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PASSAPORTE PARA A NOITE / Heinz G. Konsalik
PASSAPORTE PARA A NOITE / Heinz G. Konsalik

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PASSAPORTE PARA A NOITE

 

A primeira vez que ouviram aquilo estavam saindo da igreja. O padre acabara de pronunciar a bênção, e o pequeno sino soava na torre. O povo agrupava-se no pátio da igreja, conservando ain­da gravadas na alma as últimas palavras: “Que Deus proteja nossa Pátria e nos envie a paz’’; foi então que ouviram aquele estrondo apenas insinuado, distante, estranho e invulgar, levado pelo vento através de campos, pradarias, florestas de vidoeiros e lagos.

Ergueram as cabeças para o céu outonal de um azul infinito com alguns amontoados de nuvens brancas, interromperam a conversa e aguçaram os ouvidos.

— Fogo de artilharia! — disse Paskoleit, enfiando as mãos nos bolsos de seu terno de domingo. — Sem dúvida alguma, é fogo de artilharia.

Os outros permaneceram em silêncio. As mulheres mexiam, com gestos nervosos, nos lenços que lhes cobriam as cabeças, e olhavam em direção à igreja. O padre Heydicke, ao sair, também ergueu a fronte e quedou-se parado à porta. Alto, forte, um vulto impressionante de batina preta, quase uma figura pré-histórica gerada do solo da Prússia Oriental ao longo dos séculos.

— Alguma coisa está errada!

Paskoleit falou tão alto que todos os olhares se voltaram para ele.

— O relatório da Wehrmacht diz apenas que os russos tiveram algumas pequenas vitórias locais. Mas isto aqui, podem ter certeza, vem dos lados do Vístula.

Era um domingo de outubro. A aldeia de Adamsverdruss, entre Ortelsburg e Johannisburg, estava quase toda reunida diante da igreja. Poucos eram os que faltavam: o chefe político local, Felix Baum, o chefe local dos camponeses, Johannes Lusken, e a paralítica aposentada Juliane Brakau. Juliane precisava de muito repouso... só costumava chegar à igreja por volta de meio-dia. Johannes Lusken, seu vizinho, a trazia na cadeira de rodas para o “culto particular”, e, com isto, também ele recebia a bênção. Era a sua maneira de contornar a determinação do Partido de deixar a religião, convencendo-se de que permanecia na igreja apenas para agradar Juliane, numa simples demonstração de amor ao próximo. Em Adamsverdruss ninguém ignorava que, por detrás da cadeira de rodas, ele entrelaçasse as mãos quando o padre Heydicke rezava o padre-nosso; portanto, o único que realmente não se encontrava na igreja era Baum, o chefe político local, que ficara ouvindo, pelo receptor radiofônico da aldeia, o pronunciamento dominical do ministro da Propaganda, Goebbels. Na maioria das vezes comparava, em segredo, os discursos de Berlim com o que os soldados em férias copiavam do front, com os comentários ouvidos quando se ia fazer compras em Gross Puppen, a aldeia mais próxima, ou com as novidades trazidas pelo comerciante de gado de Ortelsburg.

— O que é isto, senhor padre? — perguntou Paskoleit perante o povo de Adamsverdruss.

Para quem o via assim, cabeça redonda, ombros largos, pernas abertas, plantado no meio da praça, era fácil entender por que a Prússia Oriental era uma terra abençoada por Deus.

Julius Paskoleit era mestre sapateiro. Na verdade ele deveria ter assumido a administração da propriedade paterna em Kleinlindengrund, com plantação de batatas e criação de cavalos, mais vinte cabeças de gado e um touro comunitário. Exatamente esse touro, porém, arruinou a vida que lhe estava destinada. Tinha dezoito anos quando o mandaram buscar o touro no pasto. Até hoje ninguém sabe que tipo de odor Paskoleit exalava, mas fato é que o touro abaixou a cabeça, revolveu a terra com as patas e avançou contra Paskoleit.

Não é covardia fugir de um touro atacado de bobeira. Paskoleit deu uma reviravolta, esticou-se como um atleta e tentou, aos trancos e barrancos, chegar à cerca protetora. Mas o touro foi mais rápido, alcançou-o, deu-lhe uma chifrada na coxa esquerda, sacudiu a cabeça e atirou Paskoleit para o alto, acalmando-se em seguida, enquanto o homenzinho, desmaiado e sangrando, rolava até a cerca.

De Kleinlindengrund até a Casa de Saúde de Ortelsburg são apenas vinte e sete quilômetros, mas naquela época não se podia conseguir um carro veloz. O dr. Krokau veio de Friedrichshof em seu pequeno carro, o que levou quase uma hora; enfaixou a coxa e quando, finalmente, Paskoleit chegou à mesa de operações em Ortelsburg, já era tarde. Tiveram de amputar a perna, mas ficou um toco grande o bastante para que Paskoleit pudesse andar sem problemas com uma perna mecânica.

A propriedade foi entregue ao segundo filho.

— Você será sapateiro — disse o velho Paskoleit, um patriarca de barbas espessas, que, ao terminar uma frase, dava um soco na mesa para demonstrar que ninguém tinha o direito de contradizê-lo. — Quem só tem uma perna aprende a dar valor aos pés dos outros.

Foi assim que Julius Paskoleit virou sapateiro, montando uma oficina em Gross Puppen e transferindo-se para Adamsverdruss, em 1940, porque seu cunhado Ewald Kurowski estava de partida para a guerra.

Ewald Kurowski também era sapateiro. Durante suas últimas férias, em 1942, dissera:

— Julius, Erna vai ter mais um filho. Cuide de minha família, e se algo me acontecer... fique com ela. Nunca a abandone. Tirando o vovô e a vovó, só temos você. E esta guerra vai ser uma grande merda, isso eu garanto. Todos esses brados de Heil só servem para nos embriagar, e Baum com seus discursos só faz é repetir tudo que ouve como um papagaio. Julius, tome conta de minha família...

Foi o que Paskoleit fez. Quando Ewald Kurowski desapareceu em algum ponto dos pântanos do Pripet, tornou-se o chefe da família Kurowski. Sua irmã Erna e as crianças o reconheceram como tal. Vovó Berta também ficou feliz em ver que Paskoleit alimentava a família com seu trabalho de sapateiro. Só vovô Joachim, conhecido pela alcunha de Jochen Berrador, não entendia por que um mocinho tinha de ser o chefe da família, e não ele, o mais digno e respeitável. Para o velho de setenta e dois anos, Paskoleit, com seus trinta e nove anos de idade, estava acabando de sair do ovo. Não concordava e demonstrava isso como e quando podia; chegava tarde para as refeições, discordava das opiniões de Paskoleit e berrava a cada oportunidade:

— Meu antepassado foi moleiro junto à Ordem dos Cavaleiros. Ninguém manda em mim!

Agora ele também sentia o ar, ouviu aquele troar distante, e, embora Paskoleit já tivesse expressado sua opinião, pensativo, o velho também levantou a voz:

— É uma trovoada!

— Estão no Vístula, é verdade — disse o padre Heydicke.

Foi passando pelo meio do povo de Adamsverdruss em direção à casa paroquial e todos o seguiam de perto. Só o avô Jochen ficou parado, encolheu o queixo e bradou:

— É uma trovoada!

— Deveríamos perguntar a Baum o que vem por aí — disse Paskoleit. — Como chefe político ele deve saber o que está por acontecer. Conseguirão os russos atravessar o Vístula? Haverá um novo Tannenberg? Talvez fosse bom ele dar um telefonema para a administração distrital de Ortelsburg.

— Eles virão.

O padre Heydicke estava em pé à porta de sua casa. Seu olhar passeava sobre as cabeças. Alguns homens, a maioria deles de idade avançada, velhos demais para a guerra, um punhado de inválidos como Paskoleit, nada mais nada menos que catorze homens mais jovens, declarados incapazes por trabalharem em diversas fá­bricas em Ortelsburg e em Bischofsburg, ou alguém que sofria de algum mal, como o aprendiz de sapateiro Franz Busko, que não fora recrutado devido a uma antiga tuberculose pulmonar — o restante eram apenas mulheres e crianças. Uma massa compacta cheia de perguntas sem formular e temores disfarçados.

Que será de nós? Teremos de abandonar Adamsverdruss? Os russos chegarão até aqui? Ir para onde? Subir para a costa, para o Nehrung? Ou rumo ao oeste, para a Pomerânia, Berlim, entrando na região de Brandenburgo? O que será da Prússia Oriental, senhor padre? Teremos que deixar nossa terra natal?

— Eu não sei — disse Heydicke para aquela gente. Eles nem precisavam perguntar em voz alta, compreendia-os pelo olhar. — Nem mesmo sei se Deus será capaz de ajudar. Na guerra todos oram a Deus... todos os que matam cumprindo ordens, deste lado ou do outro. Abençoam-se as bombas, as granadas, os fuzis, os canhões, os homens, os feridos, os agonizantes, os mortos. Todos querem a ajuda de Deus, porque cada um se acha justo. O que querem que Deus faça? Vocês conhecem a resposta?

Os devotos começaram a dispersar-se. Tinham orgulho de seu padre. Não era um daqueles que, sempre e a cada oportunidade, se escondia atrás de Jesus empurrando qualquer decisão para Ele. Dizia o que pensava, o que nem sempre era sagrado, mas era honesto. Isso valia mais que dez versículos da Bíblia, de nenhuma utilidade num momento em que pairava no ar aquele troar distante.

— Vou falar com Baum — disse Paskoleit no instante em que a família Kurowski chegava ao jardim de sua casa. — Do Vístula até aqui é um pulo. Devemos estar preparados para tudo.

— Vou junto — disse vovô Jochen, batendo no chão com a bengala.

— Para quê?

Paskoleit apontou para o céu de outono com os amontoados de nuvens que se moviam devagar.

— Preocupe-se com sua trovoada, vovô.

— Pirralho atrevido! — berrou Joachim Kurowski. — Eu vou para onde eu quiser! Quero discutir com Baum sobre Goebbels! Alguma objeção, patrãozinho?

— É melhor não dar palpite.

— Eu falarei quando bem entender! — berrou vovô Jochen. — Vamos! Ainda quero tomar um Baerenfang!

Pisando forte, saiu caminhando. Erna Kurowski segurou o irmão pela manga. Trazia no colo a filha caçula, Inge, de dois anos.

— Isto são mesmo canhões? — perguntou.

— Sim.

— E nós temos de sair daqui?

— Quer ser atropelada pelos carros de combate russos?

— E a casa? A oficina? Os campos? Nossa floresta?

— A guerra não quer saber. Quando os russos atravessarem a fronteira, daremos graças a Deus se pudermos salvar nossa pele. Dentro de uma hora saberemos mais...

Foi um engano.

O chefe político local, Felix Baum, acabara de ouvir no rádio o artigo de Goebbels publicado no Reich, o semanário que se tornara o porta-voz do governo, e meditava, ao som de marchas militares, sobre aquelas palavras esperançosas. Admirou-se quando viu entrar vovô Jochen, seguido por Julius Paskoleit, e quando Jochen Berrador desligou o rádio sem pedir licença.

— Você está perdendo o melhor da festa — falou. — Ponha a cabeça pra fora, Felix... está trovejando nas imediações do Vístula!

— Uma trovoada... — disse Paskoleit, em tom de gozação.

— Artilharia! — berrou vovô Jochen.

— Besteira! — Baum fez um gesto de desprezo. — Estava justamente ouvindo Goebbels.

— E eu conheço este som desde a guerra de 14-18! Por acaso Goebbels estava diante de Verdun, hein? Estava no Mort-Homme? E naquela altitude, por acaso Goebbels estava lá? Mas eu sim! E conheço o ruído! Isto é fogo contínuo de artilharia! Os russos vêm para Adamsverdruss?!

— Nunca! Nosso Füehrer vai afugentar as hordas vermelhas até a Ásia... A Prússia Oriental é uma fortaleza que, como uma rocha...

— Ora, aos diabos com você! — interrompeu Paskoleit, sentando-se. — Os russos já estão no Vístula, vai querer contestar isto?

— O relatório da Wehrmacht...

Felix Baum tornou a ligar o rádio. O som da marcha animou-o. Fora dispensado do serviço militar por causa de problemas hepáticos, além de umas hemorróidas que dariam para escrever um livro, mas em compensação fora nomeado chefe político local de Adamsverdruss.

— Toda a aldeia — dissera o administrador distrital de Ortelsburg — tem de ser uma comunidade ajuramentada que acredite no Füehrer! Só esta crença nos dará a vitória final e o grande Reich alemão! Sieg Heil!

Felix Baum, arrebatado, erguera o braço, comprara em Or-telsburg seu uniforme de chefe político e voltara a Adamsverdruss como um príncipe entrando em seus domínios. Desde então só tivera dissabores, brigas com os velhos amigos, discussões e xingamentos; certa vez, ao advertir o padre Heydicke, alegando que os sermões que ele pregava eram subversivos, levou, na noite de domingo, uma surra de dar pena, sem que jamais se soubesse de quem. Baum tinha lá suas desconfianças e, daquele momento em diante, passou a tratar todos, mas principalmente Paskoleit, com muito cuidado, evitando toda e qualquer discussão.

— E mesmo que eles estejam no Vístula... nossas valorosas divisões os afugentarão...

— Quer dizer que você não sabe de nada? — disse vovô Jochen com sua voz estrondosa.

— Só o que Goebbels diz. É o suficiente, não?

— Ligue para o administrador distrital!

— Agora, num domingo? Vocês têm coragem...

— Se uma de minhas vacas tem cólicas, chamo o veterinário! Pode ser domingo, no meio da noite, Natal ou Páscoa... mas ele vem! Agora é a Alemanha inteira que está com cólicas... Com mil trovões, estou ansioso para saber o que dirão os grandes veterinários!

Felix Baum fitou Joachim Kurowski com olhar espantado.

— É isso, literalmente, que devo dizer ao administrador distrital?

— Por mim pode falar.

— Eles o prendem na mesma hora!

— Pelo menos assim estarei em segurança quando os russos chegarem. Vamos, telefone para Ortelsburg!

— Você será enforcado por subversão contra a Wehrmacht, Jochen!

— Eu? Um Kurowski! Pelo administrador distrital? O Ewald Tollak, um bebê que ainda cagava nas calças quando eu já me encontrava à frente de Verdun?

Vovô Jochen avançou para o telefone que estava ao lado do rádio.

— Quer que eu telefone?

— Deus me livre!

Felix Baum diminuiu o volume do rádio, discou um número e esperou. De repente ouviu-se um chiado e uma voz; Baum empertigou-se todo e falou:

— Senhor administrador distrital, aqui fala Baum, o chefe político local de Adamsverdruss. Estou telefonando porque algo estranho está acontecendo. Já faz meia hora que estamos ouvindo um troar surdo no ar. Não! Não estou com dor de barriga nem estou peidando... Está vindo da direção do Vístula... O quê? Não devo espalhar comentários de latrina? Sim, senhor administrador distrital, também acabo de ouvir as palavras do ministro da Propaganda do Reich, um discurso sensacional, sim, senhor... É claro que, também aqui em Adamsverdruss, todos crêem na vitória final; Adamsverdruss está seguindo o Füehrer unida... Mas, e o ruído lá longe, senhor administrador, sim, senhor, eu já fui ao banheiro hoje... o vento traz o barulho... Compreendo, senhor administrador distrital, não quer dizer nada, nossas tropas revidaram o ataque soviético. Sim, senhor, deve ser isso! Heil Hitler!

Felix Baum colocou o fone no gancho e enxugou o suor.

— Vocês ouviram — disse com franqueza na voz. — Que merda, cara! Depois de amanhã, quando ele estiver aqui, mando-o falar com vocês!

— Isso mesmo.

Paskoleit foi até a janela e abriu-a. Podia-se ouvir o ruído perfeitamente, embora vindo de tão longe. Baum endireitou os ombros.

— Meus ouvidos não estão tapados! — disse.

— E agora? Devemos fazer as malas?

— Fazer as malas? Mas como? Estão querendo espalhar o pânico? Só porque está trovejando lá longe?

— Alguma vez já olhou o mapa?

Paskoleit tirou um lápis do bolso do paletó e começou a desenhar, sobre a toalha da mesa, o contorno da Prússia Oriental. Lá embaixo, na fronteira com a Polônia, onde havia uma longa curva, fez uma cruz. Adamsverdruss. Baum desistiu de protestar contra os rabiscos em sua toalha branca. Quando Julius Paskoleit queria demonstrar alguma coisa, o jeito era aceitar.

— E daí? — perguntou. — Na escola eu era considerado bom em geografia.

— Aqui está o Vístula. Aqui estão os russos! A terra entre nós e eles é toda plana. E os russos têm tanques tão velozes quanto um automóvel. Aqueles malditos T34!

— E nós temos os panzer Tigre, os Leopardo...

— Mas sem combustível, seu burro!

— Tudo conversa mole!

Felix Baum aumentou o volume do rádio para ouvir as marchas militares. Precisava de amparo moral.

— São novas punhaladas nas costas! Nossos exércitos nunca estiveram tão bem equipados!

— E as batidas em retirada, seu camelo? — berrou avô Jochen.

— Reduções estratégicas das frentes. Quanto menor e mais estreita a linha principal de combate, mais vigorosos serão os golpes! Deixaremos vir os russos, vir sempre... e, então, tchabum, fogo concentrado neles! Acreditem-me, o Füehrer sabe o que quer! E um gênio!

— Estou pouco ligando! — disse Paskoleit. — Só estou preocupado com Erna e as crianças. Tratarei de tirá-las daqui.

— Julius, isto é traição! — gritou Felix Baum. — O leste alemão é o lugar mais seguro que existe! Afinal, para onde está querendo levar Erna?

— Krefeld, onde mora uma tia dela.

— Onde já se ouviu algo mais idiota? — exclamou Baum. — Krefeld! Onde caem bombas todos os dias! Para a região do Ruhr, de onde mandam os flagelados para cá! Jochen, ponha-lhe uma compressa na testa! E que seja gelada! As administrações regionais do ocidente estão trazendo mulheres e crianças para que nós as abriguemos, porque o leste alemão ainda é um fortíssimo baluarte, e essa besta quer levar os filhos de Erna e Ewald para o oeste!

— A questão é: o que será melhor, as bombas ou os russos? Aquele tio de Krefeld é alguém no Partido e tem as costas quentes... Cuidará bem de Erna!

— Ele a mandará para a Prússia Oriental! — gritou Baum.

— Não adianta. — Paskoleit levantou-se e acenou para Jochen Kurowski. — Venha, vovô. Não vou esperar até que os tanques russos estejam parados a nossa porta! Depois de amanhã vou até Johannisburg. Tenho algumas botas a entregar no hospital militar e aproveitarei para saber, da boca dos pacientes mais novos, em que pé estão as coisas no front.

Cutucou o peito de Baum e divertiu-se com a insegurança que leu nos olhos dele.

— Terei mais novidades para contar do que seu querido Goebbels! Notícias da Wehrmacht em primeira mão. Bom domingo, Felix.

— Felix Hitler! — respondeu Felix Baum, amuado.

Pela janela, ficou olhando Paskoleit e Kurowski se afastarem. O ruído distante cessara, a paz dominical cobria a terra das florestas de vidoeiros e, da abóbada celeste, de um azul infinito, irrompia uma alegre luminosidade.

— Os russos nunca virão — disse Baum, baixinho —, não podem vir. Nossa bela terra...

Viu o chefe local dos camponeses, Johannes Lusken, empurrar a paralítica Juliane Brakau para a igreja em sua cadeira de rodas. Vestia o uniforme do Partido, mas havia uma saliência no bolso esquerdo; era lá que ele escondia o livro de cânticos. Baum sabia disto e, naquele momento, sentiu inveja de Lusken por ser capaz de ouvir outras palavras que não as de Adolf Hitler.

Tomou a decisão de aguardar até a noite para fazer uma visita secreta ao padre Heydicke a fim de ter uma conversa com ele.

No dia 20 de outubro chovia a cântaros e Jochen Kurowski dizia:

— Agora Adamsverdruss vai inundar. Os russos terão que vir de calção de banho!

O oficial subalterno Hans Kampken viu-se obrigado a voltar. Um tiro, perto de Witebsk, tirara-lhe um olho, o direito, daí a venda preta que usava sobre a órbita vazia, e, para compensar a vista perdida, ostentava no peito a Cruz de Ferro de primeira classe. Veio de Gross Puppen num dog-cart, que pertencia ao farmacêutico, e fez da taberna da aldeia sua primeira parada. Paskoleit e seu ajudante, o tuberculoso Franz Busko, estavam jogando skat[1] quando Kampken entrou, ensopado, sacudindo-se como um cão para livrar-se da água.

Gente, que porcaria! — exclamou, com um aceno ao taberneiro. — Manda um kuemmel, Franz!

Olhou em volta, deu um tapinha nas costas de Paskoleit e não reparou num homem, estranho ao lugar, sentado no canto e tomando uma cerveja. Chegara de automóvel e apresentara-se como corretor de seguros.

— Vocês já sabem o que está acontecendo? Estou chegando de Rastenburg, do hospital de campanha. Dizem que o maior estrategista de todos os tempos está perdendo terreno. Que o quartel-general do Füehrer vai ser transferido para Berlim. Sabem o que significa isso? Que a Prússia Oriental logo estará em apuros. Gente, o negócio é fugir! Eu lhes digo: na hora em que os russos resolverem sair por aí com seus T34, ninguém mais os deterá! Saúde, pessoal! Estou de olho em Witebsk. O que vejo: uma grande porcaria! No Kurland temos uma divisão inteira de panzer sem um litro de combustível, nas planícies junto ao Vístula os rapazes contam a dedo seus cartuchos e granadas. E o Ivã só acumulando, dia e noite... tanques, canhões, artilharia pesada, caminhões, divisões, tropas vindas da Sibéria, novinhas em folha... eles vão arrebentar-nos a todos até as tripas!

Naquela mesma noite Paskoleit tornou a falar com a irmã.

— Vá para Krefeld — disse. — É só para aguardar os acontecimentos, Erna. Eu ficarei por aqui. Mas se a situação engrossar... pense no que Ewald me disse: “Cuide de Erna e das crianças”. No sábado vocês vão para o oeste.

— Nós ficaremos aqui — disse Erna Kurowski. — Ewald nasceu aqui, eu nasci aqui, as crianças nasceram aqui, aqui temos nossa casa, aqui está a oficina do Ewald e é para cá que ele vai voltar. Está vivo, eu sinto. Desaparecido não quer dizer morto. E se, de repente, ele surgir aí na porta e não encontrar ninguém em casa, como poderei explicar mais tarde? Que somos um bando de covardes, que ouvimos barulho de tiros de canhão vindo de bem longe e fugimos?! Não, Julius... nós ficaremos aqui mesmo!

— Vão se arrepender — falou, sério, Paskoleit. — Não posso obrigar ninguém. Se os russos vierem mesmo para a Prússia Oriental, será que então poderemos vencer...?

No dia seguinte o oficial subalterno Hans Kampken foi tirado da cama por dois homens do SD. Não teve tempo nem de colocar o tapa-olho. Como um assassino, levaram-no para um carro cinza, fechado, e partiram. Também o estranho, o corretor de seguros, abandonou Adamsverdruss após uma breve conversa com Felix Baum, o chefe político local. À noite, vovô Jochen passeava pela aldeia e noticiava:

— Vão condenar Kampken à morte! — berrava. — E Baum recebeu uma advertência! Com mil demônios, só porque disse a verdade! Os russos de fato passaram pelo Kurland! Gente, deveríamos é começar a fazer as malas! Se os russos atravessarem o Vístula, ninguém mais poderá detê-los. Quem diz isto sou eu, Joachim Kurowski... nem que eles me enforquem ao lado de Kampken!

Em torno da Prússia Oriental fechava-se a mais coesa das divisões soviéticas. Milhares de tanques aguardavam a ordem de ataque, milhares de canhões voltavam-se para a fronteira alemã, um mar de corpos humanos marrom-acinzentado vinha arrastado na corrente. Novos exércitos provindos das profundezas da Rússia, tropas jovens novinhas... E do outro lado esperavam as divisões alemãs, cansadas, massacradas, encolhidas, cuja única força residia na determinação de levantar, diante de sua pátria, um muro de cadáveres.

E, mais uma vez, o vento trazia aquele ribombar distante, o sopro da destruição...

 

Triste foi a festa de Natal.

Não só Adamsverdruss, mas toda a Prússia Oriental estava de malas prontas e, nos celeiros e garagens, os veículos estavam preparados para a fuga. O inverno caíra sobre a terra com uma geada que arrancava gemidos das árvores. Sempre que o vento assobiava em volta das casas fazendo tremer as vidraças, o avô Joachim segurava seu grosso cachimbo e consolava:

— Isso até que é bom, crianças. Com um tempo desses os russos não atacarão mesmo. Até os homens lá da Sibéria sentem frio.

Enganava-se. Julius Paskoleit, que fora à Secretaria de Finanças de Gross Puppen buscar borracha e couro para a sapataria, contou os soldados chegados do Narev e do Vístula. Ali, como no Kurland, concentravam-se enormes massas de tropas soviéticas aguardando a ordem de atacar.

— Eles sabem até os nomes — disse Paskoleit. — Os marechais Rokossovski e Tcherniakovski assumiram o comando geral. Dizem que são os melhores comandantes do Exército russo.

— Tudo bobagem! — retrucou vovô Jochen. — Meu nome também acaba com i, e nem por isso sou um grande general!

Paskoleit, sem vontade de brigar com Kurowski, saiu correndo pela tempestade de neve para falar com Felix Baum, o chefe político local. Este era o único que não fizera as malas. Para comemorar, ia desejar feliz Natal de casa em casa, ganhava uma aguardente e, diante da árvore enfeitada, dizia a cada família a mesma coisa:

— Não tenham medo, compatriotas! O Füehrer vai conseguir! Não foi sempre assim, cem russos contra um alemão? A frente se mantém firme como aço da Krupp! Vocês verão: em 1945 afugentaremos os vermelhos até o Ural. Heil Hitler!

Na última visita ao padre Heydicke, mal podia andar, caindo, com os olhos vidrados, sobre o velho sofá de couro.

— Preciso confessar-me — disse, com a voz engrolada. — Senhor padre, mesmo bêbado quero a confissão. O que achará disto o bom Deus? Passei o Natal contando mentiras a uma aldeia inteira! E tenho medo! Não durmo mais à noite. Mísero porco que sou, senhor padre.

Deitou a cabeça na mesa e chorou.

O padre Heydicke o deixou chorar. Uma hora mais tarde deu óleo de salada a Felix Baum para beber; o chefe político vomitou a não mais poder, mas depois estava sóbrio o bastante para que se pudesse ter uma conversa sensata com ele.

— E agora? — perguntou o padre. — O que sabe, Baum?

— A administração distrital foi transferida para Allenstein. Provisoriamente.

— Bonito. E ninguém pode saber disso?

— Céus, não! — Baum tomou meio copo de água gasosa, arrotou e disse, envergonhado: — Peço desculpas, senhor padre. — Depois ficou olhando a tempestade de neve pela janela. — Mas ao senhor eu precisava contar. Também meu terno civil já está ao lado da cama, pronto para vestir. Sou um covarde, não?

— A carne é fraca — contornou o padre Heydicke —, mas foi bom o senhor encontrar o caminho para vir a mim. Quando é que os russos vão atacar?

— Isso, para dizer a verdade, ninguém sabe.

Baum levantou-se. Eram duas horas da manhã, e não havia perigo de ser visto àquela hora saindo da casa paroquial, ainda mais com aquela neve.

— Eu tenho telefone, senhor padre. Ligue para mim duas vezes ao dia... Quando chegar o momento, pode tocar os sinos. Estou só aguardando novas ordens da administração distrital...

O novo ano começou tinindo de geada, mas o céu estava claro. A família Kurowski, que se encontrava, à meia-noite, junto às janelas, os copos cheios de chá quente temperado com um pouco de uísque de centeio, abraçou-se, trocou beijos e pronunciou o feliz ano-novo como se fosse uma prece.

— Está tão quieto... — disse o avô Joachim, mais tarde, a Paskoleit. As crianças já estavam na cama, a avó Berta adormecera na poltrona, Erna Kurowski tricotava um xale para o pequeno Peter, de quatro anos. — Não gosto nada disso.

— Primeiro reclama do barulho, depois acha tudo muito quieto, você não sabe o que quer — disse Paskoleit.

— Você nunca esteve na guerra! — gritou Kurowski. Era para que vissem que, apesar de seus setenta e dois anos de idade, ele ainda era o Jochen Berrador. — Na guerra sempre é mais perigoso quando tudo está quieto. O que andam dizendo lá fora?

— Nada.

Paskoleit pensou em Hans Kampken, levado preso. Como já era esperado, tinham-no fuzilado em Allenstein. Por subversão e desacato à Wehrmacht. Sem deixar que ele abrisse a boca para falar, uma corte extraordinária pronunciara a sentença, marcando a execução para dali a uma hora. Um comerciante de gado de Allenstein, que ouvira a história de seu cunhado, ferreiro da divisão, contava, mas só aos amigos mais chegados, que, pouco antes do comando “fogo!”, Kampken ainda bradara: “A verdade ainda vai arrebentar suas tripas!” Dito isto, levou catorze balas, todas no peito. Os executores tinham boa pontaria.

— Mas alguma coisa devem estar dizendo! — rosnou Kurowski, teimoso.

— Que a safra de batatas não vai ser nada boa...

Vovô Jochen olhou fixo para Paskoleit, pensando se deveria ou não armar um escarcéu no primeiro dia do ano; depois acenou com magnanimidade e foi para a cama. Levou avó Berta consigo... Cutucou-a para acordá-la; ela soltou um gritinho, levantou da poltrona e, tateando, seguiu o marido. Paskoleit e Erna ficaram sozinhos.

— Amanhã carregarei os dois carros — disse ele —, a carroça grande e o coche. Você já arrumou tudo, não arrumou?

— Já, tirando as coisas mais necessárias. — Erna Kurowski fitava o irmão com olhos arregalados. — Você sabe mais do que diz, Julius.

— Só sei que de maneira alguma esperarei até que nos façam evacuar oficialmente..

— Mas nós só temos dois cavalos para a carroça grande.

— Há quatro dias comprei dois cavalos em Ortelsburg, pagos com dez peças de couro. Irei buscá-los amanhã. Em Deutschwald temos um trator que também comprei. Esse custou o seu piano...

— O piano? — Ema jogou o xale longe. — Julius, você não pode, simplesmente, trocar o piano de Ewald por um trator!

— Você pretendia carregá-lo nas costas até Berlim ou talvez até Colberg?

— Mas quando Ewald...

— Seu marido não teria agido de outro modo! Com um piano não se percorre as estradas, mas sim com um trator! Um trator pode significar nossas vidas... ou será que você prefere ficar aqui sentada tocando Pour Elise com os russos à porta?! Meu Deus, eu seria capaz de subir as paredes de contentamento por possuir um trator e você fica resmungando!

Paskoleit foi até a janela. A noite do primeiro dia de janeiro de 1945 estava linda, como devia ser uma noite de ano-novo. Um céu carregado de estrelas. E, sobre a terra, a neve cintilante.

— Alguma vez já lhe passou pela cabeça que nunca mais tornaremos a ver Adamsverdruss? — perguntou, baixinho.

— Nem penso nisso. E impossível.

— E se os russos ficarem aqui?

— Por enquanto ainda não chegaram, Julius.

— Ou os poloneses, quem sabe?

— Como é que você pode imaginar tal coisa, Julius? Afinal de contas, estamos na Alemanha.

— Por quanto tempo?

— Há algumas centenas de anos... e por mais algumas centenas de anos.

— Ou então até que Rokossovski e Tcherniakovski nos dêem um aperto e nos esmaguem, Quem reconquistará a Prússia Oriental? Nossas pobres e sugadas tropas? Nossas divisões que precisam contar a dedo a munição que lhes resta? Nossos panzer que não têm combustível?

— Você é muito pessimista — disse Erna Kurowski. — Não ouviu Goebbels no rádio? Ele diz que 1945 é o ano da vitória.

— É verdade.

Paskoleit afastou-se da janela. Comoveu-se, chegando às lágrimas, com a paz existente lá fora.

— A pergunta é quem vencerá...

 

Na manhã de 12 de janeiro, num dia em que a geada tilintava, toda a terra em torno da Prússia Oriental pôs-se a ressoar. Um anel cuspindo fogo arremessava morte e destruição sobre as divisões alemãs, que esperavam, abaixadas no solo gelado, a chegada dos exércitos soviéticos. Já no começo da tarde, pôde-se reconhecer a monstruosa concentração e o avanço das frentes vermelhas. Não só a Prússia Oriental seria cercada, o marechal Shukov marchava rumo a Berlim, as tropas de Koniev e Petrov atacavam a Silésía. Próximo a Baranov, na Galícia ocidental, os soviéticos atravessavam o Vístula, saíam com seus panzer para desmantelar a frente central alemã. Toda aquela terra a oeste do Vístula assemelhava-se a uma mesa sobre a qual se estendia agora uma toalha de sangue.

Vindo de todos os lados, uma enxurrada de refugiados corria em direção ao oeste e ao norte. Em Eydtkau e Goldap, Treuburg e Lyck, Johannisburg e Neidenburg, Deutsch-Eylau e Marienwerder instalavam-se campos de refugiados. Tilsit foi coberta por uma avalanche de caravanas, mas não por muito tempo, pois três dias mais tarde a cidade foi atacada pela artilharia pesada soviética. Uma longa fila de pessoas, com carros de mão, carroças, tratores, coches e trenós, arrastava-se do Protetorado de Flammberg para atravessar a fronteira.

O chefe político Felix Baum, mais uma vez, percorreu toda Adamsverdruss, recomendando calma. Da administração distrital de Allenstein só lhe respondiam aos gritos, porque telefonava diversas vezes por dia para ter notícias sobre a situação.

— O senhor só tem que acreditar no Füehrer, mais nada! — vociferava alguém que se chamava Lumenski. Baum nunca ouvira falar nesse nome, mas quem grita na administração distrital sempre tem razão.

No dia 16 de janeiro apareceu, na claridade da noite gelada, o lampejar do fogo da frente de combate. Franz Busko, o ajudante-aprendiz de Paskoleit, sentado no alto da torre da igreja, ao lado do sino, informava aos gritos tudo que podia ver. Pairava no ar um ronco constante. Quando se ligava o rádio, soava música ligeira de alguma opereta ou, então, as fanfarras anunciavam notícias extraordinárias que terminavam, invariavelmente, com uma vitória das tropas alemãs em algum lugar do leste ou do oeste.

— Está chegando a hora — disse o padre Heydicke ao povo de Adamsverdruss, reunido diante da igreja.

O chefe dos camponeses, Lusken, também viera, trazendo a paralítica Juliane Brakau em sua cadeira de rodas. Felix Baum, sentado na igreja, defronte do altar, vestido com o uniforme do Partido que já se tornara grande demais para ele nos últimos dias, juntava as mãos numa atitude de abandono.

Não chegara mais nenhuma ordem da administração distrital. Podia telefonar quanto quisesse, ninguém atendia. No final dava apenas sinal de ocupado.

— Esqueceram-se de nós... — disse com o olhar fixo e incrédulo, quando Paskoleit veio sentar-se a seu lado. — Os porcos nos esqueceram! Perto de Klein-Grieben os panzer russos já estão na fronteira. E, ainda assim, continuam a tocar operetas e Goebbels falou ontem...

Desandou a chorar, tirou o paletó do uniforme, jogou-o sobre os degraus do altar e, como uma criancinha, encostou-se em Paskoleit.

— Não creio que Deus vá aceitar essa porcaria de uniforme como dádiva — disse Paskoleit, desvencilhando-se de Baum. — Em todo caso é ótimo que, finalmente, você esteja acordando e deixando de ser besta! Onde, afinal, está seu Füehrer?

— Em Berlim...

— E a vitória final?

— Logo que estivermos em segurança, Julius, deixarei que me dê uns cem pontapés no traseiro.

— Isso, se conseguirmos sair daqui. Você já pensou nessa possibilidade? E para onde?

— Não faço idéia.

— Mas eu sim. Primeiro iremos para o oeste. Ortelsburg, Hohenstein, Osterode, Saalfeld, Marienburg. Para Danzig! Depois, Pomerânia. Sempre beirando a costa, se não aparecer quem nos leve. Ainda deve haver trens para o oeste...

— E a tralha toda? Cavalos, carros, móveis, camas, fogões, louça...

— Seria bom demais se pudéssemos salvar tudo isso. Levaremos tudo... Mas você acredita mesmo que poderemos chegar até o Elba com essas coisas todas? Os tanques russos correm mais que carros de boi. E as estradas estão congeladas...

À tarde, Adamsverdruss reuniu-se para dar a partida. Foram chegando na frente da igreja carros de boi, carroças puxadas por cavalos, por tratores ou mesmo por vacas, estas últimas pisoteando com teimosia por não estarem habituadas àquele jugo. Paskoleit dirigia o trator que trocara pelo piano e puxava a carroça normalmente usada para espalhar adubo. Sentada nela, em meio a um monte de palha e rodeada de móveis, como se fosse necessário mantê-la cercada, estava avó Berta. Vovô Jochen, acocorado na boléia da carroça maior, dirigia os dois cavalos comprados por Paskoleit em Ortelsburg por dez peças de couro. Na carroça amontoavam-se os utensílios da casa dos Kurowski e metade da sapataria, todas as ferramentas e objetos, o fogão, panelas, colchões de penas, cobertores e um banquinho de canto que o avô Jochen não quis deixar de levar. Fora talhado em 1871 por ocasião da fundação do Reich. Erna Kurowski estava na boléia do coche, tendo, atrás de si, as crianças enroladas em cobertores. Franz Busko, o aprendiz, funcionava como elemento coordenador, ajudando onde fosse necessário.

No momento em que o padre Heydicke abençoava o povo de Adamsverdruss, começou a nevar, suave e silenciosamente.

— Deus esteja convosco! — disse, fez o sinal-da-cruz, subiu em sua carroça e deu a partida. Colocou-se à frente, seguido por Paskoleit e a família Kurowski.

Tinha início o grande treck.[2]

 


Estava em cima da hora. Isso ficou demonstrado quando alcançaram a estrada de Johannisburg para Ortelsburg. Ali os veículos amontoavam-se, enganchavam-se, só avançavam alguns passos de vez em quando. Até onde se podia ver a estrada, havia carroças e mais carroças, cavalos, vacas mugindo, tratores e, perdidos no meio daquilo tudo, alguns poucos automóveis, veículos inalienáveis, a serviço do Exército, providos de cupons para gasolina. De todos os lados vinham se arrastando filas e mais filas de gente, mas principalmente da fronteira, de Fischborn, Gehlem-burg, Lyck. Um outro treck enorme que se reunira em Allenstein dirigia-se para Neidenburg, um terceiro de Marienwerder para Marienburg. O destino de todos era um só: a costa. Danzig. O mar. A Pomerânia. Mecklenburg. Berlim. Entrar na parte da Alemanha que não estava ameaçada. Juntar-se aos irmãos do oeste. Verdade que lá, todos os dias, caíam bombas aos milhares, não havia segurança em lugar nenhum, mas era preferível passar dia e noite esperando e rezando num porão do que uma hora suportando a impiedosa maré vermelha das profundezas da Rússia.

O treck de Adamsverdruss ainda não sabia — e era melhor assim — que havia refugiados vindo de todas as direções. Já bastava que na estrada para Ortelsburg não se conseguia sair do lugar.

— Os russos vão nos pegar! — disse Paskoleit ao padre Heydicke, que continuava na ponta. Era como antigamente, quando o povo deixou o Egito para seguir Moisés... Só que uma coisa era certa: este mar vermelho que transbordava, agora, a sua volta, não se dividiria para dar-lhes passagem. — Se continuar assim até Danzig, será melhor ficarmos sentados à beira da estrada, esperando pelos russos.

Felix Baum, o chefe político, que trocara seu uniforme cáqui pelo terno que sempre usara antes, uma roupa de camponês com paletó verde, polainas, botas de feltro e um sobretudo forrado, sentado numa motocicleta, passava ruidosamente para lá e para cá, e como um ímã atraía sobre si todos os pedidos e imprecações do povo de Adamsverdruss. Não levava bagagem, mas em compensação havia no assento traseiro de sua moto três latas de gasolina e outras dez no carro de Paskoleit. Além disso, possuía um cartão da direção regional que lhe dava o direito de requisitar gasolina em qualquer lugar. Isso, no momento, valia mais que um carro cheio de dinheiro. Enquanto tivessem Baum na caravana, não faltaria combustível. Assim pensavam todos.

— Vá até a frente e veja o que está acontecendo! — gritou-lhe Paskoleit. — Você não é um figurão do Partido? Com certeza tem alguém impedindo a passagem! Chute-o no traseiro!

Felix Baum partiu fazendo estrondo. Com sua motocicleta passava pelo engarrafamento, enfiando-se pelos carros encostados uns nos outros e, após percorrer seis quilômetros, alcançou o cruzamento de Gross Jerutten. Ali viu um capitão da polícia militar que, com mais quatro homens, interditava a estrada, para permitir a passagem de uma longa coluna de soldados de Friedrichshof para a estrada principal de Ortelsburg.

Veículos de abastecimento do Exército. Oficinas, uma padaria de campanha, uma ferraria, furgões levando intendentes bem-nutridos e envoltos em grossos sobretudos de pele de cordeiro, um escritório volante, dez carros-rádio com oficiais graduados, atrás destes mais caminhões com material de escritório e até uma banda de música completa. Mas nenhuma ambulância, nenhum carro de munição, nada de tropas cansadas, desgastadas e emaciadas da frente de batalha.

Felix Baum ficou pasmado. Logo em seguida foi tomado de uma fúria terrível. Talvez pela primeira vez na vida tivesse coragem, ao invés de assumir posição de sentido e obedecer sem pensar. Viu como os homens à frente de caravanas quilométricas de refugiados confabulavam com o capitão na encruzilhada; camponeses de casacos compridos, anciãos e mulheres idosas gritavam. Baum sabia que a cada minuto aumentava o número dos que fugiam dos russos e que, de todos os lados, os tanques soviéticos avançavam sobre a fronteira.

Acelerou e foi parar a motocicleta na encruzilhada, a alguns centímetros do capitão. Este, a cabeça vermelha de frio e de tanto berrar, fitou Baum e gritou algo que se perdeu no barulho dos motores de uma nova coluna de abastecimento.

— Libere a estrada! — gritou Baum, de volta, e, para isso, teve de se curvar para a frente, em direção ao capitão. — Lá atrás há milhares de pessoas esperando...

— Primeiro as tropas! — respondeu, berrando, o capitão.

— Tropas? Onde? — gritou Baum. — Só intendentes de pança cheia. Pagadores e comedores! Há por aqui algum soldado? Esses encontram-se ali na fronteira, enquanto por aqui todos se põem a correr! De casaco de pele! Com a gasolina de que os nossos panzer estão precisando! Seus malandros!

— Vou prendê-lo!

O capitão da polícia militar levou a mão ao coldre. Estava possesso de raiva.

— Em nome do Füehrer...

— Seu Füehrer, mando-o à merda! — berrou Baum, em resposta. — Eu sou o chefe político local, e, se um idiota como você pode atirar, eu também posso!

Arrancou a pistola do bolso do sobretudo e foi mais rápido que o outro, abrindo a tira de couro que fechava o coldre.

— Está maluco, homem?

O capitão olhou em volta, procurando seus quatro companheiros. Mas estes haviam sumido de repente. Uma massa compacta de gente decidida a tudo simplesmente o encobrira no momento em que Baum, com sua intervenção, perdera o temor do uniforme. Agora o cruzamento estava tomado pelos camponeses, surgiram os bastões dos quatro guardas feridos, a estrada estava interditada por uma fila cerrada de corpos e os sinais vermelhos piscavam.

Com um rangido parou o primeiro veículo que se atravessou ao obstáculo. Era um caminhão-cozinha com um caldeirão fumegante. Ao volante um intendente corpulento com cara de lua. Atrás, junto ao caldeirão, no calorzinho gostoso, envoltos em grossos sobretudos, os cozinheiros. Um primeiro-sargento e dois oficiais subalternos. Depois freou um caminhão de material de escritório, atrás dele uma oficina... e mais e mais carros. Parecia que a Wehrmacht alemã consistia, toda ela, só de veículos de abastecimento.

— Vou levá-lo à corte marcial! — berrava o capitão. — O senhor está obstruindo o progresso de um Exército!

— Estou é salvando minha aldeia — disse Baum, de repente muito calmo. Via que, finalmente, as caravanas de refugiados conseguiam mover-se de novo. As carroças dos camponeses com os cavalos, os tratores, as vacas, o frete com camas, mesas, cômodas, panelas, cestos e sacos, anciãos, crianças e mulheres arrastavam-se aos poucos passando por ele. Encheu-se de felicidade. ‘‘Ainda sirvo para alguma coisa’’, disse a si mesmo. ‘‘Talvez levem isso em conta, uma boa ação contra cem discursos bestas que fiz pelo Partido. Uma verdade contra mil mentiras.”

A longa fila do abastecimento começou a buzinar furiosamente. Oficiais corriam para a frente e gritavam com os camponeses. Mas estes eram prussianos orientais, de cabeça dura como o gelo que cobria os lagos no inverno e resistentes como as árvores centenárias das extensas florestas que rodeiam a Masúria. Vozes não os intimidavam, nem mesmo quando estas saíam de uniformes com galões prateados nos ombros. Olhos fixos e apertados, olhavam para os oficiais, e do fundo daquela parede humana lá na encruzilhada alguém disse, bem devagar, ao intendente:

— Sujeitinho, se não arredar daí, vou jogá-lo para os ares...

— Isto é uma revolução! — berrou o capitão, tornando a colocar a mão no coldre.

— Deixe estar, homenzinho... — disse, com calma, Baum.

— Seu traidor!

O capitão conseguira pegar a pistola. Mas não chegou a apontá-la para Baum. Este último, com uma tranqüilidade que nem ele próprio entendeu, atirou primeiro. O tiro acertou o capitão no braço direito, jogou-o para trás, fê-lo escorregar no solo coberto de gelo e cair de joelhos. Olhava incrédulo para Felix Baum e, com a mão esquerda, apertava o braço atingido. Por entre os dedos escorria sangue.

Baum não se incomodou mais com ele. Virou sua motocicleta e voltou correndo ao longo da coluna. Três camponeses ergueram o capitão, sustentaram-no e levaram-no da estrada para a cozinha volante. O intendente que se encontrava na cabine do motorista estava pálido e trêmulo quando um dos camponeses abriu a porta com força.

— Cuidem dele — disse. — Um tiro da Pátria! Mas, também, onde é que está a Pátria?

— Vocês enlouqueceram... — gaguejou o intendente.

— E vocês? Por que não estão lá no front, hein? Para onde querem ir? Pôr-se em segurança, é? Mas primeiro os civis, meu chapa! Lugar de soldado é na frente de combate.

Deixou o capitão em pé, encostado no carro, e voltou correndo à encruzilhada. Ali confrontavam-se oficiais e camponeses... homens indefesos que deixavam passar suas mulheres e crianças, netos e bisnetos, e homens de armas nas mãos que também queriam ir para o norte e o oeste.

No alto-falante de um rádio de pilha, no carro-escritório, soou a voz do noticiário do governo alemão. Em edição extraordinária. No mar do Norte, ataque a um comboio, afundamento de trezentas mil toneladas. No oeste, revidado com êxito um ataque a oeste de Estrasburgo. Na Hungria, investidas da sexta divisão SS de carros blindados contra Budapeste. Mas nenhuma palavra sobre a Prússia Oriental, nada sobre o Vístula, o Narev, o Nie-men e o Memel. Só no finalzinho, de modo muito casual, uma frase: ‘‘Grupos alemães travam uma luta amarga contra fortes contingentes russos no arco do Vístula”.

— Não somos ninguém? — disse um velho e gigantesco camponês de barbas brancas, na primeira fila da parede humana da encruzilhada. E perguntou: — Ouviu isso, major? Nada sobre nós! Enquanto toda a região está na estrada. Podem atirar à vontade... atrás de nós virão outros, e mais outros, até que sua munição acabe... Nós vamos pra Danzig, e vocês não podem mais nos deter...

As duas paredes permaneciam em pé. Os oficiais começaram a confabular entre si. Um tenente apresentou uma proposta:

— Vocês estão divididos por aldeias — disse. — Muito bem façamos o seguinte: cada vez que tiver passado uma aldeia, será a vez de uma de nossas colunas. Depois a próxima aldeia, depois nós... e assim por diante. Hão de convir que é uma solução sensata.

Todos concordaram.

Passou a aldeia de Altkelbunken, em seguida o cruzamento foi aberto a vinte viaturas militares. A estas seguiu-se a aldeia de Krutinne. Atrás dela, duas oficinas e um caminhão de provisões. Depois veio a aldeia de Adamsverdruss.

— Não podia ser melhor — disse vovô Jochen, satisfeito —, comida com fartura diante de nós. Julius, diga ao padre para ficar de olho! Já ouviu falar de piratas, garotão?

Paskoleit adivinhou o pensamento do velho e levou o dedo à testa. Jochen Berrador deu um grito, mas a caravana avançava e ele precisava cuidar dos cavalos. Grandes pedaços de gelo pendiam de suas crinas e pernas e dos pêlos de suas ventas.

A neve recomeçou a cair.

 

Seguiram, durante cinco dias, atrás da coluna de abastecimento.

Em Allenstein nem conseguiram entrar. Estava isolada, uma nova linha de frente formava-se ali, os russos avançavam mais depressa do que se calculara. A caravana foi desviada, perto de Alt-Maertinsdorf, para um caminho estreito que ia na direção de Wartenburg. Já na região de Passenheim, grande parte dos refugiados havia mudado o rumo, indo na direção de Bischofsburg. Em direção ao norte, para Heilsberg, de lá para Heiligenbeil, passando por Landsberg e Zinten. Para a laguna do Vístula, atravessando para o Nehrung e continuando por aquela estreita língua de terra rumo ao oeste, até a embocadura do Vístula, e por fim Danzig. Esta era a grande meta.

Também Adamsverdruss ficou indecisa ao chegar no cruzamento de Passenheim.

— Não! — disse Paskoleit, após uma breve troca de idéias. — Não esta volta toda! Para Elbing pelo caminho mais rápido e depois sempre em frente. Por que outra vez para o leste? Sabe-se lá o que acontecerá em Koenigsberg?

— Lá os russos nunca chegarão! — exclamou Felix Baum.

— Já está começando! — berrou o avô Jochen. — Por que ninguém coloca uma mordaça neste focinho nazista?! Vamos é para onde for a coluna de abastecimento.

— Ele só pensa em comer — gemeu Franz Busko, o aprendiz. Em sua bicicleta fizera, durante os últimos cinco dias, algumas excursões para a frente, bem como Baum que, com seu cartão, conseguia entrar até em Allenstein. A administração distrital já abandonara o local havia muito tempo. Só achou escritórios vazios e muito papel queimado. No quarto do administrador distrital moravam três desalojados de algum regimento.

— Eles nos desviarão de nossa rota! Estão levando toda a comida para as tropas no campo de batalha.

— Esses aí? Nunca!

Paskoleit lembrou-se do intendente gorducho do primeiro caminhão.

— Eu sou a favor de alcançarmos Elbing!

O que Paskoleit dizia era sempre bom, todos sabiam. Por isto mesmo o pessoal de Adamsverdruss permaneceu na estrada, deixando Passenheim para trás.

Todas as noites e todas as manhãs o padre Heydicke celebrava um breve culto religioso. Nessas horas Paskoleit encarregava-se de dirigir o coche e Busko guiava o trator. Heydicke, em pé no teto de seu carro, seguro por seis mãos, percorria com o olhar a longa fila de veículos e orava, abençoava as mulheres e as crianças, os anciãos e os homens, dizendo no sétimo dia:

— Não os abandone, meu Deus. São gente boa: têm coragem e resistência. Tire-os do inferno, eles não o merecem.

No dia 19 de janeiro de 1945 os russos esmagaram Tilsit e Vloclavek. Em 20 de janeiro suas divisões blindadas já avançavam na direção de Allenstein. Na Polônia, as tropas alemãs recuavam. Capitularam em Varsóvia em 17 de janeiro e em Lodz e Cracóvia no dia 19. Os exércitos soviéticos espalhavam-se pelo vale do Vístula, cortando a Prússia Oriental do Reich.

— Vamos perder a corrida — disse o padre Heydicke a Paskoleit, no meio da noite. Estavam sentados em volta de uma fogueira. Duas horas de descanso, pois não se pode correr sem parar. Os cavalos mal tinham forças para puxar os pesados carros. — Faltam no máximo três dias para Allenstein cair. Se algum dia alcançarmos a costa, para onde iremos? Estamos ilhados. Ou será que ainda poderemos conseguir um barco?

— A fé faz parte de seu trabalho, senhor padre — disse Paskoleit, o olhar fixo no fogo crepitante. — Só sei que chegaremos lá. Não nos deixaremos abater, nós não! Não penso em outra possibilidade! Espere só até chegarmos ao mar...

 

Dois dias mais tarde, as divisões soviéticas conquistaram Allenstein. As vanguardas blindadas russas dividiram-se... Os soviéticos levaram seus pesados veículos agora para Koenigsberg e Elbing-Danzig, espalhando-se por uma terra cheia de neve e gelo, inundada por um torrente de pessoas em fuga.

A Prússia Oriental ficou recortada. Pouco era o que sobrava da resistência. As pessoas nas estradas e caminhos, as colunas de veículos, os trecks, o medo, enfim, faziam parte daquele cenário com tanques russos em todos os lugares; tais pessoas eram esmagadas, massacradas, socadas em covas nas ruas ou estradas, as mulheres eram arrancadas dos carros ou arrastadas para fora das casas e deixadas à mercê do ódio e do delírio da vitória.

Nas ruas da Prússia Oriental cadáveres jaziam à esquerda e à direita, no meio da neve. Na maioria mulheres e crianças, pedras congeladas nos destroços de seus carros esmagados, ou então deitadas simplesmente como se a exaustão total as tivesse feito desmoronar, sem permitir que sentissem a morte. Mais adiante um amontoado de pessoas, ensangüentadas, fuziladas e apunhaladas. Marcos deixados pelas tropas russas. Nas caravanas que ainda erravam pelo interior dos cercos soviéticos, contavam-se fatos horripilantes que se passavam em toda parte. Tropas siberianas teriam pregado um padre vivo na porta de sua igreja. Numa aldeia, invadida tão depressa que não houve tempo de evacuá-la, todas as mulheres, desde as de oitenta até uma criança de dez anos, foram violadas uma a uma. Noutra aldeia, unidades tártaras haviam simplificado as coisas fuzilando todos os homens na praça. Atrocidades e mais atrocidades... e a conquista da Prússia Oriental apenas começava.

O treck de Adamsverdruss ainda não havia sofrido nada. Parecia que o intendente lá no primeiro caminhão da coluna de abastecimento tinha bom faro: tomava atalhos difíceis, porém inatingidos, sempre rumo a Elbing. Mas, na grande encruzilhada junto à estação ferroviária de Schlobitten, o treck parou. Parecia que todo um exército alemão estava a caminho de Allenstein para a laguna do Vístula. Havia um grande congestionamento nas estradas; o caminho para Elbing estava tomado por regimentos de artilharia e blindados. Só restava uma alternativa: ir mesmo para o norte, passando por Braunsberg e beirando Passarge até a laguna.

O padre Heydicke e Paskoleit estavam de acordo, mas não a fileira do abastecimento que os precedia. Esta ficou na estrada rumo a Elbing, tentando integrar-se nas divisões militares.

— Não podemos permitir — disse vovô Jochen, quando foi decidido que Adamsverdruss tomaria o caminho da laguna. — Não podemos ficar sem provisões! Menino, temos de tomar uma providência!

— Está querendo assaltar a coluna inteira? — rosnou Paskoleit.

— Gente para isto não falta.

Jochen Kurowski olhou de esguelha na direção de Heydicke e juntou as mãos sobre o ventre.

— Concentre-se e pense no céu, senhor padre... preciso discutir algo com Julius.

A proposta de Kurowski era idiota, mas deveria salvar a vida da família mais tarde.

— Não ouvi nada — disse Heydicke, depois — e também não vejo nada. Não é bem um ato de devoção a Deus... Mas você tem razão, Jochen: onde está Deus agora?

Durante a noite toda a coluna ainda estava parada, porque havia tropas alemãs chegando de Allenstein e a polícia militar removia do caminho qualquer coisa capaz de atrapalhar a passagem; dos sete veículos de abastecimento desapareceram vinte caixotes de enlatados, pão, manteiga, banha, óleo e lingüiça. Ninguém iria perceber o desfalque entre os caixotes que se empilhavam até o teto dos caminhões. Transpirando de emoção, silenciosos e parecendo sombras deslizando pela escuridão, Paskoleit, Busko e Felix Baum carregavam os caixotes. A partir da nona caixa ainda se juntou a eles o chefe dos camponeses, Lusken, que levava a paralítica Juliane Brakau em seu carro e que esperara ela adormecer para poder deixá-la sozinha.

Enquanto isso, vovô Jochen distraía os ocupantes dos caminhões contando piadas e passagens alegres de caçadas da Masúria. Tinha um repertório inesgotável e, para molhar a goela, tomava sempre uns goles de aguardente. Quando o transporte das vinte caixas terminou, ele estava tão bêbado que precisou ser carregado por Paskoleit.

Até o padre Heydicke ajudou. Para distrair a atenção dos oficiais, jogou uma partida de skat com eles.

Seguiram viagem, finalmente, ao romper do dia. A coluna de abastecimento continuou na direção de Elbing, o treck foi para o norte, rumo a Braunsberg. Na boléia do coche, o avô Jochen olhava com tristeza a partida do caminhão cinza esverdeado.

— Lá se vai comida para um ano inteiro — disse. — Que pena, mas que pena! Por que é que nenhum de vocês não pensou antes em garantir um carregamento para nós? Precisamos de armários de cozinha, hein? De camas? Cômodas? Poltronas? Bancos? Precisamos é de comida... para sair fumaça de nossos fogões! Quem caga bem também trabalha bem. Homens, deveríamos ter transferido os caminhões inteiros!

O frio aumentava. A avó Berta enfiou-se bem no fundo da palha e não mais se mexeu. Estava tão bem escondida que vovô Jochen parou, no início da tarde, e berrou:

— Alto lá! Perdi minha Berta. A pilantrona deve ter caído do carro! Vamos voltar!

Mas voltar era impossível. Só se podia seguir em frente. Felix Baum e Busko, de moto e bicicleta respectivamente, fizeram uma busca no caminho percorrido, mas tudo em vão.

A caravana estava num impasse.

— Sem minha Berta não continuo! — berrava Jochen Kurowski. — Passamos cinqüenta e um anos juntos!

— Quem sabe ela se foi com a coluna de provisões? — indagou Paskoleit. — Você não lhe dizia sempre: a comida é o mais importante?

— Para trás! — tornou a gritar vovô Jochen.

Desesperado, procurou mais uma vez no enorme veículo. E, mais uma vez, Felix Baum voltou correndo até o cruzamento junto à estação ferroviária de Schlobitten. Acabara de sair quando Kurowski achou sua mulher. Na palha, bem lá embaixo, enrolada num cobertor e toda encolhida sob a mesa da cozinha. Como conseguia respirar era um mistério, mas o fato é que dormia um sono profundo e feliz no calor conquistado. Ainda por cima era meio surda.

— Aí está ela — disse o avô Jochen. — Não quero nem pensar em perder minha velha.

Havia tanta ternura em sua voz que Paskoleit desistiu de chamar Kurowski de idiota. Tornou a colocar o cobertor e a palha sobre a avó Berta e fez um sinal ao padre Heydicke no primeiro carro.

— Vamos em frente!

A fila de carros, cavalos, bois e vacas voltou a movimentar-se. Nenhuma daquelas pessoas que fugiam do aniquilamento imaginava que, não muito distante delas, já chegavam os russos, que elas haviam sido separadas de sua saudosa Alemanha e que casualmente viajavam por uma estreita, ainda não conquistada e livre faixa de terra. A sua esquerda e a sua direita ardiam aldeias em fogo, morria gente nas ruas, pessoas eram reunidas como se fossem gado, correntes de tanques rolavam por sobre corpos congelados, os T34 socavam carros em fossos, a Prússia Oriental esvaía-se em fogo, sangue e lágrimas.

Mas a aldeia de Adamsverdruss prosseguia como protegida pela mão de Deus. Levavam consigo vacas, galinhas e porcos abatidos e bem conservados no gelo, vinte caixotes contendo conservas e lingüiças, barris de manteiga e banha, sacos de açúcar, farinha e aveia. A conselho de Paskoleit, haviam feito suas provisões.

— Gente, como vocês trapacearam, quando eu era chefe político — repetiu Baum várias vezes —, durante meses a fio.

— Anos a fio, sua besta! — Paskoleit soltou uma gargalhada sombria. — Há dois anos que abatemos e estocamos clandestinamente! Terra fronteiriça, terra insegura... isto já nos ensinaram na escola.

E para Erna Kurowski, que dirigia como um homem o coche puxado por cavalos e que também enfiara os filhos na palha como filhotes de cachorro no início da geada impiedosa, ele disse:

— Não conte nada a ninguém, mas eu não acredito que possamos ficar todos juntos. Chegará o dia em que cada um terá de cuidar de si. Mas nós, Erna, nós, os Kurowski e os Paskoleit, permaneceremos unidos. Senão teriam de cortar cada um de nós como galhos de uma árvore!

Utilizando estradas secundárias, passaram por Neumarck, Ebersbach, Tiedmannsdorf, Schalmey e, atravessando um campo para evitar novas caravanas que bloqueavam a estrada, chegaram a Pettelkau. Aldeias em fuga, como Adamsverdruss, há quinze dias. Gente impelida pelo medo.

Pouco antes de chegarem a Braunsberg repetiu-se a cena de alguns dias atrás: no cruzamento das duas estradas um homem, desta vez usando um uniforme de chefe político, comandava o tráfego. De Mehlsack vinha rolando uma fila de carros particulares que afastava os refugiados para a beira da estrada, e arremetia levantando a neve. Não se podiam ignorar os uniformes amarelos atrás das vidraças embaçadas.

— Amarelos como cocô de neném — comentou vovô Jochen.

— Dê uma olhada! — Foi tudo que Paskoleit falou.

Felix Baum disparou. Freou a motocicleta diante do homem no cruzamento e ergueu a mão num gesto de saudação.

— Sou o chefe político Baum, de Adamsverdruss! — exclamou. — Heil Hitler, companheiro!

Dito isto, desfechou uma violenta bofetada no rosto espantado do homem, que caiu rolando na neve. Busko mandou atravessar um carro no cruzamento, e Adamsverdruss ganhou passagem livre.

— O Felix está ficando cada vez mais útil — reconheceu Paskoleit. — Pena que com alguns anos de atraso...

Entraram em Braunsberg, sendo sugados por centenas de carroças e milhares de pessoas que esperavam. Vovô Jochen, Paskoleit, o padre Heydicke, Busko e Lusken colhiam informações. O chefe político Baum foi fazendo perguntas, até encontrar um companheiro ainda ativo do Partido... Na Câmara Municipal de Braunsberg ainda funcionava um posto da NSV, com o diretor da Secretaria de Finanças, dois homens e alguns milhares de cupons para aquisição de alimentos, que, no momento, tinham menos valor que papel higiênico. Estavam todos sem saber o que fazer. Braunsberg parecia ser a estação terminal.

— E verdade — disse o padre três horas depois, quando estavam novamente reunidos. — Koenigsberg está cercada. Os russos já se instalaram em Pillau. Travam-se batalhas por Marienburg. Grupos blindados russos investem sobre Danzig e a Pomerânia. Está tudo fechado! Para onde iremos agora?

— Para a laguna! — respondeu Paskoleit.

— E depois?

— Para o Nehrung.

— Não podemos caminhar sobre as águas como Jesus.

— Mas nossos veículos podem passar sobre o gelo. A laguna está congelada.

— Impossível... — disse Heydicke baixinho, olhando fixamente para Paskoleit. — Sobre o gelo seremos um alvo perfeito. Algumas bombas... e toda Adamsverdruss morre afogada...

— Se ficarmos, seremos esmagados pelos russos.

— Estamos no fim, Julius.

— Nós nunca estamos no fim, senhor padre.

Tirou da boca o cigarro fumado até a metade e ofereceu-o a Heydicke. Este aceitou e continuou a fumá-lo.

— Não nos deixaremos abater... este é o melhor sermão, senhor padre.

 

Permaneceram dois dias em Braunsberg, até se formarem três grandes trecks. Juntaram-se a uma coluna que pretendia ir a Tol­kemit, passando por Frauenberg, para atravessar a laguna. Era ali que a camada de gelo costumava ser mais espessa, e nos invernos muito rigorosos podia-se atravessar de trenó de Tolkemit até a cidade de veraneio de Kahlberg, no Nehrung.

Quando Heydicke, Paskoleit e vovô Jochen foram se apresentar ao líder da caravana, espantaram-se ao ver que era um jovem primeiro-tenente. Levava, ao pescoço, a Cruz da Ordem dos Cavaleiros. Tinha cabelo louro, um rosto jovial, aberto e alegre, grandes olhos azuis e irradiava, apesar de sua juventude, muita calma e principalmente coragem.

— Quantos carros restam? — perguntou sem rodeios.

— Nove... — respondeu Heydicke, deprimido.

Adamsverdruss estava destroçada. Um grupo quis ficar aguardando os acontecimentos com Johannes Lusken, em Braunsberg. Juliane Brakau contraíra pneumonia e ardia em febre. Ficaram catorze carros levando, na maioria, pessoas idosas. Simplesmente desistiram. Foi um momento difícil, e o padre deu a bênção aos velhos dispostos a morrerem no solo pátrio.

Um segundo grupo queria voltar para Schillgehnen e dali tomar a auto-estrada do Reich e seguir para Elbing. Diziam que de Elbing ainda saíam trens para o Reich. “Você e seu mar!”, vociferavam contra Paskoleit. “Foi um erro que nos custará a vida! Elbing, esta era a direção certa! Para os diabos com você!”

Adamsverdruss despedaçava-se. O que levara séculos para se solidificar, explodia em medo, pavor, insegurança e desespero. Assim, eram apenas nove os carros restantes: a família Kurowski e Paskoleit, o padre Heydicke, Franz Busko, Felix Baum, três vizinhos de Paskoleit e uma mulher jovem com uma criança de colo, que só chegara a Adamsverdruss oito meses atrás e era a esposa do proprietário de terras Rambsen. Gottfried Rambsen encontrava-se, como tenente, em algum lugar do front. Conhecia-se pouco a jovem esposa, agora ela era a nona da fila. Tinha uma carruagem leve do tipo usado em caçadas, puxada por um único cavalo. Era um garanhão de raça, um trakehner. Chamava-se Verão Dourado.

— É meu único capital — disse Julia Rambsen a Paskoleit —, mas com ele posso começar tudo de novo em qualquer lugar...

Ao anoitecer o avô Jochen foi ter, mais uma vez, com o jovem primeiro-tenente com a Cruz da Ordem dos Cavaleiros.

— Por que não está combatendo? — perguntou diretamente.

O jovem oficial esboçou um débil sorriso.

— Talvez aqui eu possa salvar quatrocentas mulheres e crianças... Do outro lado — acenou com a cabeça para longe —, mais nada. O que vale mais?

— Estou do seu lado, meu jovem — disse vovô Jochen, com firmeza. — Poderá merecer pela segunda vez a Cruz dos Cavaleiros que carrega em seu pescoço.

De noite o treck partiu rumo à laguna do Vístula.

Pela manhã, por volta de sete horas — ainda estava escuro —, vieram os aviões russos. Eram em número de três os pássaros de aço ruidosos, lentos, bem blindados. Mas voavam baixo, tão baixo que a gente pensava poder pegá-los; atiravam com pesadíssimas metralhadoras sobre a caravana e jogavam pequenas bombas de efeito altamente destruidor.

A primeira pessoa a morrer foi a avó Berta, em seu monte de cobertores, utensílios de cozinha e palha.

 

A princípio ninguém havia percebido. Quando os facínoras já haviam desaparecido no céu cinza-chumbo, pesado de neve, a caravana emergiu das valas debaixo dos carros onde se escondera; o avô Jochen saiu correndo para sua carroça e deu um soco na mesa de cozinha sob a qual a avó estava deitada com sua palha e cobertores.

— Saia daí! — berrou Joachim Kurowski. — Meu Deus, como é surda a velha! Quando estivermos no oeste, mandarei desentupir seus ouvidos! Berta! Acorde!

Só então viu, no meio do tampo da mesa, o buraco do tiro. Um furo lascado, único, mas exatamente no lugar em que Berta Kurowski estava deitada na palha. Um tiro que, com certeza, a atingira por acaso, empobrecendo o mundo de Kurowski.

Com as mãos trêmulas foi jogando longe a palha.

— Julius — berrava —, senhor padre! Senhor tenente! Berta... Berta...

Quando acabou a palha e o corpo enrolado nos cobertores ficou visível, Jochen Kurowski não podia agüentar mais. Lívido, ficou encostado no carro enquanto Paskoleit desenrolava a avó Berta de seu casulo tão quentinho. A bala da pesada metralhadora do avião atingira-a pelas costas, bem no coração. Não sentira a morte, talvez apenas um golpe rápido e quente que apagou, de súbito, toda a consciência. O padre Heydicke tornou a puxar a coberta sobre aquele rosto tranqüilo e relaxado, ainda corado pelo calor, confortante. O primeiro-tenente da Cruz da Ordem dos Cavaleiros pôs o braço nos ombros de Kurowski. E de repente vovô Jochen encostou a cabeça no ombro do oficial e chorou, o corpo sacudido pelos soluços. Era a primeira vez que a família presenciava o avô chorar — até então pensava que ele nem fosse capaz disso.

— Minha Berta... — balbuciava, e era, agora, a voz de um ancião transformada novamente nas lamúrias de uma criança. — Berta, minha boa velha...

— Temos quarenta e nove mortos na caravana disse o primeiro-tenente. Era para servir de consolo — Ela não está sozinha. Uma guerra não destrói pessoas isoladas... é um verdadeiro assassinato em massa — disse. — E ainda não sabemos como continuará, vovô. — Olhou na direção da laguna congelada que pretendiam atravessar dentro de uma hora. — Talvez ela tenha escolhido a melhor maneira de sair de toda esta loucura.

Heydicke rezou uma oração. Paskoleit e Busko tiraram a avó Berta do carro, enrolaram-na em outro cobertor e tentaram sair com ela sem serem vistos. Mas Kurowski percebeu tudo, apesar de sua dor.

— Parem — berrou, soltando-se do jovem primeiro-tenente. — Para onde a estão levando? Parem aí! Eu mesmo enterrarei minha Berta! — Agarrou-se a Paskoleit e disse: — Quer que a jogue fora simplesmente como um pedaço de carvão apodrecido? Você não tem coração, seu patife? Minha Berta...

— O solo está duro de gelo — disse, com suavidade, Paskoleit. — Não se pode cavar nem dez centímetros! Vovô, eu sei que é cruel, mas há milhares deitados nas valas das estradas; temos de juntar vovó a eles!

— Nunca! — gritou Kurowski. — Nunca! Senão eu me deitarei ao lado dela! Passem-me uma pá! Uma enxada! Berta terá uma sepultura!

— Precisamos continuar!

O primeiro-tenente passou os olhos pelo treck. Os outros mortos pareciam marcos à direita e à esquerda da estrada. Seus parentes e amigos ajoelhavam-se diante deles e o padre Heydicke ia de um em um, dava a bênção, orava, fazia o sinal-da-cruz.

— Senhor que estais no céu — disse quarenta e oito vezes —, eles mereceram Vossa misericórdia.

Depois aproximou-se de Berta Kurowski, que vovô Jochen carregava no colo como uma criança.

— Ajude, senhor padre — gaguejou Kurowski —, estão querendo deitá-la na estrada. Minha Berta... Tentemos cavar.

Tentaram. Enquanto a caravana prosseguia com vagar, Kurowski, Busko, o chefe político Baum e mais um vizinho dos Kurowski ficaram para trás, golpeando a terra congelada com duas picaretas e três pás. Paskoleit enganara-se. Não conseguiram chegar nem a dez centímetros de profundidade, tendo de desistir quando a cova não tinha mais que cinco centímetros. O solo estava mais duro que pedra, o gelo transformara a terra em aço que repelia as ferramentas. Jochen Kurowski deixou-se cair de joelhos ao lado de sua mulher e inclinou-se sobre ela.

— Berta — disse com uma ternura que fez Paskoleit voltar-se para o lado para não cair em prantos. — Berta, minha velha, querida malandrona... não dá. Você vai ter de ficar deitada na estrada. Mas uma coisa eu lhe prometo, Berta.,. Se eu sobreviver a esta guerra, darei um soco na cara de cada um que vier me falar de heroísmo, de soldados e de honra. Berta... — Abraçou o pequeno corpo enrolado no cobertor —, adeus. Lá em cima nos veremos de novo, se é que me deixarão entrar..

Deitaram a avó Berta na beira da estrada, cobriram-na de neve, rezaram e rodearam Jochen Kurowski. Foram levando-o embora dali e Paskoleit, com a voz rude, disse:

— Não olhe para trás, vovô! Com mil demônios, lá está nosso treck, nossa Adamsverdruss. O carro com Erna e as crianças, os filhos de Ewald, vovô! De seu filho! Quando Ewald voltar, diremos: escute, Ewald, aqui estão Erna e seus filhos! Conseguimos trazê-los sãos e salvos. Os Kurowski e os Paskoleit não desistem. Jamais! Venha, vovô...

Jochen Kurowski concordou com um movimento de cabeça. Não olhou para trás; cambaleando entre Paskoleit e Busko, foi seguindo a caravana; Felix Baum voltou, pegou a picareta, arrancou o varal de uma carruagem quebrada e o enfiou no monte de neve atrás da cabeça de Berta. Uma cruz enorme, rachada, bizarra. Dedos querendo chegar até Deus. Um grito e uma advertência. Depois montou em sua motocicleta e seguiu a coluna.

 

A laguna estava coberta por uma camada de gelo. Haviam escolhido o lugar certo, o gelo parecia ter metros de espessura. Com muito cuidado, a caravana movia-se sobre a superfície lisa. camponeses envolveram as patas dos cavalos e bois com sacos para que não escorregassem; era um caminho penoso, mas aos poucos ia-se avançando. Só os veículos motorizados deslizavam irremediavelmente, era impossível enrolar sacos nas rodas. Felix Baum, com sua motocicleta, assumiu a ponta e a missão de reconhecer o terreno. Escorregava pela laguna, em geral com os pés no gelo para segurar o veículo, e trazia as últimas informações. Heydicke e o primeiro-tenente, no primeiro carro, não podiam ver grande coisa. Cinzentos eram o céu, o ar, o gelo, a luz do dia. Entrava-se no vazio com a fé de chegar a algum lugar do outro lado, pelo Nehrung, essa estreita faixa de terra pela qual se tentava ir para oeste, para Danzig.

No segundo dia, Felix Baum retornou de uma longa expedição. O treck tivera de pernoitar no meio do gelo, era impossível continuar. Os cavalos tropeçavam em suas próprias pernas, com o saldo de três carroças caídas e quatro rodas quebradas. Foi necessário abandonar os carros e transferir sua carga para outros veículos. Apenas o essencial: algumas camas, travesseiros, cobertores, panelas, um fogão. E era só!

— Se continuarmos nesta direção — noticiou Baum —, alcançaremos o Nehrung perto de Proebbernau. Mas há uma outra caravana de Kahlberg a caminho, e de Elbing vem todo um exército. Toda a região de Elbing está em movimento. Mas o pior é que os russos já estão à frente de Danzig!

— Então estamos isolados.

O jovem primeiro-tenente examinou o mapa sobre seus joelhos.

— Russos em toda nossa volta. Só o mar Báltico ainda está livre.

— Devemos ir para o oeste a nado? — perguntou Jochen Kurowski baixinho. — Voltarei para junto de minha Berta e ficarei deitado a seu lado.

— Nós passaremos, com mil diabos! — Paskoleit deu um soco no lado da carroça. — O que acha da embocadura do Vístula, primeiro-tenente?

— Também estava pensando nisso. Mas teremos de ser mais rápidos que os tanques soviéticos. Se tivermos muitíssima sorte, a embocadura do Vístula só está coberta de gelo movediço e poderemos achar alguns barcos.

Dobrou o mapa — era por demais desanimador ver a situação impressa no papel.

— Vamos embora, pessoal! Para o Vistula! Só chegando lá poderemos dizer: está no papo! Ou não!

O treck de Adamsverdruss prosseguiu. Sete carroças foram deixadas na laguna. A ordem era só levar bagagem leve. A vida é mais importante que uma geladeira ou um fogão limpo e brilhante. Precisavam se apressar.

Por todos os lados as divisões soviéticas comprimiam a Prússia Oriental. Koenigsberg estava cercada, ao longo de centenas de quilômetros aldeias ardiam em chamas, as atrocidades elevavam-se, mulheres eram caçadas. O famoso poeta russo Ilya Ehrenburg excedia-se em seus apelos às tropas soviéticas para que aniquilassem tudo que fosse alemão.

A caravana realmente alcançou o Nehrung junto a Proebbernau. Dali foi para o oeste passando por Vogelsang, Bodenwinkel, Stutthof, até Steegen. Ali a estrada de Elbing cruzava a de Tiegenhof e o Vístula. A grande caravana absorveu Adamsverdruss. Milhares de pessoas eram impelidas para diante por uma única frase, um boato que todos aceitavam como verdadeiro porque, para eles, significava a vida: em Nickelswalde, na embocadura do Vístula, ainda se encontravam três cargueiros.

Deus do céu — três embarcações!

A caravana ia prosseguindo lentamente até alcançar o Vístula. Nela havia uma tropa alemã intacta a nível de regimento, com um comando completo, que dera o azar de perder sua divisão Os russos foram mais rápidos. Cercaram a divisão, mas o comando estava fora. Agora este também se dirigia ao Vístula, já que não tinha sentido atacar os T34 com um bando de oficiais, escreventes e uma corte marcial ambulante.

Mas o serviço militar cotidiano, esse obstinado espírito prussiano de quartel, florescia também agora na fase final. Todas as manhãs havia chamada da tropa, as companhias apresentavam se em posição de sentido. Houve um dia de descanso em Pasewark, em que dois comandantes chegaram a organizar exercícios de tiro e uma inspeção das botas.

Também aconteceu em Pasewark que um juiz de campanha, deixando passar por ele uma parte do treck, avistou o primeiro-tenente da Cruz da Ordem dos Cavaleiros sentado na boléia do coche do padre Heydicke. Olhou para o jovem oficial, acenou e gritou:

— Venha até aqui!

O primeiro-tenente saltou da boléia. Paskoleit, o próximo a passar, ainda ouviu o grito do juiz: “Como foi que disse? Onde está sua tropa?! Seu cachorro miserável! Venha comigo!”; depois viu ambos entrarem num caminhão e irem para a frente. Paskoleit jogou as rédeas para Busko e correu para junto de Heydicke.

— Senhor padre! — gritou. — Estão tramando alguma coisa! Levaram nosso primeiro-tenente! Senhor padre! Ajude! Eu tomo conta de seu carro!

O padre saltou da boléia, montou na garupa de Felix Baum e os dois foram correndo atrás do caminhão. Voltaram ao anoitecer. Todos viram em seu olhar que algo terrível acontecera. Baum tirou do bolso o livro do Partido e rasgou-o.

— Eles o condenaram — disse Heydicke, baixinho — numa verdadeira audiência presidida pelo juiz de campanha, dr. Eberhard Bollow. Por deserção e covardia frente ao inimigo. Foi condenado à morte. Tentei defendê-lo, expulsaram-me, simplesmente. Uma hora mais tarde eles o enforcaram. Está pendurado numa árvore na beira da estrada, com a Cruz dos Cavaleiros no pescoço...

— Dr. Eberhard Bollow — disse, alto, o avô Jochen.

Tirando um caderno do bolso, arrancou algumas folhas, dividiu-as em nove tiras nas quais escreveu nove vezes: Dr. E. Bollow. Distribuiu as tiras de papel entre Paskoleit, Baum, Busko, Heydicke, Erna, as crianças e ficou com uma para si próprio.

— É para não esquecerem nunca este nome! — disse, em tom ameaçador. — Este papelzinho é mais importante que qualquer dinheiro! Não esqueçam nunca! Ainda vamos precisar do nome do dr. Bollow!

Prosseguiram viagem. Após quatro horas passaram pela árvore da qual pendia o jovem primeiro-tenente. O pessoal de Adamsverdruss colocou as mãos na cabeça em sinal de saudação; Paskoleit foi até lá e apertou a mão gelada do morto. Heydicke abençoou-o. Vovô Jochen berrava:

— Meu garoto, pensaremos sempre em você! — E mostrou o morto às crianças. — É ele! E seu assassino chama-se dr. Bollow! Nunca se esqueçam disto!

Durante a noite, uma noite muito clara e de muito frio, chegaram a Nickelswalde, no Vístula.

Sobre a água cheia de gelo movediço havia mesmo três embarcações, guardadas por uma corrente tripla de soldados com pistolas automáticas carregadas e apontadas para baixo.

A situação era claríssima: os cargueiros estavam prontos a acolher os refugiados, mas só mulheres e crianças. Os homens teriam de aguardar para ver se ainda sobraria lugar para eles. Neste caso, subiriam a bordo primeiro os velhos.

— Eu fico — disse o avô Jochen —, mas vocês — apontou para Erna e as crianças —, vocês embarcam! Maldição, não proteste, Erna, pense em Ewald!

Uma fila de oficiais e soldados armados até os dentes deixou passar as mulheres e as crianças para subirem a bordo. Era uma despedida para sempre, a maioria sabia disso em seu íntimo. Ficaram em terra as carroças, todos os míseros haveres que haviam conseguido salvar com o treck. Só foi permitido levar o que se pudesse carregar, e a maior parte das mulheres já tinha seus filhos no colo. Nas costas carregavam mochilas, cobertas enroladas, sacolas de roupa, alguma coisa para comer. Embarcavam chorando, enquanto os homens davam adeus com os olhos ardendo e os semblantes tristes. De manhã deixaram o avô Jochen subir a bordo. Ele resistiu, mas Paskoleit fez Busko carregar o velho, e uma hora mais tarde permitiram que também ele embarcasse. Um homem com uma perna de pau, assim deliberou a comissão de oficiais, não está inteiramente apto para o serviço militar.

— Agora estamos todos juntos outra vez — disse vovô Jochen, abraçando Paskoleit. — O que você conseguiu trazer?

— Só as ferramentas de sapateiro.

— É o bastante. Mesmo depois da guerra ninguém vai querer andar por aí de pé no chão.

Acima deles tremulava a bandeira da Cruz Vermelha. Fora hasteada no mastro principal. E sob a bandeira encontrava-se um homem — ninguém sabia como conseguira chegar a bordo, mas lá estava ele.

O juiz de campanha dr. Eberhard Bollow.

 

Chegou uma nova caravana da direção de Marienburg, cansada, no fim de suas forças, saindo de uma gélida jornada, e a fila de soldados deixou passar mais mulheres e crianças para bor­do. Alguns oficiais iam de um lado a outro e gritavam aos homens que já haviam embarcado:

— Se não houver lugar suficiente, vocês terão de descer! Entendido?!

— Entendido! — respondeu, berrando, o avô Jochen. — Mas então descem todos!

Olhou na direção do dr. Bollow, que permanecia sob a bandeira como se tivesse de montar guarda de honra.

— Eu lhe direi pessoalmente! — rosnou Kurowski.

Mas Paskoleit segurou-o pela manga.

— Está maluco? — chiou. — Você quer ficar sem cabeça?

— Por causa daquele ali? — O avô Jochen riu ameaçadora-mente. — Se eu respirar fundo, ele ficará pendurado sob meu nariz!

Soltou-se e foi, com passos pesados, para junto do dr. Bollow.

— Que desçam todos os homens! — berrou Kurowski. — Estão chegando mais mulheres!

Confuso, o juiz de campanha fitou o grande velho de barbas revoltas.

— O que deseja? — perguntou, bastante inseguro.

— Lugar para as mulheres! O que está fazendo aqui, hein?

— Estou aqui para manter a ordem!

O dr. Bollow empertigou-se. Levantou a gola de seu abrigo de pele de cordeiro e passou por Kurowski. Pouco depois ouviu-se sua voz aguda:

— Todos os homens até cinqüenta anos reunidos na ponte! Fazer contagem! Para cada mulher descem dois homens!

— Aquele porco! — disse o avô Jochen, num tom amargo. Julius, que enorme porcaria! Se ele sobreviver a guerra, o padre Heydicke terá de me catequizar de novo. Não estarei mais acreditando em Deus.

Por volta de meio-dia recolheram-se as amarras; as embarcações estavam superlotadas. Embora se soubesse que havia mais caravanas grandes chegando de todas as direções, não tinha mais sentido nenhum esperar por elas. Diziam que no mar Báltico submarinos e caça-minas bombardeavam tudo que largasse da costa alemã. Ninguém desejava correr o risco de sacrificar mais estes navios completamente lotados.

Os soldados e os homens que ficaram, na maioria camponeses e operários de empresas outrora muito importantes para a guerra, mas que já haviam sido tomadas há muito tempo pelas divisões russas, faziam gestos de adeus para as três embarcações que desciam vagarosamente pela embocadura do Vístula para o mar aberto. Nos mastros tremulavam as bandeiras da Cruz Vermelha, e também nos telhados sobre os lemes reluzia o símbolo internacional. Era aqui que os mais inocentes e os mais atingidos pela guerra tentavam reencontrar sua vida: mulheres, crianças e velhos, despatriados a partir daquele minuto, pobres miseráveis, restos do naufrágio das grandes batalhas, sobreviventes com a chance de morrer de fome em algum lugar ou de colidir, fora no mar Báltico, com um torpedo russo. Porque até a Cruz Vermelha já perdera sua imunidade. A ordem era uma só: destruir! aniquilar!

Quando a costa se diluiu na cortina de neve, Paskoleit e o avô Jochen foram dar uma volta pelo barco a fim de verificar quantas pessoas de Adamsverdruss conseguiram se salvar. O primeiro que viram foi o juiz de campanha, o dr. Bollow. Sentado confortavelmente na cabine do capitão, fumava um charuto.

— Ele vai se salvar — disse Kurowski num tom de voz que fez com que Paskoleit sentisse um arrepio. — Um dia ainda cairá em nossas mãos. Enforcou meu garotão! O que teria sido de nós sem o primeiro-tenente?

Em meio à massa de refugiados reencontraram Júlia Rambsen, a jovem fazendeira, com seu bebê.

— Lá se foi o Verão Dourado, seu garanhão trakehner — disse Paskoleit — Seu único capital.

Júlia Rambsen apenas sorriu.

— Ele está lá embaixo, no compartimento de carga. Vai conosco.

— Como fez para conseguir isso? .

— Um dos oficiais costuma participar de torneios hípicos. Que sorte!

O sorriso dela era como o sol aquecendo a tarde gelada.

Também o padre Heydicke estava a bordo e, sentado num canto, viram até Felix Baum, o chefe político. Esboçou um sorriso maroto quando Kurowski e Paskoleit pararam diante dele, sem fala, e mostrou a perna direita. Tinha uma tala e estava toda enfaixada.

— Quando aconteceu isso? — perguntou o avô Jochen.

— Nada. Eu é que fiz estas ataduras. Os feridos podem embarcar.

— Seu pilantra desgraçado — disse Paskoleit, baixinho. — Se alguém descobrir!

— Eu queria ficar com vocês! Maldição, poderá chegar o dia em que precisaremos uns dos outros. A paz vai ser terrível, podem escrever. E, mesmo que eu não possua nada, pelo menos sei botar a boca no mundo!

— Tem razão — disse, persuadido, o avô Jochen —, saber botar a boca no mundo sempre foi útil na Alemanha! Fique em forma, Felix...

Pesados, devagar, as máquinas trabalhando com esforço, os três navios cruzavam o mar Báltico. Mantinham-se perto da costa, em volta da península Hela, às vezes tão perto que, em dias claros, podiam-se ver os clarões do fogo e ouvir o troar surdo que o vento trazia. Os russos eram velozes; abriram a Alemanha como uma lata de conservas. Suas divisões blindadas eram os abridores de lata.

Perto de Stolpmuende juntaram-se a eles duas embarcações da guarda-costeira, atrás de Ruegenwalde veio um caça-minas... Como um comboio, a pequena coluna sulcava o mar gelado em busca da liberdade. O padre Heydicke orava rodos os dias numa espécie de serviço religioso de bordo.

— Deus, deixe-nos escapar. Cegue os submarinos. Coloque neblina entre nós e os russos. Meu Deus, proteja-nos...

Orações para nunca serem esquecidas.

Navegaram durante catorze dias pelo mar Báltico sem que avistassem um navio inimigo. Três vezes o comboio foi sobrevoado por aviões de guerra soviéticos, mas eles não atacaram. Vinham de terra e, pelo jeito, haviam gasto toda a sua munição.

O telégrafo funcionava sem interrupção na cabine de rádio. Dos principais portos nos quais pretendiam desembarcar os refugiados, chegavam más notícias. Kolberg caía fora... os russos aproximavam-se. Em Stettin não era possível aportar, estava superlotada e havia navios de guerra preparando-se para o combate em terra. Em Greifswald não havia possibilidade, mas Stralsund estava disposta a descarregar os navios. Nas plataformas da estação ferroviária esperavam centenas de vagões.

— Nenhum russo chegará a Stralsund — disse vovô Jochen logo que a notícia percorreu o navio. — Lá, estou certo, os ingleses chegarão primeiro.

Após três semanas de medo e de rezas alcançaram Stralsund. Fazia um dia claro, frio e ensolarado quando os navios saudaram a cidade e a salvação com os gritos de suas sirenes. Erna Kurowski, com os filhos, em pé na amurada do navio, olhava para aquela terra que também era a Alemanha, mas tão diferente da Prússia Oriental. Parecia-lhe tão distante e desconhecida como talvez a África ou a América, lugares de que lhe falavam lá em Adamsverdruss.

— Tenho medo, Julius — disse Paskoleit. — Estamos caindo sobre esta gente como gafanhotos, e é assim que seremos tratados.

— Não em se tratando de um sapateiro!

Paskoleit, sorrindo abertamente, bateu em sua mochila que continha as ferramentas.

— Uma sola debaixo do pé sempre deu para sustentar um homem. Erna, qual é mesmo nosso lema?

— Não nos deixaremos abater! — disseram, em coro, Erna e as crianças.

Era um bom lema, mas no fundo do coração ainda permanecia uma pontinha de medo.

Ao meio-dia desembarcaram dois mil, trezentos e quarenta e nove mulheres e crianças, anciões e feridos. Mais setenta soldados e oficiais para servirem de escolta, entre eles o juiz de campanha, o dr. Bollow. Quando ele desembarcou, os soldados enfileirados no passadiço bateram os calcanhares. O dr. Bollow olhou para trás de cabeça erguida. Seus olhos traduziam a vitória final...

 

O campo que os acolheu era uma grande fábrica. Nos galpões abrigavam-se os refugiados sobre palha; assistentes da Cruz Vermelha distribuíam cobertores e sopa quente feita de um caldo de carne aguado e vagens, café de malte e pães com uma pasta artificial com gosto de patê de fígado: A base era farinha e sêmola. Em quatro escritórios todos tiveram seus nomes anotados e responderam sobre possíveis parentes no ocidente. Quando Erna Kurowski indicou uma tia sua em Krefeld, acenaram negativamente. Krefeld não era mais um lugar para ir, não se manda alguém chegado do inferno para novos montes de escombros. Mas onde haveria, ainda, uma Alemanha sadia? Nos campos de urze do Lueneburg, no Sauerland, nas florestas da Baviera, na Suíça de Holstein, no Muensterland, nas florestas da Francônia? Por enquanto ainda tinham a gentileza de perguntar: para onde querem ir? Ainda se podia andar de trem, embora milhares de bombardeiros britânicos e americanos dominassem os ares da Alemanha e, vez ou outra, atacassem os trens. A Alemanha ainda era uma esponja que não sugara tudo o que podia, absorvendo gente do leste alemão.

Paskoleit e o padre Heydicke apresentaram-se ao diretor do campo, um diretor regional com um uniforme amarelado.

— Gostaríamos de pedir que a aldeia de Adamsverdruss, ou o que ainda resta dela, fique junta — disse Paskoleit. — Não restam muitos. Só catorze famílias. Seria possível?

E, sob uma inspiração repentina, ajuntou (ouvira, certa vez, Felix Baum dizer algo parecido):

— O Füehrer deseja que as pequenas comunidades fiquem unidas como células fundamentais do Estado.

Heydicke olhou de esguelha na direção de Paskoleit e prendeu o riso ao ver a seriedade do outro. O diretor regional estava impressionado com tanto nacionalismo.

— Luebeck está livre — disse. — No campo de Luebeck ainda caberia Adamsverdruss. Catorze famílias, pode ser. Querem ir para Luebeck?

— Sempre foi meu desejo. — Havia um tom de reverência na voz de Paskoleit. — Luebeck está bom. Lá nos agüentaremos até que a vitória final nos devolva a Prússia Oriental, nosso lar, e. até que mandemos os russos de volta para os confins do Ural!

— Heil Hitler! — exclamou o diretor regional.

Após dez minutos o padre Heydicke, na qualidade de chefe de Adamsverdruss, tinha no bolso a ordem de partida e de entrada em Luebeck.

— O senhor é um cachorro maldito, Paskoleit — disse, lá fora.

— E o senhor, sendo padre, acaba de pronunciar a palavra maldito, senhor padre! — Paskoleit sorria. — Somos, agora, uma alcatéia de lobos e temos de uivar como eles! Como vê, senhor padre, disso nós entendemos.

Cinco dias mais tarde as catorze famílias de Adamsverdruss[3] seguiram para Luebeck, no noroeste, em três vagões. No último vagão, entre montes de feno e palha, entregue aos cuidados de Franz Busko, estava Verão Dourado, o garanhão trakehner. Para conseguir feno, vovô Jochen desfez-se de seu bem mais valioso: o relógio de ouro dos Kurowski, pertencente à família desde 1813. Entregou-o ao camponês Hermann Poltin.

— Jamais esquecerei — disse Júlia Rambsen com lágrimas nos olhos.

Vovô Jochen fez um gesto de pouco caso.

— Pode deixar que eu o recupero. Sei o nome dele. Não se esqueça; nós, os Kurowski, somos inextermináveis como os percevejos.

O trem de carga levou dois dias e duas noites de Stralsund a Luebeck. Quer dizer, durante o dia ficava escondido em algum lugar do trajeto, movimentando-se apenas a noite. O que ninguém, nos três carros, sabia era que na frente havia doze vagões que transportavam granadas. Se o avô Jochen tivesse sabido, não teria extravasado tanta alegria naquela viagem através de uma terra admiravelmente silenciosa, quase inatingida pela guerra. Durante dois dias e duas noites era como se vivessem numa outra estrela, chamada paz...

Luebeck era um campo.

A cidade, embora muito danificada pelos bombardeios, estava repleta de gente. Diversos trens de refugiados já haviam sido recebidos, e, quando as catorze famílias de Adamsverdruss apareceram no Campo 5 com seu garanhão Verão Dourado, os homens da administração puseram as mãos na cabeça.

— O que quer dizer ordem de partida e admissão? — gritou um homem gordo que, pelo jeito, tinha muito a dizer. E disse: — Um João regional qualquer de Stralsund pode mandar estes bilhetinhos bobos à vontade! Vou enfiar vocês onde, pergunto eu?! Estamos tão cheios que o telhado chega a levantar-se! E ainda por cima vocês me trazem um cavalo!

— Um garanhão da raça trakehner. Verão Dourado! — disse o avô Jochen.

— Vão tomar banho com seu garanhão! Verão Dourado? Sim, senhor, parece que o verão vai ser muito dourado mesmo! Vocês vão é comer o bicho!

— Nunca! — exclamou, bem alto, Paskoleit.

— Quer apostar? — O homem gordo bateu na mesa. — Por semana vocês ganham cinqüenta gramas de banha e cem gramas de lingüiça... quando tem! E vocês passeiam por aí com um montão de carne da melhor qualidade! Seus completos idiotas! Muito bem, estão no campo! Mas não tenho camas, nem cobertores, nenhum canto onde possam deitar-se. Só posso oferecer-lhes a latrina comum para cagarem e a barraca-lavatório para se lavarem! Sieg Heil!

— Não desistam! — disse Paskoleit lá fora.

As catorze famílias e Verão Dourado esperavam diante da barraca da administração.

— O importante é que fomos aceitos. Temos um número, chegamos ao ocidente, estamos enquadrados. Já pertencemos ao lugar! Não poderão mais nos mandar embora. Luebeck é um lugar como outro qualquer no mapa. Viveremos aqui! Vamos procurar abrigo, pessoal. Mostraremos a essa turma quem é que chegou de Adamsverdruss!

E mostraram! Verão Dourado foi instalado num telheiro ao lado da cozinha.

— Se vocês o abaterem, corto-os em mil pedaços! — disse vovô Jochen, sério. — Virei vê-lo de hora em hora!

Em seguida o pessoal de Adamsverdruss espalhou-se por todas as barracas; logo no primeiro dia Paskoleit e Busko já começaram a consertar sapatos, as solas eram feitas de pneus recortados. Em troca tinham um lugarzinho para dormir... Os outros simplesmente se apertavam um pouco.

Estava lançado o começo de uma nova sapataria. Bastaram dez dias para que todos no campo conhecessem Julius Paskoleit. Era espantosa a quantidade de alimentos que circulava no câmbio negro e que ia parar nas mãos de Paskoleit, o sapateiro. Havia, no campo, verdadeiros gênios, que saíam para passear e voltavam de bolsos cheios.

— Vou aprender com eles — disse o avô Jochen. — Garoto, como eu gostaria de passear...

Mas os gênios da organização não aceitaram o velho Kurowski em suas fileiras. Usavam de todos os truques para se verem livres dele.

— Eles ainda não me conhecem — chiava o avô Jochen. — Só preciso de um pequeno aquecimento. Para um Kurowski isto não demora muito.

 

De repente chegaram os ingleses.

Penetraram em Luebeck sem muito alarde, ocuparam a cidade, tomaram a direção do campo, mas deixaram permanecer a administração antiga; na barraca do comando geral, um jovem capitão que falava alemão era muito amável e, ao assumir o cargo, fez um discurso diante de todos os refugiados.

— Meus pais morreram na câmara de gás em Auschwitz — disse —, mas eu sei que vocês pobres-diabos não têm culpa. Se tiverem algum problema não se preocupem, venham falar comigo.

Para Luebeck, o campo de refugiados e o povo de Adamsverdruss a guerra estava terminada. Haviam sobrevivido.

— É agora que vai começar — disse Paskoleit, numa certa manhã, à família Kurowski. — Agora começa a luta por um lugarzinho ao sol...

 

A primeira tentativa de sair daquela vida no campo de refugiados fracassou.

— Vou escrever para Krefeld — disse Erna Kurowski depois que a família havia discutido todas as possibilidades. — Minha tia Elfriede mora numa casa grande, poderá hospedar-nos a todos. Pelo menos no início.

— Dois meses no máximo.

Paskoleit bateu palmas.

— Procuraremos um galpão, faremos uma reforma e construiremos uma oficina. Nunca, em tempo algum, houve um artesão que não encontrasse o que fazer. Então vamos para Krefeld.

Apenas uma semana mais tarde receberam uma carta de tia Elfriede. O caso não tinha solução.

 

Vocês sabem que tio Adolf era um alto figurão do Partido. Agora foi preso pelos vencedores e levado para um campo em Darmstadt. Nossa casa, que ainda estava muito bem conservada, foi confiscada... Estou morando, agora, com minha amiga Mônica num quarto, esperando e rezando para que Adolf volte para casa. Como vocês sabem, Adolf sempre foi uma ótima pessoa, só era mal-orientado, sempre se deixava levar pelo entusiasmo... E aí está o que ele ganhou com isto. Eu choro dia e noite...

 

— Nada feito! — disse vovô Jochen.

— Até Adolf Hammes voltar do campo de prisioneiros pode demorar muito. Uniforme marrom e ainda com o nome Adolf... Pode durar uma eternidade. Não vamos esperar tanto. Risquemos Krefeld. Sinceramente... não iríamos nos sentir bem numa casa tão grã-fina. Portanto, olhemos em volta por aqui mesmo. Luebeck é uma cidade bonita, e temos aqui o mesmo mar Báltico como no Nehrung. Dá para a gente se sentir em casa.

O gordo diretor do Campo V foi o único a criar dificuldades. Por que implicava justo com a família Kurowski, só vovô Jochen sabia, mas não contava para ninguém. O fato ocorreu no quarto dia após sua chegada a Luebeck, quando o gordo apareceu no telheiro e ficou observando Júlia Rambsen alimentar seu garanhão Verão Dourado.

— Uma mulher tão bonita lidando com cavalos — disse, em tom de gozação. — Mas a ração vai escassear.

— Faremos uma coleta — respondeu Júlia Rambsen, limpando as ventas do garanhão, acrescentando, orgulhosa: — Ele ainda será o pai de uma nova linhagem de trakehner.

— Um sortudo. — O gorducho riu abertamente. — Ele sempre pode. Até deve. Oferecem-lhe as mais belas éguas. Existe alguma razão para nós homens termos uma vida pior do que eles? — Deu um tapa nos quadris de Júlia e olhou-a com volúpia.

— Pare com isso! — falou Júlia num tom baixo e ameaçador.

— Eu sei onde conseguir quatro carretas de feno e um monte de aveia. — O gordo fitou, com evidente agrado, os belos seios de Júlia e passou a língua nos lábios. — Só há duas possibilidades: ou o cavalo é abatido qualquer dia para encher algumas centenas de estômagos vazios aqui no campo... ou vamos juntos buscar o feno e a aveia. Nesse caso eu tomo conta do bicho. Mas isso só é possível em conjunto, linda mulher... Estamos entendidos? Em conjunto!

— Existe, ainda, uma terceira possibilidade! — vociferou vovô Jochen. Acabara de chegar, despercebido, ao final da última frase e completou: — Quando uma mula empaca, recebe um pontapé no traseiro!

E, antes que o gordo percebesse o que estava acontecendo, foi expulso dali a socos e pontapés. Desde então a família Kurowski passara a representar um argueiro no olho da administração, que fazia de tudo para se livrar daquele corpo estranho.

— Isto aqui não é um campo permanente, é um campo de trânsito — disse o gordo a Paskoleit dois meses após o término da guerra. Já era a sétima advertência deste tipo. E disse mais: — Cada vez chegam mais refugiados das regiões de ocupação russa. Precisamos de espaço! Já lhes demos um tempo para pensarem na situação Devem sair daqui logo! Meu Deus, já deveriam saber onde é seu lugar.

— Na Prússia Oriental! — disse Paskoleit com a voz sombria, acrescentando: — Providencie para que Adamsverdruss fique livre de russos... Uma hora depois estaremos no caminho de volta!

— Tudo isto não passa de conversa mole! — gritou o gordo. — Nós perdemos a guerra!

— Nós! Aí está! Não só nós da Prússia Oriental ou da Silésia, mas também o senhor, seu porco inchado! Sua única sorte foi ter aqui os ingleses, mas poderemos trocar. Eu tinha, em Adamsverdruss, uma bela casa, faço-lhe presente dela. Vá para lá, instale-se! Aceitarei de bom grado sua mísera casa de três quartos. Combinado?

O gordo virou-se, e foi embora.

— Polacos!

Paskoleit ouviu-o murmurar. Era uma palavra que, daquele momento em diante, não esqueceria mais.

— Então é assim que eles nos consideram aqui no oeste — disse ao avô Jochen e a Felix Baum. — Polacos! Droga, tenho aqui comigo uma desconfiança de que esta guerra amoleceu os miolos dos alemães! Será que não existe nada capaz de mudar um alemão? Nem os milhões de mortos, as cidades destruídas, a fome, o caos completo? Será que este alemão será sempre o palerma arrogante que é? Vovô, tenho um pressentimento: a paz será horrenda!

Na noite seguinte, o gordo diretor foi puxado para dentro da barraca que servia de lavatório, depois de alguém lhe jogar um saco sobre a cabeça. Chiou, e mais tarde, mudo e resignado, deixou-se surrar até desfalecer. Até hoje ninguém sabe quem praticou o atentado. O que se sabe é que a Barraca 2, na qual moravam os Kurowski, fez uma vaquinha e comprou duas garrafas de aguardente dos ingleses. Foi uma noite muito alegre.

— Apesar disso teremos de sair daqui! — disse, mais tarde, Paskoleit, acrescentando: — O gordo tem razão numa coisa: isto aqui não é uma situação permanente. Ficando aqui, vamos mofar. Os Paskoleit e os Kurowski sempre foram livres. E, mesmo que eu me sente debaixo de um telhado de tábuas na frente do campo para fazer solas de sapatos, estarei fora! Tenho meu próprio teto. Avô?

— Aqui — berrou Jochen Kurowski.

— O que os outros podem, nós também conseguiremos: vamos sair por aí para fazer alguns negócios de troca-troca.

— E o que é que você pretende trocar, seu idiota?

— Verão Dourado!

Jochen Kurowski, boquiaberto, olhou Paskoleit fixamente.

— Está completamente doido! — disse baixinho. — Em primeiro lugar você não é o dono do garanhão, e em segundo lugar prefiro comer capim do que fazer negócio em troca do cavalo.

— O que falta em vocês é imaginação. — Paskoleit levou o dedo à testa larga de camponês. A risada dele era igual ao sol se pondo sobre os lagos da Masúria. — Abriremos, com Júlia, um negócio de montaria... Por cinco minutos, uma agulha de costura. Meia hora: uma pederneira. Dez minutos: um sabonete. Para montar uma hora inteira: duzentos e cinqüenta gramas de toucinho! Para os ingleses, tarifas especiais: para cada meia hora, um lanche. Os oficiais pagam com manteiga ou presunto, ou ham’n eggs

— Ficou doido!

Vovô Jochen olhou em volta, sem saber o que fazer. Os Kurowski, Felix Baum, Franz Busko e Júlia Rambsen pareciam de outra opinião. Menearam a cabeça concordando com Paskoleit.

— Mas quem vai querer andar a cavalo se não tiver o que comer?!

— Esperem só para ver. — Paskoleit colocou o boné. — Na Barraca 6 temos um pintor, ele poderá fazer um cartaz. “Montar, um esporte popular! Passe alguns minutos felizes no dorso de um fogoso corcel.’’ Mais do que quebrar a cara não pode nos acontecer...

Nada aconteceu a eles.

Já no primeiro dia, quando Ludwig Kurowski, de dez anos, foi andar pelo campo carregando o cartaz — o pintor da Barraca 6 pedira, pela cartolina e pelo serviço, duzentos e cinqüenta gramas de manteiga, da primeira que recebessem —, apresentaram-se vinte crianças e três sargentos britânicos. Paskoleit aceitou sabonete, sabão em pó ou elásticos dos pais das crianças; os ingleses pagavam com pacotes de alimentos.

À noite Paskoleit e o avô Jochen contaram a arrecadação do dia. Era impressionante.

— Agora quem é o idiota? — perguntou Paskoleit. — Se continuarmos assim por mais dois meses, Verão Dourado terá um estábulo de verdade e nós construiremos uma sapataria.

— E as solas, você as fará de meleca? — berrou vovô Jochen.

— Este problema também será resolvido.

Paskoleit juntou as mãos sobre o ventre. Tinha um pressentimento de que, com o verão de 1945, em meio a um mundo destroçado, a família Kurowski começava a viver de novo.

— Continuarei a ocupar-me da montaria, e vocês — apontou para vovô Jochen, Felix Baum e Franz Busko — vão dar uma volta pela região e abrir os olhos. Existe muita coisa jogada fora. por aí na Alemanha. Basta saber enxergar! Olhar bem, vovô!

— Não engolirei esta!

Jochen saiu dali, ofendido. Foi vagando até onde estava Verão Dourado, sentou-se ao lado da cabeça magnífica do garanhão e disse:

— Eles vão ver uma coisa, meu caro! Amanhã gastarei minhas solas nos arredores de Luebeck. E eu prometo, você ainda terá uma manjedoura de mármore!

 

O negócio da montaria prosperou às mil maravilhas durante três semanas. Três horas pela manhã, três horas à tarde... Era dureza para o cavalo, mas Verão Dourado agüentou firme, talvez porque pressentisse que seu belo dorso não só tinha que alimentar onze bocas, mas também carregava toda a esperança de um futuro melhor.

A partir da segunda semana Paskoleit já tinha uma clientela fixa. A tarde montavam os oficiais britânicos. De manhã, os alemães. A maioria destes eram crianças, que pediam tanto a seus pais que estes vinham a Paskoleit com as ofertas mais comoventes. Por dez minutos um par de cordões para botas, usados, naturalmente. Por três voltas em torno da Barraca 5 a correia de couro de um relógio de pulso. Uma das mães ofereceu três fraldas... para que seu garoto de quatro anos tivesse meia hora de felicidade...

Paskoleit aceitava tudo.

— Cada coisa tem seu valor — dizia, cheio de premonição. — O tempo da grande miséria ainda vai chegar...

No sábado, após três semanas, vovô Jochen e Felix Baum voltaram de uma excursão que durou dois dias. Baum, que tivera de deixar sua motocicleta em Stralsund, fabricara uma bicicleta com peças avulsas que conseguira juntar, e nela andavam pelos arredores, o avô Jochen na garupa, encolhendo as pernas compridas; em tempos normais seria uma violação flagrante do trânsito, mas o que poderia representar perigo naqueles dias, quando já se tinha conseguido escapar do inferno da Prússia Oriental e dos trecks? Tais excursões eram bem planejadas, Kurowski e Baum revezavam-se para pedalar, visitavam todas as aldeias na periferia de Luebeck, trocavam os objetos angariados por alimentos com os camponeses, pechinchavam por cada grama de manteiga, cada batata, cada repolho, cada beterraba, mas funcionava, pois quando Baum e vovô Jochen chegavam à noite, vinham com as mochilas repletas.

Naquela noite, depois de dois dias de ausência, voltaram de mãos abanando. Paskoleit olhou-os com espanto.

— Vocês foram roubados? — gritou, antes mesmo que o veículo que chamavam de bicicleta, mas que na verdade merecia outro nome, pudesse frear.

— Ninguém rouba um Kurowski! — berrou vovô Jochen da garupa. — Venha para junto do cavalo, Julius! E cale a boca...

Encontraram-se no telheiro de Verão Dourado como conspiradores, e era assim mesmo que o avô Jochen se comportava.

— Menino, meus olhos saltaram fora das órbitas — disse. — Felix, disse eu para este nazista bobalhão, Felix, segure-me, vou ter um enfarte...

— Foi de cortar o fôlego — disse Felix, rouco de emoção.

— Magnífico...

— Vocês querem falar coisa com coisa?

Paskoleit cutucou Kurowski.

— O que é magnífico?

— Cinco mil pneus de automóvel...

O avô Jochen quase não conseguia falar de tão agitado.

— Dez mil... — disse Baum.

— Pelo menos dez mil! Pilhas e mais pilhas...

— Novos e usados, Julius... descobrimos um depósito de pneus da antiga Wehrmacht. Só tem um simples arame farpado em volta. Sentinelas inglesas andando para cima e para baixo. Ficamos dois dias deitados no capim, observando tudo. Como aqui: troca de guarda a cada duas horas... mas tem uma turma que não quer saber de andanças para lá e para cá e tira uns cochilos. Das duas até as cinco da madrugada não se vê um guarda.

Baum encostou o corpo cansado na parede do telheiro.

— Imagine só: dez mil pneus, no mínimo, amontoados ali, e os ingleses não sabem o que fazer com eles, só ficam andando em volta.

— Dá para abrirmos uma gigantesca fábrica de sapatos, Julius.

Jochen Kurowski abraçou o cavalo, que ouvia tudo de orelhas em pé, e beijou-o nas ventas macias.

— Meu bichinho... fui eu quem descobriu! E é a mim que querem transformar num ancião cheio de tremeliques! A mim, Jochen Kurowski! E você já pode parar de trotar por aí como um bobo... Você vai ganhar sua manjedoura de mármore. Promessa é promessa, meu filho...

— Onde? — perguntou Paskoleit, sem rodeios.

— Entre Curau e Malkendorf. Entre duas fileiras de morros.

Felix Baum botou a mão no bolso — desenhara até um mapa. Os morros, o enorme depósito de pneus, a cerca de arame farpado, o posto de guarda britânico, os postes com holofotes que nunca eram acesos, o caminho da ronda, que só fazia a volta do depósito perto do grupo 2. A maioria dos guardas, principalmente de noite, desprezava a terça parte do lado de trás, porque lá o terreno era cheio de altos e baixos.

— Por aqui entraremos sem ninguém perceber nada.

— E também é aí o lugar mais seguro do depósito. De lá até o caminho mais próximo, atravessando os morros, é uma porcaria. Você quer carregar cada pneu por mais de cem metros até poder transportá-lo?

— Claro! — disse vovô Jochen em voz alta. — Tenho força suficiente. Sou um Kurowski! Se os Paskoleit também têm essa fortaleza toda...

— Então é para a noite de depois de amanha! — Paskoleit olhou desafiadoramente para o avô Jochen. — Um Paskoleit agüenta vinte pneus.

— E um Kurowski, vinte e um! — gritou Kurowski.

— O que dá quarenta e um só de nós dois. Mas como vamos transportá-los? — disse, prosaicamente. — Você vem rolando vinte e um pneus até aqui?

— Também já pensei nisso — disse o avô Jochen, deixando o estábulo em seguida.

De manhã cedinho, depois da primeira reza no campo, Kurowski estava sentado com o padre Heydicke na barraca-escritório. Heydicke obtivera uma sala, tendo sido nomeado oficialmente padre do campo. Apesar de outras ofertas melhores do interior, escolhera ficar perto de seus refugiados.

— Senhor padre — disse Jochen Kurowski com as mãos entrelaçadas —, diga-me do fundo do coração: Deus castiga alguém que constrói uma nova vida?

— Ora, não, Jochen — respondeu Heydicke perturbado. — Deus está com ele!

— Ainda bem, senhor padre!

Vovô Jochen levantou-se.

— Preciso de um pequeno caminhão que possa transportar uns cinqüenta pneus de automóvel. Para uma noite. Pode organizar isto?

O padre Heydicke resolveu ajudá-lo, após ouvir Kurowski contar tudo. O próprio comandante inglês do campo emprestou ao padre um pequeno Dodge.

— Eu vou junto — disse Heydicke.

Vovô Jochen concordou com um movimento de cabeça. Ao anoitecer do dia seguinte, o caminhão saiu, aos solavancos, em direção ao campo entre os riachos Helisau e Schwartau. No volante, com Paskoleit a seu lado, estava o padre Heydicke.

Era o início de uma aventura extraordinária.

 

Numa estradinha estreita, por entre os morros baixos atrás de Curau, o avô Jochen subiu na cabine e espremeu-se ao lado do padre. De agora em diante a coisa tornava-se criminosa, isso se os tempos em que viviam fossem normais. Mas no fim de ju­lho de 1945, numa terra que mais parecia uma paisagem lunar do que um estado organizado, uma terra como nenhuma outra no mundo, destruída, bombardeada, destroçada e arrebentada, na qual cada sobrevivente só pensava em uma coisa — continuar a sobreviver —, não importava como nem quais os meios, essa excursão noturna nem mereceria ser mencionada, não fosse ela o início de uma nova fase para a família Kurowski.

Nas cidades e aldeias que atravessaram reinava um silêncio profundo, pareciam abandonadas. Proibição de sair depois das vinte e duas horas. Ordem do governo militar. Quem se encontrasse na rua depois das dez da noite era detido e preso.

O pequeno caminhão foi parado três vezes por patrulhas da polícia militar inglesa. Uma vez em Bad Schwartau, a segunda vez na estrada para Curau, a terceira na própria aldeia de Curau. A cada vez o padre Heydicke exibia sua identidade e a autorização expedida pelo comandante do campo de Luebeck, falava com os oficiais britânicos em bom inglês e, estando estes convencidos de que havia um homem de Deus na boléia do caminhão, permitiam-lhe continuar.

— Pelo menos um de nossa família deveria ter se ordenado padre e aprendido a falar inglês — disse o avô Jochen depois da terceira parada, e acrescentou: — Garoto, precisamos nos lembrar disto. Ou Ludwig ou Peter vai ser padre e falar inglês...

— Talvez um dia seja mais importante falar russo — disse Paskoleit.

Pararam entre as colinas. Felix Baum veio correndo para a frente.

— Mais uns quinhentos metros. — Apontou para a escuridão. — O depósito fica à esquerda do caminho. Uma rua vai até o portão, uma rua particular.

— Por esta tenho certeza que não passaremos — disse Heydicke. — Qual a melhor maneira de nos aproximarmos por trás?

— Cruzando os campos, senhor padre. — Felix Baum acenou na direção das colinas. — Ali é um sobe-e-desce! Quer que eu dirija, senhor padre?

— O senhor carrega os pneus, Baum! Já dirigi por caminhos piores. Então vamos lá...

Sem luz, devagar, em primeira, foram entrando nas colinas. Baum estava do lado de fora, no estribo, vovô Jochen tinha o nariz colado ao pára-brisa. Paskoleit fumava nervosamente um cigarro de palha, enrolado por ele mesmo.

— Alto! — disse Baum. Parou e desabafou: — Deve ser aqui. Na descida atrás da colina começa o arame farpado. Gente, gente, como é que o senhor quer voltar daí, senhor padre? Vazio é fácil, mas carregado? Só nos falta agora um eixo partido!

— O padre vai rezar — disse vovô Jochen, saltando do carro —, mas isto está além da compreensão de um ex-chefe político! Vamos, rapazinho, atacar!

Como sombras, Paskoleit, vovô Jochen, Baum e Busko deslizaram pelo terreno acidentado das colinas e foram engolidos pela noite após alguns metros. Era uma noite boa, morna e escura, com um pouco de cerração, a lua era uma foice apagada numa bruma opaca que não deixava passar nenhuma luz. Na guerra tinham aprendido a não fazer ruídos, e assim os quatro, protegidos por arbustos e vidoeiros, zimbros e pinheiros anões, avançaram em silêncio até a descida fechada por uma cerca de arame farpado de três metros de altura. Atrás do arame, como torres negras e colinas arredondadas, amontoavam-se os pneus. Até onde a vista podia alcançar naquela escuridão... montanhas de pneus. Bem ao longe vislumbrava-se uma luz fraca: o posto da guarda. Os holofotes nos altos postes estavam desligados. Pelo visto, os ingleses achavam uma tolice absoluta vigiar pneus velhos. Mas ordens são ordens e têm de ser cumpridas.

— Olhe só para isso, rapaz! — disse o avô Jochen, emocionado. — Não dá nem para calcular quantas solas de sapatos...

— Ainda nos faltam os pregos e a cola.

Paskoleit aproximou-se da cerca, olhando-a com desconfiança. Ouvira dizer que o arame farpado também podia ser eletrizado.

— Não posso prender as solas com cuspe.

— O cara sempre tem alguma coisa para reclamar!

Jochen Kurowski agarrou a cerca antes que Paskoleit pudesse impedi-lo. Afastou os dois fios de arame do centro e fez um sinal com a cabeça.

— Vamos, podem entrar...

— Sorte sua que não havia alta-tensão — disse Paskoleit, com um suspiro de alívio.

— Vocês todos devem pensar que eu sou um tolo, não? — rosnou vovô Jochen. — Claro que eu já verifiquei isso ontem, com um pedaço de madeira. Vamos entrando...

Penetraram no depósito e logo deitaram-se no chão para esperar um pouco. Poderia começar a soar algum alarme porventura instalado no posto de guarda. Mas tudo permaneceu em silêncio. Eram exatamente duas horas da madrugada, hora em que os guardas britânicos dormiam, ficando acordado apenas um, sorteado para ficar de sentinela.

Até a primeira pilha de pneus havia só seis metros. Paskoleit passou as palmas das mãos pelas bandas de rodagem.

— Gente, estes são novinhos — cochichou —, estes não se transformarão em solas. Poderemos trocá-los por manteiga, toucinho, ovos, carne!

— E, para a igreja do campo, faremos um donativo de quatro pneus — disse o avô Jochen, emocionado.

— Menino, de Adamsverdruss até aqui que sorte nós tivemos!

— Não vá chorar agora. — Paskoleit deu um tapinha nas costas de Kurowski. — Pegue dois, vovô... e vá andando...

Trabalharam das duas até as quatro e meia. Passaram duas horas e meia carregando pneu após pneu, o suor escorria-lhes até os sapatos, os pulmões pareciam prestes a arrebentar. No final só conseguiam cambalear como se, em vez de pneus de borracha, tivessem rodas de chumbo pendendo dos braços.

 

O padre Heydicke colocava-os na traseira do caminhão. Às quatro e meia separou o avô Jochen do resto do grupo. O velho arfava como uma panela de pressão e comportava-se como um embriagado.

— Fim — disse Heydicke, com rispidez. — O senhor fica por aqui.

— Não vou deixar que nenhum Paskoleit me passe à frente — gemeu Kurowski descansando o corpo na lateral do carro. — Até agora estamos em pé de igualdade.

— E na próxima o senhor cai duro! Eu disse fim!

E o avô Jochen resignou-se. Não se podia discutir com um padre.

Às cinco horas a ação terminou. A cerca não sofrera nenhum dano. Na claridade turva da manhã nem se via onde faltavam pneus, já que Paskoleit determinara que os mesmos deveriam ser tirados de várias pilhas diferentes.

— Quantos, senhor padre? — perguntou, sentando-se cansado e respirando com dificuldade, molhado de suor, no estribo do caminhão.

— Exatamente sessenta e nove. Todos pneus novinhos!

— Menos quatro para a igreja, sobram sessenta e cinco — disse o avô Jochen, satisfeito. — Dá para construir uma existência! Gente, temos de nos abastecer aqui pelo menos uma vez por semana.

Fizeram a viagem de volta sem fiscalização. No celeiro de uma fazenda entre Bad Schwartau e Luebeck o camponês recebeu em troca pneus novos para seu velho DKW, o lote foi descarregado, recontado, e o avô Jochen disse ao camponês:

— Rapaz, se faltar um só pneu vai lhe acontecer o mesmo que ao touro que virou boi. Entendeu?

Às oito horas entraram no campo de refugiados; o padre Heydicke foi devolver o caminhão.

— Não quero perguntas — disse o comandante —, mas, muito aqui entre nós, estou interessado em saber: onde foram com meu caminhão?

— Fui buscar uma nova toalha para o altar e dois candelabros.

— Com um caminhão?

— Servir a Deus é trabalho pesado, capitão — disse Heydicke. — Não sé esqueça... estamos recomeçando do ano zero...

 

A família Kurowski e Júlia Rambsen com seu garanhão trakehner, Verão Dourado, abandonaram o campo de refugiados. De repente — ninguém sabia explicar — tudo corria às mil maravilhas, como se todos os Kurowski pendessem das mãos de um grande manipulador de marionetes. Na periferia de Luebeck, onde o ambiente já era mais campestre, conseguiram alugar um galpão de madeira com direito a reformá-lo. O preço era seis pneus. Madeira de construção, pregos, telhas velhas e lascadas tiradas de escombros, cimento e areia peneirada custaram dez pneus. Para alugar duas vezes um caminhão: dois pneus! Depois disso, toda a família Kurowski passou catorze dias em volta de um monte de pedras, batendo-as para remover a argamassa e empilhando-as. Os meninos, Ludwig, agora com onze anos, e Peter, com cinco, ajudaram a martelar; Erna Kurowski misturava, com as próprias mãos, a argamassa e o concreto; vovô Jochen, Paskoleit, Felix Baum e Busko levantaram as paredes e construíram mais três quartos e uma oficina. Coisas como um departamento de edificações, regulamentos sobre o local de construção, cálculos técnicos, gabaritos e normas sobre como fazer as janelas não existiam. Era verdade que o funcionalismo alemão começava a se reorganizar, mas tratava-se de homens que ainda sentiam a guerra nos ossos e que viam, nos outros cidadãos, apenas companheiros. Oh, tempos felizes! Isto não tardaria a mudar. Mesmo após uma destruição total, não há nada que se desenvolva mais depressa que a burocracia! Também nos destroços eram as urtigas as primeiras a florescer...

Vez ou outra aparecia o padre Heydicke, ajudava um pouco na construção e embolsava cada vez um pneu.

— Que homem mais desavergonhado! — rosnava vovô Jochen. — Antigamente colocava-se uma moeda no saco de coleta, hoje é um pneu!

O melhor negócio foi realizado por Paskoleit com vinte pneus: trocou-os por um velho Opel P4. Quando foi tirar a licença, aproveitou para registrar seu ofício e voltou com um ramo de flores em cima do radiador.

— A firma Sapateiro Ewald Kurowski está fundada! — gritou pela janela antes mesmo de frear. E depois, mais baixo, ao mesmo tempo abraçando Erna, que chorava: — Vamos dar o nome de Ewald à empresa, Erna. Assim ele estará sempre conosco. Droga, não devemos duvidar nunca de sua volta...

A primeira a estar em pé foi a oficina. Erna e vovô Jochen saíram e organizaram um grande troca-troca, com base nos pneus. Desse modo conseguiram pregos, cola para borracha, linha de costura, linha de sapateiro, lápis, tachinhas, bases para martelar, ilhoses, uma velha máquina de prender solas, e uma máquina de costura enferrujada que Franz Busko consertou. Paskoleit talhou fôrmas de sapateiro de álamo, e foi aí que se comprovou que a coisa mais importante que haviam conseguido salvar de Adamsverdruss, atravessando a Prússia Oriental com o treck, sobre o Nehrung e o mar Báltico, era a mochila contendo as ferramentas de sapateiro.

O primeiro cliente foi um fabricante de balas que perdera tudo num bombardeio.

— Precisamos ficar bem com ele — disse o avô Jochen, depois que Paskoleit colocara sola nova em quatro pares de sapatos. — Quando este aí recomeçar a cozinhar suas balinhas, vamos chupar até não poder mais!

Era uma idéia interessante...

No final de setembro estava pronta a nova construção. Cheia de orgulho, Erna Kurowski conduziu o padre Heydicke, passando pelo galpão reformado, para a oficina onde Paskoleit e Busko trabalhavam catorze horas por dia, sentados em seus banquinhos, consertando sapatos. Em parte recebiam dinheiro, mas a maioria pagava em objetos que, por sua vez, eram trocados por Baum e vovô Jochen por outras coisas mais importantes. Verão Dourado tinha uma bela estrebaria e, há quatro semanas, trotava novamente servindo de montaria, numa pista provisória. Alimentava, assim, Júlia Rambsen e seu filho, para quem Paskoleit construíra um quarto anexo ao galpão.

— Vocês são uma família fantástica — disse o padre Heydicke após visitar tudo. — Fazem de tudo para sair da lama.

— É isso mesmo. — Paskoleit colocou as mãos sujas nos joelhos. — Dizemos todo dia em coro, senhor padre: não nos deixaremos abater!

— É a oração mais linda; é verdade, Paskoleit! Preciso de mais um pneu.

Suspirando, vovô Jochen desapareceu no “depósito”.

Também sessenta e cinco pneus acabam depressa quando servem para construir uma existência. Quando a oficina e a casa estavam prontas e o P4 circulava com mercadorias para troca, quando chegaram os primeiros clientes e o Sapateiro Ewald Kurowski conseguiu cupons para a aquisição de couro e outros tipos de material, após a oficina ser reconhecida como empreendimento de utilidade pública, restavam no depósito apenas quatro pneus. Um quadro desanimador.

— Assim não dá — disse o avô Jochen. — Julius, amanhã à noite vamos reabastecer!

Mandaram Felix Baum investigar em sua bicicleta e à noite receberam a notícia: — O depósito continua lá! Cheio como antes. Os ingleses estão lá sem saber o que fazer com aquilo. É como nas repartições alemãs: não há nenhuma ordem para utilizá-los, portanto os pneus ficam onde estão. Quando, na verdade, precisariam deles em todos os lugares da Alemanha.

— Um P4 também é capaz de levar carga — disse vovô Jochen — e de agora em diante vamos perambular para lá e para cá todas as noites. O Franz e eu. Se nos pegarem não é tão grave. Eu sou um velho e Franz é um tuberculoso imbecil! Vocês, os outros, ainda são necessários!

Busko abriu um sorriso; não levava a sério as observações de Kurowski. Todos entendiam o que ele queria dizer. Porque nem Busko era um idiota, nem estava mais doente do pulmão. Depois do fim da guerra passara por uma cura milagrosa, engordara e tornara-se um homem alto, corpulento e de uma força extraordinária.

— Que figura! — dissera, certa vez, Baum. — Esse aí mandou a Wehrmacht à merda!

A partir de então o Opel P4 passou a fazer, toda noite, uma ida e volta entre as colinas perto de Malkendorf e a oficina nos arredores de Luebeck. Não se podia transportar mais de dez pneus de cada vez, senão o eixo do carro se partiria, mas com dez pneus por noite o estoque aumentava. O depósito encheu-se, houve três empresas de transporte e duas firmas de construção que se transformaram em clientes, não para solas de sapatos, mas sim para pneus, e naquela época ninguém perguntava de onde vinha tudo aquilo; fazia-se a troca e era uma grande família que se ajudava mutuamente.

Até hoje ninguém sabe como aconteceu; se os ingleses, aos pouquinhos, foram percebendo que as pilhas de pneus diminuíam de tamanho, ou se, por acaso, alguém tinha observado as atividades de vovô Jochen e Franz Busko... Mas, na manhã do dia 21 de outubro de 1945, mais ou menos às quatro horas e dezenove minutos (a hora constava, mais tarde, rigorosamente certa, do relatório), surgiu de repente uma patrulha britânica de quatro homens no meio dos enormes montes de pneus, empunhando MP e berrando: “Stop! Hands up!”

Vovô Jochen entendeu o inglês logo, parou, com um pneu bonito e novinho entre as pernas, e levantou os braços para o céu. Franz Busko, de um salto desesperado, tentou esconder-se atrás da pilha mais próxima. Mas saltou um segundo atrasado. Uma salva o alcançou, mas apenas uma bala o atingiu. Porém, foi o bastante. Atravessou a coxa e jogou-o no meio dos pneus. A pilha desmanchou-se, enterrando-o.

— Mas que burro! — berrou Kurowski. — Vê-se logo que ele nunca serviu ao Exército!

Ficou onde estava, as mãos bem para o alto, e deixou-se levar pelos ingleses. Busko precisou ser carregado; estava desmaiado, porém vivo.

Naquela noite Felix Baum os acompanhara e estava esperando nas colinas junto ao P4. E mais uma vez a sorte sorriu à família Kurowski, pois no momento em que ouviu os tiros Baum pulou para a direção do carro e deu o fora. É verdade que atiraram nele, mas na claridade encoberta da manhã todos os tiros erraram o alvo. Alcançou a estrada e desapareceu rumo a Luebeck.

— Agora temos de livrar o vovô — disse Paskoleit três horas mais tarde.

O padre Heydicke também viera. Baum fora buscá-lo no campo.

— Senhor padre, o senhor é o único a quem permitirão vê-lo.

— Ainda hoje vou falar com ele — disse Heydicke. — Mas é uma situação desgraçada: agora vocês são os pequenos contra os grandes vencedores.

 

A situação era mesmo muito perigosa, levando-se em conta o avô Jochen... O padre Heydicke só conseguiu falar um pouquinho com ele e contou que os oficiais do tribunal britânico o interrogavam dia e noite, acreditando que fosse um plano de sabotagem planejado pela organização nacionalista Wehrwolf. Joachim Kurowski lidou com essa perigosa suspeita, que, se provada, seria punida com a pena de morte, com uma representação teatral brilhante: perdeu a memória. Não acharam nenhuma identificação dele nem de Franz Busko; de repente, não se lembrava mais de seu nome, olhava para tudo com cara de palerma, sorria para os oficiais ingleses e, passados cinco dias, disse:

— Chentlemen, eu sou uma criança abandonada pelos pais. Ficarei felicíssimo se descobrirem quem eu sou...

Franz Busko também se calava. No caso dele o tiro inconseqüente na coxa causara apenas uma falta de irrigação sangüínea no cérebro. Quando alguém falava com ele ou mesmo o interrogava, seus olhos eram de tal modo atacados por tiques nervosos que os oficiais britânicos se apressavam em deixar logo o quarto de hospital.

— Mesmo assim temos de tirar vovô e Franz de lá — disse Paskoleit, duas semanas mais tarde. — Eles ainda são capazes de atribuir a vovô todos os crimes sem solução.

— E nossos noventa e quatro pneus vão para o beleléu — disse Felix Baum. — E aquela história de Wehrwolf... essa terão de provar ainda.

Já em dezembro realizou-se o julgamento, uma audiência inofensiva diante de um tribunal militar britânico, por pilhagem de mercadoria de guerra. Busko entrou na sala mancando; vovô Jochen ficou sentado, rígido e calado, numa velha poltrona de vime. O único alemão que teve permissão para assistir ao julgamento foi o padre Heydicke. Foi ele que, depois, relatou o sucedido.

A audiência foi breve. Algumas perguntas, outras tantas respostas. Ninguém mais se preocupava em saber os nomes dos dois acusados; nos escombros espalhados pela Alemanha andava tanta gente sem nome que dois a mais não faziam diferença. Nem era importante — não se colocam nomes no xadrez, e sim corpos. E assim a corte militar britânica condenou os corpos de um velho, de uns setenta anos, e de um homem, de quase trinta, a um ano de prisão por furto. Vovô Jochen recebeu a sentença calado; Franz Busko disse:

— E como vamos deduzir da conta meu traseiro atingido por um tiro?!

Com isso, mostrou pela primeira vez seu talento para ajustar contas, que o acompanharia em sua vida futura.

Kurowski e Busko mudaram-se para uma cela na prisão de Luebeck. Uma grande cela comum onde já havia catorze condenados, que saudaram os novos com estardalhaço e cantoria. Constatou-se que todos os catorze companheiros de cela estavam ali por delitos similares e que consideravam qualquer novato como um novo membro da família.

O avô Jochen já estava no comando da cela no terceiro dia. Primeiro berrou com tanta vontade que dois carcereiros vieram correndo e abriram a porta com violência, apavorados, pensando que alguém estivesse enlouquecendo.

— Como é que é, hein? — berrou Kurowski. — Só dois baldes para dezesseis homens cagarem?! Rapazinhos, laquearemos suas paredes se não aparecerem mais baldes, e depressinha!

Isso durou uma semana. Toda vez que soavam os berros de vovô Jochen na cela 23, os carcereiros encolhiam a cabeça nos ombros e fingiam-se de surdos.

De repente, o gigante selvagem da Prússia Oriental silenciou, mas em compensação havia trinta punhos martelando a porta e as paredes e quinze gargantas gritando em coro:

— Um médico! Um médico! Enfermeeeeiro!

Quietinho, sem um pio, Kurowski desabara sobre seu catre. Busko começou a chorar como uma criancinha, sacudiu-o, levantou as pálpebras do velho, viu os globos oculares revirados e caiu de joelhos diante do catre.

— Vovô! — exclamou. — Vovô, não faça bobagens! Vovô! Pare de fazer drama...

Quando o médico militar britânico chegou, Joachim Kurowski estava morto. Não sentira nada, o médico tentou explicar: alguma veiazinha do cérebro estourara. Acabou.

— Ele morreu de tanto berrar — disse Franz Busko. — Meu Deus, como sentiremos falta desse tom...

— Agora teremos de sair da toca — disse Paskoleit ao receber a triste notícia da boca do padre Heydicke. — Não podemos permitir que enterrem vovô como um morto sem nome. Pouco importa o que virá depois... eu vou buscá-lo! Direi que o avô sempre foi disso. Desaparecia de repente... já estávamos acostumados...

As autoridades britânicas, distantes de qualquer burocracia e observando admiradas a lenta recuperação da administração alemã que, bem lubrificada, voltava passo a passo a sua eficiência prussiana, não estavam interessadas em ficar com o velho morto nem em enterrá-lo. Quando Paskoleit se apresentou como cunhado da família Kurowski e mostrou a carteira de identidade com o retrato do avô Jochen, solicitando o corpo para um belo funeral cristão, entregaram-lhe o avô enrolado numa velha lona de acampamento militar.

No banco de trás do Opel P4, Paskoleit e Felix Baum levaram o velho Kurowski para casa. Fizeram o velório na oficina nova; quatro pneus foram trocados por um caixão, o padre Heydicke encomendou o corpo, e Joachim Kurowski foi enterrado no Cemitério Luebeck-Sul. Com isso ele foi integrado na administração alemã, recebendo um número e uma cova calculada centímetro por centímetro quadrado. Paskoleit talhou uma bonita cruz de madeira com o brasão de Adamsverdruss. Esta deu origem ao primeiro atrito com a direção alemã do cemitério, que era de opinião que um brasão não ficava bem num túmulo, nem mesmo junto de uma cruz.

— Quem tocar na cruz terá o crânio martelado com cem tachinhas de sapateiro! — berrou Paskoleit. — Está claro?

Os sobreviventes de Adamsverdruss que rodeavam o túmulo sorriram intimamente, apesar do dia sombrio: o avô Jochen já tinha um substituto. O tom de Adamsverdruss não estava em extinção.

 

Quem trabalha catorze horas por dia e tira da lama, além dele próprio, também uma mulher e três crianças, esquece como pode correr o tempo.

Júlia Rambsen abandonara Luebeck com seu garanhão, Verão Dourado. Tivera notícias de um fazendeiro de Borghorst, na Vestfália, com quem os Rambsen já haviam tido contato antigamente e que costumava comprar cavalos trakehner deles. Agora mandara buscar Júlia, oferecendo-lhe estrebaria e pasto para Verão Dourado. De Gottfried Rambsen nunca mais se ouvira falar, tampouco de Ewald Kurowski; tinham sido queimados no grande caldeirão da guerra sem sobrar nada, nem mesmo um punhado de cinzas.

Felix Baum — ‘‘Deus é mesmo um homem bom!’’, dissera Paskoleit —, apesar de seu passado, conseguiu um emprego de mensageiro numa repartição em Ratzeburg e despediu-se com lágrimas nos olhos.

Franz Busko, solto seis meses antes por boa conduta, recuperou a memória e surgiu, de repente, na oficina. Tirou seu avental de couro do gancho, sentou-se no banquinho e disse a Paskoleit:

— Mestre, pode tornar a deixar os saltos por minha conta...

O padre Heydicke ganhou uma paróquia em Kiel; outras quatro famílias da aldeia saíram, em trens superlotados, aos quatro ventos a fim de se juntar a parentes redescobertos.

— Assim explode Adamsverdruss — disse Paskoleit a Heydicke, o último a se despedir. — Nunca mais conseguiremos juntá-la.

— E para quê? — Heydicke meneou, com vagar, a enorme cabeça. — Vai começar uma nova era, Paskoleit. Vamos criar raízes aqui, as crianças já se ambientaram, isso vai ser rápido. Adamsverdruss vai transformar-se em conto de fada, e com mais duas gerações ninguém mais ouvirá falar nela.

— Menos os Kurowski, senhor padre!

— Nem mesmo os Kurowski, Paskoleit. Espere... Quando Ludwig, Peter e Inge tiverem nossa idade, a Prússia Oriental será um ponto no mapa, mas não mais a pátria pela qual se é capaz de dar o sangue.

— Isso é impossível de imaginar, senhor padre.

— É a evolução natural das coisas, Paskoleit. Nós perdemos a guerra, e a perdemos de tal modo que também o velho sentimento alemão de revanche deveria estar definitivamente eliminado.

Paskoleit não tinha tempo para meditar sobre estas palavras. Ludwig freqüentava, agora, o ginásio, aprendendo latim e matemática; Peter ingressara na escola e escrevia as primeiras letras, a pequena Inge brincava num jardim de infância que acabara de ser construído e recebia diariamente, para o almoço, uma grossa sopa de leite com passas fornecida por uma organização beneficente inglesa. A vida normalizava-se, se é que podia ser chamado de normal Paskoleit e Busko ficarem trabalhando na oficina do romper da aurora ao anoitecer e Ema Kurowski sair para voltar com dois cestos de sapatos e depois levar os calçados consertados para os clientes. Mas quem, naquela época, se preocupava com as horas? Quem podia se dar ao luxo de ficar cansado? Quem pensava em férias? Se, naquele momento, chegasse alguém dizendo: “Sou do sindicato. Vocês não podem trabalhar mais do que quarenta horas!”, teria levado tantos pontapés na bunda que acabaria cantando a Internacional em chinês. Quem ousava reivindicar alguma coisa fazendo greve? Todos estavam, de algum modo, afundados na lama, comendo poeira. Havia o front, os bombardeiros noturnos e a fuga ainda entranhados, e davam graças a Deus por estarem vivos.

Verão de 1947. Meio quilo de manteiga custava trezentos e cinqüenta Reichsmark; meio quilo de café, quatrocentos e cinqüenta marcos. Quem ainda possuía sabonete de antes da guerra (existia isso) — porque agora as pessoas se lavavam com sabão de argila ou com uma coisa esponjosa tão leve que boiava na água — era rodeado e bajulado. Exércitos inteiros saíam das cidades para o campo, sitiando fazendas, trocando tapetes por queijo, pianos por toucinho, máquinas de escrever por batatas, sabão em pó por beterrabas, panelas feitas de capacetes de aço por um repolho. Um cigarro inglês ou americano custava seis marcos — os que podiam fumar um por dia pertenciam à elite. Começavam as famosas transações de trocas; não havia nada na Alemanha que não passasse de mão em mão... Se alguém precisava de uma tábua, começava por uma cafeteira trocada por um pacote de pregos. Os pregos transformavam-se numa passadeira para o quarto, a passadeira numa leiteira amassada, a leiteira (nela podia-se preparar mistela para destilação clandestina) transformava-se em três garrafas de uísque de centeio chamado Habra, finalmente as três garrafas de centeio produziam a tão desejada tábua com dobradiças e tudo, e já se podia fazer uma porta!

Da região do Ruhr saíam, à noite, compridos trens de carvão para a Bélgica e para a França. Noite após noite eles passavam, enquanto no impiedoso inverno de 1946-47 as pessoas tremiam junto às lareiras frias. De repente começaram a surgir no meio da noite longas filas de salteadores nas barreiras, que penetravam nos trens de carvão, jogavam os pedaços negros para os outros, que os apanhavam e acondicionavam em sacos. Em Colônia, o cardeal Frings declarou que não se tratava de roubo e que Deus estava com os homens que lutavam por sua vida. Daí em diante ninguém mais dizia “vou roubar carvão”, mas sim “vou fringsar”.

A guerra terminara, mas a paz era terrível. Dia a dia o dinheiro perdia seu valor; as pessoas estavam ali com as mãos cheias de Reichsmark e mastigavam seus cem gramas de pão de milho que ou se esfarelava na boca ou era tão grudento que ficava preso nos dentes.

Naquele verão de 1947 Julius Paskoleit disse a Erna Kurowski: — Sempre dizem que nós, os sapateiros, somos uns azarados! Agora veja só onde estão os cultos, os instruídos! Estão batendo pedras na estrada... mas nós estamos nos expandindo como massa de pão. Erna... mais um ano e podemos comprar uma casa nova!

A firma Sapateiro Ewald Kurowski, na periferia de Luebeck, transformara-se num próspero empreendimento. Havia, agora, mais dois aprendizes trabalhando na oficina ampliada; Paskoleit podia dar-se ao luxo de comparecer uma vez por mês na Secretaria de Finanças para exigir cupons para a aquisição de couro, pregos, borracha, fivelas e linha, assustando com seus berros os funcionários novamente enterrados em seus arquivos:

— O que significa apertar o cinto? Eu sei que vocês ficam aí chocando seus cupons! Céus, que merda, nas próximas eleições serei nomeado chefe da Câmara Municipal... Sabem o que quer dizer isso? Um Paskoleit chefe da Câmara Municipal? Não sabem. Nunca estiveram numa tempestade de outono na Prússia Oriental...

No fim de agosto de 1947, Paskoleit colocou uma garrafa de vinho na mesa e sentou-se diante de Erna Kurowski, Ludwig, Peter, a pequena Inge e Franz Busko. Pegou um jornal e abriu-o, na página dos classificados.

— Antes de abrirmos a garrafa — disse —, ouçam. Passamos dois longos anos sem tomar café, só chá de hortelã plantada e secada por nós mesmos. Não fumamos e quase não gastamos banha. Você, Erna, aproveitou toda a gordura, guardou o café e juntou os cigarros. Trabalhamos duro de manhã até tarde da noite, e cada um de nós só parava quando não se agüentava mais de pé. Se o avô Jochen ainda estivesse conosco, estaria berrando: “É isto!” Outros devoram uma fortuna, nós construímos uma. Querida família, temos uma fortuna.

Mostrou o jornal e ergueu-o bem alto para que todos pudessem ver o anúncio marcado em vermelho.

— Aqui estava escrito há três semanas: “Vende-se, a especialista, uma loja de sapatos que foi próspera mas agora está parcialmente destruída, em Leverkusen. Preço a combinar”. Escrevi sem consultar vocês, negociei... A partir de 1.° de outubro seremos proprietários de uma loja de sapatos com oficina em Leverkusen! O que me dizem?

Erna Kurowski olhava fixamente para Paskoleit. Parecia não compreender o que estava sendo dito ali. Mas logo perguntou:

— Quanto custa?

— Cinco pacotes de meio quilo de café, cinco quilos de banha, dois mil cigarros e dez mil marcos...

— Toda a nossa fortuna, Julius

— Tudo!

Paskoleit deixou o jornal espalhar-se pelo chão.

— Para uma loja, Erna! Um negócio de verdade com grandes vitrines e uma loja e uma oficina com o dobro do tamanho, nos fundos, como aqui. Em Leverkusen...

— Onde fica Leverkusen, Julius?

— A margem do Reno, entre Colônia e Duesseldorf. É um lugar de futuro, Erna. Tem indústria, tem a Bayer, o Reno, nas costas está a região do Ruhr. Tive coragem, Erna...

— Tudo o que possuímos! E, se não der certo, Julius? — Abraçou as crianças que tinham se achegado umas às outras. —

Se Ewald voltar...

— Ele poderá viver tão bem em Leverkusen como em Luebeck. — Paskoleit pegou a garrafa de vinho e tirou a rolha. — Erna, façamos um brinde. Sobrevivemos ao treck, conseguimos sair da lama... sempre tivemos coragem de tentar. Qual é nosso lema?

— Não nos deixaremos abater! — exclamaram as crianças

Paskoleit concordou com a cabeça.

— Aí está, Erna, é o futuro que nos chama! Por ele galgaremos a escada Droga, Franz... você está sentado aí como um camelo. O que me diz?

E Franz Busko disse, compenetrado:

— Você e o mestre! Para mim é a mesma coisa pregar tachinhas nas solas em Leverkusen!

— Então está bem. — Paskoleit riu, inclinou-se sobre a mesa e beijou Erna na testa. — Ria também, Erna... Invadiremos Le­verkusen com duas mil solas de borracha feitas com os pneus do vovô. Com tal exército conquistarei nosso futuro!

Tinha início a ascensão dos Kurowski, que nada poderia deter.

 

A “loja de sapatos parcialmente destruída’’, no melhor ponto de Leverkusen, revelou-se como um monte de ruínas. Verdade que a casa ainda estava de pé; ou melhor, podia-se deduzir, pelas paredes externas, que fora uma casa bela e imponente, mas da existência de uma loja testemunhavam apenas as molduras vazias das vitrines e, atrás delas, a sala, bastante espaçosa, cheia de entulho. Só era verdade ‘‘ o melhor ponto...” Ficava perto da estação ferroviária, também destruída, bem no que se poderia chamar de centro da cidade, numa rua pela qual todos passavam, de certa maneira a porta de Leverkusen, mas que agora não passava de um caminho aberto entre ruínas e montes de entulho.

A família Kurowski perdeu a fala ao contemplar sua nova propriedade, com malas e caixas de papelão a seu lado na calçada, sacolas e um cesto de vime que Franz Busko carregara nas costas como uma mochila. As duas mil solas de borracha, os móveis da oficina de sapateiro, as velhas máquinas, toda a mobília e os utensílios da casa reformada de Luebeck seguiam num vagão de carga do norte para o sudeste. Também aqui foi um quilo de manteiga e meio quilo de café que fizeram com que a mudança fosse despachada logo e o vagão fosse atrelado aos próximos trens para a Renânia.

— Mas que bosta — disse Busko com o olhar fixo sobre as ruínas. —Já sabia disso, mestre?

— Já desconfiava, Franz. — Paskoleit colocou o braço no ombro de Erna Kurowski. — Agora não comece a chorar, irmãzinha... Cuspir nas mãos é mais importante. Para isso você precisará de toda umidade, não para gastá-la em lágrimas... O que acha que vovô diria se ainda estivesse entre nós?

— Seu idiota, é o que ele diria!

Erna Kurowski sorriu em meio às lágrimas.

— E logo ia berrar: mãos à obra, rapazinhos! Dentro de três semanas pregaremos as primeiras solas!

— Por mim...

Franz Busko sentou-se numa das malas mais pesadas carregadas da estação até a nova casa. O antigo proprietário ainda não aparecera, embora tivesse escrito que estaria lá para receber a família Kurowski. Parecia sentir que, naqueles primeiros minutos em sua nova terra, Julius Paskoleit teria pago a última prestação do contrato de compra com os punhos. “Vou deixar que eles se acostumem”, pensou. “Estão vindo de um campo de refugiados e de uma barraca, precisam habituar-se primeiro ao ambiente metropolitano. Se forem quem Paskoleit disse que são, dentro de alguns anos terão aqui uma mina de ouro.”

Alguns anos... Meu Deus, para agüentá-los seria preciso ter costas de concreto!

— Então vamos — disse Paskoleit com sua voz rude, esfregando as mãos. — Estamos aqui, a casa é nossa, tenho o contrato de compra no bolso. — Colocou a mão direita sobre o paletó em cujo bolso interno estalava o documento: Julius compra a casa da Nordstrasse, 34, com todos os pertences e objetos descritos. O sol brilha, o verão é a melhor época para arregaçar as mangas... então vamos lá!

— E onde dormiremos? — perguntou Erna.

— Toda casa tem um porão, minha irmã.

— Se não foi afundado pelas bombas...

— Isto veremos! Começaremos como gente normal... de baixo para cima! Franz!

— Mestre?

— Ao porão!

Afinal constataram que nem tudo era tão desanimador como parecia, visto do lado de fora. O porão estava intacto, era onde o proprietário tinha morado até dois dias atrás. Havia água e esgoto, luz elétrica e uma privada, paredes emassadas e até um aposento com papel de parede de florzinha... a sala de estar.

— E então? — disse Paskoleit após visitar o porão com Erna e as crianças, como se penetrassem num palácio. E divagou, reticente: — Água e luz... Com isso construiu-se a civilização. Nem um Paskoleit precisa de mais do que isso. Em poucas semanas... até a chegada do inverno, com certeza, estaremos novamente fora do buraco. Está com medo, Erna?

Erna Kurowski estava sentada na sala de estar, em cima das malas, as crianças a sua volta, como uma galinha com seus pintinhos. Era capaz de chorar, de gritar, quando pensava na bela pérgola de Luebeck, no jardim cheio de flores, nos amigos que arranjara, na proximidade do mar e na sensação de segurança. Fora-se tudo, vendido por um monte de ruínas, trocado por um porão espaçoso, porém sufocante — quando o vento soprava do lado da fábrica de tintas Bayer, já reativada, trazia consigo uma nuvem invisível fedendo a remédio.

— Não tenho medo, Julius — disse corajosamente e voltou a sorrir, embora lhe escorressem grossas lágrimas dos olhos. — Só que... é tudo tão estranho...

— Temos de nos adaptar ao que é estranho, Erna.

Paskoleit tirou o paletó e enrolou as mangas da camisa. Tinha braços fortes e musculosos e um tórax largo... uma árvore prussiana que nenhuma tempestade é capaz de derrubar.

— Para Adamsverdruss não voltaremos nunca mais.

— Tem certeza?

— Eu tenho certeza! A guerra está perdida... o perdedor tem de pagar. É natural. Pagamos com a Prússia Oriental e a Silésia, podem gritar quanto quiserem sobre direito pátrio e sobre volta. Droga, vai demorar muito até que entendam, mas eu acho que Ludwig, Peter e Inge irão compreender isso quando crescerem. Para os filhos deles a Prússia Oriental não passará de um pontinho no mapa. A política é um processo de gerações... deixaremos que nos vença? Nunca, não um Paskoleit. Começaremos a conquistar o mundo novo!

— Deveria ingressar na política, mestre — disse Franz Busko, impressionado — Falar o senhor sabe...

— Eu sou sapateiro!

Paskoleit bateu palmas.

— Isso é mais do que político, Franz. O que é um político descalço? O que pensarão dele prometendo mundos e fundos, de pé no chão?... Vamos, para a rua!

A família Kurowski começou a reconstruir a casa da Nordstrasse, 34.

 

Mesmo na Alemanha destruída de 1947 tudo já voltara à mais perfeita ordem burocrática. Havia, realmente, um monte de gente indo para o campo, pegando carona nos estribos dos trens, em caminhões, nos vagões de carga, em automóveis movidos a gasogênio e em bicicletas, até a Baviera, onde invadiam as fazendas mais afastadas como nuvens de gafanhotos, apenas para trocar um quilo de batatas, um pedaço de toucinho, um vidro de banha ou um pouco de manteiga. Tribunais para pequenas causas passavam horas julgando mulheres e homens macilentos, presos em flagrante ao furtar repolhos, alfaces e nabos dos campos. Sentenciavam-nos a multas em dinheiro ou a alguns dias de prisão, até que as cadeias arrebentavam de cheias e tinha-se de esperar dois anos para poder cumprir a pena. Apesar de uma corrida constante atrás da sociedade, a única preocupação importante dos alemães naquele ano, aliada ao medo do inverno que se aproximava, as autoridades funcionavam com uma precisão que chegava a ser pérfida.

Paskoleit teve trabalho durante catorze dias até conseguir registrar seu negócio em Leverkusen. Informou seu ofício, a mudança, a compra da casa, a instalação de uma oficina com loja; enfrentou filas nos guichês das repartições e requisitou vidraças, couro, pregos, tachinhas, linhas, tintas, piche, cola e tecido para seu trabalho; discutiu com os funcionários que achavam que conceder uma licença para uma firma não era tão importante como a distribuição de mercadorias racionadas; aí soube que, na administração regional, o inspetor geral era um velho conhecido de Passenheim, e conseguiu chegar até ele.

— Paskoleit! — disse o inspetor geral. — Não, rapaz, nem acredito! Em Leverkusen! Venha, tome uma aguardente. Fabricação caseira! Afinal, o que aconteceu com Adamsverdruss?

Naquela época a sorte sorria a quem tivesse um primo — ou mesmo só um velho conhecido com um coração de ouro — no lugar certo. Paskoleit deixou o inspetor geral de Passenheim cheio de promessas de que a casa e a loja teriam o apoio da administração municipal.

E vejam só... agora tudo funcionava. Até o fim de outubro terminaram a construção do primeiro andar e, após forrar o teto com feltro, estavam prontos para a chegada do inverno. As vitrines estavam prontas, a loja caiada, a oficina arrumada e, atrás dela, uma pequena construção para servir de moradia.

— Você tem até um jardim — disse Paskoleit a Erna Kurowski. — Verdade que só tem quatro metros por cinco... mas para plantar salsa e alho-poró é o suficiente.

Era um jardim triste, imprensado entre a construção e o muro alto e rachado da casa da rua paralela; um pedacinho de terra cheio de entulho, sobre o qual pairava, como uma janela quadrada, o céu azul. Ludwig, agora com doze anos, e Peter, com sete, juntavam as pedras e revolviam a terra, enquanto Inge, com apenas quatro anos, arrumava uma caixa de areia num caminho encostado à parede da casa, para brincar. Erna Kurowski enterrava barras de ferro, mais tarde laqueadas de branco por Franz Busko, para o varal de secar roupas. A principal preocupação de uma dona-de-casa.

No dia 9 de novembro...

— Que dia mais besta! — disse Paskoleit. — Mas não tem outro jeito, isso não tem nada a ver com a marcha sobre a Feldherrnhalle...

Realizou-se a inauguração da loja e da oficina. Sobre a porta da loja não se lia mais Sapateiro Ewald Kurowski, mas uma grande placa, larga, de fundo azul, anunciava em letras amarelas luminosas: WESTSCHUH.

Paskoleit explicou:

— Na Renânia, Kurowski é um nome que não atrai. É preciso usar de psicologia, Erna. Westschuh, o sapato do oeste... isto os atinge no coração! E parte deles. A vida é assim ... Nós tínhamos orgulho de sermos prussianos orientais, temos orgulho até hoje, Erna! E estes aqui orgulham-se de serem da Renânia. Alemães somos todos, então que mal há em que nos integremos? Que acha de Westschuh?

— Acho bom, Julius — disse Erna Kurowski sem tirar os olhos da grande placa sobre a entrada da loja. As vitrines ainda estavam vazias.

— Mas quando Ewald voltar...

— Ewald pensa como eu, fique certa disso. — Paskoleit, satisfeito, colocou as mãos nos bolsos das calças. — A firma Westschuh é uma sociedade limitada... Ewald, você, as crianças, eu e Franz somos sócios. E amanhã vou fazer uma viagem a Pirmasens.

— O que pretende fazer lá? — perguntou Erna, confusa.

— Em Pirmasens mora Heinrich Ellerkrug.

— E quem é ele?

— Heinrich possuía uma pequena fábrica de sapatos em Koenigsberg. Seu cunhado, Fritz Kaemper, é o dono da Kaemper-Schuhwerke em Pirmasens. E, no jornalzinho especializado em artigos de couro, eu li que Heinrich Ellerkrug é, agora, gerente da Kaemper. Desconfia de algo, Erna?

— Sim, Julius. E você acha...

— Garota, eu sei! Um piolho é inofensivo comparado a Julius Paskoleit. Vou me infiltrar na Kaemper-Werke...

No dia 10 de novembro Paskoleit, levado à estação por toda a família, viajou para Pirmasens. Franz Busko ficou tomando conta da loja... Para vender, só havia as sandálias comuns com sola grossa de madeira... mas no depósito possuíam duas mil solas feitas dos pneus roubados pelo avô, um capital que agora rendia altos juros. Em três dias Busko aceitara setenta e nove serviços de conserto... Trabalhava das cinco da manhã até uma hora da manhã seguinte, dormindo apenas quatro horas. A seu lado, sentada no banquinho, Erna alisava as beiradas das solas com lixa de papel.

Paskoleit passou dez dias em Pirmasens e Erna Kurowski morria de medo que lhe tivesse acontecido algo. Os jornais descreviam assaltos e assassinatos, às vezes por nada mais que meio quilo de toucinho. Formavam-se verdadeiras quadrilhas.

A guerra estava acabada... voltava-se aos tempos normais.

 

No décimo primeiro dia após sua partida para Pirmasens, de repente lá estava Paskoleit na loja, como se fosse um freguês. Erna abriu um largo sorriso quando veio andando lá dos fundos e disse, como de costume, sem olhar:

— Pois não, o que deseja?

Aí estacou e ficou olhando para o irmão.

— Sopa de ervilhas com toucinho para dois! — disse alegremente Paskoleit. — Erna, trouxe-o comigo. Ele quer ver se somos uma boa firma!

— Quem, meu Deus?

— Heinrich Ellerkrug!

À porta da loja encontrava-se um homem alto, esbelto, cabelo preto crespo, acinzentado nas têmporas, elegante, quase aristocrático — o avó Jochen diria “um verdadeiro senhor” —, que acenou para Erna com as luvas de couro claras que segurava na mão direita. Toda a sua aparência emanava satisfação e sucesso, saciedade e despreocupação... pequenos milagres naquele tempo.

Erna Kurowski não soube explicar, mas, ao ver Heinrich Ellerkrug ali na porta da loja, sentiu-se confusa, o coração bateu mais forte e teve de lutar para não ficar vermelha.

— Isto... Isto é ótimo... — gaguejou. —Já estávamos pensando que Julius tinha desaparecido... como meu marido!

As últimas palavras foram ditas com a intenção de armar-se de alguma força interior, de erguer um muro entre ela e o elegante Ellerkrug. Lutou contra, mas pouco adiantou... O olhar radiante atingiu-a como um raio, sentiu-o penetrar, disse a si mesma como para se defender: “Ewald! Ewald! Ewald!” E, contra toda a sua força de vontade, o rubor lhe subiu às faces.

— Quando o Heinrich se convencer de que a Westschuh é uma loja sólida e que os sapatos Kaemper não são chiques demais para ela, então ele vai ser nosso fornecedor. Erna, sabe o que isso significa? Teremos a loja de sapatos mais moderna de Leverkusen!

Voltou-se para Ellerkrug e, num movimento, abarcou tudo com a mão.

— Como é, Heinrich? Ainda em fase de construção, mas você conhece o Paskoleit! Melhor ponto da cidade! E com uma chefe assim...

— Só isso já é capaz de me convencer.

Ellerkrug aproximou-se, tomou a mão de Erna e beijou-a. Era a primeira vez que beijavam sua mão... Ficou parada, durinha como uma estátua de pedra, e nem percebeu que sua mão continuava na de Ellerkrug.

— Juntos, sra. Kurowski, faremos desta loja uma jóia. E quando acabar essa história de racionamento e cupons... um dia termina, eu garanto... todos verão para que lado sopra o vento!

— Heinrich dirige um Mercedes — disse Paskoleit enquanto Erna continuava calada —, e ele consegue toda a gasolina de que precisa do governo militar francês. E que organização eles têm lá em Pirmasens... uma doçura. Bem, agora vá fazer uma sopa de ervilhas! Você continua gostando de sopa de ervilhas como antigamente, não, Heinrich?

— Continuo.

Ellerkrug pousou o olhar no fundo dos olhos azuis e irrequietos de Erna. “Como é bonita”, pensou. “Seu cabelo é luminoso como trigo maduro. Trinta e um anos, disse Paskoleit, e tem três filhos. Não parece. E miúda e acanhada como uma mocinha. E com tudo isso sabe dar duro como um trabalhador do campo da Prússia Oriental. Maldição, é realmente uma sorte possuir uma mulher assim...”

Heinrich Ellerkrug permaneceu oito dias com os Kurowski. Fez o que os homens inteligentes sempre fazem quando desejam conquistar as mães — uma ponte sobre as crianças a fim de chegar mais perro de Erna. Comprava-lhes chocolate no mercado negro, trazia manteiga e grandes porções de carne (dinheiro não era problema para ele); brincava com Inge na caixa de areia, ajudava Erna a estender a roupa e dava aulas de latim e matemática a Ludwig, que estava freqüentando o ginásio.

— Homenzinho nojento, mestre — disse, na oficina, Franz Busko a Paskoleit. — Fica cercando a mestra como uma raposa perseguindo um ganso.

— Ellerkrug é nosso futuro, Franz!

— E quando Ewald retornar?

— Ele não volta, Franz. — Paskoleit olhava fixo para seu local de trabalho. Era difícil dizer aquilo. — Ewald foi devorado pela Rússia. Temos de nos conformar. Mas Heinrich Ellerkrug está aqui... não podia acontecer-nos nada melhor...

Num sábado pela manhã — Erna limpava a loja — Ellerkrug, encostado no balcão após ter esvaziado quatro baldes de água suja e buscado água limpa, disse:

— Erna, estou com quarenta e cinco anos de idade. Minha mulher morreu num bombardeio aéreo em 1944, em Koenigsberg. Não tenho filhos, Mas tenho uma situação segura e logo serei sócio da fábrica de sapatos Kaemper. Gostaria de dizer-lhe, Erna...

— Não! — disse Erna Kurowski. Olhou para cima, esfregando com força, cheia de desespero, o piso à frente do balcão. — Por favor, não. Esperarei por Ewald... Um dia ele voltará.

— E se não voltar? Quer desperdiçar esta vida jovem, maravilhosa? Erna... não somos mais umas crianças tolas. Conhecemos a vida e já estivemos no inferno. Agora temos o direito a um pedacinho de céu. Erna...

Ergueu-a do chão, envolveu-a com os braços e beijou-a. Ela não se defendeu, apenas manteve-se rígida. Ao mesmo tempo sentia lá no fundo: “Meu Deus, como esperei por este beijo. Peço-lhe perdão, meu Deus...”

Depois afastou-se de Ellerkrug e meneou a cabeça.

— Não — disse baixinho —, não! Heinrich... é... ainda é muito cedo. Dê-me um tempo... mais um ano. Só mais um ano.

 

No dia seguinte Heinrich Ellerkrug voltou a Pirmasens. Erna, sozinha, levou-o até o trem... Paskoleit desculpou-se, alegando muito trabalho acumulado por Franz Busko, durante os dez dias em que estivera ausente, e além disso a campainha da loja tocava agora sem interrupção, já que a notícia correra por toda Leverkusen de que havia um novo sapateiro da Prússia Oriental, capaz de pregar solas em calçados velhos fazendo-os parecer novinhos. E, diziam, além de coisas para comer, o idiota aceitava dinheiro.

— Então, nada — disse Paskoleit após uma hora, quando Erna Kurowski voltou da estação. — Uma bobinha é o que você é, Erna!

— Amo o Ewald, Julius. E ele não está morto!

— Poderíamos fazer com que o declarassem morto.

— Nunca, Julius, jamais! De repente ele aparece... e eu me chamo Ellerkrug e posso me enforcar!

— Se ele ainda vivesse já teria dado sinal de vida. — Paskoleit passou a mão na testa molhada de suor. A seu lado amontoavam-se os sapatos para consertar. — Eu sei, eu sei... é seu pressentimento. Mas temos de ser realistas, Erna. Heinrich está aqui, isto é importante. Está apaixonado por você. Ele me disse. Foi atingido como por um raio. Já na porta, quando a viu. Esta ou nenhuma, foi o que pensou. E o que faz você? Banca a madona. Erna... é toda uma fábrica de sapatos, os calçados Kaemper, de luxo, relações comerciais com a Itália... Será o maior sucesso, diz o Heinrich, os italianos vão ditar a moda... Designer é como eles chamam... Vão revolucionar a moda dos sapatos e nós poderemos estar bem no meio disso tudo e só precisaremos estender os aventais como no conto de fadas em que chovia ouro do céu. E que idéias o Heinrich tem! Quer fundar uma cadeia de lojas. Westschuh em toda a Alemanha, como Tengelmann e Kaiser estão para o café; o senhor elegante, a senhora moderna usam Westschuh. Slogans desse tipo ele pretende lançar... e vai dar certo, posso afirmar, isso dá futuro... E você o manda embora, dá adeus na estação, é teimosa como uma mula.

— Então você já tinha tudo tramadinho? — perguntou Erna. — Deveria envergonhar-se, Julius. Tenho três filhos.

— Mas que não têm pai, diabos! O Heinrich gosta das crianças, e as crianças, nestes poucos dias, já se acostumaram ao Heinrich. Nisto não há nenhum empecilho. Não... Você tem de admitir que Ewald ficou jogado em algum lugar da Rússia. É isso aí.

— Sim, é isso. Quero esperar mais um ano, foi o que eu disse ao Ellerkrug.

— É a primeira coisa sensata. Um ano passa voando.

Paskoleit tornou a pegar no martelo de sapateiro. Na loja, Franz atendia os fregueses e dava graças a Deus por não estar na oficina naquele momento.

— Uma coisa eu garanto: Heinrich não vai desistir!

 

Uma semana mais tarde receberam a primeira remessa de calçados Kaemper. Paskoleit conseguira, através das vastas relações de Ellerkrug, uma quota especial. Logo que estavam arrumados nas vitrines — para dezembro de 194.7 eram criações verdadeiramente sensacionais em couro, tecido e borracha —, as pessoas acotovelavam-se diante das duas vitrines da Westschuh. Paskoleit deu uma entrevista ao repórter do jornal local publicado sob licença dos ingleses, sobre a transformação da moda de calçados, passando do útil ao belo, passando a vender — naturalmente só por cupons — esses artigos de sonho pelo preço normal.

Para um número exato de trezentas e quarenta e oito famílias, o Natal de 1947 foi uma festa muito especial.

Não, porém, para Paskoleit. Quatro dias após a apresentação da coleção Kaemper e a notícia de que Paskoleit vendia os sapatos ao preço normal, apareceram dois senhores de olhar sisudo. Apresentaram-se como Huebner e Runzenmann, o que não significava nada para Paskoleit, mas ele ficou mais animado quando eles disseram:

— Somos colegas seus. Temos uma loja de sapatos na Rheinstrasse e no Herwarthweg.

— Ah — respondeu Paskoleit. — O que posso oferecer-lhes, queridos colegas?

— O senhor tem um senso de humor bastante tolo — disse Runzenmann, com rispidez. — O que é isso? Sapatos pelo preço normal?! Estes sapatos? Está maluco?

— Como? As pessoas têm cupons... portanto têm direito a adquirir sapatos.

— O senhor pode, mesmo, ser tão bobo? — Huebner estava encostado no balcão. — Agora as pessoas invadem nossas lojas querendo estes mesmos sapatos! Não aquelas sandálias tipo tamanco, mas sim modelos elegantes! O que a Westschuh pode, dizem, vocês também devem poder.

— E os senhores não podem? — perguntou Paskoleit.

— É lógico que temos sapatos de boa qualidade! — bufou Runzenmann.

— Pois então?

— Mas estão estocados. O senhor entende? Estão escondidos, para falar bem claro. Até o dia em que o marco voltar a valer alguma coisa! Aí, sim, jogaremos a mercadoria na vitrine e só precisaremos estender a mão. Isto é valorizar o capital, entende? E aí vem o senhor para vender tais sapatos agora, por cupons, ao preço normal!

— Porque as pessoas têm esse direito!

— Realmente, ele é bobo mesmo — disse Runzenmann a Huebner, num tom amargo.

— Quer dizer que estão querendo me convencer a fazer o mesmo, estocar meus sapatos de qualidade, tirando-os de circulação? — disse Paskoleit com uma calma perigosa.

— Isto quer dizer que não permitiremos que um cigano como o senhor venha estragar nosso negócio e, principalmente, nossa reputação! — gritou Runzenmann, zangado. — Pode ser praxe na Prússia Oriental... mas aqui estamos na Renânia. Com métodos de mercador de gado judeu não irá muito longe por aqui, meu caro! Nós o impediremos.

Paskoleit não respondeu. Mas inclinou-se sobre o balcão, tomou impulso e acertou Runzenmann com o punho bem no meio do nariz. Runzenmann caiu nos braços de Huebner, olhou apavorado para Paskoleit e sacudiu-se como um cão molhado.

— Isso foi um erro — disse baixinho —, seu imbecil desgraçado! Acho que não preciso dizer que, a partir de amanhã, todos da nossa profissão estarão contra o senhor! Ainda o veremos partir com um carrinho de mão, tal como sua raça veio do leste...

— Mais uma palavra — disse Paskoleit com calma, colocando os grandes punhos sobre o balcão — e os senhores precisarão de um cirurgião plástico...

— Então é guerra!

Huebner empurrou Runzenmann, que já queria começar a berrar, para a porta da loja.

— Vai tê-la, Paskoleit! Até que compreenda que somos os mais fortes!

Depois de ouvir a porta da loja bater, Franz Busko saiu da oficina. Sua comprida cara de cavalo tremia. Tinha na mão uma longa sovela.

— Ouvi tudo, mestre — disse, arfando de indignação. — Agora tenho um motivo para fazê-lo.

— Fazer o quê?

— Entrar para o Partido!

— Franz, você num Partido? E qual deles?

— Posso escolher. Já fui procurado por todos eles. O que mais me agrada é o Liberale Fortschrittspartei. Comumente chamado de LFP. Tem gente decidida! E isso nós também somos!

Paskoleit ficou observando seu auxiliar. Havia algo de comovente, de paternal em seu olhar.

— Sua intenção é boa, Franz — disse devagar —, mas pense bem: o que fará na política? Você não sabe nada. E com seu pulmão...

— Desde que a guerra acabou, mestre, meu pulmão está novamente em forma! Era o clima do uniforme que me pesava.

— Para a política é preciso ter um pouco de miolo, Franz.

— Já houve idiotas maiores que eu que se tornaram figurões políticos. Mas o caso não é este: no Partido posso fazer amizades, amizades úteis para nós, mestre, amizades contra esses Runzenmann e Huebner. Isso é que é importante. Amanhã apresento-me.

Daquele dia em diante Paskoleit vendia aos fregueses os lindos sapatos Kaemper com maior amabilidade ainda. Quatro dias antes do Natal de 1947, quando a situação dos alemães era tão penosa que um repórter americano escreveu no New York Times: Mesmo um poeta não encontraria palavras para descrever o que se passa na Alemanha.,., Paskoleit recebeu uma remessa especial de cinqüenta pares de sapatos. Ellerkrug os enviara por via expressa.

Não só em Leverkusen, mas em todos os lugares, até Colônia e Duesseldorf, falava-se em Julius Paskoleit. Por outro lado Runzenmann — assim diziam — fora ameaçado de surra por fregueses exaltados.

— Tenho medo — disse Erna Kurowski um dia antes da véspera de Natal. — Eles não vão deixar as coisas assim. Dizem que é provocação. Farão alguma coisa.

— Deixe que venham — disse Paskoleit com obstinação. — Não me curvo diante do terrorismo, muito menos diante desses farrapos humanos que enganam os pequenos e ficam estocando e estocando...

Olhou as prateleiras vazias. A Westschuh esgotara seu estoque.

— Depois do Natal começaremos de verdade! O Ellerkrug está em negociações com a Itália. Os meninos lá do sul querem fornecer um vagão lotado de calçados. Sabe Deus quanto o Heinrich lhes ofereceu... Da remessa, quatrocentos pares são para nós! Os requerimentos já estão correndo na Secretaria de Finanças. O Heinrich está cuidando de tudo...

— Você sabe mentir mais depressa do que bater tachinhas nas solas — disse Erna, baixinho —, e mesmo que você enfeite o Heinrich com todo o ouro do mundo... não cederei. Essa coisa de Secretaria de Finanças é com você mesmo.

— E o Franz. — Paskoleit sorriu com satisfação. — Os caras do Liberale Fortschrittspartei já o elegeram para a direção. Agora tudo o que precisa fazer quando encontra uma porta fechada é soprar, e zás!, ela se abre! Nosso Franz! Tuberculoso safado! Em janeiro fará seu primeiro discurso pelo Partido!

— Céus, e ele sabe fazer isto?

— Ora, não se assuste, Erna.

Paskoleit tirou o cachimbo do bolso e acendeu-o. Dava uma impressão de força e segurança incrível.

— Vou escrever o discurso para ele, basta que leia. E isso ele sabe. Tenho um pressentimento de que Franz ainda vai fazer carreira na política. Saber ler fluentemente é um dos segredos de políticos bem-sucedidos.

Mas, ainda que Franz Busko pudesse pronunciar seu primeiro discurso, sucedeu uma coisa terrível: Inge, agora com seis anos, não voltou do Jardim de Infância das Irmãs Bem-Aventuradas do Sagrado Coração ao meio-dia de 10 de janeiro de 1948. Erna Kurowski esperou até as duas horas, então correu até a escola. Soube pela Irmã Sofia que Inge saíra pontualmente com sua lancheira. Já que a casa das irmãs só ficava a três quarteirões da loja de Paskoleit e como a menina era educada para ser independente, ninguém ia levá-la e buscá-la. Durante mais de meio ano tudo correra bem... até o dia 10 de janeiro de 1948.

Desesperada, sem saber o que fazer, Erna correu de volta à loja. Paskoleit, que finalmente conseguira um telefone cinco dias antes (o membro do Partido Franz Busko fizera uma insinuação discreta à direção dos Correios), ligou logo para o distrito policial, o hospital, o pronto-socorro. Sempre a mesma resposta: “Aqui não sabemos de nada. Não deu entrada nenhuma menina lourinha de seis anos.”

— Foi raptada... — balbuciou Erna. — Eu já estava com um pressentimento... Senti algo esquisito... Levaram a Inge. Nossa ascensão foi rápida demais e caiu muito na vista. Oh, meu Deus!

Soltou um grito agudo e penetrante, jogou os braços para cima e desmaiou.

Erna foi levada para o hospital em estado de choque profundo. Paskoleit, entretanto, telefonou para Pirmasens.

— Heinrich — disse, com a voz embargada. — Heinrich, venha logo! Erna precisa de você agora! Raptaram Inge.

E Ellerkrug gritou no telefone:

— Viajo imediatamente! Quando os raptores telefonarem pedindo o resgate, concorde com qualquer importância. Qualquer uma, ouviu? Eu me responsabilizo.

Paskoleit desligou. “Ewald”, pensou, “se realmente você ainda está vivo... agora não pode fazer nada. Que Deus nos amaldiçoe ou nos proteja... Heinrich ajudará a recuperarmos Inge, e isso Erna não esquecerá nunca. Mas você morreu, Ewald, e com isso todos os problemas, na verdade, terminaram.”

Paskoleit levantou-se. De repente, colocou a mão no coração e estancou o passo. Sentiu umas pontadas lá no fundo do peito. Não era dor, só uma coisinha leve, como um choque elétrico, mas ao mesmo tempo era como se estivesse sendo espetado por agulhinhas finas.

Respirou fundo algumas vezes, seu largo tórax avolumou-se, a sensação esquisita desapareceu e foi esquecida por Paskoleit.

 

Ellerkrug devia ter viajado sem parar. Já na manhã seguinte estava em Leverkusen.

A polícia acabara de sair após fazer as perguntas de praxe sobre o tipo físico de Inge, o que vestia, sinais característicos, se Paskoleit suspeitava de alguém... perguntas que se perdiam no espaço. Um motorneiro de bonde vira Inge por último: estava parada diante da loja de brinquedos dos irmãos Wattzke contemplando uma boneca de pano. A loja dos irmãos Wattzke ficava na próxima transversal, quase visível da loja de sapatos de Paskoleit.

Ao meio-dia tocou o telefone. Paskoleit atendeu e ouviu uma voz evidentemente disfarçada:

— Amanhã, vinte e uma horas com cem mil marcos. Local a ser informado.

Antes que Paskoleit pudesse responder ou perguntar qualquer coisa, o homem desligou.

— Cem mil! — disse Paskoleit, pálido, a Ellerkrug. — Erna tem razão, sim. Subimos tanto que agora vale a pena atacar-nos! Heinrich, não há nada mais baixo do que o homem! Aí está a Alemanha, despedaçada como um velho vaso de plantas, mas o desgraçado do fungo já está aí, crescendo e proliferando. Não existe nada capaz de extinguir a raça dos vigaristas, nem mesmo uma guerra.

Paskoleit e Ellerkrug esperaram sete dias por uma notícia dos raptores. Todo dia visitavam Erna no hospital e, quando ela os olhava sem dizer nada, Paskoleit já balançava a cabeça na porta e também ficava calado.

— Ela volta — dizia Ellerkrug, e passava horas segurando as mãozinhas pálidas e frias de Erna. — A criança não lhes serve para nada... Estão interessados é nos cem mil marcos. E estes estão prontinhos. A polícia também não saberá de nada... até recuperarmos Inge.

A espera massacrava os nervos de Paskoleit, embora bancasse o forte. Aquelas pontadas no coração voltavam, vez ou outra, mas quando respirava fundo sempre passavam. Torturado pelo passar do tempo, não saía de perto do telefone, até dormia ao lado do aparelho.

Franz Busko, por outro lado, era todo atividade. Seu primeiro discurso partidário foi um grande sucesso. Leu com grande entusiasmo o que Paskoleit escrevera e, em seguida — num momento propício —, e no melhor estilo da Prússia Oriental, fez um discurso fulminante contra o banditismo. Pediu a pena de morte para raptores — como na América —, o que lhe valeu delirantes aplausos. Depois prosseguiu na leitura do manuscrito bem elaborado de Paskoleit e no final recebeu as felicitações de toda a direção do Partido. Não restavam dúvidas: Franz Busko era um político nato. Só lhe faltava um pouco de polimento: precisava aprender a empregar corretamente o “me” e o ‘‘mim”. Mas isto nunca chegou a arruinar uma grande carreira política!

Finalmente, no oitavo dia após o desaparecimento de Inge, o chantagista tornou a telefonar. Com a maior brevidade possível, para evitar uma eventual localização, ele disse:

— Cem mil, hoje às vinte e três horas, auto-estrada Colônia—Frankfurt, parada Koenigsforst. Entrar com luzes apagadas, jogar dinheiro pela janela. Inge estará na saída da parada, amarrada a uma árvore. Fim.

— Cachorrão — gaguejou Paskoleit. — Que grande porco. Amarrada a uma árvore, uma criança... Nem podemos contar isto a Erna...

— Pelo amor de Deus, não!

Ellerkrug passou a mão pelos olhos.

— Amanhã cedo levaremos Inge ao hospital. Vamos, podemos começar a contar. Cem mil marcos são um bocado de papel...

Às vinte e duas horas e trinta minutos Ellerkrug e Paskoleit embicaram, com o Mercedes de Ellerkrug, na auto-estrada Colônia—Frankfurt. No banco de trás estava a mala com o dinheiro. Era uma noite escura e fria. O céu pesava sobre a Terra.

Começou a nevar.

Ellerkrug dirigia devagar e com cuidado, mas também foi ficando cada vez mais nervoso à medida que se aproximavam de Koenigsforst.

Às vinte e três horas em ponto chegaram à parada e saíram da estrada.

 

Foram os únicos a entrar na parada; Ellerkrug e Paskoleit permaneceram com o olhar fixo, através da janela do carro, sobre a coberta intacta de neve. Grandes flocos flutuavam diante dos faróis, o silêncio era tão grande que o barulho do motor soava como uma série de explosões. Da estrada não lhes chegava som algum, os poucos carros que recebiam cupons de gasolina das au­toridades podiam ser contados e constituíam raríssimas exceções, e quem quer que estivesse dirigindo com aquele tempo fazia-o com tanto cuidado que seu automóvel mais parecia rodar sobre ovos do que sobre pneus de borracha.

— Nada — disse Paskoleit, deprimido —, nenhuma outra marca de pneu. Pregaram-nos uma peça.

Apertou os dedos rígidos até estalarem.

— Heinrich, estou com medo. Se esses velhacos sujos tiverem assassinado Inge, poderemos enterrar Erna também.

Ellerkrug não respondeu. Apagou os faróis e ficou esperando. A escuridão, a neve caindo em silêncio, os galhos de abeto vergados pelo peso da neve, a sensação de não poder fazer absolutamente nada e os cem mil marcos na pasta, aqueles minutos que se arrastavam infinitamente, nos quais se decidia, talvez, o destino de uma criancinha, eram tão deprimentes que Paskoleit e Ellerkrug ofegavam. Seu coração martelava de modo insuportável. Outra vez Paskoleit sentiu aquelas pontadas no lado esquerdo inferior do peito, que, até então, sempre conseguira afastar respirando bem fundo.

— Espero mais dez minutos, depois saio do carro — disse Paskoleit com a voz rouca.

— Com este tempo é possível que os raptores tenham se atrasado.

— De qualquer maneira, não consigo imaginar como pretendem receber o dinheiro! Aproximando-se do carro? Meu caro, nesse caso agarro-os e torço-lhes o pescoço...

— Estarão armados, Julius. Não faça bobagens! Há armas jogadas por aí em tudo que é canto... São tantas que a polícia e as forças de ocupação não podem controlar. A oeste de Pirmasens, no meio do mato, temos um canhão antiaéreo inteirinho, enferrujando aos poucos. Até agora ninguém o pegou. Eu mesmo já o visitei algumas vezes e aproveitei para dar uns treininhos. Já fui especialista nesse tipo de artilharia...

Paskoleit abriu a porta. No mesmo instante penetraram no carro o frio e a umidade.

— Amarrada a uma árvore! — bufou. — Mesmo que venham buscar o dinheiro, depois Inge poderá morrer de frio! Desgraçados! Vou saltar e procurá-la. Não me segure, Heinrich!

— Isso poderá estragar tudo, Julius! Se nos estiverem observando...

— Danem-se! — berrou Paskoleit e pulou fora do carro, continuando a berrar: — Não agüento mais ficar dentro desta lataria!

Praticamente deixou-se cair de dentro do carro; logo levantou-se, bateu a neve das calças e do sobretudo militar reformado. Fê-lo com bastante ruído para ser ouvido. Mas a neve, a grossa cortina branca a seu redor, absorvia qualquer som.

Paskoleit avançou alguns passos rumo à parada. Parecia um urso de pé lá na neve, pernas abertas, parrudo, pronto para a luta... Ninguém perceberia que tinha uma perna mecânica. Era uma fortaleza.

— Tem alguém aí? — berrou. “Só nos falta o vovô”, pensou, totalmente fora de si. “O Jochen Berrador. Se ele chamasse, a neve cairia dos galhos.”

— Ei — tornou a gritar —, estamos aqui! Droga, apareçam! Está na cara que não trouxemos a polícia. Onde está a criança?

Nesse momento Ellerkrug resolveu sair do carro também. Tinha a pasta com os cem mil marcos debaixo do braço esquerdo. A mão direita estava no bolso do sobretudo e, de repente, Paskoleit teve a certeza de que Ellerkrug segurava uma pistola pronta para disparar.

— Seu espertalhão — disse baixinho quando Ellerkrug estava pertinho dele. — Você tinha um trabuco o tempo todo...

— Cem mil marcos é um bocado de dinheiro — Ellerkrug esboçou um tênue sorriso. — Estava contando com dois, um para você, um para mim, mas agora não tem mesmo ninguém!

— O dinheiro está aqui! — soou mais uma vez, em meio ao silêncio, o berro de Paskoleit. — Colocarei a pasta aqui na neve e voltarei para o carro. Podem vir buscá-la... Mas ai de vocês se a criança não estiver no mesmo lugar quando eu voltar...

Ellerkrug agarrou Paskoleit pela manga do sobretudo.

— Cale a boca — chiou. — Ouvi algo! Um som.

— Meu coração está martelando.

— Besteira! Aí... outra vez...

Prenderam a respiração. E, de repente, ambos ouviram. Através daquela densa parede de neve, pela escuridão branca, soou um fraco lamento:

— Tio Julius... Tio Julius...

— Inge! — berrou Paskoleit.

Jogou os braços para o alto e Ellerkrug encolheu a cabeça entre os ombros. Nunca ouvira um homem berrar daquele jeito.

— Inge! Onde está você? Continue a chamar... continue sempre... estou chegando... já estou chegando...

Paskoleit virou-se bruscamente, as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto coberto de neve e vermelho de frio.

— Heinrich, dê-me a pistola, depressa...

— Mas é lógico que eu vou junto — gritou Ellerkrug. — O que pensa que eu sou?

Saíram correndo atrás da vozinha que chamava sem parar “Tio Julius! Tio Julius!” Penetraram na mata e, esbarrando nos galhos baixos, ficando presos em arbustos emaranhados, rasgando os sobretudos em espinhos, alcançaram enfim uma pequena clareira, depois que Paskoleit gritara mais uma vez:

— Inge! Continue a chamar! Continue!

Inge estava, de fato, amarrada a uma árvore, mas por maior que fosse o patife, não abandonara a criança de qualquer jeito a seu destino. Para que não sentisse frio, enrolara Inge num velho e grosso cobertor do Exército antes de atá-la. Sobre a cabeça de Inge havia uma toalha de rosto dobrada várias vezes e amarrada com um cordão, como um capacete.

— Achamos — gritou Paskoleit. — Achamos! Tropeçando pela neve, foi cair de joelhos junto a Inge e tomou o rostinho rubro de frio entre suas mãos largas.

— Está machucada! — balbuciou, e se desmanchou em lamúrias. — Dói em algum lugar, Inge? Meu Deus, meu Deus...

— Desamarrá-la seria melhor do que ficar tagarelando bobagens! — disse Ellerkrug e pegou um canivete para cortar as finas cordas.

— Inge está aqui... Todo o resto podemos ver em casa! Vamos, já para o carro...

Durante a volta a Leverkusen, Inge ficou deitada no colo de Paskoleit mastigando um pedaço de chocolate trazido por Ellerkrug — “o cara pensa em tudo”, constatou Paskoleit com profunda satisfação — e contou a eles sobre dois homens que, perto da loja, haviam-na puxado para dentro de um velho automóvel. “Seu tio nos enviou!”, disseram. “Venha conosco.” E já que tio Julius era a pessoa mais importante da família, Inge não hesitara um instante em acompanhá-los.

— É capaz de reconhecê-los? — perguntou Paskoleit, rangendo os dentes.

— Não, tio, estavam de óculos escuros, sabe?

— E depois?

— Não me lembro de mais nada. Havia um quarto grande, bem grã-fino, mais elegante que lá em casa, tio. E depois os dois homens me levaram para o mato. Chorei tanto, tio...

— O cobertor militar — disse Paskoleit, batendo os punhos um no outro. — Através dele poderemos descobrir quem são, Heinrich.

— É um cobertor inglês velho, e ainda por cima posso garantir que foi roubado. O que está me derrubando é algo bem diferente... Ainda temos os cem mil marcos!

— Céus, é mesmo!

— Os caras nem queriam o dinheiro.

— Sim, mas então o quê?

— Se soubéssemos! Julius, aposto: vem mais alguma coisa por aí! Alguém está querendo prejudicar você sem mergulhar muito fundo na merda ele mesmo! Nos próximos dias, observe muito bem seus visitantes...

Inge adormeceu logo, quando a colocaram em sua própria cama. Seus irmãos Ludwig e Peter ficaram de guarda; Paskoleit, Ellerkrug e Franz Busko, a grande esperança do Partido, debateram mais uma vez o misterioso caso de rapto.

— Uma coisa está clara — disse Busko. — Não importam as leis que possam fazer mais tarde: eu vou pleitear uma legislação especial para rapto de crianças, semelhante à que os americanos têm, uma espécie de Lei Lindbergh alemã.

— Onde aprendeu isso? — perguntou Paskoleit, espantado, e comentou: — Garoto, todo esse tempo você não fez outra coisa que pregar solas com tachinhas!

— No momento, estou lendo literatura relevante — disse Busko, cheio de orgulho. Calou-se para não estragar o efeito de suas palavras. Literatura relevante... falara bonito.

Paskoleit dedicou-lhe um olhar prolongado.

— Franz — disse, em seguida, com vagar —, ninguém sabe o que será. Mas, se um dia você chegar a ministro... na Alemanha tudo é possível, não há motivo para um sapateiro não poder fazer política, então não se esqueça de que já esteve sentado aqui neste banquinho.

— Nunca, mestre. — Busko recostou-se. — Amanhã serei nomeado orador político-econômico do Partido.

— Estamos subindo!

Ellerkrug ergueu o copo. Bebiam Habra — abreviação de Hausbrand (aguardente caseira). Centeio destilado clandestinamente no fundo do porão. Franz Busko conhecia um colega de Partido que fazia disso o negócio de sua vida.

— Percebe-se. Vai considerar as necessidades da indústria alemã de calçados, senhor ministro?

Busko, ofendido, fechou-se em silêncio.

A uma hora da madrugada os três estavam bêbados.

 

Na manhã seguinte foram todos juntos levar Inge ao hospital. Antes de abrir a porta do quarto Paskoleit disse, baixinho mas com clareza, “alto!”, e a família Kurowski parou, quase empertigada, em volta de Ellerkrug.

— Inge entra sozinha... nós esperamos aqui fora... — disse Paskoleit. — Tudo vai se arranjar.

Bateu à porta, abriu-a apenas o necessário para deixar Inge passar. Ao fechá-la, ouviram Inge dizer:

— Mami, cheguei...

Seguiu-se uma exclamação aguda, que fez com que Paskoleit sorrisse feliz e Ellerkrug empalidecesse. Busko assoava o nariz ruidosamente.

— Pronto — disse Paskoleit com um empurrãozinho nas costas de Ellerkrug. — Agora entra você!

— Mas por que eu?

Ellerkrug opôs resistência ao braço de Paskoleit.

— Porque você foi idiota o bastante para comprar Inge de volta por cem mil marcos.

— Mas isso nem é verdade.

— Levou ou não levou os cem mil?

— Sim. Mas ninguém os quis...

— E isso importa, seu bobinho?! Poderia ser que os aceitassem. Então você não os teria mais! Portanto você pagou cem mil marcos pela Inge. É lógico! Não me olhe desse jeito... entre logo! Ema sabe de tudo, do dinheiro do resgate, que Inge voltou... o resto não interessa. Pelo amor de Deus, vá logo.

De supetão, abriu a porta e empurrou Ellerkrug para dentro, impedindo que a porta se fechasse deixando uma fresta pela qual pudessem ouvir tudo.

— Heinrich — ouviu-se a voz de Erna.

‘‘É preciso ser mãe para ter uma voz tão feliz”, pensou Paskoleit, tomado de emoção.

— Não poderei esquecer nunca! Jamais!

Com um suspiro de alívio Paskoleit acabou de fechar a porta, bem devagarinho. “Só espero que Heinrich não bobeie’’, pensou. E, dirigindo-se aos meninos, disse:

— Peter, você gosta do tio Heinrich?

— Muito, tio Julius.

— E você, Ludwig?

— É legal, tio.

— Muita coisa vai mudar — disse Paskoleit, com um ar sonhador —, muita coisa! Sua mãe merece ser feliz...

Quando, dez minutos depois, o resto da família Kurowski entrou no quarto, Ellerkrug estava sentado na cama, segurando as mãos de Erna.

 

No final de janeiro voltaram a aparecer na loja os senhores Huebner e Runzenmann, da concorrência. Ellerkrug enviara novos calçados. Franz Busko aproveitara uma bebedeira para tornar-se íntimo do homem mais importante do Departamento de Finanças, coisa que, naturalmente, teve grande influência na distribuição de cupons de compra. A loja Westschuh prosperava. Os nomes Kurowski e Paskoleit adquiriram, em Leverkusen, um som quase missionário.

Para Paskoleit foi como o estouro de uma granada a aparição de Huebner e Runzenmann entrando pela porta adentro. E quando ouviu as primeiras frases soube que sua intuição estava certa.

Runzenmann disse:

— Meu caro Paskoleit, vejo que tudo continua na mesma. O senhor está estragando, de modo sistemático, nossa clientela. Não só o senhor possui uma queda para o socialismo, mas, para piorar ainda mais as coisas, é de uma honestidade perigosa!

— E também sei rezar — respondeu Paskoleit, abaixando a cabeça como um touro bravo. — Todas as manhãs e todas as noites eu rezo: “Amado Deus, realize meu desejo, coloque em minhas mãos os dois bandidos sujos que raptaram a pequena Inge Kurowski. Então, meu Deus, feche os olhos só por um minuto. Não demorará mais que isto”. — Paskoleit respirou fundo. — É assim que eu rezo, sempre. Chega o dia em que até Deus se comove e atende a meu pedido. Estamos entendidos, caros colegas?

Huebner e Runzenmann entreolharam-se significativamen­te, voltaram-se e, sem mais uma palavra, deixaram a loja. Haviam perdido não só uma batalha, mas uma guerra para Paskoleit.

— Que malandro! — disse Huebner.

— Um vagabundo da Prússia Oriental!

Runzenmann levantou a gola do sobretudo. Também em Leverkusen o mês de janeiro é frio e úmido.

— Mas ninguém perde por esperar. Correm boatos sobre uma reforma monetária. Dizem que o dinheiro novo já está impresso... Então chegará nossa vez...

 

Sucedeu em 20 de junho de 1948. O velho Reichsmark perdeu seu valor, o novo marco alemão tomou seu lugar. No dia zero — 20 de junho —, quarenta marcos para cada cidadão da Alemanha. Quem estava sentado sobre um monte de dinheiro, acordou sobre uma pilha de metal sem valor. Mas, como sempre na vida, esta nova ordem da economia alemã, o término da fome e o início de uma nova era de reconstrução, atingiu em primeiro lugar as pessoas erradas. Os pobres tornaram-se mais pobres, os ricos acordaram ainda mais ricos. Naquele dia de junho não só fora distribuído dinheiro novo, mas era como se Deus tivesse espalhado adubo pela Alemanha. Cada prado, cada flor, cada galho tem seu tempo para florir. Na Alemanha do ano de 1948 ocorreu o milagre. De um dia para outro vitrines vazias encheram-se de tal modo de mercadorias que o povo, de início atordoado por tantas possibilidades de compra, precisou respirar fundo. Onde só se ouvia antes “Meu caro, de que nos serve seu cupom... não temos nem sombra de mercadoria para vender...”, agora reluziam letreiros que diziam: Acabados de chegar! A última moda diretamente de Paris! E os capacetes de aço não mais serviam para fazer panelas; estas eram feitas de alumínio e aço de boa qualidade.

Huebner e Runzenmann jogaram em suas vitrines tudo que haviam acumulado e perderam mais uma batalha.

A Westschuh foi assediada pelos fregueses. Aqui, nas duas vitrines, não havia nada de ultrapassado, e sim os melhores e mais encantadores modelos da Itália. Sonhos de calçados, a preços normais.

Heinrich Ellerkrug cumprira com a palavra: chovia dinheiro e sucesso sobre a família Kurowski.

— E ela ainda não resolveu casar-se com ele! — lamentava-se Paskoleit, acrescentando: — Precisa de tempo... A velha canção! Como se Ewald ainda fosse voltar! Admiro o Heinrich... tem a paciência de uma ovelha.

E Franz Busko, a quem Paskoleit foi chorar suas mágoas, disse:

— Logo depois das sessões definitivas do Conselho Parlamentar tratarei do caso dos prisioneiros de guerra. Mestre, preciso de um discurso fenomenal para dirigir à sociedade de empresários alemães.

Paskoleit concordou com um movimento da cabeça. Franz Busko tornara-se a viga-mestra de Adamsverdruss, pertencia agora à direção do Partido. Não mais sentara em seu banquinho de sapateiro desde o dia 1.° de maio.

Em 24 de outubro de 1948, Paskoleit recebeu um carro novo, um Mercedes. Cinza médio. Em 25 de outubro, a família Ku­rowski fez sua primeira excursão ao Siebengebirge colorido pelo outono, às margens do Reno, e escalou o Drachenfels.

No dia 29 de outubro, Paskoleit foi, sozinho, visitar Ellerkrug em Pirmasens. Na estrada entre Kaiserslautern e Pirmasens, perto de Waldfischbach, tornou a sentir a pontada no peito, do lado esquerdo, desta vez mais profunda e persistente. Ficou tonto, o mundo girava a sua frente, de repente a estrada estava acima e o céu abaixo dele. “Mas eu não estou voando”, pensou. Quis frear, pisou no vazio e o ar lhe faltou.

Com força total Paskoleit voou para fora da estrada e para dentro de um terreno de colinas, cheio de arbustos.

 

Demorou duas horas até que um jovem motociclista que descia a estrada avistasse o carro estacionado em meio aos arbustos. As marcas de pneus conduziam, em linha reta e sem indicação de freada, para as colinas, e o jovem viu logo o que passara despercebido aos que já haviam passado: aqui ninguém estacionaria um carro fora da estrada, mas o Mercedes perdera a direção e fora aparado por um tronco de árvore.

O motociclista parou, desceu e correu na direção do carro. Antes mesmo de abrir a porta do lado do motorista, percebeu que o homem que parecia dormir tão calmo atrás do volante já não vivia.

Como se estivesse descansando — e um descanso era o que realmente lhe faltara —, Julius Paskoleit estava sentado em seu belo carro novo, as mãos ainda agarradas ao volante, a cabeça pendendo para o lado, os olhos cerrados. O rosto estava marcado por uma expressão de paz, de relaxamento completo. Era a primeira vez que repousava sem planos para amanhã ou depois de amanhã, e para isso foi preciso o descanso eterno.

O jovem tornou a montar em sua motocicleta, correu para a casa mais próxima, telefonou à polícia e voltou para junto do carro nos arbustos. Ali ficou, aguardando a chegada de uma patrulha, da ambulância e, pouco depois, de um rabecão, que cercaram Paskoleit.

Como outrora, na Prússia Oriental, quando fora atacado pelo touro e perdera a perna porque não chegara a tempo ao hospital, também desta vez Paskoleit foi encontrado tarde demais. Os homens do rabecão retiraram-no do assento, deitaram-no num estreito caixão de zinco e empurraram-no para dentro do carro preto. O médico da emergência fez um relatório provisório que dizia: “Causa mortis indefinida. Provavelmente parada cardíaca. Nenhum sinal de violência”. Mas a observação “indefinida” foi o bastante para que o cadáver de Paskoleit fosse requisitado e levado ao Instituto Médico Legal de Kaiserslautern. Foi de lá que telefonaram para Leverkusen. Franz Busko estava ao telefone, preparava sua mudança da casa da família Kurowski; conseguira um belo apartamento num prédio novo e estava se candidatando ao cargo de magistrado distrital. Mantinha excelentes relações com as autoridades inglesas de ocupação, bebia uísque escocês e gim com os oficiais dos postos de controle e era considerado — já que nunca fora soldado nem membro do Partido Nazista — como um dos poucos alemães com os quais se poderia construir um novo Estado. Todas as portas se lhe abriam; recitava as frases de cunho liberal e cristão ensaiadas com Paskoleit e transformava-se em algo assim como o “novo espírito” depois do domínio do sombrio terror marrom.

No início Busko nem entendeu o que o funcionário da procuradoria de Kaiserslautern queria dizer.

— O sr. Paskoleit? — perguntou, o olhar vazio parado no papel de parede. Florezinhas campestres sobre fundo rosa. Erna gostava especialmente daquele desenho, trazia-lhe à memória a cozinha de Adamsverdruss. Balançou a cabeça e respirou fundo: — Que há com o sr. Paskoleit? Morto? Está maluco? Nosso mestre morreu? Mas não pode ser!

Voltara a falar com a entonação antiga. O pavor fez com que esquecesse o idioma alemão puro que se esforçara durante tantos meses para aprender.

— Não é nenhuma piadinha, hein? O senhor é da procuradoria? Kaiserslautern? Homem, eu sou o futuro magistrado distrital e secretário do Partido que... Sim, já entendi! Morto no carro! Nosso mestre? Obrigado...

Desligou, sentou-se na cadeira perto do telefone e levou algum tempo para poder raciocinar com clareza. Pela primeira vez na vida soube o que era o sentimento de completo abandono e de uma dor impossível de abafar. Quando perdeu o pai de uma pneumonia, tinha dez anos e chorou. Quando morreu a mãe, de embolia pulmonar, tinha dezessete e suportou o golpe como um homem. Mas a morte de Paskoleit o arrasou. Para Busko, Paskoleit sempre significara tudo: pai, mãe, mestre, a pátria, o passado, o presente, o futuro, não podia imaginar uma vida sem Paskoleit... E de repente o mestre vai visitar seu amigo Ellerkrug em Pirmasens e morre sozinho, em completo abandono, na beira da estrada.

O mundo de Franz Busko estava em pedaços. E claro que era possível consertá-lo, mas as marcas ficariam para sempre. Daquele momento em diante não passaria de um mundo remendado.

Erna Kurowski e as crianças, tanto quanto Busko, não conseguiam entender a morte de Paskoleit. Já uma hora mais tarde estavam todos juntos num trem para Pirmasens, tendo deixado um aviso na porta da loja: FECHADO TEMPORARIAMENTE.

O concorrente Huebner foi o primeiro a descobrir a placa com o aviso e telefonou logo para Runzenmann.

— Gorou! — gritou de contentamento Runzenmann. — Estão falidos! Tinha de acontecer, eu já esperava. Esse Paskoleit com seus tiques de honestidade! Aposto como na semana que vem seremos informados pela Associação de que ele entrou na maior concordata. Dará graças a Deus se lhe comprarmos a loja!

— Também pensei nisso e telefonei na mesma hora! — Huebner soltou uma grossa gargalhada. — Ninguém atende.

— Não estou dizendo? Podres até a raiz. Aguardemos, Huebner, pois dentro de uma semana Paskoleit estará no ponto, aceitará qualquer oferta.

 

Em Pirmasens, Heinrich Ellerkrug foi buscar a família Kurowski na estação, levando-a direto ao Instituto Médico Legal de Kaiserslautern. Franz Busko, comprido, magro, o terno preto dando-lhe uma aparência mais triste que a de um Dom Quixote, carregava uma mala, uma coisa antiqüíssima com fechaduras enferrujadas. Ao ver a pergunta no olhar de Ellerkrug, explicou:

— Aí dentro está o avental de couro do mestre. “No dia em que eu morrer”, disse-me, “ponha-o em mim, Franz, entendeu? Quero ser enterrado com meu avental. Fui sapateiro e como sapateiro quero apresentar-me a meu Senhor Deus.”

Os olhos de Busko estavam cheios de lágrimas; enxugou-as com as costas das mãos, mas não podia enxugar o tremor de seus lábios.

— Atenderei a seu último desejo, mas é lógico...

— Você, agora, precisa de muita força e coragem, Erna — disse Ellerkrug a Erna Kurowski no caminho para Kaiserslautern. — Terá de carregar tudo sozinha: três filhos, a oficina, a loja e o Franz. E Ewald já está desaparecido há quatro anos; se estivesse sendo mantido prisioneiro já teria escrito há muito tempo...

Num sinal de concordância, ela colocou a mão no braço de Ellerkrug. Sua mão era pequena, porém firme, acostumada ao trabalho.

— Sei o que está querendo dizer, Heinrich — disse. — Está chegando a hora de decidirmos sobre nós.

— Estarei sempre esperando, Erna. Sempre. Você sabe. Qualquer dia... você só precisa dizer sim. Pense, em primeiro lugar, nas três crianças.

— E se, apesar de tudo, Ewald ainda voltasse?

— Pela lógica humana, Erna, isso é impossível.

— Mas é tão fraca a lógica humana, Heinrich... Continue a ser nosso amigo.

— E a loja?

— Eu darei conta.

— A oficina?

— Empregarei um ajudante.

— As crianças estão crescendo. Ludwig fará o exame de seleção dentro de dois anos. Não vai parar, é um menino de talento. Vai querer continuar os estudos. O que será de Peter e Inge ainda não se pode dizer. Erna, é impossível você querer fazer tudo isso sozinha! Ele também quis fazer tudo sozinho, agora está deitado aí. Sei que o momento não é propício nem adequado... mas, Erna... gosto de você, quero que saiba disso.

— Eu sei, Heinrich. — Pressionou-lhe o braço e abaixou a cabeça. Em seus olhos lia-se gratidão, mas eram os olhos de um animal perdido e indefeso. — Deixe-me tentar. Se eu falhar... pedirei socorro. Com certeza. Você conhece nosso lema.

— Sim... — Ellerkrug mantinha o olhar fixo na estrada que passava voando por eles. — Esse maldito “Não nos deixaremos abater” do Paskoleit. Ele não resistiu. Erna, pense bem.

Em Kaiserslautern, no subsolo do Instituto Médico Legal, deixaram que Erna Kurowski, Franz Busko e Heinrich Ellerkrug vissem Julius Paskoleit pela última vez. A autópsia já fora realizada. Estava vestido com seu terno que cobria os largos cortes que iam da base do pescoço até a canela. De Paskoleit só restava o envoltório; por dentro estava vazio como um balde furado. Mas os médicos haviam chegado a uma conclusão sobre sua morte e a procuradoria já liberara o corpo para o funeral. A “causa mortis indefinida” estava esclarecida.

Mudos, segurando-se pelas mãos, Ellerkrug e Erna Kurowski estavam diante do corpo pálido. Era Paskoleit, mas ao mesmo tempo não era Paskoleit... A morte o transformara. Nunca, em vida, tivera um rosto tão liso, descansado, até feliz, e quem sempre dissera que Paskoleit não era um homem bonito, mas sim rude e curtido como as árvores da Masúria vergadas pelos temporais, tinha de se redimir diante do morto. Aqui estava um homem que derrotara a vida e agora, no repouso eterno, tinha o direito de se mostrar majestoso.

Franz Busko não suportou esta cena. Precisou segurar a borda do caixão, chorava alto e repetia sempre, aos prantos:

— Não, mestre, não... Por que fez isso? Eu é que tinha tuberculose e quem vai é você! Mestre, não posso compreender...

E então abriu a velha mala de Adamsverdruss, tirou o avental de couro sujo, manchado e remendado, colocou-o em Julius Paskoleit e não conseguiu mais manter-se em pé. Deixou-se cair num banquinho, pôs as mãos no rosto e chorou como uma criança.

Erna Kurowski dirigiu-se, com uma súplica no olhar, ao funcionário que os levara ao subsolo.

— As crianças... — disse, hesitante — eram tão apegadas ao tio. Não poderiam vê-lo mais uma vez?

— Eu não faria isso.

O funcionário olhou, indeciso, para Ellerkrug.

— No treck cansaram de ver cadáveres à direita e à esquerda da estrada — disse Ellerkrug. — Estavam lá quando a avó foi deixada na neve. Viram crianças de colo, congeladas e duras como pedra, serem jogadas das carroças. É uma geração que não treme nem desmaia ao ver um morto.

— Se quiser assim... — O funcionário deu de ombros. — Não posso proibir.

Erna Kurowski foi buscar as crianças, que esperavam numa fria e despojada sala de espera. Em fila, passaram pelo caixão e olharam tio Paskoleit. Primeiro Ludwig, o mais velho, que era o mais parecido com seu pai Ewald. Parou diante do morto, pousou sua mão sobre as mãos entrelaçadas de tio Julius e disse alto:

— Tomarei conta da mamãe, tio. Prometo.

Depois foi para junto de Busko, que continuava a soluçar, colocou o braço em seu ombro trêmulo e ficou ali.

Peter e a pequena Inge contemplaram o morto com olhos arregalados. Que tio Julius estava morto, isto eles entendiam, tinham convivido com a morte de perto, uma morte multiplicada por centenas de vezes. Mas é diferente ver alguém desconhecido morrer e de repente estar diante de um corpo pálido, que, para eles, sempre fora imortal.

— Ficaremos sempre junto da mamãe — disse, também, Peter. Seu rostinho de criança tornou-se, de súbito, assombrosamente adulto. — Não tenha medo, tio Julius.

E a pequena Inge disse:

— Até logo, tio Julius. Se encontrar o vovô e a vovó, dê lembranças minhas...

Foi nesse momento que até o forte Heinrich Ellerkrug começou a chorar e Erna Kurowski encostou-se a ele buscando amparo.

 

Tudo pode ser superado, até mesmo a morte de um Julius Paskoleit.

Era um consolo saber que não sofrera. O medido explicara a Erna: “Para usar uma linguagem mais acessível”, dissera, “teve uma morte inteiramente indolor. Uma veia importante ligada a seu coração rompeu-se, e sobreveio a morte como se apaga uma luz. Foi uma questão de segundos. Não sentiu nada, a não ser talvez um ligeiro mal-estar e uma pontada. A autópsia revelou isto claramente”.

Após o enterro em Leverkusen, ao qual compareceram também os concorrentes Huebner e Runzenmann, oferecendo até uma coroa, Erna Kurowski reabriu sua loja de sapatos, e Franz Busko, através do Partido, conseguiu convencer dois ajudantes de sapateiro a trabalharem na oficina.

Os negócios prosseguiam normalmente. Runzenmann, que, após deixar passar um prazo de catorze dias, foi procurar Erna com uma oferta de compra, foi informado de que quarenta e cinco por cento da firma Westschuh pertenciam agora a uma fábrica de calçados em Pirmasens e que, ao invés de fechar, pretendia mesmo era expandir-se. Runzenmann nem precisou perguntar pelo nome da fábrica. Perturbado, foi correndo ver seu colega Huebner e disse:

— Deveríamos é ficar amigos dos Kurowski. A guerra perdeu todo o sentido. Eles estão escorados por capital e pelo Partido. Acabou, meu caro.

Uma vez por semana Ellerkrug vinha a Leverkusen para ver se Erna não trabalhava demais. Franz Busko mudara-se, estava morando em seu novo apartamento. Fazia discursos em campanhas eleitorais, escritos agora por Ellerkrug. Discutia sobre o futuro da Alemanha com Kurt Schumacher e Konrad Adenauer, dr. Maier e Theodor Heuss, viajava muito e cultivava suas boas relações com os britânicos. A noite fazia até curso de inglês, e quando, após vinte aulas, conseguiu falar algumas frases inteiras, foi até o cemitério, parou diante da sepultura de Paskoleit e disse:

— Agora preste atenção, mestre, você não vai acreditar: I have a coat... E então, está pasmo?

Assim passou-se um ano. Erna Kurowski ficava sempre mais insegura. Através da Cruz Vermelha soube que Ewald Kurowski podia ser considerado morto; propunham-lhe, já por causa dos negócios, declará-lo oficialmente morto. Ellerkrug leu a carta e não comentou nada, mas Erna entendeu-o mesmo assim. Começou a pensar com mais realismo, e conversou com o marido, que estava sempre com ela, num grande retrato emoldurado ao lado . da cama, na mesinha-de-cabeceira. O oficial subalterno Kurowski, a última fotografia tirada nas últimas férias; um homem alegre, forte, com olhos azuis como água, enamorados.

— Vou casar-me com Heinrich, Ewald — disse em novembro de 1949.

Em cima da loja tinham reconstruído mais dois andares da casa bombardeada; no primeiro andar moravam os Kurowski, no segundo morava um professor do Ludwigs-Gymnasium, o que ajudava bastante nas notas. Uma parte do dinheiro da construção viera de Ellerkrug, um empréstimo sem juros. A vida continuava, e tornava-se mais bela e agradável, com mais sucesso e maiores exigências. Busko já era magistrado distrital. Se algum dia a Alemanha voltasse a ter um governo independente, ele tinha um posto garantido no Parlamento ou em algum Ministério, promessa do Partido. Como “homem da primeira linha” já se tornara quase um mito, mas os seus discursos continuavam a ser escritos por Heinrich Ellerkrug.

— As crianças precisam de um pai, Ewald — disse Erna ao retrato. — Ludwig já apresenta a rebeldia dos adolescentes, Peter tem dificuldades com o latim e a matemática, e Inge está ficando uma garota linda, que terá de ser muito bem vigiada. Além da loja e da oficina, no próximo ano Heinrich quer fundar duas filiais. É demais para mim, Ewald. Deixe que eu me case com Heinrich, ele teve tanta paciência para esperar.

Foi no dia 15 de novembro de 1949, um dia cinzento, encoberto e úmido de outono, que Erna colocou o vestido novo que Ellerkrug lhe dera de presente e que ele chamava de ‘‘vestido de festa”. Enfeitado com fios dourados, era bastante decotado, deixando à mostra uma parte dos seios bonitos e redondinhos de Erna, e a transformava numa beleza que ela própria estranhava. Ellerkrug ficara de apanhá-la às sete e meia para irem ao teatro em Colônia — as peças teatrais estavam sendo encenadas, provisoriamente, no palco do auditório da universidade. Depois iriam jantar no melhor estilo num bom restaurante à margem do Reno. Erna estava muito animada com a perspectiva dessa noite e sabia que aquele 15 de novembro era o dia da decisão final entre ela e Ellerkrug, e estava disposta a dizer sim.

Pouco depois das sete horas a campainha tocou.

Erna cobriu o novo penteado com um xale, ajeitou o vestido de festa e abriu a porta.

— Como você é pontual, Heinrich — quis dizer, mas as palavras lhe ficaram presas na garganta.

Lá fora, no umbral da porta, viu um estranho. Curvado para a frente, de aspecto miserável, apoiado num bastão, perdido dentro de um velho sobretudo militar, o corpo todo parecia sustentado por grossas botas sujas, das quais escorria a água da chuva. Sobre a cabeça tinha um boné pequeno demais, quase ridículo, encharcado; a água escorria-lhe pelo rosto pálido e pela barba curta, meio grisalha.

— Boa noite — disse o homem. Tirou o boné como um mendigo. Também era cinzento o pouco cabelo em sua cabeça.

— Aqui estou eu de novo, Erna...

— Ewald... — gaguejou Erna Kurowski. E logo em seguida mais alto, como um grito: — Ewald!

Abriu os braços, caiu para a frente e jogou-se no velho sobretudo de soldado, largo, molhado e sujo.

Dos quartos as crianças vieram correndo, primeiro Ludwig com uma barra de ferro na mão. Mudos, perturbados, ficaram olhando para o estranho que sua mãe abraçava e cujo rosto marcado pelo tempo ela beijava.

 

Ewald Kurowski, em pé na entrada da bela casa nova, olhou em volta e precisou de um esforço para acreditar que retornara, que de agora em diante poderia dizer: estou em casa.

A porta fechara-se atrás dele. Erna tirara-lhe o sobretudo largo e sujo, o boné molhado estava caído no chão, mas a água continuava a escorrer de suas botas pesadas. Com sua calça de uniforme desbotada e o casaco acolchoado russo, marcado por cinco anos de prisão, o corpo moído de tanto derrubar árvores nas matas de Nowo Kalinski, ao sul da curva do Lena, perto de Yakutsk, estava agora em casa revendo sua mulher e seus três filhos, numa casa como antigamente, na Prússia oriental, que só os grandes senhores de terras possuíam. Abaixo dela havia uma loja de sapatos muito elegante com duas vitrines, sapatos italianos e franceses, com Westschuh escrito em letras garrafais sobre a loja, e na porta: Proprietário Ewald Kurowski. Erna estava com um vestido igual aos que usavam, antigamente, as artistas de cinema, trabalhado em ouro e tão decotado no peito que se via quase tudo: usava um cordão de ouro com uma grande pedra azul que ele nunca lhe comprara, mas que se chamava água-marinha, isto ele sabia; quando viu aquilo tudo, o pobre, sujo e explorado Ewald Kurowski, que de um dia para outro fora perdoado e solto após ter sido condenado primeiro à morte e depois a uma vida inteira de trabalhos forçados, sentiu-se invadido por algo assim como medo dessa nova vida, na qual explodira como uma granada caindo num lar para crianças abandonadas.

Erna, encostada na parede, chorava. As crianças haviam parado nas portas de seus quartos e fitavam-no em silêncio.

“Cada uma das crianças tem seu próprio quarto”, pensou Ewald Kurowski. “Isso, antigamente, só existia em casa de rico. Será que o mundo se transformou tanto assim? Os Kurowski ficaram ricos? Onde está Julius? Será que o vovô e a vovó ainda vivem? E o que estará fazendo Franz Busko? Deveria ter telefonado antes, esta surpresa é falsa. Bem que todos me avisaram, todos os companheiros: Ewald, cinco anos é muito tempo. Cinco anos de silêncio, sabe lá o que se passou lá fora todo esse tempo? Você foi declarado morto, e se de repente você aparecer lá na porta, o nome dela não é mais Erna Kurowski, e sim Erna Meier ou Schmitz ou Haeberlein ou outro qualquer? Não faça isso, não surja de repente. O mundo agora é outro, com certeza, não se esqueça de que você está saindo da sepultura! Anuncie sua chegada com muito cuidado.”

Não fizera nada disso. Conseguira o endereço no campo da Cruz Vermelha. Leverkusen, Renânia, Nordstrasse, 34. E pusera-se a caminho, transbordando de saudade e contentamento. Sim, e agora encontrava-se ali, no hall finíssimo, e Erna chorava encostada na parede, usando um vestido como o de uma dama. O mundo novo...

— É... é bom rever vocês todos — disse Ewald Kurowski, sem saber o que fazer.

Nas matas de Nowo Kalinski nada fora capaz de abalar aquele homem, nem mesmo o temido tenente Boris Alexandrovitch Lukassov contra seu oficial subalterno Kurowski; sete vezes o alemão foi atirado no comando da morte, ao trabalho nos pântanos, e sete vezes ele voltou, verdade que um pouquinho mais curvado, mas inteiro. E agora mantinha-se em pé por ali, sem saber como continuaria aquilo tudo. Sonhara cinco anos com essa volta. Agora parecia-lhe pior do que trabalhar na correia de transporte da Serraria Orgulho da Revolução.

Erna afastou-se bruscamente da parede e enxugou as lágrimas. As crianças permaneciam imóveis nas portas.

— Este é seu pai... — disse Erna — Ludwig, Peter, Inge... seu pai! Ele voltou! Está vivo! Seu pai...

Ludwig, o mais velho, foi o primeiro a sair da pasmaceira. Dirigiu-se a Ewald Kurowski, deu-lhe a mão e fez uma pequena reverência.

— Boa noite — disse. Soava como um gemido.

 

Um tremor percorreu as faces de Kurowski. Peter aproximou-se, vacilante, prudente como um cachorrinho a quem um desconhecido oferece uma salsicha.

— Boa noite, papai... — disse baixinho.

A pequena Inge, bastante alta para seus sete aninhos, com longo cabelo louro e os olhos azuis do pai, não chegara a conhecê-lo, só por retratos, e nesses parecia bem diferente. Tio Julius Paskoleit era-lhe muito mais chegado que esse homem aí, até tio Ellerkrug pertencia a sua vida... E agora, de repente, via um homem completamente estranho, numa roupa horrível, que diziam ser seu pai.

— Boa noite... — disse, olhando transtornada para Kurowski; em seguida virou-se e saiu correndo para seu quarto.

Kurowski abaixou a cabeça. ‘‘Deveria ter permanecido morto”, pensou. “Aqui está tudo arrumado, aí chego eu e destruo tudo. Terei esse direito? Mas, por outro lado, é minha a culpa? Fui eu que desejei a guerra, fui para a Rússia por minha livre e espontânea vontade? Fui eu que me apresentei para ir à Sibéria? Enquanto o sol brilhava cada vez mais para os daqui, nós fomos roubados em cinco anos de nossas vidas. O que fiz eu?”

— Entre, Ewald — disse Erna baixinho, pegando-o pela manga do casaco. Fofaika era o nome do casaco e salvara a vida de Kurowski por três invernos siberianos. — Tome um banho, troque de roupa. Vou preparar alguma coisa para comer.

— Só tenho a roupa do corpo — disse Kurowski. — No campo queriam me dar um terno, mas teria de esperar até amanhã. Era demais para mim, queria voltar logo para casa.

— Amanhã compraremos cinco ternos, Ewald.

E, de súbito, virou-se, bateu no rosto de Ludwig e Peter com ambas as mãos e deu um grito:

— O que estão olhando aí parados? Seu pai está aqui! Ludwig, ponha água quente na banheira! Peter. vá buscar quatro garrafas de cerveja e uma de Baerenfang... Vamos, vamos... seu pai voltou da Rússia...

— Baerenfang... — disse Kurowski, baixinho. — Erna, isso ainda existe?

— Sim. Oh! Ewald, Ewald... estou tão feliz!

Abraçou-o, ficou pendurada em seu pescoço; era-lhe indiferente que as crianças estivessem apalermadas sem entender a mãe. Só quando Erna desfechou uma bofetada em Ludwig é que o ambiente se desanuviou e os meninos saíram correndo

— Ainda vão ter de se acostumar — disse, baixo, Kurowski. — Não bata neles, Erna. Aparece um desconhecido e de repente é seu pai. Quem é capaz de entender uma coisa dessas? Precisam de tempo. Também eu precisarei de tempo para me adaptar. Cinco anos de floresta siberiana... a gente vira lobo, Erna.

Deixou-se levar à grande sala de estar e sentou-se, com cuidado, no cantinho da poltrona larga, forrada de linho inglês.

— Como num palácio... — disse, quase tímido. — Vocês subiram na vida.

— É tudo seu, Ewald.

— Seu, Erna, eu só cortei lenha... Onde está Julius?

— Faleceu. Ataque cardíaco.

— Vovó e vovô?

— Vovó morreu de um tiro durante a fuga para o oeste, disparado de um avião. Vovô faleceu na prisão de Luebeck.

— Franz?

— É magistrado distrital e primeiro-secretário do Partido.

— Erna, o mundo está de cabeça para baixo. — Kurowski apoiou a cabeça nas duas mãos. — Se você soubesse tudo que imaginamos sobre nossa volta... lá na Sibéria... Ainda não consigo acreditar que estou aqui.

Estendeu a mão, puxou Erna para seu colo e olhou para o decote.

— E você. Como está elegante e fina. Está bonita, Erna! Muito mais bonita que antes. Mais gordinha. Fica bem. Você sempre usa vestidos assim?

— Não. — Afagava-lhe a cabeça e sentiu um tremor quando ele colocou a mão áspera em seus seios. — Pretendia ir hoje à noite a Colônia. Ao teatro.

— Colônia. Teatro. Então chego eu e atrapalho...

— Se continuar a falar, Ewald, começo a chorar! — Apertou-se contra ele e sentiu que não havia felicidade maior na terra do que poder tocá-lo. — Agora você está aqui de novo... e amanhã compraremos camisas, ternos, sapatos... Meu Deus, que bobagem, a loja está cheia deles... e você se coloca atrás do balcão e tudo será como se nunca tivesse sido diferente. Na verdade, todos nós não fizemos outra coisa senão esperar por você, Ewald...

Bateram à porta. Ludwig entrou.

— O banho está pronto — disse.

Atrás dele vinha Peter com uma cesta. Seus olhos brilhavam. Contara no armazém: “Meu pai voltou. Da Rússia!”, e recebera uma garrafa de uísque de centeio de graça.

— A cerveja, papai — exclamou da porta. — E mandaram uma garrafa de uísque de centeio de presente para você.

Kurowski sorriu de leve. “Meus filhos”, pensou. “Como são grandes, bonitos, saudáveis. Muito obrigado, Senhor Deus. Só falta a menininha. Minha Inge. Para ela é especialmente difícil, para ela sou um selvagem.”

Erna levou-o ao banheiro. O aroma já vinha a seu encontro pela porta. Galhos de abeto. Depois ficou nu, sozinho, diante da banheira, admirando o azul-marinho dos azulejos, os cromados, as toalhas com delicados motivos florais e o armário de espelho embutido sobre a pia.

‘‘Um palácio”, pensou outra vez. ‘‘Enquanto eu cortava árvores na Sibéria, estavam construindo um palácio. Nem o barão Von Hellow no castelo de Elchhagen morava tão bem. Erna, será que meu lugar ainda é aqui?”

Sentou-se na água quente e cheirosa, lavou-se todo, estirou o corpo e ficou mais de meia hora na banheira. Não ouviu a campainha, nem quando alguém entrou, nem as vozes excitadas das crianças, falando todas ao mesmo tempo.

Quando a água começou a esfriar saiu da banheira, enxugou-se e enrolou o corpo numa das toalhas maiores. Assim, nu da cintura para cima, deixou o banheiro e foi até a sala de estar.

Erna, junto à janela, dava as costas para a porta. Na poltrona em que Kurowski estivera sentado há meia hora, encontrava-se agora um homem desconhecido, elegante, de terno preto, camisa branca como neve e gravata-borboleta cinza-claro. Levantou-se logo, pigarreando. E antes mesmo que alguém dissesse uma palavra, Kurowski teve a certeza. “É ele! É este o homem que ia levar Erna ao teatro. O homem que, até hoje, ocupava meu lugar. O homem que terei de afastar, agora, da vida de Erna.

Subiu-lhe um gosto amargo. Um homem na vida de Erna. “Mas quem pode condená-la? Eu não estava morto? Era apenas um lobo na Sibéria.”

— Ellerkrug — apresentou-se o homem. — Estou contente por Erna pelo senhor ter voltado. Ela o esperou com uma ânsia inexplicável. E tinha razão: o senhor chegou!

— Obrigado.

Kurowski abaixou o olhar e contemplou-se a si mesmo. Um cara miserável. Um cara miserável enrolado numa toalha molhada.

— O senhor ia levar Erna ao teatro?

— Sim. E só fiquei para cumprimentá-lo. Fui amigo de Julius Paskoleit, eu...

Ellerkrug calou-se. Sentiu que estava ficando rouco. O choque fora profundo demais, precisava de tempo, da mesma maneira como Kurowski precisava.

— Deveríamos conversar um dia desses. Não agora, não amanhã, talvez dentro de três ou quatro semanas... Muitas felicidades...

Ellerkrug inclinou-se e deixou rapidamente a sala. Só depois que a porta se fechou atrás dele foi que Erna, lá na janela, se voltou. Kurowski estava em pé no meio da sala, enrolado na toalha, os braços pendentes e o olhar triste.

— Não... — sussurrou ela. E depois elevando a voz, cada vez mais alto: — Não! Não! Não é o que você está pensando! Não é nada. Nada, Ewald! Nada. É você que eu amo, sempre o amei, esperei por você... Ewald, não existe nada além de você...

Atirou-se nos braços dele, e pela primeira vez depois de cinco anos e três meses os dois se beijaram como homem e mulher, e todo o amor se fundiu na coisa mais maravilhosa que Deus já concedeu à humanidade

De manhã cedinho a porta do quarto se abriu devagarinho e um pequeno vulto entrou. Kurowski e Erna estavam deitados lado a lado, envoltos no calor da felicidade. O vulto parou na frente da cama de Kurowski, depois levantou o acolchoado e enfiou-se junto a Kurowski.

— Posso, papai? perguntou uma voz

Ludwig Kurowski mexeu a cabeça afirmativamente. De repente, tinha um nó na garganta.

Mais alguém esgueirava-se para dentro. Um vulto menor. Um pulo do outro lado.

— Bom dia, Papi...

Peter.

Kurowski prendeu a respiração. “Meu Deus”, pensou, “meu bom Deus, ajude-me... Tenho mais uma filha...”

Mais uma vez um ruído na porta. Uma sombra branca, alongada. Um brilho de cabelo louro na tênue claridade matinal. Um corpinho quente e macio que se deitou sobre Kurowski.

— Estou muito pesada, Papi?

— Não, bichinha, não — disse Kurowski, e nem percebeu que estava chorando. Abriu os braços e puxou as crianças para si. e a felicidade corria por seu corpo como fogo, quase fazendo seu coração explodir. — Minha família — disse, soluçando—, minha família maravilhosa... Foi só por causa de vocês que sobrevivi à Sibéria...

Ficaram na cama até meio-dia, enquanto o magistrado distrital Franz Busko vendia sapatos lá embaixo na loja.

Ewald e Erna Kurowski viajaram por quatro semanas à Floresta Negra para uma temporada de repouso. Busko ficou administrando a loja, colocando um amigo como vendedor, e na última semana também Heinrich Ellerkrug veio para atualizar os livros contábeis. Assim, estava tudo em ordem quando Kurowski, visivelmente recuperado, voltou dizendo: “A neve da Floresta Negra é bem diferente da neve de Nowo Kalinski”. Estava pronto para se habituar à idéia de ser proprietário de uma loja de calçados e sócio de Ellerkrug.

Erna deixou os dois homens sozinhos. O que tinham a se dizer era melhor que fosse discutido só entre eles. Demorou quatro horas até que Kurowski aparecesse com Heinrich Ellerkrug no andar superior, gritando:

— Erna! Agora pode sair o assado! Heinrich e eu estamos com uma fome de boi.

 

Nesse momento Erna percebeu que a vida dos Kurowski continuaria do jeito que o avô Jochen e Julius Paskoleit sempre desejaram. E, na verdade, até então a vida também não fora outra coisa que não uma preparação para a volta de Kurowski, para aquele grande dia em que, após uma guerra, miséria e morte, abandono forçado da terra natal, fome e luta pela sobrevivência numa época em que as coisas mais loucas eram consideradas normais; a família estava novamente completa, capaz de cuspir nas mãos e dizer: “Aqui estamos! Nenhuma tempestade tem a força necessária para nos derrubar!”

Pouco antes do Natal apareceu Franz Busko, em seu Mercedes oficial, trazendo um presente. Busko trajava um terno feito sob medida, um chapéu preto que se chamava homburg e luvas pretas de couro liso. Kurowski ficou pasmado, tirou uma garrafa de Baerenfang do armário e encheu um copo para Franz.

— Quanta cerimônia, Franz — disse. — O que está acontecendo?

— Tenho um presente de Natal para o senhor, mestre.

Quando estava no seio da família, Busko deixava de ser magistrado. Entre os Kurowski continuava a ser o aprendiz de sapateiro, embora já tivesse conquistado seu lugar na política e já escrevesse ele mesmo seus discursos. Isto era fácil, descobrira um truque: tirava frases dos discursos antigos escritos por Paskoleit e Ellerkrug, juntava-as de tal modo que formassem um novo discurso que soava diferente, tinha o mesmo conteúdo e indicava sempre a direção certa. Ninguém percebeu; ao contrário, todos elogiavam sua força de expressão. Eram pensamentos concentrados... Busko estava começando a conquistar o palco político com uma espécie de talento primitivo: dizia sempre a mesma coisa, mas sempre de modo diferente. Com este truque já se governa há muitos séculos.

— Desembuche! — disse Kurowski.

— Aqui. — Busko abriu um envelope e empurrou um livrinho fino sobre a mesa. — A mando do Partido. Sua admissão como membro do Partido, com o número 305. É uma honra incrível, mestre.

— E você está maluco, Franz. — Kurowski empurrou o livrinho do Partido de volta. — Conheci alguém que tinha o número 7 num partido, e por causa disto metade do mundo caiu em ruínas. E eu também já tive um livrinho, isto me bastou. Quando os alemães começam a fazer política, mais cedo ou mais tarde estarão sentados na própria merda! Também você, Franz! Se tivesse trazido uma garrafa teria sido melhor.

Não se falou mais no assunto, até que um dia Runzenmann resolveu atacar e Ludwig Kurowski foi chamado de “porco nazista” na escola. Foi dois dias após a inauguração das duas filiais da Westschuh. A concorrência preparava-se para a luta, a trégua terminava. Kurowski retomou a batalha interrompida quando da morte de Paskoleit.

— Este não é um Paskoleit! — disse Runzenmann, com um ar de superioridade. — É só eu respirar bem fundo que ele estará pendurado debaixo de meu nariz.

Ninguém se lembrou de que cinco anos de trabalhos forçados na Sibéria só podiam destroçar um homem, ou então torná-lo duro como um tronco congelado.

 

Duas semanas antes da Páscoa de 1950, Runzenmann, que, como Kurowski, fundara mais duas filiais de sua loja de calçados — e isto em Leverkusen e na vizinha Opladen, onde as pessoas davam graças a Deus por terem, de novo, um telhado razoável sobre suas cabeças —, soltou um urro de raiva. Os jornais continham anúncios de meia página, nos quais a Westschuh comunicava a fundação de uma sociedade de comércio atacadista e distribuição de calçados, informando aos admirados clientes que, em todas as lojas da Westschuh, graças às boas condições oferecidas pela Itália e pela França, e à exclusão dos intermediários, os mais lindos modelos poderiam ser vendidos a preços mais baixos.

Em seguida vinham ilustrações de sapatos com os respectivos preços, sapatos que eram verdadeiros sonhos naquele ano de 1950.

— Alguma coisa tem de acontecer! — berrou Runzenmann pelo telefone ao seu amigo do peito, Huebner, e continuou: — Não podemos aceitar uma coisa dessas! Já me informei junto à Associação. Não há nada a fazer! Ele pode vender sapatos ao preço que quiser. É a velha canção. Os calçados de marca são tabelados, mas o cara o que faz? Importa do estrangeiro! Aí calcula um lucro tão baixo que só dá para passar manteiga no pão, mas a quantidade acaba por lhe fazer o volume desejado. São preços de batalha! Se ele quiser guerra, ele a terá! Ao lado deste Kurowski, Paskoleit podia ser considerado um cavalheiro! O camarada, mal chega do campo de prisioneiros soviético, já começa a chutar todos os comerciantes honestos no traseiro! Mas eu vou reagir! O que pretende fazer, Huebner?

Huebner, mais prudente, de qualquer modo obrigado a se retrair um pouco devido a sua posição de tesoureiro da Associação dos Comerciantes Varejistas de Calçados da Alemanha Ocidental, e não sendo, principalmente, tão estourado quanto Runzenmann, respondeu com cautela:

— Ainda estamos pensando — disse pausadamente.

— Vocês ficam pensando até morrer! Devemos permitir que esse bobalhão da Prússia Oriental fique, o tempo todo, cuspindo em nossas caras?

Runzenmann espumava de raiva. Rasgou o jornal — Huebner ouviu-o pelo telefone — e jogou-o contra a parede.

— Eu tenho cinco lojas a perder.

— Deveríamos juntar-nos para formar uma sociedade de compra — disse Huebner.

— Sociedade. Não posso nem ouvir esta palavra! Estamos, por acaso, na Rússia?! E depois, quanto tempo vai levar até que tenhamos juntado tantos colegas para que a coisa valha a pena? — Runzenmann latia como um cão acorrentado. — Não, Huebner, tenho uma idéia melhor. Tenho um sobrinho que trabalha na administração municipal. Isso me possibilitará acesso ao dossiê sobre a vida particular de Kurowski. Quero ser mico de circo se não acharmos alguma nódoa. E esta nós nos encarregaremos de inflar até formar todo um pântano!

Runzenmann estava certo. O sobrinho aplicado da administração municipal de Leverkusen achou, mesmo, uma manchinha: Kurowski pertencera, de 1935 a 1945, à Frente de Trabalho Alemã e, em 1938, fora até mestre-artesão oficial do Distrito de Ortelsburg.

— Oba! — exclamou Runzenmann ao ver o extrato do arquivo particular, e disse, sempre exultante: — Oba! Kurowski vai virar um supernazista! Até conseguir limpar seu nome estará falido. Vamos colocá-lo na prensa e é agora...

Existia, naquela época, uma prática introduzida pelas tropas aliadas de ocupação, muito útil, mas também, com freqüência, muito mal empregada: a desnazificação. Deviam comparecer diante de um tribunal extraordinário todos aqueles que, ao tempo de Hitler, haviam exercido algum cargo, pertencido ao Partido ou a outras organizações nazistas. Em seguida os sentenciados eram classificados como simples colaboradores (isentos de pena) ou nos Grupos IV-I. Pertenciam ao Grupo I os criminosos de guerra diretos, que eram transferidos para tribunais normais, sendo toda sua fortuna confiscada pelo Estado. No caso de Kurowski — assim esperava Runzenmann —, poder-se-ia chegar até o Grupo III. Seria o bastante para atirar a Westschuh no abismo. Se era possível levar aos tribunais extraordinários celebridades como Sauerbruch e Furtwaengler, Gustav Gruendgens e Werner Kraus, Emil Jannings e Krupp, o caso Kurowski era café pequeno e, se ele apodrecesse, ninguém iria se incomodar.

Uma semana depois da Páscoa a intimação estava sobre a mesa. Ewald Kurowski leu a missiva oficial com muita calma, depois disse alto:

— Erna, aos poucos a Alemanha está voltando ao normal, os alemães estão começando a enlouquecer de novo. Aqui está escrito que eu teria sido um nazista! — E telefonou para Franz Busko e Heinrich Ellerkrug.

Busko chegou logo trazendo o livrinho de honra do Partido, de número 305.

— É a melhor proteção, mestre — disse. — Toda acusação contra um velho membro de nosso Partido não dá em nada. Cortaremos o mal pela raiz.

E Ellerkrug disse:

— Vá, Ewald. Deixe-se desnazificar. Assim terá sossego pelo resto da vida. Você sabe em que direção estamos navegando? O que será da Alemanha? No momento vamos bem, estamos em ascensão. Mas será que continuaremos assim? O que acontecerá dentro de cinco anos? Dez anos? Perdemos a guerra como jamais um povo perdeu uma guerra. Não existem prognósticos para o futuro. Mas uma coisa sempre é bom ter, aconteça o que acontecer: roupa limpa. Lavada oficialmente. Acho que você deveria submeter-se.

— Sempre tive roupa limpa! — disse Kurowski, cheio de amargura, acrescentando: — Mestre-artesão distrital. Não é nenhum cargo político. E a Frente de Trabalho? Éramos todos membros! E quem vai me descontar os anos passados na Rússia? A Sibéria, o comando de derrubada de árvores, a serraria da taiga?

— Só o bom Deus, Ewald.

— Ele não vende sapatos! — Kurowski dobrou a intimação com muito cuidado e colocou-a no porta-documentos. — Explicarei àquela turma do tribunal como se derruba vidoeiros centenários num frio de cinqüenta graus abaixo de zero

Tudo foi bem diferente do que Kurowski esperava O tribunal especial, formado de juizes leigos e antinazistas declarados, independente, neutro e objetivo, mas também capaz de olhar só para a frente, nunca para a esquerda ou para a direita e muito menos para trás, e ainda reforçado pela presença de três cupinchas de Runzenmann, não deixou Kurowski abrir a boca O que acontecera na Sibéria era irrelevante... Importante e condenável era o que levara Kurowski, em 1938, a tornar-se mestre-artesão distrital de Ortelsburg. Cortar lenha na taiga era uma conseqüência da guerra, mas mestre-artesão distrital sob Hitler e pertencer à Frente de Trabalho, isso era voluntário.

Após uma audiência de meia hora, Ewald Kurowski saiu da sala como nazista do Grupo III. Não estava deprimido ou explodindo de raiva, apenas triste. Busko, Ellerkrug e Erna, que assistiram à parte pública do julgamento, sentados lá no fundo junto à parede, apressaram-se em chegar ao saguão e introduzir Kurowski em seu meio.

— Mestre, pela última vez... o livro do nosso Partido! disse Busko. Estava pálido.

Grupo III! Isso significava a proibição de exercer seu ofício até que se esclareça tudo, até se concluir que Kurowski tornara-se um bom democrata e alemão.

— Vá à merda com o Partido! — rosnou Kurowski.

Postou-se à janela e olhou a cidade. Por toda parte viam-se ainda as ruínas das casas, mas também por toda parte erguiam-se construções para o céu. Dos escombros nascia uma nova era.

— É possível uma coisa assim nesta Alemanha? — disse baixinho.

— Só na Alemanha! — A voz de Ellerkrug estava rouca de revolta. — Sempre fazemos tudo a duzentos por cento. A ditadura, a democracia. O próprio alemão é seu maior inimigo. As guerras não são necessárias, o alemão sempre destrói a si mesmo. O resto do mundo só precisa ter paciência para esperar. Se isto continuar assim, Ewald, dentro de uns vinte ou trinta anos estaremos comendo nossa própria merda.

— Agora só depende de amanhã, Heinrich.

Kurowski voltou-se. Os juizes do tribunal extraordinário estavam deixando a sala de audiências. Ao passarem por Kurowski preocuparam-se em não olhar para os lados.

— Vou recorrer.

— E eu tomo conta dos negócios, mestre — exclamou Busko. — Tenho três sapateiros no Partido; eles me ajudarão com prazer! — Eles nem podem fechar as lojas! — disse Ellerkrug Afinal de contas, eu também sou sócio.

— Mas eu não permitirei que me encostem assim sem mais nem menos!

Kurowski tomou o braço de Erna. Esta lutava contra as lágrimas e foi corajosa o bastante para não chorar.

— Venha — disse —, nada disso é capaz de nos arrasar. Arregaçarei as mangas...

Mas arregaçar as mangas não bastava. O tribunal só se reuniria em segunda instância em setembro, e até lá Kurowski podia ficar passeando. Fez o melhor que pôde. Viajou para Colônia e Duesseldorf, Krefeld e Solingen, Wuppertal-Elberfeld e Remscheid. Em toda parte emergiam novas cidades das ruínas; era co mo nos tempos da corrida do ouro na América: as pessoas vinham do campo para invadir os centros conglomerados, como designavam as autoridades, as construções novas expandiam-se para além dos antigos limites urbanos.

— Os tempos do pé no chão já se acabaram há alguns séculos — disse Kurowski, no final de agosto, a Ellerkrug, que viera de Pirmasens. Tinha agora, como Kurowski também, um Mercedes branco e estava construindo uma casa de campo — Calçados, roupa e comida, tudo isso vem junto. Heinrich... reuniremos todo o nosso dinheiro, abriremos crédito em bancos e fundaremos lojas em mais sete cidades diferentes! Dei umas olhadelas por aí. Com nossos modelos italianos ninguém poderá conosco.

E mais uma coisa — disse Ellerkrug, orgulhoso. — Eu consegui assinar um contrato com a fábrica de calçados Fabrizzi. em Pisa: a Fabrizzi nos fornecerá os modelos, as fôrmas, o couro e o verniz, e nós montaremos tudo em Pirmasens. Fabricação sob licença. Daqui a dois anos não teremos mais dor de dente

Para Runzenmann foi quase um golpe mortal quando soube que a Westschuh abria novas lojas em sete cidades.

— Agora está explicado — disse Huebner, cabisbaixo. — E o Ellerkrug que está por trás de tudo. Por enquanto ainda não se sabe, no ramo, o que ele está preparando, mas devem ser coisas sensacionais.

— Então vamos atacar Ellerkrug! — berrou Runzenmann.

— Não adianta. Heinrich Ellerkrug é um homem íntegro.

— Não há ninguém que não tenha algum podre.

— Mas o de Ellerkrug é microscópico, ninguém vê nada. Meu caro Runzenmann, com mais estas sete a Westschuh é dona de uma cadeia de onze lojas. E haverá outras, pode ficar certo. Kurowski está se tornando o mesmo que Kaisers e Tengelmann no ramo dos produtos alimentícios. Por isso eu decidi trabalhar em colaboração com Kurowski.

— O senhor o quê? — berrou Runzenmann. — Seu traidor!

— Trata-se de minha sobrevivência, Runzenmann. Vou me associar a Kurowski. Comigo, Kurowski passará a ter quinze lojas.

Desligou antes que Runzenmann pudesse despejar sobre ele mais ofensas.

A onda de desnazificação, entretanto, era impossível de conter. Kurowski fora jogado no moinho — e este funcionava. Na escola eram as pancadarias entre Ludwig e Peter e os colegas que não paravam de gritar “nazistas, nazistas!”, e a pequena Inge, de um dia para outro, não tinha mais amigas; no dia de seu aniversário, para o qual convidara metade da classe, ficou sozinha, chorando diante de uma mesa toda enfeitada e iluminada com velas. Era o oitavo aniversário de Inge.

— Não chore, minha gatinha — disse Kurowski, forçando-se para parecer alegre. — O oito, para os Kurowski, não é um número de azar, mas sim de sorte. Qual é mesmo nosso lema?

— Não nos deixaremos abater... — soluçou Inge. — Mas quem vai comer todo o bolo, papai?

— Em meia hora não vai sobrar mais nada, isso eu prometo! Kurowski dirigiu-se ao telefone e ligou para Franz Busko.

Fazia um mês que Busko trabalhava em regime de tempo integral na direção do Partido, viajando, pronunciando discursos e mais discursos, no fundo todos iguais, mas sempre fazendo sucesso porque diziam o que todos pensavam, ou seja: “É preciso melhorar!” Esperava entrar no Parlamento como deputado no dia em que houvesse de novo algo assim como um Reichstag ou coisa parecida.

Busko escutou a proposta de Kurowski, disse “imediatamente, mestre’’, e começou a agir. Meia hora mais tarde — conforme o prometido —, parou um ônibus grande diante da casa da Nordstrasse, 34. Catorze crianças do orfanato saltaram, levando flores do campo, deram parabéns a Inge, muda de espanto, e logo avançaram sobre o bolo e o chocolate quente. Foi uma das festas de aniversário mais bonitas da vida de Inge. As crianças do orfanato, que também formavam um coro infantil, cantaram todo o seu repertório. Juntou gente da rua, repórteres dos jornais e até um comentarista da Rádio Alemã de Colônia, que, avisado às pressas (Busko pensara em tudo), se encarregara da promoção popular. Não para Kurowski, mas sim para Franz Busko... o motivador da felicidade das crianças do orfanato.

— Desgraçado, ele não é nada bobo — disse Kurowski na manhã seguinte a Erna, cheio de admiração, ao folhear os jornais, e comentou: — Quando me lembro dele lá em Adamsverdruss, sentado em seu banquinho de sapateiro, pregando tachinhas... O Busko ainda vai nos passar a perna... Contanto que não despenque lá de cima com seu Partido...

 

O segundo julgamento terminou igual à batalha de Hornberg. Não deu em nada; Kurowski continuou enquadrado, e além do mais conseguiu ofender de tal modo os membros do tribunal que ainda lhe puseram nas costas três acusações de desacato à autoridade. Foi tudo incluído nos autos e, em se tratando de ofensas políticas, houve até intervenção do promotor público, que moveu uma ação penal.

A exclamação revoltada de Kurowski — “Não me responsabilizo diante de idiotas políticos... Vou para casa! Jogarei sua sentença na privada!” — deu para encher várias páginas.

Sete advogados foram encarregados do caso. Busko não podia usar o Partido, o que seria totalmente errado naquele momento. Ellerkrug ficou em Leverkusen consolando Erna, vendo que Kurowski estava se tornando igualzinho a seu cunhado Paskoleit: bastava um olhar atravessado para que ele virasse uma fera.

— Este está acabado! — rejubilava-se Runzenmann. — Está acabado! E com o Ellerkrug eu me arranjo. Mas tudo que leve o nome Kurowski ou Paskoleit eu esmago.

A audiência no terceiro tribunal realizou-se numa sexta feira pela manhã, em Colônia, em fevereiro de 1951 A família Kurowski, na qual se incluíam Busko e Ellerkrug, compareceu em peso, novamente fazendo parte da assistência. Havia representantes da imprensa e do rádio, cuja presença Busko conseguira garantir; afinal de contas, tratava-se de um processo para livrar três juizes desnazificadores da acusação de idiotas políticos.

Quando todos se levantaram à entrada do júri, Busko ficou boquiaberto.

— Não é possível — disse baixinho a Erna, que estava em pé a seu lado. — Mestra, dê uma olhada no presidente do júri. Reconhece-o?

— Não.

Erna olhou melhor para aquele senhor alto, pesadão e com um ar de dignidade. Parecia fechado, inatingível, um homem de lei. Acenou altivamente e todos se sentaram. Só Franz Busko permaneceu em pé. Quando o juiz lhe lançou um olhar de reprovação, Franz inclinou-se para Erna.

— Mestra — disse baixinho — lembra-se... O treck, o primeiro-tenente da Cruz da Ordem dos Cavaleiros, o juiz de campanha que o mandou enforcar numa árvore, o cara que depois estava no navio com os refugiados... Vovô escreveu o nome dele e o mestre Julius tinha um papelzinho, nós todos, as crianças, eu e a senhora também, mestre. Espere... ainda tenho o papelzi­nho em meu porta-documentos. Vovô tinha dito: não se esqueçam nunca deste nome, nem que cheguem aos cem anos de idade... Aqui está, mestra...

Busko tirou uma folha amarelada e amassada, arrancada de um caderninho, de seu porta-documentos, com a letra vigorosa do avô Jochen, escrita sobre um caixote na carroça, em meio à tempestade de neve e à geada, a sua frente o mar Báltico, às costas o avanço dos regimentos russos.

— Dr. Eberhard Bollow, é ele, mestra. Aquele ali é o juiz de campanha Bollow. E é ele que quer condenar meu mestre Kurowski? E o que vamos ver...

Busko deixou a sala de julgamentos. Fê-lo, de propósito, com bastante alarde, e na mesma hora o dr. Bollow berrou:

— Silêncio! Que comportamento é este? Declaro aberta a sessão contra...

A porta bateu atrás de Busko.

Dez minutos mais tarde — Kurowski estava sendo interrogado — chamaram o juiz do Tribunal Estatal, dr. Bollow, para fora.

Voltou após cinco minutos, pálido, transpirando, bastante arrasado, e adiou o julgamento alegando algum mal súbito. Em seguida virou-se e abandonou rapidamente a sala. Parecia estar fugindo.

Passados oito dias, o processo foi arquivado. Por falta de provas, disseram.

— E agora — perguntou Kurowski —, o que acontecerá em seguida?

— O mesmo de sempre, mestre. — Um sorriso espalhou-se pelo rosto de Busko. — O tribunal especial cometeu um engano. O senhor será classificado como simples colaborador.

— É verdade — concordou Kurowski com amargura. — Fui colaborando até a Sibéria. É nojento pensar que precisamos usar de subterfúgios para garantir nossos direitos! A humanidade não aprende... nem cinqüenta e cinco milhões de mortos foram suficientes para clarear seus cérebros. Um cão que mija onde não deve leva uma surra e passa a evitar aquele lugar... mas o homem volta a fazer sempre a mesma coisa! Não dá para entender!

— Bobagem ficar pensando sobre isso, mestre — disse Busko, o político nato. — A vida continua...

 

E a vida continuou. Foram cinco anos de sucesso.

Ewald Kurowski escreveu em seu diário:

Escrevo para as gerações futuras, embora saiba que mais tarde ninguém desejará lê-lo.

 

Entre outras coisas, ele dizia:

 

Se pudermos dizer que Deus abençoou alguém, então nós fomos abençoados. Hoje, 12 de julho de. 1955, possuo dezenove lojas de sapatos, um comércio atacadista com um depósito de três mil metros quadrados, cento e quarenta e quatro vendedores, empregados, contadores, operários, motoristas, dez caminhões, uma casa de campo em Everkotten, dois automóveis e uma conta bancária pela qual se pode dizer: “Kurowski é algo assim como um milionário’’. Não estou orgulhoso por causa disso, apenas agradecido. Agradeço a meu cunhado Julius Paskoleit, que lançou a pedra fundamental de tudo, agradeço a meu amigo Ellerkrug, agradeço a meus ótimos filhos, agradeço a Franz Busko, que realmente está sentado lá no Bundestag e faz discursos em Bonn, e em primeiro lugar agradeço a minha mulher, Erna... a mulher de maior bondade e coragem, e a mais maravilhosa da Terra...

 

Em 14 de julho Ewald Kurowski viajou a Bad Neuenahr para um tratamento de saúde.

O médico o examinara a fundo, não só auscultando coração e pulmão e medindo a pressão, dizendo “Precisa de repouso!”, mas também mandando tirar uma quantidade de sangue de Kurowski, que foi encaminhada ao laboratório para, três dias depois, saber os resultados.

— Aí está, a maior complicação... — disse, alto, o médico da família.

Era a única maneira de falar com Kurowski. Já tratara de Julius Paskoleit e pregara-lhe os mesmos sermões que agora dirigia a Kurowski. Não foram de grande valia, o que ficou provado pela morte de Paskoleit no meio da estrada. Mas aquela morte era um aviso permanente para Erna. Fora ela que carregara o marido ao médico, como uma domadora que puxa atrás de si um urso treinado, mas teimoso. Havia muitos sinais de que a saúde inabalável de Kurowski estava alterada. Estava meio gordo, respirava com dificuldade, manchas vermelhas tingiam-lhe as faces e, volta e meia, tinha crises agudas de gota. A articulação do dedão do pé inchava até o dobro do tamanho, impedindo-o de andar, e ele engolia montes de comprimidos. Numa dessas ocasiões, Ludwig, o filho mais velho, disse:

— Continue assim, pai. Assim você conseguirá arruinar seu fígado!

— Estou ótimo de saúde — rosnou Kurowski.

— O senhor ainda dirá a mesma coisa quando estiverem fechando seu caixão, hein?

— A prisão não fica grudada nas roupas...

— A prisão já foi há muito tempo e já virou história! Por que será que sua geração flerta com a guerra e a Sibéria até hoje? O relógio aí dentro é que está com defeito! — disse o médico, apontando para o ventre de Kurowski

— O senhor esteve na Sibéria? — perguntou, teimoso, Kurowski.

— Sim. Fui até médico de um campo. Quanto engordou?

— Talvez uns quinze quilos.

— E a isto o senhor chama de normal, é?

— Tinha muito a recuperar, doutor.

— E agora seu metabolismo está uma droga. Está com cento e noventa de glicose, uma grave hipotonia e uma taxa tão alta de ácido úrico que a gota se espalha por suas articulações. Quanto tempo ainda pretende viver?

— Quero completar cem anos. — Kurowski riu, meio atravessado.

— A julgar por seu estado atual, não completará os cinqüenta! Estou sendo bem claro?

— Sim, só que eu não acredito.

Kurowski vestiu a camisa. “Esses médicos”, pensou. “Estão sempre soando o alarme como uns bombeiros, mas parece que faz parte de sua profissão. Sinto-me bem, nunca me senti tão bem. E o que é glicose? Basta cortar o chocolate e os biscoitinhos que como à noite vendo televisão. É só isso.”

— Seu cunhado Paskoleit também não acreditou... — disse o médico, em tom rude. — Depois entrou naquela árvore!

— Ah! — Kurowski esboçou um largo sorriso — Minha mulher o atiçou, doutor Pense em Julius... Ouço esta frase algumas vezes por dia! O disco já esta velho.

— E em que pensa o senhor?

— Em minhas dezenove lojas...

— Ótimo. — O médico recostou-se em sua poltrona. — Faça o que quiser! Não posso narcotizá-lo. Mas, se fosse por mim, amanhã mesmo o senhor estaria correndo para uma clínica em Bad Neuenahr, nem que tivesse de ser levado à força!

— Estou pagando para ver! — disse Kurowski, deixando o consultório.

Pagou. Ninguém da família soube como Erna conseguiu, mas dois dias mais tarde Kurowski estava de partida para Bad Neuenahr. O filho Ludwig levou-o; Franz Busko sentado no banco de trás do carro como cão de guarda adicional

— Ele é capaz de pular fora do carro no meio da viagem —dissera Erna. — Franz, não o perca de vista enquanto não chegar à clínica.

Quando Kurowski partiu, toda a família ficou na rua acenando.

Erna, loura e de uma ternura maternal, comovente; o filho Peter, de estatura mediana, parrudo como seu tio Paskoleit, ainda meio desengonçado e, aos quinze anos, insatisfeito consigo mesmo e com o resto do mundo, e Inge, treze anos, loura como a mãe, o corpinho quase adulto, bonita e já habituada não só aos assobios dos rapazes, mas também às cantadas e convites de homens mais velhos.

E Ludwig. o mais velho, motorista, estudante de medicina em Colônia, após ter passado no exame com “muito bom”, calmo, equilibrado, já um homem.

— Ele esta saindo da linha — dissera Kurowski certa vez, rindo. Calma e inteligência juntas nunca existiram em nossa família.

Kurowski acenou de volta, depois recostou se e disse, bem alto, para Ludwig e Franz Busko:

— É tudo uma besteira muito grande! Minha saúde está ótima.

Em Bad Neuenahr Kurowski recebeu um belo quarto com sacada dando para o parque particular do Sanatório Renânia. Erna escondera dele o preço das diárias, senão Kurowski nunca aceitaria. Assim achou tudo razoável, cumprimentou os médicos, soube que só seria examinado no dia seguinte e sentou-se na sacada. Era um dia maravilhoso de verão e, no parque, sob os guarda-sóis e em espreguiçadeiras, viam-se os outros hóspedes do sanatório, entre eles uma mulher esguia, bem proporcionada e muito sensual, de cabelo bem preto e brilhante.

Kurowski curvou-se sobre a grade do balcão, contemplou detidamente a bela desconhecida e disse, do fundo do peito:

— Com mil trovões...

 

Um pôr-do-sol numa tarde morna sempre é uma boa oportunidade para estabelecer um contato. Não há nada que torne uma mulher mais romântica e que lhe dê uma ternura inconsciente do que as cores do sol poente. Por que, seria uma boa pergunta para os psicólogos — talvez porque o vermelho é a cor da paixão e porque a noite chegando lembra uma cama.

Kurowski disse para si mesmo: “Meu velho, que sorte desgraçada”, quando, logo depois do jantar (um horrendo suco de legumes, um montinho de ricota desnatada com cebolinha e cinco fatias de pepino cru, que Kurowski engoliu com o semblante carregado, pensando intensivamente num enorme bife à milanesa com cogumelos passados na manteiga), avistou a bela desconhecida na balaustrada do terraço. Seu olhar percorria o parque, que parecia coberto por um véu dourado no reflexo do pôr-do-sol.

Kurowski parou atrás dela, certificou-se de que ninguém o seguira, farejou o perfume terrivelmente excitante que exalava de suas roupas e, sem nenhuma introdução, disse:

— Se alguém tentasse pintar isto aqui, seria ridículo.

A bela mulher estremeceu, a voz a suas costas soara tão repentina, mas ela não se voltou. “Um prussiano oriental”, pensou. “Inconfundível, essa maneira de falar. É assim que falam lá na Masúria. Tio Hubert falava do mesmo jeito. Eu estava lá justo quando os gansos selvagens estavam voltando. Quem pode esquecer algo assim?”

Ergueu ligeiramente os ombros. “Engraçado o tipo de coisas das quais a gente se lembra”, pensou. “Os quadros sucedem-se com a rapidez de relâmpagos, só porque soou uma voz da Prússia Oriental.”

— Já pintei algo assim — disse. A voz combinava com ela. Melódica, um tanto velada, tons envoltos em veludo. — O lago Dargainen à tardinha. Esteve até exposto em Berlim, só que eu não o vendi.

Kurowski começou a limpar o ouvido com o dedo. Podia fazê-lo porque a bela mulher continuava dando-lhe as costas.

— Disse lago Dargainen? — perguntou. — Ou não estou ouvindo bem?

— Não, é verdade. Conhece?

— Como não haveria de conhecer? Sou de Adamsverdruss, mas a senhora não conhece.

— Não.

Voltou-se. Kurowski, até então valente como nunca, perdeu o fôlego. Erna era uma mulher bonita... já como mocinha e hoje como mãe de filhos quase adultos. Mas isto aqui era a pura beleza... Kurowski não encontrou outra palavra. Era perfeito. Era, no linguajar do ramo, um calçado feito à mão, do mais macio couro da Rússia.

— Adamsverdruss é um nome muito bonito. Esses lugares da Prússia Oriental têm cada nome tão original e divertido...

Riu com sua voz profunda, e os pêlos de Kurowski se encaram.

— Moevenort... Ringelau...

— Swainen e Spullen... — disse Kurowski, sem fôlego.

— Kniepkten e Mehlsack...

— Nautzwinkel e Gross Puppen! — exclamou Kurowski.

— Suessenberg e Klotainen! Klackendorf e Sackstein...

— Uma terra incomparável!

A bela mulher riu, encostou-se na balaustrada e curvou-se para trás. Tinha peitos cheios e firmes, Kurowski pôde constatar isto através do tecido leve da elegante blusa. Sentiu um calor sob o cabelo meio grisalho e uma estranha leveza no coração.

— É verdade que, entre essas, Adamsverdruss não pode faltar — disse ela.

— Era uma aldeia bonita. — Kurowski inclinou-se. — Permita-me: sou Ewald Kurowski.

— Marion Hellbaum.

Ficou olhando-o, o lábio inferior um pouco para a frente. Dava-lhe um ar faceiro e Kurowski pôs-se a imaginar qual seria sua idade “No mínimo trinta”, pensou, “no máximo quarenta. É difícil dizer no caso de uma mulher tão maravilhosa.”

— Kurowski? — perguntou de chofre. — Da fábrica de alumínio?

— Não diretamente, embora utilizemos alumínio como suporte em nossos calçados. Kurowski da Westschuh. Leverkusen. Mas temos de falar sobre isso?

— Não.

— Eu vim aqui para uma cura de repouso. O médico achou necessário. Resolvi fazer-lhe este favor... Sempre que discutimos com os médicos eles se tornam logo desagradáveis e começam a mencionar caixões! Mas, a julgar pelo que me deram para comer hoje à noite, não acho que vou melhorar.

— Isto ainda foi principesco! Amanhã de manhã teremos uma xícara de um caldo com aroma de ervas. Só!

— Que horror! E a senhora agüenta?

— Há onze dias.

— E não arranca o papel das paredes de tanta fome?

— Eu tenho cara de quem faz isso?

Kurowski tinha muitas respostas a esta pergunta. Mas justo nessas situações a gente fica sem palavras. Não era um playboy por vocação, a vida inteira só prendera solas e vendera sapatos para sair da lama e subir. Como encontrar palavras para descrever uma mulher tão bonita?

— Se, depois de onze dias, eu tiver sua aparência — disse Kurowski —, claro que como homem, farei uma peregrinação a Roma para me apresentar ao papa como milagre.

Marion Hellbaum tornou a rir. Kurowski estava orgulhoso. Parecia ter falado bem. Tinham travado conhecimento. A pergunta seguinte, é lógico, foi:

— Quanto tempo ainda vai ficar em Bad Neuenahr?

— Mais duas semanas. E o senhor, sr. Kurowski?

— Três semanas! Considerando a comida que me espera, vai parecer três anos! Mas de uma coisa tenho certeza, agora: duas semanas eu agüento, nem que tenha de comer capim!

— Obrigada — disse Marion Hellbaum, pousando a mão no antebraço de Kurowski. Era como se choques elétricos percorressem seu corpo.

— Por que agradece? — perguntou.

— Foi um elogio e tanto...

Kurowski foi tomado de surpresa, que logo se transformou em confusão. “Então é assim”, pensou. “Este foi meu primeiro elogio.” Outrora, com Erna, dissera apenas “Gosto de você, garota”, e tudo estava certo. Desde então nunca mais olhara para outra mulher. Erna tomara conta de seu mundo. Era impossível imaginar uma vida sem ela. Mas agora, de repente, existia algo mais, que Kurowski enfrentava pela primeira vez: uma aventura com uma mulher. Era um sentimento novo que fluía pelo corpo como fogo. Kurowski nem tentou lutar contra aquilo — era uma luta perdida desde o início.

Naquela noite foram passear no parque. Kurowski falou sobre Adamsverdruss e Leverkusen, sobre sua cadeia de lojas e a guerra. Contou tudo. Só deixou de mencionar Erna e as crianças. Nem Marion Hellbaum perguntou se era casado ou se tinha filhos. De ambos os lados ignorou-se o assunto e Kurowski chegou à conclusão de que, nessa base, seria possível suportar duas semanas de férias, mesmo com uma alimentação das mais frugais.

De volta a seu quarto — Marion morava abaixo dele, diagonalmente para a esquerda, quarto 18 —, Kurowski andou, inquieto, para lá e para cá; foi até a sacada, sorveu o ar com avidez, lançou um olhar de esguelha para a esquerda, a luz de Marion ainda estava acesa, voltou ao quarto, bebeu água da torneira (cerveja era proibido), depois sentou-se à mesa e escreveu um cartão-postal para Erna e as crianças.

 

O primeiro dia já passou. Se vocês soubessem o que me dão para comer iriam chorar. Mas vou ficar firme! Como diz um Kurowski: “Não nos deixaremos abater!” Aqui também não. Um beijo para todos. Seu pai.

 

Releu o cartão e se deteve no tema.

— Acho que, pela primeira vez, algo vai dar errado... — disse, tomado de uma premonição. — Meus antepassados não conheceram nenhuma Marion Hellbaum...

Quatro dias mais tarde já se chamavam pelo primeiro nome; no quinto, beijaram-se. Demorou mais que Kurowski supusera de início. Mas a primeira vez que puxou Marion para si e a beijou sentiu que, com isso, abria a porta a uma série de problemas. O primeiro passo para trair Erna fora dado e o que viria em seguida ainda poderia ser freado, mas ele não queria. Tentou justificar-se em segredo, invocou os anos perdidos na guerra, a prisão... mas nada disso era motivo bastante para esquecer Erna, nem mesmo por nove dias. E seriam mesmo só nove dias? Marion Hellbaum morava em Wesel. De Leverkusen a Wesel não era longe, o Mercedes faria o trajeto em pouquíssimo tempo, e, se a coisa com Marion continuasse depois de Bad Neuenahr — e continuaria, Kurowski já sabia disto porque não se larga uma mulher assim —, tempos difíceis começariam para a família Kurowski.

Àquela noite, depois do jantar, Kurowski preparou-se para procurar Marion no quarto 18. Tomou banho, barbeou-se mais uma vez, borrifou-se com um perfume masculino comprado no dia anterior, contemplou-se no espelho e achou que não estava nada mal, um pouco gordinho (mas era por isso que estava ali), olhos claros, límpidos, e um rosto bonachão. Era um traço enganador, porque o avô Jochen também tivera um rosto bonachão, como aliás todos os Kurowski, mas quando se punham a berrar era de fazer espumar no copo a cerveja mais choca.

Naquela noite Franz Busko telefonou.

— Como é, mestre, como é que vamos?

— Bem — rosnou Kurowski.

Tornara-se monossilábico. “Maldição, não é nada fácil trair a Erna”, pensou. “Preciso de um pilequinho. Mas como? Até hoje ninguém conseguiu embebedar-se com suco de legumes.”

— Como é a comida?

— É o que deveriam obrigar vocês no Bundestag a comerem!

— E no mais?

— No que mais? — baliu Kurowski.

— O senhor sabe, mestre... no mais...

— Eu quero me recuperar e emagrecer! — berrou Kurowski. — Aliás, por que nunca me disseram que eu precisava de uma temporada numa clínica?! — perguntou.

Esta observação foi totalmente inoportuna. Busko, treinado a ler nas entrelinhas parlamentares, desconfiou do que se passava em Bad Neuenahr. Ligou logo para Heinrich Ellerkrug e disse:

— Heinrich, mesmo que já esteja deitado, vá até Neuenahr. O mestre está no cio. É, é o que estou dizendo! Eu já desconfiava! Não, não precisa ser hoje, amanhã está bom. E leve a mestra, mas sem as crianças. Eu também deveria ter ficado em Neuenahr. Sempre as mulheres...

Ellerkrug desligou bruscamente. Busko podia falar. Desde que estava no Bundestag tinha um caso com uma secretária e comprava — também ainda era diretor da Westschub — peles e jóias. Alugara um apartamento em Godesberg para ela e planejava passar as férias de inverno em Davos.

Ellerkrug não conseguiu mais pegar no sono aquela noite. Ficou pensando em Erna e em sua fidelidade inabalável a Ewald.

Kurowski também não dormiu. Deitado no quarto 18, com Marion na cama a seu lado, a mão direita pousada em seu magnífico corpo nu, olhava fixamente para o teto e pensava: ‘‘Foi lindo, mas... Kurowski, você é um porco...”

Ellerkrug sentiu-se um miserável ao chegar inesperadamente em Leverkusen, propondo a Erna irem visitar Ewald em Bad Neuenahr. De surpresa. Bem, não seria tão de surpresa assim; ninguém desejava causar uma tragédia e Busko, encarregara-se de telefonar a Kurowski para preveni-lo. Qual seria a reação de Kurowski, na verdade, ninguém sabia. Quando um homem vagueia por sua segunda primavera, não escuta mais o uivo dos ventos nem sente a chuva. Só percebe o aroma das flores. No caso de Kurowski deviam ser campos floridos inteiros... Não era à toa que ele era um Kurowski!

— Ele nem gosta desse tipo de surpresas — disse Erna.

Ellerkrug teve a impressão de que ela desconfiava de alguma coisa. Até então, Kurowski enviara dois cartões com as frases mais bobas. “Aqui brilha o sol, eu estou bem, perdi um quilo e meio, como vão vocês?” São cartões assim que escreve um homem que vai passar uma temporada numa clínica pela primeira vez na vida?

— É por isso mesmo que vamos até lá! — disse, cabisbaixo, Ellerkrug.

— Ele vai se zangar, Heinrich.

— Quem se zanga quando recebe a visita da mulher?

— Sem os filhos?

— Sim. Só você!

Erna fitou-o por algum tempo. Ambos estavam calados, nem havia necessidade de se dizer mais alguma coisa. Ellerkrug mordiscava o lábio inferior. Continuava apaixonado por Erna e, vendo-a sentada ali, num vestido moderninho de verão, o cabelo louro suavemente ondulado, bondosa, maternal, um pedaço de céu da Prússia Oriental, do lado da Masúria, da floresta de pinheiros, de tudo o pedaço mais bonito, ficou tentado a viajar sozinho para Neuenahr para dar um soco na cara de Kurowski.

— Vou ficar — disse Erna, finalmente. — Não devemos perturbar a cura de Ewald.

— Talvez faça parte da cura, Erna, você ir vê-lo agora mesmo — disse Ellerkrug, num tom sombrio.

— Qual é o nome dela? — perguntou, de chofre.

— Não tenho a mínima idéia.

Descuidara-se. Levantou-se de um salto e foi para junto da janela. O amplo jardim da casa de campo florescia em centenas de cores.

— A que horas partimos? — perguntou ele.

— Devo correr-lhe atrás?

— Você passou anos esperando por ele.

— Estava desaparecido. Agora está aqui... é diferente. E eu estou mais velha... Quarenta e um anos...

— E isso é idade para uma mulher? Ele tem cinqüenta e um... Maldição, sim, para o homem é um precipício sobre o qual ele precisa saltar... é a vontade de ser jovem quando não se tem mais a juventude. Ele precisa de sua ajuda, Erna.

— Certamente ela é mais bonita que eu, mais elegante, culta, fina.

— Mas você é Erna Kurowski! Sem você e Paskoleit, Ewald seria, agora, um zero à esquerda! Ele deve tudo a você!

— Esta é uma coisa que não se deve dizer nunca a um homem...

— É claro que não. Mas deve-se mostrar a ele que a gente existe! Vamos, viajemos imediatamente para Neuenahr.

Passaram em Colônia para pegar Ludwig, o mais velho.

— Hoje à tarde tenho um curso de recapitulação de anatomia! — exclamou Ludwig, e continuou: — Que besteira ir visitar papai em Neuenahr de surpresa!

— Os ossos continuam sempre iguais! — gritou Ellerkrug, como resposta. — Mas, quando sua mãe pede que você a acompanhe, isto é mais importante! Entre aí. Não sei como é que um boboca destes pode chegar a ser médico!

Franz Busko, nesse meio tempo, encontrava-se junto ao telefone em Bonn, esperando que localizassem Kurowski em Neuenahr. Este e Marion estavam no salão de chá, comendo bolo dietético e tomando chá sem açúcar. Depois foram assistir ao concerto no parque. A felicidade era completa. Esvaíra-se o remorso da noite anterior quando amanhecera. Marion, com ternura, puxara-o novamente sobre si, para que ele possuísse aquela maravilha de mulher; esta sensação de triunfo era mais forte que qualquer lembrança de sua família. Assim deve sentir-se um alce que reina sobre o maior e mais belo rebanho.

No sanatório vieram correndo na direção de Kurowski, para informá-lo de que o chamavam, sem interrupção, do Bundestag.

Kurowski foi atender e ouviu a voz de Franz Busko:

— Mestre, onde foi que se meteu? Alarme! A mestra vai aí, já deve estar entrando pela porta...

Desligou antes que Kurowski se pusesse a berrar. Para escapar a um Kurowski era necessário ser mais rápido do que ele.

— Era um amigo — disse Kurowski a Marion, ao voltar do telefone. — Franz Busko, o membro do Parlamento. Um assunto de exportação de couros. Amor, teremos de cancelar parte de nosso programa. Vou direto trabalhar em meu quarto. Não poderei acompanhá-la ao concerto hoje. Não fique chateada, amorzinho... compensaremos depois.

Apertou a mão de Marion e correu para o elevador.

Chegando ao quarto, tomou uma ducha quente para tirar o perfume de Marion da pele, destruiu tudo que havia de comprometedor em seus bolsos: duas entradas de cinema, dois ingressos para o concerto, dois passeios de charrete para Muenstereifel, duas excursões de vapor pelo Reno, sempre duas, duas, duas. É espantoso quanta coisa é possível fazer a dois em tão poucos dias... e estava pronto para esperar por Erna. Como era para ser uma surpresa total, tinha de entrar no jogo. Tirou os sapatos, deitou-se na sacada e esperou.

O sol poente já começava a tingir o céu — Kurowski viu nisso uma bofetada secreta do destino — quando bateram à porta.

— Entre! — gritou. — Deixe esse suco desgraçado na mesa, senhorita! Sem ele não teria o que sonhar!

“Isso funciona”, pensou. “Erna vai ver como eu sigo tudo à risca.” Aguardou, e como nada se mexesse, voltou-se.

Marion estava no quarto. Naquele instante estava se deitando na cama e parecia saída de um conto de fadas.

— Mas o que é que você está fazendo aqui? — gaguejou Kurowski. — Pensei que estava no concerto.

— E eu pensei que você estivesse trabalhando.

— E o que eu estou fazendo. Estou pensando. Aguardo alguns telefonemas de Bonn...

— Adoro homens que pensam. — Marion espreguiçou-se na cama. — Gosto de assistir quando os homens pensam. Talvez você precise de ajuda, amorzinho. Cada homem tem sua musa, toda profissão tem algo de poético...

Kurowski, naquela situação, não estava inspirado para poesia. Ergueu-se de um salto, mas não sabia o que fazer. A temida catástrofe viera mais depressa do que pensara. Poderia ter sido evitada, mas Kurowski não tinha a menor prática nesse tipo de coisa e em seu primeiro deslize já levava um tombo.

Antes que pudesse dizer alguma coisa, tornaram a bater.

“Fique lá fora, Erna”, poderia ter gritado. “Pelo amor de Deus, não entre! Eu lhe suplico... Poderemos conversar mais tarde sobre tudo, com calma. Só não entre agora...”

Mas não disse nada. Como que se recuperando de um ataque de paralisia, foi até a porta, passo a passo, como se estivesse reaprendendo a andar e, quando agarrou a maçaneta, Marion perguntou, lá da cama:

— Vem mais alguém, amorzinho? Espere... desaparecerei num minuto... Não sabia.

Do lado de fora abaixaram a maçaneta. Kurowski segurou-a, mas quem apertava do outro lado tinha muita força. Não foi possível impedir que a porta se abrisse e Kurowski desse de cara com seu filho mais velho. Atrás dele, mas ainda no comprido corredor, estava Erna. Triste, loura, com grandes olhos azuis.

— Espere um minuto, mãe — disse Ludwig.

Empurrou Kurowski de volta para dentro do quarto, fechou a porta, fitou Marion — que continuava deitada na cama, olhando tudo com muito interesse —, virou-se e respirou fundo. “Também ele é um Kurowski”, pensou Kurowski. “Agora vai se revelar.’’ Por mais absurdo que fosse naquela hora, isso o encheu de orgulho.

— Meu filho... — disse, hesitante.

Ludwig não disse palavra. Mas após respirar fundo ergueu a mão e bateu no rosto do pai.

 

Kurowski não se moveu. Embora todos esperassem, até o próprio Ludwig, no mesmo instante em que bateu, Kurowski não revidou. Os braços pendentes, de pé no quarto, fitava o filho com os olhos arregalados, mais desconcertado que enfurecido, e estremeceu quando Ludwig, o corpo todo trêmulo de comoção, disse:

— Por que você não ficou lá na Rússia... ?

Foi a coisa mais terrível que se podia dizer a Kurowski. Desde o dia em que uma tropa de choque soviética o surpreendera e ele fora levado com as mãos entrelaçadas sobre a cabeça para esperar, depois, na taiga siberiana, a milhares de quilômetros, pelo dia em que o comandante do campo lhe dissesse: “N.° 295197 pode arrumar suas coisas. Você vai para casa. Foi perdoado, o diabo sabe por que, mas é isto mesmo. Apresente-se amanhã cedo à camarada médica para o exame final”, durante todo esse tempo arrastado e terrível só tivera saudade de uma coisa: Erna e as crianças. E se tivesse de rastejar sobre as mãos e os pés lá da taiga até a Alemanha... cairia de joelhos e iria escorregando...

E agora ouvia de seu filho mais velho, seu orgulho, o futuro médico, o garoto que de todos era o mais parecido com Erna: “Por que você não ficou lá na Rússia...?”

Kurowski voltou-se sem proferir uma só palavra, saiu para a sacada e chorou.

Ludwig, tomado de um furor atroz, tornou a abrir a porta e deu de encontrão com sua mãe, encostada do outro lado. Virou-a, empurrou-a de volta ao corredor e colocou o braço em seu ombro.

— Vamos embora, mãe — disse, a voz rouca —, aqui não há mais nada a fazer. O que precisava ser dito e feito já o foi por mim. Venha, mãe. Conto-lhe tudo lá embaixo. Ainda temos muito que conversar...

Encontraram Heinrich Ellerkrug no elevador. Ficara para trás, de propósito, pressentindo o que estava por vir. “Isto é assunto de família’’, pensara. ‘‘É verdade que indiretamente eu também faço parte dela, mas o que está se passando aqui deve ser resolvido entre eles.” Mas mudou de idéia ao ver Ludwig chegar pisando forte — “Está com o mesmo andar de Paskoleit”, pensou Ellerkrug admirado — e vendo o rosto de Erna começar, muito devagarinho, a se desmanchar em lágrimas.

— O que... o que foi? — perguntou Ellerkrug. — Posso ajudar?

— Vá até o quarto dele!

Ludwig apertou a mãe, abriu, com força, a porta do elevador e desapareceu na cabine. Ellerkrug esperou até que descessem e em seguida deu meia-volta e correu pelo corredor.

Sem bater, abriu a porta e despencou-se para dentro do quarto, no momento exato em que Marion Hellbaum dizia:

— E você se conforma com isso, amorzinho? Se fosse eu, já estaria chegando às últimas conseqüências...

— É isso mesmo que ele vai fazer! — berrou, na mesma hora, Ellerkrug.

Um olhar bastou para que ele compreendesse a situação. Aquela linda mulher — “Maldição, Ewald tem gosto, só que em hora errada!” —, ainda deitada na cama, como se posasse para uma publicidade tipo “Aqui termina o envelhecimento’’, e Kurowski parado à porta da sacada, com os olhos vermelhos e um ar de abandono que inspirava pena.

— Mais um para distribuir bofetadas? — perguntou Marion, num tom impertinente. Pulou da cama e ergueu-se, como uma parede, entre Ellerkrug e Kurowski: — Quantos faltam? Ainda vêm muitos parentes? Ainda vai chegar o titio, a titia, o vovô?!

— Nem pense numa coisa destas — Ellerkrug acenou para Kurowski. — Se estivesse aqui o avô Jochen ou Paskoleit, a senhora teria presenciado uma tempestade prussiana com árvores arrancadas com raiz e tudo, e com telhados voando. Ewald, será que poderíamos conversar a sós?

— Não vou deixar o Ewi sozinho... — intercalou, bufando, Marion Hellbaum.

— Quem é Ewi? Você, Ewald? Meu Deus — Ellerkrug soltou uma estrondosa gargalhada. Sabia: nada é mais letal que cair no ridículo. — Ewi! E de morrer de rir! Poderia ser um bassê. Ewi, venha, venha... sentado, dando a patinha... Ewi, não morda...

— Seu cachorro miserável! — berrou Kurowski. Com a chegada de Ellerkrug recobrara em muito sua pose.

— Eu? Por acaso meu nome é Ewi?

— O senhor é um homem asqueroso! — disse Marion Hellbaum, e girou o corpo na direção de Kurowski. Foi tão rápida que parecia uma acrobata. — Expulse-o daqui, amorzinho. O quarto é seu e você é o dono da casa. Ou quer que eu toque o alarme?

— É uma idéia, Ewi, toque o alarme! Para que todo o sanatório possa ver que não é só de dieta que se emagrece...

Deixou-se cair numa das poltronas, cruzou as pernas e sorriu, afável, a Marion, que tremia de raiva.

— Veja bem, senhora — disse Ellerkrug, bem-educado. — Ewald é um camarada de extrema bondade. Nunca traiu sua mulher e quando olho assim... Ewald, cale a boca!... e a vejo no quarto dele, quero acreditar que Ewald está sendo vítima da aventura que se costuma chamar de “sombra das clínicas”. Ele não conhece essas coisas... Comigo a senhora teria passado horas bem mais agradáveis!

— Eu o odeio! — disse Marion Hellbaum, muito seca. — O senhor é capaz de afastar qualquer mulher de quaisquer pensamentos em relação a um homem.

— Seria uma grande perda para todos nós! — Ellerkrug, mesmo permanecendo sentado, inclinou-se. — Para que eu fique livre de sua presença, basta que a senhora se retire...

— Não brigo com rapazinhos impertinentes.

Marion Hellbaum ajeitou seu magnífico cabelo preto e, através do espelho, ficou observando Ellerkrug e Kurowski.

Como nenhum dos dois se mexesse, virou-se novamente e lançou a Ellerkrug um olhar furioso. Seus olhos negros faiscavam de raiva.

— Em primeiro lugar quero esclarecer que tenho independência financeira. Não estou interessada na cadeia de lojas de Ewald. Está fazendo uma suposição totalmente falsa se estiver pensando deste modo.

Voltou-se para Kurowski e sorriu. Diabos, passou pela cabeça de Ellerkrug a possibilidade de ela o amar de verdade. “Não contava com isto. A coisa está se complicando e cada vez esquenta mais.”

— Cabeça fria, amorzinho — disse ela e saiu. Ellerkrug esperou até que a porta se fechasse, depois olhou para Kurowski, sacudiu a cabeça e bateu com o dedo na testa.

— Sua besta quadrada!

— E tudo que você tem a dizer? — murmurou Kurowski.

— É um idiota declarado!

— Ficar sentado aqui falando bobagens, qualquer um pode — Kurowski andava pelo quarto. Sentia-se podre. O perfume de Marion ainda pairava no ar, pesado e doce. — O que fará Erna?

— Posso imaginar o que ela vai fazer. Mas o que fará você, isto eu ainda não sei.

— Dá-se um jeito, Heinrich.

— Não é tão simples assim. Antigamente, se você prendesse um salto e ele ficasse torto, era só arrancá-lo...

— Erna não é um salto de sapato!

— Justamente! Erna é a mulher mais maravilhosa que eu conheço...

— Sei disto. Você também passou dias e noites correndo atrás dela. E ela topou?

— Não! Ela ficou espetando por você. E você vai e... — Ellerkrug curvou-se para a frente. — Essa morena é uma bela mulher. Admito. Mas não é assim que se faz, de maneira tão tola... Nem assim tão do fundo da alma! Levando a coisa tão a sério! Mas sim um flerte de férias, e depois o esquecimento total.

— Heinrich, deixe-me em paz! Tenho de sair dessa sozinho.

Ellerkrug reparou algo. O tom era novo, de um Kurowski inteiramente mudado.

— É tão sério assim? — perguntou, impressionado.

— Sim. Infelizmente. Esta mulher conseguiu me enlouquecer. Heinrich, não consigo me libertar. Preciso de tempo.

— É o que você não tem. De uma coisa estou certo: Erna não esperará por você mais uma vez.

— E meu filho me bateu. Meu rapagão... Não vou superar isso nunca.

— Só o fez para representar a mãe.

— Não se bate num Kurowski. Nem o próprio filho! Marion tem razão, isso não pode ficar assim...

— Como queira! — Ellerkrug levantou-se bruscamente. — Quando arbustos velhos pegam fogo, deve-se deixar que acabem de queimar! O que digo a Erna?

— Nada.

— Não devo dizer: estou envergonhado, Erna...

— Não!

Kurowski virou-se e foi para a sacada. Parecia ter recobrado sua força. Mas era só fachada, custou-lhe um esforço enorme.

— Um assassino é ouvido, pode defender-se... mas um pai leva, simplesmente, um tapa na cara, só porque... Saia, Heinrich. Vá embora! Preciso ficar sozinho...

Ellerkrug ainda queria dizer alguma coisa, apaziguar, ajeitar a situação, chamar Kurowski de a maior besta de todos os tempos — poderia, também, chutá-lo com força no traseiro para ver se o acordava daqueles sonhos cor-de-rosa —, mas depois só deu de ombros e apressou-se em sair dali.

Kurowski, em pé atrás da cortina da janela da escadaria, de onde se via a entrada e saída dos carros, ficou olhando para fora. Viu Ludwig e Ellerkrug entrarem no carro”, depois Erna, de cabeça baixa, o cabelo louro brilhando ao sol, o passo meio hesitante como se não quisesse entrar no carro, preferindo ficar, mas Ludwig, que já deixara a porta do automóvel aberta, curvou-se para fora e disse alguma coisa. Ela fez um sinal com a cabeça e entrou. Kurowski apertou os dentes. Nunca vira Erna tão frágil, tão cansada, no auge da resignação.

Aguardou até que o carro deixasse a rua particular, afastando-se, depressa, pela estrada, como se Ludwig — que dirigia — estivesse competindo numa corrida de automóveis. “Está com muita pressa de sair daqui”, pensou Kurowski, amargo. “Meu filho mais velho, meu orgulho! E o que contará a seus irmãos? Ao estudante preguiçoso Peter e à linda e precoce Inge? Seu pai está deitado na cama com outra mulher... e eles arregalariam os olhos e, de início, não entenderiam nada. Nosso pai? Traindo nossa mãe?” De repente o mundo dos Kurowski tornara-se desordenado.

Voltou-se, viu Marion Hellbaum no corredor, sorrindo feliz. Trocara de roupa colocando um traje de noite, trabalhado com fios de ouro, seu “vestido de cassino”, como o chamava, e viera buscá-lo... “O que fazer”, pensou Kurowski, “o que fazer, meu Deus?” Encolheu o queixo, escondeu a cabeça entre os ombros e passou por Marion sem uma palavra, rumo a seu quarto.

— Mas, Ewi...! — ainda ouviu a exclamação de espanto, e indignação dela ao fechar a porta.

 

Durante dez semanas Ewald Kurowski ficou sumido.

Depois do tratamento viajara com destino ignorado. Marion Hellbaum interrompera sua temporada em Bad Neuenahr mais cedo e recolhera-se, ofendida, em sua propriedade no campo perto de Wesel. Deixou uma carta para Kurowski.

 

Você poderá vir me procurar, mas só depois que tiver tomado uma decisão definitiva. Você sabe que o amo...

 

Kurowski embolsara a carta. Na manhã em que Marion deixou o sanatório evitou a despedida. Fez uma excursão de vapor pelo Rerib até Bingen e tomou um porre.

A empresa Westschuh continuava como se Kurowski ainda estivesse sentado em seu novo escritório de Leverkusen, um homem largo, forte, um cabeça-dura da Prússia Oriental que se podia colocar no meio de uma tempestade e que retrucava com um berro mais forte do que o uivo do vento.

Ellerkrug assumira a direção. Era dispensável em Pirmasens, as fábricas de calçados funcionavam a todo vapor, tinha dois bons diretores e achava-se agora na obrigação de cuidar de Erna e dos filhos mais jovens.

Raríssimas vezes Erna deixava sua casa de campo. Costumava ficar sentada no terraço, o olhar perdido. Toda vez que ouvia barulho de carro, sua cabeça pulava. Se o carro parasse na rua, levantava-se logo.

— Ela espera e espera... — disse Ellerkrug a Ludwig, que vinha de Colônia aos sábados e domingos. — Dá vontade de chorar! Mas desta vez ele não volta. Agora não é a Sibéria que o prende, mas sim uma mulher! Donde se conclui que uma mulher pode ser mais perigosa que a taiga mais terrível. Você teve alguma notícia de seu pai?

— Não.

Ludwig meneou a cabeça.

— Busko movimentou todo o aparato na medida do possível sem deixar de ser discreto. Papai abandonou Neuenahr dizendo que iria para casa, e desde então ninguém sabe onde está.

— Deve estar no sul da Alemanha. — Ellerkrug mostrou um aviso bancário. — Anteontem foi descontado um cheque de dois mil marcos no Deutsche Bank em Rottach-Egern. Portanto, em Wesel ele não está.

— O que não exclui a possibilidade de aquela mulher estar com ele no Tegernsee.

Ellerkrug passeava de um lado para outro no jardim da casa de campo de Kurowski. De novo, Erna estava sentada no terraço sob um guarda-sol, uma estátua loura e pálida de saudade. Não podia ouvir a conversa de Ellerkrug e Ludwig.

— Não sei — disse Ellerkrug —, mas, em minha opinião, vocês estão todos superestimando o escorregão de Ewald. Não é mais do que isso, mas vocês estão fazendo um bicho-de-sete-cabeças, levando-o a decisões que ele nunca desejou.

— Ele precisa ter consciência da sujeira que fez com mamãe — disse Ludwig. —Já seria um grande passo para a frente! Mas esta teimosia de mamute! Nunca dar o braço a torcer! Jamais abaixar a cabeça! É isto que me dá raiva.

— Se vocês sabem como Ewald é, por que não vão a seu encontro, que diabo?

Ludwig Kurowski parou e olhou na direção da mãe. “Está sentada ali há semanas”, pensou. “Apenas pela respiração ainda se percebe que está viva. Um quadro lamentável. E possível que, em Bad Neuenahr, tenhamos todos reagido com fúria e paixão excessiva; um Kurowski revida quando é atacado, mas são coisas passadas e temos de tirar o melhor partido da situação. Não nos deixaremos abater... Agora, mais do que nunca, precisamos de nosso lema...”

— A qualquer momento papai terá de se manifestar — disse, hesitante, Ludwig. — Não creio que desistirá de Peter e Inge com tanta facilidade, mesmo que não goste mais de mamãe. Quanto a mim, nem se fala. Morri para ele. Mas os mais jovens... Esta é toda a minha esperança...

— A minha também... — disse Ellerkrug.

Era uma esperança muito tênue.

 

Era uma noite cheia de chuva e típica de outono. O vento arrancava as folhas murchas dos galhos, um frio úmido infiltrava-se nas casas ainda abertas do verão, um dia abominável de setembro.

Ellerkrug negociava em Leverkusen com fabricantes de calçados italianos e, depois, levou-os a Colônia e foi com eles a uma boate de strip-tease. Ludwig estava fechado em seu quarto em Colônia, estudando anotações de conferências médicas, Peter saíra para o aniversário de um colega, Inge fora passar a noite na casa de uma amiguinha em Leverkusen. Erna estava sozinha no casarão. Percorreu todos os quartos, aquela solidão repentina era deprimente, sentia-se como enterrada viva numa sepultura pomposa. Nunca, em toda a sua vida, estivera tão só como naquele momento, sempre houvera alguém por perto, jamais tivera a sensação de que ninguém precisava dela. Pelo contrário — sem Erna Kurowski e Julius Paskoleit a família teria perecido afogada na maré vermelha que, naquela época, em 1945, invadiu a Prússia Oriental arrasando tudo.

Mas agora ninguém mais precisava dela. A empresa andava sozinha, as crianças estavam cada vez mais independentes, Franz Busko e seu “E aí, mestra?” também mudara; fazia, agora, discursos pelo Partido em alemão corretíssimo e, do tesouro inesgotável das minutas redigidas por Paskoleit e Ellerkrug nos anos passados, destilava sempre novas falas, clangorosas como fanfarras.

Ellerkrug dedicava-se integralmente aos negócios, quase não dormia. Erna ficava sentada pelos cantos perguntando-se, de vez em quando: “Será que, se de repente eu não estivesse mais aqui, alguém iria sentir minha falta?”

Por volta das dez horas da noite o temporal de outono aumentou. As árvores gemiam no jardim, o vento despia os galhos. Erna Kurowski, atrás das altas portas de vidro do terraço, contemplava as profundezas da noite. Acendera os refletores do jardim que cobriam de uma luz clara os grupos de arbustos, os canteiros de flores e o pequeno chafariz. Erna Kurowski já ia sair dali quando viu o homem entrando no jardim. Chapéu enterrado no rosto, a gola da capa de chuva bem levantada, as mãos nos bolsos, assim veio vindo, passos pesados, pelos arbustos e subiu a escada que levava ao terraço.

Deu um grito, mas não de pavor, era um misto de alívio e alegria selvagem irrompendo de dentro dela. Puxou a tranca da porta, não conseguiu abri-la tão depressa quanto desejava, algo estava prendendo. Então agarrou uma cadeira a suas costas e atirou-a na grande vidraça. O vento soprou a cortina pelo buraco e quase a soltou do trilho, e aí o homem ensopado entrou pelos restos da janela e lá estava ele na sala. Tirou o chapéu, ficou segurando-o como um mendigo, e no fundo era como da outra vez, quando Ewald Kurowski apareceu, de repente, à frente da porta em suas velhas roupas militares, as dobras ainda cheias de poeira da Sibéria. Tinha o mesmo ar indefeso, estava molhado do mesmo jeito, do mesmo modo estava mudo e voltando para casa.

— Entre, Ewald... — disse Erna, a voz falhando. — Meu Deus, como você está! Não ouvi nenhum barulho de carro...

— Vim de táxi até o cruzamento lá embaixo e fiz o resto a pé. Está sozinha?

— Sim, Ewald.

— Eu... eu... — Olhou em volta; a suas costas o vento assobiava pela vidraça quebrada, chicoteando a chuva para dentro de casa. — O tapete está ficando molhado, Erna...

— Suba e troque de roupa! — Falava com dificuldade, o coração batia-lhe como o de uma mocinha apaixonada. — Quer que lhe faça um chá com rum?

— Seria ótimo, Erna. — Kurowski contemplou-a. O olhar de um cão mendigando alguma coisa. — Mandei o táxi voltar daqui a uma hora.

— Não o deixarei sair logo depois do banho com este tempo!

— Obrigado, Erna.

Sorriu, tímido. “O que seria de mim sem esta mulher?”, pensou. “Meu Deus, onde é que eu iria parar? Estas semanas que passei sozinho, nos hotéis, nas cervejarias, embriagando-me todas as noites, foram horríveis. Paguei pelos meus pecados, Erna, pode acreditar...”

— Onde estão as crianças? — perguntou.

— Em casa de amigos.

— Eles a deixaram sozinha? — Caminhou em sua direção, envolveu-a suavemente com o braço, mas não teve coragem de abraçá-la. — Você não ficará só nunca mais, Erna — disse com a voz trêmula —, nunca mais. Acredite em mim...

— Vá trocar de roupa, Ewald...

O rosto dela estremeceu. “Logo vou chorar”, pensou, “mas não quero. Preciso dar-lhe seu chá com rum, ele é muito propenso a pegar resfriados.”

— Deite-se na cama — disse, e agora estava chorando mesmo. — Estava sempre pronta para você... Eu venho logo com o chá...

 

A família Kurowski não desmoronou... ou deveríamos dizer, ainda não? Havia, também, uma nova geração de Kurowski crescendo, e esta via a vida de maneira diferente que a geração da guerra.

A coisa começou no dia em que Peter, o filho do meio, voltou da escola com uma calça justa e um casaco preto e brilhante de couro, e a Cruz da Ordem dos Cavaleiros no pescoço. Chegou, entrou, sorriu para sua mãe, jogou-se numa poltrona diante de Kurowski e bateu as botas na mesinha de centro.

 

Por alguns instantes reinou o silêncio na sala. Erna ficara parada perto da porta, não compreendia nada daquilo, não reconhecia o filho; de repente, caíra em pedaços uma ordem que a família Kurowski passara toda uma vida construindo.

A excursão de Ewald a misteriosos jardins eróticos não mais fora mencionada. Também teria sido fundamentalmente errado. Voltara, retomara seu lugar como se retornasse de uma simples viagem. Até Ludwig, que quase não aparecia mais em casa, ocupado com os estudos de medicina e cheio de ambição de passar os exames finais com um “muito bem”, dissera: “Sinto muito, papai”, e Kurowski respondera, com a mesma simplicidade: ‘‘Tudo bem, meu rapaz. Algum dia ficaremos quites, a vida é longa e cheia de mistérios...” De modo que tudo entrara nos eixos, não houvera mais nenhum desvio, até que veio Peter com seu uniforme de couro para demonstrar aquilo que sua geração chamava de independência.

— Você acha bonito isso? — perguntou Kurowski, após um longo silêncio. Falou com uma calma perigosa. Erna conhecia essa calma, só que Peter, o filho, não percebeu nada. Concordou, pois, dizendo alto:

— Odeio tudo que é burguês.

— De repente?

— Sempre odiei...

— Até hoje você pastou e bebeu da mesa burguesa, foi vestido e fez montes de merda! — Kurowski curvou-se para a frente. — Não é esta a linguagem que vocês entendem melhor?

— Quem gera filhos tem a obrigação de sustentá-los — disse Peter.

— E a obrigação de educá-los. Acho que deixei de cumprir uma de minhas obrigações.

De um puxão Kurowski arrancou a cruz do pescoço de Peter, segurou-a pela fita preta, branca e vermelha, e bateu quatro vezes no rosto do menino com ela.

— Tem cantos afiados — disse. — Está sentindo? Pena que não está sangrando. Porque essa coisa aí custou sangue, muito sangue! Sangue inocente! Cada um que odeia a guerra tem o direito de maldizê-la... Mas isso não pertence a uma cabeça cheia de merda! Seria uma pena! Entendido?

— E como! — Peter levantou-se de um salto. Envolto no couro preto parecia mais alto e magro. — Eles têm razão...

— Eles quem?

— Meus companheiros. Tenho um pai reacionário...

— Peter — exclamou Ema, aterrorizada, lá da porta —, você não sabe o que está dizendo! Ficou maluco?

— Fique de fora, mãe. Por favor.

Peter encolheu a cabeça. Kurowski acabara de se levantar, devagarinho, como se precisasse de um esforço para sair do fundo da poltrona.

— Você não entende nada disso. E uma questão de princípios.

— Não — disse Kurowski —, sua mãe não entende nada disso. Ela só viajou com vocês, semanas a fio, passando pelos regimentos russos, atravessando a laguna congelada num carro de boi aberto, debaixo de bombardeios aéreos, ela só salvou suas vidas trabalhando dia e noite nos tempos mais difíceis para saciar sua fome, ela só viveu sempre para vocês... mas disso ela não entende...

— Meu Deus, por quanto tempo teremos de escutar essa ladainha? — Peter enfiou as mãos nos bolsos das calças. — Guerra de merda, fuga da Prússia Oriental, fome, milagre econômico, seus heróis da reconstrução... dá vontade de vomitar! Será que vocês não percebem que estão sobrevivendo a si próprios? Como são ridículos com seu: “antigamente isso, antigamente aquilo”. Hoje é importante, e o amanhã é importante, e aí vocês fracassam todos. Quem quer saber se você esteve na Sibéria?! Quem está interessado em saber que você cortou madeira na taiga? Você acha que consegue impressionar nossa geração contando como costuravam camisas de sacos de ração? A culpa era de vocês mesmos! Não elegeram esse Hitler? Vocês todos não gritaram “Füehrer ordene e nós obedeceremos!”, estavam todos como doidos... e depois passam cem anos se lamentando porque têm de pagar o preço

— Terminou? — perguntou, calmo, Kurowski.

— Esta foi só a primeira rodada.

— E também a última.

— Você acha?

— Tenho certeza.

Kurowski deu a volta à mesa. Erna juntou as mãos como se fosse orar.

— Deixe, Ewald — disse ela em tom de súplica. — Ele nem sabe do que está falando. Está só repetindo o que ouve por aí.

— Engano seu. Sei muito bem do que estou falando! — gritou Peter, e continuou: — E também já sei de antemão o que esse ricaço que é meu pai dirá: ‘‘Fizemos tudo por vocês! Por tempos melhores!” Como isto me enoja! Vocês trabalharam e trabalharam e cataram dinheiro e fizeram pose... mas quem se preocupou conosco? Quando a gente tocava um disco de beat, diziam logo: “Desliguem essa música de negros!” Se deixávamos crescer o cabelo, lá vinha bronca: “Parecem uns vagabundos” . Quando eu trazia amigos, perguntavam com um sorrisinho de troça: “Eles já tomaram banho?” E falar sobre política nesta casa é um crime, embora Franz Busko seja membro do Parlamento e viva ludibriando os eleitores com seus discursos. Haverá algo mais falso que o mundo de vocês?

— Mas vocês vivem muito bem nele!

Kurowski jogou a cruz no chão. Quando Peter se abaixou para pegá-la, o pai pôs o pé em cima.

— Esqueça esta fantasia idiota, Peter.

Peter levantou-se de um pulo.

— Não! — disse, cheio de rebeldia.

Kurowski respirou fundo.

— Deverei arrancá-la de seu corpo?

— Tente, pai.

— Quantos anos você tem... já pensou bem? — perguntou, rouco, Kurowski.

— Claro que sei, tenho vinte.

— Repetiu um ano no primário, outro no ginásio. De pura preguiça!

— E daí? — Peter ofegava. Fora atingido em seu ponto fraco. — Já não basta que Ludwig seja o rei da inteligência? E se Inge chegar mesmo a ser professora, então serão dois. Três gênios são demais para uma família só.

— Com vinte anos ainda não se está velho demais para receber uma surra! — disse Kurowski. — Vá para seu quarto. Subirei daqui a meia hora. Até lá você terá trocado de roupa, tomado um banho, feito a barba e estará com a aparência de um Kurowski! Estamos entendidos?

— Só até certo ponto!

Peter virou-se e correu para fora. Kurowski, o queixo encolhido, ficou parado, só olhando.

— Você... você não está pretendendo bater nele... — disse Erna. Não saíra da frente da porta, apenas afastara-se no momento em que Peter passou por ela como um furacão, com medo de ser derrubada. — Não consigo entender... ele tem tudo que um rapaz pode desejar, e está insatisfeito.

— Por isso mesmo, Erna. Nós tivemos de lutar para conseguir o que temos... eles recebem tudo numa bandeja. Não conseguem adaptar-se à liberdade que conquistamos a tão duras penas. Nem podemos mais mencionar isto, você ouviu. — Consultou o relógio de pulso. — Mais vinte minutos... depois eu subo. E, com mil diabos, eu posso recuperar o tempo perdido se for necessário.

—- Não o faça, Ewald — disse Erna, baixinho —, por favor, não faça isso. Deveríamos tentar raciocinar de outra maneira. Eu acho que o Peter está doente.

— Doente, ele? Está é atrevido! Atrevimento mais preguiça... esta sempre foi a melhor receita para se viver à custa dos outros!

— Você não reparou como as mãos dele tremiam?

— Suas botas sujas na mesa não tremeram.

— Está pálido e tem um olhar fixo. esquisito...

— Então ele bebeu. — Kurowski acendeu um charuto. — De certo modo ele tem razão. Deixamos muita coisa de lado. Primeiro a firma, sempre a firma. E pensamos: está tudo indo tão bem que nada pode acontecer. Com Ludwig tivemos sorte, e a Inge também parece estar no bom caminho. Então deve estar tudo bem com o Peter, foi o que pensamos. Por que haveria de ser de outro modo? Sim, por quê? Acho que nos enganamos, Erna. — Tornou a olhar para o relógio. — Teremos de nos ocupar mais com o Peter... Mas já era tarde.

 

O quarto estava vazio quando, meia hora mais tarde, Kurowski e Erna foram ver se Peter tinha se acalmado. Saíra por uma janelinha que estava aberta, passando por sobre o telhado da garagem, pegara sua motocicleta, empurrara-a até a rua e partira. No quarto remanescia um odor estranho, pesado e adocicado.

— Como um gangster — gritou Kurowski voltando da garagem. — Mas a fuga nunca foi uma solução!

Estava decepcionado. Seu orgulho de pai sofrera um baque, e, por maior que fosse sua raiva, grande era também seu amor e sua preocupação por um filho que, por fora, era bem um Kurowski, falava grosso como um Kurowski, revoltava-se como todos os Kurowski se revoltaram alguma vez na vida, como ele próprio, Ewald Kurowski, ainda em Adamsverdruss, tornara-se sapateiro só porque o pai queria obrigá-lo a freqüentar o Ginásio de Rastenburg.

— Conseguirei dobrá-lo! — disse Kurowski, sentando-se na cama desfeita de Peter e acrescentando: — Erna, não me deixarei arrasar. Ninguém nunca fez isto a um Kurowski.

Entreolharam-se e Kurowski admirou-se com o olhar fixo de Erna. Parada no meio do quarto, nariz para cima, farejava o ar. Ao mesmo tempo parecia que todos os seus músculos haviam enrijecido.

— Ewald — a voz titubeava — este cheiro...

— Que cheiro?

— Não está sentindo nada?

— Um desses tabacos americanos meio adocicados.

— Isto é outra coisa, Ewald! O Deus, Ewald, tenho medo. Nosso Peter... nosso Peter...

O que se passava com seu filho em sua casa, não naquela noite mas há semanas, só se esclareceu na cabeça de Kurowski depois de uma busca cuidadosa no quarto, quando achou uma caixinha de metal debaixo da cama.

Duas seringas, um estoque de agulhas, algodão, álcool, um torniquete, duas ampolas de Scophedal, três ampolas vazias de Dilaudid.

— É impossível... — balbuciava Kurowski.

Estava sentado diante da caixinha aberta, e aquela terrível verdade simplesmente o derrubou. Incapaz de se levantar... segurava a caixinha no colo, fitava as injeções e ampolas, viu o filho a sua frente, alto, magro, naquela nojenta roupa de couro, cabelo comprido, barba sem fazer, descarado e entupido de frases ocas... e o mistério dessa transformação era tão simples, algumas gotas de líquido introduzidas na carne com uma agulha: a destruição lenta mas certa de um ser humano.

— Ele tem de voltar imediatamente, Erna — disse, rouco, Kurowski. — Erna, precisamos achar nosso filho. Ele está indo para a sarjeta! Nós ficamos sentados lá embaixo fingindo que o mundo é maravilhoso, e acima de nós, três metros acima, nosso garoto se aniquila... e nós não vemos.

Sua cabeça caiu sobre a caixinha de metal, os ombros para a frente... Pela primeira vez desde sua chegada da Sibéria ele chorava...

E, mais uma vez, foi Erna que lhe segurou a cabeça, que o levantou, beijou, apertou e disse:

— Ewald, eu estou com você. Não chore, Ewald. Suportaremos mais este golpe, até hoje sempre conseguimos superar tudo... Ewald, não nos deixaremos abater...

Meu Deus, que mulher sensacional era esta Erna Kurowski!

À noite telefonaram a Ludwig em Colônia.

— Meu filho — disse Kurowski com a voz pesada —, você já é quase um médico formado. Agora preste atenção... vou ler para você: Scophedal... Dilaudid...

— Que bobagem é esta, hein? Onde leu isso, pai? — disse Ludwig lá de Colônia.

— Estou lendo aqui...

— São narcóticos fortíssimos. Estão enquadrados na Lei de Tóxicos. Quem foi que lhes prescreveu estas bombas?

— Eu as achei, filho. — Kurowski sentiu, outra vez, o coração. Algo lhe espetava o peito e o sangue borbulhava em seus ouvidos. — Achei no quarto de Peter, meu filho, debaixo da cama. Numa caixinha de metal. Com duas seringas e todos os apetrechos...

— Ele deve estar com algum parafuso solto! — berrou Ludwig. — Que doidão! Chame-o ao telefone, pai...

— O Peter foi embora — disse Kurowski, com a voz pesada. — Simplesmente foi-se, com a motocicleta. Vestido de couro preto. Sua mãe está que não pode mais, Ludwig...

— Já estou indo para aí, pai. Peter e tóxicos! Não fique nervoso, pai, diga isto a mamãe também... darei um jeito...

Em uma hora Ludwig estava em Leverkusen. Chegou no momento exato para aplicar uma injeção calmante em Erna Kurowski. Sua força cedera... gritava sem parar havia uns vinte minutos...

 

Peter Kurowski não reapareceu.

Franz Busko, Heinrich Ellerkrug, Ludwig, Ewald e até Inge fizeram a ronda em todos os lugares em que pudessem encontrar os amigos de Peter, onde se reuniam, onde tinham suas ‘‘fortalezas”, onde “abriam um barril”. Peter fora visto por diversas vezes em sua motocicleta, num bar, numa festa à base de LSD, em duas “viagens” à margem do Reno, mas depois a pista se perdia. Do que vivia, todos ignoravam. No antro Holidays, Busko e Ellerkrug deram com um rapaz que vira Peter pela última vez quatro dias atrás.

— Ele arranjou uma gatona maneira — contou. — Uma loura platinada, um verdadeiro avião! Ofereceu-a por cem marcos. Nós rimos na cara dele. Cá entre nós! Cem marcos por uma trepada! “Faço publicidade industrial”, disse ele. “Dinheiro grosso, meninos! Se alugar Rita aos executivos lá de Duisburg poderei passar um mês vivendo no maior conforto! Um dia de trabalho, dois dias de descanso. E só ter a clientela certa. Sempre que alguma reunião de negócios der galho, se algum contrato pifar... a Rita está aí! E a coisa vai!” Sim, e com isto ele saiu em disparada com sua gatona. — O barbudo, com um largo sorriso cheio de compreensão, perguntou: — Os senhores estavam querendo dar uma voltinha com Rita, hein...?

— Um proxeneta, além de viciado em drogas... nem podemos dizer isso a Ewald — disse, mais tarde, Ellerkrug. — Ele não vai agüentar. Franz, por enquanto vamos deixar o Peter desaparecido... será melhor para todos.

E assim Peter ficou sumido até o dia 17 de setembro.

Naquele dia o noticiário da televisão mostrou uma manifestação de estudantes em Frankfurt.

À ponta do grupo de manifestantes, que berravam e atiravam pedras, desfilando pelo vídeo, o punho direito levantado de modo ameaçador, o braço esquerdo enganchado no de um outro manifestante, aos gritos, estava Peter Kurowski. Só por um minuto, como exemplo da juventude insatisfeita. Milhões de pessoas assistiram quando a polícia o derrubou e o arrastou pela rua.

Erna e Ewald Kurowski também assistiram.

Estavam sentados, em silêncio, à frente da televisão. De olhar esgazeado, viram o filho, sangrando e enfrentando os policiais, berrando: “Seus cavalos! Seus porcos! Servos do capitalismo!”, viram como o arrastaram pela rua e o jogaram num carro fechado com grades.

— Nosso filho — disse Erna, em tom de lamúria.

Depois titubeou, caiu para o lado no sofá e perdeu os sentidos.

Na mesma noite Ewald Kurowski voava pela auto-estrada, rumo a Frankfurt.

 

Na sala do diretor da prisão preventiva, Kurowski deu de cara com Franz Busko. Também ele vira Peter na manifestação sangrenta registrada pela televisão e, já que o Partido pertencia à instituição que a juventude progressista atacava com tanta violência, requisitara imediatamente um carro oficial para levá-lo ao local. Como membro do Parlamento, não teve dificuldade para entrar e ver Peter Kurowski no compartimento reservado às visitas. Veio algemado e acompanhado por dois guardas armados; desde que fora preso quebrara tudo na cela em pedacinhos, deixando inteiro apenas o que era indestrutível. Pirracento, parou diante da cadeira e da mesa, ignorando solenemente a ordem ríspida de sentar-se.

— Mas o que é que você está fazendo aqui? — perguntou a Franz Busko, num tom muito ofensivo.

— Eu vim antes que seu pai apareça. Presumo que ele já esteja a caminho de Frankfurt. Quer dizer que você agora deixou de agenciar prostitutas para fazer revolução?

— Uma coisa é negócio, outra é ideologia. Por que você se ajoelha todos os domingos para tomar a comunhão, só para que os eleitores o vejam, e em Godesberg você montou um apartamento para sua secretária? E isso pago por nossos impostos!

— Eu sou diretor da Westschuh — disse Busko, cerimonioso.

Libertara-se nadando contra a corrente, como dizia Kurowski. Do aprendiz de sapateiro da Prússia Oriental restava apenas o nome e o sotaque conhecido pelos íntimos... No mais, Busko estava de pele nova, usava ternos feitos sob medida, brilhava no uso de chavões que lhe valiam assento e direito a voto em algumas comissões do Parlamento, e era considerado o grande homem do futuro de seu Partido. “Ele está no meio do povo!”, diziam dele. “E disto que precisamos. Teóricos, já chegam os que temos. Mas Busko compreende o eleitorado, e o eleitorado o compreende... Pode existir algo mais ideal entre os representantes do povo? Além do mais, Busko não pertence a nenhuma associação representativa de interesses — nem mesmo à Associação dos Negociantes de Calçados —, não representa nenhum grupo de influências e é, em suma, um independente e um liberal fabuloso.” Para encontrar alguém igual precisava-se de um microscópio uma lupa não seria suficiente.

— Você tem minhocas na cabeça? — perguntou Busko, direto, acrescentando: — Um Kurowski revolucionário! Com uma prostituta na bagagem e um saco cheio de entorpecentes! Peter, você não tem vergonha, não?

— Não! Por acaso nosso Estado se envergonha de ser o Estado de merda que é? Eu tenho uma gatinha, admito isto... mas o Estado é uma prostituição só. Vai para a cama política com qualquer um, se for proveitoso! Eu quero evitar que sessenta milhões vomitem uns nos outros quando se olharem no espelho!

Não se chegou a nenhuma conclusão. Peter xingou Busko, Busko xingou Peter, até que o chefe dos guardas interveio e disse, num tom quase jovial:

— Sr. deputado do Bundestag, não adianta. Reconduzirei essa besta a sua cela. Com estes sujeitos não dá para discutir. Eles tocam um disco no cérebro, nada mais.

— Pelos meus cálculos seu pai estará aqui dentro de vinte minutos. O que vai acontecer então, você pode imaginar — disse Busko, levantando-se. — E Ludwig também vem.

— O sr. doutor, o futuro médico, pode me lamber o cu! —gritou Peter, com selvageria.

— Não creio. Estragaria seu apetite. — Busko, resignado, deu de ombros. — Até onde você pretende ir, Peter?

— Até a revolução mundial!

— Não acha que está exagerando um pouquinho?

— Chegaremos lá. O tempo está maduro. Quando há sujeitos como você governando o povo, é porque o Estado inteiro está podre!

— E depois, quando vocês estiverem governando, mistura-se na sopa do almoço cada vez um grama de LSD para que o mundo continue sempre bem doidão, não é? Peter, você está doente. Doente de verdade. Afinal, como é que você começou com essa porcaria de entorpecente?

— De medo — respondeu Peter Kurowski com sinceridade. De repente a voz começou a falhar. — De medo, Franz. Sempre fracassei... na escola, em casa, com as garotas, com os colegas... e aí comecei a me drogar e num piscar de olhos tudo vai às mil maravilhas. Foi isso...

— E daqui a um ano você estará um caco!

— E daí? — Peter jogou a cabeça para trás. — O problema é meu! O que é que vocês têm a ver com isso, seus frustrados...

Os dois guardas puxaram Peter para fora da sala de visitas. Busko saiu dali pensativo e foi ao escritório do diretor para esperar pelo mestre. “Ele tem medo”, pensou. “Conheço isso. Também eu tive medo lá em Adamsverdruss, quando quiseram me buscar para o Exército. Mas eu estava doente dos pulmões e não me aceitaram. Mas o que teria sido se me tivessem recrutado? Talvez corresse para o lado dos russos, tanto medo eu tinha da morte. Mas graças a Deus ninguém sabe disso... E também já faz tanto tempo...”

Ewald Kurowski acabara de chegar e perguntou logo:

— Posso falar com meu filho?

— Naturalmente.

O diretor da penitenciária ofereceu charutos e mandou vir café. No caso de parentes de delinqüentes comuns isso não era costume, mas aqui tratava-se de uma questão política e as regras do jogo são outras.

— Mas primeiro deixe que o sr. deputado lhe conte o que o espera.

— Isto eu já sei — disse Kurowski, empertigado. — Mas meu filho também sabe o que o espera.

— Nem se tocará.

Busko soltou um gemido. Crescia o número de insatisfeitos no país à medida que aumentavam a segurança e o bem-estar. Era um mistério. A declaração de Kurowski de que os alemães não suportam a democracia parecia transformar-se numa verdade assustadora. A ordem desmoronava — trocava-se liberdade por libertinagem. Kurowski — sempre disposto a falar em frases grandiosas e verdadeiras — dissera simplesmente: isto é típico do alemão.

— Se Peter ainda tiver um pingo de sentimento, vai dar meia-volta — disse Kurowski.

— Os sentimentos dele estão governados pela seringa, não se esqueça — interpôs-se o diretor da prisão. — Faz duas horas que ele suplica por uma dose. É claro que não a terá aqui dentro, e já chegou ao ponto em que é capaz de destruir tudo a sua frente.

— Quero vê-lo — disse Kurowski, levantando-se. — Por favor...

Dez minutos depois Peter foi reconduzido à sala de visitas. Desta vez veio sem algemas e acompanhado de um só guarda... A falta da droga transformara-o, de uma hora para outra, num mísero farrapo, trêmulo, lamuriento e envelhecido de modo assustador.

Olhou o pai com olhos vazios e flamejantes... Os lábios estavam rachados e quentes, a garganta seca como se tivesse comido areia. Faltava-lhe a vida maravilhosa da picada, ilusão mortal, mas não queria admiti-lo.

— Tem um espelho na cela? — perguntou Kurowski, sem preâmbulos.

Peter meneou a cabeça.

— Quebrei em pedacinhos.

— É pena! Deveria se ver! — Colocou a mão no bolso lateral, tirou um espelhinho e segurou-o na frente de Peter. — Aí está, olhe para você! Veja o que resta de você! Este ainda é Peter Kurowski?

Peter olhou fixo para o espelho e jogou a cabeça para o lado. Um violento tremor percorria-lhe o rosto.

— Seus porcalhões — gemeu —, seus porcos reacionários! Estou bem. Nunca tive uma aparência tão boa! Sinto-me ótimo...

— Claro. Leva tempo para um Kurowski admitir que está errado. Nós assistimos ao show que você deu na televisão... Mal dirigido, mal apresentado, de um diletantismo completo.

— Então faça melhor! — gritou Peter e criticou: — Vocês só ficavam berrando Heil! Sieg Heil! Nós agimos!

— Só que no momento errado, como sempre quando os alemães querem fazer algo de muito grandioso. Quer dizer que você pretende continuar a travar suas batalhas de rua, injetar veneno em seu corpo, arruinar-se...

— Vivo minha vida. Em três meses farei vinte e um anos... aí você poderá cantar árias inteiras, mas seu poder sobre mim acaba. Pátrio poder... que expressão de merda!

— Não tenho a mínima intenção de fazer algo contra você — disse Kurowski, gélido e calmo, e completou: — Há poucas semanas, sim, a súbita revelação do tipo de filho que eu tenho arrasou-me. Mas hoje... a gente se habitua a tudo, mesmo a um filho idiota.

Era mentira, mas quem poderia dizer? Havia semanas que Kurowski andava mudado, fechadão, mais silencioso; não ia mais às reuniões com os amigos à noite, nem ao clube de boliche, à sociedade hípica, ao clube exclusivo de golfe, ao tênis; não saía de sua magnífica propriedade no campo, passeava pelo jardim, que mais parecia um parque, e alegrava-se quando Ludwig vinha de Colônia e conversava com ele sobre os estudos, ou quando Inge passava nos testes com “bom” de média. Todos viam seu sofrimento pela partida de Peter, mas ninguém tocava no assunto, pois um Kurowski não precisa de piedade, ele se arruma sozinho.

— E então — disse Peter, agora com atrevimento —, o que veio fazer aqui, afinal? Para me apresentar o melhor advogado? Não preciso de advogado... cuspo na cara do juiz.

— A nova moda dos belos tempos modernos — Kurowski juntou as mãos. — De mamãe não posso transmitir lembranças... — disse, devagar.

Peter, admirado, virou a cabeça.

— Ela viajou?

— Sim, para o hospital. Faz uma hora que a levei. Sofreu um abalo nervoso. Ela não achou graça nenhuma no show em que encheram o filho de pancadas na rua. Mulheres, principalmente as mães, não se interessam por certas coisas...

Peter Kurowski sentou-se, o corpo pesado. Sua garganta seca e ardente contraía-se em espasmos. “Água”, pensou. “Um gole de água. Ou uma dose, nem que seja meia dose, já seria o suficiente. Gente, acho que estou me acabando...” Pegou a garrafa com água que estava entre ele e o pai, desistiu do copo e levou-a direto aos lábios.

— É... é grave? — perguntou após recolocar a garrafa na mesa.

— Sim. Você parece um porco bebendo.

— Estou falando de mamãe! — gritou Peter.

— Ela deu a você, como a todos os seus filhos, um amor imensurável. E preciso ser mãe para sofrer um choque como o que ela sofreu.

— Quero vê-la... — disse Peter, baixinho.

— Isto vai ser impossível...

— Traga-me o melhor advogado, pai...

— Por que você não tenta cuspir na cara do juiz...

— Existe a possibilidade de esperar o julgamento em liberdade?

— Só se tivesse residência fixa. Você tornou-se um vagabundo.

— Eu moro com você, pai... Preciso ver a mamãe...

Kurowski ergueu-se. “Está prostrado”, pensou. “Agora devo parar de pisoteá-lo. Talvez Erna consiga trazê-lo de volta. Só mesmo se não tivesse coração iria suportar ver Erna do jeito que está lá no hospital. Eu não posso... mas para salvar esta mulher seria capaz de sacrificar meu próprio filho!”

— Veremos... — disse, dirigindo-se para a porta. Peter pulou, mas a mão forte do guarda o deteve.

— Deixe-me ir ver minha mãe... — choramingava Peter.

Kurowski estremeceu e ergueu os ombros. Sentiu frio. “É assim que chora um lobo”, pensou. “Meu Deus, estará meu filho já tão afastado dos homens?”

Saiu sem responder, mas, ao chegar lá fora, no corredor, mostrou que um Kurowski também não é de ferro. Encostou-se à parede, cobriu o rosto com as mãos e levou algum tempo para se recompor depois daquele encontro.

Franz Busko levou-o de volta a Leverkusen e mandou o motorista com o carro oficial para Bonn. Kurowski não estava em condições de dirigir. Ficou jogado no banco de trás, sem dizer palavra, e só quando se aproximaram de Leverkusen voltou a ser o velho mestre.

— Acha que o soltarão? — perguntou.

— Tenho certeza.

Busko olhou pelo retrovisor. Viu a cabeça de Kurowski, envelhecida, grisalha, porém recortada e dura como aço. Um crânio de Adamsverdruss, esculpido em rochas pré-históricas.

— Eu me responsabilizei por ele, mestre.

— Você o quê?

— Prestei fiança. Foi o modo mais rápido. Como membro do Parlamento.

— Franz...

Kurowski estava com a voz embargada. Ficou comovido, comovido como uma criança.

— Como poderei retribuir algum dia?

— Semana que vem, mestre. Preciso de um discurso novo. Sobre a necessidade de ajuda econômica para o desenvolvimento da África negra...

— Senhor! Você precisa meter o bedelho nisto? Deveria procurar um outro campo político.

— Não dá, mestre. — Estava deixando a auto-estrada para entrar no hospital. — Todos acham que, justo na política de desenvolvimento, sou o homem ideal. Talvez pudéssemos aproveitar o discurso para provar que noventa por cento dos africanos andam descalços e defender a prioridade da educação no sentido de usarem sapatos.

— Você terá seu discurso. — Kurowski tornou a recostar-se no assento. — Terminou mesmo por se meter em áreas de influência.

— É melhor ter as costas quentes do que expostas ao vento.

Busko freou. Hospital. Saltou, abriu a mala do carro e tirou um grande ramo de flores. Rosas vermelhas de cabo comprido.

— Agora entendo por que você conseguiu ser político — disse Kurowski, pegando as rosas e entrando no hospital.

Dois dias depois soltaram Peter Kurowski. Não havia perigo de fuga, um membro do Parlamento alemão responsabilizava-se por ele, tinha residência fixa. Após assinar um documento obrigando-se a comparecer duas vezes por semana na delegacia de polícia local, abriram-se-lhes as portas da prisão.

O primeiro lugar que procurou foi a estação ferroviária de Frankfurt. Comprou, por cinqüenta marcos, uma ampola de morfina e uma seringa descartável, foi à toalete e aplicou-se a dose tão desejada. Na estação de Frankfurt podia-se comprar qualquer coisa, bastava conhecer os caras e as bocas. Uma ampola de morfina não era nada, já houvera um homem oferecendo, ali, um canhão antiaéreo inteirinho, bem cuidado e lubrificado, com vinte tiros de munição. Não conseguiu livrar-se dele, são armas grandes demais para o submundo. Corriam boatos de que ele teria vendido, mais tarde, seu enorme canhão a guerrilheiros croatas.

A segunda coisa que Peter fez foi procurar um telefone. Ligou para sua gata, informou-se de quanto ela ganhara em sua ausência, ficou satisfeito, prometeu voltar dois dias e fumou, correndo, um cigarro de maconha. Só então pegou um trem para Leverkusen e chegou ao hospital por volta de meio-dia.

Ema estava deitada na cama, pálida e de olhos fechados. De um frasco fluía lentamente um concentrado vitamínico para a veia de seu braço esquerdo. Estava mais próxima da morte que da vida, constatou Peter. Encaminhou-se devagar para junto da cama, puxou uma cadeira e sentou-se.

— Mãe... — disse, rouco — mãe... sou eu...

Com um esforço ela ergueu as pálpebras, reconheceu-o, um sorriso cobriu-lhe o rosto, a mão tateou buscando os dedos dele.

— Peter... — falou, com dificuldade — meu pequeno... Que bom que você está aqui.

— Sim, mãe. — Peter curvou-se para beijar a testa dela. — Mas o que é que você anda fazendo?

— Eu? Você... Peter... você...

Ela se mexeu. Peter segurou-a com ambas as mãos.

— Não se agite, mãe — balbuciou —, por favor, não fique nervosa. Você precisa ficar boa. Todos nós precisamos de você...

— Você também?

— Eu também...

— Então vou fazer um esforço.

Tornou a sorrir e seu rosto estava indescritível, como enfeitiçado, cheio de amor maternal. Peter reconheceu a expressão e sentiu-se um miserável, um canalha. Um cachorro.

— Agora você vai ficar em casa, menino?

— Sim, mãe.

— E não vai mais tomar aquela... aquela coisa?

— Nunca mais, mãe. Eu prometo.

— Então, está tudo bem. — Fechou os olhos, espichou o corpo e deixou-se ir na lerdeza do esgotamento. — Estou tão feliz, meu filho...

Peter esgueirou-se para fora nas pontas dos pés. Parou mais uma vez na porta, olhou longamente sua mãe,virou-se bruscamente e saiu do quarto. Deixou o hospital parecendo um fugitivo.

No trecho de mato entre Leverkusen e Burscheid mandou parar o táxi que alugara. Foi andando a pé até desaparecer no matagal.

‘‘Não há mais saída’’, pensou. ‘‘Não me libertarei do vício, nunca serei capaz de cumprir uma promessa, viverei sempre na sarjeta, cheguei ao fundo do poço, estou dentro dele e ninguém mais conseguirá me tirar. E, mesmo que eu seja um bobalhão, sei muito bem onde irei parar. E só uma questão de tempo e da intensidade das injeções. Acabou, pai... não dá mais, mãe. Perdoem-me se puderem... Sozinho não posso continuar, e para alguém me ajudar já é tarde.”

Sentou-se sob uma árvore, desnudou o braço e a coxa e injetou-se todo o estoque que trazia consigo.

Quatro ampolas.

Em seguida jogou o cinto da calça sobre um galho, enfiou a cabeça no laço, deu um salto e, ao cair, encolheu as pernas.

Foi assim que morreu duas vezes. Uma por fratura na nuca e outra por quatro doses de morfina. Estas foram um luxo supérfluo, porque no momento em que o veneno deveria começar a agir o sangue já não circulava mais.

Ficou três dias pendurado em seu cinto antes que o achassem.

E então ainda demorou mais dois dias até que o identificassem. Queimara todos os seus documentos.

Franz Busko, o responsável por ele, encarregou-se de levar a notícia a Ewald e Erna Kurowski.

Era a primeira vez que um Kurowski se deixava abater.

 

Foi difícil demais, beirava o limite do que se é capaz de suportar, mas os Kurowski sobreviveram a mais este golpe do destino. Ninguém entendeu como, mas Ema conseguiu até juntar forças para sair do leito de hospital para assistir ao enterro de Peter, embora o médico falasse de loucura total e implorasse formalmente a Kurowski que fizesse valer sua influência ou que proibisse a mulher de se levantar.

— Isso é algo que o senhor não pode compreender, doutor — disse Kurowski levando a mala de Erna com roupa de baixo, sapatos e um tailleur preto pelo corredor até o quarto. Depois, acrescentou: — Podem nos jogar ao chão, podem esmagar-nos as costelas, sim, podem nos matar de pancada... mas nunca nos deixaremos derrotar! Se minha mulher quer enterrar seu filho, então é isso que ela quer. Só o bom Deus poderia evitar, mas também não o fará!

O enterro foi realizado em completo silêncio. Em volta da sepultura só havia a família, à qual pertenciam também Heinrich Ellerkrug e Franz Busko. É havia mais alguém que não fora convidado, mas Kurowski não o enxotou dali. Um jovem de cabelo embaraçado, óculos com aros grossos de níquel, um blusão inspirado na moda indígena e sapatos velhos e batidos. Em pé, um pouco de lado, levou um trompete aos lábios no momento em que baixaram o caixão à sepultura.

Tocou um blues muito triste que nenhum dos presentes conhecia, mas que, de certo modo, se adequava ao momento, um último adeus de um mundo no qual Peter se refugiara em segredo e no qual perecera sem que ninguém percebesse nada até o instante em que era tarde demais.

— Quem é o senhor? — perguntou Kurowski mais tarde, quando já haviam jogado terra sobre o caixão.

Busko e as crianças conduziam Erna ao carro, Ellerkrug esperava junto à sepultura. O jovem descabelado e visivelmente precisando de um banho sorriu e enfiou o trompete sob a axila esquerda.

— Representante do clube... — disse.

— Ele ia muito lá?

— Sim. Sempre que estava de cara cheia.

— E isso era freqüente, não?

— Não, normal. Uma vez por semana.

— Ele falou de mim?

— Sempre...

— E o que Peter dizia de mim?

— “Meu velho é um cara legal’’, dizia ele. “É o que acaba comigo, saber que nunca serei igual a ele. Ele me oprime.”

Kurowski abaixou a cabeça. “Peter”, pensou. “Meu Deus, Peter, por que nunca disse nada? Poderíamos ter conversado sobre tudo... São problemas tão simples. Mas não, sempre batendo com a cabeça na parede, no melhor estilo dos Kurowski... até o fim...”

— Gostaria de lhe agradecer — disse, baixinho. — Precisa de dinheiro?

— Não! Para quê?

— Para um par de sapatos novos, por exemplo.

— Estes? Ainda poderei andar com eles por uns cem anos...

O jovem bateu, de leve, na fronte para significar uma saudação amável e foi andando para o outro lado. Kurowski seguiu-o com o olhar parado. Este era o mundo de meu filho, doía-lhe pensar. Trabalhei para ganhar uma fortuna de milhões e ele vivia como um mendigo. Mas por quê? Por quê? Por que minha sombra era pesada demais para ele? Existe isto?

Foi, mais uma vez, até a sepultura e olhou para o caixão meio coberto de terra. Ellerkrug veio para junto de Kurowski e colocou o braço em seu ombro.

— Você não é o único, nem o primeiro nem o último que perde um filho — disse, a voz embargada. — A cada hora morrem milhares de crianças. E muitas dessas mortes fazem menos sentido que a de Peter. Dentro de alguns meses Ludwig será um médico formado... e Inge fará madureza na primavera para estudar depois pedagogia. E Erna está aí, Ewald... tome-a como exemplo. Que força...

— Ela está empedernida, Heinrich. Estou angustiado por ela.

Kurowski virou-se. Enganchou o braço no de Ellerkrug, era um velho à procura de apoio e que examinava o chão antes de cada passo. E, com tudo isto, tinha apenas cinqüenta e quatro anos de idade...

— Então pegue-a e vá viajar com ela... para o sul, Ewald, deite-a na praia do azul do Mediterrâneo, faça-a sonhar à sombra das palmeiras, comece, enfim, a gozar a vida, devore seus milhões.. . coisa que nem é mais possível. Tire Erna para fora da couraça chamada Kurowski... Diabos, Ewald, tudo que um homem pode fazer na vida, você fez, agora descanse um pouco...

— Mais um ano, Heinrich.

Kurowski parou. Erna já entrara no grande carro. Ludwig estava sentado ao volante. Inge, alta, esbelta, cabelo louro dourado, o retrato ampliado da mãe, segurava a porta traseira aberta, esperando pelo pai.

— Quando Ludwig tiver seu diploma de doutor e Inge estiver na universidade, deixarei as coisas andarem com mais vagar. — Segurou Ellerkrug pela manga. — Ei, preciso dizer-lhe uma coisa...

— Desembuche.

— Trabalhei como um louco por causa de Peter. — Kurowski engoliu em seco, estava prestes a chorar. — Eu sabia que ele seria o único a ficar no meio do caminho e queria separar o suficiente para que ele pudesse viver... uma esmola invisível.

— Será que ele percebeu alguma coisa?

— É possível. Sinto-me culpado, Heinrich.

— Besteira! Não deixe este sentimento tomar conta de você! Culpado! Só é possível dominar um ser humano até um certo limite, mesmo sendo pai. Cada pessoa tem sua própria personalidade que se manifesta um dia.

— Numa injeção de morfina — disse Kurowski, sombrio.

— Também. O homem será sempre o maior mistério que Deus colocou na criação...

Chegaram ao carro e Inge, chorando, abraçou o pai.

— Tudo bem, filhinha — disse Kurowski, batendo-lhe nas costas. — Está tudo bem. Já passou. Não chore. Temos de nos manter unidos e fortes, por causa de sua mãe.

Entrou no carro, abraçou Erna, apertou-a e acariciou-lhe o rosto frio.

Em marcha acelerada, deixaram o cemitério.

 

Alguma coisinha ficou em Kurowski, embora ninguém percebesse e ele próprio não quisesse admitir. Não podia explicar, não havia nome para aquilo, mas estava nele como um bloco de ferro que pesava em seu coração e lhe tirava o sono.

Erna não percebeu que muitas vezes ele só pegava no sono de madrugada, passando a noite acordado, não refletindo, mas apenas acordado, terrivelmente sóbrio, um ficar acordado que nada conseguia preencher. Ia ao escritório, presidia as reuniões, preparava os discursos de Franz Busko para o Partido, ampliou a Westschuh até esta se tornar o maior empreendimento da Europa no ramo de calçados, e, ao mesmo tempo, ficava cada vez mais calado, menos sociável, cada vez mais recolhia-se a sua toca como uma tartaruga.

Kurowski mudou-se. Comprou uma casa dentro de um grande parque, um verdadeiro palacete, e só o fez para passear por ali e poder dizer a si mesmo: “O pequeno mestre sapateiro Kurowski de Adamsverdruss tornou-se o dono de um castelo como só os possuíam antigamente os nobres e senhores de terras. Mas para que tudo isto? Para quê? O que me apetece não posso mais comer por causa do açúcar no sangue, tenho de desprezar os melhores vinhos por causa do fígado, não posso subir morros por causa do coração e não posso mais passear pela neve por causa do reumatismo. Mas eu tenho um castelo, uma conta bancária forrada de milhões, tenho quatro mil empregados e operários, fui condecorado com a Cruz do Mérito de Primeira Classe (Franz Busko também, aliás), sou membro da Comissão Alemã de Economia e faço parte do Conselho Diretor de doze empresas, estou cada dia mais rico sem fazer nada, mas não posso fazer outra coisa que passear pelo meu parque, ler o jornal, ficar sentado à janela, jogar cartas com Erna, vez ou outra visitar o consultório de meu filho, o dr. Ludwig Kurowski, ou escutar as novas teorias educacionais defendidas pela professora Inge Kurowski, que eu considero umas bobagens. A vida deixou de ser interessante, está vazia de emoções, é um vegetar apenas...”

Num dia de maio, Erna e Ewald Kurowski tomaram um avião para passar uma temporada de repouso em Meran.

Sete dias mais tarde, durante um passeio pelo campo, encantado com o espetáculo das montanhas iluminadas pela luz azulada da tarde, Kurowski tombou de repente. Ficou deitado na grama como uma boneca com as articulações frouxas.

Primeiro nas costas de um montanhês, depois num carro velho e ruidoso, finalmente numa ambulância da prefeitura, Kurowski foi levado ao hospital de Meran.

Erna ficou junto dele até instalarem a tenda de oxigênio, ligarem os tubos para as transfusões, até a circulação estar controlada por meio de fortes injeções.

— Um ataque apoplético, madame — disse o médíco-chefe, depois que a primeira batalha pela vida de Kurowski estava ganha. — Esperamos todos que ele escape desta... Mas devo lhe dizer que seu marido ficará, para sempre, paralítico do lado direito. Se voltará a falar... não podemos afirmar nem negar com segurança. Pode ser apenas uma questão de força de vontade.

— Ele vai querer — disse Erna com uma valentia que conseguiu irritar até o médico-chefe, habituado a muita coisa. — Um Kurowski tem uma vontade capaz de derrubar árvores...

Após quatro semanas, tiravam a tenda de oxigênio. Kurowski continuava paralítico, a língua parecia um pedaço de couro grudado no céu da boca. Mas dava para escrever, com a mão esquerda, e a primeira coisa que escreveu numa pequena lousa escolar, em rabiscos tortos, subindo e descendo, mas legível, foi: Erna, eu amo você.

Daqui a duas semanas levaremos você para casa — disse ela, dando-lhe um beijo na testa. —Já prepararam uma recepção que mais parece uma festa popular...

E depois Kurowski estava de volta a Leverkusen. Franz Busko levou-o para dar um passeio na cadeira de rodas, pelo parque e pelo terraço, a banda da empresa tocou algumas marchinhas para saudá-lo, o coro da fábrica cantou canções populares e folclóricas, uma delegação do quadro de empregados entregou uma enorme cesta de flores, já que guloseimas eram proibidas, e o Conselho Diretor passou marchando pela cadeira de rodas e um após outro apertou a mão esquerda ainda aproveitável de Kurowski. Movia a cabeça para todos os lados, via-se que estava contente, e à noite escreveu no bloco de anotações que, agora, tinha sempre no colo:

 

Gente, fui uma besta. Só agora percebo que minha família é maior que uma mulher e três filhos... Estou feliz por estar vivo. E, apesar de estar paralítico e ter uma cara torta, estou aqui de novo! E prometo a vocês: não me deixarei abater! Com mil diabos!

 

Sim, Ewald Kurowski, mestre-sapateiro de Adamsverdruss na Prússia Oriental, milionário dos sapatos e presidente de honra de tantas associações, ainda vive. Não se deixou abater. Verdade que continua paralítico, mas já consegue dizer algumas frases. Pronuncia-as com dificuldade, mas com clareza. E a primeira coisa que disse, com tanta nitidez que o membro do Parlamento bateu palmas e chorou de alegria, foi:

— Franz, seu velho idiota!

Todos os dias Erna leva-o para passear pelo parque de sua propriedade, pesa sua comida numa balança de correio e trata cada pedaço que ele ingere como uma pedra preciosa. Duas vezes por ano ele viaja para uma estação de águas, uma vez ao lago Maggiore, uma vez para Ischia, mas a maior parte do tempo fica sentado em sua cadeira de rodas, deixa-se levar de um lado a outro, cochila ou perde-se em recordações, e, apesar de seus milhões, sua vida voltou a ser tão pequena e estreita como antigamente em Adamsverdruss... Está satisfeito com o que tem e com o que lhe dão: uma cadeira de rodas, cinco vezes ao dia um bocadinho de comida, o ar puro de seu jardim, a visita de seus filhos e de Erna.

Erna, sem a qual sua vida não teria sentido. O centro de seu mundo. Uma dádiva pela qual não poderá nunca agradecer a Deus, porque está acima de qualquer gratidão.

Vez ou outra recebe, ainda, a visita de Franz Busko, trazido por um motorista num Mercedes oficial, porque ele é agora secretário de Estado, um homem elegante, grisalho nas têmporas, um homem do mundo... Só quando está sozinho com Kurowski, passeando com ele pelo jardim e pelo campo, ainda diz:

— Explique isso direitinho para mim, mestre...

Depois ouvem, acima deles, o farfalhar dos vidoeiros — como em Adamsverdruss — e é como se o aroma adocicado das coníferas e da salva se espalhasse sobre o solo da Prússia Oriental, e como se viesse, dos lagos da Masúria, guinchando, gritando e obscurecendo o céu, um bando de gansos selvagens.



 

[1]Um jogo de cartas alemão. (N. da T.)

[2]Viagem de carroça puxada por boi. (N. da T.)

[3]Em tradução literal, significa “tédio de Adão”. (N. da T.)

 

                                                                                            Heinz G. Konsalik

 

 

                      

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