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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PASSAPORTE VISADO / Ed Lacy
PASSAPORTE VISADO / Ed Lacy

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PASSAPORTE VISADO

 

ERA um bar como outro qualquer. Um bar comum e insípido, na avenida Amsterdam, situada no bairro da cidade de Nova York chamado Washington Heights. Por que se chamava "Grand Café", ninguém sa­beria dizê-lo. Não ostentava letreiros luminosos, nem dis­punha de ar condicionado. O pequeno aparelho de tele­visão, colocado em um canto, era o mesmo, adquirido quando a TV ainda estava na primeira infância.

Era um bar à moda de antanho, embora datasse ape­nas de 1923. (Durante a Lei Seca, passara a chamar-se "Grand Café Ice Cream Parlour", vendendo bem pouco sorvete e, abertamente, cerveja legal, à qual qualquer um podia adicionar o álcool que quisesse). Era chamado de bar, raramente de café, botequim, boteco ou outra coisa qualquer. Por estranho que pareça, ninguém lhe dava o nome que realmente lhe cabia... Lar.

Claro que não era lá dos melhores lares, mas, ao cabo de um longo dia de trabalho monótono, antes de voltar para o quarto sujo e solitário, qualquer um podia ir tomar sua cerveja ali. Os fregueses habituais o cumprimentavam com a cabeça e Jimmy, lá do bar, resmungava um " alô..." que podia ser a única palavra amistosa que ou­viriam durante todo o dia.

A gente podia fugir (pelo menos por algumas horas) à amarga miséria da casa de cômodos, onde se estiolava a juventude da esposa e onde os filhos se transformavam em simples pragas... Entrando no bar, que era uma es­pécie de toca, a gente podia assistir ao jogo pela TV e participar de um "papo" animado e sem sentido.

Durante a tarde, algumas donas-de-casa lá entravam para beber uma cerveja, trocar mexericos e conseguir bons palpites para loteria clandestina ou, ainda, para uma ligeira merenda, pois, a qualquer hora do dia ou da noite, podia-se pedir um substancial "hamburger", sa­bendo que o mesmo seria servido com uma boa rodela de cebola e um "pickle".

Em resumo: no "Grand Café", qualquer criatura hu­mana podia encontrar certa dose de cordialidade e digni­dade, junto a outras criaturas humanas.

Na noite em que os homens foram assassinados, o bar estava lotado e transbordante de alegria, porque a Deusa Fortuna havia bafejado bondosamente um de seus frequentadores. Chamava-se ele Franklin (Frank para os amigos...) Andersun. Era um rapaz magro, beirando os trinta anos, com uma dessas caras que as mulheres nunca olham duas vezes, ou até nem olham...

 

 

Conforme convém ao herói do dia, Andersun estava de pé no meio do bar e os outros pagavam-lhe a cerve­ja... Havia meia hora que estava tentando ir ao mictório.

- Diga-me uma coisa, Frank, meu rapaz - falou um recém-chegado sacudindo-lhe a mão e imobilizando-o contra o bar. - Como conseguiu ganhar? Eu estava lendo o jornal no "subway", quando vi seu nome. Foi um choque para mim. É verdade mesmo que você ganhou mil dólares por umas poucas palavras que escreveu? Que foi mesmo que escreveu?

- Eu como "Nutsy Pudding" porque sei do que gosto e gosto de "Nutsy" - repetiu um homem idoso, balançando a cabeça volumosa. - Que jeito de ganhar toda essa grana!

Jimmy, o "barman" era um camarada baixote e gor­ducho, com manchas hepáticas nas mãos e sardas no rosto enrugado. A pele era cor de cera. Servindo uma cer­veja, disse:

- E é isso que estraga este mundo. Depois de feito, todos acham muito fácil.

- Foi fácil mesmo. Falei a verdade - disse Ander­sun. - Não é de tudo que gosto, mas gosto mesmo daque­le pudim. Sempre como "Nutsy", que nem um "danado".

- E você vai mesmo para a Europa? - quis saber o recém-chegado.

Vou sim. Mas preciso ir lá dentro, agora, senão meus rins vão me sair pela boca - disse Frank, conse­guindo, finalmente, desvencilhar-se dos homens que o cercavam.

- Jimmy, por que vai ele à Europa? - indagou o recém-chegado dirigindo-se ao "barman".

- Sei lá... com certeza porque tem vontade de ir.

Na extremidade do bar, junto à porta, havia um lu­gar reservado, por força do hábito, para Danny Macei, cujas espáduas tremendas o faziam parecer baixo, em­bora medisse mais de um metro e oitenta. Tinha uma cabeleira basta e forte, já toda grisalha, rosto feio e o queixo enorme, quadrado. Danny fora lutador profissional, antes da era da TV, quando a luta livre não cons­tituía profissão tão ativa como hoje e, além de ter as orelhas intumescidas como ameixas recheadas, Macei tinha contraído uma doença nos olhos que o deixara cego. Vivia da pensão mensal que recebia do Serviço de Assistência Social e arranjava sempre quem lhe pagas­se a cerveja... qualquer freguês e até mesmo Jimmy. Enquanto lhe abriam a lata de cerveja, Danny pontificava sobre: "Esses palhaços que hoje se intitulam lutado­res", ou então exibia os músculos. No momento, largando o copo na mesa, perguntou:

- Por que não haveria de ir à Europa o rapaz? Deve ser bom conhecer coisas novas, gente nova. Qui­sera eu ir também.

- Se tivesse ainda os olhos, você hoje estaria lutan­do pelo mundo todo - disse Jimmy.

- Isso é verdade. Estou quase com sessenta anos, mas ainda sou um lutador, não um acrobata. Ainda con­servo minha força - disse erguendo a mão enorme e nodosa. - Querem ver como eu amasso uma lata de cer­veja?

- Ora, Danny, não é preciso — disse Jimmy. - Ai vêm duas cervejas para você.

Outro freguês declarou:

- Se eu fosse moço como Frank, abriria uma loja com esse dinheiro.

- É estranho - disse Jimmy saindo de trás do bar com três cervejas (a não ser para estranhos, durante toda a semana a bebida era cerveja, com uma ou duas doses de uísque irlandês servidas nas noites de sábado) - porque Frank sempre falava que se pode ganhar dinheiro, desde que se tenha alguma coisa para começar.

- Que adianta ter mil dólares para abrir um negócio? - interveio alguém da roda. - Comece com um cordão de sapato e acabará enforcando-se com ele.

Andersun voltou ao bar e agradeceu a outro recém-chegado que o esperava com uma cerveja. O recém-chega­do perguntou:

- Você não esteve na Europa quando era piloto?

- Eu não era piloto, era bombardeiro - respondeu Frank. - Chegamos à Inglaterra justamente quando a guerra terminou contra a Alemanha e voltamos com nossos B-17 para os Estados Unidos. Começamos a treinar para o Pacífico. Tão pouco chegamos a ir até lá. Agora, vou ver o que há pela Europa.

- Vai deixar o emprego? - Frank fez sim com a cabeça.

- Naturalmente. Vou trabalhar em algum escritório, depois de verificar o que é que Paris tem. - Esvaziou o copo. - Quase onze horas. Hora de ir para casa. Até ama­nhã, Jimmy.

- Quando pensa partir?

- Daqui a algumas semanas. Ainda não tratei do passaporte, nem da passagem. Só ontem à noite fiquei sa­bendo que ganhei o prêmio.

- E os repórteres foram logo cercar você - acres­centou Danny.

- Não foi nenhum repórter. Foi o "relações públi­cas" da companhia que telefonou, dando-me a notícia. Até amanhã.

Quando Andersun saiu, o freguês que desejava abrir um negócio disse:

- Soldado é sempre soldado, hem, Jimmy? Lembra-se como gastamos nosso dinheiro dos bônus em... quan­do foi mesmo?... 29, 32, 34... quando foi mesmo?

- Não me lembro do ano, mas sei que foi a única vez que tive dinheiro nas mãos - respondeu Jimmy. - Vou dizer uma coisa: os soldados da segunda guerra são diferentes, têm mais juízo, como Frank. Estiveram mais tempo na luta, viram mais do que nós.

- Mas nunca tiveram que enfrentar os gases, como nós. Lembro-me daquela vez, quando...

- Soldados... soldados... grandes heróis fanfarrões - interrompeu Danny quase aos berros. Em 1917, como já estava com a visão prejudicada, não fora aceito.

- Não diga isso!

Danny voltou-se para o homem.

- Digo o que quero, que diabo... Acha que pode im­pedir-me?

- Mesmo guando estava bêbado de cair, ninguém bri­gava com Danny e isso não era por ser ele cego... seus grossos braços podiam esmagar um homem até matá-lo.

- Danny, não se zangue - disse Jimmy baixinho. - E beba sua cerveja.

O bar sossegou. Uma mulher colocou um níquel na velha vitrola automática e as conversas prosseguiram. Lá fora, dois breves estampidos soaram nitidamente e Danny levantou os olhos da cerveja, dizendo:

- Ouviram isso? Foi tiro.

- Ora Danny, sossegue. Descarga de algum carro - disse Jimmy.

- Foi tiro mesmo. Ouvimos tantos nos bosques de Verdun que reconhecemos os estampidos, não é verdade, Jimmy? Nunca pude esquecer...

Um rapaz precipitou-se para dentro do bar, sem fô­lego, sentindo-se cheio de importância pela notícia que trazia. Gritou:

- Dois "caras" foram assassinados lá fora! Um de­les era Frank Andersun!

A uns dez metros da esquina, onde a luz da avenida Amsterdam começava a esvair-se na semi-obscuridade do quarteirão, um grupo compacto formava um círculo fe­chado em torno dos cadáveres. Um carro da radiopatruIha estava estacionado no meio da rua. Um policial rosnava:

- Afastem-se. Vamos... afastem-se.

Franklin Andersun estava caído de lado, sobre o que restava de seu rosto... braços e pernas esparramados numa posição grotesca. Pouco adiante, junto a um carro, estava o corpo de um homem mais ou menos da idade de Andersun, porém bem trajado. O tiro o atingira nas cos­tas e, a não ser pelos olhos vidrados, arregalados, pare­cia estar dormindo na calçada.

A multidão, cada vez mais densa, mantinha-se silen­ciosa ... mesmo as pessoas que olhavam pelas janelas dos apartamentos vizinhos conservavam-se imóveis. Danny levara mais tempo do que os demais para chegar à cena do crime e, agora, batendo com a bengala branca, suja, disse:

- Morto? Bem disse eu... seus grandes soldados he­róis, são todos uns porcos - Sua voz áspera soava com uma nota de triunfo quase selvagem.

- Cale a boca - disse um dos policiais.

- Experimente! Vou... - as palavras foram corta­das por Jimmy que tapou a boca de Danny, dizendo baixi­nho: São "tiras".

Carros da polícia convergiam para o círculo de curio­sos e um grupo de detetives começou a trabalhar. De re­pente, um deles, curvando-se sobre o segundo cadáver, exclamou:

- Este aqui tem um distintivo da polícia!

A multidão olhou para o homem que fora alvejado nas costas e um murmúrio de mal-estar ergueu-se e explodiu, guando alguém gritou:

- Com todos os diabos! Mataram um policial! Havia surpresa, alarma e um ligeiro vestígio de gozo na voz e no murmúrio geral da turba. Depois, todo mun­do passou a falar baixinho.

 

ALGUM idiota tinha continuado a dirigir o belo carro esporte, de marca italiana, depois de que­brado um anel do pistão e, naturalmente, o motor, superaquecido, pegara fogo. Eu estava mudando os fios e esse tipo de trabalho, em que se tem que ficar abaixa­do, é duro para um camarada de minha estatura. Mas era um carro interessante, todo planejado para veloci­dade, inclusive os cilindros de alta compressão, tão es­treitos que eu nem conseguia enfiar a mão dentro de­les. Estava ali a imaginar como é que se gasta tanta grana para importar uma lindeza de carro e não se to­ma cuidado com ele...

Joe, o gerente da garagem, gritou da cabina telefô­nica:

- Barney, é pra você.

Era Cy 0'Hara, o corretor de imóveis que partilhava comigo um minúsculo escritório.

- Está aqui uma Mrs. Turner à sua procura - disse Cy. - Vai demorar, Mr. Harris? - naturalmente o "Mr." era para impressionar melhor a cliente.

- Estou ocupado aqui. Não conheço nenhuma Mrs. Turner. Ela não disse que veio a mando de alguma com­panhia de seguros? Parece "cheia da erva"... ou quer vender alguma coisa?

Cy respondeu:

- Não, Mr. Harris, a companhia de seguros não te­lefonou. Quanto ao que me pediu para ir olhar, trata-se de uma bonita propriedade e acho que o lado financeiro é sólido. Ah! E a respeito de Mrs. Turner?

- Está bem, "seu" espertalhão. Obrigado pelo aviso. Subirei dentro de dez minutos - respondi eu a Cy, des­ligando o telefone.

Estava tirando o macacão, quando Joe chegou e per­guntou :

- Arranjou algum caso, Barney?

Joe era um homem corpulento, de cabelos castanhos, mais alto que eu, de nariz quadrado. É que tinha ten­tado, certa vez, ser boxador peso-pesado. Também ti­nha um dente escuro, que não se notava muito contra a pele morena do rosto.

- Outro roubo de automóvel? - quis saber ele.

- Ainda não sei. É muito urgente o conserto desse "troço" importado, Joe?

- Não... está indo bem?

- Trabalho delicado, porém limpo. É coisa para mais umas quatro ou cinco horas - respondi.

Quando entrei no escritório, Cy, alegando, como sem­pre, um compromisso súbito, deu-me um número onde poderia ser encontrado... o do café lá em baixo. Tínha­mos por norma, sempre que um de nós estava ocupado o outro retirava-se. Se ficássemos ambos ocupados ao mesmo tempo, seria um problema... mas os negócios nunca estiveram tão bons assim.

Instalei-me à escrivaninha e a mulher, sentada do outro lado, devia ter seus vinte e três ou vinte e quatro anos. Muito bem vestida... um vestido preto que devia ter custado um dinheirão. Era bem apanhada de corpo, desse tipo que, ao passar, os gaiatos das esquinas asso­biam exclamando "garota enxuta!". Devia ter lindos seios ou então usava um bom "soutien". Para falar no rosto, bem... não correspondia nem ao corpo nem à roupa. Era um rosto de garota, muito sério, de olhos imensos, cabelos escuros com franjinhas na testa. Se não era bonita, era, pelo menos, engraçadinha.

- O senhor é Barney Harris, o detetive particular? - indagou ela, numa vozinha de criança meio esganiçada de tão nervosa. Gostei do "o detetive particular".

Confirmei com a cabeça, apontando para a licença pendurada na parede:

- Aquilo ali diz que sou um detetive particular.

- Eu sou Mrs. Betsy Turner.

"Betsy" era um nome que ia bem com aquela carinha de colegial e a vozinha fina. Fiz logo uma de mi­nhas deduções: com certeza queria mandar seguir o ma­rido, algum "play-boy". Como sempre, em matéria de "sherlock" particular, revelava-me um bom mecânico, pois ela disse:

- Meu marido era Edward Turner, o detetive que foi morto a tiro naquele duplo assassinato da Avenida Amsterdam há dez dias. Recomendaram-me o senhor. Quanto cobra de honorários, Mr. Harris?

- Trinta dólares por dia, mais as despesas.

- Desejo contratá-lo.

- Para quê? - perguntei delicadamente, procuran­do alisar com a mão minha cabeleira indócil.

- Para descobrir o matador de meu marido.

Se não fiquei boquiaberto, devia ter ficado. Estava, de fato, caindo das nuvens.

- Quer contratar-me... Mrs. Turner. Li a notícia do duplo assassinato, mas... um policial foi morto e a po­lícia não deixará de descobrir o assassino.

-.Para mim, a polícia não está agindo com bastan­te rapidez - sua voz era frágil, quase desamparada... Interessante!

- Quando um policial é assassinado, Mrs. Turner, a polícia põe toda a sua engrenagem em movimento... tem que fazê-lo, para sua própria segurança. Além dis­so, apesar dos "detetives particulares" que vemos na te­levisão e no cinema, nunca tratei de um caso de crime em minha vida, nunca briguei com ninguém, desde meus dez anos de idade, e nunca andei armado. Não faço nem serviço de guarda. Meu trabalho é quase sempre so­bre roubos de carros, descobrir pessoas desaparecidas e seguir maridos ou mulheres que se desviam do bom ca­minho. O que estou tentando dizer-lhe é o seguinte: eu sou um só e a polícia é uma porção de homens com um exército de alcaguetes e um mundo de equipamento, por que pensa que eu posso agir mais depressa do que ela?

- Pode ajudar.

Tive que conter o riso.

- O mais certo é que servirei de estorvo. Tome meu conselho: deixe que a polícia...

- O Tenente Swan, que era o chefe de Ed, reco­mendou-me o senhor.

Dei um suspiro... que significava tudo.

- Mrs. Turner, aquele... num... palhaço vem a ser meu cunhado. Deixe a polícia dar conta do recado. Pode trabalhar melhor do que qualquer detetive parti­cular, acredite...

Os olhos imensos encararam-me longamente, per­correram meu corpo volumoso, minha roupa ordinária, minha camisa esfiapada. Depois, ela disse:

- Estou bem impressionada com sua honestidade e franqueza, Mr. Harris. Vou contratá-lo.

- É jogar dinheiro fora...

- Vai trabalhar para mim?

- Um caso de assassinato pode prolongar-se por mui­tos dias e...

- Mr. Harris, eu quero contratá-lo - a voz, agora, era firme.

- O.K., mas já sabe o que está comprando - eu já tinha cumprido meu dever e... bem que estava pre­cisando de dinheiro. - Mas, deixe-me dizer-lhe logo: não sou de tiros nem de violências, nem de nada desses filmes de cinema.

- Mr. Harris, não se trata de cinema... é uma coisa muito real para mim. Há qualquer coisa muito espe­cial, que desejo que o senhor examine... uma coisa à qual a polícia não quer dar atenção.

- Ah! É isso, então? - um caso daqueles ia durar pelo menos dez dias... trezentos " tubos" dariam para liquidar muitas dívidas.

- Uma coisa... como suicídio - disse ela baixinho, com os olhos rasos d'água.

Minha fisionomia deve ter expressado surpresa pela segunda vez.

- Seu marido andava preocupado? - perguntei co­mo um verdadeiro inquisidor.

- Não sei. Edward e eu éramos felizes, apaixonados um pelo outro - disse ela rapidamente. - Ed era cora­joso, bravo. Foi elogiado duas vezes pelo Departamento. Era... bem... um homem agressivo. Claro que um ho­mem dessa espécie não recebe um tiro nas costas sem... Dizem que nem tentou sacar a arma.

- Talvez não tivesse tempo...

- Não. Dizem que o outro homem, o tal de Frank Andersun foi baleado primeiro. Assim, Ed deve ter tido alguns segundos para sacar a pistola. Mas, não sei porque, tenho a impressão de que Ed não quis reagir... que quis mesmo morrer. É a única explicação que encontro para que ele fosse assassinado pelas costas. É por isso que considero tão importante saber se foi suicídio e a única maneira de ficar sabendo é descobrir quem o matou.

- Como sua esposa, certamente, há de saber se tinha alguma razão para acabar com a vida, então...

- Não. Não sei. Desconfio que foi suicídio porque Ed não era homem para ser pilhado com a pistola no coldre - a voz tornara-se quase glacial.

- E a polícia? Que acha ela dessa teoria do sui­cídio?

- Nem pensam nessa hipótese. É por isso que o es­tou contratando.

- Não sei se darei conta do recado - disse eu, sa­cudindo a cabeça. - Tudo quanto posso fazer é prome­ter-lhe tentar. Essas coisas de crimes de morte estão fora de minha especialidade.

- É só o que espero: um esforço honesto - ergueu-se da cadeira, tirando um talão de cheques da elegan­te bolsa de couro negro. - Vou dar-lhe um adiantamen­to de duzentos dólares - curvou-se sobre a escrivaninha para preencher o cheque e eu senti um sopro do perfu­me que usava. Talvez não fosse muito sutil, mas cheira­va bem. - Moro na Riverside Drive e meu endereço es­tá no cheque. Esperá-lo-ei em meu apartamento todas as noites às oito horas.

- Em seu apartamento? Todas as noites? Por quê?

- Para relatar o que tiver descoberto durante o dia. Será mais conveniente do que vir eu aqui.

- Quer assegurar-se de que, diariamente, seu di­nheiro estará sendo bem empregado, não é isso?

- Exatamente - disse ela muito serena. - Algum mal nisso?

- Mrs. Turner, não trabalho em horário fixo... das nove às cinco. Posso estar ocupado com o caso à noite. Além disso, conforme a senhora talvez saiba por seu marido, o trabalho de detetive consiste, em grande parte, em aguardar aqui e ali, tateando por um sem-nú­mero de becos sem saída, até tropeçar... isso mesmo, tropeçar... em uma pista, em um indício ocasional, que desenrola toda a meada. Posso trabalhar dias a fio sem chegar a uma única solução.

- Contanto que trabalhe. É só o que peço. Não é que não confie no senhor, Mr. Harris. É que não supor­to esperar. Quero sentir que algo... que tudo está sen­do feito.

- E se eu for procurá-la sempre que tiver alguma notícia?

- Desculpe-me, mas, para meu sossego, tem que ser todas as noites, a começar de hoje. Entendido?

- A senhora é quem paga.

- Bem sei. Espero-o hoje, às oito horas. Passe bem, Mr. Harris.

Ergui-me da cadeira e verifiquei que ela não era tão baixa assim... Tenho quase um metro e noventa e ela chegava-me no ombro. Acompanhei-a até a porta. De­pois, acendi um cigarro e voltei para a escrivaninha, fi­xando o olhar no cheque. Faltavam dez para as duas... tempo de sobra para ir ao banco. Passei os olhos na correspondência: dois anúncios e a conta do telefone. Nenhuma notícia de um sujeito, que se mudara levando um aparelho de televisão com nove prestações por pa­gar. Procurei seu último endereço conhecido e o núme­ro do telefone... morava em um quarto com outro "ca­ra" que não gostava de falar. Trancando minha escri­vaninha e o telefone, desci e fui ao café da esquina. Cy estava entregue ao seu passatempo favorito, dando em cima de Alma, a "garçonnette"

- Vou sair agora e hoje não volto - declarei. - Amanhã poderei pagar-lhe o aluguel.

- Algum recado para mim?

Balancei a cabeça negativamente e Cy, depois de mais uma brincadeira com Alma, retirou-se. O café es­cava deserto. Só vi o cozinheiro. Pus um dólar no bal­cão e perguntei a Alma:

- Quer dar um destes dois telefonemas para mim?

- Nunca vi dinheiro tão fácil — disse ela com um sorriso a iluminar-lhe a fisionomia dura. Escrevi o no­me e o número nas costas de um envelope. Entreguei-lhe o lápis e um níquel. - A mesmo coisa de sempre.

- Eu sei. Como vai a garotinha?

- Otimamente.

-Quando é que vai me convidar para ir à sua ca­sa? Quero preparar o jantar para ela. Adoro crianças.

-Qualquer dia desses - menti eu.

Fomos ao telefone de parede. Ela discou o número e perguntou em voz açucarada:

- Bobby está? É uma amiguinha dele. Há duas se­manas, tinha um encontro marcado com ele, mas fiquei doente. Ora... você... não brinque... está bem... es­tá bem, adivinhou! Pensei que pudesse encontrá-lo hoje à noite. Pareço estar o quê? - piscou o olho para mim e fungou no telefone. - Você também não parece nada frio... Certo... não me incomodaria de sair com você, mas tenho que perguntar primeiro ao Bobby se posso. O quê? Ora, conheci o Bobby em um clube dançante. Vamos, não venha com essa conversa pra mim, benzinho. Como sabe que ele aprovará? Nunca engano um namo­rado. Um Ford novo? Formidável, querido. Natural... estou livre este sábado, livre todo o fim da semana, mas, primeiro tenho que perguntar ao Bobby. Você não vai querer que eu faça isso com ele, não é? Não, não! Não é preciso dar-lhe meu número. Tenho o seu e sou louca por Fords novos. Escute aqui: depois que tiver meu en­contro com Bobby, telefono para você. Não é conversa não... você nem imagina o que sou capaz de fazer por um carro novo. O quê? - uma risadinha real. - "Seu" pirata! Vou desligar agorinha mesmo se não me deixar falar com o Bobby. O quê?... e para onde se mudou? É verdade mesmo?

Escreveu no envelope um endereço em Long Island e passou o envelope para mim. A conversa prosseguiu no mesmo tom e quando o tempo se esgotou, ela colocou o fone no gancho, dizendo: "Que chato!"

Telefonei para a firma que vendera o aparelho de televisão. Dei-lhe o endereço do mau pagador e acres­centei, respondendo a uma sugestão:

- Nada disso. Mande seu cobrador ou a polícia. Não faço trabalho de briga. Deixe dessa conversa, de que tenho físico para isso. Mande-me um cheque de dez dólares pelo correio, por favor.

Quando voltava do telefone, Alma agarrou-me o bra­ço, dizendo:

- Faz "muque" pra mim. Barney, faz?

- Fica para outra vez, benzinho. Tenho que ir ao banco agora mesmo. Obrigado.

Fui até a garagem apanhar o carro. Era um Buick esporte de antes da guerra e parecia um calhambeque, mas o motor estava em plena forma, com um superalimentador desenhado por mim. Era um carro que, se eu quisesse, poderia correr 110 milhas por hora. No ve­rão, costumava levar a garotinha a Bridgehampton pa­ra assistir às corridas de automóvel. Às vezes, dava-me vontade de meter-me nelas com meu Buick.

Do banco, fui à avenida St. Nicholas e encostei o carro bem em frente ao prédio da Delegacia de Polícia, construído em 1889, segundo a data gravada no oitão do horrível edifício. Aparentava mesmo a idade que tinha. Perguntei a um sargento calvo, de serviço, se o Tenente Swan estava e ele fez sim com a cabeça. O gabinete de Al era pintado de verde-bílis e parcamente mobiliado: uma velha escrivaninha e duas cadeiras.

Em marcante contraste com esse gabinete, Al era um homem de aparência moderna e cuidada. Tinha o porte de um forte peso-médio e usava cinta para escon­der a barriga. Suas roupas eram dessas que mostram ter custado dinheiro, mas sem espalhafato e Al gastava muito tempo arrumando-se para sair. Era o tenente en­carregado do setor dos detetives, da delegacia e mexia-se cautelosamente por trás da escrivaninha, como se receasse sujar as mãos bem tratadas. Mas Al nada ti­nha de efeminado. Seu rosto gordo era uma máscara se­vera de lutador e bem que podia ser cruel, quando que­ria. Acomodei minhas largas ancas na outra cadeira e disse:

- Pelo visto, anda querendo ajudar-me outra vez. Ele largou o relatório que estava lendo e recostou-se na cadeira, depois de ajeitar o coldre de ombro, que apa­receu limpo e lustroso contra a camisa alvíssima. Al olhou para mim, com um sorriso rígido pendurado nos lábios.

- Alô, "seu" grande patife. Estava à sua espera - sua voz era áspera como um grasno. É que, segundo di­zia, certa vez aparara uma bola de "baseball" com o pomo-de-adão, quando era um jovem policial tratando de im­pedir um jogo na rua. - Quer um copo de "ginger beer?"

Hesitei, sem poder resolver de pronto se iria beber um trago àquela hora do dia. Meu cunhado era um homem sem grande imaginação e tinha uma pilhéria que repetia mil vezes... Por uma razão qualquer, ado­rava transformar tudo, desde o leite até a água, em be­bidas fortes. Na casa dele, se a gente pedia água, recebia gin puro. Talvez fosse porque nunca bebia, nem mesmo cerveja. Embora essas brincadeiras fossem co­muns em sua família, Violet costumava dizer a qualquer pessoa que fosse ao banheiro em nossa casa: "Basta ci­tar meu nome e conseguirá um bom lugar para sentar-se" e desatava a rir como louca", por mais que repetis­se a mesma graça. As brincadeiras sobre o banheiro eram sua especialidade, inclusive papel higiênico com "surpresas". Fora disso, Violet era uma mulher muito inteligente.

- Já se pode comprar água gasosa em lata - dis­se Al, apanhando uma lata do recipiente térmico que guardava debaixo da escrivaninha. Disfarçadamente, olhei para a tampa. Parecia intata.

- Como vai Ruthie?

- Otimamente - abri a lata de "ginger beer" c provei cautelosamente. Não demonstrei qualquer reação e Al pareceu desapontado. Pensei no tempo que ele devia ter perdido para abrir cuidadosamente a lata, despejar nela alguma bebida forte e, depois, fechá-la com per­feita precisão.

- Quando vai levá-la lá em casa? May e o garoto sempre perguntam por ela. Precisa ver meu "playgroom" agora... mais de quinhentos metros de trilhos e...

- Havemos de aparecer qualquer dia destes. Por que mandou a Turner para mim? - terminei a bebida e dobrei a chapinha com a mão. Al tentou não olhar, mas não conseguia desviar os olhos. Atirei a chapinha dobrada sobre a escrivaninha.

- Ela queria um "tira" particular. É o que você é. Eis por que...

- Deixe disso.

Al apanhou a chapinha delicadamente, olhou bem, tentou ajeitá-la e depois atirou-a no cesto para papéis. Sorriu, mostrando-me os dentes alvos, bem implantados.

- Que é que há, Barney, enjeitando trabalho?

- Você sabe que eu não dou para esse negócio de crimes, mas...

- Mas aceitou o caso? - interrompeu Al. Balancei a cabeça afirmativamente.

- Mas acho que não fiz bem.

- Barney, deixe de querer diminuir-se. Essa "dona" Turner ficou meio "biruta" com a morte do marido. O governo municipal pagou-lhe o dinheiro do enterro. Ela recebeu o seguro e meteu-se-lhe na cabeça contratar um de­tetive particular por sua conta. Palavra que lhe disse que estava jogando dinheiro fora, mas ela insistiu, não nos largava. Então, achei que ninguém faria o trabalho mais barato que você. E talvez seja trabalho fácil.

- Fácil?

- Não há nada que você possa fazer neste caso... a não ser evitar de bancar o bobo. Que diabo... por que não manda passar esse terno e não penteia os cabelos?

- Deixe meu cabelo em paz. Al, vou dar duro neste caso, todos os dias...

Al ergueu a mão de unhas manicuradas... a direi­ta... a que tinha um dedo quebrado.

- Não. Não faça nada. Fique na moita e espere até que a gente resolva tudo. E não deixe a mulher nos amolar. Toda a polícia está andando às cegas... Que pode, então, conseguir um "sherlock" particular? Foi o que disse a ela mil vezes, mas ela amolou tanto... e eu sabia que você não abusaria na conta das despesas. Além disso, Mrs. Turner é um "doce" de pequena e você pre­cisa de uma esposa para cuidar de Ruthie... Quem sabe em que vai dar isso?

Encarei-o por um momento. Al tinha o costume de rir da gente com os olhos, zombar da gente, sem mover um músculo do rosto. Vi, também, tinha esse hábito... uma das poucas coisas dela que às vezes me chateavam.

- Desde quando deu para bancar o Cupido? Trocou o "pau de fogo" pelo arco e a flecha? Deixe minha vida sentimental. Mrs. Turner pensa que foi suicídio.

Al deu uma gargalhada, que soou como uma lixa ras­gada.

- Ela me amolou um bocado com essa chapa. Es­cute: Ed Turner não era homem pra se matar. Quando estava ainda no estágio probatório, aqui na polícia... um calouro... teve um golpe de sorte... muita sorte... agar­rou um "cara" que as autoridades federais estavam pro­curando. Passou a detetive de terceira e, depois disso... ambicioso como era... foi a escalada. Ed era um desses potrinhos que ainda não aprenderam a sossegar... um guri, com autoridade policial. Sempre usando as mãos, em lugar da cabeça. .

- Inclusive "comendo bola"? - Al confirmou com a cabeça.

- E, além disso, sem habilidade para disfarçar. Foi transferido uma vez por causa de sua "goela grande". Tive que falar com ele... tive que ser duro algumas ve­zes, para que aprendesse. Com os diabos, afinal de con­tas uns "tubos" ali, outros acolá... ninguém repara. Mas o idiota tentou achacar a turma dos contraventores do jogo.

- Talvez acabassem dando-lhe chumbo em lugar de "grana", hein?

- Não seja maldoso! - rosnou Al. - Já lhe disse que abri os olhos do rapaz. Recomendei-lhe que não fosse com muita sede ao pote. Este caso é um mistério. Nada, nele, faz sentido. Encontramos a bala em Andersun... Andersun com s-u-n. Foi assassinado com uma Luger cali­bre 38. A bala que matou Turner atravessou-lhe o corpo e não conseguimos encontrá-la.

- Procuraram bem pela rua, não é? - Al macaqueou-me. - Que pensa, afinal de contas, que fizemos?... Que andamos brincando pelo quarteirão? O diabo da bala pro­vavelmente penetrou em um pneu ou em outra parte de algum carro, foi levada para longe e perdeu-se. O que sabemos é que Turner estava com o carro, um velho Che­vrolet, encostado por perto e deve ter desembarcado dele quando viu Andersun ser atingido. Pegou a outra bala.

- Sem procurar sacar a arma? - Al fez um gesto com a mão.

- Sim... e isso não parece muito plausível. Já lhe disse. Turner era um desses rapazes ambiciosos, que ati­ram sempre primeiro.

- E que tal esse Andersun... com u?

- Nada. Rapaz daqui, comerciário... almoxarife, sem qualquer passagem pela polícia. Venceu um concurso de "slogans" naquele dia. Ganhou mil dólares. Estava co­memorando no bar. Ia fazer uma viagem à Europa... todos os jornais deram isso... publicidade para o prêmio. Não tinha o dinheiro com ele nem ao menos tinha rece­bido o cheque. Turner tinha cem dólares na carteira. O rapaz Andersun, era honesto, trabalhador, nem ao me­nos dado a mulheres. Muita gente ouviu os tiros, mas ninguém viu nada.

Fiquei refletindo por um momento.

- Quem ganhou o segundo prêmio no tal concurso?

- Barney, vamos devagar... Foi uma vovòzinha de sessenta e três anos, que mora num lugarejo em Michigan... nunca, na vida, saiu de sua cidadezinha - disse Al, desanimado. - Outras perguntas, "Mr. Sherlock Holmes"?

Apanhei um cigarro do maço sobre a escrivaninha e acendi.

- Que estava fazendo Turner ali no carro?

- Agora, sim, está ficando quente. Esta pode ser a pergunta crucial. Não estava de serviço e aquela rua nem pertence à nossa jurisdição. A mulher dele não tem a me­nor idéia do que foi fazer lá. Os moradores da rua pen­sam que o viram antes no quarteirão, mas não têm cer­teza. Tão pouco havia qualquer contraventor operando na rua. A propósito: o distrito que está tratando do caso é o que fica logo abaixo daqui e o Tenente Franzino é o encarregado da Seção de Detetives. Falei com ele sobre você e não gostou muito de ter um intrometido particular no caso, mas eu garanti que você não o amo­laria.

- Você está tomando alguma providência... extra-oficial?

Al sorriu outra vez com os olhos.

- Tenho uma idéia, mas, até aqui, está caindo de podre. Entretanto, é a única coisa que faz sentido. Tur­ner e o assassino tinham resolvido liquidar Andersun... por uma razão qualquer... mas, o assassino traiu Tur­ner. é uma explicação para o fato de Ed não ter puxa­do o revólver.

- E aquele golpe de sorte que Turner teve?

- Barney, pare de bancar o detetive. Já verifica­mos isso... o "cara" era um pequeno vendedor de entor­pecentes, atualmente cumprindo cinco ou dez anos em Lewisburg. Nada de vingança de "gang". Não foi nada importante, mas passamos o caso para o F.B.I. e o pes­soal lá da capital adora isso.

- A mulher disse que ele teve dois elogios em sua folha.

Al resmungou:

- Turner descobriu um sujeito escapulindo de ma­drugada de um edifício de apartamentos. Disse que man­dou o homem parar e depois matou-o com um tiro. Ao que parece o "cara" estava apenas saindo do aparta­mento de uma mulher, mas, felizmente para Turner, en­contraram um revólver no bolso dele... embora a mu­lher jurasse que ele nunca possuíra uma arma na vida.

Talvez Ed tenha sido esperto... muito esperto. Talvez tivesse consigo outra pistola. Mais alguma coisa, Mr. Bogart?

- A propósito de sua teoria... por que estaria Tur­ner metido no assassinato de Andersun?

Al deu uma risada profunda e depois calou-se abrup­tamente.

- Se soubéssemos, você perderia seu emprego atual. Olhe, além de policiais de ambos os distritos, há uma equipe de rapazes da Delegacia de Homicídios trabalhan­do no caso, isso sem falar no pessoal da Seção de De­tetives. Uns seis homens examinaram a vida de Ander­sun e da família toda. Resultado: zero. O rapaz tra­balhava para uma firma de instrumentos, ganhando trin­ta e oito dólares e quarenta cents líquidos por semana. Tinha uma namorada, mas não ligava muito pra ela e seu maior divertimento era ir tomar cerveja no boteco da esquina. O rapaz nem ao menos jogava cartas... não apostava nas corridas, nem na loteria.

Levantei-me da cadeira... o rum estava fazendo-me transpirar.

- Que tal se Turner tivesse sido baleado primeiro e Andersun apenas chegado naquela hora e levado as so­bras?

Al balançou a cabeça. Estava ficando grisalho nas têmporas ou, quem sabe, talvez as pintasse de cinza.

- Examinamos esse aspecto também. O médico che­gou logo. Afirma que Andersun foi o primeiro a morrer. E, naturalmente, os laboratórios, depois de examinarem o caso, chegaram à mesma conclusão.

- A única coisa fora do comum na vida de.Ander­sun foi o fato de ganhar o prêmio, viajar para a Europa - observei eu.

Al recostou-se na cadeira... nunca ficava de pé ao meu lado.

- Esta é uma dedução terrível... Acha que se mata gente, hoje em dia, por falar em uma viagem a Paris?

- Bem, vou andando. Lembranças em casa.

- Obrigado... e traga Ruthie um dia destes. Bar­ney, lembre-se que é lá em baixo que estão tratando des­te caso. Não se intrometa no caminho deles.

- Ed Turner... tinha alguma amante? - pergun­tei, parando junto à porta.

- Que se saiba, não. Ambicioso demais para se me­ter com mulheres. E com uma mulher daquelas, para quê? Quando for lá em casa, quero que você examine meu novo Cadillac.

Com certeza minha cara exprimiu algo, pois Al acres­centou:

- Não olhe assim pra mim. Ganhei uma "grana" na bolsa de valores. Posso mostrar-lhe pelas contas do corretor que...

- Quem disse que você não ganhou? Se descobrir alguma coisa, voltarei aqui.

- Muito bem. Obrigado, "Perry Mason". Não vá es­corregar em alguma casca de banana.

Não me ocorreu qualquer boa resposta. Por isso mes­mo, retirei-me. O rum dera-me fome. Procurei um bo­tequim para comer um "hamburger", mas tive outra idéia melhor. Peguei o carro e fui até o "Grand Café". O camarada que o batizara assim devia ter certo senso de humor.

O homem do bar era um camarada velhusco, baixo-te. Em um dos cubículos havia um casal bebendo cerve­ja e fazendo tocar a vitrola automática. No bar, um cego. O cego tinha espádua e orelhas de lutador. Pedi um "hamburger" e o homem do bar resmungou pelo fa­to de ter que cozinhar àquela hora do dia. O cego vol­tou o rosto para mim e disse:

- Um homenzarrão, não é?

- Cento e vinte quilos.

- Posso sempre calcular o tamanho de um "cara", não é verdade, Jimmy? - perguntou ao "barman". Ti­nha uma voz de cana rachada, como certos velhos.

- É... - resmungou Jimmy.

- Foi aqui que houve aqueles dois assassinatos? - perguntei.

- Aqui não! - rosnou Jimmy para mim. - Nunca tivemos complicações aqui. Você é um "tira", não é?

- Particular - respondi exibindo minha carteira.

- Pra que um polícia particular num caso destes? - quis saber o cego.

- Não estou aqui para divertir-me. Fui contratado - respondi, justamente quando o homem do bar colocou à minha frente um grosso "hamburger", perguntando:

- Cerveja?

Fiz sim com a cabeça. O "hambuger" estava danado de bom. Um "hamburger" à moda antiga. E quando disse a Jimmy o que pensava, ele rosnou e indagou:

- Que esperava? Carne de cavalo? Isto aqui pode não ter grande aparência, mas servimos bem. E o senhor está perdendo seu tempo. Já tivemos um mundo de "tiras" investigando. Os fregueses ficam nervosos.

- Estou apenas cumprindo minha missão - disse eu. O "barman" continuou de cara fechada. - Geral­mente vocês se saem alegando que é trabalho, dever, ou negócio... como se isso significasse alguma coisa.

Houve um momento de silêncio pesado, quebrado ape­nas pela música da vitrola automática, até que o cego perguntou:

- Quer ver como eu amasso uma lata de cerveja nas mãos?

- De certo que gostaria - não estava progredindo muito.

- Ora, Danny. Pra que começar tão cedo assim? - disse Jimmy.

- Você ouviu o que ele disse. Vai pagar-me uma la­ta de espuma - respondeu Danny. Bebeu rapidamente a cerveja, colocou a lata vazia na mão esquerda... que era do tamanho de um pernil... e amassou a lata. óti­mo para um "cara" daquela idade. Peguei a chapinha e dobrei-a entre os dedos, sem me lembrar que ele não podia ver. Passei a chapinha dobrada para ele. Apal­pou-a e perguntou, animado:

- Jimmy, você "viu ele" amassar isso com os dedos?

- Hum... Hum...

- Ele apertou contra o bar ou não?

- Não, Danny. Só com os dedos. Um touro. Danny voltou-se e passou as mãos pelo meu corpo.

- Levantador de pesos?

- Não. Há mais de um ano que não!

- Que tipo de policial é você? Desarmado?

Dei uma risada. Danny era mais observador que um homem com bons olhos.

- Acho que não nasci para pistoleiro.

Isso impressionou grandemente Danny. Começamos a conversar sobre homens fortes e Jimmy entrou na conversa. Começaram a fanfarronar sobre os veteranos: Sandow, Hackenschimidt, Goerner. Nunca tinham ouvido falar em John Davis, em Doug Hepburn, Grimek ou Kono. A seguir, Danny começou a falar nos heróis da luta livre e pôs-se a discorrer sobre Grotch, Poddoubny... a luta que tivera com um dos irmãos Zbyszko, e como quase imobilizara Strangler Lewis. Finalmente, pergun­tei:

- E Andersun... era um cara de "muque"? Danny deu uma gargalhada, enchendo o ar com um cheiro de cerveja.

- Não levantava nem um palito. Os rapazes de hoje são uns moleirões. Automóveis para irem aqui e ali, ele­vadores, etc. Têm tudo já feito, não desenvolvem os músculos.

- Que pensam vocês dois do assassinato? Conheciam o rapaz?

O "barman" tomou a palavra:

- Penso que foi um engano. Alguém tomou Frank por outro sujeito. Ele não se metia em encrencas.

- É verdade. Se você quisesse escolher um camara­da para uma encrenca, Frankie seria o último a ser es­colhido - disse Danny, enquanto eu lançava um olhar para seus olhos inúteis, destruídos por tracoma ou pela sujeira da lona de algum "ring".

- E Turner, o detetive? Vocês o viram alguma vez?

- Nunca ouvi a voz dele - disse o cego. E Jimmy acrescentou:

- É isso que os "tiras" estão sempre a perguntar. E eu sempre a dizer-lhes que só o vi uma vez... lá fora na calçada, morto.

- Havia algum estranho aqui, na noite do crime?

- Você está brincando? - volveu Jimmy, espremen­do um pano que passou pela superfície do bar. - Há sempre alguns estranhos num bar. Mas, naquela noite, o que havia mais, mesmo, eram os fregueses habituais, da vizinhança, para saberem do prêmio que Frank tinha ganho.

- Brown esteve aqui - disse Danny, de súbito.

- Esteve mesmo? - volveu Jimmy espremendo o es-fregão outra vez. - Não me lembro de tê-lo visto.

- Esteve sim - afirmou Danny. - Lembro-me de sua voz... nunca esqueci aquela voz.

Fiz sinal para outra rodada de cerveja e indaguei:

- Quem é Brown?

- Um cara muito "garganta" - disse Jimmy. - Eu moro aqui nesta quadra há pelo menos... bem... quarenta e cinco anos...

- Eu também... talvez mais - aduziu Danny.

- Olhe lá pra baixo do quarteirão e verá um terre­no baldio, do outro lado da rua. Ainda tem uns degraus de pedra na frente. Antigamente era uma igreja. Isso, por volta de 1915, não é verdade, Danny?

- Isso mesmo.

- Bem. Pouco antes da guerra, por volta de 1917, o velho reverendo Arkins morreu num desastre de auto­móvel e a igreja foi liquidada... se é que se pode falar assim de uma igreja. Depois, uma sociedade alemã ficou com o prédio e investiu nele muito dinheiro para trans­formá-lo em ginásio. Veio a guerra e o ginásio foi fe­chado. Houve um incêndio e só ficaram os alicerces e a escada de pedra. Muita gente afirma que o incêndio não foi acidental... você sabe como são essas coisas em tem­po de guerra. Nunca acreditei nessa história, mas...

- E que tem isso a ver com o tal de Brown? - indaguei.

- Era a isso que ele ia chegar - atalhou Danny.

- Uma noite, esse Brown veio aqui e esteve conversando com um dos rapazes... justamente o Frankie... agora me lembro.

- Isso mesmo... discutiu com o Frankie - comple­tou Jimmy.

- Discutiu sobre quê? - indaguei.

- Nada, realmente. Brown disse que tinha nascido aqui e que se lembrava dos pais de Frankie... que ele e Andersun nasceram com poucos dias de diferença. Conversa de bar, você sabe, mas ele disse que se lem­brava de que a igreja pegara fogo. Mas quando isso aconteceu já não era mais igreja e, em todo caso, foi antes de ele nascer.

- E ninguém se lembrava dele aqui - acrescentou Danny. - Pra que inventar uma coisa dessas? O que me pareceu esquisito foi a voz dele. Uma espécie de de­feito de pronúncia... pronunciava os "rr" de uma ma­neira engraçada. Gente nascida aqui não fala assim.

- Não me lembro de nada de esquisito na voz dele - disse Jimmy.

O cego esvaziou o copo de cerveja.

- Mas eu notei. Costumava ir muito a Elmira e Ithaca para lutar. A gente de lá tem esse sotaque.

- Então foi essa a discussão?... Sobre se Brown tinha nascido aqui? - perguntei.

Jimmy confirmou com a cabeça, enquanto lavava e enxugava as mãos.

- Só isso. Lembrei-me por causa da mentira sobre o incêndio da igreja.

- Como era ele? Lembra-se do primeiro nome?

O "barman" ficou por um momento examinando uma manchinha no avental branco.

- Acho que era um nome comum, como Jack ou Joe. Quanto à aparência dele... isso aconteceu há me­ses já... não me deixou nenhuma impressão especial. Acho que devia ter seus trinta anos, forte, penso eu, e baixo.

- Bem vestido?

- Ora, isso não me lembro.

- A côr do cabelo?

- Sim. sim, lembro-me bem... era ruivo - disse Jimmy triunfante. - Sim senhor, cabelo vermelho mes­mo. Lembro-me bem, não só porque era de um verme­lho horrível, mas também, porque ele estava discutindo muito, o que me fez pensar que sempre se diz que gente de cabelo vermelho gosta de briga.

- Era um sujeito mau, percebi pela voz - declarou Danny. - Acho que veio com outro "cara", amigo dele.

Jimmy deu de ombros:

- Não me lembro de ninguém com ele.

- Voltemos à noite dos crimes... Brown saiu antes de Andersun? - indaguei.

Jimmy deu uma risada, exibindo os dentes superio­res esverdeados.

- Puxa, "velhinho"! Eu não disse que ele esteve aqui naquela noite.

- Mas esteve - replicou o cego. - Tenho procura­do lembrar-me se tinha ouvido antes aquela voz e só agora me lembrei, quando você perguntou se algum es­tranho veio aqui.

- Você só ouviu a voz dele duas vezes, com três me­ses de intervalo, e tem certeza de que era a mesma voz? - perguntei.

- Claro. Desde aqueles tiros que a coisa está aqui na minha cabeça. É como, às vezes, uma coisa está na ponta de sua língua e você não consegue lembrar-se. Não me engano com uma voz. Era ele mesmo.

- Danny, você disse isso aos "tiras"? O cego sacudiu a cabeça enorme:

- Estou dizendo que só agora me veio à lembrança. Voltei-me para o homem do bar:

- Você falou à polícia a respeito de Brown?

- Claro que não. Só o vi uma vez antes e quanto a ele ter estado aqui na noite do crime, não posso ga­rantir - disse Jimmy.

O relógio de parede, perto do aparelho de televisão marcava dez para as quatro. Entreguei a Jimmy um cartão meu e disse-lhe que voltaria a procurá-lo. Aper­tei a mão de Danny e nenhum de nós tentou a brin­cadeira do aperto de aço. Saí. Não havia tempo para ir à delegacia e, por isso, parei em uma farmácia para te­lefonar ao Tenente Franzino. Uma voz impaciente res­pondeu :

- Sim... aqui é o Tenente Franzino.

- Aqui é Barney Harris... o detetive particular de quem o Tenente Swan lhe falou.

- Ah... Que é que há, Mr. Harris? - para surpre­sa minha, a voz tornou-se mansa e cortês.

- Talvez nada, mas estive conversando com o ho­mem do bar e com um homenzarrão cego, no "Grand Café". Eles disseram-me que esteve lá um camarada cha­mado Brown... o primeiro nome é muito comum, como Joe, Jack ou John... Tem cerca de trinta anos de idade, cabelo vermelho vivo. corpulento, com um sotaque es­tranho. Esteve no "Grand" há vários meses atrás, contou que nasceu na vizinhança e que conhecia Franklin An­dersun. Ninguém, porém, se lembrava dele, inclusive An­dersun. Além disso, por um engano que cometeu, falan­do numa igreja que se incendiou, o homem do bar viu logo que estava mentindo quando disse que nasceu na­quele quarteirão. O...

- Que quer dizer tudo isso, Harris?

- Talvez apenas conversa de bar... O cego afirma que o tal homem voltou ao "Grand" na noite do crime, antes dos tiros. O homem do bar não se recorda de tê-lo visto naquela noite, mas o camarada cego insiste. Diz ele que nunca esquece uma voz. Pra mim é coincidên­cia demais.

- Hum... Não há dúvida que é uma indicação mais precisa do que as que conseguimos até agora. Um fula­no de cabelos vermelhos... Vai ser difícil de encontrar, mas vamos ver o que se pode fazer. Obrigado, Mr. Har­ris.

- Danny, o cego, disse que o sotaque de Brown lembrou-lhe a maneira de falar do povo no norte do Es­tado, por volta de Ithaca ou Elmira.

- Bom. Vamos investigar. Suponho que Swan o pôs a par do que já sabemos. Mantenha-se em contato co­nosco, Mr. Harris. Compreendo que precisa apresentar algum... hum... trabalho e não me incomodarei se nos procurar de vez em quando. Mas não se intrometa em nosso caminho. Não gosto de tropeçar em detetives par­ticulares. Entendido, Mr. Harris?

- Muito bem. Não se preocupe. Eu nunca me mato de trabalho.

Peguei o carro e dirigi-me à Audubon Avenue. En­costei diante de um colégio particular que me tomava todo o dinheiro, mas, com as escolas públicas lotadas, va­lia a pena. Ainda não eram quatro e meia e, enquanto esperava, acendi um cigarro e pus-me a pensar no cego forçudo e, principalmente em Betsy Turner. Havia algo de artificial em sua pessoa, algo que eu não conseguia precisar.

Finalmente as crianças saíram e Ruthie veio cor­rendo para mim, muito bonita com seu vestidinho novo, comprado no mês passado. Era só pernas e braços. Quan­do abri a porta do carro, ela entrou, beijou-me duas ve­zes, dizendo entre os dois beijos:

- Alô, papai - em seguida, recuou e limpou os lá­bios. - Você está cheirando a cerveja.

- Isso é maneira de falar com papai? - disse eu, arrancando com o carro.

- Quantas cervejas tomou?

- Um milhão, senhorita intrometida.

- Vamos dar um passeio de carro?

- Talvez tenha que ser rápido. Quer picadinho de carne para o jantar?

- O quê? Então não vamos dar um passeio?

- Tenho que sair hoje à noite.

- Não gosto quando você sai, papai. Aonde vai?

- Tenho trabalho. Vou falar com May Weiss para ficar com você.

- Não gosto de May. Ela é muito cacete. Sempre fazendo os exercícios do colégio. Nunca está disposta a brincar. Por que você não fica em casa e le para eu ouvir... ou então eu fico olhando seus exercícios?

- Já lhe disse que tenho que trabalhar - respondi passando a mão direita pela trança castanha, sedosa. Precisava lavar-lhe o cabelo.

- Não vai ao cinema escondido, papai?

- Não, querida. Você é a única pequena que levo ao cinema. E o trabalho que estou fazendo agora parece mais movimentado que qualquer filme de cinema.

Fomos até Yonkers e voltamos, seguindo pela Broadway para evitar o pedágio da ponte. Ruthie, como sem­pre, não parou de falar. Contou-me que vira, na rua, meu primo Jake Winston, o carteiro, e que ele nos con­vidara para ir à sua casa em Ridgewood, no domingo. O modo pelo qual todos os meus parentes estavam sempre atrás de mim, me magoava um pouco... Podia muito bem tomar conta da garota, sozinho.

Parei num supermercado e Ruthie, andando ao meu lado, perguntou:

- Vamos fazer uma torta "Jello" para o jantar?

- Acho que vai dar tempo. Mas tenho que lhe dar o jantar, preparar seu banho, tomar o meu, de chuveiro, fazer a barba e estar pronto para sair às sete e meia.

- Talvez seja verdade que não vai ao cinema... Tomar um banho de chuveiro à noite! Aqui está a car­ne passada na máquina.

- Vamos comprar um bife bem grosso. Hoje, va­mos "tirar a barriga da miséria"!

Ela ergueu para mim os grandes olhos curiosos:

- Que quer dizer isso, papai?

- Quer dizer que a gente vai comer um jantar de verdade e não miúdos, mocotó, carne passada na máqui­na, coisas assim.

Ruthie franziu o narizinho arrebitado.

- Mas por que a gente come sempre mocotó e miú­dos, papai?

- Geralmente porque não há dinheiro para com­prar outra coisa - respondi, dando-me conta de que es­tava a meter-lhe coisas na cabeça.

 

MANHA de 11 de abril anunciava um agradável dia de primavera, mas o homem que entrou às pressas num hotel de quarta classe, no começo da Oitava Avenida, estava suando. Chamava-se Martin Pearson, ti­nha trinta e dois anos, era robusto e de estatura mediana. O rosto era dos mais comuns, tendo apenas a caracteriza-lo uma basta cabeleira que, no momento, estava pinta­da de louro-areia. O velho terno de "tweed" fora com­prado numa loja de Times Square, há uns seis anos atrás. A camisa branca, limpa, vinha de Amsterdam; a grava­ta, de malha, tinha sido adquirida na "Rue de la Paix" e os sapatos, em Gênova. O velho estôjo de couro do apa­relho fotográfico, que trazia a tiracolo, do lado esquerdo, tinha sido encomendado por um catálogo da Sears Roe­buck há muitos anos atrás.

Pearson estava apressado e suarento porque uns vin­te minutos antes, enquanto sorvia seu café matinal, len­do o jornal em um café da Rua Setenta e Três, tinha resolvido matar um homem.

Cumprimentando com a cabeça o empregado da por­taria ainda mal despertado, Pearson galgou rapidamente o lanço da escada de madeira, chegou a um patamar mal iluminado e bateu com energia numa porta marcada com um oito de metal encardido. Como ninguém respondesse, bateu de novo, com mais força. Ao cabo dc um momento, uma voz masculina perguntou em tom cauteloso:

- Sim? Quem é?

- Sou eu. Preciso vê-lo já, Harold - Martin estava falando com o sócio, Sam Lund, registrado no hotel sob o nome de Harold Bender.

- Que pressa é essa, Marty? Eu... uh... estou ocupado.

- Com a breca! Abra a porta!

Lund resistiu ainda um pouco porque estava com uma pequena no quarto. Pearson continuou a bater na porta até que, finalmente, Sam pulou da cama, dizendo à ga­rota que não se preocupasse e entreabriu a porta para explicar a situação. Mas Pearson empurrou o batente, enquanto a rapariga se erguia na cama, tratando de co­brir com as mãos os seis fartos.

Por um segundo, o quarto assemelhou-se a um desses quadros comuns de "vaudeville": o ambiente de sujeira, a pequena desnuda na cama... Pearson, encarando-a como um marido furioso e Sam Lund - de cuecas - di­rigindo-se calmamente para a cômoda, enquanto acendia um cigarro. Lund era um homenzarrão de pouco mais de trinta anos e, embora airoso, seu corpo ainda guardava vestígios da musculatura do passado. O rosto de feições delicadas era belo, mas, a não ser numa orla acima das orelhas a cabeça era inteiramente calva. O crânio apre­sentava um aspecto tão polido que parecia nunca ter tido cabelo.

Nas declarações que fez à Policia várias semanas mais tarde, a rapariga afirmou: "Ambos portavam-se como cafajestes. Nem ao menos tiveram a decência de virar as costas enquanto eu me vestia."

P.: Você encontrou Lund num bar perto do ho­tel na véspera, à noite e concordou em passar a noite com ele por quinze dólares... Não é isso?

R.: Sim senhor. E estranhei o procedimento de Harold (foi esse o nome que me deu), porque pare­cia um camarada inteligente, bem conversado. Gostei muito da conversa dele, a voz clara, agradável como um...

P.: Vamos com isso... que aconteceu depois que Pearson entrou no quarto?

R.: Confesso que sou uma prostituta, mas, as­sim mesmo, como mulher, quero merecer certo res­peito. Achei ruim com eles e, finalmente, o mais baixo, Pearson... dizem vocês... virou-me as cos­tas e falou: "Escute aqui, minha irmã: Trate de ves­tir-se e "vá fazendo a pista". Temos o que fazer." Lembro-me bem que lhe respondi que folgava muito em não ser sua irmã. Ele estava ficando exaltado e, então, Harold disse paru mim: "Desculpe-me a afo­bação, benzinho, mas somos vendedores e Marty es­tá ansioso por começar a correr a praça com um no­vo produto nosso." Apanhei meu "soutien" e meus troços e...

P.: Quando esteve com Lund, na véspera, ele lhe disse como ganhava a vida?

R.: Não senhor. Não perguntei nada disso. Mas imaginei que fosse vendedor... tinha voz de ven­dedor e era muito falante. Além disso, não tinha lá muita “erva", isso eu vi logo. Sim, senhor, lembro-me bem, pensei que fosse um vendedor sem importância.

P.: Viu algum revólver no quarto de Lund?

R.: Não senhor. E se tivesse visto, teria chamado logo a polícia. Não sou boba para brincar com "pau de fogo". Nunca pensei que Harold... nem o ou­tro ... fossem homens perigosos. Não senhor.

Logo que a rapariga se retirou, Lund passou a chave na porta. Pearson começou a brigar com ele, exclamando:

- Perdeu a cabeça? Isso é coisa que pode estragar tudo para nós! Aposto que também se embriagou.

- Sossegue. Não fiquei bêbado. Apenas queria uma mulher - disse Lund bocejando. - Aliás, vou deixar esta espelunca hoje. "Mr. Bender" recebeu sua carta regis­trada ontem. Por que toda essa...

- "Seu" idiota, ela ouviu você chamar-me Marty!...

- E que tem isso? foi um descuido meu, mas você me perturbou, embarafustando, assim, pela porta a den­tro... Acalme-se, Marty, temos tido muita sorte todos estes meses e...

- Temos tido sorte mesmo? Lembra-se disto aqui? - Pearson tirou do bolso um pedaço de jornal rasgado às pressas, mas bem dobrado, e atirou-o sobre a cama. Lund aproximou-se, levantou o "abat-jour" e pôs-se a ler. Foi aí que Pearson divisou o fundo de uma garrafa de uísque irlandês em cima da cômoda e esvaziou-a num trago. Sam sentou-se na cama. Quando tirou os olhos do recorte de jornal, estava pálido e disse baixinho:

- Diabo! Diabo! Quem poderia imaginar uma coisa dessas! Como poderíamos adivinhar que o imbecil ia ga­nhar um prêmio?

- E não podíamos mesmo - disse Martin. - Uma dessas coisas que acontecem... um acidente, que temos de enfrentar.

- Joga pra cá esse maço de cigarros aí em cima da cômoda. Que vamos fazer agora?... Largar o negócio?

Pearson, que estivera examinando a garrafa vazia, largou-a e atirou os cigarros ao sócio. Observou Lund acender um e começar a fumar nervosamente. Depois de um silêncio incômodo, Lund perguntou outra vez:

- E agora... largamos o negócio?

- Não. Não podemos largar. Quando começarem a investigar, pouco a pouco todos os indícios apontarão pa­ra nós. Além disso, não sei por que haveríamos de desistir. Há outra solução, se agirmos com rapidez, antes do "cara" requerer o passaporte.

- Não estou entendendo.

- Está sim. Você sabe muito bem o que quero dizer, Sam.

Lund pulou da cama e disse, feroz:

- Se é o que estou pensando, acho que você... deixe isso de lado, pelo amor de Deus! Isso é assassinato!

Pearson meneou a cabeça.

- Ê... o mais certo é que seja mesmo. Procurei ana­lisar o caso, dar-lhe outros nomes... Ê pura e simples­mente assassinato.

- Marty, caia em si! Já demos muitos... muitos golpes... mas nunca pensei que eu... que você... fôs­semos realmente criminosos. Deus do céu, Marty, não podemos assassinar um homem!

- Não grite assim. Não vejo outra solução. Essas coi­sas vão-se acumulando, crescem. Um pequeno delito, um maior e, finalmente, o crime... o maior dos crimes. Te­mos um...

- Não! Nem quero discutir isso!

- Sam, você divertiu-se esta noite, não compreende nossa situação. Nunca nos consideramos criminosos, por­que criminoso é o homem que é pilhado em flagrante, da mesma forma que assassino é aquele que é condenado por assassinar. Temos sido ótimos, perfeitos... criminosos, e vamos continuar a sê-lo...

- Com todos os diabos, Marty, pare de falar! Não to­po assassinato. Ponto final.

- Deixe de representar e fale mais baixo. E escute o que vou dizer. Sam, além de nossas passagens, só nos restam uns duzentos dólares. Se largamos esse negócio, es­tamos fritos... na lona! Além disso, como tentei dizer-lhe, se o deixarmos viajar, nosso plano será descoberto, mesmo depois de termos desistido dele e eles acabarão nos agarrando... mesmo na Europa. Depois que ele pe­dir passaporte, estamos liquidados. É inútil lembrar-lhe que já infringimos várias leis federais e o mínimo que po­demos esperar é cinco a dez anos. É isso que você quer? Ficarmos "lisos", fugitivos pelo resto da vida, para acabar na penitenciária''

Sam pôs-se de pé, olhando para a parede, tão mer­gulhado em seus pensamentos que nem pareceu ouvir.

Marty apontou para a mancha de batom no traves­seiro:

- Você quer continuar a dormir com mulheres da rua, num quarto fedorento como este, ou prefere tomar banho de sol em Juan-les-Pins, com Gaby? Prefere dar duro para ganhar uns níqueis como biscateiro ou ser um ator famoso, com sua própria companhia, produzindo filmes?

- Não adianta falar nessas coisas... você sabe muito bem o que é que eu quero. Mas matar alguém... isso não!

- Não estou usando minha imaginação, Sam. Estou expondo fatos - Martin apontou com o dedo para todo o quarto. - O fato é que, de agora em diante, você só pode morar num ninho de pulgas como este... se é que vai poder pagar um quarto. É fato, também, que ainda podemos ficar na cama até às dez horas, ir nadar e co­mer uma boa refeição e, antes que as coisas esquentem, dar um pulo até Nice, Cap Ferrat ou San Remo. Você sempre gostou de San Remo... do melhor! Sam, o prin­cipal é o seguinte: se continuarmos a usar a cabeça, te­remos à nossa disposição mais de quarenta mil dólares.

- E seremos os palhaços mais ricos que jamais se sentaram na cadeira elétrica.

Martin teve um sorriso amargo.

- Lá vem você com suas graças idiotas, Sam. Nunca pensamos em matar e, afinal de contas, como não somos bobos, nunca seremos apanhados.

Sam esmagou o cigarro contra a parede.

- Temos sido espertos. Sempre muito espertos. Mas se dermos para usar armas, é aí que começamos a ban­car os idiotas.

- Matar é um recurso extremo, mas, será que você conhece outro? Poderíamos tentar roubar-lhe o dinheiro, mas pode não dar certo e é muito arriscado.

- E matar não é muito arriscado? - retrucou Sam.

- Escute, Sam, a polícia é eficiente, porque quase todos os crimes de morte enquadram-se sempre em de­terminados padrões. Mas este... ninguém, a não ser nós dois, saberá o motivo e... Olhe: li certa vez que uma autoridade policial disse que o crime perfeito tinha que ser um ato insensato em que um homem, de repente, atira num desconhecido na rua... sem motivo, sem liga­ção, sem indícios. Foi a primeira coisa que me ocorreu quando li o jornal... vamos atirar num estranho.

- Ele nos viu... viu você, uma vez - disse Sam acendendo outro cigarro. - Marty, há coisas que um ho­mem faz e outras que não pode fazer. Eu não posso matar ninguém... é só.

- Dizer "é só" não resolve nada para nós. Eu me en­carrego de puxar o gatilho, se é que se sente melhor as­sim. Sim, é verdade que ele nos viu. Uma vez falou comi­go, uma conversa à toa, num bar, há uns três meses atrás... e eu estava usando um nome falso. Quem, a não ser ele, se lembrará? E ele estará morto. Para todos os efeitos, estaremos procurando um estranho e o estaremos matando sem qualquer motivo. A não ser que sejamos pi­lhados em flagrante... e isso podemos evitar, sendo cau­telosos, naturalmente... a polícia precisará de muita sorte, uma sorte dos diabos, para encontrar a nossa pista.

- Assassinato, não topo!

Pearson aproximou-se do sócio e sacudiu-o.

- Pare de repetir sempre a mesma coisa como um papagaio! Se nos livrarmos dele, estaremos salvos, tere­mos dinheiro... boa vida. Eu volto para Thérèse e você será um grande ator. Se ele viver, seremos dois vagabun­dos pelo resto de nossos dias e acabaremos condenados. Para nós, a única solução é matar. Como você diz, não podíamos prever isso, mas já que estamos naufragando é o único meio de escaparmos.

- Mas... Marty, você fala em matar com tanta cal­ma... matar! - disse Sam empurrando o outro para trás.

- Não estou nada calmo, Estou louco de medo, mas não tão louco que tenha cessado de raciocinar... não tão louco que não compreenda o que precisa ser feito.   Seja simples: encontramos o sujeito sozinho na rua, hoje... tem que ser hoje... o melhor é à noite. Um tiro rápido e fugimos antes que alguém encontre o cadáver. Depois, prosseguimos no negócio que preparamos. Mais um mês ou dois, saímos do país.

- Por que não sair, logo, quero dizer... se... se fi­zermos isso?

- Porque não temos bastante dinheiro e, afinal, que diferença fará? Se nos descobrirem, podem pedir nossa extradição da Europa. Não. Continuamos como sempre, como se nada tivesse acontecido. Sam, pensei bem no caso... quebrei a cabeça a ponto de arrebentar. Como po­derão eles ligar o crime conosco? Como poderá a policia dar conosco? Que pode acontecer?

Sam procurou com os olhos um cinzeiro e, finalmente, atirou o cigarro pela janela.

- Marty, até agora isso tem sido mais como uma brincadeira... esse troço todo: iludindo o Exército, os "tiras" na França, o negócio que andamos fazendo por aqui. Deu sempre certo, porque nunca prejudicamos nin­guém, trabalhando a nosso modo... mas agora, um assassinato deliberado, a sangue frio... não posso topar, não posso!

Pearson falou friamente:

- Tão pouco posso pensar em viver sem Thérèse. Já perdemos cinco meses nisso. Já temos, garantidos, cer­ca de vinte e cinco mil. Mais quinze mil estão para vir. Não vou jogar tudo isso fora porque aquele rapaz deu sorte. Meta isso na sua cabeça imbecil... o risco é pe­queno... ele próprio não terá a menor idéia de que fo­mos nós.

- Como você disse, os "tiras" podem dar sorte.

- A sorte tem estado sempre conosco, sempre! - Pearson abriu o estôjo da máquina fotográfica e atirou duas Lugers na cama. - Veja que sorte eu nunca ter vendido isto aqui... que sorte tê-las conservado comigo.

Sam olhou para as pistolas, movendo os lábios. Finalnalmente, controlou-se e perguntou em voz calma:

- Está querendo ameaçar-me, Marty?

- Seria um erro matar você... deixaria pistas de­mais. Mas preciso tanto de Thérèse, que cheguei até a pensar nisso. Reflita bem, Sam. É duro, mas até aqui estivemos navegando num mar de rosas, não nos podemos queixar. Vá vestir-se, tome um banho de chuveiro, dê um passeio para tomar ar... ponha-se a pensar. Coma uma boa refeição. Pense bem e, depois, me diga o que podemos fazer, senão matá-lo. Mostre-me outra solução, mesmo que seja absurda e eu serei o primeiro a aceitá-la. Mas você sabe que a única solução é matar. Pense bem, Sam, pense muito... só temos algumas horas.

 

LA ocupava um vasto apartamento num desses edifícios antigos, de teto alto, que, por fora, não pa­recem grande coisa. Era um apartamento de frente, dando para o Rio Hudson e cheio de móveis modernos, severos, que não pareciam confortáveis... ou talvez fosse devido às cores berrantes. Era tudo como uma colcha de reta­lhos de vermelhos violentos, amarelos ofuscantes e ro­xos misteriosos. E, de certo modo, não dava certo... era como se ela tivesse copiado uma sala e exagerado. Uma das paredes estava coberta de livros (as encadernações também eram de cores vivas), mas todos pareciam no­vos, como se ela tivesse passado por todas as livrarias e colocado os livros ao acaso, como vinham.

Betsy Turner vestia um trajo de tipo chinês: calças justas vermelhas e uma espécie de túnica ampla, amare­la, que deveria dar-lhe uma aparência exótica, mas que contrastava de maneira quase cômica com sua cara de garota. A fisionomia lembrava essas bonecas alemãs, an­tigamente tão procuradas... o nariz, os olhos e os lábios ocupavam-lhe quase todo o rosto, como se fossem de­mais para ele.

Francamente, não podia compreender aquilo... o rosto bem maquilado, as calças justas pondo em evidên­cia as pernas fortes, o contorno provocante dos seios fir­mes, exibindo-se sempre que o casaco os tocava. Ou Mrs. Turner estava esperando alguém depois que eu saísse, ou estava querendo outra espécie de serviço por trinta dólares diários.

Para desviar meus olhos dela, disse "alô" e olhei ao derredor para os quadros de artistas amadores pendura­dos pelas paredes... parecidos com essas telas esboça­das, que a gente compra para encher com as cores indi­cadas por números. A um canto da sala de estar, havia um cavalete com uma tela inacabada, uma paisagem, com um rio... Sem os números... Mais próximo, um grande aparelho de televisão e, ao lado dele, um desses caríssimos toca-discos.

- Agradável aqui - disse eu. - Pinta muito?

- É um passatempo para mim. Também decorei este apartamento. Gosta?

Pelo tom da voz, parecia dar importância ao fato de o apartamento me agradar.

- Meio fora do comum. Sim, gosto dele - respondi. As telas, os livros, as pilhas de discos... tudo aquilo poderia significar muita coisa, inclusive solidão. Mas, que diabo, só o gabinete de ébano da TV, podia muito bem representar um mês ou dois de vencimentos de um po­licial e o Hi-Fi não era coisa que se encontrasse em qual­quer canto... Não era de admirar que Ed andasse sem­pre achacando contraventores. E, tendo em vista o pou­co tempo que servira na polícia, devia ser o "tal" na arte de achacar.

- Também fiz este trajo chinês - disse ela, virando-se de um lado para outro para me mostrar o mode­lo e... ela própria.

Não há dúvida que tinha um corpo bem apanhado. Mas dava-me a impressão de uma boneca... uma bone­ca muito dispendiosa.

- Lindo. Vai-lhe muito bem.

Ela sorriu ligeiramente, como uma garota que traz boas notas do colégio.

- Sente-se ali por favor, Mr. Harris - disse, apon­tando para uma complicada poltrona de elegantes pés de ferro.

Sentei-me numa espécie de banqueta forrada de cou­ro de porco, observando:

- Não acredito que esse banquinho aguente meus 120 quilos.

Ela sentou-se num sofá arredondado, amarelo-banana.

Houve um momento de silêncio enquanto lhe estu­dei as pernas... que bem mereciam um estudo. Ela encaminhou-se para uma garrafa com vários copos, sobre a mesa de mármore com pernas de madeira.

- "Noilly Prat", Mr. Harris?

- Não, obrigado, Mrs. Turner. E que é isso? Pare­ce nome de artigo de propaganda de rádio.

Ela sorriu. Seus lábios eram carnudos, vermelhos e juvenis. Minha temperatura subiu.

- Vermute francês. Não bebo muito, mas este apar­tamento deixa-me sempre nervosa desde que Ed... mor­reu. É um apartamento azarento e foi a causa de nossa primeira briga de verdade.

- Foi mesmo? - fiz eu, por cortesia. As pessoas que estão sempre a gabar-se de que bebem pouco, geralmente são as que mais bebem.

- É verdade. Eu nunca consegui gostar mesmo des­te apartamento - continuou ela. - Depois que Ed foi aprovado no concurso da polícia, mas antes de ser no­meado, era chefe de departamento de uma empresa de navegação e eu, esteno-datilógrafa num escritório vizi­nho ... foi assim que nos conhecemos. Depois de casa­dos, custamos a encontrar um apartamento e ficamos morando num quarto durante vários meses. Depois, Ed encontrou este apartamento e insistiu para que o tomás­semos, embora o aluguel fosse superior aos nossos salá­rios semanais reunidos. Não me incomodei porque dese­java um lar para nós e este aqui tinha até mobília... não era esta... e não teríamos que pagar nada por fo­ra. Depois é que descobri por que estava vago... um homem suicidou-se aqui, enforcando-se com uma gravata na porta do banheiro...

Acompanhando a unha pintada de vermelho vivo, olhei para uma porta branca, ao lado da lareira côr de cacau.

- Devia ser muito baixinho para fazer isso com uma gravata - disse eu, tentando fazer espírito.

Ela hesitou, sem saber bem se eu estava caçoando, resolveu que não estava e disse:

- Eu, aí, não queria mais o apartamento, dava-me arrepios. E, além disso, com a mobília dele. Mas Ed in­sistiu. Não sabia, então, como ele tinha sido infeliz em nosso quarto, fazendo café num fogareiro elétrico, usando o peitoril da janela como geladeira. Mas Ed sempre gos­tou tanto de viver bem. Chegou até a dar a entender que se eu não quisesse o apartamento, me deixaria.

Quase tive um ataque, quando nos mudamos para aqui. Ed tinha que ficar comigo enquanto eu tomava banho e eu ficava olhando para a porta e quase chegava a ver um corpo balançando nela. Ed dizia que eu era criança, mas eu não podia controlar-me.

- E agora, já pode ir sozinha ao banheiro? Ela ergueu o corpo, furiosa:

- Mr. Harris! Não seja atrevido!

Quase que caí da banqueta... Mrs. Turner era do outro mundo!... Nunca ninguém me acusara de atrevi­do, desde que passei a usar calças compridas.

- Pode parecer... esquisito, convidá-lo a vir ao meu apartamento. Mas não comece a imaginar coisas, Mr. Harris. Também não gosto que zombem de mim.

- Apenas fiz uma pergunta, Mrs. Turner - disse eu. temendo que a brincadeira me valesse perder o em­prego. - Estava só procurando saber se o apartamento ainda a assombra.

Ela pareceu controlar-se, recostando-se outra vez no sofá.

- Foi horrível até que... Uma manhã, várias sema­nas depois de nossa mudança, eu... bom... não me estava sentindo muito bem... tive que ficar em casa. Ed não podia ficar comigo, senão perderíamos ambos nossos empregos. Eu estava como doida, imaginando uma porção de coisas, quando chegou uma mulher à porta, dizendo que tinha trabalhado como doméstica para o suicida e querendo saber se eu a aceitaria. Natural­mente, embora fosse muita despesa para nós, fiquei tão contente de ver alguém, que a mandei entrar e conver­samos sobre o defunto. Quando eu soube que o homem era um invertido sexual, perdi o medo não sei por quê. Até hoje! Agora, com a idéia de que Ed se suicidou, tudo me assusta. Mas chega de falar em mim. Que fez até agora, Mr. Harris?

- Conversei com o Tenente Swan acerca dos pormenores do caso. A propósito... Mr. Turner alguma vez lhe falou num homem chamado Brown?

- Não. Não temos nenhum amigo com esse nome, nem...

- Tem muitos amigos?

Ela arregalou os olhos como se eu lhe tivesse dado um direto na boca do estômago.

- Por que me pergunta? Para falar com franqueza, não. Sou uma pessoa que gosta de sair e Ed... gostava de perambular sozinho, sempre procurando o que cha­mava de suspeitos. Quanto aos seus amigos na polí­cia... francamente, eu tinha horror dessa profissão. Foi o que transformou Ed. Não é bom um homem trabalhar sempre perseguindo outros homens.

- Mas é necessário haver policiais, penso eu.

- Mr. Harris, os médicos também são necessários, mas suponhamos que um médico se limite a tratar de cancerosos o dia todo, todos os dias... acabará, prova­velmente, ficando canceroso. Um policial, sempre lidan­do com criminosos, acho que acaba se contaminando também. Depois de certo tempo, o policial confunde-se com o criminoso, o caçador e a caça acabam tornando-se uma só pessoa - a voz dela, que até então soara fir­me, voltou a ser tímida, quando ela, sorrindo para mim, acrescentou: - Não quero ofendê-lo. Mr. Harris. Ora... não posso continuar a chamá-lo "Mister Harris". Vou chamá-lo Barney e você pode chamar-me Betsy.

- Pode chamar-me o que quiser. Vou continuar a dizer Mrs. Turner - declarei, meio amolado. Sentia-me realmente amolado porque, o que quer que fosse nela que me perturbava, continuava a perturbar-me.

Ela deu de ombros... um movimento muito "sexy".

- Como quiser. Mas não tive intenção de ser pessoal quando disse que a profissão de policial é muito suja.

- Não pode ofender-me. Eu apenas tropecei na... eh... profissão. Sou mecânico de automóveis. Minha mulher trabalhava em seguros e arranjou-me um em­prego para examinar os carros por conta de compa­nhias de seguro. Geralmente raspam o número do mo­tor, fazem outras modificações para disfarçar o carro. Meu trabalho consistia em identificar os carros e veri­ficar a autenticidade dos acidentes. Para isso, tinha que ter o título de detetive particular. Trabalhei nisso du­rante cinco ou seis anos e, quando minha mulher fale­ceu, ingressei na profissão de detetive particular por não ter horário. Posso assim ir buscar minha filha no co­légio, ficar na vizinhança.

- Sinto muito... a respeito de sua esposa - disse ela em tom triste, apropriado às circunstâncias. - Você criou a menina sozinho?

- Sim... e muito bem.

- Que idade tem ela?

- Ruthie completará seis anos dentro de dois me­ses, no dia vinte e cinco.

- Barney, não quero ser pessoal, mas, sua esposa morreu de parto?

- Não. Nós adotamos Ruthie. Minha mulher já não tinha idade para ter filhos - vi a expressão perplexa nos olhos dela e previ a pergunta que ia fazer. Acertei...

- Mas você não parece ter mais de trinta e qua­tro anos.

- Tenho trinta e sete, Mrs. Turner. Tinha trinta e dois quando me casei e ela, quarenta e um. Fui seu segundo marido e estava apaixonado pela beleza dela. Compreenda: ela nunca procurou parecer mais moça do que era. Era uma bela mulher de quarenta e um anos. Talvez fosse esse o segredo de sua beleza. Agora, volte­mos a Ed.

Betsy meneou a cabeça.

- Adoro crianças. Ed também era assim, antes de se tornar policial... depois, sempre achou que devíamos esperar.

- Quanto tempo esteve casada?

- Cerca de quatro anos - disse ela, sorvendo um gole de vermute, que engoliu como se se tratasse de um "troço" muito forte.

- Venho de uma cidadezinha, pouco além de Long Island. Sempre sonhei com a cidade de Nova York, mas descobri que é um lugar de solidão. Conheci Ed em meu emprego... foi meu primeiro e verdadeiro namorado e, ao cabo de um mês, estávamos casados. Foi como um sonho... estávamos tão felizes, tão apaixonados! Ed era meigo e atencioso... alegre. Mas modificou-se de uma hora para outra depois que ingressou na Academia da Polícia. Tornou-se ambicioso.

- Há muitas mulheres que gostam disso. Minha mulher tentou injetar-me alguma ambição, mas não fun­cionou - disse eu, procurando descobrir por que suas palavras me pareciam falsas, embora ela as dissesse em tom de franqueza, como se realmente representassem seu pensamento.

- A ambição tornou Ed duro e cruel. Poucos dias depois de ter sido nomeado para a polícia, estávamos no "subway", indo para um cinema na cidade. Ed ficou olhando para um homem sentado no lado oposto e, de repente, disse: "Parece um camarada que vi num cartaz da polícia federal, um homem que está sendo procura­do. Tráfico de entorpecentes. Só que este tem cabelos pretos e o tal sujeito era louro.

- Pedi-lhe que não pensasse mais nisso, mas Ed continuou a falar como seria ótimo, se saltasse para o posto de detetive. Naquela noite, só fizera ler as circulares da polícia. Bem... continuou a estudar aquele ho­mem, examinando-lhe a fisionomia, traço por traço, tal como lhe tinham ensinado. Finalmente, exclamou: "É ele mesmo!". Correu para o homem, apresentou-lhe o distintivo da polícia... deu um verdadeiro "show". O homem negou ser criminoso, mas Ed arrancou-lhe um punhado de cabelos, mostrou-me os cabelos sangrentos e gritou. "As raízes são louras!" Depois, deu um soco no rosto do homem, que ficou coberto de sangue.

- E era mesmo o homem que estava sendo pro­curado?

Ela confirmou com a cabeça.

- Mas, como odiei aquele distintivo, a pistola, as algemas, o cassetete.

- Um mundo cruel como este em que vivemos, pre­cisa de gente cruel. As pessoas que mais odeiam os "ti­ras" são justamente aquelas que gritam mais alto cha­mando a polícia quando se vêem em dificuldade. Claro que há policiais incompetentes, que só se sentem felizes cometendo violências. Além disso, neste mundo corrupto, se o crime não compensa... também não compensa ser policial. Agora, acabei meu sermão de hoje. Vamos tra­tar dos casos... deste caso. Tem algum namorado, pas­sado ou presente?

Ela pulou como um gato.

- Como se atreve a dizer isso? - os olhos imen­sos e mansos estavam agora furiosos.

- Acalme-se, Mrs. Turner - disse eu serenamente. - Estou trabalhando para a senhora, lembra-se? Tenho que investigar tudo. Um namorado ciumento pode pro­vocar assassinato ou suicídio.

- Como se atreve... Nunca olhei para outro ho­mem! Nunca... que espécie de mentalidade tem você?

- Mentalidade de detetive... talvez. Olhe aqui. Acabe com essa história de "como se atreve". Mrs. Tur­ner, a senhora convidou-me para vir aqui. Não ligo muito para comentários, mas, no momento, não me sin­to muito à vontade... é como se estivesse bancando o palhaço. Não quero ser grosseiro, ou talvez queira, mas o essencial é o seguinte: tenho que fazer perguntas e gostaria de receber respostas sem rodeios... se possí­vel.

- Você é vulgar, grosseiro e... e...!

- Vamos começar outra vez - interrompi. - A respeito de Ed: alguma outra mulher?

- Não! Não! - ficou com o rosto tão vermelho que pensei que ia gritar.

- Mrs. Turner, meu ofício obriga-me a ser introme­tido. A senhora me disse em meu escritório que era muito feliz com Ed, entretanto, agora, só fez falar mal do trabalho dele, de...

- Nós nos queríamos tanto e éramos tão felizes! Meta isso na sua cabeça dura, "seu” bobo! - gritou ela em minha cara. Depois, controlando-se, sentou-se outra vez no sofá e disse num tom de voz normal: - Não gostava do que a profissão de policial estava fazendo de­le, mas isso não quer dizer que fôssemos infelizes.

- A senhora trabalha, Mrs. Turner?

- Não.

- Este apartamento, esses móveis, sua roupa... o ordenado de detetive não dá para isso. A senhora sabia que seu marido estava "comendo bola", mas...

- Ed não era desonesto! - retrucou ela com ener­gia.

- Que fez ele, então? Ganhou algum prêmio, como aquele rapaz Andersun? Este caso já é bastante com­plicado, está movimentando toda a polícia... Se a senho­ra quer mesmo resultados, não esconda nada de mim.

- Já lhe disse. Nunca soube muito acerca do em­prego dele... nunca quis saber. Ele me dava dinheiro para as despesas. Nunca fiz perguntas. Ed não gostava de perguntas sobre assuntos de dinheiro. Meu Deus, você deve pensar que sou alguma ordinária como aquela vagabunda insignificante e feia que...

- Não a conheço bastante para considerá-la uma vagabunda. Mas não é ordinária nem feia. Agora vamos calçar as luvas e examinarmos o...

Os olhos dela tornaram-se outra vez meigos... com aquele olhar de criança... quando disse:

- Obrigada. Eu quero mesmo descobrir se... Ed se suicidou. É tão importante para mim! Desculpe-me a explosão, mas você é um pouco abrupto... e...

Não sei por que me agradecia.

- Mais uma pergunta grosseira, Mrs. Turner. Por que fica sempre batendo na tecla do suicídio? Diz a se­nhora que Ed era feliz, ambicioso, enérgico... Isso não é homem que se suicide.

- Mas se levou um tiro nas costas sem...?

- Os suicidas são homens perturbados, deprimidos. A senhora volta sempre à idéia do suicídio... Por que estava Ed preocupado?

Ela baixou os olhos para o chão e, por fim, murmu­rou:

- Tivemos uma briga naquela noite. Coisa muito pessoal.

- Tal como?...

Ela ergueu a cabeça, lançando-me um olhar furioso.

- Não é de sua conta! - respondeu. - Já lhe disse que era assunto pessoal!

- Mas a senhora contratou-me para descobrir a coisa mais pessoal que uma pessoa pode fazer... matar-se. Por que foi a briga?

Ela deu um suspiro e acomodando-se no sofá, dis­se na sua vozinha de criança:

- Éramos... incompatíveis... Havia meses que Ed não dormia comigo.

Fiquei calado. Não saberia o que dizer.

- Acho que ele... que ele sentia uma espécie de... gozo... em bater em homens. Uma vez disse-me isso. Talvez fosse por essa razão que deixou... de ter relações comigo. Na noite em que foi assassinado tivemos... uma cena e eu o acusei de nnão ser homem. Ficou tão furioso que pensei que ia bater-me. Saiu daqui corren­do. Menos de duas horas depois, estava morto - as palavras saíam-lhe com esforço, como pequeninos sons monótonos. - Isso tem que ficar entre nós - acres­centou. - Não diga nem à polícia, por favor.

Ergui-me da cadeira.

- Agora compreende por que tenho que saber... para minha paz de espírito. Tenho a impressão de que o matei.

- Se é só isso que aconteceu, Mrs. Turner, continuo achando que deve poupar seu dinheiro. Deixe a polícia tratar do caso.

- Isso é comigo - disse ela. A vozinha de criança estava fria e altiva. - Que pretende fazer amanhã?

- Se vai começar a dizer-me como operar, é que não precisa de mim.

- Não lhe estou dizendo o que deve fazer, mas, na­turalmente, tenho interesse nisso.

Por um momento, tive vontade de abandonar o ca­so... mas foi só por um momento. Em seguida, disse calmamente:

- Essa pista de Brown pode dar em alguma coisa, mas o mais provável é que não tenha sentido. Levaria meses para investigar todos os Brown desta cidade, mas a polícia pode andar mais depressa, por isso, vou deixar de lado esse pormenor. Pretendo conversar com alguns membros da família Andersun. Estou certo de que sua morte explicará tudo. Acha um bom serviço para um dia?

Encaminhei-me para a porta e ela "acompanhou-me sem uma palavra. Chegando à porta, voltei-me e vi que ela estava a olhar-se no espelho da parede, umedecendo os lábios, arranjando os cabelos.

- Você virá amanhã às oito horas? - perguntou. Fiz sim com a cabeça e abri a porta.

- Barney, tem aí alguma fotografia de sua filha? Tirando a carteira do bolso, mostrei-lhe o rosto risonho de Ruthie.

- Que criança adorável! - disse ela.

- Obrigado, Mrs. Turner.

- Gostaria que me chamasse Betsy. Mrs. Turner parece-me tão... distante...

- É melhor conservarmos isso "distante" por en­quanto. Boa noite, Mrs. Turner.

- Boa noite, Barney.

Em baixo, na portaria, perguntei ao porteiro se ha­via ali um telefone e ele mostrou-me um atrás de uma porta que dava para a entrada de serviço. Mantive a porta aberta enquanto discava e, de repente, ouvi uma voz clara. Disse à babá improvisada: "Aqui é Barney Harris. Creio que vou ficar preso por algumas horas. May, pode fazer-me o favor de dormir aí no sofá? Claro, pergunte aos seus pais se pode. Como vai Ruthie? Oh, provavelmente estarei em casa por volta de... três ou quatro horas da manhã. Você sabe, trabalho noturno é pago em dobro. Escute: vá lá em baixo, pergunte a sua familia e eu telefono daqui a cinco minutos.

Desliguei o telefone e acendi um cigarro, cogitando se seria ou não conveniente conversar com o porteiro. Mas ele nada me diria acerca de Mrs. Turner. Provavel­mente, a primeira coisa que os policiais procuraram sa­ber, foi o que ela estivera fazendo na noite do crime.

Um velho casal chegou e conversou com o porteiro, enquanto aguardava o elevador Acabei meu cigarro e telefonei outra vez. May disse que seus pais não gosta­vam que ela dormisse fora. Respondi que telefonaria pa­ra eles. Mas telefonei para Cy 0'Hara, perguntando-lhe se me podia arranjar uma babá para a noite.

- Escute, Barney - disse ele - são quase nove ho­ras e tenho que ir ao Bronx. Além disso, preciso espe­rar até que a patroa volte do cinema. Talvez não possa chegar lá antes das três horas.

- Pensei que você pudesse sair agora. Vou vê-lo no escritório.

- Sinto muito, Barney.

- Não faz mal. Arranjarei alguém. Até amanhã, Cy. - Não podia queixar-me quando alguém me recusa­va um favor. Sendo sozinho, nunca podia retribuir esse serviço de tomar conta de crianças. A custo, consegui com "informações" o número dos Weiss e levei dez mi­nutos para convencer a mãe de May de que se tratava de uma emergência e, afinal de contas, a menina estaria no mesmo prédio e nada lhe podia acontecer. Finalmen­te, ela cedeu, explicando que seria só aquela vez. Dis­se que ia verificar se May estava bem.

Saí e sentei-me no carro. Liguei o rádio e ouvi um pouco de "jazz". Não foi difícil divisar as janelas da Turner... com todas aquelas cores berrantes. A coisa que um detetive mais tem que fazer é esperar e eu tra­tei de passar o tempo examinando os papéis nos bolsos, rasgando anúncios, contas antigas, uma carta indagando se eu estaria interessado em um "Homem Perfeito" e num concurso de levantamento de peso na A.CM. de Brooklin. Sentia-me fora de forma para o concurso ou, talvez, ficando velho.

Quase só casais entraram no edifício e alguns ho­mens sozinhos que não me pareceram com cara de "amantes". Às dez e meia, apagaram-se as luzes da sa­la de estar da Turner. Depois, percebi que descia as venezianas do quarto de dormir e não tardou que as lu­zes se apagassem.

Às três e vinte tomei o caminho de casa. Betsy Turner não saíra nem acendera outra vez a luz. Não estivera esperando nenhum homem. Isso queria dizer que todo aquele trajo sedutorôra para mim.

E tal como todos os demais aspectos do caso, aquilo não fazia sentido.

Foi o Exército que fez de Martin Pearson um, ambicioso sem escrúpulos... foi a guerra. Em de­clarações feitas ao "Syracuse Tribune", a mãe de Pear­son. Mrs. Francine Pearson, lançou a culpa para o Exér­cito:

"Não posso acreditar que Martin seja um assas­sino. Nossa família vive aqui desde 1776 e nunca hou­ve um Pearson que tivesse infringido uma lei... fos­se lá no que fosse. Meu Martin foi criado como um rapaz sério e trabalhador mas depois daqueles três anos e meio que passou no Exército, voltou para casa mudado. Continuava a ser um ótimo rapaz, mas eu tinha a impressão de que estava com o olhar agitado, como que em busca de alguma coisa. Nunca mais olhou de frente para ninguém."

Mas o Exército só ensinava algumas maneiras de se "desapertar", ao passo que a guerra fizera do expediente fácil a principal ocupação da maior parte da população do mundo... expediente para arranjar alimento, dinheiro fácil, liras ou francos; lutar pela própria sobrevivência, a custa da vida alheia."

Pearson nascera numa pequena fazenda doente cerca de 25 milhas de Syracuse, Estado de Nova York, no dia 25 de agosto de 1920. A fazenda ficava á quatro mi­lhas da "cidade" de Bay Corners, construida de um ar­mazém de sementes, uma garagem e um armazém geral, de propriedade de um tal de Andrew Marsh. Nos fundos desse armazém, funcionava também o cinema, com algu­mas fileiras de bancos de madeira. Duas vezes por semana (e, nos meses de verão, todas as noites), Mr. Marsh espremia o corpanzil em sua improvisada cabina de pro­jeção e fazia funcionar um velho projetor de 16 mm. Du­rante o ano inteiro eram os fazendeiros que sustentavam Bay Corners, mas, no verão, os automobilistas de passa­gem e os que iam acampar junto a um lago próximo, pro­porcionavam a Marsh uma época de prosperidade nos negócios.

Martin era o quarto filho e o resto da família pouca atenção lhe dava. Logo que ficou mais crescido, passou a ajudar nos trabalhos da fazenda. Quando tinha doze anos, um pequeno incidente modificou-lhe completamente a vida. Mary Marsh - a filha gorducha, de dez anos, do dono do armazém conseguiu uma bicicleta nova, por ar­ranjar vinte e cinco assinaturas para uma revista agrí­cola.

Martin também queria uma bicicleta e, sabendo que ela tinha corrido todos os moradores de Bay Corners (se­tenta e sete, segundo o último censo), aproveitou os dias sem neve do inverno para percorrer as fazendas. Ao che­gar a primavera, já tinha conseguido vinte e cinco assi­naturas e mandou buscar a bicicleta. Duas semanas de­pois o carteiro rural entregou a Martin um volume, que, embora grande, evidentemente não podia ser de uma bi­cicleta. Uma carta junta, declarava que tinha havido um mal-entendido por parte de Martin - a bicicleta era o prêmio por cento e vinte e cinco assinaturas. Pelas vinte e cinco assinaturas que ele conseguira, mandavam-lhe um aparelho fotográfico de caixa, três rolos de filme e o ma­terial para revelar. A revista esperava sinceramente que Martin ficasse satisfeito com aquilo, dizia a carta.

Mas ele não ficou. Furioso, acusou Mary Marsh de mentirosa.

- "Juro que pensei que fossem vinte e cinco assina­turas - disse ela. - Papai vendeu-as para mim no bal­cão e eu nunca soube bem quantas ele arranjou. Meu Deus, Marty, aqui ninguém nunca teve um aparelho foto­gráfico, só os veranistas."

Martin ainda estava furioso, mas tirou fotografias dos pais num dia de sol, revelou-as à noite, no celeiro, observando cuidadosamente as instruções do folheto e to­do o pessoal admirou os instantâneos enfumaçados. Mar­tin compreendeu que a máquina fotográfica tinha feito dele uma pessoa importante e passou a gastar todos os níqueis de que dispunha na compra de material para fo­tografia e folhetos de instruções.

Quando terminou o curso secundário, com dezoito anos, Martin já possuía uma máquina fotográfica de imprensa e ganhava alguns dólares por semana, percorren­do as fazendas de bicicleta, para tirar retratos das famí­lias. Mary Marsh preparava-se para ingressar na Escola Normal de Oswego e tornara-se uma jovem gorducha, cuja única beleza era a "tez clara". Não havia muitos jovens em Bay Corners e todos sabiam que Mary e Mar­tin "eram namorados firmes", principalmente porque Martin não saía do cinema do Papai Marsh, vendo o mesmo filme várias vezes, procurando aprender a técnica cinematográfica. Martin sugeriu à moça que perguntasse ao pai se seria possível instalar um "estúdio" de fotogra­fias na loja durante os meses de verão e usar o cinema, durante o dia, como câmara escura. Ofereceu 30% da renda como aluguel. Mr. Marsh exigiu 50% e Martin co­meçou seu negócio colocando um letreiro mal desenhado na vitrina da loja.

Martin rondava o acampamento dos veranistas, tiran­do instantâneos dos mesmos nadando ou andando a ca­valo, para voltar no dia seguinte com fotografias amplia­das, em "passe-portouts" de papelão. Os felizes veranis­tas pagavam-lhe de três a cinco dólares por uma foto­grafia e, durante o verão, conseguiu ganhar quase quatro­centos dólares. Mr. Marsh deu a entender que Martin seria bem recebido como genro e ficou resolvido que o casamento se realizaria logo que Mary terminasse o curso de professora primária.

Martin comprou um carro-esporte usado. (Em sua confissão, Martin Pearson declarou: "Até entrar para o Exército, nunca possuí uma única coisa nova em minha vida. Toda minha roupa, meus sapatos, meus brinquedos eram "herdados de meus irmãos.") Os negócios de foto­grafia decaíram. Todos os moradores do lugar já tinham retratos tirados e, no inverno, não havia turistas. Mar­tin tirou fotografias de um incêndio na floresta e ven­deu-as a um jornal rural. Percorria a redondeza de auto­móvel, tirando instantâneos de casamentos, acidentes, quermesses. Depois, vendia as fotografias às pessoas que nelas figuravam, a jornais locais e, às vezes, a jornais de Syracuse, Ithaca e Buffalo. Embora "desse duro" e fizes­se bastante negócio no verão. Martin nunca conseguiu fazer uma média anual de mais de trinta dólares por semana.

Quando completou vinte e dois anos, Mary formou-se na Escola Normal e foi logo nomeada professora na escola de Bay Corners. Ela e Martin casaram-se e fo­ram morar no apartamento de Marsh, por cima da loja. Pelo padrão de vida do lugar ganhavam bastante e Mar­tin não se sentia infeliz... sentia-se entediado. Nove meses depois do casamento foi convocado para o Exército, e, segundo seu próprio depoimento, "foi um alívio".

Martin foi servir numa base de treinamento de in­fantaria, no Sul. Todas as sextas-feiras à tarde os sol­dados eram passados em revista pelo comandante da base, um coronel idoso. Uma sexta-feira, quando estava como ordenança no quartel, Martin apanhou uma pequenina câmara e fotografou, a parada. Usando a câmara como ampliador, reproduziu várias fotografias que os soldados logo quiseram comprar, chegando alguns a oferecerem até cinco dólares por uma reprodução. Martin imediata­mente telegrafou a Mary pedindo-lhe material e não tar­dou a começar a fazer bons negócios. Um jornal estava senão criado no acampamento e Martin, chamado a cola­borar, foi incluído no quadro efetivo da imprensa.

Ao acampamento, chegavam sempre novos recrutas e todos eles queriam logo um retrato para mandar para casa. Arranjou um local conveniente onde se postava atrás de um morro e tirava instantâneos do novo soldado pulando no alto, de fuzil e baioneta na mão, fisionomia carrancuda. Era o instantâneo especial de cinco dólares e nos dias de pagamento Martin ficava cheio de dinheiro, lucro líquido, pois agora usava filmes e material do Exér­cito. Mary escrevia-lhe as cartas de praxe, enviava-lhe biscoitos feitos por ela e indagava quando iria passar férias em casa, mas o negócio estava bom demais para que Martin o deixasse, ainda que por pouco tempo. O diretor do jornal do acampamento era um rapaz ambi­cioso, que em 1943 foi transferido para a revista "Yank". Escreveu ele a Martin que a revista talvez se interessasse por seus serviços, mas o sargento Pearson não tinha o mínimo interesse em abandonar seu cômodo negócio.

Em 1944 todo o efetivo do acampamento foi subita­mente mandado para Camp Kilmer e ali, dividido para ser embarcado para além-mar. Martin passou um rápido fim-de-semana com Mary em Nova York e, num momento de arroubo amoroso, deu-lhe os mil e oitocentos dólares que economizara, dizendo-lhe que os tinha ganho no jogo de dados.

Três semanas depois, Martin estava rondando um enorme posto nos arredores de Nápoles, e já parecia de novo em seu elemento. Um dia leu um artigo no"Yank" assinado pelo antigo diretor do jornal do acampamento e resolveu escrever-lhe consultando-o se ainda seria pos­sível dar-lhe trabalho na revista. O jornalista estava ser­vindo em Roma e, para surpresa de Martin, falou a al­guém do "Star and Stripes" e Martin foi mandado para Roma como fotógrafo do jornal do Exército.

Pearson aprendeu muito sobre fotografia ali, pois todos os demais fotógrafos eram profissionais que tinham trabalhado em jornais e revistas. Martin fez a cobertura das linhas de frente, voou numa missão de bombardeio e viajou num barco PT para a Iugoslávia. A vida era in­teressante, mas sentia falta do dinheiro que ganhava nos Estados Unidos. Por isso, estava sempre procurando outra coisa. O mercado negro de cigarros não era lá grande coisa. Melhor era vender aos estúdios italianos material fotográfico do Exército... mas era um tanto arriscado.

Praticamente qualquer espécie de máquina fotográ­fica podia dar várias centenas de dólares, mas uma boa máquina do Exército Americano daria mil ou até mais. Um fotógrafo do "Yank" possuía um mapa da Alema­nha com as cidades onde havia fábricas de câmaras assinaladas com um circulo e muitas vezes falava em ir a uma dessas cidades com as tropas e "agarrar uma Rolleiflex ou uma Leica para mim".

Martin divisou possibilidades ainda maiores e, quan­do foi mandado para a França depois do dia D, copiou o mapa. Meses depois, Martin encontrava-se numa com­panhia de infantaria que tomou uma cidade alemã famosa por suas câmaras "reflex" de alto preço. En­quanto os soldados estavam caçando pelas ruas os últimos resistentes, Martin pegou um jipe è foi à fábrica. En­trou empunhando a carabina mas só encontrou trabalhadores escravos poloneses, ainda trabalhando.

Olharam-no sem muita emoção... apenas essa espé­cie de cansaço paciente que se expressa nos olhos dos vencidos... ergueram-se de seus bancos, enquanto Mar­tin carregava para o jipe vinte e sete câmaras (cada uma delas bem acondicionada numa caixa de madeira). O gerente nazista da fábrica, finalmente, convencido de que Martin estava sozinho, acabou por sair do escritório, que­rendo saber o que fazia ali aquele soldado.

Martin respondeu arrebentando-lhe a cabeça com a carabina e, em seguida, gritou para os poloneses:

- Vocês estão livres! Compreenderam? Livres! Agar­rem o que quiserem e dêem o fora! - Indicou-lhes com as mãos a porta aberta, mas os homens continuavam imóveis. Martin tinha retirado as rações do jipe para poder arrumar as câmaras. Entregou as rações aos operá­rios. Ao afastar-se, ainda viu os poloneses devorando as rações e logo se precipitarem para carregar os instru­mentos que puderam. Não tardou que a fábrica explodis­se em chamas.

Depois de dar câmaras ao sargento encarregado das viaturas, ao capitão intendente e a vários outros, Martin ainda ficou com dezesseis máquinas e, no prazo de um mês, conseguiu vendê-las em média por 800 dólares cada uma, o que lhe deu um lucro de 13.000 dólares.

Quando terminou a guerra na Europa, Martin foi mandado servir em Frankfurt, depois em Paris. Em am­bas essas cidades viveu bem, pois era um sargento ame­ricano com dinheiro e um cartão PX que lhe proporcio­nava cigarros, doces e sabão. Meteu-se em alta jogatina. Houve um momento em que seus 13.000 dólares haviam subido a 21.000 e certa vez reduziram-se a 4.500. Possuía 11.000 em dinheiro dos aliados quando estava aguardan­do transporte de volta para os Estados Unidos. Conseguiu cambiá-los por 8.500 dólares e ordens de pagamento.

Em janeiro de 1946, Pearson foi desmobilizado e vol­tou a Bay Corners. Mary Pearson tinha depositado, cui­dadosamente, no banco os seus cheques do Exército e já escolhera uma casa para comprar, com uma garagem que podia ser adaptada em estúdio. Martin nada lhe disse acerca do dinheiro que trazia. Em sua confissão, declarou:

"Não sei bem porque guardei segredo de minha mulher. Mas guardei. Não foi pelo dinheiro... foi por saber que nunca lhe poderia explicar. Ela acharia errado e... bem... para mim não se tratava de sa­ber se estava certo ou errado. Fora apenas sorte."

Na época do casamento, Mary, como professora for­mada, tinha sido o cérebro do casal e Martin, um simples roceiro. Mas o Martin Pearson que retornou a Bay Comers era outro: falava francês, italiano e alemão; ti­nha dormido com inúmeras mulheres, visto cidades bom­bardeadas e homens e mulheres mortos; tinha tomado banho de sol em Capri, no Lido de Veneza, na praia de Cannes. Olhou para a professorinha da aldeia, insig­nificante e meio gorducha, que era sua esposa, e disse-lhe que não suportaria mais viver em Bay Corners. Não ti­nha amor a Mary, mas esta ainda era sua mulher e ele desejava fazer uma tentativa para viver com ela,

Martin declarou não saber exatamente o que pre­tendia fazer, mas queria morar em Nova York. Mary na­turalmente, achou que era tolice: tinha seu emprego de professora em Bay Corners, tanto sua gente como a dele ali moravam e "- ... ouvi dizer que uma pessoa de Siracusa está planejando construir "motéis" à margem do lago. Isso quer dizer muito trabalho de fotógrafo para você. Será capaz de fazer pelo menos cinquenta dólares por semana."

Insistiu para que Martin permanecesse em Bay Cor­ners e ele ficou... por três meses. No dia em que iam comprar uma casa ele tomou um ônibus para Nova York. Mary Pearson nunca mais soube dele até sete anos depois, quando se viu rodeada de repórteres que lhe mostravam o retrato de Martin na primeira página dos jornais.

Pearson passou um ano sem sossego em Nova York, trabalhando num "atelier" de fotógrafo. Nova York não era bem o que ele queria. Resolveu estudar fotografia em cores por conta do governo, como ex-pracinha e, quando estava percorrendo várias escolas ouviu alguns ex-soldados falando nas escolas de Paris.

Em junho de 1947, comprou passagem em um pequeno cargueiro limpinho e passou um verão abrasador em Pa­ris, vivendo frugalmente. Enquanto aperfeiçoava fran­cês, procurou um apartamento. Em setembro, matriculou-se em uma escola para fotógrafos, mas não tinha muito que aprender. Quando disse que desejava trabalhar para o cinema, seu professor o apresentou a Thérèse Veyron, que trabalhava numa empresa produtora de filmes.

Nenhum homem jamais achara Thérèse bonita. Era alta e esbelta, busto magro e tornozelos grossos. O rosto comprido e magro, de olhos tristes e boca muito grande, era emoldurado por cabelos castanhos cuidadosamente tratados, que lhe caiam pelos ombros magros. Filha única de uma família da classe média, aos vinte e dois anos, graças ao dote que levava, casara-se com um ho­mem de cinquenta e dois anos, que dirigia um cinema na Avenida de Temes. O marido gastava abertamente o dote com amantes, fazia questão de gabar toda mulher de bus­to grande que via pelas ruas. Odiavam-se cortesmente e, por falta de outra coisa, Thérèse empregou-se como secre­tária em uma empresa que produzia filmes de propaganda, de curta metragem. Quando a guerra começou Thérèse era "film cutter".

Thérèse nunca pensou em largar o marido, mas a guerra mudou a vida de quase toda gente: em seu caso, matou-lhe o marido, roubou-lhe a família e a casa, du­rante um "raid" aéreo, e deixou-a moderadamente ativa, trabalhando em filmes da resistência que nunca foram terminados, e... solitária. Terminada a guerra, voltou a trabalhar em filmes. Empregos não faltavam, mas di­nheiro não havia e, embora trabalhasse muito, estava sempre passando fome e sempre abatida.

Thérèse resignou-se ao fato de não ser uma mulher atraente,, ao fato de que, para ela, não havia romance. Os americanos a entediavam e só aceitou sair com Mar­tin para ter um bom jantar. Ele levou-a a um modesto restaurante e ela comeu à farta, enquanto ele falava so­bre fotografia. Quando estavam tomando café, acompa­nhado de rum aquecido, ele a ouviu atentamente expor suas idéias sobre cinema. E quando a levou ao apartamen­to de três peças, onde morava, pediu-lhe, delicadamen­te, para dormir com ela. Thérèse não sabia bem se devia zangar-se, se acharia graça ou se estaria lisonjeada ou atônita.

Aconteceu que formaram um par de amantes ideal. Cada um deles, não só despertou no outro sincera paixão, mas também descobriram que eram ambos fanaticamente interessados no mesmo assunto - cinema. Logo que Thé­rèse conseguiu afastar sua companheira de apartamento, Martin foi morar com ela. Não lhe fez segredo do dinhei­ro que tinha e ambos resolveram que ele continuaria na escola a fim de ganhar o dinheiro necessário para viverem e, mais tarde, abrirem um pequeno estúdio para produ­zirem bons comerciais de dois minutos, exibidos nos ci­nemas franceses entre dois filmes.

Pearson tinha ainda cerca de sete mil dólares e os dois iam guardando essa reserva, vivendo mais ou menos bem com sua bolsa de estudo. Mudaram-se para a vizi­nhança do pessoal do cinema em Joinville, empregando todo o tempo disponível à procura de um estúdio, pro­curando equipamento e comprando apenas uma câmara barata de filmagem, 16 mm, que Martin usava para praticar.

A vida corria serena. Sentiam-se seguros um do ou­tro e do futuro. Sentiam-se muito felizes. Pearson era um dos poucos afortunados americanos que não estava ali à procura do Left Bank da década dos 20 na Paris de após a Segunda Guerra Mundial.

Martin adorava a Paris que encontrou. Para ele, não fazia diferença comer num elegante restaurante para tu­ristas ou num dos pequenos restaurantes para estudantes, por oitenta francos. Só queria da vida sorver uma xícara de café e comer "coissants" num café, todas as ma­nhãs, passando os olhos pelo "Paris Herald" em poucos segundos, para depois correr o olhar por um matutino francês, enquanto tomava seu segundo café. As vezes, tentava a sorte num caça-níqueis e, finalmente, ia para a escola. À tarde, percorria a cidade tirando fotografias dos transeuntes, dos maravilhosos velhos prédios sujos. Os turistas o divertiam e nunca teve saudades dos Esta­dos Unidos. Na realidade, durante os cinco anos que pas­sou em Paris, só foi ao American Express uma vez. As cinco da tarde costumava sentar-se no terraço de um café e bater papo com os "garçons" enquanto espera­va Thérèse para tomar um aperitivo em sua companhia. Gostava de vê-la entre a multidão. Gostava do seu mo­do de caminhar apressadamente, como se nada mais hou­vesse no mundo, a não ser correr a encontrar e beijar Martin Pearson.

Em uma noite de 1951, quando estavam ceando, tar­de da noite, mariscos e caramujos, num pequeno restau­rante da rua Cachy, Thérèse perguntou:

- Você se lembra de Gaby, aquela pequena que imagina ser atriz só por que tem um busto de vaca?

Martin fez sim, como a cabeça.

- Ela está vivendo agora com um patrício seu, um imbecil, que diz ter sido ator em Hollywood e na Broadway. É calvo como um ovo e acho que você deveria vê-lo,

- Por quê? Não posso fazer nascer cabelo!

- Você está sempre brincando, meu bem! Ele acaba de voltar de seu exército na Alemanha. Tem um carro e gasta dinheiro como um louco. Mas Gaby jura que viu três filmes documentários nazistas que ele conseguiu rou­bar, filmes absolutamente inéditos. Diz ela que são fil­mes de Hitler, Bva Braun e outros, inclusive um desfile de garotas nuas e instantâneos horrorosos das feras sa­queando uma aldeia polonesa. Esse... ator pensa em fazer um filme completo com os três documentários. É possí­vel... por isso, combinei com Gaby apresentar você ao tal "Monsieur" Sam Lunã.

 

AS sete e meia, Ruthie acordou-me como de costume, fazendo-me cócegas nos pés e depois, batendo-me na cabeça, o que sempre acabava por me tirar do sono. A princípio, achava graça, mas, depois, já não lhe podia tirar o hábito. Fui ao banheiro usando apenas "short". Ouvi um gritinho: é que tinha esquecido in­teiramente a babá improvisada. May era uma magricela de quinze anos e estava vestida com um velho roupão da mãe, que dava para enrolar várias vezes em torno de seu corpo. O rosto cheio de espinhas estava rubro de indignação.

- Por que está gritando? - perguntei. - Nunca foi à praia? Nunca viu um homem de calção de banho? Quer entrar no banheiro primeiro?

- Já fiz minha "toilette" - declarou ela. Assim sendo, entrei no banheiro e deixei-a corar sozinha.

Depois do pequeno almoço, levei Ruthie ao jardim de infância. Dormira apenas algumas horas. É possível que alguns detetives particulares possam trabalhar sem dor­mir, mas eu, não. Preciso de sono para aguçar meu es­pírito e, por isso, voltei para casa e meti-me embaixo das cobertas, depois de acertar o despertador para meio-dia. Exatamente vinte e três minutos mais tarde o te­lefone tilintou, despertando-me de súbito.

- Alô, primo! - disse Jake Winston do outro lado do fio.

- Alô, Jake - respondi procurando não deixar transparecer irritação.

- Esperei que despertasse para telefonar - disse éle amável. - Vi Ruthie ontem.

- Ela me disse.

- Por que não telefonou ontem à noite? Você sabe como é Grace, sempre preocupada com a cozinha. Quer saber se vocês vêm mesmo domingo...

- Bem... eh...

- Há meses que não nos vemos. Os meninos querem ver Ruthie e Grace vai fazer uns pratos esquisitos que nem sei dizer os nomes.

Grace era síria e sabia fazer comida oriental, que a gente comia até não poder mais.

- Você nem precisa me dizer, Jake. O fato é que estou tratando de um caso e não sei se estarei livre domingo.

- Vamos dizer que vocês vêm. Se você ficar preso, vou apanhar a Ruthie. Combinado, "velhinho"?

- Fechado. Como está a mala postal?

- Danada de pesada, com revistas, hoje. Até a vista, Barney.

Fui até o escritório apanhar a correspondência em pura perda de tempo. Parei no botequim ao lado para um segundo pequeno almoço e, depois, rumei para a casa dos Andersun. Sentia-me sonolento e com o espírito cheio de Betsy Turner. Havia nela algo de triste. Toda aquela história acerca do finado marido gozar em bater em homens, não me convencia absolutamente, mas tudo é possível, quando se trata de tarados.

Pensava encontrar apenas Mrs. Andersun em casa, mas o velho também estava. O apartamento deles era mais ou menos como o meu: quatro peças num prédio que dentro em breve seria uma "cabeça de porco". Os Andersun eram pessoas de aparência comum, ambos na casa dos cinquenta. Mrs. Andersun era uma mulher mui­to pálida, de aspecto frágil. O marido estava com uma camiseta rasgada, calças velhas, de chinelos e usava apa­relho para surdez. Era curvo e magro, o rosto cheio, montado num pescoço magro. A pele era de um branco pálido, doentio.

Quando lhes disse o que desejava, ele respondeu: em voz cansada:

- Já repetimos isso tantas vezes... tantas pergun­tas. ..

Saí logo com o chavão que impõe confiança:

- Estou apenas cumprindo meu dever profissional, Mr. Andersun. E o senhor, naturalmente, quer que en­contremos o matador de seu filho, não é?

Ele sacudiu os ombros ossudos.

- Sim. Naturalmente, desejo que o assassino seja capturado. Mas não é isso que vai nos trazer o Fran-klin de volta. Quando voltou da guerra, fiquei tão feliz, e agora...

- Foi a guerra - comentou Mrs. Andersun, enquan­to eu acomodava as volumosas ancas numa velha cadei­ra. - Levou-nos um rapaz sossegado como meu Franklin, fê-lo voar pelo céu a trezentas milhas por hora. Um dia estava em Topeka, no dia seguinte podia estar aqui em Nova York, amanhecer na Califórnia e ir a um "show" em Nova Orleans no mesmo dia. Depois disso, queriam que ele voltasse a uma vida normal, sos­segada.

- Frank não era... eh... nervoso ou... era?

- Não senhor. Era um rapaz inteligente, estudioso - disse a mãe. - Frequentou três anos de Escola por conta do Exército. Estudou Economia. Sempre dizia co­mo qualquer pessoa que empregando métodos acertados e um pequeno capital, podia fazer fortuna hoje em dia. Tinha tantos planos... todos honestos, naturalmente.

- Que espécie de planos?

- Isso não vem ao caso - disse Mr. Andersun. - Outros detetives fizeram a mesma pergunta. Franklin nunca pôde executar nenhum. Precisava de capital e nós somos pobres. Conseguiu juntar umas poucas cen­tenas de dólares e jogava na Bolsa. No começo teve cer­to lucro mas depois comprou títulos sem garantia e per­deu tudo. Procurava as grandes firmas para expor-lhes suas idéias, mas não chegava nem a ser recebido. De­pois, andou arranjando empregos, achando que poderia subir. Desanimou... perdeu toda a animação.

- Bobagem. Franklin acabaria ficando rico. Tinha tudo para isso - disse a mulher.

Mr. Andersun sacudiu a cabeça.

- Não. Perdeu a direção. Por isso é que ia fazer uma viagem com aquele dinheiro, em vez de empregá-lo em um negócio.

- Para onde ia ele?

- Não tinha lugar escolhido... talvez Paris. Só queria mesmo era viajar.

- O senhor concordou com a viagem? - indaguei. Mr. Andersun voltou-se, de modo que o dispositivo do aparelho para surdez, preso ao cinto, ficasse de frente para mim.

- Se eu concordei com isso? Ora, viajar é uma for­ma de educação. Quase que nem tivemos tempo de dis­cutir o assunto. Juanita - nossa filha - achava que Franklin devia comprar uma mobília nova... mas por mim e pela minha mulher o rapaz mesmo é que decidiria.

Não havia nada a investigar na casa dos Andersun e os policiais já os haviam interrogado durante vários dias. O velho trabalhara na companhia do gás quase toda a vida e, agora, estava passando uns dias em casa para refazer-se. O casal nunca ouvira falar de nenhum Brown, nunca vira Turner nem ouvira falar nele. Não tinham a mínima idéia do motivo pelo qual o filho tinha sido alvejado. Juanita trabalhava como telefonista e só chegava em casa no fim da tarde. Tinha um namorado firme chamado Irving Spear, que era motorista de táxi.

- Um ótimo rapaz - declarou Mrs. Andersun. - Frequenta a escola noturna. Naturalmente há uma di­ferença de religião, mas isso, eles arranjarão entre si. Franklin não tinha compromisso de casamento, mas encontrava-se muito com Cissy Lewis... mora na casa ao lado.

Depois que os deixei fui procurar Cissy. Era uma pequena com cara de tola, devia andar pelos vinte e qua­tro anos, cabelos louros encaracolados e muito aborreci­da porque eu a encontrei com um vestido de casa, sujo, limpando o apartamento da família. Contou com sua voz esganiçada que a família possuía uma quitanda e fez questão de frisar:

- Naturalmente, não trabalho lá. Se soubesse que o senhor vinha aqui teria posto um vestido melhor. Muitos policiais e outras pessoas me interrogaram. Puxa! O senhor parece mesmo detetive... tão grande e de as­pecto tão duro!

Quando eu ia conseguindo falar, ela interrompeu-me dizendo:

- Eu era noiva de Frank e estou completamente ar­rasada. Como disse aos repórteres, fiquei tão chocada com a notícia da morte dele, que desmaiei.

Tinha um desses corpos retos que só possuía uma curva - a dos quadris gelatinosos. Quando andava de um lado para outro da sala, rebolava que era um horror.

- Frankie conhecia algum Brown?

- Algum o quê?

- Alguém chamado Brown?

- Não. Tenho toda a certeza. Eu conhecia todos os amigos dele. Íamos casar logo que ele conseguisse um emprego melhor. Sou secretária... no momento desem­pregada. Disse a Frankie que estava disposta a conti­nuar trabalhando durante algum tempo, para que pu­déssemos casar logo, mas ele não concordou.

- E a viagem que ele ia fazer?

A pequena estacou em sua marcha pela sala.

- Foi a idéia mais idiota que vi na vida! - excla­mou Cissy com sua voz esganiçada. - Quando li aquilo nos jornais, fiquei louca para dizer-lhe logo o que pen­sava. Naturalmente nem cheguei a falar. Papai é só­cio de um clube de xadrez e naquela noite tive que ir fechar a quitanda. O senhor vai perguntar também onde eu estava, como os outros "tiras"?

- Não - respondi pondo-me de pé. - Mil dólares davam bem para casar - acrescentei, apenas para vê-la pular de raiva.

- Exatamente o que eu ia dizer a ele. Afinal de contas já estou com vinte e três anos... é tempo de me casar. Mas há uma coisa: graças a Deus nunca cedi a Frank... compreende? - esta última frase foi acom­panhada de um risinho e um modesto rubor.

Agradeci as informações e dirigi-me para a porta. Ela ergueu os olhos para mim e disse:

- Puxa! Que homem forte! Casado?

- Seis esposas, benzinho. Passe bem!

Dali fui à garagem onde Irving Spear guardava o táxi e esperei, cochilando em meu carro, até às três, quando ele recolhia. Era um rapaz magro, de cerca de vinte e sete anos e andava trocando os pés como um pombo. Tinha o rosto miúdo e os óculos de grossas len­tes que usava, faziam-no parecer ainda menor. A calvíce já começava a pronunciar-se. Pela maneira de an­dar e agir, parecia um camarada "durão" que sabia onde tinha o nariz. Perguntei-lhe se gostaria de tomar uma cerveja. Fomos a um boteco vagabundo e êle exa­minou meu cartão.

- Até detetives particulares metidos nesse negócio... Não posso compreender aquele assassinato... Frank não tinha um inimigo no mundo. Era o tipo do cordeirinho.

- A família diz que era ambicioso... desses tipos que querem ficar milionários.

Irv riu-se.

- Frank bem que queria ficar rico, mas não tinha "peito" para isso. Na verdade era um garoto cheio de "luas" como os artistas e os poetas... e não era lá mui­to inteligente... Até estranhei que tivesse a coragem de falar em viajar para a Europa. Uma viagem assim, tal­vez até o consertasse.

- Cissy Lewis, a namorada dele, não gostou da idéia.

- Aquela idiota... não era namorada, nada. O que houve foi que Frank começou a sair com ela algumas ve­zes e ela não o deixou mais. Aposto que acabaria por fisgá-lo também, embora ele não a tomasse a sério. Uma garota quase criada junto com ele.

- Frank conhecia uma pequena chamada Betsy? - indaguei e pus-me a descrever Mrs. Turner, admirado de lembrar-me de tantos pormenores.

- Você está enganado - interrompeu Irv. - Frank não era desses de correr atrás de rabo-de-saia. Nem ao menos tinha coragem de convencer Cissy de ir para a cama com ele. Tinha que pagar de cada vez!

- Onde era?

Ele balançou a cabeça.

- Escute aqui. A garota é direita. Não quero criar embaraços para ela. Por isso mesmo nem falei essas coisas aos policiais.

- E por que eu haveria de criar-lhe embaraços? Quero apenas fazer-lhe algumas perguntas. Este caso é tão complicado que a gente nem sabe o que pode adian­tar ou não.

- Está bem, mas não gosto de trair ninguém. Sou um camarada que não se mete na vida alheia. O nome dela é Louise. Você a encontrará no porão de uma casa particular no bloco 515.

- Você conhecia aquele "cara" chamado Brown?

- Quem era ele?

- Um camarada de cabelo ruivo que esteve no "Grand Café" há vários meses atrás e disse que conhecia Andersun, que tinham brincado juntos em criança. Brown disse até lembrar-se da igreja que pegou fogo lá. Irv sorriu.

- Bom... agora me lembro daquele mentiroso. Nun­ca pude entender por que foi amolar o Frank. Estava com ele um "cara" que também quis fanfarronar comi­go. Bonitão, de cabelos ondulados. Disse que se chama­va Smith ou Jones, um nome comum assim. Insistiu em perguntar se eu era parente de um Spear que ele conhecia. O esquisito foi que (e é por isso que me lem­bro) que esse Spear era contador e eu justamente estou estudando para contador.

- Que mais perguntou ele?

- Olhe aqui "velhinho", isso foi há meses atrás e foi só conversa de bar. Ele apenas perguntou-me se mi­nha família era aparentada com esse outro Spear e indagou onde eu nasci. Foi só. Nunca mais o vi. Aliás, não posso afirmar que estivesse na companhia de Brown, mas esteve lá na mesma noite que ele.

- Viu Brown, no bar, na noite do crime?

- E ele esteve lá? Conforme disse aos outros poli­ciais, naquela noite eu estava na escola... e eles verifi­caram. Vocês pensam que Brown é o criminoso?

- Não penso nada. Brown é apenas um nome que aparece duas vezes. Vai para casa? Posso levá-lo em meu carro. Quero ver Juanita.

Juanita Andersun estava sozinha. Os pais tinham saído a passear, foi o que disse.

- Mandei-os tomar ar - era uma moça de fisiono­mia enérgica, de cerca de vinte e um anos, mais para bonitinha, com feições finas bem traçadas e olhos que pareciam dois juizes gêmeos. Trajava de maneira sim­ples e elegante e pareceu-me uma colegial esperta... até que abriu a boca e lançou um hálito ácido. Olhando-me de alto a baixo, disse:

- Então é você o homem-montanha que os velhos disseram que esteve aqui. Vamos entrar... se é que pode passar na porta. Cheguei agora mesmo do trabalho. Tra­balhar é "fogo".

Sentei-me na sala de estar enquanto ela entrava no banheiro, dizendo, pela porta escancarada:

- Volto já... vou aliviar a bexiga.

Ao voltar, estacou à porta do banheiro, trajando apenas "soutien" e calcinhas. Procurou observar minha reação, exibindo um desses corpos esguios femininos, que não mudam muito desde os quatorze anos até os qua­renta e quatro. Agarrou um roupão de praia, pendurou um cigarro no lábio inferior e, depois, atirou-se numa poltrona, perguntando:

- Que é que há nessa cabeça de camarão, "magriço"?

O "magriço" fez-me sorrir. As histórias de quadri­nhos são mesmo muito populares e... meu encontro com Juanita, uma coisa repelente.

- Gostaria de ter sua opinião sobre o duplo assassi­nato... fazer umas perguntas. Viu alguma vez o de­tetive Turner?

Ela sacudiu os cabelos penteados como um "caniche". Ficamos um momento em silêncio e, depois, inda­guei:

- Que acha dos assassinatos?

- Que é que posso achar? Ou foi obra de um tarado ou Frank meteu-se em briga. Conforme disse aos outros "tiras", meu irmão não estava metido em nenhuma complicação. Não tinha "peito" para isso.

- Que quer isso dizer?

- Em linguagem clara, quer dizer que ele foi o único da família que estudou. Eu tive que trabalhar de­pois de cursar dois anos de secundário... Frankie era o filho homem e, aqui em casa, o filhinho querido. Quan­do ele deixou o Exército, estava cheio de animação e en­tusiasmo. Costumava dizer que qualquer pessoa com um pouco de senso, que quisesse arriscar a sorte, podia fa­zer um dinheirão... dizia que só os "trouxas" não en­riquecem. Pensei que fosse bom para todos nós que ele tivesse estudado. Quando vinha pra casa, costumava descrever-me os métodos de negócios que estava estu­dando... todos os nomes esquisitos, já conhecidos ou inventados para significar as mesmas coisas. Frank cos­tumava beber comigo uma garrafa de cerveja, contando-me como fulano e beltrano tinham começado a fazer dinheiro arriscando alguns dólares em títulos e espe­culando. Vou dar-lhe um exemplo: Frank me contou o que fez um inglês que ouviu falar em excedentes de ma­terial do exército americano numa ilha das Índias Oci­dentais. Então, que fez? Comprou toda a "tralha" de Tio Sam por cabograma e depois vendeu-a ao governo da ilha... por outro cabograma. Fez assim trezentos mil dólares em menos de vinte e quatro horas e só gastou a tarifa de dois cabogramas. Isso é que é trabalhar. Era isso que Frahkie queria... em menor escala, natural­mente.

- E a viagem a Paris fazia parte desse negócio? Juanita mostrou-me os dentes.

. Que negócio? Frankie era “só garganta”. Se Frankie era dinâmico minha avó era bonde elétrico. Mal dei­xou a escola, perdeu algumas centenas de dólares na Bolsa e isso o deixou arrasado. Parte do prejuízo era dinheiro meu mas eu não estrilei. Não se pode ganhar sempre. Com todos seus estudos, seus livros e sua fa­lação... Frankie acabou sendo almoxarife, mais um fre­quentador da cervejaria da esquina... mas, afinal, te­nho que confessar que teve êxito - sorriu para mim. Nem pisquei. - Vamos receber os "tubos" do seguro dos pracinhas. Vai ver como Irv e eu vamos fazer render mi­nha parte dessa "grana" em dinheiro sonante!

- Ouviu falar num homem chamado Brown? Seu irmão falou nele alguma vez?

- Nunca ouvi falar nele. Por quê?

- Talvez não haja razão. Que acha de Cissy Lewis?

Novamente mostrou-me os dentes.

- Aquela "suja"? Frankie teve sorte em livrar-se dela. Santo Deus... você desconfia dela, desconfia?

- Estou apenas investigando. Havia outras garotas na vida de Franklin?

- Franklin... não brinque! Nenhuma outra mu­lher. .. Cissy era só para dançar e ficar de mãos dadas nos cinemas. Há uma "mariposa" nesta rua que recebia as visitas de Frankie.

- Contou isso aos "tiras"?

- Eles não perguntaram. Só queriam saber o que eu estava fazendo na hora dos tiros. Se pretende per­guntar-me a mesma coisa, vou logo dizendo... estava aqui mesmo, com os velhos, esperando Frankie para conversar com ele, quando voltasse do boteco. Mais al­guma coisa?

- Por enquanto, não - disse eu, dirigindo-me para a porta.

Sem se erguer da cadeira ela examinou-me com o olhar e indagou:

- Como conseguiu escapar de ser um lutador na TV... com todo esse tamanho? Bem... Espero que o tenha ajudado.

- Você é uma pequena muito viva - disse eu, vi­rando-lhe as costas.

Dispunha de mais de meia hora antes de ir buscar Ruthie na escola. Fui a pé até o número 515. Era uma casa marrom, de três pavimentos. A única coisa que estragava a beleza da construção eram as escadas de se­gurança contra incêndios. Desci dois degraus para o po­rão e premi o botão da campainha junto ao portão de ferro. Um minuto depois, um homem abriu a porta in­terna e disse:

- Hem?

Trajava "slacks" bem passados, camisa de lã bran­ca e um paletó de "nylon"que devia ter custado caro. Era alto e magro, cabelos negros longos, bem penteados, afastados do rosto que era belo, de aspecto sensível... ou talvez a impressão fosse apenas devido à boca quase feminina. O que não fazia dúvida é que devia passar muito tempo em frente ao espelho.

- Louise está? — indaguei.

- Que Louise? Que é que quer? - A voz esganiçada demonstrava inquietação.

- Louise.

- Você é um "tira"?

Fiz sim com a cabeça e ele abriu o portão. Acompa­nhei-o até um aposento que devia ter sido antes sala de jantar, mas que era agora um apartamento de uma só peça, com uma "kitchenette" por trás de um biombo muito ordinário, Era guarnecido de móveis comuns, des­ses que se vendem a prestações, e incluía um novo apa­relho de TV e um leito quadrado de Hollywood, com uma vistosa colcha vermelha.

Louise surgiu da sala de banho, trajando um rou­pão branco, cheio de enfeites de rendas. Era uma ra­pariga robusta, de seios firmes. Talvez estivesse perto dos trinta anos, talvez mais. Cabelos negros de ébano que lhe caíam pelos ombros. O rosto era interessante e teria até parecido mais bonito sem a pintura exagera­da dos cílios. A boca sensual, estava pintada de verme­lho vivo. Tinha uma aparência "sexy" e os homens certamente voltavam-se para olhar para ela, de início sem saberem por quê. Lançou um olhar para o rapaz de cabelos lustrosos e perguntou:

- "Tira"?

Ele confirmou com a cabeça e sentou-se, sem espe­rar ser convidado. Não precisei de indagar se conhecia Turner... o retrato dele estava sobre a cômoda, numa moldura dourada ordinária!

- Veio prender-me ou interrogar? - perguntou em voz débil.

- Nem uma coisa nem outra. Sou detetive parti­cular.

Uma incrível transformação operou-se no "bonitão". Meteu a mão no bolso traseiro e bradou, mostrando os dentes:

- Fora daqui!

O bolso parecia achatado demais para conter um revólver. Provavelmente era um punhal.

- Não perca a cabeça - disse eu. - Não vim aqui em busca de dinheiro nem de briga. Estou apenas cum­prindo meu dever para...

- Dê o fora!

- Um policial foi assassinado... a polícia está pro­curando um suspeito. Se prefere conversar com a polí­cia ... não me incomodo.

- Não vou dizer outra vez "dê o fora"! - disse o homem avançando para mim. Sacou do bolso uma navalha cuidadosamente envolvida num lenço branco de seda.

Senti as entranhas geladas, ao dizer-lhe em voz firme:

- Use sua cabeça. A polícia torna-se violenta quan­do um de seus membros é assassinado.

- Cliff, largue essa faca de queijo - disse Louise. - Guarde isso outra vez no bolso - a voz dela era agradável calmante. - Que deseja, "mister"?

- Fazer algumas perguntas sobre ele - respondi apontando para o retrato de Turner. Não desviei os olhos de Cliff que estava resmungando, algo como "vai entrando aqui, como se fosse o dono da casa..." - Entretanto, guardou a arma e, encostando-se à parede, pôs-se a observar-me.

- Detetive particular... como é que se meteu nisto?

- Estou trabalhando para a viúva de Turner.

A fisionomia da mulher abrandou-se e ela pergun­tou:

- Que quer saber?

- Por que não foi à polícia quando Turner foi as­sassinado?

- Tenho um álibi! - bradou Cliff... - Posso pro­vá-lo ...

- Querido, cale-se - disse Louise com meiguice. Depois, sorriu para mim com sua maravilhosa boca sen­sual. - Por que iria eu à polícia? Não gosto de "tiras" e não fiz nada de mal. Claro que conhecia Ed Turner. Era uma peste.

- Era um inseto sujo - completou Cliff.

- Como é seu nome? - indagou Louise.

Dei-lhe meu nome e, entregando-lhe um de meus cartões sebentos, disse:

- Deixe-me esclarecer alguns pontos deste caso. Turner esteve aqui pouco antes de ser assassinado. É por isso que o carro dele estava estacionado nesta rua.

Louise confirmou com a cabeça, enquanto procura­va com os olhos um cigarro. Atirei-lhe meu maço. Ela acendeu um e atirou o maço de volta para mim, por so­bre uma nuvem de fumaça.

- Vou contar-lhe toda a história: Cliff arranjava-me trabalho num hotel e Ed Turner uma vez foi lá numa diligência policial. O caso foi abafado... com uma boa propina. Meu Cliff conhece muita gente... mas Turner conseguiu meu endereço e resolveu ficar ron­dando sempre por aqui, atrás de mim sem nunca me pagar. Acho que era meio biruta.

- Era um sujeito sujo! - disse o   cafetão.

- Cliff, deixe-me falar. Nunca me vi em encren­cas com a polícia, Mr. Harris. O hotel era protegido e, por aqui, tenho poucos fregueses certos. Sou esperta de­mais para deixar o negócio desenvolver-se a ponto de cha­mar atenção. No caso de Turner, de início ele só queria ingresso gratuito. Aquele homem só pensava em sexo, co­mo um coelho cheio de vitamina. A coisa foi indo assim durante uns dois meses. Foi só. Como diz, acho que es­tava saindo daqui quando os fogos de artifício começa­ram na rua. Nada sei a respeito deste assunto.

- E Franklin Andersun?

Ela deu uma risadinha zombeteira:

- Freguês de uma vez por mês... tinha medo até de cumprimentar-me na rua - fez uma careta e esmagou o cigarro que estava fumando. - Cigarro, Cliff.

- Já lhe disse que não tenho mais.

- Vá até a esquina e compre um maço - voltou-se para mim. - Posso fumar qualquer coisa desde que não sejam cigarros mentolados - olhou para o cafetão e disse lentamente: — Vá indo, Cliff. Está tudo em or­dem.

Para surpresa minha, Cliff pegou o chapéu e saiu. Logo depois, ouvimos seus passos na calçada e Louise puxou a cadeira para perto de mim. Usava um perfu­me estranho que me agradava... ou, então, era mesmo o cheiro dela. Olhou para meu cartão e disse:

- Vou contar-lhe tudo quanto sei, juro. Mas prome­ta não encrencar Cliff. Neste meu negócio, preciso de um homem por trás de mim e Cliff é “durão", embora seja um garoto que precisa de uma mãe.

- Um garoto com uma boa navalha.

- Claro... às vezes é um menino malvado. Sabe o que nós fazemos? Às vezes quando largo o trabalho no meio da noite, saímos juntos, Cliff e eu, pegamos o MG e corremos para Long Island ou pelas montanhas, sem destino certo. É ótimo correr dentro da noite, sentindo que a gente vale tanto quanto outro qualquer,. com a sensação de ser alguém importante. Seja lá como for, o caso de Cliff não é da conta de ninguém e eu não consinto que ninguém lhe faça mal. Eu tinha ódio de Ed Turner por causa de sua “sujeira"... um “carona" or­dinário... mas acabei com pena dele. Precisava de ca­rinho materno também. O que atrapalhou tudo foi que ele se apaixonou por mim. Isso é que foi a grande en­crenca .

Ela acendeu um de seus cigarros. Não sabendo o que falar, disse-lhe apenas:

- Estou escutando.

- É a verdade. Ele me punha louca. Amava-me da mesma maneira que Cliff me ama. Não tinha ciúmes de nenhum de meus fregueses, estes não tinham importân­cia... mas não queria Cliff aqui. Uma vez puxou o re­vólver para Cliff e o pobrezinho, de tão nervoso que fi­cou, passou mal do estômago durante vários dias. Acre­dite: se não fosse eu, Ed teria matado Cliff. Por mais que lhe dissesse que precisava de Cliff (o que mais me rendo é trabalho em hotel), Ed teimava que podia arran­jar coisa melhor para mim. Não gostava de Ed como gosto de Cliff e, além disso, o fato de ser policial punha-me nervosa... nunca se sabe quando um "tira" vai empurrar a gente na boca do lobo. Ed deu para rondar por aqui, em frente de casa, em seu carro, à procura de Cliff. Por isso mesmo fiquei com medo de ir certos dias ao hotel... tinha medo que ele prendesse Cliff ou o matasse. E neste negócio, não se pode abandonar o trabalho. O pessoal quer encontrar a gente onde a gen­te deve estar. Foi o que aconteceu na noite dos assassi­natos.

- Que foi mesmo?

- Ed estava no carro lá fora, furioso da vida, espe­rando para ver Cliff entrar. Vou lhe dizer. Mr. Harris, conheço muito os homens e, sei que quando gostam de uma prostituta, gostam tanto que chegam a odiá-la. Du­rante algum tempo Ed sentia prazer em dar-me panca­da, em ser violento comigo. Depois, deu para tomar meu dinheiro... gozava em deixar-me apenas com dinheiro para comer. E isso fez Cliff ficar tão danado que che­gou a querer meter a faca no Ed. Depois de um ou dois dias, Ed costumava aparecer com um presente que va­lia o dobro do dinheiro que me tinha tomado. Uma vez foi um anel de brilhante, outra vez, um relógio. O reló­gio ainda está comigo, mas o anel está no prego. Posso mostrar-lhe a cautela, se quiser.

- Não é preciso. Continue a falar em Turner.

- Não há muito que dizer. Havia tempos em que vinha aqui todos os dias. Outras vezes, passava semanas sem aparecer.

- Quando o conheceu?

- Isso já vinha durando há uns... nove ou dez meses. Ele era tão esquisito! Às vezes íamos para a ca­ma e ele nem me tocava. E outras vezes despertava du­rante a noite e começava a gabar-se, principalmente, por causa do tratamento que estava dando à esposa. Há ca­maradas que gozam em enganar a mulher. Outros, so­frem com isso. Uma tarde, arrancou-me os sessenta e seis dólares que eu possuía e saiu correndo para com­prar uma lâmpada moderna para a mulher... trouxe a lâmpada aqui para me mostrar... como se isso me interessasse. Era uma lâmpada em forma de coqueiro de tronco de ébano com as lâmpadas onde deviam estar os cocos... mas era tudo em ziguezague e tão engraça­do! Sabe... ele achava que me estava magoando, ao trazer a lâmpada para eu ver, mas eu só pensava no di­nheiro que ele me tinha tirado. Duas noites depois, vol­tou para me dar de presente o anel de brilhante. Um anel caro, deu-me quase cem dólares no prego.

Ela parou de falar e eu continuei sentado ali, ten­tando refletir, sabendo que estava descobrindo algo, mas sem saber bem o que era.

- Qual é o álibi de Cliff?

Louise, apoiando a mão em meu joelho, disse com firmeza:

- Não comece a falar e nem mesmo a pensar nisso. Estou sendo sincera com o senhor, Mr. Harris e o se­nhor prometeu não me criar aborrecimentos. O senhor tem uma cara de homem honesto. Não diga nada aos "tiras" sobre Cliff.

- Você não pode esperar que eu me cale sobre isso tudo. Com todos os diabos! Cliff tinha um motivo, um...

- Não, não, Mr. Harris. Acredite no que lhe digo: Cliff não é o culpado. Fala bravo mas nem pode ver sangue. E tem mesmo um álibi. Cliff é esperto. Muitos "gigolôs" se perdem porque não têm emprego. Cliff trabalha como garçom, de oito à meia-noite, em uma boate no centro da cidade. Estava trabalhando aquela noite, juro que estava. Eu mesma verifiquei. O senhor também pode verificar. Sabe o que acontecerá... os "tiras" vão ver o álibi, mas, até lá, vão maltratar o po­brezinho. E eu estarei num buraco. Eu não faço mal a ninguém. Não sou má. Nunca estive doente. Só en­trei nesse "negócio" por que estava passando fome. Ago­ra, é só o que sei fazer. Se o senhor...

- Mas Cliff odiava Turner... aí está o motivo que procurávamos. Provavelmente atirou em Andersun por engano ou, quem sabe. o rapaz tentou impedir o crime.

- Não, não, nem pense isso. Não foi assim - disse ela em sua voz baixa e firme, fitando-me bem nos olhos. - Confio no senhor. Não precisava dizer-me tudo o que disse. Cliff é um "garganta"... nunca ofendeu nem feriu ninguém. Leve-o a um "stand" de tiro. Eu vi, em Coney Island... tem horror às armas de fogo. O cheiro da pólvora... não sei bem o quê... dá-lhe náuseas. Ve­rifique o álibi. Naquela noite houve uma festa de casa­mento e todos os garçons estiveram trabalhando. Acredite-me: se Cliff fosse o culpado, eu seria a primeira a avisá-lo e sumiria para bem longe. Se Cliff for o culpa­do você pode me chamar de perjura. Cliff não é o culpa­do. Não pode ser o culpado. Digo-lhe isso porque o se­nhor é um desses homens que não acham que sou uma suja, uma vagabunda, só por que faço a vida. Posso con­fiar no senhor.

Os olhos escuros mantiveram-se fixando os meus até que tive que desviar o olhar, sentindo-me sem jeito.

- Está bem. Acredito em você, mas não posso pro­meter não contar à polícia.

- Se a polícia quisesse verificar o álibi e deixar-nos em paz, eu própria teria ido procurá-la, mas você sabe o que é a polícia... Por que irá informá-la? É verdade que Ed esteve aqui naquela noite. Vinha sempre aqui. Mas não temos nada com o que ele fez, com o que lhe aconteceu, depois que saiu.

Eu continuava a desviar o olhar. Bem sabia o que a polícia faria com Cliff... com a breca! Era a única pessoa que conhecia ambas as vítimas. Iam fazê-lo suar. Voltei o olhar para os olhos cálidos, intensamente sinceros da mulher, e perguntei:

- Onde estava você na hora do crime?

Ela ergueu o corpo como que, de repente, se trans­formasse numa víbora.

- Eu? Ora!"Seu"sujo... Não vá agora empurrar isso para mim!

- Não estou empurrando nada para você. Veja bem: pelo que sabemos, Turner e Andersun eram completa­mente estranhos um ao outro. Agora, encontramos duas pessoas que conheciam os dois... dois elos... talvez as únicas duas pessoas que descobriremos. Você afirma que Cliff tem um álibi. E você?

- Eu estava aqui. Por que, então, estaria Ed com o carro parado lá fora?

- Louise, lá fora, justamente, é que houve o duplo assassinato. Isso a coloca na cena do crime, como di­zem. A não ser que você tenha um...

- Estava com uma amiga aqui. Ed, naquela noite, chegou aqui furioso. Tinha discutido com a mulher e só queria pretexto para brigar. Disse que se visse Cliff aqui outra vez, acabaria com ele a pancada. Eu não es­tava passando muito bem naquela noite... como se não bastassem todos os aborrecimentos, aquilo estava comecando. Assim, quando Ed saiu, fiquei nervosa, chamei aquela garota e ela ficou comigo até uma hora, quando Cliff chegou.

- Como se chama ela e onde mora?

- Se houver uma ordem de prisão não negarei essa informação, mas a garota também trabalha na "profis­são" e eu não quero que os "tiras" a incomodem, Mr. Harris. Por favor, jure que nada fará contra Cliff, Minha vida é de solidão. Todo homem que se encontra comigo, mal chega e já está doido para cair fora. Quando apa­rece um Cliff, embora eu represente para ele apenas comida de graça ou quando um Ed surge de passagem, apesar de todos os seus truques cruéis uma mulher como eu procura agarrá-los porque sabe que só homens dessa espécie permanecem junto a ela. Prometa-me...

- Nada posso prometer. Conhece um sujeito ruivo chamado Brown? Esteve no "Grand Café" umas duas vezes e uma noite conversou com Andersun.

- Nunca ouvi falar nele. Afinal não sou nenhuma rameira barata para trabalhar numa espelunca como o "Grand". Por favor, Mr. Harris, com Cliff...

- Benzinho - disse eu pondo-me de pé. - Não fa­ço mal a ninguém, a não ser quando é inevitável. Nem mesmo a um Cliff. Tenho que ir andando.

- Gostei do senhor, Mr. Harris e não digo isso pa­ra agradar - declarou Louise acompanhando-me até a porta.

- Você é uma mulher interessante... sob muitos as­pectos. Gostei de conversar com você.

Ela brindou-me com um largo sorriso cordial.

- Você é um camarada O.K.

- Como é o nome do lugar onde Cliff trabalha? E como é o nome todo dele?

O sorriso desapareceu.

- Você mesma me disse para conferir o álibi dele, não foi?

- É "Pigalle", na rua Quarenta e Três, Oeste. Cliff Parker. Não me atrapalhe a vida, por favor!

- Mais uma coisa... tire o retrato de Ed dali. Os jornais têm publicado muitas fotografias dele e alguém poderá reconhecê-lo e bisbilhotar. A propósito, se não for contra a ética profissional, quer dizer-me que tal era Ed Turner, na cama?

- Não valia nada... era como um garoto. Por que me pergunta?

- A gente nunca sabe o que pode servir como pista - respondi, como se soubesse de que estava falando. - É possível que volte aqui, Louise.

Quando cheguei à escola, Ruthie estava à minha es­pera com outra menina acompanhada da mãe e esta olhou-me de alto a baixo, dizendo:

- Achei melhor ficar aqui com Ruth até que o se­nhor chegasse. Compreendo que deve ser difícil largar o trabalho para vir buscar a menina - disse ela mostrando-me os dentes num sorriso forçado.

Agradeci. Ruthie agradeceu e precipitou-se para o carro. Beijou-me e disse-me ao ouvido:

- Não pedi a ela para ficar comigo. Não sou medro­sa.

- Claro que não. Foi um atraso de poucos minutos - disse arrancando com o carro.

- Por onde vamos passear... Yonkers ou Nova Jersey, papai?

- Vamos à cidade. Podemos até comer por lá. Que tal?

- Comida chinesa?

- O.K.

- Ótimo. Você vai treinar hoje à noite?

- Não, querida, tenho que sair.

- Oh! E vou ficar outra vez com May Weiss, papai?

- É o jeito. Papai está tratando de um caso. Dirigi o carro para o edifício do "Times", mas tive que estacionar a sete blocos de distância. Contudo, para Ruthie foi uma novidade andar por Times Square na hora do "rush". Descemos até uma banca de jornais atrasados e comprei um exemplar de um jornal do dia 11 de abril. Subimos até a esquina da rua Cento e Cin­quenta e Cinco com a Broadway, e fomos a um pequeno restaurante chinês que, para espanto de muita gente, serve comida chinesa autêntica. Ruthie começou por su­jar a mesa, tentando comer com os pauzinhos. Depois contou uma história que tinha ouvido na escola sobre uma família de coelhinhos e falou tanto que, no fim, minha cabeça chegava a girar, misturando as imagens de coelhinhos com as de Cliff, Louise e o retrato de Ed Turner em sua moldura dourada, como num filme cinematográfico.

O pai de May Weiss veio com uma conversa com­prida, querendo saber se ia ser outra vez a noite toda, porque, se fosse... Garanti-lhe que estaria em casa an­tes das onze horas. Depois Ruthie ficou aborrecida por­que justamente era sexta-feira, quando ela tem licença para ir dormir mais tarde e eu sempre lhe leio histó­rias. Eram sete horas quando me encaminhei a pé pa­ra uma "drugstore", a pensar como é que os detetives dos filmes nunca têm que ler histórias para os garotos à noite, fazer o jantar... ou nem têm filhos.

Enquanto sorvia um suco de laranja, pus-me a ler o número atrasado do "Times"... a pequena nota de pu­blicidade acerca de Andersun conquistando os mil dóla­res ... uma coisa que passaria despercebida a qualquer pessoa, a não ser a quem lesse com muita atenção o jor­nal. Passando à coluna dos casamentos, a coisa foi mais fácil: só havia sete anunciados. Peguei uns níqueis e percorri o catálogo telefônico. Esgueirei-me na cabina e liguei para o primeiro... disse que quem estava falan­do era o gerente do "Pigalle" e que um chapéu verde tinha ficado lá e que talvez pertencesse a algum dos con­vidados à sua festa de casamento na noite de 11 de abril. Foi duro, mas ao terceiro telefonema um tal de Mr. Worth garantiu-me que nenhum de seus convida­dos perdera um chapéu, certamente nenhum chapéu verde e que se alguém tivesse perdido ele teria todo o prazer de processar o restaurante, pois era um covil de ladrões, que o fizera pagar os olhos da cara. Quase me arrebentou os ouvidos desligando o telefone.

Telefonei para o gerente do "Pigalle" e disse:

- Quem fala aqui é Paul Worth, tio do rapaz Worth. Aquele camarada que, na festa do casamento, cantou quase todo o tempo... lembra-se?

- Lembro-me bem do senhor, Mr. Worth - volveu a voz do outro lado da linha, mentindo cautelosamente. - Em que lhe posso servir?

- É uma bobagem... mas queria pedir-lhe... Te­nho aqui algumas fotografias da festa, que estou, jus­tamente, colando no álbum de nossa família...

- Sim?

— Bem, numa das fotografias aparece, no fundo, um garçon. Algum dia, no futuro, gostaria de contar às crianças (pois espero que tenham uma ninhada de fi­lhos), exatamente quem esteve presente à festa. Escrevi os nomes de todas as pessoas por baixo da fotografia. O garçom é alto, pode dizer-se até bonito, uma boca fe­minina e cabelos negros escuros que...

- Chama-se Cliff Parker, Mr. Worth.

- Sou muito meticuloso com essas coisas. Escreve-se P-a-r-k-e-r?

- Isso mesmo.

- E tem certeza que foi ele que nos serviu naquela noite?

- Toda a certeza, senhor. São os lábios de Cliff. E ele é o único garçom com cabelos assim, sem sinal de calvice.

Agradeci-lhe e desliguei. A prova não era lá muito segura, mas, em todo caso, era melhor do que ir pergun­tar ao gerente... caso Cliff o tivesse avisado do que de­via dizer. Estava certo, naturalmente, de que Cliff não era o assassino... se o fosse, Louise nunca deixaria o retrato de Ed onde estava e nem falaria neste. Se não me tivesse falado no morto, nada havia para me fazer pensar que tivesse alguma ligação com Turner.

Em todo caso, o melhor e mais seguro era ir contar à polícia. Esta mandaria uma turma atrás do Cliff, vi­giaria qualquer pessoa com quem ele se desse, ficaria informada dos menores detalhes... talvez o assassino fosse algum amigo de Cliff. Quem sabe se Turner anda­va achacando outros cafetões? Afinal de contas, mi­nha impressão de que Cliff não era o culpado, nada sig­nificava.

Por outro lado, se informasse os "tiras" iria criar dificuldades para Louise e... O caso cada vez fazia me­nos sentido... e eu, agora, a proteger um rufião.

Cheguei à casa de Mrs. Turner exatamente às oito horas, mas fiquei rondando durante uns dez minutos... não queria deixá-la imaginar que eu estava ali como um criadinho... Finalmente, subi.

Ela estava toda ataviada como da primeira vez: um vestido azul de jantar, que deixava a descoberto seus ombros fortes, o palpitar de seu busto. A garrafa de vermute continuava sobre a mesa, mas seu hálito denun­ciava que andara bebendo coisa mais forte. Em todo ca­so, não estava nada "tocada".

- Boa noite, Barney. Está atrasado.

- É verdade, Mrs. Turner.

Sentei-me na banqueta e lancei um olhar circular pela sala. A lâmpada-coqueiro não era lá grande coi­sa: uma longa haste de ébano fazendo uma curva irre­gular até as finas folhas douradas e as pequeninas lâm­padas dispostas de modo a projetarem luz indireta... se é que aquilo projetava alguma luz.

Ela sentou-se no sofá, acendeu um cigarro, empur­rou uma caixa de cigarros para mim. Lançou-me um olhar, semicerrando os olhos e perguntou:

- Teve mais sorte hoje?

- Foi bom dizer sorte, pois é disso que precisamos neste caso. Toda a sorte que pudermos encontrar pelo caminho... e...

- Descobriu alguma coisa? Balancei a cabeça afirmativamente:

- Mas ainda estou muito longe da solução. Conver­sei com a família Andersun... nada por lá. Mas des­cobri uma coisa... uma coisinha.

Ela lançou para o ar um bom círculo de fumaça, que ficamos ambos a contemplar até que se dissipou. En­quanto eu acendia meu cigarro, ela quis saber:

- Isso é alguma brincadeira? Que descobriu?

- Que talvez seja uma brincadeira. Alguém tem es­tado a esconder coisas de mim.

- Quem?

- A senhora, Mrs. Turner.

As faces dela tornaram-se lindamente rosadas, co­mo uma gota de aquarela a espalhar-se.

- Que devo dizer a isso?

- O que quiser - respondi. - A senhora foi pro­curar-me e não estava preocupada com o fato de seu ma­rido estar morto e sim com a possibilidade de ter-se sui­cidado. Depois, andou a contar-me uma série de peque­nas mentiras... tais como: que só bebe vinho de vez em quando... e agora mesmo está tresandando a uísque. Que era tão, tão feliz com seu marido... que eram tão felizes juntos. Ontem à noite, porém, mencionou por acaso que tiveram uma pequena briga; que, de fato, nem se entendiam muito bem na cama, mas quis dar a en­tender que isso era porque ele só gozava torturando al­guém. Estas foram pequenas mentiras, não me desnortea­ram muito, mas quero saber por que está fazendo isso. Com a breca, afinal de contas estou trabalhando por sua conta.

- Acabou? - sua voz era gelo puro e se seus olhos fossem punhais eu certamente teria sangrado.

- Não sei. Será que acabei, Mrs. Turner? A senhora está me pagando um bom dinheiro para descobrir a ver­dade acerca da morte de seu marido. Entretanto, só tem feito contar histórias da carochinha, desde o começo.

- Se isso é alguma charada, gostaria que fosse até o fim. Eu disse que eu e Ed éramos felizes quando nos casamos. Disse que depois que ele entrou para a poli­cia, mudou um pouco, mas ainda assim éramos felizes.

Dei de ombros.

- O.K. Foi isso que me disse. Deparei com uma coisa que vai magoá-la. Se quiser evitá-la, continue a representar...

- Que foi?

- Mr. Turner durante muitos meses andou frequen­tando uma senhora chamada Louise. uma prostituta. A razão de estar com o carro encostado, na noite do duplo assassinato, próximo ao “Grand Café"... é que estava com ciúmes de um tal de Cliff Parker, um cafetão. Isso também, ao que parece era uma contenda que já dura­va há meses. Diz Louise que Mr. Turner a procurava tão seguidamente que já se tornara para ela uma praga. Fim do relatório, Mrs. Turner.

Ela ergueu o corpo como se tivesse sido puxada pela cabeça. Os olhos tornaram-se enormes e brilhantes.

- Compreendo, compreendo... Ed com uma... uma... - em seguida, vieram as lágrimas, uma torren­te de lágrimas. Pôs-se a soluçar histericamente, com to­do o corpo tremendo.

Aguardei um longo segundo... Não suporto ver nin­guém chorar. Aproximei-me e sentei-me ao lado dela, procurei enxugar-lhe o rosto com meu lenço rasgado. Ela encostou-se a mim, soluçando sobre minha camisa. Abracei-a e gostei da firmeza de seu corpo, da maciez de seus cabelos contra meu queixo.

- Vamos, Mrs. Turner, sossegue. Tudo isso já pas­sou... não adianta chorar. Pelo que Louise me disse Ed não era... muito normal nas relações sexuais. Não é sua culpa se não se adaptou a ele. Lamento muito dar--lhe este choque, mas tinha que lhe contar, sabe...

Ela ergueu os olhos para mim. O rosto estava co­berto de lágrimas.

- Barney, você acha que a culpa não foi minha?

- Acho que "culpa" não é bem a palavra a usar para uma coisa destas... é para coisas mais sérias - declarei. - Em todo caso estou certo de que não foi culpa sua - o fato é que estava achando difícil mantê-la assim em meus braços... de modo indiferente. Mas continuava a pensar comigo mesmo que seria a maior bobagem da minha vida...

Ela falou ainda chorando:

- Oh, meu Deus, senti-me tão feliz quando nos ca­samos. Acabar desta forma, solitária, com a sensação de não ter sido desejada. O casamento foi tão admirá­vel... no começo... e, depois, tão horrivelmente vazio! Dói mais do que a solidão.

- Talvez você esperasse demais do casamento. Ca­samento é uma espécie de relação, não é nenhuma panacéia — disse eu como uma Dorothy Dix de calças.

— Queria apenas uma pequena parcela de felicida­de, mas com o passar do tempo... você não sabe como era! Aquele complexo de culpa e enlouquecendo a pro­curar saber o como e o porquê. Você foi feliz no casa­mento, amor...

- Amor é outra palavra mágica, palavra de cinema.

- Não amava sua mulher?

- Nunca procuramos colocar uma etiqueta em nossos sentimentos. É por isso que nos entendíamos bem. Você viu o Tenente Swan sempre procurando subir na vida. Vi... minha mulher... também tinha muito disso. Era uma mulher bem sucedida em sua carreira. Ela e Al lu­tando sempre para "chegar a alguma coisa"... eis aí outras palavras mágicas. Ambos me olhavam de cima pa­ra baixo por não ser ambicioso. Eu por mim prefiro le­var a vida na flauta. A única coisa certa que temos é a morte. Isso aqui é uma passagem e, portanto, o melhor é tornarmos agradável essa passagem. Desde que nos conhecemos procuramos nos compreender mutuamente, nunca procuramos modificar um ao outro. E vivemos muito bem. Talvez seja isso o amor... dar-se bem um com o outro.

- Nunca discutiam?

- Claro que sim. Às vezes Vi me amolava e acho que também não sou nada fácil de suportar-se. Ela me acusava de preguiçoso e eu zombava de vê-la sempre atrás de ganhar dinheiro. Cheguei até a ceder e deixei Vi arranjar-me um emprego de detetive de carros para uma companhia de seguros. O essencial, porém, é que nunca amolávamos um ao outro. Quando me chamava de vagabundo, eu a chamava de cavadora e quando con­seguimos ambos rir de tudo isso, foi então que resolve­mos casar-nos.

Ela parou de chorar e ficou calada. Comecei a sen­tir-me meio tolo, com ela ali no colo como se fosse Ru­thie, depois de algum pesadelo.

- Mrs. Turner - disse então. - Por que não trata de esquecer tudo isso? Esteve casada e não deu certo. É uma doença das mais comuns... noventa por cento dos casais são constituídos de duas pessoas fogosas que, um dia, sem saberem por que, despertaram casadas e, de­pois, não sabem como viver juntas. Por que não vai para a casa de sua família por uns tempos?

- Para casa? - repetiu como que cuspindo a pala­vra. Senti que seu corpo se tornava pesado e tenso. - Nunca tive um lar. Meu pai é carpinteiro... um car­pinteiro humilde como meu avô também fora. Era para formar-se, mas não teve dinheiro bastante para estudar medicina e acabou sendo farmacêutico. A irmã mais velha de minha mãe herdou a única farmácia do luga­rejo quando o marido morreu na Primeira Guerra Mun­dial. Por isso fomos morar com ela. Desde então meu pai nunca passou de um caixeiro e nós, de "hóspedes". Qualquer coisa que eu fizesse, mamãe não deixava de lembrar: "Olhe, Betsy, não se esqueça que estamos em casa de tia Emma." A única vez que apanhei uma sur­ra... e isso eu nunca esqueci... foi quando tia Emma me pilhou arrancando umas plantas dela no jardim e foi dizer a minha mãe que eu devia ser castigada. Ali mesmo, na presença dela. mamãe me deu a surra.

- Isso também já passou. Você já não é uma criança.

- Não acabou não. Eles continuam como "hóspedes" na casa de tia Emma e papai continua como caixeiro, ganhando uma ninharia. Meu pobre pai teria podido ganhar a vida como carpinteiro mas tem que passar a vida como um caixeirinho. Cada vez que eu precisava de um capote para o inverno meu pai fazia algum trabalho avulso de carpintaria e, numas poucas noites, ganhava mais do que durante a semana inteira na farmácia.

- Bem, é possível que se sentisse mais feliz como caixeiro de farmácia do que como carpinteiro - disse eu por dizer.

- Sentia-se muito infeliz. Ninguém é feliz naquela casa. Tia Emma é uma dessas mulheres detestáveis que gozam em mandar em todos nós. Ao cabo de algum tem­po ninguém mais lá falava um com outro. Papai, Emma e mamãe tiveram uma briga e durante anos só se fala­vam através do gato. "Bichano, diga a mamãe para fa­zer o favor de passar a manteiga"... "Bichano querido, faça o favor de dizer ao papai para trazer querosene ho­je à noite". Ou então, "Bichano, diga a Emma que a companhia” de vitaminas está insistindo no pagamento daquela velha conta e será melhor mandar logo o che­que." Não agüentei e fui-me embora. Mas o caso é que... viver sozinha, casar-me com Ed... afinal não melhorou nada.

- Pelo que vejo não pode ir para casa. Tem amigos? Ela tentou sacudir a cabeça.

- Não. Agora ninguém. E Ed nunca tevê tempo para fazer amizades. Tinha que ficar de ronda vinte e quatro horas por dia. Certa vez cheguei a fazer um curso de arte e lá conheci um garoto... um rapaz de seus dezenove anos. Demos para ir juntos aos museus. Ed descobriu. Não era nada... mas quando nos viu juntos na rua teve uma crise de ciúmes e deu uma sur­ra no garoto. Não... não tenho um só amigo.

O rosto dela estava junto ao meu e quando falava, os cabelos tocavam-me o queixo. Senti tanta pena que quase a beijei... mas eu não queria ser pago em bei­jos. Precisava dos trinta dólares por dia. E, ao mesmo tempo, era como se estivesse procurando explicar as coisas a Ruthie. Tinha uma clara visão da personalida­de de Betsy, ou melhor, de suas duas personalidades. Ou era uma espertalhona - o que não acreditava, mas também não achava de todo impossível - ou então era su­mamente ingênua.

Tudo a seu respeito era de acordo com o figurino: um lar de neuróticos e por isso fugiu e o primeiro ho­mem que encontrou era o príncipe encantado... e o ca­samento tinha sido uma solução para tudo. E copiou fiel­mente os vestidos de "Harper's Bazaar" e os móveis de "Home Beautiful" e tentou interessar-se pela arte... e o trabalha do marido tinha um aspecto sórdido que pro­curou esquecer... E quando as coisas pioraram e o mari­do começou a enganá-la, o jeito foi emborcar a garrafa, ser uma dama sofisticada e sedutora, uma beberrona solitária. E, naturalmente, também, o jeito era experimentar seus encantos no primeiro "cara" que aparecesse... eu.

Sob seus vestidos elegantes e por baixo de sua per­feita maquilagem, Betsy era, nada mais, nada menos, que uma Ruthie crescida. Bem... talvez não fosse bem isso. O fato é que não era bem do tipo para ser a mulher de um camarada como Ed Turner. Ou, então, quem sabe, ele, apesar de toda sua "dureza" era um tanto atrasado.

- Você é jovem, atraente. Acabará encontrando...

- Você me acha mesmo atraente, Barney? - volveu parecendo, de repente, animada.

- Acho, Mrs. Turner.

- Por que não me chama Betsy?

- Olhe aqui, Mrs. Turner: a senhora quase sempre me trata como um criado ou um...

- Nunca tive intenção de tratá-lo como tal. É mi­nha maneira de agir. Já lhe disse que sou difícil de fa­zer amigos e, naturalmente, desde a morte de Ed... te­nho estado tão perturbada, tão insegura...

- Por enquanto, vamos continuar com "Mrs. Tur­ner". Quando o caso estiver solucionado, quando não es­tiver mais trabalhando para a senhora, talvez nos tor­nemos amigos.

- Que quer dizer por amigos? Que você vai me amar? - o corpo dela tornou-se tenso outra vez e havia em sua voz uma espécie de horror que me ofendeu.

- Talvez. Poderei até convidá-la a ir para a cama comigo... não há dúvida.

Ela pulou para fora de meus braços, pulou de meu colo. Ficou de pé à minha frente e gritou:

- Agora que estou viúva, acha que sou uma ofere­cida!

- A senhora é uma mulher sadia, jovem e bonita, Mrs. Turner e se lhe dissesse que não me seduz, estaria mentindo - disse eu, pacientemente, escolhendo bem as palavras para não perder o emprego.

- Se você pensa que só por que vem aqui todas as noites...

- Não penso nada. Quando o caso estiver termina­do, se quiser que sejamos amigos, veremos, então em que dará.

- Pensei que você fosse bondoso e compreensivo... você é apenas um homem.

- Assim o espero - saltei logo, sem estar bem cer­to do que ela estava querendo dizer. Houve um momen­to de silêncio incômodo, até que ela perguntou:

- Quer um drinque?

- Não - ela voltara a representar.

- Comporta-se como um bicho do mato, Mr. Harris - sentou-se na outra ponta do sofá e curvando-se pa­ra o lado alcançou uma garrafa de uísque canadense Serviu-se de uma pequena dose e tentou sorver a bebi­da forte sem tossir. Os olhos lacrimejaram, mas ela acendeu um cigarro como uma atriz de quarta classe e perguntou em tom frio:

- Tem certeza de que Ed costumava procurar aque­la prostituta suja?

- Não tenho certeza de que ela seja suja. Apenas vende aquilo que pode.

- Naturalmente obteve essa informação por ser um dos fregueses dela!

- Bem poderia ser um deles, Mrs. Turner. Talvez não me acredite, mas Louise tem muito encanto. Mas não se preocupe, não vou incluir isso na nota de despesas.

Ela pôs-se de pé.

- Já estou farta de sua companhia, Mr. Harris.

- O.K. Segunda-feira lhe mandarei o saldo do adi­antamento.

- Não. Não foi isso que quis dizer. Desejo que con­tinue a tratar do caso. Apenas, não me venha mais com mexericos... aquela mulher miserável com suas histó­rias mentirosas, seus delírios sobre meu...

- Não se trata de delírio. Vi lá o retrato de Mr. Turner... a mesma fotografia que a senhora tem aí na parede. Também contou-me a história dessa lâmpada em feitio de coqueiro. Pelo que ouvi, Mr. Turner um dia tomou dinheiro dela para comprar a lâmpada para a se­nhora... num acesso de remorso, naturalmente.

- Verificou se foi ela que matou Ed, ou não teve tempo para isso?

- Não penso que tenha matado Ed. Olhe aqui: só lhe disse tudo isso porque você ainda está imaginando que Ed se suicidou e depois porque tenho que saber exa­tamente como iam as coisas entre vocês dois. Nós... a polícia não vê o menor motivo que justifique o duplo assassinato, mas para suicídio tem que haver um mo­tivo.

- Disse-lhes a verdade... exceto que Ed e eu não nos entendíamos bem. Não era que fôssemos infelizes... apenas não éramos felizes. Pode entender isso?

- Talvez entenda depois de pensar bem no caso. - Ergui-me e dirigi-me para a porta. - Devo apresentar -me amanhã à noite? É sábado.

- Trabalha de acordo com o horário do sindicato? - perguntou rispidamente. - Mais uma coisa: exijo certa dose de respeito... penteie os cabelos quando vier aqui.

- Acho que não pentearei, Mrs. Turner. O cabelo é meu e acho que cabelo penteado ou despenteado nada tem a ver com respeito - ela corou de raiva e, abrin­do a porta, acrescentei: - Lamento tê-la perturbado, Mrs. Turner. Mas foi apenas como parte de meu tra­balho - não sei por que disse isso. Senti a voz embar­gada.

- Retire-se!

No "hall", enquanto esperava o elevador automá­tico, sentindo-me amoladíssimo, ouvi o barulho de um objeto atirado ao chão. Afinal de contas a tal lâmpada não era lá grande coisa.

SAM LUND tornara-se "cavador" muito antes de sentar praça, órfão aos seis anos de idade, Sam foi criado pelos tios que possuíam uma pequena loja de ferragens em Boston. Não tinham filhos e adoravam Sam, mas quando este completou treze anos a tia teve um bebê temporão e, depois disso, o sobrinho perdeu toda a importância.

Cresceu, tornou-se um rapaz alto e forte, um atleta completo com a graça de um bailarino. Com dezesseis anos viajou de carona para Nova York e conseguiu em­prego como "boy" corista num espetáculo musical da Broadway, que durou cinco semanas. Depois disso tra­balhou em vários lugares para poder tomar lições de dan­ça e arte dramática. Nas horas de folga visitava as agências teatrais e vivia pelas "drugstores" ao Times Square.

Ao completar dezenove anos já havia dançado em vários "shows", tinha tido pequenos papéis em teatrinhos da vizinhança da Broadway e estava tentando abrir caminho para o rádio. Sam era louco por "teatro", mas por isso vivia sem vintém. Tinha sorte quando trabalha­va duas ou três semanas por ano como ator ou corista masculino e seus outros empregos nunca duravam muito, pois logo que ouvia dizer que estava sendo organizado um "show" largava o emprego de trocador de ônibus ou de estoquista e ia tentar a sorte.

Uma tarde, estava em um estúdio de ensaio, muito sujo, na Rua Quarenta e Seis, lendo uma peça que se­ria estreada no outono... caso conseguisse arranjar se­tenta e cinco dólares. O produtor era um ex-ator de meia idade, casado com uma loura oxigenada que se interessou por Sam. No dia seguinte ela propôs montar-lhe um pe­queno apartamento em Greenwich Village. Não era novi­dade para Sam ser sustentado por mulheres, mas aquela estava na casa dos cinquenta, andava toda espartilhada para poder vestir aquele manequim 42, gostava de jóias espalhafatosas e quando ficava bêbada achava engraçadíssimo empurrar para a frente a dentadura postiça e berrava: "Que é que há, doutor?"

Embora recusasse o oferecimento, Sam consentiu em deixá-la pagar-lhe o jantar várias vezes por semana. Ela vivera sempre em ambiente de teatro, ensinou Sam a travar relações, estudar e compreender as pessoas, ao invés de andar pelas "drugstores"... se é que desejava ser ator.

Ele arranjou um emprego para o verão como guia num ônibus de turismo e uma semana depois quase morreu de escarlatina. A doença deixou-o completamente calvo. No começo, a calvíce provocou muita brincadeira, mas Sam não tardou a descobrir que um rapaz careca não pode representar papéis juvenis nem papéis principais e que uma peruca decente custava centenas de dólares. Resol­veu então aceitar o apartamento na Village... até a es­tréia da peça.

Sam confessa que a velha loura fez muito por ele Eis o que contou a um repórter:

"Ela não era má quando não estava bêbada. Comprou-me uma peruca notável, uma peruca for­midável de cabelos verdadeiros, mandou-me a um bom alfaiate comprar roupa sob medida e matricu­lou-me numa excelente escola dramática. O diabo é que se atirava pelo apartamento adentro durante a noite, bêbada como um gambá e andava nua de um lado para outro toda prosa, na ilusão de ser ainda jovem e alegre."

Luna não aguentava aquilo, mas houve outra leitura da peça num apartamento granfino da Park Avenue e garantiram-lhe um bom papel. Em outubro ainda falta­vam trinta e dois mil dólares para montar a peça e a estréia foi adiada para janeiro. Sam ficou zangado. Em­bora tivesse boas roupas, cabelos e uma conta aberta na mercearia da esquina, não dispunha de dinheiro no bolso.

Em novembro, o produtor assinou contrato para fazer uma curta-metragem em Hollywood e a estréia foi no­vamente adiada, mas Sam não se incomodou porque a loura foi para a Coast, com o marido e Sam podia dor­mir sossegado a noite toda. Entretanto, ela mandou-lhe uma passagem de avião, sugerindo-lhe tentar o cinema e, antes do Natal, Sam estava instalado num quarto de uma velha casa, em Laurel Canyon. Ali também estava hos­pedada uma cantora de dezenove anos, ruiva e muito ale­gre e Sam começou a partilhar o quarto dela.

Em Hollywood só conseguiu trabalhar como figuran­te em cenas de multidão. Além disso, não gostou muito do lugar. Assim, em fevereiro, sentiu-se feliz em acompa­nhar o produtor e a mulher de volta a Nova York, onde teve a sorte de arranjar um emprego fixo num programa de propaganda comercial. Parecia quase certo que a peca começaria a ser ensaiada a qualquer momento e tudo ia correndo bem para Sam... principalmente depois que a ruiva chegou do Oeste para trabalhar num "night-club".

Foi difícil encontrar um teatro e em abril o principal financiador transferiu o dinheiro para outra peça. O produtor perdeu a opção e cancelou tudo. A ruiva ia para Baltimore trabalhar numa boate e convidou Sam para ir com ela. O programa de rádio tinha sido encerrado umas semanas antes e Sam estava sem vintém. A velha loura quando bebia, descuidava-se das jóias e muitas vezes telefonava a Sam no dia seguinte para pedir-lhe que pro­curasse um anel ou um broche que esquecera no apar­tamento. Assim foi que Sam empenhou um par de brin­cos por duzentos e sessenta dólares e foi para Baltimore, onde dois detetives o agarraram no dia seguinte.

Sam não se alarmou muito com o caso. Suplicou à mulher que não depusesse queixa e depois ameaçou-a de divulgar seus encontros amorosos. A dama contentou-se em mostrar-lhe os dentes postiços, declarando que esse tipo de publicidade, segundo um psicanalista, lhe exaltava o ego. Um jornal escreveu umas linhas em uma de suas colunas sobre o roubo e a fotografia de Sam apareceu na décima página de um tablóide, no momento em que o juiz lhe dava uma pena de dois a cinco anos.

Nos primeiros tempos de reclusão, Sam quase ficou louco, mas, pela primeira vez na vida leu muito, estudou os homens, à sua volta e convenceu-se de que seria mesmo um ator logo que fosse posto em liberdade. Estava completando o seu vigésimo segundo mês de prisão quan­do se deu o ataque em Pearl Harbor. Vários meses mais tarde, quando devia receber livramento condicional ficou sabendo que estaria livre caso se alistasse nas forças ar­madas.

Depois da vida de prisão a vida militar era "canja" para Lund embora o Exército não soubesse o que fazer com o ator. Foi mandado para Wright Fiela a fim de in­tegrar uma unidade cinematográfica que pouco depois foi dissolvida. Lund foi então designado para serviços especiais e passou vários meses recebendo as entradas num teatro da base aérea de Topeka. De lá, foi mandado para a Inglaterra onde fez serviço de sentinela perma­nente e dirigiu um caminhão. Lund passou algum tem­po como soldado itinerante e acabou pedindo para servir como bombardeiro aéreo, o que lhe foi negado sem motivo aparente.

Já no fim da guerra Sam estava trabalhando atrás de um balcão do armazém de gêneros numa base de bom­bardeiros, na França. Não lhe era difícil contrabandear para fora algumas caixas de cigarros de vez em quando e começou a agir no mercado negro, em pequena escala. Contudo, quando terminou a guerra na Europa e o equi­pamento de bombardeio estava sendo expedido de volta aos Estados Unidos para seguir para o Pacífico, a es­crita da base ficou toda confusa e Lund passou a vender caixotes de caixas de cigarros. Durante o julgamento, Lund confessou ter vendido certa vez toda a carga, de um caminhão, de cumplicidade com o motorista e outro sol­dado. Lund estava-se tornando rapidamente um "opera­dor".

Nada o chamava aos Estados Unidos e, assim, Sam alistou-se no Exército de Ocupação e foi para a Alemanha. Ali foi trabalhar nos "shows" do acampamento e me­teu-se em vários "negócios".

"Os soldados recém-chegados à Alemanha eram, na maioria, garotos (declarou Lund), todos eles en­tre dezoito e dezenove anos. Achavam que era uma grande coisa dormir com uma "fraulein" por um maço de cigarros. Eu, por mim, já era "veterano". Não ligava muito para aqueles garotos. Representava qualquer bobagem... qualquer bobagem ou piada pesada fazia-os rir às gargalhadas. Tinha assim tempo de sobra para "desapertar-me". Havia muita coisa interessante para ver na Alemanha naquela época. O mercado negro era um colosso, funcionan­do às escancaras. Todo mundo se "arranjava". Uma coisa sensacional."

Agiu sempre com muita cautela e quando sentiu que a coisa estava ficando quente, o sargento Sam Lund em 1950 deu baixa do Exército e rumou para Paris. Possuía um Doãge novo, cinco mil dólares em dinheiro e algumas jóias avaliadas em mil e quinhentos dólares, que conse­guiu vender por mil e novecentos. Sam possuía mais três latas de filmes que encontrara por acaso num escri­tório da Baviera, atingido pelo bombardeio. Fazia vagos planos de usar os documentários como fundo de um fil­me de aventuras de longa metragem sobre um para-quedista que descia na Alemanha durante a guerra. O papel principal seria para Sam Lund, naturalmente. Achava que assim não só ganharia dinheiro, como, também, se lan­çaria como ator internacional.

Durante sua primeira semana em Paris, Sam ficou hospedado no Hotel George V, frequentou o Maxims, o Lido e o Monseigneur... até verificar que gastara oitocentos francos numa semana. Discretamente, mudou-se para um hotel mais modesto perto da praça Pigalle, on­de conheceu Gaby.

Gaby tinha vinte e dois anos, miúda e faceira, carinha bonita e busto saliente. Era artista de cinema, mas só lhe davam papéis de modelo de artista, jovem nativa ou qualquer coisa ligeira que exigisse exibir os seios. Achou que Sam era o maior homem do mundo: era alto e bonito, atencioso para com ela e tinha dinheiro, bem como um carro americano. Sam gostou dela porque se sentia adorado e porque a jovem pertencia aos meios ci­nematográficos franceses. Aconteceu, porém, que logo descobriu que havia pouco trabalho para atores, que os sindicatos eram poderosos e que lhe seria impossível con­seguir uma carteira profissional... um papel... apesar de falar francês sem sotaque, graças à sua convivência com Gaby.

Certa noite, quando já se encontrava em Paris há quatro meses, Gaby o apresentou a outro americano, um camarada de fala mansa, chamado Martin Pearson, com uma pequena com cara de cavalo, Thérèse. Sam descon­fiou de Martin e não via vantagem em deixar outro en­trar no negócio do filme. Mas Martin revelou-se útil. Quando Sam lhe contou que seu visto de turista, por três meses, estava a expirar e não conseguia uma carteira de identidade e lhe perguntou como conseguira ficar todos aqueles anos em Paris, Martin respondeu:

- Matricule-se numa escola por conta do Exército como ex-pracinha e conseguirá uma carteira de estu­dante. Muito cuidado com essa carteira. Você pode pen­sar que a polícia francesa é boba, mas é muito eficiente e esperta.

Lund fez-se estudante e, com o tempo, tornou-se amigo de Pearson, embora sem lhe confiar sua idéia so­bre o filme. Sam tornou-se estudante de várias manei­ras ... aprendeu que há gente esperta em toda parte e que não é fácil a um estrangeiro tapear os espertalhões na­cionais.

Perdeu quinhentos dólares como "manager" de um lutador de boxe francês. Depois de comprar um trajo completo de lutador para seu pupilo, dar-lhe casa e co­mida até pô-lo em forma, verificou que para ser "mana­ger" precisava ser membro da Federação Francesa de Lutadores de Boxe... que não admitia sócios estrangei­ros. Depois, pagou seiscentos e cinquenta dólares ameri­canos de luvas por uma casa nos arredores de Paris e quando quis se mudar descobriu que fora logrado: pa­gara as luvas a um espertalhão e não ao proprietário. Ninguém sabia dizer quem era a pessoa que fizera negó­cio com Sam.

Teve um prejuízo de mil dólares num negócio feito no mercado negro (deram-lhe francos falsos) e um pa­trício arrancou-lhe algumas centenas de dólares nas cor­ridas de cavalos. Mas Paris era Paris, e, Sam divertia-se. No verão de 1952 foi com Gaby, Martin e Thérèse de au­tomóvel para Nice onde passaram um mês de férias.

O que Sam mais detestava em Martin era seu "pão-áurismo". Pearson sempre se arranjava para o outro pa­gar primeiro. Em Nice, enquanto Sam bancava o im­portante, hospedando-se no luxuoso hotel Negresco, Mar­tin e Thérèse descobriram uma pensão barata no centro da cidade. No cassino, Sam deixou cento e cinquenta dó­lares, ao passo que Martin não arriscou um só franco.

Certa vez, quando estavam tomando banho de sol na praia as garotas quiseram sorvete. Martin não se me­xeu. Sam deu a Gaby uma nota de quinhentos francos e quando as pequenas se afastaram ele perguntou:

- Será que os francos grudaram em sua mão, Marty? Você não tem coragem nem de ajudar na despesa da ga­solina para o carro?

- Quanto lhe resta do que tinha, Sam?

- Que tem você com isso?

- Deixe de fingir, Sam. Quanto lhe resta?

- Uns três mil. Ouvi dizer que você também tem o seu pé-de-meia.

- Tenho mais de seis mil - murmurou Martin. - Sam, antes de jogar fora o resto de seu dinheiro, vamos fazer aquele filme. Já perdemos dois anos. Já não tenho mais direito à ajuda do Exército e preciso encontrar al­guma fonte de renda para conseguir a carteira de iden­tidade e ficar aqui. Thérèse e eu formamos uma compa­nhia de cinema... em nome dela. Tenho toda confiança em Thérèse.

- E eu, como é que entro nessa boca?

- Você investe seus três mil dólares e aqueles do­cumentários nazistas. Eu entro com seis mil. Acho que po­deremos filmar quase tudo ao ar livre, por aqui, nestes dois meses que vêm. Conversei com um escritor em Paris, que está disposto a escrever a história e o texto do filme mediante percentagem nos lucros. Eu ajudarei com a câ­mara, Thérèse fará os cortes e o "editing". Você e Gaby terão os papéis principais. Não precisaremos contratar muita gente.

- Você pensou em tudo, hem?

- Acho que sim, Sam. Sei que você pode vender os documentários a alguma companhia de cinema por uns mil dólares, apesar de Hitler já estar ficando fora da mo­da. Mas você gastará o dinheiro e, daqui a uns anos, como é que vai se arranjar? Ou volta para os Estados Unidos, para cavar emprego ou será mais um americano "pronto" em Paris. Se quer mesmo ficar vivendo aqui, se quer ser ator, o melhor é tratar logo disso.

- Vou pensar no assunto.

- Pense tanto quanto quiser, Sam. Mas lembre-se que a guerra acabou e, com ela, a mina de ouro.

Na manhã seguinte reuniram-se os quatro no quarto de Sam e organizavam uma sociedade, no nome de Thérèse, com Gaby como tesoureira e Sam e Martin com um décimo da companhia, de acordo com as leis francesas. Chamaram um advogado para preparar os papéis e Sam mandou buscar champanhe, mas Martin declarou que bastava "vin ordinaire". Sam ficou um pouco "alterado" com o vinho e resolveu ir tentar a sorte no cassino. Mar­tin recomendou-lhe poupar o dinheiro.

- Vamos pôr os pingos nos "ii". Não gosto que se metam em minha vida - disse Sam. - O dinheiro é meu.

- Não, agora o dinheiro é da firma - disse Martin em voz mansa. Quando Sam, dando uma risada, dirigiu-se -para a porta, Pearson deu-lhe um soco no estômago e, montando em cima dele declarou:

—^ Não estou me fazendo de brabo nem mandando em você, mas é tempo de tomar juízo, Sam. Largue essa mania de grandeza.

Perante o tribunal, Sam disse que tinha medo de Pearson. A transcrição das notas taquigráficas dizia tex­tualmente:

P.: Você diz que não queria concordar com o assassinato? E, então, por que concordou? Ê mais forte do que Pearson e devia saber que êle não ati­raria em você.

Lund: Tinha medo de Martin. Não estou pro­curando empurrar a culpa para êle. Estamos ambos envolvidos. Mas tinha medo dele. Não sei bem por quê... não sou covarde, mas havia nele uma manei­ra fria de fazer as coisas que me apavorava.

P.: Quer dizer que tinha medo físico de Pear­son?

Lund:   Isso mesmo, era isso mesmo.

Em vinte e quatro horas os quatro mudaram-se pa­ra um pequeno hotel em Juan-les-Pins, entre Nice e Cannes, e puseram-se a trabalhar. Mandaram imprimir papel de carta com o nome da firma e Thérèse começou a escrever a diretores e a procurá-los pessoalmente, en­quanto Martin telegrafava para o escritor em Paris, au­torizando-o a começar a trabalhar. Ao voltarem a Paris em setembro, encontraram pronto o "script" de uma his­tória que agradou a todos, mas o filme iria custar no mínimo mil e quinhentos dólares e eles precisavam de ficar com cinco mil dólares, pelo menos, em mãos para atender às despesas imprevistas. Faltavam mil e cem dó­lares e não conheciam ninguém que lhes pudesse arranjar tal quantia.

Certa noite Sam levou ao apartamento de Thérèse um americano gorducho de cara redonda de bebê e ex­plicou :

- Este é Eddie que foi suboficial na Itália onde di­rigiu um armazém do Exército. Esteve também na Ale­manha. Eddie está planejando um golpe que pode resol­ver nosso problema.

O plano de Eddie era simples. Ia para a Alemanha em seu automóvel com três mil dólares de penicilina e ou­tras drogas. Dispunha dos necessários contatos e conta­va voltar com dez mil dólares, dentro de uma semana. Já fizera a mesma viagem meses antes, pouco depois de ter sido desligado do Exército.

- Eddie está disposto a nos dar sociedade... nos­sos nove mil renderão cerca de trinta mil dólares. Ele fica com dez mil pelo risco e nós ficamos com o resto. É sopa. Sabe onde comprar a droga aqui e conhece gente impor­tante para encaminhar o negócio na Alemanha. Não po­demos perder. Ainda poderemos começar o filme antes de começar o inverno na Riviera.

Martin conseguiu aparar para sete mil dólares a parte de Eddie e depois ficaram conversando os quatro pela noite adentro. O essencial era saberem se podiam confiar em Eddie. Pela manhã, Thérèse verificou que Eddie estava interessado em abrir um café com sua na­morada francesa e o pai dela... Era evidente que tencionava ficar em Paris.

Com a mala em seu Austin carregada de dois pneus sobressalentes os quais, por sua vez, estavam carregados de caixas de penicilina, Eddie despediu-se deles numa manhã de quarta-feira. Devia estar de volta na segun­da-feira seguinte, o mais tardar. Passavam o fim-de-se­mana nervosos e impacientes. Na segunda-feira, Eddie não apareceu. Sua pequena ficou fora de si, dizendo que tinha um pressentimento mau. Terça-feira, Sam telefo­nou para um camarada do Exército que estava servindo perto da cidade para a qual se dirigira Eddie. Eddie es­tava preso. Havia esquecido uma coisinha de nada. Con­tinuava a usar no carro as antigas placas do Exército e esquecera-se de que "já não serviam. Fora detido pela polícia alemã, a cento e sessenta milhas da fronteira da França.

Eddie voltou dez dias depois... não tinha sido processsado, mas a policia alemã ficara com os medicamen­tos, provavelmente para vendê-los por conta própria. Até Martin ficou convencido de que Eddie os passara para trás.

Naquela noite, Martin, Sam e as pequenas beberam de cair, no apartamento de Thérèse. Esta e Gaby "entre­garam os pontos" logo à primeira garrafa de conhaque. Embora raramente bebesse, Martin conseguiu igualar

Sam.

- Foi o diabo o que aconteceu - disse Martin como a falar consigo mesmo. Se eu não fosse casado, poderia casar-me com Thérèse e ficar por aqui ou levá-la comigo para os Estados Unidos. Agora... nada. Nem Thérèse, nem Paris, nem futuro.

- Podemos vender nossos passaportes por cinco mil "tubos" cada um e dará para comermos aqui durante al­guns anos - disse Sam admirando-se num espelho ,e pensando que nem Orson Wélies poderia recitar melhor aquilo do que ele, Sam sempre representava quando fi­cava bêbado. De repente, cambaleou no meio do quarto e representou um papel que tivera anos atrás numa pe­quena peça teatral.

- Lá vem você com suas idéias de " desapertar" - resmungou Martin encarando Sam. - Ai, Pearson atra­vessou o quarto cambaleante até o diva onde Thérèse es­tava dormindo. Falou em voz pastosa:

- Você sabe... o que acaba de dizer... me dá mui­tas idéias na cabeça. Dá-me uma idéia para nos tirar da enrascada. Sim. Escute, Sam, "seu" burro... Pare de falar e escute. Tenho uma idéia... tão simples... e clara. Seu carro...

- Que idéia é essa, "seu" gênio? - indagou Sam, que logo acrescentou precipitadamente:

- Que é que há com meu carro?

- É tão simples - disse Martin, tentando sentar-se no diva. Caiu ao chão e mergulhou na inconsciência.

 

DIA de sábado começou mal. Passei uma noite agitada e, justamente, quando pensava que ia finalmente pegar no sono, Ruthie des­pertou-me chorando. Passava um pouco das sete e ela havia molhado a cama... coisa que há meses não acon­tecia. .. e até que eu a convencesse de que não era ne­nhuma tragédia, já eram sete e meia e eu tinha perdi­do a vontade de dormir. Sentia-me arrasado.

Fiz uns exercícios de peso antes do café enquanto Ruthie escutava música do rádio, com os olhos em mim. Fui devagar, começando com 40 quilos e, depois de muitas voltas e flexões acabei levantando 80 quilos. Passei aos exercícios para o abdome e Ruthie ficou esperando apa­nhar-me deitado de costas. Pulou em cima de mim e "lutamos", depois tomamos um banho de chuveiro jun­tos, coisa que ela adorava.

Enquanto me enxugava, senti que estava bastante tris­te. Mesmo quando treinava muito, nunca tive músculos muito delineados como esses atletas que posam para quadros. Agora, depois de ter reduzido os exercícios, es­tava ficando, cada vez mais, como um rolo de toucinho.

Não havia muita coisa em casa para nossa primeira refeição e, assim, depois de comermos torradas e tomar­mos suco de laranja, fomos ao supermercado. O movi­mento era enorme. Comprei ovos, "bacon", bananas, pão e leite, juntamente com alguns produtos enlatados e, de­pois, fomos para a fila.

Detesto fazer fila. Tinha a impressão de que duran­te os últimos dias não fizera outra coisa senão esperar, perder tempo ou rodar em torno do mesmo ponto. Quan­do afinal chegamos à caixa, o homem cobrou-me mais dois "cents" por uma das mercadorias. Embora uma de minhas manias fosse, justamente, vigiar os caixas dos supermercados, não disse nada para não atrasar os ou­tros que estavam na fila. Infelizmente, porém, a mer­cadoria era o cereal de Ruthie e, quando o camarada o colocou no saco, ela exclamou em voz alta:

- Papai, ele cobrou vinte e um "cents" pelos flo­cos de trigo e o preço é dezenove.

- O.K. Deixe estar.

- Mas você sempre diz que esses caixas não somam bem... de propósito - volveu ela com sua vozinha es­tridente que dominou todos os ruídos da loja.

Atrás de mim havia muitos bisbilhoteiros e o caixa, encarando-me com olhos magoados, começou a tirar as mercadorias do saco. Na fila, alguém atrás de mim in­terveio :

- Ora, pelo amor de Deus. Dou-lhe eu as duas por­carias de "cents"!

- Deixe isso de lado - disse eu ao empregado, co­locando no balcão uma nota de dez dólares.

- Segure o dinheiro - recomendou ele. - Se houve engano, devo corrigi-lo. O freguês tem sempre razão... é o que se diz.

Levou bem cinco minutos para conferir as mercado­rias com a nota da registradora e, finalmente, descobriu o erro. Aí, levou mais alguns minutas para fazer outra nota e, depois, para guardar a outra na gaveta da cai­xa registradora. Finalmente, consegui retirar-me sem coragem para olhar a fila de impacientes atrás de mim.

Por um momento, quase tive vontade de ralhar com Ruthie, mas lembrei-me que, afinal de contas, a culpa não era dela. Ela estava radiante com o que ocorrera. De volta ao apartamento e terminado nosso pequeno al­moço, ela quis saber o que íamos fazer e lembrou que bem podíamos tratar de lavar a roupa. Apanhei os ves-tidinhos dela, as roupas de baixo, juntamente com mi­nha roupa e as toalhas. Tivemos muita sorte... uma das duas máquinas no porão do edifício estava vaga. Enquan­to esperávamos ali, chegaram duas donas-de-casa e fize­ram os comentários habituais sobre a beleza de Ruthie, etc... tudo, porém, no tom superior de quem pensa "Po­bre coitado! Muita coragem, criar uma filha sozinho", o que sempre me irritava.

Levamos a roupa lavada para o terraço do edifício e Ruthie insinuou que fôssemos a Coney Island, mas eu não estava disposto e Betsy Turner me pagava trinta dó­lares por dia para trabalhar. Descemos. Mudei os len­çóis das camas, varri, espanei e limpei o apartamento. Quando terminei, a roupa estava seca.

Geralmente passo os fins-de-semana com Ruthie e, por isso, levei-a comigo para o escritório. Entre as cartas recebidas havia duas tarefas de encontrar fujões e o chamado de uma companhia de seguros para eu ir a Hempstead identificar o que restava de um carro que se enrolara num poste. O carro arrebentado estava numa garagem e, assim, podia esperar uns dias. Escrevi minha primeira carta de praxe para o "cara" que se mudara levando um aparelho que não acabara de pagar e para a família que levara consigo um congelador. Nesses dias, Ruthie inspecionava a escrivaninha de 0'Hara e eu tive que gritar com ela duas vezes, o que não contribuiu pa­ra nosso bom humor. Havia um recado telefônico da garagem, reclamando o trabalho começado no carro im­portado. Guardei o bilhete no bolso e ergui os olhos.

Com as estradas atravancadas de carros, não seria agradável um passeio de automóvel. Por isso, voltamos ao apartamento para almoçar. O telefone tilintou. Meu primo Jake disse que estava trabalhando e que Grace lembrara-se de que ele bem podia apanhar Ruthie e le­vá-la para casa com ele. "Ela pode brincar com os me­ninos. Dorme aqui e você poderá levá-la amanhã, do­mingo. "

Ruthie manifestou-se contrária à idéia... violenta­mente contrária.

- Quero ficar com você, papai. Quase não estivemos juntos esta semana.

- Mas já lhe disse que tenho que trabalhar.

- Num sábado?

Fiz sim com a cabeça e falei:

- Já sei o que vamos fazer. Você vai com tio Jake e eu vou buscá-la depois do jantar. Amanhã, vamos jun­tos para lá.

- Bem... está bem... mas você não está querendo se ver livre de mim?

- Não fale assim. Você sabe que estou com um caso importante e tenho que trabalhar.

Da outra extremidade da linha, Jake berrou:

- Dê-lhe uma palmada, "Dick Tracy”. Dentro de uma hora estarei livre. Quer que eu vá apanhá-la ou vocês vêm à Agência?

- Estaremos esperando na porta dos Correios.

Fiz umas torradas francesas com creme de choco­late para a sobremesa do almoço e Ruthie ficou mais sa­tisfeita. Quando chegamos, Jake estava sentado em seu velho Dodge. Ruthie entrou e sentou-se ao lado dele, recomendando:

- Não se esqueça de vir buscar-me depois do jantar, papal.

- Que é que há? Anda trabalhando muito ultima­mente... - comentou Jake.

- Estou tratando de um caso de h-o-m-i-c-í-d-i-o - respondi.

- Hum! — exclamou Jake, impressionado. - De quem?

- Puxa, papai, você nem me disse que está tratando de um caso de assassinato - reclamou Ruthie, enquanto eu, comigo, mesmo, amaldiçoava a TV e as histórias em quadrinhos.

- Não é de gente importante não - respondi rapi­damente.

Jake, piscando o olho para mim, perguntou:

- Até que horas vai trabalhar?

- Oito horas - declarou Ruthie e eu confirmei com a cabeça. - E quero saber tudo sobre o assassinato... - recomendou ela,

O carro afastou-se e eu voltei para o meu, lembrando-me de que devia estar no apartamento de Mrs. Turner às oito horas. Teria que telefonar mais tarde para Jake e mandar Ruthie dormir lá... ia ser o diabo!

Fiquei sentado no carro pensando por onde come­çar o "dia de trabalho". Precisava refletir muito e sem­pre penso melhor quando faço algum trabalho manual. Catando um cigarro no bolso, dei com o bilhete de Joe.

Joe, o gerente da garagem, ficou alegre e admirado ao ver-me entrar. Enfiei o macacão e pus-me a trabalhar. Trabalhei firme durante o resto da tarde e, afinal, natu­ralmente descobri o que havia comigo: tinha-me porta­do como um bruto na noite passada, atirando na cara de Betsy, como uma bofetada, a verdade acerca do ma­rido. Tudo considerado, ela até que aguentara bem o golpe... mas eu fora muito duro para com ela.

A verdade é que eu estava tapeando. Não era capaz de resolver crimes de morte... era coisa fora de meu alcance. Como dissera Al Swan, nenhuma agência pri­vada podia fazer muita coisa no caso, mas isso não era desculpa para tirar o dinheiro de Betsy.

Concordo que não sou grande coisa como detetive, mas o pouco trabalho que estava realizando era tapea­ção como o diabo. Contudo, que mais poderia eu fazer? Levaria meses só para procurar todos os Brown da ci­dade de Nova York e acabaria sempre num beco sem saída.

Poderia vigiar Cliff Parker, mas estava convencido de que tanto ele como Louise eram inocentes. Isso era tapeação... minha convicção nada significava, A fa­mília Andersun... nada, nada. Betsy?... Não acredita­va que tivesse matado o marido, mas também não podia afastar de todo a hipótese. Qualquer pessoa, homem ou mulher, sexualmente insatisfeita pode perder a cabeça até chegar ao crime. O fato de ter-me contratado bem podia ser justamente um ardil. Seria bom verificar o que a polícia teria descoberto a seu respeito.

A polícia... eu não estava agindo bem para com ela, ocultando o que descobrira acerca de Cliff. Em re­sumo, eu estava só atrapalhando. Era mais desonesto do que arrancar a bolsa da mão de Betsy para roubar-lhe o dinheiro.

Continuei a pensar em todas as hipóteses possíveis para ver se chegava a descobrir o móvel do crime... qualquer motivo. Só serviu para ficar com dor de cabe­ça. Por volta das quatro horas tinha terminado o con­serto do carro. Dei uma volta pelo quarteirão para ve­rificar se estava O.K. e recebi vinte e cinco dólares pelo serviço. Joe experimentou o carro e, como era quase tão grande quanto eu, deu uma risada quando se esgueirou no pequeno assento dianteiro. Enquanto me lavava vi que estava preparando a conta. Disse que eu levara no­ve horas trabalhando, mas escreveu: "Dois dias de tra­balho". Nem perguntei o que estava cobrando do dono do carro.

- Quando quiser um emprego firme, Barney... - ofereceu, como de costume.

- Sim. Obrigado. Pode sempre chamar-me, Joe, quando tiver algum trabalho especial.

Fiquei parado, por um momento, à porta da gara­gem, sentindo-me ainda agitado e, finalmente, peguei meu carro e fui ao distrito policial. Perguntei pelo Te­nente Franzino, quase desejando não o encontrar. Tive que esperar alguns minutos antes de entrar em seu ga­binete, que era quase tão sujo quanto o de Al.

Franzino foi uma surpresa para mim... um homenzinho mal vestido, de roupa amarrotada... no paletó fal­tava um botão. Tinha a cara magra, com um nariz de batata, que devia ter sido arrebentado há muito, muito tempo. Estava com um velho chapéu no alto da cabe­ça, cobrindo-Ihe quase toda a cabeleira grisalha. Parecia grave e muito eficiente.

A voz era grave e cortês. Acendeu um cachimbo de formato esquisito e, soprando uma nuvem de fumaça aromática, indagou:

- Em que está pensando, Mr. Harris?

- Alguma novidade?

- Absolutamente nada. Pus uma dúzia de homens a estudar o tal de Brown e, até agora, nada. Depara­mos com uma coisinha ou outra, mas até hoje, nem som­bra de qualquer coisa de concreto.

Ficamos calados por um momento e, naturalmente, ele nem perguntou se eu tinha descoberto alguma coisa.

- E sobre a mulher de Turner... qual o álibi?

- Alega que estava sozinha em casa. O porteiro do edifício esteve instalando uma lâmpada no "hall" da en­trada entre dez e meia-noite... mas não a viu sair. Tem algo contra ela?

- Não.

Houve outro silêncio pesado até que ele perguntou de mansinho:

- Que o faz pensar que sua cliente possa ser a culpada?

- Já lhe disse: nada! Estou apenas verificando to­dos os álibis.

Ele sorriu, mostrando os dentes amarelados pelo fu­mo.

- Esteja certo de que examinamos todos os álibis. Que tal, estar metido num caso de assassinato? Diz o Swan que é seu primeiro caso de crime.

O tom com que falou fez-me lembrar das donas-de-casa, que me encontraram junto à máquina de lavar roupa. Acendi um cigarro e disse, também em voz mansa:

- A propósito: descobri o que Turner estava fazen­do naquele quarteirão, na noite em que foi assassinado.

Franzino aprumou o corpo como se eu o tivesse es­petado na cadeira.

- Estava metido com uma mulher do 515. Ela es­tava de acordo e, ao que parece, Turner estava compe­tindo com o rufião, um “cara" chamado Cliff Parker, um garçom. Ed. Turner era meio tarado e estava espe­rando no carro, no papel de amante ciumento... ou de cefatão ciumento. Parker tem um bom álibi, que con­feri. Estava trabalhando numa festa de casamento no “Pigalle", naquela noite. Louise alega que estava com uma amiga, na hora do tiroteio.

- Quando descobriu tudo isso? - a voz soou como uma chicotada.

- Ontem, quando fui investigar acerca de Franklin Andersun... era um dos fregueses de Louise... e ela tem um retrato de Turner, numa moldura, na sala. Fa­lou francamente sobre...

- Andersun também! Diabo! - Franzino pôs-se de pé e foi como se pulasse de um buraco... tinha mais de um metro e oitenta, mas era só de pernas. - Com a bre­ca! Por que não me disse isso ontem? - berrou, dirigin­do-se para a porta a fim de chamar o sargento de ser­viço e dar-lhe ordem para que trouxesse Louise e Cliff.

Estendi a mão e agarrei-o pelo braço.

- Espere aí... tire as mãos de mim... - rosnou ele apertando os olhos.

Larguei-o e ele voltou para seu lugar. Sentou-se e estirou as pernas compridas por baixo da escrivaninha. Depois, disse, calmamente:

- Há uma coisa que não posso suportar... é ser agarrado por alguém. Por que, com a breca, não nos comunicou essa importante informação?

- Talvez porque Soubesse que iria agir como agiu. Não há dúvida que se trata de uma prostituta e de um cafetão, mas, ainda assim, trata-se de seres humanos e você não pode abusar deles...

- Harris, este caso é mesmo danado. Para qualquer lado que a gente se vire, bate com a cabeça na parede. Duas pessoas foram assassinadas, uma delas um poli­cial. Nesses casos difíceis, nesses negócios impossíveis, geralmente um pequenino nada basta para desvendar todo o mistério. Temos agora o primeiro e único elo en­tre Andersun e o detetive Turner e você fica aí como um manequim de alfaiate, falando bonito sobre uma prostituta e um cafetão! Que é que há com você? Sentimentalismo para com gente dessa laia? E, afinal de contas, que pensa que vou fazer com eles... cozinhá-los e servi-los à mesa com azeitonas na boca?

- Acho que vai apertar o crânio de Cliff e envene­nar a vida da mulher. Não tenho a pretensão de ser bom detetive, mas uma coisa eu sei: se um deles fosse culpa­do ou estivesse implicado de alguma forma no crime, não teriam falado nem teriam deixado à vista o retrato de Turner. Não quero que você os maltrate... prometi a ela que não seria molestada por contar-me o que sabia e que Cliff não seria agarrado como bode expiatório...

- Você fez uma promessa a eles! - interrompeu Franzino e, para um camarada magro, não há dúvida que tinha a voz muito potente. - Que diabo pensa que é, para fazer promessas? Por que imagina que vamos pôr a culpa em cima desse rufião? Harris, que sabe, afinal, do Departamento de Polícia?

- Não sei grande coisa, mas todo mundo sabe...

- Todo mundo... todo mundo não é policial! Olhe aqui, Harris, esse distintivo que a gente tem aqui é um pouco mais do que os que se dão aos garotos - abriu a gaveta da escrivaninha e tirou dela uma caixa de pa­pelão azul que continha u'a medalha de ouro mais ou menos do tamanho de meio dólar. - Sempre fui poli­cial, mesmo antes de vir para esta cidade. É esta minha profissão. Uma profissão que conheço muito bem e da qual me orgulho. Esta medalha foi-me conferida pela Associação de Tenentes, em reconhecimento pela minha eficiência como policial. Pense você o que quiser, leia seja lá o que fôr sobre nós, mas garanto-lhe que não cos­tumo espancar gente com cano de borracha nem arre­bentar o crânio de ninguém a cassetete. Vamos mandar vir aqui esses dois, Louise e Cliff, e vamos interrogá-los. É possível que não gostem muito, mas isso pouco se me dá. Se falarem a verdade, nem precisaremos segurá-los como testemunhas. Irão em paz. Quanto à atividade da mulher... isso tem que ter um fim em meu distrito. Que vá "descer em outro terreiro".

Dei de ombros.

- Isso é que eu chamo ser camarada. Esta, não vou esquecer.

Ele mostrou-me os dentes:

- Fica-lhe muito bem essa atitude, Harris. E que mais poderá fazer a respeito?

- Não muito - respondi cautelosamente - a não ser dizer-lhe que este caso é uma boa atração para man­chetes. Quando estourar, todos os interessados serão en­trevistados. Se Louise e o cafetão não tiverem culpa, como acredito, e você os apertar... bem, os jornais sem­pre se interessam pelas brutalidades da polícia... quando há, no caso, um aspecto sexual.

- "Seu" filho da... e banca o detetive!

- Considero-me principalmente um ser humano. Não fui obrigado a falar-lhe em Louise e ela, por seu lado, não tinha obrigação de se abrir comigo. Bom... ela foi franca e a cooperação tem que ser mútua.

Franzino observou-me por um momento e foi quase como se eu pudesse sentir seus olhos tocarem minha cara.

- Não me será nada difícil fazer-lhe perder a li­cença .

- Nada de ameaças! Se é competente em seu tra­balho, não precisa recorrer a ameaças. Basta ser dete­tive... não queira ser juiz e jurado também.

- E só o que procuro ser... um detetive. Um dete­tive mal pago e que se mata de trabalho - tornou a pular da cadeira como um boneco de mola. Dirigindo-se para a porta, disse: - Fique aí. Vou urinar.

Apanhei a medalha... era mesmo de ouro. Estava fervendo de raiva, mas era, principalmente, raiva de mim mesmo. Tinha andado a fazer tudo errado e me irritava contra Franzino por estar agindo direito. Só que não gostava da idéia de "mandar chamar Louise e Cliff à sua presença. Agora, bastava que um dos dois tentas­se dar o fora e estariam praticamente condenados.

Franzino voltou e acendeu novamente o cachimbo, sentando-se.

- Desculpe minha explosão - disse serenamente. - Você tem razão. Todos são iguais perante a lei, até mesmo um rufião que se coloca contra a lei. Escute, Har­ris. só um idiota gosta de apertar os outros. Não há dú­vida: confesso que estou nervoso e afobado e que há uma porção de leis que não podemos aplicar e esses pequenos contraventores acabam sempre tornando-se criminosos. O camarada fuma no cinema e nada lhe acontece... co­meça logo a sentir-se acima da lei. Estamos vivendo numa selva danada e enquanto continuar a ser selva...

- Tem que usar o chicote? - perguntei.

- Não sei. Escute aqui: hoje de manhã um malan­dro estava com sua pequena trocando carinhos em Riverside Drive. De repente, sem qualquer motivo, ele a apunhalou. Ela está no hospital. Duas pessoas testemu­nharam o crime. Parece simples... um homem comete uma violência, será punido e a lei será cumprida. Mas quando trouxeram aqui o filho da... bêbedo, sabe que ele negou o fato e começou a gritar por um advogado? Que devia eu fazer? Discutir com ele delicadamente du­rante horas, eu que não tenho tempo a perder? Ou acha que fiz mal em dar-lhe um soco na barriga mandando calar-se?

- Tenente Franzino, o senhor acaba de dizer que os pequenos crimes são o começo de crimes maiores. O mesmo se aplica a "pequenas" violências... é como es­tar "ligeiramente" grávida... coisas que não existem.

Há muito argumento válido dos dois lados. Se tivéssemos mais homens e a selva não produzisse ma­landros e tarados, bem... com todos os diabos!... Swan me disse que você é um mecânico improvisado. Eu gosto de motores e carros. Tenho uma cabana em Long Island e um velho Bugatti de corrida que comprei muito barato.

- Corre bem?

- E muito bem! Às vezes saio com ele, tarde da noite... para não chamar atenção. Faço sessenta ou se­tenta milhas por hora. Você já esteve no museu de au­tomóveis, perto de Southampton?

Ficamos batendo papo sobre automóveis e às 17h estávamos discutindo sobre as vantagens desse ou daque­le tipo de carro, quando o telefone tocou e ele resmun­gou no aparelho: "Já vou".

Pondo-se de pé, falou:

- Com licença, Harris. Estão me chamando lá em­ baixo. Volto já - saiu e eu fiquei a cogitar se já seria Louise. A porta abriu-se e Al Swan entrou todo vestido de azul. Terno de sarja azul-marinho, camisa azul-cinza, gravata azul-rei e chapéu de feltro azul-celeste. Não tive coragem de olhar para as meias.

- Alô, cunhado! - disse ele.

- Alô, Al. Quando o mandaram chamar aqui?

- Passei aqui e Franzino me disse que você fez um grande trabalho. Estou estranhando você, Barney. Será que é mesmo detetive?

- Não amole.

Al limpou um canto da escrivaninha com o mata--borrão e depois sentou-se cuidadosamente, olhando-pa­ra as unhas como para ver se continuavam no lugar.

- Barney - disse por fim. - Indiquei-o para este caso por saber que ia ganhar dinheiro na sopa. Temos a polícia de Nova York, de Elmira e de Syracuse traba­lhando nele e você sozinho encontrou a melhor pista de todas. Agora, é possível que você esteja andando com a tal prostituta e...

- Deixe disso, Al. Só desejo é que tanto ela, como o tal de Cliff, sejam tratados com justiça

- Jesus... Diabo! Um policial foi assassinado! - rugiu Al.

- E daí? Ele tinha um distintivo e não uma auréola. E acontece que esse policial era meio "cafetão" tam­bém. Acontece, ainda, que um rapaz sem nada de es­pecial, chamado Andersun, foi assassinado também. Que­ro descobrir o assassino, tanto quanto você, mas o caso não será resolvido dando satisfação à imprensa pelo sa­crifício da vida de dois inocentes, escolhidos como bodes expiatórios.

- Não fazemos isso com ninguém - declarou ele balançando a cabeça. - Nem mesmo com uma prosti­tuta e um rufião.

- Ótimo. Então não há motivo para discussões. Não era preciso mandar chamar você.

Ele deu um suspiro.

- Não compreendo você. Barney. Se isso fôr mes­mo a chave do caso, a publicidade o transformará num investigador famoso. Ao invés de nos ajudar, você resol­ve paparicar um rufião, agindo como inimigo da polí­cia. ..

- Al, não diga bobagens, nem me atribua coisas que nunca disse. Você sabe muito bem que não sou inimi­go da polícia e quanto ao tal "cafetão"... não me interesso por ele mas isso não quer dizer que o acredite um assassino. Vocês estão criando um caso, não sou eu.

- Você não compreende - disse Al, tentando abran­dar a voz de cana rachada. - Se os chefões souberem dessa sua atitude podem até cancelar sua licença. Bar­ney, escute: isso pode fazê-lo na vida ou destruí-lo. Ve­ja só... Ocultar provas é coisa muito séria, mas você parece pensar...

- Não estou ocultando nada... vim aqui por livre e espontânea vontade - respondi e, vendo Al procurar convencer-me de um absurdo, lembrei-me do que Betsy Turner tinha dito e compreendi que ela tinha razão... ao cabo de algum tempo a caça e o caçador se confun­dem num só. - Al, aqueles dois deram-me as infor­mações voluntariamente... não os castigue por isso.

- Não se preocupe. Franzino é boa pessoa.

- Sei disso. Ganhou até uma medalha - volvi, apontando para a caixa.

AI apanhou a medalha e disse:

- Nunca tinha visto isto aqui... não é coisa fácil de ganhar. Que história é essa de que Turner era um "cafetão"?

Contei-lhe o que sabia e ele largou a medalha meneando a cabeça.

- E com uma esposa daquelas!... É difícil com­preender esses rapazes de hoje. Veja o caso de Turner: fez tudo para subir na polícia e deixar a farda. Grande coisa... afinal, a melhor proteção do policial é a farda. Um homem em mil atirará num policial, mas o tempo que o "tira" leva para mostrar o distintivo... o melhor é sacar logo a arma... Pro diabo com essa conversa so­bre Turner. Tenho que ir saindo. Lembranças a Ruthie. Ela precisa de alguma coisa?

- Não, a não ser que você queira dar-lhe seu Ca­dillac.

Al deu uma gargalhada meio forçada.

- Barney, você está ficando não só eficiente, como engraçado. Mas lembre-se: pertencemos todos à mesma equipe. Franzino é um bom policial. Acredite no que estou dizendo. Quando aparece lá em casa?

- Um dia destes. Amanhã vou almoçar com o pri­mo Jake, Lembranças a todos.

- Obrigado, "seu" durão! - Al deu-me uma palmadinha no ombro e saiu.

Como em certas peças de teatro, foi ele sair e Fran­zino entrar. Sentou-se diante da escrivaninha e em­purrou a cadeira para a parede. Não disse uma pala­vra e, ao cabo de um momento, falei eu:

- Tenho um tio em Filadélfia. Não quer mandar chamá-lo também?

Franzino sorriu.

- Não o estou tratando como uma criança, Mr. Harris. Mandei chamar Swan porque... Não estou ha­bituado a discutir com ninguém, muito menos com quem não tenho que discutir. Aqui sua opinião pesa tanto quanto uma pluma, mas, por outro lado, não há razão para brigarmos. Achei que Swan podia explicar a coisa melhor do que eu.

Consultei meu relógio e pus-me de pé. Eram seis horas. Um "tira" surgiu à porta:

- Estão aí, Tenente.

- Traga-os aqui... antes de levá-los lá pra cima. Três "tiras" trouxeram Louise e Cliff. Ela estava com o rosto vermelho e inchado... de chorar... e pare­cia mais velha do que eu julgara. A lapela do extrava­gante paletó esporte de Cliff estava rasgada e o cabelo lustroso, despenteado. Ao dar comigo, Louise fulminou-me com um olhar de ódio e desprezo, que me deu um aperto no estômago. Ia dizer-lhe que não tivesse medo quando um dos "tiras" atirou sobre a mesa uma nava­lha dizendo:

- Ele estava portando isso.

Cliff perguntou em voz esganiçada:

- Onde está o mandado de prisão? Exijo que... Franzino aproximou-se e deu-lhe uma forte bofe­tada na boca.

- Aqui está! Levem esses malandros lá pra cima. Os lábios de Cliff estavam sangrando um pouco quando os guardas o levaram, junto com Louise, para fora da sala.

Apanhei a medalha, coloquei-a entre o polegar e o indicador... dobrou-se facilmente. Atirando-a outra vez sobre a escrivaninha, disse:

- Pelo menos o ouro não é falso... - e saí. Havia uma confeitaria do outro lado da rua. Entrei e já tinha começado a discar para Nova Jersey, a fim de dizer a Ruthie que não iria, quando me veio uma idéia melhor. Telefonei para Mrs. Turner e disse:

- Aqui quem fala é Barney Harris. Quer fazer-me um favor, Mrs. Turner? Como tenho que ir buscar mi­nha filha em Nova Jersey às oito horas, lembrei-me de convidá-la para jantar, agora, em lugar de ir ao seu apartamento.

- Com certeza isso entra na nota de despesas, não é?

- Não tinha pensado nisso - respondi, sarcástico também. - Talvez entre e talvez fique por minha conta. Mas se aceitar jantar comigo, ficarei muito grato.

- Pode vir buscar-me dentro de vinte minutos.

Ela não fez grande "toilette" e foi ótimo... aparen­tava exatamente o que era: uma garota simples e bonita de vinte e três anos. Penteara o cabelo em rabo-de-cava­lo todo puxado para trás. Usava sapatos sem salto, saia plissada roxa e uma dessas coisas elásticas, tomara-que-caia, que parecem um espartilho colocado ao contrário. Aquilo punha em relevo seus belos ombros e o contorno ousado dos seios. Trazia no braço uma estola de tricô roxa e, enquanto esperávamos o elevador, ela olhou para mim furiosa, como se me fosse morder. Percorri-a com o olhar e declarei:

- Se eu fosse mais moço já estaria assobiando. Ela sorriu de repente, um sorriso largo que lhe atravessou o rosto no risco rubro dos lábios.

- Não posso ficar zangada muito tempo com você, Barney.

- Muito folgo com isso, Mrs. Turner. Portei-me co­mo um louco furioso ontem à noite.

- Mrs. Turner, Mrs. Turner - zombou ela de mim. Vai voltar com isso agora? Ontem à noite tive vontade de matá-lo, mas agora...

- Cuidado como fala - interrompi meio sério.

- ... compreendi que você tinha razão. Eu não lhe contei tudo e... Que quis dizer com "cuidado como fala"?

- Qualquer pessoa ligada a um crime, ainda que vagamente, pode ser... mal interpretada.

Estávamos sós no elevador. Atravessamos o hall. Ela cumprimentou o porteiro com a cabeça e, depois de sentada em meu carro, disse:

- Isso não é coisa que se diga. Já estou ficando ou­tra vez furiosa com você.

- O que disse foi para seu bem. Que quer comer?

- Isso não me preocupa. Qualquer coisa que você queira.

- Estou querendo comida italiana cheia de queijo derretido.

Dirigi o carro para o lado leste até a rua Doze, pa­ra um restaurante chamado "John's". Mrs. Turner era como eu... um bom garfo... e devoramos um bom e far­to jantar que incluiu mariscos Casino e sobremesa de massa italiana recheada de creme. Contei-lhe o que se passara com Louise e Cliff, por iniciativa de Franzino e concluí:

- Talvez Franzino e Al estejam com a razão. Afi­nal não levei nenhuma pista certa... mas Louise confiou em mim e eu...

- Você não pediu para fazerem o que fizeram.

- Mas. mesmo assim, atirei-os às feras. Sabe Deus o que Cliff está passando neste momento.

- Está sendo espancado?

- É possível. E é possível, também, que eu esteja apenas nervoso.

- Ed contou-me certa vez que agarraram um ra­paz porto-riquenho acusado de agressão a punhal e amar­raram-no a uma cadeira. Cada policial que entrava ou saía dava-lhe um soco. Foi depois disso que lhe pedi para não me falar mais em seu... emprego. Mas você não deve se incomodar. Está apenas cumprindo seu de­ver.

Dei uma risada.

- Veja lá... isso é piada minha... não me venha com ela.

Ela brindou-me com um sorriso cálido.

- Gosto de você, Barney. Gostei de você desde o momento em que quis me convencer de não o contratar.

- Gostar pode significar tudo ou nada. Gosto deste doce. Gosto de quase todo mundo.

- Obrigada - volveu ela secamente.

- Olhe. este caso já está bastante complicado e... eu não poderia ser apenas seu amigo... entenda como quiser.

- Acho que tem dó de mim.

- É verdade. Tenho dó e uma espécie de curiosi­dade terna por você, Mrs. Turner.

- Se me chamar mais uma vez Mrs. Turner, vou berrar!

Fiz sinal para o garçom trazer a conta.

- Um bom berro lhe faria bem, abrindo a ferida que você está querendo esconder. Vamos parar aí. Quan­do o caso estiver encerrado, irei visitá-la e poderemos berrar um com o outro.

- Será um gesto muito nobre de sua parte - disse ela friamente. - Você compreende, não sou nenhum "sabe-tudo" como... você.

- Procuro aprender. Se a gente não souber o que quer,. a vida torna-se muito dura.

- Barney, você está sempre tão tranqüilo, tão se­guro de si. Eu... detesto você!

- Mrs. Turner, por enquanto, que goste de mim ou me deteste, é assunto que não vem ao caso. É o que estou tentando mostrar-lhe. Cada coisa a seu tempo...

Ela deu um suspiro.

- Então, voltemos ao caso... Que planeja fazer ago­ra?

- Aguardar, ver o que a polícia tem a dizer. Não sei mais o que possa fazer. Parece-me que um dos dois... ou Andersun ou Turner... foi morto acidentalmente. Em outras palavras: um dos assassinatos foi planejado. O outro foi ocasional. Como Andersun foi morto primeiro, o mais provável é que Mr. Turner tenha surgido ali por acaso. Quero dizer, é mais provável que Ed estivesse rea­lizando alguma diligência como aqueles "raids" contra viciados. Mas acontece que Andersun nunca teve ou­tro vício além de fumar. Assim mesmo, os "tiras" de­vem saber tudo acerca dos negócios de Mr. Turner. Pos­so examinar mais uma vez os antecedentes de Ander­sun. Deve haver algo que me passou despercebido. Está na hora de eu ir buscar a garota. Quer que a leve para casa?

- Posso ir com você... para dar um passeio de au­tomóvel?

- Naturalmente.

Paguei a conta e fomos pela estrada de West Side até a ponte George Washington. Um engraçadinho, diri­gindo um Packard buzinou atrás de nós e passou à frente. Piscando o olho para Betsy, pisei o meu Buick e passamos por ele como um raio, como se o Packard es­tivesse parado..

- Gostou? - perguntei a ela. - Este carrinho pode voar.

Ela pareceu-me um pouco assustada, mas estava pen­sando noutra coisa.

- Barney - perguntou por fim - sua filha... Ruthie... ela sabe que foi adotada?

- Claro!

- Por que lhe disse?

- Por que não? ela acabaria descobrindo mais cedo ou mais tarde. Nós simplesmente explicamos a ela que qualquer pessoa pode ser obrigada a criar um filho,"mas escolher” um filho... bem... é a maior prova de amor. Foi Vi que teve a idéia.

- Vi... devia ser uma boa mulher.

Era engraçado como para Betsy tudo era "bonito" e "bom" e como "gostava" de... tudo. Percebi logo a que queria chegar. E chegou:

- E acho que você tem muita coragem em criar Ruth sozinho.

- Que havia de fazer... mandá-la de volta para o orfanato? Pelo amor de Deus, ela é minha filha. Sou agarrado com ela... talvez até mais do que Vi o era.

- Não quis dizer... - interrompeu a frase e eu fiquei calado. Foi somente quando chegamos à ponte que ela falou: - Que bela vista daqui: a água, as luzes da ponte contra a escuridão do céu.

- É mais bonito quando se está vindo para Nova York... mais luzes.

- Barney, quer dizer que sua esposa não queria a menina?

- Claro que queria, mas Ruthie foi uma espécie de passatempo para ela. Vi tinha que dar duro em tudo. Só se entendeu com um cagado como eu porque quando nos conhecemos ela estava se restabelecendo de uma crise nervosa... compreendeu que tinha que se poupar e não se agitar tanto. Usou-me como uma espécie de freio. Realmente sossegou um pouco, desistiu de grande parte de seu trabalho como agente de seguros, mas Ru­thie tomou o lugar desse trabalho. Vi esforçava-se de­mais com a criança.

- Não se importará se lhe perguntar de que ela morreu?

- A pergunta já está feita. De câncer.

Ela disse que sentia muito... falando no tom apro­priado para dar pêsames. Fizemos o resto do caminho com silêncio e quando entramos na casa de Jake, Betsy não foi apenas uma surpresa, mas uma sensação.

Jake tem uma casinha onde tudo é velho e quase tudo feito por ele, pois trabalha bem em madeira. Mas é uma casa que representa um lar, onde vive gente que gosta da vida. Estavam todos reunidos em torno do aparelho de televisão: Jake e Grace, Ruthie e os dois meninos, um deles, um "palitinho" de dez anos e o outro enorme para seus doze anos. A mais moça, "o bebê sur­presa", como Jake a chamava, uma menininha de dois anos e meio, estava esparramada numa poltrona, dor­mindo.

Logo que entramos, Betsy passou a ser o ponto de atenção, tomando o lugar da televisão. Grace ajeitou o avental, alisou os cabelos e disse:

- Barney, você devia ter avisado que ia trazer vi­sita.

- Apresento-lhe Mrs. Turner, para quem estou tra­balhando - disse eu cerimoniosamente, antes que pen­sassem outra coisa. Apresentei cada um a Betsy e, quan­do cheguei a Ruthie, Betsy curvou-se e disse nesse tom de voz idiota, com que a gente grande pensa agradar os garotos:

- Que linda meninona. Barney falou-me tanto em você. Ruth.

Ruthie sorriu cortesmente e perguntou, muito alto:

- É você a senhora com quem meu papai tem pas­sado quase todas as noites?

Um pesado silêncio envolveu a sala como um ne­voeiro, até que o mais velho de Jake pigarreou e eu dis­se, meio sem jeito:

- Estou trabalhando num caso para Mrs. Turner e a única hora em que ela pode me receber é à noite.

- Naturalmente - disse Grace e lançou um olhar severo ao menino quando ele tornou a pigarrear. Novo silêncio igualmente embaraçoso, até que a pequenina, des­pertando de repente, olhou para mim e falou: - Tio Barney... Presente? Presente?

Tentei tirá-la da poltrona, mas ela esperneou e ber­rou.

- Não esqueci, não, Glória - expliquei. - Deixei seu presente no escritório. Da próxima vez trago-lhe dois presentes.

Continuou a berrar e, por fim, Jake lhe disse:

- Vá dormir, Glória. Ninguém é obrigado a lhe tra­zer presentes todas as vezes que vem aqui. Vou com o tio Barney buscar seu presente. Estará aqui amanha de manhã.

- Já passou da hora de ela ir dormir - disse Gra­ce. - É por isso que está enfezada - e levou a garota chorona para cima enquanto Jake se punha a preparar umas bebidas leves para nós e os meninos pediram-me para rasgar em dois um catálogo telefônico. Respondi que tinha comido demais para fazer brincadeiras. Ruthie quis logo saber se eu tinha jantado fora e o que tinha comido. Betsy, que estava sentada junto a ela disse-lhe que tínhamos feito uma refeição ligeira no caminho. Aí Ruthie quis ver esvoaçar a saia plissada de Betsy. Le­vantou-a e as coxas bem torneadas encheram os olhos de todos os presentes do sexo masculino inclusive do de dez anos. Betsy examinou o vestido de Ruthie e as duas começaram a falar em vestidos como duas moças. Nós outros ficamos assistindo a um drama de vaqueiros na televisão.

Grace desceu... tinha mudado de vestido. Quando se arruma, Grace é uma mulher bonita, mas o caso é que Grace veste-se de um modo que sempre parece que acabou de se levantar da cama.

- Desligue a televisão para podermos conversar - disse ela. - A televisão está tornando todo mundo anti-social. Onde está meu drinque, Jake? Está bem. Fique sentado, vou buscá-lo - sorriu para Betsy. - Jake é car­teiro, por isso faço o possível para deixá-lo descansar os pés - dirigiu-se para a cozinha e falou de lá: - Barney, veja se alguém precisa de encher o copo e venha aju­dar-me.

Claro que ninguém precisava de encher de novo o copo a não ser Betsy e os meninos queriam mais "crush". Logo que entrei na cozinha Grace pulou para mim e, abraçando-me, disse baixinho: - Oh, Barney! Ela é de­liciosa. E viu como se entendeu logo com Ruthie? Estou tão contente por você!

- Ora essa, Grace, deixe disso. Estou trabalhando para ela... nada mais.

- E isso é trabalho? Mesmo que esteja apenas indo para a cama juntos, melhor para você. Mas acho que ela é simpática e tão jovem e...

- Deus do céu, não é de admirar que seus garotos já pensem tanto em sexo. Escute bem: para mim, é só uma questão de trabalho. O marido dela foi assassina­do há uns quinze dias atrás.

Isso fe-la calar... por um momento. Preparou os drinques, inclusive uma dose dupla para si e, enquanto nos encaminhávamos de volta para a sala de estar, Gra­ce segredou-me:

- Bem, ela precisa de um marido logo e nenhuma mulher poderia sonhar com um marido melhor que você.

- Olhe aqui. Você sabe que estou só esperando que Jake caia dentro de uma mala postal para poder casar com você.

- Barney. Estou falando sério. Ela parece ser uma ótima jovem...

- Você nem imagina como é jovem... como é ape­nas uma garota. Também eu estou falando sério... Grace querida. Deixe-me sair da berlinda!

Ao sentar-me outra vez, Ruthie virou-se para mim e disse:

- Papai, Betsy tem uma máquina de costura e sabe fazer vestidos. Vai fazer uma sainha para mim e eu é que vou rodar a máquina!

- Ora, Ruthie, não aborreça Mrs. Turner - disse eu tentando fazer a criança compreender-me pelo olhar.

- Não é nenhum aborrecimento, pode acreditar. Adoro costurar - tornou Betsy enquanto Ruthie me lançava um olhar como a dizer-me "está vendo?".

Os meninos tinham ligado de novo a televisão e nós ficamos sentados ali, tentando conversar e olhar para a tela. Grace trouxe uma espécie de bolo com gosto de flocos de trigo com nozes, coberto de mel e, depois de um momento, declarei que era tempo de irmos para ca­sa, mas Ruthie lembrou que era sábado.

- Venha - disse eu. - Já são quase dez horas e estamos longe de casa.

Pus-me de pé e Grace convidou Betsy a voltar numa tarde, para ver as flores, sugerindo claramente que eu a trouxesse. Os meninos aproximaram-se, indagando se eu tinha visto um filme de detetive, como que a recomen­dar-me o mesmo como uma espécie de manual... penso eu.

- Jake declarou:

- Vou até a "drugstore" para comprar alguma coi­sa para o bebê. Aquela garota... que memória... quan­do ela estava para nascer Grace com certeza se assustou com algum elefante.

- Ora, deixe de gabolice - disse Grace.

Ruthie e Mrs. Turner entraram em meu carro e nós três acompanhamos Jake à "drugstore". Desci do carro, dizendo que ia comprar algo para a criança. Jake disse-me que deixasse disso. A idéia era dele. Começa­mos a discutir. Segurando a mão de Jake, para impe­di-lo de apanhar o dinheiro, comprei um aviãozinho de vidro cheio de balas. Justamente nesse momento, Betsy aproximou-se de nós e perguntou:

- Posso comprar um sorvete de casquinha para Ruthie? Dei-lhe a idéia e ela gostou.

- Está bem.

Enquanto esperávamos por ela, Jake disse:

- Então, está tratando de um caso de assassinato?

- Dois assassinatos.

- Duplo assassinato! - exclamou Jake, em tom de espanto.

- Um camarada chamado Franklin Andersun e Mr. Turner foram...

- Agora me lembro de ter lido nos jornais. Fiquei interessado. Turner era um policial, um... - voltou-se para Mrs. Turner. - Que idiota não ter compreendido que a senhora... desculpe-me. Betsy esboçou um sorriso destinado a mostrar-lhe que não tinha importância. - Prestei atenção ao caso devido ao tal de Andersun - prosseguiu Jake. - Havia um camarada, em meu cami­nho, com esse nome. Franklin Andersun, até escrito com u. Mas, naturalmente, era outra pessoa.

Encarei Jake.

- Havia um Franklin Andersun em sua rota de en­trega de correspondência - repeti, sentindo algo vibrar dentro de mim, como a dizer-me que a solução estava ficando ao alcance de minha mão.

- Cheguei até a comprar dois matutinos para ver a fotografia do sujeito. Era bem diferente daquele de meu itinerário. O Andersun que conheci tinha cabelos vermelhos, vivos. O nome, com aquela grafia esquisita... talvez fosse parente do defunto. Sabe? Uma vez quan­do levei um registrado para ele, fiz questão de pergun­tar-lhe se a grafia era aquela mesma. Camarada bravo... Acho que pensava que o serviço dos correios era feito só para ele.

- Uma carta registrada?

- Um passaporte. São sempre enviados registrados. “Estava louco por recebê-lo." Com aquela voz arrastada, não cessava de perguntar se o registrado tinha chegado. Já lhe dissera...

Agarrando Jake pelos ombros, levantei-o para um tamborete do balcão e disse em voz embargada:

- Sente-se aqui, Jake. Vamos ter uma conversa.

 

MARTIN ergueu-se na cama, sorvendo sua terceira xícara de café puro. Lund estava sentado à mesa com a cabeça apoiada na mão, roendo um pedaço de pão.

- Então, quer dizer que posso vender meu carro... e, então?

- Sam, foi você que falou em vender nossos passa­portes e isso deu-me a idéia... uma idéia que me veio durante a bebedeira. Seu carro dá mil e quinhentos dó­lares. Com as economias de Thérèse e minha máquina fo­tográfica, posso fazer uns mil dólares - disse Martin, falando depressa, com a cabeça estalando pela ressaca. - Voltamos aos Estados Unidos, ficamos por lá uns seis meses, talvez menos, se formos espertos. A meu ver, qua­se não haverá perigo.

Lund encarou-o com os olhos avermelhados.

- Marty. Vamos por partes; nessa coisa de vender­mos nossos passaportes, não estou gostando de...

- Não vamos vender os nossos. Ê muito arriscado. Só dariam dez mil e nós provavelmente seríamos expulsos da França. Poderíamos arranjar mais vendendo-os na Ale­manha, mas, neste caso, teríamos que ficar por lá e se­ríamos mandados de volta para os Estados Unidos. Não, Sam, vamos voltar para cá com uma dúzia de passapor­tes, que venderemos por sessenta mil dólares!

- Oh! Marty. Estamos ambos de ressaca nesta hora da manhã... ou já será a tarde? Como é que vamos rou­bar todos esses passaportes?

- Roubar? Não, não vamos roubá-los. Vamos arran­já-los legalmente... através de requerimento. Ê uma idéia que tive. Que é que se faz, quando s» precisa de um passaporte nos Estados Unidos?

- Quanto quer apostar comigo nesse assunto?

- Deixe de graça, Sam. Sabe como se faz para tirar um passaporte? Escreve-se ou vai-se pessoalmente a um escritório do Departamento de Estado apresentando cer­tidão de idade, duas fotografias sujas, um amigo que as­sine um papel declarando que o conhece há anos e que você é bom cidadão... e dez dólares. Em poucas sema­nas seu passaporte lhe chega às mãos com porte registra­do. Agora, diga-me uma coisa: como é que se arranja certidão de idade numa cidade grande como Nova York?

- Não tenho a menor idéia - foi a resposta brilhan­te de Sam. - Será que um programa de perguntas e respostas faria sucesso no rádio em Paris?

- É difícil conversar com essa dor de cabeça. Com a breca, deixe de brincadeira! Quanto à certidão de ida­de... na cidade de Nova York basta escrever-se ao De­partamento de Saúde dando a data e o local de seu nascimento, nome dos pais e nome de solteira da geni-tora. Por um dólar você recebe o documento pela volta do correio. Que tal? Gostou da idéia?

- Marty, que diabo está querendo dizer?

- Estou falando no golpe perfeito - respondeu Mar­tin esvaziando a xícara de café - mas como não vamos prejudicar ninguém, ninguém se queixará. - Ergueu-se da cama vestido apenas de "shorts" e meias. Tinha um corpo magro e rijo. Sentou-se ao lado de Sam e quebrou um pedaço de pão. - Tomara que Thérèse volte logo com a "charcuterie", estou morto de fome. E pare de me olhar assim... Sam, as melhores bandalheiras são sempre as mais simples. Escute: eu e você, sob nomes falsos, entra­mos em qualquer bar ou poolroom num bairro de Nova York, Chicago, Boston... qualquer cidade grande. Cada um de nós escolhe um sujeito. Fica bebericando umas cervejas, uma noite ou duas, para bater papo com a vizi­nhança. Inventa pro cara que, quando crianças, brincaram juntos. O negócio é o seguinte: cada um de nós trata de ficar sabendo onde e quando nasceu o camarada, e qual o nome dos pais. Vê alguma dificuldade nisso?

- Parece "canja". E que é que fazemos com essas im­portantes informações?

- Sam, você está mesmo muito bronco. Suponhamos que o cara com quem você está conversando diga que se chama Mark James e o outro, que está comigo, Edward Spero... aí, nós requeremos as certidões de idade deles. Tiramos retratos um do outro, vamos ao escritório mais próximo de passaportes e requeremos sob os nomes de James e Spero, servindo um de testemunha para o outro. Em poucas semanas recebemos "nossos" passaportes co­mo James e Spero e seguimos para outro lugar. Não dei­xamos a menor pista. Que tal? Gostou?

- Acha que vai dar certo?

- E por que não? Depois descobrimos um bar em ou­tra parte da cidade, talvez Brooklyn, recomeçamos tudo igualzinho, mas vamos a outro escritório de passaportes. Será fácil retocar as fotografias e modificar as feições com maquilagem. Fazemos Nova York, Newark, Hartford depois Chicago, talvez mesmo Los Angeles. Em poucos me­ses, no máximo seis, teremos uma dúzia de passaportes. Voltamos a Paris com nossos próprios passaportes e vendemos os outros. Algum ponto fraco nesse plano?

Sam encarou Pearson com evidente admiração e ex­clamou :

- Santo Deus!

- A idéia veio-me durante o sono esta noite. Diga: quem é que pode nos acusar de alguma coisa? Só preci­samos é de tempo e dinheiro para as despesas e, isso, te­mos. Ainda tenho que estudar certos pormenores, dar to­da atenção às fotografias e à maquilagem e, o que é mais importante, obter nomes de pobres-diabos como nós. Que diabo, em toda minha família, a não ser eu, ninguém jamais tirou passaporte. E cuidado com a Gaby. Diga-lhe apenas que vai voltar para os Estados Unidos para regu­larizar o curso que fez por conta do Exército. Mandarei Thérèse vigiá-la.

- Não se preocupe com Gaby. Ela me será fiel. Martin encarou-o por um longo momento e pôs-se a rir.

- Não estou pensando nisso. O que não quero é que vá dar com a língua nos dentes... e isso se aplica tam­bém a você. Nada de bebidas, nada de andar com estra­nhos. Isso é a única coisa que pode entornar o caldo.

- Marty, você me conhece. Eu...

- Conheço muito bem sua língua comprida e é por isso que o estou avisando. Compreenda bem, Sam: esse negócio significa uns cinquenta ou sessenta mil dólares. Faremos nosso filme e estaremos feitos na vida.

- E dentro de uns anos, se ainda houver a mesma procura de passaportes, poderemos repetir a façanha ou...

- Não. Só desta vez. Vamos trabalhar com a cabeça. Muitos espertalhões se perdem justamente por isso.

Sam deu um pulo, derrubando a cadeira.

- Onde está o jornal? Veja quando sai o "Liberte".

- Calma, Sam, minha cabeça não aguenta essa sua agitação. Além disso, vamos viajar num navio holan­dês... é mais barato. Antes, porém, você tem que tratar de guardar seu carro perto do armazém do Exército Ame­ricano na sede da SHAEF, em Fontainebleau. Espalhe que vai vender o carro. Mas esqueça-se de que é ator e não fale demais.

 

QUE é que há? Terei dito alguma coisa interes­sante? - quis saber Jake.

- Conte-me o que sabe acerca de Andersun.

- Não é muito. Lembro-me dele porque me dou bem com todos os moradores do meu roteiro. São meus ami­gos. Andersun morava numa "cabeça de porco" próxi­mo da Broadway e, naturalmente, não conheço muito os moradores de casas de habitação coletiva, mas ele, du­rante alguns dias, esteve sempre à minha espera, que­rendo saber se havia alguma carta registrada para ele. Quando, por fim, chegou a carta (sei que era um pas­saporte), pedi-lhe uma prova de identidade e ele res­pondeu que eu o conhecia. Assim mesmo insisti na pro­va de identidade e ele apresentou-me sua certidão de idade.

- Quando foi isso? Jake coçou o nariz.

- Ora... pelo menos há três ou quatro meses.

- Há quatro meses? - repeti.

- Se já foi há tanto tempo - disse Betsy - não pode ter ligação com esse...

- Tem que ter.

O sorvete de casquinha escorreu pela mão dela e foi cair no brinquedo que eu acabava de comprar para Glória. Enxuguei o brinquedo e, de repente, ocorreu-me pensar... Louise, quando criança, teria tido algum brin­quedo? E, afinal, que provaria isso e por que me viria agora essa idéia?

- Vou levar isto para Ruthie - disse Betsy.

- Onde fica essa tal casa de cômodos? - perguntei a Jake. - Andersun ainda está morando lá?

- Uma espelunca na esquina da rua Cem com a rua Dois. Acho que não está mais lá. Nunca mais tive cartas para ele, embora não tenha deixado novo ende­reço. Nessas casas de habitação coletiva, os moradores não ficam muito tempo.

- Lembra-se de ter levado outras cartas para ele?

- "Neca". Só me lembraria se tivesse levado algu­ma coisa especial como um registrado.

- Diga-me, outra vez, como era êle.

- Não sei bem, a não ser que tinha cabelos verme­lhos demais. E o timbre de voz...

Tomei nota do endereço da casa de cômodos, agra­deci a Jake e, voltando para a "drugstore", telefonei pa­ra 0'Hara, perguntando-lhe se podia tomar conta da ga­rota. Cy respondeu: "Que diabo! Você escolhe cada ho­ra para pedir isso! Sabe que horas são? Mas não faz mal. Estamos aqui jogando bridge e, se quiser, traga Ruthie para cá e ela poderá dormir no sofá.

- Não assim não serve - respondi. - Não quero livrar-me dela como se fosse uma carga.

- Sinto muito, Barney, mas se me tivesse telefonado mais cedo...

- Não há nada, Cy. Até breve.

Saí e entrei no carro. No caminho, Betsy pergun­tou:

- Que significa tudo isso, Barney?

- Que aconteceu, papai? - quis saber Ruthie, sa­boreando seu sorvete de casquinha.

- Escute, meu bem, papai talvez tenha que passar a noite fora de casa. Acho que May poderá ficar com você... quer dizer, espero que possa.

- Oh! Ela me disse que ia passar sábado e domin­go em casa do tio em New Haven. Diz ela que é um tio rico... sempre se gabando!

Praguejando em silêncio, tratei de me lembrar de outra pessoa-que pudesse tomar conta de uma criança numa noite de sábado.

- Você gostaria de ir dormir lá em casa, Ruth? - perguntou Betsy. - Amanhã de manhã, costuraremos uns vestidos.

Eu já ia dizer a Betsy que não fosse tão depressa, mas... como encontrar uma babá?

- Posso, papai? - perguntou Ruthie.

- Bem... O.K.

Betsy sorriu para Ruthie e disse:

- Ótimo - em seguida, voltando-se para mim: - Barney, que significa para nós o fato de um homem com o mesmo nome de Andersun ter tirado passaporte há meses atrás?

- O cabelo vermelho, o sotaque... era Brown, o engraçadinho que esteve no bar na noite dos tiros. Não sabemos ainda o móvel do crime, mas foi ele. Vou pro­curar Franzino e vou à casa de cômodos ainda hoje. Depois de tanto tempo parados, acho que, afinal, a coisa vai andar em disparada.

Deixei Ruthie em casa de Betsy e dirigi-me à dele­gacia. De repente, ocorreu-me que a casa de cômodos de Brown ficava a poucas quadras do apartamento da Tur­ner e pensei, comigo mesmo, que preferia ter deixado Ruthie com outra pessoa. Creio que o sargento de plan­tão me tomou por algum vendedor e fez tudo para me despachar. Por fim, avisou Franzino pelo telefone. Den­tro de meia hora Franzino chegou à delegacia e poucos minutos depois, Al Swan reuniu-se a nós, acompanhado de um chefão da Delegacia de Homicídios.

Descemos a Broadway com a sirena a funcionar qua­se todo o tempo, o que foi para mim verdadeira sensa­ção, embora notasse, quando a sirena silenciava, que o motor fazia um barulho danado... estava precisando de uma limpeza em regra. A casa de cômodos era num pré­dio de três andares e nós não tardamos a perturbar o sono do casal de velhos que a administrava e da maio­ria dos inquilinos que estavam voltando para casa, de­pois de terem passado a noite de sábado bebericando.

O casal tinha uma vaga lembrança de Andersun... tinha morado ali cerca de um mês. Era bom pagador. Era um camarada sossegado, não bebia e nem criava ca­sos. Não, não parecia ter emprego, mas também não parecia estar sem dinheiro. Às vezes, saía com u'a má­quina fotográfica. Não, não se lembravam de ter ele re­cebido visitas, além de um bonitão que também estivera hospedado lá durante uma semana. Chamava-se Smith... ao que se lembravam. Era amigo de Andersun e tinham se mudado para lá na mesma ocasião, mas Smith ficou só uns dias. Voltou depois, algumas vezes, em visita a Andersun. Os velhos não mantinham bem o registro dos hóspedes e nem ao menos haviam registrado a data exa­ta da chegada dos dois, nem o primeiro nome de Smith. Andersun já se mudara de lá há meses, sem deixar en­dereço e nunca mais o tinham visto.

A decepção foi grande. Levamos o casal e alguns dos inquilinos mais antigos, conosco, para a delegacia. Tam­bém apanhamos Jimmy, o homem do bar, e Franzino mandou soltar Louise. Tive oportunidade de pedir-lhe desculpas e a resposta que ela me deu... bem não po­deria ser impressa. Todos eles passaram o resto da noi­te queixando-se do sono perdido e examinando os retra­tos de malandros mandados pela galeria da polícia, na cidade. O resultado foi nulo.

Às quatro da manhã, enquanto sorvíamos um café horrível, Franzino perguntou-me:

- Mais alguma idéia brilhante, "seu" sabichão?

- Por que esse sarcasmo? Barney está sendo mil por cento - disse Al.

- Quem disse que estou sendo sarcástico?

- Podemos pedir ao Departamento de Estado em Washington para nos mandar o requerimento recebido?

- Já pedi por telegrama. O F.B.I. agora também vai tratar do caso. Os agentes chegarão daqui a pouco. Temos que interrogar de novo a família de Andersun... como é que esse tal Brown conseguiu um passaporte com o nome de Andersun? Quem sabe se é parente ou...

- Pelo menos, agora sabemos por que o verdadeiro Andersun foi assassinado - observei.

- Sabemos mesmo? - perguntou Al.

- Escute: por uma razão qualquer Brown arranjou um passaporte em nome de Andersun. Aí. leu nos jor­nais que o rapaz, logo que recebesse o prêmio, viajaria para Paris. Neste caso, o verdadeiro Andersun precisa­ria de passaporte e Brown seria desmascarado... foi por isso que Andersun foi liquidado.

- Simples demais. Pelo que sabemos, há a possibi­lidade de haver dois Andersun. Também pode ser que Brown e nosso Andersun estivessem agindo juntos - dis­se Al e sua voz, àquela hora da madrugada, estava tão rouca, que quase não se ouvia. - Restam muitos "se" quanto a sabermos alguma coisa desse mistério. Por exemplo, não temos a mínima idéia de como Turner se enquadra em tudo isso. Franzino bocejou.

- A primeira coisa que precisamos fazer é "tirar uma pestana". Depois, veremos o que esses bonitões do F.B.I. nos trarão de manhã. Podemos usar os enxergões lá em cima.

Terminamos nosso café e subimos para descansar um pouco nos catres da delegacia. Não sei se foi o café ou a agitação em que estava, que não me deixou dormir. Quando vi Al mexendo-se, perguntei:

- Tem algum refrigerante no carro?

- Tenho umas latas de suco de uva.

- Com gim ou rum? Preciso de uma dose. - Sen­tei-me e calcei os sapatos.

- Sabe que nunca dei valor à sua habilidade, Bar­ney. E de comediante, também! As latas estão dentro da mala... aqui estão as chaves.

O dia já estava nascendo quando bebi dois sucos de uva quentes, com gim. Subi outra vez e deitei-me. Quando acordei, era dia claro e estava sozinho.

Examinei minha carteira, descobri onde ficava o sa­nitário, lavei a boca e passei água fria no rosto. Eram dez horas e Al e Franzino estavam lá em baixo arrotan­do uma pesada refeição matinal. Ninguém chegara ain­da de Washington. Saí para comer e depois telefonei para Ruthie, que estava radiante, divertindo-se muito. Disse-lhe que iria buscá-la dentro de poucas horas e Betsy veio ao telefone para me perguntar o que Ruthie comia. Ouvi a garota dizer junto dela:

- Já lhe disse, Betsy, qualquer coisa que você co­ma. Santo Deus, que é que pensa? Que eu ainda como essas bobagens para criancinhas?

Fiquei um pouco preocupado. Betsy também es­tava animadíssima.

Finalmente, chegou um camarada da Divisão de Pas­saportes do Departamento de Estado, acompanhado de dois elementos do F.B.I. Os três trajavam ternos côr de cinza, camisas brancas e gravatas escuras... pare­cia até uniforme. Tinham trazido o requerimento do passaporte e a duplicata da fotografia.

Segundo o requerimento, Andersun media um me­tro e sessenta, tinha cabelos vermelhos e olhos casta­nhos. "Nenhum sinal característico" e a finalidade de sair do país era "viajar". Um tal de Irving Spear, que se declarava residente numa rua do Bronx atestava co­nhecer há dez anos Franklin Andersun. Franzino man­dou verificar o endereço. Era outra casa de cômodos e Irving Spear morara lá, meses atrás. Ninguém sabia dizer qualquer coisa sobre ele, a não ser que era alto e "bem falante" e que, vez por outra, bebia no quarto.

Todos nós olhamos para o retrato de Andersun (ou Brown). Era um retrato comum de passaporte e repre­sentava um rapaz de cabeleira basta, olhos tranquilos e nariz largo. O Departamento de Estado declarava que o passaporte não tinha sido utilizado e, portanto, Brown devia estar ainda no país.

O requerimento já estava velho demais e muito ma­nuseado, para revelar alguma impressão digital. Mas tínhamos ali uma amostra da letra de Brown e seu re­trato. Já era alguma coisa, mas, mesmo assim, nada tínhamos de definitivo.

Tanto o Departamento de Estado como o F.B.I. achavam que devia ser uma cadeia de passaportes e quando Franzino perguntou o que significava isso, o fun­cionário do Departamento respondeu:

- Há criminosos aqui, principalmente criminosos in­ternacionais, que são apátridas e querem viajar. Outros criminosos são peritos em falsificar passaportes, quando arranjam o carimbo e o papel oficial. Segundo a pessoa que está precisando de passaporte, um desses documen­tos falsos pode ser vendido até por vinte mil dólares. Com certeza, pagavam ao Andersun para usar o nome deles, mas... por que, então, usavam o retrato de Mr. Brown... não entendo!

Al fez umas perguntas sobre passaportes. Quis sa­ber se Turner tinha pedido o seu e o funcionário federal respondeu que ia verificar.

Uma idéia simples começou a tomar forma dentro de meu espírito simples. A palavra "simples" era a cha­ve de tudo... os nomes Brown e Smith (e o homem do bar tinha dito que o primeiro nome de Brown era assim como Joe Mike ou John)... Não fora por acaso que Brown tinha estado rondando uma espelunca como o "Grand Café" e tinha puxado conversa com camaradas de vida simples, como Andersun e Irvin Spear.

Virei-me para o funcionário do Departamento de Estado:

- Quando forem verificar se Turner tinha passapor­te, procurem saber, também, se foi expedido algum em nome de Irving Spear e para outro sujeito chamado Smith... o retrato será parecido com o de Spear.

- Spear... é o namorado da irmã de Andersun - lembrou Franzino.

- Posso verificar pelo telefone - disse o homem do Departamento de Estado. - Por que quer saber?

- Vamos verificar primeiro... não sei bem o que significará... ainda não sei.

- Não gosto de brincar de charadas aos domingos - disse o funcionário. - Que está pensando?

- Estou pensando que se houver uma cadeia de passaportes, deve haver um no nome de Spear, porque um camarada chamado Smith esteve conversando com ele no bar. Ouça aqui: o tal de Brown teve uma dis­cussão besta com Andersun sobre aquele pedaço de rua, a velha vizinhança. Declarou que nascera ali. É isso que nos vai dar a chave do mistério.

Todos me olharam sem compreender. Al Swan sor­riu para os presentes e disse:

- Devagar, rapaz. Quer trocar isso em miúdos?

- Pelo que penso - expliquei, temendo estar fazen­do papel de idiota - Brown, durante a conversa no bar, ficou sabendo onde e quando Franklin Andersun nasce­ra, nome dos pais, etc. Brown vai e arranja uma certi­dão de nascimento como Franklin Andersun. Faz tudo pelo correio, logo que obtém esses dados colhidos de Ir­ving Spear no bar. Com uma certidão de idade e duas fotografias malfeitas... o nariz, por exemplo, parece de­formado, provavelmente cheio de algodão e, segundo o que todos dizem, tinha cabelos vermelhos demais... de­viam estar pintados. Muito bem: com a certidão de ida­de, os retratos e dispondo de um amigo (Smith) para servir de testemunha sob o nome de Spear, Brown pega dez dólares, requer um passaporte e recebe o documento no devido tempo, em seu quarto, sob o registro postal. Noutro endereço, com Brown como testemunha, Smith arranja um passaporte no nome de Irving Spear. Os dois espertalhões mudam de endereço, tingem o cabelo de outra côr, descobrem outro bar e recomeçam toda a manobra - sorri para todos em geral, como se tivesse explicado tudo.

Foi Franzino que quebrou o silêncio, dizendo:

- Mas eles não seriam reconhecidos quando fossem buscar outro passaporte?

O homem do Departamento de Estado sacudiu a ca­beça de cabelos bem escovados.

- Temos dois escritórios aqui em Nova York outros em Washington, Filadélfia, por todo o país. Seria sim­ples e relativamente sem risco repetir a manobra cinco ou seis vezes. Isso quer dizer que acabariam dispondo de doze passaportes, sem contar os seus próprios. Vou tele­fonar para Washington e mandar verificar Turner, Smith e Spear.

Estávamos sentados no escritório do setor de deteti­ves e o funcionário do Departamento de Estado retirou-se para fazer a chamada.

- Parece mesmo muito simples burlar a lei. Franzino passou o dedo pela barba crescida no quei­xo magro.

- Sempre são os golpes simples que funcionam me­lhor.

- Se Andersun estivesse metido num golpe desse vulto, já teríamos encontrado indícios - disse Al.

Um dos agentes do F.B.I. indagou:

- E se esse Brown tem o passaporte, por que preci­saria matar Andersun meses depois?

- Antes que eu pudesse responder, Franzino falou:

- O caso é que Andersun não estava metido no ne­gócio. O pormenor que nos escapou foi a notícia publica­da nos jornais sobre o projeto de Andersun, de ir a Paris com o dinheiro do prêmio, o que queria dizer...

- A razão pela qual Brown e Smith operavam em bares como o "Grand Café" - atalhei, resolvido, pelo menos, a explicar minha idéia - é que era pouco pro­vável que algum dos frequentadores algum dia viajasse para o exterior. Quando Andersun pedisse seu passapor­te, o Departamento de Estado investigaria e cairia toda a igrejinha. Tinham que impedir que o verdadeiro An­dersun fizesse o requerimento e impediram-no a bala.

O funcionário do Departamento de Estado voltou à sala. Havia, de fato, sido expedido passaporte para Ir­ving Spear. Para Turner, não. Agora estavam exami­nando todos os Smith e Brown. Já, tinham mandado por via aérea uma cópia fotostática do requerimento de Spear e os peritos em grafologia e fotografia estavam confrontando a fisionomia e a letra de Brown com as de outros passaportes expedidos recentemente.

Nada poderíamos fazer durante umas duas horas. Por isso, aproveitei para ir com Al tomar um café. De­pois, fomos de carro para o apartamento da Turner. Betsy e a garota estavam mergulhadas em fazendas e moldes e nós só fizemos atrapalhar. Ruthie não tinha vontade nenhuma de sair dali e, assim sendo prometi telefonar mais tarde ou talvez levar as duas para jan­tar . Depois disso... fosse como fosse... Ruthie ia vol­tar para casa.

Ao sairmos, Al cacarejou com um sorriso maldoso:

- Que bonita cena doméstica... mamãe, papai e o bebê... - e pôs-se a assobiar "Meu Céu Azul". Man­dei-o calar a boca. Demos uma volta de automóvel e eu aproveitei a presença de Al no carro, com seu distin­tivo, para pisar no acelerador, sem medo de multa. Al teimou que seu Cadillac podia vencer meu carro numa corrida, mas recuou quando lhe propus apostar dez dó­lares. Voltamos para a delegacia e esperamos mais um pouco até que chegou o requerimento de Spear.

Smith. o comparsa de Brown, tinha um metro e oi­tenta, pesava noventa quilos e tinha um sinal de carne na face direita. Pelo retrato, era um moço bonito, dis­tinto, mas a calvície dava-lhe a aparência de um homem de mais de trinta e quatro anos. Um dos rapazes do F.B.I. achou que o sinal devia ser falso e que devia ter raspado a cabeça para tirar o retrato. Franklin An­dersun assinara como testemunha.

- Esses malandros pensaram em tudo - comentou Franzino. - A letra aqui está disfarçada. Amanhã vou mandar revistar todos os lugares onde se tiram retratos para passaportes, levando estes aqui. Veremos o que va­mos conseguir. Naturalmente, mandaremos vigiar todos os portos e aeroportos, para que não possam sair do País.

- Os passaportes são válidos por dois anos - disse um dos agentes do F.B.I. - Podem muito bem ficar na moita até o verão, quando há mais movimento de via­jantes.

- Outra possibilidade: podem já ter escapulido - disse o homem do Departamento de Estado. - Podem ter ido para o Canadá, para o México, para uma das ilhas das índias Ocidentais... sem passaportes e, de lá, seguirem com os passaportes, para outro lugar. Franzino deu um suspiro.

- Também podem ter tomado um avião na noite do crime, quem sabe? Esperemos que não seja mais um beco sem saída.

Al balançou a cabeça:

- Meu palpite é que ainda estão por aqui, deixando a coisa esfriar. Outro palpite: é como quando a gente sacode uma linha de anzol embaraçada... basta encon­trar a linha certa e tudo está desembaraçado."

Nada mais podíamos fazer até segunda-feira de ma­nhã, enquanto em Washington se realizavam as buscas. Assim, resolvemos todos nos retirar. Observei os policiais enfileirados diante do balcão da portaria, rendendo a sentinela. Depois, parei no gabinete de Franzino e falei:

- Que tal se pusesse Louise em liberdade agora?

- Que fez por você essa prostituta? - rosnou ele. Em todo caso, em poucos minutos estavam os dois diante de sua escrivaninha. Ela estava abatidíssima, de rosto inchado e fisionomia tensa, pelo aborrecimento e a falta de sono. Cliff parecia estar bem, com a cabeleira pen­teada como sempre.

- Vou deixá-los sair só mesmo para atender ao pe­dido deste camarada aqui - disse-lhe Franzino. - Mas imponho duas condições... qualquer dos dois que tentar fugir, será trancafiado outra vez. Tranco a porta do xa­drez e atiro fora a chave. Não se mudem nem fiquem di­fíceis de encontrar, caso eu precise comunicar-me com vocês. E não vão mais poder "trabalhar" por aqui... Logo que o caso esteja liquidado, vocês dois vão dar o fora de meu distrito.

Louise e Cliff retiraram-se às pressas e eu ia segui-los para explicar, quando Franzino me chamou. Apa­nhou na gaveta a medalha dobrada.

- Tenho medo que se quebre se eu bater com o mar­telo. Acha que pode ajeitá-la outra vez, "seu" forçudo?

Deixei a medalha mais ou menos como antes.

 

JUSTAMENTE quando pensávamos estar próxima a vitória final, ficamos todos de cara no chão. Nada aconteceu segunda, terça-feira... só que Nova York sofreu um desses períodos de calor úmido. O ar parecia vibrar em ondas de calor e, como sempre, o ca­lor deixou-me arrasado. Todos os fotógrafos de passa­portes declararam nunca ter visto nem Brown nem Smith e o Departamento de Estado estava "razoavelmente" certo de que ninguém parecido com aqueles dois tinha usado passaporte depois do crime.

Na quarta-feira, Al Swan veio procurar-me e fomos os dois a um escritório no Edifício Federal, na Foley Square. Franzino lá estava com dois chefões do Depar­tamento de Polícia e vários funcionários federais. Com exceção de Franzino e eu, todos estavam vestidos como se tivessem saído da página de modas masculinas do "Esquire".

Estava eu, assim, num meio muito seleto. Sentei-me e... escutei. Um funcionário do Departamento de Esta­do fez um pequeno discurso que, em resumo, significa­va apenas isso: continuávamos na estaca zero. Tinham encontrado mais dois passaportes falsos, um, tirado pa­ra um mulato chamado Alvin Hunt, de Paterson, Nova Jersey e outro, para um tal de Richard Cohen, de Brooklyn. Nenhum desses homens havia jamais tirado pas­saporte. Ambos lembravam-se vagamente de conversas de bar, meses atrás, sobre local de nascimento. Nas fo­tografias dos passaportes, Brown estava moreno escuro, de cabelos pretos cortados rente e tinha feito alguma coisa nas bochechas para aparentar uma cara redonda. Smith exibia uma basta cabeleira loura e já não tinha o sinal de carne no rosto. A batida realizada nas casas de cômodos usadas por "Hunt" e "Cohen", nada reve­lou... os sujeitos tinham morado nelas poucas semanas e mudaram-se logo que receberam seus respectivos pas­saportes.

A conversa encerrou-se com esta declaração:

- Não temos meios de saber quantos passaportes falsos esses homens pretendiam conseguir, mas acha­mos que o duplo crime deve tê-los feito desistir da idéia.

- Quer dizer que o inquérito vai ser encerrado? - rosnou Franzino. - Ora essa, que diabo! Um policial foi assassinado e nós vamos descobrir o criminoso quer vocês queiram, quer não.

Um dos mandachuvas do Departamento da Polícia mandou-o, secamente, calar a boca e perguntou:

- Quer dizer que eles não vão mais tentar arranjar passaportes?

- Estamos tão ansiosos quanto vocês de agarrar es­ses homens, é evidente, mas achamos que eles destruirão os passaportes e largarão o plano.

- Deixando-nos com a morte de Turner sem solu­ção! - lançou Franzino furioso.

O funcionário federal respondeu:

- Esses homens são inteligentes e um homem inte­ligente sabe quando é vencido. Se pararem agora, esta­rão relativamente seguros. Como os passaportes deles podem ter sido emitidos nestes quatro anos... caso os tenham renovado... será quase impossível examinar os milhares de passaportes concedidos durante todos esses anos. Nestas condições, não podemos identificá-los.

Houve um momento de silêncio e eu continuei sen­tado ali, suando lindamente e sentindo-me sujo e sem jeito.

- Que acontece quando uma pessoa vende seu pas­saporte no exterior? - perguntei por fim.

- Geralmente comunica que o perdeu ou que foi rou­bado e, sem prova em contrário, damos uma licença es­pecial para viajar, válida apenas para voltar aos Estados Unidos.

- Em outras palavras, se eles tiverem mesmo ido para a Europa poderão vender os passaportes e continuar vivendo por lá, desde que não viajem? - indaguei.

- Sim. Também é possível viajar sem passaporte depois que se está no estrangeiro. Ainda há soldados que desertaram durante a última guerra e continuam escon­didos na França, Argel, Londres. Se quiser alugar um quarto de hotel, arranjar emprego ou sair do País terá que apresentar passaporte ou carteira de identidade. Mas se o desertor estiver vivendo com uma mulher, no quarto dela, se não trabalhar nem viajar, a polícia local dificilmente o agarrará. E, naturalmente, também há carteiras de identidade falsas. Por que pergunta?

Antes que eu pudesse responder um dos chefões do Departamento de Polícia indagou, num murmúrio tea­tral:

- Afinal de contas quem é esse grandalhão? - e quase pulou ao teto quando soube que era um detetive particular. Depois que Al e Franzino cochicharam um bocado junto às orelhas enormes do homem e a pequena tempestade serenou, temperei a garganta e disse:

- Creio que ainda temos possibilidade de agarrá-los. Para começar, eles não sabem que descobrimos o golpe dos passaportes. E se pensassem em largar o negócio, não teriam matado Andersun, não teriam arriscado um ho­micídio .

O agente federal falou:

- Se acha que vão tentar arranjar mais passaportes, naturalmente podemos continuar a vigiar por esse lado.

- O que acho é - disse eu lentamente, procurando manter a voz firme - que, pelo que sabemos, eles têm quatro passaportes falsos. Isso representa um bocado de "gaita" se puderem vendê-los... não venderão os deles. Vocês acham que esses sujeitos são inteligentes. Muito bem. Puseram um bocado de tempo e de trabalho pacien­te nesse negócio e não creio que vão jogar fora todo esse dinheiro. Minha idéia é... por que não tentamos armar-lhes uma cilada?

- Fui saudado por outro silêncio. Continuei a suar como um porco... não sabia bem se estava fazendo pa­pel de palhaço. A coisa parecia tão simples a meus olhos. Não era possível que alguém ali não se lembrasse disso também!

Mas ficaram calados, sem dizerem uma só palavra. Depois de um longo espaço, continuei:

- Mandamos publicar nos jornais duas histórias in­ventadas. Vamos lançar um grande blefe. Primeiro, que a polícia já agarrou o culpado... isso tudo tirado aqui da cachola... que o criminoso é um sujeito que estava danado porque Turner o esbofeteara há meses... pensou que Andersun fosse amigo dele... matou os dois. Seja qual for a história, terá que ser boa.

O silêncio continuou a envolver-me como num cober­tor. O agente federal indagou de mansinho:

- E que arranjamos com isso? - talvez houvesse sarcasmo em sua voz... talvez fosse minha imaginação.

- Arranjamos que Brown e Smith se sintam seguros para continuarem a agir. Agora, ao mesmo tempo, in­ventamos outra história. Hunt ou Cohen... não, é me­lhor Spear... Irving Spear é pilhado num jogo de da­dos e vai procurar os jornais alegando que a polícia não tinha direito de levar o dinheiro das apostas. Não, esta não serve. Não sei, exatamente, qual será a história, mas Spear arranja uns "tubos"... talvez devido à morte de Andersun e anuncia que vai para a Europa. Como disse, tem que ser uma história que vá parar nos jornais. Julgando-se seguros, Brown e Smith tratarão de liqui­dar Spear, mas a gente ficará de olho. Aí eles terão que escolher... ou largam o negócio, ou liquidam com Spear e fogem para a Europa ou para qualquer outro lugar onde pretendam vender os passaportes... Com isso, vão tratar de se mexer... pular.

O silêncio continuava tão denso que podia ser cor­tado com uma faca cega. Enxuguei a testa suarenta com as costas da mão. O agente federal olhou para os "ti­ras" e disse:

- A coisa é muito complicada, mas. já que não te­mos nada de melhor, por que não experimentar?

- E se não der certo, o Departamento de Polícia fará papel de palhaço! - berrou o policial sabichão.

- Quem saberá que não deu certo? - perguntei. - O boneco que vamos usar nunca chegará a ser julga­do. O caso ficará no esquecimento, a não ser que a fa­mília Andersun ou Mrs. Turner entornem o caldo... mas acho que podemos convencê-los de cooperarem co­nosco.

O "federal" sacudiu a cabeça:

- Não podemos meter muita gente nisso... há muita possibilidade de baterem com a língua nos dentes. Pelo que sabemos, Brown e Smith estão em contato com a família... quero dizer, têm relações sociais com ela, sob outros nomes. Quanto à reputação do Departamento de Polícia, nada há a temer. Se der em nada, o promotor poderá encerrar o processo por falta de provas ou in­venta-se um álibi. Tudo sem estardalhaço. Quanto mais penso, mais me convenço de nossas "chances".

- Minha cliente, Mrs. Turner, tem que ser informa­da.

Um dos "federais" que ainda não abrira a boca per­guntou :

- Está com medo de perder a diária?

- Boa idéia - disse esforçando-me por manter a calma. - Não quero que Mrs. Turner pense que fui eu que resolvi o caso, quando, de fato, não foi. O interesse dela... e o meu... nisso tudo é apenas saber por que e como Ed Turner foi assassinado e ainda estamos muito longe de saber. Além disso, minha opinião... que pode não ter muito valor... é que podemos estragar tudo muito mais se guardarmos segredo do que se deixarmos as pessoas interessadas saberem o que estamos fazendo. É por isso que não quis escolher Hunt e Cohen. Não vale a pena meter mais gente nisso. Quanto a Spear, como anda com a irmã de Andersun, certamente contará a ela. O melhor é explicar a coisa a eles e...

- Vamos estudar os pormenores - declarou seca­mente um chefão da polícia. Conversou-se mais um pou­co e a conferência foi encerrada. Durante todo o trajeto de volta Al Swan ficou a repetir:

- Você está sendo uma revelação para mim, Bar­ney, meu "velho". Uma surpresa atrás da outra. Você tem escondido um cérebro por baixo desses cabelos desgrenhados.

Fiquei sem jeito e, depois que deixei Al, fui ao escri­tório e passei os olhos pelos anúncios a que chamo de correspondência. Comecei a ficar até mais nervoso. Quis convencer-me de que era aquele calor, mas não era só isso. Dei mais uma volta para passar nos últimos ende­reços conhecidos de uns dois fujões e depois fui para casa tomar um banho de chuveiro. Fiz bons exercícios de levantamento de peso. Acabei alagado de suor e ain­da nervoso. Finalmente, meti-me num banho e fiquei mais calmo, mas, naturalmente comecei a suar outra vez enquanto me enxugava. Por mais que dissesse comi­go mesmo que afinal de contas eles tinham aceitado mi­nhas idéias, continuava esquisito, nervoso. Peguei o car­ro e fui até a escola e quando Ruthie sentou-se ao meu lado. perguntei o que queria para o jantar e ela res­pondeu :

- Betsy disse que podemos jantar lá com ela.

- Não vamos jantar na casa de Mrs. Turner e não a chame de Betsy.

- Tia Betsy?

- Diga Mrs. Turner, para ser bem educada.

- Papai, quando a gente conhece bem alguém como eu conheço Betsy, a gente chama pelo primeiro nome.

- Não quando se trata de uma menina e gente grande.

- Bem. por que não podemos ir jantar com ela? Ela cozinha bem e eu quero que você veja meus vestidos novos.

- Você os verá de outra vez - respondi tomando o caminho do supermercado. - Vamos jantar em casa. Talvez uma salada e...

- Mas por que, papai?

- Porque estou dizendo! — declarei furioso... e logo desejei que tivesse antes mordido a língua.

Aquelas palavras fizeram-me voltar a vinte e cinco anos atrás. A única briga verdadeira que jamais tive com meu velho fora quando tinha onze anos e ele me disse aquilo, em vez de explicar a razão. O velho tinha corrido com Oldfield... por isso, dera-me o nome de Barney... e só me lembrava dele trabalhando numa garagem na rua Sessenta e Quatro... um velho curvado, sujo de graxa, com um velho barrete no alto da cabeça. Fiquei tão furioso que desatei a chorar e isso o magoou. Fez-me explicar por que estava chorando. Depois, disse:

"- Está certo, um garoto tem o direito de ter suas razões... quando lhe podemos dar uma. Vou dizer uma coisa: na primeira vez que eu deixar escapar esse "por­que estou dizendo", você me dá um soco."

Então, eu disse:

"- Mas, papai, eu não alcanço seu queixo.

"- Não se preocupe, Barney, você é suficientemente alto para dar-me um soco num lugar que dói mais do que na bochecha."

Havia um grupo de motoristas em torno de nós... sempre os detestara por se mostrarem tão superiores. O desabafo de meu velho fê-los subir às nuvens e quando perguntei a papai por que, ele respondeu:

"- É por isso que não dou em você... ainda. É uma espécie de brincadeira. É uma coisa que tem que ver com o soco... uma coisa que lhe explicarei quando você crescer."

Cerca de um ano depois, mamãe ouviu-me discutir com um amigo acerca dos seios de Jean Harlow... se eram ou não "grandes" e, naquela noite, ela disse a papai que chegara a ocasião de "falar com ele". Garoto de fa­vela como era, eu já tinha uma idéia bem clara de co­mo funcionava o sexo, mas fui dar um passeio a pé com o velho e escutei o que ele me disse, gaguejando, sobre o assunto. Lembro-me bem que começou dizendo:

"- Barney, já chegou o momento de ficar sabendo que há outras pessoas, além de "cafetões" e "gangsters" que dirigem Iimusines...

Lancei um olhar para Ruthie enquanto encostava o carro. Estava olhando para o outro lado, com os lá­bios cerrados numa linha.

- Meu bem - disse-lhe - não tive intenção de ma­goá-la. Estou nervoso hoje... talvez por causa do ca­lor. E... como estou trabalhando para Mrs. Turney e não posso misturar negócios com prazer...

- Por que não, papai?

- Não sei bem por quê. Talvez porque, em matéria de negócios a gente está sempre procurando "embru­lhar" um ao outro.

- Que quer dizer "embrulhar"?

- Ora, tapear... roubar.

- Oh! papai, Betsy... Mrs. Turner nunca tapeará você.

- Talvez eu a esteja tapeando.

- Oh, papai!

Apertei-lhe o nariz, dizendo:

- Que tal se fôssemos comprar espaguete e casta­nhas, tudo para fazer um "chow mein" para nós?

Ela ficou logo animada, mas durante todo o jantar não parou de perguntar-me por quê? por quê? acerca de tudo. Quando May Weiss chegou às sete e meia e re­cusei-me a levar Ruthie comigo ao apartamento de Betsy, a garota começou a choramingar e, depois, a berrar, até que perdi a cabeça e dei-lhe uma bofetada. Levei dez mi­nutos difíceis a pedir-lhe desculpas e quando cheguei ao apartamento da Turner estava agitado, nervoso e macambúzio.

Betsy estava de calças compridas salpicadas de tinta a óleo e blusa esporte, tudo lindamente recheado. Per­guntou-me se queria tomar uísque. Respondi que não e sentei-me como um imbecil, durante uns dois minutos, olhando para a pintura que ela estava fazendo, sem na­da compreender. Finalmente, Betsy perguntou:

- Em que está pensando, Barney?

- Deve ser ótimo ser criança. Os outros fazem tu­do para a gente. Nenhuma preocupação sobre comida, aluguel, guerra. Entretanto, é provável que seja a época de maiores frustrações de nossa vida, porque os adultos agem como adultos em vez de agirem como seres hu­manos .

- Isso parece muito profundo... - disse ela, sor­rindo.

- Talvez seja mesmo, Mrs. Turner.

- Por favor, por favor, diga Betsy.

- Não comece com isso agora. Já estou bastante ner­voso. Vou fazer-lhe meu relatório do dia.

Contei-lhe toda a conversa no edifício Federal e, quando terminei, ela bateu palmas, dizendo, em seguida:

- Você é um detetive estupendo. Barney! Que gran­de notícia! E claro que até aqui não diz respeito a Ed, mas concordo com você: quando se descobrir o assassino de Andersun, o de Ed estará descoberto.

- Sou um "tira" admirável, o fabuloso detetive par­ticular... bastante esperto para ter um primo chamado Jake que é bastante esperto para ser um carteiro obser­vador!

- Mas você mesmo disse... você disse sempre que quase todos os casos são resolvidos por pura sorte.

- Bem sei, mas, de certo modo, tudo isso me pare­ce... um pouco sem nexo. É como se alguém zombasse de mim. Um mecânico como eu ensinando ao Departa­mento de Polícia de Nova York... ao F.B.I... como re­solver um caso! Não tem lógica!

- Citando novamente Mr. Barney Harris... nada, neste caso, tem lógica.

- Sim, mas tenho um pouco a impressão de que tudo isso vai estourar em minha cara. Bom, veremos - pus-me de pé. - Voltarei a vê-la amanhã. Nesse meio tempo, é importante não falar com ninguém, nem mes­mo com seus botões, sobre essa idéia do homem-isca.

- Não falarei. Você não gostaria de dar um passeio de carro, para tomar um pouco de ar fresco? Não sai de casa o dia todo.

- Bem, eu... eu... Não estou com muita vontade de bater papo.

- Não terá que conversar.

- Eu sei. Sei também que os "tiras" ainda não sol­taram o carro de Ed. Se quiser posso levá-la em meu carro para onde tiver que ir...

- Sim, para o cinema mais próximo... e vou a pé! O telefone tilintou e ela foi atender. Acenando com o fone para mim, disse:

- Para você.

Pensei logo que fosse Ruthie com alguma notícia de­sagradável, mas era a voz rouca de Swan.

- Como soube que eu estava aqui? - era uma per­gunta besta e Al, naturalmente, não a deixaria passar.

- Ora, sou apenas um detetive oficial e meu cunha­do é um verdadeiro "Sherlock Holmes". Transmitiu-me um pouco de seu brilho e eu fiz uma simples dedução, como dizemos entre nós, depois de ter telefonado para Ruthie. A propósito, a garota atende o telefone como uma moça. "Não, Mr. Harris não está. Quer deixar o re­cado. ..?"

- Que é que há, Al?

- Uma pequena dificuldade para a execução de sua idéia. O tal de Irving Spear recusa-se, absolutamente, a bancar a isca. E a pequena dele, a irmã de Andersun, pulou ao teto.

- Diga a ele para fazer um seguro de vida em favor da pequena e ela concordará logo em deixá-lo aceitar.

- Franzino vai falar com ele novamente amanhã... talvez até ameace tirar-lhe a licença de motorista. Achei melhor contar-lhe isso antes de você gabar-se a Mrs. Turner de ser um grande herói. Está-se divertindo, ve­lhinho? - Al deu uma risadinha idiota e desligou.

Passei a manga pelo rosto suarento e menti para , Betsy:

- Tenho que ir ao distrito, mas posso levá-la...

- Ora! Não amole!

- Até amanhã à noite, Mrs. Turner - disse eu di­rigindo-me para a porta.

- Escute, Mr. Harris, acho que o adiantamento que lhe dei já deve ter acabado. Quer dizer-me quanto...

- Mandarei a conta quando o caso estiver encerra­do, Mrs. Turner - atalhei.

Saí, com vontade de pilheriar dizendo que estávamos parecendo Gallagher e Shean, mas ela era jovem demais para ter ouvido falar nesses dois lutadores de meu tempo de menino.

Tirei o paletó. A camisa estava molhada. Rodei ve­lozmente, para secá-la ao vento. Mas não senti nenhum prazer com o carro. Fui para casa e mandei May embo­ra. Servi-me de uma boa talagada de uísque americano e aguardei o efeito. Só consegui suar mais.

Preparei um banho e sentei-me na banheira durante muito tempo, fumando um cigarro atrás do outro, pen­sando em Brown e Smith com seu plano tão bem bo­lado, pensando no tempo que gastaram e no paciente trabalho para executá-lo. Depois, acontece uma coisa dessas... Havia de ser Andersun a ganhar o prêmio e resolver ir à Europa. Quase que pude sentir o que eles deviam ter sentido quando, de repente, viram esvair-se em fumaça o crime perfeito, talvez com a polícia federal atrás deles e tendo como única saída o crime. Era co­mo um camarada andando pela estrada, a ziguezaguear por entre os carros... talvez apenas para se mostrar diante da namorada. De repente, vem um carro em dis­parada - outra maneira de se mostrar - uma brinca­deira que, em questão de segundos, torna-se de vida ou morte.

E depois, naturalmente, a sorte fantástica de meu primo ser carteiro e ter entregue correspondência a Brown... e outra sorte: falou-me no assunto.

Tomei um banho de chuveiro, enxuguei-me e senti que não dormiria muito. Resolvi ir conversar com Irv Spear pela manhã. Tomei outro trago de uísque e dei­tei-me, sentindo bagas de suor rolarem pelo meu cor­po enquanto tentava conciliar o sono.

Este não tardou a chegar... só acordei porque Ru­thie me chamou. A manhã estava clara, luminosa e fres­ca. Sentia-me muito bem e passei uns dez minutos a ba­lançá-la no ar e ela deu gritinhos de alegria.

Levei-a de carro para o jardim de infância e toquei para o escritório. Estava descendo do carro quando um táxi buzinou perto e Irv Spear pondo a cabeça quase calva para fora, disse:

- Estava à sua espera, Harris.

- Vamos subir para o escritório - disse eu.

Cy 0'Hara estava ocupado a ler os matutinos, mas logo que me viu entrar com Irv, disse:

- Vou tomar um café - e saiu depois de trancar seu telefone.

Irv sentou-se, limpou as lentes dos óculos de tarta­ruga e passeou o olhar pela salinha.

- Então, é isso o escritório de um detetive? Você trabalha em pequena escala, mas não faltam negócios para mantê-lo à tona - de repente, curvou-se para a frente, enquanto eu passava a vista pela correspondên­cia, abriu a gaveta inferior da escrivaninha, dizendo:

- Nos filmes o detetive particular tem sempre uma garrafa nesta gaveta.

Foi meio chato: eu tinha mesmo uma garrafa intata ali. Irv mostrou-se surpreso. Perguntei-lhe se queria um drinque e ele respondeu que não. Em seguida, estu­dou minha fisionomia, por um segundo, com seus olhos sérios.

- Ouvi dizer que esse negócio foi idéia sua - disse.

- E eu ouvi dizer que você não gostou muito. Então não quer levar-nos aos matadores de Frank?

- Harris, vamos falar claro. Vamos falar sem ro­deios. Claro que gostaria que agarrassem o "cara" que liquidou Frankie. E se isso ressuscitasse o garoto, talvez aceitasse o risco. Mas Frankie está morto e enterrado e não vejo por que seria eu o terceiro cadáver só para acal­mar os "tiras". Não gosto de aparecer nas manchetes... de canelas esticadas.

- Sossegue - disse eu procurando manter a voz calma e à vontade. - Ninguém lhe está pedindo para ser um herói morto. Que risco correrá? Esses camaradas provavelmente já saíram do país, assim...

- História. Se vocês pensassem que eles estão longe daqui, não pensariam em armar esse golpe. Harris, já li em algum lugar que o homem honesto é aquele que sabe escolher. Vou topar a parada... afinal quem é que vai me impedir de ajudar a deter uns bandidos?

- Você estará mais bem protegido do que uma for­taleza. Haverá...

- Harris, não me tapeie. Vocês nem sabem que cara têm esses dois assassinos. Eles não vão chegar com con­versa fiada... vão chegar logo de pistola nas mãos. Estou disposto a arriscar, mas não quando sou eu que estou em jogo.

- Mas você estará rodeado de policiais, rapazes do F.B.I.

Irv deu um breve sorriso.

- Frankie estava perto de um "tira"... e o "tira" morreu com ele.. Você sabe o que é que a policia quer que eu faça? Tenho que continuar a viver como sempre, dirigindo o táxi, indo à escola, visitando Juanita e, ga­rantem, todo tempo haverá algum policial por perto. Não duvido que vocês acabem agarrando os "caras", mas só depois que eu estiver morto. Não é apenas um risco que vou correr, é morte certa. Você faria isso, Har­ris?

- Não sei, Irv. Mas afinal Franklin Andersun não era amigo meu nem ando com a irmã dele.

Juanita está contra isso... ela bem sabe que esse negócio de herói é só para "inglês ver".

- Claro que é... mas não estamos pedindo a você para bancar o pombo de barro - disse eu, sentindo que não estava sendo muito convincente. - Afinal de con­tas, temos retratos deles e...

- Eu sei, fotografias retocadas!

Houve uns segundos de silêncio e uma idéia começou a fazer-me cócegas na cachola. Irv mexeu-se na cadeira e disse:

- Engraçado... sabe que tenho a impressão de que estou fazendo "sujeira"? Quando eles me procuraram, eu concordei. Prometi ficar por perto de casa por uns dias com uns policiais. Mas eles não quiseram, disseram que isso alertaria os "caras". Tenho que viver como sempre... nem ao menos querem que eu ande armado. Mas isso também os poderá alertar. Com a breca, Harris, isso já é exigir muito. Esses assassinos são espertos em matéria de maquilagem. Chegaram até a tirar um retrato como um negro. Como é que os "tiras" vão reconhecê-los... a tempo?

- Conheço alguém que pode reconhecer Brown e po­deria servir de guarda-costas para você.

- Quem é?

- Danny Macei.

- Mas ele é cego!

- É por isso que reconhecerá logo a voz de Brown... jura que não se enganará. Escute aqui, com Danny jun­to de você todo o tempo, e ninguém o tomará por um policial... a polícia pode ser alertada logo que Brown abra a boca.

- E acha que aqueles palhaços vão conversar pri­meiro? Que diabo, não querem bater papo comigo. Tal­vez seja questão de dois segundos... o bang-bang de uma pistola e o "plop" de meu cadáver caindo na cal­çada.

Dei de ombros:

- Não estou querendo enganá-lo, Irv. É evidente que existe uma possibilidade. Mas isso é a única possi­bilidade de agarrarmos os "caras"... caso ainda se en­contrem no país. Mas com Danny, com você e uma por­ção de policiais prontos a correr e atirar numa fração de segundo, acho que você estará razoavelmente seguro. Você receberá também um colete de malha à prova de bala...

- Tem alguma cabeça à prova de bala? - Tentei dar uma longa risada.

- Irv, você acha que tenho cara de "tira"?

- Bem... não. Você tem uma coisa, é grande de­mais... parece muito pesado...

- Muito bem. Você é motorista de praça; eu, na realidade, sou um mecânico e Danny... eles podem lem­brar-se... estava no bar. Que tal se eu ficar com você, com Danny servindo de cão de fila? Topa?

Ele mexeu nos poucos cabelos que tinha.

- Vocês estão querendo que eu seja assassinado! Está bem, se puder contar com Danny e você, concordo. Pelo menos estarei rodeado de músculos.

- Vou já conversar com Danny - declarei, pondo-me de pé.

Ao chegarmos à rua, Irv olhou à sua volta como um ator de terceira classe, resmungando:

- Ainda nem começamos e já estou apavorado.

- Sossegue.

Ele respirou fundo e disse:

- Aí é que está a questão.,. poderei sossegar para sempre...

- Enquanto puder dizer piadas sobre o caso, está muito bem. Onde o poderei encontrar daqui a uma ho­ra mais ou menos?

- Ao meio-dia estarei na garagem. Não estou nada disposto a fazer força hoje. Puxa! Imagine como deve sentir-se um alvo no "stand" de tiro!

- Deixe disso. Vou contar-lhe um segredo de ofício. É preciso ter muito boa pontaria para acertar em al­guém com a pistola, a não ser que se atire à queima-roupa.

- Harris, você é que está dizendo piadas. Esses ca­maradas já provaram que são formidáveis na pontaria.

- Mas pegaram Frank e Turner de surpresa. Desta vez, eles é que serão apanhados de surpresa - disse eu, sentindo as palavras a bater em minha cabeça como um martelo. - Vou encontrar-me com você na garagem ao meio-dia. E, acredite ou não, a polícia não quer que você seja assassinado. A... eh... publicidade não seria nada boa para ela.

- É um pensamento realmente confortador! - dis­se ele, entrando em seu táxi. - Poupe essas palavras para a laje de minha sepultura! - acenou-me com a mão e arrancou. Entrei no café e avisei ao Cy que o escritório estava livre. Ele mexeu com Alma. como sem­pre, e saiu. Alma brindou-me com o melhor de seus sor­risos duros e, quando lhe pedi troco em níqueis, quis saber por onde tinha eu andado.

- Ocupado, ocupado - disse eu entrando na cabi­na telefônica.

Quando Franzino atendeu, comecei a falar:

- Tenho uma idéia. O...

- Gostaria que você mandasse para o diabo as suas idéias, mas até agora têm sido melhores que as minhas. Já soube o que há com esse palhaço, Spear?

- Acabo de deixá-lo. Acho que topou a parada - contei-lhe que Danny e eu íamos proteger Irv e Franzi­no respondeu:

- No seu caso, não sei... certa gente pensa que qualquer bobalhão pode ser policial. Mas a idéia de le­var o cego. é a maior. Que espécie de arma você porta?

- Arma? Eu não tenho arma nenhuma.

- Ótimo guarda. Se eu lhe arranjar uma pistola, saberá usá-la?

—-Fui reprovado no Exército numa prova de tiro cem automática calibre 45.

- Será melhor aprender... depressa. Ninguém sabe de que lado aqueles "caras" vão mandar chumbo.

- Não me lembrei disso - disse eu, pensando em que encrenca me metera. - Mas, a propósito da idéia que lhe queria expor: e a morte de Turner? Havia duas pistolas no caso e Turner foi apanhado de surpresa.

Houve um momento de silêncio do outro lado da linha. A cabina estava quente e pus-me a abrir e fe­char a porta, para arejar um pouco. Franzino voltou a falar:

- O.K. "seu" charadista, qual é a resposta? Não estou muito esperto hoje... que quer dizer com isso?

- Turner, o policial ambicioso, foi alvejado pelas cos­tas... nem chegou a sacar a pistola. Até aqui temos calculado que só houve um criminoso, que matou os dois homens. Sabemos que Turner estava dentro do carro, vigiando o quarto de Louise. Agora, suponhamos que ele tenha visto Brown matar Andersun. Desceu do car­ro... mas Smith podia estar postado a uns doze passos atrás de Turner. Provavelmente quando Turner ia sa­car a pistola, Smith o alvejou pelas costas.

- Bem... Sim, podemos examinar esse ângulo - disse Franzino em tom polido. — Porque a bala que pe­gou Turner tinha desaparecido, tomamos como certo de que havia só um sujeito, uma só arma... embora eu não entenda bem por quê. Harris, você acaba me obri­gando a frequentar cinemas outra vez... vocês, deteti­ves particulares, afinal não são tão tolos quanto pare­cem. Mas é uma teoria tão válida quanto qualquer ou­tra já examinada. Mas vá procurar o cego. Agora, que­remos ação e não teorias.

- Obrigado, vou deixá-lo recomendar-me ao meu curso por correspondência - respondi, e ambos desliga­mos. Brinquei um pouco com Alma, que me perguntou quando teria mais telefonemas para ela dar com sua voz "sensual". Ia saindo quando ela gritou:

- Cuidado, Barney... sou capaz de experimentar mi­nha voz com você, um destes dias.

Eram onze e cinco quando encostei o carro em fren­te do "Grand Café". Ao ver-me, Jimmy, o homem do bar, torceu o nariz como se estivesse sentindo algum mau cheiro. Danny Macei estava sentado diante de uma lata de cerveja e na outra extremidade do bar, um sujeito estava tratando de curar a bebedeira da véspe­ra com um gole matinal, falando sozinho, em voz mansa. Batendo nas costas de Danny, falei:

- Como vamos, Danny? Sou Barney Harris. Lembra-se de mim, o...Berrando "Seu filho da...", Danny exibiu outra vez sua habilidade de dobrar a lata de cerveja. Apenas, desta vez, dobrou a lata em cima de minha cabeça!

Lembro-me vagamente de sentar-me no chão, com sangue a correr-me pela cabeça e pelo rosto... sangue frio. Minha cabeça começou a roncar como um avião a jacto prestes a levantar vôo.

Ouvi, a milhas e milhas de distância, a voz de Jimmy gritando:

- Danny! Danny, quer que me cassem a licença? Largue ele... Danny! Você já machucou bastante o ca­nalha. ..

Minha cabeça finalmente conseguiu safar-se de meus ombros e eu não vi mais nada.

 

RECOBREI os sentidos ainda caído no piso imun­do, embora não soubesse bem em que outro lugar poderia estar. Toquei meu rosto molhado e olhei para minhas mãos. Não era sangue... Danny tinha-me agre­dido com uma lata de cerveja quase cheia e era a cerve­ja que me escorria pela cabeça e pelos ombros. Tinha uma dor de cabeça terrível e nem mesmo meus cabelos rebeldes escondiam o galo, nada gracioso e latejante, do lado direito de meu coco.

Pensei em erguer-me, olhei em torno de mim. Um pequeno grupo de curiosos olhava-me, divertido, da por­ta. Danny Macei estava sentado num cubículo balan­çando a bengala branca como um bastão de "base-ball", praguejando. Jimmy, que estava de pé junto a mim, disse:

- Estou lhe avisando, Danny. Mais uma destas e você será proibido de pôr os pés aqui... para sempre.

- Então, pra que tanto barulho? - perguntei, pondo-me de pé. Com surpresa minha consegui manter-me assim. É uma coisa que não aguento... pancada na ca­beça deixa-me fraco como um gato doente, faz-me o es­tômago dar voltas. - Que é que há com Danny? - quis saber.

- Não vai com sua cara - explicou Jimmy.

- Você está brincando - aproximei-me, mantendo-me porém, fora do alcance da bengala. - Que histó­ria é essa, Danny?

-"Seu"sujo fedorento... vou quebrar todos os ossos de sua cabeça dura.

Os olhos são muito importantes para expressar ira. Um homem cego nunca pode realmente parecer furioso porque seus olhos não têm expressão.

- Acho que você seria capaz de quebrar-me o crânio - disse eu - provavelmente, já quebrou. Mas por quê?

Danny fez algumas observações sobre os hábitos se­xuais de meus antepessados e arremessou furiosamente a bengala para mim, chegando quase a atirá-la no cubí­culo vizinho. Jimmy aproximou-se cautelosamente dizen­do:

- Vamos, Danny, que diabo, Danny, pare com isso! - e voltando-se para mim: - Por que não dá o fora daqui?

- Estou apenas cumprindo meu dever - disse eu, olhando-o de frente. - Cumprindo...

- Vá fazer isso em outro lugar - retrucou o "barman".

- Você deve estar cansado de olhar para sua licen­ça. Lembre-se: um policial foi assassinado.

- Isso é ameaça?- Danny berrou:

- Deixe-me pôr as mãos em cima dele. Vou arran­car-lhe as tripas!

Balançou outra vez a bengala e eu avancei, agarrando-o pelo pulso. O cego era forte, mas eu estava firme e quando ele começou a mover a mão esquerda, agarrei-o pelos músculos do ombro com a mão esquerda e apertei.

- Danny, você quase me arrebenta a cabeça... pe­lo menos diga-me o que é que eu fiz!

- Vou!...

Apertei com mais força.

- Sou um... A única mulher que deixa um velho ce­go dormir com ela, muitas vezes de graça, você arranja uma encrenca para ela. Agora ela vai se mudar, nunca mais abrirá a porta para ninguém!

- Ela era boa para Danny - disse Jimmy muito sério.

- Nada fiz à Louise. Juro, Danny, foram os "tiras".

- Foi você, "seu" mentiroso sujo! - berrou Danny, esforçando-se por livrar-se de minhas mãos. - Ela me disse.

- Sei o que ela pensa, mas não é verdade. Danny, eu e você somos diferentes dos outros sujeitos. Somos fortes demais para termos que mentir ou trapacear. Não estou mentindo pra você. Não fui eu. Foram os "tiras". E posso prová-lo.

Danny voltou para mim os olhos sem luz:

- Como pode prová-lo?

- Venha comigo ao distrito. Vou fazê-lo conversar com o "cara" que a mandou prender. Mas não dê nele. Ele poderá mesmo dizer-lhe que fui eu quem tirou Louise da "cana".

- Cachorro, está-me enganando? - indagou Danny.

- Danny, os homens que têm músculos são francos. Só quero é provar que não fiz nenhuma sujeira contra ela. Tenho que provar-lhe isso porque tenho um traba­lho para você.

- Louise disse... Trabalho?

- Que espécie de trabalho? - indagou Jimmy des­confiado.

- Um trabalho que exige músculos... você está fo­ra, portanto! - declarei ao homem do bar. Larguei Danny e recuei, mas o cego não tentou arremessar-me a bengala.

Danny pôs-se de pé:

- Vou falar com esse "tira", só para ver se você está falando a verdade.

- Ótimo. Depois falaremos no trabalho.

Danny dirigiu-se para a porta, tateando o caminho com a bengala. Segui-o. Êle perguntou:

- Que espécie de trabalho posso fazer?

- Depois eu conto. Será trabalho para um dia ou dois. Dez dólares por dia.

- Dez dólares? E para quem vou trabalhar?

- Para mim.

Na calçada, tomei-o pela mão, mas ele disse:

- Tire as patas de cima de mim. Continue a falar e eu seguirei.

- Meu carro está encostado no meio-fio. Vamos até a delegacia, depois, durante o almoço, conversaremos so­bre o trabalho.

- Por que não podemos conversar agora?

- Por que tenho que estar bem certo de que po­demos confiar um no outro - respondi, segurando a porta do carro aberta. Ele entrou e eu fechei a porta. Rodei o carro e sentei-me ao volante.

Enquanto seguíamos para a delegacia, Danny disse:

- Se você estiver fazendo sujeira, se me meter em "cana", hei de quebrar-lhe o pescoço - depois acrescen­tou, em tom de tristeza: - Há... anos que não trabalho. Também nunca pedi esmolas. Logo que perdi a visão, viajei durante algum tempo com uma "troupe" ambulante, fazendo um número de levantamento de peso. Mas eles estavam sempre a me pregar peças, roubavam-me... larguei-os. Você disse dez dólares por dia?

Balancei a cabeça, mas lembrando-me de que era cego, falei:

- Sim.

Com o movimento que fizera a cabeça começou a doer mais. Encostei o carro em frente à delegacia de po­lícia, desci e abri a porta para Danny.

- Deixe-me pegá-lo pela mão - disse-lhe. - Há mui­tos degraus por aqui.

O Tenente Franzino não estava lá de muito bom hu­mor. Quando lhe apresentei Danny, dizendo que este es­tava "considerando" a possibilidade de trabalhar para nós, Franzino disse ao velho:

- Já o conheço de vista.

- Que é que anda fazendo?... me espionando?

- Este é meu distrito. Meu dever é conhecer os "caras" por aqui.

Tratei logo de intervir:

- Mr. Macei deseja que lhe esclareçam uma coisa. Estive explicando a ele que você resolveu prender Louise.

- Exatamente. Vou tocá-la daqui - declarou Fran­zino.

- Por quê? - indagou Danny quase berrando. - Ela não faz mal a ninguém.

- Porque é uma prostituta e prostituição é contra a lei. Talvez não devesse ser, mas não sou eu que faço as leis... apenas as faço cumprir como posso. E preten­do tocar com todas as vagabundas que puder para fora de meu distrito.

- Você não acha, que está querendo que o arre­bente? Estou com vontade de lhe torcer o pescoço - de­clarou Danny flexionando os braços formidáveis. - E posso fazer isso muito bem.

Recostando-se na poltrona, Franzino disse com frie­za:

- Não. Não pode porque tenho um distintivo que me confere o direito, por lei, de usar uma pistola ou um cassetete. Se provocar barulho aqui, não hesitarei um segundo em abrir-lhe a cabeça ou atirar à queima-roupa. Está bem claro?

Danny resmungou:

- A gente já tem tão pouco gozo na vida e ainda vem um intrometido...

- Pare de cuspir aqui dentro de meu gabinete - disse Franzino como que a gozar a própria dureza. - Se ela lhe pegasse uma daquelas bravas, você seria o primeiro a tentar matá-la. O fato é que ela talvez tenha sido causa de dois assassinatos.

- Louise é uma mulher "legal", uma boa mulher, que sabe respeitar as leis! - retrucou Danny.

- Essa gente que respeita as leis me dá vontade de vomitar - declarou Franzino. - Está sempre tratan­do de ver quantas pequeninas leis podem infringir... fumar no trem subterrâneo ou atirar papéis nas ruas. Quando nós pedimos a ajuda dessa gente, reage como se fôssemos nós os infratores. Dois concidadãos seus foram assassinados e quando a gente pede sua ajuda, você co­meça a choramingar a respeito de uma prostituta. Você e aquele outro nobre cidadão, Irving Spear, dão-me von­tade de vomitar. O crime não é problema só nosso. A tarefa é de todos. Se você não nos quer ajudar, não nos faça perder tempo. Ponha-se daqui para fora!

Antes que eu pudesse falar, Danny disse:

- Você se aproveita desse distintivo para dizer o que quer. Quem é que disse que eu não quero ajudar? Que está dizendo?

- Não tive tempo ainda de falar a Mr. Macei sobre nossos planos - expliquei.

- Você... você tem tempo para escutar todas essas bobagens acerca de uma vagabunda e para emborcar cer­veja. Está cheirando como um barril de chope, Harris.

- Mr. Macei precisava convencer-se de certas coi­sas, antes de chegarmos a discutir as demais. Acontece que não estive bebendo cerveja... tomei um banho de cerveja.

- Que conversa fiada é essa? - quis saber Danny. - Se esse "tira" emproado quer alguma coisa de mim, por que não fala logo, como homem?

Assim, como homens, contamos o que queríamos. Estava mesmo certo de poder reconhecer a voz de Brown? Estava disposto a arriscar-se e tudo mais? Ele escutou tudo, de fisionomia impassível. Depois, voltou-se para mim:

- É esse o negócio de dez dólares por dia?

- Que dez dólares por dia são esses? - indagou Franzino.

- Ora... eu... ofereci pagar os serviços de Mr. Macei. Entram em minha conta de despesas - come­cei.-Achei melhor fazer assim.

Danny ergueu o corpo maciço tão ereto quanto pôde e disse com dignidade real:

- Frankie era meu amigo. Irv também é meu amigo. Você não precisa pagar-me para proteger um amigo ou para descobrir o matador de um amigo. Que diabo, não acha que estamos perdendo tempo... que já devíamos estar trabalhando?

- Ótimo - disse Franzino falando, de repente, em tom sereno e cortês. - Vou mandar chamar Spear e começamos logo. Muita engrenagem será posta em mo­vimento. Talvez possamos ainda publicar alguma coisa nos jornais da tarde. Danny, bico calado sobre tudo isso. A menor indiscrição pode provocar mais algumas mortes... inclusive a sua.

- Você não pode contar isso nem a Jimmy - acres­centei.

- E como vou explicar a ele o trabalho... minha ausência do bar por um dia ou dois?

- Diga que o emprego gorou e você teve uma dor re­pentina no estômago e teve que ficar no hospital em observação - disse Franzino. - Qualquer coisa assim. Mas não conte nada muito complicado. Barney há de ter alguma idéia... sempre tem.

Combinamos voltar mais tarde para mais explica­ções e, no caminho para o almoço num restaurante po­pular, o velho disse:

- Sabe que aquele "tira" me assustou por um mo­mento? Roubei há dias um poste de sinalização de trá­fego... você sabe, um daqueles grandes, com base de cimento... e tive a impressão de que ele sabia.

- Para que roubou uma coisa dessas?

- Para fazer exercício de peso... não posso com­prar halteres - disse Danny, como se eu tivesse feito uma pergunta idiota.

Organizaram um plano tão complicado de proteção, que até o próprio Irv declarou-se satisfeito. Partindo da hipótese de que os assassinos não conheciam a empresa de táxis para a qual ele trabalhava, a polícia municipal e os agentes federais ocuparam uma pequena garagem na rua Cem, esquina de Cinquenta e Quatro, dando para o Rio Harlem, em frente a uma agência dos Correios, que proporcionava um bom local para vigiar a garagem. Dois motoristas de táxis que trabalhavam por conta própria guardavam os carros na garagem, mas estavam fora o dia todo e quase toda a noite. Em vez de sair com Irv, minha incumbência era ficar trabalhando co­mo mecânico dentro da garagem, enquanto que Danny e vários "tiras" viajariam como passageiros do táxi de Irv.

Era uma garagem pequenina e suja, com uma ram­pa que descia da calçada e uma porta grande, de correr, para os carros e outra menor, recortada na maior. Du­rante a temporada de "baseball" a garagem fazia di­nheiro com os carros que eram guardados lá durante o jogo. Devia ter capacidade para cerca de trinta e cinco carros. Irv recebeu um táxi velho, porém munido de um pequeno aparelho transmissor por baixo do painel, que garantia o contato com os carros da polícia e, segundo afirmaram captava até o ruído de um alfinete que caís­se. Eu fiquei com um jipe de reboque e cabia-me levar Irv para casa às seis horas, com Danny ao meu lado. Dois jovens policiais foram designados para acompanhá-lo à escola e outros dois ficavam dia e noite no apar­tamento da mãe dele, onde morava. Três botões tinham sido instalados na garagem e bastava premir um deles para que os rapazes postados do outro lado da rua che­gassem imediatamente. Deram-me uma pistola especial, calibre .38 para usar sob o macacão, mas eu não estava muito certo se saberia usá-la.

As notícias surgiram nos vespertinos, em grandes manchetes. Um tal de Tommy Wills confessara ter ati­rado em Andersun e Turner. Alegou que estava embria­gado na ocasião e danado com Turner que o maltratara dias antes, quando fora detido como desordeiro. Estamparam o retrato de um camarada cobrindo o rosto diante das câmaras e uma porção de mentiras acerca do chefe de polícia estar "altamente satisfeito" pelo excelente e incansável trabalho realizado pela Delegacia de Homi­cídios. No fim da notícia, havia a declaração da fábrica de pudim, de haver dado os mil dólares ganhos por Franklin à irmã, que ia aproveitar o dinheiro para pas­sar a lua-de-mel na Europa, com o futuro marido, Ir­ving Spear. Havia uma fotografia de Irv beijando a noiva.

Era um prazer ler-se a notícia: dois crimes solucio­nados e um casamento, encerrando o caso com uma notí­cia auspiciosa.

Telefonei logo para Betsy recomendando-lhe não fa­lar muito, caso fosse procurada pela imprensa. Bastava dizer que folgava em saber que o caso fora resolvido. Nada mais.

Ainda não me sentia muito sossegado quando fui buscar Ruthie no jardim de infância. Ela pulou no meu colo e enquanto me dava um grande abraço, com uma das mãozinhas bateu em meu "galo" oculto sob os ca­belos. Dei um grito e vi estrelas de todas as cores. Ru­thie perguntou uma porção de coisas e insistiu em bei­já-lo... o que me doeu como o diabo.

Depois, quando perguntei a May Weiss se poderia ir apanhar Ruthie na escola por uns dois dias e ficar com ela à noite... May respondeu que estava atrasada em seus exercícios escolares e os pais ainda me passaram um sermão, dizendo que não sacrificariam o futuro da filha por alguns dólares.

Não entendi bem o que queriam dizer, mas a respos­ta era um "não" bem redondo. Ruthie, é claro, logo lembrou o nome de Betsy e não tive outro jeito senão telefonar para ela. Betsy não só concordou, como disse que seria mais simples que Ruthie ficasse com ela du­rante algum tempo. Nem achei necessário perguntar a Ruthie se concordava com a idéia.

Mal acabava de telefonar quando Jake chegou di­zendo que soubera pelos jornais que o caso fora solucio­nado e que folgava com isso, embora fosse evidente que sua informação não adiantara muito. Parecia meio de­cepcionado.

Arrumei uma valise com a ajuda de Ruthie, pegamos o carro e fomos para o apartamento dos Turner. Betsy estava bem em seu papel de dona-de-casa, de "slacks" de flanela e blusa, com um avental por cima. Já tinha bolo e leite à espera de Ruthie e vários cortes de fa­zenda espalhados junto à máquina de costura. Comecei a explicar-lhe que Ruthie devia ir para a cama cedo, a que horas tinha que estar na escola, mas Betsy interrom­peu-me dizendo:

- Ora, vá olhar a televisão, faça o que quiser. Deixe as mulheres em paz.

Ruthie gozou com a piada e eu disse a Betsy:

- A demora é pouca. Tenho que...

- Não quis dizer que você tenha que ir embora, Barney.

- Olhe o "galo" de papai - disse Ruthie. - Levou uma pancada na cabeça.

Antes que eu pudesse impedir, Betsy, com uma ex­clamação abafada pôs-se nas pontas dos pés e tocou mi­nha cabeça. Tornei a ver estrelas e tive a impressão de que o cocuruto ia arrebentar.

- Que aconteceu, Barney?

- Nada. Um sujeito ofereceu-me uma lata de cer­veja. Olhe aqui, preciso ir para casa, porque amanhã tenho que começar cedo e trabalhar o dia todo - fiz sinal com os olhos para que Betsy viesse comigo até a porta. Depois beijei Ruthie, recomendei-lhe juízo e prometi vir buscá-la na noite seguinte.

Ela deu-me na boca um beijo de chocolate. O bolo era gostosíssimo e eu mordi um bocado da fatia que ela tinha na mão, o que não agradou nada a Ruthie... - Você é mesmo guloso.

Acompanhando-me à porta, Betsy foi até o "hall" comigo e eu aproveitei para dizer-lhe:

- Se for procurada por repórteres, faça o que lhe disse. Não sei quanto tempo terei que ficar com o homem-isca, mas telefonarei. Não deixe Ruthie fazer muita travessura.

- Ela se comportará bem.

- Olhe aqui, acho que sei o que aconteceu com Ed. Nós... quero dizer, a polícia... tomou como certo que os dois homens foram alvejados com a mesma arma. Agora que sabemos que estamos lidando com dois cri­minosos, o mais certo é que Ed estivesse sentado no carro, esperando...

- Em frente da casa da tal mulher! — atalhou ela com amargura.

- Sim. Os assassinos não sabiam que ele estava ali. Um deles surgiu das trevas e atirou em Andersun. Ed provavelmente pulou do carro, mas não sabia que havia outro assassino atrás dele. Provavelmente foi assassinado quando procurava a própria arma. Isso é mais de acordo corri... eh... o temperamento ambicioso de Mr. Turner. Elimina completamente a hipótese do suicídio. Pode-se dizer que Ed, como policial, morreu no cumprimento do dever.

Ela mordeu o lábio superior e ficou imóvel por um longo segundo.

- Obrigada. Isso me fez bem.

- Agora que sabe o que queria saber, o caso está encerrado... para você. De hoje em diante não lhe cobro mais nada, mas gostaria que me permitisse continuar...que me desse o direito de continuar a tratar do caso.

- Contratei você para descobrir o assassino de Ed...continue trabalhando por minha conta. Só isso encerra­rá, de fato o caso para mim. E... seja prudente, Barney.

Respondi que sim balançando a cabeça... sem saber bem, afinal, por que queria continuar metido no caso, pois o simples fato de balançar a cabeça fez o "galo" co­meçar a agir como uma escavadeira anã.

Voltando para casa, achei tudo muito silencioso. Pre­parei uma boa tigela de flocos de trigo com creme de chocolate e tentei escutar o rádio. Quando acabei de comer, pus o despertador para as cinco da manhã e fui dormir. Há poucos dias ainda, considerara Betsy como possível assassina. Agora, estava deixando Ruthie dormir em casa dela... Pensei em Betsy, no modo pelo qual ela se oferecia e também se estava ou não sendo um idiota em não aceitar. Depois do que ela havia sofrido com Turner, era natural que quisesse provar ser atraente e eu era o primeiro par de calças a aparecer no caminho. Não, isso era simples demais, embora ela parecesse um bom campo de prova. Mas eu já estava muito velho e ape­gado aos meus hábitos, para me incomodar com os com­plexos de uma jovem. Comecei a preocupar-me com o dia de amanhã... com o 38 que me deram. Irv estava mesmo bem com seus dois protetores: um velho cego e um suposto detetive!

Adormeci com esse pensamento e acordei com o des­pertador a enfiar-me agulhadas na cabeça dolorida. A manhã estava fria e escura e não há nada que eu detes­te mais do que acordar cedo. Tomei um rápido banho de chuveiro, meti-me em um macacão e toquei de carro para a garagem. Peguei o jipe (estava precisando de um conserto) e fui apanhar Danny em frente à delegacia. Tomamos café com bolinhos, parei quando ele atacou seu quarto bolinho e Danny levou todo o tempo falando no tempo em que enfrentara Strangler Lewis, em 1916.

Em seguida, fui apanhar Irv, que estava muito ani­mado.

- Isso me faz lembrar minha primeira missão num B-24 - disse ele. - Vamos andando... a aventura nos chama.

- Você está bêbado? - indagou Danny.

- Pode-se estar bêbado sem beber... pois bem: estou bêbado de medo. Vamos indo antes que comece a berrar de medo.

Chegamos à garagem às seis e meia e Irv apanhou seu táxi, levando Danny como passageiro. Do outro lado da rua, no pátio de carga da agência dos correios, dois "carteiros" deixavam-se ficar conversando, enquanto jun­to à entrada da garagem. Estava estacionado um pequeno caminhão de entrega. Devia ser monótono para os dois camaradas ficarem ali postados o dia todo.

Fiquei sozinho na garagem e a pistola me incomoda­va tanto que não cessava de mudar o coldre de um lado para outro por baixo do macacão. Achei que o melhor para parecer mesmo um mecânico seria fazer algum tra­balho. Vi um Oldsmobile de 1948 sobre calços. Desmon­tei o motor e trabalhei a manhã toda. A única coisa que ocorreu foi um telefonema de Franzino para verificar se eu estava em meu posto.

Ao meio-dia Danny chegou num... num táxi diri­gido por um detetive municipal. O velho trouxe-me café e sanduíches e enquanto comíamos contou-me que tudo estava sossegado. Ninguém seguira o táxi de Irv, em­bora tivesse rodado por toda a cidade. Em Times Square tinham posado perante as câmaras de televisão (entrevis­ta com o homem da rua) numa cena em que Juanita beijara Irv e contara a todos como estava contente com o desfecho do caso e que os dois se casariam a bordo para não perderem tempo. Os jornais da tarde também estam­param fotografias e histórias, ouvira dizer Danny, sobre o "romance". Brown e Smith deviam entrar logo em ação... caso ainda estivessem no pais.

- Estou admirado com a cooperação de Juanita - disse eu.

Danny deu uma risada.

- Também estranhei. Tem lá suas idéias... acha que toda essa publicidade ajudará Irv quando ele ter­minar os estudos. Provavelmente também está tentando conseguir alguma coisa da fábrica de pudim. Você acha que esse tipo de publicidade vende pudim? Ouvi dizer que os funcionários do setor de publicidade da fábrica estão trabalhando fora do expediente com os policiais.

- É possível... a idéia de publicidade é levar o no­me do produto ao público - respondi voltando a traba­lhar no Olds. Danny andou pela garagem, batendo com a bengala. Ao cabo de uma hora já podia locomover-se sem tocar com a bengala no chão. Perguntei-lhe como conseguia tal coisa e ele. explicou:

- Posso guardar a topografia de qualquer lugar muito depressa. Todos as cegos são assim. Em meu quarto, ando como se tivesse olhos, mas tenho que repetir sem­pre à senhoria que não mude os móveis de lugar... se­não fico confuso. Isso é simples para mim, a não ser que você mudasse de lugar algum dos carros ou o ma­caco ali do outro lado.

Às duas horas, um táxi com Al Swan como passagei­ro apanhou Danny. Terminei de ajustar o motor do Olds, descobri uma bateria, pus gasolina no carburador e experimentei o carro. Não tinha limpado o depósito de óleo que devia estar cheio de pó de carvão. O motor roncou, descarregou até que a gasolina acabou. Fui até a calçada por um momento tomar um pouco de ar e acen­di um cigarro. Um dos "carteiros" aproximou-se de mim, pediu-me um cigarro e indagou baixinho:

- Soube de alguma coisa?

- Não. Vocês não ouviram o barulho que acabo de fazer com um carro?

- Nem um pouquinho. A garagem é uma velha construção... as paredes são muito grossas.

- Neste caso as coisas estão mesmo pretas.

Voltei para o interior da garagem, passei graxa no velho Olds e, depois, lavei-me e pus-me a ler um jornal velho que encontrei. Sendo situada abaixo do ní­vel da rua, a garagem, às quatro horas, já estava fican­do escura e eu tive que acender as luzes. Danny voltou poucos minutos depois e o "tira" que o trouxe voltou para a cidade. Danny não tinha nenhuma novidade pa­ra dar-me, a não ser que houvera outra entrevista de televisão, na qual Irv contara a um grupo de colegas seus que ia tirar seu passaporte de manhã e os camaradas falaram em dar uma festa de despedida para ele, na garagem.

Às cinco horas telefonei para Betsy, que me disse que Ruthie estava bem. Acabava de desligar, quando um táxi surgiu no alto da rampa e parou. Dois ho­mens desembarcaram do banco dianteiro e começaram a descer a rampa. Estavam ambos mal trajados e eram de aspecto rude. Um deles era baixo e de pernas arqueadas. O outro, alto e pesado.

- Dois sujeitos descendo - murmurou Danny.

- É! - disse eu, sentindo o estômago apertado. Não se pareciam nada com o que eu imaginara de Brown e Smith... eram mais velhos... mas, assim mesmo...

- Que desejam? - perguntei, começando a subir a rampa.

Ambos estacaram não longe da porta e o mais bai­xo indagou:

- É aqui que vai ser a festa para Irv? Confirmei com a cabeça.

O mais alto olhou ao derredor e disse:

- Não entendo. Como é que Irv mudou de empre­sa, assim de repente? Ontem, ainda estava trabalhando para a...

- Amigos de Irv Spear? - perguntei pensando co­migo mesmo como seria fácil para eles acertarem-me ali mesmo.

- Conhecemos o rapaz - respondeu o baixote e, por um momento, pareceu-me perceber certo sotaque arras­tado na voz dele. - Ouvimos, na televisão de um bar, que vai haver uma festa, por isso, pensamos...

Justamente nesse momento uma meia dúzia de "car­teiros" surgiram pela rampa abaixo, todos de pistola em riste. Um deles rosnou:

- Mãos para o alto senão esburacamos vocês dois! O motorista baixinho empalideceu e perguntou:

- Que diabo é isso?...

Foram revistados rapidamente, mas não estavam ar­mados. Danny aproximou-se, batendo com a bengala pela rampa e disse:

- Nenhum dos dois é Brown.

Os dois motoristas de praça passaram a explicar por que tinham vindo e os "tiras" levaram-nos para fora e levaram o táxi. Ainda vi quando foram empurrados para dentro da agência dos correios, do lado oposto da rua.

Um dos "carteiros" voltou e disse:

- Não queira bancar o herói, Harris. Desta vez foi um falso alarme, mas, da próxima, trate de ter a pistola à mão.

- Não se incomode que a terei - disse eu apalpan­do o macacão em busca do coldre. Quando o camarada se retirou, fechei a porta de correr, fui depressa ao ve­lho Oldsmobile e apanhei o coldre e a pistola calibre 38, que tinha deixado no banco da frente.

Aproximei-me de Danny e ainda estava suando quan­do lhe disse:

- Por um triz, hem?

Ele começou a rir, um riso profundo, um riso que parecia vir da barriga.

- Jesus, aqueles dois motoristas de táxi devem estar pensando que o mundo ficou biruta! Carteiros puxando armas para eles! Que vão fazer com os dois pobres coi­tados agora?

- Não sei. Têm que trancafiá-los para não darem com a língua nos dentes. Diabo... ainda estou com o coração aos pulos.

- Vi logo que não eram eles, conheço a voz - disse Danny. - Eh! tem alguma cerveja escondida por aí?

Respondi que não e ele pediu um cigarro. Fumamos em silêncio durante alguns minutos. O telefone tilintou. Um camarada do F.B.I., de voz ríspida, avisou-me que Irv viria com o carro para a garagem às seis e meia. Dois carros me seguiriam quando fosse levar Irv em casa no jipe. Pedi-lhe que desse duas buzinadas para eu abrir a porta principal para Irv. Depois de desli­gar, entrei no jipe e mal tinha começado a manobrá-lo, quando ouvi dois ligeiros ruídos como uma tosse e, de­pois, o ruído de vidro quebrado... e a garagem mergu­lhou nas trevas.

Durante um momento não compreendi bem o que ti­nha acontecido... que as luzes tinham sido apagadas com pistolas munidas de silenciadores. Acendi as luzes do jipe e, por uma fração de segundo, avistei os dois ho­mens na rampa. Depois, os "flashes" de fulgor alaranjado e o som dos faróis arrebentados. Outro clarão e o vidro estraçalhou-se. Mergulhei para fora do jipe e qua­se me arrebentei todo no piso de cimento. Levei um bom momento para cair em mim, tomar fôlego. Catei o calibre 38 e, finalmente, agarrei-o. A garagem estava em completa escuridão e em tenso silêncio. Ouvi um ligei­ro ruído de alguém que se aproximava de rastros. Expe­rimentei um frio de gelo nas entranhas até que senti a mão enorme de Danny apertando a minha.

Depois, ouvi passos cautelosos, descendo a rampa, e Danny cochichou-me ao ouvido:

- Fique aí. Vou agarrá-los.

- As campainhas de alarme - comecei a dizer, mas seus dedos grossos fecharam-me a boca e senti o gosto do sarro de cigarro nas mãos de Danny. O cego afastou-se e... juro que o ouvi dar uma risadinha.

Minha cabeça doía. Estava todo machucado... tal­vez fosse por isso que tardara a entender as coisas. Na escuridão, éramos todos "cegos", exceto Danny. Danny podia "ver" com os ouvidos. Mas, mesmo que pusesse as mãos em um dos dois, o outro com certeza acertaria nele.

Tratei de refletir bem e depressa, mas, nem para salvar minha vida (e isso era na expressão literal da palavra!) não consegui lembrar-me, na escuridão, onde ficavam os botões de alarme.

Agarrei-me ao chão como se quisesse abrir um bura­co no cimento e aguardei. Depois, disse comigo mesmo que tinha que ajudar Danny... ele não podia com os dois e eu não podia continuar ali como um pato morto. Ergui-me sobre os joelhos... por trás do jipe... encon­trei no bolso a chave inglesa que me cortara a coxa quando me atirei ao solo. Segurando bem a pistola ar­remessei a chave com a mão esquerda à outra extremi­dade da garagem. Quando a chave inglesa caiu, vi um clarão alaranjado à esquerda, seguido por um grito lan­cinante de dor e o ruído de um corpo que caía.

Mais dois clarões romperam as trevas, enquanto as balas batiam no jipe como marteladas. Atirei-me outra vez ao chão, tão admirado com a sorte de ter acertado num deles, que nem sabia o que fazer. Os últimos tiros tinham vindo de um ponto mais à direita, mas eu não sabia bem de onde e não podia arriscar-me a atirar ao acaso. Poderia acertar em Danny. Ouvi passos na di­reção do jipe... o sujeito já tinha passado da rampa... passos lentos, cautelosos. Ergui-me nos joelhos e aguar­dei, meio encolhido.

O ruído dos passos era leve mas bem nítido no si­lêncio. A única coisa que quebrava ligeiramente as tre­vas era a luz difusa que vinha das duas janelas da ga­ragem. Os passos aproximaram-se. O sujeito estava ca­minhando cuidadosa e deliberadamente na escuridão. Er­gui a pistola e apontei na direção dos passos... ouviu-se um terrível grito de agonia que quebrou o silêncio como um trovão. Depois, o brado de Danny:

- Acertou no bandido!

Pus-me de pé e atirei três vezes para as janelas da garagem... para pedir socorro... mas não acertei. As luzes do velho Oldsmobile deviam estar funcionando com a nova bateria que eu tinha colocado. Corri em sua di­reção e caí de cara no chão sobre alguma coisa. Sentei-me no chão, senti que meu braço e um lado de meu ros­to estavam sangrando. A cabeça doía tanto, que pare­cia que alguém se tinha sentado nela.

- Estou procurando alguma luz, Danny - gritei, erguendo-me de pé e avançando para a frente. Dei uma canelada tremenda no diabo do Oldsmobile, que quase me fez perder o fôlego, mas consegui abrir a porta, ta­teei ,pelo painel. Imediatamente a garagem foi inundada de luz.

Ao pé da rampa estava sentado um homem, um ho­mem completamente calvo com o sangue a escorrer-lhe pelo lado direito do rosto. A poucos passos do jipe, Dan­ny mantinha nos braços possantes um homenzinho que tinha o rosto mais branco que jamais vi. Pulando numa perna só, aproximei-me de pistola em riste e disse a Danny que o largasse. O sujeito caiu ao chão como morto.ED LACY

Apanhando a pistola do intruso, aproximei-me do outro "cara" que gemia baixinho, sacudindo as pernas de dor. Tomei-lhe a pistola. Atirei outra vez numa das janelas da garagem... a pistola fez um barulhão, coisa que eu nem notara antes. Não acertei. Sentia-me ator­doado. Procurei ansioso, com o olhar, as campainhas de alarme. Em seguida, Danny dirigiu-se para a rampa e começou a subir lentamente para a porta. Quando a al­cançou, suspendeu-a com tanta violência que a arreben­tou. Deu um berro e, num momento, os "carteiros" en­traram na garagem de armas em punho. Foi só.

Eu tinha chumbado "Smith", por sorte, com um ti­ro ao acaso e Danny tinha imobilizado Brown. Verifi­cou-se que Brown era o que estava em piores condi­ções... Danny lhe quebrara cinco costelas com seu abra­ço de tamanduá. O resto, o leitor já sabe... saiu em todos os jornais. Chamavam-se Martin Pearson e Sam Lund, dois ex-pracinhas que tentaram um expediente fá­cil, mas o fácil tornou-se difícil. Os dois conheceram-se em Paris e planejaram o golpe dos passaportes. Já ti­nham conseguido dez certidões de idade, sendo três em Boston, duas em Newark, uma em Chicago e quatro na cidade de Nova York. Já tinham oito passaportes para vender. Confessaram... não tiveram outro jeito. A sor­te de Andersun, ganhando o prêmio na televisão trans­formou-lhes o plano de vigarice em assassinato. Turner fora envolvido por acaso. Nem sabiam eles que se tra­tava de um policial, quando o viram descer do carro.

O leitor certamente viu a cara feia de Danny na te­levisão. Figurou num "show" na noite em que o caso explodiu e "roubou" o "show" com uma exibição de for­ça... arrebentar correntes e coisas semelhantes. Apare­ceu, durante bastante tempo, em vários espetáculos de TV e, afinal de contas, ganhou algumas centenas de dólares.

Quanto a mim... Al Swan quis deixar a polícia mu­nicipal para abrir comigo uma agência, aproveitando a publicidade que tive. Fez-me a proposta no dia seguinte do encerramento do inquérito, quando, pela primeira vez em minha vida fui ferido, todo machucado e sentia-me arrasado. Respondi-lhe que ia continuar na tarefa de procurar carros furtados e declarei que se me mandasse outro caso de assassinato quebrar-lhe-ia o pescoço ou talvez fizesse coisa pior para ele... rasgaria um de seus vistosos ternos. Que o diabo carregue essa história de violências.

P.S.

- Se vamos casar? Não sei. Creio que não. Espere, não fique assim. Escute, meu bem: você viveu demais de acordo com as chamadas normas de vida... normas ar­tificiais, não as reais. Quero dizer, você está mesmo certa de querer casar comigo? Não responda já... lem­bre-se do que já sofreu. Casou-se. Logo, de acordo com as normas das novelas de rádio, dos livros, da televisão e do cinema, todas suas dificuldades estavam termina­das porque... quando a pessoa se casa vive feliz o resto da vida.

"Agora está solteira outra vez. Sua idéia é casar o mais depressa possível, porque, no fundo, você ainda acredita que casamento deve significar felicidade. E eu sou o primeiro "cara" que aparece em seu caminho. Além disso, você tem pena de mim porque pareço tão nobre, criando sozinho minha filhinha.

"Não, Betsy, não me interprete mal. Estou procuran­do apenas dizer-lhe isso com calma e a possível clare­za... o que, aliás, não é fácil. Não quero cometer um erro junto com você, porque, na minha opinião, um ca­samento errado é o maior erro que duas pessoas podem cometer. Eu sei. não sou velho, mas estou sossegado e não estou disposto a me "criar" outra vez. Menina, você é moça e cheia de idéias jovens e até quase infantis. Bem... talvez me engane muito e se estivesse certo de que o casamento nos faria felizes iria correndo tratar dos papéis amanhã. Mas o que você quer é casamento e não fazer-me criar mais uma garota.

"Espere, querida, deixe-me terminar. Talvez algum dia cheguemos à conclusão de que fomos feitos um para o outro, embora pareça isso um lugar comum. Com­preenda-me. Não a estou desprezando. Admiro sua co­ragem de passar pelo que passou para saber se Ed se suicidou e se você era culpada pelo suicídio. De certo modo, era mais uma de suas normas artificiais, mas, em seu lugar, muitas pessoas deixariam as coisas como esta­vam, ficariam quietas e afastariam de si a idéia do possível suicídio. Era preciso "peito" para fazer o que você fez. "Peito" não... é mais uma palavra artificial. Era pre­ciso coragem verdadeira e honestidade para fazer o que você fez e isso é coisa que eu admiro.

"E é justamente o que estou procurando fazer, ser honesto para com você... e para comigo mesmo. No momento, gosto de você e você gosta de mim. Mas acon­tece que "gostar" não é amar. Não quero nem usar a palavra amor porque não sei exatamente o que signifi­ca. .. talvez seja mais uma dessas etiquetas artificiais que usamos, mas pelo menos você sabe... nós sabe­mos... que havia algo deformado na mente de Ed. Mais uma de suas normas que não funcionam: um homem e uma mulher não se entendem bem na vida de casados apenas por serem um homem e uma mulher. Um...

Betsy escutou de olhos fechados. De repente, sen­tou-se na cama e exclamou quase bruscamente:

- Está bem, Barney, mas não vamos discutir isso agora. May Weiss ficará furiosa se você não chegar em casa até meia-noite.

 

                                                                                Ed Lacy  

 

                      

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