposto da imensa praça, na outra margem do Sena, no pátio da Câmara dos Deputados, os soldados da 813.a Pionierkompanie do capitão Werner Ebernach tinham recebido reforços. Durante a noite, a 177.a Pionierkompanie da 77.a Divisão de Infantaria chegara do leste. Enquanto os homens de Ebernach acabavam de minar as 42 pontes do Sena, cuja explosão, nessa Paris densamente povoada, provocaria uma tragédia ao lado da qual a destruição das pontes de Chartres não pareceria mais do que uma arranhadela, a recém-chegada companhia terminava a escavação das câmaras de minas sob as construções vizinhas da Câmara dos Deputados. Nesse momento, já nas caves do próprio Palácio Bourbon, templo da democracia francesa, e do elegante palacete vizinho, o edifício Lassay, residência do presidente da Câmara, as brocas eléctricas tinham furado os compartimentos destinados a receber os explosivos. Mais longe, sob as salas douradas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, os soldados da 177.a Pionierkompanie tinham amontoado diversas caixas de T. N. T. Deste modo, estava destinado a desaparecer duma só vez o admirável conjunto arquitectónico que margina a Praça da Concórdia e o Sena, desde o boulevard Saint-Germain até à Esplanada dos Inválidos. Simultaneamente, no outro lado da praça, os marinheiros ao Korvet Kapitãn Leithold fariam ir pelos ares o Palácio de Gabriel, de ambos os lados da Rua Royal. Assim, a simetria da mais bela praça do Mundo seria respeitada - no horror. Apenas haveria ruínas de um lado e de outro.

Um kubelwagen camuflado com arbustos surgiu nessa manhã na Esplanada do Champ de Mars. Em frente do pilar sul da Torre Eiffel estacou. Quatro homens saíram dele e começaram a dar a volta a pé a cada um dos pilares. Pertenciam ao Verkindungskommando (Comando de Ligação) da Divisão S. S. Liebestandarte Adolf Hitler. Uma hora antes, tinham recebido, directamente de Berlim, uma mensagem. Mensagem essa que lhes ordenava a preparação imediata da destruição de ”Walerzeichen von Paris in die luft zujagen’’, isto é, ”do símbolo de Paris no céu”. O Untersturmfuhrer Hans Schuett, de Leipzig, e os seus camaradas não tinham hesitado um momento. No espírito deles, o ’símbolo de Paris’’ não podia ser senão a Torre Eiffel.

Nas estações de caminhos de ferro, nas centrais eléctricas, nas centrais telefónicas, sob os Inválidos, no Palácio do Luxemburgo, na Câmara dos Deputados, à volta das 42 pontes, do Cais de Orsay e da Kriegsmarine da Concórdia, por outras palavras, em toda a cidade de Paris, os preparativos do implacável plano ordenado pela O. K. W. estavam quase terminados. Apenas faltavam algumas horas de trabalhos e a ordem final do general Von Choltitz para que Paris conhecesse a sorte apocalíptica de Varsóvia. Mas, no seu gabinete do Hotel Meurice, o general alemão era presa de um terrível dilema. Alguns dos seus oficiais tinham-se já permitido censurá-lo por não haver ainda utilizado toda a força dos seus meios na repressão da insurreição. Rodeado de homens que pareciam aceitar com fatalismo as ordens loucas de Adolf Hitler, Dietrich von Choltitz, angustiado, perguntava a si próprio por quanto tempo ainda poderia adiar a sua execução.

 

                                               Capítulo vigésimo oitavo

O posto de rádio destilava música suave. Confortavelmente instalado na cadeira dum grande dentista de Londres, o ”homem que assobiava ao falar” via chegarem ao fim as suas desditas: perante o radiorrepórter Larry Leseur, da cadeia americana C.B.S., encontrava-se, seguro por uma pinça, o dente novo que o clínico lhe ia colocar.

Leseur dizia para consigo que, no seu infortúnio, ainda tivera sorte: se tivesse tido aquele acidente uns dias mais tarde, perderia o único acontecimento daquela guerra a que por nada deste Mundo quereria deixar de assistir: a libertação de Paris.

De repente, a música suave parou, e Leseur ouviu o locutor pedir aos ouvintes que se mantivessem à escuta a fim de ouvirem ”uma importante declaração”. Segundos depois, Larry Leseur sentiu o coração parar. Uma voz excitada gritava no posto emissor: ”Paris foi libertada, Paris foi libertada!’’

No lado oposto de Londres, ao ouvir este grito, num estúdio da Bush House, o quartel-general da B.B.C., o representante londrino da cadeia americana C. B. S. considerou-se subitamente o homem mais feliz da capital britânica. Na sua gaveta, Dick Hottelet tinha uma pequena caixa redonda que continha um documento de inestimável valor. Era a reportagem imaginária sobre a libertação de Paris realizada na véspera por Charlie Collingwood, o mais directo rival de Larry Leseur. Por uma extraordinária série de circunstâncias, a gravação tinha chegado às suas mãos sem ter sido censurada ’.

Collingwood conseguira o ”scoop” mais sensacional da sua vida. Minutos mais tarde a sua voz dramática, descrevendo a libertação de Paris, iria penetrar em milhões de lares. Dois diários de Nova Iorque alteraram imediatamente a sua primeira página e transcreveram na íntegra, sob gigantescos títulos, a sua reportagem. Também no México, onde eram 5 horas da manhã, todos os jornais modificaram instantaneamente as suas primeiras edições. No jornal luminoso do Excelsior apareceram subitamente, em letras de fogo cortando a noite, as três palavras: Paris está libertada. 3000 quilómetros ao sul, dentro de algumas horas, ao tomar conhecimento desta notícia, a multidão invadiria pela primeira vez desde 1939 as ruas de Buenos Aires e iria gritar sob as janelas de Péron: Democracia, sim! Axis, no!’’ Noutro extremo da América, logo que a notícia se espalhou pelas ruas tortuosas de Quebec, o presidente do Município, Lucien Borne, pediu aos seus concidadãos que hasteassem as cores da bandeira francesa. Em Washington, quando Franklin Roosevelt, ao despertar, soube da libertação de Paris, sorriu e murmurou: ”É um luminoso presságio da vitória total.’’

A poucas centenas de metros da Casa Branca, no seu leito de hospital, o velho general Pershing, que 25 anos antes tão bravamente se batera para libertar a França, encontrou forças para articular algumas palavras: ”Como me sinto feliz!”, disse. Em Nova Iorque, junto à base do arranha-céus do Centro Rockfeller, perante 20000 americanos em delírio, Lily Pons começou a cantar a ”Marselhesa”, enquanto marinheiros, de pompons vermelhos, hasteavam as três cores, azul, branco e encarnado. Em Londres, nas ruas populares de Soho, no Piccadilly Circus, em redor da coluna de Nelson, na Trafalgar Square, havia pessoas que se abordavam, se beijavam e subitamente começavam a cantar a ”Marselhesa”. Para milhões de londrinos, tão duramente atingidos pela guerra, a libertação de Paris era um dia glorioso que anunciava para breve a vitória final. O próprio rei, participando da euforia dos seus súbditos, enviou um caloroso telegrama a Charles de Gaulle.

No meio daquele entusiasmo geral, ninguém prestou atenção aos confusos protestos do Grande Quartel-General Aliado. Dum extremo ao outro do Mundo, a incrível notícia espalhara-se com tal rapidez que nenhum desmentido era capaz de detê-la.

E, no entanto, tratava-se da maior mistificação da História. Em Paris, onde, pelas ruas e avenidas, continuava a ressoar o estrondo dos carros de assalto e dos camiões do general Von Choltitz, a notícia da Libertação caiu como um banho de chuveiro gelado. Nos fundos da loja do salsicheiro de Nanterre, onde encontrara abrigo e agora perguntava a si próprio se o seu amigo Pierre Berthy, detido no Mont-Valerian, ainda estaria vivo, o tenente americano Bob Woodrum ouviu de repente a voz de Lily Pons cantando a ”Marselhesa” no Centro Rockfeller de Nova Iorque. Nesse momento, uma autometralhadora passou na rua disparando.

 

1 Collingwood registara a sua reportagem num gravador dum tipo novo. Quando os censores doS.H.A.E.F. receberam a fita magnética não puderam ouvir o que ela continha. Expediram-na então à direcção dos serviços de censura, em Londres, onde os outros censores, persuadidos de que os seus colegas do S.H.A.E.F. tinham já visado o documento, o remeteram directamente ao seu destinatário.

 

Muitas balas foram cravar-se na frontaria da loja. Estupefacto, o americano disse de si para si: Não é possível; houve alguém com certeza que se enganou!’’ No Palácio Matignon, nos aposentos particulares do presidente do Conselho que ocupavam havia dois dias, Yvon Morandat e a sua secretária Claire olhavam aturdidos um para o outro. Ao mesmo tempo que o solene carrilhão do ”Big-Ben”, que acompanhava o anúncio da libertação da sua cidade, Yvon e Claire ouviam distintamente o tiroteio estalar nas ruas vizinhas. Claire estava consternada. ”Estes safados não sabem na verdade o que estão a fazer!’’, murmurou, desligando com raiva o receptor. No quarto andar do n.º 3 da Praça do Palácio Bourbon, mesmo diante da entrada da Câmara dos Deputados, em volta da qual os soldados de Choltitz desenvolviam nesse dia uma singular actividade, uma mulher reconheceu repentinamente a voz de Charlie Collingwood. Dez minutos antes, outra voz, a da porteira do prédio, revelara a Marie-Louise Bousquet, uma senhora da sociedade parisiense, que os alemães se preparavam para fazer explodir a Câmara e os edifícios vizinhos. Marie-Louise Bousquet não podia estar mais surpreendida. Como seria possível que ”aquele jovem e encantador americano que tantas vezes recebera nos seus salões, antes da guerra, procedesse daquela maneira?” Marie-Louise jurou então que, se alguma vez tivesse oportunidade de voltar a encontrar Collingwood, saberia fazê-lo arrepender-se da sua leviandade.

Pela primeira vez em três dias e três noites, o coronel André Vernon bebeu a sua chávena de chá sem fazer uma careta. No seu pequeno gabinete de estado-maior F.F.I, de Bryanston Square, em Londres, acendeu o cachimbo, instalou-se confortavelmente na sua poltrona e pôs-se a meditar com agrado na enorme mistificação que lançara. Pois era ele o verdadeiro autor da falsa notícia da libertação de Paris. Seis horas antes, naquele mesmo gabinete, Vernon decifrara o último apelo de Jacques Chaban-Delmas. Era um S. O. S. patético, advertindo Londres de que horrendo massacre se produziria em Paris se os Aliados não chegassem imediatamente. Vernon, que ignorava que nesse mesmo instante a 2.a D. B. de Leclerc rolava para Paris, torturara o seu espírito para descobrir uma ideia, um estratagema, que pudesse obrigar os Aliados a marchar enfim sobre a capital. E, de repente, fizera-se luz no seu pensamento. No silêncio da madrugada, começou a rabiscar umas palavras. Era um boletim de notícias tão fantasista como a reportagem que Charlie Collingwood gravara na véspera. Se a B.B.C., pensara o astucioso coronel, acedesse a lançá-lo no éter, o comando aliado nada mais poderia fazer do que ocupar a cidade que ele próprio acabava de libertar com um simples gesto sobre o papel.

 

                                           Capítulo vigésimo nono

Da janela da sala do restaurante do ”Monteiro-Mor”, o tenente Sam Brightman, do Serviço de Informações do S.H. A.E.F., contemplava os carros, os veículos de todas as espécies, os enxames de jornalistas, as centenas de civis ostentando braçadeiras tricolores e os oficiais de todas as nacionalidades que produziam um espectáculo de colmeia desordenada e repleta de zumbidos. ”Apenas falta De Gaulle - pensava o americano -, para tornar Rambouillet no mais belo alvo que jamais foi oferecido aos alemães desde o dia J.

Pouco depois, um sorriso iluminou o rosto do tenente Brightman. A jovem criada trazia-lhe uma lata de feijão de conserva aquecida, destinada a acompanhar a empada da sua ração K. No tabuleiro estava ainda um tesouro que fazia crescer água na boca do oficial americano: uma preciosa garrafa de ”riesling”, sobrevivente de quatro anos de ocupação alemã e de quatro dias de invasão jornalística. Brightman viu subitamente a rapariga estacar boquiaberta, no momento em que chegava à sua mesa. Ouviu-se um grande estrondo de vidros quebrados: deixara cair o tabuleiro. Os seus olhos, iluminados por uma aparição, encheram-se de lágrimas e ela começou a repetir, extasiada: ”De Gaulle..., De Gaulle..., é De Gaulle!...”

De facto, Charles de Gaulle acabava de chegar a Rambouillet. A frente do exército que ia libertar Paris, quase às portas da capital, a alta figura solitária que encarnara a França Livre durante quatro anos atingira nesse momento o início do último troço do extenso caminho que o trazia do exílio. De Gaulle e a sua comitiva instalaram-se no castelo de Rambouillet, cujas portas, reposteiros, pratas e até os leitos ostentavam o monograma do Estado francês, com o machado de guerra dos francos, símbolo dum regime agora caído. Desdenhosamente, o general recusou os magníficos aposentos presidenciais e foi modestamente instalar-se em dois quartos situados no último andar. Depois, Claude Guy viu-o entrar na biblioteca e escolher um livro ao acaso, cuja leitura o ajudaria a suportar as horas cruciais que iriam seguir-se. Era ”O Fidalgo Aprendiz”, de Molière. Charles de Gaulle guardou o volume na algibeira e desceu ao rés-do-chão. Aí, no sumptuoso cenário do salão de baile onde Carlos X abdicara, sobre a mesa de talha onde monarcas, imperadores e presidentes, desde Luís XVI e Napoleão até Poincaré, tinham dado, em nome da França, solenes banquetes, Charles de Gaulle e os três fiéis oficiais do seu gabinete entregaram-se à tarefa de abrir as latas de rações K para o seu almoço. Em seguida, De Gaulle mandou chamar Leclerc. Ardia de impaciência. A partir daquele momento, cada uma das horas que o separavam da sua entrada em Paris tomava uma importância e uma dimensão gigantescas.

Leclerc pesara cuidadosamente as informações fornecidas ao chefe do seu serviço secreto, o comandante Paul Repiton-Préneuf, por Hemingway e por dezenas de F. F. I. que tinham conseguido transpor as linhas. E tomara uma decisão importante.
As ordens dos seus superiores do V Corpo de Exército americano impunham-lhe que avançasse a direito sobre Paris, pelo caminho mais curto, isto é, por Rambouillet e Versalhes. Acontecia que as informações obtidas no decorrer das últimas 24 horas indicavam que os alemães tinham reforçado com mais de sessenta carros esse itinerário e que o tinham cuidadosamente minado. Leclerc, por sua própria iniciativa, decidiu então deslocar de 25 quilómetros para leste o seu eixo de marcha, passar por Arpajon e Longjumeau e entrar em Paris pelas portas de Orleães. Na sua ânsia de se lançar para a frente, o general francês descurou submeter à aprovação dos seus superiores americanos estas modificações nos itinerários, o que deveria provocar, horas depois, violentas e ásperas reacções contra ele.

No salão de baile do castelo, limpo das latas de conserva e das embalagens das rações, Leclerc expôs o seu plano a De Gaulle. Ambos sabiam que lutavam contra o tempo e que, defronte deles, os alemães reforçavam rapidamente as suas defesas. A operação que 24 horas antes se apresentava como uma marcha triunfal corria agora o risco de transformar-se num autêntico assalto. Se Leclerc não conduzisse a sua acção com estonteante rapidez, sujeitava-se a ficar bloqueado com toda a sua divisão, na estrada de Paris. Durante esse período, os alemães poderiam acabar de sufocar a insurreição e encaminhar reforços contra eles.   De Gaulle seguiu com a maior atenção a exposição do seu jovem general   Após demorada reflexão, moveu a cabeça e deu o seu acordo ao plano1 ’

Charles de Gaulle fitou então Philippe Leclerc nos olhos. De Gaulle nutria uma afeição especial pelo impetuoso e taciturno filho da Picardia Para ele Leclerc era uma espécie de afilhado espiritual. ”Tem sorte”, disse-lhe apenas’ fez-se um longo silêncio. Depois, o capitão Alain de Boissieu ouviu o seu futuro sogro acrescentar, numa voz imperiosa, uma última frase: Aja depressa - para que não tenhamos uma nova Comuna!”

 

                                           Capítulo trigésimo

O cabo Louis Loustalot, da 97a Companhia de Q. G., começou a abrir a cama. Três dias antes, nesse mesmo leito, o Feldkommandant alemão de Rambouillet tinha passado a sua última noite. Quando terminou, o cabo colocou um chocolate sobre a mesa de cabeceira. Loustalot sabia que, ao despertar, em dia de ataque, ”o patrão” gostava de comer chocolate. E no dia seguinte, de madrugada’ Philippe Leclerc chefiaria a acção mais memorável da sua carreira: o ataque a Paris.

Extenuados pela longa e esgotante desfilada para Rambouille, quase cegos por 14 horas consecutivas de fumos dos tubos de escape nos olhos, de uniformes trespassados pela chuva que não parava de cair, os 16000 homens da divisão tinham-se espalhado pelos campos e povoações que rodeavam Rambouillet. Deslizando na noite como sombras, os G. M. C. de abastecimentos largavam os bidões de gasolina junto dos carros e dos half-tracks. Chamando a si as derradeiras forças, os homens enchiam os depósitos, verificavam os níveis do óleo, mudavam as lagartas limadas por 200 quilómetros de galope desenfreado. No interior das tendas dos seus P. C. precipitadamente levantadas, à luz vacilante dos lampeões os comandantes de regimentos estudavam com os seus oficiais as ordens de operações, examinavam mapas, reuniam informações, organizavam os itinerários do dia seguinte. A divisão, dividida em três grupos de assalto, atacaria Paris por três eixos diferentes. Sob uma árvore da floresta de Rambouillet, o comandante Henri de Mirambeau, do 40.º Regimento de Artilharia, estabelecia os seus planos de fogo com o tenente-coronel americano que comandava o grupo de 155 adstrito à divisão. No dia seguinte, às 8 horas precisas, os potentes 155 americanos e os canhões automotores de Mirambeau, com os seus 15 quilómetros de alcance, esmagariam, lado a lado, os pontos de apoio alemães instalados às portas
de Paris.

 

1 É possível que uma das razões pelas quais Leclerc descurou avisar os seus superiores americanos das alterações introduzidas nas suas ordens de marcha tenha sido o facto de ele considerar que a libertação de Paris era um assunto exclusivamente francês, para o qual a autorização de De Gaulle bastava.

 

De todos os oficiais da divisão despertos nessa noite, talvez nenhum aguardasse as primeiras claridades da alvorada com maior impaciência que o tenente-coronel Jacques de Guillebon. 24 horas antes, com o pequeno destacamento à frente do qual, na antevéspera, abandonara clandestinamente a divisão, Guillebon quisera arrancar sobre Paris e levar auxílio aos insurrectos. Pela rádio, a meio da noite, pedira autorização a Leclerc para efectuar a audaciosa operação. Mas não conseguira obter resposta: o impedido do general não tinha ousado acordar o seu chefe para lhe transmitir o pedido. Naquela noite, pensava ele desapontado, a bandeira do governador militar de Paris deveria já flutuar sobre os Inválidos.

No bar do ”Monteiro-Mor”, invadido pelos jornalistas, os oficiais do esquadrão de protecção de Leclerc eram alvo de insistentes pedidos. Certos de que o general entraria em Paris à cabeça da sua divisão, os correspondentes de guerra, recorda-se o alferes Philippe Duplay, empregavam ”ardis de Sioux” para obter um lugar num carro ou conseguir que lhes fossem cedidos jipes dos pelotões de acompanhamento.

Em todas as unidades, os homens instalaram-se o melhor que puderam para passar aquela última noite antes da batalha de Paris. Estacionados perto da vila de Dampierre, os marinheiros do ”Simoun’’ não tiveram coragem para assar o pato encerrado no paiol. Mortos de sono e de fadiga, adormeceram rapidamente sobre os oleados das suas tendas. Perto de Limours, à luz fraca duma minúscula lâmpada do seu Sherman do 501.º Regimento de Carros, o cabo Patrick Deschamps, um parisiense de vinte anos que atravessara a pé a Espanha inteira para se juntar à sua divisão, lia o jornal mais extraordinário que jamais tivera sob os olhos em toda a sua vida: o Figaro, daquele mesmo dia, que um ciclista acabara de trazer da capital insurgida.

Quando acabou de dar as suas ordens para o ataque do dia seguinte, Emmanuel Dupont, o capitão que na véspera se confessara num pomar da Normandia, retirou-se para o interior do seu half-track da 11.a Companhia do Regimento do Chade, acendeu o isqueiro e pôs-se a ler um pequeno livro de capa bastante gasta. Era ”A Imitação de Jesus Cristo. Estamos na Terra como viajantes e estrangeiros...”, leu Emmanuel Dupont. Tendo lido esta frase fechou o livro, apagou o isqueiro e começou a rezar nas trevas.

Mas, nessa noite, ninguém estava mais entusiasmado e feliz do que um simples soldado de 2.a classe do Regimento de Carros. Deitado sobre a parte traseira do ”La Marne”, o Sherman de que era piloto, o caçador Paul Landrieux repetia em êxtase: ”Caramba, 25 quilómetros! Vocês estão a ver, rapazes? 25 quilómetros!” Landrieux acabara de ser informado de que o objectivo do seu esquadrão para a manhã seguinte era o arrabalde de Fresnes, situado a 25 quilómetros. Essa pequena distância era tudo o que, nessa noite, lhe faltava percorrer para concluir os 3000 quilómetros duma viagem que o tinha levado, desde as prisões espanholas, até aos desertos do Chade e da Líbia. Uma noite, em Fresnes, três anos antes, Landrieux dissera a sua mulher: ”Vou comprar um maço de Gauloises, volto daqui a dez minutos.” Mas nunca mais regressara. No dia seguinte, esses dez minutos teriam acabado. Nas ruas de Fresnes, Landrieux iria combater pela libertação da sua terra e da sua mulher, que ele ignorava se estava viva. Em vez dum maço de Gauloises, levaria um de Camel.

Enquanto os homens da 2.a D.B. se deitavam, procurando algumas horas de repouso, na região de Rambouillet os soldados doutra divisão lançavam-se no seu rasto.

Sob fortes bátegas de água, com todas as luzes apagadas, a 4.a Divisão de Infantaria americana deixava Carouges, a 260 quilómetros de Paris, e avançava para a capital. Alarmado pelo aviso de Rolf Nordling, o general Ornar Bradley escolhera propositadamente a 4a Divisão para apoiar a 2.a Divisão Blindada. Desde o dia do desembarque que essa unidade tinha sido, com as 1.a e 29.a Divisões, a ponta de lança do exército americano. Desembarcara em Utah Beach, apoderara-se de Cherburgo, resistira em frente de Mortain à pressão de três divisões Panzer e repelira o contra-ataque desesperado do Feldmarschall Von Kluge. Para o 12.º Regimento de Infantaria que abria nessa noite a marcha da divisão americana, o caminho que levava a Paris tinha sido um verdadeiro calvário. Os 3000 homens que nos seus veículos rolavam debaixo de chuva deixavam atrás de si 4034 mortos e feridos, caídos desde o desembarque de 6 de Junho, isto é, havia menos de 78 dias.

Apertados em fileiras de seis nos seus camiões, os G. Is. da 4.a Divisão estavam possuídos da mesma alegria febril que os franceses da 2a D.B. Com a imaginação excitada pelas lendas trazidas pelos combatentes da Primeira Guerra Mundial, pelas recordações dos seus antigos livros de estudo, pela História e pelos filmes de Hollywood, por Alexandre Dumas e Vítor Hugo, pelo ”gay Paris’’ e as suas belas raparigas, pelos postais ilustrados da Torre Eiffel e de Notre-Dame, enfim, pela magia do nome de Paris, avançavam à chuva com o mesmo ardor com que os soldados franceses iam libertar os seus lares.

”Chuva sobre os nossos uniformes da campanha, chuva no nosso café, chuva sobre as nossas cabeças’’, escreveu nessa noite no seu diário o médico Joe Ganna, de Roxbury, Massachusetts. ”Mas a excitação de ver Paris empurra-nos acrescentou ele - , e nós avançamos.” Ganna ouvia então, ao seu lado, no G.M. C. aos solavancos, o soldado de 1.a classe ”Davey” Davison murmurar: ”Deixo aos outros o vinho e as mulheres. A única coisa que peço é uma noite de sono, numa verdadeira cama.”

Cego pela chuva, no comando do 12.º Regimento de Infantaria, o coronel Jim Luckett, de Montgomery, Alabama, seguia à cabeça da divisão. Vinha-lhe um furioso desejo de cantar e sentia-se quase tão feliz como se regressasse a sua casa. Para o bravo coronel, aquele era um regresso ao país da sua juventude. Em 1928, quando estudante, conhecera em Paris os últimos lampejos dos tempos de loucura. Mas não eram apenas as recordações o que nessa noite chamava Luckett à capital da França. Era também a residência que possuía no n.º 10 da Rua das Belas-Artes e que jamais vira. O coronel ganhara-a numa aposta com um amigo colombiano, o artista San Diego Medina, e prometera a si próprio visitá-la logo após a sua chegada.

Para alguns destes americanos, a marcha sobre Paris era um autêntico regresso ao lar. O tenente Dan Hunter, da O.S.S., vivera aí a maior parte da sua vida. Na tenda do comandante da Paris Task Force, a unidade encarregada de localizar os ”colaboracionistas” da capital, Hunter passeou o dedo sobre um plano da cidade. Tinham-lhe pedido que escolhesse antecipadamente o local onde instalaria em Paris a sua unidade. O dedo parou num ponto que lhe era familiar: como numa alegre desforra, escolhera o seu antigo colégio.

À luz da chama do seu acendedor Zippo, outro oficial, Franklin Holcombe, estudava também um mapa, junto a um Sherman ostentando a Cruz da Lorena. O piloto do carro, francês, perdera-se e o robusto americano, que estudara durante quatro anos em Paris, indicava-lhe o caminho da capital. O francês nunca na sua vida tinha estado em Paris.

De Chartres, o coronel John Haskill decidiu tentar uma experiência. Dirigiu-se a um telefone e pediu que lhe ligassem para um número em Paris. Ouviu então de repente a voz da sua velha amiga Mimi Gielgud, a cunhada do célebre actor, que passara toda a ocupação em Paris. Haskill sentiu-se fulminado pela fleuma tipicamente britânica da sua amiga.

”Oh! John - exclamou ela -estava exactamente à espera do seu telefonema!

Mas nem todos os oficiais aliados partilhavam, nessa noite, dos sentimentos de emoção e entusiasmo dos homens da 2a Divisão francesa e da 4a Divisão americana. Para aqueles que dirigiam os transportes e os serviços de abastecimento, a libertação de Paris seria uma operação dispendiosa, difícil, cujo preço deviam começar já a pagar. Em Bristol e Southampton, 53 toneladas de medicamentos, 23 338 toneladas de biscoitos, de conservas e de leite em pó esperavam ser expedidas, com prioridade urgente, para o continente e’para Paris.

3000 toneladas seriam transportadas de avião, pela esquadrilha dos Carpet-Baggers. Para encaminhar o restante desde as praias da Normandia, o 21.º Grupo de Exércitos britânico teria de privar-se de 2000 G.M.C, e de 300 camiões-reboques de 3 toneladas. Os serviços logísticos americanos deveriam igualmente fornecer mais de 1000 camiões, normalmente afectos às linhas de comunicações militares.

O 21.º Grupo de Exércitos de Montgomery tinha igualmente recebido ordem para ceder 5000 toneladas por dia das suas provisões e de as remeter para Paris pelos seus próprios meios.

350000 litros de gasolina seriam dispensados diariamente para abastecer Paris. No decorrer das duas semanas seguintes da sua arrancada através do Norte e do Leste da França, os Aliados consumiriam mais de 5 milhões de litros de gasolina para ajudar a capital francesa a fazer triunfar a sua revolta. E, nessa quarta-feira à noite, na mesma tenda onde 48 horas antes dissera ”Não” ao francês Roger Gallois, o general Patton tinha debaixo dos olhos um número esmagador. Pela primeira vez, desde que tinham aberto a brecha de Avranches, as suas colunas blindadas tinham consumido no dia 23 de Agosto mais carburante do que o que tinham recebido. Exactamente dentro duma semana, diante de Metz, a 150 quilómetros das margens simbólicas do Reno, perseguindo os alemães em plena derrota, os tanques do 3.º Exército de Patton parariam por falta de gasolina. Para alcançar o Reno, faltar-lhe-iam precisamente os 5 milhões de litros que teria custado a libertação prematura da capital francesa’.

 

1 Provavelmente, nunca será possível avaliar em que medida a libertação prematura de Paris atrasou o avanço dos Aliados sobre o Reno. Seja como for, com ou sem a tomada de Paris, desenhava-se uma crise de carburante para os Aliados. Eisenhower declarou aos autores deste livro: ”Aquelas duas semanas eram sem dúvida vitais. Mas nós tínhamos alcançado o ponto crítico do nosso avanço. É difícil presumir até onde Patton poderia ter avançado. Entretanto, ter-se-ia certamente apoderado de Metz e duma grande parte da região para lá da cidade.” Quanto ao general Bradley, este declarou por sua vez aos autores deste livro: ”Se nós tivéssemos podido atingir o Reno, teríamos executado um passo de gigante. Precisávamos exactamente de mais duas semanas de gasolina, na minha opinião, para lá chegar. Por essa razão é que eu não queria ir a Paris. Não queria que a libertação de Paris nos privasse desse combustível, e foi isto que nos sucedeu.’’

 

Quando finalmente o exército de Patton recebesse a sua gasolina, em fins de Setembro, os alemães teriam já recebido reforços e ter-se-iam solidamente entrincheirado à retaguarda da linha Siegfried.

Patton, afinal, só iria atingir o Reno sete longos meses mais tarde, em 22 de Março de 1945.

O B. M. W. deslizava pela noite, sem ruído, com todas as luzes apagadas. No banco traseiro, enrolado, ”Mister”, o caniche do general Von Aulock, passava pelo sono. Como de costume, o próprio general era quem conduzia. Nessa noite, pela primeira vez havia vários dias, Aulock sentia-se satisfeito. As tropas que pedira como reforço dos seus 10000 homens, os quais ocupavam a linha que defendia os principais acessos a Paris, tinham finalmente começado a chegar. Em menos de seis horas, Aulock recebera um regimento blindado, comandado por um herói da frente russa, o coronel Pulkovski, que tinha uma perna de madeira, e o Messerschmidt Sturm-Bataillon, que imediatamente ocupara posições de ambos os lados da estrada de Nantes. Mas, sobretudo, Aulock soubera, nessa noite, que elementos do 5.º Exército Blindado seriam colocados sob o seu comando dentro dos próximos dias.

Nesse momento, acompanhado pelo chefe do seu estado-maior, o capitão Théo Wulf, Aulock regressava a Saint-Cloud, após minuciosa volta de inspecção às suas linhas de defesa, as defesas sobre as quais viria embater, dentro de algumas horas, a maré avassaladora da 2.a D. B. Mas nem Aulock nem Wulf sabiam, no entanto, que, nessa noite, a menos de 25 quilómetros dali, camuflados sob as árvores da floresta de Rambouillet ou nas colinas do vale de Chevreuse, os homens dessa divisão aguardavam a madrugada com a impaciência duma matilha esfaimada.

De facto, para o general das dragonas recém-estreadas, aquela inspecção tinha sido quase que apenas um passeio. Depois de ter escutado o relatório do comandante do sector de Versalhes, o coronel Seidel tivera tempo de saborear com o seu hospedeiro um cálice de Benedictine e de ouvi-lo tocar ao piano algumas melodias de Bethoven. Tranquilizado com o que vira e ouvira e com a ideia de que em breve os canhões e as blindagens do 5.º Exército viriam reforçar a sua linha de defesa, o general Von Aulock desferiu subitamente uma alegre palmada na coxa do seu chefe de estado-maior e exclamou: Acredite-me, Wulf, quando eles finalmente se decidirem a atacar, fá-los-emos pagar bem caro a sua Paris!”

Para Willy Wagenknecht, o prisioneiro alemão que com tanta amargura vira partir para a Alemanha as centenas de deportados franceses, a hora da libertação tinha soado. As portas da sua cela de Fresnes tinham-se aberto. E, em lugar da habitual sopa da prisão, Wagenknecht tivera nessa noite, para o jantar, presunto e empadas de fígado. Recebera até um maço de cigarros e meia garrafa de conhaque. Mas, apesar da sua raridade, estas Delikatessen deixavam-lhe na boca um gosto amargo. Willy Wagenknecht sabia que em breve iria ser obrigado a pagar o seu preço. Defronte dele, no pátio da prisão, desenhava-se o longo cano dum canhão de 88 mm. O alemão e os seus colegas de prisão tinham sido escolhidos para defender o edifício no qual, horas antes, se encontravam na situação de presos. Wagenknecht, à ideia de ter de combater pela sua própria prisão, sentia-se agoniado. 10 quilómetros a oeste das muralhas de Fresnes, no coração do maciço de flores da colina de Meudon, outro artilheiro vienense, o Obergefreiter n.º 4, Anton Rittenau, da Gemischte Flakbatterie n.º 4, ouvia alternadamente o ribombar do canhão e o tiroteio de Paris. Rittenau e os homens das peças vizinhas estavam prontos a abrir fogo sobre qualquer objectivo em menos de um minuto. Nessa noite, os canos dos 88 e 105 da artilharia estavam apontados para sudoeste, na direcção do aeródromo de Villacoublay. Mas, com poucas voltas de manivela, os mesmos canhões podiam ser dirigidos sobre Paris. Nas caves do castelo vizinho, transformado em observatório, Rittenau e os seus homens tinham armazenado mais de 800 disparos, ”mais do que o que era necessário para os dias seguintes”.

No interior da cidade, os soldados de Choltitz reforçavam as defesas dos seus pontos de apoio. Nas proximidades da ponte de Neuilly, o antigo tripulante de tanques Willy Krause, agora soldado apeado, por não ter conseguido destruir uma barricada, ocupava-se em colocar em bateria meia dúzia de canhões anticarros. Minutos depois de ter comandado o pelotão que acabara de executar dois marinheiros desertores, o Feldwebel Karl Froelich, de 21 anos, procedia à instalação dum morteiro sobre o telhado do palácio Crillon, dominando a Praça da Concórdia, eriçada de defesas anticarros.

No bar do hotel Raphael, ocupado por uma unidade combatente, o mineral offizier Walter Neuling observava um jovem capitão que, junto dele, se entretinha a esvaziar a terceira garrafa de champanhe. A ambição de toda a sua vida, confessou o capitão, de repente, a Neuling, tinha sido ser arquitecto. Em vez disso, tornara-se especialista em demolições e, nesse momento, acabava de realizar a maior obra da sua carreira. Tinha, disse, minado ”metade de Paris”. Enquanto bebia a sua taça de champanhe, o capitão Ebernach - pois era ele- reconheceu que essa não era, de facto, ”uma missão particularmente agradável!” Mas, acrescentou, quando recebesse ordem para proceder às explosões, não hesitaria. ”Até em Berlim se há-de ouvir o estrondo!”, afirmou.

Era meia-noite quando dois vultos pararam sobre a pequena ponte do Sena. A poucas centenas de metros de distância, destacando-se na claridade da noite luarenta, Alexandre Parodi e Yvon Morandat repararam na coluna de fumo negro que se
elevava ainda do Grand Palais. Era um dos espectáculos mais sinistros que o representante de Charles de Gaulle, na cidade ocupada, jamais contemplara. Dali a pouco, pensava, Paris não teria armas, nem munições, nem qualquer coisa para comer, nem mesmo esperança. A insurreição iniciada quatro dias antes num ambiente de entusiasmo não poderia manter-se sem a ajuda do exterior. E ninguém em Paris sabia que essa ajuda estava a caminho. Para Parodi, bem como para os 3 milhões e meio de parisienses, a capital, nessa noite, parecia abandonada ao seu destino, simbolizado pela coluna de fumo negro e espesso que subia nos ares sobre a carcaça calcinada do Grand Palais.

De lágrimas nos olhos, Parodi voltou-se então para Morandat e murmurou: ”Yvon, amanhã eles vão incendiar Paris inteira, e eu serei o responsável disso perante a História!”

 

                                            Capitulo trigésimo primeiro

Pela segunda vez em 24 horas, a caneta do coronel-general Alfred Jodl não conseguia acompanhar a torrente de palavras que brotava da boca de Adolf Hitler. Desde a manhã que os telescritores da O.K. W. transmitiam relatórios alarmantes sobre o agravamento da situação em Paris. Na sua última mensagem, o general Von Choltitz acabara ele próprio por admitir que os ”terroristas” desenvolviam ”uma actividade intensa’’ em toda a cidade. Estas notícias tinham provocado em Hitler uma explosão de cólera que se tornaria memorável. Ira essa que se tinha transformado num verdadeiro ataque de raiva quando o perito em armamentos junto da O. K. W., o general Buhle, anunciou que uma série de poderosos ataques aéreos aliados tinham completamente paralisado a circulação ferroviária à volta de Paris. Os S. O.S. desesperados de Jacques Chaban-Delmas tinham tido, pelo menos, um efeito: nessa noite, o general Buhle fora obrigado a confessar que, em virtude desses bombardeamentos, o Mõser Karl” não progredira um único metro durante o dia.

Enquanto ditava as suas ordens a Jodl, Hitler berrava que, se a Wehrmacht não fosse capaz de esmagar a corja de maltrapilhos das ruas de Paris”, aquela se cobriria de vergonha e da maior desonra da sua história. Ordenou a Model que enviasse todos os seus tanques e veículos blindados disponíveis para Paris. Quanto ao comandante do Gross Paris, ele deveria, comandou Hitler, agrupar os seus blindados e a sua artilharia em unidades de ataque especiais, a fim de ”arrasar sem piedade os núcleos insurrectos”. Exigiu, por fim, que a Luftwaffe interviesse com todos os seus meios para ”esmagar com bombas explosivas e incendiárias os bairros da cidade onde a revolta se fazia sentir com maior intensidade”.

o general Walter Warlimont, que foi testemunha, nessa quarta-feira à noite, do tremendo acesso de raiva do senhor do III Reich, anotaria no seu diário pessoal uma reflexão que já tinha acudido também ao espírito de muitos franceses: Agora - escreveu ele -, em Paris vai acontecer o mesmo que em Varsóvia.’’

No seu quartel-general subterrâneo do Grupo de Exércitos B, em Margival, donde comandava as operações de toda a frente Oeste, o Feldmarschal Walter Model estudava os últimos relatórios do dia. Como todos os outros que recebera nos quatro dias anteriores, nenhum se referia à iminência dum ataque aliado contra Paris. Apenas assinalavam ”fracos reconhecimentos de blindados” defronte da capital. Um deles dizia até que os Aliados deveriam ”esperar a chegada de novas unidades”, antes de poderem organizar um movimento importante sobre Paris’.

No quartel-general do comandante-chefe a Oeste, por um mistério inexplicável, ninguém, nessa noite, estava ao corrente da corrida para Paris em que se tinha lançado a 2.a Divisão francesa e a 4.a Divisão americana.

E, no entanto, Model, tocado por qualquer intuição ou pelo facto de não poder continuar, sem se arriscar a comprometer-se definitivamente, a manter a sua estratégia pessoal, em detrimento da que tinha sido imposta pela O.K. W., enviara, no decorrer do dia, os primeiros reforços para a frente de Paris. No início da tarde, em seguimento a uma premente chamada telefónica do general Warlimont, Model acedera finalmente em reunir todas as unidades dispersas que

 

1 Tegasmeldung 23.8.44 AR AGB n.° 6457/44.

 

pôde encontrar. Ordenara que essas unidades fossem enviadas para as linhas de defesa de Paris, estas mantidas pelos 10000 homens do grupo de combate do general Von Aulock, reforçadas por diversos elementos blindados e duzentos canhões de 88.

Sabedor de que os ataques aéreos aliados obrigariam as 26.a e 27.a S. S. Panzer a circular apenas de noite, o que atrasaria consideravelmente a sua chegada a Paris, o Feldmarschall Model tomou, nessa noite, três decisões. Ordenou à 47.a Divisão de Infantaria que se agrupasse na região de Méru-Neuilly-en-Thelle, a 50 quilómetros ao norte da capital, e que estivesse pronta a cair sobre o flanco noroeste de Paris1. Ordenou ao 1º Exército que reunisse, nos arredores de Meaux, 44 quilómetros a leste de Paris, todas as suas unidades blindadas disponíveis e que as fizesse seguir imediatamente para a capital2. Por fim, mandou a 2.a brigada de canhões de assalto avançar sem demora em direcção a Paris 2.

 

Era meia-noite quando o pequeno Feldmarschall de monóculo acabou de ditar as suas instruções ao chefe da 3.a Repartição, o coronel tirocinado de estado-maior Von Tempelhof, e ao seu adjunto, o comandante Gemring. Quinze minutos depois, as ordens do comandante-chefe partiam através dos telescritores do Q.-G. donde Hitler um dia tinha tido a esperança de comandar a invasão da Inglaterra. Model achava que essas unidades poderiam atingir as suas posições dentro de dois dias, isto é, a 25 ou a 26 de Agosto. Em caso de urgência, elas permitiriam a Choltitz resistir até à chegada das duas divisões blindadas S. S. Nesse momento, com mais de três divisões sob o seu comando, Model estava persuadido de que o vencedor de Sabastopol teria ao seu dispor os meios necessários para travar, pela defesa de Paris, a cruel e sangrenta batalha que Hitler exigia. Tudo o que o enérgico Feldmarschall precisava agora era de algum tempo. O tempo necessário para permitir às unidades que pusera em movimento que ocupassem as suas posições. Precisava, para tanto, de 48 horas, exactamente.

 

                                         Capítulo trigésimo segundo

Adormecida no fundo do seu vale, naquela doce noite de Verão, a pequena cidade alemã parecia bem longe da guerra. Na avenida deserta, em tempos povoada de noctívagos, apenas se ouvia, nessa noite, o restolhar das tílias sob a brisa e os passos apressados dum vulto. Uberta von Choltitz regressava a casa, inquieta. Minutos antes, quando a orquestra da Ópera de Baden-Baden atacava a grande ária de Senta do ”Navio Fantasma”, de Richard Wagner, a sua obra preferida, uma arrumadora viera ao seu camarote e segredara-lhe que a chamavam de casa com toda a urgência.

Certa de que qualquer desgraça tinha acontecido a Timo, o seu filho mais novo, de quatro meses, Uberta von Choltitz acelerou o passo, atravessou o rio, contornou a igreja russa e subiu pela Viktoriastrasse. Esbaforida pela escalada de três andares, correu para o quarto do pequeno Timo. Mas o bebé dormia sossega-

 

1 AR GR B l a 6503/44 24.8.44 0.45.

2 AR GR B l .a 6504/44 24.8.44 0.45.

 

damente no seu berço. Johana Fisher, a criadita que, catorze dias antes, tinha ido comprar à padaria os últimos bretzels de Dietrich von Choltitz, estendeu então a Uberta um bocado de papel. O senhor, disse ela, tinha telefonado. Mas, como não havia podido manter a comunicação, ela decidira anotar num papel o recado que ele lhe tinha dito para transmitir à senhora. Seria a última mensagem que Uberta von Choltitz receberia de seu marido durante mais de um ano. Dizia apenas: Uberta, estamos cumprindo o nosso dever!

 

                                       Capítulo trigésimo terceiro

Num passo silencioso, o impedido Helmut Mayer avançou pelo longo corredor de passadeira vermelha. No tabuleiro que transportava encontrava-se o invariável pequeno almoço do general: uma chávena de café, quatro fatias de pão e um boião de compota de laranja. Como todas as manhãs, o cabo trazia igualmente uma pasta preta. O tenente Von Arnim, o ajudante-de-campo do general Von Choltitz, tinha-lha entregue minutos antes. Continha os telegramas e as mensagens recebidas durante a noite no estado-maior do Hotel Meurice. O impedido notou que, nessa manhã, a pasta era mais volumosa do que habitualmente.

Mayer abriu sem ruído a porta do quarto n.º 238, poisou o tabuleiro sobre a mesa de cabeceira e foi abrir os pesados reposteiros. Quando os primeiros raios de luz penetraram no aposento, o general abriu os olhos. Depois, como todas as manhãs havia sete anos, perguntou ao seu jovial servidor: ”Que tal está hoje o tempo, Mayer?”

Ò tempo estava sombrio e eram exactamente 7 horas, nessa quinta-feira, 24 de Agosto. O dia que então principiava seria o último em que o cabo Helmut Mayer traria o pequeno almoço ao governador militar do Gross Paris.

Choltitz colocou o monóculo, abriu a pasta preta e principiou a ler os telegramas. O primeiro que viu era a ordem pessoal que Hitler ditara na noite anterior a Jodl: ordenava que ”fossem eliminados sem piedade os núcleos insurrectos (...) e esmagados com bombas explosivas e incendiárias os bairros da cidade onde a revolta ainda se fizesse sentir’’l. As cópias das ordens que o Feldmarschall Model dirigira à 47 .a Divisão de Infantaria, ao 1.º Exército e à 11 .a Brigada de Canhões de Assalto deram a conhecer a Choltitz que estavam a ser-lhe

 

1 Esta ordem aparecera no telescritor do Hotel Meurice à 1 hora da manhã. A primeira pessoa que dela tivera conhecimento fora o tenente Ernst von Bressensdorf, chefe do serviço de transmissões, de serviço nessa noite. Aterrado com o seu conteúdo, o oficial tinha decidido demorar o mais possivel a sua entrega ao destinatário, se bem que a ordem apresentasse a indicação ”KR Blitz” (Muito Urgente). Em vez de acordar imediatamente o general Von Choltitz, Bressensdorf tinha feito a mensagem aguardar toda a noite na sua algibeira, e fora só às 6 horas da manha que a entregara ao tenente Von Arnim. Bressensdorf estava convencido de que essa ordem conduziria à destruição de Paris e que, após a sua execução, os alemães que viessem a cair nas mãos dos franceses seriam impiedosamente massacrados, como represálias. Vinte anos mais tarde, perante os autores deste livro, Bressensdorf admitirá que receava ele próprio ser feito prisioneiro e sofrer esse destino.

 

enviados reforços pela O. B. West. Mas, em especial, a pasta preta continha nessa manhã a notícia importantíssima que Model por duas vezes se abstivera de levar ao conhecimento do comandante do Gross Paris ’. Um telegrama emanado do gabinete de operações do Grupo de Exércitos B anunciava finalmente a Choltitz que as 26.a e 27.a Panzer S. S. tinham entrado em França e se dirigiam para Paris, a fim de se colocarem sob o seu comando.

Choltitz recorda-se de que se conservou, durante largos momentos, com a cabeça encostada à almofada, incapaz de fazer um gesto. O terrível dilema que, havia 48 horas, o apavorava dia e noite, trair as ordens que recebera ou destruir Paris, ia então, nesse momento, resolver-se tragicamente. A outra eventualidade, aquela em que Choltitz pusera todas as suas esperanças, a ocupação imediata de Paris pelos Aliados, não se tinha verificado. Nem ele nem alguém tinham ainda recebido quaisquer notícias da missão Nordling, e havia já dia e meio que esta se pusera a caminho. Era agora evidente, para o comandante do Gross Paris, que os anglo-americanos não tinham querido, ou não tinham podido, aproveitar-se do seu gesto e lançar-se sobre a capital, que nenhum sistema defensivo sério protegia. E agora, que os reforços estavam prestes a chegar, Choltitz teria de bater-se para defender a cidade. A sua noção do dever, o seu brio militar, obrigavam-no a proceder dessa forma. Seria, bem entendido, como ele estava convencido, uma batalha inútil: alguns dias ganhos, numa guerra já perdida, pelo preço de milhares de mortes e de irreparáveis destruições. Mas o general estava agora entre a espada e a parede. Dessa vez, não tinha por onde escolher. Teria de bater-se. E, portanto, bater-se-ia.

Era a primeira vez na sua carreira que o velho militar, o vencedor de Roterdão e de Sebastopol, encarava com tão pouco entusiasmo semelhante perspectiva. Mas, quaisquer que fossem as suas objecções particulares a respeito do combate que iria travar, estava resolvido a fazê-lo sem a menor fraqueza.

Engoliu de um trago o seu café, levantou-se e, descalço, dirigiu-se para a banheira que Helmut Mayer já lhe enchera de água.

A menos de 500 metros da casa de banho onde, envolto numa nuvem de vapor, o general alemão reflectia sobre o conteúdo das mensagens que acabara de ler, um robusto jovem de rosto bronzeado ouvia, estupefacto, no segundo andar dum edifício da
Rua de Anjou, as revelações que lhe eram feitas por uma voz de sotaque germânico. Confortavelmente instalado numa poltrona antiga, junto do leito onde o cônsul Nordling se restabelecia do seu ataque cardíaco, o agente do Abwehr Bobby Bender repetia, palavra por palavra, ao inspector de finanças Lorrain Cruse, adjunto directo de Jacques Chaban-Delmas, o conteúdo de todas as ordens e mensagens de que Dietrich von Choltitz mal tinha acabado de tomar conhecimento.

Graças às cumplicidades de que dispunha no estado-maior do Gross Paris, Bender conhecia, antes mesmo dos seus destinatários, o teor de todos os des-

 

1 Segundo o general Von Choltitz, o ”descuido” do Feldmarschall Model teria sido deliberado. Ao contrário de Hitler e dos estrategas da O.K.W., Model não estava convencido de que o local onde essas duas divisões eram mais necessárias fosse Paris. Este procurara manter secreta a sua chegada talvez para poder no último momento alterar-lhe o destino.

 

pachos. Sabedor de que iria encontrar, em casa do diplomata sueco, um representante da Resistência, Bender tinha anotado, nessa manhã, com especial cuidado, as informações recebidas durante a noite.

A situação era extremamente grave, afirmava o alemão. Com as duas divisões Panzer S. S., a 47a Divisão de Infantaria, os elementos blindados do 1.º Exército e os canhões de assalto da 11.a Brigada, Choltitz iria travar uma batalha selvagem. As ordens de destruição que ele continua a receber de Hitler são cada vez mais implacáveis. Vai ser obrigado a executá-las, caso contrário, ele próprio e toda a sua família correm o risco de serem fuzilados. Numa voz patética, o alemão declarou ao francês e ao sueco: ”Se os Aliados não chegam no decorrer das próximas horas, haverá uma catástrofe.”

Ao ouvir estas palavras, Lorrain levantou-se e saiu precipitadamente da residência do cônsul da Suécia. Montando na sua bicicleta, pedalou furiosamente em direcção ao esconderijo onde Chaban-Delmas instalara o seu P.C. secreto. ”Depressa -gritou ele ao entrar esbaforido no gabinete do jovem general. -É necessário prevenir os Aliados: Choltitz aguarda a todo o momento a chegada de duas divisões blindadas S. S. Vai combater e destruir Paris.’’

Vinte minutos mais tarde, curvado sobre o guiador duma velha bicicleta, um rapagão louro corria pelos boulevards exteriores em direcção às portas de Orleães. Chamava-se Jacques Petit-Leroy. Tinha 24 anos. E estava louco de alegria e de orgulho: era a primeira missão de confiança de que a Resistência o encarregava. Na sua velha bicicleta sem mudanças, ia tentar transpor as linhas e encontrar-se com o general Leclerc ou com os americanos, para lhes dar a conhecer o texto das mensagens ultra-secretas de que o próprio comandante do Gross Paris só momentos antes tinha tomado conhecimento. Assim, os Aliados seriam avisados, uma última vez, de que Paris estava na iminência de ser arrasada dentro das próximas horas se as suas tropas não entrassem imediatamente na cidade.

 

                                            Capítulo trigésimo quarto

Leclerc não tinha esperado. Desde a madrugada que homens e veículos da 2a ’i D.B., deixando para trás os cordões luminosos de chuva da floresta de Rambouillet, percorriam a toda a velocidade os últimos 40 quilómetros que os separavam de Paris. Duma colina dominando a floresta prestigiosa, na qual antigamente reis e presidentes ofereciam caçadas, Philippe Leclerc, com um impermeável de capitão sobre os ombros, via as suas unidades afastarem-se, uma após outra: ele sabia que Paris era agora a meta duma corrida de velocidade decisiva.

Dividida em três grupos tácticos, a divisão dirigia-se para o sudoeste da capital, cobrindo uma frente de cerca de 30 quilómetros de extensão. A 1.a coluna era a mais poderosa. Sob as ordens do comandante Morel Deville, era a única que seguia o itinerário que o V Corpo de Exército americano indicara como eixo de marcha para a divisão inteira, isto é, o caminho mais curto para Paris, passando por Trappes, Saint-Cyr e os arredores do Palácio de Versalhes, até à ponte de Sèvres. Competia-lhe, apenas, uma missão de diversão: fazer ”o maior barulho possível”, para que os alemães pensassem que os franceses iriam fazer convergir sobre esse eixo a maior intensidade do seu esforço.

A 8 quilómetros para leste, a 2.a coluna, comandada pelo tenente-coronel Paul de Langlade e pelo comandante Jacques Massu, rolava pelas encostas verdejantes do vale de Chevreuse, em direcção a Toussous-le-Noble, a Villacoublay, Clamart e às portas de Vanves.

O esforço decisivo pertencia a um terceiro agrupamento táctico, comandado pelo coronel Pierre Billotte, cujo eixo de progressão era a estrada Orleães-Paris, por Longjumeau, Antony e Fresnes.

Nas primeiras horas da manhã às três colunas não se deparou qualquer resistência importante. Nas vilas e nas estradas abriam passagem através da multidão em delírio. Mulheres e raparigas saltavam para os estribos dos camiões, escalavam os carros, submergiam os libertadores sob um dilúvio de flores, frutos, vinhos, beijos e lágrimas. Jean-René Champion, o francês da América que conduzia o carro ”Mort-Homme”, viu uma velhota fazer-lhe sinais frenéticos. Levantou a cobertura da sua torrinha e sentiu cair qualquer coisa sobre os seus joelhos. Era uma caçarola com tomates recheados. O tenente Alain Rodei apanhou no ar um frango assado e uma garrafa de champanhe, que uma padeira de Longjumeau lançara de longe sobre o seu carro. Para outros havia presentes mais modestos mas não menos enternecedores. O cabo Claude Hadey estendeu o braço e recolheu de cima do carro um pequeno ramo de flores tricolor, ali deposto por uma tímida menina.

Nas ruas de Orsay, inundadas por um mar de gente, Henri Karcher, o tenente que colocara um retrato do filho, que ainda não conhecia, num canto do pára-brisas do seu half-track, contemplava as mulheres e as crianças que se acotovelavam à sua passagem. ”Sabes, Zybolski - disse ele de repente ao seu motorista-, se o meu pequeno se encontrasse no meio desta multidão, eu nem saberia que era ele.” E, no entanto, ele estava de facto ali. No dia seguinte, diriam a Kracher que o seu filho Jean-Louis, nascido em 3 de Junho de 1940, se encontrava naquela mesma rua e gritava à passagem das viaturas: ”Onde está o papá? Quero ver o papá!”

Com enorme surpresa, os soldados da divisão verificaram que as linhas telefónicas de Paris não tinham sido cortadas. De todas as vezes que a coluna parava, os homens precipitavam-se dos veículos e corriam para os cafés, lojas e cabinas telefónicas e pediam o número que, em sonhos, tantas vezes tinham pronunciado. Patrick Deschamps, o jovem soldado que, na véspera à noite, lera no interior do seu carro o primeiro Figaro, foi um dos que mais
rapidamente conseguiu obter a ligação com Paris. ”Mãe - gritou ele -, põe o champanhe a gelar! Estamos aqui, a dois passos!’’ Quando ouviram a voz do pai ou da mãe, muitos foram os homens que não souberam o que dizer. ”É verdade, sou eu...”, disse simplesmente o cabo Pierre Lefèvre a sua mãe. Mas muitos números não atendiam. O alferes Roger Touny soube por um tio que o pai tinha sido preso pela Gestapo em Fevereiro’.

Em Arpajon, o cabo Maurice Boverat aproveitou uma paragem da sua coluna para penetrar na primeira vivenda que viu na sua frente. ”Minha senhora pediu à dona da casa -, ligue-me para Élysées 60-47, é a casa de meus pais!’’ A

 

1 Seu pai, um herói da Resistência, estava morto havia já cinco meses. Tinha sido fuzilado perto de Amiens, pouco depois de ter sido preso.

 

amável senhora fez imediatamente a ligação, mas, nesse instante, Boverat viu a sua coluna começar a mover-se. ”Quando conseguir falar com a minha mãe disse ele enquanto corria para o seu jipe - diga-lhe que o filho está muito perto, que está a chegar... que está num regimento de boinas pretas...”

Minutos depois, no n.º 32 da Rua de Penthièvre, no centro de Paris, o telefone tocou em casa dos pais do cabo. A senhora Boverat soube então que o filho estava prestes a chegar ’’integrado num regimento de boinas pretas’’. Emocionada, só teve forças para dizer: ”Obrigada.” Depois de ter desligado, uma dúvida atormentou-lhe o espirito: ”O meu filho está a chegar... mas qual deles? Maurice ou Raymond?...” A senhora Boverat tinha os seus dois filhos ’’ com De Gaulle”1.

Dentro de alguns minutos, em Massy-Palaiseau, nos limites de Arpajon e em Trappes, as três colunas da 2.a D. B. iriam chocar-se com os primeiros elementos do general Hubertus von Aulock. Os ”88”, os terríveis canhões da artilharia alemã, tinham acabado de abrir fogo. Para a 2.a D. B. a parada estava no fim.

 

                                           Capítulo trigésimo quinto

Dietrich von Choltitz reconheceu imediatamente a voz do seu interlocutor. Estava surpreendido por este ainda não lhe ter telefonado, após a longa entrevista que tinham tido três dias antes. Mas o oficial da Luftwaffe que o Generaloberst Ótto Desloch, comandante da 3.a Força Aérea, enviara ao general Von Choltitz, para fazer duma parte de Paris uma pequena Hamburgo’’, entretanto fora mobilizado para uma missão urgente. Estivera a dirigir a evacuação dos bombardeiros estacionados no Bourget para aeródromos situados ao norte e a leste de Paris.

o comandante do Gross Paris sabia que não era por sua própria iniciativa, nem sequer a pedido do general comandante da 3.a Força Aérea, que o oficial da Luftwaffe lhe telefonava naquele dia, mas sim, por ordem superior do Fúhrer. No canto direito do telegrama de Hitler, recebido durante a noite no Hotel Meurice e que ordenava à Luftwaffe ”que esmagasse com bombas os bairros insurrectos”, havia uma breve nota que não passara despercebida a Choltitz. Essa indicação, destinada precisamente à 3.a Força Aérea, dizia apenas: ”Para execução.”

Era, por conseguinte, em nome do Fúhrer que o aviador nesse momento lhe telefonava. Este informou Choltitz de que, em virtude da retirada dos seus aparelhos, as condições do bombardeamento projectado três dias antes teriam de ser modificadas. Já não seria possível organizar um vaivém contínuo de bombardeiros, deplorou o oficial, atendendo ao relativo afastamento dos novos aeródromos. O que ele desejava propor em vez disso era um avassalador ataque maciço sobre toda a cidade de Paris. ”Diurno ou nocturno?”, perguntou Choltitz, interessado. ”Nocturno, evidentemente, Herr General!”, replicou brutalmente o oficial, manifestamente aborrecido com a pergunta.

 

1 O seu outro filho, Raymond, tinha sido lançado em pára-quedas à retaguarda das linhas alemãs, no Jura.

 

O general fez então notar ao aviador que Paris estava repleta de tropas alemãs, que os efectivos dessas tropas iriam aumentar substancialmente dentro das próximas horas, dado que estavam a caminho numerosos reforços, e que um ataque nocturno sem objectivo preciso corria o risco de que ”fossem mortos tantos alemães como parisienses”. Ao ouvir estas palavras, o aviador soltou um suspiro. ”Não temos outra alternativa, Herr General!”, disse. E explicou que era impossível expor em pleno dia os últimos bombardeiros que ainda restavam na frente Oeste às investidas da aviação de caça inimiga. O oficial repetiu que recebera ordens para bombardear Paris e que estava decidido a executá-las acontecesse o que acontecesse. Afirmou uma vez mais que um bombardeamento como aquele só poderia efectuar-se de noite, e pediu ao general que procurasse reconhecer que, nas presentes circunstâncias, a perda dum único avião de bombardeamento era ”infinitamente mais grave que a morte de alguns homens”.

Choltitz teve um sobressalto. Pediu ao oficial que o avisasse do dia e da hora que iria escolher para o seu ’’ avassalador ataque’’, a fim de poder fazer evacuar as suas tropas das zonas susceptíveis de serem atingidas, isto é, de Paris inteira. Seria evidentemente a Luftwaffe, precisou ele, que deveria tomar, perante a O.K.W., a responsabilidade dessa retirada.

O aviador comunicou então ao governador de Paris que ia consultar os seus superiores, e que falaria pessoalmente com ele à tarde, no Hotel Meurice, a fim de juntos tomarem as disposições necessárias tendo em vista um bombardeamento no mais breve espaço de tempo possível, talvez mesmo na noite seguinte.

Quando desligou, Dietrich von Choltitz leu uma vez mais a ordem terminante de Hitler que provocara o telefonema do oficial da Luftwaffe. ”A Luftwaffe arrasará com bombas explosivas e incendiárias os bairros da cidade onde a revolta ainda se faça sentir”, repetiu em voz baixa. E, ao proferir estas palavras, encolheu os ombros.É então Paris inteira que é necessário bombardear’’, disse de si para si, com uma ironia amarga e desesperada.

Para destruir nessa manhã, de uma só vez, uma vasta porção de Paris, os sapadores das 177.a e 823.a Pionierkompanie não tinham necessidade da ajuda dos bombardeiros da 3.a Força Aérea. Quando o Unteroffizier Hans Fritz e os seus seis camiões estivessem de regresso do túnel de Saint-Cloud, poderiam fazer voar em pedaços o admirável conjunto arquitectónico que margina o Sena, a ponte da Concórdia, a Câmara dos Deputados, o Palácio da Presidência, o Ministério dos Negócios Estrangeiros. O Unterojfizier Hans Fritz, um ex-sapateiro berlinense, tinha por missão ir buscar ao depósito do túnel de Saint-Cloud cinquenta cargas explosivas suplementares. No seu potente camião Mercedes, atravessava agora uma Paris estranhamente deserta e silenciosa.
”Oxalá continue tão calma quando regressarmos do túnel”, pensou. O Unteroffizier não ignorava que bastava uma única bala, bem colocada, para volatilizar nos ares de Paris a carga que iria trazer, o seu camião e ele próprio.

 

                                         Capitulo trigésimo sexto

Do alto duma colina de Saint-Germain-en-Laye, um general alemão solitário observava a paisagem com um binóculo. O seu motorista esperava-o na base da colina, num Horche preto de 8 cilindros, juntamente com dez periquitos que chilreavam numa gaiola. Tal como Montgomery, o general Gunther Blumentritt nutria especial afeição pelos pássaros.

Nesse dia, o general que, duas semanas antes, preconizara que fosse aplicada a Paris ”uma política de terra queimada”, decidira proporcionar a si próprio, apenas ”por desporto”, uma emoção pessoal. Antes de, por sua vez, se pôr a caminho do novo Q.-G. perto de Reims, para onde a O. B. West retirara havia uma semana ’, quis presenciar com os seus próprios olhos a chegada dos tanques inimigos. Blumentritt era o último oficial que ainda ali se encontrava. Despedira-se já do seu jardineiro francês, colhera uma última rosa e, naquele momento, o general de ventre saído sentia já o coração bater mais depressa. Ao longe, começava a distinguir os primeiros carros inimigos, envoltos numa encrme nuvem de poeira. Logo a seguir, ouviu rolar pelos campos o fragor da batalha que começava. Então, Blumentritt guardou o binóculo no estojo e recolheu ao seu automóvel. Instalou-se confortavelmente, preparando-se para uma viagem que ia arrancá-lo a uma cidade onde, durante dois anos, vivera tão agradavelmente. Foi nesse instante que ouviu o motorista comunicar-lhe uma notícia deveras aborrecida. ”Meu general - disse este- , vai ser necessário falar com Montgomery. Já não há alpista para os seus periquitos!’’

20 quilómetros ao sul da elevação donde o general Blumentritt acabava de descortinar os primeiros carros de Leclerc, no planalto de Toussus-le-Noble outro oficial alemão observava também, através dum binóculo, a progressão dos blindados inimigos. Mas, neste caso, não se tratava de ”desporto’’: o tenente Heinrich Blankemeyer, do 11.º Regimento Flack, tinha ordem para fazer parar os carros a tiros de canhão. No preciso instante em que dava à sua bateria de 88, auto-rebocada, as últimas instruções de tiro, Blankemeyer viu os tanques inimigos incendiarem-se um a um ”como petardos”. As baterias vizinhas tinham já aberto fogo.

Da vala para onde se atirara, nas cercanias do pequeno aeródromo que Blankemeyer observava com o binóculo, o correspondente de guerra Ken Crawford, da revista americana Newsweek, via também os carros a arder. Crawford estava louco de raiva. Cinco minutos antes, diante da igreja de Châteufort, Crawford encontrara Hemingway, o qual tranquilamente lhe assegurara que o caminho estava livre.

Não longe do americano, achatado na mesma vala, o comandante Henri de Mirambeau, do 40.° Regimento de Artilharia, via com angústia os Sherman do 12.º Regimento de Couraceiros rolarem em força para as imediações do aeródromo, ”como os cavaleiros das antigas cargas de cavalaria”. Uns após outros, Mirambeau e Crawford viram os tanques explodir sob as descargas dos canhões

Os serviços da O. B. West tinham-se instalado nas caves de armazenamento de champanhe de Mumm, em Verzy. O Feldmarscball Model continuava, no entanto, a dirigir a batalha do bunkeràs. Margival, perto de Soissons, onde se encontrava o Q.-G. do Grupo de Exércitos B. alemães emboscados defronte do aeródromo. 200 metros para a direita, escondido numa pequena mata, o cabo marinheiro-artilheiro Robert Mady, do Simoun’’, o carro em cujo paiol havia um pato, viu na sua frente um Sherman, atingido em cheio, dar um autêntico salto no ar. Instantaneamente, o carro começou a arder. E já o engenho, desarvorado, resvalava para trás em direcção a uma coluna de half-tracks que subia a estrada. Mady convenceu-se de que o carro, recheado de munições, iria ”provocar um massacre” ao explodir entre os half-tracks: mas viu então dois tanques amigos dirigirem-se para o carro em chamas e pregá-lo ao solo, no ponto onde este se encontrava, a tiros de canhão.

Da sua vala, Mirambeau julgou ter finalmente localizado as peças alemãs. Os tiros pareciam provenientes duma linha de medas de feno, situadas no extremo dum campo de trigo, à beira do aeroporto. O oficial subiu até ao seu jipe, miraculosamente intacto apesar da chuva de obuses, e ordenou pela rádio aos seus canhões automotores que batessem a orla da planície. Quando os primeiros obuses começaram a cair, Mirambeau viu com estupefacção todas as medas porem-se em movimento. Debaixo de cada um dos montes de feno, o coronel Seidel, o distinto pianista de Dresde, tinha colocado um canhão anticarro.

Por fim, a resistência alemã foi quebrada. Crawford viu então aproximar-se Hemingway, com um largo sorriso nos lábios. ”Safado!-gritou-lhe Crawford -, com que então a passagem estava livre!...” Hemingway encolheu os ombros.Eu precisava duma cobaia para o saber ao certo, não achas?”

Ao longo dos três itinerários que a 2.a D. B. seguia havia poderosas barragens, como a de Toussus-le-Noble, que atrasaram a progressão das colunas e lhes provocaram pesadas perdas. Começaram então a aparecer os Dodge com a cruz vermelha das Rochambelles” do 13.º Batalhão de Saúde emergindo do fumo da batalha. Ao volante da sua ambulância, baptizada com o nome Taris-Bolsa, título do letreiro do autocarro que ela antigamente tomava para se dirigir à Sorbona, Suzanne Torres, a ”Totó”, viu num dado momento um homem suspenso duma árvore. O half-track deste tinha explodido ao tocar numa das minas de que o general Hubertus von Aulock atulhara, aos milhares, o vale de Chevreuse. ”Totó” e Ray monde, a sua colega de equipa, subiram para o tejadilho da ambulância e desprenderam o soldado, cuja perna direita tinha sido arrancada. O capelão Roger Fouquer, ao volante do seu Mercedes apreendido a um coronel da Wehrmacht, parou junto deles.Padre - gemeu o moribundo, ao reconhecer o rosto do capelão -, vai ver a minha mulher e os meus pequenos e dize-lhes que morri pela libertação de Paris.” Nesse dia, do cimo das suas torrinhas, muitos homens, ao verem o capelão, fizeram-lhe sinal para que se aproximasse e entregaram-lhe as suas carteiras, gritando-lhe sob o estrondo das lagartas em movimento: ”Padre, guarde-me isto até chegarmos a Paris! Para o caso de ’esticarmos’ hoje!” Com as algibeiras do uniforme cheias de carteiras recheadas de retratos, de cartas e de dinheiro, o capelão do 501.° Regimento de Carros tornou-se, bruscamente, obeso.

 

1 O grupo das ”Rochambelles” do 13.° Batalhão de Saúde, comandado por Suzanne Torres, dispunha de 33 ambulâncias. Três destas enfermeiras estavam casadas com soldados da divisão quando Paris foi libertada. A 2.a D. B. era sem dúvida a única unidade aliada onde marido e mulher combatiam lado a lado. No termo da campanha, 29 ”Rochambelles” casar-se-iam com soldados e oficiais da 2.a D. B. A própria Suzanne Torres desposaria uma das figuras mais prestigiosas da divisão, .o comandante Jacques Massu, hoje general-comandante da Região Militar de Metz.

 

Os elementos avançados iam agora penetrando no aglomerado de povoações dos subúrbios da capital, quase encaixadas umas nas outras, em que cada rua, cada encruzilhada, constituíam locais magníficos para a instalação duma peça anticarro. Frequentes vezes, na sua pressa de abrirem caminho para a capital, os carros da divisão atacaram esses canhões de frente, em vez de os cercarem e fazerem-nos depois eliminar pela infantaria. Mas isso permitia-lhes ganhar tempo, embora, por esse motivo, o trajecto das colunas passasse em breve a estar juncado de carros e veículos carbonizados.

Mas, nessa cinzenta manhã de Agosto, o principal era agir em velocidade. Os homens ouviam ininterruptamente nos seus auscultadores as mesmas palavras que soavam nos altifalantes dos carros, dos half-tracks, dos jipes: ”Mais depressa! Mais depressa!’’ À saída duma curva, logo depois de terem transposto o Bièvre, o marinheiro-mecânico Georges Simonin, cujo tanque-destroyer ”Ciclone’’ encabeçava um pelotão de Shermans, viu de repente, a poucos metros das lagartas do seu carro, cinco feridos alemães. Um deles, apoiado sobre os cotovelos, tentava arrastar-se para a valeta. Simonin levantou instintivamente o pé do acelerador. Mas, no mesmo instante, ouviu nos auscultadores a voz furiosa do seu comandante de pelotão gritar-lhe: ”Ciclone”, mais depressa, caramba!”

Simonin fechou os olhos e carregou no acelerador.

 

                                     Capítulo trigésimo sétimo

Aos ouvidos dos Parisienses chegava já, como uma trovoada distante, vinda de oeste e do sul, o estampido surdo da batalha que, de hora para hora, se travava mais perto deles. Pouco depois, as explosões tornavam-se mais distintas e numerosas. Dessa vez, era realmente verdade: os Aliados estavam a chegar.

Para os ocupantes de Paris, cada explosão trazia consigo o sinistro presságio da catástrofe que se anunciava. Os raros alemães que não pertenciam
a unidades combatentes tentaram fugir do vespeiro da cidade e do cerco iminente. Para conseguirem atravessar, com os seus camiões, as barricadas que obstruíam as portas da Villette, uma das saídas de Paris, os soldados da Organização Todt amarraram civis aos pára-choques do veículo da frente. À vista dos desgraçados escudos humanos que viam avançar na sua direcção, os F.F.I, foram obrigados a deixar passar os camiões. Nas portas de Pantin, como os passageiros das antigas diligências do Far-West atacadas por índios, os oficiais da Intendência, de pé sobre os seus veículos, abriram passagem a tiros de revólver e conseguiram escapar-se para leste.

Mas nem todos os alemães, ao ouvirem o estampido dos canhões, sentiram o desejo de fugir. Pelo contrário, os soldados do general Von Choltitz desenvolveram nesse dia uma actividade excepcional. Na Rua de Roma, dois carros de assalto demoliram a tiros de canhão um prédio donde os insurrectos disparavam sobre a estação de caminho de ferro Saint-Lazare. Da Ópera à Gare do Norte, ao longo de toda a Rua Lafayette, os soldados do 190.º Regimento de Segurança protegeram a circulação dos seus veículos nessa via de comunicação vital com rajadas de metralhadora e lançamentos de granadas.

Exasperados pelos ataques incessantes de que eram alvo e pelo fragor da batalha, cada vez mais próximo, muitos alemães cometeram actos de selvajaria que tingiram as ruas de Paris com sangue dos últimos mártires. No boulevard Raspail, um carro em serviço de patrulha abriu fogo sobre um grupo de donas de casa que formavam bicha à porta duma padaria, na vã esperança de obterem alguns gramas de pão.

Quando os inquilinos do n.º 286 do boulevard Saint-Germain, um prédio como milhares de outros, viram a tropa ululante de S.S. invadir as suas residências, compreenderam que iriam ser executados. Os soldados obrigaram os locatários a sair para a rua, e alinharam-nos, voltados para a parede, de mãos no ar. Durante quinze longos minutos, os infelizes esperaram ser fuzilados por um motivo que ignoravam. Mas de repente, tão de surpresa como tinham chegado, os soldados afastaram-se e partiram. Por um milagre que os inquilinos do n.º 286 do boulevard Saint-Germain jamais compreenderão, os soldados tinham-nos poupado.

Para os homens do coronel Rol, o ribombar dos canhões aliados foi causa dum último sobressalto. A despeito da trágica penúria de armas e de munições em que se debatiam, os F.F.I, decidiram levar a insurreição a alguns dos bairros ainda não atingidos por ela. Consequentemente, começaram pouco depois a afluir aos postos de socorro e aos hospitais dezenas de feridos e de mortos, caídos numa infinidade de súbitas e sangrentas escaramuças.

No átrio da Comédie Française, sob os medalhões representando Racine, Molière e Vítor Hugo, mortos e feridos dos dois campos amontoavam-se, exalando um terrível cheiro a sangue e a carne decomposta. Os parisienses que nessa manhã passaram pelo célebre teatro puderam contemplar um espectáculo bem insólito: duas belas raparigas, com as blusas brancas de enfermeiras manchadas de sangue, devorando uma sanduíche junto dos cadáveres de quatro soldados alemães. Eram Marie Beil e Lise Delamare.

Os combates mais ferozes travavam-se em redor da Praça da República. 1200 alemães fortemente armados, entrincheirados numa caserna, metralhavam implacavelmente os F. F. L que os cercavam. Chefiados por um estudante de Medicina de 25 anos, chamado René Darcourt, e por um marceneiro de 30 anos, René Chevauché, os homens de Rol combatiam heroicamente. O Unteroffizier Gustav Winkelmann, o alemão que cinco dias antes se refugiara num café da Praça da República, viu, entre duas partidas de bilhar com o proprietário, um rapaz atirar-se sobre um soldado e apunhalá-lo com uma faca de cozinha.

Mas, pouco depois, infiltrando-se nos corredores do metropolitano que passava sob a caserna, os alemães começaram a atacar os seus assaltantes pelas costas. Travaram-se então violentos combates corpo-a-corpo nos túneis escuros, onde os homens assobiavam e gritavam para se reconhecerem. De vez em quando, o
clarão duma granada ou as chamas duma rajada de metralhadora iluminavam por momentos as abóbadas, enquanto o eco das explosões se repercutia infindavelmente.

Mas o feito de armas mais importante desse dia, do qual foram heróis os insurrectos de Paris, passou totalmente despercebido. E, no entanto, o punhado de F. F. I. que se preparava para fazer fogo sobre os seis potentes camiões alemães que acabavam de surgir, vindos da Praça da Étoile, e que desciam a Avenida dos Campos Elíseos deserta, iria provavelmente salvar Paris duma verdadeira hecatombe. Pelo vidro traseiro do último camião, o UnteroffizierHans Fritz, da 117.a

Pionierkompanie, observava as pesadas caixas cheias de explosivos que minutos mais tarde iria descarregar no pátio da Câmara dos Deputados. Ele sabia que esses explosivos iam servir para arrasar diversos monumentos de Paris. Fritz e o motorista ouviam o tiquetaque cadenciado proveniente duma pequena caixa de cartão colocada entre ambos, sobre o assento. Na caixa encontravam-se já a trabalhar os mecanismos de relojoaria que fariam deflagrar as explosões. Desde que o comboio de camiões saíra havia quarenta minutos do túnel de Saint-Cloud, com o seu perigoso carregamento, que o tiquetaque regular dos relógios da morte sublinhara os mais longos segundos da existência do humilde sapateiro berlinense.

À primeira descarga que, bruscamente, rebentou, o motorista, mortalmente atingido, caiu sobre o volante e o camião, desgovernado, foi esmagar-se contra uma árvore da avenida. Aterrado, Fritz saltou da cabina e começou a gritar. Mas os outros camiões prosseguiram o seu caminho. Então, Fritz largou a correr como um louco, para se afastar do camião maldito que, estava certo, ia explodir. Durante várias horas conservou-se escondido no meio duns arbustos, defronte do Teatro dos Ambassadeurs. Quando, já de noite, o Unteroffizier conseguiu alcançar a Câmara dos Deputados, saberia então que nem um único dos seis camiões de explosivos tinha chegado ao seu destino.

No vasto escritório do chefe de gabinete da Prefecture, as expressões de todos os que ali se encontravam estavam rígidas e preocupadas. Pela segunda vez em cinco dias, Edgar Pisani acabava de saber que os polícias cercados já só dispunham de escassos cinco minutos de fogo. Ora, no mesmo instante, na Praça do Parvis, diante da Prefecture, três carros e soldados de infantaria alemães tomavam posições para efectuar, parecia, o ataque final. ”Onde está Leclerc?”, perguntou Pisani. Quase seguro de que não obteria resposta, o estudante levantou o auscultador do telefone e pediu uma ligação para o comando de polícia da pequena cidade de Longjumeau, a 40 quilómetros de Paris. No outro extremo da linha, Pisani ouviu de repente uma voz gritar: Estão aqui, eles estão a passar debaixo das nossas janelas... Oiça-os!...” Pisani ouviu então no seu aparelho o fragor ininterrupto das colunas de carros. ”Mande parar o primeiro oficial exclamou - e diga-lhe para vir ao telefone!’’ Ao fim duma prolongada demora, Edgar Pisani e o Prefect Luizet ouviram a voz dum oficial de Leclerc. Era o capitão Alain de Boissieu. Apeara-se do seu jipe para atender o apelo do polícia. Boissieu ouviu então no telefone uma voz ansiosa que lhe dizia: ”Despachem-se, por amor de Deus, despachem-se! Estamos sem munições... Vamos ser aniquilados.”

 

                                     Capítulo trigésimo oitavo

Com a testa colada ao apoio de borracha do periscópio, o cabo Lucien Davanture, piloto do carro ” Vicking”, procurava desesperadamente fazer sair o seu Sherman do enfiamento de um canhão de 88 mm, escondido atrás duma casa da pequena vila de Savigny-sur-Orge, 18 quilómetros ao sul de Paris. Como sempre que se sentia espiado por um inimigo invisível, o pequeno borgonhês Davanture estava com medo. De repente, viu surgir duma casa, à beira da estrada, poucos metros na sua frente, uma extensa chama alaranjada. Davanture, mergulhado na escuridão, ouviu cair à sua volta uma chuva de estilhaços de vidro: um obus, rasando a cobertura da torrinha, tinha pulverizado o espelho do seu periscópio. Semilouco, o cabo sabia que o ” Vicking’’, privado de periscópio, era agora um elefante cego, e que sem dúvida o próximo obus lhe seria fatal. Nesse momento, ouviu nos auscultadores, calma e precisa, a voz do seu chefe.

 

1 ’Lucien - dizia ele -, faz o que te digo. Recua... depressa! Continua a recuar... para a direita agora, Lucien... mais depressa!...” Como um autómato, Davanture manobrava o engenho envolto na fumarada amarga que enchia por completo o carro e lhe queimava os olhos e a garganta. Agarrado aos comandos, perguntava a si próprio quanto tempo faltaria ainda para cair o obus de 88 que os reduziria a cinzas, a si e aos seus camaradas. Na expectativa desse instante, sentia os músculos e o cérebro completamente paralisados. ”A direito, agora... vira à esquerda... Acelera... um pouco para a direita...” As ordens batiam-lhe nos ouvidos como balas. Então, Davanture ouviu o seu chefe gritar-lhe uma frase que jamais esqueceria: ”Pára, Lucien! Conseguimos enganá-los!”

 

Fez-se um profundo silêncio na escuridão do carro. Depois Davanture, asfixiado e com os olhos doridos, levantou a cobertura da torrinha e pôs-se a aspirar sofregamente o ar fresco. Assombrado pela claridade brutal que lhe bateu nos olhos, fechou-os imediatamente. Quando de novo os abriu, segundos depois, julgou que o coração lhe ia parar. Mesmo na sua frente, envolto num halo dourado, via-se no horizonte um espectáculo glorioso, exactamente o que ele sempre imaginara deveria ser, pois em toda a sua vida jamais o tinha contemplado: a Torre Eiffel erguendo-se, altiva, contra o céu de Paris.

Nesse começo de tarde, e quase no mesmo instante, também em todas as colunas da divisão os homens a quem Edgar Pisani e o Prefect Charles Luizet tinham acabado de lançar o seu apelo angustioso viram surgir na sua frente a carcaça mágica da Torre Eiffel. Quando ela se lhes deparou, diz-nos o coronel Louis Warabiot, os homens foram ”como que percorridos por uma corrente eléctrica”. Do seu carro, o capitão Georges Buis admirou com solenidade a esguia silhueta da torre e considerou que ”os cruzados, ao chegarem diante dos muros de Jerusalém, ou os navegadores de antanho à vista do Pão de Açúcar do Rio de Janeiro, deveriam ter sentido a mesma impressão quase carnal” que o atingia nesse instante. Jean-René Champion, o tripulante de tanques que viera da América, pensou que ela simbolizava ”a coragem e a esperança indomáveis dos Franceses”. Para o judeu alemão Egon Kaim, ela era ”a prova da imortalidade da França’’. À vista da Torre Eiffel, os carros, os half-tracks, os camiões, como que atraídos por um íman, começaram a acelerar o andamento.

Mas, para alguns, aquela silhueta familiar seria para sempre apenas uma promessa. O cabo Patrick Deschamps, o rapaz que telefonara a sua mãe e lhe pedira para pôr o champanhe a gelar para quando ele chegasse, mal tivera tempo de observar a Torre Eiffel quando um obus de 88 atingiu em cheio o seu carro. Deschamps rolou, morto, no interior do seu túmulo de aço, levando consigo, como última imagem da vida, o símbolo da Paris que vinha libertar.

Mas nenhum soldado da 2.a D. B. veria a Torre Eiffel, nessa tarde de Agosto, tão de perto como o capitão Jean Callet, de 28 anos de idade. Ela estava agora sob as asas do Piper-Cub que pilotava e que deslizava no céu de Paris em direcção à Prefecture sitiada. Atrás dele, o seu observador, o tenente Etienne Mantoux, cerrava entre os dedos um pequeno saco com lastro de chumbo. Nesse saco encontrava-se a resposta de Leclerc ao desesperado apelo de Pisani e de Luizet, uma mensagem de esperança para os defensores do heróico bastião que era o grande edifício da Direcção-Geral de Polícia. Contemplando com êxtase o espectáculo que se desenrolava sob os seus olhos, Gallet esquecera por completo o perigo que o seu pequeno avião lento e solitário corria. O piloto passeou o olhar das cúpulas nacaradas do Sacré-Coeur, à esquerda, até ao zimbório faiscante dos Inválidos. ”Paris intacta - murmurou -, Paris da minha juventude...” Sobrevoou Notre-Dame e os três carros emboscados na Praça do Parvis. Viu alemães largarem a correr e parisienses sobre os telhados agitando lenços. E até, numa fracção de segundo, a imagem insólita e maravilhosa dum par que se beijava à beira do Sena.

Callet reparou então que do solo começavam a surgir feixes de faíscas que riscavam o céu de traços luminosos. Com todas as suas metralhadoras, os alemães disparavam sobre o minúsculo avião que ousava desafiá-los. Quando passou por cima do seu objectivo, a Prefecture, Callet empinou subitamente o Piper-Cub. Em seguida, para fazer crer aos alemães que tinha sido atingido, fê-lo saltar para a frente e deixou-o cair como uma folha. Enquanto descia sobre o pátio da Direcção-Geral de Polícia, Callet viu uma enorme bandeira com a Cruz de Lorena desdobrar-se e, logo a seguir, rápido como uma flecha a caminho do solo, o saco de lona que Mantoux lançara. Endireitou então o aparelho e, rasando os telhados, rumou em direcção ao sul.

No pátio da Prefecture, o prior Robert Lepoutre, o padre que, seis dias antes, se fizera capelão dos sitiados, precipitou-se com os seus camaradas para o pequeno saco no chão. Alguém o abriu e começou a ler em voz alta a mensagem que ele continha: ”Mantenham-se firmes - dizia esta -, estamos a chegar!” ’

No preciso momento em que o avião de Callet desaparecia junto aos telhados, outro Piper-Cub surgiu no céu de Paris. Também este se dirigia para a Torre Eiffel. A bordo encontravam-se dois americanos - que não eram portadores de qualquer mensagem. Stanley B. Kocher, da Pensilvânia, o piloto, e o seu observador, Marvin Wold, do Illinois, ambos do 44.º Batalhão de Artilharia, cumpriam uma missão estritamente pessoal: tinham apostado que seriam eles os primeiros soldados aliados a passar sob a Torre Eiffel.

Kocher picou sobre a esplanada deserta do Champ de Mars, ignorando as metralhadoras alemãs que faziam fogo da Escola Militar, e dirigiu-se para a Torre. Wold cantava a ”Marselhesa” a toda a força dos seus pulmões. Mas, de repente, quando se preparava para fotografar o monento histórico em que o Piper-Cub passaria sob a torre, Wold viu as ”pernas” da Torre Eiffel girarem à sua volta como se ele estivesse ”num dos cestos da Grande Roda de Coney Island” 2. Reparou então que, da primeira plataforma, pendia um cabo que lhe pareceu ”tão grosso como a chaminé dum navio”. O avião por pouco não fora cortado em dois como ”manteiga’’. ”Chega por hoje’’, declarou o piloto. E os dois americanos, desiludidos mas maravilhados por terem visto Paris, desapareceram, como Callet, a rasar os telhados 3.

 

1 O Piper-Cub regressou à base crivado de balas. Uma granada da D. C. A. arrancara-lhe mesmo o trem de aterragem.

2 O Luna Parque nova-iorquino.

3 O avião dos americanos pôde alcançar sem qualquer acidente o seu campo, perto de Corbeil. No entanto, na pista, um oficial aguardava os dois aviadores. Pelo seu passeio sobre Paris, para o qual não tinham pedido autorização, Wold e Kocher foram castigados com oito dias de detenção.

 

                                           Capitulo trigésimo nono

”Meu Deus - pensava o francês, com angústia -, este homem é um traidor! ’’ Pela segunda vez em menos de oito horas, Lorrain Cruse encontrava Boby Bender à cabeceira do cônsul Nordling. Com um copo de uísque numa das mãos, um lápis na outra, o agente da Abwehr estava debruçado sobre um mapa Michelin da região parisiense, desdobrado sobre a própria cama do diplomata cardíaco. Os segredos que Bender revelava eram de tal modo extraordinários que o adjunto de Chaban-Delmas perguntava a si próprio se não estaria a ser vítima duma maquiavélica operação de intoxicação preparada pelo próprio comandante do Gross Paris, Acompanhando de gestos elucidativos as suas palavras, lentas e precisas, o agente secreto ia revelando ao enviado da Resistência Francesa a localização exacta e a importância de todos os efectivos alemães utilizados na defesa de Paris. ”Aqui -dizia ele -há um batalhão... ali, duas companhias de carros... mais adiante várias baterias de 88...” Seguindo com a ponta do lápis as linhas vermelhas e amarelas representando as estradas, indicou as que, do sul, convergiam sobre Paris e especificou: ”É necessário que o vosso Leclerc passe por aqui... depois por ali...”

Quando o lápis de Bender chegou aos limites de Paris, Cruse viu a ponta preta deslizar em direcção ao Sena, atravessar a Praça do Châtalet, obliquar pela Rua de Rivoli e parar finalmente um pouco antes da Praça da Concórdia. ”É este -disse então o alemão -o itinerário que as vossas tropas devem tomar para atingir o Hotel Meurice sem combate.’’ Avisou o seu interlocutor de que deveriam agir com a maior rapidez. Às primeiras horas dessa tarde, declarou, a 26.a Panzer S. S. encontrava-se na região de Noguet-sur-Seine, isto é, a menos de 80 quilómetros de Paris, onde aguardava que a noite caísse para continuar a sua progressão. Segundo os seus próprios cálculos, supunha que ela atingiria Paris na madrugada do dia seguinte. Era portanto uma dramática corrida de velocidade que estava a ser travada. Se os Aliados chegassem antes dos reforços, o general Von Choltitz, garantiu ele, ofereceria apenas uma resistência simbólica, destinada a salvaguardar a honra. Mas, no caso contrário, estava convencido de que o general alemão travaria uma batalha cruel. ”Resumindo - concluiu Bender -, tudo depende agora de Leclerc.” Dizendo estas palavras, o elegante play-boy de fontes grisalhas engoliu de um trago o seu uísque e endireitou-se. Fixando o seu olhar verde e penetrante nos olhos estupefactos do jovem enviado da Resistência, acrescentou, com um sorriso: ”Se lhe fiz revelações, é porque tenho consciência de que elas servirão os interesses superiores do meu país.” Em seguida, o alemão levantou-se, tirou a pistola da algibeira e estendeu-a ao francês. ”Estou às suas ordens, meu comandante, faça-me prisioneiro!’’, disse. ”Veremos isso mais tarde - respondeu Cruse. - Por agora tenho uma missão mais urgente a cumprir!’’ Cruse saiu do gabinete a correr. Saltando para a sua bicicleta, começou a pedalar com quanta força tinha para o esconderijo de Chaban-Delmas.

Jacques Petit-Leroy abandonara a sua velha bicicleta, com a qual partira nessa mesma manhã de Paris para encontrar Leclerc e transmitir-lhe as primeiras e dramáticas revelações de Boby Bender. Agora, era a bordo dum jipe que rolava em direcção a Paris. Na algibeira do rapaz estava um ultimato assinado pelo próprio Leclerc, dirigido a Choltitz. Intimava o general alemão a entregar a cidade intacta e tornava-o pessoalmente responsável” pelas destruições que ali se verificassem.

Consciente do perigo terrível que ameaçava Paris naquelas derradeiras horas, sabedor de que ele próprio não teria possibilidade de lá chegar antes da noite, Leclerc designara o comandante do seu próprio carro, o ajudante Augustm Dericquebourg, para acompanhar o jovem portador do seu ultimato.

O dono dum pequeno café de Chevilly-Larue, uma pequena povoação, viu o jipe surgir a toda a velocidade direito a Paris, e gritou: ”Aí estão os americanos!’’ No mesmo instante, o homem viu uma patrulha alemã aparecer na encruzilhada. Seguiu-se uma breve descarga, e o jipe começou a ziguezaguear até vir estacar quase defronte do café. O motorista jazia, inerte, de cabeça caída para trás. Jacques Petit-Leroy, atingido nas costas, tombara para a frente e gemia. O dono do café ouviu-o chamar ”Mamã... Mamã...” Então, os alemães aproximaram-se sem pressa do veículo. Um deles puxou duma enorme pistola e encostou tranquilamente o cano à cabeça do rapaz. A missão de que Jacques Petit-Leroy estava tão orgulhoso terminara. E o ultimato de Leclerc jamais chegaria ao general Von Choltitz.

 

                                         Capítulo quadragésimo

Sentia o estômago reconfortado pelo último trago de aguardente. De olhos fixos no canhão de 88 emboscado no portão principal da cadeia-penitenciária de Fresnes, Willy Wagenknecht, o alemão condenado a defender a sua própria prisão, esperava. Ao longe, ouvia já o fragor dos carros franceses avançando lentamente por uma das cinco estradas que vinham desembocar diante da sua peça.

Da janela da sala de aulas do 5.º ano do colégio de raparigas situado à entrada de Fresnes, a professora Ginette Devray contemplava os carros cujo rumor Wagenknecht ouvia ao longe. Ela aguardara durante todo o dia a chegada daquele momento. ”Ei-los! - gritou então, com os olhos inundados de lágrimas. - Deus meu, aqui estão eles!” Um após outro, três Sherman ostentando a Cruz da Lorena, ”La Marne”, ”Uskub” e ”Douaumont”, passaram sob a sua janela. O soldado de 2.a classe Georges Landrieux, o homem que três anos antes saíra de casa para comprar um maço de cigarros Gauloises - e não mais voltara - estava de volta. As lagartas do seu tanque mordiam agora as ruas onde, em pequeno, jogara
à bola. À esquerda, deparou-se-lhe o pequeno cemitério de Fresnes e comentou para o seu companheiro, o francês do México Pierre Sarre: ”Não é aqui que virei fazer de tijolo!”

Ao entardecer desse dia pardacento, as três colunas da divisão tinham atingido, como Landrieux, os subúrbios de Paris. A frente que, de manhã, tinha cerca de 30 quilómetros de extensão, reduzira-se para cerca de metade, no decorrer do dia. Na extrema-esquerda do dispositivo, à coluna do comandante Morell-Deville, encarregada de ”fazer barulho”, deparara-se, depois de Trappes, uma forte resistência e suspendera o seu avanço. No centro, a coluna do tenente-coronel Paul de Langlade e do comandante Massu progredira rapidamente. Tendo perfurado o mortífero ferrolho de Toussus-le-Noble, as forças de Langlade haviam empurrado os alemães para lá do Bièvre, atravessado o aeródromo de Villacoublay e alcançado os prédios cinzentos do arrabalde de Clamart. Nesse momento, os infantes de Massu preparavam-se para descer sobre o Sena e pisar, na mesma noite, o solo de Paris, do outro lado da ponte de Sèvres.

À direita do dispositivo, a última coluna, a do coronel Pierre Billote, enfrentara no decorrer de toda a sua progressão sobre Paris uma resistência tenaz dos alemães. Agora, já nos subúrbios da capital, Billote via-se bloqueado por um ferrolho ferozmente defendido pelo inimigo, o qual tapava a entrada de Paris tão hermeticamente como uma rolha veda uma garrafa. Encavalitado na grande estrada Orleães-Paris, cuja encruzilhada de La Croix-de-Berny estava obstruída por campos de carris cravados no solo e peças anticarros, o ferrolho enganchava-se, à esquerda, na vila de Antony e, à direita, sobre a prisão de Fresnes.

A enorme prisão donde Pierre Lefaucheux e os seus companheiros tinham saído nove dias antes havia sido convertida em inexpugnável fortaleza pelos seus

350 detidos alemães. Nesse mesmo dia, de manhã, um batalhão do 132.º Regimento de Segurança viera juntar-se aos defensores. O oficial que o comandava, o Hauptmann Heinrich Harms, recebera, 27 anos antes, a Cruz de Ferro de 1.a classe por ter impedido os franceses de entrarem numa vila da Meuse chamada, também, Fresnes. Protegidos por sacos de areia, mais dois canhões anticarros de menor calibre e várias metralhadoras pesadas flanqueavam o 88 de Wagenknecht. Do portão de entrada, o alemão tinha no enfiamento da sua peça três das cinco estradas que levavam à prisão.

Para o assalto à prisão de Fresnes, o capitão Emmanuel Dupont, o oficial que, num pomar da Normandia, participara ao capelão Roger Fouquet a sua convicção de que seria morto antes de chegar a Paris, dividiu os seus blindados e os seus soldados de infantaria em três grupos. Ordenou aos carros ”La Marne”, ”Uskub” e ”Douaumont” que subissem a Avenida da República e desencadeassem um ataque frontal contra a entrada principal da cadeia. Os dois outros grupos foram encarregados de progredir até à frontaria ladeando os muros da prisão.

Enquanto manobrava o seu pesado veículo pelas ruas familiares da sua terra natal, Georges Landrieux indicou a Pierre Sarre, o piloto-ajudante do ”La Marne’’, o campanário quadrado da igreja onde se tinha casado e a montra vazia do pequeno café-tabacaria onde, antes, costumava comprar os seus cigarros. Os três carros rodaram nessa altura para a esquerda e penetraram na Avenida da República. Exactamente na frente deles, a 300 metros de distância, dissimulado atrás das frestas do portal da prisão, o canhão de Wagenknecht aguardava.

Da torrinha do tanque ”Velho Armando’’, um dos Sherman que avançavam ao longo dos muros da cadeia, o cabo Pierre Chauvet observava com o binóculo as defesas que ladeavam a entrada principal, e perguntava a si próprio o que esperariam os alemães para abrir fogo. e, acocorado atrás do seu canhão, Willy Wagenknecht fazia também a si próprio a mesma pergunta. Tinha já na sua frente os carros cujo ruído longínquo ouvira pouco tempo antes. Estes avançavam lentamente na sua direcção, ao longo das pequenas casas que bordejavam a Avenida da República. Sentia nas costas a respiração nervosa do seu antigo companheiro de cela, o S. S. de 19 anos Richter. Wagenknecht apontou o canhão para o carro da frente e decidiu contar até dez, antes de disparar. Nesse instante, o alemão ouviu uma voz berrar atrás dele: ”De que é que vocês estão à espera, corja de malandros? Façam fogo, caramba!”

O capitão Dupont e o seu adjunto, o alferes Marcel Christien, que, a pé, comandavam o avanço dos blindados ao longo dos muros da prisão, ouviram o estampido do disparo. Christien viu o primeiro carro, que desembocava da Avenida da República, dar um salto no ar A’ob o impacto do obus e cair no solo num chocalhar de sucata. Do repuxo de labaredas que imediatamente brotou do tanque, Christien viu cair um homem com as duas pernas arrancadas e, logo a seguir, outro, envolto em chamas.

Pierre Sarre, o soldado que ardia, atirou-se para o chão e rolou sobre si próprio tentando apagar o fogo. Apagando com as mãos as últimas chamas, largou acorrer, juntamente com o soldado de infantaria José Molina, debaixo do tiro das metralhadoras que ininterruptamente disparavam sobre eles. Por duas vezes, tocado pelas balas explosivas que caíam, o seu fato de tripulante incendiou-se de novo. Com um braço estoirado por uma bala, Sarre conseguiu por fim alcançar, ao mesmo tempo que Molina, a porta dum pequeno prédio no interior do qual se abrigaram. Mas, no mesmo instante, um obus explosivo caiu sobre a casa, decapitando com um estilhaço o infante Molina e fazendo cair sobre Sarre uma chuva de traves de madeira incandescentes. Horrorizado, Sarre viu o seu fato ser de novo pasto das chamas.

Mas já, de todos os lados, os tanques de Dupont regavam de obuses a entrada da prisão. Fabien Casaubon, piloto do Uskub’’, pensava, ao lançar para a frente o seu carro, que de facto não havia alguém como os Fritz para se deixar fazer em papa defendendo uma chapa de ferro. Avançando sem parar junto aos muros da prisão, o alferes Marcel Christien pensou: ”Se não conseguimos fazer calar aquele maldito 88, toda a companhia vai ser arrasada.” Christien ouvia passar sobre a sua cabeça, com um assobio lúgubre, os obuses disparados por Pierre Chauvet do ”Velho Armando”. De repente, deu-se uma explosão terrível. Um dos projécteis de Chauvet atingira em cheio um camião de munições estacionado por detrás do canhão de Wagenknecht.

Milagrosamente indemne, o alemão teve apenas um reflexo. Abandonando a carcaça retorcida do seu 88, largou a correr através da espessa fumarada que cobria a entrada da prisão. Na sua corrida desenfreada, cruzou-se com os carros sobre os quais acabara de fazer fogo. Conseguindo esgueirar-se ao longo dos muros sem ser notado, alcançou o pequeno cemitério de Fresnes. Aí chegado, deixou-se cair, ofegante, dentro duma vala. Enquanto recobrava o fôlego, um sentimento extraordinário perpassava no seu espírito: ”Meu Deus - pensava -, estou livre!”

1 Gravemente queimado, o francês do México Pierre Sarre, que não conhecia Paris, não conseguiu entrar na capital ao mesmo tempo que os seus camaradas. Sobreviveu, no entanto, às queimaduras e ferimentos. Três meses mais tarde, por ocasião do seu primeiro passeio de convalescente, saiu do hospital do Val-de-Grâce para passar uns momentos de recolhimento no cemitério de Fresnes, onde muitos dos seus camaradas estavam enterrados. Teve então uma surpreendente surpresa. Num dos túmulos encontrou o seu próprio nome. Acontecera que, ao abandonar o seu carro em chamas, perdera a carteira. Esta tinha sido depois encontrada junto ao cadáver do infante José Molina, o qual, não contendo qualquer elemento de identificação, tinha sido enterrado sob a identidade de Pierre Sarre.

Contudo, os alemães continuavam a fazer fogo da entrada da prisão. Dupont e Christien prosseguiam o seu avanço e estavam já apenas a 50 metros do portão. Subitamente, surgindo da nuvem de fumo que envolvia a frontaria, Christien viu aparecer uma espécie de fantasma com o vestuário arrancado, de rosto enegrecido e sangrento. O alemão trazia uma pistola-metralhadora que disparou sobre eles. Christien ouviu a seu lado um ”Oh!’’ e viu o capitão Dupont rodopiar como um pião e abater-se no fundo do carro, com a cabeça despedaçada. Ao mesmo tempo, Christien viu um dos carros, o ”Notre-Dame de Lorette”, atirar-se para a frente a toda a velocidade e rodar sobre si próprio à entrada da prisão. Fazendo fogo com todo o seu armamento, o carro investiu contra o 88 de Wagenknecht e, esmagando debaixo dele os sobreviventes, avançou como uma tromba pelo interior da prisão. Para o piloto do ”Notre-Dame de Lorette”, o soldado de 2.a classe Jacques Neal, a prisão de Fresnes não possuía qualquer segredo. Preso pela Gestapo, passara aí treze meses.

Na cola do ”Notre-Dame de Lorette”, os três últimos carros do capitão Dupont irromperam por seu turno na parada da prisão e reduziram finalmente a silêncio os seus defensores.

O preço desta vitória era elevado. Os destroços enegrecidos de cinco Sherman juncavam as cercanias da prisão de Fresnes. A meio da Avenida da República, no posto dianteiro da carcaça carbonizada do ”La Mame”, havia dois olhos imóveis que fitavam o céu, por onde grossas nuvens corriam na direcção de Paris. Georges Landrieux estava morto, com o peito esfacelado por um estilhaço do primeiro obus disparado por Willy Wagenknecht. Numa algibeira do seu fato de campanha, negro como o fumo, encontrava-se, intacto, o maço de Camel que Georges Landrieux trouxera a sua mulher da sua viagem para a eternidade.

A 2 quilómetros de Fresnes, em La Croix-de-Berny, o tenente Jean Lacoste, do 501.° Regimento de Carros, de costas contra o muro do Parque de Sceaux, caminhava, às arrecuas, em direcção a uma encruzilhada. Nesse cruzamento da estrada nacional Orleães-Paris com a pequena estrada pela qual ele avançava estava colocado outro canhão de 88, que dominava o enfiamento da grande rodovia para Paris. O carro do próprio Lacoste, o ”Friedland”, e várias companhias ”Sherman” tinham sido obrigados a parar devido ao fogo mortífero desse canhão. Procurando contorná-lo, Lacoste descobrira aquela pequena estrada, ao longo da qual, metro a metro, ele avançava, a pé, para reconhecer o local onde o canhão se encontrava.

Lacoste ouvia já o bater metálico da culatra da peça alemã ao fechar-se, e até ordens do artilheiro que dirigia o fogo. Avançando uns centímetros, deparou-se-Ihe então, suspensa sobre a estrada, a goela flamejante do 88, cuspindo metralha. Um desses obuses caiu 2 quilómetros à sua retaguarda, ao lado do Mercedes do padre Roger Fouquer. O capelão sentiu uma dor violenta na perna direita e caiu no solo. A rede de camuflagem que o cobria estava queimada numa extensão de vários centímetros, por alturas da coxa. À vista do bocado de metal incandescente que se encontrava ao lado dele, no chão, o padre deu graças ao Senhor e benzeu-se. As quatro carteiras recheadas de dinheiro e de cartas que trazia nas algibeiras, desde que os soldados lhas tinham confiado, haviam amortecido o estilhaço do obus que, sem isso, lhe teria cortado a artéria femural.

Assim como se aproximara, o tenente Jean Lacoste recuou, de costas coladas ao muro, até ao ”Friedland” e deu as suas instruções à tripulação. Com o seu canhão de 105 apontado para o ponto exacto onde iria surgir o 88 alemão, o carro arrancou.

Para que os estampidos da peça alemã abafassem o barulho das lagartas, o ”Friedland” avançava aos repelões de cada vez que o 88 fazia fogo. Como uma fera aproximando-se da sua presa, o carro atingiu rapidamente o fim do muro. Lacoste esperou que o 88 disparasse uma última salva. Então, berrou: Fogo! A esse grito, o ”Friedland” respondeu com um salto para a frente, disparando instantaneamente todo o seu arsenal. Numa fracção de segundo, Lacoste viu corpos subirem no ar e desintegrarem-se no meio duma chuva de ferragens. Viu braços, pernas, capacetes e o freio de recuo do canhão caírem no solo, numa amálgama de carne e de aço. ”Meu Deus - exclamou, compungido -, a guerra é impiedosa!” Então, carregou no pedal do seu rádio e anunciou: ”A todos os Óscares! Aqui Oscar! O cano de fogão foi pelos ares!’’

 

                               Capítulo quadragésimo primeiro

Durante todo o dia, distante e solitário, o esguio vulto de Charles de Gaulle percorrera a passos largos o terreiro do castelo de Rambouillet. Às primeiras horas da manhã, das janelas dos modestos aposentos que ocupava nos altos do castelo, De Gaulle tinha visto passar, sob a chuva, as colunas imponentes da 2.a D. B. Com amargura, pensava então nas desgraças que um exército mecanizado, composto de sete unidades como aquela, podia ter evitado, tempos atrás, à França.

De Gaulle seguira, de hora a hora, com impaciência, a difícil progressão da divisão pela estrada de Paris. Tinha esperado poder entrar na capital antes do anoitecer. Mas as notícias da batalha tinham feito prever, pouco a pouco, que essa esperança não se concretizaria. A longa viagem que trazia do exílio o chefe da França Livre deveria durar ainda mais uma noite.

Nos primeiros números dos novos jornais da Resistência, que lhe tinham sido trazidos de Paris, De Gaulle encontrara a confirmação das suspeitas que nutria a respeito das ideias e dos objectivos dos seus adversários políticos. De acordo com o seu plano, os chefes da insurreição pretendiam agora organizar uma comissão de recepção destinada a acolher De Gaulle, a qual o colocaria sob a sua égide e se encarregaria
de apresentá-lo ao povo da capital. De Gaulle não se prestaria a essa última manobra. Não aceitaria senão uma investidura, aquela que lhe fosse directamente dada pela voz das multidões.

Delicada mas secamente, De Gaulle recusou portanto o oferecimento, que lhe fora trazido de Paris, de ser recebido na Câmara Municipal, à sua chegada à capital, pelos chefes da insurreição. Deu a entender que, primeiro, iria ”ao centro’’, isto é, ao Ministério da Guerra, onde, quando se proporcionasse a ocasião, receberia pessoalmente os chefes da insurreição. Quanto aos agrupamentos que esses chefes representavam, o C.N.R., o C.O.M. A.C., De Gaulle já traçara o seu destino. Fá-los-ia rapidamente entrar no que ele mais tarde chamaria ”a história gloriosa da Libertação”, quer dizer, no passado.

Pela terceira vez nesse dia, De Gaulle pediu a Geoffrey de Courcel, um dos seus colaboradores mais íntimos, que o acompanhasse num breve passeio pelas áleas do parque. No decorrer dum dos passeios anteriores, o general dissera a Courcel que se sentia impaciente por entrar em Paris e por precipitar a prova de força que estava decidido a travar com os seus inimigos políticos. Mas, desta vez, fumando nervosamente um Craven, De Gaulle refugiara-se no silêncio dos seus pensamentos. Courcel absteve-se de o interromper. Como todos os homens que o rodeavam, Courcel sabia que De Gaulle não prendera apenas a sua ansiedade de chefe político aos duros combates desse dia, mas também a de pai. Hirto e orgulhoso, num dos tanques-destroyers que, nessa manhã, tinham passado debaixo das janelas do castelo de Rambouillet, desfilara um jovem tenente da Marinha. Era Philippe de Gaulle, o seu único filho.

A 20 quilómetros dos torreões majestosos do castelo de Rambouillet, numa planície próxima da pequena vila de Maintenon, outro general manifestava a mesma impaciência que De Gaulle. O general americano Leonard T. Gerow, comandante do 5.º Corpo de Exército, ao qual pertencia a 2.a D.B., passeava para trás e para diante, nervosamente, no interior da tenda de campanha onde estava instalado o seu P.C. Estacando bruscamente, Gerow voltou-se para o seu chefe dos Serviços Secretos, o coronel John Hill, e declarou, encolerizado, que, se Leclerc fosse americano, teria sido imediatamente demitido. Havia exactamente 17 horas que o comandante do 5.º Corpo estava sem notícias de Leclerc. De manhã soubera que o general francês, infringindo a ordem táctica n.º 21 que lhe tinha sido enviada na véspera, tinha deslocado o seu eixo de marcha cerca de 20 quilómetros para o sudoeste. Leclerc não informara Gerow, nem a 4.a Divisão americana que se encontrava no seu flanco direito, desta mudança de itinerário. Convencido, erradamente, de que os alemães não estavam em situação de oferecer resistência séria, Gerow acreditava que a 2.a D. B. entraria em Paris pelo meio-dia. Durante todo o dia, o próprio Bradley, profundamente inquieto com as revelações que Raoul Nordling lhe fizera, forçara Gerow a acelerar o seu avanço e a ocupar Paris, antes que o Governo alemão se decidisse finalmente a destruir a cidade. Preocupado, Gerow pusera-se ele próprio em busca de Leclerc, mas não conseguira encontrá-lo. No preciso instante em que o americano regressava ao seu P.C., um Piper-Cub aterrara numa planície vizinha, para lhe trazer uma mensagem urgente do 1.° Exército, a qual lhe ordenava que ocupasse Paris o mais depressa possível. A mesma mensagem mandava Gerow empurrar a 2.a D.B. para a frente e impunha a entrada imediata da 4.a Divisão de Infantaria americana em Paris, ”quer a 2.a D.B. já se encontre na capital quer não”. Por outras palavras, se os franceses não eram capazes de chegar em primeiro lugar a Paris, como disso já tinham tido ocasião, pior para eles, os G. Is. de Gerow deveriam precedê-los.

Gerow telefonou à 4.a Divisão de Infantaria e deu as suas ordens. Em seguida, começou a redigir, pela sua própria mão, uma severa e terminante mensagem destinada a Leclerc, ordenando-lhe que forçasse energicamente a sua marcha durante toda a tarde, devendo continuar o avanço pela noite fora. Gerow estendeu depois a folha de papel ao coronel John Hill e disse a este que a entregasse em mão própria a Leclerc. Quando o coronel subia para o seu jipe, o general americano disse ainda, secamente: ”É-me indiferente, Hill, que você tenha de ir ou não ao inferno para encontrar esse maldito francês. Simplesmente, não volte aqui sem o ter encontrado.’’

Nesse momento, mais furioso ainda do que De Gaulle e Gerow, Philippe Leclerc, impaciente, de bengala na mão, passeava para trás e para diante numa pequena estrada a 600 metros de La Croix-de-Berny. Vindo do sul e do oeste, chegava até ele o ribombar dos canhões dos seus carros esforçando-se por aniquilar os últimos pontos de apoio alemães que ainda resistiam ao longo da estrada Orleães-Paris. Nem De Gaulle, nem Gerow tinham necessidade de apressar Leclerc. Durante todo o dia, os seus oficiais tinham-no ouvido ordenar infatigavelmente que se andasse mais depressa. Sob a tremenda impressão que o S. O. S. trazido de Paris por Jacques Petit-Leroy lhe causara, receava lá chegar tarde demais, depois de Choltitz ter já começado a destruir a cidade. Desiludido e irritado com a perspectiva de não poder entrar em Paris nessa mesma noite, Leclerc pusera-se a bater nervosamente com a ponta da bengala no asfalto.

Também o capitão da florescente barba ruiva, ao desembocar na estrada à frente dum destacamento de half-tracks, espumava de raiva. Por duas vezes em meia hora, Raymond Dronne estivera convencido de que o caminho para Paris, na sua frente, estava livre. Pedira então ao seu chefe autorização para avançar. Mas, de ambas as vezes, recebera ordem para se juntar ao grosso da coluna, no ” eixo principal. Quando se lhe deparou o seu ”patrão”, Dronne saltou do jipe, correu para ele e pôs-se em sentido.

”Que é que você está aqui a fazer?”, perguntou Leclerc. Cortando com um rápido movimento da sua bengala as explicações do capitão, Leclerc exclamou: ”Dronne, você bem sabe que as ordens absurdas nunca devem ser executadas!’’ Em seguida, segurando no braço do oficial, o general ordenou: ”Quero que você corra imediatamente a Paris, ao centro de Paris. Utilize-se do que quiser, mas avance. Não se preocupe com os alemães. Carregue, e nada mais. Diga aos Parisienses que aguentem firme. Amanhã estaremos junto deles...” Leclerc acompanhou o oficial ao seu jipe.

Oito dias antes, ao notar em dado momento o estranho nome que o jipe tinha escrito no pára-brisas, Leclerc ordenara ao capitão que o mandasse apagar. Agora, ao deparar-se-lhe o mesmo nome inscrito no mesmo pára-brisas, Leclerc teve um sobressalto: ”Julguei ter-lhe dado uma ordem!”, gritou, exaltado. Dronne resmungou que não tivera tido tempo de a executar. Leclerc, então, abanou a cabeça. ”Quando penso - murmurou ele corn um ar distante -, que este vai ser o primeiro jipe a entrar em Paris!’’

 

1 No seu livro ’ ’História de um Soldado’’, o general Bradley explica o atraso desse dia da 2.a D. B., na sua marcha para Paris, duma forma que suscitou a indignação e a repulsa dos Franceses: ”Os homens da 2.a D.B. -escreveu Bradley-, tiveram dificuldade em abrir caminho através da população francesa, que atrasou o seu avanço ao submergi-los em vinho e aclamações. Se bem que eu não possa censurá-los por se terem aproveitado do acolhimento dos seus compatriotas, eu não podia, no entanto, ficar à espera que eles só chegassem a Paris quando tivessem deixado de participar nas manifestações.”

 

Sendo verdade que o acolhimento delirante da população levantou, em certos momentos, autênticos problemas às colunas da 2.a D.B., está no entanto hoje provado que apenas a obstinada resistência alemã foi, nesse dia, responsável pela demora verificada na entrada da divisão em Paris. O general Bradley talvez ignorasse, quando escreveu esta passagem, que a 2.a D.B. perdera nesse dia, na sua marcha sobre Paris, mais de 200 homens.

No pára-brisas do veículo via-se efectivamente, escrito em gordas letras, o nome deste: ”Morte aos cab...”

Dronne formou o seu destacamento em poucos minutos. Compunham-no três Sherman com nomes de vitórias napoleónicas, ”Romilly”, ”Montmirail” e ”Champaubert’’, e meia dúzia de half-tracks. Depois de ter dado algumas breves instruções aos seus homens, o oficial saltou para o jipe. Numa olhadela para o espelho retrovisor, verificou inesperadamente o lastimoso aspecto com que se encontrava. Em lugar de atraente e impecável, como a si próprio prometera apresentar-se às parisienses, Dronne via-se que estava imundo, despenteado e com a barba em estado vergonhoso. Tinha o fato de campanha crivado de nódoas de óleo e o rosto negro, de pó e de fumo.

O capitão da barba ruiva pôs o motor do seu jipe a trabalhar. Depois, dirigindo-se ao pequeno grupo de curiosos que se juntara à sua volta, perguntou:

’’ Alguém sabe qual é o caminho mais rápido para Paris?”

 

                             Capítulo quadragésimo segundo

Paris ouvia o ribombar surdo do canhão aumentando de intensidade de hora a hora, à medida que se aproximava da cidade que em breve iria submergir. Fechados nos seus pontos de apoio, quase isolados pelos F.F.I, do coronel Rol, os defensores alemães de Paris aguardavam o ataque final, que rebentaria dum momento para o outro.

Os comandantes dos trinta principais Stutzpunkte (pontos de apoio) tinham jurado ao Fúhrer defenderem-se ”até ao último cartucho”. Hitler apenas uma vez exigira semelhante juramento na frente Oeste: em Saint-Malo, onde os soldados da Wehrmacht, já sem munições, tinham continuado a bater-se à arma branca nas ruínas da fortaleza.

 

Emboscados no interior dalguns dos mais gloriosos monumentos da capital, que tinham tornado em autênticas fortalezas, os homens do general Von Choltitz preparavam-se para oferecer igual resistência desesperada. Na Praça da República, por detrás das altas muralhas do quartel Prinz Eugen, um comandante de S. S. reuniu os seus homens e anunciou-lhes que duas divisões blindadas S. S. avançavam para Paris. ’’ Temos de nos aguentar a todo o custo - ordenou ele -, até que esses reforços nos venham desembaraçar.” Na parada da Escola Militar, Bernhardt Blache, o Feldwebel que, no sábado precedente, tinha visto os seus homens ”assados como chouriços” defronte da Prefecture, ouvia o comandante Otto Mueller discursar aos defensores: ”Senhores -dizia ele - , executaremos a ordem do nosso Fúhrer. Bater-nos-emos até ao fim.” À secção de metralhadoras que o Feldwebel comandava foi então distribuída a última refeição antes da batalha, um enorme presunto da Vestefália. Mas, à ideia de se deixar matar para defender a Escola Militar, Bernhardt Blache perdera o apetite. Não conseguiu engolir mais do que um pequeno pedaço do apetitoso presunto.

No Palácio do Luxemburgo, jovens S. S. da guarnição construíam uma poderosa barricada em frente da entrada principal, preparando-se para o ataque final. O electricista Francois Dalby, que observava os preparativos, perguntava a si próprio, angustiado, se os alemães, que tinham conseguido minar praticamente todo o palácio, não iriam fazê-lo explodir, no último minuto, num acto de suicídio colectivo.

No átrio repleto de sacos de areia do Hotel Meurice, o Stutzpunkt mais importante da cidade, o homem sobre quem recaía o peso da defesa de Paris falava encolerizado aos seus oficiais, minutos depois de um tenente-coronel da Feldgendarmerie se ter permitido aconselhar o comandante do Gross Paris a abandonar a ”ratoeira’’ de Paris enquanto era tempo e a evacuar a guarnição da capital. ”O Fúhrer enviou-me para aqui -gritava Choltitz cego de raiva - , e aqui sou eu o único a dar ordens. Far-se-á exactamente o que eu ordenar e imporei a obediência, de arma na mão, àqueles que pretenderem furtar-se a ela. Que cada um regresse ao seu posto e aguarde as minhas instruções...”

Apesar da tensão que reinava nos vários pontos de apoio, alguns soldados conseguiram, no entanto, passar aquelas últimas horas como se fossem turistas. Uns compravam recordações da cidade luminosa, que eles só tinham conhecido às escuras, outros faziam tranquila e despreocupadamente as suas despedidas às companheiras, outros ainda arriscavam a vida por um último beijo, como Eugen Hommens, o alemão a quem onze dias antes os F.F.I, tinham roubado o revólver nas margens do Marne. Este soldado conseguiu atravessar a terra de ninguém que separava a fortaleza alemã do Palácio do Luxemburgo da barricada F. F. I. da Rua de Tournon, e introduzir-se num pequeno hotel das proximidades. Num dos quartos estava Annick, a sua amante, de quem se despediu. Annick pediu-lhe uma vez mais que desertasse. Mas Hommens recusou.

No lado oposto de Paris, para lá das muralhas maciças do castelo de Vincennes, Georges Dubret continuava milagrosamente vivo. Por cinco vezes, Dubret e os seus cinco camaradas tinham estado alinhados em frente da metralhadora que fuzilara tantos dos seus companheiros. Tinham visto os seus carcereiros abandonar, pouco a pouco, os outros edifícios do castelo e perguntavam a si próprios que sorte lhes reservavam os últimos soldados a partir, quando a porta da cela se abriu e um sargento lhes fez sinal para saírem. No pátio, onde os S.S. tinham terminado os seus preparativos de partida, estava o ”pequeno Fúhrer” que abatera Silvestri. Com um dedo, apontou-lhes o refeitório e gritou-lhes que fossem comer o que quisessem. Os cinco polícias fizeram menção de se dirigirem para o pequeno edifício, mas ao verem o último alemão transpor a ponte levadiça do castelo, estacaram e, logo a seguir, largaram a correr atravessando por sua vez a ponte levadiça, aos gritos de ”Viva a França!” Nesse instante, três enormes explosões fizeram tremer o solo. A deslocação do ar atirou Dubret por terra. Quando se levantou, viu uma nuvem de poeira e de destroços subir no ar, por detrás dos muros da fortaleza, como um vulcão. O refeitório para onde o ”pequeno Fúhrer’’ enviara os franceses tinha acabado de explodir.

Numa rua de Nanterre, noutro extremo da capital, o salsicheiro Pierre Berthy, salvo, por milagre, do pelotão de execução do Mont-Valerian após difíceis negociações do cônsul Nordling, ainda no seu leito de doente, o qual lograra obter a libertação dos prisioneiros da Maine de Neuilly, encontrava-se com Bob Woodrum, o aviador americano que durante largo tempo mantivera escondido em sua casa, caindo nos braços um do outro. Woodrum, ao ver o seu anfitrião, que julgava morto, sentiu as lágrimas nos olhos e gritou: Well done, Pierre. Pouco depois, festejando a salvação e o regresso de Berthy à sua loja, os vizinhos deste surpreender-se-iam ao ouvir o americano conversar com aquele que o tinha escondido, com o perigo da sua vida. Descobriram então que o homem que tinham visto entrar e sair da salsicharia sem jamais dizer uma palavra não era surdo, nem mudo... nem francês.

 

                                 Capitulo quadragésimo terceiro

Nas ruas apinhadas de gente de Longjumeau, a 27 quilómetros de Paris, um oficial americano acabava de resolver o angustioso problema que, desde a véspera, o atormentava. Em troca de dois maços de cigarros, o capitão Bill Mills, chefe de operações dum batalhão da 4.a Divisão americana, conseguira finalmente descobrir o documento mais precioso que nesse dia ele poderia encontrar: uma planta de Paris.

A 4.a Divisão abandonara a Normandia tão bruscamente, e a sua missão sobre Paris tinha sido tão inesperada, que os seus chefes nem sequer tinham tido tempo de se fornecer, junto dos serviços do S.H.A.E.F., dos mapas necessários. Minutos antes, o próprio oficial comandante da divisão, o major-general Raymond Barton, reconhecera perante os seus oficiais que não tinha a menor ideia do local onde se situava o objectivo destinado à sua unidade: a Prefecture, a Direcção-Geral de Polícia.

Mills desdobrou, cheio de satisfação, a preciosa planta da cidade. Em cima, à esquerda, lia-se o nome do impressor ”A. Lecomte, Rua Saint-Croix-de-la-Bretonnerie, 38”. Logo abaixo, em grandes letras, o americano leu o título exacto desse documento, graças ao qual, dentro de algumas horas, os destacamentos avançados da totalidade da 4.a Divisão iriam encontrar o seu caminho para o coração da capital da França. Chamava-se ”Itinerário Prático do Estrangeiro em Paris”’.

Os homens da 4.a Divisão, esgotados pela longa progressão debaixo de chuva, pelo black-out e pelo fumo dos tubos de escape, tinham-se concentrado, constituindo três agrupamentos, ao sul da capital. Apenas esperavam agora a ordem que os faria lançar-se através de Paris. Para alguns, como o sargento Milt Shenton, do Maryland, ”Paris era um sonho que finalmente se concretizava”. Mas, para outros soldados de infantaria, como Willy Hancock, da Georgia, apavorado pelo espectro duma batalha de ruas, ”Paris não era mais do que outra cidade ocupada pelos alemães, antes de Berlim e do regresso a casa”. Havia americanos que atribuíam um significado especial à perspectiva de entrar em Paris. Nessa noite, ao enfiar-se no seu saco de dormir, o tenente-coronel Dee Stone tacteou, na algibeira do seu fato de combate, um velho sobrescrito, sujo e quase roto, que continha uma carta. Esse bocado de papel tornara-se para Stone como que numa espécie de talismã. Trazia-o consigo desde o dia em que, em Novembro de 1943, deixara a sua casa de Forest Hills e embarcara para Inglaterra. A carta desembarcara com ele, ao de Junho, e acompanhara-o sempre ao longo dos sangrentos combates da Normandia, até àquele dia em que,

 

1 Terminada a guerra, Mills mandou emoldurar essa planta como se se tratasse duma relíquia. Ainda hoje ela decora uma parede da sala de jantar de sua casa, em Concord, na Carolina do Norte.

 

vivo, ele chegara finalmente aos arredores de Paris. No dia seguinte, cumprindo a promessa que fizera àquele que a redigira, entregaria a carta ao seu destinatário, em Paris.

O alferes Jack Knowles, chefe duma secção do 22.º Regimento de Infantaria e o seu adjunto, o sargento ”Speedy” Stone, encontravam-se num estado de raiva surda. O comandante da companhia tinha acabado de lhes participar que a entrada em Paris ”constituiria um verdadeiro desfile” e, por conseguinte, que todos os homens deveriam levar gravata. Nem Stone, nem Knowles, tinham tocado, ou sequer visto, uma única gravata desde a sua partida de Inglaterra. Stone, um ”desenrascado”, prometeu contudo ao seu alferes que encontraria os preciosos ornamentos até à manhã seguinte. Porque, para ”Speedy” Stone, Paris ”valia bem um desfile”.

Encostado ao tronco dum choupo, perto de Trappes, o sargento Larry Kelly, de 42 anos, estava radiante. Esse gigante louro, originário da Pensilvânia, nutria uma afeição quase mística pela França. Vinte e sete anos tinham passado desde o dia em que, deturpando a sua idade, se alistara, com 15 anos, no corpo expedicionário americano, tendo-se batido oito meses em França, onde, por duas vezes, fora ferido.

Na noite do desembarque aliado, Kelly lançara-se de pára-quedas na Normandia, com a 82.a Divisão Aerotransportada. Ferido, pouco tempo depois, ficara adstrito ao regimento de artilharia de campanha que apoiava agora a coluna do comandante Morel-Deville e da qual era um dos batedores. Kelly sabia que, dentro de algumas horas, iria ter todas as possibilidades de ganhar a aposta que fizera na noite de 5 para 6 de Junho: ser o primeiro americano a entrar em Paris.

 

Anoitecia. O tenente Warren Hooker, chefe de secção duma companhia do 22.º de Infantaria, e o seu adjunto, o sargento Ray Burn, subiram calmamente ao cimo duma velha torre de observação que encontraram, perto de Orly, e puseram-se a contemplar, maravilhados, a linha dos telhados de Paris. No crepúsculo, Hooker conseguia mesmo reconhecer cada um dos monumentos de que falavam os seus livros de História e os romances de Alexandre Dumas. O espectáculo que se desenrolava sob os seus olhos parecia-lhe quase familiar. Mas a sua experiência de soldado de infantaria dizia-lhe que não lhe seria dado prolongar o deleite dessa contemplação por muito mais tempo. Já no dia seguinte lhe iria ser negado, por falta de tempo, visitar todas essas maravilhas, com as quais sonhava desde a sua infância. O destino desse oficial, como o dos seus camaradas, era ”empapar aquela cidade com o seu sangue e continuar em frente”. Hooker recordou então, com tristeza, alguns versos dum poema de Robert Frost, que aprendera no liceu: ”Tenho promessas
a cumprir e muitos quilómetros a percorrer, antes de me ser dado dormir.”

 

No hotel do ”Monteiro-Mor”, em Rambouillet, Larry Leseur, o radiorrepórter da cadeia de rádio americana C.B.S., que tomara conhecimento da libertação de Paris quando se encontrava no dentista, chegara finalmente a tempo de poder assistir à verdadeira libertação. Deparando-se-lhe, no meio da multidão de jornalistas que tinham invadido o hotel, o seu colega Charlie Collingwood, cuja reportagem imaginária sobre a Libertação tinha sido radiodifundida por engano, Leseur atirou-lhe uma frase irónica: ”Excelente reportagem, Charlie!” Collingwood teve primeiro um sorriso amarelo. Depois, tirou da algibeira um objecto embrulhado em folha de estanho, que estendeu, com um sorriso, a Leseur. Era uma barra de chocolate.

Nas suas posições, desde Sèvres, à esquerda, às vastas planícies de Orly, extenuados e moídos, os homens da 2.a D.B., suspensa, durante a noite, a sua progressão sobre Paris, descansavam. Momentos antes tinham, sem o saberem, rebentado com o último ferrolho alemão da defesa da capital, em Fresnes e em La Croix-de-Berny. A estrada de Paris estava agora aberta na sua frente.

Em quase todas as unidades da divisão havia, nessa noite, bastantes lugares vazios. O general Von Aulock cumprira de facto a sua palavra, fazendo pagar caro aos franceses o direito de entrarem na sua capital. Ao longo das estradas que tinham tomado, as três colunas da divisão deixavam atrás delas um cortejo de veículos carbonizados, de mortos e feridos. Dos 16 half-tracks duma secção da 10.a Companhia do Regimento do Chade, apenas restava um. Uma companhia dum regimento de carros perdera um terço dos seus blindados somente no ataque a Fresnes.

As perdas sofridas e as longas horas que tinham acabado de viver tinham posto bem à prova o moral dos homens da 2.a D. B. A única consolação que lhes restava era saberem Paris tão próxima, logo para lá daquela última fileira de casas de subúrbio que tinham na frente. A sua viagem estava quase no fim.

Uns e outros, todos pensavam, duma maneira ou doutra, em Paris e nos momentos que iriam seguir-se. Havia quem não mais receasse que os americanos chegassem antes deles, e quem sentisse a cidade deitada a seu lado, ”como uma amante adormecida”. Alguns cantavam E todos os nossos caminhos são ruas de Paris...”, uma canção composta no deserto da Líbia; outros, como o sargento Marcel Bizien, deitado de costas sobre o seu carro de assalto, contemplavam simplesmente o céu, viam Paris e faziam promessas a si próprios. Bizien desejava lançar-se à abordagem dum blindado alemão e toma-lo. Os camaradas ouviram-no jurar que o faria. E fê-lo.

À entrada da prisão que Biziem e os seus companheiros tinham conquistado horas antes, um grupo de F. F. I. surgiu escoltando um prisioneiro alemão. De cabeça baixa e rosto transtornado, Willy Wagenknecht transpôs o portão e penetrou no pátio juncado de destroços. Para ele, as irónicas circunstâncias que o tinham obrigado a defender a sua própria prisão continuavam a manifestar-se: Wagenknecht iria terminar a sua estada em Paris no local onde a iniciara. Na prisão de Fresnes.

O alferes René Berth, de 40 anos, viu, nessa noite pela primeira vez desde que partira para Inglaterra, o seu filho. Viu-o passar, de pé num half-track, juntamente com os primeiros veículos que avançavam, preparando o seu dispositivo de marcha para a manhã seguinte. Dois anos antes, sem nada dizer a sua mãe, o jovem tinha partido a pé para se juntar a seu pai, com os franceses livres. Nessa noite de Agosto, Louise Berth continuava sem saber se o marido e o filho, Raymond, estavam vivos ou não.

Gritando sobre o fragor das lagartas em movimento, pai e filho prometeram encontrar-se no dia seguinte em Paris, e fazer a Louise Berth uma surpresa. Enquanto o vulto do filho se afastava e desaparecia, René Berth sentiu uma torrente de orgulho correr-lhe no peito. E, de repente, os seus olhos de guerreiro encheram-se de lágrimas de ternura.

”Amanhã, 25 de Agosto - lembrou-se ele -, é o aniversário de Louise. Que surpresa e que alegria ela vai ter!”

 

                               Capítulo quadragésimo quarto

No fosso duma antiga pedreira, à saída de Longjumeau, o homem que comandava René Berth e todos os seus camaradas da 2.a D.B. estudava um mapa, desdobrado sobre a cobertura do motor do seu half-track de comando. De todos os mapas que Philippe Leclerc e os oficiais do seu estado-maior tinham examinado durante a guerra, nenhum deles, talvez, lhes revelara uma realidade tão angustiante. Era um mapa de Paris e sobre essa planta havia uma infinidade de círculos encarnados, indicando os pontos de apoio alemães, aqueles stutzpunkt que os oficiais de Choltitz tinham jurado defender ”até ao último cartucho’’. Em quase todos os casos, os círculos vermelhos cobriam um dos tesouros arquitectónicos da cidade. Se os alemães, pensava Leclerc, se agarrassem a esses pontos de apoio com a mesma tenacidade que tinham demonstrado ao longo da estrada de Paris, só a artilharia dos carros e os canhões de campanha conseguiriam vencê-los. No dia seguinte, a destruição da Praça da Concórdia, da Câmara dos Deputados, do Palácio do Luxemburgo, da Rua de Rivoli, seria possivelmente o preço que Paris iria ter de pagar pela sua libertação. Voltando-se para os oficiais silenciosos que o rodeavam, Leclerc deu instruções rigorosas, proibindo a utilização de artilharia pesada sem sua autorização.Viemos para libertar Paris - disse -, não para a destruir.”

O general e os seus oficiais afastaram-se então alguns metros e foram acocorar-se à volta duma pele de antílope do Chade, que Ahmed, o impedido de Leclerc, desenrolara sobre uma pedra. Ahmed distribuiu a cada um deles o seu jantar, uma simples caixa de ração.

Enquanto a noite caía, esses poucos homens, que representavam o exército francês, partilharam, em silêncio, conforme o rito espartano que tinham observado nos desertos da Líbia e da Tripolitânia, a sua última refeição de exílio, às portas da capital do seu país. Endurecidos pelo forno africano onde tinham derretido a gordura dos corpos e purificado as almas, eles não eram mais do que parentes desses oficiais da ”guerra a brincar” que jantavam, à luz das velas, nos castelos da retaguarda. Quando terminaram, enrolaram-se nos seus djellaba e adormeceram
ao relento junto dos seus jipes ou dos seus command-cars.

A 27 quilómetros dali, em pleno coração de Paris, os chefes da Resistência davam também início, no imenso refeitório subterrâneo dos Paços do Concelho, à sua refeição nocturna. Sentados em cadeiras, bancos e caixotes, com as suas espingardas e granadas sobre as compridas mesas de madeira, os defensores do enorme edifício, cansados e silenciosos, jantavam num cenário da Idade Média.

Grandes picheis de vinho tinto entrechocavam-se num ruído metálico, enquanto uma dezena de ”colaboracionistas” prisioneiros, de crânio rapado como bolas de bilhar e expressão deprimida, faziam circular travessas com o prato único desse estranho banquete: aletria com lentilhas.

Era, nas palavras de Jacques Debú-Bridel, o homem que três dias antes estilhaçara um vidro para acalmar a tempestuosa conferência dos chefes da Resistência, ”um sinistro e deprimente jantar”. Havia dois dias que os defensores do ”Hotel de Ville” esperavam a todo o momento ser submergidos pelos alemães. Também eles sabiam já que duas divisões Panzer S. S. se aproximavam de Paris. Debú-Bridel e a maior parte dos resistentes reunidos nessa noite no refeitório dos Paços do Concelho estavam certos de que o destino lhes iria arrebatar, no último momento, aquela frágil vitória à qual tão tenazmente se tinham agarrado durante cinco dias.

No outro extremo da Rua de Rivoli deserta, para a qual dava uma das fachadas do ”Hotel de Ville’’, no quarto n.º 238 do Hotel Meurice, Dietrich von Choltitz acabava de vestir uma camisa de seda branca. Sentindo o colarinho apertar-lhe o pescoço, o governador pensou: ”Engordei em Paris.” Era a primeira vez, desde que chegara à capital francesa, que o general alemão punha um colarinho de goma. Em cima da cama estava o casaco branco do uniforme, cuidadosamente passado a ferro, que vestiria nessa noite com as calças cinzentas de listas encarnadas, de oficial de estado-maior. Choltitz apenas o usara uma vez, sete meses antes, numa recepção que tinha sido dada perto de Anzio, em Itália, para festejar a sua promoção ao posto de general de divisão. Nessa noite, iria vesti-lo em circunstâncias bem diferentes, para participar na última recepção, sem dúvida, a que o comandante do Gross Paris assistiria por muitos e muitos anos... No primeiro andar do Hotel Meurice, no grande salão ocupado pela secretaria de estado-maior, os colaboradores do general preparavam-se para lhe oferecer um jantar de despedida.

Raros eram, no seio do estado-maior, aqueles que ainda acalentavam qualquer ilusão sobre a sorte que esperava a guarnição do Gross Paris. Durante todo o dia, os oficiais tinham deslocado as pequenas bandeiras encarnadas que, no grande mapa afixado numa das paredes da Sala de Operações, indicavam o fulminante avanço aliado. As bandeirolas estavam agora colocadas sobre as entradas de Paris. Da O. B. West tinham chegado, nessa noite, notícias alarmantes sobre a situação geral na frente. O relatório recebido revelara a Choltitz algo que Bobby Bender parecia desconhecer: os americanos tinham forçado a barragem estabelecida sobre o Sena, ao sul de Meloun, e avançavam rapidamente para Leste sem se lhes deparar qualquer resistência. Para tentar estacar esse avanço, duas divisões alemãs tinham recebido ordem para se deslocar para o sul, no sentido de Nogent-sur-Seine e Troyes. Choltitz compreendeu então que, dali em diante, apenas poderia contar com as suas próprias tropas. Essas duas divisões eram precisamente aquelas que constituíam os reforços que lhe haviam sido prometidas: as 26.a e 21.& Panzer S. S.

Enquanto abotoava o colarinho de goma, ao espelho da sua casa de banho, o general alemão disse para consigo que na madrugada do dia seguinte, ou seja, poucas horas mais tarde, os Aliados chegariam, para o golpe de misericórdia. Aguardara durante todo o dia a visita do ameaçador comandante da Luftwaffe, mas este não aparecera.

O general pensou, com amargura, nesse oficial, em Hitler, em Jodl, em Model. Reviu a boca deformada do Fiihrer ao dizer-lhe em Rastenburgo: ”Esteja certo, Herr General, que receberá de mim todo o apoio necessário.’’ Mas em lugar de reforços Choltitz nada mais recebera do que palavras e as brocas automáticas da 813.a Pionierkompanie. Incapaz de defender Paris pela força das armas, a O.K. W. decidira proporcionar a si própria o prazer de a riscar do mapa do Mundo. Choltitz sabia que, nesse momento, na O. K. W. apenas esperavam um único gesto da sua parte: o que daria aos homens do capitão Ebernach autorização para disparar os seus detonadores.

Estava o conquistador de Sevastopol convencido de que no dia seguinte, à noite, estaria morto nas ruínas do seu hotel ou prisioneiro dos franceses. E, no entanto, era bem diferente o fim que antevira para si e para o seu país naquele dia de Maio de 1940 em que, no aeródromo de Roterdão, desembarcara dum Junker. Pegando num frasco de água-de-colónia que o cabo Helmut Mayer lhe trouxera dez dias antes, Choltitz borrifou a cara, decidido a fazer boa figura perante os seus colaboradores. Quando pousou o frasco, o olhar caiu-lhe sobre a etiqueta. Nunca a notara. Dizia: ”Noite de Paris.”

Parecia o comandante de um navio, disposto a afundar-se com o seu barco em uniforme de gala. Dietrich von Choltitz saiu então do seu quarto e, num passo tranquilo, encaminhou-se para o seu jantar de despedida.

Noutro quarto doutro hotel, uma bela morena fazia deslizar pelo seu corpo um vestido preto, com bordados prateados. Cita Krebben mirou-se num espelho e considerou que o último vestido da sua costureira parisiense tinha, efectivamente, ficado muito bem feito. Ela era, juntamente com a sua amiga Hildergarde Grun, secretária do coronel Von Unger, e com a provocante Annabela Waldner, intendente dos governadores alemães de Paris, uma das últimas mulheres alemãs que ainda se encontravam em Paris. A elegância natural dessa jovem muniquense, de 23 anos, e a assiduidade com que frequentava uma costureira da Rua Washington, tinham-na tornado na mais parisiense das alemãs. Quando, instantes depois, fez a sua entrada na sala de jantar iluminada com velas, onde o general e os seus colaboradores tomavam aperitivos, todos os olhares convergiram sobre ela. O próprio Choltitz, enchendo a sua taça de ”Cordon Rouge”, propôs um brinde ”à saúde das magníficas mulheres alemãs cuja solidariedade, no decorrer desta guerra, tinha tornado menos duros os golpes do destino”. Todos ergueram as suas taças. Foi, como diz o conde Dankvart von Arnim, ”um momento comovente”. Este oficial observou as expressões daqueles que o circundavam: Unger estava rígido e glacial, como de costume; frívolo e simpático, até mesmo nessa derradeira noite, Jay gracejava; Clemens Podewills um correspondente de guerra surpreendido em Paris pela insurreição, bebia, imperturbável, o seu champanhe; o único que revelava as suas preocupações era o capitão Otto Kayser, um antigo professor de literatura de Colónia. Nessa tarde, Kayser trouxera consigo, ao regressar duma patrulha perto da Comédie Française, um cartaz, ainda húmido de tinta, que proclamava: ”A CADA UM, O SEU BOCHE.”

Enquanto todos procuravam ostentar uma alegria de circunstância, Arnim viu entrar um mensageiro. Este dirigiu-se ao general e sussurrou-lhe algumas palavras ao ouvido, logo após o que Choltitz abandonou a sala.

Chamavam o comandante do Gross Paris ao telefone. Apesar de fraca e distante, ele reconheceu, no entanto, a voz familiar do seu velho camarada de armas o general Walter Krueger, actual comandante do 58.º Corpo de Panzer. Krueger falava-lhe dum telefone de campanha, na região de Chantilly, a 40 quilómetros da capital. ”Vou a Paris - declarou Krueger de brincadeira -, e esta noite iremos ao Sphinx!” ’

 

Mas Krueger não telefonara para se divertir. Model ordenara-lhe pessoalmente, disse, que reunisse todos os blindados disponíveis do 58.º Corpo e que os enviasse com a maior urgência em socorro de Choltitz. E Krueger, numa voz grave e triste, via-se forçado a acrescentar que desgraçadamente nessa noite de Agosto, não tinha um único tanque disponível para socorrer o seu amigo. Dos

 

1 O Sphinx era uma das mais célebres casas de prostitutas de Paris.

 

120 000 homens e 800 carros, com os quais o 58.º Corpo começara a batalha da Normandia, nada mais restava, confessou ele, do que algumas ruínas em plena derrocada, dispersas pelos campos ao sul de Chantilly. Krueger garantiu no entanto a Choltitz que tinha enviado todos os oficiais que conseguira encontrar à procura dos poucos blindados de que ainda dispunha, logo que recebera a ordem de Model. Mas, no caos actual, não poderia dizer se estes conseguiriam chegar a tempo. Após um longo silêncio, Krueger perguntou por fim ao seu amigo o que contava fazer: ’’ Não sei - respondeu o governador de Paris -, a situação é muito má.” Seguiu-se, de novo, um grande silêncio. Depois, os dois homens desejaram-se mutuamente: Hals undBein brucb (Deixa que te cortem a cabeça e as pernas). Era uma velha expressão alemã que significava ”Boa sorte”.

Digno e aprumado, o mordomo passava, com uma vasta travessa de prata cheia de espargos. Annabella Waldner, a anfitriã que deliciara, durante quatro anos, as elites da Alemanha nazi e da Itália fascista à mesa dos governadores de Paris, escolhera pessoalmente o que as despensas do Meurice tinham de mais raro e delicioso. A seguir aos espargos com molho holandês, os convidados saborearam pasta de fígado e uma especialidade de Gourguilev, o chefe de cozinha búlgaro do Meurice, profiterolles com chocolate, a sobremesa favorita do marechal Rommel.

A luz trémula dos candelabros de prata maciça que Annabella Waldner dispusera sobre a mesa, os convivas deram início ao jantar. Sentado entre Cita Krebben e Hildegarde Grun, Dietrich von Choltitz, que se esforçava por ser um conviva falador e divertido, começou a evocar as suas recordações de quando tinha sido pajem na corte da rainha de Saxe.

Mas, pouco depois, a voz do general tornou-se melancólica, e todos sentiram mais cruelmente a tristeza daquele momento. Imerso num profundo abatimento, o conde Dankvart von Arnim olhava fixamente para o fundo do prato que tinha na sua frente. De repente, entre duas cabeças de espargos, deparou-se-lhe uma imagem que o chamou brutalmente à realidade. Era o Arco do Triunfo. Nessa última refeição numa Paris que Hitler lhe ordenara expressamente que destruísse, Dietrich von Choltitz e os seus companheiros jantavam na baixela que o seu antecessor encomendara especialmente à manufactura de Sevres. No fundo de cada prato havia, pintado à mão, com o monograma da Wehrmacht, um monumento da cidade de Paris.

 

                       Capítulo quadragésimo quinto

Tal como Napoleão de regresso da ilha de Elba 129 anos antes, o capitão da barba ruiva teve um estremecimento ao deparar-se-lhe um letreiro, na semiobscuridade da noite, que repentinamente surgiu na sua frente: Paris - Portas de Itália. De eco em eco, estas palavras mágicas correram como a luz ao longo da pequena coluna. Nos tanques e nos half-tracks,
os homens beijavam-se e começaram a gritar e a gesticular de alegria. No seu jipe ”Morte aos cab...”, Raymond Dronne compreendeu que tinha ganho a corrida iniciada quatro anos antes. Era ele o primeiro oficial francês a entrar em Paris.

Tímidos e receosos, os habitantes das Portas de Itália, que antes se tinham trancado em suas casas, começaram a aparecer às janelas. À vista daqueles vultos, sem os habituais e pesados capacetes da Wehrmacht, mas apenas cobertos por simples bivaques, alguém exclamou de repente: ”Os americanos!” De voz em voz, o grito propagou-se por todo o bairro. Homens, mulheres e crianças precipitaram-se, vindos de todas as portas e de todas as ruas. Pouco tardou para que, surgindo de todos os lados, uma autêntica maré humana envolvesse os veículos do pequeno destacamento. O capitão que tanto desejara estar atraente quando encontrasse as parisienses viu-se subitamente submerso em dezenas delas, novas, velhas, louras e morenas, que se empurravam entre si para mais depressa o beijarem, apertarem-lhe a mão ou simplesmente tocarem no seu uniforme sujo, negro de pó e de pólvora. Uma avantajada rapariga vestida de alsaciana, chamada Jeannine Bouchaert, conseguiu mesmo assaltar o jipe e sentar-se ao lado do emocionado guerreiro.

Levando com ele, como uma mascote, a alsaciana, que cantava em altos gritos e agitava freneticamente uma bandeira tricolor, Dronne prosseguiu o seu caminho através da multidão. Seguido pelos seus carros, avançou pela Avenida de Itália e depois por um dédalo de pequenas ruas que levavam ao Sena. A coluna deslocava-se tão depressa que os parisienses mal tinham tempo de distinguir as cruzes da Lorena dos carros Sherman que rolavam na sombra. Diante da estação de caminho de ferro de Austerlitz, as primeiras balas alemãs saudaram a passagem dos carros franceses. Mas estes prosseguiram na sua corrida sem ripostar, lançaram-se sobre a ponte de Austerlitz, ainda de pé apesar das ordens de destruição de Hitler, e desembocaram nos cais da margem direita. Ao subir o cais dos Célestins, a toda a velocidade do seu jipe, Dronne sentiu bruscamente um aperto de emoção na garganta. À sua esquerda, recortada no crepúsculo, erguia-se contra o céu a silhueta impressionante da catedral de Notre-Dame. Virou à direita. Fazendo saltar faíscas do pavimento, os três tanques e os seis half-tracks rodopiaram por sua vez e foram imobilizar-se diante da fortaleza das liberdades municipais dos Parisienses, o ”Hotel de Ville”. Dronne saltou do jipe. Como se regressasse doutro planeta, olhou, petrificado, para a enorme fachada Renascença mutilada pelas balas e ornada com as cores francesas. No mostrador do grande relógio os ponteiros marcavam 9 horas e 22 minutos.

Mil novecentos e trinta e um dias, dezasseis horas e cinquenta e dois minutos depois de o primeiro soldado da Wehrmacht ter pisado o solo de Paris, nas portas da Villette, o exército francês estava de regresso à capital.

Haviam passado apenas alguns segundos desde que o vulto frágil de Georges Bidault tinha surgido de pé, sobre uma mesa oscilante do refeitório instalado no subsolo. Numa voz que a emoção tornava ainda mais rouca, Bidault exclamara: ”Os primeiros tanques do exército francês transpuseram o Sena. Estão a chegar ao coração de Paris.’’ Vibrava ainda no silêncio das abóbadas o eco destas palavras quando se ouviu o barulho dos carros que desembocavam na praça. Os homens puseram-se de pé. No meio do estilhaçar dos pratos e dos jarros de vinho que caíam por terra, todos começaram a cantar a ”Marselhesa”. Em seguida, como uma horda, correram desenfreadamente para a rua e atiraram-se sobre o capitão hirsuto e enfraquecido pelo cansaço. Dum salto, de microfone nas mãos, o radiorrepórter Pierre Crénesse instalou-se sobre o carro Champaubert” e abraçou o primeiro homem que viu sair da torrinha. ”Parisienses - gritou ele ao microfone -, vão ouvir a voz dum soldado francês, o primeiro militar sem graduação que entrou em Paris.” Colocando o micro diante da boca do surpreendido soldado, Crénesse fez-lhe a primeira pergunta de que se lembrou: ”Donde é você?”, perguntou. ”De Constantinopla...”, respondeu o soldado Firmin Pillian.

Graças à energia eléctrica que milagrosamente voltara a haver, 3 milhões e meio de parisienses puderam então viver junto dos seus receptores os primeiros minutos da mais bela noite da sua vida. ”Chegaram os Aliados! Parisienses, é a libertação! Divulguem a notícia! É preciso que por toda a parte rebente a alegria!...”, gritavam os locutores. Do alto da torrinha do ”Champaubert”, com a voz trémula de emoção, Crénesse citava Vítor Hugo, em altos gritos: ”Despertai -declamava ele - , basta de vergonha! Tornai-vos novamente na grande França! Tornai-vos de novo na grande Paris!”

Milhares de parisienses abriam as janelas, atiravam-se para os braços de vizinhos a quem jamais tinham dirigido a palavra, começavam a gritar de pura alegria. Das janelas escancaradas, a toda a força dos altifalantes dos receptores, jorravam os acordes da ”Marselhesa”.

Nas varandas, na soleira das portas, nas janelas, na escuridão da noite, por toda a parte, a cidade inteira, reencontrando a sua liberdade e o seu amor-próprio, cantava com os aparelhos de rádio. As palavras vibrantes do hino vingador escorriam de todas as casas, rolavam de rua em rua, repercutiam-se e amplificavam-se até envolverem Paris num coro triunfal.

Raymond Dronne sentiu os olhos, ardentes de poeira e de fadiga, cobrirem-se de lágrimas. Ouvia, nesse instante que deveria tornar-se no mais memorável da sua vida, o gigantesco coral de mil vozes entoar, em plena Praça dos Paços do Concelho, a ”Marselhesa”, repercutida num eco interminável. Parecia-lhe que ”a cidade inteira se erguia como uma vaga sonora”, impulsionada pelo hino. Perto dele, bela e frágil, de vestido preto, uma mulher cantava com ardor, o rosto transtornado pela fadiga e pela emoção. Era Marie-Hélène Lefaucheux. Dronne pensou então na propaganda de Vichy, repetindo sem cessar que os homens da França Livre eram a vergonha da sua pátria.

Desvaneciam-se as últimas notas da Marselhesa’’ quando um locutor pegou no microfone para dirigir novo apelo à multidão: Pedimos aos senhores párocos que nos estão a ouvir, ou que possam ser prevenidos pelos seus paroquianos, para anunciar a entrada dos Aliados em Paris.”

Durante quatro anos, os sinos de Paris tinham-se conservado silenciosos. Nem uma única vez, durante a ocupação alemã, os seus carrilhões tinham podido tocar para chamar os fiéis ao culto, para anunciar o nascimento de Jesus, a ressurreição de Cristo ou apenas dobrar a finados. Mas agora, ao apelo da rádio, sacudindo a poeira acumulada em quatro anos de mudez e de luto, o repicar dos sinos voltaria a ressoar no céu de Paris. Do alto da torre sul de Notre-Dame, o enorme bordão de treze toneladas que tocara a rebate anunciando a guerra em 2 de Setembro de 1939, encetou o primeiro carrilhão de alegria.

Do alto da colina de Montmartre, o ”Savoyarde”, o sino da basílica do Sacré-Coeur, construído uma geração antes em agradecimento a Deus por ter libertado Paris e a França dos Prussianos, respondeu, passado pouco tempo, ao bordão de Notre-Dame. Uma a uma, todas as igrejas começaram a anunciar, com os seus sinos, a boa nova. Em poucos momentos, o céu inteiro tremia ao som dos cem campanários de Paris. Às janelas, os Parisienses choravam de alegria.

 

Algures em Paris, a enfermeira Madeleine Brinet poisou o seu lápis e escutou o badalar dos sinos. Encontrava-se no pequeno quarto do posto de socorros da Rua de Nápoles e, no decorrer do dia, apenas tinha ouvido os gemidos dos feridos. No seu diário, a jovem acabara de escrever o resumo desse último dia de insurreição: ”Cinco mortos, hoje. Recebi as famílias. Atrozes cenas de desespero.” Voltando a página, Madeleine começou a escrever a data do dia seguinte ”Sexta-feira, 25 de Agosto - Dia da Glória”. Mas, no diário da enfermeira, a página do dia 25 de Agosto ficará para sempre em branco. Vítima dos últimos combates, esse dia de glória será também o da sua morte.

No interior das cozinhas do Palácio do Luxemburgo, Paul Fardou, o membro da Resistência que pilhava os armazéns da Milícia, ouviu igualmente o bater dos sinos e pensou: ”Passa-se qualquer coisa.” Pela primeira vez, Franz, o seu gordo carcereiro, não pronunciou a frase habitual: ”Tu limpar bem a cozinha esta noite, pois amanhã tu fuzilado.” O silêncio do alemão preocupou Fardou.

No seu bockhaus do Hotel Magestic, Willy Krause, o tanquista que se tornara infante, distinguiu ao longe o tocar dos sinos e fez a si próprio uma pergunta estúpida: ”Quem é que poderão estar a enterrar a uma hora destas?” Rudolf Ries, o Feldgendarme que anunciara a frágil trégua de Nordling pelas ruas da cidade, compreendeu imediatamente que o fim estava próximo quando o primeiro carrilhão se ouviu das janelas da Kommandantur da Ópera. ”Estamos fritos!’’ disse, simplesmente, ao seu camarada o Unteroffizier Otto Westermann.

Do telhado do Ministério dos C. T. T., o cabo Alfred Hollesch não perdeu um único destes ”momentos inesquecíveis”: a ”Marselhesa” primeiro, subindo nos ares das ruas obscuras, depois a explosão dos sinos ”acompanhando o hino como uma maré.”

Impressionado, Hollesch pensou ”que assistia, impotente, às suas últimas horas de liberdade”.

Quando Werner Nix, o Feldwebel que, dez dias antes, amaldiçoara Choltitz por causa duma parada, ouviu o estranho carrilhão no átrio do Hotel Continental, transformado em ponto de apoio,, disse para consigo, simplesmente: ’’Amanhã, a guerra terá acabado. Os Franceses quebraram as suas cadeias.’’

Nas profundas do seu P.C., ”Duroc”, o chefe da insurreição que quebrara essas cadeias não ouviu o carrilhão libertador.

Quando Rol e os seus oficiais souberam pelo telefone que os primeiros carros de Leclerc tinham chegado diante do ”Hotel de Ville’’, decidiram beber pela sua vitória. À falta de champanhe, o chefe dos F.F.I, deitou no copo dos seus camaradas um líquido xaroposo, a inesgotável Benedictine que o dono dum restaurante da Praça Saint-Michel lhe enviara em grande número de caixas de garrafas

 

Muitos outros parisienses também não ouviriam, nessa noite, os sinos da Libertação. Furioso por o sino da igreja da sua paróquia se manter em silêncio, o jovem Dominique de Serville, de treze anos, tentou telefonar ao prior de Saint-Philippe-du-Roule. Mas não conseguiu obter a ligação. Congestionado com centenas de chamadas, o telefone do pároco estava permanentemente impedido ’.

 

1 No domingo seguinte, por ocasião da solene missa de acção de graças, o rapaz ficaria a saber o motivo por que os sinos da sua igreja tinham ficado silenciosos naquela noite. ”Meus queridos irmãos - declarou o cónego Jean Muller, prior da freguesia, ao subir ao púlpito-, agradeço a todos aqueles que na passada quinta-feira à noite me telefonaram, pedindo que mandasse tocar os sinos em honra da Libertação. Infelizmente, a nossa paróquia não possui campanário, nem sinos...” Com um sorriso paternal, o simpático prior prosseguiu: ”Creio que é chegado o momento de preencher esta lacuna. O peditório deste primeiro domingo de Libertação será feito para dar à nossa paróquia de Saint-Philippe-du-Roule um campanário... e os respectivos sinos!’’

 

No entanto, em parte alguma o badalar dos sinos de Paris causou impressão mais forte que na pequena sala iluminada a velas do 1.º andar do Hotel Meurice. Ao ouvir o ruído, primeiro longínquo e hesitante, que chegava até eles, os convivas calaram-se bruscamente. Então, como ondas rolando numa praia, o ressoar dos sinos aumentou, entrou pela janela aberta e inundou o ambiente.

”Por que motivo tocam os sinos, Herr General’’, perguntou ingenuamente a formosa Cita Krebben. Dietrich von Choltitz encostou-se em silêncio ao espaldar da sua cadeira e demorou bastante tempo a responder. Depois, numa voz calma e resignada, disse: ”Tocam por nós, minha querida amiga, anunciando a entrada dos exércitos inimigos em Paris neste mesmo momento!”

Ao proferir estas palavras, a Choltitz deparou-se-lhe a surpresa estampada em vários rostos. Irritado, indagou se algum dentre os convivas daquele jantar esperava qualquer outro desfecho. Animando-se subitamente, o general passeou o olhar pelos oficiais que o rodeavam e começou a falar com dureza: ”Os senhores parecem surpreendidos! Mas o que supunham, então? - perguntou. - Há anos que aqui descansam e passam pelo sono, neste vosso pequeno mundo de sonho. Que sabem realmente da guerra? Ignoram porventura o que aconteceu à Alemanha, na Rússia e na Normandia?” Cada vez mais duro, o comandante do Gross Paris dava livre curso à sua indignação: ”Meus senhores - disse ele - , posso declarar-vos o que a doce vida de Paris parece ter-vos ocultado: a Alemanha perdeu esta guerra e com ela perdemo-la nós também.”

 

Estas cruéis palavras puseram termo, brutalmente, à alegria fictícia do jantar de despedida. O coronel Hans Jay encheu pela última vez a sua taça de champanhe e durante alguns segundos contemplou melancolicamente as bolhas frágeis que vinham morrer à superfície. Depois, o sedutor coronel que, durante anos, tinha sido uma das mais célebres figuras da vida nocturna parisiense, fez a única coisa que lhe faltava fazer na sua última noite em Paris. Foi deitar-se. O conde Dankvart von Arnim desapareceu discretamente e subiu para o seu quarto. Antes de se meter na cama, o jovem oficial abriu o pequeno diário, encadernado com uma capa verde, onde todos os dias anotava os principais acontecimentos da sua vida. Numa página em branco escreveu apenas algumas palavras: ”Acabo de ouvir dobrar a finados por mim próprio!” Depois, Arnim pegou no volumoso livro que se encontrava sobre a mesa de cabeceira e abriu-o na página do capítulo cuja leitura iniciaria antes de adormecer. Era a História da França, e o capítulo intitulava-se: ”O massacre do dia de S. Bartolomeu.” A data desse acontecimento tornou pensativo o oficial. Tinha sido também num dia 24 de Agosto, 372 anos antes, que se dera o maior massacre da História da França...

Só, no grande gabinete de trabalho para o qual se retirara após o jantar, Dietrich von Choltitz pegou no telefone e, pela segunda vez em 24 horas, pediu uma ligação para o Grupo de Exércitos B. O comandante do Gross Paris tinha acabado de receber confirmação de que uma guarda-avançada aliada entrara em Paris momentos antes. Ele sabia que atrás dessa guarda-avançada viria o grosso das tropas inimigas. Choltitz ouviu, na linha, a voz do chefe de estado-maior.

”Boa noite, Speidel - disse, numa voz grave -, tenho uma surpresa para si. Oiça, se faz favor...”

Choltitz aproximou o telefone da janela aberta para a noite, cheia do repicar atroador e festivo dos sinos. De repente, diz Speidel, o ressoar nítido e poderoso dos sinos invadiu o sinistro bunker iluminado a néon onde o chefe de estado-maior habitava havia seis dias. Speidel ergueu o olhar para o seu ajudante-de-campo, o capitão Ernst Maisch, que escutava a conversação através dum segundo auscultador, e estupefacto contemplou a delicada gravura de Notre-Dame colocada na parede de betão.

”Está a ouvir?”, perguntou Choltitz, impaciente.

”Sim-respondeu Speidel - , são os sinos, não é verdade?”

”Exactamente, Herr General, são os sinos de Paris repicando com a sua maior força para anunciar à população a chegada dos Aliados.

Fez-se um silêncio incómodo. Depois, Choltitz repetiu que, conforme as ordens que lhe tinham sido transmitidas pelo Grupo de Exércitos B, terminara os preparativos de destruição das pontes, das estações de caminho de ferro, das instalações do fornecimento de água, de gás e de electricidade e dos edifícios ocupados pelo exército alemão. Mas pretendia saber se poderia contar com o Grupo de Exércitos para garantir a evacuação dos seus homens, e a sua própria, uma vez que tivessem procedido às destruições. Houve, de novo, recorda Choltitz, um prolongado silêncio. Depois, o governador de Paris ouviu Speidel dizer, numa voz lenta e resignada: ”Não, Herr General, desgraçadamente creio bem que não...”

Choltitz soltou um breve suspiro e perguntou ao seu superior se este teria alguma última ordem a dar-lhe. Speidel respondeu que não tinha. ”Então, meu caro Speidel, apenas me resta dizer-lhe adeus. Permita-me que confie à sua guarda minha mulher e os meus filhos, que se encontram em Baden-Baden.

- Conte comigo - respondeu Speidel, com a voz estrangulada de emoção.

Num gesto lento e fatigado, Choltitz desligou o telefone. Ópera 3240, a linha directa do comandante do Gross Paris, não voltaria a chamar senão uma vez mais, antes do desenlace.

 

                                   Capitulo quadragésimo sexto

Era meia-noite. Na varanda do primeiro andar do Hotel Meurice, duas silhuetas recortavam-se nas trevas. Pela décima quinta e última vez do seu efémero comando, Dietrich von Choltitz aspirava o ar fresco da noite envolvendo Paris. A seu lado estava uma jovem mulher silenciosa, que tinha sido uma das mais brilhantes anfitriãs da Wehrmacht em França. Annabella Waldner pedira para passar aquela última noite no Hotel Meurice. No dia seguinte, de madrugada, Annabella seria entregue à Cruz Vermelha, como todas as alemãs que ainda se encontravam em Paris, a fim de ser repatriada.

Havia agora no céu de Paris um barulho diferente do dos sinos, já em silêncio, e dos cânticos patrióticos. Choltitz e Annabella ouviam o crepitar raivoso das armas automáticas que tinham recomeçado a fazer fogo. Os 20 000 homens do general alemão não tinham tardado a lembrar aos Parisienses que a hora da libertação definitiva ainda não chegara e que os três tanques do capitão Dronne nada mais eram do que uma aparição simbólica. Uma rajada de balas, disparadas por uma metralhadora da Wehrmacht, varreu o gabinete do presidente do Conselho Municipal, fazendo voar em estilhaços a cabeleira de mármore dum busto de Luís XIV e pulverizando a taça de champanhe que Georges Bidault se preparava para beber. Na Prefecture, enquanto um jovem resistente chamado Félix Gaillard oferecia ao capitão Dronne a mais preciosa recompensa que o libertador hirsuto podia desejar no termo da sua cavalgada, um banho quente, o estrondo das explosões voltou a fazer-se ouvir. Numa operação-relâmpago, os Panzer do coronel Von Berg tinham vindo recordar à cidade insurrecta que as lagartas e os canhões dos seus carros ainda eram senhores das ruas de Paris. Por toda a cidade, os soldados de Choltitz despejavam os seus últimos carregadores. Na rádio, as vozes entusiásticas de Pierre Crénesse e dos seus camaradas da primeira estação de Radiodifusão Francesa Livre tinham agora entoações de angústia: ”Parisienses, voltem para dentro das vossas casas, fechem as janelas e as portas, não vos façais massacrar inutilmente... nem tudo está acabado!”

Annabella Waldner ouviu o pequeno general de casaco branco soltar um profundo suspiro. Com as mãos apoiadas na balaustrada da varanda, Choltitz murmurava, como se falasse sozinho: ”Que posso agora fazer?” A jovem voltou-se para o general e respondeu que, fosse como fosse, já era tarde demais. Apenas lhe resta - disse ela convictamente - pensar nos seus filhos.’’ Choltitz teve um imperceptível estremecimento. Ela acrescentou: ”Vão precisar de si.” Fez-se então um prolongado silêncio durante o qual, pensativo, o general percorreu com um último olhar as sombras do Louvre, que se perfilavam contra a claridade do céu. Depois disse: ”Talvez tenha razão, minha pequena Annabella. ’’ Dizendo estas palavras, pegou na mão dela e levou-a aos lábios. Em seguida, desejou-lhe boa-noite, atravessou o gabinete e dirigiu-se para o seu quarto de dormir.

Enquanto percorria o extenso e escuro corredor, Dietrich von Choltitz ouviu atrás de si passos apressados. Voltando-se bruscamente, viu na sua frente um vulto esguio e estremeceu. O capitão Werner Ebernach ouvira também o repicar dos sinos de Paris e compreendera o que os carrilhões significavam. Vinha perguntar ao comandante do Gross Parts se este tinha alguma última ordem a dar-lhe. ”Não - respondeu Choltitz secamente -, não tenho mais ordens a dar-lhe, Ebernach.’’ Lembrando então ao general que a sua companhia tinha sido destacada para junto da guarnição de Paris a título provisório, Ebernach pediu autorização para aproveitar aquela última noite para tentar sair de Paris com a sua unidade. Acrescentou que tinha tomado todas as disposições para deixar em Paris uma secção de sapadores, para que estes fizessem deflagrar as cargas explosivas que tinham colocado, quando para tal o general desse ordem. Choltitz olhou desdenhosamente para o jovem oficial. Depois, disse simplesmente: ”Sim, Ebernach, pode partir”,
e penetrou no seu quarto.

Cinco andares acima, num canto do terraço do Hotel Meurice, havia nesse momento um par ternamente abraçado. Os dois apaixonados estavam sós no Mundo. Perto do telhado do majestoso hotel, com Paris a seus pés, culminavam aquela sua noite assistindo a um espectáculo inesquecível: um fogo de artifício que incandescia o horizonte com uma chuva de estrelas multicores. O cabo Helmut Mayer, o impedido do general Von Choltitz, e Maria Schmidt, a bonita dactilógrafa do estado-maior, eram provavelmente os únicos alemães que não tinham ouvido os sinos dobrar pela ocupação. À hora a que os sinos de Paris tinham começado a repicar, saboreavam, na intimidade do pequeno quarto do cabo, um suculento jantar que o cozinheiro do Meurice preparara especialmente para eles. Levemente embriagados, olhavam em silêncio para os riscos luminosos que cruzavam o céu e interrogavam-se sobre o que eles significariam. Era de facto, dizia o fiel impedido, o mais belo fogo de artifício que jamais vira. Mas pouco depois, completamente desperto pela brisa da noite, Helmut Mayer compreendeu o que queriam dizer aqueles feixes luminosos e aquelas explosões. Na colina de Meudon, o artilheiro Anton Rittenau fazia explodir as reservas de munições dos seus canhões de 88.

O cabo sentiu roçar contra ele o corpo da bela dactilógrafa, e decidiu amá-la durante toda a noite.

Choltitz dormia. Arnim, Unger, Jay, Bressensdorf e Kayser dormiam. No confortável Palace, onde tantos oficiais alemães tinham vivido os gloriosos anos da ocupação, nada mais se ouvia, nessa decisiva e curta noite de Verão, do que os pesados passos das sentinelas pelos corredores e o crepitar intermitente dos telescritores na sala de transmissões.

Annabella Waldner tinha acabado de adormecer num sofá do vasto e deserto gabinete do general quando a campainha do telefone começou a tocar. Às apalpadelas, no escuro, conseguiu alcançar a secretária e levantar o auscultador. Uma voz distante e deformada perguntava por Dietrich von Choltitz.

”Está a dormir - respondeu ela. - É necessário chamá-lo?”

Houve um breve silêncio. Depois, a voz respondeu com tristeza e cansaço: ”Não, não o acorde. De qualquer maneira, é tarde demais... Diga-lhe... Diga-lhe que o general Krueger telefonou.” A voz hesitou e Annabella julgou ouvir, no lado de lá da linha, um desalentado suspiro:

”Diga-lhe que os meus tanques jamais chegarão aí.”

 

 

                                                       A LIBERTAÇÃO

 

                         Capitulo primeiro

O dia de glória é chegado. Há quatro anos que Paris aguardava a madrugada que finalmente nasce. O ar está calmo, não há vento, e no céu, dum azul imaculado, não se vê uma nuvem. Parece que a Natureza e a História se reuniram para, juntas, criar este dia maravilhoso, incomparável, como jamais Paris, a França e o Mundo conheceram. E como jamais, talvez, a História voltará a conhecer. Desde o seu despertar, nesse dia 25 de Agosto de 1944, dia de S. Luís, patrono da França, que 3 milhões e meio de parisienses estão prontos a fazer rolar pela sua capital libertada uma tamanha vaga de felicidade e de alegria que um soldado raso americano, o romancista Irwin Shaw, será levado a exclamar, dentro de poucas horas: ”A guerra devia terminar hoje.”

”Eles” estão a chegar. Depois de terem contado os anos, os meses, os dias, os Parisienses contam agora os derradeiros minutos. Em milhares de lares há mãos febris que trazem para a luz do dia tesouros escondidos durante longo tempo: uma garrafa de champanhe coberta de pó, um vestido talhado numa porção de tecido comprado no mercado negro, uma bandeira tricolor, proibida desde há quatro anos, um pavilhão americano cujo número de estrelas e de listas varia duma casa para a outra, flores, frutos, um coelho, em resumo, tudo com que, no seu entusiasmo e na sua gratidão, uma cidade pode presentear os seus libertadores.

Perto da Praça da República, em casa de seus pais, Jacqueline Malissinet, de 21 anos, enfia a saia de pregas que os seus dedos, entorpecidos pelo frio, tinham especialmente costurado durante o Inverno anterior para ser estreada no dia da Libertação. Ao vesti-la, uma estranha dúvida perpassa de repente no espírito da rapariga. Acaba de obter um diploma de inglês e hoje, pensa, vai pela primeira vez na sua vida dirigir a palavra a um americano. Conseguirá desembaraçar-se?, pergunta a si própria. Esse americano será um capitão hirsuto e coberto de poeira, por barbear, natural duma cidade industrial da Pensilvânia. Ele deparar-se-lhe-á de pé num jipe, na ponte da Concórdia, belo e sorridente, e virá a ser seu marido.

No lado oposto de Paris, perto da igreja de Saint-Philippe-du-Roule, que, na véspera à noite, se mantivera em silêncio por não ter sinos, Nelly Chabrier, uma bela morena, vestiu um vestido cor-de-rosa que a mãe lhe oferecera para aquele grande dia. Depois, instalou-se à janela para ver chegar os primeiros tanques de Leclerc. Num deles, dentro de algumas horas, surgirá um gigante sujo de óleo. É esse o homem cujo nome virá a ser também o dela, um ano depois.

Preparando-se para uma última batalha, os F. F. I. do coronel Rol aumentam a sua pressão sobre os pontos de apoio alemães, e fazem os preparativos para o assalto que coroará com uma vitória gloriosa cinco dias de luta heróica. Um rapaz beija a mãe e sai de casa a correr. Graças às reservas do célebre estabelecimento de sua família, a Farmácia Bailly, Georges abasteceu de medicamentos todos os postos de socorro do bairro da Concórdia. Vai agora socorrer os últimos feridos e acolher os libertadores.

Através da montra da sua pequena farmácia de Saint-Cloud, Marcelle Thomas repara num homem armado com uma espingarda. Reconhece o bombeiro Jean David. ”Meu Deus - exclama ela -, não deviam ter posto uma arma nas mãos de David.’’ Como toda a gente em Saint-Cloud, Marcelle sabe com que facilidade o bombeiro se embebeda. E, nesse dia, Davis garantira aos seus camaradas que apanharia a maior ”piela’’ da sua vida.

A muitos parisienses este dia proporcionará uma alegria mais perdurável ainda que a motivada pela própria Libertação. Haverá mães que encontrarão inesperadamente os seus filhos, esposas os seus maridos, filhos o seu pai. Na sua casa da Rua de Penthièvre, a senhora Boverat não conseguira pregar olho toda a noite. E, logo que a madrugada rompera, ela partira, de bicicleta, com o marido e Helena, sua filha, ao encontro do famoso regimento ”das boinas pretas” de que uma alvissareira desconhecida lhe falara, ao telefone, na véspera à noite. Só assim ela conseguiria obter resposta à pergunta que a obcecara durante toda a noite: qual dos seus dois filhos, Maurice ou Raymond, estava de volta?

Uma mulher, Simone Aublanc, apenas recebera, em três anos, uma única carta de seu marido. Lucien escrevera-lhe dum campo de prisioneiros, na Alemanha Oriental, e dizia-lhe que ”iria tentar visitar Datiko, num campo de concentração vizinho”. Datiko, Simone conhecia-o, era um tio dele russo, morto havia cinco anos. E ela decifrara a mensagem, compreendendo que o que ele queria dizer era que ia tentar evadir-se e fugir para a Rússia. Essa única carta e a certeza íntima de que Lucien estava vivo tinham-na encorajado durante todo aquele tempo, e feito subsistir a esperança de que voltaria a vê-lo. Tal como agora, que tinha o pressentimento de que ele regressaria nesse dia. Por isso, antes de sair de casa, deixou-lhe uma mensagem na porteira: ”Querido - dizia simplesmente o papel -, estou em casa dos pais.’’ E assinou Poulet, como ele lhe chamava quando se tinham casado.

Um americano, instalado em Paris desde a guerra de 1914, na qual combatera e depois da qual se tornara próspero banqueiro, foi buscar a um armário uma bandeira americana que prometera oferecer aos seus amigos do Ministério da Saúde, por ocasião da Libertação. Com o precioso embrulho enrolado num jornal debaixo do braço, Norman Lewis, ”Sammy” para os amigos, dirigiu-se, radiante, em direcção à Étoile.

Dois parisienses desconhecidos têm uma promessa a cumprir. Um deles, Pierre Lorrain, de 54 anos, jurara que faria drapejar a primeira bandeira tricolor no telhado da sua fábrica. Esperara toda a noite pelo momento oportuno e, às 8 horas da manhã, Lorrain telefonou a sua mulher: ”Eles estão a chegar!

- anunciou.-Estamos livres, percebes, estamos livres! Vou içar a bandeira!” Lorrain prometeu voltar para casa após ter procedido a essa rápida cerimónia.

O outro desconhecido era um sapador-bombeiro, graduado, Raymond Sarniguet, que também jurara a si próprio fazer flutuar a bandeira tricolor no céu de Paris. Queria ser ele o primeiro a fazê-lo no cimo do monumento donde, numa triste tarde de Junho de 1940, fora obrigado a retirá-la por suas próprias mãos. Esse monumento era a Torre Eiffel.

Cercados nos seus stutzpunkte, os defensores de Paris contavam os minutos que os separavam do assalto final. Como muitos outros soldados da Wehrmacht, o Unteroffizier Otto Kirschner, de 35 anos, teve de ouvir o discurso inflamado do seu chefe de destacamento. Na Kommandantur da Praça da Ópera, o coronel Hans Rõmer, de Wiesbaden, gritou: ”Bater-nos-emos até ao último cartucho pelo nosso Fúhrer bem-amado!”

Na maior parte dos pontos de apoio, o último pequeno-almoço dos combatentes era constituído por uma bebida inesperada: meia garrafa de conhaque. Na Câmara dos Deputados, o Unteroffizier Hans Fritz, que, na véspera, caíra numa emboscada F.F.I, com o seu camião carregado de torpedos, recebeu ordem para ir recuperar o seu camião. Mas apenas Fritz percorrera alguns metros depararam-se-lhe, por toda a parte à sua volta, inúmeras barricadas erguidas durante a noite pelos F.F.I. Apanhado subitamente pelo fogo cruzado das me tralhadores francesas, Fritz fugiu e refugiou-se num portal. O alemão viu então a porta entreabrir-se e aparecer uma senhora de idade que, delicadamente, pediu ao militar que fizesse o favor de ” ir disparar para mais longe a sua espingarda’’.

Fritz suspirou. Não tinha a menor vontade de continuar a fazer fogo, nem do portal onde se encontrava nem de qualquer outro sítio. ”Para mim, a guerra acabou!”, confessou ele à velhota. Depois, decidiu esperar no seu esconderijo. Quando se lhe deparasse o primeiro soldado inimigo, lançaria a sua espingarda por terra e render-se-ia.

Um alemão houve, pelo menos, que, tendo tido possibilidade de escapar à sorte que esperava nesse dia Hans Fritz e os seus 20 000 camaradas da guarnição do Gross Paris, não o pôde fazer. Joadhim von Knesebech, director da Siemens em França, tinha partido de licença para Berlim, no princípio da insurreição. Ninguém lhe dissera que Paris estava na iminência de cair. E ei-lo de volta, nesse último dia de ocupação. Quando a porteira da sua residência viu chegar o gigante louro, correu para ele e gritou-lhe: ”O senhor está louco, vai ser morto!” Dizendo estas palavras, a porteira precipitou-se para a cave e trouxe uma velha bicicleta que entregou a Knesebech: ”Fuja
depressa!”, exclamou para o alemão.

Duma janela do Hotel Meurice, o capitão Otto Kayser, o ex-professor de Literatura da Universidade de Colónia que, na véspera, tinha descoberto num muro de Paris o terrível estribilho do coronel Rol ”A cada um, o seu boche”, contemplava, na companhia do conde Von Arnim, o nascer do Sol sobre a capital. Kayser estava angustiado. ”Os Parisienses vão de certeza vingar-se - dizia ele.

- Pergunto a mim próprio se alguma vez poderemos aqui voltar...” Horas depois, o capitão Kayser iria obter uma resposta definitiva à sua dúvida.

No jardim das Tulherias, do outro lado da Rua de Rivoli, o general Von Choltitz, acompanhado pelo coronel Hans Jay, passava uma última revista às suas tropas. Choltitz encheu-se de nostalgia ao ver os formosos lagos do jardim, onde antes brincavam as crianças de Paris e vogavam os seus brancos barcos à vela, invadidos pela sua soldadesca de tronco nu, lavando-se e barbeando-se nas águas tranquilas onde, esquecido, se via um pequeno veleiro de quilha para o ar. Contemplando as copas frondosas do jardim, o belo azul do céu e o sol que acariciava os telhados, Choltitz disse para consigo que os Parisienses iam ter um magnífico dia para a sua libertação. Voltando-se para a tripulação de um Panther, de sentinela à entrada dos jardins, com o canhão apontado para os Campos Elíseos, exclamou: ’’ Cuidado. Hoje, eles vêm aí a valer...”

Na central de transmissões do Gross Paris, o Unteroffizier Otto Vogel estava inconsolável. Tentara uma vez mais telefonar à família, para Bad Winpfen, mas a ligação não conseguira passar além de Reims. Na sua secretária, os telefones não paravam de tocar. ”Estou - respondia Vogel -, aqui fala o quartel-general de Paris.” Mas, do lado de lá, eram, quase sempre, vozes francesas ou inglesas que falavam. Diziam gracejos. Pediam reservas de quartos no Meurice, para essa mesma noite. As 8 horas da manhã o telescritor secreto começou a crepitar. Recebia uma mensagem dirigida ao comandante do Gross Paris, pela qual a O. K. W. fazia uma pergunta sem sequer se ter dado ao trabalho de a pôr em cifra. Otto Vogel arregalou os olhos e leu: ”A destruição dos objectivos de Paris já começou?”, dizia a mensagem.

 

                                   Capítulo segundo

Para o sargento Milt Shenton, o G.I. cujo ”sonho de criança pobre” tinha sido ver Paris, a perspectiva de lá entrar representava agora, para ele, um verdadeiro pesadelo. Shenton tinha acabado de saber que fora designado batedor da sua companhia e que esta iria precisamente ter como missão conduzir toda a 4.a D. B. dentro da cidade. Isto significava portanto que ele seria um dos primeiros alvos a aparecer nas miras das metralhadoras alemãs. Esta honra já fora atribuída a Shenton uma vez, por ocasião doutro memorável acontecimento. No dia 6 de Junho, o G.I. tinha sido o primeiro soldado da sua divisão a desembarcar na praia de Utah. Dessa vez conseguira escapar com vida. Mas, pensava, jamais um homem na sua existência poderia ter tanta sorte duas vezes seguidas. E, nessa manhã, enquanto recheava o seu jipe de granadas de mão e de cartuchos, Shenton mandava à fava Paris e os Parisienses.

Em Fresnes, em La Croix-de-Berny, na ponte de Sèvres e, mais longe, nas pequenas povoações de Nozay e de Orphin, os homens da 2.a D. B. e da 4.a Divisão americana faziam, como o sargento Shenton, os seus últimos preparativos para o assalto final que os levaria ao coração de Paris.

Teriam de marchar segundo quatro itinerários. A oeste da capital, os franceses do coronel Paul de Langlade, já chegados à ponte de Sèvres na noite anterior, deviam dirigir-se para a Praça da Étoile, através de Auteuil e do bosque de Bolonha. A suduoeste de Paris, as tropas do coronel Pierre Billotte dividiam-se em dois agrupamentos de assalto. O primeiro, comandado pelo coronel Louis Dio, deveria entrar pelas portas de Orleães, passar à retaguarda da estação de caminho de ferro de Montparnasse, seguir ao longo dos Inválidos e atingir a Câmara dos Deputados e o Quai d’Orsay. O segundo, comandado pelo próprio Billotte, deveria transpor as portas de Gentilly, ladear
a prisão da Santé e o Palácio do Luxemburgo e, pelo Quartier Latin, descer a Rua de Saint-Jacques até à Prefecture e Notre-Dame.

O 12.º Regimento da 4.a Divisão americana, precedida por uma guarda-avançada do 38.º Cavalry Reconnaissance Squadron, seguiria o caminho tomado na véspera pelo capitão Dronne, isto é, as portas de Itália e a estação de Austerlitz, até à Direcção-Geral de Polícia. À retaguarda destes elementos, os 8.º e 22.º Regimentos da mesma divisão atravessariam a cidade, obliquando seguidamente para nordeste, a fim de protegerem os assaltos das unidades dum eventual contra-ataque alemão.

As preciosas informações que indicavam com precisão a localização dos pontos de apoio alemães e os itinerários a seguir para os evitar, comunicados na véspera pelo agente do Abwehr Bobby Bender a Lorrain Cruse, não tinham chegado ao conhecimento de Leclerc. No entanto, de madrugada, Cruse tinha montado na sua bicicleta para as levar pessoalmente ao estado-maior de Leclerc. Encontrara-se com o coronel de Langlade perto da ponte de Sèvres, mas este perdera o contacto por rádio com Leclerc. De resto, os três agrupamentos de assalto franceses estavam já a caminho dos seus objectivos. Desde a madrugada que os carros e os half-tracks franceses e americanos transpunham a toda a velocidade os arrabaldes Oeste e Sul da capital. As suas colunas estendiam-se por vários quilómetros. Para os soldados da 2.a D.B. que regressavam a casa, bem como para os americanos devorados pela curiosidade, a ordem do dia poderia bem resumir-se nas breves instruções dadas nessa manhã pelo capitão Billy Buenzle, de Nova Jersey, comandante do 38.º Cavalry reconnaissance Squadron: Put the show on the road, and get hell into Paris. (Ponham o espectáculo em movimento, e dêem-lhe toda a guita até Paris.)

 

                                   Capítulo terceiro

Diante do jipe do sargento Mila Shenton, o caminho surgia deserto e cheio de armadilhas prováveis. Ao longo dos estreitos passeios, todas as janelas estavam cuidadosamente fechadas. O único ser vivo que o americano pôde ver foi um gato preto, escapando-se furtivamente junto à parede duma casa. E o único barulho que lhe foi dado ouvir, parecia-lhe, era o bater do seu próprio coração. Uma tabuleta indicadora, azul e branca, apareceu na sua frente. Era a mesma que ao capitão Dronne se deparara na noite precedente. ”Paris - Portas de Itália.” De repente, Shenton ouviu, por cima dele, o ranger duma janela. Virando-se bruscamente, destravou o sistema de segurança da espingarda. Então, abriu-se outra janela, depois mais uma. Uma mulher gritou: ”Os americanos!” Shenton viu um homem em mangas de camisa, seguido de duas mulheres de roupão, aparecerem na rua e correrem para ele. O americano estacou. Logo a seguir sentiu, em volta do pescoço, a pressão violenta de dois braços. Um homem beijava na face o pequeno sargento do Maryland.

Shenton viu então jorrar de todas as portas uma autêntica onda humana de parisienses aos gritos. O seu jipe desapareceu, rapidamente submerso sob uma pirâmide de corpos engalfinhados que se esmagavam na ânsia de tocar no libertador. Meio asfixiado, Shenton, que dois minutos antes se sentira tão só e abandonado na estrada de Paris, chorava de emoção e perguntava a si próprio como lhe iria ser possível continuar a avançar, por entre aquele mar humano.

Por toda a parte, o quadro era o mesmo.

 

Nas estradas que a 2.a D.B. percorria era uma verdadeira loucura colectiva. Quando os parisienses reparavam na cruz da Lorena dos Sherman e nas palavras ”Austerlitz”, ”Verdun” e ”Saint-Cyr”, inscritas nas torrinhas, a sua alegria não conhecia limites. De cada tanque, de cada half-track, estavam suspensos cachos de raparigas e de crianças. Os motoristas dos jipes eram esmagados por todos aqueles que os queriam abraçar, tocar e falar-lhes. Os que não conseguiam aproximar-se lançavam flores dos passeios, atiravam cenouras, rabanetes, tudo o que encontravam para oferecer. Quando os veículos se punham novamente em marcha, a multidão corria atrás deles, perseguia-os de bicicleta, formando na sua cauda um triunfal e delirante cortejo.

Diante das lagartas do carro ”El Alamein”, a multidão era tão compacta e tão numerosas as mulheres que queriam à viva força entrar pela torrinha que o tenente Jacques Touny foi obrigado a disparar para o ar uma rajada de metralhadora, para se libertar. O capitão Georges Buis, esgotado por duas noites em claro, com os olhos doridos, tinha a impressão que o seu tanque passava pela turba como um ”íman entre limalha de ferro”. Às 8 horas e 30 precisas Jean René Champion fez parar o seu carro ”Mort-Homme” na Praça do Chatelet e ficou aguardando ordens. Champion iria passar nessa praça ”as cinco horas mais inesquecíveis” da sua vida. A multidão cantava, dançava, gritava à volta do seu carro e dava a beber vinho e champanhe ao francês da América.

Assaltados por centenas de parisienses, os blindados do pelotão desapareceram rapidamente sob os cachos humanos. Aturdido pelo desenfreado entusiasmo popular, Léandre Médori, um pequeno corso de dezanove anos que via Paris pela primeira vez, não parava de gritar, extasiado: ”Senhor, que grande é Paris!”

O repórter radiofónico Larry Leseur fez a sua entrada na capital a bordo dum carro do coronel Langlade. Ao ver a avalancha irresistível dos tanques franceses carregando sobre Paris, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Revia uma cena que muitas vezes, depois de 1940, recordara com horror. Naquela mesma estrada, ao fugir de Paris, deparara-se-lhe uma mulher muito jovem que corria empurrando um carrinho de bebé. A infeliz tinha prendido ao capuz do seu bebé um ramo de tília, na vã esperança de o dissimular aos olhos dos pilotos dos Stukas que metralhavam a estrada...

O acolhimento que esperava os G. Is. da 4.a divisão no seu percurso não era menos entusiástico. O capitão Ben Welles, da O.S.S., sentia-se ”como que levado por uma imensa vaga de emoção que nos empurrava direitos ao próprio coração de Paris”. ”Avançamos - diz ele - , como num sonho.” Nadando no oceano de flores que juncavam o seu command-car, Welles inclinou-se para beijar uma distinta senhora de idade, de cabelos grisalhos, que se esticava na ponta dos pés para estender a face ao americano. ”Até que enfim chegaram! - exclamou ela.- Agora, Paris poderá voltar a ser Paris.” Três semanas depois, Welles voltaria a encontrar a mesma senhora numa recepção e ser-lhe-ia então apresentado. Ela era neta de Ferdinand de Lesseps, o construtor do canal de Suez. Para o sargento Donald Flannagari, de Nova Iorque, o acolhimento dos franceses era tão extraordinário que ”cada americano podia sentir-se Lindbergh aterrando no Bourget”.

Quando atingiu o Sena, perto dos Inválidos, o comandante S. L. A. Marshall, do Serviço Histórico do Exército Americano, entreteve-se a fazer um curioso cálculo. Concluiu que já tinha 67 garrafas de champanhe no seu jipe. Foram inúmeras as cenas que ficariam para sempre gravadas na memória dos libertadores. Para o soldado raso Stanley Kuroski, duma companhia de estado-maior, será ”um velhote de longos bigodes, com o peito coberto de condecorações, empertigado como uma estaca, que chorava baixinho”. O coronel Barney Oldfield, da secção de imprensa do S. H. A. E. F., nunca mais se esquecerá da imagem duma velha mulher paralisada, estendida numa maca, que seguia a entrada dos libertadores num espelho que ela própria segurava, de braço estendido, por cima da cabeça. Como se fosse sua intenção dirigir-se ao céu azul que se estendia sobre o seu corpo inerte, repetia: ”Paris foi libertada, Paris foi libertada.”

Algumas recordações serão estranhas. O soldado de transmissões Oren T. Eason, adido à 2.a D. B., notou uma bela rapariga agarrada a um candeeiro da rua gritando com quanta força tinha: ”Eh, rapazes! Eu cá sou de Brooklin!’’ Um letreiro por cima da porta duma garagem prendeu a atenção do soldado John Eckert. Em gordas letras ele leu: ”Norristown, Pennsylvania. Good Gulf Gasoline.” Norristown era a sua cidade natal.

Mas apesar de todos os espectáculos a que lhes foi dado assistir nas ruas prenhes de alegria, nada impressionou tanto os libertadores como essa imensa onda de reconhecimento que os avassalou e em que os envolveram centenas de milhar de parisienses. O comandante Frank Burk, do Mississipi, submerso no oceano humano que desabara sobre o seu jipe, pensou que era testemunha da maior alegria que o Mundo jamais conhecera. ”Durante 25 quilómetros recorda Burk - , milhares de pessoas comprimiam-se na nossa frente para nos apertar a mão, para nos beijar, inundar-nos de vinho e de comida.” Uma linda parisiense agarrou-se ao pescoço do soldado do serviço de cifra Brice Rhyne, soluçando: ”Há quatro anos que os esperávamos!” O soldado da Virgínia respondeu, surpreendido: ”Mas os Estados Unidos só há três anos estão em guerra!” ”E então! -replicou a rapariga. - Nós tínhamos a certeza, desde o primeiro dia, de que vocês viriam...”

À vista da multidão que engolia os homens da sua companhia, o capitão Jim Mullens, de 24 anos, natural da Carolina do Sul, disse para consigo que assistia ”à maior e mais esplendorosa quermesse da História”.

Interminavelmente, ao longo das ruas, os Parisienses, loucos de reconhecimento, atiravam para os braços dos G. Is. tudo o que encontravam para lhes oferecer. O tenente Lee Lloyd viu, em frente do seu half-track, uma mulher a gritar: souvenir, souvenir!, e voltar-se bruscamente para um homem que estava junto dela no meio da multidão. Arrancou-lhe da boca o cachimbo que ele fumava e atirou-o ao americano. Antes que o oficial de Alabama tivesse tido possibilidade de restituir o objecto ao seu proprietário, o half-track arrancou e afastou-se.

Com um prato cheio de uvas nas mãos, uma jovem correu para o tenente John Welch Morgan. Ofereceu-lhe os frutos, que um alemão deixara no seu estabelecimento. Quando Morgan engolia a primeira uva, uma mulher opulenta de formas e bela que ali se encontrava comentou em voz alta: ”É curioso... são as primeiras uvas que vejo desde há quatro anos.” Incomodado com essa revelação, o americano ofereceu-se imediatamente para dividir com ela os apetitosos frutos. Mas a mulher recusou: ’’Não, obrigada, rapaz - disse ela. - Hoje, é tudo para vocês...”

O soldado Mickey Esposito^um antigo campeão de boxe de Nova Jersey, atravessou Paris sem se deter. À passagem do seu camião ”dezenas de mãos estendiam-se para nós para nos agradecer”. Esposito sentiu em dado momento qualquer coisa cair na palma da sua mão. Era um minúsculo elefante de marfim branco, pouco maior que um berlinde. O americano interrogou-se sobre quem lhe poderia ter dado aquele presente. No mar de caras que rodeavam o seu camião, Esposito viu então uma velhota, de cabeça coberta por um xaile preto, o rosto magro e cansado, que o olhava fixamente, e ele percebeu quem é que acabava de oferecer aquela pequena mascote a um soldado que não voltaria a ver. Ela ergueu timidamente a mão e acenou com os dedos, num gesto de adeus. Esposito, seguro de que o pequeno elefante lhe traria felicidade, guardou-o imediatamente na algibeira da camisa.

Naquela euforia das ruas, também muitos dos próprios parisienses viveram instantes memoráveis. O cenarista cinematográfico Paul Bertrand ficou embasbacado em frente dos jipes da 2.a D.B. quando, inesperadamente, se depararam na sua frente. Não podia acreditar no que via. Se os americanos são capazes de construir um veículo como este, pensou ele, então ”não há dúvida de que a guerra está ganha”. Havia parisienses que se precipitavam para os primeiros americanos com o único objectivo de poderem enfim pronunciar algumas palavras em inglês. Um advogado de origem americana, chamado Robert Miller, correu para o primeiro half-track que passou diante da sua residência em La Muette. Saudou os soldados dizendo-lhes, em inglês, que eram bem-vindos e depois, não tendo obtido resposta, em francês, sem obter maior sucesso. Estupefacto, Miller disse de si para si que eles deviam ser surdos-mudos. Mas, quase no mesmo instante, descobriu que eram, simplesmente, voluntários espanhóis.

Certa de que aquele seria o dia da Libertação, Colette Massigny deixara de madrugada o quarto de Saint-Germain-des-Prés onde se escondia o seu noivo, Gilles de Saint-Just. Quando chegou a sua casa, em Passy, pôs o vestido de seda azul que reservara para aquela ocasião e saiu em busca dos libertadores. Na Rua da Pompe, onde todas as persianas estavam ainda cerradas, viu na sua frente uma pequena viatura ocupada por três homens de capacete de aço. Caminhando para o primeiro jipe que via na sua vida, interpelou os soldados, mas estes olharam para a bela parisiense, cujas palavras não compreendiam, com a mesma placidez com que os espanhóis tinham fitado o advogado Miller. ”Vocês são americanos?”, perguntou ela, então, em inglês. ”Pois claro, minha linda!”, exclamou o motorista. Colette teve apenas um reflexo: atirou-se ao pescoço dele. Dezenas de habitantes dos prédios vizinhos, que observavam a cena através das persianas, saíram para a rua e, imediatamente, o jipe desapareceu sob uma avalancha de gente. Colette ouviu uma janela bater por cima da sua cabeça. Erguendo os olhos, viu um homem com um clarim dourado nas mãos. Levando o instrumento aos lábios, o desconhecido começou a entoar uma Marselhesa’’ vibrante, a mais bela ”Marselhesa” que Colette
jamais ouvira.

Mas também muitas tragédias havia no caminho triunfal percorrido pelos libertadores. Do seu jipe, um general americano viu de repente o carro da frente da coluna da Divisão Leclerc explodir sobre uma mina telecomandada, pulverizando instantaneamente cinco franceses que viviam o instante mais emocionante da sua vida. Loucos de raiva e sedentos de vingança, os F.F.I, apoderaram-se dum grupo de alemães, que sovaram e depois atiraram para debaixo das lagartas do seu carro ”como peças de carne’’. Um médico militar, Yves Ciampi, viu subitamente um ”praça velha” da Wehrmacht, com o uniforme rasgado, surgir desarvorado numa bicicleta diante dos carros. Incapaz de fazer parar o seu veículo, o alemão caiu no chão. Quando o médico militar tornou a olhar, viu à retaguarda do seu half-track uma mancha vermelha no pavimento, ”tudo o que restava do que, segundos antes, tinha sido um homem”.

Nas primeiras horas do seu avanço, às tropas aliadas não se deparou qualquer resistência. Entrincheirados nos seus pontos de apoio, cercados pelos F.F.L, os alemães esperavam calmamente que os atacantes viessem ter com eles e procurassem desalojá-los.

As primeiras tropas atingiram o coração da cidade às 8 horas da manhã. Extenuado, perdido de sono, o capitão Georges Buis começara a dormitar na torrinha do seu carro. Bruscamente desperto pela paragem do motor, abriu os olhos e levantou a cabeça. Viu então algo que ficaria para sempre gravado na sua memória. Por cima da sua cabeça, reflectindo o sol, estavam as torres de Notre-Dame. O capitão Billy Buenzle, do 38.a Cavalry Reconnaissance Squadron, acabava também de chegar ao centro de Paris. Durante uma hora, deslizando pelas pequenas ruas do Quartier Latin e da margem esquerda, franceses e americanos tinham-se lançado numa verdadeira corrida para serem os primeiros a entrar na ilha da Cite. O capitão Buis e os seus carros tinham vencido, chegando segundos antes dos blindados do capitão Buenzle.

Ao longo das colunas que rolavam para o centro da capital, todos os libertadores viram por fim, com os seus próprios olhos, o objecto dos seus sonhos. Esbeltas, bronzeadas, elegantes, as Parisienses eram ainda mais belas do que eles tinham imaginado nos desertos de África ou nos pomares da Normandia. Debruçado do seu half-track ”Lunéville’’, o soldado Marcel Ruffin deixava-se beijar por dezenas delas. Pouco demorou para que o seu rosto se transformasse ”num enorme cogumelo escarlate”. O cabo Lucien Davanture vivia uma experiência deliciosa ao ser ”literalmente tomado de assalto pelas Parisienses”. Incapaz de satisfazer todas, Davanture decidiu instituir um sistema de prioridade para a visita à torrinha do seu carro ”Vicking’’: ”As mais bonitas primeiro! O soldado de 1.a classe Charley Haley, do 12.º Regimento americano, teve curiosidade de saber quantas raparigas se pode beijar num único dia. À noite, o americano avaliará esse número em ”cerca de um milhar”.

Para inúmeros soldados da divisão Leclerc, mais emocionante ainda do que o acolhimento delirante da população foi o momento do reencontro com as pessoas de família e com os amigos. Na Avenida de La Bourdonnais, o cabo George Bouchet viu, do seu half-track ”Larche”, uma mulher precipitar-se debaixo duma rajada de metralhadora e atirar-se para os braços dum soldado de infantaria, soluçando ”Meu filho, meu filho!’’ Perto da Praça do Châtelet, ao cabo Georges Thiolat depararam-se-lhe dois vultos familiares. Eram os seus pais, que se dirigiam para o seu carro pedalando numa bicicleta de dois lugares. O capitão André Gribius, que tinha acabado de encontrar os pais em Versalhes, agradecia a Deus ter-se lembrado de meter no seu jipe uma caixa de rações suplementar. Mal tinha podido reconhecê-los: a mãe emagrecera 20 quilos e o pai 15.

Nas imediações das portas de Orleães, uma mulher ansiosa pedalava ao longo duma fila de Sherman. Parando diante de cada carro, repetia a mesma pergunta: ”Onde é que está um regimento de boinas pretas?” Era a senhora Boverat em busca dos filhos.

De todos os ”reencontros” que se efectuaram nesse dia, talvez nenhum tenha sido tão excitante como o que permitiu ao cabo Lucien Davanture rever o seu irmão, que havia longo tempo vivia clandestinamente em Paris para escapar à deportação para a Alemanha. Lucien sabia que ele se encontrava na capital e, desde que chegara, procurara-o incansavelmente entre a multidão de rostos que o rodeavam. No momento em que se encontrava perto da Ponte Nova, com o canhão do seu carro apontado para os estabelecimentos da Samaritaine, reparou num homem que se dirigia lentamente para o seu Sherman. Enfiado num uniforme de polícia, largo demais para o seu corpo incrivelmente emagrecido, de braçadeira F.F.L, o irmão que ele não via havia três anos surgiu diante das lagartas do tanque e ficou a olhar para ele na sua frente, incapaz de articular uma palavra. Caíram nos braços um do outro. Eram um verdadeiro símbolo da França, representando as duas metades combatentes duma mesma pátria, entrelaçado sobre si próprio nesse abraço interminável dos dois irmãos.

Mas nem todos os encontros foram tão felizes. O spahi Robert Perdal, natural de Rombas, na Lorena, encontrou um conterrâneo que lhe revelou ter o pai sido deportado dois anos atrás para Buchenwald. No largo do ”Hotel de Ville”, o tenente Henri Karcher viu um homem ainda novo avançar para o seu half-track. ”Desculpe-me - disse ele -, conhecerá o senhor por acaso o meu irmão Lucien Loiseau? Nunca mais tivemos notícias dele, desde que foi juntar-se a De Gaulle, há três anos.” Karcher fitou o homem em silêncio. Depois, disse: ”Conheci realmente Lucien. Era o meu melhor amigo... Foi morto em Hakeim...” Ao ouvir estas palavras, o oficial viu o jovem empalidecer e afastar-se sem dizer uma palavra.

O telefone, que muitos dos soldados da divisão de Leclerc tinham tido na véspera a surpresa de poder utilizar, foi também, para muitos outros, o primeiro elo que os ligou à família. O soldado de 1.a classe Jean Ferracci garatujava em pedaços de papel o nome e o número de sua irmã, salsicheira em Ménilmontant, e entregava-o à multidão, de cada vez que o seu half-track parava. Pouco depois, o telefone não mais deixaria de tocar em casa da salsicheira, para lhe anunciar que o seu irmão mais novo estava de volta. Na Praça do Châtelet, o sargento Pierre Laigle, comandante do carro ”Montfaucon”, correu para um pequeno café e ligou para casa da noiva, da qual não tinha notícias havia quatro anos. Quando ouviu o som da sua voz, Laigle foi incapaz de falar. Por fim, conseguiu soltar uma frase banal e maravilhosa: ”Amo-te.”

Para alguns poucos americanos, esse dia de glória foi também ocasião de ”reencontros”. Encarregado de requisitar o Petit Palais para aí instalar um centro de interrogatórios de ”colaboracionistas”, o tenente Dan Hunter, da O.S.S., foi um dos primeiros americanos a chegar ao centro de Paris. Hunter fez uma careta ao reparar, diante de si, na carcaça esventrada do Grand Palais, no qual se tinham abrigado as esperanças de Jean Houcke e do seu circo, e dirigiu-se para o Petit Palais. Mas o conservador do palácio, delicadamente, procurou desembaraçar-se do americano. Nem sequer devia pensar em instalar soldados num museu que continha obras tão preciosas. Em resposta, Hunter declarou secamente que os seus soldados se instalariam ali mesmo, dentro de três horas. O conservador explicou então ao americano que a colecção de objectos raros naquele momento expostos no Petit Palais tinha sido oferecida por um americano, grande amigo da França, chamado Edward Tuck. O oficial soltou uma gargalhada: ”Calha bem -respondeu-, é meu primo direito.”

O coronel ”Jade Amicol”, chefe do Intelligence Service em França, que saíra de Paris com a missão Nordling, regressava também com as primeiras colunas dos libertadores. Acompanhado pelo tenente-coronel Ken Downes, da O.S.S., e do tenente John Mowinckle, um fuzileiro naval de grandes bigodes, educado em Paris, chegou defronte do pequeno convento à porta do qual, 22 dias antes, tocara o pára-quedista Alain Perpezat para entregar a sua preciosa mensagem. A superiora do convento, Irmã Jean, entreabriu o postigo. Quando reconheceu o visitante, soltou um grito de alegria e abriu de par em par as portas. Mas repentinamente mudou de expressão, a surpresa estampou-se-lhe no rosto e os olhos fixaram-se no pára-brisas do jipe que entrava no pátio do convento, onde se inscrevia, em gordas letras, o nome do veículo. Downes, um antigo correspondente de imprensa em Paris, chamara ao seu jipe ”Bufa de Freira”. Refeita da surpresa, a superiora conduziu as visitas ao pequeno locutório e entregou-lhes algumas folhas de papel. Nessas folhas estava descrito todo o plano da retirada alemã ao norte e a leste de Paris.

A oeste, a coluna do comandante Francois Morel-Deville chegava às proximidades de ”Pih’.”, o depósito de torpedos de Saint-Cloud. Avançava sob a mesma torrente de aclamações que saudavam o resto da divisão. Uma jovem parisiense, chamada Denise Marie, beijava alegremente todos os homens que passavam por ela. Num dado instante, viu, num half-track, um fuzileiro naval, de ”pompom” encarnado, que se deixara adormecer de fadiga. Trepou para o veículo e começou a sacudi-lo, devagar. Quando o rapaz abriu os olhos, Denise Marie sorriu, inclinou-se para ele e depôs-lhe um beijo na testa. Durante alguns segundos ficou imóvel, contemplando os grandes olhos azuis do marinheiro, que a fitava com ternura. Denise tirou então um bocado de papel da sua mala, escreveu o seu nome e morada e entregou-o ao combatente, murmurando-lhe: ”Volte, se lhe for possível.’’ O fuzileiro Laurent Thomas voltaria dois dias mais tarde - e um ano depois novamente, para ficar. Denise Marie tinha acabado de despertar o homem que viria a ser o seu marido.

Nem todos os libertadores, no entanto, foram recebidos por um sorriso de mulher e pelos seus beijos. Em Corbeil, da janela duma casa onde se tinham refugiado, a 50 metros do Sena, dois americanos perscrutavam as vizinhanças através da neblina que subia do rio. Eram o tenente Jack Knowles, o oficial a quem o seu chefe ordenara aos seus homens que usassem gravata nesse dia, para entrar em Paris, e o seu ajudante, o sargento ”Speedy” Stonne. No último momento, os dois americanos tinham recebido ordem para fazer um reconhecimento, nas margens do Sena. Não vendo qualquer rasto dos alemães, Knowles e o sargento desceram prudentemente até ao rio. Subitamente, soou uma breve descarga. Knowles atirou-se de bruços para trás duma árvore, ouvindo então, à sua retaguarda, uma débil voz que pedia socorro. Era ”Speedy’’ Stone, crivado de balas. O sargento morria. À volta do pescoço estava um pedaço de tecido emporcalhado, a gravata que ele conseguira descobrir para a sua entrada em Paris.

Noutro local, um jipe ultrapassava nesse momento uma coluna de halftracks e descia a toda a velocidade a colina de Saint-Cloud, pela Rua Dailly. Ao ver passar o bólide perto de si, o cabo Max Giraud, do 12.º de Caçadores de África pensou: ”Aí está um que tem pressa de entrar em Paris!” e, de facto, o sargento americano Larry Kelly, observador do 155.º Regimento de Artilharia de Campanha, estava muito apressado. Era ele quem tinha apostado, na noite do desembarque, que seria o primeiro soldado americano a entrar em Paris. Ao volante do seu jipe, Kelly desembocou diante da ponte de Saint-Cloud e prosseguiu, sem diminuir a velocidade, na direcção de Paris, do outro lado do rio.

Ao ver surgir na sua frente o estranho veículo, encimado por uma metralhadora, o bombeiro Jean David, o homem que a farmacêutica Marcelle Thomas vira passar nessa mesma manhã empunhando a sua grande espingarda, disse para consigo: Um boche!’’ e, imediatamente, levou a coronha ao ombro e esvaziou o carregador sobre o jipe. Atingido por seis balas, o sargento Kelly caiu sobre o volante, indo o jipe embater brutalmente no parapeito da ponte. Fulminado por engano, apenas a 50 metros do seu sonho, Kelly jamais entraria em Paris. 1 .

A poucas centenas de metros da ponte de Saint-Cloud, num pequeno apartamento de Boulogne-Billancourt, uma mulher chorava diante da mesa onde colocara o pequeno almoço. Pierre Lorrain, o seu marido, não regressara. No preciso instante em que completava o gesto com o qual sonhara durante quatro anos, içar a bandeira tricolor no telhado da sua fábrica, passara na rua um camião apinhado de soldados alemães. Sob o céu azul dessa manhã de Agosto, zumbiu nos ares uma rajada de balas. Atingido por sete projécteis, Lorrain rolou junto ao mastro, enquanto, sobre ele, flutuava a grande bandeira de três cores.

Já, aqui e ali, o ruído dos tiros começava a misturar-se com o clamor entusiástico da multidão. O tiroteio que, por toda a cidade, recomeçava, vinha lembrar brutalmente que os 20000 soldados alemães, pouco menos numerosos que os seus assaltantes, continuavam a ocupar Paris e que iriam bater-se tenazmente para defender a sua presa.

O tenente Pierre de Ia Fourchardière, do 12.º de Couraceiros, chegava à cabeça dos seus carros, à Praça do Observatório, completamente deserta, após ter atravessado um autêntico mar humano. Ao ouvir tiros, saltou do seu Sherman. Começou a correr para o único ser humano que conseguiu descobrir, um velhote escondido no portal dum prédio.

”O senhor - perguntou ele -, sabe onde estão os alemães?”

 

1 O sargento Kelly foi imediatamente transportado para a farmácia de Marcelle Thomas, que lhe prestou os primeiros cuidados. O seu comportamento impressionou muito a farmacêutica. Kelly, apesar dos seus sofrimentos, pediu que não censurassem o bombeiro que o abatera e distribuiu à sua volta o conteúdo do seu maço de cigarros. Foi seguidamente transportado para o Hospital Percy, em Clamart. Três dias mais tarde, David, desesperado, foi visitá-lo e levou-lhe uma garrafa de vinho. Tempo depois, Kelly, paralisado, foi evacuado para os Estados Unidos, mas continuou em contacto com Marcelle Thomas. Ele escreveu-lhe para cima de vinte cartas. Na última, dizia: ”Ainda não sei quando poderei levantar-me. Os meus ferimentos fazem-me dores atrozes, mas isso pouco importa: ajudámos um grande povo a libertar-se e lembrar-me-ei sempre de vós.” Impressionada com essa tragédia, Marcelle Thomas mandou editar um magnífico álbum de agradecimento, dedicado
ao sargento americano e a todos os G. Is. caídos na tomada de Paris. Intitulado Nós recordamo-nos’’, contém poemas, desenhos e textos especialmente escritos e executados por escritores, poetas e artistas plásticos parisienses. Mas Kelly jamais receberia esse livro. Três dias antes de este chegar, morreu finalmente dos ferimentos, num hospital militar da Pensilvânia, em 1 de Outubro de 1946. Após a sua morte, a farmacêutica de Saint-Cloud manteve-se fiel à sua memória. Em cada dia 25 de Agosto realiza-se uma cerimónia comemorativa no local onde foi ferido o desafortunado americano que quisera ser o primeiro em Paris.

 

                                             Capitulo quarto

Os alemães estavam à esquina da rua. No imenso Palácio do Luxemburgo, recoberto pela sua cúpula de oito faces, nos jardins povoados de graciosas estátuas das grandes damas da história da França, 700 homens de capacetes de aço estão prontos a bater-se ”até ao último cartucho”. De madrugada, o seu imaginativo comandante, o coronel Von Berg, o mesmo oficial que tivera a ideia de colocar escudos humanos nas torrinhas dos seus carros, mandou distribuir a cada homem meio litro de aguardente e um maço de cigarros. Eugen Hommens, o dentista do 1º batalhão de alerta que, na véspera, se recusara a desertar, recebeu um maço dos seus cigarros preferidos, os R 6. No fim do jardim, no blokhaus que, no boulevard Saint-Michel, ladeia a extensa fachada da Escola de Minas, o Feldwebel Martin Herrohlz, de 27 anos, da 8.a Companhia do 190.ºRegimento de Segurança, apalpa, confiante, a arma que tem na sua frente. É um Panzerfaust, a bazuca alemã. Com um engenho idêntico, Herrholz ganhara a Cruz de Ferro de 1.a classe perto de Rostov sobre o Don, estoirando sucessivamente quatro carros T34 soviéticos. Agora, pela primeira vez, iria servir-se dele contra um carro americano.

Acocorados nos seus buracos cavados nos canteiros de gerânios e begónias, que os jardineiros do Feldmarschall Sperrle tão carinhosamente tinham cultivado durante os quatro anos de ocupação, o Obergefreiter Hans Georg Ludwigs e os pára-quedistas da 6.a Fallschirm Panzer Jãger Division vigiam a entrada dos jardins, cujos acessos estão sob as miras das metralhadoras. Sobre as suas cabeças, no telhado do palácio, um observador da 484.a Companhia de Feldgendarmerie observa com um binóculo as ruas que convergem para o palácio. Quando vir aproximar-se o primeiro soldado inimigo, prevenirá o coronel Von Berg que, 30 metros debaixo de terra, no antigo abrigo antiaéreo do marechal Sperrle, comanda a defesa do edifício. O ferro de lança do coronel alemão é constituído pelos carros do 5.º Regimento de Segurança, que defendem todos os acessos do palácio. Num daqueles, cujo canhão está apontado sobre o eixo da Rua de Vaugirard, encontra-se o Unteroffizier Willy Linke, o comandante do Panther que conduziu, no sábado anterior, o primeiro assalto contra a Prefecture. No visor do seu periscópio, Linke pode ver a colunata do teatro Odéon à esquerda, e, no fim da rua, a fachada escura da Sorbona. A rua está deserta, as persianas de todos os prédios corridas. Nenhum libertador passou ainda por ali. No interior da sua torrinha repleta de obuses, o alemão pensa no seu Báltico natal e considera que é ”a calmaria antes da tempestade”.

O enorme complexo que os homens do coronel Von Berg se preparam para defender estende-se por um vasto quarteirão. O coração dele é o próprio Palácio do Luxemburgo, prolongado para oeste por um outro edifício, o Pequeno Luxemburgo, antiga residência do Presidente do Senado. Na outra extremidade dos jardins, para sul, situa-se uma grande construção, o liceu Montaigne, e, ao seu lado, a Escola de Minas.

Apenas a cerca de 60 metros dos dois blockhaus que ladeiam esta Escola, do outro lado do boulevard de Saint-Michel, um grupo de civis prepara-se durante toda a noite para desencadear a tempestade que o tanquista Willy Linke aguarda. Numa sala de exames da Rua do Abbé-de-1’Épée, n.º 32, onde gerações de estudantes fizeram as suas provas finais do curso dos liceus, um jovem de cabelos revoltos prepara-se para ordenar o assalto contra os homens do coronel Von Berg. Ostenta os galões de coronel e é comunista. O seu nome é Pierre Fabien. Com 25 anos de idade, foi já ferido por três vezes, em Espanha e na Checoslováquia, onde combateu como voluntário contra os fascistas. Por duas vezes conseguiu escapar às garras da Gestapo, a última das quais apenas minutos antes da sua execução. Dois anos atrás, tinha sido ele quem, no cais da estação de metropolitano Barbes, abatera, pelas suas próprias mãos, o primeiro oficial alemão morto em Paris.

Havia cinco dias que Fabien e os seus F. F. I. não cessavam de importunar os alemães do Luxemburgo, obrigando-os a manterem-se encerrados na sua fortaleza. Agora, era chegado o momento da conquista. Um rapaz de braçadeira tricolor, de Mauser na mão, corre pela Rua do Odéon, deserta. É um dos homens de Fabien e chama-se Jacques Guierre. Faz 20 anos neste dia. Tem por missão vigiar as proximidades do palácio nos minutos que antecedem o ataque. Penetrando no café Arbeuf, na Praça do Odéon, conclui, ao ouvir o estrondo dos blindados alemães e vendo os capacetes que se ocultam por detrás das colunas do teatro, uns e outros protegendo os acessos do palácio, que é sua obrigação assinalar aos seus camaradas que o inimigo está mais perto do que se supunha. A proprietária do estabelecimento pergunta-lhe se já comeu alguma coisa nesse dia. Guierre responde que não com a cabeça. ”Come isto, então, meu pequeno. Deve-se combater com a barriga cheia!” O jovem F.F.I, trinca uma enorme sanduíche e bebe o pequeno copo de Santerre que a acompanha. Obrigado, e viva a França!”, responde, enquanto pega na sua espingarda. Três ou quatro segundos depois, a senhora Arbeuf ouve uma detonação. Vê ainda o vulto branco que atravessa a praça tropeçar e rolar por terra, num charco de sangue. Jacques Guierre morreu no dia do seu aniversário.

Várias e violentas explosões sacodem o bairro. Duas autometralhadoras do coronel Von Berg fazem uma surtida às imediações do palácio e bombardeiam um grupo de F. F. L escondido num pequeno hotel no ângulo da Rua de Vaugirard com a Rua Monsieur-le-Prince. Das janelas, os homens regam com granadas de mão os blindados de cruzes negras, mas os projécteis ricocheteiam nas blindagens. Um obus explode no interior dum quarto do edifício e incendeia a mobília. O prédio enche-se de chamas e de fumo. Os homens encorajam-se mutuamente e gritam indicações e vozes de comando no meio dos estampidos das explosões e do zunir das balas. Duas raparigas de vestidos de Verão, correm pelos corredores e puxam os feridos para a sala de jantar. Emboscado atrás duma porta do rés-do-chão, um homem aguarda o instante em que os alemães irromperão no hotel. Segura uma grande faca de cozinha cuja lâmina brilha na penumbra. É o carniceiro do quarteirão e conta decapitar o primeiro
alemão que passar diante dele. De repente, os sitiados vêem as autometralhadoras alemãs baterem em retirada e regressarem precipitadamente ao palácio. Ouvem então, proveniente do boulevard Saint-Michel, o ranger das lagartas dos carros de assalto. São os Sherman do tenente Pierre de Ia Fouchardière que se aproximam. O oficial encontrara finalmente os alemães. Da sua torrinha, observa a fachada da Escola de Minas, para a qual se dirige.

OFeldwebelMarúnHerThòíz., o atirador da bazuca, vigia igualmente, com o óculo de mira, o carro que progride. No preciso instante em que o alemão se decide a fazer fogo, La Fauchardière assinala o blockhaus e grita ao seu piloto, Lucien Kerbrat: ”Depressa, para a direita!” O foguetão do Panzerfaust passa a rasar em chamas, contra a fachada do prédio fronteiro. O alemão larga uma praga. Falhara o seu primeiro tanqamericano.

La Fouchardière salta então para terra, e pede a três F.F.I, de Fabien que o acompanhem. O oficial pretende ele próprio localizar as posições alemãs da Escola de Minas. Os quatro homens penetram no prédio situado defronte do edifício e sobem ao quarto andar. Batem a uma porta. Uma idosa senhora, toda vestida de preto, vem abrir. ”Tenente Pierre de Ia Fouchardière, da Divisão Leclerc” apresenta-se o jovem oficial, levando a mão à testa, em continência. Em seguida’ curvando-se, beija cerimoniosamente a mão da velha senhora e conduz os seus camaradas para a sala perante a estupefacção da dona da casa. Através da janela, os recém-chegados, observam, a menos de 30 metros, o próprio interior da Escola de Minas. Por detrás dos sacos de areia colocados nos parapeitos e nas portas, La Fouchardière vê os capacetes dos defensores alemães. É uma estranha sensação: jamais, em quarenta meses de combate, o oficial vira o inimigo tão de perto. Como uma personagem dum filme de cow-boys, La Fouchardière brande o seu Colt, aproxima-se mais duma janela, estica o braço, dispara duas ou três vezes e recua. Os alemães ripostam. Num instante, a elegante sala de paredes cobertas de velhos livros fica empestada com o cheiro da pólvora e cheia de fumo. Sentada a um canto, a senhora, envolta na sua dignidade, contemplava, com espanto misturado de alegria, a transformação por que passa a sua sala, transformada em campo de batalha. Quando despejou o seu último carregador, La Fouchardière poisou a sua arma fumegante sobre o tampo envernizado duma mesa e deixou-se cair numa poltrona de veludo azul.

Vários pelotões de Sherman cercam já o Luxemburgo. O tanquista Willy Linke ouve nos seus auscultadores a voz seca do comandante de pelotão, o Oberleutnant Klaus Kuhn, avisar: ”Quatro carros inimigos desembocam da Rua Gay-Lussac.” ”Meu Deus -exclama o alemão - , onde fica a Rua Gay-Lussac?” Faz girar o seu periscópio em todos os azimutes e acaba por descobrir, a 50 metros à sua direita, a silhueta atarracada dum carro-obus que avança lentamente. *No mesmo momento, de cima do seu ”lança-batatas”, chaMousquet”, o tenente Philippe Duplay, do 12.º de Couraceiros, repara no carro alemão e dá ordem ao seu piloto para fazer marcha atrás, antes que o alemão tenha tempo de disparar. A primeira ideia que cruza o espírito do francês é atirar o seu carro através dos jardins do Luxemburgo, em direcção ao palácio. Mas, logo a seguir, verifica que isso constituiria um erro fatal. Os jardins estão, sem dúvida, minados. Acompanhado dalguns soldados de infantaria e dum punhado de F.F.I, de Fabien, Duplay decide então fazer um reconhecimento, a pé, nos jardins. O pequeno grupo atravessa a correr o
boulevard Saint-Michel. Por felicidade, um obus rebentou algumas barras do gradeamento do recinto. Logo que o primeiro homem consegue introduzir-se através dele e penetrar no jardim, as metralhadoras dos pára-quedistas alemães abrem fogo. Atingido no peito, o couraceiro Marcel Portier rola na poeira do chão. Semi-inconsciente, de mãos crispadas no ventre, geme: ”... Mãe... mãe...”, enquanto os seus camaradas procuram transportá-lo rastejando para o gradeamento. Para conseguirem fazer o corpo dele passar através das grades, um F.F.I, dirige-se a uma trincheira alemã e traz uma picareta, com a qual se esforça por alargar a passagem entre as barras.

Entretanto, a 300 metros, o jipe do capitão Alain de Boissieu, comandante do esquadrão de protecção de Leclerc, surge no Observatório. Decidido a expulsar os alemães do Luxemburgo, por todos os meios ao seu alcance, Boissieu ordena aos seus carros que disparem directamente sobre o Senado.

Impressionado com a chuva de metralha que cai sobre as altas fachadas do edifício, o jovem oficial considera que é uma sensação estranha fazer fogo sobre o Senado. É um pouco como disparar sobre o Governo”. Um obus de 105 atinge em cheio o posto de observação do coronel Von Berg, instalado no telhado do palácio. Boissieu vê o corpo do Feldgendarme que o ocupava saltar no ar, de mistura com uma nuvem de entulho e destroços de madeira.

Mas o que o jovem capitão pretende é liquidar os carros alemães. A inesperada resistência do Senado obrigara Leclerc a instalar o seu P. C. na estação de caminho de ferro de Montparnasse, em vez de se dirigir ao Hotel Crillon, como previra. Se, como Boissieu receia, os Panzer do Luxemburgo decidem tentar uma surtida para destruir a estação de Montparnasse, nada os poderá deter. ”Por amor de Deus - clama então Alain Boissieu dirigindo-se aos seus homens - , arrasem-me esses carros!”

No interior do palácio, os sitiados não dão mostras de qualquer sinal de cansaço, nem revelam a menor intenção de abandonar a luta. Na sala de jantar do rés-do-chão, pintada a dourado, onde em tempos Napoleão e Josefina davam os seus banquetes, agora transformada em posto de socorros, o Stabsarzt Heinrich Draber, um cirurgião de 28 anos, auxiliado pelo dentista Eugen Hommens, faz incisões na carne sangrenta dos feridos, polvilha as chagas com sulfamidas, faz pensos de emergência. Dezenas de homens jazem sobre os tapetes três vezes centenários que cobrem os veneráveis sobrados. Para não desmaiar naquela enjoativa atmosfera, impregnada do cheiro de éter e de sangue, Eugen Hommens vai dando pequenas goladas na sua ração de conhaque.

Da janela da cozinha do primeiro andar, o preso Paul Fardou e o seu carcereiro, o gordo cozinheiro Franz, vêem passar, a correr, jovens S.S. a caminho das suas posições de combate, de cartucheiras ao pescoço. O cozinheiro Franz mudou de estribilho. Já não manda o seu prisioneiro limpar a cozinha porque vai ser fuzilado. Agora, contenta-se em repetir incansavelmente: Alies Kaput... alies Kaput,

Num dos boulevards que rodeiam a Escola de Minas, o Feldwebel Martin Herrohlz assesta o seu Panzerfaust sobre outro Sherman e dispara. A bola de fogo cruza o boulevard, e, desta vez, Herrholz não erra o alvo. O projéctil incendeia um carro do 501.º Regimento. Mas, no mesmo instante, o alemão rola no seu blockhaus, sob uma chuva de pedaços de betão e bocados de ferro. O seu projéctil cruzou-se com um obus disparado pelo cabo Claude Hadey, cuja Bautzen está escondida à esquina da Rua Soufflot. O obus pulverizou o blockhaus, matando os dois serventes duma metralhadora e sepultando o sargento, milagrosamente ileso. Quando o tenente Philippe Duplay consegue regressar ao seu carro, depois de trazer dos jardins do Luxemburgo o corpo do couraceiro Portier, ouve nos auscultadores a voz furiosa do capitão De Boissieu gritar: ”Os Panzer, caramba, os Panzer, rebentem com os Panzer’’ Duplay vê então um gigante descer dum half-track com a estrela branca, que nesse momento parou ao lado do seu carro. É um americano. Utilizando todos os seus conhecimentos de inglês, Duplay aplica a sua melhor pronúncia ao dirigir-se ao americano: Excuse me, sir - diz-lhe -, do you have by any chance a bazooka?” (Desculpe-me, meu caro senhor, terá por acaso uma bazuca?)

Minutos depois, como dois gentlemen dirigindo-se ao seu clube, o francês e o americano,   de bazuca aos ombros,   atravessam   o   boulevard Saint-Michel Ignorando as balas que estalam à sua volta como chicotadas, põem-se a caminho num passo firme, para ajustar contas com o Panther de Willy Linke.

 

                                     Capítulo quinto

Enquanto o tenente Duplay e o G. L desconhecido se dirigem para o seu objectivo, os homens da 2a D. B. apertavam, pouco a pouco, como um torno, o seu cerro à volta dos outros pontos de apoio da capital: a Câmara dos Deputados, o Quai d’Orsay, o enorme complexo da Escola Militar, o Hotel Magestic e as cercanias do Arco do Triunfo, a Praça da República, o Hotel Crillon, a Kriegsmarine e todo o enfiamento da Rua de Rivoli, na qual se situava o quartel-general de Choltitz.

Antes de desencadear o ataque geral contra estes pontos de apoio, o coronel Billotte, que finalmente recebera as informações dadas por Bobby Bender na véspera à noite a Lorrain Cruse, decidiu enviar um ultimato ao general alemão. Bender persuadira Cruse de que a simples presença da 2.a D. B. na cidade deveria provocar a rendição de Choltitz,. Promovendo-se, para a circunstância, a general de brigada, Billotte redigiu então para Choltitz uma nota cominatória e sem apelo, na qual lhe concedia meia hora para ”pôr fim a toda a resistência”, sob pena dum ”extermínio total” da sua guarnição. Billotte mandou entregar a mensagem a Bender, ao consulado da Suécia, por um dos seus oficiais, o comandante De Ia Horie. Quando o agente do Abwehr dela tomou conhecimento, a inquietação espelhou-se no seu rosto. Receava que o tom e o conteúdo desse ultimato fossem de tal modo brutais que impedissem a sua aceitação pelo governador de Paris. Por fim, e perante a insistência de Nordling, Bender acedeu a levar sem demora a nota ao Hotel Meurice.

Depois de ter conseguido transpor as diversas barragens de Feldgendarmes e de sentinelas que faziam, nessa manhã, do bairro do Meurice uma verdadeira zona em estado de sítio, Bender, envergando o seu elegante fato civil, encontra finalmente o conde Von Arnim, a quem entrega o documento. Arnim, por sua vez, leva-o ao coronel Von Unger. Mas este, depois de o ler, decide não o transmitir ao general. Para o frio e rígido chefe de estado-maior, semelhante ultimato é completamente inaceitável. Entrando no gabinete do comandante do Gross Paris, Unger limita-se a anunciar: ”Os franceses enviam-lhe um ultimato.” Sacudido pela palavra, Choltitz replica, secamente: ”Não aceito ultimatos.” A mensagem foi portanto devolvida a Bender, que a leva para o consulado da Suécia. Minutos mais tarde, o agente do Abwehr participa o seu desaire ao emissário da Divisão Leclerc. Contudo, Bender acrescenta que é sua impressão que o comandante do Gross Paris oferecerá apenas uma resistência simbólica, ”para salvaguardar a honra”, após a qual acederia a capitular, juntamente com a sua guarnição. Proferidas estas palavras, o alemão pareceu reflectir. Depois, fixando os olhos azuis no oficial francês, acrescentou: ”Devem concentrar o vosso ataque, primeiramente, sobre o Hotel Meurice. Deste modo, a destruição dos outros monumentos ocupados pela Wehrmacht será talvez evitada.”

No universo glacial e irreal do bunker da O.K. W. na Prussia Oriental, Adolf Hitler obstinava-se ainda em recusar-se a perder a última jóia que lhe restava dum império que deveria ”durar mil anos”. Na véspera, o Feldmarschall Model, surpreendido pelo avanço fulminante da 2a D. B., prevenira a O.K. W. de que a situação em Paris se tornara ”crítica” ’. A muralha pretendida pelo comandante-chefe a Oeste, a qual deveria deter os Aliados diante de Paris, ruíra. Tinham-lhe faltado 24 horas. Model advertira a O. K. W. de que a 47.a Divisão de Infantaria, destinada a aguentar Choltitz até à chegada das 26.a e 27.a Panzer, só poderia atingir os arredores de Paris depois do meio-dia de 25 de Agosto. Model fizera bater cuidadosamente toda a região parisiense por oficiais do seu estado-maior, na esperança de conseguir enviar para Paris alguns restos que permitissem a Choltitz resistir até à chegada da 47.a Divisão e das Panzer. Fora-lhe assim possível mandar para Paris um batalhão de carros blindados, um regimento de infantaria e os poucos tanques que restavam duma divisão dizimada na Normandia. Estes esforços desesperados assemelhavam-se aos que os franceses tinham desenvolvido em Junho de 1940. E obteriam também o mesmo resultado. Os reforços de Model eram muito fracos e chegariam tarde demais.

Pouco passa das 13 horas quando se inicia a primeira conferência estratégica do Grande Quartel-General de Rastenburgo. Diante de Hitler encontra-se o relatório de operações do Grupo de Exércitos B, referente às primeiras 12 horas do dia 25 de Agosto. Foi recebido de Margival apenas minutos antes do começo da conferência. Participa que as forças aliadas atingiram o próprio centro de Paris, onde ”atacam os nossos pontos de apoio com a sua artilharia e a sua infantaria’’ 2 Hitler não está preparado para admitir tal realidade. Mergulha num daqueles acessos de cólera que se tornam cada vez mais frequentes e grita que é inconcebível que o inimigo tenha podido entrar na cidade com tamanha facilidade. Voltando-se bruscamente para Jodl, clama que há oito dias que não pára de dar ordens para que a capital francesa seja defendida até ao último homem. E, agora, eis que brutalmente toma conhecimento de que Paris, o símbolo de todos os seus triunfos passados, lhe vai ser roubada. Recusa-se, no entanto, a aceitar esse facto. Hitler jamais abandonará essa capital cuja conquista centenas de milhões de pessoas viram nas
telas dos cinemas, e o fizera bater com os pés de alegria. Três anos antes, apenas, ele era o senhor incontestado dum império, que se estendia das estepes geladas da Lapónia às areias ardentes das pirâmides e dos rochedos rendilhados da ponta do Raz até aos subúrbios de Moscovo. Agora, o troar do canhão ressoa já através dos grandes carvalhos de Rastenburgo. As cidades alemãs, Berlim, Hamburgo, Colónia, os centros industriais do Ruhr, oferecem um espectáculo de desolação lunar. Hitler semeou os ventos, e a Alemanha está a sofrer a tempestade mais terrível de toda a sua história.

”A queda do ferrolho de Paris - repete ele -, implicaria na deslocação de toda a frente do Sena. Obrigaria à retirada das rampas de lançamento de foguetões, e comprometeria gravemente o combate remoto contra a Inglaterra.”

 

1 Grupo de Exércitos B - Ia - 0360/44 - 23.00 - 24-8-44.

2 Grupo de Exércitos B - Ia - 0580/44 - 12.45 - 25-8-44.

 

Após um longo silêncio, o Fúhrer declara finalmente que, se a perda de Paris for inevitável, o inimigo não deverá aí encontrar mais do que ”um campo de ruínas”. Ao proferir estas palavras, recorda Warlimont, Hitler é sacudido por novo ataque de ira. Berra que deu as ordens necessárias para que a cidade fosse arrasada. Ele próprio designou as unidades especializadas que deveriam preparar as destruições. ”Estas ordens foram executadas?”, pergunta ao chefe do seu estado-maior. ”Jodl -grita ele na sua voz rouca -, Paris já está a arder?” Então, um pesado silêncio invade o bunker. Warlimont observa à sua volta os rostos petrificados dos seus colegas.

”Jodl - insiste Hitler desferindo um brutal murro sobre a mesa - , quero saber: Paris já está a arder?! Paris está ou não a arder?!”

Perante o silêncio do chefe de estado-maior, Hitler ordena que um oficial telefone imediatamente à O. B. West para obter no mesmo instante um relatório dos efeitos das destruições operadas na cidade. Depois, Hitler dá ordem a Jodl para que este comunique pessoalmente, uma vez mais, a Model que a sua missão primordial continua a ser defender Paris até ao último homem e que proceda sem mais delongas às destruições previstas. ” Se é verdade - acrescenta Hitler -, que o inimigo já se infiltrou em determinados bairros da capital, ele terá de ser expulso hoje mesmo e por todos os meios!’’ Por fim, antes de passar ao exame da situação na frente Leste, o Fúhrer declara que tomou uma última decisão. Antes de ordenar a retirada para mais a leste das rampas de lançamento, utilizar-se-á delas ainda, duma forma espectacular. Assim, voltando-se para Jodl, Hitler ordena que seja preparado um ataque maciço de foguetões VI e V2 sobre Paris. Todos os aviões da Luftwaffe disponíveis deverão igualmente ser mobilizados para completar as destruições provocadas pelos foguetões. O dono do III Reich quer ter a certeza de que, ao cair nas mãos dos Aliados, Paris não passará, efectivamente, de ”um campo de ruínas”.

Essa Paris que se furtava ao louco senhor do Reich era, naquele momento, teatro das cenas mais extraordinárias. Na imensa cidade, que um acontecimento único em toda a sua velha história revolvia, nesse instante, até aos seus alicerces, o melhor e o pior, o cómico e o trágico iriam andar lado a lado, misturar-se e sobrepor-se, no decorrer daquele fabuloso dia. A esquina duma rua, a multidão envolvia os seus libertadores em delirantes manifestações de alegria. Na esquina da rua seguinte, os mesmos libertadores avançavam a custo através do fumo das explosões e do zumbir das balas. Perto do Palácio do Luxemburgo havia já um corpo coberto de flores. Era o do G. I. desconhecido que acompanhara o tenente Philippe Duplay com a sua bazuca. A 50 metros do Panzer de Willy Linke, o americano tinha caído varado por uma bala na testa.


Da varanda da sua residência, que tantas reuniões secretas da Resistência abrigara, a senhora Solange Pécaud, uma amiga de Jacques Chaban-Delmas, observava a progressão dos soldados de Leclerc em direcção à fortaleza alemã da Escola Militar. Sentia-se angustiosamente maravilhada. Mas uma bala perdida. pôs termo à sua ansiedade e à alegria que aquele soalhento e belo dia de libertação lhe trouxera. Após um ruído seco, a jovem rolou, morta, na varanda.

Na carcaça metálica dirigida para o céu, dois homens ofegantes disputavam uma corrida. Um deles, ainda distante do outro, transportava debaixo do braço um grande embrulho, cuidadosamente atado. Era uma bandeira tricolor. Por cima dele, entre as vigas de ferro da Torre Eiffel, o capitão de bombeiros Raymond Sarniguet via a silhueta do homem que procurava alcançar, e que prosseguia a sua escalada a toda a velocidade. Sarniguet sabia que esse homem também levava consigo uma bandeira tricolor, e que estava igualmente decidido a hasteá-la no cimo da Torre. Sarniguet efectuara aquela estafante ascensão de 1750 degraus, pela última vez, em 13 de Junho de 1940, às 7 horas e 30 da manhã, quando, chorando como uma criança, tivera de arrear com as suas próprias mãos a grande bandeira que iria ser substituída, no alto da Torre, durante quatro anos, pelo pavilhão da cruz gamada. Com o coração a bater apressadamente, as pernas doridas, Sarniguet continuava a perseguir, com desesperada energia, o vulto solitário que o precedia. Como um corredor à vista da meta de chegada, acelerou a marcha e, a menos de 200 degraus do topo, conseguiu ultrapassar o seu rival no arranque final. Quando atingiu o último degrau, o capitão de bombeiros atirou-se, num último impulso, para o mastro. Vencera. Começou então a desenrolar a bandeira. Pobre bandeira! Era feita de três lençóis, cosidos uns aos outros. O encarnado era cor-de-rosa, o branco cinzento e o azul violeta. Mas era, mesmo assim, a bandeira da França. Pondo-se em sentido, com os olhos rasos de lágrimas, o bombeiro de Paris içou o pano sagrado. Era exactamente meio-dia, nesse dia 25 de Agosto de 1944. Vivamente, no belo céu de Verão, o vento fraco desdobrou as três cores sobre a capital. E, pouco depois, seria como se o Mundo inteiro as visse drapejar.

 

                                           Capítulo sexto

”Achtung!”

À voz de comando que ressoa debaixo dos lustres da sala de jantar os homens levantam-se. Cingido no mesmo uniforme de dragonas de ouro que vestira dezanove dias antes, quando visitara Adolf Hitler, a Cruz de Ferro pendurada ao pescoço, de monóculo, um ar distante e solene, o general Von Choltitz faz a sua entrada. Cumprimentando os seus oficiais com um imperceptível aceno de cabeça, dirige-se para a sua mesa, junto das janelas.

Embora a fadiga vinque com dureza os traços do seu rosto, ele parece fresco e bem disposto. Tomou um banho e barbeou-se, antes de envergar o uniforme dentro do qual vai proceder ao último acto da sua carreira de general alemão.

Quando chega à mesa, o coronel Hans pede-lhe que não se sente no seu lugar habitual, de costas para a janela. Jay receia que uma bala, vinda da janela, o possa atingir. ”Sim, Jay - responde Choltitz -, mas hoje, mais do que nunca, faço questão em estar no meu lugar de sempre.” Dizendo estas palavras, o pequeno general puxa a sua cadeira e senta-se. o relógio de parede da sala de jantar bate uma vez. São 13 horas.

É a hora H para o capitão Jacques Branet, de 32 anos, e para os seus 200 soldados reunidos na Praça do Châtelet, a menos de 1000 metros da sala de jantar onde no relógio soara uma badalada. Branet, um dos veteranos mais prestigiosos da Divisão Leclerc, tem ordens para capturar o general alemão. Para o ataque ao seu quartel-general, o capitão dividiu os seus homens em três grupos de assalto. O primeiro tomará o caminho do cais da Mégisserie, passará sob as graciosas abóbadas dos pequenos arcos do Louvre, e penetrará nos jardins das Tulherias. O segundo arrancará ao longo dos elegantes escaparates da Rua de Saint-Honoré até à Praça Vendôme e atacará o Hotel Meurice pela retaguarda. O terceiro, que ele próprio comandará, subirá a Rua de Rivoli, pelas arcadas centenárias. Pois será pela porta principal que Branet tenciona entrar no quartel-general do comandante do Gross Paris.

O assalto inicia-se como um passeio dominical. À entrada da Rua de Rivoli, Henri Karcher, o tenente que, na véspera, procurava o rosto do filho no meio das multidões de Orsay, conduz os seus infantes do Regimento do Chade e um grupo de F.F.I, do coronel Rol sob os aplausos e os hurras duma multidão entusiástica, que os agentes de polícia mal podem conter.

A perspectiva da imensa artéria construída em honra duma vitória napoleónica proporciona ao jovem tenente um avassalador espectáculo. Cada janela, cada porta, até à Praça do Palais Royal e à orla das Tulherias, estão cobertas de bandeiras tricolores. Mais para diante, até à praça da Concórdia, outros pavilhões enchem a rua. São as pesadas auriflamas encarnadas e pretas da Alemanha nazi.

Os Sherman do 501.º Regimento seguem, com pequenos arrancos os soldados de infantaria de Karcher. A cada paragem, as mulheres sobem para os carros e cobrem as tripulações de beijos e de flores. À esquina da Rua das Lavandières Saint-Opportune, outrora célebre pelo número dos seus prostíbulos, o soldado de 1.a classe Jacques d’Estienne, artilheiro do ”Laffaux”, vê surgir uma bela rapariga loura que se atira para os seus braços. Sob o ímpeto desse assalto afectuoso, d’Estienne cai por cima dum obus, no fundo da sua torrinha. A rapariga junta-se-lhe imediatamente. No mesmo instante, o soldado ouve nos auscultadores uma voz gritar: ’ Em frente!’’ D’Estienne levanta-se e repara noutra cabeleira loura que emerge do posto da frente. Jack Nudd, o piloto, encolhe os ombros e arranca. E é com essas duas insólitas passageiras, duas parisienses louras e sorridentes, que o ”Laffaux’’ vai lançar-se ao assalto do Meurice.

Os infantes do tenente Karcher deixaram já para trás as ovaçoe’s dos Parisienses. A rua pela qual eles agora avançam está deserta, silenciosa e ameaçadora. De vez em quando, os homens ouvem, por cima das suas cabeças, uma persiana que corre ou uma janela que se abre. Esses barulhos fazem-nos estremecer e apontar as suas armas para as fachadas dos prédios. Mas, por detrás das janelas apenas vêem vultos ansiosos que os avisam, com sinais, do perigo que correm.

Das vigias do seu blockhaus, na orla das Tulherias, o Hauptmann Otto Nietzki, da Wehrmachtstreife, observa os assaltantes. Essa visão lembra-lhe, estranhamente, ”uma procissão na Semana Santa”.

Nos jardins das Tulherias, o Feldwebel Werner Nix, do 190.º Regimento de Segurança, corre dum carro para
o outro para prevenir as tripulações dos cinco Panther de que o inimigo se aproxima. Distribui a cada tanquista alguns cigarros e grita-lhes: ”Felicidades!” Quando chega ao último carro, o alemão ouve uns roncos inesperados, provenientes duma escola de crianças. São os sobreviventes da vara de porcos que o Oberfeldwebel Obermueller evacuara, três dias antes, da Rua Marbeuf e que assim manifestam a sua impaciência. À beira dum pequeno lago, a Nix depara-se um espectáculo que o choca. Um oficial ensaboa calmamente a face com creme branco e começa a barbear-se. ”Aqui está um - pensa o Feldwebel -, que quer estar apresentável quando morrer.”

Duma janela do Meurice, os soldados Fritz Gottschalk e Hubert Kausser, do Regimento de Segurança, descobrem também os infantes de Karcher, avançando prudentemente de pilar em pilar, à frente das silhuetas maciças e lentas dos blindados. Os pentes de cartuchos da metralhadora MG42 dos dois alemães atapetam o chão da sala com manchas douradas.

No rés-do-chão, o cabo Helmut Mayer faz uma entrada discreta na sala de jantar. O impedido pára à retaguarda do general Von Choltitz, curva-se respeitosamente, e murmura ao ouvido do seu patrão: Sie kommen, Herr General! (Eles estão a chegar).

Lá fora, ao longo das arcadas da Rua de Rivoli, um pequeno tanque Hotchkiss com a cruz negra pintada arranca, gira bruscamente sobre si próprio e faz frente aos carros de Branet, que se aproximam. Ao ver surgir o blindado alemão, o Sherman da frente, o ”Douaumont”, faz fogo. Logo ao primeiro obus, o Hotchkiss de cruz negra voa em estilhaços.

O tiro do canhão do ”Douaumont” produz o efeito dum sinal. Imediatamente, a batalha estala por toda a rua. Imperturbável, Choltitz conclui o seu almoço. Depois, tão calmamente como se se encontrasse em manobras, o general levanta-se e dirige algumas palavras aos seus oficiais, visivelmente desejosos de procurar um abrigo mais seguro do que aquela sala de jantar repleta de estilhaços. ”Senhores - diz ele -, o nosso último combate começou. Que Deus vos proteja.” E acrescenta: ”Espero que os sobreviventes deste combate caiam nas mãos das tropas regulares, e não nas da populaça.” O comandante do Gross Paris abandona então a sala de jantar. Ao subir os degraus da escadaria, Choltitz pára diante duma trincheira de sacos de areia. Dirigindo-se ao velho servente duma metralhadora ligeira cuja arma está apontada para a porta principal, o general dirige-lhe algumas palavras de encorajamento: Em Munster, a minha fazenda e a minha mulher esperam-me há cinco anos!’’, responde com um suspiro o velho soldado.

Enquanto o general prossegue o seu caminho, Arnim, que observara a cena, olha com tristeza para o velhote e pergunta a si próprio se ele voltará alguma vez a ver a mulher, a fazenda e a sua cidade.

Na rua, do seu blockhaus à esquina da Rua de Rivoli com as Tulherias, o Hauptman Otto Nietzki rega com a metralhadora a primeira vaga de assalto da infantaria. Seguindo com o olhar as suas balas tracejantes, que correm ao longo da fachada do Ministério das Finanças, Nietzki vai contando os homens que rolam como paulitos, no passeio. Dum fortim instalado na Praça das Pirâmides, as metralhadoras do Oberleutnant bávaro Heinrich Thiergartner mantêm em respeito os assaltantes que, no passeio fronteiro, progridem dificilmente sob as arcadas. Agora, já não há ovações e flores para os soldados da 2.a D.B. e F.F.I, que os acompanham. ”Depressa, a metralhadora!”, grita Karcher.

Enquanto o cabo de metralhadoras Georges Decanton abre fogo sobre o fortim do Oberleutnant Thiergartner, Karcher vê aparecer na sua frente um velho de barbicha transportando aos ombros um velho bacamarte, que acaba de carregar pela boca. De pé no meio da metralha, o velho dispara sobre o fortim alemão, desaparecendo, após cada disparo, nas nuvens de fumo provocadas pelo seu petardo.

O fogo cruzado dos defensores alemães quebrou o primeiro assalto da infantaria. O capitão Branet decide então avançar com os seus carros, a fim de limpar os pontos de apoio. Conduzidos pelo sargento Marcel Bizien, o pequeno bretão do ”Douaumont’’, que havia jurado que ”os seus antepassados poderiam hoje estar orgulhosos dele”, os cinco Sherman de Branet passam para a frente dos infantes. Na Praça das Pirâmides, Jacques d’Estienne, o artilheiro do ”Laffaux”, foca com o seu visor três alemães, a 20 metros de distância, que põem uma nova metralhadora em posição defronte da estátua de Joana d’Arc. D’Estienne faz fogo. E horrorizado, vê, como numa alucinação, um feixe de cabeças, de braços, de troncos espalhar-se no ar e cair por cima do bronze dourado da Donzela de Orleães, numa grinalda sinistra.

Passeando ao longo do seu vasto gabinete, onde o fragor da batalha cria agora um ambiente ensurdecedor, Von Choltitz dita uma última carta. É endereçada ao cônsul Nordling. Desde que a bela Cita Krebben e as suas companheiras tinham partido, aos primeiros alvores da madrugada, a fim de se recolherem à protecção da Cruz Vermelha, Choltitz deixara de ter secretária. Restava-lhe apenas, para escrever uma carta, o seu fiel Mayer. ”Meu caro senhor Nordling principiou - , quero apresentar-vos o testemunho da minha profunda gratidão.. .”, e o general interrompeu-se e andou alguns passos em direcção à janela. Estremeceu. O inimigo estava ali. Sob a varanda onde viveu tantos e cruéis momentos de reflexão e de inquietação, Choltitz vê um Sherman, de torrinha aberta, cujo canhão gira lentamente dirigindo-se para a entrada do hotel. Fascinado, Choltitz observa a boina preta do comandante do carro, cujo tronco emerge da torrinha. Pergunta a si próprio se ele será francês ou americano. ”Seja o que ele for -pensa- , não deve levar esta batalha muito a sério, para deixar desta maneira a sua torrinha aberta.” Ao lado do general, Arnim olha com inquietação para o canhão que continua a girar em direcção ao portão. ”Meu Deus - diz -, que vai ele fazer?” ”Haverá uma pequena explosão, e os nossos aborrecimentos terão início.” Nesse instante, duma janela, um alemão lança uma granada. Choltitz vê o projéctil cair sobre o tanquista de boina preta.

O alferes Albert Bénard, o comandante do ”Mort-Homme”, sentiu o projéctil roçar pela sua boina e embater e escorregar ao longo das costas, acabando por cair no fundo da torrinha. Bénard precipita-se para cima da granada, procurando agarrá-la e lançá-la para o exterior. Mas é tarde. O engenho explode, crivando de estilhaços o oficial e o artilheiro. Com os fatos em chamas, os dois homens saltam do carro e rolam no pavimento, enquanto o piloto Jean René Champion arranca precipitadamente na nuvem de fumo que envolve o Sherman.

Ao verem os dois archotes humanos que se arrastam sobre o asfalto, os alemães param de disparar durante alguns segundos. No telhado da Kriegsmarine, o Korvet Kapitãn Harry Leithold ordena aos seus homens que não acabem com os dois feridos. Leithold vê então aparecer, através da fumarada
que sai do ”Mort-Homme”, a horda densa dos Sherman de Branet. Dentro de segundos, pensa o Korvet Kapitãn, eles desembocarão na Praça da Concórdia, onde está de vigilância, com o canhão assestado sobre a Praça da Étoile, um carro Panther. De cima do telhado, Leithold gesticula desesperadamente, tentando prevenir o comandante do carro alemão do perigo que corre. Mas o homem está demasiado ocupado para reparar nos sinais. No seu óculo acaba de aparecer, no alto dos Campos Elíseos, um alvo de eleição: um tanque-destroyer. O 88 do Panther começa então a cuspir metralha e chamas.

Na esquina da Avenida dos Campos Eliseos com a Praça da Étoile, o último candeeiro a gás daquela avenida é atingido em cheio pelo obus disparado pelo Panther da Concórdia, e voa em estilhas. Bocados de ferragens e de vidros caem sobre o tanque-destroyer, que tranquilamente vai passando diante do Arco do Triunfo. O carro é o ”Simoun” e, no seu interior, onde a tripulação se comprime, há um odor especial que se sobrepõe aos cheiros habituais do carro e da batalha. Provém do depósito de munições no fundo do qual, começando a apodrecer, como é de desejar nas peças de caça, se encontra ainda o famoso pato. Dois outros obuses passam por cima do ”Simoun”. O primeiro pulveriza os pés da Marselhesa de Rude, no Arco do Triunfo. O segundo enfia pelo majestoso arco, assobiando aos ouvidos do coronel Paul de Langlade e do comandante Henri de Mirambeau, os quais foram recolher-se por momentos junto do túmulo do Soldado Desconhecido, antes de atacarem o ponto de apoio instalado perto do Hotel Magestic.

Mais abaixo, na Avenida dos Campos Elíseos, um quarto obus explode contra uma árvore, decepando com um estilhaço a perna dum operador de actualidades cinematográficas que tinha subido para um camião a fim de filmar a cena. Transportam o ferido para o escritório do decorador de cinema Paul Bertrand. Segundos depois, uma rapariga alta e loura irrompe pelo gabinete. Segura nos braços um bocado de carne sangrenta. ”Trago a perna”, diz ela simplesmente.

Na Praça da Étoile, o segundo-cabo de marinheiros Paul Quinion, comandante do ”Simoun’’, examina com o binóculo o Panther da Concórdia. Mady, um explosivo, depressa! - comanda ele ao seu artilheiro -. A alça a 1500.” O antigo marceneiro de Montparnasse regula a distância no seu óculo de pontaria. E, de repente, parece hesitar. Sem avisar o seu comandante de carro, faz girar o botão três furos além, regulando 1800 metros em vez de 1500: Mady recordara-se dum pormenor que lera no almanaque Vermont. Dizia-se aí que a extensão dos Campos Elíseos, do Arco do Triunfo à Concórdia, era de 1800 metros. O almanaque estava certo. O primeiro obus atingirá o Panther em cheio. E, nesse momento, vendo a nuvem de fumo que sobe do carro, Mady exclama: ”Meu
Deus! Dois metros para a direita e tinha despedaçado o Obelisco!’’

Na Praça da Concórdia, da sua janela do Crillon protegida por sacos de areia, o Quartiermeister Erich Vandam observa os rolos de fumo que se escapam das lagartas destroçadas do Panther. De repente, vê surgir, vindo da Rua de Rivoli, um Sherman direito ao tanque imobilizado.

É o ”Douaumont”. Da sua torrinha, o sargento Marcel Bizien acabava de descobrir o Panther. ”Um carro boche à esquerda!”, grita Bizien ao artilheiro. ”Fogo!” E o obus explosivo do ”Douaumont’’ esmaga-se contra a blindagem do Panther, sem o perfurar. Bizien vê a torrinha do alemão começar a girar lentamente sobre si própria, na sua direcção. No interior do Panther, é à mão que a tripulação tem de fazer rodar as seis toneladas da torre blindada: o obus de Mady rebentou com o sistema eléctrico de rotação. Um perfurante, caramba!’’, berra Bizien. Na fumarada acre que enche o ”Douaumont”, o municiador procura às apalpadelas outro obus e enfia-o na câmara de disparo. ”Fogo”, grita, de novo, Bizien.

O projéctil atinge o carro, que uma nuvem de fumo imediatamente envolve. Devido à escuridão, o municiador de Bizien tinha-se enganado. Em vez dum obus perfurante, entregara ao artilheiro, que por sua vez carregara com ele o canhão, um obus fumígeno. O Panther está agora apenas a cerca de trinta metros do carro francês. Dentro de segundos, antes que Bizien possa voltar a carregar o seu canhão, o 88 do Panther fulminará o ”Douaumont” à queima-roupa. Num relâmpago, o descendente dos corsários bretões compreende que a sua única salvação está em tentar a abordagem do carro alemão, antes que o seu terrível 88 tenha tempo de disparar. Entra por ele dentro!’’, berra ao seu piloto, Georges Campillo, através do intercomunicador. Instantaneamente, Campillo carrega no acelerador a fundo e atira com o ”Douaumont” para diante. Do ponto de apoio da Knegsmarine, o Korvet Kapitãn Harry Leithold vê o Sherman avançar como uma locomotiva na nuvem de fumo que rodeia o Panther. Esta visão, dirá ele mais tarde, lembra ao alemão ’ ’uma justa da Idade Média”.

No interior da sua torre blindada, Bizien cerra os dentes. Abaixo dele, com as costas inundadas dum suor gelado, Campillo inclina-se para trás, na previsão do embate. Como duas lanças, os canhões dos dois carros cruzam-se e, num vulcão de faíscas, num fragor de trovão, setenta toneladas de aço cravam-se umas nas outras no meio da mais bela praça do Mundo. O eco da formidável colisão ressoa durante um momento - e logo o silêncio envolve toda a praça.

As tripulações dos dois carros, abaladas pelo choque e meio asfixiadas pelo fumo, ficam inertes, durante alguns instantes, no fundo das torrinhas. Quando Bizien volta a si, abre os olhos, e a imagem que descobre sobre a sua cabeça faz-lhe recordar a sua terra natal. Indica a Campillo a flecha do Obelisco, que faz lembrar, no meio da fumaça, o traquete dum veleiro no meio da névoa”. O pequeno bretão puxa do seu Colt, salta do carro e aproxima-se do Panther. Logo a seguir, Campillo ouve a explosão surda duma granada, e vê Bizien sair da nuvem de fumo e gritar: Merda! Os estupores trancaram-se lá dentro!’’’

Fascinado pelo espectáculo, o Korvet Kapitãn Leithold vê o Sherman soltar-se dos destroços fumegantes do carro alemão e recuar. No mesmo instante, ouve uma rajada de tiros e vê o vulto sentado no rebordo da torrinha cair para a frente. Atingido por uma bala na nuca, disparada duma janela situada mesmo debaixo dos pés de Leithold, o sargento Bizien afunda-se no interior do carro. Durou apenas alguns minutos a alegria triunfante do pequeno bretão: apenas o tempo necessário para cumprir uma promessa e morrer.

À vista dos dois espectros que caminham para eles, vindos do fumo que cobre as arcadas da Rua de Rivoli, os homens do tenente Karcher fazem fogo. Ouve-se um grito angustiado: ”Não disparem! É o Bénard!” Apoiando-se um no outro como dois ébrios, o artilheiro Louis Campam, com as costas crivadas de es-

 

1 Segundos depois do embate, o Quartiermeister Erich Vandam viu, da sua janela do Hotel Crillon, quatro vultos emergirem do fumo e fugirem para as Tulherias.
Dez meses mais tarde, quando o mesmo carro ’ ’Douaumont’’ se encontrava avariado numa auto-estrada alemã, o tripulante dum tanque da Wehrmacht, que passava integrado numa coluna de prisioneiros, reconheceu de repente o nome do carro, pintado na torrinha. Conseguindo sair da coluna e aproximar-se do novo comandante do Douaumont, disse-lhe que ele próprio se encontrava a bordo do Panther quando este havia sido abordado pelo Sherman, em 25 de Agosto de 1944. O alemão contou que a tripulação tinha conseguido, graças à cortina protectora de fumo provocada pelo obus fumígeno disparado pelo Sherman, abandonar o carro e correr para as Tulherias. Ali, o alemão e os seus camaradas tinham atirado para longe as suas boinas pretas e arrancado as insígnias dos uniformes. Puderam assim, na confusão da batalha, passar, junto dos F.F.L, por soldados da 2.a D. B. Ao cair da noite, ele próprio atravessara Paris a pé, alcançara os arrabaldes e lograra atingir as linhas alemãs. Ignorava o que tinha acontecido aos seus camaradas da tripulação.

 

tilhaços, e o tenente Albert Bénard, comandante do ”Mort-Homme”, meio cego pelo sangue que lhe corre para o rosto, arrastam-se às apalpadelas à frente da infantaria amiga, que progride sob as arcadas da Rua de Rivoli. No meio do caos e da confusão, os dois feridos acabam de passar, sem darem por isso, precisamente pela porta principal do Meurice.

Por cima dessa porta, no seu vasto gabinete, Dietrich von Choltitz, de expressão sombria e resignada, acaba de tomar uma importante decisão.

Momentos antes, o coronel Hans Jay fizera uma diligência pessoal junto do seu velho amigo. ”Agora, é necessário que se decida - dissera-lhe ele, num tom de voz imperativo. - Vai manter-se aqui e jogar às escondidas durante todo o dia com os americanos, ou vai acabar com isto duma vez para sempre, e render-se?” Jay estava obcecado pelo receio de que Choltitz encontrasse a morte na batalha do Meurice. Ele não ignorava, de facto, que só uma ordem pessoal do general podia obrigar os comandantes dos pontos de apoio, decididos a baterem-se ”até ao último cartucho’’, a renderem-se antes do seu total aniquilamento nas ruínas de alguns dos mais belos edifícios de Paris.

Choltitz tornara-se pensativo. Com tristeza e desânimo, compreendia que não poderia condenar os seus homens a destruírem-se numa batalha que se tornara sem objectivo. Mandou chamar o coronel Von Unger. Se os ’terroristas ou a populaça-ordenou -, tentarem invadir o Hotel Meurice, o combate continuará. Mas se forem as tropas regulares a apresentar-se em primeiro lugar, proporá a sua rendição, após uma breve troca de tiros simbólicos, para Salvaguarda da honra’’. Por fim, Choltitz dá ordem a Unger para recolher a bandeira quando os primeiros soldados inimigos transpuserem a entrada do edifício. Em seguida, saiu do seu
gabinete e afastou-se para os aguardar, ao abrigo da batalha, numa pequena sala que dava para o pátio interior.

No quarto de dormir do general, com os gestos precisos e metódicos adquiridos em sete anos de serviço, o cabo Mayer prepara a última mala do comandante do Gross Paris. Arruma nela alguma roupa interior, três camisas, um casaco de uniforme e um par de calções de listas vermelhas. Num quarto próximo, o tenente Von Arnim atira para dentro dum saco algumas barras de chocolate, a grossa camisola em tricot que a sua mãe lhe fizera para usar no Inverno anterior e dois livros. Um é a História da França, de Jacques Bainvelle. O outro, Guerra e Paz, de Tolstoi.

Fora, os franceses aproximam-se. Três homens atravessam a Rua de Rivoli envoltos numa nuvem de fumo e atiram-se, de barriga para baixo, para junto do gradeamento das Tulherias. Quando um deles, o alferes Henri Riquebush, levanta a cabeça, descobre, horrorizado, que está mesmo defronte da seteira dum blockhaus alemão. Esticando o braço através do fumo, Riquebush toca de repente num pedaço de metal incandescente. É o cano da metralhadora que os defensores acabam de abandonar.

O combate entre os carros prossegue. Um Sherman, do lado de lá das Tulherias, dispara um obus perfurante contra um Panther emboscado junto da Orangerie, cujo canhão está apontado para o Sena. A lagarta do Panther salta, desfeita, e logo a torrinha do carro alemão começa a girar vertiginosamente, para se assestar sobre o Sherman. Um segundo obus, disparado por este, passa ao lado do carro alemão. Quando tudo parecia indicar que o canhão alemão iria colocar sob a sua mira o carro francês e fazer fogo pela primeira vez, o seu movimento de rotação estaca bruscamente. O canhão imobilizara-se contra o tronco duma árvore.

Perto da Rua de Rivoli, o comandante do carro ”Montfaucon” segue, consternado, a trajectória das balas tracejantes das suas metralhadoras que se vão esmagar contra o edifício que tem na frente, o Hotel Continental. Porque, antes da guerra, o sargento Perthuiset trabalhava na recepção desse hotel. E tinha sido graças ao gerente do Continental que Perthuiset devia o encontrar-se nesse instante na torrinha dum Sherman. De facto, o patrão do jovem recepcionista, satisfeito com os seus serviços, resolvera recompensá-lo com uma viagem a Londres, para fazer um estágio no Savoy. Surpreendido na capital britânica pela guerra e pelo armistício, Perthuiset respondera ao apelo de De Gaulle e alistara-se.

No momento em que Perthuiset dispara, com mágoa, uma nova rajada sobre o seu antigo hotel, um alemão lança uma granada duma janela, a qual vai explodir sobre o apoio de D.C.A. do carro. Trespassado pelos estilhaços, o ex-recepcionista rola no fundo da sua torrinha.

Dos cinco Sherman que, quarenta minutos antes, tinham avançado pela Rua de Rivoli, três foram já forçados a abandonar o combate, devido à chuva de balas e granadas que os alemães faziam cair sobre os assaltantes, dos prédios que ocupam. O romancista americano Irwin Shaw, soldado de 2.a classe do Serviço Fotográfico do Exército, vê um deles passar na sua frente, com o motor em chamas. Loucos de raiva pela morte dos seus camaradas, os homens do”Laffaux” um dos dois carros ainda intactos, começam a fazer fogo com todo o seu armamento sobre o que quer que esteja ao seu alcance. Um dilúvio de metralha e de chamas jorra do carro em todas as direcções. ”Por amor de Deus, ”Laffaux”, tenha cuidado! Você está a destruir a mais bela praça do Mundo!’’, grita a voz furiosa do capitão Branet nos auscultadores do Sherman. Mas, no mesmo instante, outra voz ressoa pela rádio, anunciando a morte de Pierre Laigle, a bordo do ” Villers-Cotterêts’’, e que o carro deste está fora de combate. ”Merda - exclama Jacques d’Estienne, artilheiro do Laffaux -Então, só restamos nós!”

 

                                             Capitulo sétimo

Por detrás do Hotel Meurice, na esquina da Rua Saint-Honoré com a Rua de Castiglione, onde acaba de surgir com o seu carro, o aspirante Marcel Christen descobre na sua frente, com estupefacção, um verdadeiro campo de batalha. ”Deus meu - pensa -, isto é Estalinegrado!” Vários veículos ardem como archotes no meio da Rua de Castiglione. Portas de ferro onduladas estão arrancadas, os vidros das lojas estilhaçados, as fachadas dos prédios esventradas, e os cadáveres alemães que juncam o solo criam um cenário aterrador nas cercanias do Hotel Continental. O jovem oficial que, no dia anterior, participara no ataque à prisão de Fresnes, puxa do seu Colt e salta em terra. Acompanhado pelo cabo Henri Villette, piloto do seu carro, corre de porta em porta para a entrada do Continental. Os dois franceses dão repentinamente de caras com um pequeno capitão da Wehrmacht que, de capacete na mão, surge da porta do hotel. ”Renda-se!”, grita o alsaciano Christen, em alemão. ”Já, já!”, responde o alemão, erguendo imediatamente os braços. Os dois homens empurram o seu prisioneiro para o átrio do hotel, coberto de sacos de areia. Logo a seguir, começam a surgir de todos os lados oficiais alemães, de braços erguidos. De cada vez que vê um alemão ostentando a Cruz de Ferro, Villette precipita-se para ele e arrebata-lhe a condecoração. Desde a Líbia que faz colecção dessas medalhas. Villette traz pregadas no seu cinturão as dezassete Cruzes de Ferro dos alemães que ele apunhalou. No átrio do Continental, o cabo admira, maravilhado, todas as medalhas negras que vê aparecer na sua frente. Nunca contemplara semelhante tesouro.

Christen e o cabo limpam rapidamente o hotel, pavimento por pavimento. Quando chegam ao quinto andar, Christen ouve débeis gemidos para lá duma porta. Com um violento pontapé, faz saltar a fechadura e vê, na sua frente, um grupo de americanos esqueléticos, acorrentados à parede. ^”Eh, ’velhinhos’ grita o aspirante estupefacto - , vocês estão livres, irra!”

A infantaria e os F.F.I, invadem por sua vez o hotel e capturam os últimos alemães. São exactamente 14 horas e 30. Caiu o primeiro dos pontos de apoio de Choltitz.

Em frente do Meurice, contudo, a batalha prossegue com a mesma violência. Surpreendido pelo fogo da metralhadora do Hauptmann Otto Nietzki, que varre as Tulherias, o alferes Yves Brécard grita para um oficial alemão que emerge duns arbustos de braços no ar: ”Far-te-ei prisioneiro mais logo!”, e atira-se ao comprido para o chão. À esquina da Rua Saint-Roch, d’Estienne, o artilheiro do ”Laffaux”, o último sobrevivente dos cinco Sherman que tão alegremente tinham partido para o assalto à Rua de Rivoli, noventa minutos antes, vê um oficial ser abatido debaixo das arcadas. O capitão Branet não chegará a entrar no Hotel Meurice. Com o corpo despedaçado por estilhaços de granada, acaba de tombar apenas a 50 metros do objectivo. Segundos depois, d’Estienne sente garras aceradas lacerarem-lhe a pele. Passa a mão pelas costas e retira-a cheia de pedaços de carne e de fazenda ensanguentados. Uma granada acabara de explodir no seu carro. D’Estienne aperta os dentes, agarra-se à culatra do seu canhão e continua a disparar raivosamente. Mas a vista turva-se-lhe. A Rua de Rivoli dança na sua frente, e, depois, mais nada. Desmaiou. O último Sherman abandona o combate e recua a toda a velocidade para o posto de socorros da Comédie Française, onde já se encontram o ”Montfaucon”, do antigo recepcionista do Continental, e o ”Villers-Cotterêts”, de Pierre Laigle. O ”Douaumont”, no interior do qual jaz Bizien, está parado na Praça da Concórdia. Na Rua Royal, abandonado finalmente pelo seu último ocupante,
o piloto René Champion, o ”Mort-Homme” continua a arder.

Depois da partida do ”Laffaux’’, faz-se um curto e opressivo silêncio em toda a Rua de Rivoli. Depois, o carrocel dos blindados recomeça. É ao capitão Buis e aos seus Sherman que compete render Branet, e estes arrancam a toda a força dos seus motores em direcção à Concórdia. Ao atravessar a praça, Buis, da torrinha do seu ”Noruega”, repara na carcaça enegrecida do Grand Palais e comenta para o seu artilheiro, o cabo Henri Jacques: ”Que pena aquela porcaria não ter ardido completamente.” Pois é’’, responde o cabo. ”E se lhe déssemos o golpe de misericórdia?”, pergunta Buis. Ao ouvir estas palavras, o artilheiro põe-se à procura dum obus de fósforo na prateleira de munições da torrinha. Logo a seguir o cabo declara com tristeza que já não há obuses de fósforo no ”Noruega”. ”Com explosivos, não o conseguiremos, meu capitão”, acrescenta. ”É pena”, replica Buis que, desolado, recomeça a sua marcha para o Meurice. Do telhado da Kriegsmarine, o Obergefreiter Karl Froelich vê passar o carro do capitão. Ao fim de quarenta minutos de fogo ininterrupto, o cano da metralhadora do alemão tornou-se incandescente. Entretanto, a atenção do apontador prende-se a outro espectáculo. Três vultos brancos correm, através da metralha, para um F.F.I, que acaba de cair por terra, diante da balaustrada da estação do metropolitano da Concórdia, à entrada da Rua de Rivoli. Enquanto Madeleine Brinet, a enfermeira que, na véspera à noite, escrevera, no alto duma página em branco do seu diário íntimo, que aquele seria o dia da vitória, agita suavemente a sua pequena bandeira com a cruz vermelha, como que para implorar a misericórdia dos combatentes, o estudante de Farmácia Georges Bailly e o jovem pianista Claude Touche carregam o ferido numa maca. Nesse instante, Froelich ouve a seu lado o crepitar nervoso duma metralhadora, abrindo fogo. Vê então um marinheiro de 19 anos descarregar com raiva um pente inteiro de cartuchos sobre o pequeno grupo. Froelich atira-se sobre ele. Mas já é tarde. O jovem marinheiro ceifou os três abnegados salvadores, cujos corpos contorcidos são agora uma mancha branca e vermelha no pavimento da rua. No pequeno relógio-pulseira de Madeleine Brinet, que uma das balas aflorou, são exactamente 3 horas da tarde.

O tenente Henri Karcher lê o letreiro oval que tem agora na frente. Hotel Meurice -Restaurante”, repete ele, num fascínio misturado de respeito. O jovem tenente tinha acabado de escapar à morte. No preciso instante em que se voltava para dar uma ordem, uma bala tracejante raspou-lhe a arcada superciliar. ”Uma vaca danada!’’, comenta de si para si ao aperceber-se, de repente, que se não tivesse feito o movimento de cabeça, a bala, penetrando-lhe pelo olho direito, lhe teria atravessado a cabeça de lado a lado.

Karcher vai entrar no Meurice pela segunda vez na sua vida. Recorda-se de lá ter ido, pouco antes da guerra, com um amigo jornalista que o convidara ’para beber um uísque com a rainha da Roménia”.

De pistola-metralhadora em punho, o tenente e os três homens que o seguem irrompem pelo portal de entrada. A primeira imagem que ao francês se depara é um imenso retrato de Hitler, dominando o átrio do interior duma grande vitrina, em cuja base há malas de mão para senhora, caixas de pó-de-arroz e jóias. O escaparate voa em estilhaços. O primeiro gesto de Karcher, ao entrar no quartel-general do comandante do Gross Paris, foi disparar sobre a efígie de Hitler. Mas já, do alto do seu patamar repleto de sacos de areia, o velho ’ ’praça’’ de Munster colocou o francês na linha de mira da sua arma e faz fogo sobre ele. Karcher mergulha para trás do balcão da recepção e tira do seu cinturão uma pequena bola preta. É uma granada de fósforo. Arranca a cavilha de protecção com os dentes e atira a granada para o meio do salão. Milhares de partículas a arder revolteiam, num turbilhão de fogo, espalhando um cheiro acre. O soldado de 1.a classe Walter Herreman, um alsaciano, rega com o seu lança-chamas o vão do ascensor. Nesse momento, repara num capacete da Wehrmacht que rebola pelas escadas. O ’praça velha’’ de Munster não voltará a ver a sua fazenda. Foi morto pela granada de Karcher.

Da espessa fumarada que escurece o átrio emerge a silhueta dum oficial alemão, de braços erguidos. Karcher atira-se para ele e encosta-lhe o cano fumegante da sua pistola-metralhadora à cintura. ”Todos os homens, um a um, de braços no ar e sem armas!’’, ordena. Ao ouvir estas palavras, que Herreman traduz, o alemão berra uma ordem. Pouco depois, enquanto a fuzilaria cessa, os defensores do rés-do-chão, cobertos de fuligem, de suor e de sangue saem do fumo e vêm render-se aos três franceses. Karcher vê passar, com um sorriso irónico, essa tropa alucinada, semicega pelo fósforo, tossindo e cambaleante, com os uniformes em farrapos - último símbolo da arrogante Wehrmacht que fazia reinar a sua lei sobre Paris.

Agora, é um oficial, trajando os calções de listas vermelhas de estado-maior, que surge. Passa por cima do corpo do velho soldado, sem sequer o olhar, desce os restantes degraus e avança para Karcher. O francês especa-se na sua frente. ”Onde está o vosso general?”, pergunta.

O general está sentado a uma grande mesa, no canto duma pequena sala, mesmo por cima da cabeça de Karcher. Dietrich von Choltitz, de cabeça entre as mãos, parece perdido nos seus pensamentos. Diante dele, no forro de seda do seu boné, colocado sobre a mesa, está o estojo contendo a pequena pistola 6.35 que entregará, dentro de momentos, aos seus vencedores. Choltitz teve de pedir emprestada essa arma: jamais possuiu, em toda a sua vida, qualquer pistola. Unger, Jay, Bressendorf, Arnim estão a seu lado, e aguardam também.

Como os antigos, que lançavam as suas espadas sobre os escudos dos vencedores, também eles atiraram as suas pistolas para cima da mesa. Para todos esses homens, que foram chefes respeitados e temidos, aquele é o minuto da verdade. Dietrich von Choltitz aguarda o desenlace, sem qualquer emoção aparente. É da opinião de que nada se lhe pode censurar. Nesse mesmo instante, os seus homens executam a ordem de Hitler, batendo-se ”até ao último cartucho’ ’. A sua honra de soldado está, portanto, intacta. E, quando ele próprio for feito prisioneiro, poderá, com honra, ordenar aos seus homens que deponham as armas. Crê poder encarar sem receio o julgamento da História. Não permitiu que Hitler executasse a sua vingança sobre essa capital para onde o destino o tinha enviado, dezanove dias antes, para coroar uma longa carreira ao serviço
da Alemanha. Choltitz está convencido, nesses últimos minutos de liberdade, de que se comportou, tanto perante si próprio como perante a sua pátria, com perfeita lealdade. O oficial que está de pé à sua esquerda, o cínico e sedutor coronel Hans Jay, sente-se mais preocupado. Faz, em pensamento, uma viagem imaginária. Considera que, na derrocada que espera a Alemanha, quando os Aliados partilharem entre si as ruínas do seu país, não haverá lugar para pessoas como ele. E Jay pergunta a si próprio para que país deverá exilar-se ’.

Para o jovem Ernst von Bressensdorf, aqueles derradeiros minutos proporcionam-lhe ”a perspectiva maravilhosa dum novo recomeço”. Junto dele, o seu amigo Dankvart von Arnim pensa que ”finalmente termina uma guerra que lhe levou os mais belos anos da sua vida’’. Mas, paradoxalmente, nessa proximidade do fim, ninguém parece mais calmo e tranquilo do que o glacial, o austero, o rígido e distante coronel Von Unger. Arnim nota que os traços do rosto do chefe de estado-maior, à direita de Choltitz, tornaram-se bruscamente mais suaves e que toda a sua dureza desapareceu. Unger tirou da sua algibeira uma volumosa carteira e passa um a um, cuidadosamente, com a expressão iluminada por qualquer felicidade interior, os retratos dos seus filhos.

 

1 Se bem que se tenha dito que a partilha da Alemanha em zonas de ocupação seria apenas temporária, Jay decidiu expatriar-se, no regresso do seu cativeiro. Instalou-se na Irlanda, onde actualmente leva uma existência tranquila e confortável de criador de cavalos.

 

Quando a porta se abre, Dietrich von Choltitz ergue a cabeça. Na ombreira surge o cabo Helmut Mayer. Pela segunda vez em pouco mais de duas horas, o impedido bate discretamente com os tacões: Sie kommen, Herr General.

Desta vez, ”eles” estão no fim do corredor. Quando Karcher, apenas uns segundos antes, chegara ao patamar do primeiro andar, encontrara-se face a face com um grupo de alemães de braços erguidos. Um destes começara a rir histericamente. Era um pequeno tenente, calvo. Num francês impecável, ele gritara-lhe: ”É o mais belo dia da minha vida... Sou austríaco. Odeio os alemães. Durante toda a guerra consegui não ser mandado para a frente. Há três dias que estou adstrito aqui! Ah! Como me sinto contente por vê-los!” Proferindo estas palavras, o pequeno tenente atirara-se aos pés do francês estupefacto e começara a beijar-lhe furiosamente as botas.

No comprido e escuro corredor ao fim do qual se encontra, esperando, o comandante vencido do Gross Paris, Henri Karcher sente as fontes latejarem. ”Meu velho, é preciso não falhares à entrada!”, repete de si para si. Com esse pensamento, vem-lhe à memória um feixe de recordações. Revê os rostos dos seus camaradas que deixou para trás no longo caminho de que aquele corredor é o termo: Loiseau, morto em Bir-Hakeim, cujo irmão encontrou há pouco, Bessonier, caído na Normandia, cuja pistola ele próprio empunha nesse momento. Enfim, todos os seus companheiros que ele vai, nesse minuto, representar.

O oficial alemão que o precede estaca diante duma porta e afasta-se uns passos. Karcher entra. Choltitz ergue-se. Karcher toma a posição de sentido e faz a continência:

- Tenente Henri Karcher, do exército do general De Gaulle! - diz.

- General Von Choltitz, comandante do Gross Paris - responde o alemão. Karcher pergunta a Choltitz se ele está na disposição de se render.

-Já! - responde este.

- O senhor é portanto meu prisioneiro! -Já! - suspira Choltitz.

Nesse momento, entra na sala um segundo oficial francês. Ao ver o comandante De Ia Horie, a expressão do coronel Hans Jay altera-se ligeiramente. Os dois homens conhecem-se de longa data. Antes da guerra, diferentes combates tinham-nos já oposto um ao outro. Mas era, então, nos hipódromos da Europa, onde ambos faziam parte das equipas militares dos respectivos países. Quando os seus olhares se cruzaram, o alemão e o francês baixaram levemente a cabeça um ao outro. La Horie voltou-se então para Choltitz: ”General - declarou ele -, o senhor quis bater-se. Bateu-se, e isso custou-me muita gente. Exijo que ordene imediatamente o cessar-fogo em todos os vossos pontos de apoio que ainda resistem.” La Horie mandou então o general alemão segui-lo. Depois, dirigindo-se a Karcher, acrescentou cerimoniosamente: ”Meu caro camarada, tenha a amabilidade de se encarregar dos outros!”

O general alemão apertou as mãos de Jay e de Unger, murmurou a cada um o velho Hals and bein bruch, ajeitou o boné e saiu.

Quando eles partem, Karcher diz que pretende inspeccionar o quartel-general do Gross Paris. O coronel Von Unger oferece-se imediatamente para acompanhar o francês. Quando penetra no antigo gabinete de Choltitz, Karcher repara num grande bocado de tecido, cuidadosamente dobrado sobre a secretária do general.

- Que é isto? - pergunta a Unger.

- É a bandeira do estado-maior do Gross Paris - responde o alemão. -Foi recolhida há momentos, quando o senhor entrou no hotel.

- Perfeitamente - replica o francês. - Queira então entregar-ma oficialmente.

Os dois oficiais estão sós na sala enfumarada. Do exterior chega até eles o crepitar intermitente da fuzilaria, que prossegue nas Tulherias e na Praça da Concórdia. Do passeio sob o gabinete sobe um rumor ainda mais inquietante. A multidão começa a cercar o Meurice. Frente a frente, em impecável posição de sentido, os dois oficiais saúdam-se em continência. Em seguida, num gesto solene, o coronel de cabelos brancos depõe nas mãos do seu jovem vencedor o pavilhão vermelho e preto que durante quatro anos, dois meses e dez dias drapejou, no alto do seu mastro, no número 228 da Rua de Rivoli.

Terminada esta breve cerimónia, Karcher pegou no auscultador do telefone preto que estava sobre a secretária de Choltitz e marcou um número. ”Auteil

04-21?”, indaga quando ouve um estalido na linha. Reconhece então uma voz familiar. ”Pai -diz ele ao sogro, um general reformado - , os meus cumprimentos. Fala o tenente Henri Karcher. A despeito das predições desfavoráveis que formulaste quanto à minha carreira militar, tenho a honra de te participar que acabo de aprisionar o general alemão comandante da praça de Paris, o seu estado-maior e a sua bandeira!”

Na rua, debaixo deles, o comandante De Ia Horie, de revólver em punho, esforça-se por proteger o seu prisioneiro. Impassível, Dietrich von Choltitz sofre, sem pestanejar, o assalto da multidão em fúria. Mulheres com o rosto deformado pelo ódio atiram-se sobre ele, tentam ^arrancar-lhe as dragonas, cospem-lhe na cara. Os homens gritam-lhe insultos. À vista do general alemão que avança de braços no ar, o povo de Paris não pode conter a sua cólera, acumulada em quatro anos de ocupação, de provações, de torturas, de prisões, de tiros e de deportações. E Choltitz paga pelos nazis que o precederam, por todos os nazis da Alemanha.

”Vão linchar-me!’’, pensa o general. Atrás de si, ouve a respiração ofegante do seu fiel impedido Mayer. O cabo aperta entre os dedos a pega da mala que tão cuidadosamente preparou para aquela triste viagem. A cada passo, quando, fatigado e deprimido, deixa cair um pouco os braços, Choltitz ouve a voz angustiada de Mayer: Mais alto, mais alto, Herr General, se não levantar bastante os braços eles matam-no!” Na frente deles, ao longo de toda a Rua de Rivoli, um grito de triunfo corre de boca em boca: ”O general boche, o general boche foi preso!’’ Na Praça das Pirâmides, uma mulher de cerca de 40 anos atira-se sobre o antigo comandante do Gross Paris, dilata as bochechas e atira-lhe enorme escarro que o atinge na cara, logo abaixo do seu monóculo. Uma voluntária da Cruz Vermelha coloca-se à frente dele e protege o alemão com o seu corpo. Sensibilizado por esse inesperado gesto de compaixão, Choltitz, que passa nesse momento perante a estátua dourada de Joana d’Arc, murmura à sua benfeitora: ”Minha senhora, sois como Joana d’Arc.”

La Horie vê então por cima das cabeças da multidão que o rodeia o casco rectangular dum half-track, para o qual empurra o seu prisioneiro. E este, na confusão, esquece-se do impedido. Aterrado, Mayer vê o half-track arrancar, deixando-o só, no meio duma multidão ululante. Com uma coronhada da sua espingarda, um F.F.I, arranca-lhe a mala das mãos e começa a despedaçá-la, para a esvaziar do seu conteúdo. Mayer consegue libertar-se das mãos que já se agarram ao seu uniforme, atira-se para a frente e larga a correr atrás do half-track, a cuja blindagem consegue finalmente deitar mão. O cabo vê então, por cima da sua cabeça a silhueta tranquilizadora do general. Mas Choltitz, por um breve instante, esquecera-se do seu impedido. Enquanto rola para o cativeiro, depara-se-lhe, petrificado, um espectáculo que ja mais esquecerá. Uma parisiense em cabelo dança a carmagnole em plena Rua de Rivoli. Ela agita, frenética, por cima da cabeça, com uma alegria transbordante e triunfal, o mais extraordinário trofeu desse dia de Libertação: os calções de listas encarnadas do general comandante do Gross Parts.

 

                                             Capitulo oitavo

Em pleno coração de Paris, na sala de jantar forrada de madeira do Prefect de Paris, defronte da Sainte-Chapelle, outro general, com o uniforme coberto de pó, acaba de sentar-se à mesa. Philippe Leclerc atingira a fase mais gloriosa da longa caminhada que havia de conduzi-lo até ao Reno. Cumprira a sua promessa de Koufra. Era o libertador de Paris. Por um desses acasos mágicos em que a História é fértil, esse triunfo surgia quatro anos exactos, dia por dia, depois de Leclerc se ter posto a caminho de Paris. Fora, com efeito, numa tarde de 25 de Agosto de 1940 que principiara, para o oficial da Picardia, a epopeia da reconquista. Nesse dia, transpondo de piroga o Wouri, um rio africano, tinha feito aderir os Camarões à França Livre. Todo o seu exército se encontrava, então, nessa piroga. 17 homens: 3 oficiais, 2 missionários, 7 agricultores e 5 funcionários públicos. Quatro anos depois, Leclerc estava de volta, à frente de 16000 soldados constituindo a mais moderna unidade do exército francês ressurgido.

O primeiro almoço de Leclerc em Paris libertada não irá além dos aperitivos. Na sua frente está o coronel Rol, que com ele vem almoçar, o chefe político cuja insurreição conduziu mais depressa Leclerc a Paris e cuja existência e papel até então desconhecia. Um oficial entra na sala e murmura-lhe algumas palavras ao ouvido. Leclerc levanta-se imediatamente e dirige-se para o compartimento vizinho, uma sala de bilhar. Aí, Philippe Leclerc receberá dentro de momentos a rendição oficial do último general alemão comandante da capital da França.

Chegam já até ele os gritos e os assobios da multidão amontoada no pátio da imensa Prefecture que, cinco dias antes, o estado-maior da Wehrmacht projectara arrasar com os seus carros e os seus Stukas. Abre-se uma porta e, ofegante e congestionado, o general alemão faz a sua entrada. Dirige-se para Leclerc. As apresentações são breves. ”Sou o general Von Choltitz”, declara ele. Ich bin der General Leclerc, responde o comandante da 2.a D. B., no alemão que, em tempos, aprendera em Saint-Cyr. O tenente Alfred Betz, que acaba de chegar «Prefecture no seu jipe ”Mata-Hari” e que servirá de intérprete oficial, fica impressionado com a aparência cuidada que Choltitz conserva, apesar das violências que o atingiram, aprumado no seu uniforme de gala. Se bem que o homem seja atarracado e gordo, desprende-se da sua pessoa uma distinção que provoca um certo respeito. Por sua vez, Choltitz, que encontra, pela primeira vez, um general francês, está surpreendido com o aspecto ”incrivelmente descontraído’’ do homem a quem vai apresentar a sua rendição. Nesse encontro histórico, Leclerc enverga o seu habitual uniforme de campanha, o mesmo dos combates de África e da Normandia: camisa sem gravata, calças de cotim, botins americanos. Nem condecorações, nem distintivos, apenas duas pequenas estrelas em cada platina.

Os dois homens discutem rapidamente os termos da capitulação, que Betz preparou. Depois, o jovem tenente estende ao general alemão a sua velha caneta Waterman, de aparo retráctil, com a qual fizera, e nos quais passara, pouco antes de rebentar a guerra, os seus exames de Direito. Nesse momento, Rol entra na sala. Furioso por não ter sido convidado para aquela cerimónia, da qual se sente um dos principais artífices, o chefe F.F.I, insiste junto de Leclerc para que o seu nome figure também no termo de rendição, ao lado do do chefe da 2.a D. B. Leclerc acaba por ceder. Os dois generais concordam então em mandar um oficial alemão e um francês levar a ordem de capitulação a cada um dos pontos de apoio que ainda resistem. Choltitz assinará essas ordens na estação de Montparnasse, onde se encontra o P. C. de Leclerc. É daí que partirão os emissários.

Quando Dietrich von Choltitz regressa ao half-track que o conduzirá à estação de Montparnasse, a multidão torna-se tão ameaçadora que Betz é forçado a puxar da pistola para proteger o prisioneiro. Deitando um olhar desdenhoso àquele que, horas antes, detinha nas mãos a sorte de Paris, o motorista do half-track fecha a porta blindada à retaguarda do general alemão, e exclama: ”Olha, o porcalhão ainda é ágil!” Da janela dum quarto da Prefecture, onde o encerraram, um homenzinho abatido vê desaparecer no boulevard do Palais, de pé no half-track, o vulto imóvel e hirto do general a quem fielmente serviu durante tanto tempo. Muitos anos passarão antes que Helmut Mayer volte a encontrar o general Von Choltitz. No boulevard do Palais, no cimo da torre do Relógio, bate a primeira badalada das 4 horas.

A notícia da capitulação do comandante do Gross Paris espalhou-se rapidamente pela cidade, onde a alegria popular não conhecia limites. Talvez nunca, na História do Mundo, uma cidade inteira tenha aberto o seu coração da forma como Paris o fez, nesse dia. Para o correspondente de guerra americano, Ernie Pyle, a euforia da capital francesa representa ”o momento mais belo, mais brilhante do nosso tempo”. (Pyle acrescentava que ”um G.I. que não se veja hoje com uma rapariga em cada braço não passa dum pobre diabo”.)

Pretender descrever com palavras o que Paris é hoje - escreverá o seu confrade Ed Ball -, é o mesmo que querer pintar a preto e branco um pôr do Sol no deserto.’’

Durante todo esse magnífico dia, reencontrando a sua chama interior, a sua generosidade e a sua energia, Paris amou, expandiu a sua felicidade, dançou e morreu também, com um entusiasmo delirante. Por toda a cidade saltavam as rolhas das garrafas de champanhe religiosamente guardadas, ao longo dos anos, para celebrar o dia da Libertação. Arrebatado por essa vaga que transbordava dos corações, um capelão protestante de Luisiana pensa viver ”a experiência mais excitante da sua vida”. Na Avenida da Grande-Armée, ao abrigar-se das balas sob um camião, o coronel David Bruce vê de repente um homem elegante rastejar até ele. Bruce, o chefe da O. S. S. para a Europa, observa, espantado, o cavalheiro distinto, o qual parecia sentir-se absolutamente à vontade, de barriga para baixo, na sarjeta. ”Desculpe-me, coronel - disse o homem -, permite-me que o convide para tomar uma taça de champanhe em minha casa?

   Entrou no seu hotel preferido, o Hotel de França e de Choiseul, a boca abriu-se-lhe de espanto. O gerente dirigia -se para ele, oferecendo-lhe uma bebida infinitamente mais rara’do que champanhe: uma garrafa de bourbon. Desenterrara-a naquele instante do esconderijo onde a ocultara nos fundos do seu jardim, quando os alemães tinham entrado em Fans. O bom do homem jurara a si próprio presentear com a preciosa garrafa o primeiro libertador que visse na sua frente.

Mas para a maior parte dos soldados extenuados e de barba por fazer da 2 a D. ti. e da 4a Divisão americana, nenhum presente era mais apreciado que o oferecimento para tomarem um banho. Charles Haley, soldado do 4 º Batalhão de Engenharia, banhou-se num apartamento da Avenida Léon-Bollée n° 2 onde uma mulher, as suas duas filhas e o filho esfregaram energicamente a sujidade acumulada no corpo do americano desde a Normandia. Este, de pé numa tina em cuecas, deixava-se lavar com a felicidade estampada no rosto. O capitão Jim Smith, duma companhia anticarros do 12.° Regimento, foi convidado para a mesma cerimónia por uma bonita loura. Não possuindo banheira ou chuveiro no seu pequeno apartamento, a rapariga instalou uma selha no meio da cozinha e pôs-se a esfregá-lo dos pés à cabeça, enquanto o capitão, julgando sonhar, ia emborcando uma garrafa de champanhe.

Para muitos, como para o cabo Philippe Grard, do regimento de sphis, os ”obrigados” dos parisienses ressoam ainda, passados vinte anos, nos seus ouvidos. Nos Campos Elíseos aquele oferece a um velhote, antigo combatente da Grande Guerra, um maço de cigarros Camel. ”Ah! rapazes - exclama o ancião - > tenho a certeza de que vocês há muito tempo não fumam autêntico tabaco! ’’ Dizendo estas palavras, puxou da algibeira um pequeno embrulho com a sua preciosa ração mensal e enrolou cuidadosamente quatro cigarros, com o tabaco de onça da ocupação, para Grard e os seus três companheiros.

Mas, mais ainda que com os presentes da multidão anónima, que surgiam a cada passo, os libertadores impressionavam-se e comoviam-se com aquela imensa gratidão dum povo inteiro. Havia tantos parisienses apertando nos seus braços o soldado do 12.º Regimento, George Mac Intyre, que este tinha a impressão, ao chegar à Praça da Étoile, de ter passado por um britador”. Mac Intyre, ’baixo, quase calvo e meio desdentado”, nas suas próprias palavras, saltou para terra, a fim de desentorpecer as pernas. Viu então um vulto romper a multidão que instantaneamente se juntara num círculo à sua volta. Era uma ”bela jovem de 18 anos”. Esta, durante alguns segundos, contemplou fixamente o americano sujo e barbado, enquanto, em redor, todos se calavam. Depois, subitamente, com a face inundada de felicidade, começou a gritar: Agora, o povo da França pode reerguer a cabeça! Que Deus abençoe os nossos libertadores! Viva a América! Viva a França!”, e atirou-se para os braços de Mac Intyre, beijando-lhe depois, desvairadamente, as mãos e caindo por fim de joelhos diante dele. Simultaneamente comovido e incomodado, o soldado ajudou a rapariga a erguer-se e apertou-a nos braços, enquanto a multidão aplaudia. Para o pequeno soldado de Nova Jersey, de olhos rasos de lágrimas, o gesto daquela jovem ”anulara instantaneamente todos os sofrimentos suportados durante a guerra”.

Na sua pequena residência, a senhora Jacques Jugeat, de 71 anos, viúva, só em Paris, ouvia ao longe os gritos de alegria vindos da rua. Para ela, esse dia seria como os outros, simplesmente mais um dia aguardando notícias do seu filho, do qual estava separada e sem novas havia quatro anos. Só quando pela terceira vez bateram à sua porta ela se decidiu a abri-la, vagamente inquieta. Na sua frente estava um rapaz alto, sorridente, envergando um estranho uniforme, estendendo-lhe um sobrescrito sujo e meio roto que havia muito ele trazia consigo, como se fora um talismã. Era uma carta do filho da senhora Jugeat. Quando a idosa senhora acabou de ler a folha de papel que o sobrescrito continha, começou a chorar baixinho. O tenente-coronel Dee Stone cumprira a sua promessa. Entregara finalmente à sua destinatária a carta que o seu vizinho lhe confiara dois anos antes, no dia da sua partida para a Europa. Porque sucedia que o oficial americano morava, perto de Nova Iorque, no mesmo prédio em que o filho daquela senhora.

Estranhas cenas verificavam-se nesse momento nas ruas de Paris, transformadas em gigantesco arraial. Com uma garrafa numa das mãos e uma espingarda na outra, os F.F.I, sobreexcitados perseguiam, pelos telhados, os franco-atiradores alemães. Nos Campos Elíseos, a fanfarra dos bombeiros alternava a execução do God Blesse America com a da Marselhesa’’. À volta dos pontos de apoio alemães que ainda resistiam, os soldados da 2.a D.B. e os F.F.L batiam-se e morriam juntos, enquanto, algumas ruas adiante, outros soldados, terminada a batalha, festejavam já a sua vitória. Colunas de prisioneiros alemães, alucinados e esfarrapados, começavam a desfilar pelas ruas. De instante a instante, soldados americanos e franceses, entregues à alegria de celebrarem a Libertação com os Parisienses, eram chamados para ”chegarem à esquina”, a fim de receberem a capitulação de alemães que recusavam render-se aos F.F.I.

O tenente-coronel Ken Downes e John Mowinckle, os dois americanos que acabavam de trazer ”Jade Amicol” para o seu pequeno convento, decidiram ir tomar uma bebida. O único local que lhes pareceu digno de os acolher nesse dia de glória era o bar do Hotel Crillon. Quando Downes entrou no célebre ”Palace”, sofreu tamanha surpresa que estremeceu. O átrio estava repleto de alemães, de mochila às costas e espingarda em bandoleira. Surpreendidos, viram entrar os dois americanos. Depois, um dos alemães destacou-se dos outros e avançou para eles. ”Vocês são americanos?”, perguntou. A resposta afirmativa de Downes, o alemão declarou: Então, rendemo-nos mas apenas a vocês e não - acrescentou com um gesto de desdém apontando a multidão, que se apinhava no exterior -, àquela gente.”

- Quantos são vocês? - perguntou Downes.

- 176 - respondeu o alemão.

Downes pareceu reflectir durante uns instantes. Em seguida, voltando-se para Mowinckle, disse: ”Tenente, ocupe-se destes prisioneiros.” Dizendo estas palavras, Downes saiu e partiu à descoberta dum bar mais acolhedor, enquanto Mowinckle, só com os seus 176 prisioneiros, decidia desarmá-los. Ordenou-lhes que depusessem as armas no vestiário e, terminada a operação, resolveu inspeccionar o hotel. No primeiro andar, deparou-se-lhe um salão enorme, ainda juncado dos restos do último almoço que os ocupantes do hotel tinham comido horas antes. Nesse instante, abriu-se uma porta no extremo da sala e Mowinckle viu aparecer um tenente francês, de bivaque encarnado. Os dois homens sorriram e correram, ao mesmo tempo, para o tesouro que tinham acabado de descobrir no meio do salão: uma caixa de garrafas de champanhe. Frente a frente ante a sua preciosa presa, os dois oficiais saudaram-se militarmente. ”Tenente Jean Biehlmann dp Serviço de Informações francês”, declarou o oficial de bivaque vermelho. Tenente John Mowinckle, do Serviço de Informações americano’’ respondeu o outro. ”Proponho dividirmos a caixa, seis garrafas para si seis garrafas para mim, disse o francês. Mowinckle baixou a cabeça afirmativamente e os dois jovens oficiais despejaram a caixa. Depois, com os braços carregados de garrafas, desceram, num passo solene, a escadaria do hotel, passaram ante os assustados prisioneiros e abandonaram o Crillon, de rosto risonho, como dois adolescentes que tivessem feito uma boa partida.

Durante toda a manhã, Yvette Boverat, o marido e a filha de ambos, Hélène, tinham percorrido Paris de bicicleta à procura ”dum regimento de boinas pretas”. Das portas de Orieães, onde tinham assistido à entrada das primeiras tropas em Paris, tinham regressado, pelo boulevard Saint-Michel, ao Largo do Hotel de Ville. Tinham finalmente conseguido identificar o regimento que procuravam. Era o 501.º Regimento de Carros de Combate, a unidade cujos tanques haviam tomado de assalto o Hotel Meurice.

Os Boverat tinham descoberto os soldados de boinas pretas na Praça do Châtelet. Mas nenhum destes, infelizmente, conhecia Maurice ou Raymond Boverat. Haviam-se encaminhado então para a ilha de Saint-Louis, onde, segundo lhes disseram, se encontravam mais elementos desse regimento. Durante uma hora, os Boverat tinham sulcado as ruas e as melas da pequena ilha. A todas as pessoas que se lhes deparavam faziam a mesma pergunta ansiosa: ”Viram alguns soldados de boinas pretas?” Finalmente, diante dum pequeno café, dois F.F.I., de sentinela junto a um jipe, revelaram à desanimada família que estava um soldado de boina preta a dormir num pátio ali perto. Hélène precipitou-se, à frente dos outros, para o largo portão que os soldados tinham indicado. Quando penetrou no pátio, deparou-se-lhe efectivamente um soldado adormecido num canto, à sombra, como um bem-aventurado. É alto de mais para ser um dos meus irmãos”, pensou a rapariga. Nesse instante, chegaram junto dela o pai e a mãe e, então, os três Boverat, sustendo a respiração, aproximaram-se do soldado adormecido e contemplaram-no. A senhora Boverat curvou-se sobre a face hirsuta, coberta por uma barba de três dias. Estendeu a mão e pousou-a sobre o ombro do rapaz. Era com esse gesto meigo que acordava todas as manhãs, quando ele era pequeno, o seu filho Maurice.

Maurice abriu os olhos e viu o rosto da irmã: ”Que bonita ela está!”, pensou. A rapariga observava-o e disse para consigo: ’’ Como ele cresceu!’’

O cabo Lucien Aublanc percorria a toda a velocidade a Rua Lafayette, conduzindo um velho autocarro. Era o marido da pequena Simone que, durante quatro anos, se mantivera na certeza de que ele estava vivo, pois, caso contrário, ”tê-lo-ia sentido”.

Lucien apoderara-se do estranho veículo nos jardins das Tulherias, onde os últimos combates mal tinham terminado naquele momento. Quando ele desembocou na estreita Rua Baudin, todos os habitantes se precipitaram para as janelas. Da sua varanda, Simone foi a primeira pessoa a ver que um soldado saía do autocarro de tejadilho cinzento. Alguém gritou: ”É um Leclerc!” E Simone, ao ouvir essas palavras, pensou simplesmente: ”É o Lucien!’’ Desceu as escadas a correr, como uma louca, e estacou, na rua, diante dum rapagão de boina preta e uniforme de campanha verde. Fitou-o de alto a baixo, observou as estranhas botas com grandes atacadores que ele usava e pensou, de tal modo estava surpreendida, que se tratava dum habitante doutro planeta. Lucien olhava para a sua mulher, que vestia uma saia preta com suspensórios e uma blusa azul, incapaz de proferir palavra. Depois, começou a sorrir, timidamente: ”Ah! Usas baton..” Simone sorriu por sua vez e perguntou: ”Porque é que cortaste a barba?” E, entre esses dois seres que se encontravam novamente ao fim de quatro anos de separação, fez-se um interminável silêncio.

À força de sorrir e de beijar todas as raparigas que se lançavam sobre ele, o capitão Vítor Vrabel, do 12.° Regimento americano, tinha os músculos da face doridos”. Na ponte da Concórdia, o jipe do capitão foi literalmente engolido pela multidão. O americano viu então, no meio da infinidade de rostos que se comprimiam à sua volta, o de uma jovem que o fitava numa espécie de êxtase. Uma interrogação absurda nasceu no espírito do oficial. ’’ Menina - perguntou ele -, o louro dos seus cabelos é verdadeiro?” A rapariga respondeu em inglês e começou, por seu turno, a fazer perguntas ao atraente americano coberto de pó e sorridente até às orelhas. ”Meu Deus, que novo ele é, e já capitão!”, pensava ela. O oficial propôs à linda parisiense irem os dois dançar. Ela ficou hesitante e por fim aceitou com a condição de a minha mãe nos acompanhar.” Deu-lhe então a sua morada, mas, ao ver na agenda a extensa lista de nomes que o oficial já ali anotara, Jacqueline Malissinet viu desvanecerem-se as suas esperanças: não tinha quaisquer probabilidades de tornar a ver o simpático americano. Contemplando com pena a jovem, enquanto ela se afastava por entre o povo, Vrabel disse para consigo: ”Então, é a guerra! As meninas sérias não saem com soldados.” Quando Jacqueline contou à mãe o sucedido, esta disse-lhe: Quem sabe? Pode ser que venhas a casar com ele...”

”Que ideia, mãe-replicou Jacqueline - , nunca mais torno a vê-lo!” Jacqueline estava enganada. E de tal forma que, dois anos depois, ela desposava realmente o capitão do sorriso franco 1.

Noutro bairro de Paris, no quarto andar dum prédio luxuoso da Avenida Mozart, outra parisiense, com um penteador pelos ombos, via também passar os
libertadores. Mas, à vista das colunas de half-tracks do comandante Massu, que trilhavam o asfalto sob as suas janelas, Antoinette Charbonnier chorava, ao mesmo tempo, todas as lágrimas do seu corpo. Para ela, a Libertação significava ”o fim do Mundo’’, o fim da sua vida com o capitão alemão Hans Werner, o belo oficial vitorioso de 1940, com o qual saboreara essa época para ela bendita: a Ocupação. Com um gesto brusco, Antoinette fechou as persianas e deitou-se sobre a cama, tentando esquecer o que tinha acabado de ver e procurando apenas guardar consigo as suas recordações.

Na semiobscuridade familiar desse quarto, em que cada móvel, cada bibelot

 

1 Quando deixou Paris, Vrabel baptizou o seu jipe ”Jacky”, em recordação do breve encontro que tivera na ponte da Concórdia. Em Novembro de 1944, após os combates de Hurtgen, o oficial conseguiu a sua única dispensa da guerra: três dias em Paris. Barbeado de fresco, envergando um uniforme impecável, foi bater à porta do n.º 86 da Rua Foli-Méricourt. Estava tão bem vestido que Jacqueline teve dificuldade em reconhecê-lo.

Casaram em 30 de Setembro de 1946, pouco antes do regresso de Vrabel aos Estados Unidos. Vrabel, hoje coronel reformado, e a sua mulher, Jacqueline, vivem, com os seus dois filhos, Michèle, de dezasseis anos, e John, de quinze, em Orieães, exactamente a 100 quilómetros da ponte onde se tinham encontrado no dia da Libertação de Paris.

 

lhe fazia lembrar Hans Werner, Antoinette esperava agora o tocar do telefone Mas nesse dia o encantador capitão não lhe telefonaria. Estendido na cama dum hotel de 4.a ordem da Rua Henri-Rochefort, onde ela o tinha escondido no principio da insurreição, fazendo-o passar por um resistente polaco procurado pela Gestapo, o alemão escutava atentamente o martelar surdo dos tanques libertadores que, também para ele, significava ”o fim do Mundo”’.

Da janela da grande sala onde se encontrava prisioneira, com todas as ”ratazanas cinzentas” que tinham ficado em Paris, a bonita secretária muniquense Cita Krebben ouvira igualmente o estrondo provocado pela passagem dos primeiros carros aliados. A jovem alemã vestira, para a última viagem, que devia levá-la para a Alemanha sob a protecção da Cruz Vermelha, o seu fato tailleur, em chantoung creme-claro. Conduzidas primeiramente ao Hotel Bristol, na Rua do Faubourg Saint-Honoré, Cita Krebben e as suas camaradas tinham sido finalmente detidas pelos F.F.I., que, nas suas malas, encontraram pratas, roupa do hotel e até revólveres. A caminho da prisão provisória onde agora se encontrava, Cita Krebben fora obrigada a passar pelo meio duma multidão quase tão furiosa como aquela que ameaçara matar o antigo comandante do Gross Paris. Entre todos os sinais de hostilidade que saudaram a rapariga à sua passagem, um houve que ela jamais esqueceria. Na esquina da Rua Jean-Mermoz uma mulher furiosa aproximou-se dela e começou a cuspir sobre o seu vestido. Era a sua costureira, a mesma que executara aquele tailleur que, agora, cobria de cuspidelas.

Ao ouvir o barulho dos tanques na rua, Cita aproximou-se da janela. Por cima do ombro dum guarda, viu passar os cinco Sherman, cobertos de poeira e de lama, que tinham parado à esquina da Rua do Faubourg Saint-Honoré com a Rua Jean-Mermoz. Cita pensou então, resignadamente, ao ver a multidão que acorria de todos os lados para aclamar os vencedores, que, ”desta vez, a guerra tinha realmente acabado.” Ia lendo os nomes inscritos nas torrinhas. Um deles chocou-a, pois tinha uma ressonância alemã. Cita perguntou de si para si por que razão um carro francês tinha o nome de Hartmann Willerkopf”.

 

                                        Capítulo nono

Mas ainda, em muitos locais, se trava renhida batalha. As guarnições dos pontos de apoio alemães às quais ainda não chegou a ordem de rendição de Choltitz respeitam o juramento feito ao Fiihrer. Batem-se encarniçadamente. Violentos combates travam-se em volta dos blockhaus que, lado a lado, os soldados da 2.a D.B. e os F.F.I, sitiam. Muitos homens vão ainda cair no decorrer desses derradeiros minutos, vítimas da sua coragem ou simplesmente da fatalidade. Na Avenida Kléber, em frente do vasto complexo de blockhaus e hotéis que rodeiam o Magestic, sede do Governo Militar que durante quatro anos

 

1 Antoinette Charbonnier e Hans Werner foram denunciados e detidos três meses depois da Libertação. Antoinette passou seis meses em Fresnes e Werner cerca de dois anos num campo de prisioneiros. Foi libertado em fins de 1946 e casaram um com o outro pouco tempo depois. Tiveram dois filhos, hoje com dezoito e quinze anos. Presentemente, moram os dois em Paris. Mas estão divorciados.

 

reinou sobre a França ocupada, uma granada arranca o pé dum homem de pequena estatura, de chapéu preto, que faz fogo ao lado dos soldados de Massu. É um comerciante suiço, chamado Fernand Zacker. De manhã, dissera ele a sua mulher: ”Marthe, vou também libertar Paris.” Horas mais tarde, Marthe chegará na sua bicicleta à Avenida Kléber e pôr-se-á à procura, no meio dos destroços e dos cadáveres que juncam a avenida, do pé do seu marido. Quando, por fim, ela o encontrar, embrulhá-lo-á cuidadosamente e guardá-lo-á na sua mala de mão. Porque, na sola do sapato, junto à biqueira, encontra-se toda a fortuna do casal: vinte moedas de ouro.

Instantes mais tarde, a fim de proteger do ódio da multidão os primeiros prisioneiros do Hotel Magestic, o comandante Henri de Mirambeau e alguns soldados de infantaria do Regimento de Marcha do Chade conduzem-nos para o cinema Empire, na Avenida Wagram. À cabeça da pequena coluna caminha, de braços erguidos, o comandante S. S. que momentos antes saíra do Magestic, arvorando uma bandeira branca, para apresentar a sua rendição a Mirambeau. De repente, quando os prisioneiros e a sua escolta entram na Avenida Wagram, o oficial S. S. baixa os braços e faz surgir da manga uma granada, que atira sobre Mirambeau.

Duma janela do Ministério da Saúde, na Praça da Étoile, um espectador horrorizado observa a cena. É Norman Lewis, o civil americano que tinha acorrido, sobre as suas muletas, para trazer aos seus amigos a bandeira constelada que escondera para a Libertação. Vê, assim, Mirambeau cair por terra num charco de sangue, enquanto os infantes abrem fogo sobre os prisioneiros. O tiroteio rebenta imediatamente, de todos os lados. O antigo ”Sammy” de 1917 iria pagar bem caro o seu desejo de ver Paris libertar-se. Uma rajada de balas perdidas vem embater contra a janela à qual ele se encontra, e mata-o instantaneamente.

Na outra margem do Sena, escondidos atrás dum plátano do Cais de Orsay, o soldado Léandre Medori, o franzino camponês corso que achara Paris ”tão grande’’, e o seu camarada Jean Ferracci, que distribuíra a dezenas de parisienses o número do telefone de sua irmã, vigiam, angustiados, as janelas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, donde parte um fogo mortífero. De cada vez que espreitam, os tiros abatem-se sobre eles e as balas fazem saltar pedaços de casca do plátano que os protege. Os infantes que abandonam os seus esconderijos são imediatamente ceifados. ”Aquilo era - recorda Medori -, como nos jogos da malha, da festa de Santa Maria-de-Lota.” Em dada altura, o pequeno corso ouve um barulho abafado atrás de si. Jean Ferracci tinha sido abatido, sem soltar um gemido. Medori ouve então o guinchar das lagartas dos carros que vêm render os soldados ”que caem como tordos”. Vê um Sherman que rodopia mesmo na sua frente, para mudar de direcção, e que avança depois contra o gradeamento do Ministério dos Negócios Estrangeiros. É o ”Saint-Cyr’’, do alferes Jean Bureau. Imediatamente, uma verdadeira chuva de pequenas granadas, cinzentas e redondas como Medori jamais vira, abate-se sobre o carro. Bureau telefonara momentos antes a seus pais, dum prédio vizinho. ”Pai - dissera ele com orgulho -, vou atacar o Ministério dos Negócios Estrangeiros!” Segundos depois, Medori vê uma chama brotar duma janela. A torrinha do carro que tem na frente salta no ar, num vulcão de faíscas. Um tiro de bazuca acaba de destruir o ”Saint-Cyr”. Jean Bureau e os seus quatro camaradas rolam no fundo do seu sarcófago de aço.

Atrás do parapeito da janela, coberto de sacos de areia, donde faz fogo sobre os assaltantes com a sua metralhadora, o alemão Willy Werner ouve a voz do oficial da Luftwaffe que comanda o ponto de apoio dos Negócios Estrangeiros O oficial participa aos seus homens que acaba de recusar render-se. E declara estar convencido de ter exprimido, com esse gesto, a vontade de todos os defensores Willv Werner não ousa protestar. Mas assim que o seu chefe deixa a sala, ele abandona a metralhadora, enfia pelos corredores e desce à cave para aí beber a garrafa de conhaque que traz na algibeira e ”tranquilamente aguardar o fim da guerra”

No lado oposto do Ministério dos Negócios Estrangeiros, defronte da Câmara dos Deputados, onde as bazucas alemãs acabam de pulverizar dois Sherman do 12. de Couracem», um simples cabo prossegue numa pequena guerra solitária Serge Geoffroy cumpriu a promessa que fizera dois dias antes aos seus companheiros do ”Marie Jill”, o carro lança-obuses que ficara avariado e que a divisão abandonara num pomar da Normandia. Geoffroy tinha-se servido de atalhos inesperados e encurtara o caminho. Como se fora um navio fantasma, o ”Marie Jill” entrara isolado em Paris, à frente de todas as colunas. Agora, de Colt em punho, o bivaque vermelho enfiado na cabeça, como uma crista de galo, Geoffroy atravessa a pé a ponte da Concórdia e marcha sobre a Câmara dos Deputados ”para ir matar alemães”. De repente, Geoffroy repara num vulto que agita um grande lenço branco e se dirige para ele. É um oficial da Wehrmacht. Quando os dois homens estão separados apenas por uma dezena de metros, um obus passa assobiando e desfaz um candeeiro de iluminação pública que havia entre ambos. Quando o fumo que por instantes os envolveu se dissipa, o alemão grita Kamarad, e faz sinal ao francês para que o siga. Pouco depois chegam, juntos, ao pé do muro que rodeia a Câmara. O alemão aponta para o cimo do muro e faz compreender a Geoffroy que é necessário escalá-lo, pois, lá dentro, muitos alemães fazer Kamarad”. O porteiro que está à porta do prédio situado à esquina da Rua de Bourgogne com o boulevard Saint-Germain vê, então, a incompreensível e pasmosa cena dum francês de bivaque encarnado fazer com as mãos um apoio para o pé dum alemão que, com um impulso, se iça para o cimo da vedação. Este estende então o braço ao cabo e ajuda-o por sua vez a içar-se. Os dois homens saltam depois para o jardim e o alemão larga a correr em direcção a uma porta envidraçada. ”Caramba -pensa Geoffroy - , meti-me num bonito sarilho!” Com uma granada na mão esquerda e o Colt na direita, avança pelo mesmo caminho. Vê, para lá da porta de vidro, um cadáver caído no chão. Quando penetra no edifício, de dedo no gatilho do revólver, deparam-se-lhe cerca de trinta oficiais, de pé ao longo dum balcão. Sem o saber, Geoffroy acaba de entrar na cantina da Câmara dos Deputados. Vê então um coronel avançar para ele. Traz, numa das mãos, um copo e, na outra, uma garrafa de ”Martini”. O alemão enche o copo até acima, bate com os calcanhares, e estende-o ao francês. Geoffroy coloca a sua granada em cima do balcão e pega no copo. Jamais recusou um copo em toda a sua vida. Despeja-o dum trago e, em seguida, grita: ”Deponham as armas! Todos lá para fora!” Enquanto os alemães executam as ordens, Geoffroy, com o rosto inundado de alegria, bebe mais um copo, depois um terceiro. A garrafa de ”Martini” fica rapidamente vazia. Assim capitula o principal centro de resistência da Câmara dos Deputados.

Em frente da Escola Militar, o cabo Pierre Lefèvre e o soldado de l.a classe Étienne Kraft, dois motoristas de autometralhadoras que tinham lançado os seus veículos, a toda a velocidade, sob os arcos da Torre Eiffel, para qualquer deles conquistar a honra de ser o primeiro a fazê-lo, disputam agora uma nova e perigosa competição. No portão da Escola Militar está um canhão alemã ticarros de 88 mm, assestado sobre a Torre Eiffel. As duas autometralha embrenham-se por ambos os lados do arvoredo do Champ de Mars, descemdo em vertiginosa corrida na Praça Joffre e, passando como um furacão diante da Escola, abrem fogo à queima-roupa, com todas as armas ao mesmo tempo. carrocei repete-se durante vários minutos e os serventes do canhão são abí um a um. O 88 faz fogo uma última vez e depois queda-se silencioso. Com munições quase esgotadas, as tripulações das duas autometralhadoras então, enquanto os seus veículos param, os primeiros tanques Sherman fazem sua aparição.

Duma janela do primeiro andar da Escola Militar, Bernardt Blache, dwebel cujos homens ”estavam a ser assados como chouriços” seis dias a defronte da Prefecture, vê os vultos aterradores dos carros avançarem lentamente pelo grande terreiro do Champ de Mars. Deitado sobre um cobertor por detrás da sua metralhadora, Blache escuta os gemidos do seu companheiro do lado, a < um estilhaço de obus acaba de arrancar um braço. Os primeiros Sherman a fogo sobre a extensa fachada. O sopro dum obus, que rebenta numa sala viz arranca o capacete da cabeça do alemão. Dum momento para o outro, ”a g torna-se num inferno’ para o berlinense de 24 anos que entrara em Paris anos antes, com as tropas da Wehrmacht vitoriosas.

Aterrado pelo estrondo da batalha que se trava à volta da Escola Militar, cabo Walter Hollesch, que, não longe daí, ocupa com a sua secção o Mini dos C. T. T., reúne os seus homens e comunica-lhes que está decidido a render-se Para executar essa formalidade, Hollesch descobre um meio astucioso. Parte dro da caixa de alarme de incêndios do Ministério e, quando ouve a voz do bombeiro de serviço, declara: ”O Ministério dos C.T.T. está pronto a entregar-se.’’

Bernardt Blache despeja o último pente da sua metralhadora sobre o carro acaba de parar junto ao portão de entrada, mas as balas ricocheteiam só blindagem, produzindo faíscas. Desanimado, o alemão levanta-se e abandona a sala. No mesmo instante, sente o sobrado tremer sob os seus pés. E vê, através da janela do corredor, um Sherman irromper no pátio. Blache recordar-se-á toda a sua vida do nome do carro, inscrito na torrinha coberta de entulho. Charm ”Verdun”. Perante essa visão o alemão decide descer ao rés-do-chão e Minutos mais tarde, já se encontra encerrado, com uma dezena de camas numa pequena divisão cuja janela deita para o largo. Um soldado entra e ^ Hitler Kaput e faz sair os prisioneiros, um a um, pela janela. Mas, de cada vez que um alemão transpõe o parapeito e salta para o passeio, Blache ouve uma rajada de pistola-metralhadora. Treme-lhe o corpo, pois está convencido que os franceses estão a fuzilar os seus prisioneiros. Do passeio fronteiro, Étienne Kraft vê os alemães caírem uns a seguir aos outros, abatidos à queima-roupa pelos civis. Kraft larga a correr exclamando: ”Parem! Parem! São ’meus’ prisioneiros!” Mas já, sobre o passeio, há oito corpos contorcidos. agora a vez de Bernardt Blache passar as pernas por cima do parapeito e para o exterior. Numa fracção de segundo, o alemão compreende que vai bem Mas, no preciso instante em que vai transpor a janela, ouve uma voz algumas palavras, cujo significado ele conhece: ” P...! P...!, Cessar-fogo!’’

Soldados de infantaria do Regimento do Chade surgem então, interpondo-se entre os civis e os prisioneiros.

Étienne Kraft penetra no primeiro prédio que encontra, bate a uma porta e pede licença para telefonar. Quando atendem a chamada, reconhece a voz do pai

- Bom dia, pai, é o Étienne -diz ele. ’

- Étienne?

- Sim, o teu filho Étienne.

- Não pode ser...

Nessa altura, Kraft ouve uma voz por detrás do pai perguntar- ”Quem é?” e este responder-lhe: ”É o Étienne.” No auscultador ressoam exclamações’ fragmentos de frases, e, em dado momento, Kraft ouve a voz da mãe perguntar-lhe :

- Meu querido, que posto tens?

- 2.a classe, mãe!

A mãe responde com admiração: ”2.a classe?” ”Sim, mas isso quer dizer simples soldado, Amélie!’’, explica o pai, pegando novamente no telefone.

- Pai, põe o champanhe a gelar!

- Étienne, Étienne, há dezoito meses que o champanhe está à tua espera! Quase no mesmo instante, na Praça da Étoile, um velhote apeia-se da sua bicicleta e olha, surpreendido, para um pequeno avião que passa vertiginosamente a um metro da sua cabeça e vai depois aterrar à entrada da Avenida da Grande-Armée. Da carlinga vê descer um rapaz alto, com galões de capitão. ”Hubert!’’, exclama o velhote, transtornado. Acaba de reconhecer o seu filho, o capitão Hubert Rousselier, do qual estava sem notícias havia quatro anos.

 

                                                Capítulo décimo

À medida que, lentamente, se desvaneciam os ecos da batalha nas ruas inundadas de sol e de alegria, ”os ocupantes de Paris” desfilaram uma última vez, por entre os gritos, os cânticos e as aclamações que saudavam os libertadores. À vista dos rebanhos de soldados, surpresos e aterrados, que, de cada ponto de apoio, se dirigiam para o seu derradeiro destino parisiense - um quartel de bombeiros, as caves da Direcção-Geral de Polícia, o átrio da estação de Montparnasse -, o povo de Paris mal conseguia conter o seu ódio. Como se pretendesse apagar duma só vez a lembrança de quatro anos de sofrimento, de rancor e de medo, homens e mulheres atiravam-se, por toda a parte, sobre os soldados de Choltitz, massacrando-os com pancadas, cobrindo-os de insultos e de escarros, por vezes até matando-os.

Alguns alemães, como um tenente dos Panzer do quartel da Praça da República, preferiram dar um tiro nos miolos a submeterem-se à vingança da multidão em fúria. Outros, como o fez o soldado Georg Kilber, do 3.° Regimento de Segurança, vestiram-se à paisana e conseguiram juntar-se à multidão, com quem aclamaram os libertadores. Outros, ainda, serviram-se de astuciosos estratagemas. O capitão Von Zigesar-Beines, o oficial que dois dias antes estava prisioneiro dos F.F.I, do Grand Palais, conseguiu alcançar o hospital americano de Neuilly, enfiou um pijama e instalou-se num quarto de doente ”para aí aguardar sossegadamente a chegada dos americanos”.

Mas, no conjunto, foram bem poucos os alemães que conseguiram subtrair-se aos dolorosos e humilhantes momentos que o próprio Dietrich von Choltitz vivera antes na Rua de Rivoli.

Para o Feldwebel Ewin Conrad e o soldado Fritz Gottschalk, que diariamente, ao meio-dia, durante meses, tinham desfilado pelos Campos Elíseos, atrás dum pavilhão com a cruz gamada, aquela última parada constituía ”uma cruel reviravolta das coisas”. Empurrado, esbofeteado, com o vestuário em farrapos, Gottschalk avança pela Rua de Rivoli crivado de cuspidelas da multidão.

Alguns metros à sua retaguarda, outro Feldwebel, Werner Nix, de mãos na nuca, cambaleia sob os murros e pancadas que se abatem, de todos os lados, sobre ele. No boulevard Saint-Germain, um Unteroffizier distribui cigarros aos F.F.I, que escoltam as colunas e grita com toda a força dos pulmões: Não sou alemão, sou bávaro!” Num camião que rola ao longo dos muros do Luna Parque, o Feldwebel Paul Schel contempla melancolicamente as barracas da feira onde passara momentos tão agradáveis com a sua generosa companheira francesa. Nesse instante, ressoa um tiro e Schel sente uma queimadura na perna, onde qualquer coisa húmida e quente escorre para dentro da bota. Uma bala perdida atingiu-o. Ernst Ebner, o sargento de polícia militar que se embebedara cinco dias antes, festejando o seu trigésimo oitavo aniversário, ouve o camarada que caminha ao lado dele exclamar: ”Ao menos, a porcaria desta guerra acabou” e, logo a seguir, levar a mão ao peito com uma careta de dor. Uma bala atravessara-lhe o coração. Na Praça do Châtelet, ao Gefreiter Paul Seidel, estafeta do estado-maior, depara-se-lhe um espectáculo que considera mais desagradável ainda que a sua própria caminhada debaixo dos murros da multidão. Duma pequena rua, vê surgir um grupo de mulheres em lágrimas, nuas da cintura para cima, com os seios pintalgados de cruzes gamadas e o crânio rapado. Nos letreiros que lhes pendem do pescoço, Seidel lê: Fui prostituta com os alemães.’’

Por vezes, o ”ódio ao boche’’ não poupa sequer os feridos. Numa ambulância que se dirige para o Hospital Saint-Antoine, um oficial alemão, gravemente ferido, sente em dada altura uma mão aproximar-se do seu rosto. É a de Jacques d’Estienne, o artilheiro do carro ”Laffaux”. D’Estienne acaba de reparar no alemão deitado a seu lado no veículo. Levado por uma raiva súbita, consegue, se bem que esteja meio paralisado, soerguer-se, agarrar com a mão do único braço válido a garganta do alemão, e estrangulá-lo. Ao recolher o braço, arranca a Cruz de Ferro do oficial e mete-a na algibeira. O seu gesto foi tão rápido que o sacerdote-enfermeiro que se encontra na ambulância apenas teve tempo para gritar: ”Meu filho!”1

 

1 Pouco depois, a Cruz de Ferro do oficial que ele acabara de estrangular quase custou a vida a Jacques d’Estienne. Quando este chegou à sala de observações do Hospital Saint-Antoine, uma enfermeira esvaziou-lhe as algibeiras e colocou a carteira e a Cruz de Ferro sobre o peito dele. Havia tantos feridos na sala, que os cirurgiões decidiram ocupar-se primeiro dos franceses. D’Estienne lembra-se de ter ouvido a voz do médico que, ao passar diante das macas, ia dizendo: ’’ Boche... Boche... Boche...” Quando chegou diante da de d’Estienne, o cirurgião, ao ver a Cruz de Ferro sobre o seu peito, disse novamente ”Boche...” e continuou a andar. Ao ouvir a palavra, d’Estienne soltou um uivo de animal selvagem e gritou: ”Eu, Boche!? Você é maluco...!” e desmaiou. Acordará uma hora mais tarde, depois de os cirurgiões lhe terem extraído 25 dos 37 estilhaços de granada que lhe tinham penetrado pelas costas, durante o ataque ao Hotel Meurice.

 

Mas, dos 20000 alemães que passaram nesse dia pelas ruas de Paris, aqueles que sentiram mais cruelmente a humilhação desse último desfile foram os poucos oficiais de estado-maior do Gross Paris. Os Parisienses encarniçaram-se com uma violência especial sobre esses homens, que encarnavam a tirania na/i. Empurrando os soldados e os F.F.I, que os escoltavam, havia mulheres que se atiravam sobre eles, os arranhavam e cobriam de escarros. Os homens esmurravam-nos, davam-lhes pontapés e coronhadas com as espingardas. Em breve a rua estava juncada dos seus corpos, que a multidão espezinhava.

No meio da extensa coluna, através da Rua de Rivoli, segue o alto vulto do conde Dankvart von Arnim. Na véspera a noite, antes de adormecer, na sua última noite de liberdade, Arnim leu a narrativa do massacre do dia de S. Bartolomeu. Está certo de que vai morrer. Lúcido e resignado, pensa: ”Vou pagar por todos os crimes dos meus compatriotas.” Nesses minutos decisivos, o jovem ajudante-de-campo do general Von Choltitz decide lembrar-se apenas de coisas agradáveis. Então, no meio dessa multidão desenfreada que acaba de lhe arrancar o bornal, revê a sua velha mansão familiar do Brandeburgo com os 5000 hectares de terras, as charnecas e bosques onde caçava ao veado e ao javali, quando era criança. Quando passava diante da fachada cinzenta do Ministério das Finanças, Arnim vê, de repente, um civil armado com um revólver atirar-se, berrando, sobre o oficial que marcha na sua frente, ao lado do seu amigo Ernst von Bressensdorf. Em cabelo e de mãos na nuca, o capitão Otto Kayser, o antigo professor de Colónia, que lera nas paredes de Paris o estribilho ”A cada um, o seu boche”, tenta repelir o agressor. Mas, com o rosto deformado pelo ódio, o paisano agarra-se a ele como uma sanguessuga, ergue a arma, encosta-a à fonte do alemão e dispara. Horrorizado, Arnim tropeça no corpo de Kayser, que rola no solo, e prossegue o seu caminho. Daqui a pouco é a minha vez”, pensa.

Para alguns franceses também, esse dia de libertação é o do ajuste de contas. Os ”colaboracionistas” que não tinham tido a prudência ou a possibilidade de fugir nos vagões do ocupante, foram presos às dezenas e muitos deles executados sumariamente. Os ”atiradores de telhado”, que a sinistra Milícia de Vichy deixara atrás dela com o objectivo de semear o pânico entre a população, são cercados uns após outros, capturados e imediatamente executados em público. Ao tenente-coronel Stone, ao atravessar a Praça da Concórdia onde, trinta e cinco anos antes, vira passar Woodrow Wilson a caminho de Versalhes para assinar um tratado que devia assegurar ao Mundo uma paz eterna, deparou-se-lhe uma massa sangrenta sobre o pavimento da rua. Do telhado do Hotel Crillon, esse fanático, explicaram os F.F.I, ao americano,
tinha estado a fazer fogo sobre a multidão.

Essa ”guerra de telhado” foi, desgraçadamente, a causa de bastantes equívocos, que enlutaram tragicamente esse dia inesquecível. Da sua varanda da Avenida de Itália, Max Goa, o dentista que cultivava rabanetes para poder oferecer alimentos frescos aos judeus e aos aviadores aliados que ocultava em sua casa, tinha levado todo o dia a ver passar os carros de Leclerc. Como inúmeros parisienses, Max e Madeleine Goa decidiram abrir a sua única garrafa de champanhe, para celebrar essa libertação por que tão alvoroçadamente tinham esperado. Nesse momento, do telhado fronteiro, partiram tiros. Max precipitou-se para a varanda e, pegando no seu óculo de alcance, pôs-se a perscrutar os telhados vizinhos. Na rua, alguém apontou para a pequena varanda onde acabava de surgir esse vulto armado dum objecto negro e começou a gritar: ”É ele, é ele!” Ao ouvirem essas palavras, três F.F.I, precipitaram-se para o prédio e irromperam pela casa dos Goa. Apoderando-se do dentista e da sua mulher, os F.F.I, empurraram-nos pelas escadas abaixo e atiraram-nos para a rua, onde a populaça ululante os agrediu furiosamente. Levados para a Maine do XIII bairro, para serem ”julgados por um tribunal do povo”, Max e Madeleine Goa negaram com todas as suas forças o crime insensato que lhes era atribuído. Mas, na rua, a multidão sedenta de vingança e de sangue não cessava de gritar: ”A morte!” Max Goa foi-lhe entregue -e então algo de horrível sucedeu. Mãos frementes de ódio cravaram-se no inocente dentista e atiraram-no para debaixo das lagartas dum Sherman que passava a toda a velocidade. Entretanto, após um simulacro de julgamento, um pelotão de execução abatia Madeleine Goa. No dia seguinte, o corpo entumescido e sangrento da jovem resistente que tantos judeus e aviadores tinha salvo será lançado para a entrada do prédio onde morava, com um letreiro ao peito: ”Traidora à Pátria.”1

 

                               Capítulo décimo primeiro

Instalado num Hotchkiss preto, descoberto, Charles de Gaulle rola pela estrada a caminho da sua entrevista com a História. A medida que se desfiam os últimos quilómetros que o separam da capital, ele está simultaneamente ’preso de emoção e banhado em serenidade”. Sem que os Aliados o saibam, sem o consentimento deles, a bordo dum automóvel francês conduzido por um motorista francês, De Gaulle penetra na cidade onde o tiroteio prossegue. Entra pelas portas que, numa noite de Junho de 1940, deixara atrás de si, no caos da derrota. Instantes depois, assistirá ao eclodir dessa Libertação que terá sido, como sonhara, ”um assunto exclusivamente francês”.

Precedido por uma autometralhadora da 2.a D.B. o Hotchkiss preto toma a Avenida de Orleães, repleta duma ”multidão entusiástica” de parisienses que, finalmente, conhecem o verdadeiro rosto daquele que, durante quatro anos, nas trevas da ocupação, encarnou o destino eterno da sua pátria.

Mais adiante, no coração de Paris, na outra margem do Sena, diante da grande fachada coberta de estátuas do ”Hotel de Ville”, um pequeno grupo de homens prepara-se, no mesmo instante, para marcar com uma recepção triunfal essa entrada oficial. São os chefes da insurreição, que aguardam a chegada do

 

1 Os três F.F.I, que prenderam os Goa eram na realidade criminosos de direito comum, evadidos da prisão da Santé. Eles próprios foram mais tarde presos e submetidos a julgamento. A trágica morte dos Goa foi um exemplo, entre muitos outros, do espírito de vingança e de ”justiça popular” que enlutou por momentos o dia da Libertação e as semanas que se seguiram. Esse espírito de vingança manifestou-se nas inúmeras execuções sumárias ordenadas pela justiça precipitada de improvisados tribunais e por actos de vingança pessoais ou políticos que não tinham menor relação com a ocupação propriamente dita. Instituindo os ”tribunais do povo”, o Partido Comunista foi, muitas vezes, responsável por esses crimes. No entanto, é de justiça reconhecer que também muitos actos perpretados em nome do Partido Comunista, ou por aqueles que declaravam agir em nome dele, o foram sem o seu acordo ou sem o seu conhecimento.

 

general De Gaulle ” para o receber em Paris libertada”. Mas esperarão por ele em vão. O Hotchkiss preto não toma o caminho dos Paços do Concelho. Rodeado por uma multidão delirante que aclama com loucura o seu chefe, bifurca pela Avenida do Maine e segue noutra direcção. Quando, por fim, estaca em frente do P. C de Leclerc, o grande relógio da estação de Montparnasse marca 4 horas e meia Terminara o longo exílio de Charles de Gaulle.

Ao penetrar na gare, sempre envolto nas aclamações da multidão, De Gaulle repara num vulto familiar. É o de seu filho Philippe, que, portador duma das quinze ordens de rendição que Choltitz acaba de assinar, se dirige, na companhia dum oficial da Wehrmacht, para a Câmara dos Deputados, onde ainda resistem alguns alemães.

No cais da via 21, onde Leclerc o aguarda, De Gaulle toma conhecimento do termo de capitulação. Ao ler a primeira linha a expressão endurece-lhe subitamente. Numa voz glacial faz notar a Leclerc que o nome de Rol não devia figurar no documento. Sendo Leclerc o oficial de maior patente, é apenas a ele, como comandante de todas as forças militares francesas, que compete receber a capitulação do general alemão. Para De Gaulle, a manobra é nítida: os comunistas vão procurar chamar a eles o título de libertadores de Paris. Título esse que De Gaulle não tem a menor intenção de lhes ceder. Já, nessa mesma manhã, numa proclamação saudando a libertação de Paris, o C.N.R., a assembleia política da Resistência, passando em silêncio o nome de De Gaulle e o seu Governo, se exprimira ”em nome da nação francesa”, ao que o general lhe contesta o direito. Essa proclamação surgira-lhe como um desafio à sua própria autoridade. E a esse desafio De Gaulle vai sem demora responder abertamente.

Antes de sair da estação, aperta a mão a alguns oficiais do estado-maior de Leclerc que ali se encontram. De repente, surge na sua frente um homem de boina. De Gaulle inspecciona com o olhar essa estranha figura, curiosamente enfarpelada num velho uniforme coçado. É Rol. Ao coronel F. F. I., De Gaulle parece hesitar. Mas logo este lhe estende a mão, na extremidade dum braço enorme e aperta calorosamente a sua’.

Passando sob um grande letreiro, ”Bagagens à chegada”, De Gaulle sai então da gare e sobe para o seu Hotchkiss. Sempre precedido por uma autometralhadora, o pequeno cortejo põe-se em marcha e dirige-se para o edifício donde, na noite de 10 de Junho de 1940, Charles de Gaulle partira para a sua longa viagem: o Ministério da Guerra.

No boulevard Raspail soam tiros à passagem do cortejo. Enquanto a sua escolta riposta, o general desce do veículo para presenciar os breves duelos que se travam à sua volta. Impassível, de Craven na boca, a esguia silhueta mantém-se de pé, sob a chuva de balas que assobiam e ricocheteiam à sua volta. Ao ouvir uma bala embater na mala traseira do automóvel, De Gaulle volta-se para Geoffroy de Courcel, que saíra de Paris com ele em Junho de 1940, e exclama

 

1 À excepção da referência ao nome de Rol, De Gaulle tinha no entanto todas as razões para se sentir satisfeito com a maneira como o termo de rendição estava redigido. Leclerc respeitara fielmente as suas instruções. Tinha aceitado a rendição de Choltitz não em nome do comando aliado, do qual dependia, mas sim em nome do Governo Provisório da República Francesa. Foi este o único caso, após o desembarque na Normandia, em que uma capitulação importante foi negociada unilateralmente por um dos aliados.

 

ironicamente: ”Pois é verdade, Courcel, ao menos regressamos em condições bem melhores do que aquelas em que partimos!’’

Finalmente, num passo lento e solene, o chefe da França Livre sobe os degraus da entrada das instalações do Ministério da Guerra, donde os seus batedores tinham acabado de retirar, à pressa, os bustos do marechal Pétain e de expulsar alguns membros do C. O. M. A. C. que tinham tido a ingenuidade de ocupar esse edifício antes da sua chegada.

De Gaulle encontra esses locais veneráveis tal como os tinha deixado. O mesmo porteiro que o cumprimentara à partida recebe-o agora. O vestíbulo, a escadaria, as armaduras decorando as salas, estão como antes. No gabinete do ministro, onde entra, não há um móvel, um tapete, um reposteiro que tenham sido mudados ou deslocados. Sobre a secretária, o telefone está no mesmo lugar. Por cima dos botões de chamada estão inscritos os mesmos nomes. E contudo, pensa De Gaulle, ”gigantescos acontecimentos transformaram a face do Mundo. O nosso exército foi aniquilado. A França quase soçobrou” ’.

Efectivamente, nada falta nos edifícios da República - excepto o Estado. Ao regressar ’’ a casa’’, De Gaulle decide começar por restabelecê-lo.

 

                                   Capítulo décimo segundo

Munidos de pequenas folhas de papel assinadas pelo punho do general Von Choltitz, os oficiais de estado-maior do Gross Parts, aos pares com os seus vencedores franceses, saem da estação de Montparnasse para levar as ordens de rendição aos pontos de apoio que ainda resistem.

Ao elegante coronel Jay cabe uma fortaleza situada num bairro que ele, de modo algum, havia jamais frequentado: o quartel Prince-Eugène, na Praça da República. Tendo-lhe confessado o seu companheiro francês que ”estivera ausente durante muito tempo’’, é portanto o próprio Jay quem conduz a pequena expedição. Chegados à Praça da República, Jay desdobra uma toalha branca e vai entregar ao comandante da fortaleza a ordem de Choltitz. Mas o oficial recusa-se a depor as armas. Decidiu, explica, resistir até à chegada das duas divisões blindadas S. S. que estão a caminho de Paris. Jay terá a maior dificuldade em convencê-lo de que esses reforços jamais chegarão, e que os F.F.I, vão dentro em pouco subjugar o quartel e ”fazer um massacre”.

O Hauptmann Otto Nietzki, aprisionado nas Tulherias, é enviado à Kommandantur de Neuilly. De repente, um homem enraivecido salta para o seu jipe e, apontando para Nietzki com um dedo, começa a gritar: ”É ele, é ele! Foi quem matou a minha mulher!’’ Só graças à intervenção do oficial americano que acompanha o alemão este não é despedaçado pelo povo enfurecido.

A maior parte dos famosos Stutzpunkte depõe rapidamente as armas. E então, pela primeira vez desde há cinco dias, a fuzilaria quase deixa de se fazer ouvir por toda a parte.

Na Rua de Anjou, na penumbra dum grande salão do consulado da Suécia, um alemão derreado procede, pela segunda vez em 24 horas, a uma rendição

 

1 ”Memórias’’, do general De Gaulle. Vol. II, A Unidade, pág. 306.

 

solitária. É Bobby Bender, o misterioso agente do Abwehr. Ele levanta-se, dirige-se a um cabide onde está pendurado o seu impermeável e tira dele um revólver, vindo para junto de Lorrain Cruse, perante quem se põe em sentido. Desta vez, o jovem adjunto de Chaban-Delmas aceita o revólver.

Pelo fim do dia, apenas um ponto de apoio resiste ainda, precisamente aquele que foi o primeiro a abrir fogo: o Palácio do Luxemburgo. Negra de fumo, com as fachadas crivadas de estilhaços de obuses, a fortaleza do coronel Von Berg resiste sempre e os S. S. que a ocupam recusam-se a ceder um palmo de terreno. A fim de conseguir que eles se entreguem, o general Von Choltitz nomeia, para esse efeito, o seu próprio chefe de estado-maior, o coronel Von Unger, que dois oficiais franceses, o coronel Jean Crépin, comandante de artilharia da 2.a D.B., e o capitão André Righini, acompanham. Recebidos por três S. S. de uniforme preto, que lhes enterram o cano duma pistola-metralhadora entre as costelas, o alemão e os franceses penetram sob a cúpula de oito faces e são conduzidos ao grande salão de lambris do rés-de-chão. Aí, ao coronel Crépin depara-se-lhe um espectáculo de desolação que jamais esquecerá. O soalho está juncado de capacetes, de cartuchos, de caixas de munições esventradas; os reposteiros e as tapeçarias estão arrancados e rasgados. Sobre o grande tapete oriental, no centro do salão, os mortos e os moribundos amontoam-se de qualquer maneira. O coronel Von Berg, de monóculo, Cruz de Ferro ao pescoço, ouve em silêncio a leitura da ordem de que Unger é portador. Nesse momento, alguns jovens oficiais S. S. em fato de combate e armados de pistolas-metralhadoras surgem na sala e ameaçam executar o coronel Von Berg, e com ele os oficiais do seu estado-maior, os franceses e todos aqueles que pretendam deixar de combater.

Pelas janelas que deitam para os jardins, Crépin e Righini observam os soldados que recolhem os seus camaradas feridos e novamente partem, logo a seguir, para o combate, correndo de árvore em árvore. Jovens S.S. de fato camuflado, cartucheiras de metralhadoras à volta do pescoço, irrompem a cada instante pela sala, a fim de apresentarem relatórios aos seus oficiais. Crépin olha então para o seu relógio e considera que a missão corre o risco de ficar ”em águas de bacalhau”. Declara portanto, solenemente, que o coronel comandante da guarnição dispõe duma hora para conseguir o cessar-fogo de todos os seus pontos de apoio, para reagrupar os seus homens no pátio central e entregar as armas e as instalações intactas. Caso contrário, não serão tratados como prisioneiros de guerra. Após estas palavras, traduzidas pelo coronel Von Unger, faz-se por momentos um silêncio tenso entre os circunstantes. Depois, vê-se subitamente o coronel Von Berg tornar-se ”vermelho como um tomate” e berrar que, por ordem
do Fúhrer, é preciso terminar o combate. Crépin e Righini recordam-se de ter visto os oficiais S. S. ficarem bruscamente ”pálidos como cadáveres” e arrancarem, como num gesto ensaiado, os distintivos dos seus postos e as suas condecorações. Em seguida, com um último Heil Hitler!, dirigiram-se para a saída e começaram a abandonar, um a um, o salão.

Dentro em pouco a bandeira branca flutua sobre o senado, mas nem por isso o combate cessa imediatamente. Entrincheirados nas suas casamatas e nos seus carros, os S. S. da guarnição vão disparar as suas últimas munições. A excepção de alguns cartuchos de revólver, que guardam consigo para não caírem vivos em poder da multidão em fúria.

Quando os primeiros alemães começam a reunir-se no pátio pejado de destroços, um grupo de civis faz a sua aparição soltando gritos de alegria. São os prisioneiros franceses detidos no Senado. E, entre eles, está Paul Pardou, o resistente que fazia mão baixa nos depósitos da Milícia. No amontoado de alemães que pejam agora o pátio, Pardou repara no seu carcereiro, o gordo cozinheiro Franz, de mãos no ar. O alemão faz-lhe sinal para se aproximar, baixa precipitadamente uma das mãos, rebusca numa algibeira e entrega ao francês um sobrescrito. Depois, num derradeiro esforço para se lembrar de algumas palavras em francês, diz: ”Para minha mulher.”

Como se fosse um mineiro que tivesse estado enterrado vários dias no fundo dum poço, Francois Dalby emerge finalmente da sala onde está instalada a central eléctrica do palácio, para se deleitar também com o espectáculo. Mas Dalby será obrigado a manter-se ainda mais 48 horas nesse edifício que, em grande parte, salvou da destruição. Terá de superintender à desmontagem das minas. As 19 horas e 35 minutos em ponto, ao expirar o ultimato do coronel Crépin, o coronel Von Berg, de monóculo sempre cravado na órbita, a Cruz de Ferro pendurada ao pescoço e uma imensa bandeira branca entre as mãos crispadas, transpõe pela última vez o portal do palácio no qual reinou, como senhor todo poderoso, durante nove dias. Atrás dele, seguem, num interminável rebanho, os 700 homens da guarnição. Entre estes, cansado e desanimado, está o dentista Eugen Hommens. Bruscamente, ao passar por um Sherman estacionado na Rua de Vaugirard, Hommens tem um sobressalto. Sobre a torrinha dum carro, ternamente abraçada a um soldado francês, está Annick, a sua jovem amante que, ainda na véspera, lhe rogara que desertasse - por ela.

Walter Hoffman, o Oberfeldwebel que oferecera à sua companheira, à laia de presente de despedida, um pedaço de toucinho, sofreria, ele também, a triste experiência da inconstância feminina. Enquanto era empurrado às coronhadas para fora da Escola Militar, Hoffman reconheceu, entre as mulheres que cuspiam nos prisioneiros, a meiga criada de restaurante que tantas vezes o servira no seu Soldatenheim
preferido. Mas ainda mais magoado ficaria o cozinheiro da Kriegsmarine que marchava, lado a lado com o tenente da Luftwaffe Johannes Schmiegel, pela Avenida Vítor Hugo. Com uma espécie de teimosia animal, o cozinheiro repetia sem parar: ”Se a Jeannette me vê, ela tirar-me-á daqui.” Diante duma escola da Avenida Raymond Poincaré, Jeannette vê realmente o seu antigo amante. Corre para ele e cospe-lhe na cara.

Grande número de prisioneiros apenas deve a vida, nessas últimas horas, à imediata intervenção dos soldados que os escoltavam, homens da 2.a D. B. ou F.F.I. Um civil, num ataque de loucura, atirou-se para cima do tenente Schmiegel e espancou-o. Imediatamente, como uma matilha esfomeada, a multidão pôs-se a espezinhar o alemão, estendido por terra. Schmiegel viu então, por cima da sua cabeça, um enorme soldado marroquino revoltear a sua espingarda, agarrada pelo cano, como um poderoso cajado e conseguir assim dispersar a turba.

Roger Cadet, o jovem agente de polícia que quase tinha sido fuzilado dois dias antes, descobriu, numa coluna de prisioneiros que saía da Escola Militar, o alemão que o tinha salvo. Era o capitão Wagner. Este perguntou com inquietação ao francês se era verdade que os F.F. L matavam todos os alemães. ”Dou-lhe a minha palavra - garantiu-lhe o polícia-, que será tratado como prisioneiro de guerra.” Cadet acompanhou o alemão ao quartel onde eram conduzidos os prisioneiros da Escola Militar. Contou a sua história ao cabo de polícia encarregado da sua guarda e pediu-lhe que tomasse ”boa conta” do capitão. Dois dias depois, Cadet tornaria a ver o outro polícia. Este revelou-lhe que entre os 15 alemães que tinham sido fuzilados em represália dum acto de selvajaria praticado no Bourget se encontrava o nome de Wagner. No entanto, no último momento recordando-se da recomendação de Cadet, o polícia conseguira substituir o capitão Wagner por outro prisioneiro.

Caíra entretanto o crepúsculo sobre a cidade, e esta enchia-se duma doce e suave luminosidade. As armas tinham-se calado por toda a parte, e os raros tiros que ainda se faziam ouvir provinham de alguns atiradores de telhado, isolados. Custara caro a conquista desse silêncio. 42 soldados da 2.a D. B. tinham tombado ainda no decorrer desse dia, e 77 haviam sido feridos. Entre a população civil havia 127 mortos e 714 feridos. À volta de cada um desses mortos tinham-se formado pequenas ilhas de dor, contra as quais vinham agora embater as vagas de alegria que arrebatavam a cidade.

Diante do Ministério dos Negócios Estrangeiros, uma rapariga corria, alegre e feliz, para os homens da companhia do capitão Charles d’Orgeix. Era a irmã mais nova do soldado Jean Ferracci, de cuja chegada tivera conhecimento por inúmeros telefonemas anónimos. Mas ela não mais voltaria a vê-lo. Ferracci morrera atrás do seu plátano, com o peito trespassado por 34 balas de metralhadora.

Na Praça do Châtelet, outra jovem corria dum carro para o outro. A cada soldado perguntava: ”Conhece o meu noivo, Pierre Laigle?” Os homens de boina preta abanavam a cabeça e desviavam o olhar. Nenhum teve a coragem de lhe dizer que ele fora morto na Rua de Rivoli, na torrinha do seu carro.

Numa pequena vivenda suburbana, em Choisy-le-Roy, Louise Bert esperava, no patamar de sua casa. Viu um homem de uniforme caminhar para ela. Era o seu marido. René Berth atirou-se para os braços da mulher e começou a chorar como uma criança. Porque a alegre reunião de família com que ele sonhara e por que esperara com tanta impaciência já não se realizaria. Duas horas antes, quando regressava a casa para ”fazer uma surpresa a sua mãe, no dia do seu aniversário’ ’, Raymond, o filho de ambos, tinha sido morto por uma bala na cabeça, perto da estação de metropolitano Dupleix.

 

                                       Capítulo décimo terceiro

A praça do ”Hotel de Ville” estava por completo submersa por uma multidão imensa e multicor, que a enchia desde a Ponte de Arcole e as margens do Sena até às fachadas dos velhos edifícios da Rua de Rivoli. Aí, nessa praça exalando História, onde a República fora proclamada em 1870 e a Comuna um ano depois, milhares de parisienses esperavam, havia horas, um acontecimento não menos histórico: a primeira aparição oficial do general De Gaulle. Todos estavam impacientes por irem ver finalmente, em carne e osso, o homem que, durante quatro anos, tinha dado esperança à França escravizada.

Mas De Gaulle por pouco não pôde comparecer a essa entrevista. O general acabara de receber,
pela primeira vez, no seu gabinete do Ministério da Guerra, aquele que tinha sido o seu representante político em Paris, Alexandre Parodi. Para Parodi, essa entrevista representara uma prova de força de vontade. De Gaulle dera-lhe a entender, sem rodeios, quanto lhe desagradara a proclamação do C.N.R. Mas sobretudo o que mais surpreendera Parodi era o ângulo especial pelo qual De Gaulle considerava a situação política. O general parecia esperar, de facto, que os comunistas lhe fossem disputar o poder. No espírito dele, organizações como o C. C. R. não eram mais do que instrumentos mais ou menos disfarçados do Partido. Elas convergiam todas, na sua opinião, para instaurar uma autoridade que, ao fim e ao cabo, excluiria a sua pessoa. E, nesse dia, Parodi não partilhava da mesma forma o ponto de vista de De Gaulle quanto aos objectivos dos seus adversários políticos ’.

De Gaulle informou então Parodi, duma forma categórica, que não tinha a menor intenção de se deixar ”acolher” pelo C.N.R. ou pelo C. P.L. Não tinha qualquer razão para ir visitar os representantes da autoridade municipal. Fez lembrar a Parodi que ele era o chefe do Governo. E, nessa qualidade, seria ele quem receberia o C.N.R. e o C.P.L., quando dispusesse de tempo e ”no seu gabinete”.

Consciente da amargura que essa recusa de se mostrar à varanda dos Paços do Concelho causaria à população parisiense, Parodi suplicou a De Gaulle que reconsiderasse a sua decisão. Mas o general manteve-se inabalável. Parodi resolveu então fazer uma última tentativa. Imaginando que talvez alguém conhecendo melhor De Gaulle conseguisse fazê-lo transigir, mandou chamar o Prefect, Charles Luizet.

Depois duma longa discussão, no decorrer da qual Luizet frisou com cores sombrias, perante o general, a desastrosa impressão que a sua recusa causaria, o Prefect conseguiu finalmente fazer triunfar a sua causa. Mas, antes de partir para os Paços do Concelho, De Gaulle comunicou ao director-geral de Polícia as duas decisões que tomara: a primeira dizia respeito à visita que, antes do mais, tencionava fazer à Prefecture, símbolo da resistência gaullista. A segunda, referia-se à única recepção que ele considerava válida, uma confrontação directa entre o povo de Paris e ele próprio, na sua qualidade de chefe do Governo. Participou que tinha decidido encabeçar, no dia seguinte, um desfile triunfal que, partindo do túmulo do Soldado Desconhecido, desceria os Campos Elíseos, prosseguindo até Notre-Dame, esses dois símbolos da tradição e da perenidade da França, que ele próprio encarnara durante quatro anos. Ele responderia com essa grandiosa demonstração às pretensões dos membros do C.N.R., a quem mostraria, como também ao Mundo, de que lado estava o povo de França. Não tinha, de resto, qualquer intenção de convidar oficialmente o C. N. R. para
essa histórica cerimónia. Quando acabou de ditar as suas ordens, exclamou secamente: ”Bem, visto que é necessário ir - vamos então!”

Nos Paços do Concelho, os chefes da insurreição passavam da decepção à ira. Primeiro, tinham ficado surpreendidos por não verem chegar De Gaulle, depois maçados, por fim irritados. Pálido e inquieto, Georges Bidault, o presidente do C. N. R., passeava nervosamente para trás e para diante no gabinete do presidente do Conselho Municipal, resmungando: ”Nunca alguém me fez esperar assim.

 

1 De 1944 para cá, Parodi, hoje vice-presidente do Conselho de Estado, parece ter modificado a opinião, que então tinha, acerca dos verdadeiros desígnios dos adversários políticos do general. Ele declarou aos autores deste livro que, com o correr dos tempos, chegara à conclusão de que De Gaulle tinha provavelmente uma perspectiva da situação bem mais realista do que a sua. No entanto, o general, em sua opinião, sobreestimava a força dos comunistas e subestimava a sua própria popularidade.

Alemães que tinham sido fuzilados em represália dum acto de selvajaria praticado no Bourget se encontrava o nome de Wagner. No entanto, no último momento recordando-se da recomendação de Cadet, o polícia conseguira substituir o capitão Wagner por outro prisioneiro.

Caíra entretanto o crepúsculo sobre a cidade, e esta enchia-se duma doce e suave luminosidade. As armas tinham-se calado por toda a parte, e os raros tiros que ainda se faziam ouvir provinham de alguns atiradores de telhado, isolados. Custara caro a conquista desse silêncio. 42 soldados da 2.a D. B. tinham tombado ainda no decorrer desse dia, e 77 haviam sido feridos. Entre a população civil havia 127 mortos e 714 feridos. À volta de cada um desses mortos tinham-se formado pequenas ilhas de dor, contra as quais vinham agora embater as vagas de alegria que arrebatavam a cidade.

 

Diante do Ministério dos Negócios Estrangeiros, uma rapariga corria, alegre e feliz, para os homens da companhia do capitão Charles d’Orgeix. Era a irmã mais nova do soldado Jean Ferracci, de cuja chegada tivera conhecimento por inúmeros telefonemas anónimos. Mas ela não mais voltaria a vê-lo. Ferracci morrera atrás do seu plátano, com o peito trespassado por 34 balas de metralhadora.

Na Praça do Châtelet, outra jovem corria dum carro para o outro. A cada soldado perguntava: ”Conhece o meu noivo, Pierre Laigle?” Os homens de boina preta abanavam a cabeça e desviavam o olhar. Nenhum teve a coragem de lhe dizer que ele fora morto na Rua de Rivoli, na torrinha do seu carro.

Numa pequena vivenda suburbana, em Choisy-le-Roy, Louise Bert esperava, no patamar de sua casa. Viu um homem de uniforme caminhar para ela. Era o seu marido. René Berth atirou-se para os braços da mulher e começou a chorar como uma criança. Porque a alegre reunião de família com que ele sonhara e por que esperara com tanta impaciência já não se realizaria. Duas horas antes, quando regressava a casa para ”fazer uma surpresa a sua mãe, no dia do seu aniversário’ ’, Raymond, o filho de ambos, tinha sido morto por uma bala na cabeça, perto da estação de metropolitano Dupleix.

 

                                 Capítulo décimo terceiro

A praça do ”Hotel de Ville” estava por completo submersa por uma multidão imensa e multicor, que a enchia desde a Ponte de Arcole e as margens do Sena até às fachadas dos velhos edifícios da Rua de Rivoli. Aí, nessa praça exalando História, onde a República fora proclamada em 1870 e a Comuna um ano depois, milhares de parisienses esperavam, havia horas, um acontecimento não menos histórico: a primeira aparição oficial do general De Gaulle. Todos estavam impacientes por irem ver finalmente, em carne e osso, o homem que, durante quatro anos, tinha dado esperança à França escravizada.

Mas De Gaulle por pouco não pôde comparecer a essa entrevista. O general acabara de receber,
pela primeira vez, no seu gabinete do Ministério da Guerra, aquele que tinha sido o seu representante político em Paris, Alexandre Parodi. Para Parodi, essa entrevista representara uma prova de força de vontade. De Gaulle dera-lhe a entender, sem rodeios, quanto lhe desagradara a proclamação do C. N. R. Mas sobretudo o que mais surpreendera Parodi era o ângulo especial pelo qual De Gaulle considerava a situação política. O general parecia esperar, de facto, que os comunistas lhe fossem disputar o poder. No espírito dele, organizações como o C. C. R. não eram mais do que instrumentos mais ou menos disfarçados do Partido. Elas convergiam todas, na sua opinião, para instaurar uma autoridade que, ao fim e ao cabo, excluiria a sua pessoa. E, nesse dia, Parodi não partilhava da mesma forma o ponto de vista de De Gaulle quanto aos objectivos dos seus adversários políticos ’.

De Gaulle informou então Parodi, duma forma categórica, que não tinha a menor intenção de se deixar ”acolher” pelo C.N.R. ou pelo C.P.L. Não tinha qualquer razão para ir visitar os representantes da autoridade municipal. Fez lembrar a Parodi que ele era o chefe do Governo. E, nessa qualidade, seria ele quem receberia o C.N.R. e o C.P.L., quando dispusesse de tempo e ”no seu gabinete”.

Consciente da amargura que essa recusa de se mostrar à varanda dos Paços do Concelho causaria à população parisiense, Parodi suplicou a De Gaulle que reconsiderasse a sua decisão. Mas o general manteve-se inabalável. Parodi resolveu então fazer uma última tentativa. Imaginando que talvez alguém conhecendo melhor De Gaulle conseguisse fazê-lo transigir, mandou chamar o Prefect, Charles Luizet.

Depois duma longa discussão, no decorrer da qual Luizet frisou com cores sombrias, perante o general, a desastrosa impressão que a sua recusa causaria, o Prefect conseguiu finalmente fazer triunfar a sua causa. Mas, antes de partir para os Paços do Concelho, De Gaulle comunicou ao director-geral de Polícia as duas decisões que tomara: a primeira dizia respeito à visita que, antes do mais, tencionava fazer ò.Prefecture, símbolo da resistência gaullista. A segunda, referia-se à única recepção que ele considerava válida, uma confrontação directa entre o povo de Paris e ele próprio, na sua qualidade de chefe do Governo. Participou que tinha decidido encabeçar, no dia seguinte, um desfile triunfal que, partindo do túmulo do Soldado Desconhecido, desceria os Campos Elíseos, prosseguindo até Notre-Dame, esses dois símbolos da tradição e da perenidade da França, que ele próprio encarnara durante quatro anos. Ele responderia com essa grandiosa demonstração às pretensões dos membros do C.N.R., a quem mostraria, como também ao Mundo, de que lado estava o povo de França. Não tinha, de resto, qualquer intenção de convidar oficialmente o C. N. R. para
essa histórica cerimónia. Quando acabou de ditar as suas ordens, exclamou secamente: ’ ’Bem, visto que é necessário ir - vamos então!”

Nos Paços do Concelho, os chefes da insurreição passavam da decepção à ira. Primeiro, tinham ficado surpreendidos por não verem chegar De Gaulle, depois maçados, por fim irritados. Pálido e inquieto, Georges Bidault, o presidente do C. N. R., passeava nervosamente para trás e para diante no gabinete do presidente do Conselho Municipal, resmungando: ”Nunca alguém me fez esperar assim.”

 

1 De 1944 para cá, Parodi, hoje vice-presidente do Conselho de Estado, parece ter modificado a opinião, que então tinha, acerca dos verdadeiros desígnios dos adversários políticos do general. Ele declarou aos autores deste livro que, com o correr dos tempos, chegara à conclusão de que De Gaulle tinha provavelmente uma perspectiva da situação bem mais realista do que a sua. No entanto, o general, em sua opinião, sobreestimava a força dos comunistas e subestimava a sua própria popularidade.

 

Os membros do C.N.R., e era isto sem dúvida o que De Gaulle pretendia, indignavam-se que ele tivesse preferido visitar primeiro a Prefecture, ’ ’A casa dos chuis”, antes de ir aos Paços do Concelho, ”a casa do Povo”. Fernand Moulier, o jornalista que tinha conseguido introduzir-se em Paris uma semana antes dos Aliados, ouviu um dos membros do C.N.R. murmurar, irritado: ”Esses estupores andaram a prender-nos durante quatro anos, e agora De Gaulle vai vê-los e prestar-lhes homenagem!’’ Até o próprio Bidault, apontando num gesto largo para a vasta praça, coberta duma multidão irrequieta, não se conteve e gritou: ’ ’O povo está aqui, e não na ’casa dos chuis’. Se for necessário, celebraremos sem ele a Libertação.”

Mas, para De Gaulle, as ambições do C.N.R. ou, de qualquer forma, da maior parte dos seus membros, eram essencialmente políticas. E eles viam na insurreição, pensava, o meio de satisfazerem essas ambições. Pretendiam agora ”apresentar” oficialmente De Gaulle ao povo de Paris. E, com esse gesto, esperavam oferecer-lhe a sua ”protecção”. Estavam também prontos a ”convidá-lo” para as suas reuniões, as quais iriam realizar-se num importante ”palácio nacional”. Mas, sobretudo, eles tinham redigido as linhas gerais duma solene ’ ’proclamação da República’’ que contavam levar De Gaulle a ler à multidão, reconciliando-se assim com as tradições republicanas da Praça do ”Hotel de Ville”. Bidault trazia o texto na algibeira. Essa proclamação constituía uma hábil manobra, que não se destinava apenas a marcar o fim do regime de Vichy, mas, também, mais subtilmente, o termo do Governo de Argel. Ela fazia do C. N.R. o criador duma nova República, da qual De Gaulle seria, de certa maneira, o procurador. Tais eram os sonhos ambiciosos, mas desprovidos de realismo, de Georges Bidault e dos seus amigos políticos. Para esses homens o despertar iria ser brutal.

Os membros do C. N. R. encontravam-se já nos degraus de entrada do edifício dos Paços do Concelho quando, dominando com a sua elevada estatura a multidão em delido, De Gaulle avançou para eles.

Envergando um simples uniforme de cotim, ostentando apenas a Cruz da Lorena e a insígnia das Forças Francesas Combatentes, De Gaulle passou a passos largos diante da guarda de honra em mangas de camisa e dirigiu-se para Georges Bidault, que o esperava para ”fazer as apresentações”. Mas De Gaulle não lhe deu tempo para isso. Enfiou imediatamente pela escadaria acima e Bidault nada mais pôde fazer do que segui-lo.

Chegados ao gabinete do presidente do Conselho Municipal, os dois homens trocaram breves alocuções. Bidault foi emocionante. De Gaulle respondeu com uma cintilzação da sua majestosa eloquência.

 

”Porquê - perguntou ele - , esconder a emoção que a todos nos cinge, homens e mulheres, nestes minutos que transcendem cada uma das nossas pobres vidas?” Em seguida, declarou àqueles
que o rodeavam: ”O inimigo vacila, mas ainda não está totalmente vencido... Mais do que nunca, a unidade nacional é necessária.” E acrescentou: ”A guerra, a unidade e a grandeza, eis o meu programa.” Quando terminou, Bidault tirou discretamente da algibeira a proclamação. ”Meu general - exclamou ele na sua voz rouca -, eis em redor de vós o Conselho Municipal da Resistência e o Comité Parisiense de Libertação. Pedimos-vos que proclame solenemente a República perante o povo aqui reunido. De Gaulle olhou desdenhosa e friamente para o homem que tinha na sua frente. ”A República - respondeu simplesmente - nunca deixou de o ser.”

Aproximou-se então da janela e admirou, sob ele, o mar de rostos que submergia por inteiro a Praça do ”Hotel de Ville”. Quando, por fim, surgiu à varanda, a multidão, impaciente e sobreexcitada, desencadeou uma tempestade de aplausos e aclamações. Dentro em pouco, uma voz uníssona libertou-se de todos os peitos e gargantas. Ela gritava, a compasso: ”De Gaulle... De Gaulle...’’ Por detrás do alto vulto estava o tenente Claude Guy, o fiel ajudante-de-campo. Atendendo à baixa altura da balaustrada, Guy introduziu a mão pelo cinturão do general, a fim de evitar que este caísse no vácuo no caso de ser atingido pela bala dum atirador. Sentindo esse movimento, sem se voltar mas com uma voz que todos puderam ouvir na sala à sua retaguarda, De Gaulle vociferou: ”Não me macem!”

Após ter saudado longamente a multidão com esses seus largos gestos que se tornariam familiares a todos os franceses, De Gaulle deixou a varanda. Piscou então um olho a Claude Guy. ”Obrigado”, disse.

E, depois dalguns rápidos apertos de mão, partiu como tinha chegado, a passos largos. Não tinha pronunciado o nome do C. N. R. nem a palavra ”Resistência”. Na sala vizinha, o champanhe continuava à espera: também ele não chegara a ser utilizado em qualquer brinde à Libertação. De Gaulle procedera de maneira a não ser apresentado oficialmente aos membros do C. N. R. E quanto à proclamação preparada por Georges Bidault, esta continuava à espera no fundo da algibeira dele.

Enquanto De Gaulle deixava o ”Hotel de Ville”, os membros do C.N.R. escutavam, com azedume não dissimulado, as aclamações e os gritos da multidão que faziam vibrar as últimas vidraças ainda intactas do imenso edifício. O comunista Pierre Meunier ouviu nesse momento um dos seus colegas murmurar, ; enraivecido: ’É muito simples! Ele conseguiu levar-nos à certa!’’

Esse primeiro êxito que De Gaulle acabava de alcançar nos Paços do Concelho não seria o único desse dia. Num gabinete sumariamente mobilado dos Inválidos, enquanto o barulho do tiroteio se fazia ainda ouvir, dois homens assinavam um documento de trinta e sete páginas. Na emoção e no tumulto da Libertação, esse acto passou quase totalmente despercebido.
E, no entanto, a feliz coincidência do calendário que fizera cair a libertação de Paris no dia de S. Luís, rei de França, estendia-se a outro acontecimento: a assinatura do tratado franco-americano relativo aos Negócios Civis. No precedente mês de Julho, em Washington, De Gaulle e Roosevelt tinham pessoalmente acordado nele, em princípio. Durante semanas, os peritos tinham discutido as diferentes modalidades. Mas a sua assinatura, apesar das pressões de Eisenhower, tinha sido adiada uma boa dezena de vezes. Finalmente, no próprio dia da Libertação, o brigadeiro-general Julius Holmes tinha embarcado, no quartel-general do S.H. A.E.F., no ”L 5” pessoal de Eisenhower e aterrado num campo de trigo perto de Paris, para levar o texto do acordo ao general Pierre Koenig. Mas, até nesse minuto decisivo, o primeiro documento pelo qual a América reconhecia enfim oficialmente a autoridade de Charles de Gaulle continha um equívoco. Uma vez mais, ainda, Washington prescrevera a Eisenhower que este desse a saber que estava ’’ autorizado a concluir esse acordo na condição de ser intenção das autoridades francesas permitir ao povo francês escolher livremente o seu Governo”. Tratando-se de De Gaulle, um preâmbulo como esse não era de molde a facilitar as coisas. Enquanto os signatários dum acordo semelhante entre a Grã-Bretanha e a França tinham sido os ministros dos Negócios Estrangeiros, o Governo americano exigira que o acordo com a França fosse assinado por militares. Esse artifício permitiria a Roosevelt evitar que se pudesse confundir o referido acordo com um reconhecimento ”de jure” do Governo de Charles de Gaulle. E agora, no instante em que apunha a sua rubrica na trigésima sétima página do extenso documento, o general Julius Holmes, um antigo diplomata de carreira, podia verificar, à luz do que acabava de ver nas ruas de Paris, o profundo abismo que separava esse texto da realidade. Ele sabia que ninguém em Washington esperava ver o Governo do general De Gaulle instalado no Poder antes de várias semanas. Mas aquela breve viagem a Paris acabava de lhe revelar a verdade: ”Nada, excepto a força, poderá agora expulsar De Gaulle.” Holmes pensava, não sem um certo prazer, em todas as dificuldades que o Departamento de Estado iria em breve conhecer para modificar esse documento, cuja tinta nem sequer ainda estava seca.

E, afinal, continuava Holmes a pensar, ”De Gaulle nunca tivera intenção de estar, nesse dia, em qualquer outro lugar que não fosse aquele mesmo onde se encontrava, em Paris”. O diplomata americano, meditando com ironia no seu próprio papel, teve então o mesmo pensamento que o anónimo residente do ”Hotel de Ville”. ”Uma vez mais -disse para consigo - , De Gaulle, delicadamente, fez de nós o que quis.”

No edifício da Kriegsmarine, na Praça da Concórdia, um alemão conseguia entretanto escapar à perseguição dos seus vencedores. O Korvet Kapitãn Harry Leithold conhecia os cantos e os recantos do palácio de Gabriel tão bem como os do seu próprio apartamento de Berlim. Após os combates da Praça da Concórdia, tinha-se refugiado numa pequena divisão do segundo andar. Tendo observado os seus homens saindo para a rua de braços erguidos, a seguir à capitulação do Meurice, ficara ali, imaginando poder fugir a coberto da noite e alcançar então as linhas alemãs. Agora, esperava apenas que a escuridão caísse completamente. Leithold ouvia distintamente os gritos da multidão, vindos da praça. Aproximando-se cuidadosamente do parapeito da janela, olhou para o exterior. Nesse instante, viu um automóvel preto desembocar lentamente da Rua de Rivoli e dirigir-se para a praça sobre a qual dava a sua janela. Leithold empunhou uma espingarda e, instintivamente, levou a coronha ao ombro. ”Estes franceses são realmente desvairados!”, pensou. Na sua linha de mira tinha agora, a menos de 100 metros, sentado no banco traseiro do veículo, um general francês de kept de cotim. Leithold seguiu o vulto com o dedo apoiado no gatilho. Bom atirador, estava certo de poder abatê-lo com um só tiro, tanto mais que o homem, grande e corpulento, constituía um magnífico alvo. ”Matar um general francês considerou ele - , é sem dúvida uma maneira bastante gloriosa de terminar a guerra...” Mas, nesse momento, Leithold tornou-se na testemunha surpreendida dum espectáculo inédito. Viu a multidão investir como uma vaga para o automóvel preto e começar a aclamar com delírio esse general desconhecido. Leithold compreendeu então que se disparasse sobre aquele automóvel não sairia com vida do edifício: a mole imensa que via lá em baixo invadiria o prédio do hotel e linchá-lo-ia. Quem quer que fosse aquele general francês, o alemão decidiu por fim que a sua própria vida valia mais que a do outro. Este pensamento fê-lo assentar a espingarda no parapeito. Depois, desceu ao rés-do-chão e rendeu-se.

Dois anos mais tarde, num campo de prisioneiros de guerra, o capitão Leithold descobrirá, ao ver o seu retrato numa revista, quem era o general francês que ele tivera naquele dia debaixo da sua mira. Era o general De Gaulle.

 

                                       Capitulo décimo quarto

As primeiras sombras do crepúsculo envolviam já a cidade libertada. Tal como um corpo esgotado pelo amor, Paris deixava-se agora amolecer no êxtase da fadiga. Chegara a hora da doçura, da ternura, após tão grande número de alegrias e emoções. O sargento Armand Sorriero, do 12.º Regimento americano, deslizou na ponta dos pés, de espingarda a tiracolo, pela catedral de Notre-Dame. Na imensa nave envolta na escuridão e mergulhada no silêncio, o pequeno soldado de Filadélfia teve repentinamente a impressão de que ”a guerra nunca existira”. Ajoelhou-se e começou a rezar. Mas, então, pensou ”que não era próprio estar na casa de Deus com uma arma feita para matar.” Quando saiu da catedral, Sorriero foi abordado por duas irmãs de S. Vicente de Paulo que o levaram até ao largo vizinho. E aí, fizeram-no sentar num pequeno banco e começaram alegremente a lavar a gordura e o óleo do seu rosto com a água quente que traziam num pequeno vaso de porcelana. Sorriero, comovido, achou que era ”Deus que, na Sua infinita bondade, lhe agradecia assim o ter estado na Sua igreja.”

Um capelão protestante do mesmo regimento quis ser o primeiro americano a subir ao topo da Torre Eiffel. Lançou-se então na longa e árdua subida e, quando atingiu o cimo, uma hora depois, estafado e sem fôlego, implantou uma pequena bandeira americana que levava consigo no parapeito da torre. E, com ela, um papel onde se lia: ”Esta bandeira foi aqui posta pelo primeiro americano que subiu à Torre Eiffel.”

Nesse dia da Libertação, outro americano, o tenente Burt Kalish, quis visitar o túmulo de Napoleão. Bateu à porta de bronze da capela dos Inválidos e, quando esta girou nos gonzos, ouviu o guarda daquele venerável lugar perguntar-lhe: ”O senhor é um admirador do Imperador?” Respondeu que sim, que sem dúvida ele era uma perene glória da França. Introduzido então no recinto, aproximou-se da balaustrada e contemplou com emoção o túmulo, iluminado por raios de luz onde dançavam grãos de poeira dourada. Quando Kalish saiu da capela, depois de o guarda ter querido autorizá-lo a ”tocar no
glorioso sarcófago” (privilégio reservado aos visitantes de categoria), recebeu a oferta dum modesto mas sensibilizador presente. O velho guarda, de peito constelado de condecorações, entregou-lhe um bilhete postal do ilustre mausoléu, no qual escrevera as seguintes palavras: ”Ao primeiro americano que, no dia da Libertação, veio visitar o túmulo do Imperador.”

Na Avenida dos Campos Elíseos, o soldado George Mac Intyre foi abordado por um padre que lhe comunicou que um dos seus paroquianos, a morrer com um cancro, desejava ver um soldado americano. A velha senhora, disse o padre, pretendia contemplar com os seus próprios olhos um americano, para ter a certeza de que os Aliados tinham realmente chegado e que assim ela morreria numa Paris liberta.

Minutos depois, o soldado entrou num pequeno quarto. Numa vasta cama, perto da qual se encontrava uma grande imagem de Santa Ana, estava uma senhora muito idosa e magra, cuja expressão se iluminou ao vê-lo. Ela vestia, recorda-se Mac Intyre, ”uma camisa de rendas brancas e uma touca”. A sua primeira pergunta, quando viu o americano, foi: ”Quando é que chegam a Berlim?”

”Daqui a pouco tempo”, respondeu Mac Intyre.

Apesar da dificuldade com que falava, a anciã começou a interrogar avidamente o seu visitante, pedindo-lhe pormenores do desembarque, das destruições na Normandia, e perguntou-lhe ”se o tinham acolhido bem”. Por fim, com uma vivacidade que surpreendeu o soldado, perguntou ainda: ”Quantos boches matou?” Duas pessoas amigas, que entretanto tinham entrado no quarto, ofereceram um cálice de aguardente ao soldado, emocionado com aquela cena inesperada. ”Viva a América!”, disse a idosa senhora. ”Viva a França!”, respondeu o americano. Em seguida, Mac Intyre rebuscou nas algibeiras e depôs sobre o leito tudo o que nelas encontrou: duas barras de chocolate e uma pequena saboneteira. A velha senhora estendeu então um braço para a sua mesa-de-cabeceira e pegou num pequeno crucifixo que ofereceu ao americano, dizendo: ”Ele vos protegerá durante o resto da guerra.” O soldado curvou-se sobre ela, beijou-a nas faces descarnadas e prometeu voltar no dia seguinte. Mas no dia seguinte já a pobre senhora tinha morrido.

Saint-Germain-des-Prés. O coronel Jim Luckett olha com nostalgia para a esplanada do café onde, dezasseis anos antes, vivera algumas horas inesquecíveis da sua vida de estudante. Mas, agora, Luckett não tem tempo para se demorar no ”Deux Magots’’. Tem pressa de chegar a uma morada que há um ano está anotada na sua agenda, o n.º 10 da Rua dos Beaux-Arts. No terceiro andar desse prédio situa-se o apartamento que Luckett ganhara numa posta. Mas uma surpresa aguarda o americano. No n.º 10 da Rua dos Beaux-Arts, 3.° andar, o seu apartamento tem uma locatária. O que, além de inesperado, é sumamente agradável para ele, visto tratar-se duma encantadora loura que, para mais, ao vê-lo, se atira ”para os seus braços como um obus de 88”.

Com orgulho, Fernand Moulier, o jornalista francês que batera todos os seus colegas na corrida para Paris, penetra no Hotel Scribe para receber a importância das inúmeras apostas que, por aquele motivo, ganhara. Mas, com grande surpresa sua, o coronel Ed. Pawley, oficial de informações do S.H. A.E.F., que se encontra no limiar do edifício, obriga-o a parar. ”Impossível entrar aqui à paisana, meu caro. Vá pôr um uniforme!”

O conde Jean de Vogue tinha, nessa noite de libertação, uma importante entrevista. O conde era membro do C. O. M. A. C. e fora a sua intervenção, quatro dias antes, que levara os chefes da Resistência a quebrarem as tréguas de Nordling. Vogue rapou o bigode que deixara crescer durante a Resistência. Em seguida, empunhando um ramo de flores, foi bater ao portão de ferro do elegante palacete da sua família, no Cais d’Orsay, n.º 54.

Uma criada veio abrir a porta. Ao reconhecer o visitante, teve um brusco recuo e exclamou, erguendo os braços para o céu: ”O senhor Jean voltou!” Vogue entrou então na sumptuosa moradia e dirigiu-se para a pequena sala onde sua mãe se encontrava. Depois, ofereceu o ramo de flores a essa mãe que um dia ele fingira não reconhecer, quando a encontrara na rua.

- Então, eis-te de volta de Londres? - perguntou a senhora de Vougúé.

- Mas, eu nunca estive em Londres, mãe! - respondeu o rapaz. - Eu era dos chefes da Resistência.

A senhora teve um movimento de espanto.

- Oh! Jean! Como é que pudeste fazer isso? Estiveste então associado a esses vagabundos, a esses comunistas?

E, dizendo isto, a condessa deixou-se cair numa poltrona.

Uma recepção tão desconcertante como esta aguardava também o tenente Philippe Duplay, da 2.a D. B.

Quando Duplay chegou à Avenida de Neuilly, diante da residência dos seus primos, ouviu as persianas fecharem-se bruscamente e viu pessoas a correr, fugindo dele. Aos seus repetidos toques de campainha ninguém respondeu. Ia-se já embora quando distinguiu uma voz inquieta por detrás da porta:

- Quem está aí ? - perguntavam.

- Sou eu, o Philippe.

- Que Philippe?

- Philippe Duplay.

Então, a porta abriu-se bruscamente.

- Pregaste-nos um susto - exclamou a sua prima. - Julgávamos que eram os boches que regressavam!

Acontecera apenas que Duplay se tinha completamente esquecido de que o veículo no qual chegara à Avenida de Neuilly era um automóvel alemão, o Volkswagen da Wehrmacht de que se apoderara na Normandia.

Ninguém veio abrir quando o sargento André Aubry bateu à porta da morgue do Hospital Principal. A morgue estava fechada naquela noite, e Aubry voltou, tristemente, sobre os seus passos. Viera para dizer um último adeus ao seu melhor amigo, o jovem bretão Marcel Bizien, que lançara o seu carro à abordagem do Panther da Praça da Concórdia.

O G. I. da Georgia, Leon Cole, jamais vivera um dia como aquele. Passeando o seu jipe pelas ruas tortuosas de Montmartre, Cole ouvia rolar no chão do veículo os tomates de que a multidão entusiasmada lhe enchera o carro. À esquina duma rua, Cole foi abordado por um casal de idade. / speak English, disse a mulher, sorrindo. Cole sorriu também e ofereceu-lhes tomates. Agradecendo-lhe, a senhora e o seu marido convidaram o americano a ir ao seu apartamento tomar uma bebida. Cole hesitou, pois isso era proibido pelos regulamentos. ”Hoje, mando os regulamentos para o diabo!”, disse para consigo. Desceu do jipe e subiu atrás do casal os cinco andares que conduziam à residência destes.

A mulher pegou então na mão do modesto fazendeiro da Georgia e levou-o até à janela. Num relance, ao americano deparou-se, bruscamente, estendida a seus pés, a vista maravilhosa de que tantas vezes ouvira falar e com a qual sonhara durante anos e anos. Na penumbra do princípio da noite, distinguia os contornos da Torre Eiffel, as torres de Notre-Dame, os meandros do Sena. Os seus anfitriões encheram-lhe
um grande copo com óptimo conhaque. E, lado a lado, o velho casal francês e o alentado e desajeitado americano de espingarda em bandoleira ficaram a contemplar a obscuridade que invadia Paris.

Então, subitamente, o admirável panorama que se estendia diante deles iluminou-se. Pela primeira vez desde 3 de Setembro de 1939, todas as luzes de Paris incendiavam a cidade. Em honra da Libertação, os electricistas acabavam de restabelecer a iluminação pública.

A vista dessa maravilha, Cole deixou escapar um grito. Ao seu lado, lentamente, a mulher ergueu o seu copo acima da varanda, sobre Paris.

”À Cidade Luz’’, disse ela num murmúrio. Cole voltou-se e, na penumbra, viu que ela chorava. E, nesse momento, o modesto fazendeiro verificou que, ele próprio, também tinha lágrimas nos olhos.

 

                                           Capítulo décimo quinto

De todas as funções que, no decorrer da sua vida, desempenhara, aquela que agora o esperava seria sem dúvida, pensava o comandante Robert L. Levy, a mais difícil.

O agente de câmbios nova-iorquino era o oficial de ligação americano junto de Charles de Gaulle. Depois de ter procurado em vão o general durante três dias, encontrara-o finalmente em Paris, na própria noite da Libertação. Pelas expressões de todos aqueles que iam saindo do seu gabinete, Levy podia imaginar a disposição em que De Gaulle se encontrava. Era evidente que ele devia estar de péssimo humor. O americano, no entanto, compreendia sem dificuldade que assim fosse. Por todo o Ministério da Guerra, ocupado três horas antes, parecia reinar a mais completa das confusões. A corrente eléctrica estava cortada, o telefone só funcionava em certos gabinetes e apenas para Paris. Havia muita gente saindo e entrando, interpelando-se, encontrando-se de novo após muito tempo, com grandes e barulhentas exclamações, o que produzia um bruhaha indescritível.

Ao fim duma longa espera, o tenente Guy introduziu finalmente Levy no gabinete do general. De Gaulle levantou-se e olhou depreciativamente do outro lado da sua grande secretária ministerial para o pequeno comandante americano. Pois bem, Levy - disse ele -, espero que você fale francês. Eu sei inglês, mas não tenho intenção de o falar.”

Dizendo estas palavras, De Gaulle ergueu um braço e, com um largo e impaciente gesto, como se pretendesse varrer duma só vez as trevas, o barulho e a desordem que o cercavam, começou a gritar: ”Como é que vocês querem que eu governe a França num tamanho caos?”

Fixando um olhar encolerizado no oficial americano, De Gaulle enumerou então as três coisas de que tinha necessidade nessa noite para conseguir efectivamente governar a França: cigarros Craven, caixas de rações e lanternas de petróleo.

Levy bateu os calcanhares, saudou militarmente e saiu. Em seguida entrou no seu jipe, convencido da grande importância da sua missão, e lançou-se através de Paris para descobrir as preciosas mercadorias que faltavam a Charles de Gaulle para governar a França.

Os Craven, encontrou-os num seu colega britânico, e as caixas de rações num camião da Manutenção da 4.a Divisão, estacionado em frente do Hotel Crillon. Mas conseguir as lanternas de petróleo foi-lhe bem mais difícil. Acabou finalmente por deparar-se-lhe um camião cheio delas, parado numa pequena estrada dos arrabaldes. Levy foi obrigado a parlamentar demoradamente com o G. I., que se recusava a desfazer-se do precioso material. Por fim, depois de o ter convencido, com grande custo, de que o futuro das relações franco-americanas dependia, nesse momento, da atitude dele, conseguiu persuadir o soldado a ”voltar as costas” enquanto ele fazia mão baixa numa dúzia dessas pequenas lanternas, que assim iriam iluminar a primeira noite de Charles de Gaulle em Paris.

No preciso instante em que o comandante Levy saíra do Ministério da Guerra, outro americano descia as escadas dum prédio nas vizinhanças da Rua de Crenelle. Imperturbável, cruzou-se com um correspondente da B.B.C, que suplicava ao F.F.I, de sentinela à porta que o deixasse entrar no edifício. Larry Leseur vencera, finalmente: acabava de transmitir através do éter a primeira autêntica reportagem radiofónica da libertação de Paris. Era o maior scoop da sua carreira. Para a enviar, e foi de facto uma sorte consegui-lo naqueles momentos de confusão, Leseur tivera uma ideia muito simples, mas genial: dirigira-se a um estúdio da radiodifusão francesa e conseguira que a sua reportagem fosse directamente transmitida de Paris ’.

Num pequeno bar de Pigalle vizinho do Bal Tabarin, o rival de Leseur, o repórter radiofónico Charlie Collingwood, encontrara finalmente a paz entre as prostitutas e a malta suspeita de Montmartre. Eram estes os únicos habitantes de Paris que pareciam não conhecê-lo. Durante todo o dia, de cada vez que declarara o seu nome, o americano que lançara para o ar a notícia prematura da libertação de Paris tinha sido insultado. A cena mais dolorosa passara-se em casa de Marie-Louise Bousquet. Indignada com a leviandade do ”americano encantador” que recebera em sua casa antes da guerra, ela fizera-lhe duras e amargas censuras.

Mas agora, nesse bar de Pigalle, Collingwood podia finalmente mostrar a face sem receio. Enquanto Roger, o proprietário, lhe contava pela terceira vez as suas aventuras amorosas em Hollywod, o desventurado repórter radiofónico pensava para consigo que Marconi fizera uma grande asneira ao inventar a rádio!

Por toda a cidade, agora envolta nas trevas da primeira noite de liberdade, 3 milhões e meio de parisienses e os seus 40 000 libertadores davam início ao jantar da vitória.

Em todos os locais onde se encontravam, os soldados da 2.a D. B. e da 4.a Divisão americana distribuíram pelos maravilhados parisienses provisões e mantimentos de cuja existência estes já nem se recordavam. Numa rua próxima da Bastilha, uma pequenita pediu a um G. I. ’outra bola encarnada como aquela que ele acabara de lhe oferecer”. Era uma laranja e a criança nunca as tinha visto. Em milhares de lares ameaçados pela fome encontrou-se sempre uma derradeira lata de conservas ou uma última garrafa para engalanar o jantar da vitória. Por vezes, como aconteceu na Rua da Huchette, a pilhagem dum restaurante de mercado negro permitiu que alguns parisienses fizessem um festim inesperado. Mas, pantagruélico ou frugal, esse jantar celebrou-se sempre em alegria. E centenas de soldados americanos tiveram ocasião de descobrir que, ao passarem pelas mãos mágicas das donas de casa francesas, as latas de rações da Manutenção revelavam um gosto que eles estavam muito longe de imaginar que elas tivessem.

No Ministério da Guerra, um cozinheiro, chamado à pressa, preparava o primeiro jantar parisiense do general De Gaulle. Também ele tinha acabado de chegar a Paris. Mas tinha sido enviado para servir outro chefe de Estado. Era o cozinheiro do marechal Pétain.

Pálidos e extenuados, os homens do P.C. de Rol subiam à superfície após cinco dias de vida subterrânea. Foram celebrar a vitória no restaurante da Praça

 

1 Os técnicos franceses gravaram a sua reportagem e decidiram incluí-la de hora a hora nos seus próprios programas. A gravação foi imediatamente captada em Nova Iorque e retransmitida por toda a América. Por ter tomado essa iniciativa, que claramente violava os regulamentos da censura, Leseur foi severamente castigado pelo S.H. A.E.F. Os seus privilégios de correspondente de guerra foram suspensos durante trinta dias, o que fez com que o ”infeliz americano” fosse obrigado a passar um mês em Paris sem qualquer coisa para fazer, pelo menos profissionalmente.

 

Saint-Michel, cujo toucinho e o bénédictine lhes tinham permitido subsistir, durante esses últimos dias, nas profundas do seu abrigo.

Na sala de jantar do Hotel Meurice, repleta de destroços, no próprio lugar onde o general Von Choltitz tomara a sua última refeição poucas horas antes, um jovem tenente dava início a um festim de nababo. Era Henri Karcher, o oficial da 2.a D.B. que tomara o Meurice.

Não longe daí, na sala de jantar de outro hotel, um homem que acabara de jantar soltava berros escandalizados: o chefe de mesa do Ritz apresentava ao correspondente de guerra Ernest Hemingway a conta do seu jantar.

”Gastarei sem relutância milhões para defender a França, ou para lhe render homenagem - gritava Hemingway -, mas não darei um tostão a Vichy!’’ Com efeito, na base da soma, o chefe de mesa incluíra maquinalmente as pequenas parcelas que sempre inscrevia nas contas dos clientes: as taxas instituídas oor Vichy.

Jean-René Champion, o piloto do ”Mort-Homme”, o Sherman incendiado diante do Meurice, jantaria, nessa noite, duas vezes. Ao atravessar as Tulherias, após um primeiro jantar com uma família de parisienses que o tinham convidado, caiu num grupo de F.F.I, que o obrigaram a partilhar com eles da sua refeição de sardinhas e feijão.

No fim do jantar que acabava de oferecer na Prefecture ao general Holmes, o americano que assinara com Koenig o acordo relativo aos Negócios Civis, o Prefect Charles Luizet ofereceu um copo de conhaque ao seu convidado e levou-o para uma janela. Na frente dos dois homens erguia-se para o céu a flecha da Sainte-Chapelle. Luizet aproveitou esse instante para fazer, em tom de confidência, algumas considerações que julgava da maior importância. ”Um grande perigo ameaça agora Paris. Se os comunistas tentarem um golpe de força, não possuiremos os meios necessários para nos defendermos.” E Luizet pediu então a Holmes que lhe fornecesse, com a maior urgência, armas para a polícia, a fim de lhe permitir ”manter por todos os meios, em caso de perigo, a ordem em Paris’’.

48 horas depois, uma coluna de camiões penetrará discretamente no pátio da Prefecture. Sob as lonas que os cobrem há 8000 espingardas e pistolas-metralhadoras, munições e várias bazucas.

Mas raros eram, no entanto, os homens da 2.a D.B. ou os americanos que nesse momento tinham preocupações tão sérias. Quase todos estavam ocupados em gozar essa noite, que ficaria na recordação dum soldado da Carolina do Sul, chamado John Holden, como a ”mais bela noite que o Mundo alguma vez conheceu”. O soldado David McCreadil, da 12.a Companhia Anticarros, entrou, deliciado, ’ num café onde tudo era grátis’’. ”Os franceses estavam loucos de alegria, as mulheres dançavam em cima do piano, todos estávamos bêbedos e cantávamos com quanta força tínhamos a Marselhesa’, da qual nem sequer as palavras conhecíamos.”

Nos tanques, half-tracks e jipes das
duas divisões misturavam-se os risos felizes dos soldados e das parisienses. Em centenas de pequenos cafés, por detrás das portas fechadas e das cortinas corridas, dançava-se, cantava-se, ria-se e amava-se.

Robert Mady, o artilheiro do ”Simoun’’ que tão oportunamente se recordara da extensão dos Campos Elíseos, voltou a esta avenida, a meio da noite, com a tripulação do seu carro. Decidira ”libertar” o Lido. E aí, em plena pista de atracções deserta, Mady e os seus camaradas saborearam um presente que os consolou de nunca terem podido comer o seu pato: o melhor champanhe do mais célebre cabaret do Mundo. Claude Hadey, o artilheiro do Sherman ”Bautzen” que destruíra uma casamata em frente do Luxemburgo, passou a noite numa boíte vizinha, a ”Gipsy”. Hadey e os seus companheiros revezavam-se à porta, não fosse aparecer ”qualquer oficial que lhes estragasse a festa’’. Mas, mesmo assim, estar dessa maneira de sentinela, na primeira noite de Paris libertada, era um prazer que todos os soldados do Mundo disputariam para si.

Estranha noite, essa! Lucien Aublanc e a sua mulher Simone jantaram nas Tulherias, junto de um half-track. Mehdi, o motorista argelino de Aublanc, preparou para a ”fatma” do seu chefe um café com um pó que ela jamais vira. Era Nescafe. Em seguida, o casal enrolou-se num cobertor e deslizou para debaixo do veículo. E assim passariam os dois a sua primeira noite após quatro anos de separação.

Nas ruas da Huchette e da Harpe, defronte do P.C. do 12.º Regimento americano instalado no Hotel do Levante, celebrava-se, ao som da banda dos bombeiros, um verdadeiro baile do 14 de Julho. Todos os soldados tinham uma rapariga nos braços, até mesmo a sentinela de guarda diante do hotel, o sargento Thomas W. Lambero. De repente, Lambero foi chamado ao telefone. Na linha, uma voz perguntava ”se todos os homens tinham uma rapariga com quem passar a noite”. Lambero julgou poder garantir que ”considerava a situação dominada.”

No bosque de Vincennes, o comandante dum batalhão de infantaria, fazendo questão de manter as aparências de disciplina, ordenou aos seus homens que levantassem as suas tendas em fileiras impecáveis. Deu igualmente instruções para que houvesse no dia seguinte um toque regulamentar às 6 horas da manhã. Mas no dia seguinte, quando o corneteiro tocar para a formatura, o comandante terá ocasião de conhecer a extensão do seu desaire: de todas as tendas sairão, apenas, um soldado cambaleante de fadiga e uma rapariga meio adormecida.

No decorrer daquela louca noite eram abolidas todas as diferenças de linguagem. No entanto, o soldado Charlie Haley, do 4.º de Engenhos, folheou em vão o manual de conversação corrente fornecido pelo exército a fim de descobrir ”uma frase doce” que pudesse dizer à bela rapariga que estava com ele. Haley realizou nesse momento toda a estupidez das concepções militares. ”Bolas! Seja como for, não posso dizer a esta rapariga: Você tem ovos?”

O sargento Ken Davis, da Pensilvânia, esse aprendera de cor uma simples frase. Era: ”Você é muito bonita.”

No meio da alegria, do entusiasmo e das gargalhadas dessa noite de delírio, ninguém reparou no G. M. C. coberto que subia a Avenida de Itália. No interior, um dos passageiros do camião levantou discretamente uma ponta da lona e deitou uma espreitadela para o carnaval que decorria lá fora. Viu assim um soldado americano pendurar-se para fora da torrinha do seu carro e içar para ele uma rapariga, sob as aclamações da multidão. Tristemente, Dietrich von Choltitz deixou cair a ponta da capota e soltou um suspiro. ”Desta vez - pensou -, é toda uma época da minha vida que termina.” Ao seu lado, o coronel Hans Jay, varado pelo poderio do material americano que pudera entrever, tentou reconfortar Choltitz. ”Dentro de oito semanas - disse-lhe ele -, a guerra terá acabado.”

”Não é certo - replicou o general, melancolicamente. - Verá que há-de haver na Alemanha gente tão louca que se entrincheirará atrás de cada árvore para resistir até à morte.”

Depois, puxando uma fumaça do seu primeiro cigarro americano, Dietrich von Choltitz encostou-se aos taipais do camião e fechou os olhos. Ao deixar a cidade que, apesar de tudo, salvara da destruição, ignorava ainda que naquele momento rolava para um cativeiro que iria durar dois anos e oito meses.

Fatigados por tantas emoções e alegrias, os F.F.L, os soldados da 2.a D.B., os da 4a Divisão americana e todos os Parisienses acabaram por mergulhar no sono. A maior parte adormeceu nos locais onde se encontrava. O capitão Glenn Thome, do 12.º Regimento, teve por leito, nessa primeira noite de Paris libertada, o sítio mais inesperado: ”o rebordo dum pequeno lago cheio de crocodilos do jardim zoológico de Vincennes.” Não menos insólito foi o local onde o soldado Étienne Kraft, da 2.a D.B., se deitou finalmente, na companhia duma atraente rapariga loura chamada ”Kiki”. O único ”lugar íntimo” que ele conseguira encontrar perto da Escola Militar tinha sido uma carreta fúnebre. Em Aulnay-sos-Bois, um simpático casal francês convidou o sargento Bryce Rhyne para dormir nos ’lençóis brancos de neve da sua magnífica cama coberta por uma colcha de cetim”. O americano recusou, mas os franceses insistiram e ele aceitou. Por fim, quando os donos da casa saíram do quarto, Rhyne desceu as escadas na ponta dos pés e dirigiu-se ao seu jipe, para dele tirar os seus cobertores do exército. Estava tão sujo que não tinha ”coragem de estragar lençóis tão imaculadamente brancos”. No posto de socorros dos Inválidos, um ferido da 2.a D.B., o soldado Léandre Médori, via-se também num leito, pela primeira vez após meses. Antes, Médori implorara à sua gentil enfermeira que não o descalçasse, pois havia dez dias que não lavava os pés. E agora, no conforto morno e fofo da cama, o soldado não conseguia adormecer. Desse modo, Médori fez a única coisa que podia ajudá-lo a encontrar o sono. Saltou da cama e deitou-se no chão.

No hospital Marmottan, outro ferido da 2a D. B., que dormia profundamente sob o efeito dos anestésicos da sala de operações, acordou em sobressalto. De repente, um pesadelo acordara-o e enchera-o de pavor: as suas pernas. Chamando a si todas as suas forças, ergueu-se e olhou ansiosamente para dentro dos lençóis. Depois, soltando um suspiro de alívio, deixou cair novamente a cabeça sobre a almofada. O comandante Henri de Mirambeau, o oficial que tinha sido ferido, na Praça da Étoile, por uma granada traiçoeiramente lançada por um prisioneiro alemão, ficou tranquilo. Graças a Deus, ainda conservava as suas pernas.

Morto de cansaço, o capitão Georges Buis enfiou-se, nu, no seu saco de dormir e mergulhou no sono, sob a estátua do general Marceau, na Rua de Rivoli. Perto, nas Tulherias, Jean-René Champion estendeu-se ao comprido sobre as lagartas calcinadas do seu carro, o ”Mort-Homme”. Champion pensava nos seus camaradas mortos nesse dia e nos parisienses que tinham rasgado e desfeito os seus lençóis para fazer ligaduras para os feridos. Para esse francês da América, que, pela primeira vez, pisava o solo da capital da sua pátria, ”Paris já não era um sonho”.

As portas da cidade, distante do tumulto das celebrações, um G. I. solitário acrescentou algumas linhas no seu diário. Era o cabo Joe Ganna, o médico que dois dias antes ali escrevera: ”chuva sobre os nossos fardamentos, chuva no nosso café, chuva sobre as nossas cabeças.”

Hoje reformado, Choltitz vive modestamente da sua pensão em Baden-Baden. O endereço da sua pequena vivenda de quatro divisões é Frankreichstrasse, 27 (Rua de França, 27).

”Estas linhas deveriam ser escritas em Paris - escrevia ele -, mas ”eles” contentaram-se em fazer-nos atravessar a cidade. Havia mulheres e crianças que nos beijavam, homens que nos ofereciam tomates e vinho. Foi uma jornada maravilhosa, até cairmos novamente sobre os alemães. Então, recomeçou a eterna história, o tiroteio, mais homens mortos e feridos; foi preciso cavar buracos e metermo-nos lá dentro”. Entre os mortos estava um dos camaradas de Ganna. Era o soldado de 1.a classe ”Davey” Davidson. Tinha sido morto num terreno descoberto, perto duma fábrica. Quando Ganna voltara atrás para reclamar o seu corpo, já os F.F.I, o tinham enterrado. Dessa forma, ”Davey” dormiria para sempre nos limites dessa cidade na qual ele desejara encontrar finalmente ”uma noite de sono numa cama autêntica”.

Para a maior parte dos homens da 2.a D. B. e da 4.a Divisão americana que tiveram a sorte de viver esse dia fabuloso e de lhe sobreviver, a recordação de tantas emoções, de tanta ternura e beleza identificar-se-á sempre com a imagem duma mulher.

Para o sargento Tom Connolly, essa mulher foi ”uma linda loura de vestido branco” que avançava para ele na parada dum velho castelo onde o seu batalhão instalara o seu P.C. Chamava-se ela Simone Pinton e tinha 21 anos. Connolly contemplou os caracóis dourados que caíam sobre os seus ombros e achou que ela era a mais bela rapariga que encontrara desde que saíra dos Estados Unidos. O soldado lembrar-se-á sempre da primeira frase que a rapariga lhe dirigiu: ’’Posso lavar a sua farda? - perguntara ela num inglês indeciso. - Está muito suja.”

Ao ouvir estas palavras, Connolly sentiu-se ”desajeitado”, mudo, desmazelado, com uma barba horrenda e profundamente grato”. Ao cair da noite, Simone trouxe-lhe o uniforme que lavara. E, de braço dado, foram passear pelas vizinhanças. Connolly tinha a impressão, nessa noite, ”de trocar brindes com milhões de franceses”. Por toda a parte havia pessoas correndo para eles, rindo e gritando: ”Viva a América!”, ”Viva a França!”, ”Viva o Amor!”. Ofereceram-lhes vinho e flores, fosse o que fosse. Por fim, ambos se afastaram da multidão e penetraram numa grande planície. Então, o alto sargento desengonçado de Detroit e a bonita francesa de vestido branco largaram a correr, de mãos dadas, até ao cimo duma pequena
colina coberta de árvores. Rindo e brincando, deixaram-se cair sobre a erva. Por cima dele, Connolly via miríades de estrelas e, ao longe, no coração de Paris, a silhueta escura da Torre Eiffel. Simone pegou com ternura na cabeça do G. I. e poisou-a sobre os seus joelhos. Curvou-se e beijou-o, e as suas madeixas de ouro rolaram sobre a face dele. Depois, num gesto tão antigo como o amor, começou a acariciar-lhe os cabelos:

Esquece a guerra - disse num murmúrio -, meu pequeno Tom, esta noite esquece-te da guerra...”

 

                                     Capítulo décimo sexto

Finalmente, Paris despertou da sua primeira noite de liberdade. Moídos, com a cabeça pesada pelo dilúvio de tantas alegrias, de todas as emoções e de todas as loucuras triunfais da véspera, os Parisienses e os seus libertadores abrem os olhos para o vasto e brilhante sol que inunda a cidade nesse sábado, 26 de Agosto.

Enrolado numa cama, nos fundos da loja do salsicheiro Pierre Berthy, o tenente americano Bob Woodrum sente bruscamente o peso duma pesada mão sacudir-lhe um ombro. ”Os alemães!”, é o seu primeiro pensamento enquanto salta para fora do leito. Mas, na sua frente, Woodrum vê um jovem e elegante tenente americano.

Vamos, meu rapaz - diz o desconhecido -, acabaram-se-te as férias, estás de volta ao exército.”1

No quartel-general do V Corpo de Exército americano, na pequena povoação de Chilly-Mazarin, a 24 quilómetros de Paris, um coronel alemão aproxima-se do coronel Arthur Campbell e entrega-lhe um sobrescrito. É Hans Jay. ”Aqui tem a chave do quarto do general Von Choltitz no Hotel Meurice - disse simplesmente. - Ele trouxe-a por engano, e eu penso que não voltará tão depressa a precisar dela.”

A 400 quilómetros dali, na Alemanha, numa rua de Baden-Baden, Uberta von Choltitz, de xaile pelos ombros, precipita-se para a residência do velho amigo que lhe pedira que viesse ter com ele ’’ com a maior urgência’’. Quando ela entra, ele beija-a afectuosamente. Em seguida convida-a a sentar-se e revela-lhe o que acaba de ouvir nos boletins de notícias proibidos da B.B.C.: Paris caiu. E o locutor acrescentara: ”O general alemão comandante de Paris foi feito prisioneiro.”

Mas, antes de tudo, esse dia 26 de Agosto pertence a Charles de Gaulle. Ele deverá marcar a sua ”entrada oficial” em Paris. Durante toda a noite, a rádio repetiu a comunicação do grande desfile dos Campos Elíseos. Até a madrugada nascer, todos os pincéis da capital, profissionais ou amadores, pintaram em milhares de bandeirolas as palavras: ”Viva De Gaulle.” Era pois chegado o dia do seu ”encontro com a História.” E esse dia irá coroar uma cruzada de quatro anos e provocar um plebiscito popular do qual o chefe da França Livre extrairá a autoridade necessária para reduzir ao silêncio os seus adversários e reerguer a França.

De Gaulle entendia ser necessário que, para essa longa caminhada até Notre-Dame, a 2.a D.B. acompanhasse os seus passos. Era sua vontade que a presença dos seus carros e dos canhões mostrasse ao povo de Paris qual a autoridade com cujo apoio o seu Governo contava. Uma vez mais, sem se importar com a hierarquia do comando aliado, deu directamente ordem a Leclerc para concentrar as suas tropas para o desfile. Fez apenas uma única concessão: deixou que um agrupamento táctico desenvolvesse um movimento para nordeste, em direcção ao Bourget, onde fora assinalada a possibilidade dum contra-ataque alemão.

Jamais, na história de Paris, um desfile implicara em tão grande número de riscos. Nessa cidade por onde ainda se dissimulam os franco-atiradores alemães e ”colaboracionistas” em situação desesperada, nessa cidade às portas da qual bivacam ainda os elementos da retaguarda da Wehrmacht, muito superiores
em força ao pequeno destacamento da 2 .a D. B. e ao único regimento americano que o apoia, De Gaulle propõe-se reunir mais de um milhão de habitantes e toda a elite

 

1 Na véspera, no decorrer dum breve passeio por Paris, Woodrum cometera a imprudência de se apresentar no Q.-G. Provisório da Aviação Americana, no Hotel Wmdsor-Reynolds.

 

política do seu país. Nunca, desde que a armada aliada se apresentara diante das costas normandas, os aviões de Goering tinham tido ao seu dispor alvo mais tentador. Bastariam alguns aviões e um destacamento de ”comandos” blindado com alguma coragem para que o contra-ataque alemão, desembocando nos Campos Elíseos, transformasse uma manifestação triunfal numa catástrofe de consequências incalculáveis.

E, no entanto, De Gaulle decidira correr esses riscos. Na precisa hora em que a vaga de entusiasmo desencadeada pela Libertação agita ainda Paris, ele quer impor sem demora a sua autoridade. Está em jogo o seu próprio futuro político e, também, o futuro da própria França.

A audaciosa decisão do general provoca imediatamente um conflito com os americanos. Às dez horas da manhã, ignorando as ordens dadas por De Gaulle, um oficial do V Corpo de Exército, ao qual pertence a 2.a D.B., traz ao P.C. de Leclerc as instruções do comando aliado para o dia 26 de Agosto. Preocupado e inquieto por saber os flancos de Paris expostos a uma reacção alemã, o general Leonard T. Gerow, comandante do V Corpo, ordena à divisão francesa que vá, sem demora, tomar posições nos limites do Nordeste da cidade.

Mas, pouco depois, o 1.º Exército recebe do seu V Corpo esta mensagem desenganadora: ”O general De Gaulle ordenou a Leclerc que desfilasse com as suas tropas desde o Arco do Triunfo até Notre-Dame. O estado-maior da divisão francesa, furioso por se ver afastado da linha de operações, declara que Leclerc recebeu ordens terminantes e que este é obrigado a executá-las. A 2.a D. B. estará por conseguinte tão absorvida que não se poderá contar com ela para qualquer acção de urgência durante, pelo menos, doze horas, ou talvez mais.’’

Gerow teve conhecimento da notícia ao regressar duma visita de inspecção. Encolerizado, sufocando de raiva, redige pelo seu próprio punho uma nota brutal a Leclerc: ”O senhor encontra-se sob o meu comando, e não pode aceitar ordens de mais alguém. Tive conhecimento de que o general De Gaulle lhe tinha ordenado que mandasse desfilar as suas tropas esta tarde, às 14 horas. O senhor não deverá cumprir essa ordem e prosseguirá no cumprimento da missão actual que lhe foi destinada, isto é, a limpeza dos ninhos de resistência de Paris e dos arrabaldes. As tropas colocadas sob o seu comando não participarão em qualquer desfile esta tarde ou em qualquer outro momento, a menos que para tal recebam uma ordem pessoalmente assinada por mim.”

Leclerc, apanhado entre dois fogos, não hesitara.
O seu chefe supremo é De Gaulle. Contudo, para evitar um rompimento brutal com o V Corpo, age de maneira a não estar presente no seu P.C. quando chegam as notas com que Gerow o bombardeia. Desgraçadamente, um tenente-coronel do estado-maior do general americano acaba por encontrá-lo, num restaurante próximo dos Inválidos. O oficial entrega-lhe as ordens manuscritas do comandante do V Corpo e acrescenta que, se a Divisão tomar parte no desfile, o general americano considerará essa falta de obediência como ”um acto característico de indisciplina”. Farto com tudo aquilo, Leclerc conduz o oficial americano à presença do próprio De Gaulle.

 

”Emprestei-vos Leclerc - declara majestosamente o general -, parece-me que poderei reavê-lo por algumas horas.”

GS.VCorpoF.U.S.A. -26-8-44 -11.30 h.

 

Enquanto em Paris se concluem os preparativos para o triunfal desfile, em Margival o telefone começa a retinir incessantemente no quartel-genera’l do Grupo de Exércitos B. É a linha ”Blitz” chamando o gabinete do Feldmarschall Model. Mas o marechal está ausente. Pela primeira vez desde que regressou da longa viagem de inspecção às unidades, feita quando assumira o comando, o franzino marechal saíra do seu Q.-G. Acaba de partir para uma inspecção’ às tropas que ele reagrupa, nos arredores de Compiègne.

Do outro lado da linha, o coronel-general Alfred Jodl fica perplexo. De facto, era sua intenção falar pessoalmente com o marechal Model, e isso por indicação expressa de Hitler. Depois duma breve hesitação, Jodl reclama a presença ao telefone do adjunto de Model, o general Hans Speidel, chefe de estado-maior do Grupo de Exércitos B. Speidel pega no telefone. O Fúhrer, declara Jodl, ordena que o ataque que mandara preparar na véspera, quer dizer, o bombardeamento de Paris pelos foguetões VI e V2, se efectue imediatamente. O Fúhrer exige que todas as rampas de lançamento de armas V localizadas no Pas-de-Calais, no Norte da França e na Bélgica façam chover sobre Paris um dilúvio de VI e de V2.

Jodl informa seguidamente Speidel de que o estado-maior da 3.a Força Aérea da Luftwaffe, com base em Reims, recebera, por seu turno, ordem para desencadear um ataque aéreo sobre Paris ”com todas as forças que se encontram à sua disposição”. Speidel garante que as instruções do Fúhrer serão imediatamente transmitidas, e desliga. Assim, no momento em que um milhão de pessoas converge para o coração da capital da França, um general alemão, de tez macilenta, com uma expressão de grande fadiga, põe, perante si próprio, a questão mais dolorosa da sua vida, um dilema do qual sairá ou não a sobrevivência duma cidade inteira. Speidel sabe que se Model se encontrasse no seu gabinete no momento em que fora recebida a chamada de Rastenburgo, não teria decorrido sequer uma hora antes de as primeiras bombas voadoras VI e V2 começarem a zumbir no céu de Paris. Mas Speidel tomou rapidamente uma decisão: considerando que a ordem era insensata, agora que Paris cairá, não a fará seguir. Mas, sete dias mais tarde, o general Speidel será preso pela Gestapo ’.

Durante esse tempo, fumando tranquilamente um Craven, no seu gabinete do Ministério da Guerra, De Gaulle justifica a importância do desfile cujo espectáculo vai oferecer aos Parisienses e ao Mundo. O seu interlocutor é o comandante Robert J. Levy, que acaba de ser incumbido duma desagradável missão: apresentar-lhe as objecções que o general Gerow opõe a essa iniciativa.

Do ponto de vista militar, reconhece De Gaulle, Gerow tem razão. Admite que os riscos que vai correr são ”grandes”. Mas, acrescenta De Gaulle, ”este desfile é necessário, pois o objectivo vale bem a pena.”

”Este desfile - conclui ele após uma pausa - , fará a unidade política da França.”

 

1 No entanto, nem Speidel nem a O. K. W. tinham conhecimento do desfile que devia efectuar-se nesse dia em Paris. É fácil imaginar o terrível massacre que se teria registado se Speidel tivesse transmitido a ordem de Hitler e dado instruções para se efectuar o bombardeamento de Paris com VI e V2.

 

                                     Capítulo décimo sétimo

Solitário, solene, dominando do alto da sua estatura a multidão que o rodeia, Charles de Gaulle está perfilado perante o túmulo do Soldado Desconhecido. Inclinando-se sobre a pedra nua, depõe nela uma coroa de gladíolos vermelhos. Em seguida, executa um gesto que ninguém, desde o dia 14 de Junho de 1940, pôde fazer sem ser em presença do invasor: reaviva a chama eterna, enquanto pela abóbada triunfal ressoa o toque aos Mortos seguido da ”Marselhesa”. O general dirige-se depois para os tanques e veículos blindados alinhados à volta da Étoile, aos quais vai passar revista. Apinhados sobre os passeios, nas varandas, nos telhados, milhares e milhares de parisienses aclamam-no, cada vez mais entusiástica e intensamente. O general volta depois ao Arco do Triunfo e imobiliza-se uma vez mais. Durante breves instantes contemplou os Campos Elíseos. Até ao Obelisco, 1800 metros mais baixo, ao longo de toda a avenida, uma multidão imensa comprime-se sobre o pavimento. O céu está azul, sem nuvens. O sol de Agosto ardente ilumina o oceano multicor de bandeiras, de vestidos de Verão, de bandeirolas. Charles de Gaulle vai viver um momento de triunfo, como talvez jamais algum homem na história do Mundo viveu.

E, no entanto, não ignora que a todo o momento um ataque aéreo alemão pode vir transformar esse espectáculo triunfal numa horrível tragédia, da qual os seus adversários se sentiriam felizes por poderem incriminá-lo. Mas, admirando o espectáculo imponente da multidão imensa que tem perante si, De Gaulle acredita nesse momento na ”fortuna da França’’ e no seu destino. Um automóvel da polícia desce lentamente a avenida e participa, pelos altifalantes, que De Gaulle ’confia a sua segurança ao povo de Paris”. Quatro tanques da 2.a D.B. arrancam então, num estrondo metálico, e abrem o cortejo. De ambos os lados da avenida, F. F. I., agentes de polícia e bombeiros dão-se os braços, numa interminável cadeia que contém a multidão. A retaguarda de De Gaulle estão reunidos os chefes da nova França: Leclerc, Juin, Koenig, os chefes da Resistência, os membros do C.N.R., do C.P.L., do C.O.M.A.C., Parodi, Chaban-Delmas...

De Gaulle volta-se para eles e dá uma ordem: ”Meus senhores, a um passo atrás de mim.” Então, a pé, só, à frente de todos, sob a trovoada de aplausos e de ovações que rolam para ele e aumentam à medida que ele avança, Charles de Gaulle inicia a sua marcha triunfal. Tão longe quanto a sua vista alcança, apenas se vê uma enorme massa humana densa e viva,
ao sol. Caminhando a largos passos, o general levanta e baixa os braços, saudando a multidão no mesmo gesto, cem vezes repetido.

Atrás dele, misturados numa coorte díspar, os seus fiéis e os seus adversários avançam sobre os seus passos. Foi o próprio De Gaulle quem quis essa aparente desordem. Nessa entrevista histórica, nada, nem hierarquia, nem protocolo se deve interpor entre o povo da França e ele.

Ao longo da mais bela avenida do Mundo, a multidão transborda dos passeios, sobe às árvores, agarra-se aos candeeiros, pendura-se das janelas. Verdadeiros cachos humanos pendem das fachadas dos prédios. As varandas estão apinhadas. E os próprios telhados foram invadidos. A passagem do general desencadeia uma tempestade de vozes que gritam a compasso, interminavelmente, o seu nome. Há raparigas que se atiram para a sua frente e lhe oferecem ramos multicores, que ele entrega aos que o seguem, pessoas que desmaiam sob os efeitos conjugados do entusiasmo e do sol.

No âmago dessa multidão que, segundo ele crê, nada mais é do que ”um só pensamento, um único impulso, um grito uníssono’’, à vista dessas crianças que aclamam a sua alegria, dessas mulheres que lhe lançam ”vivas” e palavras de incitamento, desses homens que lhe gritam ”obrigado”, dessas pessoas de idade que choram, Charles de Gaulle, alvo de todo esse desencadear de emoções, sente-se, mais do que nunca, o instrumento do destino da França’’.

Mas nem sempre há alegria sem qualquer outra coisa. No instante em que De Gaulle chega à Praça da Concórdia ressoa um tiro. Como se o barulho do disparo fosse um sinal, o tiroteio rebenta imediatamente de todos os lados. Milhares de pessoas atiram-se para o solo, ou correm a refugiar-se por detrás dos carros e dos half-tracks. O sargento Armand Sorriero, o americano que tinha vindo rezar a Notre-Dame com a sua espingarda, abriga-se atrás do seu jipe. Arriscando uma espreitadela, o veterano de Omaha Beach sente-se repentinamente ”envergonhado” do seu medo. Mesmo na sua frente, vê passar De Gaulle, indiferente à fuzilaria, ”muito hirto e muito alto”. Sorriero pensa então: ”ele conserva-se direito pelo seu país.”

No outro lado da praça, o tenente Yves Ciampi, da 2.a D.B., teve a mesma reacção instintiva de Sorriero. Acocorou-se atrás dum blindado. Mas, de repente, sente a ponta duma bengala enterrar-se-lhe entre as costelas. Um ancião, de ar distinto, observa-o com censura e diz-lhe: ”Senhor oficial, com a sua idade deveria erguer-se e ir acabar com este tiroteio ridículo.’’

O tripulante dum tanque grita, de cima do seu carro de assalto: ”Meu Deus, é a quinta coluna!” Ao ouvir estas palavras, o artilheiro do carro aponta o seu canhão para a frontaria do Hotel Crillon e faz fogo. Numa nuvem de poeira, a quinta coluna do Hotel Crillon desmorona-se.

Quase no mesmo momento, um americano batia desenfreadamente a uma das portas da torre norte de Notre-Dame. Um padre da catedral tinha prometido ao tenente Burt Kalisch que o autorizaria a subir à torre para fazer fotografias da cerimónia do ”Te Deum” que ia começar dali a pouco. Kalisch ouvia vozes por detrás da porta cerrada. Continuou a bater. Finalmente apareceu um civil em mangas de camisa, de barba por fazer. Numa voz furiosa, gritou qualquer coisa em francês e em seguida fechou de novo, bruscamente, a porta. Kalisch e o seu fotógrafo aguardaram alguns minutos. Pouco depois, os dois americanos ouviram tiros. Kalisch instintivamente levantou a cabeça. Por cima dele, na varanda da torre, viu nitidamente os canos de três espingardas, fazendo fogo sobre os fiéis que se aglomeravam na nave. Depois viu os canos desaparecerem. ”Senhor

- murmurou Kalisch - , vão assassinar De Gaulle.”

O automóvel descoberto para o qual De Gaulle subiu na Praça da Concórdia parou no Largo. Impassível e com ar grave De Gaulle apeia-se e duas rapariguinhas oferecem-lhe um ramo tricolor. Em seguida, encaminha-se para o grande portal do Juízo Final. Nesse momento, uma rajada de balas varre a Praça do Parvis. Os F.F.I, e os soldados da 2.a D.B. ripostam imediatamente, e despejam rajadas sobre os telhados e as torres da catedral. As balas ricocheteiam nas gárgulas e nas balaustradas e arrancam estilhaços de granito que vêm cair sobre a assistência. Os oficiais de Leclerc acorrem de todos os lados para fazer cessar o fogo. O próprio Leclerc, num gesto de impaciência, dá uma pancada com a bengala num dos seus soldados que dispara rajadas em todas as direcções.

De Gaulle, imperturbável, prossegue a sua marcha. No interior da igreja, na penumbra da nave, a assistência reunida para o ”Te Deum” ouvira as exclamações da multidão e, depois, os tiros. No momento em que De Gaulle passa sob o grande pórtico, soam disparos no próprio interior da catedral. O eco das vastas e altas abóbadas repercute as detonações, num rolar de trovão. Os fiéis, derrubando cadeiras e genuflexórios, espezinham-se e deitam-se de barriga no chão. De Gaulle, sempre à frente da sua comitiva oficial, percorre os 60 metros da nave no seu passo largo e tranquilo. Uma mulher, deitada debaixo dum banco, emerge prudentemente a cabeça para dizer: ”Viva De Gaulle”, e mergulha de novo no seu improvisado abrigo. No extremo da nave, Jeannie Steel, a secretária dum dos oficiais de estado-maior do general, exclamara: ”Os malditos mataram-no! ’’ Mas logo a seguir descobre o alto vulto surgindo à entrada da igreja e pensa: ”Quebelo alvo!” Vê-o então passar ”altivo e aprumado” através dum raio de luz que, trespassando a sombra das abóbadas, ”parece vir tocar-lhe no ombro como a lâmina duma espada”. Nesse momento, a jovem secretária, que nunca fora uma fervorosa gaullista, sente correr pelo seu rosto ”lágrimas de orgulho por esse homem”.

Quando chega ao transepto, De Gaulle vai ocupar calmamente o seu lugar de honra, à esquerda. Atrás dele, o general Koenig volta-se para a assistência. Contemplando com reprovação a multidão estendida ao comprido sobre as lajes, o vencedor de Bir-Hakeim grita: ”Não têm vergonha!? De pé, vamos!” De Gaulle, com o seu missal entre as mãos, canta com toda a força dos seus pulmões o Magnificat, enquanto o tiroteio continua a ressoar através da catedral.

Depois, abreviando a cerimónia, De Gaulle sai da catedral, no mesmo passo regular com que nela entrara, e entra para o seu automóvel.

Nada, nenhum acto, nenhuma palavra podiam, nesse dia histórico, valer a Charles de Gaulle mais admiração da parte dos seus compatriotas do que essa demonstração pública de coragem e de presença de espírito. ”Agora - telegrafou um correspondente de guerra americano que seguira o general durante toda a manifestação - De Gaulle tem a França nas
mãos!”

No entanto, uma interrogação subsistia. Quem fizera fogo dentro de Notre-Dame? Houve muitos gaullistas que suspeitaram não terem sido apenas alemães à paisana e membros da Milícia de Vichy os únicos responsáveis por esse tiroteio’.

Até hoje, o mistério não foi ainda completamente esclarecido. Supôs-se, primeiro, que o tiroteio tinha sido provocado pelos milicianos e por alemães que tivessem permanecido em Paris para semear o pânico entre a população. O argumento a favor dessa teoria era que a fuzilaria estalou simultaneamente em diversos bairros de Paris. No entanto, não se conseguiu apanhar qualquer atirador de arma na mão. Três homens que rondavam por detrás de Notre-Dame foram presos. Um deles foi morto pela multidão, e não se conseguiu provar que os outros dois tivessem tomado parte no tiroteio. Alguns franco-atiradores foram apanhados e fuzilados ou linchados sem sequer serem interrogados. De Gaulle disse, a este respeito, a Achille Peretti, o encarregado do seu serviço de segurança: ”Estes imbecis disparam para o ar!” Como muitas outras testemunhas, também De Gaulle reparara que nunca se ouvira o assobiar das balas. Contudo, no dia 26 de Agosto, os hospitais de Paris receberam cerca de 300 feridos, do qual um largo número por balas (os outros, por fracturas ou contusões provocadas por esmagamento pela multidão). É verdade que o pânico e a extensão do tiroteio foram em grande parte motivados pelo fogo desordenado dos F.F.I, e dos homens da 2.a D.B., ripostando aos tiros que eles supunham dirigidos contra eles. Sobre este assunto, a Prefecture fez um relatório que não apresentava qualquer conclusão precisa.

Houve quem viesse a crer que os tiros de Notre-Dame tinham sido trocados.

Na ponte do Double, dois jovens coronéis observavam os soldados que varriam com balas os telhados em volta da catedral. ”Parece-me bem - diz o coronel Rol ao coronel de Guillebon - que os seus homens não estão acostumados aos combates de mas...”

”Não, de facto - replica Guillebon tranquilo e arrogante ao chefe da insurreição parisiense -, mas, acredite-me, vão passar a está-lo.”

 

                                          Capítulo décimo oitavo

Podia haver interrogações no espírito daqueles que mais de perto o rodeavam, mas De Gaulle não nutria qualquer dúvida a esse respeito. A fuzilaria que saudara a sua passagem era obra dos comunistas, tinha ele a certeza. No seu automóvel, enquanto regressava ao Ministério da Guerra, aqueles que o acompanharam puderam ouvi-lo resmungar. ”Pois é verdade, meus senhores, existem neste país forças que estão prontas a suprimir-me para conquistar o Poder.” Na pior das hipóteses, pensava De Gaulle, os tiros disparados tinham tido por objectivo matá-lo; na melhor, eram destinados a semear as sementes do caos que servira as ambições políticas dos seus adversários’. Quando penetrou novamente no edifício do Ministério da Guerra, De Gaulle tomara já uma decisão. As aclamações da multidão tinham demonstrado o enorme apoio de que ele dispunha, e o tiroteio o perigo que corria. Decidiu portanto servir-se sem demora do primeiro para pôr termo as do segundo. A sua primeira decisão foi desarmar os F. T. P. e fragmentá-los em pequenas unidades que seriam incorporadas no exército regular e sujeitas à disciplina militar.

Algumas horas mais tarde, o general Koenig confidenciou ao coronel Richard Vissering, do S.H.A.E.F.: ”Em Paris, neste momento, o maior perigo reside nos F.F.I.” De Gaulle, disse, queria ”tornar obrigatório o uso do uniforme aos elementos mais incómodos e impor-lhes uma disciplina militar”. Para o fazer, Koenig pediu a Vissering 15000 uniformes ”com a maior urgência”.Vissering apoiou o pedido de Koenig, informando o S. H. A. E. F. do seguinte:

A situação debaixo do ponto de vista da segurança pública é alarmante. Cidadãos de todas as categorias vivem no receio de ser presos por um grupo ou por outro. Acredita-se que a maior parte desses grupos têm um carácter politico, sendo o mais poderoso dentre eles o grupo comunista. A região (de Paris) encontra-se portanto na iminência de se tornar presa do terrorismo e a opinião geral espera que, dum momento para o outro, estale uma guerra civil.

polícias zelosos em excesso. Os testemunhos de Kalish e do fotógrafo Smith tendem, no entanto, a provar o contrário. Outras pessoas continuam convencidas de que o tiroteio foi obra de elementos comunistas. Estes teriam procurado dessa forma fazer reinar uma atmosfera de insegurança, da qual se serviriam para justificar a manutenção armada das Milícias Patrióticas, inteiramente dominadas pelo Partido.

Não tendo realmente ouvido o assobio das balas perto
de si, De Gaulle, nas suas ”Memórias”, optou pela segunda hipótese. (Vol. II, pág. 315.)

 

De Gaulle escreveu a Eisenhower para lhe dizer que era absolutamente necessário deixar a 2.a D.B. na capital até que a ordem estivesse completamente restabelecida. No dia seguinte, combinou com Eisenhower fazer desfilar pela cidade uma divisão americana, a fim de mostrar à população a extensão do apoio aliado de que dispunha’.

Dois dias depois, De Gaulle anunciará a dissolução dos escalões superiores do comando F.F.I, de Paris, e declarará que ”os elementos F.F.I, que possam ser utilizados’’ serão incorporados no exército. Todas as armas seriam entregues nos serviços do general Koenig.

O C.N.R., em vez do Palácio Nacional a que aspirava, vê atribuírem-lhe um palacete particular, requisitado a um lord.

Efectuará aí algumas reuniões, antes de, rapidamente, cair no esquecimento. Bem entendido, De Gaulle não ”assistirá” a qualquer dessas reuniões. Concederá aos membros do C. N. R. uma breve audiência. No decorrer dessa entrevista, estes exprimiram-lhe a intenção de transformarem o seu organismo num órgão permanente, que funcionaria paralelamente à sua autoridade. Eles desejavam igualmente, declararam, depor nas mãos do C.O.M. A.C., na sua qualidade de organismo militar, o domínio das milícias populares. De Gaulle respondeu-lhes, delicada mas secamente, que o C. N.R. pertencia já à História. Competia à polícia, disse, assegurar a manutenção da ordem pública. As ”milícias populares”, comunistas ou outras, já não tinham razão de ser. Assim, foram dissolvidas, bem como o C. O. M. A. C., cujos membros De Gaulle nem sequer se dignou receber. Dirigindo-se, uns dias mais tarde, a uma delegação de 20 chefes da Resistência de Paris, contentou-se em fazer alguns comentários elogiosos sobre a sua coragem. Em seguida, declarou ao seu ajudante-de-campo: ”Eles têm muitos coronéis.”

’’O ferro estava quente - escreveria De Gaulle, com ironia, mais tarde -. e eu malhava-o.”

 

                                           Capítulo décimo nono

Um surdo ronronar de motores enchia a noite. Vindo de nordeste, o ruído seguia o curso do Marne. Pouco depois, fazia vibrar as janelas das pequenas casas da povoação de May-en-Multien, a 75 quilómetros de Paris. Do seu observatório, no cimo do campanário romano da igreja de Nossa Senhora da Assunção, o velho Feldwebel viu aproximarem-se os aviões: dezenas e dezenas de aparelhos, asa com asa, cruzavam o céu apenas 300 metros acima da sua cabeça.

A nordeste da capital, a partir do parque do velho castelo onde o general Hubertus von Aulock instalara o seu novo quartel-general, o capitão Theo Wulff, o seu ajudante-de-campo, observou também a passagem da esquadra aérea. Ao ouvir o barulho dos motores, Wulff atirara-se para dentro duma trincheira. Esse veterano da batalha da Normandia não ignorava que o céu da França pertencia, sem contestação, aos Aliados. Wulff escutou atentamente

 

1 Eisenhower designou a 29.a Divisão de Infantaria, a qual desfilou nos Campos Elíseos, depois do que, no próprio dia, foi combater nos arrabaldes norte da capital.

 

o barulho atroador das máquinas. A sua cadência pareceu-lhe diferente da dos Marauders e dos B. 17, à qual já estava habituado. Wulff considerou que ela mais parecia a dos bombardeiros Heinkel. Mas o capitão achou que Luftwaffe já não estava em situação de concentrar tão grande número de aviões, como o que ele via desfilar nessa noite sobre a sua cabeça. Mas enganava-se.

A 3.a Força Aérea alemã regressara, de facto, para uma breve e derradeira incursão pelos céus da Ile-de-France. Treze dias depois de ter dado as primeiras ordens para a defesa de Paris, 24 horas após a queda da cidade, Adolf Hitler ia oferecer à capital francesa uma séria amostra do que tinha projectado para ela. Speidel retivera as VI e V2. Mas a Luftwaffe do coronel-general Otto Dessloch, essa nunca discutia as ordens do seu Fúhrer.

Wulff ouviu o ronronar dos aviões extinguir-se em direcção ao sul. A esquadra da última hora, cerca de 150 aparelhos, mudou de rumo sobre o bosque de Vincennes. Minutos depois, Wulff ouviu, longínquas e abafadas, as primeiras explosões das bombas. Logo a seguir, subindo no horizonte, viu os clarões avermelhados dos incêndios ateados pelos projécteis incendiários. Wulff estava abismado. E, melancolicamente, pensou: ”Certamente nunca mais verei passar no céu tantos dos nossos aviões ao mesmo tempo.’’

 

Paris que, na sua incorrigível infantilidade, considerara a guerra terminada, visto ter sido libertada, ouviu, com uma surpresa incrédula, o mugir das sirenes. Por toda a cidade as luzes estavam acesas, as pessoas dançavam nas ruas, os cafés e os bares vibravam com gargalhadas. As primeiras bombas caíram ainda as sereias uivavam.

Perto do castelo de Vincennes, num bailaríco de bairro, o cabo Bill Mattern, do 20.° batalhão de artilharia de campanha, tinha começado a dançar com uma bonita ruiva quando ouviu os aviões. A rapariga e todas as outras jovens desapareceram imediatamente, ”abandonando 50 soldados furiosos no meio da praça”. O capitão Bill Mills, o oficial que trocara dois maços de Camel por uma planta de Paris nas ruas de Longjumeau, encontrava-se no P.C. do seu batalhão quando os bombardeiros surgiram. Instalara o seu P.C. num café-dancing, perto do lago Daumesnil. Horas antes, Mills descobrira que o local tivera uma utilização bem diferente antes da chegada do seu batalhão. Na realidade, o café-dancing era um lupanar. Acocorado sob uma mesa, no meio do estrondo das bombas que caíam em volta, Mills recorda-se de ter feito uma oração meio sincera, meio irreverente: ”Meu Meus, se me fizerdes sair daqui, escolherei de futuro com mais circunspecção o P. C. do meu batalhão.’’

Ao regressar às Tulherias, onde os seus carros estavam estacionados, o capitão George Buis ouviu um murmúrio difuso subindo de todos os cantos do jardim. Enquanto, às apalpadelas, se dirigia para o Sherman, um avião alemão lançou, por cima da sua cabeça, uma bomba iluminante. Uma claridade brusca banhou então o jardim, e Buis compreendeu imediatamente qual a origem dos ruídos que acabava de ouvir: junto a cada tanque, os homens do seu regimento e as suas companheiras amavam-se freneticamente, sem se preocuparem com as bombas.

No mesmo instante, o estado-maior apercebia-se duma realidade dolorosa: em toda a cidade de Paris, prenhe de armas e de veículos militares, não havia um único canhão da D. C. A. Dessa forma, os aviões do general Dessloch iriam sobrevoar a cidade a baixa altitude, durante meia hora, sem receberem um único obus. Ao fim de vinte minutos, uma dezena de grandes incêndios ateavam-se na noite. O mais importante dentre eles era acompanhado pelo estrondo da garrafas estalando. Era o Mercado dos Vinhos em chamas. No fim do bombardeamento contar-se-ão 213 mortos e 914 feridos. 593 imóveis terão sido destruídos ou seriamente danificados.

No quartel de bombeiros do boulevard de Port-Royal, onde estava preso, o conde Von Arnim ouvia um ruído ainda mais inquietador que o do bombardeamento. Eram os uivos, os berros duma multidão enfurecida que avançava para a caserna. Arnim ouvia, agora distintamente, as vozes gritando: ”À morte! A morte! Entreguem-nos os boches!” Pouco depois, começaram a chover pancadas no grande portão do quartel, quatro andares abaixo. Arnim sabia que o punhado de bombeiros que guardavam os prisioneiros não poderia resistir por muito tempo ao assalto da multidão enraivecida. O jovem oficial aproximou-se então do vão da escada, olhou para o vácuo e prometeu a si próprio atirar-se dali se a multidão conseguisse invadir o quartel. Preferia ir esmagar-se nas lajes de cimento, quatro andares mais abaixo, a ser feito em pedaços pela horda vingativa de parisienses.

No exterior, os gritos intensificavam-se, tornados numa ensurdecedora tempestade de ódio. Arnim escutava a multidão procurando arrombar o portão. De repente, mais fortes que os estrondos do bombardeamento e os clamores da turba, o jovem oficial ouviu o fragor contínuo das lagartas dos carros mordendo o pavimento da rua. Correu para uma janela e viu seis tanques de estrela branca tomarem posição em frente do quartel de bombeiros. Para o antigo ajudante-de-campo do general Von Choltitz, nesse dia 26 de Agosto de 1944 o massacre de S. Bartolomeu não iria ter uma repetição.

Não longe dali, dois homens corriam, descalços, por um longo corredor dos Inválidos. Chegaram a uma janela que dava para o vasto terreiro. Aí, lado a lado, Pierre Koenig e Philippe Leclerc assistiram com uma raiva surda ao bombardeamento alemão que fazia arder Paris. Então, o ”jovem leão impaciente” que dois dias antes lançara para a frente os seus tanques, numa corrida louca para salvar Paris da destruição, não encontrou, para exprimir a sua cólera, senão uma palavra indefinidamente repetida: ”Malandros, malandros, malandros...”

Da janela duma antecâmara do Ministério da Guerra, o tenente Claude Guy contemplava também os clarões do incêndio. De tempos a tempos, a explosão duma bomba provocava um feixe de labaredas, que se prolongava depois num esguicho de faíscas salpicando a noite. Dos prédios da rua vizinha chegavam até ele, sobrepondo-se ao estrondo das deflagrações, fragmentos de risos despreocupados. Porque, ali perto, os parisienses continuavam a celebrar a grande festa da Libertação, como se nada pudesse alguma vez vir a pôr-lhe fim.

Guy sentiu, de repente, uma presença na sombra, a seu lado. Era De Gaulle. O general, com uma expressão preocupada, contemplou durante alguns instantes, em silêncio, o espectáculo avassalador. Depois, apurou o ouvido para escutar as gargalhadas que trespassavam a noite e o rebentar das bombas.

Ah - suspirou ele -, esta gente imagina que, visto Paris ter sido libertada, a guerra terminou. Pois bem, como você vê, a guerra continua e o mais difícil está ainda por fazer. A nossa missão apenas começou.’’

Em seguida, sem qualquer sinal de emoção, De Gaulle afastou-se da janela e mergulhou na escuridão da sala, dirigindo-se para o seu gabinete. À luz dum candeeiro de petróleo, retomou o trabalho que ainda ’’apenas começara’’.

Paris tinha sido libertada quinze dias antes da data prevista nos planos de estado-maior aliado. Antecipando-se às previsões dos Aliados, ultrapassando as esperanças dos seus partidários e os receios dos seus adversários, De Gaulle fora pontual na sua entrevista com a História.

Nessa noite, enquanto os outros dormiam, ele trabalhava. Era meia-noite.

E já um novo dia começava.

No dia 26 de Agosto, às 12 horas e 45, três dias depois da capitulação do general Von Choltitz, o Feldmarshall Model, comandante-chefe a Oeste, dirigia esta mensagem ao estado-maior de Hitler:

28.8.44-12.45 P. C. Blitz

Destinatários: O.K. W., E.M. de Comando Assunto de comando Transmitido apenas por um oficial Ultra-secreto

ao E. M.: l.a Rep., juiz do Grupo de Exércitos

3.a rep. (original)

1 .a cópia para o Grupo de Exércitos B

Solicitei ao presidente do Tribunal do Reich que seja aberto um processo criminal por indisciplina contra o general do Corpo de Exército Von Choltitz e os seus cúmplices.

O general Von Choltitz não correspondeu ao que dele se esperava na sua qualidade de defensor de Paris.

Não posso dizer se o seu desfalecimento foi devido a uma lesão provocada por um engenho de guerra ou a um amolecimento da sua vontade e do seu espirito de decisão causados por uma intervenção inimiga, de armas especiais, por exemplo. Não se deve esquecer que esta eventualidade não pode ser posta de parte de ânimo leve.

assinado: Marechal Model

Cte.-chefe a Oeste

3.a Repartição n.º 770/44 secreto 

              

                                                                  Dominique Lapierre e Larry Collin 

 

 

                      

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