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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PASSAGEM PARA PONTEFRACT / Jean Plaidy
PASSAGEM PARA PONTEFRACT / Jean Plaidy

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Inglaterra, século XIV. O Príncipe Negro, herói do povo, está morto, e Eduardo iII, seu pai, tornou-se um velho senil. O trono agora será ocupado por um menino, Ricardo de Bordeaux, cercado de parentes ambiciosos e nada confiáveis. Esta reviravolta histórica dá início a Passagem para Pontefract, o décimo volume da Saga dos Plantagenetas, na qual Jean Plaidy conta a trajetória da monarquia medieval inglesa sob a dinastia iniciada em Geoffrey V, o Belo, e que durou mais de três séculos. Neste episódio, o tom é dado pelas intrigas palacianas e pelas relações perigosas entre os nobres e suas amantes. Extravagante e elitista, Ricardo ama duas rainhas: Anne da Boémia, com quem se casa, e a frágil Isabella. O rei tem sua autoridade constantemente ameaçada, mas consegue salvar a Inglaterra de uma revolução e ganha prestígio. Logo passa a enfrentar a oposição de cinco lordes que querem tirá-lo do poder.

De quatro ele consegue se vingar, mas o quinto, seu primo Henrique de Bolingbroke, mais esperto do que os outros, está

decidido a levá-lo à ruína.

 

 

 

 

LONDRES ESTAVA com espírito festivo naquele magnífico dia de maio. Eram poucas as coisas de que os cidadãos gostavam mais do que um acontecimento régio, e aquele prometia ser um dos mais esplendorosos que a capital já vira até então. O rei adorava a exibição - quanto mais magnificente, melhor. Aquela era uma de suas qualidades de que as pessoas gostavam. Uma fraqueza, talvez, mas uma fraqueza adorável, tida por um homem que diziam ser o maior guerreiro da cristandade e cuja reputação era tão ilustre quanto a de seu avô, o grande Eduardo, o primeiro a usar aquele nome.

Três dias antes, o filho do rei - aquele que era conhecido como John de Gaunt porque nascera de Eduardo e da boa rainha Filipa na cidade flamenga de Ghent, e os ingleses, desprezando línguas estrangeiras, achavam Gaunt mais fácil de pronunciar do que Ghent casara-se em Reading com Blanche, filha do duque de Lancaster.

Todos concordavam que a união de dois belos jovens era motivo de celebração, em especial por serem os dois de sangue real, porque Blanche descendia da árvore Plantageneta, exatamente como John; e os pais da noiva e do noivo eram venerados por todo o país.

Henry de Lancaster, o pai da noiva, era conhecido na Inglaterra - e na Europa, também - como o bom Duque Henry, o cavaleiro perfeito. Ele era fidalgo o tempo todo, generoso para com os inimigos, leal aos amigos, um homem profundamente religioso, e seu avô tinha sido Edmundo H, filho de Henrique El.

Quanto aos pais do noivo, eram adorados pelo povo como poucos monarcas tinham sido até então. Os súditos deviam sentir-se orgulhosos daquele rei alto e bonito que muitos diziam ser a imagem do avô e ligeiramente mais baixo do que Eduardo Pernas Longas, cuja reputação tinha sido ampliada pela memória. Aquele Eduardo tinha todos os itens que formavam a beleza Plantageneta - os abundantes cabelos louros, o nariz reto, os brilhantes olhos azuis, o belo físico. Além do mais, trouxera estabilidade ao país, e sua popularidade era tal que as pessoas tinham se esquecido de que as glórias de Crécy e Poitiers tinham sido pagas não só com sangue, mas com impostos arrancados do povo, e que a conquista do trono da França não estava mais perto do que estava no início da guerra. Ele se casara com Filipa de Hainault, de cuja benevolência o povo tomara conhecimento, e até no casamento Eduardo mostrara bom senso. Filipa podia estar rechonchuda além do normal e mostrar sinais de partos contínuos e nada ter de bonita, mas seu rosado frescor lhe caía muito bem, e a expressão do seu rosto era de uma suave boa vontade. Sabia-se que em várias ocasiões ela implorara ao rei que mostrasse misericórdia, porque ele, como a maioria dos de sua raça, possuía um génio que se tornava violento quando provocado; e por essa qualidade, ela fora profundamente respeitada. Ela era feminina; era virtuosa; e também conhecida como a Boa Rainha Filipa.

A devoção que um dedicava ao outro fora um exemplo para o país, e se ultimamente circulavam rumores de que o rei já não era bem o marido fiel que de modo geral as pessoas acreditavam que fosse antes, as insinuações eram esquecidas quando o casal real aparecia junto.

Londres estava encantada com seu governante; e todos os governantes inteligentes sabiam que a aprovação da cidade capital era essencial à segurança deles. Sim, eles amavam aquele rei que sabia sair-se muito bem nas justas nas quais ele tanto gostava de participar, e gostavam de vê-lo brilhando com as jóias com as quais ele tanto gostava de adornar sua bela pessoa.

Não só ele restaurara o prestígio da Inglaterra, que ela perdera durante o desastroso reinado anterior de seu fraco e efeminado pai, como tivera filhos homens - todos bonitos, e o mais velho, como era adequado, era um homem cuja fama espalhara-se por todos os cantos e já mostrava sinais de ser tão notável quanto o pai e o bisavô - outro Eduardo, conhecido no país inteiro como o Príncipe Negro.

Por isso, naquela ocasião do casamento do filho do rei, Londres decidiu homenagear seu soberano. Havia barulho e agitação por toda a parte. Dos frontões das casas, mulheres conversavam umas com as outras, comentando os méritos da noiva e do noivo. O povo acumulava-se nas ruas; todos levavam a maior parte da vida fora de casa, quando o tempo permitia, porque gostavam de fugir da escuridão fechada das casinhas encostadas umas nas outras, e só as consideravam como abrigo contra o frio e como lugares em que se comia e dormia. Celebrações como aquela eram o ponto alto de suas vidas.

O 1 de Maio acabara de passar. Então, eles tinham dançado em torno do mastro enfeitado típico daquele dia, dando as boas-vindas ao verão; tinham decorado o mastro com as flores silvestres que nasciam fora dos muros da cidade no Strand, a faixa que beirava o rio e ligava a cidade de Londres a Westminster e onde ficavam as casas da nobreza, com seus jardins banhados pelo rio-a importante estrada da cidade, ao longo da qual iam e vinham artefatos de muitos tipos a todas as horas do dia e da noite. Tinham enfeitado as portas com flores; e chegaram até a pendurar pequenas lamparinas de vidro por entre as flores. Depois que escurecia, o efeito encantava a todos.

Aquilo tinha sido o 1 de Maio. Mas isso era uma ocasião ainda mais notável, pois fora anunciado que haveria uma grande justa e que campeões tinham-se oferecido para defender Londres contra todos os desafiantes. Havia um ar de mistério sobre aquilo, porque ninguém sabia quem eram aqueles campeões; mas todos declararam que nunca houvera, nem haveria, uma celebração igual àquela comemorativa ao casamento do filho do rei, John de Gaunt, com Lady Blanche de Lancaster, filha do bom Duque Henry.

Os pavilhões estavam sendo erguidos. Neles, os cavaleiros vestiriam suas armaduras e esperariam a chamada para se apresentarem e lutarem. Alguns eram realmente lindos, feitos de seda e veludo; mas o mistério era aumentado, porque nos mais vistosos daqueles pavilhões não havia lemas, nem brasões para identificar quem os iria ocupar. Isso lembrava ao povo que os defensores de Londres eram os cavaleiros misteriosos que se haviam oferecido para servir à cidade naquele glorioso momento.

Plataformas estavam sendo erguidas para a nobreza. Seria uma visão grandiosa. O rei estaria presente. Um acontecimento régio, mesmo. Não era de admirar que horas antes daquela em que o torneio estava marcado para começar as pessoas convergiam para a cidade. Vinham de Clerkenwell e Holborn, de St. Johns Wood e Hampstead Dormiam nas campinas de Marylebone e molhavam os pés nos riachos de Paddington.

Até mesmo a sombria Torre, aquela lúgubre fortaleza normanda, observando o cenário, parecia menos ameaçadora naquele dia, e ninguém pensava nos atos escusos que tinham sido cometidos por trás daqueles muros cinzentos. Em vez disso, as pessoas olhavam para Westminster e para o magnífico palácio Savoy, que ficava no Strand. O Savoy era o lar do duque Henry agora, epassarapelas mãos de vários proprietários; fora construído pelo notório Simon de Montfort, que se casara com a irmã do rei Henrique e quase chegara a governar a Inglaterra. Mas depois que Simon fora dominado, o rei Henrique in dera a casa de presente ao tio de sua mulher, Peter, o conde de Savoy, e desde então ela passara a ser conhecida como o Savoy. O conde, por sua vez, a dera ao priorado e fora do priorado que a rainha Eleanor o comprara para servir de residência apropriada para seu segundo filho, Edmund, conde de Lancaster, e então o palácio passara para a família.

Ajusta seria realizada perto da cidade, mas fora de seus muros, e o público já estava lá esperando. Aprendizes atrevidos, como crianças dispensadas da aula, conversavam com empregadas de leiterias; agricultores, prelados, comerciantes - homens e mulheres de todos os níveis - tinham ido ver o desfile.

A agitação era intensa. A justa começara. A rainha e suas damas estavam sentadas, vendo. com ela estava a jovem noiva. Blanche era tão bonita quanto tinham dito que era. Os longos cabelos louros estavam soltos nos ombros; a pele era delicadamente branca, os olhos de um azul escuro. Ela estava com dezoito anos. As pessoas olhavam-na com interesse. Alta, esguia, quase delicada, ela parecia muito jovem e frágil ao lado da corpulenta Filipa.

O público da assistência ovacionava as senhoras até ficar rouco. Mas estava esperando o rei, e esperando em vão.

Mas havia pouco tempo para especulações, porque os desafiantes tinham-se apresentado e os defensores estavam indo enfrentá-los - 24 cavaleiros liderados por cinco dos mais altos homens que estavam no campo. Por alguns momentos, o silêncio foi intenso. Depois, os clarins estavam soando e os arautos tinham-se adiantado para anunciar que o torneio estava para começar. Os arautos saíram correndo do campo quando os cavalos entraram. Houve uma violenta emoção no som do choque de aço contra aço, no brilho dos escudos e das lanças quando o sol batia neles, nos gritos de batalha dos nobres cavaleiros. Os londrinos assistiam com um fascínio extremo, e sua atenção concentrava-se nos homens que tinham assumido a tarefa de defender Londres. Quem eram eles? Á multidão deliciava-se, porque os desafiantes não estavam à altura deles.

Ao fim de algum tempo, a vitória deles foi completa. Londres tinha sido brava e habilmente defendida contra todos os de fora, como sempre fora e sempre seria.

Agora chegara o grande momento. Os misteriosos defensores deveriam descobrir-se e mostrar quem eram. Eles - os cinco homens altos que tinham liderado a equipe defensora - cavalgaram para o centro do campo.

Um deles seguia um pouco à frente dos outros, e quando ergueu o visor não havia como confundir os espessos cabelos louros, os olhos azuis, os belos traços dos Plantagenetas.

- Orei!

O povo enlouqueceu de alegria. Que maior cumprimento poderia ele ter feito à sua cidade do que colocar-se à frente dos seus defensores? O público poderia ter adivinhado de quem era o rosto que estava por baixo daquele visor, porque ele não estivera presente ao lado da rainha na galeria. Aquilo era uma brincadeira que os reis gostavam de fazer quando tinham a certeza da lealdade do povo. Era a maneira de Eduardo dizer a todos que sua cidade de Londres lhe era muito cara e que ele iria defendê-la com todas as suas forças.

- Vida longa para o rei!

Os gritos que cortavam o ar podiam ter sido ouvidos da Torre até a aldeia de Knightsbridge.

O segundo cavaleiro aproximara-se. Ele retirara o visor, e a multidão ficou quase histérica de alegria, porque também não havia como confundir-se a respeito daquele belo rosto. Parecia-se muito com o do rei. Mais austero, talvez, mas tão bonito quanto ele, o grande herói militar Eduardo, herdeiro do trono, que fizera jus a suas esporas em Crécy e era o herói de Poitiers, que poucos anos antes conduzira seu prisioneiro real, o rei da França, pelas ruas de Londres e o instalara no palácio de Savoy. Eduardo, aclamado no mundo inteiro como o soldado que ninguém poderia igualar. O Príncipe Negro em pessoa.

E ele também ali estava, para defender Londres!

O terceiro cavaleiro era ainda mais alto do que o rei e do que o Príncipe Negro. Não tão conhecido quanto eles, mas não havia dúvida de que se tratava de um Plantageneta - o mesmo tom de pele, os mesmos traços bonitos, e a altura fora do comum proclamavam-no como filho do rei.

- Vida longa para Lionel, duque de Clarence, conde de Ulster, defensor de Londres contra todos os de fora.

O povo maravilhava-se com as revelações. Não ficou surpreso, porém, quando o defensor seguinte foi revelado como sendo John de Gaunt, o noivo. Uma saudação especial para ele, porque era devido ao seu casamento que a justa estava acontecendo. Todos os olhos voltaram-se para a pequena noiva sentada com muito recato ao lado da rainha; ela estava ruborizada pelo que poderia ter sido orgulho e felicidade. Que belo par eles formavam! Só o grande Eduardo poderia ter sido pai de filhos tão esplendorosos assim.

As comemorações foram muitas. O rei não poderia ter tido um gesto melhor.

Naquele dia, não havia homem mais popular em Londres do que o rei da Inglaterra.

Quando a festança chegou ao fim e o rei e a rainha puderam recolher-se a seus aposentos, Filipa estava ansiosa por uma conversa íntima com o marido. Estava sempre pronta para pôr de lado sua posição. Tinha sido criada num lar feliz que, pelos padrões da realeza, era despretensioso. Ela se importava mais com a felicidade da família do que com a glória militar ou as possessões que eles pudessem adquirir. Ela sempre deplorara a obsessão de Eduardo com a coroa da França.

Muitas vezes, Filipa desejava que Eduardo fosse apenas um nobre sem as responsabilidades do Estado, embora soubesse, claro, que ele não iria querer isso.

Ela gostava de passar a maior parte do tempo que os dois podiam estar juntos discutindo assuntos da família, e o que ocupava a sua mente no momento era o filho mais velho.

- Vendo John tão feliz no casamento com a querida Blanche me fez pensar mais do que nunca em Eduardo - disse ela.

O rei sacudiu a cabeça. O futuro de Eduardo não era assunto novo.

- Ele está com 29 anos - prosseguiu a rainha.

- Eu me lembro bem do dia em que ele nasceu - disse o rei.

- Quanta alegria! Era típico de você dar-me um filho assim... nosso primogénito. Lembra-se de como as pessoas ficavam nas ruas e como ficavam loucas de alegria por uma simples olhadela nele?

- Nunca esquecerei a alegria delas. E todas ainda gostam de Eduardo. Ele conta com a mesma devoção que elas dedicam a você.

O rei segurou-lhe uma das mãos e beijou-a.

- Você me trouxe uma grande felicidade, querida. Foi o melhor dia de minha vida quando cheguei a Hainault e meus olhos deram com você. Eu a amei naquele momento e ainda a amo. - Ele acrescentou com fervor: - Nunca houve mulher alguma para tomar seu lugar em meu coração.

Enquanto falava, ele pensava no encontro que tivera com a condessa de Salisbury, que para ele sempre fora a mulher mais bonita e mais desejável que já vira. O amor chegara tão de repente para ele que o deixara impressionado e, para a perplexidade dos que o acompanhavam, pois até então fora um marido fiel, ele tentara de todas as maneiras convencer a bela condessa a tornar-se sua amante. A situação era ainda mais deplorável porque ela era esposa de William de Montacute, um de seus maiores amigos que, na época, estava preso pelos franceses, detido que fora ao lutar pela causa de Eduardo. Aquilo era uma grave mancha em sua honra, e muito embora a condessa tivesse sido virtuosa demais para submeter-se ao desejo dele, sua consciência estava muitíssimo perturbada. Sempre que ele se lembrava daquela ocasião, ficava mais delicado para com Filipa e insistia em protestar sua fidelidade eterna. Querida e despretensiosa Filipa, que jamais poderia saber que ele estivera perto de traí-la!

Filipa dirigiu-lhe aquele seu sorriso agradável. Amava-o muito. Sempre estivera cônscia de sua falta de atrativos e nunca deixara de impressionar-se com o fato de Eduardo gostar dela como gostava. Sabia, é claro, que grandes beldades como a condessa de Salisbury deviam tentá-lo de vez em quando. Rumores chegavam até ela. Mas decidira ignorá-los. Ela ansiava pela paz em seu lar. Era a rainha. Eduardo era seu marido. Ela teria de ser, sempre, a primeira consideração dele, e ele e os filhos eram a vida dela.

Mas a ocasião do casamento de John devia ter feito com que ela pensasse com apreensão no filho mais velho, porque ele era dez anos mais velho do que John e continuava solteiro. Lionel, oito anos mais moço do que Eduardo, já estava casado. Tinham arranjado uma esposa para aquele segundo filho quando ele era pouco mais que um recém-nascido, e fora uma união muito boa, segundo o rei, porque a noiva, apesar de seis anos mais velha do que Lionel, era uma grande herdeira. Elizabeth de Ulster trouxera-lhe Ulster e ele agora usava o título de conde de Ulster e também de duque de Clarence, e a imensa herança de Elizabeth estava em suas mãos. Ele estava feliz, o que agradava tanto Filipa quanto sua riqueza. Lionel era um jovem bonachão, que adorava divertir-se, muito menos sério do que os irmãos Eduardo e John. Era o mais alto de uma família alta, e o mais bonito. Dizia-se que não havia um homem na Inglaterra que se comparasse a Lionel em boa aparência.

Entre Eduardo e Lionel tinham nascido as meninas, Isabella e Joana, e o pequeno William, que morrera; e depois de John houvera Edmund, que se destacara no torneio daquele dia; e depois de Edmund, a pequenina Blanche, que vivera muito pouco. Mary e Margaret, suas duas queridas, tinham vindo em seguida; e depois mais um William, que morrera. William era um nome amaldiçoado para a família. E por último, Thomas, o caçula dos rebentos. Ninguém podia dizer que Filipa não tivesse cumprido seu dever como mãe.

Isabella, a filha mais velha, era voluntariosa e a favorita do pai, mimada, teimosa, alardeando o fato de que, com um pouco de lisonja, sempre podia conseguir o que queria do rei. Filipa estava inquieta pensando no futuro da filha mais velha; ela sempre tentava conter o rei na incapacidade que ele tinha de parar de mimar Isabella. Mas a maior tristeza que ela sentira fora através de Blanche e seus dois Williams e Joana. Joana morrera em Loremo, uma pequena cidade perto de Bordeaux, quando estava seguindo para casar-se com Pedro de Castela. Pobre criança! Agora parecia que tivera sorte ao morrer, mesmo com a morte horrível provocada pela peste, porque Pedro, que angariara apelido de O Cruel, teria sido um marido horrível para uma criatura tão delicada como ela. Filipa ouvira dizer que a amante de Pedro mandava nele e que ele era escravo absoluto dela e que ele assassinara a mulher com quem acabara se casando e estrangulara seu irmão bastardo, além de ter cometido vários crimes cruéis. Filipa jurara a Eduardo que nunca mais uma filha sua seria enviada para casar-se com um noivo do qual eles nada soubessem além de que possuía um grande título.

Eduardo sempre a tranquilizava. Ele adorava os filhos, tanto quanto ela; queria que fossem felizes, mas precisava estar atento às exigências do Estado. com Filipa, porém, ele nunca salientava isso e sabia que no caso das filhas ele sempre seria leniente.

Lionel casado, John casado, e Eduardo?

- Não que ele não goste da companhia feminina - disse a rainha.

Ela franziu o cenho. Estava pensando no pai do rei, que se dedicara aos belos rapazes que cobria de riqueza e títulos. Não, o caso de Eduardo não era esse. Era homem por inteiro.

- Ele apenas não sente vontade de se casar - replicou o rei.

- Mas ele é o herdeiro do trono! Aesta altura, já devia ter filhos homens.

- Você sabe, minha querida, que não adianta tentar dizer a Eduardo o que ele deve fazer. Ele faz o que quer.

- Temos filhos voluntariosos, Eduardo. Isabella faz o que quer com você.

- Isabella. Ela é uma atrevida. - A fisionomia dele descontraiu-se.

Acredito que ele goste mais dessa filha do que de qualquer outra pessoa no mundo, pensou Filipa. Não sentia ciúme, apenas satisfeita com o fato de a filha significar tanto para ele. Mas sentia, sim, que a jovem estava-se tornando cada vez mais incontrolável. No entanto, a preocupação, no momento, não era com Isabella, mas com Eduardo.

- Uma atrevida, sim, mas Eduardo é que é da máxima importância. Suponho que não adianta falar com ele...

O rei abanou a cabeça.

- Eduardo vai seguir à sua maneira. Ele sabe a importância do casamento. Sabe que o povo espera por isso. Veja como aplaudiu o casamento de John. Quanto mais não irá aplaudir o casamento do nosso herdeiro? Mas ele faz as coisas à sua maneira. Vai se casar quando quiser e com quem quiser. Você conhece Eduardo.

Os olhos do rei estavam vidrados de emoção. Aquele filho que o enchera de orgulho desde o minuto em que aprendera a andar. De Isabella é que ele mais gostava. Ora, ela era uma jovem, e ele era muito sensível aos encantos femininos, mas raramente sentia tanto orgulho como quando saía a cavalo com seu primogénito ao lado.

Crécy, onde o rapaz fizera jus às esporas! Que grande dia! E Eduardo estivera pronto - não, estivera ansioso - a transferir o triunfo para o filho. Eduardo, com quinze anos. O rei arriscara a vida do menino, naquela ocasião; deixara que ele lutasse para sair da dificuldade em que se encontrara, enquanto sua oração ansiosa era "Ó Deus, permita que o menino faça jus às suas esporas hoje". E o jovem Eduardo, valente, fizera aquilo mesmo, proclamando-se um guerreiro naquela tenra idade. E mais recentemente, Poitiers, quando contra grandes desvantagens ele obtivera uma vitória decisiva e capturara o rei da França em pessoa. Como fora típico de Eduardo avisando primeiro ao pai sobre sua vitória e enviando-lhe o elmo do rei frances!

Um filho para acalentar o coração de qualquer rei. A Inglaterra estaria a salvo com aquele Eduardo para gcvemá-la. Só naquela questão do casamento é que ele era uma decepção. Vinte e nove anos, e solteiro! Além do mais, era um soldado, e os soldados, mesmo os maiores, nunca podiam ter certeza de quando teriam um fim violento.

- Às vezes penso que ele gosta de Joan de Kent - prosseguiu a rainha.

O rei perturbou-se. Joan era mais uma daquelas mulheres com as quais, se tivesse havido oportunidade, teria se envolvido. Joan era totalmente diferente da condessa de Salisbury. Era bonita e tinha algo mais - uma provocação, alguma qualidade que era um constante convite para o sexo oposto. Houvera época em que parecia que o príncipe de Gales iria casar-se com Joan.

Mesmo assim, diante daquela criatura provocante, Eduardo ficara muitíssimo tentado - o que teria sido ainda mais pecaminoso do que ligações amorosas com a condessa de Salisbury. Ela era mulher de seu melhor amigo. Joan poderia ter sido a mulher de seu filho.

Todos a chamavam de a Bela Donzela de Kent. Bela era ela, sem dúvida alguma, e seu pai era Edmund de Woodstock, conde de Kent, filho caçula de Eduardo I, de modo que ela também tinha sangue real.

Naquela época, parecera que não poderia haver obstáculo ao seu casamento com o príncipe de Gales, exceto o de consanguinidade, mas essa questão sempre podia ser resolvida por um papa serviçal.

- Muitas vezes me pergunto o que deu errado - continuou a rainha. - Estou certa de que Joan gostava de Eduardo, e ela não é do tipo de dizer não a uma coroa. No entanto...

Filipa jamais compreenderia. Joan era ambiciosa. Joan não se mostrava avessa a Eduardo; mas Eduardo era lento demais e a natureza de Joan não era de ficar de lado e esperar. Sua natureza muito apaixonada exigia satisfação, e a uma beldade daquelas não faltavam pretendentes. Ela estivera noiva de William de Montacute, filho da bela condessa, mas naquele ínterim Thomas Holland conseguira seduzi-la. Fora preciso haver um casamento apressado, e isso representara o fim da esperança de um casamento para Joan com o príncipe de Gales.

O rei estava pensativo. Talvez tivesse ficado um pouco constrangido se o filho tivesse se casado com uma mulher que ele tanto admirava. Teria sido muito constrangedor ter a tentação tão perto, e se ele sucumbisse a ela? Eduardo tremeu ao pensar. Seria como um incesto. Não, era preferível que aquela tentadora fosse tirada de sua órbita. Mesmo assim, tinha havido certos rumores. Ninguém esqueceria aquela ocasião em que Joan deixara cair a liga no baile e ele a apanhara. Ele ainda se lembrava das expressões nos rostos dos que o cercavam; achava ter ouvido um muxoxo. Ele enfrentara a todos com o comentário que agora se tornara muito popular: "Maldito seja quem nisso põe malícia." Havia homenageado a liga; colocara-a em seu próprio joelho e tomara-a o símbolo da fidalguia.

- Ora, minha querida - disse ele -, não adianta pensar em Joan de Kent. Esperemos que alguma jovem adequada ao nível dele o atraia de seu estado de solteiro, que ele parece achar muito agradável. Ele tem de compreender que deve se casar pelo bem do país. Talvez eu deva falar com ele.

A rainha abanou a cabeça.

- Talvez seja melhor não falar. Esse constante questionamento do assunto pode muito bem fortalecer a resistência dele.

- Como sempre, você é a mais sensata, minha adorada. Vamos esperar um pouco e ter esperanças.

- Talvez a felicidade de John e Blanche o faça decidir-se.

- Temos de esperar que sim.-O rei franziu o cenho. Depois, disse: - Há Lionel e sua filhinha. Há John... Não nos faltam filhos, Filipa.

- Eduardo nasceu para ser rei - replicou Filipa com firmeza.

- Ainda é jovem. Um dia sei que ele vai se casar e ter filhos destemidos como nós tivemos.

- Assim seja - replicou o rei. - E agora, chega de falar nos nossos filhos. Nós mesmos não estamos tão velhos que não devamos pensar no nosso bem-estar.

Filipa sorriu. Ele ainda era o amante impaciente. Na verdade, era uma proeza. Ela não teria acreditado que aquilo fosse possível se repetidas vezes ele não lhe desse provas.

O noivo estava inquieto porque tinha um dever a cumprir, e se tratava de um dever secreto.

Ele estava muito contente com o casamento. Blanche era encantadora. Há muito tempo que ele ouvira falar na beleza dela, embora soubesse que invariavelmente se media o charme de uma noiva pelo tamanho de sua fortuna, mas não era esse o caso de Blanche. com os longos cabelos louros e a pele branca, e aquele ar de vulnerabilidade, ela era irresistível, e o fato de ser uma grande herdeira representava apenas um atrativo adicional. Além do mais, se não fosse rica e de um berço tão nobre, nunca teria sido escolhida para ele. Não podia reclamar. Já estava apaixonado por ela. Era um tipo de amor diferente do que ele sentira por Marie St. Hilaire, e estava profundamente cônscio da diferença. Não significava que gostasse menos de uma das duas. Blanche era a dama romântica, do tipo que os poetas cantavam; Marie era a amante carnal que sabia como satisfazê-lo, como acalmá-lo, em todas as ocasiões. Ela não reclamava. compreendia que um homem na posição dele só podia procurá-la raramente. Sabia que não receberia nenhum título elevado. No entanto, dera-lhe um amor profundo e satisfatório.

Ele conversara com ela como nunca conversara com qualquer outra pessoa, exceto Isolda Newman. Isolda - a resoluta mulher flamenga que fora sua ama-seca-era uma mãe para ele. Era a Isolda que ele podia revelar seus pensamentos mais íntimos - muito mais do que a Marie, porque Marie jamais teria compreendido por completo. Isolda compreendia. Ele estava cônscio, na sua ama-seca flamenga, de um ressentimento semelhante ao que ele próprio sentia.

Quando era um garoto, ela o chamara de seu reizinho, e aquilo se constituíra em um nome secreto, porque ela nunca o usava diante de terceiros.

Certa vez, ela dissera:

- Foi uma pena você não ser o primeiro. Que rei você teria sido!

Ele era muito jovem quando começara a sentir o ressentimento por ser o quarto filho. Eduardo e Lionel vinham antes dele. O jovem William morrera. John tinha visto a adulação dedicada a seu irmão Eduardo, o grande Príncipe Negro. Quando os dois saíam juntos a cavalo, as pessoas praticamente não o encaravam e ele ficara cônscio de ser apenas o irmãozinho, enquanto o povo sempre berrava pelo poderoso Príncipe Negro.

Lionel não se importava em ser o segundo filho homem. Bemhumorado, preguiçoso, esticando as longas pernas à sua frente, alisando o rosto bem-apessoado, Lionel dava de ombros. Lionel não queria governar um reino.

- É melhor você do que eu, irmão - dissera ele a Eduardo. Continue vivendo, por favor. Produza tantos filhos homens saudáveis quanto seus pais produziram. Não deixe que haja um meio de que eu chegue ao trono.

Como John se sentia diferente! Quando ele via a coroa, os dedos coçavam de vontade de pegá-la. Muitas vezes, ele pensava: "Há Eduardo e Lionel antes de mim. E Lionel não a quer. E se...?"

Ele afastava aqueles pensamentos. Gostava do irmão mais velho. Quando era garoto, achava que ele era uma espécie de deus e unira-se à adoração generalizada. Mas agora Eduardo estava com 29 anos e não mostrava sinais de querer casar-se; ele era um lutador e um lutador que gostava de estar na frente de batalha. Se não se casasse; se não tivesse um herdeiro; se fosse morto em combate, só haveria Lionel à frente de John. Era verdade que Lionel tinha uma filha de quatro anos, Filipa - batizada em homenagem à avó, a rainha -, mas se tratava de uma menina.

Não devia pensar naquelas coisas. Imaginava o horror dos pais se soubessem. Tinha uma bela mulher; queria apaixonadamente ter filhos homens. Bem poderia acontecer que um dia seu filho...

Não, ele tinha de parar. Havia um assunto importante a resolver. Precisava falar com Marie. Precisava explicar-lhe. Perguntava-se se ela estivera entre os espectadores da justa. Pobre Marie, como teria se sentido ao ver a bela Blanche sentada ao lado da rainha, vê-lo adiantar-se e tomar a mão dela e beijá-la com carinho e entrar com ela, a cavalo, em Westminster?

Blanche e ele precisavam ter filhos. Talvez ela já estivesse grávida. Ele esperava que sim. Ela parecia excessivamente frágil para muitas gravidezes - ao contrário da mãe dele, impassível, firme, de largos quadris flamengos, busto grande, nascida para a maternidade.

Ele precisava escapar do palácio sem ser percebido. Ainda bem que não era reconhecido com tanta facilidade quanto o pai e os irmãos mais velhos-porque enquanto o rosto do Príncipe Negro fosse bem conhecido no país inteiro, a altura excessiva de Lionel tornava-lhe impossível permanecer incógnito. O próprio John era alto, mas não tanto quanto os irmãos; os cabelos eram menos louros, tendendo mais para o castanho; era um evidente Plantageneta, mas aquele conjunto de características aparecia aqui e ali pelo país, devido, sem dúvida, à concupiscência de alguns de seus ancestrais.

John deixou o palácio sozinho e seguiu para a cidade. Cavalgando pelo Strand, passando pelos nobres palácios, viu o Savoy destacando-se acima dos demais e pensou, exultante: um dia isso poderá ser meu. Ele pertencia ao seu sogro, e Blanche, juntamente com a irmã Matilda, era a herdeira.

Lamentava Blanche ter uma irmã - e ainda por cima uma irmã mais velha. Pouco importava, a fortuna era imensa e quando o duque Henry morresse ela deveria passar para as filhas.

Sua bela esposa poderia dar-lhe mais do que sua beleza.

Ele entrou na cidade e seguiu pelas margens do Walbrook, que vinha de sua fonte nos planaltos de Hampstead e Highbury e corria por pantanosos Moorf ields para despejar-se no Tamisa. John chegou a uma casa perto da Igreja de St. Mildred, perto de Bucklersbury, e ali fez uma pausa. Passou por um arco ao lado da casa e ao entrar num pátio um homem veio correndo para fazer uma acentuada mesura. John desmontou e o homem levou seu cavalo. Empurrou uma porta no pátio e entrou na casa.

Marie estava à sua espera. Não se atirou nos seus braços, como costumava fazer. Ficou parada, esperando que ele desse algum sinal do que se esperava que ela fizesse. Era o sinal de que ela percebia que havia uma acentuada mudança no relacionamento dos dois.

Ele pensou: ela esteve na justa. Viu Blanche lá...

Segurou as mãos dela e beijou-a apaixonadamente.

- Ó meu senhor... - murmurou ela.

Os dois entraram juntos no quarto com janelas com armações de chumbo para os caixilhos que davam para o pátio. Quantas vezes ele estivera ali e encontrara consolo em Marie! Aquela relação tinha sido satisfatória. Não era um homem promíscuo. Tivera uma amante de cada vez, e Marie mantivera aquela posição havia mais de dois anos. Era mais velha do que ele, mas John era muito jovem quando a visitara pela primeira vez.

Os dois não foram para a cama dela, como teriam feito se aquela fosse uma ocasião comum. Marie estava cônscia disso. Ela arrumara em uma mesa vinho e os bolos de vinho que gostava de fazer para ele. Sabia que ele tinha ido conversar.

- Você estava entre a multidão? - perguntou ele. Ela confirmou com a cabeça.

- Vi sua esposa. Ela é muito bonita. Parece... delicada e boa.

- É - disse ele. - Eu sei que é.

- Você irá amá-la muito e ela o amará.

- Marie - disse ele. - Eu sinto muito. Tinha de ser. Ela sorriu com bravura.

- Eu sempre soube que seria assim. Nunca me esqueci de que você era filho do rei e um dia haveria uma noiva para você. Às vezes eu pensava que isso poderia não ser o fim.

- Tem de ser o fim - disse ele.

Ela concordou com um gesto da cabeça.

- Eu sabia que você iria querer assim.

- Eu não poderia enganar Blanche - disse ele.

- Compreendo.

- Marie, minha adorada, você sempre compreendeu. Não que eu não a ame. vou ser-lhe grato para sempre...

- Você não me deve gratidão alguma-respondeu ela. - Foi um prazer, para mim, dar e receber, como foi para você. Já é suficiente termos sido felizes juntos.

- É uma nova vida. Partirei para a França com meu pai dentro de pouco tempo.

- Então ela também vai ficar sozinha.

- Nossa vida é assim. Não devo me demorar. Vão sentir minha falta.

- Ela sentirá sua falta - murmurou ela.

- Marie. Antes que eu me vá. A menina... Ela se levantou.

- Ela está dormindo.

- Deixe-me vê-la.

Marie seguiu na frente e entrou num quarto onde, deitada sobre um catre, estava uma criança de pouco mais de um ano.

- Como é bonita - disse ele.

- Ela tem uns traços seus. Os mesmos cabelos castanhos-claros... os olhos azuis. vou ficar com ela para me lembrar.

- Ela nunca passará dificuldades. Nem você.

- Eu sei - disse Marie. - Ela nunca deverá passar dificuldades, porque é sua filha.

- Pode ter certeza de que tomarei todas as providências. Foi para garantir isso que eu vim.

Ele ajoelhou-se ao lado do catre e, curvando-se, beijou a criança. Ela sorriu dormindo.

Os dois voltaram para a mesa; ele bebeu um pouco do vinho e comeu um dos bolinhos. Explicou as providências que seriam tomadas em favor dela e da criança.

Depois, despediu-se. Os dois ficaram em pé, olhando um para o outro, ambos profundamente emocionados. Ela significara muito para ele; ele confiara nela. Ali, no quarto escuro, quando John ficara deitado ao lado dela depois de fazerem amor, ele falara de seus sonhos, do que representava ser o quarto filho em vez do primeiro, e sobre o quanto ansiava por ser rei. Podia falar com Marie com a mesma liberdade com que conversava com Isolda, e com ninguém mais.

- Tenho nas veias o sangue dos reis - dissera ele. - Nasci para governar, mas nasci tarde demais.

E ela ouvira com atenção, como Isolda fizera; e ela se solidarizara com ele, tranquilizara-o e compreendera.

Agora estava acabado. Eles sempre souberam que um dia acabaria. Houvera época em que ele achara que Marie estaria sempre ali em sua vida, e teria estado se o tivessem

casado com qualquer outra mulher que não com Blanche.

Blanche ocupava seus pensamentos por inteiro. Havia algo nela que atraía a sua masculinidade. Suave, branca e vulnerável. Era isso. Herdeira que era, ramo de uma árvore real, ela precisava ser protegida.

Ele despediu-se de Marie e censurou a si mesmo por sentir-se menos triste do que deveria. Marie e sua filha deveriam ficar sempre amparadas. Mas ele estava apaixonado por Blanche.

Aqueles dias de verão passaram deliciosamente para o jovem casal. A cada dia parecia que estavam mais apaixonados. O rei e a rainha observavam com prazer e continuavam a suspirar porque o príncipe de Gales ainda evitava o mesmo estado feliz.

Foi com grande alegria que Blanche descobriu que estava grávida.

John ficou exultante. Em um momento em que se expôs, ele bradou:

- Se esse filho for homem, é possível que um dia seja o rei da Inglaterra.

Blanche ficou um pouco agitada.

- Ó, meu querido marido, há muitos antes dele.

- Muitos - concordou John. - Mas quem pode prever o futuro?

Ela nada disse, mas sabia da grande ambição dele, e isso a deixou um pouco apreensiva. Ela aceitava o fato de que John era audaz e ambicioso, mas seu pai lhe ensinara que o dever e a honra eram bênçãos maiores do que títulos e terras, e sabia que o pai tinha razão. Tinha havido um grande elo entre os dois, porque ela supunha ser a única filha próxima a ele, já que Matilda estava muito longe.

Blanche rezava todas as noites para que fosse menino, porque não podia suportar desapontar o marido.

Em outubro daquele ano, John foi à França com o pai. A trégua feita dois anos antes com a captura do rei da França estava chegando ao fim e como o delfim da França se recusava a reconhecer o tratado com o qual seu pai concordara na prisão, estava claro que Eduardo teria de tentar fazer com que fosse cumprido. Os preparativos tinham sido feitos durante os meses de verão, e o rei, de acordo com os costumes em épocas assim, fizera uma excursão pelos santuários sagrados acompanhado por membros da família com seus empregados.

O grande cortejo seguiu pelo país e foi ovacionado onde quer que chegasse. O povo estava certo de que o grande Eduardo não poderia falhar e em breve aquelas malditas guerras com a França iriam acabar, e Eduardo conseguiria a coroa que durante tanto tempo se esforçara com tamanha determinação para conquistar. Era verdade que todos tinham pensado que a guerra terminara quando o rei da França fora para a Inglaterra com seu captor, o Príncipe Negro; mas agora parecia haver um malvado delfim que estava decidido a agarrar-se à coroa.

De modo que se estava de novo em guerra.

Na criadagem de Lionel e sua esposa Elizabeth estava um jovem que interessava a Blanche. Ele era mais ou menos da mesma idade do marido dela - olhos vivos, inteligente; parecendo diferente dos outros pajens. Ele gozava das boas graças de Elizabeth e Lionel, e ficava muito elegante em seus calções nas cores vermelho e preto as cores da moda no momento. Ele tinha até umpaltok, o novo tipo de casaco que era muito elegante.

Blanche descobria os olhos dele voltados para ela sempre que ele estava por perto. Achou interessante e perguntou-lhe por que ele olhava para ela.

O jovem lhe disse que nunca, na vida, vira mulher tão bonita quanto ela.

Um comentário desses poderia ter sido impertinente partindo de uma pessoa de sua posição inferior, mas foi dito com um ar de dignidade, e Blanche aceitou-o com indulgência.

Ela perguntou à cunhada quem era o jovem pajem, e Elizabeth riu e disse:

- Ah, é um rapaz interessante. Escreve versos inteligentes.

Lionel e eu o estimulamos. É filho de um atacadista de vinhos que se destacou nas guerras. Seu nome é Geoffrey Chaucer.

Blanche viu-se procurando pelo jovem e sempre tinha um sorriso para ele quando os dois se encontravam.

A admiração dele a encantava. Claro que havia muitos que a admiravam, mas havia algo de muito fora do comum com relação ao jovem pajem.

No devido tempo, o exército partiu, e Blanche teve de se despedir do marido.

A rainha estava triste. Ela odiava aquelas guerras.

- Quisera Deus que o rei nunca tivesse metido na cabeça que tinha direito ao trono da França - confidenciou ela a Blanche. Como seríamos muito mais felizes se não houvesse essa luta contínua. Nunca durmo em paz quando o rei está longe, porque quando isso acontece, ele está sempre envolvido em combate. Querida Blanche, você sofrerá comigo porque, infelizmente, John está com ele.

As duas eram grandes amigas e tinham sido assim a vida toda de Blanche, porque Blanche passara grande parte de sua infância entre a equipe de Filipa. As crianças adoravam a rainha; era mãe por natureza, e mesmo quem não era seu filho recebia sua afeição.

- Quando eles partem - lamentou-se Filipa - nunca podemos ter certeza de que voltarão. Pode levar um ano ou mais.

- Espero que quando John voltar nosso filho já tenha nascido, e quero ardentemente que seja um menino.

- Minha querida filha, não deve desejar demais. É melhor esperar com paciência e ver o que Deus vai lhe enviar. Se for menina, não se preocupe. Vocês ainda são muito jovens. Têm tempo de ter meninos.

- John está ansioso por um menino.

- Deve estar. Às vezes penso que ele é o mais ambicioso de meus filhos. E Lionel é o mais feliz porque está contente com seu destino. Ele nasceu em Antuérpia. Sabe, o pai dele começara a guerra contra a França já naquela época, e eu estava com ele. Ah, essa guerra, será que nunca vai acabar? Mas vamos falar de coisas mais alegres

do que a guerra. Espero que você esteja repousando quando fica cansada. Tenho sedas finas que vou lhe dar para algumas das roupas da criança.

A companhia da rainha Filipa era, sem dúvida alguma, reconfortante.

Blanche precisou daquele estímulo quando a criança nasceu, porque o filho pelo qual ela ansiava lhe foi negado. Foi uma menina que trouxeram e colocaram em seus braços.

Por ela, teria ficado contente. Mas pensou na decepção que John teria quando soubesse que ela não lhe dera o menino pelo qual ele ansiava.

Blanche quis chamá-la de Filipa, em homenagem à rainha, e Filipa ficou encantada com o fato de a criança receber aquele nome.

Em maio do ano seguinte o exército já voltara para a Inglaterra. Falava-se em interferência divina que mudara a atitude do rei para com a França. Ele marchara até Paris e acreditara que a vitória estava próxima. Os franceses tinham apresentado condições para uma paz que Eduardo não podia aceitar. Ele continuara a arrasar o país e estava empenhado nisso quando de repente caíra sobre ele uma terrível tempestade de granizo, relâmpagos e trovões. Diziam os rumores que seis mil homens e cavalos tinham sido mortos pelos elementos, que só se acalmaram quando o rei erguera os braços para o céu e jurara que aceitaria as condições de paz que os franceses estavam apresentando. Dizia-se que tinha sido como que um milagre. A tempestade cessara, e Eduardo se preparara para voltar para a Inglaterra. O rei Jean, da França, fora solto depois de quatro anos de prisão, e Eduardo declarara que aceitaria o resgate oferecido.

- Paz por enquanto - disse a rainha. - Temos de dar graças por ela, muito embora possa não durar.

Sendo assim, os guerreiros voltaram para casa, e quando John de Gaunt foi apresentado à filha, escondeu o dissabor que sentia devido ao sexo da criança. O encanto com seu casamento continuou, e não demorou muito para que Blanche ficasse grávida uma vez mais, e dessa vez John ficou convencido de que teriam um menino.

Foi enorme a sua alegria quando lhes nasceu um menino.

- Vamos chamá-lo de John, em homenagem ao pai - disse Blanche. E assim a criança foi chamada.

Infelizmente, o destino foi cruel. Apenas algumas semanas depois de nascida, a criança ficou doente, e todos os esforços dos médicos reais não foram suficientes para salvá-la.

John caiu em melancolia, e até mesmo Blanche achava difícil tirá-lo dessa situação.

- Vamos ter um menino-garantiu-lhe ela.-Eu sei. Não me contentarei enquanto não tiver dado o filho pelo qual você anseia.

Ele a beijou e tentou esconder a decepção.

O destino tinha sido mau para ele, pensou. Primeiro, dando-lhe uma ambição exagerada e fazendo dele o quarto filho, e depois dando-lhe uma filha, e quando um filho nascera, tirando-lhe a criança.

Mas o destino era cheio de truques, e naquele ano provocaria uma grande mudança em sua vida.

Alguns anos antes, uma peste terrível assolara a Europa, envolvendo a Inglaterra. Milhares de pessoas tinham morrido, e ela era mencionada com medo, mesmo depois de não estar mais grassando.

Muito poucos dos que pegaram a peste sobreviveram. Quando ela atacava, percebia-se uma inchação descorada sob as axilas. Essa inchação era seguida muito depressa por mais inchações, e em poucas horas o paciente morria. A peste era tão infecciosa que podia ser apanhada ao chegar-se perto do corpo de alguém que tivesse morrido dela. Espalhara-se pelo país como um furacão, empobrecendo-o, dizimando milhares de habitantes. Só quando navios tinham parado de atracar nos portos e o capim cresceu por entre as pedras das ruas ela amainara, e chegara-se à terrível conclusão de que restavam poucos para arar o campo e realizar as atividades do país.

AMorte Negra seria assunto de conversas até o final dos tempos.

E agora, ela voltara.

No entanto, havia-se aprendido alguma coisa com a visita anterior. A peste desfechara os golpes mais cruéis nas cidades onde as pessoas viviam muito perto umas das outras, e quem pôde deixou-as e partiu para o interior. Foi aplicada uma vigilância cuidadosa, para que ninguém vindo do exterior entrasse no país se tivesse havido peste em seus navios.

John e Blanche estavam com a corte em Windsor quando a notícia chegou. Blanche não podia acreditar que fosse verdade. Ficou atordoada de dor. Seu pai, o duque Henry de Lancaster, ficara doente e morrera.

John tentou confortá-la. Ele sabia o quanto ela fora dedicada ao pai, mas o tempo todo estava pensando: Lancaster morreu. O homem mais rico depois do rei, e as filhas eram as herdeiras. Aquela imensa fortuna será dividida entre Blanche e Matilda.

Ele, o quarto filho sem dinheiro de um rei, seria um dos homens mais ricos do reino, e riqueza significava poder. Seria essa a maneira de o destino recompensá-lo pela perda do filho?

Não podia tocar nesse asssunto com Blanche. Isso a deixaria chocadíssima. Querida Blanche! Era boa e nobre, e ele a amava muito, mas ela não compreendia a ambição, especialmente a dele.

Mane teria compreendido, como teria acontecido com outra Isolda.

Ele sempre gostara de Isolda. Providenciara para que ficasse bem amparada. Mantivera-a entre a criadagem. Era estranho um homem ambicioso achar consolo com uma velha mulher flamenga. Mas ela o compreendia; ela o alimentara; talvez tivesse sido ela que plantara as primeiras sementes no coração de seu pequenino rei.

- Meu querido - disse ela quando ele foi visitá-la -, seu sogro está morto. Agora, sua mulher será muito rica.

- Ela divide com a irmã. Quando penso no que seria dela se fosse filha única...

Isolda soltou uma gargalhada.

- É uma característica sua querer ficar com tudo. E com razão. Se eu pudesse, tudo o que você pede seria seu.

- Nem todos são tão bondosos para comigo como você, Isolda.

- Você sempre foi o meu reizinho. E Lady Blanche tem de dividir. É uma pena. Mas ainda assim haverá uma grande riqueza para você. E o título dele? Duque de Lancaster, hein?

- Esse morre com ele. Mas haverá o ducado.

- E não duvido de que se ele lhe couber seu pai fará de você um duque.

- Não podemos esquecer de Matilda. Ela é a. mais velha.

- Uma pena... uma pena... É uma mulher que exigirá até o último tostão, sem dúvida.

- Acho que Matilda vai querer tudo o que lhe pertencer.

- Mas ela não tem herdeiros, meu rei. John abanou a cabeça.

- Quem sabe... - disse Isolda.

- É estranho, tão logo depois da morte do meu filho...

- O destino será bom para você. Eu lhe prometo. Vejo a coroa ali... sempre vejo.

- É verdade, Isolda, que você tem poderes?

Ela soltou uma gargalhada.

- Quem tem nunca tem certeza. Só os charlatães sabem tanto e inventam muito mais. Mas no íntimo do meu ser eu sei que há uma coroa e que ela está perto de você.

- Talvez um filho...

- Você vai ter um filho homem. Um grande homem. Eu lhe prometo. - Ela tomou-lhe uma das mãos e a beijou. - vou ficar atenta e rezar e trabalhar para você.

- Deus a abençoe, Isolda. Que todos os meus sonhos e esperanças não se realizem se algum dia eu a esquecer.

Isolda o consolou. Ela era a única pessoa com a qual John tinha coragem de abrir o coração.

O maior de todos os golpes contra as tramas de John foi desfechado naquele mesmo ano em que a morte do sogro o tornara um dos homens mais ricos do país.

Joan de Kent voltou à Inglaterra. Joan, que escandalizara a corte com seu comportamento frívolo ao viver com Sir Thomas Holland enquanto estava prometida ao conde de Salisbury, ficara viúva.

Joan era bonita. Quando jovem, fora conhecida como A Bela Donzela de Kent. O Príncipe Negro ficara apaixonado por ela, mas de maneira tão vaga, que evidentemente deixara a Bela Donzela impaciente a ponto de voltar-se para outra pessoa. Era voluptuosa e frívola, gostava de ser o centro das admirações e, claro, chegara a ter esperança de casar-se com o príncipe e ser a próxima rainha da Inglaterra.

Isso teria sido aceitável, porque ela era de sangue real, pois seu pai era Edmund de Woodstock, duque de Kent e filho de Eduardo I.

Mas Joan casara-se com Sir Thomas Holland e tivera filhos com ele. Holland se dera bem com o casamento. Parecia contente com Joan como esposa, tal como Joan estava contente com ele como marido, e Holland assumira recentemente o título de duque de Kent, que recebera por intermédio da esposa. Ele fora nomeado governador do forte de Creyk e o casal vivera muito feliz na Normandia. Agora, com a morte dele, Joan voltara para a Inglaterra com os filhos.

Estava com 33 anos - com idade suficiente, é claro, para tornar a se casar. Continuava bonita, embora tivesse perdido a figura esguia e agora fosse uma matrona rechonchuda, mas parecia ser fascinante como sempre.

John recebeu a notícia da rainha, que estava meio satisfeita e meio apreensiva.

- Seu irmão se casou - disse ela a John.-Foi uma surpresa para todos nós.

- Casou-se. Que... irmão?

- Eduardo, é claro. Acho que ele sempre esteve atraído por ela e agora ela venceu as objeções dele ao casamento e esteja aconteceu em segredo.

- Querida senhora minha mãe, por favor, diga-me de quem está falando.

- Estou falando do príncipe de Gales e sua esposa de Kent.

- Joan! Ela está viúva há tão pouco tempo!

- Eu sei, mas Joan nunca foi de ficar parada por muito tempo.

- Pensei que estivessem falando no casamento dela com Sir Bernard de Brocas, aquele cavaleiro da Gasconha. Creio que ele está profundamente apaixonado por ela, e parecia mais indicado.

- Indicado, sim, mas não o suficiente para Joan. Eduardo conversou com ela sobre de Brocas, e ela deixou muito claro que não aceitaria ninguém a não ser ele, Eduardo, e então ele percebeu que era isso que ele queria e era o motivo pelo qual ficara solteiro aquele tempo todo. Os dois estão muitíssimo apaixonados.

- E o que diz o rei?

- Aprincípio, ficou apreensivo. Ele acha que Joan é demasiado frívola e, claro-embora Deus queira que ainda demore muitos anos -, ela será a próxima rainha da Inglaterra.

John ficou calado. Sonhos desintegravam-se diante de seus olhos. Vai haver filhos, pensou ele. Ela já mostrou ser fértil com Holland. Haverá os filhos dela para se colocarem entre a coroa e eu. E primeiro, o próprio Eduardo. Quem acreditaria que a vida poderia aplicar-lhe tais golpes? Depois de torná-lo um homem rico, ela tornara praticamente impossível o maior de todos os sonhos.

Nada havia a fazer, exceto aceitar a situação. O Príncipe Negro estava casado, finalmente, e com a namorada de antigamente. Nenhum dos dois era muito jovem, mas ainda lhes restavam alguns anos para que tivessem filhos. Como podia o destino ser tão cruel assim?

Claro que houve uma certa demora. Mas Joan e o príncipe não ligavam para cerimónias. Pelo menos Joan não ligava, e Eduardo a acompanhou. Mas no devido tempo a dispensa papal chegou e em outubro os esponsais foram celebrados em Lambeth pelo arcebispo de Canterbury. No Natal daquele ano, Joan e Eduardo recepcionaram toda a família real em sua casa em Berkhamsted, e os habitantes dos arredores participaram das festividades. O casamento do Príncipe Negro foi um grande acontecimento, que devia ser ainda mais desfrutado porque demorara muito tempo.

Depois do Natal, fizeram-se grandes preparativos para o príncipe e sua família partirem para a França. O rei o fizera príncipe de Aquitânia e Gasconha e ele deveria partir com a mulher e sua comitiva para Bordeaux.

Durante o mesmo mês em que Eduardo e Joan partiram para Bordeaux, Matilda, irmã de Blanche, chegou à Inglaterra para tomar posse de sua herança.

Ela não estava mais de algumas semanas na Inglaterra quando pegou a peste e cerca de um dia depois morreu.

Blanche era, agora, a única herdeira do pai, e toda a fortuna lancastriana, graças ao seu casamento, estava nas mãos de John de Gaunt.

Ele refletiu, com Isolda, sobre o modo estranho do destino, que parecia decidido a despejar-lhe bênçãos com uma das mãos e tirá-las com a outra.

Por isso, ali estava ele, mais rico do que sonhara ficar, mas com o caminho até o trono bloqueado para sempre pelo casamento de Eduardo com a ardente Joan.

Ele analisou a situação com Isolda. Joan era dois anos mais velha do que o marido; mas já tivera cinco filhos e poderia dar filhos homens a Eduardo. Uma vez feito isso - um ou dois meninos -, seria o dobrar dos sinos para suas esperanças.

- O maior homem do reino... - cantarolou Isolda.

- Depois do rei e de meu irmão de Gales. Há, também, Lionel. Ele estava de posse do condado de Richmond, de Derby, Leicester e, claro, Lancaster. Seu pai, encantado pelo rumo dos acontecimentos, satisfeito por ter arranjado o casamento com Blanche de Lancaster, decidiu fazê-lo duque, e num dia nublado de novembro John ajoelhou-se diante do pai e foi cingido com a espada, e o boné foi-lhe colocado na cabeça enquanto ele era proclamado duque duque de Lancaster.

Mais do que nunca, ele ansiava por um filho homem, mas da próxima vez em que Blanche deitou-se para dar à luz, teve uma menina. Ele teve vontade de chorar de humilhação, embora não deixasse Blanche perceber a decepção.

Eles deram à menina o nome de Elizabeth, e John gostou tanto dela quanto gostava da irmã mais velha, Filipa, mas continuou ansiando por um menino.

Sua amargura aumentou quando chegaram notícias de Aquitânia de que Joan tivera um belo menino. Houve grande alegria por toda a corte e no país inteiro. Era natural que o Príncipe Negro desse ao país um herdeiro que se tornasse exatamente igual a ele.

Batizaram o menino com o nome de Eduardo. Havia um sentimento de que aquele era um nome de rei. As pessoas esqueciam-se de que houvera um Eduardo - o segundo - que fora ligeiramente inferior a um homem de porte régio. O príncipe ali estava para assumir o lugar do pai, já adorado e reverenciado pelo povo - e não os desapontara. Havia outro Eduardo e um pequenino no berço para crescer à luz da sabedoria do pai - um pequeno rei em formação.

John conteve a decepção. Ele teria odiado se Blanche soubesse de seus sentimentos. Seu amor por ela era idealizado, como o dela por ele.

Ele podia conversar com Isolda sobre os novos rumos dos acontecimentos, mas ela continuava a aparentar saber o que se passava, como se fosse alguma vidente que pudesse ver o futuro. John achava que ela falava aquilo para confortá-lo; mas às vezes sentia que Isolda tinha algum insight e ela insistia que havia uma coroa próxima a ele.

Blanche ficou grávida uma vez mais. Joan de Kent também.

O rei estava tendo uma conversa íntima com o filho, e sobre a mesa à sua frente estavam cartas vindas de Bordeaux.

- Seu irmão está ansioso por que você se junte a ele - disse Eduardo -, e estou certo de que quando você souber o motivo, ficará ansioso por ir. O rei de Castela está em Bordeaux.

John sabia que havia problemas em Castela, porque Henry de Trastamare, irmão bastardo de Pedro, acreditara durante algum tempo ter direito ao trono e que iria governar melhor do que Pedro.

- Henry de Trastamare agora reina em Castela, e Pedro está pedindo nossa ajuda para recuperar o trono - prosseguiu o rei.

- Essa briga é nossa? - perguntou John.

- Seu irmão acredita, e eu também, que não é bom que bastardos deponham herdeiros legítimos. Além do mais, Pedro prometeu fazer do pequeno Eduardo rei da Galícia e recompensar bem aqueles que o ajudarem.

- Se se puder confiar nele, parece justo.

- Estou certo de que seu irmão concorda com isso. Ele pede que você vá juntar-se a ele lá. Meu querido filho, desejo que você faça os preparativos e parta logo.

John curvou a cabeça. Ele não era avesso à aventura e era verdade que os filhos legítimos não podiam ficar de lado e deixar que bastardos vencessem. Era um precedente perigoso.

Blanche ficou apreensiva quando ele lhe disse que precisava preparar-se para partir, mas como a rainha salientara a ela, as mulheres naquelas situações precisavam aprender a aceitar aquelas separações.

Corajosa, Blanche fez as despedidas.

- E quando você voltar - acrescentou ela -, espero ter um belo menino para lhe mostrar.

- Ainda vamos tê-lo - replicou John. - Não se preocupe. Isolda jura, e ela é uma mulher que adivinha o futuro.

E assim ele partiu e seguiu de barco até a Bretanha, e quando atingiu a costa daquele país, havia à sua espera uma mensagem do irmão.

"Na manhã do dia 12, Joan me deu mais um filho homem. A criança nasceu na abadia de Bordeaux. Um menino. Deus seja louvado. Um irmão para o pequeno Eduardo. Estou realmente satisfeito com o casamento. Há uma grande alegria, aqui, com a chegada de Ricardo de Bordeaux."

John trincou os dentes de inveja. Mais um menino. Mais um para ficar entre ele e o trono.

Independentemente do que Isolda dissesse, o destino estava zombando dele.

Blanche decidira que a criança deveria nascer no castelo lancastriano de Bolingbroke. Este fora um dos castelos de seu pai que agoraestava nas mãos de seu marido. Ela sempre gostara do castelo, embora muitos dos criados acreditassem que era assombrado. Aquele fantasma era um tipo muito estranho. Dizia-se que era o espírito de alguma alma atormentada que tomava a forma de uma lebre que fora vista correndo pelo castelo e algumas pessoas juravam que tinham sido derrubadas por ela quando ela lhes passava rápido por entre as pernas.

Blanche se lembrava do pai contando que um despenseiro do castelo, que certa vez tropeçara enquanto levava vinho, culpara a lebre, mas parecia mais provável que ele tivesse se servido demais na adega.

Havia uma história antiga, de que certa vez algumas pessoas audazes tinham reunido um grupo de cães de caça para ir atrás da lebre. Eles a haviam perseguido pelos aposentos do castelo, descendo a escada em espiral que ia para as adegas. Então, os cães tinham saído de lá em disparada, loucos para fugir, os pêlos eriçados, os olhos arregalados, e nenhum deles quis tornar a entrar no castelo.

Em todas as suas temporadas no castelo, Blanche nunca vira a lebre, e como tivera vontade de visitar Bolingbroke, para lá seguira e decidira que ali seria o local de nascimento do filho.

Ali ela esperou o acontecimento e vivia pensando em John, rezando a Deus e aos santos para que fizessem com que ele passasse incólume pelas batalhas.

Mandou chamar Isolda, que era um grande consolo, porque Blanche acreditava que Isolda tinha um raro dom de ver o futuro. Isolda estava certa de que seu amado John voltaria são e salvo. Estava certa, também, de que daquela vez seria um saudável menino.

Assim, enquanto os dias de inverno ficaam um pouco mais longos e os sinais da primavera aumentavam com o passar do tempo, Blanche esperava, no castelo de Bolingbroke, pelo nascimento do filho.

No campo de batalha de Nájara, o Príncipe Negro, com seu irmão John de Gaunt, estava pronto para lutar pela causa de Pedro de Castela.

Contra eles estava o exército de Henry de Trastamare.

- Hoje vamos decidir se você conseguirá ou não seu trono dissera o príncipe a Pedro.

Ele começara a duvidar de Pedro. Henry de Trastamare lhe escrevera de um modo que parecera franco e plausível. Pedro era conhecido em toda Castela como O Cruel. Derramara muito sangue inocente. Podia ser legítimo, mas Castela sofrera sob seu governo, e o povo de Castela ficaria imensamente feliz ao vê-lo deposto. O grande Príncipe Negro não fazia ideia do homem com quem estava lidando. Se conhecesse realmente Pedro, o Cruel, iria considerá-lo como um amigo falso.

- Ah - disse o príncipe -, está claro que o bastardo Henry não tem coragem para brigar. A batalha está praticamente ganha.

E assim, eles avançaram, e não havia um único homem nas fileiras de Henry de Trastamare que não estivesse cônscio de que aquela lenda militar, o Príncipe Negro, os estava enfrentando, e no íntimo sabiam que o herói de Crécy e Poitiers era imbatível.

Eles o viram ali, à frente de seu exército, a armadura preta tornando-o facilmente identificável.

A partir do momento em que ouviram seu brado: "Avance, bandeira, em nome de Deus e São Jorge. E que Deus defenda nosso direito!", o resultado foi uma conclusão prevista. Todos sabiam que o Príncipe Negro era o maior soldado do mundo depois de seu pai e de seu bisavô; e o primeiro estava ficando velho e o segundo estava morto. Ele reunira sob sua bandeira a flor da cavalaria inglesa, e não havia um só homem que não considerasse uma grande honra servir sob suas ordens.

A batalha acabou. Henry de Trastamare fugira. O Príncipe Negro entregara a Pedro, o Cruel, seu reino. Mostrara ao mundo que mesmo por um rei de valor discutível ele lutaria, em vez de deixar que um bastardo usurpasse seu direito.

Eles voltaram para Bordeaux. O Príncipe Negro parecia cansado, como John nunca vira antes. Havia um leve tom amarelado em seu rosto que costumava ser viçoso.

- Você não está bem, Eduardo - disse John.

- Confesso que estou com certos problemas-admitiu Eduardo. - Ultimamente, eu os tenho notado. Rogo-lhe que não mencione isso a Joan. Ela iria querer que eu ficasse de cama e iria querer servir de minha enfermeira.

John sacudiu a cabeça, mas pensou: bastará Blanche olhar para você, irmão, para ver que nem tudo vai bem.

Quando eles chegaram ao castelo, havia cartas vindas da Inglaterra.

John foi assaltado por grandes ondas de exultação.

Blanche dera à luz, sem problemas, um filho homem.

Ela o batizara de Henrique. "Henrique de Bolingbroke, é como o estão chamando, porque, meu marido, decidi que ele deveria nascer no nosso castelo que leva aquele

nome. Ele é bem formado, saudável, perfeito de todas as maneiras. Estou ansiosa por mostrá-lo a você."

Um filho, Henrique de Bolingbroke! Nascido três meses depois de Ricardo de Bordeaux.

Aquela era a maior vitória.

Finalmente... um filho homem.

 

A RAINHA FILIPA, sofrendo de hidropisia, mal podia se deslocar. Suas aias ajudavam-na a sair da cama para a cadeira, onde ficava sentada com seu trabalho de agulha e seus sonhos sobre o passado.

Ficava sempre satisfeita ao ver membros de sua família, e isso abrangia a nora Blanche de Lancaster, que dava um jeito de passar muito tempo com ela.

Durante aquele ano, a rainha tinha ido para o castelo de Windsor, uma de suas residências favoritas, e lá achou conveniente ficar, porque a ida de palácio a palácio era demasiado cansativa para ser feita, a menos que houvesse uma importante razão para isso.

Apesar de seus sofrimentos, ela era amável e estava sempre interessada nas atividades das pessoas que a cercavam, pronta a compartilhar de seus triunfos e comiserar-se de suas atribulações.

Blanche era uma grande favorita sua. Havia uma similaridade entre o caráter das duas. Eram capazes de uma profunda afeição; e estavam prontas a esquecer-se de si mesmas a serviço do ser amado. Nenhuma das duas lamentava-se. Diziam, no entanto, quando os maridos estavam ausentes, que sentiam falta deles, mas as duas aceitavam aquelas separações filosoficamente e a similaridade de suas vidas era um fator para aproximá-las ainda mais.

Filipa ficava sentada com suas amas em uma extremidade do aposento, costurando roupas para os pobres ou trabalhando num pano de altar, enquanto Blanche sentava-se ao lado dela, onde as duas podiam falar à vontade sem ser ouvidas. As mãos de Filipa estavam sempre ocupadas, como acontecia com as de Blanche. A rainha nunca aprovara a ociosidade.

Ela ficou muito contente ao saber que Blanche estava grávida outra vez.

- É bom John estar em casa novamente-disse ela.-Espero, minha querida, que se passe muito tempo antes que ele tenha de ir à guerra de novo. Sou capaz de jurar que você espera que seja mais um menino.

- É o que John quer.

- Seu pequeno Henrique é um travesso.

A fisionomia de Blanche revelou o orgulho e a alegria que sentia pelo único filho homem.

- Majestade, sei que todas as mães pensam que seus filhos são os melhores do mundo, mas Henrique...

- Henrique, na verdade, é a criança mais bonita a inteligente que já nasceu. - A rainha sorriu. - Eu compreendo, querida Blanche. Foi assim com os meus. Cada um deles me deixava maravilhada. Se você pudesse ter visto Eduardo quando criança! Claro que ele era o primogénito. E Lionel. Ele era grande desde o começo. E o querido John. Um jovem cavalheiro imponente. Depois, Edmund e Thomas. E as meninas, é claro. Foram-me tão queridas quanto eles. Tive minhas tristezas. A morte fez as suas baixas. Mas quando olho para meus belos filhos homens, eu me rejubilo. Ó Blanche, se você estiver tão feliz com seus filhos quanto estou com os meus, será uma mulher afortunada. Mas temos de nos lembrar de que enquanto Deus dá com uma das mãos, Ele tira com a outra; e Ele tem sempre suas razões para agir assim, e isso, querida filha, temos de aceitar.

Blanche curvou a cabeça, concordando. Ela perdera o bebé que tivera, mas agora que tinha Henrique, deixara de se lamentar tanto, embora acreditasse que jamais esqueceria.

Ela estava certa de que Filipa sempre se lembraria dos filhos que perdera. Seu maior golpe tinham sido as mortes das duas filhas alguns anos antes, Mary e Margaret, que tinham morrido com um intervalo de poucas semanas. Desde então, ela nunca fora a mesma.

Mas Blanche não devia pensar em morte agora, com a nova vida mexendo-se dentro dela.

- Parece que essa questão de Castela - dizia a rainha - foi resolvida de forma satisfatória. Pedro terá muito a agradecer a meus filhos. Ele deve sua coroa a Eduardo e John.

- John me disse que foi uma batalha gloriosa.

Blanche franziu um pouco o cenho. Será que qualquer batalha que significava morte podia ser chamada de gloriosa? Ela achava que não, e sabia que Filipa concordaria com ela. Se tivesse falado nisso com John, ele teria sorrido para ela com ar de indulgência, divertindo-se com suas sensibilidades femininas.

- Isso mesmo - acrescentou Filipa.-Pedro, o rei de direito, está de volta ao trono. Mas recebi notícias de Joan dizendo que Eduardo voltou da batalha com a saúde abalada. Está assustada com ele. Joan mudou desde que se casou. Era uma jovem muito frívola. Capaz de quaisquer indiscrições, sem dúvida. Mas parece ser uma boa esposa para Eduardo e eles têm aqueles dois adorados meninos.

- Para o pequeno Eduardo, é bom ter um irmãozinho.

- É sempre bom os reis terem vários filhos homens, e Eduardo, é claro, será o rei da Inglaterra um dia. Eu sempre me alegrei por ele ser tão merecedor, desde a infância. Em combate, porém, nunca se sabe o que pode acontecer, e é bom ter outros que possam substituir o herdeiro caso haja alguma desgraça.

Blanche estava pensando: John acreditava naquilo. John tivera esperanças... mas elas haviam sido dispersadas devido ao nascimento daqueles dois meninos do Príncipe Negro.

Enquanto elas conversavam, uma mulher entrara no aposento. Blanche a tinha visto uma ou duas vezes na corte, e em cada ocasião prestara muita atenção a ela. Era alta e tinha uma boa aparência de um tipo resplendente um tanto vulgar. Havia nela uma petulância que Blanche achava que decididamente nada tinha de atraente.

Em vez de juntar-se às damas no outro extremo dos aposentos reais, ela dirigiu-se à rainha e, curvando-se para ela e para Blanche, sentou-se ao lado das duas.

Blanche ficou perplexa. Claro que era dever da mulher esperar até que fosse chamada para o lado da rainha e só sentar-se quando lhe dessem permissão.

Blanche esperou que a rainha a mandasse embora, mas Filipa não fez nada disso.

A mulher apanhou a peça de trabalho de agulha em que as duas estavam trabalhando.

- Vai crescendo depressa - disse ela. - Minha senhora Blanche é uma rival da rainha... com a sua agulha.

- Você gosta das cores, Alice? - perguntou a rainha.

- São um pouco sombrias, majestade.

- Ah, você gosta de cores brilhantes.

- É uma fraqueza que tenho. O que Lady Blanche acha? Blanche estava assombrada. Não compreendia por que a rainha suportava tamanha insolência. com frieza, ela disse:

- Eu gosto daquelas que a rainha escolheu.

Ela percebeu que um anel de rubis e diamantes brilhava na mão da mulher. Quem era ela?, perguntou-se Blanche.

- Alice - disse a rainha -, quero que você se junte às damas e diga-lhes que estão dispensadas. Quero ficar a sós com a duquesa de Lancaster.

A mulher sacudiu a cabeça mas não se apressou em levantar-se, e passaram-se alguns minutos até que ela se deslocasse para o outro extremo do aposento. Lá, ela riu com as damas por algum tempo, e Blanche percebeu que elas pareciam bajulá-la um pouco. Por fim, saíram juntas.

- Quem é aquela mulher? - perguntou Blanche.

- É uma das camareiras.

- Ela parece dar-se ares...

- ó... o jeito dela é esse.

Blanche ficou estupefata. A rainha era delicada com quem a cercava; jamais salientara sua posição ou se portara de maneira imperiosa, mas houvera uma certa dignidade que evitava que as pessoas abusassem de sua delicadeza. Blanche nunca antes a vira tão dominada por uma de suas súditas.

Blanche tinha muitas perguntas a fazer, mas pelos modos da rainha ela podia dizer que não era sobre uma súdita que ela queria falar.

Era evidente que havia um certo mistério com relação àquela mulher. Ela iria perguntar a John o que era. O incidente tinha sido extremamente desagradável, e Blanche sentia-se levemente deprimida. Era óbvio que ele tivera o mesmo efeito sobre a rainha, e a intimidade entre elas tornara-se sombria.

Blanche retirou-se logo depois e seguiu para seus aposentos no castelo. Enquanto fazia isso, ouviu o tropel de patas de cavalos lá embaixo e, olhando de uma janela, viu o rei com um grupo de criados no pátio. Entre eles estava John.

A visão do rei chocou-a um pouco. Ele envelhecera muito desde a última vez em que o vira. Mas talvez ela o estivesse comparando com John, que parecia muito robusto e saudável.

O rei tinha desmontado. Estava de pé no pátio dizendo alguma coisa a um dos cavaleiros. De repente, ergueu os olhos. Por um momento Blanche pensou que ele estivesse olhando para ela, mas logo percebeu que o olhar dele se dirigira para o ponto além dela. Ela viu a expressão no rosto dele. Aquilo a alarmou um pouco. Ela podia descrevê-la como lasciva.

Então ela ouviu o som de uma risada. Uma janela fora aberta, e uma mulher debruçava-se nela. Era, evidentemente, a pessoa para a qual o rei estivera olhando.

Um sinal passou entre eles.

Blanche compreendeu muita coisa naquele momento, porque a mulher era aquela Alice do quarto da rainha, cuja insolência para com Filipa fora tão tenuemente velada.

Quando ficou a sós com John, ela não conseguiu evitar referir-se ao que tinha visto.

- Sei de que mulher você está falando - disse ele. - A corte toda está falando sobre ela. Ela enfeitiçou o rei.

- Parece impossível! - bradou Blanche.

John sacudiu-lhe as mãos e sorriu ternamente para ela.

- Para você é difícil compreender, minha adorada-disse ele.

- O rei será sempre dedicado à rainha.

- No entanto, ele permite que essa mulher a ofenda!

- Estou certo de que ele não permitiria isso. Mas veja, minha querida, a rainha já não pode ser uma esposa para o rei...

- Ela é a esposa dele. Tem sido sua esposa há muitos anos...

- Ela já não pode partilhar do leito dele. Aquela hidropsia de que ela sofre imobilizou-a a tal ponto que já não pode ter uma vida normal. Essa mulher... você não compreenderia, mas ela alardeia seu sexo diante dele... É uma dessas mulheres que... - Ele olhou para ela desorientado.-Minha adorada Blanche-prosseguiu -, tente não pensar nisso. É lamentável que o rei não tenha escolhido uma amante diferente... se ele tiver de ter amante, e todos os homens e mulheres experientes compreendem isso, meu amor. É lamentável que essa tenha sido a mulher que o atraiu.

- Então essa camareira é amante dele.

- Parece que sim.

- E por essa razão ela ostenta a sua posição em presença da rainha. Ela estava usando um anel valioso.

- Ela gosta de coisas finas, e o rei adora presenteá-la. Suponho que ele tinha de arranjar uma amante, mas que tivesse de ser Alice Perrers...

- Eu não suportaria isso, se fosse a rainha.

John passou o braço em torno dela e depois, soltando-a, segurou-lhe o rosto com as mãos.

- Eu lhe prometo - disse ele - que você nunca ficará numa situação dessas. Você e eu seremos fiéis um ao outro até que a morte nos separe.

Blanche agarrou-se a ele.

- Ó John, meu adorado marido, não fale em morte. Você não imagina como sofro quando você parte para a guerra.

- Não tenha receio. Não vai ser fácil, para os meus inimigos, livrar-se de mim. vou continuar a viver para você, minha Blanche, e nossos filhos. Como está aquele jovem leão, Henrique, hoje? E você parece um pouco cansada. - Ele tocou de leve a barriga dela.

- Precisa cuidar desse pequenino. Em breve ele estará conosco.

- vou rezar para que seja um menino - disse Blanche - e que seja exatamente igual ao pai.

Ela sentia-se um pouco melhor. A óbvia devoção do marido, expressa de forma tão afetuosa, apagara o dissabor incutido em sua mente por Alice Perrers.

Poucos dias mais tarde, chegou uma notícia a Windsor que causou tanta tristeza ao rei e à rainha que os dois ficaram muito unidos, e parecia que Alice Perrers seria como um meteoro cortando o céu para assombrar todo mundo com seu brilho e depois cair no esquecimento.

O rei raramente saía do lado da rainha, e a tragédia envelheceu visivelmente os dois.

Foi muito inesperado.

Não fazia muitos anos que Lionel, o segundo filho homem deles, voltara da Irlanda - que ele herdara através de sua mulher que morrera alguns anos antes -, declarando que já estava farto de lá e ficaria na Inglaterra.

Filipa, que adorava ter os filhos à sua volta, ficou encantada por ele regressar para o lado deles. O indolente Lionel, que não pedia nada além de que a vida seguisse com conforto à sua volta, era um bom companheiro. Era muito agradável estar com ele. Nunca pediu doações, terras e privilégios. Era bastante rico por intermédio de sua viúva, é claro; mas era diferente do restante da família, por não ter aquela avassaladora ambição que Filipa percebia ser mais forte de todas em seu filho John.

Lionel só tinha uma filha de seu casamento com Elizabeth, Filipa; e era natural que devesse casar-se outra vez.

O visconde de Milão estava à procura de um marido bom para sua bela e única filha, Violante. As negociações avançaram e depois de algum tempo Lionel foi para Milão casar-se com Violante. Primeiro, porém, ele garantira o futuro de sua filha Filipa casando-a com Edmund de Mortimer, o conde de March.

Depois, com a pompa adequada, partira, e por fim casara-se na catedral de Milão com a bela e rica filha de Galeazzo, visconde de Milão.

Blanche sabia que John não ficara muito contente com o casamento. Ela lia seus pensamentos. Ele ainda ansiava pela coroa, muito embora tivesse um irmão mais velho e esse irmão, o sempre popular Príncipe Negro, tivesse dois filhos homens, Eduardo e o jovem Ricardo de Bordeaux. Ela gostaria de poder controlar aqueles pensamentos ambiciosos do marido. Mas sabia que não conseguiria, nunca. Faziam parte da natureza dele.

Naturalmente, quando Lionel, aquele outro irmão que iria reivindicar, por direito, a coroa se alguma desgraça afastasse o Príncipe Negro e sua família, tornara a se casar, ele ficara deprimido. Uma esposa jovem e bela, o quente sol da Itália, o Lionel amante dos prazeres que aproveitava todas as ocasiões, sem dúvida que não demoraria para que fosse pai de uma criança que seria mais um para ficar entre John e seu desejo.

Violante e Lionel casaram-se, e a alegria em Milão foi tamanha que as festividades duraram semanas. Isso, dissera John, vai ser muito bom para Lionel. O sogro, Galeazzo, parecia estar encantado com ele. A aliança com a família real inglesa era algo a que ele se dedicara, e tudo parecia estar indo bem em Milão.

E então chegara a notícia arrasadora.

Lionel tinha morrido.

Em meio às festanças, ele ficara doente, e embora a princípio ninguém tivesse levado sua indisposição muito a sério, ela piorara com rapidez, e poucos dias depois de começada ele estava morto.

A rainha não acreditou na notícia quando a recebeu.

Lionel - o mais alto de todos eles, aquele que tanto gostava de gozar a vida -, morto. Não era possível.

Ela e o rei passaram horas juntos, tentando consolar um ao outro.

Foi um golpe cruel demais. Lionel era o sétimo de seus filhos a morrer. Dois pequeninos Williams e Blanche tinham morrido ao nascer, e isso era menos doloroso do que perdê-los quando estavam crescidos. Joana morrera de peste durante a viagem para casar-se com Pedro de Castela e Mary e Margaret tinham morrido de doenças misteriosas na adolescência. A rainha nunca se recuperara disso. E agora Lionel, o forte e caloroso Lionel, fora derrubado assim na flor da juventude.

Filipa estava velha e doente e sabia - embora tentasse fingir que não - que Eduardo, que durante os muitos anos do casamento dos dois sempre mantivera a pose de marido fiel, e ela acreditava que tivesse sido quase que totalmente fiel, agora não conseguia esconder sua ânsia lasciva por uma insolente camareira.

Tudo isso ela suportara, e agora ali estava o mais cruel de todos os golpes. Um de seus filhos adorados fora atingido por um destino cruel.

Eduardo sentou-se ao lado dela. Segurou-lhe a mão. Ele agora não estava pensando em Alice. Procurava desesperadamente algum consolo para ele e para Filipa.

Quando John levou a notícia da morte do irmão a Blanche, ela viu que, apesar de sua expressão trágica, um certo triunfo brilhava em seus olhos e sabia que ele estava pensando: Lionel morreu. Menos um obstáculo para o trono.

Então, Blanche tremeu de apreensão e medo quanto ao futuro.

Ela foi à ala infantil e apanhou o pequenino Henrique, agora com cerca de dezoito meses de idade-forte, olhos brilhantes, começando a perceber tudo que o rodeava.

John juntou-se a ela. Ele não podia ficar longe da ala infantil, e embora amasse as filhas, todas as suas esperanças estavam concentradas naquele menino.

Blanche ficou olhando enquanto ele pegava a criançanos braços.

- E o que você esteve fazendo hoje, Henrique de Bolingbroke?

- perguntou ele, em tom de brincadeira.

Ela viu os sonhos ali... sonhos para o menino.

Houve o costumeiro alarido sobre veneno, e desconfiava-se que o sogro de Lionel tinha-lhe tirado a vida. Mas, como salientou John, não havia motivo para que Galeazzo fizesse aquilo, porque a morte de Lionel era o fim de suas ambições para a filha e para Milão.

Não, Lionel havia comido demais a comida do país; não estava acostumado com ela e com o calor daquele país; sucumbira àquela disenteria que muitas vezes atacava os viajantes no exterior e que no caso dele tinha sido fatal.

Ele foi enterrado primeiro em Pavia, mas havia pedido, em seu testamento, que seus restos mortais ficassem no convento dos frades agostinianos em Clare, em Suffolk, de modo que eles foram levados para lá e colocados ao lado dos de sua primeira mulher.

Em meio àquele luto, Blanche deu à luz um menino.

John ficou encantado com o garoto, e este foi batizado com o mesmo nome do pai.

Infelizmente, o pobre John viveu apenas poucos dias.

Blanche ficou desolada. Apesar de todos os seus cuidados, a criança morrera.

Ela ficava muito tempo com a rainha e as duas tentavam consolar uma à outra.

- Temos de ser corajosas - disse Filipa. - Você tem suas filhas e Henrique. Eu tenho o meu querido Eduardo, o meu John, Edmund e Thomas, que ainda me restam, e minha filha Isabella. Devemos dar graças pelo que nos resta.

Estava claro, no entanto, que o choque da morte do filho e o fato de saber que Eduardo estava-se afastando dela lançaram uma pesada sombra sobre a rainha.

Foi na criadagem real que Blanche tornou a encontrar-se com o jovem poeta Geoffrey Chaucer.

A rainha interessara-se por ele porque se casara com uma de suas camareiras, Filipa de Roet.

- Uma boa moça - dissera a rainha -, talvez zelosa demais. Parece um pouco afoita e quer assumir muito serviço. Mas é de confiança e honesta. Acho que é uma boa esposa para Geoffrey. Lionel o considerava muito. Ele escreveu versos interessantes.

Devido ao fato de Lionel ter grande consideração por Geoffrey e ter gostado muito de sua poesia e lhe dado um estipêndio que era mais do que ele teria ganhado como um pajem comum, o poeta agora foi admitido na equipe real.

Para a rainha foi um prazer saber que sua camareira, Filipa de Roet, tinha-se casado. Deu ricos presentes ao casal e dedicou um interesse especial a ele. Filipa Chaucer continuou a servir nos aposentos reais, e Geoffrey era chamado com frequência à presença da rainha para ler sua poesia para ela.

Ela falou com Blanche sobre a jovem que era um assunto muito mais agradável do que aquela outra camareira, Alice Perrers.

- Ela vai ser uma boa esposa para Geoffrey. Ele precisa de alguém que seja prático ao cuidar dele. Aquele jovem é um sonhador, mas escreve bem e seus versos são muito considerados. O rei gosta deles. Lionel encantava-se com eles. Querido Lionel, ele iria querer que arranjássemos um lugar para Geoffrey.

- Eu já reparei nele.

A rainha deu uma risada.

- E eleja reparou em você. Quando seu nome é mencionado, ele por pouco não cai de joelhos em adoração. Ele a admira, Blanche, mas com o máximo de respeito. - A rainha prosseguiu: - Eu sentia uma certa responsabilidade para com Filipa de Roet. O pai dela foi um bom criado meu. Ele veio de Hainault para trabalhar para mim. Ele gostaria de ver a filha amparada na vida, o que será com o jovem Chaucer. Estou certa de que o rei vai dar a ele uma pensão. Ele me prometeu que providenciaria.

- Eles são um casal afortunado por ter conquistado seu interesse, majestade.

- Eu achava, mesmo, que devia fazer o que pudesse pela filha de de Roet. Ele foi um criado bom e honesto. Ela tem uma irmã que se casou recentemente... muito bem, acho eu, para uma jovem na posição dela. Filipa estava me falando sobre isso. Essa irmã, Catherine, pelo que sei, é algo como uma beldade. Seja como for, conseguiu atrair Sir Hugh Swynford. John deve conhecê-lo. Ele é um dos servidores dele e creio que esteve com ele na Gasconha recentemente. No entanto, essa jovem Catherine foi esperta bastante para levá-lo a casar-se com ela e foi uma esperteza dela, porque ela não tem fortuna alguma. De Roet não deixou coisa alguma. É por isso que acho que tenho de fazer o que puder.

- Pelo menos a senhora tem apenas que se preocupar com uma filha, já que a outra soube cuidar de si mesma.

- Catherine é Lady Swynford... fato que deixa a irmã muito satisfeita. Senhora Chaucer não soa tão bem aos ouvidos dela quanto Lady Swynford. Eu digo a ela: você se casou com um poeta, minha filha. Os versos de seu marido podem muito bem continuar vivos depois que todos tivermos morrido, quando o mundo pode ter esquecido um proprietário rural e sua esposa. Querida Filipa de Roet. Acho que ela é um pouco impaciente com os versos do marido.

- Eu gostaria de ver a jovem.

- Minha querida Blanche, vai ver. vou mandar que ela me sirva hoje. Ela irá sentar-se ali com as damas e trabalhar nas roupas que estamos fazendo para os pobres. Eu sempre fico feliz quando estamos trabalhando naquelas roupas, embora adore bordar com cores vivas. Vivo pensando nos pobres, Blanche, particularmente agora que estou velha, cansada e doente. Penso na vida feliz que tive e que alguns deles vivem na miséria e na pobreza...

- Felicidade e riqueza não andam necessariamente de mãos dadas - disse Blanche.

- Você fala com sensatez, querida jovem. Espero que seja tão feliz com o seu casamento quanto eu fui... até...

A rainha parou abruptamente, e Blanche curvou bem a cabeça para seu trabalho a fim de que Filipa não pudesse ver o rubor que lhe subira as faces.

Na tarde daquele dia, Filipa Chaucer ficou de serviço, e Blanche pôde estudar a robusta mulher que se casara com o poeta. O casamento devia ter sido arranjado para eles e nenhum dos parceiros pudera escolher o outro; e ocorreu a Blanche que os dois poderiam muito bem ser um casal incompatível.

Ela e a rainha conversaram sobre os filhos, como faziam com muita frequência.

As meninas estavam numa idade, agora, em que precisavam de uma governanta e ela estava à procura de uma pessoa adequada. Precisava ter alguém que gostasse muito de crianças. Havia, também, o pequeno Henrique. Ele estava se tornando o terror da ala infantil. Blanche queria alguém que pudesse ensinar um pouco às crianças e ao mesmo tempo tomar conta delas como se fosse a própria mãe. Ela não queria a costumeira governanta de alto berço.

- Sei exatamente o que você quer dizer - disse a rainha. Quer alguém que mostre aquela devoção a eles que Isolda Newman dedicou a John.

Blanche concordou que era aquilo que estava procurando.

- Vamos procurar alguém e tenho certeza de que você encontrará a pessoa certa.

Poucos dias depois, a rainha pediu a Blanche que fosse a seus aposentos. Ela estava de cama e parecia muito cansada. Disse a Blanche que estivera cansada demais para levantar-se naquele dia.

- Mas não falemos de meus horríveis males. Há assuntos mais interessantes. Filipa Chaucer veio me procurar para fazer um pedido. Disse, com toda franqueza, que ouvira a nossa conversa quando cozia com as damas e que quer apresentar o nome de sua irmã para governanta das crianças.

- Irmã de Filipa Chaucer. Seria interessante.

- Eu disse à Filipa que submeteria o assunto a você. Filipa está ansiosa para que a irmã faça parte da vida da corte. Diz que ela não pode ficar enfiada lá em Lincolnshire. A propriedade de Swynford não é grande e Filipa diz que a irmã leva uma vida de mulher de fazendeiro. Eu gostaria de saber o que você pensa disso.

- Eu gostaria de conhecer Catherine Swynford - disse Blanche. - Ela pode muito bem ser a pessoa de que necessito. Além do mais, eu gostaria de fazer alguma coisa pelos Chaucer.

- Eu achei que iria querer - disse a rainha. - vou dizer a Filipa que a mande falar com você.

Momentos depois, a própria Filipa entrou levando uma posset para a rainha.

Blanche se perguntou se ela estivera ouvindo a conversa e programara a entrada de modo a que não houvesse demora alguma em mandar buscar a irmã. Havia em Filipa

Chaucer aquele algo que sugeria engenhosidade e uma determinação de arrumar as fortunas da família.

- Ah, Filipa - disse a rainha -, estamos falando de você, a duquesa e eu.

- A rainha me falou na sua irmã - disse Blanche. - Pode dizer a ela que venha me procurar.

Filipa corou de satisfação enquanto fazia uma acentuada mesura e murmurava agradecimentos.

A rainha tomou a bebida, e depois que Filipa se retirou disse:

-; Elas me trazem essas coisas. Eu as bebo para agradá-las. Mas não há remédio para o que me aflige, Blanche.

Blanche tomou as mãos da rainha e beijou-as num acesso de afeição.

- A senhora não deve perder a esperança, querida senhora. Somos tantos os que precisamos da senhora!

Quando vira Catherine Swynford pela primeira vez, Blanche ficara impressionada com sua aparência. Catherine era uma mulher notavelmente atraente e muito mais jovem do que Blanche imaginara. Ela estivera pensando em outra Filipa - muito quadrada, resoluta, não sem atrativos em um estilo diferente e interiorano, uma mulher simples, maternal, talvez um pouco vigorosa como a irmã, o tipo que saberia como conseguir das crianças uma obediência imediata.

Em vez disso, ali estava Catherine. Alta, esguia, com cerca de dezoito anos - cabelos abundantes com mais do que um toque de ruivo, longos olhos esverdeados com pestanas cujo negrume contrastava de forma notável com a pele branca. O nariz curto era provocador, e os lábios cheios sugeriam uma certa sensualidade. Uma jovem bem perturbadora.

Blanche hesitou. Sentiu-se um pouco perplexa simplesmente porque a jovem era muito diferente do que ela imaginara.

Catherine lhe disse, numa encantadora voz educada, que passara cerca de seis anos no convento de Sheppey.

- A rainha providenciou para que eu fosse para lá-disse ela.

- Ela tem sido muito boa para a minha família.

Blanche curvou a cabeça em reconhecimento da bondade da rainha.

- Minha mãe era francesa, e minha irmã e eu moramos com ela na Picardia enquanto meu pai estava nas guerras. Meu pai foi arauto do rei Eduardo e foi feito cavaleiro por ele por bravura no campo de batalha.

- A rainha me falou um pouco sobre isso. Ele morreu, não morreu?

- Foi morto no campo de batalha... lutando pelo rei Eduardo.

- A jovem ergueu bem a cabeça. Era uma pessoa que não quereria receber caridade. Sem dúvida que achava que qualquer serviço que a rainha tivesse prestado a ela e à irmã era um direito que elas haviam adquirido com a vida do pai.

"A peste atacou a nossa casa - prosseguiu Catherine -, e só eu e minha irmã sobrevivemos. Fomos trazidas para a Inglaterra e levadas à rainha. Eu estava muito doente, e ninguém achava que eu sobreviveria, de modo que fui enviada para o convento, a fim de ser tratada pelas freiras, e encontraram um lugar para minha irmã no séquito da rainha.

- E quando saiu do convento?

- Vim visitar minha irmã, e Sir Hugh Swynford estava na corte. Ele me viu... e pouco depois nós nos casamos.

- De modo que a senhora fez um bom casamento, Lady Swynford.

- Foi o que disseram, minha senhora.

- E a senhora quer deixar a sua casa no interior e vir para a corte?

- Meu marido está na França, servindo ao rei. Nossa propriedade é muito pequena e temos poucos servidores. Sim, senhora duquesa, eu quero deixar o interior e vir para a corte.

- Muito bem-disse Blanche. - Mandarei chamar as crianças e a senhora vai ver o que acha delas... e o que elas acham da senhora.

Catherine ficou sentada, com grande dignidade, confiante em que as crianças iriam gostar dela.

Elas entraram na sala-Fílipa, com oito anos de idade e muito cônscia de que era a mais velha; Elizabeth, quatro anos mais moça, tnas já mostrando sinais de uma natureza um tanto tempestuosa, e Henrique, que ainda não completara dois anos, sob os cuidados de sua ama.

- Minhas queridas - disse Blanche às duas meninas -, esta é Lady Swynford, que gostaria de ser a governanta de vocês.

Elizabeth adiantou-se correndo e ficou olhando para Catherine. Filipa ficou imóvel, observando-a em silêncio.

Catherine estendeu uma das mãos. Elizabeth segurou-a. Depois, Catherine ajoelhou-se a fim de que seu rosto ficasse ao nível do da garotinha.

- Espero que você goste muito de mim - disse Catherine. Filipa adiantou-se e segurou a mão da irmã.

- Eu gosto dela - disse Elizabeth.

Filipa não disse coisa alguma, mas havia aprovação no seu silêncio.

Então o pequenino Henrique, descobrindo que não era o centro de atração, deixou todos cientes de seu desagrado de seu costumeiro modo saudável.

- Ele é um menino mimado - disse Filipa a Catherine. Catherine foi até Henrique e tomou-o nos braços.

Os dois olharam firme um para o outro e na fisionomia de Henrique surgiu um belo sorriso.

Estava claro que ele, tal como as irmãs, tinha gostado da bela nova governanta.

Catherine Swynford é uma sedutora, pensou Blanche.

Chegaram más notícias de Bordeaux. A saúde do Príncipe Negro, afetada muito seriamente na batalha de Nájara, longe de melhorar, piorava gradativamente. Além do mais, Pedro de Castela mostrara ser um aliado ignominioso. Não cumprira nenhuma de suas promessas.

Eduardo ficara em Valladolid por algumas semanas durante o período em que o calor era mais forte, enquanto esperava o pagamento que lhe era devido por ter ido em auxílio de Pedro, mas Pedro sempre apresentava desculpas. A disenteria atacara o exército, e muitos soldados tinham morrido em consequência dela. O próprio príncipe fora gravemente atacado, e houvera até quem sugerisse que Pedro poderia ter subornado um de seus espiões para envenená-lo. com a reputação de Pedro sendo o que era, isso parecia provável.

Na verdade, tinha sido um erro ajudar Pedro a voltar ao trono, porque ele era um aliado inútil e teria sido melhor deixar o irmão bastardo no comando.

Por causa de sua saúde, Eduardo precisava da ajuda do irmão. Ele queria que John fosse para a França, porque temia que Charles da França se aproveitasse da situação, de modo que John deveria fazer os preparativos para partir imediatamente.

John consultou o pai. O rei mostrava sinais da idade. Ele nunca se recuperara da morte de Lionel e estava preocupado com as informações sobre a saúde de Eduardo. Estava, também, atormentado por Alice Perrers porque, embora deplorasse a sua infidelidade para com a rainha, não conseguia resistir a Alice.

- Você tem de partir, John - disse o rei. - Eduardo precisa de você. Eu gostaria que você me dissesse exatamente como ele está. Receio que Joan esteja demasiado aflita. Ela tem medo porque ele está com essa lamentável doença. Tenho certeza de que vai passar. Mas veja por si mesmo, John, e diga-me a verdade. Infelizmente, meu filho, você terá de deixar sua doce esposa. Eu sei o que significa ser tirado do lado da esposa e dos filhos...

Pobre velho, pensou John, ele estava ansioso demais por dizer às pessoas que era um bom marido, agora que já não o era mais.

- vou me preparar imediatamente para partir para Bordeaux -disse ele. - E fique certo de que mandarei dizer exatamente como encontrei as coisas por lá.

Ele foi procurar Blanche. Ela ficaria triste por causa da próxima separação, mas iria compreender, é claro, que tinha de ser assim.

As damas de companhia disseram-lhe que ela estava com a rainha.

Ah, sim, pensou ele. Pobre mamãe. Ela agora não poderia durar muito. A cada vez que a via, percebia a mudança que ela sofria. A mãe perdera a saudável cor rosada que a acompanhara a vida toda até mais ou menos um ano atrás. Agora havia em sua pele um doentio tom amarelado; e a hidropsia aumentava a tal ponto, que ela praticamente não podia mover-se.

Ele foi à ala infantil. Não gostava de despedir-se dos filhos. Sentia uma alegria completa ao exultar-se pelo robusto Henrique.

Que homenzinho ele era! Exatamente como eu era, pensou John. Os olhos percebem tudo, as mãos estão ansiosas por agarrar tudo que estiver ao seu alcance. Meu filho. O que será que o futuro lhe reserva? Eu gostaria de saber. Poderia ser... uma coroa?

Havia uma jovem na ala das crianças. Ela se voltou, assustada, quando ele entrou.

As crianças correram para ele; Filipa fazendo uma profunda mesura, Elizabeth tentando fazer o mesmo e desistindo para agarrarse nos joelhos dele. Henrique não queria ficar atrás. Cambaleou em direção ao pai.

- Minhas filhas adoradas... meu filhinho...

Ele abraçou-os e o tempo todo esteve ciente da jovem que o observava. Segurando os filhos contra o corpo, ele olhou para ela por cima da cabeça deles.

Ela fez uma mesura até o chão. Ficou assim por alguns segundos, graciosamente postada, com as saias vermelho-escuro à sua volta. Ele percebeu o corpete amarrado por sobre um busto bem cheio; os espessos cabelos vermelhos pendiam em tranças, uma das quais lhe caía sobre o ombro. Os brilhantes olhos verdes, orlados por pestanas incrivelmente negras, olhavam-no com interesse. Ele sentiu uma grande agitação dominá-lo.

Fez um sinal para que ela se levantasse e se aproximasse.

Pôde ver que ela era mais impressionante quando estava mais perto. Apele era macia e branca como leite-um profundo contraste com os flamejantes cabelos e as pestanas negras, os olhos verdes e os lábios vermelhos.

- Você é... - começou ele.

- Ela é Catherine... - disse Filipa, com voz estridente - ...a nossa nova governanta. Nosso pai é um grande, grande senhor, Catherine.

- Sim, um grande, grande senhor, mais do que o rei - disse Elizabeth.

- Deixem disso-disse John, sorrindo.-Está vendo, minhas filhas me têm em alta conta. Creio que a duquesa falou em você.

- Eu sou Catherine Swynford, meu senhor. Meu marido está a seu serviço.

- Swynford-murmurou ele. E pensou: aquele matuto. E essa criatura maravilhosa. Prosseguiu: - Sir Hugh. Sim, ele serviu comigo. Está na França agora, creio eu.

- Sim, meu senhor. Ele está na França.

- E a senhora está aqui para cuidar de meus filhos. Fico contente com isso, Lady Swynford.

Ela curvou a cabeça, e quando a ergueu, os olhos brilhavam. Foi quase como se alguma mensagem passasse entre os dois.

John voltou-se para os filhos, mas mal percebeu a presença deles. Estava profundamente cônscio da presença dela.

Saiu da ala infantil porque sentia necessidade de fugir.

Foi para os seus aposentos e disse que ficaria a sós até que a duquesa voltasse de sua visita à rainha.

Ficou pensando na governanta. Catherine Swynford, murmurou. Nome ridículo. E casada com Hugh! John supunha que ele tivesse valor, mas era inculto, e ela... era uma criatura magnífica, disso não havia dúvida.

Era um absurdo ter permitido que ela lhe causasse uma impressão tão forte. Será que ele não tinha visto mulheres atraentes em sua vida? Mas nunca uma como essa mulher. O que era aquilo? Beleza, sem dúvida. Mas ele conhecera muitas mulheres bonitas. Muita gente diria que ela não era tão bonita quanto Blanche, sua esposa. Blanche era a beleza de um poeta. O jovem Chaucer sabia disso. Arredia, para ser admirada de longe. Essa Catherine Swynford, não. Ninguém desejaria ficar longe dela. Devia haver uma ânsia em todos os homens, ao contemplá-la, de toma-la... possuí-la... até mesmo os que estivessem muitíssimo bem casados...

Aquilo era ridículo. Ele não se sentira assim antes. Não era, por natureza, um homem promíscuo. E no entanto, na presença da governanta sentira uma ânsia quase irresistível por jogar para o lado todos aqueles padrões aos quais, desde que se casara com Blanche, aderira rigorosamente.

Quando Blanche entrou nos aposentos, ele levantou-se depressa, tomou-lhe as mãos e abraçou-a. Lembrou-se momentaneamente de seu pai bancando o marido fiel depois de uma de suas sessões com Alice Perrers.

- Minha adorada-disse ele -, o que foi? Você parece triste.

- É a rainha - replicou ela. - Acho que está piorando; cada vez que a vejo, há uma mudança.

- Se ao menos pudessem descobrir alguma cura.

- Ela está preocupada... com o rei...

- Aquela mulher horrível. Como eu a odeio! Creio que ela exibe as jóias recém-adquiridas em frente à minha mãe.

- E a rainha é demasiado delicada, está demasiado ansiosa por não magoar o rei, para reclamar dela.

John falou em termos violentos contra Alice Perrers. Ele nunca a odiara tanto como naquele momento.

Levou Blanche até um banco ao lado da janela e os dois se sentaram, o braço dele envolvendo-a.

- Tenho de partir, Blanche.

Ela voltou-se para ele e escondeu o rosto contra ele.

- Receio que sim, meu amor - continou ele. - Eduardo precisa de mim e meu pai acha que devo ir.

Blanche não disse nada.

- Talvez não seja por muito tempo - prosseguiu ele.

- Você vai entrar em combate.

- Sempre há combates. Parece que é o destino dos homens.

- Quando deve ir?

- Assim que estiver pronto.

Ela ficou em silêncio, e ele disse, devagar:

- Fui até a ala infantil e vi a nova governanta.

- O que achou dela?

- As crianças pareciam bem e animadas como sempre.

- Elas estão com saúde, graças a Deus. Mas eu me referia ao que você achou de Catherine Swynford.

Ele hesitou.

- Não gosta dela? - perguntou ela, rápido.

- Não estou certo. Não pensei que fosse tão jovem.

- Ela é séria.

- Eu estava pensando que a mulher de Swynford fosse diferente. Quando ele voltar para a Inglaterra, ela poderia ser mandada de volta ao interior, acho eu.

- Lamento você não gostar dela. As crianças já gostam muito.

- Eu não diria que não gosto dela. Achei que poderia ser... talvez um pouco volúvel.

- Os olhos dos homens a seguem. Ela é bonita e... algo mais...

- Talvez - disse John.

- A rainha está satisfeita com a nomeação. Ela se lembra do pai da moça. Filipa Chaucer é irmã dela, sabe?

- É uma pena ela não ser mais como Filipa Chaucer.

- As crianças parecem gostar muito dela. Estou percebendo que elas gostam de gente bonita em volta delas. Henrique já se afeiçoou a ela.

- Espero que isso não seja um indício do que está por vir.

- Você se refere...

- Espero que ele não fique obcecado demais por mulheres bonitas.

- Eu diria que nosso filho vai ser um homem normal. De qualquer modo, ele já gosta de Catherine Swynford. Claro, se você preferir que eu a mande embora...

- Ah, não, não. Dê uma oportunidade a ela. Não posso julgá-la. Só fiquei na ala infantil por alguns minutos. Temos de pensar na minha partida. Você gostaria que eu levasse cartas suas para Joan?

John gostou de ficar sozinho, e embora tentasse tirar Catherine Swynford da cabeça, o rosto dela estava sempre surgindo à sua frente.

Naquela noite, ele sonhou que acordava e a via em pé ao lado da cama, os cabelos vermelhos soltos e os lábios vermelhos sorrindo. Ela se deitava ao lado dele e ele a envolvia em seus braços.

Naquele sonho, ela dizia: "Isso tem de acontecer. Você, John de Gaunt, sabe disso, e eu, Catherine Swynford, também sei."

Um sonho perturbador, e mostrava claramente o efeito que ela causara sobre ele.

Ele chegou quase a ficar contente por ter de viajar.

Antes da partida, chegaram mais notícias do irmão.

Pedro tornara-se tão impopular em Castela, onde era conhecido como O Cruel, que seu meio-irmão, Henry de Trastamare, tinha sido bem recebido de volta pelo povo, e quando Henry voltara enfrentara Pedro e o matara com golpes de punhal.

Nada fora ganho pelos ingleses com a batalha de Nájara, aquela retumbante vitória que parecera tão gloriosa. Muitos soldados ingleses tinham morrido de disenteria, e parecia que a saúde do Príncipe Negro ficara prejudicada para sempre; o dinheiro que Pedro prometera pagar aos exércitos ingleses agora nunca seria pago; Biscaia, que seria a recompensa do príncipe pela ajuda, não chegara às suas mãos, e se ele a quisesse, teria de lutar uma nova batalha por ela

Aquilo era um desastre.

E o rei da França esfregava as mãos de satisfação.

Sim, o Príncipe Negro precisava do irmão John, que precisava despedir-se de sua devotada esposa, de seu pai aflito e de sua mãe doente.

- vou voltar dentro de pouco tempo - prometeu John a Blanche. E pensou: será que quando eu voltar Catherine Swynford ainda estará na ala infantil?

A rainha sabia que estava morrendo. Ao longo dos dois últimos anos, fora ficando cada vez mais fraca. O corpo, agora, estava tão inchado com hidropisia que lhe era um fardo, e ela não podia sentir muita tristeza ao deixar um mundo que perdera o encanto para ela.

Enquanto jazia na cama, ela pensava no passado, quando fora muito feliz. Tão vivamente que parecia ter sido ontem, lembrou-se do dia em que os enviados de Eduardo tinham chegado a Hainault para escolher uma noiva para ele e do medo que ela tivera de que eles escolhessem

uma de suas irmãs. E o quanto os dois tinham rido quando ele lhe contara que prevenira seus embaixadores de que seria mais do que valiam suas vidas levar qualquer outra que não Filipa. Eles tinham sido muito felizes, muito apaixonados - não mais do que um menino e uma menina. E quando cresceram, o amor entre eles tornara-se mais forte e os dois tinham tido uma família maravilhosa para provar aquilo ao mundo.

Dias felizes - mas passados. Tantos filhos mortos, e ela mesma sendo nada mais do que uma massa de carne rejeitada que a perturbava como uma prisão da qual estava ansiosa por fugir.

A vida era irónica. Algumas pessoas viviam um tempo longo demais. Outras eram levadas antes de terem uma oportunidade de viver. Ó minha doce Joana, morrendo de peste numa terra estrangeira. Meu querido Lionel, que nos deixou no primor de sua maturidade. Mary e Margaret morreram tão de repente. E todos os bebés.

Quantas tragédias! E no entanto, quantas alegrias! A vida era assim; e ninguém podia escapar ao que o destino lhe reservava, fossem eles reis ou rainhas.

Restava pouco tempo.

Ela disse àquelas que estavam à volta de seu leito:

- Está na hora de mandar chamar o rei.

Ele veio imediatamente, entrando às pressas em seus aposentos e atirando-se de joelhos ao lado da cama. Eduardo, o seu rei. Em vez do homem envelhecido que se tornara, ela viu o menino de olhos brilhantes, cabelos quase brancos de tão louros, muito bonito, muito vivaz, um líder sob todos os aspectos.

Era triste a juventude ter de esmaecer, ideais serem perdidos, fogos-fátuos terem de ser perseguidos quando as pessoas sensatas sabem que eles só podem levar ao perigo. Era triste que vidas tivessem de ser gastas em fazer guerra em causas sem esperança.

Ó meu Eduardo, pensou ela, se ao menos você tivesse se contentado em ser apenas rei da Inglaterra! Por que tinha de lutar aquelas batalhas sem esperança por uma coroa que jamais poderia ser sua?

Mas estava tudo acabado... para ela. A morte a estava chamando. Ela representara o seu papel naquele drama. Tinha de retirar-se para que outros o levassem ao fim.

- Filipa... meu amor... minha rainha...

A voz dele parecia chegar a ela vinda do passado.

- Nós fomos felizes juntos, marido.

- Felizes - repetiu ele. - Muito felizes...

Havia lágrimas nos olhos dele, lágrimas de remorso. Ela estava morrendo. Ele poderia ter permanecido fiel até o fim. No entanto, tinha visto aquela feiticeira da Alice e ficara tentado e fora incapaz de resistir.

- Filipa - murmurou ele -, você não deve ir. Não pode me deixar. Como poderei viver sem você?

Ela sorriu e não respondeu.

O filho caçula, Thomas, tinha chegado ao lado da cama. Tão criança, pensou ela com tristeza. Ainda vai precisar da mãe. Ele estava apenas com quatorze anos.

- Eduardo, tome conta de Thomas - disse ela.

- vou tomar conta do nosso filho, minha adorada.

- Tenho de falar com você, Eduardo. Tenho três pedidos.

- Eles serão atendidos, querida senhora. Basta fazê-los. Tudo o que ela queria era que ele providenciasse para que as obrigações dela fossem cumpridas - que todos os presentes e legados aos seus servidores fossem pagos.

- E quando você morrer, Eduardo, quero que seja enterrado ao meu lado na clausura da abadia de Westminster.

- Assim será. Assim será.

Ela estava enfraquecendo com rapidez, e William de Wykeham, bispo de Westminster, tinha chegado ao lado de sua cama.

Ela pediu que a deixassem a sós com o bispo por um curto espaço de tempo e seu desejo foi satisfeito. Naquele momento pensou-se não haver nada de estranho naquilo. Era natural que ela quisesse confessar seus pecados e estar a sós com o bispo antes de morrer. Mais tarde, porém, aquilo seria lembrado e então iria parecer de grande importância.

O rei voltou à câmara da morte e ajoelhou-se ao lado da cama. Ela colocou a mão sobre a dele e assim morreu.

Blanche deixara as crianças em Windsor sob os cuidados de Catherine Swynford e partira para o castelo de Bolingbroke. Todos acabariam seguindo-a até lá. Blanche sentira necessidade de ficar sozinha algum tempo onde pudesse lamentar a sós a morte da rainha.

Filipa tinha sido quase que uma mãe para ela; ela a adorara. Nada seria o mesmo sem ela como pessoa em quem se podia confiar; não haveria mais aquelas calmas decisões a serem dadas, aquela inocência que estava mais próxima do bom senso do que a maioria dos homens do mundo possui.

Sim, pensou Blanche, ela se contentara com a vida. Vivera muito e feliz - pelo menos fora feliz até que a doença a atingira, e só ultimamente houvera uma Alice Perrers em sua vida.

Cavalgando pelo interior, ela ficou chocada quando uma de suas criadas disse que eles não deveriam entrar numa certa aldeia.

- Não, minha senhora, há cruzes vermelhas nas portas. A peste está entre nós novamente.

Ela disse, então, que eles tinham de alterar o caminho para Bolingbroke. A peste não sobreviveria no ar fresco do campo.

Continuaram a viagem e por fim chegaram ao castelo de Bolingbroke, que sempre seria um de seus castelos favoritos porque o pequeno Henrique tinha nascido ali e ela jamais podia pensar no castelo sem se recordar da alegria de sair do exaurimento para ouvir a ótima notícia de que dera à luz um menino. Bolingbroke estava diante deles - parecendo menos sombrio do que de costume devido ao sol de setembro.

Blanche entrou no pátio a cavalo. Cavalariços adiantaram-se correndo para segurar os cavalos. Ela saltou e entrou no castelo.

Estava cansada e seguiu direto para seus aposentos e mandou que lhe levassem comida. Pela manhã faria planos para que as crianças fossem para junto dela. Ficou contente ao pensar que elas estavam sob os cuidados de Catherine Swynford. Sentia que John parecera não gostar dela. Só podia ser porque ele imaginara alguém simples como a boa Filipa Chaucer.

Comeu um pouco e logo depois estava dormindo.

Quando acordou na manhã seguinte, teve uma súbita premonição. Não ouviu som algum de atividade no castelo. Levantou-se e foi à ante-sala, onde suas amas pessoais deveriam estar dormindo.

O aposento estava vazio.

Intrigada, ela saiu para o topo da grande escada e olhou para o salão lá embaixo. Um grupo de criados lá estava, sussurrando de maneira estranha.

Eles pararam quando a viram e ficaram como que petrificados, olhando para ela.

- O que significa isso? - perguntou ela. Um dos empregados foi até a base da escada.

- Minha senhora, dois dos empregados foram atacados. Eles estão no castelo... agora. Não sabemos o que devemos fazer.

- Atacados - repetiu ela. - A... peste?

- É, sim, minha senhora.

- Algum de vocês chegou perto deles?

- Chegou, senhora.

Blanche ficou parada, olhando para eles, e enquanto fazia isso viu uma das mulheres esgueirar-se para um canto e deitar-se ali.

- Uma cruz vermelha deve ser colocada nos portões do castelo - disse ela. - Ninguém deve sair. Ninguém deve entrar. Temos de esperar um pouco.

Houve um profundo silêncio no salão. Então, ele foi quebrado pelo ruído de alguém que soluçava em outra parte do castelo. A peste chegara a Bolingbroke.

A morte estava no castelo.

Blanche pensou: "Graças a Deus as crianças não estão aqui." Três dias tinham-se passado e ela sabia que várias pessoas já estavam mortas.

- Temos de rezar - dissera ela; e eles tinham rezado; mas todos se lembravam de que quando a peste entrava numa habitação, fosse ela uma cabana ou um castelo, eram poucas as esperanças de sobrevivência para seus habitantes.

No quarto dia, Blanche descobriu a fatal inchação nas axilas. No espaço de poucas horas, as horríveis manchas começaram a aparecer.

Ó Deus, pensou ela. Isto é o fim, então.

Deitou-se na cama e quando uma de suas amas entrou, ela bradou:

- Vá embora. Você não deve entrar neste quarto.

A moça compreendeu de imediato e afastou-se horrorizada.

Blanche tornou a deitar-se. Estava perdendo a consciência com rapidez. Pensou ver a lebre fantasma perto de sua cama. Ela aparecera, não?, quando a morte chegara a Bolingbroke.

Ela veio me buscar, pensou ela. Ó John, estou deixando esta vida e você não está a meu lado para se despedir. Onde está você, adorado marido? O que será de meus filhos? Minhas meninas... meu pequeno Henrique. Queridos filhos, vocês agora não têm mãe...

Não era assim que uma grande dama devia morrer... com o marido longe, os criados com medo de se aproximarem de sua cama. Mas a peste era assim, a cruel praga que pegava suas vítimas onde queria. Cabana ou castelo, não importava. Mas em um ponto ela era misericordiosa. Suas vítimas não sofriam por muito tempo.

A notícia foi transmitida pelo castelo.

 

QUANDO o PRÍNCIPE NEGRO voltou para Bordeaux depois da vitória em Nájara, sua mulher, Joan, ficou muitíssimo perturbada pela sua aparência.

Ela sabia que aquela longa permanência no calor de Valladolid afetara muitos de seus seguidores e que tinham havido mortes de disenteria; mas o príncipe sempre fora um homem forte, capaz de enfrentar os rigores da batalha e livrar-se de quaisquer efeitos maléficos que eles pudessem deixar. Ela lembrava-se da recente morte de Lionel na Itália, e isso nada fez para minorar sua angústia.

- Agora que está de volta, vou cuidar de você-anunciou ela. -Não haverá mais saídas para lutar enquanto você não estiver bem.

O príncipe dirigiu-lhe um sorriso carinhoso. Joan nunca se portara como alguém que fazia parte da realeza. Era uma mulher que fazia as coisas à sua moda. Era um alívio saber que ela estava ali e que ele poderia confortavelmente deixar que ela lhe dissesse o que devia ser feito até que estivesse pronto para partir novamente.

Ele deveria recolher-se ao leito, disse Joan. Não, ela não queria ouvir protesto algum. Conhecia a bebida certa para curá-lo. Pelo menos, eles deviam dar graças por aquela horrível questão ter terminado. Tinha sido uma loucura do princípio ao fim.

Os criados dele sorriam ao ver o grande Príncipe Negro recebendo ordens da mulher, mas conheciam a natureza dele. Se naquele momento ele tivesse decidido deixar o castelo e pegar em armas, ninguém - nem mesmo a dominadora Joan - teria sido capaz de detê-lo.

- Você devia ser uma comandante nos meus exércitos, Jeanette - disse ele, carinhoso.

- Meu senhor, eu sou a comandante no nosso castelo. Aquilo o fez sorrir.

- Estou feliz por estar de volta com você e as crianças-disse ele.

- Então, deve provar suas palavras não tornando a partir para lutar batalhas sem sentido em favor de pessoas ingratas.

- Um desperdício, Jeanette... um desperdício de sangue e dinheiro...

- E um esbanjar de saúde. Mas não se fala mais nisso. Dentro ernbreve vou ter você bom outra vez.

Ela o manteve de cama e ninguém podia visitá-lo sem sua permissão. O príncipe ficou contente por deitar-se confortavelmente e deixar que Joan mandasse nele. O conforto da cama, a garantia da dedicação dela, era disso que Eduardo precisava.

Um governante tem de ter seus fracassos, e o que parecia ter sido o maior triunfo podia, com o tempo, ser visto como uma vitória vazia. Fora o que acontecera com Nájara.

Joan tinha razão. Se ela pudesse impor sua vontade, não haveria batalhas. Ela diria: "Você é o filho mais velho do rei. Um dia, a Inglaterra será sua e o nosso pequeno Eduardo irá sucedê-lo. Satisfaça-se com isso. De qualquer maneira, governar a Inglaterra é serviço para homem."

A mãe dele pensara da mesma maneira, só que não se expressara com o mesmo vigor de Joan. Ele estava certo de que a mulher de John, Blanche, teria concordado com elas. Aquele era um ponto de vista feminino.

Havia momentos como aquele em que ele se perguntava se estavam certos. Até onde tinham avançado com a guerra na França? Até que ponto diminuíra a distância a que seu pai estava da coroa francesa quando tudo começara?

Nenhum progresso depois de anos de lutas, derramamento de sangue e dissipação do tesouro! E se aquela ambição nunca tivesse tomado conta de seu pai, se ele jamais tivesse decidido que tinha direito à coroa da França...

Aquilo não era maneira de um soldado pensar, especialmente um soldado que era reconhecido como o maior da cristandade. Influência de Jeanette, pensou ele com ironia.

E ali estava ela, em pé ao lado de sua cama, com mais uma de suas poções.

- Acho que você é uma feiticeira - disse ele. - Quer me manter na cama para que eu nunca possa deixá-la.

Joan soltou uma gargalhada. Ela possuía a gargalhada mais alegre que ele já ouvira.

- O senhor põe ideias na minha cabeça, meu príncipe. Desde o dia em que obriguei você a se casar comigo, tenho pensado em como mante-lo a meu lado.

- Jeanette - disse ele, baixinho. - Ó Jeanette, você teve de usar de muita força?

- Você sabe muito bem-retrucou ela.-Nós poderíamos ter nos casado há anos, se não fosse por você.

- Naquela ocasião, você estava se divertindo com Salisbury e Holland.

- Só na esperança de provocar algum ciúme no seu preguiçoso peito.

- Era verdade, mesmo?

- Você sabe que era. Você tinha nascido para mim, e eu para você, mas eu não podia pedir, podia? Uma lei idiota diz que é o homem que deve pedir a mão da dama, e não ela a dele. É uma lei que devia ser mudada. Quando você for rei, meu amor, essa deverá ser a sua primeira preocupação.

- Duvido que meu Parlamento ficasse muito impressionado com minha decisão. Além do mais, há mulheres que decidem resolver as coisas com as próprias mãos, não importa qual seja o costume.

- Algumas têm essa inteligência e ousadia.

- Como a minha Jeanette.

- Você foi cruel ao tentar me convencer a aceitar aquele homem, o de Brocas.

- Eu nunca desejei que você o aceitasse.

- À sua moda covarde, você me obrigou a dizer-lhe que não me casaria com ninguém a não ser com o maior cavaleiro do mundo, e não havia dúvida de quem se tratava, havia? Meu senhor, sei que sua coragem é grande no campo de batalha, mas o senhor era um covarde, para dizer a verdade, quando se tratava das justas do amor.

- Minha Jeanette, nunca pensei que você olharia para mim.

- Como os meus olhos estavam fixos em sua direção por muitos anos, esta é uma desculpa sofrível. Mas não importa, graças à sua engenhosa mulher, a questão foi resolvida, embora tardiamente, e agora afinal o senhor... sem ter feito esforço algum para tanto... está onde deve ficar... e isso, meu senhor, é sob os meus cuidados.

- Deus a abençoe, Jeanette - disse ele. - Estou sempre agradecendo a Ele por ter você.

- E agradeço a Ele por ter você-respondeu ela, falando mais sério. Continuou depressa: - A tarefa, no momento, é fazer você ficar bom de novo e eu o previno, meu príncipe, de que só vai sair desta casa quando ficar bom.

- Quem dera que eu pudesse ficar com você todos os dias de minha vida.

- Não é verdade - disse ela. - Você é um soldado... o maior do mundo, é o que me dizem. Está ansioso por liderar seus homens em combate. Isso está no seu sangue. Mas não quando está doente. É então que eu assumo o comando.

- Como quiser, meu general. Diga-me o que tem acontecido aqui em Bordeaux.

- As filhas de Pedro ainda estão aqui.

- Constanza e Isabella. O que será delas?

- Constanza tornou-se uma jovem muito ambiciosa porque, como você sabe, desde a morte da irmã Beatrice ela ficou sendo a mais velha e a herdeira do trono. Ora, não fique agitado! Tomei a decisão de que seja qual for a consequência disso, Constanza vai lutar sozinha. Agora, um assunto mais alegre e que realmente nos diz respeito. Seus filhos estão clamando por visitá-lo. "Onde está nosso pai?", estão sempre perguntando. Quando lhes digo que você está repousando depois da batalha, eles não acreditam que você precise de descanso. vou trazê-los para vê-lo. Fique quieto, que eles virão ao seu quarto.

- Jeanette. - Ele segurou-lhe a mão. - Não gosto que eles me vejam desse jeito.

- Eles não vão saber o quanto você está doente. Prometi-lhes que viriam. Eu mesma vou trazê-los.

Momentos depois ela voltou, um menino de cada lado.

Eduardo, o mais velho, estava com cerca de seis anos, e Ricardo era três anos mais moço.

Eduardo arrancou a mão da de sua mãe e correu para o pai, subindo na cama e abraçando-o.

- Meu filho, meu filho... - O príncipe olhou para o rostinho ansioso brilhando de saúde e animação. - Vai me sufocar?

- Não - bradou Eduardo -, só amá-lo.

- E como vai você, meu filho? Como tem se portado? Diga-me a que distância pode mandar uma flecha... Tive boas notícias do seu professor de equitação.

- Eu sou muito bom, papai. Tenho de ser, porque sou filho do Príncipe Negro. O senhor - acrescentou ele, quase em tom de conspiração. - E sabia que o senhor é o maior soldado que o mundo já conheceu?

- É isso que eles lhe dizem?

Eduardo confirmou com gestos vigorosos da cabeça, e Joan disse:

- Ricardo também está aqui.

Ela fez o menino mais moço avançar. Não parecia tão robusto quanto o irmão, embora fosse alto para a idade - na verdade, quase da altura do irmão. Os longos cachos de cabelos louros faziam sombra a um rosto que era quase feminino em sua beleza. O jovem Ricardo tinha toda a beleza de seus ancestrais Plantagenetas, mas lhe faltava aquela robustez que Eduardo, sem dúvida alguma, herdara.

Havia um tom de reprovação na voz de Joan. Ela estava constantemente avisando ao marido que ele dava atenção demais ao filho mais velho e ela temia que Ricardo percebesse.

Ela mesma estava inclinada a dedicar mais afeição ao menino mais moço, para compensar, dizia a si mesma, porque como mãe de verdade que era, tinha de cuidar mais

do mais fraco dos dois. Ela adorava o jovem Eduardo, mas como o príncipe fazia tudo o que o menino queria, ela fez de Ricardo o seu favorito.

O jovem Eduardo permitiu ser posto de lado com uma certa falta de graça quando Ricardo se adiantou.

O príncipe colocou a mão na cabeça loura e disse:

- Ora, meu filho, como vai você?

- Bem, meu senhor, obrigado.

Sério, e com uma certa graça, aquele menino parecia mais inteligente do que o normal em sua idade. O príncipe sabia, pela sua mulher, que a maestria de Ricardo era com os livros, e não com o exercício ao ar livre. Joan parecia pensar que aquilo era algo que devia ser aplaudido, mas o príncipe teria preferido que fosse o contrário.

Era bom Eduardo ser o primogénito. Ele ia dar um bom rei. Seria treinado para isso; assim como o rei treinara o príncipe, o jovem Eduardo deveria ser treinado. Era bom para um menino que estava destinado a governar um grande reino ficar ciente disso desde tenra idade e preparar-se.

- Os tutores falam bem dele - disse Joan, com orgulho. vou mandar que tragam para você alguns dos exercícios dele.

- Ricardo ainda está na fase de ser conduzido pela rédea disse o jovem Eduardo com desprezo.

- Você também estava quando era alguns anos mais moço retorquiu a mãe. - Ricardo monta a cavalo com graciosidade, como compete a um cavaleiro.

- Eu sou melhor... - começou Eduardo.

- Agora - disse a mãe deles -, vocês podem sentar-se na cama... um de cada lado, e conversar um pouco com seu pai. Depois, irão para os seus aposentos e amanhã, se se comportarem, poderão vê-lo de novo.

O príncipe achou divertida a pronta obediência dos dois. Não havia dúvida de que Joan mandava na casa.

Ela mesma levou-os embora na hora aprazada e, apesar de haver protestos do jovem Eduardo, que queria demorar-se mais, Joan foi inflexível.

- Vocês têm de obedecer a sua mãe - disse o príncipe. Joan estava sorrindo para ele, contente com a vida que sua ousadia ao pedir o Príncipe Negro em casamento tinha levado para todos eles.

Quando John de Gaunt chegou a Bordeaux também ficou impressionado com a saúde abalada do irmão. Ele soubera que durante a campanha por Castela Eduardo sofrera da doença que atacara um número muito grande de homens no exército, mas John esperara que ele se livrasse dela com a facilidade que parecia natural para uma pessoa de sua força.

Ele se perguntou se Joan estava pensando, como ele, em Lionel, que morrera não fazia muito tempo de uma doença semelhante. No entanto, em poucas semanas, sob os assíduos cuidados de Joan, a saúde do príncipe começou a melhorar um pouco.

Ele ficou encantado ao ver John; e o irmão mais moço deles, Edmund, também chegou ao castelo.

Edmund de Langley, quinto filho homem do rei, era assim chamado porque havia nascido em Kings Langley, em Hertfordshire. Como o irmão, ele era alto e bonito, e parecia-se com Lionel no temperamento, visto que parecia não ter aquela ambição de que os dois irmãos mais velhos partilhavam, Eduardo talvez naturalmente, pois era o filho mais velho e herdeiro do trono, e John principalmente por ter perdido por muito pouco tudo aquilo que ele mais desejava.

Nunca preocupara a Edmund o fato de haver vários entre ele e a coroa. Ele não buscava, de forma alguma, as atribulações do Estado. Preferia muito mais uma vida fácil e conforto- boa comida, bom vinho e um certo flerte com as mulheres.

Sendo filho de quem era, é claro, ele tinha de dedicar-se à ocupação da família, que eram as batalhas. Ele aceitava isso, assim como tudo o mais; e como era o mais bonito membro da família agora que Lionel tinha morrido - e era condescendente, nunca assumindo ares de realeza, era imensamente popular e com frequência obtinha, através da lealdade de seus adeptos, um sucesso que um líder mais resoluto poderia ter de trabalhar com afinco para conseguir.

Tinha a esperança de que houvesse boas caças com falcão e caçadas e que não se dedicasse tempo demais à guerra.

John discutia com Edmund o estado de saúde do irmão mais velho. Parecia um pouco melhor, salientou ele, mas conhecia essa forma de disenteria. Ela estava enfraquecendo o príncipe, e havia dias em que ele parecia ter uma recaída completa. Nem mesmo os cuidados de Joan estavam funcionando tão bem quanto deviam.

- Pense na situação - disse John. - Nosso pai envelheceu muito depois da morte de nossa mãe.

- Ele está mudado - concordou Edmund. - Eu gostaria que ele tivesse esse caso com Alice Perrers com discrição. Ele exibe seu relacionamento com a mulher e não é como se ela fosse uma dama de alto berço.

- A exibição faz parte do preço que ela exige pelos seus favores. Ela quer que toda a Inglaterra saiba que ela é a concubina dele. Dizem que homens de posição têm medo de ofendê-la. Mas não é dela que quero falar. Nosso pai não pode viver por muito mais tempo. E o que você acha da chance de nosso irmão recuperar a saúde?

- Por Deus, irmão, o que você sugere?

- Rezo a Ele para que não seja assim. Mas se nosso pai morrer e Eduardo for atrás dele, essa criança, o filho mais velho dele, seria o nosso rei. Um menino, nada mais...

- Você está pensando numa regência.

- Poderá chegar a esse ponto. - John lançou a Edmund um olhar interrogativo. - Talvez tenhamos de nos unir para proteger o filho do nosso irmão.

- Ele seria nosso rei de direito, e não poderíamos aceitar nenhum outro.

- Temos de ficar juntos. Mas rezo a Deus para que isso nunca aconteça.

Edmund evitou o olhar do irmão. Um pensamento entrou rápido em sua mente. O pensamento era: "Você quer dizer que reza a Deus para que isso possa acontecer."

Afastou logo o pensamento. Aquilo era injusto. Eles eram uma família unida. Tinham sido criados no af eto por pais que os amavam. Sempre tinham sido ensinados a se manter unidos. A família era suprema, e se um deles estivesse precisando, todos os outros deveriam ajudá-lo.

Não, ele estava julgando mal o irmão e sentiu vergonha por isso.

Mas eles tinham sempre sabido que o membro da família mais ambicioso era John de Gaunt.

Na corte do Príncipe Negro havia duas jovens. Todos estavam muito interessados em conhecer as recém-chegadas.

Elas eram bonitas à maneira exótica das damas espanholas inteiramente diferentes da pálida beleza nobre de Blanche ou daquela avassaladora beldade sensual de Catherine Swynford da qual John, mesmo agora, não conseguia esquecer-se.

Elas eram interessantes, claro, porque eram filhas de Pedro.

Constanza era a mais velha das duas. Era uma jovem decidida e estava claro que tentava encontrar algum defensor que quisesse devolver-lhe o trono de Castela, porque se achava a herdeira de direito.

John ouvia-a com atenção. Edmund também era atraído às conferências delas. Ele se sentia muito atraído pela irmã mais nova de Constanza, Isabella, mas era claro que não podia ter um ligeiro caso amoroso com uma jovem daquela posição, de modo que se entregou a um namorico inofensivo, enquanto John discutia a situação com a irmã mais velha.

- Eu me casaria com todo o prazer com o homem que conquistasse meu trono para mim - disse Constanza.

John observou-a, pensativo. Sim, ela estava com a razão. Tinha o direito. Houvera uma irmã mais velha, Beatrice, que entrara para um convento e morrera nele, de modo que Constanza, agora a filha mais velha de Pedro, o Cruel, podia reivindicar o trono se pudesse derrubar o usurpador.

John se perguntou se ela arranjaria alguém para ajudá-la. Supunha que algum homem ambicioso poderia auxiliá-la, por causa do título de rei. Seria um bom jogo, e um trono era um objetivo sempre atraente.

Enquanto ele conversava com ela, as crianças chegaram a cavalo - o robusto Eduardo, o delicado Ricardo e, com eles, os dois meio-irmãos, os barulhentos jovens Holland, resultado do casamento desigual de Joan com Sir Thomas Holland. O Holland mais velho devia estar com cerca de vinte anos, o outro devia ser dois anos mais moço; mas não havia dúvida de que os meninos olhavam com respeito para os irmãos e os Holland aproveitavam-se disso ao máximo.

Os olhos de John detiveram-se no jovem Eduardo. Um futuro rei, e mais um Eduardo. Aquele parecia ser um nome que o povo adorava. Ao passo que John... Nunca deveriam ter dado a ele o nome de John, porque o povo ainda se lembrava daquele seu malévolo ancestral, que tornara necessária a assinatura da Magna Carta.

John afastou-se da janela. Estava começando a pensar que nunca usaria uma coroa.

Poucos dias depois, chegou uma notícia da Inglaterra. Ele não pôde acreditar. Blanche morrera... de peste em Bolingbroke, o castelo que os dois tanto haviam amado por ser o local de nascimento do filho deles.

Ele ficou atordoado. Pensou na delicadeza dela, em sua nobreza. Ficou arrasado de dor.

Precisava partir imediatamente para a Inglaterra. Eduardo compreenderia que ele tinha de ir.

A peste a atacara. Toda aquela beleza tornada desprezível pelo temível inimigo que se aproximava furtivamente das cidades e aldeias do mundo à procura de vítimas.

Blanche... não a bonita, nobre Blanche!

No andar de baixo, ele ouviu sons de música. Os músicos estavam ensaiando para a noite. Joan estava ansiosa por encher o castelo de alegria porque estava certa de que o Príncipe Negro estava se recuperando da doença.

Constanza e Isabella estariam lá.

Constanza, que queria um marido para ajudá-la a conquistar o trono de Castela.

Esse marido seria rei de Castela.

Blanche fora enterrada perto do altar principal da catedral de St. Paul, e John mandara erguer um magnífico túmulo de alabastro, sobre o qual havia uma efígie de sua esposa.

Ele estava dominado pela tristeza. Ele a amara muito e sentia vergonha pelo fato de haver duas mulheres que surgiam em sua mente mesmo enquanto estava de luto por ela. Uma delas era Constanza, a herdeira de Castela, e a outra era Catherine Swynford, esposa de seu escudeiro Sir Hugh, que estava com um dos exércitos na França. Uma prometia uma coroa, a outra, um tamanho prazer sensual como ele sentia que jamais conhecera antes.

Mas, apesar de tudo, ele chorava a perda de Blanche. Sabia que nunca haveria uma mulher que o amasse com tamanha dedicação, com tanto desprendimento, quanto Blanche. Blanche teria para sempre um santuário em seu coração - a mais bonita das mulheres, a mais perfeita das esposas, a mãe de seus filhos, suas adoradas filhas e aquele que ele amava acima de todos os outros porque nele estava inserida a sua ambição - Henrique de Bolingbroke.

Geoffrey Chaucer apresentara-se a ele. Estava profundamente afetado. Outrora John rira da devoção de Chaucer por Blanche. Ele a provocara dizendo que o pequeno poeta a amava e ainda bem que a devoção dele era pela alma e não pelo corpo, caso contrário John teria ficado com ciúme e mandado cortar a cabeça do presunçoso.

Assim sendo, ele achara divertido e gostara do poeta por causa disso.

John o recebeu com amabilidade e ficou emocionado quando Chaucer apresentou o que chamou de seu Livro da Duquesa.

John o leu com emoção. O livro exaltava a beleza e a virtude de Blanche, descrevendo-as de tal maneira que iria imortalizá-la. Falava do amor dele pela incomparável Blanche.

Ele ficou profundamente emocionado ao ler as seguintes palavras:

"Minha bela esposa,

Que amei com todas as forças,

Está morta."

Aquelas palavras simples que Chaucer, com sua sensibilidade poética, atribuíra a ele, colocando-se, sem dúvida, em seu lugar, escrevendo o que teria sentido se tivesse sido John de Gaunt, transmitiam muito mais do que um estilo brilhante poderia ter transmitido. Chaucer continuara:

"Ó morte, o que tens Que não quiseste levar-me Quando levaste minha doce esposa Que era tão bonita, tão fresca, tão livre, Tão boa que as pessoas vêem muito bem Que de bondade ela não tinha limites."

John não se esqueceria de Chaucer, nem de sua esposa... nem de sua cunhada.

Ele precisava ir falar com as crianças. Pobres crianças órfãs de mãe. Deviam estar arrasadas de dor.

Era seu dever ir vê-las.

Estavam instaladas no palácio do Savoy, sob os cuidados da governanta, e foi com estranhas emoções que ele seguiu para lá.

Estava se perguntando como encontraria as crianças; talvez fossem jovens demais para perceber o que aquilo significava. A governanta devia ter falado com elas.

A governanta! Ele descobriu que, na verdade, não estava pensando nos filhos, mas na governanta deles.

Mandou chamá-los e esperou a chegada deles, o coração batendo apressado. Ficou imaginando com que aparência ela estaria agora. Talvez tivesse ficado gorda demais; algumas daquelas mulheres ficavam, quando iam para o palácio. Talvez ele a dotara, em sua imaginação, de qualidades que ela não possuía. Tornara-se uma espécie de mulher-sonho, uma fantasia com encantos acima de todo o conhecimento humano.

A porta abrira-se. Filipa entrou. Correu até ele e atirou-se em seus braços.

- Minha filha, minha filha - disse ele, tomado pela emoção. Depois, veio Elizabeth. A filha mais moça estava, agora, com

seis anos, idade suficiente para sentir.

- Ela foi para Bolingbroke e nós íamos para lá para ficarmos com ela. Nunca mais tornamos a vê-la. - Filipa o olhava com insistência, como se houvesse alguma explicação que ele pudesse dar.

"Ó morte, o que tens...", pensou ele. Por que levar Blanche... a querida Blanche, que nunca prejudicara ninguém e cuja falta era tão tristemente sentida?

- E onde está seu irmão?

- Catherine nos disse que viéssemos primeiro. Ela o trará quando o senhor tiver falado conosco. Ele tem apenas três anos.

Como se ele precisasse ser lembrado!

- O menino sente saudade da mãe?

- Como nós, não. Às vezes ele se esquece de que ela está morta. Diz que vai mostrar a ela alguma coisa e isso nos faz chorar e então ele diz: "Oh, ela morreu. Eu me esqueci." Ele não sabe o que isso significa. Pensa que ela se ausentou por algum tempo... como ir a Kenilworth... ou a Windsor ou algum lugar parecido.

- E vocês, minhas filhas queridas, sabem o que significa essa tristeza?

- Significa que ela nunca mais vai voltar-disse Filipa, séria.

- É o destino, minhas filhas. É a vida. É algo que temos de aceitar. Acontece a todos nós... em determinado momento.

Elizabeth pareceu assustada.

- O senhor vai morrer também? - perguntou ela.

- Não, não, minha filha. Ainda faltam muitos anos, acho eu.

- Se morresse, ficaríamos órfãs de verdade! - disse Elizabeth. - Quem tomaria conta de nós? A rainha não poderia. Ela também morreu.

- Eu sei - disse Filipa. - Nós iríamos morar com os nossos primos na França. Henrique é da mesma idade do primo Ricardo.

- Minhas filhas, minhas filhas, não vou morrer. Não precisam ficar imaginando o que será de vocês, porque estou aqui e enquanto viver ficarei sempre preocupado com vocês. Ah... eis o meu filho.

Os dois tinham entrado na sala. Ele segurava a mão dela. John praticamente não viu o menino. Não conseguia ver coisa alguma, a não ser ela.

Não. Ele não tinha exagerado. Ali estava... a voluptuosa e avassaladora atração... tal como a imaginara.

Ela fez uma mesura para ele. Henrique curvou um pouco a cabeça... obviamente ensinado por ela.

- Levante-se, Lady Swynford - ouviu ele sua voz dizendo.

- Vejo que cuidou bem de meus filhos. Henrique...

Henrique correu e atirou-se contra os joelhos do pai. Ele o ergueu. O menino irradiava saúde.

- Foi um belo cumprimento que você me fez - disse John.

- Catherine disse que eu tinha de fazer isso - replicou Henrique.

- Catherine disse... - John repetiu o nome dela. Olhou para ela. Ela sorriu e uma vez mais passou entre eles aquele entendimento.

- Lorde Henrique está crescendo depressa, meu senhor disse ela. - O senhor vai ficar muito contente com o progresso dele.

- Estou crescendo todos os dias - jactou-se Henrique. Daqui a pouco vou ficar mais alto do que o senhor... mais alto do que o rei. Mais alto do que todos.

- Estou vendo que a senhora incutiu no meu filho uma bela opinião de si mesmo - disse ele.

- Meu senhor, creio que ele nasceu assim e foi o nascimento dele que lhe deu isso, não eu.

Ele colocou o menino no chão.

Estou muito contente com o cuidado que a senhora teve com

as crianças, Lady Swynford.

- Então, eu me sinto feliz - respondeu ela baixinho.

John fez-lhe perguntas sobre o progresso deles. Filipa e Elizabeth ficaram intrometendo-se nas respostas; mas, na verdade, ele não estava prestando atenção. Pensava nela o tempo todo e nos sonhos que tivera com ela. Nunca estivera tão atraente, tão excitante naqueles sonhos quanto era na realidade.

Ela levou as crianças embora, e John ficou olhando pela janela para o rio, para o barco que fazia o trajeto de Westminster até a Torre.

Então, seguiu para o seu quarto. Lá, disse para um de seus pajens:

- Quero falar outra vez com Lady Swynford. Há muita coisa que quero dizer a ela com relação ao cuidado dos meus filhos.

Foi a primeira vez que ele achou necessário explicar seus motivos, a um criado.

Ela bateu à porta e ele bradou:

- Entre.

Ele estava olhando pela janela ao falar e não se voltou. Descobriu que tremia de excitação.

Ela estava de pé bem atrás dele.

- Queria falar comigo, meu senhor?

Ele girou sobre os calcanhares e olhou para ela. Pensou: ela sabe. Está tão cônscia disso quanto eu. Anseia por mim tanto quanto eu anseio por ela.

John hesitou.

- Eu... tenho pensado muito na senhora, Lady Swynford. Ela não expressou surpresa. Limitou-se a dizer com calma:

- Sim, meu senhor.

- Eu gostaria de saber... se a senhora pensou em mim.

- O pai dos meus pupilos...

De repente, ele a segurou pelos ombros.

- Eu acho - disse ele, com calma - que você compreende. Ela inclinou a cabeça para trás. Ele viu a longa garganta branca.

Ele nunca vira uma pele assim tão branca. Olhou para os lábios maduros e então, de repente, agarrou-a. Ouviu-a sorrir baixinho e houve uma completa harmonia entre os dois.

Os dois estavam deitados na cama dele. Pareciam aturdidos pelo que acontecera e, no entanto, estavam cientes de sua inevitabilidade.

John segurou uma mecha dos espessos cabelos avermelhados dela e enroscou-a nos dedos.

- Tenho pensado em você desde a primeira vez em que a vi disse. - O que foi que você me fez naquela primeira ocasião?

- Não fiz coisa alguma-respondeu ela.-Simplesmente fui eu mesma e você foi você mesmo... e para nós, isso foi o bastante.

- Nunca me senti assim antes...

- Nem eu.

- Nunca houve uma união tão perfeita... Parecíamos uma só pessoa, Catherine. Você sentiu isso?

- Sim, sim, meu senhor. Eu sabia que seria assim.

John a manteve junto a si. Naquele momento de satisfação, pensou: nós precisamos estar sempre juntos. Eu me casaria com ela... A ideia veio rápido: ela é mulher de Hugh Swynford... e com ela, o alívio. O filho do rei não podia casar-se com uma governanta!

Tirou aqueles pensamentos da cabeça e demorou-se na apreciação da perfeição dela. A beleza sensual, aquele corpo perfeito que respondia sem falhar ao dele; a suave voz musical; o completo abandono ao ato de amor. Era uma mulher rara Ela lhe pertencia desde o momento em que a vira.

Ela lhe disse, agora, que precisava retirar-se. Sua falta seria sentida. Claro que tinha razão. O que acontecera fora muito repentino e avassalador; durante aqueles momentos nenhum dos dois pensara em coisa alguma que não no descarregar da paixão. Haveria olhos curiosos no castelo. Tratava-se de uma mulher com um marido no exterior; John era um homem que estava de luto pela morte da esposa.

"Ó morte, o que tens

Que não quiseste levar-me..."

Eram essas as palavras que Chaucer colocara em seus lábios, e quando John as lera ficara profundamente emocionado; e no entanto, ali estava ele, com Blanche morta há tão pouco tempo, divertindo-se no mesmo leito que compartilhara com ela.

Mas tratava-se de Catherine. Não havia ninguém como Catherine.

Ele nunca sentira qualquer coisa parecida com aquela emoção que ela provocara nele, aquela intoxicação violenta que o fazia esquecer de tudo o mais, exceto a necessidade dela. Hoje à noite - disse ele.

- Eu virei até você - prometeu ela.

John tinha de se contentar com isso e, relutante, deixou-a sair de seus braços.

Depois que ela saiu, ele ficou um longo tempo pensando nela. Era todo impaciência à espera da noite.

Os dois jaziam um ao lado do outro, lânguidos, exaustos pela força da paixão.

John sabia muito pouco a respeito dela, exceto que era a mulher mais desejável do mundo. Ela sabia muito mais sobre ele, naturalmente. Ele se preocupara com Hugh Swynford, e ela lhe disse que o casamento tinha sido arranjado para ela e que fora uma noiva relutante. Todos tinham-lhe dito que era afortunada por encontrar um marido proprietário de terras e com um título; pessoalmente, ela se sentira menos afortunada.

- Ele é um homem inculto - sussurrou John. - Um bom soldado, mas eu tremo ao pensar em vocês dois juntos.

- Como eu tremo.

- E houve outros?

- Não. Eu saí do meu convento e quase que imediatamente me casei. Não sou mulher de quebrar meus juramentos... com facilidade.

John acreditou nela.

- Eu quisera que você nunca tivesse se casado com Swynford

- disse ele. - Quem dera que tivesse vindo para mim diretamente do seu convento.

Ela ficou calada.

John sabia que havia nela um certo orgulho. Era filha de um cavaleiro flamengo, muito embora o título dele tivesse sido concedido no campo de batalha e ele tivesse morrido pouco depois de recebê-lo. A mãe dela tinha sido uma corpulenta mulher da Picardia que criara os filhos de maneira correta; e quando Catherine ficara órfã, recebera um pouco de instrução nas mãos das freiras de Sheppey.

Ele desejava que fosse solteira; que fosse uma princesa que pudesse ser considerada uma esposa razoável para ele. Sim, seus sentimentos eram tão fortes que podia pensar em casamento. Nunca mais vira Mane, embora tivesse providenciado para que ela e a filha deles ficassem bem amparadas.

Apesar de suas ambições, John era um homem capaz de amar. Gostara muito de Marie; reverenciara Blanche; considerara-se com sorte por ter uma esposa como Blanche.

No entanto, o sentimento que tinha com relação a Catherine Swynford era totalmente diferente. Era alucinante, apaixonado, sensual ao extremo e, no entanto, sabia que o amor terno também despertava nele.

Se ela tivesse sido uma grande herdeira... Constanza de Castela, por exemplo... que alegria seria!

Mas não era. Tratava-se apenas da esposa de um inculto proprietário de terras, Hugh Swynford. Se não fosse... que tentação teria sido para ele!

Esse era o sentimento dele por Catherine. Quando estava com ela, esse sentimento tomava conta dele; John ficava pronto a oferecer-lhe qualquer coisa.

Ficou surpreso ao saber que ela tivera dois filhos com Swynford

- Thomas e Blanche.

- Não sente saudades deles? - quis ele saber.

Sim, havia momentos em que sentia. Mas tinha a satisfação de saber que eles estavam sendo bem cuidados no interior.

John não falou mais neles. Tinha medo de que ela pudesse querer voltar para perto dos filhos.

- Sou muito grato a sua irmã Filipa - disse ele. - Não fosse ela, talvez nunca tivéssemos nos conhecido. Onde está ela, agora?

- Continua na criadagem da rainha, mas é claro que terá de ir embora

- Traga-a para cá. Deixe que ela entre para a nossa criadagem. Isso deixaria você contente, Catherine?

- É bondade sua, meu senhor.

- Filipa fez tanto por nós que precisamos fazer alguma coisa por ela.

Ele se perguntava se também poderia fazer alguma coisa pelos filhos dela. Claro que faria. Mas teria de pensar cuidadosamente nisso.

- Catherine - disse ele -, nunca sonhei que houvesse no mundo inteiro uma mulher que pudesse me agradar igual a você.

 

JOHN SEGUIU a cavalo para Windsor e apresentou-se ao rei.

A visão do pai deixou-o chocado. O caráter de Eduardo parecia ter mudado por completo desde a morte da rainha. Agora não tinha motivo para esconder seu relacionamento com Alice Perrers e os sinais da devassidão estavam assinalados em seu rosto. Os olhos azuis, outrora tão brilhantes, estavam opacos e havia sombras profundas sob eles; a boca forte se afrouxara.

Por Deus, pensou John, ele parece aquilo que se tornou - um velho devasso.

Alice estava sentada ao lado dele. É verdade, então, pensou John, ela praticamente não o perde de vista. O rei está inteiramente desequilibrado. Deve estar, para permitir que uma mulher como essa participe de suas reuniões com seus ministros - e tudo porque ela insiste! Como pôde um homem como seu pai - o grande Eduardo, herói de Crécy - afundar tanto? E tudo por causa dessa mulher!

Mas, embora Eduardo tivesse se orgulhado por ser um marido fiel que deplorava a promiscuidade em sua corte, sempre houvera nele uma sensualidade latente que lutava por emergir. Houvera rumores sobre suas tentativas de seduzir a condessa de Salisbury; tinham dito, até, que ele estivera de olho em Joan de Kent e havia o incidente da liga para indicar que poderia ser verdade. Agora parecia que, desde que ficara viúvo, ele se convencera de que não havia necessidade de esconder aquele lado de sua natureza e este se libertara por completo. Alice Perrers, sem dúvida, decidira que assim deveria ser.

John fez uma mesura para o pai e outra para Alice.

Ela inclinou a cabeça e sorriu para ele, quase triunfante, como que para dizer: eu sei que você acha que eu não devia estar aqui, mas aqui estou e aqui vou ficar.

No dedo dela estava um magnífico anel de rubi, que ele reconheceu como sendo de sua mãe. Então a coisa chegara a esse ponto. Ela agora estava de posse das jóias da rainha.

Ela viu os olhos dele dirigidos ao anel e ergueu a mão para o rosto, a fim de que ele pudesse vê-lo melhor - um triunfante gesto insolente.

- Seja bem-vindo, meu filho - disse o rei. - É uma volta triste para você, não encontrar mais sua esposa Blanche.

John percebeu o sorriso zombeteiro de Alice. Era quase como se ela soubesse de seu encontro com Catherine.

- Não pude acreditar quando soube - disse ele. - Fiquei muito abalado.

- Ela foi uma bela mulher e uma boa esposa para você. Eu estava contente por ver você com a vida arrumada de forma tão satisfatória assim.

- Foi realmente um ótimo casamento - interveio Alice. Veja o que ele trouxe, majestade. Fez dele o homem mais rico do reino, depois do senhor... meu rei.

John teria gostado de mandar que ela saísse de sua presença, mas o rei estava sorrindo como um tolo. Deu palmadinhas na mão de Alice.

- Sim, sim, um bom casamento-disse ele.-Isso torna ainda mais triste o fato de a peste tê-la levado. E tenho notícias perturbadoras sobre Eduardo.

- Ele sofreu depois de Nájara - disse John. - Parece que nunca recuperou a antiga saúde forte. Joan lhe dá bebidas e manda nele... e ele aceita.

- Um homem precisa de uma mulher para cuidar dele acrescentou Alice, com um sorriso benigno para o rei.

- Alice disse uma verdade - concordou Eduardo.

John sentiu-se enojado. Mal podia acreditar que aquele era seu pai. Se ele tinha de ficar com a mulher, que a mantivesse no quarto. Como podia tê-la ali sentada a seu lado, exibindo as jóias da rainha? O rei estava inteiramente bestificado por ela. Alice fazia dele o que queria.

Por quê? Por quê? Era uma mulher sem educação. Feita apenas para as camas dos servidores. E o rei... o Grande Eduardo... Era inacreditável! E no entanto, John reconhecia aquela sensualidade inerente. Alice a possuía. Catherine a possuía. Meu Deus, pensou ele. Isso nos transforma em escravos, sejamos nós quem formos.

- Eduardo quer que você parta outra vez - prosseguiu o rei.

- Diz ele que o rei da França está pretendendo a conquista da Aquitânia. Ele ouviu dizer que os duques de Anjou e Berry estão reunindo dois exércitos para o ataque. Eduardo está doente. Joan não quer que ele parta para a guerra.

- Joan não teria como contê-lo se a Aquitânia fosse atacada.

- Eu sei muito bem. Mas quero que você vá até lá, John. Quero que parta assim que puder reunir um exército. O que você pode conseguir?

- Talvez consiga reunir quatrocentos homens armados e, digamos, quatro mil arqueiros.

- Faça isso, John. Quisera Deus que eu pudesse ir com você. Assuntos na Inglaterra...

Alice olhou para ele e sorriu com ar de provocação.

- Você é uma atrevida - disse o rei. John afastou-se, impaciente.

- Será que ofendi o duque de Lancaster? - perguntou Alice, em tom zombeteiro.

- Bobagem, querida. John está encantado com uma pessoa que é tão boa para mim.

- Meu senhor - disse John -, tenho muito com que me ocupar, se quiser levantar esse exército em tempo hábil. Rogo-lhe que me dispense para fazer o que é preciso.

- Vá, John. Vá. Espero receber boas notícias suas. Enquanto John se retirava, a risada de Alice ecoou em seus ouvidos.

Como podia um grande homem tornar-se um escravo da paixão?, pensou ele. Aquilo não o deixava nada tranquilo, porque compreendia o sentimento do rei pela sua mulher fatal.

O Príncipe Negro estava em Cognac aguardando a chegada de John. Ele estava indo com uma grande força. Quatrocentos homens armados e quatro mil arqueiros deveriam dar-lhes o que precisavam.

O príncipe estava lutando contra um daqueles debilitantes ataques de disenteria que estavam ocorrendo com uma frequência alarmante. Joan tinha sido contra a sua ida até lá.

- Deixe que outros façam isso - dissera ela. - Você já fez a sua parte. Fez por merecer um descanso.

Mas ele não pudera atendê-la. A batalha estava no seu sangue, e ele sabia que se não estivesse lá, aquelas possessões na França, tão vitais para a Inglaterra, poderiam ser perdidas.

O rei da França estava, naturalmente, aproveitando-se da situação e devia estar rejubilando-se com a incapacidade do Príncipe Negro.

Mas John viria com seu exército, e eles resistiriam juntos. Eduardo estava preocupado com John. Ele sempre soubera da ambição do irmão. Este trouxera com ele, agora, uma autorização para que os pontos da Aquitânia que prestassem vassalagem ao rei da Inglaterra fossem poupados. Ele, John, seria o árbitro, na ausência do Príncipe Negro. Estaria John tentando tirar a Aquitânia do irmão?

Não, aquilo era bem razoável. Eduardo estava doente. Havia ocasiões em que mesmo no acampamento ficava fraco demais para levantar-se da cama.

Não devia desconfiar do próprio irmão; e no entanto, as preocupações não eram afastadas de todo.

Sentia-se velho, doente e desiludido. Sua vida era a batalha. Eduardo fora criado para isso; e desde que o pai reivindicara o trono da França, ele estivera dedicado àquele objetivo. Ele mesmo seria, um dia, rei da Inglaterra e da França. Não podia esquecer-se disso. E devia tornar aqueles tronos seguros para o pequeno Eduardo.

Pensar no filho dava-lhe ânimo. Nunca vira um menino tão belo. Joan o repreendia e dizia que ele mimava o filho mais velho. Ela estava sempre tentando promover Ricardo, que era um bom menino, pelo que parecia, mas não era como o irmão mais velho. Pouco importava. Teriam um intelectual na família. Aquilo não importava, desde que tivessem Eduardo de porte real como primogénito.

Mas ele se sentia deprimido. Soubera, há pouco tempo, da morte de Sir John Chandos. Amigo de infância que desde então fora íntimo dele. Chandos salvara sua vida em Poitiers e fora recompensado com a propriedade de Kirkton, em Lincolnshire, mas nada poderia ser uma recompensa adequada pelo que ele fizera. Chandos dissera, uma vez, que tinha a recompensa que mais significava para ele - a amizade do príncipe a vida toda.

E agora Chandos estava morto - morto em combate. Eduardo lamentava muito sua perda e não o esquecia. Aquele bom amigo morrera a serviço dele, não muito longe de Poitiers, e fora enterrado em Mortemer.

Perder um amigo desses deixava em sua memória uma cicatriz que jamais fecharia.

E ali estava ele, tão doente que às vezes pensava que o fim estava próximo.

Era uma perspectiva deprimente. Só podia agradecer a Deus a dedicação de Joan e a boa saúde de seu filho.

Enquanto estava deitado na tenda, exausto pela cavalgada e decidido a não passar para a liteira enquanto isso não fosse absolutamente necessário, recebeu a notícia de que Jean de Cros, o bispo de Limoges, que Eduardo considerava seu amigo, entregara a cidade aos franceses.

Limoges! Permitir a entrada dos franceses. O homem era um traidor. Uma fúria terrível tomou conta do príncipe.

- Por Deus - bradou ele -, ele vai sofrer por isso. Que traidor. Por que traidores como esse homem vivem enquanto grandes homens como Chandos são derrubados na flor da maturidade?

Nenhum de seus soldados jamais o vira tão furioso.

- Não se perderá um só momento - bradou ele. - Vamos partir sem demora para Limoges.

A fúria não diminuiu enquanto ele cavalgava com John de Gaunt ao lado.

- Vamos tomar a cidade numa questão de dias e então, por Deus, veremos o que acontece com os traidores.

John ficou impressionado com a fúria do irmão. Cidades tinham-se rendido ao inimigo antes. Às vezes era uma coisa sensata, se pudesse evitar derramamento de sangue e destruição, e o príncipe, que por natureza não era um homem violento, devia compreender isso.

Mas naquela ocasião a raiva persistiu e não diminuiu. Durante todos os seis dias de sítio ele parecia um homem possuído de um só motivo na vida - vingar-se de Limoges.

Por fim, a cidade já não podia resistir mais. Chegara o momento.

O Príncipe Negro, até então famoso pela fidalguia para com um inimigo caído, berrou com raiva:

- Não deixem que ninguém naquela cidade viva. Passem todos na espada.

- Mulheres e crianças, meu senhor?

- Todos. Todos! - berrou o príncipe.

- Mas, senhor...

- Por Deus. Não ouviu o que eu disse? Cumpra com o seu dever, se não vai ser pior para você.

O que teria acontecido com aquele homem, aquele nobre Príncipe Negro, cujo nome estava associado a tudo o que era glorioso em assuntos militares?

Ele mudara. Era um tirano. Bradava por sangue. Queria vingança. Só o nome Limoges já o deixava lívido de raiva.

O bispo foi capturado.

- Tragam-no até aqui - berrou o príncipe. - vou mostrar a ele o que acontece com os traidores.

Seu irmão estava ao lado.

- Eduardo... eu gostaria de falar com você a sós...

Ele se voltou para John - aquele irmão que sempre procurara honrarias, que se casara com Blanche de Lancaster, herdara as propriedades dela e tornara-se o homem mais rico da Inglaterra depois do rei.

John estava humilde, agora... implorando.

- Uma palavra, Eduardo... só uma palavra. Os dois ficaram sozinhos na tenda.

- Eduardo - disse John -, temos de ter cuidado. Esse é um homem da Igreja. Poderíamos provocar a ira do papa contra nós se alguma coisa de

mál lhe acontecesse.

- Você, pedindo por um traidor!

Traidor ele pode ser, mas é um bispo. Eduardo, eu lhe

imploro. Você já se vingou de Limoges e uma coisa eu lhe digo, é bem possível que você venha a se arrepender desse ato. Mas pelo bem da Inglaterra e de nossos exércitos, não faça coisa alguma com o bispo.

O príncipe colocou a mão na cabeça. John tomou-o pelo braço e fez com que ele se sentasse.

- Você está doente, Eduardo - disse ele. - Está muito excitado. Eu lhe peço que tenha cuidado.

O príncipe ficou em silêncio por algum tempo. Depois, disse:

- Eu passo o bispo traidor para você. John sentiu um grande alívio.

O bispo passou a ser seu prisioneiro.

O exército acampou fora de Limoges, e o Príncipe Negro ficava observando a fumaça negra da cidade devastada erguendo-se para o céu. Ele imaginava ouvir os gritos das pessoas assassinadas enquanto seus homens iam de rua em rua cumprindo suas ordens - nenhum homem, mulher ou criança devia ficar vivo.

Agora que mostrara a todos o que significava desafiar o Principe Negro, uma calma tomara conta dele.

com ela veio a terrível percepção de que ouviria pelo resto da vida os gritos dos habitantes de Limoges.

Eles o levaram na liteira. Era inútil tentar montar seu cavalo. Eduardo estava doente e tinha de enfrentar essa realidade.

Descansaram um pouco em Cognac, onde ele esperava poder recuperar-se o suficiente para continuar com o exército, mas estava claro que isso não aconteceria.

Só havia uma alternativa. Tinha de voltar para Bordeaux.

Quando chegou, Joan, horrorizada com a sua aparência, insistiu para que ficasse na cama; além do mais, mandou chamar os médicos e disse-lhes que queria saber a verdade e o motivo pelo qual seu marido, até ali tão forte, tornara-se vítima daquela doença que voltava sempre.

O veredicto foi que ele suportara muitas agruras no campo de batalha ao longo de muitos anos e que não devia voltar àquelas condições enquanto não estivesse inteiramente recuperado.

- Minha senhora - disseram eles -, ele deve voltar para a Inglaterra. Lá, deve retirar-se para o interior e viver tranquilo até que a saúde se restabeleça. Somos de opinião de que esta é a única maneira de evitar que essa doença piore.

Aquilo fez Joan decidir-se. Ela não queria ouvir protestos.

- Minha querida - disse o príncipe -, o que acontecerá com a Aquitânia se eu voltar para nosso país?

- Meu querido - retorquiu ela -, você vale mil Aquitânias.

- Não estou certo de que alguma outra pessoa concordaria com isso.

- Nunca dei muita importância à opinião dos outros. Vamos para casa.

Joan ficou encantada. Era o que sempre quisera. Ela havia feito da corte de Aquitânia uma das mais brilhantes da Europa. Músicos itinerantes sempre tinham sido bem recebidos no castelo; poetas floresciam lá; era muito agradável, à noite, depois que os alimentos que estavam em cima das mesas de cavaletes eram servidos e as mesas eram retiradas e cantavam-se canções de amor e fidalguia.

Infelizmente, porém, era muito raro o príncipe estar lá - ele estava sempre fora, vencendo alguma batalha gloriosa que nunca parecia levar a guerra a um ponto mais próximo do fim. Como teria sido melhor se tivesse ficado em casa.

Joan poderia ter sido feliz em Bordeaux, não fosse aquela luta insensata.

Mas, mesmo apesar de adorar o clima, que era mais brando do que o da Inglaterra, e o território fértil com suas flores coloridas, ela muitas vezes sentira saudades de sua terra natal, e se pudesse voltar para lá e levar o marido e os meninos, e ficar com eles inteiramente sob seus cuidados, ela ficaria feliz.

A saúde de Eduardo era uma preocupação, mas Joan estava convencida de que se pudesse mante-lo em casa e cuidar pessoalmente dele, e se não houvesse mais aquelas absurdas partidas para a guerra, ele voltaria a ficar saudável. Isso significaria mais discussões, é claro, mas ela as enfrentaria quando chegassem. Atarefa importante, agora, era recuperar a saúde dele.

E assim houve no castelo a azáfama de uma iminente partida.

Joan explicou aos filhos, que estavam muito agitados com a perspectiva de uma nova viagem com os pais.

Eles ouviram com atenção. Eduardo quis saber o que seria do seu falcão e do seu cavalo.

- Meu querido - disse Joan -, você terá muitos falcões e cavalos na Inglaterra.

- Posso levar meus livros? - perguntou Ricardo.

- Vamos ver, meu amor.

- Vamos ver o rei? - perguntou Eduardo.

- Estou certa de que ele vai querer ver vocês.

- Ele é nosso avô - disse Ricardo.

- E tem o meu nome - acrescentou Eduardo, com orgulho.

- O rei é Eduardo, meu pai é Eduardo, e eu também. Eduardo é nome de rei.

- Ricardo também é, não, minha senhora? Houve um rei Ricardo. Ele foi muito valente.

- Houve apenas um Ricardo, mas já houve três Eduardos disse Eduardo, com desprezo -, e meu pai será o quarto, e eu o quinto.

Esses meninos ouvem conversas, pensou Joan, preocupada. Então o jovem Eduardo já sabia que estava destinado a ocupar um trono. Preferia que ele não tivesse ouvido falar nisso. Eduardo dissera: "Você quer mante-los crianças para sempre, assim como quer me manter sob suas asas. Você parece uma galinha com os seus pintinhos."

Ela achava que era. No entanto, quisera casar-se com o herdeiro do trono - não apenas porque se tratava do herdeiro, é claro; mas tinha ficado contente com a perspectiva de vir a ser a rainha. Agora que estava mais madura, podia visualizar as angústias do cargo de rei. Quando se era jovem e inexperiente, pensava-se apenas naqueles momentos cerimoniosos, quando o monarca aparecia todo-poderoso, todo glorioso, mas havia um outro lado do quadro.

- Isso ainda vai demorar muitos e muitos anos - disse Joan ao pequeno Eduardo, com veemência.

- O que eu vou ser? - perguntou Ricardo.

- Vai ser o meu filhinho.

- Ele não vai ser sempre o seu filhinho - assinalou Eduardo.

- Para mim, vai - disse Joan.

Ela envolveu-o nos braços e apertou-o bem. Sentiu seu corpo magro e desejou que ele aumentasse um pouco de peso para ficar mais parecido com o robusto irmão.

Eduardo começou a afastar o irmão. Sentia um pouco de ciúme pela preferência dela por Ricardo, embora estivesse claro que ele, Eduardo, era o favorito do pai.

Joan sentiu as mãos de Eduardo, que lhe pareceram quentes demais.

Tocou a testa dele. Também estava muito quente. Havia, também, um corado nas faces do menino, e Joan percebeu que os olhos dele estavam com um brilho fora do comum.

- Você sente calor, Eduardo? - perguntou ela. Ele pensou.

- Um pouco - respondeu.

Joan mexeu nos cabelos de Eduardo com os dedos e riu para ele. Era, como dissera o príncipe, como uma velha galinha com seus pintinhos.

Afastou-se dos meninos e foi para o lado do marido. Eduardo estava deitado na cama, muito agitado. Os olhos estavam fechados e ele parecia dormir.

Ao chegar mais perto, ela o ouviu murmurar. Estava dizendo alguma coisa sobre Limoges.

Ela sentou-se ao lado da cama e segurou-lhe uma das mãos.

- Está tudo bem, Eduardo. Eu estou aqui. Você está em sua cama, comigo ao lado.

- Jeanette - disse ele.

- A sua Jeanette - replicou ela.

- Há quanto tempo está aqui?

- Acabo de chegar para ver como você está.

- Eu estava sonhando - disse ele, e ela sentiu-o tremer.

- Eu sei. Você precisa esquecer. Isso já acabou.

- Não consigo entender o que tomou conta de mim. Algum demónio, acho eu.

- Foi a febre.

- Aquela gente... gente inocente... Eu teria mandado cortar a cabeça do bispo se John não tivesse me contido.

- Está acabado, Eduardo. É essa guerra que não acaba nunca. Estamos todos sinceramente cansados dela.

- Isso não pode acontecer antes de termos a coroa da França.

Ela suspirou.

- Bem, você vai ficar afastado dela por algum tempo. Vamos descansar em paz em Berkhamsted, enquanto cuido de você para que volte a ficar com saúde.

- Eu quisera nunca ter ido a Limoges...

- Pare de pensar em Limoges. Já acabou.

- Nunca antes, na vida, eu fiz uma coisa dessas. Isso será lembrado contra mim. Nunca mais voltarei a ser conhecido pela minha fidalguia.

- Você tinha de tomar a cidade. Precisava mostrar a eles. Poupou a vida do bispo, não poupou? Já chega de Limoges. Deixeme dizer o quanto as crianças estão agitadas. Eduardo quer ver o avô.

- Estou me perguntando o que vamos encontrar na corte. John diz que aquela mulher exibe abertamente a influência que tem sobre orei.

- Essas histórias são sempre exageradas.

- É difícil acreditar que meu pai pudesse portar-se dessa maneira.

- As pessoas estão sempre se portando de uma maneira em que é difícil acreditar, o que mostra que não nos conhecemos muito bem Talvez não conheçamos a nós mesmos.

- Não. Limoges...

- Chega de Limoges. vou trazer as crianças para vê-lo. Eduardo quer saber quais os falcões e cavalos que irão conosco.

O príncipe sorriu.

- Você gostaria de vê-los, amor? - continuou ela. Ele confirmou com a cabeça.

- Eu mesma vou trazê-los.

Quando Joan foi à ala infantil, foi recebida por uma criada de fisionomia fechada.

- Lorde Eduardo não está bem, minha senhora - disseramlhe. - Uma das damas saiu à procura da senhora. Parece que está com febre alta.

Aquilo aconteceu muito de repente. Poucos dias antes, ele estivera cheio de saúde e muito animado, e agora estava ali deitado, fraco e exausto pela luta para ficar vivo.

O príncipe levantara da cama. Parecia um alucinado. O que poderia ter acontecido? Como podia Deus ser tão cruel, a ponto de tirar-lhe aquele filho adorado?

Nem Joan podia enganar a si própria ou a ele. Eduardo viu o medo terrível nos olhos dela.

- Ainda há esperança-disseram os médicos. Mas não havia. Eles sentaram-se ao lado da cama-o príncipe de um lado, Joan do outro. O menino sentiu a presença deles e ficou consolado por ela.

- Pai... - sussurrou ele.

- Estou aqui, meu filho.

O pequeno Eduardo sorriu, enquanto Joan se curvou e beijou a mão que estava na sua.

- Você vai ficar bom em breve, meu querido. Vamos para a Inglaterra. Lá, você vai ter um novo falcão.

A criança sorriu lentamente.

Os dois continuaram sentados ao lado da cama.

Os médicos andavam de um lado para o outro.

- Não há coisa alguma... coisa alguma a fazer? - perguntou o príncipe.

Os médicos sacudiram a cabeça, com tristeza. Nada havia a fazer, exceto sentar ali enquanto a jovem vida se esvaía.

O príncipe ficou inconsolável. Andava pelo seu quarto; sentou-se na cama e enterrou o rosto nas mãos.

- Meu filho, meu filho - lamentou-se ele. - Como isso foi acontecer?

Então, em sua mente, ouviu os gritos das mulheres e crianças sendo passadas pela espada. Mães, pais tinham perdido seus filhos. Eles os tinham amado como ele amara Eduardo, e ele os destruíra.

Isso é uma vingança, pensou ele. Ó meu Deus, por que o Senhor não me orientou? Por que me deixou trair minha fidalguia? A febre me dominava... Eu era um homem mudado.

Eu sei. O Senhor sabe disso... e no entanto o Senhor me castiga desse jeito.

Joan foi para o lado dele.

- Não adianta, Eduardo - disse ela. - Nada que fizermos ou dissermos irá trazê-lo de volta.

- Mas por quê... por quê? Parece tão sem sentido!

- Muitas coisas deste mundo não têm sentido, acho eu.

- Esse menino... Eu gostava tanto dele!

- Demais - disse ela. - Demais.

- Você também o amava.

- Ele era meu filho. Eu o amava e também o irmão dele. Você ainda tem um filho, Eduardo.

- Tenho medo do que lhe possa acontecer.

- Ele é forte e saudável.

- Eduardo era mais forte e mais saudável.

- Nada vai acontecer ao Ricardo.

- Como podemos saber qual o castigo que Deus vai nos aplicar?

- Vamos ter mais filhos homens, Eduardo. Tantos quanto seu pai teve.

- Eu sou um homem doente.

- Quando estivermos na Inglaterra, você ficará forte outra vez. Eu lhe prometo, Eduardo, na Inglaterra a vida vai ser boa. Nós sofremos essa terrível tragédia, mas agora acabou. Temos o nosso pequeno Ricardo. Teremos mais filhos homens. Eduardo, olhe para a frente, meu amor. Deixe o passado para trás.

Eduardo voltou-se para Joan e agarrou-se a ela como se fosse uma criança.

Ela podia oferecer-lhe algum consolo. Era a única pessoa no mundo capaz disso.

Joan o fez deitar-se na cama e, mais tarde, levou Ricardo até ele.

O garotinho parecia perplexo. Tinha apenas quatro anos e não entendia bem o que acontecera com o irmão.

Sua mãe tentara explicar. Eduardo tinha ido embora. Tinha ido para o céu.

- Eu também vou? - quis ele saber.

- Só daqui a muitos e muitos anos.

- Se Eduardo vai, eu também quero ir.

- Não, meu adorado, você vai ficar comigo e com seu pai. Mas agora precisa aprender depressa. É diferente ficar sem um irmão.

Ricardo não ficou tão contrariado. Sentia que a partida de Eduardo tornara-o mais importante. Notou a mudança na atitude das pessoas para com ele. De uma forma sutil,

ele se tornara algo importante.

Seu pai estava sentado numa cadeira no quarto e estendeu a mão quando Ricardo entrou.

- Você agora é o meu herdeiro, Ricardo - disse o príncipe.

- Sabe o que isso significa?

Ricardo não tinha muita certeza. Ele disse:

- É porque Eduardo foi para o céu.

O príncipe ficou emocionado demais para falar por um instante, o mesmo acontecendo com Joan. Ela estava pensando o quanto o seu fílhinho era criança e vulnerável e no grande peso da responsabilidade que seria colocada sobre seus ombros. Imaginou uma coroa sobre aqueles cachos louros e a ideia deixou-a apreensiva. Isso porque a criança era Ricardo, o seu caçula. Ele sempre lhe parecera frágil e delicado e, assim, vulnerável.

- Sim - disse o príncipe, por fim. - A razão é esta. Você terá de aprender depressa.

- Ricardo aprende muito depressa - disse Joan. - É o que diz o seu tutor.

- Você é um bom menino com os seus livros, mas agora, meu filho, terá de ser bom em tudo. Vai ter de aprender a ser valente e ousado. Vai ter de ser excelente na justa.

- Isso é para mais tarde - disse Joan. - Não se preocupe, Ricardo, você vai surpreender a todos com sua habilidade.

- vou? - perguntou Ricardo.

- Claro que vai, meu querido. Você tem de ser para o seu pai tudo o que Eduardo foi.

- Que Deus o abençoe - disse o príncipe.

- Sempre - acrescentou a mãe.

E então ela pegou o filho pela mão e levou-o embora.

O príncipe percebeu que Joan tinha razão. Ele não devia ficar pensando no passado. Tinha de esquecer o saque e o massacre de Limoges; não podia ficar se lamentando do fato de ter perdido o filho mais velho que lhe parecera um rei perfeito em formação. Precisava olhar para o futuro. Precisava planejar para o futuro.

Ricardo era, agora, o herdeiro do trono, e era preciso dar-lhe uma instrução muito especial. Um menino que já na sua tenra idade preferia debruçar-se sobre livros em vez de ficar ao ar livre treinando equitação e esportes masculinos precisava ser virado para a direção que devia seguir. Estava tudo bem quando ele era um segundo filho. A instrução proporcionada pelos livros não era um mal para o segundo filho. Ele poderia entrar para a Igreja. Era sempre bom ter um membro da família em algum cargo elevado. Mas tudo isso mudara. Ricardo estava, agora, em linha direta da sucessão. Desde que os acontecimentos tivessem seu curso natural, um dia Ricardo seria rei da Inglaterra.

Duas tarefas estavam pela frente. Primeiro, treinar Ricardo e, segundo, voltar para a Inglaterra, recuperar a saúde e gerar mais filhos homens.

O príncipe mandou chamar dois homens em quem confiava inteiramente - Sir Guichard

d'Angle e Sir Simon Burley.

Guichard d'Angle tinha a reputação de ser um cavaleiro perfeito. Era perito nas artes da cavalaria. Tinha ganhado distinção pela sua maestria militar. Seria um tutor perfeito para o jovem Ricardo.

Quanto a Sir Simon Burley, ele era um homem que o príncipe estimava mais do que a qualquer outro desde que a morte o privara da amizade de Sir John Chandos. Sir Simon lutara bravamente ao lado do rei Eduardo na França e acabara entrando para os serviços do Príncipe Negro. Estivera presente em Nájara e, mais tarde, fora feito prisioneiro perto de Lusignan, para grande tristeza do príncipe, que procurara logo uma oportunidade de provocar uma troca de prisioneiros, quando Sir Simon tinha sido devolvido aos seus serviços.

Servidores assim testados e de confiança contavam sempre com o agradecimento dos governantes, e o príncipe nunca fora de esquecer-se de quem o servia bem.

Simon foi uma escolha ideal, porque além de ser um grande soldado era também um homem de cultura, amante da literatura e da música.

O príncipe explicou o que queria dos dois homens.

- Agora que Ricardo é meu herdeiro - disse ele -, tem de haver uma alteração na educação dele. Deve ser criado de maneira tal que quando chegar o momento esteja preparado para enfrentar suas responsabilidades.

- Ainda faltam muitos anos para que o menino seja chamado para fazer isso - disse Sir Guichard.

- Espero que sim - disse o príncipe -, porque vamos precisar de tempo. Ele é muito infantil, e a mãe tem sido excessivamente leniente com ele.

- Ele é um menino inteligente, meu senhor. Adora seus livros, e isso nunca prejudicou ninguém.

O príncipe ficou satisfeito. Era típico de Simon falar e dizer o que pensava, muito embora pudesse estar em desacordo com seu senhor.

- Quero que ele seja culto - disse o príncipe -, mas não se deve negligenciar o exercício ao ar livre.

- Assim será - disse Sir Guichard.

- Obrigado, meus senhores - disse o príncipe. - Agora, devemos nos preparar para partir para a Inglaterra, o que faremos em uma semana.

Os cavaleiros fizeram uma mesura e retiraram-se.

Num dia frio de janeiro a comitiva fez-se ao mar em direção à Inglaterra.

Ricardo estava agitado. Sir Simon lhe explicara que agora, com a morte de Eduardo, ele, Ricardo, poderia ser, um dia, rei da Inglaterra. Havia o avô dele, que era o rei, mas era um homem muito velho; depois, vinha o pai; e depois do pai, Ricardo.

- Ainda faltam muitos anos - disse Simon -, mas um rei é diferente das outras pessoas. Ele tem de aprender a ser rei, e isso não é fácil.

- Como é que um rei aprende a ser rei?

- Primeiro que tudo, precisa ser altruísta.

- Meu avô é altruísta?

- Seu avô sempre pensou, primeiro, em servir ao país. Por isso foi um grande rei.

- Ele agora não é um grande rei?

- O que o faz perguntar isso?

- O senhor disse que ele foi um grande rei.

Esse menino é inteligente demais, pensou Sir Simon.

- Eu devia ter dito que seu avô é um grande rei. Ricardo deu-se por satisfeito.

- O que terei de fazer? - perguntou ele.

- O que lhe disserem.

- Eu sempre tive de fazer isso. Onde está a diferença?

Sir Simon sorriu e chegou à conclusão de que era melhor deixar as coisas seguirem o ritmo normal.

Lá estava o grande navio no porto. Nele tremulava a bandeira de seu pai. O Príncipe Negro! Quando ouvira aquele nome pela primeira vez, Ricardo pensara que fosse algo aterrorizante - como um pesadelo, um grande cão com mandíbulas babando, tentando entrar na ala infantil, um padre com uma longa túnica preta que tentava pegá-lo para castigá-lo, algo sombrio e grotesco... uma forma estranha que o assustava em sonhos e o fazia gritar, e Eduardo dissera que ele era uma criança. E então se revelara que o Príncipe Negro era apenas seu pai, que sempre era delicado com ele, embora gostasse mais de Eduardo. Eduardo jactara-se disso. "Eu sou o primogénito. Eu serei o rei."

Talvez Eduardo tivesse se jactado demais, e Deus tivesse ficado contrariado. Ricardo percebera que Deus ficava contrariado com muita facilidade. De qualquer maneira, Eduardo tinha ido para o céu, e Ricardo subira de posto. Ele agora era o importante.

E entraria naquele grande navio para fazer-se ao mar - assim que as ondas deixassem de bater com tanta força na terra. Ele veria o avô e moraria na Inglaterra e seria criado para ser rei.

Era uma perspectiva emocionante.

Subiu a bordo com a mãe e o pai. Percebeu que os pais não gostavam que ele ficasse muito afastado deles; imaginou que tivessem medo que Deus pudesse mandar alguém para pegá-lo e levá-lo para o céu a fim de juntar-se ao irmão.

Pensou vagamente no que seria o céu. Talvez gostasse de ir até lá unir-se a Eduardo. O irmão sempre andara jactando-se do quanto era mais inteligente do que Ricardo, de que sabia montar melhor e saltar e galopar. Não, ele preferia a Inglaterra ao céu. Fazia uma ideia de que seria muito mais importante na Inglaterra do que no céu.

Era interessante estar a bordo. Sir Simon ficava perto dele, e Ricardo o importunava com perguntas. Queria saber tudo sobre o navio. Sir Simon sempre respondia a suas perguntas. Ele gostava que as pessoas se interessassem por tudo.

O pai e a mãe de Ricardo desceram para deitar-se, porque o mar estava agitado. O capitão disse que seria uma viagem difícil.

Sir Simon olhou para Ricardo e disse:

- Vai enfrentar as intempéries ou gostaria de ir lá para baixo, deitar-se?

Ricardo estava com medo, mas achou que esperavam que ele dissesse que ficaria no convés com Simon, de modo que foi isso que fez.

Foi realmente uma viagem de meter medo. A água passava por cima do convés. Ele ficou molhado e sentia frio, mas Simon continuou no convés, e por isso Ricardo ficou com ele.

- Se seu estômago for bastante forte, o ar fresco é a melhor coisa em ares como este - disse-lhe Sir Simon.

A mão agarrada firmemente à de Simon, ele observava o mar agitado, e quando deixaram para trás a baía de Biscaia e entraram no canal da Mancha, os violentos ventos diminuíram um pouco.

- Eis a costa da Inglaterra, meu senhor.

Ricardo olhou para ela. Percebeu que era muito verde, e foi dominado por um orgulho avassalador, porque aquele era o país que seu avô governava e que seu pai governaria um dia... e dali a muito tempo o próprio Ricardo iria reinar sobre ele.

Eles lançaram âncora no porto de Southampton. Fazia muito frio e havia neve no chão. Mesmo assim, uma multidão estava em terra vendo a chegada deles.

Ricardo estava, agora, ao lado da mãe, que supervisionava os homens que estavam carregando a liteira. Esta era para o pai dele. A agitada viagem marítima não lhe fizera bem, e ele estava doente demais para andar.

Ele quisera andar, mas Joan não permitira. Ela o fizera compreender que não ficaria bem o público ver um pobre homem doente desembarcar cambaleando. Era muito mais adequado ele ser carregado na liteira.

- É um lugar muito frio - disse Ricardo a Simon.

- Estamos no inverno. Espere até chegar o verão, e a primavera chegará em pouco tempo. Então, as árvores ficarão cobertas de botões e os pássaros ficarão muito alegres. A primavera em qualquer outra parte não é como a da Inglaterra.

Ricardo ergueu os olhos para o céu escuro e para as bandeiras reais que tremulavam com muita melancolia, pois estavam encharcadas.

Quando a liteira de seu pai apareceu, o público ovacionou com entusiasmo e houve gritos de: "Vida longa para o Príncipe Negro!" Seu pai acenava, agradecendo as saudações.

- O senhor vai ficar bom, agora que voltou para casa, meu senhor - gritou um homem. - Deus o abençoe.

Estava claro que o povo dali gostava muito de seu pai. Agora, ele desembarcou segurando a mão de sua mãe. As pessoas olharam para ele e de repente ergueu-se um alto brado.

- Vida longa para o pequeno príncipe! Vida longa para Ricardo de Bordeaux!

De súbito, o ânimo de Ricardo foi às alturas. O menino sentiu uma onda de felicidade extasiada passar sobre ele.

Eles também gostavam dele. Ele nunca ouvira nada que o emocionasse tanto quanto a ovação da multidão.

De repente, ficou contente por Eduardo estar no céu-porque sabia que se Eduardo estivesse ali seria a ele que o público iria ovacionar. Ricardo ficou contente por ter ido para a Inglaterra. Estava feliz porque um dia seria o rei daquele país. Gostou da Inglaterra desde aquele momento, porque ela lhe pertencia e um dia ele seria seu rei.

John de Gaunt observou o grande navio afastar-se, com uma emoção que não era fácil analisar. A morte do sobrinho deixara-o tão atordoado quanto aos pais do menino, mas por uma razão diferente.

Um dos herdeiros do trono fora eliminado por um golpe repentino. Claro que havia outro para ocupar o lugar dele - o delicado menino de cabelos louros que, pelo que se imaginava, era quem deveria ter morrido, se essa fatalidade tivesse de acontecer.

Era uma perspectiva emocionante que John agora tinha pela frente. Seu pai estava envelhecendo depressa, e a perseguição que ele fazia a Alice Perrers não podia fazer bem à sua saúde; seu irmão, o Príncipe Negro, estava muito doente; e então havia aquele menino, Ricardo de Bordeaux. Lionel tinha uma filha que se casara com o conde de March; haveria quem dissesse que ela vinha antes de John de Gaunt. Mas não passava de uma menina... e Ricardo uma criança... Às vezes, John considerava o fato uma perspectiva emocionante; outras vezes, aquilo o deprimia.

Enquanto isso, ali estava ele na Aquitânia-substituto do irmão.

Talvez o irmão nunca ficasse bom o suficiente para voltar, e o futuro de John estivesse ali no continente.

Ele pensava com frequência em Catherine. Poderia mandar buscá-la, talvez. Mas será que podia? A governanta de seus filhos, esposa de um de seus escudeiros que agora servia ao exército!

A vida estava cheia de promessas, mas no entanto não passavam disso. Ele queria realização.

Primeiro, tinha de providenciar o funeral do sobrinho. Joan queria que acontecesse depois que eles tivessem viajado, em parte porque ela estivera ansiosa por levar Eduardo de volta para a Inglaterra, e em parte porque tinha medo de que o comparecimento fosse provocar tamanha dor no príncipe que abalasse ainda mais a saúde dele.

Foi uma ocasião formal, mas aqueles que teriam sentido uma dor sincera já não se achavam mais presentes.

A cerimónia mal acabara, e levaram a John a notícia de que Montpoint, em Périgod, rendera-se aos franceses. Ele, portanto, tinha de partir para recuperar a cidade. Isso o deixou ocupado por várias semanas e só no fim de fevereiro conseguiu reconquistar a cidade.

Quando voltou a Bordeaux, ficou claro para ele e para todos os demais que seu coração não estava na tarefa que lhe fora atribuída. Ele estava mantendo a Aquitânia para Eduardo. Ele queria governar por si mesmo, não através de outra pessoa.

Seu irmão, Edmund de Langley, juntou-se a ele em Bordeaux e lá estavam, também, Constanza e Isabella, as duas filhas de Pedro, o Cruel.

A primavera chegara. Fazia calor, e os dois irmãos saíam para caçar ou apenas desfrutar o campo com as duas jovens.

Constanza era muito séria. Seu grande objetivo era sair do exílio e recuperar a coroa de Castela, à qual ela dizia ter direito.

- E tem, mesmo - concordou John -, e por isso ela devia ser sua. Esse bastardo do Henrique devia ser deposto e você deveria ser bem recebida de volta.

- Ele nunca sairá, a menos que seja obrigado - disse Constanza. -Se ao menos eu tivesse dinheiro para levantar um exército... Acho que o povo estaria comigo. É evidente que ele desejaria ver a herdeira legítima no trono.

John pensou naquilo. Ele estivera brincando com a ideia de sugerir ao pai e ao irmão que a lei sálica fosse promulgada na Inglaterra. Ela existia na França. Por isso Eduardo estava tendo de lutar pela coroa. A coroa da França passava para ele por intermédio de sua mãe, mas devido àquela lei ele fora posto de lado. Era esse o motivo da guerra. John estava, agora, pensando na filha de Lionel, Filipa, que, a menos que a lei sálica fosse adotada, viria depois de Ricardo e antes dele no direito ao trono inglês.

Ele percebia que essa lei seria considerada ilógica e que não havia esperança de ser adotada na Inglaterra quando o próprio reconhecimento de uma lei dessas tornaria nula a reivindicação do trono da França por Eduardo.

Portanto, no seu ponto de vista, havia o rei Eduardo, já idoso, que não poderia durar mais do que dois ou três anos, no máximo; o Príncipe Negro, cuja doença sempre voltava a atacá-lo, dava a entender que também não deveria demorar-se muito neste mundo; e então havia o menino de quatro anos, Ricardo, muito delicado e, de qualquer forma, pouco mais do que uma criança. Depois, Filipa, filha de Lionel, casada com o conde de March, que, sem dúvida, tinha suas ambições. Eram esses que estavam na fila antes de John de Gaunt.

Talvez a coroa nunca chegasse até John. Ele nunca conquistara a popularidade que o Príncipe Negro desfrutava. Não era o grande guerreiro que o irmão sempre fora. Não estava apaixonado pela guerra; preferia usar as artimanhas da política, que eram muito menos dispendiosas. O povo era tolo; nunca entendia que um homem como ele seria muito melhor para a prosperidade do país do que aqueles grandes guerreiros cujo objetivo era sempre obter a glória em combate.

Seu bisavô tinha sido um grande rei, mas havia desperdiçado homens e dinheiro combatendo os escoceses - e que benefício isso trouxera para a Inglaterra? Seu pai ficara obcecado pelas guerras francesas, e que benefício aquilo estava trazendo para a Inglaterra? Como teria sido muito melhor garantir o que ele possuía na França - que precisava de uma vigilância contínua para ser mantido - e esquecer aquele sonho louco de conquistar a coroa da França. Não, John de Gaunt seria um tipo diferente de rei, se aquele dia glorioso chegasse.

Mas como poderia ele chegar... com tanta gente entre ele e sua ambição? O povo jamais o aceitaria. Acharia interessante a visão daquele belo menino de cabelos louros ou da jovem Filipa - uma rainha. O povo era ridiculamente sentimental e nunca simpatizara realmente com John de Gaunt. Primeiro, porque ele não nascera na Inglaterra. Seu irmão Eduardo era Eduardo de Woodstock. Às vezes ele era chamado assim. Eduardo, o Príncipe Negro. Um nome mágico, e o povo apoiaria o filho dele, por mais criança que fosse. A coroa da Inglaterra parecia muito distante de John de Gaunt.

Mas havia outra coroa que ele poderia conquistar.

Constanza mostrara muito claramente que estaria pronta a se casar com o homem que a ajudasse a conquistar sua herança.

Constanza poderia fazer dele rei de Castela.

Ele conversou sobre o assunto com Edmund.

- Constanza está decidida a recuperar a coroa de Castela disse ele. - Acho que ela conta conosco, irmão.

- Eu tenho certeza.

- Estive pensando, Edmund, que gostaria de ser o rei de Castela.

Edmund segurou a mão do irmão.

- Não há coisa alguma que me alegraria mais, irmão, do que ver você como marido de Constanza. Ficaríamos perto um do outro pelo resto da vida, porque resolvi me casar com Isabella.

- A irmã mais moça...! - começou John, e Edmund soltou uma gargalhada.

- Não sou tão ambicioso quanto você, John. Ficaria muito contente em passar o resto da vida numa corte agradável, dedicada ao gozo da vida que, posso afirmar, existe muito pouco em nossas vidas.

John confirmou com a cabeça. Edmund era uma repetição do Lionel bonachão, amante do prazer. Bem-humorado, generoso, gostando muito de música e poesia, Edmund não tinha amor algum pelas batalhas. Era uma infelicidade ser filho dos Plantagenetas e ter esse tipo de temperamento, porque sempre devia haver um certo número de batalhas a lutar. Homens como o pai dele teriam ficado horrorizados se Edmund dissesse que preferia viver tranquilo em alguma corte pequena, cercado de trovadores e poetas, do que lutar para melhorar o prestígio da família e conquistar novas possessões.

John compreendia a atitude de Edmund; não partilhava dela, de forma alguma. Ele queria possessões, e lutaria por elas, mas preferia obtê-las por outros meios-ele nunca seria um grande general como o pai e o irmão mais velho. A batalha, para ele, era o meio para se atingir um fim; não via prazer nela só por se tratar de uma batalha, como sentiam aqueles heróis militares.

- Eu ainda não me decidi - disse ele. - Quero pensar.

- Mas, por que não, John? Constanza é uma mulher atraente. Além do mais, você quer ser rei. Esta é a sua chance.

- Eu sei - disse John. Ele não podia explicar que não queria Constanza. Queria Catherine Swynford. Até Edmund, que teria compreendido até certo ponto, teria rido. Filhos de reis não se casavam com governantas. Além do mais, a mulher tinha marido.

Sou um tolo ao pensar nela, refletiu John, e no entanto... Na verdade, ele não conseguia parar de pensar nela. Sabia que tão logo voltasse à Inglaterra iria procurá-la. Teria de estar com ela. Sabia que não conseguiria manter aquela ligação em segredo para Constanza. Como era possível planejar casar-se com uma mulher enquanto pensava constantemente em outra?

Que absurdo, aquilo! Claro que tinha de se casar com Constanza, e quando voltasse para a Inglaterra aquele sentimento para com Catherine poderia ter mudado. Fazia muito tempo que não a via. Por que hesitava? Como poderia casar-se com Catherine, que tinha um marido? Será que ele poderia ser como Davi, colocando Urias, o hitita, na linha de frente da batalha?

Seja razoável, advertiu a si mesmo. Seja sensato. Case-se com Constanza.

Foi procurá-la logo, com medo de mudar de ideia.

- Constanza - disse ele. - Se se casar comigo, lutarei para recuperar sua coroa.

A alegria dela refletia-se em seu rosto. Ela estendeu as mãos, e John as segurou.

Atraiu-a para ele e beijou-a.

Não sentia nada por ela, só uma grande dor no coração porque não era Catherine.

Era primavera quando os dois irmãos voltaram para a Inglaterra com suas esposas.

John e Constanza foram ao palácio do Savoy, cavalgando pelas ruas, e as pessoas saíam para vê-los.

Houve fracas saudações para o rei e a rainha de Castela, que era como os dois estavam se chamando.

Seguiram pela margem do rio e entraram no palácio que encantara John desde que se tornara propriedade sua pelo casamento com Blanche. Agora, ele estava pensando

não tanto na grandiosidade daquela magnífica pilha de pedras quanto no que encontraria lá dentro.

Constanza achou divertida a ansiedade de John. Ela achava que era para ver as crianças. Não que ele não fosse ficar encantado ao ver o quanto haviam crescido na sua ausência; mas o que colocava aquele rubor em suas faces e o brilho nos olhos era a perspectiva de tornar a ver Catherine.

No grande salão, aqueles que o serviam no palácio estavam alinhados para saudá-lo e prestar suas homenagens à nova duquesa de Lancaster, que também se dizia rainha de Castela; e lá estavam os filhos dele. Ele não ousou olhar, a princípio, para a alta e graciosa mulher que segurava a mão do jovem Henrique.

Filipa crescera tanto que era quase impossível reconhecê-la. Elizabeth também. E o jovem Henrique era um robusto menino de cinco anos.

John desviou o olhar das crianças e virou-se para Catherine. Ela sorriu, serena.

Ele sentiu um grande impulso, então, de toma-la nos braços, apertá-la contra si... ali, na frente de todos. Ela sabia disso e seu sorriso foi de confiança Nada poderia alterar a avassaladora atração que havia entre os dois; nem aquela esposa de olhos negros vinda de Castela.

- Como estão vocês, meus filhos? - perguntou John.

Não estava olhando para ela, mas para os filhos, mas a estava vendo - a pele macia, os espessos cabelos vermelhos que brotavam de maneira tão vital da suave testa branca. Conhecia a textura daquela pele e estava ansioso por tocá-la.

- Nós vimos o rei - disse Filipa.

- Alice Perrers estava com ele - acrescentou Elizabeth; ela era mais direta do que a irmã.

- Fique calada - disse Filipa. - Não devemos falar nela.

- Vocês têm de falar de outras pessoas quando seu pai acaba de voltar? E o que meu filho tem a dizer?

Henrique disse ao pai que tinha ido caçar na semana anterior.

- Pegamos um belo gamo.

- Nada mudou muito desde minha partida - disse John. Vocês precisam conhecer a nova duquesa. Constanza...

As crianças foram apresentadas à madrasta. As meninas olharam-na com desconfiança, o jovem Henrique, com interesse.

- Permita que lhe apresente Lady Swynford, a governanta deles.

Catherine fez uma mesura, e Constanza dirigiu-lhe um seco inclinar de cabeça.

Então John, com a mão de Henrique na dele e as meninas do outro lado, seguiu em frente.

Tão logo foi possível, mandou chamá-la.

Quando ela chegou aos seus aposentos, ele tremia de emoção.

- Eu quis vê-la, Lady Swynford, para ouvir de seus lábios como se portaram meus filhos durante minha ausência.

- Está tudo bem com eles, meu senhor - respondeu ela, com calma. - Gozam de boa saúde, como pode ver, e progridem nos estudos. Estou certa de que os professores de equitação de Henrique lhe darão boas informações sobre a conduta dele...

John não estava ouvindo. Olhava para ela absorto.

- Eu estava ansioso por vê-la - disse, com calma. - Você mudou pouco. Faz tanto tempo!

Ela baixou os olhos.

- Eu preciso vê-la... a sós... onde possamos ficar juntos. Ela ergueu os olhos para fitar os dele.

- É possível, meu senhor, agora?

Claro que antes fora diferente. Blanche estava morta. Ele estava viúvo. Agora, acabara de voltar com uma nova esposa.

- Eu me casei por questões de Estado - disse. E ficou impressionado consigo mesmo. Por que ele, o filho do rei, devia explicar seus motivos a uma governanta?

- Sim - respondeu ela. - Eu sei.

- Você tem um marido - disse ele, como que se desculpando por não se casar com ela. O que ela provocara nele? Ela o tornara um homem diferente. Ela o enervara; enfeitiçara-o. John acreditava que se ela fosse livre, ele teria se casado com ela.

Se tivesse feito isso, que bem-aventurança seria. Nada de subterfúgios, e os dois poderiam ficar juntos noite e dia.

- Eu preciso vê-la.

- Quando, meu senhor?

- Você precisa vir ao meu quarto.

- E a duquesa?

- Eu não sei... mas vou providenciar qualquer coisa... tenho de fazer isso. Estou ansioso por você. Estou assim desde que parti. Não há ninguém como você, Catherine, ninguém... Ao vê-la de novo, eu sei.

- Eu também sei.

- Nesse caso, devemos...

- Mas como, meu senhor? Não vai ser fácil.

- Mas tem de ser. Tem de ser.

Ela estava certa quando dissera que não era fácil, mas John deu um jeito. Tinha de dar. Havia um pequeno quarto numa parte do palácio que não era usado com frequência. Os dois se encontraram lá.

Havia uma cama na qual os dois fizeram um amor extático.

Ele pensou em Constanza e na necessidade de engravidá-la. Desejou que nunca tivesse permitido que a ambição o levasse a fazer aquele casamento. O rei de Castela. Era um título vazio. Um título que Henry de Trastamare jamais permitiria que ele usasse.

Tinha sido um casamento imprudente. John devia ter continuado livre.

Suponhamos que ele tivesse feito isso. Suponhamos que Hugh Swynford morresse... Soldados morriam, sim. Morriam como moscas em países quentes; se não em combate, na luta contra as doenças. Suponhamos que ele tivesse se casado com Catherine. Que bonita ela teria ficado nos trajes de uma duquesa! Como John teria ficado orgulhoso, e o tempo todo os dois teriam estado juntos.

Que sonhos loucos para um homem ambicioso. Ele podia imaginar a fúria perplexa de seu pai e de Eduardo. Edmund e Thomas teriam achado interessante, embora não se manifestassem.

Mas ele se casara com Constanza; tornara-se rei de Castela - e um dia aquele poderia ser um título com algum significado; e aquilo eram sonhos loucos e absurdos que ele só tinha porque estava escravizado por uma feiticeira. Ela estava sussurrando, agora.

- Vamos ter de ser muito cuidadosos.

- Cuidadosos. Como posso ser cuidadoso? Revelo meus sentimentos por você o tempo todo.

- Revela, sim - disse ela.

- Então, o que posso fazer?

- Ir para Castela? - sugeriu ela.

- Aonde quer que eu vá, você também irá. Não ficarei tanto tempo sem você outra vez. - Ficou ali deitado, sabendo que sua ausência seria notada; e a dela também.

Era evidente que bastava vê-los juntos para identificar aquela chama de paixão que parecia consumir os dois.

 

O PRÍNCIPE NEGRO veio de Berkhamsted para conversar com o rei. A saúde do príncipe melhorara um pouco desde sua volta à Inglaterra, mas os periódicos ataques de febre continuavam, e quando vinham eram tão debilitantes quanto antes. Ele ficava de cama, frustrado e amargurado. Na verdade, nunca se recuperara da morte do filho mais velho e estava sempre se preocupando com o futuro de Ricardo.

Dessa vez, ele estava em um de seus períodos saudáveis e, apesar das tentativas de Joan de dissuadi-lo, insistiu em ir até Windsor.

A aparência do rei deixou-o chocado, como fazia todas as vezes em que o via. Eduardo estava ficando um pouco mais fraco a cada dia, um pouco mais louco pela onipresente Alice, e a imagem do grande rei que granjeara o amor e a admiração do povo ficava cada vez mais apagada.

O príncipe pensou: se ele continuar assim, o povo irá depô-lo. Por quanto tempo mais o público vai tolerar Alice Perrers? Ela se comporta como se fosse o seu principal ministro e algum estadista inspirado, em vez de uma mulher gananciosa, uma harpia, só se agarrando a ele pelo que pode conseguir.

Naquele momento, a Aquitâniaera o que preocupava o príncipe.

- Eu nunca deveria ter saído de lá - disse ele. - John cometeu um grande erro.

- Bem, ele agora é rei de Castela.

- Rei de Castela-disse o príncipe em tom de desdém.-Um título vazio! Quais as chances que ele tem de um dia tornar-se o rei de Castela? O que foi que esse casamento trouxe, a não ser fazer com que Henry de Trastamare e o rei da França ficassem mais unidos? Eles agora são aliados. Longe do reinado de John sobre Castela, veremos os franceses tomando Poitou e Saintogne.

- O senhor tem uma visão muito pessimista - disse Alice. O príncipe sentiu-se pronto a explodir de fúria. Ignorou-a de

propósito e voltou-se para o pai.

- Teremos de nos preparar. Posso lhe garantir que haverá um ataque em breve. Os franceses não perderão essa vantagem. Eu devia ter ficado.

- Você não estava em condições - disse o rei. - Agora, está se recuperando. Deve esperar até ficar bom.

- Sim - disse o príncipe com amargura -, esperar até que os franceses nos tenham tirado tudo o que possuímos. Temos de agir logo.

- O rei não irá à França - disse Alice com rispidez.

- Cabe ao rei decidir isso, senhora-retorquiu o príncipe com frieza. -Majestade - continuou ele, voltando-se para o rei -, este é um assunto de grande importância. Acho que devemos discuti-lo a sós.

- Estamos a sós, Eduardo - disse o rei.

O príncipe ergueu as sobrancelhas e olhou para Alice.

- Alice está sempre comigo. Ela compreende o que se passa, não compreende, Alice, meu amor?

- Compreendo porque lhe diz respeito, meu rei - replicou Alice, sorrindo para ele.

Ele está ficando senil, pensou o príncipe. O que irá acontecer? Os franceses triunfantes; eu, doente; John, embora inteligente, não é homem para conduzir exércitos vitoriosos, o rei perdendo o juízo e privado de sua força por uma harpia cujo único pensamento é acumular fortuna enquanto o rei viver; meu filho Eduardo morto e um filho frágil é tudo que me resta! Ó Deus, o que está acontecendo com a Inglaterra? Há poucos anos este país era um dos mais poderosos do mundo, governado por um homem capaz. Como, em poucos e curtos anos, Deus pode ter-nos feito decair tanto?

Preciso recuperar a saúde. Preciso manter o reino unido antes que ele seja perdido por completo.

- Então, se precisamos discutir assim essas questões que são vitais para a sobrevivência do nosso país, vou mandar chamar John, porque ele deve participar de nossas discussões.

- Isso, mande chamar John - disse o rei.

- Espero que ele esteja gostando do casamento-acrescentou Alice com muita malícia.-O nosso rei de Castela deve estar muito contente. Há rumores...

O príncipe fez uma abrupta mesura para o rei e retirou-se da sala. Se seu pai se esquecia da etiqueta exigida, ele também a esqueceria. Não ia ficar ali e ouvir aquela criatura de baixo nível discutir seu irmão.

Seguiu a cavalo para Londres e dirigiu-se ao palácio do Savoy, onde sabia que encontraria John.

John ficou surpreso ao vê-lo e declarou-se contente com o fato de sua saúde, obviamente, ter melhorado.

- É inútil tentar falar com o rei com aquela mulher ao lado dele

- disse o príncipe com impaciência. - Eu não teria acreditado que isso fosse possível se não tivesse visto com meus próprios olhos.

- Ela parece fazer dele o que quer.

- O país ficará arrumado se essa situação continuar. Esse seu casamento não foi muito inteligente.

- Estou começando a perceber isso.

- O que acha que os franceses farão? É obvio que uma aliança com Henry de Trastamare. Isso é claro. Você não tem chance de conquistar Castela.

- Estou vendo que vai ser uma tarefa difícil.

- E não vai realizá-la ficando aqui na Inglaterra.

O coração de John afundou. Ele tinha sido um tolo. Não havia necessidade de ter-se casado com Constanza. Ele se deixara acreditar que teria havido uma conquista rápida. Devia ter sabido que Henry de Trastamare não seria deposto com facilidade; e era evidente que os franceses iriam aproveitar-se da situação. Mais lutas. Mais separações de Catherine.

Ele fora seduzido pelo brilho de uma coroa.

O príncipe continuou:

- Se ao menos eu tivesse minhas forças outra vez! Eu nunca devia ter saído da Aquitânia. Se eu tivesse ficado... - Ele fez uma pausa, frustrado.

- O que está feito está feito - disse John. - Vamos partir daqui para a frente.

- Isso faz sentido - replicou o príncipe. - Temos de fazer planos para enviar uma frota para Rochelle imediatamente.

A saúde do príncipe pareceu melhorar enquanto ele se ocupava com o trabalho urgente de preparar uma frota para seguir para a França.

Não pretendia ir com ela. Joan estava decidida a impedi-lo, e com a saúde tão precária assim, tinha de concordar que poderia ser um peso morto, e não um elemento útil.

O conde de Pembroke deveria liderar a frota, e partiriam para Rochelle assim que o tempo permitisse. Nesse ínterim, o príncipe reuniria mais homens e armas, prontos para apoiar o desembarque depois que ele acontecesse.

Pembroke partiu em junho. Poucas semanas mais tarde, chegou à Inglaterra a calamitosa notícia de que a frota fora interceptada pelos espanhóis e praticamente nenhum navio conseguira voltar em condições precárias para a Inglaterra. Tantas vidas perdidas, tantos recursos exauridos!

O Príncipe Negro ficou desesperado. Foi procurar o rei e bradou:

- Deus nos abandonou, e não me surpreendo.

O rei ergueu-se um pouco e desviou o pensamento das novas jóias que estava mandando fazer para Alice para pensar nas implicações daquela derrota.

- O senhor gostaria de perder tudo o que possuímos na França enquanto se diverte com a sua concubina? - berrou o príncipe. Eu lhe digo uma coisa, meu senhor, se persistir na sua indiferença para com a sua coroa, em breve não haverá coisa alguma para dar à sua amante.

- Você deve se lembrar de que está falando com seu rei retrucou o rei.

- Eu me lembro de que estou falando com meu pai, que já foi um grande rei - respondeu o Príncipe Negro.

O rei ficou abalado. Era verdade. Ele pensou por um breve momento nos dias de glória. Era claro que aquele seu filho, do qual ele sempre se orgulhara e ainda se orgulhava, estava certo. Devia haver um retorno à época de grandeza. Eles estavam perdendo a França, e o príncipe estava dando a entender que se continuassem assim poderiam perder a Inglaterra.

Ele saiu do torpor. As jóias de Alice teriam de esperar. Explicaria a ela. Alice não desejaria que ele perdesse a coroa. Precisava dizerlhe que tentasse não irritar o Príncipe Negro. Ela deveria lembrar-se de que ele seria o próximo rei da Inglaterra.

- Você tem razão, Eduardo-disse o rei. - Temos de agir já. Temos de reunir outra frota. Temos de chegar a Rochelle.

O príncipe agarrou a mão do pai.

- Se o senhor puder ser o que foi no passado - disse ele -, e se ao menos eu puder manter a saúde, ninguém ousará vir contra nós.

Poucos dias depois chegaram notícias de que os franceses tinham tomado Poitou e Saintogne.

O Príncipe Negro renovara as energias. Estava incutindo no pai e nos irmãos a necessidade de uma ação imediata. O próprio rei estava ciente do perigo e parecia estar voltando ao antigo vigor. Nem mesmo Alice Perrers conseguia desviá-lo de seus propósitos.

Mas enquanto se faziam os preparativos, a saúde do Príncipe Negro começou a piorar outra vez. Joan insistia para que ele se recolhesse ao leito, mas ele não lhe dava ouvidos.

- Não, Joan - insistia ele -, esse assunto é da máxima urgência. A própria coroa da Inglaterra está em perigo. Tenho de defendê-la... para Ricardo.

Joan sabia que era inútil protestar. Louca de aflição, viu o marido partir.

- Voltarei em breve.

Ele voltou, realmente, mais cedo do que ela esperava. O tempo estava tão ruim que foi impossível o desembarque dos navios em solo francês; e enquanto tentavam, a cidade de Rochelle se rendeu. A de Thouars esperou em vão por ajuda, mas quando esta não chegou as portas da cidade foram abertas, e os invasores franceses entraram.

Foi uma derrota calamitosa. A frota voltou para a Inglaterra sem ter conseguido coisa alguma.

O Príncipe Negro não estava em condições de continuar a guerrear. John tivera razão. Ele nunca deveria ter tentado ir. Sua presença não fizera diferença, porque a frota não pudera desembarcar.

Tudo o que acontecera era que a febre voltara e depois de cada acesso ele ficava mais debilitado.

A tristeza tomou conta da corte e do país. Só Alice podia despertar o rei de sua letargia. Ele parecia estar dizendo a si mesmo que deveria perder tudo aquilo que lutara tanto para conseguir, que Deus não aprovava sua reivindicação e mandara Alice para afastá-lo da guerra e gastar suas energias em outras direções. O Príncipe Negro tinha acessos de raiva e irritava-se, mas só podia fazer isso de um leito de doente.

John de Gaunt percebeu que teriam de ser feitas tentativas de manter as possessões francesas e que caberia a ele salvá-las.

Constanza ficara grávida e estava contente com isso. Sabia que John tinha uma amante entre a criadagem e que ela era a governanta de seus filhos com Blanche de Lancaster, mas não ficou muito triste com a descoberta, embora algumas de suas damas achassem que devia ficar e devesse despedir a despudorada governanta ruiva. Constanza dava de ombros. Não se casara com John de Gaunt por amor. Ele lhe parecera o meio de recuperar o trono ao qual ela acreditava ter direito, e ainda não perdera a esperança. Se John lutasse pela coroa dela - e isso aconteceria, se surgisse a oportunidade, porque a coroa também pertenceria a John -, ela ficaria satisfeita.

Os dois tinham aparentado viver juntos; aquele filho que ela iria ter era prova disso. Constanza não se opunha a que John tivesse uma amante, e Catherine Swynford era um tipo de mulher muito diferente de Alice Perrers. Catherine tinha recebido boa formação num convento; tinha uma certa instrução; nunca tentara explorar sua situação. Não, Constanza não fazia muita objeção a Catherine Swynford.

Era bom ter filhos, pensou John, e estava contente pela gravidez de Constanza. Seu casamento poderia ter sido muito mais inconveniente, e sempre havia uma chance de conquistar a coroa de Castela.

Agora, é claro, ele teria de voltar à França, já que o Príncipe Negro não podia ir. O rei também não. Por isso, a tarefa caberia a John. Ele teria de atravessar aquelas águas turbulentas que há tão pouco tempo tinham provado estar do lado do inimigo. Teria de defender o que restava, mas para quem...? Para o rei, para o Príncipe Negro, ou para o jovem Ricardo?

John não queria sair da Inglaterra. Detestava deixar Catherine, porque quanto mais eles ficavam juntos, maior a necessidade que sentia dela.

Chegou a John a notícia de que entre os que tinham sido feridos na força que fora deixada para enfrentar os franceses estava Hugh Swynford. John daria a notícia a Catherine quando ela fosse ao seu quarto. Ela agora ia abertamente, porque era impossível manter o relacionamento deles em segredo. Por mais que tentassem, era certo haver alguém que percebesse; e os dois achavam melhor manter um relacionamento às claras do que clandestino, para ser comentado em sussurros e virar motivo de muxoxos pelos cantos.

Um disse ao outro que nenhum deles estava envergonhado. Por isso, todos na corte sabiam que Catherine Swynford era amante de John de Gaunt.

Muito bem, o rei se divertia com Alice Perrers, mas o Príncipe Negro mantinha a honra da família. Era o marido fiel, o herói do povo e tinha um filho para segui-lo. De vez em quando, o povo via de relance o menino de cabelos louros que estava crescendo e seria alto e bonito; e quando as pessoas o viam, ovacionavam-no com estridência.

Tudo estaria bem, dizia o povo, enquanto o Príncipe Negro estivesse ali.

Quando Catherine ficou a sós com ele, imediatamente John lhe deu a notícia sobre Hugh.

- Ele está de cama, doente, e precisando de tratamento, perto de Bordeaux.

- Pobre Hugh - disse ela. - Deve se sentir muitíssimo infeliz. Não é o tipo de homem que tem o dom da paciência. Não sabe ter uma ocupação, a não ser com cavalos e combates.

- Acredito que ele esteja ferido com muita gravidade - disse John. - Tive uma ideia. Talvez você devesse ir cuidar dele.

- Você... quer me mandar para perto dele. Será que isso significa...?

- Significa que se você estivesse na França, eu também estaria e o mar não nos separaria. - Ele ficara agitado. - Preste atenção, meu amor. Terei de deixar a Inglaterra em breve. Estou pouco animado com essa campanha, mas tenho de ir, já que meu pai e meu irmão estão impossibilitados de viajar. Até mesmo ele tem de compreender que está muito doente para fazer mais campanhas. Tenho de partir para a França. Eu ficaria mais animado se quando lá chegasse encontrasse você... à minha espera.

Ela partilhou de sua agitação. Tinha de ir. Precisava cuidar de Hugh. Muitas vezes sentia um grande remorso por causa dele. Tinha algo a dizer a John. Não quisera falar naquilo enquanto não tivesse certeza, mas agora não podia haver dúvida.

- vou ter um filho seu - disse ela.

Uma alegria louca envolveu John. Era um prazer que não sentira diante da perspectiva do filho legítimo de Constanza.

- Eu me sinto muito feliz - disse ela. - Sempre tive medo de que chegasse o dia em que você não estaria mais comigo. Eu não poderia esperar que me amasse para sempre.

- Você está dizendo bobagem, Catherine, e isso não é uma característica sua. vou amá-la até morrer.

-- Talvez - respondeu ela. - E vou ter um filho seu. Como vou amá-lo! Como vou venerá-lo!

- Eu também - replicou John com fervor. - Agora, vamos fazer planos. Você vai na minha frente. É impossível você viajar com os exércitos. Minha Catherine, isso mudou tudo. Eu estava com medo de viajar para a França. Agora tudo ficou diferente, porque quando lá chegar encontrarei você a minha espera.

John, assíduo em seus cuidados com Catherine, providenciara para que ela viajasse quase que como membro da realeza. Ela contava com mulheres para servi-la, e uma delas era parteira, porque John estava muito ansioso, muito embora faltassem alguns meses para a criança nascer, para que nada saísse errado.

Filipa e Elizabeth tinham percebido que havia um relacionamento fora do comum entre seu pai e a governanta delas, e que isso dava uma certa importância a Catherine. As duas gostavam muito dela; e Elizabeth, que era a mais precoce, apesar de quatro anos mais nova do que a irmã, gostava de ouvir os mexericos dos criados. Catherine era uma espécie de esposa do pai delas, pelo que ela percebeu, embora não o fosse de verdade. Tinham uma madrasta, a rainha de Castela, que viam muito pouco; porém preferiam muito mais Catherine.

E agora as duas souberam que ela iria afastar-se dali. Parecia que ela tinha um marido, que era o pai do jovem Thomas e de Blanche, que elas viam de vez em quando. E agora Catherine partiria e outra pessoa lhes daria aulas e estaria constantemente em companhia delas. Aquilo era muito misterioso e perturbador. Henrique ficou reduzido a lágrimas diante daquela perspectiva. Mas nada que fizessem poderia detê-la; e chegou o momento em que Catherine estava pronta para partir.

Agora, os filhos deviam despedir-se do pai, porque ele também ia viajar. Iria lutar contra os malvados dos franceses que não queriam dar ao avô deles a coroa que na verdade lhe pertencia.

Era tudo um tanto perturbador, mas à medida que as semanas se passavam eles foram se acostumando a ficar sem Catherine e pouco depois Henrique não se lembrava de como era ela.

Foi uma longa e tortuosa viagem através da França. Em primeiro lugar, fora necessário esperar por um vento favorável; e depois, tinham de tomar muito cuidado para não se arriscarem perto daqueles locais em que poderia haver o perigo de encontrar os franceses.

Catherine começou a perceber que não tinha sido um excesso de zelo John mandar uma parteira junto.

Sua gravidez estava bem adiantada quando chegaram a Bordeaux, e ela se perguntou o que diria a Hugh quando se encontrasse com ele. Ele poderia muito bem ter ouvido falar no seu relacionamento com o duque de Lancaster, caso em que não deveria ficar surpreso ao vê-la tão pesada com a gravidez.

Pobre Hugh! Será que ele lamentava o casamento deles? Caso se recuperasse, talvez John o promovesse de alguma maneira. Ela pediria a John. Não que isso fosse recompensá-lo pelo mal que eles lhe haviam causado. Era possível que tivesse tido algumas amantes, porque não era o tipo de homem que resistia aos apelos da carne. Uma situação lamentável, pensou ela; não fosse a existência de Thomas e Blanche, ela teria desejado que o casamento jamais tivesse acontecido. As crianças sempre provocavam nela sentimentos de culpa, mas aquela paixão louca, que a consumia por inteiro, entre ela e John, tinha sido tal que pusera de lado todas as outras considerações.

Quando chegou a Bordeaux, Hugh já havia morrido e ela não pôde deixar de sentir-se aliviada, já que temera muito o encontro dos dois. O criado dele lhe disse que ele sofrera muito por causa dos ferimentos e por fim ficaram tão inflamados que a carne dele começara a gangrenar.

Ele fora enterrado às pressas, devido à carne em putrefação, e lamentava-se que a viagem dela tivesse sido em vão. Tinham sido recebidas ordens do duque de Lancaster no sentido de que o filho dela nascesse no castelo de Beaufort, em Anjou, onde tinham sido feitos os preparativos para ela, de modo que nada havia a fazer a não ser continuar a viagem, e foi o que ela fez.

Ela chegou ao castelo de Beaufort a tempo de a criança nascer.

Foi um menino, e ela deu-lhe o nome de John, em homenagem ao pai.

Pouco depois do nascimento do bebé, John chegou ao castelo. Sua satisfação com o filho deles foi enorme. Um menino perfeito, disse ele. Era típico dela dar-lhe um filho homem. O de Constanza fora uma menina. Ela dera à filha o nome de Catherine, o que parecia um tanto irónico, pois se tratava do nome da amante de seu marido.

- Isso deve significar que ela não tem raiva de mim por tirar seu amor - disse Catherine.

- Significa que ela é inteiramente indiferente ao que acontece comigo... ou com você. Ela queria que eu lutasse pela coroa dela. Ainda quer, e tem esperança de que eu a conquiste para ela, um dia. Esta é sua única preocupação.

Para Catherine, aquilo foi um consolo. Não desejava viver de outra maneira que não em paz com a esposa do amante.

E assim os dois estavam juntos outra vez, ainda que apenas por um curto período, e deviam aproveitar o tempo ao máximo; John a visitava sempre que possível. Tinha sido uma sorte surgir um motivo para ela ir à França.

Mas John precisava afastar-se dela, porque fora nomeado comandante-em-chefe dos exércitos, com três mil homens armados e oito mil arqueiros, e também de outras tropas sob seu comando.

Talvez porque fosse infeliz na guerra; ou porque seu coração não estivesse no combate; era muito provável que John estivesse ansioso por estar no castelo de Beaufort; independentemente do motivo, sua campanha esteve longe de ser bem-sucedida. Ele marchou através de Artois e Champagne para Troyes e pela Borgonha e Bourbonnois, para as montanhas de Auvergne. O inverno chegara e fora severo; era difícil encontrar comida para os soldados. Ele precisava continuar avançando, e em fins de dezembro chegou a Bordeaux. A campanha tinha sido desastrosa. Suas perdas foram grandes, e nada se conseguira.

Ele ficou extremamente deprimido, até que chegou um mensageiro de Beaufort com uma carta de Catherine com notícias dela e do pequeno John. Ela estava grávida uma vez mais e ansiosa pelo nascimento do segundo filho deles.

John ficou muito ansioso por estar com ela. Precisava vê-la.

Nada havia a fazer, garantiu a si mesmo, durante os meses de inverno. Por isso, cavalgou até Beaufort e ficou consolado pela presença de Catherine; mas não podia demorar-se e precisava voltar para Bordeaux. Queria saber assim que a criança nascesse.

No devido tempo, ficou sabendo. Mais um menino.

"Estou dando a ele o nome de Henrique", escreveu ela. "Você tem um filho Henrique, mas este pequenino será Henrique Beaufort, e creio que você vai amá-lo tanto quanto ama o irmão dele."

John precisava vê-la, de modo que uma vez mais fez a viagem. Ela não perdera coisa alguma de sua atração e parecia mais desejável do que nunca. Ela nascera para ser mãe. Brilhava de saúde e orgulho de seus dois meninos de Beaufort, como os chamava. Ela nunca se sentira assim com relação a Thomas ou Blanche Swynford, e embora gostasse muito das crianças, pudera deixá-las sob os cuidados de amas-secas.

- É porque esses meninos são seus filhos - disse a John. É graças a você que os dois significam tanto para mim.

Relutante, John se separou dela. O inverno estava passando, e ele teria de entrar em ação outra vez. Mensageiros estavam sempre chegando de Bordeaux com recados impacientes do Príncipe Negro, que estava firmemente convencido de que se ele tivesse estado em ação a história a contar seria outra.

Talvez tivesse sido isso mesmo, pensou John. Ele é um general; nasceu para comandar um exército. Comigo é diferente. Creio que nasci para governar, mas governar através da diplomacia e de tramas inteligentes. Eu defenderia meu lugarnão com armas, mas com ações sutis.

Um mensageiro enviado pelo duque de Anjou propôs que seu exército enfrentasse o do duque de Lancaster em Moissac, e até então deveria haver uma trégua entre eles.

Entusiasmado, John concordou. Uma trégua lhe permitiria passar mais tempo com Catherine. Chegaram notícias do castelo dizendo que o rei estava ficando quase senil e parecia que não poderia viver muito mais tempo. A saúde do príncipe também piorara; dentro em pouco deveria haver um novo rei da Inglaterra, e não seria um Eduardo.

Um menino de oito ou nove anos! Ele precisaria de orientação. Havia a necessidade de um regente. Um regente, é claro, tinha o poder de um governante.

Se devesse haver um rei menor de idade, o regente natural seria o tio dele. John sabia que era imperativo ele estar na Inglaterra.

Conversou sobre isso com Catherine. Ela compreendeu perfeitamente. Estaria pronta para partir quando ele quisesse.

Mas John queria que por enquanto ela ficasse em Beaufort. Se a situação fosse como ele acreditava que deveria ser, ele teria de voltar outra vez, de modo que achou melhor ela permanecer em Beaufort, principalmente porque estava de novo grávida. Se ele voltasse para a Inglaterra, mandaria buscá-la; caso contrário, em breve estaria com ela outra vez.

John e seu exército partiram para a Inglaterra. Ele se esquecera da combinação de enfrentar Anjou em Moissac.

Abril chegou. Aquilo, disseram os franceses, era uma quebra de compromisso e não havia motivo para que eles não entrassem na Aquitânia.

Toda a Aquitânia, à exceção de Bayonne e Bordeaux, passou para as mãos dos franceses.

A campanha tinha sido um absoluto desastre.

Catherine deu à luz mais um menino. Foi chamado Thomas. John tinha dois Henriques; ela teria dois Thomas. As alegrias da maternidade tinham tomado conta dela, e quando voltasse para a Inglaterra pretendia recompensar Thomas e Blanche Swynford por tê-los negligenciado.

No castelo de Beaufort, ela se instalou para aguardar a volta de John.

Havia uma crescente tensão nas ruas de Londres. Nos campos além de Clerkenwell e Holborn, nas campinas de Marylebone e em Hampstead Heath e Tyburn Fields, as pessoas reuniam-se para ouvir aqueles que se haviam tornado porta-vozes, porque não havia um só homem ou mulher que não estivesse ciente da mudança que estava por vir.

Dentro dos muros da cidade, onde mercadores e seus aprendizes apregoavam aos berros as virtudes de seus produtos enquanto ficavam de pé ao lado dos tabuleiros em Cheapside sob os grandes cartazes que proclamavam a sua linha de atividades, havia sussurros. Olhos voltavam-se em direção àquele palácio de Westminster situado em meio aos campos e charcos fora da cidade e as pessoas se perguntavam quanto tempo o rei poderia durar.

E depois? Quem acreditaria, poucos anos antes, que a coisa pudesse chegar àquele ponto?

Tinham tido um grande e glorioso rei, mas ele fora seduzido por uma harpia; tinham tido um príncipe que parecia um deus que chegara para servi-los. E o que acontecera? Ele se tornara um homem doente que agora estava nitidamente lutando para protelar a morte.

O herdeiro do trono era um menino magro - parecido com o pai, possuidor dos belos traços dos Plantagenetas, mas sem a robustez característica da raça; e ofuscando-o havia o tio, John de Gaunt.

John de Gaunt! Era esse o nome sussurrado nas ruas e nas campinas. "Ele pretende nos governar", murmurava-se. "Está esperando que o irmão morra. Depois, vai tentar tirar a coroa do pequeno Ricardo, e vai haver guerra."

John de Gaunt! Só o nome já anunciava sua origem estrangeira. O que ele tinha feito? Comandara uma campanha fracassada na França, que resultara em grandes perdas, e eles tinham pagado impostos para que aquela campanha fosse realizada.

Diziam os rumores que ele mantinha a amante lá fora. Catherine Swynford, a esposa - agora, viúva - de um de seus soldados. Estavam criando uma pequena família em Beaufort. Três meninos e uma menina. E a mulher dele, a pobre rainha de Castela, era ignorada. Ele se casara com ela por causa da coroa, mas antes que ela pudesse usá-la a coroa tinha de ser conquistada, e o povo deveria esperar pagar pelas aventuras dele. John de Gaunt não era notado pela perícia no comando militar. Não era como o herói de Crécy e Poitiers. Que infelicidade para a Inglaterra quando o grande Príncipe Negro ficara doente! A única esperança para o país era ele viver um pouco mais, ou que o próprio rei levasse mais algum tempo para morrer.

Mas o rei os desapontara. Aparecia em público com aquela meretriz Alice Perrers ao lado, trajando finos tecidos de cetim e veludo e usando as jóias reais. Aqueles que se lembravam da boa rainha Filipa amaldiçoavam Alice. Nenhum bem poderia recair sobre uma família que exibia sua imoralidade, desafiando abertamente as leis da Santa Igreja. O rei podia ser perdoado por alguns. Ele estava velho, senil, diziam eles; outrora ele fora grande, e a Inglaterra o adorara. Raramente houvera um rei que tivesse sido tão amado quanto Eduardo III. Sim, no fundo do coração, eles poderiam deixar passar o seu deslize em matéria de virtude. Mas John de Gaunt, com sua meretriz Catherine Swynford, não! Londres não queria aquele homem. Não tolerariam o governo dele.

John tinha voltado para a Inglaterra depois da desastrosa campanha e estivera indo e vindo da França nos últimos dois anos, ficando em Ghent e Bruges e tentando convencer os franceses.a concordarem com uma trégua. Quase de joelhos diante dos franceses ! Muita coisa acontecera desde Poitiers, quando o Príncipe Negro voltara com o rei da França como seu prisioneiro.

Dias tristes tinham chegado para a Inglaterra, e em épocas assim era natural procurar um bode expiatório. O povo procurara e encontrara. Seu nome era John de Gaunt.

Em seu palácio em Berkhamsted, o Príncipe Negro estava frequentemente confinado em seu quarto, e ali se preocupava muito com o que se passava na corte.

Joan estava ficando cada vez mais angustiada com a situação. Até mesmo seu otimismo começava a esmaecer. Já não podia enganar a si mesma, pensando que a saúde do príncipe estava melhorando. À medida que ele ficava mais velho, os ataques tornavam-se não apenas mais frequentes, porém mais virulentos. Havia um consolo. À medida que o tempo passava, Ricardo ficava mais velho. Estava, agora, com nove anos; Joan agradecia a Deus o fato de ele ser inteligente e contar com um mentor tão bom quanto Sir Simon Burley, que era muito obviamente dedicado a ele.

O príncipe estava sempre conversando com ela sobre a situação do país. O grande temor dele - dela também - era o que seria de Ricardo se o avô e o pai morressem e ele se tornasse rei.

- Enquanto eu viver - disse o príncipe -, apesar de fraco, ainda poderei tomar conta dele.

- O povo está com você.

- Sim, o povo sempre foi fiel. Mas, Joan, tenho medo do meu irmão.

- John sempre foi o mais ambicioso de todos vocês, mas não posso acreditar que ele faça algum mal a Ricardo.

- Talvez ele não tente tomar o lugar de nosso filho no trono. O povo jamais concordaria, e John sabe disso. O que ele vai procurar fazer - como está fazendo agora - é tornar-se o principal conselheiro de meu pai. O Parlamento consiste naqueles que trabalham para ele; concordou em tolerar Alice Perrers, até mesmo ficar amigo dela. Minha querida Joan, deve-se desconfiar de quem faz uma coisa dessas.

- Eu sei. Se ao menos você estivesse bom, como tudo seria diferente!

- Se eu estivesse bom, Joan, nunca teríamos sofrido aquelas perdas na França; a Inglaterra seria forte como foi no auge do governo de meu pai. Tenho de ir a Westminster. Não posso ficar aqui deitado e ver meu irmão assumir o governo deste país.

Ela sabia que não adiantava tentar dissuadi-lo.

- Você deve esperar alguns dias-insistiu ela -, e tentaremos colocá-lo em condições de enfrentar o esforço.

Por fim, ele concordou em esperar, e tão decidido estava, que em poucos dias a saúde realmente melhorou o suficiente para que fizesse a viagem.

Ricardo estava plenamente cônscio das tensões que o cercavam e era muito perturbador saber que estava preocupado com elas. Percebia muito bem os olhos aflitos do pai, que pareciam segui-lo sempre que os dois estavam juntos. O rei fazia-o sentar-se na cadeira dele ou ao lado da sua cama e conversava com ele sobre as responsabilidades da monarquia.

Era muito necessário manter, sempre, o afeto do povo. A pessoa nunca devia esquecer-se de que era o rei. A dignidade do trono devia ser sempre preservada. O país devia vir em primeiro lugar; o rei deveria servi-lo, muito embora isso significasse agruras e uma dedicação abnegada.

Ricardo começava a achar que os reis não tinham uma vida muito boa.

Tocou no assunto com Sir Simon Burley, de quem, depois de sua mãe, mais gostava neste mundo.

- Se a vida de um rei é tão dura assim, sacrificando-se o tempo todo e fazendo não o que ele quer, mas o que outros querem que ele faça, por que tanta gente quer ser rei?

- É por causa do poder. Um rei é o chefe de Estado. Tem mais poder do que qualquer outra pessoa...

Os olhos de Ricardo começaram a brilhar de excitação, e Simon apressou-se a dizer:

- Ele pode perdê-lo rapidamente se não usá-lo com bom senso.

- Como ele vai saber o que é sensato?

- Sua consciência lhe dirá, como também os ministros.

- Meu avô é sensato?

Simon ficou calado por alguns segundos e viu que Ricardo percebera o silêncio. Ricardo era muito esperto. Aquilo era um bom sinal. Era um menino inteligente. Daria um bom rei.

- Seu avô foi o monarca mais brilhante da Europa.

- Foi? - disse Ricardo, rápido. - Você disse foi, Simon?

- Seu avô, agora, é um homem idoso. Está cercado por pessoas que podem não ser tão sensatas quanto poderíamos desejar.

- Como Alice Perrers?

- O que sabe sobre ela?

- Eu escuto, Simon. Sempre escutei. Aprendo mais escutando e juntando as informações. Sim, aprendo mais assim porque quando você ou minha mãe ou meu pai me diz o que parece ser bom eu saber, não conta tudo... e a menos que eu saiba de tudo, nem sempre é fácil, porque com muita frequência as partes importantes são as que não foram ditas.

- Eu sei disso, meu senhor - disse Simon. - O senhor se beneficia com os seus livros.

- Eu adoro meus livros porque com eles me saio bem. Não gosto tanto de esportes ao ar livre, porque sempre haverá aqueles à minha volta que, sem muito esforço, podem sair-se melhor do que eu. Gostamos daquilo em que nos destacamos.

- Realmente, e fico muito contente porque o senhor aprende muito depressa.

Ricardo observava atentamente seu tutor. Sabia que ele estava chegando à conclusão de que a fase imatura de Ricardo deveria ser esquecida. Era preciso lembrar que ali estava um menino inteligente que poderia, dali a cerca de um ano, ser o rei da Inglaterra.

Simon disse, sério:

- O reino ficou em um estado lastimável. Não faz muito tempo, estávamos progredindo para uma prosperidade jamais vista, mas uma série de infortúnios caiu sobre nós. O principal foi a Morte Negra, que dizimou mais da metade do nosso povo. Pode imaginar o que foi quando essa maldição caiu sobre nós? Não restaram homens em número suficiente para cultivar os campos; aqueles que podiam fazê-lo pediam um salário tão elevado que era impossível pagar. Seu avô era forte, naquela época. Colocou o país funcionando bem outra vez - mas nunca pudemos compensar todos aqueles que tínhamos perdido. Depois, veio a guerra francesa-que levou nossos homens e o nosso tesouro. O povo fica inquieto quando os impostos estão altos. Ele vê seu dinheiro ganho com dificuldade indo para os campos de batalha da França. O rei envelheceu...

- E - interpôs Ricardo - está cercado de conselheiros néscios.

- Devemos sempre ter cuidado com a língua, meu senhor.

- Não tenha medo, Simon, vou guardar a minha para quando puder usá-la com segurança.

- Seu pai, que foi um grande homem forte, está doente. O povo o considerava como o próximo rei. Há uma grande melancolia no país devido à doença dele.

- Ele vai morrer, Simon.

Simon não respondeu. Não adiantava dizer mentiras para aquele menino inteligente.

- E quando ele morrer e quando meu avô morrer... eu serei o rei.

- Para isso ainda podem faltar alguns anos. Rogo a Deus que assim seja.

- Por que, Simon? Se meu avô está cercado por conselheiros néscios, é melhor que ele morra.

- O senhor fala da morte com um desembaraço demasiado. Cabe a Deus decidir.

- Ele decidiu mandar a Morte Negra, de modo que nunca se sabe que mal nos chegará através dele.

- Temos de aceitar aquilo que Ele manda como sendo o melhor para nós. Ele também envia grande misericórdia.

- Ele levou meu irmão Eduardo. Fez isso de repente. Eles não estavam esperando que Eduardo morresse. Se não tivesse morrido, ele teria sido o rei.

- Temos de aceitar a vontade de Deus - disse Simon.

- Seria melhor - replicou Ricardo - se pudéssemos compreendê-la. O povo quer meu pai, não quer? Aonde quer que ele vá, as pessoas gritam por ele. Elas o adoram.

- Ele é um grande herói... um grande príncipe.

- O povo gosta do nome dele. Gosta dos Eduardos.

- Houve um de que ele não gostava.

- Ah, sim, o meu bisavô. O povo o odiava, e ele se chamava Eduardo. Talvez, afinal, não se importem com um Ricardo.

- Meu senhor, meu senhor, o nome não tem importância. Quando chegar o momento, o senhor mostrará ao povo que um Ricardo pode ser o melhor rei que ele já teve.

O menino levantou-se num gesto repentino, os olhos brilhando.

- Mostrarei. Simon, eu mostrarei.

- Deus o abençoe - murmurou Simon.

O Príncipe Negro foi levado em sua liteira de Berkhamsted até Londres.

Quando o povo soube que ele estava a caminho, encheu as ruas para dar-lhe as boas-vindas.

Ele ficou contente por estar na liteira, pois assim as pessoas não podiam ver como seu corpo estava inchado pela hidropsia que continuava a atacá-lo e que matara sua mãe. Ele sorria ao agradecer as saudações do público e tentou aparentar não sentir dores. Na verdade, a animação do afeto do povo por ele deixou-o tão consolado que se sentiu melhor.

Primeiro, foi visitar o rei. Uma triste visão. Ele também teve de ser carregado. A que ponto chegamos, perguntou-se o príncipe. O grande Eduardo e seu poderoso filho, o Príncipe Negro, dois velhos decrépitos, a glória já muito longe no passado. Serão esses os heróis que faziam os franceses tremerem ao se aproximarem? Se eles pudessem nos ver agora, iriam nos dar o desprezo. Ficariam muito insolentes. E têm sido insolentes. Tinham mostrado o que pensavam de uma Inglaterra que perdera seus poderosos líderes.

Os olhos do rei estavam cheios de lágrimas quando olhou para o filho.

- Agradeço a Deus por sua mãe não estar viva para nos ver assim.

- Agradeço a Deus por ela não estar viva para ver quem usurpou o lugar dela a seu lado.

O príncipe sempre falara com franqueza, e o que ele tinha a perder, agora?

- Alice é o meu único consolo nessa fase triste - disse o rei.

- Meu senhor, quando o consolo tem de ser comprado por um preço tão alto assim, é melhor passar sem ele.

O rei suspirou e pareceu patético.

- John compreende - disse ele. - Ele e Alice são bons amigos, agora.

- E por um motivo claro - disse o príncipe. - Parece que John ficaria amigo do demónio, se com isso pudesse promover sua ambição.

- Meu filho, falemos de coisas mais agradáveis.

- Temos de falar sobre a Inglaterra, meu senhor. E isso, eu concordo, não é um assunto agradável como já foi.

- O passado... Estou sempre pensando nele. Sabe, Eduardo, às vezes fico deitado na cama e penso que sou jovem outra vez... no campo de batalha. Nunca me esquecerei de Crécy. Que alegria você me deu, então!

- Glórias passadas, meu senhor. Elas ficaram para trás. O que vai se fazer, agora? Foi o que vim perguntar. Há histórias de suborno e corrupção em toda a corte. Sua meretriz, Alice Perrers, teve a ousadia de comparecer em Westminster e dizer aos juizes como eles deveriam agir, que depende do suborno que ela tiver recebido do prisioneiro ou dos amigos dele.

- Alice é uma velhaca - disse o rei, com ternura.

- Meu senhor, pense no passado, pense na época em que o senhor era um leão entre seu povo. Naquele tempo, o senhor jamais teria permitido tais anomalias. Pelo amor de Deus, pai, pare antes que seja tarde demais!

- Se você veio aqui para tentar persuadir-me a abrir mão do meu único consolo na vida, tem de ir embora, Eduardo.

- Seu consolo! O país inteiro está pasmo com a sua devassidão.

- Como ousa me falar assim? Sou o seu rei!

- Digo o que sinto. Sou o herdeiro do trono e não quero que ele fique instável devido a imbecilidade e devassidão.

- Você tem de se retirar, Eduardo. Pensei que tivesse vindo para me consolar.

- Para o senhor só existe um consolo... foi o que me disse. Essa meretriz é a única que sabe como proporcionar esse consolo. Que confissão para um grande rei fazer! E pensar que o senhor... o senhor sempre me serviu como um exemplo de tudo que era notável e nobre na arte de ser rei... e pensar que chegou a este ponto!

O rei estava em lágrimas. Pobre velho senil! E a dor no corpo do príncipe começava a vibrar e torturá-lo a ponto de ficar insuportável.

- Você deve procurar John - murmurou o rei. - Ele vai conversar com você.

O príncipe berrou para seus criados.

- Levem-me para meus aposentos - disse ele. E estava pensando: não, não vou falar com John. vou procurar aqueles que me ajudarão a sufocar as ambições de John.

O príncipe convocou Sir Peter de Ia Maré, presidente da Câmara dos Comuns, a seus aposentos no palácio, e assim que ele chegou foi direto ao assunto.

- Viajei do interior com grande desconforto-disse o príncipe

- porque estou tendo um desassossego enorme com relação à maneira pela qual os assuntos deste país estão sendo conduzidos. Estou convencido de que há alguns homens bons que deploram essa situação tanto quanto eu.

- É verdade, meu senhor.

- O senhor não precisa hesitar em falar com franqueza comigo porque o que vai dizer pode ser uma deslealdade para com membros de minha família-prosseguiu o príncipe.-Fale livremente. Nada do que disser será invocado contra o senhor e a mim parece que em certos casos homens como o senhor pensam como eu. Mas digamos o seguinte: está ficando tarde, mas é possível que não seja tarde demais.

- Já que o senhor me pede, senhor meu príncipe, para falar com franqueza, vou falar. O país está sendo arruinado, e o principal inimigo é a amante do rei. Ela introduziu o suborno e a corrupção na corte. É uma mulher nefasta, e nada de bom acontecerá a este país enquanto ela continuar ao lado do rei.

- E o duque de Lancaster?

De Ia Maré hesitou. Uma coisa era falar da amante do rei, mas falar contra o filho dele era totalmente diferente.

- Vamos - disse o príncipe -, pedi-lhe que falasse com franqueza.

- O duque de Lancaster tornou-se amigo de Alice Perrers, meu senhor, com a finalidade, disso estou certo, de obter influência junto ao rei.

O príncipe confirmou com a cabeça.

- Vejo que nós dois nos entendemos. Meu senhor, precisamos agir com rapidez. O senhor estaria preparado para isso?

- com o senhor me apoiando, sim, estaria.

- Então, o senhor deve levar o Parlamento a agir.

- Isso não seria difícil. O país está inquieto por causa da tributação excessiva, e quando se pensa que grande parte do que é tirado deles é passado para Alice Perrers, o povo está pronto a revoltar-se.

- Neste caso, vamos agir! - disse o príncipe. - Não vejo razão para que Alice Perrers não seja mandada embora.

- Há Latimer, o camareiro do rei. Ele trabalha rigorosamente em favor de seu irmão. E também é responsável pelo aumento do suborno na corte. Receio que não se possa fazer grande coisa enquanto ele mantiver o cargo.

- Então, Latimer deve ser destituído do cargo. Convoque o Parlamento e cuide desses assuntos.

- Isso significa que bateremos de frente com John de Gaunt.

- Significa que você está do lado do Príncipe Negro.

- Quando eles souberem que o senhor os apoia, meu senhor, acho que isso irá fazê-los decidirem-se.

Sir Peter de Ia Maré deixou o príncipe e foi a toda velocidade para casa, para que pudesse preparar seu discurso perante a Câmara dos Comuns.

O príncipe ficou na cama. A dor voltara com plena força. Ele estava ainda mais atormentado pelos pensamentos.

Conflito na família. Era sempre uma insensatez, e agora que o país estava tão fraco, era um perigo.

Sempre soubera que John era ambicioso. O que queria ele?

A coroa! Claro que queria a coroa. Casara-se com Constanza de Castela por uma coroa, e dificilmente chegaria a conquistá-la. Não, seus olhos estavam na coroa da Inglaterra. E esta seria colocada com firmeza na cabeça do pequeno Ricardo.

Ó Deus, rezava o príncipe, permita que eu viva o suficiente para ver meu filho atingir a maturidade são e salvo.

O discurso de Sir Peter de Ia Maré causou um furor na Câmara dos Comuns. Era um homem eloquente, motivo pelo qual subira ao cargo atual, e estava expressando sentimentos que eram aplaudidos pela maioria deles - aqueles que não eram os amigos íntimos e partidários de John de Gaunt.

O Príncipe Negro os apoiava. De Ia Maré deixara isso claro. O príncipe podia ser um homem doente, mas ainda representava um poder no país.

O primeiro ataque desferido por de Ia Maré foi contra a amante do rei. Ele queria que ela fosse banida da corte. Sabia que a Câmara o apoiava no que se referia àquela mulher; havia outra pessoa que precisava ser destituída-e na verdade talvez processada -, e essa pessoa era o camareiro do rei, que era culpado de suborno, entre outras infrações. Aquilo provocou uma tempestade de aplausos.

A Câmara ficou esperançosa. A podridão estava prestes a ser detida. Todos sabiam que havia um homem poderoso que deveria colocar-se em seu caminho. O duque de Lancaster. Mas eles tinham o apoio do irmão mais velho dele. O Príncipe Negro ainda vi via e de seu leito de doente levaria o país de volta à razão e à prosperidade.

Cavalgando em direção ao seu palácio do Savoy, pensando na boa recepção que lá o aguardava, John era um homem feliz. Catherine estava ali instalada como sua amante e governanta de seus filhos.

Agora havia uma ala infantil cheia. Os quatro pequeninos Beaufort dela, como ela os chamava-tinha uma filha, Joan, e os três meninos - as mais queridas de todas as crianças porque lhe pertenciam. E então, havia Filipa e Elizabeth, filhas de Blanche, e, claro, o jovem Henrique, herdeiro dele e o mais importante de todos aos olhos do mundo, claro. A filha de Constanza, Catherine, estava com a mãe, mas o filho e a filha de Swynford, Thomas e Blanche, juntaram-se a eles agora, porque Catherine os quisera lá, o que era natural. John achava que nunca chegaria a gostar deles porque eram filhos de Swynford, mas o menino era inteligente e bonito e a menina atraente, como se esperava de qualquer filho de Catherine.

John estava mais satisfeito do que estivera por algum tempo. Seu triunfo em seu país aumentara desde que ele dominara a repugnância que sentia por Alice Perrers e mostrara ao rei que estava pronto a aceitá-la em troca de sua confiança. Dali por diante, tinha sido fácil. Tinha amigos como lorde Latimer e outros homens influentes no Parlamento. Se o rei morresse e o príncipe morresse com ele, e Ricardo se tornasse rei, seria o tio, John de Gaunt, o verdadeiro monarca.

O sucesso nacional apagara o gosto amargo da derrota no exterior. Ele não queria voltar a Bordeaux enquanto vivesse.

Não, ele queria a Inglaterra. Agora não queria a coroa de Castela, aquela bolha brilhante que se mostrara tão inatingível. Queria o que sempre quisera, a coroa da Inglaterra. E com um menino no trono, e ele mesmo orientando a política do país, ele seria o monarca virtual.

Assim que o rei morresse, Alice seria despedida. Isso tornaria tudo muito mais fácil. E por quanto tempo o rei poderia viver? Quanto tempo o Príncipe Negro poderia viver?

Ao aproximar-se do palácio do Savoy, ele viu um grande número de homens observando a ele e sua comitiva.

Ouviu o grito:

- John de Gaunt! Abaixo John de Gaunt! Eduardo, o Príncipe Negro, para sempre. Expulsem Alice Perrers! Processem Latimer! Deus abeçoe o Príncipe Negro!

John esporeou o cavalo. Esperava que ninguém na multidão estivesse armado. Passou por eles a galope, seguindo em direção ao palácio. Eles não fizeram tentativa alguma de segui-lo.

O entusiasmo passara por completo. O Príncipe Negro não estava morto, em absoluto. Estava fazendo com que sua presença fosse sentida. E surgira abertamente como inimigo de Alice Perrers e do irmão.

Nada havia por fazer. Tinha de aceitar aquilo. Caso contrário, haveria uma revolução. Ele não gozava, em absoluto, a mesma popularidade do irmão. O povo-especialmente o povo de Londres - sempre fora contra ele. Odiava a todos - aqueles comerciantes que acreditavam que, por serem ricos, tinham o direito de dizer como o país deveria ser governado.

- Abaixo John de Gaunt! - Aquelas palavras pareciam o dobre de um sino que o avisava.

Ele sabia, enquanto entrava no palácio, que havia más notícias à sua espera.

Parecia que o Parlamento vencera; o povo estava com seus membros. Eles eram chamados de O bom Parlamento, e o motivo era terem conseguido demitir Latimer do cargo e banir Alice Perrers da corte.

O rei poderia derramar lágrimas senis por Alice. Poderia lamentar a perda de Latimer, mas até em seu frágil estado ele podia sentir o estado de ânimo do povo.

- O que fizeram conosco, John? - lamentou-se ele. - Levaram nossos amigos.

Sim, pensou John, eles nos mostraram que o Príncipe Negro ainda está vivo e que enquanto continuar a viver teremos de fazer o que o povo quiser.

- O que vou fazer com Alice? - gemeu o rei.

John quis dizer: arranje outra meretriz. Mas se conteve. Sua força consistia em acalmar o pai, e pelo aspecto do velho, parecia que ele não ficaria muito tempo nesta Terra.

Tampouco o Príncipe Negro.

Só lhe restava esperar, mas isso era algo que os homens ambiciosos tinham que aceitar.

Depois de seu encontro com de Ia Maré, o Príncipe Negro seguira para o palácio de Kennington. Este ficava mais perto de Westminster do que Berkhamsted, e ele estava ansioso por estar o mais próximo de Londres possível.

Seus esforços tinham exigido muito de suas forças, e Joan não cabia em si de aflita. Ele ficou agitado enquanto lhe contava o que conseguira realizar.

- Agora - disse ele -, tenho de viver o suficiente para ver Ricardo proclamado como o verdadeiro herdeiro do trono.

- Ninguém pode negar que ele seja.

- John é astuto. Não sei o que anda pensando.

- com certeza ele não pode ter planos de conquistar o trono, de fazer daquele seu Henrique o príncipe de Gales!

- Não sei o que passa pela cabeça dele. Acho que ele pretende governar o país, e se não puder usar a coroa enquanto estiver fazendo isso, governará sem ela.

- Você está dizendo que ele assumiria o controle de Ricardo?

- Acho que a ideia dele é essa. Jeanette, você terá de proteger nosso filho.

- Ele levará muitos e muitos anos para ser rei. Nós dois estaremos aqui para treiná-lo e orientá-lo.

- Você sempre foi uma pessoa que enganava a si mesma quando se sentia mais feliz assim.

- Sempre fui uma pessoa que acreditou no bem que poderia advir para aqueles que o procuravam. Lembre-se de como me casei com você.

- Nunca me esquecerei disso, querida Jeanette, como também não poderia esquecer os anos que temos passado juntos. Eles nos deram o nosso Ricardo. Minha Jeanette, esse menino ocupa todos os meus pensamentos. Pensar que um dia, e sei que não falta muito, uma coroa será colocada em sua cabeça dourada.

Ela curvou-se e o beijou.

- Ainda faltam muitos, muitos anos, eu lhe prometo.

Ele suspirou. De nada adiantava tentar convencer Jeanette.

Ele tinha outro trabalho a fazer. Tinha de manter o bom Parlamento no poder. Precisava fazer com que todos aqueles homens pensassem, de maneira correta, que ele estava do lado deles.

Mandou chamar William de Wykehan, o bispo de Winchester, que tinha progredido de um começo relativamente humilde e que sempre fora um grande amigo dele. Wykeham era um homem que adquirira o cargo graças à sua brilhante inteligência. O príncipe sempre o respeitara e agora procurava-o porque queria reunir quantos homens de confiança pudesse, para requisitar a ajuda deles para seu filho quando chegasse a hora.

Wykeham jurou que apoiaria o jovem Ricardo.

- Eu lhe agradeço, senhor bispo - disse o príncipe.-Como pode ver, estou em más condições, não posso acreditar que me restem muito mais semanas.

O bispo não tentou negar. Acreditava ser verdade e lamentava o fato de que um homem daquele vulto ficasse tão caído em matéria de saúde e ânimo. Prometeu rezar pelo príncipe e acrescentou que estava certo de que um homem como ele seria recebido no céu.

O príncipe replicou:

- Poderia ser assim. Tenho servido ao meu país e por minha vontade teria dado a vida por ele a qualquer hora. Houve um momento, no entanto, em que o diabo se apossou de mim. Limoges. Nunca vou tirá-la da cabeça.

- Muitos de nós temos um ponto negro em nossas almas, meu senhor. Reze pedindo perdão. É possível que como recompensa ao bem que o senhor tem feito o mal seja perdoado.

- Acho que todas as minhas orações devem ser pelo meu filho. Ele é muito jovem, senhor bispo. Eu tremo quando contemplo a sua juventude.

- Burley é um homem bom. A mãe está dedicada a ele. O senhor mesmo já fez muito bem a ele. Não tenha receio quanto a seu filho. O Senhor proverá.

Depois que o bispo se retirou, o príncipe deixou-se cair de novo na cama, exausto, e nenhum dos preparados que Joan lhe trouxe fez qualquer coisa para aliviar a dor.

Era óbvio, agora, que o fim estava próximo.

- Jeanette, meu único amor, a hora está próxima, agora disse ele. - Não, de nada adianta esconder-se da verdade. Ela chegou e precisamos enfrentá-la. Mande um recado para meu pai. Eu gostaria que ele estivesse aqui ao meu lado.

- vou mandar chamá-lo imediatamente - disse ela. - Mas é provável que ele esteja muito doente para vir.

- Tenho a impressão de que ele virá, se puder.

O rei seguiu a toda pressa para Kennington. Aquele era o seu filho adorado, a criança que dera tanta alegria a ele e a Filipa na fase inicial do casamento dos dois, quando um deles tinha sido tudo o que o outro desejara. Eduardo, o Príncipe Negro e herói, destinado a suceder ao pai, o orgulho da nação, agora um homem doente pedindo ao pai que fosse ao seu leito de morte!

O que acontecera ao mundo!

O quanto ofendi a Deus?, pensou o rei.

As lágrimas escorriam pelas faces encovadas enquanto ele se ajoelhava ao lado da cama.

Os anos recuaram, e ele ali estava com Filipa-a querida Filipa que nunca soubera excitar os seus sentidos como Alice fazia; mas Filipa, que tinha sido boa e constante, sempre estivera do seu lado, apoiando-o com firmeza, e o povo a adorara. Um casamento maravilhoso. No entanto, ele o manchara. Alice existira antes de Filipa ter morrido e Filipa ficara sabendo.

A vida era cruel. E nós magoamos mais aqueles que mais amamos, pensou o rei.

E ali estava Joan de pé, desolada, com a estranha expressão vazia naqueles olhos que outrora tinham sido tão brilhantes e provocantes e fizera com que o coração dele batesse forte e na expectativa... Joan, a esposa do Príncipe Negro, de sangue real também, um dos ramos da grande árvore Plantageneta.

- Joan - murmurou o rei -, então chegamos a este ponto... Joan sacudiu a cabeça, sem poder falar.

Ela estava inclinada sobre a cama. Colocou os lábios naquela testa úmida e suavemente afastou os cabelos ainda espessos e com um toque dourado.

- Meu querido amor, o rei está aqui. Eduardo abriu os olhos.

- Pai...

O rei enterrou o rosto nas mãos e seu corpo sacudiu-se com os soluços.

- Meu senhor, meu senhor - sussurrou Joan, tentando contêlo.

- Meu filho, meu filho - gemeu o rei.

- Ele quer falar com o senhor-disse Joan. - E o tempo está passando.

A voz dela interrompeu-se num soluço e ela girou sobre os calcanhares, temerosa de que o príncipe visse sua dor.

Pai, eu tenho de falar...

Fale, meu filho. Estou ouvindo. O que você pedir eu me esforçarei para atender.

- Confirme minhas doações, pague minhas contas, pai.

- Assim será feito, meu filho querido.

- E Ricardo... meu filho Ricardo. O senhor irá protegê-lo. Ele ainda é jovem. Um menino, nada mais. Tão jovem... jovem demais. Pai, prometa que vai olhar por ele.

- Eu juro - disse o rei. - Ele terá a minha proteção. Não tenha receio, filho. Ricardo será bem cuidado. Dou minha palavra.

- Jeanette... o menino...

O menino foi levado para o quarto, olhos arregalados, pálido e muito bonito, um grande contraste com o moribundo que estava na cama e com o pobre homem prostrado que se ajoelhava ao lado dela. .. e no entanto, muito claramente um deles.

- Ricardo, venha cá. Ricardo aproximou-se da cama.

- Meu senhor, segure a mão dele. Jure... O rei segurou a mão do menino e disse:

- Eu lhe juro, por minha alma, que protegerei este menino. com a minha vida, eu o protegerei. Ele é o meu herdeiro. Eu juro.

O príncipe sacudiu a cabeça, satisfeito.

- Ricardo - disse o príncipe -, não tente tirar nenhuma das doações que fiz.

- Eu prometo, pai - disse o menino.

- Você será amaldiçoado se tirar.

Ricardo ficou embaraçado, e Joan, pousando a mão no seu ombro, afastou-o da cama.

O rei olhava para ela, aflito, e disse:

- Está na hora de chamar o padre.

Ela confirmou com a cabeça e, pegando o filho pela mão, levou-o para fora.

O padre estava com o príncipe, que pediu perdão de seus pecados. A palavra Limoges estava sempre surgindo em seus lábios.

E assim ele morreu.

O rei ficou perplexo. Seu filho morto, e ele ainda vivo! E o seu herdeiro era um menino de apenas nove anos de idade!

Deu ordens para que o príncipe fosse enterrado com uma grande cerimónia, e colocaram-no na catedral de Canterbury e sobre o túmulo penduraram seu sobretudo e seu elmo, seu escudo e sua manopla, para que todos pudessem lembrar-se daquele grande e glorioso guerreiro que era conhecido como o Príncipe Negro.

 

A MORTE DO PRÍNCIPE NEGRO, embora esperada, fizera com que homens como Peter de Ia Maré e William de Wykeham percebessem a situação precária em que se encontravam. Eles tinham conseguido fazer com que Alice Perrers fosse expulsa da corte; tinham cerceado o suborno; mas só tinham podido fazer isso devido ao apoio do príncipe.

Agora ele estava morto, e o homem mais poderoso do país era John de Gaunt - inimigo jurado deles.

Peter de Ia Maré decidiu agir prontamente. Ele salientou que ainda lhes restava pouco tempo antes que o Parlamento pudesse ser dissolvido e que tinham de aproveitá-lo ao máximo.

Primeiro, concordou William de Wykeham, tinham de conseguir do rei apermissão para acrescentar doze bispos e lordes ao Conselho; e ele, William de Wykeham, seria um deles. Segundo, e o mais importante, eles deviam fazer com que Ricardo de Bordeaux fosse publicamente reconhecido pelo rei como seu herdeiro.

Quando essa última questão foi submetida ao rei, este declarou, com lágrimas nos olhos, que jurara ao filho, o Príncipe Negro, proteger Ricardo e iria protegê-lo. Ricardo deveria ser reconhecido de público como o verdadeiro herdeiro do trono, como sem dúvida o era.

Um dos membros escolhidos do Conselho era Edmund de Mortimer, conde de March, marido da filha de Lionel, Filipa, que, como Lionel era mais velho do que John de Gaunt, ficava antes dele nas reivindicações do trono se Ricardo morresse.

Mortimer e John de Gaunt havia muito que vinham desconfiando um do outro. Mortimer apoiara o Príncipe Negro na determinação daquele em provocar reformas; seu antigo

guardião tinha sido William de Wykeham, de modo que havia um forte elo entre os dois. Assim, quando foi selecionado o comité para ficar junto ao rei e assessorá-lo, Edmund, conde de March, tinha sido uma escolha natural e ele, juntamente com William Courtenay, bispo de Londres, e William de Wykeham, eram os mais influentes de todos e se opunham a John de Gaunt e a tudo o que ele defendia.

As ambições de John tornaram-se aparentes quando ele procurou apresentar um projeto para adotar a lei sálica, como acontecia na França. Se fosse aprovada, a lei significaria que o trono não poderia ser herdado por uma mulher e John de Gaunt ficaria imediatamente atrás de Ricardo de Bordeaux na sucessão.

O Parlamento rejeitou a ideia sem examiná-la, e John teve medo de insistir nela devido à influência que teria sobre a reivindicação de seu pai ao trono da França.

O Parlamento foi dissolvido em julho - poucas semanas depois da morte do Príncipe Negro; e então percebeu-se o poder de John de Gaunt.

Ele tinha seus adeptos no país inteiro. Os londrinos podiam detestá-lo, mas dizia-se em todas as outras partes da Inglaterra que uma criança jamais poderia levar estabilidade ao reino; e estava claro que John de Gaunt - agora o mais velho filho vivo do rei assumiria o governo. Portanto, era prudente ficar nas suas boas graças. John decidiu livrar-se de seus inimigos, e o primeiro ataque foi contra Edmund de Mortimer, que ocupava o cargo de marechal. Ele recebeu ordens de ir para Calais e, lá, fazer um relatório sobre as defesas.

Mortimer sabia que isso significava que ele estava demitido do Conselho do rei e teve a certeza, também, de que quando chegasse a Calais facilmente seria assassinado. O país não adotaria a lei sálica; e se ele estivesse morto, não haveria uma única pessoa para apoiar a reivindicação de sua filha ao trono.

Não, disse Mortimer, prefiro entregar meu bastão do que minha vida, e resolveu o caso pedindo demissão do cargo de marechal, que foi imediatamente dado a lorde Henry Percy, um grande adepto de John de Gaunt.

O ato seguinte foi apresentar um processo contra William de Wykeham, que foi acusado de ter governado mal durante a sua gestão como tesoureiro, de desvio de fundos, de extorsão e de cobrar suborno.

- Posso provar que todas essas acusações são falsas-bradou ele a seus acusadores. - Preciso de tempo.

- O senhor não concedeu a lorde Latimer tempo para provar que as acusações contra ele eram falsas - lembraram-no.

John estava alerta, observando o estado de espírito do povo. Percebeu que não podia ir longe demais com Wykeham e declarou que se deveria conceder a ele um prazo para provar sua defesa. No entanto, John estava decidido a declarar Wykeham culpado.

Quando Wykeham compareceu perante o Conselho a fim de ser julgado, ele se fez acompanhar de William Courtenay, o bispo de Londres, o que deu a entender que a Igreja estava observando como um de seus membros era tratado.

Wykeham declarou que faria o juramento de que nunca usara fundos em proveito próprio. O Conselho não estava interessado em juramentos, foi a resposta, mas em fatos.

- Esse homem é culpado - disse John. - Exijo que pague a pena máxima.

Courtenay lembrou-lhe que William de Wykeham era um bispo e, portanto, não podia ser sentenciado por um tribunal secular.

John ficou furioso mas percebeu que àquela altura não podia fazer coisa alguma. Se pudesse agir à sua moda, reduziria muito o poder da Igreja.

Assim, o resultado do julgamento foi que os bens de William de Wykeham deveriam ser confiscados em favor da coroa e o julgamento ficava adiado para uma data posterior.

com o poder de March e Wykeham cortado, John pôde tomar providências imediatas. De Ia Maré foi preso, e lorde Latimer libertado. O povo de Londres discutiu essa reviravolta, e de Ia Maré tornou-se um herói. Cantores de baladas cantavam, nas ruas, canções sobre ele. Um grande ressentimento contra John de Gaunt e seus amigos foi crescendo, e aumentou ainda mais quando Alice Perrers teve permissão para voltar para a corte.

O rei ficou muito satisfeito ao vê-la. Não havia agradecimentos ao querido filho John que chegassem, por ter sido tão prestimoso com seu bem-estar.

Não havia dúvida de que naquele momento John de Gaunt era o homem mais poderoso do país.

E então estourou o escândalo.

Nas tabernas, a história estava sendo contada aos sussurros. Parecia incrível, mas havia muita gente que queria que fosse verdade, porque se fosse, John de Gaunt seria desqualificado para sempre.

Cabeças encostavam bem umas nas outras; a princípio as pessoas comentavam-na em sussurros, e depois ficaram mais ousadas. Os londrinos nunca se destacaram pelo medo das autoridades e sempre se consideraram excluídos das leis que tinham de ser obedecidas pelo restante do país. Eles diziam o que pensavam e nada os iria deter.

John percebeu o que se passava quando seguia a cavalo de Westminster ao Savoy.

- Bastardo! - O termo foi-lhe jogado em cima. Era uma palavra que significava muito.

Ele logo descobriria o quanto ela significava.

A história dizia que ele não era o verdadeiro filho do rei Eduardo e da rainha Filipa. Havia um certo mistério sobre o nascimento que fora revelado agora por meio de William de Wykeham, que estivera presente ao lado do leito de morte da boa rainha Filipa e a ouvira de seus lábios moribundos.

Parecia que enquanto estivera em Ghent nos trabalhos de parto, a rainha tivera uma filha. Ora, era de conhecimento geral que o rei ansiava por um filho homem. Era verdade que, na época, eleja tinha dois, Eduardo e Lionel; houvera um terceiro, porém, o pequenino William, que morrera logo depois de nascer.

O rei estava fora, na guerra, e Filipa queria fazer-lhe uma surpresa quando ele voltasse, de modo que foi com grande dissabor que ela soube que a criança que dera à luz era uma menina. Ela tinha outras meninas, e o rei era dedicado a elas, de modo que isso não parecia uma tragédia tão grande assim. No entanto, quando a criança estava deitada ao seu lado, Filipa adormecera e virara por cima dela. A criança ficara sufocada e morrera.

Apavorada com a ira do rei - porque todos sabiam que, apesar de naquela época ele ser um grande homem, ele possuía o génio dos Plantagenetas que enchia todos de terror quando era provocado -, Filipa mandou chamar uma mulher flamenga que dera à luz um saudável menino ao mesmo tempo em que ela tivera a sua filha.

- Dê-me o seu filho - constava que a rainha dissera - e ele será criado como filho de um rei. Será instruído, viverá com luxo e nunca passará necessidades.

Aquilo fora tentação demais para a humilde mulher flamenga e ela dera o filho à rainha. A criança era conhecida no mundo inteiro como John de Gaunt.

E quem iria acreditar? Havia um bom motivo para acreditar. A rainha confessara em seu leito de morte. Em seus últimos momentos, ela mandara chamar William de Wykeham e lhe contara a história, com a imposição de que ele não a divulgasse, a menos que houvesse uma chance de John de Gaunt chegar ao trono.

Agora deixava-se que a história vazasse porque as ambições de John de Gaunt o estavam levando para muito perto da coroa.

Não importava se a história não resistisse a uma investigação minuciosa. O povo queria acreditar nela e iria acreditar. Não se levou em consideração que Filipa já tinha dois meninos saudáveis e não teria ficado muito decepcionada por dar à luz mais uma filha. Podia-se esquecer que o rei, adorando os filhos como adorava, gostava abobalhadamente das filhas. Não tinha importância que era praticamente impossível que Filipa, a mais terna das mães, fosse deitar-se por cima de um filho - de qualquer modo, seria dever das amas pegar a criança quando a mãe quisesse dormir.

O povo gostava da história porque era contra John de Gaunt, e acreditaria nela.

John ficou furioso. Andava pelos seus aposentos e expressava sua raiva aos berros.

Catherine tentava acalmá-lo. Mas ele não lhe dava ouvidos.

- Wykeham está por trás disso! - bradou ele. - Ele quer me destruir.

- É a história mais absurda que já ouvi - disse Catherine.

- Absurda, sem dúvida, mas tem que ser desmentida. Isolda teria posto um ponto final nela. Quem melhor do que ela para isso? Minha mãe diria ao mundo o quanto essa mentira é absurda. Mas as duas estão mortas... Os inventores desse... desse... ultraje sabem disso e é por isso que estão fazendo a acusação.

- E Wykeham? Ela deve ter-lhe confessado.

- Wykeham é meu inimigo.

- Mesmo assim, é um homem da Igreja. Não mentiria para prejudicar você.

John soltou uma gargalhada.

- Você sabe pouco sobre os homens, Catherine. Meus inimigos fariam qualquer coisa para me arruinar.

Catherine tentou consolá-lo. Ela queria, como tantas outras pessoas, que o Príncipe Negro não tivesse morrido. Se ao menos ele tivesse vivido, não teria havido todo aquele temor e toda aquela desconfiança. Era uma grande tragédia para a Inglaterra o fato de Deus ter levado o príncipe, que era o herdeiro natural do trono e muito talhado para o papel.

John era ambicioso, disso ela sempre soubera. O poder estava na essência do seu ser. Era um dos atributos que a atraíam de uma maneira muito vital. A força dele - a consciência de que aquele homem que estava claramente destinado à grandeza precisava dela.

Os filhos deles estavam crescendo. Ela queria um bom futuro para os pequenos Beaufort. Quanto mais alto John subisse, mais brilhante seria aquele futuro. E agora, aquele escândalo cruel. Era óbvio que se tratava de mentiras, mas nem por isso era menos prejudicial. Eram muitas as pessoas que prejudicariam John, se tivessem coragem.

- Está claro - vociferou John. - Isso é a vingança de Wykeham contra mim. Como odeio esse homem! Que ousadia! Será que ele pensa que não tenho poder neste país?

- Tenha cuidado, John - disse Catherine.-Tem sido sempre perigoso quando a Igreja e o Estado entram em conflito.

- A Igreja tem poder demais. Um dia vou pôr um freio nisso. Em Bruges, conheci um homem. Um tal de John Wycliffe. Ele estava esbravejando contra o poder da Igreja. Ele quer contê-lo. Estavam dizendo que ele era um fanático. Mas estou propenso a concordar com ele.

- Wykeham declarou publicamente que essa história é verdade?

- Não. Ele é esperto demais para isso. Alega que a história não partiu dele. Não disse coisa alguma. Mas a história está sendo espalhada por aí, e dizem que foi Wykeham que esteve ao lado de minha mãe quando ela morreu.

- Ninguém pode acreditar nisso - disse Catherine.

- Nenhuma pessoa que tenha bom senso.

- Você se parece muito com seu pai e seus irmãos. Ninguém poderia duvidar, mesmo apenas olhando para você, que seja um verdadeiro Plantageneta.

- Muitas vezes as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar, Catherine, e por Deus, há muita gente neste país que está tentando me derrubar.

- Não se preocupe, isso será esquecido em breve.

- Minha adorada, ela será lembrada enquanto continuar a haver gente que me odeie. Houve boatos sobre meu pai e sobre o Príncipe Negro, e eles eram muito queridos.

- Como você será.

Ele abanou a cabeça para ela.

- O amor a deixa cega - disse ele, delicado. Depois, a raiva voltou.

- Wykeham, pelo que soubemos, não deu crédito a essa história, mas uma coisa eu lhe digo, odiarei Wykeham enquanto eu viver e me vingarei dele.

Em Kennington, Joan preparava o filho para uma ocasião muito importante.

- Você compreende o que isso significa, Ricardo? - perguntou ela.

Ele confirmou com cabeça.

- O rei vai me aceitar formalmente como seu herdeiro.

- É verdade. Todas as mais altas autoridades do país estarão presentes. Todas prestarão homenagem a você.

- Sou tão importante assim?

- Não é você que é importante, e sim a coroa. Você tem de lembrar, sempre, que quando as pessoas se curvam diante de você é a coroa que elas estão reverenciando.

- Sim, vou me lembrar - disse Ricardo.

A mãe beijou-o com carinho. Ela estava temerosa, porque ele era jovem demais; e precisava do pai como nunca precisara dele antes.

Sir Simon Burley, que estava à espera, leu os pensamentos dela.

- Vamos rezar por ele, Simon - disse ela.

A agitação pusera cor nas faces de Ricardo. Alto, esguio, com as cores dos Plantagenetas - cabelos dourados encaracolados e brilhantes olhos azuis -, era muito bonito.

As pessoas que se colocaram em linha à beira da estrada para vê-lo passar ficaram encantadas com sua juventude e graciosidade.

- Deus o abençoe, Ricardo de Bordeaux - gritavam elas. Ele agradecia os cumprimentos com um charme modesto que conquistou imediatamente o coração delas. Os londrinos estavam entusiasmadíssimos. O ódio que sentiam por John de Gaunt fazia com que gostassem ainda mais dele.

Ricardo estava exultante. Aquilo era o prelúdio da realeza. Ele achou que nada havia de mais excitante do que o som da ovação do povo. O povo expressava seu amor por ele. Queria que ele fosse o seu rei.

- Que menino bonito! - diziam as pessoas. - Jovem, adorável e inocente. Aí está um rei em formação. Deus o abençoe.

Na Câmara dos Comuns foi ainda mais emocionante. Todos aqueles homens solenes - os maiores do país, e todos proclamando-o o verdadeiro herdeiro do trono.

Isso não foi tudo. Depois, eles deveriam ir para Westminster, onde o rei estava à sua espera.

Ricardo ajoelhou-se diante do avô e o rei pediu-lhe que se levantasse para que ele pudesse abraçá-lo perante todos os presentes e avisar ao mundo inteiro que depois dele ele, Ricardo, era o homem mais importante do país.

Ele agora tinha de sentar-se ao lado direito do rei e todos os seus tios ali estavam e deveriam prestar-lhe vassalagem. O tio John de Gaunt estava afável, mas seus olhos brilhavam com especulações; ele estava cativante, dando a entender que estaria sempre ali, ao seu lado, para ajudá-lo, orientá-lo, assessorá-lo. Ricardo ouvira sussurros a respeito de tio John; era difícil acreditar neles com relação àquele homem esplêndido que lhe afirmava o desejo de servi-lo. com o tio John estavam os tios Edmund e Thomas, e eles também garantiram-lhe lealdade e devoção. Tio Edmund era alto e bonito; ele estivera no exterior com John e os dois eram bons amigos; tinham, até, casado com duas irmãs.

Ricardo gostava mais de tio Edmund do que de qualquer outro dos tios. Ele estava quase sempre sorrindo e havia nele um ar de muita bondade. Simon dissera que ele não era um homem enérgico e, com isso, dera a entender que aquilo era uma crítica. Mas não havia dúvida de que era agradável estar com ele. E então havia tio Thomas, o mais moço dos tios. Ricardo não tinha certeza a respeito de tio Thomas. Simon fora um tanto reticente quando seu nome fora mencionado, e isso Ricardo interpretou como significando que também Simon não tinha muita certeza a respeito dele. Ele não sorria de forma tão insinuante quanto tio John; nem com o prazer e a despreocupação de tio Edmund. Mas, mesmo assim, prestou sua vassalagem. Ele era obrigado a fazer isso, porque a única finalidade daquela cerimónia era jurar fidelidade ao verdadeiro herdeiro do trono.

Havia uma pessoa presente que interessou mais a Ricardo do que qualquer outra, seu primo Henrique, filho mais velho de John de Gaunt. Isso porque Henrique era mais ou menos da mesma idade que ele. Ricardo sabia disso porque Henrique nascera no dia em que a batalha de Nájara fora ganha - a batalha que, segundo sua mãe dissera, não trouxera benefício para ninguém, nem mesmo para Pedro, o Cruel, que conquistara o trono graças a ela, porque pouco depois ele morrera como merecia - e fora naquela batalha, pelo que sua mãe sempre declarara, que a doença do príncipe se tornara grave.

Ricardo ficou um tanto satisfeito por ver que era muito mais alto do que Henrique; mas, apesar do fato de não corresponder à estatura dos Plantagenetas, Henrique era robusto e bem-formado; além do mais, herdara a boa aparência da família, embora fosse ligeiramente mais moreno do que a maioria deles. Seus cabelos eram mais ruivos do que dourados, mas tinha os traços dos Plantagenetas.

Ele também fora levado para prestar vassalagem ao futuro rei.

Os dois meninos entreolharam-se com solenidade. Ricardo sorriu lentamente, e Henrique retribuiu o sorriso.

John de Gaunt observava os dois. Henrique sabia o que se passava na cabeça do pai. Ele está zangado, pensou Henrique, como sempre está, porque não é o herdeiro do trono.

O rei levou Ricardo a sentar-se ao lado dele e mostrou o quanto estava ansioso por homenageá-lo.

Ricardo viu a notória Alice Perrers. Estava suntuosamente vestida e usava jóias que deviam valer uma fortuna.

Ela deu muita importância a Ricardo. Disse-lhe que era um menino bonito e que devia sentir-se orgulhoso do avô, que era um grande rei.

Ricardo ouviu com altivez, mas não se afastou de Alice porque sabia que isso teria ofendido o avô.

Ele ouvira falar muito sobre ela, porque seus pais tinham falado nela, e sua conduta era tão comentada, que os criados também falavam sobre ela com muitos detalhes.

Ricardo ouvira chamarem-na de harpia e meretriz e dizerem que o rei estava muito senil para permitir que ela o governasse.

Eu nunca teria permitido que ela se portasse dessa maneira, se eu fosse o rei, pensou Ricardo.

Se eu fosse o rei! Era um pensamento inebriante.

E o reconhecimento de que o velho rei morreria em breve e que a coroa seria colocada em sua cabeça loura deixou-o ardendo de expectativa.

De todos os seus inimigos, John de Gaunt reconhecia que William de Wykeham era o maior. Era verdade que William não confirmara o escândalo sobre o filho da mulher flamenga; ele declarara, de fato, que aquela história não partira dele. Mas John jamais o perdoaria. A sorte de Wykeham tinha caído muito; suas propriedades tinham sido confiscadas, mas ele não podia ser demitido, e mais cedo ou mais tarde alguns de seus companheiros da Igreja iriam revoltar-se e criar problemas. Ele não era do tipo que podia ser empurrado para o lado e ser esquecido. A Igreja não permitiria isso.

A Igreja! Um tormento constante para qualquer monarca... ou pretenso monarca!

Se John um dia governasse, uma das primeiras medidas que tomaria seria cercear o poder da Igreja. Alguns de seus ancestrais tinham tentado, com o caso mais famoso sendo o de Henrique II e Thomas à Beckett.

John ficara impressionado com o reformador John Wycliffe, que ficara conhecendo em Bruges. Tratava-se de um fanático, e John não era a favor de homens assim; mas os dois tinham um importante ponto de vista em comum: lamentavam o poder da Igreja, John Wycliffe porque, segundo ele, havia apenas um Senhor que mandava em tudo, e esse Senhor era Deus. O papa se comportava como se fosse substituto de Deus na Terra e, na verdade, como o próprio Deus. Ele possuía um poder demasiado e, na opinião de Wycliffe, esse poder devia ser podado.

John concordava plenamente com isso. Ele achava que o poder devia ficar nas mãos do rei e que não deveria haver autoridade acima dele. Os reis viviam com medo de uma excomunhão; o papa tinha o poder de prejudicá-los. Isso não devia ser assim.

Era por esse motivo que John de Gaunt estava pronto a defender Wycliffe.

Durante algum tempo, Wycliffe andara denunciando com estardalhaço os frades mendicantes e escrevera um tratado contra eles. O principal pecado deles, segundo ele, era concederem perdões que tinham de ser comprados com doações para a Igreja.

- Não há perdão que não venha de Deus-trovejara Wycliffe.

- O bem espiritual começa e acaba na caridade. Não pode ser comprado ou vendido, como diriam padres tagarelas. Aquele que for rico em caridade será melhor ouvido por Deus, seja ele um mero pastor ou um trabalhador dos campos. Poderá haver mais santidade num homem desses do que nos frades mendicantes, cujo pior abuso é fingir que purificam aqueles que confessam. Será que um homem evitará cometer atos de licenciosidade e fraude se acreditar que pouco depois, com a ajuda de um dinheiro doado a um frade, será obtida uma absolvição completa do pecado que ele cometeu? Não existe heresia maior do que um homem acreditar que está absolutamente perdoado de seus pecados se der dinheiro. Não pensem que se derem um níquel a um perdoador vocês serão perdoados por desobedecer aos mandamentos de Deus.

"As indulgências do papa, se forem o que dizem que são, constituem uma evidente blasfémia. Os frades dão cores a essa blasfémia dizendo que Cristo é onipotente e que o papa é o seu vigário plenário e, por isso, pode tudo, o mesmo poder que Cristo em sua humanidade."

Era inevitável, claro, que um homem que andasse divulgando tais opiniões fosse em breve convocado a explicar-se, e foi logo depois do reconhecimento formal de Ricardo como o verdadeiro herdeiro que Wycliffe foi citado por William Courtenay, o bispo de Londres, para responder perguntas relativas a suas opiniões e seus ensinamentos.

Wycliffe chegou a Londres para isso e imediatamente John convidou-o a ir ao palácio do Savoy.

Lá, recebeu-o como amigo e disse-lhe concordar com sua teoria de que havia poder demais nas mãos da Igreja e que ele também gostaria de ver esse poder podado.

- O senhor vai encontrar-se com o bispo de Londres e não deve ter medo de não poder resistir as perguntas dele. Eu o conheço bem. Ele é um homem que teme que o seu poder possa diminuir. vou comparecer ao encontro. Lorde Percy, o conde marechal, também estará presente. Nós nos apresentaremos como seus amigos diante desse bispo que acredita que por ser o bispo de Londres tem o poder de um rei.

Wycliffe respondeu:

- Não terei medo de responder às perguntas que o bispo me fizer, meu senhor. vou dizer o que penso e que seja feita a vontade de Deus.

O encontro entre John Wycliffe e o bispo de Londres ocorreu num dia frio de fevereiro. A notícia do confronto próximo espalhara-se pela cidade e o povo estava decidido a assisti-lo.

As estreitas ruas, com suas casas de empena quase se encontrando por cima da passagem estreita e com isso impedindo a entrada da luz do dia, estavam repletas de gente que seguia para a catedral. Os londrinos aproveitavam qualquer oportunidade de animar seus dias. Eles teriam ficado do lado de Wycliffe, porque era evidente que ele falava em nome do povo, mas o patrocinador dele parecia ser John de Gaunt, o homem de quem eles não gostavam. Por isso, seus sentimentos estavam confusos enquanto eles enchiam a catedral.

Wycliffe era uma figura impressionante; tinha uma altura acima do normal e estava simplesmente vestido com uma túnica escura presa à cintura com um cinto e caindo-lhe até os pés. A barba

 

*Presidente do tribunal do rei e responsável pela Marshalsea, até 1842 uma prisão citada algumas vezes neste texto. (N. do T.)

 

ondulante dava-lhe um ar venerável, e as pessoas sentiam um temor respeitoso enquanto o olhavam.

À direita dele seguia John de Gaunt, fulgurante como sempre, vestindo veludo e arminho para proclamar sua realeza, um homem para captar todos os olhares, um homem

que devia ser amado ou odiado; e não havia dúvida do que o povo sentia por ele. As pessoas sussurravam entre si enquanto o observavam. Tratava-se do homem que tentava roubar a coroa daquele doce menino inocente. Era o devasso que exibia a amante Catherine Swynford aos olhos deles, sendo visto com ela em ocasiões solenes com grande impudência, enquanto ele desprezava a pobre esposa com quem se casara porque ela poderia tornar-se rainha de Castela; era o filho humilde de uma mulher flamenga - uma meretriz; o nível dela ficava cada vez mais baixo à medida que as semanas passavam. Ele era aquele que se fazia passar por filho do rei.

O povo odiava John de Gaunt; e era incrível ele ser defensor de Wycliffe.

Do outro lado de Wycliffe estava o conde marechal, lorde Percy, que assumira aquele papel depois que John de Gaunt se livrara do conde de March, porque a esposa do conde de March era filha de Lionel, aquele filho do rei que era mais velho do que John de Gaunt e que, infelizmente, morrera na Itália.

Tão comprimido estava o público na catedral que Wycliffe, com John de Gaunt de um lado e lorde Percy de outro, achou difícil entrar.

Lorde Percy deu ordens para que seus homens abrissem caminho entre a multidão, o que eles fizeram com uma certa brutalidade. Houve gritos de protesto enquanto pessoas eram empurradas para o lado, e algumas caíam e amaldiçoavam o marechal.

O público foi ficando mal-humorado até um ponto que deveria ter alertado John de Gaunt e Percy, tivessem eles pensado um pouco no assunto.

Eles tinham forçado a passagem e estavam frente a frente com aqueles que iriam julgar o caso, em cuja chefia estava William Courtenay, o bispo de Londres.

Alguns poderiam até ter ficado intimidados ao ver John de Gaunt e o conde marechal flanqueando John Wycliffe como guardas que tinham ido lutar pela sua causa - mas não William Courtenay. O bispo era um homem de princípios fortes; suas intenções eram boas; ele era delicado por natureza; estava ansioso por cumprir com o seu dever; mas havia nele um certo orgulho e se ressentia com muita facilidade com o que poderia ser considerado um menosprezo. Como quarto filho do conde de Devon - e sua mãe era filha do conde de Hereford -, era muito bem nascido e não pretendia que ninguém se esquecesse disso; sentira vontade de entrar para a Igreja e, de qualquer modo, era o quarto filho; e devido a seus dons intelectuais, parecia muito provável que chegasse a um alto cargo na profissão que escolhera.

A multidão avançou pressionando por todos os lados, decidida, depois do rude tratamento por parte dos homens do marechal, a não ser privada de seus direitos. Estava certa de que aquilo seria uma diversão tão boa quanto um espetáculo de pantomima.

O bispo, primeiro, expressou seu desagrado pelos sinais de desordem em sua igreja. Acatedral estava aberta a todos, e as pessoas iam ao lugar santo em busca de refúgio. Ele não gostava de vê-las tratadas com brutalidade na casa de Deus.

- Se eu tivesse sabido, marechal - disse ele -, das autoridades que o senhor iria trazer para a igreja, eu o teria impedido de vir.

Lorde Percy ficou perplexo diante da reprimenda; mas John de Gaunt bradou, irado:

- Ele manterá essas autoridades, ainda que o senhor diga não.

- Seguiremos para a capela da Virgem - disse o bispo, ignorando a observação -, e lá terá lugar o exame.

A multidão adiantou-se; não queria ficar de fora. Será que as pessoas tinham ouvido o que o bispo dissera? Aquela igreja era delas e também aquelacidade, e elas não iriam admitir que alguém tentasse tirar-lhes qualquer um de seus privilégios.

Percy, ainda abalado com a discussão, correu os olhos pela capela da Virgem e disse:

- Sente-se, Wycliffe. Você tem muitas coisas a responder e precisa repousar num assento macio.

O bispo replicou com rispidez:

- Não é costume de uma pessoa assim citada ficar sentada durante as respostas. Ele tem de ficar em pé e em pé ficará.

O génio de John de Gaunt explodiu. Ele odiava o bispo e tudo o que ele representava.

Bradou, em voz alta para que todas as pessoas que se apertavam em torno deles pudessem ouvir:

- O pedido de lorde Percy não é absurdo. Quanto ao senhor, senhor bispo, ficou tão orgulhoso e arrogante que não vou mais tolerar tal atitude. Acabarei com o orgulho, não só do senhor, mas de todo o prelado na Inglaterra.

O bispo ficara muito pálido. com voz firme, replicou:

- Faça todo o mal que puder, senhor.

- O senhor... e seu orgulho - bradou o duque, o génio Plantageneta agora incontido. - O senhor se jacta de sua filiação. Deixe que eu lhe diga, eles não conseguirão sustentá-lo quando o senhor for derrubado. Vão ter bastante o que fazer para ajudar a si mesmos.

- Não o compreendo, meu senhor-disse o bispo com frieza.

- Minha confiança não está em meus pais, nem em qualquer outro homem, mas apenas em Deus, em quem confio e cuja assistência me permitirá a ousadia de dizer a verdade.

John de Gaunt virou-se para o marechal e disse:

- Em vez de suportar essas coisas, vou arrastar esse bispo pelos cabelos para fora da igreja.

Embora tivesse dito isso para o marechal, ele falara em voz alta o bastante para permitir que as pessoas à sua volta ouvissem.

- John de Gaunt insultou o nosso bispo-berrou alguém. Não vamos querer que ele seja desrespeitado em sua própria igreja.

As pessoas gritavam para os que estavam lá fora.

- Ouviram só? John de Gaunt quer arrastar nosso bispo pelos cabelos para fora de sua igreja. Venham, amigos. Unam-se. Queremos morrer em vez de nos submetermos a tiranos.

Foi grande o tumulto dentro e fora da igreja, e temendo a violência, o bispo disse baixinho:

- O público está irritado. Sigam-me... depressa, por favor. Os senhores precisam sair daqui agora mesmo.

John de Gaunt, vermelho de raiva, hesitou. Mas conhecia a raiva daquela gente e sabia com que rapidez ela se tornava perigosa. Eles o odiavam. E os poucos homens que tinham com eles não poderiam resistir à turba.

Só havia uma coisa a fazer, e era esquecer o orgulho, seguir o bispo e sair da catedral por uma porta lateral.

Depois que John de Gaunt e lorde Percy tinham-se esgueirado em silêncio, o povo afluiu para as ruas. Os ânimos estavam exaltados, mas a Igreja não era o lugar em que ele podia dar vazão aos seus sentimentos. Além do mais, muitos deles concordavam com John Wycliffe. Já havia algum tempo que se resmungava sobre a riqueza e a secularidade dos homens da Igreja e era exatamente nisso que Wycliffe estava tentando dar um basta. Por outro lado, John de Gaunt era odiado e estava do lado de Wycliffe. John de Gaunt ameaçara abolir o cargo de prefeito e criar o cargo de capitão para governar a cidade, e esse capitão seria escolhido pela Coroa. O povo jamais permitiria isso. Além do mais, ele insultara o bispo de Londres, e isso era o equivalente a insultar Londres.

Por isso, o povo estava confuso e por isso estava em dúvida sobre como atacar.

John voltou para o palácio do Savoy. Catherine já soubera que tinha havido confusão em St. Pauls e estava muito preocupada.

Ela conhecia muito bem o humor do povo e estava sempre com medo de que ele causasse algum mal ao seu amante. Ele riu da ideia. Prometeu a ela que ninguém levaria vantagem sobre ele.

- Ultimamente tem havido um espírito de insatisfação nas ruas - disse ela.

Tinha visto muitos olhares mal-humorados dirigidos a ela quando saía a cavalo. Ouvira insultos. Não que alguém tivesse tido a ousadia de dirigi-los aos berros a ela. Tinham sido sussurrados. Mas, apesar de tudo, o significado era claro.

Estava aflita por causa das crianças.

- Eu ficaria mais contente se as levasse para fora de Londres por algum tempo...

- Tenho de ficar aqui - disse ele.

- Eu sei. Talvez eu as leve daqui e as deixe aos cuidados de suas amas-secas. E volte para ficar com você.

John a abraçou num gesto repentino.

- Você é o meu consolo, Catherine - disse ele.

- Eu sei. E no entanto, sou uma das razões pelas quais o povo o odeia.

- O povo é irracional. Meu pai se diverte com aquela meretriz e o público o perdoa. E você e eu... amantes de verdade... somos ridicularizados.

- Acho que tudo vale a pena - disse ela. Ele riu.

- Eu também. Você tem razão. Leve as crianças daqui... hoje... não hesite. E volte para mim, Catherine.

Logo no dia seguinte John ficou satisfeito por ela ter feito aquilo. A sua Catherine era inteligente. Às vezes John achava que ela compreendia o povo melhor do que ele.

No dia seguinte ao da cena na catedral, as ruas estavam cheias de gente resmungando. John tinha ido de barcaça até a casa de Sir John dYpres, um comerciante londrino de grande riqueza que se tornara um grande amigo do rei devido à sua capacidade em assuntos financeiros. Ele tinha sido feito cavaleiro alguns anos antes e o rei o reconhecia como um de seus súditos mais leais. Lorde Percy estava deixando a Marshalsea para juntar-se a John em casa do comerciante.

Enquanto isso, as multidões se reuniam nas ruas. As pessoas tinham esquecido as dúvidas sobre Wycliffe e concentrado todo o seu veneno em John de Gaunt.

Um homem subira em um muro e falava para o povo. Mal se podia ouvi-lo acima do barulho.

- Quem é ele? Um flamengo de origem inferior... colocado na cama da rainha quando ela se deitou por cima da filha. Agora ele quer governar este país. O nosso pequeno príncipe Ricardo está em perigo. Esse Lancaster não vai deixar que nada o detenha. Ele e seu cúmplice Percy vão nos pôr todos a ferros.

Alguém gritou:

- Lembrem-se do pedido ao Parlamento para que nos desse um capitão em lugar do nosso prefeito.

- Jamais permitiremos isso - gritou o povo.

- Bons amigos, vocês sabem o que isso vai significar. Uma criatura de Lancaster assumir o controle da nossa cidade. Um funcionário escolhido por ele. Vamos aceitar isso?

- Nunca! - gritou o povo.

- Então, como podemos evitar isso?

- Morte a John de Gaunt - foi o brado.

- Percy tem um prisioneiro lá na Marshalsea. Um de nós.

- Então, vamos pegá-lo.

Era o que eles precisavam: um plano de ação.

- Para a Marshalsea. Vamos libertar o prisioneiro e depois vamos pegá-los. Lancaster... e Percy.

A multidão seguiu rápido para a Marshalsea. Serventes assustados trancaram as portas para não deixá-la entrar, mas a turba não demorou muito para derrubá-las.

Era verdade. Havia um prisioneiro lá. Eles o soltaram e incendiaram o tronco no qual ele estivera preso.

- Procurem Percy! - gritou o povo. As pessoas andaram pelo prédio derrubando portas e paredes e levando o que lhes parecesse de valor. Mas não encontraram Percy.

- Ele deve estar com o seu companheiro - disse um deles. Deve estar no Savoy.

Foi a palavra mágica. O palácio do Savoy. Era a residência do verdadeiro inimigo.

Em pouco tempo, chegaram aos portões do Savoy.

Um membro da comitiva de Lancaster chegou a cavalo. Ele usava a insígnia de Lancaster.

- O que fazem aqui? - perguntou ele.

- O senhor serve a John de Gaunt?

- Sirvo.

- Ele é um deles - gritou alguém.

O cavaleiro, um certo Sir John Swynton, foi arrancado do cavalo e a insígnia foi tirada de seu casaco. Ele estava gritando:

- O que fiz para ofendê-los?

- Deixem-no - berrou alguém. - Não é ele que nós queremos.

Sir John foi deixado sangrando no chão e a turba seguiu em frente.

Um padre se aproximou a cavalo.

- Qual é o problema? Por que estão aqui? - perguntou ele.

- Viemos procurar John de Gaunt - disse alguém. - Vamos evitar que ele nos dê um capitão. Vamos fazer com que ele solte Peter de Ia Maré.

- Peter de Ia Maré é um traidor - disse o padre. - Ele devia ter sido enforcado há muito tempo.

Houve um grito de raiva enquanto o padre era arrancado do cavalo e a turba caía sobre ele.

Alguns deles tinham conseguido forçar a entrada no Savoy. Estavam tentando derrubar o prédio e muitos estavam fugindo com peças valiosas.

- Saia daí, John de Gaunt - gritou a turba. - Nós queremos lhe dar uma recepção calorosa, John de Gaunt.

Um dos cavaleiros de Lancaster chegou a cavalo ao Savoy e deteve a montaria a tempo porque, lembrando-se do que acontecera na catedral de St. Paul no dia anterior e vendo a turba entrando à força no Savoy, percebeu o que aquilo significava. Ouviu os gritos de: "Saia daí, John de Gaunt. Viemos pegá-lo, John de Gaunt." E percebeu que havia assassinato no coração deles.

Fez o cavalo dar meia-volta e seguiu a toda velocidade para a casa de Sir John d Ypres, onde sabia que o seu senhor estava jantando com lorde Percy.

Chegou à casa. Entrou de supetão no salão onde eles estavam jantando e tinham acabado o primeiro prato.

- Meu senhor-bradou ele -, a turba está chamando o senhor aos berros. Eles invadiram o Savoy.

John levantou-se. Percebeu logo o perigo.

- Vão descobrir que estamos aqui - disse Percy. John sacudiu a cabeça.

- Temos de sair daqui agora mesmo.

- Para onde vamos? - perguntou o anfitrião.

- Para Kennington - disse ele. - Minha cunhada nos dará refugio. Venham, não há um só instante a perder.

Enquanto isso, William Courtenay, o bispo de Londres, ficara sabendo do tumulto nas ruas e, fazendo indagações, soube que a turba estava em marcha, que ela já havia esvaziado a Marshalsea e estava, agora, no Savoy à procura de John de Gaunt, e o estado de espírito era de assassinato.

Não havia tempo a perder. John de Gaunt era seu inimigo, mas não era essa a maneira de lidar com ele. O povo faria dele um mártir.

A toda pressa, ele seguiu a cavalo para o Savoy. Parte da turba estava dentro do palácio. O barulho era ensurdecedor e o bispo teve dificuldade em fazer-se ouvir.

Então, ouviu-se um grito.

- O bispo!

E se fez silêncio.

Ele se dirigiu a eles numa voz trovejante.

- Meu povo. O que é isso que encontro aqui? Isso me magoa. Cuidado, digo eu. Eu gostaria de conversar com vocês. Querem provocar a ira de Deus contra vocês?

Um grande silêncio caiu sobre a turba.

- Estamos na Quaresma - continuou o bispo. - Vocês mataram um de meus padres. Que Deus os perdoe. Esta é uma época em que devem se arrepender de seus pecados. E vocês pecam mais. Vão para casa e roguem a Deus por misericórdia. Vocês precisam dela. Não é assim que se corrigem os males.

O bispo passou a cavalo por entre a multidão. Havia nele algo de nobre e suas vestes clericais lhe davam uma certa imponência. Ele sabia que um deles poderia ter erguido a mão contra ele e estabelecer o grau de disposição da turba, mas não mostrou ter medo.

Eles o olhavam com um respeito redobrado. Ele era mais que um simples homem. Era o bispo deles.

- Dispersem com calma-disse ele. - Vão para casa e rezem pedindo perdão. Lembrem-se de que estamos na Quaresma.

Ficou observando-os.

Um a um, eles foram embora.

O bispo sufocara a revolta.

A VOLTA PARA KENNINGTON, depois de toda a pompa e a glória da Corte onde ele era, de fato, uma pessoa muito importante, foi um tanto desconcertante para o jovem Ricardo. A proclamação de que ele era o herdeiro do rei e o banquete que se seguira tinham feito com que ele gostasse de tais prazeres; e agora ali estava ele de volta, sob os cuidados de Sir Simon Burley e Sir Guichard d'Angle que, embora ele gostasse muito dos dois, tratavam-no como se fosse um garotinho.

Sua mãe era a mesma coisa; estava sempre com medo de que alguma coisa fosse lhe acontecer. Seu pai sempre a censurara por mimá-lo. Era diferente com os seus meio-irmãos Thomas e John Holland. Eles gostavam de jogos rudes e estavam sempre experimentando trotes. Nem sempre ele gostava daquele tipo de diversão e do assédio constante de sua mãe para garantir que ele não se machucasse.

Não que ele lamentasse não se dedicar aos esportes como os irmãos mais velhos, porque não se interessava por eles. Além do mais, Thomas e John eram muitos anos mais velhos do que ele; e eram rebeldes. Tinham saído ao pai, dizia a mãe deles. O pai era o tipo de homem que pegava o que queria e depois calculava o custo, ao passo que o pai de Ricardo tinha sido sério, profundamente preocupado em fazer o que era certo.

"Você precisa ser igual ao seu pai." Era isso que sempre lhe diziam, até que ele se cansou de ouvir falar o quanto seu pai fora maravilhoso. O grande herói. O Príncipe Negro. As histórias de como ele fizera jus às esporas em Crécy e de que ele levara para o seu país o rei francês depois de Poitiers ficavam um pouco cansativas, especialmente quando eram sempre seguidas da imposição de que ele tinha de tentar ser igual ao pai.

Agora, seus meio-irmãos falavam sobre Wycliffe, que estava sendo interrogado pelo bispo de Londres na catedral de St. Paul. Ricardo ouvira falar muito sobre aquele tal de John Wycliffe. Era uma pessoa que tinha opiniões muito fortes sobre religião e não se importava de expressá-las em voz alta.

A mãe de Ricardo tendia a ser a favor dele. Ela achava que o papa detinha um poder demasiado, e Ricardo concordava com ela, agora que provara o doce da função de rei que estava próxima. O rei era o governante do país, dizia sua mãe, e não devia haver ninguém acima dele, a não ser Deus. O papa se dizia representante de Deus na Terra. Deus não precisava de representante, dizia sua mãe.

Ricardo começava a se interessar pelo que se passava no país. Afinal, em breve estaria reinando sobre ele.

- O velho vai ficando mais fraco a cada dia que passa - disse Thomas Holland.

Ricardo tinha uma grande admiração por Thomas. Ele estava sempre seguro de si e sempre tratava Ricardo com uma amabilidade especial. Thomas era, na verdade, o conde de Kent, título que herdara quando o pai morrera e que fora obtido através de sua mãe. Thomas não fazia segredo de que estava ansioso para que o velho rei morresse.

- Então - sussurrara ele para Ricardo - você será o nosso rei.

Ele fazia com que aquilo parecesse uma coisa muito emocionante. Os dois seriam sempre amigos, dizia Thomas.

- Ah, sim - bradara Ricardo. - Quando eu for rei, você estará ao meu lado.

- vou lhe cobrar isso - replicara Thomas. John dizia que também estaria lá.

Era um consolo ter irmãos como aqueles.

- Ele não pode durar muito mais - disse Thomas. – Pobre Alice, ela o distrai demais. Ela mantém sua posição graças às suas habilidades, e no entanto são exatamente essas habilidades que podem apressar a ida dele para o túmulo. Que dilema para Alice. A mãe juntou-se a eles.

- O que é isso? - perguntou ela. Devia ter ouvido o nome de Alice e não gostava que tais assuntos fossem discutidos em presença de Ricardo.

- Estávamos falando sobre Wycliffe-disse Thomas com um piscar de olhos para Ricardo.

Ricardo gostava de estar em conluio com aquele homem do mundo. Aquilo o fazia sentir-se adulto. Sua mãe começou a falar sobre Wycliffe e sobre como era interessante ouvir as ideias de pensadores como ele; e de repente ouviram o som da gritaria vindo do rio.

- Escutem - disse Joan.

Eles ficaram em silêncio. Lá estava o som, que ia aumentando de volume.

- Está acontecendo alguma coisa no burgo - disse Thomas.

- Sou capaz de jurar que tem relação com os problemas de ontem no julgamento de Wycliffe.

- O povo está revoltado-disse Joan. Ela empalidecera. Tinha medo do povo quando ele erguia a voz e protestava. As turbas causavam terror. Mesmo quando as causas eram justas, elas perdiam todo o senso de razão quando se reuniam. Poderia haver derramamento de sangue.

Joan deu graças por Ricardo estar ali com ela. Eles ficaram na janela, observando. Thomas apontou para a coluna de fumaça que subia para o céu.

- Eles estão fazendo arruaça - disse Joan. - Meu Deus, o que significa isso?

- Deve ser alguma coisa relacionada com Wycliffe.

- Tenho certeza de que o povo estava com ele.

- Olhem! - bradou Ricardo. - É a barcaça de meu tio. Era, mesmo, e nela estavam John de Gaunt e lorde Percy, o

marechal. A velocidade com que a barcaça seguia pelo rio indicava que estavam fugindo.

Todos correram para fora do palácio e foram até a escada que dava para o rio.

Quando John de Gaunt saltou da barcaça, Joan agarrou-lhe a mão e bradou:

- O que aconteceu? O que aconteceu?

- Há uma revolta. O povo enlouqueceu.

- Contra Wycliffe?

- Não... Eles nada têm contra Wycliffe. Estão ameaçando me matar.

- Você aqui está a salvo - disse Joan.

Que estranho, pensou Ricardo, o povo odiar aquele tio que ficava sempre maravilhoso com seus belos trajes. Ricardo não podia deixar de perceber as roupas dele, nem mesmo num momento como aquele. A túnica curta de belo veludo, a cinta, na qual havia uma adaga, e uma bolsa de couro belissimamente trabalhada em relevo. As estolas que lhe caíam das mangas chegavam-lhe aos joelhos. Eram elegantíssimas e era difícil acreditar que tamanha graça pudesse sofrer a indignidade de fugir da turba.

- Eles me odeiam, Joan - bradou John. - Decidiram me odiar. Acusam-me de qualquer crime que possam imaginar. Insistem em acreditar que sou uma espécie de criança trocada.

- Ninguém que tenha um mínimo de senso acredita nessas mentiras - disse Joan. - Mas você está muito perturbado. Isso começou na igreja?

- Courtenay é o culpado. Não vou me esquecer disso.

Ele é orgulhoso, pensou Ricardo. Odeia que eu o veja dessa maneira, fugindo da turba.

- Vamos entrar, depressa - disse Joan. Ela está com medo, pensou Ricardo, de que eles o venham procurar aqui.

Se viessem, ele sairia para ir ao encontro deles. Diria: "Eu sou Ricardo de Bordeaux. vou ser o rei de vocês. Escutem-me!", ou algo destemido assim. E quando o

vissem, toda a raiva iria desaparecer e eles iriam amá-lo e gritar pedidos de bênçãos para ele.

- Venha, Ricardo - disse sua mãe.

Ela sempre olhara para ele primeiro e o tinha tomado pelo braço. Parecia esquecer-se de que em breve ele seria o rei.

Mais tarde, chegaram a Kennington notícias contando que os arruaceiros tinham ido à Marshalsea e a tinham saqueado. Pouco depois chegou a notícia de que tinham atacado o palácio do Savoy.

John ficou horrorizado, mas agradecido pelo fato de Catherine ter tido a previsão de ir embora com as crianças.

Era irónico William Courtenay ter sido a pessoa que evitara que a turba causasse mais danos ao Savoy. John devia ser grato ao bispo, mas mesmo em meio a seu alívio desejava que tivesse de agradecer a uma outra pessoa qualquer.

Mas tinha sido uma cena horrível. Mostrava claramente como o ressentimento do povo estava pronto a transbordar diante da menor provocação.

E o assunto não morreu ali. Não se podia deixar que aquela discussão entre o duque de Lancaster e a cidade de Londres fosse adiante. Devia pelo menos haver um sinal externo de reconciliação. Se a questão não fosse resolvida de maneira satisfatória, isso significaria que a qualquer momento poderia haver outra arruaça como a que acabara de acontecer.

Aflita, Joan discutia o assunto com o cunhado. Como ela precisava, agora, de seu forte, decidido e honrado marido a seu lado! Seus temores eram todos relativos a Ricardo. Ele iria herdar um país não só empobrecido pela Morte Negra e pelas guerras francesas, mas dividido por lutas internas.

- Você poderia ajudar a provocar uma reconciliação - disse John. - O povo gosta de você. Você é a mãe do herdeiro que eles passaram a amar. Tem de haver uma reunião entre mim e os representantes do burgo. Tenho de dizer-lhes que quero ser amigo deles e que têm de fazer tudo para que não haja mais destruição irresponsável como a que acaba de acontecer.

Joan achou razoável. Não gostava do papel que lhe fora atribuído, mas entendia que ele tinha de ser cumprido pelo bem de Ricardo.

Mandou chamar Sir Simon Burley, em quem confiava mais do que em qualquer outra pessoa, e perguntou-lhe o que se podia fazer. Ele percebeu logo do que se tratava. Não devia mais haver arruaças. Devia-se deixar claro aos cidadãos de Londres que não se planejava nenhum cerceamento de suas liberdades.

- Simon, você poderia explicar isso. Escolha dois de meus cavaleiros. Vá procurar o prefeito e converse com ele. Faça isso, por favor, por mim... e por Ricardo.

Simon partiu para Londres acompanhado por Sir Aubrey de Vere e Sir Lewis Clifford.

Foi recebido com muita delicadeza, mas foi informado de que Londres exigia a libertação de Peter de Ia Maré e William de Wykeham. Eles queriam ouvir do próprio rei, e só dele, que suas condições eram aceitáveis.

Lancaster seguiu a toda velocidade para Westminster, onde encontrou o rei ainda mais frágil do que da última vez em que o vira.

- Qual é o problema? - perguntou ele, rabugento. John explicou.

- Você não devia se incomodar com essa gente, meu amor disse Alice.

- Eu os receberei em seu nome - replicou John.

- Você é um bom filho - disse o rei. - Não sei o que faria sem você... e Alice.

John ficou contente. Aquele John Philipot que os londrinos tinham escolhido como seu porta-voz teria uma surpresa quando descobrisse que em vez de ter uma entrevista com o rei estava diante do duque de Lancaster.

Mas John Philipot não era de ser posto de lado.

Ele fez uma mesura e disse:

- Meu senhor, vim falar com o rei. Minhas instruções são para que eu não fale com ninguém mais.

- O rei está doente demais para recebê-lo. Estou agindo em nome do rei.

Um sorriso cínico tocou os lábios do homem. John de Gaunt não era, evidentemente, o homem para providenciar a solução da disputa entre ele próprio e o povo de Londres.

- Neste caso, vou voltar e veremos o que os cidadãos têm a dizer - replicou ele e retirou-se.

Logo depois, ficou claro que os cidadãos estavam decididos. Queriam falar com o rei, com ninguém mais.

Era em momentos como aquele que Eduardo saía da letargia que o dominara.

Durante algumas horas, ele parecia o rei de antigamente.

Recebeu Philipot, e a atitude deste para com o seu rei foi muito diferente daquela para com John de Gaunt. Ele podia ser o devasso doentio, mas ainda era o grande rei sob o qual o país ficara rico e próspero, que tinha trazido espólios da França - embora nunca tivesse trazido a coroa. Ele ainda era o Grande Eduardo, e mesmo agora isso era aparente.

Ele sabia como desarmar Philipot; sabia como aplacar os londrinos.

Claro que de Ia Maré deveria ter um julgamento justo. O mesmo acontecia com o bispo de Winchester. Não precisavam temer quanto a isso. O prefeito ser substituído por um capitão! Isso podia ter sido sugerido no Parlamento, mas eles poderiam ficar certos de que era uma coisa à qual ele nunca daria seu consentimento.

Philipot ficou dominado pelo charme dos Plantagenetas; aquela capacidade que Eduardo tinha de pôr de lado a sua realeza no momento certo e conversar com um homem de igual para igual.

Philipot garantiu ao rei que a arruaça começara por umas poucas pessoas insubordinadas. A cidade não podia ser condenada por isso. Sempre haveria gente assim.

Õ rei concordou.

- Nunca tive intenção de cancelar as liberdades da cidade garantiu ele a Philipot.-Na verdade, estou pensando em ampliá-las.

- Senhor meu rei, eu lhe garanto que os cidadãos são seus mais dedicados súditos.

O rei confirmou com a cabeça.

- Há o caso do duque de Lancaster-prosseguiu ele.-Acho que aqueles que iniciaram a arruaça e danificaram a propriedade dele e a Marshalsea devem ser descobertos e punidos.

Isso seria feito, concordou Philipot, sabendo muito bem, tanto quanto o rei, que nunca seriam encontrados.

John ficou apreensivo com o encontro. Ele teria preferido que o rei não tivesse recebido Philipot. De qualquer modo, nenhum culpado foi apresentado, e pasquins sobre o duque - em sua maioria referindo-se à história do filho trocado - circularam pela cidade e eram até afixados nas ruas.

O rei tinha de agir, dizia John. Os londrinos o estavam desrespeitando; e quando insultavam o filho dele, eles o insultavam também.

Uma vez mais, o rei concordou em receber uma representação. Dessa vez, foram o prefeito e os xerifes. Ele estava em Sheen, na ocasião, e doente demais para viajar até Westminster. Estava muito fraco e tinha de ser apoiado para ficar numa cadeira; tinha dificuldade de falar.

Os cidadãos tinham de compreender que quando insultavam seu filho insultavam a ele, balbuciou ele.

Eles iriam corrigir-se, prometeu o prefeito ao rei. Levariam uma vela com o brasão do duque e a colocariam no altar da Virgem; haveria procissões e o pregoeiro oficial da cidade convocaria o público a comparecer. Isso iria mostrar que a cidade de Londres e o duque de Lancaster tinham encerrado a discórdia.

Mas quando a cerimónia foi realizada, foi um fracasso. O povo recusou-se a comparecer.

Houve um certo deleite entre os que compareceram. Uma cerimónia como aquela era, em geral, feita em homenagem aos mortos. Será que fora realizada sutilmente para dar a entender que tinham a esperança de que o duque de Lancaster estivesse em breve entre aquele grupo?

No entanto, o povo não iria homenageá-lo.

Quanto a John de Gaunt, ele entendeu o insulto e teve ódio de quem o organizou. Mas teve de admitir que a discórdia acabara, porque era a única maneira de invocar uma trégua. E trégua era o que devia haver. Não devia mais haver arruaças. O Savoy tinha sido salvo e estava sendo reformado às pressas.

Poderia ter sido muito pior.

Uma grande cerimónia estava acontecendo em Windsor, onde estavam reunidos os maiores nobres e todos os cavaleiros da Inglaterra.

Era para presenciar a cerimónia da Jarreteira, que seria concedida aos dois netos do rei - Ricardo de Bordeaux e Henrique de Bolingbroke.

Havia momentos em que a mente do rei ficava muito lúcida e parecia ter voltado à sua antiga sagacidade, e aquele era um deles.

Dentro de algum tempo, disse a si mesmo, esses dois serão os dois homens mais poderosos da Inglaterra. Ricardo, o rei; Henrique, seu primo, filho de John de Gaunt, que é o homem mais rico e mais influente do país depois do rei.

Eduardo queria ver os dois juntos. Eram praticamente da mesma idade e eram netos dos quais um homem podia orgulhar-se. Ricardo era o mais velho por uma questão de poucos meses - alto, muito bonito, mas magro e de aparência delicada. Ele vai vencer isso, pensou Eduardo. O povo irá amá-lo, porque admira um homem bonito. E ele tem modos graciosos e faz uso inteligente das palavras. E Henrique - muito corpulento mas de boa aparência. Claro que o povo não iria ligar para o filho de John de Gaunt como ligava para o filho do Príncipe Negro.

O povo sempre adorara Eduardo. Ele tinha aquela qualidade que atraía as pessoas; e que herói! E que tragédia ele morrer e deixar aquele jovem para assumir o seu lugar. O povo amara Eduardo com o mesmo fervor com que odiara John.

Mas aqueles dois meninos deveriam ser amigos quando crescessem. Ele queria isso. Teria uma conversa com eles depois da cerimónia.

Restava pouco tempo. Alice tentava convencê-lo de que ele estava bem. Ela tentava provar isso, e ele tentava fingir que era verdade, para agradá-la.

Aquele caso na catedral tinha sido alarmante. Ele agradecia a Deus por Courtenay ter intervindo e evitado maiores danos. William de Wykeham foi reconduzido ao seu cargo. Alice o convencera e ele renomeara Wykeham. Eduardo sabia que Alice, a velhaca, aceitara um grande suborno de Wykeham e fora por isso que ela intercedera por ele. Na realidade, aquilo o divertia. Aqueles homens da Igreja não estavam acima de uma ardilosa barganha, de modo que se Wykeham estava disposto a pagar por favores, por que as pessoas criticavam Alice por ter-se aproveitado disso?

Quando a cerimónia acabou, Eduardo chamou os dois meninos para perto dele e disse-lhes que queria que fossem sempre bons amigos.

- A jarreteira é o símbolo desta ilustre ordem - disse ele. É a Ordem da Fidalguia. Nunca se esqueçam disso. Como lhes foi concedida, vocês devem ser sempre corajosos e justos e preservar sua honra o tempo todo. Estão entendendo?

Os dois garantiram que sim.

- Dêem-se as mãos. Assim. Agora estão unidos em amor e amizade. Chegará o momento em que não estarei mais aqui e você, Ricardo, usará a coroa. Henrique, lembre-se, ele será o seu senhor feudal. Sirva-o bem. E Ricardo, este é o seu bom primo. Seus pais foram irmãos. O orgulhoso sangue Plantageneta corre nas suas veias. Mantenham-se unidos. É aí que estará a sua força.

O rei sentiu-se cansado de repente. Mas uma calma tomara conta dele. Sentia-se aliviado por conversar com os meninos, por uni-los.

Ele estava com a sensação de que cumprira uma importante missão.

Agora, estava cansado. Queria a cama... e Alice.

Eduardo estava deitado no palácio Sheen. Fazia calor no aposento porque se estava no mês de junho.

Ele se sentia cada vez mais fraco e, apesar das garantias de Alice de que ele estava melhorando a cada dia, sabia que estava morrendo.

Era um velho doente. Estava com 65 anos, dos quais reinara durante 51 anos. Era um grande recorde.

Na verdade, tinha sido um grande reinado. Só os últimos anos tinham-lhe trazido a vergonha. Filipa morrera e o deixara, e sem a rainha ele ficara desolado. Embora, para dizer a verdade, tivesse começado o caso com Alice antes de Filipa morrer.

Bem, era assim que os grandes homens caíam. A fraqueza deles acabava por alcançá-los; e era estranho ver que ele, o marido fiel por tanto tempo, se tornara tão escravo de seus sentidos. Ele sabia o que Alice queria; mas que companheira ela fora! A vida toda, ele estivera controlando seus impulsos e só raramente se libertara.

Bem, ali estava ele, morrendo... o grande Eduardo, jánão grande, já não admirado, já não amado pelo povo.

Apenas um velho - um velho muito desprezível, mas ainda assim o herói de Sluys e Crécy. O brilhante herói que se dispusera a conquistar o trono da França e fracassara de forma tão lamentável.

O que estava ele deixando para o neto? Não tinha coragem de pensar. "Deus, salve Ricardo. Não é culpa dele estar herdando um reino falido. Ó, Deus, se o Senhor não tivesse levado Eduardo..."

Ah, isso estava no cerne da tragédia. Eduardo tinha morrido. Se tivesse tido saúde, nunca teria deixado que o país ficasse naquele estado. Não teriam havido arruaças. Não teria existido suborno e corrupção em altos níveis. Se Eduardo tivesse ficado forte e saudável... Mas Deus achara melhor levar aquele baluarte de força e deixar em seu lugar apenas um frágil menino. Mas ele agora estava morrendo. Aquilo era o fim.

Havia apenas um padre ao lado de sua cama. Ele mal podia vê-lo.

O padre estava colocando o crucifixo em suas mãos e ele estava dizendo "Jesu miserere..."

Eduardo beijou o crucifixo.

Depois, ficou deitado na cama e não conseguia ver ninguém.

Lentamente, a vida se esvaía.

Logo depois, Alice aproximou-se da cama.

Ele estava morto, aquele pobre velho caduco não existia mais. Aquele era o fim de Alice.

Ela tirou os anéis dos dedos dele, arrecadou quantas jóias pôde e retirou-se do palácio.

 

RICARDO FICOU EXULTANTE. Ser um rei de dez anos de idade era, sem dúvida, a melhor coisa do mundo. O dia seguinte seria o dia de sua coroação, e Londres inteira, o país inteiro, estava ansioso por dizer-lhe o quanto ele era amado.

Ele tinha ido para a Torre de Londres, com a mãe ao lado, e o povo atirara grinaldas de flores; gritara o seu nome. As ovações leais ainda soavam em seus ouvidos.

Como eles o amavam! E como ele os amava!

- É a coroa que eles saúdam - dissera Simon. - Ela é o símbolo da função do rei.

Não é, não, pensou ele. Eles saúdam a mim. Eles me amam, porque sou jovem e agradável de ver e eles estão cansados de velhos.

Assim parecia, porque era verdade que o público ficava enlevado ao vê-lo. As pessoas atiravam-lhe beijos. Elas o chamavam de reizinho querido. Ele era o verdadeiro rei, neto de um grande rei, filho de um grande príncipe.

- Ricardo! - gritavam todos. - Vida longa para Ricardo! Seu tio John tinha ido visitá-lo. Ele estava muito quieto e sério, e Ricardo não sabia bem o que ele estava pensando.

- Estarei com você na sua coroação - disse ele ao sobrinho.

- Como alto despenseiro da Inglaterra, tenho o direito de usar espada. vou exigir esse direito.

- E deve, mesmo - replicou Ricardo.

- E como conde de Lincoln, tenho o direito de trinchar a carne antes de você na festa da coroação.

Ricardo ficou pasmo.

- Sim - continuou John -, sofri ataques caluniosos e acho que o melhor é me afastar um pouco. De modo que vou lhe pedir permissão para ficar no interior por algum tempo.

- Permissão concedida-disse Ricardo com o tom autoritário de voz que conseguiu emitir.

John curvou a cabeça e passou a discutir os preparativos para a coroação.

- Há muita gente exigindo que as cerimónias sejam tradicionais - explicou ele. - Infelizmente há muitas reivindicações para um posto que terei de selecionar com cuidado.

- As pessoas não falam em outra coisa a não ser na coroação

- disse Ricardo, satisfeito.

- É uma ocasião muito importante, sobrinho. Teremos de tomar cuidado com esses londrinos que estão muito prontos a provocar encrenca sempre que conseguem achar uma desculpa. O senhor prefeito quer servir você com uma taça de ouro e eles querem que alguns dos principais cidadãos sirvam na copa.

- Não farei objeção - disse Ricardo. - Eles nunca demonstraram outra coisa a não ser bondade para comigo.

John não ficou muito satisfeito com aquela observação e estava para dizer algo quando mudou de ideia.

Todos devem se lembrar que agora sou o rei, pensou Ricardo, complacente.

- Estou trazendo o jovem Robert de Vere, o conde de Oxford. Se você concordar, poderá permitir que ele atue como seu camareiro. Ele é bem jovem.

- Quantos anos? - perguntou Ricardo.

- Deve ter, talvez, quinze anos. O pai morreu faz algum tempo, quando Robert estava com apenas nove anos. Ele herdou mais ou menos na mesma idade que você. Estou com ele esperando lá embaixo. Você consente em recebê-lo agora?

Ricardo pareceu estar pensando. Era muito interessante ter homens importantes, tão mais velhos do que ele, pedindo sua permissão para isso ou aquilo.

Sim, pensou, ele poderia receber o jovem conde de Oxford agora.

- Então ele virá até aqui. vou apresentá-lo e depois deixarei os dois a sós. Você pode dar o seu veredicto depois de conversar com ele.

Dentro de poucos minutos, Robert de Vere, conde de Oxford, entrou na sala.

Desde o início Ricardo gostou da aparência dele. Era bem-apessoado e era agradável verificar que embora fosse mais velho do que Ricardo, não eram muitos anos; Ricardo começou a entrevista um tanto arrogante, fazendo com que o jovem de Vere se lembrasse de que ele era o rei, mas sua atitude mudou depois de alguns minutos porque havia algo de tão natural no outro rapaz, que Ricardo achou que também poderia ser perfeitamente natural com ele.

Robert de Vere disse a Ricardo que tinha quinze anos. Ricardo disse que gostaria de ter quinze anos. Era muito enfadonho ter apenas dez.

- Dez anos e um rei! - disse Robert.-Eu tinha cerca de dez quando me tornei duque. Mas é muito diferente ser rei.

Robert disse a Ricardo que havia planos em ação para arranjar um casamento para ele. Ingelran de Couci, que fora feito duque de Bedford quando se casara com a filha do rei Eduardo, Isabella, tinha sido seu guardião e queria casá-lo com sua filha Filipa.

- Casar! - disse Ricardo.-Dentro em pouco vão querer me casar com alguém.

- Pode estar certo disso. Mas você vai escolher sua noiva. Você é o rei. Pode fazer o que quiser.

Era uma conversa agradável.

- E você, não quer se casar com essa Filipa?

- Não quero me casar com ninguém. Mas se me casar com ela, terei algum tipo de parentesco com você, não é? A mãe dela era irmã de seu pai. Pense nisso.

- Você ficará ligado à minha família!

- Isso torna a proposta melhor - disse Robert de Vere, e os dois riram.

Ricardo decidiu que iria dizer ao tio que ficaria muito feliz ao fazer de Robert seu camareiro.

Começara uma amizade muito forte.

Londres estava decidida a homenagear o novo rei. Em Cheapside, tinham erguido um castelo de flores do qual corriam dois fluxos de vinho. Havia quatro torrinhas e em cada uma delas achava-se uma jovem que tinha sido escolhida pela beleza e pela idade, que era a mesma da do rei. Quando Ricardo passou a cavalo, a caminho da Torre, foram jogadas sobre ele flores e folhas feitas de papel dourado. O séquito fez uma parada, e as jovens desceram das torres e encheram taças de ouro de vinho, que entregaram ao rei e seus acompanhantes. Depois, uma jovem vestida de anjo surgiu do castelo com uma coroa de ouro, que colocou na cabeça do pequeno rei.

A multidão ovacionou o rei. O povo estava orgulhoso do magnífico espetáculo que os londrinos tinham preparado, porque ele não só mostrava sua lealdade, mas também lembrava ao rei o poder que eles tinham e que se Ricardo quisesse reinar bem, nunca deveria esquecer os interesses de sua capital.

Ricardo ficou emocionado, e sua felicidade e seu deleite eram tão óbvios que aquilo aumentou a euforia geral.

Por toda a estrada que levava a Westminster tinham sido providenciadas alegorias como aquela, e embora nenhuma se igualasse à de Cheapside, eram impressionantes.

Multidões tinham-se reunido em torno da abadia, e quando o cortejo apareceu, liderado pelo jovem rei com Simon caminhando à sua frente, a espada desembainhada, os gritos foram ensurdecedores.

O bispo de Rochester fez o sermão e o arcebispo de Canterbury oficiou a cerimónia; e à medida que ela prosseguia e que Ricardo já não podia mais ouvir os gritos da multidão, ele começou a ficar muito cansado. O bispo parecia que não ia parar nunca, e depois houve a cerimónia de tirar o casaco e a camisa de Ricardo enquanto homens ficavam segurando um pano de cor dourada em torno dele como se fosse uma barraca, a fim de que nenhuma das pessoas reunidas na abadia visse seu corpo. Depois, ele foi ungido e as orações continuaram, intermináveis. Depois disso, houve os rituais da coroação. A coroa estava tão pesada que parecia forçar a sua cabeça para baixo. Depois, o cetro e a esfera com a cruz sobreposta foram colocados em suas mãos. As esporas foram entregues e o pálio que era pesadamente incrustado de jóias foi colocado sobre ele.

Ele sabia o que tinha de fazer. Tinha de caminhar até o altar e depositar sobre ele uma bolsa de ouro, mas mesmo isso não era o fim. Tinha de haver a missa e a comunhão depois dela, e ele estava achando cada vez mais difícil manter os olhos abertos.

Simon o observava, aflito. Ricardo sorriu palidamente para o seu querido guardião. "Falta pouco", parecia dizer Simon.

A coroa ficava cada vez mais pesada. Ricardo pensou que ela iria esmagá-lo; e seus ombros recusavam-se a suportar por mais tempo todos os seus trajes. Ele sentia uma vontade quase irresistível de escorregar para o chão e dormir.

Simon observava, cuidadoso, e compreendia. De repente, ele havia erguido o jovem rei nos braços.

- Está tudo bem - sussurrou ele. - Voltaremos para o palácio, agora. Vamos ter um descanso e tirar uma bela soneca antes do banquete.

- Simon...

O conforto daqueles braços era maravilhoso. Ricardo fechou os olhos, enquanto Simon seguia com ele pelas multidões assombradas e saía em direção à liteira sobre a qual um dossel de seda era sustentado por quatro administradores dos Cinque Ports.

- Ele é uma criança - murmurou Simon.

- Nosso reizinho está cansado - bradou o público. - Ele é uma criança, que Deus o abençoe.

Os vivas aumentaram. Ali estava o reizinho deles, tão bonito nos braços do bom Simon, que, era evidente, o adorava.

Enquanto Simon forçava a passagem pela multidão que se aproximava para olhar mais de perto seu rei, um dos sapatos de Ricardo caiu do pé, e enquanto Simon continuava seguindo apertado até a liteira, houve uma correria entre as multidões para pegar o sapato do rei.

Ricardo pegou logo no sono e pareceu que quase imediatamente Simon estava ao lado de sua cama. Estava na hora de se preparar para o banquete oficial.

- O senhor dormiu bem-disse Simon, delicado. - O senhor estava esgotado, meu rei.

Ricardo sentou-se na cama. Colocou as mãos na cabeça. Ainda podia sentir a coroa ali.

- Ela era tão pesada! - disse ele. Simon confirmou com a cabeça.

- Um símbolo de suas responsabilidades - comentou ele, sério. - Mas ainda não. Haverá muita gente para assessorá-lo... talvez gente demais.

Eu sou o rei, pensou Ricardo. Sou a pessoa mais importante do país. O povo me ama. Daqui por diante, vou cavalgar por entre ele, que irá me ovacionar e me amar para sempre. Mas tinha a esperança de que as cerimónias futuras não fossem tão cansativas quanto a coroação.

- Eu me saí bem, Simon? - perguntou ele, de repente um menino ansioso pela aprovação do tutor.

- Saiu-se muito bem, mesmo.

- Mas cair no sono quando você me pegou! Não me lembro de entrar no palácio. Depois, sonhei que ainda ouvia o público gritando.

- Foi um dia muito longo para o senhor - disse Simon, acalmando-o. - Acho que o povo passou a gostar mais do senhor por ter pegado no sono. Isso os tocou. Eles foram à loucura de amor pelo senhor quando me viram pegá-lo no colo e colocá-lo na liteira. O público é assim. Gosta muito de um toque de natureza humana. O senhor perdeu um sapato.

- Que fim ele levou?

- Caiu do seu pé. Houve uma correria para pegá-lo. Vi um homem pegá-lo, levantá-lo e beijá-lo.

- Que bom. Ele irá guardá-lo para a vida toda como o seu bem mais precioso.

- É bem possível que o venda - disse Simon. - O sapato tinha jóias incrustadas e, sem dúvida, poderá render mais do que aquilo que o homem conseguiria confortavelmente com o trabalho de um ou dois anos.

- Imagine só - refletiu Ricardo. - Um homem teria de trabalhar um ano ou dois para comprar um sapato que perdi e do qual não sinto falta.

- Está na hora de se preparar para o banquete - disse Simon. E que banquete, aquele que foi servido em Westminster Hall!

Antes de comparecer, Ricardo criou quatro novos condes. Um deles foi o mais moço dos seus tios, Thomas de Woodstock, que ele fez conde de Buckingham.

Sentado à Mesa Alta cercado por toda a nobreza do país, Ricardo vibrou de emoção - não apenas porque estava no centro da festa e porque de um segundo filho sem grande importância ele passara a ser a pessoa mais importante do país. Era mais do que isso. Era a glória da posição de rei, de pertencer a uma linha de reis, de ter o orgulhoso sangue Plantageneta, de ter descendido do poderoso Conquistador.

Ele jamais poderia explicar aquilo aos seus meio-irmãos Holland; eles iriam rejeitar aquilo com uma piada. Simon ou sua mãe poderia transformar a ocasião numa lição, uma repetição de mais homilias sobre a importância e a necessidade de servir ao país.

Ricardo imaginou se poderia explicar aquilo ao novo amigo, Robert de Vere. Ele tentaria, na primeira oportunidade.

Enquanto isso, ali estava ele, sentado à mesa sobre a plataforma, cercado pelas mais altas personalidades do país; e às mesas no piso principal, cada um dos presentes era um nobre ou uma autoridade.

De repente, ouviu-se um grito no salão. As portas foram abertas de supetão e no salão entrou, a cavalo, um cavaleiro em armadura completa.

Os arautos berraram, em vozes canoras, que o cavaleiro, Sir John Dymoke, viera desafiar para um combate quem quer que questionasse o direito do soberano ao trono.

Quando Dymoke, então, tirou sua manopla e jogou-a no chão, fez-se silêncio em todo o salão. Ninguém falou.

A manopla foi devolvida a Dymoke, que repetiu o desafio mais duas vezes. Cada vez o desafio foi recebido com silêncio.

Não havia, entre os presentes, quem negasse o direito de Ricardo a assumir a coroa da Inglaterra.

Ricardo sabia o que esperavam dele. Apanhou uma taça de prata que estava cheia de vinho. Bebeu dela e entregou-a a Dymoke, que bebeu ao seu senhor soberano e, esvaziando a taça, saiu com ela.

A cerimónia do desafio estava terminada, e o banquete começou.

Nas ruas de Londres, os folguedos continuavam. O povo cantava e dançava e revigorava-se bebendo das fontes que jorravam vinho.

Não se comemorava uma coroação todo dia.

Estava tudo bem. O verdadeiro rei fora proclamado. Eles o tinham visto com a coroa na cabeça. Eles tinham sabido do desafio de Sir John Dymoke, que ninguém aceitara.

Eles tinham o verdadeiro rei da Inglaterra no trono-um menino cuja mocidade e beleza davam a ele um atrativo especial. Acabara toda a apreensão, o medo de que o malvado John de Gaunt tentaria conquistar a coroa.

- Vida longa para Ricardo de Bordeaux, agora Ricardo II da Inglaterra!

John de Gaunt percebeu que nada havia que ser feito, a não ser submeter-se, com dignidade, ao progresso dos acontecimentos. As forças contra ele tinham sido fortes demais e ele precisava recolherse ao silêncio por algum tempo; precisava convencer o povo de que não era sua intenção tirar o trono do sobrinho, e agora queria que o vissem no papel de principal apoiador do jovem rei.

Ele tivera de ceder no caso de Peter de Ia Maré, que era, aos olhos dos londrinos, não apenas um herói, mas um mártir. Os homens mais perigosos de todos eram mártires. Há muito tempo que John sabia disso. E quando o povo clamou pela libertação de Peter de Ia Maré, John expressou seu acordo.

Disse que iria reconciliar-se com Peter de Ia Maré. O início de um novo reinado era o momento para os homens esquecerem suas diferenças.

Mas John ficou muito despeitado ao saber da triunfante passagem de Peter de Ia Maré por Londres, onde foi recebido com quase tanto entusiasmo quanto o que tinha sido mostrado para com o jovem rei.

Era mais uma indicação da falta de amor que o povo sentia por John de Gaunt quando o público festejava daquela maneira seus mais ferrenhos inimigos.

No entanto, como isso era verdade, John não devia fechar os olhos para os fatos.

O rei estava cercado por assessores, e três dias depois da coroação seu novo conselho foi eleito.

Isso fora feito com muito cuidado, a fim de que todos os partidos estivessem representados. O tio do rei, Edmund, encabeçava a lista; William Courtenay, bispo de Londres, era outro; e a escolha dos demais fora feita com tanto cuidado que para cada membro que apoiava John de Gaunt havia um do partido contrário.

Era significativo o fato de John de Gaunt não estar incluído. Ele não queria demonstrar que ficara ressentido com isso. Como também não ficou muito. Edmund faria exatamente aquilo que ele lhe dissesse, e John preferia agir através do irmão do que pessoalmente.

No novo Parlamento havia uma maioria de membros que tinham participado do bom Parlamento que se opusera a John, e Sir Peter de Ia Maré fora escolhido como presidente.

É claro que um homem como John de Gaunt - o mais rico do país e o primeiro, em importância, depois do rei por nascimento não podia ser ignorado de todo, e quando se formou um comité assessor, seu nome apareceu em primeiro lugar na lista.

Essa lista foi lida em voz alta na presença do rei, e John provocou um incidente dramático quando, para espanto de todos os presentes, levantou-se da cadeira e caminhou até o trono em que o rei estava sentado.

Houve um silêncio tenso no castelo, e quando John falou, todos puderam ouvir nitidamente o que ele disse.

- Meu rei, rogo humildemente que ouça minhas palavras. Falo levado pela preocupação não apenas com o senhor como meu soberano, mas com o senhor como pessoa. Esta câmara escolheu-me para ser um de seus assessores, mas isso eu não posso aceitar enquanto não tiver me livrado das acusações feitas contra mim. Calúnias foram ditas.

Trata-se de mentiras cruéis, mas que tocaram a minha honra. Indigno eu sou, mas sou filho de Eduardo III e depois do senhor, meu rei, o maior dos pares do reino.

Esses rumores maldosos que foram espalhados a meu respeito, se verdadeiros... que Deus me livre... representariam traição. Majestade, até que a verdade seja conhecida, não posso fazer coisa alguma. Vossa majestade verá que tenho mais a perder por traição do que qualquer outro homem na Inglaterra. Afora isso, seria estranho e assombroso se eu me afastasse tanto assim das tradições do meu sangue. Que qualquer homem, seja qual for seu grau, tenha a coragem de acusar-me de traição, deslealdade ou qualquer ato que pudesse prejudicar este reino, e eu me defenderei com meu corpo.

Os membros ouviam assombrados. Era uma cena empolgante, aquele grande homem magnificamente trajado ajoelhado diante do sobrinho, um menino frágil.

Quando John se levantou, os membros adiantaram-se. Estavam emocionados. Disseram que ele não devia ir embora. Devia ficar junto ao rei. Eles precisavam de sua competência e de sua experiência.

Não, replicou John com firmeza. Ele precisava de tempo para refletir. Tinha de mostrar ao país que sua ambição era apenas servir àquele país.

Houve protestos contra aqueles que o tinham caluniado. Ele sorriu.

- Muito me agrada, meus senhores - disse ele -, o fato de terem pelo menos reconhecido a verdade disso.

Quando Alice Perrers foi levada a julgamento, John não tentou defendê-la e manteve-se afastado enquanto a sentença proferida pelo bom Parlamento foi confirmada.

Parecia, de fato, que John de Gaunt tinha ou esquecido suas ambições ou nunca as tivera, e que apenas conseguira cair no desagrado do povo, que inventara histórias sobre ele, como a do seu nascimento, que se provara serem totalmente absurdas.

Ele deve ficar e tornar-se assessor do sobrinho, era a opinião. Está profundamente magoado com as calúnias que andaram circulando e quer uma garantia de que acreditamos na sua boa fé.

No palácio do Savoy, John conversou sobre seu futuro com Catherine.

- O que você acha-perguntou ele - de nos mudarmos para Kenilworth e vivermos lá, em paz e sossego, por algum tempo?

Ela o olhou, incrédula.

- Você não pode estar falando sério!

- Estou pensando nisso-disse ele.-Você, eu e as crianças... Eu poderia ser um gentil-homem do campo... por uns tempos.

A fisionomia de Catherine revelou sua alegria. Depois, ela ficou cética.

- Mas você não iria! Não poderia ir...

- Iria, sim. Gosto de ver os meus pequeninos Beaufort crescendo. É bom pensar no que posso fazer por eles. E há os outros, também.

- O que deu em você? Não pode sair desse ambiente. Ele é sua vida. E você está indicado para ser um dos assessores do rei.

- Eles agora estão amáveis... Pelo menos o Parlamento, mas meus inimigos lá estão. O povo está apaixonado por um menino bonitinho. As pessoas o adoram... e é bem possível que continuem assim enquanto ele for um belo menino. E o tio malvado... Como odeiam o tio malvado, Catherine! Tentaram destruir o palácio dele com um incêndio. Lembra-se?

- Jamais esquecerei - disse ela, com um tremor.

- É... tenho um novo papel a representar: o tio magoado, o homem honesto que não fará qualquer coisa enquanto sua honra não for comprovada. É um papel novo para mim, Catherine. Não é fácil, mas acho que vou representá-lo melhor no interior... longe da corte. Digamos... Kenilworth... Leicester ou outra das propriedades. Vamos morar juntos, você e eu... como o bom proprietário rural e sua esposa. O que acha?

Ela se atirou nos braços dele.

- Meu senhor, acho que serei a mulher mais feliz da Inglaterra.

Ricardo crescia depressa e aprendia que nem tudo era glória na função de um rei. As pessoas não ficavam encantadas para sempre com seu governante simplesmente porque ele possuía uma juventude atraente e um rosto bonito.

A morte de Eduardo, enquanto possível, fora escondida dos franceses, que sem dúvida alguma perceberiam que o velho inimigo tornara-se um tanto vulnerável. Ô antigo rei, mesmo quando ia ficando senil e se tornava escravo de seu desejo, ainda era o velho guerreiro; sua imagem só poderia morrer com ele. Mas agora estava morto, e havia um garoto no trono, e a trégua entre os dois países estava chegando ao fim.

Eles não demoraram muito a mostrar suas intenções. Frotas de navios, vindas da França e de Castela, chegavam até o litoral da Inglaterra. A ilha de Wight foi invadida e saqueada; chegaram a avançar até Gravesend, e a fumaça da cidade incendiada podia ser vista do burgo de Londres.

Aquilo nunca poderia ter acontecido na época do antigo rei, lamentava-se o povo.

Ricardo ficou deprimido. Não era aquilo que esperara das funções de um rei.

Não se esperava que John de Gaunt ficasse contente com a vida tranquila por muito tempo. Foi levantado um subsídio para fazer a guerra na França, e John de Gaunt voltou para a vida pública e começou a preparar a frota para entrar em ação.

Ele ficou no litoral enquanto os navios eram preparados, e Catherine permaneceu com ele.

Os dois saíam juntos a cavalo; inspecionavam os navios juntos; comportava-se com ela como se fosse sua esposa legítima.

O povo ficava perplexo. Homens naquelas posições podiam ter suas amantes - na verdade, quase sempre tinham -, mas esperava-se que se portassem com discrição. No entanto, John de Gaunt desprezava as convenções. Era como se estivesse dizendo a eles que era importante demais para observar as regras gerais. Não se importava com que soubessem que se casara com a esposa negligenciada por ambição. Ele queria respeitar Catherine Swynford, e todos deveriam fazer o mesmo.

O povo ressentia-se com isso; em especial por esperar-se que o povo pagasse impostos para ajudá-lo a recuperar o trono de Castela. Ele até se intitulava rei de Castela, o que era um constante lembrete de sua atitude cínica para com o casamento. Sua pobre esposa era desprezada e, segundo parecia, sofria de algum problema que a impedia de ter filhos. Ela tivera apenas uma filha, enquanto Catherine Swynford tinha quatro bastardos, todos tratados como membros da família real.

Quem é ela? - perguntavam as pessoas umas às outras. Não é melhor do que nós! E lá está ela, passeando a cavalo como uma duquesa!

O público não a maltratava ativamente. Tinha medo dos franceses, e os recentes ataques de surpresa assustaram a todos. Eles esperavam que John de Gaunt cruzasse os mares com sua frota e os livrasse daquele inimigo tão temido.

A pequena popularidade que ele pudesse ter ganhado pelo comportamento que tivera na coroação logo depois foi perdida, quando parte da frota foi derrotada pelos espanhóis e o resto voltou para casa depois de fracassar por completo na realização de seu objetivo.

Então aconteceu outro incidente que deixou o povo resmungando contra ele uma vez mais.

Havia dois proprietários rurais, Robert Hauley e John Shakyl, que tinham adquirido um destaque repentino depois da batalha de Nájara. Os dois tinham capturado um nobre importante, o conde de Denia, e, segundo o costume da época, esperavam conseguir uma bela soma com aquela aventura. Era essa, afinal, uma das razões pelas quais tantos cavaleiros iam à guerra, e um dos mais valiosos rendimentos do combate era o que se podia obter com resgates. E naturalmente, quanto mais elevado o nível do cativo, maior a recompensa esperada...

O conde fora solto quando o filho foi entregue aos dois gentishomens como refém; e como tudo isso acontecera dez anos antes, o menino agora estava um rapaz, enquanto o conde ainda tentava levantar o dinheiro do resgate.

No outono daquele ano, um representante do conde tinha ido à Inglaterra com parte do resgate, na esperança de que aquilo fosse aceitável e o filho dele fosse libertado. Os dois proprietários de terras, no entanto, depois de manterem o refém por dez anos, não iriam aceitar menos do que a quantia exigida, e recusaram-se a conversar com ele.

Foi a essa altura que o governo entrou na história, e Hauley e Shakyl receberam ordens de entregar o refém ao Conselho. Depois de esperar dez anos, nos quais tinham vivido na expectativa de uma soma de dinheiro muito alta, os dois, muito naturalmente, recusaram-se. Como isso foi considerado um desrespeito para com o governo, e os dois foram acusados de transformar sua casa numa prisão particular, ordenou-se que eles fossem mandados para a Torre.

Quando souberam que deveriam ser presos, contaram ao refém, Alfonso, o que se passava. Alfonso era um jovem de linhagem aristocrática, porque o conde Denia, que também era marquês de Villena, era aparentado da família real de Castela - um fato de que ele nunca se esquecera e que os dois proprietários rurais sempre respeitaram. Alfonso sempre fora bem tratado por eles e havia muito que deixara de considerar-se um prisioneiro. Era simplesmente um companheiro dos rapazes, aguardando o dia de seu regresso para sua família.

Robert Hauley explicou-lhe a situação de forma sucinta.

- Seu pai não ficará liberado da necessidade de pagar o dinheiro do resgate. Só que terá de pagá-lo ao governo, em vez de a nós. Você acha isso justo? Durante todos esses anos, você tem morado conosco e nós nos tornamos amigos. Você não guarda rancor de nós. Seu pai foi capturado na guerra e, de acordo com o costume e considerando-se o nível dele, deveríamos ter recebido uma recompensa por entregá-lo.

O jovem Alfonso viu o bom senso daquilo. Era verdade que ele não se sentira infeliz. Passara a gostar de Robert Hauley e John Shakyl, e parecia-lhe que se pessoas ocupando altos cargos iam intrometer-se no caso, poderia ser pedido um resgate mais elevado.

- Muito em breve eles virão nos buscar - disse Robert. Iremos para a Torre, e você se tornará prisioneiro do governo.

- Eu preferiria ser de vocês - respondeu Alfonso.

- Bem, tenho um plano-disse Robert, o mais aventuroso dos dois gentis-homens. - Vamos ser levados para a Torre, mas por que você não poderia vir conosco?

- Como isso pode acontecer? - perguntou John Shakyl.

- Vamos dizer a eles que Alfonso foi embora. Fugiu. Eles vão pensar que o escondemos. Pouco importa. Alfonso irá conosco para a Torre... como nosso criado.

John Shakyl estourou numa gargalhada.

- Que plano! Enganá-los nas barbas deles!

- Bem, Alfonso, não podemos fazer isso sem o seu consentimento, é claro. O que tem a dizer?

- Será que vão permitir que vocês levem um criado?

- É o costume. Afinal, não cometemos crime algum e somos de boas famílias. Eles devem nos tratar bem.

- Eu concordo-bradou Alfonso. - É uma questão de honra. Foram vocês dois que capturaram meu pai, e o resgate deve ser de vocês.

- Eu sabia que você ia pensar assim, Alfonso - bradou Robert. - Agora, vamos nos preparar. Você terá de adotar uma atitude ligeiramente menos arrogante, sabe? Lembre-se de que não pertence à casa real, mas é um humilde empregado.

Para os dois homens e para o jovem Alfonso, a coisa toda era como que uma brincadeira; e os três acabaram alojados na Torre, onde, como Robert dissera que seriam, foram bem tratados; mas se recusavam a dizer qualquer coisa sobre o paradeiro do refém.

As semanas começaram a passar. Alfonso estava gostando de fazer o papel de criado, e o caso era uma divertida aventura. Mas eles estavam ficando inquietos; e o sucesso em enganar as autoridades que até ali tinham conseguido fez com que ficassem mais ousados, e planejaram fugir. Não era tão difícil. Não estavam sendo considerados prisioneiros importantes. Um pouco de vinho com algo dentro que pudesse ser levado às escondidas para a Torre por um suborno ou dois, e chaves tiradas dos bolsos de um guarda que entrara em estupor alcoólico, e os três estavam livres.

Foram detectados ao saírem da Torre e começou a perseguição. Não haviam planejado a coisa daquela maneira, e era necessário decidir depressa o que fazer. Robert, o mais engenhoso dos três, disse que deveriam seguir imediatamente para o santuário; caso contrário, seriam capturados e podiam estar certos de que se o fossem não seria tão fácil tornar a fugir.

Por isso, foram a toda velocidade até Westminster e abrigaram-se na abadia.

Para Sir Alan Buxhull, o administrador da Torre, que chegara àquele cargo por intermédio de John de Gaunt, de quem ele era um ferrenho partidário, teria reflexos em sua capacidade de guardião o fato de prisioneiros poderem fugir com tanta facilidade, e ele decidiu levá-los de volta para a Torre; e mesmo quando soube que estavam na abadia, resolveu segui-los até lá e partiu com Sir Ralf Ferrers, outro homem de John de Gaunt, e guardas armados da Torre.

Na abadia, eles conversaram com os três, instando-os a sair do santuário. Shakyl acabou saindo, por sentir que o caso deles não tinha esperança, e Sir Alan Buxhull o convencera de que se se entregasse iria apenas voltar ao seu confortável quarto na Torre e não haveria recriminações.

Robert Hauley não foi convencido com tanta facilidade. Estava decidido a não sair do santuário, e foi o que disse.

- Vocês não podem me fazer mal aqui - disse ele. - Eu reivindico o santuário da Casa de Deus.

- Você está resistindo às ordens do rei e de seus ministros bradou Buxhull.

- Eles foram gananciosos e injustos - retorquiu Hauley. - Ficamos com o refém durante quase dez anos. Agora, vocês querem tirá-lo de nós.

A paciência do administrador estava se esgotando. Não queria ser contestado. Deu uma ordem a seus homens.

- Agarrem-no.

Hauley tentou correr de seus perseguidores e, ao fazê-lo, entrou na capela onde estava sendo celebrada uma missa.

Houve confusão entre os monges assustados quando Robert Hauley correu por entre eles seguido pelos guardas armados. Então, um dos guardas atravessou com a espada o corpo de Hauley, e o gentil-homem caiu mortalmente ferido nos degraus do altar.

Fez-se um silêncio completo na abadia. Os monges olhavam fixamente, horrorizados, para o corpo manchado de sangue. Aquilo era uma violação do santuário. A abadia tinha sido profanada por um assassinato e os assassinos eram empregados do rei.

O caso não podia ser abafado, mesmo quando se descobriu que o criado era o filho do conde de Denia.

Ele estava, agora, em mãos do governo, e John Shakyl foi solto da Torre, porque se esperava que o caso todo fosse esquecido.

Mas não foi. O bispo de Londres ficou horrorizado. Aquilo fora mais do que o assassinato de um proprietário rural que desafiara o governo. O bispo via, naquilo, uma tentativa de cercear a santidade da Igreja.

O santuário fora desrespeitado, e, portanto, as leis da Igreja tinham sido violadas.

Tinha de haver bodes expiatórios.

Sir Alan Buxhull não tivera direito de levar seus guardas armados para dentro da abadia. Ele e Sir Ralf Ferrers eram os pecadores. Deviam ser demitidos de seus cargos e levados a responder pelo que tinham feito.

Mas eles eram homens de John de Gaunt; e ele não queria que fossem substituídos. Era conveniente para ele ter partidários seus em postos importantes, e o de administrador da Torre era muito especial.

O assunto deveria ser abafado, disse John de Gaunt. Que agitação por causa de um homem imprudente que tentara desafiar o rei e o governo. O refém estava, agora, em mãos do governo e o caso poderia ser resolvido de forma satisfatória. Um dos proprietários rurais estava livre e devia ter aprendido uma lição. Quanto ao outro, a lição dele fora mais amarga; que servisse como exemplo para outros que pudessem tentar fazer a lei por suas próprias mãos.

A Igreja hesitou durante algum tempo. Não era aconselhável entrar em conflito aberto com o Estado. Por outro lado, era igualmente insensato ceder. Foi Courtenay, o bispo de Londres, que mostrara sua ousadia em mais de uma ocasião, que decidiu tomar uma providência.

Numa cerimónia na catedral de St. Paul, ele solenemente excomungou Sir Alan Buxhull, Sir Ralf Ferrers e todos aqueles que direta ou indiretamente estavam envolvidos no assassinato.

O bispo declarou, abertamente, que não estava incluindo o duque de Lancaster e a rainha-mãe na excomunhão e, ao comunicar isso, estava dando a entender que até certo ponto eles eram responsáveis pelo que acontecera.

Era, outra vez, a batalha entre a Igreja e o Estado; e como John de Gaunt estava apoiando Wycliffe, que queria mudanças na Igreja, parecia coerente com os pontos de vista dele que ele agora devesse estar apoiando aquele que permitira que a abadia fosse profanada.

John de Gaunt, na verdade, não tivera participação alguma no assassinato, mas como o povo começasse a tomar partidos, ele se lançou na discussão. Quis investir contra seu velho inimigo, o bispo de Londres, e embora, se ele tivesse ficado quieto, aquilo pudesse ser uma disputa entre o bispo e os monges contra o Conselho do rei, devido a seu interesse a coisa ficou mais importante.

Quando o bispo foi convocado a comparecer perante o Conselho em Windsor, ele se recusou, e John foi atrevido bastante para exclamar, na presença de muitas pessoas que iriam correr para divulgar o que ele dissera:

- vou arrastar o bispo até aqui, apesar dos grosseiros patifes de Londres.

A disputa irrompera de novo.

Agora as pessoas perguntavam o que acontecera com todo o dinheiro que tinha sido arrecadado para a frota e o exército. Seguiu-se um período inquieto, em que contas foram examinadas, mas John conseguiu provar que o dinheiro tinha sido gasto de forma adequada.

O que era ainda mais grave, havia problemas fermentando por todo o interior. Nas aldeias, homens conversavam juntos; perguntavam-se por que deviam trabalhar com tanto afinco e por tão pouco; por que deviam ser os escravos de seus senhores?

A Morte Negra os fizera ficar cônscios de sua importância. Houvera época em que não havia trabalhadores suficientes para arar a terra; então, eles tinham pedido salários mais altos e fora promulgada uma lei contra eles. A lei dissera que eles tinham de trabalhar para seus patrões nas mesmas condições em que trabalhavam antes da chegada da peste, o que significava ainda mais dificuldades, porque o custo de vida subira depois que o terrível flagelo tinha passado; por isso, em vez de ficarem mais ricos, como deveriam ter ficado, já que o trabalho deles estava com uma procura maior, eles ficaram mais pobres do que antes.

Para eles parecia que os patrões armavam tudo em proveito próprio.

E agora, devido àquela guerra sem fim com os franceses, havia um novo imposto - o Imposto de Capitação, que as pessoas deveriam pagar de acordo com a sua renda. Arcebispos e duques pagavam seis libras, treze xelins e quatro pence cada, e a um trabalhador comum cobrava-se quatro pence.

Apesar dessa ordem, o dinheiro não entrava, e era necessário mandar coletores às cidades e aldeias para fazer a cobrança.

A lei mandava que todas as pessoas com mais de quinze anos deveriam pagar.

Ricardo já estava no trono havia quatro anos, e tinham sido quatro anos deprimentes. Ao final deles, o país estava numa situação pior do que aquela em que se encontrava quando da morte do rei anterior. Os franceses provocavam encrencas; os escoceses aproveitavam-se da situação; o bicho-papão do país era John de Gaunt, que fracassara miseravelmente em suas expedições ao continente. Havia um farfalhar de rebelião em todo o país, e ele estava ficando cada vez mais alto. O descontentamento grassava entre os camponeses. Eles perguntavam uns aos outros por que havia homens condenados a trabalhar a vida inteira para os outros. Quem decidia se um homem devia ser um servo feudal ou um senhor?

Os que estavam nas altas esferas não sabiam o que se passava. Não viam a tempestade que se formava, até que ela desabou sobre eles.

 

HAVIA UM HOMEM que acreditava com tanto fervor que havia muita coisa errada com o modo de vida na Inglaterra que decidiu dar a sua vida, se necessário, para mudá-la.

Esse homem era John Bali, um padre que começara a carreira na abadia de St. Marys, em York. Muito cedo, descobriu estar em conflito com as autoridades porque não apenas defendia ideias controvertidas, mas não parava de falar nelas.

Ele tinha visto o que acontecera depois da Morte Negra e deplorava o fato de que apesar de os trabalhadores da terra terem sido considerados importantes para o bem-estar do país, eles continuavam a ser tratados como servos; e quando seu trabalho teve uma grande procura e havia todos os motivos para supor que poderiam ter pedido um salário mais alto pelos seus serviços, tinham sido completamente subjugados pelos patrões e obrigados a trabalhar pelo mesmo salário que recebiam quando eles existiam em abundância.

Por que, perguntava a si mesmo e a outras pessoas, deveriam alguns, meramente devido ao lugar onde nasceram, viver dos frutos do trabalho de outros?

O lema de John Bali era:

"Quando Adão trabalhava e Eva tecia, Quem era o nobre?"

Era o seu tema preferido. Nós todos não descendíamos de Adão e Eva? As Escrituras diziam-nos que sim. Por que, então, alguns de nós deviam ser mais favorecidos do que outros?

John Bali era um pregador nato. Adorava falar e sentia um grande prazer em expor suas ideias a outras pessoas. Ele ia para o relvado da aldeia, e as pessoas cercavam-no em grande número para ouvir seus sermões. Estes eram diferentes de quaisquer outros que haviam ouvido. As ideias dele sobre a Igreja eram semelhantes às de Wycliffe; mas, além da reforma da Igreja, John Bali queria a reforma da sociedade.

Depois de o ouvirem falar, os servos feudais voltavam para os seus casebres e seu passadio insuficiente e pensavam na mansão ali perto, na qual morava o dono da propriedade. Ele era servido por inúmeros criados; sua mesa arqueava com o peso de boas coisas para comer. Aqueles que trabalhavam nas cozinhas dele consideravam-se afortunados, porque algumas migalhas da mesa do homem rico chegavam até eles. No entanto, argumentava John Bali, como isso acontecera? Todos eles tinham os mesmos antepassados, não tinham? Adão e Eva? E no entanto, alguns tinham nascido em mansões, outros em casebres escuros, alguns, talvez, debaixo de uma cerca.

Era fascinante escutá-lo, e aquilo que muitos tinham aceitado antes como vontade de Deus agora era questionado.

Não demorou muito para que John Bali fosse notado, como deveria ser qualquer pessoa que pregasse uma doutrina daquelas. Além do mais, sempre que ele pregava, as pessoas iam em grande número para ouvi-lo. Aquilo era desconcertante. Mais do que isso. Era perigoso.

Aos domingos, ele esperava até que as pessoas saíssem da missa e então começava a pregar na praça principal. Ele possuía uma qualidade magnética, e muita gente achava difícil passar sem parar. Além disso, suas palavras eram muito emocionantes. O público, sem dúvida alguma, nunca tinha ouvido coisa igual antes.

Um dia, ele estava em seu lugar habitual e pouco depois se dirigia à multidão.

Meus bons amigos-bradou ele -, as coisas não podem ir bem na Inglaterra ou jamais irão enquanto tudo não for de todos, até que não haja nem servo nem senhor e todas as distinções sejam eliminadas, que os lordes não sejam mais senhores do que nós. Como eles têm abusado de nós! E por que nos mantêm em servidão? Não somos todos descendentes dos mesmos pais, Adão e Eva, e que motivos podem dar para que devam ser mais senhores do que nós... exceto, talvez, o de nos fazer trabalhar para que eles gastem? Eles se vestem de veludo e tecidos ricos, ornamentados com arminho e outras peles, enquanto nós somos obrigados a usar tecidos inferiores. Eles têm vinho, especiarias e pão de qualidade, enquanto nós temos apenas centeio e o refugo da palha; e se bebemos, deve ser água. Eles têm belas casas de campo e propriedades rurais, quando temos de enfrentar o vento e a chuva no campo. E, meus amigos, é do nosso trabalho que eles tiram os recursos para sustentar essa pompa. O que mais lhes faltará quando vocês não tiverem senhores? Não lhes faltarão os campos que tiverem cultivado nem casas que vocês construíram, nem panos que vocês tiverem tecido. Por que um homem deve roçar a terra para outro?

Se John Bali estava ciente da presença de estranhos na multidão que o ouvia, não deu a perceber. Não se importavacom quem o ouvia. O que ele dizia era verdade.

Continuaria expressando-a porque acreditava nela. Não importava o que lhe acontecesse, ele continuaria a dizer a verdade, diante do rei, diante do papa, diante de Deus.

Mas aquilo já não podia ser chamado de arenga de um padre louco. Aquilo era o rimbombar de uma revolta.

John Bali estava se tornando uma ameaça à segurança.

Não demorou muito e ele recebeu uma ordem de comparecer perante o arcebispo de Canterbury.

Simon de Sudbury - assim chamado por haver nascido na cidade daquele nome em Suffolk - tornara-se arcebispo de Canterbury cerca de quatro anos antes. Ele era um forte adepto de John de Gaunt e não poderia ter havido um homem menos parecido com o padre John Bali. Simon não era homem de se deixar envolver em doutrinas; no início, ficara perturbado pelo surgimento de John Wycliffe, mas preferira esquecê-lo, em especial porque John de Gaunt tendia a ser a favor do pregador. Mas Courtenay, o bispo de Londres, era de índole muito diferente. Ali estava um homem que defenderia aquilo em que acreditasse, ainda que ao fazê-lo perdesse o cargo.

Simon de Sudbury podia muito bem viver sem aqueles homens incómodos e sem um homem como John Bali.

O homem ficou ali de pé à sua frente e teve a temeridade de repetir o que andara dizendo nas praças principais. O arcebispo pôde perceber o fanatismo apaixonado do homem e percebeu logo que era perigoso. Não se devia deixar que gente como John Bali percorresse o interior incitando o povo à revolução.

O arcebispo percebeu que não adiantava admoestá-lo. Ele já estivera em dificuldades antes. O povo fora proibido de comparecer às suas reuniões - mas isso não impedira que as pessoas fossem. Ele fora excomungado, mas ninguém - muito menos John Bali ligara muito para isso.

Só havia uma coisa a fazer com um homem daqueles, e era colocá-lo em um lugar onde ele não pudesse pregar, de modo que o arcebispo sentenciou-o a uma temporada na prisão de Maidstone.

Ele devia ficar por lá, onde não poderia fazer mal algum. Em breve, o povo iria esquecê-lo e também suas perigosas doutrinas.

Mas o povo não se esqueceu de John Bali. Suas palavras eram lembradas. Quando homens trabalhavam nos campos por uma ninharia, quando se perguntavam de onde viria a próxima refeição e quando as crianças sentiam fome, eles se lembravam de John Bali. Por que tinha de ser assim?, perguntavam. Viam os ricos passarem em seus belos cavalos, com seus belos trajes e seus criados. Por quê?, perguntava o povo. Como fora que isso acontecera? Eles não tinham, todos, começado com Adão e Eva? Quem era, então, o cavalheiro?

O ressentimento aumentava quando os coletores passavam para cobrar impostos. A coletoria tornara-se uma ocupação um tanto perigosa, e só entrava para ela quem recebesse a promessa de grandes recompensas.

Houve um padeiro de Fobbing, em Essex, homem de grande força, que se recusou a pagar o imposto e que deixou o cobrador tão horrorizado que ele não insistiu.

Esse padeiro foi motivo de comentários por todo Essex, e os habitantes de Fobbing transformaram seu padeiro em herói e o teriam seguido se ele os liderasse. Mas o padeiro de Fobbing não tinha vontade alguma, a não ser a de continuar fazendo seu pão, e foi o que fez; mas dera a eles uma indicação de que a resistência não era impossível.

Num dia de maio, o coletor visitou a casa de um telhador na cidade de Deptford e exigiu o pagamento do imposto.

O dono da casa, Walter, estava perto dali, fazendo seu trabalho de colocar telhas numa casa, e duas mulheres, sua esposa e sua filha, estavam sozinhas.

O coletor exigiu o imposto não só da mãe mas da jovem, diante do quê a mulher disse:

- Minha filha ainda não fez quinze anos e, portanto, não paga imposto.

- O quê? - disse o coletor, lançando um olhar lascivo para a jovem. - Essa daí ainda não tem quinze anos!

Ele se aproximou da jovem e segurou-lhe o queixo. Obrigou-a a olhar para ele. A menina tremia de medo. A mãe observava, horrorizada, porque tinha ouvido histórias sobre como aqueles coletores podiam se portar e que não havia como pedir reparação, porque eles estavam trabalhando para o governo, e não era fácil conseguir homens que assumissem a desagradável tarefa de arrecadar impostos.

- Não tem quinze anos! Ora, ela é uma bela menina crescida. Estou vendo isso. Ainda não tem quinze anos. Venha.

Ele puxara o vestido dela, rasgando-o de modo que a parte superior do corpo da jovem ficou exposta.

A jovem gritou. A mãe saiu de casa correndo, pedindo socorro.

O coletor riu e agarrou a jovem.

Dentro de poucos instantes, o pai da moça estava na porta. Na mão, segurava a machadinha de carpinteiro com a qual estivera trabalhando.

- Tire as mãos da minha filha, seu maldito - bradou ele.

O coletor voltou-se para ele. Ele levava uma faca, porque os coletores andavam bem armados.

- Como ousa tocar na minha filha? - prosseguiu o telhador.

- Ela é uma meretriz que está no ponto - disse o coletor, lambendo os lábios. - Deixe-nos, Tyler. Nós vamos nos distrair juntos e, quem sabe?, eu talvez não cobre o imposto dela.

A resposta do telhador foi erguer a machadinha e arriá-la na cabeça do coletor. Em poucos segundos o coletor jazia no chão, o sangue jorrando do corpo.

- Ele está morto - disse a jovem, e atirou-se soluçando nos braços de sua mãe.

O barulho da refrega espalhara-se pela vizinhança e chegava gente para ver o que tinha acontecido.

O telhador ajoelhou-se ao lado do coletor. Viu que a filha dissera a verdade.

O homem estava morto.

- O que você vai fazer? - perguntaram. - Você sabe o que isso significa.

- Você precisa fugir - disse a mulher dele. - Wat, eles vão sair atrás de você. Vão se recusar a acreditar no tipo de homem que ele era. Vão dizer que você agiu errado. Wat, você tem de ir embora.

Walter olhou para a frente com olhos vidrados.

- O que vou fazer? - disse ele. - Devo fugir? Deixar minha mulher, meus filhos... fugir pelo resto da vida?

- Você fez o que era certo, Wat - disse um dos homens. Eu teria feito a mesma coisa.

- Eu também. Eu também.

- Maldito seja o imposto. Malditos sejam os coletores. Para que fim é o imposto?

- Para comprar jóias para os ricos.

- Por que eles devem ficar com aquilo pelo qual nós trabalhamos? Por quê, por quê, por quê...? Nós todos não viemos de Adão de Eva?

- Eles nunca nos darão aquilo que deveríamos ganhar - disse Walter. - Acho que a única maneira de conseguirmos é tirando.

- Vamos tirar. Vamos marchar. Vamos marchar contra Londres.

Alguma coisa acontecera com Walter, o Telhador. Até então, ele

 

*Tyler. telhador. Na época, a profissão podia ser usada como sobrenome de quem a exercia. (N. do T.)

 

fora um cidadão pacífico. Mas matara um homem que tentara deflorar sua filha e não sentia remorso. Sentia apenas raiva.

Ele ouvira John Bali quando o padre passara por ali e concordara com o que o homem dissera, mas nunca acreditara que as palavras de um padre pudessem mudar alguma coisa.

Mas por que o mundo devia seguir por um caminho só porque o seguia havia tantos anos? Havia muito no que John Bali dissera. E ninguém conseguira algo pelo qual não lutasse.

Ali estava ele num momento decisivo de sua vida-obrigado a chegar até ele por um cobrador de impostos.

Matara um homem e seria descoberto. A morte aguardava-o uma morte horrível. Mas as pessoas observavam-no ansiosas. Estavam contando com ele. Estavam pedindo que ele as liderasse.

Mais e mais pessoas reuniam-se à sua volta.

Walter ouviu a si mesmo dirigindo-se a elas.

- Por que devemos continuar como estamos? Por que não mudarmos as coisas? Chegou a hora. Nós vamos marchar...

Ele ouviu um grito.

- Vamos marchar. Venham. Vocês todos, venham. Juntem-se a nós. Wat, o Telhador, vai nos levar até Londres.

Uma febre de excitação tomou conta da pequena cidade de Dartford. Poucas horas depois da morte do cobrador de impostos, eles estavam reunidos e prontos a marchar. Havia centenas deles. Tinham apanhado qualquer coisa que pudesse ser usada como arma. É verdade que essas armas eram do tipo mais primitivo que havia - a maioria as ferramentas de seus ofícios, como manguais, podadeiras e cabos de arados. Havia alguns piques. Mas o que lhes faltava em armas eles compensavam com o calor de sua determinação.

Aquilo seria o fim da escravidão. Não permitiriam mais que o governo mandasse servidores às suas cidades para tirar seu dinheiro e desonrar suas mulheres.

A notícia espalhou-se pelas aldeias vizinhas, e de todas as direções chegavam homens para juntar-se ao que chamavam de o exército de Wat Tyler.

Wat descobrira em si mesmo os dons da liderança, que tinham sido despertados pela visão de sua filha nas mãos do coletor. Ele tinha um certo dom da oratória, e o fato de que aquele exército irregular o tinha como líder era uma grande inspiração.

Ele falou à multidão e ficou impressionado com o silêncio que se fez assim que começou a falar, e a maneira de prestarem atenção às suas palavras foi um prazer.

- Meus amigos - bradou ele -, vamos corrigir o que está errado. Não vamos parar enquanto não tivermos conseguido. Mas não nos esqueçamos do homem que nos mostrou o caminho a seguir. Todos ouvimos suas palavras. Ele nos fez perceber a injustiça do nosso destino. Ele nos mostrou que temos tanto direito às boas coisas quanto nossos senhores. Eu me refiro a John Bali.

- John Bali é prisioneiro do arcebispo, Wat - bradou um homem. - Ele está na prisão de Maidstone.

- Eu sei - respondeu Wat. - Por isso, nossa primeira tarefa é libertá-lo.

- Para Maidstone-gritou a multidão.-Libertem John Bali! E assim começou a marcha para Maidstone. Era uma distância de cerca de 32 quilómetros, e quando eles passavam pelas aldeias as pessoas corriam para vê-los.

Marchando para libertar John Bali. Marchando para Londres, a fim de conseguir os seus direitos. Era uma boa causa, e praticamente não havia homem que não quisesse tomar parte. Quando chegaram a Maidstone, o número havia dobrado. Eles formavam um exército.

Tomaram de assalto a cidade de Maidstone, aos gritos:

- Para a prisão! Para a prisão! Libertem John Bali!

Os guardas ficaram assustados ao ver aquele exército alucinado ; caindo sobre eles.

- Abram os portões! - gritaram eles. Os guardas, assustados, ficaram olhando assombrados, e não se mexeram.

- Não importa - bradou Wat. - Daqui a pouco nós os arrombaremos.

Eles eram muitos, e todos musculosos; suas vidas tinham sido passadas num árduo trabalho físico. Não demorou muito para que os portões cedessem e eles invadissem a prisão.

- John Bali - cantavam eles. - Onde está você, John Bali? Viemos libertá-lo, John Bali.

Os guardas, horrorizados, dispuseram-se a ajudá-los. Eles também eram homens que tinham motivos para queixas. E ali estava John Bali, de pé à frente deles, a alegria transparecendo na expressão do seu rosto.

- Finalmente, finalmente! - bradou ele. - Chegou o dia da reparação.

Ele tinha de ouvir o que acontecera. Eles contaram que tinham saído de Dartford sob a liderança de Wat, o Telhador, e tinham atraído homens pelo caminho.

- Nós podemos atrair homens de todos os cantos da Inglaterra - disse John Bali. - Wat, você é ótimo. Matou o cobrador de impostos e isso foi um crime correto. Deus está com você. Ele o escolheu para liderar esses homens. Mas isso não é o bastante, Wat. Precisamos de mais. Vamos despertar o país inteiro. Não há um só servo feudal nesta terra que não se juntará a nós quando souber que estamos em marcha.

- Como...? - começou Wat. Mas John Bali o silenciou

- Vamos enviar mensageiros por todo o país, chegando até Durham, ao norte... até Essex e Suffolk, a Somerset e York. Eles cavalgarão a toda velocidade. Um toque de clarim soará por toda a Inglaterra. John Bali tocou o sino.

Tinham havido problemas em Essex depois do caso do padeiro de Fobbing. Naquela aldeia e em algumas outras, quem se recusou a pagar o imposto fora levado ao tribunal. Um padre, que se dizia chamar-se Jack Straw, surgira para liderar o povo. Ele invadiu o tribunal, e o resultado foi uma briga. Os funcionários do tribunal não eram adversários para a turba, e o tribunal foi dissolvido e os homens de Jack Straw marcharam pela cidade com as cabeças dos funcionários pingando sangue dos piques nos quais tinham sido espetadas.

Agora os homens de Essex estavam marchando para juntar-se aos homens de Kent. A revolta não era mais uma questão local.

O primeiro objetivo era Canterbury, onde poderiam ficar frente a frente com o arcebispo Simon de Sudbury, aquele que mandara John Bali para a prisão e que teria deixado que ele ficasse por lá o resto da vida se os amigos não tivessem ido salvá-lo.

O prefeito de Canterbury recebeu a notícia de que John Bali, com Wat Tyler e seu exército de camponeses furiosos, estava marchando contra a cidade, para invadir a catedral e levar o arcebispo à justiça.

O prefeito entrou em pânico. Sabia o que acontecera em Fobbing e deu graças pelo fato de o arcebispo ter ido a Londres. Aquilo era uma graça. Decidiu fazer o possível para salvar sua cidade.

Os homens em marcha avançavam com firmeza ao longo da estrada dos Peregrinos e soltaram um grito de triunfo quando viram os muros cinzentos da cidade.

- Vamos ter de forçar nossa entrada-disse Wat; mas não foi preciso.

O prefeito estava esperando nos portões para recebê-los, para dizer-lhes que simpatizava com a causa deles e que tinha comida para eles, porque achava que aquela era a necessidade mais urgente deles.

- Nossa necessidade mais urgente é ficar frente a frente com o arcebispo - replicou John Bali.

- Meu amigo, ele não está em Canterbury. Foi para Londres há algumas semanas.

Houve gritos de decepção. Mas eles não estavam aceitando a palavra do prefeito.

Serviram-se da comida que lhes foi oferecida; e depois, deram uma busca na catedral e no palácio do arcebispo. Era verdade. O pássaro deles tinha voado.

- Ainda o encontraremos - declarou Wat. - E depois de descansarmos uma noite, iremos para Londres.

Joan, a rainha-mãe, estivera numa peregrinação ao santuário de St. Thomas em Canterbury e estava hospedada em uma mansão perto de Rochester, no caminho de volta para Westminster, quando soube do levante dos camponeses.

Ela andava muito inquieta, ultimamente. O rei estava crescendo, mas ainda era muito jovem - não completara quatorze anos; e Joan estava sempre aflita em relação a ele. A cada dia que passava, lamentava mais a morte do Príncipe Negro e muitas vezes pensava como a vida teria sido muito mais fácil se ele estivesse vivo. Ela, que tinha sido tão frívola na juventude, ficara muito séria. Tentava orientar o filho. Os tios lá estavam nos bastidores, é claro. Ela contava mais com John de Gaunt do que com os outros; mas John era tão impopular, e havia tantos boatos maldosos a seu respeito que Joan achava que devia ter cuidado. Naquele momento, ele estava na Escócia-porque sempre se podia ter a certeza de que os escoceses criariam problemas nos momentos mais inconvenientes; Edmund estava em Portugal, e Thomas na região fronteiriça - todos em missões que, segundo previsão dela, seriam infrutíferas.

Ela realizara aquela peregrinação para pedir a ajuda de St. Thomas; e agora, ouvindo aqueles rumores sobre as atividades dos camponeses, ela disse aos criados que não havia tempo a perder na volta para Londres.

Para Joan, viajar tornara-se uma espécie de provação, pois ela engordara muito nos últimos anos e montar um cavalo era penoso. Por isso, mandara construir um veículo para ela. Tratava-se de uma engenhoca estranhíssima, e quando passava pelas ruas, as pessoas saíam de casa correndo para vê-lo. A rainha-mãe era um dos mais populares membros da família real, especialmente em Kent, onde ainda era conhecida como a Bela Donzela de Kent, e era a mãe do jovem rei que, embora não fosse recebido com o mesmo entusiasmo do dia em que fora coroado e perdera o sapato de maneira tão agradável, ainda era amado pela sua juventude e beleza. Joan nunca tivera medo de se misturar com o povo, e seus sorrisos francos haviam mantido a sua popularidade.

Agora, a visão daquele veículo que parecia uma carroça nas cores vermelho e ouro, coberto por uma capota branca com uma cortina por cima, para esconder da vista a ocupante, atraía as multidões para dirigir um sorriso e uma saudação à Bela Donzela, ainda que, na verdade, ela não merecesse o nome, embora, apesar da obesidade, os remanescentes de sua notável beleza ainda fossem visíveis. Além do mais, embora o povo desprezasse John de Gaunt e não gostasse muito dos outros filhos do rei, tinha idealizado o Príncipe Negro e mantinha um certo afeto por Joan.

Joan partiu de Rochester dando aos criados a instrução de que deveriam fazer todos os esforços para chegar a Londres o mais rápido possível. Ela se sentou no veículo e não reclamou enquanto seguiam ruidosamente pelas estradas, apesar de a velocidade não aumentar o conforto de viajar daquela maneira.

Então, de repente, enquanto seguiam fazendo barulho, o veículo deu um tranco súbito e eles pararam.

- O que pode ser isso? - perguntou Joan, aflita.

Uma de suas amas, que viajara com ela no interior do veículo, levantou a cortina e olhou para fora.

- O que aconteceu? - perguntou ela a um dos guardas.

- As rodas atolaram na lama - foi a resposta. Joan ouviu e olhou para fora.

- Que todos os homens trabalhem - disse ela. - Temos de chegar a Londres a toda pressa.

- Senhora, faremos tudo o que pudermos - foi a resposta. Elas se prepararam para esperar. Passou-se uma hora, e ainda não tinham saído do lugar, porque as rodas não podiam ser tiradas da lama que as prendera.

No momento em que Joan se perguntava se devia pegar um dos cavalos e seguir para Londres com alguns dos guardas, ela ouviu os gritos ao longe.

Tarde demais. Os arruaceiros estavam seguindo naquela direção.

As damas da rainha ficaram com medo. Joan ficou sentada, imóvel, as mãos postas no colo. Eles iriam reconhecer seu veículo. A insígnia real estava pintada na capota; além do mais, era certo que todos tinham ouvido falar naquele veículo e não havia outro igual e todo camponês sabia que ele pertencia à rainha-mãe.

Havia um conflito entre os ricos e os pobres, e não restava dúvida na mente de Joan sobre a categoria em que ela seria incluída.

Um exército de cem mil pessoas - se se pudesse acreditar nas informações-estava marchando por aquela estrada, e ali estava ela com apenas uns poucos guardas e criados para protegê-la!

Joan não era de mostrar medo, por mais que o sentisse. Vivia em um mundo violento, onde a vida pouco valia. Seu pai fora assassinado -juridicamente, dizia-se -, mas, mesmo assim, assassinado. Se sua hora tivesse chegado, então ela a enfrentaria. Seu grande temor era: o que será de Ricardo se me matarem?

Seus pensamentos continuavam a correr, enquanto ela ouvia os gritos que iam ficando cada vez mais próximos. Ela praticamente não era reconhecível, agora, como a frívola e jovem beldade que brincara com o afeto do jovem Salisbury e se casara com Thomas Holland depois de os dois terem se tornado amantes, e depois, viúva, pedira ao Príncipe Negro que se casasse com ela. Talvez isso tudo mostrasse a força de seu caráter que não tinha sido reconhecida quando ela flertará até mesmo com o rei, de modo que acontecera aquele incidente com a liga, ou jarreteira, que nunca seria esquecido.

Joan queria viver principalmente por causa do filho, que agora era toda a sua vida. Mas se tivesse de morrer, morreria com a mesma dignidade que seu pai tivera quando cortaram sua cabeça fora dos muros de Winchester.

Ela agora ouvia as vozes dos camponeses. Eles tinham visto o veículo parado na lama. Começaram a cercá-lo.

Ela ficou sentada, tensa, esperando pelo momento em que a cortina seria levantada, e seria arrastada para fora para morrer.

Alguém gritou:

- É a Bela Donzela de Kent. É a mãe do rei. Atolada na lama. Houve gargalhadas roufenhas.

- Vocês vão precisar de um braço forte para desatolar essas rodas, meus belos guardas - gritou alguém.

- Eles ficam bonitos nos seus uniformes, mas é preciso de homens para realizar o trabalho.

- Mostrem a eles, amigos. Mostrem a eles.

Joan ficou imóvel, o coração disparando. O veículo deu uma sacudidela. Ouviu-se um grito.

- Pronto. Vocês estão livres da lama, rapazes. Eis seu belo veículo.

- Vamos olhar lá dentro - disse um deles.

- É a mãe do rei.

- E daí? Agora são todos iguais.

Chegara o momento. Eles tinham liberado o veículo, mas com que finalidade? Para usá-lo? Joan teve visões da entrada deles em Londres com seu veículo e a cabeça dela num espeto.

E Ricardo... se ele visse.

- Deus o poupe disso - rezou ela.

Acortinafoi afastada para o lado. Umacarasujacomum começo de barba foi enfiada pela abertura.

Joan ficou sentada, muito quieta, as mãos postas. Sorriu para o homem, demonstrando bem sua despreocupação.

- bom dia - disse ela. - Creio que devo agradecer-lhe a ajuda para recolocar meu veículo na estrada.

O homem ficou assombrado por um instante. A beleza dela, sua dignidade real, o esplendor de seus trajes deixaram-no pasmo, e por algum tempo ele se esqueceu de que tudo aquilo que ela representava era a própria razão pela qual ele e seus companheiros tinham-se revoltado.

O homem foi empurrado para o lado e um outro, tão parecido com ele que Joan não poderia distingui-los, estava olhando para ela.

- Eis uma dama muito distinta - disse ele.

Ela se levantou, então, e foi para o lado do veículo e, mantendo a cortina afastada, disse:

- Quero agradecer a todos pelos bons serviços que me prestaram.

Houve um silêncio total. Ela estava ciente da multidão que cercava o veículo. Notou as armas primitivas, os manguais e as podadeiras. Havia alguns piques. Joan pensou: chegou a hora. Que seja rápida. Não devo me esquecer de minha realeza. Que eu morra com nobreza, como meu pai morreu.

- É a rainha-mãe em pessoa.

- Sim - respondeu ela. - Fui rezar no santuário de St. Thomas. Agradeço-lhes tornar possível eu continuar a minha viagem.

Ela viu o desejo selvagem de vingança em alguns rostos, mas nada fizeram. Estavam esperando uma ordem do líder. O homem que olhara para dentro do veículo disse:

- Todos vão ser iguais agora, senhora. Cada homem tem direito à sua parcela dos bens do mundo. A senhora não é mais dama do que uma criada para ser beijada por quem desejar.

Joan teve uma dessas inspirações que lhe vinham de vez em quando. Uma acontecera quando se recusara a se casar com o homem que fora escolhido para ela e avisara ao Príncipe Negro que só aceitaria ele. Era fria; haveria quem dissesse que era um pouco devassa. Mas agiu levada por um impulso.

Mostrou o rosto para o homem que falara.

Ele colocou os lábios na face dela e beijou-a.

Houve uma ovação. O estado de espírito dos camponeses mudara. Aquela era a Bela Donzela de Kent. Nada tinham contra ela. Nada tinham contra o rei. Ele era apenas um menino. Estava apenas fazendo o que lhe mandavam. Os verdadeiros inimigos eram gente como Simon de Sudbury e John de Gaunt.

- Deixem-nos passar - disse Joan, percebendo a impressão que seu gesto causara. Aquilo poderia não durar. Devia haver algumas pessoas na multidão que estivessem com sede de seu sangue. Precisava sair dali depressa. A demora poderia ser perigosa.

Por estranho que pareça, a multidão recuou. Os cavaleiros chicoteraram os cavalos. O veículo arrastou-se para a frente. Uma saudação ergueu-se da multidão, mas Joan ouviu a corrente oculta dos grunhidos.

Mas estava livre. Salvara a própria vida.

- Pelo amor de Deus - bradou ela -, sigam para Londres a toda velocidade.

A comitiva da rainha-mãe deixara o exército dos camponeses alguns quilómetros atrás quando atravessou a ponte de Londres e entrou na Torre, onde o rei se achava naquele momento.

Ela-entrou de supetão nos aposentos do rei e encontrou-o em companhia de vários de seus amigos, inclusive o conde de Oxford, que se tornara seu companheiro quase inseparável, e o primo Henrique de Bolingbroke, que, como o rei, estava com quinze anos.

- Não há tempo a perder - bradou ela. - Os camponeses estão marchando para Londres. Estão saqueando à medida que avançam. Alguma coisa precisa ser feita imediatamente.

Nem o rei nem seus amigos tinham qualquer solução a sugerir, e quando Joan soube que o arcebispo de Canterbury estava na Torre, mandou logo chamá-lo.

Simon de Sudbury era um homem muito velho. Estava resignado com seu destino, pois não tinha dúvida alguma sobre qual seria esse destino se caísse nas mãos dos rebeldes. Ele era, na opinião deles, o arquivilão, por ter mandado prender o herói deles, John Bali. Eles tinham assassinado outras pessoas; não haveria suspensão temporária alguma de sua execução.

Ele foi ver o rei e colocou o selo da Inglaterra sobre a mesa. Estava se demitindo do cargo de chanceler, que mantivera além do de arcebispo.

- Isso não é solução - bradou Joan. - O que vamos fazer?

- Ficou irritada com aqueles homens, que nada tinham a sugerir.

- Teremos de lutar contra eles - disse Henrique de Bolingbroke. - Não podemos deixar que entrem em Londres.

Um menino que ainda não completara quinze anos. Ele tinha o espírito certo, mas do que adiantava uma criança assim? Ricardo tentava parecer um rei.

- vou falar com eles - disse ele.

Crianças!, pensou Joan. Nenhum deles compreende. Um criado estava à porta.

- O senhor prefeito pede para vê-lo, meu senhor.

- Mande-o entrar - disse Ricardo.

O ânimo de Joan aumentou. Ali estava um homem de ação. William Walworth, prefeito de Londres, que não veria sua cidade dizimada por um bando de rebeldes.

- Majestade, os camponeses estão muito perto-disse ele. Precisamos agir contra eles. Assim que o veículo de minha senhora atravessou a ponte, mandei levantá-la e agora há homens colocando uma corrente atravessada, para restringir a entrada.

- Obrigado, senhor prefeito - disse Ricardo, e Joan teve um sorriso de aprovação.

- Esses homens estão desesperados - disse o prefeito. Armaram-se com armas improvisadas. São perigosos, mas podemos sobrepujá-los.

Joan ficou aliviada. Finalmente, ali estava um homem de ação.

O exército camponês parara para descansar em Blackheath. Agora que estavam a poucos quilómetros de Londres, alguns dos homens mais sensatos - líderes como Wat Tyler e John Bali-puderam ver que destruição e derramamento de sangue não eram seu objetivo final. Havia algumas pessoas-como o arcebispo Simon de Sudbury - que precisavam ser executadas, mas eles não queriam fazer mal ao rei. Acreditavam que poderia ser possível guiá-lo.

- Devíamos dar ao rei a oportunidade de ouvir nossas reclamações - disse John Bali. - Ele não deve saber nada sobre elas. Como poderia saber? Não passa de um menino. Vamos enviar um mensageiro até ele e pedir um encontro.

John Bali tinha aquele tipo especial de magnetismo que podia movimentar uma multidão. Ele sabia, e Wat Tyler também, que muitos de seus seguidores eram não homens com ideais, mas ladrões e vagabundos à procura de lucros fáceis que uma aventura como aquela poderia proporcionar.

Mas não era aquilo que John Bali queria. Ele queria reformas Era um homem de Deus, assim dizia a eles; e não queria ver belos prédios destruídos, mas sim preservá-los para o povo.

Eles precisavam conversar com o rei e tinham junto um refém, na pessoa de Sir John Newton. Também estavam com a família dele. Tinham saqueado a mansão dele e fizeram-no prisioneiro. Agora, iriam usá-lo. Ele deveria ir procurar o rei com uma proposta de que houvesse uma reunião entre o rei e os líderes rebeldes.

Assim, enquanto o exército estava acampado em Blackheath, Sir John seguiu a cavalo até Londres e foi para a Torre. Como membro da equipe real, não houve demora em recebê-lo; pouco depois estava transmitindo a mensagem ao rei.

Houve um grito de protesto por parte dos assessores do rei, os principais dos quais eram o conde de Salisbury e seu tesoureiro, Sir John Hales.

Ricardo, no entanto, viu naquilo uma oportunidade de mostrar que era um rei. Disse que não tinha medo do seu povo. Nunca ouvira uma voz erguida contra ele. E se pudesse falar com aquela gente, estava certo de que poderia convencê-los de que desejava o bem de todos.

O arcebispo abanou a cabeça.

- Vossa majestade não compreende. Essa gente é celerada. Estão preocupados em destruir.

- Eles são meu povo - disse Ricardo com dignidade.

Ele sentiu uma exultação repentina. Aquele era o tipo de incidente com que sonhara; acreditava que com o seu sorriso delicado e sua fala macia poderia persuadir seu povo de que ele tinha o amor e a boa vontade do rei.

Por estranho que pareça, a rainha-mãe achou que ele poderia ter razão. Ela se lembrava vividamente de seu encontro com os rebeldes na estrada e de como a tinham saudado - tinha-se de admitir que de forma um tanto irónica - ao permitir que ela continuasse a viagem depois que eles mesmos tinham livrado as rodas de seu veículo do atoleiro.

- Deixem que o rei vá - disse Joan. - Ele vai ficar na barcaça, e se houver qualquer perigo, poderá fugir pelo rio. Não o deixem desembarcar se houver qualquer possibilidade de que ele sofra algum mal. Mas seria um erro ignorar esse pedido.

- A decisão é minha - disse o rei -, e estou decidido a ir. Era verdade que ele era o rei. Ricardo nunca afirmara sua autoridade antes. Mas sem dúvida que o estava fazendo agora, e como falava em tom tão autoritário, tinham de ceder.

A barcaça partiu. Foi lamentável o fato de Simon de Sudbury e John Hales fazerem parte da comitiva - embora, é claro, a posição deles no país assim o exigisse.

Quando foram levados a remos pelo rio e chegaram num ponto onde foram avistados pelo exército esfarrapado, ouviu-se um grande grito. Lá estava o rei em pessoa - o belo menino de cabelos louros com o sorriso inocente. Eles teriam lhe dirigido uma ovação se não tivessem visto, de cada lado dele, os homens que odiavam mais do que nenhum outro, Simon de Sudbury, o arcebispo que mandara John Bali para a prisão, e o tesoureiro Hales, o homem que arrecadara todo aquele dinheiro que estava na raiz dos problemas deles.

- Queremos Simon! - gritavam eles. - Queremos a cabeça de Simon! Entregue-nos Simon!

- Não podemos discutir com homens assim - disse John Hales. - Eles estão querendo matar alguém.

Como que em resposta ao que ele dissera, o povo começou a gritar.

- Lá está Hales. O coletor de impostos. Queremos a cabeça dele. Vamos conseguir a cabeça dele.

- Majestade - disse o arcebispo a Ricardo -, não há esperança de fazer com que essa gente compreenda.

- Eles não me farão mal - disse Ricardo. - Ponham-me em terra.

- Majestade, eles virão a bordo da barcaça se atracarmos. Vão arrastar o arcebispo para fora e assassiná-lo. Não temos coragem de confiar a eles seu corpo real. A rainha-mãe jamais nos perdoaria.

Ricardo vacilou. Parecia indeciso. Ele não sentia medo da turba. Acreditava que iriam adorá-lo. Mas todos odiavam o arcebispo. Seria cruel entregá-lo a eles.

A barcaça real fez a volta e retornou à Torre. Os gritos de troça vindos das margens foram diminuindo aos poucos.

Mas aquilo foi o sinal. Eles agora iriam marchar contra Londres. Iriam tomar a cidade, e nada os impediria.

William Walworth era um homem ativo. Ele era do norte da Inglaterra, mas quando jovem fora aprendiz de John Lovekyn, um rico comerciante que negociava com peixe salgado e que tinha sido muito ativo na promoção do intercâmbio comercial entre a Inglaterra e Flanders. William Walworth aprendera muito com ele; e quando Lovekyn se tornou, primeiro, vereador e depois xerife e, por fim, prefeito de Londres, William decidiu seguir-lhe as pegadas.

Londres tornara-se a sua cidade; os assuntos de Londres eram seus assuntos; ele estava provando a si mesmo e a outras pessoas que não apenas podia competir com seu mestre, mas sobrepujá-lo.

Ele adquirira muitas propriedades e se tornara um dos homens mais ricos da cidade, e isso já era dizer muito. Corriam rumores sobre ele, como corriam sobre todos os homens que tivessem obtido tanto sucesso quanto ele. Era verdade que ele possuía grandes áreas de terra no distrito de Southwark, no lado sul da ponte, e muita gente dizia que as atividades que aconteciam por lá deviam ser investigadas. Dizia-se, também, que William Walworth não estava ansioso por essa investigação porque havia aquelas ruas nas quais florescia a prostituição. Dizia-se, até, que ele tinha trazido mulheres dos Países Baixos para morar em suas casas e que, por serem brancas e carnudas, elas se constituíam numa grande atração. De qualquer modo, não havia dúvida de que Walworth lucrava com sua propriedade em Southwark.

Ele não era avesso a gastar parte de seu dinheiro nos interesses da cidade da qual ele era um dos principais cidadãos, e agora estava decidido a defender Londres contra os rebeldes.

Nesse ínterim, Wat Tyler, junto com John Bali, chegara a Southwark e encontrara a ponte levantada. Assim, eles não podiam entrar na cidade. Mas, ali estava Southwark e ali estavam aquelas prisões - Marshalsea, Clink, Kings Bench e Compter. Eles iriam atacá-las e soltar os prisioneiros, o que teria o efeito desejado de aumentar suas fileiras.

Mas, até ali, os rebeldes tinham sido liderados por homens de princípios. Agora, seria uma ralé de criminosos.

William Walworth pensou nisso. Haveria uma destruição impiedosa, saque e assassinato. Mas às vezes era mais fácil lidar com criminosos do que com homens de ideais. Não havia dúvida de que a causa de John Bali, que algumas pessoas poderiam ter considerado meritória, já não seria mais assim classificada.

Havia traidores no lado de dentro dos muros da cidade. Os aprendizes, sempre prontos a aderir a qualquer causa que fosse dedicada a provocar desordem, já estavam nas margens do rio gritando para os rebeldes que estavam do outro lado. Até mesmo certos vereadores que estavam descontentes com muitos pontos do governo do país e com a pesada tributação a que tinham sido submetidos viam, ali, uma oportunidade de reformar as leis.

Havia muita gente que estava pronta a baixar a ponte de Londres, permitindo assim a entrada dos rebeldes, e não demorou muito eles a atravessaram em massa. Enquanto isso, o Aldgate tinha sido aberto e os homens de Essex foram juntar-se aos de Kent. Londres estava, agora, à mercê dos rebeldes.

O exército encontrava-se no além-mar; os tios do rei estavam muito longe; não havia ninguém para defender o rei, a não ser seu círculo imediato. Felizmente, ele estava na Torre, considerada uma fortaleza que não podia ser invadida com facilidade.

De qualquer forma, os rebeldes nada tinham contra o rei; não queriam causar-lhe mal. John Bali teve a ideia de que o rei ainda poderia liderar um país que adotasse a igualdade. Seria rei só no nome e seguiria a orientação dos ministros que seriam, todos, homens do povo. John Bali seria o chefe da Igreja. Ele não queria que a anarquia reinasse.

Mas ele sabia que naquele exército irregular havia homens que pouco ligavam para os princípios e estavam ali para tirar proveito da situação. Eles precisavam ser mantidos sob controle. Wat Tyler era um homem bom. Defendia uma causa justa e só fora levado à rebelião devido aos pesados impostos e aos insultos dirigidos à sua família. Wat Tyler era um homem que queria restaurar a paz e viver tranquilo; mas desejava um mundo onde homens de todos os níveis pudessem manter a dignidade.

Isso não parecia pedir uma coisa impossível.

Aquele dia de junho foi um dos que jamais senam esquecidos na história inglesa. A grande cidade de Londres foi cenário de saques e morte. As prisões foram todas invadidas e os presos afluíram em grande número para juntar-se aos rebeldes. O priorado de Clerkenwell estava em chamas; as escolas de direito foram saqueadas, documentos foram queimados e advogados foram mortos. Os rebeldes tinham erguido um cepo em Cheapside e ali as cabeças começaram a rolar.

Foi com grande júbilo que, indo para a margem do rio, eles viram o grande palácio do Savoy.

- A casa do tesouro de John de Gaunt! - gritaram eles; e só o nome de John de Gaunt reavivou a fúria de seus corações.

- Para o Savoy! - gritaram eles. - Vamos fazer o castelo de John de Gaunt desabar sobre a cabeça dele.

- Mas, por Deus, essa cabeça não estará nos ombros dele bradou um outro.

Eles estavam nos portões do Savoy. com o tronco de uma árvore que usaram como aríete, arrombaram as portas e entraram. Tamanha riqueza fez com que parassem, pasmos.

- Não somos ladrões-bradou Wat Ty ler.-Não viemos para roubar. Viemos para destruir os que queriam nossa desgraça.

O Savoy estava em chamas. Aquilo seria o fim da suntuosidade de John de Gaunt. Maldito fosse o destino que os privara dele. Ter marchado pela cidade com a cabeça dele teria sido o maior de todos os triunfos.

Wat viu um homem embolsando ornamentos de ouro e enfioulhe a espada no coração.

- É assim que vou tratar todos os ladrões. Por Deus, homens, vocês não entendem? Somos homens com uma missão, homens com uma finalidade. Perguntem a John Bali. Ele pensa como eu. Não estamos aqui para roubar ou matar os inocentes. Estamos aqui para libertar e para obter uma vitória para todos nós.

Belas palavras, mas que efeito podiam elas ter tido em homens que nunca antes tinham visto tais riquezas, para quem um pequeno adorno de joalheria poderia render

o que iriam ganhar até o fim da vida? Além do mais, tinham estado nos porões e lá haviam bebido vinho que nunca tinham provado antes. Aqueles que tinham bebido apenas a mais barata das cervejas antes ficaram testificados com o vinho dos ricos.

Ficaram enlouquecidos pela visão de tamanha riqueza; ficaram intoxicados não apenas com malvasia, mas com o poder.

Seria este o fim?, perguntou-se Joan. Será que a turba tomaria a coroa, o trono?

Se ao menos o Príncipe Negro estivesse vivo! Ela podia imaginar como ele teria lidado com aqueles homens. Mas aquilo nunca teria acontecido se ele tivesse vivido. Ele teria previsto a revolta; nunca teria deixado a situação chegar àquele ponto. O que será de todos nós?, perguntava-se Joan.

Lá estavam eles, cercados na Torre. Seu filho, que era o rei. E havia apenas um ou dois bravos com eles. Joan tinha muita fé em Walworth, que estava furioso por ver sua cidade sendo destruída, e ele era um homem forte, fiel ao rei e à restauração da lei e da ordem.

Mas o que podiam fazer?

Pobre Simon de Sudbury, tinha a aparência de um homem que sabe que seus dias estão contados. Temporariamente, ele estava a salvo na Torre, mas, a menos que os rebeldes fossem dominados depressa, ele não tinha esperanças.

O rei e sua mãe, Salisbury, Simon de Sudbury, John Hales e alguns outros ministros do rei trocaram ideias.

Alguma providência tinha de ser tomada de imediato, e só havia um jeito de lidar com a situação. Os rebeldes tinham de ser dispersados antes que pudessem ser chamados à ordem.

- Como dispersá-los? - perguntou Joan.

- com promessas - disse Walworth.

- Que promessas?

- De que o que eles chamam de seus males serão sanados, que serão libertados de sua servidão; que os impostos serão suspensos. É este o motivo da rebelião.

- O senhor acha que eles vão dar atenção a isso?

- Homens como Bali e Wat, o Telhador, vão. Eles são os líderes.

- Então, como transmitiremos essas promessas a eles?

- Só vejo uma maneira de fazer isso-disse Walworth. - Só existe uma pessoa a quem darão atenção. O rei tem de falar com eles.

- Eu falo - bradou Ricardo. - vou falar com eles.

- Meu senhor, meu senhor - disse o conde de Salisbury -, perdoe-me, mas esta é uma situação muito perigosa.

- Sei muito bem disso - retorquiu Ricardo, com arrogância.

Não tenho medo. Sou o rei deles. Cabe a mim falar com eles,

mandá-los de volta para suas casas.

- É perigoso demais - disse Joan.

- Minha senhora, é uma sugestão - disse Walworth. - Não consigo pensar em outra. A alternativa é ficarmos aqui sitiados, e quanto tempo levarão os sitiantes para invadir a Torre?

- Ela é uma fortaleza resistente.

- Eles entraram à força em prisões.

- Eu vou - disse Ricardo. - Eu insisto. Já se esqueceram de que sou o rei de vocês? Não quero ouvir mais nada. Eu mesmo vou falar com os rebeldes.

- Majestade - disse Walworth -, a sua bravura me comove profundamente. Vossa majestade é mesmo o verdadeiro filho de seu pai.

- Quero mostrar a todos que sou - disse Ricardo.

- Compreenda, meu filho - disse Joan -, que poderiam matá-lo. Um rebelde descontrolado...

- Sei muito bem disso - replicou Ricardo. - Mas meu pai enfrentou a morte muitas vezes e não se deixou intimidar.

Não havia dúvida de que todos os presentes estavam profundamente emocionados com aquele belo menino, que mostrava não ter medo.

Por fim, ficou combinado que deveria ser enviado um mensageiro a Wat Tyler. O rei estava disposto a falar com eles. Se se retirassem para Mile End, um grande campo onde o povo se reunia nos feriados para desfrutar esportes ao ar livre, o rei iria encontrá-los lá. Ouviria suas queixas e prometeria examiná-las.

O rei estava agitado. Iria mostrar a todos que já não era mais um menino. O povo sempre o amara. Ele gostara de atravessar a cavalo aquela mesma cidade, e as pessoas sempre o ovacionavam. No interior acontecia a mesma coisa. Todos o amavam. Ele era neto do Grande Eduardo, filho do Príncipe Negro, rei deles, Ricardo de Bordeaux, como às vezes ainda o chamavam com carinho.

Iriam gostar ainda mais dele quando prometesse atender suas reivindicações.

Ricardo disse que queria ir para seus aposentos. Precisava preparar-se. Iria rezar para que sua missão tivesse sucesso.

Depois que ele se retirou, a rainha-mãe disse:

- Só há uma coisa que irá mandá-los de volta para casa: se ele prometer dar o que querem.

- É isso que o rei tem de fazer - disse William Walworth.

- E como ele pode fazer isso? Dar liberdade a todos! Quem lavrará os campos? Quem fará o trabalho trivial do interior? O que teremos de fazer? Entregar nossas propriedades a eles!

William Walworth voltou-se para todos, sorrindo. Ele não era um nobre, mas demonstrava mais astúcia do que qualquer um deles.

- Essas promessas podem nunca ser cumpridas - disse ele.

- São totalmente impossíveis.

- Mas o rei vai fazer essa promessa a todos.

- Ele tem de fazê-la. Tem, mesmo. É a única maneira de acabar com essa rebelião. Mas lembrem-se de que são apenas camponeses, servos feudais. O que são promessas feitas a eles?

- Não gosto disso - disse Joan.

- Minha senhora, é uma questão de gostar disso ou um fim para tudo que tivemos no passado. É dizer adeus à riqueza que homens como eu conseguiram e que nenhum desses arruaceiros saberia como conseguir. É o fim de sua herança. Seria, sem dúvida, o fim de suas vidas. Esta é a única maneira.

- O rei falará de boa fé.

- Tem de ser assim. Ele é jovem demais, inocente demais para compreender. Deverá representar bem seu papel, e só o fará se acreditar no que está dizendo.

Houve um silêncio profundo.

- Meus senhores - continuou Walworth, dirigindo-se ao arcebispo e ao tesoureiro -, os senhores devem fugir enquanto o rei estiver em Mile End. É a sua única chance. Se puderem escapulir pelo rio, poderão encontrar um navio para levá-los para fora do país. Independente do que pudermos conseguir, receio que exigirão suas vidas.

Simon de Sudbury e John Hales sacudiram a cabeça, sérios. Sabiam que Walworth estava dizendo a verdade.

Chegara a noite. O rei subira na torrinha mais alta, para que pudesse olhar para a cidade lá de cima.

Ele viu as labaredas e o povo reunido em massa nas margens do rio. Ouviu-o divertindo-se ruidosamente. Muitos estavam bêbados com o vinho dos porões do palácio de seu tio no Savoy.

Formavam realmente um exército esfarrapado. Toda a escória do país, alguns deles homens que tinham ficado presos sem esperança de libertar-se até que a turba chegou - homens desesperados, à procura de sangue e vingança.

Eram aqueles os homens que Ricardo enfrentaria no dia seguinte em Mile End. Ricardo pensou no que dizer-lhes.

- Eu sou seu rei...

Não iria ter medo. A única coisa que ele temia era o medo. Poderiam matá-lo, se quisessem, mas não devia demonstrar medo. Queria que dissessem: ele é igual ao pai.

Ricardo desviou o olhar daquele exército irregular para o céu escuro.

- Pais - disse ele. - Meus pais celestiais e terrenos, protejam-me nesse dia vindouro. Permitam que eu aja como um rei.

Cedo, na manhã de sexta-feira, o rei estava acordado e pronto. Da torrinha, olhou na direção dos rebeldes e viu que, embora alguns estivessem seguindo para Mile End, outros ficavam.

Ricardo mandou-lhes uma mensagem, dizendo que todos deviam ir para Mile End, porque ele estava indo encontrar-se com eles lá.

Depois, desceu e mandou chamar o arcebispo e John Hales.

- Meus amigos - disse ele -, vocês precisam aproveitar-se dessa oportunidade para fugir enquanto estou em Mile End. Ordeno-lhes que façam isso.

O arcebispo abraçou-o e chorou por causa da juventude e da inocência de Ricardo e de sua crença em que com algumas palavras poderia resolver tudo.

- Vamos tentar, majestade - disse John Hales.

- Vão, meus amigos. Espero que nos reencontremos.

- Eu acho que isso só acontecerá quando nos encontrarmos no céu - murmurou o arcebispo.

Ricardo partiu a cavalo. Estava exultante. Sentia-se bravo e nobre. Havia milhares de rebeldes que teria de enfrentar, e era apenas um menino com um bando de nobres

cuidadosamente selecionados, aqueles que não tinham atraído a ira do povo e que seriam desconhecidos para ele. Sir Aubrey de Vere, tio de seu maior amigo, Robert, apresentara-se como voluntário para o posto de portador da espada.

E assim eles partiram para Mile End.

Lá estavam reunidos cerca de sessenta mil membros do exército camponês, à frente dos quais se encontravam Wat Tyler e John Bali.

Ricardo cavalgou até ficar no meio deles, o rosto bonito sorrindo, a voz baixa e musical.

- Meu bom povo - falou ele -, sou o seu rei e seu senhor. O que querem vocês? O que desejam me dizer?

Wat Tyler respondeu.

- Queremos liberdade para nós, para nossos herdeiros e para a nossa terra. Não queremos mais ser chamados de escravos e mantidos em servidão.

- Seu desejo está concedido - replicou o rei. - Querem, agora, voltar para suas casas e para o lugar de onde vieram?

- Ah, queremos uma garantia do que vossa majestade disse. Queremos assinado e selado um documento dizendo que cumprirá sua palavra.

- Neste caso, deixem dois ou três homens de cada aldeia, e eles receberão cartas com meu selo, mostrando que as exigências que vocês fizeram foram concedidas. E para que fiquem mais satisfeitos, mandarei que minhas bandeiras sejam enviadas a toda administração, toda aldeia de castelo e toda corporação. Vocês, minha boa gente de Kent, terão uma de minhas bandeiras, e vocês também, homens de Essex, Sussex, Bedford, Suffolk, Cambridge, Stafford e Lincoln. Eu os perdoo pelo que fizeram até agora. Mas devem seguir minhas bandeiras e voltar para casa com base nas condições que mencionei. Vocês farão isso, meus amigos?

- Faremos, majestade.

- Então, que Deus abençoe a todos.

- Deus salve o rei! - foi o grito que se ouviu.

A coragem do rei tinha ganhado o dia em Mile End.

Mas nem todo o exército irregular tinha ido a Mile End. Havia alguns que não tinham interesse em chegar a um acordo. Queriam apenas saquear. Eles tinham visto, em Londres, riquezas com que nunca tinham sonhado. Se houvesse lei e ordem, o que seria deles? Seriam acusados dos roubos e assassinatos que tinham cometido. Não.

Tinham de pegar o que pudessem, enquanto pudessem; e em Mile End não havia o que pegar.

Além do mais, eram muitos os que tinham uma conta a ajustar.

Eles sabiam que o arcebidpo de Canterbury estava na Torre e com ele o tesoureiro, John Hales, que eles acusavam de cobrar o odiado imposto por cabeça.

Não voltariam para casa enquanto aqueles homens não tivessem sofrido o castigo que eles tinham decidido ser a justa recompensa.

O rei não estava mais na Torre. Eles tinham respeitado o rei e não tinham feito nenhuma tentativa de invadir a Torre enquanto ele ali permanecesse. Mas agora ele estava em Mile End; e iriam pegar o arcebispo.

O arcebispo sabia que seu fim estava próximo. Naquela manhã, ele celebrara a missa na presença do rei e decidira ficar na capela e aguardar seu destino.

Estava preparado para a morte. Sentia-a perto dele. Sabia que nunca o deixariam escapar.

Eles não demoraram a chegar.

Ele sabia que tinham forçado a entrada na Torre porque podia ouvir os gritos e os berros cada vez mais perto. Em breve descobririam onde ele estava.

Tinha razão. Eles chegaram à porta da capela.

Enquanto entravam correndo, um homem gritou:

- Onde está o traidor do reino, onde está aquele que prejudicou o povo?

O arcebispo avançou ao encontro deles.

- Vocês vieram ao lugar certo, meus filhos - disse ele. Aqui estou, o arcebispo, mas não sou traidor nem prejudiquei ninguém.

- Não viemos para discutir - disse um deles, e aplicou no arcebispo um golpe que o derrubou.

Eles o agarraram. Arrastaram-no para a rua. Levaram-no para Tower Hill, onde uma imensa multidão estava reunida. Lá, ergueram um cepo para a execução.

O arcebispo tentou argumentar com eles.

- Vocês não deviam me matar, meus amigos. Se o fizerem, a Inglaterra será submetida a um interdito.

- A cabeça! A cabeça! - berrava a multidão.

Eles empurraram um homem para a frente e meteram um machado em suas mãos.

O arcebispo viu a mão do homem tremer.

- Então, meu filho, você vai fazer isso comigo? - disse ele.

- É preciso, meu senhor - murmurou o homem.

- Diga-me o seu nome, para que eu possa saber quem é o meu carrasco.

- É John Starling, de Essex, meu senhor.

- Meu filho, você está com mais medo do que eu. Não tenha medo. Eu o absolvo por este pecado, tanto quanto possa.

O arcebispo ajoelhou-se e colocou a cabeça sobre o cepo, os lábios mexendo-se numa oração enquanto o fazia.

John Starling ergueu o machado. As mãos estavam tremendo, e houve oito golpes antes que a cabeça do arcebispo se separasse do corpo.

Cavalgando de volta de Mile End, Ricardo viu as cabeças de seu arcebispo e de seu tesoureiro sendo carregadas espetadas em varas diante da turba.

Os rebeldes tinham tomado de assalto a Torre, enquanto seus líderes estavam em Mile End. O primeiro alvo eram o arcebispo e o tesoureiro, e depois de enviá-los para a execução, eles se voltaram para outras pessoas.

Eles tinham achado a rainha-mãe entre as suas damas de companhia. Aqueles homens não tinham o mesmo estado de espírito dos que ela encontrara na estrada vinda de Rochester. Aqueles tinham um só objetivo em vista - roubo, destruição e assassinato, dependendo do que lhes desse na cabeça.

E ali estava a rainha-mãe - uma das privilegiadas, pertencente à família real e mãe do rei. Um homem agarrou o broche que ela estava usando e um outro tentou tirar os anéis de seus dedos.

Joan, que vinha em um estado de alta tensão desde que vira Ricardo partir para Mile End, não pôde aguentar mais. Caiu desmaiada nos braços de suas damas.

Sua vida correu perigo iminente, mas um dos homens disse:

- Deixem ela em paz. É apenas uma mulher. Não fez nada. Solte-a. Temos outros com quem nos preocuparmos.

Por um instante houve hesitação e então, agarrando as jóias que ela estava usando, os assaltantes foram embora.

- Temos de sair da Torre - disse uma das damas. - Vamos descer para as barcaças. Talvez possamos fugir para Wardrobe.

Joan abriu os olhos e, percebendo o que se passava, perguntou onde estava a turba. Disseram-lhe que tinham deixado aquela parte da Torre e que parecia que as mulheres poderiam ter permissão para sair.

- O rei vai voltar para cá... - começou Joan.

- Em breve ele vai ficar sabendo, minha senhora, que fomos embora. Venha, eles podem mudar de ideia.

Foi uma surpresa a facilidade com que elas puderam escapar. Ninguém tentou

detê-las e em pouco tempo estavam na barcaça, a caminho do gabinete real que era conhecido como Wardrobe (guarda-roupas) e que ficava em Cárter Lane, perto do castelo de Baynard.

Enquanto isso, Henrique de Bolingbroke pensara que seus últimos momentos haviam chegado. Ele ouvira os gritos contra seu pai e sabia que o palácio do Savoy estava em ruínas. Ele os ouvira praguejando porque John de Gaunt não estava em Londres. Se tivesse estado lá, eles o teriam apanhado como fizeram o arcebispo. Henrique podia ouvir a gritaria da turba e o som de aríetes e as explosões quando as pesadas portas cediam.

Sabia que não podia demorar.

Então, seu coração começou a bater alucinado. Havia alguém vindo em direção ao quarto. Henrique ficou em pé, muito ereto, esperando. Enfrentaria bem a situação.

Um homem estava parado à porta. Estava vestido como um camponês e Henrique acreditou que tinha ido ali para matá-lo.

- Meu senhor - gaguejou o homem -, está correndo muito perigo.

- Quem é você?

- John Ferrours de Southward, meu senhor. Trabalho para o seu nobre pai. Meu senhor, quando eles souberem de quem o senhor é filho, terá pouca chance.

- Estou pronto para eles.

- O senhor vai ter pouca chance contra essa turba. Vim para levá-lo a um lugar seguro.

- Como assim?

- Não há tempo para conversar. Coloque essa capa nos ombros... Pegue isso. -Ele enfiou umapodadeirana mão de Henrique.

- Vamos correr por entre as multidões. Temos que ter a aparência deles. Gritar como eles gritam. É a única maneira. vou levar o senhor até o rio. Tem barcaças lá... ou então talvez tenhamos de atravessar a cidade. Faça o que estou dizendo. Talvez possamos enganá-los.

- Estou pronto - disse Henrique.

Acompanhou seu salvador pela escada em caracol. Os dois chegaram a um pátio onde vários camponeses estavam reunidos. John Ferrours juntou-se ao grupo e gritou com eles.

- Acabem com a servidão - gritava ele; e Henrique também começou a gritar.

Eles saíram da Torre e foram para as ruas.

- Até aqui, tudo bem-disse John Ferrours.-Mas continue. Corra. Parece que estamos indo fazer alguma coisa de ruim. Grite se alguém parecer desconfiado. Faça com que acreditem que somos gente deles.

Henrique estava muito excitado com aquela aventura. Era algo de que se lembraria pelo resto da vida. Sabia que chegara perto da morte e que ela seria certa se tivesse esperado naquele quarto da Torre. E ele devia tudo aquilo àquele estranho, John Ferrours, de Southwark.

Queria dizer-lhe o quanto estava grato. Mas eles ainda corriam perigo.

Seguiram para o Wardrobe pela Cárter Street. Era o refúgio óbvio.

- vou deixar o senhor aqui - disse Ferrours. - A rainha-mãe e algumas outras pessoas que conseguiram escapar estão aqui. Fique com a capa. Poderá precisar dela. E lembre-se... se houver perigo outra vez, o modo mais seguro é se misturar a eles.

Deixaram que eles entrassem no Wardrobe. A rainha-mãe ficou quase histérica de prazer ao vê-lo, mas estava num estado de grande aflição por causa de Ricardo.

Henrique disse a John Ferrours que nunca iria se esquecer. Sempre se lembraria dele como o homem que lhe salvara a vida.

Cavalgando de volta de Mile End, Ricardo foi desviado para o Wardrobe, já que a Torre estava em mãos dos rebeldes. Ficou chocado e enojado ao ver as cabeças do arcebispo e do tesoureiro, e eclodiu nele uma raiva contra os rebeldes.

Aquilo foi logo substituído por uma terrível ansiedade. Sua mãe, que mais amava no mundo, estivera em perigo. Onde estaria ela agora? Teria chegado sã e salva ao Wardrobe?

- Tenho de ver se minha mãe está em segurança - disse ele, esquecendo-se do posto de rei e do triunfo que obtivera em Mile End, com medo de que a mãe pudesse ter sofrido o destino do arcebispo.

Quando a viu, pálida, os cabelos em desordem, as jóias arrancadas de seu vestido, correu para os seus braços e por um instante os dois ficaram dominados pela intensidade do alívio e da felicidade que cada um sentia porque o outro estava a salvo.

No Wardrobe, Ricardo ficou sabendo do que acontecera. Ficaram todos dominados pela depressão, exceto o irrepreensível William Walworth.

- Alguns rebeldes voltaram para casa - disse ele. - Pelo menos, não temos tantos com quem lidar.

Houve outra conferência, e foi William Walworth que os fez compreender que precisavam tomar outras providências.

Chegara a notícia de que Richard Imworth, diretor da Marshalsea, que rugira para a abadia à procura de abrigo quando a prisão fora saqueada, tinha sido descoberto lá. Os rebeldes não tinham respeito por lugares santos, e Richard Imworth fora arrastado para fora do santuário de Eduardo, o Confessor, e levado para ser executado em Cheapside.

- Wat Tyler e seus rebeldes ainda continuam - disse Walworth. - Meus senhores, tem de haver um outro encontro entre eles e o rei. Dessa vez, que ele aconteça em Smithfield. Eles têm de ser persuadidos a se dispersarem. Eles não estão tão fortes quanto no início. Depois do encontro em Mile End, muitos deles voltaram para casa. Mas ainda temos esse bando de ladrões, fugitivos de prisões, homens que não sabem ou ligam para seus direitos, desde que seja o direito de roubar e matar.

- Outra reunião! - disse a rainha-mãe, assombrada, o olhar voltado para o filho.

- Eu me encontrarei com eles de novo. Sei como lidar com eles - disse Ricardo, confiante.

Ele havia mudado. A aventura em Mile End o dotara de novas qualidades para a função de rei. Todos os que estavam na sala sabiam que ele deixara de ser uma criança e dali por diante tentaria assumir o comando.

- Há uma precaução que devemos tomar - disse Walworth. -Cada um de nós deve usar uma cota de malha por baixo da roupa.

Todos concordaram.

Assim, com cerca de sessenta ajudantes, à frente deles William Walworth, o rei partiu para o fatídico encontro em Smithfield.

Tudo o que acontecera desde aquele dia em que ele matara o cobrador de impostos não podia deixar de ter seu efeito sobre Wat, o Telhador. De um homem sem importância, que levava a vida na pequena cidade de Darford colocando telhas nos telhados para o seu sustento e indo de um lado para o outro segundo as ordens daqueles que o empregavam, ele se tornara um líder. Aquele exército de milhares de homens obedecia a ele. Estava à frente deles. Antes, era um homem moderadamente modesto; agora, via-se com uma estatura maior.

Era tão importante quanto o próprio rei. Ainda mais, porque o rei teria de fazer aquilo que ele, Wat, o outrora humilde telhador, dissesse.

Era inevitável que um pouco de arrogância se infiltrasse em sua atitude. Ele era um orador nato, algo que até então não percebera. O fato de um homem sem instrução achar-se de repente tão alto o deixara perturbado. Em breve, seria lorde Tyler. John Bali deveria ser seu arcebispo de Canterbury. Quanto ao rei, ele poderia ficar sendo um fantoche. O menino podia ser manejado.

Era revigorante ver como os ricos e os poderosos ficavam com medo quando se achavam diante de um exército, embora esse exército não tivesse armas convencionais. O poder da turba era grande, e Tyler estava à frente dela.

E ali se achava ele, a figura alta e esguia com os cabelos louros brilhando ao sol. O rei e sua comitiva tinham parado de costas para a igreja de São Bartolomeu, o Grande.

- Senhor prefeito - disse Ricardo a Walworth -, peço-lhe que vá até eles e diga a Wat Tyler que quero falar com ele.

Wat atendeu imediatamente. No íntimo, ele sorria, complacente. Wat, o Telhador, conferenciando com o rei! Era como algo que poderia ter sonhado no passado. Na época,

aquilo teria parecido loucamente impossível. Agora, não. Wat Tyler estava lidando com o rei de igual para igual.

Antes de se afastar de seus homens, ele voltou-se para eles e disse:

- Não se mexam daqui até eu fazer um sinal. - Ele ergueu a mão. - Quando eu fizer isto, avancem. Matem todos, menos o rei. Depois, vamos colocá-lo à nossa frente e vamos percorrer a Inglaterra. Assim, teremos o apoio de todos quando o rei for nosso líder. Ele vai nos obedecer, porque é jovem e vamos orientá-lo.

E então Wat esporeou o cavalo e foi ao encontro do rei. Portou-se com Ricardo como se este fosse um membro do exército rebelde, e aqueles que cercavam Ricardo encheram-se de ressentimento pelos modos daquele telhador de aldeia na presença de seu soberano. Como ousava ele se comportar com o rei como se ele fosse mais conhecido deles do que eles?

- Rei - disse Wat -, está vendo todos aqueles homens lá?

Ricardo ergueu bem a cabeça, compartilhando do ressentimento de seus seguidores diante dos modos rudes daquele homem.

- Eu não poderia deixar de vê-los - replicou ele. - Por que pergunta?

- Porque eles estão sob meu comando e juraram me obedecer.

- Por que eles não voltam para suas casas? - disse Ricardo.

- É isso que quero que façam.

- Não tenho intenção nenhuma de deixar que voltem para casa - retorquiu Wat. - Cartas com a promessa de nossa liberdade deviam ter sido entregues a nós. Onde estão essas cartas? Primeiro, todas as exigências que fiz têm de ser atendidas.

- Foi dada a ordem para que vocês recebessem as cartas disse Ricardo, com frieza. - Volte para os seus companheiros.

Peça-lhes que vão embora. Sejam pacíficos e tenham cuidado, porque minha determinação é no sentido de que tenham tudo o que lhes prometi.

Um dos escudeiros que estavam ao lado do rei avançou ligeiramente e desembainhou a espada. Os olhos de Wat fixaram-se nele.

- O que é que está pretendendo? - bradou ele. - Me dê a sua espada.

- Isso eu não faço - replicou o escudeiro.-Esta é a espada do rei e você não é digno de tocar nela. Você é um servo, um telhador, e se estivéssemos sozinhos você não teria a ousadia de dirigir-se a mim dessa forma.

Wat, certo do seu poder, muito cônscio do seu exército, que ao erguer de sua mão teria avançado, bradou com raiva:

- Dou minha palavra de que não vou comer hoje enquanto não arrancar sua cabeça.

Aquilo foi demais para o prefeito. Ele fez o seu cavalo avançar e bradou:

- Como ousa agir dessa maneira na presença do rei, seu canalha? Você é um atrevido diante de seus superiores.

- É mesmo - disse o rei.

Wat olhava para o prefeito, perguntando:

- O que isso tem a ver com você? O que foi que lhe fiz?

- Não fica bem para um patife fedorento como você usar esse tipo de linguagem na presença do nosso rei.

Walworth, então, desembainhou a espada e atingiu Wat com um golpe tão forte que ele caiu do cavalo. Wat tentou levantar-se, mas vários dos escudeiros do rei o tinham cercado.

Aprincípio, os camponeses não conseguiam ver o que acontecia. Alguns chegaram até a pensar, por um instante, que o rei estivesse fazendo de Wat Tyler um cavaleiro, o que não os teria surpreendido porque eles tinham começado a partilhar do conceito que Wat fazia de si mesmo; e embora fossem contra riquezas e títulos de nobreza, não teriam sido avessos a aceitá-los para si mesmos.

Mas agora não havia dúvida. Wat estava morrendo. Seu líder lhes fora tirado; ele tinha ido conferenciar com o rei e eles o tinham matado.

- Eles mataram o nosso líder! - gritou alguém. - Venham, vamos matar todos eles.

Naquele momento, Ricardo ficou inspirado. Foi então que realizou o ato mais espetacular de sua vida. Ele poderia ter inferido que o risco era pequeno, porque ficar onde estava seria quase que morte na certa, mas ele não parou para pensar. Era jovem; não tinha experiência com relação ao mundo dos adultos. Tudo o que sabia era que um impulso o levava a agir.

Virou o rosto e gritou:

- Ordeno que todos fiquem onde estão. Nem um só de vocês deverá me seguir. Isto é uma ordem.

Depois, seguiu em frente.

O exército rebelde estava esperando para atacar, mas a visão daquele menino esguio e muito bonito cavalgando em sua direção, parecendo um deus, sem medo, os deixara tão estupefatos que todos ficaram em silêncio e imóveis.

Ricardo se deteve diante deles. Sorriu-lhes. Na sua voz muito estridente, bradou:

- Meus vassalos, o que estão pretendendo fazer? Vão matar seu rei? Não liguem para a morte de um traidor. Eu serei seu líder. Venham, sigam-me para os campos e aquilo que pedem vocês terão.

O rei ficou ali montado no cavalo, sorrindo para eles. Ele os encantou; eles não podiam deixar de se emocionar com sua juventude, coragem e beleza.

- -Venham - disse Ricardo. Girou o cavalo e afastou-se em direção aos campos de Clerkenwell.

Vendo o que se passava, William Walworth dirigiu-se a toda velocidade para a cidade, onde vários dos ricos comerciantes tinham estado reunindo adeptos. Sir Robert Knolles, um soldado de certa experiência, mantivera soldados armados protegendo sua mansão e agora os levara para que se juntassem àqueles que iriam resistir aos rebeldes. Enquanto isso, tinham chegado adeptos vindos das cidades vizinhas e havia uma força considerável para marchar contra a turba.

Assim, enquanto o rei os conduzia para fora de Smithfield, os cidadãos leais e os soldados partiam para atacar os rebeldes.

O corpo de Wat Tyler fora levado para a praça principal, a cabeça decepada e espetada numa lança, que Walworth levou para o local do combate.

Ver a cabeça de seu líder assim exposta tirou do exército rebelde o desejo de lutar. Alguns tentaram fugir, outros caíram de joelhos e pediram clemência.

Havia quem os teria matado todos, mas Ricardo não queria isso. Ainda estava vivendo a glória do papel que ele mesmo escolhera para si. A misericórdia combinava com aquele papel. Além do mais, disse o sábio Walworth, vamos precisar de homens para cultivar os campos e fazer nossos telhados. Eles devem ser mandados de volta para suas casas e deve-se fazer com que entendam que seria uma insensatez tentar uma revolta daquelas outra vez.

Assim, os rebeldes voltaram para suas aldeias. E naquele mesmo dia William Walworth foi feito cavaleiro, a cabeça do arcebispo Simon foi retirada da ponte de Londres e em seu lugar foi colocada a de Wat Tyler.

Isso não foi de todo o fim. Forças foram reunidas, porque devia ser mostrado que seria loucura tentar derrubar a velha ordem. Ricardo ainda estava vivendo na glória daquele momento em que avançara sozinho e enfrentara os rebeldes. Eles o tinham aceitado. Ele os levara embora... para a derrota. Tivessem eles avançado; tivessem eles matado o rei e seus adeptos, a história teria sido outra. Mas fora o jovem rei, um menino de quatorze anos, que, agindo levado por um impulso repentino, fizera a história naquele dia.

Agora, é claro, ele viu que os homens que o cercavam estavam certos. O que os camponeses pediam era impossível. Ele ficara horrorizado com a proximidade de Wat Tyler, homem que não tinha graça, que não sabia como se comportar na presença do seu rei. Ricardo não queria mais contato algum com gente como Wat Tyler.

Wat estava morto. Sua cabeça na ponte era a prova disso e ali permaneceria, um aviso a todos sobre o destino dos rebeldes.

Mas devia haver mais do que a cabeça de um traidor para preveni-los.

Acompanhado por uma pequena força e pelo seu presidente do Supremo Tribunal, Sir Robert Resilian, Ricardo partiu numa excursão pelo interior, e o primeiro lugar a ser visitado foi Essex, porque os homens locais tinham sido os primeiros a se revoltarem.

Só os líderes seriam punidos como exemplo. Tinha-se visto, por intermédio da Morte Negra, o desastre que podia ser causado pela perda de vidas. Milhares tinham sido envolvidos na revolta dos camponeses, mas nem todos podiam ser punidos. Assim, teriam de ser os líderes.

Quando o rei chegou a Essex, muitos dos habitantes reuniram-se à sua volta e gritaram que tinham recebido a promessa de liberdade. Não fora ele mesmo que prometera aquilo aos seus líderes?

Mas aqueles líderes não existiam mais e os que restavam seguiriam em breve o mesmo caminho, quando a justiça os apanhasse.

O rei respondeu cinicamente:

- Rústicos vocês foram e continuam sendo, e vão continuar servos feudais.

Aquilo era uma traição. Aquele menino que parecia um deus devido ao seu charme, beleza e coragem, sua aparente inocência e preocupação com eles, os enganara. Jamais voltariam a confiar nele. Ele era um dos senhores feudais. Ele representara um papel. A desolação tomou conta dos camponeses. Eles deviam ter sabido que não havia como escapar.

Passou-se algum tempo até que encontraram John Bali. Ele soubera que era quase certo vir a ser uma das vítimas. Wat os liderara; mas tinham sido as palavras de John Bali que os inspirara. Tinha sido John Bali que tocara o sino, convocando-os de todas as partes do país para unir-se às forças da liberdade.

John Bali não podia escapar.

Ele deixara Smithfield depois da queda de Wat e viajara até Coventry; mas não era possível um homem tão conhecido como ele continuar escondido. Foi traído e preso quando se escondia em um castelo em ruínas.

Levaram-no a St. Albans, onde a corte estava reunida, e lá ele foi rapidamente condenado à morte dos traidores.

O próprio Ricardo presenciou a execução de John Bali, que foi a mais cruel de todas - enforcado, estripado e esquartejado, e os quatro quartos de seu corpo foram, depois, enviados para serem exibidos em cidades nas quais os rebeldes tinham sido fortíssimos.

Um lúgubre aviso a todos aqueles que poderiam achar possível mudar a velha ordem.

 

RICARDO ESTAVA com quase quinze anos, e fazia algum tempo que se falava em casamento. Nunca era cedo demais para um rei começar a pensar num herdeiro; e parecia não haver razão para que Ricardo não seguisse o exemplo de seu avô e gerasse um filho ou dois.

Não deveria ser difícil para o rei da Inglaterra encontrar uma esposa porque, embora a situação da Inglaterra na época nada tivesse de próspera, sua esposa seria uma rainha e parecia provável que, com um rei jovem e muito ativo, grande parte do que se perdera poderia ser recuperada.

John de Gaunt voltara da Escócia e encontrara seu palácio em ruínas; mas podia congratular-se consigo mesmo e com o sobrinho pela sorte que todos tinham tido ao escapar. John viu que os últimos meses tinham sido alguns dos mais difíceis que o país já atravessara; e tremia ao pensar no que facilmente poderia ter acontecido.

Ricardo agira com presteza e bravura. Conquistara a admiração de muita gente; mas os súditos que se lembravam das promessas que ele fizera em Mile End e em Smithfield deviam ter tido um ideal feito em pedaços. Na verdade, Ricardo jamais voltaria a ser verdadeiramente popular.

John de Gaunt tivera duas filhas com Blanche de Lancaster. Havia algum tempo ele andara pensando que seria admirável se seu sobrinho se casasse com uma delas. Quando apresentou a sugestão, esta foi recebida com desconfiança pelo Parlamento e por todos os assessores do rei. Eles tinham uma excelente desculpa. O parentesco era próximo demais. O casal seria de primos em primeiro grau. Nunca haveria uma dispensa para um parentesco assim tão próximo.

Não, o rei devia procurar uma noiva em outro lugar.

Algum tempo atrás, tinha sido sugerida uma aliança com a filha de Charles da França, mas toda a ideia de um casamento desses foi abandonada quando houve problemas na área papal depois do surgimento do Grande Cisma. Havia dois papas rivais, um sediado em Avignon, o outro em Roma, cada um lançando acusações contra o outro, com ameaças de excomunhão, e a Europa estava dividida, a França liderando os que apoiavam Clemente, e a Inglaterra declarando-se a favor de Urbano.

Quando Wenceslaus da Boémia negou apoio a Clemente, isso provocou um rompimento entre seu país e a França, com quem anteriormente ele mantivera entendimentos muito cordiais. Os ministros de Ricardo viram, então, uma vantagem em formar uma aliança com os inimigos do rei da França. Além do mais, antes do desentendimento, Charles andara à procura de uma esposa para seu filho na Boémia, porque Wenceslaus tinha uma irmã casadoura.

Urbano, em troca do apoio inglês, ofereceu-se para falar em favor de Ricardo com Wenceslaus e com o tio da noiva em perspectiva. Primislaus, duque da Saxônia, foi à Inglaterra ostensivamente para discutir a união, mas na verdade para ver em que tipo de país sua sobrinha passaria a viver quando se casasse.

Voltou para Praga sem achar desagradável o que viu, e Ricardo decidiu, então, enviar Sir Simon Burley a Praga, para que os entendimentos para o casamento pudessem ser feitos; e Wenceslaus mandou o duque da Saxônia de volta à Inglaterra com a mesma finalidade.

Houve luto no palácio de Praga porque o rei e imperador Charles morrera naquele dia. Ele fora um grande governante, embora não fosse popular, e em épocas assim era certo haver mudanças. O novo monarca era Wenceslaus, filho de Charles, um jovem inexperiente mas que fora criado para saber que um dia iria governar. No entanto, havia mudanças no ar, e os velhos aliados do país, os franceses, estavam profundamente envolvidos nelas.

Anne, ajovem irmã de Wenceslaus, se perguntava que diferenças haveria. Estava com apenas quatorze anos, mas fora bem instruída e, por possuir uma inteligência brilhante, não se contentava em dedicar-se ao trabalho de agulha, destilar ervas e outras tarefas femininas. Anne gostava de saber o que acontecia pelo mundo, e como dissera a suas damas de companhia, aquilo poderia muito bem dizer-lhe respeito, porque ela era esclarecida o bastante para saber que quando chegasse a hora seria usada como peça de negociação em um casamento para selar alguma aliança.

- Deve ser o filho do rei da França-dizia ela com frequência.

- Meu pai me disse que o rei da França designou investigadores à procura de um casamento.

Bem, naturalmente se tratava de uma boa proposta. Ela não era tão tola a ponto de pensar que a deixariam ficar em sua terra natal a vida toda, e estava calmamente preparada.

Anne não era, em absoluto, uma beldade; mas tinha o frescor da juventude e com longos cabelos dourados e atraentes. O toucado em forma de chifre, muito em moda na Boémia, ficava-lhe muito bem. A largura dele, com os chifres saindo dos lados, ajudava a ampliar sua testa alta, que era muito estreita; e sua inteligente expressão de interesse por tudo que a rodeava dava uma vitalidade à sua fisionomia que compensava a falta dos belos traços convencionais.

Ela sabia muito bem que o pai não era amado pelos alemães e tinha sido eleito imperador só porque não se dispunha de nenhum outro. Mas logo se percebeu que ele era um governante bom e ativo, e como sempre salientara que estava em excelentes termos de relacionamento com o papado. Levara Inocêncio VI a outorgar a Bula de Ouro, que resolvera a constituição do Império Romano-Germânico, para vigorar enquanto ele existisse, o que fora uma grande e benéfica realização.

O avô dela era cego. Ele morrera no campo de batalha em Crécy - lutando ao lado dos franceses, claro. Os franceses sempre foram aliados deles, e por isso parecia quase certo, para Anne, que seria dada em casamento ao filho do rei daquele país.

Durante toda a sua infância, Anne ouvira histórias sobre o avô - o máximo em matéria de fidalguia... o grande cavaleiro que, embora cego, insistira em entrarem combate levado por seus escudeiros, um de cada lado. Ele lutara galantemente em Crécy em favor do cunhado, Filipe de Valois, contra o inimigo, os ingleses, que tentava usurpar o trono da França, e quando morrera lá fora homenageado pelo Príncipe Negro, que prendera suas plumas de avestruz ao seu elmo e as declarara o maior trofeu do dia.

E então o pai dela subira ao trono e agora fora sua vez de morrer.

Nada parecia estável, exceto a amizade com a França e a lealdade ao papa.

Anne estava crescendo. Quatorze anos não eram muita idade mas também não eram pouca, e não se deixavam as princesas ficarem solteiras por muito tempo.

Desde a morte do pai, sua mãe, que tinha sido a quarta esposa dele, muitas vezes conversava com ela parecendo esquecer-se, como muitos faziam, da pouca idade da filha. Anne gostava que fosse assim. Odiava ser tratada como criança e tinha capacidade de entender o rumo dos assuntos de Estado, tanto quanto muitas pessoas mais velhas.

Assim, conversara com frequência com a mãe sobre a corte da França, já que na época para as duas parecia claro que aquele seria o seu destino final.

Mas parecia que na vida nada havia com que se pudesse contar. Foi a mãe quem lhe falou pela primeira vez sobre a crescente luta nos círculos papais. Aquilo era o começo de um grande cisma. Havia dois papas - um deles mudara-se, agora, para Avignon, e o outro estava em Roma. Clemente fora colocado no cargo pelos franceses, mas o rei da Boémia apoiava Urbano.

Era impossível haver dois papas. Parecia que os franceses queriam um papa que trabalhasse para eles. Isso era inconcebível.

- Parece que não vamos mais ser amigos dos franceses-disse Anne, séria. - Um caso como esse vai, sem dúvida, provocar diferenças entre nós.

- Tem razão, minha filha - disse a mãe.

As duas ficaram se olhando, avaliando o que aquilo significaria. Não demorou muito, e a situação ficou clara. Wenceslaus mandou chamar a irmã.

- Você está sabendo desse problema relativo ao papa – disse ele. - Nossos velhos aliados estão contra nós, e qualquer aliança com eles estaria, agora, fora de cogitações.

- Eu entendo - disse Anne.

- Temos de ficar ao lado de nossos aliados. Alemanha e Flanders estão firmes conosco. Estou muito ansioso para que a Inglaterra também fique.

Anne ouvira falar um pouco sobre a Inglaterra. O idoso rei morrera havia pouco, o que fora muito triste, porque ele fora um dos grandes heróis de época. Sua fama espalhara-se por todos os cantos; mas então ele ficara velho e senil, diziam alguns. Arranjara uma mulher de baixo nível e a colocara de tal maneira que perdera o respeito de todos os que o cercavam. Seu filho, o Príncipe Negro, que tirara as plumas do avô dela em Crécy e o homenageara no local e que na época era considerado o mais fidalgo dos cavaleiros no mundo, tinha morrido. Havia um novo rei, o neto de Eduardo. Ele era jovem - um ano mais moço do que ela. Sim, ela sabia alguma coisa sobre a Inglaterra.

Para Anne ficou claro o que estava para acontecer. Por que outro motivo seu irmão precisaria dizer a ela que estava procurando conquistar a amizade dos ingleses?

- O jovem rei é muito bonito. É quase da sua idade. Penso que os ingleses receberiam bem um casamento.

Anne baixou a cabeça.

Aquele era o destino das princesas.

Uma embaixada chegara a Praga. Era chefiada por Sir Simon Burley e Sir Thomas Holland, e sua finalidade era pedir a mão da princesa Anne para o rei da Inglaterra.

Anne gostou logo de Sir Simon. Havia algo de honesto nele, e a jovem achou muito cativante a maneira dele falar do rei. Do garoto mais moço que era meio-irmão do rei, ela não teve tanta certeza. Ele era interessante; tinha charme; era bem-apessoado, mas havia nele uma certa superficialidade que, apesar de muito jovem, ela sentiu.

O assunto principal deles era com sua mãe e seu irmão, mas passaram algum tempo com ela, porque perceberam que se tratava de uma jovem de inteligência ágil, que a família sabia disso e que, embora fosse conveniente que o casamento se realizasse, ao mesmo tempo as preferências da jovem deveriam ser consideradas.

A mãe falou com ela sobre as negociações, e para Anne ficou claro que ela estava um tanto aflita.

- Sabemos tão pouco sobre esse país - disse ela. - Ele fica tão longe! É verdade que quando o antigo rei vivia o país era muito importante, mas nos últimos anos do reinado dele e com a chegada do novo rei perdeu muito de sua importância.

- Sir Simon fala muito sobre o rei. Ele é muito jovem... mais moço do que eu; mas é muito bonito... assim garante Simon Burley.

- Minha adorada filha, Sir Simon quer voltar para seus senhores com a nossa concordância com o casamento. Estão muito ansiosos por isso.

- Por que estão ansiosos?

- É o que eu gostaria de saber. Só pode ser porque precisam de nós como aliados.

- E nós precisamos deles?

- Está tudo mudado, agora que temos essa desavença com os franceses. Mas não vou permitir que você vá para a Inglaterra se seu tio não trouxer boas informações sobre o país desse jovem. Sim, minha filha, seu tio já está a caminho da Inglaterra!

- Como a senhora cuida bem de mim! - disse Anne.

- Minha querida, você é minha filha; e seu casamento é importante para o país. Dá-se tanta importância aos filhos homens, mas muitas vezes são nossas filhas que fortalecem nossas alianças. Mas por nada deste mundo eu deixaria que você fosse infeliz. O rei é jovem... como você diz, mais moço do que você. A você não falta bom senso. Não tenho dúvida de que como ele é jovem e você também é, os dois poderiam crescer juntos. A juventude, com frequência, é um bom alicerce para o casamento.

As duas abraçaram-se de repente. Nenhuma delas tendia a mostrar suas emoções, mas naquela ocasião a imperatriz queria que Anne soubesse que ela queria seu bem-estar pessoal, e Anne queria dar a perceber que compreendia isso.

Enquanto esperavam a volta do tio da Inglaterra, ela ficou conhecendo mais Sir Simon e Sir Thomas Holland e conversava muito com eles sobre a Inglaterra e seu marido em perspectiva.

- O rei da Inglaterra gosta muito dos livros-disse-lhe Simon.

- Gosta de música. Gosta de roupas finas. Sim, ele gosta muito desses tecidos e de ornamentos com jóias incrustadas, mas eles têm de ser de bom gosto. Fui nomeado tutor dele pelo pai e sempre tive prazer ao ver o quanto ele gostava de aprender.

Anne gostava do que ouvia sobre Ricardo. Ela poderia conversar com ele, partilhar de interesses comuns. Ficou contente com o fato de o marido em perspectiva gostar de literatura e música. Tantos reis não pensavam em outra coisa que não aumentar seu poder e, em consequência, a guerra era a sua principal preocupação.

Pelo meio-irmão dele, Anne ficou sabendo de outro lado de seu caráter.

- Ele é muito bem-apessoado - disse Thomas Holland. - É o mais bonito da família. Meu meio-irmão Eduardo, o que morreu, não chegava a ser tão bonito quanto Ricardo. Ele é muito alto e louro. Tem o que na Inglaterra chamam de traços dos Plantagenetas... que são cabelos louros, olhos azuis e pele branca. Ricardo é um pouco mais moreno do que alguns deles. Os cabelos são espessos e amarelos... mas de um amarelo-escuro. Ele é muito pálido, mas quando se enrubesce... o que ocorre com frequência... fica rosado e branco. O povo o ama porque é jovem e muito bonito e sabe sorrir para as pessoas. Ele não gosta de justa nem a pratica. Isso é estranho, porque o pai dele foi um grande justador, assim como o avô. O pai dele foi meu padrasto, sabe?, de modo que conheço tão bem Ricardo quanto a maioria das pessoas. Ele sempre foi o favorito de minha mãe.

- Você sentia inveja dele? - perguntou Anne.

- Não. Eu era velho demais para sentir inveja. Sabe, fui um produto do primeiro casamento de minha mãe. Depois que meu pai morreu, ela se tornou esposa do Príncipe Negro, de modo que era natural que os filhos homens que teve com ele fossem mais importantes do que nós. Aceitamos isso. Além do mais, não éramos do tipo de aceitar os carinhos que eram dirigidos ao herdeiro do trono.

- Ricardo é sério? Ele é muito jovem para um cargo desses.

- Ele é sério. Está decidido a ser um bom rei. Mas você sabe como é; ele vive cercado de assessores. Não será sempre assim. Ele está crescendo. Ora, ele vai ter uma esposa!

Thomas Holland era indiscreto.

- O tio dele, John de Gaunt, que deve ser o homem mais impopular na Inglaterra, gostaria de ver Ricardo casado com a filha dele.

- E Ricardo não quer se casar com ela?

A sugestão não pode ser levada a sério. O parentesco é próximo demais. Porém, mais do que isso, o povo seria contra... simplesmente porque é filha de John de Gaunt.

Ele é tão impopular assim?

Acho que o povo imaginou, numa certa época, que ele estava

tramando tomar a coroa. O Príncipe Negro estava doente, o rei também... e John de Gaunt era muito ambicioso.

- E ele estava realmente tentando tirar o trono de Ricardo? Thomas Holland deu de ombros e sorriu para Anne.

- Quando você for para a Inglaterra, vai julgá-lo por si mesma. O povo o odeia com a mesma intensidade que ama Ricardo, que é filho do Príncipe Negro, e eles o idolatram... particularmente agora que ele está morto. Ele era o favorito de todos... o filho mais velho, honras de batalhas e tudo o mais.

- Sei que ele estava na batalha de Crécy, onde meu avô morreu.

- Ah, seu avô estava no lado errado, na época. Ele devia ter ficado conosco. Mas agora, é claro, seu país nos apoiará. Agora que Ricardo vai ter uma esposa.

Talvez Ricardo fosse ter uma esposa. Mas seria Anne da Boémia? Tudo dependeria das informações que fossem trazidas da Inglaterra.

Quando o duque da Saxônia voltou para a Boémia, levou ricos presentes para os que serviam à princesa. Ele achara Ricardo um marido muito adequado à sua sobrinha; e os ingleses haviam lhe oferecido recepções e o tinham recebido muito bem. Ele visitara algumas das cidades deles; admirara os navios deles; caçara nas florestas deles. Ele acreditava que o casamento seria vantajoso para a Boémia e, o que era da máxima importância, os ingleses estavam dispostos a aceitar Anne sem um dote.

A imperatriz ficou um pouco confusa. Eles devem querer muito esse casamento, pensou ela.

Sim, eles queriam o casamento. Estavam procurando a ajuda do imperador na luta deles contra os franceses.

Bem, os entendimentos deveriam prosseguir. Anne deveria fazer os preparativos a fim de partir para a Inglaterra.

Agora que chegara a hora, ela sentia ondas de apreensão. Deixaria a mãe e toda a família para ir viver entre estranhos. Muito embora sempre soubesse que aquele acabaria sendo seu destino, agora que ele surgia bem à sua frente, aquilo devia enchê-la de dúvidas.

Sir Simon e Sir Thomas Holland despediram-se, e a embaixada retornou à Inglaterra.

Agora, ela deveria preparar-se com afinco. Seria estranho viver em um novo país. Anne estava sempre falando nisso com as três irmãs, Katherine, Elizabeth e Margaretha. Ela gostaria de saber se haveria poetas e músicos na corte. Ela sempre gostara de visitar o tio Wenzel, o duque de Brabant, porque ele escrevia poesias, e os poetas eram sempre bem-vindos à corte dele. Era patrono das artes e, em consequência, sua corte tinha muitas coisas que a interessavam.

Seria também assim na Inglaterra?, perguntava-se Anne.

Katherine disse que Sir Simon Burley lhes contara que Ricardo gostava muito de poesia, de modo que com toda certeza seria.

Seria, sim. Anne iria persuadi-lo a estimular os poetas. Eles teriam cantos e danças na corte. Ela iria torná-la, tanto quanto possível, igual à do tio Wenzel. Então, não sentiria saudade de casa. Não ficaria suspirando com saudade do palácio de Hradschin, do pai. A Inglaterra seria o seu lar.

Um dia chegaram mensageiros ao palácio Hradschin. Eles tinham vindo da Inglaterra a toda velocidade, e as notícias que traziam eram preocupantes.

Por toda a Inglaterra os camponeses tinham-se revoltado. Estavam em marcha, e o objetivo era mudar o velho sistema de governo. Queriam ser os senhores, ou pelo menos queriam que todos os homens fossem iguais. E estavam vencendo. Aquilo seria o fim da Inglaterra, tal como era conhecida desde a época do Conquistador. Aquilo não seria lugar para a filha do Santo Imperador Romano.

A imperatriz abanou a cabeça enfaticamente.

- Vamos esquecer tudo sobre o acordo que fizemos com a Inglaterra - disse ela.

Mas não demorou muito e chegaram mais mensageiros.

A revolta fora dominada pela coragem e pela perícia de estadista do jovem rei. Estava tudo bem. Os camponeses tinham sido dispersados, e seus líderes, executados.

Estava tudo bem na Inglaterra sob o reinado de um rei que esperava pacientemente a chegada da noiva.

Anne partiu de Praga com o duque e a duquesa da Saxônia e uma comitiva adequada à sua posição.

Ela se despedira da mãe e das irmãs. O irmão, Wenceslaus, estava em Bruxelas, onde esperava recebê-la quando ela passasse por lá a caminho da costa.

Houve grandes comemorações e uma grande alegria em Bruxelas e Wenceslaus conversava com ela frequentemente, sempre salientando a necessidade de que se lembrasse de que seu país esperava que ela se lembrasse dele. Ela teria a confiança do rei; devia fazer com que seu novo país continuasse a ser amigo de sua terra natal.

Enquanto a comitiva estava sendo recepcionada em Bruxelas, chegou à corte de lá a notícia sobre a raiva do rei da França. Ele não iria permitir que o seu outrora aliado casasse sua princesa com o inimigo dele. Tinham de chegar à Inglaterra, não tinham? Será que havianresquecido que para fazer isso teriam de atravessar um mar perigoso? Não, ele não estava se referindo apenas às condições climáticas; havia navios naqueles mares - navios dele, e estavam detendo todas as embarcações assim como decididos a impedir que a princesa Anne chegasse até seu noivo.

Depois de muitas consultas, o tio dela, o duque de Brabant, mandou uma embaixada ao rei da França para reclamar, e para surpresa de todos o rei foi convencido a ceder. Não, apressou-se ele a salientar, por amor ao rei da Inglaterra. Ele pouco ligava se o rei ficasse sem a noiva. Na verdade, gostaria que ficasse sem ela. Mas, em nome de sua adorada prima Anne, ele chamaria de volta os navios que tinham sido enchidos de violentos marinheiros normandos e ela iria ter uma travessia segura para a Inglaterra.

Foi com grande alívio que a comitiva partiu para a costa.

Em Gravelines, ela encontrou mais alguns nobres de seu novo país, pois os condes de Salisbury e Devonshire estavam ali à espera com uma guarda de quinhentos homens, todos portando lanças, para conduzi-la até Calais.

O mês de dezembro não era a melhor época do ano para viajar, e não foi surpresa nenhuma precisarem esperar por um vento favorável.

Por fim, o mar ficou calmo o bastante para que eles partissem, e foi o que fizeram. A travessia foi feita em um dia, o que foi considerado um sinal da divina providência, mas, por estranho que parecesse, assim que Anne pôs os pés em terra surgiu um vento violento. O mar começou imediatamente a agitar-se de maneira tão estranha, que parecia que uma gigante serpente marinha devia estar agitando-o com sua cauda.

Todos os que viram declararam que nunca tinham presenciado alguma coisa que se comparasse àquilo. Era diferente de uma tempestade. O mar parecia um caldeirão; o vento parecia um furacão. Os que estavam em terra ficaram observando, horrorizados e assombrados, enquanto os navios que tinham atravessado o canal levando a comitiva eram jogados de um lado para outro, virados, e em pouco tempo partidos como se tivessem sido feitos do mais frágil dos materiais.

O navio que transportara Anne foi feito em pedaços, e outros barcos da frota tiveram o mesmo destino.

Foi o fenómeno mais extraordinário, e muitos dos que o presenciaram caíram de joelhos e rezaram a Deus para que afastasse Sua ira.

A tempestade - ou o que quer que tenha sido - parou abruptamente. O vento fora embora; as águas revoltas acalmaram-se; só os restos de navios partidos flutuando no mar e atirados às praias eram prova do que acontecera.

Houve um profundo silêncio entre os espectadores. O que significara aquilo? Ninguém duvidava de que era um sinal divino.

Seria raiva diante do casamento proposto? Houve quem achasse que sim, o que significaria um mau agouro para o rei e sua noiva. Ou seria o meio de o céu dizer que estava satisfeito com a chegada de Anne, já que a tragédia ocorrera imediatamente após ela ter sido levada a salvo para terra, e se a agitação tivesse começado pouco antes, ela e toda a comitiva teriam tido morte certa.

O problema com aqueles agouros era que sempre havia duas interpretações a dar a eles, e isso sempre acontecia. Eles eram maus para aqueles que o queriam assim; mas os que fossem a favor do que se passava sempre podiam transformá-los em bons.

A viagem para Londres começara. A primeira parada de Anne foi em

Canterbury, onde o tio de Ricardo, Thomas, esperava para recebê-la.

Anne ficou extasiada ao ver a bela cidade dentro daqueles muros cinzentos, que era dominada por aquela mais magnífica das catedrais tornada sagrada pelo santuário do grande Thomas à Becket, que fora assassinado nela havia duzentos anos e cuja memória estava tão viva agora quanto na época em que tinha sido morto. Havia, também, o túmulo do pai de Ricardo.

Thomas, o tio de Ricardo, conhecido como Thomas de Woodstock e conde de Buckingham, tinha os traços dos Plantagenetas, sendo alto, louro e bonito. Estava com cerca de 35 anos e fez a saudação com entusiasmo e com o máximo de cortesia.

Anne o achou encantador; não se podia esperar que ela, àquela altura, soubesse que sua gentileza era uma fachada.

Thomas de Woodstock estava, na verdade, longe de ser a benigna figura avuncular que representava para impressionar a princesa.

Ele sempre sentira despeito em relação ao sobrinho. A vida de Thomas era um despeito atrás do outro. Ser o filho caçula já era uma irritação por si só. Ele possuía a ambição da família; e era irritante o fato de aquele magro menino efeminado ser o rei. Ele era o único filho que restava do mais velho, mas um menino daqueles, quando havia três tios, todos filhos do rei Eduardo, todos homens adultos, com experiência na arte de governar. Era um azar, e ele se ofendia com isso.

Ele não queria ir até Canterbury para receber a noiva. Isso não cabia a ele. John é que deveria ter ido. Ele era o mais velho dos tios. Mas naquele momento não havia homem mais impopular na Inglaterra do que John de Gaunt.

John lhe dissera:

- Você tem de ir a Canterbury para trazer a noiva até Londres. Se eu for, quem sabe o que poderia acontecer? O povo poderia demonstrar a antipatia por mim, o que não seria um bom começo para a princesa. Edmund está no exterior, de modo que cabe a você.

Thomas concordara, não sem uma satisfação presunçosa. Ele sentia inveja do irmão e não lamentava que a impopularidade dele fosse tão evidente. Além do mais, naquele momento guardava uma queixa especial contra ele.

John estava promovendo muito o filho, o jovem Bolingbroke; ele sempre fizera isso. Teria gostado de levar os bastardos de Beaufort, de Catherine Swynford, para um lugar de destaque, também, se fosse possível; mas isso não seria tolerado. Já era ousadia demais levar Catherine de um lugar para outro com ele e esperar que o povo a respeitasse; mas considerar nobres os bastardos - isso seria demais, mesmo para John.

Mas não o impedia de agir no que se referia ao jovem Henrique. Ora, Henrique era filho de Blanche de Lancaster-real tanto do lado materno quanto do paterno, de modo que isso era previsível que acontecesse. John ficava intimamente irado pelo fato de Henrique não ser o herdeiro do trono; mas tentava o tempo todo cobrir o filho de honrarias. Ele já era conde de Derby, apesar de as pessoas ainda o chamarem de Bolingbroke por causa do lugar em que nascera. Thomas passara a não gostar do menino desde a época - devia ter sido havia cinco anos - em que ele fora feito Cavaleiro da Jarreteira. Ele, Thomas, tivera a esperança de ser escolhido, mas era típico de John empurrar todo mundo para o lado a fim de que ele pudesse progredir; e naquela época ele contara com o beneplácito do pai deles.

Mas agora havia um ressentimento ainda maior: o recente casamento de Bolingbroke.

O pai de Thomas, numa tentativa de deixá-lo muito bem amparado - porque com tantos filhos não havia propriedades suficientes para contemplar a todos -, conseguira um brilhante casamento para ele.

A esposa escolhida para Thomas, quando ele tinha dezenove anos, foi Eleanor Bohun, filha do conde de Hereford, Essex e Northampton. Eleanor era uma herdeira muito rica, mas só houve uma falha nos entendimentos: tinha uma irmã mais moça, Mary.

Durante algum tempo, ele e Eleanor tinham tentado convencer Mary a entrar para um convento. Mary era uma moça muito bonita e bem meiga, mas se deixava influenciar pela mais velha, menos bonita mas mais vigorosa, Eleanor. Eles a tinham levado para morar no castelo de Pleshy, que ficava muito próximo a um dos ramos femininos dos franciscanos, conhecido como as Claras Pobres.

Mary, portanto, tivera ampla oportunidade de observar a piedade das freiras daquela ordem; Eleanor estava constantemente elogiando as virtudes delas, e era evidente que Mary estava muito impressionada com elas. Dedicavam-se a cuidar dos pobres e dos doentes.

- Ah - dizia Eleanor, supirando -, quase as invejo. Que vida bonita elas levam. Não concorda, Mary?

Mary concordava. Sim, devia ser maravilhoso ser tão virtuosa. Ela não teria se importado muito por vestir aquele traje solto, de tecido grosso, com os cintos com nós - quatro nós representando os quatro votos que tinham feito.

- Eles ficam melhor, aos olhos de Deus, do que os mais finos tra;es - disse Eleanor com entusiasmo.

- Talvez não seja tarde demais para você abrir mão do mundo e unir-se a elas - sugeriu Mary.

Eleanor ficou zangada. Mary estava mudando. Estava crescendo.

Era lamentável que o rei Eduardo, tendo dado Eleanor a seu filho, tivesse entregado a guarda da filha mais moça para o outro filho, John de Gaunt. Ser guardião de herdeiros de grandes fortunas era sempre uma atividade lucrativa, e essas guardas eram muito procuradas e entregues como prémio àqueles aos quais o rei devia alguma recompensa.

John de Gaunt visitava sua protegida de vez em quando, para se assegurar de seu bem-estar, e fazia algum tempo que uma ideia fermentava em sua cabeça.

A fortuna Bohun era grande; não havia razão para que Eleanor ficasse com tudo. Ele providenciou, com a ajuda da tia de Mary, a condessa de Arundel, para que a jovem fizesse uma visita a Arundel.

- Ela praticamente decidiu Seabar seus dias com as Claras Pobres - explicara Eleanor; mas não era possível evitar que Mary saísse com a tia para uma curta visita a Arundel.

- Devíamos ter sabido - dissera Thomas a Eleanor depois. John é astuto. Ele tramou isso, pode estar certa.

Porque em Arundel Mary conhecera o jovem conde de Derby, que, com toda certeza, tinha ouvido do pai a recomendação de que devia ser delicado com a jovem.

Henrique obedecera. Pouco depois, John seguia para Pleshy. Aquela altura, Thomas tinha ido para o exterior e fora a Eleanor que ele dera a notícia.

- Pareceu inevitável - dissera ele. - É encantador ver gente jovem se apaixonar. Claro que eles são jovens, não pretendo atrapalhar Henrique.

Eleanor falou atabalhoadamente, de tanta raiva.

- Você não pode estar dizendo... Isso é inteiramente impossível. Mary...

- Mary e Henrique querem se casar. É um bom casamento para sua irmã.

Eleanor ficara fora de si. Todo o seu plano dera em nada. E Thomas não estava ali para lutar a seu lado.

- Não posso permitir. Ela quer entrar para um convento.

- Minha querida irmã, não lhe cabe permitir ou recusar. É claro que ela não quer entrar para um convento. Ela quer se casar, e não vejo razão para que haja qualquer resistência a uma união dessas. Eu não tenho.

Não adiantara enfurecer-se. As objeções eram postas de lado pelo poderoso John de Gaunt. Ele conseguira o que queria, e Mary, a rica herdeira, tornara-se esposa de Henrique de Bolingbroke.

Quando Thomas voltara e soubera da novidade, ficara furioso. A fortuna que lhe coubera através de sua mulher era apenas metade do que teria sido se Mary tivesse entrado para um convento e desistisse da maior parte de sua cota. Os Bohun eram imensamente ricos, mas agora ele só iria ter metade do que esperava.

Apesar de descontente, ele tinha de fingir uma amizade pelo irmão e adular o menino rei. E agora ali estava ele prestando homenagem àquela jovem que viera casar-se com Ricardo.

Ela não trazia dote. Isso era engraçado.

Ele desejava que Ricardo fosse feliz com Anne.

Partiu de Canterbury com ela e os dois voltaram-se na direção de Londres.

Do lado de fora da cidade, ela foi recebida por um grupo de cavaleiros, à frente dos quais cavalgava seu futuro marido.

Por alguns instantes de respiração presa, montados em seus cavalos, os dois ficaram frente a frente.

Ela sentiu uma grande alegria ao vê-lo - os louros cabelos caindo sobre os ombros e uma coroa de ouro na cabeça. A bela pele estava ruborizada pela emoção do encontro e estava delicadamente rosada. Os olhos eram de um azul intenso; os dentes, brancos; tudo o que ela ouvira falar sobre sua bela aparência era verdade.

A túnica folgada, com suas compridas mangas soltas, que ela aprendera que se chamava casacão, era forrada de pele de esquilo. As largas mangas caindo para trás revelavam outras mangas da roupa colada ao corpo, que ele usava por baixo. O cinto que lhe rodeava a cintura brilhava de tantas jóias que olhar para ele deixava a pessoa ofuscada; e na verdade a pessoa toda do jovem rei cintilava.

Tinham dito a Anne que ele adorava roupas finas, e era evidente que isso era verdade.

Mas ele era belo. Tinha a aparência de um deus. Anne nunca vira um ser humano tão bonito e apaixonou-se por ele à primeira vista.

Quanto a Ricardo, ficou encantado com aquela jovem de fisionomia vivaz e olhos vivos. Emboranão fosse exatamente bonita, isso não tinha importância. Ela iria admirá-lo ainda mais pela sua beleza se não a tivesse tanto. Anne estava sorrindo e sua expressão era de um profundo interesse, e para Ricardo ficou claro que ela gostava do que estava vendo. O rosto dela era bem comprido, embora fino; tinha um lábio superior longo, mas os dentes eram bons. Seu sorriso era cativante; e sua juventude, naturalmente tentadora. Pareciaum pouco estranha aos olhos ingleses, mas isso por causa de sua touca, com formato de chifres de vaca.

No entanto, foi um encontro feliz. O rei e sua noiva eram jovens, e o povo estava decidido a amá-los.

Os londrinos, aliviados agora que sua cidade tinha sido salva pela ação imediata do rei, estavam dispostos a mostrar à sua nova rainha a recepção esplêndida que podiam lhe dar.

O prefeito e os principais comerciantes tinham vestido o que tinham de melhor e ido até Blackheath a fim de escoltá-la na entrada da cidade, e com eles seguiram menestréis. Assim, Anne fez uma entrada triunfal na cidade de Londres.

Em Cheapside, uma alegoria esperava por ela. Um castelo tinha sido erguido ali, e dele jorravam fontes de vinho. Nas torres do castelo estavam belas jovens e, quando o casal real se aproximou, elas jogaram sobre eles folhas douradas.

No dia seguinte, Anne e Ricardo se casaram na capela real do palácio de Westminster.

A cerimónia foi seguida de comemorações e muita agitação nas ruas. O povo parecia louco de alegria. Queria colocar o mais longe possível da lembrança aquela fase horrível, quando parecia que a cidade cairia em mãos dos rebeldes.

Depois do casamento, Ricardo levou a noiva para Windsor. Era evidente que os dois estavam encantados um com o outro. Ricardo adorou as frias e precisas opiniões de Anne e seus conhecimentos dos assuntos, que pareciam incompatíveis numa pessoa tão jovem e chegada há tão pouco tempo ao país. Anne estava encantada com a aparência dele, seus modos corteses, seu amor pela poesia e por livros de todos os tipos. Ele lhe mostrou um exemplar do Romance da rosa que adquirira quando tinha treze anos. Possuía também romances de Gawain e Perceval, assim como uma Bíblia em francês.

Anne ficou impressionadíssima; estava vendo que os dois seriam felizes lendo juntos e depois discutindo o que tinham lido.

Ela achava interessante o gosto dele pelas roupas que usava e fez com que ele lhe mostrasse alguns dos trajes incrustados de diamantes, dos quais ele tanto se orgulhava. Pedia que ele os vestisse e adorava vê-lo desfilá-los e ataviar-se à sua frente.

Ricardo era vaidoso com relação à sua aparência; e tinha motivos para isso, dizia ela para si mesma, defendendo-o. Nunca poderia ter havido um rei mais bonito.

Ele era exigente quanto à aparência. Tomava banho todos os dias, para o espanto dos que o cercavam. Anne sentia que eles achavam aquele hábito efeminado, mas ela gostava. Ricardo estava sempre tão limpo, tão belamente vestido!

O rei gostava de comida, mas tinha de ser algo leve. Não era um grande trinchador. Servia-se de forma requintada daqueles pratos e se interessava imensamente pela maneira como eram preparados.

Mas, principalmente, Anne gostava de ouvir falar no país. Ela o fez falar sobre a revolta dos camponeses em todo o seu horror. Quando ele descreveu como tinha ido enfrentar os rebeldes, ela ficou ouvindo, enlevada. Podia vê-lo - muito bonito, muito jovem enfrentando aqueles homens maltrapilhos. E como ele fora valente!

- Eles poderiam tê-lo matado - disse Anne.

- Não pensei nisso. Estava pensando em minha mãe na Torre e depois no Wardrobe, e me sentia horrorizado com o que poderiam fazer com ela. Sabia que tinha de mandá-los de volta para casa, porque caso contrário eles matariam meus amigos e a mim também, era o que supunha, embora não ligasse muito. Eles nunca mostraram qualquer animosidade para comigo.

- Então você os dispersou prometendo atender as suas reivindicações. Foi até eles quando o telhador foi morto e ofereceu-se para ser o líder deles.

Foi o que fiz, sim.

Ela ficou pensativa.

Mas as promessas não foram cumpridas.

Era impossível cumpri-las.

- No entanto, você prometeu.

- Tive de prometer para salvar Londres... para salvar meu

reino.

Ela entendeu. Anne sempre compreendia rapidamente um argumento lógico. Mas ficou preocupada por causa dessa promessa.

Anne voltou ao assunto e quis saber o que estava acontecendo com os rebeldes que ainda estavam nas prisões aguardando julgamento.

Ricardo disse não ter dúvidas de que sofreriam a recompensa dos traidores. Muitos tinham sido libertados, mas não parecia sensato deixar o povo pensar que podia revoltar-se contra seus governantes e depois ser mandado para casa quando fosse derrotado, como se aquilo não tivesse importância.

Ela também compreendeu aquilo. Mas disse:

- Perdoe essa gente por mim, Ricardo. Faça com que isso seja seu presente de casamento para mim.

O que ele poderia fazer, a não ser o que ela queria?

Os rebeldes foram perdoados. O povo ficou sabendo. As pessoas passaram a gostar mais dela por sua compaixão e reagiram com rapidez.

Poucos meses depois de sua chegada à Inglaterra, ela passara a ser conhecida como a Boa Rainha Anne.

 

A RAINHA-MÃE ESTAVA SENTINDO o peso da idade. Ficara muito gorda nos últimos anos e estava-se tornando um fardo intolerável arrastar-se de um lado para o outro.

Acabara aceitando a ideia de assumir um lugar subalterno na vida do filho. A princípio, sentira-se um pouco enciumada da dedicação que ele tinha para com a nova rainha. Antes dela chegar, sempre fora para a mãe que ele se voltava, mas em poucos meses Anne tomara com firmeza o primeiro lugar em seus afetos.

Bem, pensava Joan, talvez aquilo fosse a melhor coisa que poderia ter acontecido. Ela não podia deixar de admirar a nova rainha. Ela era uma jovem sensata; amava Ricardo como Ricardo a amava; e se ele ouvia os conselhos de Anne, Joan podia estar certa de que valia a pena ouvi-los.

O fato de Anne ser um ano mais velha do que Ricardo era muito bom. Ela era séria e, no entanto, capaz de compartilhar dos prazeres do rei. Embora o povo não tivesse ficado muito satisfeito com o casamento no início, porque Anne não levara dote algum e uma quantia vultosa tivera de ser dada à Boémia, tirada do tesouro inglês, e não se visse que não se tivera qualquer grande vantagem política, o sorriso sincero de Anne, sua pronta reação em prol do bem-estar do povo, juntamente com o frescor de sua juventude, tinham conquistado a popularidade dela.

O casamento fora arranjado na esperança de fazer uma aliança com o imperador contra os franceses, mas parecia que aquela luta pela coroa da França, que o rei Eduardo começara, não estava mais perto do fim do que estivera havia muitos anos. Joan se perguntava se algum dia estaria. O melhor que poderia acontecer seria fazer a paz, concentrar-se no governo da Inglaterra e esquecer a França, onde tanto sangue inglês já fora derramado em batalhas que se haviam revelado inúteis porque nada tinham decidido.

Bem, talvez, como teria dito o Príncipe Negro, aquele fosse um ponto de vista feminino. Mas Joan acreditava que era o mais sensato apesar de tudo, ou talvez exatamente por isso.

Parecia que todas as tentativas em terra e no mar estavam fadadas ao fracasso. Ainda se comentavam as grandes vitórias de Eduardo III e do Príncipe Negro, mas Joan sabia que não havia líder algum, naquele momento, capaz de tamanhos sucessos. O falecido rei e seu filho mais velho tinham tido uma qualidade rara, e isso não estava aparente em qualquer pessoa viva naquele momento. Ricardo nunca seria um grande combatente. Disso ela sempre soubera. Isso a preocupara muitíssimo, e tendo vivido com um dos maiores generais da sua ou de qualquer época, ela reconhecera as qualidades necessárias. O Príncipe Negro e seu pai eram homens que sabiam provocar em seus soldados uma certeza de vitória simplesmente aparecendo. Hoje, não havia ninguém igual.

John de Gaunt poderia ser o mais próximo, mas lhe faltava algo. Tudo em que ele se metia parecia fracassar. Não era azar sempre. Ele não tinha aquela qualidade que atraía os homens. Eduardo, o rei, e o Príncipe Negro tinham sido amados. John de Gaunt era desprezado. Edmund de Langley era bonito e charmoso, mas não um grande soldado; tampouco Thomas de Woodstock. Talvez Bolingbroke pudesse ser, um dia... mas ainda era jovem, além de dominado pelo pai odiado.

Muitas vezes Joan pensava no futuro. Eduardo teria rido dela, se estivesse vivo. Ela sempre fora considerada muito frívola. Mas talvez durante o casamento deles Eduardo tivesse começado a perceber que era o contrário.

Por isso, Joan agora devia alegrar-se por causa do feliz casamento do filho e graciosamente recuar para o segundo lugar.

Mas estavam vivendo uma época agitada. Ricardo era impressionãvel e caíra rapidamente sob a influência de certas pessoas.

Michael de Ia Polé e Richard Fitzalan eram duas delas. Eles tinham sido escolhidos para atuar como seus assessores. Agora que John de Gaunt saíra do país (ele ainda estava guerreando em Castela, porque desde a morte de Henry de Trastamare a questão da sucessão voltara a ser levantada), havia um campo aberto para eles e os dois se aproveitaram disso.

Mas o maior amigo de todos era Robert de Vere, o conde de Oxford, e a amizade era tão íntima-porque o rei mal suportava ter o jovem longe dele - que começava a ser percebida e comentada.

De Vere estava, é claro, ligado à família real porque se casara com Filipa de Couci, a filha mais velha de Eduardo

II e de Isabella. Assim, parecia razoável, a princípio,

que Ricardo e de Vere estivessem muito juntos; mas, à medida que as semanas se passavam, essa devoção foi aumentando.

Foi um sinal do bom senso de Anne o fato de não mostrar qualquer ciúme de Robert de Vere. Em vez disso, ela parecia gostar da companhia dele; e era frequente os três estarem juntos.

Menina inteligente, pensou Joan, e lembrou-se de que ouvira falar de Eduardo II, que se dedicara a amizades apaixonadas com homens da corte e de sua mulher, que ficara tão ofendida que pegara em armas contra ele.

Sim, Joan podia alegrar-se com o casamento. Foi um dia feliz para Ricardo aquele em que Anne da Boémia se tornou sua mulher.

Muitas vezes, Joan ficava aflita com relação aos filhos de seu primeiro casamento. Eles sempre haviam sido muito violentos. Tinham saído ao pai. Ela sorria ao se lembrar dele e da paixão que os dois tinham compartilhado na juventude. Thomas Holland fora irresistível aqueles anos todos atrás na criadagem de Salisbury, onde se achava que ela estava noiva do jovem Salisbury. Dias excitantes dias despreocupados, quando ela nem percebia o quanto fora irresponsável.

Agora estava tudo acabado. Mas Thomas e John eram realmente irresponsáveis. De uma coisa Joan podia estar certa: os dois apoiariam Ricardo porque todas as suas esperanças de melhoria de situação seriam realizadas através dele.

Ricardo estava, agora, com dezoito anos. Já não era um menino para que lhe dissessem o que fazer. Escolhera um pequeno grupo de amigos, à frente do qual estava Robert

de Vere. De Vere não era o mais competente dos conselheiros, mas Ricardo só dava ouvidos aos seus conselhos. Além do mais, ele tendia a agir com base em impulsos e, tendo em vista que seu génio explodia depressa e se tornava cada vez mais violento, tendia a agir primeiro e pensar depois.

Era natural que houvesse facções conflitantes em torno dele, e havia um grande ressentimento em relação a Robert de Vere. Isso era aproveitado pelo povo, que punha no favorito a culpa de todos os reveses. O povo ainda acreditava no seu rei; ovacionava-o quando ele cavalgava pelas ruas das cidades e pelo interior; ele tinha muito o aspecto de um rei, e por enquanto a população procurava bodes expiatórios para qualquer ato de que não gostasse.

John de Gaunt estava de volta à Inglaterra, sem ter chegado a qualquer conclusão satisfatória sobre Castela, e em torno dele formara-se um grupo que era conhecido como o Partido Lancastriano. Ele tinha ido à Escócia e voltara depois de uma campanha desastrosa. Perseguira os escoceses, que tinham incendiado suas cidades e aldeias antes dele, para que quando ele ali chegasse seus soldados ficassem sem provisões. Era impossível continuar naquelas circunstâncias, e os ingleses tinham tido de recuar para a fronteira.

John foi acusado de falta de energia na condução da guerra, e o assunto foi levantado pelo partido da corte no Parlamento, havendo um forte desentendimento entre de Vere e John.

De Vere estava certo de sua influência junto ao rei e acreditava que poderia livrar-se daquele tio criador de caso que, ele sabia, faria o possível para arruiná-lo se tivesse oportunidade.

E John de Gaunt era um homem muito poderoso.

De Vere chegou à conclusão de que talvez tivesse condições de livrar-se de John de Gaunt de uma vez por todas.

A corte estava em Salisbury e o rei e a rainha deveriam comparecer à missa solene na catedral de lá. Seria uma ocasião muito cerimoniosa.

Robert de Vere convidara o rei e a rainha a jantar com ele antes da missa, e os dois tinham ido para os aposentos privados dele no castelo. Havia apenas uns poucos convidados, e foi uma reunião muito alegre até que houve uma interrupção.

Aporta do aposento foi aberta de repente, e um frade, cujo hábito mostrava tratar-se de um carmelita, entrou correndo e atirou-se aos pés do rei.

Ricardo ficou assustado.

- O que significa isso? - bradou ele. O frade gaguejou:

- Meu senhor, meu senhor. Eu vim avisá-lo.

- Fale, frade, fale - bradou Robert de Vere. - O rei ordena que o senhor diga o que tem a dizer a ele.

O frade ergueu os olhos para o rosto do rei.

- Majestade - disse ele -, sua vida corre perigo. Há gente tramando matá-lo.

- Que trama é essa? - bradou o rei. - E como o senhor sabe disso?

- Eu sei, majestade. Ouvi a conversa dos conspiradores. É uma trama com as cidades de Londres e Coventry. Eles vão se reunir e tirar o trono de vossa majestade.

- Este homem está louco - disse o rei.

- Não, não, meu senhor. Não estou.

- Vamos ouvir o que ele tem a dizer-disse de Vere.-Quem fez esse plano? Quem está no cerne dele? Diga.

- É o seu tio, senhor meu rei. Seu tio, John de Gaunt, que tenta derrubá-lo e tirar-lhe o trono.

- Meu tio! - bradou Ricardo.

Era significativo o fato de ele acreditar que aquilo fosse possível. Seu tio John de Gaunt tramando contra ele, tentando pegar a coroa. Não era isso que ele sempre quisera?

Mas eles tinham descoberto a tempo. O frade deveria ser recompensado. Ricardo atacaria primeiro.

- Prendam o duque de Lancaster-bradou Ricardo. - Prendam o traidor.

Um dos membros do grupo, Sir John Clanvowe, o prior do Hospital de São João de Jerusalém, pediu ao rei que contivesse sua raiva.

Majestade, majestade - bradou ele -, seria bom verificar, primeiro, se há algo de verdade na história desse frade.

Anne estava olhando para Ricardo com uma expressão de aviso nos olhos; ela também estava aconselhando cautela.

Cautela! Ele não queria saber de cautela. Ele sempre soubera que John de Gaunt ansiava por pegar a coroa. John queria que aquele seu filho fosse o herdeiro do trono. Era o que ele sempre quisera.

O coração de Ricardo exigia vingança imediata. Queria mostrar a todos que era capaz de agir com rapidez e firmeza. Sentia-se excitado e desesperadamente frustrado.

Uma espécie de loucura tomou conta dele. Era o velho génio Plantageneta que tantos deles tinham visto antes, transmitido através das gerações - e estava descontrolado. Ricardo tirou o chapéu e, num súbito acesso de raiva, atirou-o pela janela. Os presentes olharam para ele, atónitos. Então, ele tirou os sapatos, que seguiram o caminho do chapéu.

Depois de ter feito isso, Ricardo se sentiu aliviado e ficou muito mais calmo.

Anne se levantara e colocara uma das mãos no seu braço.

- Você devia interrogar esse frade, Ricardo - sussurrou ela.

- Devemos procurar descobrir se ele diz a verdade. Exija dele que lhe diga o nome dos que estão envolvidos nisso.

Era sensato, claro. Ele sabia disso. Não devia condenar o tio sem provas. Robert o observava atentamente. Robert planejara que ele, agindo impulsivamente, prendesse John de Gaunt e o levasse às pressas para a Torre e mandasse decepar-lhe a cabeça antes que ele tivesse tempo de provar sua inocência.

Ricardo quisera fazer a vontade de Robert. Robert era seu amigo. Robert sempre pensava nele primeiro. Fora o que ele dissera.

Ouviram-se passos do lado de fora da sala e um suspiro de horror quando John de Gaunt em pessoa entrou.

- Eles estão esperando por vossa majestade - começou ele.

- Estão querendo saber por que vossa majestade e a rainha estão demorando.

Ao ver o tio do rei, o frade pareceu ter um ataque de nervos.

- Aí está o traidor! - bradou ele. - Agarrem-no. Cortem a cabeça dele. Mate-o antes que ele o mate, meu senhor.

John olhou para o frade, pasmo.

- Quem é esse louco? - perguntou ele.

- Ele acaba de fazer uma acusação contra o senhor-disse-lhe Ricardo.

- Uma acusação! Que acusação?

- De que o senhor está tramando, com o povo de Londres e de Coventry, matar-me e pegar a coroa.

- Tramando! Tirar a coroa! Ele é louco, mesmo. Pode imaginar o povo de Londres unindo-se a mim em qualquer trama? Talvez ele goste um pouco mais de mim do que antes... mas eu ainda sou odiado por eles. Esse homem é louco, sobrinho. Devia ser internado.

Ricardo voltou-se para o frade.

- Ouviu isso?

- Ouvi, majestade - disse o frade, com ousadia. - Mas protestos não significam inocência.

- Eu gostaria de saber do que se trata - disse John. Eles fizeram um resumo para ele.

- Não foi nem mesmo um plano inteligente - disse ele. - É puro absurdo. Eu lhe digo, sou inocente de qualquer vontade de lhe causar mal. Enfrento em combate qualquer pessoa que me acuse e vou provar minha inocência.

Ricardo, frente a frente com o tio, agora pendera imediatamente para o lado dele. O carmelita estava mentindo. Era uma trama que ele tinha inventado.

Ricardo odiava desconfiar que havia gente tramando contra a sua vida. Aquilo o irritava. Ele queria que todos gostassem dele tal como o povo gostava antes da revolta dos camponeses.

Agora, toda a sua fúria voltou-se para o frade.

- Levem-no daqui - bradou ele. - Matem-no. Ele é um traidor e um mentiroso. Não há trama alguma.

Os guardas adiantaram-se, mas John ergueu a mão.

- Meu senhor, esse homem deve ser interrogado. Ele deve saber o nome daqueles que está acusando. vou insistir que esse assunto seja investigado até o fundo. Não posso permitir que acusações desse tipo sejam feitas contra mim e não se prove que são falsas. Para mim está claro que esse homem é apenas um instrumento dos verdadeiros vilões.

John olhava firme para de Vere enquanto falava. O amigo do rei estava muito parado. Parecia um pouco contrafeito, e John percebeu muito bem.

Este é um problema importante demais para ser posto de lado de maneira irresponsável - prosseguiu John. - Interroguem o frade. Ele que apresente as provas. Temos de descobrir o significado dessa acusação. Pode ser que haja algo por trás dela.

- Levem-no daqui - disse o rei. - O assunto não termina aí. Sir Simon Burley conduziu o frade para fora dos aposentos e na

porta encontraram cinco cavaleiros, entre eles Sir John Holland, o meio-irmão do rei.

- O que está acontecendo? - perguntou Holland. Simon lhe disse.

- Uma trama! Para assassinar o rei! John de Gaunt acusado!

- bradou Holland. - Temos que investigar isso até o fim. Vamos assumir o controle desse caso. Entregue-me o homem, meu bom Simon.

Simon ficou um tanto relutante, mas não queria fazer do irmão do rei um inimigo, e assim o frade carmelita saiu de suas mãos.

O nome dele era John Latemar e ele insistia na sua história. Havia, mesmo, uma trama para matar o rei. Fora feita por John de Gaunt junto com os principais cidadãos de Londres e Coventry. Era tudo o que iria dizer.

- Vamos fazer com que ele fale - disse Holland.

Ele queria que o frade falasse. Queria que ele incriminasse John de Gaunt. Ele odiava John de Gaunt, que, acreditava ele, era capaz de tramar o assassinato do rei. Se o rei fosse assassinado e John de Gaunt ocupasse o trono, os meios-irmãos do rei teriam pouco a lucrar.

Tinham de obrigar o homem a falar. Havia meios para isso.

Holland conhecia os mais diabólicos meios-do tipo que fariam até mesmo um santo frade falar.

Havia algo de indiferente em relação àquele frade. Ele não parecia sofrer das fraquezas dos homens comuns. Se passou pela cabeça deles a ideia de que ele estava sofrendo de loucura e acreditava firmemente estar dizendo a verdade, não admitiram. Eles queriam que tivesse havido uma trama. Queriam ir procurar o rei e dizer: "Esse John Latemar confessou. Ele jura que era John de Gaunt que tramava contra a vida do rei." Holland queria que John de Gaunt colocasse a cabeça no cepo - e então seria o fim de John de Gaunt.

Mas não importa que torturas vis e obscenas, que terríveis mutilações fossem aplicadas no frade, ele não forneceu nomes.

Nas ruas de Salisbury, as pessoas reuniam-se. Não falavam sobre outra coisa a não ser a trama que o frade carmelita descobrira. John de Gaunt era o pivô. Eles também odiavam John de Gaunt. Queriam que provasssem que ele era culpado. Queriam assistir à execução. Iriam ovacionar no dia em que ele fosse para o cadafalso. Queriam que seu belo e jovem rei ficasse livre da inveja de seu ambicioso tio.

A tensão era grande à medida que se aproximava o dia do inquérito. As pessoas enchiam as ruas, todos ansiosos por dar uma olhada no frade. Eles estavam tomando partido. O frade era inocente, diziam alguns. Ele era um grande homem. Tinha avisado o rei, embora soubesse que podia arriscar a vida ao fazer isso. John de Gaunt era o vilão. Não era o que ele sempre fora?

Sir John Holland foi procurar o rei na manhã do dia fixado para o inquérito. Ricardo, como sempre, estava em companhia da rainha e de Robert de Vere.

- Senhor meu irmão - disse ele -, não poderá haver inquérito.

Ricardo olhou para ele assombrado.

- O frade morreu, meu senhor.

- Morreu! Mas ele não estava doente quando foi levado preso.

- Ele morreu depois.

O rei olhou para a rainha e da rainha para Robert. Anne empalidecera; em sua fisionomia havia uma angústia sincera. A expressão de Robert era enigmática.

- Foi necessário interrogá-lo - disse Holland. - Ele era um homem teimoso.

O rei afastou-se e cobriu os olhos com a mão, e Anne fez um sinal para que Holland se retirasse.

Sir John inclinou-se e se retirou. Ele mesmo estava um tanto constrangido. A tortura aplicada sob sua direção tinha sido selvagem.

Quando o corpo do frade foi examinado e percebeu-se o que tinham feito com ele, o rei ficou horrorizado. John de Gaunt também. Nem Ricardo nem seu tio acreditavam naquele tipo de tortura. Se havia gente contra eles, eles eram a favor do rápido golpe com a espada ou do machado, mas não aquela obscena e repugnante tortura que tinha sido aplicada naquele homem.

Ricardo chorou, e a rainha mandou todos embora para que ela pudesse consolá-lo como acreditava que só ela podia. Ricardo deitou-se na cama e ela sentou-se a seu lado, acariciando-lhe os cabelos.

- Está feito, está feito - disse ela. - Não há nada que possamos fazer para mudar isso. Nunca deveríamos ter permitido que seu meio-irmão cuidasse dele.

Ela já descobrira que havia uma grande crueldade em John Holland.

- E com que resultado? - bradou Ricardo. - O que foi que descobrimos? Nada.

Anne tentou acalmá-lo. Ela começava a aprender muito, não apenas sobre os homens que cercavam seu marido, mas sobre o próprio Ricardo.

- Ele era um fraco. Isso, ela tinha de aceitar. Não era o deus dourado que ela acreditara ser quando ele lhe dera as boas-vindas à Inglaterra e ficara impressionada com sua beleza. Ele precisava dela. Anne percebia isso a cada dia que passava. Ele se apoiava nela. Cabia a ela protegê-lo. E ela o amava mais profundamente devido à sua fraqueza.

Thomas de Woodstock chegou em Salisbury a cavalo. A notícia do desabafo do frade e sua acusação contra John de Gaunt chegara até ele.

Sem fazer cerimónia, ele entrou de supetão na câmara do rei.

O olhar de Thomas era de desatino quando ele desembainhou a espada e brandiu-a diante do rei. As pessoas que estavam perto de Ricardo fecharam o círculo em volta dele, e Thomas bradou:

- Quem ousa acusar meu irmão de traição, hein? Digam. Que esse homem se adiante e eu irei desafiá-lo. E - o olhar alucinado estava fixo em Ricardo. - Não importa quem seja. vou atravessá-lo com a espada.

Ricardo estava abismado. Que alguém ousasse falar assim dele na sua presença era um insulto. Ele jamais esperara que isso fosse possível, mesmo partindo daquele tio que sempre o tratara como se ele fosse um menino.

Abriu a boca para falar, mas sempre tivera um certo respeito por Thomas de Woodstock. Durante sua infância, aquele tio grande muitas vezes lhe dissera o que ele devia fazer, e de algum modo a visão dele, o rosto rubro, os olhos salientes, a espada na mão, intimidou o rei. De Vere disse:

- Senhor de Buckingham, esse assunto está encerrado. O frade morreu. Nenhuma de suas acusações foi comprovada. O assunto chegou ao fim.

- Não chegou ao fim, meu senhor, se são espalhadas calúnias sobre meu irmão. E se continuarem, estarei por perto para defender o bom nome dele.

Woodstock fez uma curvatura e saiu do aposento.

Todos os que tinham presenciado aquela estranha cena estavam estupefatos. Os irmãos não vinham tendo um relacionamento assim tão bom. Buckingham ainda se sentia ofendido com o fato de Lancaster ter casado o filho Henrique com a co-herdeira das propriedades dos Bohun.

Por que, então, se mostrava tão preocupado com a reputação do irmão?

Havia uma dedução a tirar daquilo, e Ricardo disse a Robert de Vere e a Anne que sabia qual era.

- Ele adora me humilhar. É este o motivo. Ele quer me fazer sentir que ainda não amadureci e quer fazer com que outras pessoas acreditem nisso. Não vou esquecer isso tão cedo-acrescentou ele.

- Que a peste pegue esses tios.

O povo de Salisbury também não ia deixar que o frei Latemar fosse esquecido tão cedo.

Não demorou muito, e ele virou um mártir.

Um homem saiu correndo pelas ruas, aos gritos:

- Estou vendo! Eu, que era cego, estou vendo!

O que aconteceu? Multidões reuniram-se à sua volta.

- Eu toquei no engradado no qual ele foi arrastado pelas ruas. Folhas tinham começado a brotar dele. Eu as toquei e, vejam só, passei a enxergar.

Era como tocar a bainha de uma roupa santa. Depois disso, houve uma série de milagres. Dizia-se que luzes brilhavam sobre o túmulo do frade. Estava-se sempre falando das impressionantes curas que eram realizadas ali. Não, o frade não ia ser esquecido.

E se ele era um mártir, que os milagres assim o provavam, então na verdade John de Gaunt estava tramando assassinar o rei, porque os mártires sempre diziam a verdade.

Robert de Vere estava bem ciente do sentimento que surgira contra John de Gaunt. Claro que ele, Robert, também era impopular. Os favoritos sempre eram. Ele estava cercado de inveja, simplesmente porque sabia como distrair o rei e encantá-lo com sua companhia.

Ricardo o protegia e não lhe negava coisa alguma. Robert tinha de estar de olho em Anne, é claro; mas Anne era uma mulher inteligente; amava o rei e, na verdade, era amada por ele. Tinha de aceitar Robert e o aceitava com muita graça. Tal como, pensou Robert com ironia, ele a aceitava.

Ricardo e ele eram amigos, amigos dedicados, mas os dois tinham suas esposas, é claro, e as duas compreendiam aquela amizade, o que resultava numa convivência harmoniosa.

Não havia o que Ricardo não fizesse por Robert. Quando ele lhe dissera que ele e Filipa não podiam sobreviver com a renda que tinham, o rei soltara uma gargalhada. Ele podia resolver aquilo. Não permitiria que seu querido Robert ficasse pobre. Pouco depois Robert se tornara proprietário da cidade e do castelo de Colchester. Ele era, também, membro do conselho privado e cavaleiro da Ordem da Jarreteira. Claro que tinham inveja dele. Robert esperava inveja por parte de outros nobres. Mas tinha de ficar atento às camadas mais altas.

Os tios do rei não gostavam dele. Havia muito tempo que ele sabia da antipatia de John de Gaunt; agora, é claro, tinha a de Thomas de Woodstock. Quando invadira os aposentos reais brandindo a espada, ele estivera, na verdade, brandindo-a para Ricardo, mas estivera lançando mais do que um olhar ocasional na direção de Robert também.

Era lamentável que a trama contra John de Gaunt tivesse fracassado. O frade era um homem inocente que tinha caído na armadilha de ser o revelador da "trama". Ele tinha sido um homem simples e fora fácil mexer sutilmente com sua incredulidade. Robert apostara que Ricardo perderia o controle e agiria impulsivamente, como tantas vezes fazia. Então, John de Gaunt teria sido preso e executado antes que se fizessem as investigações. Isso ocorrera mais de uma vez.

Mas ali estava ele com uma trama fracassada e, no entanto, não de todo. Não enquanto os milagres continuassem, e era preciso fazer com que não acabassem, porque, enquanto persistissem, seria grande a raiva contra John de Gaunt.

Thomas Mowbray, conde de Nottingham, outro favorito do rei apesar de ninguém poder se comparar a Robert, é claro, estava igualmente ansioso por livrar-se de John de Gaunt. E também não eram eles os únicos. Eles tinham seus adeptos.

Robert discutiu o assunto com Mowbray.

- Desta vez - disse ele -, precisamos ter certeza quanto ao nosso homem. Concordamos que não será difícil fazer com que ele seja preso e acusado. A insatisfação é geral. O povo acredita mesmo naqueles milagres. Ele será convocado para uma reunião do conselho em Waltham e, lá, será acusado. Desta vez, será levado a julgamento.

- E você acha que os juizes teriam coragem de condená-lo?

- Meu caro Mowbray, os juizes que escolheremos terão. Eles estarão tão ansiosos quanto nós por ver o fim dele.

- E Ricardo? - perguntou Mowbray.

- Deixe Ricardo por minha conta.

- Ele estará presente, como sabe.

- Meu caro, sei como mexer com os temores de Ricardo. Ele já está meio convencido de que deveria ter dado ouvidos ao frade. Ele tem pesadelos, sonhos sobre as torturas. Nosso rei tem uma mente muito delicada. Não gosta de pensar em tortura, nem mesmo de homens que estariam tramando contra ele. Um belo golpe rápido da espada ou do machado, é esta a ideia de Ricardo sobre despachar os inimigos. Ele desconfia muito do tio John e do tio Thomas. Ao entrar de supetão daquele jeito e brandindo a espada, Thomas estava caindo nas nossas mãos. Fique certo, meu caro Nottingham, que desta vez será o fim de John de Gaunt.

Robert estava certo. Foi fácil convencer Ricardo.

- Há rumores - sussurrou ele a Ricardo. - Estão dizendo que havia, mesmo, uma trama e que John de Gaunt livrou-se inteligentemente, como já fez tantas vezes antes.

- Há momentos em que eu poderia acreditar nisso - disse Ricardo.

- Houve mais um milagre no túmulo do frade, ontem prosseguiu Robert. - Meu senhor, se se provasse a acusação de traição contra John de Gaunt, o senhor não hesitaria...

- Seja quem for que cometer traição, terá de pagar a pena respondeu Ricardo, com firmeza.

Que havia alguma trama em andamento, era óbvio para todos os que cercavam o rei; e que Robert de Vere estava no centro dela, parecia mais do que provável.

Um dos homens que estavam muito desconfiados era Michael de Ia Polé. Ele se tornara ministro do tesouro e o rei não podia deixar de ficar impressionado com sua administração, porque ele reduzira bastante as despesas da corte. Seus inimigos tinham tentado apresentar acusações de peculato contra ele, mas Michael conseguira refutá-las. Era uma acusação absurda a que fora apresentada contra ele. Um -peixeiro acusara-o de aceitar suborno quando ele, o peixeiro, estava para ser julgado. Esse peixeiro, um certo John Cavendish, declarou que lhe disseram que se pagasse quarenta libras ao ministro obteria uma decisão em seu favor. Como não tinha o dinheiro, o peixeiro declarou que mandara um presente de peixes, mas Michael de Ia Polé conseguiu provar que pagara pelo peixe e o peixeiro foi condenado por difamação de caráter.

De Ia Polé estava ciente de como os inimigos de uma pessoa podiam pegar um incidente trivial, distorcê-lo e jogá-lo contra ela.

Ele agora desconfiava da ênfase que estava sendo dada aos chamados milagres, e imaginou que isso significava uma trama contra John de Gaunt.

De Ia Polé era um patriota, e o que queria era conseguir a paz com a França, porque a Inglaterra precisava de paz não apenas além-mar, mas na Inglaterra, e enquanto houvesse disputas entre o rei e seus tios, isso nunca seria possível. Além do mais, aquilo representava um perigo. Os tios eram homens poderosos. Era verdade que John de Gaunt se distinguira mais pelos fracassos do que pelos sucessos; apesar disso, devia ser olhado com respeito. Edmund de Langley parecia menos agitado, mas tudo levava a crer que ficasse do lado dos irmãos, não do sobrinho; quanto a Thomas de Woodstock, ali estava um homem irascível, um homem pronto a agir precipitadamente, sem medo das consequências.

Mas de Ia Polé tinha, de fato, medo das consequências, não apenas para ele como para a Inglaterra.

John de Gaunt não era, em absoluto, amado pelo povo. Na verdade, não havia homem mais impopular no país - a menos que fosse Robert de Vere. Mesmo assim, se John fosse assassinado, não havia dúvida de que se tornaria um mártir.

Não se podia deixar que aquela trama desse frutos.

Em Hertford, John de Gaunt recebeu a convocação para comparecer ao Conselho.

Ele ficou no grande salão com a carta na mão, muito depois de os mensageiros terem se retirado para as cozinhas a fim de restaurarem as forças.

Catherine encontrou-o ali e percebeu logo que havia algo errado. O afeto entre os dois não diminuíra com o passar dos anos. Ela estava instalada ali, na casa dele, como uma pessoa que significava muito para John. Ele precisava de Catherine e ela sabia disso e adorava sabê-lo.

A beleza dela não diminuía com a idade. Era verdade que havia mudado; e em vez das chamas da paixão que arderam entre os dois quando jovens, queimava agora uma luz firme que era mais importante para ele do que qualquer outra coisa.

Aquilo o impressionava mais do que a ela.

John era para ela o amante e o filho. Muitas vezes ela achava maravilhoso pensar naquele grande homem e nela. Quem era ela, a filha de um homem humilde que conseguira obter o título de cavaleiro em um campo de batalha, viúva de outro cavaleiro, uma simples mulher do interior, para ser a companheira do grande John de Gaunt? Mas o amor era assim, e o deles estava durando.

A vida que ela escolhera era de emoções fortes e de terror. Sabia que ele estava em perigo constante e quando não estava ao seu lado ficava dominada pelo medo por sua segurança. Todas as vezes que chegava um mensageiro, Catherine tinha medo de que estivesse trazendo más notícias. Ela ansiava por mensageiros que trouxessem novas sobre John, mas sempre temia que tipo de notícia poderia ser,

As fases felizes ocorriam quando John estava ao lado dela. Aquelas significavam os grandes momentos de sua vida, mas Catherine sabia que tinha de pagar por isso e passava a maioria de seus dias nos vales do medo.

Recentemente houvera aquele terrível caso do carmelita que apresentara acusações contra John. Ela agradecia a Deus por ter terminado.

Catherine passou o braço pelo dele.

- Quais são as notícias? - perguntou, temerosa.

- Uma convocação para comparecer ao Conselho em Waltham.

O coração dela se descontrolou.

- O que foi, querida? - perguntou John. Ela respondeu:

- Senti como se alguém estivesse andando sobre o meu túmulo.

- Ah, Catherine, de vez em quando você sente isso, meu amor.

- Tenho muito medo do que lhe possa acontecer, John.

- Não deve ter medo. Você duvida que eu possa me defender bem?

- Não tenho dúvida, mas existem homens maus que querem lhe fazer mal. Nunca posso confiar em de Vere.

- Quem confia nele? Só o rei, e ele está abobalhado. Catherine, às vezes penso que meu sobrinho vai ser igualzinho ao meu avô. As pessoas já estão comparando de Vere a Gaveston.

- Isso não pode ser. E a rainha?

- A rainha sabe a respeito dessa amizade e adere a ela. Parece que ela acha a companhia de de Vere divertida.

Catherine abanou a cabeça.

- O ménage deles não me interessa. Que vivam como quiserem, desde que você esteja a salvo. E essa convocação para Waltham?

- Tenho de ir. Vão precisar de mim lá. Sou o primeiro assessor do rei, seja lá o que de Vere possa pensar.

- Não gosto disso.

- Catherine, você tem medo demais.

- Acho que te amo demais - respondeu ela.

- Não, isso é uma coisa que você não consegue fazer. Fique tranqíiila, querida. Sou um adversário tão bom para eles quanto eles o são para mim... até melhor.

- Aquele caso do carmelita... Poderia facilmente ter sido...

- Não, não, não. Posso lidar com meu sobrinho. Ele é um garoto, nada mais... um garoto fraco.

- O que torna ainda mais fácil que homens maldosos o manobrem. No meu coração há um aviso, John. Você não deve ir a Waltham.

Ele tentou acalmá-la. Não havia coisa alguma que preferiria fazer em vez de ficar ali com ela em paz. Mas não havia paz. A vida dele o levara por um caminho estranho. Às vezes ele ficava desinteressado o suficiente para desejar ter-se casado com Catherine depois da morte de Blanche. Impossível. Ele bem podia imaginar as reclamações que teriam havido. O filho do rei e a viúva de um homem sem importância! E ela subira na escala social ao se casar com Swynford. Não, ele tivera de se casar com Constanza e o casamento fora um fracasso desde o início, embora um dia ele tivesse certeza de que iria trazer-lhe a coroa de Castela. Ele e Constanza não viviam juntos. Ele cumprira com o seu dever e eles tinham uma filha. Estava acabado. Mas a sua reivindicação de Castela continuava. Um dia ele seria rei de verdade.

O desejo por uma coroa! Aquilo perseguira a sua vida. E ele poderia ter tido a coroa da Inglaterra também se tivesse nascido mais cedo. Ele nascera tarde demais. Aquele era o tema de sua vida. Tarde demais.

Tarde demais ele percebera que teria sido um homem mais feliz se tivesse se casado com Catherine e levado a vida de um nobre assessor do rei, sim, mas não perseguido para sempre por aquela maldita ambição.

Agora, tinha de acalmar Catherine. Ela estava obcecada por aquela reunião do conselho em Waltham.

Ele conversava muito com ela - quando caminhavam pelos jardins, quando estavam a sós dentro de casa, quando ela se achava deitada a seu lado à noite e os dois se impressionavam com a maravilha do seu relacionamento que, segundo sabiam, continuaria até que um dos dois morresse.

"Não vá" foram as últimas palavras que ela disse aquela noite, mas a resposta dele foi: "Eu tenho de ir."

Ele estava se preparando para sair. Fosse lá o que estivesse para acontecer-e a apreensão de Catherine passara para ele -, ele tinha de ir.

Ela iria vê-lo partir a cavalo e depois subiria para a torrinha mais alta para que pudesse ter uma última visão dele; e John se voltaria e acenaria para ela e seu coração doeria de vontade de ficar com ela.

Mas ele tinha de ir. Não podia dar adeus à ambição agora. Não podia dizer: eu, John de Gaunt, não lutarei mais pela coroa de Castela. vou ficar em minhas propriedades e viver com conforto o resto da vida, ao lado de minha amante.

Ouviram-se sons da chegada de alguém no pátio.

John desceu correndo para o salão. Um homem estava lá. Estava falando com alguns dos guardas assustados.

- Levem-me ao duque imediatamente.

John soltou uma exclamação de espanto, porque o homem que ali estava era Michael de Ia Polé.

- O que houve? - perguntou John. De Ia Polé olhou à sua volta.

- Venha comigo - disse John, e levou-o a um aposento privado. Catherine chegou, os olhos refletindo medo.

John segurou-lhe o braço e disse para de Ia Polé:

- Pode falar diante de Lady Swynford. De Ia Polé disse:

- O senhor não pode ir a Waltham.

- Por que não?

- Eles estão planejando prendê-lo antes da reunião do Conselho e levá-lo a julgamento por tramar contra o rei.

- Que absurdo! Eles jamais poderiam provar coisa alguma contra mim... porque não existe.

- Eles provarão alguma coisa, senhor duque. Estão decididos a provar alguma coisa.

- Você quer dizer que uma bancada de juizes...

- Homens escolhidos, meu senhor. Todos inimigos jurados seus. De Vere fracassou com o carmelita dele, mas está decidido a tentar outra vez.

Catherine empalidecera e agarrava-se à mesa para equilibrar-se. John pensou que ela fosse desmaiar. Ela não disse uma palavra. Era inteligente demais para tentar dar-lhe conselhos na presença de outras pessoas.

- Só há uma coisa a ser feita, meu senhor - disse de Ia Polé -, e é fingir uma doença.

Então, Catherine falou.

- Sim - disse ela, calmamente -, sim.

- Eu lhe peço, meu senhor, envie uma mensagem imediatamente -prosseguiu de Ia Polé. - O senhor está doente demais para comparecer ao Conselho.

John ficou calado por um instante. Imaginava como a coisa funcionaria. Velocidade era a resposta. Uma rápida prisão, julgamento e depois execução antes que se pudesse perceber o que estava acontecendo. Tinha de se lembrar do que acontecera com um outro Lancaster - o conde Thomas, que tinha sido assassinado da mesma forma que estava sendo planejada para ele -, e isso para vingar o favorito real, Gaveston.

- Meus agradecimentos a você, de Ia Polé, por esse aviso tempestivo - disse John. - Vejo que tem razão. Não vou comparecer à reunião do Conselho.

John não pôde evitar de olhar para Catherine. Os olhos dela brilhavam.

Ele viu que aquela era a decisão correta.

De Vere ficou furioso. A notícia vazara, então. Ele sabia o que o aguardava. Doença! Bah! Ele não acreditava naquilo. Ele reclamou com o rei.

- Isso é um insulto ao senhor. Ele o está desafiando. O senhor o convoca para uma reunião do seu Conselho e ele diz "não, eu prefiro me distrair com a minha amante". Está na hora de ensinar a John quem manda nesta terra.

- Ele virá - disse Ricardo. - Eu vou insistir.

- Tem de insistir, meu senhor. É a única maneira de mostrar a ele o seu poder. Eu lhe digo que ainda o considera um garotinho... o pequeno sobrinho que deve ser manobrado por seus grandes e poderosos tios.

- Você o odeia, não odeia, Robert?

- Eu odeio todos os que procuram menosprezar o meu querido senhor, o rei. Mas você não vai deixar, vai, Ricardo? Vai mandar uma ordem a ele. Doença, ou seja lá que desculpa ele tenha a dar, de nada valerá.

- vou ordenar que ele venha à reunião do Conselho - disse Ricardo.

No castelo de Hertford, chegara a intimação.

Catherine estava ao lado dele. Ela a leu, horrorizada.

- Eles estão decididos a destruí-lo - bradou ela.

Ele segurou o queixo dela com as duas mãos e olhou-a com carinho.

- Mas, minha querida, estou decidido a não ser destruído.

- O que você vai fazer? - perguntou ela.

- Eu tenho de ir - disse ele. - Isso está claro.

- Ir... bem para dentro da cova dos lobos!

- Não acredito que o rei faça parte de uma trama para me matar. Ele se cerca de homens como de Vere, cujo grande plano é orientar o rei em proveito próprio. Não tenha medo, doce Catherine. Saberei como lidar com eles.

- Mas como? Como, quando eles o acusarem, quando eles o arrastarem para diante de juizes que já se decidiram por antecipação a condená-lo?

- Não irei ao Conselho. vou falar com o rei a sós. vou fazer com que ele diga o que tem em mente. Catherine, sei como lidar com Ricardo. Ele oscila de um lado para o outro. Depois de alguns instantes, estará do meu lado, eu lhe prometo. Tenho de tentar fazer com que ele veja onde está errado. Ele precisa entender, caso contrário será uma repetição do meu avô. Meu avô se distraía com seus favoritos. É isso que está acontecendo com Ricardo. Isso levou meu avô aos horrores do castelo de Berkeley. Você sabe o que aconteceu a ele. Ricardo pode estar indo para um destino semelhante. Preciso avisá-lo.

- Então você vai pisar bem na armadilha.

- A armadilha não estará armada quando eu chegar. Pretendo ir procurá-lo levando uma escolta. Não vão me pegar.

Nada havia que ela pudesse fazer para dissuadi-lo de ir e, na verdade, sabia que ele tinha de ir. Não desafiaria o rei nem daria a seus inimigos uma queixa de verdade contra ele.

Ela sentiu-se aliviada pelo fato de John usar junto à pele uma cota de malha, e com uma forte guarda ele partiu para Sheen, onde o rei estava naquele momento.

Sheen era um dos palácios favoritos de Ricardo e Anne; Anne mostrara sua preferência por ele pouco depois de sua chegada, e Ricardo descobrira logo que também gostava dali.

Era uma visão bonita e impressionante à beira do rio. John dividiu sua escolta e deixou metade junto à sua barcaça, com ordens para, caso fossem chamados, ir procurá-lo imediatamente. com os demais, ele foi até os portões do palácio. Mandou que ficassem ali, para evitar a entrada ou a saída de qualquer pessoa.

Então, seguiu para os aposentos do rei.

Teve sorte. O rei estava sozinho. Ele ficou assustado ao ver o tio e perguntou o que o levava até ali.

- É o seguinte, sobrinho-disse John, resoluto, lembrando ao rei o parentesco entre eles e o seu poder pela familiaridade que assumia.-Fiquei sabendo da trama para me assassinar. Foi por isso que me recusei a vir à reunião do Conselho.

- Trama! - gaguejou Ricardo. - Não sei de trama nenhuma...

- Isso me alegra - disse John. - Não que eu acreditasse que você fosse estar de acordo com meu assassinato. Eu lhe peço, ouça o que tenho a dizer. Você está cercado de assessores nocivos. O país está sofrendo. Há muita gente que quer o seu bem e quer o bem da Inglaterra. Eu sou um deles. Se essa trama desse resultado, qual seria, a seu ver, o resultado? Derramamento de sangue por toda a Inglaterra. Ricardo, eu lhe peço. Não faça desse reinado uma repetição do de seu bisavô. Pense no que aconteceu a ele, que se distraía com os seus favoritos. Você não deve ter favoritos, Ricardo. Escolha seus amigos e seus ministros pelo bem que eles possam fazer ao país.

Ricardo oscilava. Quando ouvia um dos lados, acreditava que eles tinham razão, e o mesmo aconteciacom o outro. Havia dois lados para cada questão, e ele sempre podia entender aquele que lhe fora apresentado.

Talvez se tivesse sido mais parecido com o pai, mais dado à ação do que à contemplação, teria tido condições de ver apenas um lado de um problema, o que teria sido muito mais fácil.

Agora, enquanto ouvia o tio, não podia acreditar que ele tivesse sido outra coisa que não um bom conselheiro.

- O que o senhor diz faz sentido-bradou Ricardo.-Sei que fala com sensatez.

- Então, Ricardo, aja com base no meu conselho. Livre-se desses maus assessores. Una a você aqueles que querem o seu bem e não peçam outra coisa senão que vejam o país prosperar. vou deixá-lo agora, Ricardo, para pensar nessas coisas. E não tenho intenção de ir à reunião do Conselho, onde aqueles que se intitulam seus amigos planejaram me prender, julgar-me e executar-me, tudo no espaço de poucas horas. Não, Ricardo, digo isso na sua cara: não estarei lá. E se você usar isso contra mim... há muita gente que está comigo contra aqueles que planejam me matar.

com isso, John fez uma mesura, retirou-se do palácio e juntou-se à sua guarda e assim foi para a barcaça.

A rainha-mãe estava ciente do que se passava e estava profundamente perturbada com isso. Ela via que Ricardo iria meter-se cada vez mais em dificuldades à medida que os meses se passassem se não provocasse algum tipo de reconciliação com os tios.

Ela deplorava a amizade dele por Robert de Vere, porque aquele homem exercia uma influência exagerada sobre ele. Agora estava ficando realmente fraca e não sentia vontade de andar muito. Preocupava-se muito com os filhos mais velhos. Sabia que eram rebeldes e estava triste com o papel que John Holland representara no caso do frade carmelita. Ele sempre tivera um traço cruel, e ela sabia disso. Podia imaginar como ele teria sentido prazer em torturar o frade e ficava enojada com os seus pensamentos.

Mas a verdadeira preocupação era com Ricardo, porque o que ele fazia era da máxima importância para o país, e ela vivia com medo de que ele, tal como o bisavô, tivesse um fim violento. Era inútil tentar traçar aqueles paralelos entre o presente e o passado. O passado, de qualquer modo, devia ser usado como uma lição para o presente.

Ela devia dar um jeito de conseguir a paz entre Ricardo e seus tios. Não seria fácil. Ricardo desconfiava muito de John de Gaunt e não havia dúvida de que John acharia difícil perdoar os favoritos do rei que tramavam contra ele. Mas a maior preocupação da rainhamãe devia ser com o futuro de Ricardo, e tinha muito medo desse futuro.

Ela queria muito poder recuperar a antiga vitalidade. A jovem que dançara com tanta alegria durante a sua juventude, praticamente sem uma única preocupação além da emoção seguinte, tornara-se uma mulher muito séria. Ela achava que as mulheres tinham uma abordagem mais razoável da vida do que os homens. Eram as mulheres que atenuavam a ira dos homens, e que às vezes podiam convencê-los a agir mais sensatamente na sempre valiosa causa da paz. A rainha Filipa orientara muitas vezes o grande Eduardo; e ele lhe dera ouvidos. Muitos homens ou mulheres pobres tinham de ser gratos a Filipa por salvá-los da ira do rei. Ela dera a impressão de ser uma mulher simples, mas podia-se dizer que o bem que havia feito era maior do que o que o marido fizera. Ninguém concordaria. Mas quem instalara uma bela indústria de tecelagem na Inglaterra? Quem tinha salvado a vida dos burgueses de Calais e, assim, feito com que aquela cidade ficasse leal a Eduardo? Ao passo que era impossível saber quantas vidas tinham sido perdidas devido à reivindicação imprudente da coroa da França por parte de Eduardo.

John de Gaunt amava Catherine Swynford. Ali estava uma mulher inteligente. Devia ser, para ter mantido John a seu lado aqueles anos todos. Ela iria falar com Catherine.

Suspirando, mandou que preparassem a carruagem e suportou o sacudir de seus pobres e velhos ossos pelas estradas acidentadas e cheias de sulcos.

Catherine ficou encantada ao vê-la. As duas sempre tinham sido boas amigas. Joan nunca olhara com desdém para o relacionamento dela com John, como muitos fizeram. A própria Joan não tivera uma reputação muito ilibada na sua juventude. Mas não fora isso que a afetara. Era o reconhecimento do verdadeiro amor que ela respeitava, e achava que ele devia ser mais admirado do que um casamento contratado, que não tinha amor e feito por conveniência.

- Minha querida Catherine - disse ela -, minha estada não será longa. Espero que John não esteja com você agora.-Ela sorriu.

- Sei que se trata de um assunto que não é do seu agrado, minha querida, mas o que tenho a dizer é só entre nós duas.

Catherine compreendeu perfeitamente, e durante os poucos dias que Joan passou com ela as duas conversaram muito. Joan ficou na cama a maior parte do tempo. A viagem abalara-a bastante e havia a volta a ser feita.

- Eu não teria vindo aqui - disse ela - se não considerasse o assunto da máxima urgência. Catherine, estou com medo. Não estou gostando do caminho que a Inglaterra está seguindo.

- Nem eu.

- Esses atentados contra a vida de John... Catherine teve um arrepio.

- Minha cara - prosseguiu Joan -, sei como se sente. Está tão preocupada quanto eu. Tem de haver paz entre meu filho e os tios dele.

- Como eu queria que houvesse!

- Cabe a nós providenciar isso, minha cara. Tenho de deixar John por sua conta. Sua palavra tem uma grande influência sobre ele.

- Nunca posso dizer a ele o que fazer no que se refere ao rei.

- Você pode persuadi-lo, Catherine. Ele tem de ser persuadido. Ele e Woodstock, que é de temperamento explosivo. John é cauteloso. Cabe a John fazer o lance. Tem de haver uma reconciliação entre o rei e John... e principalmente entre de Vere, Mowbray e John.

- Majestade, eles planejaram assassiná-lo.

- Eu sei, e voltarão a planejar, a menos que essa desavença tola seja consertada.

- Eu jamais confiaria neles... nem John.

- Eu sei, mas precisamos ter uma confiança aparente. Estou certa de que deve haver alguma demonstração externa de reconciliação. Se não houver, será a guerra civil. Tenho certeza. E essa é a maior de todas as tragédias.

- Concordo, de todo o meu coração.

- Catherine, fale com John. Quero que ele venha a Westminster e se declare pronto a esquecer o que aconteceu. Quero uma demonstração de amizade. Acredite em mim, sei que é a única coisa para salvar o país. Você fará isso, Catherine?

- Farei o possível - respondeu ela. - Sei que você está certa. Essa inimizade tem de acabar... ou parecer acabar.

- Claro que teremos de ser cuidadosas. Mas será um fim para essa trama para levar John a julgamento. Isso tem de ser evitado. Sei que você pode fazê-lo, e sei que John verá que essa é a melhor maneira de agir. Será melhor partindo de você, minha cara. Prometa que fará isso.

- Farei o possível.

- Minha querida Catherine, John te ama muito. Ele ouve o que você diz. Confia em você como não confia em mais ninguém. Você vai conseguir. Amanhã tenho de ir embora daqui. Como tenho horror à viagem! Estou envelhecendo muito, agora. Fico sentindo as sacudidelas de minha carruagem durante dias depois de descer dela.

- Foi um gesto nobre você ter vindo.

- Ele é meu filho, Catherine, meu filhinho. Na verdade, não passa de um menino. E esses homens que anseiam pela coroa não compreendem que ela pode ser mais um ónus do que uma glória. E quando a cabeça sobre a qual ela repousa é jovem e inexperiente, esse ónus fica realmente pesado.

No dia seguinte, Joan saiu rolando na sua carruagem e por fim chegou a Sheen, onde conversou com Anne.

Anne era uma jovem inteligente, que percebia tudo depressa. Era uma pena ela ter sido atirada em toda aquela intriga, pensou Joan. Era uma pena de Vere ter entrado no paraíso de casados como a serpente no Paraíso, uma grande pena.

Mas Anne tinha influência junto ao rei. Ela parecia não se importar com o prazer que ele sentia com de Vere. Era uma jovem atenciosa, ignorando o fato de que muitas mulheres na sua situação poderiam ficar com ciúme. Anne, não; ela parecia contente, ou talvez fosse apenas esperta.

Joan conversou com ela da mesma forma que fizera com Catherine. Disse a Anne que tinha medo de uma guerra civil. Aquela desavença que fermentava entre o rei e seus tios tinha de ser detida.

Anne concordou com ela.

- Tem de haver um fim a essas tentativas de incriminar Lancaster. Ele é poderoso demais para ser incriminado. Além do mais, não há prova contra e ele é esperto demais para deixar que isso aconteça. Woodstock está do lado dele. E Langley estaria, também, se o caso chegasse a uma decisão. Seria o rei e seus favoritos de um lado e Lancaster e seus homens do outro. Anne, Lancaster já foi muito impopular. Não podia arriscar-se a sair em Londres sem que alguém o xingasse. Ele agora é mais popular. Sabe por quê? O povo transferiu seu ódio para de Vere. Anne, temos de fazer com que se unam. As pessoas devem ver que não há inimizade entre o rei e seus tios.

- Sim, eu concordo - disse Anne. - Temos de fazer o que pudermos para provocar isso.

- Estou velha - prosseguiu Joan. - Não posso fazer muito mais essas viagens. Anne, quero ver paz nesta terra antes de morrer. Quero ver meu filho seguindo um caminho bom. Sei que você compreende.

Anne compreendia.

Agindo em conjunto, as três mulheres fizeram o milagre.

Em Westminster houve uma reconciliação entre o duque de Lancaster e os homens que pouco antes haviam tramado acabar com ele.

Ricardo ficou encantado. A ele parecia que toda aquela briga terminara.

- Agora somos todos bons amigos - disse ele, afável.

Da torrinha, Catherine viu o amante aproximar-se. Desceu para o pátio ao seu encontro. Erguida em seu abraço, agarrou-se a ele. Ela estava tremendo.

- Eu estava aterrorizada. Tive medo de que fosse uma trama.

- Não, não. Arainha-mãe insistiu que professássemos amizade uns pelos outros e de algum modo ela e a rainha convenceram o rei de que ele também quer isso.

- E o que significa isso? Que tipo de amizade aqueles homens vão ter por você ou você por eles?

- Nenhum. Vamos ficar de olho uns nos outros, mas pelo menos declaramos nossa amizade e isso agradou à rainha-mãe.

- Você não vai deixar de tomar cuidado. De braço dado, os dois entraram no castelo.

- Tenho novidades para você.-Em quanto tempo fica pronta para partir?

- com você? Vamos sair juntos?

- Isso lhe agrada?

- Para mim, é o Paraíso - respondeu ela.

- Vamos para o norte - disse ele. - Para Pontefract. Como sabe, de todos os lugares, ele é o meu favorito.

- Eu sei disso, e por essa razão também é o meu favorito.

- Uma fortaleza. Poderíamos resistir durante meses, Catherine, se alguém nos atacasse. Quando ficará pronta?

- Amanhã de manhã... cedo.

- Vamos partir ao amanhecer - disse ele.

A estada em Pontefract não foi longa porque houve problemas causados pelos franceses.

O velho rei morrera e havia um jovem rei no trono. Esse jovem Charles era muito diferente de Ricardo. Tinha toda a arrogância da juventude e a vitalidade também.

Deixou claro, desde o início, que haveria mudanças em seu reinado. Não ficaria olhando nem aturaria o que considerava a insolência da reivindicação inglesa à coroa da França. Ele acabaria com eles de uma vez por todas. Estava cansado de ouvir falar nas vitórias de Crécy e Poitiers. Era uma grande nódoa para o país o fato de o rei da França ter sido capturado certa vez pela legendária figura do Príncipe Negro e levado para a Inglaterra. Aquilo era algo que ele pretendia apagar, e só poderia fazer isso obtendo uma vitória que fosse tão devastadora para os ingleses quanto a de Poitiers tinha sido para os franceses. Ele não se contentaria com vitórias na França. Pretendia levar a guerra ao território inglês. Isso acabaria com a jactância deles sobre as vitórias de Eduardo III e do Príncipe Negro.

O jovem Charles casara-se havia pouco tempo e isso o tornara mais do que nunca confiante em si mesmo. Não era exatamente a rotina do casamento, mas a maneira pela qual o dele acontecera e que mostrara ao seu povo que se tratava de um homem decidido a fazer as coisas a seu modo.

- Só a princesa mais bonita do mundo servirá para mim declarara ele com arrogância quando lhe levaram informações sobre a princesa bávara Isabeau. Ele não tinha intenção de concordar com um casamento antes de ter visto a jovem. - Se o pai dela quiser mandá-la até aqui, irei analisá-la. Se eu não gostar do que vir, ela voltará para a Bavária.

Esse tipo de arranjo não podia ser feito, fora a resposta da Bavária. Não enviariam a filha para a aprovação do rei.

- Então - retorquira o rei -, não haverá união entre a França e a Bavária. O assunto está encerrado.

Uma união com a França era de grande importância para a Bavária e não poderia ser jogada fora de forma leviana. Além do mais, Isabeau era reconhecida como sendo uma jovem muito bonita, e era praticamente improvável que o jovem rei, depois de tê-la visto, quisesse mandá-la embora.

A própria Isabeau estivera muito confiante em seus encantos e quisera ir confrontar-se com aquele arrogante jovem.

Então ela resolvera partir; e acontecera o que ela previra. Quando Charles vira sua beleza morena, os abundantes cabelos pretos, os lânguidos olhos negros de espessas pestanas, o corpinho voluptuoso, ficara completamente encantado e em poucas semanas depois da chegada dela na França o casamento fora celebrado.

Agora, ele pretendia executar seu projeto de subjugar a Inglaterra; impor-lhes a humilhação de guerrear em seu próprio país.

Era sempre possível contar com os escoceses para se levantarem contra os ingleses quando estes estavam em dificuldades. Por isso, enquanto reunia sua frota em Sluys, Charles enviou um de seus maiores comandantes, Jean de Vienne, à Escócia. As forças francesas tiveram uma recepção calorosa em Leith e Dunbar, e começou a tarefa de importunar os ingleses.

Do sul, Ricardo partiu com um exército. John de Gaunt reuniu seus homens para juntar-se ao rei. Ele conseguiu reunir uma força poderosa e, de fato, seus seguidores compunham um terço de todo o exército, o que deveria ter servido como uma lição para o rei, de que seria insensato antagonizar o tio. Além disso, embora John de Gaunt não tivesse sido bem-sucedido em combate como tinham sido seu pai e seu irmão mais velho, possuía alguma experiência de guerra; ao passo que Ricardo, sem tendências para a guerra, praticamente não tinha nenhuma.

Era inevitável, em reuniões desse tipo, que houvesse certos atritos. Os seguidores de um grande senhor discutiam com os de outro. Rivalidades e inveja estavam sempre surgindo. Uma dessas ocorreu entre os seguidores de Sir John Holland e Ralph, filho do conde de Stafford, e durante a confusão um dos escudeiros favoritos de Holland foi morto.

John Holland ficou furioso e jurou que se vingaria dos assassinos, que, cientes da tempestade que se formava, se haviam asilado num santuário e, apesar do apelo de Holland a Ricardo, não deixaram que ele os levasse à justiça.

- Foi uma luta entre dois grupos de homens - disse Ricardo.

- Um lado foi tão culpado quanto o outro. Foi apenas uma infelicidade ter sido um de seus escudeiros o assassinado. Poderia facilmente ter sido um dos de Stafford.

Mas John Holland era homem que se prezava muito, assim como sua posição de parente do rei. Será que Ricardo se esquecera de que ele era seu irmão - bem, meio-irmão? Sem dúvida que lhe deveria ser feita uma concessão.

Ele era homem de génio violento.

- Pois bem - bradou ele -, se não me fazem justiça, eu mesmo a farei.

Partiu imediatamente para os aposentos do jovem Stafford e, antes de ter ido muito longe, viu-se cara a cara com o próprio Ralph, momento em que Holland sacou a espada e matou-o na hora.

O conde de Stafford ficou tomado pela dor e pela raiva com a morte do filho, e o rei sofreu pelo jovem Ralph, que tinha mais ou menos a sua idade e fora um de seus favoritos. Houve um clamor. O conde exigia vingança.

- Parece - disse Holland - que quando os homens matam, tudo o que têm de fazer é pedir asilo sagrado.

Ele mesmo procurara aquele tipo de proteção em Beverley Minster e ali ficou, a salvo de Stafford e seus seguidores.

Aquilo era um caso diferente da morte do escudeiro, que fora abatido num tumulto entre duas partes. Aquilo era um assassinato deliberado, e mesmo que Holland fosse irmão do rei, Stafford iria querer que a justiça fosse feita.

Ele foi procurar Ricardo.

- Meu filho foi assassinado - disse ele. E ele e o rei choraram juntos.

- Majestade-prosseguiu Stafford -, não posso ficar parado e ver esse assassino em liberdade. Quero justiça. Trata-se de meu filho, que foi vítima de assassinato a sangue-frio.

Ricardo afastou-se. Outra pessoa qualquer, sim. Mas o seu irmão! Por que John fora tão louco assim? Por que não deixara o assunto morrer? As brigas entre escudeiros eram comuns.

O conde de Stafford viu que o rei vacilava e compreendeu que se exercessem pressão sobre ele, iria perdoar Holland, e isso era uma coisa que Stafford não permitiria.

- Majestade-disse ele -, se não for feita justiça neste caso, eu e meus amigos agiremos por conta própria. Peço licença para me retirar. - Fez uma mesura e saiu.

Ricardo estava tresloucado. O que poderia fazer?

Anne foi procurá-lo, e embora soubesse que aquilo contrariaria muito a rainha-mãe, sua opinião foi de que John Holland não devia ficar impune.

Enquanto isso, a expedição à Escócia ficou detida, e assuntos importantes não podiam ser adiados por muito tempo por fatos como aquele.

O rei tomou a decisão: Holland deveria ser banido do país e seus bens seriam confiscados.

Joan tinha ido para o castelo de Wallingford. Ali era repousante, e ela sentia necessidade de descanso. As viagens para visitar Catherine Swynford e a rainha tinham-na deixado ainda mais exausta do que pensara. Mas houvera uma certa satisfação. As viagens tinham conseguido alguma finalidade. Alívios temporários, talvez, mas até isso era importante.

Ela temia muito o futuro. Sua vida era tomada pela aflição. Às vezes, ela pensava como era estranho a vida parecer ter sido dividida exatamente ao meio. A época alegre, despreocupada, de prazer abandonado, e depois aquela existência consumida pela preocupação. Se tivesse se casado com de Brocas, como certa vez fora sugerido, teria sido poupada daquela aflição? Era uma provação ser mãe de um rei.

Nos últimos quatro anos, ela estivera sempre preocupada. Primeiro, com a doença do marido; depois, a morte de seu primogénito, e então o fato de Ricardo ter sido colocado num cargo para o qual não estava bem preparado.

Pronto, ela admitira. Ricardo não tinha as qualidades de um rei.

Quando se ficava velho, enfrentava-se a realidade.

Ela queria paz na família, e não havia outra coisa senão aflição. Preocupava-se com os filhos, todos eles.

Chegaram mensageiros ao castelo. Havia uma mensagem de seu filho John e outra de Ricardo.

Ela leu primeiro a de Ricardo, e enquanto a lia pôs a mão no coração, que batia irregularmente. Problemas. Sempre temia isso quando via um mensageiro.

Um assassinato! John assassinara o jovem Ralph Stafford e o conde insistia em vingança. "Não há outra coisa a fazer, mamãe, exceto bani-lo. É a única coisa que deixará Stafford satisfeito, e não posso ter discórdia no exército agora. Charles da França está me ameaçando. Os escoceses estão me ameaçando. Precisamos ter unidade. Tive de ceder a Stafford. John será banido, e seus bens, confiscados."

Joan foi até uma cadeira e sentou-se. Sentia-se fraca e tonta.

Aquilo estava-se tornando mais frequente agora, e acontecia sempre depois de um exercício e choques.

com as mãos trémulas, ela abriu a carta de John.

"Ricardo está me banindo. Eu tinha de fazer isso. Eu não ia deixar que os homens de Stafford assassinassem os meus. A senhora precisa pedir por mim. Ricardo irá lhe atender. Querida mãe, a senhora não me quer longe daqui. Eu gostaria de estar com a senhora neste momento..."

As damas de Joan chegaram e encontraram-na recostada na cadeira, as cartas a seus pés.

Levaram-na para a cama. Ela não tinha muita certeza, então, de onde estava. Às vezes acreditava estar em Bordeaux e que o príncipe estava deitado a seu lado. "Limoges", murmurava ele o tempo todo dormindo.

Acontecera alguma coisa terrível. Ela sabia disso. O que foi? A morte do jovem Eduardo? A morte do príncipe?

Não... não... isso foi há muito tempo.

Não devo ficar aqui deitada, pensou ela. Tenho de fazer alguma coisa. Há algo que tem de ser feito. Mas o quê? Mas o quê?

Tinha vindo um mensageiro... Sim, cartas. Ela estava se lembrando. Irmãos brigando. Ricardo mandando John embora.

- Tenho de escrever umas cartas - disse ela.

- Minha senhora - disseram as damas -, não está em condições de sair da cama.

- Há uma coisa que preciso fazer.

Ela insistiu. Mal podia ficar de pé. A tonteira tomou conta dela.

- Eu preciso... eu preciso fazer isso - disse ela. Sentou-se à escrivaninha. As damas escoraram-na com almofadas.

Joan pensou no que iria dizer. "Ricardo, ele é seu irmão. Não pode haver essa rixa, particularmente em famílias. John estará sempre do seu lado. Ele lutará por você..."

Sim, John lutaria pelo rei, porque era do rei que viriam os agradecimentos.

Eles eram ambiciosos, todos eles. Estendiam as mãos gananciosas para terras, riquezas... às vezes para uma coroa.

Por que aqueles homens queriam uma coroa? Não sabiam que depois da gloriosa cerimónia de coroação, na qual aquela coisa brilhante era colocada em suas cabeças, eles passavam o resto da vida mantendo-a ali... ou tentando mante-la?

- Deus ajude a todos nós - murmurou ela -, e especialmente Ricardo.

Começou a escrever.

Quando terminou, mandou chamar mensageiros. A carta deveria ser levada ao rei imediatamente.

Depois, voltou para a cama. Fizera o que podia. Implorara a Ricardo que perdoasse John. Banido do país! Isso poderia significar que ele nunca voltaria.

Os dias passaram-se e ela ficou um pouco melhor.

Aguardava a volta do mensageiro. O que estaria acontecendo agora?, perguntava-se. Eles iam guerrear contra a Escócia, e os franceses ameaçavam invadir a Inglaterra.

Numa época assim, a Inglaterra precisava de um grande Eduardo. De um Príncipe Negro. E tudo o que tinha era Ricardo.

- Que Deus o proteja - rezou ela. - Que dê a ele a força da qual o Senhor dotou o pai dele. O meu Ricardo precisa dela agora.

O mensageiro voltou. O rei enviava saudações à sua mãe, mas nada havia que ele pudesse fazer para salvar John Holland.

Ele assassinara Ralph Stafford e tinha de receber o castigo. Ricardo queria, sempre, agradar a sua mãe, de cujo carinho por ele iria sempre se lembrar com gratidão. Mas aquilo era algo que o rei não podia fazer... nem mesmo por ela.

Joan tornou a se deitar na cama. John ficaria amargamente contrariado com o ato do irmão. Problemas na família. Onde é que isso iria acabar?

Ela pensou em todos eles... os tios, John de Gaunt, um homem ambicioso demais, a ponto de ser preciso ter-se cuidado; Langley, ora, ele ainda não tinha muita importância, mas quem poderia dizer? Joan tinha medo de Woodstock. Uma vez, ele chegara até a ter a ousadia de ameaçar Ricardo.

Problemas, ela os via surgindo no horizonte. E como Ricardo iria combatê-los... ele e sua jovem e inocente rainha?

Uma letargia tomara conta dela. O que poderia fazer agora?

Seus dias estavam contados. Quantos lhe restavam? Um? Dois? Seis?

Ela estava doente. Estava morrendo. Sentia-se impotente para deter a maré que se levantava contra o filho. Ela tentara e fracassara.

Já não havia motivo algum para viver.

Recostou-se nos travesseiros - uma mulher velha. Pensou: ninguém acreditaria que outrora eu era a Bela Donzela de Kent.

Fez o seu testamento e mandou chamar um padre. Queria ser enterrada na igreja dos frades menores em Stamford; e queria ficar perto do monumento que mandara erigir para Thomas Holland, seu primeiro marido. Ela pensou, num momento fugaz, naquela época despreocupada.

Depois, cruzou as mãos sobre o peito e deitou-se para aguardar a morte.

Esta não demorou a chegar.

As criadas envolveram-na em faixas enceradas e colocaram-na em um caixão de chumbo. Ali ela deveria ficar até que o rei voltasse. Sabiam que a dor dele seria enorme.

 

O EXÉRCITO ESTAVA na fronteira da Escócia e a invasão estava prestes a começar. Ricardo decidiu assinalar a ocasião criando dois novos duques. Até ali, o único homem

a ter o título de duque no reino era John de Gaunt, duque de Lancaster. Ricardo agora homenageou seus dois tios mais moços; Edmund Langley, conde de Cambridge, tornou-se duque de York, e Thomas, conde de Buckingham, duque de Gloucester. Michael de Ia Polé também foi homenageado. Tornou-se conde de Suffolk.

Agora, o importante caso de lidar com os escoceses tinha de seguir em frente. Eles tinham de fazer com que fosse impossível os franceses usarem a Escócia como base; se usassem, a batalha pela Inglaterra bem que poderia ser perdida.

Os escoceses e os franceses usaram suas táticas costumeiras, que eram evitar um confronto enquanto possível, atraindo o inimigo cada vez mais para o interior e, assim, aumentando suas linhas de comunicação, na esperança de que, fazendo isso, o inimigo tivesse tanta dificuldade em alimentar e manter seus exércitos que acabasse sofrendo uma derrota.

Havia um certo atrito entre Ricardo e seu tio Lancaster. John de Gaunt queria avançar; mas Ricardo, pensando nos soldados que não teriam provisões, recusava-se a permitir. Sussurrava-se que John de Gaunt esperava que Ricardo fosse morto numa refrega e por isso estava ansioso por forçar uma batalha.

Ricardo estava profundamente perturbado. Vivia pensando na mãe, que sabia estar muito doente, e ficava magoado por não ter podido atender ao pedido dela. Se só ele tivesse estado envolvido, teria cedido de bom grado à vontade dela. Joan não compreendia. Eles o pressionavam de todos os lados. Stafford, seus tios... todos eles.

Havia outro assunto que o perturbava. Ele amava muito sua mulher. Apoiava-se muito nela. Era uma esposa perfeita, exceto sob um aspecto: não lhe dera filhos.

Os dois eram jovens, e as pessoas começavam a perguntar o que havia de errado.

Eram tantos os problemas! Mas o principal, é claro, era o caso escocês. Eles não podiam demorar-se mais. Tinha de pensar no que o arrogante Charles poderia fazer no sul, mas todos concordavam com uma coisa: era preciso fazer com que os franceses percebessem que não podiam usar a Escócia como base.

Eles tinham saqueado as abadias de Melrose e Newbattle; Holyrood fora pilhada e uma parte de Edinburgh incendiada. Os escoceses estavam em retirada; e o aviso fora recebido. A Escócia não era lugar para os franceses usarem como ponto de partida para um ataque à Inglaterra.

Não fora uma campanha gloriosa, mas atingira sua finalidade. Eles podiam voltar para o sul satisfeitos.

Quando o rei soube da morte da mãe, ficou prostrado de dor.

Não houve coisa alguma que Anne pudesse fazer para consolálo.

- Ela morreu enquanto eu estava na Escócia - bradou ele -, e eu negara o seu último pedido.

- Você não podia fazer outra coisa senão negar - consolou-o Anne. - Ela devia ter sabido disso. Ela era uma mulher inteligente.

- Apesar disso, ela pediu e eu neguei. Nunca me perdoarei. Ele estava inconsolável. Não conseguia esquecer que ela pedira o perdão para o filho e ele se recusara.

- Isso ficou na cabeça dela até o fim - lamentou-se ele. Jamais me perdoarei.

E então recordou o quanto tinham ficado juntos na infância dele, que ele tinha sido o favorito dela, embora o irmão mais velho, Eduardo, tivesse sido o favorito do pai, que ela mesma lhe dera aulas, que ela sempre estivera ao seu lado, o quanto os dois se dedicaram um ao outro; e tudo voltava para a censura final.

Ela me pediu um benefício e eu me recusei.

Num gesto impulsivo, chamou John Holland de volta. Devolveu-lhe as terras e deu-lhe outras mais. John abraçou o meio-irmão, numa demonstração de grande afeição.

- Eu tinha de fazer aquilo - disse Ricardo. - Compreende, irmão, que eu tinha de acalmar Stafford.

- Eu compreendo - disse John. - Nós somos irmãos... nada pode mudar isso. Nossa mãe teria compreendido, Ricardo. Ela vai saber que nós dois tínhamos de agir como agimos.

Aquilo foi um grande consolo para Ricardo.

Não muito tempo depois de sua volta, John se casou e a noiva foi Elizábeth, filha de John de Gaunt. John era apaixonado no amor e no ódio e, embora Elizábeth, na verdade, tivesse sido noiva do conde de Pembroke, Holland a deixara louca e fizera com que ela chegasse a esquecer os votos anteriores a ponto de os dois terem se tornado amantes.

Isso causara muitos problemas para o pai dela, que, vendo que agora o casamento com Pembroke era impossível, conseguiu fazer com que o contrato fosse anulado e, para grande alegria da filha e do noivo, os dois se casaram.

John Holland estava contente. Ele ainda não deixara, jactava-se ele, de encontrar uma saída para suas dificuldades. Há pouco tempo, ele fora exilado; agora estava ali, de posse de todas as propriedades que tinha antes e mais, e casado com a filha do homem mais poderoso do país. Não era de admirar que estivesse encantado com a maneira inteligente com que adaptara os acontecimentos.

Robert de Vere sentia-se decididamente infeliz porque suas duas tentativas de se livrar de John de Gaunt tinham dado em nada. Ele estava sempre salientando para Ricardo que John de Gaunt sempre tentaria dominá-lo. Isso tinha sido óbvio durante a campanha escocesa. John de Gaunt quisera continuar com ela; Ricardo, sensatamente, decidira que já se fizera o bastante.

- Ele acatou a minha decisão - salientou Ricardo. - Disse que eu era o rei dele e faria o que eu mandasse.

- Palavras! - disse de Vere.-Ele vai tentar mandar em você, e isso significa que vai tentar me arruinar.

A ideia de John de Gaunt agindo contra seu adorado amigo deixou Ricardo alarmado.

Alguma coisa teria de ser feita.

Surgiu uma oportunidade. Sempre fora o sonho de John de Gaunt conseguir o trono de Castela, e agora que João de Avis ganhara a coroa de Portugal na batalha de Aljubarrota, ele seria um valioso aliado, porque também tinha uma desavença pessoal com Castela. Se Lancaster se juntasse a ele, poderiam atacar o usurpador de Castela e dar a si mesmos uma oportunidade de conquistar a coroa para John e Constanza.

Cabia ao rei e ao Conselho debater se votariam a favor de dar a Lancaster a assistência de que ele precisaria.

O debate não demorou muito. Tanto os inimigos como os amigos de John de Gaunt decidiram que seria bom para o país que ele estivesse fora dele.

Já houvera duas tramas contra a vida de Lancaster. Ele era uma figura importante demais para ser eliminado com facilidade, e se fosse morto isso poderia muito bem representar a fagulha para provocar uma revolta no país.

Não havia um único homem no Conselho que não concordasse que aquela era uma excelente oportunidade para fugir de uma situação perigosa.

John de Gaunt em Castela estaria retirado do cenário político. Isso deveria trazer uma certa paz; e o Conselho aprovou o fornecimento dos suprimentos necessários.

E assim John preparou-se para partir para Castela. Ele estava dividido em duas emoções - o amor por Catherine Swynford e sua ambição.

Mas aquilo era a realização do seu sonho. Ele agora venceria. Iria tornar-se o rei que nunca pudera ser na Inglaterra. E para isso precisaria de Constanza a seu lado, e devido ao amor e ao sempre presente desejo por Catherine Swynford, ele não sentia outra coisa que não aversão por Constanza.

No entanto, tinha de ir. Talvez nunca mais voltasse.

Catherine sabia disso.

John se despediu dela pela última vez. Levava consigo suas duas filhas e sua esposa: Filipa, filha dele com Blanche, e Catherine, filha dele com Constanza.

Se tivesse sucesso, ficaria em Castela o resto da vida. Se tornasse a fracassar, voltaria.

Os dois passaram juntos aquela noite que poderia ser a última. Havia pouco a dizer. Era a vida. Era o destino. Tinha de ser.

Ela podia ter chorado. Poderia ter-lhe pedido que ficasse ou que a levasse também. Sabia que as duas coisas teriam sido impossíveis para ele.

Não, ela sempre tivera medo de que a separação deles chegasse. Agora chegara.

John também falou pouco. O que podia dizer? Como poderia explicar a ela que embora ansiasse por sentir a coroa na cabeça, nunca seria feliz outra vez, porque ela não estaria com ele?

- Um dia eu voltarei, Catherine. Aconteça o que acontecer, eu voltarei. Talvez possa mandar buscá-la. Não se preocupe; planejarei alguma coisa.

Ela tentou sorrir e fingir que acreditava nele.

Ficou olhando do alto da torrinha, enquanto John se afastava. Não conseguia vê-lo porque seus olhos estavam turvos de tantas lágrimas. Ele não se voltou para olhar para trás.

Aquilo era simbólico quanto ao futuro. Ela não conseguiu ver esse futuro. E para John não podia haver uma volta ao passado.

A ameaça de invasão continuava. Notícias estavam sempre chegando do outro lado do Canal, dizendo que os franceses estavam trabalhando com afinco em seus estaleiros.

O jovem rei da França jactava-se do que iria fazer quando conquistasse a Inglaterra. Todos os homens deveriam ser mortos, para que nunca mais pudessem guerrear em território francês novamente; as mulheres e as crianças deveriam ser levadas como escravas. Isso iria ensiná-los a reivindicar o trono da França.

Esses rumores eram exatamente do tipo que dava ânimo aos ingleses.

Estariam eles com medo de um bando de franceses? Nunca!

Relembraram a velha história de Crécy e Poitiers, que provava que um inglês valia por dez franceses.

Que viessem! Iriam aprender, então, qual era a verdadeira situação.

O conde de Arundel foi encarregado da frota inglesa.

Não resta dúvida de que foi um belo conjunto de navios inimigos que se fez ao mar de Rochelle para Sluys. Compunha-se não só de navios franceses, mas de espanhóis também. Estava sob o comando de Jean de Bucq, um almirante flamengo famoso pela perícia na guerra naval.

Por outro lado, Arundel tinha a reputação de apático, e quando os franceses tinham atacado de surpresa a costa de Sussex - seu território -, ele fora perceptivelmente protelatório na tomada de providências, de modo que parecia uma escolha nada sensata para assumir a defesa.

Foi uma surpresa, portanto, que ele tivesse, quando surgiu a ocasião, assombrado a todos com a sua perícia em cuidar dos invasores. Durante toda a primavera, ele trabalhara incansavelmente com Thomas Mowbray, conde de Nottingham, para preparar a frota para enfrentar os franceses.

Ver a majestosa armada navegando pelo canal era para encher qualquer coração de apreensão. Arundel, no entanto, continuou calmo, observando-a. Depois, colocou sua frota em retirada, tentando atrair os franceses para fora do seu curso, mas eles não iam ser enganados por um estratagema tão óbvio.

Arundel distanciou-se, esperando pelo momento de atacar. Seus arqueiros estavam prontos, e assim que os franceses chegassem a uma distância suficiente, enviariam uma chuva daquelas armas mortais pelas quais tinham ficado famosos.

Havia um inimigo ao qual o invasor poderia deixar de dar a devida atenção - e esse inimigo era o tempo - e em especial os ventos que podiam ser encontrados no canal. Embora isso fosse imprevisível, os ingleses estavam mais acostumados aos seus caprichos e muitas vezes podiam julgar por antecipação o curso que ele tomaria.

Arundel parecia sentir que o vento funcionaria a seu favor e contra os inimigos, e tinha razão. O vento levantou-se exatamente no momento em que poderia ser mais útil aos ingleses. Os franceses estavam saindo do curso. Agora era a hora de atacar. O céu ficou escuro com a chuva de flechas que caiu nos conveses franceses; então, os navios grandes foram ao ataque.

A batalha foi longa e furiosa; mas os franceses, por mais magníficos que fossem seus navios, não eram adversários para os ingleses.

Aquele dia trouxe uma vitória completa. Quase cem navios foram capturados.

Arundel pusera de lado a sua natureza indolente. Não contente em inutilizar a frota francesa, estava decidido a tornar impossível que eles colocassem outra nos mares durante anos. Triunfante, ele seguiu os remanescentes da armada derrotada até Sluys; atacou-a, afundou alguns navios e inutilizou outros, e até foi à terra e queimou as cidades e aldeias.

Depois de dez dias, durante os quais não apenas atacou o litoral mas se serviu de grande parte do tesouro que lá existia, ele voltou para a Inglaterra levando consigo, entre outras coisas, dezenove mil tonéis de um excelente vinho.

Houve grandes comemorações pelo país inteiro. Depois de tantas desgraças ultimamente, uma vitória tinha um sabor especial.

Era como se o Príncipe Negro tivesse nascido outra vez. A Inglaterra saíra da letargia. Uma vez mais, contava com heróis.

O homem mais popular na Inglaterra era Richard Fitzalan, conde de Arundel. Era realmente um herói, porque em vez de ficar com grande parte do butim resolvera que o povo devia ser beneficiado. O vinho ficou muito barato na Inglaterra naquele verão. Nas tabernas, as pessoas abençoavam Arundel e bebiam à sua saúde.

Ricardo e Robert de Vere congratulavam-se pela maneira pela qual John de Gaunt fora afastado de cena; mas o que eles não percebiam era que alguém ocupara o lugar dele, e Thomas de Woodstock, agora duque de Gloucester, podia ser tão perigoso quanto o irmão, embora sem ter seus ideais e seu controle.

Como tio do rei, Gloucester considerava-se seu principal assessor. Era verdade que seu irmão Edmund de Langley, agora duque de York, era o mais velho, mas Edmund nunca fora de forçar o avanço e mostrava abertamente sua preferência pela vida tranquila. Edmund não era ambicioso, mas acompanharia os irmãos se eles lhe pedissem, e estava mais inclinado a apoiá-los do que a apoiar o sobrinho, que, como faziam outras pessoas, ele ainda considerava um menino.

Àquela altura, Arundel, o herói do momento, era um bom homem para se ter como aliado e Gloucester deixou que sua amizade com ele aumentasse. Ele sabia alguma coisa sobre Arundel. Um bravo guerreiro, era verdade, e mostrara algo parecido com génio na recente batalha naval, mas Arundel, como a maioria dos outros homens da corte, estava disposto a conseguir seu próprio progresso.

Ricardo adquirira uma certa dignidade desde a partida de Lancaster para Castela. Estava na hora, disse ele a Robert de Vere, de mostrar àquela gente - e em particular aos seus tios - que ele era o rei e o governante deles. Teriam de entender que já não era um menino para ser guiado por eles.

Esses sentimentos foram sinceramente aplaudidos por Robert, que sabia muito bem que ele era a pessoa que aqueles homens gostariam de ver retirada do lado do rei.

Gloucester tomara, agora, o lugar de Lancaster na mente deles. Ele era o grande inimigo. Mas nem o rei nem seu favorito perceberam que estavam lidando com um caráter muito diferente do de John de Gaunt e que havia perigo pela frente.

Para fazer desfeita a Gloucester, Ricardo dera a Robert o castelo e o pariato de Oakham, juntamente com o cargo de xerife de Rutland. Isso deixou Gloucester furioso, porque tudo aquilo pertencera aos ancestrais de sua mulher e deveria ter passado para o nome dele.

Gloucester estava ficando cada vez mais ofendido e não escondia a contrariedade.

O clímax veio com acontecimentos na Irlanda, país do qual estavam sendo constantemente recebidas mensagens urgentes. Os irlandeses estavam, agora, sendo ajudados pelos escoceses e pelos espanhóis e estavam decididos a expulsar a colónia inglesa. Era preciso agir. Era necessário nomear um homem enérgico de alta reputação e habilidade para resolver as disputas e mostrar aos irlandeses que os ingleses podiam ser tão poderosos dentro do país quanto em alto-mar.

Houve muita controvérsia sobre quem seria o melhor homem a ser enviado.

Gloucester e seus amigos também reclamavam do tesoureiro de Ricardo, Michael de Ia Polé, que ele fizera conde de Suffolk. O novo conde era antipatizado em grande parte por não ser de um berço tão elevado quanto aqueles que procuravam derrubá-lo. Eles reclamavam que ele contava com as boas graças do rei; Ricardo dava ouvidos a ele, quando devia estar prestando atenção a eles. Enquanto isso, a riqueza de Suffolk aumentava. Ele era um homem capaz mas, como os demais, tinha de cuidar de si mesmo, do seu futuro e de sua família.

Gloucester queria que ele fosse afastado.

Foi procurar o rei com o objetivo de apresentar-lhe essa sugestão.

Gloucester nunca tratara o rei com o respeito que Ricardo agora esperava. Ainda mantinha a velha atitude do tio falando com o sobrinho que era apenas um menino. Poucas coisas deixavam Ricardo mais irritado.

Gloucester disse num tom insolente:

- Ricardo, é preciso haver mudanças. Suffolk tem de ser despedido.

- Quem disse isso? - perguntou Ricardo.

- Eu estou dizendo.

- O senhor? Eu ainda preciso saber que o duque de Gloucester manda no rei?

- Ora vamos, Ricardo. Isso é aqui entre nós, da família... o velho tio experiente para o jovem sobrinho, compreende?

- Acontece - retorquiu Ricardo - que o sobrinho por acaso é o seu rei.

- Sei muito bem disso. Não prestei vassalagem a você com os meus pares? Há uma inquietação no país. Você precisa demitir Suffolk. O homem é um arrivista. Quem é ele? Tem berço nobre? Ele subiu ao seu cargo especial através de uma manobra.

- É mentira - disse Ricardo.

- Parece que me lembro de um peixeiro chamado John Cavendish...

- Aquilo ficou esclarecido. Cavendish era um bandido.

- Meu querido sobrinho, não é bom para você ter como amigos aqueles que têm negócios com peixeiros! Demita esse homem.

É o que o país e seus ministros querem.

- Gloucester-disse Ricardo, a voz subindo num tom de raiva -, eu não despediria o pior criado de minha cozinha a um pedido seu.

Até mesmo Gloucester pôde ver o mau génio Plantageneta subindo - e como já recebera a sua cota toda dele, sabia até onde ele poderia levá-los.

- Você devia pensar nas minhas palavras-disse ele e, fazendo uma mesura, retirou-se.

Ricardo estava num acesso de raiva. Robert de Vere estava perto. Ele estivera ouvindo a entrevista.

- Seu tio dá-se ares de grandeza - disse ele. - Por Deus, é um homem muito arrogante.

- Acho que ele é pior do que Lancaster.

- Nós tínhamos mais medo de Lancaster - lembrou-lhe Robert.

- vou mostrar a ele - bradou Ricardo. - vou, sim. vou mostrar que é melhor parar de se meter comigo. vou dissolver o Parlamento e iremos para Eltham e ficaremos lá. Vamos ver o que eles acham disso. O Parlamento conspira contra mim, Robert. Por que iria eu permitir que façam isso? Sim, vamos para Eltham. Lá, vamos nos divertir.

De repente, Ricardo começou a rir.

- Robert, tenho uma ideia. O que acha de você ser o duque da Irlanda?

- Um duque, Ricardo! Está falando sério?

- Duque da Irlanda. Robert ficou pensativo.

- Eu teria de ir para a Irlanda. Isso significaria deixar você... a menos que você fosse comigo.

- vou lhe dizer o que faremos, Robert. Vamos fazer de você o duque daquele país. Então, talvez você possa mandar seu representante para resolver os problemas de lá. Robert, imagine a cara deles quando souberem!

Os dois tiveram convulsões de gargalhadas pensando naquilo. Foi o que acalmou o génio do rei. Ele voltou a ficar alegre.

Gloucester foi a Eltham acompanhado por Thomas Arundel-irmão mais moço do herói naval -, que era bispo de Ely.

Ricardo quis recusar-se a recebê-los, mas mudou de ideia quando soube que eles não tinham ido por espontânea vontade, mas tinham por trás o apoio do Parlamento, que não gostara da tentativa de Ricardo de dissolvê-lo nem aprovara

a mudança dele de Westniinster para Eltham.

Quando Gloucester e o bispo foram recebidos pelo rei, deram a entender que queriam ficar inteiramente a sós com ele, sem mesmo a presença da rainha e, é claro, sem

a de Robert de Vere.

Ricardo, sentindo-se obrigado a atender ao pedido deles, ficou diante do tio e do bispo e, arrogante, perguntou o que queriam.

- Viemos aqui para dizer, majestade, que o Parlamento exige sua presença em Westminster.

- E eu devo lhe dizer, meu senhor, que prefiro ficar aqui.

- Trata-se de um asssunto de Estado, majestade.

- Seria bom lembrar-se disso. Gloucester fez um gesto de impaciência.

- Ricardo, eu lhe peço como seu tio e como uma pessoa que deseja de coração, como qualquer outra, seu bem-estar. Você não pode governar sem o Parlamento. Outros tentaram e fracassaram. Eu lhe peço que tenha cautela.

- Nunca consegui governar-bradou Ricardo -, exceto uma vez, quando os rebeldes estavam às nossas portas e o resto de vocês estava encolhido por trás dos muros da Torre. Lembra-se disso, senhor duque?

Gloucester se lembrava. Tinha sido um período horroroso, e sabia que ele - como tantos outros - não se distinguira pela bravura, enquanto aquele menino - um fedelho - fora enfrentar a turba. Era verdade. E por causa disso, tinham-se esperado dele grandes feitos. Tinha sido seu momento de glória - infelizmente, porém, de curta duração.

- Eu me lembro muito bem, majestade - disse Gloucester. Quem irá esquecer? Mas vossa majestade não pode viver para sempre com base em um curto momento de glória. Vossa majestade tem um país para governar e um país não é uma turba de camponeses analfabetos. Precisa ouvir seu Parlamento. Precisa voltar para Westminster. Não deve dar ouvidos aos seus favoritos. Suffolk tem de ser demitido. O Parlamento está exigindo.

- Não cabe a eles exigir.

- Ricardo, eu gostaria de lembrá-lo do que aconteceu ao seu bisavô.

- Já ouvi isso antes.

- Sim, mas pensou alguma vez como poderia facilmente acontecer com você? Imagine ele... na sua câmara de terror. Dizem que usaram um atiçador em brasa...

- Pare! - bradou Ricardo. - Já ouvi isso. Não quero ouvir de novo.

- Então lembre-se disso apenas como um exemplo do que pode acontecer aos reis que não agradam ao povo. Vamos esperá-lo em Westminster nos próximos dias.

- Saiam da minha frente! - berrou Ricardo.

Gloucester e Arundel fizeram uma mesura e se retiraram.

Robert e a rainha tentaram distrair Ricardo, mas não conseguiram. Ele não parava de pensar no seu trágico bisavô. Naquela noite, foi despertado por pesadelos. Gritou enquanto dormia.

Era como se o fantasma do bisavô estivesse ao lado da cama, avisando-o.

No dia seguinte, voltou para Westminster. Suffolk acabou sendo demitido e multado. Havia uma lista de acusações contra ele, entre elas a de que ele recebera doações do rei às quais não tinha direito e que se apropriara de fundos. Estava claro que a lista fora forjada para que ele pudesse ser demitido do cargo.

Ricardo cedera, aterrorizado pelo fantasma do bisavô.

A rainha andara observando os acontecimentos com uma certa apreensão. Tal como Ricardo, ela desconfiava muito de Gloucester e sabia que enquanto Ricardo não atingisse a maioridade haveria sempre um tio tentando dominá-lo.

Uma de suas damas favoritas era uma jovem da Boémia que Anne levara quando fora para a Inglaterra. A jovem era inteligente e, embora não fosse uma beleza de chamar atenção, sua vivacidade tornava-a uma das moças mais atraentes da corte.

Não havia dúvida de que Anne gostava de conversar com ela. Algumas pessoas diziam que a jovem vinha de berço humilde. O problema com certas pessoas da corte era pensar que quem não tivesse sangue real estava em nível muito baixo para merecer a atenção delas. Como Anne dissera a Ricardo - e ele concordara inteiramente com ela -, não era o nascimento que tornava uma pessoa interessante, mas o caráter.

Robert concordava com os dois. Ele era muito engraçado e gostava de imitar algumas das pessoas mais pomposas que habitavam acorte. Eles se divertiama valer, juntos. Launcecrona, a atraente dama de companhia da rainha, também era uma mímica mara vi lhosa, e muitas vezes Anne fazia com que ela representasse diante do rei e de Robert.

A mímica era uma arma perigosa. Robert dizia:

- Sabe qual é a melhor maneira de derrotar os inimigos? Ridicularizá-los.

Havia um grande grau de verdade nisso. Por isso, eles tinham de tomar cuidado, e isso resultara nos quatro ficarem a sós, o que era olhado com censura; mas Ricardo ensinara a Anne que algumas das coisas mais excitantes da vida eram aquelas que os outros não aprovavam.

Ultimamente, Anne percebera que os olhos de Robert se fixavam com frequência em La Lancegrove, como ele chamada Launcecrona. Ela vira as mãos deles se tocarem de vez em quando; observara os olhares demorados entre os dois.

Achou melhor falar com Launcecrona e aproveitou a primeira oportunidade.

- Você não esqueceu, minha cara, que Robert de Vere é casado - disse ela.

- Não, não esqueci - respondeu Launcecrona.

- E a mulher dele é uma dama de uma família muito nobre.

- Eu sei. Robert diz que o rei decidiu homenageá-lo e lhe deu Filipa de Couci para mostrar o seu afeto por ele.

- E a união foi muito benéfica para ele. De modo que Robert está irrevogavelmente casado.

- Majestade-disse Launcecrona -, há alguma coisa irrevogável na vida?

- O casamento com um membro da família real bem poderia ser - disse Anne, e quando viu o sorriso irónico de Launcecrona, continuou preocupada.

Não muito tempo depois disso, Launcecrona confidenciou à rainha que Robert estava decidido a separar-se da mulher e casar-se com ela.

- Como pode ser isso? - perguntou a rainha.

- Segundo ele, há meios. Acha que o rei irá ajudá-lo.

- Orei!

- É, a senhora sabe o quanto Ricardo gosta dele.

- Mas com base em quê...

- Robert diz que é possível encontrar uma justificativa. Eles raramente estão juntos, não é? Ele quer que Ricardo escreva ao papa.

Anne ficou horrorizada. Sabia que se Ricardo fizesse uma coisa daquelas muita gente ficaria contrariada. Não havia motivo algum pelo qual Robert devesse divorciar-se da mulher, exceto o de ter-se apaixonado por outra e querer casar-se com ela. Anne duvidava se isso seria considerado motivo suficiente para um divórcio.

Ricardo falou com ela sobre o assunto.

- Robert está decidido - disse ele. - Praticamente só fala nisso. La Lancegrove é muito divertida. Os dois se entendem muito bem.

- Mas, e a mulher dele?

- Ele pediu que eu fizesse o possível junto ao papa.

- Ricardo... você pode?

- Sempre falei a Robert que faço qualquer coisa... qualquer coisa por ele.

- Eu sei, mas você não estava pensando em coisa alguma como essa.

- vou fazer o possível por ele, Anne.

Ela ficou pasma. Não percebera a extensão da devoção de Ricardo pelo amigo. Ricardo a observava atentamente.

- Quero que você também faça alguma coisa, Anne. Ela aguardou, o coração batendo mais depressa.

- Quero que você também escreva ao papa. Quero que diga a ele como é importante termos uma dispensa, que Robert deve se casar com Launcecrona.

- com base em quê? - perguntou Anne.

- Temos de pensar em alguma coisa que torne isso necessário. Pela primeira vez desde que chegara à Inglaterra, Anne quis discordar do marido.

Antes, estivera ansiosa por amá-lo e ser amada por ele. Percebera a facilidade com que o mau génio dele era provocado e decidira jamais contrariá-lo.

Os dois tinham sido muito felizes juntos. Mas agora ele estava pedindo-lhe que fizesse algo que ela não podia aprovar.

Em primeiro lugar, não podiam alegar coisa alguma contra a esposa de Robert. Era verdade que ela e o marido pouco se viam, mas tinha sido um casamento por conveniência e, como tal, parecia satisfatório. Se Robert não tivesse caído sob o feitiço da alegre boémia, nunca teria havido qualquer questão de divórcio.

E eles a estavam envolvendo no caso. Ela nem pensara, quando os quatro tinham sido tão alegres juntos, que o resultado seria aquele.

Estavam todos - Ricardo e os dois amantes - persuadindo-a. Launcecrona era sua dama de companhia, sua amiga. Anne tinha de fazer isso por ela.

Talvez fosse uma boba. Talvez fosse uma fraqueza momentânea. Em geral, ela gostava de defender suas opiniões. Mas eles a estavam persuadindo.

- Vamos, Anne, que diferença isso faz para você? Sua opinião vai significar muito. Urbano quer todo o apoio que puder obter. Ele vai querer recebê-lo da Boémia e também da Inglaterra.

E assim Anne cedeu.

Como se divertiram eles juntos, então! Launcecrona e Robert dançavam pelos aposentos. Ricardo segurou a mão de Anne e os dois juntaram-se ao casal. Os quatro amigos. Ricardo estava contente. Aquelas eram as pessoas que ele mais amava. Sentia-se feliz com elas; e ele tinha muitas preocupações.

Não era como se Filipa tivesse amado o marido, justificava Anne a si mesma, e Robert e Lancegrove sentiam-se muito felizes juntos.

Quando se ficou sabendo que Robert de Vere estava tentando separar-se da mulher só porque queria outra, a fúria e o ressentimento contra ele arderam com mais violência do que nunca.

Será que não havia coisa alguma que o rei não fizesse por aquele homem?

Quando a notícia chegou a Gloucester, ele ficou branco de raiva. Aquilo era um insulto à sua sobrinha. Como é que aquele sujeito tinha a ousadia de abandonar uma princesa real em favor de uma boémia de classe baixa?

Ele não perdoaria aquele insulto; mas apesar do ódio que sentia por Robert de Vere, era em Ricardo que ele punha a culpa.

Ele vai ter de sair, jurou a si mesmo. Ele vai sair.

Os problemas matrimoniais de Robert de Vere foram como que uma centelha que disparou a conflagração. Já que de Vere se tornara duque da Irlanda, perguntava-se por que ele não tomava providências naquele país criador de casos. O que estava fazendo descansando na corte, divertindo-se com sua concubina e o rei e a rainha? Havia trabalho a ser feito.

- Gloucester é o inimigo - disse Ricardo. - Eu me sinto perseguido pelos tios. Gloucester é pior do que Lancaster. Ouça. Você terá de fazer a encenação de ir à Irlanda, Robert. Deixaremos Londres juntos, porque irei despedir-me de você. Mas você não irá para a Irlanda. Marcharemos de volta para Londres cercados por um exército e lá denunciaremos Gloucester como o traidor que ele é.

Tratava-se de um plano louco, assim como todos os planos de Ricardo.

Eles deixaram Londres e seguiram para o País de Gales, onde a eles se juntaram Suffolk, Sir Robert Tresilian, o juiz rigoroso daqueles camponeses que tinham sido levados a julgamento depois da grande revolta, e Alexander Neville, que era arcebispo de York e sempre mostrara vassalagem ao rei no seu conflito com os tios.

Eles deveriam marchar para Londres e, depois de se certificarem do apoio dos londrinos, convocar os adversários do rei para responder à acusação de traição.

Ricardo foi bem recebido em Londres, mas quando se ficou sabendo que Gloucester, Warwick e Arundel, percebendo o que se passava, tinham reunido uma força rival e estavam esperando perto de Highgate, os londrinos mudaram de ideia.

Declararam que não iriam correr o risco de terem suas cabeças quebradas por causa do duque da Irlanda.

O resultado foi que os três lordes, Gloucester, Warwick e Arundel, foram falar com o rei.

Gloucester alegou que não planejara traição alguma contra o rei. Eram os assessores do rei que estavam provocando o problema e ele devia livrar-se deles.

Ricardo e o tio encararam-se, cada qual tentando conter a raiva, cada qual imaginando até que ponto poderia chegar.

- Estamos pedindo o julgamento de seus assessores-bradou Gloucester. - Nada mais contentará os lordes.

Ricardo ficou calado. Eles se referiam a Robert de Vere, a de Ia Polé, que era o conde de Suffolk, a Alexander Neville, arcebispo de York, e a Robert Tresilian, presidente do Supremo Tribunal.

Fez-se silêncio na sala. Ricardo sentiu o medo tomar conta dele de repente. Não conseguia tirar da cabeça aqueles pesadelos que o tinham aterrorizado com a figura de seu bisavô, Eduardo II. Ele conhecia a história dele. Ela começara de um modo muito parecido com aquele.

Quando aqueles temores tomavam conta dele, ele sentia uma compulsão de ceder... ou parecer ceder.

De repente, cedeu. Gloucester e seus amigos tinham de ser atendidos. Ele iria concordar com o impeachment parlamentar de seus amigos.

Assim que eles se retiraram, Ricardo despachou mensageiros para todos os amigos.

Fujam, era a sua ordem. Fujam enquanto há tempo.

A ira de Gloucester foi enorme quando ele percebeu que os favoritos do rei tinham fugido.

Ele se dirigiu a Huntingdon e lá foi recebido por Henrique de Bolingbroke. Era a primeira vez que o filho de John de Gaunt ganhava destaque, e ninguém, na época - ainda menos Ricardo -, percebeu a importância disso.

- Por Deus-bradou Gloucester para Henrique de Bolingbroke -, Ricardo está se encaminhando para um desastre. Você está vendo que ele está indo pela trilha seguida pelo nosso ancestral? Esse de Vere é um outro Gaveston. Se continuar assim, poderá fazer com que Ricardo perca a coroa.

E se Ricardo perdesse a coroa, quem ficaria com ela? Havia luzes nos olhos de Gloucester, e se refletiam nos de Henrique de Bolingbroke.

Ricardo estava desolado. Para onde quer que olhasse, só havia desgraça. As forças contra ele eram fortes demais. Ele se queixou com Anne:

- Sou um rei que nunca pôde governar - disse ele. - Se eu tivesse sido mais velho quando cheguei ao trono, como tudo teria sido diferente!

Ela o consolava, mas sabia que o consolo era pouco.

Nem o povo os amava como antes. Ele gostava de Ricardo de certa maneira, mas não estava disposto a lutar para mante-lo no trono. Quanto a ela, tinha sido a meiga e dócil rainhazinha, mas agora eles a culpavam pelo divórcio de Robert de Vere porque sabiam que ela escrevera ao papa e pedira que ele o concedesse, e o povo jamais sentiria a mesma coisa por ela outra vez.

Havia problemas por toda a parte, problemas terríveis. Tinha sido uma tolice, na verdade, envolver-se no divórcio e no novo casamento de Robert. O que acontecera depois? Ele e Launcecrona estavam separados.

Robert estava reunindo um exército para combater os inimigos do rei.

Anne sabia que não havia esperança em colocar a força dele contra homens como Gloucester, Warwick e Arundel, o herói que expulsara os franceses do mar. Robert nunca se fizera notar pela habilidade militar.

Launcecrona e ela estavam sentadas juntas, conversando em voz baixa sobre os desastres. Agora, toda a alegria acabara. As duas pareciam muito sérias.

E enquanto estavam ali sentadas, a porta foi aberta de supetão e um cavalariço entrou.

As duas olharam para ele. A rainha levantou-se, horrorizada, pensando que o homem tinha ido matá-las. Por que outro motivo um cavalariço irromperia nos aposentos rais?

Então, Launcecrona soltou um gritinho.

- Robert!

Era Robert, mesmo, praticamente irreconhecível como o janota de antigamente, exceto quando falou.

- Estou com muita pressa-disse ele. - Vim falar com o rei.

- Eu mesma vou buscá-lo - disse Anne, e deixou marido e mulher juntos por alguns instantes.

Ricardo chegou correndo.

- Robert! - exclamou ele, e os dois se abraçaram. Era quase como se fossem eles os amantes, porque o reencontro dos dois foi mais pungentemente amoroso do que o de Robert e Launcecrona.

- Robert, meu querido, querido amigo, o que o traz aqui?

- Debandada. Desastre! Estou fugindo, Ricardo.

- E em perigo!

- Perigo sério. Deixe-me contar-lhe depressa o que aconteceu.

Meus homens foram desbaratados pelos de Arundel em Radcot.

Meus homens me abandonaram, Ricardo. Eles não tinham ânimo para lutar contra os de Arundel, que os convenceu adesertarem. Não havia outra coisa a fazer, senão fugir. Só escapei mergulhando no rio com meu cavalo. Perdi minha bagagem, meu dinheiro... até cartas suas que sempre venerei.

- Pouco importa... pouco importa, agora - disse Ricardo. - Você tem de fugir daqui.

- Para o exterior. É o único jeito. Eles estão dispostos a derramar sangue, Ricardo, pode estar certo. Querem bodes expiatórios e irão escolher entre seus amigos.

- Neste caso, meu adorado, saia daqui a toda velocidade. Você precisa levar dinheiro.

- Se puder chegar até o rio, tomarei o navio para os Países

Baixos.

- Vá, vá! - bradou Ricardo. - Eu lhe imploro. Meu coração o acompanha.

Deram a ele alimentos e dinheiro e fizeram o possível para que rugisse sem ser percebido.

Anne ficou triste, olhando temerosa para o futuro. Só podia estar certa de uma coisa: não haveria mais reuniões alegres para quatro pessoas nos aposentos reais.

Foi bom receber a notícia de que Robert tinha fugido para Flandres.

Mas isso não significou o fim do problema.

A situação não melhorara. Robert podia ter escapado ao seu

destino, mas os outros ficaram. Era preciso enfrentar o rei e ele tinha de saber a verdade.

Gloucester e seus amigos fizeram planos juntos. com um brilho nos olhos, Gloucester expressou a opinião de que Ricardo não tinha condições para governar e devia ser deposto.

Arundel concordou com ele.

Mas houve cautela entre os demais. Henrique de Bolingbroke começara a fazer sentida a sua presença. Falava pouco, mas os olhos estavam atentos.

Esperou que os lordes dissessem o que ele sabia que diriam. A deposição do rei era drástica demais.

Gloucester tentou conter a raiva. Eles estavam pensando-e era claro que tinham razão - que se Ricardo fosse deposto, com John de Gaunt ocupado em Castela. E Edmund, duque de York, preguiçoso demais para almejar a coroa, em quem ela seria colocada, a não ser em Gloucester?

Henrique de Bolingbroke não estava certo de que aquilo seria bom para ele agora. Ricardo era um rei fraco, o pai de Henrique não desejaria ver o tio Gloucester substituindo Ricardo. Quem poderia dizer qual seria o desfecho em Castela? E se John de Gaunt tivesse de voltar uma vez mais, ele era o mais velho filho vivo de Eduardo iIII; seria ele o próximo da fila. Claro, havia a filha de Lionel, mas sem dúvida que se poderia lidar com ela.

E se por uma gloriosa reviravolta do destino John de Gaunt se tornasse rei, seu filho mais velho iria sucedê-lo.

Não, sem dúvida que aquele não era o momento de depor Ricardo. Mesmo assim, Bolingbroke estava do lado dos lordes que andavam levantando a voz para salvar o rei de seus assessores perniciosos; e estava com aqueles que se preparavam para apresentar um ultimato ao rei.

Era dia de Natal - um dia muitíssimo angustiado para Ricardo e Anne. Apesar da alegria costumeira, os rumores continuavam; e as ruas de Londres estavam cheias, não só dos que comemoravam, mas dos que sussurravam juntos e perguntavam o que aconteceria em seguida. Até os pantomimeiros tinham perdido o ânimo e não havia a alegria da estação no cantar das canções natalinas.

Ricardo, vestido com o esplendor de sempre, brilhando de jóias, ficou assustado quando os cinco lordes entraram de supetão.

Eles se deram os braços - um gesto de solidariedade -, enquanto marchavam em direção a ele, cada qual vestindo as cores de suas famílias. Gloucester, Arundel, Warwick e os dois jovens, Mowbray e Bolingbroke.

- O que significa isso? - gaguejou Ricardo. Gloucester foi o porta-voz.

- Majestade-disse ele -, temos em nosso poder cartas com a sua letra, capturadas em Radcot. Elas mostram que vossa majestade sancionou a organização de um exército para fazer guerra dentro deste reino. Vossa majestade sugeriu que se poderia tentar obter a ajuda do rei da França, em troca da qual vossa majestade daria possessões da Inglaterra naquele país.

Ricardo sentiu-se mal, de tanto medo. Eles agora estavam levando vantagem sobre ele.

- Como ousam irromper assim na minha presença... de braços dados, como se estivessem vindo contra mim? - perguntou ele.

- Majestade-disse Bolingbroke. - Venha até a janela. Olhe para baixo. Veja as forças reunidas lá.

- Vocês reuniram um exército contra mim!

- Nós reunimos um exército, majestade, para preservá-lo e preservar seu reino.

Gloucester se aproximou e ficou ao lado deles na janela.

- Lá embaixo vossa majestade vê homens decididos a lutar pelo direito - disse ele -, mas isso não é a décima parte daqueles que levantamos para destruir aqueles falsos traidores que lhe prestaram tanto assessoria.

Ricardo estava tremendo.

- O que querem de mim? - perguntou em voz grave.

- Que vá a Westminster, para que possa ouvir no Parlamento as acusações que serão feitas contra aqueles que colocaram este reino em perigo devido à sua assessoria nefasta.

Ricardo sabia que estava derrotado. No seu íntimo havia uma raiva fria contra aqueles cinco que tinham ousado marchar em sua direção de braços dados, para mostrar como estavam firmes contra ele.

vou me vingar deles... de cada um deles, prometeu a si mesmo. Mas no momento nada havia que ele pudesse fazer, a não ser obedecer.

- Eu irei ao Parlamento - disse ele.

Aquilo foi um triunfo para os seus acusadores. Que ódio que ele tinha deles! Especialmente por terem deixado Bolingbroke e Mowbray para vigiá-lo e mantido os soldados à espera do lado de fora da Torre.

Ricardo sentou-se com a cabeça enfiada nas mãos. Bolingbroke estava com ele.

Maldito seja, primo, pensou ele. Era isso que eu poderia esperar do filho de John de Gaunt.

Cerrou os punhos.

- Por São João Batista - bradou ele, de repente -, por que devo me submeter a isso? Por que devo ser obrigado a trair meus amigos... aqueles que me serviram bem... Quem são esses homens para me dizerem o que devo fazer? Eu não sou o rei?

Bolingbroke falou com muita calma.

- Ricardo, primo... não falo assim por falta de respeito, mas para lembrá-lo do parentesco que há entre nós. Você esteve muito perto de perder o trono.

- Isso é o que Gloucester quer. Meu tio... e meu inimigo. Bolingbroke não negou:

- Tenho insistido com ele para que controle seu ímpeto disse ele. - Ricardo, se você não fizer o que lhe é pedido, eles irão depô-lo. Colocarão um novo rei em seu lugar.

- Gloucester? Ele não é o próximo da fila.

- Gloucester está aqui e Gloucester é forte. Escute, Ricardo, você tem de fazer o que eles querem, se quiser manter a coroa.

Ricardo olhou nos olhos brilhantes de Bolingbroke. Havia pensamentos, neles, que ele não conseguiu ler. Mas sabia que Bolingbroke tinha razão.

Como foi longa aquela noite! Ricardo via perfeitamente, agora, o que tinha pela frente. Teria de trair os amigos ou perder a coroa. A escolha era aquela.

Não podia perder a coroa. Era uma escolha cruel e amarga.

Os cinco que eram conhecidos como os Lordes de Apelação e o Parlamento, conhecido como o Parlamento Implacável, tinham-lhe imposto isso.

Ele jurou vingança contra os cinco - mas cedeu.

Foram terríveis os dias que se seguiram. Os favoritos do rei foram todos declarados traidores e condenados à morte. Robert estava a salvo, e Suffolk conseguiu fugir disfarçado de negociante de aves domésticas; Neville não foi condenado à morte por ser um arcebispo, mas foi declarado fora-da-lei e todos os seus bens foram confiscados; Tresilian sofreu a temível morte imposta aos traidores e foi enforcado, estripado e esquartejado. O seu terrível destino não provocou muita pena pelo país, já que eles se lembravam de sua crueldade com os camponeses.

Quando Simon Burley foi preso, houve uma grande tristeza na casa real.

- Simon! - bradou Ricardo para Anne. - O que foi que ele fez?

Anne ficou atordoada. Ela passara a gostar muito de Simon Burley! Ele é que tinha ido a Praga para tratar do casamento dela; ficara gostando dele desde o momento em que o vira. Ele falara de um modo muito cativante sobre Ricardo e fizera com que ela ficasse ansiosa por ver sua nova pátria. Ele tinha sido um de seus amigos queridos.

- Não permitirei que façam mal a Simon - bradou Ricardo.

- Temos de tentar evitar isso - concordou Anne. - Ricardo, nós podemos fazer alguma coisa.

- Arundel sempre teve ódio dele. E me parece que, devido à sua vitória no mar, Arundel acha que deveria governar o país.

- É de Gloucester que tenho mais medo.

- Meu próprio tio - bradou Ricardo, com amargura. - Eu lhe digo uma coisa, Anne, ia me fazer muito bem ver a cabeça dele numa lança.

- Cale a boca - avisou Anne. - As pessoas ficam ouvindo. O que podemos fazer a respeito de Simon?

- vou dizer ao Parlamento que não quero que lhe façam mal. Ele é meu amigo desde meus tempos de criança.

Anne sabia que aquilo tudo era uma conversa inofensiva; mas acalmava Ricardo, de modo que atingia algum objetivo, e ele precisava de quem o tranquilizasse naquele momento.

Simon foi acusado de usar o poder de forma errada e de promover uma corte corrupta em torno do jovem rei; ele aumentara sua renda, em poucos anos, de vinte para três mil marcos; dizia-se, até, que estava planejando vender Dover aos franceses.

De nada adiantou argumentar que aquilo era um absurdo. Eles estavam ali para destruir.

Quando Gloucester foi à Torre com Arundel para falar com o rei, este e Anne declararam o desejo de que Simon Burley fosse perdoado.

Anne se pôs de joelhos diante de Arundel e bradou:

- Meu senhor, escute o que tenho a dizer. Esse homem não fez mal algum. Ou se fez, foi sem saber. Ele é um homem bom. É meu amigo... meu e do rei. Eu lhe imploro que o ponha em liberdade.

Arundel era um homem arrogante. Não parecia perceber que era a rainha que estava ajoelhada à sua frente - ou se percebeu, gostou da humildade dela.

- Não tenho intenção de libertar Simon Burley - disse ele. Ele tem de aceitar as consequências de seus atos.

- Isso é injusto. É cruel... - bradou Anne.

Ela agarrou a túnica de Arundel, mas ele seguiu em frente e ela caiu para um lado.

Era uma arrogância nunca vista, tratar assim uma rainha. Ricardo foi até a rainha e ajudou-a a levantar-se.

- Esses homens vão ficar sabendo que sou o rei - balbuciou ele.

Seu tio Gloucester disse, em voz alta:

- É por desejarmos que você continue sendo rei que apresentamos essas acusações e estamos decididos a levá-las até o fim.

Lá estava ela, a ameaça, outra vez. Ele quase podia ouvir os gritos de seu bisavô vindos lá de longe, do castelo de Berkeley.

- Não podemos poupar Simon Burley-disse Gloucester com firmeza. - Seu primo Bolingbroke também tem simpatia por ele., Mas emboraele tenha se tornado nosso aliado, eu não poderia poupar esse homem por causa dele.

Mais um insulto, pensou Ricardo. Nem mesmo por Henrique Bolingbroke, quando a rainha ficara de joelhos diante dele! - Então vocês o sentenciaram à morte dos traidores!-bradou, Ricardo.

- Ele é um traidor - retorquiu Gloucester.

A morte dos traidores. Enforcado, estripado e esquartejado aquele venerável amigo ser tratado daquela maneira!

- Isso - disse Ricardo, decidido - é uma coisa que não vou permitir.

Gloucester deu de ombros. O que interessava era que aquele homem fosse retirado da esfera de influência. Como ele sairia, não tinha tanta importância assim. Poderia ser aconselhável ceder naquele ponto. Que Burley fosse executado com o machado.

Aquele querido e velho amigo morreu em Tower Hill.

O rei e a rainha caíram na melancolia. Nada havia a fazer exceto lamentar e, pensou o rei, planejar a vingança.

Thomas Arundel foi nomeado arcebispo de York no lugar de Neville, e o governo foi exercido em nome de Ricardo.

 

ENQUANTO SE ACHAVA SENTADA costurando um de seus vestidos na mansão de Kettlethorpe, Catherine Swynford refletia, como fazia com frequência, sobre o período de sua vida que, olhando para trás, parecera muito breve e muito glorioso.

Na época, ela fora exaltada; não por ter sido admirada pelo filho de um rei, mas porque amara e fora amada. Ela acreditara, então-e, repetindo, por um curto espaço de tempo - que o amor que ela e John de Gaunt tinham sentido um pelo outro era raro na história do mundo. Houve momentos em que ela se iludira ao acreditar que aquilo duraria para sempre. Devia ter sido mais esperta. Era verdade que a moça educada em um convento tornara-se a esposa de um cavaleiro obscuro e vivera em grande parte longe dos grandes acontecimentos. E então, ela o vira. Ele lhe parecera um deus. John de Gaunt, o mais famoso homem da Inglaterra, tinha sido seu amante.

Estava tudo acabado. Mas ela nunca se esqueceria; e nunca poderia haver, para ela, uma satisfação verdadeira, porque seus pensamentos estariam sempre recuando para o passado com aquela infinita ânsia que não queria diminuir. Aquilo imbuía tudo com uma suave melancolia. Sim, ela aceitava o destino, mas nunca poderia ser verdadeiramente feliz outra vez.

Ele tinha sido bom para as crianças. Fizera o que prometera; mas o fato era que eles eram bastardos, embora de sangue real. Havia muitos nas mesmas condições. Mas os dela eram diferentes, era o que ela sempre afirmava. Não tinham sido gerados numa aventura rápida. Tinham sido concebidos com amor.

Mas do que adiantava isso? Estava tudo acabado.

Nunca se esqueceria da última noite deles. Havia aquela terrível indecisão que o deixava obcecado. Mas sabia que ele iria embora. Tinha de ir. Ele a amava, sim, mas era um homem com uma visão. Sempre haveria ambição, e John tinha de atender a ela.

De modo que agora ali estava ela, a dona da propriedade, bem amparada. Ele providenciara isso. As jóias dela iriam mante-la pelo resto da vida, se fosse necessário. John colocaria os filhos em altos postos. Até mesmo Thomas, o filho que ela tivera com Hugh Swynford, tinha o seu nicho e estava com Henrique de Bolingbroke. John, Henrique e Thomas Beaufort seriam ainda mais protegidos. Quanto a isso, ela não tinha medo.

Mas nada disso podia atenuar sua melancolia.

Catherine tinha suas acompanhantes; vivia como uma mulher casada em sua mansão, contando com a sua criadagem, com o suficiente para atender a suas necessidades. E ali, no interior, de vez em quando chegavam notícias da corte sobre o conflito do jovem rei com o tio de Gloucester, e ela pensava: pelo menos, John está livre desses problemas.

Ela ouvira dizer que o jovem rei estivera perto de ser afastado do trono, mas já fazia um ano desde que, felizmente, os problemas tinham sido resolvidos e ele agora estava no comando.

Ele tomara uma atitude firme; lembrara aos que o cercavam que tinha 21 anos. Não queria mais saber de regências, dissera Ricardo. Ele mesmo iria governar.

O país ficara mais tranquilo e durante algum tempo não houvera mais rumores perturbadores.

Mas a coisa não ficaria assim.

Em um nevoento dia de novembro, quando pôs de lado seu trabalho de agulha porque a luz estava muito ruim. Catherine se assustou com a chegada de visitas.

Era uma ocorrência um tanto rara e sempre bem-vinda. Era animador ouvir notícias do mundo exterior.

Ela era uma boa dona de casa e havia sempre tortas na despensa, porque havia muita gente na sua equipe para ser alimentada e ela gostava de estar preparada para a chegada inesperada de quaisquer viajantes, e existiaum fluxo constante de mendigos que vinham pedir comida e ela nunca deixava de atendê-los.

Ela desceu para o pátio. Um homem saltou de seu cavalo, e ao olhar para ele Catherine pensou que estava sonhando.

Ele ficou parado, olhando para ela, enquanto ela ficava como que enraizada no chão.

Então, ele disse:

- Catherine. Você não mudou nem um pouquinho.

Ele estendeu as mãos e os dois caíram um nos braços do outro.

Ele estava de volta. De repente, o mundo alegrara-se. Estava-se em um sombrio mês de novembro, mas para ela era primavera. Estava louca de alegria. Saiu pela casa dando instruções:

- Acendam lareiras. Cozinhem carne. A melhor... a melhor de todas. O meu senhor voltou para casa.

- vou morrer de alegria - disse ela.

- Eu também - respondeu ele.

John precisava olhar para ela. Precisava tocar-lhe os cabelos, a macia pele branca.

- Fiz isso tantas vezes nos meus sonhos - disse ele.

Nada mudara. Eles eram os mesmos amantes apaixonados que tinham sido quando da primeira vez em que se encontraram. Havia tanta coisa a saber! Tanta coisa a aprender!

Precisavam amar e conversar. Ele não devia ir embora outra vez.

Não iria, prometeu ele. De agora em diante, os dois estariam sempre juntos.

- Você não sabe o quanto estive perto de ficar, de abandonar todas as minhas esperanças quanto a Castela por sua causa.

- Ah, John, eu sabia - respondeu ela. - Mas sabia, também, que você iria.

- Esses anos solitários... sem amor!

- Talvez eles voltem outra vez - disse ela. Ele abanou a cabeça.

- Nunca mais deixarei você, Catherine - disse ele, em tom solene.

- Você nunca vai deixar de querer uma coroa - disse ela. Conheço você bem. Sei que me ama, mas a ambição está aí. Ela nasceu com você. Você é igual a seu pai. Ele tentou conquistar a coroa da França... inutilmente, pelo que parece, e você vai sempre procurar conquistar a de Castela.

John sorriu para ela. Tinha muito a lhe dizer, e então ela iria compreender. Ele queria notícias dos filhos deles. Pretendia legitimá-los. Sim, um dia iria fazer isso. Ricardo concordaria. John precisava dizer-lhe que Ricardo quisera que ele voltasse, pedira que ele voltasse.

- Ele não confia no meu irmão Gloucester.

- John, vai haver aquela briga outra vez. Houve momentos, depois que você partiu, em que se falou em guerra... guerra aqui na Inglaterra. Os barões levantando-se contra o rei.

- Eu sei... eu sei. Desde a época de John vem-se falando nessas coisas. Depois, houve o caso do meu avô. Quando um rei é deposto, isso fica na lembrança. A História pode se repetir. Não tenha medo. Ricardo vai continuar no trono. Acho que ele ficou gostando mais de mim depois que fui embora... isto é, ele me preferiu ao meu irmão.

- E você, John, você sonhava com uma coroa. Queria uma coroa. E Castela...

- Tenho boas notícias de Castela, Catherine.

Ela mal podia acreditar. Castela já não era uma ameaça. O resultado fora conseguido como John dissera, da maneira mais natural. A melhor forma de resolver todas as disputas entre dois países era através do casamento.

- Eu acho, Catherine, que você nunca mais vai ver minhas filhas Filipa e Catherine. A menos, é claro, que vá a Castela ou a Portugal ou que elas nos visitem aqui. Suas pupilas são mulheres casadas, agora, minha adorada. O que acha disso?

- Isso parece ser do seu agrado, de modo que suponho que eu deva ficar contente.

- Casei Filipa com meu aliado João de Portugal. Uma jogada inteligente. Eu não tinha certeza de que podia confiar nele, mas a aliança colocou um selo no caso.

- E Filipa está contente?

- Filipa é a rainha de Portugal.

Catherine olhou para ele com um pouco de tristeza.

- Você dá muito valor às coroas - disse ela; e pensou na pequena Filipa e na dor que ela sentira quando a mãe morrera, e em que ela e a irmã Elizabeth tinham sido como filhas para Catherine. Ela as amara com a mesma intensidade, já que eram filhas de John.

- Filipa nunca pôde cuidar de si mesma como Elizabeth disse ela.

John franziu o cenho, e ela desejou não ter dito aquilo, porque sabia que ele jamais gostara do casamento de Elizabeth com o meio-irmão do rei, o violento John Holland.

- A melhor de todas as notícias é o que aconteceu à minha filha Catherine. Ela resolveu o caso da sucessão em Castela, e da maneira mais satisfatória possível.

- Catherine...

- Sua homónima, minha adorada. Constanza está contente com o resultado, e eu também. Deixe-me contar como aconteceu. A campanha estava se arrastando. Havia problemas por todos os lados. Constanza e eu quase fomos envenenados.

Ela prendeu a respiração de tanto horror.

- Essas coisas acontecem - disse ele, despreocupado. - O rei de Portugal ficara gravemente doente e parecia mesmo que estava em seu leito de morte. Então, começamos a sofrer dos mesmos sintomas. Ficamos vigiando e, louvado seja o destino, descobrimos o culpado. Ele estava tentando livrar-se de nós.

- Ele estava a serviço de Castela? - perguntou Catherine.

- Parece que sim. No entanto, tínhamos encontrado a raiz do problema e foi impressionante a rapidez com que todos nos recuperamos. Mas incidentes desse tipo nos fazem cair na realidade. Eu havia chegado à conclusão de que aquela batalha jamais seria resolvida de maneira satisfatória e ocorreu-me que eu tinha uma filha, e Juan de Castelatinhaum filho. Se os dois se casassem, isso resolveria o caso de uma vez por todas.

- Muito melhor do que aquelas guerras intermináveis que davam a vitória para um dos lados e depois para o outro e nada decidiam por mais de algumas semanas.

- Minha inteligente Catherine. Mandei sondar a possibilidade de um casamento. Juan não ficou muito ansioso, mas tivemos sorte, porque o duque de Berri estava à procura de uma esposa. Ele queria uma jovem, e só uma dama da nobreza serviria para um nobre como o príncipe da França. Ele estava viúvo e não era muito jovem; eu não tinha intenção de dar Catherine a ele, mas fingi estudar o assunto. E isso deixou Juan com medo. Ele não queria um poderoso candidato francês ao trono castelhano. Decidiu aceitar Catherine para o seu filho, Enrique.

- Que idade tem Enrique?

- Dez anos. Mas Catherine tem apenas quatorze. Os dois se combinam de forma ideal.

Catherine suspirou. Ela mesma fizera um casamento de conveniência com Hugh Swynford e sabia o quanto as uniões desse tipo podiam ser insatisfatórias.

- Fui muito esperto, Catherine. Não tenho intenção de que Catherine perca o direito ao trono de Castela. Juan tem um segundo filho, Fernando, e parte do tratado diz que Fernando ficará solteiro até que o casamento seja consumado.

- Então esse caso de Castela está resolvido e você deixou de ficar ansioso por ser o rei de lá?

- Fiquei mais velho e mais sensato, doce Catherine. Sinceramente, digo-lhe que durante todas essas negociações eu disse a mim mesmo: se puder resolver este caso de forma a contentar a todos, volto para minha Catherine.

- E assim pensou em mim enquanto fazia esses planos.

- O tempo todo eu desejava você ardentemente.

- A duquesa? - perguntou ela, tranquila.

- Constanza está satisfeita com o fato de a filha vir a ser rainha de Castela. Acho que está feliz. Ela também está cansada de todo esse conflito.

- Ela sabe que você veio para cá?

- Sabe, e não reclama. No íntimo, ela é castelhana. Jamais será outra coisa. Quer viver com sua gente à sua volta. Na vida dela não há lugar para mim.

- Assim que ela se tornou sua esposa, ficou sabendo da minha existência.

- Eu não podia esconder isso dela.

- Ela ficou sabendo, então, que seu casamento com ela era puramente por causa da coroa de Castela.

- Em geral, os casamentos como o nosso são por motivos assim.

- E ela aceita isso?

- Tem de aceitar. É a vida. Ela não me quer, Catherine. Você não deve se preocupar. Constanza está feliz, agora que Catherine casou com o herdeiro de Castela. Catherine será a rainha das Astúrias. Isso é tudo o que ela pede.

- E quanto a nós...

- Juntos para sempre - disse ele. - Não vamos nos separar. Você irá para a corte quando eu estiver lá.

- Acha que serei aceita?

- Seu eu disser que vai, será.

Ela conseguiu rir, apesar de um pouco constrangida. Sabia que não seria fácil. O povo jamais gostara dele. Jamais gostara de seu relacionamento com ela. Prostituta, é do que a tinham chamado. Ora, isso ela poderia suportar.

Ela estava feliz outra vez. Ele tinha voltado.

Os últimos anos tinham sido tranquilos depois daquele período em que parecia que estouraria uma guerra civil na Inglaterra. Depois de submeter-se às restrições que lhe tinham sido impostas durante um ano, Ricardo se libertara, lembrara seus ministros de que ele já passara dos 21 anos e estava decidido a governar. Mas não se esqueceu do quanto estivera perto de um desastre e agira com cautela.

A rainha vivia ao seu lado. Ele confiava inteiramente nela. Sabia que tudo o que ela dizia era a decisão ponderada sobre o que era melhor para ele.

Anne ficara mais próxima dele desde a ausência forçada de Robert de Vere. Ricardo prestava atenção ao que ela dizia, aceitava seus conselhos e era orientado por ela; aqueles que desejavam que ele fosse bem-sucedido estavam contentes com a rainha, porque ela era uma influência moderadora.

A grande tristeza dela era o fato de não ter filhos. Ricardo a consolava. Ele não iria querer o relacionamento deles maculado de qualquer forma por um detalhe daqueles. Os dois eram muito jovens. Era bem possível que ela viesse a ficar fértil mais tarde.

- Temos a vida pela frente - dizia ele sempre.

- Sinto que decepciono você e o país - replicava ela, triste. Mas ele abanava a cabeça.

- Eu não iria querer você de outra forma - garantia ele.

- Sei que você me ama como eu o amo. Sei que é raro gente como nós ter encontrado essa satisfação. Mas eu ficaria muito mais contente se tivesse um filho homem.

- Então, você iria preocupar-se mais com ele do que comigo. Não, fique contente como estamos. Eu me sinto feliz enquanto você está comigo.

- Se tivéssemos um filho homem, o povo ficaria satisfeito insistia Anne.-Resolveria o problema da sucessão. Existem muitos olhos fixos no trono. John de Gaunt sempre o quis, e o mesmo acontece com o filho dele, Bolingbroke.

- Os filhos de Lionel vêm antes deles.

- É exatamente isso que eu digo. Existem muitos olhos gananciosos voltados para ele. Gloucester...

Ricardo enrubesceu ao ouvir falar em Gloucester. Sentia ódio daquele tio. Jamais o perdoaria pelo desprezo e pelos insultos que lhe lançara.

Anne continuou, depressa:

- Você entende o que quero dizer. Mas não importa. Temos tempo.

Ricardo prosseguiu:

- Não gostei do casamento de Arundel.

Ele se referia ao conde de Arundel, que ficara do lado de Gloucester na confusão recente que ainda tinha seus efeitos amargos. Arundel casara-se recentemente com Filipa, filha do conde de March e viúva do conde de Pembroke. Aquela Filipa estava na linha de sucessão por intermédio de Lionel.

- Arundel não tinha o direito de se casar sem meu consentimento - prosseguiu o rei, irritado.

- Bem, esse detalhe foi deixado claro e ele foi multado em quatrocentos marcos por causa disso.

- Não foi o bastante. Eu teria gostado de anular o casamento.

- Ricardo riu com amargura. - Ele ganhou uma virago. Eu desejo que se divirta com ela.

- Isso já está resolvido - disse Anne, mas ficou imaginando se estaria, mesmo. Ela não confiava em Arundel. Ele, Warwick e Gloucester tinham trabalhado juntos... sem dúvida que ainda trabalhavam... e não era para o bem do rei.

Os dois falavam muito sobre Robert de Vere. Launcecrona fora juntar-se a ele e eles sentiam falta da divertida companhia daqueles dois.

Ricardo estava sempre na esperança de que Robert voltasse. Mas sabia que, caso isso ocorresse, os contratempos estourariam outra vez. Ricardo não conseguiria evitar de cobrir de presentes o fascinante jovem, e Robert não poderia deixar de dar conselhos. O povo iria revoltar-se contra eles.

O povo parecia não gostar que um homem tivesse um membro de seu sexo como amigo íntimo. As pessoas iriam compará-lo a Eduardo II.

Meu grande bisavô, o senhor é responsável por muitas coisas, pensou Ricardo. As calúnias que as pessoas estão prontas a lançar sobre mim, os pesadelos durante a noite.

De vez em quando chegavam notícias de Robert. Ele tinha ido para Paris, onde morara durante um ano e fora bem tratado, o que era impressionante e devia ter sido devido ao seu excessivo charme, porque com toda certeza o Sieur de Couci, que estava lá, teria feito tudo ao seu alcance para perturbar a vida do genro que repudiara sua filha.

Era um consolo o fato de Michael de Ia Polé, que fugira na mesma época, estar com ele. Os dois tinham ficado muito amigos no exílio.

Ricardo falava sempre nele. Quando ficava entusiasmado com alguns trajes novos e discutia com Anne como as jóias deveriam ser arrumadas neles, era frequente ele dizer:

- Robert gostaria assim, sem dúvida.

Então, um dia chegou uma notícia da França que deixou Ricardo desolado.

Robert tinha caído do cavalo quando caçava um javali e o animal voltara-se contra ele. Sofrera tantos ferimentos que morrera em consequência disso.

Ricardo se trancou em seus aposentos e não pôde ser consolado nem mesmo por Anne.

- Não vê-lo nunca mais! - lamentou-se ele. - E eles o mandaram para longe de mim. Anne, eu nunca, nunca os perdoarei por nos separarem.

Apaziguadora, Anne murmurou que ele devia tentar esquecer a tragédia.

- Mandarei trazer o corpo dele para cá - disse ele. - Ele será enterrado em Earls Colne, com os seus ancestrais. É o que teria desejado.

Ricardo entregara-se a uma febre de atividade depois da notícia da morte de Robert. No final, ele precisava conformar-se com o fato de que jamais tornaria a ver o amigo. Não havia outro jovem com o qual ele tivesse feito uma amizade como a de Robert, embora tivesse seus favoritos entre os homens mais jovens e mais bonitos da corte. Ele se dedicava mais à esposa e contava com ela para lhe dar conselhos sobre todos os assuntos. Ela sempre os dava com cautela, quase humildade. Tentava persuadi-lo a fazer o que ela considerava correto, em vez de expressar as opiniões com veemência.

A vida na corte tornara-se mais extravagante do que nunca. O apaixonado interesse de Ricardo pelas roupas parecia ter aumentado, e não diminuído, à medida que ele ficava mais velho. Ele passava uma manhã inteira pensando no corte de um casacão ou de uma roupa colante e em que jóias deveriam ser usadas para decorá-la. As pontas de seus sapatos deviam ser sempre mais compridas do que os das pessoas que o cercavam e, em consequência, as pontas dos sapatos estavam aumentando tanto, que se estendiam quinze centímetros além dos dedos. Algumas pessoas tinham levado essa moda a extremos e usavam até as pontas tão compridas que elas tinham de ser amarradas aos joelhos. O rei adorava jóias e, por isso, seus trajes eram profusamente decorados com elas. Um de seus casacos era tão ricamente bordado de ouro e pedras preciosas que estava avaliado em trinta mil marcos.

Anne achava que só podia dar-se ao luxo de ser ligeiramente menos esplêndida. O alto custo de suas roupas às vezes a deixava um pouco apreensiva, especialmente quando ela e Ricardo saíam a cavalo pelas ruas das cidades onde os pobres se reuniam para vê-los.

Ricardo achava que aquilo os agradava.

- Eles gostam de ver o esplendor de nossas vidas - dizia ele.

- O que - salientava Anne - poderia chamar atenção para a monotonia das deles.

Ele gostava do bom senso dela. Fazia com que se sentisse seguro.

Chegou um dia de sua vida que ele jamais esqueceria.

Tinham ocorrido pequenos focos de peste em várias partes do país, mas aquilo era uma ocorrência perfeitamente normal e provocara poucos comentários.

Anne estava no palácio de Sheen na época e Ricardo fora incitado a fazer alguma coisa sobre o problema irlandês, que estava provocando uma grande preocupação. Ele estava bem ciente de que seria preciso tomar alguma providência, e com os seus ministros estava discutindo a possibilidade de levar um exército àquela terra incómoda.

Foi em meio a essas negociações que ele recebeu a notícia de que Anne adoecera.

Ele deixou tudo e foi a toda pressa para Sheen. Embora preocupado, não estava tanto assim. Anne era jovem e saudável e aquilo devia ser uma indisposição sem importância. Mesmo assim, devia ficar ao lado dela para afirmar-lhe sua devoção.

Quando ele chegou ao palácio de Sheen, levou um choque. Mal reconheceu a pálida figura que jazia na cama. Ela sorriu palidamente quando o viu.

Ele se ajoelhou ao lado da cama, numa angústia perplexa.

- Anne... Anne... - sussurrou ele. Não encontrou outra coisa a falar exceto o nome dela.

- Ricardo...

Ele olhou para ela estupefato.

- Estou morrendo, Ricardo - disse ela.

- Não, não! Você não, Anne. Você vai ficar boa. Ora, há um ou dois dias, quando a deixei... você estava bem. Será que não posso me afastar por algumas horas sem que você tenha de me provocar essa terrível angústia de cair doente? Isso é apenas uma indisposição sem importância. Amanhã você estará boa.

Anne sorriu para ele, e Ricardo tentou lutar contra o medo frio que tomara conta do seu coração. Aquilo o deixava estupefato. Não pensara que fosse possível. Por que iria Anne, tão jovem e tão cheia de vida... por que Anne iria morrer e deixá-lo sozinho?

Passou-se uma hora. Ele não queria sair do lado da cama, e enquanto ficava ali olhando, a esperança começou a fugir lentamente... como fez a vida dela.

Ela estava morrendo. A sua Anne. Mas como era possível?

Ricardo interrogou os médicos. O que acontecera? Por que fora atacada daquela maneira?

- A peste não respeita posição, majestade - disseram os médicos.

- Há alguma esperança? - perguntou ele.

- Sempre há esperança, majestade - foi a resposta.

- Neste caso, façam com que fique boa - bradou ele. - Eu ordeno. Estou mandando... tragam-na de volta para mim.

Eles foram para o quarto da doente. Ele ali estava, ajoelhado ao lado da cama.

- Anne - bradou ele. - Anne, não me deixe. Fale comigo, Anne.

- Ricardo, meu amor, meu rei, você precisa enfrentar a realidade. Não ficarei com você por muito mais tempo.

- Você não vai partir-bradou ele, agarrando-se às mãos dela.

- Não nos cabe decidir isso, querido marido. Você me fez muito feliz.

- Anne, não posso continuar sem você. Não posso viver sem você.

- Vai viver. Tem de viver. Ricardo, tome cuidado. O caminho que você tem a trilhar é difícil, e eu queria estar lá ao seu lado. Eu queria que você soubesse que eu estava sempre lá... sempre com você... não importava o que acontecesse.

- Eu sabia. Eu sei. É por isso que você tem de ficar boa. Ela sorriu lentamente.

- vou rezar por você, Ricardo, com o fôlego que vai se acabando, vou rezar por você.

Ela sabia que estava na hora de rezar pela sua alma, mas continuou a rezar por Ricardo. Era como se ali, deitada em seu leito de morte, ela tivesse visões dos males que estavam por vir.

Viveu apenas algumas horas. Mesmo assim, Ricardo não estava preparado para a sua morte. Parecia que ele perdera a voz, a consciência de tudo.

Atirou-se sobre a cama e estendeu os braços sobre o corpo dela, e soluços silenciosos o sacudiram.

A princípio, não quis sair de perto dela, mas acabou não resistindo quando o levaram dali.

Ele ficou atordoado, estado do qual saiu para ordenar que se preparasse o mais suntuoso enterro para ela. O mundo todo deveria ficar sabendo o quanto ele a venerava.

O corpo foi levado de Sheen para a catedral de St. Paul, onde deveria ficar exposto antes do enterro em Westminster. Ricardo mandara buscar em Flandres grandes estoques de cera para as tochas que seriam necessárias na procissão. Ordenou que todos os nobres do país fossem homenagear sua rainha.

Eles tinham levado o corpo. Ele se dirigiu aos aposentos em Sheen onde ela morrera e gritou angustiado:

- Nunca mais quero tornar a ver este lugar!

Agarrou o forro das paredes e arrancou-o. Era feito de veludo escarlate, e os pedaços ficaram como uma poça de sangue a seus pés.

- Odeio este quarto. Eu o odeio. Eu o odeio! - disse ele aos berros. - Ela morreu aqui. Sempre que eu entrar aqui, vou vê-la ali naquela cama. Pegou uma adaga e cortou o cobertor. Depois, gritou para os criados: - Venham cá, vocês todos. Vamos destruir totalmente este quarto. Nunca mais quero vê-lo. Ergueu um vaso que estava sobre uma pequena mesa e atirou-o para o outro lado do quarto.

Os criados tinham aparecido. Olharam para aquele jovem alucinado de louros cabelos compridos que agora estavam despenteados. Os olhos azuis, furiosos, voltaram-se para eles.

- Vamos, seus idiotas. Por que hesitam? Destruam este quarto. Nada deve ficar de pé. Foi neste quarto que minha rainha morreu. Nunca mais quero tornar a vê-lo.

Ele golpeou com selvageria o suporte da cama. O suporte saiu na sua mão, e Ricardo cambaleou para trás enquanto a cama começou a desabar.

Nada havia a fazer, a não ser obedecer ao rei.

Os aposentos da falecida rainha no palácio de Sheen foram inteiramente destruídos naquele dia.

Depois de dar vazão à sua fúria contra o destino, Ricardo sentiu-se um pouco melhor.

Anne deveria ter o mais grandioso dos funerais. O mundo inteiro deveria ficar sabendo o quanto ele a amava. Ricardo convocou todos os mais nobres do país para que fossem prestar homenagem a ela enquanto jazia na catedral de St. Paul. Houve uma ausência notável, o conde de Arundel.

Quando Ricardo soube que Arundel não comparecera à catedral de St. Paul, sentiu raiva dele. Quis prendê-lo, mas foi impedido pelo tio John.

A princípio, Ricardo não quis ouvir, mas quando John o lembrou de que Anne não iria querer aquilo, ele sentiu tanta dor que se afastou e foi para seus aposentos.

Arundel era um homem arrogante. Tinha desprezo pelo rei. Sua nova esposa, Filipa, era uma mulher vigorosa que estava sempre lembrando-o de sua realeza por intermédio dela. Ela era de um berço tão alto quanto o rei, afirmava ela; e iria fazer com que todos se lembrassem disso.

Portanto, se o marido não queria comparecer às exéquias da rainha, não precisava ir.

Ela e o marido decidiram que ele compareceria à cerimónia de enterro em Westminster, embora não houvesse motivo para que ele ficasse até o fim. Ele deveria dizer ao rei que tinha ido, tal como convocado, mas que não pretendia ficar o tempo todo e o rei, portanto, deveria dar-lhe uma permissão oficial para se retirar.

- vou dizer a ele que preciso me retirar por urgentes motivos pessoais - disse Arundel.

- Essa é a maneira discreta de fazer isso - concordou sua mulher.

A cerimónia na abadia havia começado. Ricardo estava melancólico, pensando no dia em que vira Anne pela primeira vez e no quanto a amara devido à sua humildade e graça. Não poderia ter amado uma beldade aparatosa com a mesma intensidade.

Anne, Anne, lamentava-se ele, por que você me deixou? Por que fui permitir que você fosse para Sheen? Eu odeio Sheen, Anne. E eu o adorava... porque estivemos lá juntos e agora... e agora...

- Majestade. - Era Arundel a seu lado.

Ricardo voltou-se de um salto, tirado de suas recordações, e em vez da doce e submissa face de Anne, lá estava a do seu inimigo.

- Devido a certos motivos particulares urgentes, majestade, rogo permissão para me retirar da abadia.

- Você vai esperar até a cerimónia acabar - retorquiu Ricardo. - Não vai insultar a rainha.

- Majestade, preciso me retirar...

Ricardo agarrou uma vara que um dos bedéis levava e com ela atingiu Arundel no rosto com tanta força, que o sangue jorrou do ferimento. Depois, passou a desferir uma chuva de golpes no conde que, espantadíssimo, foi derrubado de joelhos pelos golpes.

Houve consternação. Aquilo era uma profanação da sacra abadia. O sangue de Arundel já manchava o chão.

- Prendam este homem! Levem-no para a Torre - gritou Ricardo.

Fez-se um silêncio abafado e então Ricardo vociferou:

- Levem-no! Levem-no! Ele é meu prisioneiro.

Arundel foi arrastado para fora, e Ricardo fez um sinal para que a cerimónia continuasse.

Claro que houve comentários em sussurros. Muitos culpavam Arundel, mas um número igual culpava o rei. Sabiam que ele estava sofrendo muito; mas se Arundel tinha um motivo perfeitamente justificável para retirar-se da cerimónia, seu desejo deveria ter sido atendido.

Os dois estavam errados, mas o rei tinha a dor a seu favor.

Uma vez mais, John de Gaunt foi procurar o rei.

- Majestade-disse ele -, Arundel está na Torre. Que crime ele cometeu?

- O maior de todos. Insultou a rainha. John de Gaunt suspirou.

- Isso não é o suficiente para mandá-lo para a Torre, majestade. Ele tem muitos amigos poderosos.

- Eu o mandei para a Torre e lá ele deverá ficar.

- Isso é perigoso, majestade. Vossa majestade precisa compreender que o país está muito descontente, como madeira seca esperando pela chama que a incendeie. Sei muito bem que se a boa rainha Anne estivesse aqui, acrescentaria sua voz à minha.

- Arundel a insultou.

- Arundel precisa ser repreendido por isso. Mas como lhe digo, ele tem muitos amigos. Solte-o, Ricardo.

- Não vou fazer uma coisa dessas-disse Ricardo. - Quando você partiu, eu poderia ser uma criança. Já não sou mais. Minha vontade será cumprida.

- E assim deve ser e assim será enquanto eu tiver o braço direito para lutar por isso. Mas não deve haver uma agitação desnecessária, como haverá se você declarar guerra aberta a Arundel. Ele é influente demais para ser menosprezado, Ricardo. Sei que a rainha iria me apoiar... se estivesse aqui... se ao menos ela estivesse aqui!

Ricardo estava a ponto de desfazer-se em lágrimas. Mas o tio tinha razão. Ele sabia que tinha razão. Quase que podia ouvir a voz de Anne implorando a libertação de Arundel.

Dentro de uma semana, Arundel era um homem livre.

Constanza de Castela estava contente por viver com criados seus homens e mulheres de seu país, porque nunca conseguira entender-se bem com os ingleses. Vivera tranquilamente em Hatfield sabendo que o marido poderia visitá-la raramente, e assim mesmo só para manter as aparências.

Eles não viviam juntos já havia alguns anos. Ela sentira a repulsa dele e ofendia sua dignidade o fato de que ela, uma princesa da casa de Castela-a verdadeira rainha, afirmara ela sempre-tivesse de aceitar que o marido preferisse a amante e fosse passar com ela todos os momentos disponíveis.

Constanza estava muito cônscia de sua realeza, e embora não quisesse, mesmo, John ou qualquer outro homem em sua cama, lamentava a maneira pela qual ele não fazia tentativa alguma para manter em segredo seu relacionamento com Catherine Swynford.

Tinha de admitir que Catherine era discreta. Nunca alardeava sua posição. Portava-se com mais decoro do que muita mulher de berço mais nobre poderia ter agido ao ver-se em situação semelhante. Mas, ainda assim, havia o fato de que John insistia em que Catherine estivesse com ele em todas as funções a que ele comparecia; e as pessoas estavam-na aceitando. O rei a recebia; na verdade, ele parecia gostar dela, e Constanza tinha de admitir que Catherine possuía um certo charme que lhe fora negado por completo.

Não era de surpreender, naquelas circunstâncias, que ela preferisse viver sossegada no país onde podia estar cercada por seus conterrâneos, onde pudesse comer os pratos de sua terra natal e usar as roupas que as mulheres de seu país gostavam de fazer para ela.

Era uma vida de tranquilidade e meditação, porque ela sempre fora profundamente religiosa.

No início da primavera daquele ano em que a rainha morreu, Constanza começou a sentir uma certa letargia tomar conta dela.

Nunca fizera muito exercício, mas passava a maior parte do tempo em meditação e oração ou sentada com as acompanhantes costurando para os pobres; e desde que sua filha Catherine se casara com o herdeiro de Castela, parecia que ela não tinha motivo importante algum para viver. As pessoas que a cercavam notavam que ela ficava cada dia mais fraca.

Não ficaram muito surpresos quando um dia, ao irem chamá-la, ela lhes disse que estava muito indisposta para se levantar.

Dentro de uma semana, estava morta.

John de Gaunt estava livre, e seus sentimentos estavam confusos. Sentia-se aliviado por não precisar tornar a ver Constanza. A existência dela fora uma contínua reprovação para ele. Por outro lado, aquilo o colocava num dilema no que se referia a Catherine.

Ele sempre afirmara que se ficasse livre iria casar-se com Catherine, mas precisava refletir sobre o que um casamento daqueles iria significar para ele.

Catherine ainda era bonita; e discreta, e ele a amava de todo o coração. Nunca olhara para outra mulher a sério desde que a conhecera. Mas, por outro lado, não pertencia à nobreza e o relacionamento deles fora nada discreto, de modo que o país inteiro sabia que ela fora sua amante.

Poderia ele casar-se com ela? Seria isso um ato de loucura sem precedentes?

Um homem da sua posição devia pensar nisso.

De qualquer maneira, nada poderia ser feito enquanto não se passasse um período adequado, e John recebeu com muito agrado a necessidade de ir à Aquitânia para assumir seus deveres por lá.

De modo que se fez ao mar e jurou a si mesmo que examinaria os fatos com coragem e quando voltasse teria a solução.

Os meses começaram a passar, e ele achou a vida em Bordeaux intolerável. O tempo todo ansiava por estar com Catherine. Ficava imaginando o que ela estaria pensando. Achava que estava resignada, dizendo a si mesma que aquilo por que sempre ansiara jamais poderia acontecer.

John passou sua vida em revista. Sua ambição pouco lhe conseguira. Nem todos os desejos do mundo poderiam torná-lo rei da Inglaterra. E quem, no seu juízo perfeito, desejaria um destino nada invejável? O povo jamais gostara dele; não iria aceitá-lo. Para governar, o rei tinha de contar com o amor e a aprovação de seu povo.

Os únicos momentos felizes que conhecera foram com Catherine. Não era bem verdade. Tinha sido feliz com Blanche. A união dos dois tinha sido boa. Mas não se igualara ao seu relacionamento com Catherine. Nunca haveria o que rivalizasse com isso.

John voltou para a Inglaterra no fim do ano de 1395.

Ricardo voltara da Irlanda, onde fizera uma campanha com algum sucesso. Parecia que os irlandeses tinham ficado tão estupefatos com os vistosos trajes de Ricardo e com o esplendor geral que não tinham oferecido resistência. No entanto, a expedição tinha sido dispendiosa em dinheiro, ainda que não em vidas.

Entusiasmado com o sucesso e sentindo seu poder como governante, Ricardo não estava muito inclinado a dar uma recepção calorosa ao tio.

John deixou a corte rapidamente e foi logo a Kettlethorpe, em Lincolnshire.

Catherine estava cuidando dos assuntos de casa quando o arauto chegou. Ela reconheceu logo o libré dele-o azul e o cinza e o brasão lancastriano bordado no seu tabardo.

Seu coração bateu incerto. John estava chegando. Esperara havia muito tempo por ele e tentara convencer-se de que nunca voltaria a vê-lo. Era verdade que ele comentara com ela o que faria se fosse livre - mas será que acreditara nele? Não sabia que devia surgir algum projeto, algo que aumentasse as ambições dele? Como poderia ele casar-se com uma mulher como Catherine, que fora criticada por tanta gente pelo que seria chamado de comportamento dissoluto?

Não, aquilo tinha sido uma conversa agradável, conversa de amantes sobre o que deveria ser, quando se acreditava que era impossível.

Ela percorreu a casa depressa, dando ordens aqui e ali.

- Preparem-se, que o senhor duque de Lancaster estará conosco em breve.

Ficou no saguão esperando para recebê-lo - sozinha. Primeiro, tinha de vê-lo a sós.

John caminhou em direção a ela, parecendo um pouco mais velho do que da última vez em que o vira. Havia salpicos de branco em seus cabelos castanhos-claros e novas rugas em torno dos belos olhos Plantageneta. Já não era mais jovem. Estava com 55 anos, e ela era apenas dez anos mais moça. Os dois tinham começado o romance vinte anos antes.

- Catherine - bradou ele, tornando-lhe as mãos. Segurou-as com firmeza nas suas e olhou para ela. - Bonita como sempre.

Ela riu e abanou a cabeça, mas John a puxou para ele e agarrou-a

- Para nunca mais nos separarmos - disse ele -, pelo tempo que nos restar.

- Senhor duque... - começou ela.

- Nada disso, chame-me de marido, porque vou me casar com você, Catherine.

Ela ficou tonta de alegria; mas, mesmo assim, não quis acreditar.

- Meu senhor, já pensou...

- Não pensei em outra coisa desde que Constanza morreu disse ele.

- Não é possível.

- vou lhe mostrar como é possível. Tudo que precisamos é de um padre.

- Tem certeza?

- Nunca tive mais certeza de qualquer outra coisa. O que houve, Catherine? - Ele agarrara os ombros dela e recuara para encará-la mais atentamente. -Esse casamento não é de seu agrado?

Ela riu da maneira da qual ele se lembrava tão bem.

- Isso é uma coisa com que às vezes eu sonhava.

- Então, não precisa mais sonhar.

- É errado - disse ela.

- É certo - respondeu ele.

- Nossos filhos...

- Nossos Beaufort serão meus filhos legítimos. Catherine, quer se casar comigo?

- Nunca fiz na vida uma coisa com a milésima parte da alegria com que vou fazer isso.

- Então está resolvido. Não percamos tempo. A partir de hoje, meu amor, você é a minha duquesa de Lancaster.

Anne estava morta, e Ricardo iria lamentar-se pelo resto da vida, mas seus ministros lembravam-no de que era um rei e precisava casar-se.

Gloucester estava de volta à corte, delicado e apaziguador, tentando fingir que nunca houvera qualquer incidente entre ele e o rei. Ele devia saber, é claro, que Ricardo nunca se esquecia de uma desfeita; mesmo assim, a cabeça de Gloucester estava tão cheia de planos que ele não ia deixar que um caso sem importância como a inimizade do rei se colocasse entre ele e sua ambição.

Foi Gloucester que tocou no assunto do casamento do rei.

O rei replicou que aquilo lhe fora sugerido, mas que no momento ele não podia pensar em outra coisa que não na sua adorada rainha Anne, e a ideia de substituí-la não o atraía.

- Eu compreendo, meu caro sobrinho - disse Gloucester. Ricardo dirigiu-lhe um olhar de desprezo. Como Gloucester

poderia compreender? Casado com a não muito atraente Eleanor Bohun pela grande fortuna que ela poderia lhe dar! Como poderia Gloucester comparar o casamento dele com a bem-aventurança que Ricardo e Anne tinham compartilhado?

- A verdade - prosseguiu Gloucester - é que você deve escolher uma esposa, e eu sou de opinião de que o povo gostaria de alguém do nosso próprio país.

- Diga-me quem? - perguntou Ricardo.

- Como você sabe, minha filha Anne ficou viúva há pouco tempo. Pobre Stafford! Ele era moço para morrer. Minha filha é bonita e experiente. É de sangue real... tão real quanto você. Vocês têm o mesmo avô. Não posso pensar numa combinação melhor.

- Não posso pensar em outra pessoa com maior possibilidade de provocar reclamações - retorquiu Ricardo.

- E por quê? Anne é uma jovem muito desejável, isso eu lhe digo.

- Acontece que é minha prima em primeiro grau. O laço sanguíneo é próximo demais.

- Os papas podem ajudar muito em casos assim. Tudo o que temos de fazer é tornar a coisa conveniente.

- Acho o parentesco próximo demais.

- Meu caro sobrinho, você ainda precisa crescer.

Não podia haver nada mais enlouquecedor do que aquela insistência em que ele era um menino e incapaz de cuidar de seus assuntos pessoais e também dos do país.

- O senhor percebe-disse ele-que estou com trinta anos?

- Ainda não...

- vou fazer trinta em breve, e ainda que não fosse, gostaria que se lembrasse de que sou o rei.

Era verdade o que seu irmão John dizia, pensou Gloucester; ele e o rei não podiam ficar juntos por mais de alguns minutos antes que uma tempestade desabasse.

- Já discuti esse assunto do meu casamento com aqueles a quem ele interessa - continuou Ricardo.

- Sua felicidade me diz respeito, tanto como súdito quanto como seu tio.

- Neste caso, o senhor vai ficar muito contente por eu ter encontrado uma esposa.

A testa de Gloucester ficou rubra.

- Quem... se me permite perguntar?

- Permito. Escolhi a filha do rei da França. Sempre tive a ambição de conseguir uma solução pacífica para aquelas rixas continentais na França que absorvem nossa riqueza e de pouco nos adiantam. Esse casamento irá agradar ao rei e a mim. Fará com que nos tornemos amigos.

- A filha mais velha do rei da França tem apenas sete anos de idade... se tanto.

- Uma criança encantadora, pelo que me dizem.

- Você precisa de uma esposa...

- É o que pretendo ter.

- Essa menina é criança demais. Ora, mesmo daqui a cinco ou seis anos ela dificilmente terá atingido a idade apropriada para ser uma esposa.

- Cada dia irá remediar a deficiência no que se refere à idade dela. Além do mais, a juventude dela é uma das razões para escolhêla. Quero que seja instruída aqui e criada à nossa moda. Quero que seja inglesa nos modos e nos hábitos e na maneira de pensar. É disso que o povo vai gostar. Quanto a mim, não estou tão velho que não possa esperar por ela.

Gloucester pediu licença para se retirar. Estava tendo um acesso de raiva que não podia conter por muito mais tempo.

Então o rei já entrara em entendimentos para se casar com Isabella de Valois, filha do rei da França.

 

HAVIA UM AR de grande agitação no palácio de St. Pol desde que a embaixada chegara da Inglaterra; e ninguém estava mais ciente disso do que a garotinha que era a causa de tudo.

Isabelle de Valois, embora com apenas oito anos de idade, estava muito cônscia de sua beleza e importância. Ela era inteligente, também, e sempre acreditara que como filha do rei da França tinha um futuro brilhante à sua frente.

- Muita gente vai querer se casar comigo - dizia ela às amas que a cercavam, vestindo-a com roupas de seda macia e enrolando seus belos cabelos pretos. - Eu gostaria de saber quem será o felizardo.

Elas sorriam para ela; às encondidas, diziam:

- Lady Isabelle se tem em alta conta. Essa daí é bonita demais. Mas vai levar as coisas à sua maneira, isso é certo.

Se Isabelle as tivesse ouvido, teria concordado com elas. Sim, claro que tinha a si mesma em alta conta. Por que não? Não era muito bonita? Seus modos não eram muito fascinantes? Ela não tinha uma mente alerta? E, além de tudo isso, era filha do rei da França.

A vida no palácio de St. Pol girava em torno dela. A mãe, que era bonita-Isabelle se parecia muito com ela -, idolatrava a filha. O pai, também. Ele e sua corte estavam no Louvre, mas muitas vezes ele dava uma fugida até o palácio de St. Pol para ver a família. Ela esperava ansiosa por aquelas visitas, mas havia algo estranho com ele e às vezes ele desaparecia e não estava no Louvre, e embora dissessem a ela que o pai estava viajando pelo interior, havia alguma coisa no olhar das pessoas que a fazia se perguntar o que ele estava realmente fazendo. Ultimamente a menina descobrira que ele sofria de uma doença misteriosa que o atacava de vez em quando, de modo que ele agia de maneira estranha e tinha de ser isolado.

A mãe era alegre e bonita; gostava de dançar e cercar-se de admiradores. Isabelle achava que a mãe devia ter uma vida muito agradável... muito melhor do que a do pai, que estava sempre cercado de enfadonhos ministros e tinha de enfrentar as crises da doença.

E então chegou aquele dia emocionante em que a embaixada inglesa chegou a Paris. Suas amas não falavam em outra coisa. Ela ouvia com avidez. Às vezes era melhor ouvir do que fazer perguntas, porque os adultos sempre pareciam ter muita coisa que não queriam revelar, e fazer perguntas a eles os tornava cautelosos. De modo que ela escutava.

- Dizem que as ruas de Paris estão cheias deles.

- Há pelo menos uns quinhentos.

- É raro termos ingleses em Paris!

- Mas é aqui que eles gostariam de estar.

- Não duvido. Bem, isso deve pôr um fim a essa guerra sem propósito.

- Quem sabe? Eles estão hospedados perto da Croix du Tiroir, pelo que ouvi dizer.

- Sim, lá e em todas as ruas por perto.

- Não vai demorar, agora.

Não, pensou Isabelle, não vai demorar. Estava certa. Exatamente no dia seguinte ao daquela conversa, o pai foi ao palácio de St. Pol. Sua mãe estava com ele e os dois mandaram chamar a filha.

Isabelle fora bem educada sobre o comportamento correto, e com graça e charme ajoelhou-se diante do pai.

Os olhos dele se enterneceram ao vê-la. Era uma menina muito bonita, e era lamentável que uma criança assim tivesse de sair de casa.

Ele a ergueu e, sentando-se, atraiu-a para perto. A filha estudouo, fascinada como sempre ficava pela estranheza de seus olhos. Às vezes pareciam alucinados como se estivessem vendo coisas que eram invisíveis a outras pessoas. Naquele dia, no entanto, estavam menos alucinados. O pai estava olhando para ela e vendo-a e, imaginou ela, pensando no quanto era bonita.

- Minha filha-disse ele -, chegou a hora de você nos deixar. Sua mãe e eu decidimos que é melhor para você. Não queremos perdê-la, mas...

Ela sacudiu a cabeça, séria. Olhou para a mãe, que se dizia ser a mulher mais bonita da França, e as pessoas diziam que ela, Isabelle, era muito parecida com ela.

- Todas as princesas acabam saindo de casa. Muitas delas, então, se tornam grandes damas.

Os olhos de Isabelle se arregalaram. Estava certa de que iria gostar de ser uma grande dama.

- O rei da Inglaterra quer se casar com você.

- vou usar uma coroa - disse ela, e imaginou-se com o diadema de ouro sobre os cabelos pretos soltos. Ficaria muito parecida com a mãe.

- Isso significa que você vai para a Inglaterra.

- Quando é que eu vou? - perguntou ela.

- Isso é um assunto que teremos de resolver quando tivermos conversado com os ingleses - disse a mãe. - Vamos sentir muito a sua falta, Isabelle.

- Sim, majestade, e eu sentirei falta da senhora.

Era impressionante, pensou o rei, o quanto a menina estava calma. Poderia ter-se esperado que houvesse lágrimas. Mas Isabelle estava pensando na sua coroa de ouro, e não em separar-se dos pais.

Claro, era muito criança.

- O rei da Inglaterra mandou embaixadores nos procurarem - disse o pai. - Você compreende, minha filha, que tem havido um grande conflito entre nossos países.

- Eu sei - disse Isabelle. - O rei da Inglaterra quer a sua coroa.

- Esse rei - o que vai ser seu marido - é diferente do pai e do avô. Ele é amante da paz. Quando você se casar com ele, isso será um motivo para manter a paz. Ele não vai querer lutar contra o próprio pai.

- Então o senhor será pai dele?

- Sogro dele, como dizem.

- E eu serei a rainha.

O rei olhou para sua mulher e disse:

- Acho que os ingleses poderiam entrar agora. Ela está muito calma e saberá se comportar.

Isabelle ficou olhando, admirada, os homens entrarem. Eles tinham um aspecto muito suntuoso, e um deles adiantou-se e ajoelhou-se à sua frente.

- Majestade-disse ele -, se Deus assim o quiser, será nossa dama e nossa rainha.

Houve um instante de silêncio. Os pais observavam-na. Então, ela disse:

- Senhor, se Deus e meu pai quiserem que eu seja rainha da Inglaterra, ficarei contente com isso, pois me disseram que serei, então, uma grande dama. Tenha a bondade de se levantar para que eu possa levá-lo à minha mãe.

A rainha Isabeau irradiava orgulho e prazer. Sua filha era mesmo um crédito a ela e à criação que lhe dera. Os ingleses não podiam deixar de ficar impressionados.

Ricardo ficou satisfeito. Teria a pequena Isabelle como esposa, e isso o deixava encantado. Ele precisava ter uma esposa e não havia quem pudesse ocupar o lugar de Anne em seu coração; mas ele gostaria de ter aquela garotinha-que segundo todas as informações era encantadora -e criá-la segundo a tradição inglesa. No devido tempo seria sua esposa e talvez àquela altura ele estivesse preparado para viver com ela.

O rei nunca se sentira muito atraído pelas mulheres. Era verdade que se dedicara a Anne; mas Anne tinha sido uma companheira adorável, uma ajudante, uma pessoa em quem pudera confiar inteiramente. Aquilo era diferente; e talvez explicasse por que a ideia de uma esposa menina com a qual não podia haver relacionamento físico durante alguns anos o atraía.

Ricardo mandou avisar aos tios, Lancaster e Gloucester. Os dois deveriam acompanhá-lo, juntamente com suas mulheres, até a França. Os homens mais destacados do país - entre eles Arundel receberam a mesma convocação.

A condessa de Arundel ficou pensativa quando soube que deveria preparar-se para ir à França com o marido, para o casamento do rei.

- Ricardo deve ter convocado todos os mais nobres do país disse ela.

- Ele vai querer fazer uma exibição - replicou o marido. - Você sabe o que ele é. Vai esperar que todos nós deixemos os franceses estupefatos.

- Lancaster estará presente, é claro.

- Minha querida, Lancaster não pode deixar de estar. Ele é o principal nobre, abaixo apenas do rei.

- E - prosseguiu a condessa -, se Ricardo convocou as esposas também, será que isso significa que aquela mulher irá acompanhá-lo?

- Ricardo a aceita.

- Ricardo! - vociferou a condessa. - Ele às vezes é muito ingénuo.

- Às vezes? - replicou Arundel com uma gargalhada. - Eu diria que com frequência.

- E nunca tanto como quando convida aquela mulher a comparecer à cerimónia.

- Lancaster casou-se com ela.

- Depois que ela foi sua amante por quanto tempo... por vinte anos?

- Isso mostra a consideração que tem por ela.

- E a falta de consideração que ele tem por todos nós! Não vou demonstrar amizade alguma por ela. Na verdade, vou me recusar a falar com ela.

- Se fizer isso, vai provocar a raiva de Lancaster.

- Lancaster! Quem é Lancaster? Tudo em que ele toca não consegue realizar. Só resolveu a questão de Castela casando a filha com o herdeiro. Não o tenho em muita conta.

- Talvez eu o tenha em mais conta, minha cara. Trata-se de um homem muito poderoso.

- E nós não somos poderosos? Não foi você o vencedor da batalha naval ao largo de Margate, que inutilizou os franceses e tornou a Inglaterra segura para os ingleses? Quanto a mim, descendo da realeza e não estou muito longe do trono. Posso lhe dizer uma coisa, marido, não vou ter absolutamente nada com aquela mulher.

- Lancaster também está perto do trono, minha cara. Lembremo-nos disso.

- Eu me lembro. Não vou ter coisa alguma a ver com aquela mulher com que Lancaster se casou. Ele devia ter vergonha de trazê-la consigo. Quem é ela, afinal? Uma prostituta de baixa classe. Filha de um cavaleiro, é o que dizem. Um cavaleiro flamengo. Feito cavaleiro no campo de batalha. E quando ela se casou com Hugh Swynford... um rapazola do interior... foi amante de Lancaster e tem uma fila de bastardos para provar isso.

- Tem razão, minha cara. Tem razão, mesmo. Mas lembremonos do poder de Lancaster.

- Você pode se lembrar - disse a vigorosa condessa. - Eu jamais permitirei que aquela mulher se aproxime de mim.

Ricardo sentia-se mais feliz do que nunca desde a morte de Anne. Sentia-se realmente animado quanto às cerimónias que estavam por acontecer. Elas deveriam ser exuberantes ao máximo, e nada o agradava mais do que acumular um guarda-roupa brilhante. Ele passava horas com seus alfaiates. Tornou-se uma questão de ardorosa importância saber se uma faixa devia ser decorada com rubis ou safiras. Ao mesmo tempo, estava satisfeito com a perspectiva. Um casamento com a França só poderia ser benéfico.

Paz! Era o que ele sempre quisera. Se ao menos seu pai e seu avô tivessem pensado o mesmo, poderiam ter sido evitadas grandes agruras. Não, era uma situação muito mais feliz ter um casamento em vez de uma batalha - e mais sensata, também.

Ele estava em Eltham - um palácio do qual gostava muito. Ali podia desfrutar o puro ar kentiano e dos aposentos reais, que ficavam quase a trinta metros acima do nível do mar, podia ver das torrinhas o outro lado do fosso e os campos até os muros da cidade e a cúpula da catedral de St. Paul subindo em direção ao céu.

Ali eles estavam reunidos. Lancaster chegara com a sua nova duquesa, uma mulher muito bonita - que já não era jovem, mas tampouco Lancaster o era - e que deveria continuar bonita até morrer.

Ricardo já estivera com ela antes e gostara dela desde o início. Era ridículo as pessoas compararem-na com Alice Perrers - aquela harpia que manchara a reputação de seu avô nos últimos dias de vida dele. Catherine Swynford era discreta, tinha bons modos, tudo o que ele pedia de uma dama de sua corte; e esperava que ela exercesse uma boa influência sobre Lancaster, o que estava certo de que faria.

Catherine estava sentindo-se um pouco perturbada. Era a primeira grande cerimónia a que comparecia como duquesa de Lancaster, pois, embora John muitas vezes a levasse com ele a cerimónias, estas nunca tinham sido como aquela.

O rei recebeu-a com cortesia e disse-lhe que era um prazer tê-la na comitiva. Falou-lhe sobre a sua noivinha e disse que queria que as damas da corte tivessem um carinho especial para com ela.

- Ela é uma criança - disse ele. - Mas, segundo eu soube, muito senhora de si. Quero que ela goste de nós e do estilo de vida inglês.

- Majestade, ficarei encantada ao fazer o possível para que ela se sinta em casa. Conheço alguma coisa de crianças. Tenho várias minhas e estive encarregada dos filhos do duque quando eram muito crianças.

- Eu sei - disse o rei. - E também sei de outra coisa. Elas gostam muito da senhora. Falaremos mais sobre isso depois.

Ricardo raramente vira o tio John tão satisfeito com ele. O motivo, é claro, era a maneira pela qual recebera sua esposa.

John estava vigilante, observou Ricardo bem-humorado. Azar de quem tentasse desprezar sua duquesa.

A duquesa de Gloucester e a condessa de Arundel foram prestar seus respeitos ao rei.

Ele não gostava de nenhuma das duas. A duquesa de Gloucester, Eleanor Bohun, não era uma mulher muito atraente, muito ao contrário da irmã, que John casara com seu filho Bolingbroke. Pobrezinha, ela morrera mais ou menos na mesma época em que Anne. Esgotada de ter filhos, diziam - e na casa dos vinte. Ninguém podia dizer isso de sua adorada Anne. Mas era uma pena eles não terem tido nem mesmo um filho.

Ricardo vira o olhar de Eleanor Bohun nele enquanto conversava com a duquesa de Lancaster. Ela estivera desaprovando. Nada havia de que Ricardo menos gostasse do que pessoas desaprovando o que ele fazia. Já tivera desaprovações em quantidade suficiente para durar a vida inteira.

E havia a condessa de Arundel - outra mulher desagradável, que ele detestava. Em primeiro lugar, ela nunca devia ter-se casado com Arundel sem o consentimento dele, Ricardo. E ela se dava ares de superioridade demais, porque descendia do tio Lionel.

Ele foi frio com as duas.

Elas se afastaram. Era uma pena terem de ir com a comitiva, pensou Ricardo. Mas estava claro que ele não podia dizer a dois dos homens mais importantes do país que preferia não receber suas esposas.

Ricardo percebeu, e não foi o único. A duquesa de Gloucester e a condessa de Arundel estavam de pé ao lado da duquesa de Lancaster, e Catherine voltara-se para elas. Algumas palavras foram ditas, mas as duas mulheres não tinham olhado para ela.

A condessa de Arundel disse, numa voz bem alta que pôde ser ouvida com clareza:

- Não é estranho - o tipo de gente que vem à corte hoje em dia? Eu sempre disse que as prostitutas deviam ser mantidas nos seus aposentos.

A duquesa de Lancaster se voltara e conversava com outra pessoa como se não tivesse ouvido aquelas palavras ou não pudesse imaginar que se referiam a ela.

O duque, que tinha ouvido, dirigiu-se depressa para o lado dela. Houve um momento em que todos os que assistiam acharam que haveria confusão.

Se tivesse sido Gloucester em vez de Lancaster, poderia ter havido violência; mas John de Gaunt sempre fora um homem que pensava antes de agir.

De qualquer forma, ele não podia desafiar as duas mulheres para um duelo.

Passou o braço pelo de sua duquesa. Tal como Catherine, ele estava fingindo que o que fora dito não lhes dizia respeito; e ao mesmo tempo estava mostrando a todos que sua esposa era a sua duquesa e ele iria fazer com que fosse tratada como tal.

Ricardo, observando, pensou: Lancaster não vai esquecer isto. Gloucester e Arundel devem ter cuidado.

A comitiva real atravessou o Canal em direção a Calais.

Gloucester estava furioso. Ele mal ouvia as reclamações de sua mulher sobre a presença da duquesa de Lancaster.

Ele quisera que sua filha fosse a rainha da Inglaterra.

Estava causando muitos problemas, porque na sua maneira truculenta demais, não hesitava em divulgar suas opiniões.

Paz com a França! A França era um país rico. Havia, lá, muitos tesouros. Tinham direito a eles. Será que abririam mão de tudo aquilo? Por quê? Para que pudessem levar para a Inglaterra uma garotinha que era criança demais para ser esposa do rei. Era tudo muito absurdo, e ele, para início de conversa, era contra.

Ricardo tinha medo de que seu tio pudesse ofender os franceses, e para acalmá-lo disse que se mantivesse a paz ele deveria ter cinquenta mil nobres quando voltasse para a Inglaterra e o filho dele, Humphrey, seria feito conde de Rochester. Aquela oferta era tão absurdamente generosa que Gloucester primeiro ficou pasmo e depois calmo e parou de criar caso.

Enquanto isso, havia uma distinta frieza entre Lancaster e Gloucester e Arundel. Lancaster viu que sua mulher era tratada com respeito por todos os outros; e embora alguns tivessem gostado de demonstrar sua desaprovação, não tiveram coragem.

Chegara a hora em que Ricardo deveria ficar frente à frente com Charles da França. Os inimigos iriam tornar-se amigos, e tendas tinham sido erguidas em um campo fora de Calais, como cenário para o encontro cerimonioso dos dois.

Quatrocentos cavaleiros ingleses e outros tantos franceses, todos em brilhantes armaduras, colocaram-se com as espadas desembainhadas formando duas fileiras, entre as quais deveriam passar os reis e seus auxiliares. Ladeando Ricardo estavam seus tios Lancaster e Gloucester, e ladeando o rei da França estavam os duques de Berri e Borgonha, tios do rei francês.

Ricardo sentiu um lampejo de regozijo que poderia ter compartilhado com Anne ou com Robert de Vere se estivessem com ele. Porque era uma ironia o fato de os reis da França e da Inglaterra, tendo subido ao trono muito jovens, devessem ser atormentados por tios.

Houve um grito de júbilo dos cavaleiros reunidos quando os dois reis, com as cabeças descobertas, encontraram-se e se abraçaram.

Depois, o rei da França pegou Ricardo pela mão e os dois duques franceses pegaram os dois ingleses também pelas mãos e entraram na tenda do rei francês.

No interior da tenda, os duques de Orleans e Bourbon esperavam para receber o grupo. Puseram-se de joelhos e assim ficaram até os reis pedirem que se levantassem. Vinhos e frutas cristalizadas foram servidos pelos duques, que se ajoelhavam enquanto ofereciam as caixas e as taças aos seus reis.

Depois disso, todos se reuniram para o almoço, os dois reis sentados à mesa alta, sozinhos, com o resto da comitiva abaixo deles.

O rei da França declarou seu prazer com a aliança e disse lamentar apenas que a noiva não fosse mais velha.

- Meu bom sogro - replicou Ricardo -, a idade de nossa esposa nos agrada muito. Não damos muita atenção à idade, mas damos valor ao seu amor, porque agora ficaremos fortemente unidos, e ninguém na cristandade poderá nos prejudicar, seja de que maneira for.

O rei da França expressou sua satisfação com o que fora conseguido; eentão chegou o momento de a noivinha aparecer.

Ela entrou na tenda acompanhada por um grupo de senhoras francesas da nobreza, entre as quais estava Lady de Couci.

Ricardo olhou com prazer para a sua pequena noiva. Era tudo o que tinham dito sobre ela. Era graciosa, bonita, de olhos vivos, e deixou-o totalmente encantado. Não conseguiu esconder o quanto gostara dela. O pai fora até ela e a pegara pela mão.

Conduziu-a até Ricardo, que, por sua vez, lhe tomou a mão e a beijou. Os dois sorriram um para o outro, e ficou claro que ela também gostara muito dele.

Terminada a cerimónia da entrega da noiva, não havia motivos para demora.

Uma suntuosa liteira tinha sido preparada para levar a pequena rainha até Calais; e ela deixou para trás todas as suas amas, à exceção de Lady de Couci, e assistida pelas duquesas de Lancaster e Gloucester, preparou-se para a viagem até a cidade de Calais.

Poucos dias depois, o casamento foi celebrado na igreja de St. Nicholas, com o arcebispo de Canterbury tendo ido a Calais para oficiá-lo.

Isabelle estava encantada. Percebeu que tinham alterado ligeiramente seu nome, dando-lhe a versão inglesa de Isabella. Achou aquilo engraçado. Todos estavam encantados com ela, e achou Ricardo o marido mais maravilhoso que uma jovem podia conseguir.

Seus cabelos brilhavam como ouro e ficava muito bonito com a coroa. Quando falava com ela, sua voz era suave e delicada e ele estava sempre sorrindo como se a achasse muito divertida, e mostrava, de várias maneiras, que estava encantado por tê-la como esposa. Ela já gostava de Lady de Couci e passara a gostar muito da duquesa de Lancaster. Ela gostava de gente bonita. Não gostava da duquesa de Gloucester, que era muito feia, nem da condessa de Arundel. Sentia que as duas tentavam ser indelicadas com a duquesa de Lancaster, e sem saber qual teria sido o motivo da discussão delas -porque tinha certeza de que tinham discutido -, ficou do lado da duquesa de Lancaster.

Foi tudo muito emocionante. O casamento, as comemorações, o encontro, mais uma vez, com o rei e a rainha da França em St. Omer antes de tomar o navio e atravessar o canal a caminho de seu novo país.

Isabella ficou no convés com Ricardo ao lado, e ele indicou para ela os rochedos de Dover.

- Lá está o castelo - disse ele.-Meu e seu, agora. Ricardo achou-auma menina corajosa. Queria saber por que não

havia chorado pela sua ex-pátria. Ela respondeu prontamente:

- Porque vou gostar mais da nova. Ele riu.

- Sabe - disse ele -, eu achei que teria de consolar uma garotinha com saudade de casa. Mas não a minha Isabella.

Ela colocou a mão sobre a dele.

- Este será o meu lar - disse ela; e havia uma profunda satisfação na voz dela, porque acreditava que no seu novo país as pessoas iriam bajulá-la ainda mais do que no antigo.

Ficou encantada com o castelo de Dover; e no dia seguinte, continuaram viagem para Rochester. Em pouco tempo chegaram ao palácio de Eltham e lá os nobres que tinham ido à França despediram-se e seguiram seus caminhos.

Ela pegou a mão da duquesa de Lancaster e disse:

- Eu a verei de novo.

- Estou certa de que sim - respondeu a duquesa.

- Será em breve - replicou a pequena rainha. Ela falava com segurança. Sabia que bastava transmitir seus desejos ao marido apaixonado, que seriam atendidos.

Ela gostava muito de sair a cavalo por Londres, onde o povo saía de casa para vê-la, maravilhado. "A mais adorada rainhazinha que já houve!" "Ora, é uma criancinha!" "Que belezinha!"

Isabella sorria para eles e os cativava, e depois ela e Ricardo ficavam a sós. Ele gostava de ver as roupas que ela levara. Ficava encantado com a riqueza delas, e ela também. Havia um belo vestido e uma manta combinando. Era de veludo vermelho ornado em relevo com pássaros de ouro pousados em galhos de esmeraldas e diamantes. O vestido era orlado por peles brancas, e a manta forrada de arminho.

- Nunca vi tamanha elegância! - bradou o rei.

Ele mostrou-lhe um de seus sobretudos, que brilhavam tanto que a deixaram tonta.

Ela bateu palmas de alegria ao vê-lo.

- Nunca vi jóias brilharem tanto! - bradou ela.

- Ah, mas falta a ele a elegância de seu vestido e da manta, Isabella. Vocês, franceses, têm um estilo que nós não temos. Ergueu um dos vestidos dela, com ramalhete de flores roxas e rosas de pérolas. - Encantador - bradou ele.

E então segurou a mão de Isabella e dançou com ela pelo aposento.

- Minha pequena rainha, terei o maior prazer em escolher as roupas mais bonitas para você nos encantar.

Ela riu com ele.

Estava muito feliz. Tinha pena de quem não era rainha da Inglaterra - e isso incluía todas as demais pessoas do mundo, lembrou-se ela.

Ficou decidido que Windsor era o melhor lugar para ela morar. Foram preparados aposentos para ela, e ficaram tão suntuosos que as pessoas que cercavam a pequena rainha declararam nunca terem visto tamanho luxo. Tinha sido por ordem do rei. Seu grande prazer era satisfazer à sua pequena rainha.

Claro que ele não podia estar com ela o tempo todo, mas era um visitante constante do castelo, e quando ela ouvia a sua chegada descia correndo para o grande salão

e atirava-se em seus braços. Ele era o seu belo rei, e ela era sua favorita, sua querida. Ela o levava depressa às estrebarias para que pudesse mostrar-lhe o seu novo cavalo - um presente dele, claro. Queria vê-la cavalgar, e por isso tinham de ir para a floresta juntos. Ele precisava contar-lhe histórias da floresta, de Herne, o Caçador, que se enforcara em um dos carvalhos porque cometera um pecado qualquer e temia ser condenado à morte. Ela ouvia com atenção, adorava as histórias, quanto mais tétricas, melhor. Disse que gostaria de se ver frente a frente com o Caçador.

- Nunca diga isso, minha menina - bradou Ricardo. - Isso significaria sua morte.

E como era agradável ver a grande preocupação dele diante da ideia de perdê-la!

Ela era ávida como nunca quando se tratava de ouvir. Certa vez, dissera a ele:

- Você gostaria que eu fosse mais velha a fim de que pudesse ser uma esposa de verdade para você?

Não havia dúvida que ela ouvira alguma coisa naquele sentido.

- Não - bradou ele, veemente. - Eu a quero tal como você é.

E como aquilo era exatamente o que ela queria ouvir, ficou contente.

Isabella sentia-se muito feliz em Windsor. Tinha de ter aulas, é claro, mas isso não era difícil; era inteligente e gostava de impressionar os professores com sua inteligência.

Deliciava-se com as ricas roupas que usava. Ricardo passava horas com ela e com as costureiras dizendo como suas roupas deviam ser cortadas e bordadas.

Ele entrelaçava as mãos em êxtase quando ela desfilava diante dele nos finos trajes. Ela gostava de sair a cavalo com ele e ver o povo aglomerar-se em torno deles e maravilhar-se com ela.

- Que gracinha! - gritavam eles. Ricardo fingia estar com ciúme.

- Por São João Batista! - bradava ele. - Sou capaz de jurar que eles irão me depor e fazer de você a rainha deles.

Era uma vida encantadora, e ela achava que continuaria para sempre. Não se podia esperar que soubesse da insatisfação que fermentava em torno dela.

Isabella foi coroada com grande pompa e cerimónia em Westminster pelo arcebispo de Canterbury, e isso pareceu o máximo de glória.

Em Windsor, foi colocada sob os cuidados de Lady de Couci, uma mulher animada, a segunda esposa de lorde de Couci, com quem ele se casara depois da morte daquela Isabella que era filha de Eduardo III e, portanto, tia do rei.

Pouco havia que Lady de Couci gostasse mais do que esbanjar dinheiro, e, em consequência, a criadagem da pequena rainha era administrada com uma certa extravagância.

A duquesa de Lancaster, de quem a pequena rainha passara a gostar muito, visitava Windsor e eram ocasiões muito felizes. Mas o visitante mais frequente era o rei, que ia a Windsor muitas vezes e lá eles podiam tocar música juntos, dançar uma dança lenta e majestosa, e ele lia para ela, sentado no banco da janela com ela encolhida ao seu lado.

Ele ansiava pelo conforto dela. Quando o inverno chegou, devia haver roupas forradas de peles para ela e cobertas de peles para sua cama. Não podia deixar que sua adorada não tivesse conforto. Tendo em vista que ela adorava préstitos, o rei estava sempre arranjando-os para ela.

Os dois viviam de forma muito extravagante. Ela levara um bom dote da França, mas mesmo ele não iria durar para sempre.

 

O DUQUE DE GLOUCESTER tinha acessos de raiva em segredo. Ele estava, com frequência, com aqueles outros descontentes, o conde de Arundel e o conde de Warwick.

A Gloucester parecia que estava tudo saindo contra ele; Arundel e Warwick estavam quase que tão desgostosos quanto ele. Arundel era provocado pela sua condessa, que continuava encolerizada pela aceitação de Catherine Swynford na corte, e Warwick porque um caso no qual ele estava envolvido com o conde de Nottingham relativo a umas terras fora julgado contra ele.

Gloucester pretendia agir. Ele se imaginava sendo afastado e tendo negado aquele objetivo ao qual se dedicara por inteiro. O que queria mais do que tudo era tomar o lugar do rei. Mas como seria possível? Havia muita gente na sua frente.

Ele fora contra o casamento francês, e a única alegria que aquilo lhe proporcionava era o fato de a rainha ser jovem demais para dar um herdeiro. Ricardo, agora, mantinha relações amigáveis com Lancaster. Não apenas aceitara a duquesa na corte e lhe dera acesso à rainha, que passara a gostar muito dela, mas legitimara todos os bastardos Beaufort.

Dos dois filhos mais velhos, John Beaufort fora feito conde de Somerset e Ricardo prometera que ele, depois de determinado tempo, ocuparia o cargo de almirante. Henrique, que mostrara sinais de uma inteligência acima da média, deveria entrar para a Igreja. Ele estava na adolescência, ainda, mas, assim que possível, seria arranjada uma diocese para ele. Ricardo garantira ao tio que os outros Beaufort deveriam receber honrarias semelhantes quando chegasse a hora.

Isso agradava muito a Lancaster, que se dedicara a uma feliz vida na maturidade. Ele estava por trás do rei, mas era discreto bastante para não impor demais sua vontade.

Se ao menos Gloucester tivesse agido da mesma maneira.

Mas Gloucester estava querendo fazer das suas. Por quanto tempo, perguntava ele, iria o país aceitar o deficiente governo de Ricardo? Ele fizera a sua paz com a França e arranjara uma menina que não poderia gerar um herdeiro durante anos; ele malbaratara o dote dela. Ele era um inútil e quanto mais cedo fosse deposto e outra pessoa usasse a coroa, melhor.

O rei indicara Roger de Mortimer, conde de March, como seu herdeiro se ele viesse a morrer sem um filho feito por ele para sucedê-lo, e Roger, que era filho de Filipa, filha de Lionel, que era o segundo filho de Eduardo III, vindo depois do Príncipe Negro, era aceito de modo geral como o próximo na linha de sucessão.

Thomas, que nunca podia esperar pacientemente que os fatos acontecessem, procurou Roger para sondá-lo, pois lhe parecia que Roger daria um bom fantoche.

Percebeu logo que foi um grande erro.

Roger era um jovem que fora criado para acreditar que devia lealdade, em primeiro lugar, à coroa. Ele estava fortemente dedicado à Irlanda, porque Ricardo, há algum tempo, o nomeara vice-governador daquele turbulento país.

Ele tinha vinte anos, era idealista, ansioso por provar seu valor, e quando Gloucester lhe disse o que tinha em mente, ficou não só perplexo, mas horrorizado.

- Meu caro Roger - disse Gloucester -, você é herdeiro do trono. Pode estar certo, não podemos esperar pela hora em que ele lhe caiba naturalmente.

Roger ficou pasmo.

- O que quer dizer isto? - perguntou ele.

O rapaz era um simplório, pensou Gloucester. Não era óbvio?

- Um exército o seguiria - insistiu Gloucester. - Você é amado pelo povo. Eles estão cansados do frágil governo de Ricardo. Suas extravagâncias devem ser cortadas, senão o país vai ser prejudicado.

Ainda assim, Roger nada disse; estava perplexo demais para falar. O que Gloucester estava sugerindo? Revolução? Guerra? E contra o rei!

- Um exército iria juntar-se à sua bandeira. Nós pegaríamos o rei e sua mulher francesa, e eles seriam mantidos presos até que Ricardo concordasse em abdicar da coroa. Teríamos de prender meus irmãos Lancaster e York. Mas isso não deve ser difícil. Você está muito pálido. Por quê? Eu lhe digo que este plano não pode falhar.

- Isto... isto é traição! - gaguejou Mortimer. Gloucester agarrou-lhe os braços e encarou-o de perto.

- Quer dizer que você não se juntaria a nós?

- Eu não pegaria em armas contra o rei. Isto é traição. Gloucester percebeu, então, que cometera um dos maiores erros de sua vida. Se Roger de Mortimer informasse o que ele sugerira, seria o fim para ele.

- Por Deus - disse ele -, você é um homem que não sabe o que é bom para você.

- Eu sei, Sr. Gloucester, que nada de bom me aconteceria se eu fosse um traidor do rei.

A mão de Gloucester estava sobre a sua espada. Matá-lo. Era a única maneira. Ele revelara suas tramas àquele jovem e se ele fosse procurar o rei...

Ainda assim, Ricardo não poderia sair vitorioso. Havia coisas demais contra ele.

- Você não vai sussurrar uma só palavra disso a ninguém bradou Gloucester.

- Cabeças rolariam, se eu o fizesse - replicou Roger.

- É. E a sua não estaria muito segura.

- Eu não disse coisa alguma que significasse traição.

- Haveria quem dissesse que você participou da trama. O rapaz ficou perturbado. Não havia dúvida quanto a isso.

- Escute aqui - disse Gloucester. - Você não está do nosso lado. Mas vai ser pior para você, como será para nós, se disser uma só palavra do que eu lhe disse.

Roger compreendeu. Ficou pensativo, e Gloucester continuou:

- Não diga nada do que ouviu. É a melhor solução.

Roger confirmou com a cabeça. Claro que era a melhor solução. Era a única.

E pouco depois ele estaria partindo para a Irlanda.

Foram dias preocupantes antes de ele partir. Gloucester não ficou mais aliviado ao vê-lo partir do que Roger ficou ao partir.

com que então havia um plano sendo armado para tirar-lhe a coroa. Ricardo sabia disso. Os rumores eram frequentes por toda Londres e pelo interior. Gloucester estava decidido a provocar o povo contra ele. Estavam sussurrando sobre ele. Diziam que ele estava apaixonado pela garotinha que era a sua rainha. Por que teria ele escolhido uma criança? Era porque não gostava de mulheres. Ele era igual ao bisavô, Eduardo III. Todos se lembravam de que ele se cercara de favoritos, mimara-os, gastara com eles o dinheiro do país. Ricardo gastara com tamanha extravagância que os cofres reais estavam se esvaziando depressa. Todos tinham testemunhado a maneira exagerada com que ele gastava dinheiro com a sua rainha. Sua mesa estava coberta de alimentos caros, quando havia muita gente passando fome.

Aquilo não era jeito de governar.

Gloucester estava fomentando encrencas, e Ricardo sabia o motivo. Havia algo mais. Por que Roger de Mortimer ficara tão ansioso por voltar para a Irlanda? O que teria Gloucester proposto a ele?

Ricardo fazia uma ideia.

Houvera época em que fora feita uma tentativa de depô-lo; e os cabeças da rebelião tinham sido Gloucester, Arundel, Warwick e seu primo Bolingbroke com Thomas Mowbray.

Ricardo não era homem de esquecer um insulto e iria lembrar-se daqueles cinco enquanto vivesse. Agora parecia que três deles tinham-se juntado - Gloucester, Warwick e Arundel; e era com aqueles três que ele queria lidar.

Tendo adquirido experiência com rebeliões, ele não cometeria os mesmos erros outra vez. Na época, era uma criança; agora se tornara um homem que sabia governar. Iria atacar primeiro, antes que eles pudessem fazê-lo.

Foi para Londres e levou junto sua tropa de arqueiros. O prefeito de Londres, Richard Whittington, viu com certa apreensão os soldados que enchiam as ruas e deu ordens secretas para que os grupos treinados de Londres ficassem prontos para entrar em ação.

As operações de Ricardo começaram com a convocação de uma reunião do Parlamento, o que levaria todos os nobres a Londres, e ele enviou convites especiais a Gloucester, Warwick e Arundel para jantar com ele na casa do bispo de Exeter em Temple Bar.

Gloucester tinha seus espiões, e Arundel também. Nenhum dos dois gostou do tom daquele convite. Além do mais, sabiam que Ricardo estava com seus arqueiros em Londres.

De seu castelo de Pleshy, Gloucester mandou dizer que estava muito doente para comparecer. Arundel não mandou aviso algum, mas mesmo assim voltou para seu castelo em Reigate e montou um estado de sítio.

Warwick, sem ter percebido a verdadeira situação, chegou a Temple Bar.

O rei recebeu-o com gentileza e conversou sobre assuntos internos, de modo que Warwick não fez ideia de que alguma coisa de anormal estivesse acontecendo.

Os dois ficaram sentados, bebendo vinho e conversando em termos vagos sobre o Parlamento que deveria reunir-se em breve.

Então, de repente Ricardo se levantou e chamou os guardas. Warwick levantou-se, perguntando-se o que poderia significar a mudança de atitude do rei.

- O senhor está preso - disse ele.

- Majestade... - gaguejou Warwick.

- Eu sei sobre suas tramas - disse Ricardo. - É melhor admitir que está planejando com Gloucester e Arundel um ataque contra mim.

- É falso... - gaguejou Warwick, sem convencer.

- Levem-no para a Torre - disse Ricardo. - Não tenho dúvida de que ele acabará nos contando tudo.

Warwick, protestando, foi levado dali.

Isso resolve o caso de Warwick, disse Ricardo para si mesmo. Agora é a vez de Arundel.

Arundel estava escondendo-se em Reigate, mas Ricardo não queria pegar em armas e ir até o castelo dele para pegá-lo, o que seria declarar uma guerra aberta. O melhor plano era atraí-lo a Londres, e uma vez lá, ele poderia ser preso com facilidade.

Ricardo mandou chamar Thomas Arundel, agora arcebispo de Canterbury, e quando o arcebispo chegou Ricardo disse que tinha um pedido a fazer.

- Quero que o conde, seu irmão, venha falar comigo aqui em Londres, e o senhor deverá trazê-lo aqui.

O arcebispo pareceu espantado. Ele ainda não sabia da prisão de Warwick, mas ficou alarmado com as palavras do rei.

- Majestade - disse ele -, será que ele não viria mais prontamente a um pedido seu do que meu?

- Acho que ele anda pensando que estou contrariado com ele. Convidei-o para jantar comigo, mas ele não responde ao meu convite.

- Meu irmão deve ter algum motivo, majestade. Deve estar doente.

- Talvez ele precise de um pouco de garantia e ela será melhor partindo do senhor. Eu prometo... por São João Batista, eu juro... que se ele vier por sua livre vontade, nada de mau lhe acontecerá. Mas quero que ele venha em paz. O senhor compreende, senhor arcebispo, não quero ir ao castelo dele para apanhá-lo. Tudo o que quero é conversar com ele. Convença-o a vir pacificamente.

- Ele deve ter ouvido algum aviso...

- Senhor arcebispo, o senhor sabe como essas coisas acontecem. Vá procurá-lo. Convença-o. Eu jurei, não jurei?

O arcebispo disse, então, que falaria com o irmão, e foi vê-lo. O conde ficou satisfeito ao ver o irmão, mas alarmado quando soube do motivo da visita.

- Ele ouviu algum rumor - disse o conde. - Ele quer me fazer algum mal.

- Ele jurou por São João Batista que nada lhe acontecerá de mau.

- Mesmo assim, eu não confiaria nele.

- Vamos, irmão. Você deve voltar para Londres comigo. Caso contrário, vai irritar o rei. Ele virá aqui para pegá-lo, e está com uma tropa de arqueiros.

- Mas por que ele viria me buscar, a menos que queira me fazer mal?

- Porque ele é jovem e ainda é novato no poder. Ele pediu obediência. Obedeça, e ele será seu amigo. Eu lhe digo que ele jurou não lhe fazer mal.

O conde acabou sendo persuadido e voltou com o irmão para Londres, onde passaram a noite em Lambeth.

No dia seguinte, os dois foram levados para o outro lado do rio na barcaça a remos do arcebispo, para Westminster, onde os irmãos se despediram e o arcebispo foi levado de volta na barcaça para Lambeth.

O conde foi levado para os aposentos do rei, onde Ricardo conversava com vários de seus ministros e quando viu quem chegara limitou-se a olhar para ele, sem lhe dirigir qualquer saudação. Arundel sentiu a confiança esvair-se.

Traidor!, pensou Ricardo. Você foi um daqueles que levaram às pressas ao cadafalso o meu querido amigo, Simon Burley. Agora não haverá misericórdia para você. Anne chorou por Burley... implorou de joelhos em favor dele. Minha querida e doce rainha, que nunca fez mal a ninguém. E você a repeliu com desprezo! Deu as costas aos pedidos dela. Por São João Batista, Arundel, não haverá misericórdia para você, agora.

- Levem o senhor Arundel daqui-bradou ele.

E assim o levaram para a Torre e, depois, para a ilha de Wight, onde, disse Ricardo, ele deveria ser mantido preso até que o Parlamento se reunisse.

Isso, disse o rei, elimina dois deles.

Dois dos inimigos estavam onde ele queria; restava o terceiro e mais perigoso de todos.

Começava a escurecer quando o rei, com uma guarda armada, partiu para Pleshy, em Essex, a residência favorita de Gloucester.

Eles cavalgaram a noite toda. Caíra uma chuva fraca, mas quando avistaram as imponentes torres de Pleshy, o sol saiu. Aquele castelo era uma fortaleza poderosa, com muros grossos e um fosso à sua volta.

O rei deixara a maior parte de sua força escondida num bosque, com instruções para se aproximar quando fosse dado um sinal.

Ricardo esperava que Gloucester ainda não tivesse sabido das prisões de Warwick e Arundel. Se tivesse, deveria estar se preparando para um sítio, e numa fortaleza como aquela ele poderia resistir durante muito tempo.

O som da comitiva que se aproximava levara os guardas a seus postos, e por se tratar de um grupo pequeno, ninguém levantou suspeita. Ricardo ficou exultante quando ouviu o grito de: "O rei!" E a grade levadiça foi erguida imediatamente.

Gloucester chegou depressa para receber o sobrinho. Estava claro que não soubera de coisa alguma.

- Prepare-se para partir imediatamente - gritou Ricardo. O senhor vai voltar comigo para Londres.

- Majestade... com que finalidade?

- Só um negócio sem importância para o nosso bem... seu e meu. Você vai ficar sabendo. Agora, eu e meus homens estamos com fome; vamos comer antes de partir.

Enquanto a comida era servida, Gloucester tornou-se cada vez mais aflito:

Quando acabaram de comer, o rei manifestou o desejo de partir logo. Os cavalos estavam esperando e Ricardo e o tio saíram cavalgando lado a lado.

- Que bela manhã! - bradou Ricardo. Ele estava exultante. Tudo estava funcionando perfeitamente, como ele planejara. Tinha sido fácil pegá-los na rede. Prendera Arundel fazendo uma trapaça, mas isso pouco importava para ele. Estava pronto a atingir seus fins, quaisquer que fossem os meios. Pensou em Robert de Vere, mandado para fora do país; pensou no bom amigo Simon Burley, caçado até a morte; pensou em Anne de joelhos, implorando pela vida do querido amigo deles. Ele tinha muito do que se vingar, e o faria.

Conversou com o tio de maneira aparentemente despretensiosa. Queria que ele comparecesse àquela reunião do Parlamento. Havia certos assuntos que precisavam ser discutidos e, como era natural, não queria que aquilo fosse feito sem a presença do tio.

Gloucester, que ficara apreensivo com a súbita aparição do rei, sentiu-se um pouco melhor. Tivera medo de que a notícia sobre a sua trama pudesse ter chegado aos ouvidos do rei, mas os modos de Ricardo, que parecia muito afável, estavam aplacando seus temores. Mas ficou assustado quando, ao passarem por um bosque, surgiu um grupo de homens armados, à frente dos quais estava o conde de Nottingham.

O conde seguiu direto para perto do duque e, colocando uma das mãos em seu ombro, disse:

- Senhor duque, está preso. Em nome do rei.

O duque voltou-se com raiva para o conde. Sorrindo, o rei seguiu em frente.

- Majestade - bradou Gloucester. - Senhor meu rei! Ricardo! Esse sujeito está louco. Eu lhe peço, sobrinho, volte.

Mas Ricardo continuou em frente; e Gloucester então percebeu que tinha sido vítima de uma trama. Devia ter percebido isso quando o rei fora a Pleshy. Devia ter descoberto aquela história antes de sair docilmente com ele.

Durante algum tempo, ficou calado; todo o seu estilo bombástico lhe fugira.

O rei já desaparecera de vista e ele percebeu que não estavam seguindo para Londres, mas para o litoral.

- Para onde estão me levando?-perguntou ele.

- As ordens do rei são para que o senhor seja levado para Calais - foi a resposta.

- Para Calais! com que finalidade? Como ousam tratar-me dessa maneira? Por Deus, Nottingham, você vai se arrepender disso. O que fiz para merecer esse tratamento?

- Isso o senhor vai poder responder melhor do que ninguém, senhor duque - foi a resposta cínica.

A agitação era grande na cidade de Londres. O conde de Ârundel seria levado a julgamento. Não fazia muito tempo assim que ele tinha sido o herói do país, quando derrotara os franceses de forma tão espetacular que tornara os mares seguros para a Inglaterra e salvara o país da invasão de que estava ameaçado. E agora, ali estava ele para ser julgado como traidor.

com grande dignidade, vestindo sua capa e seu capuz escarlates, ele compareceu diante do Parlamento reunido, caminhando com calma pelas filas de arqueiros.

Estava cônscio dos inimigos colocados à sua volta, como cães retesados para o ataque. O principal deles era o duque de Lancaster, que era naquele dia o representante da coroa; e com ele estava o filho, Henrique de Bolingbroke.

Haveria pouca misericórdia para com ele naquele dia, pensou Arundel.

John de Gaunt deu a ordem para que fossem lidas em voz alta as acusações contra o conde. Arundel ouviu a lista de seus crimes, o mais grave de todos sendo, é claro, suas recentes atividades que foram resumidas como tendo pegado em armas com o duque de Gloucester e o conde de Warwick, contra o rei.

Arundel tinha poucas esperanças. Sabia que seus dias estavam contados. Ele soube que seu irmão, o arcebispo, seria destituído. Claro que não iriam matá-lo, pois era membro da Igreja, mas sua carreira estaria acabada. Sem dúvida seria banido da Inglaterra, mas a vida lhe seria poupada.

Arundel falou, com voz alta e clara, declarando que o que tinha sido feito não era com más intenções quanto à pessoa do rei. Era tudo para o bem do rei e do país.

Sabia que Lancaster estava olhando para ele. Lancaster devia estar se lembrando da maneira pela qual ele, Arundel, e sua esposa tinham desprezado Catherine Swynford. Ele podia imaginar que Lancaster jurara vingança por causa daquele desdém para com sua mulher e que Arundel pagaria por isso.

- O senhor é um traidor - bradou Lancaster.

- O senhor está mentindo - retorquiu o conde. - Nunca traí o rei. Fui perdoado quando fui acusado antes.

- Por que precisaria de perdão, se não era culpado?-perguntou Lancaster.

- Para dar um basta a acusações maléficas por parte daqueles que não gostavam de mim ou do rei mas que eram meus inimigos implacáveis. O senhor era um deles. O senhor tem mais motivos para pedir perdão do que eu.-Ele se voltou para encarar aplatéia.-Os senhores estão reunidos - prosseguiu ele -, mas não para fazer justiça.

Bolingbroke se levantara e perguntou:

- O senhor não disse, quando nos reunimos da primeira vez, quando se falou na primeira vez em insurreição, que o melhor método era prender a pessoa do rei?

- Eu nunca tive, para com o meu soberano, um único pensamento que não fosse o de servi-lo bem.

Ricardo bradou, então:

- Certa vez o senhor me disse que Sir Simon Burley merecia a morte e eu respondi que não via motivo para isso. No entanto, o senhor e seus amigos mataram aquele homem bom.

Ricardo ficou momentaneamente dominado pela emoção ao pensar no homem que ele amara e que a rainha amara e pelo qual implorara.

Todos sabiam que Arundel pagaria o preço não apenas por tramar contra o rei, mas pela sua parte no assassinato do amigo e tutor do rei.

Lancaster, por fim, pronunciou a sentença.

- Eu, John, representante da Coroa da Inglaterra, declaro você, Richard Fitzalan, conde de Arundel, um traidor e o condeno a ser enforcado, estripado e esquartejado...

Fez-se um silêncio profundo. Aquela era a sentença mais bárbara que o país conhecia. Arundel a ouviu sem mudar de expressão. Então, viu-se que o veredicto já tinha sido decidido antes de o julgamento começar, porque Lancaster continuou:

- O rei, nosso soberano, na sua misericórdia e graça, suspendeu todas as outras partes da sentença exceto a última, e o senhor perderá apenas a cabeça.

Não havia motivos para demorar. O conde foi imediatamente levado paraTower Hill, mas para chegar até lá ele tinha de passar pelas ruas de Londres e, lá, as multidões saíram para vê-lo. Houve um silêncio respeitoso. Aquele era Arundel, o herói da grande batalha naval, o homem que eles ovacionaram e chamaram de salvador. E ali estava ele, caminhando para a morte sem, como diziam, mais humildade ou mudança de cor do que se estivesse indo para um banquete.

Ele ficou de pé, corajoso, ao lado do cepo, e voltando-se para o carrasco, disse:

- Eu o perdoo pelo que você está prestes a fazer. E uma coisa eu lhe peço. Não me torture mais. Decepe a minha cabeça de um só golpe.

Arundel, então, passou os dedos ao longo da lâmina do machado.

- Está afiado - disse ele. - Que seja rápido.

Colocou a cabeça no cepo e com um só golpe ela foi separada do corpo.

Depois da travessia do canal e de seu encarceramento no castelo de Calais, Gloucester perdera um pouco da arrogância. Percebeu que estava em situação desesperadora. O rei já não era mais um menino para ser mandado fazer isto e aquilo; era claramente capaz de agir com astúcia, e o ardil para capturar o ardiloso tio dera resultado. Gloucester soube, também, da prisão de Arundel e Warwick.

O que acontecerá em seguida?, perguntava-se Gloucester.

O rei jamais teria coragem de matá-lo. Afinal, era seu tio. Lancaster jamais permitiria. O irmão não tinha amores por ele, mas nenhum duque de sangue real gostava de ver um outro destruído.

Ele sairia dessa. Tinha de sair; e então, teria de agir com muita cautela por algum tempo.

O castelo era uma fortaleza sombria, construída principalmente para fins de defesa, embora Gloucester estivesse instalado ali com bastante conforto; mas todas as manhãs, ao acordar, ficava imaginando o que aquele dia iria lhe trazer.

Não ficou muito tempo na expectativa. Sir William Rickhill, juiz das Causas Comuns, chegou da Inglaterra e disse a Gloucester que tinha ido interrogá-lo e obter um depoimento seu.

Gloucester sentiu-se quase aliviado. Era melhor acontecer alguma coisa do que ficar naquela ansiedade.

Sir William Rickhill ficou surpreso quando se viu frente a frente com o duque. Ele sabia de seus modos bombásticos e que no passado ele se portara com grande arrogância como se ele, e não o sobrinho, fosse o rei.

Encontrou um homem mudado. Até mesmo a pele corada tornara-se pálida, e havia em seus olhos uma expressão de ansiedade. Estava claro que era um homem muito preocupado.

Gloucester conversou livremente com Sir William. Admitiu ter mantido o rei sob controle dez anos antes e ameaçara depô-lo. Não adiantava fingir o contrário, porque Ricardo sabia que era verdade. Sim, podia-se dizer que ele considerara o sobrinho uma criança e não mostrara por ele o respeito que um súdito devia ter para com seu rei. Só lhe restava pedir perdão ao rei.

Rickhill voltou para a Inglaterra, e Gloucester tentou ficar esperando pacientemente pelo veredicto.

Não havia notícias da Inglaterra. Todos os dias, Gloucester olhava pela janela de seus aposentos no castelo, que eram bem vigiados pelos carcereiros, para o mar tempestuoso, aguardando a chegada dos mensageiros do rei.

Eles viriam. Ele seria perdoado. O rei não podia mandar matar seu tio.

Ele tinha um novo criado, John Halle, que lhe disse já ter trabalhado para o conde de Nottingham.

Havia algo de astuto naquele homem, e muitas vezes Gloucester descobria os olhos de John fixos nele, como se algum plano estivesse se formando em sua cabeça. Gloucester estava realmente mudando, já que se preocupava com o estado de espírito de criados. Não que houvesse alguma coisa a reclamar em Halle. Ele era bem subserviente. E havia um outro, chamado William Serie, que admitia já ter trabalhado no castelo do rei.

Gloucester perguntou a Halle por que os dois estavam ali. A resposta foi que tinham sido mandados para lá.

- Apenas obedecemos as ordens que nos são dadas, senhor duque-disse William Serie.

Um dia, John Halle foi falar com o duque e disse-lhe que devia preparar-se para deixar o castelo.

Gloucester gritou de alegria. Estava indo para casa. Claro que Ricardo não podia ficar contra o tio por muito tempo. Seus irmãos Lancaster e York podiam não gostar dele, mas iriam lembrar-se de que eram filhos do mesmo pai régio. As famílias deviam manter-se unidas, e isso era de uma importância especial se fossem de sangue real.

Ele estava pronto. À sua espera estava um pequeno grupo de guardas - entre os quais Halle e Serie - para escoltá-lo, segundo ele supunha, até o litoral.

Cercado por eles, Gloucester saiu do castelo a cavalo, mas para seu desalento, em vez de irem para a praia, onde ele esperava que um navio os estivesse aguardando, eles entraram nacidade de Calais.

- Para onde estamos indo? - perguntou ele. Foi William Serie que respondeu:

- Para um novo alojamento para o senhor, senhor duque.

- Novo alojamento! Aqui em Calais?

Eles tinham parado diante de uma estalagem. Gloucester ergueu os olhos para a placa que balançava acima da porta. The Princes Inn. Parecia um prédio mal conservado.

- Não gosto disso - disse Gloucester. - Por que me trazem para cá?

- Senhor duque, não devia perguntar a nós. Apenas obedecemos as ordens que nos são dadas.

- Eu não compreendo...

Eles o levaram para dentro. Estava escuro e lúgubre. Um horrível lugar malcheiroso.

Ele se voltou para sair, mas foi cercado pelos guardas.

- Você já preparou o quarto? - disse William Serie, que parecia ser o líder.

Um homem desgrenhado, vestindo uma jaqueta imunda, surgiu da penumbra.

- Está tudo pronto, bons senhores - respondeu ele.

- Então, vamos para ele - disse Serie.

- Não vou subir essas escadas - bradou Gloucester.

- Senhor duque, nós temos ordens.

Eles estavam fazendo pressão à sua volta, de modo que ficou claro que ele tinha de obedecer.

Uma porta foi aberta, e ele foi conduzido à frente. Viu-se no meio de um quarto, no chão do qual havia um catre. O abafamento do local e o mau cheiro deixaram-no enojado.

- Tirem-me daqui - berrou ele.

Serie abanou a cabeça, num gesto de tristeza.

- Não vai ser por muito tempo, senhor duque. Isso posso prometer-lhe. Mas estou fazendo apenas o que me mandam.

Os homens que o haviam levado até ali estavam do lado de fora do quarto. Serie recuou. A porta foi fechada, e Gloucester ficou sozinho.

Ele nunca sentiu tamanho desespero na vida. com ordens de quem ele tinha sido levado para lá? De Ricardo? O que pretendiam fazer com ele? Deixá-lo ali, para que morresse de fome, ir embora e esquecê-lo?

Sentou-se no catre. Enterrou o rosto nas mãos. Queria impedir a visão daquele quarto horrível.

Sentia a condenação à sua volta. Jamais escaparia. Eles o tinham levado para aquele lugar para morrer.

Mas por quê? Por quê? Por que não o tinham eliminado no castelo? Estava certo de que um destino cruel fora preparado para ele.

Ele ouvia os ratos em um dos cantos do quarto. Um deles passou correndo perto dele... olhando-o, atrevido, com olhos malfazejos.

- Deus - rezou ele -, tire-me daqui. Farei qualquer coisa... mas tire-me daqui.

Então, passou em revista sua vida, pensou na raiva que sentira por ser o caçula dos filhos homens de seu pai, em todos os sonhos e na ânsia pelo poder. E aquilo o levara àquela situação!

Será que Lancaster sabia? Ele era seu irmão. Será que York sabia? Edmund sempre fora o tranquilo, sem nunca procurar o poder, vivendo nas sombras. Gloucester praticamente não pensara em Edmund nos últimos anos. Talvez Edmund fosse o mais sensato de todos eles. E ultimamente Lancaster perdera o ímpeto. Quem teria acreditado, um dia, que o ambicioso John de Gaunt iria contentar-se em viver tranquilo com a esposa de origem humilde?

E que isso pudesse me acontecer! Ele quis gritar, berrar para que fossem libertá-lo. Sabia que era inútil.

O instinto disse-lhe que fora levado para aquele quarto para morrer. Agora, ele rezava em silêncio:

- Que seja logo, Senhor. Que seja rápido.

Ele parecia ter caído em estupor. A escuridão avançava sobre ele. Pensou: à noite, os ratos vão sair.

Sentiu-se entorpecido e só podia rezar:

- Ó Senhor, que seja logo.

Parecia que sua oração estava para ser atendida. Ele ouviu passos naescada-passos furtivos, bem baixos. Aporta estava sendo aberta devagar, sem fazer barulho. Havia homens dentro do quarto. Ele reconheceu William Serie.

Gloucester levantou-se e ao fazê-lo foi agarrado.

Eles estavam carregando alguma coisa. Ele não sabia do que se tratava. Pareciam colchões de penas.

Deus ouvira suas orações. A coisa estava acontecendo depressa. Ele foi jogado de bruços no catre e os colchões de penas foram colocados em cima dele.

Os colchões foram pressionados com firmeza sobre ele. Não havia ar. Ele não conseguia respirar.

E assim morreu o orgulhoso duque de Gloucester.

Ricardo congratulou-se consigo mesmo pela rapidez com que agira. Livrara-se dos três principais antagonistas. Só um deles continuava vivo - o conde de Warwick -, e este nunca fora a ameaça que os outros dois haviam representado. Warwick fora atraído para a conspiração quase que contra a vontade. Em seu julgamento, confessara a culpa e implorara o perdão do rei. Não havia motivo para mandar matá-lo. Já tinha havido morte bastante, e segundo o modo de pensar do povo, a morte era o galardão da santidade. Diziam, até, que agora estavam acontecendo milagres sobre o túmulo de Arundel.

Não, que Warwick fosse condenado ao confisco dos bens e à prisão perpétua. Ele fora enviado para a ilha de Man, onde ficaria sob o controle do governador de lá, William lê Scrope, que não era homem de mostrar leniência para com um traidor confesso do rei.

com Arundel morto e Warwick preso e Gloucester morrendo em condições muito misteriosas em Calais, só restava uma coisa a fazer. O corpo de Gloucester devia ser levado para a Inglaterra e ter um enterro decente.

Havia rumores sobre a causa da morte dele, porque quando de sua prisão Gloucester tinha sido um homem saudável. Ricardo não queria saber de ver aquele tio que nada tinha de santo virar um mártir.

Mandou chamar um dos padres para que pudesse dar instruções pessoais sobre como o corpo do tio deveria ser tratado.

O padre foi procurar o rei, e quando os dois ficaram frente a frente, Ricardo ficou perplexo, porque o padre se parecia tanto com ele, que se eles tivessem estado vestidos com roupas semelhantes seria praticamente impossível diferenciá-los.

- Quem é você? - perguntou Ricardo.

- Richard Maudelyn às suas ordens, majestade.

- Estou estupefato - disse Ricardo. - Deve ser óbvio para você que nos parecemos muito um com o outro.

O padre sorriu.

- Majestade, a vida toda vêm me dizendo que me pareço muito com vossa majestade.

- É impressionante - disse Ricardo, sorrindo. - Deve haver algum laço sanguíneo.

- Tenho pensado muitas vezes nisso, majestade.

- Seus pais...

- Meus pais morreram, senhor.

- Eu me pergunto...

- É possível, majestade.

Ricardo ficou pensativo. Seu pai tinha sido um marido fiel, mas Ricardo sabia que ele tinha pelo menos um filho ilegítimo, que nascera antes de ele se casar. Richard Maudelyn era cerca de dez anos mais velho do que ele. Era possível.

- Estou tão impressionado com essa semelhança fora do comum - disse o rei - que me esqueci do motivo pelo qual mandei chamá-lo. Você sabe que o duque de Gloucester morreu em Calais. Quero que providencie para que seu corpo seja levado para a viúva, a fim de ser enterrado na abadia de Westminster.

- Assim será feito, majestade.

- E, Richard Maudelyn, depois que isso tiver sido feito, eu gostaria que você me servisse outra vez.

- Obrigado, majestade.

Ricardo gostara tanto do seu sósia que lhe deu um cargo em sua equipe.

Os dois se tornaram grandes amigos, e todos ficavam perplexos com a semelhança. Até a voz de Richard Maudelyn se parecia com a do rei e ele, com a maior facilidade, fazia uma imitação do seu senhor que para muitos de seus cortesãos não dava para saber de quem se tratava.

Ricardo achava divertido e gostava de pregar algumas peças neles, trocando de trajes com Maudelyn. Às vezes eles não revelavam o engano, e Ricardo começou a perceber que Maudelyn poderia, muitas vezes, assumir seu lugar. Ele chegara até a passar pela cidade a cavalo e agradecer as saudações do povo.

A Ricardo e àqueles que lhe eram chegados ocorreu que talvez chegasse uma hora em que aquela estranha singularidade do destino pudesse ser bem aproveitada.

Thomas Mowbray estava aflito. Era verdade que como conde de Nottingham ele ajudara a levar Warwick, Arundel e Gloucester à justiça, e pelos seus serviços fora feito duque de Norfolk. Mas o rei mostrara ser um homem que não esquecia facilmente um insulto. E Mowbray, embora fosse agora duque de Norfolk, tinha sido um dos cinco que enfrentaram Ricardo naquela memorável ocasião havia anos. O rei vingara-se de três deles. Restavam dois, ele e Bolingbroke, agora duque de Hereford.

Norfolk lembrava-se da explosão do rei contra Arundel, ao lembrar-lhe a implacável e inexorável perseguição de Simon Burley. Levantar aquele assunto tantos anos depois mostrava o quanto aquilo o atormentara. Ricardo era uma pessoa que jamais esquecia uma ofensa; e era lógico concluir que aquela ocasião em que os cinco lordes o haviam enfrentado e prendido era algo que não lhe sairia da lembrança. E ele se vingaria de todos os cinco.

Havia outro que estivera presente naquela ocasião, um dos cinco. Tratava-se de Bolingbroke.

Um dia, quando Norfolk viajava entre Brentford e Londres, encontrou-se com Hereford. Os dois pararam em uma estalagem e beberam cerveja, e durante a conversa Norfolk tocou no assunto que lhe dominava a mente.

- Você acha - disse ele - que o rei um dia vai esquecer que você e eu fazíamos parte dos cinco Lordes de Apelação?

- Meu caro Norfolk - replicou Hereford -, isso aconteceu há anos.

- Mas o rei não é de esquecer e perdoar.

- O assunto está encerrado.

- E o que aconteceu a Gloucester? E a Warwick e a Arundel?

- Eles tramaram há pouco tempo. Nós recebemos nosso perdão. O que você propõe? - perguntou Hereford.

- Que devemos pensar cuidadosamente neste caso. Temos os nossos inimigos. Eles podem estar aconselhando o rei a agir contra nós.

- Está sugerindo que nós façamos alguma coisa?

- Sugiro que pense nisso.

Hereford ficou pensativo. Ele desconfiava de Norfolk, que recebera honrarias demais e estava ficando poderoso demais.

Decidiu ir procurar seu pai, contar-lhe o que acontecera e pedir seu conselho.

Lancaster estava em Ely House, em Holborn, com sua duquesa, e o filho foi visitá-lo.

Ele envelhecera muito nos últimos anos, mas havia nele uma serenidade que lhe faltara antes. Não havia dúvida de que estava feliz com o casamento, e Catherine era assídua nos cuidados para com ele.

Ela recebeu Henrique calorosamente mas, ao mesmo tempo, ficou apreensiva e quando soube do motivo pelo qual ele fora até lá, sua apreensão aumentou.

Ela achara terrível Gloucester e Arundel terem morrido daquela forma. Ela praticamente não tinha motivo para gostar deles, era verdade; as mulheres deles é que tinham feito tudo o que puderam para embaraçá-la. Eram mulheres desprezíveis, mas ela não lhes guardava rancor. Elas não conheciam a felicidade de que ela gozava; e nunca deixaria de sentir orgulho do fato de John ter tratado todas elas com desprezo por sua causa.

E agora, a vinda de Henrique significava encrenca.

Ele repetiu o que Norfolk dissera.

- O que deve ser feito? - perguntou ao pai.

- Você está nas boas graças do rei - replicou Lancaster. Mas quem pode dizer que as palavras de Norfolk e a sua resposta não foram ouvidas? É bem possível que alguém já as tenha comunicado a Ricardo. Palavras podem ser mal interpretadas, e isso pode ser perigoso. Meu filho, há uma coisa que você precisa fazer o mais rápido possível. Deve procurar o rei e contar-lhe essa conversa entre você e Norfolk.

Henrique confirmou com a cabeça.

- Acho que é o mais sensato-concordou ele. - vou procurá-lo imediatamente, antes que ele ouça outra versão.

- Vá depressa - aconselhou Lancaster.

Ele ficou ao lado de Catherine, vendo o filho afastar-se a cavalo.

- Vivemos numa época perigosa - disse ele. Catherine teve um tremor.

- Não há necessidade de temer por mim - prosseguiu ele, sorrindo ternamente para ela. - Aprendi bem minhas lições, Catherine, e acho que Henrique está aprendendo as dele.

Ela não tinha certeza. Sabia que Henrique tinha uma ambição ardente: possuir a coroa. John fora atormentado pelos mesmos sentimentos profundos; mas olhando para trás, ela via que lhe faltara aquela certa determinação implacável que às vezes ela percebia em Henrique.

Uma vez mais, ela se perguntava como tudo aquilo acabaria.

O rei ouviu o que Hereford tinha a dizer. Ele sempre desconfiara daquele primo, e também sempre sentira inveja dele. Henrique era popular. Era rico e poderoso. Era pai de quatro filhos e duas filhas, e o mais velho era conhecido como o jovem Harry de Monmouth, devido ao local de nascimento. Ele estava, agora, com cerca de dez anos e era um menino corpulento, inteligente, do qual qualquer pessoa poderia orgulhar-se. Apesar da morte da mulher de Hereford, ele tinha uma bela família.

Havia uma coisa que Ricardo não conseguia esquecer - e quanto a isso Norfolk tivera razão: Hereford e Norfolk um dia tinham ficado do lado daqueles três que tinham sido levados à justiça. Sim, eles tinham sido perdoados, mas Ricardo não conseguia esquecer.

Agora, ele olhou para o primo com os olhos semicerrados e disse:

- Quero ouvir a versão de Norfolk para essa história. Por isso, você vai ficar aqui detido até que ele seja trazido à nossa presença.

Henrique concordou de bom grado. Estava certo de que o pai tivera razão quando o aconselhara a ir contar ao rei exatamente o que fora dito.

O encontro aconteceu diante do Parlamento em Oswestry, onde Hereford, na presença do rei, acusou Norfolk de fazer-lhe sugestões traiçoeiras.

- O senhor é falso e desleal para com o rei - anunciou ele. O senhor é inimigo deste reino.

- O senhor é um mentiroso - retorquiu Norfolk. - O senhor é que é o traidor falso e desleal.

Ricardo ficou confuso. Não sabia em quem acreditar. Que aqueles dois se odiavam, estava claro. Qual seria o motivo? Quanto haveria de verdade nas acusações de Hereford e nas negativas e contra-acusações de Norfolk?

Ricardo mandou prender os dois enquanto pensava na melhor maneira de lidar com eles.

O que estaria por trás daquela rixa entre aqueles dois homens poderosos? Ricardo estava sempre se lembrando de que eles tinham sido dois dos cinco lordes que se haviam voltado contra ele havia dez anos.

Hereford estava agora acusando Norfolk de receber oito mil nobres para pagar os soldados que estavam vigiando Calais e não usar o dinheiro com a finalidade pretendida, mas em proveito próprio.

Norfolk refutou a acusação com veemência. Jurou não se ter apropriado do dinheiro, e que tinha usado todo ele na defesa de Calais.

Ricardo mandou chamá-los uma vez mais e aconselhou-os a esquecerem suas diferenças; mas os dois homens declararam que jamais fariam isso e a única coisa que os deixaria satisfeitos seria os dois se enfrentarem num duelo.

Ricardo pensou no caso. Aquilo provavelmente significaria a morte para um deles; e o outro bem poderia não se sair bem do duelo. Talvez não fosse má ideia. Uma vez os dois tinham ficado contra ele; quem sabia quando tornariam a ficar? Não era uma ideia tão má assim deixar que destruíssem um ao outro numa rixa pessoal sem importância.

Aquele combate deveria acontecer. O povo iria gostar, e sempre era uma boa ideia oferecer uma diversão exuberante quando o povo estava inquieto.

O duelo deveria ter lugar em Coventry, e seria um acontecimento muito pomposo. Ricardo mandara armar um luxuoso pavilhão para ele e sua corte. Lancaster mandara construir outro - igualmente luxuoso - para ele e sua família.

Hereford encomendara uma armadura especial para a ocasião e ela foi fornecida por seu amigo, o duque de Milão. Para não ficar atrás, Norfolk mandou buscar a sua na Alemanha, porque todo mundo sábia que os milaneses e os alemães eram peritos em armaduras e era uma questão de opinião dizer quem era o melhor.

O dia do duelo chegou e durante todo o dia anterior as pessoas chegavam para ocupar seus lugares, a fim de garantir uma boa visão.

Houve um engolir em seco de prazer quando Hereford apareceu montado em um cavalo branco ajaezado com muito capricho, com veludo verde e azul bordado com cisnes e antílopes em ouro.

A cerimónia começou com o marechal perguntando quem era ele.

- Eu sou Henrique de Lancaster, duque de Hereford - foi a resposta -, e vim aqui para desafiar Thomas Mowbray, duque de Norfolk, na qualidade de traidor de Deus, do rei, do reino e de mim.

- Jura pelo Espírito Santo que sua disputa é justa? - perguntou o marechal.

- Juro - bradou Hereford em voz alta e sonora, enquanto embainhava a espada e baixava o visor; e benzendo-se e pegando a lança, adiantou-se.

Norfolk apareceu, então, o cavalo ajaezado com igual esplendor em veludo vermelho bordado com leões e amoreiras. Fez as mesmas afirmações e bradou:

- Que Deus ajude a quem tiver razão. Estava tudo pronto, então, para o sinal de partida.

Ricardo estivera esperando por aquele momento. Ele tomara uma decisão antes de chegar ao campo. Não confiava em nenhum daqueles dois; tinham ficado contra ele uma vez, fariam a mesma coisa de novo. Era verdade que um poderia matar o outro, mas ainda sobraria um. Ricardo chegara à conclusão de que ali estava uma oportunidade caída do céu para livrar-se dos dois.

Ele deixara que os preparativos para o combate continuassem, porque sabia que o povo teria ficado com raiva se o duelo tivesse sido cancelado. Agora, todos tinham visto os esplendores e testemunhado a chegada dos dois protagonistas; e embora não fossem ver o combate, teriam o prazer de estar presentes ao desfecho.

Foi um momento dramático quando Hereford e Norfolk, lanças prontas, estavam para avançar. Então Ricardo levantou-se e arriou seu bastão. Aquele era o sinal de parar imediatamente a cerimónia.

Os arautos deram o grito tradicional de "Ho! Ho!", enquanto a multidão esperava, tensa de emoção. Ricardo ordenou que os duques entregassem suas lanças e voltassem a seus lugares.

Foi anunciado, então, que o rei queria discutir o caso daquela rixa com seu Conselho e eles iriam retirar-se para o pavilhão real para isso. Naquele ínterim, todos deveriam esperar a decisão sobre se o combate devia continuar ou não.

Só duas horas depois a decisão foi dada.

O rei e seu Conselho tinham chegado à conclusão de que aquele combate não traria benefício algum. Não era uma questão de qual dos dois homens poderia sair-se melhor nos duelos, mas qual deles era traidor do rei e do reino; e como nenhum deles deixara o rei certo de sua lealdade, e ele não confiava em nenhum dos dois, ele iria exilá-los, Norfolk para a vida toda e Hereford por dez anos.

Houve um grande suspiro na multidão e depois um silêncio de morte.

O horror dos dois homens era evidente. Exílio! Aquela era a palavra mais temida de todas. E por que teria o rei dado sentenças tão severas assim? Uma coisa estava clara. Ele estava muito inquieto e via algo mais naquilo do que uma rixa sem importância entre dois homens orgulhosos.

Durante o exílio, os dois não deveriam encontrar-se ou comunicar-se um com o outro de qualquer maneira.

Houve muitos murmúrios entre a multidão enquanto se dispersava. Tinham-na privado de uma grande emoção, mas uma outra, talvez ainda maior, a substituíra. O público não simpatizava com Norfolk; ele não era popular, mas Hereford era um de seus heróis. Ele perdera a mulher recentemente - uma mulher jovem e bonita; tinha filhos, o mais velho dos quais era um menino inteligente conhecido como Harry de Monmouth. As pessoas não compreendiam por que os dois deviam ser punidos. Certamente Hereford fizera a coisa certa ao revelar o que Norfolk lhe dissera.

Era tudo muito misterioso. Mas não para Ricardo. Tinham sido cinco os cavaleiros que haviam ficado contra ele e aquilo assinalaria sua vingança contra todos eles. Hereford lhe dera a oportunidade quando acusara Norfolk de traição.

Quinze dias para resolver os assuntos e deixar o país!

Era uma sentença drástica e mostrava claramente o quanto Ricardo era rancoroso.

Não queria tornar a ver nenhum dos dois, disse ele. Que resolvessem seus negócios e fossem embora.

Hereford cavalgou até o castelo de Leicester para visitar o pai. John de Gaunt envelhecera muito. Quando ouvira a notícia, mal pudera acreditar. Seu filho Henrique, que era a esperança da causa dos Lancaster, ser mandado para o exílio! Não poderia haver golpe pior.

Abraçou-o com grande tristeza.

- Meu filho - bradou ele -, o que significa isso?

- É a vingança de Ricardo - disse Henrique. - Na verdade, ele nunca me perdoou.

- Mas por causa daquele caso estúpido... Eu me considero culpado de ter aconselhado você a ir procurá-lo.

- Era a única solução. Sei que Norfolk estava preparando alguma coisa. Ele estava tentando me destruir.

John confirmou com a cabeça. Henrique era inteligente e estava dedicado a um único objetivo. Queria a coroa, tal como John um dia a quisera; mas Henrique era mais sutil do que o pai. Agia com uma cautela maior e com uma determinação mais implacável.

- Está feito-disse John.-Temos de tirar o melhor proveito disso. De uma coisa podemos estar certos. Quando eu morrer, minhas propriedades não devem ser confiscadas pela Coroa, mas têm de ir para quem de direito... para você.

- Peço-lhe que não fale em morte.

- Às vezes a sinto perto. Não fale nisso com Catherine. Ela toma conta de mim como uma mãe que tem um filho doente. Eu não gostaria que ela ficasse preocupada.

- O senhor ainda vai viver muitos anos.

- Meu filho, você diz o que acha que eu gostaria de ouvir. Talvez eu leve anos para morrer, mas temos de tomar seguras minhas propriedades. Ricardo tem de jurar que elas não serão confiscadas pela Coroa, porque se você não estiver aqui para reclamá-las e ainda viver no exílio, ele poderá tirá-las.

- O senhor acha que ele vai concordar?

- Vai concordar - disse John. - Antes de você partir, você e eu iremos visitá-lo.

- O senhor acha que ele vai me receber? Ele me mandou partir em quinze dias. Dois deles já se passaram.

- Ele vai me receber, e você estará comigo - disse John com um lampejo da velha disposição. - Não tenha medo, ele vai autorizar isso. Providenciarei para que seja assim. A situação dele não é tão boa quanto ele poderia desejar. O povo tem uma grande consideração por você, Henrique, e pelo jovem Harry também. Aquele rapaz tem um jeito de conquistar corações.

- O rei nunca é visto sem sua guarda protetora de arqueiros de Cheshire. Parece que ele teme algum ataque.

- Isso é uma imprudência dele, porque eles não fazem com que o povo o ame. Aqueles arqueiros têm má reputação. Comportam-se como se estivessem em guerra. Parecem soldados saqueando as cidades e aldeias do inimigo enquanto atravessam a nossa. Mas esses são súditos do próprio rei. Eles estupram e assassinam e ninguém lhes cobra coisa alguma. O rei não vai ser amado por causa de seus arqueiros.

- Ricardo é um tolo, pai. Um dia desses ele ficará cara a cara com a sua loucura. - Os olhos de Henrique brilhavam com determinação enquanto ele dizia isso.

- Tome cuidado, meu filho - avisou John de Gaunt. - Não faça nada enquanto não estiver pronto. Aguarde a oportunidade.

- Sim, senhor - disse Henrique. - Pode confiar que farei isso.

- E as crianças?

- Quero que o senhor e Catherine fiquem com os três mais velhos.

- Claro que ficamos. Harry está na corte, não está?

- Está, mandei chamá-lo - disse Henrique -, mas ele ainda não veio.

John ficou sério.

- Temos de falar com o rei - disse ele. - E Humphrey e as meninas?

- Meu amigo Hugh Waterton vai ficar com eles. Cuidará deles, e pedi que assistam à missa todos os dias para rezar pelo repouso da alma da mãe deles.

Catherine juntou-se a eles. Seu belo olhar estava preocupado; ela sabia o quanto John estava perturbado com o banimento do filho e temia que Henrique pudesse provocar encrenca enquanto estivesse no continente e que John se visse envolvido.

Mas se sentia feliz diante da perspectiva de ter os netos dele sob seus cuidados. Ela gostava dos rapazes, especialmente de Harry, que era o mais inteligente de todos. Sentia-se também aliviada por John estar ficando mais velho e já não sentir vontade de tomar parte ativa nos problemas do reino.

Mas ficou apreensiva quando John disse que acompanharia Henrique até Eltham, para falar com o rei.

- Para quê? - perguntou ela.

Ele explicou a necessidade de obter a concordância do rei com relação a suas propriedades. Ela ficou deprimida, porque sabia que a questão das propriedades só seria levantada quando da morte de John.

- Ele vai voltar muito antes de haver qualquer problema sobre as propriedades - disse ela, muito irritada.

John apertou a mão dela e não falou mais no assunto; mas quando Henrique partiu, foi com ele.

Ricardo recebeu-os no palácio de Eltham. Não tinha como mandar o tio embora, em especial porque John o apoiara e tinha sido, durante algum tempo, reconhecido como seu principal assessor.

- É um caso lamentável - disse John. - E que é difícil de entender.

- Para mim, está claro - replicou Ricardo, rápido; e John viu que seria imprudente irritá-lo.

- Estou me despedindo de meu filho - disse John.

- O tempo que ele tem para ficar aqui está diminuindo-disse Ricardo com frieza.

- E há um ou dois detalhes que quero esclarecer antes que ele se vá. Estou certo de que você vai compreender a minha preocupação, porque vai querer ser justo com seu primo e comigo.

- Meu desejo é sempre o de fazer justiça-retorquiu Ricardo.

- Então, majestade, quero a sua promessa de que no caso de minha morte durante a ausência de meu filho minhas propriedades passarão para ele e não serão confiscadas pela Coroa.

Ricardo sacudiu a mão.

- Pedido concedido - disse ele. E então acrescentou: - Ora, meu tio, o senhor ainda tem muitos anos de vida.

- Assim espero - respondeu John de Gaunt.

- Meu pai vai tomar conta de meus filhos mais velhos - disse Henrique. - Thomas e John estão indo, agora, para Leicester. Meu pai vai levar Harry com ele.

Ricardo abanou a cabeça e encarou o primo com frieza.

- Não, não - disse ele. - O jovem Harry, não. Gosto muito do rapaz.

John viu a expressão perplexa nos olhos do filho.

- Majestade, o lugar dele é com o avô. Ele será o guardião dele durante minha ausência.

- Eu decidi ser o guardião dele... durante algum tempo-disse orei.

- Quer dizer... Ricardo sorria suavemente.

- Quero dizer, primo, que adoro tanto o garoto que quero tê-lo na corte. Ele terá seus deveres lá e você não precisa ficar preocupado com ele.

Ele estava deixando claro o que queria dizer. Não, Ricardo não confiava no primo. Estava mantendo o jovem Harry de Monmouth como refém para conseguir o bom comportamento do pai.

Nada mais havia para dizer. Henrique despediu-se do rei e seu pai cavalgou com ele até o litoral.

- O senhor percebe o que isso significa-disse Henrique. Harry vai ser um refém.

- Ricardo está ficando astuto... finalmente-respondeu o pai.

- Você terá de ser cuidadoso, Henrique.

- Pretendo tomar o maior cuidado - foi a resposta.

- Pelo menos, fizemos com que ele jurasse que minhas propriedades não serão confiscadas pela Coroa; e foi isso que viemos fazer.

- E levar Harry.

- Não se preocupe com Harry. Eu lhe digo uma coisa, ele é um menino que vai saber como cuidar de si mesmo.

Henrique concordou.

No litoral, ele e o pai despediram-se, tristes, e Henrique fez-se ao mar para o exílio e para a França.

A perda do filho mais velho, que ele considerara como a esperança da casa de Lancaster, teve um efeito marcante sobre John de Gaunt. Ricardo, por compaixão dele, reduzira o exílio de dez para seis anos. Mas seis anos!, lamentou-se John. Será que ainda tornarei a ver meu filho?

Ele adorava os filhos, todos eles. Seus meninos Beaufort, como ele os chamava, deixavam-no encantado porque tinham traços de Catherine; mas Henrique, seu primogénito, seu herdeiro, o Henrique de sangue real, tinha sido aquele sobre o qual recaíam todas as suas esperanças.

Ricardo era um fracasso. Havia muito tempo que John vira isso.

Ricardo era irresponsável e extravagante. Gostava demais de belas roupas e exuberantes exibições. Reunia as pessoas erradas à sua volta. Tinha um talento para tomar a atitude errada - por exemplo, casar-se com uma menina que levaria anos para poder ser sua mulher. Algum dia uma loucura como aquela fora cometida por um rei que precisava de um herdeiro?

O poder de Ricardo não podia durar. John via aquilo com a clareza com que via tudo o mais. Ricardo iria cair. E Henrique estava no exílio.

Isso tinha um significado especial naquela época, porque chegara da Irlanda a notícia de que Roger de Mortimer, conde de March e herdeiro de Ricardo, tinha sido morto no combate em Kells.

A coroa corria perigosamente o risco de cair da cabeça de Ricardo. E quem seria o próximo a usá-la?

Se ao menos Henrique estivesse ali! Henrique deveria assumir a coroa. A vida era irónica. Como ele, John de Gaunt, ansiara por aquela mesma coroa; e ela lhe fora negada, embora tivesse arranjado coroas para suas filhas e pudesse acontecer que a mais desejada de todas coubesse a seu filho.

A vida era amarga. Henrique, naquele momento - naquele importante, muitíssimo fatídico momento -, estava no exílio.

John meditava muito sobre o exílio de Henrique. Pensava no jovem Harry, que o rei mantinha a seu lado. Catherine ocupava-se com os outros - encantada por ter outra vez crianças para tomar conta. Ela o observava, mas a cada dia que passava ficava mais angustiada.

Chegou um momento em que John ficou de cama, e Catherine percebeu que ele devia estar mesmo doente para concordar com isso. Ele ficava ali deitado, os olhos fechados, e Catherine foi tomada por um medo terrível.

Ele a fez sentar-se ao lado dele e segurou-lhe a mão.

- Foram anos felizes que passamos juntos - disse ele.

- Ainda nos restam muitos - disse ela, com firmeza. John sorriu para ela.

- Não é do seu feitio esconder o rosto da verdade, Catherine.

- Você não vai morrer. É um homem importante demais para morrer.

- E onde está a lógica disso? Grandeza nada tem a ver com morte. Uma coisa é certa... eu vou morrer. Quanto à minha grandeza, não é tão certa assim. Falhei muitas vezes, Catherine.

- Nós temos sido felizes - lembrou ela. - Você acaba de dizer isso. Conseguir a felicidade... não é isso que todos procuram, e consegui-la... este é o verdadeiro sucesso.

- Você fala como uma mulher... sempre falou-disse ele, com carinho.

- Talvez não seja mau falar assim.

Ela ficava sentada ao lado dele, segurando-lhe a mão. Ele dormia muito e quando ela olhava para o seu rosto, muito pálido, imóvel, sentia uma grande desolação, porque John parecia já ter morrido.

- John - sussurrou ela -, não me deixe. Agora... ficamos juntos... depois de todos aqueles anos. Não me deixe...

Ele abriu os olhos e disse:

- Vem encrenca por aí, Catherine. Ricardo não pode durar. E então... e então...

- Não pense nisso, porque isso o atormenta.

- E então - disse ele -, o que será de Henrique? Henrique banido... Henrique devia estar aqui. O lugar de Henrique é aqui...

- Deixe que as coisas se resolvam... - disse ela. - Agora descanse. Você não tem de se preocupar.

- É verdade - murmurou ele.-Eu terei partido... Não existe paz, Catherine, para aqueles que vêem a coroa ao alcance das mãos e ainda assim não conseguem apanhá-la.

- Descanse. Para me agradar. Isso não importa... agora. Mas ainda importava para ele, era o que ela estava vendo. John

ansiara pela coroa. Ficaria feliz se pudesse ver Ricardo deposto e seu filho Henrique reinando em lugar dele.

- Era isso que Ricardo temia - murmurou ele. - Foi por isso que o mandou embora...

Ela ficava longo tempo sentada ao lado da cama dele. Não queria sair de perto dele porque sabia que não restava muito tempo.

John de Gaunt estava morto. Era como o fim de uma era.

Catherine ficou desolada. Para ela, era o fim da vida. Desde que o vira pela primeira vez, há muitos anos, ele dominara todos os seus pensamentos. Ele a promovera para tornar-se a sua duquesa e isso a deixara exultante, não porque ele a colocara numa posição muito elevada, mas porque aquilo mostrava a estima que ele lhe dedicava. Os filhos deles tinham sido legitimados e iriam representar um importante papel nos assuntos do país. Tudo aquilo a enchera de orgulho, mas agora não sentia outra coisa a não ser aquela extrema desolação.

Tinham levado o corpo dele para os carmelitas, em Fleet Street, onde ficaria até o sepultamento.

De acordo com os desejos que expressara em seu testamento, John foi enterrado na catedral de St. Paul ao lado da primeira mulher, a duquesa Blanche. O funeral foi uma ocasião solene, e Ricardo esteve presente, exprimindo uma profunda tristeza pela perda daquele tio que tivera um papel tão importante em sua vida.

 

EDMUND DE LANGLEY, duque de York, que estivera tanto tempo vivendo muito tranquilamente, preferindo recusar todas as responsabilidades e gozar a vida em suas propriedades do interior, tinha recebido ordem de ir procurar o rei e estava um tanto preocupado. Ricardo recebeu-o com afeto e explicou o motivo da convocação.

- Bem, tio - disse Ricardo -, o senhor me vê em meio a grandes preparativos. vou mostrar ao povo da Irlanda que não quero mais saber das suas desobediências. Vingarei a morte de Mortimer. O senhor vai assumir o governo durante a minha ausência.

Langley ficou desconcertado e inquieto, mas viu logo que não adiantava protestar, de modo que com sua costumeira indiferença aceitou sua missão.

- Há um assunto sobre o qual eu gostaria de falar com vossa majestade - disse ele.

- Será que diz respeito às propriedades dos Lancaster? perguntou Ricardo.

Edmund, duque de York, disse que sim.

- O senhor veio me recriminar, tio? - disse Ricardo. – Eu raramente o vejo. Será que deve haver conflito entre nós quando nos encontramos?

- Conflito, não, espero eu - replicou York. - Apenas quero dizer que espero que o que ouvi sobre as propriedades não seja verdade.

- Tenho a impressão, tio, de que pode muito bem ser verdade.

- Não que o senhor as confiscou! Pelo que fiquei sabendo pelo meu irmão, o senhor jurou que não seriam confiscadas.

- Seu irmão está morto, tio de York. O herdeiro dessas propriedades está no exílio e ainda vai ficar por lá alguns anos. Por que as propriedades dos Lancaster deviam ser passadas para um exilado?

- Porque ele é o verdadeiro herdeiro dessas propriedades e o senhor deu sua palavra de que não seriam confiscadas pela Coroa.

- O senhor ficou no interior um tempo longo demais, tio. Fico contente ao vê-lo aqui. Mas não gosto quando diz ao seu rei como ele deve governar seu reino.

O duque ficou pasmo. O que acontecera com seu sobrinho desde a última vez em que o vira? Onde estava o jovem que procurava governar bem seu reino? Ricardo não estava apenas arrogante, mas era um tolo. Será que não percebia a importância daquela questão das propriedades dos Lancaster?

Henrique estava no exílio, é verdade. Mas quanto tempo ficaria por lá se soubesse que o rei não cumprira a palavra que dera a seu pai? Será que Henrique não poderia retaliar, quebrando sua palavra para com o rei?

O país não estava tão pacífico quanto ele bem podia acreditar que estivesse. Havia encrenca fermentando, e se fosse portar-se daquela maneira, Ricardo iria fomentá-la.

Edmund deu um passo em direção ao rei e naquele momento um dos cães que tinham estado deitados no canto da sala ergueu-se de um salto e mostrou os dentes para ele.

Ricardo soltou uma gargalhada.

- Venha cá, Math. - O cão foi para perto dele, colocou as patas no seu ombro e começou a lamber-lhe o rosto.

- Ele não ia me fazer mal, Math. Você não o teria perdoado, se ele o fizesse?

Ricardo deu uns tapinhas na cabeça do cão e sorriu para o tio.

- Meu amigo fiel-disse ele.-É capaz de me defender com a própria vida. Se alguém vier contra mim, Math o fará em pedaços.

O rei sentou-se. Edmund continuou de pé. Ricardo disse:

- Este meu Math é o meu cão favorito. É um cão de sangue real. Só serve ao rei, a ninguém mais. Gosta que eu use minha coroa. Não gosta, Math? Como você fica excitado quando vê aquela bugiganga na minha cabeça! Já percebeu, tio, que os cães têm um sentido extra que nós não temos? Eles não entram em lugares mal-assombrados. Ficam eriçados, recuam, mostram os dentes. Às vezes, penso que eles sabem do que vai acontecer. O que acha?

Aquela era a maneira de Ricardo dizer a Edmund que a questão das propriedades dos Lancaster não seria mais discutida.

Edmund pediu licença para se retirar, e ela foi graciosamente concedida.

A pequena rainha estava inquieta. Fazia muito tempo que não via o rei. Ela vivia para as visitas dele. Achava-o o homem mais bonito do mundo; e os dois sempre se divertiam muito. Ele lhe perguntava como estava indo nos estudos com uma certa severidade fingida que fazia com que os dois rissem tanto que chegavam a ficar com lágrimas nos olhos. Depois, falavam sobre roupas, e ele mandava entrarem os músicos para que pudessem dançar juntos.

Certa vez, ele lhe pregara uma peça e mandara Richard Maudelyn em seu lugar. Ela se orgulhava de ter descoberto rapidamente que ele não era o seu rei, embora tivesse de admitir que Richard Maudelyn representara bem seu papel.

Ela estava um pouco aflita porque achava que Ricardo estava preocupado com alguma coisa. Ela conseguia informações truncadas, a maior parte prestando atenção na conversa dos criados. Sabia que tinha havido uma grande discussão entre o filho de John de Gaunt e o duque de Norfolk e que Ricardo condenara os dois ao exílio.

Muito mais perto dela, a ponto de interessá-la mais, era a partida de Lady de Couci. Parecia que ela andara gastando dinheiro demais e agindo como se fosse a rainha-mãe.

Bem, talvez sim. Isabella não sentia muito sua partida. Contava com uma nova governanta que era esposa do conde de March, uma mulher triste, na época - muito diferente de Lady de Couci porque acabara de perder o marido, que tinha sido morto na Irlanda.

Se ao menos Ricardo fosse visitá-la. Ficaria um pouco embirrada quando ele chegasse. Já fazia tanto tempo.

Todas as noites, ela rezava: "Ó Deus, faça com que ele venha amanhã." Mas Deus não ligava para suas orações.

Mas por fim elas foram atendidas. Ela estava tendo aula com a nova governanta quando ouviu os sons de gente chegando; e jogando os livros para o lado, desceu correndo para o grande salão e lá estava ele - bonito, cabelos louros brilhando ao sol, ali de pé, olhando à sua volta à procura da pequena rainha. Ela se atirou a ele.

- Ricardo! Ricardo! É você mesmo? - Parece que sim. É assim que recebe seu rei? Quer sufocá-lo?

- Eu gostaria de agarrá-lo com tanta força, que ele nunca pudesse ir embora.

- Acho que ele ficaria feliz se você pudesse fazer isso.

- Ricardo... Ricardo, como você demorou!

- Assuntos de Estado, doce criatura.

- Eu odeio assuntos de Estado.

- Muitas vezes concordo com você.

- Pensei que os reis se sentassem nos tronos com suas rainhas ao lado e saíssem a cavalo e o povo os saudasse... e eles estivessem sempre juntos.

- Isso raramente acontece. Mas aqui estou. Agora me diga, como tem passado?

De braços dados, os dois entraram no castelo.

- É preciso preparar umas festas, Ricardo. Tenho de mandar assar o melhor veado que houver.

- Acho que vão fazer isso para mim e deixar você para ficar comigo, pequena rainha.

- É, talvez façam, e assim eu não perderia um minuto da sua companhia. Quanto tempo você vai ficar?

Ele acariciou-lhe os cabelos.

- vou embora hoje, minha adorada. Interrompi a viagem só para vê-la.

- Não!

- Lamento, minha querida. Estou indo para a Irlanda.

- É por causa do conde de March? Ele confirmou com a cabeça.

- E quando vai voltar?

- Em breve, e direto para cá.

- Lady de Couci foi embora.

- Você lamenta?

- Não.

- Ela se dava ares de importância. Achava que era ela a rainha. Você sabia que ela mantinha três ourives, três cuteleiros e três peleteiros, todos pagos por mim?

- Eu devo lhe custar muito dinheiro.

- O tesoureiro geme de tanta extravagância em cima dele. Ela riu e aninhou-se mais perto dele.

- Fico feliz - disse ela. - Isso vai impedir que você me esqueça.

- Acha que um dia eu faria isso?

Ela passou os braços em torno do pescoço dele.

- O quê, preparando-se para me sufocar outra vez! Dizem que a vida de um rei está sempre correndo perigo. Parece que é verdade.

- Não diga isso! Não diga isso! - bradou ela, cobrindo a boca dele com as mãos. Ele as segurou a beijou-as.

- Quer que eu fale sobre Math?

- Quero, sim. Quero.

- Ele é um cão muito travesso. Quando me vê com a coroa, dá pulos de agitação. Sabe, não creio que ele gostaria de mim se eu não fosse rei.

- Eu o amaria sempre.

- Minha adorada e fidelíssima rainha. Então você vai sempre me amar, Isabella?

Ela sacudiu a cabeça, séria. Depois, riu.

- Peço-lhe que não pense que pode me enganar mandando Richard Maudelyn até aqui outra vez.

- Não. Aprendi a minha lição com isso.

- Ricardo, você tem de partir hoje?

- Tenho.

- A Irlanda é tão longe!

- Assim que eu voltar virei visitá-la.

- Prometa.

- Eu juro. Então, ela disse:

- Vamos esquecer, agora, que você vai me deixar. Sejamos felizes enquanto pudermos.

E assim os dois se divertiram juntos, ambos fingindo esquecer que a separação era iminente.

Foram à missa juntos na igreja de Windsor e ao sair pegaram vinhos e frutas cristalizadas à porta.

Lá, Ricardo devia despedir-se dela pela última vez. Ergueu-a nos braços e beijou-a repetidas vezes. Ela agarrava-se a ele.

- Ricardo, não vá. Ricardo, fique.

- Meu amorzinho - disse ele -, tem gente nos olhando. Temos de nos lembrar que somos o rei e a rainha, não temos? Adeus, minha doçura, até mais ver.

E então ele a soltou e deu-lhe as costas para esconder a emoção.

Henrique de Bolingbroke meditava em Paris. Contava com bons amigos - todos inimigos de Ricardo. Havia Thomas Arundel, o arcebispo de Canterbury, e o jovem conde de Arundel, que ainda falava em tons inflamados em vingar o pai. Agentes baseados na Inglaterra andavam indo e vindo com notícias da insatisfação do povo com Ricardo, e agora Henrique tinha uma queixa. O rei quebrara a promessa. Ele jurara solenemente que as propriedades dos Lancaster não seriam confiscadas pela Coroa, e logo após a morte de John de Gaunt aquilo acontecera. Se o rei podia quebrar a sua promessa, isso liberava Bolingbroke da dele.

Henrique iria para a Inglaterra. Tiraria a coroa de Ricardo, mas precisava agir com cautela. Podia ter organizado um exército na França, mas os ingleses não desejariam ver estrangeiros em seu solo, e sua causa estaria perdida antes de começar. Henrique precisava de um exército inglês lutando para substituir um rei fraco por um outro forte.

Chegara o momento. Ricardo estava na Irlanda e Edmund de Langley, duque de York, um homem bom e agradável, mas totalmente sem capacidade para governar, estava encarregado do governo. Havia alguns anos Edmund se afastara da vida na corte e estava vivendo no interior. Além do mais, Ricardo nomeara para atuar com ele alguns dos homens mais impopulares da Inglaterra: o conde de Wiltshire, William Scrope, Sir William Bagot, Sir John Bushy e Sir Henry Green.

Henrique fez os planos com cuidado. Tinha um bom motivo para voltar e só iria regressar com alguns amigos, à frente dos quais estariam o arcebispo e o conde de Arundel. Ele não desembarcou no sul, mas na cidadela lancastriana de Yorkshire, e seguiu para o castelo de Pontefract.

Quando se soube que Henrique estava na Inglaterra e que jurara que seu único objetivo era recuperar suas propriedades, muita gente aderiu à sua bandeira. Poucos proprietários aprovavam o confisco de propriedades pela Coroa, e estavam prontos a ajudar Henrique a recuperar as dele.

Mas o povo estava maduro para uma rebelião. Edmund de Langley, ao saber que Henrique agora reunira um exército considerável e estava marchando em direção ao sul, foi enfrentá-lo. Não houve batalha alguma, mas Edmund não era um estrategista e começou a haver deserção no seu exército, que recuou para Bristol. Mas o povo de Bristol não era a favor do rei e pegou o conde de Wiltshire, Sir Henry Green e Sir John Bushy e os executou porque disse que eram os assessores perniciosos do rei. Assim, quando Henrique entrou em Bristol, a primeira coisa que viu foram as cabeças daqueles homens nos muros da cidade. Quanto a ele, era recebido com ovações aonde quer que fosse.

Quando levaram a Ricardo, na Irlanda, a notícia de que Henrique desembarcara e se colocara à frente de um exército, ele ficou louco de raiva.

Mandou chamar Harry de Monmouth e pensou no que faria com o menino.

Se pudesse pegar o pai dele, disse Ricardo ao garoto, Henrique teria uma morte que faria um barulho a ser ouvido até na Turquia.

O jovem Harry não se perturbou. Ricardo olhou para ele com os olhos semicerrados. Um refém! No entanto, Henrique de Bolingbroke não se importara com o fato de seu filho estar nas mãos do rei.

Ricardo não podia fazer mal ao menino. Ele dissera a verdade quando declarara gostar dele. Harry de Monmouth não tinha culpa se seu pai era um traidor.

- Levem o menino daqui - disse ele. - Façam dele meu prisioneiro. Mandem colocá-lo no castelo de Trim e mante-lo lá até que eu diga o que será dele.

E assim o jovem Harry de Monmouth foi levado para o castelo irlandês e encarcerado, enquanto Ricardo fazia os planos para partir para a Inglaterra.

Ricardo estava muito esperançoso quando desembarcou em Milford Haven.

- Vamos mostrar a esse traidor o que acontece com gente da sua espécie - declarou ele, e dedicou-se ao prazer de pensar no que iria fazer quando Bolingbroke estivesse em seu poder.

Infelizmente, quando chegou à Inglaterra, verificou que eram poucos os que estavam dispostos ajuntar-se à sua bandeira; e aqueles que tinham estado na Irlanda com ele não pareciam muito animados para lutar.

Aquilo era alarmante. Estavam todos fugindo dele. Só restavam poucos. Onde estava o exército de que ele precisava para dominar Bolingbroke? O que acontecera? Por que todos o tinham abandonado?

O que poderia ele fazer? Mandou chamar dois em quem confiava - os duques de Exeter e Surrey - e disse-lhes que deviam ir falar com seu primo e perguntar-lhe o que pretendia. Se ele respondesse que era apenas a devolução das propriedades dos Lancaster, eles deveriam discutir o assunto.

Os dois duques partiram a cavalo para Chester, mas quando chegaram no baluarte de Henrique este ordenou-lhes que se unissem às suas forças e eles imediatamente declararam-se dispostos a fazêlo, porque acreditavam que a causa de Ricardo estava perdida.

Ricardo ficou desolado, porque parecia não haver saída daquele atoleiro em que caíra de repente. Só podia perambular de castelo em castelo com um reduzido bando de fiéis seguidores, sabendo muito bem que não podia continuar assim. De Conway a Caernarvon e de Caernarvon para Beaumaris, e depois de volta a Conway; e lá, o conde de Northumberland, agindo como emissário de Henrique, foi procurá-lo.

- O que quer de mim, traidor? - perguntou Ricardo.

- Venho a mando do duque de Hereford, majestade.

- Sei muito bem: traidor a mando de traidor.

- Não somos traidores, majestade. O duque de Hereford não pretende conquistar o trono. Ele quer apenas escoltá-lo até Londres, onde possa ser reunido um Parlamento para tratar de seus maléficos assessores, que com seus conselhos fizeram com que vossa majestade governasse o reino de forma equivocada.

- Eu terei um encontro com meu primo - disse Ricardo, com dignidade.

Na verdade, ele sabia que não tinha alternativa.

- Eu o conduzirei ao castelo de Flint, majestade, onde ele aguarda a sua chegada.

- Então, vamos - disse Ricardo.

O castelo de Flint era uma fortaleza imponente-quadrado, com uma grande torre redonda em cada canto e uma torre enorme e resistente separada do prédio principal e unida a ele por uma ponte levadiça. Essa era a torre de menagem do castelo.

Estava anoitecendo quando eles chegaram, e por estar cansado da viagem, Ricardo foi dormir logo e só acordou na manhã seguinte.

Sentou-se na cama, imaginando por um instante onde estava. Depois, a lembrança do dia anterior voltou. Parecia um pesadelo, mas quanto mais desperto ficava, mais percebia que era verdadeiro.

Aquilo era indigno. Era humilhante. Ele jamais se esqueceria. Assim que seu primo estivesse em suas mãos, não perderia tempo e acabaria com ele; e também não seria de uma forma delicada.

Ricardo levantou-se e foi assistir à missa na capela do castelo, e ao sair ouviu o barulho de homens em marcha.

Ficou animado. Seus amigos estavam chegando para resgatá-lo. Sabia que o pesadelo não poderia durar.

- Quero ir para a torre-disse ele.-Quero ver o que se passa fora do castelo.

Foi até a torre, e quando olhou para o exército reunido lá embaixo viu que aquilo era o fim para ele. Os homens de Hereford estavam cercando o castelo, e Ricardo reconheceu entre eles alguns homens em cuja lealdade acreditara poder confiar.

Cobriu o rosto com as mãos; queria tapar aquela visão.

Um dos guardas falou com ele.

- Majestade - disse ele -, o duque de Hereford estará aqui depois do almoço.

- Terei muita coisa a dizer a ele quando nos encontrarmos replicou Ricardo, sério.

Ele percebeu o sorriso irónico no rosto do guarda e pensou: por São João Batista, como isso foi acontecer? Há tão pouco tempo eu era o rei deles, e tremiam quando eu falava. Então, fui à Irlanda e agora que voltei, está tudo mudado.

com que rapidez homens que outrora mostravam respeito deliciavam-se em demonstrar desprezo. Mas lhe restavam alguns amigos.

Sim, havia alguns que não tinham arrancado a insígnia do Cervo Branco.

Ele foi para o aposento onde uma mesa estava posta para o almoço. Voltou-se para aqueles que ainda usavam suas insígnias e disse:

- Bons amigos e leais cavalheiros, sentem-se comigo e comam, porque os senhores estão correndo perigo de morte por sua fidelidade a mim.

- Isso mesmo - bradou um dos guardas -, vocês todos devem comer bem. Porque em breve suas cabeças serão cortadas e aí, como é que irão comer?

- Meus amigos - disse o rei -, não dêem ouvidos a esses imbecis. A vez deles chegará, eu lhes prometo.

O que o deixou mais alarmado foi a falta de preocupação estampada no rosto daqueles homens. Estava claro que não acreditavam nele.

Depois da refeição, Ricardo foi para o aposento no qual deveria receber o primo.

Ele mandara que colocassem para ele uma cadeira que faria o papel de trono. Lembrou-lhes que era o rei. Isso não lhe foi negado, e ele caminhou até a cadeirinha e sentou-se, e ali esperou a chegada do inimigo.

Henrique apresentou-se a ele como um súdito ao seu rei. Fez uma mesura e ajoelhou-se. Ricardo tomou-lhe a mão e pediu que se levantasse. Não parecia que ele era o derrotado e que o homem que se ajoelhava diante dele era o conquistador.

- Meu senhor e soberano rei - disse Henrique -, voltei antes do prazo.

- Por que veio assim, primo? - perguntou Ricardo.

- Vim procurar a restituição de minhas terras e de minha herança.

- Estou pronto a realizar seu desejo, para que você possa desfrutar de tudo que é seu, sem exceção.

- Há outro assunto - prosseguiu Henrique. - Seu povo em geral está dizendo que o senhor o governou muito mal durante vinte anos. Ele não está contente com isso. Se o senhor quiser, eu o ajudarei a governar melhor.

O arcebispo, então, pediu licença para falar, e quando teve permissão disse ao rei que seu governo não podia ser mais tolerado e que ele devia abdicar.

Ricardo esperara por isso. Sabia que as delicadas palavras do primo podiam ser postas de lado. Ali estava ele, prisioneiro do primo, e Henrique de Bolingbroke, duque de Hereford e Lancaster, tinha um exército atrás de si, enquanto os seguidores de Ricardo o haviam abandonado.

O que era um rei sem exército, quando seus inimigos o atacavam?

Ele era um prisioneiro nas mãos do primo e não haveria vantagem alguma em negá-lo.

Encarou Henrique e disse, resignado:

- Meu bom primo, já que é do seu agrado, é do meu, também.

Eles iniciaram a viagem para Londres. Tinham dado a ele um miserável cavalo pequeno, e quando chegaram a Chester Ricardo ficou preso no seu próprio castelo e a pessoa destacada para vigiá-lo era o jovem conde de Arundel, que tinha contra ele o rancor pelo assassinato de seu pai.

Mas quando eu chegar a Londres, pensou Ricardo, vai ser diferente. O povo de Londres se juntará a mim. Então, tudo mudará.

Infelizmente, não foi isso o que aconteceu. Ele percebeu logo que Londres o rejeitara e transferira sua vassalagem para Henrique.

Eles o levaram para a Torre, e lá ele ficou enquanto Henrique continuou até a catedral de St. Paul para prestar seus respeitos aos túmulos de seu pai e de sua mãe. O público gostou dos sentimentos que ele demonstrou diante daqueles túmulos e foi para as ruas saudá-lo.

Henrique agia com cautela. Ele decidira que Ricardo devia abdicar por sua livre e espontânea vontade. Não queria que dissessem que ele o tirara do trono. Que Ricardo era um governante fraco, todos admitiam; e que a Inglaterra precisava de um rei forte era igualmente óbvio. Mas aquilo teria de acontecer como Henrique queria.

Ele queria que todos soubessem que Ricardo, que ainda era o rei, devia ser tratado com respeito e que todos os esforços deveriam ser feitos para que tivesse conforto. Henrique chegou até a mandar que os cães de Ricardo fossem levados para ele. Todos deveriam saber que Henrique era um homem justo e que só iria tomar a coroa se se visse que Ricardo já não podia usá-la.

Henrique estava com os guardas no aposento quando o cão Math foi levado.

Foi então que aconteceu uma coisa estranha, porque Math chegou correndo em direção ao rei, mas antes de chegar perto dele, parou de repente. Depois, desviou-se de Ricardo e foi para Henrique e, colocando as patas no ombro dele, lambeu-lhe as faces.

Houve uma grande perplexidade no aposento, porque antes o cão não prestava muita atenção a outra pessoa que não o rei.

Henrique foi o primeiro a falar.

- O que significa isso? - perguntou. - Esse cão não é seu?

- Tal como os outros - disse Ricardo -, ele era meu, mas, como vê, até meu cão sabe de que lado deve estar.

Era assombroso. Os guardas comentaram o fato. Aquilo era um sinal.

Nada poderia tê-los convencido mais do que aquele estranho ato do cão de que o reinado de Ricardo acabara e que o de Henrique de Bolingbroke começara.

 

TINHAM-LHE DADO ROUPAS de um estrangeiro, para que ele não fosse reconhecido enquanto o levavam pelo rio. Ele não tinha certeza quanto ao seu destino. Sentia-se entorpecido e às vezes estava certo de que iria acordar e descobrir que fora vítima de um pesadelo que parecera durar semanas. Em Gravesend, eles desembarcaram e seguiram pela estrada para o castelo de Leeds, em Kent.

Ele, o rei, prisioneiro! Não, não era mais rei-o simples Ricardo de Bordeaux. Jamais esqueceria aqueles últimos dias na Torre. Dias sombrios, com a chuva batendo contra os muros cinzentos e a escuridão do desespero na fortaleza.

Pela última vez, usara suas túnicas reais, mas não tivera permissão para sentar-se no trono. Só fora até lá para abrir mão dele.

Como o tinham humilhado! Tinham-no mantido de pé enquanto liam a longa lista de suas deficiências. E depois chegara o momento degradante, quando ele tirara a coroa e a entregara a Bolingbroke.

Como fui tolo!, pensou ele. Certa vez, o tive em meu poder. Mandei-o para o exílio. Naquela ocasião, eu devia tê-lo destruído.

E Bolingbroke era, agora, Henrique IV da Inglaterra. Era o fim. Ele fracassara e tudo acontecera depressa demais para ele. Só vira o perigo quando este já havia chegado.

Leeds era um dos mais bonitos castelos da Inglaterra, situado sobre duas ilhas ligadas por uma ponte levadiça dupla, mas Ricardo não estava com ânimo de admirar o que havia à sua volta. Não via outra coisa que não aquela cena terrível no grande salão de Westminster, quando humildemente passara seu direito de nascença para o primo.

Agora estava tudo acabado. Aquilo era o fim. Quadros do passado enchiam-lhe a cabeça. Lembrava-se muito bem dos olhares aflitos de sua mãe. Ela tivera medo do que pudesse acontecer-lhe a partir do momento em que soube que ele estava destinado a ser o rei. Ricardo pensou no seu ilustre pai e perguntou-se o que ele sentiria se pudesse olhar lá de cima para o que estava acontecendo com o filho.

Não devia remoer aquelas coisas; no que, então, podia pensar? No presente? Ele tremeu. No futuro? Que esperança havia na vida para ele?

Não o deixaram ficar muito tempo em Leeds. Não lhe disseram para onde o estavam levando, mas sabia que estava seguindo para o norte. Ah, sim, para alguma fortaleza lancastriana de seu primo inimigo. Primeiro, mantiveram-no em Pickering e depois em Knaresborough e por fim chegaram ao castelo de Pontefract.

O castelo era construído sobre um rochedo, e o alto muro era flanqueado por sete torres. O fosso no lado oeste era fundo. Ricardo visitara Pontefract antes e ouvira falar das masmorras de lá. Havia pelo menos uma na qual sabia que só era possível entrar através de um alçapão. Os prisioneiros eram arriados e deixados ali para morrer.

O que pretendiam fazer com ele? O fato de ter sido levado para aquela sombria fortaleza de Pontefract podia ser significativo.

Agora se estava no auge do inverno e fazia um frio terrível. Havia neve acumulada pelo vento nos muros do castelo. De uma das torres, Ricardo podia olhar para a cidade e ver os guardas posicionados pelo castelo. Sempre havia guardas; quando um grupo terminava seu turno, um outro ocupava seu lugar. De certo modo, aquilo era consolador, porque significava que seus inimigos temiam que pudesse haver uma tentativa de resgatá-lo.

Ele se permitiu sonhar. Aquele pesadelo passaria. Ele voltaria. Seria o rei; homens iriam curvar-se diante dele; seguiria a cavalo para Windsor e veria sua querida, a pequena Isabella.

Isabella, Isabella, murmurou ele, o que você sabe sobre isso?

Pobre doce criança! Ela agora estava crescendo. Iria receber a notícia e o seu doce coração ficaria doído.

Precisava escrever para ela. Talvez a mandassem para ficar ao seu lado. Ela era criança demais para ser suspeita de perfídia. Não passava de uma criança. Seria fiel a ele em sua adversidade. Ao contrário de Math. Quando pensava naquele incidente, consideravao assombroso. Aquilo o enervara mais do que qualquer outra coisa que acontecera antes. Olhando para trás, viu que naquele momento em que Math se voltara dele para Henrique ele soubera que era o fim.

Querida, doce Isabella! Ela jamais iria repeli-lo.

Permitiram que ele tivesse acesso a material de escrita. com um misto de prazer e dor, ele pegou a pena.

"Minha senhora e minha consorte, maldito seja aquele que nos separou. Estou morrendo de tristeza por causa disso. Como estou privado da alegria de estar com você, sofro muito e estou quase desesperado... E não é de admirar, quando de tão alto caí tanto e perdi minha alegria, meu consolo e minha consorte."

- Doce criança - murmurou ele. - O que será de você? O que será de nós dois?

Tinham colocado Thomas Swynford para vigiá-lo. Podia-se contar que Henrique fazia com que aqueles com quem pudesse contar recebessem posições de confiança. Swynford era filho da madrasta de Henrique, Catherine de Lancaster, e como todos os seus bens tivessem chegado a ele através de Lancaster, ele serviria a causa lancastriana de todo o coração, porque era a sua também.

Mas ele, Ricardo, tinha sido bom para Catherine. Não tinha ele, atendendo ao pedido urgente de seu tio, legitimado os filhos que eles tinham tido? Os Beaufort eram, agora, os filhos de John de Gaunt reconhecidos como legítimos. Sem dúvida que deveriam ser gratos por isso. Mas era natural que apoiassem seu meio-irmão.

Ricardo não gostava de Thomas Swynford. Achava que o homem tinha prazer em humilhá-lo.

Thomas falava com ele de vez em quando de maneira quase condescendente e não mostrava respeito por uma pessoa que já fora rei.

Certa vez, Ricardo dissera a ele:

- Eu fui um bom amigo seu e de sua mãe, Thomas Swynford.

- Você achou melhor agradar o homem que chamava de poderoso tio - replicara Thomas Swynford.

- Houve época em que John de Gaunt achava aconselhável agradar-me. Por que você fala no homem que eu chamo de tio?

- Porque agora muita gente diz que ele não era seu tio porque você não era filho do Príncipe Negro.

- Ninguém acreditaria numa mentira dessas.

- Há quem acredite. Há um padre que se parece tanto com você que dizem que ele deve ser seu irmão.

- Richard Maudelyn! Ele é parecido comigo, mas quem disse que é meu irmão? Como pode ser isso?

- Sua mãe era uma mulher muito dada a diversões. O Príncipe Negro era um homem muito doente. Havia uns padres bonitos na corte de Bordeaux.

- Você está mentindo! Como ousa proferir tamanha calúnia contra minha mãe?

Thomas Swynford fez uma profunda reverência.

- Minhas desculpas. Você pediu a verdade e eu a dei. Digo-lhe que isso é o que está sendo dito. Há um padre que se parece tanto com você que deve ser seu irmão...

isto é, seu meio-irmão.

- São mentiras espalhadas pelo meu primo.

- Devo avisá-lo de que é imprudente caluniar o rei. Isso é traição.

- Então, Thomas de Swynford, você devia ser condenado, neste momento, à morte dos traidores.

- Como sua memória é fraca! Você já não é mais o rei, Ricardo. Você é menos do que o mais humilde de nós.

Ricardo ficou desesperado. Nada havia que pudesse fazer. Tinha de aceitar aquela calúnia. Estava impotente.

Onde estava Isabella, agora? O que estaria ela pensando? Pobre rainhazinha. E ainda mais pobre Ricardo.

Um desespero frio tomara conta dele. Será que não havia um só homem no reino que fosse seu amigo? Estaria ele condenado a ficar ali, prisioneiro do primo, até morrer?

Um dia, um dos guardas conseguiu ficar a sós com ele e as palavras que ele disse fizeram com que a esperança se alvoroçasse no coração de Ricardo.

- Senhor meu rei, o senhor tem amigos...

Ele sentiu uma grande alegria. Então, não estava esquecido de todo.

- De onde vem você? - perguntou Ricardo. - E o que você sabe?

- Mandaram lhe dizer que tudo vai ficar bem. Em breve o traidor Bolingbroke não vai existir mais.

- Para quem você trabalha?

- O meu senhor, seu irmão, o duque de Exeter, que perdeu este título e agora é conhecido como conde de Huntingdon.

Seu meio-irmão, John Holland! Ele quase chorou de alegria. John iria ajudá-lo. Claro que iria. Ele era filho da mãe de Ricardo. Como ele e o irmão tinham mexido com Ricardo quando este era um menino! Como tinham adotado brincadeiras violentas e zombado dele, e a mãe os repreendera! "Lembrem-se de que Ricardo é uma criança."

Eles tinham rido dele, brincado com ele, tentado ensinar-lhe suas brincadeiras violentas... mas o tinham amado.

- Você tem certeza disso? - perguntou ele.

- Majestade, eu sirvo ao duque seu irmão e ele gostaria que vossa majestade ficasse preparado e não perdesse as esperanças.

- Quem está conosco?

- Seu meio-irmão e o sobrinho dele, o conde de Kent, com Thomas lê Despenser, seu sobrinho, o conde de Rutland, e outros. É um plano simples, majestade, mas os planos simples são os que mais probabilidade têm de dar certo. Bolingbroke está realizando um torneio em Windsor. Nosso grupo irá até lá com carroças de arreios e armaduras, o que se acreditará ser para o torneio. Depois, vamos escolher o momento, dominar os guardas, matar Bolingbroke e o filho dele, Henrique de Monmouth, e recolocar vossa majestade no seu trono.

- Que Deus os abençoe. Meu bom irmão, meus bons amigos.

- Nós vamos conseguir, majestade. Mas há uma coisa que precisa saber. O povo vai querer vê-lo, e vai levar tempo para tirá-lo deste lugar. É possível que eles tenham que lutar para chegar até vossa majestade.

- Existem outros amigos bons e fiéis como você no castelo?

- Alguns, majestade. Mas eu não confiaria neles.

- Eu lhe agradeço. Não irei esquecê-lo quando voltar a ser livre.

- Eu lhe agradeço, majestade. Preciso avisá-lo de uma coisa. Vossa majestade poderá ouvir dizer que o rei está marchando à frente de suas tropas, e irá achar que

isso é uma traição. Majestade, não será assim. Isso fará parte do plano. Richard Maudelyn tomará o seu lugar. Ele irá aparecer como se fosse vossa majestade. O povo irá vê-lo e acreditar que vossa majestade fugiu mesmo de seus captores.

Ricardo começou a rir, e parou. Era uma risada histérica, e ele viu o medo que ela inspirara no leal guarda.

- Majestade, precisamos ser discretos. Eu tinha de lhe dizer isso, para que vossa majestade ficasse pronto. Não se desespere mais. O dia vai-chegar em breve.

- Meu bom homem, você me deu vida nova. Eu devia saber que meu irmão John não se esqueceria de mim. Nem meu irmão Thomas, se estivesse vivo. Outros também estão comigo. De modo que não estou mais sozinho.

- Majestade, eu lhe peço que não demonstre seu entusiasmo. É imperativo, para o nosso sucesso, que o caso seja mantido no máximo segredo. Tudo depende do nosso sucesso

em Windsor.

- Eu sei. Mas o sucesso vai acontecer. vou marchar para Londres e, à minha frente, a cabeça de Bolingbroke estará erguida numa lança.

- Rogo a Deus que assim seja. Agora eu preciso ir, majestade. Peço-lhe que disfarce sua alegria. Continue na sua melancolia. Eu lhe asseguro que isso é necessário.

- Eu compreendo. Minha alegria ficará escondida no meu coração.

Ele se deitou para dormir e sonhou que estava marchando para ir ver Isabella. Onde estava sua pequena rainha agora? Imaginou a alegria dela quando soubesse que ele estava indo para perto dela. Estaria esperando nas ameias do castelo para onde deviam tê-la levado. Iria correr para recebê-lo. Os dois iriam agarrar-se, rir e divertir-se.

Isabella sentia-se desesperadamente infeliz. Sabia que Ricardo corria perigo e que o traidor Bolingbroke tomara a coroa dele. Se ao menos a deixassem ir para o lado dele! Se ao menos ela pudesse falar com ele, ouvir de seus próprios lábios o que tinha acontecido, ela poderia ter suportado. Mas ficar alheia aos fatos, prisioneira do homem que se intitulava rei, era insuportável.

Eles a tinham transferido para Sonning-hill, e ali ela via as insígnias do usurpador em todos os criados e nos homens que a vigiavam.

Henrique era o rei agora, diziam. Ricardo abdicar a em favor dele. Ricardo já não merecia mais ser o rei, nem deseja sê-lo, porque passara por sua livre e espontânea vontade a coroa para o primo.

- Isso é mentira... mentira! - dizia ela, soluçando.-Eu não acredito. Nunca vou acreditar.

Se ao menos ela pudesse saber o que se passava. Nos últimos meses, havia amadurecido. Não era mais uma criança mimada. Era uma mulher desesperada.

Qual não foi a sua alegria quando o meio-irmão de Ricardo chegou ao castelo. John Holland, aventureiro impetuoso que era, estava certo do sucesso.

Ele tomara o castelo com a máxima facilidade daqueles que tinham se esforçado para defendê-lo. Henrique nunca pensara que Sonning precisasse ficar fortemente protegido. Era verdade que nele estava a rainha, mas esta não passava de uma criança e nunca fora considerada de muita importância.

John Holland ajoelhou-se diante dela e beijou-lhe a mão.

- Fique tranquila, majestade, que em breve será levada de volta para o lado do rei. Em breve o usurpador não existirá mais.

- Como o senhor me deixou feliz! Tenho sofrido tanto! Querido, querido Ricardo! Será que irei vê-lo em breve?

- Dentro em breve, majestade. Ela entrelaçou as mãos,

- Eu odeio isto aqui. Tenho tido muito poucas notícias de Ricardo. Diga-me... ele está bem?

- A senhora vai ver por si mesma em breve, e não duvido de que ele ficará cheio de saúde quando estiver a seu lado.

- Eu odeio Bolingbroke. Ele é um traidor malvado e cruel de Ricardo. Eles aqui usam as insígnias dele. vou mandar que as tirem imediatamente. Eles devem rasgá-las e substituí-las pelas do cervo branco.

- Vai ser um bom começo - disse John Holland, sorrindo.

Os homens que apoiavam Ricardo estavam reunindo-se em Kingston, preparando-se para o ataque a Windsor. Na ocasião, era necessário o máximo de segredo.

O conde de Rutland, filho do duque de York, que prometera apoio ao golpe, não chegou com seus homens e mandaram-lhe um recado lembrando-o de suas obrigações.

Quando Rutland recebeu a mensagem, estava com o pai, e o duque de York ficou impressionado com o comportamento do filho.

- Quais são as novidades? - perguntou ele.

Rutland hesitou. Seu pai era um homem humilde e delicado, e os dois sempre tinham mantido um relacionamento muito afetuoso.

- É um lembrete de que devo me unir aos meus amigos. Nós vamos recolocar Ricardo no trono.

O duque olhou horrorizado para o filho.

- Você está envolvido nisso!

- Senhor meu pai, Ricardo é o verdadeiro rei.

- Não há esperança de recolocá-lo no trono.

- Ele é filho do Príncipe Negro, filho mais velho de meu avô. Meu primo Henrique não é o verdadeiro herdeiro.

- A batalha acabou. Ricardo está deposto. Ele jamais terá o trono. Henrique é forte. Ele é reconhecido como o rei. O povo o quer. O povo nunca vai aceitar Ricardo de volta. Você não deve unir-se a esses homens, meu filho. Se o fizer, vai perder a cabeça, e muito em breve. Eu vou salvá-lo disso.

Rutland olhou horrorizado para o pai. Ele sabia que havia traído os amigos. Embora Edmund Langley, duque de York, nunca tivesse tido a ambição desvairada dos irmãos, naquele caso ele estava decidido. Não adiantava apoiar uma causa perdida, e seu sobrinho Henrique era o homem para assumir o trono em lugar de Ricardo.

Mas ele tinha de salvar o filho, e estava raciocinando com rapidez.

- Você será um homem morto, meu filho, se não agir com presteza. Henrique precisa ser avisado. Não deve haver mais derramamento de sangue. Haverá revolta no país inteiro. Sob o governo de Henrique, temos uma chance de paz e prosperidade. vou mostrar esta carta a Henrique... a menos que você a mostre a ele antes de mim. Vá a toda velocidade para Windsor. Diga a Henrique que os partidários de Ricardo estão se levantando contra ele. Fale do plano de matá-lo enquanto ele, sem desconfiar de coisa alguma, está em Windsor. Vá agora... o mais depressa que puder. Eu lhe digo uma coisa: vou seguir você. Minha tarefa será contar isso ao rei, para que se tenha a certeza de que ele vai saber. Mas quero que você chegue lá antes de mim. Está entendendo?

Rutland olhou o pai nos olhos. Nunca o vira tão decidido.

- Farei como o senhor manda - disse ele. - Vejo que o senhor tem razão.

Henrique recebeu com calma a notícia dada por Rutland. Sua rapidez em agir confirmou a todos que o cercavam que era possível confiar nele para assumir o controle com a competência de um líder de verdade.

com os filhos ao lado, ele deixou Windsor e seguiu para Londres. Em poucas horas havia reunido um exército.

Enquanto isso, John Holland saíra de Kingston para Windsor. A pequena rainha cavalgava com ele. Ele conversou com ela, dizendo que iriam tirar Ricardo da prisão e recolocá-lo no trono.

Ela estava bonita com o rosado nas faces e o brilho nos olhos. Nunca sentira tamanha agitação. Tudo vai valer a pena, disse a si mesma, quando eu tornar a vê-lo.

John Holland estava muito confiante. Ela acreditava nele. Ricardo falara muitas vezes com ela sobre aquele seu meio-irmão. Ele sempre o amara; e ela iria amá-lo para sempre, depois daquilo.

- O que será que ele vai dizer quando me vir cavalgando com você? - disse ela. - Que surpresa para ele.

- Isso irá completar a felicidade dele - disse Holland.

Eles tinham se aproximado de Cirencester e ali iriam unir-se a amigos.

Quando Isabella o viu cavalgando à frente do grupo, quase desmaiou de alegria. Ali estava ele, os louros cabelos oscilando ao vento; os olhos azuis brilhando de excitação.

Ela foi até ele.

- Ricardo. Ricardo, eu estou aqui...

Ele se voltou para ela. O coração dela pareceu virar pedra; a dor da decepção foi insuportável, porque a figura que seguia à frente das tropas não era Ricardo. Era o padre que se parecia muito com ele.

Ela não ouviu as palavras de consternação; não teve ciência do terror estupefato que havia em toda a sua volta. Nem ouviu as palavras: "Bolingbroke está em marcha. Ele reuniu um grande exército para vir contra nós." Mas ficou cônscia de um desespero repentino.

Estava tudo acabado. Não fizeram mal a ela. Era jovem demais para ser levada a sério. Além do mais, era filha do rei da França, e Henrique de Bolingbroke era um homem cauteloso.

Ela foi afastada às pressas da cena de batalha e levada para Havering atte Bower, e ali devia ficar detida até que se decidisse o que fazer com ela

De vez em quando, ela recebia notícias. Ricardo nunca chegara a fugir da prisão em Pontefract. O padre, uma vez mais, fizera-se passar por ele. De nada adiantara. O pobre padre perdera a cabeça pela sua participação na farsa. John Holland estava morto, também. Ele fugira das forças de Bolingbroke mas fora capturado em Pleshy pela condessa de Hereford, irmã do conde de Arundel. Ela mandara decapitá-lo logo e sua cabeça estava espetada numa lança nos muros do castelo de Pleshy.

Isabella chorava e estava sempre falando em Ricardo. Pelo menos ele não estava morto e enquanto ele vivesse ela não perderia a esperança de ir para junto dele.

Agora, tudo o que podia fazer era aguardar em Havering e rezar e manter a esperança de que um dia estivesse com o marido.

O rei Henrique estava inquieto. Para ele, não haveria segurança enquanto Ricardo vivesse.

Ele sempre dissera que se houvesse uma tentativa de colocar Ricardo no trono este teria de ser eliminado. Como?

Se ao menos ele morresse! Teria sido melhor se ele tivesse fugido. Então, poderia ter sido morto em combate; mas agora ele estava preso em Pontefract, passando os dias preocupado; e as pessoas que moravam por perto sabiam que ele estava ali. Elas olhavam para a luz na torre e tremiam quando passavam por lá.

- Lá está aquele que já foi rei-diziam elas, e havia pena em seus olhos e em sua voz.

Henrique ordenou que houvesse um toque de recolher ao anoitecer e ninguém da cidade deveria arriscar-se a sair depois que o sino tivesse tocado. Os guardas deviam ficar vigilantes.

Não haveria paz para o novo rei da Inglaterra enquanto Ricardo vivesse.

Thomas Swynford sabia disso, e estava ansioso por servir bem ao enteado de sua mãe. Tudo o que lhe acontecera de bom viera da casa de Lancaster. O casamento de sua mãe com o poderoso duque mudara a vida deles.

Quem ele tinha sido, a não ser Thomas Swynford... filho de um humilde escudeiro... até sua mãe tornar-se esposa do duque de Lancaster?

Ele gostaria de mostrar sua gratidão ao homem a quem ele, ousadamente, se referia como seu irmão.

Henrique sabia disso. Thomas Swynford era de confiança. Thomas Swynford sabia que Henrique não poderia ter paz enquanto Ricardo estivesse vivo.

Mas não deveria haver um assassinato sangrento. Homens assassinados tornavam-se mártires. Nunca se devia permitir que Ricardo se tornasse um deles.

Mas Ricardo não devia viver.

Como era triste no castelo de Pontefract; como os ventos uivavam em torno daqueles muros! Como o inverno estava durando!

Ricardo jazia apático em seu catre. Seu casaco estava manchado. Os cabelos louros estavam foscos, a barba, despenteada.

Antigamente, ele cuidara muito da aparência; adorara roupas finas, jóias, unguentos perfumados, um bom vinho, boa comida, uma vida elegante.

Mas agora... Agora não havia coisa alguma. Não havia jóias finas nem tecidos suntuosos. A carne que lhe serviam muitas vezes estava podre, e o pão estava mofado.

Thomas Swynford estava sempre lá, observando com expressão sardónica; o filho de um escudeiro, agora senhor do filho de um grande príncipe.

- E você espera que eu coma isso? - perguntara Ricardo.

- Por que não? - fora a resposta. - Está boa.

- Você comeria?

- Eu não sou prisioneiro do rei.

Ele não conseguia comer. Sentia-se fraco de fome, mas a comida que lhe levavam só o deixava enojado.

- Você precisa comer, se não, vai morrer - dizia Thomas Swynford.

- Então, eu morro - replicava Ricardo.

Thomas Swynford não dizia nada e continuava a servir a carne estragada.

Muitas vezes Ricardo ficava delirante. Os pensamentos fugiam para o passado. Aquilo é que era conforto, porque era muito mais fácil viver no passado do que no presente.

Mas havia um pesadelo que o perseguia. Seu bisavô, Eduardo II, tinha sido tratado daquela maneira. Ele devia ter ficado assim numa prisão de um castelo. E uma noite

eles o tinham ido procurar...

Ricardo não suportava pensar naquilo. E se eles se lembrassem e dissessem que assim como aconteceu com Eduardo deveria acontecer com Ricardo?

Pontefract, em vez de Berkeley... Ricardo, em vez de Eduardo.

- Ó Deus, permita que eu morra antes - rezava ele.

Ele agora estava muito fraco. Mal podia levantar-se. Não comia coisa alguma. Ele agora não queria comida. Podia apenas ficar deitado, imóvel, e vagar do passado

para o presente, e nos momentos de maior lucidez lembrava-se do que tinham feito ao seu bisavô.

Se um desejo meu pudesse ser atendido agora, pensava ele, eu sei qual seria ele. A morte.

Foi uma noite terrível, a de 14 de fevereiro. Ninguém saíra. Mesmo que o toque de recolher não tivesse mantido as pessoas em casa, o tempo o teria feito.

Thomas Swynford entrou sorrateiramente no quarto. Sabia que agora não devia faltar muito. Há muitos dias que seu prisioneiro não comia coisa alguma. Ele definhava

depressa.

Como o vento uivava como se em homenagem a uma alma atormentada!

Não pode demorar agora, pensou Thomas Swynford. Hoje... amanhã... estarei mandando a notícia ao rei.

 

 

                                                                                                    Jean Plaidy

 

 

 

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